Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MURO BRANCO / Alves Redol
O MURO BRANCO / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Agora, que nos labirintos da vida se confundiram a tua voz e a ternura insubmissa com que alumiaste o nosso encontro, agora, sim, agora posso dedicar-te um romance.
À porta do café cresce uma roda de peralvilhos toureiros e lavradores, a que se juntam vadielas, graxas e vendedores de lotarias, quase todos calados pelo espanto ou pela inveja, de olhar excitado que por momentos se ausenta, quando o dono se evade pelas portas da imaginação. Devem sonhar-se a rodar por essas estradas com alguém à ilharga, numa companhia que nunca lhes caberá, ambos sentados nos dois cadeirões fundos, sem pernas, de coiro preto, entre os quais há um cinzeiro cromado, perto da alavanca das velocidades.
Cabeças mexeriqueiras vêm acrescentar-se ao pasmo dos presentes, acenam ou babujam um insulto, ficam umas, outras afastam-se entre o deslumbramento e a pachorra: quanto custará um bicho daqueles? - trezentos contos ou mais, explica uma voz neutra.
A quem se aproxima para perceber a razão do ajuntamento, o automóvel mal se adivinha, acaçapado na rua.
Sente-se-lhe o poder nas linhas mestras da carroçaria, bem agarrada à carcaça essencial de uma máquina ágil e potente, de resposta imediata para os improvisos e reflexos de quem o comandará. Parece um peixe monstruoso, de boca entreaberta e olhos facetados sobre os guarda-lamas.

 


 


Cor de chumbo oxidado, sem o brilho parolo do carro para novo-rico, assenta em pneus de diamante largo que lhe emprestam mais vigor às linhas poderosas de todo o corpo apto ao delírio das vertigens.
Será uma espécie de animal voraz, imaginado para estraçalhar o tempo e a distância.
António Mendanha, D. António de Farragudo, casado com uma das Relvas, está ao volante do carro de modelo especial que mandou importar de Itália. Ano de cortiça, ano de preguiça e de cobiça. Vem mostrar-se à vila num dos seus alardes, já roncou vaidade por todas as ruas principais, e agora pô-lo à porta do café, na montra pública das grandes novidades.
"- Quanto dá? - pergunta Manuel Pedro.
- Mais de duzentos à hora. Tem uma porrada de cavalos, não sei quantos.
- Isso é um bicho, D. António!
- Mama gasolina que nem uma besta. Vieram trazer-mo esta manhã, e logo que faça a rodagem largo-me até Madrid. Quero ver em quanto tempo lá me ponho.
- Aí seis horas -diz o veterinário.
- Se viajar de noite, talvez menos de cinco."
Faz menção de sair do carro e a roda alarga-se para ele passar. Apoia-se no volante e nas costas do assento para saltar lá de dentro. Pensa que exagerou na compra,
é automóvel de mais para a sua coragem, embora goze com o sucesso de Cascais, quando der uma volta até ao Guincho, onde a mulher mandou construir outra casa de Verão,
piscina de água salgada, piscina de água doce, mesmo em cima da falésia, talvez para gozar a impressão de que navega pelo mar dentro, sentada na otomana que mandou
vir da Suécia com os dois jogos de maples para a sala de convívio.
10
Escolhe mesa perto do balcão, mesmo ao canto, de maneira a ver o automóvel lá fora. Pede uma água medicinal. O seu grupo envolve-o, de pé, à espera que António Mendanha
faça um gesto para puxarem cadeiras. Hoje vai pagar uma rodada de cerveja, julgam os outros. E não se enganam. Continuam a falar do carro, é uma loba, tem dois carburadores,
numas dezenas de metros atinge os cem, não admira.
Miguel Rico entra pela porta principal e dirige-se para a mesa. D. António de Farragudo enerva-se com a aproximação, fica um tanto lívido, cala-se. Mas as palavras
do recém-chegado desdizem os receios do fidalgo, que há menos de uma semana lhe mandou para o tribunal a letra do empréstimo. Mais ainda do que as palavras sem a
sombra de um despeito, acalmam o Mendanha a expressão aberta de Zé Miguel, faceto e descarado, no pensar de alguns que o sabem falido.
Distribui palmadas nas costas, pede cerveja, sim, de garrafa, e tira um charuto, que lambe e acende com minúcias exageradas. Como o cerco se não abre, força-o, obrigando
o veterinário e o Dr. Casquilho do Vale, seu advogado até hoje, a afastarem-se para que ele enfie na roda a sua cadeira, nas costas da qual apoia os braços, num
jeito muito seu de acamaradar.
"-? A uma mulher não se pergunta a idade e ao dono de um carro não se pergunta quanto custou. Mas e um carrão, D. António! Se não custou, vale trezentas e cinquenta
brasas..."
O outro fica ancho entre a corte, e sorri de blandícia, talvez repeso de obedecer a Rui Diogo Relvas, o Saca-Rolhas, que lhe mandou apresentar a letra já vencida
na secretaria judicial da comarca, Gosta do Zé Miguel, fez-lhe muitos jeitos com a amante, um cara-direita, sim
11
senhor, ainda bem que ele não levou a mal a acção ordenada.
"-Davas esse dinheiro por ele?!...
- Se o tivesse, dava-lho, D. António. O senhor sabe escolher... Apreciei sempre as pessoas que sabem escolher.
- Por cá não se compra daquilo - presume o fidalgo, aquecendo o copo entre as mãos débeis de tuberculoso. - Mas é um cronómetro; nada falha.
- Se o D. António quiser entrar num rally, ninguém o agarra. Digo-lho eu.
-Tu conheces bem o que é um carro."
Miguel Rico mostra as mãos marcadas de calos. Tem
ainda o anel de pedra vermelha no dedo da mão direita. "- Nasceram-lhe as mãos ao volante. Trago milhões
de quilómetros nos braços. E digo aqui e em qualquer
parte que o D. António comprou um carrão. Ainda bem
que sabe escolher e gastar o seu dinheiro.
- Recebi-o esta manhã.
- Deus lhe dê vida e saúde para o gozar por muitos anos.
- Obrigado, Zé!"
Comove-o, não muito, a compreensão do outro. Ou será que lhe vem pedir dinheiro emprestado? Talvez lho empreste..
"- Quando cheguei ao pé do carro e o vi, disse logo: esta maravilha é do D. António Mendanha. Há cá pelo Ribatejo quem tenha dinheiro pra comprar um carro daqueles,
lá isso há, mas não conheço outro capaz de se jogar num bicho assim. É preciso raça pra perceber um automóvel. E o senhor conhece as coisas boas."
Trocam um olhar subentendido.
"- Vamos ver se lhe faço uma boa rodagem.
-Mande-a fazer por alguém...
12
- Não há muita gente pra isso. Sabes bem, Zé. Rodar um automóvel daqueles não é o mesmo que queimar um cachimbo.
-? Já se vê que não! - avança o advogado, que ainda não abrira boca depois que Zé Miguel se metera no grupo. Temeu-o também à entrada. Embora ache descaro vir alardear
de charuto para o café, prefere-o assim, resignado, a rasgar o mundo com ameaças por causa do sarilho que arranjou na vida.
- Um cachimbo queima-se a tabaco, quanto mais melhor. Qualquer pescador velho com vício prepara um cachimbo.
- Um automóvel daqueles é como um cavalo de raça...
-Ou uma mulher...
- Uma mulher de raça.
- Um cavalo como o meu Príncipe vale mais do que qualquer mulher."
Fala no cavalo para tentar perceber se algum deles já sabe o que se passou naquela manhã. Corre o olhar e certifica-se de que o Carlos Custódio não relatou ao D.
António Mendanha a conversa que tiveram.
"- Mas um carro daqueles vale todos os cavalos da feira da Golegã.
- Todos, Zé?
- Sim, senhor. Pra mim vale à vontade."
Só ele sabe ao que veio. Adivinha que a oportunidade não lhe escapa. Matreiro, sábio e arteiro, vai tecendo a teia do que pretende, fio após fio, sem pressa. Basta-lhe
arrancar dali até às quatro.
"-? Um homem vale plo carro em que passeia. E pla mulher que passeia - perora o Dr. Vale, já refeito.
-? Mas o doutor tem medo dos carros e das mulheres.
- Não diga isso, Zé Miguel.
13
- Lá está o doutor com apartes; tenha paciência. Nunca lhe vi um carro decente nem mulher capaz. Os carros ficam sem categoria nas suas mãos; o senhor tem medo deles.
E quanto a mulheres, estamos falados..."
Os outros riem. Mais da expressão desvairada e contida do advogado do que do tom faceiro empregado pelo Zé Miguel para o amesquinhar. Este fuma o charuto e atira
baforadas para a cara indignada do seu transistor, como chamava na intimidade da família ao Casquilho do Vale.
"-O doutor veio um dia pedir-me pra eu lhe tomar conta duma delas...
- Porque a mulher era doida e eu não gosto de sarilhos. Não sou como você.
- Pois é isso mesmo: o senhor arma os sarilhos e depois foge. O senhor é daqueles que gostava de bater as palmas a um toiro, se tivesse a certeza que o toiro arrancava
e lhe fazia uma festa na barriga.
- E então?
- Então, gaita! Se não tem coragem, compre um cão e meta-se em casa."
Quando o advogado atira um salto para sair do grupo, Zé Miguel deita-lhe a batota ao braço, aperta, aperta, e obriga-o a sentar-se, sem desviar os olhos do olhar
irado do outro.
"- Fazemos uma aposta.
-Eu teimo, mas não aposto.
- Pois então fica a aposta de lado. Mas desafio o doutor a meter-se no carro do D. António quando ele o tiver rodado.
- E no seguro - acrescenta o fidalgo, obrigando a outra onda de gargalhadas.
- Sim, senhor, e no seguro, se o doutor se puser em Lisboa em menos de trinta e cinco minutos. Corto a cabeça.
14
- Ninguém lha quer - refila o advogado.
- Também não a vendo; pelo menos a certos malandros sem categoria, não a vendo."
Derretem o Casquilho do Vale numa refrega de alusões e histórias vis. Depois cansam-se e voltam ao carro. Zé Miguel oferece-se para acompanhar D. António Mendanha,
quando ele repete o seu gosto de ver quanto tempo leva até Madrid. São mais de seiscentos quilómetros.
"- Se o D. (António quiser, eu revezo-me consigo. Não tenho as suas unhas, mas não me falta genica para picar aos cento e oitenta quando a estrada deixar.
- Cento e oitenta?
- Aquele carro que está ali pode chegar aos duzentos. Comprei-o pra isso!
- Depende da rodagem.
- E eu não tenho paciência. Quando me meto num carro daqueles, é para andar; esqueço-me da família e de tudo. (Todos sabem que presume.)
- Se o D. António quiser... faço-lhe a rodagem. A preceito. Já me conhece.

sério:
- A sério! Palavra dhomem!... Sigo as instruções da fábrica como um relógio afinado. Nem mais um quilómetro nem menos um segundo.
-Quando queres começar, Zé?
- Às suas ordens, patrão!
- Toma lá as chaves.
- Não é tarde nem é cedo."
Olha o relógio, que tira do bolso. Os outros não lhe reparam nas mãos, mas ambas tremem um pouco. Só um pouco. Mais a esquerda, que ele sente pesada há um tempo.
"- São quatro horas. Às sete e meia estou de volta.
- Posso ir? - pergunta o veterinário para o fidalgo.
15
- Pois claro que pode, doutor.
- Se o D. António der licença, e com a sua licença, o carro é meu enquanto fizer a rodagem. Numa rodagem a pessoa não se deve distrair. Tudo conta.
- O Zé Miguel parece um homem de ciência.
-? Tudo tem a sua ciência, doutor. E eu tenho a minha, por muito pouco que pareça."
Bebe o resto da segunda cerveja, agarra nas chaves do carro e dirige-se para a porta do café.
"-É um gajo tramado, este Zé- comenta o Mendanha. - Tem coragem pra vinte.
- A coragem agora serve-lhe de pouco - remata o advogado.
- Ainda não jogou a última, penso eu.
- Eu sei melhor do que ninguém o que pode ser agora a vida dele. Subiu alto de mais..."
Dirigem-se todos para o passeio, menos Manuel Pedro, que ficou calado. Conhece Zé Miguel melhor do que os outros. Que vai ele fazer com o carro?!... Quando chega
à porta, só ouve o ruído do motor no arranque.
Parece um peixe monstruoso a voar sobre o asfalto da rua.
As pessoas ficam ainda algum tempo voltadas para o lado onde Zé Miguel desapareceu. Ele agarra o volante a mãos ambas, sente-as suadas da emoção que viveu até D.
António Mendanha, António de Farragudo e Tal e Tal e Coisa, lhe passar as chaves. Agora só lhe falta ir buscar a rapariga. Conhece o futuro todo até ao fim. No regresso
irá parar no muro branco da curva. Em cima do muro branco da curva, aí a duzentos metros de Aldebarã, onde nasceu.
Mete-se no casulo da velocidade e quase esquece ao que vai. Não recorda, sequer, que lhe doem as mãos. Mais a esquerda. Eu diria que as mãos lhe choram.
16
SE soubesse exprimir o que sente, o que começou a sentir mal se percebeu agarrado pelo azar, ele diria que as mãos lhe choravam mesmo a dormir. É isso, sim, é isso,
carago! Agora fica-me esta moinha. Uma moinha que se insinua nos dedos, quase dor, e que de repente engrossa, entupindo o lento vaguear dessa ameaça sorrateira,
vagamente recordada nos alarmes de um receio, medo, não, carago, isso também não, de um receio invocado pela bolha de sangue, minúscula e misteriosa, nascida não
se adivinha onde, mas que se sabe para onde caminha.
E que todos os dias caminha e vagueia, um pouco tonta, mas sempre determinada, para num momento qualquer que ele não descobre se atirar de improviso, às cegas, pelo
túnel das veias à procura do coração. Procura-o para lhe ferrar uma bicada de morte, sacode-o uma só vez, como os cães fazem às lebres, e depois espera o fim.
Sempre imaginou a bolha de sangue coalhado com um bico pequeno e venenoso, e pensa, tenho a certeza, mas não fico à espera que ela me morda, pois sim, digamos então
que tem a certeza de que já nasceu dentro dele, no casulo daquela moinha pegajosa e lenta.
17
Ouviu falar nisso há muitos anos, riu-se da ideia tola, mas depois, sozinho, encarou a sério essa revelação absurda, sentindo-se menos do que um grão de areia, coisa
lixada, carago!, porque em seu entender a morte devia ganhar brio para lutar cara a cara com os homens que lhe aceitassem o desafio. Sem medo.
E tanto remoeu na ideia que certa noite sonhou numa luta com a morte.
O desafio fora marcado para a meia-noite, num sítio ermo rodeado de choupos esguios, grandes e negros como um acipreste, assim mesmo é que os vi, quando penso nisto
até me arrepio todo; eu voltava do campo com o meu avô António Seis Dedos, e quando a gente passou a cavalo, vinfia eu à garupa, começaram a acender-se luzes nas
campas do cemitério, e as luzes corriam atrás umas das outras, e vai daí eu perguntei: ah meu avô que luzes são aquelas?, parecem bichas de rabiar; e ele disse que
eram almas penadas, almas do outro mundo que queriam faiar à gente, ali no meio dos aciprestes, e por isso, quando sonhei na luta com a morte, os choupos eram grandes
e negros como aciprestes.
A morte chegou de carro para o encontro. Um carro de quatro rodas pequenas, sem raios, que depois começaram a crescer até ficarem do tamanho das rodas de uma carroça
azul, pintada de novo, com riscos amarelos à volta dos taipais e ramos de flores mesmo ao centro de cada um. Flores cor-de-rosa, brancas e amarelas, envolvidas por
folhas verdes e miúdas, num ramo apertado por um baraço preto com jeito de laço. (Se daqui por um ano ou dois, Zé Miguel sonhasse outra vez numa luta com o mesmo
adversário e todo o sonho pudesse ser revivido, a morte viria de carro, mas este talvez tivesse rodas diferentes, super-rodas num supercarro, puxado a cavalos, com
um chicote para o pé direito apertar quando quisesse ver
18
o conta-quilómetros galgar para além dos cento e cinquenta.)
Agora vai a pouco mais de sessenta, deixa-se quase adormecer na recta da Cruz Quebrada e nem dá pelo cheiro pestilento que o envolve durante segundos. Lembra-se
da luta sonhada há mais de quarenta anos, porque ainda não esqueceu o avô, nem se esqueceu dele próprio quando era criança e ia morrendo num carro de madeira feito
pelo segeiro de Aldebars para ele brincar.
Preocupa-o qualquer coisa que ainda é segredo para os outros. Talvez aquela moinha grossa, espalhada, a vaguear lentamente nos seus dedos. Que tremem. Não muito;
não tanto que possa julgar-se tomado de tremuras pela primeira vez. As mãos doem-lhe, na verdade. Mas sabe-lhe bem presumir que nunca estremeceu em toda a vida.
Ou, pelo menos, nas ocasiões em que vale a pena reparar nisso.
Convém-lhe o engano, talvez para compreender sem dúvidas a viagem que resolveu iniciar há vinte e quatro horas. Ou um pouco mais... Não interessa o tempo nesta altura.
Duas ou três, mesmo seis horas, fazem diferença?... Sim, fazem diferença em momentos decisivos para a vida. Quando se depende, por exemplo, da reponta de uma maré
ou da baixa-mar, se um barco foge às horas marcadas pelo perigo de um encontro, ou se é preciso chegar à lota antes dos outros, numa carreira maluca de curvas e
contracurvas, por cima de toda a folha, bons tempos, Zé, bons tempos!, não doíam as mãos nem a alma, andava um homem cheio de ganas para chegar à frente dos camaradas
por causa dos prémios que os comerciantes de peixe ofereciam, andava um homem cheio de ganas para alcançar o topo das coisas invejadas desde a juventude, quando
se não nasce em berço de oiro.
Agora, que conseguiu trazer a rapariga para dentro do carro, embrulha-se em pensamentos, repara em certas
19
dores que lhe esfarpam o corpo, e fica arrependido de a ter procurado. Não entende ainda porquê, ou talvez o saiba em demasia. Pensa mais uma vez que seria bem melhor
para todos fazer a viagem sozinho.
Todos quem?... Sim, quem?! Quem são todos, afinal? Ocorre-lhe o rosto de alguns deles, primeiro o de Rui Diogo Relvas, de barba quase branca, que tem esse gajo a
ver comigo e com a rapariga?, e depois surge-lhe um outro que se sobrepõe aos demais e vê sem levantar os olhos, talvez por vergonha e remorso, diga que é o do meu
filho, carago!, sim, o rosto do filho que sabe morto e nunca recorda morto, embora o adivinhe deitado sobre o sofá da sala, como se alguém o pusesse a dormir nestes
anos de vertigem.
Dói-lhe mais do que a outra a sua mão esquerda, exactamente a que se queixa agora, um nadinha mais pesada do que a outra. Mão rija, carago! Mão que saía ao dono
na raiva e na gana de agarrar fosse o que fosse, sem dar de si, como um alicate, ou mais ainda, uma tarraxa, isso mesmo, uma tarraxa, pior do que um cão boxer quando
deita os dentes àquilo a que se agarra, cego de raiva, cego de mãos e de pés ao atirar-se à maluca pelas estradas do peixe onde a morte espreita, sem licença de
Deus. Aí é que se vê quem tem unhas e tomates para um volante, quem pode ter medo?, em cima duns cangalhos velhos que a vinte à hora quase se partem e a picar nos
cem se apertam nas folgas do chassis e aguentam corridas de morte como um cavalo sem freio.
De repente lembra-se do cavalo velho, do penco malhado, e dá-lhe ainda vontade de rir.
Olha-se pelo espelho do retrovisor e repara que só lhe riem os olhos bugalhitos e travessos. Riem-se por baixo da película de mágoa, cravada de lágrimas, que chorou
20
naquela manhã ao abraçar outro cavalo, o seu, o Príncipe, negro, negro morzelo, negro e ondeado na garupa.
Do penoo nem sabia o nome, velho e sendeiro cavalo de carroça com tantas manhas como de mazelas e malhas lhe pesavam nos lombos tísicos de fome. Ouve-lhe Os relinchos,
não se comove, nem o nome lhe conhecia, e volta a carregar o pé no acelerador, parece que perdeu a sensibilidade, ou talvez à espera de qualquer reparo da rapariga,
fingindo que ela não fala, pois não pode confessar-lhe que já recomeçaram a viagem mais importante da sua vida. Há agora coisas importantes nesta altura ou tudo
será igual?... Corja de malandros!
Repete o insulto em voz alta. Da primeira vez quase num murmúrio, depois mais acima do ruído do motor acelerado aos cento e dez, mesmo um pouco por cima, como se
a sua voz pisasse o ruído sem se afastar muito, de maneira que a rapariga não percebesse todos os palavrões escolhidos para eles, os outros, os que lhe tinham feito
a vida negra; depois perde a tineta e põe-se a gritá-los um pouco para toda a gente que ultrapassa na estrada marginal, sem agora ver o rio, sabendo-se incapaz de
parar na curva donde abrange a baía de Cascais.
Nunca dissera mais do que "isto aqui é bonito, é um sítio giro, como tu dizes, muito giro", mas entrava nele uma calma quase súbita quando ali se detinha no regresso
a Lisboa, virado para a baía quieta, sem águas vivas; dali o mar parecia estático e o azul coalhado, qualquer coisa azul, parada entre luzes, à espera.
Ela pergunta-lhe sem se voltar:
- Que estás a dizer?
Abria a boca pela primeira vez depois que saíra de casa. Não lhe apetecia o passeio, julgava tudo acabado no último encontro, há quase quinze dias, e a mãe obrigara-a
a vir, usando os argumentos do costume.
21
- Julguei que eras muda - diz-lhe desinteressado, atento ao carro e às respostas do motor quando o acelera para lhe meter a terceira e logo depois a segunda, de
maneira que guinche nas curvas e se dome ao toque da mão esquerda no volante. Que raio de coisa tenho eu na mão?... Doença de velho, reumático, Ou é a morte?
Desperta com a interrogação, alarma-se, pode temer a modorra em que se deixara embalar. (Compreende-se; talvez no fundo de si vibrem ainda, tensos, os últimos fios
de aço do seu vigor selvagem.) Prime mais o acelerador com o pé, atira sobre ele o peso da perna direita, quase esquecida momentos antes, e o automóvel sobressalta-se
também, obrigando-o a recordar-se das upas nervosas do seu cavalo morzelo, quando lhe fincava a roseta das esporas na curva da verga.
Ficam ambos empolgados, mais a máquina do que o homem.
Distraída, a rapariga demora-se na linha repousada do horizonte para além do Bugio. Sorve o cigarro, quase o lambe, e expele o fumo suavemente com os lábios grossos,
entreabertos, deixando-se envolver pela nuvem cinzenta, logo cortada pelo andamento que a desfaz. Depois deixa cair a nuca sobre as costas do estofo de coiro negro,
compõe para trás do rebordo os cabelos caídos, tem-nos loiros, ficam bem em cima de fundo escuro, e esgazeia os olhos para o céu, a presumir que cavalga um sonho,
ou vivê-lo-á, quem sabe?, na aparência fútil do rosto copiado.
Ele não repara, quero lá saber de partes!, hesita ainda na sem-razão de a ter procurado para esta viagem, e acaba por atirar-se para dentro do torvelinho da velocidade,
como se fugisse à morte, na qual pensou há instantes, ou, pelo contrário, talvez a queira defrontar mais uma vez, antes do grande encontro, lembrando-se do duelo
que
22
haviam travado há muitos anos, quando a morte iluminada chegou numa carroça pintada de azul.
Meteu-se na galeira da vertigem, procura esquecer, esquecer, embraiagem-mudança, precisa de ficar ausente de tudo, alguma vez um homem se esquece de tudo, mesmo
quando dorme?, move o volante em pequenos toques frenéticos para que a mão trepide e se esqueça que lhe dói, precisa de esquecer, esquecer, embraiagem-mudança, e
o carro entra nas curvas em segunda, depois atira-o em dois golpes da direita -para a velocidade onde a consciência se indefine, quase lhe apetece gritar a incitá-lo
noutra rampa aos ziguezagues. Aperta a curva, os pneus ganem, agora consegui pô-lo só em cima das duas rodas de dentro, quer obrigar a rapariga a empertigar-se no
canto, lá está ela a fazer força, como se pudesse com o seu corpo frágil contrabalançar a marcha tempestuosa da máquina em fúria.
Lembra-se outra vez da carroça azul e do avô.
Espera que a rapariga se assuste, precisa de descobrir até onde ela aguenta a sensação de perigo, e olha-a de soslaio, a sorrir, num sorriso amargo que lhe escalda
a boca, mas vê-a afogueada de entusiasmo, mais bela do que nos momentos de amor, esta gaja gosta mais de andar na mecha do que ém mim, insiste com o pé, talvez te
lixes, alarga-se numa curva para fora da linha branca que divide o asfalto, o abismo aparece-lhe à frente e tem a impressão de que poderia agora resolver tudo.
Ela solta um grito, agarra-lhe o braço e aperta-o, sacode-o, bate-lhe, grita outra vez, arrepela-o, e depois começa a chorar aos ganidos sem uma lágrima, trémula,
desvairada e trémula. Zé Miguel deixa o motor refrear-se, mete-se em cima da faixa do meio da estrada e depois guina com suavidade para dentro do parque. A mão dela
continua a apertar-lhe o braço, e ele diz aperta, aperta
23
mais, porque os dedos esmagam a dor pastosa e lenta que lhe mina o sangue.
Apetece bater-lhe e passa-lhe a mão pelos cabelos. Acende um cigarro.
- Devo ter um parafuso a menos na cabeça. Desde pequeno que sinto isso...
- És maluco ou estás bêbedo ?
- Ainda não. Mas vou beber contigo... O parafuso de vez em quando salta. Nas alturas mais importantes o parafuso salta.
Cala-se por momentos a pensar no automóvel.
- Chegámos a cento e oitenta. O que sucedia à gente se saltasse um parafuso importante a cento e oitenta? Ficávamos feitos em trampa... Voltávamos ao que somos.
A mim salta-me sempre o parafuso quando vou a cento e oitenta.
Ela aquietou-se, desliza no assento e deita-lhe a cabeça no regaço. Sabe que ele gosta. Não gosta dele, nunca gostou, mas precisa agora de aquietá-lo, ignora ainda
porquê.
- Que queres dizer com isso, pá?
- Isto mesmo, sem tirar nem pôr... Salta-me sempre um parafuso. E é da cabeça. Mesmo do sítio mais melindroso da cabeça. Depois volta, mas um dia é tarde e acaba-se.
Não estou arrependido, carago! Gozei muito...
- Não entendo...
- Já é tarde prà gente perceber as-coisas. Talvez nem valha a pena querer percebê-las. Não sei se é bom, se é mau; mas já é tarde. Que se lixe! Se pudesse voltar
ao princípio, outro galo me cantaria. Mas não posso. A vida deu-me uma cornada de morte: uma cornada pra cavalo de picador. Pus-me a jeito e eles não me perdoaram.
24
Fala de voz partida, sem estridências. Ela estranha-o, embora não descubra que as palavras dele soluçam, molhadas e condoídas. Tenta distraí-lo:
- Este carro é bonito; é da cor que eu gosto. Já o compraste?...
Mente. Apetece-lhe rir com a partida imaginada para o dono.
- Trezentos e trinta e cinco contos... Pago-os hoje mesmo às sete e meia.
Deixa cair a mão sobre o rosto dela, acarinha-o num toque receoso, desvia depois os dedos para lhe agarrar no queixo e sente que ela o morde. Adivinha-a de olhos
cerrados, a dar-lhe dentadas numa insinuação que o corpo já não aceita.
- Até à noite vamos beber. Hoje é dia de beber. Quando a noite chegar, vamos os dois...
- Fazer o quê?!...
- Quando a noite chegar vamos até à estrada velha de Vila Franca. É a minha estrada.
- Porquê?
-? A minha vida está mais presa a ela do que a qualquer outra coisa.
Atropelam-se lembranças dentro de si.
- À noite, neste tempo, aí pelas sete horas, parece uma serpente de fogo. À noite, a estrada arde toda...
- Quem te disse?
- Eu...
Depois hesita na mentirola, sabendo que ela não o acredita.
- Não, não fui eu que disse, mas senti. O Dr. Casquilho, conheces...
- O teu transistor.
- Esse mesmo.
25
Diz aquilo e começa a rir destemperado até às lágrimas. A rapariga contamina-se e sente-lhe os estremecimentos das gargalhadas na perna onde deitou a cabeça.
- Uma besta! Uma besta faladora... Agora vai deixar de ser o meu transistor - diz com mágoa e escárnio.
- Não lhe pago mais, vai deixar de falar por minha conta. Já não sou o patrão Zé pra ninguém...
- Acabas com os negócios?
Não lhe responde. Só lhe apetece saltar para o meio da estrada a pedir socorro. Viria alguém?! Sabe que não.
- Fica sem as minhas baterias de notas de quinhentos, mas arranja outras depressa. Vende patuá em latas de cinco contos.
Um tanto surpresa, a rapariga ergue a cabeça e encara-o:
- Pareces outra pessoa a falar...
- Talvez... Começo a falar tarde. Há pássaros que cantam melhor quando andam com o cio. Vocês na cidade não sabem disso, sabem pouco; mas do que sabem, chega pra
enganar a gente.
Depois martela as palavras:
- Cantam melhor com o cio ou quando vão morrer.
- E tu?!...
- Eu?!... Sei lá!
- Eu perdi o parafuso e desta vez para sempre. Uma gaita! É uma gaita do catano!
26

Não foi exactamente assim que a mãe se exprimiu, quando o viu chegar a casa, há muitos anos já. Não interessa quantos. Quase quarenta. Como o tempo passa, carago!
Mas ele nunca mais esqueceu o sentido dessa sentença sem apelo. Dura e implacável, sem apelo.
Ouve-lhe ainda a voz, não a desse tempo, mas a outra com que lhe falou numa noite de verdades amargas, em
que tinha o pessoal deixado o trabalho para aparecer na vila a reclamar contra a falta de géneros. Nessa noite ela ralhou com a faca da voz afiada, pronta a cortar
a corda de uma viola, num só golpe. Porquê?!... Levámos a vida inteira a pegar um com o outro. Eu gostava dela, não via outra coisa; mas ela, não percebo porquê,
gostou sempre mais do meu irmão do que de mim.
O alarido do povo trouxe-a num pressentimento até à porta. Deu-lhe o coração uma pancada bruta, correu do quintal e, sobre a soleira da porta, ficou tolhida, incapaz
de dar um passo, mal o adivinhou nos braços do João Inácio, seu primo por parte do pai.
Só imprecou de voz afiada:
"- Esse maldito tem um parafuso a menos na cabeça. - E acrescentara: - O maldito do rapaz precisa de
27
ser desbastado como um poldro arisco; falta-lhe espora e chicote, mas eu basto-lhe, já que mais ninguém lhe mete o freio."
Ele continuara de olhos cerrados, trémulo, a fingir que a queda fora mortal. A fazer teatrada, talvez na esperança de a ver chorar por si, ante o espectáculo de
sangue e alarido que se lhe deparou. Mas Irene Atouguia ficou sobre a soleira da porta, mais pálida, confessou às vizinhas que não conseguira dar um passo, tamanho
medo agarrara; para ele, contudo, ela não sentiu mais do que aquelas palavras duras e implacáveis com que o hostilizara.
Nunca mais as esqueceu. Nunca mais o tempo as limpou da mácula desse instante.
Se a mãe tivesse chorado alguma vez por ele, à sua frente, quem sabe?, é possível que não empreendesse esta viagem sem regresso. Ficou incapaz, porém, de forçar
agora qualquer das portas que se abririam, suponho ainda, para um homem violento e decidido.
Deixou de acreditar em si. Talvez, presumo eu, dou uma hipótese, desde o dia em que destruiu o filho para não atraiçoar um dos seus mitos. Um dos mitos que lhe entregaram
já construído e justificado, no aparato do trono para a raça estremada dos homens viris numa saga de brutalidade. E de empáfia cretina.
As mulheres desvairam-no. Precisa delas para assistirem às suas exibições de mando e desmando, mas despreza-as. Exaltam-no e despreza-as. Vê a mãe em cada uma e
nem uma só lhe merece confiança. Se nem a mãe gostou dele, pensa, pode alguma mulher merecê-lo inteiramente?... Uma mulher vale menos do que um cavalo. Um cavalo
conhece o dono; a mulher nunca conhece o amante, a não ser quando precisa de amor ou de luxo. A esta hora, nem mais um minuto, a mulher que levou ao
28
altar reza por ele em casa. De mãos caídas no regaço, fecha os olhos e reza; nada mais está ao seu alcance para repelir o que teme.
Ainda não trocaram uma palavra acerca da falência; Alice Gilvaz percebe no entanto que acabou o seu tempo maravilhoso de senhora. Deve essa honra ao seu homem, nunca
pensou chegar até onde foi com ele, mas molesta-se ao pressagiar a ameaça que já sente a pairar sobre si.
Veio de criada do palácio dos Relvas, do Sr. Rui Diogo e dos meninos, aí viveu quase dez anos para o marido a receber na igreja de Aldebarã. Julga hoje que o Zé
Miguel a fez sua mulher por mor da protecção do Relvas. A dúvida tira-lhe fervor às orações. Depois pensa no filho e reza também por sua alma. Sente-lhe a falta.
Agora adivinha, cada segundo lho confirma, que terá de vender, daqui por pouco tempo, a cruz de brilhantes oferecida pelo seu Zé, faz quatro anos pela feira. Custou
vinte contos. Leva aí uma jóia de rainha, dissera o joalheiro de Lisboa. Pô-la hoje, embora não saia de casa, supondo que irá usá-la só mais uns dias. Traz ao pescoço,
inútil, mais dez vezes o valor de quanto havia em casa dos pais. A comparação atemoriza-a. Então, quebra-se-lhe a soberba e reza mais, na esperança de afastar com
a devoção o perigo que pressente.
Zé Miguel carrega a certeza. Só lhe legaram certezas irremediáveis.
Lembra-se da morte quando ela lhe tocou a primeira vez, há quase quarenta anos e sabe que chega de carro. Escolheu-a e sabe. À volta das sete horas da noite num
muro caiado de branco marcou-lhe encontro. Desta vez ele não faltará, palavra dhomem! Eu cegue! Agora não volto atrás. Recuso-me a viver ao jeito dos outros. Os
olhos turvam-se-lhe.
29
Da bosseladura do parietal para o meio das sobrancelhas, lá está a marca do coice que a morte lhe deu: uma cicatriz mal tratada, de menino pobre, vermelha, tortuosa,
que entumesce quando ele se irrita. Parece uma veia a mais no seu corpo. Por ela deveria caminhar o coágulo de sangue podre que o fulminasse para sempre, há cerca
de um mês. Sim, no dia em que se certificou do isolamento decretado pelos outros, por essa pandilha, de bandidos.
Nem essa mercê, porém, o destino lhe concede. Deixam-lhe sempre a obrigação de decidir e fazer tudo. É de mais. A própria morte recusa-se ajudá-lo. Já é azar o meu,
carago! Deviam dar-me uma morte santa. Ao menos isso. Incumbe-lhe a responsabilidade inteira, estreminha, sem deixar dúvidas a ninguém. Mas já que assim querem,
talvez para o experimentarem, aí têm a decisão. Cobarde, não, nunca fui cobarde. Depois das sete, sete e um quarto, não faltará ao encontro no muro branco, semelhante
ao que viu em Badajoz no Verão de 37. A meio da tarde, doía respirar, doía ver, doía caminhar, há uma figura recortada a negro no muro e um pelotão de armas apontadas.
Olvidemos as histórias interditas.
Quase vinte anos antes, a própria mãe lho contou, trouxeram-no a casa, de cabeça aberta numa fonte de sangue vivo. Um cristo infante, retalhado em feridas e dores,
entre a grita de carpideiras e o alvoroço da aldeia que o supunha morto. Uma romaria de gente na cola do João Inácio, poldreiro dos Relvas, que lhe pegara à matroca,
atirando-o para riba dos ombros, como um raposo baleado, mal deu com o rapaz a esvair-se ao pé do choupo onde o carro de brincar se escavacara. (Só agora compreendemos
a razão de aparecer rodeado de choupos negros como aciprestes o local do seu primeiro encontro com a morte.)
30
Para ajudar ao ritual do drama, fingira-se desmaiado, nesse gosto que o não larga de dar nas vistas e de se saber falado, mas também para que a mãe se amerciasse
da desgraça e erguesse dessa vez a bandeira da misericórdia. Mão leve tinha ela para o zurzir com a correia de coiro dobrado, mal o agarrava fora das marcas do seu
jeito de mulher sisuda.
E nem assim.
Ficara assolapada no rebate da porta, largando a sentença que ainda hoje o marca ao olhar a baía serena, o navio de chaminé amarela, lento, já guiado pelo barco
dos pilotos, fui algumas vezes a Tânger e a Gibraltar; é bom viajar num navio. Saíram ambos do carro, desgarrados. Ele põe o pé sobre a vedação de pedra, seguindo
o rasto do paquete nas águas do Tejo, mas voltado logo depois para as recordações da infância. Zulmira deambula no terreiro do parque, joga com cinco pedras escolhidas
no chão, e aproxima-se dele.
Como se aguardasse a presença da rapariga para falar em voz alta, Zé Miguel conta o que a mãe disse à porta, e acrescenta, acrescenta o que sabe e o que imagina.
Indiferente, preocupada em segurar os cabelos loiros revoltos pela brisa, Zulmira não distingue o que ele conta.
"- Todas as semanas, pra não dizer todos os dias, batia-me com a correia. E acabava sempre com as mesmas palavras: este maldito gosta de comida durso!"
Enganava-se a Irene Atouguia. O rapaz preferia-lhe as carícias. Mas já que as não adregava por falta de pendor do seu feitio soberbo, ao menos que a mãe lhe batesse
e se amofinasse depois, até se enfiar na cama, migada de arrepeso e de dores na cabeça.
Zé Miguel alagava-se, então, de alegrias íntimas, como se a doença da mãe o vingasse das tundas, diziam as vizinhas à boca cheia. Nunca lhe levantaram testemunho
31
tão falso. O que ele gozava quase em delírio era o prazer de sentir, nesses momentos, que a ira da mãe o punha mais perto dela, e tanto que o mundo ficava raso à
volta de ambos, deixando-os sozinhos. Algumas vezes arreliavam, só para ela dizer o meu nome e correr atrás de mim. Foi com ela que me habituei a não ter medo da
porrada. Sabia-me bem ouvir a correia zunir e bater-me nas costas.
Alvorada de mimanços para o irmão, o Miguel Zé, mais ganapo do que ele aí uns cinco anos, fervia-lhe o feitio seco para moê-lo de trolha, mal pressentia no Zé Miguel
os arremessos do marido, um espirra-canivetes de farrancas e brutidades gratuitas, tanto pelo sangue genioso como pelo vício de se distinguir. Inválida para adoçar
o seu homem, transferia para o filho o jeito opinioso de amassar nele "uma pessoa honradinha e respeitadora", querendo metê-lo na forma dos servos gabados pelos
Relvas.
Zé Miguel pensava nisto quando entrou na penumbra do bar.
- Dois whiskies duplos. Puros. Água é pràs rãs. Sorri para a rapariga e recusa a marca que o criado
lhe vem servir; fá-lo por -alarde, não o julgue capaz de beber a primeira mistela falsificada que lhe despejem no copo.
- Sim, desse especial, mais velho... o whisky é o contrário das mulheres. Mulher nova e sabida, whisky velho e puro, cavalo de meia-idade e já desbastado, não muito,
prà gente o pôr ao jeito da espora.
A rapariga acha-o diferente. Sente-o coberto por uma lâmina de amargura que o torna mais humano. Enternece-se com ele. Se o visse sempre assim, talvez fosse feliz
na sua companhia.
32
Zé Miguel continua a falar do passado. Pela primeira vez, em quase três anos de convívio, apetece-lhe confessar quem é.
- Andámos sempre às sobras, mas eu sei escolher. Escolhi sempre todas as coisas: as boas e as más. Vim muito de baixo, como tu. Andei muitos anos de boné na mão;
agora trato-os pior do que ao meu cavalo. Matei-o esta manhã.
--A quem?!... - pergunta a rapariga.
Ele solta uma gargalhada rouca; domina num esgar prolongado o soluço que lhe agarra a garganta. Alquebrada, a voz prossegue mais lenta:
- Matei o Príncipe a tiro. Mato a tiro todas as coisas de que mais gosto. Trago a cabeça cheia do barulho dos tiros, dos que dei e dos que pensei dar... E dos que
mandei dar. A minha mãe tinha razão quando me batia com a correia; fui sempre um gajo. Falta-me um parafuso na cabeça, já te disse. E tu sabes que é verdade. E ainda
não sabes tudo...
Cala-se num silêncio abrupto e ostensivo. Começa a beber whisky com ruído, de propósito, para ofender as paredes do bar onde se meteu. A penumbra hostiliza-o. Hostiliza-o
a prateleira das bebidas, o balcão alto e os bancos forrados de pele, a cor de cada coisa, a luz velada, o olhar do barman, indiferente, a rigidez do criado, ao
fundo, num banho doce de vermelho despejado pelo fogacho da lanterna, uma música misteriosa e selvagem que parece escorrer das paredes daquela caverna onde se meteu
para beber. Arrota e depois começa a rir; mete a mão à algibeira das calças, puxa de um rolo de notas de conto e atira-o para cima da mesa.
- Tenho aqui dinheiro pra pagar esta trampa toda... Lembra-se da carroça e do cavalo velho que comprou
um dia. Agarra na garrafa e mete-a à boca, empurrando
33
o copo da frente. A rapariga evita que se entorne e parece assustada.
- Tens medo... Tens medo de vir comigo?
Ela nega num movimento lento da cabeça e acende um cigarro.
- Queres um cigarro? - pergunta-lhe com doçura tímida.
Ele agarra-lhe no pulso e aperta-o; depois acaricia-o.
- Não.
- Fuma um charuto. Ainda não fumaste um charuto.
- Deixei de fumar...
- Por causa do cancro?
- Não. Os cancros matam devagar. A morte deve vir depressa quando a gente quer.
-Na morte não se manda; não se escolhe...
- Os cobardes, sim, esses não sabem escolher nada. Mas eu sei. Nasci do nada, cheguei aos sítios mais altos, e tanto me faz agora deitar fogo a isto tudo como beber
esta mistela que sabe a remédio e a gente todos diz que é bom... Passei disto aos direitos as vezes que quis: barcos cheios de whisky e tabaco. Sou neto de campinos,
sou filho de campinos e safei-me. Não interessa como: safei-me. O meu primo Pedro Lourenço diz que eu sou um traidor. Talvez... Passei fome algumas vezes, mais do
que julgas, mais do que me lembro, e um dia vi passar o patrão Rui a cavalo, e disse prà gajada que estava comigo: eu cegue se não tiver, mesmo meu, um cavalo destes.
Ois outros escangalharam-se a rir, mas eles vivem todos na mesma miséria e o patrão Rui aperta-me a mão e bate-me nas costas. Tivemos negócios...
Passa a mão pela testa, como se pudesse acalmar o fogo que a queima ao lembrar-se do passado. Fica a acariciar a cicatriz.
34
Dessa vez a morte veio num carro pequeno, de quatro rodas de madeira, onde mal cabia o seu corpo de rapazola. Agarrou o carro com gana, pô-lo ao ombro e subiu até
ao cimo da rampa empedrada, num valado alto e largo para proteger os canos condutores de água a Lisboa. O tempo recua dentro dele, e desaparecem o bar, a luz vermelha,
as coisas e as cores de cada uma, a luz baça, a mão da rapariga, a angústia que o aperreia, ainda não tem a cicatriz na testa, é menino, salvo seja, um vadio, um
rapaz da rua, isso, sim, isso é que eu sou, nunca fui outra coisa, carago! Olha do alto da escarpa para os companheiros de paródia, aperta-se-lhe o medo no peito,
sente um frio a subir-lhe pelos membros, mas sorri. O Manel Anojo grita-lhe de baixo:
"-Estás cheio de cagufa, eh, Zé Miguel!
- Cagufa tinha a tua avó num sítio que eu cá sei..."
Ajeita o carro na beira do valado com as rodas da frente já no declive de pedra, espreita o caminho até lá abaixo, acagaça-se, percebe que já não lhe fica outra
alternativa senão a de se atirar por ali de cambulhada; faz sinal aos amigos para se arredarem, e volta-lhe a tremura num vagalhão de medo. E com ele, de súbito,
o arrepio da necessidade de urinar o pavor que se apossa do seu corpo tarraco.
"- Tens cagufa, tens miúfa" - insiste o Manel.
Treme-lhe a perna direita, mas encaminha-se de vagar para trás de uma das guaritas da água. Só aí se domina. E grita de lá:
"- Estou a escorrer o caldo à carne, não se vão embora."
O parafuso saltara-lhe da cabeça. Uma gaita se algum filho da mãe se rir dele!
Regressa a gingar-se, faz um gesto lento com a mão para que os outros se tirem da frente, sem os olhar, agora não
35
quer ver mais nada do que a rama dos choupos, e experimenta o carro com o pé descalço. Senta-se lá dentro, dá um sacão para diante, logo outro mais forte, o carro
desloca-se um pouco, depois mais ainda, e abala; ele fecha os olhos e o carro parte a direito, a estremecer debaixo do seu corpo, pensa em gritar, receia explodir
se não gritar, mas domina-se ainda, e depois só ouve nos recôncavos da cabeça toda cheia de corredores um som largo que zune, se amplia, morre, volta a troar e a
sumir-se, escabuja e escacha-se, escachoa e esbeiça-se, esborcina-se nas bordas e esbija depois, tenso, até se fechar num grão de nada que se apaga, a que ele tenta
ainda agarrar-se o que se lhe escapa do fundo mais fundo do seu corpo esfrangalhado.
Já os companheiros da brinca se sumiam entre as árvores até à estrada.
Na erva seca corria o sangue quando o João Inácio, poldreiro dos Relvas, o foi agarrar às costas, como quem leva um rapozote baleado ao centro da testa. Atiraram-lhe
à entrada de Aldebarã com duas bilhas de água para cima, mesmo nas ventas, a ver se ele acordava daquele sono de morte que parecia tê-lo assolapado para sempre.
Estrebuchou e lembrou-se da mãe. Pensou vagamente que ela iria ficar mais tempo à sua cabeceira, mas não conseguia fixar-se a qualquer ideia, porque o som ribombava
outra vez dentro dos corredores da sua cabeça. Seguia-o um alarido de vozes e gritos; e ouviu-lhe a voz fria e áspera:
"- Esse maldito tem um parafuso a menos na cabeça. O maldito do rapaz precisa de ser desbastado como um poldro; tem falta de espora e chicote."
Repete para a rapariga a frase inteira que imagina dita pela mãe, embora só haja percebido a primeira parte.
36
Ela acredita-o e aperta a mão que Zé Miguel deixou cair sobre o vestido, no qual passeia os dedos grossos.
- Estive três meses no hospital... Em coma, quase oito dias, disse-me mais tarde o médico. - Tenta gracejar. - Em coma ou em beba, a morte teve medo de mim. Ela
sabe que eu é que escolho... Sempre escolhi as coisas todas que me acontecem.
Entra na bravata para não chorar. Ardem-lhe os olhos.
37

DOIS anos depois, o avô levou-o consigo para junto do Luís Prudêncio, lavrador-rendeiro de umas terras do Relvas na Lezíria Grande. Não conhecia uma letra do tamanho
de um boi, embora a mãe o atirasse para a escola da D. Aldegundes, espécie de câmara de suplícios onde o rapazio se habituava à inquisição de estátuas voltadas para
a parede e às tareias de reguada e bofetão, para de lá saírem mansos e acobardados. Ou tão hostis aos livros que se agoniavam de medo quando os viam.
Zé Miguel mal aprendeu a ladainha do a-e-i-o-u. Recusou-lhe toda a adesão, porque um dia ouviu dizer à professora que até um burro de nora aprendia com ela. Desfazer-lhe
a prosápia passou a ser, então, o gozo maior da sua vida escolar. Deu-se a intervaleiro para divertir os outros rapazes nas horas de lição. Invertia tudo, não juntava
duas letras, garatujava algarismos; quando dava um arzinho de aprender as voltas e contravoltas de um número isolado ou de uma vogal, desfazia o equívoco numa desfilada
de tretas que punham a aula a rir e a D. Aldegundes a ferver em água fria.
Abandalhou-a. A maltesia passou a gostar mais das lições cómicas do Zé Miguel do que da lengalenga sorna
38
da professora. Em pouco tempo, todos competiam nos dislates. Solteirona, a D. Aldegundes pôs-se histérica; emagrentava sem ver de quê, embora tomasse óleo de fígado
de bacalhau. Dizia-se à boca pequena que muito cedo lhe faltara a sustância do amor, desgostosa por abandono de um alferes de infantaria, especialista em sapar fortunas
de mulheres ansiosas.
Em quatro meses de teima, nunca conseguiu pôr o neto de António Seis Dedos a chamar a um o outro nome que não fosse a rodinha. De régua em punho, ameaçava-o e repetia
esfalfada:
"- Isto é um o. O! Um o! Diz lá!..."
Zé Miguel mingava mais os olhos travessos, e se a mestra lhe apontava a letra maiúscula respondia, solícito, como se descobrisse a pólvora: "Roda!" Ela esquinava
a régua e movia-a de cutelo sobre os nós dos dedos do galhofão, obrigando-o logo a emendar: "Então se não é roda, é rodinha."
Interveio a mãe com surras capazes de embrulhar outro qualquer em parches de vinagre; ameaçou-o o pai de metê-lo a guardador de ovelhas na quinta do D. Domingos
Espargosa, que ganhara fama de tonto mais o proveito de matar os criados à fome. Zé Miguel não cedia a ponta do dedo mindinho.
A guerreia só acabou com a intervenção de António Seis Dedos, que num sábado, à hora da ceia, pôs o preto no branco:
"-O rapaz não aprende com aquela fedúncia nem que o matem. É meu neto e ainda bem que lhe arqueei as costelas a direito. Não se dobra, não nasceu pra sacristão.
Escusam de estar com mais isto, mais aquilo, tal e coisa... O Zé vai comigo pró Campo. Se nasceu pra cinco réis, nunca chega a meio tostão; se nasceu pra libra de
cavalinho, !lá irá pela sua mão, nem que para isso haja de tapar
39
o Tejo com pedras do tamanho de amêndoas. O fedelho tem fisga; não lha partam. Aviem-lhe o alforge, comprem-lhe uns sapatos, e eu levo-o no domingo à noite. Vai
para anojeiro do patrão Prudêncio; o resto fica com a gente os dois."
E assim ficou, e ficou bem, carago, porque com o meu avô um homem entendia-se mesmo com menos de dez anos. Quando ele me pôs a manápula aqui no ombro, ainda cá a
sinto, e me falou à mansa das famas de burro que a mestra me largara na albarda, eu só lhe respondi que com essa lacraua não aprendia a contar até dez nem me importava
de cortar a língua à navalha só pra não lhe dizer bom dia. O meu avô ainda começou mais isto, mais aquilo, tal e coisa, mas eu amarrei a besta e não disse palavra.
Ele percebeu tudo, apertou-me o ombro e remendou a conversa, esfregando-me as suíças na cara; era assim que ele me fazia pra que eu fosse um homem, pra que a barba
da cara me crescesse depressa. Ainda não disse, mas sempre é bom que se saiba, que o meu avô António Seis Dedos foi poldreiro do Diogo Relvas e que lhe jogou uma
cabeçada na banda dos queixos quando o patrão lhe atirou duas chapadas, à frente de toda a gente, numa festa do palácio, depois de certa toirada em que uma gaja
se atracou ao meu avô por causa do fandango. O Diogo Relvas era o dono das terras, dos gados, das pessoas, dos raios e dos coriscos, de tudo o que havia em Aldebarã,
na cabeça do concelho e nas leis dos ministros de Lisboa. E o meu avô deu-lhe uma cabeçada; fugiu depois, mas deu-lha primeiro, bem afiançada e medida, que ninguém
lha limpou dos queixos. Quando o Relvas velho morreu, já tonto, com medo de ficar pobre, o meu avô António Seis Dedos voltou à terra e lá o deixaram em paz. Ninguém
lhe buliu com um bafo de cordeiro. Foi ele que me livrou das unhas dessa gaja da escola e que mandou o meu pai comprar-me
40
uns sapatos de coiro branco, bem cardados, e que eu ensebei com mais preceito do que um general quando veste farda nova com estrelas ou lá o que é. Nunca mais voltei
a andar descalço...
Apetece-lhe fazê-lo agora dentro do bar. Talvez porque já leva a garrafa em meio e o sangue judio se lhe atravessa na bruma da bebedeira, misturada ao propósito
que o levou a pedir o carro ao D. António Mendanha.
A ideia rebenta-lhe de súbito e empolga-o. Desata os atacadores aos puxões, doem-lhe os dedos, dói-lhe o braço esquerdo, mas não se lembra do coágulo podre do sangue,
e tira o sapato do pé esquerdo. Precisa de vexar alguém que não está ali dentro, mas que pertence àquele mundo onde ele próprio viveu os últimos anos e do qual o
querem escorraçar. Agora, que já não lhes faz falta, atiraram-no para fora da roda, cuspiram-no para fora do o.
Sorri com amargura ao recordar as lições da escola. Agora não leva a melhor, talvez porque o avô morreu e não encontra quem o compreenda.
O criado do bar vigia-o sob o fogaréu da luz excitante em que se envolve como numa capa vermelha.
- Eh pá!... Sim, tu, estou a falar contigo.
Grave, sem ceder um agrado, o outro aproxima-se.
- Já andaste descalço?... Sim, se já andaste a pé de pombo?! Os pombos não usam sapatos.
- Não.
- É pena! Dava-te os meus sapatos; não preciso deles.
Pensa ainda em tirar o peúgo e bater com ele nas ventas do criado. Mas os seus amigos, os Gladiadores, não estão ali para contarem depois a façanha. Pega numa nota
e atira-lha:
- Dá-me quinhentos de volta; o resto é pra ti. Tens
filho"?...
41
O outro sorri-lhe.
- Tenho dois: um rapaz e uma rapariga.
Vidram-se-lhe os olhos. Atira uma punhada na mesa e depois esconde o rosto entre os braços. Imagina o filho deitado sobre o sofá da sala com a cabeça numa almofada
de sangue. Para o seu Rui Miguel a morte não veio de carro. Só ele conhece agora o segredo desses tiros certeiros.
A rapariga tenta acalmá-lo, percorrendo-lhe o ombro com os dedos leves. Lembra-se do último encontro, quando tudo parecia ter acabado entre eles. Ainda não entende
o que o levou a ir procurá-la quinze dias depois, tanto mais que não lhe viu ainda um sinal de exaltação. Descobre-lhe preocupações em cada gesto que faz, desconhece-o,
a tristeza sai-lhe das palavras, da própria pele mais pálida, quase verdoenga. Agora sabe que ele soluça pelo arquejar das costas largas. Deve ser do whisky... Ou
de outra coisa qualquer que não adivinha?!...
Quando há quinze dias lhe disse leva-me a casa e se atirou para o canto do assento do outro carro, num arremesso de amuo, talvez esperasse ainda que ele continuasse
o passeio por Monsanto, deixando o automóvel deslizar pela brandura da noite de Outono, luarenta e doce, até que um deles esboçasse uma palavra ou um aceno de trégua.
Havia nas suas relações um enigma. Antes, talvez, uma terrível certeza a que ela preferia chamar mistério. A sombra da mãe interpunha-se. Que se passava ainda entre
ambos? Fora ela quem lhe dissera para vir hoje... Tinham-se habituado à mesada, e agora, agora, enquanto não aparecesse alguém, fazia-lhes falta, dois contos por
mês dão sempre jeito a qualquer, quanto mais numa casa onde o pai ganhava um e quinhentos, fora os descontos. Um dia deveriam acabar o romance banal, como tantos
outros que viviam as demais raparigas do seu bairro, onde

