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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MUNDO TERMINA AQUI / Michael Grant
O MUNDO TERMINA AQUI / Michael Grant

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MUNDO TERMINA AQUI

 

                     299 HORAS E 54 MINUTOS

NUM MINUTO O professor estava falando sobre a Guerra Civil. No minuto seguinte, desapareceu.

Assim.

Sumiu.

Sem nenhum "puf". Sem clarão de luz. Sem explosão.

Sam Temple estava na aula de história, no terceiro período, olhan­do com expressão vazia para o quadro de giz, mas seus pensamentos estavam longe. Seus pensamentos estavam na praia, ele e Quinn. Na praia com as pranchas, gritando, preparando-se para o primeiro mer­gulho na água fria do Pacífico.

Por um momento pensou que havia imaginado aquilo, o desapare­cimento do professor. Por um momento pensou que estava sonhando acordado.

Virou-se para Maria Terrafino, sentada à sua esquerda.

Você viu isso, né?

Maria olhava intensamente para o lugar onde o professor estivera.

Ei... cadê o Sr. Trentlake? — perguntou Quinn Gaither, o me­lhor e talvez único amigo de Sam, sentado atrás dele. Os dois prefe­riam carteiras perto das janelas porque às vezes, se você pegasse o ângulo certo, poderia ver uma lasca minúscula e prateada de água brilhante entre os prédios da escola e as casas mais além.

Deve ter saído — disse Maria, parecendo não acreditar no que dizia.

Edilio, um aluno novo que Sam achava que poderia ser potencial­mente legal, disse:

Não, cara. Puf. — Ele fez uma coisa com os dedos, que era uma ótima ilustração do conceito.

Os alunos olhavam uns para os outros, esticando o pescoço para um lado e para o outro, rindo nervosos. Ninguém estava com medo. Nin­guém estava chorando. Aquela situação toda parecia meio engraçada.

O Sr. Trentlake pufou? — disse Quinn, com um risinho contido na voz.

Ei — disse alguém. — Cadê o Josh?

Cabeças se viraram para olhar.

Ele veio hoje?

Veio, estava bem aqui. Estava aqui do meu lado. — Sam reco­nheceu a voz. Bette. Bette Ricochete.

Ele, você sabe... sumiu — disse Bette. — Como o Sr. Trentlake.

A porta do corredor se abriu. Todos os olhares se fixaram nela. Agora o Sr. Trentlake iria entrar, talvez junto com Josh, e explicaria como tinha feito aquele truque de mágica, e depois voltaria a falar em sua voz empolgada e tensa sobre a Guerra Civil, com a qual ninguém se importava.

Mas não era o Sr. Trentlake. Era Astrid Alliston, conhecida como Astrid Gênio, porque era... bem, era um gênio. Astrid estava em todas as turmas avançadas que a escola oferecia. Em algumas matérias, esta­va fazendo cursos da universidade pela internet.

Astrid tinha cabelo louro indo até os ombros e gostava de usar blusas brancas engomadas, de mangas curtas, que jamais deixavam de atrair o olhar de Sam. Astrid era areia demais para seu caminhão, Sam sabia disso. Mas pensar nela não era proibido.

Cadê o professor de vocês? — perguntou Astrid.

Todos deram de ombros.

Pufou — disse Quinn, como se aquela fosse uma boa piada.

Ele não está no corredor? — perguntou Maria.

Astrid negou balançando a cabeça.

Alguma coisa estranha está acontecendo. Meu grupo de estudos de matemática... só tinha três pessoas na sala, além da professora. Todo mundo desapareceu.

O quê? — perguntou Sam.

Astrid olhou diretamente para ele. Ele não pôde desviar o olhar, como faria normalmente, porque o olhar dela não era desafiador nem cético, como de costume: estava apavorado. Seus olhos normal­mente penetrantes, de um azul cheio de discernimento, estavam arre­galados, com branco demais aparecendo.

Eles sumiram. Todos simplesmente... desapareceram.

E sua professora? — perguntou Edilio.

Sumiu também — respondeu Astrid.

Sumiu?

Puf — disse Quinn, agora sem rir tanto, começando a pensar que talvez não fosse uma brincadeira, afinal de contas.

Sam notou um som. Na verdade, mais de um. Alarmes de carros distantes, vindo da cidade. Levantou-se, sem jeito, como se na verdade não devesse fazer isso, e foi andando com as pernas rígidas até a porta. Astrid se afastou para que ele pudesse sair. Sam sentiu o cheiro do xampu dela, ao passar.

Sam olhou à esquerda, na direção da sala 211, onde se reunia o grupo de crânios da matemática do qual Astrid fazia parte. Na porta seguinte, da sala 213, um garoto pôs a cabeça para fora. Estava com uma expressão meio apavorada, meio divertida, como alguém logo antes de embarcar em uma montanha-russa.

Na outra direção, na sala 207, a garotada ria alto demais. Tão alto que era assustador. O pessoal do quinto ano. Do outro lado do corre­dor, na 208, três alunos do sexto ano saíram de repente para o corre­dor e se imobilizaram. Olharam para Sam, como se ele fosse gritar com eles.

A escola de Praia Perdida era uma escola de cidade pequena, com todo mundo, desde o jardim de infância até o nono ano, num prédio só. O ensino médio ficava a uma hora de carro, em San Luis.

Sam foi em direção à sala de Astrid, que seguiu logo atrás, junto com Quinn.

A sala estava vazia. Carteiras, a cadeira da professora, tudo vazio. Livros de matemática estavam abertos em três carteiras. Cadernos também. Todos os computadores, uma fileira de seis Macs velhos, mostravam telas em branco, chuviscando.

No quadro de giz lia-se claramente "Polin".

Ela estava escrevendo a palavra "polinômio" — disse Astrid num sussurro adequado para uma igreja.

É, eu tinha pensado nisso — respondeu Sam, secamente.

Já tive um polinômio uma vez — disse Quinn. — O médico fez uma operação para tirar.

Astrid ignorou a débil tentativa de humor.

Ela desapareceu enquanto escrevia o "o". Eu estava olhando bem para ela.

Sam fez um movimento leve, apontando na direção do quadro. Havia um pedaço de giz no chão, bem onde teria caído se alguém es­tivesse escrevendo a palavra "polinômio" — o que quer que isso sig­nificasse — e tivesse desaparecido antes de terminar o círculo do "o".

Isso não é normal — disse Quinn. Ele era mais alto do que Sam, mais forte do que Sam, um surfista quase tão bom quanto Sam. Mas, com seu meio sorriso meio doido e a tendência de se vestir com o que só poderia ser chamado de fantasia, hoje estava com bermudas larguíssimas, velhas botas do exército para deserto, uma camisa de golfe cor-de-rosa e um chapéu de feltro cinza que tinha encontrado no sótão de seu avô, Quinn tinha um jeito esquisitão que afastava uns e apavorava outros. Quinn era único, e talvez fosse esse o motivo pelo qual ele e Sam se davam bem.

Sam Temple era discreto. Mantinha-se fiel aos jeans e camisetas simples, nada que atraísse a atenção. Havia passado a maior parte da vida em Praia Perdida, estudando nesta escola, e todo mundo sabia quem ele era, embora poucas pessoas tivessem certeza do que ele era. Era um surfista que não andava com surfistas. Era inteligente, mas não exatamente um nerd. Era bonitinho, mas não o suficiente para que as garotas pensassem nele como um gato.

A única coisa que a maioria do pessoal da escola sabia sobre Sam Temple é que ele era o Sam do Ônibus Escolar. Tinha ganhado esse apelido quando estava no sétimo ano. A turma estava fazendo um passeio quando o motorista sofreu um ataque cardíaco. Iam pela Auto-estrada 1. Sam puxou o homem do banco, guiou o ônibus para o acostamento, parou-o em segurança e calmamente ligou para o 911 pelo celular do motorista.

Se tivesse hesitado ao menos um segundo, o ônibus teria mergulha­do pelo penhasco e caído no oceano.

Sua foto saiu no jornal.

Os outros dois garotos, além da professora, sumiram. Todos menos Astrid — disse Sam. — Isso definitivamente não é normal. — Tentou não tropeçar no nome dela quando falou, mas não conseguiu. Ela possuía esse efeito sobre ele.

É. Está meio quieto aqui, brou — disse Quinn. — Certo, agora estou pronto para acordar. — Pela primeira vez, Quinn não estava brincando.

Alguém gritou.

Os três saíram rapidamente para o corredor, agora cheio de alunos. Uma menina do sexto ano, chamada Becka, estava gritando. Seu celu­lar estava firmemente seguro em suas mãos.

Ninguém atende. Ninguém atende — gritou. — Não tem nada.

Durante dois segundos todo mundo congelou. Em seguida, uma agitação atabalhoada, seguida pelo som de dezenas de dedos apertan­do dezenas de teclados.

Não está acontecendo nada.

Minha mãe devia estar em casa, ela atenderia. Não está nem tocando.

Ah, meu Deus: não tem internet também. Tem sinal, mas não acontece nada.

Tem três barras de sinal.

No meu também, mas não tem conexão.

Alguém começou a uivar, um som arrepiante subindo pela pele. Todo mundo falava ao mesmo tempo, as vozes crescendo até virar gritos.

Tente o 190 — pediu uma voz apavorada.

Para quem você acha que eu liguei, imbecil?

O 190 não atende?

Não acontece nada. Já liguei para a metade dos números da memória, e não acontece absolutamente nada.

O corredor estava cheio de alunos, como aconteceria durante uma troca de salas. Mas as pessoas não corriam para a aula seguinte, nem brincavam, nem giravam as trancas dos armários. Não havia direção. As pessoas simplesmente ficavam paradas, como um rebanho de gado esperando por um estouro.

A campainha tocou, alta como uma explosão. Pessoas se encolhe­ram, como se nunca tivessem ouvido isso antes.

O que vamos fazer? — perguntaram várias vozes.

Deve haver alguém na secretaria — gritou uma voz. — A cam­painha tocou.

Ela funciona com um timer, seu idiota. — reclamou Tom Howard. Howard era um vermezinho, mas era o capanga número um do Ore, e Ore era um bandido do oitavo ano, uma montanha de gordura e músculos que apavorava até o pessoal do nono ano. Ninguém ques­tionou Howard. Qualquer insulto a Howard era um ataque contra Ore.

Tem uma TV na sala dos professores — disse Astrid.

Sam e Astrid, com Quinn correndo logo atrás, dispararam em dire­ção à sala dos professores. Voaram escada abaixo até o primeiro an­dar, onde havia menos salas de aulas, menos crianças. A mão de Sam encostou na porta da sala dos professores. Eles pararam.

A gente não deveria entrar aí — disse Astrid.

Você se importa com isso mesmo? — perguntou Quinn.

Sam empurrou a porta. Os professores tinham uma geladeira, que estava aberta. Um pote de iogurte sabor blueberry estava caído ao chão, com o conteúdo cremoso esparramado pelo tapete puído. A TV estava ligada, mas não havia imagem, só estática.

Sam procurou o controle remoto. Onde estava o controle?

Quinn achou e começou a zapear pelos canais. Nada e nada e nada.

A TV a cabo está fora do ar — disse Sam, sabendo que aquilo era uma coisa idiota para se dizer.

Astrid enfiou a mão atrás do aparelho e desatarraxou o cabo coaxial. A tela tremulou e a qualidade da estática mudou um pouco, mas enquanto Quinn zapeava pelos canais, tudo que havia continuava a ser nada e nada e nada.

Sempre dá para pegar o canal nove — disse Quinn. — Mesmo sem cabo.

Os professores, alguns alunos, a TV a cabo, a TV aberta, celula­res, tudo sumindo ao mesmo tempo? — Astrid franziu a testa, tentan­do chegar a alguma conclusão. Sam e Quinn esperaram, como se ela pudesse ter uma resposta. Como se pudesse dizer: "Ah, claro, agora entendo." Ela era Astrid Gênio, afinal de contas. Mas tudo que disse foi: — Não faz sentido nenhum.

Sam tirou o telefone fixo do gancho.

Não tem sinal de discagem. Tem algum rádio aí?

Não havia. A porta se abriu com um estrondo e dois garotos do quinto ano entraram correndo, com o rosto agitado.

Nós somos os donos da escola! — gritou um deles, e o outro deu um grito em resposta. — Vamos arrebentar a máquina de doces.

Talvez não seja uma boa idéia — disse Sam.

Você não manda na gente. — O garoto parecia dividido, pouco seguro de si, sem saber se estava certo.

É verdade, moleque. Mas, olha, que tal a gente tentar ficar frio até descobrir o que está acontecendo? — disse Sam.

Fica frio você — gritou o garoto. O outro gritou de novo e am­bos partiram.

— Acho que seria errado pedir que eles me trouxessem um Twix — murmurou Sam.

Quinze anos — disse Astrid.

Não, cara, eles tinham uns 10 — respondeu Quinn.

Eles, não. Os caras da minha turma. Jink e Michael. Os dois eram bons em matemática, melhores do que eu, mas tinham dificulda­des de aprendizagem, tipo dislexia, que fez com que se atrasassem nos estudos. Os dois eram um pouco mais velhos. Eu era a única de 14 anos.

Acho que o Josh, da nossa turma, tinha 15 — disse Sam.

E?

E aí que ele tinha 15 anos, Quinn. Ele simplesmente... desapare­ceu. Num piscar de olhos, sumiu.

Corta essa — disse Quinn, balançando a cabeça. — Todos os adultos e os alunos mais velhos da escola simplesmente somem? Não faz sentido.

Não é só a escola — disse Astrid.

O quê? — reagiu Quinn bruscamente.

Os telefones e a TV? — disse Astrid.

Não, não, não, não, não. — Quinn estava balançando a cabeça, quase sorrindo, como se tivessem contado uma piada ruim.

Minha mãe — disse Sam.

Cara, corta essa — disse Quinn. — Certo? Não é engraçado.

Pela primeira vez Sam sentiu uma pontada de pânico, como um frio na base da coluna. Seu coração estava martelando no peito, trabalhan­do como se ele tivesse corrido uma maratona.

Sam engoliu em seco. Inspirou, mas era incapaz de respirar fundo. Olhou o rosto do amigo e percebeu que nunca tinha visto Quinn tão apavorado. Os olhos de Quinn estavam por trás de óculos escuros, mas sua boca estremecia, e uma mancha cor-de-rosa começava a subir pelo pescoço. Astrid ainda estava calma, mas franziu a testa, concen­trando-se, tentando entender tudo aquilo.

Temos de verificar — disse Sam.

Quinn soltou o ar numa espécie de soluço. Já estava se movendo, virando-se. Sam segurou seu ombro.

Me solta, cara — reagiu Quinn, rispidamente. — Preciso ir para casa. Preciso ver.

Todos precisamos ver — disse Sam. — Mas vamos juntos.

Quinn começou a se afastar mas Sam o segurou com mais força.

Quinn. Juntos. Qual é, cara, é que nem levar um caixote, tá sa­bendo? Se você cai no rolo, o que faz?

Tenta não se agitar — murmurou Quinn.

Isso mesmo. Mantém a cabeça reta durante todo o ciclo de gi­ros. Certo? Depois nada em direção à luz.

Metáfora de surfe? — perguntou Astrid.

Quinn parou de resistir. Soltou a respiração com um tremor.

É, tá. Você está certo. Juntos. Mas vamos primeiro na minha casa. Esse negócio tá estranho... Estranho demais.

Astrid? — perguntou Sam, sem ter certeza, sem saber se ela que­ria ir com ele e Quinn. Parecia presunçoso perguntar, mas parecia er­rado não perguntar.

Ela olhou para Sam, parecendo esperar encontrar algo no rosto dele. De repente, Sam percebeu que Astrid Gênio não sabia o que fazer, nem aonde ir, estava tão perdida quanto ele. Isso parecia impossível.

No corredor, ouviram uma cacofonia crescente de vozes. Altas, apavoradas, algumas balbuciando, como se tudo fosse ficar bem desde que não parassem de falar. Algumas vozes pareciam simplesmente en­louquecidas.

Não era um som agradável. Era apavorante por si só.

Venha com a gente, certo Astrid? — disse Sam. — Vamos ficar mais seguros juntos.

Astrid se encolheu ao ouvir a palavra "seguros". Mas assentiu.

Agora a escola estava perigosa. Pessoas apavoradas faziam coisas apavorantes; às vezes, até crianças. Sam sabia disso por experiência própria: o medo podia ser perigoso. O medo podia fazer as pessoas se machucarem. E não havia nada além do medo correndo enlouquecidamente pela escola.

A vida em Praia Perdida tinha mudado. Algo grande e terrível havia acontecido.

Sam esperava que não fosse ele a causa.

 

                       298 HORAS E 38 MINUTOS

ALUNOS JORRAVAM PARA fora da escola, sozinhos ou em pequenos bandos. Algumas meninas andavam em grupos de três, abraçadas umas às outras, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Alguns garotos caminhavam encolhidos, como se o céu pudesse cair sobre suas cabe­ças, sem abraçar ninguém. Um monte deles chorava também.

Sam se lembrou de vídeos que tinha visto sobre tiroteios em esco­las. Aquilo dava essa mesma sensação. As crianças estavam perplexas, apavoradas, histéricas ou escondendo a histeria com risadas e demons­trações ousadas de grosseria.

Irmãos e irmãs se uniram. Amigos se uniram. Algumas das crianças muito pequenas, do jardim de infância ou primeiro ano, andavam per­didas, sem ir realmente a lugar nenhum. Não tinham idade para saber ir para casa.

A maior parte dos pré-escolares de Praia Perdida freqüentava a Creche da Bárbara, uma casa no centro da cidade decorada com adesivos pálidos de personagens de desenho animado que ficava perto da loja de ferramentas Ace e em frente ao McDonald's na praça.

Sam imaginou se as crianças pequenas da creche estariam bem. Provavelmente. Isso não era responsabilidade sua, mas tinha de dizer alguma coisa.

E todas essas criancinhas? — perguntou. — Vão acabar na rua e ser atropeladas.

Quinn parou e olhou em volta. Não as crianças, mas a rua.

Estão vendo algum carro andando?

O sinal de trânsito mudou de vermelho para verde, mas não havia carros esperando para se mover. Agora o som de alarmes de automó­veis era mais alto, talvez três ou quatro alarmes diferentes, talvez mais.

Primeiro vamos procurar nossos pais — disse Astrid. — Não é possível que não haja nenhum adulto em lugar nenhum. — Ela não parecia ter muita certeza disso, por isso consertou: — Quero dizer, é improvável que não haja adultos.

É — concordou Sam. — Com certeza tem adultos por aí. Certo?

Minha mãe ou vai estar em casa ou jogando tênis — disse Astrid. — A não ser que tenha algum compromisso. Minha mãe ou meu pai deve estar com meu irmão menor. Meu pai está no trabalho. Ele tra­balha na UNPP.

A UNPP era a Usina Nuclear de Praia Perdida. A usina ficava a ape­nas 16 quilômetros da escola. Ninguém na cidade sabia muita coisa sobre ela, mas muito tempo antes, nos anos 1990, havia acontecido um acidente. Um acidente excêntrico, como disseram. Uma coinci­dência, tipo um em um milhão. Nada com que se preocupar.

As pessoas diziam que era por isso que Praia Perdida ainda era uma cidade pequena, por isso nunca havia ficado realmente grande como Santa Barbara, mais abaixo no litoral. O apelido de Praia Perdida era Área Radioativa. Não eram muitas as pessoas que queriam se mudar para um lugar chamado Área Radioativa, ainda que toda a radioativi­dade tivesse acabado.

Os três, com Quinn alguns passos adiante, andando rápido com suas pernas compridas, foram pela avenida Sheridan e viraram à direi­ta na Alameda.

Na esquina da avenida Sheridan com a avenida Alameda, havia um carro com o motor ligado. O carro havia se chocado com um utilitário Toyota estacionado. O alarme do Toyota ligava e desligava, berrando num minuto e em seguida ficando silencioso.

Os air bags do Toyota haviam sido acionados: balões brancos frou­xos, desinflados, pendendo do volante e do painel.

Não havia ninguém no utilitário. Saía vapor de debaixo do capô amassado.

Sam notou uma coisa, mas não quis dizer em voz alta.

Mas Astrid disse:

As portas ainda estão trancadas. Estão vendo as travas? Se al­guém estivesse aí dentro e saído, as portas estariam destrancadas.

Alguém estava dirigindo e se pirulitou — disse Quinn. Não es­tava dizendo como se fosse engraçado. O engraçado não existia mais.

A casa de Quinn ficava a apenas dois quarteirões, seguindo pela avenida Alameda. Quinn estava tentando manter a compostura, ten­tando permanecer tranqüilo. Tentando agir como o Quinn maneiro. Mas, de repente, começou a correr.

Sam e Astrid correram também, mas Quinn foi mais rápido. Seu chapéu voou da cabeça e Sam se abaixou para pegá-lo.

Quando o alcançaram, Quinn havia escancarado a porta de casa e já estava lá dentro. Sam e Astrid foram até a cozinha e pararam.

Mãe. Pai. Mãe. Ei!

Quinn estava no andar de cima, gritando. Sua voz ficava mais alta a cada vez que gritava. Mais alta e mais rápida, e o soluço era mais claro, era mais difícil para Sam e Astrid fingirem não ouvir.

Quinn desceu correndo a escada, ainda gritando pela família, rece­bendo de volta apenas o silêncio.

Ainda estava de óculos escuros, por isso Sam não podia ver os olhos do amigo, mas as lágrimas escorriam pelo rosto de Quinn, e embarga­vam sua voz. Sam praticamente podia sentir o nó na garganta do ou­tro, porque o mesmo nó estava em sua garganta. Não sabia o que fazer para ajudar.

Sam pôs na bancada o chapéu de Quinn que parou na cozinha, ofegando.

Ela não está aqui, cara. Não está aqui. Os telefones estão mudos. Ela deixou um bilhete ou alguma coisa? Vocês viram algum bilhete? Procurem por um bilhete.

Astrid acendeu uma luz.

A eletricidade ainda está funcionando.

E se eles estiverem mortos? — perguntou Quinn. — Isso não pode estar acontecendo. É só um pesadelo ou sei lá o quê. Isso... isso nem é possível. — Ele pegou o telefone, apertou o botão de ligar e ouviu. Apertou de novo, pôs o fone no ouvido de novo, depois digi­tou, batendo nos botões com o indicador e falando sem parar.

Por fim, pousou o telefone e olhou para o aparelho. Olhou para o telefone como se ele fosse começar a tocar a qualquer segundo.

Sam estava desesperado para chegar em casa. Desesperado e com medo, querendo saber e morrendo de medo de saber. Mas não podia apressar Quinn. Se fizesse o amigo sair de casa agora, seria como dizer a Quinn para desistir, que seus pais haviam sumido.

Eu tive uma briga com meu pai ontem à noite — disse Quinn.

Não comece a pensar desse jeito — sugeriu Astrid. — Uma coisa a gente sabe: não foi você que causou isso. Nenhum de nós causou isso.

Ela pôs a mão no ombro de Quinn, e foi como se esse fosse o sinal para ele finalmente desmoronar. Ele soluçava abertamente, tirou os óculos e largou-os no chão.

Vai ficar tudo bem — disse Astrid. Parecia que estava tentando convencer Quinn, mas também a si mesma.

É — disse Sam, sem acreditar. — Claro que vai. Isso é só um...

Ele não conseguiu pensar num modo de terminar a frase.

Talvez tenha sido Deus — disse Quinn, levantando os olhos, subitamente esperançoso. Seus olhos estavam vermelhos e fixos, com uma energia súbita, maníaca. — Foi Deus.

Talvez — respondeu Sam.

O que mais poderia ser, não é? En... então... então... então...

Quinn se controlou e engoliu o gaguejar, em pânico. — Então vai ficar tudo bem. — A idéia de alguma explicação, qualquer explicação, não importando quão frágil fosse, pareceu ajudar. — É, claro que vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem, totalmente.

A casa de Astrid é a próxima — disse Sam. — É a que fica mais perto.

Você sabe onde eu moro? — perguntou Astrid.

Não era uma boa hora para admitir que ele a havia seguido até em casa uma vez, pretendendo falar com ela, talvez convidá-la para ir ao cinema, mas tinha perdido a coragem. Deu de ombros.

Devo ter visto você por aí alguma vez.

Era uma caminhada de dez minutos até a casa de Astrid, uma casa de dois andares, quase nova, com uma piscina nos fundos. Astrid não era rica, mas sua casa era muito mais legal do que a de Sam, e o fez se lembrar da casa em que morava antes que seu padrasto fosse embora. O padrasto também não era rico, mas tinha um bom emprego.

Sam sentiu-se estranho na casa de Astrid. Tudo nela parecia legal e meio chique. Mas tudo estava guardado. Não havia nada ao alcance das mãos e que pudesse ser quebrado. As mesas tinham pequenas almofadas de plástico nas quinas. As tomadas tinham cobertura de pro­teção para crianças. Na cozinha, as facas ficavam num armário com porta de vidro e com tranca à prova de crianças. Os botões do fogão também eram protegidos.

Astrid reparou que ele estava notando as precauções.

Não é para mim — disse arrogante. — É para o Pequeno Pete.

Eu sei. Ele é... — Sam não sabia a palavra certa.

E autista — disse Astrid, com ar superior, como se isso não fosse grande coisa. — Bom, não tem ninguém aqui — anunciou ela. Seu tom de voz dizia que já imaginava isso, e tudo bem.

Onde está seu irmão? — perguntou Sam.

Então Astrid gritou, algo que ele não soubera que ela era capaz de fazer.

Não sei, está bem? Não sei onde ele está. — Ela cobriu a boca com uma das mãos.

Chame-o — sugeriu Quinn, numa voz estranhamente enuncia­da, formal. Estava sem graça por causa do ataque que tivera. Mas, ao mesmo tempo, ainda não estava totalmente calmo.

Chamar? Ele não vai responder — disse Astrid com os dentes trincados. — Ele é autista. Muito. Ele não... ele não se relaciona. Não vai responder, certo? Posso ficar gritando o nome dele o dia inteiro.

Tudo bem, Astrid. Vamos olhar — disse Sam. — Se ele estiver aqui, vamos encontrá-lo.

Astrid assentiu, lutando para controlar as lágrimas.

Reviraram a casa centímetro por centímetro. Embaixo das camas. Dentro dos armários.

Atravessaram a rua até a casa de uma senhora que às vezes cuidava do Pequeno Pete. Não havia ninguém lá. Revistaram cada cômodo. Sam sentiu-se como um ladrão.

Ele deve estar com minha mãe, ou talvez meu pai o tenha levado à usina. Ele faz isso quando não tem ninguém para ficar de babá. — Sam percebeu o desespero na voz dela.

Talvez meia hora tivesse se passado desde o desaparecimento súbi­to. Quinn ainda estava esquisito. Astrid parecia a ponto de desmoro­nar. Nem era hora do almoço, mas Sam já estava pensando na noite.

Os dias eram curtos, era 10 novembro, quase o feriado de Ação de Graças. Dias curtos, noites longas.

Vamos ficar em movimento — disse Sam. — Não se preocupe com o Pequeno Pete. Vamos achá-lo.

Isso é uma afirmação pró-forma ou um compromisso realista? — perguntou Astrid.

O quê?

Não, desculpe. Quero dizer, você vai me ajudar a achar o Pete?

Claro. — Sam queria acrescentar que a ajudaria a fazer qualquer coisa, a qualquer momento, para sempre, mas isso era apenas o seu medo falando, fazendo-o sentir vontade de desandar num blá-blá-blá. Em vez disso, começou a ir na direção de sua casa, agora sabendo, sem qualquer dúvida, o que encontraria, mas precisando verificar assim mesmo, e verificar outra coisa também. Precisando ver se estava maluco.

Precisando saber se a coisa continuava lá.

Isso tudo era louco. Mas, para Sam, a loucura havia começado muito antes.

Pela centésima vez, Lana esticou a cabeça para olhar para trás e verifi­car como estava seu cachorro.

Ele está bem. Pare de pular no banco — disse o vovô Luke.

Patrick pode pular para fora.

Ele é burro, certo. Mas não acho que vá pular.

Ele não é burro. É um cachorro muito inteligente. — Lana Arwen Lazar estava no banco da frente da velha picape de seu avô, que já fora vermelha. Patrick, seu labrador amarelo, estava na carroceria, orelhas balançando ao vento, a língua pendurada.

Patrick tinha recebido esse nome por causa de Patrick Estrela, o personagem não muito inteligente do desenho Bob Esponja. Lana queria que ele fosse na frente, com ela. Vovô Luke tinha recusado.

Seu avô ligou o rádio. Música country.

O vovô Luke era velho. Um monte de crianças tinha avós mais jo­vens. Na verdade, os outros avós de Lana, que eram de Las Vegas, eram muito mais novos. Mas o vovô Luke era velho de um jeito que parecia couro enrugado. O rosto e as mãos eram de um marrom escu­ro, em parte por causa do sol e em parte porque ele era um índio chumash. Usava um chapéu de caubói feito de palha, manchado de suor, e óculos escuros.

O que vou fazer no resto do dia? — perguntou Lana.

Vovô Luke virou o volante para evitar um buraco.

O que você quiser.

Você não tem TV nem DVD, nem internet nem nada.

O assim chamado rancho do vovô Luke era muito isolado, e o ve­lho mesmo era tão pão-duro, que seu único objeto tecnológico era um rádio antiqüíssimo que só parecia pegar uma única estação religiosa.

Você trouxe livros, não trouxe? Ou então pode limpar o estábulo. Ou subir o morro. — Ele apontou com o queixo na direção das montanhas. — A vista lá de cima é bonita.

Eu vi um coiote em cima do morro.

Os coiotes são inofensivos. Na maioria das vezes. O velho irmão coiote é esperto demais para se meter com os humanos. — Ele pro­nunciava coiote como "cai-out".

Já estou presa aqui há uma semana. Não basta? Quanto tempo vou ter de ficar aqui? Quero ir para casa.

O velho nem olhou para ela.

Seu pai pegou você tirando vodca de casa para algum vagabundo.

Tony não é vagabundo — contra-atacou Lana.

Vovô Luke desligou o rádio e começou um sermão:

Um garoto que usa uma garota desse jeito, que coloca a menina no meio dessa confusão, é um vagabundo.

Se eu não pegasse para ele, Tony tentaria usar um documento falso e talvez entrasse em encrenca.

Não tem talvez nisso aí. Um garoto de 15 anos tomando birita vai arranjar encrenca. Eu comecei a beber quando tinha sua idade, 14 anos. Trinta anos da minha vida desperdicei na garrafa. Agora estou sóbrio há trinta e um anos, seis meses e cinco dias, graças a Deus lá em cima e à sua avó, que Deus a tenha. — Em seguida, ligou o rádio de novo.

Sem contar com o fato de a loja de bebidas mais perto estar a 16 quilômetros, em Praia Perdida.

Vovô Luke riu.

É. Isso também ajuda.

Pelo menos ele tinha senso de humor.

A caminhonete chacoalhava loucamente à beira de um penhasco seco que descia uns 30 metros até alcançar mais areia e arbustos de artemísia, pinheiros retorcidos, cornisos e capim seco. Segundo o vovô Luke, algumas vezes por ano, quando chovia, a água descia cor­rendo pela garganta, às vezes numa torrente súbita.

Era difícil imaginar isso enquanto ela, distraída, olhava a longa encosta.

Então, sem aviso, a caminhonete saiu da estrada.

Lana olhou para o banco vazio onde seu avô estivera uma fração de segundo antes.

Ele havia sumido.

A caminhonete estava indo diretamente para o fundo do penhasco. O cinto de segurança pressionou o peito de Lona.

A velocidade aumentou. A caminhonete bateu com força numa ár­vore pequena e partiu-a.

O carro continuou descendo numa nuvem de poeira, sacudindo-se com tanta força que Lana bateu acima do pára-brisa e os ombros se chocaram contra a janela. Os dentes chacoalharam. Ela tentou agarrar o volante, mas ele estava fora de controle, e de repente a caminhonete capotou.

E capotou de novo. E de novo.

O cinto de segurança se rompeu, e Lana foi jogada impotente de um lado para o outro da cabine. O volante batia nela como o agitador de uma máquina de lavar. Seus ombros se chocavam contra o pára-brisa, a alavanca de câmbio era como um porrete no rosto, o retrovi­sor se despedaçou contra sua nuca.

A caminhonete parou.

Lana ficou deitada, com o rosto para baixo, o corpo retorcido de modo impossível, pernas e braços abertos. A poeira sufocava seus pul­mões. A boca estava cheia de sangue. Algo bloqueava a visão de um de seus olhos.

O que ela podia ver com o outro olho era difícil de entender, a princípio. Estava de cabeça para baixo, olhando um agrupamento de cactos baixos que pareciam crescer em ângulo reto com relação a ela.

Tinha de sair. Orientou-se como pôde e estendeu a mão para a porta.

O braço direito não se movia.

Olhou para ele e gritou. O antebraço direito, do cotovelo ao pulso, não formava mais uma linha reta. Estava dobrado num ângulo como um "V" achatado, torcido com a palma virada para fora. As pontas lascadas dos ossos ameaçavam brotar através da pele.

Lana se sacudiu, em pânico.

A dor foi tão terrível que seus olhos reviraram e ela desmaiou.

Mas não por muito tempo. Não por tempo suficiente.

Quando acordou, a dor no braço, na perna esquerda, nas costas e na cabeça fizeram seu estômago se revirar. Ela vomitou sobre o que fora a borda acima do pára-brisa da caminhonete.

Socorro — grasnou. — Socorro. Alguém me ajude!

Mas, mesmo em sua agonia, teve consciência de que não havia nin­guém para ajudar. Estavam a quilômetros de Praia Perdida, onde Lana havia morado até um ano antes, quando sua família se mudou para Las Vegas. Essa estrada só levava ao rancho. Talvez uma vez por sema­na outra pessoa passasse por ali, um mochileiro perdido ou a senhora que jogava damas com vovô Luke.

Vou morrer — disse Lana a ninguém.

Mas ainda não estava morta, e a dor não ia embora. Tinha de sair da caminhonete.

Patrick. O que aconteceu com Patrick?

Com a voz rouca, chamou o nome dele, mas não havia nada.

O pára-brisa estava totalmente rachado e quebrado, mas ela não conseguiu chutá-lo para fora com a perna boa.

O único caminho era a janela do lado do motorista, atrás dela. Sa­bia que o simples ato de se virar seria agonizante.

De repente, Patrick surgiu, cutucando-a com o nariz preto, ofegando e ganindo, ansioso.

Bom garoto — disse Lana.

Patrick balançou o rabo.

Patrick não era um cachorro de filmes, que de repente ficou inteligente e heróico. Não puxou Lana dos destroços fumegantes. Mas não saiu do seu lado enquanto ela passava uma hora infernal arrastando-se para a areia.

Lana descansou com a cabeça à sombra de um arbusto de artemísia. Patrick lambeu o sangue de seu rosto.

Com a mão boa, Lana detalhou os ferimentos. Um olho estava co­berto de sangue saído de um talho na testa. Uma perna estava quebrada, ou pelo menos torcida, e não dava para pisar. Algo doía dentro dela, na parte inferior das costas, onde ficavam os rins. O lábio superior estava entorpecido. Ela cuspiu um dente quebrado e ensangüentado.

O pior de tudo era a visão aterrorizante do braço direito. Não su­portava olhar para ele. Uma tentativa de levantá-lo foi abandonada imediatamente: a dor era insuportável.

Desmaiou de novo e acordou muito mais tarde. O sol não tinha piedade. Patrick estava enrolado junto dela. E no céu lá em cima, meia dúzia de urubus, com asas pretas abertas, circulavam, esperando.

 

                       298 HORAS E 5 MINUTOS

AQUELE CAMINHÃO — DISSE Sam, apontando. — Outro acidente.

Um caminhão da FedEx havia atravessado uma cerca e batido num olmo no jardim de alguém. O motor ainda estava ligado.

Encontraram duas crianças, um menino do quarto ano e a irmã menor, jogando bola desanimados no gramado da frente de casa.

A mamãe não está em casa — disse o mais velho. — Tenho aula de piano hoje de tarde, mas não sei chegar lá.

E eu tenho aula de sapateado. Vamos receber as roupas da apre­sentação — disse a menina. — Vou ser uma joaninha.

Vocês sabem como chegar à praça? Sabem, na cidade? — per­guntou Sam.

Acho que sim.

Vocês deveriam ir para lá.

Minha mãe não me deixa sair de casa — disse a menor.

Nossa avó mora em Laguna Beach — disse o garoto. — Ela po­dia vir pegar a gente. Mas não conseguimos falar com ela. O telefone não funciona.

Eu sei. Talvez seja melhor ir esperar na praça, certo? — Como o garoto simplesmente ficou olhando-o, Sam disse: — Ei, não fique tão preocupado, está bem? Vocês têm biscoito ou sorvete em casa?

Acho que sim.

Bom, não tem ninguém aqui dizendo para vocês não comerem um biscoito, tem? Seus pais vão aparecer logo, eu acho. Mas, enquan­to isso, comam um biscoito, e depois é só ir para a praça.

É assim que você resolve os problemas? Comendo um biscoito? — perguntou Astrid.

Não, resolvo os problemas correndo até a praia e me esconden­do até que tudo isso acabe — disse Sam. — Mas um biscoito não vai fazer mal.

Continuaram andando, Sam, Quinn e Astrid. A casa de Sam ficava a leste do centro da cidade. Ele e sua mãe moravam numa pequena casa de um andar, de aparência achatada, com um quintal cercado minúsculo nos fundos e nenhum jardim na frente, apenas uma calça­da. A mãe de Sam não ganhava muito dinheiro como enfermeira no­turna na Academia Coates. O pai de Sam estava fora de cena, sempre estivera. Ele era um mistério na vida de Sam. E, no ano passado, o padrasto tinha ido embora também.

E essa aí — disse Sam. — A gente não gosta de chamar atenção com uma casa grande e coisa e tal.

Bom, você mora perto da Praia da Cidade — disse Astrid, apon­tando para a única vantagem da sua casa e dos arredores.

É. Dois minutos a pé. Menos, se cortar caminho pelo quintal da casa onde mora a gangue de motoqueiros.

Gangue de motoqueiros? — perguntou Astrid.

Não a gangue inteira; na verdade, só Matador e sua namorada, Cúmplice. — Astrid franziu a testa e Sam disse. — Desculpe. Piada ruim. Não são vizinhos muito simpáticos.

Agora que havia chegado, Sam não queria entrar. Sua mãe não es­taria lá dentro.

E havia algo em sua casa que talvez Quinn e Astrid, em especial não deveriam ver.

Na frente dos outros, subiu os três degraus de madeira pintados de cinza e desbotados pelo sol que rangiam ao ser pisados. A varanda era estreita, e alguns meses antes alguém havia roubado a cadeira de ba­lanço que sua mãe tinha posto ali, para se sentar e se balançar no fim de tarde, antes de ir para o trabalho. Agora precisavam arrastar cadei­ras da cozinha.

Essa era sempre a melhor hora do dia para a família, o início do horário de trabalho da mãe, o fim do de Sam. Sam chegava da escola e sua mãe estaria acordada, depois de dormir durante a maior parte do dia. Ela tomava uma xícara de chá e Sam tomava um refrigerante ou um suco. Ela perguntava como tinha sido o dia na escola e ele não contava muito, na verdade, mas era bom pensar em como poderia contar, se quisesse.

Sam abriu a porta. Estava silencioso lá dentro, a não ser pela gela­deira. O compressor era velho e barulhento. Na última vez em que conversaram na varanda, com os pés apoiados no corrimão, sua mãe havia perguntado se deveriam mandar consertar o compressor, ou se seria mais barato conseguir uma geladeira de segunda mão. E se per­guntaram como iriam levá-la para casa sem uma caminhonete.

Mãe? —- disse Sam para a sala de estar vazia.

Não houve resposta.

Talvez ela esteja lá no morro — disse Quinn. — "No morro" era a expressão usada na cidade para falar da Academia Coates, um colé­gio interno, mas morro era mais como uma montanha.

Não — disse Sam. — Ela sumiu, como todos os outros.

O fogão estava ligado. Uma frigideira havia queimado até ficar pre­ta. Não havia nada na panela. Sam desligou o fogo.

Esse vai ser um problema na cidade inteira — disse ele.

É — concordou Astrid. — Fogões acesos, carros rodando. Al­guém precisa andar por aí e garantir que as coisas estejam desligadas e as crianças pequenas estejam acompanhadas. E há remédios, bebida, e algumas pessoas provavelmente têm armas.

Algumas pessoas daqui têm armas com certeza — disse Sam.

Tem de ser Deus — observou Quinn. — Quero dizer, que outra coisa poderia ser, certo? Ninguém poderia fazer isso. Simplesmente fazer todos os adultos desaparecerem?

Todo mundo com mais de 15 anos — corrigiu Astrid. — Quinze anos não é adulto. Acredite, eu estudava com eles. — Ela andou, hesi­tante, pela sala de estar, como se estivesse procurando algo. — Posso usar o banheiro, Sam?

Ele concordou, de má vontade. Estava sem graça com ela ali. Nem Sam nem sua mãe eram bons em serviços domésticos. O lugar era mais ou menos limpo, mas não como a casa de Astrid.

Astrid fechou a porta do banheiro. Sam ouviu o som de água cor­rendo.

O que a gente fez? — perguntou Quinn. — É isso que não en­tendo. O que a gente fez para deixar Deus tão puto?

Sam abriu a geladeira. Olhou a comida lá dentro. Leite. Uns dois refrigerantes. Metade de uma melancia pequena posta de lado num prato. Ovos, maçãs. E limões para o chá de sua mãe. O de sempre.

Quero dizer, a gente fez alguma coisa para merecer isso, certo? — perguntou Quinn. — Deus não faz coisas assim sem motivo.

Não acho que tenha sido Deus — disse Sam.

Cara. Só pode ser.

Astrid estava de volta.

Talvez Quinn esteja certo. Não existe nada, você sabe, normal, que possa fazer isso — argumentou. — Existe? Não faz nenhum sen­tido. Não é possível e, no entanto, aconteceu.

Às vezes, coisas impossíveis acontecem — disse Sam.

Não acontecem, não — reagiu Astrid. — O universo tem leis. Todas as coisas que aprendemos na aula de ciências. Você sabe, como as leis do movimento, ou que nada pode ser mais rápido do que a luz. Ou a gravidade. Coisas impossíveis não acontecem. E isso que impos­sível significa. — Astrid mordeu o lábio. — Desculpe. Não é hora para ficar fazendo sermão, não é?

Sam hesitou. Se mostrasse a eles, se ultrapassasse essa barreira, não poderia fazer com que esquecessem. Iriam insistir até que ele contasse tudo.

Iriam olhá-lo de modo diferente. Ficariam assustados, como ele estava.

Vou trocar a camisa, certo? No meu quarto. Já volto. Na gela­deira tem coisas para beber. Podem pegar.

Fechou a porta do quarto.

Odiava o seu quarto. A janela dava para um beco e o vidro era da­quele tipo translúcido, que não dava para ver direito o que estava do lado de fora. O quarto era escuro mesmo nos dias ensolarados. À noite, era escuro demais.

Sam odiava o escuro.

Sua mãe o fazia trancar a casa à noite, quando ela estava no trabalho.

Agora você é o homem da casa — dizia. — Mas, mesmo assim, eu me sinto melhor sabendo que você trancou a porta.

Ele não gostava quando a mãe dizia isso, sobre ser o homem da casa agora.

Agora.

Talvez ela não quisesse dizer realmente nada com isso. Mas como não poderia? Fazia oito meses que seu padrasto havia ido embora da casa antiga. Seis meses desde que Sam e a mãe tinham se mudado para este barraco precário, nesse bairro decrépito e sua mãe fora obrigada a pegar o emprego mal pago, num horário péssimo.

Duas noites antes uma tempestade com trovões caíra, e a luz havia acabado durante um tempo. Sam ficou na escuridão total, a não ser por fracos relâmpagos que davam uma aparência fantasmagórica às coisas familiares do quarto.

Tinha conseguido dormir por um tempo, mas um trovão gigantes­co o acordou. Ele saíra de um pesadelo aterrorizante para a escuridão total, numa casa vazia.

A combinação foi demais. Sam gritou pela mãe. Um garoto grande e forte como ele, de 15 anos, quase 15, gritando "Mamãe" no escuro. Estendeu a mão agarrando a escuridão.

E então... luz.

Ela havia aparecido, quase saindo de seu armário. Sam poderia meio que escondê-la, fechando a porta do armário. Mas, quando tentou fe­char a porta até o final, a luz simplesmente passou por ela. Como se a porta nem estivesse ali. Por isso, a porta estava só entreaberta. Ele havia pendurado algumas camisas casualmente na parte de cima da porta, blo­queando a maior parte da luz, mas aquele ardil desajeitado não duraria muito. Eventualmente sua mãe veria... bom, quando voltasse, veria.

Abriu a porta do armário. A camuflagem caiu.

A luz continuava ali.

Ela era pequena, mas ofuscante. E pairava, sem se mover, sem estar ligada a coisa nenhuma, apenas uma bolinha de luz pura.

Era impossível. Era algo que não podia existir. No entanto, ali es­tava. A luz que aparecera do nada quando Sam havia precisado, e não tinha ido embora.

Tocou-a, mas não exatamente. Seus dedos simplesmente passaram por ela, sentindo apenas um brilho morno, tão quente quanto água de banho.

— É, Sam — murmurou para si mesmo — ainda está aí.

Astrid e Quinn achavam que o dia de hoje havia sido o início, mas Sam sabia que não. A vida normal tinha começado a se despedaçar oito meses antes. Depois, normalidade de novo. E então, esta luz.

Quatorze anos de normalidade para Sam. Depois o normal havia começado a sair dos trilhos.

Hoje a normalidade dera de cara na parede, capotado e sido feita em pedacinhos.

Sam?

Era Astrid chamando da sala. Ele olhou para a porta ansioso, com medo de que ela entrasse e visse. Fez o máximo, às pressas, para es­conder a luz de novo, e voltou aos colegas.

Sua mãe estava escrevendo no laptop — disse Astrid.

Provavelmente vendo os e-mails. — Mas, quando sentou-se à mesa e olhou para a tela, Sam viu que o computador estava aberto num documento de texto, e não num navegador de internet.

Era um diário. Apenas três parágrafos na página.

Aconteceu de novo ontem à noite. Eu gostaria de poder contar isso a G. Mas ela vai achar que estou maluca, e eu poderia perder o emprego. Vai pensar que estou usando drogas. Se eu tivesse um modo de colocar câmeras em toda parte, poderia conseguir algu­ma prova. Mas não tenho prova, e a "mãe" de C é rica e genero­sa com a AC. Eu seria demitida. Mesmo que eu conte toda a verdade a alguém, eles só irão me humilhar dizendo que é tudo alucinação da mãe exausta.

Cedo ou tarde, C ou algum dos outros vai fazer alguma coisa séria. Alguém vai se machucar. Como S com T.

Talvez eu confronte C. Não creio que ele vá confessar. Faria diferença se ele soubesse de tudo?

Sam olhou para a página. O documento não tinha sido salvo. Sam procurou no computador e encontrou a pasta intitulada "Diário". Cli­cou nela, mas era protegida por senha. Se sua mãe tivesse salvado esta última página, ela também estaria inacessível.

"AC" era fácil. Academia Coates. E "G" provavelmente significava Grace, a diretora. "S" também era fácil: Sam. Mas quem era "C"? Uma frase parecia vibrar do seu olhar: "Como S com T." Astrid estava lendo por cima de seu ombro. Tentava ser sutil, mas estava definitivamente xeretando. Ele fechou o laptop.

Vamos embora?

Para onde? — perguntou Quinn.

Para qualquer lugar que não seja aqui — respondeu Sam.

 

                             297 HORAS E 40 MINUTOS

VAMOS PARA A praça — disse Sam. Em seguida fechou a porta da casa, trancou-a e enfiou a chave nos jeans.

Por quê? — perguntou Quinn.

É para onde as pessoas provavelmente irão — respondeu Astrid.

Não tem nenhum outro lugar, tem? A não ser que voltem para a escola. Se alguém souber de alguma coisa, ou se houver algum adulto, é para onde eles irão.

Praia Perdida ocupava uma ponta de terra a sudoeste da auto-estrada litorânea. No lado norte da auto-estrada, as montanhas se erguiam íngre­mes, de um marrom seco com retalhos verdes, e formavam uma série de cristas que penetravam no mar a noroeste e sudeste da cidade, limitando-a a apenas esse espaço, confinando-a a apenas essa protuberância.

Havia apenas pouco mais de três mil moradores em Praia Perdida - agora, muito menos. O mercado mais próximo ficava em San Luis. O shopping center grande mais próximo ficava a mais de 30 quilôme­tros descendo a costa. Para o norte, subindo o litoral, as montanhas se comprimiam tão perto do mar, que não havia espaço para constru­ções, a não ser a faixa estreita onde ficava a usina nuclear. Depois disso, ficava o parque nacional, uma floresta de sequóias antigas.

Praia Perdida havia permanecido como uma cidadezinha sonolenta, com ruas retas ladeadas por árvores e, na maioria, bangalôs antigos de estuque, em estilo espanhol, com telhados cor de laranja ou tetos planos em estilo antigo. A maioria das pessoas tinha gramados verdes e bem aparados. A maioria das pessoas tinha um quintal cercado. No minúsculo centro da cidade, ao redor da praça, havia palmeiras e um monte de vagas de estacionamento na diagonal.

Praia Perdida tinha um resort ao sul da cidade, a Academia Coates nas montanhas e a usina nuclear, mas, fora isso, havia apenas uns poucos estabelecimentos comerciais. A loja de ferramentas Ace, o McDonald's, um café chamado Bean There, uma lanchonete Subway, umas duas lojas de conveniência, uma mercearia e um posto Chevron na auto-estrada.

Quanto mais Sam, Astrid e Quinn se aproximavam, mais crianças eles encontravam indo em direção à praça. Era como se, de algum modo, as crianças da cidade deduzissem que deveriam ficar juntas, para se protegerem. Ou talvez fosse apenas a solidão esmagadora de casas que subitamente não eram mais acolhedoras.

Meio quarteirão adiante, Sam sentiu cheiro de fumaça e viu crian­ças correndo.

A praça era um pequeno espaço aberto, uma espécie de parque com trechos de grama, no meio, uma fonte que quase nunca funciona­va. Havia bancos, caminhos calçados de tijolos e latas de lixo. Em frente à praça, ficavam lado a lado a modesta prefeitura e uma igreja. Lojas cercavam a praça, algumas fechadas para sempre, e, em cima de algumas delas, havia apartamentos. A fumaça saía da janela do segun­do andar do apartamento que ficava em cima de uma floricultura fali­da e um desenxabido escritório de seguros. Quando Sam parou, ofegante, um jato de chamas irrompeu de uma janela no alto.

Várias crianças estavam paradas olhando. Sam achou aquela multi­dão muito estranha, e depois entendeu porquê: não havia adultos, só crianças.

— Tem alguém lá? — gritou Astrid. Ninguém respondeu.

O fogo pode se espalhar — disse Sam.

Ninguém atende ao telefone de emergência — observou al­guém.

Se o fogo se espalhar, pode queimar metade da cidade.

Está vendo algum bombeiro? — Um dar de ombros impotente.

A creche ficava lado a lado com a loja de ferramentas, e as duas eram separadas do incêndio apenas por um beco estreito. Sam achou que era possível tirar as crianças da creche se agissem depressa, mas a loja de ferramentas era uma coisa que não podiam se dar ao luxo de perder.

Devia haver umas quarenta crianças ali paradas, boquiabertas. Nin­guém parecia disposto a fazer alguma coisa.

Fantástico — disse Sam. Em seguida pegou dois garotos que conhecia de vista. — Vocês, vão para a creche. Vamos tirar as crianças pequenas de lá.

Os garotos o olharam, sem se mexer.

Agora. Vão. Façam o que estou mandando! — gritou ele, e os dois partiram correndo.

Sam apontou para outros dois garotos.

Vocês dois. Vão à loja de ferramentas e peguem a mangueira mais comprida que encontrarem. Peguem um bico de borrifar tam­bém. Acho que tem uma torneira naquele beco. Comecem a jogar água na lateral da loja de ferramentas e no telhado.

Os dois também o olharam inexpressivos.

Pessoal, não é para amanhã. Agora. Agora. Vão! Quinn? É me­lhor ir com eles. Precisamos molhar a loja de ferramentas. É para onde o vento vai levar o fogo em seguida.

Quinn hesitou.

As pessoas não estavam entendendo. Como podiam não ver que precisavam fazer alguma coisa, e não ficar simplesmente olhando?

Sam foi até a frente da multidão e disse em voz alta:

Ei, escutem. Isso aqui não é o Disney Channel. Não podemos só ficar olhando. Não tem adultos. Não tem bombeiros. Nós somos os bombeiros.

Edilio estava ali. Ele disse:

Sam está certo. Do que você precisa, Sam? Pode dizer.

Certo. Quinn? As mangueiras na loja de ferramentas. Edilio? Vamos pegar as mangueiras grandes do posto dos bombeiros e ligar no hidrante.

Elas são pesadas. Vou precisar de uns caras fortes.

Você, você, você, você. — Sam agarrou o ombro de cada um, sacudindo-os, empurrando-os para andarem. — Andem. Você. Você. Vamos!

E então veio o grito.

Sam congelou.

Tem alguém lá — gemeu uma menina.

Quietos — sussurrou Sam, e todo mundo ficou em silêncio, ouvindo o ronco e os estalos do fogo, os alarmes distantes dos carros, e depois um grito:

Mamãe.

De novo.

Mamãe.

Alguém imitou a voz, zombando em falsete:

Mamãe, tô com medo.

Era Ore, realmente achando a situação engraçada. As crianças se afastaram dele.

O quê? — perguntou, sem entender.

Howard, nunca distante de Ore, zombou:

Não se preocupem, o Sam do Ônibus Escolar vai salvar a gente, não vai, Sam?

Edilio. Vá — disse Sam baixinho. — Traga tudo o que puder.

Cara, você não pode entrar lá — disse Edilio. — Deve haver tanques de oxigênio e outras coisas no posto de bombeiros. Espere, eu trago tudo. — Ele já estava correndo, guiando sua turma de garotos fortes.

Ei, você aí em cima — gritou Sam. — Pode chegar à porta ou à janela?

Olhou para o alto, esticando o pescoço. Havia seis janelas na fren­te do prédio, uma no beco. O fogo estava na janela mais à esquerda, mas agora a fumaça saía da segunda janela também. O fogo ia se espa­lhando.

Mamãe! — gritou a voz. Era uma voz clara, não engasgada com a fumaça. Ainda não.

Se você vai entrar aí, enrole isso no rosto. — De algum modo Astrid havia arrumado um pano, que havia conseguido com alguém e encharcado.

Eu disse que ia entrar lá? — perguntou Sam.

Não se machuque — disse Astrid.

Bom conselho — respondeu Sam secamente, antes de enrolar o pano molhado na cabeça, por cima da boca e do nariz.

Ela segurou seu braço.

Olha, Sam, não é o fogo que mata, e sim a fumaça. Se você respirar fumaça demais, seus pulmões vão inchar, vão se encher de líquido.

Quanto é demais? — perguntou ele, com a voz abafada pelo pano.

Astrid sorriu.

Eu não sei tudo, Sam.

Sam queria segurar a mão dela. Estava apavorado. Precisava de al­guém para lhe dar coragem. Queria segurar a mão de Astrid. Mas não era a hora certa. Então, ele conseguiu dar um sorriso trêmulo e disse:

Vamos lá.

Vai fundo, Sam — gritou uma voz encorajando-o. Houve um coro de gritos de estímulo.

A entrada do prédio estava destrancada. Dentro havia caixas de correio, uma porta dos fundos que dava na floricultura e uma escada escura e estreita que subia.

Sam quase conseguiu chegar ao topo da escada antes de bater numa parede opaca de fumaça em redemoinhos. O pano molhado não aju­dava em nada. Bastou uma inspiração e ele estava de joelhos, sufocan­do e engasgando. Lágrimas enchiam os olhos ardidos.

Agachou-se mais e encontrou um pouco de ar.

— Ei, você aí, está me ouvindo? — gritou rouco. — Grite, preciso ouvir você.

Desta vez o "mamãe" soou fraco, vindo do corredor à esquerda, quase no outro lado do prédio. Talvez a criança pulasse pela janela, no colo de alguém, disse Sam a si mesmo. Seria idiotice morrer se a crian­ça pudesse simplesmente pular.

O fedor de fumaça era intolerável, terrível, estava em toda parte. Tinha um gosto azedo, como fumaça misturada a leite talhado.

Sam ficou de joelhos e se arrastou pelo corredor. O lugar era estra­nho, fantasmagórico. A passadeira puída embaixo dele parecia normal demais: uma estampa oriental desbotada, bordas esgarçadas, algumas migalhas de comida e uma barata morta. Uma luz estava acesa no teto, filtrando a luz pálida pelo cinza agourento.

A fumaça descia lentamente em redemoinhos, pressionando-o, obrigando-o a se abaixar cada vez mais para conseguir oxigênio.

Devia haver seis ou sete apartamentos. Não dava para saber qual era o certo, pois a criança não estava mais gritando. Mas o apartamen­to que pegava fogo era provavelmente o que ficava logo à sua direita. A fumaça jorrava por baixo da porta, densa, rápida e furiosa como um rio. Ele tinha segundos, e não minutos.

Rolou de costas. A fumaça que jorrava por baixo da porta era como uma cachoeira ao contrário, caindo para cima numa cascata. Sam chu­tou a porta, mas isso não adiantou. A fechadura ficava no alto; seu chute apenas chacoalhou a porta. Para arrombá-la teria de ficar de pé, direto naquela fumaça assassina.

Estava apavorado. E estava enlouquecendo também. Onde estavam as pessoas que deveriam fazer isso? Onde estavam os adultos? Por que ele tinha de resolver as coisas? Era só um garoto. E por que mais nin­guém fora suficientemente louco ou idiota para entrar correndo num prédio em chamas?

Estava furioso com todos eles e, se Quinn estivesse certo e isso fosse algo feito por Deus, estava furioso com Deus também.

Mas se a culpa dos acontecimentos fosse de Sam... se Sam tivesse feito tudo isso acontecer... não havia ninguém com quem ficar furioso, apenas com ele próprio.

Inspirou todo o ar que pôde, pôs-se de pé e se jogou contra a porta num movimento frenético.

Nada.

E de novo.

Nada.

E de novo, e respirar agora era urgente, necessário, mas a fumaça estava em toda parte, no nariz, nos olhos, cegando-o. Bateu de novo, e a porta se abriu e ele caiu no chão, de rosto para baixo.

A fumaça presa na sala irrompeu pelo corredor, explodindo como um leão escapando da jaula. Por alguns segundos, houve uma camada de ar respirável no nível no chão e Sam inspirou uma vez. Precisou lutar para não tossi-lo de volta para fora. Se fizesse isso, morreria, com certeza.

E, por apenas um segundo, ficou parcialmente claro no apartamen­to. Como uma abertura nas nuvens que dá uma ligeira pista do céu azul e limpo lá no alto antes de ser encoberto de novo.

A criança que estava no chão, engasgando, tossindo, era só uma menininha, de 5 anos no máximo.

— Estou aqui — disse Sam, com a voz estrangulada.

Ele devia estar com a aparência aterrorizante. Um vulto alto envol­to em fumaça, com o rosto coberto, fuligem preta no cabelo e na pele.

Devia parecer um monstro. Essa era a única explicação. Porque a menininha, a menininha aterrorizada, em pânico, levantou as duas mãos, com as palmas para a frente, e daquelas mãozinhas gorduchas saiu uma explosão, jatos de pura chama.

Chamas. Explodindo das mãos minúsculas.

Chamas!

Apontadas contra ele.

As chamas erraram Sam por pouco. Passaram por cima da cabeça dele com um uuush e bateram na parede atrás. Eram como napalm, gasolina gelatinosa, fogo líquido, que se grudou à parede e queimou com intensidade louca.

Por um segundo, ele só pôde ficar olhando, imóvel e espantado.

Aquilo era insano.

Impossível.

A menininha gritou aterrorizada e levantou as mãos de novo. Des­ta vez, não erraria. Desta vez, ela o mataria.

Sem pensar, apenas reagindo, Sam estendeu o braço com a palma da mão para fora. Houve um clarão de luz, brilhante como uma estre­la explodindo.

A criança caiu de costas.

Sam se arrastou até ela, tremendo, com a barriga contraída, que­rendo gritar, pensando: não, não, não, não.

Pegou a criança nos braços, com medo tanto de ela acordar quanto de não acordar. Levantou-se.

A parede à direita caiu e fez um barulho parecido com papelão rasgando. O reboco se soltava, revelando a estrutura da parede, as tábuas e os caibros. O fogo estava dentro da parede.

Um jato de calor, como a porta de um forno se abrindo, fez Sam cambalear. Astrid havia dito que não era o fogo que matava. Bom, ela não tinha visto esse fogo, nem pensaria que uma menininha podia lançar chamas com as mãos.

Sam segurou a menina no colo. Havia fogo à direita e às suas cos­tas, eriçando os cílios, assando a pele.

Havia uma janela bem à frente.

Cambaleou adiante. Largou a menina no chão como um saco de terra e abriu a janela com as duas mãos. A fumaça se espalhou, com o fogo logo atrás, em direção à nova fonte de oxigênio.

Sam tateou na semi-escuridão, procurando a criança. Levantou-a e ali, milagrosamente, havia um par de mãos esperando para pegá-la. Mãos que se estendiam através da fumaça, parecendo quase sobrena­turais.

Sam desmoronou contra o parapeito, meio pendurado pela janela, e alguém o agarrou, puxando-o para a escada de alumínio. Sua cabeça batia nos degraus, mas ele não se importou nem um pouco, porque aqui fora havia luz e ar, e através dos olhos entreabertos e úmidos pôde ver o céu azul.

Edilio e um garoto chamado Joel carregaram Sam até a calçada.

Alguém molhou-o com uma mangueira. Será que achavam que ele estava pegando fogo?

Ele estava pegando fogo?

Abriu a boca e engoliu a água fria, sedento. Ela se esparramou pelo seu rosto.

Mas ele não conseguiu se agarrar à consciência. Flutuou para lon­ge. Flutuou de costas numa onda suave.

Sua mãe estava ali. Estava sentada na água, ao seu lado, o queixo apoiado nos joelhos. Ela não olhava para ele.

O que foi? — perguntou Sam.

Tinha cheiro de frango frito — respondeu ela.

O quê? — disse ele.

Sua mãe estendeu a mão e lhe deu um tapa no rosto com força.

Seus olhos se abriram bruscamente.

Desculpe — disse Astrid. — Precisei acordar você.

Ela se ajoelhou ao lado dele e encostou algo na sua boca. Uma más­cara de plástico. Oxigênio.

Ele tossiu e respirou. Afastou a máscara e vomitou ali mesmo na calçada, dobrado ao meio como um bêbado na sarjeta.

Astrid, discreta, afastou o olhar. Mais tarde ele ficaria sem graça. Neste momento estava simplesmente feliz por conseguir vomitar.

Respirou mais oxigênio.

Quinn estava segurando a mangueira de jardim. Edilio foi corren­do conectar uma das maiores, dos bombeiros, ao hidrante. Saiu um fio d'água, depois, enquanto Edilio virava a chave de cabo comprido e abria o hidrante até o final, um jorro forte. As crianças na outra extre­midade precisaram lutar com a mangueira como se ela fosse uma ji­bóia. Teria sido engraçado em qualquer outra ocasião.

Sam sentou-se. Ainda não conseguia falar.

Com um aceno de cabeça, indicou o lugar onde meia dúzia de crianças se ajoelhava ao redor da pequena incendiária. Sua pele negra estava ainda mais escura devido à cobertura de fuligem. Seu cabelo havia sumido num dos lados, queimado. Do outro, tinha uma maria-chiquinha de criança, presa com elástico cor-de-rosa.

Sam sabia, pelo modo reverente com que as crianças estavam ajoe­lhadas ali. Sabia, mas teve de perguntar assim mesmo. Sua voz era um grasnido fraco.

Astrid balançou a cabeça.

Sinto muito, Sam — respondeu.

Sam assentiu.

Os pais dela provavelmente estavam com o fogão ligado quando desapareceram — disse Astrid. — Provavelmente foi isso que causou o incêndio. Ou talvez um cigarro.

Não, pensou Sam. Não foi isso.

A menininha tinha o poder. Tinha o mesmo poder de Sam, ou pelo menos, algo parecido.

O poder que ele havia usado quando, em pânico, criou uma luz impossível.

O poder que ele havia usado uma vez e quase matado alguém.

O poder que tinha usado novamente, condenando a própria pessoa que ele estava se esforçando tanto para salvar.

Ele não era o único. Não era a única aberração. Havia — ou hou­vera — pelo menos mais uma.

De algum modo, saber disso não era reconfortante.

 

                     291 HORAS E 7 MINUTOS

A NOITE CHEGOU em Praia Perdida.

Os postes se acenderam automaticamente, sem conseguir vencer a escuridão, lançando somente sombras profundas nos rostos apavorados.

Quase cem crianças se espalhavam pela praça. Todo mundo parecia estar segurando um doce e um refrigerante. A lojinha, que vendia principalmente cerveja e salgadinhos, tinha sido saqueada. Sam pegara uma barra de caramelo com amendoim e um refrigerante Dr. Pepper. Os Reese's, Twix e Snickers já tinham acabado quando ele chegou. Tinha deixado dois dólares no balcão, como pagamento, mas o di­nheiro sumiu em segundos.

O prédio de apartamentos havia queimado até a metade antes que a energia do fogo se exaurisse. O teto tinha desmoronado, levando metade do andar superior. O térreo parecia ter condições de agüentar, mas as vitrines das lojas estavam enegrecidas por dentro, por causa da fumaça, que subia em fiapos, e não em rolos, e espalhava o fedor por toda parte.

Mas a loja de ferramentas e a creche tinham sido salvos.

O corpo da menininha ainda estava na calçada. Alguém havia pos­to um cobertor em cima, e Sam ficou grato por isso.

Sam e Quinn estavam sentados na grama, perto do centro da praça, junto à fonte desligada. Quinn se balançava para trás e para a frente, abraçando os joelhos.

Bette Ricochete veio e parou, sem jeito, diante de Sam, segurando a mão do irmãozinho.

Sam, você acha que podemos ir para casa? A gente precisa pegar uma coisa.

Sam deu de ombros.

Bette, eu sei tanto quanto você.

Bette assentiu, hesitou e foi andando.

Todos os bancos da praça estavam ocupados. Alguns pequenos gru­pos familiares abriram lençóis em cima dos bancos, formando tendas frouxas. Muitas crianças foram para suas casas vazias, mas outras pre­cisavam ter pessoas à sua volta. Algumas encontravam conforto na multidão. Algumas só precisavam ver o que estava acontecendo.

Dois garotos que Sam não conhecia, provavelmente do quinto ano, chegaram e disseram:

Você sabe o que vai acontecer?

Sam balançou a cabeça.

Não, pessoal, não sei.

Bom, o que a gente deveria fazer?

Acho que só ficar por aí um tempo, sabem?

Você diz, ficar por aqui?

Ou então ir para casa. Dormir na sua cama. O que acharem melhor.

Não estamos com medo nem nada.

Não? — perguntou Sam, desconfiado. — Eu estou tão apavora­do que mijei nas calças.

Um garoto riu.

Não se molhou, não.

Não. É verdade. Mas não tem problema ficar com medo, cara. Todo mundo aqui está com medo.

Isso vinha acontecendo um bocado. Crianças se aproximavam de Sam, faziam perguntas para as quais ele não tinha resposta.

Sam só queria que elas parassem.

Ore e seus amigos arrastaram cadeiras de jardim da loja de ferra­mentas e se acomodaram no meio do que havia sido o cruzamento mais movimentado de Praia Perdida. Estavam bem embaixo do semá­foro, que continuava mudando de verde para amarelo para vermelho.

Howard estava dando bronca num puxa-saco de posto inferior que tinha acendido um pedaço de lenha artificial e tentava fazer uma fo­gueira. A turma do Ore trouxe uns dois cabos de machado e bastões de beisebol de madeira da loja de ferramentas e estava tentando quei­má-los, sem sucesso.

Também trouxeram da loja bastões de metal e pequenas machadi- nhas. Esses eles guardaram.

Sam não falou sobre a menininha, sobre o modo como ela estava ali deitada. Se falasse, seria seu trabalho fazer alguma coisa. Cavar uma sepultura e enterrá-la. Ler a Bíblia ou dizer algumas palavras. Nem sabia o nome dela. Ninguém parecia saber.

Não consigo achar. — Era Astrid, reaparecendo depois de uma ausência de pelo menos uma hora. Tinha ido à procura do irmão mais novo. — Petey não está aqui. Ninguém o viu.

Sam lhe entregou um refrigerante.

— Aqui. Eu paguei. Pelo menos tentei pagar.

Geralmente não bebo essa coisa.

Você está vendo algum "geralmente" por aqui? — disse Quinn, repreendendo-a.

Quinn não olhou para ela. Seus olhos estavam inquietos, indo de uma pessoa a outra, de uma coisa a outra, como um pássaro nervoso, jamais fazendo contato visual direto. Parecia estranhamente nu sem os óculos escuros e o chapéu de feltro.

Sam estava preocupado com ele. Dos dois, era Sam que geralmente ficava sério demais.

Astrid desconsiderou a grosseria de Quinn e continuou:

Obrigada, Sam. — Tomou metade da lata, mas não se sentou. — O pessoal está dizendo que foi algum erro militar. Ou então terroristas. Ou alienígenas. Ou Deus. Um monte de teorias. Nenhuma resposta.

Você ao menos acredita em Deus? — perguntou Quinn. Estava procurando uma briga.

Acredito — respondeu Astrid. — Só não acredito no tipo de Deus que faz pessoas desaparecerem sem motivo. Deus deveria ser amor. Isso não parece amor.

Parece o pior piquenique do mundo — disse Sam.

Acho que é isso que chamam de humor de cadafalso — disse Astrid. Notando a expressão vazia de Sam e Quinn, continuou: — Desculpe. Eu tenho uma tendência irritante a analisar o que as pessoas dizem. Ou vocês se acostumam ou decidem que não me suportam.

Estou mais inclinado para a segunda opção — murmurou Quinn.

O que é humor de cadafalso? — perguntou Sam.

Cadafalso, o lugar onde enforcam pessoas. Às vezes, quando as pessoas estão nervosas ou com medo, elas fazem piada. — Depois acrescentou, meio pesarosa. — Claro, algumas pessoas ficam pedantes quando estão nervosas ou com medo. E, se não sabem o que é pedan­te, aí vai uma dica: tem uma foto minha na descrição do dicionário.

Sam riu.

Um menininho, que não deveria ter mais de 5 anos, carregando um urso de pelúcia velho e de olhos tristes, se aproximou.

Você sabe cadê minha mãe?

Não, rapazinho, desculpe — respondeu Sam.

Você pode telefonar para ela? — A voz dele tremia.

Nada está funcionando — disse Quinn rispidamente. — Nada funciona e estamos sozinhos aqui.

Sabe o que eu acho? — perguntou Sam ao menino. —Acho que tem biscoito na creche. É ali do outro lado da rua. Tá vendo?

Eu não posso atravessar a rua.

Tudo bem. Eu vigio enquanto você vai, certo?

O menino conteve um soluço, depois foi andando para a creche, apertando o urso.

As crianças procuram você, Sam — disse Astrid. — Esperam que você faça alguma coisa.

Fazer o quê? Só posso sugerir que comam um biscoito — disse Sam, com raiva demais na voz.

Salve as crianças, Sam — disse Quinn, amargo. — Salve todas elas.

Elas estão apavoradas, como nós — disse Astrid. — Não há nin­guém no comando, ninguém dizendo às pessoas o que fazer. Elas sen­tem que você é um líder, Sam. Elas procuram você.

Não sou líder de nada. Estou tão apavorado quanto elas. Estou tão perdido quanto elas.

Você soube o que fazer quando o apartamento estava pegando fogo — disse Astrid.

Sam pulou de pé. Era apenas energia nervosa, mas o movimento atraiu o olhar de dezenas de crianças por perto. Todos o olharam como se ele fosse fazer alguma coisa. Sam sentiu um nó no estômago. Até Quinn estava olhando-o cheio de expectativa.

Sam xingou baixinho. Então, numa voz com altura suficiente para chegar a apenas alguns metros, disse:

Olha, a gente só precisa ficar firme. Alguém vai descobrir o que aconteceu e vem encontrar a gente, certo? Então, pessoal: fiquem frios, não façam nada maluco, ajudem uns aos outros e tentem ser corajosos.

Para seu espanto, Sam ouviu uma onda de vozes repetindo o que ele havia dito, passando a fala adiante como se fosse alguma coisa brilhante.

A única coisa que devemos temer é o próprio medo — sussurrou Astrid.

O quê?

Foi o que o presidente Roosevelt disse quando o país inteiro estava apavorado por causa da Grande Depressão — explicou ela.

Sabe — disse Quinn —, a única coisa boa nisso foi que eu ti­nha escapado da aula de história. Agora a aula de história está me seguindo.

Sam riu. Não muito, mas foi um alívio perceber que Quinn ainda tinha algum senso de humor.

Preciso achar meu irmão — disse Astrid.

Onde mais ele poderia estar? — perguntou Sam.

Astrid deu de ombros, impotente. Parecia sentir frio com a blusa fina. Sam desejou ter um casaco para oferecer a ela.

Com meus pais, em algum lugar. Os lugares mais prováveis são o trabalho do meu pai ou onde minha mãe joga tênis. No Penhasco.

Penhasco era o resort e hotel que ficava logo acima da praia predi­leta de Sam para surfar. Ele nunca estivera lá dentro, nem mesmo no terreno do hotel.

Acho que o mais provável é o Penhasco — disse Astrid. — Eu sei que é chato, mas vocês poderiam ir comigo?

Agora? — perguntou Quinn, incrédulo. — À noite?

Sam deu de ombros.

É melhor do que ficar parado aqui, Quinn. Talvez a TV esteja funcionando lá.

Ouvi falar que a comida no Penhasco é ótima. Serviço de alto nível. — Ele estendeu a mão e Sam puxou-o até ficar de pé.

Passaram pela multidão apinhada. Crianças gritavam para Sam e perguntavam o que estava acontecendo, perguntavam o que deveriam fazer. E ele dizia coisas como: "Fiquem firmes. Vai ficar tudo bem. Só curta as férias, cara. Curtam os doces enquanto podem. Seus pais vão voltar logo e resolver isso tudo."

E as crianças concordavam, riam ou mesmo diziam: "Obrigado", como se ele tivesse lhes dado alguma coisa.

Ouviu seu nome ser repetido. Ouviu trechos de conversas.

"Eu estava no ônibus daquela vez." Ou "Cara, ele entrou correndo no prédio." Ou "Tá vendo? Ele disse que vai ficar tudo bem."

O nó em seu estômago foi ficando mais doloroso. Seria um alívio andar pela noite. Queria se afastar daqueles rostos apavorados olhando-o, esperando algo dele.

Passaram perto do acampamento de Ore no cruzamento. A foguei­ra desenxabida estava estalando, derretendo o asfalto embaixo da ma­deira. Uma embalagem de seis latas de cerveja Coors estava num isopor cheio de gelo. Um dos amigos de Ore, um panaca com cara de bebê chamado Cookie, estava meio tonto e enjoado.

Ei. Aonde vocês pensam que vão? — perguntou Howard quan­do eles se aproximaram.

Dar uma volta — respondeu Sam.

Dois surfistas idiotas e um gênio?

Isso mesmo. Vamos ensinar Astrid a surfar. Algum problema?

Howard deu uma risada e olhou Sam de cima a baixo.

Você acha que é o cara, não é, Sam? Sam do Ônibus Escolar. Grande coisa. Você não me impressiona.

Que pena, porque passei a vida inteira com esperança de im­pressionar você, Howard — disse Sam.

O rosto de Howard ficou astuto.

Você precisa trazer uma coisa de volta para a gente.

Do que você está falando?

Não quero que os sentimentos do Ore sejam magoados — disse Howard. — Não importa o que vocês forem pegar, acho que devem trazer um pouco para ele.

Ore estava esparramado numa cadeira saqueada, pernas abertas, prestando apenas um pouquinho de atenção. Seus olhos, nunca muito focalizados, estavam vagueando. Mas ele grunhiu:

É.

No momento em que ele falou, vários de sua turma de repente fi­caram interessados no grupo de Sam. Um deles, um garoto alto e magricelo apelidado de Panda por causa dos olhos com círculos escuros, bateu com o bastão de metal no asfalto, ameaçando.

Então você é um grande herói, não é? — disse Panda.

Essa frase já está gasta — disse Sam.

Não, não, o Sammy não, ele não acha que é melhor do que o resto de nós — zombou Howard. E fez uma paródia grosseira de Sam na hora do incêndio: — Você pegue uma mangueira, você pegue as crianças, faça isso, faça aquilo, eu estou no comando, eu sou... Sam. Sam, o Surfista.

Vamos indo agora — disse Sam.

Ah ah ah — disse Howard, e apontou para o semáforo acima com um floreio. — Espere até ficar verde.

Durante alguns tensos segundos, Sam pensou se deveria entrar nes­sa briga agora ou se deveria evitá-la. Então a luz do semáforo mudou, Howard gargalhou e sinalizou para eles passarem.

 

                           290 HORAS E 7 MINUTOS

NINGUÉM FALOU POR vários quarteirões.

As ruas foram ficando mais vazias e mais escuras à medida que chegavam à estrada da praia.

O mar tá estranho — observou Quinn.

Tá flat — concordou Sam. Ele sentia como se olhos estivessem seguindo-o, mesmo que já estivessem fora das vistas da praça.

Mais do que flat, brou — disse Quinn. — Parece vidro. Mas tem uma frente de baixa pressão aí fora. Deveria ser um período longo de swell. Em vez disso, parece um lago.

A previsão do tempo nem sempre acerta — respondeu Sam. Em seguida, ouviu com atenção. Quinn era melhor em ler as condições climáticas. Alguma coisa parecia estranha no ritmo. Mas Sam não ti­nha certeza.

Luzes piscavam aqui e ali, nas casas à esquerda, nos postes das ruas, mas estava bem mais escuro do que o normal. Ainda era o iní­cio da noite, quase na hora do jantar. As casas deveriam estar ilumi­nadas. Em vez disso, as únicas luzes eram as que estavam ligadas a temporizadores ou que tinham sido deixadas acesas durante todo o dia. Numa casa, a luz azulada de uma TV tremulava. Quando Sam espiou pela janela, viu dois garotos comendo batata frita e olhando para a estática.

Todos os pequenos ruídos de fundo, todos os pequenos sons que você mal registra — telefones tocando, motores de carro, vozes —, haviam sumido. Eles podiam ouvir cada passo que davam. Cada respi­ração. Quando um cachorro surgiu latindo freneticamente, todos pu­laram.

Quem vai dar comida a esse cachorro? — perguntou Quinn.

Ninguém sabia responder. Haveria cães e gatos por toda a cidade.

E com certeza haveria bebês em casas vazias agora mesmo. Era tudo demais. Demais para pensar.

Sam espiou em direção aos morros, franzindo os olhos para deixar de fora as luzes da cidade. Às vezes, se os refletores do campo de atle­tismo estivessem ligados, dava para ver um brilho distante de luz vindo da Academia Coates. Mas não esta noite. De lá, só vinha a escuridão.

Parte de Sam negava que sua mãe tivesse sumido. Parte dele queria acreditar que ela estava lá em cima, trabalhando, como em qualquer outra noite.

As estrelas continuam lá — disse Astrid. Depois disse: — Não. As estrelas estão no alto, mas não as que estariam logo acima do hori­zonte. Acho que Vênus deveria estar quase se pondo. Não está lá.

Os três pararam e olharam por cima do oceano. Parados, tudo que ouviam era a regularidade estranha, plácida, das ondas batendo, como um metrônomo.

Isso pode soar esquisito, mas o horizonte parece mais alto do que deveria — disse Astrid.

Alguém viu o sol se pôr? — perguntou Sam.

Ninguém tinha visto.

Vamos continuar andando — disse Sam. — Devíamos ter trazi­do bicicletas ou skates.

Por que não um carro? — perguntou Quinn.

Você sabe dirigir? — perguntou Sam.

Já vi outras pessoas dirigindo.

Já vi fazerem cirurgia cardíaca pela TY também — dísse Astrid. — Isso não significa que eu vá tentar.

Você assiste a cirurgias cardíacas na TV? — perguntou Quinn. — Isso explica muita coisa, Astrid.

A estrada fez uma curva, se afastando da praia e subindo para o Penhasco. O discreto letreiro de néon, aninhado na beira da estrada entre cercas vivas cuidadosamente aparadas, estava aceso. A grandiosa entrada estava iluminada como se fosse Natal — haviam pendurado fiadas de luzes brancas antes do tempo.

Um carro estava parado, vazio, com uma das portas abertas, porta- malas aberto, malas num carrinho de carregador de hotel.

Quando se aproximaram, a porta automática do hotel se abriu.

O saguão era aberto e arejado, com um balcão de madeira clara e polida que se curvava por cerca de nove metros, piso de ladrilhos re­luzentes, placas de latão brilhante indicando um bar mais sombreado. Um dos vários elevadores estava aberto, esperando.

Não estou vendo ninguém — disse Quinn num sussurro contido.

É — concordou Sam. Havia uma TV no bar, sem nada passando. Ninguém na recepção, nem na porta, nem no saguão, nem no bar. Os passos dos meninos ecoavam nos ladrilhos.

A quadra de tênis é por aqui — disse Astrid, e guiou-os para longe. — É onde minha mãe e o Pequeno Pete estariam.

As quadras de tênis estavam iluminadas. Nenhum som de raquetes acertando bolas. Absolutamente nenhum som.

Eles viram ao mesmo tempo.

Atravessando direto a quadra de tênis mais distante, cortando o paisagismo bem cuidado, cortando a piscina, havia uma barreira.

Uma parede.

Ela brilhava leve e continuamente.

Não parecia opaca, mas a pouca luz que passava através dela era leitosa, indistinta e não mais brilhante do que o ambiente ao redor. A parede era ligeiramente reflexiva, como uma janela de vidro fosco. Não fazia nenhum som. Não vibrava. Na verdade, quase parecia en­golir o som.

Podia ser apenas uma membrana, pensou Sam. Com apenas um milímetro de espessura. Algo que ele poderia cutucar com um dedo e estourar como um balão. Podia até não passar de uma ilusão. Mas o instinto, o medo, a sensação na boca do estômago, diziam que ele es­tava olhando uma parede. Não era ilusão, nem cortina, mas uma pa­rede.

A barreira ia até muito alto, mas ia sumindo contra o fundo do céu noturno. Estendia-se até onde eles podiam ver, à esquerda e à direita. Nenhuma estrela brilhava através dela, mas no final, lá no alto, as es­trelas reapareciam.

O que é isso? — perguntou Quinn. Havia espanto em sua voz.

Astrid apenas balançou a cabeça.

O que é isso? — repetiu Quinn, mais ansioso.

Aproximaram-se da barreira com passos lentos, preparados para

sair correndo, mas precisando chegar mais perto.

Entraram na área cercada de tela e passaram pela quadra de tênis. A barreira atravessava a rede, que começava num mastro vertical e terminava na brancura tremeluzente da barreira.

Sam puxou a rede, mas ela permaneceu firme no lugar. Não impor­tava o quanto puxasse, nenhuma parte a mais da rede atravessava a barreira.

Cuidado — sussurrou Astrid.

Quinn ficou para trás, deixando Sam assumir a liderança.

Ela tá certa, brou, cuidado.

Sam estava a pouco mais de um metro da barreira, com a mão es­tendida. Hesitou. Viu uma bola de tênis verde no chão e jogou-a con­tra a barreira.

Ela quicou de volta.

Pegou a bola no ar e olhou-a. Nenhuma marca. Nenhum sinal de que tivesse feito algo além de ricochetear.

Deu os últimos três passos e, desta vez, sem hesitar, pressionou as pontas dos dedos contra a barreira.

Aaai! — Ele puxou a mão de volta e olhou-a.

O que foi? — gritou Quinn.

Queimou. Ah, cara. Isso doeu. — Sam sacudiu a mão para afas­tar a dor.

Deixe eu olhar — disse Astrid.

Sam estendeu a mão.

Agora está normal.

Não dá para ver nenhuma marca de queimadura — disse Astrid, virando a mão dele.

E — concordou Sam. — Mas, acredite, você não vai querer to­car nessa coisa.

Mesmo agora, com tudo que estava acontecendo, Sam registrou o toque da menina como uma espécie de choque elétrico muito diferen­te. A mão de Astrid estava fria. Ele gostou disso.

Quinn pegou uma cadeira que estava junto a uma das linhas late­rais da quadra. Era uma sólida cadeira de ferro fundido. Quinn levan­tou-a bem alto, segurou-a à frente do corpo e bateu com as pernas da cadeira contra a barreira.

A barreira não cedeu.

Quinn bateu de novo, com mais força ainda, com força suficiente para que o coice da cadeira o fizesse girar para trás.

A barreira não cedeu.

De repente, Quinn estava gritando, xingando, batendo com a ca­deira loucamente contra a barreira.

Sam não conseguia chegar suficientemente perto para impedi-lo sem ser acertado. Colocou a mão no braço de Astrid, contendo-a.

Deixe ele pôr para fora.

Quinn bateu com a cadeira contra a parede, repetidas vezes. Não deixou nenhuma marca.

Por fim, largou a cadeira, sentou-se no pavimento, pôs a cabeça nas mãos e gritou.

As luzes estavam brilhando fortes dentro do McDonald's quando Albert Hillsborough entrou. Um alarme de fumaça estava soando, estri­dente. Um bip, bip, bip destacado pedia atenção urgente em meio aos berros mais altos e mais furiosos do alarme.

Crianças haviam passado para trás do balcão e pegado os biscoitos e os salgadinhos que estavam na vitrine. Uma caixa de brinquedos do McLanche Feliz, com personagens de um filme que Albert ainda não tinha visto, estava aberta, com os brinquedos espalhados. Não havia batatas fritas na caixa metálica, mas havia um bocado no chão.

Sentindo-se sem jeito, Albert foi até a porta da cozinha e tentou abri-la. Estava trancada. Voltou e pulou por cima do balcão.

Parecia meio ilegal estar do outro lado.

Um cesto de batatas fritas queimadas, pretas, estava no óleo quen­te. Albert encontrou uma toalha, pegou o cabo do cesto e tirou-o do óleo. Prendeu-o no suporte, de modo que o óleo pingasse direito. As batatas estavam ali desde a manhã.

— Acho que essas estão meio passadas — disse Albert a si mesmo.

O timer da fritadeira continuava soltando bips. Levou um segundo, mas ele encontrou o botão certo e apertou. Isso calou um dos baru­lhos.

Três biscoitos minúsculos, pretos, estavam na grelha. Na verdade eram hambúrgueres que, como as batatas fritas, tinham passado do ponto umas dez horas atrás.

Albert encontrou uma espátula, tirou os hambúrgueres e jogou-os no lixo. A carne havia parado de soltar fumaça muito antes, mas nin­guém estivera por perto para desligar o alarme. Albert demorou al­guns minutos para deduzir como subir sem cair na grelha quente, para empurrar o botão certo.

O silêncio foi um alívio.

— Assim está melhor. — Albert desceu. Imaginou se deveria desli­gar as fritadeiras e a grelha. Seria a coisa mais segura, desligar tudo e sair, em direção à escuridão da praça, onde as crianças se reuniam, apavoradas, procurando um resgate que estava demorando demais para chegar. Mas ele realmente não conhecia ninguém ali.

Albert tinha 14 anos, era o mais novo de seis filhos, e o menor, também. Seus três irmãos e duas irmãs iam dos 15 aos 27 anos. Albert já havia verificado sua casa: nenhum deles estava lá. A cadeira de ro­das de sua mãe estava vazia. O sofá onde ela normalmente estaria deitada e assistindo à TV, comendo e reclamando da dor nas costas, estava abandonado. Seu cobertor continuava lá, e nada mais.

Era estranho estar sozinho, mesmo por pouco tempo. Era estranho não ter um irmão mandão dizendo o que fazer. Não conseguia se lem­brar de um tempo em que não fosse tratado como capacho.

Agora Albert andava pela cozinha do McDonald's mais sozinho do que jamais poderia imaginar.

Encontrou o frigorífico. Puxou a grande maçaneta cromada e a porta de aço se abriu com uma arfada e um sopro de vapor frio.

Dentro havia prateleiras de metal e caixas e mais caixas de hambúr­gueres bem rotulados, grandes sacos plásticos de nuggets de frango, tirinhas de frango, batatas pré-cozidas congeladas. Um número menor de caixas de patê de salsicha. Mas, principalmente, um monte de ham­búrgueres.

Foi até a geladeira, que era tão grande quanto o frigorífico, não tão fria e arrumada, porém mais interessante. Havia bandejas cobertas de plástico com tomate fatiado, sacos de alface picada, grandes tubos plásticos de molho para Big Mac, maionese e ketchup, blocos e mais blocos de queijo amarelo fatiado.

Encontrou uma minúscula sala de descanso enfeitada com carta­zes sobre segurança e manobra de Heimlich, todos em inglês e espa­nhol. As mercadorias secas estavam empilhadas de encontro às pare­des: gigantescas caixas com copos de papel e caixinhas impermeáveis para os sanduíches. Cilindros de metal opaco com xarope de Coca-Cola.

Nos fundos, perto da porta de serviço, havia altas estantes com rodinhas, cheias de pães e bolinhos.

Tudo estava em seu devido lugar. Tudo era organizado. Tudo era limpo, ainda que coberto por uma película de gordura.

Num determinado ponto, e ele notou realmente o momento exato, Albert tinha parado de ver tudo isso como objetos de interesse e co­meçado a analisar como um inventário. Estava traduzindo mental­mente os ingredientes separados em Big Macs, sanduíches de frango, McMuffins com ovo.

A irmã de Albert, Rowena, tinha-o ensinado a cozinhar. Com a mãe incapacitada, os filhos precisavam sempre se virar sozinhos. Rowena fora a cozinheira não oficial até que Albert fez 12 anos, e então, parte dos serviços de cozinha havia passado para ele.

Sabia fazer feijão vermelho e arroz, o prato predileto de sua mãe. Sabia fazer cachorro-quente. Sabia fazer torradas com bacon. Albert nunca tinha admitido a Rowena, mas gostava de cozinhar. Era muito melhor do que fazer a limpeza, o que, infelizmente, ainda era seu tra­balho, mesmo que agora também fosse responsável pelo jantar das sextas e dos sábados.

O gerente tinha um escritório minúsculo, que estava com a porta escancarada. Dentro havia uma mesa atulhada, um cofre trancado, um telefone, um computador e uma estante se dobrando ao peso de vários manuais grossos.

Ouviu um som: vozes e alguém batendo numa caixa de canudinhos, depois pedindo desculpas. Dois garotos do sétimo ano estavam inclinados sobre o balcão, olhando o menu do alto como se esperas­sem para fazer um pedido.

Albert hesitou, mas não por muito tempo. Podia fazer aquilo, disse a si mesmo, quase surpreso com o pensamento.

Bem-vindos ao McDonald's — disse. — Em que posso servi-los?

Vocês estão funcionando?

O que vocês querem?

Os garotos deram de ombros.

Dois Número Um?

Albert olhou para o computador. Era um labirinto de botões com códigos de cores. Isso teria de esperar.

Vão beber o quê?

Refrigerante de laranja?

Já está saindo. — Albert encontrou hambúrgueres crus numa gaveta refrigerada embaixo da grelha. Eles fizeram um barulho satis­fatório ao bater na chapa.

Viu um chapéu de papel numa prateleira. Colocou-o na cabeça.

Enquanto os hambúrgueres chiavam, abriu o grosso manual e pro­curou batatas fritas no índice.

 

                       289 HORAS E 45 MINUTOS

LANA ESTAVA DEITADA no escuro, olhando para as estrelas.

Não podia mais ver os urubus, mas eles não estavam longe. Vários tinham tentado pousar ali perto, e Patrick os havia espantado. Mas Lana sabia que continuavam por ali.

Estava apavorada. Com medo de morrer. Com medo de nunca mais ver a mãe e o pai. A mãe e o pai, que provavelmente nem sabiam que ela estava desaparecida. Eles ligavam toda noite para o vovô Luke e falavam com Lana, diziam que a amavam... e se recusavam a deixá-la voltar para casa.

— Queremos que você fique um pouco longe da cidade, querida — dizia sua mãe. — Queremos que tenha tempo de pensar, clareie as idéias.

Lana ardia de fúria contra os pais. Especialmente contra a mãe. Se deixasse, a raiva podia arder tão quente que quase a faria esquecer a dor.

Mas não totalmente. Não de verdade. Não por muito tempo. Ago­ra a dor era todo o seu mundo. A dor e o medo.

Imaginou como estaria sua aparência agora. Nunca tinha sido bo­nita, de verdade — achava os olhos pequenos demais, o cabelo escuro liso demais para qualquer coisa além de escorrer frouxo. Mas agora, com o rosto transformado numa massa de hematomas, cortes e sangue coagulado, provavelmente parecia algo saído de um filme de terror.

Onde estaria o vovô Luke? Só lembrava vagamente os segundos anteriores ao acidente, e o acidente em si era apenas um borrão, ima­gens descontínuas de espaço girando em volta, enquanto seu corpo era espancado.

Tudo era confuso. Não fazia sentido. Seu avô simplesmente havia desaparecido da caminhonete: num minuto estava ali, no outro não estava. Ela não tinha lembrança da porta da caminhonete ter se aberto ou fechado, e por que o vovô pularia?

Loucura.

Impossível.

De uma coisa tinha certeza. Não houvera nenhuma palavra de avi­so dada pelo avô. Num instante, havia sumido, e ela mergulhara para o barranco.

Lana estava com uma sede desesperada. O lugar mais perto que conhecia onde poderia beber alguma coisa era o rancho. Provavel­mente não ficava a mais de um quilômetro e meio dali. Se conseguisse subir até a estrada... mas, mesmo à luz do dia, mesmo saudável, a su­bida seria quase impossível.

Levantou um pouco a cabeça, que latejava, e virou-a até ver a ca­minhonete. Estava a pouco mais de um metro de distância, as rodas para cima, em silhueta contra as estrelas.

Algo passou correndo sobre seu pescoço. Patrick sentou-se, con­centrado no som fraco.

Não deixe nada me pegar, garoto — implorou.

Patrick soltou um latido, como fazia quando queria brincar.

Não tenho comida para você, garoto. Não sei o que vai aconte­cer com a gente.

Patrick se acomodou de novo, a cabeça sobre as patas.

Acho que a mamãe vai ficar feliz. Acho que vai ficar realmente feliz por ter me mandado para cá.

Não teria notado os olhos brilhando no escuro, só que Patrick se levantou imediatamente, eriçado e rosnando de um modo que ela nunca vira.

O que é, garoto?

Olhos verdes, pairando, sem corpo. Olhando diretamente para ela. Os olhos piscaram numa velocidade preguiçosa, abriram-se de novo.

Agora Patrick estava latindo feito louco, avançando e recuando.

O leão da montanha rugiu. Era um som áspero, gutural; um rosnado.

Lana gritou:

Vá embora! Me deixe em paz! — Sua voz era patética: fraca e consciente da própria fraqueza.

Patrick correu de volta para Lana, depois se virou, encontrando a coragem de novo, e encarou o leão da montanha.

Num clarão, a batalha teve início, uma explosão de rosnados cani­nos e felinos, sons profundos, terríveis. Em meio minuto estava termi­nada e os olhos brilhantes do leão da montanha reapareceram mais longe. Piscaram uma vez, olharam, em seguida sumiram.

Patrick voltou devagar. Deixou-se cair, pesadamente junto de Lana.

Bom garoto, bom garoto — cantarolou Lana. — Você espantou aquele leão velho, não foi, garoto? Ah, meu cachorro bonzinho. Bom garoto.

Patrick balançou o rabo debilmente.

Ele machucou você, garoto? Machucou você, meu garoto bonzinho?

Ela passou a única mão boa sobre o cachorro. O pelo estava molha­do, escorregadio ao toque. Só podia ser sangue. Tateou, e Patrick ge­meu de dor.

Então sentiu o jorro. Havia um corte fundo no pescoço de Patrick. O sangue estava bombeando, jorrando a cada batimento cardíaco, drenando a vida do cachorro.

Não, não, não — chorou Lana. — Você não pode morrer. Não pode morrer.

Se Patrick morresse, ela estaria sozinha no deserto, incapaz de se mexer. Sozinha.

O leão da montanha iria voltar.

E depois os urubus.

Não. Não. Isso não ia acontecer.

Não.

O medo era demasiado para ser contido, não era possível argumen­tar com ele, não era possível resistir. Lana gritou de terror:

Mamãe. Mamãe. Mamãe. Eu quero minha mãe! Socorro, alguém me ajude! Mamãe, desculpe, desculpe, quero ir para casa, quero ir para casa.

Soluçou e balbuciou, e a dor da solidão e do medo era ainda maior do que a agonia do corpo espancado. Sufocou o ar nos pulmões.

Estava sozinha. Sozinha e com dor. E logo os dentes do leão da montanha...

Patrick precisava viver. Tinha de viver. Era tudo que ela possuía.

Aninhou o cachorro o mais perto que pôde, sem que sua própria dor apagasse a consciência. Pôs a palma da mão sobre o ferimento dele, apertando com o máximo de força que ousou.

Iria estancar o sangue.

Iria segurá-lo e impedir que sua vida escapasse.

Iria segurar a vida dentro dele e ele não morreria.

Mas o sangue continuava escorrendo por entre seus dedos.

Manteve-se firme e concentrou toda a força de vontade em ficar acordada para segurar o ferimento, para manter o amigo vivo.

-— Bom garoto — sussurrou por entre os lábios rachados.

Lutou para permanecer acordada. Mas a sede e a fome, a dor e o medo, a solidão e o horror eram demais para ela. Depois de um longo tempo, caiu no sono.

E sua mão escorregou do pescoço do cachorro.

Sam, Quinn e Astrid passaram boa parte da noite procurando o Peque­no Pete no hotel. Astrid deduziu como acessar o sistema de segurança do hotel e fez um cartão-chave que funcionava em todas as portas.

Verificaram cada quarto. Não encontraram o irmão de Astrid nem mais ninguém.

Pararam exaustos no último quarto. A barreira o atravessava dire­tamente. Era como se alguém tivesse posto uma parede no meio do quarto.

Ela atravessa a TV — disse Quinn. Em seguida pegou um con­trole remoto e apertou o botão de ligar. Nada aconteceu.

Eu adoraria saber como está a situação do outro lado da barrei­ra — disse Astrid. Será que a meia TV de alguém se acendeu do lado de lá?

Se for assim, eles poderiam me dizer se os Lakers ganharam o jogo — disse Quinn, mas ninguém, nem mesmo ele, estava com clima para rir.

Seu irmão provavelmente está em segurança do outro lado, As­trid — disse Sam, depois acrescentou: — com sua mãe, provavelmente.

Não sei — reagiu Astrid, rispidamente. — Tenho de presumir que ele esteja sozinho, desamparado, e que eu seja a única que possa fazer alguma coisa para ajudar.

Ela cruzou os braços e se apertou com força. Depois:

Desculpem. Pareceu que eu estava com raiva de vocês.

Não. Só pareceu que estava com raiva. Não de mim — disse Sam. — Não podemos fazer mais nada esta noite. É quase meia-noite. Acho que devíamos voltar para aquele quarto grande que a gente viu.

Astrid só pôde confirmar com a cabeça, e Quinn parecia a ponto de desmaiar. Encontraram a suíte. Tinha uma varanda enorme dando para o oceano lá embaixo. À esquerda, a barreira bloqueava a vista.

Seguia até longe no oceano, até onde podiam ver. Era como uma pa­rede se estendendo do próprio hotel, uma parede sem fim.

A suíte tinha um quarto com uma cama enorme e outro com duas não tão grandes, todas muito macias. Havia um frigobar com bebidas alcoólicas, cerveja, refrigerante, castanhas, uma barra de cereais, um Toblerone e alguns outros salgadinhos.

Quarto dos garotos —- disse Quinn, e se deixou cair numa das camas, de rosto para baixo. Em segundos estava dormindo.

Sam e Astrid ficaram juntos por um tempo na varanda, dividindo o Toblerone. Nenhum dos dois disse nada durante um longo tempo.

O que acha que é isso? — perguntou Sam, finalmente. Não pre­cisava explicar o que queria dizer com "isso".

Às vezes, acho que é um sonho. É tão estranho ninguém ter aparecido! Quero dizer, esse lugar devia estar apinhado de militares, cientistas e repórteres. De repente, aparece um muro vindo do nada, a maioria das pessoas na cidade desaparece, e ainda assim não tem nenhuma equipe de reportagem?

Sam já havia chegado a uma conclusão sinistra sobre isso. Imaginou se Astrid também teria.

Sim.

Não creio que seja simplesmente uma parede reta separando a gente do sul, sabe? Acho que pode ser um círculo. Pode fazer uma volta ao redor de nós. Podemos estar isolados em todas as direções. Na verdade, como ninguém veio nos salvar, acho que isso é bem pro­vável. Não acha?

É. Estamos numa armadilha. Mas por quê? E por que fazer su­mir todo mundo com mais de 14 anos?

Não sei.

Sam deixou o silêncio se demorar, não querendo fazer a próxima pergunta que estava em sua mente, sem saber se queria a resposta. Por fim:

O que acontece quando as pessoas fazem 15 anos?

Astrid virou os olhos azuis para ele, e trocaram um olhar.

Quando é seu aniversário, Sam?

Vinte e dois de novembro. Cinco dias antes do dia de Ação de Graças. Daqui a 12 dias. Não, daqui a 11 dias, já que passou da meia- noite, não é? E você?

Só em março.

Gosto mais de março. Ou de julho, ou agosto. É a primeira vez em que quis ser mais novo.

Para que ela não ficasse olhando-o daquele jeito, sentindo pena dele, Sam perguntou:

Acha que eles ainda estão vivos em algum lugar?

Acho.

Acha isso de verdade ou só porque quer que eles estejam vivos?

É — respondeu, e sorriu. — Sam?

O quê?

Eu estava no ônibus da escola naquele dia. Lembra?

Vagamente — disse ele, e riu. — Meus 15 minutos de fama.

Você foi a pessoa mais corajosa e mais maneira que já conheci. Todo mundo pensou isso. Você foi o herói de toda a escola. E depois, não sei. Foi como se tivesse simplesmente... se apagado.

Ele se ressentiu um pouco. Não tinha se apagado. Tinha?

Bom, na maior parte dos dias o motorista de ônibus não tem um ataque cardíaco — disse.

Astrid riu.

Você é uma dessas pessoas, acho. Segue na vida, tipo, só viven­do. Mas, quando alguma coisa dá errado, lá está você. Aparece e faz o que tem de ser feito. Tipo hoje, no incêndio.

É, bem, para dizer a verdade, meio que prefiro a outra parte. A parte em que só vivo a vida.

Astrid assentiu como se entendesse, mas depois disse:

-— Dessa vez isso não vai acontecer.

Sam baixou a cabeça e olhou o gramado lá embaixo. Um lagarto correu por um caminho de pedras. Rápido, lento, rápido, depois de­sapareceu.

—- Olhe, não espere muito de mim, certo?

Certo, Sam. — Ela disse, mas não como se acreditasse: — Ama­nhã vamos descobrir o que é isso.

E encontrar seu irmão.

E encontrar meu irmão.

Ela se virou. Sam ficou na varanda. Não podia ouvir as ondas. Ha­via muito pouco vento, Mas podia sentir o cheiro de flores vindo de baixo. E o cheiro salgado do Pacífico não havia mudado.

Tinha dito a Astrid que estava com medo, e estava. Mas havia ou­tros sentimentos também. O vazio da noite quieta demais penetrou nele. Estava sozinho. Mesmo com Astrid e Quinn, estava sozinho. Sabia o que eles não sabiam.

A mudança era tão grande que ele não podia fazer a mente absor­ver tudo.

Tudo estava conectado, tinha certeza. O que havia feito com seu padrasto, o que havia feito em seu quarto, o que havia acontecido com a pequenina lança-chamas de maria-chiquinha, o desaparecimento de todo mundo com mais de 14 anos, e essa barreira impermeável, im­possível — tudo eram peças do mesmo quebra-cabeça.

E o diário de sua mãe, também.

Estava apavorado, esmagado, sozinho. Mas, de certa forma, menos sozinho do que nos últimos meses. A pequena incendiária havia pro­vado que ele não era o único com um poder.

Não era a única aberração.

Estendeu as mãos e olhou para as palmas. Pele rosada, calos de passar cera na prancha, uma linha da vida, uma linha do destino. Só uma palma.

Como? Como aconteceu?

O que significava?

E, se ele não era a única aberração, isso significava que não era responsável por essa catástrofe?

Estendeu as mãos, com as palmas para a frente, em direção à bar­reira, como se fosse tocá-la.

Em pânico, ele podia fazer luz.

Em pânico, podia queimar a mão de um homem.

Mas certamente não poderia ter feito isso.

O que lhe trouxe um sentimento de alívio. Não, ele não era respon­sável por isso.

No entanto alguém, ou alguma coisa, era.

 

                       287 HORAS E 27 MINUTOS

— FIQUE PARADA, ESTOU tentando trocar sua fralda — pediu Maria Terrafino à criança.

Não é fralda — respondeu a menininha. — Fralda é para bebês. É minha calça de treino.

Ah, desculpe — disse Maria. — Eu não sabia.

Terminou de puxar para cima a calça de treino e sorriu, mas a me­nininha se debulhou em lágrimas.

Minha mãe sempre veste minha calça de treino.

Eu sei, querida. Mas hoje sou eu que estou fazendo isso, tudo bem?

Maria também queria chorar. Nunca quisera tanto chorar. A noite havia caído. Ela e seu irmão de 9 anos, John, tinham distribuído o último pacote de salgadinho sabor cheddar. Tinham distribuído todas as caixas de suco. Quase não tinham mais fraldas. A Creche da Bárba­ra não estava preparada para atendimento noturno. Possuía apenas um suprimento limitado de fraldas.

Eram 28 crianças no quarto maior. Vigiando-as estavam Maria, John e uma menina de 10 anos chamada Eloise, que ficava principal­mente de olho em seu irmão, de 4. Eloise era uma das mais ou menos responsáveis. Algumas outras crianças, com o peso da responsabilida­de, sem saber como se virar, tinham simplesmente largado seus ir­mãos, sem fazer qualquer tentativa de ficar e dar uma força.

Maria e John haviam preparado leite em pó e enchido mamadeiras. Tinham feito "refeições" com tudo que houvesse na creche e qualquer coisa que John conseguisse arranjar. Tinham lido livros em voz alta. Tocaram os CDs infantis inúmeras vezes.

Maria tinha dito as palavras "Não se preocupe, vai ficar tudo bem" um milhão de vezes. Tinha abraçado cada criança várias vezes, a pon­to de parecer que estava numa linha de montagem de abraços.

Mesmo assim as crianças choravam; chamando as mães. Mesmo assim perguntavam: "Quando mamãe vem? Por que ela não tá aqui? Cadê ela”? Exigiam com vozes petulantes e apavoradas. "Quero mi­nha mãe. Quero ir para casa. Agora!"

Maria estava tremendo de exaustão.

Deixou-se cair na cadeira de balanço e só ficou olhando em volta. Berços. Colchonetes no chão. Corpos minúsculos enrolados para um lado e para o outro. A maioria dormindo. A não ser a menina de 2 anos que não parava de chorar. E o bebê que entrava e saía de ataques de berros.

Seu irmão, John, estava lutando contra o sono, os cachos balançan­do quando erguia a cabeça, até que ela voltava a baixar... mais ainda. Estava largado numa poltrona do outro lado do quarto, balançando um berço que, na verdade, era apenas uma comprida jardineira de plás­tico tirada da loja de ferramentas. Maria atraiu o olhar dele e disse:

Estou tão orgulhosa de você, John.

Ele deu seu sorriso doce e Maria quase desmoronou. Seu lábio es­tremeceu. Lágrimas pipocaram nos olhos. Surgiu um calombo em sua garganta e uma dor no peito.

Quero fazer xixi — alguém gritou.

Maria localizou a fonte.

Venha, Cassie, vamos — chamou. O banheiro ficava perto do quarto principal. Ela foi na frente, depois esperou encostada na pare­de. Em seguida, enxugou o bumbum da menininha.

Minha mãe sempre faz isso — disse Cassie.

Eu sei, querida.

Minha mãe sempre me chama assim.

-— Querida? Ah. Quer que eu chame você de outra coisa?

Não. Mas quero saber quando minha mãe vem. Tô com saudade dela. Sempre abraço ela e ela me beija.

Eu sei. Mas, enquanto ela não vem, posso te dar um beijo?

Não. Só minha mãe.

Certo, querida. Vamos voltar para a cama.

De volta ao quarto principal, Maria foi até John.

Ei, irmãozinho. — Ela desgrenhou os cachos ruivos dele. — Es­tamos ficando sem várias coisas. Vamos ter problemas de manhã. Pre­ciso ver o que posso conseguir. Pode segurar as pontas aqui?

Posso. Eu sei limpar bundas.

Maria saiu para a noite, em direção à praça quase silenciosa. Algu­mas crianças dormiam nos bancos. Algumas se amontoavam em pe­quenos grupos, ao redor de lanternas. Viu Howard andando com uma garrafa de refrigerante numa das mãos e um bastão de beisebol na outra.

Você viu o Sam? — perguntou Maria.

O que você quer com ele?

Não posso cuidar de todas aquelas crianças pequenas só com o John para me ajudar.

Howard deu de ombros.

Quem pediu para você fazer isso?

Ele passou dos limites. Maria era alta e forte; Howard, apesar de ser um garoto, era menor. Maria deu dois passos, pondo o rosto qua­se em cima do dele.

Escute aqui, seu vermezinho. Se eu não cuidar daquelas crian­ças, elas vão morrer. Entendeu? Tem bebês que precisam de comida e de fraldas, e parece que sou a única que percebe isso. E provavelmen­te tem ainda mais crianças em casa, sozinhas, sem saber o que aconte­ceu, sem saber comer sozinhas, morrendo de medo.

Howard deu um passo atrás, levantou o bastão, hesitando, depois deixou-o cair.

E o que eu deveria fazer sobre isso? — reclamou.

Você? Nada. Cadê o Sam?

Se mandou.

Como assim, "se mandou"?

Ele, Astrid e Quinn se mandaram.

Maria piscou, sentindo-se idiota e lenta.

Quem está no comando?

Acha que só porque Sam gosta de bancar o grande herói de vez em quando isso faz dele o chefão?

Maria estivera no ônibus dois anos antes, quando o motorista, o Sr. Colombo, teve o ataque cardíaco. Estava com a cabeça num livro, sem prestar atenção, mas levantou os olhos quando sentiu o ônibus balan­çar. Assim que entendeu o que estava acontecendo, viu que Sam estava guiando o ônibus para o acostamento.

Nos dois anos seguintes, Sam estivera tão quieto, discreto e sem se envolver na vida social da escola, que Maria meio que havia esquecido aquele momento de heroísmo. A maioria das pessoas também esque­cera.

No entanto, não tinha se surpreendido quando foi Sam quem se apresentara durante o incêndio. E de algum modo havia presumido que, se alguém fosse ficar no comando, seria Sam. Sentiu raiva dele por não estar ali agora: ela precisava de ajuda.

Vá chamar o Ore — ordenou Maria.

Eu não digo ao Ore o que fazer, sua vaca.

O quê? — reagiu ela. — De que você me chamou?

Howard engoliu em seco.

Foi sem querer, Maria.

Cadê o Ore?

Acho que está dormindo.

Vá acordá-lo. Preciso de ajuda. Não posso continuar acordada. Preciso de pelo menos duas pessoas que tenham experiência em cuidar de crianças. E preciso de fraldas, mamadeiras, chupetas, cereais e mui­to leite.

Por que eu vou fazer tudo isso?

Maria não tinha resposta.

Não sei, Howard. Talvez porque você não seja um canalha com­pleto. Talvez você seja realmente um ser humano decente, não é?

Isso lhe rendeu um olhar cético e uma fungadela de desprezo.

Olha, o pessoal vai fazer o que o Ore mandar — disse Maria. — Eles têm medo dele. Só estou pedindo para o Ore agir como Ore.

Howard pensou nisso. Maria quase podia ver as engrenagens gi­rando na cabeça dele.

Esquece — falou finalmente. — Converso com Sam quando ele voltar.

É, ele é o grande herói, não é? — disse Howard, pingando sar­casmo. — Mas, ei, onde é que ele está? Você viu o cara por aí? Eu não.

Vai me ajudar ou não? Preciso voltar.

Certo. Vou pegar o que você quer, Maria. Mas é melhor se lem­brar de quem ajudou você. Você está trabalhando para o Ore e para mim.

Eu estou cuidando das criancinhas. Se estou trabalhando para alguém, é para elas.

Como eu disse, lembre-se de quem estava aqui quando você precisou. — Howard deu meia-volta e foi andando.

Duas babás e comida — gritou Maria para as costas do garoto.

Maria retornou à creche. Três crianças estavam chorando e o choro se espalhava. John cambaleava entre os berços e colchonetes.

Voltei — disse Maria. — Durma um pouco, John.

John simplesmente desmoronou. Estava roncando antes de bater no chão.

— Tudo bem — disse Maria à primeira criança que chorava. — Vai ficar tudo bem.

 

                     277 HORAS E 6 MINUTOS

SAM DORMIU SEM trocar de roupa e acordou cedo demais.

Tinha passado a noite no sofá da sala da suíte do hotel. Sabia, des­de os acampamentos na praia, que Quinn falava enquanto dormia.

Piscou e viu Astrid, uma sombra esguia contra o sol. Estava parada diante da janela, mas olhando na sua direção. Ele enxugou rapida­mente a boca no travesseiro.

Desculpe, babei dormindo.

Eu não queria acordar você, mas olha isso.

O sol da manhã havia surgido por trás da cidade, vindo de cima da cordilheira. Os raios de sol que brilhavam e dançavam na água pare­ciam incapazes de tocar o vazio cinzento da barreira. Ela se curvava, lá longe no mar, uma parede subindo do oceano.

Que altura isso deve ter? — perguntou-se Sam em voz alta.

Talvez eu conseguisse calcular — disse Astrid. — A gente mede desde a base da parede até um determinado ponto, depois deduz o ângulo e... não importa. Com certeza tem pelo menos uns 60 metros de altura. Nós estamos no terceiro andar e continuamos muito longe do topo. Se é que existe um topo.

O que você quer dizer com isso?

Não tenho certeza. Não leve nada do que eu digo muito a sério: só estou pensando em voz alta.

Então pense alto o suficiente para eu escutar.

Astrid deu de ombros.

Certo. Pode não haver um topo. Pode não ser uma parede, pode ser uma cúpula.

Mas estou vendo o céu. Vejo nuvens. Elas estão se movendo.

Certo. Bom, imagine o seguinte: você está segurando um peda­ço de vidro preto na mão. Como uma lente de óculos escuros bem grande e bem escura. Se você inclinar para um lado, ela é opaca. Se inclinar para outro, parece que quase dá para ver a luz atravessando-a. Tudo depende do ângulo e do...

Ouviu isso? — perguntou Quinn. Ele havia chegado sem ser notado, coçando-se indiscretamente.

Sam prestou atenção.

Um motor. E não está longe.

Saíram correndo da sala, desceram a escada a toda velocidade e passaram pela porta dupla até o terreno do hotel. Viraram a esquina, voltando para as quadras de tênis.

— É o Edilio. O garoto novo — disse Sam.

Edilio Escobar estava sentado na cabine aberta de uma pequena retroescavadeira amarela. Bem na frente dos seus olhos, Edilio mano­brou até a barreira e baixou a pá, mordendo a grama e voltando com um monte de terra.

Ele está tentando cavar uma saída — disse Quinn. Em seguida começou a correr e pulou impulsivamente ao lado de Edilio na retro­-escavadeira. Edilio pulou meio metro, mas depois começou a rir.

Edilio desligou o motor.

Ei, pessoal. Acho que vocês meio que notaram isso, hein? — Ele apontou um polegar para a barreira. — Aliás, não toquem na parede.

Sam confirmou com a cabeça, pesaroso.

É. A gente descobriu.

Edilio ligou o motor e cavou mais três pás de terra. Depois desceu da máquina, pegou uma pá manual e tirou os últimos centímetros de terra entre o buraco e a barreira.

A barreira continuava, mesmo sob o solo.

Trabalhando juntos, Edilio, Sam e Quinn cavaram um pouco mais de um metro com a retro-escavadeira e a pá, mas não encontraram o fundo da barreira.

Mas Sam não queria parar. Tinha de haver um fundo. Tinha de haver. Estava encontrando pedras, incapaz de fazer a pá mecânica ca­var mais fundo. Cada bocado de terra era menor do que o anterior.

Talvez uma britadeira. Ou pelo menos umas picaretas para quebrar aí embaixo. — Só então, não ouvindo resposta, Sam percebeu que era o único ainda cavando. Os outros estavam parados, olhando para ele.

É, talvez — disse Edilio, finalmente. Em seguida, se abaixou, estendeu a mão e puxou Sam para fora do buraco.

Sam subiu, jogou a pá de lado e bateu a terra dos jeans.

— Foi uma boa idéia, Edilio.

Como o que você fez no incêndio, cara — respondeu o outro. — Salvou a loja de ferramentas e a creche.

Sam não queria pensar no que tinha salvado ou não.

Eu não teria salvado nada, nem o meu rabo, sem você, Edilio. E Quinn e Astrid —- acrescentou como um pensamento de última hora.

Quinn lançou um olhar duro para Edilio.

Então, por que você está aqui?

Edilio suspirou e encostou sua pá na barreira. Enxugou o suor do rosto e olhou o terreno bem cuidado ao redor.

—- Minha mãe trabalha aqui — respondeu.

Quinn deu um risinho.

Ela é tipo... a gerente?

-— Ela é arrumadeira — disse Edilio, tranqüilamente.

É? Onde você mora? — perguntou Quinn.

Edilio apontou para a barreira.

Lá. Uns 3 quilômetros pela estrada. A gente tem um trailer, meu pai e meus dois irmãos menores. Eles ficaram doentes, por isso mamãe deixou os dois em casa. Álvaro, meu irmão mais velho, está no Afega­nistão.

No exército?

Forças Especiais — riu Edilio. — A elite.

Ele não era um garoto grande, mas sua postura era tão ereta que não parecia baixo. Seus olhos eram escuros, parecendo quase não ter a parte branca, gentis mas não assustados. Tinha mãos ásperas, com cicatrizes, que pareciam pertencer a outro corpo. Mantinha os braços ligeiramente afastados do tronco, as mãos com as palmas viradas um pouquinho para a frente, como se estivesse pronto para pegar alguma coisa. Parecia, ao mesmo tempo, completamente imóvel e pronto para entrar em ação.

Isso é idiotice, quando a gente pensa bem. As pessoas do outro lado da barreira sabem o que aconteceu — disse Quinn. — Quero di­zer, elas não podem ter deixado de notar que a gente ficou, de repen­te, atrás dessa parede.

E daí? — perguntou Sam.

E daí que eles têm equipamentos e coisas melhores do que nós, certo? Podem cavar muito mais fundo, passar por baixo da barreira. Ou em volta. Ou voar por cima. Isso aqui é uma perda de tempo.

Não sabemos até onde essa barreira vai — disse Astrid. — Pare­ce que para a uns 60 metros de altura, mas talvez seja ilusão de ótica.

Por cima, por baixo, em volta ou através — disse Edilio. — Tem de haver um modo.

Tipo quando vocês atravessam a fronteira com o México, não é? — disse Quinn.

Sam e Astrid olharam chocados para Quinn.

Edilio ficou mais ereto ainda e, apesar de ser 15 centímetros mais baixo do que Quinn, parecia estar olhando-o de cima. Numa voz cal­ma e baixa, respondeu:

Meu pessoal é de Honduras. Eles tiveram de atravessar o Méxi­co inteiro antes de chegar aqui. Minha mãe é arrumadeira. Meu pai é agricultor. Nós moramos num trailer e temos um carro velho. Ainda falo com um pouco de sotaque porque aprendi espanhol antes de aprender inglês. Precisa saber de mais alguma coisa, cara?

Eu não estava tentando começar nada, amigo — disse Quinn.

Que bom — respondeu Edilio.

Não era uma ameaça, não de verdade. E, de qualquer modo, Quinn era 10 quilos mais pesado que Edilio, mas foi ele quem recuou.

Precisamos ir embora — disse Sam. A Edilio, explicou: — Esta­mos procurando o irmãozinho de Astrid. Ele... precisa de cuidados. Astrid acha que ele pode estar na usina.

Meu pai é engenheiro lá — explicou Astrid. — Mas a usina fica a uns 15 quilômetros daqui.

Sam hesitou antes de pedir que Edilio se juntasse a eles. Isso irrita­ria Quinn, que não estava agindo em seu modo normal, o que não era de se estranhar, dado o que estava acontecendo. Sam, aliás, achava isso inquietante. Edilio, por outro lado, havia mantido a cabeça no lugar durante o incêndio. Havia se apresentado.

Astrid tomou a decisão por ele.

Edilio? Quer vir com a gente?

Agora Sam ficou meio aborrecido. Será que Astrid achava que ele não podia cuidar das coisas? Será que precisava do Edilio?

Astrid revirou os olhos para Sam.

Pensei em resolver a questão de uma vez e evitar mais poses de macho.

Eu não estava posando — resmungou Sam.

Como vocês vão até lá? — perguntou Edilio.

Não acho que a gente devesse pegar um carro, se é isso que você quer dizer — respondeu Sam.

Acho que talvez tenha a solução. Não é um carro, mas é me­lhor do que andar 15 quilômetros. — Edilio levou-os até uma porta de garagem escondida, atrás do vestiário da piscina. Levantou a por­ta da garagem, revelando dois carrinhos de golfe com o logotipo do hotel nas laterais. — Os jardineiros e os caras da segurança usam isso para andar por aí e ir até o campo de golfe do outro lado da auto-es­trada.

Você já dirigiu algum desses? — perguntou Sam.

Já. Meu pai às vezes trabalha no campo de golfe cuidando do gramado. Eu costumo ir com ele, para ajudar.

Isso simplificou a decisão. Até Quinn pôde ver a lógica.

Certo — disse Quinn, de má vontade. — Você dirige.

Podemos tentar a rua que vai direto até a auto-estrada — disse Sam. — É a primeira à direita.

Você quer evitar o centro da cidade — completou Astrid. — Não quer crianças procurando-o e perguntando o que devem fazer.

Você quer chegar à usina nuclear? — perguntou Sam. — Ou quer ficar olhando enquanto digo às pessoas que não têm nada a te­mer, a não ser o próprio medo?

Astrid riu, e na opinião de Sam, foi provavelmente o som mais doce que ele já ouvira.

Você se lembra — disse Astrid.

É. Eu lembro. Roosevelt. A Grande Depressão. Às vezes, se eu forçar de verdade o cérebro, posso até fazer multiplicação.

Humor defensivo? — provocou Astrid.

Entraram no carrinho, atravessaram o estacionamento e chegaram à rua. Ali, viraram à direita, chegando a um trecho estreito, recém- pavimentado. O carrinho de golfe diminuiu a velocidade ao subir o morro, até um ritmo praticamente de caminhada. Logo viram que a rua terminava na barreira. Pararam e olharam solenemente para o fim abrupto do pavimento.

É como um desenho do Papa-léguas — disse Quinn. — Se você pintar um túnel nela, a gente consegue passar, mas o Coiote vai se arrebentar.

Certo. De volta para a estrada do penhasco, então, mas pegue as ruas de trás até a auto-estrada. Não passe perto da praça — explicou Sam. — Precisamos achar o Pequeno Pete. Não quero ter de parar e falar com um monte de crianças.

Além disso, não queremos que ninguém roube o carro — disse Edilio.

-— É. Isso também — admitiu Sam.

— Para! — gritou Astrid, e Edilio pisou no freio.

Astrid pulou do banco e correu até alguma coisa branca junto ao meio-fio. Ajoelhou-se e pegou um graveto.

É uma gaivota — disse Sam, perplexo ao ver que Astrid se im­portava. — Talvez tenha batido na barreira, não é?

Talvez. Mas olhem isso. — Ela cutucou o pé do pássaro com o graveto, levantando-o.

O que é?

Ele é palmado, é claro. Como deveria. Mas olhe como os dedos se estendem. Olhe as unhas. São garras. Como uma ave de rapina. Como um falcão ou uma águia.

Tem certeza de que não é uma gaivota comum?

Eu gosto de pássaros — explicou Astrid. — Isso não é normal. As gaivotas não precisam de garras. Logo, não têm garras.

E daí, é um pássaro esquisito — disse Quinn. — Podemos con­tinuar?

Astrid se levantou.

Não é normal.

Quinn soltou uma gargalhada.

Astrid, nós não estamos nem no mesmo fuso horário da norma­lidade. É com isso que você está preocupada? Com dedos de pássaros?

Ou esse pássaro é uma aberração solitária, uma mutação aleató­ria — continuou Astrid —, ou é uma espécie nova que apareceu de repente. Que evoluiu.

De novo, vou ter de dar uma de: "e daí"? — disse Quinn.

Astrid estava a ponto de dizer alguma coisa. Depois balançou um pouco a cabeça, dizendo a si mesma que não.

Deixa para lá, Quinn. Como você disse, nós estamos bem longe da normalidade.

Embarcaram de novo e partiram a 20 quilômetros por hora. Vira­ram na Terceira Avenida e voltaram, distanciando-se da cidade, e em seguida subiram pela Quarta, que era uma rua residencial mais antiga, calma, sombreada e decididamente pobre, perto da casa de Sam.

Os únicos carros que viram no caminho estavam estacionados ou batidos. As únicas pessoas que viram foram algumas crianças atraves­sando a rua atrás deles. Ouviram sons de TV vindos de uma casa, mas decidiram rapidamente que era um DVD.

Pelo menos a eletricidade ainda está funcionando — disse Quinn. — Eles não tiraram nossos DVDs. Os MP3 ainda funcionam também, mas sem acesso à internet. Ainda teremos música.

Eles — observou Astrid. — Passamos de "Deus" para "eles".

Chegaram à auto-estrada e pararam.

Bom. Isso é arrepiante — disse Quinn.

No meio da auto-estrada havia um trator com um trailer, da UPS. O trailer havia se soltado e estava caído de lado, como um brinquedo abandonado. O trator, a parte que servia para puxar o trailer, ainda estava de pé, mas na lateral da estrada. Havia um conversível batido contra a frente, e não havia se saído bem. O impacto tinha sido fron­tal, e o carro fora esmagado até quase metade do tamanho normal. E tinha pegado fogo.

Os motoristas pufaram, o do carro e o do trator — disse Quinn.

Pelo menos ninguém se machucou — completou Edilio.

A não ser que houvesse alguma criança no carro — observou Astrid.

Ninguém sugeriu que verificassem. Nada teria sobrevivido àquela batida ou ao incêndio subseqüente. Nenhum deles queria ver se havia algum corpinho no banco de trás.

A auto-estrada tinha quatro pistas, duas indo para cada lado, não divididas, mas com uma via de retorno no meio. Sempre havia tráfe­go. Mesmo no meio da noite havia tráfego. Agora, apenas silêncio e vazio.

Edilio deu um riso meio trêmulo.

Continuo esperando que algum grande caminhão velho venha a toda velocidade atropelar a gente.

Seria quase um alívio — murmurou Quinn.

Edilio pisou no pedal, o motor elétrico zumbiu e eles entraram na auto-estrada, dando a volta no trailer da UPS capotado.

Era uma experiência fantasmagórica. Estavam indo mais devagar do que um ciclista profissional numa auto-estrada onde ninguém anda­va a menos de cem quilômetros por hora. Passaram lentamente por uma oficina de amortecedores e pela Lubrificação Jiffy, por um prédio atarracado que abrigava um escritório de advocacia e contabilidade. Em vários lugares, os carros da auto-estrada haviam batido em veículos estacionados. Um conversível tinha arrancado a vitrine e estava total­mente dentro da lavanderia a seco. Roupas embrulhadas em plástico estavam espalhadas pelo capô e pelos bancos do carro.

O silêncio era sepulcral. O único som vinha dos pneus de borracha e do zumbido difícil do motor elétrico.

A cidade estava à esquerda. À direita, o terreno subia íngreme até uma crista elevada, que ficava acima de Praia Perdida como outra es­pécie de parede. Nunca ocorrera a Sam, com tanta ênfase, que Praia

Perdida já era cercada por barreiras, por montanhas a norte e a leste, pelo oceano ao sul e a oeste. Esta estrada, esta estrada silenciosa e vazia, era praticamente o único caminho de entrada e saída.

À frente, ficava o posto Chevron. Sam pensou ter visto movimento lá.

O que vocês acham? — perguntou.

Talvez eles tenham comida. É um mini-mercado, certo? — disse Quinn. — Estou com fome.

A gente devia continuar — disse Astrid.

Edilio? — perguntou Sam.

Ele deu de ombros.

Não quero ser paranóico. Mas, cara, quem sabe?

Acho que voto por continuar — disse Sam.

Edilio assentiu e desviou o carrinho de golfe para o lado esquerdo da estrada.

Se houver crianças lá, nós sorrimos, acenamos e dizemos que estamos com pressa — disse Sam.

Sim, senhor — respondeu Quinn.

Corta essa, brou. Nós fizemos uma votação — disse Sam.

É. Certo.

Era óbvio que havia pessoas no posto Chevron. Uma brisa leve carregou um saco de Doritos rasgado pela estrada, na direção deles, flashes de vermelho e dourado enquanto era levado pelo vento.

Enquanto o carrinho de golfe se aproximava, um garoto, depois outro, veio para a estrada. Cookie era o primeiro. Sam não reconhe­ceu o segundo garoto.

E aí, Cookie? — gritou Sam quando chegaram a uns 20 metros.

E aí, Sam? — respondeu Cookie.

Estamos procurando o irmão de Astrid, cara.

Parem aí — disse Cookie. Ele estava segurando um bastão de beisebol de metal. O outro garoto ao lado tinha um martelo de croqué com listras verdes.

—- Não dá, cara, nós estamos numa missão, falamos com vocês mais tarde — disse Sam. Em seguida acenou e Edilio manteve o pé no pedal. Estavam a pouco mais de um metro e logo iriam ultrapassá-los.

Façam-nos parar — gritou uma voz do posto Chevron. Howard estava correndo e, atrás dele, Ore. Cookie parou na frente do carro.

Não pare — sussurrou Sam.

Edilio alertou Cookie:

Cara, cuidado.

Cookie pulou de lado no último segundo. O outro garoto girou o martelo com força. O cabo de madeira bateu na barra de aço que sus­tentava o toldo do carrinho, a cabeça do martelo se partiu e quase acertou Quinn.

Em seguida, haviam ultrapassado e Quinn gritou para trás:

Ei, você quase arrebentou minha cabeça, seu babaca!

Estavam a uns 10 metros e se afastando quando Ore gritou:

Peguem esses caras, seus idiotas.

Cookie era um garoto grande, mas não era rápido. Mas o outro, o que segurava o martelo quebrado, era menor e mais veloz. Começou a correr. Howard e Ore estavam muito atrás, correndo o mais rápido possível, mas Ore era pesado e lento, e Howard se afastou dele.

O garoto com o martelo alcançou-os.

É melhor pararem — disse ofegando, correndo ao lado.

Acho que não — respondeu Sam.

Cara, vou acertar você com esse pau — ameaçou o garoto, mas estava ofegando bastante. Tentou um golpe débil com a ponta despe­daçada do martelo.

Sam pegou-o e torceu, arrancando o martelo da mão dele. O garo­to tropeçou e caiu no chão. Sam jogou fora o pedaço de pau, com desprezo.

Howard estava quase ao alcance, vindo diretamente atrás do carri­nho. Astrid e Quinn olharam calmamente enquanto Howard se esfor­çava mais, com os braços magros girando como as pás de um moinho. Ele lançou um olhar para trás e viu que Ore não iria alcançá-los.

Howard, o que você acha que está fazendo, cara? — perguntou Quinn em um tom perfeitamente razoável. — O que vai fazer se alcan­çar a gente?

Howard entendeu o argumento e diminuiu a velocidade.

É uma perseguição em baixa velocidade, cara — disse Edilio. — Talvez a gente saia no noticiário.

Isso provocou um riso nervoso.

Cinco minutos depois, ninguém estava rindo.

Tem um jipe enorme vindo depressa — avisou Astrid. — Preci­samos parar.

Eles não vão atropelar a gente — disse Quinn. — Nem o Ore é tão idiota.

Podem até não querer nos atropelar — disse Astrid —, mas é um garoto de 14 anos dirigindo um Hummer. Você quer mesmo estar na estrada?

Quinn confirmou com a cabeça.

- Vamos levar uma cacetada.

 

                   274 HORAS E 27 MINUTOS

O HUMMER COSTURAVA de um lado para o outro na estrada, mas não havia como fingir que não iria alcançá-los.

Continuo ou paro? — perguntou Edilio. Suas mãos estavam brancas por apertar o volante.

Eles vão acertar nossa traseira agora — gritou Quinn. — A gen­te já devia ter parado. Eu disse que a gente devia ter parado, mas não...

O Hummer diminuiu a distância com velocidade chocante.

Eles vão acertar a gente — gritou Astrid.

Quinn saltou do carrinho e correu. O Hummer parou, estremecen­do. Cookie e o Garoto do Martelo desceram e foram atrás de Quinn.

Pare — disse Sam. Em seguida pulou do carrinho e foi ajudar Quinn.

Quinn tentou saltar por cima da vala ao lado da estrada, mas caiu mal. Os dois valentões estavam em cima dele antes que pudesse se recuperar, e Cookie lhe deu um soco nas costas.

Sam deu uma voadora para cima de Cookie. Agarrou Cookie na dobra do braço e o empurrou à frente com seu ímpeto.

Cookie caiu mal, de barriga, e Sam rolou para se livrar. Cookie havia largado o bastão para socar Quinn, e Sam mergulhou para pegá-lo. Martelo, Edilio e Quinn tiveram uma briga breve mas violenta, acabou com Edilio e Quinn de pé e o outro garoto caído. Mas isso dera tempo para Ore e Howard descerem do jipe.

Ore girou seu bastão e acertou Edilio na parte de trás dos joelhos. Edilio caiu como um saco de cimento.

Agarrando o bastão de Cookie, Sam correu para ficar entre Ore e Edilio.

Não quero brigar com você — gritou Sam.

Sei que você não quer brigar comigo — disse Ore, cheio de con­fiança. — Ninguém quer brigar comigo.

Astrid se aproximou.

Todos vocês, parem com isso — gritou. Seus punhos estavam fechados e havia lágrimas nos seus olhos. Mas ela estava com raiva, e não triste. — Não precisamos desta bosta.

Howard ficou entre Ore e Astrid.

Fique fora disso, Astrid, meu chapa Ore tem de dar uma lição nesse vagabundo.

Ficar fora? — reagiu Astrid. — Não me diga para ficar fora, seu... seu invertebrado.

Astrid, não se meta, eu resolvo — disse Sam. Edilio tentou per­manecer firme, mas mal conseguia ficar de pé.

Surpreendentemente, Ore interrompeu:

Ei. Deixe Astrid falar.

Cheio de adrenalina, Sam quase não o ouviu. Mas então processou o que Ore havia dito e manteve a boca fechada.

Astrid respirou fundo. Seu cabelo estava desgrenhado, o rosto ver­melho, e finalmente, lutando para ficar calma, disse:

Não estamos procurando briga.

Fale por você — murmurou Cookie.

Isso é loucura — disse Astrid. — Só estamos procurando meu irmão.

Os olhos de Ore se estreitaram ainda mais.

O retardado?

Ele é autista — respondeu Astrid, irritada.

É. O Pequeno Pe-tardado — zombou Ore, mas não foi em frente.

Você deveria ter parado, Sammy. — Howard fez um tsk-tsk, balançando a cabeça lentamente de um lado para o outro.

Foi o que eu disse, e acabo levando pancada? — Quinn gesticu­lou feito louco, com raiva de Sam.

Howard assentiu para Quinn, achando divertido.

Você deveria ter ouvido o seu brou aí, Sam. Ontem à noite eu disse para cuidar do meu chapa Ore.

Cuidar dele? O que você quer dizer? — perguntou Astrid.

Howard virou os olhos frios para ela.

Você tem de demonstrar algum respeito pelo capitão Ore, é o que eu quis dizer.

Capitão? — Sam resistiu à ânsia de gargalhar.

Howard chegou mais perto, corajoso, com Ore logo atrás.

— É. Capitão. Alguém tinha de se apresentar e assumir o comando, certo? Você estava ocupado, surfando ou sei lá o quê, por isso o capi­tão Ore se voluntariou para a posição de comando.

Comando para quê? — perguntou Quinn.

Para impedir que todo mundo fique correndo por aí feito maluco.

É — concordou Ore.

As crianças estavam invadindo tudo, pegando tudo o que que­riam — continuou Howard.

É.

E aquele monte de melequentos, aquelas criancinhas correndo de um lado para o outro, ninguém fazendo os bebês pararem de cho­rar, nem trocando fraldas. Ore garantiu que alguém cuidasse delas. — Howard deu um riso enorme. — Ele as tranqüilizou. Ou pelo me­nos fez alguém tomar conta disso.

Isso mesmo — concordou Ore, como se pela primeira vez esti­vesse ouvindo a coisa ser dita desse modo.

Ninguém mais queria controlar a situação, então Ore controlou — disse Howard. — Por isso, agora ele é o capitão, até os adultos voltarem.

Só que eles não vão voltar — completou Ore.

Isso é totalmente certo — concordou Howard. — Isso que o capitão disse.

Sam olhou para Astrid. A verdade é que alguém precisava fazer as pessoas pararem de agir feito malucas. Ore não seria a escolha de Sam para o serviço, mas ele próprio não queria essa responsabilidade.

A briga havia praticamente sido esquecida. E agora que os dois la­dos estavam cara a cara, não havia dúvida de quem venceria se ela recomeçasse. Eram quatro contra quatro, mas entre os quatro valen­tões estava Ore, e ele valia por pelo menos três.

Só queremos procurar o Pequeno Pete — disse Sam finalmente, engolindo a raiva.

É? Se vão procurar alguma coisa, é melhor irem devagar — dis­se Howard, com um risinho.

Vocês querem o carrinho de golfe — deduziu Sam.

E isso que estou falando, Sammy — disse Howard, abrindo os braços num gesto de conciliação.

É, tipo, as pessoas pagam impostos, não é? — disse Martelo.

Exato — concordou Howard. — É um imposto.

Quem é você, afinal? — perguntou Astrid ao garoto. — Nunca vi você na escola.

Estudo na Academia Coates.

Minha mãe é a enfermeira lá, no turno da noite — disse Sam.

Não é mais — respondeu o garoto.

Por que você está aqui embaixo? — perguntou Astrid de novo.

Não me dou bem com os caras lá de cima. — O garoto tentou fazer com que parecesse uma piada, mas o efeito foi solapado pelo medo em seus olhos.

Tem algum adulto lá? — perguntou Sam, esperançoso.

Ai — disse Howard. — Sammy quer a mamãe dele.

-— Peguem o carro de golfe — disse Sam.

Não perca seu tempo tentando dar uma de mau para cima de mim. Olha, eu sei qual é a sua, cara — disse Howard. — Sam do Ôni­bus Escolar. Sr. Bombeiro. Você dá uma de herói e depois some. Não é? Isso vive acontecendo com você. Ontem à noite todo mundo estava tipo: "Cadê o Sam? Cadê o Sam?" E precisei dizer: "Bom, pessoal, o Sam foi embora com Astrid Gênio, porque ele não gosta de ficar com gente comum como a gente. Sam tem de sair por aí com a namoradinha loura."

Ela não é minha namorada — reclamou Sam, e se arrependeu instantaneamente.

Howard riu, deliciado por tê-lo provocado.

Veja só, Sam, você sempre tem de ficar no seu mundinho, bom demais para todo mundo, enquanto eu, o capitão Ore e o nosso pes­soal vamos estar sempre por perto. Você pula fora e a gente fica por dentro.

Sam podia sentir Astrid e Quinn olhando, esperando que ele negas­se o que Howard estava dizendo. Mas de que adiantava? Sam havia sentido as expectativas de muitas crianças na praça, crianças querendo que ele ficasse por dentro, como Howard havia dito. E ele só queria ir embora. Tinha aproveitado a chance de ir com Astrid sem pensar duas vezes.

Estou de saco cheio disso — grunhiu Ore.

Howard riu.

Certo, Sam. Pode ir procurar o Pequeno Pete, mas quando vol­tar é melhor ter um belo presente para o capitão. O capitão comanda o LGAR, cara.

Comanda o quê? — perguntou Astrid.

Howard claramente estava adorando a pergunta.

Eu mesmo bolei isso. LGAR. Significa Lugar da Galera da Área Radioativa. Ou seja: na Área Radioativa, quem manda somos nós.

Howard deu uma risada maldosa.

Não se preocupe, Astrid. É só um LGAR. Sacou? Só um LGAR como qualquer outro.

O sol queimava seu rosto. Lana abriu os olhos e viu formas aladas, cheias de mau agouro, flutuando acima, atravessando o sol, indo e vindo. Os urubus olhavam e esperavam, confiantes em uma refeição.

Sua língua estava tão inchada que preenchia a boca, quase sufocando-a. Os lábios estavam rachados. Lana estava morrendo.

Olhou em volta, procurando o corpo do pobre cachorro. Ele deve­ria estar bem ali ao lado. Mas não havia nenhum corpo.

Ouviu um latido familiar.

Patrick?

Ele veio pulando até ela, agitado, instigando-a a brincar.

Lana ergueu o braço bom e tocou o pescoço de Patrick. O pelo continuava cheio de sangue seco, mas, ao sondar onde deveria estar a mordida fatal, percebeu que o ferimento havia se fechado. Havia uma casca no lugar, mas não sangrava mais e, a julgar pelo comportamento de Patrick, ele estava se sentindo novo em folha.

Será que ela havia sonhado com tudo aquilo? Não: o sangue seco era a prova.

Esforçou-se para se lembrar dos últimos momentos de consciência, à noite. Tinha rezado? Seria isso? Um milagre? Não se lembrava de ter rezado, não era uma pessoa que acreditava em orações.

Ela teria causado aquilo? De algum modo, teria curado Patrick?

Quase riu. Estava delirando. Estava enlouquecendo. Imaginando coisas.

Louca de dor, de sede e fome.

Louca.

Sentiu um fedor. Enjoativamente doce e repulsivo.

Olhou para o braço direito despedaçado. A carne, especialmente a carne rasgada, que mal continha os ossos partidos, estava preta e fi­cando verde. O cheiro era medonho.

Lana respirou fundo várias vezes, lutando contra o terror. Tinha ouvido falar em gangrena. Era o que acontecia quando a carne morria ou a circulação era cortada. Seu braço estava morrendo. O cheiro era de carne humana apodrecendo.

Um urubu planou até pousar a poucos metros de Lana. Encarou-a com os olhos pequenos e balançou o pescoço sem penas. O urubu também conhecia aquele cheiro.

Patrick voltou, latindo, e o urubu bateu asas, afastando-se com re­lutância.

— Não vai me pegar — grasnou Lana, mas a fraqueza de sua pró­pria voz só a amedrontou mais ainda. Os urubus iam pegá-la. Com certeza.

Mas ali estava o Patrick, curado, depois de um ferimento aparente­mente fatal.

Lana pôs a mão esquerda na carne logo abaixo do osso do braço direito. A carne estava quente ao toque e parecia fofa sob a crosta de sangue seco.

Fechou os olhos e pensou: o que quer que tenha feito isso, como quer que tenha acontecido com o Patrick, agora preciso disso para mim. Não quero morrer. Não quero morrer.

Então desmaiou, pensando em sua casa. Em seu quarto. Pôsteres nas paredes, um mobile indígena pendurado na frente da janela, animais de pelúcia esquecidos num cesto de vime, um armário explodindo de roupas, a coleção de leques asiáticos que todo mundo achava esquisita.

Não estava mais furiosa com os pais. Só sentia falta deles. Queria a mãe mais do que qualquer coisa, e o pai também. Ele saberia como salvá-la.

Teve sonhos febris, imagens que a fizeram ofegar, respirar com di­ficuldade e fizeram seu coração bater forte e descompassado.

Sentiu-se flutuando numa fina crosta de terra. A terra era como a pele de um balão. Embaixo, um espaço aberto cheio de nuvens em redemoinhos e jatos súbitos de chamas. E, mais embaixo ainda, um monstro, algo saído de sua infância, o monstro que costumava fazê-la acordar assustada.

Era esculpido em pedra viva, uma fera áspera, lenta, inteligente, com olhos pretos chamejantes.

E, dentro daquela fera terrível, um coração. Só que esse coração reluzia verde, e não vermelho. E esse coração era como um ovo, ra­chado de modo que uma luz brilhante e dolorosa escapava.

Acordou assustada com o som de seu próprio grito.

Sentou-se, como sempre fazia ao acordar de um pesadelo em sua cama.

Sentou-se.

A dor foi terrível. A cabeça latejava, as costas, o... Olhou para o braço direito.

Por um tempo esqueceu de respirar. Esqueceu-se até mesmo da dor na cabeça, nas costas e na perna. Esqueceu tudo, porque a dor no bra­ço havia sumido.

O braço estava reto. Do cotovelo ao pulso, formava uma linha reta de novo.

A gangrena também havia sumido. O cheiro de morte havia sumi­do.

O braço ainda estava coberto por uma crosta de sangue seco, mas isso não era nada, absolutamente nada comparado ao que estivera ali, não tinha nada a ver com o que Lana vira há pouco.

Tremendo, levantou o braço direito.

Ele se mexeu.

Lentamente apertou o punho direito.

Os dedos se juntaram.

Não era possível. Não era possível. O que ela estava vendo não podia estar acontecendo.

Mas a dor não mentia. E a dor lancinante que antes ardia no braço agora não passava de um latejamento surdo.

Pôs a mão esquerda na perna quebrada.

Não foi rápido. Demorou um tempo enorme e ela estava terrivel­mente fraca, pela sede e pela fome. Mas manteve a mão ali até que, uma hora mais tarde, fez o que havia temido jamais fazer de novo: Lana Arwen Lazar ficou de pé.

Dois urubus estavam empoleirados em cima da picape virada.

— Acho que vocês esperaram à toa — disse Lana.

 

                          273 HORAS E 39 MINUTOS

SAM, QUINN, EDILIO e Astrid seguiram a pé, acompanhados por insul­tos e risos.

Quinn, Edilio, vocês estão bem? — perguntou Astrid.

Sem contar com o hematoma enorme que provavelmente vai aparecer nas minhas costas? — respondeu Quinn. — Claro. Sem con­tar com o fato de que fui espancado sem motivo, estou perfeito. Gran­de, brou. Funcionou bem. Perdemos o carrinho de golfe e fomos es­pancados e humilhados.

Sam conteve a vontade de gritar com o amigo. Quinn não estava errado. Sam tinha votado por ignorar o bloqueio na estrada e todos tiveram que pagar o preço.

As palavras de Howard feriam. Era como se o vermezinho tivesse arrancado sua pele e mostrado ao mundo o que Sam realmente era. Não quanto a pensar que fosse bom demais para todo mundo, isso não era verdade, mas quanto a ele não querer ficar por perto. Sam tinha seus motivos, mas, neste momento, eles não importavam tanto quanto a sensação causticante de ter sido envergonhado na frente dos amigos.

Vou ficar bem, não é nada demais — disse Edilio a Astrid. — Se eu continuar andando, vai passar.

Ah, é, fantástico, seja bonzinho, Edilio. — Quinn deu uma risa­da irônica. —Talvez você goste de umas porradas. Eu, não. Não gosto de ser espancado. E agora a gente ainda tem que andar até a usina? Por que, para procurar um garotinho que provavelmente nem sabe que está perdido?

De novo, Sam resistiu ao impulso de raiva. O mais calmamente que pôde, disse:

Meu irmão, ninguém está obrigando você a ir.

Está dizendo que eu não devo ir? — Quinn deu dois passos rá­pidos e agarrou o ombro de Sam. — Está dizendo que quer que eu vá embora, brou?

Não, cara. Você é o meu melhor amigo.

Seu único amigo.

-— É. Isso mesmo — admitiu Sam.

Só estou dizendo isso: quem morreu e deixou você no trono? Você está agindo como se fosse o chefe aqui. Como isso aconteceu? Por que estou recebendo ordens de você?

—- Você não está recebendo ordens — disse Sam, com raiva. — Não quero que ninguém receba ordens de mim. Se eu quisesse pessoas recebendo ordens minhas, só precisava ficar na cidade e começar a dizer às pessoas o que fazer. — Em voz mais baixa, disse: — Você pode ficar no comando, Quinn.

Eu nunca disse que queria ficar no comando — bufou o outro, mas estava esgotando seu ressentimento. Lançou um olhar sombrio para Edilio, um olhar cauteloso para Astrid. — Só é esquisito, brou. Antigamente éramos só você e eu, certo?

É — concordou Sam.

Com uma voz chorosa, Quinn disse:

Só quero pegar nossas pranchas e ir para a praia. Quero que tudo volte a ser como era. — Depois, num grito espantoso: — Cadê todo mundo? Por que não vieram pegar a gente? Cadê meus pais?

Recomeçaram a andar, Edilio mancando um pouco, Quinn ficando para trás e murmurando. Sam andava ao lado de Astrid, ainda sem graça na presença dela.

Você cuidou bem do Ore lá atrás — falou. — Obrigado.

Eu o tratei com matemática terapêutica. — Ela deu um sorriso torto. — Ele se sente um pouco intimidado por mim, mas não pode­mos contar muito com isso.

Caminharam pelo meio da auto-estrada. Era estranho ver a linha amarela embaixo dos pés.

Lugar da Galera da Área Radioativa — disse Astrid.

É. Acho que isso vai pegar, não é?

Talvez não seja só uma piada — disse Astrid. — Talvez isso tenha a ver com a Área Radioativa.

Sam olhou-a rapidamente.

Quer dizer que talvez tenha havido um acidente na usina nu­clear?

Ela deu de ombros.

Não sei se quero dizer alguma coisa.

Mas você acha que isso pode estar ligado? Tipo a usina explodiu ou algo assim?

A energia ainda está ligada. Praia Perdida recebe a eletricidade da usina. As luzes ainda estão acesas. Assim, de um modo ou de outro, a usina ainda está funcionando.

Edilio parou.

Ei, pessoal. Por que a gente está andando?

Porque aquele escroto do Ore e o merdinha do Howard rouba­ram nosso carro de golfe — disse Quinn.

Olha — indicou Edilio, apontando para um carro que havia saído da estrada e parado na vala de drenagem. Havia duas bicicletas presas no suporte superior.

Eu me sinto mal pegando a bicicleta de outra pessoa — disse Astrid.

Supere isso — respondeu Quinn. — Se você não notou, esse é um mundo totalmente novo. É o LGAR.

Astrid levantou os olhos e viu uma gaivota voando não muito aci­ma deles.

É, Quinn. Eu notei.

Pegaram as duas bicicletas e montaram, dois em cada uma. Quinn se empoleirou no guidão de Edilio e Astrid no de Sam. O cabelo da menina batia no rosto dele, pinicando um pouco. Sam ficou triste quando encontraram mais duas bicicletas.

A auto-estrada não ia até a usina; era necessário pegar uma estrada lateral. Havia uma impressionante guarita de pedra no entroncamento e uma cancela com listras vermelhas, como um cruzamento ferroviá­rio. A cancela estava fechada, barrando o caminho, mas eles deram a volta na barreira.

A estrada serpenteava por morros cobertos por capim seco e flores amarelas murchas. Não havia casas nem lojas perto da usina; ela era cercada por dezenas de hectares de vazio em todas as direções. Encos­tas íngremes e alguns poucos bosques, campinas e riachos secos.

Por fim, a estrada se desviou, descendo para o litoral rochoso. A vista era estonteante, mas as ondas, normalmente explosivas, estavam suaves, domadas. A estrada subia e descia, dobrou-se totalmente algu­mas vezes, escondeu-se atrás de morros e depois se abriu para um novo panorama do oceano.

Tem outro portão de segurança ali na frente — disse Astrid.

Se houver um guarda lá, dou um beijo nele — exclamou Quinn.

Isso tudo aqui é constantemente vigiado e patrulhado — disse Astrid. — Eles têm praticamente um exército particular para proteger a usina.

Não mais — observou Sam.

Chegaram a uma cerca de tela, com arame farpado por cima. A cerca descia até as pedras à esquerda e desaparecia morro acima, à di­reita. Ali havia uma guarita muito mais séria, quase uma fortaleza. Parecia capaz de suportar um grande ataque. O portão era uma seção alta da cerca de tela que podia rolar para a frente e para trás ao co­mando de um botão.

Pararam de pedalar e olharam para o obstáculo.

Como vamos entrar? — perguntou Astrid.

Alguém escala o portão — disse Sam. — Zerinho ou um.

Os três jogaram e Sam perdeu.

Ele escalou a cerca rapidamente, mas o arame farpado o fez parar. Tirou a camisa e enrolou no trecho mais problemático, depois passou com cuidado uma perna por cima e gritou quando o arame picou sua coxa. Só então passou o resto do corpo e pulou para o chão, deixando a camisa para trás no arame.

Entrou na guarita. O ar-condicionado estava no máximo, fazendo-o lamentar imediatamente ter largado a camisa na cerca.

Uma fileira de monitores coloridos mostrava a estrada que tinham acabado de descer, além de uma variedade de cenas externas mudando em loop: oceano, rochas e montanha. Também mostrava várias portas protegidas por cartões de passagem, dentro da usina.

No banheiro, viu um cartão eletrônico preso num cordão pendura­do num gancho. Alguém estivera usando o banheiro na hora do desa­parecimento. Sam pendurou o cordão no pescoço.

Num closet fora da sala principal, encontrou uma camisa de uni­forme verde-acinzentada estilo militar, vários números maior do que o seu. Encostado na parede havia um armário trancado, com armas automáticas, submetralhadoras. A sala cheirava a óleo e enxofre.

Olhou as armas por um longo tempo. Armas automáticas versus bastões de beisebol.

Não pense nisso — murmurou.

Saiu do closet de armas e fechou a porta com firmeza. Mas sua mão se demorou um tempo na maçaneta. Depois balançou a cabeça. Não. A coisa não havia chegado a esse ponto.

Ainda.

A força da tentação o deixou tonto. Qual era o seu problema, para sequer ter considerado a possibilidade por um segundo?

Apertou o botão para abrir o portão.

Por que demorou tanto? — perguntou Quinn, com suspeitas.

Estava procurando uma camisa.

A usina nuclear ficava em perfeito isolamento, um complexo vasto e imponente de prédios que mais pareciam armazéns, dominados por duas imensas redomas de concreto.

Durante toda a vida, Sam ouvira falar da usina nuclear. Parecia que metade das pessoas de Praia Perdida trabalhava lá. Enquanto crescia, tinha ouvido as frases feitas garantindo a segurança. E, de fato, não sentia medo da energia nuclear. Mas agora, vendo a usina de verdade

uma fera brilhante, eriçada, agachando-se sobre mar e sob as mon­tanhas —, ficou um tanto nervoso.

Seria possível amontoar todas as casas de Praia Perdida nesse lugar — disse Sam. — Nunca tinha visto de perto. É grande.

Meio que me lembra de quando estive em Roma e vi a catedral de São Pedro, que é realmente enorme — disse Quinn. — É tipo... você sabe, a pessoa fica pequena só de olhar. Tipo como se a gente devesse se ajoelhar, só para garantir.

Pergunta idiota, certo: mas não vamos ficar radioativos, não é? - perguntou Edilio.

Isso aqui não é Chernobyl — respondeu Astrid, irritada. — Lá eles nem tinham torres de contenção. É o que são aquelas duas cúpu­las enormes. Os reatores de verdade estão embaixo das cúpulas de contenção, de modo que se alguma coisa acontecer, o gás ou o vapor radioativo fica contido lá dentro.

Quinn deu um tapa nas costas de Edilio, fingindo amizade.

E é por isso que não há com que se preocupar. A não ser que... bem... eles chamam esse lugar de Área Radioativa. Por que será? Já que tudo é totalmente seguro e coisa e tal.

Quinn e Sam conheciam a história, mas por causa de Edilio, Astrid apontou a cúpula mais distante.

Está vendo como a cor é diferente, que uma das cúpulas parece mais nova? A de lá foi acertada por um meteorito, há quase 15 anos. Mas quais são as chances de isso acontecer de novo?

Quais são as chances de acontecer uma vez? — murmurou Quinn.

Um meteorito? — ecoou Edilio, e olhou para o céu. O sol já havia passado bastante do ponto mais alto e ia se pondo em direção à água.

Um pequeno meteorito movendo-se em alta velocidade — ex­plicou Astrid. — Acertou o vaso de contenção e o explodiu. Vaporizou. Acertou o reator e não parou. Na verdade, foi bom ele estar se movendo tão depressa.

Sam viu um filme na cabeça. Podia imaginar a grande pedra espa­cial descendo a uma velocidade impossível, com uma cauda de fogo, explodindo a cúpula de concreto.

Por que é bom ele ter vindo rápido? — perguntou Sam.

Porque fez um buraco na terra e carregou noventa por cento do combustível de urânio para a cratera. Empurrou o urânio até quase 30 metros de profundidade. Assim, o pessoal da usina basicamente apenas encheu o buraco, cimentou em cima e aí eles reconstruíram o reator.

Ouvi falar que um cara morreu — disse Sam.

Astrid confirmou com a cabeça.

Um engenheiro. Acho que estava trabalhando na área do reator.

Está dizendo que há um bocado de urânio embaixo do chão e ninguém acha isso perigoso? — perguntou Edilio com ceticismo.

Um bocado de urânio e os ossos de um cara — disse Quinn. — Bem-vindo a Praia Perdida, onde nosso slogan é: "Radiação? Que ra­diação?"

Astrid foi à frente, pois tinha visitado a usina muitas vezes com o pai. Encontrou uma porta sem qualquer placa, comum, na lateral do prédio da turbina. Sam passou o cartão na fenda e a porta se abriu.

Dentro, encontraram um espaço gigantesco, com pé-direito alto, cheio de vigas entrelaçadas e piso de concreto pintado. Havia quatro motores enormes, cada um maior do que uma locomotiva. O barulho era incrível.

Essas são as turbinas — gritou Astrid, acima do uivo de furacão. — O urânio cria uma reação que esquenta a água, que faz vapor, que vem para cá, gira as turbinas e gera eletricidade.

Então você está dizendo que não tem hamsters gigantes numa roda? — gritou Quinn de volta. — Fui mal informado.

Acho melhor procurarmos aqui primeiro — gritou Sam. E olhou para Quinn.

Quinn prestou continência languidamente, zombando.

Espalharam-se pela sala da turbina. Astrid lembrou-lhes que o Pequeno Pete geralmente não vinha quando era chamado, então o único modo de achá-lo era olhar em cada canto, cada espaço onde um garotinho pudesse estar escondido, de pé ou sentado.

O Pequeno Pete não estava na sala da turbina.

Finalmente, Astrid sinalizou para irem em frente. Depois de passar por duas portas, podiam falar normalmente de novo.

Vamos à sala de controle — sugeriu Astrid, e foi na frente, se­guindo por um corredor meio escuro, até uma sala de controle de aparência antiquada. Parecia um cenário de um centro espacial da NASA, com computadores e conectores de dados antigos, monitores piscando e painéis demais, com luzes demais e interruptores demais.

Ali, sentado no chão da sala de controle, balançando-se ligeiramen­te para a frente e para trás, jogando um videogame portátil sem som, estava o Pequeno Pete.

Astrid não correu até ele. Olhou para o irmão com uma expressão que Sam achou que era quase de desapontamento. Pareceu até se en­colher um pouco.

Mas então forçou um sorriso e foi até ele.

Petey — chamou Astrid, em voz calma. Como se ele nunca tivesse se perdido, como se os dois estivessem juntos o tempo todo e não houvesse nada estranho em vê-lo sozinho no meio da sala de controle de uma usina nuclear, jogando Pokémon num Game Boy.

Graças a Deus ele não estava nos reatores — disse Quinn. — Eu iria dizer um grande N-Ã-O se propusessem procurar lá.

Edilio concordou com a cabeça.

O Pequeno Pete tinha 4 anos e era louro como a irmã, mas com sardas e quase parecia uma menina, de tão bonito. Não parecia nem um pouco lento ou idiota; na verdade, se não soubesse, você pensaria que ele era uma criança normal, provavelmente inteligente.

Mas, quando Astrid o abraçou, ele mal pareceu notar. Só depois de quase um minuto levantou uma das mãos do controle do videogame e tocou o cabelo dela de modo distraído.

Você comeu alguma coisa? — perguntou Astrid. Depois revisou a pergunta. — Com fome?

Ela possuía um modo especial de falar com o Pequeno Pete quando queria a atenção do irmão. Segurou o rosto dele com as mãos, cuida­dosamente bloqueando a visão periférica, meio que cobrindo os ouvi­dos. Aproximou o rosto do dele e falou calmamente, mas devagar e com cuidado.

Com fome? — perguntou, lenta e firmemente.

Os olhos do Pequeno Pete tremularam e ele assentiu.

Certo — disse Astrid.

Edilio estava inspecionando os equipamentos eletrônicos de apa­rência ultrapassada que cobriam a maior parte de uma das paredes. Franziu a testa.

Tudo parece normal — informou.

Quinn zombou:

Desculpe, mas você é engenheiro nuclear, além de motorista de carrinho de golfe?

Só estou olhando os mostradores, cara. Acho que verde significa que tudo bem, certo? — Ele foi até uma mesa baixa e curva, onde es­tavam três monitores de computador, diante de três velhas cadeiras giratórias.

Não consigo nem ler essas coisas — admitiu Edilio, espiando de perto um monitor. — São só números e símbolos.

Vou até a sala de descanso ver se acho alguma comida para o Pequeno Pete — anunciou Astrid. Assim que começou a se afastar, o Menino desandou a gemer, como um cachorrinho quando quer algu­ma coisa.

Astrid olhou para Sam, implorando.

Na maior parte do tempo, ele nem percebe que eu estou por perto. Odeio deixá-lo quando ele está se relacionando.

Eu pego a comida — disse Sam. — Do que ele gosta?

Nunca recusa chocolate. Ele... — Astrid começou a falar, mas parou.

Vou encontrar — disse Sam.

Edilio havia andado até o que parecia o equipamento mais recente da sala, uma tela de plasma presa à parede.

Quinn também estava olhando a tela, girando lentamente numa das cadeiras dos engenheiros.

Veja se consegue pegar outro canal. Esse é chato.

É um mapa — disse Edilio. — Ali está Praia Perdida. Tem umas cidades pequenas nos morros. Vai até San Luis.

O mapa luzia em azul-claro, branco e cor-de-rosa, com uma bola verde no centro.

O cor-de-rosa é o padrão de radiação, caso haja um vazamento

disse Astrid. — O vermelho é a área mais próxima, onde a radiação seria intensa. Ele pega os dados a partir dos padrões de vento, dos contornos do terreno, dos ventos de grande altitude, de tudo isso, e ajusta o mapa.

O vermelho e o cor-de-rosa são a parte perigosa? — perguntou Edilio.

É. É o lugar onde a radioatividade ficaria acima dos níveis aceitáveis.

É um bocado de terreno — disse Edilio.

Mas é estranho — observou Astrid. Em seguida, puxou o Peque­no Pete até ele ficar de pé e foi mais para perto do mapa. — Nunca vi isso desse jeito. Em geral, a área marcada vai para o interior, você sabe, devido aos ventos mais fortes vindos do oceano. Às vezes, a área se estende até Santa Barbara. Ou então sobe, atravessando o parque nacional, dependendo do tempo.

O padrão cor-de-rosa era um círculo perfeito. A zona vermelha era como um alvo no centro do círculo externo.

O computador não está recebendo dados climáticos do satélite - disse Astrid. — Por isso deve ter retomado ao ajuste básico, que é o círculo vermelho com um raio de 16 quilômetros e um círculo cor-de-rosa com um raio de 160 quilômetros.

Sam olhou o mapa, a princípio incapaz de entender. Então come­çou a localizar a cidade, as praias que conhecia, outros marcos.

A cidade inteira está na zona vermelha — disse Sam.

Astrid assentiu.

A zona vermelha vai até a extremidade sul da cidade.

É.

Sam olhou para ela, para descobrir se estavam vendo a mesma coisa.

Atravessa direto o Penhasco.

É — disse ela, devagar. — Atravessa.

Você está pensando...

É — disse Astrid. — Estou achando uma coincidência bem incrí­vel a barreira parecer se alinhar com a borda da zona de perigo. — Depois acrescentou: — Pelo menos a parte que conhecemos da barrei­ra. Não sabemos se ela inclui toda a parte vermelha.

Isso significa que houve algum tipo de vazamento de radiação?

Astrid balançou a cabeça.

Acho que não. Haveria alarmes de radiação tocando em toda parte. Mas o estranho é que é como causa e efeito, só que ao contrá­rio. O LGAR foi o que deixou de fora os dados do clima, fazendo o computador voltar ao padrão básico. Primeiro o LGAR, depois o mapa vai para o básico. Então por que a barreira seguiria um mapa cujas li­nhas ele causou?

Sam balançou a cabeça e deu um sorriso triste.

Devo estar cansado. Não entendi nada. Vou arranjar alguma comida. — Ele foi pelo corredor, na direção que Astrid havia indica­do.

Quando voltou, ela estava de pé, olhando o mapa, com uma ex­pressão tensa e séria.

Astrid viu que Sam a observava. Os olhares dos dois se grudaram. A menina se assustou, como se ele a tivesse surpreendido fazendo al­guma coisa. Pôs o braço em volta do Pequeno Pete, que havia enterra­do o rosto de volta no jogo. Astrid fechou os olhos, olhou para baixo, respirou fundo com um tremor e deliberadamente virou as costas.

 

                               272 HORAS E 47 MINUTOS

CAFÉ. — MARIA DISSE a palavra como se pudesse ser mágica. — Café. É disso que eu preciso.

Estava na sala dos professores da Creche da Bárbara, um lugar atu­lhado e estreito, revirando a geladeira em busca de alguma coisa, qual­quer coisa, para dar a uma menininha que se recusava a comer. Tinha quase caído dentro da geladeira de tão cansada, e então viu a cafeteira.

Era o que sua mãe fazia quando estava cansada. Era o que todo mundo fazia quando estava cansado.

Em resposta ao desesperado pedido de ajuda da madrugada, Howard havia fornecido um único pacote de fraldas para a creche. Eram para recém-nascidos. Inúteis. Havia mandado duas caixas de três litros de leite e meia dúzia de sacos de salgadinhos e biscoitos salgados. E tinha mandado Panda, que se mostrou pior do que inútil Maria ouviu-o ameaçando dar um tapa numa criança chorona de 3 anos e o expulsou.

Mas as gêmeas, Anna e Emma, tinham vindo ajudar por conta pró­pria. Não era o suficiente, nem de longe, mas Maria pudera conseguir duas horas de sono.

Mas então, quando acordou de manhã — não era tarde, era? — ela havia perdido a noção. Estava tão grogue que não somente não tinha idéia da hora, mas nos primeiros segundos não fez idéia de onde estava.

Maria nunca havia feito café, mas tinha visto fazerem. Com a ex­pressão sonolenta tentou deduzir. Havia uma colher de medida. Havia filtros.

A primeira tentativa foi uma longa espera por nada. Só depois de ficar sentada num estado parecido com coma durante dez minutos, percebeu que tinha esquecido de pôr água na máquina. Quando fez isso, ela explodiu num jato de vapor. Mas, depois de mais cinco minu­tos, conseguira um perfumado bule de café.

Encheu uma xícara e tomou um gole, hesitando. Estava muito quente e muito amargo. Não tinha leite sobrando, mas havia um pou­co de açúcar. Começou com duas colheradas grandes.

Assim ficava melhor.

Não bom, mas melhor.

Levou a xícara de volta ao quarto principal. Pelo menos seis crian­ças estavam chorando. Fraldas precisavam ser trocadas. As crianças menores precisavam comer. De novo.

Uma menina de 3 anos, com cabelos louros finíssimos, viu Maria e veio correndo. Sem pensar, Maria se abaixou. O café se derramou no pescoço e no ombro da criança.

A menina soltou um berro.

Maria gritou de medo.

Ah, meu Deus!

John veio correndo.

O que aconteceu?

A menininha uivava.

Maria congelou.

—- O que devemos fazer? — gritou John.

Anna veio correndo com um bebê no colo.

Ah, meu Deus, o que aconteceu?

A menininha berrava e berrava.

Maria pôs o café na bancada com cuidado. Depois, saiu correndo da sala e da creche.

Correu aos prantos até em casa, a dois quarteirões dali. Abriu a porta. Mal conseguia enxergar através das lágrimas. Soluços profun­dos sacudiam todo o seu corpo.

Estava fresco e silencioso dentro de casa. Tudo exatamente como sempre. Só que tão quieto, tão quieto que seus soluços pareciam sons guturais, selvagens.

Maria se acalmou.

— Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem. — A mesma mentira que viera dizendo às crianças. Aquietou os soluços que sacudiam seu corpo.

Sentou-se à mesa da cozinha. Pôs a cabeça nos braços, pretendendo chorar mais um pouco, em silêncio. Mas a hora das lágrimas havia passado.

Durante um tempo, apenas ouviu o som de sua própria respiração. Olhou para os veios da madeira da mesa. A exaustão fazia com que girassem em redemoinhos.

Era impossível acreditar que sua mãe e seu pai não estavam em casa.

Onde estavam? Onde estavam todos?

Seu quarto, sua cama, ficavam logo no andar de cima.

Não podia fazer isso. Não podia ir dormir. Se dormisse, horas e horas se passariam.

As crianças precisavam dela. Seu irmão, pobre John, estava agüen­tando as pontas enquanto ela pirava.

Abriu o freezer. Sorvete Ben & Jerry's sabor brownie com calda. Picolés de chocolate. Podia comer isso e sentir-se melhor.

Podia comer e sentir-se pior.

Se começasse, não pararia. Se começasse a comer quando estava assim, só pararia quando a vergonha ficasse tão grande que ela se obri­garia a vomitar tudo.

Maria sofria de bulimia desde os 10 anos. As comilanças eram se­guidas por vômitos provocados, repetidamente, num ciclo cada vez mais rápido que a haviam deixado 20 quilos acima do normal num determinado ponto, e com os dentes ásperos e descoloridos por causa do ácido estomacal.

Fora esperta o suficiente para esconder o problema durante um longo tempo, mas os pais acabaram descobrindo. Então vieram os terapeutas e um acampamento especial. E, quando nada disso ajudou, medicação. Por falar nisso, lembrou-se, precisava pegar o frasco em seu armário de remédios.

Agora estava melhor, com o Prozac. A ânsia de comer estava sob controle. Ela não provocava mais vômitos. Tinha perdido parte do peso extra.

Mas por que não comer agora? Por que não?

O ar frio do freezer a envolveu. O sorvete, o picolé de chocolate, ali estavam. Não iria fazer mal, se fosse só uma vez. Principalmente agora, que estava morrendo de medo, sozinha e tão cansada.

Só um picolé.

Tirou-o da caixa e, com dedos agitados, ansiosos, rasgou a embala­gem. Estava em sua boca num instante, tão bom, tão gelado, o choco­late escorregadio e gorduroso derretendo na língua. O estalo da casca ao ser mordida, o sorvete de baunilha macio e suculento do recheio.

Comeu-o inteiro. Comeu como um lobo.

Pegou o Ben & Jerry's, e agora estava começando a chorar de novo enquanto o colocava no micro-ondas, para amaciar, durante vinte se­gundos. Queria mole, queria que fosse como sopa de chocolate fria. Queria engolir de uma vez.

A campainha do micro-ondas apitou.

Ela pegou uma colher, uma grande, uma colher de sopa. Arrancou a tampa do sorvete e pegou com a colher, meio que derramando o cho­colate denso garganta abaixo, mal sentindo o gosto, de tanta ansiedade.

Estava chorando e comendo, lambendo as mãos, sacudindo a colher.

Lambeu a tampa.

Chega, disse a si mesma.

Pegou dois grandes sacos de lixo. Sistematicamente encheu um deles com qualquer coisa que as crianças pudessem comer: salgadinhos, creme de amendoim, mel, cereais, barras de cereal, castanhas de caju.

O segundo saco ela carregou para o andar de cima. Enfiou dentro fronhas e lençóis, papel higiênico e toalhas — especialmente toalhas, porque podiam substituir fraldas.

Achou o frasco de Prozac. Abriu-o e virou na mão. As pílulas eram verde e laranja, compridas. Pôs uma na boca e engoliu com água da torneira apanhada com a mão em concha.

Só restavam dois comprimidos.

Arrastou os dois sacos até a porta da frente.

Depois voltou para seu banheiro, em cima. Cuidadosamente tran­cou a porta.

Ajoelhou-se diante do vaso sanitário, levantou a tampa e enfiou o dedo na garganta até que a ânsia forçou a comida a sair do estômago.

Quando terminou, escovou os dentes, voltou para baixo, pegou os sacos e começou a arrastá-los para a creche.

— Acho que o Pequeno Pete não vai se equilibrar no guidão da bicicle­ta — disse Sam a Astrid.

Não, não vai — confirmou ela.

Tudo bem, então, vamos à pé. São o quê, quatro horas? Talvez seja melhor passarmos a noite aqui e ir de manhã. — Sem jeito por causa das reclamações anteriores de Quinn, Sam perguntou: — O que acha, Quinn? Ficar ou ir?

Quinn deu de ombros.

Estou morto. Além disso, aqui tem uma máquina de doces.

O escritório do gerente da usina tinha um sofá, que Astrid podia dividir com o Pequeno Pete. Ela ofereceu as almofadas do encosto para Edilio, que ainda estava meio rígido.

Sam e Quinn reviraram as instalações até que encontraram a enfer­maria. Ali havia maças e camas hospitalares com rodas.

Quinn riu.

O mar tá bombando, brou.

Sam hesitou. Mas Quinn partiu correndo, chegou à maca a toda velocidade, pulou em cima e até conseguiu ficar de pé antes de bater numa parede.

Certo — disse Sam. — Eu consigo.

Fizeram alguns minutos de surfe de maca pelos corredores abando­nados, e Sam descobriu que ainda podia rir. Parecia fazer um milhão de anos desde que tinha surfado com Quinn. Um milhão de anos.

Sam e Quinn estacionaram as maças na sala de controle. Nenhum deles entendia realmente nada que havia ali, mas aquele parecia o lu­gar certo para ficar.

Descobriram que Edilio havia juntado cinco roupas anti-radiação, quase como trajes espaciais, cada uma com capuz, máscara contra ga­ses e um pequeno tanque de oxigênio.

Legal, Edilio — disse Quinn. — Só por garantia?

Edilio pareceu desconfortável.

É, só por garantia.

Quando Quinn deu um risinho, Edilio disse:

Você não acha que tudo que aconteceu tem a ver com esse lu­gar? Olhe aquele mapa, cara. A bola vermelha que parece passar exa­tamente onde a barreira passa? Talvez aquele tal de Howard tenha sacado direito, entende? Lugar da Galera da Área Radioativa? É uma tremenda coincidência.

Astrid, cansada, disse:

—A radiação não faz barreiras aparecerem ou pessoas desaparecerem.

É um negócio mortal, certo? — pressionou Edilio.

Quinn suspirou e empurrou a maca para um canto escuro, entediado com a discussão. Sam esperou para ouvir a resposta de Astrid.

A radiação pode matar — concordou a garota. — Pode matar depressa ou pode matar devagar, pode dar câncer, pode só deixar en­joado ou pode não fazer nada. E pode causar mutações.

Mutação como uma gaivota que de repente tem garras de fal­cão? — perguntou Edilio, objetivamente.

É, mas só num tempo muito, muito longo. Não da noite para o dia. — Ela se levantou e pegou a mão do Pequeno Pete. — Preciso le­vá-lo para a cama. — Por cima do ombro, disse: — Não se preocupe, Edilio, você não vai sofrer uma mutação durante a noite.

Sam se esticou em sua maca. A sala de controle tinha luzes fracas que ficaram quase escuras quando Astrid encontrou o interruptor. Os monitores de computador e os mostradores de cristal líquido brilhavam.

Sam poderia ter optado por deixar mais luzes acesas. Duvidava de que seria capaz de dormir.

Ficou deitado, lembrando-se da última vez em que tinha ido surfar com Quinn. No dia seguinte ao Dia das Bruxas. Havia apenas um sol de início de novembro, mas na sua memória, o dia estava muito claro, cada rocha, cada pedrinha e cada siri delineado em ouro. Em sua lem­brança, as ondas eram maravilhosas, vivas, azuis, verdes e brancas, chamando-o, desafiando-o a deixar as preocupações para trás e sair para brincar.

Então a cena mudou e sua mãe estava no topo do penhasco, sorrin­do e acenando para ele. Lembrou-se daquele dia. Ela quase sempre dormia de manhã, quando Sam surfava. Mas nesse dia tinha ido olhar.

Estava usando a saia envelope, de flores azuis e brancas, e uma blusa branca. O cabelo, muito mais claro do que o dele, se agitava na brisa forte, e ela parecia frágil e vulnerável lá em cima. Sam quis gritar para ela ficar longe da beirada.

Mas a mãe não podia ouvir.

Gritou, mas ela não ouviu.

Acordou de repente da lembrança que havia se tornado um sonho. Não havia janelas, nenhum modo de ver se era dia ou noite lá fora. Mas não havia mais ninguém acordado.

Deslizou para fora da maca e ficou de pé, com cuidado para não fazer nenhum som. Um a um, verificou os outros. Quinn em silêncio, para variar, sem falar durante o sono; Edilio roncando nas almofadas que Astrid havia oferecido; Astrid enrolada numa ponta do sofá no escritório e o Pequeno Pete dormindo na outra.

A segunda noite de todos sem os pais. A primeira noite fora num hotel, e agora aqui, nessa usina nuclear.

Onde seria a noite seguinte? Sam não queria voltar a morar em sua casa. Queria sua mãe de volta, mas não a casa.

Na mesa do escritório do gerente, viu um iPod. Não se sentia oti­mista com o gosto musical do gerente que, a julgar pela foto de família na mesa, teria uns 60 anos. Mas não achou que conseguiria dormir de novo.

Atravessou o escritório o mais silenciosamente possível, quase to­cando a mão de Astrid. Passou ao redor da mesa, mexeu a cadeira li­geiramente, inclinando-se com cuidado para ficar longe de uma estan­te de troféus — a maioria de golfe.

Um movimento súbito junto aos pés, um rato. Pulou para trás e se chocou contra o vidro do mostruário de troféus.

Houve um estrondo tremendo.

Os olhos do Pequeno Pete se abriram.

— Desculpe — disse Sam, mas, antes que pudesse falar outra sílaba, Pete começou a berrar. Era um som primitivo, animalesco, lancinante, insistente, repetitivo, assustador.

Tudo bem — disse Sam. — É...

Sua garganta se apertou e sufocou qualquer som. Não conseguia falar.

Não conseguia respirar.

Sam apertou a garganta. Sentia mãos invisíveis enroladas no pesco­ço, dedos de aço impedindo a entrada do ar. Bateu naqueles dedos e tentou arrancá-los, e o tempo todo o Pequeno Pete guinchava e balan­çava os braços como um pássaro tentando voar.

Edilio e Quinn vieram correndo.

Sam sentiu sangue nos olhos, escurecendo a visão. Seu coração martelava. Os pulmões se contraíam violentamente, sugando nada.

Petey, Petey, está tudo bem — disse Astrid, acalmando o irmão, acariciando sua cabeça, aninhando-o contra o corpo. Seus olhos esta­vam desesperados de medo. — Banco da janela, Petey. Banco da jane­la, banco da janela, banco da janela.

Sam cambaleou até a mesa.

Astrid pegou o Game Boy do Pequeno Pete. Ligou-o.

O que está acontecendo? — gritou Quinn.

Ele ouviu um barulho alto — gritou Astrid. — Levou um susto. Quando ele está com medo, pira de vez. Tudo bem, Pete, tudo bem, estou aqui. Olha o seu jogo.

Sam queria berrar dizendo que não estava nada bem, que estava sufocando, mas não conseguia emitir nenhum som. Sua cabeça estava girando.

Ei, Sam, o que você está fazendo? — perguntou Quinn.

Ele está sufocando! — disse Edilio.

Não pode fazer esse garoto idiota calar a boca? — gritou Quinn.

Ele só vai parar quando todo mundo estiver calmo — disse As­trid, com os dentes trincados. — Banco da janela, Petey, vá para o seu banco da janela.

Sam caiu sobre um dos joelhos.

Era loucura.

Ele ia morrer.

O medo o dominou.

Seu mundo estava ficando preto.

Suas mãos, com as palmas para a frente, empurraram o nada.

De repente, houve um clarão de luz brilhante.

Era como se uma pequena estrela tivesse virado supernova no es­critório do gerente da usina.

Sam caiu, inconsciente.

Dez segundos depois, estava consciente de novo, de costas, com os rostos apavorados de Quinn e Edilio olhando-o.

O Pequeno Pete estava em silêncio. Seus olhos bonitos demais esta­vam grudados no videogame.

Ele está vivo? — perguntou Quinn, numa voz distante.

Sam inspirou, com força e de repente. Em seguida, de novo.

Estou bem — disse, rouco.

Ele está bem? — perguntou Astrid, com uma voz à beira do pâ­nico, mas era visível que ela tentava se controlar para evitar que o Pequeno Pete explodisse de novo.

De onde veio aquela luz? — perguntou Edilio. — Vocês viram aquilo?

Cara: deu para ver aquilo da lua. — Os olhos de Quinn estavam arregalados.

Vamos sair desse lugar — disse Edilio.

Onde nós podemos... — começou Astrid.

Edilio a interrompeu.

Não importa. Vamos sair daqui.

Você está certo — disse Quinn. Em seguida, estendeu a mão e ajudou Sam a ficar de pé.

A cabeça de Sam ainda estava girando, as pernas bambas. Não ha­via sentido em resistir, o pânico estava em cada rosto a sua volta. Não era hora de discutir nem explicar.

Não confiava em si mesmo para falar, então simplesmente apontou para a porta e assentiu.

Eles correram.

 

                         258 HORAS E 59 MINUTOS

NÃO LEVARAM NADA, apenas correram, com Quinn à frente, Edilio a seguir, embolado com Astrid e Pete, e Sam, tonto, atrás.

Correram até passar pelo portão principal. Pararam, ofegantes, e se curvaram, pousando as mãos nos joelhos. Estava muito escuro. À noi­te, a usina parecia mais ainda ser uma coisa viva, respirando. Era ilu­minada por uma centena de refletores, o que apenas fazia os morros acima parecerem mais escuros.

Certo, o que foi aquilo? — Quinn exigiu saber. — O que foi aquilo?

Pete só entrou em pânico — disse Astrid.

— É, essa parte eu saquei — falou Quinn. — Mas e a luz que apa­receu?

Não sei — Sam conseguiu ofegar.

Com quê você estava sufocando, brou?

Eu só estava engasgando — respondeu Sam.

Só engasgando? Engasgando com ar?

Não sei, talvez... talvez eu tenha tido um ataque de sonambulismo ou sei lá o quê, e peguei alguma coisa para comer e engasguei. — Era uma péssima explicação, e a expressão incrédula de Quinn, espe­lhada na de Edilio, dizia que eles não acreditavam.

Provavelmente foi isso — disse Astrid.

Foi tão inesperado que nem mesmo Sam conseguiu esconder uma expressão de surpresa.

O que mais poderia ter feito com que ele engasgasse? — pergun­tou Astrid. — E a luz deve ter sido de algum sistema interno de alarme sendo acionado.

Sem ofensa, Astrid, mas nem vem — disse Edilio. Em seguida, pôs as mãos nos quadris, virou-se para Sam e continuou: — Olha, está na hora de você começar a contar a verdade. Eu respeito você, cara. Mas como vou ter respeito se você mentir para mim?

Sam foi apanhado desprevenido. Era a primeira vez que ele, ou qualquer um dos outros, via Edilio demonstrar raiva.

Como assim? — embromou Sam.

Tem alguma coisa acontecendo, cara, e tem a ver com você, certo? Aquela luz que apareceu. Já vi aquela luz antes. Vi logo antes de tirar você da janela daquele incêndio no prédio.

A cabeça de Quinn girou bruscamente.

O quê? Sobre o que você está falando?

A parede e as pessoas que sumiram, isso não é tudo. Tem outras coisas estranhas acontecendo. Tem alguma coisa acontecendo com você, Sam. E com Astrid também, já que ela foi bem rápida em tentar te acobertar agora mesmo.

Sam ficou surpreso ao perceber que Edilio estava certo: Astrid também sabia de alguma coisa. Ele não era o único que guardava segredos. Sentiu uma onda de alívio. Não precisava ficar sozinho naquilo.

Certo. — Sam respirou fundo e tentou organizar os pensamen­tos antes de começar a pôr tudo para fora. — Primeiro, não sei o que é, certo? Não sei como acontece. Não sei de nada, a não ser que, às vezes... aparece uma... aparece uma luz.

O que você tá falando, brou? — perguntou Quinn.

Sam levantou as mãos, virando as palmas para o amigo.

Eu consigo... cara, sei que parece que estou doido, mas, às vezes, uma luz pula das minhas mãos.

Quinn soltou uma risada.

Não, cara, isso nem é maluquice. Maluquice é você dizer que é melhor do que eu surfando. Isso aqui é insanidade. Isso é piração de­mais. Quero ver você fazer isso.

Não sei como se faz — confessou Sam. — Aconteceu quatro vezes antes, mas não sei fazer acontecer.

Quatro vezes você disparou lasers com as mãos. — Quinn estava no limite entre rir e gritar. — Eu conheço você, tipo... há metade da nossa vida, e agora você é o Lanterna Verde? Sei.

É verdade — disse Astrid.

Besteira. Se é verdade, faça. Mostre.

Você não está entendendo — insistiu Sam —, só acontece quan­do fico em pânico ou sei lá o quê. Eu não faço acontecer, apenas acon­tece.

Isso já aconteceu quatro vezes? — disse Edilio. — Eu vi o clarão no incêndio. Vi agora. E as outras duas vezes?

A vez anterior foi na minha casa. Eu vi... quero dizer, fiz... uma luz. Tipo uma espécie de lâmpada. Estava escuro. Eu tive um pesade­lo. — Ele encontrou o olhar fixo de Astrid e, subitamente uma lâmpa­da se acendeu em sua mente. — Você viu — ele acusou-a. — Você viu a luz no meu quarto. Você sabia o tempo todo.

É — admitiu Astrid. — Eu sei desde aquele primeiro dia. E sei sobre o Petey há muito mais tempo.

Edilio ainda queria que o básico fosse exposto.

O incêndio, aqui, esse negócio de lâmpada, são três.

A primeira vez que aconteceu foi com o Tom — disse Sam. O nome não significava nada para Edilio, mas Quinn sabia quem era.

Seu padrasto? Quero dizer, ex-padrasto.

É.

Quinn estava olhando para Sam com a expressão dura.

Brou, você não está dizendo o que acha que está dizendo, está?

Eu pensei que ele estava tentando machucar minha mãe. Pen­sei... eu estava dormindo, aí acordei, desci as escadas e os dois estavam gritando na cozinha, Tom segurava uma faca, e um clarão de luz pulou da minha mão.

Sam sentiu lágrimas ardendo nos olhos. Isso o surpreendeu, pois não estava triste. No mínimo, sentia-se aliviado. Nunca havia contado isso a ninguém. Era um peso que saía de seus ombros. Mas, ao mesmo tempo, registrou o modo como Quinn recuava um passo, aumentando a distância entre eles.

Minha mãe sabia, é claro. Ela disfarçou na emergência do hos­pital. Tom estava gritando que eu havia atirado nele. Os médicos vi­ram uma queimadura, por isso souberam que não era um tiro. Minha mãe contou alguma mentira, dizendo que Tom havia caído sobre o fogão.

Então ela teve de escolher entre proteger você ou apoiar o ma­rido — disse Astrid.

É. É assim que a dor estava sob controle, Tom percebeu que iria acabar na ala psiquiátrica se continuasse falando que seu enteado ti­nha lançado raios de luz contra ele.

Você decepou a mão do seu padrasto? — perguntou Quinn, com a voz esganiçada.

Epa, calma aí. Fez o quê? — quis saber Edilio. Era sua vez de ficar surpreso.

Quinn disse:

O padrasto dele acabou com um gancho, cara. Tiveram de am­putar a mão dele, mais ou menos aqui. — Ele fez um movimento de corte no antebraço. — Eu vi o cara, tipo, há uma semana, lá em San Luis. Agora ele usa um daqueles ganchos, sabe?, com... sei lá... duas pinças; estava comprando cigarro e entregou o dinheiro com o gan­cho. — Quinn fez uma imitação, usando dois dedos como as pinças da prótese. — Então você é uma espécie de aberração? —- perguntou Quinn para Sam. Ainda parecia indeciso se ficava furioso ou achava engraçado.

Não sou o único — disse Sam, defensivo. — Aquela garotinha do incêndio. Acho que foi ela que começou o fogo. Quando me viu, entrou em pânico. Foi como se fogo líquido saísse das mãos dela.

Então você atirou de volta — completou Edilio. — Você fez esse negócio contra ela. — Sam podia ver apenas a silhueta do rosto do garoto no escuro. — Foi isso que ficou incomodando você. Você acha que a machucou.

Não sei como controlar esse negócio. Não peço para isso acon­tecer e não sei como fazer para que vá embora. Só fico feliz por não ter machucado o Pequeno Pete. Eu estava sufocando.

Quinn e Edilio voltaram a atenção para o menininho. Pete esfregou os olhos sonolentos e olhou para além deles, indiferente a eles, talvez nem mesmo consciente de que estavam lá. Talvez imaginando por que estaria no ar úmido da noite, do lado de fora de uma usina nuclear. Talvez sem pensar nada.

Ele também é — acusou Quinn. — É uma aberração.

Ele não sabe o que faz — disse Astrid.

Isso não é exatamente tranqüilizador — reagiu Quinn. — Qual é o truque dele? Dispara mísseis pela bunda ou algo assim?

Astrid alisou o cabelo do irmão e deixou os dedos percorrerem seu rosto.

Banco da janela — sussurrou. Depois, virou-se para os outros. — Banco da janela é uma frase-gatilho. Ajuda Petey a encontrar um lugar calmo. É o banco da janela do meu quarto.

Banco da janela — disse o Pequeno Pete, inesperadamente.

Ele fala — exclamou Edilio.

Sim — concordou Astrid. — Mas não muito.

Ele fala. Fantástico. O que mais ele faz? — perguntou Quinn, objetivamente.

Parece que consegue fazer um monte de coisas. Na maior parte do tempo, nós dois estamos bem. Na maior parte do tempo ele não me nota muito. Mas, uma vez, eu estava fazendo a terapia dele, traba­lhando com um livro de figuras que usamos às vezes. Eu mostro uma imagem e tento fazer com que ele diga a palavra e, não sei, acho que naquele dia eu estava de mau humor... Acho que fui muito brusca quando peguei a mão dele e coloquei o dedo na figura, como a gente deve fazer. Ele ficou furioso. E, de repente, eu não estava mais ali. Num segundo estava no quarto dele, no outro, estava no meu.

Houve um silêncio mortal quando os quatro olharam para o Pe­queno Pete.

Então talvez ele possa lançar a gente para fora do LGAR, de volta para a nossa família — disse Quinn, finalmente.

O silêncio caiu de novo. Os cinco estavam no meio da pista, com a usina iluminada zumbindo atrás deles, um caminho escuro seguindo à frente.

Eu fico esperando você dar uma risada, Sam — disse Quinn. — Sabe, dizer "te peguei". Dizer que é um truque. Dizer que só está curtindo com a minha cara.

Nós estamos num mundo novo — disse Astrid. — Olha, eu sei sobre o Pete há um tempo. Tentei acreditar que era uma espécie de milagre. Como você, Quinn, queria acreditar que era Deus que fazia isso.

O que está fazendo isso acontecer? — perguntou Edilio. — Quero dizer, você está falando que esse negócio acontecia antes do LGAR.

Olha, supostamente eu sou inteligente, mas isso não significa que saiba mais sobre isso — admitiu Astrid. — Só sei que, sob as leis da biologia e da física, nada disso é possível. O corpo humano não tem nenhum órgão que gere luz. E o que Petey fez, mover coisas de um lugar para outro? Os cientistas deduziram como fazer isso com alguns átomos. Não com seres humanos inteiros! Seria necessário mais ener­gia do que a usina inteira produz, o que significa, basicamente, que as leis da física teriam de ser reescritas.

Como é que a gente reescreve as leis da física? — perguntou Sam.

Astrid levantou as mãos.

Eu só consigo, por muito pouco, acompanhar a física da turma avançada na escola. Para entender isso você teria de ser Einstein, Heisenberg ou Feynman, nesse nível. Só sei que coisas impossíveis não acontecem. Portanto, isso não está acontecendo ou, de algum modo, as regras mudaram.

Como se alguém tivesse dado uma de hacker no universo — dis­se Quinn.

Exato — confirmou Astrid, surpresa por Quinn ter entendido.

Como se alguém tivesse dado uma de hacker no universo e reescrito o programa.

Não tem nenhum adulto, uma parede enorme apareceu do nada, e de repente, meu melhor amigo é o garoto maravilha — disse Quinn.

Eu pensava... tipo, certo: pelo menos, independentemente de qual­quer coisa, ainda tenho meu brou, ainda tenho meu melhor amigo.

Ainda sou seu amigo, Quinn — disse Sam.

Quinn suspirou.

É. Bem, não é exatamente a mesma coisa, é?

Provavelmente há outros — disse Astrid. — Outros como Sam e Petey. E a menininha que morreu.

Precisamos manter isso em segredo — sugeriu Edilio. — Não podemos contar a ninguém. As pessoas não gostam de pessoas que acham ser melhores do que elas. Se os caras comuns descobrirem isso, vai haver encrenca.

Talvez não — disse Astrid, com esperança.

Você é inteligente, Astrid, mas se acha que as pessoas vão ficar felizes com essa história, não conhece as pessoas — respondeu Edilio.

Bom, eu não vou falar — disse Quinn.

É — concordou Astrid —, acho que provavelmente Edilio está certo. Pelo menos por enquanto. E, especialmente, não podemos dei­xar ninguém descobrir sobre Petey.

Eu não vou dizer nada — afirmou Edilio.

Vocês sabem. E isso basta — disse Sam.

Começaram a andar em direção à cidade distante. Caminhavam em silêncio. A princípio, agrupados. Depois, Quinn avançou à frente. E Edilio se afastou para o lado. Astrid estava com o Pequeno Pete.

Sam se deixou ficar para trás. Queria silêncio. Queria privacidade. Parte dele gostaria de ficar cada vez mais para trás, até ser abandona­do, esquecido pelos outros.

Mas agora estava amarrado àquelas quatro pessoas. Eles sabiam o que Sam era. Conheciam seu segredo. E não tinham se virado contra ele.

O som de Quinn cantando "Três Passarinhos" chegou até seus ou­vidos. Sam acelerou o passo para alcançar os amigos.

 

                               255 HORAS E 42 MINUTOS

SAM, ASTRID, QUINN e Edilio se deixaram cair na grama da praça, exaustos. O Pequeno Pete continuou de pé, brincando com seu jogo, sem perceber nada, como se uma caminhada noturna de 15 quilôme­tros fosse apenas um passeio. O sol nascente punha em silhueta as montanhas atrás deles e iluminava o oceano calmo demais.

A grama estava molhada de orvalho, que atravessava a camisa de Sam. Ele pensou: nunca vou conseguir dormir nesse lugar. E, no mi­nuto seguinte estava dormindo.

Acordou com o sol nos olhos. Piscou e sentou-se. O orvalho havia evaporado e agora a grama estava ressecando ao sol. Havia um monte de crianças em volta. Mas ele não viu os amigos. Talvez tivessem ido procurar comida; também estava com fome.

Quando se levantou, percebeu que a multidão estava se movendo, todos em uma só direção, indo para a igreja.

Juntou-se ao movimento. Uma garota que ele conhecia veio pas­sando, e Sam perguntou-lhe o que estava acontecendo.

Ela deu de ombros.

— Só estou indo atrás de todo mundo.

Sam continuou andando, até que a multidão começou a parar. En­tão ele pulou para o encosto de um banco da praça, equilibrando-se precariamente, mas podendo ver por cima da cabeça de todo mundo.

Quatro carros vinham pela avenida Alameda. Vinham numa velo­cidade imponente, como num desfile. Aumentando essa impressão, o terceiro carro da fila era um conversível com a capota baixada. Os quatro carros eram escuros, poderosos e caros. O último era um utili­tário preto. Vinham com as luzes acesas.

Alguém vem salvar a gente? — gritou um garoto do quinto ano para Sam.

Não estou vendo nenhum carro da polícia, por isso duvido. Se­ria bom você se afastar, cara.

São os alienígenas?

Acho que, se fossem alienígenas, seriam espaçonaves, e não BMWs.

O desfile, procissão, comboio ou o que quer que fosse chegou jun­to ao meio-fio, na parte de cima da praça, em frente à prefeitura, e parou.

Garotos desceram de cada carro. Usavam calças pretas e camisas brancas. Garotas usavam saias pretas pregueadas e meias até os joe­lhos, combinando. Tanto os garotos quanto as garotas vestiam blazers num tom de vermelho discreto, com um brasão grande costurado no peito. Tanto os garotos quanto as garotas usavam gravatas com listras vermelhas, pretas e douradas.

O brasão tinha as letras "A" e "C", ornadas, em fio dourado sobre um fundo que mostrava uma águia dourada e um leão da montanha. Embaixo do brasão estava o lema em latim da Academia Coates: Ad augusta, per angusta. A lugares altos, por estradas estreitas.

São da Academia Coates. — Foi Astrid quem disse. Ela e o Pe­queno Pete estavam com Edilio. Sam pulou para ficar ao lado deles. — Uma apresentação bem ensaiada — disse Astrid, como se lesse a mente de Sam.

Enquanto os garotos da Coates desciam dos carros, a multidão re­cuou um passo. Sempre houvera rivalidade entre os garotos da cidade, que pensavam em si mesmos como garotos normais, e os da Coa­tes, que tendiam a ser ricos e, ainda que a Academia tentasse disfarçar, estranhos.

A Coates era o lugar para onde os pais ricos mandavam os filhos quando as outras escolas os consideravam "difíceis".