42
quase sempre chegam tarde e de automóvel. com um vulto lá dentro.
Haviam dito palavras limpas um ao outro nessa noite. Limpas, sem a ganga da conveniência, mas terrivelmente duras e descascadas. Cruéis. Dera-se o rompimento, era
preciso para bem dos dois, embora a certeza a apavorasse, alquebrando-lhe o temperamento arisco.
Uma orquestra qualquer envolvia-os numa música romântica, absurda para o que tinham acabado de dizer. Ele baixara um pouco o volume do som da telefonia, talvez viesse
às boas, pensou ela, já uma vez assim acontecera, no Guincho, logo ao princípio, quando a mãe os deixou de acompanhar por causa do pai, que em dia pingueiro as moeu
de torpezas, ou de palpites, pedindo que saísse só uma, porque assim nunca mais sabia quem fazia de pau de cabeleira e quem se deitava com o Lavrador das Dúzias,
como lhe chamou nesse dia de ressaibo e ciúme. Até aí nada se passara entre eles. Os desvelos de Zé Miguel iam mais para a mãe do que para a rapariga, um tanto insossa
no gosto do andarilho, cujo olhar se aferventava para carnes roliças e bulidoras de ancas.
Certa noite confessou-lhe: "A tua mãe é um pancadão, apetece enchê-la de palmadas, como se faz às éguas. Vê lá se engordas, pareces uma felosa." Quando ele a deixou
em casa, queixou-se, jurando que nunca mais saía com aquele velho bruto e de língua porca, um safado, um canalha, um reles; deu-lhe a fúria e chorou, mas a mãe sorria
adamada, ausente das suas lágrimas.
Pressentiu mistério, admitiu certezas, voltou-lhe a ciumeira pela mãe, aciganada na cor e ceif adora de olhares quando ambas passavam a caminho da igreja da Penha.
E desfibrou certos equívocos, olhares de compromisso, palavras soltas nos passeios de automóveis que
43
faziam os três no assento da frente, com ela entre os dois, não se pegasse o fogo à estopa, como insinuava.
Por isso mesmo, quando o pai exigiu que a falcatrua se aclarasse, Zulmira tirou a sua desforra, facilitando logo o que o andarilho quis. Zé Miguel ficou atordoado
com o que descobriu. Voltaram a falar no caso, ha quinze dias, em palavras limpas. Cruéis, mas limpas, pela primeira vez em três anos de romance banal.
Ele baixara um pouco o volume do som da telefonia, como se pretendesse levar o carro na doçura equívoca dos violinos. Ao entrarem na cidade, pediu-lhe que a deixasse
à porta do quarto onde se encontravam; queria ficar sozinha, talvez para chorar ou talvez para lhe meter medo de que iria matar-se lá do alto do varandim do sétimo
andar, como já o ameaçara, embora se sorrisse para dentro, mal o viu preocupado, a chamar-lhe tola, "tu és tola, és parva, às coisas não se resolvem assim; és nova,
tens uma vida inteira à tua frente, podes bem casar ainda com um homem do teu meio."
"-E tu, pá? De que meio és tu?!..." - perguntara-lhe com ódio.
Zé Miguel não respondera, desdenhoso. Só acelerara o carro, à parva, sem cuidar da velocidade perigosa.
Quando estacaram junto do candeeiro, Zulmira abriu a porta, devagar, à espera de uma palavra, à espera de um gesto, de um movimento de cabeça ou de um olhar, mesmo
de uma brutalidade qualquer, à espera do fim ou à espera do princípio, não sabia. Atirou-se num esforço para fora do carro, hesitou no passeio, quis voltar-se ainda,
para quê?, e achou-se no patamar sem luz.
O automóvel partiu num desembraiar suave, facilitado pelo declive da rua.
Tem a mão sobre as costas dele e percebe que soluça sem ruído.
44
Vinga-se. Também ela soluçou nessa noite quando se sentiu sozinha a correr pela escada, de cabeça baixa, para não deixar ver as lágrimas que queria guardar para
si, sabendo-se incapaz de chegar a casa com aquela notícia.
As linguareiras do pátio perceberiam logo o que se passara e adivinhava-lhes os comentários torpes: "Ai, filha, que cara traz a Zulmira do Palmeias! Houve chatice
com o gajo do popó, com certeza; se calhar acabou-se a guita ao papagaio... A mãe que o aguente, sempre tem mais carne."
Quisera ainda tirar a chave de dentro da mala. As mãos embrulhavam-se no lenço, na caixinha da saúde e no livreco das datas que gostava de trazer consigo, não percebia
agora para quê. A gaiola iluminada do elevador passou por ela. Correu o último lance, uma campainha retiniu num andar de baixo, talvez no segundo, onde morava a
Lolita, aquela rapariga que passava o dia em robe cor-de-rosa.
"-Abra, abra depressa, Sr.a Henriqueta!"
Mal a porta se escancarou, abalou pelo corredor sem dizer palavra. A dor sufocava-a, e enfiou pelo quarto, às escuras, tendo de cor a distância da entrada até à
cama, para cima da qual se atirou, como se jogasse o corpo jovem sobre um colchão de navalhas. A farejar escândalo, a velha veio-lhe no rasto à procura de conversa:
"-Precisa dalguma coisa, menina Zu?!" - E insistia de voz adoçada, cautelosa e branda.
Limpou as lágrimas e respondeu-lhe, para não a ouvir mais:
"-Não, não preciso de nada... Agora não preciso de nada..."
Todos, precisam de alguma coisa, de quê?, pensa agora à mesa do bar. Resolve beber também um pouco mais, já se sente tonta, apetece-lhe cantar, não percebe se
45
em sinal de desforra pelo que ele lhe fez há quinze dias, se por compreender -que está nova, sem as rugas dele nem as da mãe, e que a vida vai continuar mais para
ela do que para os dois.
Não sabe, não pode saber, que razões levaram o amante a ir procurá-la para esta viagem. Nem lho pergunta. Talvez receie que ele lhe responda e diga a verdade.
46
TAMBÉM ele não entende porquê. Ou talvez o saiba em demasia, tanto pensou e remanchou antes de telefonar à mãe dela, à Maria Laurinda, sua verdadeira amásia nestes
seis anos de vida larga, uma mulher de dez assobios, carago!, uma verdadeira empada de carne limpa e fresca!, ninguém lhe dá a idade, quanto mais velha, melhor,
parece que os anos a enfeitam com bandeiras, está bem? Um pancadão, um senhor pancadão, com uns olhos ciganos e na pele azeitona de cigana a malandríce mais sábia
deste mundo e do outro; mulher com livras de doutor bem sabidos no corpo inteiro, uma catedral, catano diz o Dr. Casquilho, uma palavra esquisita, uma catedral de
luxúria, ou luxura, qualquer coisa que vem de luxo, mais ou menos assim. Eu levava nas unhas .o meu terceiro camião de dez toneladas; passei-o em Lisboa no barco
do Cais do Sodré para a Outra Banda.
(Aí começa o Zé Miguel no delírio das bazófias. Deixem-no embarcar no navio das suas fantasias pimponas, habituar-se ao leme, e não o interrompam, por favor. Verão
que no chafurdo dos seus apetites e manias nascem asas grandes de pássaro tonto.)
47
Como ia dizendo, ia eu a atravessar o Tejo no meu camião de dez toneladas, num servicinho limpo de candonga com todos os rodízios da máquina bem untada a carcanhóis
(dei muita nota a ganhar, carago!, agora já ninguém me conhece), salto da guarita e dou com ela a encarar comigo, parecia um toiro, alvoraçada, salvo seja!, com
os olhos ciganos bem agarrados ao cachucho de pedra encarnada que ainda trago no dedo, este mesmo, custou-me quase cinco contos; ponho-me a assobiar, vejo as horas
para lhe mostrar que o relógio era de oiro, esse foi-se há três meses pra pagar uma letra de pneus, e a gente encara-se um com o outro, sentimos um sacão, dissemos
mais tarde em conversa, e eu digo cá pra mim: esta mulher tem qualquer coisa a ver comigo e é mesmo no sangue, na carne e no sangue, haja o que houver há-de ser
minha; nem que seja nas barbas dum esquadrão da Guarda Rebuplicana, tenha marido ou não tenha, que cabrões não faltam por este mundo de Cristo, e se for mais um
a terra não se parte com o peso da cabeça desses malessos. Vou-me a ela e meto a primeira, devagar, assim com mãos de ministro: donde é que eu a conheço? A gente
já se viu e já se falou. Ela respondeu com duas pedras na mão que não conhecia choferes, mas as duas pedras dos olhos ficaram macias como pele de raposa, e eu digo-lhe
que chofer, não, não era porque os parentes me caíssem na lama, mas que podia mostrar-lhe um comboio de carros como aquele todos em meu nome, e mais uma quinta e
uma terra na Lezíria, industrial, comerciante e lavrador, assim mesmo, ali onde me via. E ela, moita!, e eu mais isto e mais aquilo, tal e coisa., nunca me faltou
conversa pràs saias, antes a tivesse para essa corja de malandros que me puseram o baraço ao pescoço; mas lixam-se, oh!, se se lixam!, não me jogam abaixo ainda
desta: vez.
48
(Há menos de um mês, ainda Zé Miguel pensava convencer os credores a esperarem um tempo mais, pouco tempo, porque se estava à beira de outra guerra e então ele arrumaria
tudo, pagando os juros que quisessem levar-lhe com a demora.)
Para onde ia, para onde não ia, meti-lhe gasolina super: em casa a minha vida era um inferno, andava a tratar do divórcio, o pior eram as coisas da igreja, mas com
dinheiro tudo se arranja, as pessoas nasceram pra ser felizes, deixava-lhe o meu cartão para me telefonar, sei lá o que disse!, e abro a carteira carregada com pápulas
de miles que ela até se pôs branca, carago!, enfarinhou-se-lhe a cara de cigana com aqueles grandes faróis acesos à sua frente; ficou como um coelho agarrado pela
luz ao atravessar uma estrada. Aproveito-lhe o ensejo da maré de rosas, meto a prise e jogo-lhe um almoço no Ginjal, estávamos à vontade num gabinete pra falarmos
da vida, as pessoas podem ser amigas sem mais nada, e quando lhe toquei o hino, mais isto, mais aquilo, tal e coisa, já ela dava vivas à liberdade, sem cuidar da
família nem da visita que levava na cartilha para Setúbal, disse-me ela, já feita numa farófia brandinha para trincar sem dentes, quanto mais com os que eu tinha
e mais três dobros que me cresceram ainda por cima no pasmo da raiz do sangue, já as mãos me tremiam, já o corpo me tremia, só a lembrar-me daquela égua de cem moedas
pra cavalgar em osso.
Ainda aqui a tenho nas mãos, carago! Toda aqui nas mãos, mais decorada do que o código quando fiz exame, porque aí já sabia o que me iam perguntar, e nunca na minha
vida, nesta realíssima vida que fiz e que desfiz, à custa sei lá de quê!, de muita coragem, de muita espertice de rato, de muita manha de raposo velho, de muita
gana de poldro, de muita falsidade de víbora, de muito de tudo e de tudo muito, nunca me passou debaixo dos joelhos
49
outra fêmea tão arteira no jogo do amor, uma pena, uma viagem sem fim e sem estrada certa, sempre diferente como um baralho de cartas ou um baralho de estrelas no
céu, que é mesa de tabelinhas onde a mão do homem não bole nem manda.
E guando começava a cansar-me, vem o homem dela com o refunfum dos melindres, por andarmos os três na boa-vai-ela, e atira-me com a filha numa marrada branda para
a guloseima dos papos de freira, a que um homem se não deve negar, mesmo que para tanto precise de dar uns anos de vida, carago! O que é a vida, se um homem se arreceia
dela e se embrulha em algodão em rama para não se molestar nas arestas?!... Uma papa, uma coisa brandinha sem sabor a tempo e ,a. vento, a madrugada e a noite, o
que é a vida?, o que é um homem?, se a gente não arranja coragem prà pegar pelos cornos, de caras, vale a pena?... Um dia eu disse à gajada da minha lavra, da minha
idade, está claro!, quando vi passar o patrão Rui Diogo, que um dia tinha de montar um cavalo meu, todo meu, assim negro-morzelo como o dele. Joguei-me e ganhei
o cavalo, tratei por tu muito real gajo que cheira a vossa excelência, paguei-lhes favores, enchi-lhes a mula com whisky e com tudo o que havia de melhor, e agora
querem lixar-me, ou já me lixaram, mas também os gozei enquanto pude, embora eles possam mais do que a gente até um dia, como diz o meu primo Pedro, que já esteve
preso por coisas de política, mas aí não me meto eu, gaita!, fora bode!, um homem nem sabe donde elas lhe chovem e não há sombreiro que o cubra a ele e à família.
Não gosto de falar em coisas destas. Um homem mete-se por atalhos e só arranja trabalhos, mas aquilo com a rapariga, a Zu (raio de nome, caganças ao resto!), e com
a Maria Laurinda, a mãe, soube-me a pouco, cada uma tinha o seu brio e a sua raça, as pessoas precebiam o jogo
50
todo e a mim sabia-me bem aquele jogo a meias; andava de trono como um rei ou um santo, e de toda a massa que gastei nestes anos de vida cheia, só o que empreguei
nelas não me amarga o sangue.
Quando Rui Diogo Relvas o chamou ao escritório da quinta e lhe anunciou, com cara de sete cadeados, que ia levar-lhe à praça a quinta dos Montes, os apetrechos e
máquinas de lavoira, gados de trabalho e as três montadas de ferro Relvas, sua gala nas ruas da vila, Zé Miguel, o Miguel Rico, como lhe chamaram até ali, estremeceu
na armadura do seu corpo tarraco e só disse:
"-O patrão Rui não me faça essa desfeita... Peço-lhe pelos meninos e pela senhora, pela alma do seu avô, pelo que tem de mais sagrado na vida e na morte, porque
eu pago-lhe a dinheiro.
- Já é a segunda vez que me prometes e me faltas.
-- Nunca lhe faltei quando precisou de mim. Joguei a vida muitas vezes pra não o deixar mal. Sabe disso...
- Ganhaste a tua conta. Ou na... não?!
- Há coisas pra que se faz preço mas que não têm preço.
- Devo-te alguma coisa?! Se te devo, apresenta a conta bem explicada. Não devo meio centavo a ninguém... (A não ser aos bancos, pensou Zé Miguel.) E muito menos
a ti. O meu dinheiro não dá para os teus luxos, percebes? !...
- Está aí a rebentar outra guerra, o senhor sabe melhor do que eu. E nessa altura o patrão Rui vai outra vez precisar de mim; vão todos precisar de mim. Faça o juro...
- Não sou agiota."
Salta-lhe o parafuso da cabeça e avança para o outro de braços tensos e abertos, lívido, com a onda de frio a
51
meter-se-lhe entre a pele e o corpo, pronta a explodir numa vaga entre a garganta e os olhos.
"- Já lhe paguei a vinte. Servi-me das jaulas dos seus toiros pra levar candonga até Espanha e de lá desde Valença a Vila Real de Santo António, por toda a parte.
Nunca houve nesta terra tanta toirada falsa."
Rui Relvas, o Saca-Rolhas, como lhe chamam por mor dos erros do nome e da ambição nos negócios, mete a mão à gaveta da secretária e atira para cima do tampo de cristal
uma das pistolas que tem no escritório.
"- Consegues provar o que disseste ?!... Um homem responde pelo que diz e tu já não respondes por nada: nem pelo que dizes nem pelo que deves, nem pelo que tens
nem pelo que perdes.
- Guarde a pistola, patrão Rui. Nem o patrão a dispara, que eu, já não valho um tiro, nem eu marreceio da ameaça porque tanto me faz. O senhor e os outros atiraram-me
prà arena da praça, ganharam comigo o dinheiro todo que quiseram, fui tudo, tudo e mais alguma coisa (bons tempos, Zé!, bons tempos!), e agora que balanceio num
negócio honrado, agora que sou honrado, o patrão vê-me de joelhos e prepara-se para me dar com a puntilla.
- A porta por onde entraste está aberta." Grita-lhe, possesso, numa bravata:
"- E sai por ela depressa, mais depressa do que saiu o teu avô António Seis Dedos, porque o tempo agora é outro e eu mato-te como a um cão... Sabes que sim. E ninguém
dá pela tua pele uma moeda de vinte e cinco tostões. Põe-te na rua!"
Ah rapazes!, ah mundo!... Se eu pudesse deitar-lhe a minha mão esquerda, só a esquerda, e o agarrasse ao meu jeito, partia-lhe a corda de passar os minutos e nem
mais um minuto aquele bode velho via Sol e Lua. Eles tinham-se combinado e cercavam-me e eu já não tinha por
52
onde sair... Se fosse uma roda dhomens, eu seio, carago, lá isso saía. Mas a roda era outra... Baldear só um era pouco prà minha raiva e baldear todos era de mais
prà minha força. Nunca um homem se gabe da força! Agora torço a orelha e não deita sangue. O sangue comigo é sempre à lagúrdia. Ou tudo ou nada...
Alardeia ainda para que reparem nele e lhe sintam a presença. Nunca desejou outra coisa em toda a vida. Talvez por ser tarraco. Homem pequenino, ou velhaco ou dançarino,
mas ele gosta de bailar e nunca lhe fizeram o ninho atrás da orelha. A não ser agora... E mesmo agora havemos de ver! Ainda não estou K.O., falta muito prà me deitarem
a terra. Mas ele próprio percebe melhor do que nós que as suas intenções nascem agora com as raízes soltas da realidade. E morrem depressa. Explodem com violência
e morrem na mesma violência, talvez por isso mesmo. Esgotam-se logo na ânsia caduca de se definirem.
Meteu a alma na barraca dos espelhos mágicos, sem entender que lá entrou. Baralha acontecimentos, deforina-os. Deforma-se. E tanto os alonga, prolonga e delonga
como os acaçapa e frustra, ao sabor de cada momento em que refrange os homens e os factos na lente perturbada da sua visão enferma. Afirma-se e ataranta-se, precisa
de fazer qualquer coisa de grande e de definitivo, mas há uma tampa que o empurra para baixo, ou que, pelo menos, não o deixa saltar para fora do círculo das desgraças.
Tem a noção física de que o esmagam. Como a um gafanhoto verde debaixo do pé calcador.
Depois goza por instantes com a ilusão alheia dos que o vêem exangue, dominado e pronto, um pouco como ele disse ao Rui Relvas, -ao Saca-Rolhas, quando o outro o
ameaçou. Agora que sou honrado, que quero ser honrado, o patrão Rui vê-me de joelhos e manda os outros cravarem-me a "puntilla". Pensa nisso e julga-se arteiro,
igual ao
53
outro Zé Miguel que veio do pé descalço e chegou a tratar por tu o administrador do concelho. Na intimidade, claro; ninguém precisava de saber que eram sócios na
candonga.
Ainda se julga arteiro; capaz, portanto, de um golpe imprevisto para burlar quantos premeditaram ou acreditaram na sua queda. Só faltam as mulas guizalheiras para
o levarem no arraste. É assim que fazem nas corridas com toiros de morte. A vida, afinal, não passa também de uma corrida de morte em que os toiros saem despontados
e perderam a noção da distância, para que os espadas dêem espectáculo e os manobrem sem risco. Só o toiro fica sem defesa. Assim sucede com ele, salvo seja!, pensa
por momentos.
Mas enganam-se, pensa ainda. Precisa dessa ilusão. Não conhece as regras exactas do jogo que escolheu. É um otário, como disse tantas vezes de outros a quem mistificou,
enfiando-lhes o barrete até aos olhos. Acredita que guarda na mão alguns trunfos para jogar na hora própria. Mas quando?!... E quais?!...
Já delirou no improviso da desforra. Até há quinze dias sentia-se capaz de remover os escombros do -seu terramoto, e recomeçar tudo, e fazer melhor, e não se iludir,
e continuar adiante para cima, muito lá acima, onde pudesse olhar bem de frente os que o haviam tratado como toalha para quarto de pouca permanência.
Então, e só então, teria algumas palavras para lhes dizer. Poucas. Chegam-lhe poucas. Já as escolheu com todo o esmero e tem-nas decoradas dentro de si, firmes e
ágeis, para as distribuir numa salva de prata quando voltar a recebê-los na quinta com whisky, mariscos, bagaceira, bifes do lombo e desprezo. Há-de pegar-lhes uma
bebedeira de desprezo.
Exalta-se com o projecto, acarinha-o, dá-lhe todas as voltas para que fique perfeito, mas dias ou horas depois
54
cai a bruma sobre ele e tudo se confunde na solidão baça da realidade.
Quebraram-lhe os fios de aço da coragem. Partiram-no e dividiram-no, dividiram-no e voltaram-no a distribuir entre si, como se pressentissem a desforra, um pouco
como os furiosos da bola ou as beatas que repartem amuletos e relíquias para exibir aos profanos.
Os sentimentos surgem dentro de si, arrebatam-se em delírio e logo caem exaustos, frustrados e exaustos. Quebraram-me as pernas com os martelos que eu mesmo lhes
pus na mão. Indigna-se e descai. Está a gastar a vida à velocidade do carro que hoje conduz, em relação ao outro de rodas pequenas de madeira, carpinteirado pelo
segeiro de Aldebarã e no qual viu a morte pela primeira vez. Estrebucha e fatiga-se.
Não haverá um gajo que se lembre do que fui e até onde cheguei para perceber que tenho unhas para voltar acima?!... Aquele que me ajude a safar o barco do lodo,
dou a minha palavra de honra, agora certa, agora verdadeira, hei-de agradecer toda a vida como um cão fiel. O meu dinheiro será dos dois. Eu dou a cara seja ao que
for, nada mimporta, e ele pode ficar na sombra, à espera do lucro que eu lhe entregar. Eu seja cego!
Pensou que esse alguém iria junto dele no último instante. Talvez no momento em que à porta do tribunal o escrivão do processo abrisse a praça para vender em hasta
pública os bens mandados arrolar pelo Saca-Rolhas. Montes de papel selado pagos por ele, cada letra escrita uma moeda, cada rubrica, cada assinatura, cada linha,
e juros, e consultas, e o Dr. Casquilho a falar pela sua boca, a moer e a remoer, a entrar com requerimentos, a inventar o adiamento da hora fatal que caminha na
ponta do tempo, como a única sentença irremediável dessa outra serpente de fogo em que o apertaram.
55
Encara ainda Rui Diogo Relvas Araújo antes de sair do escritório. Quase lhe grita também, mas não se ilude na aparência do que diz. Está acobardado. Sabe que de
um salto pode agarrar na pistola atirada pelo outro sobre a secretária, lutar por ela e segurá-la sozinho na sua mão para lhe rebentar a cabeça à força de balas.
Mas recorda-se do filho e hesita.
"- O senhor apostou dar cabo de mim... Lembrou-se da cabeçada que o meu avô António Seis Dedos deu ao seu e agora vinga-se. Deu-me facilidades para me lixar, tenho
agora a certeza. Mas o senhor não tem nada a ver com o dinheiro que eu gastei com mulheres. Tenho as coisas no seu sítio..."
O lavrador de Aldebarã estremece.
"- E a mim o senhor não me corta os sinais dhomem, como o seu avô fez àquele que gozou a sua tia... Sim, o Zé Pedro, esse mesmo que os senhores mandaram matar, Às
suas netas hão-de..."
Arrepende-se do que acabou de dizer.
Queima-se-lhe a boca, percebe que assinou a sentença de morte. O Saca-Rolhas já não o larga até ao fim. Saltou-me outra vez o parafuso. Nos momentos piores o parafuso
salta-me e não sei o que faço nem o que digo. Atira-se numa bravata para o centro da montaria:
"-? Uma neta do seu sangue há-de dar no mesmo, tenho a certeza. Deus não dorme."
Quando os criados vieram agarrá-lo para o porem fora do portão da quinta, Zé Miguel, o Miguel Rico, deixou-se levar até ao terreiro, mas aí fez finca-pé e desembaraçou-se,
a murro e à cabeçada, da campinagem que o segurava.
Rui Diogo mirava-o às escondidas pelas persianas. Viu-lhe o vulto e tomou as arreatas do medo.
56
Voltou-se bem de frente para os criados e largou a sentença:
"- O primeiro que me tocar na roupa, nunca mais vê o Sol. Meto-lhe uma faca nas tripas e depois mordo-lhas. Mordo as tripas àquele que avançar um passo. E cuspo
nas barbas desse bode velho que tem a força da sua banda. Mas comigo a força encontra outra..."
Endireitou a jaqueta de lavrador mal lavrado e dirigiu-se para a saída de cabeça bem levantada. Imaginou-se a crescer até ao cavalo preso às grades do portão.
Foi nessa altura que o braço esquerdo ficou com a moinha e o peso de que se queixa agora.
Soltou as rédeas do cavalo morzelo, lentamente, e galgou para cima do selim acolchoado, tendo a certeza de que ninguém dera um passo para fora da linha que marcara.
57

NUNCA ele percebera o limite da linha para além da qual lhe estava interdito atravessar. Talvez porque não olhasse para baixo e não pudesse descobri-la com a vista
tão arriba. Não a pressentiu, sequer, como certos animais que adivinham os perigos e (as mudanças de tempo. Caminhou para o fim num atropelo de audácias e vaidades,
acreditando que nascera com uma estrela na testa, quando a vida lha marcara na cicatriz esbeiçada do seu primeiro encontro com a morte.
É fino como um coral, este rapaz, disse o avô para quem o quis ouvir. António Seis Dedos enganou-se muitas vezes. Ou nunca previu para o neto tão altas andanças,
julgando-lhe a feição pelo limite -natural de quem começa por anojeiro e talvez consiga chegar a abegão, se a vida lhe correr afeiçoada. Media-se por si próprio
que nunca passou de maioral.
Arreceava-o a mãe, já viúva, quando o viu naquele galope destemperado, embora se gabasse do galarim para onde o filho subira. Mas ele nunca escutou os avisos da
mala-ventura, destinada, em seu entender, para os que se acobardam com as farturas da sorte.
58
A mãe arrepiara-se quando o viu subir tão alto, para a espécie de arame onde chegara por artes de um dinamismo cruel. Empolgava vê-lo agir nos momentos dicisivos,
mas fazia medo, embora vestisse a pele de sendeiro quando lhe dava jeito para alcançar o que pretendia. Alardeava como um rei em dia de benesses ou lamuriava como
um pobre de pedir, sempre teatral nos improvisos da sua imaginação astuta. Fez-se mestre de arteirices no jogo de viver ambições.
O que bem poucos pressentiam, fora a mãe que o conhecia desde o ventre, é que caminhava por cima de um arame, ao mesmo tempo terso e bambo, donde se poderia despenhar
com a maromba dos subornos. Empolgado consigo, nada lhe fazia vertigens. Avançara sempre sem receio. Sem receio, até ganhar a cúpula onde julgou encarrapitar-se
na roda dos privilégios. E foi aí mesmo que o parafuso lhe saltou outra vez.
O inimigo habitava consigo. Nunca o dominou, talvez porque nunca o temesse.
Agora, porém, sente-o a sufocá-lo. Outra serpente de fogo, a! verdadeira serpente, envolve-lhe o pescoço e aperta-o lentamente, milímetro a milímetro, num gozo premeditado
e dento. Definitivo e lento.
Tem à sua volta a muralha dos bandidos, como diz, mas ninguém lhe ouve a voz. Fica acanalhado, ao compreender que não almejou amigo na cúpula dos privilégios. Correu
todo o círculo numa via sacra de humilhação e só lhe deram pêsames do tempo perdido. Todos se haviam enganado. Ele próprio desconhecera o fio terso e bambo que pisara.
A vertigem veio cedo e não a descobriu. Morava-lhe no sangue, desde o dia em que viu passar Rui Diogo Relvas, a cavalo, e sonhou chegar até ele, sem necessidade
59
de se descobrir, como acontecera aos homens da sua família.
Percebe agora que as tentações o traíram. Só recusa aceitar a culpa de que gastou com mulheres mais do que devia. Não, não fui andarilho, a não ser com esses bandidos
gulosos a quem enchi o baú de tudo o que é bom. As mulheres não. Passaram muitos anos. Perdeu a noção do tempo e nem lhe interessa averiguar o que fez dele.
Gastou-o. Ah!, isso, sim, esbanjou tempo, como alguém que não lhe deita contas e o desperdiça para acabar depressa. Mas as mulheres não lhe devem. Repisa na ideia,
mete-a no almofariz das recordações, dá-lhe voltas e reviravoltas, e conclui que só as mulheres o serviram toda a vida. Menos a mãe.
Nessa madrugada distante, lembro-me como se hoje fosse, tem a cabeça jovem sobre a mesa coberta por um oleado de quadrados verdes e brancos, ou azuis, não importa
a cor.
Está frio.
Um frio diferente de hoje que é um frio irremediável. Definitivo. E o pior para ele, agora, ou talvez mais logo ao anoitecer, como previu, o pior, o terrível, será
ganhar consciência de que o definitivo para si nada tem que ver com o mundo que o cerca e onde a sua falta não se fará sentir. Quando morre um percevejo, o mundo
continua a caminhar. E para onde?!... Ele não pensa nisso. São coisas demasiado complicadas, ou estúpidas, para que o preocupem. Bastam-lhe as outras, as suas, as
que se cobrem agora com o frio irremediável e definitivo das horas finais.
Nessa madrugada, a luz vinha descalça. Não se ouvia. Não se ouve. O rumor do passado torna-se mais dele do que o presente. Hoje, exactamente neste momento, Zé Miguel
já pertence ao futuro caduco que não ressoa. Se
60
tivesse consciência disto mesmo, desesperava-se. Procurou sempre tornar-se notado; e o eco do que foi, e já não é, e nunca mais será, nem sequer toca nas cordas
sensíveis da vida que o cerca.
A luz caminha descalça.
Vem do dado da Lezíria, ainda a gatinhar, não conhece os sons nem as cores que ela própria traz consigo. Mastros de fragatas e barcos, a linha negra do valado da
outra margem, casas brancas do cais no jogo de volumes que se salientam ou retraem, os próprios homens que falam por ali, ou dormem, ou simplesmente sonham, todos
e tudo não passam de vultos à espera de qualquer coisa indefinida e muito concreta, que não chega ou se escapa por entre os dedos da realidade doente.
Há vozes. Há a voz da estrela da manhã misturada à do velho sarrazina, talvez bêbedo, cujo som é um sarrido, como eu próprio que escrevo o romance do Zé Miguel e
acarreto o meu, magoado e eufórico, incapaz de me entreter, quanto mais aos outros que pegaram neste romance e desejam uma história para meditar ou passar o tempo
e nada têm que ver com esta dor funda onde me atolo, cego de todo, como a luz cega da madrugada, moribunda e tão jovem, ansiosa e imprudente, que se debruça sobre
a mesa coberta por um oleado de quadrados, não importa a cor, onde o Zé Miguel deita a cabeça aparentemente cansada.
O velho ouve-se lá dentro encostado ao balcão.
Caturra com o vinho; os outros riem quando ele gesticula para alguém que se não vê e está ali mais presente do que ele próprio. Babuja palavras, deixa-as sair pelo
canto da boca e volta a pegar nelas e a mastigá-las, como se as quisesse numa papa. De vez em quando cospe. Deve ser do amargor das palavras atiradas com rancor
para alguém.
61
Zé Miguel sentou-se cá fora, perto da árvore que balouça alguns ramos quando a aragem sopra do nordeste. Agora mal harpeja.
A madrugada vem fria mas calma. Mais calma do que o rapaz quase adormecido, à espera do maioral Custódio, que chega atrasado. Tem o alforge encostado à perna, espera,
espera, nunca gostou de esperar, já partiram dois barcos da travessia, e Zé Miguel atropela sonhos dentro de si, meio tonto de sono ou de sonho. Acha-se grande de
mais para a vida que lhe deram. Morreu-lhe o avô, não conhece amigos, aborrece-lhe a casa da família e o irmão não lhe pertence. A mãe gostou sempre mais do Miguel
Zé do que dele, Zé Miguel. O nome dos dois parece-lhe uma burla para os confundir. Mas há-de fazer tudo para ser diferente do irmão.
(Conseguiu-o até há dois ou três meses. A ele chamavam-lhe o Miguel Rico e ao irmão o Miguel Pobre.) Agora tem ele mais do que eu, a vida é um corno retorcido, carago!
Quem diria as voltas que o mundo havia de dar comigo?!,.. Nessa madrugada... Vale a pena falar disso?!
Resmunga que resmunga, o velho despenhou-se lá de dentro, trazendo na fralda da camisa um coro de gargalhadas e motejos; e atirou-se de cambulhada para o chão, como
se a luz do alvor lhe cegasse a alma.
Talvez não esteja tão bêbedo de vinho como parece. Trá-lo ressabiado o amargor das lembranças, nada mais do que isso, porque repara no rapaz e pede-lhe que o ajude
a erguer-se.
Basta-lhe um braço do moço para se levantar de rompão e encarar o que o rodeia. Depois sorri consigo, faz um trejeito de mágoa e volta a contrair o rosto com pena
do sorriso.
62
Encara o rapaz e senta-se na mesma mesa. De repente, a voz põe-se-lhe clara, embora grave, quase rouca.
"- Para onde vais? - pergunta, como se jogasse as palavras para o ar.
- Pró outro lado. Sou eguariço do Camolas.
- Eguariço?... com essa idade já eguariço?!"
Zé Miguel hesita, confrange-se, arreganha uma careta de mau humor e encolhe os ombros com desdém. Pega na onça de tabaco, depois de colar uma mortalha ao lábio inferior,
despejando na palma da mão uns fios de vício que espalha a preceito e acama na mortalha para o enrolar. O velho resmunga.
"-Aqui onde me vê, sou eguariço, pois então. Aos dez anos entrei para o lavrador Prudêncio. Os olhos da cara não me nasceram com ganfanas. Tive bom mestre: o António
Seis Dedos, que era meu avô. Nunca ouviu falar?..."
A ofensa do outro amargura-o. Não, nunca ouvira falar nesse nome; e como só decorrido largo tempo acrescenta que nem admira, porque não é dali, Zé Miguel embezerrou,
virando costas ao velho em sinal de desprezo.
Mas o ébrio, desbarrigado e zonzo, agarra na ponta da conversa e remancha sem parceiro, arrepanhando o rosto magro, como se o contacto dos dedos com as pelangas
do queixo e da face lhe dessem corda para dialogar com quem lhe estivesse perto. Um rapaz qualquer metido em prosápias de eguariço, a luz brandinha da madrugada
ou o frio que lhe corta a carne cansada pelos caminhos solitários da vida.
Resmunga e filosofa. Zé Miguel não lhe dá cúnfia. Um raio que o parta! Não lhe pagou vinho, não o mandou vir, quem tiver paciência que o aguente. O velho puxa-lhe
pela camisa e insiste.
63
"-A vida é uma ova... Uma ova como as do sável fêmea. Cada bolinha é uma chatice ou uma ilusão. Ilusão é palavra bonita que ouvi dizer a um doutor que morreu dum
tiro à porta de casa. Ilusão é aquilo que a gente vê e afinal não está. Percebes?!... Sou eu a sonhar numa vida de gala e a andar por aqui aos tombos, mesmo sem
vinho. Então pra não me julgar parvo, bebo. Qualquer coisa membebeda, pois é! Uma lágrima de vinho na ponta dum dedo é bebedeira duma data dhoras. É ilusão, mais
ou menos; mais ou menos bebedeira ou mais ou menos qualquer coisa... Ouviste?!..."
Zé Miguel não lhe dá saída. Pensa no maioral Custódio e nas éguas à sua guarda; e ainda mais na égua ruça, a Lindeza, que harpeja quando galopa e parece uma estampa
se fica quieta na manada. Podia chamar-lhe ilusão, não é isso, velhadas?!...
Mas não pergunta ao outro, embora precise de passar tempo. Querem muitos que o tempo passe, depressa, depressa, e um dia descobrem que o tempo os devorou, sorna
e galanteador, nessa luta desigual entre o finito de cada um e o infinito do mundo onde temos a ilusão de mandar no tempo, talvez porque damos corda aos relógios
e decidimos se a hora atrasa ou adianta.
Alheio à realidade que pisa, o rapaz assobia.
O velho leva a mal e irrita-se: começa a falar de mulheres e irrita-se; passa a tosquiar os patrões, uma data de malandros, são todos os mesmos!, e vocifera, irritado,
cruel e irritado, na escolha das palavras. Depois levanta-se num rompão, começa aos manguitos e cai tonto num chafurdo de recordações. Cai não é bem - atira-se para
o chão, onde fica a filosofar.
Da outra esquina do cais, de repente, num alarido ofensivo para a voz íntima da alvorada, rompe um grupo de vultos.
64

MIGUEL levanta a cabeça e olha para o vulto do criado, estático, ao fundo do bar, sob a luz vermelha e pornográfica do projector. Chama-o com um aceno de braço,
grita, eh pá! não ouves?... e quer ignorar a rapariga que trouxe para aquela viagem.
Escolheu-a porque tem ciúmes de a deixar viver. Sentiu essa angústia quando há três dias andou por aqui, sozinho, e viu outras raparigas dentro de carros, na companhia
de homens que as alugam por uma ilusão.
Ou pensou...
Sim, digamos que pensou vê-la andar com rapazes da sua idade, um tipo qualquer, Dom-Qualquer-Coisa, a engatá-la num sábado à tarde para passarem umas horas com jazz
e whisky, uma amiga, um amigo para compor o ramalhete, não se sabe onde aquilo leva, onde começa ou como acaba, talvez em streap-tease, se houver um apartamento
de luz equívoca, semelhante a certas fitas, ou se alguma delas se quiser exibir, a vida são dois dias, todos baralhamos qualquer coisa, e até chamamos sonho ao que
trocamos pela prostituição gratuita de umas horas de
65
esquecimento, a sorrir e a beber, e a falar do Picasso ou do Buffet para se arranjar um arzinho intelectual, somos todos bestiais!, e a discutir o Zorba para disfarçar,
e a falar do sonho para comprometer o Zorba-progressivo, ou a implicar com o Zorba-reaccionário, aliado do neocapitalismo, coisas que Zé Miguel não entende, nem
nunca entendeu, detesta as baralhadas, não as consente, está velho, pelo menos em relação à rapariga que vai ao seu lado, e não a imagina a grunhir amor em prestações,
não, não é homem evoluído, mesmo ao sábado, ao sábado-véspera de-totobola, se acertar arranjo dois mil contos, só porque ao domingo se pode ir para a praia de automóvel
e a água do mar lava tudo, mesmo que seja num bochecho - sem maldade, palavra dhonra! -, diz para o criado que acabou por se aproximar em passos de rei em dia de
coroação, esplendoroso e resignado, a lembrar-se da gorjeta.
A rapariga não entende e sorri. O criado puxa da gaveta o sorriso número dois e pespega-o na cara com quatro pregos de cabeça verde, dizem que o verde simboliza
a esperança, faz vénias, dorme para dentro, agora não diz vossa excelência, porque já não se usa, basta o vossa excelência da mímica e a percepção do cliente, quem
é?, o que faz?, vem pela primeira vez, há entre ele e a rapariga mais de vinte e cinco anos de diferença e não deve ver a conta, é mesquinho olhar a conta, mesmo
que se entregue ao criado do bar a última nota de quinhentos daquele mês.
Zé Miguel permanece ausente desta técnica de bem sorrir e bem servir. Aprendeu aos seis anos o verbo exacto para definir a situação em que se encontra, mas não o
diz, embora o grite nos gestos.
"Estou lixado, percebes?" Olha o criado a sorrir, nem sequer adianta essa confissão, e manda-o deitar nova dose no copo facetado. Doem-lhe os músculos das pernas.
66
Sorri também e refocila no desespero:
- Se tu quisesses falar... se os homens como tu se pusessem a falar, havia de ser o bom e o bonito. Era uma desgraça! Felizmente que não deixo filha pra esses gajos
cuspirem nela. Ao menos não lhes deixo isso; é uma vingança pobre, mas é uma vingança. E esta que tem idade para ser minha filha também eles não agarram. Se o meu
rapaz fosse vivo, tinha a idade dela...
Rasga a penumbra com o gume da voz esfarpada pela raiva:
- Também é o que se leva da vida, não é?... Mais ou menos. Agora as raparigas soltam-se, são todas livres, trocam-se por automóvel e bebida, nem sabem o que bebem,
bebem o que lhes dão, o que vocês lhes dão, o que é preciso é que a garrafa diga Vat 69 e que embebede depressa para todos parecerem contentes; depois mistura-se
tudo, troca-se de copo e troca-se de rapariga, a coisa é toda a mesma, não faz diferença, qualquer coisa serve pra matar a sede... Sede de quê?, pergunto eu e tu
ficas à rasca.
Zulmira desconfia que ele sabe qualquer coisa; talvez a vissem de automóvel com o rapaz da camisola preta, moreno e de olhos verdes, filho de marquês, mais ou menos
isso. Tenta acalmá-lo, mas receia.
- Tu sabes de que tenho sede?... E tu?!... E esta?!... Esta não diz, mas percebe-se. As mulheres ou as raparigas percebem-se depressa, são todas pássaros malucos
que querem fingir qualquer coisa; todas gostavam de ser actrizes.
Admite que fala de mais e cala-se; depois acende um cigarro, puxa duas fumaças e conclui:
- Mas esta, esta que tu vês aqui, não a agarram eles... O que ela pensa não tem nada a ver com o que
67
vai acontecer, percebes? O que já fez, já fez; o que pensou, já pensou...
Lembra-se da madrugada no cais quando o grupo apareceu numa algazarra de palavras e gargalhadas. Não interessa fazer contas para sabermos quantos anos já passaram.
O velho atirara-se para o chão, talvez para descansar.
E Zé Miguel continua:
- Já fui camionista de peixe. Bons tempos, carago, bons tempos! Não é vida como a tua, de ripanso. A tua é vida de ripanso com gajos de massa e miúdas. Andei uns
-poucos de anos sempre com o prego a fundo, ainda hoje não percebo como nunca me matei de Peniche e de Sesimbra para Vila Franca. E agora pergunto-te...
Mas não pergunta, arrepende-se. Um homem quebrado dentro de si, em estilhas de vidro quase migado, muda como um catavento, nunca entende o que quer nem do que precisa,
confunde tudo, baralha, explode num fogacho de alegria e mata-o de seguida, sem perceber o que faz.
Tomam as mesas à sua volta e falam a gritar uns para os outros. O velho refila:
"-Menos barulho..."
Um dos camionistas repara no farrapo, poe-se a espevitá-lo :
"- Eh, malta! Aqui o velhadas pagou quarto no hotel estrela e não quer que o chateiem. Tem razão. O hotel estrela é caro, mas é coisa asseada...
- Já dormi em cama de seda - replica o velho, menos contrafeito; cerra os olhos para não ver a luz que acorda do outro lado do rio. - Dormi em cama com duas alturas,
enterrava-me nela e dormia. Só dormia de manhã...- Dá uma gargalhada curta ao invocar a lembrança onde se deslumbra. - Dormia de manhã porque
68
ficava toda a noite de serviço. Passei boa vida, mas saía-me do corpo."
O António Espanhol, teutão no talhe do corpanzil e nos cabelos, atravessa malandrice:
"-Aqui o nosso amigo já foi rei...
-? Pois então! Um homem é rei onde manda; pode mandar numa nação ou numa mulher. Eu fui rei de mulher; é bom ser rei de mulher lavada que não trabalhe ao sol. E
eu fui."
Mandam vir garrafas de vinho com pique, é um vinhão, sim senhor, bom de beber e rufia no amarinhar, nem se dá por ele. Associam o velho a uma das mesas, bebem todos,
bebe o Zé Miguel, ainda à espera do maioral com o alforge encostado à perna.
Depois de meia garrafa virada, o velho assobia vaidades. Fala de voz rouca; de vez em quando assobia, repenicado, para sublinhar a importância do que conta. O vinho
manda ventarolas e ele sopra balões de prosápia, atirando-os para o ar frio da manhã.
Começa mais ou menos assim:
"- Sou alcochetano, lidei com barcos e com toiros. Fiz dos barcos o que quis e dos toiros o que pude. Peguei centos de toiros. Vim aqui a Vila Franca pegar à feira
muitas vezes. Sei lá quantas!... Vinte ou mais, sei lá! Nem interessa. Nesse tempo os cavaleiros eram quase todos fidalgos; dei voltas à arena abraçado a eles, fumei
charutos, nesse tempo atiravam-se charutos à gente, e eles acabaram todos a cavalo ou de automóvel, e eu acabo assim, a choinar onde calha, a comer grandes barrigadas
de fome e a beber o que ganho em biscatos. Toiro a que eu me agarrasse nunca mais era toiro; apertava-o nos braços, embarbelava-me bem, e ele ficava como um cão.
Manso que nem um cão... Parti quatro costelas a pegar toiros e mais uma perna, esta, esta que me faz manco."
69
Aperta a coxa esquerda, sorri, põe-se triste, pisca os olhos, deixa-os brilhar com duas caganitas de lágrimas, atormenta-se, sorri de novo e por fim assobia.
"- Uma tarde -no Campo Pequeno saiu um toiro cabano, maior que um comboio, parecia manso, escoicinhava, lambia a trincheira de baba como quem quer fugir, não ia
ao cavalo, só corria aos capotes quando os abriam quase em cima do focinho, e escarvava. E mugia que nem uma vaca. Ia a um capote e frenava; media o cavalo do D.
José Proença e assim que lhe via a farpa, está quieto, é o vais lá! Fazia manguitos a tudo! A praça inteira assobiava. Era um toiro corridão, malesso e malandro,
sabia a cartilha e os livros que os doutores de leis aprendem pra lixar a gente. Ainda por cima era preto, como os doutores dos tribunais..."
A choferada deixava-o meter palha nas almofadas da farronca; falava-se de toiros e bastava.
"-E vou eu digo assim prà minha rapaziada: vou pedir pra pegar o toiro; este tio não vai pra dentro sem saber o gosto que o fado tem. Se magarrar a ele, parto-o.
A rapaziada ficou calada, como se a família lhe morresse toda na pneumónica. A minha palavra era sagrada, mas no sesbo nem lhes cabia um feijão. Morriam de medo
e não era caso para menos, porque o toiro pesava mais de quarenta arrobas e sabia de toiradas mais do que a gente sabia de toiros. O toiro aprende tudo, depressa
e bem.
- Um cavalo aprende mais" - diz Zé Miguel no meio do silêncio.
O rapsodo velho mede o eguariço com os olhos zainos e nem lhe responde. Responde-lhe num encolher de ombros, como quem diz: se já a morte tem vícios, mete a viola
no saco. E prossegue:
"- O toiro aprende tudo mais depressa do que um homem. Se um toiro falasse, estávamos lixados: tínhamos
70
governo pró resto da vida. É o que eu digo. E vou cá então, este mesmo que vossemecês vêem aqui, feito agora numa trampa, chego-me ao inteligente de barrete na mão
e peço-lhe licença pra pegar o toiro. Vai ele pergunta-me se eu estava maluco e vou eu respondo-lhe: não senhor, não sou nem fui maluco, mas a gente não pode ficar
mal com um malandro daqueles, e ele acena-me a cabeça a dizer que não, e eu aceno-lhe a cabeça a dizer que sim, e pega dum lado e pega do outro, já o cavalo ia pra
dentro com o D. José Proença, eu salto à praça, agarro uma mãozada dareia e o povo alevanta-se em peso e começa às palmas, parecia que vinha tudo a baixo com palmedo.
O gajo do clarim toca pra saírem os cabrestos, o inteligente chama a guarda e dá-me ordem de prisa; a guarda quer fazer o serviço e o toiro não deixa, e eu esfrego
as mãos na areia e vou sozinho, sozinho porque a guarda já prendera o meu grupo todo, faço das tripas coração, faço do coração um barco de três canos, e de mãos
nas ancas atiro-lhe dois pulos no meio da praça pró toiro me ver bem e alegro-o côa voz: Toiro! Eh toiro! Eh toiro de raça! Eh toiro bonito! Eh toiro valente! Toiro!
As palavras que eu dizia, agarravam-lhe pelo rabo, tenho a certeza, porque o malandro dava um passo pra trás a cada palavra minha. Não se ouvia uma mosca na praça;
se há santos no Céu, nem esses se mexiam, porque tudo ficou quieto, até o vento. A minha voz apagou o vento. Nessa altura, se me tirassem a medida, eu marcava aí
uns dez metros daltura. Dou-lhe uma corrida, paro-me e bato-lhe as palmas, chamo-lhe toiro malesso, chamo-lhe um nome mais feio, toiro dum cabrão!, e ele encara
comigo; encara comigo e não arranca. Os guardas republicanos estavam todos presos dentro da trincheira..."
Acha graça ao que diz ou ao que recorda, e abre-se a rir. Mas ninguém o acompanha; todos querem saber
71
como aquilo acaba ou que volta vai dar o velho a um sarilho tamanho.
"- Ponho-me em bicos de pés e jogo outro salto mais saltarino ainda, bato-lhe as palmas, recuo quatro passos, dou-lhe logo a seguir dois de vantagem, e o toiro...
Ah, rapazes!"
O velho já saltou para a frente das mesas, empolgado com o que conta. Não tem idade nem na perna manca, nem vinho nas tripas nem fome na alma. Grita. Salta e grita.
"- O toiro alevanta os cornos, acena-me com eles, como quem diz lá vai roupa!, e vem com uma palheta de comboio rápido e com um tamanho que nem a igreja da Estrela,
em Lisboa, mas trazia a cabeça direita que nem um anjo, salvo seja! E eu digo pra mim: temos homem e temos toiro. Está-se mesmo a ver que desembarcou ao pé de mim
mais cedo do que eu estou a dizer isto. Faço-lhe o meu jogo de pernas, abro-lhe os braços e o gajo entra-me por aqui mesmo... Eh, toiro! Eh, pega real! Nunca encontrei
na vida um amigo como aquele. Fiquei-lhe na cabeça e ele começa a ensarilhar e eu finco-lhe os braços e ele sacode mais e eu aperto mais, corremos a praça de ponta
à ponta e à volta com o povo todo a dar palmas, e eu só pensava se ia ficar ali o resto da vida e como é que me ia pôr de pé com as pernas a tremerem-me de nervoso,
ou sei lá do que era!, daquela maneira desgraçada. O povo é que me valeu. O povo desta terra. É por isso que venho cá muita vez, embora já não se lembrem de mim.
Tudo esquece. É o pior: esquecem as coisas boas e lembram-se as coisas más."
Alerta, o António Espanhol recorda ao velho que a pega foi no Campo Pequeno.
"- No Campo Pequeno, ou em qualquer parte, foi o povo de Vila Franca que me valeu. Não interessa... Os sítios não interessam. Quando dei a volta com o toiro
72
recolhido ao curral, encheram-me de tudo, menos de porrada, porque essa nem o toiro... O toiro é um animal inteligente e aquele malesso percebeu que eu estava sozinho.
Ganhei uma fortuna em palmas e outra em dinheiro. Fiz ainda mais quatro corridas com esse toiro; éramos anunciados os dois nos programas, ele com o nome dele, o
Garoto, eu com o meu, que não interessa dizer qual é. Agora sou o velho; perdi o nome. Quinteressa o nome dum homem quando ele já não é o que foi, nem o que lhe
deu fama?"
Chora-lhe a voz. Choram-lhe as mãos na garrafa que emborca. Só os olhos não choram, porque o velho pensa que um homem como ele não chora à frente dos outros, e ainda
mais ali, quando acabou de fazer uma pega a um toiro de quarenta arrobas.
"-Foi à saída da praça que a gaja apareceu; foi nessa noite, nessa e noutras, que eu dormi em cama de seda, em cama com duas alturas... Vivi como um rei. Ela era
viúva. Viúva de fidalgo, e é por isso que eu sou monárquico, embora ache que a vida com fidalgos só serve quando eles deixam cá as viúvas prà gente... Foi bom! Era
uma mulher... Mais velha vinte anos do que eu, mas devia ter andado no Conservatório. Sim senhor, no Conservatório, foi ela que me disse quando uma noite tocou piano
pra mim. Mas tocava tudo... Sabia tudo..."
Volta-se para o Zé Miguel e remata a conversa:
"- Se um dia puderes agarrar mulher mais velha do que tu, pega-lhe bem. Ficas a lembrar-te dela pró resto da vida. E quando não tiveres nada como eu, lembras-te
dela e sentes-te rico. Quando se agarra uma mulher a preceito, fica-se rico pró resto da vida... Tão certo como a gente estar aqui no cais, ser hoje segunda-feira
e eu não ter cama nem uma bucha pra comer. - Estou a pagar a maquia do que gozei; e como nunca fui sovina, acho que
73
foi bom o que fiz. Acho que a vida está mal feita, mas eu já não lhe dou volta... Se não fosse monárquico, era anarquista."
Diz a última palavra e vai em silêncio para junnto da árvore, onde se senta. Senta-se e fecha os olhos.
Zé Miguel, o Miguel Rico, fecha também os olhos dentro do bar, esquece-se do criado e da rapariga que está com ele, e recorda o velho. Nunca o viu tão bem como agora.
Talvez lhe invente o rosto, mas vê-o de maçãs salientes, cortado por rugas que se cruzam na testa e nos cantos dos olhos e nas peles do queixo, uma ruga inteira,
mal cosida com linhas de alinhavar, tendo em cima dois olhos grandes, febris e negros, sempre inquietos, e por baixo um nariz em bico de falcão com uma boca sem
lábios, rasgada, muito rasgada num fio de sorriso e amargura que se entendia até ao queixo em quilha, fendido ao meio por um golpe de goiva esbeiçada. A barba, resolve
pôr-lha branca, toda branca, não merece a pena dizer que era ponteada de pêlos negros e ruivos, poucos, porque também os olhos não seriam exactamente negros, mas
pareciam assim, e ele inventa o velho naquele momento, nunca lhe viu o rosto sempre que pensou nele, ao recordar certas palavras gradas da conversa no cais: "Quando
se agarra uma mulher a preceito, fica-se rico pró resto da vida..."
Nessa manhã, mal o velho se calou, os camionistas pegaram-lhe na palavra e falaram da Rosinda, a varina viúva que nunca deixara o luto depois de cinco anos, tão
funda se lhe metera a saudade do marido falecido.
Diz o António Espanhol:
"- Traz os olhos arvorados numa bandeira, à espera de alguém que lhe enterre a dor e descubra a gana que lhe espevita o sangue..."
74
O Catalarrana corta-lhe a carreira:
"- Tem medo que lhe comam o dinheiral e não há homem capaz de lhe abrir o capote, por mais que se arrime... E quanto mais se arrimar, mais ela lhe foge. Está como
o toiro ali do nosso rei: ninguém lhe mete uma farpa."
O Zé Rounaldo reponta:
"- É uma questão de maré... Não há mulher que não embarque, se o arrais porfia e se lhe apanha o ensejo da fomita marota. E a Rosinda anda com fome cega."
Um dos outros respinga que a conhece nestes anos todos, trabalha para ela há muito tempo, tem visto muito gajo a fazer-se ao piso e ela nunca se arranca.
Pergunta o Romualdo, desabrido:
"-E o que vai ela fazer a Lisboa todas as terças-
- feiras? Se calhar, vai ver o D. Pedro e o Camões por causa do marido...
- Tem o seu negócio.
- Pois isso há-de ter... E que negócio?! Aí é que está a conversa: e que negócio?!"
Diz o António Espanhol, já irado:
"- Vai pagar as facturas do peixe à Ribeira e volta direita ao comboio. Abala depois de almoço e está em casa antes das sete.
- Como sabes?
- Sei. Sei tudo a respeito dela. E agora?!... Pois sei." Os outros conhecem a ira demente do camarada, se
alguém lhe atravessa o carro na conversa, e ficam calados. António Espanhol continua lívido, à espera que o contrariem.
Sente-se agora como diz muitas vezes: "O corpo pede-me chuva." Mas como ninguém fala, desembrulha ele mesmo a sua meada:
"-A Rosinda tem mais fortuna que o Leitão. Pesa
75
uma porrada de dinheiro, tem dois prédios de casas em seu nome e as três camionetas que a gente sabe. E massa no banco?... Se pusessem o massão dum lado duma balança
e ela no outro, vestida e tudo, o fiel pendia para o lado do pilim."
Zé Romualdo depenica:
"- Já te fizeste ao piso, ó António!
-Não interessa... Sei tudo a respeito dela. Pois sei. E ainda bem que sei. Mas é mulher séria."
Passa a mão pelos cabelos loiros e cala-se.
Zé Miguel não agonia uma só palavra daquela conversa toda. Quando o maioral Custódio aparece para embarcar, o rapaz atira o alforge para o ombro, corre pelo declive
do cais e não larga palavra durante a travessia. Nem se volta para as bandas de Alhandra, para onde olha sempre que faz aquela viagem, nem se deita ao pé do leme
para ver a espuma da água a golfar do bojo da proa.
Conhece a Rosinda. Na vila todos a conhecem. Mas ele só agora a veste no sonho de a ver como mulher.
76

Não esquece, nunca mais pôde esquecer, essa noite de interrogações, viva no sangue doce das lembranças, tão presente em si como um órgão vital do seu corpo. Ainda
há dois meses tentou repetir, em vão, essa noite distante da adolescência, em que almejara saltar para fora do pego da miséria onde a origem o atolava.
(Sabemos já bastante do que ambicionou e do que fez. Encontramo-lo agora, perplexo perante o revés que nunca admitiu possível. Iremos conhecê-lo melhor com o tempo,
embora já não consigamos pormenorizar a senda percorrida por Zé Miguel, de maneira a deixarmos a cada um o gosto de escolher o essencial no labirinto de espelhos
em que vagueia aturdido. Ele elegeu uma saída, a sua, a única que parece responder agora às interrogações do homem construído no barro frágil da violência.)
Ainda há dois meses se deitou dentro de uma manjedoura igual àquela em que meditou na adolescência, julgando reencontrar aí a força capaz de arrancá-lo ao desespero.
Assim fazia sempre que precisava de pensar, como se a repetição do local lhe inspirasse a inteligência e a coragem. Mas desta vez a noite não lhe deu resposta. Ele
próprio irá esquecê-la para sempre, mais logo...
77
Sim, mais logo quando meter o automóvel no corpo inquieto da serpente de fogo.
Sem voz e sem eco, sem corpo e sem sombra, a noite ficará perdida no torvelinho do tempo indiferente dos outros. Será a noite do nada. E para ele continua a ser
- ainda - a noite mais importante da sua vida. Nasceu dentro dela, foi nela que se gerou, fora das entranhas da mãe. Essa noite transformou-se na sua mãe verdadeira,
noite estranha criada por ele.
A partir do momento em que entrar no corpo da serpente de fogo e se aproximar do sítio escolhido por si, deixará de haver quem recorde essa noite fria, perdida então
entre as coisas definitivamente mortas, tão mortas que nem sequer se transformam como o corpo dos bichos e dos homens, as folhas caducas, as raízes arrancadas e
podres, as pedras calcinadas ou já desfeitas em pó, coisas simples que nada parecem e ainda são algo de tudo, ou começam a ficar mais perto de tudo quando se aproximam
da aparência do nada, participantes e vivas, embora não se vejam nem sintam.
Só essa noite, tão decisiva para ele, irá desaparecer de súbito, e para sempre, do mundo. Antes dele próprio. É triste, carago! Porque me fala disso agora, se eu
já mal as recordo?... Bebi meia garrafa de whisky e as coisas afastam-se de mim; afastam-se e doem. Talvez porque a gangrena dói, a lembrança dessa noite afasta-se
e decanta-se no essencial.
Tem 18 anos, guarda dentro de si a força oculta que ainda desconhece. Guarda-a para a usar em qualquer coisa que seja dele, muito dele, secreta, desconhecida. Vai
distraído no barco da travessia, fica à margem da manada de éguas que lhe cabe cuidar, nem mesmo a Lindeza, a égua ruça que harpeja quando galopa, o preocupa durante
o dia.
78
O dia vive na bruma hostil do que cansa. Precisa da noite, quer a noite, depressa, nunca mais o Sol se põe, nunca mais a ceia chega, são horas, carago!, são horas
para um homem pensar no que lhe interessa, fechem-se as portas do dia, para quê um dia tão longo e tão igual aos outros? Assim não vale a pena gastar o tempo, pode
fazer falta lá mais adiante, em certos dias ou noites que se querem grandes.
Ele espera a noite.
Senta-se à porta de chapa ondulada da mota das éguas e espera. Não precisa de cear, quer ficar sozinho para perceber tudo o que ouviu de madrugada aos camionistas
do peixe e ao velho pegador de toiros.
Parece embriagado; rodopia dentro de si um fio de sonho que o atordoa e embala, o faz crescer para além daquela hora e o torna mais pequeno no momento exacto em
que o fio o envolve e o balouça para amanhã.
Pela lezíria rasteja a sombra aniquilada do poente. Farrapeira, a luz amacia a distância e o recorte dos aposentos das empestas, deixando em ambos manchas de cor
que, pouco a pouco, se vão tecendo na cinza do crepúsculo. Antes, porém, há uma última convulsão ensanguentada que queima a terra. A terra parece estremecer com
esse contacto febril.
Zé Miguel nunca percebera o encontro nupcial que anuncia a chegada da noite. Nunca também lhe apetecera ficar sozinho àquela hora.
Sente então, de súbito, a necessidade de escutar a sua voz e grita para o silêncio um brado às éguas, como se quisesse lembrar ao mundo que teria de contar com ele.
Gosta de se ouvir, repete o grito mais alto e fica com a sensação de que o vê arremessar-se de telhado em telhado, de palheiro em palheiro, até que lhe escuta o
deflagrar
79
na cortina de eucaliptos da mata de Samora, estilhaçando-se em pequenos ecos que o crepúsculo agarra.
Aquela hora, a emposta resguarda-se do trabalho.
O rancho de carmelas de arroz já partiu há quase um mês; lá abalou a Rosa, sente-lhe a falta, embora a ache feia para que lha lembrem os outros. A distância da ausência
torna-a, porém, menos magra e desengonçada, porque pensa nela muito quieta depois de se encontrarem por detrás do canavial da aberta real, de mão agarrada à sua,
a pedir-lhe que fique mais um bocadichinho; ninguém deu pela falta deles, segreda a cachopa. Zé Miguel desprendia-se num arremesso mariola e metia pelo carril do
Camarão, de maneira que os outros o julgassem de regresso da taberna do Mula Brava.
O amor desenxabido da Rosa Vagos vem-lhe ao sangue. Recorda a noite em que a teve no canavial, sem palavras, já os dois sabiam bem o que lhes apetecia; ela só tirou
a faixa preta da cintura, tremia toda, e no fim perguntou-lhe com receio se viriam mais vezes, gostava que sim, se ele não se importasse. Zé Miguel deixou-a sem
resposta, porque pensava na mulher do maioral dos bois, a Maria Augusta, e a voz da carmela desfazia-lhe a ilusão de estar ali com a outra. Mas tomou mais vezes
o mesmo caminho na sua companhia.
Nem se importava agora sequer de repeti-lo, pois a distância da ausência dá um toque desconhecido no rosto feio da rapariga.
Tem 18 anos, bons tempos, Zé, bons tempos!, a. vida ainda não ganhou o sabor que iria provar a partir dos
30 até há pouco mais de seis meses - sempre foram trinta anos a subir para o cimo do arame donde agora caiu, sem que alguém lhe estendesse a mão.
Todo o passado se lhe restitui no presente amargo sem futuro. Estranho futuro, menos incógnito do que
80
certos momentos do passado que ainda o arrebatam e parecem virgens dentro de si, como se ainda lhes ignorasse a vivência. Desvenda-os ainda, sente-os frementes dessa
força empolgada que o arrancou de eguariço.
Quando a noite afocinha de chapuz sobre os seus ombros, Zé Miguel continua à espera. Das motas do gado recolhido chegam-lhe a voz dos campinos e a dolência do som
da chocalhada que lhe recorda movimentos já decorados: os bois da terra, negros e de amansia, já se deitaram na cama, menos o Andorinha, ainda ressentido da capação
que lhe magoa os testículos esmagados a maço de madeira e o torna inquieto, sem arranjar sítio para estender o corpo musculoso e agigantado (sacode os cornos num
sarilho, mete-os debaixo da barriga do Azeitona, que já esqueceu os tempos de liberdade de toiro fero, e move o seu chocalho sem cessar, triste e aviltado pelos
homens); entre as éguas apoldradas, distingue sempre o som do badalo da Lindeza, cada dia mais sôfrega com a cria, um poldro calçado de branco nas mãos e que abala
em carreiras tontas quando o largam na pastagem do arrozal ceifado, tão melindroso tem o sangue de bicho fino.
Zé Miguel faz horas para se ir deitar na manjedoura do fundo, onde gosta de bater sorna. Agora espero duas horas para me ir meter na serpente de fogo... O bicho
da desgraça entrou comigo e já não o mato. Desta vez dá ele conta de mim... Mas não deixo que gajo nenhum me pise, lá isso não, carago! Antes cego... antes morto.
Quando a emposta se1 aquieta, já a Lua sobe na noite.
O rapaz mete-se na mota das éguas apoldradas e procura o seu canto, depois de cuidar da palha para a Lindeza. Afaga-lhe o focinho e a garupa, corre a mão do quadril
para a nádega e deixa-lhe uma palavra de carinho, aquietando o poldro, logo pronto em erguer as orelhas num sinal de alerta.
81
Cheira a cama de gado e a esterco, num bafo quente e acre que lhe agrada. Os vultos dos animais estendidos pela palha ou ainda entretidos com a ração movem-se para
o verem passar. Conhecem-lhe a figura tamanhina e a ombratura larga, a voz cantada e o ruído pesado dos passos gingões.
Zé Miguel sabe que as éguas apoldradas gostam de vê-lo perto e tira disso uma das suas empáfias, tanto mais que o patrão já o gabou à frente do maioral Custódio
e da Maria Augusta, com quem adormece quase todas as noites, salvo seja! (O maioral dos bois não é para graças e fazia-o bailar o fandango na ponta de uma navalha
se lhe descobrisse a tineta para o lado da mulher.)
Galga com a ajuda das mãos para dentro da manjedoura, aconchega a palha para debaixo da cabeça e tira o barrete verde, estendendo-o sobre o peito; não quer a carapinha
a apertar-lhe a testa, necessita de cerrar os olhos para reviver a madrugada no cais, palavra por palavra, coisa por coisa. Adivinha um pincho na sua vida monótona
e tosca; pressente-o à espera daquela espécie de raiva contida que guarda dentro de si.
Tem a certeza.
Como vai arrancar dali, ainda não imagina. Mas sabe que arranca. Haja o que houver, precise de fazer o que quer que seja, mesmo pelo mal, à má-cara, contra si, contra
quem lhe fizer frente, pelo trabalho ou doutra maneira, porque está resolvido desde menino a ter um cavalo seu, pago com o seu dinheiro, guiado pela sua mão, seu
e muito seu, comprado ao Relvas se puder ser, porque nunca mais esqueceria, por muitos anos que ainda vivesse, o que o avô António Seis Dedos lhe disse na carroça
azul, pintada de novo, com riscos amarelos à volta dos taipais e ramos de flores mesmo ao centro de cada um.
82
"-Olha, Zé!... Assim que puderes, deixa de dar cavalaria a estes gajos... São todos uns gajos! Andam com a gente nas palminhas enquanto a gente lhes dá jeito; mas
assim que não precisam deitam a gente fora com menos pena do que da ponta do charuto que fumam. Não deixes que eles te fumem até ao fim. Cava!... Assim que puderes
dá o fora, arranja coisa tua e joga-te nela com força. Tu tens força e coragem. Põe-na do teu lado, trabalha para eles o menos que puderes e manda-os à fava quando
te der na gana, porque um homem da tua madeira não morre de fome. Quando eles te falarem em honra, atira-lhes com um manguito pra dentro..."
Zé Miguel esqueceu a parte mais importante do que lhe disse António Seis Dedos, seu avô e foragido de Aldebarã, enquanto Diogo Relvas não fechou os olhos para sempre.
Esqueceu certas palavras, talvez porque as julgasse desnecessárias para si, a partir da altura em que entrou na roda dos mandam-chuva.
Logo depois a morte veio pela segunda vez ao seu encontro. Daí o ter sonhado com ela em cima de um carro para o desafio marcado à meia-noite, num sítio ermo rodeado
de choupos esguios.
Vai em cima da carroça com o avô ao lado, em conversa de amigos. O velho acaba de lhe dizer as palavras que recordou deitado na manjedoura. Excitado, António Seis
Dedos pega no cabo do chicote e começa a fustigar o cavalo manhoso que lhe distribuíram para a carroça pintada de azul. Bate-lhe e vocifera, arregala os olhos doentes,
parece louco.
Num repente, o cavalo, já calejado de chicote, torna-se melindroso e abala numa fúria, galopa, galopa de cabeça erguida e dentuça arreganhada, crinas ao vento, peito
aberto para a estrada que serpeia por entre valas e abertas, atirando as mãos para voar, parecia que largava lume
83
naquela carreira parva, e eu olhava para o meu avô com vontade de gritar e de chorar, e o velho pôs-se de pé com as rédeas nas mãos descarnadas e velhas como raízes,
mãos assim como as suas, exactamente secas e velhas como as suas que está a contar a história da minha vida, e dá-lhe de rédeas e incita-o, assobia-lhe, grita-lhe,
refreia-o, bate-lhe outra vez, bate-lhe ainda, a carroça azul vira-se um pouco numa curva e eu salto para fora, salto ou fui cuspido, e logo a seguir, antes que
pudesse fazer alguma coisa, sei lá o quê!, antes que pudesse correr e chamar alguém, o cavalo da morte atira-se com o meu avô de encontro a um muro, relincha como
eu nunca mais ouvi relinchar, parecia que o mundo se abria, e depois acabou-se, acabaram os dois. Eu não vi, não quis ver, deitei a fugir sem saber para onde, estive
mais dum dia escondido dentro duma guarita da água e só voltei a casa quando ouvi tocar o sino da igreja e percebi do que se tratava, e então apareci para acompanhar
o meu avô António Seis Dedos ao cemitério. E foi no caminho, sem deitar uma lágrima, mas cheio delas da cabeça aos pés, que eu ouvi contar que o cavalo tinha o ferro
do Diogo Relvas, a quem o meu velho desfeiteou numa noite de moina no palácio desses gajos... O cavalo puxava a carroça da morte e foi nela que eu sonhei há uma
porrada danos. Parecia que o bicho percebera as palavras que o meu velho me dizia e se desforrou dele, partindo-o todo numa migalha de gente quando António Seis
Dedos era um homem valente, carago! Na mota das éguas apoldradas pensei nelas e no que vira e ouvira no cais de Vila Franca; e disse para mim que havia de ser camionista,
ao menos camionista, e nessa mesma noite peguei no alforge, sem cuidar do dinheiro que me ficava nas mãos do Camolas, e abalei da emposta, sabendo que não podia
voltar a casa por causa da minha mãe. Nunca me perdoou, acho eu. E eu também
84
nunca lhe perdoei. Enquanto foi viva, e até aí eu pude sempre, mandei-lhe mesada; fui duro com ela, mas ela não o foi menos para mim, e então quando morreu dei-lhe
caixão de chumbo dos mais caros e mandei-lhe pôr na campa uma pedra branca, boa, custou-me tudo um dinheiral, mas as pessoas sabem que está ali a mãe do Miguel Rico.
Sim, ainda hoje sou o Miguel Rico...
85

METE a mão à algibeira das calças. Abre um pouco os dedos e fecha-os, à pressa, no maço de notas, que aperta com o rancor de as saber propriedade dos outros. Para
que servem agora se não chegam para o que precisa ?
Talvez ainda valesse a pena se o filho fosse vivo... Mas o filho não devia viver mais tempo depois do que soube. "Envergonhava-me o nome", pensa ao olhar a rapariga
; e logo percebe como ele próprio deixou destruir, ou destruiu, admite, não, não admito, eles deviam-me aguentar por tudo o que fiz por eles e largaram-me; o Ribeiro
ameaçou-me quando eu disse que ia contar tudo o que fizera, deixou destruir o nome. O dinheiro que traz consigo, o último, não basta para partilha o que está dentro
do bar, como ainda há bocado disse, por bravata.
Aquelas notas não lhe pertencem" Roubou-as aos outros, é o que todos pensam; atirou-lho à cara, naquela manhã, um dos garagistas que lhe fiafa dezenas de contos
em gasóleo e pneus para a sua frota de caminhões parados. Agora deve tudo, e ainda bem. Só lamenta não os ter cravado mais, arrastando-os também consigo para o barranco
dos falidos.
86
Encara a rapariga com ternura, apetece-lhe beijá-la, como nunca o fez, em beijos lentos e calmos, um pouco por todo o rosto, talvez em busca de um pretexto para
inventar uma esperança que valha a pena procurar. Passa-lhe a mão pelos cabelos soltos e compridos, cerra os olhos raiados de sangue e larga uma frase:
- As mulheres nada me devem... Nem mesmo tu, que não me deste mais do que me podias dar.
-Não percebo, pá.
- Sim, não podes perceber nem eu te vou dizer agora qualquer coisa que mude o que se vai passar. Não me percebias. Eu mesmo só agora me percebo. E é tarde. Muito
tarde.
Alarga o silêncio entre ambos, espera por simples distracção e prossegue:
- Sabes alguma coisa do teu futuro?
Ela acena a cabeça com frenesi e fita-o bem; deixa cair um não assustado e continua a olhá-lo numa interrogação. O criado aproxima-se para ver se os entende; começa
a interessar-se por eles. Adivinha que a história dos dois não é tão vulgar como parece.
Zé Miguel retoma o fio da conversa:
- Está-se mesmo a ver que não sabes. Mas eu sei, carago! Sei do futuro mais do que do passado; sei do futuro mais do que estou a ver à minha frente. À minha frente
há coisas que me escapam. O passado já não o conheço todo. O que vai acontecer daqui a algum tempo não falha.
- Porquê?!...
- Porque já resolvi tudo. Quando digo tudo é mesmo tudo.
Hesita em continuar e repete a ideia que o domina:
- As mulheres nada me devem. Nada... Se tivesse tempo para me lembrar, contava a minha vida inteira pela
87
vida das mulheres que foram minhas. Se me perguntas se foram muitas, eu digo que foram muitas. Ou talvez menos do que precisava. Tive mais de sete mulheres e meia...
De qualquer maneira, tu és sempre a meia mulher da conta. És nova de mais para mini. Agora vejo tudo bem e percebo que és nova de mais para mim. Mas custa-me pensar
certas coisas; e por isso te fui buscar para esta viagem.
- Não vim para viajar; vim só para dar um passeio, pá.
- Dá tudo no mesmo. Viagem é passeio... Marquei um encontro para as sete horas da noite e quero levar-te comigo.
Vê o relógio e sorri.
- Falta uma hora e três quartos. Falta ainda muito tempo.
- Passa depressa.
- Para quem não sabe, passa depressa.
- Não sabe o quê?!...
- Isso...
- Isso o quê, pá?
- O que se vai passar. Não tenhas medo; as coisas são fáceis.
- Não percebo, pá.
- Percebes no fim. vou pagar o carro às sete horas em ponto; foi o que combinei e não falto. Depois ponho o carro em teu nome...
- Porquê?!
- Nunca te dei nada que se visse e tu mereces que eles não te toquem. Eu, pelo menos, não quero. Já resolvi que não quero.
Zulmira deslumbra-se, acha a ideia formidável, mas estranha o tom em que ele (lhe fala de uma coisa tão bestial; não sorri só por isso.
88
- As mulheres nada me devem... Nada! Mesmo nada!
Quando repisa nesta ideia, pensa na Rosinda, a viúva. Sim, a varina. A varina de que o António Espanhol falou no cais quando os camiomistas apareceram de madrugada
ao pé dele e do velho pegador de toiros. Dessa vez parecia noite e daí a pouco tempo chegaria o Sol; agora a noite aproximava-se, já tudo era noite para ele, exactamente
há duas semanas, e nesta, às sete da noite, mais coisa menos coisa, não vale a pena fazer caso de minúcias, vai empreender a sua grande viagem.
Diz ainda para a rapariga:
- Um passeio pode ser uma viagem. Que sabes tu disso?!... Se de repente me desse na maluca e fugisse contigo para qualquer parte, o passeio passava a ser uma viagem.
Sou eu quem ainda manda em ti... E não haverá outro homem na tua vida, entendes? Sou o último; é bom ser o último nestas coisas de mulheres. Quando não se pode ser
o primeiro...
- Tu foste o primeiro, pá.
-Contigo fui. O primeiro e o último. Entre um e outro é que não sei nada.
Ela interroga-o num olhar surpreso. Zé Miguel prossegue:
- Sim, quero dizer que nada sei do que fazias quando não estava ao pé de ti. Tinhas muitas folgas; às vezes telefonava e a tua mãe dizia-me que acabavas de sair
com uma amiga. Eu sei o que isso quer dizer; também andei com outras que iam sair com amigas e a gente amanhava-se todos, fazíamos bacanais, ou qualquer coisa parecida.
Agarra-lhe o rosto com as mãos um pouco trémulas e obriga-a a fitá-lo bem nos olhos, como se pudesse chegar
89
ao fundo das suas lembranças; depois fala-lhe lentamente, sílaba a sílaba:
- Quantas vezes andaste na paródia sem mim?!... Sim, quantas vezes saíste de casa depois da meia-noite, para que eu já não pudesse telefonar, e andaste na boa-vai-ela
com outras raparigas da tua idade?!...
- Não consinto...
- Estamos na hora da verdade, percebes?
- Mas o papá e a mamã não me deixariam sair mesmo que eu quisesse, pá.
Irrita-se.
- O teu papá e a tua mamã, nunca consegui que vocês acabassem com essas caganças, esses recebiam dois quilos por mês, que eu lhes dava. Um conto por cada uma, percebes
o que quero dizer?...
- Não!
Diz não várias vezes e os olhos enchem-se-lhe de lágrimas, tremem-lhe os lábios, apetece-lhe fugir, e fica agarrada pelas mãos dele tanto como pelo receio de abalar.
-O teu pai, o papá Palmeias, sabia de tudo... Um conto para cada uma, entendes? Um pela tua mãe e outro por ti. Qualquer pessoa percebe a conversa. A tua mãe era
uma mulher soberba. Vocês agora com a mania da magreza ficam uns canelos.
Corre-lhe a mão pela testa e depois acaricia-a longamente, como se quisesse decorar qualquer pormenor que mais tarde lhe faça falta.
- Mas agora gosto mais de ti. Ainda não estou velho, nem nunca serei velho; já agora nunca o serei. Conheci uma mulher com quarenta e cinco anos, tinha eu dezoito,
ela ainda é viva e eu já acabei. Chamava-se Rosinda. Foi quem me deu a mão. Também com ela o parafuso me saltou fora; de vez em quando o parafuso salta e arranjo
90
um grande sarilho. Era bonita... Uma mulher bonita, branca, mas não era deslavada, de um branco cor-de-rosa, sim, mais cor-de-rosa do que branco. Esperta, enganava
toda a gente, mas comigo nunca fez trapaça.
Zulmira cansa-se daquela conversa remanchada de bêbedo, não lhe interessa o que o amante confidencia e abstraijse, foge para longe dele, pensa que é sexta-feira,
agora às sextas-feiras depois de jantar a Maria da Luz fica livre, porque não trabalha ao sábado, e então sempre se arranja companhia para uma volta de automóvel,
whisky, jazz, mãos dadas, um Dom-Qualquer-Coisa, Saldanha ou Alarcão, um desses tipos giros que têm dinheiro para gastar, ou que gastam o que a gente leva, camaradas
a sério com quem apetece esquecer a porcaria da vida pelintra do nosso bairro e da nossa casa, Vai um ou gin tónico para atordoar um nadinha, e depois canta-se,
faz-se um pouco de amor, não muito, de maneira que ninguém fique comprometido e não haja sarilhos em certa altura do mês, porque nessas alturas deixam-nos sozinhas
e a família pensa da gente coisas terríveis que não são justas, ou que o seriam no tempo deles, quando o Pai Adão não passava de um animal de amor pouco imaginativo
e solene, um bicho primário com fúrias de assassino, ciumento e melindroso, com quem se não podia ter uma liberdade requintada.
Continuam juntos um do outro, Zé Miguel mexe-lhe nos cabelos soltos e ondulados, ela acaricia-lhe as coxas, sorri, sorriem ambos, o criado também sorri, depois o
barman sorri também, mas nada têm que ver uns com os outros, porque cada um se dá à vida que lhe importa, e os outros que interessam?, o homem é agora um leão velho
e solitário, nesta selva só há leões velhos e solitários, pouco mais, os outros estão presos ou em riscos de o serem, quem os manda ter ideias parvas?...
91
Ao menos com essa malta, pensa Zu, a pessoa não se contrafaz, não precisa de passar por menina séria que espera casamento, porque, a ver bem, quem espera casamento?,
a não ser depois dos trinta, quando se encontra um tipo a cheirar a velho e quer afocinhar na juventude que perderam todos, os novos e os velhos, os moralistas e
as prostitutas, mesmo as prostitutas de sexta-feira e de sábado que vendem amor em comprimidos por um passeio de automóvel, descapotável, pois então!, um pouco de
álcool, uma ceia com um bom pedaço de música frenética, porque se as pessoas estão mortas, ao menos que a música e o homem da bateria se mexam por todos e pareçam
vivos; já basta aturar um tipo destes que manda todos os meses dois contos, convencido de que a família inteira lhe deve fidelidade por dois contos.
Àquela mesma hora, nem mais um minuto, Rui Diogo Relvas, o Saca-Rolhas, fala ao guarda-livros na dívida do Zé Miguel e pede-lhe que ande depressa com as coisas no
tribunal.
-Não descanso enquanto não vir esse gajo na cadeia. Hei-de metê-lo na cadeia... Unte bem as unhas a esses tipos do tribunal, de maneira que não haja -demoras. Se
mesmo assim começarem a protelar, diga-me, que vou lá eu. Comigo eles andam... Todos sabem que sou amigo do ministro.
Como se à sua casa pacata, triste e pacata, chegasse a voz imperiosa do Rui Diogo, o chefe da secretaria do tribunal diz para a mulher:
- Entrou hoje o processo do Miguel Rico e ninguém o livra da falência fraudulenta. Deve a toda a gente... Aos amigos, aos inimigos, à Fazenda, às Caixas, ao Desemprego
e, naturalmente, à criada. Agora tenho pena dele. Mas nada posso fazer a seu favor; dentro de quinze dias ou menos, malha com os ossos na cadeia. Vai ser bonito!