Os garotos da Coates se enfileiraram, não exatamente com a preci­são de um pelotão fazendo ordem unida, mas com certeza como se tivessem treinado.

Quase militares — disse Astrid em voz baixa, discreta.

Então, um garoto usando, em vez do blazer, um suéter amarelo vibrante com gola em V ficou de pé no conversível. Deu um sorriso sem graça e desceu agilmente do banco de trás para o porta-malas. Deu um aceno auto-depreciativo, como se não acreditasse no que esta­va fazendo.

Era bonito, até Sam notou. Tinha cabelos e olhos escuros, não mui­to diferentes dos de Sam. Mas o rosto parecia brilhar com uma luz interior. Irradiava confiança, mas sem arrogância ou condescendência. De fato, conseguia parecer genuinamente humilde mesmo parado so­zinho, olhando por cima de todo mundo.

Oi, pessoal — começou. — Sou Caine Soren. Provavelmente vocês deduziram que eu... nós... somos da Academia Coates. Isso ou todos simplesmente temos o mesmo mau gosto para roupas.

Houve alguns risos na multidão.

Uma piada auto-depreciativa para nos deixar relaxados — disse Astrid, continuando a comentar aos sussurros.

Com o canto dos olhos, Sam notou o Garoto do Martelo. Estava se virando, agachando-se, como se tentasse se esconder. Ele era aluno da Coates. O que foi que ele havia dito? Que não se dava bem com os garotos da Coates? Algo assim.

Sei que há uma tradição de rivalidade entre o pessoal da Acade­mia Coates e o de Praia Perdida — disse Caine. — Bom, isso era nos velhos tempos. Percebi que nós todos estamos nisso juntos. Todos te­mos os mesmos problemas agora. E deveríamos trabalhar juntos para resolver esses problemas, não acham?

Cabeças estavam concordando em resposta.

Sua voz era clara e só um pouco mais aguda, talvez, do que a de Sam, mas era forte e decidida. Ele tinha um modo de olhar a multidão que fazia parecer que estava encarando cada pessoa, vendo cada um como um indivíduo.

Você sabe o que aconteceu? — perguntou alguém.

Caine balançou a cabeça.

Não. Acho que provavelmente não sabemos mais do que vocês. Todo mundo com mais de 15 anos desapareceu. E tem a parede, a barreira.

Nós chamamos de LGAR — disse Howard em voz alta.

LUGAR? — Caine pareceu interessado.

L-G-A-R. Lugar da Galera da Área Radioativa.

Caine pensou nisso um momento, depois riu.

Excelente. Foi você quem bolou isso?

Foi.

E vital manter o senso de humor quando de repente o mundo parece ter virado um lugar estranho. Qual é o seu nome?

Howard. Sou o cara número um do capitão. Do capitão Ore.

Uma onda de desconforto percorreu a multidão. Caine leu-a ins­tantaneamente.

Espero que você e o capitão Ore se juntem a mim e a todo mun­do que queira sentar-se e falar sobre os planos para o futuro. Porque nós temos um plano para o futuro. — Ele enfatizou a última frase com um movimento de corte, como se estivesse decepando o passado.

-— Quero minha mãe — gritou, de repente, um menininho.

Todas as vozes ficaram em silêncio. O menino havia dito o que to­dos sentiam.

Caine pulou do carro e foi até o menino. Ajoelhou-se e segurou a mão dele. Perguntou seu nome e se apresentou de novo.

Todos queremos nossos pais de volta — disse, gentilmente, mas alto o suficiente para ser ouvido com clareza por quem estava mais perto. — Todos queremos isso. E acredito que vai acontecer. Acredito que vamos ver nossas mães e nossos pais, e nossos irmãos e irmãs mais velhos, e até nossos professores de novo. Acredito nisso. Você acredita também?

Acredito. — O menino soluçou.

Caine o envolveu num abraço e disse:

Seja forte. Seja o garotão forte da mamãe.

Ele é bom — continuou Astrid. — Ele é muito, muito bom.

Então Caine se levantou. As pessoas haviam formado um círculo em volta dele, próximo mas respeitoso.

Todos temos de ser fortes. Todos precisamos superar isso. Se trabalharmos juntos para escolher bons líderes e fazer a coisa certa, vamos conseguir.

Toda a multidão de crianças pareceu ficar um pouquinho mais ereta. Havia expressões determinadas em rostos que antes pareciam can­sados e com medo.

Sam estava hipnotizado pela atuação do garoto. Em apenas alguns minutos, Caine havia infundido esperança num punhado de crianças extremamente apavoradas e desanimadas.

Astrid também parecia hipnotizada, mas Sam achou que detectava o brilho frio do ceticismo nos olhos dela.

Sam também estava cético. Desconfiava de apresentações ensaia­das. Desconfiava do charme. Mas era difícil não pensar que Caine estava ao menos tentando se aproximar dos garotos de Praia Perdida. Era difícil não acreditar nele, pelo menos um pouco. E se Caine tives­se mesmo um plano, não seria uma coisa boa? Ninguém mais parecia fazer a mínima idéia.

Caine voltava a falar alto.

Se todo mundo concordar, eu gostaria de pegar emprestada a igreja de vocês. Gostaria de me sentar com seus líderes, na presença de nosso Senhor, e discutir meu plano, e quaisquer mudanças que vocês queiram fazer. Será que existem, talvez, humm, uma dúzia de pessoas que possa falar por vocês?

Eu — disse Ore, abrindo caminho com os ombros. Ainda carre­gava seu bastão de beisebol de alumínio. E tinha conseguido um capa­cete de policial, um dos capacetes de plástico que os policiais de Praia Perdida usavam quando patrulhavam de bicicleta.

Caine fixou um olhar penetrante no valentão.

Você deve ser o capitão Ore.

É. Sou eu.

Caine estendeu a mão.

É uma honra conhecê-lo, capitão.

O queixo de Ore caiu. Ele hesitou. Sam achou que, provavelmente, era a primeira vez na vida turbulenta do valentão que alguém havia dito que se sentia honrado em conhecê-lo. E provavelmente era a pri­meira vez que lhe ofereciam a mão para ser apertada. Ore estava cla­ramente confuso. Olhou para Howard.

Howard estava olhando de Ore para Caine, avaliando a situação.

Ele está demonstrando respeito, capitão — disse Howard.

Ore grunhiu, mudou o bastão da mão direita para a esquerda e es­tendeu a pata grossa. Caine segurou-a com as duas mãos e olhou Ore solenemente nos olhos enquanto eles se cumprimentavam.

Maneiro — disse Astrid, baixinho.

Ainda segurando a mão de Ore, Caine desafiou:

Agora, quem mais fala por Praia Perdida?

Bette Ricochete disse:

Sam Temple entrou num prédio pegando fogo para salvar uma menininha. Ele pode falar por mim, pelo menos.

Houve um murmúrio de concordância.

É, Sam é um herói de verdade — disse uma voz.

Ele poderia ter morrido — disse outra.

É, Sam é o cara.

O sorriso de Caine surgiu e desapareceu tão rapidamente que Sam não teve certeza de que aquilo havia acontecido. Durante aquele milissegundo, houve uma expressão de triunfo. Caine foi direto até Sam, aberto e expansivo, a mão estendida.

Provavelmente há pessoas melhores do que eu — disse Sam, recuando.

Mas Caine segurou seu cotovelo e o manobrou para um aperto de mão.

Sam, não é? Parece que você é mesmo um herói. Você é parente da enfermeira da nossa escola, Connie Temple?

Ela é minha mãe.

Não fico surpreso por ela ter um filho corajoso — disse Caine, cheio de compreensão. — Ela é uma mulher muito boa. Vejo que você é humilde, além de corajoso, Sam, mas eu... eu peço sua ajuda. Preciso da sua ajuda.

Com a menção de sua mãe, tudo se encaixou. Caine. "C". Quais seriam as chances de "C" ser algum outro garoto da Coates?

Cedo ou tarde, C ou algum dos outros vai fazer alguma coisa séria. Alguém vai se machucar. Como S com T.

— Certo — disse Sam. — Se é o que as pessoas querem.

Alguns outros nomes foram mencionados, e Sam, sem muito empe­nho, mas com lealdade, indicou Quinn.

Os olhos de Caine saltaram de Sam para Quinn e, por apenas um milissegundo relampejou ali um olhar cínico, de quem sabia das coi­sas. Mas sumiu num instante, substituído pela treinada expressão de humildade e decisão.

Então vamos entrar juntos — disse Caine. Em seguida, se virou e marchou decidido, subindo os degraus da igreja. O resto dos esco­lhidos foi atrás.

Uma das alunas da Coates, uma garota de olhos escuros e muito bonita, chegou perto de Sam e estendeu a mão. Sam apertou-a.

Sou Diana — disse ela, sem soltar a mão dele. — Diana Ladris.

Sam Temple.

Os olhos noturnos dela encontraram os dele e Sam quis se virar, sem jeito, mas por algum motivo não conseguiu.

Ah — exclamou ela, como se alguém tivesse lhe dito algo fasci­nante. Depois soltou-o e deu um risinho. — Ora, ora. Acho melhor entrarmos. Não queremos deixar o Intrépido Líder sem seguidores.

Era uma igreja católica, construída cem anos antes pelo rico dono da fábrica de enlatados, que agora estava enferrujada e abandonada, uma monstruosidade forrada de lata, perto da marina.

Com arcos altíssimos, meia dúzia de estátuas de santos e maravi­lhosos bancos de madeira bem gastos, a igreja provavelmente era muito mais grandiosa do que a pequena cidade de Praia Perdida me­recia. Das seis altas janelas pontudas, três mantinham os vitrais origi­nais, representando Jesus em várias parábolas. Os outros três haviam sido perdidos com o tempo para vândalos, mau tempo ou terremotos, e foram substituídos por vitrais mais baratos, com motivos abs­tratos.

Quando Astrid entrou na igreja, abaixou-se sobre um dos joelhos e fez o sinal da cruz, olhando o crucifixo de tamanho intimidante acima do altar.

É essa igreja que você freqüenta? — perguntou Sam, num sus­surro.

É. E você?

Ele negou com a cabeça. Era a primeira vez que Sam entrava ali. Sua mãe era judia, mas não seguia os ritos, ninguém falava sobre o que o pai dele era, e o próprio Sam tinha apenas um vago interesse por religião. A igreja o fez sentir-se pequeno e definitivamente deslocado.

Caine havia se movido confiante para o altar. O altar propriamente dito não era muito grandioso, era só um retângulo de mármore claro em cima de três degraus cobertos de carpete marrom. Caine não foi até o púlpito alto e antiquado, ficou no segundo dos três degraus.

No total, 15 jovens estavam ali, inclusive Sam Temple, Quinn, Astrid e o Pequeno Pete, Albert Hillsborough e Mary Terrafino; Elwood Booker, o melhor atleta do nono ano e a namorada dele, Dahra Baidoo; Ore, cujo nome verdadeiro supostamente era Charles Merriman; Howard Bassem; e Cookie, cujo nome verdadeiro era Tony Gilder.

Da Academia Coates, além de Caine Soren, havia Drake Merwin, um garoto sorridente, jocoso, de olhar cruel, com cabelo crespo cor de areia; Diana Ladris; e um garoto do quinto ano, com óculos gran­des e cabelos louros amarrotados, como se tivesse acabado de acordar, apresentado por Caine como Jack Computador.

Todos os garotos de Praia Perdida sentaram-se nos bancos da igreja, com Ore e sua turma se esparramando no da frente. Jack Computador sentou-se o mais longe que pôde, na lateral. Drake Merwin ficou de pé, sorrindo, braços cruzados no peito, à esquerda de Caine, e Diana Ladris, à direita de Caine, observava a multidão.

De novo, Sam percebeu que os garotos da Coates haviam ensaiado tudo para aquela manhã, desde a carreata — que deveria ter exigido horas de treino de direção — até esta apresentação. Eles deviam ter começado a planejar e treinar logo depois da chegada do LGAR.

Esse era um pensamento perturbador.

Depois de todas as apresentações, Caine partiu rapidamente para explicar seu plano.

— Precisamos trabalhar juntos — anunciou. — Acho que devería­mos nos organizar de modo que as coisas não sejam destruídas e que os problemas possam ser enfrentados. Na minha opinião, nosso obje­tivo deveria ser a manutenção. De modo que, assim que a barreira baixar e as pessoas desaparecidas voltem, eles vejam que fizemos um ótimo trabalho mantendo as coisas em ordem.

O capitão já está fazendo isso — disse Howard.

Ele obviamente fez um trabalho excelente — admitiu Caine, descendo os degraus e indo na direção de Ore enquanto falava. — Mas isso é um fardo. Por que o capitão Ore tem de fazer todo o servi­ço? Acho que precisamos de um sistema, e também de um plano. Ca­pitão Ore — ele se dirigiu diretamente ao valentão —, tenho certeza de que você não quer precisar alocar comida, cuidar dos doentes e manter aquela creche funcionando, e ler todas as coisas que teria de ler, e escrever todas as coisas que teria de escrever, para estabelecer um novo sistema aqui em Praia Perdida.

Astrid sussurrou:

Ele adivinhou que Ore é quase analfabeto.

Ore olhou para Howard, que parecia hipnotizado por Caine, e deu de ombros. Como disse Astrid, a menção a ler e escrever deixou-o desconfortável.

Exatamente — disse Caine, como se o dar de ombros de Ore significasse concordância. Em seguida, voltou ao centro do palco e se dirigiu a todo o grupo: — Parece que temos uma fonte de eletricidade confiável, mas as comunicações estão cortadas. Meu amigo, Jack Computador, acha que consegue fazer os celulares funcionarem... — Houve um murmúrio empolgado, mas Caine levantou as mãos. — Não estou dizendo que poderemos falar com alguém do lado de fora do... como é que foi a expressão brilhante do Howard? Do LGAR? Mas pelo menos poderemos nos comunicar entre nós.

O olhar de todos foi na direção de Jack Computador, que engoliu em seco, balançou a cabeça concordando e empurrou os óculos para cima, vermelho.

Isso vai exigir um tempo, mas juntos podemos conseguir — disse Caine. Ele enfatizou sua certeza batendo o punho direito fechado na pal­ma da mão esquerda. — Além de um xerife para garantir que as regras sejam seguidas, um trabalho que acho que Drake Merwin está qualificado para fazer, já que seu pai é tenente da patrulha rodoviária, precisamos de um chefe de bombeiros para cuidar das emergências, e eu nomeio Sam Temple. Baseado no que as pessoas disseram antes sobre sua corajosa atuação no tal incêndio, acho que é uma escolha óbvia, não acham?

Houve cabeças balançando afirmativamente e murmúrios de con­cordância.

Ele está aliciando você — sussurrou Astrid. — Ele sabe que você é um concorrente.

Você não confia nele — sussurrou Sam de volta. Não era uma pergunta.

Ele é um manipulador, mas isso não significa que seja mau. Pode ser gente boa.

Mary falou:

Sam salvou a loja de ferramentas e a creche. E quase salvou aquela menininha. Aliás, alguém precisa enterrá-la.

Exato — disse Caine. — Se Deus quiser, não enfrentaremos essa necessidade de novo, mas alguém precisa enterrar os mortos. Assim como alguém precisa ajudar as pessoas que ficarem doentes ou se ma­chucarem. E alguém precisa cuidar das crianças pequenas.

Dahra Baidoo se levantou e disse:

Maria está cuidando totalmente das crianças peque... quero di­zer, pré-escolares — explicou. — Ela e o irmão, John.

Mas precisamos de ajuda — interrompeu Maria, rapidamente.

Não conseguimos dormir nunca. Estamos sem fraldas, comida e... - suspirou — tudo o mais. John e eu conhecemos as crianças, agora, e podemos organizar as coisas, mas precisamos de ajuda. Precisamos de muita ajuda.

Caine pareceu ficar triste, quase como se fosse derramar uma lágri­ma. Foi rapidamente até Maria, levantou-a e a envolveu com o braço.

Que pessoa nobre você é, Maria! Você e seu irmão poderão convocar quantas pessoas precisarem. Quantas serão necessárias para cuidar de tudo?

Maria calculou na cabeça.

Nós dois e mais quatro, talvez. — Depois, ganhando confiança, continuou: — Na verdade, precisamos de quatro de manhã, quatro à tarde e quatro à noite. E precisamos de fraldas e leite em pó. E preci­samos pedir às pessoas para nos trazer coisas, tipo comida.

Caine assentiu.

Os pequeninos são nossa maior responsabilidade. Maria e John, vocês têm autoridade absoluta para convocar qualquer pessoa que ne­cessitarem, e para exigir qualquer suprimento que for preciso. Se al­guém questionar, Drake e o pessoal dele, inclusive o capitão Ore, vão garantir que vocês tenham o necessário.

Maria pareceu emocionada e agradecida.

Howard, muito menos.

Espera aí. Deixei passar antes, mas você está dizendo que o Ore trabalha para esse cara? — Ele apontou o polegar para Drake, que apenas sorriu como um tubarão. — Nós não trabalhamos para nin­guém. O capitão Ore não trabalha para ninguém, nem sob o comando de ninguém, nem segue ordens de ninguém.

Sam viu uma expressão fria e furiosa surgir no rosto bonito de Cai­ne, e desaparecer tão rápido quanto viera.

Ore devia ter visto também, porque ficou de pé e Cookie o acom­panhou. Os dois seguraram firme seus bastões. Drake, ainda sorrindo, ficou entre eles e Caine. Uma luta estava chegando, súbita como um tornado.

Diana Ladris, estranhamente, estava olhando para Sam com aten­ção, como se não se preocupasse com Ore.

Caine suspirou, levantou as mãos e usou as duas palmas para alisar o cabelo.

Houve um ronco surdo, subindo pelo chão e pelos bancos. Um pequeno terremoto, bem pequeno, nada que Sam, como a maioria dos californianos, não tivesse sentido antes.

Todo mundo se levantou de um pulo; todos sabiam o que devia ser feito durante um terremoto.

Mas em seguida veio um som lacerante, de aço e madeira se torcen­do, e o crucifixo se separou da parede. Os parafusos que o prendiam no lugar se soltaram, como se um gigante invisível o tivesse arrancado do lugar.

Ninguém se mexeu.

Uma chuva de reboco e pedrinhas caiu no altar.

O crucifixo tombou para a frente. Caiu, como uma árvore serrada.

Durante sua queda Caine baixou as mãos ao lado do corpo. Seu rosto estava sério, duro e raivoso.

O crucifixo, que tinha pelo menos 3 metros de comprimento, ba­teu com força chocante no primeiro banco. O impacto foi alto e súbi­to como uma batida de carro.

Ore e Howard pularam de lado, mas Cookie foi lento demais. A barra horizontal da cruz acertou seu ombro direito.

Ele caiu e uma mancha vermelha começou a se espalhar pelo chão.

Tudo isso aconteceu em alguns instantes, tão rápido que as pessoas que estavam de pé não tiveram chance de fugir.

— Me ajudem, me ajudem! —- gritou Cookie.

Ele estava berrando no chão. O sangue escorria pelo tecido da ca­miseta, empoçava-se no chão de ladrilhos.

Elwood empurrou a cruz de cima dele e Cookie gritou.

Caine não havia se mexido. Drake Merwin ficou com o olhar frio fixo em Ore, os braços ainda cruzados, parecendo indiferente.

Diana Ladris manteve o foco em Sam. O risinho de quem sabia das coisas não sumiu de seu rosto.

Astrid agarrou o braço de Sam e sussurrou:

Vamos sair daqui. Precisamos conversar.

Diana viu isso também.

Ahhh, ahhh, me ajuda, ah, cara, estou machucado! — gritou Cookie.

Ore e Howard não fizeram qualquer movimento para ajudar o co­lega caído.

Caine, perfeitamente calmo, disse:

Isso é terrível. Alguém tem noção de primeiros socorros? Sam? Sua mãe era enfermeira.

O Pequeno Pete, que estivera quieto e imóvel como uma pedra, começou a se balançar cada vez mais rápido. Suas mãos se balançavam como se ele estivesse tentando evitar um ataque de abelhas.

Preciso tirá-lo daqui, ele está cada vez mais nervoso — disse Astrid, e levou o Pequeno Pete para longe. — Banco da janela, Petey, banco da janela.

Não sou enfermeiro — disse Sam, bruscamente. — Não sei...

Foi Dahra Baidoo que saiu de seu transe atordoado para se ajoelhar ao lado de Cookie, que se sacudia e berrava.

Eu sei um pouco de primeiros socorros. Elwood, me ajude.

Acho que temos nossa nova enfermeira — disse Caine, não pa­recendo mais agitado nem preocupado do que um diretor de escola anunciando um nome para o quadro de funcionários.

Diana se virou, passou por Caine e sussurrou algo no ouvido dele. Os olhos escuros de Caine varreram sobre os garotos chocados, pare­cendo avaliar um de cada vez. Formou um sorriso simples e assentiu imperceptivelmente para Diana.

Esta reunião está adiada até que possamos ajudar nosso colega ferido, o... como é mesmo o nome dele? Cookie?

A voz de Cookie estava mais urgente ainda, exigindo ajuda, à beira da histeria.

Dói mesmo, dói muito mesmo. Ah, meu Deus.

Caine levou Drake e Diana pelo corredor, passando por Sam, se­guindo Astrid e o Pequeno Pete para fora da igreja.

Drake parou na metade do caminho, virou-se e falou pela primeira vez. Numa voz divertida, disse:

Ah, é... capitão Ore? Mande seu pessoal, os que não estão feri­dos, fazer fila lá fora. Vamos pensar nas suas... hum... tarefas.

Com um riso que era quase um rosnado, Drake acrescentou, cheio de animação:

Mais tarde.

 

                           251 HORAS E 32 MINUTOS

JACK DEMOROU A perceber que deveria seguir Caine e os outros para fora da igreja. Pulou depressa demais e bateu com força no ban­co, fazendo um barulho que atraiu a atenção do garoto quieto que Caine havia chamado de herói.

Desculpe — disse Jack.

Jack saiu rapidamente. A princípio, não pôde ver nenhum dos ou­tros alunos da Coates. Havia um monte de gente do lado de fora da igreja, em grupos, falando sobre o que acontecera lá dentro. Os gritos de dor de Cookie estavam apenas ligeiramente abafados.

Jack notou a garota alta e loura que tinha visto dentro da igreja, junto com o irmãozinho.

Com licença, você sabe para onde o Caine e todo mundo foram?

A garota, ele não lembrava o nome, olhou-o nos olhos.

Está na prefeitura. Onde mais estaria o nosso novo líder?

Jack costumava não notar as nuances na fala das pessoas, mas não deixou de perceber o sarcasmo frio.

Desculpe incomodar você. — Ele empurrou os óculos de volta para o topo do nariz e tentou sorrir ao mesmo tempo. Balançou a ca­beça e olhou em volta, procurando a prefeitura.

É ali. — A garota apontou a direção certa. Depois disse: — Meu nome é Astrid. Você acha mesmo que pode fazer os celulares funcio­narem?

Claro. Mas vai demorar um tempo. Agora o sinal vai do seu te­lefone até a torre, certo? — Sua voz era condescendente e ele fez com as mãos o esquema de uma torre com raios confluindo. — Depois é mandado para um satélite, depois para baixo até um roteador. Mas não podemos mandar sinal para o satélite agora, de modo que...

Foi interrompido por um grito de dor chocante, vindo de dentro da igreja. Isso o fez encolher-se.

Como sabemos que não podemos alcançar o satélite? — pergun­tou Astrid.

Ele piscou, surpreso, e fez a expressão presunçosa que fazia sempre que alguém questionava sua capacidade técnica.

Duvido que você entenda.

Experimente, garoto — disse Astrid.

Para surpresa de Jack, a menina pareceu acompanhar tudo que ele dizia. Por isso, ele continuou explicando como poderia reprogramar alguns bons computadores para servir como um roteador primitivo para o sistema telefônico.

Não seria rápido. Quero dizer, não poderíamos fazer mais do que, digamos, uma dúzia de ligações simultâneas, mas deve funcionar em nível básico.

O irmãozinho de Astrid parecia estar hipnotizado pelas mãos de Jack, que agora as torcia, nervoso. Jack ficava ansioso longe de Caine. Antes de terem saído da Academia Coates, Drake Merwin havia aler­tado todo mundo de que deveriam evitar ao máximo muitas conversas com o pessoal de Praia Perdida.

E um aviso de Drake era coisa séria.

Bom, é melhor eu ir — disse Jack.

Astrid o impediu.

Então você curte computadores.

É. Sou ligado em tecnologia.

Quantos anos você tem?

Doze.

É bem novo para saber isso tudo.

Ele riu sem dar importância.

Nada que eu estive explicando é difícil de fazer. Não é uma coi­sa que a maioria das pessoas consegue, mas para mim não é difícil.

Jack nunca fora tímido quando o assunto era sua capacidade técni­ca. Havia ganhado seu primeiro computador de verdade com 4 anos, no Natal. Os pais ainda contavam a história de como o menino passou 14 horas com a máquina naquele primeiro dia, parando apenas para comer barras de cereal e tomar suco de caixinha.

Quando tinha 5 anos, podia facilmente instalar programas e nave­gar pela internet. Aos 6, seus pais lhe pediam ajuda com o computa­dor. Aos 8, ele tinha seu próprio site e atuava como suporte técnico não oficial da escola.

Aos 9 anos, Jack invadiu o sistema do departamento de polícia de sua cidade para apagar uma multa de trânsito do pai de um amigo.

Seus pais descobriram e entraram em pânico. No semestre seguin­te, ele foi enviado à Academia Coates, conhecida como um lugar para onde mandar crianças inteligentes e difíceis.

Mas Jack não era difícil, e ficou magoado. De qualquer modo, isso não o ajudou a ficar longe de encrenca. Pelo contrário; na Coates ha­via garotos que os pais de Jack chamariam de más influências. Alguns, eles chamariam de influências muito más.

E alguns eram simplesmente maus.

Então, o que seria difícil para você, Jack? — perguntou Astrid.

Quase nada — respondeu ele, com sinceridade. — Mas o que eu gostaria mesmo de fazer é colocar algum tipo de internet funcionan­do. Aqui no... o que quer que isso seja.

Parece que estamos chamando de LGAR.

É. Aqui no LGAR. Quero dizer, acho que existem cerca de 225 computadores bons, baseado no número de casas e empresas. A área de terra é bem pequena, por isso seria bastante fácil montar um Wi-Fi. Isso é mole. E, se eu tivesse um par de G5 velhos para trabalhar, acho que poderia montar um sistema local limitado.

Ele sorriu, feliz com o pensamento.

Seria fantástico. Então diga, Jack Comp... realmente devo cha­mar você de Jack Computador?

É como todo mundo me chama. Às vezes, é só Jack.

Certo, Jack. O que Caine está armando?

Jack foi apanhado desprevenido.

O quê?

O que ele está armando? Você é um garoto inteligente, deve ter alguma idéia.

Jack queria ir embora, mas não conseguia deduzir como. Astrid se aproximou e tocou seu braço. O garoto olhou para a mão dela.

Sei que ele está aprontando alguma coisa — disse Astrid. Seu irmãozinho fixou os olhos vazios e enormes na direção de Jack. — Sabe o que eu acho?

Jack balançou a cabeça lentamente.

Acho que você é uma pessoa legal. Acho que é muito inteligente, de modo que as pessoas nem sempre tratam você bem. Têm medo do seu talento. E tentam usar você.

Jack se pegou assentindo.

Mas não acho que aquele garoto, o Drake, seja uma pessoa le­gal. Estou certa, não estou?

Jack ficou completamente imóvel. Não queria revelar nada. Não era tão rápido em entender pessoas quanto em entender máquinas. A maioria das pessoas não era tão interessante.

Ele é barra-pesada, não é? Quero dizer, Drake.

Jack deu de ombros.

Foi o que pensei. E Caine?

Quando Jack não respondeu, Astrid deixou a pergunta no ar. O menino engoliu em seco e tentou desviar o olhar, mas não conseguiu.

Caine — repetiu Astrid. — Há alguma coisa errada com ele, não é?

A resistência de Jack Computador desmoronou, mas não sua cau­tela. Ele baixou a voz até um sussurro:

Ele consegue fazer coisas — disse Jack. — Consegue...

Jack. Aí está você.

Jack e Astrid levaram um susto. Era Diana Ladris. Ela acenou cor­dialmente para Astrid.

Espero que seu irmãozinho esteja bem. Pelo modo como você saiu correndo de lá, achei que talvez ele estivesse passando mal.

Não. Não, ele está bem.

Ele tem sorte de ter você. — Quando disse isso, Diana segurou a mão de Astrid, como se estivesse decidida a cumprimentá-la. Mas Jack sabia que não era assim.

Astrid puxou a mão.

Diana tinha um belo sorriso, mas não o usou agora. Jack se pergun­tou se Diana pudera acabar com Astrid. Provavelmente não; geral­mente ela demorava mais para ler o nível de poder de uma pessoa.

O clima de confronto foi quebrado pelo som de um motor a diesel. Era um garoto que parecia mexicano dirigindo uma retro-escavadeira pela rua.

Quem é aquele? — perguntou Diana.

Edilio — respondeu Astrid.

O que ele está fazendo?

O garoto na pá mecânica começou a cavar uma vala, bem na grama da praça, perto da calçada onde o corpo da menininha estava sob o cobertor, evitado por todos.

O que ele está fazendo? — repetiu Diana.

Acho que enterrando a menina morta — disse Astrid, baixinho.

Diana franziu a testa.

Caine não mandou que ele fizesse isso.

Quem se importa? — perguntou Astrid. — Isso precisava ser feito. Na verdade, acho que vou ver se posso ajudar. Você sabe, se achar que Caine não vai se importar.

Diana não sorriu. Também não rosnou, e Jack a vira fazer isso em mais de uma ocasião.

Você parece uma garota legal, Astrid — falou Diana. — Aposto que é um daqueles tipos nerds como Lisa Simpson, cheia de grandes idéias e preocupada em salvar o planeta ou seja lá o quê. Mas as coisas mudaram. Esta não é mais nossa vida antiga. É como... sabe como é? É como se você morasse antes num bairro muito bom e agora vivesse num bairro totalmente barra-pesada. Você não parece muito forte, Astrid.

O que provocou essa coisa? O LGAR. Você sabe? — perguntou Astrid, recusando-se a ficar intimidada.

Diana riu.

Alienígenas. Deus. Uma mudança súbita no contínuo espaço-tempo. Ouvi alguém chamar você de Astrid Gênio, então provavel­mente pensou em explicações que eu nem consigo imaginar. Não im­porta. Aconteceu. Aqui estamos.

O que Caine quer?

Jack não pôde acreditar que Astrid não tivesse murchado diante da confiança de Diana. A maioria das pessoas fazia isso. A maioria das pessoas não conseguia enfrentá-la. Quem enfrentava, lamentava.

Jack pensou ter visto uma fagulha de apreciação brilhar nos olhos escuros de Diana.

O que o Caine quer? Ele quer o que quer. E vai conseguir — disse Diana. — Agora, vá correndo lá para o enterro. Fique fora do meu caminho. E cuide do seu irmãozinho. Jack?

O som de seu nome arrancou Jack do transe.

O quê?

Vamos.

Jack foi andando atrás de Diana, envergonhado por sua obediência instantânea, canina.

Subiram os degraus da prefeitura. Caine havia ocupado o escritório do prefeito, o que não era surpresa para quem o conhecia. Estava atrás de uma enorme mesa de mogno, balançando-se devagar de um lado para o outro, numa cadeira de couro marrom grande demais.

Aonde você foi? — perguntou Caine.

Pegar Jack.

Os olhos de Caine piscaram rapidamente.

E onde estava o Jack Computador?

Em lugar nenhum — disse Diana. — Só andando por aí, perdido.

Ela estava protegendo-o, percebeu Jack, chocado.

Eu esbarrei com aquela garota — disse Diana. — A loura com o irmão estranho.

E?

O pessoal a chama de Astrid Gênio. Acho que ela tem a ver com aquele garoto, o do incêndio.

O nome dele é Sam — lembrou Caine.

Acho que temos de ficar de olho em Astrid.

Você a leu?

Consegui uma leitura parcial, por isso não tenho certeza.

Caine abriu as mãos, exasperado.

Por que eu estou implorando por informação? Só diga.

Ela tem umas duas barras.

Alguma idéia de qual pode ser o poder dela? Luz? Velocidade? Camaleão? Não outra Dekka, espero. Ela era difícil. E espero que não seja uma Leitora como você, Diana.

Diana balançou a cabeça.

Não faço idéia. Nem tenho certeza se ela alcança duas barras.

Caine assentiu. Depois suspirou como se o peso do mundo estives­se em seus ombros.

Ponha-a na lista, Jack. Astrid Gênio: duas barras. Com ponto de interrogação.

Jack pegou seu palmtop. O aparelho não se conectava mais à inter­net, claro, mas as outras funções permaneciam. Digitou o código de segurança e abriu o arquivo.

A lista se abriu. Havia 28 nomes, todos de alunos da Coates. Na coluna ao lado de cada nome havia um número: um, dois ou três. Só um nome tinha um quatro anotado depois: Caine Soren.

Jack se concentrou em digitar a informação.

Astrid. Duas barras. Ponto de interrogação.

Tentou não pensar no que isso significava para a loura bonita.

A coisa foi melhor do que eu esperava — disse Caine a Diana. — Eu previ que haveria algum valentão com quem teríamos de lidar. E disse que haveria um líder natural. O valentão está trabalhando para nós e precisamos ficar de olho no líder até que a gente possa cuidar dele.

Vou ficar de olho nele — disse Diana. — Ele é um gato.

Conseguiu fazer uma leitura?

Jack tinha visto Diana segurar a mão de Sam, por isso ficou espan­tado quando ela respondeu:

Não. Não tive chance.

Jack franziu a testa, sem saber se deveria lembrar a Diana. Mas era idiotice. Claro que Diana saberia, se tivesse lido Sam.

Faça isso o mais rápido que puder — disse Caine. — Você viu como todo mundo olhava para ele? E, quando pedi indicações, o nome dele foi o primeiro que mencionaram. Não gosto disso, já que é filho da enfermeira Temple. É uma coincidência ruim. Faça uma leitura dele. Se ele tiver o poder, talvez não possamos esperar para resolver isso.

Lana estava curada.

Mas estava fraca. Com fome. Com sede.

A sede era o pior. Não sabia se conseguiria suportar.

Mas havia passado pelo inferno e sobrevivido, e isso lhe dava al­gum motivo para ter esperança.

O sol havia nascido, mas ainda não estava tocando-a com seus raios. A ribanceira estava na sombra. Lana sabia que sua melhor chan­ce era voltar ao rancho antes que o chão ficasse quente como uma torta recém-saída do forno.

Não comece a pensar em comida — disse, rouca. Ficou animada ao descobrir que ainda possuía voz.

Tentou subir direto até a estrada, mas depois de arranhar os dois joelhos e ralar as duas palmas admitiu que não conseguiria. Nem Patrick conseguia subir. Era íngreme demais.

Com isso, restava seguir pela ribanceira até que, assim esperava, ela desse em algum lugar. Não era uma caminhada fácil. Na maioria dos lugares o terreno era duro, mas em outros, se soltava, deslizava e a fazia cair.

A cada vez que caía ficava mais difícil se levantar de novo. Patrick estava ofegando, andando com dificuldade, cansado e com os pés tão machucados quanto ela.

Estamos nisso juntos, certo, garoto?

Arbustos arranhavam as pernas, pedras machucavam os pés. Em alguns lugares, havia montes de espinheiros que tinham de ser trans­postos. Num lugar, os espinhos não puderam ser evitados, e ela preci­sou abrir caminho com uma cautela que desperdiçava tempo e acumu­lava arranhões que queimavam como fogo nas pernas nuas.

Mas, assim que passou, ela pôs a mão nos arranhões e a dor foi sumindo. Depois de uns dez minutos, não havia sinal dos arranhões.

Era milagroso. Lana estava convencida disso. Sabia que não tinha pessoalmente o poder de curar cães ou pessoas. Nunca tinha feito isso antes. Mas não sabia como o milagre funcionava. Sua mente estava em questões mais urgentes: como escalar essa encosta súbita ou rodear aquele trecho de espinheiros ou onde, nesta paisagem ressecada, ela poderia encontrar água e comida.

Desejou ter prestado muito mais atenção ao terreno enquanto ia e vinha do rancho. Essa garganta ia em direção ao rancho ou se desviava para longe? Ela estava chegando? Estaria andando às cegas para o verdadeiro deserto? Alguém estaria procurando por ela?

As paredes da ribanceira não eram mais tão altas, mas continuavam íngremes e ficavam mais próximas uma da outra. A fenda ia se estrei­tando. Isso com certeza era bom. Se ia se estreitando e ficando mais rasa, isso não significava que estaria chegando perto do fim?

Estava olhando para o chão, atenta para a possibilidade de cobras, quando Patrick parou.

O que foi, garoto? — Mas ela viu o que era. Havia uma parede atravessando a garganta. A parede era impossivelmente alta, mais alta do que a própria ribanceira, uma barreira feita de... algo que ela nun­ca tinha visto antes.

O simples tamanho, combinado com a absoluta estranheza neste lugar, provocou medo. Mas aquilo não parecia estar fazendo nada. Era só uma parede, translúcida como leite aguado. Brilhava só um pouqui­nho, como se tivesse um efeito de vídeo. Era absurda. Impossível. Uma parede onde parede nenhuma deveria estar.

Chegou mais perto, mas Patrick se recusou a ir junto.

Temos de ver o que é isso, garoto — instigou ela.

Patrick discordou. Não tinha o menor interesse em ver o que era.

De perto, ela conseguiu ver um leve reflexo de si mesma.

Provavelmente é bom eu não conseguir me ver melhor — mur­murou. Seu cabelo estava duro com o sangue seco. Sabia que estava imunda. Podia ver que as roupas estavam rasgadas, e não de um modo artístico, chique; só transformadas em tiras em alguns lugares.

Lana percorreu os últimos passos até a barreira e tocou-a com um dedo.

Ahh!

Gritou e puxou o dedo de volta. Antes do acidente, teria descrito a dor como lancinante. Agora tinha padrões diferentes para o que signi­ficava dor verdadeira. Mas não tocaria na parede de novo.

É algum tipo de cerca elétrica? — perguntou a Patrick. — O que isso está fazendo aqui?

Agora não havia opção, a não ser tentar escalar a lateral da gargan­ta. O problema é que Lana tinha quase certeza de que o rancho ficava à esquerda, e esse lado era impossível de subir. Precisaria de cordas e pinos de alpinista.

Achou que poderia conseguir pelo lado direito, indo de uma pedra tombada à outra. Mas, nesse caso, a não ser que tivesse virado total­mente ao contrário, colocaria a garganta entre ela e o rancho.

A alternativa restante era voltar por onde tinha vindo. Tinha demo­rado metade do dia para chegar até ali. O dia terminaria antes que ela pudesse retornar ao ponto de partida. Morreria onde havia começado.

Venha, Patrick. Vamos sair daqui.

Parecia ter demorado uma hora para subir a encosta da direita. O tempo todo sob o olhar silencioso e malévolo da parede que Lana passara a considerar uma coisa viva, uma enorme força malévola deci­dida a impedi-la.

Quando finalmente chegou ao topo, piscou e protegeu os olhos, depois olhou da esquerda para a direita, por todo o campo de visão. Foi então que quase desmoronou. Não havia nenhum sinal da estrada. Nenhum sinal do rancho. Apenas uma encosta íngreme e não mais do que cerca de um quilômetro de terreno plano antes que ela tivesse de começar a subir.

E aquela parede impossível. Aquela parede impossível, que não po­deria estar ali.

Um lado bloqueado pela garganta, o outro pelas montanhas, o tercei­ro pela parede, que atravessava a paisagem como se tivesse caído do céu.

O único caminho possível era voltar na direção de onde tinha vin­do, pela faixa estreita de terreno plano que acompanhava a garganta.

Abrigou os olhos e piscou ao sol.

Espera — disse a Patrick. — Tem alguma coisa lá.

Aninhado de encontro à barreira, não distante do pé das monta­nhas, era realmente um trecho de verde, tremeluzindo nas ondas de calor que subiam? Com certeza era uma miragem.

O que você acha, Patrick?

Patrick estava indiferente, seu ânimo havia sumido. Ele não estava em melhor condição do que ela.

Acho que tudo que temos é uma miragem.

Partiram juntos. Pelo menos era mais fácil do que subir a garganta, mas agora o sol parecia uma marreta, batendo na cabeça desprotegida de Lana. Ela podia sentir o corpo desistindo ao mesmo tempo em que seu espírito era torturado pela dúvida. Estava perseguindo uma mira­gem, com o que restava das forças. Morreria perseguindo uma mi­ragem idiota.

Mas o retalho verde não desapareceu. Foi lentamente ficando maior à medida que a distância diminuía. Agora, a consciência de Lana era uma vela tremulando. Acendendo e apagando. Alerta por alguns segundos, depois perdida num sonho disforme.

Lana cambaleava, os pés se arrastando, meio cega pela claridade implacável do sol, quando percebeu que seu pé havia passado da poei­ra para a grama.

Os dedos dos pés registraram a textura esponjosa da grama.

Era um gramado minúsculo, com 4x4 metros. No centro, havia um esguicho móvel, desligado. Mas uma mangueira partia do esguicho, rodeando uma pequena cabana de madeira sem janela.

Não era exatamente uma cabana, não era maior do que um único cômodo. Atrás, havia um barracão de madeira meio arruinado e uma espécie de moinho de vento, na verdade, só uma hélice de avião presa em cima de uma torre precária, com 6 metros de altura.

Lana cambaleou ao longo da mangueira, acompanhando-a até a fonte. Vinha de um tanque de aço que já fora pintado, agora estava lixado pela areia, sobre uma plataforma de dormentes ferroviários sob o moinho improvisado. Um tubo enferrujado se projetava do chão embaixo do moinho. Havia válvulas e tubos de conexão. A mangueira terminava numa torneira soldada no final do tanque.

É um poço, Patrick.

Lana atacou freneticamente com os dedos fracos a conexão da mangueira.

Ela se soltou.

Virou a torneira. Uma água quente e cheirando a minerais e ferru­gem saiu num jorro.

Lana bebeu. Patrick bebeu.

A menina deixou a água correr sobre o rosto. Deixou-a lavar o sangue do rosto. Deixou-a amaciar o cabelo cheio de sujeira.

Mas não tinha vindo até aqui para deixar sua salvação se esvair por um prazer momentâneo. Fechou a torneira de novo. A última gota tremeu na borda de latão, ela pegou-a na ponta do dedo e usou-a para limpar a crosta do olho ensangüentado.

Então, pela primeira vez numa eternidade, riu.

- Ainda não estamos mortos, não é, Patrick? Ainda não.

 

                                 HORAS E 12 MINUTOS

É PRECISO FERVER a água primeiro. Depois você coloca a massa - disse Quinn.

Como você sabe? — Sam estava franzindo a testa, girando uma caixa azul de macarrão parafuso e tentando encontrar as instruções.

Porque já vi minha mãe fazer desse tipo, um milhão de vezes. A água tem de começar a ferver primeiro.

Sam e Quinn olharam para a grande panela de água no fogo.

Uma panela vigiada não ferve nunca — disse Edilio. Sam e Quin olharam para o lado. Ediliu riu.

É só um ditado. Não é verdade verdadeira.

Eu sabia — disse Sam. Depois riu. — Certo, eu não sabia.

Talvez você pudesse acelerar o processo com suas mãos mágicas - sugeriu Quinn.

Sam ignorou-o. Achava irritantes as provocações de Quinn sobre esse assunto.

O posto dos bombeiros era um cubo de dois andares feito de blo­cos de concreto. Embaixo ficava a garagem que abrigava o caminhão e a ambulância.

O segundo andar era uma espécie de sala de estar, uma área grande que também abrigava uma cozinha, uma mesa comprida e dois so­fás que não combinavam. Uma porta levava a um quarto separado, estreito, cheio de camas, com espaço para seis pessoas.

A sala era quase alegre, mas não totalmente. Havia fotos de bom­beiros, alguns em poses rígidas e formais, alguns brincando com os colegas. Havia cartas de agradecimento de várias pessoas, inclusive cartas ilustradas da visita de alunos do primeiro ano, todas começando com "Querido Bombeiro", se bem que às vezes a grafia era misteriosa.

Quando os três tinham chegado, havia uma grande mesa redonda com os restos de um jogo de pôquer abandonado abruptamente — car­tas caídas, batatas fritas, charutos em cinzeiros —, mas ela já fora limpa.

E havia uma copa surpreendentemente bem abastecida: vidros de molho de tomate, latas de sopa, caixas de macarrão. Uma lata pintada de vermelho, com biscoitos feitos em casa, agora bem rançosos, mas não impossíveis de ser comidos, se fossem postos no micro-ondas por 15 segundos.

Sam havia aceitado a nomeação como chefe dos bombeiros não porque quisesse, mas porque tantas outras pessoas queriam que ele aceitasse. Esperava que ninguém o chamasse para fazer alguma coisa por que, depois de três dias no posto dos bombeiros, os três ainda nem sabiam como ligar o caminhão, quanto mais levá-lo a qualquer lugar ou fazer qualquer coisa com ele.

Na única vez em que um garoto chegou correndo e gritando "Fogo", Sam, Quinn e Edilio tinham praticamente arrastado uma mangueira e uma chave de hidrante por seis quarteirões até descobrir que o irmão do garoto havia posto uma lata no micro-ondas. A fuma­ça era só de um forno de micro-ondas queimado.

Mas, pensando pelo lado positivo, eles sabiam onde encontrar to­dos os suprimentos de emergência na ambulância. E tinham treinado com a mangueira grande e o hidrante do lado de fora, de modo que podiam ser mais rápidos e eficientes do que Edilio havia sido no pri­meiro incêndio.

E tinham dominado totalmente o mastro de descida dos bombeiros.

— Estamos sem pão — disse Edilio.

Não é preciso pão, se tiver massa — disse Sam. — Os dois são carboidratos.

Quem está falando em nutrição? O pão deve acompanhar a co­mida.

Achei que vocês comiam tortilhas — disse Quinn.

Tortilhas são pães.

Bom, não temos pão — disse Sam. — De tipo nenhum.

Dentro de mais uma semana ninguém vai ter pão — observou Quinn. — Pão tem de ser feito fresco, você sabe. Fica mofado depois de um tempo.

Três dias haviam se passado desde que Caine e seu grupo chegaram à cidade e basicamente assumiram o comando. Três dias sem que nin­guém viesse resgatá-los. Três dias da depressão se aprofundando. Três dias da aceitação crescente de que, pelo menos por enquanto, isso era a vida.

E o LGAR propriamente dito — todo mundo agora o chamava assim — tinha cinco dias de idade. Cinco dias sem adultos. Cinco dias sem mães, pais, irmãos mais velhos, professores, policiais, vendedores, pediatras, padres, dentistas. Cinco dias sem televisão, internet ou tele­fones.

A princípio Caine fora bem-vindo. As pessoas queriam alguém no comando. Queriam respostas. Queriam regras. Caine era bom em es­tabelecer a autoridade. A cada vez que Sam tivera de lidar com ele, saiu impressionado ao ver que Caine agia com confiança total, como se tivesse nascido para o cargo.

Mas, em apenas três dias, as dúvidas já haviam crescido também. As dúvidas giravam em torno de Caine e Diana, porém mais ainda em Drake Merwin. Alguns garotos argumentavam que era preciso alguém um pouco amedrontador para garantir que as regras fossem obedeci­das. Outros concordavam com isso, mas observavam que Drake era mais do que um pouco amedrontador.

Crianças que desafiavam Drake ou algum dos seus "xerifes" tinham levado tapas, socos, empurrões, sido derrubadas ou, uma vez, arrastada até um banheiro e tido a cabeça enfiada no vaso enquanto a descarga era dada. Ter medo de Drake estava substituindo o medo do desconhecido.

Eu sei fazer tortilhas frescas — disse Edilio. — Só preciso de farinha, um pouco de manteiga, sal e fermento. Temos tudo isso aqui.

Guarde para a noite dos tacos — disse Quinn. Em seguida pegou o macarrão da mão de Sam e jogou na panela.

Edilio franziu a testa.

Vocês ouviram alguma coisa?

Sam e Quinn congelaram. O som mais alto era a água fervendo.

Então todos ouviram. Uma voz gemendo alto.

Sam deu dois passos até o mastro dos bombeiros, enrolou os braços e as pernas nele e desceu pelo buraco no piso, pousando na garagem fortemente iluminada, lá embaixo.

A garagem estava aberta ao ar da tarde. Alguém — uma garota, a julgar pelo cabelo ruivo comprido — estava caído na entrada, como se tentasse engatinhar, mas sem ir de fato a lugar nenhum.

Três figuras avançavam vindas da rua.

Me ajuda — implorou a garota, baixinho.

Sam se ajoelhou ao lado dela. Em seguida, se encolheu, chocado.

Bette?

O lado esquerdo do rosto de Bette Ricochete estava coberto de sangue. Havia um talho em sua têmpora. Ela estava ofegando, engas­gando, como se tivesse despencado depois de uma maratona e tentas­se, com o último grama de energia, se arrastar até a linha de chegada.

Bette, o que aconteceu?

Eles estão tentando me pegar — gritou Bette, e agarrou o braço de Sam.

As três figuras escuras avançaram até a borda do círculo de luz. Uma era obviamente Ore; ninguém mais era tão grande. Edilio e Quinn chegaram à entrada da garagem.

Sam soltou-se de Bette e se posicionou ao lado de Edilio.

Se querem apanhar, vão apanhar! — gritou Ore.

O que está acontecendo aqui? — perguntou Sam. Em seguida, estreitou os olhos e reconheceu os outros dois garotos, um chamado Karl, do sétimo ano da escola, e Chaz, do oitavo na Coates. Os três estavam armados com bastões de alumínio.

Não é da sua conta — disse Chaz. — Estamos resolvendo uma coisa.

Resolvendo o quê? Ore, você bateu na Bette?

Ela violou as regras — disse Ore.

Você bateu numa garota, cara? — perguntou Edilio, ultrajado.

Cala a boca, cucaracha — retrucou Ore.

Cadê o Howard? — perguntou Sam, só para embromar enquan­to tentava pensar no que fazer. Já havia perdido uma briga com o grandalhão.

Ore recebeu a pergunta como um insulto.

Não preciso do Howard para cuidar de você, Sam.

Ore marchou direto até Sam, parou a meio metro de distância e pôs o bastão no ombro, como se estivesse disposto a rebater para um home run. Como um rebatedor pronto para a próxima bola rápida. Só que isso era mais como uma bola parada: era impossível não acertar a cabeça de Sam.

Saia da frente, Sam — ordenou Ore.

Certo, não vou entrar nessa de novo — disse Quinn. — Deixe que ele fique com ela, Sam.

Não vem com essa de "deixe" — reagiu Ore. — Eu faço o que eu quero.

Sam notou movimento atrás de Ore. Havia pessoas vindo pela rua, vinte ou mais. Ore também notou e olhou por cima dos ombros.

Eles não vão salvar você — disse Ore, e girou o bastão com força.

Sam se abaixou. O bastão passou fazendo vento junto à sua cabeça, e Ore girou meia-volta, levado pelo ímpeto.

Sam ficou desequilibrado, mas Edilio estava preparado. Soltou um rugido e se jogou de cabeça contra Ore. Edilio devia ter metade do tamanho de Ore, mas o grandão foi derrubado. Esparramou-se no concreto.

Chaz foi atrás de Edilio, tentando tirá-lo de cima de Ore.

A multidão de crianças que tinha vindo correndo pela rua avançou. Soaram vozes furiosas e ameaças, todas contra Ore.

Elas gritavam, notou Sam, mas não entravam realmente na luta desigual.

Uma voz atravessou todo o barulho.

Ninguém se mexa — disse Drake.

Ore empurrou Edilio de cima e ficou de pé. Começou a chutar Edilio, acertando golpes de Nike tamanho 45 nos braços defensivos de Edilio. Sam pulou para ajudar o amigo, mas Drake foi mais rápido. Chegou atrás de Ore e o agarrou pelo cabelo, puxou sua cabeça para trás e deu uma cotovelada no seu rosto.

Sangue jorrou do nariz de Ore e ele uivou de fúria.

Drake o acertou de novo e soltou Ore caído no concreto.

Que parte do "ninguém se mexa" você não entendeu, Ore? — perguntou Drake.

Ore se ajoelhou e partiu para Drake como um atacante de futebol americano. Drake se desviou de lado, ágil como um toureiro. Esten­deu a mão e disse a Chaz:

Me dê isso.

Chaz lhe entregou o bastão.

Drake acertou Ore nas costelas com um golpe rápido e forte do bastão. Depois de novo, nos rins e, de novo, na lateral da cabeça. Cada golpe era medido, preciso, eficaz.

Ore rolou de costas, impotente, exposto.

Drake empurrou o lado grosso do bastão contra a garganta de Ore.

Cara. Você precisa mesmo ouvir quando eu falo.

Então Drake riu, deu um passo atrás, girou o bastão no ar, pegou-o e pousou no ombro. Riu para Sam.

Agora, que tal dizer o que está acontecendo, senhor chefe dos bombeiros?

Sam já havia enfrentado valentões antes. Mas nunca tinha visto nada como Drake Merwin. Ore tinha pelo menos 20 quilos a mais, mas Drake havia cuidado dele como se fosse um bonequinho de ação.

Sam apontou para Bette, ainda encolhida no chão.

Acho que Ore bateu nela.

É? E daí?

E daí que eu não ia deixar que ele batesse de novo — disse Sam, o mais calmo que pôde.

Não me pareceu que você estava se preparando para salvar nin­guém. Parece que ia ter a cabeça arrancada dos ombros.

Bette não estava fazendo nada de errado — gritou uma voz agu­da no meio da multidão.

Sem olhar para trás, Drake disse:

Cala a boca. — E apontou para Chaz. — Você. Explique o que houve.

Chaz era um garoto de aparência atlética, com cabelos louros indo quase até os ombros e óculos de grife. Estava usando o uniforme da Coates, sujo e amarrotado depois de dias de uso.

Essa garota estava fazendo alguma coisa. — Apontou para Bette. — Estava usando o poder.

Sam sentiu um arrepio gelado na coluna.

O poder, ele havia dito. Como se fosse algo que a gente mencionas­se numa conversa comum. Como se fosse uma coisa comum da qual todo mundo soubesse.

Drake deu um risinho.

Ora, o que você está dizendo, Chaz? — O modo como ele falou era uma ameaça inconfundível.

Nada — respondeu Chaz, rapidamente.

Ela estava fazendo um truque de mágica — gritou uma voz. — Não estava machucando ninguém.

Eu falei para parar. — Ore estava de pé outra vez, olhando para Drake com ódio sem disfarces, mas também com alguma cautela.

Ore é um sub-xerife — disse Drake, em voz razoável. — Portan­to, quando ele manda alguém parar de fazer alguma coisa errada, a pessoa tem de parar. Se essa garota se recusou a obedecer, bom, acho que ela teve o que merecia.

Vocês não têm o direito de bater nas pessoas — disse Sam.

Drake tinha um riso de tubarão: dentes demais, humor de menos.

Alguém tem de fazer com que as pessoas sigam as regras. Certo?

Há regras contra fazer truques de mágica? — perguntou Edilio.

Sim — respondeu Drake. — Mas acho que as pessoas não sa­biam. Chaz? Dê a última cópia das regras ao chefe dos bombeiros.

Sam pegou um pedaço de papel amarrotado e dobrado, sem olhá-lo.

Aí está — disse Drake. — Agora você sabe as regras.

Ninguém está fazendo mágica por aqui — disse Quinn, apaziguador.

Então meu trabalho está feito — respondeu Drake, e riu de sua própria piadinha. Em seguida, jogou o bastão de beisebol de volta para Chaz. — Certo. Todo mundo vá para casa.

Bette vai ficar aqui um tempo — disse Sam.

Tanto faz.

Drake saiu acompanhado por Ore e os outros. A multidão se divi­diu para ele passar.

Sam se ajoelhou ao lado de Bette.

Vamos fazer uns curativos em você.

Que negócio de truques de mágica é esse? — perguntou Quinn.

Bette balançou a cabeça.

Não foi nada.

Ela vez umas bolinhas de luz saírem das mãos — disse uma criança pequena. — Foi um truque maneiro.

Certo, vocês ouviram o que o Drake disse: todo mundo fora daqui — disse Quinn em voz alta. — Todos vão para casa.

Sam, Quinn e Edilio carregaram Bette para dentro e fizeram com que ela se sentasse na ambulância. Edilio usou gaze estéril para limpar o sangue do rosto dela, aplicou uma pomada antibiótica e usou dois curativos adesivos para fechar o ferimento.

Você pode passar a noite aqui, Bette — disse Sam.

Não, preciso ir para casa, meu irmão vai precisar de mim — dis­se Bette. — Mas obrigada. — Ela conseguiu sorrir para Edilio. — Des­culpe, por fazer você ser chutado.

Edilio deu de ombros, sem graça.

Não foi grande coisa.

Sam saiu para levar Bette até em casa. Quinn e Edilio subiram a escada de volta.

Quinn foi até a panela e usou a escumadeira para pegar alguns pe­daços de macarrão parafuso. Provou um.

Está que nem mingau, cara.

Cozinhou demais — concordou Edilio, olhando por cima do ombro dele.

Um pacote de Cheerios? — perguntou Quinn.

Serviu-se de um pouco e começou a cantarolar sozinho, decidido a não conversar com Edilio. Mal estava suportando Edilio. Sua animação. Sua competência em praticamente tudo. E agora mesmo, o modo como havia se lançado contra Ore como uma espécie de super-herói mexicano.

Era idiotice, pensou Quinn, era idiotice ir contra um cara como o Ore. Já era ruim o que havia acontecido com Bette, mas de que adian­tava arranjar briga com alguém que você não podia vencer? Se Drake não tivesse aparecido, Edilio teria sorte se estivesse andando agora.

Pensando bem...

Sam retornou. Assentiu para Edilio e mal olhou para Quinn.

Quinn trincou os dentes. Perfeito. Agora Sam estava com raiva dele por não ter tido a cabeça arrebentada. Como se Sam fosse um tremen­do herói. Quinn podia se lembrar de montes de vezes em que Sam havia choramingado fugindo de ondas que Quinn enfrentara. Um monte de vezes.

O macarrão não sobreviveu — disse Quinn.

Levei Bette para casa. Espero que ela esteja bem. Ela disse que estava bem.

Bette tem o que você tem, não é? — perguntou Quinn, enquan­to Sam se sentava e mergulhava em sua própria tigela de cereal.

É. Talvez menos, acho. Ela disse que só consegue fazer as mãos meio que se iluminarem.

Então ela ainda não queimou o braço de ninguém até ser ampu­tado, não é? — Quinn estava cansado de como Sam o olhava, com uma mistura de pena e desprezo. Estava cansado de ser menosprezado só porque tinha um pouco de bom-senso e cuidava da própria vida.

Sam levantou a cabeça, com os olhos estreitados, como se fosse discutir. Mas apertou os lábios numa linha séria, empurrou a comida para longe e não disse nada.

É por isso que você não pode contar a ninguém — disse Quinn. — As pessoas vão achar que você é uma aberração. Você sabe o que acontece com as aberrações.

Bette não é uma aberração — disse Sam, no modo calmo força­do que tinha, com aquela sua coisa de dentes trincados. — É só uma garota da escola.

Não seja idiota, Sam. Bette, o Pequeno Pete, a garota do incên­dio, você. Se existem quatro, existem mais. As pessoas normais não vão gostar disso. As pessoas normais vão achar que vocês são perigo­sos ou sei lá o quê.

É o que você acha, Quinn? — perguntou Sam, em voz baixa. Mas, mesmo assim, evitou encarar Quinn.

Sam encontrou a folha de regras no bolso de trás, desdobrou-a e abriu sobre a mesa.

Só estou dizendo para olhar em volta, cara — disse Quinn. — O pessoal já tem muito com que ficar apavorado. Como é que as pessoas normais...

Quer parar de dizer "pessoas normais" desse jeito? — reagiu Sam, rispidamente.

Edilio, agora sempre o pacificador entre Sam e Quinn, disse:

Leia as regras, cara.

Sam suspirou. Alisou o papel com cuidado, olhou a página inteira e fez um ruído grosseiro.

A número um diz que Caine é o prefeito de Praia Perdida e de toda a área conhecida como LGAR.

Edilio fungou.

Ele não é nem um pouco presunçoso, não é?

Número dois: Drake é nomeado xerife e tem o poder de imple­mentar as regras. Número três, eu sou o chefe dos bombeiros e res­ponsável por cuidar das emergências. Fantástico. Sorte minha. — Ele ergueu os olhos e acrescentou: — Sorte nossa.

Legal da sua parte se lembrar das pessoas sem importância — provocou Quinn.

Número quatro, ninguém pode entrar em nenhuma loja e pegar nada sem permissão do prefeito ou do xerife.

Você é contra isso? — disse Quinn. — As pessoas não podem ficar saqueando as coisas o tempo todo, pegando o que quiserem.

Não sou contra isso — concordou Sam, relutante. — A cinco diz que todos temos de ajudar Mãe Maria na creche, dar o que ela pedir e ajudar sempre que precisar. Certo. Bastante justo. Seis: não matarás.

Verdade? — perguntou Quinn.

Sam deu um sorriso triste, como fazia quando estava cansado de ficar furioso e esperava que todo mundo também estivesse.

Brincadeira — disse.

Certo, para de palhaçada e leia.

Só estou tentando manter o senso de humor enquanto o mundo desmorona ao nosso redor — disse Sam. — Seis: temos de ajudar em trabalhos como revistar casas ou coisas do tipo. Sete: todos devemos dar informações sobre mau comportamento a Drake.

Então todos devemos ser informantes — disse Edilio.

Não se preocupe, não tem polícia contra imigração — disse Quinn. — E, de qualquer modo, se alguém puder descobrir como mandar você de volta para o México, eu vou junto.

Honduras — respondeu Edilio. — Não México. Pela, sei lá, décima vez.

Número oito, aqui está. Vou ler exatamente como está escrito — disse Sam. — As pessoas não farão truques de mágica nem qualquer outro ato que cause medo ou preocupação.

O que isso quer dizer? — perguntou Quinn.

Significa que Caine obviamente sabe sobre o poder.

Grande surpresa. — Edilio balançou a cabeça por cima da tigela de cereal. — A garotada falando disso como se fosse um ato de Deus. Eu sempre disse que Caine tinha o poder. As pessoas ficam dizendo que Caine é como um mago.

Não, cara — disse Quinn. — Se ele tivesse o poder, não manda­ria Ore e Drake impedir as pessoas de usarem também.

Claro que mandaria, Quinn — respondeu Sam. — Se ele quises­se ser o único que tivesse.

Que paranóia, brou!

Número nove — Sam continuou a ler. — Estamos em situação de emergência. Durante esta crise, ninguém deve criticar, ridicularizar nem atrapalhar qualquer pessoa que esteja cumprindo seus deveres oficiais.

Quinn deu de ombros.

Bom, nós estamos numa crise, certo? Se isso não for uma crise, não sei o que seria.

Então de repente não podemos dizer nada? — Sam estava balan­çando a cabeça, incrédulo. O momento de tentativa de reconciliação havia passado. Sam estava desapontado com Quinn de novo.

Olha, é que nem na escola, certo? — argumentou Quinn. — Você não pode detonar os professores. Pelo menos não na cara deles.

Então você vai adorar o número dez, Quinn. "O xerife pode decidir que as regras acima são insuficientes para cobrir algumas situações de emergência. Nesses casos, o xerife pode formular quaisquer regras necessárias para manter a ordem e as pessoas em segurança."

Formular — fungou Quinn. — Parece que Astrid ajudou a escrever.

Sam empurrou o papel.

Não. Não é o estilo de Astrid. — Ele cruzou as mãos, colocou-as na mesa e anunciou. — Isso é errado.

A expressão preocupada de Edilio espelhava a de Sam.

É, cara, isso não é certo. Isso é dizer que Caine e Drake podem fazer o que quiserem, quando quiserem.

É exatamente isso — concordou Sam. — E ele está fazendo as pessoas começarem a suspeitar umas das outras, virando umas contra as outras.

Quinn riu.

Você não sacou, brou. As pessoas já têm suspeitas. Esse não é um tempo normal, certo? Nós estamos isolados, não temos nenhum tipo de adulto, nem polícia, nem professores, nem pais, e, sem ofensa, al­guns de nós estão... tipo, sofrendo mutações ou sei lá o quê. Você age como se esperasse que tudo continuasse normal, como se não existisse o LGAR.

Sam estava farto de bancar o paciente.

E você age como se achasse que Bette merecia aquela surra. Por que não está chateado, Quinn? Por que concorda com a idéia de que uma garota que nós conhecemos, uma garota que nunca fez mal a ninguém, seja espancada pelo Ore?

Ah, é por aí que você vai? Como se fosse minha culpa? — Quinn se levantou e empurrou a cadeira para trás. — Olha, Sam, não estou dizendo que é certo baterem nela, está bem? Mas o que você queria? Quero dizer, tem gente que é apanhada por usar roupa inadequada, fazer bobagem no esporte ou qualquer coisa assim. E isso quando existem professores e pais por perto. É a vida. Você acha que agora, com tudo tão bagunçado desse jeito, o pessoal vai pensar: "ah, o Sam consegue disparar raios de fogo pelos olhos ou sei lá o quê, tudo bem, isso é maneiro?" Não, brou, as coisas não são assim.

Para surpresa de Quinn, e mais ainda de Sam, Edillio disse:

Ele está certo. Se houver mais pessoas, você sabe, como você e Bette, vão haver problemas. Algumas pessoas com poder, outras sem. Eu estou acostumado a ser cidadão de segunda classe. — Ele lançou um olhar sombrio para Quinn, mas Quinn ignorou. — As outras pes­soas vão ficar com ciúme, vão se amedrontar e, de qualquer modo, todo mundo está apavorado, então vão procurar alguém para culpar. Em espanhol nós chamamos isso de cabeza de turco. Significa alguém a quem culpar por todos os seus problemas.

Bode expiatório — traduziu Quinn.

Edilio assentiu.

É isso aí. Bode expiatório.

Quinn abriu os braços numa expressão de inocência sofrida.

O que eu estive dizendo? É como é: se você é diferente, acaba sendo vítima. Você tenta bancar o superior, Sam, todo indignado, mas ainda não sacou. O pior que acontecia quando a gente ficava encren­cado era receber uma suspensão, um zero ou algo assim. Sempre hou­ve valentões, mas os adultos ainda estavam no comando. Agora? Ago­ra os valentões comandam. E um jogo diferente, irmão, um jogo totalmente diferente. Agora jogamos pelas regras dos valentões.

 

                         169 HORAS E 18 MINUTOS

— PRECISO DE MAIS comprimidos — gritou Cookie, numa voz que, para consternação de Dahra Baidoo, nunca parecia enfraquecer nem ficar mais rouca.

É muito cedo — disse Dahra, pela milionésima vez nos últimos três dias.

Me dá os comprimidos! — berrou Cookie. — Tá doendo. Tá doendo demais.

Dahra apertou os ouvidos com as mãos e tentou entender o texto aberto à sua frente. Provavelmente seria fácil deduzir o que fazer se ainda tivesse internet. Então poderia abrir uma página no Google e digitar "Vicodin" e "overdose". Era mais difícil conseguir uma respos­ta direta no grosso e muito manuseado Livro de referência médica que alguém lhe trouxera do único consultório médico de Praia Perdida.

O problema, dentre outras coisas, era que ela estava brincando de fazer misturas com tudo, desde Advil até Vicodin e Tylenol com codeína. Não havia nada no livro sobre como controlar a dor misturan­do um pouquinho disso e um pouquinho daquilo e não o suficiente de qualquer coisa.

O namorado de Dahra, Elwood, estava caído numa poltrona, apa­gado. Ele fora um amigo fiel, pelo menos ficando perto e fazendo companhia. E sempre a ajudava a levantar Cookie para enfiar a coma­dre embaixo de sua bunda quando ele precisava.

Mas havia limites ao que seu namorado faria. Ele não limpava a comadre. Não segurava o urinol quando Cookie precisava urinar.

Dahra havia feito isso. Nos três dias desde que, acidentalmente, se tornara responsável por esse reino de sofrimento subterrâneo, sórdi­do, sem janelas e sem alegria, embaixo da igreja. Fizera todo tipo de coisas que nunca se imaginara capaz de fazer. Coisas que certamente não queria fazer, inclusive dar injeções diárias de insulina em uma criança diabética de 7 anos.

Houve uma batida à porta e Dahra girou a cadeira para longe da mesa e do círculo de luz que se derramava sobre o livro quase inútil.

Maria Terrafino estava ali com uma menina que aparentava ter uns 4 anos.

Oi, Maria — disse Dahra. — O que temos aí?

Desculpe incomodar. Sei como você está ocupada. Mas ela está com algum tipo de dor de barriga.

As duas garotas se abraçaram. Conheciam-se desde muito antes do LGAR, mas agora eram como irmãs.

Dahra se ajoelhou para ficar no mesmo nível da menininha.

Oi, querida. Qual é o seu nome?

Ashley.

Certo, Ashley, vamos verificar sua temperatura e ver o que está acontecendo. Pode vir aqui e se sentar na mesa?

Dahra enfiou o termômetro eletrônico numa cobertura de plástico nova e enfiou-o na boca da menina.

Você leva jeito — disse Maria, e sorriu.

Cookie berrou de repente, tão alto e de modo tão chocante que Ashley quase engoliu o termômetro.

Estou ficando sem comprimidos para dor — disse Dahra. — Não sei o que fazer. Esvaziamos o consultório do médico e às vezes recebemos uns remédios que as pessoas encontram quando revistam casas. Mas ele está sentindo dor demais.

Ele está melhorando? Quero dizer, do ombro?

Não. E não vai melhorar. Eu só posso manter o ferimento lim­po. — Ela examinou o termômetro. — Trinta e sete vírgula seis. Está dentro do normal. Deite-se e deixe eu ver uma coisa. Vou apertar sua barriga. Pode fazer um pouco de cócegas.

Você vai me dar injeção? — perguntou a menina.

Não, querida. Só quero apertar sua barriga. — Dahra apertou com as pontas dos dedos, apertou bem até embaixo e soltou de repen­te. — Isso doeu?

Só cosquinha.

O que você está verificando? — perguntou Maria.

Apendicite. — Dahra deu de ombros. — É praticamente só isso que eu sei, Maria. Quando procuro "dor de barriga" tem milhões de resultados, desde prisão de ventre até câncer de estômago. Provavel­mente ela precisa fazer cocô. — Virando-se para a menininha, disse: — Você fez cocô hoje?

Acho que não.

Vou colocá-la no vaso — disse Maria.

Dá um pouco d'água para ela. Tipo, uns dois copos.

Maria apertou sua mão.

Sei que você não é médica, mas fico feliz que esteja aqui.

Dahra suspirou.

Estou tentando ler aquele livro. Mas, na maior parte do tempo, ele me apavora. Quero dizer, tem um milhão de doenças de que nunca ouvi falar e em que nem quero pensar.

É. Imagino.

Maria estava embromando. Dahra perguntou se havia mais alguma coisa.

Escuta, sei que isso é esquisito e coisa e tal — disse Maria, bai­xando a voz para um tom de confidência. — Mas qualquer coisa que eu disser a você...

Não comento com ninguém sobre o que acontece aqui — disse Dahra, meio seca.

Eu sei. Desculpe. Não é... quero dizer, é um negócio meio ver­gonhoso.

Maria. Eu estou para além da vergonha. Agora estou enfiada no humilhante e nojento, de modo que nada que você disser vai me inco­modar.

Maria assentiu. Em seguida torceu os dedos e disse rapidamente:

Olha, eu tomo Prozac.

Para quê?

Só uns... você sabe... uns probleminhas. O negócio é que os meus acabaram. Sei que não é tão importante quanto um monte de coisas que você faz. — Lançou um olhar para o Cookie. — É só que, quando estou sem os comprimidos, eu fico... — Ela sugou o ar com força e deu um suspiro que era quase um soluço.

Sem problema — disse Dahra. Ela queria mais informações, mas seu instinto a mandou deixar para lá. — Deixe eu ver o que tenho. Você sabe qual é dosagem do comprimido que você toma?

Quarenta miligramas, uma vez por dia.

Preciso mijar — gemeu Cookie, numa voz de dar pena.

Dahra foi até o armário onde guardava os remédios. Alguns esta­vam em grandes frascos brancos, de farmácia, alguns em frascos me­nores, marrons, com tampa de rosca. E tinha algumas caixas de amos­tras grátis do consultório do médico.

Elwood acordou fungando.

Ah. Cara. Caí no sono.

Oi, Elwood — disse Maria.

Ahã — resmungou Elwood. Em seguida, pousou a cabeça na mão e voltou a dormir.

Ele é legal, ficando com você — disse Maria.

Ele é inútil — disse Dahra, rispidamente. Mas depois cedeu. — Por outro lado, pelo menos está aqui. Acho que posso dar uns compri­midos de 20 miligramas e você toma dois. — Ela jogou as cápsulas na mão. — Tem o bastante para uma semana. Desculpe, não tenho um vidro nem nada.

Maria pegou os comprimidos, agradecida.

Você é uma boa pessoa, Dahra. Quando isso tudo acabar, algum dia, você sabe, quando a gente crescer... Você pode virar médica.

Dahra deu um riso amargo.

Depois disso, Maria, a última coisa que eu quero ser é médica.

A porta do hospital se abriu de súbito. As duas garotas se viraram rapidamente e viram Bette Ricochete. Ela veio cambaleando, apertan­do a cabeça com as mãos.

Minha cabeça dói — disse Bette. Mal dava para entendê-la, tão enrolada estava sua voz. O braço esquerdo parecia sem vida, penden­do frouxo ao lado do corpo. A perna esquerda se arrastava enquanto ela dava vários passos mais para perto.

Dahra correu para pegá-la enquanto Bette desmaiava.

Elwood, acorda! — gritou Dahra.

Dahra, Elwood e Maria praticamente carregaram Bette até a maca onde Ashley fora examinada.

Preciso fazer cocô agora — disse Ashley.

Ah, meu Deus, preciso de mais comprimidos! — uivou Cookie.

Cala a boca! — gritou Dahra. Em seguida, apertou os ouvidos com as mãos e fechou os olhos com força. — Todo mundo cala a boca!

Agora Bette estava na maca, sussurrando:

Desculpe. — Parecia mais "sscup".

Não era com você, Bette — desculpou-se Dahra. — Apenas dei­te-se. —- Dahra olhou o rosto dela e disse a Elwood. — Pegue o livro.

Ela colocou o Livro de referência médica aberto na barriga de Bette e começou a folhear o índice.

Mm beç dói — disse Bette. Ela levantou o braço bom para tocar o calombo sangrento na lateral da cabeça.

Alguém bateu em você, Bette? — perguntou Elwood.

Bette pareceu confusa com a pergunta. Franziu a testa, como se não fizesse sentido. Gemeu de dor.

Um lado do corpo dela não está funcionando direito — disse Dahra. — Olhe como a boca está torta. E os olhos. Não estão virados para o mesmo lado.

Mm beç dói mui — gemeu Bette.

Acho que ela está dizendo que a cabeça dói — disse Maria. — O que vamos fazer?

Não sei, que tal eu abrir a cabeça dela e ver se posso consertar?

Dahra estava com a voz esganiçada. — Depois vou fazer uma cirur­gia rápida no Cookie. Sem problema. Quero dizer, eu tenho esse livro idiota. — Ela pegou o livro e jogou-o longe. Ele deslizou pelo piso de linóleo encerado.

Dahra respirou fundo várias vezes. A menininha, Ashley, estava chorando. Maria olhava para Dahra como se ela tivesse enlouquecido. Cookie estava alternando entre gritar pedindo comprimidos e chorar dizendo que precisava mijar.

C'dar mer mão — disse Bette. Ela agarrou o braço de Maria.

Mer mão inh.

O rosto de Bette se contorceu de dor. E então suas feições se rela­xaram.

Bette — disse Dahra.

Bette. Ah... não faça isso, Bette.

Bette — sussurrou Dahra.

Em seguida, pôs dois dedos no pescoço de Bette.

O que ela disse? — perguntou Elwood. Maria respondeu:

Acho que estava pedindo para a gente cuidar do irmão dela.

Dahra levantou os dedos do pescoço de Bette. Acariciou uma vez o rosto da menina, uma despedida demorada.

Ela... — Maria não conseguiu terminar a pergunta.

É — sussurrou Dahra. — Provavelmente estava sangrando den­tro da cabeça, não só do lado de fora. Quem bateu na cabeça dela, matou-a. Elwood, vá procurar o Edilio no posto dos bombeiros. Diga que precisamos enterrar Bette.

Ela está com Deus agora — disse Maria.

Não sei se existe Deus no LGAR — respondeu Dahra.

Enterraram Bette perto da garotinha incendiária, na praça, à uma da madrugada. Não havia lugar para manter os corpos, e nenhum modo de prepará-los para a sepultura.

Edilio abriu a cova com a retro-escavadeira. O som da máquina, o esforço do motor, as sacudidas súbitas da pá, tudo parecia horrivel­mente alto e deslocado.

Sam estava ali, junto com Astrid e o Pequeno Pete; também esta­vam Maria, Albert, que veio do McDonald's, Elwood, representando Dahra, que teve de ficar com Cookie, e as gêmeas Anna e Emma. O irmãozinho de Bette, de 9 anos, também estava ali, soluçando abraça­do a Sam. Quinn optou por não comparecer.

Sam e Edilio haviam carregado o corpo de Bette pelos poucos me­tros desde o porão da igreja até a praça.

Não conseguiram pensar num modo gentil ou digno de baixar Bet­te na cova, por isso, no fim, apenas a rolaram para dentro. Ela fez o som de uma mochila largada.

A gente deveria dizer alguma coisa — sugeriu Anna. — Talvez coisas que a gente lembre sobre a Bette.

E fizeram isso, contando as poucas histórias que conseguiam recor­dar. Nenhum deles tinha sido amigo íntimo dela.

Astrid começou a rezar o Pai-Nosso.

Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome. — O Pequeno Pete rezou junto com ela. Mais palavras do que qualquer pessoa o tinha ouvido falar. Os outros, exceto Sam, acompanharam.

Então cada um jogou uma pá de terra sobre ela e recuou, enquanto Edilio usava a retro-escavadeira para terminar o serviço.

Amanhã vou fazer uma cruz para ela — disse Edilio, quando terminou.

Enquanto a cerimônia estava terminando, Ore e Howard aparece­ram, fantasmas na névoa, olhando. Ninguém falou com eles. Partiram depois de alguns minutos.

Eu não deveria ter deixado que ela fosse para casa — disse Sam a Astrid.

Você não é médico. Não havia como saber que ela estava com uma hemorragia interna. E, de qualquer modo, o que poderia ter fei­to? A questão é: o que vamos fazer agora?

O que você quer fazer?

Ore assassinou Bette — disse Astrid, categoricamente. — Talvez não tenha sido intencional, mas mesmo assim é assassinato.

É. Ele matou-a. E o que você quer fazer?

Pelo menos podemos exigir que alguma coisa seja feita com o Ore.

Exigir de quem? — Sam fechou o zíper da jaqueta. Estava frio. — Quer exigir justiça do Caine?

Pergunta retórica — comentou Astrid.

Isso significa que é uma pergunta que eu não devo esperar que você possa responder?

Astrid assentiu. Nenhum deles teve nada a dizer durante um tempo. Maria e as gêmeas, rebocando o irmão de Bette, voltaram para a creche.

Elwood disse, a ninguém em particular:

Não sei se Dahra vai conseguir agüentar a barra por muito mais tempo. — Depois ajeitou os ombros e marchou de volta para o hospital.

Edilio veio para perto de Sam e Astrid.

Isso não pode ser só uma coisa que aconteceu — disse ele. — Ouviram? Se nós deixarmos para lá, onde isso vai parar? As pessoas não podem espancar as outras a ponto de elas morrerem.

Você tem alguma sugestão? — perguntou Sam, com frieza.

Eu? Eu sou o cucaracha, lembra? Não sou daqui, nem conheço essas pessoas. Não sou a grande gênio nem sou o sujeito que tem um tal poder, cara. — Edilio chutou a terra com força, como se fosse al­guém que ele quisesse machucar. Parecia a ponto de dizer mais alguma coisa, mas mordeu o lábio, girou e foi embora.

Caine tem Drake e Ore, Panda e Chaz — disse Sam. — E ouvi dizer que o Martelo fez as pazes com ele. E talvez meia dúzia de outros caras.

Você tem medo deles? — perguntou Astrid.

Tenho, Astrid.

Certo — disse ela. — Mas você também tinha medo de entrar num prédio em chamas.

Você não está entendendo, né? — perguntou Sam, com raiva suficiente para fazer Astrid dar um passo atrás. — Sei o que você quer, certo? Sei o que você e um punhado de outras pessoas querem. Que­rem que eu seja o anti-Caine. Vocês não gostam de como ele está fazen­do as coisas e querem que eu o enfrente. Bom, vocês só não sabem de uma coisa: mesmo que pudesse fazer isso, eu não seria nem um pouco melhor do que ele.

Você está errado, Sam. Você é...

Sabe aquela noite em que usei o poder pela primeira vez? Quan­do machuquei meu padrasto? Como você acha que eu me senti?

Triste. Arrependido. — Astrid olhou para o rosto dele como se a resposta estivesse escrita ali. — Com medo, provavelmente.

  1. Tudo isso. E mais uma coisa. — Ele levantou a mão a centíme­tros do nariz dela e fechou os dedos formando um punho. — Também senti uma força, Astrid. Um barato. Pensei: ah, meu Deus, olha o poder que eu tenho. Olha o que posso fazer. Um barato enorme, louco.

O poder corrompe — disse Astrid, baixinho.

É — concordou Sam, sarcástico. — Já ouvi dizer.

O poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente. Esqueci quem disse isso.

Eu cometo muitos erros, Astrid. Não quero cometer mais esse. Não quero ser aquele cara. Não quero ser Caine. Quero... — Ele abriu os braços, um gesto de desamparo. — Só quero surfar.

Você não vai se corromper, Sam. Você não faria essas coisas. — Ele havia recuado. Ela diminuiu a distância.

Como você pode ter tanta certeza?

— Bom, por dois motivos. Primeiro, não é do seu caráter. Claro que você sentiu um barato com o poder. Depois empurrou isso para longe. Você não o agarrou; se afastou disso. Este é o motivo número um. Você é você, você não é Caine, Drake ou Ore.

Sam queria concordar, queria aceitar, mas sentia que sabia que não era assim.

Não tenha tanta certeza,

E o motivo número dois: você tem a mim.

— Tenho?

Tem.

Isso drenou a raiva e a frustração dele como se alguém tivesse pu­xado um tampão. Por um longo momento, Sam ficou perdido, olhando-a nos olhos. Ela estava muito perto. O coração dele mudou para um ritmo mais profundo, que vibrava em todo o corpo.

Havia apenas centímetros entre eles. Sam diminuiu a distância à metade e parou.

Não posso beijar você com seu irmão olhando — disse ele.

Astrid recuou, segurou o Pequeno Pete pelos ombros e virou-o para o outro lado.

E agora?

 

                         164 HORAS E 32 MINUTOS

ALBERT SAIU DA cerimônia fúnebre e atravessou a praça em direção ao McDonald's. Desejava ter alguém com quem conversar. Talvez, se acen­desse as luzes, alguém apareceria para comer um sanduíche muito tardio.

Mas o grupo de pessoas se dispersou antes que ele pudesse destran­car a porta da frente do McDonald's — seu McDonald's — e a praça ficou vazia e silenciosa, a não ser por um leve zumbido dos fios de eletricidade acima.

Albert ficou parado, com as chaves numa das mãos e seu boné do McDonald's na outra — tinha-o tirado por respeito pela morta — e deixou que um sentimento de tristeza e mau presságio o dominasse. Era uma pessoa naturalmente otimista, mas um funeral noturno para uma garota assassinada por valentões... não era algo que ajudava mui­to a melhorar o ânimo.

Albert havia gostado de ficar sozinho desde a chegada do LGAR. Preocupava-se com os irmãos e irmãs. Sentia falta da mãe. Mas, num instante, havia deixado de ser o mais novo de seis, o bode expiatório, a vítima, o garoto que trabalhava demais e não era apreciado, e se transformado numa pessoa responsável e respeitada naquela comuni­dade nova e estranha.

Nada disso mudava o fato de que, agora mesmo, com o cheiro de terra recém-revirada nas narinas e o cérebro inquieto, ele adoraria estar assistindo a um daqueles medonhos programas sobre crimes, que eram os prediletos de sua mãe, e pegando pipoca do pote no colo dela.

As grandes questões do LGAR — o quê, porquê e como — não incomodavam muito Albert. Ele era uma pessoa prática, e, de qual­quer modo, essas eram coisas para alguém como Astrid pensar. Quan­to aos acontecimentos desta noite — o assassinato de Bette —, eram para Sam, Caine e os outros caras resolverem.

O que preocupava Albert era algo totalmente diferente: ninguém estava trabalhando. Ninguém, a não ser Maria, Dahra e, ocasional­mente, Edilio. Todo mundo matava o tempo, andava à toa, brigava ou só ficava sentado, jogando videogame ou assistindo a DVDs. Todos eram como ratos vivendo numa casa abandonada: comiam o que en­contravam, faziam sujeira onde quisessem e deixavam as coisas mais bagunçadas e mais arruinadas do que haviam encontrado.

Isso não poderia continuar. Todo mundo estava simplesmente ma­tando o tempo. Mas se tudo que fizessem fosse matar o tempo, o tempo acabaria matando-os.

Albert acreditava nisso. Sabia disso. Mas não conseguia explicar a ninguém e fazer com que ouvissem. Não podia argumentar com a se­gurança consistente de Caine ou com o distanciamento intelectual de Astrid. Quando Albert falava, as pessoas não prestavam atenção como faziam com Sam.

Ele precisava das palavras de outra pessoa para explicar o que seus instintos diziam ser verdade.

Jogou as chaves no bolso e marchou pela rua com um passo decidi­do, que ecoava nas fachadas escuras. A coisa inteligente a fazer seria ir para casa, dormir algumas horas. Logo iria amanhecer. Mas ele não iria dormir, sabia disso. Sam, Caine, Astrid e Jack Computador tinham suas coisas a fazer, as coisas que sabiam, mas essa era uma coisa de Albert.

— Não podemos ser ratos — murmurou sozinho. — Temos de ser... — Mas mesmo tentando explicar a si mesmo, não sabia as pala­vras certas.

A biblioteca pública de Praia Perdida não era um lugar impressio­nante. Era uma construção empoeirada, escura, de teto baixo, cujo cheiro de mofo o acertou em cheio quando ele abriu a porta. Nunca havia entrado ali antes e ficou meio surpreso ao descobrir que estava destrancada, com as luzes fluorescentes ainda piscando e chiando.

Albert olhou em volta e riu.

Ninguém entra aqui desde o LGAR — disse para uma prateleira de livros de bolso amarelados.

Olhou na velha mesa de carvalho da bibliotecária. Nunca se sabia onde uma barra de chocolate estaria escondida. Encontrou uma lata de balas de hortelã. Pareciam estar ali havia um bom tempo, para se­rem dadas a crianças que nunca vinham.

Jogou uma na boca e começou a andar pelas estantes solitárias. Sabia que precisava entender alguma coisa, mas não sabia o quê. A maioria dos livros parecia ter estado ali, sem serem incomodados, des­de antes do seu nascimento.

Encontrou algumas enciclopédias — como a Wikipedia —, mas de papel e muito volumosas. Sentou-se no tapete puído e abriu o primeiro livro. Não sabia o que estava procurando, mas sabia por onde começar. Puxou o volume do "T" e procurou o verbete de "trabalho". Havia dois principais. Um tinha a ver com trabalho enquanto termo de física.

O outro falava de trabalho como "atividades necessárias para a sobrevivência da sociedade".

É — disse Albert. — É disso que estou falando.

Começou a ler. Pulou de um volume a outro, entendendo apenas parte do que lia, mas entendendo o suficiente para seguir para a pista seguinte, e depois outra. Era exatamente como seguir hiperlinks, só que mais devagar, e com mais levantadas.

"Trabalho" levou a "mão de obra" que levou a "produtividade", que levou a alguém chamado "Karl Marx", que levou a outro cara chamado "Adam Smith".

Albert nunca fora um estudante muito dedicado. Mas o que tinha aprendido na escola nunca importava muito pelo seu ponto de vista. Isso importava. Agora tudo importava.

Caiu lentamente no sono e acordou com um susto, sentindo olhos fixos observando-o.

Girou, saltou de pé e soltou um enorme suspiro de alívio ao ver que era só um gato. O gato era amarelo rajado, meio gordo, provavel­mente velho. Tinha uma coleira cor-de-rosa e uma medalha de latão em forma de coração. Portava-se com confiança total no meio do cor­redor. Espiou-o com seus olhos verdes. A cauda estremeceu.

— Oi, gatinho — disse Albert.

O gato desapareceu.

Sumiu.

Albert se encolheu chocado, o rosto subitamente chamejando de dor. O gato estava em cima dele, em seu rosto, cravando as garras como navalhas em sua cabeça. O gato chiou, com dentes parecendo agulhas, expostos por uma careta feroz a um milímetro dos olhos de Albert.

Albert gritou por socorro, gritou para o gato. O gato cravou as garras com mais força. Albert ainda tinha um volume da enciclopédia na mão direita — o do "S". Bateu-o com força na própria cabeça.

O gato havia sumido. O livro acertou-o, deixando-o tonto.

E agora o gato estava do outro lado da sala, sentado calmamente em cima da mesa da bibliotecária.

Era impossível. Nada se movia tão depressa. Nada.

Albert respirou trêmulo e começou a recuar em direção à porta da rua.

Sem qualquer movimento que os olhos de Albert pudessem detec­tar, o gato foi da mesa para a nuca de Albert. Estava em cima dele como uma coisa louca, gadanhando, arranhando, rasgando, sibilando.

Mais uma vez Albert golpeou com o livro pesado, e de novo o gol­pe acertou sua própria carne, porque o gato estava empoleirado numa estante de livros, espiando Albert, zombando dele com desprezo nos olhos verdes.

Iria atacá-lo de novo.

O instinto fez Albert girar o livro para proteger o rosto.

Sentiu o livro pular violentamente nas mãos.

A cara do gato, distorcida pela fúria, estava a um centímetro do rosto de Albert.

Mas o livro continuava no lugar.

E o gato estava no livro.

Não, através do livro.

Albert olhou chocado, enquanto os olhos do gato escureciam, e sua alma animal ia embora.

Largou a enciclopédia no chão.

O livro, o pesado volume encadernado em couro, dividia o gato logo atrás das patas dianteiras. Era como se alguém tivesse cortado o gato ao meio e o costurado ao livro em dois pedaços. A parte de trás do gato se projetava da contracapa.

Albert estava ofegando, tanto de terror quanto do esforço. Aquela coisa no chão... aquela coisa não era possível. O modo como o gato havia se mexido não era possível.

— Pesadelo. Você está tendo um pesadelo — disse a si mesmo.

Mas, se era um sonho, era um sonho com um bocado de complexi­dade. Certamente ele não sonharia com o cheiro de mofo. Certamen­te não sonharia com o modo como a bexiga e as entranhas do gato haviam se esvaziado numa sujeira no momento da morte.

Albert se lembrou de ter visto a grande bolsa a tiracolo da bibliote­cária sobre a mesa. Com mãos trêmulas, esvaziou o conteúdo: batom, carteira, pó compacto, um celular, tudo espalhado.

Pegou a enciclopédia. Era pesada. O peso do gato acrescentado ao livro devia ser de uns 10 quilos. E o gato-livro era volumoso, grande demais para caber com facilidade na bolsa.

Mas precisava mostrar aquilo a alguém. Era uma coisa impossível. Impossível. Só que era real. Albert precisava de mais alguém para lhe dizer que aquilo era real, alguém para confirmar que ele não estava sonhando, nem ficando louco.

Caine, não. Sam? Devia estar no posto de bombeiros, mas esta não era uma coisa para o Sam, era uma coisa para Astrid. Dois minutos depois, estava na varanda iluminada de Astrid.

Astrid abriu a porta cautelosamente, só depois de espiar pelo olho mágico.

Albert? É tarde da... Ah, meu Deus, o que aconteceu com o seu rosto?

Seria bom ter uns Band-Aids — disse Albert. Havia esquecido como devia estar sua aparência. Havia esquecido a dor. — É. Seria bom ter alguma ajuda. Mas não é por isso que vim aqui.

Então...

Astrid, eu preciso... —Mas as palavras não vieram. Agora, seguro na porta da casa de Astrid, o medo o dominou e por um minuto ele simplesmente não conseguia formar uma palavra nem fazer algum som.

Astrid puxou-o para dentro e fechou a porta.

Eu preciso... — começou de novo, e de novo não pôde falar mais. Numa voz estrangulada, disse:

Só olhe.

Largou o gato-livro no tapete persa.

Astrid ficou completamente imóvel.

Ele era rápido demais. Me atacou. Nem conseguia ver ele se mexer. Era tipo... ele estava num lugar, certo? E depois estava em cima de mim. Quero dizer, ele não pulava, Astrid. Só... aparecia.

Astrid se ajoelhou para empurrar o livro cautelosamente. Tentou fazer o livro se abrir, mas o corpo do gato atravessava todas as páginas e as mantinha juntas. Não era como se o gato tivesse feito um buraco no livro: era como se o gato tivesse se fundido ao papel.

O que foi isso, Astrid? — implorou Albert.

Ela não disse nada, apenas ficou olhando. Albert podia praticamen­te ver as engrenagens rodando no cérebro de Astrid. Mas ela não lhe deu resposta e, depois de um tempo, Albert aceitou que a resposta não viria. Nenhuma explicação era possível para uma coisa que não podia acontecer.

Mas ela vira a coisa, a coisa impossível. Ele não estava maluco.

Depois do que pareceu um longo tempo, Astrid sussurrou:

Venha, Albert, vamos fazer alguma coisa com esses arranhões.

Lana estava deitada na escuridão da cabana, ouvindo os sons misteriosos do deserto lá fora. Algo fez um som fraco, escorregadio, como a mão de alguém acariciando seda. Outra coisa emitiu rápidos estouros percussivos, um minúsculo inseto tocador de tambor, que diminuiu a velocidade depois de alguns segundos, parou e ficou em silêncio antes de recomeçar.

O moinho de vento guinchava tanto, que parecia estar com raiva. Nunca por muito tempo, nunca com qualquer padrão. Não havia uma brisa de verdade, apenas sussurros que giravam as gastas pás de madei­ra num quarto de volta... um guincho... ou meia-volta... um guincho, outro guincho... ou mal as cutucava, produzindo um som como o pio agudo de um filhote de passarinho.

Junto com tudo isso havia o ronco tranqüilizador de Patrick. Ele roncava, parava e roncava de novo, e, de vez em quando, soltava um latido baixinho que Lana achava fofo.

O corpo de Lana estava bem. Os ferimentos haviam sido curados milagrosamente. Ela havia lavado as crostas de sangue. Tinha água, comida e abrigo.

Mas o cérebro de Lana era um motor ligado em velocidade espan­tosa. Girava e girava em redemoinhos, através das lembranças de dor, de terror, vislumbres do banco do avô vazio, a queda pela encosta, os urubus, o leão da montanha.

Mas, por mais que fossem terríveis, essas imagens eram apenas como tinta fresca passada sobre imagens mais permanentes. As que permaneciam eram de sua casa. Da escola. Do shopping. O carro de seu pai e a van da mãe. A piscina comunitária. A fantástica e excitante silhueta da avenida principal de Las Vegas, visível da janela de seu quarto.

Tudo junto, as imagens borbulhando e borbulhando em sua cabeça, alimentavam uma fúria que queimava devagar.

Ela deveria estar em casa, e não ali. Deveria estar em seu quarto. Deveria estar com seus amigos. Não sozinha.

Não sozinha, ouvindo barulhos fantasmagóricos, guinchos e roncos.

Se tivesse tido um pouco mais de cuidado... Tinha tentado escon­der a garrafa de vodca em sua bolsa a tiracolo, a bonitinha, com con­tas, da qual gostava. A bolsa era pequena demais, mas a única de tama­nho suficiente era a dos livros e ela não queria levá-la porque não combinava com a roupa.

Por isso havia sido apanhada. Por uma questão idiota de moda, por querer ficar bonita.

E agora...

Um maremoto de fúria contra sua mãe varreu-a. Era como se fosse se afogar naquela fúria.

A culpa era de sua mãe. O pai só fazia o que a mãe mandava. Ele tinha de apoiá-la, mesmo sendo o mais legal, não tão rígido ou enxerido quanto sua mãe.

Qual era o grande problema se ela ia dar uma garrafa de vodca a Tony? Ele não iria dirigir, mesmo.

A mãe de Lana simplesmente não entendia Las Vegas. Vegas não era como Praia Perdida. Havia pressões sobre ela em Las Vegas. Era uma metrópole, e não uma cidade, e não era qualquer cidade. A garotada crescia mais depressa em Vegas. Exigências eram feitas, mesmo para gen­te do sétimo ano, do oitavo, quanto mais do nono como no caso dela.

Sua mãe idiota. A culpa era toda dela.

Embora fosse meio forçado culpar a mãe pela parede vazia e intimidante no deserto. Era meio difícil culpá-la por isso.

Talvez fosse coisa de alienígenas e agora mesmo houvesse uns monstros arrepiantes perseguindo sua mãe e seu pai pelas ruas de Las Vegas, como naquele filme Guerra dos mundos. Talvez.

Lana achou esse pensamento estranhamente reconfortante. Afinal de contas, pelo menos ela não estava sendo perseguida por alienígenas em tripés gigantescos. Talvez a parede fosse algum tipo de defesa con­tra os alienígenas. Talvez ela estivesse segura deste lado da parede.

A garrafa de vodca não havia sido a única coisa que ela havia afa­nado para o Tony. Lana tinha apanhado um pouco do Xanax da mãe para ele. E tinha roubado uma garrafa de vinho numa loja de conve­niência, uma vez.

Não era ingênua. Nunca pensou que Tony a amasse ou algo assim. Sabia que ele a estava usando. Mas ela o estava usando também, ao seu modo. Tony tinha algum status na escola, e parte desse status havia se transferido para ela.

Patrick fungou e levantou a cabeça de repente.

O que foi, garoto?

Ela rolou da cama estreita e se agachou, quieta e com medo, na cabana escura.

Havia alguma coisa lá fora. Podia ouvi-la se mexendo. Sons baixos de pés almofadados no chão.

Patrick se levantou, mas de um modo estranho, em câmera lenta. Os pelos no pescoço e nas costas estavam ficando eriçados. Ele olhava atentamente para a porta.

Houve um som raspado, exatamente como um cão faria, tentando entrar.

E então Lana ouviu, ou pensou ter ouvido, um sussurro distorcido.

Saia.

Patrick deveria estar latindo, mas não estava. Estava rígido, ofegando demais, olhando muito fixamente.

— Você só está imaginando coisas — sussurrou Lana, tentando se tranqüilizar.

Saia — repetiu o sussurro grave.

Lana descobriu que precisava fazer xixi. Precisava muito mesmo, e não havia nada parecido com um banheiro na cabana.

Tem alguém aí fora? — gritou.

Não houve resposta. Talvez fosse apenas sua imaginação. Talvez fosse só o vento.

Esgueirou-se até a porta e prestou atenção. Nada. Olhou para Pa­trick. Seu cão ainda estava com os pelos eriçados, mas tinha relaxado um pouco. A ameaça, seja lá o que fosse, havia se afastado.