92
-Ardeu num instante...
- Sabes quanto valem os brincos que a mulher traz nas orelhas? Adivinha!... Diz um número.
- Três contos...
- Frio, muito frio.
- Dois contos e quinhentos...
- Gelado.
- Cinco contos!
- Frio...
- Diz lá tu, que sabes. Como queres que eu adivinhe?...
-? Vinte contos! Nem mais nem menos: vinte contos! O processo é que diz e o processo fala como gente. - Vinte contos?! Devem ser brincos de rainha.
- Gastou com amigos e mulheres muitas centenas de contos. Tinha a mania que era garanhão e gastou uma fortuna com pegas. Agora lixa-se. Talvez vá malhar com os ossos
na cadeia, para saber o gosto que o fado tem. Os credores apertam-no por todos os lados, alguns julgam que ele tem dinheiro guardado, quem sabe?, talvez em nome
do irmão, o Miguel Pobre, e a esperteza desta vez vale-lhe de pouco.
- Os malandros têm sempre sorte; há sempre alguém que ajude os malandros.
- Desta vez não acredito: cá se fazem, cá se pagam... Naquele momento exacto, nem mais um minuto, Alice
Gilvaz senta-se num banco da cozinha, apoia os pés numa das travessas gastas e encosta a cabeça à mesa coberta de oleado. Está cansada, quase exausta, vai para duas
semanas que não dorme uma hora seguida, pega no sono e acorda assustada uma hora depois, como se dormisse a noite inteira, e ainda desconhece tudo o que se passa
com Zé Miguel Mal se falam. Perguntara-lhe uma vez que havia de verdade no telefonema anónimo, recebido à
93
tarde, andava ela em cuidados com as persianas da casa de jantar. com sete pedras na voz, ele respondera numa pergunta:
"-Tens oitocentos contos?!... Sim, oitocentas notas de conto. Não tens... Então, se não tens oitocentas notas de conto, cala a boca e não me chateies."
Desconhece a parte mais importante do que se passa. Foi ao notário para hipotecar a quinta dos Montes, ninguém parecia contente, o doutor leu o nome dela e do marido,
fez a assinatura muito devagar, passaram-lhe com o dedo grande por uma pedra de tinta preta e depois pôs o dedo sujo em cima do papel, mesmo em frente da linha onde
desenhara o nome.
Pressente que acabou o seu tempo de senhora.
Amarguram-na saudades das comezainas e das festas ali em casa e na quinta, quando vinham doutores de Lisboa e doutores da Câmara, lavradores da Lezíria, fardas,
algumas senhoras, e ela era a D. Alice, vestida de seda e com brincos de vinte contos pendurados nas orelhas, que bonitos são!, D. Alice para ali, D. Alice para
aqui, D. Alice, que maravilha está a sua sopa de peixe! com esta lagosta suada fazia-se a paz na Coreia, importa-se de me dar a receita?, nunca põe batata na caldeirada?,
não, nunca, nunca ponho, deito tudo ao mesmo tempo, sem água, o tomate é que dá água...
Para os mais íntimos que vinham beber whisky, era a D. Alicinha; o seu Zé sabia receber muito bem, diziam todos; achava-o de mãos largas em demasia, uma vez falou-lhe
nisso e ele respondeu que os homens e os cavalos se adoçam com quem lhes trata bem da barriga, mas é preciso habituá-los a virem comer à mão dos que querem amestrá-los
a preceito.
Achara-lhe graça nessa altura, mas sente-se triste agora. No momento exacto em que pensa e repensa nos
94
tempos distantes, quando se sentava num dos bancos da cozinha do palácio dos Relvas, a olhar a torre dos Quatro Ventos, onde morrera o patrão Diogo, e adivinha o
seu regresso ao passado, mais cedo ainda do que prevê, embora se julgue a pôr as coisas muito negras, sempre fez assim para chamar a sorte, porque no fundo confia
que o seu Zé será capaz de recomeçar tudo com mais força ainda. Já prometeu um cordão de oiro à Senhora de Fátima, pois vieram ainda de mais baixo e chegaram bem
alto, sim, bem alto, graças a Deus!
95

CHEGA de madrugada à lota.
Passou momentos antes pela taberna do cais, onde ouvira os camionistas e o velho pegador de toiros, como se precisasse de reencontrar a fonte dos sonhos que imaginou
dentro da manjedoura. Sorri à volta. Senta-se na mesma mesa, perto da árvore alcachinada pelos ventos do Nordeste, não se chega à conversa com os barqueiros, sorri,
basta-lhe a sua companhia. Bebe um copo de dois, a mastigar o vinho quase à dentada, e pede que lhe guardem o alforge até mais logo.
Está ansioso e não sente pressa.
Precisa daquela pausa para saborear o gosto de descobrir estrada pelo seu pé. Ainda não sabe o que irá acontecer; é bom caminhar no mistério das pessoas e das coisas,
embora conte consigo para lhes dar o jeito que as ponha a seu modo. Acha-se capaz de moldar ou de forçar o que for preciso para atingir o que deseja. Não distingue
ainda muito bem o que quer, mas não lhe faltam ganas para segurar as rédeas do destino.
Quando chega à lota, ataranta-se no meio da algazarra do varinal.
96
É um fartum a peixe; tudo lhe cheira a peixe. Passam ajudas com caixas de carapau e sardinha (arreda!, arreda!), que arrastam pelas pegas de corda, chegam camionetas
de Peniche e Sesimbra, umas atrás das outras, depois de uma carreira maluca por essas estradas de morte, e lá vêm atordoados de fadiga e soneira os pescadores do
Tejo. Trazem fataça e barbo (é uma prata vivinha!), camarão e linguado que vendem às tecas, enquanto não chega o tempo do sável, só por alturas do Natal, então aí
é que se tira o pé da lama.
Os cagaréus movem-se na sorna da canseira da faina, enquanto as mulheres, sempre azevieiras e grulhas, escabujam, gritam, riem e arrenegam-se por todos eles, que,
mal pisam a firmeza da terra, perdem a sofreguidão de viver, ou talvez se achem grandes de mais para entrar em compitas de alarido e chuis, motejos e linguarejar
equívoco.
Aparelham os guardas fiscais e os conteiros a tomarem notas dos lances arrematados, uns por mor do imposto, outros para saberem a quem hão-de passar conta da semana,
que irão receber às portas das varinas com o saco do dinheiro pendurado no pulso. O fiscal da Câmara vigia o bulício; os pequenos ladrões de peixe espreitam ensejo
para agadanharem os descuidos dos que andam na lida.
Zé Miguel atordoa-se no meio da grita do mulherio (é um fartum a peixe, tudo cheira a peixe), empurram-no para um lado, enxotam-no para outro, atiram-lhe remoques,
pergunta-lhe uma rapariga se veio atrás de algum toiro fugido da manada, e ele responde logo, foi sempre um repentista, ainda hoje não esqueceu o que lhe disse:
"- Ando a ver se agarro uma boa fataça com duas pernas...
- Trazes rede ou anzol?
- Pesco à mão.
97
- Podes ficar sem ela. As fataças daqui mordem nos parvos.
-? Então posso agarrá-las, que a mim não me mordem.
- Porquê?! Ora essa!
- Ora essa, é assim mesmo. Nunca me queixei de parvoeira...
- Os parvos não se sentem da doença.
-? Nem as fataças sabem de que lado as agarram." Metem-se nos escaninhos daquela conversa, sem que a rapariga deixe de lavar sardinha dentro da celha. Riem-se-lhes
os olhos, pegados um com o outro, até que Zé Miguel atira a última réplica e lhe fita a altura do peito, como a significar que a agarrava por ali.
"-As fataças com duas pernas dão coices: sabias, ó campino?!
- A coice ninguém me baldeia; ando há oito anos a tratar com éguas.
- Então não conheces deste trato.
- Não há como provar... Na prova é que se tiram as teimas.
-? Sabes que as fataças têm três camadas de escamas melindrosas? É preciso jeito...
-? De mim nunca se queixaram disso. -Mostra cá o atestado. Tem-no aí?!...
- Tenho, mas não mostro...
- Olha a coisa! Querem ver que é de papel selado?
- Já perdeu o selo há uma data de tempo.
- Ih, Jesus! Então não presta. Deita-o aos cães." Zé Miguel despeja água na celha, puxa para a sua
beira outra caixa de carapau, a varina ataranta-se com um grito que lhe atiram por entre os despiques da lota e diz-lhe para se afastar - a patroa já deu com eles.
Pergunta-lhe o nome, como aprendeu a fazer com gaibéuas e carmelas, mas a ria fica-se muda, encolhendo os
98
ombros. Procura ainda comprometê-la no zunzum da conversa íntima; segue-a até à porta, para onde a rapariga se dirige com um balde de água suja que acaba por lhe
atirar para cima dos sapatos cardados, mal o colhe distraído a ver a descarga da camioneta chegada de Peniche. Zé Miguel descobre o António Espanhol na cabina, salta
para o estribo e pergunta-lhe se precisa de ajuda. O outro não o reconhece, vem a cair de sono e nem se digna responder.
Só então se lembra de que lhe encharcaram os pés, procura à sua volta e perde a varina de vista. Acha-lhe graça, mas sabe ao que vem e não tenta encontrá-la. Empolga-se
num dos rompantes que hão-de acompanhá-lo pela vida fora: busca um canto mais recatado, guarda aí o barrete e os sapatos, arregaça a calça para o meio da canela,
põe-se à descarga das caixas com peixe grosso, sem cuidar de mando nem de paga. Apetece-lhe trabalhar ali, abalou do Campo para isso mesmo, e não vai ficar à espera
que o procurem. Estava servido.
Quando larga a primeira caixa no sítio onde os moços deixam as outras, encara com Ela. Quem há-de ser Ela, senão a Rosinda, a mulher mais importante da minha vida?!
Sim, a mais importante de todas, muito acima de todas, corto agora os pulsos e não deitam sangue por mais que me arrependa do que fiz, do que fiz aos dois, a Ela
e a mim; tive o jogo da vida todo na mão e larguei-o, carago! Também dessa vez me saltou um parafuso da cabeça. Salta-me sempre um parafuso na pior altura para mim,
não percebo o que isto é, a minha mãe teve sempre razão nisto, andava sempre a dizer o mesmo e eu não acreditava nela. Nunca acreditei nela, porque a gente nunca
gostou um do outro. E porquê, carago?!.. Encara com Ela, sentira-lhe o olhar antes de levantar o seu, sobressalta-se quando se fitam e finge não ficar embaraçado,
voltando
99
costas. Ao regressar com a outra caixa também Ela está à sua espera.
"-Eh rapaz! Falo contigo; estou a falar contigo. Sim, contigo."
Aponta-o com o dedo e faz-lhe sinal para se chegar. Zé Miguel hesita, cora um tudo nada e mete-se a gingar quando caminha ao seu encontro. Ela franze o nariz num
jeito muito seu de velhaearia (ou de garridice?), mete as mãos debaixo do avental de oleado negro e sorri para dentro com a prosápia rufiona do rapaz. Agride-o quando
lhe fala, -como se pudesse impedir que ele caminhasse para si.
"-Sabes quem te paga?!... Sim, quem é o teu patrão? Não percebes o que estou a dizer?...
- Percebo, sim senhora, mas não tenho patrão. -Quem te mandou trabalhar?...
- Ninguém.
- Então porque te puseste a descarregar caixas?
- Pra não ficar parado. Não gosto de estar parado. Nunca gostei; não sei porquê, mas não gosto..."
Larga aquele chorrilho de frases, di-las sem pensar, porque fica perturbado com a dureza das palavras dela.
"- Se gostas de trabalhar para aquecer, vai lá à tua lida. O peixe é meu, mas não contes com féria ao fim da semana... (Zé Miguel baixa os olhos; baixa os olhos,
medita no que deve responder, mas perde a vivacidade repentina.) És daqui?!...
- Sou, sim... Sou, sim senhora.-E acrescenta depois do embaraço: - Andava no Campo a guardar éguas; se calhar já ouviu falar no meu avô...
- Quem era o teu avô?..."
Zé Miguel sorri antes de responder; tem a certeza de que a presunção não o engana. Haverá alguém por ali que não saiba quem. foi António Seis Dedos?!... Mas
100
depois retrai-se; acha que não lhe fica bem andar em serviço de moço de uma varina e baralha a resposta:
"-Já morreu há uns anos; chamava-se António..."
Rosinda, a viúva, vai dar ordens às lavadeiras de peixe e esquece-se de Zé Miguel. Mas lembra-se dele ainda hoje, tanto como o Miguel Rico, salvo seja, a recorda
também, neste momento exacto em que sai do bar com a amante e se dispõe a passear pela orla da praia, na intenção de esvair a tonteira provocada pelo vhisky que
bebeu.
Diz para Zulmira, a cujo ombro direito se encosta, apertando-lhe o outro com a mão dorida:
- Era mais baixa e forte do que a tua mãe. Mulher de génio, carago! E bonita!... Bonita, sim, quando se ria ficava com duas covas em cada face da cara; tinha um
cabelo às ondas, preto, muito preto, como os olhos que entravam pra dentro dum homem e o deixavam assolapado, rasinho que nem uma sombra... Devo-lhe o muito que
fui e nada lhe cabe do que sou agora. Se adivinho, carago!, se não fosse doido, tinha ficado com Ela até ao fim da vida.
Zé Miguel não consegue contar tudo o que o perturba naquele momento. Não lhe chegam as palavras, transtornam-no o que bebeu e o muito que pensou, moeu e remoeu nestas
últimas semanas. Sumiu-se-lhe a memória, baralha acontecimentos, confunde o que fez e o que quis. Podia dizer agora que lhe ardera quase tudo o que guardava dentro
da cabeça.
Zé Miguel devia dizer, por exemplo, que conheceu a viúva ainda magra, sim, talvez um nadinha baixa, mas magra. E nem baixa seria nalguns momentos, para falar verdade,
porque pertence àquele tipo de mulher que bole e se transfigura, mudando de corpo, de rosto e de temperamento, à mercê do que vive dentro de si. Teria 35 anos quando
ele a conheceu; nesse mesmo dia foi rapariga de
101
18 e mulher de 60, chorou a morte do marido e quis ser infiel à sua lembrança, encantou alguns que a viram mais de perto, audaciosa no olhar, quase atrevida, e fez-se
rude para outros tantos, levando a mal que a fitassem mais tempo do que lhe parecia correcto. Chorava agora em pranto silencioso, como se desgosto fundo lhe coasse
as lágrimas; daí a instantes secava-as em gargalhadas que ofendiam a sogra, sua vizinha, para quem Rosinda era a causadora da galopante que lhe levou o filho em
menos de três meses, apesar de tratá-lo a gemadas de dois ovos, sopas de cavalo cansado e carne de porco com todo o unto.
Sempre que a viúva pensava, caíam-lhe em cima mais dez ou vinte anos; mas se a interessavam na conversa, aí regressava à juventude, desde a cor da pele, que de pálida
se tornava rosada e fresca, aos olhos tristes e rasgados numa fenda que se arregalavam redondos, macios, mesmo provocantes, como tão bem o disse Zé Miguel à Zulmira:
entravam dentro de um homem e deixavam-no assolapado, rasinho que nem uma sombra...
Baixa, talvez, mas forte não, ainda não o era. Só começara a engordar quando ele lhe deu o desgosto de que nunca mais se curou. Tinha o rosto oval, de maçãs salientes
mais do que conviria à beleza, pois a boca mal desenhada, de lábios finos, sumidos, envelheciam-no com o queixo de reboca, logo gracioso, se a tineta lhe dava para
a facúndia alegre.
O mais belo de si escondia-o a blusa. Disso sabiam poucos, que nem sequer o podiam adivinhar. Na gabarolice do seu feitio presunçoso, Zé Miguel contou intimidades
aos amigos, mas nunca pormenorizou tudo o que Ela valia, talvez para que nenhum deles lhe rondasse a porta do armazém de peixe.
Naquela madrugada, Rosinda andava com a Lua, como diziam as raparigas que trabalhavam para Ela, quando a
102
viam rezingona e áspera. Ah, é verdade!... Há coisas importantes que esquecem: mudava de voz de um momento para o outro; podia afirmar-se que quem lhe conhecesse
a inconstância dos olhos saberia adivinhar o tom das palavras que diria logo depois. Quase rouca em certos momentos, grave noutros, velada e íntima, a voz punha-se
vivaz, se ao borbulhar do sangue lhe voltava a artimanha dos tempos da mocidade. Então, gorjeava em vez de falar, alegrete e malandrina, quase feiticeira.
Rosinda, a viúva, está com a Lua, apetece-lhe pegar com todo o mundo; tem por isso a voz rouca quando chama o rapaz no fim da descarga e lhe entrega meia dúzia de
carapaus negrões.
"- Toma pró teu almoço.
- O quê?! - Faz-se parvo para juntar coragem e recusar a oferta.
- O que há-de ser?... Isto! - E estende-lhe o peixe na mão.
- Não pedi pra me pagar; estive só a trabalhar para aquecer. O meu trabalho não é este."
Ela insiste e encara-o; havia de lhe dizer mais tarde que gostou da sua rebeldia.
"- Toma lá, não te faças tolo. E eu até hoje, graças a Deus, nunca fiquei a dever favores a ninguém.
-? Também eu não, saiba vossemecê. Não vim aqui para isso. Não recebo nem faço favores. (Mas riem-se-lhe os olhos.) A não ser que mós façam como deve ser...
- Como?! Como é?!... -A voz dela transforma-se à medida que prolongam a conversa.
-? Umas brasas num fogareiro remedeiam tudo. Assim não me fica a dever nada..."
Pela vida adiante, Zé Miguel teve sempre a intuição de pressentir o que lhe convinha. Rebelão ou mesureiro, dócil ou violento, mas sempre decidido no momento de
agir;
103
daí a sua força em não largar o que o empolgava a favor do seu interesse. Enganou-se algumas vezes, claro. Mais do que queria. Exagera-se quando se diz sempre; sempre
é palavra ambiciosa, com pano largo em demasia para talhar vestimenta à realidade. Sempre acaba em ficção. Faltou-lhe o pressentimento quando amarinhou muito arriba
do que podia e, lá em cima, na altura em que se julgava mais seguro, deu-lhe a vertigem e acabaram por empurrá-lo. Uns pensam que ainda vem no ar; outros acham-no
já estatelado. Ele sabe que o último gesto lhe pertence e continua a fazer horas para mostrar ao destino que ainda não perdeu o domínio do futuro.
O futuro conhece-o como a palma da sua mão. O passado guarda interrogações; o presente dá-lhe surpresas. Mas o futuro, o futuro conheço-o todo no que me interessa,
quase de minuto a minuto até às sete e um quarto da noite, quem diz sete e um quarto diz sete e vinte; de qualquer maneira, eu escolhi o que quero e nada me desvia
do que quero. Estou a fazer a ultima viagem, dói-me fazê-la, não era isto o que desejava, mas agora mando eu; nisto ainda mando. Deixo-lhes vazio o banco dos réus
para eles sentarem quem tiver medo. Eu não tenho...
Repete à rapariga a última frase:
- Deixo-lhes vazio o banco dos réus para eles lá sentarem quem tiver medo. Eu não tenho.
- Que queres dizer com isso?!
- Pouco mais do que nada... Tu e eu somos agora tudo, ou quase tudo, e daqui a bocado podemos ser nada, ou quase nada. Aqui nesta praia dá a impressão que estamos
sozinhos tu e eu... Talvez fosse bom que estivéssemos sozinhos no mundo. Gostavas?! - pergunta-lhe com entusiasmo súbito.
- É tudo nosso.
- Tudo nosso menos a morte.
Pois
104
?Deixa que a água lhe molhe os pés e continua a falar. Parece falar a esmo, sem nexo, e as palavras saem-lhe arrancadas de dentro, muito do fundo do que pensa.
-? Se a gente pensar bem, não valia a pena...
- O quê?!.
- Ficarmos sozinhos os dois. Acabávamos mal. Precisaríamos tanto um do outro que um de nós, talvez tu, que és mais nova, acabaria por achares o parceiro a mais.
Há sempre alguém a mais... E quem faria o automóvel prà gente andar? E o whisky prà gente: beber?
-? íamos ter muito de tudo antes que tudo se acabasse.
- A maior parte das coisas estariam estragadas quando a gente fosse por elas.
- Mas podemos pensar que não...
- Que ganhamos com isso?!
105

QUE ganhamos com isso?!... Ora essa é boa! Aos 18 anos, quando chegou à lota de madrugada, Zé Miguel não saberia fazer aquela interrogação. Não teria qualquer sentido
fazê-la; não conhecia sequer as palavras para construir a dúvida, mesmo que a provasse.
Ainda.
Há grupos de palavras, mesmo simples, que pertencem a certas idades ou a certos meios. Cada classe dispõe do seu dicionário com vocábulos, siglas, equivalências,
mistérios e certezas bem demarcados.
A vida de Zé Miguel naquela madrugada escrevia-se com meia dúzia de palavras. Sabia-as de cor, faziam parte da sua força. Nasciam-lhe nas veias de momento a momento.
Comprou pão ainda quente e come nele os carapaus, trinchando-os com os dedos, sôfrego de fome, chupa-lhes as cabeças, chupa-lhes as espinhas, depois lambe as pontas
dos dedos cuidadosamente, deita os restos a uns gatos que se chegaram, e entretém-se a vê-los devorar o que lhes dera. Bebe água de uma bilha do armazém, pensa fumar
um cigarro para rebater, sente receio de que o tabaco lhe
106
falte quando tiver fome e acaba por fumar o sono que lhe fecha os olhos.
Acorda sob uma chuvada repentina e densa. Assusta-se. E quando dá por si, atarantado, como se a rapariga lhe despejasse o balde de água por cima, é só do que se
lembra, riem-se dele no fundo do armazém.
Cresce a ira dentro de si em mau conselho e sente gana de ripostar com asneiredo de fazer corar um padeiro; mas descobre a Rosinda no meio das sombras, aperreia-se
e entra na diversão. Já debaixo de telha, ainda sanfona entre dentes, mal descobre a Iria no grupo que o goza. Pensa na sua bazóf ia que não perdem com a demora,
dirige-se ao canto onde guardara os sapatos mais o barrete, e apronta-se para abalar.
"-Que fazes lá no Campo?... -pergunta Rosinda, a viúva.
- Agora, nada. Menos que nada. Abalei de lá. -Perguntei-te o que sabes fazer.
- Muita coisa. Muita coisa boa. -O quê?!...
-? Mato pulgas, faço sombra e gosto de trabalhar. É do que gosto.
- E mais?!
-O resto é segredo."
As raparigas voltam a rir com a resposta. Zé Miguel refreia o que lhe apetece acrescentar, ataca os sapatos e volta para o rebate da porta larga.
"- Se vossemecê tiver trabalho para mim, pego-lhe já. Gostava de trabalhar aqui. Gosto de mexer em peixe...
- Conheces de peixe? - pergunta a Iria, amalandrada.
- Se o apalpar, conheço. Até um cego entende o que tem nas mãos.
107
- O peixe apalpado fica moído, não sabes disso? . acrescenta a Rosinda para pôr malagueta na conversa.
-? Nem sempre, acho eu. Mas se me ensinarem, eu aprendo. Aprendo as coisas depressa. - Sabes ler?...
- Ler, escrever e contas de sumir. No sumir ninguém me ganha."
As varinas ignoram o que quer dizer na sua e não lhe pegam na deixa.
"-? Fico aí num canto qualquer. Tenho manta. Não mimporto, até ver, de ficar pla comida com meia litrada de vinho. Chega-me meio litro.
-E quantas vezes mudas de fralda?" - pergunta a Iria, a puxá-lo para a má-cara, pois já lhe percebeu nos olhos atravessados que o campino não tem barriga para lhe
meterem a espora da brincalhotice. Vai à serra depressa.
Rosinda repreende a moça:
"-Não tens vergonha? Metes-te com ele e depois queixa-te de que o barbo traz muita espinha.
- Este barbo tem pouco que comer, ai credo! É pequeno de mais para a minha fome de nascença, ah, Ti Rosinda!"
Zé Miguell rosna asneira gorda; a varinada ri com as facécias da Iria, que o não larga de mão, talvez porque o rapaz é tarraco e ela gosta de arganazes.
"-Já mediste o meu tamanho? - regouga o eguariço, despeitado na fervura.
- Nem um palmo dos meus hás-de ter, ah, desgraçado! Cá pra mim só gabirus grandes, desses a quem se serram as pernas pelos joelhos, se fazem delas uma cadeira alta
para bispo e ainda sobeja homem para sete mulheres e meia. Só assim lá vou.
108
-? Cala a boca, aí, ah, Iria! - intervém a Rosinda, toda derriçada em ouvir a rapariga quando retraça alguém conhecido, mas receosa agora de alguma resposta suja
da parte do moço embezoirado.
- Se a Ti Rosinda o meter na lida, ponha-o ao pé de mim. Amanho-o bem amanhadinho, vai ver. Tiro-lhe a escama e a tripa. Pode depois vendê-lo às postas."
Uma foguetada de gargalhadas tapa a réplica de Zé Miguel. O rapaz volta à pachorra de se dar à graça, mal percebe que a conversa dali mete sal bem apertado e é preciso
aguentar o despique para entrar no varinal.
"- A cabeça fica pra ti; sou eu que ta dou. O resto vai a leilão.
-Quem fala de cabeça quer que lhe peguem pelo rabo.
-? Nunca se sabe - responde o neto do Seis Dedos com tropeços na voz; depois recompõe-se e atira outra: Se gostas de rabo curto..."
Rosinda, a viúva, intervém para pôr ponto na conversa; acha-a larga de mais e começa a cheirar-lhe a queimado. Manda as raparigas para a lida de salgar sardinha
e desaparece na escada que leva ao andar de cima, onde mora, um prédio de azulejos brancos com flores azuis em que se debruçam duas sacadas de ferro, pintadas de
prata.
Zé Miguel fica no ar com a ausência da viúva.
?Encosta-se à cantaria do portal largo, enrola um cigarro na mortalha e abala de rompão, antes de lhe chegar lume. Parte escabreado, meio tonto pela cólera; convence-se
de que a Rosinda não gostou de vê-lo assanhado, a apimentar a conversa, ou que esteve a metê-lo em perguntas só para passar tempo. Também seria sorte grande arranjar
trabalho logo no primeiro dia, cisma ainda para se consolar. Mas o despeito regressa.
109
Toda azougues, a Iria vem-lhe no encalce e corre até ao meio da rua, a gritar-lhe sogada. Logo o campino se vira de um salto, como se algum cão raivoso lhe mordesse
as pernas, e repuxa um manguito duro nos dois punhos cerrados. Acompanha-o com um brado de encher a vila:
"-Vai pró camandro!... Vai lá fazer pouco da raiz da grande porca que te pariu!
- Ih, Jesus, Mãe Santíssima!"-grunhe a varina, levando as mãos aos ouvidos e acaçapando-se a fugir para dentro do armazém, como se precisasse de caminhar arrastada
para que ninguém a conhecesse. Escapa-se a rir, num riso uivado que as companheiras ajudam.
Ancho da vingança, Zé Miguel acende o cigarro e regressa ao cais, em busca do alforge.
Chega em boa hora.
A azáfama da exportação das primeiras uvas sacode a modorra das muralhas. Tanto na rua principal, onde ficam os armazéns e escritórios dos exportadores, como nas
arruelas que lá desembocam, a vida intensa ferve e referve, na ânsia daquele jogo de bolsa que são as cotações misteriosas de Londres e Hamburgo. Pategos dos Montes
falam em libras e marcos, sabem de xelins e dinheiros, entre orgulho e medo, como se bastasse pronunciarem nomes estranhos ao dinheiro que recebem para crescerem
um palmo.
As notícias são boas, as moscas caem no mel; as caixas que chegaram com diagalves a Londres deram massa gorda, e agora será preciso descontar a madeira das caixas
e a serradura, o prego e o transporte, as comissões deste, daquele e daqueloutro, mas o valor das uvas em Hamburgo e Londres compensa um lavrador de muita arrelia;
as suas novidades valem, lá isso valem, o pior é a despesa, mesmo assim, sempre dá mais do que vendê-la para o mercado, além do gosto em saber que os Ingleses
110
e Alemães preferem à mesa as suas uvas, lindos cachos, sim senhor!, preço C. I. F. e preço F. O. B., não entendem aquilo muito bem, mas um homem cresce um palmo
a falar em coisas esquisitas que os medrosos nunca mais entendem.
Chegam burros carregados de caixas já prontas. Vêm galeras e carroças com cestos vindimos atulhados de uvas escolhidas, enquanto nos armazéns as raparigas, sentadas
e de tesoura em punho, tosquiam os cachos, tiram-lhes os bagos mirrados ou feios, passando-os depois para as companheiras, que os acamam na serradura dentro das
caixas pregadas pelos carpinteiros, vai prego e racha, porque as fragatas estão à carga nas muralhas do cais e precisam de aproveitar a vazante e a ajuda do vento
para chegarem depressa a Lisboa; para baixo é que é Lisboa, onde os navios esperam as uvas dos pategos dos Montes, levando-as para longe, é uma glória, senhores,
saber que as nossas uvas vão para Inglaterra e Alemanha. Preço C. I. F. e preço F. O. B. pago em marcos e libras, se não fossem os descontos e as comissões, que
dinheiro bonito, carago!
Os especuladores gozam a euforia das primeiras cotações e incitam os camponeses a cortarem as melhores castas para exportação; este ano vai ser de arromba!, não
há uva como a nossa, o meu agente em Londres sabe da poda, é preciso estar alerta pra meter as caixas a tempo nos mercados, de uma hora para a outra ganha-se um
dinheiral ou perde-se tudo.
Quantas caixas manda?! Os especuladores têm as comissões sempre certas, mesmo que os camponeses fiquem a dever dinheiro ainda por cima, aquilo é jogo de bolsa e
nunca se sabe quando as cotações amarinham ou vêm de escantilhão por aí abaixo que mal chegam para a serradura, quem manda é quem perde, olha, pois não!, mas isso
trata-se depois com os papéis escritos em alemão e
111
inglês, papéis que falam como escrituras de tabelião e onde se explica que, dando as uvas, a caixa, a serradura e o trabalho, um patego dos Montes tem ainda de pagar
em dinheiro a honra de vender os cachos das suas videiras num mercado da estranja.
Zé Miguel não percebe os meandros daquela alucinação. Adivinha que precisam do seu trabalho e oferece-o num dos armazéns.
Fala com um homem meão, seco como palhiça, que o ouve e arrota, sempre a mirar de esguelha as raparigas, não gastem elas o seu rico dinheiro em conversas de namorico
e bisbilhotice. De suspensórios bem apertados, o homenzinho cai das calças abaixo e tapa o chino de pêlo de cabra com um boné aos quadradinhos pretos e brancos,
que de vez em quando tira da cabeça, cautelosamente, para limpar o suor do que não faz.
Acena a cabecita engelhada, põe-na de banda, arrota e faz uma careta, afaga o bigode muito preto, todo em tinta de drogaria, e pisca os olhos, pisca e repisca, acabando
por puxar os elásticos dos suspensórios que solta depois, como se andasse por ali a atirar aos pássaros. Sorri com os estalidos dos elásticos, começa a vaguear pelo
armazém lajeado, remenda uma careta com outra maior, e pega num cacho de uvas brancas, verdoengas ainda para aguentarem o transporte, se o navio não se demorar e
só houver para a descarga em Londres ou Hamburgo uvas podres que nem os melros lhes pegam.
Zé Miguel segue-o com pés de lã. As raparigas bichanam e riem, olham para ele, devem falar a seu respeito, ou do homem cartaxinho, ou dos dois ao mesmo tempo. Troçam
de alguém, disso tem ele a certeza.
Acaba por perguntar:
"- Arranja-se trabalho ?!..."
112
O homenzito volta-se com os olhos em bugalho graúdo, repuxa as beiças em bico de pato e fala numa voz de rasgar papel!, áspera e agaitada:
"-Eu já disse que sim. Ouviste?! Disse que sim com a cabeça e trouxe-te para aqui, porque vais dar serventia aos carpinteiros, e trazer uvas pràs mulheres, e ajudar
à carga. És moço, fazes tudo o que for preciso. Entendes?!" - Baralha as mãos, repuxa a pala do boné para os olhos e o pêlo de cabra eriça-se para cima das orelhas
com o aperto da carneira do bonèzinho aos quadrados.
Zé Miguel atira-se ao trabalho que o carpinteiro lhe explicou aos gritos; só depois percebe que não combinou preço, porque o carpinteiro lho recorda, lendo a sina
do que irá acontecer no fim da semana:
"- Logo comes uma sopa e uma talhada de melão; à noite uma talhada de melão e sopa. Dois decilitros de vinho e dez tostões por dia.
- Assim largo já - reponta Zé Miguel por bravata.
- Se lhe fizeres um jeito do que ele gosta, dá-te dez mil réis por semana do serviço especial...
- Que serviço?!...
- Depois vês. Já em velho deu-lhe em gostar de rapazes. Dizem que ficou assim depois duma operação. Até mudou de voz. Antes disso matava-se por mulheres; até lhe
chamavam o Zuneta.
- Do meu lado sai-se mal...
- Então estás lixado. Começa a pegar contigo por tudo e por nada. Espera que te vás embora sem fazeres contas. Se ficares para fazeres contas, arranja maneira de
te pagar menos... Inventa descontos."
Zé Miguel desconfia do carpinteiro e presta atenção ao homem dos suspensórios. Mas este não o larga de vista e o rapaz encabula, escapa-se-lhe com os olhos e dá-se
à
113
serventia para disfarçar o namoro do Sr. Elias, sócio gerente da Frutífera C.a L.a, Import and Export, agentes em Londres, Nova Iorque, Hamburgo, Amsterdão, Roterdão
e Havre, fundada em 1898.
Mestre Augusto, carpinteiro, não fora muito exacto nas informações. Em vez de melão, o Sr. Elias mandou-lhe dar uvas, os esgalhos da tosquia, teve sopa e toucinho
cozido para molhar o pão e arranjar unto, além de garrafa de meio litro para as duas refeições.
Trabalhou-se até tarde, pela noite dentro.
À luz de archotes, no cais, carregaram a última fragata. Ninguém arrancou pé. As raparigas da tosquia, Mestre Augusto Dá-mUma, os serventes, os carregadores do sindicato
e o Sr. Elias. Quando a fragata desamarrou da argola da muralha, rumo a Lisboa, o armazém caiu em silêncio. Ainda se ouvia a gralhada das raparigas a caminho das
Cachoeiras.
Zé Miguel fica ainda para fechar as portas e vigiar a casa, não tivessem deixado cair alguma ponta de cigarro aceso, recomenda-lhe o gerente, que se mete no cacifo
do escritório para preencher papelada da carga. Da porta, sentado num caixote, o rapaz vê-o escrever de cabeça pendida sobre o ombro direito, enquanto de língua
repuxada ao canto da boca maneja a caneta entre o polegar e o indicador, espetando os outros três dedos em leque. Tem letra bonita, dissera-lhe o carpinteiro Dá-mUma.
Talvez seja dos dedos abertos em coroa de espinhos ou do manejar da língua, pensa Zé Miguel para se entreter.
Daí a longo tempo, o Sr. Elias sai do cacifo com o gasómetro de carbureto na mão, pendura-o na parede e vem sentar-se à porta, no banco alto da secretária do escritório.
Quase o amarinha, mas depois aquieta-se, satisfeito. Assobia em surdina, tira o boné, que pendura num
114
dos joelhos escanifrados, puxa com brandura o capachinho e enxuga a calva com o lenço tabaqueiro.
Respira fundo e suspira.
Zé Miguel sente-se corar. Adivinha que o Sr. Elias vai falar dentro de momentos; talvez esteja a afinar a voz agaitada. E não se engana.
"-Quantos anos tens?
- Dezoito! Quase dezanove... Faço dezanove no dia de São Miguel. - Pretende evitar que o homenzinho fale e pega as palavras num fio amarrado. - É por isso que me
chamo Zé Miguel. O meu irmão chama-se Miguel Zé, foi uma graça do meu pai. O meu pai era um bom homem, mas gostava da pinga. Morreu o ano passado numa aposta. Numa
aposta, à noite, na taberna do Manel Cipriano, estava a casa cheia de valadores e campinos e ele apostou que bebia sozinho, toda a seguir, dum fôlego, ou lá o que
é, uma garrafa grande de aguardente, sem conduto, sem ao menos um figo. Bebeu tudo, mas já não foi capaz de falar; parecia que a aguardente lhe tinha queimado as
palavras e a boca. Levantou-se com os outros às palmas, foi ao balcão, escorropichou os copos todos que havia e enfiou direito à porta que nem uma seta. Cá fora
olhou para o céu, atirou um urro de toiro, salvo seja!, e esbandailhou-se. Abriu-se. Ficou todo aberto por dentro, acho eu, queimado e aberto. Nem deu um bafo..."
Fica aturdido com o chorrilho de palavrório e cala-se. O Sr. Elias acena a cabeça, abanando-se com o capachinho. Depois aproxima o banco do caixote onde Zé Miguel
se sentou e toca-lhe no ombro. O rapaz dá um salto; fica em pé e encara o outro.
Na sua voz brandinha, apifarada e brandinha, o Sr. Elias conclui:
"-Então, és órfão!
115
- Não sei - responde o rapaz com duas pedras na mão.
- Se não tens pai, és órfão...
- Então, seja! Órfão ou o que o senhor quiser, não minteressa.
- E tens mãezinha?!... - diz o velho, comovido. Assustado com a brandura ainda mais branda da voz
brandinha do Sr. Elias, Zé Miguel atira um empurrão ao banco onde o homenzinho está sentado, abala a correr em direcção ao cais, tropeça numa corda de barco atracado,
cai aqui-ali magarro, empina-se e desaparece na noite, perseguido por um grito de socorro.
Só pára no portal do armazém da viúva, como se entrasse nas guaritas da água do seu tempo de menino. E aí descansa. Descansa e adormece daí a bocado, sem pesadelos.
116

PESADELOS tive-os mais tarde. Tenho-os hoje, não sei
pra quê!
Zulmira tira um cigarro, vê-lhe a marca, e pensa que já mudou de marca quatro vezes depois de conhecer o Zé Miguel na intimidade. Cada marca de cigarros é uma aventura
mais prolongada. Para avivar as recordações, fuma sempre do tabaco que também fumam os rapazes que acompanha clandestinamente.
Zé Miguel aperta-lhe o braço, porque se lembra do filho e do que lhe disse antes de ele ficar quieto no sofá verde da sala. Não o quis ver depois, mas sabe que ele
ficou quieto, como se ficasse a dormir.
- O remédio é só um e eu sei qual é. Ora se sei!... O pior não é saber. O pior é resolver. E eu já resolvi. Tu dirás: o que tenho eu com isso? E eu respondo: talvez
mais do que julgas, porque eles não agarram nem um nem outro... A mim não me sentam no banco que eles querem; e a ti também não te levam para o sítio onde é costume
porem as raparigas da tua idade. Percebes?!...
Perplexa, Zulmira não lhe pergunta o que pensa: "Que queres dizer com essa conversa toda?" E como ela não o interroga, Zé Miguel prossegue, sem voltar a cabeça,
olhando em frente.
117
- Se não percebes, vem tudo a dar no mesmo. Eu já resolvi e está resolvido, aconteça o que acontecer, carago! Quando daqui por uma hora a gente meter o carro no
meio da serpente de fogo, começa o princípio do fim. No meio da serpente há coisas que ardem.
Hesita, confrange-se. Ainda a vida lhe apetece. E lerá de cortá-la num golpe para que os outros o não dominem e metam à canga. Lembrou-se, entretanto, de uma junta
de bois presa ao jugo do cingel.
- A serpente pode ser uma estrada à noite e também pode ser a vida em que me meti; só agora reparo nisso. Uma serpente de fogo onde muitos se queimam e ardem. Como
eu... Mas o que lá vai, lá vai. Agora já não tenho mais nenhum pesadelo. Acabaram-se. Esta noite vou dormir contigo.
- Sabes bem que não posso dormir fora de casa.
- O papá não gosta, não é? - Desdenha a insinuação. -? Mas esta noite vamos dormir os dois o sono mais bem dormido da nossa vida.
- Não teimes, pá.
-? Entras de madrugada muitas vezes.
- Contigo; só contigo, pá.
- Queres que acredite?
- Lá começas tu com suspeitas, pá. com quem queres tu que eu saia, pá?
- Há sempre automóveis para levarem raparigas ao passeio das donzelas.
- Acaba com a graça, pá. Assim, pá, não tens graça nenhuma.
-Não és donzela?
Zulmira amua, afasta-se dele num trejeito indignado e não consente que a agarre. As ondas espraiam-se num marulho brando.
118
Deixa-a seguir à sua frente, embora a chame duas ou três vezes. Retarda o passo para que a rapariga se desvie mais ainda. Levanta areia com os pés descalços, procurando
atingi-la. Depois esquece-a.
Lembra-se da aragem fresca da madrugada à porta do armazém da Rosinda. Passaram mais de trinta anos e parece que tudo aconteceu na semana anterior. Apalpa a realidade
com o corpo. A pele arrepia-se na recordação que regressa inteira para dentro de si.
Senta-se na areia, voltado para a foz do Tejo; o Sol desce no poente entre nuvens cinzentas acasteladas. O passado inunda-o.
119

NESSA madrugada, Zé Miguel acorda sobressaltado ?? entre o ruído do armazém de peixe e a lota. O frio da noite tornou-o mais leve. Fica a olhar o pessoal na azáfama
da lida, mas os vultos confundem-se, ainda não conhece as pessoas pela voz, como acontecerá daí por mais um tempo. Chegam ainda varinas a tairocar, riem e falam,
enchem qualquer sítio onde se encontrem. A buzinar, surge outra camioneta carregada de caixas e o alarido cresce.
Ele continua sentado no portal; está com a cobra da preguiça enrolada a si e espera arrancar-se da modorra, sem pressa. Já tem a sua conta de trabalho. Quando ouve
vozes dentro do armazém da viúva, levanta-se à pressa e vai descansar para a porta do lado. O movimento provoca-lhe mais frio. Precisa de matar o bicho, café e aguardente,
como fazem os homens, embora lhe apeteça um bocado de pão. Pensa em tudo isto, aos poucos, mas não se resolve a empreender seja o que for.
Derrancado, dói-lhe o corpo, invoca o tombo que o Sr. Elias deu do banco abaixo e sorri da partida. Nunca se imaginou ao pé de gente dessa; logo lhe calhou entrar
120
na Frutífera para ver um tipo desses ao pé. Deviam ser mortos tais gajos, diz para si.
Dentro de meia hora, porém, esquece o acidente.
Sim, agora mesmo recebeu uma boa notícia: Rosinda, a varina viúva, acaba de lhe dizer que conte com jorna certa na sua casa.
"- O resto é contigo e com a tua cabeça. Não quero abusos aqui dentro com as raparigas; a primeira que namorares, tenho um dedo que (madivinha, vais logo na alheta
e com vento na ré.
-- Esteja descansada...
- Zela por isto como se fosse teu.
- Esteja descansada...
-Preciso dalguém que me ajude; se fores tu, é bom para os dois. Não sou rica, como diz o povo, mas tenho alguma coisa de meu. O que tenho chega-me bem... Lá mais
pra diante, vais com os choferes. Olho neles.
- Esteja descansada...
- Pois sim, estou descansada, mas cala-te, rapaz! Deixa-me pensar e falar. Quando eu falo, tu ouves. Olho neles, que eu desconfio do António Espanhol. Depois digo-te...
E agora vai lá para a descarga. Juizinho e cabeça fresca, ha!"
Deixa-a na lota e parte a assobiar com mil campainhas de bois amansados dentro de si. Já deu o primeiro passo na estrada que quer abrir pelo seu pé; há-de chegar
ao cavalo morzelo, tão desejado em garoto, mesmo que o venda depois.
Compra um boné com a primeira féria ganha e uma camisa de castorina, a crédito. Guarda o barrete no alforge, esconde tudo na arrecadação do armazém e manda um recado
para casa, não julguem que morreu. Percebe que baixou na sua escala, mas sabe esperar. As palavras da viúva dizem-lhe que não se enganou quando saiu da
121
emposta. Há-de chegar a chofer. Quando fizer viagem agarrado a um volante, promete a si mesmo uma bebedeira de cerveja. Deve ser bom, cerveja, pensa a olhar a escuridão,
espreitando os faróis da camioneta de Peniche.
A Iria passa por ele e nem os bons-dias lhe dá. Diz-lhos ele em voz baixa. Ao menos os bons-dias, carago! Nem tanto ao mar nem tanto à terra.
Fica naquilo uns meses. Dorme em tarimba no armazém, come da casa e compra samarra com gola de caracóis pretos, já tem botas castanhas e brancas, um gabão preto
para as noites de frio, uma mala de folha cheia de coisas para vestir.
Fez ontem 19 anos. Ontem foi dia de São Miguel e a Rosinda mandou-lhe um prato com arroz-doce, um prato grande, enfeitado a flores de canela em pó. Depois chamou-o
da escada e perguntou-lhe se queria beber um cálice de vinho fino; respondeu-lhe que sim, pois não, brincas! Vinho doce de casamento, mais um cálice e outro. Entorta-se-lhe
a vista e desprende-se a língua. Vá de falar. Conta-lhe histórias de toiros e de cavalos, bons tempos, Zé, bons tempos!, descreve-lhe a sua égua, a Lindeza, e do
poldro que tinha, um bicho bonito, alto de perna e fino que nem um coral.
Rosinda, a viúva, ri e fica embevecida.
Zé Miguel tem graça no que diz; Zé Miguel tem graça nos olhos; Zé Miguel tem graça a rir e é engraçado quando se entusiasma nas histórias de toiros e de cavalos.
Lá fora o vento zune e zumbe e parece zupar à janela da sacada. Zune e zurze, zurze e zumbe.
Zé Miguel vai conversando. Conta a história da cicatriz na testa, mas não pensa ainda que teve aí o primeiro encontro com a morte. Depois fala da carroça azul e
do
122
avô, sim, do António Seis Dedos, aquele que deu a cabeçada no Diogo Relvas.
Riem-se ambos. E quando acabam de rir ficam de olhos cravados um no outro. Rosinda, a viúva, manda-o deitar logo a seguir. O rapaz não percebe porquê, ia tudo tão
bem; o vinho era doce, a conversa distraía. Sentiu vontade de lhe perguntar: "Dormir para quê? Noites não são noites!..." Podia até contar-lhe de muitas noites que
não dormiu no Campo quando precisavam de passar as manadas para a Charneca, assim que havia ameaça de cheia grande.
Deita-se na tarimba e não dorme. Lá em cima, mesmo por cima dele, ouve a viúva mexer-se no colchão fofo de palha-milha e falar, falar sozinha; ou talvez reze, ou
talvez pense. Depois escuta-lhe os pés descalços a atravessarem a casa; palpita-lhe que está por entre os vidros a olhar para a noite, ou para a Lua, se houver,
ou para qualquer vulto que passe na rua, a caminho do cais. Também ele sente desejos de ir para a rua espairecer. Percebe o mal que lhe morde.
E se cantasse?!... Que mal viria ao mundo se cantasse?!
Apura o ouvido e distingue no silêncio que Ela ainda fala. Que fala e suspira. Ou geme. Se a Rosa Chorona, a criada velha, já dormisse!... Que fazia?! Ora, que havia
de fazer um rapaz de 19 anos quando certa mulher suspira!
Lá em cima tudo se aquieta depois, já tarde, quando o relógio da torre da Câmara bate duas horas. Às três precisa de se levantar, encher o tanque com água para as
lavadeiras de peixe, puxar seis caixas vazias para a porta. E que mais?!... Fazer o serviço da lota, esperar as camionetas e descarregá-las, pôr os livros dos fiados
em dia.
123
Prefere levantar-se. Tem azougue no corpo, doem-lhe as partes, nascem-lhe músculos novos nos braços, é o que lhe parece, tanto os braços se sentem capazes de fazer
força, mais força do que antes. Apertar alguém ou qualquer coisa, ou rasgar, ou partir, ou aconchegar um corpo de mulher que talvez não durma também, embora não
a oiça.
Mete a cabeça debaixo da torneira, atira com água para o peito e depois despe-se para se encharcar todo. Acalma, fica menos febril. Ainda se estende em cima da tarimba
a olhar para o tecto, como se com eles pudesse furar as tábuas que o separam da viúva. Tremem-lhe as mãos, esquenta-se-lhe a cabeça e tenta parar as ideias.
Um comboio passa na fúria metálica da velocidade, estremecendo o chão. Ele imagina a poeira e os papéis que levanta quando atravessa o pequeno pontão onde se vai
abaixar, à noite. Já experimentou ficar ali acocorado à hora do rápido do Porto, muito quieto, para descobrir se tem medo. A deslocação do ar atirou-o de encontro
ao muro, viu lume à sua volta, em mil fagulhas e brasas que o empolgaram, mas não conseguiu ficar de olhos abertos depois de a máquina passar, porque o ruído terrível
lhe rasgou o corpo, parecendo arrastá-lo com a poeira e os papéis em que ficou envolvido.
Reinventa esse momento no qual se imaginou atrelado ao comboio por uma corda que o levasse pelo ar, como um papagaio de papel no sobe e desce dos caprichos do vento.
Medo não teve, não, não sentiu qualquer receio quando a volúpia da ferraria e do fogo o acometeu lá em baixo, embora ouvisse um grito de alguém que fosse esmagado
pela marcha devastadora, um grito talvez seu, não o sabia bem, ou não o queria reconhecer, porque se levantou atordoado e veio de gatas até à rua, cansado, meio
tonto. Só quando reparou que as casas continuavam no
124
mesmo sítio, com as mesmas formas e cores, conseguiu perceber, só então, sim, só então teve vontade de correr, e correu, e correu até à Praça para encontrar gente
a quem dissesse qualquer coisa.
A lembrança dessa experiência toca-o por inteiro naquele momento. Mas agora sorri. Sorri sem entender porquê.
Levanta-se de um salto, veste, à pressa, a camisa e as calças, e vai, de pés nus, sentar-se à porta. Adormece logo depois. Adormeci, mas Ela não ficou, sem resposta;
um homem com dezanove anos é rei do mundo, mesmo que o mundo não o queira pra rei, mais o mundo pode muito bem ser uma mulher; pois, uma mulher, carago! Quando daí
por um bocado a gente se viu ao pé um do outro, eu que nada percebia ainda da maneira como se armam as grandes teias das grandes coisas, cheguei-me a Ela feito poldro
e quis meter butes, meter conversa mansa; Ela deu-me com os pés nessa voz dura e fechada que lhe vinha à boca quando as coisas não lhe corriam ao sabor e fez-me
andar num virote, fez de mim gato-sapato, só me deu trabalhos beras, parecia a gaja que queria dar cabo de mim pra eu nunca mais lhe faltar ao respeito com os olhos;
e vai daí eu amuo, fecho a cara toda, ponho-me no meu lugar dhomem e peco-lhe pra me fazer contas ao pé da hora do almoço; já a tinha fisgada.
E vai Ela diz-me assim, parece que a estou a ouvir: "Contas de quê? Estás parvo, ou fazes-te?" E vou eu digo-lhe assim: "Nunca gostei que me tratassem a chicote.
No Campo dava de esporas às éguas, mas depois oferecia-lhes fava à mão. Aos cavalos ariscos dá-se-lhes açúcar. Vossemecê começou a embirrar comigo.-" E vai Ela arruma-me
logo com esta: "Vê-se logo que não percebes patavina, meu desgraçado! Queres que te traga ao colo à frente destes olhos todos? A gente logo fala..." E vou eu
125
aperto mais: "Não quero que me traga ao colo, mas também não deixo que me ponha debaixo dos pés." E vai Ela diz-me assim: "Ponho-te debaixo da cama ao pé do penico."
E pisca-me o olho; e põe-se a cantar. Eu abalo pela porta fora, escapo-me para a lota e sinto as calças molhadas.
Eh, mulher dum raio! Senti que precisava de moer o corpo. Nunca trabalhei tanto na minha vida; parecia eu que o Diabo se me tinha metido no corpo, vá de descarregar
a camioneta de Sesimbra, sozinho, vá de ajudar as raparigas e de dar conversa à Iria para fazer ciúme à viúva. Acabei quase morto; estava num pingo de suor. Quando
a lida da tarde acabou, atirei-me pra cima da tarimba e lembrei-me da noite em que me meti dentro da manjedoura a pensar no que havia de fazer.
E voltei a pensar na vida; pensa melhor deitado de costas, de barriga pró ar; são manias. Dormi uma porrada dhoras. Quando mal abri os olhos, nem percebi logo onde
estava, onde raio estava eu?, porque havia uma luz branda, como se fosse de madrugada, e então sentei-me e percebi que dormira no meu canto até à boca da noite.
De repente tive a impressão que havia gente no armazém, pus-me a olhar e nada, mas não me podia enganar, porque sentia qualquer coisa ali dentro, não sei explicar
o quê, mas alguém partilhava comigo daquele ar e daquela luz esborrathada. "Quem está aí?" Ela apareceu-me do lado da porta da escada com um dedo a cruzar a boca
pra eu não fazer barulho; encaro-a e Ela baixa os olhos, e vou eu digo-lhe qualquer coisa já a tremer, e Ela fica calada, e eu responto já atrevido: "Se vem agora
fazer contas, é melhor sentar-se na cama." E ela, moita!
Então jogo-lhe a mão ao ombro, não fiz mais nada, não tive tempo, porque Ela veio a voar para dentro dos
126
meus braços e apertou-me, apertou-me com as unhas na carne das costas, e começou a chorar baixinho ao mesmo tempo, e quando me beijou com a boca toda, parecia que
levava a minha, só disse: "Não sei que feitiço me botaste malandro!"
127