Lana abriu uma fresta na porta. Nada. Pelo menos nada que pudes­se ver. E Patrick definitivamente não estava mais preocupado.

Não tinha escolha: precisava correr até o banheiro e ele ficava lá fora. Patrick foi saltitando ao seu lado.

O banheiro era uma simples caixa vertical, sem enfeites, não exata­mente fedorenta e bastante limpa. Não havia luz, claro, por isso ela precisou tatear, localizar o assento e o papel higiênico.

Num determinado ponto, começou a rir. Afinal de contas, era meio engraçado fazer xixi num banheiro no meio do nada com seu cachor­ro montando guarda.

A caminhada de volta à cabana foi um pouco mais tranqüila. Lana se demorou um momento olhando o céu noturno. As estrelas... bem, as estrelas pareciam estranhas. Mas ela não sabia bem por que achava isso.

Voltou a caminhar para a cabana e se imobilizou. Entre ela e a por­ta da frente havia um coiote. Mas não era como os coiotes que seu avô lhe havia mostrado de longe. Nenhum daqueles era nem de longe tão grande quanto Patrick. Mas este animal peludo e amarelado era do tamanho de um lobo.

Patrick não tinha visto nem ouvido o animal se aproximar, e ago­ra parecia quase chocado demais para reagir. Patrick, que havia sal­tado para lutar com um leão da montanha, agora parecia covarde e inseguro.

O avô de Lana havia feito sermões sobre os animais do deserto: o coiote devia ser respeitado, mas não temido; os lagartos espantavam a gente com súbitas explosões de velocidade; os cervos mais se pareciam com ratos gigantes do que com o Bambi; os burros selvagens eram tão diferentes de seus irmãos domesticados; e as cascavéis, não eram ameaça desde que você usasse botas e ficasse de olhos abertos.

Xô — gritou Lana, e balançou as mãos como seu avô havia en­sinado, para o caso de chegar perto demais de um coiote.

O coiote não se mexeu.

Em vez disso, emitiu um som agudo que fez Lana saltar para trás. Com o canto do olho, viu formas escuras correndo em sua direção, três ou quatro, e eram rápidas.

Agora Patrick reagiu. Rosnou ameaçadoramente, mostrou os den­tes e eriçou os pelos da nuca, mas o coiote não se mexeu, e seus com­panheiros estavam se aproximando depressa.

Tinham dito a Lana que os coiotes não eram perigosos para os hu­manos, mas agora não havia como acreditar nisso. Desviou-se para a direita, esperando enganar o coiote, mas o animal era rápido demais para ser iludido.

Patrick, pega! — instigou, impotente.

Mas Patrick não faria mais do que rosnar e fazer cena, e em segun­dos os outros coiotes chegariam, e então... bom, quem sabia o quê?

Lana não tinha escolha: precisava chegar à cabana. Tinha de chegar à cabana para não morrer.

Gritou o mais alto que pôde e correu direto para o coiote que esta­va no seu caminho.

O animal encolheu-se, surpreso.

Houve um clarão de algo pequeno e escuro, e o coiote gritou de dor.

Lana passou por ele num segundo. Dez passos até a porta da caba­na. Dez, nove, oito, sete, seis...

Patrick correu à sua frente, em pânico, e disparou para dentro.

Lana estava logo atrás, girou e fechou a porta sem ao menos dimi­nuir a velocidade. Deslizou até parar, virou-se, correu de volta à porta e se jogou contra ela.

Mas os coiotes não a perseguiram. Tinham outros problemas. Ela ouviu ganidos loucos, gritos caninos de dor e fúria.

Depois de um tempo, os ganidos ficaram mais lentos, mais baixos e finalmente pararam. Outro coiote começou com uivos loucos, uivos para a lua.

Depois silêncio.

De manhã, com o sol claro e os terrores da noite banidos, Lana encontrou o coiote morto a 30 metros da porta. Ainda presa em seu focinho havia uma cobra com cabeça grande em forma de losango. O corpo dela fora mastigado e cortado ao meio, mas não antes que o veneno penetrasse no sangue do coiote.

Olhou por longo tempo para a cabeça da cobra. Era uma cobra, sem qualquer dúvida, no entanto tinha certeza de que a vira voar.

Lana tirou isso da mente. E junto descartou o sussurro que tinha ou­vido, porque cobras voadoras e coiotes que sussurravam e eram do tama­nho de cães dinamarqueses, bem, nada disso era possível. Havia uma palavra para pessoas que acreditavam em coisas impossíveis: malucas.

— Acho que o vovô não era um grande especialista na vida selva­gem do deserto, afinal de contas — disse a Patrick.

 

                            132 HORAS E 46 MINUTOS

— VOCÊ PODE NÃO gostar do cara, mas ele está fazendo coisas óti­mas. — Quinn estava preparado para bater à porta da terceira casa aonde iam naquela manhã. Sam, Quinn e uma garota da Coates, cha­mada Brooke, eram a "equipe de busca número três".

Era o oitavo dia do LGAR. O quinto desde que Caine havia apare­cido e assumido o controle.

O segundo dia desde que Sam havia beijado Astrid ao lado de uma sepultura recém-cavada.

Caine tinha organizado dez equipes de busca para percorrer a cida­de, cada uma cobrindo um quarteirão, para começar. A idéia era en­trar em cada casa, em cada uma das quatro ruas que formavam o quarteirão. Deveriam garantir que estivessem desligados o fogão, o ar- condicionado, a TV e as luzes internas, e que as da varanda estivessem acesas. Deveriam desligar os sistemas de irrigação automáticos e os aquecedores de água.

Se não conseguissem fazer alguma dessas coisas, acrescentariam a uma lista para o Edilio verificar. Edilio sempre parecia capaz de resol­ver coisas mecânicas. Estava andando por Praia Perdida com um cinto de ferramentas e dois garotos da Coates como "ajudantes".

As equipes de busca também deveriam procurar crianças perdidas, bebês que podiam ter sido deixados para trás, que podiam estar presos em seus berços. E animais de estimação também.

Em cada casa faziam uma lista de qualquer coisa útil, como compu­tadores, e de qualquer coisa perigosa, como armas ou drogas. Deve­riam anotar quanta comida havia e coletar todos os remédios para serem mandados a Dahra. Fraldas e leite em pó iam para a creche.

Era um bom plano. Era uma boa idéia.

Caine tinha algumas idéias boas. Caine havia posto Jack Computa­dor montando um sistema de comunicação de emergência. Jack Com­putador teve a idéia de partir para o estilo antigo: tinha colocado rá­dios de ondas curtas na prefeitura, no posto de bombeiros, na creche e na casa abandonada que Drake usava com alguns de seus xerifes.

Mas Caine não fizera nada contra Ore.

Sam tinha ido até ele, exigindo alguma ação.

O que eu posso fazer? — perguntara Caine, em tom razoável. — Bette estava violando as regras, e Ore é um xerife. Foi uma tragédia para todos os envolvidos. Ore se sente muito mal.

Assim, Ore ainda percorria as ruas de Praia Perdida. Pelo que Sam sabia, o sangue de Bette ainda estava no bastão do sujeito. E agora o medo dos que eram chamados de xerifes fora multiplicado por dez.

Vamos acabar logo com isso — disse Sam. Ele não entraria numa discussão sobre Caine na frente de Brooke. Presumia que a garota de 10 anos fosse espiã. De qualquer modo, ele estava de péssimo humor, porque uma das casas que deveriam visitar mais tarde era a sua.

Quinn bateu. Tocou a campainha.

Nada. — Experimentou a porta. Estava trancada. — Traga a marreta — disse.

Cada equipe de busca tinha um carrinho, tirado da loja de ferra­mentas ou emprestado do quintal de alguém. Carregavam, no carri­nho, uma marreta pesada.

Eles haviam demorado duas horas para lidar com as duas primeiras casas. Passaria-se um bom tempo antes que cada casa de Praia Perdida tivesse sido revistada e considerada segura.

Quer fazer a parte da marreta? — perguntou Sam, cedendo a vez a Quinn.

Eu vivo para a marreta, brou.

Quinn sopesou a marreta e bateu-a contra a porta, logo abaixo da maçaneta. A madeira lascou e Quinn empurrou a porta para trás.

O cheiro os acertou com força.

Ah, cara, o que morreu aí dentro? — perguntou Quinn, em tom de piada.

Não foi engraçado.

Logo depois da porta, no piso de madeira, havia uma chupeta de bebê. Os três a olharam.

Não, não, não. Não posso fazer isso — disse Brooke.

Os três ficaram na varanda; ninguém queria entrar, mas ninguém queria fechar a porta e ir embora, tampouco.

As mãos de Brooke estavam tremendo tanto que Sam segurou-as.

Tudo bem — disse. — Você não precisa entrar.

Ela era gorducha, sardenta, com cabelo meio ruivo e seco como palha. Usava uniforme da Coates e parecera, até esse momento, quase uma nulidade. Nunca brincava nem fazia piadas, só fazia o que era necessário, seguindo o comando de Sam.

É só que, depois da Coates... — disse Brooke.

O que é que tem a Coates? — perguntou Sam.

Brooke ficou vermelha.

Nada. Só, você sabe, todos os adultos sumindo. — Então, sen­tindo que precisava explicar mais, disse: — É... tipo... não quero ver mais nada assustador, certo?

Sam lançou um olhar significativo para Quinn, mas Quinn apenas deu de ombros e disse:

Tem... tipo... uma criança morta aí dentro. Não precisamos en­trar para saber.

Sam gritou o mais alto que pôde:

Tem alguém aí dentro? — Depois, para Quinn: — Não podemos simplesmente ignorar isso.

Talvez a gente só devesse informar ao Caine — disse Quinn.

Não vejo o Caine andando de casa em casa — reagiu Sam, rispidamente. — Ele está sentado em cima do rabo e agindo como se fosse o imperador de Praia Perdida.

Vendo que ninguém engoliria a isca, Sam disse:

Mê dá um saco de lixo grande.

Quinn pegou um no carrinho.

Dez minutos depois, Sam havia terminado. Arrastou o saco com seu triste conteúdo pelo tapete, até a porta da frente. Levantou-o pe­los barbantes de amarrar e carregou-o até o carrinho.

E que nem levar o lixo para fora -— disse Sam a ninguém. Suas mãos estavam tremendo. Sentia tanta raiva que queria machucar al­guém. Sentia tanta raiva que, se pudesse pôr as mãos em quem causou tudo aquilo, teria esganado a pessoa.

Mas estava com raiva principalmente de si mesmo. Nunca havia conhecido muito bem essa família. Era a casa de uma mãe solteira, que recebia vários namorados. E do menininho. A família não era sua ami­ga, nem mesmo conhecida, mas mesmo assim ele deveria ter pensado em verificar o bebê. Esse devia ter sido seu primeiro pensamento. De­veria ter se lembrado, mas isso não aconteceu.

Sem olhar para Quinn e Brooke, disse:

Abram as janelas. Deixem entrar um pouco de ar aí dentro. Po­demos voltar quando não estiver tão... quando o cheiro tiver sumido.

Brou, eu não vou entrar aí — disse Quinn.

Sam chegou rapidamente perto dele. Vendo seu rosto, Quinn deu um passo atrás.

Eu peguei o bebê e o enfiei num saco de lixo, certo? Então entre aí e abra as janelas. Só faça o que estou dizendo.

Cara, você precisa realmente ficar frio. Eu não recebo ordens suas.

Não, você recebe ordens do Caine — disse Sam.

Quinn estendeu a mão, quase provocando.

Desculpe. Estou chateando você? Por que não queima minha mão até arrancá-la, garoto mágico?

Sam e Quinn tinham tido muitas discussões no correr dos anos. Mas, desde o início do LGAR, especialmente desde que Sam havia contado a Quinn a verdade a seu respeito, discordâncias simples ha­viam ficado rapidamente venenosas. Agora estavam se encarando de perto, como se fossem começar a trocar socos. Sam estava furioso o suficiente para isso.

Eu faço isso, Sam — disse Brooke.

Sam, com o rosto ainda a centímetros do de Quinn, disse:

Não quero que a coisa seja assim entre nós.

Quinn relaxou os músculos. Forçou um riso.

Não é grande coisa, brou.

Sam se virou para Brooke.

Abra as janelas. Depois vá dizer ao Edilio para cavar outro bu­raco. Eu vou pra minha casa. Seria bom se você pudesse empurrar o carrinho para o centro da cidade. Mas se não puder, eu entendo.

Sem outra palavra para Quinn, ele partiu, mas parou alguns passos depois.

Brooke, veja se consegue encontrar uma foto dele e da mãe, certo? Não quero que ele seja enterrado sozinho. Ele deveria ter...

Não conseguiu dizer mais nada. Com a vista turva por lágrimas inesperadas, seguiu pela rua e subiu os degraus de sua casa, a casa que ele odiava, e bateu a porta depois de entrar.

Demorou um tempo até notar que o laptop de sua mãe havia sumido.

Foi até a mesa. Tocou o tampo, bem onde o laptop estivera, como para se certificar de que não estava imaginando coisas.

Depois notou as gavetas abertas. Os armários abertos. A comida não tinha sido levada, só espalhada, uma parte indo parar no chão.

Correu para seu quarto. A luz ainda estava ali. Sua débil tentativa de camuflá-la havia sido destruída.

Alguém sabia. Alguém tinha visto.

Mas a coisa não parava aí. No quarto de sua mãe, as gavetas e o armário tinham sido saqueados.

Sua mãe mantinha uma caixa de metal cinza, chata, trancada den­tro do armário. Sam sabia disso porque ela a havia mostrado em mais de uma ocasião.

Se alguma coisa acontecer comigo, é aqui que meu testamento está. — Tinha dito ela, séria; mas depois continuou: — Você sabe, caso eu seja atropelada por um ônibus.

Não temos ônibus em Praia Perdida — observou ele.

Humm. Acho que isso explica por que eles nunca passam na hora — respondeu ela, depois riu e puxou-o para dar um abraço.

Enquanto o segurava, ela sussurrou:

Sam, sua certidão de nascimento também está ali.

Certo.

Você é que sabe se quer vê-la.

Ele havia se enrijecido no abraço. Ela estava oferecendo uma chan­ce de ele ver o que estava escrito em sua certidão. Haveria nomes: o de sua mãe e o do seu pai.

Talvez. Talvez não — disse ele.

Ela o apertou com força, mas ele se soltou gentilmente e ficou se­parado. Então quis dizer alguma coisa. Pedir desculpas pelo que acon­tecera com o Tom. Perguntar se também, de algum modo, havia feito seu pai verdadeiro fugir apavorado.

Mas sua vida tinha segredos. E mesmo que a mãe tivesse feito a oferta, Sam sabia que ela não queria que ele violasse o código de se­gredo.

Fazia meses que Sam sabia sobre a caixa. Sabia onde podia encon­trar a chave.

Agora a caixa havia sumido.

Tinha pouquíssima dúvida de quem a havia levado, quem havia revistado a casa.

A essa altura, Caine já sabia que Sam tinha o poder.

Pegou sua bicicleta. Nesse momento, queria desesperadamente es­tar com Astrid. Ela faria com que tudo fizesse sentido.

Agora a maioria do pessoal andava de bicicleta — nem sempre próprias — ou de skate. Só os pequenos caminhavam. E enquanto ele atravessava a praça até a casa de Astrid, havia uma procissão deles andando do outro lado da rua. O Irmão John estava na frente. Mãe Maria empurrava um carrinho de bebê de dois lugares. Uma garota com uniforme da Coates carregava um menininho no colo. Dois ou­tros garotos, convocados para aquele dia, arrebanhavam a fila de cer­ca de trinta pré-escolares. Pareciam solenes para um grupo de crian­ças, mas pelo menos havia algumas brincadeiras, o suficiente para fazer Maria gritar:

Julia e Zosia, voltem para a fila.

As gêmeas, Emma e Anna, fechavam a fila. Sam as conhecia bastan­te bem, já tendo saído uma vez com Anna. Emma estava com um car­rinho de bebê simples e Anna empurrava um carrinho da mercearia Ralph's cheio de salgadinhos, fraldas e mamadeiras.

Sam parou e esperou que eles atravessassem a rua. O grupo se man­tinha na faixa de pedestres, o que ele achou que era bom. Era melhor que os pequenos aprendessem a atravessar a rua como se pudesse ha­ver algum tráfego. Alguns dos maiores estavam dirigindo carros, fre­qüentemente com maus resultados. Agora Caine tinha regras para isso também: ninguém tinha permissão de dirigir, a não ser algumas pessoas do Caine e Edilio, que teoricamente podia ter de dirigir a ambu­lância ou o caminhão de bombeiros. Se descobrisse como.

E aí, Anna? — perguntou Sam, educadamente.

Oi, Sam. Onde você andou?

Ele deu de ombros.

No posto dos bombeiros. Meio que moro lá, agora.

Anna apontou para os pequenos que seguiam à sua frente.

Cuidando dos bebês.

Que saco, hein — disse Sam.

Tudo bem. Não me incomodo.

E ela é fantástica nisso — gritou Maria para trás, encorajando.

Consigo trocar uma fralda em menos de sessenta segundos — disse Anna, rindo. — Menos ainda, se for só xixi.

Aonde vocês vão?

A praia. Fazer um piquenique.

Maneiro. Vejo você mais tarde.

Anna acenou por cima do ombro enquanto passava.

Ei, deseje feliz aniversário a Anna e a mim, Sam — gritou Emma.

Parabéns para vocês duas.

Sam se levantou sobre os pedais da bicicleta e ganhou velocidade, indo para a casa de Astrid.

Sentiu-se meio triste pensando em seu único encontro com Anna. Era uma garota legal. Mas, na época, ele não estava muito interessado em namoro, na verdade. Tinha ido apenas porque achava que era ne­cessário. Não queria que o pessoal pensasse que ele era otário. E sua mãe vivia perguntando se ele ia sair com alguém, por isso Sam levou Anna ao cinema. E na verdade, se lembrava até do filme: Stardust, o mistério da estrela.

Sua mãe os havia levado. Era a noite de folga dela. Sua mãe os dei­xou no cinema e pegou-os depois. Ele e Anna tinham ido ao Califór­nia Pizza Kitchen e dividido uma pizza de frango na brasa.

Aniversário?

Sam fez a bicicleta dar uma volta brusca e pedalou de novo, voltan­do para onde havia passado pelas crianças. Não demorou muito a alcançá-las. Estavam chegando à praia, todos os menininhos e menininhas andando sem firmeza acima do baixo quebra-mar, rindo enquanto tiravam os sapatos e corriam para a areia, e Mãe Maria, parecendo uma professora, gritou:

Segurem os sapatos, não percam os sapatos. Alex, pegue seus sapatos e carregue.

Anna e Emma haviam estacionado o carrinho de compras cheio de salgadinhos, biscoitos, fraldas e mamadeiras. Emma estava tirando seu bebê do carrinho.

Verifique a fralda dele — lembrou Mãe Maria, e Emma fez isso.

Sam jogou a bicicleta no chão e correu ofegando até Anna.

O que há, Sam?

Que aniversário? — ofegou ele.

O quê?

Aniversário de quantos anos, Anna?

Demorou um tempo para ela absorver o medo dele. Demorou um tempo até que compreendesse o motivo do medo.

Quinze — disse Anna, num sussurro.

Qual é o problema? — perguntou Emma, sentindo o humor de sua gêmea. — Não quer dizer nada.

Não — sussurrou Anna.

Provavelmente você está certa — disse Sam.

Ah, meu Deus — ofegou Anna. — Nós vamos sumir?

Quando você nasceu? — perguntou Sam. — A que horas?

As gêmeas trocaram olhares de medo.

Não sabemos.

Sabe, ninguém sumiu desde aquele primeiro dia, de modo que provavelmente...

Emma desapareceu.

Anna gritou.

As outras crianças notaram, os pequenos também.

Ah, meu Deus! — gritou Anna. — Emma. Emma. Ah, meu Deus!

Ela agarrou as mãos de Sam e ele a segurou com força.

Alguns pequeninos captaram o medo. Mãe Maria se aproximou.

O que está acontecendo? Vocês assustaram as crianças. Cadê Emma?

Anna só ficava dizendo: "Ah, meu Deus", e chamando o nome da irmã.

Cadê Emma? — perguntou Maria de novo. — O que está acon­tecendo?

Sam não queria explicar. Anna estava machucando-o com a pressão dos dedos se cravando nas costas de suas mãos. Os olhos da menina estavam gigantescos, cavando buracos nele.

Com quanto tempo de diferença vocês nasceram? — perguntou Sam.

Anna apenas ficou olhando para ele, num terror vazio.

Sam baixou a voz para um sussurro urgente.

Com quanto tempo de diferença vocês nasceram, Anna?

Seis minutos — sussurrou. — Segure minhas mãos, Sam. — Não me solte.

Não vou soltar, Anna, não vou soltar você.

O que vai acontecer, Sam?

Não sei, Anna.

Nós vamos para onde nossos pais estão?

Não sei, Anna.

Eu vou morrer?

Não, Anna. Você não vai morrer.

Não me solte, Sam.

Agora Maria estava ali, com um bebê no colo. John estava ali. Os pequenos, alguns, olhavam com expressões sérias e preocupadas.

Não quero morrer — repetiu Anna. — Eu... não sei como é.

Tudo bem, Anna.

Anna sorriu.

Foi um encontro legal. Quando a gente saiu.

Foi.

Numa fração de segundo, foi como se Anna ficasse turva. Rápido demais para ser real. Ela ficou turva e Sam quase pôde jurar que ela havia sorrido para ele.

E seus dedos apertaram o nada.

Durante um tempo terrivelmente longo, ninguém se mexeu nem disse nada.

Os pequeninos não choraram. Os mais velhos apenas ficaram olhando.

As pontas dos dedos de Sam ainda se lembravam da sensação das mãos de Anna. Olhou para o lugar onde o rosto dela estivera. Ainda podia ver sua expressão desesperada.

Incapaz de se conter, estendeu a mão para o espaço que ela havia ocupado. Procurando um rosto que não estava mais ali.

Alguém soluçou.

Alguém gritou, outras vozes vieram em seguida, os pequenos co­meçaram a chorar.

Sam ficou nauseado. Quando seu professor havia sumido, ele não esperava. Desta vez, vira o que ia acontecer, como um monstro num pesadelo, em câmera lenta. Desta vez, ele vira a coisa chegando, como se estivesse enraizado nos trilhos do trem, incapaz de pular para o lado.

 

                     131 HORAS E 03 MINUTOS

— ACABOU DE ACONTECER — anunciou Drake.

Caine estava sentado em sua poltrona de couro grande demais, que pertencera ao prefeito de Praia Perdida. Ela o fazia parecer pequeno. Fa­zia-o parecer muito novo. E, para piorar a situação, ele estava roendo a unha do polegar, o que quase fazia parecer que estava chupando o dedo.

Diana estava no sofá, deitada lendo uma revista e mal prestando atenção.

O que aconteceu?

As duas garotas que você me mandou seguir. As duas deram o grande salto. Elas pufaram, como diz aquele idiota do Quinn.

Caine saltou de pé.

Como eu previ. Exatamente como falei. —- Caine não parecia feliz por estar certo. Veio de trás da mesa e, para grande deleite de Drake, arrancou a revista da mão de Diana e jogou-a longe. — Você acha que talvez pudesse prestar atenção?

Diana suspirou, sentou-se devagar e espanou um fiapo da blusa.

Não fique irritadinho da vida comigo, Caine — alertou. — Fui eu que disse que a gente precisava começar a coletar certidões de nas­cimento.

Drake arranjara tempo para verificar a ficha psicológica de Diana no dia seguinte ao início do LGAR. Mas sua ficha havia sumido. No lugar, ela deixara a ficha de Drake aberta na mesa do doutor e dese­nhado uma carinha sorridente ao lado da palavra "sádico".

Drake já a odiava. Mas, depois disso, odiar Diana se tornou uma ocupação de tempo integral.

Para desgosto de Drake, Caine aceitou a resposta de Diana.

É. Foi boa idéia — disse Caine. — Muito boa idéia.

Sam, o garoto de Diana, estava lá — observou Drake.

Diana não reagiu à provocação.

Ele estava segurando a mão de uma das garotas quando ela su­miu — acrescentou Drake. — Olhando bem nos olhos dela. Veja bem, a primeira garota sumiu, e nesse ponto todos sabiam o que ia aconte­cer. A segunda ficou chorando por causa disso. Eu estava muito longe para ouvir o que ela disse, mas dava para ver que estava abrindo o maior berreiro.

Sadismo — disse Diana. — Desfrutar da dor de outro.

Drake esticou seu riso de tubarão.

Palavras não me amedrontam.

Você não seria um psicopata se isso acontecesse, Drake.

Parem com isso, vocês dois — disse Caine. Em seguida, se dei­xou cair de volta na cadeira grande demais e começou a roer a unha de novo. — Estamos em 17 de novembro. Tenho cinco dias para des­cobrir como vencer isso.

Cinco dias — ecoou Drake.

Não sei o que a gente faria se você sumisse, Caine — disse Drake. Em seguida, lançou um olhar para Diana dizendo que sabia exatamente o que faria caso Caine não estivesse mais por perto.

Jack Computador entrou num rompante na sala, com seu jeito agi­tado e os olhos arregalados de sempre, carregando um laptop aberto.

O que é? — rosnou Caine.

Consegui entrar — disse Jack Computador, com orgulho. Quan­do recebeu olhares vazios em resposta, disse: — O laptop da enfer­meira Temple.

Caine não pareceu empolgado.

O quê? Ah, ótimo. Tenho problemas maiores. Dê à Diana. E saia.

Jack Computador entregou o laptop a Diana e saiu rapidamente da sala.

Vermezinho medroso, não é? — disse Drake.

Não mexa com ele. Ele é útil — alertou Caine. — Drake. O que você viu exatamente quando a garota... partiu?

A primeira eu não estava olhando direto quando aconteceu. Na segunda, fiquei de olho. Num minuto estava ali, no outro já era.

—À1hl7?

Drake deu de ombros.

—- Por aí, perto disso, acho.

Caine bateu com a mão na mesa.

Não quero perto, seu idiota — gritou ele. — Estou tentando descobrir o que é isso. Sabe, não sou só eu, Drake. Todos nós ficamos mais velhos. Você vai chegar lá um dia, esperando para desaparecer.

Doze de abril, só um minuto depois da meia-noite, Drake — disse Diana. — Não que eu tenha memorizado o dia exato, a hora e o minuto ou... — Ela ficou em silêncio, lendo a tela do computador.

O que foi? — perguntou Caine.

Diana o ignorou, mas estava claro que havia encontrado algo de grande interesse no diário de Connie Temple. Diana se levantou com graça ágil, felina, e abriu o armário do arquivo. Pegou uma caixa de metal cinza e colocou-a quase com reverência na mesa de Caine.

Ninguém abriu ainda? — perguntou ela.

Eu estava mais interessado no computador da enfermeira Tem­ple — disse Caine. — Por quê?

Seja útil, Drake — ordenou Diana. — Quebre essa fechadura. Drake pegou uma espátula de cartas, enfiou a lâmina na fechadura

barata e torceu. A fechadura se partiu. Diana abriu a caixa.

Isto parece um testamento. E, ah, isso é interessante. Um recor­te de jornal sobre o negócio do ônibus escolar, de que ouvimos falar. E... aqui está.

Ela estendeu uma pasta de plástico que protegia uma certidão de nascimento impressa elaboradamente. Olhou-a e começou a garga­lhar.

Já chega, Diana — alertou Caine. Em seguida, pulou e arrancou a certidão da mão dela. Olhou o papel, franzindo a testa. Depois sen­tou-se com força, como se fosse uma marionete e alguém tivesse cor­tado os fios.

Vinte e dois de novembro — disse Diana, rindo com desprezo.

Coincidência — reagiu Caine.

Ele é três minutos mais velho do que você.

É coincidência. Nós não somos parecidos.

Qual é a palavra para gêmeos não idênticos? — Diana pôs o dedo na boca, uma paródia de pensamento profundo. — Ah, sim, gê­meos fraternos. Mesmo útero, mesmos pais, óvulos diferentes.

Caine parecia a ponto de desmaiar. Drake nunca o vira assim.

É impossível.

Nenhum de vocês conhece o pai de verdade — disse Diana. Agora ela estava bancando a boazinha, o mais próximo da simpatia que jamais conseguira parecer. — E quantas vezes você me disse que não se parece nem um pouco com seus pais, Caine?

Não faz sentido — ofegou Caine. Em seguida estendeu a mão para a de Diana e, depois de hesitar por um segundo, ela o deixou pegá-la.

Do que vocês dois estão falando? — perguntou Drake. Ele não gostava de ser a única pessoa que não entendia a piada. Mas os dois o ignoraram.

Isso está no diário também — disse Diana. — A enfermeira Tem­ple sabia que você era mutante. Suspeitava de que você possuía algum tipo de poder impossível, e obviamente também estava sacando alguns dos outros. Suspeitava que você havia causado meia dúzia de ferimen­tos que ninguém conseguia descobrir a causa. Drake soltou uma gargalhada, entendendo.

Está dizendo que a enfermeira Temple era mãe do Caine? O rosto de Caine queimou de raiva súbita.

Cala a boca, Drake.

Dois menininhos nascidos em 22 de novembro — disse Diana.

Um fica com a mãe. Um é levado para longe, adotado por outra família.

Ela era sua mãe, deu você para outra pessoa e ficou com o Sam?

disse Drake, rindo e desfrutando da humilhação de Caine. Caine girou a cadeira para longe de Diana e estendeu as mãos, com as palmas na direção de Drake.

Grande erro — disse Diana, mas não estava claro se se referia a Drake ou a Caine.

Algo acertou o peito de Drake. Foi como ser atropelado por um caminhão. Ele foi levantado e jogado contra a parede. Bateu contra duas gravuras emolduradas e caiu desajeitado no chão.

Obrigou-se a ficar frio. Queria partir para cima de Caine, acabar com ele depressa, antes que aquela aberração pudesse acertá-lo de novo. Mas Caine estava ali, em cima dele, o rosto vermelho, dentes à mostra, parecendo um cão louco.

Lembre-se de quem é o chefe, Drake — disse Caine, a voz grave, gutural, como se viesse de um bicho.

Drake assentiu, vencido. Pelo menos por enquanto.

Levante-se — ordenou Caine. — Temos trabalho a fazer.

Astrid estava na varanda da frente com Pete. Era o melhor lugar para pegar um pouco de sol. Estava sentada na grande cadeira de balanço de vime, com os pés apoiados no corrimão. As pernas nuas eram branquíssimas ao sol. Ela sempre fora clara e nunca o tipo de pessoa que é obcecada por um bronzeado, mas hoje estava sentindo necessidade de sol. Dias com o Pequeno Pete tendiam a ser passados dentro de casa e, depois de uns dois assim, a casa estava virando uma prisão.

Imaginou se era desse modo que sua mãe se sentia. Será que isso explicava por que a mãe tinha mudado, e em vez de passar cada dia e cada noite se dedicando ao Pequeno Pete, começara a aproveitar qual­quer desculpa para largá-lo com o primeiro que aceitasse?

A rua em que Astrid morava havia se alterado de maneira discreta depois do LGAR. Carros parados, jamais se movendo. Nunca havia tráfego. Todos os gramados estavam ficando altos demais. As flores que o Sr. Massilio, duas casas adiante, mantinha sempre lindas, esta­vam murchando por falta de cuidados. As bandeirolas em algumas caixas de correio estavam levantadas, esperando por um carteiro que nunca viria. Havia um guarda-chuva aberto sendo soprado preguiçosamente pela rua, movendo-se um ou dois centímetros de cada vez. A umas duas casas de distância, um animal selvagem, ou talvez apenas um bichinho de estimação faminto, tinha virado a lata de lixo e espa­lhado cascas de banana pretas, jornais encharcados e ossos de frango na calçada.

Astrid viu Sam pedalando furiosamente em sua bicicleta. Ele havia dito que viria para levá-la à mercearia, e ela estivera esperando com uma mistura desconfortável de emoções. Queria vê-lo. E estava nervo­sa com isso.

O beijo fora definitivamente um erro.

A não ser que não tivesse sido.

Sam jogou a bicicleta no gramado e subiu os degraus.

Oi, Sam. — Estava óbvio que ele estava perturbado. Astrid bai­xou as pernas e sentou-se inclinada para a frente.

Anna e Emma acabaram de pufar.

O quê?

Eu estava junto. Estava olhando. Estava segurando as mãos de Anna quando aconteceu.

Astrid se levantou e, sem pensar de verdade, envolveu Sam com os braços, como fazia quando tentava consolar o Pequeno Pete.

Mas, diferentemente do Pequeno Pete, Sam reagiu ao toque, abraçando-a de volta, sem jeito. Por um momento, o rosto dele estava no cabelo dela, e ela ouviu sua respiração entrecortada perto do ouvido. E parecia que poderiam fazer de novo, aquela coisa do beijo, mas en­tão, ao mesmo tempo, os dois se afastaram.

Ela estava apavorada — disse Sam. — Anna. Ela viu Emma de­saparecer. As duas nasceram com diferença de seis minutos. Então primeiro foi Emma. Depois Anna, esperando acontecer. Sabendo que aquilo viria.

Que horrível! Entre, Sam. — Ela olhou para o irmão. Ele estava brincando com seu jogo, como sempre.

Astrid levou Sam à cozinha e serviu-lhe um copo d'água. Ele bebeu metade num gole só.

Eu tenho cinco dias — queixou-se Sam. — Cinco. Dias. Nem ao menos uma semana.

Você não tem certeza.

Não, é? Nem vem com essa. Não me conte nenhuma historinha dizendo que tudo vai ficar bem. Não vai.

Certo — disse Astrid. — Você está certo. De algum modo, os 15 anos são uma linha, e quando você chega lá, pufa.

Essa confirmação pareceu acalmá-lo. Ele simplesmente precisara de que a verdade fosse posta às claras, sem evasões. Ocorreu a Astrid que esse era um modo de ajudar Sam, não apenas agora, mas no futu­ro. Se eles tivessem um futuro.

Eu estava evitando. Não pensava nisso. Meio que tinha me con­vencido de que não iria acontecer. — Ele conseguiu dar um riso torto, parecia que principalmente para despreocupá-la. Podia ver seu pró­prio medo refletido nela e agora estava tentando encobri-lo. — Do lado positivo, parece que não temos de nos preocupar em saber como o Dia de Ação de Graças vai ser deprimente aqui no LGAR.

Pode haver um meio de vencer isso — disse Astrid, com cautela.

Ele olhou-a com esperança, como se ela talvez tivesse uma respos­ta. Ela balançou a cabeça, por isso ele disse:

Ninguém nem mesmo procurou uma saída do LGAR. Talvez haja um modo de escapar daqui. Pelo que sabemos, pode haver um portão grande, escancarado, na barreira. Talvez no mar. Talvez no deserto ou no parque nacional. Ninguém nem olhou.

Astrid resistiu à ânsia de rotular esse sentimento como "agarrar-se a esperanças fúteis".

Em vez disso, falou:

Se houvesse um modo de sair, haveria um modo de entrar. E o mundo inteiro deve saber o que aconteceu. Praia Perdida, a usina nu­clear, a auto-estrada bloqueada subitamente. O mundo não pode dei­xar de ter notado. E eles têm mais pessoal e mais recursos do que nós. Devem ter metade dos cientistas do mundo trabalhando nisso. Mas ainda estamos aqui.

Eu sei. Sei tudo isso. — Agora ele estava mais calmo e sentou-se num dos bancos altos junto à bancada da cozinha. Passou a mão sobre a lisa superfície de granito como se gostasse da frieza da pedra. — An­dei pensando, Astrid. Que tal um ovo?

Ah. Não tem ovos aqui.

Não, quero dizer, pense num ovo. O pintinho abre caminho quebrando a casca do ovo, não é? Mas se você tentar quebrar o ovo de fora para dentro, ele se despedaça. — Sam fez um gesto de esmagamento com os dedos, para ilustrar. Quando ela não respondeu, ele se encolheu e disse: — Fez todo o sentido quando eu estava pensando.

Na verdade, faz um certo sentido — disse ela.

Sam ficou claramente pasmo. Seus olhos piscaram de um modo que agradou a Astrid, e ele deu um sorriso torto.

Você parece surpresa — disse.

Estou, um pouco. Talvez essa seja uma analogia perspicaz.

Você só está dizendo "analogia perspicaz" para me lembrar de que é mais inteligente do que eu — provocou ele.

Os olhares dos dois se encontraram. Depois ambos olharam para o lado, sorrindo sem graça.

Não me arrependo, sabia? — disse ele. — Quero dizer, foi na hora errada, lugar errado e coisa e tal, mas não me arrependo.

Quer dizer...

É.

Nem eu — respondeu Astrid. — Bom, foi o meu primeiro. Que­ro dizer, se não contar quando beijei Alfredo Slavin no primeiro ano.

Seu primeiro beijo?

Bom. É. E você?

Ele balançou a cabeça e se encolheu, lamentando. Depois disse:

Mas foi o primeiro de verdade.

Um silêncio confortável baixou entre os dois.

Depois Astrid disse:

Sam, o negócio da casca do ovo: o que você está dizendo é que, se as pessoas de fora tentarem penetrar na barreira, isso pode ser pe­rigoso para nós. E as pessoas lá fora podem ter deduzido isso. Talvez só nós possamos quebrar a barreira com segurança e sair. Talvez o mundo inteiro esteja esperando, olhando, esperando que a gente des­cubra como quebrar o ovo. — Ela abriu o armário no alto e pegou um saco de biscoitos pela metade. Colocou na bancada e pegou um. — É uma boa teoria, mas você percebe que ainda não é provável.

Eu sei. Mas não quero ficar aqui sentado, esperando o relógio andar, se houver um modo de sair do LGAR.

O que você quer fazer?

Ele deu de ombros. Tinha um modo de fazer isso sem expressar dúvida ou incerteza, mas sim como alguém tirando um fardo pesado, liberando-se para agir.

Quero começar seguindo a barreira e vendo se, por acaso, sim­plesmente existe algum portão grande. Talvez a gente atravesse o por­tão e todo mundo esteja lá, sabe? Minha mãe, seus pais, Anna e Emma.

Os professores — sugeriu Astrid.

Não arruíne uma imagem feliz.

O que acontece se você realmente achar um portão, Sam? Vai passar por ele? O que acontece com todo o pessoal que ainda está no LGAR?

Eles saem também.

Você não vai saber com certeza se é um portão a não ser que passe por ele. E, assim que passar, pode não haver como voltar.

Astrid, em cinco dias eu sumo. Pufo. Cavo um buraco.

Você tem de pensar em si mesmo — disse ela sem inflexão.

Sam ficou chocado.

Não acho justo...

O que quer que ele fosse dizer, perdeu-se, porque nesse momento houve dois barulhos em rápida sucessão. O primeiro foi uma pancada surda vinda de fora. O segundo foi o berro do Pequeno Pete.

Astrid correu pela porta e encontrou o Pequeno Pete enrolado, tre­mendo, uivando, pronto para começar um chilique em escala total.

Havia uma pedra no chão ao lado dele.

E parados na calçada, rindo, estavam Panda, um garoto da Coates chamado Chris, e Quinn. Panda e Chris seguravam bastões de beise­bol. Chris também carregava um saco de lixo branco. Dentro do saco, ligeiramente visível, havia o logotipo de um novo modelo de videogame.

Vocês jogaram uma pedra no meu irmão? — gritou Astrid, sem medo em seu ultraje. Ela se ajoelhou ao lado do Pequeno Pete.

Sam estava na metade do gramado, andando com passo decidido.

O que você fez, Panda?

Ele estava me ignorando — disse Panda.

Panda estava só brincando, Sam — disse Quinn. E ficou entre Sam e Panda.

Jogar uma pedra num garotinho indefeso é só brincar? E o que você está fazendo com esse babaca, afinal?

Quem você está chamando de babaca? — perguntou Panda. Em seguida, apertou com mais força o bastão de beisebol, mas não como se quisesse começar a usá-lo de verdade.

Quem eu estou chamando de babaca? Qualquer um que jogue uma pedra numa criança pequena — disse Sam, sem recuar.

Quinn levantou as mãos, bancando o pacificador.

Olha, fica frio, brou. Nós só estamos numa missãozinha para Mãe Maria. Ela convocou o Panda e mandou ele procurar o urso de pelúcia de uma criança, certo? Nós estávamos fazendo uma boa ação.

Fazendo o bem e roubando alguma coisa de alguém? — Sam apontou para o saco de lixo na mão de Chris. — E, na volta, pensaram em jogar uma pedra e acertar uma criança autista?

Ei, corta essa — disse Quinn. — Nós vamos levar o jogo para Maria, para as crianças terem alguma coisa que fazer.

Agora o Pequeno Pete estava gritando no ouvido de Astrid, de modo que ela não podia ouvir tudo que era dito, apenas trechos de pa­lavras raivosas entre Quinn, cada vez mais irritado, e Sam, numa fúria gelada.

Então Sam deu meia-volta e voltou para ela. Quinn ergueu o dedo médio para as costas dele e foi andando relaxado pela rua com Panda e o garoto da Coates.

Sam se deixou cair violentamente numa cadeira da varanda. Nos dez minutos que Astrid demorou para acalmar o irmão e redirecioná-lo para o videogame, Sam apenas fumegou.

Ele está virando um inútil. Pior do que inútil — disse Sam. De­pois, cedendo, disse: —Vamos superar isso.

Quer dizer, você e o Quinn?

É.

Astrid pensou em ficar de boca fechada, sem pressionar. Mas essa era uma conversa que precisaria ter com Sam cedo ou tarde.

Acho que ele não vai superar.

Você não o conhece tão bem assim.

Ele tem ciúme de você.

Bom, é claro, já que eu sou terrivelmente bonito — disse Sam, esforçando-se para fazer disso uma piada.

Ele é um tipo de pessoa, você é outra. Quando a vida segue nor­malmente, vocês são meio parecidos. Mas quando a vida fica estranha e assustadora, quando há uma crise, de repente vocês são pessoas to­talmente diferentes. Na verdade, não é culpa do Quinn, mas ele não é corajoso. Não é forte. Você é.

Você ainda quer que eu seja o grande herói.

Quero que você seja quem é. — Ela permaneceu junto do Pe­queno Pete, mas estendeu a mão para segurar a de Sam. — Sam, as coisas vão piorar. Neste momento, todo mundo está meio em choque. Está com medo. Mas as pessoas ainda nem perceberam como deve­riam estar apavoradas. Cedo ou tarde, a comida vai acabar. Cedo ou tarde, a usina vai se desligar. Quando estivermos sozinhos no escuro, com fome, desesperados, quem vai assumir o comando? Caine? Ore? Drake?

Bom — disse ele, seco. — Você faz parecer que será muito divertido.

Certo, vou parar de pegar no seu pé — disse Astrid, sentindo que precisava recuar. Estava pedindo o impossível àquele garoto que mal conhecia. Mas sabia que era a coisa certa a fazer.

Acreditava nele. Sabia que ele tinha um destino.

Perguntou-se por quê. Não era lógico, realmente. Não acreditava em destino. Durante toda a vida, Astrid havia contado com o cérebro, com a percepção dos fatos. Agora uma parte que ela mal sabia que existia, alguma parte enterrada e negligenciada de sua mente, estava instigando-a. Não eram bons raciocínios, apenas um instinto que fica­va pressionando-a a pressionar Sam.

Mas tinha certeza.

Certeza.

Astrid virou o rosto para o Pequeno Pete de modo que Sam não visse sua preocupação, mas não soltou a mão dele.

Tinha certeza. Como se perguntassem quanto eram dois mais dois. Esse tipo de certeza.

Soltou a mão dele. Respirou fundo, trêmula. E agora não tinha certeza nenhuma. Sua preocupação aumentou.

Vamos pegar as coisas de comer — disse.

Ele estava em outro lugar, preocupado, por isso não notou o modo como Astrid olhou para as próprias mãos, o rosto franzido de concen­tração. Ela enxugou as mãos no short.

É — disse ele. — É melhor irmos enquanto ainda podemos.

 

                           129 HORAS E 34 MINUTOS

— MOSTRE SUA LISTA— exigiu Howard. Ele estava diante da porta da mercearia Ralph's, sentado numa cadeira de jardim, com os pés apoia­dos numa segunda cadeira. Tinha uma pequena TV com DVD acopla­do, passando Homem-Aranha 3. Mal levantou os olhos quando eles se aproximaram.

Não tenho lista — disse Astrid.

Howard deu de ombros.

Você precisa de lista. Ninguém entra sem lista.

Certo — disse Sam. —Você tem um pedaço de papel e um lápis?

Por acaso tenho, Sam — respondeu Howard. Em seguida, pes­cou um pequeno caderno espiral no bolso de uma jaqueta de couro que não lhe caía bem e entregou a Astrid.

Ela escreveu a lista e entregou a Howard.

Vocês podem pegar todos os produtos frescos que quiserem. Tudo vai apodrecer. O sorvete acabou quase todo, mas talvez tenha algum picolé. — Ele olhou para o Pequeno Pete. — Gosta de picolé, Pe-tardado?

Anda logo — disse Sam.

Se vocês quiserem coisas enlatadas ou tipo... macarrão ou sei lá o quê, têm de conseguir permissão especial do Caine ou de um xerife.

O que você está falando? — perguntou Astrid.

Estou falando que podem pegar alface, ovos, coisas de delicatessen e leite, porque tudo vai ficar velho logo, mas estamos guardando as coisas como sopa enlatada ou qualquer coisa que não estrague.

Astrid concordou:

Certo, faz sentido, acho.

O mesmo com relação a produtos de papel. Todo mundo pega um rolo de papel toalha. Portanto façam com que dure. — Ele olhou a lista de novo. — Tampões? Que tamanho?

Cala a boca — disse Sam.

Howard riu.

Podem ir. Mas vou verificar tudo na saída, e se não estiver legal, faço devolverem.

A loja estava uma bagunça. Antes de Caine ter posto um guarda, fora saqueada de praticamente todos os salgadinhos, biscoitos e coisas do tipo. E as crianças que haviam saqueado não tinham sido organiza­das nem cuidadosas. Havia vidros de maionese quebrados, mostruários virados, portas de vidro dos freezers arrebentadas.

Havia moscas em toda parte. O lugar tinha começado a feder a lixo. Algumas luzes do teto haviam se queimado, deixando bolsões de escuridão. Cartazes multicoloridos ainda pendiam acima das cabeças, anunciando produtos especiais e ofertas.

Sam pegou um carrinho e Astrid colocou o Pequeno Pete no assento.

As flores no cantinho da floricultura pareciam todas cansadas. Uma dúzia de balões de plástico metalizado com escritos de "Feliz aniversá­rio" ou mensagens do Dia de Ação de Graças ainda flutuavam, mas estavam perdendo altitude.

Talvez eu devesse procurar um peru — disse Astrid, olhando o mostruário de comidas relacionadas ao Dia de Ação de Graças: mistu­ra para torta de abóbora, carne moída, molho de amora, espeto para assar perus, recheio.

Você sabe preparar peru?

Posso encontrar instruções na internet. — Ela suspirou. — Ou não. Talvez eles tenham um livro de culinária por aí.

Acho que nada de molho de amora.

Nada enlatado.

Sam foi à frente para a seção de produtos frescos e parou, perce­bendo que Astrid ainda estava olhando o mostruário do Dia de Ação de Graças. Ela estava chorando.

Ei, qual é o problema?

Astrid enxugou as lágrimas, mas outras vieram.

Nós três sempre fazíamos compras juntos, mamãe, Petey e eu. Era uma ocasião em que a gente podia conversar, toda semana. Você sabe, a gente fazia compras meio devagar e falava sobre o que comer e outras coisas, também. Só devagar. Nunca estive aqui sem minha mãe.

Nem eu.

É esquisito. Parece igual, mas não é.

Nada é igual — disse Sam. — Mas mesmo assim as pessoas pre­cisam comer.

Isso provocou um sorriso relutante em Astrid.

Certo. Vamos fazer compras.

Pegaram alface, cenouras e batatas. Sam passou atrás do balcão para pegar dois bifes e embrulhar em papel. Havia muitas moscas em alguns cortes de carne deixados do lado de fora quando os açouguei­ros desapareceram, mas a carne dentro do balcão gelado parecia into­cada.

Mais alguma coisa, senhora? — perguntou ele.

Bom, como ninguém mais está pegando, acho que vou levar aquela peça para assado.

Sam se abaixou para olhar sob o balcão.

Certo. Desisto. Qual é a peça para assado?

Aquela coisa grande ali. — Ela bateu no vidro. — Posso colocar no freezer.

-— Claro. A peça para assado. — Sam levantou-a e pôs em cima de uma folha de papel impermeável. — Você sabe que são uns... 24 dóla­res por quilo, mais ou menos.

Ponha na minha conta.

Passaram para o balcão de laticínios. E ali estava Panda, nervoso e segurando seu bastão, a postos.

Você de novo? — perguntou Sam, rispidamente.

Panda não respondeu.

Astrid gritou,

Sam se virou, mas teve apenas um vislumbre de Drake Merwin antes que algo acertasse a lateral da sua cabeça. Sam cambaleou contra uma prateleira de queijo parmesão, derrubando os vidros verdes em toda parte.

Viu um bastão girando, tentou bloqueá-lo, mas sua cabeça estava girando e os olhos, fora de foco.

Seus joelhos se afrouxaram e ele despencou no chão.

Como se viessem de longe, viu garotos se movendo depressa, qua­tro ou cinco, talvez. Dois agarraram Astrid e prenderam suas mãos atrás do corpo.

Houve a voz de uma garota, uma voz que Sam não reconheceu até que ouviu Panda dizer:

Diana.

Cubram as mãos dele com um saco — disse Diana.

Sam resistiu, mas não tinha controle dos músculos. Algo passou por cima de sua mão esquerda, depois da direita. Dedos fortes o pren­diam com firmeza.

Quando finalmente pôde focalizar, olhou de modo idiota para o que tinha sido feito. Seus pulsos estavam presos juntos, com uma presilha plástica. Em volta de cada mão havia um balão de plástico metalizado, vazio, preso com fita adesiva.

Diana Ladris ajoelhou-se, trazendo o rosto para o nível dele.

É plástico metalizado. É uma superfície espelhada. Assim, eu não tentaria fazer seu feitiço, Sam: você fritaria as próprias mãos.

O que você está fazendo? — perguntou Sam, com a voz quase incompreensível.

Seu irmão quer ter uma conversinha com você.

Aquilo não fazia sentido, e Sam não teve certeza de que estava ou­vindo direito. A única pessoa que ele chamava de "irmão" era Quinn.

Solte Astrid — disse Sam.

Drake passou por Diana e chutou as costas de Sam, que estava com as pernas torcidas atrás do corpo. Drake ficou acima dele e empurrou a ponta do bastão contra seu pomo de adão. O mesmo movimento que tinha usado contra Ore na noite anterior.

Se você for um garotinho bonzinho, nós vamos ser legais com sua namorada e o irmão retardado dela. Se causar problema, eu acabo com ela.

O Pequeno Pete havia começado sua preparação para um uivo total.

Cale a boca desse garoto ou eu mesmo calo por você — disse Drake, bruscamente, para Astrid. Então, para Howard, Panda e os outros, disse: — Peguem o grande herói e o joguem num carrinho de compras.

Sam foi levantado e posto num carrinho.

Howard é que estava empurrando.

-— Sammy, Sammy, Sammy. O Sam Ônibus Escolar agora é o Sam do Carrinho de Compras, hein?

Drake se inclinou e a última coisa que Sam viu foi uma tira de fita adesiva cobrindo seus olhos.

Empurraram-no pela autoestrada no carrinho de compras. Empurraram-no através da cidade. Ele não podia ver, mas podia sentir as sacudidas bruscas. E podia ouvir os risos e as provocações de Howard e Panda.

Sam tentou entender a rota, tentou deduzir para onde iam. Depois do que pareceu um longo tempo, pôde sentir que estavam subindo um morro.

Howard começou a reclamar.

Cara, alguém me ajude a empurrar essa coisa. Ei, Freddie, cara, me ajuda.

O carrinho acelerou por um tempo, depois ficou lento de novo. Sam pôde ouvir respirações ofegantes.

Chame umas pessoas dessas que estão paradas aí — pediu Freddie.

É. Ei, você: venha cá e ajude a empurrar o carrinho.

Não, cara. De jeito nenhum.

Quinn. O coração de Sam pulou. Quinn iria ajudá-lo.

O carrinho parou.

Howard disse:

O que foi, está com medo que o seu garoto aqui descubra o que você andou aprontando?

Cala a boca, cara — disse Quinn.

Sammy, quem você acha que deu à gente a dica de que você ia fazer compras com Astrid? Hein?

Cala a boca, Howard — disse Quinn, parecendo desesperado.

Quem você acha que contou à gente sobre os seus poderes, Sam?

Eu não sabia que eles iam fazer isso -— disse Quinn. — Eu não sabia, brou.

Sam descobriu que nem estava surpreso. Mas mesmo assim, a trai­ção de Quinn doeu mais do que qualquer coisa que Drake tinha feito. Queria gritar com Quinn. Queria chamá-lo de Judas. Mas gritar, ber­rar, chorar, iria fazer com que ele parecesse fraco.

Eu não sabia, irmão, estou dizendo a verdade — disse Quinn.

É. Você achou que talvez a gente só quisesse fazer uma reunião do fã-clube do Sam Temple — disse Howard, e gargalhou da própria piada. — Agora pegue e empurre.

O carrinho começou a se mexer de novo.

Sam sentiu um enjôo por dentro. Quinn o havia traído. Astrid es­tava com Drake e Diana. E não havia nada que ele pudesse fazer.

A coisa pareceu demorar uma eternidade. Mas finalmente pararam.

Sem aviso, o carrinho virou e Sam caiu no pavimento. Rolou sobre as mãos e os joelhos e tentou disfarçadamente raspar o balão de plás­tico contra o concreto.

O chute nas costelas tirou seu fôlego.

Ei — gritou Quinn. — Você não precisa chutá-lo.

Mãos agarraram Sam pelos braços e então ele escutou a voz de Ore.

Se aprontar alguma, eu arrebento você.

Fizeram-no subir, cambaleando, alguns degraus. Havia uma porta, aparentemente grande, pelo som. Então os pés ecoaram em linóleo encerado.

Pararam. Outra porta se abriu. Sam foi levado através dela. Ore chutou-o na parte de trás dos joelhos e ele caiu de rosto no chão.

Ore montou em suas costas, agarrou seu cabelo e puxou a cabeça para trás com força.

Tire a fita — ordenou uma voz.

Howard segurou a ponta da fita e arrancou-a, tirando junto parte das sobrancelhas de Sam.

Sam reconheceu o lugar imediatamente. O ginásio de esportes da escola.

Estava caído no piso de madeira polida, com Caine parado calma­mente diante dele, braços cruzados, tripudiando.

Ei, Sam — disse Caine.

Sam girou a cabeça para a esquerda e para a direita. Ore, Panda, Howard, Freddie e Chaz, todos armados com bastões de beisebol. Quinn tentou se encolher fora das vistas.

Você tem um monte de caras, Caine. Eu devo ser perigoso.

Caine assentiu, pensativo.

Gosto de ser cuidadoso. Claro, Drake está com sua namorada. Portanto, se eu fosse você, tentaria não causar problemas. Drake é um cara violento, perturbado.

Howard gargalhou.

Deixem que ele fique de pé — ordenou Caine.

Ore desceu das costas de Sam, mas não sem primeiro cravar um joelho em suas costelas. Sam se levantou, trêmulo, mas satisfeito por não estar no chão.

Examinou Caine atentamente. Tinham se encontrado na praça quando Caine havia chegado. Desde então, Sam só vira Caine de pas­sagem.

Caine o examinou com igual atenção.

O que você quer comigo? — perguntou Sam.

Caine começou a morder o polegar, depois baixou as mãos ao lado do corpo, de modo que quase parecia em posição de sentido.

Gostaria que houvesse algum modo de podermos ser amigos, Sam.

Não vejo você morrendo de vontade de ser meu coleguinha.

Caine riu.

Está vendo? Você tem senso de humor. Isso não deve ter vindo da sua mãe. Ela nunca me pareceu muito divertida. Será que veio de seu pai?

Não faço idéia.

Não? Por quê?

Você está com o laptop da minha mãe. Está com todos os docu­mentos pessoais dela. E Quinn andou respondendo perguntas sobre mim. Então, acho que você já sabe a resposta.

Caine assentiu.

É. Seu pai desapareceu logo depois de você nascer. Acho que ele não ficou muito impressionado com você, não é? — Caine riu da pró­pria piada, e alguns de seus lacaios o acompanharam sem muito âni­mo, já que não haviam entendido direito. — Bom, não se sinta mal. Por acaso meu pai biológico também desapareceu. E minha mãe.

Sam não respondeu. Suas mãos estavam dormentes devido à amar­ra de plástico. Estava com medo, mas decidido a não demonstrar.

Você não deveria usar sapatos de rua no piso do ginásio — disse Sam.

Então seu pai desaparece e você nem quer saber por quê? — perguntou Caine. — Interessante. Eu sempre quis saber quem eram meus pais de verdade.

Deixe-me adivinhar: secretamente você é um mago que foi cria­do por trouxas.

O sorriso de Caine foi frio. Ele levantou a mão com a palma para a frente. Um punho invisível acertou o rosto de Sam, fazendo-o cam­balear para trás. Mal se segurou de pé, mas sua cabeça estava girando. Sangue escorreu do nariz.

É. Mais ou menos — disse Caine.

Ele estendeu as duas mãos e Sam sentiu-se sendo erguido do chão.

Caine o levantou cerca de um metro, depois girou os dedos e Sam caiu violentamente.

Sam levantou-se devagar. Sua perna esquerda estava bamba. O tor­nozelo parecia torcido.

—- Temos um sistema para medir o poder — disse Caine. — Na verdade, foi Diana que descobriu. Ela consegue ler as pessoas ao segu­rar as mãos delas... Sabe dizer quanto poder elas têm. Diana descreve isso como um sinal de celular. Uma barra, duas barras, três barras. Sabe o que eu sou?

Maluco? — Sam cuspiu o sangue que escorria em sua boca.

Quatro barras, Sam. Sou o único que ela já leu e que tem quatro barras. Eu poderia pegar você, jogar contra o teto ou contra uma pa­rede. — Ele ilustrou o argumento com movimentos de mão que fa­ziam parecer que estava dançando hula-hula.

Você poderia trabalhar num circo — disse Sam, animado.

Uuuuh, que cara machão! — Caine parecia chateado por Sam não ter reagido com espanto.

Olha, Caine, minhas mãos estão amarradas, você tem cinco capan­gas em volta de mim com bastões de beisebol, e eu deveria ficar aterro­rizado porque você sabe fazer truques de mágica? -— Sam fez a contagem de "cinco" em vez de "seis". Não contaria Quinn como coisa alguma.

Caine registrou a omissão e lançou um olhar de suspeita para Quinn. Quinn ainda parecia um garoto que não sabia onde ficar nem o que fazer consigo mesmo.

E um desses cinco — disse Sam — é um assassino. Um assassino e um punhado de covardes. Esse é o seu pelotão, Caine.

Os olhos de Caine se arregalaram. Ele mostrou os dentes, furioso, e de repente Sam foi lançado pelo ginásio.

Voando como se tivesse sido atirado de uma catapulta.

O ginásio girou ao redor.

Ele bateu com força no aro de basquete, com a cabeça se chocando contra o vidro da tabela. Ficou pendurado um momento no aro e de­pois caiu de costas.

Foi arrastado por mãos invisíveis, de força terrível, como se fosse varrido por um tornado. Veio parar aos pés de Caine.

Desta vez, demorou a voltar a si. O sangue do nariz foi acompa­nhado por outro fio que escorria da testa.

Vários de nós desenvolveram poderes estranhos, de uns meses para cá — disse Caine, em tom casual. — Éramos como um clube se­creto. Frederico, Andrew, Dekka, Brianna, alguns outros. Nós traba­lhamos em conjunto para desenvolvê-los. Encorajávamos uns aos ou­tros. Veja, esta é a diferença entre o pessoal da Coates e vocês, da cidade. Num colégio interno, é difícil guardar segredo. Mas logo ficou claro que meus poderes eram de um nível totalmente diferente. Viu o que eu acabei de fazer com você? Ninguém mais poderia fazer isso.

É, foi maneiro — disse Sam, com desafio trêmulo. — Pode fazer de novo?

Ele está provocando você. — Diana entrava no ginásio e obvia­mente não estava nem um pouco feliz com o que via.

Ele está tentando provar que é durão — reagiu Caine rispidamente.

É. E provou. Vá em frente.

Olha como fala comigo, Diana — ameaçou Caine.

Diana andou presunçosa até Caine. Cruzou os braços sobre o peito e balançou a cabeça para Sam, numa falsa consternação.

Bom, você está com uma cara bem ruim, Sam.

Vai ficar pior ainda — ameaçou Caine.

Diana suspirou.

O negócio é o seguinte, Sam. Caine quer que você responda al­gumas coisas.

Por que não pergunta ao Quinn?

Porque ele não sabe as respostas, mas você sim, portanto é o seguinte: se você não responder às perguntas do Intrépido Líder, Drake vai começar a espancar Astrid. E, só para você saber, Drake é doente da cabeça. Não digo isso para amedrontar, estou dizendo por­que é verdade. Eu sou má, Caine tem delírios de grandeza, mas Drake é completamente louco. Ele pode matá-la, Sam. E vai começar em cinco minutos, a não ser que eu volte e diga para não fazer isso. Por­tanto, tique-taque.

Sam engoliu sangue e bile.

Que perguntas?

Diana revirou os olhos e se virou para Caine.

Viu como foi fácil?

Espantosamente, Caine aceitou a atitude de Diana. Sem ameaças, sem ataques contra ela, apenas raiva contida, ressentimento e aceitação.

Ele está apaixonado por ela, percebeu Sam, chocado. Nas vezes em que vira os dois juntos, nunca testemunhara qualquer sinal externo de afeto, mas não existia outra resposta possível.

Fale do seu pai — disse Caine.

Sam deu de ombros, um movimento doloroso que o fez se encolher.

Ele não fez parte da minha vida. Só sei que minha mãe não gos­tava de falar dele.

Sua mãe. A enfermeira Temple.

É.

O nome na sua certidão, o nome do seu pai. E "Taegan Smith".

Certo.

Taegan. Um nome muito incomum. Muito raro.

E daí?

Mas "Smith" é realmente comum. É um nome que poderia ser usado por alguém que quisesse esconder o nome verdadeiro.

Olha, estou respondendo às suas perguntas. Mande soltar Astrid.

Taegan — repetiu Caine. — Bem ali na certidão de nascimento. Mãe: Constance Temple. Pai: Taegan Smith. Data de nascimento: 22 de novembro. Hora do nascimento: 22 horas e 12 minutos. Hospital Regional Sierra Vista.

Bom, agora você pode fazer meu horóscopo.

Você não está interessado em nada disso?

Sam suspirou.

Estou interessado no que está acontecendo. Por que o LGAR começou. Como podemos fazer com que isso pare, ou então como podemos escapar dele. Na grande lista de coisas com as quais me preo­cupar, meu pai biológico desconhecido, que nunca foi nada para mim, está bem no final.

Você vai sumir em cinco dias, Sam. Está interessado nisso?

Solte Astrid.

Ande, Caine — disse Diana. — Vá em frente.

Caine deu um risinho.

Estou muito interessado na questão do desaparecimento. Sabe por quê? Porque não quero morrer. E não quero, de repente, me ver de volta ao mundo. Gosto daqui, do LGAR.

-— É isso que você acha que acontece? Que a gente pula de volta para o mundo?

Eu estou fazendo as perguntas — reagiu Caine, rispidamente.

Solte Astrid.

A questão — continuou Caine — é que você e eu temos algo em comum, Sam. Nós nascemos com apenas três minutos de diferença.

Sam sentiu um arrepio subir pela coluna.

Três minutos — disse Caine, chegando mais perto. — Você vai primeiro. E depois eu.

Não — disse Sam. — Não pode ser.

Pode. E é. E você é... meu irmão.

A porta se abriu com um estrondo. Drake Mervin entrou correndo, procurando por alguma coisa.

Ela está aqui?

Quem? — perguntou Diana.

Quem você acha? A loura e o irmão retardado dela.

Você a deixou fugir? — perguntou Caine, esquecendo-se de Sam por um momento.

Não a deixei fugir. Eles estavam na sala comigo. A garota estava me irritando tanto que eu lhe dei uma cacetada. Então eles desapare­ceram. Sumiram.

Caine lançou um olhar assassino para Diana. Diana disse:

Não. Faltam meses para ela fazer 15 anos. E, de qualquer modo, o irmão dela tem quatro.

Então como? — Caine franziu a testa. — Pode ser o poder?

Diana balançou a cabeça.

Eu li Astrid de novo quando vim para cá. Ela nem tem duas barras. De jeito nenhum. Teletransportar duas pessoas?

A cor sumiu do rosto de Caine.

E o retardado?

Ele é autista, é como se vivesse num mundo próprio — protes­tou Diana.

Você o leu?

Ele é um garotinho autista, por que eu iria lê-lo?

Caine virou-se para Sam.

O que você sabe sobre isso? — E levantou a mão numa ameaça. Com o rosto a centímetros do de Sam, gritou: — O que você sabe?

Bom. Sei que gosto de ver você apavorado, Caine.

O punho invisível jogou Sam esparramado para trás.

Pela primeira vez, Diana pareceu preocupada. Seu usual risinho de desprezo havia sumido.

A única vez que vimos teletransporte foi com a Taylor, lá na Coates. E ela só conseguia ir de um lado da sala até o outro. Ela era três barras. Se esse garoto pode se teletransportar junto com a irmã, atravessando paredes...

Ele poderia ser um quatro — disse Caine, baixinho.

É — concordou Diana. — Poderia ser um quatro. — Quando disse a palavra "quatro", ela olhou direto para Sam. — Talvez até mais.

Caine se agitou.

Ore, Howard: tranquem o Sam, amarrem de um jeito que ele não consiga tirar o plástico espelhado das mãos, depois peçam ajuda a Freddie. Ele já fez bloco de concreto, sabe o que fazer. Peguem o que precisarem na loja de ferramentas. — Em seguida, agarrou Drake pelo ombro. — Encontre Astrid e aquele garoto.

Como vou pegá-los se eles podem sumir quando quiserem?

Eu não falei pegar — disse Caine. — Leve uma arma, Drake. Atire nos dois antes que eles o vejam.

Sam pulou contra Caine e o derrubou antes que ele pudesse reagir, e o impacto levou os dois para o chão. Sam deu uma cabeçada no nariz de Caine, que foi lento demais para se recuperar, mas Drake e Ore pularam sobre Sam e o chutaram até tirá-lo de Caine.

Sam gemeu de dor.

Você não pode matar pessoas, Caine. Está maluco?

Meu nariz esta doendo.

Você é doente, Caine. Precisa de ajuda. Você é doido.

É — disse Caine, tocando o nariz e se encolhendo de dor. — É o que viviam me dizendo. É o que a enfermeira Temple... mamãe... me disse. Só fique feliz porque preciso manter você por perto, Sam. Pre­ciso ver você desaparecer, preciso deduzir como impedir que isso aconteça comigo. Ore, leve o heroizinho. Drake: vá.

Se machucar os dois, Drake, vou caçar e matar você — gritou Sam.

Não gaste seu fôlego — disse Diana. — Você não conhece o Drake. Sua namorada já está praticamente morta.

 

                         128 HORAS E 32 MINUTOS

ASTRID QUERIA GRITAR com Drake e Diana, acusá-los, exigir saber que tipo de seres humanos indignos usavam o LGAR como desculpa para a violência.

Mas precisava manter o Pequeno Pete calmo. Esta era a sua princi­pal prioridade, seu irmão. Seu irmão de rosto vazio, impotente, inca­paz de amar.

Ressentia-se dele. Ele a havia transformado em mãe aos 14 anos. Não estava certo. Este deveria ser seu tempo de brilhar, de ser ousada. Era seu tempo de usar o intelecto, aquele dom supostamente fantásti­co. Em vez disso, era uma babá.

Astrid e o Pequeno Pete foram levados, com cortesia zombeteira, para uma sala de aula. Não era uma das salas onde Astrid estudava, mas po­deria ter sido. Tudo era dolorosamente familiar: livros abertos nas cartei­ras, paredes enfeitadas com trabalhos de arte e projetos dos alunos.

Sente-se. Leia um livro, se quiser — disse Diana. — Sei que você gosta desse tipo de coisa.

Astrid sopesou um dos livros.

É, matemática do quarto ano. Adoro esse tipo de coisa.

Sabe, eu realmente não gosto de você — disse Diana.

Claro que não gosta de mim. Eu faço com que você se sinta in­ferior.

Os olhos de Diana chamejaram.

Não me sinto inferior a ninguém.

Verdade? Porque geralmente as pessoas que fazem coisas ruins reconhecem que há alguma coisinha errada com elas. Sabe? Mesmo quando tentam suprimir isso, sabem que são doentes por dentro.

É — disse Diana, laconicamente. — Eu me sinto mal com isso. Meu coração maligno e coisa e tal. Me dê sua mão.

O quê?

Prometo não contagiar você com minha maldade. Me dê sua mão.

Não.

Drake. Faça ela me dar a mão.

Drake se afastou da parede.

Astrid estendeu a mão. Diana segurou-a.

Você lê as pessoas — disse Astrid. — Eu deveria ter deduzido antes. Você tem o poder, não é? — Ela olhou para Diana como se ob­servasse um espécime num laboratório.

É — respondeu Diana, soltando-a. — Eu leio pessoas. Mas não se preocupe, só leio níveis de poder, não seus pensamentozinhos se­cretos sobre o quanto quer um amasso com o Sam Temple.

Astrid ficou vermelha, mesmo contra a vontade. Diana riu.

Ah, por favor, isso é óbvio. Ele é bonitinho. É corajoso. É inte­ligente, mas não tanto quanto você. Ele é perfeito.

Ele é meu amigo.

Ahã. Bom, vamos descobrir até que ponto ele é um bom amigo. Ele sabe que estamos com você. Se não contar tudo o que Caine quer saber, se não fizer o que o Caine mandar, Drake está aqui para machu­car você.

O estômago de Astrid virou geléia.

O quê?

Diana suspirou.

Bom, é por isso que a gente mantém o Drake por perto. Ele gosta de machucar pessoas. A gente não o mantém por perto pelos papos interessantes.

Drake parecia com vontade de atacar Diana. Seus olhos estreitos, de lagarto, se estreitaram mais ainda. Diana não deixou de perceber a expressão.

Vá em frente, levante a mão contra mim, Drake — provocou Diana. — Caine mataria você. — Para Astrid, disse: — É melhor se comportar, agora ele está todo irritadinho.

Diana saiu.

Astrid sentiu os olhos de Drake fixos nela, mas não pôde encará-lo. Manteve o olhar abaixado para o livro de matemática. Depois olhou o irmão, que estava sentado brincando com seu jogo idiota, incapaz, sem vontade, sem se importar.

Astrid sentiu vergonha do próprio medo. Vergonha de não ser ca­paz de olhar o bandido encostado despreocupadamente na parede.

Não tinha dúvida de que Sam faria o máximo para salvá-la. Mas Caine poderia pedir alguma coisa que Sam não poderia dar.

Precisava pensar. Precisava bolar um plano. Estava com medo, sempre tivera medo da violência física. Tinha medo do vazio que sen­tia em Drake Merwin.

Puxou a carteira para perto do Pequeno Pete e pôs a mão no ombro dele. Não houve reação. Ele sabia que ela estava ali, mas não demons­trava nada, absorvido no jogo.

Ainda sem olhar para Drake, Astrid disse:

Você não se incomoda quando Diana o trata como a um animal selvagem que ela mantém na coleira?

Você não se incomoda em andar por aí com esse retardado? — perguntou Drake. — Ficar com um retardadinho praticamente gruda­do em você?

Ele não é retardado — disse Astrid, em tom calmo.

Ah. Essa palavra é errada? "Retardado"?

Ele é autista.

Retardado — insistiu Drake.

Astrid olhou-o. Fez força para enfrentar o olhar dele.

"Retardado" é uma palavra que não se usa mais. Quando usam, é para significar uma diminuição da inteligência. Pete não tem a inte­ligência diminuída desse jeito. Ele tem um QI no mínimo normal, e talvez até acima do normal. De modo que a palavra não serve.

É? Ah. Mas eu gosto da palavra "retardado". Na verdade gosta­ria de ouvir você dizer. Retardado.

Astrid sentiu o pavor minar sua força. Em sua mente não havia a menor dúvida de que ele pretendia machucá-la. Sustentou o olhar por um tempo, mas depois baixou os olhos.

Retardado — insistiu Drake. — Diga.

— Não — sussurrou Astrid.

Drake veio andando pela sala. Não estava segurando uma arma. Não precisava. Pôs os punhos na carteira e se inclinou sobre ela.

Retardado — disse. — Diga: meu irmão é retardado.

Astrid não se sentia em condições de falar. Estava engolindo as lá­grimas. Queria acreditar que era corajosa, mas agora, com o bandido a centímetros de distância, soube que não era.

Meu. Irmão. Vamos, diga comigo. Meu. Diga.

O tapa foi tão rápido que ela mal percebeu a mão dele se mover.

Diga. Meu...

Meu — sussurrou ela.

Mais alto. Quero que o retardadinho escute. Meu irmão é retar­dado.

O segundo tapa foi tão forte que ela quase caiu da cadeira.

Pode falar enquanto seu rosto ainda está bonito, ou pode dizer depois de eu ter arrebentado com ele. A escolha é sua. Meu irmão é retardado.

Meu irmão é retardado — disse Astrid, com a voz trêmula.

Drake gargalhou, adorando aquilo, e foi até o Pequeno Pete, que havia levantado os olhos do jogo e parecia quase registrar o que estava acontecendo. Drake pôs o rosto bem pertinho do Pequeno Pete e, com uma das mãos, puxou Astrid pelo cabelo, de modo que a boca da ga­rota ficasse perto do ouvido do Pequeno Pete, e disse:

Mais uma vez, bem alto. — Empurrou o rosto de Astrid contra a lateral da cabeça do Pequeno Pete e gritou: — Meu irmão é...

E Astrid caiu de costas em sua cama.

Sua cama. Seu quarto.

O Pequeno Pete estava no banco da janela, de pernas cruzadas, se­gurando o videogame.

Astrid soube imediatamente o que havia acontecido. Mas, mesmo assim, aquilo causava uma desorientação tremenda. Num segundo es­tava na escola, no outro, em seu quarto.

Não podia olhar para ele. Seu rosto queimava com o tapa, porém mais ainda com a vergonha.

Obrigada, Petey — sussurrou.

Ore arrastou Sam do ginásio para a sala dos pesos.

Howard olhou em volta, pensando no que deveria fazer.

Howard, cara, você não pode estar nessa — implorou Sam. — Não pode concordar com Caine querendo matar Astrid e o Pequeno Pete. Ore, nem você pode concordar com isso. Você não queria matar Bette. Isso já é passar do ponto demais.

É. É passar do ponto — admitiu Howard, preocupado, com a boca torcida de lado ironicamente.

-— Vocês precisam me ajudar. Me deixem ir atrás do Drake.

Acho que não, Sammy. Veja bem, eu já vi o tipo de coisa que o Caine pode fazer. — Para Ore, Howard disse: — Vamos colocá-lo em cima desse banco. De cara para cima. Vamos amarrar as pernas nos suportes, aqui.

Ore levantou Sam e jogou-o no banco de supino.

Ore, isso vai ser assassinato a sangue-frio — disse Sam.

Eu, não, cara — disse Ore. — Só estou amarrando você.

Drake vai assassinar Astrid. Ela ajudou você a passar em mate­mática. Você pode impedir isso, Ore.

Ela não deveria ter contado isso a ninguém — resmungou Ore. — De qualquer modo, não tem mais aula de matemática.

Os dois usaram uma corda para prender seus tornozelos às pernas do banco. Amarraram outra corda na cintura.

Certo, agora vem a parte boa — disse Howard. — Vamos colo­car uns pesos na barra. Vamos amarrar as mãos do Sam à barra e bai­xar a barra pelo deslizador, certo? Ele vai ficar ocupado mantendo a barra longe do pescoço.

Ore demorou a entender, por isso Howard demonstrou. Então Ore juntou placas de peso à barra.

Quanto você consegue levantar no supino, Sam? — perguntou Howard. — Eu diria para colocar duas de 20 quilos em cada ponta, certo? Com a barra vão ser 90 quilos.

De jeito nenhum ele consegue 90 — opinou Ore.

Acho que você está certo, Ore. Acho que ele vai ficar ocupado só tentando não ser sufocado pela barra.

Isso não está certo, Howard — disse Sam. — Você sabe que não está certo. Vocês não fazem coisas assim, nenhum dos dois. Vocês são valentões, não assassinos a sangue-frio.

Howard suspirou.

Sammy, esse é um mundo totalmente diferente, não notou? É o LGAR, cara.

Ore baixou o peso. A barra pousou nos pulsos amarrados de Sam, que pressionavam contra seu pomo de adão. Ele empurrou para cima com toda a força, mas nem em seus melhores dias ele conseguiria le­vantar 90 quilos. Só conseguia manter pressão suficiente para conti­nuar respirando.

Ore riu e disse:

Vem, cara, é melhor encontrar o Caine antes que a gente perca mais diversão.

Howard acompanhou Ore, mas parou junto à porta.

É meio estranho, Sam. Naquela primeira noite, achei que o ve­lho Sam do Ônibus Escolar iria comandar as coisas logo, se a gente não tomasse cuidado. Todo mundo estava esperando você fazer algu­ma coisa. Você sabe disso. Mas não, você foi tranqüilo demais para agir daquele jeito. E foi embora sem falar com ninguém, foi embora com Astrid. — Ele riu. — Claro, ela é uma gata, não é? E agora Caine está comandando o LGAR e Drake vai matar sua namorada.

Sam lutou contra o peso, mas não havia como levantá-lo. Mesmo que tivesse um bom ângulo de pegada, não conseguiria.

Mas, apesar de toda a inteligência, Howard havia deixado de per­ceber uma coisa: nessa posição Sam podia alcançar o plástico espelha­do em suas mãos com os dentes.

Tentou rasgá-lo, mas era um trabalho lento e ele não tinha tempo. Não havia dúvidas de que o Pequeno Pete havia se teletransportado com Astrid para casa. Drake iria encontrá-los lá.

Tentou prender o plástico com os dentes, mas ele era escorregadio e forte. E, quando se concentrava nisso, perdia o foco em manter o peso longe do pescoço.

A barra comprimia os nós dos dedos contra a garganta. Fez força para cima, mas seus braços já estavam com cãibras. Os músculos iam se enfraquecendo.

Poderia rasgar o plástico e livrar as mãos ou poderia impedir a bar­ra de sufocá-lo. Era impossível fazer as duas coisas.

E, mesmo que libertasse as mãos, o que fazer? Não era como Cai­ne. Não tinha controle sobre os poderes. Poderia rasgar o plástico e continuar incapaz de fazer qualquer coisa.

A barra escorregou mais para baixo.

Ele estava com o plástico entre os dentes.

Mastigou-o, tentando fazer um pequeno buraco que pudesse alargar.

A essa altura, Drake já estaria fora da escola e indo procurar Astrid. Será que teria de parar em algum lugar para arrumar uma arma?

Astrid saberia que eles iriam atrás dela. Saberia que era perigoso ficar em casa. Será que agiria suficientemente rápido?

E aonde ela poderia ir?

Sam sentiu seus dentes rangendo. Tinha feito um buraco.

Mas estava com dificuldade para respirar.

Mal notou a porta se abrindo.

Passos rápidos no carpete e o som e a sensação de uma das placas de peso escorregando para fora da barra. Sam respirou.

Agüenta firme, brou.

Quinn tirou o resto dos pesos da barra.

Com braços trêmulos, Sam empurrou a barra para longe do pescoço.

Eu não sabia que eles iam fazer isso, brou. Não sabia mesmo, cara. — Quinn estava pálido. Como se nunca tivesse visto o sol. — Você precisa acreditar, Sam. — Ele estava soltando as cordas. Sam sentou-se.

Quinn estava arrasado. Estivera chorando, os olhos vermelhos e inchados.

Juro por Deus, eu não sabia.

Eu sei. Eu sei. Isso é uma tremenda confusão.

Com as pernas livres, Sam ficou de pé.

Isso é outro truque? Eles vão me seguir para achar Astrid?

Não, cara. Eles me dariam uma surra se descobrissem que soltei você. — Quinn abriu os braços, implorando. — Você precisa me levar junto.

Como posso confiar em você, Quinn?

Se me deixar aqui, o que acha que Caine vai fazer comigo?

Sam não tinha tempo para discutir. Decidiu rapidamente

É melhor você rezar para Astrid não estar machucada, Quinn. Se estiver fazendo isso para me entregar, é melhor garantir que eu seja morto também.

Quinn lambeu os lábios, nervoso.

Não precisa me ameaçar, brou.

Não me chama de brou. Não sou seu irmão.

 

                         128 HORAS E 22 MINUTOS

ASTRID SENTIU UMA onda de alívio, seguida por uma onda muito maior de desprezo por si mesma. Tinha deixado Drake aterrorizá-la. Tinha chamado o Pequeno Pete de retardado.

Suas mãos estavam tremendo. Tinha traído o irmão. Odiava-o por ele ser o que era, por ser tão necessitado, e o havia traído para se poupar. E agora sentia muito mais raiva de si mesma do que jamais sentira dele.

Mas agora precisava pensar. Depressa. O que fazer?

Drake iria encontrá-la de novo. Sem dúvida Caine ou aquela cria­tura maligna, Diana, deduziriam o que havia acontecido.

Drake demoraria apenas alguns segundos para informar a eles. Mais alguns segundos até Caine perceber o que aconteceu. Se Diana realmente era capaz de ler o poder nas pessoas, saberia que não era Astrid que os havia teletransportado. Saberia que o Pequeno Pete ti­nha o poder.

Ela e o Pequeno Pete precisavam ir embora. Mas para onde?

Algum lugar onde Drake não procuraria. Algum lugar onde Sam poderia procurar.

Se escapasse.

Se ao menos estivesse vivo.

Seu cérebro estava se movendo em câmera lenta, girando em círcu­los, incapaz de focalizar. Ficava vendo aquele rosto terrível, doentio, sentindo a ardência da mão dele, o modo como o calor dela permane­cia e se juntava com seu rubor quente de vergonha.

Pense, idiota — ralhou consigo mesma. — Pense. É só para isso que você serve.

Eles não poderiam atravessar a cidade. Não poderiam pegar um carro — era tarde demais para começar a aprender a dirigir.

Sua mente era uma filmadora desfocada, girando e fazendo rede­moinhos e voltando repetidamente ao momento em que o medo to­mou conta, quando não pôde mais resistir, quando traiu o irmão. De novo e de novo, eram repetidas na sua cabeça as palavras: "Meu irmão é retardado."

O Penhasco.

O quarto em que tinham ficado naquela primeira noite.

É. Sam deduziria. Mas Quinn havia estado lá, também. Ele poderia chegar à mesma conclusão.

Astrid hesitou. Não havia tempo para hesitar; Drake não hesitaria. Nesse ponto já estaria atrás deles. Já estava a caminho.

Não podia enfrentá-lo de novo.

Petey, precisamos ir. — Astrid pegou a mão dele e puxou-o esca­da abaixo. Não havia tempo para parar por nada. Não havia tempo.

Até a porta da frente. Não. Era melhor a de trás.

Andaram pelo quintal dos fundos — raramente o Pequeno Pete aceitava correr. A cerca de madeira era razoavelmente baixa, mas mes­mo assim foi um trabalho exaustivo e demorado fazer o Pequeno Pete escalar por ela. Correram pelo quintal do vizinho.

Fique fora das ruas — disse a si mesma.

Foram até onde puderam, de um quintal dos fundos ao outro, de­pois se esgueiraram para a rua quando o caminho foi bloqueado e, em seguida, de volta a quintais e becos.

Não viram ninguém. Mas não havia como saber se estavam sendo vigiados.

Chegaram ao morro que marcava o limite da cidade e o início do terreno do Resort do Penhasco. Subiram com dificuldade em meio aos arbustos agarrados à areia. Astrid puxava o Pequeno Pete, desesperada para mover-se depressa, mas com medo de fazer qualquer coisa que o perturbasse.

O hotel não havia mudado. A barreira continuava ali. O saguão ainda estava limpo, brilhante, vazio.

Astrid ainda tinha a chave eletrônica que haviam feito naquela pri­meira noite. Encontrou a suíte, abriu a porta e desmoronou na cama.

Ficou ali deitada, ofegando, olhando o teto vazio. A cama era ma­cia. O ar-condicionado zumbia.

Podia dar uma explicação para as palavras que Drake havia posto em sua boca. Eram palavras sem importância. Apenas palavras. O Pe­queno Pete não se importava.

Mas não podia explicar seu medo. Ele a envergonhava.

Pôs a mão fria no rosto, para ver se estava mesmo tão quente quan­to em sua imaginação.

— Para onde vamos, Sam? — perguntou Quinn, ansioso. Estavam se movendo com agilidade, não exatamente numa corrida, mas numa semi-corrida que podiam sustentar.

Sam o guiou direto através da cidade, através da praça, como se estivesse indiferente a alguma perseguição.

Vamos encontrar Astrid antes do Drake.

Vamos olhar na casa dela.

Não. O bom de um gênio é que você não precisa pensar se ela está fazendo a coisa mais óbvia. Ela vai saber que tem de sair de casa.

Para onde ela iria?

Sam pensou um momento.

Para a usina nuclear.

A usina?

É. Por isso vamos pegar um barco e subir pelo litoral.

Certo. Mas, brou... quero dizer, cara, a gente não devia estar disfarçando um pouquinho, em vez de sair correndo pela cidade?

Sam não respondeu. Parte do motivo para estar indo em linha reta em vez de disfarçar era que esperava pegar Edilio no posto dos bom­beiros. A outra era que precisava saber se Quinn iria traí-lo na primei­ra chance que tivesse.

E havia uma questão de tática que Sam entendia intuitivamente: Caine tinha mais poder, por isso Sam precisaria de mais velocidade. Quanto mais tempo deixasse o jogo correr, maior era a probabilidade de Caine vencer.

Chegaram ao posto dos bombeiros. Edilio estava sentado na cabine do caminhão com o motor ligado. Viu Sam e Quinn e se inclinou para fora da janela.

Bem na hora, cara, vou tentar sair, dar uma... — Ele ficou quie­to ao ver o rosto de Sam coberto de sangue.

Edilio. Venha. Precisamos ir.

Certo, cara, só me deixe pegar...

Não. Tem de ser agora. Drake está procurando Astrid. Ele vai matá-la.

Edilio pulou do caminhão.

Para onde?

Para a marina. Vamos pegar um barco. Acho que Astrid vai para a usina nuclear.

Os três correram em direção à marina. Sam sabia que Ore e Ho­ward estavam na escola com Caine. Drake estava indo para a casa de Astrid. Com isso, restariam alguns capangas andando por ali, mas Sam não ficou muito preocupado com nenhum deles.

Viram o Martelo e um cara da Coates à toa na escadaria da prefei­tura. Nenhum dos dois questionou enquanto eles passavam correndo.

A marina não era grande, possuía apenas quarenta embarcadouros, com cerca de metade ocupados. Havia uma doca seca e o armazém velho e enferrujado que já havia sido uma fábrica de enlatados e agora abrigava oficinas de barcos. Havia um monte de barcos na água, pre­sos a estacas, parecendo desajeitados, como se uma brisa forte pudesse emborcá-los.

Não havia ninguém ali. Ninguém bloqueava o caminho deles.

O que vamos pegar? — perguntou Sam. Tinha chegado ao pri­meiro objetivo, mas não sabia nada sobre barcos. Olhou para Edilio e recebeu um gesto de ombros encolhidos.

Certo. Alguma coisa que carregue cinco pessoas. Uma lancha. Com tanque cheio de gasolina. Quinn, veja os barcos da direita, Edi­lio, da esquerda. Eu vou até o fim do cais e voltar. Andem.

Separaram-se e começaram a trabalhar, pulando em cada barco promissor, procurando chaves, tentando deduzir como verificar a ga­solina enquanto o tempo passava.

Em sua mente, Sam viu Drake revistando a casa de Astrid. Com uma arma na mão. Ele se demoraria um pouco com o medo de que Astrid e o Pequeno Pete pudessem simplesmente se teletransportar de novo. Drake não saberia que o Pequeno Pete realmente não controla­va seus poderes, por isso tentaria ser discreto, seria paciente.

Isso era bom. Quanto mais incerteza Drake tivesse, mais devagar iria.

De repente, um motor foi ligado. Sam pulou de um barco que estivera explorando de volta para o cais. Saiu correndo até encontrar Quinn sentado, todo orgulhoso, numa Boston Whaler, uma lancha aberta.

Ela está com o tanque cheio — disse Quinn, por cima do baru­lho chacoalhante do motor.

Bom trabalho, cara — disse Sam. Em seguida pulou no barco ao lado de Quinn. -— Edilio, zarpar.

Edilio soltou as cordas das estacas e pulou no barco.

Vou avisar, cara: eu sinto enjoo no mar.

Não é o nosso maior problema, certo? — respondeu Sam.

Eu liguei, mas não sei pilotar — disse Quinn.

Nem eu — admitiu Sam. — Mas acho que vou aprender.

Ei! Ei! — Era a voz estrondeante de Ore. — Não se mexam.

Ore, Howard e Panda estavam no fim do cais.

-— O Martelo — disse Sam. — Ele viu a gente. Deve ter contado.

Os três valentões começaram a correr.

Sam olhou freneticamente para os controles. O motor estava liga­do, o barco desatracado, ia se afastando do cais, mas muito lentamen­te. Até Ore poderia pular facilmente nele.

Acelerador — disse Edilio, apontando para uma alavanca com ponta vermelha. — Isso faz ele andar.

É. Espera aí.

Sam moveu a alavanca um pouquinho. O barco saltou adiante e bateu numa estaca. Sam foi sacudido, mas não chegou a cair. Edilio agarrou a borda e se segurou com força. Quinn caiu sentado na proa.

A proa passou raspando na estaca e, quase por acidente, terminou virada para o mar aberto.

Talvez seja melhor ir devagar no começo — disse Edilio.

Pare! Pare esse barco — gritou Ore ofegante, correndo pelo cais. — Vou arrebentar a cabeça de vocês, seus idiotas.

Sam guiou a lancha -— com sorte — na direção certa e foi se afas­tando lentamente. Agora Ore não conseguiria pular no barco de jeito nenhum.

Caine vai matar vocês — gritou Panda.

Quinn, seu traidor — berrou Howard.

Diga que eu obriguei você a fazer isso — disse Sam.

O quê?

Diga — sibilou Sam.

Quinn ficou de pé, pôs as mãos em concha e gritou:

Ele me obrigou a fazer isso.

Agora diga que estamos indo para a usina nuclear.

Cara.

Diga — insistiu Sam. — E aponte.

Nós vamos para a usina nuclear — gritou Quinn. E apontou para o norte.

Sam soltou o volante, girou e deu um gancho de esquerda, com força, no rosto de Quinn, que caiu sentado de novo.

Que diab...

Tive de fazer com que parecesse real — disse Sam. Não era um pedido de desculpas.

Agora o barco estava na área livre. Sam levantou a mão bem acima da cabeça, com o dedo médio estendido, avançou o acelerador mais um pouquinho e virou para o norte, em direção à usina.

Qual é a parada? — perguntou Edilio, perplexo. E ficou bem longe de Sam, para o caso de Sam decidir lhe dar um soco também.

Ela não deve estar na usina — disse Sam. — Vai estar no Penhas­co. Só vamos para o norte enquanto Ore estiver olhando.

Você mentiu para mim — acusou Quinn. Ele estava mexendo no queixo, certificando-se de que o maxilar continuava ligado ao resto do rosto.

E.

Não confiou em mim.

Ore, Howard e Panda desapareceram de vista, presumivelmente correndo de volta para a cidade, indo informar ao Caine. Assim que teve certeza de que eles haviam ido embora, Sam girou o volante, em­purrou o acelerador até o final e foi para o sul.

Drake morava numa casa vazia perto da praça. Era uma caminhada de menos de um minuto até a prefeitura. O lugar pertencera a um sujeito que vivia sozinho, era pequena, com só dois quartos, muito limpa, muito organizada, como Drake gostava das coisas.

O cara, o dono — Drake esquecera o nome dele — tinha armas. Três no total, uma espingarda calibre 20, um rifle de caça 30-06 com mira telescópica, e uma pistola semiautomática Glock 9mm.

Drake mantinha as três armas carregadas o tempo todo. Ficavam sobre a mesa de jantar, à mostra, algo para ser contemplado com amor.

Naquele momento sopesou o rifle. O cabo era liso como vidro, poli­do até brilhar. Cheirava a aço e óleo. Ele hesitou quanto a levar o rifle porque nunca havia atirado antes com arma de cano longo. Não fazia idéia de como usar a mira telescópica. Mas não poderia ser difícil, não é?

Enfiou o braço pela alça de couro e testou a liberdade de movimen­to dos ombros. A arma era pesada e um pouco comprida. A culatra com almofada de borracha chegava até a parte de trás da coxa. Mas Drake conseguia andar carregando-a.

Depois sopesou a pistola. Apertou o cabo com ranhuras entrecruzadas e envolveu o gatilho com o dedo. Drake adorava a sensação dessa arma na mão.

Seu pai havia lhe ensinado a atirar, usando a pistola de serviço, Drake ainda se lembrava da primeira vez. Carregar as balas no pente. Enfiar o pente no cabo da arma. Empurrar o cursor para pôr uma bala no lugar. Apertar a trava.

Clique. Travada.

Clique. Mortal.

Lembrou-se de que seu pai o havia ensinado a segurar o cabo com força, mas não com força demais. Descansar a mão direita na palma da esquerda e mirar com cuidado, virar o corpo de lado para apresen­tar um alvo menor caso alguém estivesse atirando de volta. Seu pai tivera de gritar, porque os dois usavam proteção para os ouvidos.

— Se estiver atirando num alvo, centre a mira da frente na fenda da mira de trás. Levante até que as miras estejam bem embaixo do alvo. Solte o ar lentamente e aperte.

O primeiro estrondo, o coice, o modo como a arma recuou 15 centímetros, o cheiro de pólvora — estava tudo claro na mente de Drake, a lembrança mais clara de todas que tinha.

Seu primeiro tiro havia errado completamente o alvo.

O mesmo aconteceu com o segundo, porque depois de sentir o coice da primeira vez ele havia se encolhido em antecipação.

O terceiro tiro acertou o alvo, tirando um pedacinho do canto in­ferior.

Naquele primeiro dia, disparou uma caixa de munição e, quando havia terminado, estava acertando aquilo em que mirava.

E se eu não estiver atirando em alvos? — perguntara ao pai. — E se estiver atirando numa pessoa?

Não atire numa pessoa — respondera o pai. Mas então cedeu, aliviado, sem dúvida, por encontrar algo que podia compartilhar com o filho perturbador. — Pessoas diferentes vão ter técnicas diferentes. Mas pessoalmente, digamos que estou cuidando de um sinal de trân­sito e acho que vi o cidadão tentando pegar uma arma, e acho que talvez tenha de dar um tiro rápido. Simplesmente aponto. Aponto como se o cano fosse um sexto dedo. Você aponta e, se tiver de dispa­rar, dispara metade do carregador de uma vez, bang, bang, bang, bang.

Por que tantas vezes?

Porque, se você tiver de atirar, atire para matar. Numa situação assim, você não mira com cuidado na cabeça ou no coração, aponta para o centro da massa e espera conseguir um tiro de sorte mas, se não tiver, se só acertar ombro ou barriga, a pura velocidade do tiro vai derrubar o cara.

Drake não achava que seriam necessários seis tiros para matar Astrid.

Lembrava-se com detalhes nítidos, em câmera lenta, da vez em que havia atirado em Holden, o filho do vizinho que gostava de vir chateá-lo. Tinha atingido o garoto na coxa, com uma arma de pequeno cali­bre, e mesmo assim ele quase morreu. Aquele "acidente" havia posto Drake na Coates.

Agora estava segurando uma Glock 9mm, menos poderosa do que o Smith & Wesson calibre 45 de seu pai, mas muito mais do que a 22 que tinha usado contra Holden.

Um tiro bastaria. Um para a loura metida a besta, um para o retar­dado. Seria maneiro. Ele voltaria e faria o relatório a Caine: "Dois alvos, dois tiros". Isso tiraria aquele risinho da cara de Diana.

A casa de Astrid não ficava longe. Mas o truque seria pegá-la antes que o irmãozinho usasse o poder para sumir de novo.

Drake odiava o poder. Só havia um motivo para Caine, e não Drake, estar comandando o show: os poderes de Caine.

Mas Caine sabia que os garotos com poder tinham de ser controla­dos. E, assim que Caine e Diana tivessem todas as aberrações sob con­trole, o que impediria Drake de usar seus 9mm de magia para pegar tudo para si?

Uma coisa de cada vez.

Da metade do quarteirão, olhou para a casa de Astrid. Procurando qualquer sinal do cômodo em que ela poderia estar.

Esgueirou-se pelos fundos e subiu para a varanda de trás. A porta estava trancada. Qualquer um que trancasse a porta de trás trancaria a da frente, mas talvez não as janelas. Ele pulou no corrimão da varan­da e se inclinou para fazer força contra a janela, que deslizou para cima com facilidade. Não era uma coisa fácil passar pela janela sem fazer muito barulho.

Levou dez minutos para examinar cada cômodo da casa, olhar em cada armário, embaixo de cada cama, atrás de cada cortina, até mes­mo nos espaços apertados do sótão.

Então sentiu um momento de pânico. Astrid podia estar em qual­quer lugar. Ele pareceria um idiota se não a pegasse.

Para onde ela iria?

Verificou a garagem. Nada ali. Nem carros, certamente nada de Astrid. Mas havia um cortador de grama, e onde havia um cortador de grama haveria... é, uma lata de gasolina.

Imaginou o que aconteceria se Astrid e o retardado se teletransportassem para uma casa em chamas.

Abriu a lata de gasolina, foi até a cozinha e começou a derramar a gasolina nas bancadas, na sala de estar, um bocado nas cortinas e fa­zendo uma trilha até a sala de jantar, por cima da mesa e mais um bocado nas cortinas da frente.

Não conseguiu achar um fósforo. Rasgou um pedaço de toalha de papel e acendeu no fogão. Jogou o papel aceso na mesa da sala de jantar e saiu pela porta da frente, sem se incomodar em fechá-la.

— Este é um lugar onde ela não vai poder se esconder — disse a si mesmo.

Correu de volta à praça e subiu a escadaria da igreja. A igreja tinha uma torre. Não era muito alta, mas teria uma boa visão da cidade.

Subiu pela escada circular. Empurrou um alçapão e subiu até um espaço apertado, empoeirado e cheio de teias de aranha tomado por um sino. Com cuidado, evitou encostar nele — o som iria longe.

As janelas estavam fechadas, cobertas por venezianas que deixavam o ar passar e o som sair, mas só lhe permitiam ver o que estava embai­xo. Usou a coronha do rifle para arrebentar a primeira janela. Ela tombou no chão embaixo.

Crianças que estavam na praça olharam para cima. Tudo bem. Quebrou as outras três janelas e elas caíram com estrondo. Agora ti­nha uma visão irrestrita, em todas as direções, por cima das telhas la­ranjas de Praia Perdida.