QUATRO anos depois, Rosinda, a viúva, repetiu as mesmas palavras quando se certificou de que ele andava amigado com a Iria, já casada e mãe de dois filhos. Disse-as,
então, com ódio, desesperada, nessa voz rouca e amarga com que ainda hoje fala para toda a gente. Andara a guardar-se; pensa ela, para aquele bezoiro negro, amaldiçoado,
que lhe deu as horas mais bonitas da sua vida e depois lhas tirou num puxão, trocando uma mulher desenxovalhada e poeta por uma galdeirona de pássara arreganhada
para todos os homens.
Por muito que as bocas do mundo falassem dela, nunca Rosinda, a viúva, deitara o seu corpo purinho, mas todo magano para a intimidade do Zé Miguel, ao pé de outro
macho, a não ser em sonhos dormidos ou acordados, porque na cabeça de uma pessoa manda o sangue aferventado que traz da raiz do berço.
Amiga de brincar e rir não havia outra, mesmo provocante no olhar e no balanceio das ancas; no resto, porém, "arreda lá pra trás que o peixe está cru e não há lume
que o asse prós dentes de qualquer".
Andou a repetir o mesmo melindre não sei quantos anos. E depois, de repente, amelaça-se toda inteirinha
128
para aquele trampolina com quem enxovalhou a sua cara, mostrando ao mundo que o metia debaixo dos seus lençóis de linho. "Desgraça desgraçada, quando a gente fica
cega dos olhos e das mãos, da boca e do corpo inteiro, e não vê um palmo mal medido à frente do nariz."
Fizera dele um duque, salvo seja!, de roupa e de trato. Batera duas notas de conto para o livrar da tropa, fechara a esperteza para as contas que ele lhe apresentava
nas despesas das camionetas, metera empenhes na Câmara e em Lisboa quando o vira preso por causa de uns papéis da política, coisas do primo dele, do Pedro Lourenço;
fora sempre, pobre parva, uma tonta babada por aquele cinco-réis de vergonha a quem pensara receber na igreja (e logo onde, Deus macuda!), no santuário de Fátima,
como se ali ficassem casados1 para a eternidade e fora do mau olhado de quantas línguas sujas se quisessem rir dos quase vinte anos de diferença que havia entre
eles.
E o bezoiro negro nem uma palavra de arrependimento teve para lhe dar quando Ela o enzonou com a infidelidade !
Mas Rosinda desconhece ainda que o pôs no caminho imaginado por Zé Miguel, desde que ouvira os camionistas de peixe na madrugada do cais. No caminho da fortuna e
da mala-ventura para onde a ambição o meteu depois, onde está agora no labirinto das ciladas. Ela, quem há-de ser Ela, senão a Rosinda, a mulher mais importante
da minha vida?! Sim, a mais importante de todas, muito acima de todas; corto agora os pulsos e não deitam sangue, por mais que me arrependa do que fiz, do que fiz
aos dois, a Ela e a mim; tive o jogo da vida todo na mão e larguei-o, carago! Larguei-o por uma cabeçada sem glória e nem tive uma palavra de arrependimento para
lhe dizer, quando lhe devia tudo o que de mais bonito a minha vida conheceu. Se tivesse lágrimas, chorava, mas
129
queria que as lágrimas fossem de chumbo derretido pra me marcarem a cara, como a morte também me marcou na testa quando tivemos o primeiro encontro um com o outro,
era eu um miúdo, a quem o parafuso já saltava da cabeça e sempre na pior altura. Todos disseram muita vez: que eu sabia, dar jeito às coisas a meu favor, dar jeito
às coisas e às pessoas, mas nunca ninguém percebeu que o parafuso me salta da cabeça nos momentos piores. Agora corto os pulsos e não deitam sangue! Agora ando a
fazer horas pra entrar outra vez naquela estrada que sabe da minha vida mais do que eu, porque as lembranças se baralham agora e confundem, tudo se confunde nesta
barraca dos espelhos, como tu disseste, onde agora me meti pra me ver diferente, ou talvez como sou e fui a vida inteira, no que eles souberam aproveitar até me
ajudarem a cair de joelhos e virem agora com a puntilla para me darem o último golpe de misericórdia. Mas aí enganam-se...
E talvez não. Ainda é cedo. Falta hora e meia. Os cobardes, sim, esses não sabem escolher; mas eu sei, carago! Hora e meia podem interessar em certos momentos. Sim,
fazem diferença em momentos decisivos para a vida.
Nos meandros do cérebro fatigado pelo desespero nasce-lhe uma lembrança. Ouve o rumorejar das ondas na noite, leva a amante agarrada pela mão, como a recear que
lhe fuja ou o mar lha roube para a viagem que escolheu, e vê a gaibéua, ouve e vê a gaibéua cantadeira numa noite distante, não interessa agora rememorar quantos
anos, porque sobeja hora e meia, quando muito, para o novo encontro com a morte.
Nunca mais esqueceu a quadra que lhe ouviu.
Era uma gaibéua de Cardigos, meã e morena. Não devia nada à beleza, a não ser nos olhos acesos, muito
130
negros, e na voz que tinha para cantar, como um repuxo requebrado, lânguido e triste. Um repuxo à noite entre as dobras do silêncio.
O rancho de ceifeiras de trigo pedira baile ao abegão. Baile sem luz. Traziam tocador de harmónio, um trangalhadanças magro e feloso, sardento, que puxava o chapéu
para os olhos e tocava dez modas a fio, sem dar mostras de canseira. Tocava e sorria lá para ele, talvez a pensar em coisas boas da vida; de pirisca ao canto da
boca quase desdentada, balouçava a cabeça de cenoura a marcar o compasso. E foi ele que lembrou ao rancho, num momento de paragem da brincadeira, para ouvirem a
gaibéua de Cardigos.
Maria Sarga fez-se rogada; mas acabou por se chegar ao tocador, à força de cócegas com que as companheiras a cercaram. Cantou primeiro em voz baixa para compor a
voz; depois abriu-a numa quadra de amor enganado e ainda noutra de saudade pela terra, igual a tantas que Zé Miguel aprendera com os ranchos de gaibéuas e carmelas.
Até que a Maria Sarga levantou a cabeça e desafiou a noite:
Se a morte fosse interesseira, Ai do pobre, o que seria!... O rico comprava a vida, Só o pobre é que morria.
Zé Miguel recorda o transtorno que sentiu ao ouvir a quadra. Recorda todo o rancho a pedir à cachopa que a cantasse outra vez e que a acompanharam depois em coro,
meio estropiado, cada um ao seu jeito. E que de novo a Maria Sarga a repetiu sozinha, elevando a voz cantaroleira, como um repuxo à noite entre as dobras do silêncio.
131
"O rico comprava a vida, só o pobre é que morria."
Comprou-a ele, em perigo de morte, pelas estradas do peixe. (Nisso não fala a Rosinda quando se queixa da ingratidão do amásio.) Comprou-a ele, em perigo de morte,
pelas estradas da candonga e do contrabando, noites e noites, sem descanso, e vai devolvê-la dentro de hora e meia, quando muito, porque os outros lha partiram e
se negam a dar-lhe um tempo de espera.
A morte vem de carro. Ninguém sabe o que ele pensa dos seus encontros com ela. Viu-a centos de vezes. Em criança, dentro do que lhe deu o segeiro de Aldebarã, mais
tarde na carroça azul com riscos amarelos à volta dos taipais, e depois nos ardis das estradas do peixe para ganhar prémios dos patrões e fama entre a choferada,
em cima de uns cangalhos que a vinte quase se partem e a picar nos cem se apertam nas folgas do chassis e aguentam galopes de morte como um cavalo sem freio, como
o cavalo da carroça azul que matou o avô, o velho António Seis Dedos.
Aí não havia amigos durante as corridas, era carregar à pressa, mal o peixe saía da lota; antes passava-se um bocado pelas brasas, de cabeça encostada ao volante,
e depois bebiam-se uns cálices de bagaceira para aquecer e ganhar coragem, vá de abrir as goelas ao motor, vá de acelerar sem conta, metido nas curvas por dentro
para ganhar terreno, sempre a cortar e a picar no acelerador, bons tempos, Zé, bons tempos!, metia-se por cima de toda a folha, quase à sorte, um pouco inclinado
para a frente, como se os olhos conseguissem desbravar o terreno, os perigos das derrapagens, o enigma das lombas que depois se adivinham com a prática e o sentido
inconsciente e lúcido da morte, os carros e carretas a ultrapassar, sem tempo para mudar luzes, buzinando, buzinando, o delírio das descidas em saca-rolhas, acelera-afrouxa,
acelera-mudança,
132
embraiagem-mudança, com alarmes solitários, sem ajudante para poupar a féria à viúva, sessenta-oitenta-cem, aí é que se quer ver quem tem unhas e tomates para um
volante, e também pés sem medo, quem tem medo compra um cão e não paga. a licença, com o sono a fechar os olhos, a fadiga a afrouxar as mãos e vertigens a moerem
o corpo, mas sempre para diante, cem-oitenta, oitenta-cem, buzinando, buzinando, como quem pede socorro ou precisa de entretém para não cair em cima do volante e
enfiar ao acaso por um carreiro qualquer onde a morte se escondesse à espera de dar descanso a quem traz uma bebedeira de sono no tutano dos ossos, e as rodas dos
outros carros a empurrarem para diante, quem chega primeiro tem um prémio, cada qual a defender-se, metendo ao meio da estrada e a cortar as curvas sem consentir
que os outros ultrapassem, ou se quiserem ultrapassar que se esbandalhem por uma ribanceira abaixo, ou se atirem de encontro a uma árvore, porque o meio da estrada
é de quem parte à frente, e as estradas são estreitas, e o dinheiro é ainda mais estreito para que um homem não se jogue inteiro, oitenta-cem, acelera-acelera, e
não goste de saber que todos o reconhecem como um campeão das estradas do peixe, onde os homens perdem o gosto da vida, talvez porque a queiram melhor, entre o egoísmo
e a bravata, para que o seu peixe chegue primeiro às lotas e ganhe preços mais altos, buzinando-buzinando, mas sem ouvir o sinal dos que pedem ultrapassagem, porque
os carros não voam por cima dos outros, embora se percam nas nuvens de poeira das derrapagens provocadas para que os companheiros deixem de ver a estrada e afrouxem,
e percam ainda mais terreno, ou se esbandalhem, ou não percam a pista, se o volante vai nas mãos de um gajo de brios que prefere saltar para o poço da morte, a permitir
que os outros se riam dele quando chegam à taberna para comer
133
qualquer coisa, beber um litro, pedir um baralho de cartas e jogar uma suecada a dinheiro.
"-Se esta noite me fizeres o mesmo que ontem... Estou a falar contigo.
- O que é que acontece?
- Posso ter de te limpar as tripas com esta navalha. -Quantas peles tens lá em casa?!... Mais de cem,
pelo que palpito.
- Os homens não se medem aos palmos.
-Ou medem-se, se há alguém que seja capaz de lhes tirar a medida. A mim só o sargento da tropa e o alfaiate.
- Ou o cangalheiro, quando precisar de te escolher o caixão.
- Não fales de mortos.
-? Mas não faças o mesmo dontem. Aquilo não se faz a um camarada...
- Há quanto tempo andas nisto?!...
- Ainda tu estavas no Campo a guardar éguas."
O Romualdo graceja para cortar o gás à conversa. Ri do que diz e ri do que ouve. Já entrou nas estradas do peixe vai para -dez anos. Teve dois desastres. Agora chega
sempre atrás dos camaradas, diz que não está para se ralar, mas corta-as, ganhou medo aos caminhos e aos carros. O seu medo é secreto.
Põe-se a baralhar as cartas, enquanto o António Espanhol remói com o Zé Miguel, um fedelho, que ainda precisa de nascer outra vez para enganá-lo. Mandam vir uma
garrafa de litro. Jogam a vinho e a dinheiro. O vinho marra, tem mais de quinze graus; chamam-lhe o marcha-atrás, porque muitos recuam, mal se levantam, quando o
bebem e querem fazer caminho.
Já passaram pelas brasas dentro da cabina, pouco tempo, não apareçam enviadas do mar com peixe de algum lance pescarejo antes ainda do alvor, e então, se um
134
homem se descuida, os outros carros chegam à frente duas ou três horas e é uma sujeira perante o patrão e o varinal que espera para começar as vendas.
Zé Romualdo dá cartas, trunfo é oiros, acende a cigarrilha já quase fumada, franze o rosto chupado e sorri do jogão que tem nas mãos, enquanto o António Espanhol
arregaça a manga da camisa para que o Zé Miguel lhe veja a tatuagem no braço esquerdo.
Não se gramam por mor da viúva.
O Espanhol mostra a tatuagem para lembrar ao outro que foi correço na tropa, três anos no forte de Elvas, mas presume e ameaça, mais para se sentir temido do que
para cometer violências, embora os seus olhos azuis, espantados e feros, metam medo a quem não o conheça. Topa-o à légua o Zé Miguel, conhecedor das desfeitas da
mulher e das vezes sem conta que o pôs na rua. Homem grande, cavalo de pau.
A taberna enche-se de gente e de fumo.
Camionistas, pescadores que não foram ao mar, vadielas e ajudas, todos para ali a moerem o tempo ou a bebedeira, riem de um lado, pegam do outro, zangam-se ou fazem
tréguas, discutem puxadas de cartas e lances de sardinha, desafios de bola e amores secretos. À volta dos quatro parceiros da sueca cresce a roda de mirones. O parceiro
do Espanhol é um pescador velho e manco de uma perna, abocanhada na safra do alto por anequim que o filou mesmo junto ao joelho. Ainda todo gajé, finge não se amofinar
com a sorte do jogo; parece de pedra, por mais que as cartas lhe corram de esguelha, embora se lhe veja um tremor na face esquerda, mal começa a deitar cuspo nos
dedos, muito antes de distribuírem o baralho, até fazer a contagem final numa rapidez de bruxo.
Tem as cartas marcadas para não sofrer desgostos imprevisíveis; brinca com a azarina; sanfona quando ganha
135
e, por mais que o gáudio se apegue aos parceiros e à claque, só ri com as orelhas de abano, fazendo-as estremecer em crispações. Servido por memória de cavalo para
a jogatana, sabe o pormenor de cada cartada, o que já se fez e o que está para jogar. Emparelha com o Espanhol, cujo físico o impressiona, não só pelo tamanho do
corpo e o loiro-esbranquiçado dos cabelos, como ainda pelo azul-brilhante dos olhos, sempre a variarem de tom, ao sabor das mudanças íntimas do dono.
Zé Miguel atemoriza-o, embora baixel. Percebe-lhe a força oculta, a determinação no maxilar cerrado e no olhar duro; não o engana o sorriso sempre pronto que alvora
para quantos lhe dão jeito.
Adivinha pela maneira como o António Espanhol o increpa que entre eles vai rebentar um sarilho de porrada na primeira altura. Andam a medir-se há mais de seis meses.
Pensa mal do rapaz; pensa até que, se o Zé Miguel desse pretexto ao outro, o caso já se teria resolvido a murro. O Zé deve ser meio poltrão, admite satisfeito, embora
nunca o veja baixar a cabeça perante o camarada.
Hoje a tensão subiu ainda mais. Entre os dois nasceram cordas de ódio que os amarra à disputa. A cada cartada do outro, António Espanhol sobressalta-se e mira-o
de soslaio, desconfiado; Zé Miguel sorri, de cigarro sempre aceso nos queixos, fingindo que o fumo o incomoda para arrenegar o rosto contrafeito. Dividiu as cartas
em dois grupos, ora pega num e mira-o, ora agarra noutro e faz um trejeito, oculta-os bem na concha da mão e arrasta a sua jogada durante longos segundos para irritar
o outro.
"- Há médicos que levam menos tempo a ver um doente.
- O jogo não é falado.
- Mas tu chateias um santo.
136
- Se o santo não for de pau e tiver pressa de pagar o que perde.
- Isso havemos de ver... -Que estás à espera?
- Que te cales. O jogo não é falado. Quem não arranja nervos para isto, joga a bisca sozinho."
Zé Romualdo ri-se da conversa e chalaceia com ambos. Já os viu em Vila Franca medirem forças de braço, o Espanhol ganhou sempre, mas pressente que o camionista da
Rosinda tira desforra qualquer dia, antes que o outro se aprecate. Descobre-lhe a ronha no sorriso moina e aproveita-se da irritação que provoca no António para
lhe desfazer o jogo. Já marcaram três bolas contra uma; desta vez espera que os adversários não passem de duas vazas baixas.
Sereno enquanto medita, olhadela para as cartas da direita, sorriso para as cartas da esquerda, Zé Miguel bate sempre com os nós dos dedos no tampo da mesa, alçando
muito o braço que descarrega, violento, para espantar o mau olhado, diz ele para a claque. Começa agora a descartar-se com trunfos, atira o rei, finge um engano
e esboça uma careta de contrariedade, mas espera que o parceiro recolha as cartas e conte os tentos para soquear a mesa com o às.
"- Compraste uma vaca -diz o velho pescador.
- Duas vacas. Uma é pouco pra puxar os tentos todos que vêm aí quentinhos.
- O jogo não é falado...
- O teu parceiro começou e eu dei-lhe troco. Manda-o calar."
Encaram-se mais uma vez.
O Romualdo manda encher outra garrafa de "marcha-atrás", esvazia o seu copo e volta a acender a pirisca da cigarrilha que aperta nos dentes de serra fina, como se
137
fosse um lobo arreganhado. O António Espanhol e o velho fizeram só a primeira vaza, dezassete tentos; o apontador fecha a quadra e abre mais uma bola a favor dos
Zés.
A assistência rodeia-os. O António discute o andamento do jogo, vai mirar uma cartada da qual desconfia, mas adorna-se porque a perturbação o transtorna e já não
sabe bem do que duvida. Zé Miguel nunca lhe responde nessas alturas. Diz entre dentes, mais tarde:
"-Se um dia sei jogar isto!...
- Não precisas de saber; tens a vaca.
- Duas vacas foi o que eu disse. Comprei duas vacas e hoje vou comprar mais outra com o dinheiro que levo daqui.
-? A maré está a encher prós inocentes - chalaceia o velho.
- Valha-nos isso!" - remata o Romualdo, enquanto o Espanhol lança as cartas de afogadilho.
Tremem-lhe os dedos. Zé Miguel assobia o fandango num silvar recolhido; depois atira uma proposta para quem agarrar:
"- Antes de ver as cartas, aposto duas cervejas. Quem for homem não se negue.
- Três - responde o Espanhol, contrafeito.
- Combinado! Três cervejas e cinco paus por fora.
- Está feito!"
Zé Miguel pega nas suas cartas, lentamente, divide-as em dois grupos, como sempre faz, e sorri indiferença. Talvez perca. Joga um ás de paus, que desta vez atira
com suavidade a rasar o tampo da mesa. O outro espreita-o, tentando interpretar-lhe a expressão. Manda vir uma cigarrilha, lambe-a na ponta em minúcias de apreciador
e mete-a ao canto da boca, sem pressa de lhe chegar lume.
A sereia de um barco muge na noite.
138
Há uma quebra súbita na atenção de todos para o jogo; tentam perceber o que significa o sinal da traineira para terra, mas o velho aquieta-os, não se passa nada
que lhes interesse. O mar só pode dar algum peixe que se veja no lance do alvor.
Junto do balcão aumenta a algazarra num grupo de pescadores metido em disputa áspera por causa das percentagens das companhas. Os mestres querem receber mais, os
patrões não os contrariam, mas entendem que a diferença deve sair do monte do pessoal. Alguns homens opinam remédio santo para a garganeirice dos outros não embarcarem,
os mestres e os patrões que façam o trabalho e dividam tudo entre eles.
António Espanhol enerva-se com o barulho; acaba por atirar uma carta enganada, tenta ainda retirá-la, Romualdo opõe-se num gesto firme, joga-se a dinheiro e a todos
o dinheiro custa a ganhar; quem joga não guarda cabras.
Zé Miguel acende a cigarrilha. Finge-se ausente, talvez o esteja, a pensar em outra coisa que lhe dê mais interesse.
Talvez nas contas da quinzena que combinou trapacear com o encarregado do posto da gasolina, onde se abastecem os carros da viúva; abriu conta no banco, quer vê-la
crescer depressa. Nada disso. Talvez na sociedade secreta que formou com a Iria, entregando-lhe peixe a mais para o seu lugar na praça; há sempre maneira de corrigir
um peso, fingir um engano, arranjar uma troca-baldroca com outra conta qualquer, porque ganha dois terços nas diferenças e um homem não levanta cabeça só com a féria
e os prémios nas viagens. Nada disso. Talvez na última conversa que teve com a viúva, em que Ela lhe prometeu percentagens no negócio da camioneta pequena que pensa
comprar para vender peixe pelas aldeias dos
139
Montes; vai ele fazer a venda?, ou vai levantar um carro no stand, a prestações, para fazer o negócio sozinho? Nada disso. Talvez em tudo ao mesmo tempo e ainda
na maneira de irritar o António Espanhol, que se enganou a jogar uma bisca de paus, quando podia cortar a trunfo pequeno, sempre são quinze tentos.
"- Deixa-o lá levantar a carta. É a primeira vez...
- Jogo é jogo" -recorda o Romualdo, sem perceber a intenção do Zé Miguel.
Este sabe que o Espanhol não aceita a condescendência vinda de si, mas adianta-a por isso mesmo, na intenção de a claque descobrir que é ao outro que cabem culpas
no que vier a acontecer qualquer dia.
"- Não preciso de favores no jogo; está jogado, está jogado - remata o António, de gume afiado
na voz.
- Por mim não vejo mal nisso, nem é favor. Tanto me faz... Se perder a aposta, não fico mais pobre. De teso já não passo. Levanta lá a carta...
- Já disse que não! Só digo as coisas uma vez!
- Tu é que sabes..." - conclui Zé Miguel, fazendo fumegar a cigarrilha em pequenas fumaças seguidas.
O outro perde por dois tentos e desvaira. Manda vir as três cervejas, atira com a moeda de cinco escudos para a frente do neto de António Seis Dedos e ralha ao velho
a parvoíce de ter jogado o ás do trunfo antes de tempo, porque comeriam a manilha seca na mão do Romualdo. Chico Balaio, o velho, reponta azedume e devolve-lhe as
queixas, larga as cartas depois de recontadas, não está ali para se chatear com os amigos.
A matula que os envolve excita-se também e transmite aos quatro jogadores o frenesi de os impelir para qualquer coisa de diferente, que só o Espanhol e o Zé Miguel
podem decidir.
140
Este dá cartas com calma (só ele percebe o que sente dentro de si), uma a uma, em leque, virou o trunfo mal o Espanhol partiu o baralho, já sabem que o trunfo é
copas, e enquanto os outros mostram pressa, agrupando as cartas à sua maneira, ele interrompe para fazer cair o monco de cinza da cigarrilha; depois volta a puxá-la
ao canto da boca, mastigando-lhe a ponta, como viu um dia ao lavrador Prudêncio.
"-Quatro cervejas e cinco mil réis!" - oferece o António.
Zé Miguel presume que o não ouve, ou não lhe presta atenção, e continua a distribuir o jogo, paulatinamente, carta a um, carta a outro, sem pressas, a molhar a ponta
do indicador e a esfregá-lo no polegar, sempre com o olho esquerdo desviado para a banda do Espanhol, de quem espera um arremesso súbito, sem prever o que será.
Pôs as três cervejas perto de si, em cima da mesa, para que o adversário não esqueça tão cedo que as perdeu; a manobra participa de cada gesto meditado que planifica
com ar displicente e sorna. O outro irrita-se mais. Esfrega o rosto, move depois a pala do boné e toma decisão:
"- É a última vez que jogo cartas contigo.
- Porquê?!... Não percebo porquê.
- Eu cá mentendo. Não jogo mais contigo.
- Estamos a passar o tempo. É só pra entreter...
- Mas tu chateias um santo. Levas uma data de tempo pra fazer qualquer coisa.
- Ninguém corre atrás da gente; não temos ninguém à espera.
-? Mas assim irrita-me.
- Tu é que resolves o que te convém. Se não queres mais, arranja-se outro parceiro. Há sempre mais um parceiro..."
141
O Espanhol ainda levanta a mão para lhe sacudir o braço, mas detém-se. Insiste depois na proposta:
"- Quatro cervejas e cinco mil réis antes de ver o jogo."
Tapa as suas cartas com a manápula, encara o outro e espera. Zé Miguel confunde-se nas ideias que lhe ocorrem ao mesmo tempo; finge ignorá-las, apagando a cigarrilha
no salto da bota e entalando-a entre a orelha e a cabeça.
"-Estou a falar contigo! - brama o António.
- Disseste que não jogas mais comigo... Pra que havemos, então, de apostar?
- Prà desforra!... Quem ganha deve oferecer desforra aos outros."
Zé Miguel coloca os dedos sobre as suas cartas e tamborila-as algum tempo.
"-Disseste oito cervejas...
- Disse quatro.
- Disseste quatro duas vezes; quatro duas vezes são oito, se ainda sei fazer contas. Ou não?!..."
António Espanhol agarra-o pelo braço e aperta. Finca-lhe as unhas e aperta. Quer falar; percebe que gaguejará se abrir a boca. Zé Miguel cobre-lhe a mão irada com
a sua mão calma.
"- Somos amigos, carago! Acho eu que somos amigos... - Finge recear o outro, que precisa de acalmá-lo para evitar desfeita pública.
- Não preciso que sejas meu amigo-responde o Espanhol num arremesso violento.
- Mas eu acho que sou teu amigo, mesmo que não queiras. Porque se pensasse que não éramos amigos..."
Atira-se de um pulo para fora do banco. Num instante abre-se clareira entre os dois; uma clareira de gente
142
e de silêncio. Zé Miguel explica-se; quando chega a altura de dizer o nome às coisas, não hesita:
"- Se pensasse que não sou teu amigo, tínhamos de resolver a coisa depressa. Sou pequeno, bem sei, ao pé de ti sou pequeno, mas se mengolires é o pior que me podes
fazer, mesmo se mengolires tens de me deitar fora pela tripa. E cá fora ainda sou gente, carago!
- Queres experimentar?"
Zé Romualdo mete-se entre ambos, ajudado pelo Balaio e por outros pescadores que os conhecem. Irado, o Espanhol acomete a barreira levantada no meio dos dois, vocifera
ameaças, de olhos azuis arregalados e feros, enquanto Zé Miguel tira detrás da orelha a ponta da cigarrilha, que acende sem um tremor de dedos. Domina-se. Nessa
altura eu era ainda capaz de me sentir rebentar e de fingir que estava calmo como um bocado de pedra. Bons tempos, Zé, bons tempos! Lembram ao Espanhol que dois
camaradas não devem bater-se por causa de cartas, parece mal, com seiscentos diabos, parece mal!
Afrouxa o grandalhão na raiva que o perturba.
Mas não deixa de lembrar que o outro, na viagem da noite anterior, quase o atirou por uma ribanceira quando fingiu dar-lhe passagem à camioneta e depois puxou à
esquerda, obrigando-o a travar quase em cima da traseira do carro dele só para não se esbandalhar ao pé do Sobral.
Zé Miguel encolhe os ombros.
"- Meçam forças, a braço! - propõe o Zé Romualdo.
- Dez cervejas! - grita o espanhol entre o bulício da claque. -? Três vezes a medir forças dez cervejas!"
O Vila Franca, como conhecem o Zé Miguel em Peniche,
143
aproximara-se do balcão para pedir outra cigarrilha. E daí responde ao desafio:
"- Hoje não teimo contigo porque tu afinaste. Acho que um homem não é só um braço ou dois, mas o corpo todo. O corpo todo é que vale. Se não fôssemos camaradas,
tínhamos agora de tirar a teima.
-Quando quiseres - vocifera o Espanhol.
-? Não é quando quiser, mas quando for preciso. Quando for preciso, a gente resolve o caso. Mas agora tu não estás bom, António. Não há razão prà gente jogar à porrada.
- Meçam forças a braço - insistiu o Romualdo.
- Perco dez cervejas!-grita o António Espanhol numa bravata, sentindo que o outro se fica na disputa.
-? Já perdeste três às cartas e ias perder mais cinco responde o Vila Franca.
- Agora aposto dez!
- Apostar comigo, a braço, não é nenhuma áfrica, ó Tóino! Fazes quase dois tamanhos de mim. Ganhas-me sempre! Mas se queres ficar por cima, não me ralo. Braço esquerdo
contra braço esquerdo. Três vezes, como tu dizes. Cinco cervejas de cada vez!"
O outro pede que repita e ele repete.
A barreira desfaz-se entre ambos. Zé Miguel arregaça a manga da camisa, move os dedos, esboça no ar, de punho cerrado, um primeiro movimento de luta braçal; depois
vai até à porta da taberna, finge interessar-se pelo cariz da noite, e regressa à mesa onde o Espanhol o aguarda de cotovelo já fincado na pedra encardida.
"-Quinze cervejas! vou perder quinze cervejas pra que percebas que sou teu amigo.
- Ao jogo não se fala.
- Ainda não começámos."
Percebe logo que a altura do outro está em desvantagem
144
em relação à dele, acocora-se um pouco, experimenta as solas das botas no piso de cimento, não vá escorregar, flecte as pernas, flecte-as por duas vezes, percebe
que a mão do outro tremelica, baixa-se num balanço rápido, finca o cotovelo e pega-lhe na mão. António Espanhol respira fundo e sorri. Aperta a mão oferecida pelo
adversário, procura dominá-la na chave da sua e mantém o braço tenso, à espera que o Romualdo conte até três.
"- Um!... Um e meio!... Dois! Dois e meio!... Dois e meio!..."
Os antebraços balouçam de músculos tensos, à espera da última palavra. Zé Romualdo está agora do lado do Espanhol. Olha os dois durante algum tempo, procura adivinhar
a força que cada um deles tem consigo e, de repente, lança a palavra de luta. Empertigam-se ambos, coram, gemem, baixam a cabeça, o Espanhol move o antebraço do
outro, pouco a pouco, devagar. Zé Miguel deixa-se conduzir, tenta depois emendar, numa mudança brusca, mas compreende que a força está do lado oposto e abandona-se.
O outro obriga-o a bater três vezes com os nós dos dedos na mesa.
A assistência descarrega a ansiedade numa exclamação.
"-Cinco cervejas para o Espanhol!" - anuncia o juiz.
Zé Miguel sorri para o adversário, enxuga a mão com o lenço, cerra os olhos quando respira fundo. Agarra, de novo, a manápula que o outro tem suspensa no ar à espera
da sua. Pega-lhe, aperta-a, faz força com o corpo inteiro, mal o Romualdo diz três, ajeita o ombro, sente ranger os ossos, parece que os músculos vão saltar, e derruba,
num golpe inesperado, o braço do outro. O Espanhol não percebe o que aconteceu, julga que foi enganado, mas reprime-se.
145
"-Cinco cervejas para o Zé Miguel! - repete o juiz sem a euforia anterior. O neto de António Seis Dedos percebe a diferença do anúncio.
-Estamos empatados - explica por sua vez. - Falta discutir cinco cervejas.
- Cinco cervejas e dez escudos! --emenda o outro.
- Aceito!"
O círculo alarga-se, como se os homens temessem intervir na disputa. A maioria pôs-se do lado do Zé Miguel; é mais pequeno, parece metade do outro, e espantam-se
do desembaraço com que aceitou o desafio do grandalhão. Zé Miguel, de resto, paga rodadas de vinho muitas vezes, sabe arranjar amigos, é um cara-direita, sim senhor,
por ele não vem mal ao mundo, pensa o pessoal da pesca que enche a taberna do Malfadado. O Vila Franca é compincha, o que se passa na estrada não lhes interessa,
nestas coisas vale tudo, e ele sabe dividir o dinheiro que ganha com quem o ajuda. Por isso lhe carregam mais cedo a camioneta e lhe arranjam o melhor peixe do alto,
bem apertado com gelo para chegar fresco ao destino.
António Espanhol não entende ainda o que se passou. Sabe que perdeu, sabe que perdeu cinco cervejas, e, ainda pior do que isso, percebe que se deixou vencer por
um fedelho, por um rapazola a quem as varinas chamam o Menino da Viúva. Está decidido, mas receia. Receia não compreende o quê, nem porquê; preocupa-se com o resultado
do último medir de forças, enquanto o outro sorri para a claque, indiferente, quase gozão.
"-Vamos lá a isto!" - anuncia o Romualdo, também agastado.
Ambos tomam posição, fincam os pés ao jeito que mais convém, o Espanhol de compasso muito aberto por mor da altura da mesa, agarram-se pelas mãos, a matula segue-lhes
cada movimento e incita-os com o olhar; esperam
146
todos a última palavra do juiz, que a demora, dois, dois e meio, dois e três quartos, dois e três quartos, três!
No corpo tarraco do Zé Miguel nasce a fúria mansa de desfeitear o outro e a claque adivinha-a na bosseladura das costas que incha de repente, dura e tersa, empolgada
e firme, tal como os músculos do antebraço que saem e fremem, amparando a gana descontrolada do antagonista, quase irado, como se estivesse prestes a gritar. Segura-lhe
o ímpeto, experimenta-o num balancear ligeiro imprimido pelo braço, tenteia, espera uma breve indecisão do outro, sente-o resoluto, aguenta-se, volta a tentar um
golpe rápido, o outro range os dentes e incita-se num uivo abafado, ele insiste devagar, muito devagar, finca-lhe os três dedos nas costas da mão, sente-as ceder
por um momento, é agora!, pensa num rasgo, reúne forças, impele-as numa explosão, e o Espanhol derranca-se, deixando tombar o antebraço na mesa.
Zé Miguel leva-o a bater três vezes no tampo. O outro solta-se e abala pela porta fora, sem dizer palavra, abrindo clareira, aos empurrões, na gentalha que se reunira
para os ver lutar.
Zé Miguel pede as cinco cervejas à conta do Espanhol, junta as três apostadas nas cartas e começa a abri-las, a soco, no rebordo de um banco; depois tira um canjirão
da prateleira, onde despeja o líquido.
"- Beba daqui quem quiser. Os homens não se medem aos palmos."
Agora dói-lhe essa mão, a sua mão rija que lhe valeu fama entre a choferada dos caminhões de peixe, quando esperava as traineiras, os botes ou as enviadas para partir
à doida por essas estradas, bons tempos, Zé, bons tempos! Bebi e dei a beber muito, caixa de cerveja ganha com a mão caluda, esta que se queixa agora, um nadinha
mais pesada do que a outra e na qual se insinua pelos dedos,
147
quase dor, a ameaça sorrateira da bolha de sangue, determinada e lenta, que pode matar num instante. Teme-a e deseja-a, embora prefira atirar-se a mais de cem para
o muro branco da curva.
Volta a pensar na cantiga da Maria Sarga:
Se a morte fosse interesseira, Ai do pobre, o que seria!... O rico comprava a vida, Só o pobre é que morria.
Quererá alguém comprar a sua vida?!...
148
NEM ele próprio, valha a verdade. Agora nem ele poderá negociar com a morte, oferecer-lhe moeda que valha a pena, a não ser a vaga promessa de outra guerra ainda
melhor, sou homem para certas alturas, está visto, só sirvo para alturas em que cada qual se amanha sem se ralar com os outros, embora não consiga compreender, mesmo
que lho digam, que também a morte se tornou interesseira num mundo adubado pela alienação.
Adiada e dócil para os que, mesmo numa guerra, mercadejam os lugares da retaguarda.
Zé Miguel não saberá muitos mistérios do seu drama. Não suspeita, sequer, que a cantiga de Maria Sarga tem quase um século, é cantiga ingénua de outros tempos mais
simples, e que hoje se transacciona tudo, mesmo tudo, menos a consciência dos homens que ferozmente não pactuam. Zé Miguel não desconfia que escolheu a transacção.
Ou só agora o pressente; já é tarde. O seu minguado futuro participa de um tempo passado que vive fora do tempo real dos homens humanos.
A vida compra-se no meridiano do absurdo. Ele ignora-o, talvez porque a sua moeda não ganhou o ágio das grandes conspirações.
149
Julgou-se lá perto. Mais ainda: sentiu-se dentro do círculo dos intocáveis, sem entender a razão por que o consentiam à sua beira, enquanto conviesse a fúria ambiciosa
do homem primário que os servia.
Selectivo, bestialmente selectivo, esse corpo complexo e estranho repele sempre, mais cedo ou mais tarde, o que lhe não pertence, ou não lhe convém e já não presta.
Zé Miguel já não presta. Incomoda. Gastou-se e incomoda. É um grão estranho que está a mais. O seu convívio molesta. Tornou-se grosseiro e ofende.
Mas pertence-lhe o futuro. Deixam-lhe essa decisão, o que nem a todos permitem; dão-lhe plena e responsável liberdade para decidir como deverá morrer, se não preferir
sentar-se no banco dos réus por falência fraudulenta, esperando que lhe concedam a benesse das atenuantes.
Ele, porém, já optou. Foi sempre um homem de resoluções.
Se para ele a morte anda de carro, aí tem um Ferrari para empreender a viagem, uma bela viagem de príncipe angustiado. Pelo menos com ele a morte não se mostra interesseira.
Dá-se-lhe plena, quase dócil, sem carta de recomendação nem cheque ao portador, como tantos ele próprio passou na compra de guias de trânsito e de influências para
os negócios da candonga e do contrabando.
Soube sempre avaliar com justeza os serviços que lhe prestavam. Muitos desses lhe chamam agora perdulário. E recordam factos para ilustrar o que contam, esquecendo
que o incitavam nas extravagâncias, talvez por se empolgarem quando o viam, lesto e imaginativo, a satisfazer-lhes os caprichos.
O próprio Dr. Casquilho do Vale, o seu transistor, como Zé Miguel ainda lhe chama, ergue a sobrancelha
150
das ironias para aludir às seis santolas que o Menino da Viúva, assim o conheciam os cagaréus, mandara buscar por um carro de praça a S. Martinho do Porto, quando
a esposa do tenente Júlio Ribeiro andava de barriga pela Mitó, e marido e amigos temiam que os desejos da D. Emilínha transtornassem o ilustre feto.
Zé Miguel sabia o valor das benevolências do tenente e pagava-Lhas à larga.
"- Gastou um conto de réis na brincadeira - remata o jurista palrador, em confidência benévola.
-? Diz-se por aí um conto e quinhentos, porque tiveram de ir buscá-las ao viveiro no meio da baía e o dono pediu cento e cinquenta escudos por cada uma. Faça a conta.
- Um verdadeiro príncipe da Renascença na pele dum chofer. A D. Emilinha não valia tanto.
-? E ainda menos a Mitó, que saiu augada e rançosa" - conclui o Baratinha das Finanças, de vòzita pipilada, talvez porque em tudo se parece com uma tia paterna,
enjoada e viperina, cujo espírito parece habitar o corpo esgrouviado do sobrinho funcionário.
Zé Miguel, se os visse na biblioteca do clube, enfiados no ronrom maligno da peçonha, diria que as bruxas estavam a pentear-se, pois se da boca lhes chove a bátega
linguaraz, não regateiam o sol dos sorrisos falsos para quem se lhes aproxima, como o tenente, que vem, de bota alta e bengalinha de chicote, contar pataranhas da
cavalaria de Torres Novas, onde deixou fama de aldrúbio e violento.
Retraçam o falido pormenorizando o corropio do tribunal em que os credores se acotovelam e mordem, muitos deles sem letra ou papel que lhes valha, enquanto Rui Relvas,
o Saca-Rolhas, canta de poleiro e empunha a batuta de maestro da fanfarra agiota. Olhado como cúmplice
151
pelos outros cúmplices, o advogado sacode a água do capote, dando os códigos como bíblia do seu procedimento. Já se enzona que alguém apresentará queixa na Ordem
dos Advogados, há quem esfregue as mãos de júbilo, zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades, a verdade é como o azeite, vem sempre à tona de água, mas esquecem,
os ingénuos, que o azeite tem muita graduação; agora não passa de um óleo sujo e fedorento de gosto amargo. "-Limitei-me a tratar-lhe dos assuntos; nada mais.
- Diz-se que no tribunal ele vai contar o dinheiro que deu, os negócios que fez durante a guerra e quem lhos facilitou -assevera o Baratinha, aciganado na pele,
embora mimalho na voz.
-Como prova ele o que insinua? - pergunta o Ribeiro, a desvendar os perigos que lhe corre a honradez. -Os cheques que passou falam como gente...
- E emporcalha todos que o acompanharam, mesmo que nada se prove, como é evidente.
- Vai por aí um falatório... Não há nome honrado que não ande agora pelas ruas da amargura, ao jeito da má-língua e da política.
- Com esses posso eu; tranco-lhes a língua, depressa, garanto!
-Da calúnia sempre fica alguma coisa, meu querido amigo."
Bolem-se os nervos de cristal do tenente Ribeiro com o gorjear cínico do Baratinha, metido na carreira por padrinho democratão, a quem agora enjeita na ânsia de
se ensaboar; zune a chibata, impreca, esmigalha os olhos do outro com o seu olhar implacável e frio que atemoriza quem lho espreita.
Quando na rua se ouvem as ferraduras de animal calçado, talvez seja o Rui Diogo no cavalo branco, cala-se a voz irada de Júlio Ribeiro e atordoam-se os outros dois,
152
um nadinha lívidos. Lembra-se algum deles do cavalo velho e sendeiro?! Do penco malhado, de manhas e mazelas, que o Zé Miguel comprou para oferecer cerveja aos amigos?!...
O tempo não conta. Contam as coisas que vivem. Tudo o que vive é presente, mesmo que só permaneça na memória de alguém.
Parece que a terra estala, queimada. Mesmo no alto da quinta, mirante para o rio e lezírias, na margem direita de vinhedos e árvores de fruto, mesmo aí, não bole
um ramo do cedro centenário que dá sombra ao terreiro. Vale aos convivas a parreira comprida, apoiada na parede da adega e nas forquilhas de ferro com dois braços
curtos onde se acomodam as pontas das varas negras pela acção do tempo e pelas quais se enleiam as hastes da trepadeira de campainhas.
Vieram só homens para o almoço, estão assim mais à-vontade; fala-se do que calha, sem escolher assunto ou palavras, na bebida não se ouvem conselhos, e tudo pode
acabar à maneira de sempre, em aventuras de raparigas, histórias desbragadas e, talvez, num passeio nocturno a Lisboa por parte dos mais afoitos em corromperem o
ripanso do lar. Já se sabe, dirão as senhoras umas com as outras, aqueles almoços no Miguel Rico fecham sempre em passeios da pouca-vergonha.
Nada falta para quem gosta de comer bem e beber melhor.
Oito cabeças de pescada de Sesimbra, monumentais e frescas, ensarilhadas em ovos cozidos, batatas e verduras, muita pimenta, muito azeite, muito de tudo, e mais
ainda de um vinho de Aveiras, meio palhete, enganador a quem
153
o mira no copo, mas de marrada certa nos que o bebem, quinze graus ou mais, o mesmo é falar em trinta degraus para chegar depressa ao céu das pielas, onde as palavras
se resmungam, perdem sílabas e acabam sumidas no corropio da montanha russa. E a orelha de porco que já cheira em cima da pescada, junto ao chispe e ao feijão branco,
apurados no molho de beber à colher, cenoura e salsa picadinha, um mimo, como diz o Sr. Presidente, o Dr. Carvalho do Ó, que já falou diversas vezes em Pantagruel,
garantindo medalha de oiro ao cozinheiro quando um dia levar a efeito um concurso de pratos regionais, em plena feira, pois não se come melhor por toda a Europa,
ele que o diga, viajado como é.
Para os intervalos, não vão os dentes cerrar-se nalguma demora, pratos de camarões e gambas, enguias muito fritas, azeitona negra, pedaços e miúdos de galinha em
piripiri, sardinhas de escabeche e outros apetrechos de emalar, segundo o comentário de um senhor advogado lisboeta, velho fadista, que se fez acompanhar de guitarra
e viola, mas parece incapaz de cantar o corrido quando vier a hora das tristezas do vinho, tão de pronto vira canecas do tal meio palhete de trinta degraus.
Zé Miguel iça no rosto afogueado dez bandeiras de alegria e vaidade, graceja, ri, bate as palmas ao caseiro para que nada falte, a ele agora nada falta, vive-se
em plena guerra, ainda ontem bombardearam Roterdão, a sua frota de caminhões não pára de dia e de noite, há falta de açúcar, de bacalhau, de arroz, ele resolve tudo
isso, enfim, é uma questão de dinheiro, havendo pápulas não se morre à fome.
Tem ali os seus amigos. Não lhe faltam amigos, carago!
Sabe o preço de cada um deles. Alguns não lhe ficam baratos, lá isso não, mas os favores que prestam são muitos
154
e bons: deram-lhe aquela quinta nos Montes e a terra de renda na Lezíria, onde ele voltou em lavrador quando de lá fugiu em guardador de éguas apoldradas; faz terras
de pão e arroz, tem gado manadio, um cavalo morzelo e uma égua baia com ferro dos Relvas com que vai às esperas e passeia na vila, aranha para atrelar outro cavalo
milores, e três barracões perto do Tejo, num dos quais ele gosta de dormir e pensar.
Ficou-lhe o hábito de pensar dentro da manjedoura, envolvido pelo cheiro da palha e das camas do gado, um cheiro acre, excitante, a recordar-lhe o passado e a garantir
o bom caminho da sua fortuna que desconhece a quanto monta. Não precisa de livros. O seu livro é a algibeira, a conta em dois bancos, até lhe escrevem a pedir letras,
o que compra e arrenda, os cinco caminhões e o automóvel, avalia tudo em mil contos, mas não sabe bem quanto deve.
Um dia se verá.
Naquele momento interessa-lhe o almoço aos seus quinze amigos, à mesa são todos amigos, corja de malandros!, andaram a mamar-me até ao tutano e agora largam-me,
advogados e lavradores, autoridades e médicos, o Baratinha das Finanças, gente fixe dali, de Santarém e de Lisboa, uns anglófilos, outros germanófilos, mas ali não
se fala de políticas nem de coisas da guerra, isso são problemas para outras alturas, foi o que pediu o Dr. Casquilho do Vale, em nome do anfitrião, quando se sentaram
para comer, "comei e bebei, meus amigos, inter amicos não há geringonças e muito menos disputas vãs (salvo seja! -? brincalhotou o veterinário), discussões ou alfinetadas,
mesmo ligeiras, por diferendos alheios que não nos respeitam nesta bora de convívio tranquilo, ameno, elevado, nobre, digo nobre e muito bem, porque já Ovídio, o
poeta sublime, escreveu num verso lapidar que donec
155
eris felix, muitos numerabis amicos, o mesmo é dizer que enquanto fores feliz terás muitos amigos, e esta hora é de felicidade nesta remançosa tebaida do nosso fabuloso
Zé Miguel, um homem que se fez a si mesmo com a ajuda de Deus".
E logo para contrapontar o enfolado do discurso, um tanto largo para a circunstância, acrescentou-lhe duas anedotas frescas, uma de papagaio e outra de espanhola
vinda a Lisboa para se empulseirar, o que logo abriu a veia grossa de todos os convivas, menos a do Dr. Carvalho do Ó, risonho mas comedido, dada a sua qualidade
de edil-maior entre os responsáveis da política local.
Dos seus sete companheiros do afamado grupo Os Gladiadores, de cujas turbulências a vila se honra, espanta e indigna, Zé Miguel só convidou os dois filhos do defunto
Lavrador das Moças, o patrão Augusto, que morreu de fome premeditada por ele próprio, quando o levaram ao tribunal por ter deitado os dentes à orelha de um cigano
gozão, capaz de lhe desfeitear o seu cavalo Madrugador, tratando-o por penco.
Vieram os dois de jaqueta, calça e chapéu sevilhanos, ainda não abriram boca senão para a comezaina de que têm fama e proveito. De cavalos, mulheres e vinho sabem
eles.
[A festança cheira-lhes, porém, a pó-de-arroz e capilé, no comentário segredado do mano José Luís para o Manuel Pedro, contrafeito, embora honrado, no meio de tanto
doutor e excelência.
O anfitrião separou-os à mesa, embora lhes pedisse recato com a promessa de almoçarada íntima nas terras da Lezíria, onde lavram de renda. Estão deprimidos, só comem,
comem com a boca e os olhos, baixam a cabeça e devoram, retraçam, engrolam, mal mastigam, mas ainda não passaram do primeiro copo, talvez porque o Dr. Leonardo
156
incite o José Luís, querendo metê-lo em brios de bebedor.
Os Cavaleiros do Apocalipse, como lhes chamaram em rapazes, contêm-se e resmungam entre dentes. Trazem o veterinário de ponta por mor de quatro bois que rejeitou
no matadoiro; esperam o ensejo de lhe voltarem a ofensa, não perde pela demora, mas hoje trejuraram não desfeitear o amigo e sócio nas manigâncias dos adubos candongados.
Querem provar que ainda descendem de costela fidalga por parte da mãe, qualquer coisa parecida como oitava prima de um conde de Cendufe e Bensafrim, andarilho em
terras da Guiné nos tempos das travessias de negros para o Brasil.
A fama dos dois irmãos, porém, começa a correr entre os visitantes, por culpa do Baratinha, que pretende alcançar as boas graças de um doutor de Santarém com lâmpada
acesa no Terreiro do Paço.
Vai concorrer para tesoureiro de 1.ª traz um lugar de baixo de olho por causa dos filhos, e trata de contar ao santareno a história do casamento do Refofas, como
os outros Gladiadores lhe chamam para o irritar.
O Refofas não veio, a mulher traz-lhe a rédea curta, queixa-se de dores no ventre quando sonha paródia do marido com aqueles bandidos, "sim, bandidos perigosos que
estariam todos na penitenciária se vivêssemos em terra civilizada", ou não seja a pernóstica formada em Geologia, ciência complicada, segundo assevera o Refofas,
pois se conhece por ela a idade e a qualidade da terra, o que é objecto de troça do José Luís, perguntando ao outro com frequência se a idade dos terrenos se vê
pelos dentes, como as bestas.
O Baratinha arrebita-se no banco, deita a cabeça para o lado do Manuel Pedro e desafia-o para relatar ao Sr. Doutor a festança que prepararam ao Refofas na noite
do
157
casamento, depois de explicar, à boca pequena, a aventura do filho mais jovem do Lavrador das Moças, quando marcou o seu nome, a fogo, nas costas de uma rapariga
trazida pelo pai.
"-Diga lá, Manuel Pedro! Você é que foi da ideia, segundo dizem os seus amigos; ninguém sabe melhor o que se passou.
-Coisas de vinho! -comenta o lavrador sem tirar os olhos do prato, onde a segunda dose de pescada vai entrar na trituradora.
- Nem o Nero teve uma dessas, ora diga lá!
- O senhor conhece a história toda, conte-a o senhor. Na sua boca é que tem graça. Eu sou homem de lavoira, mal aprendi a escrever o nome."
Teimoso, Manuel Pedro vira-se à garfada nas nabiças, irritado com a alusão ao Nero, julgando que o outro o assemelha a certo gajo a quem a vila deu tal alcunha de
ruim lembrança, beleguim numa história de assassínio e aldrúbio em empréstimos exigidos à custa da prepotência.
Baratinha interpreta-lhe a carranca e não insiste; fica a temer que o lavrador o toma de ponta e lhe pregue alguma na primeira altura, hoje mesmo, se o palhete de
Aveiras se lhe atravessa no sangue moiro.
Mas o doutor de Santarém porfia, veio para se divertir:
"- Ora conte, Sr. Manuel Pedro! Os povos definem-se nos acontecimentos quotidianos. Eu acho que o ribatejão, para mim a palavra ribatejano adoça o nosso verdadeiro
carácter, conserva, ou desdobra, se quiserem, as qualidades viris da raça."
Discursa quando fala, move as mãos como um actor, exprimindo-se também no agitar dos dedos finos e longos, quase tentáculos, que abre, recolhe, aponta, vira e revira,
aperta-os entre si, afaga-os, obriga-os a dar estalos e
158
leva-os a dedilhar o espaço, em curtos exercícios, como se tivesse por cima do prato da pescada as escalas de uma guitarra.
"- A raça é algo de perpétuo que leva o ribatejano a pegar um toiro só para ganhar o sorriso duma mulher, mesmo que depois lhe bata na intimidade, a montar um cavalo
em osso ou ajaezado para correr lebres, perseguir um réprobo, sei lá que mais!, pegar num cacete e varrer uma feira, beber até cair um vinho com senhoria, ou cuspir
na cara de quem lhe oferece uma zurrapa que ofenda só de lhe chegar a pele dos lábios.
- O Sr. Doutor devia escrever o que diz - acomoda o das Finanças, já tonto.
-? Prefiro escrever o que os outros fazem. Preparo nesta altura uma espécie de Manual do Homem Ribatejano, réplica ao manual do Trindade Coelho. - Volta-se novamente
para Manuel Pedro. - Por isso lhe peço que me conte a história dessa noite. É bonita, tem algo de primitivo, autêntico e sublime; uma espécie de pira do amor e da
virilidade.
- Você não se entusiasma com estas palavras, Manuel Pedro?
- O Sr. Doutor desculpe; se faz favor, desculpe. O caso não merece uma sopinha no caldo desse chispe que aí vem. As coisas fazem-se; lembram e fazem-se. Falar delas
é requentar o sabor que têm...
-? Eu acho-a maravilhosa, percebe?"
O lavrador enerva-se, vira a caneca do vinho, enche-a de seguida e despeja-a também, esquecido das recomendações do Zé Miguel, que lhe faz sinal da cabeceira para
atender o pedido do Sr. Doutor, piscando-lhe o olho matreiro, como a confidenciar-lhe préstimos do homem para a traficância. Retalho de um lado, pesponto do outro,
a história corre.
159
Refofas, de seu nome Alexandre Magno Guedes Sábino, armazenista de mercearia, dono de prédios e de ruins lembranças, tinha estrelas de general entre os Gladiadores.
Vai em Julho tratar do fígado a umas termas, estraga-se com água por dentro e por fora, e anuncia aos amigos que vai casar, finalmente, com a tal doutora de Geologia,
passada e repassada em amores infelizes. Os do grupo descobrem-lhe bazófia na notícia, entendem-se ofendidos, conhecem a noiva e tomam-na de ponta. O estadão do
casamento mete fardas de gala, senhores de labita, decotes e plumas, de tal maneira que os Cavaleiros do Apocalipse foram pôr as esposas em casa depois da cerimónia
da igreja, levados pela opinião do Manuel Pedro, que não quis a mulher no meio de coristas, pois aquilo só lhe recordava uma revista do Parque Mayer, uma apoteose;
e se aquelas carnes à mostra eram de comer, pois vamos lá a isso!, um homem não é de pau, mas a mulher que Deus lhe deu não deve ver os pecados de um mundo de mau
porte.
Carregam nos copos, distribuem palmadas à socapa, excitam-se, a festa não se desdobra ao pendor da sua imaginação e acabam por se sentir roubados. Quando os noivos
abalam e eles descobrem que passarão a noite na quinta do Refofas, propõe o Manuel Pedro, e os outros acolitam-no, que os amigos não se põem na rua a horas impróprias,
pois os Gladiadores fizeram as suas leis, todos as cumprem e os castigos servem para quem os merece.
"-Vamos assaltar a quinta do Refofas e obrigá-lo a saltar da cama, mesmo que a doutora ande a ver por lá a idade da terra...
- E que abra a adega e rios dê ovos estrelados...
- Que há-de comê-los com a gente, embebedando-se a preceito, não julgue o pedante que se largam os amigos assim."

160
Arreganhados pela ira e pelos vinhos, metem-se em dois automóveis, buzinam à chegada, buzinam, buzinam, fazem alarido, o Refofas aparece assustado, mas, assim que
os vê, larga um palavrão e fecha-lhes a janela na cara. José Luís pega numa pedra, joga-a de mão certeira e parte um vidro. É o sinal.
Mas quando o grupo se prepara para escaqueirar a vidralhada toda, Manuel Pedro sai-se com a proposta genial:
"- Deita-se o fogo à casa, como se faz ao mato quando os coelhos se escondem. O Refofas armou em coelho, mas lixa-se: vai ser tratado como um coelho."
O Zé Miguel toma a dianteira do grupo, mete ombros à porta da arrecadação, não falta lenha por toda a parte, até rama de pinheiro bem seca, e aí se resolvem a preparar
a fogueira, numa enorme pira onde até deitam dois móveis encontrados na adega; tudo lhes serve para gozarem o espectáculo previsto. Só José Luís Vaz Pinto lembra
ao irmão que devem avisar o Refofas; pode ser que ele venha às boas e se disponha a prosseguir o casório até o grupo entender. O mano não está pelos ajustes, agora
ninguém o segura, mas José Luís acha que se deve oferecer ao traidor uma oportunidade para emendar a ofensa.
Zé Miguel ajuda-o a subir para a capota de um dos automóveis e o lavrador faz a proposta honrada e honrosa para o réprobo:
"-Refofas! Grande Refofas!... Ou desces em ceroilas e vens cá abaixo beber com os teus velhos e grandes amigos, ou precisas de te preparar para um salto pela janela!"
Eis que a luz se acende e surge o vulto da doutora à mesma janela a que o marido assomara momentos antes. Silenciou o grupo.
161
"-Voltem pra suas casas, meus senhores! O vosso amigo Alexandre morreu..."
E antes que a noiva explique a simbologia da morte de Alexandre Magno Guedes Sabino, defunto desde aquele dia assinalado para as truculências dos Gladiadores, o
António Caldas, forcado amador e proprietário rural, interrompe a parlenga da geóloga:
"-A gaja matou o Refofas! Quis ver-lhe a idade, o tipo tem muita enxúndia e apagou-se.
- Mostra cá o nosso amigo! - grita Zé Miguel, encarrapitado numa árvore.
- Queremos ver o Refofas! - lamuria o Caldas numa grita de carpideira."
Aí se põe a matula, em coro, a bramar a alcunha do amigo, rebatendo as sílabas:
"-Mostre o Re-fo-fas! Mostre o Re-fo-fas! Mostre o Re-fo-fas!"
Acobardado, Alexandre Magno pega na espingarda caçadeira e atroa o silêncio da noite com dois tiros seguidos; depois esconde-se, arrastando a noiva para um quarto
interior, já repeso da violência.
O grupo nem responde. Manuel Pedro toma a cabeça da vingança. Manda arrebanhar mais lenha, rega-a com gasolina e deita-lhe o fogo, enquanto os outros se dão as mãos
para um baile de roda, acompanhando-o na mesma grita rebatida. A fogueira cresce em labaredas rápidas e desfaz a dança. Corre o Caldas ao terreiro para avisar os
noivos de que se ponham a salvo. Lembrara-se que chefiava :a corporação dos bombeiros voluntários e arriscava o lugar na aventura, tanto mais que o Refofas pertencia
à direcção. Procura balde, bilha ou caneco que leve água para deixar o acontecimento na confidência, mas Manuel Pedro não lho consente.
162
"-O Refofas que venha apagá-lo com a mulher!"
O outro acaba por se meter no automóvel a caminho da vila. Tenta resolver o caso sem alarde, mas o quartel só tem o piquete e obriga-se a tocar o sino a rebate,
o que põe a terra numa balbúrdia de correrias e hipóteses. Quando o pronto-socorro chegou à quinta do Alexandre Magno, já o fogo atingira o andar de cima e já os
noivos tinham saltado para o ramo de um pinheiro manso que lhes oferecera saída, tão amedrontados ficaram, apesar de o incêndio se passar longe da escada principal.
Estrada abaixo, a matula cantava quadras ao fado.
"- E o Refofas? indaga o doutor santareno, também excitado. - Fez queixa à autoridade?
-? Fez queixa, mas retirou-a depois - esclarece o Baratinha, muito ancho por haver dado ao autor do Manual um belo capítulo. - O nosso presidente, o Dr. Carvalho
do Ó, juntou-os a todos num jantar e a coisa compôs-se. Entre amigos as zangas consertam-se.
- A doutora geóloga é que não perdoou a ofensa acrescenta o veterinário.
- Chama-lhe brutalidade...
- É minhota."
O advogado tira conclusões:
"-Ah sim, com certeza! Os minhotos nunca poderão compreender a intrepidez corajosa da alma ribatejana."
Manuel Pedro continua sorumbático.
Falar daquelas coisas, na sua opinião, é diminuí-las, tirar-lhes o mistério e a novidade. Bebe mais duas canecas, atafulha o prato com o segundo pitéu, gritam que
o obrigam a passar fome e joga-se, de propósito, para cima do Baratinha. Este baldeia com o impulso e Manuel Pedro pega-lhe em charola e leva-o para debaixo da
163

torneira, embora o das Finanças garanta que está bom, não tem importância, não lhe dói nada.
Do banho ninguém o livra, porém.
Entre a risada de convivas, o Baratinha regressa à mesa na companhia de Manuel Pedro, todo solícito, mas de ironia maldosa a brincar-lhe nos olhos velhacos.
164

OLHOS gulosos se arregalam quando chegam à mesa o chispe e a orelha de porco. Deve estar um pitéu de trinta assobios. Até cheira a pouco.
Há convivas que se levantam do lugar para acamarem o que já comeram e arranjarem espaço para o entulho do segundo prato. E os mariscos? E os queijos? E a fruta?...
Zé Miguel franqueia a porta da adega por causa do calor, o que muitos aproveitam para beber um vinho branco de Arruda, um cavalão de galope rápido. É suave na boca,
mas pincha.
O anfitrião não pára de fazer surpresa: pespega à ponta da mesa seis lagostas cozidas, inteirinhas, sem batota. Para quem gosta de amêijoas também se arranja. E
talvez mais para o fim da tarde apareça um apaparico de Alice Gilvaz, um prodígio de cozinheira, assevera o Dr. Carvalho do Ó.
Zé Miguel recebe como um príncipe, sim senhor. Para amigos, mãos rotas.
Zangarreiam a guitarra e a viola trazidas pelo advogado lísbio, fadista de fado antigo, bons tempos, Zé, bons tempos!, que pendura no rosto deslavado o sorriso brando
da saudade. Pede ré menor, cerra os olhos, que as lentes
165
grossas deformam, e começa a cantar numa voz íntima, grave, sem garganteados postiços. Não se perde uma palavra dos versos, seus, ao que confidencia o guitarrista,
enquanto os convivas acenam a cabeça ou palitam os dentes em atitudes de sonho ou ausência. Aplaudem-no e pedem bis, o violista toca variações sobre temas de viras,
corridinhos e fado, um belo almoço em boa companhia, a vida é agradável, claro que é!
O tenente Ribeiro derrete-se de calor, está um forno!, não se percebe como um corpo magro arranja tanto suor para ressumbrar. Zé Miguel senta-se à sua beira, precisa
de lhe falar num assunto importante, e ele pensa que lhe sabia bem uma cerveja com muita espuma.
"-Tem cerveja, por acaso, ó Zé Miguel?
- Cerveja?! - repete o anfitrião, perplexo, como se o apanhasse em falso. - Não, cerveja não trouxe. Mas arranja-se...
- Não sincomode, homem!
- Ora essa, por quem é! Não há, mas arranja-se. Quando há boa vontade, tudo se arranja.
- Menos remédio para a morte, Zé Miguel.
- Isso não sei, tenente Ribeiro. A morte não quer nada comigo, talvez porque lhe saiba fazer frente.
- Conhece a receita? - acrescenta ao diálogo o Dr. Leonardo.
-A receita é boa e não a paga: coragem.
- Você está como os médicos a receitarem comprimidos de analgésicos. A que chama você coragem?"
Zé Miguel responde num sorriso e deixa a mesa, preocupado com o desejo de Júlio Ribeiro. Pensa mandar o caseiro à vila, talvez peça ao José Luís que o leve de automóvel,
hesita na decisão, achando-se diminuído por não resolver prontamente o que um convidado lhe pede, e logo o tenente, de quem precisa um jeito.
266
A meditar na solução, aproxima-se do mirante superior, donde domina a estrada para a vila. Afirma a vista, vem lá qualquer vulto que lhe interessa, uma mancha que
se move; talvez seja a carroça do Augusto Moleira, pensa depois. Se tiver sorte, quer fazer a surpresa. Escapa-se por entre o vinhedo, aos saltos, quase a correr,
espreita ao portão da quinta e a mancha desaparece-lhe numa das curvas da estrada sinuosa e ensombrada.
De repente tem pressa de acudir ao convidado. O calor estorrica. Procura as bermas, alarga o passo, e na curva repara que não se enganou, anda com sorte, é mesmo
a carroça do Augusto dos pirolitos. Vem fazer a distribuição pelas tabernas da estrada e das aldeias interiores; deve trazer cerveja. Acena o braço para o carroceiro,
grita-lhe para que venha mais depressa. Não se contém depois e vai ao seu encontro.
"- Levas cerveja? - pergunta e espreita para dentro da carroça.
- Levo sete ou oito caixas.
- Fico-te com elas. O teu patrão que mande receber à garagem.
- Ó patrão Zé desculpe, mas não posso, não posso, não senhor. A cerveja é para os fregueses dos pirolitos, agora há pouca, não chega para as encomendas."
Zé Miguel irrita-se com as dúvidas do velho carroceiro, olha o cavalicoque sendeiro e malhado, magrizela. Agarra-lhe as rédeas, tira o chicote das mãos do criado
e resolve:
"-"Compro-te a cerveja e tudo o que levas dentro.
- Não pode ser, patrão Zé, tenha paciência! O material leva destino.
- Mas eu compro-to. Tu não podes recusar-te a vender o que levas aí. Se não vendes, tenho ali na quinta o
167
Sr. Tenente e o presidente da Câmara, entalo-te como açambarcador.
- O patrão Zé tem de perceber - lamuria o carroceiro.
-? O pior é que não percebo. Se tens medo que o Augusto te despeça, eu trato disso, trato de tudo; até te dou trabalho na garagem, se for preciso."
Delira, já nada o segura. Puxa pela carteira, tira duas notas de conto e entrega-as ao velho. Apetece-lhe metê-las pelos olhos dentro do carroceiro.
"-Diz ao teu patrão que lhe compro tudo: bebida, carroça e cavalo. Amanhã fazemos contas.
- Não pode ser, patrão Zé, vossemecê desgraça-me. Vossemecê desgraça um velho."
Tenta o carroceiro demovê-lo pela lamúria; quando percebe, porém, que o não comove, indigna-se, esbraceja, grita, enquanto Zé Miguel, a assobiar, pega no cavalo
pela arreata e condu-lo à mão. A sorte poe-se sempre do seu lado, pensa ainda, consegue sempre o que quer.
Mas logo de seguida lembra-se da carroça azul tracejada a amarelo, onde teve o segundo encontro com a morte. Vê o cavalo a] toda a brida, espantado, de crinas eriçadas
ao vento, o avô de pé a segurar as rédeas, querendo equilibrar-se de perna aberta, as árvores a passarem no galope da morte, a nuvem de poeira a envolvê-los, como
se o som rebatido das ferraduras a levantasse. António Seis Dedos sussurrava-lhe: "não tenhas medo, neto, não tenhas medo", agarrara-se-lhe ao braço, quisera gritar,
mas contivera-se, e depois a curva, a carroça arrastada pelo cavalo em fúria a caminho da curva, o solavanco que o atirou fora para o pó, como um farrapo, menos
ainda do que um farrapo, o olhar espantado do avô a tentar segurá-lo no ar, o velho distraíra-se, sim, bastou o momento em que quis ver o que lhe acontecia e logo
depois o fragor do embate,
168
os relinchos do cavalo e a fuga de Zé Miguel pela estrada adiante, a chorar e aos gritos.
Grita para o velho, que o seringa:
"- Não me chateies!
- Isto é um roubo, patrão Zé!- tartameleia o carroceiro, procurando segurar a carroça pelo varal.
- Se dás mais um passo ou dizes mais uma palavra..."
Puxa o chicote pelo cabo e faz zunir a correia por cima da cabeça do outro.
"- Corto-te a cara a chicote, meu filho da mãe!"
Salta de seguida para cima do assento, fustiga o cavalo num frenesi, quer vê-lo a galope, não percebe bem se para espantá-lo, se para entrar, triunfante, no terreiro
da quinta, onde os amigos já o esperam.
O Dr. Carvalho comenta:
"-É um homem das Arábias; consegue tudo o que quer.
- Às vezes faz medo" - diz alguém.
A resfolegar na subida, a pileca firma-se nos cascos das patas traseiras, esforçando-se por corresponder à voz áspera que a incita; adivinha-se-lhe o ímpeto desde
a babilha ao curvilhão, mas os músculos cedem, frouxos; harpeja na marcha, entre as mãos mete a cabeça inquieta, tem os joelhos coroados pelas quedas. Move-se penosamente,
dando à garupa derreada.
Zé Miguel bate-lhe com o cabo do chicote, mal atingem o terreno plano da quinta; aí o penco sendeiro abre as patas para andadura mais ligeira, embora se babe e espirre.
"- Parece uma capona! - grita Manuel Pedro na brincadeira.
- Se o cavalo fosse teu, comprava-o para tourear
- graceja José Luís, de quem se conhece a fuga de
169
uma praça, quando pela porta lhe saiu um toirão de cornos em lira. - Palavra dhonra, ó Zé!
- Pois é meu. Por muito que se admirem, a pileca é minha. Comprei tudo: pileca, carroça e bebida."
Volta-se para o tenente de chapéu na mão:
"-Aqui tem as cervejas, meu tenente! Nesta casa
o senhor dá ordens.
-Muito bem! Muito bem! - aplaude o advogado
fadista.
- Vendo o penco e a carroça a quem der mais. Abro o leilão com quinhentos mil réis. O dinheiro que se apurar é prós pobres da Câmara.
- Obrigado, Zé Miguel! - intervém o Dr. Carvalho do Ó. - Você é um homem às direitas."
Ordena ao caseiro que descarregue as caixas; manda-as pôr à volta da mesa, para que os. amigos não se incomodem. Depois explica o leilão aos convivas: abre com quinhentos
mil réis e irá baixando como nas lotas do peixe; quem quiser arrematar só precisará de dizer chui.
"- Abra com um conto, Zé Miguel! - recomenda o Dr. Casquilho do Vale - Cavalo e carroça valem uma nota, com certeza.
- Valem, sim senhor - confirma o veterinário, já de grão na asa e modos gozões. - Se houvesse toiros de morte em Portugal, a pileca valia uma nota de cem. Assim
pode servir para uma estátua à sornice. Uma estátua por um conto é barato, é quase dado."
Trocamdo-se ditos e gargalhadas na santa paz dos bons espíritos.
Zé Miguel inicia os lances do leilão e nos seiscentos e vinte escudos ouve-se um chui. Todos olham à volta. Manuel Pedro avança para o leiloeiro com uma nota de
conto na mão e compõe a oferta:
"-? Dou um conto de réis pelo cavalo e pela carroça.
170
-- Dás conto e meio - rectifica o anfitrião. - Só leiloei o cavalo; à carroça faço eu o preço.
-? Assim manda o direito.
- O direito aqui não entra, Sr. Doutor. Os negócios entre mim e o Zé não precisam de advogado; a gente cá se entende. A bem ou à porrada a gente entende-se."
Manuel Pedro enjorcou-se contra o pedido do amigo; o vinho atravessou-se-lhe na alma e começa a bulir-lhe na crueldade do sangue. Só a presença das autoridades o
refreia. Percebe que lhes está na mão, teme complicações, mas espreita oportunidade para brincar com o veterinário e molestá-lo. Zé Miguel puxa-o e fala-lhe à parte,
mansamente, lembrando a presença do advogado de Santarém, homem influente na alta política. O filho mais novo do Lavrador das Moças retempera-se por instantes, embora
contrafeito, e vira-se para a cerveja.
Abafa. A sombra das árvores não abranda o caloraço da brisa.
Uma súbita tristeza invade Zé Miguel ao olhar para a carroça. Lembra-se agora do filho. Podia tê-lo ali consigo, se não fossem os dois tiros que se ouviram em casa
naquela tarde, quando o Rui Miguel ficou na saleta depois de conversarem.
Pensa na morte. A morte aproxima-se dele sempre dentro de um carro; já lhe marca encontro muitas vezes: em criança, no carro pequeno do segeiro, depois na carroça
com o avô; vezes sem conta nas estradas do peixe, principalmente na noite em que o António Espanhol veio a persegui-lo, quando lhe venceu o braço esquerdo e a camioneta
da viúva partiu primeiro de Peniche. Nessa noite sentiu medo. Não o confessou a ninguém, mas sentiu-o dentro de si a agarrá-lo.
Agora ali à frente dos seus olhos, dos mesmos que viram a camioneta do Espanhol pelo espelho do retrovisor,
171
quase em cima dele, talvez para o atirar para um dos abismos das curvas de Montejunto, e ele deu uma guinada ao volante para lhe cortar a fuga, só ouviu os ganidos
da derrapagem, os ganidos dos travões, e um grito antes do choque do António Espanhol com a árvore, como se a terra se abrisse numa fenda, ou a morte se pusesse
entre os dois para desafiá-los na curva da estrada.
Sorna, derrancado, o cavalo zambro come a ração que o caseiro lhe pôs à frente na alcofa. De vez em quando move a cabeça, as campainhas tilintam, tilintam e recordam
a guiseira do cavalo que lhe matou o avô.
Não está bêbedo, ainda não, mas começa a ter ideias( de embriagado. Talvez remorsos de qualquer coisa ou de muita coisa que fiz e de que nunca precisei de dar conta
ou de que fingi não dar conta para, afinal, chegar a isto.
A guizeira do cavalo não deixa de soar. Enerva-o.
Deseja ficar só, não se compreende; arranjou o almoço para obsequiar os amigos e fugir à solidão de casa, onde a mulher vagueia como um fantasma em certos dias,
e agora sente necessidade de ficar sozinho, não entende porquê, nem vale a pena descobrir.
Mete-se por um dos carreiros da quinta, a fugir à convivência (ou a afastar-se da carroça?), alarga o passo, quase se precipita a correr, há a imagem do cavalo entre
ele e os amigos, cujo vozear lhe atira uma ponta de presença humana, espécie de corda a que- se agarra.
Arrepende-se e estaca, nunca foi poltrão, não o vai ser agora por uma doideira. Vibra-lhe o sangue por debaixo da pele e dentro das veias. Julga-as inchadas, tensas;
afaga as mãos uma na outra, depois leva a esquerda ao rosto e esfrega o queixo e a boca. Precisa de se dominar. Repara nos cachos das videiras, aproxima-se, toca
nas folhas polvilhadas de azul do tratamento ao míldio, acaçapa-se, deslumbra-se com um grande cacho de uvas brancas, ainda
172
verdoengas, e pega-lhe carinhosamente. Tira um bago que trinca, a boca amarga-lhe, mas a calma regressa, sente-a regressar, tímida, prova outra uva mais tostada
e respira fundo, aliviado, como se rompesse a carapaça de um túnel descido sobre si para o abafar.
É nesse momento que o penco relincha lá em cima. Sobressalta-se.
O som atordoa-o, solta-lhe novamente os nervos, volta a sentir necessidade de fugir, mas consegue deter-se, está parvo ou doido, precisa de reagir - não vai parecer
um cagarola com medo de quê?, afinal de quê?!...
Vêem-no aparecer no terreiro da quinta, arrancar a alcofa da frente do cavalo e saltar para cima da carroça. Faz-se um silêncio. Pela expressão do seu rosto até
os bêbedos percebem que algo de estranho se passou. Empunha o chicote, sem olhar para os amigos, pega nas rédeas, começa a espancar a anca náfega da pileca, incita-a
também com a voz; a carroça parte pelo caminho que circunda a parte mais elevada da quinta, à beira da ravina onde existe um areeiro abandonado. Zé Miguel fustiga
o cavalo, olhando-lhe as orelhas e o lombo, vê as crinas eriçarem-se e larga-lhe ainda mais as rédeas enquanto lhe espanca a garupa.
Não escuta o alarido que fica atrás de si.
Só ouve a sua voz irada, não, nunca tive medo, nunca, aproxima-se da curva, o cavalo sendeiro já galopa, as rodas derrapam no macadame, puxa o freio de frente para
a ravina, está perto, perto, o cavalo afocinha, ele salta pela traseira, mas tropeça no taipal e cai.
O cavalo relincha de vez em quando, por entre os ruídos da carroça que trambulha aos poucos e se desfaz pelo declive cortado na vertente do monte.
173

POR detrás dos vidros do quarto, a mulher de Miguel Rico espera-o, assustada.
Já sabe o que se passou na quinta com a carroça e o cavalo, disse-lho a vizinha de cima - as coisas ruins espalham-se depressa.
A vila está cheia. Cada qual deve compor a novidade ao seu modo, mais para a banda do mal, pensa Alice Gilvaz, porque o marido anda carregado de invejas, já lho
garantiram três bruxas, não tanto por haver agenciado uma boa fortuna, como por ser amigo de pessoas importantes, gente de doutoria e senhoria, graças a Deus!
Garantiram-lhe que o seu Zé nada sofrera, nem uma beliscadura, mas receia o pior. Anda de uma janela para a outra, afasta a cortina, sempre a do lado direito, percorre
a rua com o olhar, desde a esquina até à porta, já julgou algumas vezes que ele vinha lá, enganou-se, inventa-o em todos os vultos parecidos à feição do seu corpo.
Depois deixa-se ficar, distraída, a passar a mão fria pela. testa que escalda.
Treme-lhe o corpo; deve ter uma ponta de febre. Ou o pressentimento de que um dia ficará só no mundo, o que lhe acontece frequentemente depois da morte do filho.
174
Agora receia a felicidade; parece-lhe que a deverá pagar em desgostos profundos, como se o destino, despeitado, quisesse castigar-lhe a riqueza, lembrando a sua
origem de criada do Sr. Rui Diogo. Foi daí que se pegou de namoro com o Zé Miguel, quando ele ia à quinta receber ordens para os fretes da sua primeira camioneta.
Passaram quase vinte anos.
De princípio até embirrava com ele, por causa do seu ar metediço, sempre sorrisos para as mulheres, carinha nágua e conversa atravessada, como se falasse para as
varinas, umas desvergonhadas de língua; percebia-se logo que andara ensarilhado com essa gente durante um ror de tempo. Mas para a banda dela ia mal, disse-lhe um
dia, quando o seu Zé a quis puxar à força para a roda do baile na festa do Senhor da Boa Morte, julgando talvez que bastava vestirem-se saias para que tudo fosse
gado de comer à mão do maioral. Ele engolira um palavrão que lhe subiu aos olhos, virou-lhe costas, num abanão malcriado de ombros, e aí foi, Sialtarino, acamiarador
no baile do varinal, donde regressou pingado e travesso. Deu-lhe depois a veneta para comprar o tabuleiro de bolos a uma mulher, mandando-lho entregar sem um recado.
Quando recorda o acontecimento, ainda lhe dá vontade de rir a cara dele, zonzo de todo, ao vê-la distribuir os maços de queijadas, as pinhas de mel! e amêndoa, os
bolos de canela e as pranchinhas de gergelim a quem lhe passava perto; aos que agradeciam e indagavam da razão do bodo, Alice Gilvaz, matreira, apontava o Zé Miguel
e explicava que ele fizera aquela promessa ao Senhor, se crescesse mais dois dedos. Mas nem sequer um nico de bolo levou à boca, para que o tolo entendesse de uma
vez a sua arrelia para com ele.
175
Andaram naquilo muitos meses, a escoicinhar, como o Zé Miguel lhe disse mais tarde, quando se começaram a falar ao portão da quinta.
Eram os dois de forma torta; e ainda bem, porque o amor deve ser suado e contrariado para que se lhe veja o fundo nas águas claras. Mais tempo gastaram no arranhão
do que no sape-sape, porque em menos de seis meses se puseram lado a lado no altar da igreja de Aldebarã, apadrinhados, na parte dela, pela menina Blé e o noivo
conde, bonito rapaz que ninguém julgaria bêbedo e arruaceiro, capaz de sovar a filha do Sr. Rui Diogo com a mesma fúria de qualquer homem sem princípios. Os fins
dele todos perceberam, ao espatifar em menos de dois "anos o dote da menina Blé, abandonando-a em Madrid sem uma jóia. Dizia-se no palácio que o valdevinos mandara
carta ao sogro a explicar a razão do seu acto: que a descobrira muito prendada em hábitos licenciosos e que seria melhor passá-la ao mestre de artes tão sábias,
dando-lhe a roer o osso donde esburgara a carne.
Rui Relvas, o Saca-Rolhas, enfiou de comboio para Madrid, mais em busca do genro do que da filha, mas trouxe-a sem marido, porque do conde só colheu notícias de
má pinta.
Alice Gilvaz recorda o sucedido, talvez para se compensar dos seus próprios desgostos. Pensa que todos os homens são uns aquece-camas sem tino, embora deite culpas
a certas mulheres, piores do que ratas sábias, sempre prontas a servirem-se da doideira deles.
Fala por si. O marido não lhe dá sossego por esse lado. Conhece-lhe mais amigas do que de meses tem o ano; algumas ao pé da porta, como essa descarada do Bairro
das Virtudes, a quem procurou, já grávida do seu Rui Miguel. Ainda hoje cora ao lembrar a resposta escarninha da malvada.
176
Coloca a mão direita sobre o coração, procura a pancada, mais acima, mais ao lado, e descobre-a, por fim, a bater de mansinho, muita sumida na carne balofa do seio
doente. Depois estremece, como se os momentos em que se preocupa consigo lhe faltem para acompanhar o seu homem a casa.
A criada aparece para lhe comunicar que já acabou o guisado, se pode ir buscar o vinho; àquela hora arranja sempre o mesmo pretexto para se atrelar a um marujo com
o qual namora pelos cantos e lhe toma a maior parte da mesada. Não, não a deixa ir, tem medo de ficar sozinha em casa. Nem quer lembrar o que sofre aos domingos
quando a rapariga sai de tarde e se obriga a pespegar-se à janela, de rosto encostado aos vidros, à espera do seu regresso ou do marido.
Ouve os dois tiros na saleta, pressente a verdade, toma-lhe medo e não sai da cozinha, para onde o marido a mandou. O silêncio da casa, de repente afundada num pego,
foi a ideia que teve, apavora-a. Incapaz de se mover, de perguntar qualquer coisa, de dar um grito, embora não percebesse o que exactamente acontecera quase ao seu
lado, depois de ouvir a voz irada do marido a ralhar com o filho.
Sabia do que falavam. Infelizmente, Zé Miguel acusara-a de culpas no acontecido: tratara o rapaz como menina, vestira-o até aos 3 anos de rapariga, não o deixava
sair de casa sem companhia, a pretexto de que era fraco. Sim, fraco. Acabaram por metê-lo na Escola Agrícola de Santarém para fazerem dele um homem.
Um dia o director chamou o marido pelo telefone, ficou inquieta, o que seria? À noite regressaram os dois, calados, distantes um do outro; o seu Zé não consentiu
que o filho jantasse ao mesmo tempo do que ele, nunca lhe vira os olhos tão turvos e maus, e obrigara-a a comer
177
consigo, sempre de cabeça baixa. A cicatriz da testa pusera-se mais vermelha e mexia-se de vez em quando; também de vez em quando ele cerrava os punhos num sinal
de desespero, batendo-os no tampo da mesa, ora um, ora o outro, até que os abria para levar os dedos ao rosto, como se precisasse de escondê-lo de alguém ou da luz
do candeeiro de braços.
Perguntou-lhe:
"- Aconteceu alguma coisa com o Rui ?
- Aconteceu tudo...
- Tudo o quê?!
- Tudo o que eu esperava.
- Mas o quê?!
- Não é de tua conta.
- Sou mãe...
- Melhor seria que o não fosses. - E num grito:
- Melhor seria que o não tivesses trazido dentro de ti. Ou que o não estragasses, como fizeste. Querias uma rapariga... Até o ensinaste a coser.
- Mas o que foi?!...
- Aí tens o que querias. Mas não se fala nisso nem mais uma vez. Mandas a criada embora, para que ela não perceba; já chega a vergonha da escola. Antes queria que
me escarrassem a cara toda, os olhos, a boca..."
E calara-se depois quando a voz se lhe rompeu e apertou a cabeça nas mãos para soluçar aos ganidos, já de pé, como um cão a uivar. Ela não queria, não, não queria
perceber.
Depois o seu Zé enxugou os olhos e a voz ficou áspera e dura:
"-Ele passa a viver no sótão; nunca mais o quero encontrar aqui em baixo. Quando isso acontecer, nunca mais volto a esta casa. E não sai à rua. Por nada... Aconteça
o que acontecer. Mesmo que a casa arda."
178
Reconhece os passos do marido na rua. Sem perceber porquê, sente medo. Um medo confuso que a magoa. Encosta a testa ao vidro, roça-a devagar pela superfície lisa
e fria e fica à espera do o sentir meter a chave à porta.
O tempo prolonga-se.
Depois volta a escutar-lhe os passos na rua, mais apressados, e vê que ele caminha na direcção oposta à que trazia. Então abre a janela, chama-o, quer ouvir da sua
boca o que sucedeu, mas ele continua a andar. Assusta-se.
"-Zé! Zé Miguel! O jantar está pronto!... Onde vais?!...
- Até à garagem.
- Demoras?
-Não mapetece jantar. Come e deita-te. Não esperes.
- Estás bem?
- Estou!"
Zé Miguel caminha ao acaso, na noite, à procura da escuridão, que lhe parece acolhedora, como se regressasse ao ventre da mãe, para aí repousar da fadiga das emoções
daquela tarde. Está cansado de ouvir pessoas; por isso voltou atrás depois de ter começado a subir as escadas. Desagradam-lhe os próprios passos no empedrado da
rua, sente-os repercutirem-se dentro de si, martelados e agrestes, como se se deslocasse dentro de uma bola de pedra em que alguém batesse.
Do lado do Tejo vem aragem branda.
Respira fundo e sorri-lhe, agradecido, mas depois alarga o passo para a sentir mais de perto, não vá fugir antes de lá chegar. Lá, para ele, é o esteiro, onde talvez
haja dois ou três barcos amarrados, de velas recolhidas, cada qual com um cão que lhe irá ladrar, se se aproximar demasiado. Não leva essa intenção; prefere ficar
de longe, deitado na erva ainda morna da soalheira do dia, cortar-lhe uma ponta mais seca e mordê-la, como fazia no seu
179
tempo de anojeiro. Precisa do passado para se sentir vivo, embora tenha atirado com a carroça da morte pela ravina da quinta.
Fica para ele o mistério dessa temeridade que os outros levam à conta de diabrura do seu temperamento arrebatado. Dera até uma explicação, percebendo que alguns
dos convivas ficaram chocados:
"-O cavalo tomou o freio nos dentes, não lhe tive mão nas rédeas; foi um milagre safar-me. Já doutra vez, era eu rapaz, outro cavalo fez o mesmo ao meu avô António
Seis Dedos. Eu escapei, ainda não percebo como, mas o meu avô pagou o patau."
Manuel Pedro duvidou da versão. Juntou-se ao irmão dentro da adega, não esteve a perder-se em rodeios e afiançou-lhe que bem o vira puxar o penco de frente para
o areeiro. Só não percebia a razão da maluca lhe dar para aquilo, arriscando-se a morrer. Zé Miguel sente-se admirado pelos Cavaleiros do Apocalipse e fica ancho;
precisa de inventar qualquer coisa para os impressionar ainda mais.
"- Vocês sabem que gosto de cavalos desde rapaz. Por isso mesmo, não posso ver um cavalo velho, cheio de feridas, a morrer aos bocados. Custa-me, carago! Um homem,
se os tem no seu lugar quando a vida o lixa, arruma-se ao seu modo. Já um animal precisa que a gente se compadeça dele para o livrar do que não merece. Foi o que
eu fiz à pileca. Pensei logo em acabar-lhe com o penar, mal saltei para cima da carroça. E cá estou! Fiz a minha obrigação."
Atinge iagora o extremo da vila já mal iluminado, enquanto recorda o que disse aos outros. A esta hora todos falam de si pelos cafés, tem a certeza; Manuel Pedro
e o irmão encarregaram-se de relatar o que se passou e a
180
explicação que lhes deu, acrescentando algumas achegas de sua conta.
Ninguém suspeitará deste seu passeio solitário a caminho do Tejo. Não o conhecem. Um homem desconhece-se a si próprio muitas vezes, até ir descobrindo, de vez em
quando, o que se esconde dentro dele e o abisma, o ultrapassa ou compromete e diminui. Neste momento, Zé Miguel reencontra o fim do pesadelo que tivera em criança,
quando a morte aceitara o seu desafio e viera lutar consigo em cima de uma carroça. Subitamente, foi o que lhe ocorreu ao ver o cavalo parado no terreiro da quinta,
como se a morte estivesse a repousar para ganhar novas forças.
Embora a reconheça presente por toda a parte, e talvez por isso, a presunção satisfaz-se quando há pouco a defrontou mais uma vez, dando-lhe prova de que a não teme.
Ou de que precisou senti-la ainda mais perto, para ela lhe deitar a mão se o quisesse.
De qualquer modo, começa a ficar mais calmo. Atravessa a linha de caminho de ferro, distingue vozes para as bandas do rio e do esteiro, vozes que explodem no silêncio
e parecem abrir na escuridão breves focos de luz baça. Busca-os no ar e quase tropeça num vulto que passa a correr. Sobressalta-se. Pára junto de uma árvore a seguir
a corrida do homem, deve ser barqueiro ou pescador, vai descalço, não lhe ouve os passos, e depois continua a caminhar ao acaso pela noite dentro.
Não se estende na erva. Já esqueceu quanto pensara fazer. Basta-lhe sentir-se vivo e saber que possui ainda mais do que sonhara em menino. Falta-lhe ter lavoira
na Lezíria, mas não duvida que também chegará até aí. Dispõe de dinheiro e de crédito, os seus carros percorrem em liberdade as estradas vigiadas, não carece de
amigos onde precisa, sabe como ganhá-los e mantê-los, a guerra continuará
181
por muito tempo e a guerra exige certos homens decididos como ele, mesmo em países de paz aparente.
Está rico.
Não tem herdeiro, paciência! Podia ainda arranjar outro filho, mas receia repetir o desgosto. A vida faltou-lhe nesse aspecto, deu-lhe um coice rijo, daqueles de
fazer cair qualquer homem de têmpera. Aguentou-se, tinha de se aguentar, mesmo que sangre dentro de si. Desde o dia em que o director da escola lhe disse a verdade,
ficou diferente, embora talvez não o perceba.
Caminha agora mais depressa sem se dar conta. Fala sozinho e diz algumas palavras em voz alta, como se precisasse de esbeiçar a ferida à navalha. Atemoriza-se depois
dentro do silêncio onde se escondeu, resolve regressar à vila ou fá-lo sem premeditação, solicitado pelas luzes que o chamam.
Precisa do passado para se sentir vivo.
Em tropel, vêm-lhe recordações encadeadas; não entende por que motivo a memória elege aquelas e não outras, se tantas lhe pertencem, várias, que o levam a recuar
para as profundezas da infância e da adolescência. O marulhar do Tejo no lamaçal da margem rasa, fá-lo pensar na Rosinda e na Iria, no António Espanhol e no Fragatinha,
o arrais que quisera fugir-lhe com uma carga de contrabando.
Nessa mesma noite, já tarde, entra na garagem dos caminhões da sua frota, mal fala ao guarda, e vai sentar-se na cabina da primeira camioneta que tivera em seu nome.
Sabe-lhe bem agarrar o volante, :apertá-lo nas mãos como fazia, mais com a direita, enquanto a esquerda agarrava no cigarro quando não precisava de meter as mudanças.
(Agora passaram o volante para o lado oposto, há falta de gasolina e de pneus, vão forçar alguns carros a meter gasogéneo, já lhe disse um amigo da polícia de
182
trânsito.) A um canto superior da cabina, ainda a apanhar um bocado do vidro do pára-brisas, continua a fotografia a cores da actriz de cinema que elegera para acompanhá-lo
nas viagens.
A invocação enternece-o. Andara apaixonado por essa mulher de enormes olhos cinzentos, líquidos, que o obrigara a chorar também quando os vira purificados de lágrimas
numa cena de amor, junto de um mar embalado pelo seu adeus ansioso. Saía sempre com ela do cinema, lado a lado, até ambos se deitarem na tarimba do armazém de peixe
da amante. Quantas vezes ela lhe fechara os olhos e lhos abrira! Quantas vezes lá em cima, na cama da viúva, a prendeu nos braços e lhe bebeu a boca!
Sorri da sua ingenuidade de então. Deixara-a adormecida dentro de si, quase a esquecera, e agora tudo se lhe reimprimia na imaginação, levando-o de viagem para o
passado, onde ainda não existem dois tiros na angústia da casa.
Também ela lhe sorri, talvez num desabrochar de mágoa por alguém. Antes nunca admitira haver tristeza nesse sorriso. Toca-lhe com a mão e apercebe-se que esta lhe
treme levemente, mais na ponta dos dedos; revira-a, volta-a para si, demora-se a ver as linhas da palma da mão, onde as ciganas lhe lêem dinheiro, amor, um corte
repentino na vida, o que será?, mas se passar esse perigo há-de viver até aos 80 anos rodeado de netos.
Amarga-lhe a hipótese absurda dos netos. Nunca os conhecerá. De repente sente-se só; chama o guarda da garagem pela portinhola da cabina. Precisa de lhe falar. O
Alheias, pequenino e velho, corre desajeitado a dar aos braços, e fita-o lá de baixo, à espera. Zé Miguel estende a mão para lhe tocar no ombro.
"-O meu carro tem gasolina?
183
- O depósito cheio, sempre cheio, como o patrão Zé manda fazer. Está pronto a sair."
Andaram muitos anos juntos naquela mesma cabina. O Alheias como seu ajudante, já preso à condição de pobre diabo, bebedolas e manhoso, sem família e sem tino.
"- Lembras-te daquela madrugada em que vínhamos de Espanha e adormeci na curva?
- Gaita, não, se não me lembro! Se não havia de me lembrar!... Vi a coisa preta.
- Há perto de trinta horas que não fechava meio olho, sempre agarrado a esta coisa. Bons tempos, pá, bons tempos!
- Foste sempre muito rijo, carago! Dava gosto ver-te agarrado a isso.
- Estes gajos agora levam boa vida. Recebem horas extraordinárias e nunca andam satisfeitos. Eu nunca recebi meio tostão da varina.
- Recebeste coisas melhores, patrão Zé! A viúva era uma grande ferramenta. Tinha-la ali prà vida e prà morte. Foi a mulher que mais gostou de ti até hoje. Devia
ser uma guitarra de estalo!"
Zé Miguel delicia-se a escutar o velho companheiro das estradas. Oferece-lhe uma cigarrilha e fumam. "-Mulheres não faltam...
- Já eu não posso dizer o mesmo, patrão Zé. Antes de ficar velho a minha sina estava marcada. Só cacei trongas toda a vida.
- Deste sempre mais tempo ao vinho. As mulheres precisam de tempo como as searas e as éguas. Tempo e canseira. Tudo o que é bom, leva tempo.
- Lá isso é verdade! Fui sempre um apressado em todas as coisas.
- Mas nessa madrugada salvaste-me a vida. Foi só um toque no volante e eu acordei. Fiquei frio quando vi a
184
ribanceira por ali abaixo; não se aproveitava um osso à gente para contentar um cão farto de comer."
Entra para o carro, põe-se em mangas de camisa e arregaça-se. O Alheias dá uma gargalhada curta.
"- Nunca guiaste senão de mangas arregaçadas. Nem que o frio estalasse, não davas outro jeito ao volante.
-? Parece-me que assim fico mais seguro."
Liga o motor, que deixa a trabalhar, enquanto procura a camurça para limpar o pára-brisas pela parte de dentro. Minucioso, o Alheias pega no regador da água e despeja
uma golada para dentro do radiador, que bolsa uma parte do líquido.
"-Como vês... tudo afinado.
- Gostas mais de motores do que de ti. Foste sempre um grande ajudante, velho camarada.
- Agora já não sou teu camarada, patrão Zé.
- Sou o mesmo.
-? Isso não, já não és o Zé Miguel desse tempo. Chamam-te Miguel Rico, os teus amigos são burgueses...
- Preciso deles; servem-me.
- Ou eles se servem de ti. Mas não te confies muito.
- Sei manobrar...
- Ainda bem. Apesar de já não seres o mesmo, gosto de ti como nos nossos tempos da rapaziada. Muito papel a gente deixou por essas estradas fora!...
- Não se adiantou.
- Tu o disseste há bocado: tudo o que é bom leva tempo.
-? Se a coisa vier, cá estou ao lado da rapaziada. Continuo o mesmo, velho camarada. Agora ajudo com dinheiro..
- É qualquer coisa. Nada se faz sem dinheiro.
- E mais do que pensas...
- Ainda bem, patrão Zé."
185
Desembraia, mete a primeira e desenha uma curva dentro da garagem até ficar com o carro virado de frente para a porta de saída. Acelera o motor, põe o ouvido à escuta,
parece-lhe que sente uma grilada, mas o exame satisfá-lo e arranca. Alheias leva a mão ao boné.
Quando faz o carro virar para a direita, ainda não decidiu o passeio. Vai ao acaso. Aquela hora não pode agarrar na Maria Laurinda, a sua amante de Lisboa, a menos
que se disponha a andar com o marido. Mas até para isso é tarde. Faltam sete minutos para as dez.
Não, não lhe apetece Lisboa. Sem companhia não consegue distrair-se e não se dispõe a arrebanhar quatro ou cinco penduras no café, a quem pagará a conta da despesa.
Devagar, sem premeditação, conduz o automóvel para a estrada de Peniche. Deixa-se deslizar entre os trinta e os quarenta, num embalo inconsciente. Só acelera um
pouco na ladeira da saída da vila, gozando a oscilação suave das curvas encadeadas, a caminho dos montes que as trevas apertam.
Recosta-se bem sobre o seu lado, liga o aparelho de rádio, passa por diversos postos em amálgama de melodias e vozes, fixa-se por instantes numa marcha militar,
mas prevê noticiário da guerra e acaba por fechá-lo bruscamente.
O perfume dos vinhedos escorre dos montes por onde a estrada passa. Descobre-lhes manchas de cor quando aponta os faróis nos máximos; acaba por inventar uma forma
de se entreter, jogando com as luzes. Numa curva apanha um vulto que fica negro no centro do círculo branco do feixe, tenta reencontrá-lo pelo retrovisor, mas mal
o define e logo o perde nas trevas abandonadas pela erupção rápida do clarão violento dos faróis.
Julga-se dono de seis bolas brancas, irrequietas e dominadas pela biqueira do sapato esquerdo quando movimenta
186
as luzes; combina-as dos máximos para os mínimos, brinca com elas, desfá-las, atira-as de encontro aos muros ou sobre as árvores, e tem a sensação de que elas batem
nos obstáculos e voltam para si, divertidas também, a lamberem ou a perfurarem a noite no rasto pálido ou esplendoroso do movimento.
Já no cimo da ladeira, pára o carro para ver o luzeiro da vila. Apaga os faróis e aconchega-se de novo na escuridão, como se regressasse ao ventre da mãe. A ideia
perturba-o num lampejo rápido. Olha à sua volta, desconfiado não sabe de quê. Depois tenta afastar a preocupação desse enigma súbito, atira o olhar pelas vertentes
da escuridão e descobre o leito do Tejo, adivinha-o. Quando se fatiga, vem até ao monte onde a estrada passa, como se saltitasse de foco em foco.
Na recta do Cabo, lá longe, surgem então dois faróis a traspassarem o negrume da noite e parecem não se mover durante muito tempo, agarrados aos feixes de luz que
projectam. Irreflectido, manobra o automóvel até à berma da estrada e de frente para o casario da vila.
As trevas envolvem-no. Cerra os olhos para as adensar ainda mais. Em que pensa? Lembra-se do filho à sua frente, vencido e humilhado por ele, retesa os músculos,
aperta os punhos até as mãos lhe doerem e descarrega a esquerda sobre a porta, talvez para quebrar o remorso que sente a miná-lo. Pensa ter cumprido o seu dever
para com os dois; acha que o destino o quis vexar e que fez bem em não consentir a continuação do ultraje.
Fala em voz baixa: que mal fiz eu?, porquê?, porque?!...
Sente-se amputado a partir desse dia. Ferido, rasgado por dentro numa úlcera que não sara, embora não pudesse evitar os dois tiros, o médico disse dois tiros depois
da autópsia, o juiz mandou-me chamar e quis saber o que se
187
passara, e eu disse que não fazia ideia, não deitei uma lágrima, mas estalava dentro de mim, numa dor danada que não a quero para o meu maior inimigo; é assim uma
maneira de falar nas coisas, porque nesta altura eu gostava que cada um desses gajos sentisse uma dor igual à minha, de rebentar um homem até ao fundo mais fundo
de si. Angustia-se ao pensar que está encerrado na noite; pisa o pedal das luzes até aos máximos e só depois abre os olhos.
Fica no ar uma estrada branca, suspensa, a formigar em partículas de areia grada e lívida, que freme sobre o abismo, numa ponte irreal por onde lhe apetece fugir
descalço até à pequena mata de eucaliptos desvendada no limite da luz.
Atordoados, os podengos dos casais ladram em fúria àquele estranho luar de uma alvura fria. Os dois feixes dos faróis separam a noite por um caminho de mágoa.
"-Que mal fiz, carago?"
Salta para fora do carro, corre para uma árvore, talvez uma oliveira, agarra num ramo ao acaso, puxa-o, puxa-o e torce-o, acaba por quebrá-lo; quando o tem entre
as mãos, pensa partir os vidros, como se batesse nele próprio, fustigar-se; parece embriagado pela raiva de se sentir só. Golpeia a noite ao acaso. Por fim toca
na árvore donde arrancou o ramo e aí o desfaz até ficar exausto, a arfar.
Regressa ao carro num cambaleio que ele próprio exagera. Voo, não me deixei pisar pela dor e ali mesmo resolvi abalar. Só nesse momento tem a consciência de que
meteu pela sua antiga estrada do peixe.
Foi bom, admite, voltar aos caminhos do passado, quando ainda só vivia para a ambição de abandonar os companheiros da camionagem.
Apaga as luzes de todo e a paisagem mergulha no silêncio interrogado das trevas. Maneja o volante e as
188
mudanças, sente pressa de chegar a um sítio, lembrara-se de um sítio para visitar, e o automóvel arranca quase de um salto brusco, num ganido longo pela fricção
dos pneus no macadame.
Tenso, exalta-se com a velocidade que prime sob o pé direito. Julga-se muitos anos atrás a medir forças a braço, certa madrugada em que venceu o António Espanhol.
É dele que se recorda no meio da embriaguez da vertigem. Nesta noite precisa de se meter pelo passado dentro, à doida, como se quisesse descobrir algum mistério
dentro de si.
Precisa de ir ver a árvore onde o outro chocou quando quis abalroá-lo numa curva. Mesmo de noite sabe o sítio. Está a vê-lo. Pode lá chegar de olhos fechados.
189

TAMBÉM hoje conhece outro sítio para o encontro depois das oito - já o adiou por uma hora e não tem consciência disso.
Escolheu o local minuciosamente, entre muitos que existem por toda a estrada. Calculou a manobra em pormenor, quase de relógio na mão, momento a momento, distância,
velocidade, guinada curta no volante, e o muro branco, muito branco, caiado de novo: o resto ficará ao sabor do acaso.
Daqui por uma hora meterá o Ferrari na serpente de fogo.
Uma serpente negra transformada em fogo, à noite, toda a noite, como se Lisboa vomitasse e recolhesse a lava de um vulcão aceso pela demência. Devora quilómetros,
consome esperanças, traga vidas, não tem importância, morre gente por toda a parte, a rapariga desgostosa com soporíferos, seis homens numas rajadas de metralhadora,
o rei ou o presidente de república de inacção ou de cancro, a velha de um salto premeditado no saguão, a criança de estrangulamento ou enterite, o boxeur de um soco
na cabeça ou o camponês de um coice de burro, formigas regadas com água, homens tontos regados com
190
vinho, mulheres e crianças regadas a napal, e andam todos com muita sorte porque ainda não abriram os arsenais das bombas limpas de hidrogénio, capazes de regar
a Terra inteira, evitando que se morra de morte macaca ou de estupidez e resignação, de maneira a tirar aos jornalistas, num só golpe, a tarefa aborrecida do banal
caso de rua, enfadonho e acontecido ao duplicador das coisas sem história. Nos cais os guindastes desembarcam caminhões de dez toneladas, de quinze toneladas, de
vinte toneladas, automóveis de sessenta, oitenta, cem, duzentos, quatrocentos contos, petróleo em rama, gasolina e pneus e óleos, e mais peças para substituir as
que se gastam ou partem num acidente, porque uma fábrica de automóveis e caminhões não exporta carros para durarem muito tempo, basta aguentarem dezoito meses, o
tempo que levam a pagar, se se pagam, pois as pessoas precisam de apurar a caligrafia da assinatura e as letras têm vários espaços para as pessoas escreverem o nome;
assim as pessoas ilustram-se e não esquecem o nome. E como se precisa de chegar depressa, cada vez mais depressa, os ciclones de metal, plástico e borracha voam
em vertigem, em ritmo trepidante e maluco, a oitenta, cem, cento e cinquenta quilómetros à hora, para levarem depressa, cada vez mais depressa, cascas de alhos,
máquinas bestialmente exactas, ou uma rapariga que adora velocidades e vem de carro, clandestina, às escondidas do marido ou da família, ou talvez todos saibam para
onde ela foi com o senhor do automóvel. My love, assusta-me esse saloio, passa-lhe uma tangente. E se a estrada se atravanca com a carripana do campónio ou o rebanho
de carneiros que andam na estrada como há duzentos anos, contrai-se a fita de milhões de contos, a marcha abranda, que chatice!, e os carros empurram-se uns aos
outros para além das bermas, viram-se nas curvas, incendeiam-se, galgam abismos, atropelam
191
ciclistas, matam peões, e depois fogem, fogem depressa, cada vez mais depressa, porque a hora não é de quem toma responsabilidades, mas de quem chega depressa a
qualquer parte.
À beira da estrada, o camponês continua a fossangar na terra e a carregar, de madrugada, a carroça que a pileca zambra arrasta para os mercados de Lisboa.
Os guindastes desembarcam caminhões de sete toneladas, de dez toneladas, de vinte toneladas, muitos H. P., travões às quatro rodas, cabinas de repouso, reboques,
e os caminhões e os automóveis compram-se por letras, hipotecam-se, têm dois, cinco, dez donos, tudo precisa de dono, voltam a hipotecar-se e a trocar-se, agora
chegou um modelo que dá cento e oitenta, um amor! e esta station com cama?, sente-se, faz favor!, que tal?, está a perceber a vantagem... A fila de milhões de contos
cresce, alarga-se, multiplica-se, as fábricas não param, os guindastes não param, os homens podem morrer esmagados ao volante ou atropelados ou torrados a napal,
tanto faz, as fábricas são as mesmas, já não se consegue parar até à morte por esgotamento, tudo é progresso; passam comboios de cisternas com gasolina e gasóleo,
tudo é progresso, também as acções das companhias passam de mão em mão e caminham cada vez para menos mãos, mesmo que no sangue dos homens já não caiba o ritmo com
que o dementam e esmagam, embora haja compensações, tudo é progresso, carroçarias desenhadas por Burghetti, estofos de violeta suave à Maria Antonieta, cores estupendas,
bestiais, pá, basta pagar uma prestação e depois assinar letras, porque se um homem sabe escrever, ler, escrever e contar, pode impedir-se de fazer a assinatura
num sítio
192
que lhe aponta a dedo um vendedor simpático? E então os carros passam a oitenta, cem, cento e cinquenta quilómetros à hora, pela serpente negra transformada em fogo,
à noite, toda a noite, como se Lisboa vomitasse e recolhesse a lava de um vulcão aceso pela demência.
À beira da estrada, o camponês continua a fossangar na terra e a carregar, de madrugada, a carroça que a pileca zambra arrasta para os mercados de Lisboa.
Zé Miguel conhece um sítio para o encontro depois das oito. A civilização é uma complicada teia de sítios. Há sítios para matar e sítios para nascer; sítios para
amar e sítios para trair; sítios para gozar e sítios para sofrer; sítios para -afirmar e sítios para fingir; sítios para viver e sítios para morrer.
Ele conhece um sítio onde conseguiria chegar de olhos fechados, se fosse preciso. Mas prefere que o encontrem de olhos bem abertos quando o forem arrancar dentro
do carro.
Zulmira agarra-lhe na mão, que acaricia. Acha-o estranho naquela tarde. Ou fala de atropelo com navalhas abertas nas palavras, ou afunda-se em silêncios longos,
de rosto crispado e olhos húmidos.
Acaricia-lhe a mão e sente-a estremecer, como se as veias acordassem aturdidas de um entorpecimento maligno.
- Estavas a brincar comigo há bocado...
- Não percebo.
- Sim, pá, quando disseste que ias hoje pagar o carro novo e o punhas depois em meu nome.
- Não costumo faltar ao que prometo.
193
- Acho esquisito, pá, que me dês o carro. Pedi-te uma vez pra me comprares uma casa no Algueirão. Gostava de ter uma casa minha; são baratas, pá.
- A minha mãe dizia que baratas são carochas. E que a felicidade era verde e que um burro a comeu.
- Não fujas à conversa, pá.
- Nunca fujo a coisa nenhuma. Mas quero dizer-te que não gosto de coisas baratas; estragam-se depressa. Não vale a pena comprá-las. E depois...
- Depois o quê?...
- Queres que diga?!... -? Diz, pá. Já agora, diz.
- com uma casa arranjavas marido depressa. Hoje compram-se maridos por uma casa posta, mesmo de renda. Se for barata, pois claro! As mulheres e os maridos estão
baratos.
- Não me caso, pá. Eu, pá?!... Sei bem que nunca me caso, pá.
Zé Miguel move a cabeça para a banda do mar, talvez para esconder um sorriso que ainda lhe mostra ao voltar-se de novo para ela.
- Todas querem casar, todas; mesmo as que brincam com o casamento. E essas ainda mais. Os parvos caem depressa na ratoeira.
- Conforme, pá.
--A mim não me fazem parvo; em coisas de mulheres, não. Conheço mais mulheres do que idade tens. Percebes, rapariga?
Num arremesso, Zulmira larga-lhe a mão; ele vai-lha buscar para apertá-la na sua, até que ela grita e choraminga, fitando-o, desesperada, por não fazer o que lhe
apetece.
Uma onda vascoleja sobre a praia deserta.
- Porque me foste buscar?
194
Uma onda brusca de ternura assalta-o por instantes. Talvez precise de chorar no seu regaço, embora a despreze. Puxa-a para si e beija-a violentamente, quer prolongar
o tempo para esquecer, cerra os olhos, como se a realidade o invadisse por aí, mas a fúria apaga-se no mesmo frenesi e fica à frente dela de braços inertes, culpado.
Apetece-lhe confessar o que pensou e depois levá-la a casa.
Por momentos admite a hipótese, mas depois apavora-se de ficar só. Terá de levá-la na viagem que vai empreender. Percebeu-o quando veio ontem passear pela marginal
no carro que será arrolado pelos homens da justiça e viu passar automóveis com raparigas acompanhadas, de braço sobre as costas do assento do condutor, algumas sorrindo,
poucas, mas todas decididas, pensou então, em fazer passar o tempo numa estrada solitária ou num quarto de casal que venha a Lisboa, muito sossego e a maior respeitabilidade.
Teve a certeza de que em menos de quinze dias ela faria também uma volta igual. E percebeu que a ideia lhe doía. Talvez agora gostasse dela, talvez, porque o acompanhava
sempre que ele queria; nem todas as pessoas estão disponíveis quando se precisa de alguém ao nosso lado.
Sim, empolga-o em certos momentos, é jovem, cheira a vida, atordoa-o, esquece muita coisa junto dela, escusa de se embriagar para esquecer o que lhe aconteceria
dentro de quinze dias, se deixasse a vida correr ao jeito dos outros.
O Dr. Casquilho do Vale leu-lhe a sentença:
"-Ou você arranja trezentos contos hoje mesmo, antes das quatro horas, ou está metido numa camisa de onze varas. Pela minha parte, tentei o que podia. Alguns credores
dispÕem-se a fazê-lo sentar no banco dos réus. Arranje dinheiro!
195
- Onde?!... Onde quer o Sr. Doutor que eu arranje dinheiro?...
- Isso!... Isso, Sr. Zé Miguel, isso já não é da minha conta.
- Gramo eu a pastilha, não é? Sou eu quem fica no cartaz. E sozinho...
-Tenho feito quase o impossível, sabe-o bem, para salvá-lo desta história; mas os meus recursos têm" limites. As minhas palavras já não chegam; as pessoas duvidam
das suas promessas.
- Falou nos bancos?
- Falei. Já não lhe aceitam papel; já não o consideram capaz de responder pela sua assinatura.
- Esquecem depressa...
- Os bancos não podem correr riscos quase certos, Zé Miguel!... Você, que é um homem inteligente, deve perceber a situação.
- Uma gaita, doutor, uma gaita! Veja lá os amigos; veja lá quantos amigos me ficaram de verdade.
- Você não dá garantias.
- Não me fale assim, carago! O doutor sabe bem, sabe melhor até do que eu...
- Zé Miguel!... Você começa a perder a calma e a dizer coisas menos verdadeiras.
- Chama-me aldrabão ?!...
- Ó homem! A gente assim não se entende. Tenha calma! Percebo que esteja transtornado com o que se passa depois de tantos anos de trabalho. São as coisas da vida!
Os negócios que fez deram-lhe dinheiro, não conseguia levá-los a cabo sozinho, bem entendido, e agora não pode exigir que as pessoas lhe devolvam o que ganharam
em sociedade consigo.
- Mas a quantos ajudei, Sr. Doutor? Lembra-se? O Sr. Doutor não precisa que eu lhe lembre.
196
Você é um homem de coração, pois claro que é,
Zé Miguel!
-. Fui uma máquina de ganhar dinheiro para esses gulosos. Quando havia perigo, vinham à minha procura; metiam-me os negócios à cara, ofereciam-me os documentos para
a candonga, tudo era fácil para eles, porque se havia azar eu não os deixava mal. Nunca dei um nome!
- Também nunca apertaram consigo, Zé Miguel! As coisas faziam-se bem...
- Mas era eu quem roía os ossos, Sr. Doutor! Eu é que andava ao tempo, dias e noites, metido com malandragem a jogar a vida, e eles aqui no clube a jogarem à batota
ou sossegados, em casa, à espera que eu lhes enchesse a mula. Ganhei muito dinheiro, Sr. Doutor!
- Tirou dele proveito...
- Menos do que se diz, Sr. Doutor! Vê-se!... -? Você perdeu as perspectivas.
- Quer dizer que estou lixado?
- Não é isso, Zé Miguel. Quero lembrar-lhe que perdeu a cabeça muitas vezes, contra a minha opinião. Lembra-se?!... Parece que não se lembra; mas eu recordo-lhe:
quando a guerra acabou, eu disse-lhe para vender as camionetas e liquidar o que devia; que passasse a lavoira, que só lhe dava prejuízo, embora fosse o seu hobby,
e comprasse um prédio ou dois de rendimento. E que me respondeu você?!
- O que qualquer pessoa pensava: que a guerra ia continuar e a minha organização havia de ser precisa. Metia-se pelos olhos dentro.
- Pelos seus...
- Os Americanos é que falharam nessa altura. Mas também se lixam mais tarde ou mais cedo, se não começarem a jogar as bombas em cima dos Russos.
- Deixe o fruto amadurecer...
197
- Mas é isso o que eu digo, Dr. Casquilho. Esperem!... Os credores que esperem. Eu pago tudo o que devo, mas esperem. O que tenho de meu chega bem pra pagar a toda
a gente, se não andarem com o fogo no rabo.
- As pessoas têm medo.
- Quando o cão parece raivoso, todos lhe atiram, não é? Esquecem depressa o que o cão lhes deu.
- Há muitos boatos a seu respeito, Zé Miguel.
- Eu bem os conheço: quando a guerra ia a meio, eram quase todos pelos Alemães; depois, eu bem os vi, andaram quase todos atrás da música a dar vivas aos Americanos
e aos outros. Em 45 gritavam liberdade e mais não sei quê. Onde está a honra das pessoas, carago? Eu fui sempre pelos Ingleses, toda a gente sabe. Negociei com todos
eles, negócios são negócios, mas nisso tive só uma cara. O Saca-Rolhas pediu-me para eu o esconder, se houvesse azar. E agora diz-me que eu gastei muito dinheiro
com mulheres. E se gastasse?!
- Tenha calma!
- Calma é boa prà vista, Dr. Casquilho. E a um homem perdido ninguém dê conselhos. Eles não me querem ajudar, pois está bem. Assim a gente entende-se. Querem : pregar
comigo no banco dos réus pra me desgraçarem o amanho e a honra. Vamos lá a isso! No dia do julgamento . escarrapacho tudo nas ventas do juiz; não escapa só um. -
Digo tudo; conto tudo sem papas na língua. E depois assoem-se ao guardanapo. ;
-E as provas?
- Quais provas ?!...
- Como pode você provar tudo isso?
- com testemunhas.
- Quais?!...
- Muitas!
198
- Ninguém se mete em coisas dessas, Zé Miguel. Tenha calma! Assente esses nervos, homem!
?- Espero que eles me dêem com a puntilla, não é? O senhor sabe bem...
- O que eu sei, Zé Miguel, é segredo profissional. Tudo o que sei, já me esqueceu. E você precisa de se convencer do mesmo.
- O Sr. Doutor também se esquece. Esquece-se que lhe paguei todos os meses uma avença.
- Por serviços jurídicos e nada mais. Não me meta nessas histórias.
- Fizemos muita vaquinha, Sr. Doutor.
- Não lho nego, Zé Miguel, não lho nego. Mas se você falasse disso no tribunal, teria de o desmentir. As coisas que se tratam entre pessoas de palavra não aparecem
na roupa suja de ninguém. Percebe?...
- Fica tudo na minha, não é? Mas isso garanto-lhe eu que não sucede: mato dois ou três, antes de me atirarem para a cadeia. Sou homem pra isso!
- As coisas não vão chegar a esse ponto, Zé Miguel! Você tem muitos amigos!... Eu conheço alguns. Precisa de se preparar para o pior, mas tenha confiança. Eu continuo
a manobrar. Não venda nada pra não sobressaltar ainda mais as pessoas. Faça a sua vida sem alardes, não ande por aí a cavalo e espere.
- Espero que me enterrem a choupa, não é?! O senhor acha bem, carago?
- O que eu acho bem ou mal, não resolve. E a gente precisa de salvar o que se puder para que você recomece a sua vida. Você tem força...
- Pois tenho, doutor, pois tenho! E vai ser uma gaita quando eu tiver que saltar com ela para o meio da praça. Se é meu amigo, arranje as coisas pio bem. Começo
a
199
estar cansado. O que tenho, o doutor sabe-o bem, chega pra pagar a todos.
-- Se não for ao tribunal. Porque se chegar até aí, os seus valores perdem dez vezes o que lhe custaram. Quando chegam à boca do pregoeiro, tudo se desvaloriza.
E o papel selado, as custas dos processos, o diabo a sete, caem-lhe em cima, e você, Zé Miguel, acaba na cadeia. Por isso lhe digo: arranje trazentos contos nem
que seja com juro de vinte por cento em seis meses.
- O Sr. Doutor garante?...
- Agora ninguém pode garantir, Zé Miguel. Mas dá-se-lhe um jeito...
- Se o senhor me safar, dou-lhe cem contos limpos." O Dr. Casquilho do Vale é um homem de meia-
?idade, depurado; quer dizer, um homem sem emoções nos casos forenses, embora a tendência que se adivinha para ficar anafado daqui por mais dez anos leve alguém
a julgá-lo um bonacheirão de condescendência fácil. Tem um ar infantil, um tanto pelas bochechas de menino ingénuo como pelos olhos redondos de interrogações fáceis.
A vida, porém, destruiu-lhe a pureza com que vestiu os códigos até ao 3.? ano da Faculdade. Agora percebe que os códigos são cónicos, muito largos ou demasiado estreitos,
segundo as pessoas para julgar. Governa-se do prestígio da palavra preciosa em que se exercita ao espelho e também do alfaiate de que se veste, muito inglês vitoriano,
sóbrio. Preferiria os casos de divórcio, por razões óbvias, se vivesse numa grande cidade. Mas acomoda-se numa vila de lavradores, amesquinhando-se em casos broncos
de partilhas, demandas de senhorios com rendeiros e agiotagens de segunda ordem.
Casou bem.
Entendamo-nos: casou rico. A esposa herdou fazendas e dinheiro do pai, armazenista de vinhos, e do padrinho,
200
solteiro, exportador de frutas, além de certo ar civilizado que lhe deixou um namorado milionário, exigente na roupa da amásia, seu cicerone, portanto, nas galas
do amor e nos requintes da moda. Quase analfabeta, a mulher instruiu-o na sovinice do pai e no cosmopolitismo do amante. Ficou homem prático.
Desdenhou sempre a esperteza saloia de Zé Miguel, mas guiou-lhe os voos, enquanto a teta, bem apalpada, lhe pareceu susceptível de ordenha. Agora vira-se para os
códigos, cita-lhe os artigos convenientes e tira o cavalo da chuva, isto é, desliga-se do amo que lhe pagou durante sete anos, tentando adormecê-lo para o entregar
à piedade safardana de certos credores mais estáveis.
Besunta-se de filosofia para uso em certos dias, como se penteia a brilhantina diariamente. Ambas lhe ficam bem.
Antes de casar, fazia parte do cardápio de almoços e jantares comemorativos de datas lembradas. Dava gosto ouvi-lo. Porque invocava Platão, Aristófanes, Ovídio,
Séneca ou Rimbaud, em aniversário de lavrador, Dona Qualquer Coisa ou Menino de Pai Rico que o pusesse à mesa. Bebia-lhe bem, principalmente vinhos brancos muito
frescos. A esposa, porém, pôs-lhe o selim na verborreia pública, esperançada em vê-lo ministro de alguém ou de alguma coisa. O Dr. Vale começou a poupar-se para
o efeito, tendo prontos a servir cinco discursos para usos diferentes: o de inauguração de chafariz, em especial, é prodígio de arte oratória, porque começa nos
primeiros sete dias da criação do mundo e acaba no foguetão à Lua, onde o Dr. Vale põe os homens a beber poesia por copo de cristal e sonho.
A conversa com Miguel Rico enerva-o. Sente-se metido na jaula de leão selvagem, ao qual não ministraram soporíferos. Atordoado, fica a passear no gabinete de pau
201
santo; fala alto, descompõe-se, porque no fundo é um tanso, diz ele, e acaba por pegar no telefone. Não esquece que Rui Diogo Relvas o despreza (um dia farão contas
dessa vilania), mas agora resolve comunicar-lhe as intenções criminosas do Zé Miguel, sabendo que o outro pode embrulhá-lo no mesmo asco ressabiado.
"- Pois ele que venha. Cá o espero ao portão da quinta.
- Largue-lhe os cães, Sr. Relvas. Os seus cães bastam para o manter em respeito. E se precisar de algo...
- Acho que não, doutor.
- Nunca fiando.
- De qualquer modo, fico-lhe muito agradecido. O seu cuidado é uma prova de honradez. Deus o guarde!"
Casquilho do Vale faz vénias ao telefone, recua, amacia a voz esfarpada e aguarda que o outro desligue. O Saca-Rolhas sente pressa em agir, embora presuma indiferença
pelas notícias do advogado.
E enquanto aguarda ligação para Lisboa, a dar conta da ameaça de crime social que impende sobre ele e os seus, manda chamar o feitor da quinta e explica-lhe o que
pretende:
"- Mande limpar bem todos os buracos dos fechos das portas que dão para o exterior. Na cavalariça do jardim passam a ficar três homens armados.
- De noite?
- De dia e de noite. E o portão fechado.
- Espera revolução, Sr. D. Rui Diogo?
- Não, não se trata disso, Chico Lopes. Não se alarme."
E quando o outro sai às arrecuas, um tanto lívido, Rui Relvas recomenda ainda:
"- Não fale do caso a mais ninguém. Mas cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a doente."
202
Diz isto e indigna-se. Ocorre-lhe a mesma interrogação de Zé Miguel:
"-? Se não fazem a guerra preventiva, pra que servem as bombas?"
Para ele as bombas têm rótulo com endereço perfeitamente definido.
203

SALTA dali como um lebracho monteado. Nos últimos momentos da conversa com o Dr. Casquilho do Vale cresce em si a esperança de conseguir os trezentos contos necessários
para travar a torrente de letras protestadas e de acções judiciais. A força da crença, que sempre mantivera viva, explode de novo e enche-o de uma alegria ressuscitada;
sente-se capaz de dominar o destino mais uma vez, trazendo-o de rastos até ao dia exacto em que a mala-ventura lhe dera o primeiro sinal, como quem leva um cão a
esmurrar o focinho no sítio que será preciso lembrar-lhe para não repetir o delito.
Os cães tinhosos hão-de pagar-lhe a afronta, pensa encostado à janela, repassando o chapéu de lavrador pelos dedos excitados. Mas assim que se dirige para a porta
envidraçada dissolve-se-lhe a confiança no resultado do encontro previsto. Quebram-se um a um os fios da fé que o reanimara. Quando se volta para a secretária, onde
o advogado finge interessar-se pelos papéis amontoados em pastas de cartolina, já não o distingue bem na bruma do olhar turvo.
204
Ainda tenta deixar atrás de si o risco de uma hipótese. "-Trago o dinheiro dentro de dois dias...
- Ainda bem, Zé Miguel, ainda bem. Acredite que me dá com isso uma grande alegria.
- Pode ser que os cães partam os dentes."
Não percebe se o Casquilho do Vale lhe sorri num incitamento, ou se nem levanta sequer a cabeça das rumas de processos e requerimentos. Mal o vê.
O mesmo nevoeiro esfarrapado envolve as pessoas que cruza na rua. Perfura um mundo hostil e irreal. Só ele se julga cravado em silhueta negra nas cinzas densas da
tarde. Corta-as com os ombros, afasta-as, e logo as sente fecharem-se por detrás de si, esborralhando os vultos soltos, cujos contornos tanto podem ser de árvores
como de pessoas ou de pássaros grandes e inertes que o esperam. Ou de cães tinhosos.
Aí estão reunidos para o verem passar, não há dúvida. Perseguem-no e cercam-no. Nenhum deles corre; também ele caminha a passo, um pouco tonto, embora queira manter-se
firme na marcha.
Nalguns momentos acredita na possibilidade de romper por um lado qualquer. Precisa de ficar atento ao primeiro indício de uma aberta. Quando, porém, pretende descobrir
por onde se escapará, descobre, e só então, que lhe deixaram saídas falsas para se atolar ainda mais. Cai sempre no nevoeiro, no mesmo poço de cinzas pegadiças onde
se afunda lentamente.
Pensou no irmão, no Miguel Zé, como último recurso, hipotecando-lhe a quinta dos Montes. Todos os outros se negaram a ajudá-lo, quase sem desculpas. Chegou a hora
da verdade. Amarga sabê-lo.
Os trezentos contos talvez já não existam para si; e tantos deu a ganhar. Mas prometeu cem ao advogado, não percebe se para o entusiasmar a conseguir o que precisa,
205
se para o deixar ansioso, sem dormir também na noite que se aproxima. Miguel Rico contorna as noites, minuto a minuto, enchendo-as com lembranças do tempo em que
caminhava seguro por qualquer estrada.
Agora vagueia num labirinto de ardis e de dúvidas.
Ainda ontem o Manuel Pedro lhe entrou na garagem para levar cinco pneus quase novos; pagava-se à falsa fé dos dez contos que lhe emprestara para liquidar as férias
do pessoal dos caminhões e as rendas em atraso. Até os amigos o querem ver bem calcado. Onde se meteram agora os seus amigos?!... Nem um me ficou para amestra, carago!
E se os obsequiei com o que pude e não pude! Nunca chegaria a isto, se me metesse nas encolhas como eles. Mas não era capaz de me sentir bem, quando sabia que um
amigo precisava de mim e estava em azar. Fui sempre mais para eles do que para a família. Agora corto as veias e não deitam sangue, porque já se me esvaiu o sangue
todo. O pessoal ferrou comigo no Tribunal do Trabalho por causa das horas extraordinárias. Nem o Alheias se pôs de fora, quando por eles continuei a ter ao serviço
a frota toda, embora me dessem prejuízo mais de três carros a girar. Qualquer coisa que precisavam, vinham de boné na mão à procura do patrão Zé; patrão Zé praqui,
patrão Zé pra acolá, e nenhum deles ia sem achega, por muito que lhes ralhasse. Era o meu feitio!... Agora dizem por aí que eu não passava dum malandro que os explorava
e tratava a chicote; e a boca não se lhes fecha para sempre quando dizem palavras dessas! Até fazem correr que lhes surripiei os descontos para a Caixa, só porque
não entrei com a minha parte. E então?!... O fiscal levantou-me um processo de quase sessenta contos, esquecendo-se que lhe dava um conto por mês para me preparar
as folhas como devia ser. Se calhar pagava-lhe para ver os bonitos olhos do mocho! E agora entala-me também, fingindo que não tem nada
206
a ver com a história. Quando o cão parece raivoso, todos lhe atiram, carago! Foi ele que me veio entregar o aviso da multa. Ah, rapazes! Subiu uma onda por mim acima,
joguei-lhe as mãos ao casaco e sacudi-o como a um boneco de trampa; a cara pôs-se-lhe branca de medo. Atirei-o de encontro à parede, assim como se deitasse fora
um trapo velho; abalou a fugir à minha frente, aos gritos, parecia um rapaz pequeno em vez dum homem, carago!
Zé Miguel conta estes contos e acrescenta-lhes muitos pontos ao seu jeito. O irmão ainda não disse uma palavra amena. Entrou em casa à boca da noite, os dois filhos
correram à porta para o festejar, esperando que ele agarrasse num em cada braço e aparecesse na cozinha, ao pé da mãe, como era hábito, mas antes contaram-lhe que
o tio Zé estava à espera há muito tempo, e quando ouviram o pai resmungar, sem lhes fazer a festa dos outros dias, perceberam logo muitas conversas inexplicáveis
até ali. Só depois de insistirem o pai lhes fez a vontade.
O tio Zé levantou os olhos da mesa forrada a oleado de quadrados, estivera assim grandes bocados sem falar, enquanto a mãe fritava peixe na chaminé. Os dois homens
saudaram-se a distância. E então o tio Zé, o Miguel Rico, disse para o pai, o Miguel Pobre - era assim que as pessoas os conheciam:
"- Preciso de te dar duas palavras.
- Quantas quiseres..."
E ficaram um pedaço sem dizer nada um ao outro. O pai foi ao armário, pegou num bocado de queijo seco, cortou um canto ao pão que estava dentro da gaveta e pôs-se
a comê-los em grandes dentadas.
As duas crianças olhavam uma para a outra, procurando compreender por que razão as pessoas crescidas fingiam não se ver, se estavam numa casa tão pequena onde um
cego dava com elas. A mãe pegou num carapau,
207
passou-o pela farinha de um lado e de outro, devagar, e depois meteu-o na frigideira, afastando um pouco a cara para o azeite não lhe saltar para cima. Todos se
voltaram para a frigideira, como se tivessem escutado aquele ruído pela primeira vez. Depois o pai disse:
"-Diz lá o que queres dizer..."
O tio Zé encarou o pai e logo a seguir correu os olhos por eles e pela mãe.
"- Podes falar à vontade.
-? Quero tratar um negócio contigo.
- Comigo?
- Sim, contigo."
Quando Miguel Rico aludiu ao negócio logo pela primeira vez, a mãe voltou a cabeça de repente e fez cara de assustada; só tornou a tomar conta do peixe quando o
olhar do marido se cruzou com o seu e se entenderam.
"-Então, vamos ali para o quarto..."
O tio Zé ergueu-se a custo do banco, fingiu uma festa na cara dos rapazes e falou em voz muito alta:
"-A cunhada desculpe; não é por si.
-Ora essa!
- Sabe que fui sempre seu amigo.
- Ninguém diz menos do que isso. Mas conversas dhomens são conversas dhomens. Eu de negócios não percebo, nem quero perceber. Talvez seja melhor assim."
Quando Miguel Rico entrou no quarto, Miguel Pobre esperava-o junto da janela; continuava a comer pão e queijo, mas agora em pequenas dentadas, como se receasse não
ouvir o irmão contar ao que vinha. Este ficou quase à entrada da porta. Sentiu-se acanhado ali dentro; parecia temer que lá não coubessem as palavras. O Miguel Pobre
lembrou-lhe que se sentasse e ele agradeceu, não, não, muito obrigado, estou bem de pé, fico melhor assim.
Miguel Pobre encolheu os ombros e ficou à espera.
208
"--Preciso d'arranjar uns dinheiros... Atrasei-me com a Caixa e eles meteram uma acção no tribunal. As coisas no tribunal ficam caras.
A mãe deita a cabeça do irmão no regaço, embala-a num lento mover da perna, enquanto lhe percorre os cabelos crespos e negros com os dedos, e começa a sussurrar
a cantiga do papão no telhado; sorri de ternura, mal o vê fechar os olhos. Zé Miguel espreita-os, raivoso, pela porta semicerrada; só lamenta não poder chegar ao
pé deles e separá-los, espezinhando o irmão. Resolve entrar numa corrida, aos gritos, atira um banco abaixo e a mãe levanta-sse, quando o irmão acorda assustado,
pondo-se a persegui-lo à volta da mesa. Diz-lhe: não me fujas, senão é pior pra ti. Este rapaz parece que anda com o Diabo no corpo.
Miguel Pobre esperava que o irmão prosseguisse. Como acabou de comer, pôs-se a enrolar um cigarro nos dedos grossos, cheios de vincos negros do trabalho na oficina.
É bate-chapas por sua conta. Há pouco mais de um ano meteu dois pintores a trabalhar para ele e agora alargou a oficina para reparar motores.
"-Queria ver se me fazias um favor..."
O rosto do irmão continuava fechado, como se não entendesse o que ele dizia,
"- Dou-te as garantias que quiseres. Entrego-te um carro ou dois à tua escolha.
- Não trabalho com carros.
--Mas dava-os de penhora, pá, não percebes?
209
- Essas coisas fazem-me confusão. E depois não tenho dinheiro pra te valer.
-Faz-me uma letra.
-Nunca mexi em coisas dessas nem quero. Sou estúpido !
O irmão amachucara-o a vida inteira, desde a infância. No jogo da bola punha-o só a guardar as balizas; um dia aleijou-se um dos rapazes que fazia parte do grupo
do seu lado, e ele não o deixou entrar para a falta do outro; preferiu ficar com um jogador a menos. Ainda há poucos meses, em conversa, lhe contaram que o irmão
dissera de si: é bom rapaz, mas saiu estúpido.
- Estúpido, não, não és estúpido. Não estás habituado a trabalhar com bancos.
- Nem quero.
- É um favor de irmão que te pago, pá.
- Tens tantos amigos!...
- Nem um me ficou para amostra, carago! E se os obsequiei com o que pude e não pude! Nunca chegaria a isto se me metesse nas encolhas, como eles. Mas não era capaz
de me sentir bem quando sabia que um amigo precisava de mim e estava em azar.
Miguel Pobre deixou de lhe prestar atenção, não vá comover-se com os argumentos dele. Fita-o de olhos travessos e desconfiados, mas fá-los mais pequenos para que
o irmão lhos não descubra na fenda em que os encerra. Têm ambos olhos iguais, embora os de Miguel Zé sejam um nadinha mais claros. No resto diferem. O Miguel Pobre
cresceu mais um palmo, não direi tanto, mas quase; trigueirão de malas-caras, boca grosseirona e nariz em
210
martelo de bola, retrai-se junto de Miguel Rico, que lhe faz medo. Tocado como ele pela ambição, tempera-se nos desmandos da vaidade porque segue a vida do irmão
como um livro aberto onde aprende o que deve evitar.
Salta da violência para uma serenidade fria que o torna lúcido. Fala devagar, pouco a pouco, e cheio de cautelas, aparentando bom senso. Mas por dentro fica eriçado
como um bicho de picos rijos, enquanto sorri com aparente bonomia.
Só quem o conhece mais de perto lhe percebe a perturbação, no tremelicar ligeiro de uma veia muito azul que palpita na face direita e na ligeira palidez de azeitona
verde onde o rosto se banha quando fica inquieto.
E o irmão, o Miguel Rico, inquieta-o.
Miguel Rico prossegue nos seus contos a que acrescenta muitos pontos ao seu jeito. Ele ainda não disse uma palavra amena para ninguém, depois que entrou em casa
à boca da noite.
"- Atirei-o de encontro à parede, assim como se deitasse fora um trapo velho; abalou a fugir à minha frente, aos gritos, parecia um rapaz pequeno em vez dum homem,
carago! Esquecem-se todos que tenho ainda muita pólvora para queimar."
Julga que só na bravata levará o irmão a ceder ao que lhe pediu. Percebe, percebeu sempre, que o Miguel Zé o receia, e lembra-se, de novo, que pela compaixão nada
conseguirá do que pretende.
"- Se me arranjares cem contos, hipoteco-te a quinta. Se quiseres, hoje mesmo, tu arranjas os cem contos. Tens crédito.
211
- Nem para trinta; sou pobre. E além disso pra que me serve a quinta ? Preciso de máquinas prà oficina; é do que preciso.
- Vale quinhentos.
-? Vale trezentos sem hipoteca, Zé. E tu já a hipotecaste."
Encaram-se pela primeira vez de olhos nos olhos. Aí percebem-se um ao outro. No olhar não se burlam: têm-no igual, conhecem-se.
"- Lembra-te de que tenho dois filhos, Zé!
- E eu nenhum...
-Que eu saiba nenhum. O que tinhas, morreu."
O filho parece que dorme deitado sobre o sofá da sala, como se alguém o pusesse a dormir. Ouviram-se dois tiros no silêncio aparente da casa, talvez dez minutos
depois da conversa que tiveram no escritório, mesmo ao pé da estante cheia de livros que nunca leu. O marceneiro tirou-lhe a medida e ele encomendou: arranje-me
sete metros e vinte e cinco de livros encadernados. Escolha o que quiser.
"- Era um fraco. Saiu à banda da mãe e matou-se. Agora os meus herdeiros são os teus filhos...
- Não conto com o que lhes deixas. Pensa em ti; foi sempre em ti que pensaste. Fizeste bem; cada qual deve pensar em si. Eu agora faço o mesmo.
- Somos irmãos...
- A nossa mãe dizia que sim.
- Estás a desconversar, Miguel!...
- Talvez, pá! Não minteressam as irmandades. Sou pobre."
212
Noutro dia qualquer, há muitos anos, falaram longamente um com o outro. Miguel Pobre quis começar vida e pediu ao Miguel Rico que lhe arranjasse vinte contos; tencionava
montar oficina.
E o irmão disse-lhe: "Entro com essa pasta, mas numa sociedade contigo; eu dou o dinheiro, tu dás o trabalho. Dividimos o lucro a meias. Achas bem?!..."
Miguel Pobre meneou a cabeça, respondeu que ia pensar no caso e nunca mais procurou o irmão.
"- Podes ser rico amanhã, se me ajudares agora. Fazemos uma sociedade.
-? Sociedades só na cama e com mulheres. Não gosto de sociedades; acabam mal.
-Vê-se mesmo que não me gramas, pá! Que mal te fiz eu?!...
- Nenhum. Se fizesses, a gente zangava-se. Assim somos irmãos; cada um trata de si e ninguém se chateia. E nem te posso valer, Zé. O teu barco manda muito peso pra
um homem pobre como eu. E eu tenho dois filhos. Nem a minha mulher assina qualquer coisa que meta complicações."
Zé Miguel pega no chapéu, que pusera em cima da colcha da cama, aperta-lhe a aba rija nas unhas dos dedos irados e tenta ainda demover o irmão numa mirada de acabrunhamento.
Prenuncia a saída em dois passos para a porta, mas receia afastar-se dali. Vai ficar sozinho e sente medo; não dos outros, os outros já não o acanalham mais, mas
do que pode pensar. Há cinco dias que a mesma ideia o visita.
Miguel Pobre arrepende-se da hostilidade: uma boa palavra não se nega a ninguém.
213
"- Deixaste as coisas irem longe de mais, Zé. Deste muita guita ao papagaio e agora não aguentas no balanço.
- Já não me tiram o que gozei.
- Fizeste uma vida bem bonita, Zé. Foste um lorde. Não te faltou nada: nem mulheres nem automóveis.
- E ainda hei-de tê-los por mais tempo. Ainda não se miacabou a pólvora toda.
- O Relvas meteu-te no tribunal... E quando esses gajos metem os cornos, são piores do que toiros muras quando agarram um cavalo. O Saca-Rolhas já não te larga.
- É por isso mesmo que preciso de trezentos contos. com cem contos travo-o a ele. Os outros duzentos aguentam os que estão com mais pressa; e o resto retrai-se.
Quando os carneiros que vão à frente se desviam, os outros vão logo atrás. E se os puder lixar, lixo-os. Se hoje mesmo rebentasse outra guerra, estava eu nas minhas
sete quintas. Sou homem pra grandes coisas; as pequenas chateiam-me, não lhes ligo. Se houvesse outra guerra, vinham eles pedir-me batatinhas, e então chegava a
minha hora da vingança.
- A tua força não dá para tanto!
-É o que te parece... Comprei-os a todos; valem tanto como pegas. Têm todos alma de pega; é só uma questão de preço.
- O pior é que a guerra não vem.
- Talvez... Mas o Diabo não há-de estar sempre atrás da porta. Agora preciso de maguentar. Se me deres uma ajuda, palavra dhonra, dou-te a minha palavra dhonra,
que te faço meu sócio.
- Deixa-me ir devagar, Zé. Eu sou homem pra ir devagar.
- Não arriscas nada, pá! Fazemos as letras pra me pagares os camiões; vendo-tos baratos. Quem tem a ver com isso?!...
214
- Não pode ser, Zé, não pode ser. Fazes tudo mais fácil do que é. Tu estás metido numa guerra contra ti...
- Achas?!...
?-Tenho a certeza. E eles agora não te perdoam. Falaste de mais. É o teu defeito; falas -sempre de mais. Eu sou teu irmão e eles vão meter-me na alhada, se me venderes
alguma coisa. Não me meto nisso, tem paciência!
Parece ouvir pela primeira vez o que é certeza há já alguns dias. Ressentido, impetuoso e ressentido, Zé Miguel tenta um golpe de teatro. Avança para o irmão, pega-lhe
pelo braço e condu-lo até junto da janela, donde espreita a rua, como se temesse inconfidência de alguém.
"- Dou-te a minha palavra dhonra que não me sento no banco dos réus. Isso nunca! Essa gajada que não me grama, esses desgraçados que nunca passaram da cepa torta,
não vão gozar com o meu julgamento. Juro-te plas cinzas do nosso avô! Se chegar a isso, palavra dhonra!, se chegar até aí, mato-me!..."
Diz a última frase num grito. Di-la e sorri sem amargura, quase feliz.
"-Tu és meu irmão... Se quiseres, tu salvas-me."
Miguel Zé liberta-se num impulso violento.
O irmão pusera-se à sua frente a troçar dele, porque o pai o mandara limpar a loiça, de castigo: recusara-se a ir comprar café, dizendo que não era mulher para andar
nas mercas, a avó queixara-se, e aí estava ele a pagar com língua de palmo. Zé Miguel chegara-se, sorrateiro, parecia triste, mas quando passou mais perto, a caminho
do quintal, agravou-o de palavras: "Agora, como és criada de servir, vê lá se começas
215
a namorar o caixeiro da loja! Se ele temprenha, o pai põe-te fora de casa. Tem cautela!" Saltara-lhe uma ira súbita, cego de raiva, à procura de qualquer coisa que
o ferisse. Em cima da mesa brilhou a faca da cozinha. Zé Miguel percebeu-lhe o olhar, escapou-se logo numa corrida. O bico da faca espetou-se na porta quando o irmão
a fechou; Miguel Zé viu-a estremecer ainda com a força do lançamento, mas depois fugiu para dentro do quarto, onde se escondeu a chorar debaixo da cama.
Liberta-se num impulso violento, tenta falar, as ideias são muitas, baralham-se, e não consegue. Lá de dentro chega-lhe a alegria dos filhos; pensa que deve fazer
qualquer coisa por eles, que não pode consentir a presença do irmão na mesma casa onde a mãe se finou desprezada pelo Zé Miguel. Atordoadas e ansiosas, as palavras
atropelam-se sem voz. E como lhes não domina a ira, atira-se ao irmão para jogar a primeira punhada entre os olhos, embora no trajecto lhe atenue o ímpeto.
O outro cambaleia num recuo até à parede; vai de expressão alarmada, mas recompõe-se, grita um palavrão danoso, e regressa logo decidido à desforra.
"-?Como-te os olhos, malandro!"
Miguel Zé percebe-lhe a intenção, salta em dois pulos para o outro lado da cama, pega numa cadeira e ameaça-o. Esgrouviada, a mulher surge entre ambos.
Testemunha pelos filhos que aparecem à porta do quarto:
"-? Suma-se daqui, seu gatuno! Suma-se depressa da minha vista!"
216
Acanalhado, Miguel Rico caminha para a saída, embora não desferre o olhar do irmão. A cunhada acutila-o com palavras:
"- Gastou o dinheiro como quis, nunca a gente se sentou à sua mesa ao pé dos amigos ricos, e agora só aparece pra roubar os que trabalham.
--A cunhada está bêbeda!"
Diz aquilo para provocar o irmão, mas Miguel Pobre domina-se. Fica calmo quando percebe que o outro já não lhe arranca um centavo.
"- Vá pró Inferno!... A sua mãe é que dizia de si o que vossemecê merece!" Quase foge até à porta da saída. Gostaria de interrogar aquela cabra maldita, mas receia
ouvir a maldição que a mãe deixou para ele.
217