Começou a partir da casa de Astrid, que já estava começando a soltar fumaça. Prosseguiu metodicamente, um caçador, procurando qualquer movimento. A cada vez que via alguém andando, a pé ou de bicicleta, olhava pela mira telescópica do rifle, colocava as pessoas nas linhas cruzadas.

Sentia-se como um Deus. Só precisava apertar o gatilho.

Mas nenhuma das formas que se moviam lá embaixo era Astrid. Não havia como se enganar com aquele cabelo louro. Não. Não era Astrid.

Então, justo quando estava desistindo, viu atividade na marina. Gi­rou a mira telescópica e, de repente, Sam Temple estava nítido no círculo claro. Por um momento, a cruz da mira estava no peito dele. Mas então ele sumiu. Havia pulado num barco.

Impossível. Caine estava com Sam na escola. Como havia saído?

Edilio e Quinn também estavam no barco, afastando-se. Drake po­dia ver a água borbulhando do motor.

Quinn. Era como Sam havia fugido. Tinha de ser.

Drake teria uma bela conversa com Quinn.

No cais, pôde ver Ore sacudindo um bastão, gritando, incapaz de fazer qualquer coisa. O barco ganhou velocidade e virou para o norte, deixan­do uma esteira branca e longa como uma flecha desenhada na água.

Não havia dúvida de que Sam tentaria encontrar Astrid. E estava indo para o norte.

Para a usina nuclear. Tinha de ser.

Drake xingou e, de novo, apenas por um momento, sentiu um medo quase desesperado de fracassar com Caine. Não estava preocu­pado com o que Caine faria com ele — afinal de contas, Caine preci­sava dele — mas sabia que, se fracassasse em cumprir as ordens de Caine, Diana riria.

Pousou o rifle. Poderia chegar à usina antes de Sam?

De jeito nenhum. Mesmo que pegasse um barco estaria apostando corrida. Um carro? Talvez. Mas não sabia o caminho e a viagem de barco seria mais direta. Ele demoraria um tempo para chegar à marina e... mas, espera. Espera um minuto.

A lancha estava fazendo uma curva.

— Você é bem esperto, Sam — sussurrou Drake. — Mas não o su­ficiente.

Pela mira pôde vislumbrar a expressão de Sam ao volante, com o vento no rosto, tendo escapado de Caine, tendo enganado Ore, e ago­ra todo presunçoso e seguro de si, enquanto acelerava para o sul.

Não havia como atirar desta distância. Drake sabia disso.

Girou a mira da arma para o sul e parou na barreira. Sam não iria muito longe naquela direção.

A praia na base do penhasco? Se ela estivesse lá embaixo, Drake jamais poderia alcançá-la antes de Sam chegar de lancha. Se ela esti­vesse lá embaixo, o jogo estava terminado.

Mas e se não... se, digamos, ela estivesse no hotel, no Penhasco? Nesse caso ele teria chance, se andasse depressa.

Não seria fantástico atirar nela bem onde Sam Temple pudesse as­sistir?

 

                         127 HORAS E 45 MINUTOS

ASTRID QUASE DEIXOU de ver o barco. Tinha ido à janela só para fe­char as venezianas, mas com o canto do olho viu a lancha à distância, a única coisa sobre a água.

Por um breve momento, imaginou se seriam adultos, alguém vindo resgatá-los do LGAR. Mas não, se o resgate viesse de fora do LGAR, não seria numa única lancha.

E, de qualquer modo, Astrid estava convencida de que ninguém viria. Pelo menos por enquanto. Provavelmente nunca.

Forçou a vista, mas não pôde ver quem estava no barco. Se ao me­nos tivesse um binóculo! Pareciam ser três pessoas. Talvez quatro. Não dava para ter certeza. Mas o barco vinha se aproximando.

Ajoelhou-se para ver o que ainda havia no frigobar. Na estadia an­terior, ela, Sam e Quinn tinham acabado com quase tudo. Só restavam algumas castanhas de caju.

Teria de alimentar o Pequeno Pete logo. Antes que as pessoas do barco chegassem.

— Venha, Petey — disse, puxando-o da beira da cama. — Venha, vamos arranjar comida. Nham nham? — disse, usando uma expressão-gatilho que às vezes funcionava. — Nham nham?

Poderiam ir ao restaurante do Penhasco e provavelmente encontra­riam alguma coisa, talvez preparar um sanduíche de frango ou algo assim, ou pelo menos encontrar algum iogurte. Ou poderiam arriscar menos e simplesmente esvaziar os frigobares dos outros quartos.

Abriu a porta. Olhou o corredor. Estava vazio.

Barras de chocolate — disse, percebendo que não tinha coragem de descer ao restaurante.

O quarto ao lado tinha um frigobar, mas estava sem a chave na tranca. Experimentou mais quartos antes de perceber que simples­mente tinha tido sorte naquela primeira noite. Todos os frigobares estavam trancados. Mas, pensou, talvez todas as chaves fossem inter-cambiáveis.

Venha, vamos voltar ao nosso quarto — disse.

Nham nham — protestou o Pequeno Pete.

Nham nham — confirmou Astrid. — Venha, Petey.

Saíram para o corredor de novo, e então ela ouviu o ping de um elevador. Os suaves motores elétricos abrindo a porta.

Seria Sam? Imobilizou-se, travada entre o medo e a esperança.

O medo venceu.

O elevador estava no fim do corredor, depois de uma esquina. As­trid tinha segundos.

Venha — sussurrou, e empurrou o Pequeno Pete. Com os dedos agitados, passou o cartão-chave na fenda. Rápido demais. Precisava fazer isso mais devagar. De novo. Continuou sem luz verde. Mais uma vez e agora pôde ouvir a porta do elevador fechando.

Era ele. De repente, teve certeza que era o Drake.

Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. — Foi a única oração em que conseguiu pensar.

Tentou a chave de novo. A luz verde piscou.

Virou a maçaneta.

Ele estava ali. No fim do corredor. Parado com um rifle pendurado no ombro e uma pistola na mão.

Astrid quase desmaiou.

Drake riu, levantou a pistola e mirou.

Astrid empurrou o Pequeno Pete para o quarto e entrou depois dele.

Bateu a porta e virou o trinco. Depois acrescentou a tranca de se­gurança.

Um barulho incrivelmente alto.

Surgiu um buraco do tamanho de uma moeda na porta, com o me­tal franzido para fora.

Outra explosão e a maçaneta estava pendurada pela metade.

O Pequeno Pete poderia salvá-los. Poderia. Ele tinha o poder, mas ainda estava calmo, ainda não percebera nada.

Inútil.

A varanda. Era a única saída.

Petey, venha! — disse rouca.

Nham nham — insistiu ele.

Drake se jogou contra a porta, mas ela agüentou. A tranca ainda estava no lugar.

Ele disparou de novo e de novo, frustrado, tentando arrebentar a tranca.

Estava aterrorizado com a possibilidade de Petey teletransportá-los de novo.

Astrid precisava fazer com que ele acreditasse que isso havia acon­tecido.

Arrastou o Pequeno Petey para a varanda, abriu a porta e olhou para baixo. O chão ficava longe. Longe demais. Mas havia outra va­randa diretamente abaixo deles.

Passou por cima do corrimão, morrendo de medo, tremendo, mas sem alternativa.

Como poderia fazer com que o Pequeno Petey fosse atrás? Agora ele estava fixado em comida.

Game Boy — sussurrou, e empurrou o brinquedo para perto do rosto dele. — Venha, Petey, venha, Game Boy.

Guiou o irmão, fazendo-o passar pelo parapeito, pôs a mão dele no corrimão — só uma, porque agora ele estava no jogo de novo, perdido em seu jogo idiota, calmo demais para usar o poder, imprevisível demais.

Bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus — soluçou Astrid.

Isso não ia dar certo. Ela conseguiria, mas como poderia fazer o irmão acompanhá-la?

Ele era pequeno. Ela poderia pendurá-lo. Poderia segurá-lo pelos poucos segundos necessários.

Santa Maria, mãe de Deus...

Agarrou o corrimão com a mão esquerda, segurou o pulso do Pe­queno Pete com a direita e arrancou-o do corrimão. Ele caiu. Ela pe­gou-o, seguro pelas unhas, e então ele estava caindo. Bateu na poltro­na da varanda embaixo.

Ele havia batido com força. Estava atordoado.

Astrid ouviu Drake batendo de novo contra a porta e escutou um som de madeira lascada quando a tranca cedeu. Agora só a frágil corrente ainda segurava a porta, e ele iria passar por isso num instante.

...rogai por nós, pecadores, agora...

Girou para baixo e quase caiu em cima do Pequeno Pete. Não ha­via tempo para pensar na dor lancinante na perna, não havia tempo para o sangue e a pele arranhada, só para agarrar o Pequeno Pete, abraçá-lo, abraçá-lo com força e recuar contra a porta de vidro da varanda.

Banco da janela, banco da janela, bebê, banco da janela — sus­surrou, com a boca encostada no ouvido dele.

Ouviu Drake no quarto acima.

Ouviu-o abrir a porta e sair à varanda.

Os dois estavam fora do seu campo de visão. Drake só os veria se se inclinasse bem para longe.

"Rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte", termi­nou a oração em silêncio e continuou apertando o irmão.

Amém.

Ouviu Drake xingar furioso.

Conseguiram. Ele pensou que os dois haviam desaparecido.

Obrigado, meu Deus, rezou Astrid em silêncio.

E então o Pequeno Pete começou a choramingar.

O jogo havia caído quando ela o largou na varanda de baixo. A parte de trás estava aberta e uma das pilhas tinha rolado para longe. E agora o Pequeno Pete estava tentando fazer com que ele funcionasse, mas não funcionava.

Astrid quase soluçou alto.

Drake parou de xingar.

Ela olhou para cima, e ali estava ele, inclinado para longe por cima das grades. O riso de tubarão era largo.

A arma estava em sua mão, mas ele não conseguia um ângulo para acertá-los, por isso passou por cima do corrimão, agachou-se como Astrid havia feito e agora podia vê-los claramente.

Mirou.

Deu uma gargalhada.

E, de repente, berrou de dor e caiu.

Astrid saltou para perto do corrimão. Drake estava na grama abai­xo, esparramado de costas, inconsciente, caído sobre o rifle e com a pistola ao lado.

Astrid — disse Sam.

Ele estava acima dela, ainda segurando o abajur que tinha usado para acertar a mão de Drake, inclinando-se por cima do corrimão.

Sam.

Você está bem?

Assim que pegar a pilha do Petey, vou ficar. — Isso pareceu idio­ta e ela quase gargalhou.

Estou com um barco lá na praia.

Para onde nós vamos?

Que tal para qualquer lugar longe daqui?

 

                           127 HORAS E 42 MINUTOS

FAZIA DOIS DIAS desde que Lana tinha sobrevivido aos coiotes. Aos coiotes falantes. Dois dias desde que sua vida fora salva por uma co­bra. Uma cobra voadora.

O mundo tinha enlouquecido.

Lana havia molhado a grama naquela manhã, tendo o cuidado de se manter atenta a coiotes e cobras. Prestava atenção a cada latido, rosnado ou estremecimento de Patrick. Ele era seu sistema de alarme. Nos velhos tempos, os dois haviam sido dona e bicho de estimação, ou talvez pudéssemos dizer amigos. Mas agora eram uma equipe, parcei­ros num jogo de sobrevivência: os sentidos de Patrick, o cérebro dela.

Era uma coisa idiota a fazer, molhar a grama, já que não dava para ter certeza de que haveria água suficiente para ela própria. Mas o dono daquela arruinada residência no deserto tinha amado aqueles poucos metros de grama. Era um ato de desafio contra o deserto. Desafio, ainda que ele tivesse optado por viver ali no meio de absolutamente nada.

De qualquer modo, num mundo maluco, por que ela não seria louca também?

O dono da cabana se chamava Jim Brown. Ela descobriu isso em papéis na escrivaninha dele. O velho e simples Jim Brown. Não havia fotos dele, mas tinha apenas 48 anos, um pouco novo demais, pensou Lana, para deixar a civilização para trás e virar ermitão.

O barracão atrás da cabana tinha pilhas de ração de sobrevivência até o teto. Absolutamente nada fresco, mas uma quantidade suficiente de latas de biscoitos enlatados, latas de creme de amendoim, pêssego em calda, coquetel de frutas, cozido, carne processada e refeições no estilo militar, prontas para comer, capazes de durar um ano para Lana e Patrick. Talvez mais.

Não havia telefone. Nem TV ou qualquer equipamento eletrônico. Nem ar-condicionado para suavizar o calor brutal da tarde. Não havia eletricidade. As únicas coisas mecânicas eram o moinho de vento que virava a bomba que trazia a água do lençol freático abaixo e um esme­ril movido a pedal, usado para afiar picaretas, pás e serrotes. Havia um bom número de picaretas, pás, serras e marretas.

Também existia evidências da existência de um carro ou caminho­nete. Marcas de pneus atravessavam a areia a partir de uma espécie de garagem meio tombada de encontro à casa. Havia latas de óleo vazias no lixo e dois tanques de aço vermelhos, de 100 litros, que pelo chei­ro deviam estar cheios de gasolina.

Mais atrás ficava um monte de dormentes ferroviários, bem-arrumados numa pilha quadrada. Ao lado disso, madeira em tamanho me­nor, boa parte eram caibros usados, com marcas de pregos.

O ermitão Jim, como Lana pensava nele, devia ter saído. Talvez tivesse partido para sempre. Talvez o que acontecera com seu avô ti­vesse acontecido com ele também, e agora ela fosse a única pessoa que restava viva no mundo.

Não queria estar ali, caso ele voltasse. Não tinha como saber se era possível confiar num homem que morava num vale causticante, entre morros empoeirados, no fim de lugar nenhum, e que possuía um gra­mado luxuriante como um campo de golfe.

Lana terminou de molhar a grama e espirrou água em Patrick, brin­cando, antes de desligar a mangueira.

— Quer um pouco de cozido, garoto? — perguntou ao cachorro.

Entrou na frente. Dentro, a cabana parecia um forno, tão quente que ela começou a suar antes de passar pela porta, mas Lana não pen­sou que jamais reclamaria de algo tão pequeno. Principalmente depois do que havia passado.

Calor? Grande coisa. Tinha água, comida e todos os seus ossos es­tavam inteiros, isso já era bom.

O cozido vinha numa lata grande. Sem refrigeração, precisavam comer tudo antes que estragasse, por isso era cozido depois de cozido, até acabar. Mas pelo menos havia coquetel de frutas para a sobremesa. Amanhã talvez ela abrisse uma das latas grandes de pudim de baunilha e simplesmente comesse pudim durante uns dois dias.

Não havia fogão, só um fogareiro de uma boca. Nem pia. Havia uma única cadeira e uma mesa, e um catre desconfortável encostado numa parede. A única decoração era um puído tapete persa no centro do cômodo único. O melhor lugar para se sentar na casa era uma pol­trona que se reclinava, fedorenta, mas confortável, sobre esse tapete. Estava travada na posição reclinada, mas, para Lana, tudo bem. Ela adorava se recostar e levar as coisas numa boa.

A única coisa a fazer era ler. O ermitão Jim tinha exatamente 38 livros. Ela os havia inventariado. Havia romances relativamente re­centes, de Patrick O'Brien, Dan Simmons, Stephen King e Dennis Lehane, e alguns livros que ela supunha que fossem de filosofia, de escritores como Thoreau. Havia clássicos cujos nomes pareciam fami­liares: Oliver Twist, O lobo do mar, O sono externo, Ivanhoé.

Nada tinha exatamente atraído sua atenção, nenhum livro de J. K. Rowling ou Meg Cabot, nada para jovens. Mas no decorrer do pri­meiro dia, ela havia lido Orgulho e preconceito inteiro e agora estava começando O lobo do mar. Nenhum dos dois era fácil. Mas Lana não tinha nada além de tempo.

— Não podemos ficar aqui, Patrick — disse, enquanto o cão ataca­va sua tigela de cozido. — Cedo ou tarde, teremos de ir embora. Meus amigos devem estar preocupados. Todo mundo deve estar. Até mamãe e papai. Eles devem achar que estou morta.

Mas, mesmo ao dizer essas palavras, Lana tinha dúvidas. Não res­tava muito a fazer já que havia feito um inventário da comida, por isso passava a maior parte do tempo sentada na cadeira, lendo, ou simples­mente olhando a paisagem do deserto. Puxava a cadeira para a porta, onde poderia ter um pouco de sombra, e olhava os morros em volta, para além do gramado. Tinha dominado o truque de ler um parágrafo de cada vez, levantando os olhos para examinar a área em busca de algum perigo, verificando sinais de alerta em Patrick, depois afundan­do de novo no livro para outro parágrafo.

Depois de um tempo, o vazio interminável começou a minar seu espírito de otimismo, que nunca fora muito forte.

A barreira continuava lá. Ficava atrás da cabana, não em seu campo de visão, a não ser que ela se afastasse.

Lana levou uma caneca de estanho até a porta, pretendendo beber enquanto dava outra olhada no gramado, e de repente ali estava Patrick, correndo para ela. Seu pelo estava eriçado. Ele balançava a cabeça como se tivesse um ataque.

Entra! — gritou Lana.

Manteve a porta aberta. Patrick entrou a toda velocidade. Ela ba­teu a porta e fechou o trinco.

Patrick bateu no tapete, deslizou, rolou duas vezes e acabou numa posição sentada. Havia algo em sua boca. Algo vivo.

Lana se aproximou cautelosamente. Abaixou-se para ver.

Um lagarto chifrudo? É isso que você tem aí? Você quase me matou de medo por causa de um lagarto chifrudo? — Ela sentiu o coração bater forte enquanto voltava a funcionar. — Cuspa essa coisa. Nossa, Patrick, eu conto com você e você pira de vez por causa de um lagarto chifrudo idiota?

Patrick não queria abrir mão de sua presa. Lana decidiu deixar que ele ficasse com o bicho. Aquela coisa estava morta, de qualquer modo, e ela achou que Patrick tinha direito à sua própria versão de loucura.

Leve para fora e você pode ficar com ele — disse. Em seguida, foi para a porta, mas primeiro se ajoelhou para ajeitar o tapete. Então notou o alçapão no piso.

Puxou o tapete mais para longe, dobrando-o por cima da poltrona reclinável.

Hesitou, sem certeza se queria ver o que havia debaixo das tábuas do chão. Talvez o ermitão Jim fosse Jim, o assassino em série.

Mas não tinha mais nada para fazer. Empurrou a poltrona para o lado e enrolou o tapete. Havia uma argola de aço embutida. Puxou-a.

No espaço embaixo, viu tijolos de metal bem empilhados, cada um com 15 ou 20 centímetros de comprimento e 5 a 7 de espessura.

Na mente de Lana não existia dúvida do que era aquilo.

Ouro, Patrick. Ouro.

As barras de ouro eram pesadas, com 10 quilos ou mais, mas ela levantou um número suficiente para conseguir ver o tamanho da pilha. Avaliou que haveria 14 no total, cada uma com pelo menos 10 quilos.

Lana não fazia idéia do valor do ouro, mas sabia quanto custava um par de brincos de argola de ouro.

Isso é um monte de brincos — disse.

Patrick olhou perplexo para o buraco.

Sabe o que isso significa, Patrick? Todo esse ouro aqui e todas aquelas picaretas e pás lá fora? O ermitão Jim é mineiro de ouro.

Correu para fora, até a pseudo-garagem onde o ermitão Jim coloca­va a caminhonete. Patrick veio junto, esperando uma brincadeira. Às vezes, ela jogava um cabo de machado quebrado para ele pegar, mas hoje Patrick ficaria desapontado.

Pela primeira vez, Lana acompanhou com cuidado as marcas de pneus. Elas estavam ficando mais fracas, mas continuavam visíveis. A 30 metros da casa, elas se separavam. Algumas marcas, aparentemente mais antigas, iam numa direção, sudeste, provavelmente para Praia Perdida. Marcas um tanto mais novas iam em direção à base das mon­tanhas ao norte.

Ela acreditava que Praia Perdida estaria a uns 25, 30 quilômetros dali, uma caminhada muito longa no calor. Mas se a mina ficasse na base das montanhas, não seria nem mesmo a um décimo dessa distân­cia. O ermitão Jim ainda poderia estar lá, de qualquer modo.

Sentia uma aversão profunda pela idéia de se aventurar no ermo de novo. Tinha chegado muito, muito perto de morrer, da última vez. E os coiotes ainda podiam estar por ali, esperando pacientes. Mas o quilômetro e meio até a mina? Ela poderia fazer isso.

Encheu uma garrafa de plástico com água. Engoliu o máximo de água possível e se certificou de que Patrick também se hidratasse. En­cheu os bolsos com coisas fáceis de comer e pôs mais numa toalha que torceu, formando uma bolsa. Cobriu-se de filtro solar tirado de um kit médico de emergência.

Vamos dar uma volta, Patrick.

Edilio riu quando Astrid ocupou o banco no lado esquerdo da lancha Boston Whaler.

Graças a Deus. Agora pelo menos temos uma pessoa inteligente nesse barco.

Edilio e Quinn empurraram a lancha para fora da areia, de volta às ondas suaves. Subiram a bordo e depois balançaram as pernas do lado de fora para tirar a areia.

Sam guiou o barco para o mar, na direção da barreira. Esperava que Drake estivesse morto ou pelo menos muito ferido. Mas não tinha certeza e queria se afastar bastante, antes que aquele psicopata come­çasse a atirar neles.

Ocorreu a Sam que nunca na vida havia desejado a morte de al­guém. Oito dias tinham se passado desde a chegada do LGAR. Oito dias e ele vira loucura suficiente para o resto da vida. E agora estava fantasiando sobre a morte de um garoto.

Assim que empurrou o acelerador para a frente e estava fora do alcance de qualquer projétil, começou a sentir-se melhor. Isso era o mais próximo de surfar que chegava desde o início do LGAR. As on­das eram curtas e nem um pouco impressionantes, mas a lancha batia nelas com uma força maravilhosa, que se traduzia subindo por suas pernas, chacoalhava os dentes e trazia um sorriso aos seus lábios. Os borrifos salgados voavam e, para Sam, era difícil ficar sério quando os borrifos do mar batiam em seu rosto.

Obrigado, Edilio. Você também, Quinn — disse Sam. Ainda es­tava furioso com Quinn, mas agora todos estavam, muito literalmen­te, no mesmo barco.

Veja o quanto vai me agradecer quando eu vomitar nesse barco inteiro — disse Edilio. Ele estava meio verde.

Sam se lembrou de manter uma distância segura da barreira do LGAR, mas ao mesmo tempo queria mantê-la próxima. Ainda havia a tentadora possibilidade de uma fenda, um portão, uma abertura pela qual pudessem todos ir embora e dar adeus a essa loucura.

Longe, ao norte, podia ver os penhascos que marcavam a angra ocupada pela usina. Para além disso, apenas uma mancha na névoa, a silhueta de uma ilha, a mais próxima de meia dúzia de pequenas ilhas particulares.

Astrid havia apanhado os coletes salva-vidas e estava prendendo um no Pequeno Pete. Edilio aceitou um também, mas Quinn recusou.

Astrid também encontrou um pequeno isopor cheio de refrigeran­tes quentes, um pão e o resto do material para sanduíches de creme de amendoim e geléia.

Não vamos morrer de fome — disse. — Pelo menos não agora.

A barreira estava à esquerda deles, uma parede terrível, imponente, vazia. As ondas batiam nela, um som impaciente. A água também que­ria escapar.

Sam era um peixe num aquário e a parede do LGAR era a lateral do aquário. Era o mesmo mistério translúcido que em terra firme.

Seguiu ao longo dela até ver que o Penhasco não era maior do que um LEGO empoleirado numa fina fita de areia. Praia Perdida parecia uma pintura a óleo, pontos e manchas coloridas sugerindo uma cida­de, sem dar qualquer detalhe.

Vou tentar uma coisa — anunciou ele.

Sam desligou o motor. O barco parecia querer deslizar ao longo da parede. Havia uma corrente, bem fraca, mas discernível. A corrente perseguia a lateral da parede, afastando-se da terra, seguindo a longa curva que penetrava mais no mar.

Temos uma âncora? — perguntou Sam.

A resposta foi um som de ânsia de vômito. Sam desviou o olhar enquanto Edilio abria mão do almoço.

Não faz mal — disse Sam. — Eu procuro.

Não havia âncora. Mas ele notou que Astrid estava fazendo san­duíches de creme de amendoim e geléia. Entregou um a Sam.

Ele não havia percebido como estava faminto. Enfiou metade do sanduíche na boca.

É por isso que chamam você de Astrid Gênio — murmurou através do creme de amendoim.

Cara, não fala em comida — gemeu Edilio.

Sam fez uma busca na pequena lancha. Não havia âncora em lugar nenhum, mas havia alguns pára-choques que ele pendurou na lateral, para o caso de roçar na barreira. E havia um rolo de corda de náilon azul e branca. Amarrou uma ponta bem firme num gancho e a outra no tornozelo. Tirou a camisa e chutou os tênis, ficando de bermuda. Remexendo num dos depósitos do porão, encontrou uma chave de fenda comprida.

O que você está fazendo? — perguntou Quinn.

Sam o ignorou.

Edilio, cara, você vai sobreviver?

Espero que não — respondeu Edilio, com os dentes trincados.

Vou mergulhar, ver se posso passar por baixo da barreira.

Astrid pareceu cética, preocupada, mas Sam podia ver que ela esta­va pensando consigo mesma, aflita. Provavelmente, tentando absorver o fato de que quase fora morta a tiros.

Eu puxo, se você se embolar — disse Quinn.

Sam assentiu, não se sentindo preparado para falar com Quinn. Nem sabendo se algum dia conseguiria falar com Quinn novamente. Então entrou na água.

A água era uma amiga bem-vinda. Fria, um choque, mas bem-vinda. Ele riu do gosto de sal.

Respirou fundo algumas vezes, prendeu a última respiração e mer­gulhou. Nadou com pernadas fortes e uma das mãos livre, enquanto a outra segurava a chave de fenda para se manter longe da parede do LGAR. Não queria ser jogado contra ela. Tocar com um dedo havia doído. Encostar um ombro ou uma coxa não seria agradável.

Desceu e desceu. Desejou ter pensado em usar algum equipamento de mergulho ou pelo menos pegar uma máscara e pés de pato na mari­na, mas na ocasião estivera meio preocupado. A água era bastante lím­pida, mas mesmo assim a visibilidade era reduzida à sombra da barreira.

Quando chegou ao fim do fôlego, deu um golpe na direção da bar­reira. A chave de fenda não acertou em nada, e ele sentiu um jorro momentâneo de empolgação, que desapareceu quando o golpe se­guinte parou contra uma resistência sólida.

Partiu para a superfície e ofegou, buscando o ar.

A barreira se estendia pelo menos 4 metros abaixo da superfície. Se houvesse um fundo, ele teria de encontrá-lo usando um tanque de ar e pés de pato.

O barco estava balançando contra a barreira, a 15 metros de dis­tância. Sam ouviu o estalo nítido e o pff quando Astrid abriu uma Coca para o Pequeno Pete. Quinn estava sentado na proa segurando a corda, e Edilio ainda parecia a ponto de vomitar uma parte do fígado.

Sam nadou até a lancha, demorando-se, gostando demais da água na pele para sentir-se frustrado por não ter encontrado uma saída do LGAR.

Ouviu o som do motor e os estalos dos impactos contra as ondas antes de ver o barco. Chutou com força para levantar a cabeça acima da água o suficiente para ver.

Ei — gritou.

Quinn tinha ouvido o motor ao mesmo tempo.

Barco chegando. Depressa — gritou Quinn.

De onde?

Da cidade — informou Quinn. — Depressa.

 

                                 126 HORAS E 10 MINUTOS

SAM NADOU A toda velocidade e logo estava na borda da lancha Bos­ton Whaler. Quinn puxou-o a bordo e Sam passou por cima da borda e rolou no convés.

Num segundo estava de pé e viu a grande lancha, do tipo que cha­mavam de lancha cigarrete, vindo para eles, a menos de 400 metros de distância. O barco produzia uma enorme onda de proa. No volante estava um garoto que Sam não reconheceu de longe. De pé, agarrando-se como se não quisessem perder a vida, Howard e Ore. Nada do Drake.

Não podemos ir mais rápido do que eles — disse Quinn.

A adrenalina parecia ter acalmado o estômago de Edilio.

Talvez, cara, mas só vamos saber quando tentarmos.

Não, Quinn está certo — disse Sam. —Astrid, segure o Pequeno Pete.

Edilio puxou a corda, com as duas mãos voando rápidas. Não po­diam deixá-la na água, para não atrapalhar a hélice.

Assim que a corda estava a bordo, Sam empurrou o acelerador e rapidamente ganhou velocidade seguindo ao longo da barreira. O bar­co de Ore fez uma curva para acompanhá-lo.

Segurando o irmão, Astrid olhou por cima da amurada e gritou:

Ele está apenas seguindo, não quer nos interceptar.

Sam demorou um segundo para entender o que ela queria dizer. A lancha cigarrete poderia ter estabelecido um ângulo de interceptação e cortado facilmente o caminho deles. Mas o piloto não havia pensado nisso.

Quase tarde demais, o piloto da lancha rápida virou para a direita, tentando ficar atrás de Sam, mas a curva foi malfeita e a velocidade era grande demais. A lancha bateu de lado na barreira com uma pancada surpreendentemente alta, parecendo a de um bumbo. Então, quan­do a hélice ganhou sustentação de novo, a lancha saltou adiante e passou a toda velocidade pelo barco de Sam.

Segurem firme — alertou Sam.

A onda provocada pela lancha cigarrete passou por cima da Whaler e fez com que ela se chocasse contra a barreira. Sam foi sacudido, mas se manteve firme, com os pés descalços lutando para encontrar tração no convés que se inclinava feito louco.

A Boston Whaler permaneceu virada para cima, e quando a hélice encontrou água de novo ganhou velocidade. Dispararam à direita da lancha cigarrete, tão perto que Sam poderia ter estendido o braço e dado um tapa na mão de Howard.

Agora a Whaler estava a toda velocidade, saltando de onda em onda, com a barreira voando à esquerda, afastando-se cada vez mais da terra.

Mas a outra lancha era muito mais rápida e, agora que o piloto havia se recuperado, veio rugindo atrás de Sam e logo estava chacoa­lhando na esteira de Sam.

Pare aí, seu panaca — berrou Ore para Sam.

Sam ignorou. Sua mente estava em aceleração máxima. Como po­deria se livrar? Seu barco era mais lento. Era mais ágil, mas era defini­tivamente mais lento. E a lancha era tão maior, tão mais pesada, que poderia passar direto por cima da Boston Whaler.

Pare ou vamos afundar vocês — gritou Ore de novo.

Não seja idiota, Sammy — gritou Howard, em voz mais fraca, quase inaudível acima do rugido dos motores e da água.

De repente Astrid estava ao seu lado.

Sam. Você pode fazer alguma coisa?

Talvez. Tenho uma idéia.

Num sussurro tenso, ela disse:

Você está falando em...

Não sei como fazer isso, Astrid, a coisa simplesmente acontece. E esta não é exatamente a hora para eu consultar Yoda sobre como usar a força.

Agora Edilio estava junto deles.

Você tem um plano, Sam?

Não é dos melhores.

Sam pegou o microfone do rádio ao lado do acelerador. Apertou o botão.

Aqui é o Sam, vocês estão captando? Câmbio.

Olhando para trás, viu a surpresa no rosto de Howard. É, estavam captando. Howard levantou seu microfone e franziu a testa para ele.

Sam acionou seu rádio.

Segure o botão, Howard — disse. — Depois, quando tiver ter­minado, diga "câmbio" e solte o botão. Câmbio.

Você precisa parar — disse Howard, com a voz saindo mecânica no alto-falante minúsculo. — Ah, câmbio.

Acho que não vamos fazer isso, Howard. Drake tentou matar Astrid. Você e Ore quase me mataram. Câmbio.

Isso deixou Howard ocupado por um minuto, enquanto ele pensa­va numa boa mentira.

Tudo bem, Sammy, Caine mudou de idéia. Diz que, se vocês se comportarem, vai soltar todos. Câmbio.

É. Acredito em você 100% — disse Sam.

Sam levou seu barco para mais perto ainda da barreira. Estava tão perto que ele poderia tocá-la.

Apertou de novo o botão para falar.

Se tentarem me afundar, vocês podem bater na barreira — aler­tou. — Câmbio.

Houve silêncio. Em seguida, uma voz nova, fraca, mas audível. Ti­nha de estar vindo de um rádio em terra.

Peguem-no — ordenou a voz. — Peguem-no ou não voltem.

Caine. Estava falando pelo rádio que usava para fazer contato com Drake, a creche e o posto de bombeiros.

Ei, Caine — disse Howard — eles estão com Astrid e o retarda­do. E o Quinn.

O quê? Repita. Astrid está com eles?

Foi Sam que respondeu, adorando o momento, mesmo que o triun­fo provavelmente tivesse vida curta.

Isso mesmo, Caine. Seu psicopata de estimação fracassou.

Peguem todos eles — ordenou Caine.

E se eles usarem o poder? — gemeu Howard.

Se eles pudessem usar o poder, já teriam feito isso — disse Cai­ne, com um risinho que se transportou pelas ondas do rádio. — Sem desculpa: acabem com eles. Caine desligando.

Sam — disse Astrid — se você puder fazer, você precisa fazer.

O quê? — perguntou Edilio. — Ah. A coisa?

O rádio estalou de novo. Howard disse:

Vou contar até dez, Sammy. Depois vamos bater e afundar vo­cês. Não precisa ser assim, mas não temos escolha. Portanto... dez.

Edilio, você, Astrid e o Pequeno Pete, fiquem abaixados no con­vés. Quinn, vá com eles.

Nove.

Edilio puxou Astrid e os dois se deitaram no convés, com o Peque­no Pete no meio.

Oito.

E melhor ser um plano bom, brou — disse Quinn. Mas foi se agachar perto de Astrid.

Sete. Seis.

A proa da lancha cigarrete erguia-se acima da proa da "Whaler, um enorme cutelo vermelho, subindo e descendo, abrindo caminho até eles. O rugido dos três motores ricocheteava na barreira, torcendo e amplificando o som.

Cinco.

Ele tinha um plano. Mas era um plano suicida.

Quatro.

Todo mundo pronto?

Pronto para quê?

Três.

Ele vai acertar na gente.

Esse é o seu plano? — berrou Quinn.

Dois.

Mais ou menos — disse Sam.

Um.

Sam ouviu os dois motores da lancha cigarrete acelerando. O cute­lo vermelho da proa saltou adiante. Era como se alguém tivesse pren­dido um foguete atrás.

Sam colocou o acelerador em ponto morto e virou para roçar o lado esquerdo da lancha na parede do LGAR.

A Whaler diminuiu a velocidade de repente.

Segurem-se!

Ele se agachou, ajoelhando-se no convés molhado, segurando o volante com uma das mãos, e aí virou-o bruscamente para a direita, depois firmou-o. Cobriu a cabeça com o braço livre, gritando para manter a coragem.

A Boston Whaler diminuiu a velocidade.

A lancha cigarrete, não.

A proa alta, afiada como uma adaga, passou por cima da metade esquerda da proa da Boston Whaler.

Houve um guincho de fibra de vidro despedaçada. O impacto ar­rancou Sam do volante. A parte de trás da Whaler desceu e de repente os cinco e todo o barco estavam embaixo d'água. Sam gritava na água, berrando e lutando para evitar ser sugado para cima, para as hélices que faziam tornados na água um milímetro acima de sua cabeça.

A lancha cigarrete bloqueou o sol, um vermelho profundo e um branco de morte, uma faca atravessando o barco menor. Os grandes motores de popa gritavam.

Mas a lancha cigarrete não esmagou exatamente o barco menor. Em vez disso, acertando-o em ângulo, a lancha cigarrete decolou como um carro de acrobacia passando por uma rampa. Girou no ar e bateu com a parte superior na barreira, despedaçando o pára-brisa e amarrotando a amurada.

A lancha cigarrete bateu na água com força, de lado, 6 metros à frente da Boston Whaler. Pousou como se desse uma barrigada lateral, mergulhou tão fundo que Sam achou que ela poderia ficar lá embaixo, mas então voltou como um submarino emergindo e se ajeitou.

A Whaler havia sofrido um bocado. A proa estava esmagada, a amurada da esquerda havia sumido, o motor com carenagem preta estava torto, embora ainda preso. Faltava um grande pedaço de fibra de vidro na proa. Sessenta centímetros de água chacoalhavam no convés. O console de co­mando estava dobrado para a frente e para o lado, de modo que o volan­te ficara torto e a alavanca do acelerador estava fora da fenda, pendendo frouxa. O motor tinha sido inundado e morreu com gorgolejos.

Mas Sam não estava ferido.

— Astrid! — gritou, aterrorizado quando não a viu de imediato. O Pequeno Pete estava sozinho, olhando fixamente para o nada, quase como se isso, pelo menos, tivesse penetrado em sua consciência.

Quinn e Edilio saltaram de pé e se inclinaram por cima da popa. Tinham visto a mão magra de Astrid segurando a amurada. Puxaram- na a bordo, meio afogada e sangrando de um talho na perna.

Ela está bem?

Edilio assentiu, engasgado demais com a água para responder.

Sam virou a chave e sentiu esperança. O grande motor Mercury rugiu. A alavanca estava rígida, travada, mas, empurrando com toda a força, conseguiu movê-la à frente. O volante torto ainda virava.

A lancha cigarrete continuava adiante, parada. Ore estava na água, gritando em fúria. Howard andava de um lado para o outro tentando encontrar um colete salva-vida enquanto o piloto tentava ligar os mo­tores de novo. Infelizmente, eles não pareciam danificados.

Era agora ou nunca.

Com dedos frenéticos, Sam desamarrou a corda do tornozelo e segurou a ponta solta nos dentes. Pulou na água e nadou pelos poucos metros que separavam sua lancha da lancha cigarrete.

Ele está nadando para cá. O barco dele está afundando — gritou o piloto da lancha, sem entender.

Mas Howard sabia que não era isso.

Ele está armando alguma.

Sam mergulhou. Tinha de ser agora, antes que o piloto conseguisse ligar os motores. Se aquelas hélices começassem a girar, seria tarde demais e havia uma boa chance de que Sam perdesse os dedos ou até a mão inteira.

Lutando contra a flutuabilidade do corpo, Sam ficou embaixo d'água, tentando enxergar através da água agitada, os dedos tentando sentir... pronto. Era uma hélice.

Enrolou a corda de náilon na hélice da direita e apertou o máximo que pôde. Depois virou à esquerda, soprando o resto de ar para per­manecer submerso.

Ouviu a ignição estalar, a chave sendo virada. Bastaria uma virada de dedos do piloto e...

O motor se sacudiu. Sam recuou em pânico.

As duas hélices se sacudiram. Então a da direita se travou e a es­querda girou e parou.

Com o resto das forças, Sam enrolou a corda na hélice, nadou para longe da proa e emergiu a pouco mais de um metro, para respirar.

Ouviu os motores sendo ligados de novo, e pararem outra vez.

Só então o piloto da lancha cigarrete percebeu o que havia aconte­cido, e Howard estava na popa gritando ameaças furiosas.

Sam se virou e começou a nadar a toda velocidade para a Whaler, que balançava de encontro à barreira.

— Sam. — Era Astrid gritando. — Atrás de você.

O golpe foi totalmente inesperado.

A cabeça de Sam girou. Seus olhos não focalizavam. Todos os mús­culos dos membros estavam frouxos.

Já estivera nessa situação, antes. Era como quando caía da prancha e ela retornava e batia nele. Um canto de sua mente sabia o que fazer: evitar o pânico, demorar alguns segundos para limpar a cabeça.

Só que aquilo não era uma prancha de surfe. Um segundo impacto acertou bem ao lado dele, errando a cabeça e golpeando seu ombro.

A dor aguda ajudou Sam se concentrar.

Viu Howard levantar a comprida vara de alumínio com um gancho na ponta, para dar um terceiro golpe, mas dessa vez Sam o evitou fa­cilmente. Enquanto a vara batia na água, Sam se jogou, pondo todo o peso em cima dela.

Howard perdeu o equilíbrio e Sam puxou. Howard soltou a vara e bateu de peito num dos motores.

Novamente Sam se virou para a Whaler, mas era tarde demais. Agora Ore estava em cima dele, e enquanto uma mão gigante tentava agarrar o pescoço de Sam, a outra lhe dava um soco.

O punho de Ore bateu na água antes de acertar o nariz de Sam, de modo que a velocidade foi reduzida, mas ainda assim o impacto foi chocante. Sam se encolheu e impulsionou as duas pernas com o máxi­mo de força que pôde contra o plexo solar de Ore. Seu golpe também teve a velocidade diminuída pela água, mas empurrou Sam para a frente e Ore para trás.

Sam nadava melhor, mas Ore era mais forte. Enquanto Sam tentava escapar, Ore agarrou a cintura da bermuda de Sam e segurou com firmeza.

Agora Howard estava de pé, gritando incentivos e elogios para Ore. A luta estava exatamente sob a proa esmagada da Whaler. Sam deu uma cambalhota para trás, bateu com os pés descalços contra o casco e mergulhou. Esperava que, quando a cabeça de Ore submergis­se, ele entrasse em pânico e o soltasse. Deu certo, e Sam estava livre. Livre, mas preso num canto apertado entre a parede do LGAR e a proa do barco.

O rosto de Ore era uma terrível máscara de fúria. Ele foi direto para Sam, e Sam não teve escolha. Esperou Ore, agarrou a camisa dele, torceu e, usando o ímpeto do outro, empurrou o valentão de cara contra a parede do LGAR.

Ore gritou. Balançou os braços loucamente e gritou de novo.

Sam bateu as pernas usando o corpo de Ore para se impulsionar. O chute impeliu Ore de lado contra a barreira e ele berrou como um touro morrendo.

Sam nadou, agarrou a amurada de estibordo e se segurou.

— Edilio. Vá.

Edilio empurrou o acelerador para a frente enquanto Sam, com a ajuda de Astrid e Quinn, subia a bordo.

Ore estava gritando palavrões incoerentes, quase afogado. Howard estendia a mão para ele, e o piloto do barco parecia em choque, sem saber o que fazer.

A corda foi amarrada com firmeza no cunho do convés. O cunho não agüentaria, mas uma boa puxada poderia acabar pelo menos com uma das hélices amarradas.

Edilio virou a lancha para longe da barreira e disse:

Cuidado com a corda, Sam.

O aviso chegou bem a tempo, já que a corda se esticou e saltou da água. A corda se retesou, batendo no braço de Sam.

A pequena lancha se sacudiu com o impacto. O cunho foi arrancado do convés. Mas agora as hélices da lancha cigarrete eram inúteis.

Certo, aquilo foi maluquice — disse Edilio, gargalhando.

Acho que agora você superou o enjôo, não é?

O rádio estalou com a voz familiar de Howard, agora contida e com medo, gemendo.

Aqui é o Howard. Eles foram embora.

A voz fraca vinda de terra respondeu:

Por que será que não estou surpreso?

Então, Howard de novo.

Nosso barco não funciona.

Sam — disse Caine. — Se pode me ouvir, irmão, é melhor saber que vou matá-lo.

Irmão? Por que ele está chamando você de irmão? — perguntou Astrid.

Longa história.

Sam sorriu. Agora havia tempo suficiente para contar histórias. Eles haviam conseguido. Tinham escapado. Mas era uma vitória oca.

Agora não podiam ir para casa.

Certo — disse Sam. — Então é escapar ou nada.

Pôs o leme num curso que seguia a barreira longa e curva. Astrid encontrou uma garrafa de água sanitária com a parte de cima cortada e começou o longo serviço de tirar a água do barco.

 

                           125 HORAS E 57 MINUTOS

LANA DEMOROU MUITO mais do que havia esperado para chegar ao fim dos rastros da caminhonete. O que parecera no máximo um qui­lômetro e meio deviam ter sido três. E carregar a água e a comida no calor causticante não tornara a coisa mais fácil.

Era de tarde quando arrastou os pés cansados em volta de um aflora­mento da montanha. Ali, diante de seus olhos espantados, estava o que parecia uma cidade mineira abandonada. Devia ter sido um tremendo acampamento algum dia; uma dúzia de construções, todas amontoadas na fenda estreita da montanha, que tinha paredes íngremes. As construções eram quase impossíveis de ser distinguidas umas das outras, meras co­leções de paus cinzentos, mas antigamente devia ter havido uma espécie de rua, com não mais do que o tamanho de meio quarteirão.

Era um lugar fantasmagórico, silencioso, sombrio, com janelas quebradas e sem vidros, parecendo olhos observadores.

Atrás dos destroços da rua principal, fora das vistas de algum pas­sante — se bem que Lana não imaginava por que alguém viria a um lugar tão desolado e feio —, havia uma estrutura mais forte. Era cons­truída com as mesmas tábuas cinzentas, mas ainda estava de pé e co­berta por um telhado de zinco. A estrutura era do tamanho de uma garagem para três carros. As marcas de pneus chegavam ali.

— Venha, garoto — disse Lana.

Patrick correu à frente, farejou uma erva daninha perto da porta do barracão e voltou com a cauda ainda empinada.

Então não tem ninguém dentro — tranqüilizou-se Lana. — Caso contrário você teria latido.

Ela abriu a porta, não querendo se esgueirar como alguma garota de filme de terror.

A luz do sol entrava por uma dúzia de buracos e emendas no teto de zinco e pelos nós da madeira. Mesmo assim estava escuro.

A caminhonete estava ali. Mais nova do que a do seu avô, com carroceria mais comprida.

Olá? Olá? — Ela esperou. E depois: — Olá?

Verificou primeiro a caminhonete. O tanque estava pela metade. As chaves não estavam à vista. Ela procurou cada centímetro quadrado da caminhonete, e nada.

Frustrada, começou uma busca pelo resto do barracão. Havia prin­cipalmente máquinas. O que parecia uma máquina de quebrar pedras. Algo que parecia um grande tanque com jatos de calor posicionados embaixo. Um tanque de gás liquefeito de petróleo, num canto.

Certo. Ou achamos a chave e provavelmente nos matamos co­migo na direção — resumiu Lana para o atento Patrick —, ou anda­mos quantos quilômetros forem necessários, no meio do calor, até Praia Perdida e talvez morremos de sede.

Patrick latiu.

Concordo. Vamos continuar procurando as chaves.

Além da alta porta dupla na frente do barracão, havia uma menor, nos fundos. Através dela Lana encontrou um caminho bastante usado, que serpenteava em meio a feias pilhas de pedras, por um pátio cheio de máquinas enferrujadas e que terminava numa abertura emoldurada com madeira, no chão. Parecia a boca surpresa da montanha, um qua­drado torto e preto com duas traves de suporte quebradas, formando dentes serrilhados.

Um estreito conjunto de trilhos de trem entrava na mina.

Acho que não queremos entrar aí — disse Lana.

Patrick chegou cautelosamente mais perto da entrada. Os pelos de sua nuca se eriçaram e ele rosnou.

Mas não estava rosnando para a abertura.

Lana ouviu o som de patas almofadadas. Pela lateral da montanha, como uma avalanche silenciosa, veio correndo uma matilha de coio­tes, talvez duas dúzias, talvez mais.

Escorriam montanha abaixo com velocidade chocante.

Enquanto se aproximavam, Lana pôde ouvi-los sussurrando em vo­zes tensas, guturais:

Comida... comida.

Não — disse Lana a si mesma.

Não. Tinha de estar imaginando isso.

Lançou um olhar de pânico por cima do ombro, para o barracão que agora estava longe. A ala direita da matilha já corria para intercep­tar seu caminho.

Patrick — gritou, e correu para a mina.

No instante em que passaram pela entrada, a temperatura baixou dez graus. Era como entrar em um local com sistema de ar-condicionado. Não havia luz além da que vinha de fora, e os olhos de Lana não tiveram tempo de se ajustar.

Havia um cheiro terrível. Algo sujo, adocicado e enjoativo.

Patrick se virou para encarar os coiotes e se eriçou. Os coiotes se juntaram agitados em volta da entrada da mina, mas pararam ali.

Lana, meio cega, tateou no escuro, procurando alguma coisa, qual­quer coisa. Encontrou pedras do tamanho do punho de um adulto. Começou a atirá-las, sem mirar, apenas jogando freneticamente as pe­dras contra os coiotes.

Vão embora. Xô. Saiam daqui.

Nenhuma das pedras de Lana acertou o alvo. Os coiotes se desvia­vam sem se abalar, sem esforço, como se estivessem participando de um jogo não muito desafiador.

A matilha se dividiu em duas, formando um corredor. Um coiote — não era o maior, mas era o mais feio — caminhou com a cabeça erguida em meio à matilha. Uma das suas orelhas enormes estava meio rasgada, ele tinha um tipo de sarna que deixava pedaços de pele apa­recendo na lateral do focinho astuto, e os dentes do lado esquerdo da boca eram parcialmente expostos devido a algum ferimento antigo que lhe dera um permanente rosnado lateral.

O coiote líder rosnou para ela.

Ela se encolheu, mas levantou uma pedra grande, ameaçando.

Para trás — alertou Lana.

Não humanos aqui. — A voz era engrolada, como botas se ar­rastando em cascalho molhado, mas aguda.

Durante vários e longos segundos, Lana ficou só olhando. Não era possível. Mas parecia que a voz tinha vindo do coiote.

O quê?

Saia — disse o coiote. Desta vez era inconfundível. Ela vira o focinho dele se mexer, captou a luta de sua língua atrás dos dentes afiados.

Você não pode falar — disse Lana. — Isso não é real.

Saia.

Vocês vão me matar.

Sim. Saia, morra depressa. Fique, morra devagar.

Você pode falar — disse Lana, sentindo que estava louca, louca de verdade, agora.

O coiote não respondeu.

Lana tentou embromar.

Por que não posso ficar na mina?

Não humanos aqui.

Por quê?

Saia.

Venha, Patrick — disse Lana, num sussurro trêmulo. Começou a recuar para longe do coiote líder da matilha, mais para o fundo da escuridão.

Seu pé bateu em alguma coisa. Ela olhou para baixo rapidamente e viu uma perna se projetando de um macacão sujo de sangue. Tinha encontra­do a fonte do cheiro. O ermitão Jim estava morto havia muito tempo.

Pulou para trás, por cima do corpo, colocando-o entre ela e o coiote.

Você o matou — acusou Lana.

Sim.

Por quê? — Ela viu uma lanterna, apenas uma grande lanterna quadrada. Abaixou-se rapidamente e pegou-a.

Não humanos aqui.

O coiote latiu um comando para sua matilha e eles entraram cor­rendo na caverna e pularam por cima do corpo. Lana e Patrick se vi­raram e correram.

Enquanto corria, Lana tentava encontrar o interruptor da lanterna. A escuridão rapidamente tornou-se quase completa.

Uma dor aguda em seu tornozelo quase a derrubou, mas ela conti­nuou em frente, cambaleando. Encontrou o interruptor e, de repente, o túnel da mina foi banhado por uma luz fantasmagórica que revelava apenas rochas irregulares e travas de madeira meio esmagadas pelo peso das pedras. As sombras pareciam dedos em garras fechando-se ao redor dela.

Os coiotes, espantados pela luz, ficaram para trás. Seus olhos bri­lhavam. Os dentes eram fracos risos brancos.

E então vieram atrás dela.

Um torno que se parecia uma mandíbula se fechou em volta do seu tornozelo e ela caiu embolada. Os coiotes partiram em bando para cima dela. O fedor deles estava em seu nariz, seu peso a esmagava.

Lutou para se apoiar nos cotovelos. Um segundo torno se fechou sobre seu antebraço e ela caiu, sabendo que jamais se levantaria de novo. Ouviu os latidos aterrorizados de Patrick, muito mais profun­dos e altos do que os sons agudos dos coiotes.

De súbito os coiotes soltaram-na. Ganiram de surpresa e giraram as cabeças para a esquerda e para a direita.

Lana estava caída, sangrando por uma dúzia de mordidas, num círculo fantasmagórico de luz lançada pela lanterna.

O líder da matilha rosnou e os coiotes se acalmaram pelo menos um pouco, mas estava claro que algo os havia amedrontado e conti­nuava amedrontando.

Os coiotes se agitaram, nervosos, ariscos. Todas as orelhas se levan­taram e se viraram para as sombras profundas mais adiante no túnel. Como se estivessem escutando alguma coisa.

Lana se esforçou para ouvir o que eles escutavam, mas o soluçar áspero de sua própria respiração era alto demais. Seu coração marte­lava, como se fosse partir as costelas com as pancadas.

Os coiotes não a atacavam mais. Algo havia mudado. Algo no ar. Algo em suas inescrutáveis almas caninas. Ela havia se transformado de presa em prisioneira.

O líder dos coiotes se aproximou devagar e focinhou-a.

— Ande, humana.

Ela se abaixou mais e pôs a mão no pior ferimento de mordida. A dor foi sumindo enquanto a cura começava.

Mas ainda estava perdendo sangue de uma dúzia de pequenos fu­ros, quando se levantou e andou mais para o fundo da caverna, mais fundo, com Patrick permanecendo ao seu lado e os coiotes vindo atrás.

Foram cada vez mais para dentro. O trilho do trem acabou e eles entraram no que parecia uma nova seção de túnel. Ali a madeira usada para sustentar o teto ainda era verde, as cabeças de pregos ainda eram brilhantes. O piso do túnel estava menos atulhado de pedras caídas e décadas de poeira.

Era ali que o ermitão Jim estivera trabalhando, cavando, seguindo o veio de metal amarelo brilhante.

Enquanto andava, Lana foi ficando com medo, mas de um jeito diferente. Havia suportado o medo assustador, sufocante, da morte. Isso era diferente. Essa nova sensação transformava seus músculos em geléia, parecia minar o calor do corpo e encher as artérias com água ge­lada e o estômago com bile.

Estava com frio. Frio até não poder mais.

Seus pés pesavam 50 quilos cada um, os músculos não serviam para levantá-los e empurrá-los à frente.

Cada canto de seu cérebro instigava, "Corra, corra, corra!", mas ela não podia correr, não podia fisicamente fazer isso. O único modo era avançar enquanto se sentia cada vez mais atraída para o fundo, por uma vontade que não fazia parte dela.

Finalmente, Patrick não suportou mais. Virou-se e saiu correndo, abrindo caminho por entre os cães selvagens cheios de desprezo.

Ela queria chamá-lo, mas nenhum som saía de seus lábios acovar­dados.

Cada vez mais fundo. Cada vez mais frio.

A lanterna enfraqueceu, e enquanto a luz ia diminuindo, Lana ia percebendo que as paredes da caverna luziam com um verde fraco.

Agora estava mais perto.

A coisa.

O que quer que fosse, estava mais perto.

A lanterna caiu de seus dedos entorpecidos.

Seus olhos se reviraram na cabeça e ela caiu de joelhos, indiferente, sem perceber sequer a dor nas rótulas batendo em pedras afiadas.

De joelhos, sem enxergar, Lana esperou.

Uma voz explodiu dentro de sua cabeça. Suas costas se arquearam num espasmo e ela caiu de lado. Cada terminação nervosa, cada célu­la do corpo gritava de dor. Dor como se estivesse sendo fervida viva.

Jamais saberia quanto tempo isso durou.

As palavras exatas que ouviu — se é que eram mesmo palavras —, ela jamais recordaria.

Mais tarde acordaria, tendo sido arrastada para fora da caverna por dois coiotes.

Eles a arrastaram da caverna para a noite.

E ali esperaram pacientemente que ela vivesse ou morresse.

 

                           123 HORAS E 52 MINUTOS

SAM, EDILIO, QUINN, Astrid e o Pequeno Pete seguiram a parede do LGAR, e a curvatura da barreira os levou para longe do litoral e, de­pois, de volta a ele.

Não havia abertura na parede. Não havia nenhum alçapão de esca­pe fácil.

O sol estava se pondo enquanto viajavam ao norte de um punhado de minúsculas ilhas particulares. Uma dessas ilhas tinha um lindo iate branco chocado contra as pedras. Sam pensou em se desviar para olhar de perto, mas decidiu não fazer isso. Estava determinado a exa­minar toda a parede do LGAR. Se tinha de ficar preso como um peixe dourado num aquário, queria ver o aquário inteiro.

A parede do LGAR encontrou a terra no meio do parque nacional Stefano Rey, depois de riscar um longo semicírculo na face do mar, que tinha uma placidez fantasmagórica.

O litoral era impossível, uma fortaleza de rochas afiadas e penhas­cos tocados pela luz dourada do sol poente.

É lindo — disse Astrid.

Eu preferiria que fosse feio e tivesse um lugar para desembarcar -— respondeu Sam.

As ondas ainda eram fracas, mas seria preciso muito pouco para que as pedras abrissem um buraco no casco da lancha, que já estava mutilada.

Foram para o sul, devagar, esperando um local para desembarcar antes que o tanque ficasse vazio e a noite caísse.

Por fim, viram um trecho minúsculo, em forma de V, com não mais de quatro metros de largura e dois metros de profundidade. Sam achou que, com sorte, poderia levar o barco até ali e encalhá-lo. Mas o barco não sobreviveria muito tempo e eles estariam a pé, sem mapa, na base de um penhasco de vinte metros.

Como está a gasolina, Edilio?

Edilio enfiou um pedaço de pau no tanque e puxou-o de volta.

Não tem muita. Uns dois centímetros.

Certo. Bem, então acho que é isso. Apertem os coletes salva- vidas.

Sam empurrou o acelerador e apontou direto para a praia minús­cula. Precisava manter a velocidade, caso contrário as ondas mansas iriam empurrá-lo para as rochas que se apinhavam dos dois lados.

O barco subiu pela areia. O impacto sacudiu Astrid, mas Edilio segurou sua mão antes que ela caísse. Os quatro saíram rapidamente, mas o Pequeno Pete não pôde ser convencido a sair, ou mesmo a reco­nhecer a existência deles. Assim, com medo de que a qualquer mo­mento o Pequeno Pete pudesse pirar e esganá-lo, ou que pelo menos começasse a uivar, Sam carregou o garoto para a praia.

Edilio levou o kit de emergência do barco, que tinha pouco mais do que alguns Band-Aids, uma carteia de fósforos, dois sinalizadores de emergência e uma bússola minúscula.

Como vamos fazer o Pequeno Pete subir esse penhasco? — per­guntou Sam, pensando em voz alta. — Não é uma subida difícil, mas...

Ele consegue subir — disse Astrid. — Às vezes ele sobe em árvo­res. Quando quer.

Sam e Edilio tinham idênticas expressões de dúvida.

Ele consegue — insistiu Astrid. — Só preciso lembrar as palavras-gatilho. Algo a ver com um gato.

Certo.

Uma vez ele subiu uma árvore atrás de um gato.

Não sei se ainda temos marés — disse Quinn —, mas, se tiver­mos, esta praia vai ficar embaixo d'água logo.

Charlie Atum — disse Astrid.

Os três garotos a encararam.

O gato — explicou ela. — O nome dele era Charlie Atum. — Em seguida, se agachou perto do Pequeno Pete. — Petey. Charlie Atum? Charlie Atum, lembra?

Isso é doideira demais — murmurou Quinn, baixinho.

Certo — disse Sam —, que tal, isso: Edilio, vá na frente, depois Astrid, para o Pequeno Pete seguir você. Quinn e eu vamos atrás para o caso de Pete escorregar.

Por acaso Astrid estava certa, o Pequeno Pete conseguia escalar. Na verdade quase passou à frente de Astrid na subida. Mesmo assim de­moraram até o escurecer para chegar ao topo do penhasco. Quando finalmente se deixaram cair num leito de capim e agulhas de pinheiro embaixo de arvores altíssimas, precisaram de cada um dos Band-Aids que Edilio havia trazido.

Acho que vamos dormir aqui — disse Sam.

Está quente ao ar livre — observou Astrid.

Está escuro — disse Sam.

Vamos fazer uma fogueira — sugeriu Astrid.

Para manter os ursos longe, não é? — concordou Edilio, nervoso.

Isso é mito, infelizmente — disse Astrid. — Os animais selva­gens vêem fogo o tempo todo. Não têm um medo especial dele.

Edilio balançou a cabeça, lamentando.

Às vezes, Astrid, saber tudo não ajuda muito.

Entendi — respondeu Astrid. — O que eu queria dizer era que os ursos, como todos os grandes animais selvagens, morrem de medo do fogo.

Hum... Tarde demais. — Edilio espiou nervoso as sombras com­pletamente negras do outro lado das árvores.

Astrid e Edilio vigiaram o Pequeno Pete enquanto Sam e Quinn procuravam madeira para queimar.

Quinn, nervoso por mais de um motivo, disse:

Não estou pegando no seu pé nem nada, Sam, mas, brou, se você tem mesmo algum tipo de mágica, precisa descobrir como usá-la.

Eu sei — respondeu Sam. — Acredite, se soubesse como acender uma luz, acenderia.

É. Você sempre teve medo do escuro.

Depois de um tempo, Sam disse:

Não sabia que você tinha notado isso.

Sem problema. Todo mundo tem medo de alguma coisa — res­pondeu Quinn, baixinho.

De que você tem medo?

Eu? — Quinn fez uma pausa, segurando seus poucos gravetos para a fogueira, e pensou. — Acho que tenho medo de ser um zero à esquerda. Um grandessíssimo... zero à esquerda.

Cataram lenha e agulhas de pinheiro suficientes e logo tinham uma fogueira calorosa, ainda que cheia de fumaça.

Edilio olhou para as chamas.

Assim está melhor, mesmo que não assuste nenhum urso. Além disso, não estou mais naquele barco. Gosto de terra firme.

O calor da fogueira era desnecessário, mas Sam gostou mesmo as­sim. A luz laranja se refletia opaca nos troncos e galhos das árvores e tornava a noite ainda mais escura. Mas, enquanto o fogo ardia, eles podiam fingir que estavam em segurança.

Alguém sabe alguma história de fantasma? — perguntou Edilio, meio de brincadeira.

Sabe do que eu gostaria? — perguntou Astrid. — Marshmallow assado. Uma vez fiquei numa colônia de férias. Era um acampamento de estilo antigo, com pescaria, cavalos para montar e aquelas cantigas medonhas em volta da fogueira. E marshmallow assado. Na época eu não gostei, principalmente porque não queria estar na colônia de fé­rias. Mas agora...

Sam espiou-a através das chamas. As blusas brancas engomadas, pré-LGAR, tinham dado lugar a camisetas. E ele não se sentia mais completamente intimidado por Astrid, principalmente agora que ha­via passado por tanta coisa com ela. Mas ela ainda era tão linda que às vezes ele precisava desviar o olhar. E o fato de tê-la beijado significava que agora cada pensamento vinha com um jorro de lembranças avas­saladoras, perfumes, sensações, sabores.

Agitou-se e mordeu o lábio, usando a dor para não pensar mais em Astrid, em sua camiseta, seu cabelo e sua pele.

Não é o lugar nem a hora — murmurou baixinho.

O Pequeno Pete estava sentado com as pernas cruzadas e olhava para o fogo. Sam imaginou o que se passaria na cabeça dele. Imaginou que poder estaria escondido atrás daquele olhar inocente.

Fome — disse o Pequeno Pete. — Nham nham.

Astrid abraçou-o.

Eu sei, irmãozinho. Vamos ter comida amanhã.

Um a um, sentiram as pálpebras ficando pesadas. Um a um, se es­tenderam no chão, ficaram em silêncio, dormiram. Sam foi o último. A fogueira estava morrendo. A escuridão se aproximava de todas as direções.

Ficou sentado de pernas cruzadas, girou as mãos com as palmas viradas para cima e pousou-as nos joelhos.

Como?

Como havia acontecido? Como aquilo havia acontecido com ele?

Como poderia controlar a coisa, como poderia fazer com que acontecesse ao seu comando?

Fechou os olhos e tentou se lembrar do pânico que havia sentido nas vezes em que tinha criado luz. Não era difícil recordar a emoção, mas era impossível senti-la de novo.

O mais silenciosamente que pôde, afastou-se da fogueira. A escuridão sob as árvores poderia esconder mil terrores. Foi em direção ao medo.

As agulhas de pinheiro estalavam sob seus pés. Caminhou até só conseguir vislumbrar uma claridade fraca das brasas da fogueira, atrás, e não conseguia mais sentir o cheiro da fumaça de pinheiro.

Levantou as mãos, como tinha visto Caine fazer, com as palmas para a frente, como se estivesse sinalizando para alguém parar, ou então como se fosse um pastor abençoando uma congregação.

Puxou de volta o medo daquele pesadelo em seu quarto, o pânico quando o Pequeno Pete estava sufocando-o, a reação súbita quando a incendiária tentara matá-lo.

Nada. Não iria dar certo. Não conseguia estimular o medo, e tentar se amedrontar com uma floresta escura também não estava funcionando.

Girou. Um barulho atrás dele.

Não está dando certo, não é? -— perguntou Astrid.

Quase deu; você quase me apavorou a ponto de fazer acontecer.

Astrid chegou mais perto.

Tenho uma coisa terrível que preciso contar.

Uma coisa terrível?

Eu traí o Petey. Drake quis que eu o xingasse. — Ela estava tor­cendo os dedos com tanta força que aquilo parecia doloroso.

Sam pegou as mãos dela.

O que ele fez?

Nada. Só...

Só o quê?

Ele me deu uns dois tapas, não foi tão ruim, mas...

Drake bateu em você? — Era como se Sam tivesse engolido áci­do. — Ele bateu em você?

Astrid confirmou com a cabeça. Tentou explicar, mas sua voz traiu-a. Por isso apontou para a bochecha, para o lugar onde a mão de Drake a havia acertado com força suficiente para jogar sua cabeça de lado. Firmou-se e tentou de novo.

Não foi grande coisa. Mas eu fiquei apavorada. Sam, fiquei apa­vorada demais. — Ela chegou mais perto, talvez querendo os braços dele envolvendo-a.

Sam deu um passo atrás.

Espero que ele esteja morto — disse. — Espero que ele esteja morto porque, se não estiver, eu o mato.

Sam.

Seus punhos estavam fechados. Era como se o cérebro fervesse dentro do crânio. A respiração saía rasa e áspera.

Sam — sussurrou Astrid. — Tente agora.

Ele encarou-a, sem entender.

Agora — gritou ela.

Sam levantou as mãos, com as palmas para a frente, e apontou para uma árvore.

Aaaahhhh! — gritou, e jatos de luz brilhante, tingida de verde, saltaram de suas mãos.

Baixou as mãos ao lado do corpo, ofegando, perplexo com o que havia feito. A árvore estava totalmente queimada. Ela caiu, lentamen­te a princípio, depois mais rápido, e se chocou, pesada, num trecho de arbustos de espinheiros.

Astrid veio atrás dele e o envolveu com os braços. Sam sentiu as lágrimas dela em sua nuca, a respiração dela em seu cabelo.

Desculpe, Sam.

Desculpe?

Você não pode invocar o medo sempre que precisa, Sam. Mas a raiva é o medo apontado para fora. A raiva é mais fácil.

Você me manipulou? — Ele se soltou dos braços de Astrid e se virou para encará-la.

O que eu contei sobre o Drake aconteceu de verdade — disse Astrid. — Mas eu não ia contar, até que vi você aqui, tentando. Você ficava falando que era o medo que fazia o poder funcionar. Por isso pensei...

É. — Ele se sentia estranhamente derrotado. Pela primeira vez, tinha acabado de fazer a luz surgir por vontade própria. Mas estava triste, e não empolgado. — Então eu preciso ficar furioso, e não com medo. Preciso ter vontade de machucar as pessoas.

Você vai aprender a controlar isso. Vai ficar melhor, de modo que possa usar o poder sem ter de sentir nada.

Bom, e esse não será um dia feliz? — disse Sam, com sarcasmo amargo. — Vou poder queimar alguém sem sentir nada.

Lamento muito, Sam. De verdade. Por você, por isso ter de acontecer. Você está certo em ter medo do poder. Mas a verdade é que precisamos de que você use isso.

Ficaram parados, distantes um do outro por alguns centímetros. A mente de Sam estava longe, repassando lembranças de um tempo que parecia estar um milhão de anos no passado. Um milhão de anos, ou talvez apenas oito dias.

Desculpe — sussurrou Astrid de novo, e passou o braço sob o dele, para puxá-lo contra o corpo.

Ele pousou o queixo em sua cabeça, olhando para além dela, vendo o fogo, vendo a escuridão em todos os outros lugares, a escuridão que o havia apavorado desde que era bebê.

Às vezes você pega a onda. Às vezes a onda pega você — disse finalmente.

É o LGAR, Sam. Não é você: é só o LGAR.

 

                             113 HORAS E 33 MINUTOS

O PÉ DE Lana se prendeu numa raiz e ela caiu de quatro. Patrick veio olhá-la, mas manteve distância.

Nip, o coiote que era o atormentador pessoal de Lana, rosnou para ela.

— Estou levantando, estou levantando — murmurou Lana.

Suas mãos estavam arranhadas. De novo.

Os joelhos estavam sangrando. De novo.

A matilha ia bem à frente, serpenteando em meio aos arbustos de artemísia, pulando valas, parando para farejar tocas de roedores, de­pois indo em frente.

Lana não conseguia acompanhar o ritmo deles. Não importava o quanto corresse, os coiotes sempre eram mais rápidos e, quando ficava para trás, Nip mordia seus tornozelos e ocasionalmente a fazia sangrar.

Nip era um coiote de posto inferior, ansioso para provar seu valor ao Líder da Matilha. Mas, não era maligno, não como alguns deles, de modo que não iria rasgá-la com os dentes, só rosnava e mordiscava. Mas quando ela fazia a matilha atrasar com sua lenta e desajeitada corrida humana, Líder da Matilha rosnava para Nip e batia nele, en­quanto Nip gania e se rebaixava.

Patrick estava abaixo de todos no status, mais baixo ainda do que Lana. Era um cachorro grande e forte, mas bamboleava com a cauda balançando, a língua para fora, algo que os coiotes rápidos e eficientes pareciam achar desprezível.

Os coiotes eram caçadores solitários, pegando até os coelhos ou esquilos mais rápidos. Patrick era deixado por conta própria, e como era muito mais lento, estava ficando com fome.

Tinham oferecido a Lana um dos animais mortos por Líder da Ma­tilha, um coelho meio comido, ainda meio vivo, mas ela não estava tão faminta. Ainda.

Quase havia esquecido que nada disso era possível. Era impressio­nante a rapidez com que passara a aceitar um mundo definido por uma barreira gigante. Era absurdo saber que poderia se curar com um toque. Era ridículo ter aceitado o fato de que Líder da Matilha era capaz de falar. Em palavras. Em inglês, ainda que engrolado.

Loucura.

Insanidade.

Mas o que acontecera naquela mina, lá onde a escuridão se escon­dia, longe do sol, longe do mundo da razão, tinha matado qualquer dúvida que restasse para Lana: o mundo havia enlouquecido.

Ela havia enlouquecido.

Agora a tarefa de Lana era sobreviver, e não analisar ou entender, apenas sobreviver.

Seus tênis já estavam começando a se despedaçar. As roupas esta­vam rasgadas em vários lugares. Ela estava imunda. Tivera de urinar e defecar ao ar livre, como um cachorro.

Suas pernas e mãos haviam sido repetidamente cortadas por pedras pontudas, arranhadas por espinhos, furadas por mosquitos. Até fora mordida por um guaxinim encurralado. Mas os ferimentos nunca du­ravam. Doíam, doíam todas as vezes, mas Lana os curava.

Os coiotes haviam corrido pela noite, perseguindo a próxima refeição.

Fazia apenas cerca de 12 horas, mas já parecia uma eternidade.

Sou humana — disse ela a si mesma. — Sou mais inteligente do que eles. Sou superior. Sou um ser humano.

Mas ali, no ermo, na noite escura do deserto, ela não era superior. Era mais lenta, mais desajeitada e mais fraca.

Para manter o ânimo, falava com Patrick ou com sua mãe. Isso também era louco.

Estou aproveitando de verdade o tempo aqui, mamãe — disse.

Estou perdendo um pouco de peso. Dieta de coiotes. Não coma nada e corra o tempo todo.

Lana caiu num buraco e sentiu o tornozelo se torcer e quebrar. A dor foi insuportável, mas duraria apenas um minuto. A exaustão era muito mais profunda, o desespero era mais doloroso.

Líder da Matilha se aproximou, olhando-a de uma pedra que se projetava.

Corra mais depressa — ordenou ele.

Por que está me mantendo como prisioneira? — perguntou ela.

Mate-me ou me deixe ir embora.

Escuridão disse não matar — respondeu Líder da Matilha, em sua voz torturada, aguda, inumana.

Ela não perguntou o que ele quis dizer com "Escuridão". Tinha escutado a voz daquilo em sua mente, no fundo da mina de ouro do ermitão Jim. Era uma cicatriz em sua alma, uma cicatriz que seu poder de cura não podia tocar.

Só estou atrasando vocês — soluçou Lana. — Me deixe aqui. Por que me quer por perto?

Escuridão disse: você ensina. Líder da Matilha aprende.

Aprende o quê? — gritou ela. — Sobre o que você está falando? Líder da Matilha saltou para ela, jogou-a de costas no chão e ficou acima dela, com os dentes à mostra acima da garganta exposta.

Aprende a matar humanos. Juntar todas matilhas. Líder da Ma­tilha líder de todos. Matar humanos.

Matar todos os humanos? Por quê?

Líder da Matilha estava salivando. Um longo fio de baba caiu do focinho dele na bochecha dela.

Odeio humano. Humano mata coiote.

Fiquem fora das cidades e ninguém mata coiote — argumentou Lana.

Tudo para coiote. Tudo para Líder da Matilha. Nada para huma­no. — Com sua voz esforçada, de fora deste mundo, Líder da Matilha não podia realmente falar por muito tempo, mas a fúria e o ódio vi­nham através de pouquíssimas palavras. Ela não sabia como um coiote são falaria, se pudesse falar, mas em sua mente não havia dúvida de que este era um coiote insano.

Os animais não tinham idéias megalomaníacas sobre obliterar espé­cies inteiras. Esse pensamento não viera de Líder da Matilha. Os ani­mais pensavam em comida, sobrevivência e procriação, se é que pen­savam.

A coisa na caverna. A Escuridão. Líder da Matilha era vítima da­quilo, além de serviçal.

A Escuridão havia enchido Líder da Matilha com essa ambição ma­ligna. Mas não pudera ensinar a Líder da Matilha o modo de dominar os humanos. Quando Lana apareceu na mina de ouro, a Escuridão aproveitou a oportunidade de usá-la.

Havia limites para o poder da Escuridão, não importando o quanto pudesse ser aterrorizante. Precisava usar os coiotes — e Lana — para rea­lizar sua vontade. E também havia limites para o que a Escuridão sabia.

Ela sabia o que precisava fazer.

Vá em frente, me mate — disse Lana. Em seguida, arqueou o pescoço, apresentando-o para ele, em desafio. — Anda.

Bastaria uma mordida rápida e tudo estaria acabado. Ela deixaria o ferimento sangrar. Não iria curá-lo, deixaria as artérias bombeando a vida para a areia do deserto.

Nesse momento, parte de Lana não tinha certeza se estava blefan­do. A Escuridão havia aberto uma porta em sua mente, uma porta para algo quase tão apavorante quanto a própria Escuridão.

Anda — desafiou. — Vá em frente e me mate.

O líder dos coiotes hesitou. Soltou um som ansioso, um gemido. Nunca havia apanhado uma presa impotente que não lutasse pela vida.

Estava dando certo. Lana empurrou o focinho molhado de Líder da Matilha. Levantou-se com o tornozelo ainda dolorido.

Se vai me matar, me mate.

Os olhos castanho-amarelados de Líder da Matilha abriram bura­cos incandescentes nela, mas Lana não recuou.

Não tenho medo de você.

Líder da Matilha se encolheu. Mas então seu olhar foi até Patrick e voltou, com um riso maroto, de lado.

Mato cachorro.

Foi a vez de Lana se encolher, mas soube instantaneamente que não poderia demonstrar fraqueza.

Vá em frente. Mate-o. Depois não terá como me ameaçar.

Mais uma vez o rosto cheio de cicatrizes de Líder da Matilha mos­trou confusão. O pensamento era complicado. Era um pensamento com mais de um passo, como tentar jogar xadrez e prever o que acon­teceria três ou quatro movimentos adiante.

O coração de Lana deu um salto.

É, eles eram mais fortes e mais rápidos. Mas ela era um ser huma­no, com um cérebro humano.

Os coiotes haviam mudado em alguns aspectos: alguns tinham focinhos e línguas que agora permitiam uma fala torturada, e eram maiores do que deveriam, mais fortes do que deveriam, até mesmo mais inteligentes do que tinham qualquer direito de ser. Mas ainda eram coiotes, ainda eram simples, impelidos pela fome, pelo desejo de acasalar, pela necessidade de ter um lugar dentro da matilha.

E a Escuridão não havia ensinado a mentir ou blefar.

A Escuridão fala: você ensina — disse Líder da Matilha, recuan­do para um território familiar.

Ótimo — respondeu Lana, com o cérebro zumbindo, tentando decidir para onde levaria essa conversa. Procurando alguma vanta­gem. — Vocês deixam meu cachorro em paz. E me conseguem comida decente. Comida que humanos comem, não coelhos imundos e meio mastigados. E então eu ensino.

Não tem comida humana aqui.

Isso mesmo, seu animal imundo e sarnento, pensou Lana enquanto o próximo passo se encaixava. Não tem comida humana aqui.

Eu notei — continuou ela, pisoteando o triunfo na voz, manten­do o rosto cuidadosamente neutro, sem revelar nada. — Então me leve ao lugar onde a grama cresce. Você sabe do que estou falando. O lugar onde cresce um pedaço de grama no deserto. Leve-me para lá ou me leve de volta à Escuridão e diga à Escuridão que você não con­segue me controlar.

Líder da Matilha não gostou disso e expressou sua frustração não em linguagem humana, mas numa série de sons raivoso, como gani­dos, que reduziram o resto da matilha a um mau humor carrancudo.

Ele se afastou dela numa pantomima de frustração, incapaz de con­trolar ou esconder suas emoções simples.

Viu só, mamãe — sussurrou Lana, enquanto apertava as mãos curativas no tornozelo. — Às vezes o desafio é uma coisa boa.

Por fim, sem dizer uma palavra, Líder da Matilha trotou em dire­ção ao nordeste. Ele se moveu e a matilha foi atrás, mas lentamente, num passo que Lana podia acompanhar.

Patrick seguiu ao lado da dona.

Eles são mais inteligentes do que você, garoto — sussurrou Lana ao seu cão. — Mas não são mais inteligentes do que eu.

— Acorda, Jack.

Jack Computador havia caído no sono em cima do teclado. Estava passando as noites na prefeitura, trabalhando para cumprir a promes­sa de montar um sistema primitivo de celulares. Não era fácil. Mas era divertido.

E afastava sua mente de outras coisas.

Diana é que o havia acordado, sacudindo seu ombro.

Ah, oi — disse Jack Computador.

Essa cara de teclado não fica bem em você.

Jack encostou a mão no rosto e ficou vermelho. Havia marcas das teclas quadradas em sua bochecha.

Grande dia, hoje — disse Diana, atravessando a sala até a peque­na geladeira. Pegou um refrigerante, abriu, levantou a persiana da ja­nela e bebeu olhando para a praça.

Jack Computador ajeitou os óculos, que estavam meio tortos em um dos lados.

É um grande dia? Por quê?

Diana riu com seu jeito de quem sabia das coisas.

Vamos para casa, fazer uma visita.

Para casa? —Jack levou alguns segundos para entender. —Você quer dizer a Coates?

Anda, Jack, diga que está empolgado.

Por que nós vamos para a Coates?

Diana chegou até ele e encostou a mão em sua bochecha.

Tão inteligente! E às vezes tão lento. Você nunca lê aquela lista que o Caine o obriga a manter? Lembra-se do Andrew? É o feliz ani­versário de 15 anos dele. Temos de chegar lá em cima antes da hora da perdição.

Eu preciso ir? Tenho um monte de trabalho para fazer.

O Intrépido Líder tem um plano que inclui você. — Diana abriu as mãos, dramática, como se fosse um mágico revelando o final de um truque. — Vamos filmar o grande momento.

Jack ficou ao mesmo tempo apavorado e empolgado com a idéia. Adorava qualquer coisa que envolvesse tecnologia, em especial quan­do isso lhe dava a chance de demonstrar seu conhecimento técnico. Mas, como todo mundo, tinha ouvido dizer o que acontecera com as gêmeas, Anna e Emma. Não queria ver ninguém morrer, ou desapare­cer, ou o que quer que acontecesse.

No entanto... seria fascinante.

Quanto mais câmeras, melhor — disse Jack em voz alta, já tra­balhando no problema, já visualizando como iria organizá-las. — Se a coisa acontece num instante, vamos precisar de sorte para conseguir um quadro no segundo exato... Vídeo digital, e não fotos. O material mais caro e avançado que Drake conseguir encontrar. Todas precisam de tripé. E vamos precisar de muita luz. Seria melhor se tivéssemos um fundo simples, você sabe, branco não, talvez verde, desse modo posso fazer cromaqui. Além disso... — Ele parou, sem graça por ter se dei­xado levar, e não gostando do que diria.

Além disso, o quê?

Olha, não quero que o Andrew se machuque.

Além disso, o quê, Jack?

Bom, e se o Andrew não quiser ficar parado? E se ele se mexer? Ou tentar fugir?

A expressão de Diana era difícil de ler.

Você quer que ele seja amarrado, Jack?

Jack desviou o olhar. Não quisera dizer isso. Não exatamente. An­drew era bem legal... para um valentão.

Eu não disse que queria que ele fosse amarrado — respondeu Jack, enfatizando a palavra "queria". — Mas se ele sair do enquadra­mento, do lugar para onde as câmeras estiverem apontando...

Sabe, Jack, às vezes você me preocupa.

Jack Computador sentiu um rubor subir pelo pescoço.

Não é minha culpa — disse acalorado. — O que eu devo fazer? E, de qualquer modo, quem você acha que é? Você faz tudo que o Caine diz, igual a mim.

Era o máximo de raiva que Jack já se permitira mostrar na frente de Diana. Encolheu-se, esperando a resposta cortante.

Mas ela respondeu com voz suave:

Eu sei o que sou, Jack. Não sou uma pessoa muito boa. — Ela puxou uma cadeira com rodinhas e sentou-se perto dele. Suficiente­mente perto para que a proximidade o deixasse desconfortável. Só recentemente Jack havia começado a notar as garotas. E Diana era linda. — Sabe por que meu pai me mandou para a Coates? — pergun­tou Diana.

Jack balançou a cabeça.

Quando eu tinha 10 anos, Jack, mais nova do que você, descobri que meu pai tinha uma amante. Sabe o que é uma amante, Jack?

Ele sabia, ou pelo menos achava que sim.

Eu contei à minha mãe sobre a amante. Estava furiosa com meu pai porque ele não me comprara um cavalo. Minha mãe pirou geral. Rolou o maior barraco entre os dois. Um monte de gritos. Minha mãe disse que ia pedir o divórcio.

Eles se divorciaram?

Não. Não houve tempo. No dia seguinte, minha mãe escorre­gou e caiu na escadaria enorme lá de casa. Não morreu, mas não pôde mais fazer nada de verdade. — Diana imitou uma pessoa quase inca­paz de sustentar a própria cabeça. — Tem uma enfermeira em tempo integral, só fica lá deitada no quarto.

Sinto muito — disse ele.

É. — Ela bateu palmas, sinalizando o fim do tempo de compar­tilhar. — Anda, vamos indo. Pegue sua bolsinha de bruxo, ops, gênio tecnológico. O Intrépido Líder não gosta de esperar.

Jack obedeceu. Começou a enfiar coisas — pequenas ferramentas, uma chave de fenda, uma fonte de alimentação — em sua mochila de Hogwarts.

O fato de sua mãe ter tido um acidente não significa que você seja ruim — disse Jack.

Diana piscou.

Eu disse à polícia que meu pai fez aquilo. Disse que eu o vi em­purrá-la. Eles o prenderam, saiu em tudo que era jornal. Isso acabou com a empresa dele. Por fim os policiais perceberam que eu estava mentindo. Papai me mandou para a Academia Coates. Fim.

Acho que é pior do que o que eu fiz quando fui mandado para a Coates — admitiu Jack.

E isso é só uma parte da história. O que estou dizendo é que você não parece uma pessoa ruim, Jack. E tenho a sensação de que, mais tarde, quando perceber o que está acontecendo, você vai se sentir mal com relação a isso. Você sabe, culpado.

Ele parou de guardar as coisas na mochila, com um fone de ouvi­dos miniatura pendurado na mão.

Como assim? O que você quer dizer com "o que está aconte­cendo"?

Qual é, Jack. Sabe o seu pequeno PDA do juízo final? A lista que você mantém para o Caine? Todos as aberrações? Você sabe o que é a lista. Sabe o que vai acontecer com as aberrações.

Não estou fazendo nada, só mantendo uma lista para você e Caine.

Mas como vai se sentir, depois?

Como assim?

Não seja deliberadamente tapado, Jack. Como você vai se sentir quando Caine começar a cuidar daquela lista?

Não é minha culpa — respondeu Jack, desesperado.

Você tem sono profundo, Jack. Agora mesmo, enquanto estava dormindo, eu segurei sua mãozinha rechonchuda. Foi provavelmente o mais perto que você vai chegar de dar a mão a uma garota. Presu­mindo que ao menos goste de garotas.

Jack soube o que ela diria em seguida. Ela viu seu medo e deu um risinho de triunfo.

Então qual é, Jack? Qual é o seu poder?

Ele balançou a cabeça, não confiando em si mesmo para falar.

Você não pôs seu nome na lista, Jack. Por que será? Você sabe que Caine usa as aberrações que são leais a ele. Sabe que, enquanto for totalmente leal, tudo vai estar bem. — Diana se inclinou tão perto que ele começou a respirar o ar que ela exalava. — Você é duas barras, Jack. Antes era um nada. O que significa que seus poderes estão se desenvolvendo. O que significa, surpresa!, que as pessoas podem ad­quirir o poder mais tarde. Não é?

Ele confirmou com a cabeça.

E você não se incomodou em nos contar. O que será que isso significa em termos de sua lealdade?

Sou completamente leal — disse Jack Computador, bruscamen­te. — Sou totalmente leal. Você não precisa se preocupar comigo.

O que você consegue fazer?

Jack atravessou a sala com as pernas trêmulas. Sem aviso, a vida tinha se tornado subitamente perigosa. Ele abriu o armário. Puxou de dentro uma cadeira. A cadeira era de aço, funcional, sem frescuras, mas muito sólida. A não ser pelo encosto, onde a barra metálica hori­zontal fora apertada até formar a impressão perfeita de dedos. Como se fosse feita de argila, e não de metal.

Ele ouviu Diana ofegar subitamente.

Eu dei uma topada com o dedão — explicou Jack. — Doeu um bocado. Agarrei a cadeira enquanto estava pulando e gritando.

Diana examinou o metal, acompanhando a linha do lugar onde ele havia apertado com os dedos.

Ora, ora. Você é mais forte do que parece, não é?

Não conte ao Caine — implorou Jack.

O que você acha que ele faria? — perguntou Diana.

Agora Jack estava aterrorizado. Aterrorizado com aquela garota impossível que nunca parecia fazer sentido. De repente soube a res­posta. Tinha um modo de pressionar de volta.

Sei que você fez uma leitura no Sam Temple. Eu vi — acusou ele. — Você disse ao Caine que não fez, mas fez. Ele é um quatro barras, não é? Quero dizer, o Sam. Caine iria pirar de vez se soubesse que existe outro quatro barras por aí.

Diana nem mesmo hesitou.

  1. Sam é um quatro barras. E Caine iria pirar. Mas Jack: é a sua palavra contra a minha, não é? Em quem você acha que o Caine iria acreditar?

Jack não tinha mais nada. Nenhuma ameaça. Sua força de vontade desmoronou.

Não deixe que ele me machuque — sussurrou.

Diana parou.

Ele vai machucar. Vai colocar você na lista. A não ser que eu o proteja. Está pedindo para eu proteger você?

Jack viu uma corda de esperança em sua escuridão pessoal.

Estou. Estou.

Diga.

Por favor, me proteja.

O olhar de Diana pareceu se derreter, de gelado até quase quente. Ela sorriu.

Vou proteger você, Jack. Mas tem uma coisa. De agora em dian­te, você me pertence. Sempre que eu pedir para você fazer alguma coisa, Jack, você vai fazer. Sem perguntas. E não vai contar a ninguém sobre seu poder nem sobre nosso trato.

Ele assentiu de novo.

Você pertence a mim, Jack. Não ao Caine. Não ao Drake. A mim. É o meu pequeno Hulk. E se algum dia eu precisar que você...

Qualquer coisa que você queira, eu faço.

Diana deu um beijo levíssimo na bochecha de Jack, selando o acor­do. E sussurrou no ouvido dele:

Eu sei que você vai fazer, Jack. Agora vamos.

 

                          108 HORAS E 12 MINUTOS

QUINN ESTAVA CANTANDO. A letra era uma espécie de homenagem sombria ao surfe.

Isso é animadinho — comentou Astrid, secamente.

E do Weezer. Eu e Sam vimos um show deles em Santa Barbara. Weezer. Jack Johnson. Insect Surfers. Show maneiríssimo.

Nunca ouvi falar em nenhum desses — disse Astrid.

São bandas de surf music — respondeu Sam. — Bom, o Weezer nem tanto, eles são mais ska-punk. Mas do Jack Johnson você prova­velmente iria gostar.

Estavam saindo do Parque Nacional Stefano Rey, descendo o mor­ro, do lado seco da montanha. As árvores eram menores e mais espar­sas, misturadas com capim alto e seco.

Naquela manhã haviam encontrado um acampamento. Os ursos tinham arranjado um monte de comida ali, mas havia sobrado uma quantidade suficiente para que os cinco tivessem um desjejum farto. Agora tinham mochilas, comida e sacos de dormir de estranhos. Edilio e Sam tinham canivetes bons, e Quinn estava encarregado de carregar as lanternas e pilhas que haviam encontrado.

A comida melhorou bastante o humor de todo mundo. O Pequeno Pete chegara bem perto de sorrir.

Caminharam com a barreira à esquerda. Era uma experiência fan­tasmagórica. Árvores eram divididas ao meio pela barreira, com ga­lhos se estendendo em direção a ela e desaparecendo. Ou então, se projetando dela. Os galhos que saíam da barreira não caíam, mas esta­vam claramente morrendo. As folhas eram frouxas — aparentemente separadas da nutrição.

De vez em quando Sam verificava algum desfiladeiro ou espiava por trás de uma pedra, sempre procurando algum lugar que a barreira não alcançasse. Mas logo isso pareceu sem sentido. A barreira pene­trava em cada vala, cada galeria pluvial. Enrolava-se em volta de cada pedra, cortava cada arbusto.

Não falhava.

Não terminava.

A construção da barreira, como havia observado Astrid, era impe­cável.

De que tipo de música você gosta? — perguntou Sam.

Deixe-me adivinhar — interrompeu Quinn. — Clássica. E jazz. — Ele esticou a palavra "jazz" até um tamanho cômico.

Na verdade...

Cobra — gritou Edilio. Ele dançou para trás, tropeçou e caiu, ricocheteou de volta parecendo sem graça. Então, num tom mais cal­mo, disse: — Tem uma cobra ali.

Deixe-me ver — disse Astrid, ansiosa. Depois se aproximou com cautela, enquanto Sam e Quinn ficavam fora do alcance, mais cautelo­samente ainda.

Não gosto de cobras — admitiu Edilio.

Sam riu.

É, acho que deu para sacar pelo modo tão gracioso como você se afastou. — Ele espanou um pouco de terra e folhas secas grudadas às costas de Edilio.

Vocês deveriam olhar isso — gritou Astrid, ansiosa.

Olhem vocês — respondeu Edilio. — Eu já vi uma vez. Só pre­ciso de uma olhada numa cobra.

Não é uma cobra — disse Astrid. — Pelo menos não é só uma cobra. Deve ser seguro olhar, ela está num buraco.

Sam se aproximou com relutância. Não queria realmente ver a co­bra. Mas também não queria parecer covarde.

Só não espante — disse Astrid. — Ela talvez seja capaz de voar. Pelo menos de dar vôos curtos.

Sam se imobilizou.

O quê?

Apenas pise de leve.

Sam chegou mais perto. E ali estava. A princípio só viu a cabeça triangular espiando do fundo de um buraco de 30 centímetros de pro­fundidade, forrado com folhas secas.

Isso é uma cascavel?

Não mais — respondeu Astrid. — Venha por trás de mim. — Quando Sam estava em posição, ela disse: — Olhe. Uns 15 centíme­tros atrás da cabeça.

O que é isso? — Abas de pele coriácea, não coberta de escamas, mas cinza e riscada pelo que pareciam veias cor-de-rosa, pendiam gru­dadas ao corpo da serpente.

Parecem vestígios de asas — disse Astrid.

Cobras não têm asas — argumentou Sam.

Não tinham — disse ela, em tom sombrio.

Os dois recuaram devagar. Juntaram-se de novo a Edilio, Quinn e Pequeno Pete, que estava olhando o céu como se esperasse que alguém viesse daquela direção.

O que foi? — perguntou Quinn.

Uma cascavel com asas — respondeu Sam.

Ah. Isso é bom, porque eu achava que não tínhamos coisas sufi­cientes com que nos preocupar — disse Quinn.

Não fico surpresa — observou Astrid. Quando os outros a enca­raram, ela explicou: — Quero dizer, é óbvio que existe algum tipo de mutação acelerada acontecendo dentro do LGAR. Na verdade, pen­sando no Petey, no Sam e nos outros, a mutação deve ter precedido a criação da barreira. Mas suspeito que o LGAR esteja acelerando o processo. Nós vimos aquela gaivota alterada. E houve o gato do Al- bert, que se teletransportava. Agora isso.

Vamos andando — disse Sam, principalmente porque não havia sentido em ficar ali perdendo tempo. Agora todo mundo andava mais cautelosamente, olhos abaixados, muito conscientes das coisas em que poderiam pisar.

Pararam para almoçar quando o Pequeno Pete começou a perder a paciência e armou uma greve sentado. Sam ajudou a preparar a comi­da, depois pegou sua lata de pêssegos e sua barra de cereais e sentou-se sozinho, afastado dos outros. Precisava pensar. Todos esperavam que ele bolasse um plano, dava para sentir.

Ainda estavam um pouco acima do piso do vale, num espaço aber­to e sem sombras. O chão era rochoso e o sol batia com força. Não parecia que houvesse algo que servisse de abrigo ou sombra adiante. Só a barreira se estendendo continuamente, para sempre e sempre. Dessa altura ele deveria ser capaz de ver por cima dela, mas Astrid estava certa: não importando onde você estivesse, a barreira parecia igualmente alta, igualmente impenetrável.

Ela reluzia um pouco ao sol, mas, na maior parte do tempo, a bar­reira não mudava, fosse dia ou noite. Era sempre do mesmo cinza le­vemente brilhante. Era reflexiva apenas o suficiente para, às vezes, quase ser possível enxergar uma abertura, árvores que se estendiam para além da barreira, ou uma característica da paisagem que parecia passar por um buraco na barreira. Mas era sempre uma ilusão de óti­ca, um truque da luz.

Ele mais sentiu do que ouviu Astrid chegar por trás.

É uma esfera, não é? — perguntou. — Passa totalmente em vol­ta de nós. Por baixo e por cima.

Acho que sim — disse ela.

Por que vemos as estrelas à noite? Por que podemos ver o sol?

Não tenho certeza de que estamos vendo o sol. Pode ser uma ilusão. Pode ser algum tipo de reflexo. Não sei. — Ela pisou deliberadamente num graveto pequeno e partiu-o ao meio. — Realmente não sei.

Você odeia dizer "não sei", não é?

Astrid riu.

Você notou.

Sam suspirou e baixou a cabeça.

Isso é uma perda de tempo não é? Tentar achar um portão. Ten­tar achar uma saída.

Pode não haver saída — confirmou Astrid.

O mundo ainda está lá? Quero dizer, do outro lado da barreira?

Ela sentou-se ao seu lado, suficientemente perto para fazer compa­nhia, mas sem tocar.

Estive pensando um bocado nisso. Gostei da sua idéia do ovo. Mas, para dizer a verdade, Sam, não creio que a barreira seja só uma parede. Uma parede não explica o que está acontecendo com a gente. Com você, Petey, os pássaros, o gato do Albert e as cobras. E não ex­plica por que todo mundo com mais de 14 anos desapareceu de uma vez. E continua desaparecendo.

O que explicaria tudo isso? — Ele levantou a mão. — Espera, não quero fazer você dizer de novo. Você não sabe.

Lembra-se de quando Quinn disse que "alguém hackeou o uni­verso"?

Agora você está pegando suas idéias com o Quinn? O que acon­teceu com sua capacidade de gênio?

Ela ignorou a provocação.

O universo tem certas regras. Como o sistema operacional de um computador. Nada do que estamos vendo poderia acontecer a partir do programa do nosso universo. O modo como Caine conse­gue mover as coisas com a mente. O modo como você pode fazer luz com as mãos. Essas coisas não são simplesmente mutações: são vio­lações das leis da natureza. Pelo menos das leis da natureza que co­nhecemos.

É. E daí?

E daí. — Ela balançou a cabeça, pesarosa, não acreditando nas próprias palavras enquanto as dizia. — E daí que acho que isso signi­fica... que não estamos mais no universo antigo.

Sam encarou-a.

Só há um universo.

A teoria de universos múltiplos está por aí há bastante tempo. Mas talvez tenha acontecido alguma coisa que começou a alterar as regras do universo antigo. Só um pouquinho, só numa área pequena. Mas o efeito se espalhou, e em determinado ponto se tornou impossí­vel para o antigo universo conter esta nova realidade. Um novo uni­verso foi criado. Um universo muito pequeno. — Ela respirou fundo, um som aliviado, como se tivesse acabado de tirar dos ombros um peso enorme. — Mas sabe de uma coisa, Sam? Eu sou inteligente, mas não sou exatamente o Stephen Hawking.

E como se alguém tivesse instalado um vírus no programa do universo antigo.

Isso. A coisa começou pequena. Algumas mudanças em indiví­duos. Petey. Você. Caine. Mais em crianças do que em adultos, porque as crianças não estão totalmente formadas, são mais fáceis de alterar. Então, naquela manhã, aconteceu alguma coisa que fez a balança pen­der. Ou talvez várias coisas.

Como podemos passar através dessa barreira, Astrid?

Ela pôs as mãos sobre as dele.

Sam, não sei se existe um "através". Quando digo que estamos em outro universo, quero dizer que talvez não tenhamos nenhum ponto de contato com o universo antigo. Talvez sejamos como bolhas de sabão que podem pairar juntas e se juntar. Mas talvez sejamos como bolhas de sabão separadas por um bilhão de quilômetros.

Nesse caso, o que há do outro lado da barreira?

Nada. Não há outro lado. A barreira pode ser o fim de tudo que existe, aqui neste novo universo.

Você está me deprimindo — disse ele, tentando e não conse­guindo parecer casual.

Ela cruzou os dedos com os dele.

Posso estar errada.

Acho que vou descobrir em... que dia é hoje? Em menos de uma semana.

Astrid não tinha resposta para isso. Os dois ficaram sentados jun­tos, olhando para o deserto. À distância, um coiote solitário trotava, o nariz abaixado para captar o cheiro de uma presa. Um par de urubus riscava círculos preguiçosos no céu.

Depois de um tempo, Sam se virou para Astrid e encontrou os lá­bios dela esperando. Aquilo pareceu fácil e natural. Tão fácil e natural que fez o coração de Sam ameaçar explodir para fora do peito.