A mãe perdoou-lhe à hora da morte, porque se perdoou a si própria.
Sentiu nesse momento o rigor com que tratara o filho mais velho, um arremedo de ódio, talvez porque o amor para ela devesse revestir uma forma de luta tensa, quase
feroz, em que a trégua se aceitaria como pausa irremediável, embora desejada. Mesmo com o seu homem, Irene Atouguia se mostrava arisca e mandona. Gostava de vê-lo
exacerbado até à violência dementada, agredindo-a, para que depois se operasse o regresso ao arrependimento dos carinhos.
Então, e só então, se tornava de uma doçura subtil.
Punham-se em fios de seda as suas mãos ásperas pelo trabalho, embalava-se-lhe a voz em ternura quebrada e inventava sortilégios para o trazer ressuscitado até à
ânsia do seu corpo seco, quase feio, onde um fogo inesperado mistificava a brutalidade fria. Nunca o aceitara nos rompões das ausências prolongadas. Preferia-o amortecido
pela fadiga do trabalho ou pela modorra de um desgosto fundo.
Gozava em reconstruir o que a vida parecia ter desfeito. Julgava-se capaz, nesses momentos, de criar por si
218
o que ela própria iria fruir. Compensava-se assim da submissão a que as mulheres deveriam obedecer no casamento.
Quando nasceu o filho mais velho, esqueceu o homem. Passava as noites com ele aconchegado, sôfrega, como se temesse que o ar da noite lho levasse para longe de si.
Deu-se-lhe por inteiro, levando-o consigo para o trabalho, sem a preocuparem as faltas do marido, que passou a tropelar entre saias alheias o que em casa lhe escasseava.
Bebia o tempo por ele, timorata se o via rabujão ou amodorrado, para logo se alvoroçar e correr Ceca e Meca em busca de alívio para as suas dúvidas.
Mas assim que o mocito ganhou pernas para andanças e o viu rebelão aos améns dos seus apaparicos, tomou-o de ponta, como ao marido, a quem abençoava mais do que
aos santos do altar, embora a estes não desse cúnfia para moê-los de ciúmes e zangas. Nunca Zé Miguel lhe soube ler a cartilha, talvez por seu feitio pirrónico e
assomadiço. E assim nunca usufruiu também daquela grada ternura que a mãe lhe reservava às ocultas.
Idolatrava Zé Miguel e temia-lhe a coragem brutal, incapaz de pô-lo ao seu jeito de surras e apaparicos. Nasceu Miguel Zé para tentar adoçá-lo. A devoção que lhe
dava, ora carinho, ora lamúria, vivia ao sabor das tropelias do mais velho, o seu menino verdadeiro. Como o não domava, batia-lhe, já que o filho não decifrava o
móbil subjacente dos seus ralhos ferozes.
Desforrava-se à noite, quando todos dormiam e ela se arrastava até junto da sua enxerga, para lhe beijar as mãos e confidenciar todo o amor que lhe tinha. Falava-lhe,
então, como a um amante. Longa conversa de palavras mimalhas, mais sussurradas do que ditas, em que o delírio da sua imaginação amorosa lhe compensava o que o marido
trocava por miúdos na cama das outras.
219
Nesse dia em que lhe trouxeram o rapazola quase morto e ela gritou pragas e maldições para não se trair aos olhos dos que a viam sempre arisca, Irene Atouguia quase
ensandeceu, tamanha revolta lhe virou o sangue por não dar largas à ternura. De plantão à sua cabeceira, aí lhe falou noites a fio dos seus amuos e ocultas meiguices.
Quem soubesse desmascará-la veria que as palavras rompiam castigos enquanto os olhos o traziam nas palminhas. Zé Miguel nunca a entendeu. Queria-lhe de mais para
admitir a divisão dos seus mimos; o equívoco marcou-o pela vida adiante, mostrando sempre que desprezava as mulheres, embora dissesse para si que "homem sem amor
é como árvore sem raiz; secam os dois".
Derramada, procurou-o na vila quando ele abandonou a Lezíria. Vinha para arrastá-lo pelas orelhas, assim prometera em casa, obrigando-o a voltar à companhia do maioral
Custódio, um campino real que faria dele um homem honrado como o avô António Seis Dedos.
Descobriu-o ao fim da tarde, já incapaz de dar um passo, tanto andara e desandara por aquelas ruas de gente desconhecida, mas de fervura a queimar-lhe a boca, tais
os responsos inventados durante a peregrinação de malquerença. O coração atirou-lhe um coice quando bateu com os olhos nele, de pé descalço e maltrapido, cheiroso
a tripas de carapau, como ela lhe disse à primeira voz.
Jogaram as pedras um com o outro, tamanha fúria puseram nas palavras.
"- Vossemecê já não manda em mim.
- Sabes o que estás a dizer, meu rufia maravalho?
- Vossemecê manda no seu menino. Em mim, não. As mães não mandam nos filhos, quando não gostam deles. E vossemecê nunca gostou de mim; quis-me sempre como à fome."
220
Apetecia-lhe esfanicá-lo nas mãos e moê-lo depois com beijos. Os dedos choravam-lhe debaixo dos cadilhos do xaile, sentia tonturas de cair ao chão. E tinha de ouvi-lo
à sua frente, irado, capaz de lhe faltar ao respeito se ela levantasse a mão, como lhe apetecia.
"-Vá à sua vida, mulher! Vá à sua vida e não me desgrace!
-Ouve lá, Zé!... Escuta, meu malandro!
- Vossemecê só fala para mim quando me quer fazer mal. Mas isso acabou. Se alguém me obrigasse a viver consigo, antes queria deitar-me ao mar.
-? E quando viesses acima, depois de dizeres isso tudo, eu pegava-te na cabeça e fazia-te beber a água toda que o mar tem dentro. Pra não seres cão tinhoso!...
- Então, largue-me! Largue-me da mão!..." Viu-o voltar-lhe costas e desaparecer dentro do armazém.
Abalou ela a pé para Aldebarã, desfeita em lágrimas danosas, como se os olhos lhe chorassem chumbo derretido. Nunca o caminho lhe pareceu tamanho! Nunca a dor lhe
doeu tanto!... Julgou mais de uma vez que melhor seria atirar-se para a berma da estrada e esperar que a morte a farejasse ao abandono. Porque não choviam raios
naquela tarde?
Abalou ele para o canto da tarimba e ali mordeu o desespero na manta de duas felpas que a viúva lhe emprestara. Esbandalhou-se-lhe o corpo jovem num desfalecimento
de velho gasto pela vida. Gostava de lhe pedir perdão, deitado a seus pés, mais raso do que a poeira dos atalhos, mas conhecia-a de sobejo para lhe mostrar arrependimento.
Pensou que a mãe faria da sua humilhação uma jaqueta de gala para o Miguel Zé, o seu menino. E isso nunca, carago!, por muito que tivesse de encher de nós o amor
que escondia dos outros.
221
A distância e o tempo quebraram-lhe, porém, a bossa do orgulho. Quando juntou uns patacos, mandou-lhe casteleta para uma blusa pela varina que vendia peixe em Aldebarã,
ficando ansioso até à noite, não fosse a mãe recambiar-lhe a oferta pelo mesmo caminho. Irene Atouguia, se bem o pensou, melhor se contrafez. Retribuiu-lhe com um
par de peúgos feito por ela a duas agulhas e um pão de milho de côdea queimada, como Zé Miguel apreciava.
Depois disso, viam-se mais vezes, mas respeitavam tamanquinhas da soberba para onde ambos subiam, embora um ou outro viciasse, por cálculo, as regras estremes desse
jogo. Logo regressavam também de escantilhão os agravos e as querelas, a que os dois deitavam lenha para a fogueira de novo rompimento.
Gozavam com esta paixão hostil, sem que qualquer deles interpretasse o comportamento do outro pelo seu. E como ambos eram rebeldes a submissões, aí viviam em demanda
acesa onde se atormentavam.
Assim que teve camioneta sua, Zé Miguel estabeleceu-lhe mesada, um tanto por obrigação aceita a meias com a bazófia de alardear vida folgada, outro tanto para lhe
meter freio e vê-la mais dócil ou arrependida. Esse jeito nunca lho deu Irene Atouguia, mulher de trinta fôlegos em melindres de carácter. Não gostava, como ela
dizia, que lhe pusessem a manjedoura muito ao pé da boca, porque duvidava da fartura e da facilidade, e então era vê-la a escoicear as estrelas, inventando razões
para justificar os dislates.
Não lhe amaciaram os anos a balda tirana da soberbia, antes pelo contrário, tanto mais que o filho se lhe afastava à medida que inchava em dinheiro e intimidade
com a gente grada da vila. No fundo, e só consigo, exorbitava-lhe a carreira, embora o acusasse de enjeitá-la no convívio, amesquinhando-lhe a maternidade- talvez
se
222
julgasse nascido de alguma condessa de três ao vintém, desdenhava a Atouguia em hora de má catadura ou quando se ufanava de ser filha de um dos primeiros republicanos
da aldeia. Isto mesmo lho disse na cara, ao saber que Zé Miguel ameaçara o primo Pedro Lourenço de o entregar à polícia, onde veio a cair depois do levantamento
de camponeses na Lezíria, ia já a guerra em três anos.
A fama pública de Zé Miguel cresceu por esta altura, como se de um general se tratasse. Um general maldito que dirigia operações misteriosas na batalha da fome.
Manobrava influências, subornadas a preço de oiro, o que lhe permitia fazer o ninho atrás da orelha de fiscais e autoridades, pegando numa carga de farinha ou de
açúcar em Valença do Minho para a meter inteirinha em Vila Real de Santo António, se tanto fosse preciso. O perigo empolgava-o. Dispunha de oito caminhões, carroças
e carros de bois, barcos e fragatas, cujo préstimo planeava sem necessidade de cartas de qualquer estado-maior. Quando lhe apertavam o cerco ou dava escândalo o
desembaraço com que fornecia tudo o que faltasse, deixava apanhar uma carga pindérica para justificar a lei, passando a parte grada da candonga por outro caminho
mais livre.
Dispunha de espiões e de aliados na escumalha dos cais como no galarim das excelências. E a todos pagava na medida larga de cada escalão, porque a fome retribuía
o gasto e o lucro de mão-cheia, as jantaradas e as pândegas por Lisboa, onde a sua liberalidade entre o pegame e a chulagem se tornava lendária. Nesses momentos
imaginava o absurdo para deixar cauda de fama.
A vila soube, entre o sorriso empolgado dos amigos e a repulsa dos que à força lhe aguentavam a quadrilha, que ele e os Gladiadores haviam mandado fechar um dancing,
pagando música, criados e mulheres para que a festa não
223
metesse intrusos. Exagerava-se nos relatos, é de supor, quando se falava de cascatas de champanhe por seios e coxas, de Evas sem parra e de Adões em cuecas, num
farrabadó de ruborizar qualquer devasso de carreira.
Depois, quando a fantasia murchou, amodorrada em álcool, ocorreu ao Zé Miguel uma ceia de ovos estrelados, o seu acepipe predilecto para rebater comezainas ou orgias
pataqueiras. Mas foi tamanha a mobilização por tascas e restaurantes do Parque, que o apetite não lhes deu vencimento, mesmo bem remolhado em vinho tinto ou branco,
tanto fazia, porque o paladar se embotara no alvoroço da farra.
Coube, porém, a Manuel Pedro, sempre delirante de imaginação em bródios de saias, deitar lume ao rastilho da girândola final. Embora já avô de um par casadoiro,
mantinha à sua volta a fama lendária da rapariga que marcara a fogo com as iniciais do seu nome, razão suficiente para não lhe faltar corte entre a gandulagem das
noitadas.
Aquilo, sim, era de homem, caramba! Fazia medo, devia doer, mas o galardão não se apagaria até à morte; e uma mulher, já em idade de reforma, podia apresentar testemunho
vivo desse amor violento, com folga larga para lhe acrescentar o que mais aprouvesse.
Embasbacadas com a história dessa lenda, um trio de galdérias jovens disputava-lhe a preferência. Manuel Pedro fizera-se rogado: não valia a pena perder tempo a
contar rapaziadas, as coisas vivem-se, não se recordam, ainda estava ali para as curvas, mesmo velho ainda não se trocava por esses bisbórrias de água bórica que
estragam as mulheres com mimos e não lhes sabem meter as esporas na altura própria.
A vaidade deu-lhe asas de milhano e aí começou ele a subir e a pairar nos seus delírios de padreador.
224
Os da música tocam um paso doble, excitam-se os ribatejões na veia toureira, pondo-se a dançar como quem lanceia à verónica, e logo o Manuel Pedro se coloca no centro
da sala, filado à loirinha de sardas, decidido a despir-lhe o vestido negro de gala com alças de strasse, já pífio, mas sempre reluzente. Já lhe correra o fecho
do meio das costas até aos altos do fofo, quando o gerente lhe veio explicar a inconveniência da liberalidade, não por ele, era bem de ver, em França aquilo estava
mesmo a pedir streap-tease, o diabo é que por cá as coisas tinham de se fazer à tapadinha e ele precisava da casa aberta, pagava as suas contribuições, mas submetia-se
à lei, tanto mais que o chefe da esquadra próxima andava com olho nele por causa de outro dancing de que era sócio e desgraçava-o de um dia para o outro.
Manuel Pedro encrespou-se todo. A rapariga, num desforço, pôs um dos seios à vela e tentou bailar uma seguidilla muito Praça da Alegria, entre palmeados e olés;
o rebuliço acendeu-se com a arrogância do Zé Miguel, intervindo para explicar ao gerente a sua influência junto do chefe, mas se houvesse azar pagava os prejuízos,
pagava tudo, nunca deixara mal um amigo, carago!, pagava o que fosse preciso, se o caso era de dinheiro que pedisse já adiantado, pagava e repagava, só falava em
pagar, enquanto exibia dois rolos de notas graúdas que tirara das algibeiras das calças marialvas.
O outro retorquia, benevolente, ora essa, pois claro!, sabia com quem tratava, mas o caso punha-lhe em perigo o prestígio do negócio, tivessem paciência.
Encarou-os Manuel Pedro por um dos espelhos que forravam de alto a baixo as colunas do salão, onde a matula se desdobrava em imagens torcidas, enraivou com os gestos
largos e os saltinhos do gerente, um meia-leca todo brunido a brilhantinas, e pinchou-lhe a imaginação para
225
uma desfeita àquelas bazófias parvas. E aí foi ele numa corrida até à mesa onde deixara dois ovos no prato, que uma das raparigas polvilhara de pimenta para lhe
puxar a sustância macha; sorria já da lembrança marota, imprevista para o resto da tunantada, entretida no delírio da bailarina ou na disputa do Zé Miguel, que teimava
em pagar prejuízos à sua conta.
Quando o viram regressar junto dos outros de prato em punho, julgaram alguns que Manuel Pedro o iria despejar na cabeleira ondulada do gerente; a tanto, porém, não
lhe deu a judiaria. Preferiu chapar os dois ovos no centro de um dos espelhos, talvez para dignificá-los dos rostos alarves da súcia.
Foi o sinal da guerreia.
Depois de lhe aplaudirem a iniciativa, cada um dos convivas a repetiu ao sabor da tonteira, entre gritos e atropelos, palmas e gargalhadas, enquanto o gerente blasfemava
a pedir calma, meus senhores!, vejam lá o sarilho em que se metem!
Lentamente, a contrapontar o frenesi quase alucinado com que os gandulas continuavam a forrar os espelhos, gemas e claras escorriam pelas colunas, riscando-as de
amarelo e branco, sem que a criadagem interviesse decidida a travar o desaforo. De bêbeda atravessada, uma das raparigas embicou na perna de uma cadeira, e aí se
esbandalhou, de ovos fritos no prato, em cima do baterista, que rufava na caixa, como se fizesse parte de uma orquestra de circo, ao sublinhar a parte final de um
número de trapezistas no alto da cúpula. Pingado nas calças e nas bandas de seda azul do smoking, o músico esfregou-lhe, furioso, os restos dos ovos no rosto pálido
pela má vida, em jeito de se vingar de qualquer ultraje secreto.
Tanto bastou para que a demência virasse agulha, indo-se uns aos outros com ovos estrelados na mão, logo
226
desfeitos na cara do primeiro que estivesse mais perto ou parecesse mais capaz de afinar com a brincadeira. Na balbúrdia entraram rasteiras, perseguições e duelos
de murro e pé, até que as luzes se apagaram e a polícia entrou na função, empunhando matracas e parte-tolas em fundo musical de apitos.
O gerente desforrou-se na conta apresentada, metendo pela limpeza do dancing o mesmo que se gastaria em pôr asseio no convento de Mafra; a polícia cobrou outro tanto
para a Mitra e poupou-se tribunal, selos e advocacia, favores de agradecer aos amigos que intervieram.
Mas o escândalo entrou na vila pelas portas largas da má-língua. Comentava-se o desaforo do dispêndio em ovos, tão difíceis de conseguir para meninos e doentes que
deles precisavam. Brincava-se com a fome, imprecavam os mais arrojados, porque há coisas que se podem sofrer, mas se não devem dizer para bem do ripanço social,
tanto mais que só assim enxergarão o Céu aqueles que na Terra chafurdam em pobreza farroupilha.
"- Andas a brincar com a fome dos outros, Zé Miguel ! - ralhou a mãe quando o apanhou à mão de semear.
- Também vossemecê está contra mim?...
- Só quero que te lembres da cama onde nasceste, filho. É pra teu bem que te falo assim! As pessoas como tu não devem abusar... Um dia os pobres cansam-se, e quando
os pobres se cansam, ninguém os aguenta.
- Nisso engana-se a mãe.
--Tantas vezes a bilha vai à fonte que um dia se parte e fica lá. É o que te digo, Zé! O povo fala de ti, não te larga da boca. Sabe-se que passas a comer à falsa
fé nos teus carros.
-Coisas que se dizem! A mãe não devia dar ouvidos a mentiras contra mim.
227
- Julgas que gosto?!... Enganas-te, Zé Miguel; mas ainda gosto menos do que fazes, porque um dia pagas tudo com língua de palmo.
- Isso são venenos do meu primo Pedro e dos bandidos da laia dele.
- Vossemecês não sabem de outra fala, Zé Miguel. Nas casas faz sempre falta um gato pra pagar o que as pessoas fazem; tudo o que não gostam ou não convém, cai-lhes
em cima.
- Eu conheço-os...
- Mas parece que te estás a esquecer, Zé!... Lembra-te que o teu avô Atouguia foi dos primeiros republicanos cá do sítio. Era um homem capaz e de vergonha.
- E eu não sou?!...
- A ajudares como ajudas os que tiram o comer à boca dos pobres, não te digo que o sejas, filho! Não foi pra esses caminhos que te criei, acredita. Vossemecês até
passam coisas dentro das jaulas dos toiros que o Saca-Rolhas te aluga.
- Quem lhe disse uma coisa dessas?
- Tudo se sabe, Zé, tudo se sabe. A verdade é como o azeite: mais tarde ou mais cedo vem sempre à tona de água. Não te esqueças disso."
Sorri a velha com o embaraço do filho; e aproveita o ensejo para lhe meter receio, confiada em que ele se retrairia na candonga.
"- Julgas que não se conhece que mandas pôr um chocalho dentro duma jaula ou outra, para que os guardas pensem que transportas gado? Tudo se sabe, Zé, tudo se sabe.
- Pois hei-de tratar de descobrir quem anda a espalhar falsidades dessas. E esses sapos vão pagar o que inventam: malham com o capado numa prisão onde não vejam
sol nem lua, se não apanharem uns anos dAfrica.
228
- Redobras as culpas, Zé. Um dia o saco enche de mais e rebenta.
.- Se o deixarem, mãe.
- Mesmo daqui por cinquenta anos o saco rebenta, Zé. E quanto mais tarde pior. Tudo tem o seu tempo.
- Conforme...
- Agora é o tempo dos ladrões, Zé Miguel! E tu andas com eles, filho. A guerra já é uma desgraça e vossemecês acrescentam-na. A fome não é boa conselheira e as pessoas
começam a ter fome. Já se fala de ti por toda a parte, aqui na vila como no campo. Lembra-te que andaste no campo e não gostavas que te tirassem o pão.
- Vossemecê diz coisas rnalinas, senhora! Não precisa de dizê-las tão arrenegadas pra se perceber que não gosta de mim."
Endurece a voz. Ergue os punhos e ameaça, um tanto teatral, entre o que sente e o desejo de vê-la retrair-se nas acusações que o magoam e não entende na boca dela.
"- Vossemecê nunca gostou de mim!... Porque não o diz por uma vez? Diga-o, carago! Tenha coragem de dizer o que sente.
- Ainda hoje não fiz outra coisa. Sim, por muito que me custe, Zé, ainda não fiz outra coisa.
- Ao menos limpa-se da raiva que me guarda. Faz-lhe bem.
- Voltas sempre à mesma ideia, filho. E nem tu nem ninguém sabe, às vezes nem eu, o que guardo na negrura do coração quando te vejo por esse caminho.
- Pense de mim o que quiser, senhora, pense para aí à sua vontade. Mas fique sabendo que se posso ganhar dinheiro e andar de cabeça levantada, não estou pra viver
como os bichos.
- E andas de cabeça levantada?...
-? Pois ando, sim, senhora! Fique sabendo que ando!
229
- Já não percebes a vida dos pobres. Misturas tudo...
- Mas sou eu ou não quem lhe manda...
- Não digas o resto que pensaste, Zé. Não digas, peço-te por tudo! - chora a voz de Irene Atouguia, receosa de levantar o olhar para o filho. - Se o dissesses, nunca
mais a gente se podia ver um ao outro.
-Porquê, senhora?!"
A velha ergue-se com dificuldade, pisca os olhos, como se a luz da tarde lhos queimasse, e arrasta-se mais dobrada até à janela. Trémula, aperta os dedos ancilosados,
acena a cabeça num pensamento triste que tenta olvidar, e depois encaminha-se para a porta a dar aos ombros, em estremecimentos breves mas dolorosos.
Zé Miguel pensa segurá-la, hesita, receia, indigna-se, contém-se. Sussurra a amargura do que não consegue.
"-Vai já, mãe?!...
- Tenho pressa.
- Porquê?
- Tenho vergonha.
- De quê?..."
Irene Atouguia deixa a resposta consigo. Mal volve a cabeça. Gritam-lhe as mãos.
"-De quê e de quem, senhora? - pergunta Zé Miguel, à espera de a sentir humilhada.
- De ti e de mim, Zé."
Encaram-se por instantes e ambos receiam o que os olhares exprimem. Zé Miguel cobre o desespero na violência dos gestos. Dá aos braços, quase salta, caminha ao acaso.
"-Vossemecê não está boa, mulher!
- Pois não, não estou. Não há mãe que fique boa quando perde um filho.
-Quando não se gosta dele, só há um remédio... -O remédio é chorá-lo, Zé.
230
- Pois chore para aí, se quiser. Chore à vontade, se isso lhe apetece.
- Às vezes é melhor chorar um filho no caixão do que na vergonha. E eu -agora tenho vergonha, Zé.
- De eu lhe dar dinheiro?
-. Sim, de tu me dares dinheiro, sabendo que não o ganhas bem."
Atravessa a porta sem se voltar, mais pequena e dorida, como se quisesse mirrar-se para que a vida a não visse. Mas ainda não disse tudo:
"- Quando te arrependeres será tarde.
- Não tenho nada pra marrepender. - Perde a tineta e grita-lhe; apetece empurrá-la pelas escadas para que desapareça mais depressa da sua vista.
- Que assim seja até ao fim. Mas aviso-te, Zé. E aviso-te pra teu bem: não abuses, porque os pobres já não podem mais.
- Então eles que venham.
- Queres que venham?...
- Quero!
- E pra quê?!...
- Pra cada um ter o que merece. Se quiserem dança, pois há quem os faça dançar e melhor do que eles julgam.
- É o que agora sabes dizer. Só ameaças, ameaças... Pois cada um há-de ter o pão de que gosta. E o teu há-de ser azedo, Zé Miguel. Não to digo com glória, mas há-de
ser azedo, por força."
231

O comer é escasso e custa os olhos da cara. Para melhor dizer: custa os olhos da fome no preço ainda menos do que nas horas perdidas para angariar as senhas de racionamento
em que alguns traficam, ao sabor da bolsa dos que podem pagar. E o pouco dos pobres chega rosnado e tardio, por entre contradanças burocráticas de papeluchos coloridos
que o torna mais amargo e odiento. O relógio das horas de sacrifício parou o ponteiro no tempo de uns, imóvel, mas passa célere, quase ameno, sobre as horas de ganhuça
dos outros.
Os caminhos da candonga são largos e amenos.
Zé Miguel conhece-os como poucos; trá-los apalpados por espiões e amigos que os afofam à custa de luvas grossas, entre comparsas e sócios do seu mercadejar aventureiro.
Tem fregueses certos, fornecedores seguros e as estradas de sua conta para manobrar em plena euforia, o que lhe empolga a bravata de homem necessário. Vive a realização
plena da coragem e das ambições sonhadas desde rapaz. Conhece bem a vida no mundo do trabalho, cerzido por desgraças e afrontas, que o empurraram para fora do círculo
danoso da indigência.
232
Lutou com os companheiros para não se deixar morrer de inacção, mas nunca acreditou saltar daí, algum dia, por meio de riscos perigosos e gratuitos, em seu entender.
"Sairei sozinho, se puder", pensou um dia.
Embora atido aos outros, assustou-se com uns dias de prisão e preparou a sua surtida pelo caneiro da conivência, sem que lhe pesassem na alma os melindres da traição.
Para si, tudo sucede em harmonia perfeita, como prémio do que prepara e arrisca. Quando Pedro Lourenço lhe chama traidor, magoa-se um tanto, indigna-se, mas prossegue
na esteira do carro da fortuna, a que se atrela como besta, sempre à espera de tomar lugar na boleia. Agora subiu lá para cima, ufana-se de amigos e influências,
talvez tonto com o isucesso brusco que atravessa numa galopada, julgando que segura as rédeas nas suas mãos.
Sabe que o odeiam, hesita algumas vezes, mas noutras compraz-se, regalado, porque aceita o rancor alheio, como despeito do que alcançou. À minha custa, pois então,
à minha custa! Devo a alguém o que consegui?!... O que devia paguei, estou quite, paguei sempre à larga o que se combinava. É o que me faz falta agora, carago! Mas
quando a guerra acabou, não devia uma coroa a gajo nenhum. O primeiro que apareça a dizer o contrário; cuspo-lhe nos olhos. Aceita o ódio e amassa-o dentro de si,
agora, que nem a família o encara a direito, devolvendo-o em perfídia.
O tenente Júlio Ribeiro anda inquieto. Vê as pessoas mais sombrias e retraídas do que até ali. Tem a sensação de que atravessa certas ruas da vila rompendo uma teia
de rancor e medo, mais vivo o primeiro do que antes, embora disponha de meios para lhe esmagar o veneno, diz a Zé Miguel quando o chama ao posto.
233
"- Sabe alguma coisa do que se passa? Sim, há qualquer coisa no ar que não se percebe, que os meus homens não agarram.
- Não acredito, tenente Ribeiro. Conheço esta gente melhor do que os meus dedos.
- Por onde pára o seu primo, o Pedro Lourenço? Ninguém o vê por aí... Há certos tipos que não assinalam boa coisa quando desaparecem.
- Esse tem só conversa e garganta.
- Viram-no há uma semana sair da casa da sua mãe. Ela falou-lhe nisso?...
- Não, nada me disse. Vemo-nos pouco agora. A gente nunca ligou assim muito bem.
- Posso fazer-lhe um pedido ?
- Faça, tenente. Já sabe que estou sempre às suas ordens.
- Apareça de vez em quando lá por casa dela.
- O que há?... De seguro o que há?!
-? A casa da sua mãe é um bom sítio para o seu primo se acolher. Percebe?
- Quer dizer que desconfia dele...
- Preciso de lhe saber do paradeiro. É importante. Não sei se lhe conhece bem as ideias.
- A gente não se fala; há mais de três anos que a gente se zangou.
-O seu primo tem ligações importantes e a sua ajuda neste caso é preciosa. Diga-me tudo o que souber a respeito dele.
- Sarilhos de política, não?
- Claro, homem, claro! Você parece que anda a leste. Se o não conhecesse bem, diria que se está a fazer de novas para menganar. Não se esqueça de que também já andou
metido nessas histórias.
- As rapaziadas já acabaram para mim.
234
.- Chame-lhe rapaziadas. Essa praga maldita mete-se por toda a parte, como piolho por costura, e as autoridades não podem consentir que eles perturbem o nosso sossego.
Quem os ajuda está contra nós.
- E contra mim também.
- Por isso mesmo lhe falei. Ainda bem que nos entendemos. Sempre que o encontre, sempre que o veja, a fazer qualquer coisa, em qualquer sítio, tudo nos interessa.
Absolutamente tudo, percebe? A beber água numa fonte, a descansar debaixo de uma árvore, a dormir num palheiro. Torna-se difícil vigiar um ciclista. Viram-no ultimamente
em Samora e Coruche...
- A mulher é de Coruche.
- Não arranje alibis para os outros, porque a gente sabe que ele não pára dum lado para o outro do Tejo. Desta banda viram-no por diversas vezes entre Azambuja e
a Póvoa. Sempre de noite. Mas agora desapareceu de repente. É mau sinal!..."
Pedro Lourenço viaja de noite. Viaja de noite e confunde-se nas trevas com as árvores, as searas e as flores silvestres que também vivem para amanhã.
Luísa Atouguia borda uma touca para o filho que traz no ventre, enquanto os homens conversam fora do barracão com alguém que chegou de bicicleta.
Luísa canta em voz baixa num murmúrio, como se já embalasse o menino. Ela quer um menino. Por isso lhe borda a touca a linha de perle azul, em dois tons de azul,
a imitar flores do valado.
Começaram ontem a ceifa do trigo; há agora muitos ranchos por toda a Lezíria, mas caiu-lhes em cima uma praga de fome. A guerra não explica tudo, como dizem os jornais
grandes, porque os candongueiros movimentam por fora dos circuitos do racionamento a melhor parte do
235
que falta aos ceifeiros. A quem apresenta dinheiro graúdo aparece depressa o que quiser.
O pão é negro e escasso;
escasseiam o azeite e o arroz;
uma mulher ganha a ceifar de sol a sol sete mil réis;
o pão é negro e escasso;
escasseiam o toucinho e a massa;
uma junta de bois ganha sessenta e sete escudos por dia;
o pão é negro e escasso;
escasseiam o sabão e o açúcar;
um homem ganha a ceifar de sol a sol treze mil réis;
o pão é negro e escasso;
escasseiam o café e o bacalhau;
uma junta de muares ganha sessenta e sete escudos por dia;
o pão é negro e escasso;
escasso e negro, dizem os ceifeiros, sem perceberem porque lhes cabe o sacrifício.
Uma crosta de silêncio ofendido mina os ranchos. Sufoca-os a ira de pactuarem com aquilo que os molesta e excede.
As fomes estão desatadas umas das outras; ombreiam mas temem-se. E em pouco tempo, quase de repente, perdem o medo no meio da noite. Os homens conversam lá fora
nos braços das trevas com alguém que veio de bicicleta, enquanto Luísa Atouguia afaga o ventre empinado e feio, onde se agita um menino moreno de olhos negros, bem
bonito, por sinal; a mãe ainda ignora que ele se chamará João, que ficará órfão dela muito cedo e há-de completar 23 anos em 8 de Dezembro, às duas e vinte da madrugada,
exactamente à hora em que ele atravessa a fronteira enregelado pelo frio de um Inverno inclemente.
236
Mas nesta noite quente os ceifeiros não dormem. E não é do calor nem dos mosquitos, nem da fome nem do medo. Pensam e não dormem.
"- Vê se sossegas, homem! - diz Luísa Atouguia num segredo, deitada com o marido sobre a esteira no barracão do rancho.
- A gente vai à vila, amanhã.
- Fazer o quê?
- Pedir pão à Câmara.
- vou contigo.
- Não, é melhor ficares. Tens o menino contigo. O menino vai ser preciso depois, sim, depois quando a guerra acabar, as coisas mudam.
--Que coisas?!...
- Que raio de pergunta!
- Era bom...
- Pois era! A gente vai à Câmara pedir e eles não gostam que as pessoas se ajuntem.
- Então deixa-me ir contigo...
- Não, tu ficas. Fazes mais falta do que eu; fazes falta ao nosso menino, és tu que o trazes."
O tenente Júlio Ribeiro joga ao brídege com Zé Miguel, o Dr. Casquilho do Vale e o novo médico camarário. Está a jogar mal. Não percebe porquê, continua distraído,
talvez a pensar em Pedro Lourenço, que os seus homens não vêem há quase duas semanas. Medo, não, não tem medo. Para ele a angústia vem denoite, às duas da manhã,
quando acaba o primeiro sono e se instala a insónia.
Já perdeu quase cem escudos. Bebeu seis cervejas, o calor abranda de madrugada, mas mesmo assim ainda não deixou de suar. Um suor espesso que cheira aos marroquinos,
terríveis companheiros na hora do saque e do amor. Vê na sua frente um muro branco, cheio de mazelas tapadas pela cal, e lá pregada, aberta a sangue, a figura
237
de uma mulher de cabelos negros repuxados para a nuca, sorridente, de cabeça erguida. De que te sorris, mulher?... No rosto de azeitona verde só a boca estremece,
como se rebentasse de beijos para o futuro que já ninguém receberá da sua boca, porque uma das espingardas está apontada para a sua boca e vai estoirá-la, assim
que houver ordem de fogo e se apagar o sorriso naquela boca, boca, boca.
Irritado, pergunta para o parceiro:
"- De que se ri, Dr. Vale? Sim, de que está a sorrir? Acha graça a alguma coisa?!..."
Os outros entreolham-se, sem o compreender, e o tenente atira as cartas para cima do pano verde, como se jogasse para o peito dos parceiros a ponta de uma baioneta.
Pega no quépi e sai numa fugida; parece que alguém o persegue depois de saltar, por absurdo, pela janela aberta da sala de jogo.
"- O tenente tem mau perder - comenta o médico, a arrebanhar as fichas.
- Nunca o vi ganhar uma única vez. Devia ter sorte com as mulheres.
-E não tem?!...
- Também não."
Zé Miguel ainda não disse uma palavra. Mandou um recado escrito para casa da mãe, sim, que avisasse o primo, e fica agora a pensar se o tenente não saberá do bilhete
enviado de tarde para Aldebarã.
Àquela hora o pessoal dos ranchos começa a abandonar os barracões nas empestas mais distantes do Cabo, que é o porto do Tejo onde combinaram embarcar para chegarem
à vila. Pela hora do Sol são três da manhã, três e vinte da manhã, e alguns precisam de andar quinze quilómetros bem contados, tanto mais que as mulheres também
vão pedir à Câmara que acabe com
238
as senhas, perde-se um tempo dos diabos todas as vezes que precisam de se aviar, fora as negas que recebem porque a mercadoria não chegou, é o que respondem os merceeiros
quando elas refilam.
Pelos carris silenciosos da Lezíria caminha o silêncio irado dos ceifeiros, ombro a ombro, a que ladram os cães dos campinos, enquanto na noite se distinguem as
manchas das manadas de toiros e cavalos que se movem à passagem dos grupos. As luzes da vila estão cravadas no horizonte do norte. Encarreiram-se pelo declive das
ruas mais altas e alguns ceifeiros conhecem-nas à distância.
Como raios de uma única estrela, dezenas de grupos marcham para a mesma luz distante, sem pressa, pois têm muito que andar todo o dia; ninguém prevê o que irá passar-se
quando atingirem o largo da Câmara à volta das onze, mais coisa menos coisa, porque é a hora de o Sr. Presidente chegar.
Luísa Atouguia vê o seu homem partir do barracão, aconchega-se na manta e abotoa a blusa, que deixa aberta enquanto dormem, para que o Isidro possa mergulhar a mão
entre os seus seios. Já não lhe muda o hábito senão quando o menino nascer, pensa a sorrir. E logo se põe a magicar na maneira de chegar à vila antes das onze, embora
o seu homem a tenha proibido de abandonar a emposta.
Será questão de apanhar um sopapo ou dois, tanto faz, porque se o Isidro se zangar já lhe experimentou a força das mãos e não lhe custou muito, vamos lá. Prefere
contrariá-lo a ficar no barracão o dia inteiro à espera de notícias, moída pela dúvida, que teria sucedido, Deus do Céu, que teria sucedido?
Pedro Lourenço pedala pela noite dentro.
239
Tira da algibeira um bocado de pão com linguiça e põe-se a comê-lo em grandes dentadas, que depois mastiga devagar. Quando atingir a curva da estrada onde uma bica
de pedra escorre um fio de água, irá parar, beber uma boa golada e depois molhar a cabeça, para que a fadiga das duas noites perdidas se acalme. De vez em quando
adormece em cima do selim, percebe que a bicicleta deu uma curva para o meio da estrada e assusta-se. Já teria quinado em cheio se aparecesse algum carro ou caminhão
do outro lado. O que lhe vale é que por ali passa pouca gente.
Assobia, põe-se a pedalar com gana a ver se disfarça a fadiga. Precisa de chegar à barca de passagem do Ruivo antes de amanhecer; adivinha que o procuram, recebeu
o recado do Zé Miguel, e esse gajo anda de água e pucarinho com os tipos da Câmara, sabe o que eles pensam, anda ao serviço deles, mas não esqueceu a amizade de
primos e de antigos camaradas, ainda bem, talvez não tenha apodrecido de todo.
Os ceifeiros mais madrugadores atingem o porto do Cabo quase duas horas antes da saída do primeiro gasolina.
Combinam dividir-se pelo valado adiante, de maneira a passarem poucos de cada vez, não vá algum dos cobradores dar o alarme para a Guarda, talvez o Pirata, de quem
desconfiam: numa noite de borga, dizem no cais, já mostrou o cartão para ameaçar um operário da Cimento Tejo quando o outro começou a dizer que até misturavam tremoço
moído no pão de segunda.
Mais afoitas, as mulheres resolvem acender uma fogueira para chamar os barqueiros. Já viram fazer o mesmo aos caçadores que vêm do Alentejo, embora ignorem que a
passagem sai mais cara antes do horário. Mas agora sentem pressa de chegar, não sabem porquê, pois
240
a hora do ajuntamento ainda vem longe. Não estão habituadas àquelas andanças, precipitam-se, querem fazer qualquer coisa, como se a razão lhes queimasse o corpo.
Luísa Atouguia enrola a esteira onde dorme com o seu homem e encosta-a à parede do barracão. Deixou-o abalar, mas decidiu passar também para a outra margem, de maneira
a aparecer no largo da Câmara perto das onze. Só ficaram na emposta mais quatro velhas e as crianças.
Naquele momento, o feitor entra num rompão, parece que traz lume nos calcanhares, e pergunta-lhe pelo resto do pessoal, que história é aquela?, então abandona-se
assim o trabalho logo ao segundo dia de ceifa?
Ela fica atarantada quando se lembra que o feitor pode pedir um barco para atravessar o rio e avisar a Guarda. O Mouchão fica mesmo defronte de Alhandra, do outro
lado há telefones; pra que raio há telefones contra as pessoas que só pedem de comer?
"- Foram pedir à Senhora Câmara pra ver -se arranja mais comida.
- Mas então eu sou aqui algum boneco de palha? Nem ao menos uma conversa, um recado, qualquer coisa. Sou aqui algum bandalho, ou quê?!...
- Não, senhor, ora essa, não, senhor. A gente até falou em vomecê, que se todos soubessem dar apreço ao trabalho da gente...
- Cantigas do arroz quinze é o que eu oiço. Mas as acções são de bisbórrias, de malandros. Lá porque mostro os dentes, pregam-me uma desfeita destas. com gente assim
só a chicote, é o que te digo, Luísa Atouguia.
- O Sr. Anselmo sabe bem que o avio não chega pra labuta do corpo.
- assim arranjam-no? Diz lá: assim arranjam-no? Ou voceses julgam que a Câmara tem lá pão pra dar?
241
- As coisas não faltam aos que podem pagar...
- Ora essa! E é assim ia perder dias que voceses arranjam dinheiro?... Se a gente os manda perder um dia, logo aí mostram voceses umas trombas dalifante. Mas quando
lhes dá na veneta, largam o trabalho sem se ralarem com o que perdem aqueles que pagam. Não é de razão, Luísa Atouguia.
-E quem na tem, Sr. Anselmo? Sim, quem é que tem razão quando se puxa um dia inteiro por uma foice e não se come o suficiente pra levantar um braço?
- Mas não é assim...
- Quem não chora, não mama, é um dito antigo. A gente vai pedir e eles hão-de dar algum governo...
- Na Câmara só há papéis. Eu já sei do que a casa gasta, tenho o rabo coçado como o macaco, sabes tu?! O que vocês esqueceram, já a mim me lembra, mas quem se aguenta
com o patrão sou eu. Tenho a responsabilidade disto tudo. Ofereceram-me um rancho de gaibéuas mais barato e eu falei ao patrão a favor de voceses. E agora lixo-me,
apanho com uma parelha de coices pla banda dos queixos. É bem feito! Pra mim é bem feito! Quem me manda ser parvo e zelar pelas bestas que não conhecem a mão que
lhes dá o comer?...
- Mas isto não tem nada a ver com vomecê. Ninguém está contra si, nem contra ninguém, Sr. Anselmo. O meu menino nasça cego, Deus me perdoe!
- Voceses andam mal aconselhados, Luísa Atouguia. E eu só tenho uma coisa a fazer: montar na égua e ir queixar-me."
Luísa Atouguia ataranta-se, fica sem forças, mas lembra-se do seu homem e dos companheiros:
"- O Sr. Anselmo não faz uma acção dessas! Eu sei que não faz...
porque
91
242
- Porque já andou aqui na lida como a gente e sabe que o povo tem razão. O povo não é mau.
- Mas é ingrato! Uma corja de bisbórrias e de malandros, sou eu que to digo.
- O Sr. Anselmo tem gente do seu sangue metida nisto.
- E tu tens gente do teu sangue a roubar o comer à gente todos.
- Eu?!...
- Sim, tu. És ou não és prima desse malandro do Zé Miguel?!...
- Não tenho nada com gente dessa raça, Sr. Anselmo. Vomecê sabe bem que não. A família dos Atouguias não conhece sangue podre de gente sem vergonha.
- Então estás como eu.
- Não me diga que está contra a gente!
- Estou do lado das minhas obrigações, Luísa Atouguia. E é por isso que vou agora mesmo à vila.
- E se eu lhe disser que não vai?!"
Luísa Atouguia solta a ameaça num grito, corre até à porta do barracão, onde já se amontoaram as quatro velhas que ficaram na emposta por falta de pernas para a
caminhada até ao Cabo, e defronta o feitor de navalha aberta. Tremelica-lhe a mão, faz força para não dar parte de fraca.
"-Sabes o sarilho em que te metes?
- Sei. Sei, sim senhor.
- Sabes que nunca mais tens uma hora de trabalho dentro desta emposta?
- Também sei...
- Então deixa-me sair a bem.
- Nem a bem nem a mal. Se vomecê der um passo daí, juro-lhe pelas minhas entranhas... não mobrigue a jurar, Ti Anselmo, não me leve à perdição.
243
- Já estás perdida, Luísa Atouguia, e não sou eu quem te perde.
- Pois é por isso mesmo que, se vocenecê quiser sair, eu tenho de lhe fazer uma desfeita. Mulher perdida não quer conselhos; e eu estou perdida, Ti Anselmo."
O feitor compreende que por enquanto não passará para além da fronteira marcada pelas mulheres. Magica na situação em que se encontra, dando alguns passos para o
fundo do barracão, e aí se acomoda, sentado, numa das arcas do pessoal. Tira o chapéu e fá-lo girar nos dedos, derrancado pelo despeito que cresce dentro de si.
Uma brisa do Tejo traz até ele o farfalho das espigas secas da seara; depois olha para o tecto, como se precisasse de investigar qualquer coisa que o preocupa, e
nota que as bandeiras espessas das teias de aranha não balouçam. Percebe palavras soltas da conversa das mulheres junto da porta. Uma delas excitou-se e deve recear
as consequências do que se passa. O tempo trabalha por si, pensa o feitor.
Luísa Atouguia segue-lhe os movimentos pela penumbra do barracão, quando ele resolve levantar-se e espiar o que diz uma das velhas, a Adelaide Pato, acocorada sobre
a travessa da porta e a afagar o neto que gatinha perto dela. A luz do Sol incomoda-as, talvez porque lhes bate nas costas, como se esperassem qualquer desfeita
traiçoeira da banda da Lezíria.
Não, não vem ninguém pelo carril, tudo ficou abandonado, sem vida. Mesmo a seara no seu adejar doirado parece morta; falta-lhe o rancho. Nada vive por ali sem a
mão das mulheres e dos homens. Sem eles tudo perde sentido e força.
Já muitos chegaram à vila, que os estranha, em pequenos grupos silenciosos, inquietos; adivinha-se uma estranha
244
agitação por detrás daquela tristeza por onde se arrastam graves e arrebatados.
Das aldeias do Norte também chega mais gente.
Vêm todos com os fatos de trabalho, de calças remendadas e camisas manchadas pelo suor; alguns trazem as alfaias, enxadas e foices, como se quisessem lembrar que
não vai ali qualquer rebanho de pedintes. Não, não vêm por esmola, é preciso que o entendam quantos os interrogam com o olhar.
Os barqueiros dos gasolinas começam a notar, só agora, que o movimento se assemelha a certos sábados quando o pessoal vem a casa. Os ceifeiros chegam ao cais e entretêm-se
por ali, à espera. Os homens metem-se nas tabernas, pedem um copo de dois para passar o tempo e não despertar suspeitas; as mulheres vão até ao mercado, onde se
confundem com as outras que se aviam. Algumas trazem os filhos consigo, mas não arranjam paciência para lhes aturar as birras ou os pedidos de fruta e doces; aquilo
é um desafio permanente às crianças, que não percebem o que se passa, e rabujam, e rezingam, ih, senhores! tanta coisa boa!, para que têm olhos os pobres?
Os grupos querem dispersar-se, mas há qualquer força oculta que os ajunta contra a sua vontade, e embora se afastem novamente, sem falarem uns para os outros, acabarn,
daí a instantes, por se reunir um pouco por toda a parte, no centro da vila, como se os atraísse para aí a ânsia de não faltarem ao encontro das onze, quando o relógio
da praça bater as onze horas calmas e indiferentes, e o Dr. Carvalho do Ó estiver reunido com os vereadores na sala das reuniões, está aberta a sessão, meus senhores,
o senhor chefe da secretaria vai ler a acta da sessão anterior.
Mas às onze menos vinte no relógio da estação, talvez dez e trinta e oito no da torre da praça, três camponesas acabam de se aviar; depois de guardarem cartuchos
e
245
embrulhos nos sacos de chita, perguntam quanto devem aos caixeiros. Estes reparam que às portas da mercearia há uma chusma de cabeças de homens a espreitar. Não
é fácil perceber se ameaçam ou suplicam, porque não falam, mal se movem, só os olhos vivem febris e inquietos nas caras lívidas, pelo sezonismo ou pelo medo, nem
eles o sabem, o pior é que todos juntos alarmam os receios do João Coutinho, sócio de Zé Miguel nos negócios da candonga.
João Coutinho pressente qualquer coisa, não sabe o quê, estremece e logo se domina, lembra-se dos assaltos na guerra de 14 quando era marçano e o povo escavacou
a mercearia do patrão, abrindo as torneiras do azeite e do petróleo, rapando o que havia nas tulhas e nos sacos, numa febre de destruição que ainda hoje o perturba.
Dirige-se a. uma das mulheres, pega na conta feita a lápis num pedaço de papel e soma-a rapidamente. Traz as parcelas na ponta do lápis, repete os algarismos a meia
voz, tira a prova ainda mais à pressa e sussurra o que tem a receber; percebe depois que a freguesia não o ouviu e repete:
"- São dezoito mil e quatrocentos!
-Quanto?
- Dezoito mil e quatrocentos, já disse três vezes."
A mulher não responde nem o encara. Entrou decidida, ofereceu-se aos outros, mas agora hesita quanto à forma de sair da loja. As companheiras tomam a mesma atitude
de ronha ou de receio, olham para as portas, à procura de ajuda, e os homens acenam a cabeça num movimento curto e lento, ajeitando depois os casacos pendurados
ao ombro.
João Coutinho suspeita que algo se vai passar de complicado e grave. Quase tem a noção, ou o palpite, de que se repetirá dentro de momentos uma dessas violências
que o aterrorizaram em jovem, aí por 1917, não se lembra em
246
que mês, em Setembro, sim, talvez em Setembro. O ar que respira parece-lhe o mesmo, e os olhos das pessoas, e os braços tensos das pessoas, e o silêncio sinistro
das pessoas, enchem a atmosfera de um óleo espesso que custa a sorver, que oprime e asfixia.
Finge baixar-se para mudar meio fardo de bacalhau para junto do balcão, chama o marçano para lhe dar uma ajuda; e diz-lhe a meia voz para avisar a Guarda: o melhor
será sair pela porta de trás do armazém.
Quando se ergue, uma das mulheres caminha em direcção à rua, devagar, com -a lentidão premeditada de quem precisa de fugir numa corrida e se domina até ao absurdo
para que não aconteça o pior. Ele pergunta ao caixeiro se a mulher pagou, o empregado ataranta-se, nega num movimento de cabeça, e então os dois gritam ao mesmo
tempo: "Eh mulher! E o dinheiro?"
Esperam que ela fuja, será melhor fugir, mas a ceifeira não consegue alargar o passo quanto mais correr, ou talvez não queira mostrar aos companheiros que receia
o Coutinho, e volta-se cheia de súbita dignidade, como quem pergunta o que desejam dela.
"- Sim, você não pagou - clama o caixeiro.
- Nem pago..."
Larga as duas palavras num esforço terrível, mas apoia-se nelas e desata aos gritos, a falar aos gritos:
"- Eu trabalho e preciso de comer, voceses roubam a gente de toda a maneira e eu quero trabalhar e pra isso preciso de comer. Sim, quem trabalha precisa de comer."
Parece que só conhece aquelas mesmas palavras e repete-as; logo depois a imitam as outras duas, assim como os homens que espiam às portas e arriscam um passo para
dentro da loja.
"-Quem trabalha precisa de comer!
247
- Ponha no rol, se quiser, ou desconte no que passa de candonga" - intervém o marido de Luísa Atouguia, que ainda não fechou a navalha à porta do barracão.
Incendeia-se no centro da vila, e quase simultaneamente, o rumor angustiado dos grupos que correm. O tenente Ribeiro foi claro nas ordens. Os soldados avançam a
passo estugado, de carabina em punho, estão cegos de autoridade e de receio, não querem ninguém à janela, não querem ninguém às portas, não querem ninguém nas ruas,
não querem ninguém no mundo, têm família, para que raio se metem as pessoas em coisas daquelas, se todos podiam ficar quietos à espera? Assobiam-nos, viam-nos de
longe, atiram-lhes pedras, que têm eles a ver com aquilo?, correm, o Dr. Carvalho do Ó mete-se em casa, numa fugida, um ceifeiro fica parado na esquina e um guarda
ameaça-o, e o camponês pergunta se as ruas não se fizeram para as pessoas andarem, o soldado não percebe o que o outro lhe diz e empurra-o à sua frente, quer que
o vulto desapareça depressa dos seus olhos, mas as vaias crescem, os grupos ameaçam, gritam, blasfemam e fogem, voltam a aparecer na outra esquina, apedrejam, atropelam-se
uns aos outros, consta que já foram dois homens e uma mulher para o posto, um menino espreita por entre os vidros, e pensa que os ceifeiros são maus, a mamã reza
e diz-lhe que sim a chorar, uma velha camponesa chora no passeio, garante que viu um homem ferido e os outros repetem que já viram um homem morto, e os grupos cindem-se,
recompõem-se, abalam, regressam, as lojas cerram as portas e os caixeiros põem taipais nas montras, consta que na outra rua partiram os vidros todos das montras
e há um guarda morto, não se sabe como, parece que levou um tiro, mas ainda ninguém ouviu tiros, ninguém deve assomar às janelas, ninguém deve esperar às portas,
ninguém deve andar nas ruas, o Dr. Carvalho do Ó toma um sedativo
248
e telefona para Lisboa, de Lisboa garantem que já seguiram dois automóveis, os ceifeiros correm para a praça e o sino da Câmara começa a tocar a rebate, e o sino
da igreja, começa a tocar a rebate, e então ouvem-se tiros, quatro ou cinco tiros para o ar, o ar apanha os tiros e deita quatro ou cinco fios de sangue imaginário
que empoça na cabeça aturdida das pessoas em fuga.
A vila atira-se de joelhos para dentro do silêncio. Um silêncio de raiva adiada que cristaliza no ar fendido por quatro ou cinco tiros.
Os guardas correm agora atrás das suas sombras e tomam as ruas solitárias, cheias de gritos mudos, mãos invisíveis e angústia assolapada, numa ferida longa e funda
que Luísa Atouguia guarda nos olhos tristes, quando se volta para a Lezíria e a vê de rastos, à espera.
249

À noite só o luar passeia nas ruas da vila sob a vigilância da Guarda. Noite abafada de calor, e fria, fria, tão fria que ninguém sai de casa. Foram oito ceifeiros
para Lisboa, diz-se numa atoarda. Regressaram os outros ao Campo, agora amontoados nos gasolinas, onde quatro espingardas vigiam. Um dos guardas vai triste.
O tenente Ribeiro procura Miguel Rico na garagem e entrega-lhe um maço de guias para que os seus carros transportem amanhã mesmo, amanhã sem falta, farinha e arroz
para aumentar as rações dos ceifeiros, assim foi resolvido na Câmara por ordem de Lisboa. Depois falam de Pedro Lourenço.
Onde está Pedro Lourenço àquela hora?!...
Irene Atouguia olha para o filho, estranha a sua visita, depois do que se passou na vila, e insiste em negar, não, já não vê o sobrinho há muito tempo, sabe lá quanto!,
era o que faltava lembrar-se de uma coisa dessas!
"- Houve quem o visse entrar para aqui. A mãe precisa de ter cautela.
- com quem?
- Consigo.
-? Julguei que era contigo."
250
Calam-se ambos. Irene Atouguia continua a arrumar a cozinha para não ter o filho à sua frente. Não consegue ignorá-lo, por mais que se esforce.
"-Quem te mandou cá vir? Quem foi?!...
- Um amigo meu, para evitar a vergonha de lhe passarem uma busca à casa.
- Se calhar julgam que eu guardo aqui as coisas que tu passas às escondidas.
- Não brinque com coisas sérias, mãe; não se ponha sempre contra mim, senhora. Quem a ouvir julga que lhe fiz mal.
- Mais do que pensas.
- Quero pedir-lhe desculpa daquela conversa do outro dia. Falámos de mais.
- Ah!... Não, não tem importância, na minha idade a gente não merece que os filhos se ralem.
- Desculpa-me?
- É melhor não se falar nisso, Zé. Tudo está na mesma. Nada mudou na gente. Eu não mudei e tu também não...
- As coisas mudam com o tempo.
- Se as pessoas não mudam, o resto não interessa. Sem as pessoas as coisas não interessam."
Zé Miguel aproxima-se e põe a mão sobre o ombro dela.
"-Posso pedir-lhe uma coisa?"
Fitam-se bem nos olhos. Irene Atouguia percebe que os seus estão magoados, talvez com algumas lágrimas, não tantas como as que guarda no fundo de si, e vê o filho
desviar os dele. Abafa a emoção em palavras.
"- Se for coisa que devas pedir...
-sim.
- Então, diz.
-Não deixe o Pedro vir aqui pernoitar.
251
- Descansa. Ele nunca mais cá vem, não é tolo. -Obrigado, mãe.
- Não, não agradeças. Porque eu abro-lhe a porta sempre que ele aparecer, fica sabendo.
- Pode custar-lhe caro.
- Não sou nenhuma loja; não marco preço às coisas que devo fazer. E eu tenho obrigações...
- Mais comigo do que com ele.
- Nem tanto sim, nem tanto não, Zé Miguel.
- Não esperava ouvir isso da sua boca.
-Cada um serve os seus amigos. Agora a gente tem amigos diferentes. É pena! É pena, mas é verdade."
Agora é Irene Atouguia quem agarra o braço do filho.
"- Vieste com mau encargo, Zé. Num dia como este, alumiado como este, não devias entrar aqui para uma coisa tão reles. Aquela porta deve ficar sempre aberta para
ti. Mas vem como filho. Se não puderes vir como filho, não venhas.
-É por isso que estou aqui...
- Enganas-te. Os nossos filhos não são os que se trazem dentro da barriga, quando eles largam o nosso sangue e se apegam a outro. E tu da minha banda, como da banda
do teu pai, não tens exemplos desses.
-Quais? Não percebo.
- De andar a saber aqui para ir contar acolá.
- Defendo-me. Eles estão contra mim.
- Pois! O mal é esse. O mal é esse porque eu estou do lado deles."
Zé Miguel atira-se em dois saltos para a porta e esconde-se na noite, enquanto a mãe baixa os olhos, querendo fingir que dormita. Essa foi uma das noites danadas
da minha vida. O veneno da raiva meteu-se dentro de mim, de tal maneira, que pedi aos choferes da minha confiança para me avisarem sempre que vissem em qualquer
parte
252
o meu primo Pedro Lourenço. Não, não fui eu que tive a culpa de ele ser agarrado. E se fosse? O desgosto que sofri por causa dele naquela noite merecia tudo da minha
banda. Só contei ao tenente Ribeiro que o tinham visto para as bandas do Couço. Quando a minha mãe me disse aquelas palavras malinas, senti-me rasgado por dentro,
cortado de alto a baixo por uma navalha esbeiçada cheia de veneno. Meti-me a caminhar sozinho pela noite, fugi às terras, sempre por atalhos, e falei, falei, não
me lembro das coisas que disse, galguei os montes que vão para a banda do mar à procura dele, queria encontrá-lo nessa noite para o derreter a murro e a pontapé.
Sim, estalava-O todo; se o apanho, havíamos de lutar até à morte, romper-lhe a tromba, como acontece aos melões quando caem no chão, assim esbeiçados, abertos e
esbeiçados. Hoje penso, sei lá!... Já agora digo: hoje penso que, se encontrasse um gajo qualquer de bicicleta, o obrigava a parar e a bater-se comigo a murro e
pontapé. E se ele não parasse, atirava-lhe a tiro. E afinal, vendo bem, sou amigo do meu primo Pedro Lourenço. Tenho-lhe respeito. Medo, não, carago! Agora só tenho
medo de mim.
Mas nessa noite pus-me a caminhar desenfreado, como se andasse à cata dele. Uma parte de mim queria-o agarrar e a outra parte andava a protegê-lo. Porquê?! Ora essa!...
Então metia-me por atalhos de pedras para encontrar um homem que anda de bicicleta? Não, parvo não sou. Embora um homem com raiva possa fazer papel de parvo, eu
fui sempre capaz de não perder a cabeça nas alturas piores da minha vida.
Agora é outra coisa... Agora partiram-me por dentro, querem fazer pouco de mim e isso não deixo, nunca deixei, quanto mais sentar-me no banco dos réus e ficarem-se
a rir de mim esses gajos todos que me invejaram o dinheiro e a sorte. Na minha vida de sangue sou eu quem manda;
253
na outra mandam agora as que se serviram de mim e se preparavam para me acabar no tribunal, como se me levassem à arena para me darem com a puntilla. Felizmente
que a minha mãe já não vê nada disto. Ela rogou-me uma praga e, se calhar, foi essa que me caiu em cima. Parece que estou a ouvi-la: cada qual há-de ter o pão de
que gosta; e o teu há-de ser azedo, Zé Miguel!
Irene Atouguia baixa os olhos para fingir que dormita. Talvez queira esconder as lágrimas guardadas dentro de si, choradas lá bem no fundo, sente frio quando o filho
sai de rompão para a rua, mas. depois ergue-se a custo e vai espreitar à janela, afastando a cortina com os dedos nodosos e trémulos.
Ficou pálida, a noite está quente e ela parece atravessada por um frio, muito frio, bem frio, que a obriga a ir buscar o xaile e a enrolar-se nele. Rompem-lhe lágrimas
nos olhos doentes e fatigados. E ela esmaga-as nos dedos, com força, matando-as quando lhe correm pelas rugas, ao mesmo tempo que diz palavras a esmo, como quem
atira pedras a um cão.
Torna-se mais pequena, destruída pelo desgosto de ver o filho contra os seus, inimigo do ventre onde o trouxe, dos seios onde lhe deu de mamar, do regaço que o embalou,
desgraçado, desgraçado, que nem conhece os que o puseram no mundo!
Desgraçado e maldito, que até ela se enganou quando o soube rico, satisfeita por ver um filho seu saltar da penúria, sem se lembrar, onde tinha eu a cabeça?, sem
se lembrar que o dinheiro vem de alguma banda, sempre da mesma banda, e que muito ou pouco são sempre os mesmos que o perdem e suam.
A dor atarraca-a. Agarra-a pelos ombros e sacode-a.
Vê o seu Zé Miguel chegar, quase morto, a verter sangue pela ferida na testa, onde lhe deixou a marca de uma
254
cicatriz, mas não tanto como esta de agora, porque o povo fala dele como de um inimigo, ladrão da boca dos pobres, ainda o diziam os que fugiram da vila acossados
pela Guarda e lhe contaram coisas de estarrecer, talvez exageradas, mas em que é preciso acreditar.
Há muito que não reza, quase esqueceu as orações ensinadas pela avó da banda do pai, e agora di-las em voz alta, de mistura com pragas e queixas.
As ruas da aldeia ficaram desertas nesta noite.
Pesadas e lúgubres as ferraduras dos cavalos da Guarda ressoam lá fora, como se ferissem o lajedo do adro da igreja. Um grito rompe o silêncio da noite. A velha
não percebe se é de pássaro nocturno ou de gente ofendida. Depois assobiam, gritam e assobiam, e os cavalos trotam para mais longe da sua casa, onde à porta continua
o automóvel que o Zé Miguel trouxe da vila.
Onde estará ele, que não levou o carro?!...
Ocorre-lhe uma ideia. Sorri da lembrança. Apaga a luz do candeeiro num sopro, abre a porta de mansinho, apura o ouvido, escuta, devem estar longe, parece que há
vozes iradas no extremo da rua, e então solta um grito de acusação que ela sabe capaz de alcançar os guardas, a cavalo.
Esconde-se e sorri, presta atenção ao que se passa na rua, volta a clamar o mesmo desafio, e logo de seguida as ferraduras partem o silêncio numa cavalgada. Cerra
a porta e espreita outra vez por entre as cortinas.
Só depois se senta no chão a chorar.
255

A pele da bebedeira começa a sair-lhe lentamente do corpo. Larga-a por camadas, como se certas lembranças do passado fossem pedras onde se arranhasse para arrancar
a carapaça da embriaguez. Tirada em certas zonas, despega-se depois por si em outras maiores, um pouco como pequeno fogo, rabicurto, que queima depressa e depressa
se consome.
Entarameladas em certa altura, quando saiu do bar, as palavras encurtavam-se de algumas sílabas, como se alguém empurrasse a palavra toda e as sílabas mais fortes
conseguissem soltar-se da pressão, unindo-se, por atracção, no articular remanchado da boca pastosa. Ou melhor, como se entrassem num harmónio fechado de repente
e aberto depois um tudo-nada, embora a mão que o abrisse fosse hábil em procurar os sons mais importantes, as sílabas mestras da palavra traída.
Mas logo que a pele da bebedeira principia a soltar-se, talvez porque no areal da praia sopre a brisa fresca trazida da banda do mar, é da fonte das palavras que
ela sai primeiro, pondo-o a articular bem o que diz, apesar de na cabeça prosseguir o rodopio lento da inconsciência,
256
a tropeçar ainda uma vez por outra e a fazê-lo soltar gargalhadas curtas.
Quando recordou a noite em que foi pela última vez a casa da mãe, já as palavras se soltaram quase estremes, embora a ideia se lhe baralhasse ainda.
Torna-se doloroso, porém, regressar à angústia da carne viva que sangra, sem nada haver mudado dentro e fora de si. Talvez a rapariga esteja um tanto desconfiada.
Receia ter-se traído nalguma palavra; não se lembra do que disse.
- Estás com cara de chateada. Que foi?!
- Nada, pá.
- Nada o quê?...
- Nada!
- Escusas de fazer essa cara.
- Sinto-me cansada, pá. De repente fiquei cansada. Bebemos de mais. Comecei a acompanhar-te e fiquei tonta. Tenho a boca grossa por dentro, parece inchada, pá.
- Beber faz esquecer.
- Por pouco tempo. Não chega, pá. O pior é que quando bebo mais do que a conta me lembro sempre, é esquisito...
- Do quê?.,.
- Lembro-me melhor duma coisa que me chateia.
- Diz lá o que é. Desabafa, faz bem. Desabafar é melhor do que soda para passar a bebedeira.
- Não vale a pena, pá. Nada na minha vida se remedeia.
- Tens o vinho triste, pelo que vejo. O meu dá-me prà porrada. Lá dentro do bar apeteceu-me partir aquilo tudo, as coisas e as luzes, aqueles gajos...
- Eu.
-Tu, não. Preciso de ti.
257
Agarra-lhe na cabeça, obriga-a a olhá-lo bem de frente, olhos nos olhos, firme, porquê? para quê?, e depois acaricia-a.
- Preciso de ti.
Ela pensa: deixa-me dizer a este velho uma coisa bonita.
- Também eu... Se não fosses tu, pá, palavra! palavrinha!, já tinha acabado com isto, pá.
- Gostas assim de mim?
- Nunca gostei de mais ninguém, pá.
- Vai vender esse peixe a outro.
- Não consinto que duvides de mim, pá. Se tu me deixasses para sempre, não queria mais ninguém. Não acredito nas pessoas, pá.
- Ora!
- Sim, não acredito, pá. Talvez porque não acredito na minha mãe nem no meu pai.
- Que te fizeram eles?
- Sabes tão bem como eu. Percebi que vocês se entendiam... Tu e a minha mãe.
- Olha, olha agora! Temos fado; para onde vens tu.
- Deste-me de beber e vocês beberam os dois. E então puseram-se a agarrar as mãos um do outro e eu fingi-me mais bêbeda do que estava. Vocês foram beras.
- Não digas isso.
- As duas conversamos muita vez desse dia. Falamos verdade uma à outra; ajudamo-nos uma à outra para enganar o velho.
Tem um sorriso amargo.
-O velho sabe de tudo, há muito tempo. Talvez antes de mim. E depois atiraram-me para ti por causa das bocas do mundo, pá. É chato, pá! É desgraçadamente chato!
- Não fales nisso.
258
-- Agora apetece-me falar; não sei porquê, mas apetece-me. Tenho a impressão de que vai acontecer qualquer coisa, pá, e que preciso de dizer as coisas piores que
trago cá dentro.
-? Julgas que vais morrer?
?- Não sei. Não sei o que é, pá. Mas acho que é importante dizer agora certas coisas.
Sentaram-se dentro do carro. Zé Miguel vê o relógio e tem meia hora. Já é pouco, carago, já não chego lá antes das sete e meia. Destrava o carro, põe o pé na embraiagem,
mete a marcha atrás e faz a manobra para sair do parque com perícia profissional.
-"Viste?
- Guias bem.
- Carros. Sou capaz de conduzir em certos sítios de olhos fechados. A estrada de Peniche a Vila Franca conheço-a melhor do que os meus dedos. Todas as curvas, todas
as rampas, -as casas, as árvores, sei lá, talvez as pedras. É esquisito como a gente aprende as estradas.
Embraiagem-mudança, o carro chia numa curva, ultrapassa um "rabo de peixe" mesmo na curva, Zé Miguel ri, a rapariga limpa uma lágrima, olham para trás e o outro
condutor ameaça-os de punho cerrado.
- O gajo assustou-se; parecia um pardal.
- Passaste-lhe uma tangente de arrepiar um toureiro. Ele não responde. Franziu a testa e a cicatriz inchou,
pôs-se mais vermelha, quando pensou numa frase que Zulmira disse. Resolve chegar mais tarde à frente do muro branco, mas já agora tenta saber o que significam as
palavras dela.
Vai meter pela auto-estrada para fugir ao emaranhado da Baixa, sobe a rampa de Caxias, afrouxa o pé no acelerador, volta a cabeça para o lado do rio e perturba-se
ao recordar que está a vê-lo pela última vez. Uma traineira
259
sai para o mar, outras duas seguem-lhe na esteira do lado de bombordo; ainda adivinha os homens, as cabeças, o resto confunde-se com o costado do barco. Transporta-se
para Peniche, às madrugadas da zona do porto, à espera, sentado na taberna do Ilhó a comer e a jogar cartas, bons tempos, Zé, bons tempos!, pra que há-de um homem
ter memória em alturas destas?... A rapariga fica com a impressão de que a tristeza do rosto dele se pode agarrar nos dedos; senti-la dorida nos dedos.
- Em que pensas?
- No que não devo. Os bichos são mais felizes do que a gente, acho eu.
- Eles não falam, pá.
- Talvez seja melhor para toda a gente que eles não falem. O meu cavalo, se falasse esta manhã...
- O Príncipe?
- Qual havia de ser?!...
- Tens mais dois.
?- Mas o cavalo é ele, nunca tive outro que merecesse o nome. Acabou-se...
- O quê?!
- Nada.
Não, não lhe digo como o matei esta manhã. A tiro. Morreu como o meu filho, a tiro. Mato todas as coisas de que gosto, nasci maldito, como a minha mãe me disse muita
vez; é sina minha dar cabo daquilo que mais gosto.
O rio desaparece-lhe dos olhos, baralhado com a cabeça bem posta do seu cavalo morzelo, que relincha de alegria quando o vê entrar dentro da cocheira, e bate as
ferraduras na pedra, como se o desafiasse para um passeio na Lezíria. Levam-me tudo, menos o cavalo e a rapariga. O cavalo já lá vai. Falta pouco mais de meia Jorna
para o resto.
260

O cavalo relincha, mal o vê assomar à porta da cavalariça. Já antes arrebitara as orelhas pequenas e firmes quando lhe ouviu a tosse nervosa e os passos no terreiro
dos barracões, onde cessou qualquer sinal de trabalho. Da criadagem contratada ao ano só ficou um maioral, o Carlos Custódio, pernalta e velho, que lhe ficou a tratar
do Príncipe e das duas éguas, além das três juntas de bois palavradas para venda a um talhante de Benavente.
Há duas semanas que a emposta foi abandonada.
As máquinas estão ao tempo, podem enferrujar; quem vier arrematá-las que se lixe. Do tribunal hão-de vir amanhã fazer o arrolamento de tudo, coisa por coisa, em
minúcias absurdas, não vá a lei ser enganada e com ela o crédito do Relvas, senhorio da emposta e credor de Zé Miguel, por empréstimo bem caucionado. Como se adivinhassem
a deserção, as ervas invadiram terras e caminhos, assim que as primeiras chuvas vieram reanimá-las.
A lavoira de Miguel Rico já não faz sombra. Entrará nela a sornice da justiça, zanaga e canhestra, mais destruidora do que a erva unha-gata, porque ficará pataroca
aos interesses de todos, zelando o prazo exacto de cada
261
papel até esquecer o ruir de uma fortuna que a formalidade transformará em coisa morta. Só a minúcia conta em galas de rainha. Tudo ali tem o seu tempo como a lepra.
O cavalo bate as ferraduras no empedrado da cocheira, desafiando o dono para o habitual passeio pela Lezíria. Lá ao fundo, as duas éguas, a rucilho, flor de alecrim,
e a lazão-cereja, acobreada no pescoço, volvem a cabeça, indiferentes. Conhecem a hora a que o maioral virá buscá-las, a meia tarde, e a luz da cavalariça não as
engana.
Carlos Custódio ficou no limiar da porta, a seguir os movimentos do amo que já não manda nele, nem sequer na erva da emposta, disse-lhe ontem o patrão Rui Diogo
no palácio de Aldebarã, onde foi ao seu mandado. Dali não sairá um pó, haja o que houver.
Miguel Rico estranha o comportamento do criado, desde a maneira como o saudou à chegada, de automóvel, até à perseguição sorrateira que lhe move, sem palavras. Trabalharam
juntos há já muitos anos, talvez quarenta, e Carlos Custódio goza no íntimo o tombo que levou o neto de António Seis Dedos. Nunca o gramou como amo. Ainda não esqueceu
o que dele se falou no levantamento do pessoal em 42, nem da pesporrência com que trata os camaradas do seu tempo de anojeiro e eguariço, embora a disfarce em intimidade
paternal que dói ainda mais do que a soberba sem senhoria.
Preto morzelo, azeviche, ondeado na garupa, como se em vez da pele o cobrisse uma lâmina de metal com brilho de seda moiré, o cavalo segue a aproximação do dono
com os olhos vivazes e ternos, grandes, à flor da cabeça, dilatando-os para o ver melhor e se habituar à obscuridade, onde o vulto de Zé Miguel quase se dissolve.
O homem assobia-lhe num silvo curto e alegre, a que acrescenta um mimo de voz.
262
"-Príncipe! Eh Príncipe! Ooó! Cavalo bonito!..."
O bicho arreganha os beiços flexíveis, movendo a sombra de beta que lhe põe mancha esbranquiçada entre as ventas bem abertas. Alteia a cabeça quadrada e seca, de
pele fina, quase transparente, por onde se lhe descobrem as angulosidades dos ossos, a massa arredondada dos músculos e as ramificações entrelaçadas dos nervos e
vasos; nesse movimento calmo oferece o pescoço à mão carinhosa de Zé Miguel, que começa a corrê-lo até às crinas, e depois à franja, intermeando o afago com pancadas
leves ainda mais ternas. O cavalo relincha de alegria.
Comovido, o homem embaraça-se, incapaz de conter as lágrimas. Chora-as sem vergonha, não as recusa nem limpa.
Comprou-o há três anos entre a poldraria do Relvas e era seu luxo montá-lo na vila, exibindo-o em dias de feira no apuro da maestria com que o mandara ensinar.
Montado num cavalo de ferro Relvas, Zé Miguel sentia-se na cúpula da sua grandeza, como se cavalgasse o destino e o dirigisse na roseta branda das esporas. À janela,
as mulheres observavam-no, enquanto os homens admiravam o Príncipe e desdenhavam o dono, para quem o despeito dos outros só servia de estímulo e bazófia. Ele próprio
requintara o animal nos andamentos e atitudes. Ambos alardeavam a vaidade irmanada que os tornara amigos.
E agora encontravam-se pela última vez.
Sim, ao começo da noite, aí pelas sete e meia, rebentará a maior história da vida de Zé Miguel. A vila falará dele durante muitos dias. Tinha a certeza. E agradava-lhe
essa certeza.
Na praça e nas ruas, nos lugares públicos, em todas as casas, sim, em todas, em qualquer sítio onde as pessoas
263
se encontrarem, será ele o centro das conversas e das discussões. Talvez arranje alguns amigos nessa altura.
"- Não tenho outro amigo senão tu - sussurra para o cavalo. - Só tu nunca me foste falso. Nem uma única vez. Nem parece que tens o ferro desse bode velho, capitão
da quadrilha de gatunos que me roubou depois de se servir de mim."
Deu a cara em todos os negócios feios comanditados por eles, lhano e corajoso. Agora, lixo-me; agora nem os homens me ajudam, nem os santos me perdoam. Depois de
me correrem como a um toiro nobre, querem acabar o espectáculo comigo no chão. Mas aí enganam-se. Se o Carlos Custódio não continuasse à porta, deixaria rebentar
os soluços. Só me deixam uma saída, carago! Tenta acalmar-se para poder falar ao criado, de maneira a que ele não perceba o que está a pensar.
Olha para a manjedoura do lado onde se vinha deitar, sempre que necessitava de empreender nalguma resolução importante. Dava-lhe sorte meditar ali dentro, supusera
durante muitos anos. Desta vez, porém, a ferida era de morte. Agarrara-o sem ele se aperceber; habituara-se a encontrar solução para tudo e confiava em si.
Ignorava que isso aconteceria enquanto eles quisessem. E eles não queriam desta vez; já não precisavam dele.
Limpa os olhos e fala baixo para experimentar a voz. Corre a mão pelo corpo do cavalo; empurra-o suavemente para que se ponha a jeito de lhe -atirar o selim para
cima.
"-Ó cavalo, oó! Vamos dar um passeio, Príncipe."
O maioral fala de longe, mas Zé Miguel não o percebe. Perturba-o a ideia de que sairá com o seu amigo pela última vez; agora nada mais lhe interessa. E não ouve
o Carlos Custódio, que insiste e levanta a voz.
"-O que foi?... Estás a falar comigo?
264
- Estou, sim.
- E então?...
- Tenho ordem pra não deixar sair daqui coisa nenhuma.
- Ha?! Que estás tu a dizer?...
- Que tenho ordem pra não deixar sair daqui coisa nenhuma.
- Não percebo. Conheces outro patrão?!... Se conheces, põe-te daqui pra fora, depressa."
Rasga-se num grito desesperado:
"-Depressa! Tira-te já da minha frente, Carlos! Tira-te, senão eu mato-te!"
Perde a serenidade forçada que trazia, agita-se de um lado para o outro da cavalariça, encara o campino, que recua para fora da porta. Vai até ele, o velho atemoriza-se,
e esbandalha-lhe a cara à bofetada depois de o jogar ao chão.
"-Quem te disse?...
- O Relvas.
- E o que te disse?
- Que tu já não mandavas nisto, que nada disto é teu.
- Hoje ainda é.
- Que ele te vai meter na cadeia. E que eu ficasse de guarda...
- E tu, meu cão, ficaste!
- Fiquei."
O velho ergue-se, trémulo. Arrasta-se, desconfiado, para longe do Zé Miguel e à distância fala-lhe:
"- Ele disse que fico aqui como criado e que tu já não tens dinheiro pra me pagares esta quinzena. Eu preciso de patrão.
- Quanto te devo?
- Cento e cinquenta mil réis."
265
Puxa por uma nota de quinhentos e avança para o criado com ela na mão. Já imaginou tudo o que vai fazer; volta-lhe a serenidade.
"- Toma! Até ao fim deste mês ganhas por minha conta. O Relvas esteve a brincar contigo. Paguei-lhe ontem à noite todo o dinheiro que lhe devia. Estamos quites."
Ainda receoso, o maioral recua.
"-Toma! Duas quinzenas e uma gratificação. Mereces, sim senhor. Eu fazia o mesmo.
- Sabes que...
-Escusas de pedir desculpa. Desculpa tu as chapadas que te dei."
Entrega-lhe o dinheiro, que o outro mete à pressa na algibeira do colete donde pende a corrente de crina para o relógio. Bate-lhe no ombro e manda-o aparelhar o
Príncipe cá fora.
Senta-se num cepo à espera, acendendo uma cigarrilha, que se põe a fumar, voltado para o lado dos montes da vila. O Tejo corre ali perto.
Zé Miguel lembra-se das noites que ali atracou com as lanchas carregadas de contrabando. Para isso convencera o Relvas a alugar-lhe a emposta, fingindo-se lavrador
da Lezíria. O Saca-Rolhas, o Rui Relvas, acabara por se tornar sócio da empresa.
O campino traz o cavalo à mão para junto dele.
"- Quero que me continues a tratar do Príncipe,
- Se me mandares...
- Estou a dizer que sim. No fim do mês arranja-se criadagem nova. Se soubesses ler, metia-te como feitor. És um bom amigo. Aquilo de há bocado já não conta. Não
sou homem de reservas.
- Ainda bem.
-E depois fomos companheiros. Lembras-te daquela gaibéu-a que a gente queria os dois? Era. boazona!"
266
Carlos Custódio sorri com a invocação. Mete o freio no cavalo, experimenta as rédeas e assobia-lhe.
"- Quem a levou foste tu. As mulheres reparavam em ti por causa da cicatriz.
--Eu dizia-lhes que tinha sido um toiro; e elas acreditavam. Não sei porquê, as pessoas acreditam no que eu lhes digo."
Mete o pé ao estribo, salta num movimento presto para cima do selim e o cavalo volta a relinchar. As duas éguas respondem-lhe da cavalariça.
"- Dá-me daí aquela chibata."
O criado corre a servi-lo.
"-? Não faças o almoço. Quando vier do passeio com o Príncipe, comes comigo. Vamos comer aí a qualquer sítio de luxo. Quero festejar contigo este dia.
- Não vou deixar isto sozinho, patrão Zé.
- Ninguém rouba coisa nenhuma daqui. Dá ração às éguas; uma boa ração. Vamos fazer uma lavoira a sério. Arroz e pastos.
- Tens olhos.
- Pois tenho. E tu ainda não mos viste. Quando voltar, a gente fala."
Sorri para o Carlos Custódio, a sossegá-lo. Saúda-o, levando o indicador à aba do chapéu, enquanto o criado se desbarreta, humilde, a tentar compensá-lo da ofensa.
Olha-o depois com ódio, mal o cavalo parte a trote pelo carril.
Pensa consigo: este gajo quando voltar, já percebi, vai matar-me à porrada; se não tivesse a velha, fazia-lhe a cama: antes de saltar do cavalo metia-lhe dois cartuchos
no meio dos olhos.
Pensa naquilo e ataranta-se. Saiu-lhe a sorte grande guando fugiu. Tinha prometido a mim mesmo esfarrapar-lhe a tromba só a murro. Pegava-lhe pelo pescoço pra ele
267
não cair e não perder tempo a levantá-lo do chão, e dava-lhe um badanal até que as faces da cara e as sobrancelhas lhe tapassem os olhos. Tirava-lhe a luz do Sol
por oito dias. Mas já não o agarrei. Deixo atrás de mim essa dívida,
Segue pelo carril abaixo a meio galope.
Já telefonou à Maria Laurinda para dizer à filha que aparece à tarde para darem uma volta. Quer levá-la consigo. Resolveu tudo durante a insónia desta noite, ponto
por ponto. Há cinco dias inteiros que não consegue sossegar a cabeça nem fechar os olhos. Mas agora, que resolveu o que precisa de fazer, desapareceu-lhe a barafunda
e sente-se calmo, sereno e calmo, como no tempo em que avançava para os perigos e precisava de resolvê-los. Julga-se senhor da mesma coragem. Alardeia consigo.
Sabe tudo o que vai suceder até às sete e meia da noite.
Leva o destino na sua mão, bem firme, vai conduzi-lo para onde quer, exactamente como o cavalo em que está montado; ou talvez melhor ainda, porque o automóvel não
usará certos caprichos do Príncipe.
Previu tudo. Só o futuro não guarda qualquer mistério para si: não há nele uma única interrogação. Mas a certeza atormenta-o. Não consegue outra vingança, embora
a considere mesquinha.
Afinal, desforra-se da derrota, fugindo ao cerco dos inimigos, reunidos em dois grupos e encabeçados por homens que se odeiam entre si: de um lado está Rui Diogo
Relvas, seu antigo sócio, do outro Pedro Lourenço, seu antigo camarada. Este chamou-me traidor uma vez que nos encontrámos. Quem traí, afinal?... E quem me traiu?!...
Nesta altura não quero pensar, já não vale a pena, não há para mim qualquer caminho livre. Deixei-me cercar e agora lixo-me, carago! Volta-lhe a moinha ao braço
esquerdo, um pouco pesado, e lembra-se do coágulo de sangue com um bico desvairado à procura do coração.
268
A ideia não lhe agrada, embora fosse mais simples. Jas escolheu. Ao menos ainda manda no seu corpo.
Não lhe agrada, sequer, o suor que as mãos transpiram, pegajosas, num cheiro acre e esquisito. Julga queimar qualquer coisa dentro de si e que o calor desse fogo
lhe sai pelas mãos, em bagas. Por mais que as limpe, não consegue estancar a sua fonte. Talvez destilem ódio, ou sangue, ou medo.
Finca as esporas no cavalo; incita-o com a voz.
O Príncipe passa para um galope de carga, a dois tempos, como se saltasse pequenos obstáculos imaginários junto ao valado das oliveiras, por onde o dono o conduz
sem firmeza nas rédeas. O animal percebe-o, acha-o desigual em riba de si: umas vezes tenso, sente-o no freio aperreado; outras vezes frouxo, adivinha-o pelas pernas
sem força de mando, talvez distraído.
Estranha que o dono não lhe fale, embora o oiça. Mas também o som da voz é outro, débil ou irado.
"- Há três coisas que esses gajos não levam do meu espólio: nem um réu pra culparem, nem o meu cavalo pra se mostrarem na rua, nem a minha rapariga... Estas três
coisas levo-as eu comigo na sentença que eu próprio talhei. Ainda mando. Em mim, ao menos, ainda mando."
Abranda o desespero quando lhe ocorre a pequena vingança imaginada para o D. António Mendanha, que aparecerá a meio da tarde, no café, para exibir o seu Ferrari,
um bólide prateado e roncador, prenda da mulher, uma alentejana de Beja que arrebanha dois milhares nos anos de cortiça e se acomoda nos outros com quinhentos em
rendas nas terras de pão.
Pois também esse lhe veio exigir o dinheiro da letra assinada por cento e cinquenta contos, quando lhe deve cento e vinte ou talvez menos, descontados os fretes
para as fábricas da Amora. Que o resto se via depois, uma
269
letra é uma letra, há que respeitá-la. Disse-lhe que sim, pois então, Sr. D. António, porque logo imaginou desforrar-se no automóvel comprado na véspera, sacando-lhe
as chaves e abalando com ele para a sua última viagem. "-Esse há-de perceber o que gostava de fazer a todos: deixá-los derretidos comigo, já que não posso meter
uma bala na cabeça de cada um. Num só não vale a pena, isso não; ficavam ainda muitos pra semente."
Agora, que diz aquilo em voz alta pela primeira vez, sente um desejo súbito de -acabar depressa.
Receia comover-se, poupar o cavalo e deixar que eles o leiloem à porta do tribunal, um cavalo de sangue luso-árabe, meus senhores, morzelo, ferro Relvas, dá pelo
nome de Príncipe, vai à praça por dois contos, quanto vale, meus senhores? Julga ouvir o pregoeiro que por ordem do meretíssimo juiz do tribunal da comarca fará
cumprir a lei dos Relvas, na voz azeda e indiferente do Sousa, um tanto gozona, como os olhares que deitará para a assistência emocionada, reunida ali para participar
na morte civil do homem mais odiado e invejado da vila, sim, eu mesmo, Zé Miguel, o Miguel Rico, anojeiro e égua rico, motorista de camionetas de peixe, lavrador
e candongueiro, contrabandista e proprietário de sete camiões e de uma quinta, tudo pendurado em letras e hipotecas, sócio do Rui Diogo, maestro e puntilheiro da
quadrilha, do Júlio Ribeiro, do Continha da loja, do presidente da Câmara, etc., etc., etc., e tal, uma lista de gulosos e malandros que nunca mais acaba, mas quem
se lixa sou eu que fico de tanga e vou morrer cheio de dívidas, de sífilis, de mulheres, de ódio, de whisky, de cavalos e de gozo, pois então!, se calhar passava
a vida a ver passar os comboios! O que gozei já ninguém me tira...
Mas estas palavras saem-lhe da boca numa ironia a sangrar angústia, esfarpadas, eriçam-no e deixam-no tanganho,
270
em riba do selim, enquanto o cavalo se encaracola, rebelde, a chamá-lo para as galas de outro tempo de prosápia.
Quando se aproximam de uma tapada onde pastam toiros, o Príncipe relincha e acobarda-se, conhece-os pelo cheiro e pelo mover lento das cabeças; chega-se para a borda
do carril, ladeia, ladeia, um toiro muge junto dos arames da vedação e ele dispara num galope a quatro tempos, pouco concentrado, embora leve as orelhas firmes e
atentas.
Zé Miguel desperta, refreia-lhe o andamento com dois puxões no freio e mete por outro carril que os levará perto da emposta onde Carlos Custódio aparelha a égua
rucilho para fugir.
"-Ó Príncipe, ooó!..."
O animal mete a passo franco, assentando os pés por toda a superfície plantar; não hesita agora nem oscila o tronco no movimento de translação, fraco nas batidas
regulares, quase exactas. Entre a segunda e a terceira batida alonga-se o intervalo, sinal de que o bicho sossegou afastado o perigo, e que o dono lhe afaga as crinas
com a mão que daí a instantes tirará a arma da algibeira, num movimento rápido e violento. Junto dos arreios, o suor leitoso marca-lhe a cor de amora madura numa
espécie de baba pastosa.
Trémula, a mão do homem segura o revólver. É o mesmo que o filho usou há uns anos. Duas balas bastaram. Quantas serão precisas para o cavalo?!... Todos, foram todas,
despejei o carregador, umas atrás das outras, numa fiwda; tinha medo de deixar alguma para mim. Meti-lhe as esporas, obrigando-o a passar para um trote largo, e
aí a cem metros dos barracões, as lágrimas enchiam-me a cara, gritava e soluçava, larguei as rédeas, levei-o só com as esporas, lembrei-me daquela espera de toiros
em que
271
um malesso quase o apanhou pelos quartos traseiros e ele agarrou medo aos toiros, conhecia-os pelo cheiro, e a mim doía-me o corpo todo, desgraçado, desgraçado,
onde se te meteu a coragem de outro tempo?, e meto-lhe o cano mesmo dentro da orelha direita, começo a arrepender-me, chora-me o corpo, o cavalo pressente o perigo,
assusta-se e abala noutro galope, por um triz não me deita por terra, eu grito-lhe e a minha voz não o amacia como das outras vezes, foge mais, corre mais, e então
a gente aproxima-se da aberta do Mar de Cães e eu ganho medo, sei que ele não salta, que me vai partir todo e a rapariga fica para eles, e eu também, carago!, isso
é que nunca! Agarro-me ao pescoço do Príncipe, encosto-lhe a cara, fico Com ela encharcada de suor e encharco-a de lágrimas, meto a primeira bala na câmara, aponto-a
bem no ouvido e puxo, e puxo, e puxo, e ouvi dentro da minha cabeça o estalar da cabeça do meu rico cavalo, parecia que as balas corriam lá dentro pelos corredores
da cabeça dele e da minha, e estalavam, partiam, e ele corria mais ainda, lembrei-me do meu avô no carro da morte, ou talvez se vingasse do penco que matei; e depois
sem eu dar por isso caímos os dois, ele a relinchar de morte e eu a urrar de arrependido, desgraçado, desgraçado, que nem coragem tens pra matar um desses que te
lixou a vida.
Sinto a vida dele a morrer debaixo de mim, a saltar ainda, debaixo das minhas pernas, em convulsões, estou cansado, desmonto-me, ele olha para mim, espantado, como
quem fala e pergunta porquê, e eu atiro-me pró chão, gostava de me romper todo, soluço e grito mais, e despejo-lhe nos olhos o resto do carregador; sim, o resto,
até que a cabeça dele sossegou num pranto de sangue. Vi o sangue do meu cavalo no sítio dos olhos. Vi o sangue do meu cavalo a cobrir-lhe a pele negra, parecia um
cavalo cerejo. Olhei à minha volta e só vi sangue, tudo sangue, e
272
então deitei a correr para a emposta à procura do Carlos Custódio, chamo por ele, dou volta a tudo, vejo que na cavalariça me faltava a égua rucilho, flor de alecrim,
a Judia, e percebo que ele fugiu.
Saiu-lhe a sorte grande quando fugiu. Tinha prometido a mim mesmo esfarrapar-lhe a tromba só a murro. Pegava-lhe pelo pescoço para ele não cair e não perder tempo
a levantá-lo de cada vez que caísse, e dava-lhe um badanal até que as faces da cara e as sobrancelhas lhe tapassem os olhos. Tirava-lhe a luz do Sol por oito dias.
E que fosse depois queixar-se ao Relvas. Mas já não o agarrei. Deixo atrás de mim mais essa dívida.
O Príncipe, ao menos, já eles não montam, haja o que houver. Fica prós ratos das abertas, os ginetas e os milhafres; esses merecem-no mais do que essa canzoada que
está a fazer contas de o arrematar à porta do tribunal, um cavalo de sangue luso-árabe, meus senhores, morzelo, ferro Relvas, dá pelo nome de Príncipe, vai à praça
por dois contos, quanto vale, meus senhores? Vale seis tiros e uma carcaça de esqueleto. Arrematem-lhe os ossos e chupem-lhe o tutano, se os bichos da Lezíria lho
deixarem. Agora preciso de calma pró resto. Já falta pouco; menos de meia hora. O pior é que este tempo custa a passar. Mói e remói como um boi.
Zé Miguel fica perturbado quando recorda aqueles momentos. Para ele tudo se passou assim. A sua face da verdade não permite que conte mais do que viu e inventou
de riba do selim.
Mal a primeira bala lhe entrou na cabeça, o Príncipe ergueu-a num espanto súbito, atirando com as mãos para o ar, num sinal de coragem e decisão. Arreganhou as ventas
largas, esgazeou os olhos a interrogar e soltou um relincho longo, doloroso, atordoado e longo, que se ouviu a meia légua. Antes de sentir a dor, uma dor fria que
depois
273
aqueceu e o queimou no rompimento das veias, o cavalo aturdiu-se com o fragor do tiro dentro do cérebro estilhaçado.
Ainda partiu num galope selvagem, esquecendo o que aprendera em Évora no mestre pieador, ansioso por salvar o dono que lhe fincava a roseta das esporas na barriga,
quase junto da verga. Galopou dez metros, um pouco mais, de crinas eriçadas, mas a cabeça sacudiu-se ao terceiro tiro e afocinhou noutro relincho, no último, angustiado
e vibrante.
274

TENS medo que aconteça alguma coisa?
??? Atravessam Lisboa em direcção ao Areeiro. Zé Miguel deseja passar por lá, recorda-se de um quarto que teve alugado na João XXI, no andar da Cecília modista.
As coisas facilitam-se em casa de uma modista, é escusado dizer que foram à missa ou ao cabeleireiro; pode telefonar-se para saber se há alguma novidade em casa.
- Não ouviste o que disse?!...
Zulmira acorda dos pensamentos em que se enleou. O sinaleiro cortou o trânsito a meio da Fontes e ele debruça-se sobre a rapariga, hostil, percebendo-a longe de
si. Encaram-se numa interrogação.
- Há bocado disseste que tu e a tua mãe se ajudam para enganar o velho.
- Sim...
- Ajudam-se em quê?
- Ora!
- Ora, não, não respondas assim; não gosto que me falem com arremessos. Isso comigo não pega, não dá faísca. Em que é que vocês se ajudam?
- Quando saímos juntos, pá.
275
- Ou quando a tua mãe sai? Arrogante, a rapariga desafia-o.
-? Interessa-te que ela saia?, acho que não, pá. Já me disseste que as coisas entre vocês acabaram.
- E ela o que te diz?...
- Que acabaram, pá.
- E então?!...
- Então o quê?
- Para que precisa ela de enganar o velho? Sente necessidade de lhe provocar ciúmes.
-? Acho que já não é da tua conta. O que ela faz não te deve interessar, pá. Nem a mim... Cada um amanha-se como pode, pá, não achas?
- A tua mãe é uma pega ordinária. Uma gaja sem vergonha!
Os outros automóveis pedem passagem. O sinaleiro abriu o trânsito e Zé Miguel não reparou no sinal, toldado pela ira. Arranca depois com espalhafato, olhando a rapariga
em miradas rápidas, enquanto ultrapassa pela direita e pela esquerda os que lhe tomaram a dianteira. Conduz às guinadas, muda a intensidade dos faróis para que lhe
dêem o caminho livre; tem pressa de chegar.
- Na idade dela devia ter vergonha.
- Não sei porquê. A vergonha não paga a renda da casa nem dá de comer.
- Entrego-te dois contos por mês.
-Há algumas que recebem cinco e ainda fazem os seus biscates, pá.
- Ha?!...
- Vocês já acabaram; foi o que me disseste, pá.
- Sim, mas é tua mãe.
- E então?
? Então o quê!
276
--Ela também precisa damor. É natural, todos precisam, pá. Mais ou menos, pá, todos precisam. Arranjou um pato-bravo.
- Que pensa em ti.
- Não sei, pá. Se pensa, não sei, pá. A gente não pode tirar as ideias da cabeça das pessoas. Ou -achas que tenho culpa?
Depois lembra-se de que ele lhe vai oferecer o automóvel, duvida um pouco, mas nunca se sabe, e começa a brincar. Sorri, bate-lhe no braço, acende um cigarro e entrega-lho.
- Estavas a tomar a conversa a sério, pá? Não tens nenhum sentido de humor.
-O que queres dizer com isso?
- Que afinas depressa, pá, que andas sempre desconfiado com as pessoas. Os homens casados, pá, têm a mania que só as mulheres deles é que são sérias. Riem-se menos
do que as outras.
Procura tréguas, mas logo regressa à hostilidade. Enerva-se com a forma de ele conduzir, aos repelões. Descobre-lhe pelas mãos um nadinha trémulas que ele vai preocupado;
procura um posto com música ié-ié para ver se o cala ou o irrita ainda mais.
Uma chuva miúda cai lá fora. O asfalto brilha e torna a noite mais negra, assim lhe parece, quando as pessoas se refugiam nas portas ou debaixo das sacadas. Zé Miguel
volta a sentir-se mais tonto, como se girasse num carrocel lento. Talvez seja do efeito das luzes. Baixa o botão da telefonia e grita para Zulmira:
- Se soubesses que ias morrer dentro de meia hora, sim, ou ainda um pouco menos, que desejavas fazer?
- Ninguém sabe quando morre, pá.
- Mas se soubesses?
- Se soubesse...
277
Não entende o sentido da pergunta; parece-lhe tola. É isso mesmo que gostaria de lhe dizer, mas ele está enervado, pode fazer alguma brutalidade das suas. Uma vez
pô-la fora do outro carro quando voltavam da praia, e ela foi obrigada a andar mais de dois quilómetros, a pé, antes de chegar à estação de Sintra.
O automóvel derrapa no visco do pó e da chuva, ele acelera, sorri, estremece o volante para experimentar a segurança da direcção e acaba a assobiar.
- As pessoas todas deviam saber quando morrem.
- Só dizes disparates, pá.
- Nem sempre.
-? Então, fala de coisas alegres. Conta qualquer coisa com os Gladiadores, a dos ovos estrelados, pá, que é gira, ou aquela do doutor que vocês meteram dentro duma
aberta depois do almoço e ele julgava que morria, pá.
- Vês?...
- Vejo o quê?!
- Também tu falaste em morrer. Esse assustou-se porque tinha medo. Mas eu não.
- Nunca experimentaste, pá.
-Mais vezes do que julgas. Já vi a morte mais de dez vezes à minha frente. Talvez por isso mesmo não sinta medo. Pelo menos da morte. A vida muitas vezes é pior.
Não achas?
- Não sei, pá. Sou muito nova pra pensar nisso.
- Às vezes dizes que não timportavas de morrer.
- Conforme.
- Conforme o quê?!...
-? Conforme as alturas. Às vezes penso que a vida é uma chatice, pá. Outras não, pá. Não sei se há outro mundo.
- E hoje?
278
- Agora, por acaso, sinto-me bem, pá. Ao pé de ti sinto-me sempre bem, pá. Gostava de viver contigo.
Enternecida, numa ternura fácil, quase profissional, Zulmira encosta os cabelos soltos ao ombro dele, numa turra piegas.
Chegaram ao largo do Areeiro, ele dá uma volta à placa com o carro, fazendo-o guinchar nas curvas, como se no diamante do rodado dos pneus nascessem unhas para se
agarrarem ao chão. Quando passa à embocadura da João XXI, levanta o olhar para a janela do quarto da Cecília modista; quer vê-la mais uma vez, agora vagarosamente,
e a rapariga pensa que ele exibe o carro para as pessoas acolhidas debaixo dos arcos ou especadas na paragem, à espera do eléctrico.
Logo depois arranca numa aceleração rápida, metendo pela avenida do aeroporto. Em menos de trinta metros, julga ela, o Ferrari atinge os cem, é bom andar depressa,
pá, num carro baixo ainda é mais giro, parece que a pessoa levanta voo, ou então rasa o chão, pá, assim como as andorinhas quando chegam.
- Agora não há andorinhas, pois não?
- Não. Porque te lembraste agora das andorinhas?
- Por nada...
Ela estende a mão direita e faz subir a intensidade do som da telefonia. Uma voz conhecida canta Et maintenant que vais-je faire?
Dezoito minutos, talvez vinte, por causa da estrada molhada, é o tempo que levará até ao sítio escolhido, pensa Zé Miguel quando deita fora a ponta do cigarro. Conhece
a serpente de fogo melhor do que a palma da sua mão. Percorre-a num andamento quase matemático, cem-novento-cento e dez, sem olhar o ponteiro do conta-quilómetros.
Leva a velocidade na ponta do pé do acelerador.
279
Mal divisa a mancha vermelha da camioneta da carreira para as Caldas, guina à esquerda, assinala a ultrapassagem em alguns movimentos nervosos das luzes e acelera
um pouco mais até atingir a curva, embraiagem-mudança, mete a terceira, faz uma dupla, os pneus chiam, a rapariga finca os sapatos no tapete de borracha, a travar
com a imaginação, e Zé Miguel sorri malévolo.
Sempre que guia a velocidades altas, fica mais lúcido. Nunca gostou de se embalar dentro dos carros. Os carros fizeram-se para andar a mais de oitenta. Baixa o pé
mais e mais, sabe que a sua mão domina e conduz para onde quer. Escolheu também para onde vai.
Em sentido oposto, possante, avança uma fila de caminhões de sete toneladas, de dez toneladas, de doze toneladas, entra com eles na serpente de fogo, lá vai a fila
de farolins vermelhos a ziguezaguear num rasto vermelho de sangue iluminado, agora acabaram-se os sinaleiros, quem tem unhas é que avança depressa.
Mete a mão à algibeira do casaco e tira o frasco de conhaque que traz sempre consigo. Bebe uma golada; passa-o depois à rapariga. Ela mal molha os lábios e faz uma
careta. Naquele gesto, Zé Miguel pensa na história com o Fragatinha(, o arrais da lancha do contrabando. Lamenta que a noite não o deixe ver o rio.
Uma noite de breu, escura como breu. Silenciosa e calma. Ouvia-se tudo. Adivinhava-se o que não fazia falta: as suspeitas, o receio, a teia das interrogações, os
que viviam para além do túnel rasgado pelo barco no Tejo e na noite. Parecia que o respirar dos juncos nas margens lhe chegava aos ouvidos, num farfalho prestes
a explodir e a denunciá-lo; ou que as luzes distantes tinham voz e caminhavam sobre as águas negras do rio, negras e mansas como fantasmas.
280
Um dos barqueiros que remavam à vante ergueu a cabeça, Zé Miguel sentiu-lhe o olhar cravado em si, lembrou-se do rosto do outro, moreno, um tição, escarafunchado
pelas marcas de bexigas, nariz ratado numa das ventas, e alarmou-se, meteu a mão à algibeira; só quando apertou o revólver ficou mais seguro, um tudo nada mais senhor
de si, embora as pernas lhe tremessem ainda pelo golpe súbito da emoção escancarada. Nesse instante julgou-se só. Abandonado entre cinco homens, cujos rostos inventava
em linhas sinistras. A pele sentia-os diferentes do momento em que se tinham visto pela primeira vez. Era uma percepção incómoda, quase dolorosa.
Andava no contrabando há pouco mais de dois meses.
Hoje saberia distinguir quando o pessoal leva medo, tomado de pressentimentos, se pensaria abandoná-lo à primeira ameaça ou se se dispunha a segui-lo sem reservas,
acontecesse o que acontecesse, como o Chico Furtado, abatido a tiro por uma patrulha que o mandou fazer alto.
Nessa noite mal lembrada, o Chico Furtado remava à vante e ele suspeitou do seu olhar. Dúvidas de pexote, diria agora se lhe perguntassem pelo sócio fiel que morrera
como um homem no seu posto. Mas, nessa viagem, Zé Miguel até desconfiava de si mesmo. Mal passaram a carga do batelão e os homens se puseram a remar para montante
do mar da Palha, não houve sombra de saveiro ou casco de fragata que o não atarantasse de dúvida. Ia sem fé. O chape-chape das pás dos remos na água soava-lhe diferente
das outras noites. Um frio passara-lhe pela cara tensa, entrando-lhe no coração como ponta de faca cigana. Estou tramado, disse consigo. Quantas ideias lhe ocorreram?..
Noite danada em que julguei encarar a morte mais uma vez. Como se a morte estivesse assolapada por baixo da água do Tejo. Se tivesse uma saída, fugia; mas fui obrigado
a aguentar e levei a melhor. Transportava no
281
barco mais de quinhentas brasas em iwhisky e tabaco, um dinheiral em empate, fora o lucro. Chegou a enfiar-se num entrançado de medo, quase tomado de pânico. E porque
não mandá-los aproximarem-se da margem, esperando o momento preciso em que pudesse atirar-se ao rio e nadar para terra? Disposto a não perder tudo, concebera denunciá-los
para ganhar a sua parte na apreensão, embora percebesse logo depois que nunca mais teria achega no negócio. Começara a fazer o trabalhinho ligado a uma organização
com comissário em Tânger e em pouco tempo arrebanhara dinheiro grado. Comprara assim o primeiro camião de dez toneladas. Ia fugir à primeira ameaça?!... Não, isso
não, nunca pensei atirar-me à água,, talvez por saber que não nadava bem. Para que me servia o revólver, não me dizem? Vamos lá, admitira puxar pelo revólver e obrigá-los
a manterem"e nos lugares, gritar-lhes talvez, para que o soubessem disposto a estoirar os miolos ao que esboçasse um gesto de ataque.
Atravessavam uma noite boa para o contrabando e o resto.
Quando o Tejo vomita um cadáver, que se passou na realidade? Quantos sabem o que se passou? E quem o irá confessar? Os jornais falam vagamente no caso; quem lê pensa
em crise e suicídio, um homem desgraçado pode acabar consigo, sobeja-lhe liberdade para tanto, e depois a vida atropela os acontecimentos, tudo acaba por esquecer
como a pedra que cai no fundo de um poço, jogada pelo rapaz que se debruça a mirar-se no espelho da água e deseja parti-lo para ver o que acontece. A morte numa
noite daquelas não seria diferente.
Quis encorajar-se e pensou: um homem só morre uma vez, carago! De qualquer maneira, morre e acaba, meditou a seguir, contrafeito. A vida para Zé Miguel mal principiara.
E tinha muito para tirar dela, pressentia-o então,
282
valeu a pena?, ainda guardava dentro de si a ambição e a coragem que desejara em rapaz, quando viu passar o Rui Diogo Relvas a cavalo e se julgou capaz de chegar
até ele.
Algumas vezes, mais tarde, o Saca-Rolhas se acobardou, já então estava velho, e Zé Miguel deu-lhe ânimo no negócio de candonga da farinha, em que dividiam o lucro
três partes para o Relvas e outra para ele. A Guarda desconfiara ao ver passar tanta jaula de toiros e mandou fazer alto. bom, é melhor ficar por aí... A coisa arrumou-se:
dei uma pápula de miles para os pobres, ou lá o que foi, e as jaulas desandaram para o seu destino. O pior foi nas contas; o gaja julgou que eu lhe queria roubar
o conto de réis, nunca vi homem tão sovina e desconfiado, e a coisa só se arrumou quando eu lhe disse: patrão Rui Diogo, sou neto do António Seis Dedos, já o sabe,
e não troco a minha honra por um dinheiro tão pequeno. Então, peguei noutra nota igual, rasguei-a aos bocadinhos e deixei-lha dentro do cesto dos papéis do escritório.
A partir daí nunca mais desconfiou de mim. Mas tirei a forra pra ele não ser parvo. Já agora digo: em todas as cargas de farinha enganei-o no peso, um ou dois quilos
por saca.
Como ia contando, o barco do Fragatinha subia o rio, cauteloso, nada de armar (a vela, embora soprasse um vento afeiçoado das bandas de Palmela, o palmelão, como
os campinos e os barqueiros lhe chamam.
Zé Miguel sentia a vida ;a andar para trás naquela noite fechada, negra de breu, mais negra ainda com o silêncio da companha, hostil e tão comprometida, que percebeu
depressa o intento do arrais, um alcochetano rufio e de poucas falas. Nunca gostara daquele rosto enxuto e alongado, queixo de rabeca e olhos azuis-claros, quase
cinzentos, que lembravam a ponta de duas facas; rugas cavadas, voz agreste e rouca, nem um sinal de barba nas faces.
283
Fazia dois de Zé Miguel. Parecia cortado de um pinheiro para proa de fragata, alto e possante, dois malhos no lugar das mãos, pezudo, mas tão ligeiro de gestos que
o conheciam por FragatinJia. E agora metera-se dentro do seu barco, sem saber ainda que fim lhe reservava.
Apeteceu-lhe fumar um cigarro para ir pensando o que poderia tentar quando chegasse o momento da decisão. A bordo, porém, não se devia fazer lume. A Guarda Fiscal
minava as trevas, embora o bote seguisse sem sinal de luzes, mesmo com risco de abalroamento e naufrágio.
Lentamente, o barco pusera-se a guinar para a margem da Lezíria Grande. Zé Miguel convenceu-se de que o arrais se preparava para encalhar na Ponta dErva, roubando-lhe
a carga e fazendo-lhe contas ao preço da vida, se ele não aceitasse a tabela dos poltrões. O coração punha-lhe o peito num pandeiro; sentia-o bater na ponta dos
dedos.
Arrastou-se pela borda do bote e um dos remadores da popa sussurrou-lhe:
"- Veja lá se cai. Se cair aqui ao mar, nunca mais ninguém lhe bota a vista em cima."
Cauto, evitou responder para que o outro não lhe percebesse a palavra entaramelada. Se falasse, tinha a certeza de se trair. Jogava tudo naquela altura. Quando se
viu sem alternativa, deitou a mão ao revólver e colocou-se à frente do arrais. Habituados às trevas, mediram-se um ao outro.
íntimo, Zé Miguel experimentou a voz quando se assoou com ruído. Ficou certo de poder usá-la e então saltou, num pulo rápido, para a retaguarda do arrais.
"- Mete bem ao meio do rio, Fragatinha!
- A maré está baixa, podemos encalhar. - Pois sim. Baixa ou alta, a carga é minha.
- E o bote é meu.
284
- Sabes mais do que eu tensinei. Mete lá pró meio do Sorraia, anda. Percebes?
-? Se a gente encalhar, a Guarda agarra-nos que nem a pardais tontos. Caímos na ratoeira.
- A mim não magarram vivo, carago! Quando me meto nestas coisas, deixo a vida em casa na caixa do pó-de-arroz da minha mulher.
- Eu ando nisto há dez anos e quero andar mais dez.
- E eu há poucos meses e quero safar-me depressa. Tenho seis balas no revólver e mais dois carregadores completos. Só preciso de duas balas pra mim; o resto chega
bem para a Guarda ou pra quem se atravessar comigo.
- Não há-de ser preciso, se Deus quiser! - disse o outro depois de um silêncio longo.
- É bom sinal, mas cheira-me a chinfrim, percebes?
- Comigo não há azar; pode guardar a arma.
- Não tenhas medo, Fragatinha. Só se dispara quando lhe mexo com o dedo; mas quando lhe mexo, larga seis balas a seguir. Parece uma metralhadora, carago!"
A cana do leme range sob o peso do arrais, que finca os pezunhos descalços na borda do bote. Ajudados pela preia-mar, os remadores impulsionam o barco para velocidade
maior, talvez porque se sintam mais protegidos fora do Tejo. São duas horas da manhã; a Lua não se mostra.
"-Falta muito? - pergunta depois o arrais sem virar a cabeça.
- Um bocado... Passamos a ponte do Porto Alto, um bocado mais acima.
-? Tem carros à espera pra gente se despachar depressa?
- Comigo o piano está sempre afinado.
- Não sei; é a primeira vez que trabalhamos juntos.
- E não há-de ser a última, espero."
285
Zé Miguel põe à frente do outro a garrafa de aguardente, depois de lhe tocar três vezes no ombro com o cano da arma, ide maneira a fazer-lhe perceber mais uma vez
que não vai confiante. O Fragatinha bebe-lhe dois tragos prolongados e passa a garrafa ao primeiro remador de bombordo.
"-? O patrão é porreiro, mas é desconfiado.
-? É sinal de que não sou certo.
- Porquê?!...
- Só tenho medo de mim. Às vezes começo antes de tempo.
- Nisto é preciso sangue-frio, patrão Zé.
- É. Mas gosto mais de começar antes de tempo do que acabar atrasado. Quem se atrasa, lixa-se."
Falam ao ouvido um do outro numa intimidade estranha. Segredam como dois namorados ou dois amigos, a ciciar, de voz neutra, para que mais ninguém os ouça.
A vegetação das margens agita-se ao impulso do palmelão; por vezes, assusta-os, como se nela rebentassem gritos de ameaça.
Talvez agora se percebam algumas das razões da raiva maligna sentida por Zé Miguel dentro do bar. O whisky para ele é uma bebida de aventura, de ameaça e medo, destilada
em noites de pavor e violência.
Quando as caixas foram descarregadas para terra, disse ao arrais para aparecer no areal do Beato.
"- Sim, amanhã, à noitinha. Quero dar-te uma gratificação e combinar contigo uma carga prà gente. Trabalhamos a meias, ha?!..."
Sozinhos no areal do Beato, a coisa ficou entre ambos, à punhada e a pontapé. Levou mais do que deu, mas fez
286
o gosto ao dedo, além de arranjar um amigo fiel para o resto da vida. O Fragatinha bem lhe quisera deitar o gadanho; se o agarra debaixo de si, derretia-o, pensa
ainda hoje. Zé Miguel aguentara-o, porém, à distância, ligeiro e de olho aceso na rasteira e na cabeçada. O pior foram cinco punhadas que o outro lhe afiançou, pondo-lhe
a cara num bolo, embora a do arrais se lhe aparelhasse no entumecimento provocado por duas cabeçadas nos ossos da face. Ficaram quites.
Quando a fadiga os deu por satisfeitos, regressaram lado a lado até ao Poço do Bispo. Entraram na primeira taberna para lavarem as feridas com aguardente e Zé Miguel
pediu seis em dois de vinho tinto. Só então olharam bem de frente um para o outro, francos, sem ressaibo. Levantaram os copos à altura do nariz, num pacto solene
de amizade, e viraram-nos numa só golada. Depois bateram-nos no tampo do balcão e despediram-se.
O Fragatinha disse para a malta num aceno solene de cabeça, quando ele saiu:
"- Que grande gajo!..."
E começou a contar o que sucedera.
287

ALICE GILVAZ não suspeita que dentro de dois meses terá de abandonar a casa onde fez a sua vida de senhora.
Virão do tribunal para lhe leiloarem os móveis, os tapetes de contrabando, as loiças e as roupas da cama, mais os sete candeeiros de vidrinhos que o Zé Miguel comprou
de uma vez, e ela distribuiu pela casa toda, pondo um deles no quarto de banho. E para que mandou o seu Zé vir de Lisboa sete metros e vinte e cinco de livros para
encher as três estantes?
As pessoas riam-se de verem o candeeiro de pingentes quando se sentavam na sanita. A vila soube-o e riu-se também. Mas Alice Gilvaz não os entende; acha que o despeito
é mal ruim de inveja, a que não consegue pôr cobro.
Manda preparar o jantar para as oito e meia, sopa de coentros com ovos e carne de vaca estufada, levou calda de tomate, deve estar boa, mas ignora que dentro de
dois meses pedirá um lugar de mulher a dias em qualquer parte. Antes disso passará fome, fome envergonhada e negra, sentada no sofá onde o filho se matou com dois
tiros.
Nenhuma das senhoras virá dar-lhe companhia, nem lhe telefonará para saber se precisa de alguma coisa.
288
A mulher do tenente Ribeiro não a convidará para irem ao cinema.
"-A D. Alice precisa de se distrair; não pode ficar o resto da vida -agarrada a esse desgosto. O seu marido não simporta que venha comigo. Fazemos companhia uma
à outra."
Alice Gilvaz não perguntará se a fita mete tiros.
Sim, sempre que ouve ruído de tiros, rompe num soluçar esquisito, desagradável; parece um animal ferido a uivar. A primeira vez que tal lhe aconteceu, toda a gente
a ouviu, as luzes acenderam-se, julgavam que era outra coisa. Depois foram levá-la a casa e algumas pessoas disseram que aquilo eram mesmo exageros de criada de
servir, via-se logo que não era uma senhora com princípios.
Zé Miguel pensa nela dentro do carro.
Vai agora a oitenta e cinco, desce a rampa de Sacavém e iafrouxa, afrouxa, mete o pé ao travão, não vá a polícia mandá-lo parar e perder tempo. Pensa na mulher,
está cansado dos seus ridículos, nunca passou do mesmo, embora tenha convivido com a melhor sociedade da vila, acha ele na sua empáfia irremediável. Não será mulher
para casar outra vez, não vai arranjar quem a queira, viúva pobre de marido invejado, e acabará a servir nalguma casa remediada, cozinha bem, sabe dar pontos, é
o apuro do asseio.
Ela ignora o que vai acontecer exactamente. Nunca a pôs ao facto do que se passava, embora tivesse de saber das escrituras de hipoteca. Mulher dele não mete o bedelho
na sua vida; negócios de homens são negócios de homens, nada de conselhos, nem mesmo quando se deitavam. Esteve para lhe pedir os brincos de brilhantes e pô-los
no prego, em Lisboa, tentando evitar que a primeira letra entrasse no protesto.
289
Percebeu depois que àquela se seguiriam outras e resolveu não entrar em explicações. Considera-a culpada da anormalidade do filho, herança de sangue, tem a certeza,
e nunca lhe perdoou a liberdade que lhe deu durante a sua ausência, quando ele resolvera sequestrá-lo em casa até o mandar para o estrangeiro, talvez para a Alemanha
ou Inglaterra, onde não reparam nesses defeitos.
Por causa dela obrigara-se a falar com Rui Miguel.
Coleante, incendiada, a serpente de fogo queima a velha estrada asfaltada num frenesi próximo do esgotamento. O carro novo de D. António Mendanha é um dos anéis
inquietos da bicha alucinada.
Zé Miguel lembra-se do filho que parecia adormecido no sofá verde de flores doiradas, assim lhe contaram, muito quieto, muito sereno, de revólver caído aos pés sobre
o tapete argelino comprado no contrabando.
Enerva-se com a invocação, carrega o pé no acelerador, vai quase a tocar a traseira de um caminhão-cisterna, insiste, embraiagem-mudança, sai rapidamente da sua
mão, surge-lhe outro carro pela frente, faz sinais de luzes, aperta, acelera mais, a rapariga atira um grito, o Ferrari passa entre os dois carros, nervoso e ágil,
como se a carroçaria se encolhesse na garganta apertada das muralhas de ferro e aço que o querem esmagar.
Olha para o banco do lado e sorri.
Zulmira respira fundo, deitada sobre o lado direito e de braços pendidos. Cerrou os olhos ante o perigo, ainda os não reabriu nem reabrirá tão cedo. Pálida, treme-lhe
a face esquerda junto do nariz; os cabelos caem-lhe desgrenhados sobre os ombros, em cima da camisola azul-marinho de gola alta, muito cingida. Zé Miguel imagina-lhe
os seios; talvez só por isso não a deixe ficar, brancos, rosados, um sinal preto no esquerdo, se Deus me assinalou é porque algum defeito me encontrou, e toca-lhos
para
290
levar na mão direita a lembrança de dezasseis meses de intimidade.
Sobressaltada, a rapariga dá um urro.
-? Já não te posso tocar?
-- Não, não podes, pá, vais doido. Não vim aqui contigo pra me matar. Se estás farto de viver, pá, mata-te sozinho; não tenho nada que ver com os teus desgostos,
pá.
- Cala-te aí, carago!, senão esfarrapo-te as ventas! Quis experimentá-la, dar-lhe o hábito do perigo para
não se assustar quando se aproximarem do muro. Um muro branco, perto da quinta do Relvas; conhece-o de alto a baixo, palmo a palmo. O povo de Aldebarã escreve ali
as suas queixas. Chamam-lhe o jornal do povo. Está agora caiado de novo, muito branco.
- O gajo é que teve a culpa, sabes bem. Eu pedi ultrapassagem, eles deram-me e eu avancei.
- Pois sim.
-- Tiveste medo ?... -com certeza, pá.
- Acende-me um cigarro.
Precisa de paz nestes escassos minutos que o separam do muro. Estes últimos cinco meses esgotaram-no. Os que o ajudaram a adiar o desenlace tornaram-no ainda mais
pesado em juros e exigências. Na hora própria ficou sem um amigo. Pensara ainda em fugir para o Brasil. Noutro tempo seria capaz de lá chegar de qualquer forma.
O dinheiro e a vida gozada quebraram-lhe a têmpera, sim, talvez. Zé Miguel não tem consciência disso; baldeia para os inimigos todas as responsabilidades.
Zulmira entrega-lhe o cigarro aceso e fica com outro para si.
Ele mete o carro para o lado esquerdo e fá-lo parar no parque de estacionamento, onde descansou muitas vezes
291
quando guiava a sua primeira camioneta, comprada com o dinheiro de Rosinda, a viúva. Puxa a rapariga para os seus braços e aperta-a.
Só ele sabe se teve aquele impulso em busca da paz de que precisa por poucos minutos, se para recordar o tempo em que ali parava para amar uma das prostitutas da
estrada. A Rosália tinha 15 anos. Andava de cesto de verga na mão. Pintava o cabelo de amarelo, parecia de estopa, mas era meiga. Aprendera o ofício completo muito
cedo e bem. Ria por tudo e por nada, contava-se qualquer coisa e ela ria, apertavam-na e ria também, batiam-lhe e fugia a rir. Chamavam-lhe a Maria Rita e tinha
15 anos.
Nada falta na serpente de fogo.
Violência, amor barato, fábricas que valem milhares de contos, quartos de pouca permanência, gente taciturna e calada, bêbedos que gritam para alguém ou para o céu,
e a vertigem constante, demente, de caminhões de sete toneladas, de dez toneladas, de vinte toneladas, de automóveis de cinquenta, de oitenta, de cem, de duzentos
contos, todos em H. P., numa fila de milhões que cresce, se multiplica, se alarga, se ultrapassa e enerva, se odeia e agita sobre a serpente negra transformada em
fogo à noite, toda a noite-
- De que morreu o teu filho ? - pergunta Zulmira, de cabeça deitada sobre as suas pernas.
Ele aperta-lhe a cabeça com as duas mãos. Pensa fazer-lhe doer, mas afrouxa e quase a acaricia.
- Não queres dizer, pá?
- Não.
-? Ouvi dizer que se matou. É verdade?!...
- Se sabes, pra que perguntas? - responde, irritado. -? As mulheres perguntam sempre coisas que já sabem. A minha mãe era o mesmo. Repetia as coisas até chatear
as pessoas. ;,!
292

À sua frente, tenso, quase agressivo, Rui Miguel encara-o. Tem nos olhos uma película de mágoa, a mesma que lhe envolve a pele tocada de frio, estranho frio de repulsa
pelo pai, que começou a desprezar há três anos, num sábado de feira. Zé Miguel ignora a aversão nascida nessa noite de mexilhão e carne de porco, quando o filho
o viu embriagado a presumir valentias pelas barracas de tiro e depois lhe percebeu a cobardia ao ser derrubado pela cabeçada de um varino, o Chincha, rebelde em
lhe aceitar a brutalidade dos cachações que se pusera a distribuir a esmo. Vê-lhe o rosto lívido pelo receio, só acalmado quando a Guarda apareceu e arrastou o varino
para o calabouço do posto.
Os olhares digladiam-se até que o filho baixa o seu, humilhado. Zé Miguel volta a sentir a mesma sensação de fracasso, pior ainda do que a traição de uma mulher
que o trocasse por outro. Rui Miguel enganou-o no que mais ambicionara para ambos. Quem mais o enganará?!... Sim, quem mais?! Há por aí mais alguém que queira desfeiteá-lo?
,
No filho falhara o ideal que imaginara possível e concreto. Não lhe faltam o dinheiro nem os amigos para o
293
puxar até junto dos outros, onde ele próprio sempre ambicionou viver. Nessa zona interdita pelo sangue e pelos interesses em que ainda agora se sabe tolerado. Pouco
mais.
Sonhara-o forte, sim, como ele, e então? Forte e corajoso. E ali o tem à sua frente, acobardado, de cabeça baixa, mãos trémulas, corpo inútil e inquieto, agora cerra
os olhos, como se qualquer dor o acutilasse, marcando duas rugas em V entre as sobrancelhas espessas. Apetece tocar-lhe na cabeça, puxá-lo para si e pedir-lhe que
ganhe força para se transformar no que desejou. Ainda admitira que sim, rapaziadas, coisas de rapazes, talvez na Escola Agrícola os mais velhos o obrigassem. Mas
agora duvida, ou tem a certeza, de que não consegue desviá-lo do vício pior que um homem pode agarrar.
Acabou de abrir a porta do sótão onde o sequestrou, chamou-o sem lhe dizer o nome, e Rui Miguel está ao alcance das suas mãos para o agredir ou afagá-lo. Ama-o.
Quanto mais lhe quer, mais o odeia. Sim, ódio. Que mal fiz eu para me acontecer uma coisa tão desgraçada? Lembra-se do dia em que o levou ao barbeiro para lhe cortarem
os caracóis de rapariga e a mulher chorou, a pedir-lhe que o deixasse assim mais um ou dois meses. Rui Miguel resignara-se, a morder o beiço, sacudido nos ombros
de menino por cada tesourada que o barbeiro lhe dava nos caracóis quase loiros, até as lágrimas lhe romperem também. Nessa altura achara-lhe graça:
"- Um homem nunca chora, mesmo que veja as tripas doutro na mão. Queres ser toureiro? Os toureiros não usam cabelo como as raparigas."
Pensara apresentá-lo na feira vestido de lavrador, montando a égua pigarça e mansa que lhe comprara na feira da Golegã. Levara-o depois ao alfaiate para lhe tomar
as medidas da calça e jaqueta cinzenta; queria-o
294
igual a si com chapéu de copa baixa e aba dura, esporas nos botins sevilhanos, lenço branco a despontar da algibeira da jaqueta. Fizeram um sucesso entre a campinada
e o povoléu no desfile para a espera de toiros da corrida de domingo, irmanados com senhores da Lezíria.
Dia de glória plena, nunca a vida lhe parecera tão submissa às ambições aconchegadas por tantos anos. O Saca-Rolhas apertara-lhe a mão em público e mandara o afilhado
para a sua esquerda, enlevado no apuro do cavalgar daquele fedelho, no qual se revia quase tanto como no neto, filho da menina Blé e do conde valdevinos. Zé Miguel
viu-os partir a passo. Acompanhara-os a distância, comovido, deslumbrado e comovido, de lágrimas a deslizarem-lhe pelas faces, sem vergonha de as deixar romper,
porque nunca almejara alegria tão funda e espontânea. Aplaudiram-nos dalgumas janelas e ele ouviu o seu nome, sim, é o afilhado, o filho do Miguel Rico, o Rui Miguel,
o rapaz nem parece nascido daquela gente, tem pinta de fidalgo, um príncipe, acrescentou ele de sua conta nessa hora plena de glória.
Oferecera bilhetes para a toirada a todos os empregados. Queria que os vissem no camarote com os amigos. Alice Gilvaz ficara em casa, ainda não sabia calçar luvas,
nem sentir-se à vontade no vestido de seda que mandara fazer em Lisboa para os acompanhar. Quase à hora da corrida começaram-lhe as agonias, as dores da enxaqueca,
explicou ao marido, mas não dominava as tonturas do receio, sim, tinha medo que alguém lhe gritasse para o trem, olhem a criada do Relvas feita baronesa, ou se rissem
da sua perturbação e o marido lhe ralhasse da timidez, como na noite em que foram ao cinema e ela tropeçou na passadeira, caindo de joelhos no meio do corredor,
entre o gáudio dos invejosos da plateia, corja de pelintras, que não pagavam ao padeiro para aparecerem entre pessoas
295
de dinheiro. Bastou-Lhe vê-los da janela. Os dois no trem alugado, muito orgulhosos um do outro: o seu Zé, de charuto, a olhar o filho, como se o levasse alvorado
na menina dos olhos, e o rapazinho de mãos enfiadas nas algibeiras da jaqueta, assim, lhe haviam ensinado,, encarando o pai a cada gesto, para se certificar de que
repetia bem o que lhe cabia fazer no ritual ribatejano de futuro lavrador.
Zé Miguel revia-se nele, meu querido menino, meu menino, e agora sentia desprezo em chamar-lhe filho, a emoção danosa aperta-lhe a garganta, enrouquece-lhe a voz,
quebraJha, parte-lhe as palavras, como se as veias lhe ficassem abertas pelo veneno da vergonha de sabê-lo falado e desdenhado pela vila inteira, qual é o seu dever
de pai, carago?, o dever de salvá-lo da ironia do mundo, dessa gente de má-língua, que os não roupa, não, à porta dos cafés e das tabernas, amontoados em grupos
donde rebentam gargalhadas de gozo, vingados do seu dinheiro, safardanas, a muitos deles pagou cerveja e agora retraçam-lhe o nome por mor do filho que desejou para
nobilitar a origem dos Atouguias, campinos e criados de lavoura.
Ter desprezo por um filho, carago!, haverá desgosto mais malino para alguém sofrer nas contravoltas da vida? É uma dor que rebenta, incha dentro da gente e rebenta
o coração e as veias, as veias todas, ardidas, negras e ardidas. Tentara acobardá-lo à força de surras de cinta e de palavras danosas que o queimavam a si, só de
pensá-las, quanto mais de dizê-las. Nem as precisa de lembrar para ensandecer. Perde o domínio dos gestos, arrebata-se, grita para dentro de si neste dia de Primavera,
ah, como é bonita a Primavera!, e agora como não a pode compreender, irónica, cínica, sim, perante a certeza que o rebenta.