Os dois se separaram sem dizer nada. Encostaram-se um no outro, ambos adorando aquele simples contato físico.

Sabe de uma coisa? — disse Sam, finalmente.

O quê?

Não posso passar os próximos quatro dias nessa tensão perma­nente.

Astrid assentiu, um movimento que ele mais sentiu do que enxergou.

Você me torna corajoso, sabe? — disse Sam.

Eu estava justamente pensando que não quero que você seja mais corajoso. Quero que esteja comigo. Quero que esteja em segu­rança e não procurando encrenca, só que fique comigo, que fique perto de mim.

Tarde demais — disse ele, com leveza forçada. — Se eu sumir, como você e o Pequeno Petey ficam?

Podemos cuidar de nós mesmos — mentiu ela.

Você me confunde muito, sabia?

Bom, você não é tão inteligente quanto eu, por isso fica confuso com facilidade.

Ele riu. Depois ficou sério de novo. Acariciou o cabelo dela com uma das mãos.

O negócio, Astrid, é que posso passar o tempo sentindo medo, tentando encontrar um modo de escapar. Ou posso passar o tempo enfrentando. Talvez então, se eu desaparecer, você e o Pequeno Pete...

Nós poderíamos todos... — começou ela.

Não. Não poderíamos. Não poderíamos ficar escondidos na flo­resta comendo comida de acampamento desidratada. Não podemos só ficar escondidos.

O lábio de Astrid tremeu e ela enxugou uma lágrima que ia se for­mando.

—- Precisamos voltar. Pelo menos eu preciso. Preciso enfrentar.

Como se quisesse ilustrar o argumento, Sam ficou de pé. Segurou a mão de Astrid e puxou-a. Juntos voltaram para perto dos outros.

Edilio. Quinn. Eu cometi um monte de erros. E talvez esteja cometendo um agora, também. Mas estou cansado de evitar a luta. E estou cansado de tentar fugir. Estou muito, muito preocupado pen­sando que posso fazer com que vocês sejam mortos. Por isso vocês vão ter de decidir sozinhos se querem ir comigo. Mas eu preciso voltar a Praia Perdida.

Nós vamos lutar contra o Caine? — perguntou Quinn, alarmado.

Demorou — disse Edilio.

— Bem-vindos ao McDonald's — disse Albert. — Em que posso servi-los?

Ei, Albert — respondeu Maria. Ela olhou o menu, que tinha vários itens cobertos com papel preto grudado com fita adesiva. As saladas haviam desaparecido rapidamente. Os milk-shakes tinham su­mido porque a máquina quebrava.

Albert esperou com paciência e sorriu para a menininha que estava com Maria. Maria notou e disse:

Ah, desculpe, eu deveria apresentar vocês. Esta é Isabella. Isabella, este é o Albert.

Bem-vinda ao McDonald's — disse Albert.

Isabella é nova. Uma equipe de busca acabou de achá-la e trouxe para cá.

Minha mãe e meu pai foram embora — disse Isabella.

Eu sei. Os meus também — respondeu Albert.

Acho que um Bic Mac com fritas grandes para mim — disse Maria. — E um McLanche Feliz para Isabella.

Nuggets de frango ou hambúrguer?

Nuggets.

E você vai querer o Big Mac com pão tipo bagel, bolo inglês ou num waffle?

Waffle?

Albert deu de ombros.

Desculpe, Maria, mas não tem pão fresco em lugar nenhum. Estou usando qualquer coisa congelada que consigo encontrar para substituir o pão. E, claro, não tem alface, mas disso você sabe.

Ainda tem o molho especial?

Tenho uns duzentos litros de molho do Big Mac. E picles para toda a eternidade. Vou começar a preparar o seu pedido. Se fosse você, eu escolheria o bagel.

Bagel, então.

Albert jogou uma nova porção de batatas no óleo quente. Depois uma porção de nuggets no outro cesto da fritadeira. Apertou os dois cronômetros. Moveu-se com facilidade até a grelha e pôs três hambúr- gueres para fritar.

Abriu o bagel, espirrou um pouco de molho, salpicou cebolas, duas rodelas de picles no centro.

Esperou e ficou olhando Maria tentando animar Isabella na área das mesas. A menininha estava solene e parecia à beira das lágrimas.

Albert virou os hambúrgueres e baixou a tampa da grelha para ace­lerar o cozimento.

O cronômetro da fritadeira tocou. Ele levantou o cesto, sacudiu para tirar o excesso de óleo e jogou as fritas no depósito. Uma sacudi­da rápida do saleiro. Depois vieram os nuggets.

Albert gostava dos movimentos parecidos com dança, que havia aperfeiçoado nos últimos... quantos dias? Oito? Nove? Nove dias cui­dando do McDonald's.

Maneiro — disse Albert, satisfeito.

Desde o incidente com a criatura que todo mundo agora chamava de "Gato do Albert", ele havia permanecido dentro, ou pelo menos perto, do McDonald's. No McDonald's não havia gatos sobrenaturais capazes de se teletransportar.

Ele juntou os pedidos em duas bandejas e levou-as até a única mesa ocupada.

Obrigada — disse Maria.

Nossa promoção regular acabou — disse Albert. — Mas tenho uns brinquedos, você sabe, coisas pequenas trazidas do Ralph's, por exemplo. Por isso tem um brinquedo no McLanche Feliz. Só que não é o que vinha antes.

E por quanto tempo você pode manter esse lugar aberto?

Bom, eu tenho um monte de hambúrgueres. No dia do LGAR veio um caminhão de entregas. Você deve ter visto quando ele entrou naquela casa velha atrás da oficina mecânica, certo? Bom, quando eu cheguei lá, o motor ainda estava ligado, por isso a refrigeração funcio­nava. Estou com o freezer lotado. Além disso, tenho hambúrgueres guardados em freezers por toda a cidade. — Ele assentiu, satisfeito.

Tenho 16.280 hambúrgueres crus, inclusive os para Quarteirões. Estou vendendo uns 250 por dia. De modo que dá para uns dois me­ses, mais ou menos. As batatas vão acabar antes.

E depois?

Albert hesitou, como se não tivesse certeza se deveria entrar no assunto, mas então, feliz por ter alguém com quem compartilhar as preocupações, disse:

Olha, não dá para viver para sempre com a comida que a gente tem. Quero dizer, certo, tem toda a comida daqui, toda a da mercearia e um bocado de comida em todas as casas, certo?

É um monte de comida. Sente-se com a gente, Albert.

Ele ficou desconfortável.

No manual diz que a gente não deve se sentar com os clientes. Mas acho que posso tirar uma folga e me sentar à outra mesa.

Maria sorriu.

Você gosta mesmo disso.

Albert confirmou com a cabeça.

Quando o LGAR acabar, quero que o gerente distrital venha aqui e diga: "Uau, bom trabalho, Albert."

É mais do que um bom trabalho. Você faz as pessoas pensarem que talvez haja alguma esperança, sabe?

Obrigado, Maria, é legal você dizer isso. — Ele pensou que era a coisa mais legal que alguém já havia lhe dito, o que o deixou com uma expressão luminosa. Um monte de crianças entrava e reclamava que ele não tinha exatamente o que elas queriam.

Mas você está preocupado com o que vai acontecer em seguida? - instigou Maria.

Agora tem um monte de comida, mas algumas coisas já estão em falta. Quase não se encontra mais barras de chocolate ou salgadinhos. Os refrigerantes vão acabar em pouco tempo. E vamos acabar ficando sem nada.

Em quanto tempo?

Não sei. Mas logo, logo, as pessoas vão começar a brigar por causa de comida. Estamos desperdiçando a que temos. Não estamos plantando mais comida nem criando coisas novas.

Maria havia dado duas mordidas no Big Mac.

Caine sabe disso?

Eu disse a ele. Mas ele está ocupado com outras coisas.

Isso aqui é um problema importante.

Albert não queria falar de coisas tristes, principalmente quando alguém estava desfrutando de sua comida. Mas era Maria que tinha perguntado e, para Albert, Maria era uma santa como as da igreja. Ele deu de ombros e disse:

— Só estou tentando fazer a minha parte.

Nós podemos plantar comida?

Acho que isso é tarefa do Caine ou... sei lá quem — disse Albert, cautelosamente.

Maria assentiu.

Sabe de uma coisa, Albert? Realmente não me importo com quem esteja comandando as coisas, mas preciso cuidar das minhas crianças.

E eu tenho este lugar — concordou Albert.

A Dahra tem o hospital. E Sam tinha o posto de bombeiros.

É.

Era um momento esquisito para Albert. Ele admirava Maria, acha­va que ela era a pessoa mais linda que ele já conhecera, afora sua mãe, e queria confiar em Maria. Mas não tinha certeza de que poderia. Estava perturbado com o que acontecia em Praia Perdida. Mas e se

Maria pensasse diferente? E se contasse a Drake que Albert estava re­clamando, talvez até sem querer?

Drake poderia ordenar que ele fechasse o estabelecimento. E Al­bert não sabia o que faria da vida se o perdesse. O trabalho o havia impedido de pensar muito no que acontecera. E, pela primeira vez na vida, Albert era uma pessoa importante. Na escola ele não passava de mais um garoto. Agora era Albert Hillsborough: empresário.

Pensando bem, Albert gostaria que Caine e Drake fossem embora. Mas a única outra pessoa que poderia aparecer e cuidar das coisas es­tava em algum outro lugar, era uma pessoa caçada.

Como está o hambúrguer? — perguntou a Maria.

Sabe de uma coisa? — Ela sorriu e lambeu o ketchup do dedo. — Acho que gosto mais com o pão Bagel.

 

                                 100 HORAS E 13 MINUTOS

FORAM DE CARRO, numa lentidão de enlouquecer, desde Praia Per­dida até a Coates. Panda ao volante, mais nervoso ainda do que o usual, aterrorizado, pelo que parecia a Jack. Estava escuro e Panda ficava dizendo que nunca havia dirigido no escuro. Tinha demorado cinco minutos só para achar o controle dos faróis e deduzir como ligar.

Caine estava sentado ao lado dele, roendo a unha do polegar, quie­to, mas preocupado. Tinha feito interrogatórios repetidos com Jack sobre os procedimentos para registrar a grande partida de Andrew. De algum modo, o que havia começado como uma idéia de Caine tinha se tornado responsabilidade de Jack. Se desse certo, Caine iria reivin­dicá-la como sua. Mas, se fracassasse, sem dúvida a culpa recairia so­bre Jack.

Diana, sentada junto de Jack, pela primeira vez tinha pouca coisa a dizer. Jack se perguntou se ela estava com tanto medo de retornar à Coates quanto ele.

Jack estava enfiado entre Diana e Drake. Drake segurava uma pis­tola automática, mais cinza do que preta, no colo.

Jack nunca tinha visto uma arma tão de perto. Certamente nunca tinha visto uma arma nas mãos de um garoto que ele pensava que era provavelmente maluco.

Drake não deixava a arma parada. Ficava puxando e empurrando a trava. Ele abaixou a janela e apontou-a para sinais de trânsito en­quanto passavam, mas não atirou.

Você sabe atirar com essa coisa? Ou vai atirar no seu pé? — per­guntou Diana, finalmente.

Ele não vai atirar — disse Caine, rispidamente, antes que Drake pudesse responder. — É só um adereço. Queremos que Andrew se comporte. E vocês sabem como ele pode ser difícil. A arma mantém as pessoas calmas.

É, eu sei, ela faz com que eu me sinta calma de verdade — disse Diana.

Cala a boca, Diana — reagiu Drake.

Diana riu com seu jeito arrastado e ficou quieta de novo.

Jack estava suando, ainda que fosse uma noite fresca e Caine esti­vesse com as janelas abaixadas. Jack se sentia a ponto de vomitar. Tinha pensado em dizer que estava doente demais para ir, mas sabia que Caine não deixaria que ele ficasse em casa. Havia se sentido cada vez pior enquanto corria para juntar o equipamento necessário. Tinha passado o dia com Drake, revirando casas em busca de câmeras e tripés. Jack já tivera o suficiente de Drake Merwin pelo resto da vida.

Chegaram perto do portão. Era um negócio impressionante, duas bandas de ferro fundido filigranado, 6 metros de altura e preso a co­lunas de pedra mais altas ainda. O lema da Coates, Ad augusta, per augusta, estava escrito em duas placas pintadas de ouro que se junta­vam quando as bandas do portão estavam fechadas.

Buzine. Quem está no portão deve ter dormido — ordenou Caine.

Panda apertou a buzina. Quando não houve resposta, ele se apoiou nela. O som era chapado, engolido pelas árvores.

Drake — disse Caine.

Drake desceu, segurando a arma, e avançou até o portão. Abriu-o e passou pela guarita de pedra. Voltou alguns segundos depois e subiu no carro.

Não tem ninguém na guarita.

Caine franziu a testa para o retrovisor.

Isso não é do estilo do Benno. Benno segue as ordens.

Benno era o capanga que Caine havia deixado no comando da Coates. Jack jamais gostara do garoto — ninguém gostava —, mas Cai­ne estava certo: Benno era o tipo de valentão que fazia o que os valen­tões maiores mandavam. Não julgava sozinho. E não era suficientemen­te idiota para pensar que poderia passar por cima das ordens de Caine.

Alguma coisa está errada — disse Panda.

Tudo está errado, Panda — corrigiu Diana.

Panda passou pelo portão. Até chegarem à escola eram mais 400 metros. Seguiram em silêncio. Panda levou o carro pelo fim da pista, até a parte circular diante do prédio principal.

Havia luzes acesas em todas as janelas. Uma das janelas do segundo andar tinha sido explodida para fora, de modo que uma sala de aula inteira podia ser vista claramente.

Havia carteiras empilhadas contra uma das paredes. O quadro ne­gro estava rachado e arranhado. Todos os desenhos, cartazes e exorta­ções que um dia tinham adornado as paredes da sala estavam chamus­cados, enrolados pelo calor. Um enorme pedaço de parede de tijolos e argamassa estava no gramado.

Ora, isso não é bom — disse Diana, com seu sotaque preguiçoso.

Quem tem poder para fazer isso? — perguntou Caine, com raiva.

O garoto que viemos ver — respondeu Diana. — Se bem que é um bocado de danos para um três barras.

Benno perdeu o controle aqui — comentou Drake. — Eu disse que Benno era um molenga.

Venham — disse Caine, e desceu para a pista de cascalho, segui­do pelos outros. — Suba a escada da frente, Panda, abra a porta. Va­mos ver o que nos espera.

De jeito nenhum — respondeu Panda, com a voz trêmula.

Covarde — disse Caine. Em seguida, levantou as mãos, com as palmas para a frente, e de súbito Panda estava voando pelo ar. Chocou-se contra a porta e caiu embolado. Panda se levantou aos poucos, depois caiu de novo.

Minha perna está machucada. Não consigo mexê-la.

Nesse momento a porta da frente se abriu, acertando Panda. A luz se esparramou de dentro e Jack viu meia dúzia de formas, formas como macacos, andando de quatro, abrindo caminho à força, gritan­do, uivando, aterrorizados.

Desceram os degraus atabalhoadamente. Cada um carregando um bloco de cimento que arrastavam enquanto corriam. Mas, claro, Jack sabia que eles não estavam carregando os blocos. Suas mãos estavam presas em cimento.

Jack havia tentado não pensar nisso. Tinha tentado tirar da mente essa solução grosseira, cruel, para o problema de crianças desleais que tivessem poderes. Mas, desde que descobrira seu próprio poder, havia pensado em pouca coisa, além disso.

Eles tinham descoberto logo no início que os poderes sobrenaturais pareciam ser focalizados através das mãos.

Não, corrigiu-se Jack com aspereza, não eram eles que tinham des­coberto, ele tinha descoberto. E Caine havia ordenado que Drake fi­zesse essa coisa horrível.

Lembre-se de quem é sua dona — sussurrou Diana no ouvido de Jack.

Comida! Comida! A gente precisa de comida! — gritavam as vítimas dos blocos de concreto.

Era um coro de vozes fracas, desesperadas, tão cruas em sua neces­sidade que Jack entrou em pânico. Não podia ficar ali. Não podia es­tar com aquelas pessoas. Virou-se, mas Drake agarrou seu ombro e o empurrou para a frente.

Não havia como escapar.

As aberrações gritavam pedindo comida.

Uma garota chamada Taylor, com os braços vermelhos e em carne viva acima do bloco, o rosto coberto de sujeira, fedendo a seus pró­prios dejetos, desmoronou aos pés de Jack.

Jack — grasnou ela. — Estão nos fazendo morrer de fome. Benno estava dando comida à gente, mas ele sumiu. Nós não come­mos nada... Por favor, Jack.

Jack se dobrou ao meio e vomitou no cascalho.

Um pouco dramático demais, Jack — observou Diana.

Agora Caine estava subindo os degraus e Drake correu para alcançá-lo.

Diana meio que levantou Jack e o empurrou adiante, passando pe­las crianças com as mãos de blocos de concreto.

Jack viu a silhueta de Caine na passagem. Drake correndo para ir à frente, como o bom cachorrinho que era.

Houve um estrondo, como o estouro de um jato supersônico pas­sando acima deles.

Drake tombou para trás de encontro a Caine, e a arma voou de suas mãos. Caine se manteve firme, mas Drake apertou os ouvidos, de joelhos, gemendo.

Caine levou uma das mãos por cima dos ombros, sem ao menos olhar para trás. Abriu os dedos e mostrou as palmas das mãos.

O pedaço de parede caído se despedaçou, tijolo a tijolo. Um a um, como se tivesse criado asas, cada tijolo se alçou e voou.

Os tijolos passaram por cima da cabeça de Caine, pela porta aberta, rápidos como disparos de metralhadora.

A porta se fechou com um estrondo. Os tijolos se chocaram contra ela. A madeira se lascou com um som de britadeira. Em segundos, a porta era uma bagunça despedaçada.

Caine riu, provocando quem estava do outro lado da porta.

É você, Andrew? É você, achando que pode lutar comigo?

Caine avançou, ainda direcionando a saraivada da metralhadora de tijolos por cima da cabeça.

Seu feitiço está funcionando, Andrew — gritou Caine. — Mas você continua em segundo lugar.

Caine passou pela porta destruída.

Abaixando-se sob a torrente de tijolos, com a expressão louca de empolgação, Diana disse:

Venha, Jack. Você não vai querer perder o show.

Dentro ficava o saguão grandioso que Jack conhecia bem. Com três andares de altura, dominado por um lustre enorme. Duas escadas levavam ao segundo andar.

Os tijolos já haviam se chocado contra uma dessas escadas, trans­formando-a em lascas. O barulho era como uma motosserra mastigan­do metal

Andrew, um garoto que Jack conhecia e achava bastante legal, que nem era um valentão de verdade, até que seus poderes surgiram, esta­va imóvel, em choque, a uns 3 metros de Caine. Havia uma mancha molhada na virilha de suas calças.

O tiroteio de tijolos parou tão subitamente quanto havia começado.

Andrew fez um movimento hesitante para a segunda escadaria.

Não me obrigue a destruir essa escada também — alertou Caine. — Seria muito inconveniente.

Andrew perdeu a vontade de lutar. Baixou as mãos ao lado do cor­po. Parecia um garoto cuja mãe tivesse acabado de apanhá-lo fazendo alguma coisa errada. Cheio de culpa. Apavorado. Procurando um modo de barganhar.

Caine. Eu não sabia que era você, cara. Achei que estávamos tipo... você sabe, sendo atacados pelo Frederico. — Sua voz tremia. Tentou cobrir a mancha reveladora com as mãos.

Freddie? O que Frederico tem a ver com isso?

Cara, o Benno desapareceu, certo? E alguém tinha de cuidar das coisas, certo? Frederico tentou assumir o comando, ainda que o Ben­no fosse mais amigo meu do que dele, e então...

Eu cuido do Freddie mais tarde — interrompeu Caine. — Quem você acha que é, tentando comandar as coisas, Andrew?

O que eu deveria fazer, Caine? — choramingou Andrew. — Benno sumiu. Frederico ficou todo, tipo: vou assumir o comando. Mas eu estava segurando as pontas para você, Caine. — Obviamente a idéia havia acabado de ocorrer a Andrew. — Eu só estava fazendo isso, segurando as pontas para você. Frederico ficava dizendo: Caine é uma bosta, esqueçam o Caine, eu vou assumir o comando.

Caine se desligou de Andrew e lançou um olhar furioso para Jack.

Por que perdemos o aniversário de Benno?

Jack não tinha resposta. Suas entranhas se transformaram em água. Ele deu de ombros, impotente. Depois começou a pegar seu PDA, que­rendo provar que o aniversário de Benno ainda não havia chegado.

Caine — disse Diana —, você não acha que às vezes as fichas da escola podem estar erradas? Tipo, se alguma secretária senil anotou um número um em vez de um sete ou sei lá o quê? Não culpe o Jack. Você sabe que Jack é meticuloso demais para cometer um erro com um número.

Caine encarou Jack intensamente. Depois deu de ombros.

É, pode ser. Além disso, ainda temos o Andrew se preparando para seu grande salto.

Andrew lambeu os lábios, depois tentou rir.

Eu não vou sumir. Não vou dar o fora. Veja bem, o Benno esta­va dormindo. Ele tinha poderes, mas o cara estava dormindo. Por isso

não acho que, se você tiver poderes, vai desaparecer, não se estiver acordado e... você sabe... preparado. Diana gargalhou alto, um som irritante. Caine se encolheu. Depois disse:

É uma teoria interessante, Andrew. Vamos testá-la.

Como assim?

Só queremos olhar — respondeu Drake.

Só não... vocês não vão botar concreto em mim, vão? Ainda sou um cara seu, Caine, nunca usaria meus poderes contra você. Quero dizer, se eu soubesse que era você.

Diana disse rispidamente:

Você está deixando aquelas aberrações morrer de fome. Dá para ver por que ficou preocupado em ser posto no concreto.

Ei, nós estamos ficando sem comida — gemeu Andrew.

Drake, atire nesse maluco — disse Diana. Drake apenas gargalhou.

Acho que vamos fazer a coisa no salão de jantar — disse Caine. — Jack, está com o equipamento?

Jack pulou 15 centímetros, espantado por falarem com ele de novo.

Não. Não. E-e-eu tenho de voltar e pegar.

Drake, leve e-e-eu e pegue o material — disse Caine. — Diana, pegue a mão do Andrew e leve-o até o refeitório.

Era um som quase agradavelmente antiquado quando o sol estava bri­lhando. Mas agora, no escuro, os ganidos e os uivos provocavam arre­pios nas costas deles.

E só um coiote — explicou Sam. — Não se preocupe com ele. Mal podiam ver onde estavam pondo os pés, por isso se moviam devagar, hesitantes.

Talvez a gente devesse ter acampado naquela garganta lá atrás — disse Edilio.

Assim que a gente encontrar um lugar relativamente plano para colocar os sacos de dormir, sou a favor de uma parada — disse Sam.

Horas antes, haviam chegado a uma garganta funda, com laterais íngremes, impossível de ser evitada e quase impossível de ser escalada. O Pequeno Pete havia desmoronado completamente enquanto era car­regado na subida pelo outro lado da garganta, e todos ficaram aterro­rizados com a possibilidade de ele fazer alguma coisa.

Havaí — começou a dizer Quinn enquanto o Pequeno Pete uivava. — Havaí.

Por que você fica dizendo Havaí, cara? — perguntou Edilio.

Se ele pirar e decidir levar a gente numa "viagem misteriosa do Pequeno Pete", quero que seja para o Havaí, e não de volta para a casa de Astrid.

Edilio pensou nisso por um tempo.

Concordo. Havaí, P.P., Havaí.

Mas o Pequeno Pete não esganou ninguém, não teletransportou ninguém nem violou de qualquer outro modo as leis originais da física.

A barreira foi ficando cada vez mais longe à esquerda, praticamen­te invisível à luz da lua nascente. Sam ainda estava decidido a segui-la, mas não mais com qualquer esperança verdadeira de encontrar um portão, apenas porque era o único modo que conhecia de encontrar o caminho para casa. Cedo ou tarde a barreira iria se curvar de volta ao redor de Praia Perdida.

Houve um ganido espantosamente alto.

Caramba, essa foi perto — disse Edilio.

Sam confirmou com a cabeça.

Naquela direção. Talvez a gente devesse se desviar um pouco, não é?

Eu achava que os coiotes não eram de nada — resmungou Edilio.

E não são. Normalmente.

Diga que não está pensando em coiotes com asas — disse Edilio.

Acho que estamos tendo mais areia e menos pedras — observou Astrid. — Petey não tropeça há um tempo.

Não consigo enxergar a ponto de ter certeza — disse Sam. — Mas vamos parar em cinco minutos, de um jeito ou de outro. Todo mundo comece a procurar lenha enquanto anda.

Se não consigo ver o chão, como vou ver a lenha? — perguntou Quinn.

Ei. Olhem. — Sam apontou. — Tem alguma coisa ali. Acho. Parece... não sei, uma construção ou sei lá o quê.

Não estou vendo nada — disse Quinn.

Só é mais escuro do que a escuridão normal. Não estou vendo estrelas.

Foram naquela direção. Poderia haver comida, água ou abrigo.

De repente, os pés de Sam pisaram numa superfície flexível que o fez se lembrar do macio piso de agulhas de pinheiro da floresta. Abai­xou-se e tateou o que só podia ser grama.

Pessoal, esperem aí.

Sam estava cauteloso quanto a usar as lanternas. Eles tinham um suprimento limitado de pilhas e um suprimento ilimitado de escuridão.

Quinn. Dê uma luz aqui.

Não havia como se enganar com a cor verde, mesmo à luz branca e áspera.

Cautelosamente, Quinn passou a luz ao redor e iluminou uma cabana. Ao lado havia um moinho de vento.

Aproximaram-se com cautela, os cinco se juntaram em volta da porta enquanto Quinn apontava a luz para uma maçaneta. Sam encos­tou a mão nela e congelou.

Ouviu o som de passos correndo e raspando na escuridão atrás deles.

Entrem, seus idiotas! — gritou uma voz, uma voz de garota.

Quinn virou a luz. Percebeu um movimento, algo correndo para ele.

Outras coisas se movendo, como um mar de cinza na semi-escuridão.

O facho saltou de um cachorro bamboleando para o rosto aterro­rizado de uma garota em farrapos, imunda.

Corram! Corram! — gritou.

Sam agarrou a maçaneta da porta e girou-a. Mas, antes que pudes­se abri-la, a garota se chocou contra ele como uma bola de boliche, fazendo-o se esparramar no piso de madeira e embolar o tapete en­quanto escorregava. Um cachorro pousou em seu peito e ricocheteou.

Quinn gritou de dor e choque. Tinha perdido a lanterna. Ela ainda brilhava sobre um piso de tábuas e ele correu para pegá-la. No facho de luz, Sam viu as pernas de Astrid, e Edilio caindo.

Houve um coro de furiosos ganidos caninos e a garota que havia derrubado Sam estava lutando para se levantar, um cachorro latia e rosnava e havia outros rosnados também, enquanto corpos rápidos chegavam correndo.

A porta! Fechem a porta! — gritou a garota.

Algo estava em cima dela, algo rápido e furioso, rosnando.

Sam saltou de pé, agarrou a porta e tentou fechá-la, mas um corpo peludo estava no caminho. Houve um protesto canino, um rosnado, e uma dor súbita na sua perna. Uma mandíbula de ferro se fechou em volta de seu joelho, forte a ponto de esmagar os ossos.

Sam caiu contra a porta e ela se fechou. Ele escorregou e caiu de bunda encostado à porta, e o animal, a coisa selvagem que rosnava, estava com o focinho junto de seu rosto. Dentes se fecharam a dois centímetros de seus olhos.

Ele empurrou as mãos para fora e encontrou pelos ásperos em cima de músculos que se retorciam.

Houve uma dor terrível, aguda, em seu ombro, e ele soube que as mandíbulas da fera haviam se fechado em sua carne, e agora o animal estava sacudindo-o, rasgando sua carne, estraçalhando-a, cavando mais fundo.

Sam gritou de medo e bateu com punhos fracos contra o animal. Era inútil. Com a velocidade de um raio, o bicho passou as mandíbu­las do ombro para o pescoço de Sam. Sangue espirrou pelo seu peito.

Sam levantou as mãos, com as palmas para fora, mas o ataque tinha sido feroz demais. Sua jugular estava esvaziando o cérebro. Suas mãos não eram mais suas. Todo o seu corpo parecia distante. Ele desceu numa espiral para a escuridão.

Uma pancada macia, forte.

E a mandíbula de ferro se soltou.

Outra pancada forte.

Os olhos de Sam se reviraram na cabeça, mas antes de desmaiar ele captou um vislumbre da garota selvagem, maltrapilha, parada junto dele. A garota levantou as mãos, as duas juntas, por cima da cabeça. Para Sam tudo acontecia em câmera lenta, e havia fagulhas em seus olhos enquanto a garota baixava alguma coisa pesada, retangular e amarela sobre a cabeça do coiote.

 

                           97 HORAS E 43 MINUTOS

LANA ACENDEU UMA das lanternas do ermitão Jim e examinou a cena. A cabana estava como ela havia deixado. Só que agora tinha dois coiotes mortos, três garotos apavorados, uma criança esquisita de 4 anos, que ficava olhando fixamente para ela, e um garoto quase morto no chão.

Chutou Nip com o dedo do pé. Não havia reflexo. Ele estava mor­to, o cérebro esmagado por uma barra de ouro sólido. Ela o havia acertado repetidamente até que seus braços se cansaram.

O outro coiote ela não conhecia o suficiente para dar um nome. Mas ele havia morrido do mesmo modo, concentrado demais na presa para perceber o perigo.

Patrick estava deitado num canto, atemorizado, confuso, sem saber como se comportar. Um dos garotos, um cara com jeito de surfista, parecia espelhar essa confusão.

Bom menino — disse Lana, e Patrick bateu com o rabo debilmente no chão.

Quem é você? — perguntou Lana ao surfista.

Quinn. Meu nome é Quinn.

E você? — perguntou à garota loura.

À primeira vista, Lana sentiu-se inclinada a não gostar dela: parecia o tipo de garota perfeita demais, que descartaria alguém como Lana.

Por outro lado, ela estava protegendo o garotinho esquisito, envolvendo-o com os braços, de modo que talvez não fosse totalmente má.

Um garoto de rosto redondo e cabelo escuro cortado bem curto se ajoelhou perto do ferido.

Pessoal, ele está muito mal.

A loura foi até ele e abriu a camisa do garoto ferido. Um rio de sangue descia pelo seu peito.

— Ah, meu Deus, não — gritou a loura.

Lana empurrou-a de lado e pôs a mão em cima do ferimento que bombeava o sangue para fora.

—- Ele vai sobreviver — disse Lana. — Eu conserto.

Como assim, você conserta? — perguntou a loura. — Nós pre­cisamos dar pontos, precisamos de um médico. Olha como ele está sangrando.

Qual é o seu nome? — perguntou Lana.

Astrid, mas o que isso importa? Ele... — Ela parou de falar e se inclinou mais perto para ver. — O fluxo de sangue está diminuindo.

É. Eu também notei — disse Lana, secamente. — Relaxe. Ele vai ficar bem. Na verdade... — Ela inclinou a cabeça para olhá-lo melhor.

Na verdade, aposto que, quando não está coberto de sangue, ele é bonitinho. É seu namorado?

Não é disso que se trata — reagiu Astrid, bruscamente. Depois, em voz baixa, como se não quisesse que os outros escutassem, disse:

Mais ou menos.

—- Bom, sei que isso parece maluco, mas ele vai ficar bom em al­guns minutos. — Ela afastou a mão revelando que o ferimento já esta­va fechado. Cobriu-o de novo. — Não me pergunte como.

Impossível — ofegou o garoto de cabelo curto.

Lá fora, a matilha de coiotes gania feito louca e batia contra a por­ta. Mas o ferrolho permaneceu firme. Lana enfiou o encosto de uma cadeira embaixo da maçaneta e calculou seu próximo passo.

A porta não agüentaria para sempre. Mas os coiotes ficariam sem objetivo, sem saber o que fazer até que o Líder da Matilha voltasse de sua caçada particular.

O nome dele é Sam — disse Astrid. — Esse é o Edilio, este é meu irmão, Pequeno Pete, e eu sou Astrid. E acho que você acabou de sal­var nossas vidas.

Lana assentiu. Melhor. A garota estava demonstrando respeito.

Meu nome é Lana. E escute, pessoal, os coiotes não acabaram com a gente. Temos de garantir que a porta vai agüentar.

Estou nessa — disse Edilio.

O garoto ferido acordou com um susto.

Olhou os coiotes mortos. Levou a mão ao pescoço. Olhou o sangue na mão.

—- Você vai viver — disse Lana. — E vou consertar o resto. Só dei­xe eu colocar a mão em cima.

Ele parecia em dúvida. Olhou para Astrid.

Ela salvou nossas vidas — explicou Astrid. — E acabou de fe­char um ferimento que estava jorrando sangue há um minuto.

Sam deixou que ela encostasse a mão no seu pescoço.

Quem é você? — perguntou ele, com a voz rouca.

Lana. Lana Arwen Lazar.

Obrigado.

Sem problema. Mas não agradeça muito: sua vida pode não permanecer a salvo.

Ele assentiu. Ouviu o frenesi do lado de fora e se encolheu quando um dos coiotes se jogou contra a porta.

-— Aquilo que Edilio está usando como martelo é uma barra de ouro?

Edilio havia quebrado a cama e estava pregando uma das tábuas por cima da porta.

Lana deu um riso irônico.

É. A gente tem um monte de ouro. Patrick e eu somos ricos.

Ela passou a mão do pescoço dele para o ombro.

Funciona melhor se você tirar a camisa — disse.

Sam se encolheu de dor.

Acho que não consigo.

Lana passou a mão por baixo da camisa dele, sentindo o emaranha­do medonho de ferimentos secundários.

Vai ficar melhor em alguns minutos.

Como você faz isso? — perguntou ele.

Tem um monte de coisas esquisitas acontecendo.

O garoto balançou a cabeça, concordando.

É. Nós notamos. Obrigado por salvar minha vida.

Não foi nada, mas, como eu disse, isso pode ser temporário. Eles ainda não estão tentando entrar de verdade. Quando Líder da Matilha chegar aqui, isso pode mudar. Eles são fortes, você sabe, e inteligentes.

Você também está sangrando — disse Sam.

Eu conserto isso — respondeu ela, quase indiferente. — Acho que me acostumei a me cortar de um modo ou de outro.

Ela apertou a mão coberta de sangue de encontro à perna.

Quem é esse Líder da Matilha? — perguntou Sam.

É o coiote-chefe. Eu o enganei para que me deixasse vir para cá. Esperava conseguir ir embora. Ou pelo menos ter algo para comer, além de bicho caçado. Os coiotes são inteligentes, mas ainda não pas­sam de cachorros espertos, basicamente. Vocês estão com fome? Eu estou.

Sam assentiu. Depois levantou-se rigidamente, movendo-se como um velho.

—- Assim que eu terminar com minha perna, cuido da sua — disse Lana. — Temos um bom suprimento de comida e bastante água, pelo menos por um tempo. A questão é se Líder da Matilha vai conseguir um modo de entrar aqui.

Você está falando desse coiote como se ele fosse uma pessoa — disse Astrid.

Lana gargalhou.

Não uma pessoa com quem você gostaria de ficar.

Ele... ele é só um coiote? — perguntou Astrid.

Lana encarou a garota. Agora podia ver a inteligência por trás da aparência bonitinha.

O que você sabe sobre isso? — perguntou.

Sei que alguns animais estão mudando. Vimos uma gaivota com garras. E vimos, bem, uma cobra com o que pareciam cotocos de asas.

Lana assentiu.

É, já vi dessas. Bem de perto. Elas quase matam os coiotes de medo, disso tenho certeza. Elas não podem exatamente voar, mas as cascavéis usam as asas para conseguir um pouco mais de alcance do que tinham. Na verdade, salvaram minha pele uma vez. E eu vi quan­do mataram um coiote há poucas horas. Líder da Matilha disse...

Disse? — ecoou Edilio.

Vou contar a vocês sobre isso, mas primeiro vamos comer. Não comi nada. Se bem que me ofereceram um pedaço de esquilo cru. Pudim enlatado, é isso que eu quero. Estive sonhando com isso.

Ela pegou uma lata e usou o abridor com gestos febris. Não espe­rou um prato ou colher, apenas enfiou a mão, pegou um bocado e pôs na boca. Depois ficou imóvel, hipnotizada, dominada pela doçura ma­ravilhosa.

Estava chorando quando disse:

Desculpem, esqueci os bons modos. Vou pegar uma lata para vocês.

Sam foi mancando e pegou um pouco de pudim com a mão, imitando-a.

Eu já perdi a educação há muito tempo — disse ele, mas Lana podia ver que o garoto estava um pouco pasmo com seu comporta­mento lupino. Decidiu então que gostava dele.

Escutem, Sam, todo mundo, vocês precisam saber de uma coisa para não pirar de vez: Líder da Matilha sabe falar. Quero dizer, palavras humanas. Como disse a Barbie cientista aí, ele é uma espécie de mutante ou sei lá o quê. Sei que vocês acham que provavelmente estou maluca.

Agora ela estava com a xícara do ermitão Jim e usou-a para pegar mais um bocado de pudim maravilhoso. A lourinha — Astrid — estava abrindo uma lata de coquetel de frutas.

O que você sabe sobre o LGAR? — perguntou Astrid.

Lana parou de comer e encarou-a.

Sobre o quê?

Astrid deu de ombros e pareceu sem graça.

É como as pessoas chamam. Lugar da Galera da Área Radioati­va. LGAR.

O que isso significa?

Você viu a barreira?

Ela assentiu.

Ah, certo. Vi a barreira. Toquei a barreira, o que, por sinal, não é boa idéia.

Pelo que sabemos — disse Sam —, ela passa em volta de nós, num grande círculo. Ou talvez uma esfera. Achamos que o centro fica na usina nuclear. Parece ter um raio de 16 quilômetros a partir de lá, você sabe, 32 quilômetros de diâmetro.

Circunferência de 101,11 quilômetros com área de 813,668 quilômetros quadrados — disse Astrid.

Vírgula 668 — ecoou Quinn em seu canto. — Isso é importante.

É basicamente pi — disse Astrid. — Você sabe, 3,141529265... Certo, vou parar.

Lana continuava com fome. Pegou um bocado do coquetel de frutas.

Sam, você acha que a usina nuclear causou isso?

Sam deu de ombros, depois hesitou, surpreso. Lana achou que ele não sentia mais dor no ombro.

Ninguém sabe. De repente todas as pessoas com mais de 14 anos desapareceram, apareceu essa barreira e pessoas... animais...

Lana absorveu lentamente essa nova informação.

Quer dizer, todos os adultos? Eles sumiram?

Puf — disse Quinn. — Se mandaram. Sumiram. Saltaram fora. Pegaram a rampa de saída. Abriram um buraco. Emigraram. Os adul­tos e os adolescentes maiores. Só restou a garotada.

Eu fiz o máximo que pude para reforçar a porta — anunciou Edilio. — Mas só tenho pregos. Alguém pode acabar invadindo.

Talvez eles não tenham sumido — disse Lana. — Talvez a gente tenha sumido.

Essa é definitivamente uma das possibilidades — concordou As­trid. — Não que isso faça qualquer diferença real. Em termos efetivos é a mesma coisa.

A loura era definitivamente um crânio. Lana pensou no irmãozinho dela. Estava pavorosamente quieto, para um menino tão pequeno.

Meu avô sumiu enquanto estava dirigindo a caminhonete — dis­se Lana, recordando aquele dia terrível. — Houve um acidente. E eu estava morrendo. Quero dizer, os ossos se projetando para fora. Gan­grena. Então foi como se eu simplesmente pudesse curar. Meu cachor­ro. Eu mesma. E não sei por quê.

Do outro lado da porta veio um coro súbito de ganidos agitados.

Líder da Matilha está aí — disse Lana. Em seguida, foi até a pia e pegou a faca de cozinha do ermitão Jim. Virou-se para Sam, com expressão feroz. — Vou dar uma facada no coração dele, se ele entrar.

Sam e Edilio pegaram seus canivetes.

De fora da porta, a centímetros de distância, veio a voz estrangula­da, rosnada, aguda.

Humanos. Saiam.

Não — gritou Lana.

Humanos. Saiam.

"Pode esperar sentado, seu lobo mentiroso", disseram os três porquinhos.

Astrid sorriu e sussurrou:

Legal.

Humana. Saia. Humana ensina Líder da Matilha. Humana disse.

Lição número um, seu animal imundo, feio, nojento, sarnento: jamais confie num humano.

Isso resultou num silêncio prolongado.

A Escuridão — rosnou Líder da Matilha.

Lana sentiu o medo contrair seu coração.

—Vá. Conte ao seu patrão lá na mina sobre isso. — Ela ia começar a di­zer que não tinha medo da Escuridão. Mas essas palavras soariam falsas.

Que negócio de mina é esse? — perguntou Sam.

Nada.

Então por que o coiote lá fora está falando sobre isso? Que ne­gócio de escuridão é esse?

Lana balançou a cabeça.

Não sei. Eles me levaram até lá. É uma velha mina de ouro. Só isso.

Olha — disse Sam. — Você salvou nossa vida. Mas mesmo assim queremos saber o que está acontecendo.

Lana apertou os dedos em volta do cabo da faca para não tremer.

Não sei o que está acontecendo, Sam. Tem alguma coisa lá na mina. Só sei disso. Os coiotes obedecem, morrem de medo dela, e fa­zem o que ela diz.

Você viu a coisa?

Não sei. Não lembro. Na verdade não quero lembrar.

Houve uma pancada forte na porta, que chacoalhou as dobradiças.

Edilio, vamos achar mais pregos — disse Sam.

O refeitório da Academia Coates sempre havia parecido um lugar es­tranho e pouco amigável para Jack. Em termos de projeto e decora­ção, era uma tentativa de ser arejado e colorido. As janelas eram altas, o teto, elevado; as portas eram altos arcos decorados com coloridos azulejos espanhóis.

As mesas de madeira escura, compridas e pesadas, do primeiro ano de Jack na Coates, mesas que acomodavam 60 alunos cada, tinham sido substituídas no ano anterior por duas dúzias de mesas menores, redondas e menos formais, decoradas com enfeites centrais de papel machê feitos pelos alunos.

Na extremidade mais distante do refeitório, fora criado um mosai­co com quadrados de papel pintados individualmente. O tema era "Avante Juntos". Os quadrados tinham sido arrumados para formar uma seta gigante apontando do piso ao teto.

Mas quanto mais tentassem animar o salão, menos amigável ele parecia ficar, como se os pequenos toques de cor e extravagância ape­nas acentuassem o tamanho esmagador, a idade e a formalidade irre­dutível do local.

Panda, com a perna não quebrada, porém torcida de um jeito hor­rível, deixou-se cair numa cadeira e ficou triste e ressentido. Diana permaneceu de lado, não gostando do que iria testemunhar, e não fa­zendo segredo desse sentimento.

Suba na mesa, Andrew — ordenou Caine, apontando para uma das grandes mesas redondas diante do mosaico de seta.

Como assim, subir na mesa? — perguntou Andrew.

Algumas crianças enfiaram a cabeça no refeitório. Drake disse

"Xô!" E elas desapareceram.

Andrew, você pode subir na mesa ou eu posso fazer você levitar até lá — disse Caine.

Suba, idiota — rosnou Drake.

Andrew subiu numa cadeira e depois na mesa.

Não entendo o que...

Amarre-o. Jack Computador? Comece a arrumação.

Drake tirou uma corda da bolsa que havia apanhado no carro. Amarrou uma ponta numa perna da mesa, mediu uns 2 metros, cortou a corda e amarrou a ponta na perna de Andrew.

Cara, o que é isso? — perguntou Andrew. — O que vocês estão fazendo?

Uma experiência, Andrew.

Jack começou a montar as luzes e os tripés para as câmeras.

Isso é esquisito, cara. Não está certo, Caine. Não está certo.

Andrew, você tem sorte por eu estar lhe dando uma chance de sobreviver ao grande sumiço — disse Caine. — Agora pare de chora­mingar.

Drake amarrou a outra perna de Andrew e depois pulou na mesa para amarar as mãos dele com firmeza atrás da cabeça.

Cara, eu preciso das minhas mãos livres para o poder.

Drake olhou para Caine, que assentiu. Drake desamarrou as mãos de Andrew e olhou para o lustre acima. Jogou a ponta da corda por cima do lustre, um negócio de ferro, pesado e cheio de enfeites que os garotos da Coates brincavam de dizer que era o décimo Nazgul.

Drake passou a corda em volta do peito de Andrew, por baixo das axilas, e puxou-o até que seus pés mal tocassem o tampo da mesa.

Garanta que as mãos dele não possam apontar nessa direção — disse Caine. — Não quero aquele negócio tipo onda de choque dele derrubando as câmeras.

Então Drake suspendeu cada uma das mãos pelo punho, deixando Andrew com a aparência de um garoto que quisesse se render.

Jack olhou o monitor de LED de uma das câmeras. Andrew ainda poderia sair de enquadramento balançando-se para um lado ou para o outro. Jack não queria dizer nada, sentia pena de Andrew, mas se o vídeo fosse estragado...

Ah. Ele ainda pode se mexer um pouco para a esquerda ou a direita.

Então Drake amarrou cordas no pescoço de Andrew, quatro no total, levando-as até outras mesas dos quatro lados. Andrew não podia se mexer mais do que 30 centímetros em cada direção.

Quanto tempo, Jack? — perguntou Caine.

Jack verificou seu PDA.

Dez minutos.

Jack se ocupou com as câmeras, quatro em tripés. Três de vídeo e uma máquina fotográfica automática. Tinha duas luzes em suportes, apontadas para Andrew.

Andrew estava iluminado como se fosse algum tipo de estrela de cinema.

Não quero morrer — disse Andrew.

Nem eu — concordou Caine. — Por isso realmente espero que você possa vencer o puf.

Eu seria... tipo... o primeiro, não é? — disse Andrew. Em segui­da fungou. Lágrimas estavam começando a escorrer.

O primeiro e único — respondeu Caine.

Isso não é justo — reclamou Andrew.

Jack ajustou as lentes para englobar todo o corpo de Andrew.

Cinco minutos — disse Jack. — Vou em frente: ligando as câme­ras de vídeo.

Faça o que tiver de fazer, Jack, não anuncie — ordenou Caine.

Você não pode me ajudar, Caine? — implorou Andrew. — Você é um quatro barras. Talvez você e eu, se nós dois usássemos nosso poder ao mesmo tempo, certo?

Ninguém respondeu.

Estou apavorado, está bem? — gemeu Andrew, e agora as lágri­mas corriam livres. — Não sei o que vai acontecer.

Talvez você acorde do lado de fora do LGAR — disse Panda, falando pela primeira vez.

Talvez acorde no inferno — corrigiu Diana. — Que é o seu lugar.

Eu deveria rezar — disse Andrew.

Deus, me perdoe por ser um idiota que deixa pessoas morrerem de fome? — sugeriu Diana.

Um minuto — disse Jack, baixinho. Estava nervoso sobre quan­do acionar a máquina fotográfica. Ninguém achava que a certidão de nascimento de Andrew fosse exata até os minutos: a de Benno estava errada em semanas. Ele poderia desaparecer antes da hora.

Jack acionou a máquina fotográfica.

Dez segundos.

A sala irrompeu numa explosão sônica saída das mãos erguidas de Andrew. Ondas de um som ensurdecedor começaram a rachar o rebo­co do teto.

Jack cobriu os ouvidos e olhou com fascínio e horror.

Está na hora — Jack lembrou-se de gritar acima do barulho en­surdecedor. Pedaços de reboco caíam do teto como granizo. Todas as lâmpadas do lustre estouraram, lançando uma nevasca de pó de vidro.

Dez a mais — gritou Jack.

Andrew ainda estava ali, com as mãos para o alto, chorando, solu­çando, começando a esperar que talvez, começando a esperar.

Vinte a mais — disse Jack.

Continue assim, Andrew — gritou Caine. Agora ele estava de pé, ansioso, esperando que fosse verdade que o sumiço poderia ser vencido.

O teto estava rachando mais fundo, e Jack imaginou se ele iria cair.

A explosão sônica parou.

Andrew ficou parado, exausto, mas ainda ali. Ainda de pé.

Ah, meu Deus — disse ele. — Ah, obrig...

E sumiu.

As cordas caíram, subitamente liberadas.

Ninguém disse uma palavra.

Jack apertou o botão de retorno de uma de suas câmeras de vídeo de alta velocidade. Recuou em dez segundos. Depois apertou o play e assistiu pela minúscula tela de LCD, quadro a quadro.

Bom — Diana estava dizendo — foi-se a teoria de que a gente não some se tiver poderes.

Ele parou de fazer a explosão — disse Caine. — Depois sumiu.

Ele parou de fazer a explosão e dez segundos depois sumiu — disse Diana. — Os registros nas certidões de nascimento nunca vão ser 100% exatos. Alguma enfermeira anota a hora e talvez esteja cinco minutos adiantada ou atrasada. Algumas provavelmente estão erradas em meia hora.

Você captou alguma coisa, Jack? — perguntou Caine. Ele pare­cia desanimado.

Jack estava avançando o vídeo, quadro a quadro. Viu Andrew pro­jetando explosões sônicas. Viu-o parar, exausto pelo esforço. Viu o meio sorriso nervoso, o momento em que ele abriu a boca, cada sílaba, e então...

Temos de ver isso num monitor maior — disse Jack.

Levaram as câmeras para o centro de informática e deixaram os tripés e as luzes para trás. Encontraram um monitor de 26 polegadas, com ótima resolução. Jack não perdeu tempo transferindo o arquivo, simplesmente conectou os cabos e começou reproduzindo o vídeo. Caine, Drake e Diana se amontoaram em volta do seu ombro, os ros­tos ansiosos iluminados pela luz azul. Panda foi mancando até uma cadeira e se deixou cair.

Olhem — explicou Jack. — Bem aqui. Vejam o que acontece.

Ele avançou o vídeo quadro a quadro.

O que é aquilo? — perguntou Diana.

Ele está sorrindo. Viram? — disse Jack. — E está olhando para alguma coisa. E o estranho é que isso não é possível, porque este qua­dro é, tipo, uns 30 avos de segundo, mas ele teve tempo de ir desta expressão... — Jack recuou um quadro. — Para esta expressão. Para esta, vejam aqui para onde ele moveu a cabeça de novo. E bem aqui as cordas estão se soltando, as mãos dele estão livres. Avançando apenas três quadros, ele sumiu completamente.

O que isso significa, Jack? — Caine quase implorou.

Deixe-me olhar as outras câmeras — embromou Jack.

Uma das duas outras câmeras de vídeo, e só uma tinha captado o momento exato. Esta, também, mostrava uma imagem borrada de An­drew se movendo em solavancos súbitos de uma postura para a outra. Nesta também as cordas estavam frouxas e seus braços estendidos.

Ele está abrindo os braços para um abraço — disse Diana.

A máquina fotográfica provavelmente não havia conseguido nada útil, Jack sabia, mas conectou-a e avançou até o momento certo. Quando a foto foi carregada, houve um som ofegante vindo de todas as bocas.

Andrew estava claramente visível, sorrindo, feliz, transformado, com os braços estendidos. A coisa para a qual ele estendia as mãos pa­recia um clarão, um reflexo de algo, só que era de um verde quase fluorescente, ao passo que todas as luzes trazidas por eles eram brancas.

Dê um zoom naquela coisa verde — disse Caine.

É um problema de profundidade de campo — disse Jack. — Vou tentar melhorar a resolução. — Foram necessários alguns segundos para que a imagem se focalizasse na nuvem verde e vários zooms antes que pudessem ver o que parecia um buraco cercado por dentes afiados como agulhas.

Que coisa é aquela? — perguntou Drake, em voz alta.

Parece... Não sei — respondeu Jack. — Mas não parece uma coisa para a qual você estaria estendendo os braços.

Ele estava vendo uma coisa diferente — disse Diana.

A coisa alterou o tempo de algum modo, acelerou o tempo do Andrew — disse Jack, pensando em voz alta. — Assim, para o An­drew, a situação demorou muito mais do que para nós. Para ele podem ter sido dez segundos, ou mesmo dez minutos, se bem que para nós foi menos do que um piscar de olhos. Foi pura sorte captarmos alguma coisa.

Caine surpreendeu-o e deu-lhe um tapinha nas costas.

Não se desmereça, Jack.

Ele não sumiu simplesmente — disse Diana. — Ele viu alguma coisa. Estendeu os braços para ela. Aquela coisa verde, que para nós parece algum tipo de monstro, deve ter parecido outra coisa para o Andrew.

Mas o quê?

Qualquer coisa que ele quisesse — respondeu Diana. — Qual­quer coisa que ele quisesse tanto naquele momento a ponto de abrir os braços para ela. Se eu tivesse de chutar, diria que Andrew viu a mãe dele.

Drake falou pela primeira vez depois de um bom tempo:

Então esse grande negócio de sumir não é só uma coisa que acontece.

Não, há uma tramóia envolvida — disse Caine. — Um truque. Uma mentira.

Uma sedução — completou Diana. — Como uma daquelas plantas carnívoras que atrai o inseto com perfume e cores fortes e depois... — Ela fechou a mão em volta de um inseto imaginário.

Caine pareceu hipnotizado pela imagem congelada. Numa voz so­nhadora, disse:

Será possível dizer não? Essa é a questão. Será que podemos dizer não à flor colorida? Será que podemos dizer não... e sobreviver?

Certo, saquei o negócio da mamãe. Mas tenho outra pergunta — disse Drake, asperamente. — O que é aquele negócio cheio de dentes?

 

                               88 HORAS E 24 MINUTOS

DURANTE TODA A noite, os coiotes bateram contra a porta, tentando derrubá-la. Mas Sam, Quinn e Edilio tinham usado tudo que havia na cabana que pudesse reforçar a porta, e ela agüentaria. Sam acreditava nisso.

Pelo menos por um tempo.

Eles estão trancados lá fora — disse Sam.

E nós estamos trancados dentro — concordou Lana.

Você consegue? — perguntou Astrid a Sam.

Não sei — admitiu Sam. — Acho que sim. Mas tenho de ir lá fora para isso. Se der certo, tudo bem. Talvez. Se não der...

Mais pudim, alguém? — Era Quinn tentando aliviar o clima.

Melhor ficar aqui — sugeriu Astrid. — Eles teriam de passar pela porta. Isso significa um ou dois de cada vez. Não seria mais fácil, Sam?

É. Vai ser uma festa. — Ele estendeu sua caneca de estanho. — Quinn: pudim para mim.

Depois de várias longas horas, os coiotes se cansaram de se bater contra a porta. Os garotos presos conseguiram dormir algumas horas, dois de cada vez, sempre certificando-se de que dois permanecessem acordados.

O céu começou a clarear para um cinza perolado, não o suficiente para enxergarem com clareza, mas o bastante para Edilio encontrar um buraco na madeira que lhe permitiu uma precária visão do quintal da frente.

Deve haver, sei lá, uns cem deles lá fora — informou.

Lana parou de consertar sua roupa com uma agulha e linha e foi olhar.

Isso é mais do que uma matilha — disse.

Tem certeza? — perguntou Astrid, bocejando e esfregando os olhos.

Agora eu conheço um pouco sobre os coiotes. Se estamos vendo tantos assim, significa que há pelo menos o dobro por aí. Alguns têm de estar caçando. Os coiotes caçam de dia e à noite.

Ela sentou-se de novo e retomou a costura.

Estão esperando alguma coisa.

O quê?

Não vi o Líder da Matilha. Talvez ele tenha saído. Talvez este­jam esperando que ele volte.

Cedo ou tarde eles vão perder o interesse, não é? — perguntou Astrid.

Lana balançou a cabeça.

Os coiotes normais, claro. Mas esses não são coiotes normais.

Esperaram, e a intervalos de uma hora, mais ou menos, Sam ou Edilio iam verificar, e todas as vezes viam coiotes.

De repente, veio o som de uma centena de vozes caninas erguendo-se em ganidos agitados.

Patrick se levantou com os pelos eriçados.

Sam correu até o buraco. Lana apontou a lanterna acesa para ele.

Eles têm fogo — disse Sam.

Lana empurrou-o e subiu para ver.

É Líder da Matilha — confirmou ela. — Ele está com um galho aceso.

Não é só um galho aceso, é uma tocha — disse Sam. — Não é simplesmente uma coisa que ele achou. Só está queimando numa pon­ta, um galho não faria isso. Alguém com mãos teve de fazer isso. Al­guém deu a ele.

Escuridão — sussurrou Lana.

A cabana vai queimar como um fósforo — disse Sam.

Não. Não quero morrer queimada — gritou Lana. — Temos de sair, fazer algum tipo de acordo com Líder da Matilha.

Você disse que ele nos mataria — reagiu Astrid. Ela estava com as mãos nos ouvidos do Pequeno Pete.

Eles me querem viva, querem que eu ensine a eles os costumes dos humanos, foi o que Escuridão disse, ele não pode me matar, ele precisa de mim.

Tente — disse Sam.

Líder da Matilha — gritou Lana. — Líder da Matilha.

Ele não está ouvindo.

Ele é um coiote, pode ouvir um camundongo dentro de um bu­raco a 50 metros de distância — reagiu Lana, rispidamente. E levan­tou a voz para gritar: — Líder da Matilha. Líder da Matilha. Eu faço o que você quiser.

Sam estava de volta no buraco de observação.

Ele está aí fora — sussurrou.

Líder da Matilha, não — implorou Lana.

Todos estão recuando.

Ah, meu Deus.

Fumaça — disse Edilio, e apontou o facho da lanterna para a porta.

Lana levantou um tijolo de ouro e começou a bater nas tábuas que eles haviam pregado sobre a porta. Edilio agarrou seus braços.

Você quer ser queimado vivo? — perguntou Lana.

Edilio soltou-a.

Vamos sair — gritou Lana, enquanto batia nas tábuas. — Vamos sair.

Mas as tábuas não eram mais fáceis de ser removidas do que haviam sido de colocar. Uma língua amarela enfiou-se por baixo da porta.

Sam recuou de repente do buraco de observação.

Fogo.

Não quero ser queimada — gemeu Lana.

É a fumaça que mata — sussurrou Sam, olhando para Astrid. — Tem de haver uma saída.

Você conhece a saída — disse Astrid.

Na parede do fundo, agora a fumaça penetrava entre as rachaduras e as emendas.

Lana martelava as tábuas. A fumaça se juntava sob os caibros. A cabana estava queimando depressa. O calor já ia ficando intolerável.

Socorro — gritou Lana. — Temos de sair.

Edilio saltou em ação, ajudando a tirar as tábuas.

Sam inclinou-se por cima da cabeça do Pequeno Pete e beijou As­trid na boca.

Não deixe que eu me transforme no Caine — pediu.

Vou ficar de olho em você — respondeu ela.

Certo. Todo mundo se afaste da porta — disse Sam, mas baixo demais para ser registrado acima dos sons de pânico.

Em seguida, agarrou a mão de Lana enquanto ela batia com um tijolo de ouro.

O que você está fazendo? — gritou ela.

Você salvou minha vida com seu poder. Agora é minha vez.

Lana, Edilio e Quinn se afastaram da porta.

Sam fechou os olhos. Era fácil encontrar a raiva. Ele estava com raiva de muitas coisas.

Mas, por algum motivo, quando tentou se concentrar no ultraje des­te ataque, sua visão mental não invocou imagens do líder dos coiotes, nem mesmo de Caine. A imagem em sua mente era de sua própria mãe.

Estúpido. Errado. Injusto da parte dele, até mesmo cruel.

Mas mesmo assim, quando procurou a raiva, foi sua mãe que ele viu.

Não foi minha culpa — sussurrou para essa imagem.

Levantou as mãos. Dedos completamente abertos.

Mas nesse momento, a porta meio incendiada se abriu com estrondo.

Havia chamas e fumaça em toda parte, uma torrente de fumaça sufocante.

E através daquele inferno, saltou um coiote tão grande quanto um cão dinamarquês.

Isso, pensou Sam, tornava a coisa mais fácil.

Um clarão de luz branco-esverdeado irrompeu de suas mãos ergui­das, e o coiote caiu no chão. Um buraco de 20 centímetros atravessava totalmente o corpo dele.

Houve um segundo clarão, como mil lâmpadas, e a frente da caba­na se despedaçou.

O súbito vácuo engoliu parte das chamas, não todas. Foi apenas uma pausa no inferno, e Sam estava se movendo, arrastando Astrid pelo braço, e Astrid, por sua vez, estava arrastando o Pequeno Pete. Os outros afastaram o espanto e foram atrás.

Avançaram pelo buraco na cabana e os coiotes avançaram, uma massa de dentes perigosos por baixo de olhos frios e focalizados.

Sam soltou Astrid, levantou as mãos e a luz explodiu de novo. Uma dúzia de coiotes pegou fogo e todos caíram, se retorceram ou corre­ram guinchando para a noite, como centelhas na escuridão que ia di­minuindo.

Líder da Matilha — alertou Lana, numa voz reduzida a um grasnido pela fumaça que redemoinhava ao redor deles. Ela estava apoia­da no braço de Edilio, os dois em segurança fora da cabana, mas longe de estarem seguros no gramado.

A cabana caiu com um estrondo atrás deles e queimou como uma fogueira de acampamento. A luz laranja revelava uma centena de caras caninas olhando, sem compreender. Seus olhos e dentes brilhavam.

Líder da Matilha se destacou do grupo, encarando Sam, eriçado, sem medo.

Líder da Matilha resmungou um comando e toda a matilha se mo­veu como um só animal, uma onda de rosnados furiosos.

Sam manteve as mãos erguidas e fachos da mais pura luz branco- esverdeado dispararam. A primeira onda de coiotes pegou fogo ins­tantaneamente. Viraram-se em terror e correram de volta por entre seus irmãos e irmãs, estabelecendo o pânico total.

A matilha deu as costas e correu para a noite. E Líder da Matilha não estava mais sem medo, não estava mais liderando, e sim correndo atrás, correndo para acompanhar seu exército derrotado. Alguns quei­mavam enquanto corriam e incendiavam arbustos secos.

Sam baixou as mãos para os lados do corpo.

Astrid estava junto dele.

Cara — disse Quinn, em voz aparvalhada.

Acho que eles não vão voltar — comentou Sam.

Agora vamos para onde, cara? — perguntou Edilio.

Sam ficou olhando o deserto vazio, tão escuro que engolia toda a luz da cabana em chamas. Queria chorar. Não soubera que tinha tanta raiva por dentro. Aquilo o deixava enjoado. Sua mãe fizera o melhor possível, não tinha culpa. Ele sentiu vontade de vomitar.

Astrid viu que Sam não estava em condições de falar, por isso disse:

Vamos voltar para Praia Perdida. Vamos voltar e consertar as coisas.

E Caine vai simplesmente sair do caminho — disse Quinn. — Sem problema, la-ra-rá.

Astrid explodiu:

Não estou dizendo que vai ser fácil. Vai ser uma guerra.

— O sol vai nascer logo. Vamos poder enxergar alguma coisa — disse Drake.

Enxergar o quê? — gemeu Panda. — Só tem deserto aqui.

Caine disse que ele provavelmente está se mantendo perto da barreira, para encontrar o caminho de volta.

Panda parecia nervoso quando disse:

Caine acha que Sam vai voltar?

Panda ainda estava mal-humorado por causa do tornozelo torcido e quase inútil, de modo que Drake havia apanhado duas outras pes­soas da Coates. A primeira era um garoto gordo, um sino-americano chamado Chunk. Chunk era um valentão de nível inferior, e não al­guém com quem Drake normalmente andaria. Além disso, não fecha­va a matraca, ficava falando o tempo todo, na maior parte do tempo alardeando as bandas que tinha visto fazendo shows e as estrelas de cinema que tinha conhecido. O pai de Chunk era empresário de artis­tas em Hollywood.

Se é que Hollywood ainda existia.

A outra era uma garota, uma garota negra e magricela chamada Louise, que sabia dirigir. Com Panda semi-inútil, Drake precisava de um motorista.

Depois do puf de Andrew, Caine e Diana, junto com Jack, o nerdzinho esquisito, tinham ido cuidar de Frederico e tentar retomar o con­trole na Coates. Caine havia mandado Drake com ordens de tentar encontrar Sam.

Drake não gostou de ter de cumprir essa ordem. Estava com sono e, como observou para Caine, havia um monte de lugares vazios por lá, ainda mais à noite, então como iria encontrar Sam, mesmo que ele estivesse seguindo a barreira?

Tem uma estrada que sobe até a Montanha Piggyback — disse Caine. — Lembra? O passeio da escola? Dá para enxergar por quilô­metros.

Assim, apesar de ainda estar escuro, e apesar de Louise ser uma motorista muito mais louca do que o cauteloso Panda, e apesar dos gemidos de Panda e da falação de Chunk, tinham ido até a Montanha Piggyback e, depois de um tempo, encontraram o mirante.

Tinham ficado ali por um tempo, ouvindo uivos de coiotes lá em­baixo no vale, Drake ameaçando dar um soco em Chunk se ele não parasse de falar sobre quando conheceu Christina Aguilera.

Drake fumegava, infeliz por estar ali em cima, no meio de lugar nenhum, sem comida, refrigerante nem nada, só uma garrafa de água e aqueles idiotas.

Então, o que aconteceu com o Andrew? — perguntou Louise durante um dos raros silêncios de Chunk.

Deu o fora, cara. Abriu um buraco — respondeu Panda.

Para mim ainda falta mais de um ano, só tenho 13 — disse Louise, como se alguém se importasse. — Alguém vem salvar a gente em um ano, certo?

Mais cedo seria melhor — respondeu Drake. — Para mim falta um mês.

Eu tenho até junho — disse Chunk. — Com isso, sabe o que eu sou? Câncer.

Acertou na mosca — murmurou Drake.

O signo do caranguejo — acrescentou Chunk.

Preciso ir — disse Drake. Em seguida, desceu do utilitário espor­tivo em que estavam e foi até a beira do mirante, junto ao corrimão. Começou a espiar pela encosta e foi então que viu. Parecia um fósforo sendo carregado pela noite. Era impossível dizer a distância.

Chunk! Pegue o binóculo.

Alguns segundos depois, Chunk chegou apressado. Drake ficara observando enquanto a luz minúscula e tremeluzente corria em ziguezagues lá embaixo.

É que nem estar nas Colinas de Hollywood — disse Chunk. — Sabe? Subindo pela Mulholland Drive, onde moram todos os atores famosos. Uma vez fui à casa de um cara. Ele era, tipo, um diretor que meu pai representa, sabe? E...

Drake arrancou o binóculo das mãos de Chunk e tentou capturar a fagulha em seu campo de visão. Quase impossível. Pegava-a e depois perdia. Mesmo quando conseguia segui-la por alguns segundos, não conseguia discernir nada, era só uma chama laranja andando pelo va­zio. Mas quase certamente estava se movendo depressa demais para ser carregada por uma pessoa, mesmo uma pessoa rápida.

A fagulha parou de se mexer. E gradualmente Drake percebeu que a chama estava crescendo.

Espiou com atenção e, através dela, pôde perceber algum tipo de estrutura, como uma casa ou algo assim, na claridade que se espalhava.

Panda tinha vindo juntar-se a eles mancando. Drake lhe entregou o binóculo.

O que você acha que é?

Panda espiou pelo binóculo e nesse momento houve um clarão de luz, ele afastou o binóculo e gritou.

O segundo clarão foi mais forte ainda, e agora havia fagulhas fa­zendo trilhas de luz pela escuridão da madrugada.

Panda olhou de novo.

Tem algum tipo de casa... e uma torre ou algo assim. E tem, tipo... tipo cachorros ou sei lá o quê.

Houve uma terceira luz ofuscante e agora um número maior ainda de fagulhas serpenteando feito loucas.

Não sei, cara — confessou Panda.

Acho que talvez a gente tenha encontrado o que estava procu­rando — disse Drake.

Apavorado, Chunk disse:

Você acha que é o tal garoto que vocês estão tentando achar? O cara tem poder, malandro. Tipo naquele filme...

Drake arrancou o revólver do cinto e disse:

Não, Chunk: isto é o poder. E eu é que tenho.

Isso fez Chunk se calar por alguns segundos.

O fogo está se espalhando — mostrou Louise. — Provavelmente tudo está seco lá embaixo e o mato está pegando fogo.

Drake havia notado a mesma coisa. Olhou na direção de onde ti­nham vindo, tentou entender a topografia.

A Coates fica para lá. A barreira está naquela direção. — Apon­tou. — Não tem vento, por isso o fogo vai subir o morro. O que sig­nifica que eles vêm nessa direção, na direção da Coates. Vão passar embaixo de nós.

O que você vai fazer, atirar neles quando passarem? — pergun­tou Chunk, ansioso e com medo.

É, isso mesmo, 900 metros morro abaixo, e vou acertar neles com uma pistola —- disse Drake, sarcástico.

Então o que vamos fazer? — perguntou Panda. — Não é de es­pantar que o Caine esteja com medo desse cara. O malandro consegue fazer tudo isso?

Aquilo lá é um quatro barras, aposto — opinou Chunk. —Já vi todo tipo de coisas na Coates, com Benno, Andrew e Frederico, e nenhum deles podia fazer algo assim. Acha que ele pode derrotar o Caine?

Drake girou e deu um tapa na boca de Chunk com as costas da mão. Quando Chunk cambaleou para trás, Drake avançou e deu-lhe um chute entre as pernas.

Chunk agarrou a virilha e caiu de joelhos. Choramingou:

Por que fez isso, cara?

Porque estou de saco cheio de escutar você. Estou de saco cheio dessa bosta de poderes. Você viu o que fizemos com as aberrações na Coates? Quem você acha que cuidou daquilo? Todo aquele pessoal com seus supostos poderes idiotas. Provocando incêndios, mudando coisas de lugar, lendo a mente dos outros e coisa e tal. Quem você acha que agarrou um a um enquanto dormiam, deu cacetadas, e quan­do eles acordaram estavam com as mãos presas em blocos de cimento?

Foi você, Drake — respondeu Panda, aplacando-o. — Você pe­gou todos.

Isso mesmo. E na época eu nem tinha uma arma. Isso não tem a ver com quem possui poderes, seus panacas. Tem a ver com quem não sente medo. E com quem faz o que tem de ser feito.

Chunk estava se levantando com a ajuda de Panda.

Não é com Sam Temple e nem mesmo com o Caine que vocês, vermes, precisam se preocupar — disse Drake. — O Sr. Mãos de Laser lá embaixo não vai chegar ao ponto de poder lutar com o Caine. Mui­to antes disso, eu acabo com ele.

 

                       87 HORAS E 46 MINUTOS

AGORA ERAM SEIS, Sam, Edilio, Quinn, Lana, Astrid e o Pequeno Pete. Todos os planos de seguir a parede do LGAR até em casa foram abandonados por enquanto. O incêndio, uma colcha de retalhos feita de amarelo e laranja brilhantes, estava subindo os morros ao norte, separando-os. Só podiam continuar indo para o sul.

Finalmente amanheceu, um cinza pouco satisfatório que desbotou tudo, até o incêndio.

Podiam ver onde estavam pondo os pés, agora, mas isso não os impedia de tropeçar e cambalear. Estavam com pés de chumbo, de tanta exaustão.

O Pequeno Pete desmoronou, em silêncio, e foi deixado para trás até que Astrid notou. Depois disso, Edilio e Sam se revezaram carregando-o nas costas, o que tornou o progresso ainda mais lento e trai­çoeiro.

O Pequeno Pete dormiu assim durante um tempo, talvez duas ho­ras. Depois, quando os garotos não conseguiam dar mais nenhum pas­so, acordou e partiu sozinho, e agora todos o estavam seguindo, can­sados demais para argumentar ou tentar redirecioná-lo, já que ele ia, na maior parte do tempo, na direção certa.

— Precisamos parar, cara — disse Edilio. — As garotas estão can­sadas.

Eu estou bem — respondeu Lana. — Andei correndo com coio­tes. Andar com vocês é igual a ficar parada.

Para mim, já deu — concordou Sam, e parou onde estava, por acaso ao lado de algo que era um arbusto muito grande ou uma árvo­re pequena.

Petey — gritou Astrid. — Volte. Vamos parar.

O Pequeno Petey tinha parado de andar, mas não voltou. Astrid cambaleou cansada até ele, cada passo dolorido comunicando a dor que sentia.

Sam — gritou Astrid. — Depressa.

Sam pensou que estava apagado demais para reagir, mas de algum modo fez os pés se moverem de novo e foi até onde o Pequeno Pete estava parado, Astrid ajoelhada ao seu lado.

Havia uma garota caída no chão. Suas roupas eram frangalhos, o cabelo preto estava imundo. Era asiática, bonita sem ser linda, e era pouco mais do que pele e ossos. Mas a primeira coisa que notaram foi que os antebraços terminavam num sólido bloco de concreto.

Astrid fez um rápido sinal da cruz e apertou dois dedos contra o pescoço da garota.

Lana — gritou.

Lana avaliou a situação rapidamente.

Não vejo nenhum ferimento. Acho que talvez ela esteja passan­do fome ou talvez com alguma doença.

O que ela está fazendo aqui? — perguntou-se Edilio. — Ah, cara, o que foi que fizeram com as mãos dela?

Não posso curar a fome — disse Lana. — Tentei comigo mesma quando estava com a matilha. Não funcionou.

Edilio destampou sua garrafa d'água, ajoelhou-se e, com cuidado, derramou água pela bochecha da garota, de modo que algumas gotas caíram na boca.

Olhem, ela está engolindo.

Edilio partiu um pedaço minúsculo de uma barra de cereal e pôs gentilmente na boca da garota. Depois de um segundo, a boca come­çou a se mexer, a mastigar.

Tem uma estrada ali — disse Sam. — Pelo menos acho. Uma estrada de terra, imagino.

Alguém veio de carro e largou ela aqui — concordou Astrid.

Sam apontou para a terra.

Dá para ver que ela arrastou esse bloco.

Tem alguma coisa nojenta acontecendo — murmurou Edilio, com raiva. — Quem faria algo assim?

O Pequeno Pete ficou olhando a garota. Astrid notou.

Em geral ele não encara as pessoas desse jeito.

Acho que ele nunca viu o que alguns malucos podem fazer — observou Edilio.

Não — disse Astrid, pensativa. — Geralmente o Pete não se re­laciona com pessoas. Elas não são totalmente reais para ele. Eu cortei a mão uma vez, cortei feio com uma faca de cozinha, estava sangrando muito e ele nem piscou. E eu sou a pessoa mais próxima dele em todo o mundo.

Sam — disse Lana. — Você pode, você sabe, arrancar esse con­creto das mãos dela?

Não. Não consigo mirar com tanta precisão.

Eu nem sei o que pode ser feito — disse Edilio, enquanto dava à garota mais um pedaço microscópico de comida. — Se tentar que­brar essa coisa com uma marreta ou algo assim, ou até mesmo um martelo e um ponteiro, vai doer de verdade. Provavelmente quebrar todos os ossos das mãos, cara.

Quem teria feito isso com ela? — perguntou Lana.

Isso aí é um uniforme da Academia Coates — respondeu Astrid. — Provavelmente não estamos longe de lá.

Shh — sussurrou Lana. — Ouvi alguma coisa.

Todo mundo se abaixou instintivamente. No silêncio, ouviram com clareza um motor de carro. Estava sendo dirigido de modo irregular, acelerando num momento e diminuindo a velocidade no outro.

Venha, vamos descobrir quem é — disse Sam.

Como vamos transportar essa garota? — perguntou Edilio. — Talvez eu possa carregá-la, mas não posso carregar ela e o bloco, cara.

Eu seguro ela e você segura o bloco — disse Sam.

Esse negócio é realmente pesado — disse Edilio. —- É melhor eu nem encontrar o pendejo que fez isso. Fazer isso com uma pessoa? Que tipo de animal faz uma coisa dessas?

Descobriram que o carro era um utilitário esportivo. Pelo que Sam podia ver, estava sendo dirigido por um garoto sozinho.

Eu o conheço — disse Astrid. E acenou. O veículo parou com uma sacudida. Astrid se encostou na janela aberta.

Jack Computador?

Sam tinha visto o mago da tecnologia na cidade, mas nunca havia falado com ele.

Oi — disse o garoto. — Ah, bom. Vocês encontraram a Taylor. Eu estava tentando encontrá-la.

Tentando encontrá-la?

É. Ela está doente. Tipo da cabeça. Ela se afastou da escola, por isso eu fui procurar e...

Nesse momento, Sam soube que era uma armadilha. Uma fração de segundo tarde demais.

Drake se levantou de trás da terceira fila de bancos. Tinha uma arma apontada para a cabeça de Astrid, mas estava olhando direta­mente para Sam.

Nem pense nisso. Por mais rápido que você ache que é, eu só preciso apertar o gatilho.

Não vou me mexer — disse Sam. E levantou as mãos, rendendo-se.

Ah, ah, ah, não não não, Sam meu garoto. Sei tudo sobre o po­der. Mantenha as mãos do lado do corpo.

Preciso ajudar a carregar essa garota — disse Sam.

Ninguém vai carregá-la para lugar nenhum. Ela já era.

Não vamos deixá-la aqui — reagiu Astrid.

O cara que segura a arma é que toma as decisões — disse Drake, e riu. — E, se eu fosse você, Astrid, não me pressionaria. Caine quer pegar você e seu irmãozinho vivos. Mas, se tentarem seu número de desaparecimento, eu atiro no Sam.

Você é um psicopata, Drake — disse Astrid.

Uau. Que palavra grande! Acho que é por isso que você é Astrid Gênio, não é? Sabe que outra palavra também é boa? Retardado.

Astrid se encolheu como se ele tivesse lhe dado um tapa.

Meu irmão é retardado — imitou Drake. — Eu gostaria de ter gravado aquilo. Certo. Vamos subir aqui no carro, um por um. Direitinho e devagar.

Não sem a garota — disse Sam, objetivo.

Isso mesmo — concordou Edilio.

Drake deu um suspiro teatral.

Certo. Peguem ela. Joguem no banco da frente ao lado do Jack.

Isso exigiu algum esforço. A garota estava viva, mas não realmente consciente, e fraca demais para ser transportada.

Quinn havia ficado rígido de medo e indecisão. Sam podia ver o conflito no rosto dele. Será que ele deveria ficar com o Sam ou tentar agradar ao Drake?

Sam se perguntou o que ele decidiria. Até agora, seu amigo estava olhando arregalado, com expressão vazia, a boca tremendo, o olhar saltando, procurando resposta.

Vai ficar tudo bem, Quinn — sussurrou Sam.

Quinn nem escutou.

Astrid subiu. Sentou-se diretamente atrás de Jack.

Realmente pensei que poderia haver alguma esperança para você, Jack.

Não — disse Drake. — Jack é como uma chave de fenda ou um alicate. Não passa de uma ferramenta. Faz o que a gente manda.

O Pequeno Pete e Lana dividiram o banco do meio com Astrid. Edilio e Sam estavam no de trás. Drake apertou a arma contra a nuca de Edilio.

Seu problema é comigo, Drake — disse Sam.

Você poderia se arriscar, se fosse só a sua vida que estivesse na reta — respondeu Drake. — Mas não quer correr o risco de eu atirar no seu mexicano de estimação aqui, ou na sua namorada.

Seguiram aos arrancos, com Jack freqüentemente saindo da estrada para o acostamento. Mas não bateram, o que era a única esperança de Sam. Pararam em frente à Academia Coates.

Sam estivera ali uma vez, fora levado para ver onde sua mãe trabalha­va. O prédio antigo e sombrio parecia ter sido bombardeado. Uma sala inteira do andar de cima estava exposta. A porta da frente fora explodida.

Parece uma zona de guerra — comentou Edilio.

O LGAR é uma zona de guerra — disse Drake, sombrio.

A visão daquele lugar trouxe a Sam uma onda de lembranças tris­tes. Sua mãe tinha feito o máximo para retratar o emprego como algo com o qual se empolgava, e a Coates como um lugar onde adoraria trabalhar. Mas, mesmo na época, Sam soubera que ela só estava ali porque ele havia acabado com seu casamento.

Sentiu por dentro o resíduo da raiva contra a mãe. Era infantil. Vergonhoso, de fato. Errado. E era a hora errada para estar pensando naquilo, agora, onde estava, com o que estava acontecendo, com o que provavelmente aconteceria.

Qual foi a expressão que Edilio havia usado? Cabeza de turco? Bode expiatório? Ele precisava de alguém em quem pôr a culpa, e sua raiva contra a mãe estivera crescendo desde antes do LGAR.

Mas, por mais furioso que eu esteja, pensou Sam, devia ser pior para o Caine. Eu fui o filho que ela manteve. Ele era o que ela havia entregado.

Quando pararam, Panda e uns dois garotos que Sam não conhecia estavam esperando. Estavam armados com bastões de beisebol.

Quero ver Caine — disse Sam quando desceram.

Sem dúvida — respondeu Drake. — Mas primeiro precisamos cuidar de umas coisas. Em fila. Andem em fila em volta do prédio.

Diga a Caine que o irmão dele está aqui — insistiu Sam.

Você não está lidando com Caine, Sammy, está lidando comigo — disse Drake. — Eu preferiria atirar em você logo. Preferiria atirar em todos vocês. Então não me encham o saco.

Eles obedeceram. Viraram a esquina e chegaram à área comum atrás do prédio principal. Havia um pequeno palco feito para parecer um coreto.

Mais de duas dúzias de crianças estavam perto de um corrimão baixo em volta do caramanchão. Todas estavam amarradas a ele com uma corda que não lhes dava mais do que um metro de movimento. Presas do pescoço ao corrimão, como cavalos atados pelo cabresto. Cada uma estava encurvada devido a um bloco de concreto que envol­via suas mãos. Os olhos eram vazios, as bochechas encovadas.

Astrid usou uma palavra que Sam jamais imaginara que ela diria.

— Bela linguagem — disse Drake, com um risinho. — E logo na frente do Pe-tardado.

Uma bandeja do refeitório fora posta na frente de cada prisioneiro. Devia ter sido entregue recentemente, porque alguns ainda lambiam as bandejas, encurvados, de rosto para baixo, línguas para fora, lam­bendo como cachorros.

É o círculo de aberrações — disse Drake com orgulho, gesticu­lando como um apresentador.

Num velho carrinho de mão cheio de crostas, de um lado, três ga­rotos usavam uma pá de cabo curto para misturar cimento. A massa fazia um som pesado, pegajoso. Eles jogaram uma pá de cascalho na massa e mexeram-na como se fosse um molho encaroçado.

Ah, não — disse Lana, recuando, mas um dos garotos da Coates a acertou atrás do joelho com o bastão de beisebol e ela caiu.

Temos de fazer alguma coisa com as aberrações que não ajudam — disse Drake. — Não se pode deixar vocês soltos por aí. — Ele devia ter visto Sam começando a reagir, porque apertou a arma contra a cabeça de Astrid. — É com você, Sam. Se ao menos piscar, vamos ver como é de verdade o cérebro de um gênio.

Ei, eu não tenho poderes, cara — reagiu Quinn.

Isso é doentio, Drake. Você é doente — disse Astrid. — Nem posso argumentar com você, porque você é estragado demais, ferrado demais.

Cala a boca — ordenou Drake. — Certo, Sam. Você primeiro. É fácil. Só enfie as mãos dentro e, logo, logo, não terá mais poderes.

Quinn implorou:

Sam é uma aberração, eu não sou, cara. Não tenho poderes. Sou só uma pessoa normal.

Sam caminhou com passos fracos até o carrinho de mão. Os garo­tos que misturavam o concreto pareciam muito infelizes com o que estavam fazendo, mas Sam não se iludiu: eles fariam o que lhes fosse mandado.

Havia um buraco cavado no chão, com uns 30 centímetros de com­primento, uns 15 de largura e talvez uns 20 de profundidade.

Os misturadores de cimento jogaram uma pá de concreto no bura­co, enchendo-o até um terço.

Enfie as mãos dentro, Sam — ordenou Drake. — Faça isso ou lá se vai a garota gênio.

Sam mergulhou as mãos no cimento. O garoto com a pá jogou um bocado de cimento molhado, pesado, no buraco, e usou uma colher de pedreiro para apertá-lo. Depois mais meia pá, e usou a colher de pedreiro para alisá-lo e devolver o excesso ao carrinho de mão.

Sam ficou ali ajoelhado, com as mãos engastadas, o cérebro enlou­quecido com planos desesperados e cálculos insanos. Caso se mexesse, Astrid morreria. Se não fizesse nada, eles seriam escravos.

Certo, Astrid, é a sua vez — disse Drake.

Outro buraco e o mesmo processo. Astrid estava chorando, dizendo:

Vai ficar tudo bem, Petey, vai ficar tudo bem.

Um dos garotos começou a cavar um terceiro buraco. Fez isso com movimentos rápidos e treinados, cortando a grama com uma colher de pedreiro.

Só leva uns dez minutos, Sam — disse Drake. — Se vai fazer alguma coisa corajosa, tem uns oito minutos. Tique-taque.

É assim que você precisa lidar com as aberrações — disse Quinn. — Não tem escolha, Drake.

Sam podia sentir o concreto endurecendo. Ao tentar mexer os de­dos, descobriu que já estavam aprisionados. Astrid estava mais pertur­bada do que Sam jamais vira. Chorava abertamente. O medo dela alimentou o seu. Ele não podia suportar. Por si mesmo já era bastante ruim, mas vê-la desse modo...

E, no entanto, Astrid não estava devolvendo seu olhar, estava focali­zada totalmente no Pequeno Pete. Quase como se estivesse chorando para ele, comunicando a ele o seu terror.

Claro que sim. Mas isso não estava dando certo. O Pequeno Pete estava imerso em seu jogo, em outro mundo.

Acho que já deu tempo para você, Sam — disse Drake, garga­lhando. — Tente puxar as mãos para fora. Não consegue, não é?

Drake veio atrás dele e deu-lhe um tapa na nuca.

Anda, Sam. Até Caine tem medo de você, então você deve ser durão. Venha, mostre o que consegue. — E bateu de novo em Sam, desta vez com o cano da arma. Sam caiu de rosto no chão.

Sam se ergueu. Puxou com o máximo de força que pôde, mas suas mãos estavam presas. A carne coçava. Lutou contra uma maré de pâ­nico. Queria gritar palavrões, mas isso só divertiria Drake.

É, agüente feito homem — cantarolou Drake. — Afinal de con­tas você tem 14 anos, não é? Quanto falta para sumir? Isso aqui é só um LGAR temporário, certo?

Os misturadores arrancaram o bloco de concreto da terra, e agora, quando tentou se levantar, Sam sentiu o peso terrível daquela coisa. Podia ficar de pé, mas com dificuldades.

Drake chegou perto dele.

Então quem é o homem aqui? Quem derrotou você e o resto dessas aberrações? Eu. E sem nenhum poder.

Sam ouviu a porta batendo. Inclinou a cabeça e viu Caine e Diana vindo pelo gramado.

Caine andava num passo lânguido pelo gramado, com um sorriso mais largo à medida que se aproximava.

Ora, se não é o desafiador Sam Temple — disse ele. — Deixe-me apertar sua mão. Ah, desculpe, foi mal. — Ele riu, um som que mais parecia tensão liberada do que qualquer coisa.

Eu peguei ele — anunciou Drake. — Peguei todos eles.

É, pegou — disse Caine. — Bom trabalho, Drake. Muito bom trabalho. E vejo que os amiguinhos do Sam também foram apanhados.

Por que não dá uma coçadinha atrás das orelhas do Drake, Cai­ne? — disse Diana. — Ele tem sido um cachorrinho muito bom.

Os garotos do cimento haviam tirado o bloco de Astrid da terra. Ela estava chorando histericamente, incapaz de ficar totalmente de pé. O Pequeno Pete foi até ela, caminhando como num sonho, de cabeça abaixada sobre o Game Boy.

Astrid bateu seu bloco de concreto no Pequeno Pete.

E de repente Sam soube o que ela estava fazendo. Tinha de forne­cer alguma distração. Ele tinha de manter o foco longe de Astrid e do Pequeno Pete.

Você não vai querer mexer com essa garota, o nome dela é Lana — disse Sam, virando o queixo para ela. — Ela é uma curadora.

As sobrancelhas de Caine se levantaram bruscamente.

Uma o quê? Uma curadora?

Ela pode curar qualquer coisa, qualquer tipo de ferimento — disse Sam. Astrid, incapaz de se mexer, estava devagar, ritmicamente, balançando o bloco para trás e para a frente num arco estreito, baten­do contra o Game Boy do Pequeno Pete.

Ela me curou — disse Sam. — Um coiote me mordeu. Quer ver?

Tenho uma idéia melhor — respondeu Caine. — Drake: dê a essa garota alguma coisa para curar.

Drake gargalhou alto, um som alegre. E apertou o cano da pistola contra o joelho de Sam.

Não — gritou Diana.

A explosão foi chocante. A dor, a princípio, não se registrou, mas Sam desmoronou. Caiu de lado como uma árvore cortada. A perna estourada ao meio dobrou-se e se torceu embaixo dele.

E então veio a dor.

Drake deu um sorriso enorme e gritou um exultante:

Isso!

Espantada, Astrid bateu com o bloco de concreto com tanta força contra o Pequeno Pete que derrubou o Game Boy das mãos dele e o fez recuar um passo.

Diana franziu a testa, alarmada. Pela primeira vez registrou de fato a presença do Pequeno Pete.

Através de uma névoa vermelha de dor, Sam viu os olhos dela se abrirem bruscamente, o dedo apontar para o Pequeno Pete.

Drake, seu idiota, o garoto. O garoto.

Astrid caiu de joelhos e bateu com o bloco de concreto em cima do Game Boy.

Não houve clarão de luz. Nem som.

Mas, de repente, o concreto que envolvia as mãos de Astrid havia sumido. Simplesmente sumido.

Assim como o bloco de concreto das mãos de Sam.

E os de todas as outras crianças.

Astrid estava de quatro, com os dedos apertados contra a terra macia.

Os blocos de concreto haviam sumido como se nunca tivessem existido, mas as mãos dos que tinham ficado presos por mais tempo eram massas de pele pálida, morta, solta.

Caine foi rápido. Recuou, virou-se e correu para o prédio. Diana pareceu dividida, insegura, incerta; depois correu atrás de Caine.

O Pequeno Pete pegou seu brinquedo. O bloco havia desaparecido uma fração de segundo antes de esmagar o jogo. O Game Boy estava sujo e tinha um pedaço de terra com grama em cima, mas ainda funcionava.

Drake ficou enraizado. A arma continuava na sua mão, soltando fumaça da bala que havia disparado no joelho de Sam.

Piscou.

Levantou a mão e disparou contra o Pequeno Pete. Mas sua mira falhou. Sua mira falhou por causa do clarão ofuscante de uma luz branco-esverdeada.

O braço de Drake, todo o braço que segurava a arma, irrompeu em chamas.

Drake gritou. A arma caiu dos dedos meio derretidos.

A carne queimava, preta. A fumaça era marrom.

Drake gritou e olhou aterrorizado enquanto o fogo comia seu bra­ço. Começou a correr, com o vento agitando as chamas.

Bom tiro, Sam — disse Edilio.

Eu estava mirando a cabeça dele — disse Sam, trincando os den­tes em meio à dor.

Lana se ajoelhou ao lado de Sam e pôs as mãos no estrago sangren­to de seu joelho.

Temos de sair daqui — conseguiu dizer Sam. — Esqueçam de mim, temos de correr. De volta para... Caine vai...

Mas esse era o resto de suas forças. Era como se um buraco negro o engolisse. Ele caiu num redemoinho, descendo e descendo até a inconsciência.

 

                                     86 HORAS E 11 MINUTOS

— ONDE ESTAMOS? — SAM acordou de repente e ficou sem graça ao descobrir que estava sendo meio arrastado pela estrada por Edilio e por um garoto que ele não conhecia.

Edilio parou.

Você consegue ficar de pé?

Sam testou as pernas. A cura feita por Lana fora completa.

É. Estou bem. Na verdade me sinto bem legal.

Olhou para trás e percebeu que vinham à frente de uma espécie de desfile caindo aos pedaços. Astrid e o Pequeno Pete, Lana segurando a mão de um garoto enquanto seu cachorro corria bamboleando até o mato para perseguir um esquilo. Quinn andava sozinho no acosta­mento da estrada, afastado e envergonhado. E havia quase duas dúzias de crianças, as aberrações libertadas da Coates.

Edilio viu a expressão dele.

Você arranjou um bocado de seguidores, Sam.

Caine não veio atrás de nós?

Ainda não.

O grupo ia andando pela estrada, reunidos aqui e ali, espalhados em outros lugares, vagueando sem disciplina.

Sam se encolheu ao ver as mãos das crianças da Coates. O concreto havia sugado toda a umidade da pele. A pele estava branca e solta, pendendo em tiras em alguns casos, como as bandagens rasgadas da múmia de algum filme de terror. Os pulsos revelavam círculos verme­lhos onde o concreto havia deixado a carne sangrenta. Estavam imun­das.

É — disse Edilio, vendo para onde Sam olhava. — Lana está cuidando de um de cada vez. Curando. Ela é incrível.

Sam pensou ter ouvido algo extra na voz de Edilio.

E também é bonita, hein, Edilio?

Os olhos de Edilio se arregalaram e ele começou a ficar vermelho.

Ela é só... você sabe...

Sam deu um tapa em seu ombro.

Boa sorte com isso.

Você acha que ela... quero dizer, você me conhece, eu só sou... — Edilio gaguejou e parou.

Cara, vamos ver se dá para ficarmos vivos. Depois você pode convidá-la para sair ou qualquer outra coisa.

Sam examinou a cena. Estavam na estrada da Coates, passando pelo portão de ferro, ainda a muitos quilômetros de Praia Perdida.

Astrid notou que ele estava acordado e apressou o passo.

Já era hora de acordar — disse.

Bom — ele brincou imitando o tom fanfarrão dela —, geralmen­te depois de levar um tiro e disparar lasers com as mãos, eu gosto de dar uma cochiladinha. — Ele atraiu o olhar de Lana e disse sem som a palavra "obrigado".

Lana deu de ombros como se dissesse "não é nada demais".

Caine não vai deixar isso assim — disse Astrid, ficando séria.

Não. Ele virá atrás de nós. Mas não agora. Só depois de bolar um plano. Ele perdeu o Drake. E deve estar preocupado, porque te­mos todo esse pessoal com poderes e morrendo de ódio dele.

O que faz você pensar que ele simplesmente não vem atrás de nós?

Pense em quando ele entrou pela primeira vez em Praia Perdida. Ele tinha um plano. Treinou e ensaiou o pessoal.

Então vamos voltar a Praia Perdida? — perguntou Astrid.

Ore ainda está lá, e alguns outros. Podemos ter problemas com eles.

Precisamos arranjar um pouco de comida para esse pessoal — disse Edilio. — É a primeira coisa.

São 5 ou 6 quilômetros até o Ralph's — avaliou Sam. — Será que eles conseguem?

Acho que terão de conseguir — respondeu Edilio. — Mas estão apavorados, também. Quero dizer, alguns garotos aqui estão bem al­terados. Com tudo o que passaram...

Todos nós estamos apavorados, não há muita coisa que se possa fazer com relação a isso. — Mas Sam não gostou do que disse. Era bobagem. Não tinha importância: claro, todos estavam com medo, mas havia algo que podiam fazer a respeito.

Na verdade, precisavam fazer alguma coisa.

Sam parou no meio da estrada e esperou que os outros os alcan­çassem.

Escutem. — Ele ergueu as mãos para atrair a atenção, acalmamos, mas eles tinham visto o que acontecera quando Sam levantava as mãos. Encolheram-se e pareceram a ponto de sair correndo da estrada para o mato.

Sam baixou as mãos rapidamente.

Desculpem. Deixem-me começar de novo: será que posso ter a atenção de todo mundo? — pediu, usando uma voz mais gentil. Man­teve as mãos ao lado do corpo. Esperou com paciência até ter certeza de que todo mundo estava escutando. Quinn continuou afastado, atrás.

— Aconteceram coisas ruins com todos nós — disse Sam. — Algu­mas muito ruins. Estamos arrasados, estamos cansados. Não sabemos o que está acontecendo. O mundo inteiro ficou estranho para nós. Nossos corpos e nossas mentes mudaram de maneiras mais estranhas ainda do que a puberdade.

Isso rendeu alguns sorrisos e uma gargalhada relutante.

É. Sei que estamos todos abalados. Estamos todos com medo. Eu sei que estou — admitiu, com um sorriso pesaroso. — Então não vamos tentar fingir que isso não é apavorante. É. Mas às vezes a pior coisa é o medo. Sabiam? — Com o olhar viajando pelos rostos, perce­beu de novo que eles tinham outra preocupação, maior ainda do que o medo. — Se bem que a fome também não é piada. Estamos a alguns quilômetros de uma mercearia. Vamos alimentar todos vocês lá. Sei que alguns de vocês passaram pelo inferno desde que isso aconteceu. Bom, eu gostaria de dizer que isso acabou, mas não posso.

Expressões sombrias em todos os rostos.

Sam tinha dito tudo que planejava dizer, mas eles continuavam pre­cisando de algo mais. Lançou um olhar para Astrid. Ela estava tão solene quanto os outros, mas assentiu para ele, encorajando-o a falar mais.

Certo. Certo — disse, tão baixinho que alguns tiveram de che­gar mais perto para escutar. — O negócio é o seguinte. Não vamos desistir. Vamos lutar.

É isso aí! — gritou uma voz.

A primeira coisa que precisamos deixar claro é: aqui não existe separação entre aberração e normal. Se você tem o poder, vamos pre­cisar de você. Se não tem, vamos precisar de você.

Cabeças estavam assentindo. Olhares eram trocados.

Pessoal da Coates, pessoal de Praia Perdida, agora estamos jun­tos. Estamos juntos. Talvez vocês tenham feito coisas para sobreviver. Talvez não tenham sido sempre corajosos. Talvez tenham perdido a esperança.

Uma garota soluçou de repente.

— Bom, agora isso acabou — disse Sam, com gentileza. — Tudo recomeça. Aqui. Agora. Agora somos irmãos. Não importa se não sa­bemos os nomes uns dos outros, somos irmãos e vamos sobreviver, e vamos vencer, e vamos encontrar de novo o caminho para algum tipo de felicidade.

Houve um silêncio longo e profundo.

Bom — disse Sam. — Meu nome é Sam. Estou nisso com vocês. Até o fim. — Ele se virou para Astrid.

Eu sou Astrid. Estou nisso com vocês, também.

Meu nome é Edilio. O mesmo que eles disseram. Irmãos. Hermanos.

Thuan Vong — disse um garoto magro com mãos que ainda não estavam curadas, parecendo peixes mortos. — Estou nessa.

Dekka — disse uma garota forte, de compleição sólida, com o cabelo trançado junto ao couro cabeludo e argola no nariz. — Estou nessa. E vou com tudo.

Eu também — gritou uma garota magra com marias-chiquinhas ruivas. — Meu nome é Brianna. Eu... bom, eu consigo ser bem rápida.

Um a um, todos declararam sua determinação. As vozes começa­ram fracas e ganharam força. Cada voz mais alta, mais firme, mais decidida do que a outra.

Só Quinn permaneceu em silêncio. Baixou a cabeça e lágrimas ro­laram por suas bochechas.

Quinn — chamou Sam.

Quinn não respondeu, só olhou para o chão.

Quinn — repetiu Sam. — A coisa recomeça do zero agora. Nada que houve antes conta. Nada. Somos irmãos, cara?

Quinn lutou contra o nó na garganta. Mas então, em voz baixa, disse:

  1. Irmãos.

Certo. Agora vamos arranjar comida para todo mundo —- disse Sam.

Quando recomeçaram a andar, não estavam mais espalhados em todas as direções. Não marchavam como um exército, mas chegavam o mais próximo disso que seria possível para um bando de crianças traumatizadas. Andavam com a cabeça um pouco mais erguida.

Alguém chegou a gargalhar. Era um som bom.

Em voz baixa, Astrid disse:

Não temos nada a temer, a não ser o próprio medo.

Acho que eu não falei tão bem assim.

Edilio deu-lhe um tapa nas costas.

Você falou muito bem, cara.

— Sam voltou.

O quê?

Sam. Ele voltou. Está vindo pela auto-estrada.

O peito de Howard se apertou. Estava na metade da escadaria da prefeitura, descendo, a caminho do McDonald's para um dos waffle-burgers de Albert.

Elwood, o namorado de Dahra Baidoo, é que havia trazido a notí­cia. Ele parecia aliviado, não tinha como negar. Parecia contente. Ho­ward fez uma anotação mental de que Elwood era desleal, mas ao mesmo tempo percebeu que talvez tivesse coisas maiores com que se preocupar do que a lealdade de Elwood.

Se o Sam está voltando, é no fim de uma coleira segura pelo Drake Merwin — disse Howard, cantando vantagem.

Mas Elwood havia se afastado depressa para contar a Dahra e não estava mais escutando.

Howard olhou em volta, sentindo-se meio perdido, sem muita cer­teza do que fazer. Viu Maria Terrafino empurrando um carrinho de compras cheio de caixas de suco, creme para assaduras e algumas ma­çãs machucadas, atravessando a praça em direção à creche. Howard correu escada abaixo e alcançou-a.

O que é que tá rolando, Maria?

Ah, o fim do seu tempo? — perguntou Maria, e riu da própria piada.

É, você acha? Meu tempo acabou?

Sam está vindo.

Você viu?

Três pessoas diferentes me disseram que ele está vindo pela estrada. É melhor você ir correndo impedi-lo, Howard — grasnou Maria.

Ele é só um cara. Nós vamos chutar o rabo dele.

Boa sorte.

Howard desejou que Ore estivesse ali. Com Ore ao lado, ele não precisava agüentar o papo de Maria. Mas, um contra um, a história era diferente.

Quer que eu diga ao Caine que você está do lado do Sam? — perguntou Howard.

Eu não disse que estava do lado de ninguém. Estou do lado das crianças de quem cuido. Mas sabe o que percebi, Howard? Percebi que você ouve o nome do Sam e de repente fica quase se mijando. Portanto, sabe de uma coisa? Talvez você é que seja desleal. Afinal de contas, se o Caine é tão fantástico, por que você teria medo do Sam? Certo? — Ela se inclinou contra o carrinho e o empurrou de novo.

Howard engoliu em seco e discutiu com o próprio medo.

Não é grande coisa —- disse a si mesmo. -— Temos Caine, Drake e Ore. Somos maneiros. Somos maneiros.

Acreditou nisso por uns bons vinte segundos, até que desmontou e correu à procura de Ore.

Ore estava na casa que havia ocupado e agora compartilhava com Howard, em frente à de Drake. Era numa rua curta, o lugar mais per­to da prefeitura onde se poderia viver. O pessoal chamava de Travessa dos Valentões.

Ore estava dormindo no sofá com o DVD de um filme de kung fu passando em volume máximo na TV Ore passara a ficar acordado de noite e a dormir de dia.

Era uma casa horrível, na opinião de Howard, mal-decorada e fe­dendo a alho, mas Ore não se importava. Queria ficar perto da ação na cidade. E queria ficar suficientemente perto para se manter de olho em Drake, do outro lado da rua.

Howard procurou o controle remoto e desligou a TV Havia latas de cerveja vazias na mesinha de centro com tampo de vidro e cigarros num cinzeiro. Agora Ore tomava duas cervejas por dia.

Desde Bette. Foi então que ele havia começado a beber a sério. Howard estava preocupado com Ore. Não que gostasse dele, exata­mente, mas o destino de Howard estava ligado ao de Ore, e ele não gostava da imagem de como seu mundo ficaria se Ore o abandonasse.

Ore, acorda, cara.

Sem resposta.

Ore. Acorda. Pintou encrenca. — Howard cutucou-o no ombro.

Ore entreabriu um olho.

Por que veio me incomodar?

Sam Temple está voltando.

Ore demorou um tempo para processar isso. Então sentou-se de repente e segurou a testa.

Ah, cara. Que dor de cabeça!

Isso se chama ressaca — disse Howard, bruscamente. Depois, quando Ore lhe lançou um olhar assassino, amaciou e disse: — Tem um pouco de Tylenol na cozinha. — Em seguida encheu um copo d'água, pôs dois comprimidos na palma da mão e trouxe de volta para Ore.

Qual é o problema? — perguntou Ore. Ele nunca fora exata­mente rápido, mas agora a burrice de Ore estava irritando Howard.

Qual é o problema? Sam está voltando. Esse é o problema.

E daí?

Anda, Ore. Pense só. Você acha que o Sam está entrando na ci­dade e não tem algum tipo de plano? Caine não está aqui, cara, está lá em cima, no morro. Drake também. O que significa que você e eu estamos no comando.

Ore pegou uma lata de cerveja, sacudiu-a, suspirou contente quan­do ouviu 2 centímetros de líquido chacoalhando. Derramou-o pela garganta.

Então a gente tem de chutar o rabo do Sam? — perguntou Ore.

Howard não havia pensado tão adiante. Se Sam estava de volta, isso não era bom. Sam de volta e Caine não? Era difícil imaginar.

Vamos espionar o cara. Vamos ver o que ele está aprontando.

Ore forçou a vista.

—- Se eu topar com ele, vou chutar o rabo dele.

Pelo menos temos de descobrir o que ele está querendo — aler­tou Howard. — Devíamos pegar alguém que esteja por perto da pre­feitura. O Martelo, talvez. Chaz. Quem a gente conseguir achar.

Ore se levantou, arrotou e disse:

Preciso dar uma mijada. Depois vamos pegar o Hummer. Vamos acabar com eles.

Howard balançou a cabeça.

Ore, escuta. Sei que você não quer ouvir isso, mas apoiar Caine talvez não seja a melhor opção.

Ore lançou seu olhar vazio, idiota.

Ore, cara, e se o Sam vencer isso? Quero dizer, e se o Sam levar a melhor sobre o Caine? Onde é que, a gente fica?

Ore não respondeu por um tempo tão grande que Howard teve certeza de que ele não tinha ouvido. Então Ore soltou um suspiro que era quase um soluço. Agarrou o braço de Howard, algo que nunca fazia.

Howard: eu matei Bette.

Não foi por querer, Ore.

Você é que é o inteligente — disse Ore, com tristeza. — Mas às vezes é mais burro do que eu, sabia?

Certo.

Eu matei uma pessoa que não me fez mal nenhum. Astrid nem vai me olhar de novo, a não ser para me odiar.

Não, não, não — argumentou Howard. — Sam vai precisar de ajuda. Vai precisar de gente forte. Se a gente for até ele agora, e engo­lir o sapo, você sabe, dizer: é, você é o cara, Sam.

Quando a gente mata alguém, queima no inferno — disse Ore. — Minha mãe me disse isso. Uma vez meu pai estava me batendo, a gente estava na garagem, por isso eu peguei uma marreta. — Agora Ore fez a mímica da cena. Pegando a marreta, apertando o cabo, levantando-a. Então deixou-a cair. — Ela disse: se matar o seu pai você vai queimar no inferno.

O que aconteceu depois?

Ore levantou a mão esquerda. Colocou-a perto do rosto de Ho­ward. Havia uma cicatriz, quase perfeitamente redonda, com não mais de 7 centímetros de diâmetro.

O que é isso?

Furadeira elétrica. Broca de 3/16. — Ore deu um riso triste. — Acho que tenho sorte porque não era a de 3/4, não é?

Isso é sinistro demais, cara — disse Howard. Sempre soubera que Ore vinha de um lar barra-pesada. Mas uma furadeira elétrica passava do ponto. Ele próprio tinha vindo de um lar bastante media­no, seus pais não eram bêbados, violentos nem nada assim. Howard fazia o que tinha de fazer para sobreviver, sendo pequeno, fraco e impopular. Gostava de estar no comando, de que as pessoas tivessem medo dele. Nesse sentido, ser amigo de Ore havia funcionado.

Mas agora Howard estava começando a ver que, apesar de idiota, Ore não estava errado. Ore e Sam do Ônibus Escolar, o grande herói, nunca iriam andar juntos.

E agora Howard estava tão encrencado quanto Ore. Encrencado.

Certo, então — disse. — Vamos procurar o Caine. Ore arrotou alto.

Caine está com raiva de nós.

É — concordou Howard. — Mas ainda precisa da gente

 

                             84 HORAS E 41 MINUTOS

— SEGUREM-NO — gritou Diana.

O som da voz dela estava distante. Drake Mervin escutava-a borbulhando através de um berro vermelho que preenchia seu cérebro.

Berros, berros e mais berros, em toda parte, em todo o cérebro, vindo de um milhão de bocas, subindo e descendo, em busca de ar.

Eu consigo segurá-lo — disse uma voz. Era Caine. — Recuem no três. Um... dois...

Drake balançou os braços feito louco, desamarrado, berrando, sacudindo-se, machucando-se, mas incapaz de parar. A dor... nunca sen­tira nada assim, nunca imaginara que alguma coisa pudesse ser assim.

Uma força se comprimiu sobre ele, como mil mãos segurando-o com pressão firme.

Você está com a serra? — perguntou a voz de Diana. Agora não presunçosa, nem um pouco, mas rouca e horrorizada.

Drake lutou contra a força invisível, mas Caine o mantinha preso com seu poder telecinético. Drake só podia berrar e xingar, e mal conseguia mover os músculos faciais o suficiente para isso.

Não vou fazer — disse Panda, chorando. — Não vou serrar o braço dele, cara.

As palavras lançaram um choque de terror junto com a dor. Seu braço? Eles iam...

Ele vai me matar se eu fizer isso — disse Panda.

Eu não faço — entoaram várias vozes. — De jeito nenhum.

Eu faço — disse Diana, enojada. — Vocês todos são uns tremen­dos corajosos, hein? Me dá a serra.

Não, não, não! — berrou Drake.

É o único modo de acabar com a dor — disse Caine, quase de­monstrando alguma emoção, alguma piedade. — O braço está acaba­do, Drake, meu velho.

A garota... a aberração... — ofegou Drake. — Ela poderia con­sertar.

Ela não está aqui — disse Panda, com amargura. — Foi embora com o Sam e os outros.

Não cortem meu braço — gritou Drake. — Me deixem morrer. Só me deixem morrer. Atirem em mim.

Desculpe — disse Caine. — Mas ainda preciso de você, Drake. Mesmo maneta.

Ouviram o som de alguém chegando rapidamente à sala.

Só consegui achar Tylenol e Advil — explicou Jack Compu­tador.

Vamos acabar logo com isso — disse Diana, rispidamente.

Impaciente para mutilá-lo. Ansiosa para agir.

Se você fizer isso ele vai matar você — alertou Panda.

Ah, Drake já decidiu que quer fazer isso — disse Diana. — Aper­tem o torniquete.

Ele vai sangrar até a morte — avisou Jack. — Deve ter artérias grandes no braço dele.

Está certo — disse Caine. — Precisamos de um modo de lacrar o cotoco.

Já está cauterizado — disse Diana. — Só preciso cortar abaixo da parte queimada.

É, certo — concordou Caine.

Não consigo chegar a ele, através do seu campo de força — dis­se Diana. — Você pode puxá-lo para manter um lado do corpo para­lisado, e talvez o Panda e uns desses caras que deveriam ser machões consigam segurar o cotoco.

Deixe-me pegar uma toalha, pelo menos. Não quero encostar a mão nisso — disse Panda, com repulsa.

Ninguém corta meu braço — ofegou Drake. — Eu mato qual­quer um que encostar em mim.

Solte-o, Caine — disse Diana, rispidamente.

O elefante saiu de cima do peito de Drake, e ele pôde se mexer de novo. Mas agora o rosto de Diana estava a centímetros do seu, o ca­belo escuro pendendo sobre seu rosto riscado de lágrimas.

Escute, seu capanga idiota — disse Diana. — Nós vamos acabar com a dor. Enquanto esse cotoco queimado ficar aí, você vai conti­nuar assim. Vai ficar gritando, chorando e molhando as calças. É, você se mijou, Drake.

De algum modo, esse fato fez Drake ficar em silêncio, chocado.

Você tem uma esperança. Só uma. A gente cortar a parte morta do seu braço sem recomeçar o sangramento.

Quem me cortar morre — disse Drake.

Diana recuou, saindo do campo de visão de Drake.

Faça — disse Caine. — Panda. Chunk. Segurem o cotoco.

A pressão estava de novo em cima de Drake, imobilizando-o. Ele não sentiu a toalha que enrolou seu braço ou o aperto das mãos. Essa parte do braço era osso nu, com toda a carne derretida, nervos quei­mados, morta. A dor começava mais acima, onde um número suficien­te de terminais nervosos ainda sobrevivia para lançar ondas de agonia ao cérebro febril.

Não é Diana, Panda, Chunk e nem mesmo eu — disse Caine. — Não é nenhum de nós, Drake. Foi o Sam. Foi o Sam que fez isso com você, Drake. Você quer que ele fique numa boa? Ou quer viver o suficiente para fazer com que ele sofra?

Drake ouviu um som bruxuleante, metálico. A serra era grande demais para Diana manobrar com facilidade. A lâmina balançava um bocado enquanto ela a alinhava.

Certo — disse Diana. — Segurem firme. Vou ser o mais rápida que puder.

Drake perdeu a consciência, mas seus sonhos eram tão assolados pela dor quanto os momentos de vigília. Ele se ligava e se desligava, acordado e berrando, dormindo e chorando.

Ouviu uma pancada distante quando seu braço caiu no chão.

E, de repente, um súbito frenesi de gente correndo e gritando, or­dens, berros e confusão. Mãos por cima dele, a pressão espremendo o ar de seus pulmões.

Olhando do fundo de um poço sem fim, Drake viu rostos lunáticos espiando-o, olhos arregalados, rostos ensangüentados como monstros.

Ele vai viver, acho — disse uma voz.

Que Deus nos ajude se ele viver — disse uma voz.

Não. Que Deus ajude Sam Temple.

E depois, nada.

Astrid, preciso que você comece a falar com esse pessoal — disse Sam. — Descubra quais são os poderes deles. Descubra quanto con­trole eles têm. Estamos procurando qualquer um que possa ajudar numa luta.

Astrid pareceu desconfortável.

Eu? Não é o Edilio que deveria fazer isso?

Tenho um serviço diferente para o Edilio.

Estavam na praça, sentados exaustos nos degraus da prefeitura, Sam, Astrid, o Pequeno Pete e Edilio. Quinn tinha ido embora, nin­guém sabia para onde. Os garotos libertados da Coates — as Aberra­ções de Coates, como agora eles chamavam a si próprios com orgulho

tinham sido alimentados na Ralph's e estavam sendo alimentados de novo por Albert, que caminhava entre eles distribuindo hambúrgueres. Algumas crianças tinham comido demais e vomitado. Mas a maioria ainda tinha espaço para um hambúrguer — mesmo que fosse num waffle de chocolate esquentado.

Lana ia terminando de curar as mãos dos refugiados. Estava cam­baleando de exaustão e finalmente, enquanto Sam olhava, suas pernas se dobraram e ela caiu na grama. Antes mesmo que ele pudesse se le­vantar para ajudar, alguns dos garotos da Coates a ergueram com uma gentileza que chegava às raias da reverência. Enrolaram casacos para formar um travesseiro e pegaram emprestado um esgarçado cobertor de barraca para cobri-la.

Certo, eu falo com eles — disse Astrid. Mas ainda parecia relu­tante. — Não consigo ler pessoas, como Diana.

É isso que está incomodando você? Você não é minha Diana. E espero que eu não seja o Caine.

Acho que eu estava esperando que tudo isso tivesse acabado. Pelo menos por um tempo.

Creio que vai acabar. Por um tempo. Mas primeiro temos de planejar e garantir que estejamos prontos quando o Caine voltar.

Está certo. — Ela deu um sorriso fraco. — De qualquer modo, eu nem estava sonhando com uma grande refeição, um banho quente e horas e horas de sono.

É. Você não iria querer amolecer logo agora, iria? — Outra coi­sa lhe ocorreu. — Mas, ei, mantenha o P.P. feliz, certo? Não quero que vocês desapareçam de repente.

Seria uma pena, não é? — disse ela, secamente. — Talvez eu tente o truque do Quinn: Havaí, Petey, Havaí.

Astrid pegou o irmão, certificou-se de que ele estava bem e depois se enfiou no meio do pessoal.

Sam chamou Edilio.

Edilio. Preciso que você faça uma coisa.

O que você quiser.

Tem a ver com dirigir. E tem a ver com guardar um segredo.

O segredo não é problema. Dirigir? — Ele engoliu em seco tea­tralmente, como um personagem de desenho animado, hesitando.

Preciso que você pegue uma caminhonete e vá à usina nuclear. — Ele explicou o que queria, e a expressão de Edilio ficou mais som­bria a cada palavra. Quando terminou, Sam perguntou: — Você pode cuidar disso? Vai ter de levar pelo menos mais um cara.

Posso, sim — respondeu Edilio. — Não fico feliz, mas você sabe disso.

Quem você vai levar?

Elwood, acho, se Dahra me emprestar.

Certo. Passe uma ou duas horas aprendendo a dirigir.

Um ou dois dias seria melhor — respondeu Edilio. Mas então prestou continência, brincando, e disse: — Sem problema, general.

Agora Sam estava sentado sozinho, ombros curvos, a cabeça zum­bindo pela falta de sono e os efeitos retardados da dor e do medo. Precisava pensar, disse a si mesmo, precisava se preparar. Caine estaria planejando.

Caine. Seu irmão.

Seu irmão.

Quanto tempo ele tinha? Três dias.

Em três dias ele iria... desaparecer.

E Caine também.

Talvez morrer. Talvez ser transformado de algum modo. Talvez simplesmente saltar de volta para o velho universo com um monte de histórias incríveis para contar.

E deixar Astrid para trás.

Se Caine fosse uma pessoa normal, bem-ajustada, ele poderia pas­sar os últimos dias se preparando para o que quer que o puf significas­se — morte, desaparecimento, libertação. Mas Sam duvidava de que Caine fizesse isso. Caine precisaria triunfar sobre Sam. Essa necessida­de seria ainda maior do que a de estar preparado para o fim.

Nunca gostei de aniversários — murmurou.

Albert Hillsborough havia terminado de distribuir hambúrgueres aos agradecidos garotos da Coates. Subiu os degraus até onde Sam estava.

Que bom que você voltou, cara — disse Albert.

Por algum motivo, Sam sentiu-se compelido a se levantar e esten­der a mão para o garoto. Albert apertou-a solenemente.

Foi legal o que você fez, mantendo o Mickey D aberto.

Albert pareceu levemente chateado.

Não chamamos mais de Mickey D. É McDonald's. Sempre será McDonald's. Se bem — admitiu ele — que eu me afastei um bocado do manual de operações.

Eu vi os hambúrgueres de waffle.

Havia algo na mente de Albert. O que quer que fosse, Sam não ti­nha tempo nem energia, mas Albert estava virando uma pessoa impor­tante, alguém que não podia ser descartado.

O que há, Albert?

Bom, eu fiz um inventário na Ralph's e acho que, se tivesse um monte de ajuda, poderia montar um jantar de Ação de Graças.

Sam encarou-o. Piscou.

O quê?

O Dia de Ação de Graças. É semana que vem.

Ahã.

Tem fornos na Ralph's. E ninguém pegou os perus congelados. Imagine 250 pessoas, se praticamente todo mundo de Praia Perdida aparecer, certo? Um peru vai dar para umas oito pessoas, por isso precisamos de 31, 32 perus. Não tem problema, porque tem 46 perus na Ralph's.

Trinta e um perus?

O molho de amora não vai ser problema, o recheio não é pro­blema, ninguém pegou muito recheio ainda, se bem que vou ter de descobrir como misturar... sei lá... sete marcas e tipos diferentes, ver como fica o gosto.

Recheio — ecoou Sam, solenemente.

Não temos batata doce enlatada suficiente, vamos ter de usar fresca, misturada com batata comum cozida. O grande problema vai ser o chantilly e o sorvete para as tortas.

Sam queria explodir numa gargalhada, mas ao mesmo tempo acha­va emocionante e tranqüilizador o fato de Albert pensar tão seriamen­te na questão.

- Imagino que o sorvete acabou — disse Sam.

É. Estamos com pouquíssimo sorvete. E o pessoal anda pegando o chantilly enlatado também.

Mas podemos ter tortas?

Temos umas congeladas. E temos umas massas de torta que po­demos assar.

Seria legal.

Vou ter de começar três dias antes. Vou precisar de... tipo... pelo menos dez pessoas para ajudar. Posso pegar as mesas do porão da igre­ja e arrumar na praça. Acho que consigo.

— Aposto que sim, Albert — disse Sam, com emoção.

Mamãe Maria vai mandar as crianças do jardim fazer os enfeites das mesas.

Escute, Albert...

Albert levantou a mão, interrompendo Sam.

Eu sei. Quero dizer, sei que talvez tenhamos uma grande luta antes disso. E ouvi dizer que seus 15 anos estão chegando. Todo tipo de coisa ruim pode acontecer. Mas, Sam...

Desta vez Sam o interrompeu.

Albert? Vá em frente com o planejamento da grande ceia.

Sério?

É. Isso vai dar algo para as pessoas esperarem.

Albert saiu e Sam lutou contra um bocejo. Notou que Astrid estava concentrada na conversa com três alunos da Coates. Astrid havia pas­sado por todo tipo de horror, pensou ele, mas de algum modo, mesmo com a blusa imunda, o cabelo louro pendendo frouxo e oleoso, o rosto manchado, estava linda.

Quando levantou o olhar, pôde ver por cima da praça, por cima das construções, até o oceano, o oceano plácido demais.

Aniversário. Dia de Ação de Graças. E um enfrentamento com Cai­ne. Para não mencionar simplesmente a vida cotidiana caso, de algum modo, todos eles sobrevivessem. Para não mencionar a necessidade de encontrar uma fuga ou o fim do LGAR. E ele só queria pegar a mão de Astrid e andar com ela pela praia, estender um cobertor na areia quente, deitar-se ao lado dela e dormir durante cerca de um mês.

Logo depois da grande ceia de Ação de Graças — prometeu Sam a si mesmo. — Logo depois da torta.

 

                                     79 HORAS E 00 MINUTO

COOKIE ROLOU E se levantou. Suas pernas ainda estavam fracas e trêmulas. Tinha de se segurar apoiando-se na mesa.

Mas firmou-se com o braço que fora totalmente despedaçado.

Dahra Baidoo também estava ali, e Elwood, ambos olhando como se tivessem testemunhado um milagre.

"Acho que testemunharam", pensou Lana consigo mesma.

Não está doendo — disse Cookie.

Ele riu. Era um som incrédulo. Girou o braço totalmente, para a frente, para cima. Fechou os dedos formando um punho.

Não está doendo.

Certo, nunca pensei que veria isso — disse Elwood, balançando a cabeça devagar.

Lágrimas vieram aos olhos injetados de Cookie. Ele sussurrou sozi­nho:

Não está doendo. Nem um pouco.

Deu um passo hesitante. Depois outro. Tinha perdido um bocado de peso. Estava pálido, mais do que pálido, quase verde. Estava trêmu­lo, um urso andando nas patas traseiras e em vias de despencar. Pare­cia o que era: um garoto que fora ao inferno e voltara.

Obrigado — sussurrou para Lana. — Obrigado.

Não fui eu que fiz — disse a menina. — É só... não sei o que é.

Ela estava cansada. Curar Cookie havia demorado um longo tem­po. Estava no hospital desde as oito da manhã, depois de ser acordada pelos gritos de agonia de Cookie.

O ferimento dele fora pior do que o dela, quando seu braço havia se quebrado. Ela havia demorado mais de seis horas, e agora qualquer benefício que tivesse obtido dormindo na praça acabara, e estava can­sada de novo. Tinha quase certeza de que lá fora o sol estava brilhan­do, mas tudo que Lana queria agora era uma cama.

É só um negócio que eu consigo fazer — disse Lana, lutando contra um bocejo e espreguiçando-se para aliviar a tensão das costas. — Só uma... coisa.

Cookie assentiu, depois fez uma coisa que ninguém esperava. Ajoelhou-se diante de Dahra, que ficou chocada.

Você cuidou de mim.

Dahra deu de ombros e pareceu tremendamente desconfortável.

Tudo bem, Cookie.

Não. — Ele segurou a mão dela, sem jeito, e encostou a testa nela. — Qualquer coisa que você quiser. Qualquer coisa. A qualquer hora. Sempre. — Lágrimas embargavam sua voz. — Qualquer coisa.

Dahra levantou-o. Ele havia sido grande e pesado como Ore. Ainda era suficientemente grande para se erguer mais alto do que Dahra.

Você tem de começar a comer — disse ela.

É, comer — concordou Cookie. — Depois o que eu faço?

Dahra pareceu meio exasperada.

Não sei, Cookie.

Lana teve uma idéia.

Vá procurar o Sam. Vai acontecer uma luta.

Eu sei lutar — confirmou Cookie. — Assim que engolir um pouco de comida e, você sabe, meio que recuperar as forças.

O McDonald's está aberto — disse Dahra. — Experimente o hambúrguer com torrada. É melhor do que parece.

Cookie saiu. Dahra disse:

Lana, sei que a coisa foi mais para o Cookie, mas sinto como se você tivesse salvado minha vida também. Eu estava ficando louca só de cuidar dele.

Lana sentia-se desconfortável com a gratidão. Sempre se sentira, até em coisas pequenas. Agora a idéia de que as pessoas estavam lhe agradecendo por quase realizar milagres era absurda. Disse:

Sabe de algum lugar onde eu possa dormir? Tipo numa cama?

Elwood levou-a com Patrick até sua casa. Ficava a 800 metros da praça e Lana estava praticamente sonâmbula quando chegaram.

Entre — disse Elwood. — Quer comer alguma coisa?

Lana balançou a cabeça.

Só um lugar para... aquele sofá.

Pode usar um dos quartos de cima.

Lana já estava de rosto para baixo no sofá. E, numa fração de se­gundo, estava dormindo.

A noite havia caído quando ela acordou. Demorou um tempo para deduzir onde estava.

Elwood dera comida a Patrick. Havia um prato totalmente lambido no chão da cozinha. Patrick estava enrolado em frente à lareira a gás, apesar de não haver fogo.

Lana sentia uma fome voraz. Procurou na cozinha, sentindo-se uma ladra. A geladeira estava quase vazia, só havia limonada, molho de soja, uma caixa de creme de leite vencido havia muito e um pouco de alface muito, muito velha.

O freezer foi melhor. Havia asas de frango com drumetes, alguma coisa num Tupperware e uma pizza de pepperoni pronta para ir ao micro-ondas.

Ah, sim — disse Lana. — Ah, sem dúvida.

Pôs a pizza no micro-ondas e apertou os números. Era fascinante olhá-lo girar. Sua boca se encheu de água. Mal podia esperar até que ouvisse o ping.

Comeu a pizza rasgando-a com as mãos, dobrando as farias com queijo derretido e pegando o que pingasse na bancada.

Ah, quer um pouco também? — perguntou quando Patrick apa­receu balançando o rabo e parecendo ansioso. Jogou-lhe um pedaço, que ele pegou no ar.

Bom. Nós passamos um tremendo aperto, hein, garoto?

Lana encontrou o banheiro da suíte principal, no andar de cima, e passou meia hora embaixo do chuveiro quente. A água corria verme­lha e preta pelo ralo.

Depois convidou Patrick, passou xampu nele, enxaguou e man­dou-o para fora, para se sacudir feito louco e espirrar água por todo o banheiro.

Enrolou-se numa toalha e foi explorar a casa em busca de roupas. Elwood não parecia ter irmãs, mas a mãe dele era pequena, por isso, apertando e amarrando um pouco, Lana conseguiu montar uma roupa.

Pegou suas roupas velhas e quase desmaiou com o fedor.

Ah, meu Deus, Patrick! Eu estava fedendo assim? Preciso quei­mar essas coisas.

Mas contentou-se em jogar as roupas manchadas de sangue, com crostas de terra, fedendo a suor, rasgadas e esfarrapadas num saco de lixo. Infelizmente precisou ficar com os tênis antigos: os sapatos da mãe de Elwood eram dois números maiores do que os seus.

Desceu a escada correndo, sentindo-se melhor, como há muito tempo não se sentia. Depois viu o telefone e não resistiu à ânsia de pegá-lo. Ligar para a mãe. Dizer à mãe... bom, alguma coisa. Sabia o que todo mundo tinha dito sobre o LGAR. Mas, mesmo assim...

Não tem sinal, Patrick.

Patrick não estava interessado.

Sabe de uma coisa, Patrick? Só vou sentar e chorar um pouco.

Mas as lágrimas não vinham. Então, depois de um tempo, suspirou e levou uma garrafa de Diet Pepsi quente para a varanda.

Era tarde da noite. A rua estava silenciosa. Estava na cidade em que havia crescido, mas da qual estava longe havia anos. Tinha encontrado alguns garotos que conhecia, mas a maioria não a reconhecera por baixo da cobertura de imundície. Agora talvez, pelo menos, as pessoas a reconhecessem. Se bem que ocorreu-lhe que Sam, Astrid e Edilio provavelmente não a reconheceriam agora que estava limpa.

Estou com vontade de ir a algum lugar, Patrick. Mas não sei aonde.

Um carro entrou na rua. Veio devagar. Quem quer que estivesse atrás do volante não era um motorista experiente.

Lana se enrijeceu, preparada para correr de volta para dentro e trancar a porta. Levantou a mão cautelosa para um aceno, mas não podia ver o motorista e o motorista não parecia disposto a parar para bater papo. O carro continuou pela rua e virou a esquina.

Algum tipo de patrulha — disse Lana a Patrick.

Ficou mais um tempo na varanda antes de voltar para dentro.

Reconheceu instantaneamente o garoto parado na cozinha.

Patrick rosnou e eriçou os pelos.

Olá, aberração — disse Drake.

Lana recuou, mas era tarde demais. Drake apontou a arma para ela.

Eu sou destro, pelo menos era. Mas ainda posso acertar você a essa distância.

O que você quer?

Drake indicou o cotoco do braço direito. Tinha sumido até logo acima do cotovelo.

O que você acha que eu quero?

Na única vez em que vira Drake Merwin ele a fizera pensar em Líder da Matilha: forte, muito alerta, perigoso. Agora o físico esguio parecia magro demais, o riso de tubarão era uma careta tensa, os olhos estavam vermelhos. O olhar, que já fora languidamente ameaçador, era agora intenso, queimando, incandescente. Parecia alguém que fora torturado até o limite.

Vou tentar — disse Lana.

Vai mais do que tentar. — Ele se convulsionou em dor, com o rosto franzido. Um gemido baixo, fantasmagórico, escapou de sua garganta.

Não sei se posso fazer um braço inteiro crescer — disse Lana. — Deixe-me tocá-lo.

Aqui, não — sibilou ele, sinalizando com a arma. — Pela porta dos fundos.

Se você atirar em mim, não vou poder ajudar — argumentou Lana.

Você consegue curar cachorros? Que tal se eu explodir o cére­bro dele? Você pode curar isso, aberração?

O carro que Lana tinha visto passar estava parado, com o motor ligado, no beco atrás da casa. O garoto chamado Panda estava ao vo­lante.

Não me obrigue a fazer isso — implorou Lana. — Eu ajudaria você de qualquer modo. Você não precisa fazer isso.

Mas não adiantava discutir. Se Drake já tivera alguma consciência, ela morrera junto com o braço.

Partiram pela cidade adormecida.

Para a noite.

Howard tinha visto com os próprios olhos o pequeno exército reuni­do por Sam. Tinha-o visto chegando na Ralph's. A mercearia não es­tava sendo vigiada, o que significava que os outros xerifes haviam decidido sair do caminho e dar o fora.

Eles são muitos — concluíra Howard.

Então ele e Ore roubaram um carro e foram para a Academia Coa­tes. Mas viraram para o lado errado em algum ponto da estrada e fo­ram parar num caminho de terra que ia para o deserto, enquanto a noite baixava.

Deram a volta, retornando em direção à estrada principal, mas isso também não deu certo. Por fim, ficaram sem gasolina.

Essa idéia idiota foi sua — murmurou Ore.

O que você queria fazer? Ficar na cidade com o Sam? Ele tinha uns trinta caras.

Eu posso acabar com ele.

Ore, não seja panaca — reagiu Howard, frustrado. — Se o Cai­ne não está lá, se o Drake não está lá, e o Sammy está marchando de volta para a cidade como um figurão, o que você acha que isso signi­fica? Quero dizer, vamos lá, Ore, faça as contas.

Os olhos porcinos de Ore tinham virado fendas estreitas.

Não me chame de idiota. Se precisar, eu arrebento seus dentes.

Howard passou vinte minutos amenizando os sentimentos feridos de Ore. O que mesmo assim os deixou parados num carro sem gasoli­na, no meio de lugar nenhum.

Estou vendo uma luz — disse Ore.

Ei, é mesmo. — Howard pulou do carro e começou a correr. Ore foi meio cambaleando atrás.

Os dois faróis de um carro se moviam num ângulo para interceptá-los. Se fossem mais devagar, o carro não iria vê-los, nunca iria vê-los.

Depressa — gritou Howard.

Alcance eles — instigou Ore, enquanto desistia da corrida e di­minuía até um passo de pés pesados.

Certo — gritou Howard. Seu pé se prendeu em alguma coisa e ele se esparramou no chão. Levantou-se e só então sentiu a dor aguda no tornozelo.

Que negócio...? — Ele ficou imóvel. Havia algo ali na escuridão. Não era Ore, e sim algo fedorento que ofegava como um cachorro.

Num instante Howard estava de pé e correndo.

Tem alguma coisa atrás de mim — gritou ele.

As luzes do carro vinham em sua direção. Ele conseguiria. Conse­guiria. Se não caísse de novo. Se o monstro não o alcançasse primeiro.

Os pés de Howard bateram no asfalto e ele foi iluminado por um branco brilhante. O carro cantou pneus e parou.

O monstro não estava à vista.

Howard?

Howard reconheceu a voz. Panda estava inclinado para fora da ja­nela.

Panda? Cara, que bom ver você. Nós fomos...

Alguma coisa escura e rápida pulou e pegou o braço de Panda. Ele soltou um berro.

De dentro do carro, um cachorro latiu freneticamente.

Algo acertou Howard nas costas e ele bateu no pavimento, de quatro.

O carro se sacudiu à frente. O pára-choque parou a dez centíme­tros da cabeça de Howard.

Houve um grito, uma voz masculina. Ore. Ore estava lá atrás, em algum lugar na escuridão.

Havia cachorros em toda parte, amontoando-se em volta de Ho­ward. Não, não eram cachorros, pensou ele, eram lobos. Coiotes.

A porta do carro se abriu e Panda caiu, meio enrolado em cima de um coiote.

Um estrondo alto e um jorro de luz laranja.

Mas os coiotes não pararam.

Outro tiro, e um dos coiotes ganiu de dor. Drake surgiu camba­leando, olhando os coiotes como um espantalho sob a luz dos faróis.

Os coiotes recuaram, saindo da luz, mas não foram embora. Ho­ward se levantou devagar.

Drake apontou a arma para o rosto de Howard.

Você mandou esses cachorros para cima de mim?

Eles me morderam também, cara — protestou Howard. Depois gritou para o deserto: — Ore. Ore, cara. Ore.

Uma voz parecendo cascalho molhado, com um tom fantasmagóri­co e agudo disse:

Entregue a fêmea.

Howard espiou para a noite tentando entender aquilo. Não era Ore. Onde estava Ore?

Que fêmea? — perguntou Drake. — Quem é você?

Lentamente, de cada lado, ao redor do carro, o deserto se moveu.

Sombras se esgueiraram mais perto. Howard se encolheu, mas Drake ficou firme.

Quem está aí? — perguntou Drake.

Um coiote comido por sarna, com focinho marcado por cicatrizes que lhe davam um riso sinistro, entrou no círculo de luz. Howard quase caiu quando percebeu que era aquele coiote que falava.

Entregue a fêmea.

Não — respondeu Drake, recuperando-se depressa do choque. — Ela é minha. Preciso dela para curar meu braço. Ela tem o poder e eu quero meu braço de volta.

Você não é nada — rosnou o coiote.

Sou o cara que tem a arma — disse Drake.

Os dois, estranhamente parecidos, pensou Howard, encararam-se como se fossem abrir buracos um no outro.

O que você quer com ela? — perguntou Drake.

Escuridão diz: traga fêmea.

Escuridão? Que negócio é esse?

Entregue fêmea — disse Líder da Matilha, voltando ao seu argu­mento constante. — Ou vamos matar todos.

Eu mato um bom número de vocês.

Você morre — disse Líder da Matilha, teimoso.

Howard achou que era hora de falar.

Pessoal. Pessoal. Temos um impasse aqui. Então por que não tentamos chegar a um acordo?

O que você está falando?

Certo, olha, Drake, você disse algo sobre a fêmea curar seu braço?

Ela tem o poder. Quero meu braço de volta.

E o senhor... é... coiote... deve levá-la a um outro cachorro cha­mado Escuridão?

Líder da Matilha encarou Howard de um modo que sugeria que estava pensando em como trucidá-lo e comê-lo.

Certo — disse Howard, trêmulo. — Acho que podemos fazer um acordo.

 

                                         74 HORAS E 10 MINUTOS

ASTRID — DISSE EDILIO, — Sinto muito pela sua casa.

Astrid apertou a mão de Edilio.

É. Preciso admitir que foi difícil ver aquilo.

Você poderia ficar no posto de bombeiros comigo, Sam e Quinn - ofereceu Edilio.

Tudo bem. Petey e eu vamos ficar com Mãe Maria e Irmão John por um tempo. Eles quase nunca ficam em casa. E quando ficam, bem, você sabe, é bom ter gente por perto.

Os três, Edilio, Astrid e o Pequeno Pete, estavam no escritório que já pertencera ao prefeito de Praia Perdida e, mais recentemente, fora ocupado por Caine Soren. Sam havia resistido à idéia de ocupar aquela sala, sentindo que ela fazia com que ele parecesse se achar importante. Mas Astrid havia argumentado que os símbolos eram im­portantes e as crianças queriam pensar que existia alguém no co­mando.

Ela acomodou o Pequeno Pete numa cadeira e lhe entregou um saquinho cheio de flocos de arroz. Pete gostava de comer o cereal puro, sem leite.

Cadê o Sam? — perguntou Astrid. — E por que estamos aqui?

Edilio pareceu desconfortável.

Temos uma coisa para mostrar a você.

Sam abriu a porta. Não sorriu para Astrid. Olhou cauteloso para o Pequeno Pete. Em seguida disse olá.

Astrid, há uma coisa que você precisa ver. E acho que o Pequeno Pete não deveria ver.

Não entendo.

Sam deixou-se cair na cadeira que nos últimos tempos fora ocupa­da por Caine. Astrid ficou pasma ao ver como os dois garotos eram superficialmente parecidos. E como sua reação era diferente às feições semelhantes dos dois. Enquanto Caine escondia a arrogância e a cruel­dade por baixo de uma superfície calma e controlada, Sam deixava as emoções surgirem no rosto. Naquele momento estava triste, cansado e preocupado.

Será que o P.P. pode ficar com Edilio na outra sala?

Isso parece mau agouro — disse Astrid. A expressão no rosto de Sam não a contradisse.

Ela conseguiu que o Pequeno Pete se movesse, mas não sem luta. Edilio ficou com ele.

Sam estava segurando um DVD e disse:

Ontem mandei Edilio à usina nuclear para pegar duas coisas. Primeiro, um lote de armas automáticas da guarita.

Metralhadoras?

É. Não apenas para que nós as tivéssemos, mas para garantir que o outro lado não ficasse com elas.

Agora temos uma corrida armamentista.

O tom de voz dela pareceu irritar Sam.

Quer que eu as deixe para o Caine?

Eu não estava criticando, só... você sabe. Crianças do nono ano com metralhadoras: é difícil transformar isso numa história feliz.

Sam cedeu. Até mesmo riu.

É. A frase "crianças do nono ano com metralhadoras" não é exatamente seguida por "tenha um bom-dia".

Não é de espantar que você estivesse tão sério. — Assim que disse isso, ela soube que estava errada. Ele tinha outra coisa para lhe dizer. Algo pior. O DVD.

Estive imaginando, como você, por que o LGAR parece estar centrado na usina. Dezesseis quilômetros em todas as direções. Por quê? Então Edilio examinou parte dos vídeos de segurança da usina.

Astrid se levantou de repente, surpreendendo a si mesma.

Eu realmente não deveria deixar o Petey sozinho.

Você sabe o que esse DVD vai mostrar, não sabe? — Não era uma pergunta. — Você adivinhou naquela primeira noite. Eu me lem­bro que estávamos olhando o mapa no vídeo. Você abraçou o Pequeno Pete e me deu um olhar esquisito. Na hora não entendi.

Antes eu não conhecia você — disse Astrid. — Não sabia se po­dia confiar em você.

Sam enfiou o DVD no aparelho e ligou a TV

O som é bastante ruim.

Astrid viu a sala de controle da usina nuclear a partir de um ponto de observação elevado, com grande angular.

A câmera mostrava a sala de controle. Cinco adultos, três homens e duas mulheres. Um deles era o seu pai. A imagem fez um nó surgir na garganta dela. Ali estava ele, seu pai, balançando-se na cadeira, fa­zendo piada com a mulher que trabalhava ao lado, inclinando-se para a frente para preencher algum papel.

E sentado numa cadeira encostada na parede mais distante, o rosto iluminado pelo brilho do onipresente Game Boy, estava o Pequeno Pete.

O único som era a conversa turva, ininteligível.

Aí vem — disse Sam.

De repente, soou uma sirene, áspera e distorcida no áudio.

Todo mundo na sala de controle pulou. Pessoas correram para os monitores, para os instrumentos de leitura. O pai de Astrid lançou um olhar preocupado para o filho, mas depois se inclinou para o monitor, observando-o.

Outras pessoas entraram correndo na sala e moveram-se com efi­ciência treinada em direção aos monitores onde não havia ninguém.

Instruções em pânico foram gritadas de um lado para o outro.

Um segundo alarme soou, mais agudo do que o primeiro.

Um estroboscópio de alerta estava piscando.

Medo em todos os rostos.

E o Pequeno Pete se balançava freneticamente, as mãos apertando os ouvidos. Tinha uma expressão de pânico no rosto inocente.

Os dez adultos na sala faziam uma aterrorizante pantomima de deses­pero controlado. Teclas foram apertadas, interruptores, acionados. Seu pai pegou um manual grosso e começou a folhear as páginas rapida­mente, e o tempo todo as pessoas gritavam, os alarmes soavam estri­dentes e o Pequeno Pete estava gritando muito as mãos nos ouvidos.

Não quero ver isso — disse Astrid, mas não conseguia desviar o olhar.

O Pequeno Pete saltou de pé.

Correu até o pai, mas ele, frenético, empurrou-o para longe. O Pequeno Pete caiu esparramado contra uma cadeira e acabou se cho­cando na mesa comprida, olhando para um monitor que piscava, sem parar um aviso em vermelho brilhante.

O número 14.

Código um-quatro — disse Astrid, a voz sem emoção. — Ouvi meu pai dizer isso uma vez. É o código para derretimento do núcleo. Ele fazia piada sobre isso. Código um-um era um pequeno problema, código um-dois, você se preocupa, código um-três você chama o go­vernador, código um-quatro, você reza. O estágio seguinte, código um-cinco é... destruição.

No vídeo, o Pequeno Pete tirou as mãos dos ouvidos.

A sirene era implacável.

Houve um clarão que deixou o vídeo branco. Vários segundos de estática.

Quando a imagem se estabilizou, o alarme havia silenciado.

E o Pequeno Pete estava sozinho.

Astrid, você vai notar que a hora indicada no vídeo é 10h18 da manhã de dez de novembro. A hora exata em que cada pessoa com mais de 14 anos desapareceu.

No vídeo, o Pequeno Pete parou de chorar.

Nem olhou em volta, apenas voltou à cadeira onde estivera senta­do, pegou o jogo e voltou a jogar.

O Pequeno Pete causou o LGAR — disse Sam, monocárdio.

Astrid cobriu o rosto com as mãos. Estava surpresa com as lágrimas que sentia chegando, e com a força delas. Lutou para não soluçar. Passaram-se alguns minutos antes que conseguisse dizer alguma coisa. Sam esperou com paciência.

— Ele não sabia o que estava fazendo — disse Astrid em voz baixa, insegura. — Ele não sabe o que faz. Pelo menos não como nós. Não como: se eu fizer "isso", "aquilo" vai acontecer.

Eu sei.

Você não pode culpá-lo. — Astrid levantou a cabeça, os olhos chamejando em desafio.

Culpá-lo? — Sam veio sentar-se no sofá ao lado dela. Suficien­temente perto para que as pernas se tocassem. — Astrid, não acredito que estou dizendo isso, mas acho que você deixou de notar uma coisa.

Ela virou para ele com o rosto manchado de lágrimas, esperando.

Astrid, eles estavam tendo um derretimento do núcleo. Não pareciam estar conseguindo controlar a situação. Todos pareciam bem apavorados.

Astrid ofegou. Sam estava certo: ela não havia notado.

Ele parou o derretimento. Um derretimento poderia matar todo mundo em Praia Perdida.

É. Mesmo que eu não goste do método que ele usou, acho que o P.P. pode ter salvado a vida de todo mundo.

Ele parou o derretimento — disse Astrid, ainda sem entender completamente.

Sam riu. Chegou a gargalhar.

O que há de engraçado? — perguntou ela.

Eu deduzi uma coisa antes de Astrid Gênio. Estou adorando. Vou ficar aqui cantando vantagem por um tempo.

Aproveite, talvez isso não aconteça nunca mais.

Ah, pode acreditar, eu sei. — Sam segurou a mão dela, que ficou feliz em sentir seu toque. — Ele salvou a gente. Mas também criou essa coisa esquisita.

Não a coisa toda — disse Astrid, balançando a cabeça. — As mutações prefiguraram o LGAR. De fato as mutações foram o sine qua non do LGAR. A coisa sem a qual o LGAR não poderia ter acontecido.

Sam se recusou a ficar impressionado.

Você pode ficar me martelando com seus "de fato", seus "prefi­guraram" e seus "sine qua nons", ainda estou cantando vantagem.

Astrid levou a mão dele aos lábios e beijou-lhe os dedos.

Depois soltou-o, levantou-se, andou pela sala de um lado para o outro, parou e disse:

Diana. Ela diz que é como barras de sinal de celular. Duas bar­ras, três barras. Caine é quatro barras. Você também é, imagino. Pe­tey... acho que é cinco ou sete.

Ou dez — concordou Sam.

Mas Diana acha que é como uma recepção. Como se alguns de nós tivessem recepção melhor. Se for verdade, nós não estamos geran­do o poder, só usando, focalizando.

E?

E de onde ele vem? Para entender a analogia: onde fica a torre de celular? O que está gerando o poder?

Sam ficou de pé com um suspiro.

Uma coisa é certa: isso nunca vai sair daqui. Edilio sabe, eu sei e você sabe. Ninguém mais pode saber.

Astrid confirmou com a cabeça.

As pessoas iriam odiá-lo. Ou tentar usá-lo.

Sam assentiu.

Eu gostaria...

—- Não — disse Astrid, e deu de ombros, impotente. — Não há como fazer com que ele desfaça.

Que pena. — Sam deu um sorriso torto que não chegou aos olhos. — Porque tique-taque, tique-taque.

Lana cambaleava pela noite.

De volta com os coiotes. Um pesadelo revisitado.

E agora, aumentando o sofrimento, Drake e Howard cambaleavam com ela.

Drake com sua arma. Drake xingando a dor.

E Howard gritando para a noite:

Ore, Ore.

Maior do que qualquer sofrimento, era o pavor daquele túnel na mina e do que havia no fundo.

Ela havia desobedecido à Escuridão.

O que o monstro cheio de ódio faria com ela?

Vamos parar e eu tento consertar o braço do Drake, certo? — implorou.

Parar não — rosnou Líder da Matilha.

Pelo menos me deixe tentar.

Líder da Matilha a ignorou, e eles corriam e tropeçavam, recupera­vam-se e corriam mais um pouco.

Agora não havia como escapar. Não havia possibilidade de escapar.

A não ser...

Manobrou para ficar mais perto de Drake.

E se ela não deixar que eu cure você?

Não tente jogar comigo — disse Drake, tenso. — De qualquer modo, agora quero ver essa coisa que aterrorizou tanto você.

Não quer, não — garantiu Lana.

O que é? — perguntou Howard, nervoso, quase tão apavorado quanto a própria Lana.

Lana não tinha resposta.

Cada passo era mais difícil do que o anterior, e por várias vezes Líder da Matilha mordiscou-a para fazê-la andar. Quando ele não fa­zia isso, Drake fazia, balançando a arma, ameaçando-a com palavras, gestos e olhares.

Chegaram ao acampamento de mineração abandonado depois de a lua ter se posto e as estrelas estarem começando a se desbotar antes da promessa do amanhecer.

Ela nunca havia sentido um pavor tão grande. Era como se seu sangue tivesse sido todo drenado e substituído por lama fria. Mal po­dia se mexer. O coração batia no peito em pancadas altas e trêmulas. Queria fazer carinho em Patrick, receber algum conforto minúsculo dele, mas não conseguia se obrigar a se dobrar, não conseguia se obri­gar a falar. Mantinha-se contida de modo tenso, silenciosa, rígida.

"Vou morrer aqui", pensou.

Luz humana — engrolou Líder da Matilha. E indicou uma lan­terna enfiada entre as pedras. Howard saltou para ela e acendeu-a. Sua mão tremia tanto que a luz dançava pelas paredes de pedra, lan­çando sombras como se fossem fantasmas rápidos.

Nem mesmo Drake parecia capaz de zombar, com medo de algo que não podia explicar direito. Estava fazendo perguntas, cada vez mais agitado enquanto entravam no ar gelado da mina.

Alguém precisa me dizer o que vamos ver — insistiu. — Preciso saber o que vamos enfrentar. Quanto falta? — perguntava.

Mas o tempo todo seguiam pelo túnel.

Lana precisava forçar cada respiração. Precisava lembrar-se: respi­re. Respire.

Patrick havia sumido. Abandonara a todos na entrada da mina.

Cara, eu... eu não posso fazer isso — disse Howard. — Preciso... eu... — Ele estava com dificuldade para respirar.

Cala a boca — reagiu Drake, feliz de ter em quem jogar as frus­trações.

Howard se virou de repente e saiu correndo, levando a lanterna.

Líder da Matilha latiu uma ordem e dois coiotes saíram em perse­guição.

Sem a lanterna, Lana podia ver o fraco brilho verde das paredes. Escuridão atrás. A Escuridão adiante.

Deixe ele ir — disse Drake. — Howard não é importante. Eu sou importante — ele falava. Sua voz soava fraca.

Lana fechou os olhos com força, mas de algum modo o brilho ver­de penetrava nas pálpebras, como se pudesse reluzir através da carne, através do osso do crânio.

Não podia continuar. Caiu de joelhos.

Suficientemente perto. A coisa estava ali, logo adiante, depois da­quela última curva, uma pilha de rocha luminosa movendo-se, desli­zando, moendo.

A voz sem som era um porrete acertando sua cabeça. A Escuridão lançava invisíveis dedos de gelo em sua mente, e Lana soube que ela própria estava falando as palavras daquela coisa.

A curadora — gritou numa paródia torturada, maníaca, de sua própria voz.

Manteve os olhos fechados, mas pôde sentir Drake se ajoelhando ao seu lado.

Por que veio até mim? — gritou Lana, uma marionete, nada além de um instrumento para a Escuridão usar.

O coiote... — conseguiu dizer Drake.

O fiel Líder da Matilha — disse a Escuridão através de Lana. — Obediente, mas ainda não equivalente a um humano.

Abra os olhos, disse Lana a si mesma. Seja corajosa. Seja corajosa. Veja-a, encare-a, lute contra ela. Mas a escuridão estava em seu crânio, apertando e sondando, espiando dentro de seus segredos, rindo de sua resistência patética.

E, no entanto, ela abriu os olhos. Um hábito desafiador que teve durante toda a vida lhe deu a força necessária. Mas manteve o olhar baixo forte o suficiente para obrigar-se a abrir os olhos, estava aterro­rizada demais para olhar a face da coisa.

As rochas sob seus joelhos reluziam.

Ela estava tocando a coisa, tocando a bainha da coisa.

Líder da Matilha se rebaixava, deitando-se no piso da caverna ao lado de Lana, arrastando-se de barriga.

De repente Lana sentiu um choque elétrico de força aterrorizado­ra. Suas costas se arquearam, a cabeça foi para trás, os braços se abri­ram totalmente.

Uma dor como um punhal de gelo se cravando em seu olho e ras­gando o cérebro.

Tentou gritar, mas nenhum som saía.

Então aquilo passou e ela caiu de costas, as pernas dobradas sob o corpo. Ofegou como um peixe fora d'água, incapaz de encher os pul­mões.

Desafio — grasnou ela numa voz que não era sua.

Ela deveria consertar meu braço — disse Drake. — Se você matá-la, ela não vai poder me ajudar.

Você é ousado em fazer exigências — disse a Escuridão através de Lana.

Não sou... é... eu quero meu braço de volta — gritou Drake em voz rouca.

Lana descobriu que podia respirar de novo. Sugou o oxigênio. Fez força contra o solo, afastou-se centímetro a centímetro da Escuridão.

Drake berrou em agonia. Lana o viu reagir também, como se tives­se agarrado um fio de eletricidade. O corpo dele se sacudia como uma marionete.

A Escuridão soltou-o.

Ah — disse a Escuridão, e torceu a boca de Lana num esgar. — Encontrei um professor muito melhor para você, Líder da Matilha.

Líder da Matilha tinha ousado se levantar. Manteve a cabeça e a cauda alinhadas numa postura submissa. Olhou para Drake, que agora fora solto e estava dobrado ao meio, segurando o braço e sentindo dor.

Este humano vai ensinar você a matar humanos — disse Lana.

Drake falou como se cada sílaba fosse um esforço.

É. Mas... meu braço.

Me dê o braço — disse Lana e, contra a vontade, engatinhou até Drake.

Drake ficou de pé, trêmulo, mas determinado. Estendeu o cotoco queimado e serrado.

Vou lhe dar um braço como nenhum humano já teve — disse a Escuridão através de Lana. — Você não tem magia por dentro, huma­no, mas a garota vai servir.

Drake moveu-se com velocidade surpreendente. Girou e agarrou Lana pelo cabelo.

Pegue meu braço — sibilou.

Ela encostou a mão trêmula na carne derretida, sentindo por baixo o osso recém-cortado, com vontade de vomitar.

A luz verde se aprofundou. Lana sentiu todo o corpo ser preenchi­do por ela, não quente, mas fria, fria como gelo.

A carne de Drake estava crescendo.

Ela podia senti-la movendo-se sob os dedos. Mas não era carne humana.

Nem um pouco humana.

Não — sussurrou ela.

Sim — ofegou Drake. — Sim.

 

                     36 HORAS E 37 MINUTOS

"E às vezes, quando você mente para mim

Às vezes minto para você

E não há o que você possa fazer

Todas essas vidas meio destruídas

Não são tão ruins quanto possa parecer

Mas vejo gente gritando e sangue a correr

Então acordo

E é só mais um sonho ruim..."

 

SAM ESTAVA CANTANDO a música do Agent Orange que tocava em seu iPod, sentindo como se a letra familiar atravessasse o limite entre ser apenas mais uma música ligeiramente perturbadora e chegasse per­to de descrever sua vida.

Estava no posto de bombeiros, não exatamente desfrutando de um almoço solitário. Quinn... bom, ultimamente ele nunca parecia saber onde Quinn estava. Seu amigo — essa palavra era mesmo apropriada? Seu amigo Quinn era uma sombra que ia e vinha, às vezes parecendo o Quinn antigo, às vezes sentado carrancudo e assistindo a DVDs que já tinha visto um milhão de vezes.

De qualquer modo, ele não estava ali para o almoço no posto de bombeiros, apesar de Sam ter feito sopa suficiente para mais gente.

Edilio se materializou em silêncio junto à porta. Parecia desencora­jado. Sam percebeu que estivera cantando em voz alta e, sem graça, desligou a música e tirou os fones de ouvido.

O que você descobriu, Edilio?

Se ela estiver em algum lugar em Praia Perdida, está conseguin­do se esconder muito bem, Sam. Nós procuramos. Falamos com todo mundo. Lana sumiu. O cachorro dela sumiu. Ela estava na casa do Elwood, depois sumiu.

Sam jogou o iPod na mesa.

Fiz sopa. Quer?

Edilio se deixou cair na cadeira.

Qual era a música?

O quê? Ah. O nome é "Um pedido de ajuda num mundo que ficou louco".

Os dois compartilharam um riso mordaz.

Depois vou botar aquela música antiga, como é o nome? — Sam procurou na memória. — É. Do REM. "It's the End of the World as We Know It": é o fim do mundo como a gente o conhece.

É mesmo. Eu estive procurando uma garota capaz de curar as pessoas com magia e aproveitando parte do tempo para aprender a atirar com uma metralhadora.

E como foi isso, a propósito?

Tenho quatro garotos que conseguem mais ou menos, contando o Quinn. Mas, cara, não somos exatamente os fuzileiros, saca? Um cara chamado Tom começou a atirar e quase acertou em mim. Tive de mergulhar num monte de cocô de cachorro.

Sam tentou não rir, mas nenhum dos dois conseguiu parar, depois que começou.

É, você acha engraçado. Espera a sua vez — disse Edilio.

Sam estava sério de novo.

Não sei o que está segurando o Caine. Já faz dois dias. O que está segurando ele?

Por que a pressa? Quanto mais tempo tivermos, mais vamos fi­car preparados.

Cara, amanhã à noite eu vou pular fora daqui.

Você não tem certeza, cara — disse Edilio, sem graça.

Só gostaria de saber o que está acontecendo lá na Coates.

Edilio captou imediatamente.

Está falando em espionar?

Sam empurrou a sopa para longe.

Não sei o que estou falando, cara. Estou meio pensando que a gente deveria partir para cima deles, sabe? Ir lá e fazer o que temos que fazer.

Nós temos armas. Temos gente que sabe dirigir. Além de você, temos mais quatro mutantes com poderes que podem ser úteis. Você sabe, poderes com os quais dá para lutar, não como aquela garota que consegue sumir, mas só se estiver com muita vergonha.

Sam sorriu, mesmo contra a vontade.

Está brincando.

Não, cara, ela é tímida de verdade, e se você diz algo tipo "você tem um cabelo bonito", ela fica subitamente invisível, mas mesmo as­sim continua ali. Você pode tocar nela, mas não pode vê-la.

Isso não vai exatamente impedir o Caine.

Taylor está trabalhando na capacidade de teletransporte. Agora consegue se transferir por uns dois quarteirões. — Edilio deu de om­bros. — Mas em termos de utilidade, temos aquele garoto de 9 anos. Ele pode fazer como você, com a luz, mas não muito.

Nove anos. Não podemos fazer um cara de 9 anos machucar alguém — protestou Sam.

Que tal uma de 11 anos que se move tão rápido que mal dá para ver?

A tal de Brianna?

Agora ela se chama de Brisa. Tipo: mais rápida que a brisa.

Brisa? Como um nome de super-herói? — Sam balançou a cabe­ça, pesaroso. — Fantástico. Só faltava essa. — Esta era uma das frases prediletas de sua mãe: "só faltava essa". Ele sentiu uma dor aguda no peito, mas isso passou depressa. — O que podemos mandar a Brisa fazer quando ela estiver correndo por aí?

Edilio pareceu desconfortável.

Acho que podemos lhe dar uma arma. Ela atira, parte para longe e atira de novo.

Ah, meu Deus. — Sam baixou a cabeça. — Ela tem 11 anos e vamos lhe dar uma arma? Para atirar em pessoas? Em seres humanos? É doentio.

Edilio não sabia o que dizer.

Desculpe, cara, não estou pegando no seu pé, Edilio. É só que... quero dizer, isso é piração. Está errado. Já é bem ruim para o pessoal da nossa idade, mas os do quarto e do quinto anos?

Ouviram o som de passos rápidos na escada, e Sam e Edilio salta­ram de pé, esperando o pior.

Dekka, uma das refugiadas da Coates, entrou correndo e derrapou no chão encerado. Sua testa fora machucada, um talho de cinco centí­metros, e ela havia se recusado a deixar que Lana curasse.

— Ganhei isso do sapato do Drake quando ele me chutou — tinha dito ela. — Cure minhas mãos do concreto, mas deixe a cabeça. Que­ro ter alguma coisa para lembrar.

Sam refletiu que esta era apenas a segunda coisa mais interessante com relação a Dekka. A primeira provavelmente seria o fato de que ela parecia ter o poder de suspender a força da gravidade numa área pequena.

O que é, Dekka?

Aquele tal de Ore. Acabou de entrar na cidade, todo esfarrapado.

Ore? Só o Ore? Sem o Howard?

Dekka deu de ombros.

Não vi mais ninguém. Ele só entrou, e o tal de Quinn disse que era melhor eu contar a você. Disse que ia seguir o Ore até em casa.

Seria a casa que Ore dividia com Howard. Não ficava longe.

Talvez eu devesse levar uma arma — disse Edilio, em voz som­bria.

Acho que agora posso cuidar do Ore — respondeu Sam. Sua confiança o surpreendeu. Ele nunca havia pensado que era capaz de cuidar do Ore antes.

Quinn estava esperando do lado de fora da casa. Sam agradeceu quase formalmente.

Obrigado por ter mandado Dekka falar comigo e por ficar de olho nas coisas.

Eu faço o que posso — disse Quinn, com mais amargura do que provavelmente pretendia.

Sam e Edilio ficaram de lado enquanto Quinn batia à porta. A voz familiar demais do valentão gritou:

Entrem, panacas.

Ore estava abrindo uma lata de cerveja.

Deixe eu beber isso — murmurou Ore. — Depois podem me matar, ou o que quiserem fazer.

Ore havia passado dois dias ruins. Estava arranhado, com hemato­mas, arrasado. Um olho estava inchado e preto. As calças estavam rasgadas e imundas. A camisa estava em farrapos. Tinha sido rasgada em tiras, depois amarrada de volta, de qualquer jeito.

Ainda era grande, mas parecia menos ameaçador do que jamais o tinham visto.

Cadê o Howard? — perguntou Sam.

Com eles — respondeu Ore.

Eles, quem?

Drake. Aquela garota, como é o nome dela? Lana. E um cachor­ro que fala. — Ore deu um risinho. — É. Estou maluco. Cachorro que fala. Foram os cachorros que me pegaram. Abriram um buraco nas minhas tripas. Comeram minha perna.

— O que você está falando, Ore?

Ele bebeu com sofreguidão. Suspirou.

Ah, que beleza.

Fale algo que faça sentido, Ore — disse Sam, rispidamente.

Ore arrotou alto. Levantou-se devagar. Pousou a lata de cerveja.

Com os braços rígidos, puxou a camisa rasgada por cima da cabeça.

Edilio ofegou. Quinn virou a cabeça para outro lado. Sam apenas ficou olhando.

Grandes áreas do peito e da barriga de Ore estavam cobertas de cascalho. As pedras tinham cor de água lamacenta, cinza-esverdeada. Enquanto Ore respirava, o cascalho subia e descia.

Isso está se espalhando — disse Ore. Ele parecia achar divertido. Tocou com o dedo. — É quente.

Ore... como isso aconteceu? — perguntou Sam.

Eu já disse. Os cachorros comeram minha perna, minhas tripas e outras partes que não vou contar. Então esse negócio foi preenchendo.

Ele deu de ombros e Sam ouviu um som fraco, como passos num caminho de cascalho molhado.

Não dói — explicou Ore. — Doía. Mas agora não dói. Mas coça.

Ah, meu Deus — disse Edilio baixinho.

De qualquer modo — continuou Ore. — Sei que todos vocês me odeiam. Então me matem ou vão embora. Estou com sede e com fome.

Deixaram-no.

Lá fora, Quinn andou rapidamente pela rua, parou de repente e vomitou num arbusto.

Sam e Edilio o alcançaram. Sam pôs a mão no ombro de Quinn.

Desculpe — disse Quinn. — Acho que só estou fraco.

O pior ainda está por vir — disse Sam, em tom sombrio. Mas de repente um belo sumiço não parece a pior coisa que poderia aconte­cer, não é?

— Drake saiu há dois dias — disse Diana. — Precisamos ver o que temos aqui.

Estou ocupado — reagiu Caine rispidamente.

Estavam de pé no gramado da frente da Coates. Caine supervisio­nava o trabalho de consertar o buraco causado pela luta anterior. Teletransportava tijolos, alguns de cada vez, até o lugar onde Martelo e Chaz tentavam cimentá-los.

A coisa toda já havia desmoronado duas vezes. Uma coisa era der­ramar concreto num molde no chão. Assentar tijolos era muito mais difícil.

Precisamos fazer algum tipo de acordo com... com o pessoal da cidade — disse Diana.

Pessoal da cidade. Está evitando dizer "Sam" ou "seu irmão".

Certo, você me pegou. Temos de fazer algum tipo de acordo com seu irmão, Sam. Eles ainda têm comida. Nós estamos ficando sem.

Caine fingiu que estava distraído enquanto levitava outra pilha de tijolos pela porta da frente da escola até o segundo andar, onde Mar­telo e Chaz se desviaram da segunda carga.

Estou ficando melhor nisso — disse Caine. — Estou ganhando controle. Precisão.

Bom para você.

Os ombros de Caine se afrouxaram.

Sabe, de vez em quando você podia demonstrar um pouco de apoio. Você sabe o que sinto. Mas só fica pegando no meu pé.

O que você quer, que a gente se case?

Caine ficou vermelho e Diana irrompeu numa gargalhada de volu­me incomum.

Você sabe que a gente tem 14 anos, certo? Quero dizer, sei que você acha que é o Napoleão do LGAR, mas ainda somos crianças.

A idade é relativa. Eu sou uma das duas pessoas mais velhas dentro do LGAR. E a mais poderosa.

Diana mordeu a língua. Tinha uma resposta espertinha pronta, mas já havia provocado Caine o suficiente por um dia. Tinha coisas maio­res para enfrentar do que o amor de cachorrinho do Caine. E era só isso. Caine não era capaz de amor verdadeiro, do tipo profundo, do tipo que cresceria com o tempo.

Claro, eu também não — murmurou Diana.

O quê?

Nada. — Diana ficou olhando Caine trabalhar. Não o que ele estava fazendo, mas o garoto em si. Era a pessoa mais carismática que já conhecera — poderia ser um astro do rock, e sem dúvida achava que estava apaixonado por ela. Era o motivo para tolerar a impertinência de Diana.

Ela achava que gostava dele. Tinham sido atraídos um pelo outro quase desde o início. Eram amigos... não, essa não era bem a palavra. Cúmplices. É, essa serviria: cúmplices. Eram cúmplices desde que Cai­ne havia descoberto seus poderes.

Ela foi a primeira pessoa a quem ele mostrou. Jogou um livro que estava em cima da mesa do outro lado da sala.

Foi ela quem o encorajou a trabalhar aquilo, desenvolver, treinar em segredo. A cada vez que ele alcançava um nível novo, mostrava a ela. E quando ela demonstrava ao menos a menor gentileza para com ele, uma palavra de elogio, um gesto de admiração, ele se inchava e parecia brilhar com alguma luz refletida.

Era preciso muito pouco para manipulá-lo. Não exigia afeto verda­deiro, só a sugestão de afeto.

Diana mandava Caine usar o poder para fazer tropeçar algum es­nobe de quem ela não gostasse, ou humilhar algum professor que ti­vesse pegado pesado com ela. E quando contou a Caine que o profes­sor de ciência a havia encurralado num laboratório vazio e tentado passar a mão nela, Caine o fez cair esparramado por uma escada, indo parar no hospital.

Daquela vez, Diana gostou. Tinha um protetor que faria o que ela pedisse e não pediria nada em troca. Apesar de seu ego gigantesco, da aparência, do charme, Caine era terrivelmente sem jeito com as garo­tas. Nunca sequer havia tentado beijá-la.

Mas então ele atraiu a atenção de Drake Merwin, que já havia ad­quirido a reputação de valentão mais perigoso de uma escola onde havia um monte de valentões. E, a partir desse ponto, Caine jogou um contra o outro, fazendo um pouco por Diana quando ela pedia, e um pouco por Drake.

À medida que os poderes de Caine cresciam, os dois relacionamen­tos mudavam.

E então a enfermeira da escola, a mãe de Sam — mãe de Caine também, mas na época nenhum dos dois sabia disso —, começou a deduzir que havia algo muito, muito estranho em seu menininho de­saparecido havia muito tempo.

Os tijolos desmoronaram de repente, uma série de pancadas surdas quando acertaram o gramado, e a seqüência de gemidos e palavrões de Chaz e Martelo.

Caine quase pareceu não notar.

O que você acha que foi, Diana? — disse quase como se tivesse lido os pensamentos dela.

Acho que eles não colocaram bem retos — respondeu, sabendo que não era disso que ele estava falando.

Não é isso. Ela. A enfermeira Temple. — Ele repetiu o nome, arrastando-o na língua para captar a sensação. — Enfermeira. Connie. Temple.

Diana suspirou. Não era uma conversa que queria ter.

Eu não conhecia aquela mulher de verdade.

Ela tem dois filhos. Fica com um. O outro, ela dá para adoção. Eu era só um bebê.

Não sou psicanalista — disse Diana.

Sempre tive a sensação, sabe? De que minha família não era minha família de verdade. Eles nunca disseram que eu era adotado, mas minha mãe... bem, a mulher que eu achava que era minha mãe, não sei como chamá-la agora. De qualquer modo, ela nunca falava sobre quando eu nasci. Sabe, a gente ouve as mães falarem que entra­ram em trabalho de parto e coisa e tal. Ela nunca falava nisso.

Que pena o Dr. Phil não estar por aqui. Você poderia contar tudo a ele.

Acho que ela devia ser bem fria. A enfermeira Temple. Minha suposta mãe. — Agora ele estava olhando para Diana, cabeça inclina­da, franzindo a testa, cético. — Meio como você, Diana.

Diana fez um som grosseiro.

Não tente se aprofundar, Caine. Na época ela provavelmente era só uma adolescente ferrada. Talvez tenha pensado que podia cui­dar de um filho, mas não de dois. Ou talvez tenha tentado arranjar quem adotasse vocês dois, mas ninguém quis ficar com Sam.

Caine ficou pasmo.

Está me sacaneando?

Estou tentando fazer você seguir em frente. Quem se importa com os problemas da sua mãe? Temos comida que dá para duas, talvez três semanas. Depois vai ser só feijão.

Está vendo o que eu quero dizer? Aposto que ela era como você, Diana. Fria e egoísta.

Diana já ia responder, quando ouviu o som de algo passando atrás. Girou e viu uma onda, um bando de animais com pelos ásperos e ama­relados. Os coiotes pareciam vir de todos os lugares ao mesmo tempo, uma invasão disciplinada, objetiva, que rapidamente iria passar por cima dela e de Caine.

Caine levantou as mãos, com as palmas para fora, armado e pronto.

Não — gritou uma voz. — Não os machuque. São amigos.

Era Howard, marchando na direção dos dois, acenando. Atrás vi­nha a garota que curava, Lana, parecendo em choque.

E atrás deles, Drake.

Diana xingou. Ele continuava vivo.

E então viu o braço de Drake.

O cotoco queimado, os restos do braço que ela havia serrado en­quanto Drake gritava, chorava e ameaçava, tinha sofrido uma alteração.

Estava esticado, como se tivesse sido transformado num puxa-puxa vermelho-sangue. Enrolava-se, dando duas voltas no corpo.

Não.

Impossível.

Howard veio correndo primeiro.

Ore apareceu por aqui?

Mas nem Caine nem Diana responderam. Ambos olhavam Drake, que veio fazendo pose de importante em direção a eles, com toda a presunção restaurada, não mais parecendo o espantalho abalado que chorou ao ver o cotoco derretido de sua mão caído no piso de ladrilhos.

Drake — disse Caine. — Achamos que você estava morto.

Voltei — respondeu Drake. — E melhor do que nunca.

O tentáculo vermelho se desenrolou da cintura, como uma jibóia soltando a vítima.

Gostou, Diana? — perguntou Drake.

O braço, aquela impossível cobra vermelho-sangue, enrolou-se aci­ma da cabeça de Drake, redemoinhou, retorceu-se. E de repente, tão rápido que um olho humano mal poderia registrar, saltou como um chicote.

O som foi um estalo forte. Um mini estrondo sônico.

Diana gritou de dor. Atordoada, olhou o corte na blusa e o fio ver­melho escorrendo do ombro.

Desculpe — disse Drake, sem qualquer tentativa de ser sincero. — Ainda estou trabalhando na mira.

Drake — disse Caine e, apesar do sangue, apesar do ferimento de Diana, riu. — Bem-vindo.

Trouxe ajuda — respondeu Drake. Em seguida, estendeu a mão esquerda e Caine a apertou desajeitadamente com sua direita. — En­tão, quando vamos partir para cima do Sam Temple?

 

                               26 HORAS E 47 MINUTOS

— ELES VIRÃO AMANHÃ à noite — disse Sam. — Acho que Caine precisa me desafiar. Acho que é um negócio de ego.

Fizeram o último conselho de guerra na igreja. A mesma igreja onde Caine iniciara seu fácil domínio. A cruz fora encostada de novo na parede. Não estava onde deveria, mas pelo menos não estava mais no chão.

Do pessoal de Praia Perdida, estavam Sam, Astrid, o Pequeno Pete, Edilio, Dahra, Elwood e Mãe Maria. Albert fora convidado, mas vi­nha se concentrando no seu plano para o Dia de Ação de Graças e fazendo testes com o hambúrguer de tortilha. Representando os refu­giados da Coates, estavam três garotas: Dekka; a pequena Brianna — a Brisa — e Taylor.

— Caine é um cara que precisa vencer. Precisa vencer antes de pufar. Ou precisa vencer antes que eu pufe. O fato é que ele não vai simplesmente aceitar que a gente tenha libertado todo esse pessoal da Coates e trazido para Praia Perdida — disse Sam. — Por isso precisa­mos estar preparados. E precisamos estar preparados para outra coisa, também: amanhã é meu aniversário. — Ele fez uma careta. — Não é um aniversário pelo qual eu esteja exatamente ansioso. Mas, de qual­quer modo, precisamos decidir quem assume o comando no meu lu­gar se... quando... eu saltar fora.

Várias crianças fizeram sons de compreensão ou encorajamento, querendo dizer que Sam não iria sumir, ou que talvez fosse uma coisa boa, um modo de escapar do LGAR. Mas Sam silenciou-as.

Olhem, o bom é que, quando eu for, o Caine também vai. O ruim é que isso ainda deixa Drake, Diana e outros valentões. Ore... bem, não sabemos exatamente o que está acontecendo com ele, mas Howard não está com ele. E Lana... não sabemos o que aconteceu com ela, se foi embora ou o quê.

A perda de Lana era um golpe sério. Todos os refugiados da Coates a adoravam pelo modo como ela havia curado suas mãos. E era tran­qüilizador saber que ela poderia curar qualquer um que se ferisse.

Astrid falou:

Eu indico Edilio para assumir o comando se... você sabe. De qualquer modo, precisamos de um número dois, um vice-presidente, vice-prefeito ou vice sei lá o quê.

Edilio ficou em dúvida, como se Astrid pudesse estar falando de algum outro Edilio. Depois disse:

De jeito nenhum. Astrid é a pessoa mais inteligente daqui.

Eu preciso cuidar do Pequeno Pete. Maria tem de cuidar dos pequenos e mantê-los longe do perigo. Dahra tem a responsabilidade de tratar de quem se machucar. Elwood andou tão ocupado no hospi­tal com Dahra que não lidou com Caine, Drake ou qualquer um da facção da Coates. Edilio já enfrentou Ore e Drake. E sempre foi cora­joso, inteligente e capaz. — Ela piscou para Edilio, reconhecendo o desconforto dele.

Certo — disse Sam. — Então, a não ser que alguém seja contra, é assim que fica. Se eu me machucar ou sumir, Edilio está no comando.

Eu respeito Edilio — disse Dekka —, mas ele nem tem poderes.

Ele tem o poder de ganhar a confiança de todos e de estar pre­sente quando é necessário — respondeu Astrid.

Ninguém questionou mais.

Certo, então — disse Sam. — Temos nosso pessoal em posição e Edilio dirá quando eles devem ir. Taylor, sei que vai ser chato para você, e meio apavorante também. Escolha um amigo para ficar junto, negociem como vão dormir, mas garantam que um de vocês esteja acordado o tempo todo. E continue treinando. Brisa, seu papel é fun­damental: você é nosso sistema de comunicação assim que a coisa começar. Dekka? Assim que tivermos notícias da Taylor, você e eu vamos agir.

Maneiro — disse Dekka.

Vamos vencer — garantiu Sam.

Todos se levantaram para sair. Astrid ficou para trás. Sam deu um tapa no ombro de Edilio.

Escuta, cara, se conseguir achar alguma coisa útil para o Quinn fazer...

Estou cuidando disso. Ele não atira mal. Coloquei-o em cima da creche com uma metralhadora.

Sam assentiu, deu um tapa nas costas de Edilio e olhou-o sair.

Quinn com uma metralhadora — disse. — Estou pedindo ao meu amigo para atirar em pessoas.

Está pedindo para ele se defender e defender as crianças peque­nas — contrapôs Astrid.

É, isso muda tudo — disse Sam, com sarcasmo.

O que você quer que eu faça? — perguntou Astrid. — Você não me deu nenhum trabalho.

Quero que encontre um lugar seguro e se esconda até que tudo isso acabe. É o que quero.

Mas...

Mas... amanhã à tarde, preciso de você lá em cima.

No céu? — perguntou Astrid, com um riso.

Venha cá. — Sam levou Astrid e seu irmão até a torre. As vene­zianas ainda estavam arrancadas, como Drake as deixara. As luzes de Praia Perdida pareciam fantasmagoricamente normais, vistas de cima. Muitas casas ainda tinham luzes acesas. As esparsas luzes das ruas tam­bém estavam ligadas. O letreiro amarelo do McDonald's brilhava. Uma brisa soprou trazendo o cheiro de batatas fritas e agulhas de pi­nheiro, maresia e algas.

Dois sacos de dormir tinham sido estendidos no espaço apertado. Um binóculo e um walkie-talkie infantil estavam perto de um saco de compras.

Coloquei um pouco de comida e pilhas para o jogo do P.P. nesse saco. Não creio que o walkie-talkie funcione muito bem, mas estou com o outro. Daqui de cima dá para ver quase tudo.

Era um espaço apertado, O Pequeno Pete sentou-se imediatamente num canto empoeirado. Astrid e Sam ficaram perto um do outro, sem jeito, apertados pelo sino.

Você deixou uma arma para mim?

Ele balançou a cabeça.

Não.

Você está pedindo a todo mundo para fazer coisas terríveis. E só está pedindo para eu ficar vigiando.

Há uma diferença.

Há? Qual?

Bom... eu preciso de você por causa do seu cérebro. Preciso que você observe.

Que desculpa esfarrapada — respondeu ela.

Ele assentiu.

É. Bem. Você não foi treinada para atirar. Provavelmente acaba­ria dando um tiro no próprio pé.

Sei — disse ela, nem um pouco convencida.

Escuta, sei que é maluquice, mas talvez você devesse pensar na idéia do Quinn, de fazer o P.P. mandar você para o Havaí. Ou qualquer outro lugar. Ele tem o poder. Para o caso de as coisas não darem certo.

Não quero que ele me mande para lugar nenhum. Em primeiro lugar, não acho que funcionaria. E em segundo...

O quê?

Em segundo, não quero deixar você.

Sam pôs a palma da mão suavemente no rosto de Astrid, e ela fe­chou os olhos e se encostou nele.

Astrid, sou eu que vou embora. Você sabe.

Não. Não sei. Rezei para que isso não aconteça. Pedi que Maria intercedesse.

Maria Terrafino?

Não, dããã. — Astrid riu. — Você é um tremendo pagão! Maria. A Virgem Maria.

Ah. Ela.

Sei que você não acredita muito em Deus, mas eu acredito. Acho que Ele sabe que estamos aqui. Acho que Ele ouve nossas orações.

Você acha que isso tudo é algum plano de Deus? O LGAR e coisa e tal?

Não. Acredito no livre-arbítrio. Acho que nós tomamos nossas decisões e realizamos nossas ações, e elas têm conseqüências. O mun­do é o que fazemos dele. Mas às vezes acho que podemos pedir ajuda a Deus e que Ele vai nos ajudar. Às vezes acho que Ele olha para baixo e diz: "Uau, olha só o que aqueles idiotas estão aprontando agora: é melhor ajudar um pouquinho."

Eu aceitaria a ajuda de boa vontade — disse Sam.

Mesmo assim, eu gostaria de ter uma arma.

Sam balançou a cabeça.

Eu machuquei meu padrasto. Machuquei o Drake. Posso ter matado o Drake. Não sei. E não sei o que vai acontecer agora. Mas sei o seguinte: quando machuco alguém, isso cria uma marca em mim. Como uma espécie de cicatriz. É que nem... — Ele procurou as pala­vras e ela o abraçou com força. — É como o meu joelho, quando

Drake atirou em mim. Está totalmente curado, graças a Lana, como se aquilo nunca tivesse acontecido. Mas quando eu queimei o Drake, sabe? A coisa está dentro de mim, na minha cabeça, e Lana não curou isso.

Se houver uma luta, outros vão sentir essa dor.

Você não é outros.

Não?

Não.

Por quê?

Porque eu amo você.

Astrid ficou em silêncio por tanto tempo que Sam pensou que a havia deixado chateada. No entanto, ela jamais o soltou, jamais se afastou, apenas manteve o rosto enterrado em seu pescoço. Ele sentiu as lágrimas quentes dela na pele. E por fim Astrid disse:

-— Eu também amo você.

Ele suspirou de alívio.

Bom, menos uma coisa.

Mas ela não se juntou ao riso nervoso.

Tenho uma coisa para lhe dizer, Sam.

Um segredo?

Eu não tinha certeza, por isso não falei nada. É difícil separar da inteligência. Intuição é geralmente o nome que damos à percepção aumentada, mas normal, que acontece abaixo do nível do pensamento consciente.

Ahã — disse ele, usando sua voz de idiota.

Por um longo tempo eu não tinha certeza de que fosse algo di­ferente da intuição normal.

O poder — observou ele. — Eu estava imaginando se você sabia. Diana disse que você era duas barras. Eu não queria, você sabe, forçá-la a pensar nisso.

Eu suspeitei. Mas é esquisito. Seguro a mão de uma pessoa e às vezes vejo o que, na minha mente, parece um rastro de fogo atraves­sando o céu.

Sam segurou-a afastada, para ver melhor seu rosto.

Um rastro?

Astrid deu de ombros.

Esquisito, não é? Vejo clara ou fraca, comprida ou curta. Não sei o que significa. Não tenho nenhum controle e, na verdade, ainda não tentei explorar isso. Mas parece que estou vendo alguma medida... não sei, importante, sabe? E como se estivesse vendo a alma da pessoa ou talvez o destino dela, mas em termos altamente metafóricos.

Altamente metafóricos — ecoou ele. — Seu poder é o poder da metáfora?

Isso finalmente lhe garantiu um sorriso e um empurrão.

Espertinho. O fato é que eu soube, desde o início, que você era importante de algum modo. Você é um cometa atravessando o céu, deixando uma esteira de fagulhas.

E amanhã vou bater de cara numa parede de tijolos?

Não sei — admitiu ela. — Mas sei que você é o cometa mais brilhante do céu.

Jack Computador acordou e sentiu a mão macia sobre sua boca. Esta­va escuro lá fora, mas o quarto estava banhado com o brilho azul de uma tela de computador. Dava para ver a silhueta do rosto dela, o cabelo escuro. Seus olhos brilhavam.

Shh — alertou Diana, e pôs um dedo nos lábios.

O coração de Jack já estava martelando. Havia algo errado. Sem dúvida.

Levante-se, Jack.

O que está acontecendo?

Está lembrado do nosso trato? Está lembrado da sua promessa?

Ele não queria dizer que sim. Não queria. Sempre soubera que, o que quer que Diana quisesse, seria perigoso. E Jack estava mais apavo­rado do que nunca.

Drake tinha voltado. Drake era um monstro.

Diana acariciou sua bochecha com a ponta dos dedos. Ele sentiu um arrepio subir pela coluna. Depois, com a mesma suavidade, ela lhe deu um tapa no rosto.

Perguntei se você está lembrado da nossa promessa.

Ele ficou mudo. Confuso demais para conseguir encontrar a voz, consciente demais da presença dela, aterrorizado demais com o que ela poderia querer.

Assentiu.

— Vista-se. Só isso. Não pegue nada mais.

Que horas são? — contemporizou ele.

Hora de fazer o que é certo. — Sua boca se entortou, com um sorriso irônico. — Mesmo que seja pelo motivo errado.

Jack saltou da cama e ficou muito feliz por ter encontrado umas calças de pijama para vestir. Pediu para que ela virasse de costas e se vestiu rapidamente.

Para onde vamos?

Você vai dar uma volta de carro.

Só dirigi uma vez, e quase caí numa vala.

-— Você é um garoto muito inteligente, Jack. Vai descobrir um modo.

Esgueiraram-se para fora do quarto, até o corredor escuro. Desce­ram a escada, com muito cuidado. Diana entreabriu a porta e olhou pa­ra o pátio. Jack se perguntou se Diana teria uma desculpa pronta para o caso de alguém tentar impedi-los.

O som dos tênis no cascalho do caminho era amplificado pelo ar nevoento da noite. Era como se eles estivessem tentando fazer baru­lho. Como se cada passo fosse dado com uma marreta.

Diana levou-o até o utilitário esportivo largado na grama.

As chaves estão aí. Entre. No banco do motorista.

Para onde nós vamos?

Para Praia Perdida. E não somos nós. Só você.

Jack ficou alarmado.

Eu? Só eu? Não, não, não! Se eu for, Caine vai achar que foi minha idéia. Vai mandar o Drake atrás de mim.

Jack, ou você me obedece ou vou começar a gritar. Eles vão aparecer e eu digo que peguei você tentando fugir.

Jack sentiu a resistência desmoronar. Aquilo era plausível demais. Ela faria isso, e Caine acreditaria. E então... Drake. Ele estremeceu.

Por quê? — implorou Jack.

Encontre Sam Temple. Diga que você escapou.

Jack engoliu em seco e balançou a cabeça.

Melhor ainda, encontre aquela garota, Astrid. — Diana recupe­rou parte de sua atitude zombeteira. — Astrid Gênio. Ela vai estar desesperada para salvar o Sam.

Certo. Certo. — Ele se concentrou. — É melhor eu ir.

Diana tocou seu braço.

Conte a eles sobre o Andrew.

Jack petrificou com a mão na chave.

É isso que você quer que eu faça?

Jack, se o Sam sumir, Drake vai se virar contra mim e Caine não vai poder impedir. Drake está mais forte do que antes. Preciso do Sam vivo. Preciso de alguém para Drake odiar. Preciso de um equilíbrio. Conte ao Sam sobre a tentação. Alerte que ele vai ser tentado a se entregar ao grande salto, mas que talvez, talvez, se ele disser não... — Ela suspirou. Não era um som de esperança. — Agora vá.

Ela deu meia-volta e marchou de volta à escola.

Jack acompanhou-a com os olhos até que Diana estendeu a mão para a porta. Agora era a chance de ela escapar também. Ela poderia se afastar de Caine, de Drake e de tudo que eles representavam. Mas ia ficar.

Seria possível que Diana realmente amasse Caine?

Ele respirou fundo para se firmar e virou a chave. O motor rugiu. Tinha forçado demais a chave. O barulho era demasiado.

Shh, shh — disse.

Moveu a alavanca para a posição de marcha à frente.

Apertou o pedal do acelerador. Nada aconteceu. Quase entrou em pânico. Depois lembrou: o freio de mão. Soltou a alavanca do freio e experimentou de novo o pedal do acelerador. O carro se esgueirou pelo cascalho numa lentidão irritante.

Ei. Aonde você vai?

Howard. O que ele estava fazendo aqui fora no meio da noite?

Claro: ainda procurando seu amigo valentão, o Ore. Sempre pro­curando o Ore.

A expressão de Howard passou rapidamente de perplexa para interrogativa e em seguida para alarmada.

Ei, cara, para aí. Para.

Jack passou por ele.

No retrovisor viu Howard correndo de volta para a escola.

Jack deveria ir mais rápido. Mas dirigir era uma coisa aterrorizante para Jack Computador. Eram muitas decisões a tomar, atenção demais era exigida, era perigoso demais, mortal demais.

Parou junto ao portão de ferro. Estava fechado. Desceu do carro e abriu-o rapidamente.

Ficou parado por um momento e prestou atenção. Os sons da flo­resta. O orvalho caindo das folhas, animais minúsculos correndo e uma brisa suave que mal empurrava as folhas. Então, o som do motor de um carro.

De volta ao utilitário. Engrenar a marcha e passar aos arrancos pelo portão.

Deixá-lo aberto e ir embora. Não era provável que o portão fosse atrasar ninguém. Mas tinha-o atrasado. Já estavam atrás dele. Panda estaria dirigindo, sem dúvida, ele era o motorista mais experiente, muito mais do que Jack.

Panda. Com Drake ao lado. Drake e aquele braço monstruoso.

Jack sentiu o medo tomando-o por dentro. Apertou o volante com força demais. A parte de cima se partiu em suas mãos.

Jogou fora o arco de 15 centímetros de plástico e gemeu de medo. Obrigou-se a segurar o volante com mais cuidado, controlar o pânico, concentrar-se na direção. Concentrar-se na estrada serpenteando pela montanha, desde florestas mais densas até o terreno mais aberto, e depois rodeando o pico.

Luzes no retrovisor.

Ah, meu Deus. Ah, meu Deus.

Iriam matá-lo. Drake usaria aquele chicote contra ele.

— Pense, Jack — gritou com veemência súbita, chocante. — Pense.

Não era um caso de programação. Não era tecnológico. Era mais primitivo. Era força e força, violência e violência, ódio e medo.

Seria mesmo?

Veículo utilitário esportivo. Tração nas quatro rodas.

Espiou para fora da estrada. Uma vala funda do lado direito, um íngreme barranco de terra e pedras à esquerda.

O carro vinha com velocidade demais. A pouco mais de cem metros.

Ali. Uma estrada de terra à direita. Poderia não dar em lugar ne­nhum. Poderia seguir por 6 metros e parar. Não havia escolha. Jack virou bruscamente o volante à direita e, mesmo a pouca velocidade, sentiu que poderia capotar.

Mas o utilitário se ajeitou e foi chacoalhando pela estrada de terra. Faróis iluminavam um círculo claro, sem características especiais, de terra e mato baixo no meio do negrume sem lua. Não havia como enxergar... não havia como saber... Estava dirigindo só com a fé, na esperança de que a estrada de terra não terminasse de repente num penhasco.

Era difícil segurar o volante que chacoalhava com violência. Mas não podia apertar com muita força, caso contrário ele se despedaçaria em suas mãos fortes, e então Jack estaria realmente acabado.

Atrás dele, as luzes do sedan estavam loucas, subindo e descendo, balançando bruscamente. A estrada de terra era mais difícil para o outro carro. Já era bastante ruim para o utilitário; para o outro era impossível

Lentamente Jack foi se afastando do outro carro. Por fim, os faróis foram ficando para trás e tornou-se claro que o carro havia parado.

Jack diminuiu a velocidade, o que tornou mais fácil controlar o utilitário.

Tinha deixado os perseguidores para trás. Mas como chegaria a Praia Perdida? O único caminho que conhecia era a estrada principal. Será que essa trilha levaria a algum lugar?

O que sabia com certeza era que jamais poderia dar meia-volta e retornar.

 

                             03 HORAS E 15 MINUTOS

AS HORAS DO dia passaram em silêncio.

Ela sabia que a coisa começaria logo.

Sam mantinha pessoas de vigia nos arredores da cidade, mas afora isso havia aconselhado as pessoas a dormir, comer, tentar relaxar. Cai­ne viria à noite. Sam tinha certeza.

Havia tentado seguir seu próprio conselho, mas era impossível dormir.

Estava mudando de roupa e pensando na necessidade de comer algo, apesar do enjôo no estômago, quando, de repente, Taylor apare­ceu no posto dos bombeiros. Sam estava usando cueca samba-canção.

Eles estão vindo — disse Taylor, sem qualquer preâmbulo. — Ei, belo tanquinho.

Diga.

Seis carros vindo pela auto-estrada, da direção da Coates. Vão chegar à Ralph's num minuto. Estão andando devagar.

Você viu algum rosto? Caine ou Drake?

Não.

Sam foi até o dormitório, sacudiu a cama de Edilio, chutou a cama de Quinn e gritou:

Levanta, pessoal!

O que foi? — perguntou Quinn, sonolento e confuso. — Achei que a gente ia dormir um pouco.

Não temos tempo para isso agora — disse Sam com firmeza, mas gentilmente.

Sam ficou sozinho na praça, a perna apoiada na beira da fonte. A escola. Por quê? E por que vir à luz do dia, por que não esperar que a noite caísse?

Albert veio correndo do McDonald's. Entregou uma sacola a Sam.

Uns nuggets, cara. Para o caso de você estar com fome.

Obrigado, cara.

Temos fé em você, Sam. — Albert partiu correndo.

Sam mastigou um nugget e tentou pensar. A ida à escola era ines­perada. Seria uma oportunidade? Se Caine estivesse fora do carro, a pé, num prédio que Sam conhecia muito melhor do que ele...

Apertou o botão do walkie-talkie.

Tem algum sinal de que eles estão saindo da escola?

Não. Tem um cara do lado de fora montando guarda. Acho que é o Panda. Definitivamente não vi o Drake.

Sam poderia acabar com isso. Agora mesmo, no mano a mano com Caine. Significaria que ninguém mais teria de se envolver, que nin­guém teria de puxar um gatilho.

Dekka estava correndo para ele.

Sam. Desculpe, não consegui achar você.

Talvez só os dois, Sam e Dekka. Isso dobraria suas chances. Seria certo: um de Praia Perdida, uma da Coates, lado a lado.

Caine está na escola — disse Sam. — Estou pensando que a gen­te poderia partir para cima deles.

Drake está lá? — perguntou Dekka.

Ninguém viu. Ele pode estar... ele pode não aparecer.

Bom — disse Dekka, rapidamente.

Não tivemos muito tempo para nos conhecer — disse Sam. — E agora, bem, não tenho muito tempo, ponto final. Quanto controle você tem sobre seu poder?

Dekka soprou um pouco de ar e pensou. Olhou para as mãos como se elas fossem lhe dar a resposta.

Preciso estar bem perto. Posso chacoalhar uma parede muito bem, ou mandar alguém voando, mas só de perto.

- É?

Estou pronta — disse ela.

Taylor apareceu do nada.

Eles estão dentro da escola. Um guarda, pelo que pude ver. E definitivamente nada do Drake.

Certo — disse Sam. — Vamos fazer o seguinte: Dekka e eu va­mos atrás deles. Taylor, preciso que você fale com o Edilio. Depois preciso que suba à torre da igreja, onde Astrid está. Se Dekka e eu fi­carmos encrencados, talvez a gente precise de uma distração.

Cara, eu não subo. Eu apareço. E já estou indo. —Taylor sumiu.

Provavelmente, algum dia, vou me acostumar com ela fazendo isso — murmurou Sam.

Ele respirou fundo, estremecendo. Era sua primeira grande decisão tática na batalha vindoura. Esperava que não fosse um erro.

Jack havia deixado o utilitário escondido num trecho coberto de árvo­res durante todo o dia. Tinha dormido bem, espremido no banco do motorista, com todas as portas fechadas, apavorado demais para pen­sar em se esticar mais confortavelmente no banco de trás.

Jack não se importava que Diana tivesse pressa para ele alcançar Sam; Jack não iria morrer por ela.

Só quando o sol finalmente se pôs, ele virou a chave e saiu devagar de seu esconderijo sombreado.

Seguindo por estradas de terra sem placas, com os faróis apagados, movendo-se devagar. Fazendo curvas fechadas, subindo, descendo, es­querda, direita. O utilitário tinha uma bússola no retrovisor, mas a di­reção nunca parecia fazer sentido. Num segundo indicava o sul e no minuto seguinte leste, mesmo que ele não tivesse feito nenhuma curva.

Era impossível saber para onde ia. Poderia dirigir com os faróis acesos e ver a estrada, mas os outros também poderiam vê-lo. Por isso dirigia no escuro a uma velocidade pouco acima de uma caminhada. Mesmo numa velocidade tão baixa, o utilitário chacoalhava tanto que Jack se sentia como se estivesse sendo espancado.

Mais do que nunca, estava claro que ele precisava encontrar Sam. Caine jamais iria perdoá-lo pela traição. Sua única salvação estava com Sam. Mas apenas se Sam sobrevivesse ao puf. Se Sam partisse, Caine venceria. E então o LGAR seria um lugar pequeno demais para Jack se esconder de Caine e Drake.

Jack verificou o relógio do painel. Sabia o dia e a hora de Sam pufar. Restavam pouco mais de duas horas.

A lua subiu e a estrada ficou reta, de modo que ele pôde seguir a uma velocidade um pouco maior, ansioso para encontrar segurança. Um coelho disparou à frente. Jack virou o volante e não pegou o coe­lho, mas saiu da estrada para um campo.

Puxou o volante com força e voltou para a estrada no momento em que uma picape passou a toda velocidade, vindo da direção contrária.

Jack xingou e se virou no assento para olhar para trás. Luzes de freio se acenderam e a picape parou derrapando.

Jack pisou no acelerador. O utilitário saltou à frente, mas agora a picape estava fazendo a volta e vindo depressa.

Na escuridão era impossível ver quem dirigia, mas na mente de Jack só podia ser uma pessoa: Drake.

Chorando, Jack acelerou. A agulha do tanque de gasolina estava chegando na indicação de vazio. Mas a picape continuava se aproxi­mando.

A única fuga seria entrar no campo, onde talvez a picape não pu­desse acompanhá-lo. Jack diminuiu a velocidade só um pouco e virou para o campo sem cultivo. O terreno estava arado, macio, e o utilitá­rio pulava feito louco por cima dos sulcos.

A caminhonete manteve o ritmo.

No campo adiante, luzes fortes se acenderam. Um trator vinha se movendo com velocidade surpreendente para interceptá-lo. Atrás do trator, uma casa de fazenda, escura e dilapidada, erguia-se longe da estradinha.

Jack estava enjoado por dentro. Eles o haviam pegado. De algum modo, de um modo impossível, tinham-no descoberto.

Não viu o leito do riacho seco. O utilitário decolou por alguns metros e ele se sentiu estranhamente sem peso, e depois o carro bateu na outra margem do riacho e parou bruscamente. Houve um estrondo alto, o airbag foi acionado, um esmagamento enjoativo, e Jack se viu caído de costas na terra, não machucado, mas atordoado demais para se mexer.

Os faróis do utilitário iluminavam o campo onde ele estava. Dois garotos, um menino e uma menina, estavam em silhueta na claridade. Nenhum deles era Drake Merwin.

Jack ousou respirar. Não ousou ficar de pé.

Nós vimos você dirigindo para cá com as luzes apagadas — dis­se a menina em tom acusador.

Jack imaginou como ela poderia tê-lo visto numa escuridão de breu. Não perguntou, mas mesmo assim ela deu a resposta.

Mesmo com você deixando os faróis apagados, as luzes de freio acendiam. Acho que você não pensou nisso.

Não sou muito experiente em dirigir — disse Jack.

Quem é você? — perguntou o garoto, que parecia ter sua idade.

Eu? Sou... Jack. As pessoas me chamam de Jack Computador.

A garota tinha uma espingarda nas mãos. Apontou o cano para o

rosto de Jack.

Não atire em mim — implorou ele.

Você está na nossa terra, e nós protegemos nossa terra — disse a garota. — Por que não deveríamos atirar?

Eu preciso... se eu não... escutem, se eu não chegar a Praia Per­dida, uma coisa terrível vai acontecer.

A garota tinha uma estranha combinação de marias-chiquinhas e um rosto duro que parecia ainda mais duro à luz branca do utilitário. Não pareceu impressionada. Teria uns 11 ou 12 anos, e ocorreu a Jack que havia tanta semelhança entre os dois que o garoto tinha de ser irmão dela.

Ele não parece perigoso — disse o garoto. — Para Jack, disse:

Por que chamam você de Jack Computador?

Porque sei muito sobre computadores. O garoto pensou um tempo e disse:

Você consegue consertar meu Nintendo?

Jack assentiu violentamente, fazendo a terra se juntar no cabelo.

Eu poderia tentar. Mas realmente preciso ir a Praia Perdida. É importante mesmo.

Bom, meu Nintendo é importante para mim. Então, se você consertar meu Nintendo, não deixo Emily atirar em você. Acho que não levar um tiro deve ser tão importante quanto chegar a Praia Per­dida, hein?

Oi, Maria — disse Quinn. Ela o recebeu à porta da sala de aula da creche. — Estou indo lá para cima.

Maria fechou a porta rapidamente.

Não quero que as crianças vejam as armas — disse. Ela própria estava olhando a arma.

Maria, eu também não quero ver — respondeu Quinn.

Está com medo?

Muito.

Eu também. — Ela tocou o braço de Quinn. — Deus o abençoe.

É. Esperemos que sim, não é? — Ele queria ficar e conversar com ela. Qualquer coisa para evitar a subida ao teto com uma metra­lhadora. Mas Maria tinha seu trabalho e Quinn, o dele. Sentiu vergo­nha ao perceber que ansiava por entrar naquela sala da creche e só ficar ali escondido com Maria.

Passou pela creche até o beco dos fundos. Pendurou a metralhado­ra no ombro com cuidado e subiu a precária escada de alumínio.

A creche e a loja de ferramentas compartilhavam a mesma cobertu­ra. Era uma laje de cascalho e piche, adornada somente por vários tubos verticais e dois antiqüíssimos aparelhos de ar-condicionado. A laje era cercada por um parapeito, um muro de um metro de altura encimado por telhas rachadas.

Quinn foi até um canto que dava para a igreja e a prefeitura. Ficou olhando enquanto Sam e Dekka se afastavam.

Não ferre tudo hoje — disse Quinn a si mesmo. — Só isso.

A escada chacoalhou e algo surgiu, turvo, sobre a laje. Quinn girou sua arma. O borrão se acomodou na figura de Brianna.

Você precisa parar de fazer isso, Brianna — disse Quinn.

Brianna sorriu e disse:

Brisa. Meu nome é Brisa.

Você está entrando demais nessa história — resmungou Quinn. — Quero dizer, quantos anos você tem, 10?

Onze. Vou fazer 12 no mês que vem. — Brianna tirou um mar­telo do cinto e brandiu-o. — Caine e Drake me deixaram morrendo de fome com um bloco de concreto em cada mão. Eu não era nova demais para Caine e Drake quase me matarem.

É. — Quinn desejou que ela fosse embora e o deixasse em paz, mas o trabalho da garota era se movimentar entre Quinn, Edilio e Sam e qualquer outra pessoa, levando mensagens. — E aí, a que velocidade você consegue ir, Brianna?

Não sei. Rápido o bastante para as pessoas quase não poderem me ver.

Isso não cansa?

Na verdade, não. Mas meio que acaba com os sapatos. — Ela levantou um pé para mostrar a sola gasta do tênis. — E preciso pren­der o cabelo para não chicotear e machucar os olhos. — Ela deu um puxão nas duas tranças tipo maria-chiquinha.

Deve ser esquisito. Ter poderes.

Você não tem nenhum?

Ele balançou a cabeça.

Não. Nada. Sou só... eu.

Você conhece o Sam muito bem, não é?

Ele confirmou com a cabeça. Era uma pergunta que ouvia muito, feita pelo pessoal da Coates.

Acha que ele vai vencer?

Acho melhor a gente esperar isso, não é?

Brianna olhou para as mãos, as mãos que tinham sido aprisionadas em concreto.

Por isso não importa eu só ter 11 anos: a gente precisa vencer.

Sam lutou contra o sentimento de mau agouro enquanto andava com Dekka na direção da escola. Não sentia muito medo de se machucar; afinal de contas, esperava terminar o dia pufando, e então... bem, não sabia o quê.

Seu pavor era o medo do fracasso. Independentemente do que acontecesse com ele, tinha de pensar em Astrid. E no Pequeno Pete, porque Astrid ficaria arrasada se alguma coisa acontecesse com o Pe­queno Pete. Para não mencionar que o Pequeno Pete poderia ser a única pessoa, em toda a existência, que poderia acabar com o LGAR.

Precisava vencer Caine por ela. Por eles. Por todos eles, todas as crianças. E isso pesava sobre ele como se estivesse carregando um ele­fante nas costas.

Tinha de vencer. Tinha de garantir que Astrid ficasse em segurança. Então poderia sumir, se fosse preciso.

Mas, quanto mais perto chegava, mais duvidava da própria deci­são. Estava se desviando do plano, o que significava que ninguém sa­beria exatamente o que deveria fazer. O fato de Caine ter ido para a escola havia mudado tudo.

Pararam a um quarteirão da borda do terreno da escola. Sam aper­tou o botão do walkie-talkie.

Alguma coisa mudou?

Não — respondeu Astrid. — Os carros estão parados. Panda está perto da porta da frente. A luz do sol está diminuindo depressa, por isso não tenho tanta certeza. Sam?

O quê?

Acho que Panda está com uma arma.

Certo.

Tenha cuidado.

Ahã. — Ele desligou. Queria dizer mais uma vez que a amava, mas isso pareceria quase como tentar o destino. Já estava pensando demais em Astrid e não o suficiente em Caine.

Certo, Dekka, não há como chegar perto sem ser visto. Preciso ficar visível antes de pegar o Panda.

Dekka assentiu. Sua boca estava tensa, como se não pudesse abri-la. Estava respirando com força, nervosa. Apavorada.

Vou contar até três. No três nós vamos. Com tudo. Assim que puder, vou tentar derrubar o Panda. Faça sua coisa quando a gente chegar à porta. Pronta?

Ela não respondeu. Durante o que pareceu um minuto muito lon­go, Dekka apenas olhou para o vazio. Então, finalmente, grasnou:

Estou pronta.

Um. Dois. Três.

Saíram do esconderijo e começaram a correr. Diminuíram a distân­cia até o limite do terreno da escola e estavam disparando pelo grama­do antes que Panda os visse e gritasse.

Não faça isso, Panda — alertou Sam, gritando o mais alto que pôde enquanto corria.

Panda hesitou, sopesando a arma, não exatamente levantando-a para disparar.

Não quero machucar você — gritou Sam.

Quinze metros de distância.

Panda mirou e atirou.

A bala passou longe.

Panda olhou boquiaberto para a arma, como se a estivesse vendo pela primeira vez.

Não — gritou Sam.

Dez metros.

Panda levantou a arma de novo. Seu rosto era uma máscara apavo­rada de indecisão e medo.

Sam se jogou no chão, rolou e se agachou enquanto Panda atirava de novo.

Sam estendeu o braço, com os dedos abertos. A luz branco-esverdeada deixou de acertar Panda e incinerou um buraco no tijolo ao lado de sua cabeça.

Panda jogou a arma fora, virou-se e correu.

Três metros.

Dekka, a porta.

Dekka levantou as mãos e a gravidade embaixo da porta foi sus­pensa. Toda a parede, inclusive o portal, se sacudiu de repente, como se fosse acertada por um caminhão vindo pelo outro lado. A porta se abriu lentamente. Terra solta e reboco caído dispararam para o céu.

Dekka baixou as mãos e a terra caiu de volta, os tijolos se afrouxa­ram e se racharam, o portal bambeou e soltou lascas.

Sam disparou para o interior escuro através da porta aberta. Ele e Dekka passaram correndo e se encostaram de volta contra paredes opostas, ofegantes e preparados. Letreiros de papel e cartazes que já haviam sido multicoloridos, queimavam e se enrolavam nas paredes devido ao disparo de Sam.

Não havia som.

Sam olhou para Dekka. Ela parecia tão apavorada quanto ele.

Olharam pelo corredor, com os nervos retesados, examinando cada porta.

A secretaria ficava do lado direito, com uma porta de vidro refor­çado. Sam se esgueirou mais para perto. Espiou dentro. Nada. Luzes ainda acesas desde o dia do LGAR.

Será que deveria ir em frente sem verificar totalmente a secretaria? Se uma das pessoas de Caine estivesse ali, Sam e Dekka poderiam ficar cercados. Sam fez um gesto para Dekka entrar.

Dekka balançou a cabeça violentamente.

— Certo — disse Sam. — Saquei.

Atravessou o corredor depressa e abriu a porta. Algo grande voou contra ele. Sam abaixou-se instintivamente, mas tinha sido acertado, um golpe de raspão que o fez girar.

Um garoto de cabelos escuros estava agachado em cima da mesa da secretária da escola. Segurava um bastão de madeira, curto e grosso, numa das mãos. O garoto riu. Depois saltou de novo, rápido como um felino selvagem.

Sam foi apanhado desprevenido e caiu com força, batendo a cabeça no chão. Viu estrelas.

Rolou para longe, mas o movimento foi vagaroso. O garoto havia saltado para um lugar seguro e estava se preparando para outro ataque.

De repente o garoto, os papéis e os objetos sobre a mesa, e a pró­pria mesa ergueram-se do chão, voaram diretamente para cima e bate­ram no teto baixo.

O garoto só teve tempo para registrar surpresa e dor antes que Dekka restaurasse a gravidade e ele caísse como uma pedra. Sam al­cançou-o antes que ele pudesse se recuperar, apertou um dos joelhos sobre seu peito e agarrou sua cabeça com as duas mãos.

Se você se mexer, sua cabeça vira cinzas — disse.

O garoto ficou frouxo.

Boa decisão — continuou Sam. — Dekka, pegue o porrete dele. Arranje uma fita adesiva. — Para o garoto, disse: — Quem é você? E onde está o Caine?

Sou Frederico. Não me queime.

Onde está o Caine?

Não está aqui. Eles saíram pelos fundos assim que a gente che­gou. Deixaram eu e Panda.

As entranhas de Sam se reviraram.

Foram embora?

Frederico leu o medo nos olhos de Sam.

Você não pode derrotar o Caine. Ele e Drake bolaram tudo.

Achei a fita — anunciou Dekka. — Quer que eu o amarre?

É uma distração — disse Sam. Em seguida deu um soco no nariz de Frederico, o suficiente para distraí-lo. Frederico rugiu de dor.

Agora prenda a fita. Depressa. — Sam apertou o botão do walkie-talkie. — Astrid.

A voz dela mal era audível.

Sam. Ah, meu Deus.

O que está acontecendo?

A resposta dela saiu embolada demais para ser entendida. Mas em meio a jorros de estáticas, Sam percebeu seu medo.

Ferrei tudo — disse Sam. — Era tudo um truque.

 

               02 HORAS E 23 MINUTOS

— QUINN. QUINN.

"Alguém está gritando meu nome?", pensou Quinn.

Brianna apontou para a torre. Quinn franziu os olhos e viu Astrid em silhueta escura acenando feito louca, apontando, gesticulando, gri­tando alguma coisa.

Vou ver o que ela quer — ofereceu-se Brianna. Ela ficou turva; e parou de repente, junto ao topo da escada. — Ah, meu Deus, olha.

Correndo pela rua, vindo do sul, jorrando pelo beco, veio um ban­do de cães eriçados, amarelos. Eles se enfiavam entre carros estaciona­dos, pulavam por cima de hidrantes, paravam brevemente para farejar lixo, mas, no geral, moviam-se a velocidade chocante.

Iam diretamente para a creche.

Brianna começou a puxar a escada para cima. Quinn pulou para ajudá-la. Deslizaram-na para o alto e para fora do caminho quando os primeiros coiotes passaram por baixo.

O que eu faço? — gritou Quinn.

Atire neles — respondeu Brianna.

Nos coiotes? Atirar nos coiotes?

Eles não estão aqui por acaso — gritou Brianna.

Ouvindo-os, um coiote olhou para cima.

Quieta — sussurrou Quinn. Em seguida, se agachou atrás do muro e apertou a submetralhadora ao peito.

Quinn, eles vão atrás dos pequeninos — disse Brianna.

Não sei o que fazer.

Sabe, sim.

Quinn balançou a cabeça violentamente.

Não. Ninguém me disse para atirar em coiotes.

Brianna espiou por cima do muro e sentou-se de novo subitamente.

É ele. O Drake. E ele... tem alguma coisa errada com ele.

Quinn não queria olhar, não queria, mas o rosto branco de Brianna fez com que olhar fosse a opção menos aterrorizante. Ele se levantou apenas o suficiente para ver o beco.

Andando com passo presunçoso atrás dos coiotes, vinha Drake Merwin.

Segurava um chicote comprido, grosso e vermelho.

Só que não o estava segurando. O chicote era a mão dele.

Atire nele — instigou Brianna. — Anda.

Quinn tirou a arma do ombro. Apoiou o cano curto na telha e mi­rou. Drake não estava correndo, não estava se movendo furtivamente, estava bem no meio do beco, bem à vista.

Não estou na linha de tiro direta para ele — disse Quinn.

Mentira — acusou Brianna.

Quinn lambeu os lábios. Mirou. Envolveu o gatilho com o dedo.

Era impossível errar dali. Drake não estava a mais de dez metros. Quinn havia treinado disparar com a submetralhadora. Tinha dispara­do contra um tronco de árvore e visto como as balas mordiam a ma­deira.

Bastava apertar o gatilho e as balas morderiam Drake do mesmo modo.

Aperte o gatilho.

Drake passou diretamente embaixo.

— Ele foi embora — sussurrou Quinn. — Eu não consegui... — disse ele.

Da creche abaixo, veio o grito de crianças aterrorizadas.

Maria Terrafino tinha tido um dia muito ruim. Naquela manhã, tivera um tremendo ataque de comilança, uma verdadeira "mastigatona", como ela dizia. Tinha encontrado uma caixa de sacos de Doritos. Sen­tou-se e comeu 24 sacos.

Depois vomitou tudo de volta. Mas nem isso pareceu suficiente para limpá-la da comida ofensiva, por isso tomou um laxante forte. O laxante fez com que ficasse correndo para o banheiro o dia todo.

Agora estava enjoada, exausta, fumegante de raiva de si própria, envergonhada.

Normalmente, Maria tomava seus comprimidos de manhã, o Prozac e as vitaminas. Mas estava tão arrasada à medida que o dia prosse­guia que também tomou um Diazepam que encontrou no armário de remédios do banheiro da mãe. O Diazepam espalhou uma tranqüilida­de suave em sua mente, como melado se derramando em engrenagens. Com a droga tudo era lento, frustrante, turvo. Para se contrapor ao efeito do Diazepam, derramou café num copo com tampa de seguran­ça, misturou açúcar e levou para a sala de aula.

Foi então que Quinn havia passado com uma metralhadora. Ela impediu as crianças de vê-lo, mas havia algo tremendamente perturba­dor em ver uma metralhadora no mundo real, não na TV ou num videogame, mas bem ali na sua frente.

Agora estava sentada no chão, de pernas cruzadas, na hora do círcu­lo. Uma dúzia de crianças prestava vários graus de atenção enquanto ela lia Mamãe gata tem três filhotes e A tempestade em Buffalo. Tinha lido todos os livros tantas vezes que poderia contar as histórias de cor.

Outras crianças estavam em vários outros cantos, brincando com fantasias, pintando ou empilhando blocos.

Seu irmão, John, verificava as fraldas dos "pequetitos", como ago­ra eles chamavam os pequenos que ainda não usavam o banheiro.

Uma das ajudantes de Maria, uma garota chamada Manuela, estava balançando um menininho no joelho enquanto tentava tirar da blusa uma mancha de caneta. Murmurava baixinho à medida que trabalhava.

Isabella, que havia se tornado a sombra de Maria desde que fora trazida para a creche, estava sentada de pernas cruzadas e olhando por cima do seu ombro. Maria acompanhava a história com o dedo, pala­vra por palavra, achando que talvez estivesse ensinando Isabella a ler um pouco e sentindo-se vagamente bem com relação a isso.

Ouviu o som da porta dos fundos se abrindo. Provavelmente era Quinn voltando.

Um grito.

Maria girou para ver.

Gritos, e uma torrente de formas amarelas e sujas se enfiou na sala.

Gritos enquanto os coiotes empurravam as crianças de lado, derru­bavam-nas, viravam cavaletes e cadeiras.

Gritos de gargantas pequenas, gritos e rostos pequenos cheios de terror, olhos implorando.

Isabella saiu correndo, em pânico. Um coiote estava em cima dela num átimo, derrubou-a no chão e parou acima dela, com os dentes à mostra, rosnando. Seu focinho babando ficou a 15 centímetros da garganta dela.

Maria não gritou nem chorou. Rugiu. Saltou de pé berrando uma palavra que jamais desejaria que os pequenos ouvissem. Bateu nos ombros do coiote com os punhos.

— Solte-a! — gritou. — Saia de cima dela, seu animal imundo!

John tentou correr para ajudá-la e soltou um grito estrangulado. Um coiote estava com a parte de trás de seu capuz preso nas mandíbulas e sacudia-o como um cão frenético com um brinquedo de morder, fazendo-o balançar a cada sacudida.

Manuela estava de pé, congelada num canto, mãos sobre a boca, rígida de medo.

Os coiotes, excitados, loucos e agitados, ganiam, pulavam e amea­çavam morder todos em volta. Um menininho chamado Jackson gri­tou para um coiote:

Cachorro mau, cachorro mau!

O animal deu uma mordida, deixando um lanho sangrento no tor­nozelo de Jackson.

Jackson berrou de dor e terror.

Maria — gritou ele. — Maria.

Então um coiote velho e sarnento rosnou e os animais se acalma­ram um pouco. Mas todas as crianças estavam chorando e gemendo, John tremia e Manuela estava apertando duas crianças e tentando pa­recer corajosa.

Então Drake entrou na sala.

Você — gritou Maria, enfurecida. — Como ousa amedrontar essas crianças assim?

Drake estalou seu braço que parecia uma cobra. A ponta deixou um lanho vermelho na bochecha de Maria.

Cale a boca, Maria.

O estalo do chicote havia silenciado algumas crianças. Elas olha­vam com espanto perplexo enquanto a garota que haviam passado a considerar sua guardiã tocava o ferimento no rosto.

Caine não vai gostar disso — alertou Maria. — Ele sempre disse que iria manter as crianças em segurança.

Vocês vão ficar em segurança — disse Drake. — Enquanto per­manecerem de boca fechada e fizerem o que eu mandar.

Tire esses animais daqui. Está quase na hora de dormir. — Hora de dormir, como se isso fosse significar alguma coisa para os cães ou para o monstro à sua frente.

Desta vez o chicote estalou e se enrolou apertado no pescoço de Maria. Ela sentiu o sangue latejando na cabeça, tentou respirar e não conseguiu. Cravou as unhas na carne escamosa do chicote, mas não conseguiu tirá-lo.

Que parte do "cale a boca" você não está entendendo? — Drake puxou-a para perto. — Você está ficando com a cara toda vermelha, Maria.

Ela lutou, mas não adiantava. O chicote vivo era forte como uma jibóia.

Bom, você precisa entender uma coisa, Maria: para esses ca­chorros, todas essas criancinhas não passam de hambúrgueres. Eles vão comê-las como comem coelhos.

Drake desenrolou o tentáculo de seu pescoço. Ela tombou no chão, sugando o ar pela garganta, que parecia estreita como um canudinho de refrigerante.

O que você quer? — perguntou Maria, rouca. — Drake, você precisa tirar esses coiotes daqui. Pode ficar comigo como refém. Mas as crianças não sabem o que está acontecendo e estão apavoradas.

Drake deu um riso cruel.

Ei, Líder da Matilha. Vocês não vão comer as crianças, vão?

Para perplexidade de Maria, o coiote grande e sarnento falou:

Líder da Matilha concorda. Matar, não. Comer, não.

Até... — instigou Drake.

Até Mão de Chicote mandar.

Drake riu de orelha a orelha.

Mão de Chicote. É o apelido afetuoso que eles me deram.

Isabella, que havia se encolhido num canto, avançou com a mão estendida, como se quisesse fazer carinho em Líder da Matilha.

Ele fala — disse Isabella.

Fique onde está — sussurrou Maria.

Mas Isabella ignorou-a. Pôs a mão no pescoço de Líder da Matilha. O coiote eriçou os pelos e soltou um rosnado grave. Mas não tentou mordê-la.

Isabella acariciou o pelo áspero.

O cachorrinho bonzinho pode estar com fome.

— Ele engoliu a isca — informou Panda. — E está com uma garota. Ela tem algum tipo de poder louco, tipo... tipo não sei como chamar. Ela tipo que faz as coisas voarem do chão.

Diana Ladris disse:

Deve ser Dekka. Nós previmos que ela seria problema. Ela e Brianna. Talvez Taylor, se melhorou as habilidades.

Estavam numa casa que não pertencia a nenhum conhecido. Era só uma casa numa rua secundária, a um quarteirão da escola. As persianas estavam fechadas, as luzes foram deixadas como estavam antes. Ninguém entrava ou saía pela porta da frente.

Nesse momento, meu irmão está correndo para a creche — dis­se Caine. E mal conseguia conter a alegria. — Ele caiu. Caiu direitinho. Veja bem, o negócio é que eu sabia que ele tentaria bancar o he­rói e vir atrás de mim.

É, você é brilhante — disse Diana, secamente. — É o poderoso chefão.

Nem você consegue me irritar, para ver como estou feliz. — Caine deu um risinho.

Cadê o Jack? — perguntou Diana. Quando Caine fez um muxo­xo, ela disse: — Está vendo? Ainda sei como irritar você.

Diana sabia que Jack fora tirado da auto-estrada para o deserto. Panda e Drake haviam informado isso. Mas não sabia o que acontece­ra depois. Se Caine pusesse as mãos em Jack Computador, Diana não tinha dúvida de que o mago da tecnologia iria entregá-la. O que Caine faria, então?

Enquanto isso, Diana precisava ser esperta fingindo estar preocu­pada com a fuga, deserção ou o que quer que Jack tivesse feito. Isso afastaria Caine e Drake da pista.

A não ser que eles capturassem Jack.

Lutou contra uma onda de medo e escondeu-a servindo-se de um copo d'água na pia da cozinha.

No esconderijo, além de Diana e Caine, estavam Howard, Chunk, Martelo e Panda. Panda estava tremendamente abalado por seu entre- vero com Sam e Dekka. Ocasionalmente murmurava algo como "Abriu um buraco na parede, podia ter sido na minha cabeça".

Chunk havia tentado distraí-los com as mesmas histórias de Holywood que todos tinham ouvido um milhão de vezes. Caine amea­çou entregá-lo a Drake se ele não calasse a boca.

Howard não era menos irritante. Ficou sentado, fumegando e lamuriando que iria procurar Ore.

Ore é um soldado, cara, se ele conseguiu voltar para cá, deve estar na casa onde a gente morava. Não fica longe. Eu poderia ir até lá disfarçadamente. Ele é bom de se ter por perto.

Ore está morto no deserto — disse Panda, asperamente. — Você sabe que aqueles coiotes o pegaram.

Cala a boca, Panda! — gritou Howard.

A outra pessoa na casinha era Lana. Desde que ela havia demonstrado seus poderes de cura, Caine tinha insistido em mantê-la por perto. Para Diana, ela permanecia como um mistério perturbador. Seus olhos pare­ciam estar sempre olhando para algo distante. Ela recusava qualquer tentativa de conversa. Não com raiva, não como se estivesse chateada com nenhum deles, era mais como se estivesse num lugar totalmente diferente, preocupada, refletindo, vendo algo totalmente diferente.

Havia uma sombra acima de Lana. Um vazio em seus olhos.

Caine andava de um lado para o outro, da área aberta onde ficava a cozinha até a sala de estar, para lá e para cá, para lá e para cá. Havia começado a roer a unha do polegar de novo, daquele jeito idiota. Pa­rou, levantou as mãos e perguntou a Diana:

Onde está ele? Cadê o Bug?

Bug era uma das aberrações que havia se juntado a Caine desde o início. Muito antes do LGAR, quando Caine estava começando a des­cobrir seus poderes, aprendendo a controlá-los e a reconhecer outros como ele. Naquele tempo, tudo tinha a ver com assumir o controle do ambiente escolar: a Coates nunca fora um lugar bom. Metade das crianças era de algum tipo capaz de causar encrenca. Caine tinha aca­bado de decidir que seria o encrenqueiro-chefe, o valentão que não poderia ser agredido.

Bug sempre fora meio esquisito aos olhos de Diana. Não se alçava ao nível de um valentão de verdade, estava mais para uma criatura como Howard, um puxa-saco, um esparro. Tinha só 10 anos e era especialista na arte de tirar meleca. Mas um dia seu poder se manifes­tou, quando Frederico ameaçou acabar com ele. Bug, aterrorizado, desapareceu.

Só que não desapareceu de verdade; era mais como se ele se fundis­se ao ambiente ao redor, como um camaleão. Você ainda poderia vê-lo se soubesse que ele estava ali. Mas sua pele e até as roupas assumiam a cor protetora do que estivesse atrás, como um espelho que refletisse o fundo. O resultado podia ser bastante assustador. Bug na frente de um cacto parecia ficar verde com espinhos.

Você conhece o Bug — disse Diana. — Ele vai aparecer para receber o carinho na nuca. A não ser que Sam ou alguém da turma dele o tenha visto.

Nesse momento, a porta da frente se abriu e fechou. Algo difícil de ser visto moveu-se, algo difícil de entender, como uma ondulação no papel de parede.

Aí está o Bug — anunciou Diana.

Caine saltou para ele.

O que você viu?

Bug desligou a camuflagem e emergiu claramente, um garoto bai­xo, de cabelos castanhos, dentuço e com nariz sardento.

Vi muita coisa. Sam está na cidade, na frente da creche, do outro lado da rua. Parece que não está fazendo nada.

Como assim, não está fazendo nada?

Quero dizer, ele está lá comendo um lanche do McDonald's.

Caine encarou-o.

O quê?

-— Está comendo. Batata frita. Acho que está com fome.

Ele sabe que Drake e Líder da Matilha estão com os pequenos?

Bug deu de ombros.

Acho que sim.

E só ficou ali, parado?

O que você esperava que ele fizesse? — perguntou Diana. — Ele sabe que estamos com as crianças. Está esperando saber o que nós queremos.

Caine mordeu o polegar com violência.

Ele está armando alguma coisa. Provavelmente percebeu que a gente tem um modo de vigiá-lo. Por isso está garantindo que a gente o veja. Enquanto isso está armando alguma coisa.

O que ele pode fazer? Drake e os coiotes estão com as crianças. Ele não tem escolha. Tem de fazer o que você mandar.

Caine não estava convencido.

Ele está armando alguma.

Lana se mexeu, olhou para Caine, parecendo ouvi-lo pela primeira vez.

O quê? — perguntou Diana.

Nada — respondeu Lana. Em seguida, deu um tapinha em seu cachorro onipresente. — Absolutamente nada.

Preciso fazer isso agora — disse Caine.

O plano era esperar até ficar perto da hora do aniversário. Des­se jeito, ele vai perder, independentemente de qualquer coisa,

Você acha que ele pode me vencer, não acha?

Acho que ele teve uns dois dias para se preparar — disse Diana. — E tem mais pessoas. E algumas pessoas, em especial as aberrações da Coates, querem muito, muito mesmo, ver você morto. — Ela che­gou mais perto, bem na sua cara. — A cada passo do caminho, Caine, você me ouve, depois faz exatamente o que eu disse para não fazer. Eu disse para deixar as aberrações que não concordavam com você irem embora. Mas não, você tinha de ouvir o conselho paranóico do Drake. Eu disse para entrar em Praia Perdida e fazer um acordo rápido pela comida. Você teve de tentar assumir o controle. Agora você vai fazer o que quiser, e provavelmente vai acabar ferrando com tudo.

Sua fé em mim é tocante.

Você é inteligente. É charmoso. Tem todo esse poder. Mas seu ego está fora de controle.

Ele poderia ter reagido agressivamente, mas em vez disso abriu os braços, num gesto de impotência.

O que eu deveria fazer? Ficar na Coates? É isso? Como você não consegue enxergar essa oportunidade? Estamos num mundo totalmen­te novo. Sem adultos. Sem pais, professores ou policiais. É perfeito. Perfeito para mim. Só preciso cuidar do Sam e de alguns outros, e terei controle completo. — No final da fala, ele estava apertando os punhos.

Você nunca terá o controle completo, Caine. Este mundo está mudando o tempo todo. Animais. Pessoas. Quem sabe o que virá em seguida? Nós não fizemos esse mundo, só somos os pobres coitados que moramos nele.

Errado. Eu não sou idiota. Esse vai ser o meu mundo. — Ele bateu no peito. — Eu. Vou governar o LGAR, o LGAR não vai me governar.

Ainda dá tempo de desistir disso.

Ele riu, um eco sombrio de seu sorriso que já fora charmoso.

Errado. É hora de vencer. É hora de mandar Bug ao Sam com os meus termos.

Eu vou — ofereceu-se Diana. Era idiotice. Ela sabia o que ele iria dizer. E podia vislumbrar a suspeita nos olhos dele.

Bug. Você sabe o que dizer. Vá. — Ele empurrou Bug, e o cama­leão se fundiu às imagens de fundo. A porta se abriu e se fechou.

Caine pegou a mão de Diana. Ela quis puxá-la, mas não fez isso.

Todo mundo, para fora daqui — disse Caine.

Howard se levantou pesadamente. Lana também. Quando estavam só os dois, Caine e Diana, ele puxou-a para um abraço desajeitado.

O que você está fazendo? — perguntou ela, rigidamente.

Provavelmente vou morrer esta noite.

— Isso é meio melodramático, não é? Num minuto você é invencí­vel, no outro...

Ele a interrompeu com um beijo apressado, quase com força. Ela deixou por alguns segundos. Depois empurrou-o, mas não com força suficiente para se livrar do abraço.

Por que fez isso? — perguntou.

É o mínimo que você me deve, não é? — Caine parecia infantil, carente.

Devo?

Você me deve. Além disso, pensei que você... você sabe. — A presunção dele dera lugar à petulância e agora sua petulância ia se dissolvendo em embaraço e confusão.

Você não é muito bom nisso, não é? — zombou Diana.

O que eu devo dizer? Você é uma gata, certo?

Diana virou a cabeça para trás e gargalhou.

Eu sou uma gata? É isso que você quer me dizer? Num minuto você é o senhor do LGAR, no outro parece um garotinho patético tentando dar o primeiro beijo.

O rosto dele ficou sombrio e ela soube imediatamente que tinha ido longe demais. A mão de Caine, com os dedos abertos, estava no seu rosto. Ela se retesou, esperando a explosão de energia.

Por um longo tempo ficaram assim, imóveis. Diana mal respirava.

Você tem medo de mim, afinal de contas, Diana — sussurrou Caine. — Toda a sua atitude e coisa e tal, e por baixo você está apavo­rada. Dá para ver nos seus olhos.

Ela não disse nada. Ele ainda era perigoso. A essa distância, tinha o poder de matá-la com um pensamento.

Bom, não quero parecer um garotinho patético tentando dar o primeiro beijo. Então que tal você simplesmente me dar o que eu que­ro? Que tal, de agora em diante, fazer exatamente o que eu digo?

Está me ameaçando?

Caine assentiu.

- Como você disse, Diana, nós não fizemos o LGAR, só moramos aqui. E aqui, tudo tem a ver com poder. Eu tenho o poder. Você, não.

- Acho que veremos se você é tão poderoso quanto pensa, Caine — disse Diana, cautelosa, mas sem baixar a cabeça. — Acho que veremos.

 

                         02 HORAS E 22 MINUTOS

A CRECHE NÃO tinha janela virada para a praça. Sam havia se enfiado no beco para espiar por uma das janelas altas. Tinha visto os coiotes. Tinha se encolhido ao ver Drake.

Os coiotes haviam notado instantaneamente sua presença. Era pra­ticamente impossível se esgueirar para observá-los. Drake, olhando-o bem nos olhos, havia desenrolado a mão de chicote e languidamente baixado a persiana.

As crianças estavam amontoadas, praticamente umas em cima da outras, solenes, aterrorizadas e meio que assistindo a A pequena sereia na TV.

Sam retornou à praça. Ali, nem Drake nem os coiotes podiam vê-lo. Mas ele sentia os olhos deles, mesmo assim. Apenas lentamente percebeu o garoto parado perto.

Quem é você? E como chegou aqui?

Eles me chamam de Bug. Sou bom em chegar perto das pessoas sem ser visto.

Acho que é.

Tenho uma mensagem para você.

É? O que meu irmão quer?

Caine disse que é você ou ele.

Foi o que pensei.

Disse que, se você não fizer o que ele manda, vai soltar Drake e os coiotes em cima dos pequenos.

Sam conteve a ânsia de dar um soco naquele monstrinho pelo modo presunçoso como havia dado a mensagem maligna.

Certo.

Certo. Então todo mundo tem de sair ao ar livre. Todo o seu pessoal. Ao ar livre, na praça, onde a gente possa ver. Se alguém ficar escondido, você sabe o que acontece.

O que mais?

Seu pessoal deve colocar as armas e todo o resto na escadaria da prefeitura. Todas as suas aberrações têm de ir para a igreja.

Ele está pedindo para me render antes mesmo de lutar — disse Sam.

Bug deu de ombros.

Ele disse que, se você discutir, Drake vai começar a soltar os coiotes contra uma criança de cada vez. Você tem de fazer tudo isso, e depois Caine e você vão partir para o mano a mano. Se você vencer, sem problema, Drake solta os pequenos. Todo o seu lado fica livre. Caine volta para a Coates.

Por que você está fazendo isso, Bug? Você concorda com isso? Ameaçar crianças pequenas?

Bug deu de ombros.

Cara, não vou me meter com Caine nem Drake.

Sam confirmou com a cabeça. Sua mente já estava em outro lugar, tentando encontrar um modo, tentando encontrar um caminho.

Diga ao Caine que respondo a ele em uma hora.

Bug riu.

Ele disse que você ia dizer isso. Está vendo? Ele é esperto. Disse que você tinha de mandar a resposta de volta comigo. Sim ou não, sem nenhum extra nem nada.

Sam olhou para a torre. Queria que Astrid estivesse com ele. Ela poderia ter uma resposta.

Os termos eram impossíveis. Tinha certeza absoluta, certeza sem qualquer dúvida razoável, de que mesmo que vencesse, mesmo que de algum modo Caine admitisse a derrota, Drake jamais iria simplesmen­te embora.

De um modo ou de outro, precisava vencer Drake, além de Caine.

Havia mil pensamentos em sua cabeça, mil temores, cutucando-o, amontoando-se uns por cima dos outros, exigindo atenção enquanto Bug o encarava, impaciente para ir embora. Não havia tempo para compreender tudo. Não havia tempo de planejar. Exatamente como Caine havia pretendido.

Os ombros de Sam se encurvaram.

Diga ao Caine que aceito.

Certo — respondeu Bug, não mais preocupado do que se tivesse sido um anúncio de que comeria frango no jantar.

O camaleão se fundiu ao fundo, praticamente desaparecendo. Sam olhou-o correr para longe, uma dobra de luz e imagem. Logo ficou impossível de ser percebido.

Apertou o botão do walkie-talkie.

Astrid. Agora. — Edilio estivera olhando de seu posto na loja de ferramentas. Veio trotando.

Sam controlou a respiração, manteve uma expressão cautelosa de jogador de pôquer. Havia muitos olhares fixos nele. Muitas pessoas precisando acreditar nele.

Naquele ônibus escolar, tanto tempo atrás, ninguém sequer havia percebido que existia um problema antes de Sam ficar de pé e assumir o controle. Era mais difícil ser corajoso quando o mundo inteiro pare­cia olhar cada movimento seu.

Com Astrid e Edilio ao lado, Sam relatou rapidamente os termos de Caine.

Temos muito pouco tempo. Caine vai mandar aquele camaleão de volta para espionar, logo depois de dar as informações. Caine vai agir depressa, não vai querer nos dar tempo para preparação.

Você tem algum plano? — perguntou Astrid.

Mais ou menos. Um pedaço de plano, pelo menos. Precisamos embromar um pouco. Bug encontra o Caine. Bug volta, são provavel­mente no mínimo cinco minutos, independentemente de onde Caine esteja, talvez um pouco mais. Então Bug tem de ver se estamos fazen­do o que ele mandou. Vai ver pessoas ao ar livre, e vai ver nossos amigos da Coates indo para a igreja. Então vai voltar para informar isso. Caine vai dizer: "Certifique-se de que todos estejam dentro."

Mais tempo ainda. — Astrid assentiu, concordando. — Não vamos correr. Na verdade, talvez tenhamos de forçar algumas pessoas, talvez elas estejam discutindo. Você está certo, o Caine não vai apare­cer antes de ter certeza.

Se tivermos sorte, temos meia hora — disse Edilio. Ele olhou o re­lógio, mas não era fácil enxergar as horas na noite que ia caindo depressa.

É. Certo. Até agora só fizemos besteira. Então, se isso for maluquice, alguém me diga.

Você é o nosso cara, Sam — disse Edilio.

Astrid apertou a mão dele.

Então vamos fazer o seguinte.

Maria leu.

Cantou.

Fez tudo, menos dançar sapateado. Mas não havia como distrair as crianças do horror diante delas. Com expressões solenes, temerosas, elas seguiam cada movimento de Drake. A mão de chicote preenchia cada olhar.

Alguns coiotes tinham ido dormir. Mas outros espiavam as crianças com uma expressão que só podia ser descrita como faminta.

Maria desejou ter outro Diazepam ou talvez três, quem sabe, dez. Suas mãos tremiam. As entranhas borbulhavam. Precisava ir ao ba­nheiro, mas também precisava ficar com as crianças.

Seu irmão, John, estava trocando fraldas, nada diferente do usual, só que a boca de John era um "U" de cabeça para baixo com lábios trêmulos.

Maria leu:

Não quero comer ovos verdes com presunto. Não gosto, Sam-eu-Sou.

E em sua cabeça, girando e girando como um carrossel louco que ela não conseguia fazer parar, estava a pergunta: O que eu faço? O que eu faço se... O que eu faço quando... O que eu faço?

Um garoto chamado Jackson levantou a mão.

Mãe Maria? Os cachorros estão fedendo.

Maria continuou lendo:

Não vou comer isso na chuva. Não vou comer isso num trem...

Era verdade, os coiotes fediam mesmo. O cheiro era sufocante, o fedor pesado de almíscar e animais mortos. Eles urinavam à vontade contra as pernas dos berços e escolheram o canto com as fantasias para defecar.

Mas os coiotes não estavam à vontade, longe disso. Estavam irritadiços, nervosos, sem o costume de ficar num espaço fechado, sem o costume de ficar perto de humanos. Líder da Matilha mantinha a or­dem com rosnados e ganidos, mas até ele estava nervoso e inquieto.

Só Drake parecia à vontade. Havia se acomodado na cadeira de balanço que Maria usava para ninar os pequetitos à noite ou dar ma- madeira. Sentia um fascínio interminável com sua mão de chicote, fi­cava inspecionando-a, enrolando e desenrolando, adorando-a.

Salvar as crianças? Salvar o John? Será que ela podia salvar al­guém? Será que poderia se salvar?

O que eu faço?

O que faço quando a matança começar?

De repente, uma garota apareceu. Taylor. Bem ali no meio do cô­modo.

Oi. Eu trouxe comida — anunciou. Estava segurando uma ban­deja plástica do McDonald's. Cheia de hambúrgueres crus.

Todas as cabeças dos coiotes se viraram rapidamente. Drake foi lento demais para reagir, pego desprevenido.

Taylor jogou a bandeja contra a parede compartilhada pela creche e a loja de ferramentas. A carne escorreu pelos blocos de concreto pintados com cores alegres.

A mão de chicote de Drake estalou.

Mas Taylor havia sumido.

Os coiotes hesitaram apenas um instante. Depois saltaram na dire­ção da carne. Num átimo estavam rosnando e mordendo uns aos ou­tros, empurrando-se, forçando o caminho, subindo uns sobre os ou­tros num frenesi alimentar.

Drake pulou de pé e gritou:

Líder da Matilha, controle-os. — Mas Líder da Matilha havia se juntado ao frenesi, lutando de modo maligno para estabelecer seu do­mínio e sua parte da recompensa inesperada.

Duas coisas aconteceram quase no mesmo instante. A parede estre­meceu e rachou e os coiotes mais perto dela flutuaram subitamente, com as patas se sacudindo no ar.

Dekka — rosnou Drake.

Houve um clarão ofuscante de luz branco-esverdeado e, como um maçarico de butano cortando um lenço de papel, um buraco de 60 centímetros de diâmetro surgiu nos blocos de concreto. O buraco fi­cava no alto da parede, bem acima da cabeça das crianças, mas bem perto de onde os coiotes estavam flutuando sem peso. Um dos coiotes foi acertado em cheio. O facho de luz cortou-o pela metade. As duas partes flutuaram, assim como as gotas vermelhas do sangue do animal.

As crianças gritaram, John gritou e Drake recuou da parede, para longe da zona sem peso.

A cabeça de Edilio apareceu no buraco.

Maria. Abaixe-se.

Todo mundo abaixado! — gritou Maria, e John se jogou contra um menininho que começou a correr.

Edilio gritou:

Sam, agora!

Um novo buraco surgiu mais abaixo, ao nível do peito, e desta vez os fachos de luz atravessaram todo o cômodo, acertando paredes co­bertas com trabalhos de arte desbotados, queimando coiotes, incendiando-os enquanto flutuavam como balões em chamas.

Certo, Dekka — gritou Edilio.

Os coiotes bateram no chão com força, alguns mortos, alguns vi­vos, mas nenhum com vontade de lutar. A porta se abriu, puxada por alguma mão invisível, e os animais correram uns por cima dos outros, tentando escapar.

Líder da Matilha! — berrou Drake. — Seu covarde!

O facho de luz exterminador girou na direção dele. Drake se jogou no chão, xingando, e rolou na direção da porta.

Quinn sentiu, além de ouvir, a parede entre a creche e a loja de ferra­mentas rugir e rachar.

Alguns segundos depois viu os coiotes jorrando numa confusão em pânico para o beco, correndo para um lado e para o outro.

E então Drake apareceu.

Quinn se encolheu atrás do parapeito. Brianna correu com ousadia para olhar.

É o Drake. Agora é sua chance.

Fique abaixada, idiota — sibilou Quinn.

Ela se virou para ele, furiosa.

Me dá a arma, seu maricas.

Você nem sabe atirar — gemeu Quinn. — Além disso, ele pro­vavelmente já foi embora. Estava correndo.

Brianna olhou de novo.

Ele está escondido. Atrás da caçamba de lixo.

Quinn juntou coragem para olhar, só uma espiadinha, só o bastan­te para ver. Brianna estava certa: Drake havia se escondido atrás da caçamba, esperando.

A porta dos fundos da loja de ferramentas se abriu e Sam saiu sozinho. Olhou para a esquerda e para a direita, mas não estava vendo Drake.

Brianna gritou:

Sam, atrás da caçamba.

Sam girou, mas Drake foi rápido demais. Estalou seu chicote, acer­tou o braço que Sam usou para se defender, correu direto e partiu para cima de Sam.

Sam caiu de costas e rolou rapidamente, mas não o bastante. Com velocidade inumana, a mão de chicote partiu o ar e cortou uma tira brilhante nas costas de Sam, atravessando a camisa.

Sam gritou.

Brianna começou a levar a escada de alumínio para a borda, mas sua velocidade a atrapalhou. Ela perdeu o controle da escada, que caiu com estrondo no beco.

Drake estava com o chicote em volta do pescoço de Sam, sufocan­do, apertando. Matando.

Quinn podia ver o rosto de Sam ficando vermelho. Sam levou as mãos por cima dos ombros e disparou para trás, às cegas.

Os fachos chamuscaram o rosto de Drake, mas não o fizeram parar. Ele jogou Sam com força contra a parede do beco. Quinn ouviu o estalo enjoativo de crânio contra tijolo. Sam caiu no chão, quase inconsciente.

Esqueça o Caine — grasnou Drake. — Eu mesmo vou acabar com você.

Levantou a mão-chicote, pronto para baixá-la com força suficiente para abrir Sam do pescoço ao quadril.

Quinn disparou.

O coice da arma nas suas mãos surpreendeu-o. Aquilo havia acon­tecido sem pensamento consciente. Ele não tinha mirado, não tinha apertado o gatilho cuidadosamente como aprendera, havia disparado só por instinto.

As balas deixaram marcas nos tijolos.

Drake girou e Quinn ficou de pé, trêmulo, agora a plena vista.

Você — disse Drake.

Não quero ter de matar ninguém — disse Quinn, numa voz trêmula que mal chegou até o outro.

Você vai morrer por causa disso, Quinn.

Quinn engoliu em seco, e desta vez mirou com cuidado.

Foi demais para Drake. Com um rosnado furioso, saiu correndo do beco.

Sam demorou para se levantar. Para Quinn, pareceu um velho fi­cando de pé depois de escorregar em gelo. Mas ele olhou para Quinn e fez uma espécie de saudação.

Eu lhe devo uma, Quinn.

Desculpe não ter acertado nele — respondeu Quinn.

Sam balançou a cabeça.

Cara, nunca peça desculpa porque não quis matar alguém. — Depois, vendo Brianna, afastou o cansaço e disse: — Brisa? Comigo. Quinn, se alguém voltar na direção da creche, não precisa atirar na pessoa, certo? Mas atire para o ar, para que a gente saiba.

Posso fazer isso — respondeu Quinn.

Sam correu para a praça, confiante em que Brianna o alcançaria rapi­damente. Em segundos, ela estava ao seu lado.

O que há? — perguntou ela.

Todo mundo está fingindo que aceita os termos do Caine. Se tivermos sorte, Bug vai informar que estamos obedecendo antes que o Drake volte para dizer ao Caine que recuperamos a creche.

Quer que eu vá atrás do Drake?

Use esses pés rápidos. Encontre-o se puder, mas não tente lutar com ele, só me diga.

Brianna sumiu antes que ele pudesse acrescentar: "Tenha cuidado."

Sam começou uma corrida que parecia dolorosamente lenta com­parada com o modo como Brianna se movia. As crianças, as normais, que eram mais de cem, todas as que puderam ser reunidas na hora, estavam se juntando numa das extremidades da praça. Sam esperava que Caine não soubesse exatamente quantas crianças estavam em Praia Perdida, ou quantas estavam na cidade, comparadas com quan­tas se escondiam nas casas. Precisava fazer com que a situação fosse convincente, mas a exigência de Caine deixava espaço para que algu­mas continuassem escondidas com Edilio.

Astrid e o Pequeno Pete, Dekka, Taylor e o resto das aberrações da Coates estavam entrando na igreja, protestando em voz alta, fingindo.

Sam foi até a fonte e pulou sobre a mureta.

Certo, Bug, sei que você está olhando. Vá dizer ao Caine que fizemos o que ele pediu. Diga que estou esperando. Diga que, se ele não for covarde, que venha aqui e me enfrente como homem.

Pulou para baixo, ignorando os olhares das mais de cem crianças amontoadas, com medo e vulneráveis na praça.

Será que Bug tinha visto o acontecido na creche? Certamente tinha ouvido os tiros. Sam esperava que ele os interpretasse como vindos do próprio Drake, ou como treino de tiro ao alvo.

E, igualmente perigoso, será que Drake conseguiria avisar ao Cai­ne? Ele descobriria logo. De qualquer modo, Sam duvidava de que Caine pudesse resistir a um confronto cara a cara. Seu ego exigia isso.

O walkie-talkie de Sam estalou. O volume estava abaixado e ele teve de encostá-lo no ouvido para escutar Astrid.

Sam,

Você está bem, aí na igreja, Astrid?

Nós dois estamos bem. Todo mundo está bem. E a creche?

Em segurança.

Graças a Deus.

Escute, mande todo mundo se deitar. Mande ficarem embaixo dos bancos, isso pode dar alguma proteção.

Estou me sentindo inútil aqui.

Só mantenha o Pequeno Pete calmo, ele é o curinga do baralho. É como uma banana de dinamite. Não sabemos o que ele poderia fazer.

Acho que um frasco de nitroglicerina seria uma analogia mais adequada. Na verdade, a dinamite é bem estável.

Sam sorriu.

Você sempre me deixa doidão quando diz "analogia mais ade­quada".

Por que você acha que eu faço isso?

Saber que ela estava ali, a apenas 15 metros de distância, sorrindo triste, com medo, mas tentando ser corajosa, lançou uma onda de sau­dade e preocupação através dele e quase lhe trouxe lágrimas aos olhos.

Desejou que Quinn tivesse sido capaz de eliminar Drake. Mas sus­peitava que o amigo não sobreviveria com a alma intacta se fizesse isso. Algumas pessoas podiam fazer coisas assim. Outras, não. Esse segundo grupo era provavelmente o dos mais sortudos.

Venha, Caine — sussurrou Sam. — Vamos fazer isso.

Brianna surgiu ao lado dele.

Drake foi para casa. Você sabe, o lugar onde ele estava ficando.

Caine está lá?

Acho que não.

Bom trabalho, Brisa. Agora vá para a igreja. Vá devagar, para o Bug ver, se estiver olhando.

Quero ajudar.

É isso que preciso que você faça, Brianna.

Ela foi caminhando, para deixar bem evidente. Sam ficou sozinho. Os normais se amontoavam na outra extremidade da praça, como Caine havia ordenado. As aberrações — Sam odiava usar essa palavra, mas era difícil evitar — estavam na igreja. E agora a coisa ficava entre ele e Caine. Será que Caine viria? — Será que viria sozinho?

Olhou seu relógio. Em pouco mais de uma hora isso não importa­ria mais.

Num lugar não muito longe, escutou um coiote uivar.

 

                             01 HORA E 06 MINUTOS

ELES ESTÃO OBEDECENDO — gritou Bug enquanto passava pela porta.

Certo — disse Caine. — Hora do show. Todo mundo para os carros.

Foi uma corrida em direção à porta. Chaz, Chunk, Martelo e o abalado Frederico, que finalmente havia se libertado da fita adesiva, correram para o furgão na garagem. Diana, liberando fúria por cada poro, foi atrás. Panda agarrou Lana pelo braço e empurrou-a para a porta.

Só então Caine percebeu que faltava alguém.

Cadê o Howard?

Eu... não sei — admitiu Panda. — Não vi quando ele saiu.

Verme inútil. Sem o Ore ele é um peso morto — disse Caine.

Esqueça-o.

O segundo veículo na garagem era um carro de luxo, um Audi com teto solar. Panda entrou atrás do volante e Diana foi no banco do ca­rona. Caine ocupou o banco de trás.

Panda apertou o controle remoto da garagem. As duas portas subiram.

Os dois carros avançaram com um tranco. O furgão Subaru bateu imediatamente na lateral do Audi.

Chaz estava dirigindo o furgão. Ele baixou a janela.

Desculpe.

Grande começo — disse Diana.

Ande — ordenou Caine, tenso.

Panda acelerou, saindo para a rua, deixando a velocidade a pru­dentes 40 quilômetros por hora. O furgão manteve a distância de um quarteirão atrás.

Bara bum bara bum bara bum bum bum. — Diana começou a cantarolar a Abertura de Guilherme Tell.

Corta essa — disse Caine, rispidamente.

Tinham percorrido dois quarteirões quando Panda pisou fundo no freio.

Uma dúzia de coiotes atravessou a rua.

Caine se levantou pelo teto solar e gritou:

O que vocês estão fazendo? Aonde estão indo?

Líder da Matilha parou e espiou irritado, com os olhos amarelos.

Mão de Chicote foi. Líder da Matilha foi — disse o coiote.

De jeito nenhum — reagiu Caine. Para Diana, disse: — Eles to­maram a creche. O que eu faço?

Diga você, Intrépido Líder.

Caine bateu com o punho no teto do carro.

Certo, Líder da Matilha, se não for covarde, me siga.

Líder da Matilha segue a Escuridão. Todos os outros seguem Líder da Matilha. Matilha está com fome. Matilha precisa comer.

Tenho comida para você — disse Caine. — Tem uma praça cheia de crianças.

Líder da Matilha hesitou.

É fácil — disse Caine. — Você pode vir comigo e pegar quantas crianças quiser. Chame todos os seus coiotes. Traga todos. É um bufê.

Líder da Matilha latiu uma ordem para seu grupo. Os coiotes vol­taram para perto dele.

Venha atrás de nós — gritou Caine, agora apanhado na própria empolgação, olhos loucos e agitados. —- Vamos direto para a praça. Você vai direto para as crianças de lá. Vai funcionar perfeitamente.

O Punho de Fogo está lá?

Caine franziu a testa.

Quem? Ah. Sam. Punho de Fogo, hein? É, ele vai estar lá, mas eu cuido dele.

Líder da Matilha pareceu em dúvida.

Se Líder da Matilha está com medo, talvez outro deva ser líder da matilha.

Líder da Matilha não tem medo.

Então vamos — disse Caine.

— Ah, cara — disse Howard. — Ah, meu Deus, ah, meu Deus, o que aconteceu com você, Ore?

Ele havia saído do esconderijo de Caine e ido até a casa que dividia com Ore. Encontrou seu protetor ali, sentado num sofá que havia se quebrado sob o peso do garoto, desmoronado no meio. Havia garra­fas de cerveja vazias por toda parte.

Ore levantou um joystick.

Meus dedos são grandes demais para essa coisa.

Ore, cara, como foi que isso... puxa, o que aconteceu com você?

Metade do rosto de Ore ainda era o original. O olho esquerdo, a orelha esquerda e o cabelo acima, e a boca inteira ainda eram reconhe­cíveis como sendo de Ore. Mas o resto era como uma estátua frouxa feita de cascalho. Ele estava pelo menos uns 20 centímetros mais alto do que antes. As pernas eram grossas como troncos de árvore, os bra­ços pareciam hidrantes. Tinha estourado a roupa, que agora pendia fornecendo um grau mínimo de recato.

Quando se remexia no assento, fazia um som de pedras molhadas.

Como isso aconteceu, velho?

Fui julgado — disse Ore, em tom peremptório.

O que isso quer dizer, cara?

Por ter batido em Bette. É Deus, Howard. É o Julgamento d'Ele. Howard lutou contra a ânsia de correr e gritar. Tentou olhar para o único olho humano de Ore, mas pegou-se olhando para o outro, uma ostra amarela embaixo de uma testa de pedra.

Você consegue se mexer? Consegue ficar de pé?

Ore grunhiu e se levantou com muito mais facilidade do que Ho­ward esperava.

É. Ainda preciso me levantar para mijar.

O que vai acontecer quando isso se espalhar para a sua boca?

Acho que já parou de se espalhar. Parou há algumas horas, acho.

Dói?

Não. Mas coça quando está se espalhando. — Como se quisesse ilustrar, ele usou um dos dedos de pedra do tamanho de uma salsicha para coçar a linha entre o nariz de cascalho e a bochecha humana.

Pesado como está, cara, você deve ser bem forte só para ficar de pé.

É. — Ore enfiou a mão no isopor que estava junto aos pés e voltou com uma lata de cerveja. Inclinou a cabeça para trás e abriu a boca. Apertou a parte de cima da lata que explodiu numa erupção de líquido e espuma. Ore engoliu o que pousou na boca. O resto escorreu pelo rosto, até o peito de pedra. — Agora só consigo abrir assim. Meus dedos são grandes demais para puxar a alça.

O que você está fazendo, cara? Só fica aí sentado bebendo cerveja?

O que mais eu vou fazer? — Ele encolheu os ombros que pare­ciam pilhas de pedras. Seu olho humano estava ou chorando ou lacri­moso. — O negócio é que estou quase sem cerveja.

Cara, você precisa voltar ao jogo. Vai começar uma guerra. A gente precisa estar lá, marcando presença, sacou?

Só quero mais um pouco de cerveja.

— Certo, então. Vamos fazer o seguinte, Ore. Vamos pegar mais cerveja.

Estrelas enchiam o céu.

A lua brilhava na torre da igreja.

Um coiote uivou, gemidos loucos, um grito fantasmagórico de desespero.

Em sua mente, Sam viu os mutantes na igreja. Viu Edilio escondido com um punhado de garotos de confiança nas ruínas queimadas do prédio de apartamentos. Viu Quinn na laje com a metralhadora que poderia usar ou não. Viu as crianças juntas, perdidas e apavoradas na extremidade sul da praça. E Maria e as crianças ainda na creche. E Dahra no porão da igreja esperando as baixas.

Drake havia recuado. Por enquanto.

O que Ore faria?

Onde estava o Caine?

E o que aconteceria em uma hora, quando o relógio tiquetaqueasse e marcasse exatamente 15 anos desde que Sam havia nascido, ligado sem saber a um irmão chamado Caine?

Será que ele poderia vencer Caine?

Precisava vencer Caine.

E, de algum modo, precisava destruir Drake também. Se — quando —- Sam saltasse fora, desse o grande pulo, pufasse, não queria deixar Astrid à mercê de Drake.

Sabia que deveria ter medo do fim. Do processo misterioso que, pelo jeito, simplesmente subtrairia Sam Temple do LGAR. Mas não estava tão preocupado por si mesmo quanto por Astrid.

Menos de duas semanas antes, ela era uma abstração, um ideal, uma garota que ele podia observar furtivamente, mas sem jamais reve­lar seu interesse. E agora pensava quase que somente nela, enquanto seu relógio pessoal tiquetaqueava na direção de um desaparecimento súbito e possivelmente fatal.

Como Caine agiria?, era o que o resto de sua mente revirava sem parar. Será que Caine entraria na cidade como um pistoleiro num ve­lho filme de caubói?

Será que os dois ficariam separados por trinta passos e sacariam as armas?

Qual dos dois seria mais poderoso? O gêmeo com o poder da luz ou o gêmeo com o poder de mover matéria?

Estava escuro.

Sam odiava o escuro. Sempre soubera que, quando o fim chegasse para ele, seria no escuro.

No escuro e sozinho.

Onde estava Caine?

Será que Bug estava vigiando-o agora mesmo?

Será que Edilio faria o que Quinn não pudera?

Que surpresa Caine teria na manga?

Taylor apareceu a pouco mais de um metro dali. Parecia ter acaba­do de sair de uma entrevista com um demônio. Seu rosto estava bran­co, os olhos arregalados, brilhando à luz dos postes.

Eles estão vindo — disse ela.

Sam assentiu, firmou os ombros, conscientemente diminuiu a velo­cidade do coração.

Bom — respondeu.

Não, ele, não — disse Taylor. — Os coiotes.

O quê? Onde?

Taylor apontou por cima do ombro.

Sam girou. Eles vinham correndo a toda velocidade, de duas dire­ções, direto para a multidão de crianças desprotegidas.

Era como um filme sobre a vida selvagem passado em sala de aula. Igual a ficar olhando enquanto um bando de leões atacava um reba­nho de antílopes. Só que esse rebanho era humano. Esse rebanho não podia correr como um raio.

Sentiu-se impotente.

O pânico varreu as crianças. Correram para o meio, as das bordas vendo o fim se aproximar em patas ligeiras.

Sam começou a correr, levantou a mão boa, procurou um alvo, gritou. Mas então ouviu o rugido alto do motor de um carro.

Parou derrapando, girou de novo. Faróis atravessaram a rua pas­sando pela igreja. Um utilitário esportivo empoeirado. Bateu no meio- fio que cercava a praça, subiu a calçada e veio parar estremecendo e jogando para o alto torrões de terra.

Atrás vinham outros carros, a toda velocidade.

Gritos enquanto os coiotes se aproximavam do rebanho humano.

Sam esticou a mão e um fogo verde saltou na direção do bando dos coiotes que vinham pela esquerda.

Não conseguiu disparar contra a outra coluna, estava bloqueada por crianças correndo em pânico, agora todas vindo para cima de Sam, em busca de proteção, e com isso tornando impossível disparar.

Abaixem-se, abaixem-se — gritou ele. — Para o chão! — Mas era inútil.

Me salve! — disse Jack Computador, caindo do utilitário.

Um Audi parou derrapando na frente da igreja. Alguém estava de pé enfiado no teto solar.

Um grito de puro terror e dor. Alguém havia caído, lutando contra um coiote com o dobro do seu tamanho.

Edilio! Agora! — berrou Sam.

Está tendo uma noite ruim, irmão? — gritou Caine, exultante. — Vai ficar pior.

Caine levantou as mãos, não apontando para Sam, de jeito ne­nhum. Em vez disso direcionou a energia impossível de sua telecinese para a igreja. Era como se um gigante invisível, uma criatura do tama­nho de um dinossauro, tivesse se encostado na pedra calcária. As pe­dras racharam. O vitral se despedaçou. A porta da igreja, o ponto fraco, explodiu para dentro, arrancada das dobradiças.

Astrid! — gritou Sam.

Gritos, gritos em pânico na praça, misturados com rosnados e lati­dos enquanto os coiotes caíam sobre as crianças.

De repente, ouviu-se o matraquear impossivelmente alto de uma metralhadora. Fogo irrompeu do teto da creche.

Edilio saiu correndo do prédio incendiado, três outros atrás dele, atacando os coiotes.

Caine disparou de novo e desta vez o monstro invisível, a fera de energia, se comprimiu com muita força contra a frente da igreja.

As janelas laterais, todos os vitrais antigos e os novos, explodiram numa chuva brilhante. A torre oscilou.

Como você vai salvá-los, Sam? — exultou Caine. — Mais um empurrão e ela cai.

Jack estava aos pés de Sam, agarrando-o, fazendo-o tropeçar, estra­nhamente forte.

Sam disparou às cegas contra Caine enquanto caía.

Eu posso salvar você! Por favor, me ajude! — implorou Jack. — O puf, eu posso salvar você.

Sam caiu com força, chutou as mãos de Jack que o agarravam, li­vrou-se e ficou de pé a tempo de ver a parede da frente da igreja se afrouxar e cair bem lentamente para dentro.

O teto estremeceu e foi baixando. A torre se inclinou, porém não caiu. Mas toneladas de calcário, reboco, e enormes traves de madeira despencaram num estrondo que parecia o fim do mundo.

Astrid! — gritou Sam de novo, impotente.

Correu direto para Caine, ignorando o massacre atrás, bloqueando os gritos, os rosnados famintos e o estampido das metralhadoras.

Apontou e disparou.

O raio acertou a frente do carro de Caine. O metal se encheu de bo­lhas e Caine se levantou desajeitado através do teto solar, enquanto ou­tros que Sam não se importou em identificar saíam correndo pelas portas.

Sam disparou e Caine se desviou.

Um disparo acertou Sam, fez com que ele parasse como se tivesse batido de frente numa parede. Ele procurou Caine feito louco. Onde? Onde?

Gritos abafados vindos de dentro da igreja se juntaram ao rugido de fundo, um barulho saído de um inferno infantil, berros agudos chamando mamãe, choros agonizados, desesperados, implorando.

Um movimento rápido, e Sam disparou.

Caine disparou de volta e a estátua na fonte foi arrancada do pe­destal e caiu espirrando a água fétida.

Sam estava de pé e correndo. Precisava encontrar Caine, precisava encontrá-lo, matá-lo, matá-lo.

Mais metralhadoras disparando e a voz de Edilio gritando:

— Não, não; parem de atirar, vocês estão acertando nas crianças!

Sam rodeou o Audi incendiado. Caine estava correndo à frente, pulando um hidrante.

Sam disparou e o chão embaixo dos pés de Caine explodiu em chamas e fumaça preta oleosa. O pavimento em si estava queimando. Caine caiu esparramado na rua, rolou depressa, apoiou-se num dos joelhos e Sam levou um golpe violento que o deixou caído de costas, atordoado, com sangue saindo da boca e dos ouvidos, membros tor­tos, incapaz de... incapaz de...

Caine, um rosto selvagem, ensangüentado, gritando.

Sam sentiu o ódio queimar através dele e irromper das mãos.

Caine pulou de lado, lento demais, e a luz calcinante queimou a lateral de seu corpo. Com a camisa pegando fogo, Caine gritou e ba­teu as chamas.

Sam tentou ficar de pé, mas sua cabeça estava nadando.

Caine correu para o prédio incendiado, pela mesma porta por onde Sam havia entrado para tentar salvar a incendiária.

Sam cambaleou, mas correu atrás dele.

Subiu a escada até o corredor calcinado, ainda fedendo a fumaça. O andar de cima era um monte de destroços de caibros e barrancos formados por telhas de asfalto parecendo escorregadores de crianças, fragmentos de paredes e tubos que se projetavam incongruentes.

Houve um estrondo e Sam pôde ver a meia-parede ao seu lado ondular com o impacto.

Caine. Vamos acabar com isso — disse Sam, rouco.

Venha me pegar, irmão — gritou Caine, numa voz espremida pela dor. — Vou derrubar esse lugar em cima de nós dois.

Sam localizou o som da voz dele e seguiu pelo corredor, correu por baixo das estrelas, disparando a luz mortal pelas mãos.

Nada do Caine.

Uma porta rangendo, ainda pendendo das dobradiças, mesmo que a parede ao redor tivesse sumido, balançava-se lentamente.

Sam chutou-a, girou e disparou para dentro do cômodo.

Uma trave de madeira queimada voou pelo ar. Sam se abaixou. A próxima acertou seu braço esquerdo, despedaçando o cotovelo. Mais entulho, uma torrente de entulho, impeliu Sam para trás.

De repente, ali estava Caine, a menos de 3 metros.

As mãos de Caine estavam erguidas sobre a cabeça, dedos abertos, palmas para fora. Sam apertou seu cotovelo despedaçado com a mão direita.

Acabou o jogo, Sam — disse Caine.

Algo ficou turvo atrás de Caine e ele girou. Segurou o crânio com força.

Brianna estava acima dele, brandindo seu martelo.

Corra, Brisa! — gritou Sam, mas era tarde demais. Enquanto cambaleava para trás, Caine disparou à queima-roupa e Brianna voou para trás batendo na parede e atravessando-a.

Caine pulou atrás dela, através da abertura.

Sam disparou contra a parede, abriu um buraco nela. Através do buraco pôde ver Caine explodindo a parede seguinte.

Sam sentiu o chão se sacudir.

O prédio estava desmoronando.

Virou-se e correu, mas de repente o chão sumiu e ele estava corren­do no meio do ar, caindo, e o prédio com ele, em volta dele, em cima dele.

Sam caiu e o mundo sobre ele.

 

                         14 MINUTOS

QUINN OLHAVA NUM horror imobilizador os coiotes atacando as crianças.

Viu Sam disparar e errar.

Viu Sam agonizar por um momento terrível enquanto Caine ataca­va a igreja.

Sam correu para a igreja.

Quinn gritou:

Não!

Mirou.

Não acerte as crianças, não acerte as crianças — soluçou e aper­tou o gatilho. Apontando contra a massa de coiotes. Um número mui­to maior do que antes.

Os coiotes mal o notaram.

Um caiu, retorcendo-se, como se tivesse tropeçado, e não se levantou.

Então ele não pôde atirar mais, as feras estavam no meio das crian­ças. Correu para a escada, escorregou, caiu e bateu com força no beco.

Corra para longe, gritava seu cérebro, fuja disso. Deu três passos em pânico para longe, em direção à praia, estava correndo para a praia, mas então, como se uma força invisível o tivesse dominado, parou.

Você não pode correr, Quinn — disse a si mesmo. —Não posso.

E ao mesmo tempo em que dizia as palavras, estava correndo de vol­ta para a creche, passando por Maria, que abrigava uma criança no colo, saindo para a praça, agora segurando a arma como um porrete, corren­do e gritando feito um lunático, girando a coronha da arma para acertar uma pancada que produziu um estalo enjoativo no crânio de um coiote.

Edilio estava ali, crianças atiravam e Edilio estava gritando "Não, não, não" e então havia sangue nos olhos de Quinn, sangue em seu cérebro e sangue em toda parte e ele perdeu a cabeça, perdeu a cabeça e começou a girar, gritar e bater, bater e bater.

Maria apertou Isabella contra o corpo e se amontoou com John, e as crianças gritavam ouvindo a loucura lá fora, os gritos, rosnados e grunhidos.

Jesus, salve-nos, Jesus, salve-nos. — Alguém estava repetindo numa voz áspera, soluçante, e Maria soube, de algum modo longín­quo, que era ela.

Drake escutou o uivo dos coiotes na noite e soube em seu coração negro o que aquilo significava.

Chegava de lamber as feridas.

A batalha havia começado.

É hora — disse. — É hora de mostrar a todos eles.

Abriu a porta da frente com um chute e marchou para a praça, gritando sem parar, desejando ser capaz de uivar para a lua como os coiotes.

Ouviu armas disparando, sacou sua pistola do cinto, desenrolou a mão de chicote e estalou-a, adorando o barulho.

Adiante, duas figuras estavam se afastando, também em direção ao som da batalha. Um parecia impossivelmente pequeno. Mas não, o outro é que era impossivelmente grande. Tipo sumô. Uma criatura que arrastava os pés, encurvada, de membros grossos.

Os dois descombinados entraram na poça de luz de um poste. Drake reconheceu o menor.

Howard, seu traidor — gritou.

Howard parou. O monstro ao lado dele continuou andando.

Você não quer nada disso, Drake — alertou Howard.

Drake deu-lhe uma chicotada no peito, rasgou a camisa de Ho­ward, deixou uma risca de sangue, que era preto à luz fria.

É melhor ir ajudar a acabar com o Sam — alertou Drake.

A fera abrutalhada parou. Virou-se lentamente e retornou.

O que é isso? — perguntou Drake, em voz aguda.

Você — murmurou o monstro.

Ore? — gritou Drake, meio empolgado, meio aterrorizado.

É sua culpa eu ter feito aquilo — disse Ore, monocórdio.

Saia do meu caminho — ordenou Drake. — Está acontecendo uma luta. Venha comigo ou morra agora.

Ele só quer um pouco de cerveja, Drake — disse Howard, ten­tando acalmá-lo, apertando o ferimento no peito, encurvado pela dor, mas ainda tentando manipular, ainda tentando ser inteligente.

Deus me julgou — disse Ore, em voz engrolada.

Sua coisa idiota — reagiu Drake, em seguida girou o chicote e baixou-o com toda a força no ombro de Ore.

AAHHH! — gritou Ore de dor.

Vá andando, imbecil — ordenou Drake.

Ore se mexeu, mas não em direção à praça.

Quer conhecer melhor o Mão de Chicote, monstro? — pergun­tou Drake. — Eu corto você.

Astrid sentiu um peso esmagador na parte inferior das costas e nas per­nas. Estava de rosto para baixo, em cima do Pequeno Pete. Sentia-se atordoada, mas tinha presença de espírito suficiente para entender isso.

Respirou fundo.

Sussurrou:

Petey. — Ouviu o som através dos ossos. Seus ouvidos estavam zumbindo, um som abafado.

O Pequeno Pete não se mexia.

Tentou puxar as pernas para cima, mas elas não se mexiam.

Petey, Petey — gritou.

Limpou alguma coisa dos olhos, poeira, terra ou suor, e piscou para focalizar o irmão. Havia abrigado a maior parte do corpo dele da parede que ia caindo, mas um pedaço de reboco do tamanho de uma mochila estava em cima da cabeça dele.

Conteve um soluço. Apertou dois dedos contra o pescoço dele e sentiu a pulsação. Podia sentir a respiração curta do menino, o peito subindo e descendo, embaixo dela.

Socorro — grasnou, sem saber se estava gritando ou sussurran­do, incapaz de ouvir por causa do zumbido. — Alguém nos ajude! Alguém nos ajude! Salvem meu irmão! Salvem meu irmão — implo­rou, e o rogo virou uma prece. — Salvem o Sam. Salvem todos nós.

Começou a recitar de memória uma oração que tinha ouvido mui­to tempo antes. Sua voz era distante, a voz de outra pessoa.

São Miguel Arcanjo, defendei-nos na batalha. Sede nosso refú­gio contra as maldades e ciladas do demônio. — Ela mais sentia do que ouvia seus próprios soluços, um tremor violento que torcia as palavras na garganta.

E, como se numa resposta zombeteira ao seu pedido de misericór­dia, uma chuva de vidro e fragmentos de reboco caiu ao seu redor.

Que Deus o repreenda, pedimos humildemente. E que vós, ó, príncipe da hoste celestial, pelo poder de Deus...

O Pequeno Pete se mexeu e gemeu. Moveu a cabeça e ela pôde ver o talho fundo, empurrado para dentro, parecendo uma marca de ma­chado na cabeça dele.

...lanceis no inferno Satã e os espíritos malignos que rondam no mundo, buscando a ruína das almas.

Alguém se levantou no entulho acima dela. Astrid virou o pescoço e viu, em silhueta contra o teto alto num súbito clarão de relâmpago verde, um rosto escuro.

Amém.

Não sou exatamente um anjo, quanto mais um arcanjo — disse Dekka, numa voz que Astrid mal conseguiu entender. — Mas posso tirar as coisas de cima de você.

Caine saltou dos destroços do prédio.

Tinha conseguido.

Tinha conseguido.

Sam estava embaixo do entulho, enterrado. Derrotado.

Mas Caine mal pôde desfrutar do momento. A dor no lado esquerdo do peito era chocante. A perigosa luz branca-esverdeada tinha fundido a camisa à carne e o resultado ia além de qualquer agonia que ele já imaginara.

Cambaleou em direção à igreja em ruínas, tentando entender o caos ao redor. Não havia mais tiros, mas continuavam os gritos, cho­ros e rosnados. E outra coisa, uma série de minúsculos estrondos sô­nicos, o estalar de um chicote. Abaixo disso, um tambor grave tocan­do uma batida aleatória.

Caine parou, olhou, esquecendo momentaneamente a dor.

Nos degraus da prefeitura, acontecia uma batalha titânica entre Drake e algum monstro grosseiro.

Drake estalava a mão de chicote e disparava a pistola.

O monstro dava golpes desajeitados que erravam o alvo repetida­mente enquanto Drake dançava ao redor, só chicoteando e nem mes­mo fazendo o monstro recuar.

O monstro girou o braço e errou Drake por centímetros. O punho de pedra bateu numa das colunas de calcário na frente da prefeitura. A coluna rachou e quase se despedaçou. Pequenas lascas de pedra voaram.

O olhar de Caine foi atraído para baixo por uma voz que rosnava, engrolada, aguda.

Fêmea diz Líder da Matilha parar — disse Líder da Matilha com raiva.

O quê? — Caine não conseguiu entender até que viu Diana se aproximando, cabelos escuros, olhos furiosos.

Eu mandei essa besta imunda parar — disse ela, mal conseguin­do manter o controle.

Parar o quê? — perguntou Caine.

Eles ainda estão atacando as crianças. Nós vencemos. Sam está morto. Chame-os de volta, Caine.

Caine voltou a atenção para a batalha entre Drake e o monstro.

Eles são coiotes — disse com frieza.

Diana voou contra ele.

— Você enlouqueceu, Caine. Isso tem de parar. Você venceu. Isso tem de parar.

Ou então o quê, Diana? Vá pegar a Lana. Eu estou ferido. Líder da Matilha, faça o que quiser.

Talvez seja por isso que sua mãe o tenha abandonado — disse Diana, com selvageria. — Talvez ela tenha visto que você não era so­mente ruim, você era deturpado, doente e maligno.

Caine reagiu com violência súbita, esquecendo-se dos poderes e dando-lhe um tapa com força no rosto.

Diana tropeçou para trás com o golpe e caiu sentada nos degraus.

Caine pôde ver o rosto dela com clareza súbita, terrível, sob a luz brilhante daquela coluna ofuscante, branco-esverdeada.

Aquela luz só podia ter uma fonte.

A luz era como uma lança apontando para o céu. Saltava do meio dos entulhos do prédio.

Não — disse Caine.

Mas a luz ardia, vaporizando entulho, todo o peso esmagador do prédio desmoronado.

Não — disse Caine, e a luz morreu, desligada.

Atrás dele, Drake e Ore continuavam com sua batalha, rápido con­tra lento, ágil contra pesado, afiado contra pesado, mas tudo que Cai­ne podia ver era a figura enegrecida, coberta de fuligem, com olhos brilhantes, que agora saía do entulho vindo em sua direção.

Caine apontou as mãos para a madeira e o reboco despedaçados da frente da igreja. Virou as mãos na direção de Sam e o equivalente a um caminhão de entulho saiu voando.

Sam levantou as mãos. O fogo verde fez explodir pedaços de tijolos e pesadas traves de madeira. Tudo se queimou no meio do ar, virando cinzas antes de acertá-lo.

Dekka levantou o entulho de cima de Astrid e do Pequeno Pete.

Mas não era fácil. Sua capacidade de interromper a gravidade in­terrompeu-a embaixo de Astrid também, e ela e o Pequeno Pete flu­tuaram numa galáxia giratória feita de madeira e reboco partidos.

Dekka enfiou a mão rapidamente e puxou Astrid da área de sus­pensão. Astrid bateu no chão com o Pequeno Pete.

Dekka soltou os entulhos, que caíram com um estrondo apavorante.

Obrigada — disse Astrid.

Tem um monte de gente presa aqui — respondeu Dekka, não perdendo tempo e indo ajudar os outros.

Astrid se abaixou e tentou levantar o Pequeno Pete. Ele estava frouxo, não passava de peso morto. Ela envolveu o peito do menino com os bra­ços e apertou-o, como se fosse um bebê grande demais. Abraçou-o e saiu cambaleando da igreja, meio que arrastando-o, tropeçando no entulho.

Lana poderia curá-lo, mas Lana tinha ido embora. Ela só conseguia pensar em levá-lo até Dahra, no porão. Mas o que Dahra poderia fa­zer? Seria ao menos possível chegar ao suposto hospital, ou será que a entrada fora bloqueada pelo entulho?

Pela primeira vez, percebeu que a parede da frente da igreja havia simplesmente sumido. Dava para ver o céu noturno e as estrelas. Mas também pôde ver um raio terrível, tingido de verde.

Sua audição ia retornando à medida que o zumbido diminuía. Pôde discernir rosnados de animais, o estalo agudo de um chicote e muitas vozes chorando.

De repente os entulhos empilhados ao redor começaram a voar.

Astrid se abaixou rapidamente, abrigando o Pequeno Pete de novo, ainda, sempre protegendo o Pequeno Pete. Pedaços de parede, lascas de lambris, velhas juntas de aço e madeira subiam como jatos decolan­do de um aeroporto e acelerando loucamente, voando num jorro pela fachada partida da igreja.

A luz verde relampejou e houve um som de explosões, um rugido de explosões e uma luz mais forte ainda.

O jorro de entulho parou.

Astrid se levantou de novo, carregando o Pequeno Pete.

Alguém veio correndo da rua em sua direção. Ele parou, ofegando, olhando, um animal amedrontado e encurralado.

Caine — cuspiu Astrid.

Ele não falou. Ela pôde ver que ele estava ferido. Sentindo dor. Seu rosto estava marcado de suor e sujeira. Ele a encarou como se estives­se vendo um fantasma.

Uma luz perigosa surgiu nos olhos nublados dele.

Perfeito — sussurrou Caine.

Astrid sentiu-se levantada do chão. Agarrou-se desesperadamente ao Pequeno Pete, mas ele escorregou de suas mãos, escapou dos dedos em garra e caiu.

Venha brincar, irmão — gritou Caine. — Estou com uma amiga sua.

Astrid flutuava, sem forças, impotente, e Caine andava atrás dela, usando-a como escudo. Saiu pela fachada da igreja, para a escadaria, olhando para uma cena de pesadelo composta de cães loucos e bata­lhas furiosas.

Sam estava ali, ao pé da escada. Ensangüentado e machucado, e um braço pendia frouxo.

Venha, Sam, me queime agora — berrou Caine. — Venha, ir­mão, mostre do que é capaz.

Está se escondendo atrás de uma garota, Caine? — perguntou Sam.

Acha que pode me provocar? Tudo que importa é vencer. Então vamos parar com o papo furado.

Vou matar você, Caine.

Não. Não vai. Não sem matar sua namorada.

Nós dois vamos sumir daqui em mais ou menos um minuto, Caine. Acabou para nós dois.

Talvez para você, Sam. Não para mim. Eu sei como. Sei como ficar. — Ele gargalhou com triunfo louco.

Sam, você precisa fazer isso — disse Astrid. — Acabe com ele.

Diana estava subindo a escada.

É, Sam, acabe comigo — zombou Caine. — Você tem o poder. Basta abrir um buraco através dela e vai me acertar também.

Caine — disse Diana. — Ponha-a no chão. Seja homem ao me­nos uma vez.

—- Coloque-a no chão, Caine — disse Sam. — É o fim. Quinze anos, e o sumiço. Não sei o que é, mas pode ser a morte, e você não quer morrer com mais sangue nas mãos.

Caine deu um riso sem alegria.

Você não sabe nada sobre mim. Não cresceu sem saber quem você era. Não precisou se criar a partir da própria imaginação, a partir de sua própria vontade.

Caine olhou para o relógio.

Acho que acabou o tempo para você, Sam. Você vai primeiro, lembra? E eis o que quero que você saiba antes de ir: eu vou sobrevi­ver, Sam. Vou ficar aqui. Eu, sua linda Astrid e todo o LGAR. Tudo será meu.

Diana falou:

Sam, o modo de vencer o puf é...

Caine se virou para ela, levantou a mão e disparou no meio da fra­se. Ela voou pelos ares, deu uma cambalhota para trás e pousou do outro lado da rua, na grama da praça.

O esforço havia distraído Caine. Ele largou Astrid.

Sam estendeu a mão com a palma para a frente.

 

                     01 MINUTO

UMA LINHA DE disparo limpo.

Com um pensamento, poderia matar Caine.

Mas o mundo em volta se esvaiu. Astrid estava caída de qualquer jeito, parecia desbotada, sem cor, quase translúcida. O próprio Caine era um fantasma.

Não havia som. Os gritos das crianças eram mudos. A batalha entre Drake e Ore movia-se em câmera lenta, os ataques dos coiotes, tudo acontecia quadro a quadro, humanos, feras e monstros.

O corpo de Sam estava entorpecido, como se ele tivesse morrido e deixado apenas o cérebro com as engrenagens girando dentro do crâ­nio.

Está na hora, disse uma voz.

Ele conhecia aquela voz, e o som foi como uma faca em suas entra­nhas.

Sua mãe estava diante dele. Linda como sempre fora para ele. O cabelo se agitava numa brisa que ele não sentia. Os olhos azuis eram a única cor verdadeira.

Feliz aniversário — disse ela.

Não — sussurrou ele, ainda que seus lábios não se movessem.

Você é um homem de verdade, agora — disse ela, e sua boca deu um riso maroto. — Meu homenzinho.

Não.

Sua mãe estendeu a mão para ele.

Venha.

Não posso — respondeu ele.

Sam, sou sua mãe. Eu amo você. Venha comigo.

Mamãe...

É só estender a mão para mim. Estou em segurança. Posso levar você para longe, para fora deste lugar.

Sam balançou a cabeça muito lentamente, como se estivesse se afo­gando em melado. Algo estava acontecendo com o tempo. Astrid não estava respirando. Nada se movia. O mundo inteiro estava congelado.

Vai ser como era — disse sua mãe.

Nunca foi... — começou ele. — Você mentiu para mim. Você nunca me contou...

Eu nunca menti — disse ela, e franziu a testa, desapontada.

Você nunca contou que eu tinha um irmão. Nunca contou...

Apenas venha comigo — disse ela, já impaciente, sacudindo a mão um pouco, como fazia quando ele era pequeno e se recusava a pegar sua mão para atravessar a rua. — Venha comigo, Sam. Você vai estar em segurança, fora deste lugar.

Ele reagiu instintivamente, era o menininho de novo, reagiu à voz da "mamãe", à voz do "me obedeça". Estendeu a mão para ela.

E puxou-a de volta.

Não posso — sussurrou. — Tenho alguém aqui, preciso ficar para ajudá-la.

A raiva relampejou nos olhos de sua mãe, uma luz verde, surreal, antes de ela piscar e aquilo desaparecer.

E então, saindo do mundo desbotado e surreal, Caine surgiu à luz fantasmagórica.

A mãe de Sam sorriu para Caine e ele a encarou com ar esquisito.

Enfermeira Temple — disse Caine.

Mamãe — corrigiu ela. — É hora de meus dois meninos se jun­tarem a mim, irem embora comigo. Para fora deste lugar.

Caine parecia enfeitiçado, incapaz de afastar os olhos do rosto gen­til, sorridente, dos olhos azuis penetrantes.

Por quê? — perguntou Caine, numa voz de criança pequena.

A mãe não disse nada. De novo, apenas por uma fração de segun­do, seus olhos azuis luziram num verde tóxico antes de retornarem ao azul frio, gelado.

Por que ele e não eu? — perguntou Caine.

É hora de vir comigo — insistiu a mãe. — Seremos uma família. Longe daqui.

Você primeiro, Sam — disse Caine. — Vá com a sua mãe.

Não — respondeu Sam.

O rosto de Caine ficou sombrio de fúria.

Vá, Sam. Vá. Vá. Vá com ela. — Agora ele estava gritando. Pa­recia querer agarrar Sam, empurrá-lo para a mãe que eles não haviam compartilhado. Mas seus movimentos eram estranhos, desconjunta- dos, como uma figura feita de palitos, espasmódica, num sonho.

Caine desistiu de tentar.

- Jack contou a você — disse em voz opaca.

Ninguém contou nada — respondeu Sam. — Eu tenho coisas que preciso fazer aqui.

A mãe estendeu os braços para eles, com raiva, exigindo ser obede­cida.

Venham comigo. Venham comigo.

Caine balançou a cabeça devagar.

Não.

Mas agora você é o homem da casa, Sam — adulou a mãe. — Meu homenzinho. Meu.

Não — disse Sam. — Eu sou dono de mim.

E eu nunca fui seu — zombou Caine. — Agora é tarde demais, mãe.

O rosto da mãe oscilou. A carne macia pareceu se partir em peças de um quebra-cabeça. A boca que sorria gentil, implorando, se dissol­veu, afundou. No lugar, surgiu uma boca cercada de dentes afiados como agulhas. Olhos cheios de uma luz verde.

Ainda terei vocês — urrou o monstro, com violência súbita.

Caine ficou olhando, aterrorizado.

O que é você?

O que eu sou? — O monstro zombou dele com selvageria. — Sou o seu futuro. Você virá até mim por conta própria, no lugar escu­ro, Caine. Você virá até mim por livre e espontânea vontade.

Não — protestou Caine.

O monstro gargalhou, um som cruel vindo daquela boca de piranha.

Lentamente, o mostro se esvaiu. A cor retornou ao mundo ao re­dor de Sam e Caine. Ore e Drake se aceleraram de novo até a veloci­dade normal. O ar cheirava outra vez a pólvora. Astrid respirou.

Sam e Caine estavam parados frente a frente.

O mundo era o mundo. O mundo deles. O LGAR. Diana os estava encarando. Astrid ofegou e abriu os olhos.

Caine foi rápido. Levantou as mãos com as palmas para fora.

Mas Sam foi mais rápido. Saltou para Caine, chegou perto e agar­rou a cabeça do irmão com a mão boa.

A palma de Sam estava encostada inteira na têmpora de Caine, os dedos fechados sobre o cabelo dele.

Não me obrigue a fazer isso — alertou Sam.

Caine não tentou recuar. Seus olhos estavam selvagens, cheios de desafio.

Vá em frente, Sam — sussurrou Caine.

Sam balançou a cabeça.

Não.

Está com pena? — zombou Caine.

Você tem de ir embora, Caine — disse Sam, baixinho. — Não quero matá-lo, mas você não pode ficar aqui.

Brianna surgiu a toda velocidade, parou derrapando e apontou uma arma para Caine.

Se Sam não acabar com você, eu acabo. Tenho certeza de que você não é mais rápido do que a Brisa.

Caine ignorou-a, cheio de desprezo, mas agora nunca teria a chan­ce de atacar Sam. Brianna era rápida demais para ser desafiada.

É um erro me deixar vivo, Sam — alertou Caine. — Você sabe que eu vou voltar.

Não. Não volte. Na próxima vez...

Na próxima vez, um de nós vai matar o outro.

Vá embora. Fique longe daqui.

Nunca — disse Caine, com um pouco de sua antiga bravata. — Diana?

Ela pode ficar — disse Astrid.

Pode, Diana? — perguntou Caine.

Astrid Gênio — disse Diana, com seu jeito zombeteiro. — Tão inteligente. Tão incapaz de sacar.

Diana chegou perto de Sam, segurou a bochecha dele com a mão e plantou um beijo de leve no canto de sua boca.

Desculpe, Sam. A garota má termina com o garoto mau. O mun­do é assim. Especialmente este mundo.

E foi embora com Caine. Não segurou a mão que ele estendeu, nem olhou para ele, mas caminhou ao seu lado enquanto ele descia os degraus.

A batalha entre Drake e Ore havia chegado a um impasse exaustivo. Drake estava levantando de novo a mão de chicote para baixá-la sobre os ombros de pedra de Ore, mas os movimentos eram vagarosos, pe­sados como chumbo.

-— Corta essa, Drake — disse Diana. — Você não sabe perceber quando a luta acaba?

Nunca — ofegou Drake.

Caine levantou a mão e quase casualmente puxou Drake, que foi lutando, xingando.

Os coiotes, os que ainda estavam vivos, seguiram-nos, saindo da cidade.

Edilio levantou a arma e apontou contra as feras que se afastavam, humanas ou não. Seus olhos se fixaram nos de Brianna, os dois prepa­rados.

Sam disse:

Não, cara. A guerra acabou.

Edilio baixou a arma com relutância.

Baixe, Brisa. Deixe para lá — disse Sam.

Brianna obedeceu, mais aliviada do que qualquer coisa.

Quinn subiu a escadaria e chegou perto de Edilio. Estava coberto de sangue. Jogou sua arma no chão. Lançou um olhar vazio, infinita­mente triste, para Sam.

Patrick veio subindo agitado, e, com ele5 Lana.

— Sam, deixe-me ver esse braço.

— Não — respondeu Sam. — Estou bem. Vá ver os outros. Salve-os, Lana. Eu não pude. Talvez você possa. Comece com o Pequeno Pete. Ele... ele é muito importante.

Astrid havia retornado à igreja para encontrar o irmão. Reapareceu segurando-o por baixo dos braços, arrastando-o.

Me ajude — implorou Astrid, e Lana correu até ela.

Sam queria ir para perto de Astrid. Precisava. Mas o cansaço abso­luto o enraizou. Apoiou a mão boa no ombro forte de Edilio.

Acho que vencemos — disse Sam.

E — concordou Edilio. — Vou pegar a retroescavadeira. Temos um monte de buracos para cavar.

A comida quase parecia esmagar as mesas. Peru e acompanhamen­tos, molho de amora e a maior coleção de tortas que Sam já vira.

As mesas foram arrumadas primeiro na extremidade sul da praça. Mas depois Albert percebeu que as pessoas não queriam ficar longe das filas de sepulturas na extremidade norte, queriam ficar perto de­las. Os mortos seriam incluídos nesse Dia de Ação de Graças.

Comeram em pratos de papel e usaram garfos de plástico, sentados nas poucas cadeiras ou na grama.

Houve risos.

Houve fungadelas e lágrimas também, enquanto as pessoas relem­bravam antigas ceias de Ação de Graças.

Havia música saindo de um aparelho de som arrumado por Jack Computador.

Lana havia trabalhado dia e noite para curar todo mundo que pu­desse ser curado. Dahra ficou ao seu lado, organizando, priorizando os casos piores, dando apoio e analgésicos para os que tinham de es­perar. Cookie não lutara, mas tinha virado o fiel enfermeiro de Dahra, usando o tamanho e a força para levantar os feridos.

Maria trouxe os pequenos para a grande festa. Ela e seu irmão John prepararam pratos para eles, deram comida na boca de alguns e troca­ram fraldas sobre cobertores abertos na grama.

Ore e Howard estavam sentados sozinhos, num canto. Ore havia lutado contra Drake até o impasse. Mas ninguém — muito menos Ore — tinha esquecido Bette.

A praça era um desastre. O prédio incendiado era um monte de destroços. A igreja tinha apenas três paredes e a torre provavelmente cairia se houvesse uma tempestade.

Tinham queimado os coiotes mortos. Suas cinzas e ossos enchiam várias latas de lixo grandes.

Sam olhava tudo aquilo, meio à parte, equilibrando um prato de comida e tentando não derramar o molho.

Astrid, diga se isso é loucura: estou pensando que, se sobrar al­guma coisa, devemos mandar para a Coates — disse ele. — Você sabe, como uma oferenda de paz.

Não. Não é loucura. — Astrid passou o braço pela cintura dele.

Sabe, venho há tempos pensando num plano.

Que plano?

Tem a ver com você e eu só ficarmos sentados num banco.

Só sentados?

Bem... — Disse ele, permitindo que seu tom elíptico implicasse qualquer quantidade de coisas.

Sam sorriu.

Estou super a fim de implicações elípticas.

Vai me contar o que aconteceu durante o grande sumiço?

Vou. Vou sim. Talvez não hoje. — Ele acenou com a cabeça na direção do Pequeno Pete, curvado sobre um prato de comida e se ba­lançando para trás e para a frente. — Fico feliz porque ele está bem.

É — respondeu Astrid. — Acho que o ferimento, a pancada na cabeça... ah, não importa. Não vamos falar no Pequeno Pete, para variar. Faça o seu discurso e vamos ver se você ao menos sabe o que significa "elíptico".

Meu discurso?

Todo mundo está esperando.

Sem dúvida, percebeu ele, havia olhares cheios de expectativa em sua direção, e uma sensação de algo inacabado no ar.

Tem mais alguma citação boa que eu possa pegar emprestada?

Ela pensou um momento.

Certo, aqui vai uma: "Sem maldade para ninguém, com carida­de para todos, com firmeza no que é certo, como Deus nos permite ver o que é certo, lutemos para terminar o trabalho que temos, curar os ferimentos da nação..." — presidente Lincoln.

É isso mesmo que vai acontecer — disse Sam. — Vou fazer um discurso que se pareça com isso.

Todos eles ainda estão apavorados. — Em seguida, ela se corri­giu. — Todos nós ainda estamos apavorados.

A coisa não acabou — disse Sam. — Você sabe.

Acabou por hoje.

Temos torta — concordou ele. Depois, com um suspiro, subiu na beirada da fonte. — Ei, pessoal.

Não era difícil atrair a atenção deles. Todos se juntaram ao redor. Até os pequeninos diminuíram os risos, pelo menos um pouco.

Em primeiro lugar, obrigado ao Albert e seus ajudantes por essa ceia. Vamos dar um viva ao verdadeiro Sr. McDonald's.

Uma salva de palmas calorosas e alguns risos, e Albert acenou sem graça. Também franziu a testa um pouco, obviamente em conflito com o uso do prefixo "Mc" de um modo que não era aprovado no manual do McDonald's.

E temos de mencionar Lana e Dahra, porque sem elas haveria muito menos gente aqui hoje.

Agora os aplausos foram quase reverentes.

Esta é nossa primeira ceia de Ação de Graças no LGAR — disse Sam quando os aplausos morreram.

Espero que seja a última — gritou alguém.

É. Você mandou bem. Mas estamos aqui. Estamos aqui neste lugar onde nunca quisemos estar. E estamos com medo. E não vou mentir e dizer que daqui em diante tudo vai ser fácil. Vai ser difícil. E vamos ficar com mais um pouco de medo, acho. E tristes. E solitários. Algumas coisas terríveis aconteceram. Algumas coisas terríveis... — Por um momento ele perdeu o fio da meada. Mas então se empertigou de novo. — Mas mesmo assim, estamos agradecidos e damos gra­ças a Deus, se vocês acreditam n'Ele, ou ao destino, ou só a nós mes­mos, a todos nós aqui.

A você, Sam — gritou alguém.

Não, não, não. — Ele descartou isso. — Não. Agradecemos às 19 crianças que estão enterradas aqui. — Ele apontou para as seis filas de três sepulturas e mais uma que começava a sétima fila. Lápides de madeira, pintadas a mão, tinham o nome de Bette e de muitos outros. — E agradecemos aos heróis que estão aqui agora, comendo peru. Nomes demais para ser mencionados, e todos ficariam sem graça mes­mo, mas nós todos os conhecemos.

Houve uma onda de aplausos altos e longos, e muitos rostos se vi­raram para Edilio e Dekka, Taylor e Brianna, e alguns para Quinn.

Todos esperamos que isso acabe. Todos esperamos que logo pos­samos voltar ao mundo com as pessoas que amamos. Mas agora esta­mos aqui. Estamos no LGAR. E o que vamos fazer é trabalhar juntos e cuidar uns dos outros, e ajudar uns aos outros. — Pessoas assentiram, algumas comemoravam.

A maioria de nós é de Praia Perdida. Alguns são da Coates. Al­guns somos... bem, meio estranhos. — Alguns risinhos. — E alguns não. Mas estamos todos aqui, estamos todos nisso juntos. Vamos so­breviver. Se esse é o nosso mundo agora... quero dizer: esse é o nosso mundo agora. É o nosso mundo. Então vamos fazer dele um mundo bom.

Desceu da fonte, em silêncio.

Então alguém começou a bater palmas ritmicamente e a dizer:

Sam, Sam, Sam.

Outros se juntaram, e logo todas as pessoas na praça, até alguns dos pequeninos, estavam entoando seu nome. Quinn estava ali, e Edilio e Lana. Sam disse a Quinn:

Pode me fazer um favor e ficar de olho no Pequeno Pete?

Sem problema, brou.

Aonde você vai? — perguntou Edilio.

Vamos à praia. — Sam pegou a mão de Astrid.

Quer que a gente vá? — perguntou Edilio. Lana enroscou o braço no dele e disse:

Não, Edilio, eles não querem.

O garoto caminhava rigidamente, por causa da queimadura quase curada na lateral do corpo. O coiote ia logo adiante, mostrando o caminho pelo deserto. O sol se punha no oeste, lançando som­bras compridas de pedras e arbustos, pintando a face da montanha num laranja fantasmagórico.

Quanto falta? — perguntou Caine.

Pouco — respondeu Líder da Matilha. —A Escuridão está perto.

 

                                                                                Michael Grant  

 

                      

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