296
Quando disse à mulher que o metesse no sótão, premeditara dar-lhe tempo para se arrepender, na esperança de que um dia ele lhe aparecesse a pedir perdão e a prometer
vida nova; até os ladroes se emendam, porque não?, um homem consegue emendar-se, é uma questão de perceber o que não lhe fica bem.
E ontem, ontem à noite, estava à porta do café a beber cerveja na companhia do Manuel Pedro e do Coutinho, chega o irmão, chama-o à parte, e conta-lhe que o filho
fora encontrado pelo guarda da avenida em intimidades com outro rapaz. Desvairara. A vergonha pública do Rui Miguel atinge-o, como se lhe destruísse na raiz o que
ambicionou para ambos. Pesa sobre ele a ameaça do fracasso. Irremediável. Quase se resigna a aceitá-la.
Que pode fazer?!... Aceleram-se-lhe a respiração e a circulação do sangue, sente-se ansioso. Qualquer ruído o sobressalta.
Naquela manhã passa pelo mercado, encontra o António Espanhol, já velho, a comer tremoços à porta de uma taberna, e vê que o outro o encara a sorrir. Corre para
ele num rompão de ódio. Saiu do seu eixo, projectado para fora de si num impulso destrutivo; agarra-o pelas bandas do casaco e pergunta-lhe:
"- De que estás a rir?
- Eu?!...
- Sim, tu, de que te estás a rir?!...
- Tira primeiro a mão da besta e depois fala."
O outro solta-se num sacão violento, desequilibra-se, mas alguém o ampara de dentro da taberna. Zé Miguel fica sobre a soleira da porta, a medir os olhares que lhe
seguem os gestos.
"- Um homem agora já nem pode achar graça a qualquer coisa - explica o Espanhol para os amigos. - Este
297
gajo, lá por andar com as costas quentes, pensa que a gente lhe tem de explicar porque sente vontade de rir.
- Vem dizer isso cá fora - replica Zé Miguel, de sangue a ferver-lhe nas veias. Enche-se de suor; abre as mãos para o outro, como se nas suas tenazes lhe procurasse
a medida para o pescoço.
- Apeteceu-me rir, e depois?... E se fosse de ti ou de alguém que te pertence ?
- Diz de quem! Se vieres cá fora, mordo-te as orelhas.
- Deixa lá essa tesura para outras coisas. Um dia a gente fala...
- Falamos agora, Espanhol. Agora mesmo. Já sabes que não sou macio.
- Não, agora, não. Agora tens tudo do teu lado. Mas um dia ou eu ou alguém te pedirá contas."
Um grupo de homens aproxima-se da porta onde Zé Miguel permanece. Um deles mede-o de alto a baixo e sussurra-lhe:
"-? Deixe lá o velho, seu Zé. O velho -não se meteu consigo.
- Riu-se.
- E depois?!... Também a gente já não tem ordem pra rir? Ao menos rir, carago! Ao menos rir, homem do diabo! Um pobre já não pode rir?!... E que tem vossemecê com
isso?!... Ou acha que as pessoas só se podem rir de si?!..."
Começam a rodeá-lo os que saem pela outra porta. António Espanhol adianta-se também e sorri.
"- Andas com o bicho da soberba dentro de ti, Zé! Mas um dia aleijas-te... Um dia pagas tudo.
- Vem cá fora dizer isso. Se és homem, salta prà rua e fala comigo.
298
- Deixe lá o velho, patrão Zé! O António não se meteu consigo."
Rompe direito ao outro, arrojado pela força da ira, mal percebe a ameaça do fracasso. O pessoal segura-o, fica bem preso e regressa manietado para dentro de si.
Noutro rompante aparente, volta costas e desaparece quase a correr na esquina da ruela.
Precisa de chegar a casa depressa. Sobe a escada a passo -de dois degraus, empurra a mulher, que lhe surge pela frente, inquieta, e continua até ao sótão, para onde
o filho voltou depois do escândalo na avenida. Mete a chave com dificuldade, move-a sem jeito dentro da fechadura e acaba por abri-la à força de ombro.
E agora ali tem o seu Rui Miguel, destruído e fraco, incapaz de levantar a cabeça para ele, que é seu pai. Procura reconhecê-lo no que imaginou, lembra-se do que
fora ele próprio na sua idade, ainda anojeiro do Prudêncio, de barrete e sapato campino, feliz e ambicioso. Brincão e destemido, ninguém o batia numa ferra a pegar
garraios e a gracejar com as raparigas.
Desce as escadas do sótão; num aceno de cabeça, impõe ao filho que o siga. Alice Gilvaz espera-os no corredor, procura o rosto do marido para o compreender, não
o percebe, e julga necessário, talvez urgente, dizer-lhe qualquer coisa. O quê?!...
"-Fui eu que o deixei...
- Escusas de dizer, eu sei que foste tu que o deixaste.
- Tive pena de o ver fechado.
- E ele não tem pena de mim, que ganho pra isto tudo?! Ninguém! Nem tu!... Sou o gajo que alanca, o filho da mãe que aguenta tudo.
- Não lhe faças mal..."
Zé Miguel responde-lhe com um encontrão que a atira de encontro à parede do corredor, perto do quarto.
299
"- Já essa malta se ri de mim na rua. Até os velhos me provocam. Qualquer dia a garotada corre-me à pedra, como aos tontos. Por causa de ti e deste gajinho... desta
senhora que menvergonha o nome. Nunca ninguém me desfeiteou; desfeia-me este gajo, que é meu filho.
- Tem calma, Zé!..."
Enfia para a sala de visitas, levando Rui Miguel à sua frente, e bate a porta num puxão violento. Depois abre-a com o mesmo rancor, espreita a mulher, parada e lívida,
sem saber o que pode evitar, e ameaça-a. Não, não a quer ver ali perto, não quer que escute a conversa deles; meta-se na cozinha, desapareça, seria bom que desaparecesse
para sempre, já que não ouviu o que lhe disse para bem de todos.
"-A culpa é tua! De tudo o que suceder a culpa é tua! Deste-lhe o sangue morno, estragaste-o com mimos, e agora não fizeste o que te disse para bem de todos. Não
chores! Não quero que chores!..."
Espera que Alice Gilvaz desapareça no corredor. E à medida que ela se some, cauta e transida, Zé Miguel sente aumentar o menosprezo e a limitação onde o querem emparedar.
Só agora, quando a mulher desaparece de todo, consegue recordar a razão do escárnio de António Espanhol. Soterrada dentro de si, aí a tem viva.
Ainda não haviam lutado a braço na madrugada de Peniche. Eram então dois bons camaradas. Nessa noite também aparecera Pedro Lourenço.
A praia-mar do Tejo saltara a muralha, e os três, na companhia do Zé Romualdo, sentaram-se em bancos virados à porta da taberna onde bebiam. Oito horas, pouco mais.
Tem agora a certeza, porque passou o comboio de Lisboa assim que pediram o fogareiro à Maria Rosa. Não esqueceu esse pormenor, agora tudo regressa; Rosinda, a varina
viúva, trouxe-lhe uma samarra preta para lhe
300
oferecer no dia dos anos. Se fosse necessário, seria capaz de fixar o dia exacto dessa conversa.
Começaram a assar sardinhas, das bem salpicadas, como gostavam. Pão de milho, azeitonas pretas, a saberem a segurelha e limão, e sardinhas médias, pouco mais de
petingas, muito apertadas de sal. Comiam-nas nos dedos, passando-as de uma mão para a outra quando se queimavam. Loiras e pouco gordas, não valia a pena tirar-lhes
a pele nem a cabeça. O Zé Romualdo na paródia até disse: "Da cabeça ao rabo é tudo peixe."
Lembraram-se dos toureiros que espetam bandarilhas quase na anca dos toiros e riram-se todos. As gargalhadas do António Espanhol soavam alto nesse tempo. Ouviam-nas
quem viesse a atravessar a linha ou caminhasse do lado da avenida, perto do ancoradouro das fragatas.
A Maria Emília passou embriagada, de xaile a arrastar e lenço caído para as costas. Zé Miguel ofereceu-lhe uma sardinha e um copo; ela aproximou-se muito hirta,
a querer segurar-se nos balanços da embriaguez. Um deles deu-lhe uma palmada rija na anca tufada pela roda da saia mal enjorcada e ela cambaleou numa praga, atirando-se
para cima do Romualdo, que lhe furtou o corpo. Esparranhada no chão, acudiram-lhe Pedro Lourenço e o Espanhol, pouco dispostos a ouvirem-lhe o chorrilho de asneiredo
que sempre largava quando a maltratavam.
Daquela vez achou graça e deixou-se ficar sentada no empedrado do cais, enquanto o Zé Miguel lhe passava uma sardinha estendida em cima de uma fatia de broa. Estava
um luar macio, pouco amarelo, que borrava de azulóio tudo o que envolvia a mancha de luz acaçapada no Tejo.
Não tardou muito, iam aí no terceiro litro, quando apareceu o Pintinhas, um pé-de-flor, em ademanes de
301
galdéria, sapatos de trança azul, calça cor de mel muito justa no fofo e camisa desportiva de meia manga em rede fina. Enquanto o Romualdo lhe deitava um suspiro
malandro, embezerrava a Maria Emília por seu comércio de amor, no qual lhe competia o Pintinhas, muito minucioso e liberal.
Não precisaram os judas de meter veneno na conversa, para que entre os dois se levantasse rija picardia em glórias e denúncias de ofício ou benefício; vieram segredos
à baila, palavras azedas, o diabo a sete.
Maria Emília ganhava a contenda, não só por mais verbosa e enxovalhada de língua, mas também porque os homens a ajudavam contra o pé-de-flor, incitando-a a refocilar
em certo passo da vida do outro com um marujo da escola.
Tanto bastou para que o Pintinhas se enervasse e quase fugisse pela muralha fora, entre suspiros, pragas e motejos. Apanhando-o pelo fraco, deu-se a mulher em persegui-lo,
apesar de o vinho lhe embrulhar as pernas. E desapareceu dali.
Voltaram os quatro amigos à pinga e à sardinha. Zé Miguel adiantava pouco. O Romualdo, sempre ferrabraz, pegou-lhe na mudez e garantiu que o adelaidinha lhe fizera
olhos bonitos.
"-A mim, pá?... - refilou indignado o neto de António Seis Dedos.
- Só quem estivesse cego - acrescentou o Espanhol.
- Se eu mandasse, agarrava nestes gajos assim e atirava-os pró cavalo padreador da Companhia das Lezírias. Acabavam-se.
- Acho que é uma doença - comentou Pedro Lourenço, enquanto encarreirava mais sardinhas para as brasas.
-Qual doença!... A doença dava-lhes eu.

302
-- Não cuspas pró ar, Zé Miguel! - chalaceou Romualdo. - O Elias da exportação só em velho virou à ré; sabes lá o que te pode acontecer!"
Desvairado com a hipótese, Zé Miguel ergue-se do banco, tenta falar e gagueja, sente pelo corpo uma onda de calor e encara os outros num desafio. Talvez o vinho
lhe aqueça o sangue, pensam os amigos. Não, não é bem isso, repugna-lhe aquela gente, apetece-lhe espancá-los quando os encontra.
"- Se um dia alguém do meu sangue tivesse esse jeito...
- Aguentavas-te como os outros, Zé.
- Nunca mais lhe via a cara, juro aqui à frente de voceses. E se fosse meu filho, matava-o!"
António Espanhol sorriu à porta da taberna. Só agora encontra a razão do seu escárnio.
A vila ri-se àquela hora do que lhe aconteceu, vinga-se dele, que mal fez às pessoas?, tanto trabalho para quê, senhores?, tira um homem o pé da lama à força de
muita coisa, a vida é isto!, e de repente vem um filho para lhe atirar com a lama toda para cima, como se nascesse da inveja dos outros e não do seu sangue, onde
só há homens de verdade, machões, que o contem as mulheres que os conhecem na intimidade, e agora uma coisa assim!, já não chegava o que se passou na escola com
o director a contar-lhe de cara a cara, em pormenor, a cena observada pelo regente, e agora, Sr. Director?, agora leve-o consigo, o Rui Miguel tem de ser expulso,
e a saída no automóvel, as cabeças à espreita, os que olham para ele e os que evitam encontrar os seus olhos, aperta-lhe o braço e arrasta-o consigo, pára o automóvel
antes de chegar à cidade, leva-o para um pinhal, meu menino, meu menino!, e ali espanca-o a murro e a pontapé, enche-lhe a cara de sangue, apetece-lhe parti-lo ou
desaparecer com ele para
303
onde mais ninguém os encontre, e depois leva-o em braços para dentro do carro, num farrapo, os dois num farrapo, e no dia seguinte obrigar-se a aparecer na rua para
que ninguém desconfie, mandar embora a criada, ficaram os três dentro do segredo, pedir-lhe que não repita, não, nunca mais!, pensar mandá-lo para fora onde não
reparem nisso, e guardá-la no sótão de castigo, como se tivesse lepra ou doença pior, e assim que a mãe o deixa sair na sua ausência, cinco dias em Tânger por causa
do contrabando, e logo aquela notícia dada pelo irmão, sim, eu percebi o silêncio das pessoas no café, mal me olhavam, carago!, mandei vir cerveja para mim e para
os outros que estavam à mesa onde me sentei e chega o Miguel Zé, ficam todos calados, o Manuel Pedro assobia, vira a cadeira para o lado da montra, e o meu irmão
diz assim: fazes favor, chegas aqui.
Há sol sobre a rua, por ironia; passam pessoas na rua, por ironia. Na vida dos outros nada mudou na aparência e até a aparência das coisas se corrompe aos seus olhos.
As pessoas e as coisas estão contaminadas por algo de irremediável que as violenta dentro de si.
Choram-lhe as mãos ao agarrar na cadeira que fica perto da janela. Doem-lhe os ouvidos ao escutar os ruídos banais da casa silenciosa, de alguém que sente respirar
a medo por detrás de si e de tudo o que fica para além, não só o apito do comboio lá em baixo, a passar perto das árvores da avenida onde o guarda encontrou o filho
acompanhado (e o comboio não descarrila para apagar os vestígios e esmagar o guarda, sentado, enrolando um cigarro de onça entre os dedos, como se o silvo da locomotiva
se soltasse, angustiado, da pressão leve da pele na mortalha fina), mas cada sussurro, eco ou grito vindo das pessoas para o hostilizar, como nesse dia em que lhe
fizeram sogada, ia ele, a cavalo, pelo carril dos Trinta
304
e Oito Moios e um grupo de mulheres o apedrejou, obrigando-o a fugir.
Serão quase onze horas.
Na parede branca do outro prédio fronteiro, uma chapada dura de sol recorda as sombras de quem passa. As pessoas levantam o olhar, percebem a sua silhueta, e Zé
Miguel sobressalta-se, recua um pouco, mais a cabeça do que o resto do corpo, para depois tentar descobrir quem o espiou. Julga necessário reconhecê-los. Vê os rostos
partidos em pedaços irregulares que se não ajeitam; baralham-se, não os identifica, somem-se no véu negro da tremulina cega do sol, tão claro. Para que lhe atirou
a vida uma cornada tão funda?!...
"- Diz lá se é verdade, Rui! Conta-me a verdade. Olha pra mim. Não tenhas medo de mim."
O filho ergue a cabeça devagar, hesita, continua a levantá-la, e ele vê-lhe os olhos carregados de lágrimas grossas.
"-Não chores. Agora, que me sujaste o nome, não chores. Ontem deste cabo de tudo o que eu juntei durante uma vida inteira. Tinhas-me prometido...
- Julguei que era capaz.
- E não és?
- Não, pai."
Agarra-o por um braço, atira-lhe uma punhada ao queixo, deixa-o oscilar e volta a puxá-lo para si. Quanto mais lhe quer, mais o odeia. Larga-o depois em cima do
sofá verde e esfrega as mãos uma na outra, à pressa, como se o contacto lhe queimasse os dedos. A respiração acelera -se, descompassada; quase arqueja.
"-E porquê?! -grita agora, sem já recear que o ouçam na rua. - Diz depressa: porquê?!...
- Já percebi que não.
305
-? Não consegues ?...
- Não."
A resposta fulmina-o, embora a esperasse. Não talvez assim, talvez em silêncio, para que ele a imaginasse, sem necessidade da voz. Mas a voz confessou-lhe. E tudo
acabou, ou tudo terá de começar agora para acabar definitivamente. Pensou já o que lhe vai dizer. E é ele que terá de lho dizer. Agora. Se conseguisse...
"- Sabes que não quero, não consinto, não posso consentir que atires porcaria pra cima do nosso nome."
Passeia até à janela, meu menino, meu menino!, por onde te meteste, filho? Quando regressa, vem transtornado, de músculos masséteres contraídos, mãos abertas e trémulas,
tensas de ira. Chega-as ao rosto do filho, que o esconde, poltrão, entre os braços.
"-Olha pra mim!"
Obriga-o a fitá-lo e senta-se à sua frente. Vai falar-lhe no que pensa. Sobe dentro de si um fio de calma que se alarga. Um fio de calma agarrado a uma corda de
dor que engrossa sempre.
"- As pessoas riem-se de ti e de mim. E eu não consinto. Uma noite disse no cais que matava um filho como tu. Julguei que nunca o tivesse..."
Ergue-se sem tino, o coração rebentou de dor impotente e escalavrada. A luz do Sol cai sobre uma jarra azul, ofende-o, agarra-a num impulso e joga-a contra o espelho
onde se projecta a imagem de ambos. Deseja anular os dois nesse ímpeto. O tilintar do vidro excita-o. Atira-se de encontro à parede, esfrega-lhe o rosto, fala sem
trambelho, não sabe o que diz, olha o filho e a imagem dele exorbita-se na fúria de encontrá-lo ainda à sua frente. Atira um salto para o meio da sala, em plena
cólera, parte o que encontra, pega em cadeiras, que escavaca em cima da mesa de três pés e nas paredes, pisa-as, julga que tem
306
o seu Rui estendido no chão e calca-o, atira-lhe pontapés, quer desfazê-lo e quer esgotar a raiva que não se aquieta nas veias abertas.
Quando se vê num pedaço do espelho, desconhece-se. Tem medo dos seus olhos. Subitamente detém-se, a arfar; à volta de si está o mundo destruído. Crispa uma das mãos
na mesa e depois derruba-a num gesto brando. Passa a mão pela testa, terá febre?, e pelo rosto avelhentado, limpa o suor na ponta dos dedos, devagar, encara o filho
e encontra-o de olhos nos seus, sem receio.
Volta a meditar no dever que lhe incumbe de defendê-lo da ironia do mundo, foi ele que o fez, sim, é dele, só ele deverá decidir do seu futuro, mete a mão à algibeira
e toca no revólver, aperta-o, aperta-o muito, e depois acaba por se sentar, virando costas. Uma nesga -de sol roja-se a seus pés.
"-Eu disse um dia..."
As palavras rasgam-lhe o sangue. Apetece-lhe atirar-se para o chão e chorar.
"- Disse um dia que matava um filho meu, se sofresse vergonha igual à que me deste. Jurei que o matava!"
Fica imóvel, engranitado pela tensão, cerra os olhos e sente-os doridos como duas feridas. Arranca de si o que quer dizer, num ímpeto que o leva a abrir os braços:
"-Tu mereces que eu te mate, a tiro."
Depois corre para o filho, aperta-o contra si, gostaria de anulá-lo naquele abraço de angústia e de ternura; afaga-lhe a cabeça.
"-Não consigo... Não sou capaz. Já quis há pedaço e não fui capaz."
307

TRAZ da casa de jantar um copo cheio de whisky puro. Bebe um gole, depois outro, deixa o líquido queimar-lhe a garganta, acena a cabeça com frenesi, não a domina,
quase a sacode, até que a reacção do whisky se espalha pelo corpo numa quentura febril. De súbito, puxa do revólver, evita olhá-lo, estremece, mas tenta destruir
o que pensa com o que diz:
"-Os homens valentes sabem morrer, percebes?... Quando é preciso, um homem sabe escolher a altura de chamar a morte."
Fala aos repelões, em golfadas. Nas suturas das palavras a dor agarra-se e preenche-as.
"-? Já vi a morte muitas vezes à minha frente e nunca lhe voltei a cara."
Um automóvel passa na rua, a tocar o klaxon, desesperado, talvez leve consigo a morte, e Zé Miguel fica-se a escutá-lo até desaparecer nos rumores da rua pacata
onde moram.
Começa a explicar como o revólver funciona. Domina-se, faz força, sente os músculos dos braços, mas não treme. Abala-se por dentro num frémito. Mete balas no tambor
com minúcia. É simples.
308
"- Vês como é simples? Encostas ao ouvido, assim, não apertes..."
Sente que vai rebentar em soluços, deixa a arma sobre o sofá e afasta-se. Adivinha o filho a olhar o revólver. Está junto da janela, de sol no rosto, e espera que
Rui Miguel lhe diga, lhe prometa, ao menos, que irá tentar mais uma vez. O tempo agora passa depressa. O silêncio prolonga-se mais do que deseja e pergunta, sem
compreender como pode ainda abrir a boca e falar:
"- Queres ainda ver se consegues?
- Não, não vale a pena. Não sou capaz.
- Talvez possas.
- Não...
- Talvez consigas experimentar. ,
- Não!
- Experimenta.
- Já fiz tudo e não fui capaz."
Falam em confidência um para o outro, íntimos, como se preparassem vingança minuciosa contra alguém que vão assassinar dentro de pouco tempo. Uns minutos. Embora
não se fitem, ignorando-se, tornam-se cúmplices. Rui Miguel fica empolgado com a ideia do pai, aceita-a sem receio, goza o prazer de decidir, percebe que nada fica
fora de si quando puxar o gatilho, a certeza exalta-o, é bestial decidir. Nunca dispôs de nada e agora determina tudo, absolutamente tudo, o próprio pulsar do mundo,
as coisas que desaparecem, as pessoas que não falam, o ar, a luz da Primavera.
"- A mãe é que vai chorar - diz ainda sem agressividade.
- Sim, vai chorar. Os dois vamos chorar. -Tu, porquê?!..."
Nunca tratou o pai naquela intimidade, desprezava-o desde o sábado de feira, à noite, junto da barraca de tiro,
309
havia uma rapariga de cabelos pintados, cansada e velha, mas agora tornam-se amigos íntimos. O pai oferece-lhe a prenda da decisão. Mexe no revólver, sorri, talvez
ainda tímido ou desconfiado, pega-lhe entre os dedos, fá-lo passar de uma mão para a outra, acaricia-o com deslumbramento.
Perdeu o ar tímido e efeminado.
"-Sim, vou chorar..." - diz Miguel Rico com amargura.
(Não se domina; as lágrimas rompem. Precisa de dizer o que pensa:
"- Porque fiz muita coisa por ti e não valeu a pena."
Rui Miguel volta a sorrir, parece feliz; aperta as mãos do pai com frenesi e depois beija-as, aperta-as contra o rosto e beija-as. Ele retira-as de rompão, à bruta,
como se os beijos do filho lhas manchassem, esfrega-as, ainda agora dentro do automóvel as sente ulceradas pelo fogo desse contacto.
"-Bebe um pouco de whisky.
- Bebe tu.
- Aquece. Dá ânimo."
Parecem ouvir passos no corredor, tão leves como o bicho da madeira que corrói qualquer coisa para o lado da janela. Zé Miguel interroga:
"-És tu, Alice?"
Responde-lhe a calma da casa sossegada. Rui Miguel segura o braço do pai, leva-o até à porta e pede-lhe:
"-Vai-te embora...
- Talvez seja melhor fechar as janelas.
- Não, está um dia bonito." Olham-se longamente numa despedida.
Zé Miguel desvia os olhos, talvez devesse falar, dizer o quê? Volta-se para a porta, precipita-se para ela, empurra-a
310
sem poder abri-la pelo puxador, e depois desaparece a correr.
Ouve ainda a chave que dá volta na fechadura. Às vezes não fechava bem, era preciso teimar, nunca a arranjaram como devia ser, mas desta vez obedeceu ao primeiro
movimento.
Desce as escadas, não leva o chapéu, quer afastar-se depressa, precisa de ficar longe, talvez ele não tenha coragem, e então talvez possam ainda tentar novamente,
não se importa mais uma vez, seria bom, mas agora fez dele um homem, há lá dentro um homem com um revólver preparado, já pronto, e esse vai decidir se sim ou não,
se deve morrer ou se deve viver, se vale a pena recomeçar ou se tudo acabou ontem, na avenida, quando o guarda apareceu. Quase choca com alguém que atravessa a rua.
A luz do dia é clara, queima a parede branca e enche-a da sua sombra fugidia, oprimida pela angústia, embora ainda há instantes sentisse voltar para si a calma de
quem faz o evidente, para não permitir que o fracasso o esmague. Esteve tempo demasiado junto do filho, pensa por momentos, enquanto abre a porta do automóvel.
Mal entra, não percebe porquê, estranha o carro.
Parece-lhe que perdeu o sítio do travão e das mudanças, que nunca pegou naquele volante, ou noutro qualquer. Desconhece os pedais, experimenta, embraiagen-mudança,
arranca devagar, mete mal a primeira, as pessoas olham, mete mal a segunda, as pessoas param, arrasta os carretos, não harmoniza o pé na embraiagem com a mão direita.
O que vale é que a garagem não fica longe.
Mas nem será preciso ir tão longe. Alice Gilvaz ouve dois tiros lá dentro, na sala, que foi, meu Deus? Ouve dois tiros e rompe a chorar, de mansinho, mais em segredo
do que antes, como se receasse acordar alguém que dorme
311
serenamente no sofá verde. Adivinha que chega tarde. E tem medo de chegar tarde. Mete o lenço na boca para que as vizinhas a não ouçam, não entende o que se passou,
é melhor não saber, onde estará o filho?, onde estará o marido?, que se passou entre eles, meu Deus?!...
312

O telefone toca daí por meia hora e ela não atende. Zé Miguel insiste da garagem, pede o número e desliga a seguir; perdeu a noção do tempo, irrita-se, então, menina,
então!
A telefonista agasta-se com a insistência e explica: "- Estou a tocar há mais de cinco minutos e ninguém atende.
- Ligue outra vez.
- Devem ter saído. O telefone está bom...
- Mas não consigo falar, menina.
- Que quer o senhor que eu lhe faça?!..."
313

AGORA nada, telefonista. Que podias tu fazer?!... Descansa, não te preocupes. Enche a cabeça de vozes e números, atordoa-te, como podes escutar as nossas conversas?,
é o que me espanta, acredita, quando te sei no segredo de tanta coisa da minha vida.
Não te enerves; não entras neste romance. Precisei de ti para definir aquela meia hora, nada mais, quando outra mulher recusava o apelo da tua chamada, porque tinha
medo de tudo o que ouvia. Exactamente porque quanto adivinhava era ainda menos terrível do que a realidade mais próxima.
Antes de me deitar, talvez para não me sentir tão só, pego-te um número e converso contigo uns momentos, muito breves, para depois me fazeres companhia. É bonita
a tua voz, sim, é bonita, já to disseram também. Não a estragues. Tens uma voz -azul, aberta e doce, e vestiram-te de bata preta; ficas soturna vestida desse preto
lustroso.
Ignoro se estás de luto por todos nós ou simplesmente pelo jovem que ficou sentado no sofá, muito quieto e sereno, com a serenidade absurda dos que optam pelo absurdo.
Acabou por achar o seu corpo desprezível - vê tu, assim tão jovem! - e quis libertar-se dele para sempre.
314
O pai vive agora o mesmo drama por outras razões. Para anular dentro de si o que lhe desagrada, caminha para a destruição total, porque só essa agora consente que
se volte a falar dele sem ironia. Os aliados abandonaram-no. Vêem-no ferido e perseguem-no, excitados, ceroam-no, devoram-no aos poucos, como os tubarões quando
sentem sangue. À sua volta há um festim de tubarões a despedaçarem algo de si mesmos. Serviram-se dele, mas a vertigem da sua ascensão ofendeu-os tanto como o seu
convívio de homem menor.
Zé Miguel saiu do número anónimo com a sua força selvagem e agora atiram-no para lá, amputado de si, anulado dentro de si, os que o puxaram para a sua beira. O homem
menor que não entendeu a regra do jogo será sacrificado aos pés do bezerro de oiro e agora para sempre. E ele julga-se maldito, embora o não confesse. Por isso o
seu poder letal, como diria um psiquiatra, se dirige devagar, mas seguramente, para o próprio que o guarda. Devagar e a oitenta-cem à hora num carro potente lançado
para um muro branco.
Também tu, telefonista, penso eu, serias capaz de ir ao seu lado, se ele te convidasse e insistisse para entrares e darem uma volta os dois; para onde vamos?, a
Monsanto?, à marginal?
Como estás a ser observada neste instante, encolhes os ombros, finges-te desdenhosa, e, no entanto, também não escapas à sedução de um automóvel, o objecto que o
homem criou e devora o homem, aos poucos, ou num segundo, em festim bizarro.
Vivemos em plena civilização de coisas. Também tu, telefonista, tens muito já de uma coisa que escuta e fala, se move, comove e demove, e grita e chora; o que pensas
não é pensar, embora julgues que sim, o que é bem pior. Não, não te quero ofender. Mas falávamos do pai daquele
315
jovem sentado num sofá verde e a quem deram um revólver.
Um psiquiatra diria que o revólver é abstracto, tanto mais que o rapaz o usou contra si; afinal, só as punhadas que o pai lhe atirou ao rosto para o desfigurar,
procurando transformá-lo noutra pessoa, representam a sua ira, a sua vontade homicida no estado puro. Se um de nós afirmasse agora que a -ira nasce no ventre do
medo, Zé Miguel, o pai, gritaria que nunca sentiu medo, não, isso não, nuncai, vou prová-lo dentro de minutos, quando só o medo e a ira lhe guiam as mãos no volante
do automóvel voraz que o conduz em triunfo para o muro branco.
O medo e a ira imobilizaram-se dentro de si, só agora, como os fios de água no interior de uma gruta a caírem, segundo a segundo, durante longos anos, e um dia se
unem, em pedra, -no ventre da terra. O psiquiatra dirá que a ira em Zé Miguel seguiu um processo de interiorização regressiva, desencadeando o poder letal contra
o próprio indivíduo.
Repara, telefonista, como os psiquiatras complicam o que tu exprimirias numa forma tão simples, quando a ti eles te simplificam a vida, escondendo-te da insónia
ou da angústia por detrás de uma drageia ou de um comprimido.
316

QUERES um comprimido? Ouve-a, mas não lhe responde. Presta atenção à torrente de luzes com que se cruza ou persegue, como se temesse qualquer risco antes de chegar
ao sítio que escolheu.
- Paramos aí num café e tomas um comprimido, pá.
- Pra quê?!... Nunca tomei disso.
Zulmira abre a mala, procura, remexe e procura. -? Sempre que me enervo, pá, tomo um ou dois e fico calma.
Mostra-lhe o tubo, fá-lo girar nos dedos.
- Sinto-me bem. Há muitos dias que não me sinto tão bem.
- Parece que queres partir o carro quando fazes as mudanças, pá. Tens cara de espantado; parece que viste algum bicho.
- Ainda não me habituei com ele.
Rolam sem pressa, agarrados aos anéis da serpente a rastejar a sessenta pela estrada. Os faróis dos camiões que avançam para Lisboa queimam-lhes os olhos. Zé Miguel
orienta-se pela berma, segue o risco das pedras da berma; torna-se minucioso depois do que ela disse.
317
- Os carros são como os cavalos e as mulheres: é preciso tempo prà gente se habituar.
- Falas sempre mal das mulheres, pá.
Espreita pela porta do seu lado, a fila de luzes vermelhas que ensanguenta a noite e a estrada, pensando no que ele lhe disse sobre a serpente de fogo, a rastejar,
coleante, a esvair-se, ora lenta, ora presta e tonta.
- Parece que as mulheres te fizeram mal - acrescenta depois.
- Talvez...
Quase grita para insinuar a dúvida. A mãe toma-lhe o pensamento. Não envelheceu, encontra-a com o rosto da sua infância a acarinhar o irmão junto da chaminé, o candeeiro
de petróleo na peanha da parede, as labaredas do lume para o jantar a lamberem a panela negra, um cão lá fora a ladrar, a sua voz que canta, o irmão, de olhos cerrados,
num gozo profundo de quem usufrui o bem maior, sorri, faz-se mais pequeno no colo dela e sorri, o pai ainda não chegou, deve estar na taberna, há sopa de couves
para o jantar, nada mais do que sopa, sopa e um quarto de pão, e graças a Deus!, graças a Deus!, sente raiva de a mãe embalar o irmão e começa aos gritos a dizer
que tem fome, matam as pessoas à fome, ela manda-o calar, mas não se levanta, ele atira o banco ao chão e depois dá-lhe um pontapé, ela então ameaça-o, ameaça levantar-se
e deixá-lo numa posta de sangue, ele diz que é melhor morrer do que passar fome, e então ela larga o irmão, que acorda assustado e chora, quase o atira ao chão para
correr atrás dele, ele finge correr, mas tempera a fuga pelos passos dela, deixa agarrar-se no escuro, sozinhos os dois, ela atira-lhe a primeira bofetada à boca,
a cabeça estremece-lhe, faz questão de não chorar, sente a boca molhada por dentro, deve ser sangue, sim, é sangue, lembra-se do sangue quente no rosto quando se
atirou
318
com o carro de madeira pelo declive abaixo, a mãe diz que o mata à pancada, ele refila, chama-lhe nomes, ela bate-lhe mais, como é bom ela estar tanto tempo ao pé
de si!, diz-lhe que se cale e ele não se cala, refila sempre, ela agarra-lhe pelas orelhas e levanta-o ao ar, parece que se desprendem da cabeça, e de repente grita,
vê-se sem orelhas e grita, ela vai buscar a correia e diz que ele é torto como o avô António Seis Dedos, de forma torta como ele, e ele pensa na forma do vizinho
sapateiro; atira-se ao chão, esperneia, bate-lhe com um pé na perna doente e ela bate-lhe mais, sente-a arfar, arfar, arfar, sente que as correadas se tornam mais
frouxas, cala-te, Zé!, cala-te, Zé!, percebe que a mãe chora, este rapaz tem um parafuso a menos, sim, e depois, que mal faz ter um parafuso a menos?, e a seguir
choram ambos, até que ela o arrasta para a cama, e o despe, e o obriga a meter-se debaixo da manta, e o deixa quieto, quieto, tão quieto que ele finge adormecer
logo a seguir, à espera que ela o beije e lhe diga em voz baixa:
"-Tão bonito e tão mau; sai mesmo ao avô António Seis Dedos..."
O rosto permanece igual, não muda, mais jovem do que o dele agora, mas a voz soa-lhe, sempre que a recorda, como na noite em que falaram de Pedro Lourenço e a Guarda
apareceu a cavalo. Dorida e áspera. Seria capaz de repetir as palavras que lhe ouviu, exactamente as mesmas, se valesse a pena, sim, agora já não vale a pena, já
me meti na serpente de fogo e caminho entre os sessenta e os oitenta para o muro branco da curva, sei o que quero, passaram cinco anos depois da morte do Rui Miguel,
às vezes penso que tudo começou nesse dia e agora sei que tudo acabará dentro de alguns minutos, poucos. Nesse dia julguei-me mais forte do que nunca, recusei o
meu filho, nunca aceitei as coisas quando não as queria, e para quê,
319
carago?, sim, pra quê?!, se agora me caem todas em cima, sem um amigo que se chegue a dar uma ajuda, todos fogem, todos me largam. Há uma parte dele próprio que
o traiu; embora o não confesse, vai anulá-la, destruí-la. Recusa-a, minada talvez pelo remorso, lúcida pela dúvida sob a ameaça do fracasso, mas nisso mesmo se deseja
ainda afirmar, deixando a lembrança do nome agarrada ao muro branco da curva para onde corre.
- Vamos atravessar Vila Franca? - pergunta-lhe Zulmira, feliz e espantada, por ver que ele a consente pela primeira vez a seu lado dentro da terra onde vive.
- E depois, o que há?... Apetece-me levar-te; faço sempre o que quero.
A deferência envaidece-a. Comove-se. Percebe que avançou hoje na intimidade dele mais do que até ali. A revelação fá-la aproximar-se, tocar-lhe o ombro num carinho
espontâneo, dócil.
- Estás arrependido de me teres deixado... -? Sim, agora nunca mais te deixo.
- Diz lá comigo: prà vida e prà morte.
Ele encara-a, passa-lhe a mão direita pelo ombro e aperta-lho, aperta-lho muito, numa raiva carinhosa. Afrouxa o carro junto do Campo da Feira, deixa que o ultrapassem,
vira para o lado de dentro, junto da praça de toiros, e pára. Alarmado, como se pressentisse alguém dentro do automóvel, percorre-o com o olhar. Zulmira beija-o
na face, mas procura-lhe a boca. Ele sente o rosto molhado, passa-lhe os dedos e encosta-lhe a testa, que escalda.
-Estás a chorar... Porquê?!...
- Sei que gostas de mim. Pela primeira vez percebo que gostas.
- Tenho ciúmes de ti.
- Ainda não repetiste o que te pedi, pá.
320
-O quê?!... Não me lembro. Pede-me o que quiseres.
-- Que tens hoje, pá?
- Nada.
Beijam-se longamente, como se esmagassem entre eles algo que os separa ou os aproxima demasiado. Junto da orelha, num segredo de murmúrio, Zulmira insiste:
- Diz lá comigo: sempre os dois prà vida e prà morte. Zé Miguel afasta-a de si para lhe ver os olhos, não
os consegue divisar bem nas trevas e acende a luz do interior. Precisa de perceber o que significam aquelas palavras, se ela suspeita o fim da viagem, dali a três
quilómetros, quando muito.
Passa um comboio e o chão estremece num curto frenesi. O ruído sobressalta-o, fá-lo voltar :a cara e lembra-se de que pararam perto do cemitério. Confrange-se.
- Não queres jurar?
- Quero.
- Então, diz lá, pá. -Os dois...
- Sempre os dois.
- Prà morte.
- Não, não é assim, pá. Prà vida e prà morte.
- Prà morte é tudo. Até à morte já basta. Baixa a voz, cicia.
-Não achas?
- Sim, mas a esta hora não devias falar nisso, pá. Esta hora é boa de mais para falares em coisas dessas...
- Que são as mais certas. É lixado, mas a vida não tem nada mais certo.
Zulmira não distingue se o engana ou se a burla fica consigo. Agora não recorda o rapaz da camisola preta, nem o construtor civil que acompanha com a mãe, os três
à frente e ela ao meio, como sucedeu nos primeiros tempos
321
do Zé Miguel. Exalta-se com a ideia de que talvez possam casar.
- Se o meu filho fosse vivo... - Não fales nisso, pá.
- Ninguém conhece o segredo que levo comigo. Se soubesses e me perguntasses, ainda dizia o mesmo, ainda pensava o mesmo.
- O quê?!...
- Que não devo arrepender-me. Foi bom pra ele e pra mim. Só a mãe não percebe que foi bom pra todos.
- É mãe...
- Disseste há bocado mal da tua.
- Desabafos, coisas parvas, pá. Mas sem ela tudo seria pior.
-? A minha nunca gostou de mim. Só me disse uma coisa certa: que eu tinha um parafuso a menos. E é verdade. Em certas alturas, nas piores alturas, salta-me o parafuso
da cabeça e fico outro, meio tonto. Digo coisas que não devo; faço coisas que não devo. Não devia estar aqui contigo, talvez...
- Tens medo que nos vejam?
- Não, não é isso. Agora preciso que nos vejam. Amarga-lhe pensar que a furta à vida. Trá-la mais
para junto de si, fazendo-a sentar no mesmo banco forrado de negro. Mas não a deixa aos outros, isso não, por muito que lhe doa.
- Se um dia te fizessem mal, se te dessem cabo da vida toda, se ficasses mais desprezada do que um trapo velho, ou pior ainda, serias capaz de deixar alguma coisa
de que gostasses aos teus inimigos?!...
- Não!
- Serias mesmo capaz... (Digo-lhe?) Serias mesmo capaz de matar e de morrer?
- Conforme.
322
A palavra inútil cai entre ambos.
Zulmira agarra-lhe o pulso, que bate apressado; acha-o quente, a escaldar entre os seus dedos magros. As pulsações dele repercutem-se no seu braço, marteladas, desiguais,
quase agressivas.
- Tens uma ponta de febre, pá.
- Não, sinto-me bem.
Dói-lhe o braço esquerdo, todo o lado, esquerdo, mais pesado, como se a angústia serena que o oprime lho carregasse de uma carga incómoda.
- Estou sereno. Sereno é como quem diz. Não te sei explicar. Gostava doutra coisa.
- Qual?!...
- Doutra coisa agora complicada. Talvez impossível. Como não posso consegui-la, escolhi, já escolhi a única.
- Não percebo, pá.
-? Pra todas as coisas há uma saída, entendes? Às vezes só uma. As pessoas conhecem qual é e não a procuram. Não a procuram porque não são capazes. E eu sou.
- Porquê?!...
- Fui sempre capaz de escolher o que quero e de chegar ao fim. Pra bem ou pra mal, chego ao fim. Não fico à espera da puntilla.
De súbito, cala-se. A respiração e a circulação aceleram-se mais. Zulmira vê as horas; lembra-lhe que ficou de se encontrar com alguém às sete e meia.
- Já passam dois minutos das sete e meia.
- Não sai de lá enquanto eu não chegar contigo, tenho a certeza.
- Por causa do carro.
- Sim. Sabe que eu não falto à esquina do muro branco, mesmo na curva. Escolhi e não falto.
Destrava o carro e põe-no a trabalhar.
323
-? Quando andava na candonga e no contrabando, nunca faltei aos encontros. Cheguei sempre. Uns minutos não têm importância... Agora, pelo menos.
Mete o pé à embraiagem, devagar. Faz questão de ser minucioso.
-Eles faltaram-me logo que precisei de verdade e já não aparecem. Nem percebem. Só há uma coisa que eles percebem: a ganância. Dormem com ela, trocam tudo por ela.
Nunca fui ganancioso.
- Estás hoje complicado.
-Mas há três coisas que não agarram: só três, que são importantes. Não terão cavalo, nem mulher, nem réu. É a minha vingança.
Volta a chover. Uma borriçada densa que a brisa do Tejo fustiga de mansinho. Embraiagem-mudança. Os faróis embatem na vedação do caminho de ferro, encharcando-a
de luz branca, cortada pelas cordas de água da chuva. O local obriga Zé Miguel a invocar as manhãs em que se exibiu por ali com o Príncipe, na perseguição dos toiros
da espera e das largadas, entre algazarra, vozes que o chamavam, os campinos a desbarretarem-se, bom dia, patrão Zé!, e ele de vara ao alto, mão de rédeas bem firme,
a ostentar os sinais do homem que veio de anojeiro até ali.
Até ali, até onde?
Regressa. Uma tristeza funda cerra-lhe os olhos. Chega-lhe às narinas o cheiro da terra molhada. Se estivesse só, falaria desse tempo em que se excitava com o odor
forte, apimentado, da Lezíria da sua infância, plana, negra, solidão, solidão, um rapaz a cavalo, sozinho, a carroça azul da morte, o avô de pé, um salto no vazio,
a impressão de que voa no espaço, acima deste sentimento dorido de atropelo e de receio, e o prazer magoado de fugir para dentro da mesma bola negra onde se meteu,
324
quando caiu da carroça. Recorda o penco, o cavalo velho que matou na ribanceira.
Volve o olhar e divisa a rapariga. Evita encará-la, embora goste de a sentir a seu lado e lhe procure a mão. Mete agora a prise já dentro da rua. Zulmira observa-o,
envolve-lhe a cabeça com o olhar interrogativo e ouve:
- Podes passar o teu braço por cima de mim.
- Sabes onde estamos?
- Por isso mesmo. Quero que todos me vejam contigo. Quero que percebam que és minha.
- Tua quê?!...
- Minha qualquer coisa; tanto faz. Amante ou mulher, é o mesmo. Não presto contas a ninguém.
Zulmira sorri. Entreabre a boca, compõe os cabelos aloirados por cima das costas do banco, estende-se sobre ele, pega em dois cigarros, acende-os ao mesmo tempo,
e oferece-lhe um deles; mete-lho na boca depois de lhe dar um beijo.
- És feliz?
- Sou. Nunca fui tão feliz como hoje. Podias ser sempre assim... Pareces outro; diferente, melhor. Porque não és sempre assim?!...
Zé Miguel olha em frente, faz piscar os faróis, aperta o acelerador, os tubos de escape roncam, a buzina musical ondula o som por entre as cordas de chuva e sobre
o marulho monótono da água nos pára-brisas, através da qual Zulmira adivinha os vultos que espreitam para dentro do Ferrari.
Ficam a falar deles, pensa; a mulher daqui a pouco já sabe, exulta; talvez peça o divórcio, depois se verá.
- Zé! Zé Miguel!... É bom a gente sentir-se feliz, pá. Dá-me vontade de gritar que gosto de ti, pá.
Ele não lhe responde. Ergue a mão direita e toca-lhe a ponta do queixo. Deixou de sentir o cheiro da terra
325
encharcada, está fora do mundo, viaja numa estrada suspensa, afasta-se.
-É bom estar na cama enquanto chove - diz a rapariga.
- E é bom fugir pela chuva dentro. Gosto de guiar à chuva.
Passam à praça e afrouxa. Pára defronte do café donde saiu há quase três horas, pedindo a D. António Mendanha para experimentar o carro novo. Quer agora mostrar-se
com a rapariga e chama com a buzina. Vem gente à porta, o criado aparece; ele faz-lhe sinal para se aproximar e pergunta:
- O D. António?...
- Saiu há bocado. Ia cheio de medo que o patrão Zé lhe escangalhasse o carro. Parece que não fez o seguro.
Não contém uma gargalhada franca. Abre a porta. Sai para a rua, deixando que os outros vejam a rapariga ao seu lado. Dirige-se ao balcão, pede a caixa de charutos.
Põe-se a escolher alguns e manda o criado levar um whisky à senhora que ficou no carro.
- Sim, um whisky, pá. Não sabes o que é um whisky? Percebe o Dr. Casquilho do Vale no canto do fundo,
na companhia do Baratinha das Finanças. Vai à montra dos chocolates e compra a maior caixa de bombons. Paga com uma nota de conto, embaraça o caixeiro, não tem troco,
ninguém tem troco dentro do café.
- Paga logo ou amanhã. Responde numa voz agressiva:
- Vê lá se me podes fiar. Volta-se.
-Boa noite, Dr. Casquilho! Não reparava em si, desculpe. Sr. Barata, boa noite! Os outros rosnam entre si.
326
- Quando vier o D. António Mendanha, diga-lhe, por favor, que fico com o carro pra mim. É um belo carro!
Aproxima-se da mesa, estende a mão aos dois e aperta com vigor premeditado, mais a do jurista do que a outra.
- Boa noite, meus senhores! Boa noite, Manel! Obrigado pela confiança. Toma nota do que fico a dever.
Volta atrás e aperta a mão ao caixeiro.
- Adeus, pá!
Encara o outro e comove-se. Quase sai a correr.
A todas as portas do café, por entre os vidros, surgem vultos que o espiam.
Entrega a caixa de bombons a Zulmira, senta-se e começa a preparar um dos charutos. Corta-lhe a ponta com o canivete, lambe-o, mira-o e remira-o, volta a passar-lhe
a língua e só depois o mete -na boca, mastigando-lhe a ponta. A rapariga ligara o isqueiro do carro e oferecia-lho. Puxa três ou quatro fumaças, volta a mirá-lo
e destrava. Acena para fora: "Boa noite! Adeus, pá!..."
O Ferrari parece saltar no primeiro arranque, urra, rasga o silêncio, deixa atrás de si a mancha vermelha do farolim que o persegue. É um animal ferido que arrasta
consigo um fio vermelho na mancha brilhante do alcatrão.
- Agora todos me viram. Quero que me vejam...
- Onde moras?
- Para o lado de cima.
Prime o pé no acelerador, procura esquecer, esquecer, pensa na carroça azul e no avô, embraiagem-mudança, conduz só com a mão esquerda, encosta o braço ao corpo,
lá continua a moinha pegajosa, lenta, precisa esquecer, esquecer, a rapariga aperta-lhe o ombro, encosta-se mais para ele, o último whisky turvou-a, começa a cantar,
love will find you some day, a vertigem da velocidade entontece-os, ele dobra-se um pouco para a frente, a chuva deixa de cair, ele não pára o limpa-brisas que lhe
divide a noite
327
num espaço limitado, como um pêndulo regular, exacto, but why sit around and wait?, o carro sobressalta-se nas covas do asfalto e têm a impressão de que batem com
o corpo no chão, que ficaram para trás, this could be the night!, a consciência evola-se, pensa ainda no filho deitado no sofá verde, também ele está sentado, acabam
ambos sentados, cruza um camião que lhe fura os olhos com os faróis nos máximos, aproxima-se do outro, tenta-o a distância breve, mais perto, mais perto, o outro
guina e grita da cabina, a rapariga canta, vai de olhos cerrados, parece que dormita, nada a sobressalta, pensa que, se casarem, lhe pode ser fiel.
Ultrapassa um carro e outro, move o volante para a esquerda, sacode-o em curtos golpes da mão dorida, acelera, acelera, não muda as luzes, leva-as bem acesas para
que veja o muro branco, um muro todo branco na curva onde ficará o seu nome por muito tempo, quase a chegar a Aldebarã, afrouxa, o charuto apagou-se, deita-o fora,
aproxima a testa do vidro, mas o braço do limpa-brisas perturba-lhe a visão.
- Gostas de mim, Zé?
- Cala-te.
- Então, diz que gostas de mim.
- Não me chateies. Gala-te!
A estrada fica solitária, negra e solitária.
Sobe um pouco, parece estreitar num funil lá ao longe. Um minuto. Sim, falta roubar-lhes o réu e a rapariga. Vão juntos. Ela canta. Nem ouve o que canta. Acelera
mais, faz força na perna direita, aperta, vai esquecer, esquecer, os pneus gemem na curva, fica um som agreste lá atrás, aproxima-se o troço das oliveiras, algumas
parecem pessoas debruçadas para a estrada, outras levantam os braços a suplicar, ninguém as ouve.
Ninguém ouve ninguém.
328
Agora é uma recta longa. Abre as goelas ao motor, cento e vinte, sente-se atordoado, a bebedeira da velocidade envolve-lhe a cabeça, empolga-o, torce a boca num
ricto, a rapariga julga que ele sorri, e talvez sorria, quem sabe?, ganha a sensação de que domina o tempo, de que o usa para si, de que a vida depende dele e a
supera, de que supera os outros, embraiagem-mudança, gostava de esquecer para onde vai, mas o risco emociona-o, tem sede, leva a boca seca, os olhos saltaram lá
para diante, muito para a frente, metidos no poalho de luz forte dos faróis nos máximos, quem vier que se chegue para a berma.
- Agarrem-me agora! Agarrem-me, se forem capazes disso! Agarrem-me! - grita.
Aturdida, a rapariga aperta-se contra ele.
Depois da recta aparecerá a curva. O muro branco na curva, muito branco, como o muro de Badajoz no qual ficou cravada a silhueta de alguém. Esse alguém anónimo senta-se
entre ele e Zulmira, quem será?, pode ser o filho também, toca-lhe o rosto, afaga-lhe os ombros, há a intimidade de uma voz que o envolve.
Vai a cento e sessenta, empertiga-se no banco, hirto, carrega mais no acelerador, ainda mais, o atordoamento desvaira-o, é bom provar a sensação de que domina o
tempo, a vontade dos outros, a máquina que se agarra às suas mãos e só depende de si, só a ele obedece, só ele agora ordena o que irá acontecer. As mãos suam.
O muro branco surge num momento, como explosão da noite.
Viajam agora três no mesmo automóvel, conhecem-se todos, íntimos, muito aconchegados. Zé Miguel perturba-se, apetece-lhe gritar, empurra a rapariga violentamente
para o outro lado, segura o volante com as duas mãos, que suam e lhe doem, prime o pé no acelerador, não vale a pena olhar o conta-quilómetros.
329
A rapariga pergunta-lhe:
- Falta muito?
Quem a vir de fora, julga-a a dormitar. Leva os cabelos caídos para o rosto. A mãe àquela hora conversa ao telefone, fala baixo, diz que não pode sair, a filha ainda
não chegou, talvez amanhã à tarde.
Zulmira entreabre a boca num sorriso, a velocidade também a embriaga, e volta a repetir a pergunta num tom mais alto para que ele lhe responda, não sabe bem porquê.
Zé Miguel agarra o volante com todo o corpo. O mundo torna-se infinitamente pequeno, não passa de um casulo penetrado pelos seus olhos velozes, como se os olhos
abalassem sozinhos numa carreira alucinada lá para diante. As lágrimas turvam-lhe os olhos; faz-lhe bem chorar, apagam o remorso, apagam o medo, apagam o mundo,
sente-se mais leve, tão leve que só os olhos correm na escuridão a caminho do muro branco.
Acelera, acelera, o muro branco lança-se para ele e o carro está parado, ou talvez não, falta pouco, rapariga!
faltam só uns segundos, vais ver como é bom, o muro branco ganha velocidade, é mesmo na curva, ele arregala os olhos, solta o pé direito do acelerador, para quê?!
ganha medo, leva as mãos encharcadas, grita sem voz, pensa saltar, não, já não consegue, e o volante guina para o lado esquerdo, talvez as mãos não lhe pertençam,
veio até ali para morrer, mas entra por um som estridente onde embate numa explosão que o estilhaça.
Voa por esse túnel de som estridente aos ziguezagues, há um grito lá fora, fora do casulo onde se meteu, quem será que grita?, e depois esquece tudo o que o trouxe
até ali.
Na paz dos campos o estrondo galopa para o horizonte.
330

SABE que pode abrir os olhos e não quer. Talvez receie denunciar o que premedita na confusão de ruídos e dores onde se enreda. Se conseguir sobreviver, e volta a
desejá-lo, como no momento exacto em que guinou o volante, terá de destruir alguém. Ainda não fez a escolha. Talvez não seja difícil; sim, não é difícil.
Adivinha, debruçados sobre si, alguns vultos. Depois tocam-lhe na cabeça e a sensibilidade sai um pouco da letargia em que se encarcerou. Prenderam-lhe os braços
e as pernas. Porquê?! O corpo é uma dor compacta, sem frinchas.
Só os olhos lhe não doem, mas prefere conservá-los fechados. Assim ninguém perceberá que regressa à batalha. Fá-lo lentamente, como se viesse de borco, a romper
o caminho com a pele da cara e das mãos. Sai de um casulo negro, cerrado, daquele som onde embateu e o raptou, não entende ainda para onde. Faz uma ideia.
Passa a língua pelos lábios secos, arranha-a; alguém lhos humedece com carinho.
-? Foi uma sorte - diz uma voz. A voz de um homem.
331
Percebe que não mexe as mãos nem os dedos. Tentou-o, há momentos, debaixo do lençol e não conseguiu movê-los. De que se lembra?... Faz um esforço para ligar os fios
do passado, mesmo em pequenos nós, agarra alguns, mas, assim que os pretende unir, sente-os fugirem-lhe.
Desiste. Quando o ouvem respirar fundo, os vultos não o percebem, Zé Miguel desiste de compreender por enquanto, embora tente recomeçar. Fatiga-se e dormita.
A rapariga foi autopsiada há dois dias e ele ignora. Maria Laurinda, a mãe, encheu-lhe o caixão de flores. Os mortos levam sempre muitas flores, porque em vivos
não as podem ter: são caras. O pai da Zu envelheceu naqueles dias e talvez também ele ignore por que razão o construtor civil o ajuda a sair do automóvel que pôs
às ordens para acompanhar a rapariga.
Os peritos disseram a D. António Mendanha que o carro não tem conserto e Zé Miguel ignora. Ignora e não pode sentir frustrada a sua pequena vingança, uma vez que
o seguro talvez dê um jeito, oferecendo-lhe um automóvel novo. O fidalgo é um bom segurado. A companhia sabe-o distraído e cumpre um dever elementar, explica o inspector,
considerando a apólice imaginária em perfeita regra.
O juiz acaba de entrar no gabinete do tribunal para assinar processos e despachos. Zé Miguel ignora que um deles ordena um mandado de captura contra si. No hospital
só dentro de dois dias tomarão conhecimento de que o doente da cama 27 fica sob prisão.
O muro branco ficou escalavrado numa ponta, tem algumas pedras à mostra e caíram quatro ou cinco para o lado do pomar de laranjeiras. As pessoas ainda param a comentar
o desastre. A maioria acha que Zé Miguel ia embriagado; é mesmo um gajo sem vergonha, nem parece
332
neto do António Seis Dedos. Ele não se lembra do muro branco, mas agora pensa no avô e na viagem dentro da carroça azul com riscos amarelos.
Para mim, pensa ele, a morte vem sempre de carro, e eu dou-lhe um pontapé, mesmo quando ela me vai agarrar.
-Ouve o que eu digo? - pergunta-lhe uma voz de mulher.
Zé Miguel volta a cabeça, num movimento de apatia.
- Experimente falar. O senhor pode falar... Faça um esforço.
Ele move os lábios e descerra as pálpebras com medo. A luz doente da tarde faz-Lhe medo. Cega-o. Onde estou eu? Não me lembro. Ainda não ouvi uma voz conhecida.
A custo divisa dois vultos brancos, parados. Que querem? Sobressalta-se com a interrogação, talvez porque voltou a ouvir o som estridente do túnel para onde regressa
a cento e oitenta, ao lado de alguém que lhe pergunta se ainda falta muito.
Alice Gilvaz também faz a mesma pergunta ao empregado que vende senhas para as visitas. Considera-se sozinha no mundo depois que procurou o tenente e este se recusou
a recebê-la. Ninguém lhe telefonou para casa. Seria tão bom que alguém lhe telefonasse!...
Perto do hospital há um homem sentado num banco. Olha inquieto à sua volta, mas sorri quando outro homem se aproxima de lancheira na mão. Cumprimentam-se, falam
em voz baixa e ambos parecem atentos a tudo o que se passa à sua volta. Depois, não percebo, o que chegou fica sentado e o primeiro agarra na lancheira do outro
e desaparece na luz da tarde, em passos largos, olhando para trás. Caminha depressa até à esquina e aí pára a acender um cigarro.
Quando retoma a marcha, sente-se calmo. E então começa a assobiar. É estranho! Quantas pessoas ainda sabem assobiar?!...

 

 

                                                                  Alves Redol

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades