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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O NASCER DO DIA - P.2 / Adam Williams
O NASCER DO DIA - P.2 / Adam Williams

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Palácio dos Prazeres Celestiais

O NASCER DO DIA

1º Volume / 2º Parte

 

SERÁ POSSÍVEL QUE OS ESTRANGEIROS TENHAM ENVENENADO TODOS OS POÇOS EM CH-LI?

 

O palanquim do mandarim prosseguiu, deixando o médico a debater-se com o mar de gente que o empurrava. Airton vislumbrara o mandarim contemplando com desdém a cena através da janela. No estado de espírito em que se encontrava, teria gostado de esmurrar a expressão altiva do mandarim. Indignado com este, consigo próprio, e, naquele momento, com tudo o que era chinês, dirigiu-se a Helen Francês.

 

- Venha, minha querida. Vou levá-la ao hotel. Este não é lugar para uma jovem.

 

Contudo, Helen não se mexeu. Estava petrificada, com uma mão em frente da boca aberta e os olhos esbugalhados, se de fascínio, se de horror, o médico não sabia dizer. Os condenados passaram, arrastando os pés, a curta distância deles. Dois eram de meia-idade. O outro tinha pouco mais de vinte anos. As cabeças tombavam-lhes, devido às pesadas cangas, curvando-lhes os pescoços e as costas, devido ao esforço. Forçados a arrastar-se submissamente, pareciam esmagados pela vergonha, sob o peso dos crimes que haviam cometido e que eram enunciados em caracteres pintados a cor de sangue nos letreiros de pano que se agitavam por cima das suas cabeças. Os olhos soturnos nos rostos largos de camponeses dos homens mais velhos estavam fixos nos seus pés trôpegos e nas correntes que arrastavam por entre o pó. As suas expressões eram resignadas. Somente o mais novo revelava alguma curiosidade acerca da situação em que se achava. Os seus olhos, muito brancos, por cima do castanho manchado das faces, moviam-se nervosamente de um lado para o outro, como os de um potro assustado. Parecia perplexo por tanta gente se precipitar para a praça com o único intuito de o ver morrer. Dois soldados flanqueavam cada um dos condenados. Os seus uniformes impecáveis e a postura rígida e marcial contrastavam com o aspecto miserável dos homens que escoltavam. Aquela justaposição, só por si, era uma lição, um quadro vivo nue reafirmava a dignidade da lei sobre os proscritos da sociedade. Uma peça moralista deliberadamente coreografada para edificação da multidão. Mais atrás, o tambor soava como uma pulsação cardíaca. Montado no seu cavalo branco, o major Lin, que seguia o cortejo com os seus atiradores, era a imagem da autoridade e da punição implacável.

 

- Vamos, minha querida, temos de ir. Deixemos esses pagãos entregues às suas barbaridades - disse o Dr. Airton, puxando gentilmente Helen por um braço. - Seja uma boa menina e siga-me.

 

- É como Cristo e os ladrões a caminho do Calvário murmurou Helen -, carregando as cruzes.

 

- Sim, de facto é muito parecido - concordou o médico. - A humanidade não se tornou melhor ao longo dos tempos. Apenas refinou a sua crueldade. É um espectáculo horrível. Venha, minha querida.

 

Helen, contudo, continuava a não se mexer. Esticou a cabeça para ter pela última vez uma visão do cortejo, antes de este desaparecer por entre uma nuvem de poeira, ao atravessar o paliou. O médico reparou que ela tinha as faces muito vermelhas e que o seu braço tremia ligeiramente.

 

- Está tudo bem, minha querida. - sussurrou-lhe, tentando acalmá-la, colocando desajeitadamente o braço em volta dos seus ombros.

 

Helen libertou-se do abraço do médico e voltou-se para ele. Os seus olhos fitavam-no com firmeza, mas as íris estavam dilatadas, húmidas, quase reluzentes, e esboçava um sorriso estranho.

 

- Eu estou bem, doutor - A sua voz, muito embora calma, era uma oitava mais aguda do que o habitual. - Já assisti a uma execução. Não estou em estado de choque, asseguro-lhe. Pelo contrário, estou... estou... Não sei ao certo o que sinto. Eu... Quando era criança, lia histórias de piratas e de salteadores de estrada que eram enforcados em Tyburn e das multidões que acorriam para vê-los morrer. Achava impensável que alguém quisesse ver uma coisa tão horrível, mas suponho que queriam assistir porque... porque achavam emocionante. Penso que agora compreendo.

 

Não sei que dizer-lhe, minha querida. Tenho de levá-la para o hotel.

 

A multidão passara quase toda pela rua. A estrada em si estava deserta, à excepção dos remoinhos de pó que caíam, após o alvoroço de há pouco. A maioria dos habitantes de Shishan ocupava já o seu lugar na praça. Um ruído surdo, semelhante ao marulhar de uma onda, elevava-se da massa humana indistinta, em tons de castanho e azul, que conseguiam discernir através do pailou. Havia algo de lúgubre e de ameaçador na ausência de transeuntes naquela via pública sempre tão movimentada. Apenas se viam alguns vagabundos, apressando-se para chegar a tempo de assistir à execução na praça. Um jovem vestido com o traje de artesão chocou contra o médico, fazendo-o perder o equilíbrio. Praguejou, mas acabou por rir tolamente, ao ver que era um estrangeiro, antes de desatar a correr.

 

- Seu pagão sedento de sangue! - gritou-lhe o médico, parado no meio da poeira, agitando o punho cerrado. Não soube se por fúria, se por desespero, sentiu lágrimas de raiva saltar-lhe dos olhos. Que dia aquele. Que dia terrível. Só então se apercebeu de que reprimira aquela explosão emocional desde o fim da manhã, quando recebera a mensagem do mandarim...

 

Até então, tudo havia corrido razoavelmente bem. Os embaraços do jantar da véspera pareceram insignificantes à luz do sol matinal, muito embora Nellie ainda tivesse feito alguns comentários contundentes acerca de raparigas frívolas que não sabiam o que era melhor para elas e de rapazes de moral duvidosa que deviam ter mais juízo. Era óbvio que ainda se sentia irritada pela recusa de Helen. Alegando uma dor de cabeça, optara por ficar em casa durante toda a manhã. Era uma desculpa para não estar no hospital quando Miss Delamere fosse até lá, na sua visita à missão. Airton não a pressionou. Haveria muito tempo para uma reconciliação entre Nellie e Miss Delamere. E já sabia que essa tarefa lhe caberia a ele como o “coscuvilheiro” da família que era. Aaquele comentário zombeteiro ainda o magoava.

 

Pouco depois, Tom e um jovial Frank Delamere, a caminho de um dia de trabalho no entreposto da Babbit e Brenner, deixaram Helen em frente dos portões da missão. O médico levara-a directamente para o seu consultório, onde se preparava para extrair uma catarata a uma idosa. A calma com que a jovem assistira à operação impressionara-o, bem como o seu comportamento, mais tarde, nas enfermarias. Fazia perguntas inteligentes e não se mostrara perturbada, mesmo ao ver um menino de quatro anos que tropeçara num wok e ficara com o corpo queimado pela gordura animal a ferver. Sentara-se na beira da cama do menino desfigurado e, segurando-lhe na mão que não estava calcinada, sussurrara-lhe tolices até ele emitir um ténue guincho de alegria.

 

Aquilo convencera o médico de que Helen tinha a coragem e a sensibilidade necessárias para um dia se tornar uma boa enfermeira ou ajudante no hospital. Era uma pena que Nellie não estivesse ali para a ver.

 

A jovem era uma visitante atenta, a quem dava gosto mostrar o hospital. Airton apreciara todas as perguntas que lhe fora fazendo. Além do mais, a sua beleza levava-o a ser galante e a desejar agradar-lhe. Quando entraram na enfermaria do ópio - em geral um local deprimente onde os opiómanos apáticos transpiravam, em consequência do tratamento - o médico transbordava de bom humor, ao descrever o método que utilizava.

 

- Sabe, enquanto lhes injecto doses cada vez mais reduzidas de morfina, para cessar a dependência, a irmã Elena dá-lhes uma dieta cada vez mais reforçada de histórias da Bíblia, para manter as suas mentes ocupadas. Se é pela minha morfina diluída ou se é por temerem ouvir mais uma história sobre Elias, não sei, mas o tratamento parece surtir efeito. Um ou dois opiómanos deixaram o vício de vez.

 

Helen rira-se educadamente e perguntara porque havia tantos chineses viciados no ópio.

 

- Pobreza, minha querida - replicara o médico. - Tudo se resume à pobreza. Os sonhos que o ópio proporciona são uma forma ilusória de fugir da dura vida que eles levam. A dependência do ópio é tanto física como espiritual. Na nossa missão, tentamos oferecer medicamentos para os dois sofrimentos.

 

Então, o trabalho evangélico caminha a par do tratamento médico?

 

- Em teoria, sim - respondera Airton. - Se eu agisse segundo o que ensinaram os meus mestres da Sociedade Missionária Escocesa, passaria a maior parte do tempo a distribuir folhetos. Na prática, acho que tudo o que posso fazer é curar o corpo sem me preocupar também com a alma. É uma ideia errada? Com a minha humilde contribuição, levo aos pagãos as vantagens da civilização ocidental. Faço com a minha lanceta o que Herr Fischer faz com o caminho-de-ferro e o seu pai com os produtos químicos. Somos todos missionários, de uma maneira ou de outra.

 

- Nunca pensei no meu pai como um missionário. Airton rira-se.

 

- É verdade que ele não é nenhum Septimus Millward, mas desenvolveu novos sabões e novos processos de limpeza. Não sei se no colégio lhe ensinaram que o asseio anda perto da piedade, mas a higiene é tão importante na prevenção de doenças como qualquer um dos meus medicamentos. E será assim uma tolice tão grande pensar que, ao curarmos o corpo, a cura da alma se lhe seguirá?

 

- E os caminhos-de-ferro?

 

- Minha querida, só lhe digo que os caminhos-de-ferro levaram mais chineses até Jesus do que qualquer pregação minha ou dos meus colegas. Transportarão comida aos famintos, levarão indústrias que produzirão riqueza às províncias mais pobres, farão mais do que qualquer outra coisa para erradicar a pobreza e melhorar a vida do homem comum. E, com o tempo, este Celeste Império desagregar-se-á e será substituído por uma sociedade moderna e pujante, como a nossa. Então, que lugar restará para as velhas superstições? Aproximemos a China do Ocidente e a verdadeira religião, que ilumina e motiva o nosso mundo, encontrará o seu lugar aqui.

 

- Então, afinal sempre é um evangelizador, doutor Airton - comentara Helen, com um sorriso.

 

- Sem grande êxito - respondera o médico, rindo.

 

- Sabe quantos cristãos, da centena que aqui vive, em Shishan foram convertidos por mim? Dois, e já os viu. São Ah Sun e Ah Lee, a minha governanta e o meu cozinheiro. E, em virtude de todos os disparates que ouço da boca dos meus filhos facilmente influenciáveis, sei que o Ah Lee e a Ah Sun mantêm as suas superstições e a idolatria pagã, tal e qual como quando os conheci, há vinte anos. Gosto muito deles, mas não passam do que eu chamo “cristãos do arroz”. Tenho a certeza de que morreriam na cruz, se eu lhes pedisse, mas não seria pela fé; seria, em nove décimos, por orgulho e obstinação, e no restante por lealdade para comigo. A verdade, minha querida, é que a civilização chinesa, pagã e retrógrada como é, está tão profundamente entrincheirada que todas as nossas histórias evangélicas não passam de meras alfinetadas a todo o seu poder.

 

- Seria de julgar que eles ficariam gratos por lhes mostrarmos a verdade. Pelo menos, era o que Mistress Airton dizia ontem.

 

- Bom, a Nellie tem opiniões muito próprias acerca de quase tudo. Mas pense bem naquilo com que aqui nos deparamos, Miss Delamere. Pergunte a qualquer branco o que pensa de um chinês, e ele responder-lhe-á que é mentiroso e falso. Uma criança também o é, até lhe ensinarmos o que é certo e o que é errado. O problema é que nesta cultura não há o conceito do bem e do mal. Apenas a harmonia e o meio-termo. Nós pensamos que mentir é um pecado. Os Chineses pensam que é uma falta de educação ofender alguém, dizendo-lhe algo que não quer ouvir. Não dispõem das verdades absolutas que nós temos. Afirma que devemos mostrar-lhes a verdade. Eles têm uma sociedade complexa, que se desenvolveu ao longo de milhares de anos, e em que a verdade é tudo o que se quiser que ela seja. O que conta é a aparência e não a substância.

 

“Mas que civilização! Culta, refinada, com um governo, leis e ciência. Há dois mil anos, os seus filósofos elaboraram o conceito do homem virtuoso, o qual, ainda que não-cristão, deve ser honrado em todos os outros aspectos.

 

- Só que esse homem virtuoso não diz a verdade.

 

Ah, está a ser maldosa, Miss Delamere. Bom, talvez esse homem não seja tão escrupuloso como nós seríamos, mas nem por isso deixa de ser virtuoso. É instruído nos clássicos. Como o mandarim, que irá conhecer. Um cavalheiro muitíssimo amável. E, mais importante ainda, inteligente e sofisticado, um sábio versado em Confúcio, confiante na superioridade da sua herança cultural.

 

“Assim, pense porque são tão impopulares os nossos missionários mais motivados. Chegamos aqui, muito senhores do nosso nariz, cada um mais devoto do que o outro, distribuindo as nossas traduções da Bíblia. Nós sabemos que o que estamos a oferecer é a derradeira salvação. Para o chinês, é apenas mais um livro, e, por sinal, um livro muito esquisito. Lembrete de que estamos numa terra onde reina a confusão. O preto é branco, a esquerda é direita. Eles não pensam como nós. Lêem na Bíblia sobre o Dragão Satanás. Ora, o dragão, para eles, é um símbolo de virtude. É a divisa do imperador. Estamos a dizer-lhe que o imperador é maléfico? Depois, há todas as referências aos cordeiros e aos pastores. Metade das pessoas que vivem neste país nunca viu um cordeiro; os que viram, encaram um pastor como a ralé da sociedade. Ora, nós dizemo-lhes “Venham, como cordeiros, até ao Deus Pastor, e Ele perdoará os vossos pecados.” Eles nem sequer têm um conceito de pecado: se algo de mau lhes acontece é culpa de um deus qualquer, não deles.

 

“Ao mesmo tempo, dizemos-lhes para deixarem de venerar os seus antepassados, como se a devoção filial fosse um crime, e ordenamos-lhes que virem as costas às imagens que adoram, porque se trata de idolatria. O resultado é que as famílias cristianizadas deixam de pagar as suas taxas aos templos. O que é bom para nós, mas, numa sociedade como esta, é através dos direitos que se pagam ao templo que se financiam as actividades comunitárias. Por conseguinte, os cristãos tornam-se automaticamente elementos antissociais. Os outros têm de arcar sozinhos com as despesas das trupes itinerantes e de tudo o resto. Assim, gera-se um ressentimento contra os convertidos. Na melhor das hipóteses, são uns privilegiados face aos outros chineses, na pior, são sediciosos. E, se há uma seca que traz a fome, como acontece em várias zonas de Shantung e de Chih-li, não é de espantar que comecem a espalhar-se rumores de que são os cristãos que envenenam os poços, ou que os médicos das missões, como eu, arrancam os corações das pessoas para os usar em rituais de magia, ou que os fios telegráficos atraem os maus espíritos. Os ressentimentos alimentam as superstições e estas alimentam os ressentimentos. E tudo porque abordámos determinados assuntos da maneira errada.

 

- E o que está por trás do movimento Boxer, doutor? Está a pintar um cenário deprimente.

 

- Bom, a minha opinião é minoritária. Os missionários protestantes, na sua maioria, acreditam de que estão a fazer um bom trabalho e sentem-se esperançados que o gotejar de conversões rompa um dia o dique e leve milhões de almas a descobrir Jesus. Não parecem preocupar-se com o facto de não compreenderem as noções mais básicas da sociedade em que vieram viver. Não se apercebem de quanto são ofensivas as suas boas intenções. Limitam-se a fazer a obra do Senhor às cegas, esperando que Ele trate do resto. Ponto final. Pois eu creio que devemos ser um pouco mais subtis. Não basta enfiar a Bíblia, ainda por cima mal traduzida, na cabeça dos Chineses. Não chegaremos a lado nenhum enquanto não tivermos a classe dos mandarins do nosso lado, e não o conseguiremos tratando-os com ar superior ou criticando os seus costumes. Daí eu pensar que é melhor abrir hospitais e construir caminhos-de-ferro. Se pudermos mostrar-lhes as vantagens do nosso modo de vida, então o cristianismo seguirá no vagão das bagagens.

 

Que conversa maravilhosa tivera com a jovem, pensou o médico, se bem que, percebia-o agora, tivesse falado muito mais do que Helen Francês. Preparavam-se para sair da enfermaria dos opiómanos e dirigir-se à capela quando o mordomo, Zhang Erhao, aparecera com um mensageiro do yamen, e o dia do médico tornara-se bastante sombrio.

 

Ao Respeitável Ai Dun Daifu (dizia a carta) da parte de Sua Excelência, o mandarim Liu Daguang. Fica informado de que os bandidos Zhang Nankai, Xu Boren e Zhang Hongna, depois de haverem confessado o homicídio do jovem estrangeiro, Hailun Meilivjude, nas colinas Negras, foram condenados pelo yamen e serão executados esta tarde como castigo por este crime e por outros que envolvem banditismo, roubo e vários delitos. Não pode haver qualquer recompensa porque os três culpados, não obstante o seu passado de ladrões, não mostraram possuir quaisquer bens no momento da sua detenção. Esperamos que isto satisfaça as suas perguntas acerca deste assunto e autorizamo-la a informar os familiares da vítima assassinada da justiça que será feita em seu nome.

 

Estava selada com a marca oficial do yamen.

 

- O que se passa, doutor Airton? - gritou Helen.

 

O médico, com mão trémula, fez sinal ao mensageiro e a Zhang Erhao para que se retirassem e deixou-se cair numa das camas da enfermaria, com os olhos rasos de lágrimas.

 

- Pobre, pobre rapaz... - murmurou. - Era o que eu mais receava. Como vou dizê-lo aos pais?

 

Só então a frieza da carta oficial o atingiu.

 

- Monstruoso! - gritou. - É monstruoso! “Esperamos que isto satisfaça as suas perguntas”! Como se eu tivesse apresentado queixa de um bem perdido ao conselho municipal! Que tipo de recompensa pode haver para uma vida humana? E porque não fui informado do julgamento? Isto é verdadeiramente monstruoso. Cambada de selvagens!

 

Helen, que ainda tinha fresco na memória o discurso do médico sobre a sofisticação da cultura chinesa, percebeu que devia manter-se em silêncio.

 

Não havia outra alternativa. Airton teria de ir imediatamente a casa dos Millward para lhes transmitir a notícia. Ofereceu-se para escoltar Helen ao hotel, primeiro, mas ela perguntou-lhe se podia acompanhá-lo na sua visita aos Millward. Airton agradeceu. Era uma visita que receava fazer e sentia-se grato por ter companhia. Seguiram pela estrada rural que saía da missão e levava à porta sul, desceram a rua principal e penetraram na zona mais pobre da cidade, a noroeste, onde viviam os Millward.

 

O médico temia que Helen ficasse chocada com a pobreza e suj idade do casebre dos Millward. Se ficou, não o deixou transparecer, para além de pressionar um pequeno lenço contra o nariz quando saltou por cima do esgoto a céu aberto que havia em frente da porta. Quanto ao médico, agarrou com força o pau que levara consigo, mas os cães vadios que vasculhavam a lixeira à procura de comida, na outra extremidade da rua, mantiveram-se à distância. Usou o pau para bater à porta de madeira podre. Uma criança de expressão taciturna - uma das meninas que os Millward haviam “salvo” -., envergando apenas umas calças esfarrapadas, sem a parte de cima, a beleza do rosto obscurecida pela sujidade que a cobria, abriu a porta.

 

- Obrigado, minha querida - agradeceu o médico, entrando, enquanto procurava no bolso uma moeda para lhe dar. A menina enfiou-a apaticamente no cós das calças e conduziu-os por um pátio.

 

Os Millward estavam a almoçar, sentados em semicírculo à volta de um fogão a carvão. As gamelas de papas diluídas que tinham nas mãos continham mais água do que milho. Aquela pobreza deprimia Airton, e os olhos sombrios dos rostos pálidos e famintos das crianças pareciam fitá-lo com uma expressão acusadora. Perguntou se podia falar com Septimus e Laetitia a sós, mas Septimus, sem se levantar do seu banco, respondeu-lhe que dissesse ali mesmo o que tinha a dizer. O médico revelou o conteúdo da carta do mandarim. Laetitia soltou um grito abafado e cobriu o rosto com as mãos; Septimus inclinou a cabeça para a frente, enquanto as crianças fitavam o médico, continuando a comer. No pátio, um cão ladrou.

 

- Como é óbvio, irei ao yamen para saber algo mais acerca do que aconteceu - balbuciou Airton. - A carta não é suficiente. As legações em Pequim têm de ser informadas. Há que efectuar certos procedimentos, promover uma investigação. Se houver alguma coisa que eu possa...

 

Septimus ergueu a cabeça. Por detrás dos óculos, os seus olhos azuis brilhavam, à luz de um raio de sol que se infiltrava por um buraco no telhado.

 

- O meu filho não está morto, doutor.

 

- Claro que não, claro que não - murmurou Airton. - Está num local mais feliz. Deve ser esse o nosso consolo. Sim, ele agora tem vida eterna, claro. Os olhos azuis não pestanejaram.

 

- Ele não deixou este mundo, doutor. Ele ainda vive entre nós.

 

- A sua alma. Claro. Para sempre na nossa memória. Para sempre.

 

- Não está a perceber, doutor. Sei que o meu filho não foi assassinado. O Diabo enganou-o com uma teia de mentiras.

 

Airton pigarreou.

 

- Mas, e a carta?

 

- Palavras, doutor, palavras. O que são as palavras dos homens perante a verdade de Deus? Sei que o meu filho está vivo e de boa saúde. Vi-o.

 

- Viu o seu filho? Receio não estar a compreender...

 

- Ontem, doutor. O Senhor revelou-me Hiram numa visão. Ele falou comigo e disse-me: “Pai, perdoa-me pela angústia que te causo. Deves saber que há um desígnio para todas as coisas. Eu irei até ti, quando for o momento. Regressarei como o filho pródigo regressou. E haverá alegria onde agora há tristeza.”

 

- Aleluia - rematou Laetitia. As crianças imitaram-na, mas em tom abafado.

 

- Mas... mas onde é que ele está? - perguntou Airton.

 

- Isso o Senhor não mo revelou.

 

- Ah...

 

Septimus levantou-se e pôs um braço em volta dos ombros do médico.

 

- É um bom homem, doutor, e agradeço-lhe por ter vindo dar-me essa importante notícia. Agora, sei o que devo fazer.

 

- Mister Millward... Septimus... Sei o quanto deseja acreditar que toda esta tragédia podia ter sido evitada...

 

- É para evitar uma tragédia que o Senhor me chama à razão, graças a si, doutor. Há homens inocentes a salvar e tenho muito pouco tempo. Deixe-nos, porque precisamos de rezar.

 

O médico sentiu um braço forte que o virava e empurrava em direcção à porta.

 

- Mister Millward, deixe-me...

 

- Tenho muito pouco tempo - replicou Septimus. -. Agora, vá. O Senhor chama-me.

 

Airton e Helen viram-se de novo no pátio, a porta fechando-se atrás de si.

 

- Ele é louco, minha querida - comentou Airton.

 

- Sim, é óbvio que enlouqueceu - replicou Helen Francês.

 

- Esta tragédia deixou-o completamente desequilibrado. É uma pena... Que vamos fazer?

 

- Há alguma coisa que possamos fazer?

 

- Penso que não. Talvez esta loucura seja uma graça divina. Pobre, pobre família. Eu... Eu voltarei amanhã para ver como eles estão.

 

E afastaram-se. Uma ratazana atravessou a correr o pátio. Atrás deles podiam ouvir o murmúrio de preces.

 

Ao descer a rua principal, a caminho do hotel de Helen, foram engolidos pela multidão que se precipitava para a praça onde teria lugar a execução. Novos e velhos, lojistas e artesãos, homens e mulheres, pais carregando os filhos aos ombros, uma mulher de idade que coxeava, apoiada a um bastão, a satisfação e a expectativa espelhadas nos rostos, tudo aquilo desgostava o médico. Parecia que se apressavam para um circo ou uma feira. Ao mesmo tempo, um sentimento de culpa e de vergonha invadia-o. Como fora ineficaz! Que protecção pudera oferecer ao pobre rapaz inocente ou que auxílio fornecera ele aos pais, com boas intenções mas manifestamente tresloucados? Apesar de todas as suas boas intenções, não era apenas um coscuvilheiro idiota, como Nellie dissera? Como fora cego ao confiar na sua amizade com o mandarim e na justiça chinesa!

 

E a justiça chinesa ia naquele momento ser demonstrada, ali na praça. Nessa mesma noite, três cabeças seriam penduradas em gaiolas, nas portas da cidade, e esta regressaria aos seus afazeres como se nada fosse. Apenas uma anotação nos registos do yemen. Um assassínio e uma execução sumária. Uma proclamação de manhã e três cabeças rolando de tarde. A harmonia restaurada. A tragédia de Hiram e a execução dos seus assassinos transformada numa distracção para a multidão.

 

Quis revoltar-se contra a sensação de desperdício, a ligeireza com que os Chineses punham e dispunham da vida humana. Admitia que fossem culpados do terrível crime por que haviam sido condenados. Mas porquê tanta pressa em se livrarem das testemunhas das últimas horas de vida de Hiram? E porque não o haviam informado do julgamento? Uma vez que Hiram era uma criança estrangeira, não se aplicavam as leis extraterritoriais? Apercebeu-se, envergonhado, de que uma das principais razões da sua raiva era o facto de o mandarim não o haver informado do que se passava. Sentia que, de certa forma, a sua amizade fora traída. À medida que a poeira levantada pela multidão ia assentando e enquanto brandia um punho cerrado aos vagabundos que corriam para não perder o espectáculo, recordou mentalmente as feições calmas e cruéis do mandarim, que naquele momento devia presidir às barbaridades que decorriam na praça. O seu sorriso sardónico parecia escarnecer do médico e de todos os seus esforços bem-intencionados.

 

Foi despertado do seu deprimente devaneio por uma voz bem-falante, que lhe chegou por cima do ouvido esquerdo.

 

- Doutor Airton, Miss Delamere! Que curioso encontrá-los aqui. Dirigem-se para a execução ou vêm de lá? Espero não estar muito atrasado.

 

O médico ergueu o olhar e viu, recortado contra o fulgor do sol da tarde, Henry Manners, montado no seu cavalo. Estava elegante, como sempre, com um fato de tweed e chapéu de coco. O couro castanho das botas e da sela reluzia com uma elegância militar. A égua cinzenta resfolegava e empinava a cabeça, mas Manners, com rédea curta, sustinha o fogoso animal.

 

- O doutor vai levar-me ao hotel, Mister Manners respondeu Helen Francês. - Diz que este não é lugar para uma jovem.

 

- Seguramente que não - concordou Manners. – As execuções são espectáculos imundos. Por breves instantes receei que, depois da sua experiência em Fuxin, tivesse desenvolvido gostos pouco próprios para uma senhora.

 

- Nada receie. Um horror bastou-me. Mas, por favor, não deixe que nós o privemos do seu entretenimento - Airton estava espantado com o tom irónico que Helen, à semelhança de Manners, empregava. Era como se namoriscassem num salão. E havia nos olhos da jovem o mesmo estranho brilho que detectara quando o cortejo dos condenados passara por eles.

 

- Infelizmente, para mim não é um entretenimento. Receio que seja tudo trabalho - respondeu Manners. - Em circunstâncias desagradáveis, mas penso que poderei encontrar na praça a pessoa que procuro. As execuções são, de certo modo, eventos sociais, não é verdade, doutor? Numa terra de bárbaros, suponho que temos de aprender a adoptar os seus costumes pagãos.

 

- Receio não estar a compreendê-lo, jovem. Se tem mesmo de assistir a um tal espectáculo, não posso impedi-lo. Mas quanto a si, Miss Delamere, assumi responsabilidades perante o seu pai, e insisto em que saiamos daqui quanto antes.

 

- Foi um prazer vê-lo, doutor, mesmo que por breves momentos - despediu-se Manners. - Ah, e obrigado pelo esplêndido jantar de ontem. Aguardo com ansiedade o nosso primeiro passeio, Miss Delamere. Amanhã, não é verdade? Estarei no seu hotel às duas horas.

 

Levou o cabo do chicote à aba do chapéu e esporeou o cavalo, lançando-o num trote curto. Poucos segundos depois, desaparecia, passando sob o paliou e entrando na praça. A sua figura muito direita desvaneceu-se por entre a poeira e a multidão que eles mal vislumbravam, àquela distância. Quando o médico e Helen se viraram, repararam que o murmúrio de vozes dera lugar a um silêncio sinistro.

 

- Meu Deus, estão a ler as proclamações, antes de executarem as sentenças - exclamou Airton. - Por favor, podemos ir, agora?

 

O mandarim estava sentado numa plataforma de madeira, erigida perto da entrada para o templo na praça do mercado.

 

Um criado mantinha uma sombrinha aberta por cima da sua cabeça e ele bebia chá, enquanto conversava com o major Lin. À frente deles, Jin Lao lia à multidão, agora silenciosa, a proclamação escrita num rolo. A sua voz, naturalmente aguda, parecia vibrar com uma emoção literária. O mandarim duvidava de que metade das pessoas ali presentes compreendesse uma só palavra do que Jin Lao dizia. E tinha a certeza de que os três infelizes, que penavam os últimos momentos na terra, com os rostos pressionados contra o chão pelos soldados de Lin, não apreciavam os floreados literários.

 

O olhar do mandarim passeou indolentemente pela multidão. Havia uma atmosfera de tensão e de expectativa nos rostos, que, com ávida atenção, fitavam Jin Lao, ou lançavam olhares fascinados e furtivos aos miseráveis criminosos prestes a ser executados. O que levava aqueles sossegados lojistas à praça a fim de assistir a uma carnificina, perguntou a si próprio. A curiosidade? A sede de sangue? Fora uma multidão como aquela que se amotinara em Fuxin. Teria de prestar atenção para que nenhum dos actos tresloucados dos Boxers ganhasse raízes em Shishan.

 

Reparou, ao fundo da multidão, num estrangeiro a cavalo. Era um homem novo, bem constituído, de aparência militar, que sabia sentar-se na sela. Nunca o vira. Era estranho que um estrangeiro viesse assistir a uma execução. Tinha dificuldade em discernir a expressão do homem, àquela distância, mas pareceu-lhe detectar um sorriso de divertimento. O homem olhava na sua direcção. Era como se houvesse percebido que o mandarim reparara nele, porque tirou o chapéu, num gesto deliberado de saudação, sem deixar de o fitar com olhos insolentes. Pela segunda vez naquela tarde, o mandarim ficou intrigado, mas não se permitiu alterar a expressão do seu rosto impassível. Ao invés, inclinou a cabeça para o major Lin.

 

- Qual foi a resposta do Homem de Ferro Wang? Ele já efectuou os contactos? - perguntou.

 

Era a primeira vez que tinha oportunidade de falar com o major Lin desde que este regressara das colinas Negras.

 

- Garantiu ao tenente Li que está tudo a correr bem, mas não lhe indicaram uma data para o carregamento.

 

A voz do major Lin revelava-se extenuada, mas não deixava de vigiar atentamente a multidão.

 

- Ah, sempre vai haver um carregamento? - perguntou o mandarim, em tom zombeteiro. - É que já paguei o suficiente pelas promessas que me foram feitas. Quando vou ver as minhas espingardas?

 

- Foi dito ao tenente Li que as espingardas ainda se encontram num armazém perto do lago Baical. O Homem de Ferro Wang disse que há um novo comandante no armazém e que ele exige um pagamento.

 

- O tenente Li recebeu instruções para recusar novos pedidos de pagamento até o carregamento chegar.

 

- Sim, essas foram as instruções iniciais, mas depois teve de negociar a entrega destes criminosos, de acordo com as suas novas instruções, Da Ren, e isso complicou as coisas. Deu ao Homem de Ferro Wang um novo pretexto para regatear.

 

- Novas instruções?

 

- As instruções transmitidas pelo camareiro Jin Lao, Da Ren. Por causa delas, o Homem de Ferro Wang fez mais exigências.

 

- Compreendo. De futuro, receberá instruções directamente de mim. É uma pena que não tenha comandado pessoalmente as tropas.

 

- Estava doente, Da Ren.

 

- Isso sim. Estava era com aquela cortesã.

 

O major Lin corou e empertigou-se, mas, reparando no sorriso do mandarim, também sorriu.

 

- Isso lembra-me quanto me sinto honrado pela sua dádiva, Da Ren.

 

- Ela agrada-lhe?

 

- Mais do que saberia explicar.

 

- Bom, mas que ela não o distraia do trabalho. Se isso acontecer, tiro-lha e dou-a a outro qualquer. Talvez devesse levá-la para os meus aposentos. Ouvi dizer que é muito atraente - o mandarim fitou o seu subordinado, notou o súbito rubor de fúria no seu rosto e riu-se. - Ciúmes, major? De uma prostituta? Então... Vou dizer-lhe o que farei: traga-me as minhas espingardas e eu compro-a àquele bordel para que possa ficar com ela, de uma vez por todas. Depois, pode casar com ela, se está assim tão apaixonado. O major Lin cuspiu para o chão.

 

- Não compreendo porque não pedimos mais armas a Pequim. As minhas tropas bem precisam. É humilhante ter de negociar por intermédio de um bandido com bárbaros russos corruptos, em quem nunca confiei. Perdoe-me ser tão crítico, Da Ren, mas é o que penso.

 

O mandarim fechou os olhos.

 

- Meu caro e patriótico major Lin, valorizo muito a sua sinceridade. Se ao menos o governo tivesse armas para nos dar, mas não tem. Estamos numa posição precária, como sabe. Tanto os Russos como os Japoneses querem estabelecer esferas de influências aqui. Os Russos já transferiram as suas tropas para grandes partes da Manchúria. Portanto, que posso eu fazer a não ser lidar com o inimigo? Temos de ficar gratos por serem corruptos, porque assim podemos adquirir as armas de que precisamos para nos protegermos deles.

 

- Mas agir furtivamente, por intermédio de um bandido, Da Ren? Não haverá outra maneira?

 

- A Sociedade do Bastão Negro e o Homem de Ferro Wang mantêm ligações com os Russos. Tem outra sugestão? Se pudéssemos recorrer às suas relações pessoais com os Japoneses...

 

- Os meus captores eram homens honrados, Da Ren.

 

- Claro que eram, major. Mesmo assim... Mas o que se passa?

 

Um homem debatia-se para abrir caminho por entre a multidão. Os insultos e as imprecações que provocava à sua passagem começavam a abafar a proclamação de Jin Lao. Um murmúrio de fúria percorreu a multidão, quando Septimus Millward avançou para o círculo vazio. Tinha o casaco rasgado e um fio de sangue escorria-lhe da testa.

 

- Parem! - gritou, no seu chinês deplorável, apontando o dedo a um perplexo Jin Lao, que parara a leitura e o fitava, boquiaberto. - Parem o vosso mau trabalho! Deus diz que o meu filho está vivo. Esses homens - bradou, indicando com um gesto largo os igualmente espantados criminosos, que o olhavam de baixo para cima, prostrados que estavam no chão

 

esses homens estão sem tambores. Sem tambores, repito, à vista de Deus e dos homens!

 

Tremendo de cólera, o major Lin vociferou instruções aos seus homens, que se aproximaram, hesitantes, do homem louro e alto que continuava a gritar disparates a Jin Lao. O mandarim reparou como o estrangeiro se libertava facilmente da tentativa de um soldado para o agarrar pelos braços. A multidão, por si só, começava a revelar sinais de agitação, tentando quebrar a barreira formada pelas tropas de Lin. Legumes e outros projécteis eram lançados indiscriminadamente aos condenados, aos soldados e a Millward. O mandarim julgou ouvir alguém gritar “Morte aos demónios estrangeiros!”, o que se confirmou, instantes depois, repetido como um grito de guerra, por cada vez mais pessoas. Reparou que o filho da proprietária do bordel, Ren Ren, e alguns dos seus amigos, à varanda do Palácio dos Prazeres Celestiais, do outro lado da praça, agitavam os braços como se conduzissem o coro. O mandarim reconheceu os primeiros sinais de um motim.

 

Levantou-se, afastando a sombrinha, enquanto um dos soldados de Lin batia em Millward com a coronha da espingarda. O americano caiu de joelhos. Um outro soldado desferiu-lhe um golpe no fundo das costas e ele tombou com o rosto para a frente. O grupo de soldados começou a espancá-lo, quando ele tombou ao chão. A multidão rugiu.

 

- Dispare a sua pistola! - ordenou o mandarim a Lin.

 

O ruído de seis tiros disparados em rápida sucessão fez parar toda e qualquer actividade na praça. Um dos soldados ainda tinha a coronha da espingarda levantada por cima do corpo de Millward. Uma laranja arremessada momentos antes dos disparos acertou na cabeça de um dos condenados e rolou pelo chão. O mandarim falou, por entre o silêncio.

 

- Este louco receberá vinte chicotadas por perturbar a paz! - bradou. - Levem-no para o yamen.

 

Lin gritou uma ordem e dois soldados arrastaram para fora da praça o corpo ensanguentado de Millward, que não cessava de berrar. A multidão afastou-se respeitosamente para deixá-los passar.

 

- Ouviram a proclamação! Procedam à execução! - ordenou o mandarim.

 

A multidão rugiu de contentamento. Os carrascos, em tronco nu, com as suas espadas de lâminas largas e os corpos cobertos de óleo, avançaram para o círculo.

 

- Tens sorte, camareiro Jin - comentou calmamente o mandarim, ao passar por ele -, que ninguém tenha compreendido as palavras daquele bárbaro. Quando ele disse que os condenados estavam “sem tambores” estava a tentar dizer que eles eram “inocentes”. Mantém o rapaz bem escondido, ou renegar-te-ei.

 

- Sim, Da Ren - murmurou um trémulo Jin Lao.

 

O mandarim recostou-se na sua cadeira e pegou numa chávena de chá. Os ajudantes dos carrascos puxaram para a frente os rabichos dos condenados, a fim de deixarem os seus pescoços expostos para a decapitação. O mandarim voltou a reparar no estrangeiro montado a cavalo, atrás da multidão. A confusão não o afectara: havia uma expressão sardónica, quase de enfado, no seu rosto. O mandarim observou-o atentamente, durante toda a execução. A expressão do estrangeiro não se alterou, mesmo quando as lâminas caíram, ou quando as cabeças foram erguidas e enfiadas nas varas; não houve sequer um lampejo de interesse, no momento em que a multidão avançou para recolher partes dos cadáveres para os seus remédios. Era óbvio que aquele homem era de uma têmpera diferente da do seu sentimental amigo, o médico.

 

- Suba para o meu palanquim - disse ao major Lin. O camareiro pode voltar a pé.

 

Os tambores soaram, a trombeta retiniu, e o cortejo avançou de regresso ao yamen, abrindo caminho por entre a multidão, que já começara a dispersar.

 

- Foi mais interessante do que é habitual - comentou o mandarim, quando os carregadores iniciaram a marcha, subindo a colina. - Nunca se sabe o que esperar desses missionários.

 

- Se fosse eu que mandasse, todos os estrangeiros seriam expulsos - sibilou Lin.

 

- Você é um patriota, o que é de louvar e, num mundo ideal, eu partilharia com certeza os seus sentimentos. O problema é que precisamos dos estrangeiros.

 

- Não posso concordar com isso.

 

- Você é novo, meu amigo, e dotado de todas as virtudes. Infelizmente, quando se chega à minha idade, aprendemos a ver o mundo não como ele devia ser, mas como é. E, por vezes, é deprimente pensar até que ponto vai o oportunismo a que estamos reduzidos para alcançar um objectivo respeitável. Por mim, contento-me em pensar que, desde que o meu objectivo seja virtuoso, todos os meios para alcançá-lo são honrados, por muito tortuosos que possam parecer.

 

“Um ponto de vista, aliás, que o meu interlocutor estrangeiro, o bom Ai Dun Daifu - um bom homem, apesar de ser bárbaro -, nunca conseguirá compreender. Aprendi muito com as nossas conversas. Ele fala-me do mundo que fica para lá do Império do Meio. É espantoso conhecer as capacidades técnicas que os bárbaros desenvolveram, e como eles são, aparentemente, poderosos, mas também descobri que o estrangeiro está treinado para pensar em termos absolutos sobre o certo e o errado. Isso é uma grande fraqueza, nele, e conhecê-la é muito importante para mim, justificando as horas de tédio que já passei na sua companhia. Concorda, por certo, que devemos sempre conhecer os pontos fracos do nosso inimigo. Caso contrário, como poderíamos derrotá-lo?

 

- Então, encara os estrangeiros como nossos inimigos?

 

- Além de um meio para alcançar um fim.

 

- Não o compreendo, Da Ren, mas não passo de um soldado.

 

- Bom, esperamos que eles lhe forneçam as armas. Ora, isso não é um meio para alcançar um fim? A propósito, estava a dizer-me porque não pode abordar os seus amigos japoneses, que, devo lembrar-lhe, também são estrangeiros, apesar de os considerar como modelos de virtude.

 

- Os Japoneses são diferentes. Provêm da mesma estirpe racial que nós. Como pode afirmar que são iguais aos bárbaros peludos do Ocidente? Mas não gosto que me recordem esses tempos.

 

- Porquê? Não é nenhuma desgraça ter sido prisioneiro de guerra. E, ao que parece, aprendeu muito durante o cativeiro. As técnicas militares que adoptou impressionaram-me. Se travou amizade com os seus captores, como parece, então talvez não haja motivo para nos darmos com o Homem de Ferro Wang e os Russos. Há-de haver com certeza alguns japoneses corruptos. A maior parte das pessoas é corrupta.

 

- Já lhe disse: os Japoneses são honrados. Ele nunca se rebaixaria a contrabandear...

 

- Ele? Ah, sim, o oficial que o resgatou. O misterioso capitão. Como se chama ele? Certa vez, você contou-me como ele foi bondoso para consigo.

 

O major Lin, apesar de todas as sacudidelas provocadas pelo palanquim, mantinha-se sentado, muito hirto, com a mesma expressão feroz de sempre afivelada no rosto. Quando falou, a sua voz revelou-se formal e tensa:

 

- Por favor, Da Ren, não gosto de recordar esses tempos. Ajudá-lo-ei nos seus acordos com o Homem de Ferro Wang e obedecerei a quaisquer outras ordens que me dê. Sou um soldado e cumprirei o meu dever. Peço perdão se disse alguma coisa desrespeitosa, ou pus em dúvida de alguma forma a sua sabedoria.

 

O mandarim sorriu.

 

- Os seus segredos a si pertencem, major. Mas arranje-me as minhas espingardas. É uma ordem... Mas... o que se passa, desta vez? São só distúrbios, uns atrás dos outros...

 

Um dos soldados de Lin aproximou-se a correr do palanquim. A sua cabeça balouçou para cima e para baixo, enquanto tentava manter-se ao lado da janela.

 

- É um demónio estrangeiro, Excelência. Um demónio estrangeiro a cavalo, Excelência. Quer falar-lhe, Excelência. Desculpe, Excelência.

 

- Que insolência! - ripostou Lin, encolerizado. - Não se preocupe, Da Ren. Encarregar-me-ei deste ultraje. Traz-me o meu cavalo! - gritou ao homem que continuava a correr ao lado do palanquim.

 

- Não; parem o palanquim! - ordenou o mandarim. Vamos encontrar-nos com ele.

 

O major Lin ainda quis protestar, mas acabou por passar a cabeça pela janela e deu instruções aos carregadores para que parassem e pousassem o palanquim. Um ou dois homens que passavam espreitaram com curiosidade, antes de o major Lin ordenar aos seus homens que formassem um círculo em torno do palanquim, a fim de conferir alguma privacidade ao encontro. Pouco depois, o europeu foi trazido. O mandarim saiu do palanquim.

 

- Não é o procedimento normal para uma audiência disse -, mas em que posso ajudá-lo?

 

- Liu Daguang, Da Ren - cumprimentou Manners, batendo os calcanhares das botas e segurando o chapéu contra o peito. - Major Lin Fubo. Espero que me perdoem por esta minha inconveniência, interrompendo o vosso trajecto. Pedi uma audiência no yamen, mas o meu pedido foi rejeitado. Tentei aproximar-me de vós antes que deixassem o local da execução, mas havia uma grande multidão. Gostava de me apresentar: Henry Manners, novo funcionário do caminho-de-ferro.

 

- E...? - inquiriu o mandarim, após uma pausa. - Já se apresentou. Há mais alguma coisa?

 

- Não, nada de verdadeiramente urgente, por ora - respondeu Manners -, mas pensei que era importante prestar-lhe a minha respeitosa homenagem, tão depressa quanto possível, após a minha chegada.

 

- Em geral, o Dr. Ai Dun mantém-me satisfatoriamente informado acerca do que se passa no caminho-de-ferro. Existe algum motivo para que eu deva receber um outro funcionário da companhia? Além do prazer de o conhecer, claro está.

 

- Quando um homem sensato chega a um local, deve procurar relações que sejam de mútuo benefício, Da Ren.

 

- De mútuo benefício?

 

- Assim o espero.

 

Os seus olhos risonhos fitaram directamente os do mandarim, que sustentou o olhar. Os dois homens pareciam analisar-se um ao outro.

 

O major Lin não conseguiu conter-se.

 

- Veja a impertinência deste bárbaro, Da Ren! Devíamos levá-lo também para o yamen e chicoteá-lo!

 

- Receio não poder chicotear sequer o outro, apesar de ter dito o contrário à multidão, por causa das leis extraterritoriais - replicou o mandarim. - Quanto a este, a sua impertinência agrada-me, porque revela coragem. Seja bem-vindo a Shishan, Ma Na Si Xiansheng. Por favor, queira contactar-me, quando achar que podemos auxiliar-nos mutuamente. Vá ter com o meu camareiro para marcar uma audiência comigo.

 

- Assim farei, Da Ren. Obrigado.

 

- Não tem realmente mais nada para me dizer? Era tudo o que desejava? Apresentar-se? Nesse caso, despeço-me.

 

- Há só uma coisa, Da Ren.

 

O mandarim virou-se, antes de entrar no palanquim.

 

- Sim?

 

- Na verdade, é uma mensagem para o major Lin da parte de um velho amigo seu, o coronel Taro Hideyoshi. Ele foi promovido, major. Envia-lhe os mais respeitosos cumprimentos. Foi transferido para a Legação Japonesa em Pequim. Está ansioso por reencontrar o seu velho amigo. “Na paz como na guerra” foi o que me pediu que lhe dissesse, e deu-me uma carta de apresentação. Aqui está.

 

- Pegue-lhe, major - disse o mandarim. Lin parecia petrificado. - É uma extraordinária coincidência, Ma Na Si Xiansheng, porque eu e o major Lin tínhamos acabado de falar do seu velho amigo naquela lamentável guerra.

 

- O coronel Taro está sempre a falar do major Lin, Da Ren. Fala dele como de um irmão. Deseja imenso reatar essa velha amizade. E pediu-me para que ajudasse o major Lin de todas as formas que estiverem ao meu alcance.

 

- E que tipo de ajuda seria?

 

- Isso depende, Da Ren, das exigências do major Lin. A ajuda poderia ser substancial, pelo que me disse o coronel Taro, mas envolvem condições bastante moderadas.

 

- Não compreendo o que este homem está a insinuar sibilou Lin.

 

- Oh, pois eu parece-me que compreendi - murmurou o mandarim. - Que curioso. Ainda há poucos minutos você e eu discutíamos as vantagens de você reatar o contacto com os seus velhos amigos.

 

- Se ao menos eu e o major Lin pudéssemos encontrar-nos em circunstâncias mais agradáveis e talvez mais discretas talvez eu pudesse explicar-lhe mais pormenorizadamente o que o seu velho amigo sugere... - acrescentou Manners.

 

- Que estranho ele enviar um inglês como emissário...

 

- Se quiser verificar a minha ficha junto da companhia do caminho-de-ferro, descobrirá que passei muitos anos no Japão, a treinar oficiais japoneses. Também eu fui um soldado, major Lin, e, tal como você, vivi... digamos que intimamente com os Japoneses. Também estabeleci com eles fortes laços de amizade. E não foi a amizade que nos juntou a todos hoje?

 

- Tenho a certeza de que o major Lin terá o maior prazer em falar um pouco mais consigo sobre esses assuntos da amizade. Sugiro que se encontrem amanhã à noite no Palácio dos Prazeres Celestiais. De acordo, major? Excelente. Bom, o nosso encontro foi muito interessante.

 

Manners fez uma vénia e o mandarim entrou no palanquim. Uma vez no interior, passou a cabeça pela janela.

 

- Antes que parta, inglês, tenho uma pergunta a fazer-lhe: quando a multidão começou a mostrar-se agitada, durante a execução, não teve medo?

 

- Porque haveria de ter medo se o mandarim em pessoa estava lá para impor a ordem?

 

- E se eu tivesse optado por encorajar os sentimentos do meu povo contra os estrangeiros?

 

- Nesse caso, ter-me-ia entregue à sabedoria do mandarim e à sua capacidade de reconhecer quem, de entre os estrangeiros, é amigo da China.

 

- Há quem acredite que nenhum dos demónios do oceano pode ser amigo da China.

 

- Enquanto o mandarim governar em Shishan, confiarei no seu discernimento e na sua protecção.

 

- Enquanto eu governar? Quer insinuar que talvez eu possa não continuar a fazê-lo?

 

- Tenho a certeza de que governará por dez mil anos retorquiu Manners, com um sorriso.

 

O mandarim riu-se. Deu uma palmada na parte lateral do palanquim, aos carregadores que levantassem os varais e retomassem o caminho.

 

O major Lin, reprimindo a fúria, manteve-se calado durante o resto da viagem. O próprio mandarim remeteu-se ao silêncio, com expressão pensativa. Apenas o quebrou uma vez, para comentar:

 

- Sempre me orgulhei da minha capacidade de identificar um salteador ou um homem corrupto. É deveras intrigante ver a versão inglesa. Penso que o jantar de amanhã será deveras interessante, major. Certifique-se que são fornecidos todos os confortos da casa. Deixe a sua Fan Yimei extasiar o estrangeiro com a sua música.

 

Felizmente, o mandarim fechou os olhos logo de seguida, porque a expressão azeda e cruel do major Lin não poderia nunca ser interpretada como respeitosa.

 

Desde que Lu Jincai, o negociante, lhe dera a carta, Fan Yimei encontrava-se numa situação embaraçosa. O homem enfiara-lhe a carta na mão sub-repticiamente, ao chocar com ela, quando os dois haviam passado um pelo outro no pátio.

 

- Leve isto a Shen Ping - sussurrara-lhe, fingindo estar embriagado e pousando uma mão no seu ombro, como se procurasse equilibrar-se. - Sei que neste lugar até as árvores têm ouvidos e olhos. É amiga dela. Leia a carta e saberá o que fazer.

 

Depois, cantando em voz alta, afastara-se aos tropeções.

 

Fan Yimei, com a carta escondida no peito, passara por uma Mãe Liu desconfiada, que se postara à porta para ver Lin partir.

 

- O que foi que aquele homem te disse? - perguntou.

 

- Nada. Apenas algo indecente. Estava bêbedo - respondera Fan Yimei.

 

- Porque não estás com o major Lin?

 

- Ele pediu outro jarro de vinho - o que era verdade.

 

- Esse homem vai voltar a beber à minha custa - resmungara Mãe Liu. - Anda! Vai buscar o jarro! Dá-lhe um daqueles em que o vinho está misturado com água. A esta hora da noite já não notará a diferença.

 

Para alívio da rapariga, deixara-a passar sem mais perguntas

 

Não se atrevera a abrir a carta até o major Lin adormecer. Mostrara-se zangado e bruto durante toda a noite, sentado na cadeira, bebendo com avidez e mal tocando na comida. Ela perguntara-lhe o que se passara para o deixar de tão mau humor, mas ele limitara-se a rosnar como resposta, para a seguir ordenar que lhe enchesse novamente a taça. Fan Yimei tentara tocar as melodias favoritas do major no chin, mas ele atirara-lhe uma almofada e ordenara-lhe, em tom agressivo, que parasse. Mais tarde, depois de esvaziar mais de metade de um segundo jarro de vinho, quando a bebida começava a fazer efeito e as suas palavras se haviam tornado indistintas e incoerentes, começara a amaldiçoar o mandarim, os demónios estrangeiros, o Homem de Ferro Wang e as espingardas. Quando se tornara violento, puxara-lhe o vestido pela gola, de forma a que lhe apertasse o pescoço, e gritara-lhe que se ela alguma vez olhasse sequer para um inglês, a mataria. Logo de seguida, tivera uma crise de choro, soluçando e enterrando o rosto no ombro de Fan Yimei, enquanto repetia algo que parecia “Taro-sama, Taro-sama”, o que não fizera sentido para Fan Yimei. Esta conseguira transportá-lo até à cama. Ele agarrara-se a ela como uma criança assustada. Passado algum tempo, iniciara as primeiras carícias para fazer amor com ela, mas estava demasiado bêbedo. Ela dera o seu melhor, voltando-se de barriga para baixo e oferecendo-se para a posição do cão, que sabia ser a que ele preferia quando ficava naquele estado, mas a bebida retirara-lhe toda a virilidade. Açoitara-o com a vara de salgueiro, mas sem resultado. Por fim, ele adormecera.

 

Só nessa altura Fan Yimei olhou para a carta que Lu lhe entregara. Estava endereçada a Shen Ping com o nome de De Falang inscrito por baixo. Aproximando-a da luz da vela, passara rapidamente o olhar pela caligrafia nítida (que julgava ser de Lu Jincai). Era uma missiva elegante, bem escrita, com verbos lisonjeiros, mas a mensagem em si era inflexível. Nas dobras da carta havia um sobrescrito vermelho. Fan Yimei não o abrira. Não queria descobrir qual o preço do fim das esperanças da amiga.

 

Sabia que Shen Ping ainda não se encontrava em estado de poder ler aquela carta. Mal a havia reconhecido, quando, dois dias depois de ser espancada, Mãe Liu a autorizara a ir à cabana onde estava a amiga. Imaginava que a única razão para aquele invulgar privilégio residia no facto de Mãe Liu recear que Ren Ren tivesse ido longe demais e duvidar que Shen Ping recobrasse das torturas. Provavelmente, calculava que a visita de uma amiga talvez pudesse reavivar o pouco alento que a rapariga ainda tivesse.

 

Fan Yimei tivera de forçar uma das persianas para deixar entrar um raio de luz no quarto escuro, que tresandava a sangue e a excrementos humanos. Viu algemas e correntes numa das paredes, e a um canto um chicote enrolado e vários instrumentos de metal que não conseguiu identificar. Shen Ping estava enroscada debaixo de um cobertor, num colchão de palha. O seu rosto estava repassado de cortes e de nódoas negras. Quando Fan Yimei se aproximara, Shen Ping começara a chorar e rolara sobre o corpo, tentando escapar. Fan Yimei precisara de algum tempo para acalmá-la e só teve a certeza de que a amiga a reconhecera quando uma mão com os ossos partidos emergira de debaixo do cobertor e, hesitante, lhe acariciara o rosto. Fan Yimei esforçara-se por reprimir os soluços.

 

Mãe Liu deixara-a levar um balde de água e um recipiente com sopa de galinha.

 

- Limpa e dá de comer a essa cabra. Ficas responsável por ela - instruíra-a.

 

Fan Yimei tivera de mergulhar um lenço na sopa e espremê-lo com cuidado para que o líquido caísse sobre os lábios fendidos e ressequidos de Shen Ping, que conseguira apenas tragar algumas colheres de sopa sem se engasgar. Depois, com todo o cuidado, levantara a manta, que em certos pontos estava colada ao corpo por causa do sangue coagulado. Quase vomitara ao ver as costas dilaceradas e os ferimentos nos genitais da amiga. Demorara quase uma hora a limpar Shen Ping, que gemera e gritara de dor. Fan Yimei continuara, com os olhos rasos de lágrimas. Por fim, embalou a cabeça da amiga no seu colo. Shen Ping falara apenas uma vez. Fan Yimei tivera de aproximar a cabeça dos lábios inchados da amiga para conseguir ouvir o que ela dizia.

 

- Ele vem? De Falang vem buscar-me?

 

- Sim, minha querida - mentira Fan Yimei, chorando

 

- Então, está tudo bem - murmurara Shen Ping. Depois, fechara os olhos e adormecera.

 

Mãe Liu estava à espera à porta da cabana, quando Fan Yimei saíra.

 

- Como é que ela está? - perguntou.

 

- Ela precisa de um médico - respondera Fan Yimei.

 

- Muito bem. Não contes nada a ninguém sobre isto, ouviste? Lembra-te que também te pode acontecer a ti, se desobedeceres, com ou sem o teu protector.

 

Nessa mesma noite, haviam transportado Shen Ping para um quarto que dava para um dos pátios. Fan Yimei fora autorizada a visitá-la nos dias seguintes. Shen Ping recebera um tratamento rudimentar. Haviam-lhe ligado os ferimentos e Fan Yimei podia sentir o cheiro pungente dos bálsamos. No segundo dia, Shen Ping tivera febre muito alta e Fan Yimei recebeu ordens para se manter a seu lado até o perigo passar. Não ficara minimamente impressionada com o médico, um homem chamado Zhang Erhao, que trabalhava no hospital do médico estrangeiro e que ela, certa vez, distraíra, antes de se tornar exclusiva do major Lin. Era um homem grosseiro, jactancioso, que se dava bem com Ren Ren. Mãe Liu chamara-o quando a febre atingira o seu pico. O homem apalpara a doente, deixando transparecer que não fazia a menor ideia do que devia prescrever. Parecia mais interessado em Fan Yimei até Mãe Liu lhe dizer que ela pertencia ao major Lin. Por fim, o homem saíra, deixando instruções para que tapassem a doente com muitas mantas. Fan Yimei ignorara-o. Lembrando-se da noite em que o pai morrera e de como a mulher estrangeira vestida de preto se aplicara em passar pacientemente uma esponja pelo seu corpo febril, ela fizera o mesmo com a amiga durante toda a noite, e de manhã a febre baixara.

 

Shen Ping parecia agora a caminho da recuperação, embora ainda estivesse fraca e Fan Yimei, em determinados momentos, receasse que a amiga nunca viesse a recobrar a personalidade e o amor-próprio. Perscrutando os olhos sem vida no rosto marcado, não via quaisquer sinais da camponesa alegre e tagarela que conhecera. As únicas vezes em que Shen Ping revelara algum interesse fora quando Fan Yimei lhe falara de De Falang. Apertara a mão da amiga e murmurara:

 

- Ele veio?

 

Odiando-se, Fan Yimei dera consigo a inventar desculpas: o amante de Shen Ping estivera no bordel e perguntara por ela; Mãe Liu dissera-lhe que ela não estava bem mas que ele poderia vê-la logo que recuperasse. Dera consigo, também, a acrescentar novos pormenores, que Mãe Liu tentara oferecer outra rapariga a De Falang, mas que ele recusara, furioso. Fora a única vez em que Shen Ping sorrira. Fan Yimei dizia a si própria que podia ter sido verdade: ouvira dizer que Lu Jincai, o amigo de De Falang, fizera perguntas a uma das raparigas acerca de Shen Ping; talvez um dia ele próprio viesse vê-la; mas no fundo do seu coração e à medida que os dias iam passando, Fan Yimei temia o pior, e agora, segurando a carta na mão, sabia a verdade.

 

O assunto ocupou-lhe o pensamento durante todo o dia seguinte, sobrepondo-se até à notícia espantosa que o major Lin lhe comunicara, por cima do ombro, enquanto se vestia. Acordara cedo, como de costume, mas mal-humorado e de ressaca. Enquanto alisava o uniforme em frente do espelho, ordenara-lhe com voz autoritária que tivesse um banquete preparado no pavilhão, ao pôr do Sol, com comida cara e bom vinho, porque traria um convidado. E ela que pedisse a Mãe Liu para arranjar uma das suas raparigas mais bonitas. Deixara instruções escritas na mesa. Aquilo, por si só, abria um precedente - ele nunca recebera visitas antes -, mas o que disse a seguir deixara Fan Yimei perplexa:

 

- E certifica-te de que vestes algo discreto. Pouco me importa o que ele fizer à outra cabra, mas não permitirei que um demónio estrangeiro te devore sequer com os olhos!

 

- Um demónio estrangeiro? - repetira Fan Yimei, incrédula. - De Falang?

 

- Não, não é esse macaco. É um outro.

 

- Mas tu detestas os demónios estrangeiros.

 

- Pois detesto, mas não fales disso. Quero que fique em segredo.

 

- Digo à Mãe Liu?

 

- Não. Bem, sim, suponho que ela tem de saber. Mas diz-lhe que seja discreta.

 

E saíra.

 

Com um peso no coração, Fan Yimei procurara Mãe Liu para tratar dos preparativos. Como sempre, Mãe Liu queixara-se da despesa, mas, o que era para admirar, não ficara enfurecida. Na realidade, sorrira ao ler o bilhete do major Lin, que a rapariga enfiara por baixo do vestido.

 

- Ele pode ficar com Su Liping - decidira Mãe Liu, ao designar uma das raparigas mais novas e bonitas, que geralmente reservava para clientes especiais. Era uma das poucas favoritas de Mãe Liu, talvez por ser, como constava, uma das suas espias.

 

- Não creio que a pequena Liping já tenha provado homens bárbaros, mas há sempre uma primeira vez para tudo. Só quero o melhor para o major Lin e para os seus convidados. Vai! Do que estás à espera? Vai ver a tua cabra doente. Quero-a boa e de regresso ao trabalho. Todos esses medicamentos e mimos custam-me dinheiro.

 

Felizmente, Shen Ping dormia quando Fan Yimei entrara, o que lhe deu um pretexto para adiar a sua decisão de lhe falar da carta. “Quando ela estiver melhor”, pensou, olhando para a cabeça que repousava sobre a almofada. “Então, mostro-lha. Quando ela estiver forte. Despedaçar-lhe-ia o coração se lhe contasse agora.” Contudo, uma parte de si duvidava de que a amiga alguma vez pudesse aguentar o impacte da notícia. Só a ideia de que De Falang iria salvá-la a mantinha viva. E que tipo de trabalho Mãe Liu arranjaria para Shen Ping quando ela recuperasse? Fan Yimei ouvira falar de histórias de outras raparigas castigadas por Ren Ren, que mais tarde haviam sido enviadas para quartos imundos que, segundo os boatos, ele mantinha atrás da loja de bolinhos de massa, para fornecer serviços mais baratos a muleteiros e carreteiros e à escumalha da cidade. Se ao menos Fan Yimei conseguisse enviar um recado a De Falang para lhe revelar a verdadeira situação... Talvez ele reconsiderasse. O estrangeiro que vinha ao pavilhão naquela noite devia conhecê-lo. E se ele aceitasse entregar uma carta a De Falang? Fan Yimei ainda tinha tempo de a redigir.

 

De tarde, sentou-se a uma mesa e encheu uma página com os seus caracteres bem desenhados. Escreveu sobre a contínua lealdade de Shen Ping para com De Falang durante o seu sofrimento. A única coisa que prendia a amiga à vida era pensar nele, e que, se De Falang compreendesse os verdadeiros sentimentos de Shen Ping, decerto poria de lado qualquer mal-entendido que o virara contra ela. Implorava-lhe, como amiga de Shen Ping, que ele fizesse todos os esforços para ir visitá-la. Se pudesse ver o estado deplorável em que ela se encontrava... Se, ao menos... o quê? Muito antes de concluir a carta, compreendeu que era inútil. Pousou tristemente o pincel. Mesmo que encontrasse uma forma de enviar a carta, sabia que não serviria de nada. Que podia ela esperar de De Falang ou de qualquer outro homem? Quem dava ouvidos ao choro de uma prostituta? As aves engaioladas tinham mais liberdade do que ela. Ao menos, as pessoas gostavam delas por causa do seu canto. Quem gostava verdadeiramente de uma monótona rapariga? De Falang parecera sincero, mas, provavelmente, fantasiara, como alguns homens gostavam de fazer, e agora caíra em si. Ela lera a sua carta. Sabia que um dia o major Lin se fartaria dela. Porque estava a permitir-se sonhar como Shen Ping o fizera? Porque não tinha coragem para acabar com tudo? Pousando a cabeça sobre a secretária, suspirou.

 

Ouvindo passos no pátio apressou-se a enfiar numa gaveta a carta inacabada, assim como a de De Falang. Não teve tempo de a fechar à chave, mas tinha a certeza de que ninguém a vira e estava, muito calma, no meio do quarto, quando Su Liping entrou.

 

- Liping, é tão cedo. Não estava à espera...

 

- Oh, Irmã mais Velha, não consegui resistir - replicou Su Liping. - Todas nós temos tanta inveja da tua maravilhosa sorte e eu queria ver o teu belo pavilhão. Oh, que afortunada és! A Mãe Liu disse-me que eu podia vir mais cedo. Estou tão excitada por me terem escolhido para esta noite. Oh, que bonitas sedas. E os móveis!

 

Movia-se rapidamente pelo quarto, tocando aqui num vaso, ali numa escultura, passando as mãos sobre as cordas do chin, pressionando as faces contra um brocado.

 

- A Mãe Liu disse que, se o convidado me quiser, posso levá-lo para o pavilhão em frente. Ainda está a ser preparado mas ouvi dizer que é igual a este. Oh, que cama tão bela. E o espelho! Ah, viver aqui...

 

- Não te importas que seja um bárbaro?

 

- Bom, é assustador, mas também excitante - respondeu Su Liping, com um risinho. - E ouvi dizer que os demónios estrangeiros são muito bem dotados. Só espero que não doa. Achas que devo levar um pote de gordura? De qualquer maneira, a Shen Ping era feliz com o estrangeiro dela, não é verdade? Pobre Shen Ping... Tão doente, segundo me contaram...

 

Aproximou-se de Fan Yimei, e sussurrou, com os olhos bem abertos:

 

- Achas que é verdade?

 

- O quê?

 

- Que ela foi castigada. Naquela cabana. Castigada pelo Ren Ren, por ter feito alguma coisa mal.

 

- Não sei.

 

- Aposto que sabes. És amiga dela e a única que tem permissão para ir vê-la. Mas não faz mal. Sei que não gostas de mexericos. Pois eu ouço todos os mexericos. Acontecem coisas estranhas, muito estranhas, aqui. Sabes qual é o último boato? Que há um novo rapaz escondido nos quartos lá de cima. Para o Ren Ren. Acreditas? Eu não sei se hei-de acreditar ou não. Mas, consegues imaginar?

 

- Tens razão, não gosto de mexericos. Lamento imenso...

 

- Oh, não lamentes. Não faz mal. O interessante é que desapareceu um rapaz estrangeiro. Uns homens foram executados ontem por o terem matado. Assistimos à execução da janela. Mas e se for o mesmo rapaz? É uma grande coincidência, não achas?

 

Fan Yimei ouviu uma voz a chamá-la do exterior.

 

- Oh, Irmã mais Velha, parece-me que é a Mãe Liu. Depressa, é melhor ires. Eu fico bem. Não te preocupes comigo.

 

Fan Yimei, consciente das cartas que guardara na gaveta, não queria deixar Su Liping sozinha no pavilhão, mas não tinha outra alternativa. Mãe Liu pretendia verificar os preparativos para a noite. E sujeitou Fan Yimei a um exaustivo e demorado catecismo acerca da ementa.

 

Quando regressou, Su Liping achava-se refastelada na cama.

 

- Espero que a cama do outro quarto tenha um espelho. Imagina podermos ver-nos a fazê-lo! Tens tanta sorte, Irmã mais Velha! E o major Lin é tão belo.

 

- Su Liping, és bem-vinda, mas o major Lin pode chegar antes do jantar...

 

- Vou-me embora, vou-me embora - retorquiu a rapariga, com novo risinho, enquanto saltava da cama. - Obrigada, Irmã mais Velha, por me deixares estar contigo esta noite. Mal posso esperar...

 

A gaveta onde ela guardara as cartas estava vazia. Ainda sob o efeito da surpresa, Fan Yimei sentou-se no banco, olhando para o espaço onde as cartas haviam estado. Assim ficou, petrificada, até os criados entrarem para porem a mesa. Só então se levantou, com ar absorto, e se dirigiu para o quarto lateral, a fim de trocar de roupa.

 

Uma parte dela reconhecia que o convidado de Lin, para estrangeiro, era atraente. Era alto e tinha braços e pernas fortes, e olhos azuis que umas vezes riam e noutras penetravam fundo nos seus, como se tentasse ler-lhe o pensamento. Era o mesmo tipo de homem que Lin, um soldado, mas ela detectava uma personalidade muito mais forte, e esperava que ele fosse amigo de Lin, porque lhe parecia que podia constituir um adversário a considerar. Aqueles pensamentos passaram-lhe ociosamente pela mente enquanto, sentada em frente do seu chin, tocava maquinalmente as músicas de que Lin gostava, quase sem se dar conta do que fazia. Mostrava-se muito calma, quase etérea. Não tinha medo. O que tinha de acontecer, aconteceria.

 

Ao princípio da noite, aproveitara um momento em que Lin e o estrangeiro se achavam embrenhados a conversar para perguntar a Su Liping porque lhe havia roubado as cartas da gaveta. Não que sentisse cólera ou raiva. Apenas interesse. Não sentia sequer qualquer tipo de ressentimento contra a rapariga.

 

Su Liping evitara o seu olhar e respondera, num tom aborrecido:

 

- A Mãe Liu pediu-me que vasculhasse o quarto. Ela manda-me sempre espiar. Tirei as cartas porque me pareceram invulgares.

 

- Mas porque o fazes? Porque espias a mando dela?

 

- Oh, Irmã mais Velha, ela disse-me que me mandava para a barraca com o Ren Ren. E não quero que me aconteça o mesmo que aconteceu à Shen Ping.

 

- Não te passou pela cabeça que me podia acontecer a mim?

 

Su Liping ergueu a cabeça. Uma expressão momentânea de ódio reflectiu-se-lhe nos olhos.

 

- Isso não te acontecerá - sibilou, em tom desdenhoso. - És protegida pelo major Lin. És tão bela, tão talentosa, tão perfeita.

 

- Lamento ver que me odeias - respondeu Fan Yimei. Diz-me; guardaste o sobrescrito vermelho? O que tinha o dinheiro? Ou deste-o à Mãe Liu com as cartas?

 

Os olhos de Su Liping abriram-se de medo.

 

- Não te preocupes - continuou Fan Yimei. - Não direi nada. Mas esconde-o bem. Eles levar-te-ão para a cabana, se descobrirem. Agora vai e não penses mais nisso. Serve vinho ao estrangeiro. Aproveita a noite. Bebe um pouco também. Ajuda.

 

O major Lin revelou-se um anfitrião pouco caloroso. Fan Yimei reparou que, a princípio, tentara disfarçar a antipatia pelo estrangeiro, sentindo-se irritado por se ver obrigado a oferecer-lhe um jantar. Calculava que o major obedecia a ordens dos seus superiores, talvez do mandarim. O estrangeiro, contudo, possuía a graciosidade e o encanto para pôr à vontade até uma pessoa tão irritadiça como o major. Durante o jantar, deixara o major falar sobre os assuntos que mais lhe interessavam, como tácticas militares e armamento, que Fan Yimei tinha dificuldade em acompanhar. O estrangeiro escutara atentamente Lin a expor as suas teorias e, quando falara, fora com uma sabedoria e uma segurança que levaram Lin, por sua vez, a escutá-lo com atenção, reconhecendo nele um especialista na matéria. Su Liping esforçara-se por despertar a atenção do estrangeiro, recorrendo a todas as artimanhas que aprendera na sua pouca experiência, ora pousando uma mão sobre a coxa dele, ora sorrindo-lhe quando ele olhava na sua direcção. O estrangeiro sorria-lhe com indulgência, mas na maior parte do tempo ignorou-a, concentrado a ouvir Lin. Falaram muito sobre o Japão e, quase no final da refeição, a conversa pareceu focar-se num amigo comum, chamado Taro. Fan Yimei ficou espantada por saber que Lin conhecera um japonês, mas lembrou-se do seu choro enigmático na noite anterior, quando estava embriagado e balbuciara: “Taro-sama. Taro-sama.” Perguntou a si própria até que ponto Lin conhecera intimamente aquele homem. A dada altura, quando o estrangeiro falara sobre as “virtudes dos samurais”, Lin parecera sobressaltar-se e ficar zangado, mas o estrangeiro rira-se e explicara que estava apenas a referir-se à lealdade de um samurai para com um amigo. Que havia pensado o major? Lin corara e parecera embaraçado. O estrangeiro explicou-lhe então que convidara o coronel Taro para ir até Shishan a fim de participar numa caçada, talvez quando o caminho-de-ferro estivesse pronto, e isso também parecera provocar grande constrangimento ao major Lin, apesar de afirmar, polidamente, que estava desejoso de reencontrar o amigo. Agora, com a refeição quase no fim, comiam fruta.

 

- No meu país - dizia o estrangeiro -, temos um costume. Após as refeições, pedimos às senhoras que nos deixem a sós, para que nós, os homens, possamos falar de negócios. Ignoro quais os vossos costumes, e tenho plena consciência da deliciosa atenção com que esta jovem sereia à minha esquerda me brinda, mas não lhe parece útil neste caso seguir o exemplo inglês e falarmos sem quaisquer, como dizer, impedimentos?

 

- Pode ter Su Liping para a noite, se a quiser. Já foi paga Para isso - replicou o major Lin.

 

- Foi uma maneira delicada de esclarecer as coisas - comentou o estrangeiro -, e fico-lhe muito grato pelo seu cuidado, claro, mas receio ter de recusar. Esta senhora é muito encantadora, mas um pouco nova de mais para mim, e gosto de escolher as minhas companhias femininas.

 

- Posso pedir a Madame que mande outras, se não gosta desta.

 

Fan Yimei sentiu que os olhos do estrangeiro se fixavam nela.

 

- Já vejo, pelo menos, uma belíssima rapariga aqui. Se essa bela senhora não for a sua escolha para esta noite, major...

 

Fan Yimei, pressentindo o perigo, apressou-se a responder, inclinando graciosamente a cabeça:

 

- Tenho a honra de ser a escolhida do major Lin, todas as noites, Xiansheng, se ele me quiser. Pertenço ao major Lin.

 

- Falei por ignorância, major. Queira perdoar-me. Felicito-o pelo seu bom gosto e pela sua sorte.

 

O major Lin aceitou o elogio.

 

- É uma mulher como outra qualquer, mas serve - Fan Yimei ficou contente por detectar a leve nota de presunção na sua voz. Receava que ele se encolerizasse. - Toca adequadamente o chin, Ma Na Si Xiansheng. Posso sugerir que, se o desejar, falemos enquanto ela toca? Não conseguirá ouvir-nos. Quanto à outra, pode retirar-se.

 

A acanhada Su Liping, temendo obviamente a ira de Mãe Liu, se não conseguisse segurar o cliente, tentou tolamente recorrer a uma última artimanha.

 

- Conheço muitos truques, Xiansheng - sussurrou, deslizando a mão até às virilhas de Manners.

 

- Estou certo de que sim, minha querida - respondeu Manners, sorrindo, afastando-lhe a mão.

 

- Sai daqui! - bradou Lin.

 

Su Liping, vermelha de vergonha e de embaraço, correu para a porta.

 

Assim, Fan Yimei ficou sozinha, tocando a melodia lúgubre que geralmente reflectia a tristeza da sua própria alma, mas que, naquela noite, lhe era indiferente, como tudo o resto, enquanto esperava pelas consequências inevitáveis da descoberta das cartas por parte de Mãe Liu. Os dois homens falavam em tom confidencial, com o estrangeiro a fumar um tabaco de odor pungente, enrolado numa folha castanha. Ouviu, aqui e ali, algumas palavras e frases: “esfera de influências”, “espingardas”, “carregamentos de confiança”, “entrega rápida”, “japoneses”, “armas”, “seis a nove meses”, “acordo particular”, “Taro selará o acordo”; não percebia nada da conversa nem, tão-pouco, lhe interessava.

 

Os dois homens trocaram um aperto de mão. Shen Ping falara-lhe daquele estranho costume ocidental. O rosto do major Lin estava vermelho de excitação. Fosse qual fosse o negócio que selara, deixara-o satisfeito. Sabia que ele estaria cheio de energia naquela noite, e os seus ombros curvaram-se perante tal perspectiva. Não se importava. O que tinha de acontecer, aconteceria.

 

Levantou-se, pronta a fazer uma vénia de despedida ao estrangeiro. Ficou admirada quando ele lhe pegou numa mão e a beijou, um outro estranho costume ocidental. Ergueu a cabeça, espantada, e viu os olhos azuis dele, risonhos e penetrantes. Fitou Lin, receosa, mas ele esboçava o seu sorriso torto, encantado. Os dois homens atravessaram juntos o pátio, com Lin, no papel de cortês anfitrião, a acompanhar o seu convidado até ao portão. Fan Yimei ficou a vê-los, à porta do pavilhão, quando percebeu um movimento na escuridão. Era Mãe Liu. Sentiu uma dor forte no braço, quando a mão da velha o agarrou, cravando-lhe as unhas na carne.

 

- Devia mandar-te para a cabana pelo que fizeste - sibilou-lhe ao ouvido. - Mas não vou fazê-lo. Não desta vez. Este novo desenvolvimento com o bárbaro é demasiado interessante. Espero que me mantenhas informada de tudo o que foi dito. Aquela estúpida cabra revelou-se uma inútil. Tu saberás sair-te melhor.

 

“Foi aquele negociante que te deu a carta, não foi? Eu devia ter desconfiado, na altura. O Lu não é o tipo de homem que se embebede. Então, e porque não a entregaste? Tinhas medo das consequências?

 

“Não te preocupes, minha querida. Não sou pessoa para guardar a correspondência seja de quem for. Eu, não. O Ren Ren teve a gentileza de ir ele próprio entregar pessoalmente a carta. Não foi amável da sua parte? A pequena Shen Ping deve já estar a ler o último parágrafo, neste mesmo instante...

 

Fan Yimei sentiu o coração bater com força.

 

- Shen Ping! - gritou, libertando-se das garras de Mãe- Liu. Tropeçando, por causa dos pés ligados, correu para o sítio interior, sentindo o sangue pulsar-lhe nas veias, arfando com o esforço, mas também por causa do medo. Via luz no quarto de Shen Ping.

 

Dois braços fortes agarraram-na e ergueram-na do solo. Fan Yimei debateu-se violentamente, gritando, mordendo mas Ren Ren segurou-a com força contra o peito, puxando-lhe o cabelo de forma a que a cabeça dela ficasse dobrada para trás.

 

- Nem sequer te atrevas a tentar seja o que for ou dou-te uma sova que te partirá os dentes - rosnou. - Deixemos a senhora ler a carta, está bem?

 

Podia ouvir a sua própria respiração sibilante no silêncio do pátio. Ren Ren manteve-a apertada contra si enquanto observava os movimentos de uma ténue silhueta por detrás da janela de papel encerado. Pouco depois, os movimentos cessaram. Ele esperou ainda um pouco. Por fim, satisfeito, deixou cair o seu fardo no chão pavimentado do pátio e, assobiando, regressou ao edifício principal. Fan Yimei ficou caída no chão, a soluçar.

 

No quarto, Shen Ping deixara tombar a carta em que pegara com os dedos partidos. Por baixo das contusões, exibia um sorriso sonhador. Durante o que lhe pareceu muito tempo ficou deitada de costas a pensar em nada de especial. Então, devagar, muito devagar - deixara de sentir dores -, levantou-se da cama. Arrastou-se pelo chão até à cadeira que havia no meio do quarto. Foi com um grande esforço que subiu para o banco mas caiu e tornou a cair - quantas vezes não sabia -, até conseguir ficar de pé sobre a cadeira. Ao menos, não tinha de lançar a faixa por cima da trave e fazer o nó corrediço. Emitiu um risinho abafado. Era a única gentileza que Ren Ren alguma vez tivera para com ela. O nó achava-se à altura certa para a sua cabeça. Por ter as mãos inutilizadas, precisou de uma ou duas tentativas para apertar o nó em volta do pescoço. Pensou se diria alguma coisa, uma última palavra, que resumisse a sua vida desperdiçada. Não via porque haveria de fazê-lo. Empurrou a cadeira com um pontapé e caiu, e só nesse momento pensou na única pessoa que havia sido bondosa para com ela, mas quando as palavras “Fan Yimei” se formaram na sua mente, o nó partiu-lhe o pescoço e já não pôde emitir qualquer som.

 

NÃO HÁ TRABALHO E A COMIDA É POUCA. TlAN JUNTOU-SE AOS BANDIDOS

 

Ninguém falou do suicídio de Shen Ping a Frank Delamere. Lu Jincai tomou conhecimento dele no dia seguinte por Tang Dexin, e ambos concordaram que era melhor o estrangeiro permanecer na ignorância no que dizia respeito a um assunto tão desolador e desagradável. Lu rapidamente tomou certas providências. Se De Falang decidisse visitar novamente o bordel e perguntasse pela rapariga - o que, para Lu, era uma circunstância muito pouco provável -, ser-lhe-ia dito que ela estava ocupada com outro cliente. Um tael de prata dado a Mãe Liu asseguraria o seu silêncio e o das outras raparigas. Lu Jincai não queria um De Falang com mais problemas antes de a caravana partir para Tsitsihar. Sabia como o sócio podia ser imprevisível quando se exaltava, e não se atrevia a especular a que extremos os sentimentos de culpa e de arrependimento do ocidental o podiam levar ao saber da morte da rapariga. Como medida de precaução adicional, o que lhe custou outro tael, pediu a Mãe Liu que arranjasse uma substituta bonita e disposta e divertir o amigo, caso ele sentisse necessidade disso, mas não tinha pressa alguma de levá-lo novamente ao Palácio dos Prazeres Celestiais, e convenceu os outros negociantes, Tang e Jin, a jantar com De Falang noutro sítio, se a isso fossem obrigados, pelo menos nos tempos mais próximos.

 

Assim, Shen Ping depressa foi esquecida. Algumas das raparigas acreditavam que o seu espírito vagueava pelos jardins e pavilhões. No seu desgosto, Fan Yimei pensou ver certa noite o rosto pálido e risonho da amiga no espelho do toucador, mas ao voltar-se percebeu que fora apenas o reflexo do luar nas cortinas. Para grande alívio de Mãe Liu, Shen Ping não reapareceu como uma fada-raposa para se vingar dos seus inimigos e do amante infiel (Frank nunca chegara a ser atacado por nenhuma aparição, a caminho da Babbit e Brenner, nem surpreendido por um fantasma faminto enquanto manuseava as vasilhas de cristais de soda). Acendendo um pau de incenso no seu santuário por medida de segurança, Mãe Liu fez uma trouxa com os parcos haveres de Shen Ping e queimou tudo. A sua cama na choupana foi atribuída a uma nova aquisição, uma menina timorata de doze anos vinda de Tieling, que recuperava da dupla agonia de lhe haverem partido e ligado os pés e de receber as visitas de Ren Ren todas as noites. Nunca mais se pronunciou o nome de Shen Ping. Passado algum tempo, apenas Fan Yimei sentia a sua presença, mas à medida que os dias foram passando essa presença tornou-se gradualmente mais ténue, até para ela. Então, uma noite, quando ateava uma fogueira com folhas mortas a um canto do jardim, teve um súbito pressentimento de que a amiga estava pronta para partir. Murmurou algumas preces, de que mal se lembrava, enquanto atirava mais folhas para a fogueira. E, se alguém visse lágrimas no seu rosto, podia atribuí-las ao fumo da fogueira. Sentia-se em paz quando se afastou, convencida - ou querendo convencer-se - de que a alma da amiga estava agora em paz, entre as nuvens.

 

Nessa noite, de facto, tufos compridos de um nimbo rosado flutuaram no firmamento, como as mangas do vestido de uma fada do céu. Se o espírito de Shen Ping ascendera às nuvens, como Fan Yimei esperava, ao olhar para baixo veria uma Shishan aparentemente calma. Os reflexos dourados do sol-poente reflectiam-se nos campos. O Outono prolongara-se para além do habitual, como se quisesse adiar a chegada do Inverno e as incertezas de um novo século. Os pátios das quintas estavam atapetados com grãos da segunda colheita; as pesadas rodas das carroças, puxadas por mulas, esmagavam os caules nas estradas; as sombras dos agricultores, com os seus manguais, recortavam-se no ouro das eiras da debulha. O odor acre da queima de medas de feno pairava no ar puro e frio, misturando-se com o perfume das maçãs e dos dióspiros nos pomares. As folhas rodopiavam e voavam pelos campos, acabando por se empilhar contra as vedações, cintilando sob o sol pálido e cobrindo a paisagem com um tom acobreado. Um jovem atraente e uma rapariga elegantemente vestida, ambos estrangeiros, cavalgavam pelas veredas, fazendo uma pausa para admirar um santuário em ruínas. Um homem de sensibilidade poética, como Herr Fischer, teria estabelecido paralelismo com uma Arcádia clássica ou com uma idade de ouro.

 

O cenário bucólico em volta de Shishan, contudo, era a única ilha viçosa num mar cinzento de desolação. As nuvens que em geral se aglomeravam nos picos das colinas Negras haviam absorvido humidade suficiente durante o ano para poupar os condados ocidentais da Mancharia à seca que assolava outras partes do Norte da China. De facto, para além das colinas Negras pouco chovera. Numa extensão ressequida, que ia de Shantung, a leste, atravessando toda a província de Chih-li, até Shanxi, a oeste, e mesmo até às orlas da Mongólia, a fome grassava. Os mercadores amigos de Frank Delamere reuniram-se no gabinete de contabilidade de Jin Shangui para falar dos terríveis rumores que lhes chegavam aos ouvidos através das caravanas de mulas. Dizia-se que em vastas regiões da China havia famílias que coziam cascas de árvores para sobreviver, que novos e velhos morriam às centenas, que houvera casos de canibalismo, que populações inteiras haviam abandonado as aldeias a fim de caçar para comer, e que homens novos e desesperados se voltavam para os Boxers, culpando os estrangeiros de todas as desgraças.

 

Como de costume, os estrangeiros não se aperceberam da ameaça. As circulares que o Dr. Airton recebia da Legação em Pequim eram tranquilizadoras (assegurando que a fome e a seca eram comuns na China) e, de qualquer forma, os membros da pequena comunidade estrangeira estavam por de mais ocupados com as suas vidas para prestar grande atenção ao que acontecia fora dos seus mundos particulares. Como um grupo que fizesse um piquenique numa cumeada, observando, sem preocupação, a escuridão de uma trovoada que se forma a quilómetros de distância, do outro lado da planície, assim eles contemplavam, com a mesma serenidade, os desacatos no Sul.

 

E, contudo, os boatos das actividades dos Boxers nunca se haviam dissipado por completo; pelo contrário, tinham-se intensificado, à medida que a fome alastrava, e houve uma semana no início de Outubro em que se disse que grupos de goxers oriundos de aldeias nas montanhas de Shantung haviam formado as suas próprias milícias e assaltado uma cidade. Dizia-se que o exército dos Boxeres, qual vaga gigantesca, inundaria a planície de Chih-li empurrando os estrangeiros até ao mar. Durante alguns dias, a tensão fora grande, mesmo em Shishan. Mas acabou tudo muito depressa. A insurreição, se assim se podia chamar-lhe, foi facilmente dominada pelas tropas imperiais - na realidade, tratou-se mais de uma acção policial do que de uma batalha. Fosse como fosse, a vitória das tropas sobre aquela milícia popular tinha causado grande satisfação nas legações em Pequim e houve mesmo festejos ruidosos quando a notícia chegou à Babbit e Brenner e ao estaleiro do caminho-de-ferro. Era voz corrente que aquela acção decisiva por parte do vice-rei Yu cortara pela raiz os primeiros indícios da rebelião. A ameaça dos Boxers, se alguma vez existira, fora completamente esmagada. Relatórios posteriores, todavia, revelaram que aquele optimismo era prematuro. Ao que parecia, o conservador vice-rei Yu não só simpatizava em segredo com os descontentes, como fora ao extremo de empregar alguns dos mais famosos rebeldes no seu yamen. O The North China Herald exigia a sua destituição e relatava que Sir Claude MacDonald apresentara um protesto oficial ao Tsungli Yamen. O Dr. Airton estava demasiado excitado para se preocupar com incidentes ocorridos tão longe dali. Fora ao yamen alguns dias após a execução dos assassinos de Hiram com a firme intenção de censurar o mandarim e de lhe dizer tudo o que pensava. Mas fora apanhado de surpresa, ficando sem argumentos, quando o mandarim em pessoa lhe pedira desculpa pela forma deselegante como o médico fora informado da execução, culpando os seus funcionários pela insensibilidade na aplicação de tal procedimento. Explicara que a carta pessoal que ele próprio havia redigido não fora enviada e que, em seu lugar, o médico recebera apenas um despacho oficial. Lamentava qualquer desrespeito que aquele equívoco pudesse ter causado. Airton mal ouvia o que o mandarim lhe dizia. Toda a sua atenção estava concentrada na grande Bíblia Sagrada escrita em chinês que se achava sobre a mesa de chá, entre ambos.

 

- Ah, reparou que ando a estudar o vosso Livro Santo comentou o mandarim, com um sorriso. - É uma obra deveras curiosa. Encontro muitos paralelos com o Livro dos Diálogos, de Confúcio, e alguns escritos budistas, especialmente nas passagens mais filosóficas. O ênfase no amor é interessante, assim como a importância dada ao sacrifício do vosso deus. Numa das primeiras encarnações de Buda, ele deixou-se devorar por umas crias de tigre que estavam esfomeadas. A indigna crucificação do vosso Jesus provavelmente teve um desígnio similar. Talvez mo possa explicar. Também tenho uma ou duas perguntas acerca do perdão, a que gostava que me respondesse. Parece haver uma discrepância entre aquilo a que os cristãos aspiram e a forma como se comportam. Faço esta pergunta enquanto magistrado que deve interpretar as leis extraterritoriais. Talvez possa explicar-me como as implacáveis penalidades que o governo chinês é obrigado a pagar pela mais ínfima infracção aos ditames estrangeiros são compatíveis com esses ensinamentos cristãos sobre a indulgência?

 

A alegria de Airton era tal que mal conseguia respirar. Alcançara, sem o esperar, o objectivo que o levara até à China. Ali estava um membro da classe dos mandarins - um confucionista, um pagão, mas um homem de enorme influência a ler a Bíblia e a procurar compreender os seus preceitos. Perguntou-se a que podia aquilo levar. As primeiras perguntas do mandarim eram cépticas - quase cínicas -, como seria de esperar, mas sempre era um começo. O começo com que ele e os seus colegas missionários sempre haviam sonhado.

 

Ao primeiro encontro seguira-se um segundo, dois dias mais tarde, e, após algum tempo, o médico e o mandarim haviam acordado um horário regular. O mandarim gostava de analisar uma parábola de cada vez, e, em cada caso, aplicava a sua lógica mais rigorosa para analisar a mensagem nela contida. O médico saía de cada sessão - cada uma mais desafiadora do que a precedente - com a cabeça a andar à roda, tão exausto física e mentalmente como após as partidas de sqitash que jogara na universidade, durante a sua juventude. Nunca sabia de que direcção viria a bola lançada pelo mandarim.

 

Por acordo tácito, nem um nem outro voltaram a mencionar a morte de Hiram e a execução dos três homens. Assuntos como os Boxers ou o banditismo raramente faziam parte das suas conversas, e, quando tal acontecia, eram de imediato postos de parte, com um sorriso. Para o médico, as perguntas do mandarim revelavam-se cada vez mais abstratas. Parecia fascinado pelo conceito cristão de bondade, querendo saber de que forma diferia das virtudes enunciadas por Confúcio. Se um governante levava a peito a obtenção de benefícios para os seus súbditos, perguntava ele, era realmente importante que tão virtuosos objectivos fossem alcançados por meios condenáveis? Seria uma recompensa de vida eterna no Paraíso negada se um cristão se desviasse dos limitativos dez mandamentos? Valia realmente a pena um homem privar-se de algumas recompensas terrenas tidas como certas em troca de uma mera promessa de salvação? Se o cristianismo era uma religião tão generosa como o bom Daifu a fazia parecer, porque eram os seus preceitos tão fanáticos e absolutos? Não que fosse sua intenção ofender, de forma alguma, o Filho de Deus, mas não seria esse tal Jesus um tanto ingénuo e desinteressado dos bens terrenos? E podia o doutor explicar como as potências do Ocidente haviam conseguido conquistar o mundo se os seus princípios consistiam apenas em amar o próximo e oferecer a outra face?

 

- Esse dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus - dizia o mandarim - é muito bonito, mas o nosso sistema é muito mais simples, uma vez que o nosso imperador também é o nosso deus. Porque foi que o vosso Jesus, se compreendi a outra história do seu encontro com o Diabo numa montanha, uma vez que tinha poder para reinar no mundo, não tomou para ele próprio a autoridade de César? Assim, não teria de se preocupar com essa questão confusa do livre arbítrio.

 

- Ah, mas, Da Ren, não compreende? É pelo facto de ele nos ter dado livre arbítrio que alcançamos a nossa salvação.

 

- Se ele tivesse trabalhado num yamen em vez de andar a passear pelas colinas, talvez tivesse compreendido melhor a ignorante natureza humana. a minha experiência, mostra que o livre arbítrio não passa de uma maldição, conduzindo aos comportamentos mais ultrajantes se deixarmos as gentes sem vigilância. Não creio que esse tal Jesus possa ter amado o seu povo, se lhe impôs exigências tão elevadas e quase impossíveis

 

- Mas Jesus era o deus do amor! - exclamou Airton.

 

- Isso é o que você diz - resmungou o mandarim, trincando um pêssego.

 

Contudo, o médico não se sentia desencorajado. Pelo contrário; a esperança brilhava-lhe nos olhos. Por vezes, atrevia-se mesmo a pensar se o mandarim não começaria a questionar os seus próprios princípios, tão cínicos. Mas de imediato reprimia tal pensamento, por lhe parecer excessivamente optimista ou sonhador. Não; o novo interesse pela religião cristã era apenas académico; nada nos modos do mandarim revelava algo mais do que a sua habitual curiosidade; se fervilhavam quaisquer anseios espirituais por detrás dos seus olhos de pálpebras descaídas e da sua expressão irónica e mundana, mantinha-os escondidos. Sim, mas, por outro lado, gritava-lhe do seu íntimo uma voz irresistível, ali estava um alto oficial da classe dos mandarins a fazer-lhe perguntas sobre o Evangelho! Algo que não acontecia há muitos anos! E o mandarim devia andar a ler o seu exemplar da Bíblia Sagrada, que ele, Dr. Airton, o levara a adquirir! A sua natural modéstia lutava, em vão, contra aquela ideia. Claro que, para grande pena sua, tinha consciência das suas próprias limitações, mas não podia deixar de ver todas as possibilidades que se lhe deparavam. Se a curiosidade levasse à compreensão, não poderia a compreensão levar ao desejo, e o desejo à conversão? Não era propriamente um poço de virtudes - apenas um humilde médico escocês que exercia a sua profissão e gostava de livros de cobóis. O médico não era um teólogo, mas era sabido que o Senhor, ao longo da História, tinha por vezes iluminado a mais pequena das embarcações com a Sua luz, operando as Suas maravilhas por via do barro mais fraco. A conversão de um mandarim levaria à conversão de uma província: a conversão da Inglaterra por Santo Agostinho de Cantuária começara com o baptismo de um insignificante rei saxão; na China, onde Matteo Ricci e o seu exército de jesuítas falhara, não podia o hu-humilde Airton de Shishan... Chegado àquele ponto, o médico mordiscava o cachimbo e dizia a si próprio que não fosse tão ridículo e presunçoso - mas isso não o impedia de passar serões a estudar febrilmente as obras de Platão, de São Tomás Je Aquino e de Boécio, que não consultava desde os tempos da universidade, e de precipitar-se para a porta do yamen, mal acabava de almoçar, nos dias dos seus encontros com o mandarim.

 

Os outros estrangeiros que residiam em Shishan não estavam a par das preocupações do médico. Helen Francês e Henry Manners davam passeios a cavalo todas as tardes. Frank Delamere e Tom Cabot preparavam a grande expedição que os tornaria ricos. Num final de tarde, em Outubro, achavam-se no entreposto da Babbit e Brenner, a fechar tudo para se irem embora. Acabaram de verificar uma última vez os fardos de amostras e de provisões que no dia seguinte as mulas iriam transportar até Tsitsihar, onde Frank e Tom se encontrariam com Mr. Ding. A última faixa de um rosa-salmão desvanecia-se lentamente no horizonte longínquo e começava a levantar-se uma brisa nocturna.

 

- É a última noite, meu velho - resmungou Frank, com o cachimbo preso por baixo do seu bigode. Ainda tinha os olhos, castanhos e afáveis, húmidos de tanto rir com uma piada do futuro genro (Tom parecia ter um repertório inesgotável de histórias cómicas). - A última noite no conforto do lar. Depois, esperam-nos os grandes espaços ao ar livre. Como eu gosto desta vida! E que alegria é para mim pensar que você e a minha pequena Helen irão casar-se em breve. Sou um homem de sorte! Um homem de sorte!

 

- É melhor pormo-nos a caminho, se queremos encontrar a HF na encruzilhada - replicou Tom, trazendo os cavalos. - O Henry disse que estariam lá pouco depois de escurecer.

 

- Quem vem lá? - gritou Frank. - És tu, minha querida?

 

Uma lanterna oscilava ao fundo da estrada que saía do acampamento do caminho-de-ferro, aproximando-se lentamente do local onde Tom e ele esperavam. Ouviu com dificuldade o ruído de cascos de cavalos. Apercebeu-se de que Tom pegava silenciosamente na espingarda que trazia presa no flanco do cavalo. O futuro genro tinha razão para tomar precauções. Nunca se sabia quem podia andar por ali, à noite, nos tempos que corriam.

 

- Quem vem lá? - perguntou Frank, de novo. - Manners! Helen! São vocês?

 

Não obteve resposta, mas o vento começara a soprar com força e era possível que a sua voz fosse levada em sentido contrário.

 

- Tenho a certeza de que são eles, Tom. Afinal, quem mais podia ser? Se bem que se tenham atrasado muito. Pergunto a mim mesmo por onde andaram.

 

- Ao que parece, há um templo em ruínas uns nove quilómetros a sul do acampamento do caminho-de-ferro - explicou Tom.

 

- Oh, Deus! - lamentou-se Frank. - Templos em ruínas. Mosteiros. Quase se fica com a ideia de que o Manners é um maldito budista ou coisa do género. Manners? É você? Helen!

 

Nenhuma resposta.

 

- Não sei porque permitiu que ela embarcasse nessas malditas visitas turísticas - resmungou Frank. - Mistress Airton teve a gentileza de lhe oferecer um emprego no hospital. Quanto ao Manners, se pode dar-se ao luxo de passar todo este tempo longe da companhia do caminho-de-ferro, então não sei porque o mandaram para cá. A propósito, que isso não lhe dê ideias, jovem - acrescentou Frank, voltando-se para Tom. - Não há meios dias de trabalho na Babbit e Brenner.

 

- Não, senhor. Nem eu esperava que houvesse - replicou Tom, sorrindo.

 

- Mas porque estão eles a demorar tanto? - impacientou-se Frank. - Digo-lhe o que vou fazer: vou acender uma lanterna. Com esta ventania toda, gritar não serve de nada. Tenho uma lanterna na minha trouxa. E aproveito para beber um gole de uísque.

 

Dito e feito, desmontou pesadamente do cavalo.

 

- Precisa de ajuda? - ofereceu-se Tom.

 

- Não, está tudo bem. Ainda não estou senil.

 

Tom podia ouvi-lo a arquejar na escuridão; seguiu-se o tilintar de vidro e o gorgolejar de um líquido; depois, um outro tilintar, desta vez de metal contra vidro, quando Frank começou a mexer na lanterna. Tom agarrou-se à espingarda, fitando a lanterna oscilante que, segundo os seus cálculos, devia estar a cerca de um quarto de milha de distância e se movia muito lentamente.

 

- Aqui está - exclamou Frank. - Acendo-a num instante.

 

Tom pestanejou com o súbito clarão de luz. Foi então que ouviu Frank gritar e, logo de seguida, o estilhaçar de vidro quando a lanterna caiu e se apagou. O cavalo de Frank empinou-se, enervando o de Tom, que deu um coice. Tom tentou manter-se na sela, e, inadvertidamente, premiu o gatilho. A espingarda deflagrou, provocando um clarão e um estrondo. Precisou de alguns instantes para controlar novamente a montada. Só então ouviu Frank sussurrar, por entre o resfolegar dos dois cavalos:

 

- Viu-o?

 

Tom sentiu que devia também sussurrar.

 

- Viu quem?

 

- O padre - respondeu Frank. - O homem cego. Aquele que pregou um susto à Helen. O padre dos boxeres. O sinistro sujeito de que o Charlie nos falou. Vi-o ali, sentado no meio da estrada.

 

- Onde?

 

- Ali. Mesmo debaixo do nosso nariz! Não tem olhos e o aspecto é maligno e ameaçador. Saltou quando a lanterna se acendeu, e chocou contra mim. Pareceu-me frio e débil quando o agarrei, mas escapou-se-me das mãos como uma enguia. Por essa altura, a lanterna já se tinha apagado e os nossos cavalos saltavam como loucos. Foi uma sorte ele não me ter enfiado um punhal entre as costelas, não é verdade? Espere, onde está a maldita lanterna? Deixe-me acendê-la de novo.

 

Depois de novo arquejar e tilintar, a lanterna reacendeu-se.

 

Frank ergueu-a o mais que pôde, para que o seu feixe de luz abrangesse uma área tão grande quanto possível, mas as estradas e os campos estavam desertos.

 

- Raios. Desapareceu! Quase me leva a pensar se não foi apenas fruto da minha imaginação...

 

- Tem a certeza de que não era um animal, Mister Delamere? Um gato selvagem? Um pequeno veado?

 

- Não, não, parecia-se com um homem. Tinha o aspecto de um homem, ou de uma espécie de homem. E aquelas órbitas vazias... Ouça, Tom, nem uma palavra sobre isto à Helen, combinado? Você e eu ficaremos em Tsitsihar durante algumas semanas, e não quero que ela tenha medo, durante a nossa ausência.

 

Um ruído de cascos ecoou e Henry Manners e Helen Francês surgiram, cavalgando em direcção ao círculo de luz. Lao Zhao, com a sua mula e uma lanterna, seguia atrás deles. Tanto ele como Manners traziam as espingardas na mão.

 

- Ouvimos um disparo - disse Manners, que, depois de olhar à volta, pareceu mais tranquilo e guardou a arma. O que aconteceu?

 

- Oh, nada. Já me conhece - respondeu jovialmente Frank. - Sou um velho trapalhão. Resolvi ir buscar a garrafa de uísque à minha trouxa. Pisei a pata do cavalo, que se empinou. Uma coisa levou a outra e os dedos do Tom deslizaram até ao seu bacamarte. Que raio de coisa, ha? Só Deus sabe como nos iremos safar a caminho de Tsitsihar.

 

- Pai, Tom, estão ambos bem? - perguntou Helen, com os olhos muito abertos de preocupação e com o chapéu de banda.

 

- Melhores do que nunca, minha querida. Não é verdade, Tom?

 

- Além do mais, nós é que devíamos estar preocupados. Onde se meteram? - perguntou Tom, inclinando-se na sela para dar um beijo na face da noiva. - HF, estávamos convencidos de que vocês se tinham perdido.

 

- Vimos um templo magnífico. Havia um túmulo e uma espécie de muro com ameias, à volta de um pequeno outeiro. O Henry ajudou-me a subir até ao alto do morro e...

 

Parece realmente maravilhoso, minha querida - atalhou Tom. - Obrigado, Henry, como sempre, mas temos de ir andando. Sabes que é a última noite que eu e o teu pai passamos em Shishan, HF, e prometemos visitar o doutor Airton quando voltássemos ao hotel. Henry, vai regressar ao acampamento do caminho-de-ferro? Se quiser vir connosco, será bem-vindo, como é evidente.

 

- Não se preocupe comigo e com o Lao Zhao, meu velho. Ficaremos bem. Agora que vos entregámos Miss Delamere, sã e salva, o nosso dever foi cumprido. Um destes dias, tem de acompanhar-nos nos nossos passeios a cavalo, Tom. Não sabe o que perde.

 

- Talvez quando eu regressar de Tsitsihar. Fico-lhe grato, Henry, pela maneira como tem zelado por ela.

 

- É um prazer para mim - replicou Manners. - E não se preocupe com o que quer que seja, enquanto estiver fora. Sabe que pode confiar no Lao Zhao e em mim para continuar a...

 

- Obrigado, Henry - agradeceu Tom de novo, se bem que num tom de voz algo irritado. - Eu sei que ela está em boas mãos.

 

- As melhores - murmurou Manners. - Estou a referir-me ao Lao Zhao, claro. Conhece a região tão bem como um caçador furtivo. Sabe onde fica cada templo, cada mosteiro, num raio de muitos quilómetros.

 

- Quer dizer que irão dar mais passeios a cavalo, enquanto estivermos fora de Shishan? - quis saber Frank, em tom mal-humorado. - Mas afinal, quantos malditos templos há para ver à volta da cidade? Ainda não se fartaram?

 

- Oh, papá! - ripostou Helen Francês, um pouco exasperada.

 

- Na verdade, vai haver uma pequena festa enquanto estiver em viagem, Mister Delamere. - explicou Manners. Tenho pena de que não estejam cá. Vamos abrir o túnel nas colinas Negras com dinamite e o Charlie está a preparar um fim-de-semana de piqueniques. Penso que os Airton também vão.

 

- Se os Airton forem, então está bem, - replicou Frank. - Vão tomar a seu cargo a Helen, enquanto eu e o Tom estivermos ausentes. A propósito, é onde ela vai ficar hospedada. Serão eles os acompanhantes. Não que eu confie em acompanhantes, nos tempos que correm... O Tom devia ter sido o acompanhante da Helen durante a viagem de barco até cá, e veja o que aconteceu!

 

- Só espero que não tenha ficado desiludido, Mister Delamere - interveio Tom.

 

- Isso é atenuar em muito o que senti, mas enfim, já que tenho de dar a mão da minha filha a um gorila, também é verdade que podia ter arranjado um muito pior. - Subiu pesadamente para a sela. - Vá lá, então! Vamos embora ou não? Adeus, Manners. Vemo-nos dentro de um mês, mais dia menos dia. Desfrute dos seus templos. Om mani padme hom e tudo o mais. Parece-me que você e a Helen estarão completamente iluminados quando nós regressarmos. Autênticos Budas vivos, no mínimo. Adeus.

 

- Obrigada por um dia encantador, Henry - despediu-se Helen, estendendo a mão e tocando no flanco do cavalo de Manners, perto do seu joelho.

 

- Irei visitá-la à casa dos Airton daqui a uns dias. Faça boa viagem, Tom. Vai gostar das caçadas em Tientsin. E não se preocupe com a Helen.

 

Tom voltou-se.

 

- Porque insiste em dizer-me que não me preocupe com a HF, Henry?

 

- Adeus - despediu-se Manners, saudando-o com o chicote -, Zoule, Lao Zhao!

 

E, virando o cavalo, foi rapidamente tragado pela escuridão.

 

- Ele não quer que te preocupes comigo enquanto estiveres fora, nada mais - disse Helen, talvez porque sentisse que era necessário preencher o silêncio que se seguira.

 

- A questão é saber com o que não devo preocupar-me.

 

- Não percebo o que queres dizer - replicou Helen, após algum tempo.

 

- Nem eu - murmurou Tom, após idêntica pausa.

 

- É melhor esquecermos isto, está bem? Agora conta-me como foi o teu dia com o Henry.

 

Quando o grupo se afastou e a lanterna de Frank se tornou um ponto de luz ao longe, um vulto saiu da vala que havia de um dos lados da estrada. Enquanto os olhos cegos, sem qualquer expressão, se viravam na direcção do grupo que se afastava, o vulto levou a mão esquerda ao ombro direito e tacteou, com os dedos compridos, o buraco que a espingarda de Tom fizera na sua carne. Um som suave, semelhante a um gemido, saiu da sua boca. Após algum tempo, localizou a bala amolgada e extraiu-a. Manteve-a por momentos na palma da mão aberta. Depois, colocou-a na boca e engoliu-a. Pegando na gamela e nas suas coisas, ignorando o ferimento, começou a caminhar, com passos arrastados, em direcção a Shishan.

 

Mais do que nunca, Helen ansiava pelas tardes passadas com Henry e Lao Zhao, quando mais não fosse por ser uma forma de escapar ao comportamento irrepreensível que se esperava dela na presença de Mrs. Airton. Após os intermináveis almoços com Nellie e as freiras, alegava sentir-se cansada e ia para o quarto, esperando à janela. O coração começava a bater-lhe com mais força assim que via os cavalos surgir da mata de pinheiros e subir a colina, a caminho da missão. Por essa altura, já ela enfiara as botas e vestira o traje de montar, e, ao primeiro toque da campainha, com as faces coradas, surgia no vestíbulo onde Ah Lee lhe estendia o chapéu e o chicote.

 

Henry raramente entrava na casa. Encostava-se ao pórtico, a fumar um charuto, ou acocorava-se no pátio com as crianças, desdobrando cuidadosamente o seu lenço para lhes revelar um gafanhoto, um escaravelho ou o que quer que houvesse apanhado durante o trajecto desde o acampamento. Enfiava depois a mão num bolso, de onde tirava outro lenço, exibindo uma orquídea ou uma outra flor selvagem, pedindo a Helen que a colocasse na lapela.

 

Mrs. Airton, que fazia questão em estar sempre presente sempre que eles partiam, quanto mais não fosse para demonstrar a sua reprovação, esboçava um sorriso azedo se Henry Manners lhe oferecia também uma flor. Comentava, na sua pronúncia escocesa, que era uma bela flor e entregava-a a Ah Lee para que a pusesse numa jarra. Nunca deixava de perguntar a que horas exactamente Henry regressaria com Miss Delamere, lembrando-lhe que, com crianças em casa, o jantar era sempre a horas certas, assim como o serviço religioso que o precedia. Ainda que os jovens, nos tempos que corriam, acrescentava, não observassem os seus deveres religiosos com a mesma pontualidade com que o faziam no seu tempo! Henry, invariavelmente, desarmava-a descrevendo o percurso que planeara para aquele dia, falando das paisagens que os esperavam e assegurando-lhe que, mesmo que tivessem a infelicidade de se atrasar para as orações, traria Helen Francês de volta, sã e salva, a tempo do jantar, com um apetite que só iria fazer justiça aos magníficos dotes culinários de Mrs. Airton.

 

Por fim, Helen Francês descia a colina a galope, com o vento a bater-lhe no rosto, a cegar-lhe a vista, a emaranhar-lhe o cabelo, enquanto Henry, rindo, espicaçava o cavalo dela para que corresse mais e mais depressa, num galope desenfreado. Fazia corridas com ela, desafiando-a com o seu sorriso branco e os seus olhos enrugados pelo divertimento, e Helen Francês gritava, com a alegria de se sentir livre, pelo prazer de saber aqueles músculos quentes e fortes atrás de si, com o sangue a pulsar-lhe nas veias, o abandono e o controlo. Cravava os saltos das botas na montada e fazia estalar o chicote. Os dois cavalos saíam da missão e da floresta de abetos, atravessavam a planície e continuavam a galopar. Só paravam perto do local em que a estrada era ladeada por choupos, com Lao Zhao a sorrir, por entre uma nuvem de pó, seguindo-os a trote.

 

- Então, para onde vamos hoje, agora que está corada, suada e com um aspecto muito pouco próprio de uma senhora? - perguntara-lhe Henry certa tarde, depois de um daqueles galopes, acariciando o pescoço do cavalo.

 

- Um templo?

 

- Lamento, mas já não há mais templos, apesar de ainda andar a inventar templos imaginários para a senhora Dragão, com quem você vive neste momento...

 

- Pouco me importa para onde vamos, desde que seja para longe dos Airton.

 

- Mas que ingrata, tão descortês para com os seus afáveis anfitriões...

 

- O médico é boa pessoa, se bem que seja um tanto maçador. As crianças são amorosas e engraçadas. De quem não gosto nada é da Nellie e daquelas alegres freiras. - Helen soltou uma risada. - Meu Deus, aquelas freiras...! São tão maquiavelicamente... joviais.

 

Lançando a cabeça para trás, voltou a rir. Uma madeixa encaracolada, que se soltara de debaixo do chapéu, roçou-lhe a face e passou-lhe por cima de um olho. Henry debruçou-se e afastou a madeixa para o lado. Os seus dedos traçaram ao de leve a linha da sobrancelha. Assustada, Helen virou a cabeça, empertigando-se, com as pupilas dilatadas.

 

- Era o seu cabelo. Tinha uma madeixa solta - disse Henry.

 

- Obrigada - murmurou. Sentia as faces afogueadas e perguntou a si própria se teria corado.

 

- Muito bem - retomou Henry, após uma pausa. Que tal irmos dar um passeio a cavalo? Vou levá-la até ao rio. Venha daí!

 

Enquanto o seguia, pensou novamente, e não pela primeira vez, acerca das opções que podia ter de vir a fazer um dia.

 

A questão era muito mais simples para Lao Zhao, embora guardasse para si a sua opinião, até porque ninguém lha pediria. Era um pastor que conhecia tudo acerca das éguas e dos garanhões. Desde o princípio, quando haviam atravessado as planícies, a caminho de Shishan, era óbvio para ele que Ma a Si Xiansheng, ao afirmar a sua superioridade e autoridade sobre o outro inglês alto, Tom, assegurara os seus direitos sobre aquela mulher ruiva que parecia um gato. Não houvera um só momento durante a viagem em que os olhos dela não seguissem avidamente os movimentos de Ma Na Si, especialmente quando este estava montado no cavalo. Ela já lhe pertencia, muito antes de ele a reclamar para si formalmente, em público, durante aquelas execuções em Fuxin, quando galopara atrás do seu cavalo e a tomara nos braços. A única coisa que intrigava Lao Zhao era por que motivo aqueles dois ainda não haviam feito o que seria óbvio, limitando-se a conversar. Cavalgavam juntos todos os dias, e ele podia ver o desejo físico que crescia entre ambos. Afastava-se frequentemente, por tacto, tratando dos cavalos sem ser necessário ou fingindo dormir a sesta, enquanto os dois passeavam, a pé, pelas ruínas, mas, tanto quanto podia perceber, nunca aproveitavam os momentos em que ficavam a sós. Supunha que devia ser algum costume inglês ou um jogo erótico qualquer. A abstinência aumentava o desejo, por isso talvez aquele atraso deliberado tivesse como objectivo transformar o acto de fazer amor (pois qualquer idiota podia ver que era para aí que aquela corte conduzia) ainda mais apaixonante e delicioso. Ouvira falar de tais técnicas - na realidade, certa vez, em Mukden, uma prostituta espicaçara-o durante três dias seguidos antes de lhe oferecer por fim o seu lótus, e tão perfumado que ele estava, depois de toda aquela expectativa. Ainda assim, que os dois ingleses se apressassem. O Inverno estava à porta e não lhe agradava nada a ideia de esperar do lado de fora de um qualquer templo, à neve, enquanto os dois se entregavam ao prazer no interior. Naquele dia estava calor. Era um último sobressalto do sol de Outono, apenas mitigado por uma leve brisa; um bom dia, pensou Lao Zhao, enquanto tirava um pedaço de gordura de carneiro de um dente, para andar a cavalo ou para qualquer outro desporto, mas ali estavam os outros dois, mais uma vez, a conversar, e nada mais. Àquele ritmo, só consumariam o desejo na próxima Primavera. Para ele, tanto lhe fazia. Era bem pago e alimentado e tinha um trabalho fácil. Feliz do homem que trabalhasse para um demónio do oceano; eram todos deliciosamente loucos e não tinham noção do valor do dinheiro. “Ta made”, praguejou. Chicoteando preguiçosamente a mula, seguiu Helen Francês e Henry Manners através dos campos.

 

- Henry - dizia Helen, num tom de voz que julgava requintado -, é humilhante para uma rapariga, e deve saber como todas nós somos tolas e curiosas, mas a verdade é que de cada vez que tento descobrir algo mais sobre si, desvia o assunto com uma piada.

 

- Que disparate! Sou um livro aberto. Estou apaixonado, com toda a transparência, por si, num estado de completa adoração, e cheio de ciúmes do Tom.

 

- Lá está você. Mas admita- é um homem misterioso, nunca me contou nada sobre si.

 

- Passo todas as horas do dia a falar-lhe de mim. A responder às suas perguntas sobre a vida em Londres e a alta sociedade. “Oh, Henry, conte-me outra vez, por favor, tudo sobre o baile dado por Lady Dartmouth”, pela milésima vez.

 

- Está bem. Goze à vontade. Mas é verdade. Não sei nada acerca, de si, à excepção das coisas mais óbvias.

 

- E que são...?

 

- Que é um cavaleiro. Que é espirituoso. E atraente. E... e...

 

- E o quê?

 

- E que é bom para comigo. é amável comigo.

 

- E você, pelo seu lado, é amável comigo? - perguntou Henry, em tom zombeteiro.

 

- Sim, como o sou com um amigo. Com um amigo do Tom.

 

- E se o Tom não fosse meu amigo, ainda assim seria amável comigo? Até que ponto seria amável, se nenhum de nós tivesse conhecido o Tom?

 

- Tenho a certeza de que seríamos amigos na mesma.

 

- Apenas amigos? Então, Helen Francês, diga-me, se não houvesse um Tom, até que ponto seria amável?

 

- Está a namoriscar comigo, Mister Manners? De que forma queria que eu fosse amável consigo?

 

- Oh, quereria que fosse muito amável comigo - respondeu Henry calmamente. O seu rosto tornara-se sério. Mas diga-me, noiva do Tom: queria saber mais acerca de mim. O que deseja saber?

 

- Promete não brincar comigo outra vez? Vai realmente responder-me?

 

- Experimente. Força.

 

- Muito bem - Os olhos dela brilharam, desafiadores. Porque deixou os Horse Guards e se alistou num regimento dos Royal Engineers na índia?

 

Henry parecia concentrado na forma como o seu cavalo escolhia o caminho por entre o restolho do campo de milho-miúdo. Um rebanho de carneiros escanzelados pastava a um canto do campo, com o sol da tarde a reflectir-se na sua lã. No céu, um milhafre e uma pega pareciam competir pelo território.

 

- Porque não fala? - perguntou Helen.

 

- Estava a ponderar se quer ouvir a resposta.

 

- Claro que quero. Porque não haveria de querer? O motivo é... escandaloso?

 

E riu-se nervosamente.

 

- Penso que não, mas há quem ache que sim, como o meu querido pai. Foi por isso que ele deixou de me falar. Quanto à sociedade, divertiu-se, claro, e revelou-se invejosa, hipócrita e extremamente vingativa. Por isso, aqui estou.

 

- O que foi que fez? - A voz dela perdera um pouco a confiança anterior.

 

- O que foi que fiz? Ora aí está uma pergunta inocente feita por uma menininha inocente. Será que a confiante noiva do Tom quer realmente saber o que fiz? Pode ser algo muito perverso.

 

- Não me chame “menininha” - ripostou Helen, seguindo em frente, a trote. - Não tem o direito de fazer troça de mim ou do Tom - Voltou-se para trás na sela. - Diga-me, diga-me o que fez.

 

Henry aproximou o seu cavalo do dela e estacou. Debruçando-se, tocou ao de leve no seu ombro e aproximou a boca do ouvido dela.

 

- Quer mesmo saber? - sussurrou, possando-lhe um dedo pela face, ao que ela desviou o rosto, furiosa. - Pergunto-me se a deixará excitada, como a deixaram excitada aquelas execuções... Muito bem! - riu-se com azedume, afastando-se. - Vou revelar-lhe do que fui acusado: de uma relação indecente. De adultério. De violação. De faltar a uma promessa. Era o que queria ouvir?

 

A expressão assustada de Helen revelava que a resposta era negativa.

 

- De acordo com os meus acusadores, eu seduzi, e repare como escolho as palavras com todo o cuidado, a esposa do meu coronel, que era conde, e mais tarde violei a sua filha, Lady Caroline. Um comportamento terrível, sem sombra de dúvida. Não imaginava que tem andado a passear a cavalo com um fornicador duas vezes condenado, pois não? Que foi apanhado em flagrante delito? Minha querida Helen Francês, a senhora corou. Espero que o que enrubesceu as suas faces tenha sido o embaraço e nada mais... Seria impudico da sua parte estar a apreciar a minha confissão.

 

Helen soltou um grito abafado, como se tivesse acabado de levar uma bofetada. Henry aproximou de novo o seu cavalo do dela, e fitou-a seriamente. Ela ergueu a cabeça e sustentou o olhar dele, numa atitude desafiadora, mas apertava as rédeas com força para evitar que as suas mãos tremessem.

 

- Assim é melhor - continuou Henry. - Encare-me. Olhe para mim. Mostre-se zangada. Tem todo o direito de se sentir zangada. Afinal, quem haveria de pensar? Logo o seu querido amigo. Ah, sim, e amigo do Tom, também, porque não podemos esquecer-nos do Tom, pois não? a mim próprio onde estará ele, neste momento. A enxotar bandidos, sem dúvida, como herói que é... Que pena que o bom velho se tenha revelado aldrabão perverso. Quem poderia imaginar tal coisa?

 

- Porque está a ser tão cruel para comigo? - perguntou ela a meia voz, mas em tom firme.

 

- Cruel? Julgava que queria sondar os meus mistérios.

 

- Como pode dizer-me essas coisas, Henry?

 

- Porque me pediu,

 

- Mas essas coisas terríveis que diz ter feito, esse tom cruel, trocista, não é o seu género.

 

- Não? Julga que me conhece assim tão bem?

 

- Violar e seduzir. Esses actos imundos. Não.

 

- Oh, minha doce Helen Francês. E eu que pensava que estava ansiosa por ouvir as minhas histórias sobre os comportamentos da alta sociedade. Julgava que era isso que procurava na minha companhia. Estava convencido de que o que você queria era que eu a tirasse do seu pequeno mundo seguro, tão classe média.

 

- Pare. Por favor.

 

Mais uma vez, fez trotar o cavalo, afastando-se, mas ele seguiu-a, a rir.

 

- Não vai ouvir a minha versão da história? Porque tenho uma, sabia? Fui enganado pelo bom conde, muito antes de seduzir a mulher dele. Fui insultado. A minha honra foi ultrajada. O meu brasão foi manchado. O que podia um homem fazer?

 

- Está a zombar novamente de mim! - gritou Helen. Um bando de pardais voava em volta dos cascos do cavalo. O que lhe fez esse homem para merecer as terríveis coisas que você diz ter feito à família dele?

 

Henry soltou uma gargalhada.

 

- Minha querida Helen Francês, não creio que a esposa dele pensasse que aquilo que estava a fazer fosse assim tão terrível... Pelo contrário; não se fartava... Mas eu estava a falar-lhe das “maldades” que sofri às mãos do marido dela. Se quer ser uma mulher do mundo, Helen Francês, receio que tenha de aceitar o que se passa nele.

 

- Mas o que pode esse tal conde ter-lhe feito para merecer uma tal vingança?

 

- Penso que ele me irritou - respondeu Henry com toda a calma

 

- Irritou-o? Só isso?

 

- Por vezes, é o suficiente. Sabe, eu era novo na altura. Tinha acabado de sair de Eton e de Sandhurst e de integrar o regimento, cheio de ardor marcial e ansioso pela glória e pela fama. O bom conde, e o oficial de quem eu dependia directamente, acusaram-me de fazer batota às cartas, no meu primeiro jantar na messe. É uma partida que pregam a todos os novos oficiais. Cada regimento tem o seu ritual de passagem. Coloque-se o inexperiente jovem tenente numa situação de tensão, teste-se o seu carácter e depois todos podem rir-se disso. O problema é que eu estava bêbedo, e... bom, não me apercebi da partida. Aceitei mal que me mantivessem sentado na minha cadeira, extraindo ases extras do meu bolso, onde os haviam colocado. Demonstrei o meu ultraje e isso só fez com que se rissem mais de mim. Resultado: esmurrei o olho de sua senhoria, o conde. Foi a sua vez de não perceber onde estava a graça. Andei durante um mês com tudo o que era oficial superior em cima de mim. No fundo tratava-se de me humilhar perante os colegas.

 

- Mas isso é tão cruel!

 

- Acha? Os tenentes não podem andar por aí a esmurrar coronéis. O que seria do Império? Suponho que, se fosse um cavalheiro, devia ter-me demitido, mas eu nunca lhes daria esse prazer. Assim, calei-me e suportei o castigo, o que me granjeou algum respeito por parte dos outros oficiais. Não havia nenhum oficial com um uniforme tão impecável como o meu, durante as paradas. E tudo podia ter ficado por aí, mas infelizmente não sou homem para deixar passar as coisas. Não assim tão facilmente. Acontece que naquele mês o duque de Connaught, coronel honorário do nosso regimento, ia proceder a uma inspecção. Um dia em grande, com uma cerimónia pomposa e grandes multidões nos Horse Guards. O nosso coronel, o glorioso conde, como não podia deixar de ser, acompanhava o seu superior. Muito resplandecente. Infelizmente, o seu cavalo começou a defecar assim que saiu da caserna e só parou quando a cerimónia acabou. É que, sabe, eu tinha preparado a sua ração por forma a produzir esse efeito. Uma situação muito embaraçosa. O bom conde transformou-se no alvo de chacota da imprensa sensacionalista, mas quem não achou graça nenhuma foi o Connaught.

 

Mesmo contra a sua vontade, Helen riu-se.

 

- Foi por isso que teve de se alistar nos Royal Engineers?

 

- Não. Não havia como me acusar do sucedido, mas o coronel sabia que eu era o responsável. A partir daí foi guerra aberta entre ambos, sem ser preciso dizer fosse o que fosse. Não vou maçá-la com os pormenores. Ele iria acabar por me transferir, mas eu certifiquei-me de que não o poderia fazer.

 

- E como conseguiu isso?

 

- Seduzindo a mulher dele, minha querida.

 

- O quê?

 

- Ele seria realmente alvo da chacota geral se resolvesse armar-se em marido ciumento, não é verdade? Assim sendo, pouco podia fazer. - Henry riu-se com algum azedume. Nesses círculos da alta sociedade, não é ser-se traído que constitui uma vergonha; é mostrar que isso nos preocupa. Pode não acreditar, mas o lugar mais seguro onde eu podia estar era na cama da mulher dele. C est trop drôle, n’est-ce pas? O problema é que eu fui suficientemente tolo para o subestimar. Como já lhe disse, eu era novo. A filha não fazia parte do plano original. De qualquer forma, fui castigado pela minha temeridade. Exilado do reino. A propósito, estou a ser demasiado franco consigo? Não era isto que queria ouvir?

 

- Não é a personagem cínica que parece ser. Não acredito. Porque está a contar-me tudo isso?

 

Os lábios de Helen tremiam e tinha os olhos húmidos.

 

Haviam chegado a um fosso de irrigação que separava dois campos. Com um movimento violento, ela esporeou o cavalo instando-o a saltar o obstáculo, cavalgando depois sem rumo, ora subindo, ora descendo os barrancos pronunciados, como se tentasse distanciar-se da conversa que a perturbava.

 

Henry seguiu-a, pensativo, com o olhar, antes de manobrar com habilidade o seu próprio cavalo, descendo e depois subindo uma inclinação menos acentuada.

 

- Eu podia ter-lhe mentido - disse, ao aproximar-se novamente dela. Helen galopara alguns metros e parara, à espera dele. - Ou inventar algo de suave e romântico. Talvez pudesse ter-lhe contado que fora prejudicado numa questão de herança por um familiar mal-intencionado, e que a única solução fora esconder-me nas colónias para escapar aos credores, sustendo a minha vingança até poder regressar e reclamar os meus bens. Não é esse tipo de coisas que acontece aos jovens heróis de qualquer romance que se preze? Mas a vida não é assim. Nem você é mulher para acreditar nessas histórias, Helen Francês, pois não? Lá no fundo, é igual a mim, apesar de ainda não o saber. Não é sentimentalista. Vê o mundo tal como ele é. E sente fome, mais uma vez como eu. Fome de experiências novas.

 

Helen meneou a cabeça, mas não se afastou. Era como se o discurso de Henry a tivesse hipnotizado, a ela e ao cavalo.

 

- Confesso, seduzi a mãe. E não fui dos primeiros, nem dos últimos, a fazer o que os meus colegas oficiais, e atrevo-me mesmo a dizer, alguns especialmente bem constituídos, não tivessem já feito. Não faz a menor ideia de como são essas mulheres da sociedade, pois não? Nada como um caso discreto com um homem mais novo para dar alguma cor a uma flor murcha. Não que ela fosse uma flor murcha; era magnífica. é que não fui nada discreto. Aliás, fiz tudo para não ser discreto. Queria que o marido dela e toda a gente soubesse. Tinha de me vingar, desse por onde desse. Fui a sensação da época nos clubes mais elegantes, e não havia nada que o velho pudesse fazer. Sabe, Helen Francês, pecar, como penso que ainda lhe chama no seu singular vocabulário conventual, é o que os cavalheiros e as senhoras casadas tendem a fazer quando têm oportunidade. Trocamos de quartos nas festas de fim-de-semana como mudamos de barco numa corrida no rio, para no dia seguinte irmos caçar em amena cavaqueira com os maridos encornados. É o que se chama “estar na moda”.

 

- E a filha dele? - perguntou Helen, num tom estridente. - Disse que violou a filha dele? Fê-lo ou não?

 

Henry parecia prestes a emitir novo axioma, mas limitou-se a suspirar. O tom irónico desaparecera da sua voz.

 

- Não, Francês, não violei Quando muito, foi o oposto. A Caroline é que me violou. A alma e o coração. conhecera uma criatura tão bela, tão imoral e depravada. Eu estava em Leylands. Ela apanhou-me a sair do quarto da mãe, numa manhã de Verão, com a luz da alvorada a brilhar por entre as cortinas e os pássaros a cantar. Estava em camisa de dormir, no corredor... Sorriu-me como um anjo malvado. A partir daquele momento tinham-me na mão e ela soube-o. Limitou-se a lançar-me um sorriso entendido e a regressar ao quarto, deixando a porta aberta... E eu segui-a.

 

Lao Zhao, obrigando a sua mula a manter uma distância respeitável, olhou com curiosidade para os dois cavaleiros parados, muito hirtos nas suas selas, esquecidos das montadas que pastavam no restolho, a falar, a falar, a falar, como de costume. Mas, por uma vez, pareciam estranhamente sérios. Nunca vira o amo tão tenso, nem a mulher tão pálida e concentrada na conversa.

 

- Ela tinha tudo planeado, claro - continuou Henry, após uma longa pausa pontuada pela seriedade. - Já estava grávida, muito embora nunca ninguém tivesse adivinhado, com o seu corpo de duende e uma cintura tão fina que podia cingi-la com as mãos. No dia seguinte, ignorou-me durante o pequeno-almoço. Ela era altiva, o que ateou ainda mais o meu desejo. Durante toda essa semana, vivi apenas para as alvoradas, quando podia ficar a sós com ela. Passava os dias a sonhar com o seu cabelo, a sua aparência, o seu toque, o seu cheiro. Mesmo quando fazia amor com a mãe, só pensava nela. Sim, ela disse-me que devia continuar o meu caso com a mãe. Suponho que a divertia. Disse-me que a excitava. Mas, a cada nova alvorada, eu temia encontrar a sua porta fechada. E o meu coração cantava, quando fazia girar a maçaneta e a encontrava, com aquele grande sorriso convidativo, no meio de uma moldura de cabelo castanho, espalhado pela almofada, e os seus braços estendidos, enquanto os pardais e os tentilhões cantavam, do outro lado da janela. Ah, a beleza daquelas manhãs...

 

- Fala como se estivesse apaixonado.

 

- E estava apaixonado. Tudo isso fazia parte do plano deles.

 

- Não compreendo.

 

- No quinto dia, ao amanhecer, ela esperou que eu recolhesse as roupas que deixara numa cadeira, ao lado da cama. Preparava-me para sair silenciosamente, como sempre, quando ela gritou. Não parou de gritar, numa voz esganiçada, como um animal ferido. Ainda hoje a consigo ouvir. Foi horrível. E eu, completamente atordoado, fiquei a vê-la arranhar os próprios seios e coxas, e a bater com o rosto contra a cabeceira da cama até ficar marcado por contusões. O pai apareceu, em camisa de dormir, brandindo uma bengala que mais parecia uma moca. Era óbvio que já a tinha preparada. Deve ter-lhe dado alguma satisfação espancar-me impunemente antes que os outros convidados aparecessem, acordados pela algazarra. Claro que não houve grande margem para dúvidas quanto ao que se havia passado, dada a forma como pai e filha haviam planeado a cena. A rapariga desonrada, a soluçar no meio dos lençóis amarfanhados, o violador apanhado em flagrante...

 

“Não houve qualquer escândalo. Deram-me a oportunidade, um pouco superficialmente, de me casar com ela: o meu nome de família era aceitável e preferiam dar um pai ao filho bastardo, muito embora me tivessem logo explicado, claro, que nunca podia viver na mesma casa com ela e que nos divorciaríamos assim que fosse apropriado. Bom, o meu orgulho enraiveceu-se com aquele abuso, e recusei. Assim, fui discretamente expulso do regimento e desgraçado, de uma maneira que só os Ingleses sabem fazer: a desgraça de um homem nunca vem à superfície na sociedade, mas toda a gente sabe e todas as portas se fecham. Tive a sorte de o meu pai poder arranjar-me um lugar nos Royal Engineers, mas até mesmo a índia era muito próxima para alguém com a minha reputação. Enganei-a quando lhe disse que fui bem recebido nas festas dadas pelo vice-rei, em Simla. A minha reputação seguia-me para onde quer que fosse. Não que deva queixar-me. Tive a felicidade de me deixarem em liberdade. Afinal, não passo de um violador, e se fosse condenado ia direitinho para a forca, ou apanhava uma pena de prisão perpétua.

 

Henry fez uma pausa e estalou a língua na boca, incitando o cavalo a avançar a um passo lento. Helen imitou-o.

 

- O que aconteceu ao bebé? - perguntou, com doçura.

 

- A Caroline desapareceu, numa cidade termal qualquer. Após o parto, entregou a criança a alguém para que cuidasse dela. A sua reputação permaneceu imaculada, é claro. Aliás, não havia muita gente a saber o que acontecera, mas os que o sabiam consideravam-na a pobre vítima inocente de um mulherengo incorrigível que também lhe seduzira a mãe. Todos tinham pena da Caroline. Acabou por casar-se com um velho par do reino.

 

“Quem era o verdadeiro pai da criança, em benefício de quem toda aquela charada tinha sido montada? Não tenho a certeza, mas ela passara a maior parte da temporada em Kensington Palace e em Windsor, e o Bertie era por essa altura muito libidinoso. Todos sabem que ele tem amantes e sabe-se que gerou alguns filhos bastardos, e não há problema algum, porque as suas amantes ou são actrizes ou coristas, que não interessam a ninguém, ou são mulheres casadas com maridos condescendentes e ambiciosos. Mas ter um filho natural da jovem filha solteira de um par do reino seria muito diferente. Exige-se às nossas jovens aristocratas que sejam virgens até chegarem ao altar, não sabia? Não que haja muitas que se casem imaculadas... Já está a compreender melhor os usos e costumes da nossa fina sociedade? Observe as regras do jogo, e poderá fornicar a seu bel-prazer que a sociedade cobri-la-á de louros e de recompensas. Se não o fizer, está tramada.

 

“Sua senhoria, o coronel, saiu-se bem: figurou da Lista de Honras do Ano Novo e foi promovido a general de brigada na Primavera seguinte, como recompensa por ter chulado a própria filha, primeiro, e depois por ter sabido resolver um assunto doméstico. Quanto à esposa, não tenho a menor dúvida de que depressa encontrou outro idiota para a consolar. E atrevo-me a dizer que a filha caprichosa, agora que recuperou a preciosa respeitabilidade, está a conquistar todo o regimento dos Hussardos, como a mãe fez, antes dela. E, nesse meio tempo, eu fui exilado para as colónias. E porquê? Por ter sido indiscreto. Sabe, eu nunca me devia ter gabado, nos clubes aonde ia, de ter um caso com a mãe. Expus-me ao perigo, percebe? Um comportamento inaceitável da minha parte.

 

“E aqui tem, Helen Francês, toda a edificante história. Perguntou e eu respondi. Suponho que devia sentir-me envergonhado pelas loucuras da juventude, mas a verdade é que tal não sucede. No entanto, se nunca mais quiser voltar a dirigir-me a palavra, compreenderei. Quer que a leve agora de volta a casa?

 

- Não, mas estou confusa - respondeu Helen, meneando a cabeça. - Você não é um homem mau. Sei-o. E não consigo odiá-lo, mas detestei que me tenha contado tudo isso.

 

- Você perguntou.

 

- Eu sei. Mas., mas... fala acerca dessas coisas como se... se fossem normais. Como é capaz?

 

Henry sorriu.

 

- Acha que devia sentir-me envergonhado? devia sentir remorsos por ter dormido com várias mulheres, fora do casamento? por nunca lho ter confessado? lhe ter mentido? O que acontece é que não penso que haja algo de errado ou de vergonhoso no facto de um homem e uma mulher desejarem desfrutar do acto de se amarem - respondeu, calmamente. – É para isso que os corpos novos são feitos. É a sociedade que tenta fazer-nos sentir culpados. Esse é o verdadeiro problema: se devido à moralidade de uma ridícula burguesia, se devido à hipocrisia das classes mais altas, a coisa mais natural deste mundo se torna um crime. As sociedades orientais não toleram tal absurdo. Claro que neste mundo o mal existe. O mal é ferir os outros, mas não há nada de mal no amor entre um homem e uma mulher nem no acto que é a realização desse amor.

 

- Dentro do casamento - acrescentou Helen, com os olhos postos na crina do cavalo.

 

- Dentro ou fora do casamento - replicou Henry. O amor é sempre o amor, esteja onde estiver.

 

- Estou apaixonada pelo Tom - protestou Helen, erguendo os olhos para ele.

 

- É o que você diz. Muito bem. Está apaixonada pelo Tom. Até que ponto? Já dormiu com ele?

 

- O quê?

 

- Perguntei se já dormiu com ele. Disse que estava apaixonada por ele.

 

- Como pode fazer-me uma pergunta dessas? Sabe bem que não dormi com o Tom! Como se atreve?

 

Henry susteve o olhar que ela lhe lançou. Encolheu os ombros.

 

- Vou até ao rio nadar um pouco. Estou com calor. Quer vir também?

 

- Como se atreve a perguntar-me uma coisa dessas? gritou Helen. - Que espécie de homem é você? Que espécie de rapariga julga que eu sou?

 

- Vem ou fica?

 

E puxou as rédeas.

 

- Você é um homem detestável! Um monstro!

 

- Venha daí - insistiu Henry, esporeando o cavalo em direcção às árvores que se alinhavam na margem do rio, certo de que ela o seguiria.

 

Ela seguiu-o, de facto, ainda com os pensamentos e as emoções em alvoroço, após a terrível história que acabava de ouvir. Enquanto galopava atrás dele, tomou consciência de que uma vaga simpatia se misturava à repulsa que sentia. Detestara o sarcasmo e crueldade de Henry, os seus modos frios, a chocante confissão as suas ligações extramatrimoniais. Contudo, o instinto dizia-lhe que a violência que ele lhe dirigira escondia feridas profundas. Recordou então a sensação, fugaz mas intensa, que a invadira quando os dedos dele haviam tocado as suas faces, e uma imagem anterior dele, que reprimira durante semanas, regressou-lhe à mente: a pantera com a sua presa. Estremeceu, não por medo ou por outra sensação desagradável, o que por si só era alarmante, mas porque lá no fundo, sabia que era o espírito livre de Henry e o facto de ele se ter libertado das imposições da sociedade que a atraíam. Cavalgando atrás dele, sentia medo do local para onde ele a levaria.

 

Henry amarrara as rédeas do cavalo ao ramo de uma árvore, na margem arenosa do rio. Desabotoava o casaco, quando ergueu a cabeça para a fitar. Atrás dele, a água girava, em torvelinhos profundos, divididos por ilhas de caniços e de arbustos enfezados, que ocultavam a outra margem. Por mero acaso ou por obra do destino, tinham alcançado um local escondido, invisível a olhares curiosos.

 

- Tem várias opções. Lao Zhao e eu vamos nadar aqui. Pode ficar a ver, juntar-se a nós ou desviar o olhar. Pode armar-se em humilde e virginal, se quiser, mas, no seu lugar, eu vinha nadar, porque está calor e a água bastante fresca.

 

- Como posso eu nadar? - ouviu-se perguntar. - Não tenho um fato de banho.

 

- Todos nós nascemos com um.

 

Henry descalçara as botas e as meias e estava em camisa e suspensórios. Começou a desabotoar a camisa. Lao Zhao, mais pudico mas com menos roupa para despir, fora esconder-se atrás de um arbusto. Helen ouviu o embate de algo na água e um grito, e viu o rosto risonho de Lao a emergir na correnteza. O vislumbre fragmentado de braços castanhos a nadar na água sugeriam que estava nu. Dizia algo em chinês, enquanto chapinhava com as mãos, com óbvio prazer.

 

- Tem uma combinação por baixo dessas saias todas, não é verdade? Então, está preocupada com o quê? Faça como o Lao Zhao. Entre na água deslizando por trás de um arbusto. Não olharemos para si.

 

Estava apenas com a camisola interior e as ceroulas. Helen não conseguia desviar os olhos. Via os músculos protuberantes das suas pernas e braços por baixo do algodão macio e os pêlos pretos do seu peito que saíam do decote em V da camisola. Virando-se de lado, pronto a juntar-se a Lao Zhao, lançou-lhe um sorriso radioso de brancura.

 

- Não ouviu a minha história? Pode ser mais bonita do que qualquer outra rapariga, mas não tem nada que o Lao Zhao e eu já não tenhamos visto.

 

Rindo, correu para a margem e lançou-se à água, mergulhando, com um estrondo, ao lado de Lao Zhao. Com as faces a arderem-lhe de raiva e de vergonha, Helen ficou a ver as duas cabeças, ora surgindo, ora desaparecendo na correnteza, ignorando-a, enquanto faziam uma grande algazarra, se encavalitavam às costas um do outro e chamavam ruidosamente um pelo outro, numa linguagem que ela não podia compreender.

 

- Venha, Helen Francês - ouviu Henry chamá-la. A água está uma maravilha. Deixe lá de querer parecer a Paciência num monumento1. Desmonte e venha juntar-se a nós.

 

Foi mais a cólera do que qualquer outra coisa que a levou a fazê-lo. Talvez fosse essa a intenção de Henry, ao provocá-la daquela maneira. Não se escondeu atrás de um arbusto, mas, à frente dos dois homens, despiu-se até ficar em combinação, e, olhando altivamente para o rio, avançou para a água, com a combinação a ondear à sua volta. Tropeçou numa pedra e sentiu o choque gelado com a água que a envolvia e submergia. Veio à tona, arfando, à procura de ar, e viu a cabeça de Henry a seu lado.

 

- Está gelada - conseguiu dizer, com os dentes a baterem de frio.

 

1 Referência a uma passagem de Noite de Reis, de Shakespeare. (N. do E.)

 

- Vai aquecer num instante, e depois ficará a escaldar com a alegria de chapinhar na água.

 

Henry continuava a olhar para ela, com um ar de admiração.

 

- Tenho de confessar que é uma caixinha de surpresas, Miss Delamere, nunca conheci ninguém mais corajoso em toda a minha vida. Sabe, eu nunca acredi...

 

Mas não terminou a frase porque Helen lhe lançou água ao rosto.

 

Rindo, saíram os dois do rio. Henry puxando-a atrás de si, enquanto Lao Zhao nadava para o seu arbusto. Somente quando regressou à margem Helen se apercebeu do impudor da combinação, perguntando a si própria se o tecido húmido e frio - seria tão transparente, colado à pele, como os trajes interiores de Henry pareciam ser. Ela evitara olhar para a protuberância escura entre as pernas dele, e tentara tapar timidamente os seios e o púbis com as mãos, mas Henry mal olhava para ela.

 

- Vamos - dizia. - Temos de lhe arranjar uma toalha. Eu coloquei algumas no meu alforge, para o caso de serem necessárias. Apanhe!

 

Nem sequer tentou olhar para ela, até estar completamente vestida.

 

Helen recostou-se na margem do rio. A frescura da água fizera-a sentir-se fresca e cheia de energia. Sentia formigueiro na pele, os ouvidos, seios e coxas reluziam com um brilho quente e o sangue parecia pulsar-lhe mais depressa no corpo. Sentiu que ele se aproximava, enfiando a segunda bota. Parou em frente dela, observando-a.

 

- Oh, Henry, foi tão revigorante - começou.

 

- É você que é revigorante - atalhou ele e beijou-a nos lábios com ardor. Helen sentiu o bigode roçar-lhe no nariz e, depois, a suavidade dos seus lábios, o leve toque da sua língua contra os dentes dela, os seus braços em volta do seu corpo, quando ele a puxou para si. Sentiu a aspereza do casaco de tweed, enlanguesceu e deixou de oferecer resistência. Fechou os olhos, entregando-se à força e ao calor daquela boca.

 

- É melhor eu levá-la a casa - murmurou, libertando-a por fim. - Lao Zhao vai trazer os cavalos.

 

Na sexta-feira seguinte, os Airton e Helen Francês saíram cedo para se porem a caminho do acampamento do caminho-de-ferro. O médico e Helen montavam os seus cavalos, enquanto Nellie, a irmã Elena e as crianças seguiam sentadas na parte de trás de uma carroça puxada por mulas, que haviam pedido emprestada para a ocasião. Para sua grande desilusão, a irmã Caterina tivera de ficar para zelar pela missão. Charlie Zhang esperava-os no acampamento, pronto a guiá-los na etapa seguinte da viagem, até ao ponto nas colinas Negras onde iam proceder às explosões para abrir o túnel. Herr Fischer e Henry Manners já haviam partido à frente, a cavalo, para inspeccionar a construção das tendas onde o grupo dormiria durante duas noites. A cerimónia para celebrar a abertura do túnel teria lugar mais tarde, nesse mesmo dia, e, a maior parte do dia seguinte seria dedicada a um piquenique, preparado com todos os requintes por Herr Fischer e Charlie.

 

Era uma aventura para as crianças e um regalo para a irmã Elena, que tinham poucas oportunidades de sair de Shishan; o tempo frio que se fez sentir durante a viagem foi amenizado pelo calor das alegres cantorias e das conversas animadas. A alegria do pequeno grupo não se desvaneceu quando a paisagem plana que lhes era mais familiar deu lugar aos maciços sombrios de florestas e aos desfiladeiros rochosos que marcavam o início das colinas Negras. A nova via-férrea, assim como o caminho que percorria, seguia por um vale onde corria um rio, e depressa se habituaram ao rugido da torrente branca que, por um leito de seixos, descia de uma ravina à sua esquerda. Pinheiros altos aumentavam em número e tamanho. Podiam ver por cima deles os cumes pontiagudos das colinas Negras furando as nuvens baixas. Começaram a sentir o frio entranhar-se nas roupas. Apenas alguns dias antes, Shishan celebrara o último resplendor do Outono. Nesse curto intervalo, o Inverno chegara, e, não fossem as crianças, que continuavam a cantar, Helen teria achado a paisagem ameaçadora e sombria. Ainda se lembrava da sua primeira e sinistra travessia das colinas Negras, durante a viagem para Shishan.

 

O declive da estrada acentuou-se. As altas árvores arqueavam-se por cima das suas cabeças como abóbadas de uma catedral gótica ou de uma gruta repleta de estalactites e de estalagmites. Soltando um grito lancinante, um pássaro grande levantou voo do seu poiso, batendo as asas até desaparecer na escuridão. Pouco depois, voltaram a ver a luz do dia, e à sua frente surgiu um imponente penhasco, cujo cume rochoso se perdia na neblina. Do alto do penhasco, uma catarata estreita precipitava-se dividindo-se entre as arestas e as fendas; em baixo, uma bruma de vapor cercava, como uma auréola, um lago de águas profundas. Ensombradas pelas escarpas, as águas negras raramente eram tocadas pela luz do sol. Por entre os carriços que bordejavam as margens, regatos espalhavam-se por canais musgosos até à ravina do rio que os levara até ali. O sussurrar dos ribeiros servia de contraponto ao estrondo provocado pela queda das águas. Fora ali, num prado cinzento, que Herr Fischer mandara erigir as tendas.

 

Não muito longe, um amontoado de rochas empilhadas contra o penhasco indicava onde o túnel começara a ser escavado. Charlie explicara que já haviam colocado a dinamite e que bastava accionar a espoleta para abrir um buraco que faria a ligação do túnel desse lado da montanha ao seu gémeo, que vinha da planície. Mostrara-se muitíssimo orgulhoso ao descrever todas as dificuldades que tinham sido superadas. Fora ideia dele e de Herr Fischer abrir aquele buraco nas montanhas. Era uma obra difícil e dispendiosa, mas a linha ficava quase cem quilómetros mais curta e provavelmente o projecto levaria menos seis meses a completar. Herr Fischer prometera a Charlie a honra de accionar a espoleta.

 

- Não tenha medo, Miss Delamere - assegurara-lhe. Não há qualquer perigo. A explosão terá lugar no coração da montanha, no ponto onde os dois túneis se encontram. Tudo o que ouvirá será um estalido distante, e quando virmos o pó e o fumo a sair do buraco no nosso lado é altura de beber o champanhe!

 

Contudo, com a chuva forte e rimbobante como uma salva de artilharia a cair sobre o dossel onde se refugiaram os enlameados convidados (todos haviam sido apanhados desprevenidos pela carga de água ao dirigirem-se das tendas para o local da cerimónia, e pessoa alguma se lembrara de levar guarda-chuva), ninguém ouviu a explosão. Charlie, ignorando a chuva, accionou o detonador com um entusiasmo efusivo, sorrindo e fazendo vénias, mal-grado as suas roupas encharcadas. Foi difícil perceber se fora o fumo ou o ligeiro nevoeiro provocado pela chuva que haviam tapado, por breves momentos, a entrada da gruta. Apesar disso, Herr Fischer tomara a iniciativa e, agora sim, todos ouviram o estalido característico da rolha da garrafa de champanhe a saltar, com o alemão a declarar alegremente que o túnel estava aberto. Nellie chamara os filhos, que haviam corrido para a chuva, sob a qual dançavam com um extasiado Charlie, mas o médico e a irmã Elena alinharam na festa, brindando, como todos os outros, e cantando For He’s A Jolly Good Fellow. Quanto a Helen, só tinha olhos para Henry, encostado a uma das estacas do dossel, sorvendo o seu champanhe enquanto observava a cena com uma expressão sardónica. Virou-se e sorriu-lhe. Sentiu o estômago às voltas e um calor súbito nas faces. Era a primeira vez que se viam desde a cena do mergulho no rio, quatro dias - uma eternidade - antes.

 

Naquele espaço de tempo, Helen dissera a si própria várias vezes que jamais queria voltar a ver Henry. Por vezes, chegava a acreditar realmente em tal decisão. Nesses momentos pegava no retrato de Tom (havia-o obrigado a posar no estúdio do navio e era como gostava de pensar nele - envergando a camisola e as calças de críquete, o cabelo despenteado e o rosto afogueado pela partida de quoits que acabara de jogar no convés). Desesperada, procurava recordar-se dos ternos sentimentos que ele lhe inspirava, e por vezes conseguia-o. Soltava então um grande suspiro de alívio e sorria, ao lembrar-se dos muitos momentos felizes que haviam vivido juntos, dos passeios por portos estranhos e excitantes, na viagem para a China, das piadas e das histórias dele, do seu ocasional acanhamento, tão cativante. Aquela nostalgia, contudo, durava apenas até voltar a recordar-se de Henry, do seu último encontro com ele e de tudo o resto que acontecera naquela tarde.

 

Agora, enquanto o observava, encostado ao toldo encharcado, com as figuras joviais dos Airton, de Charlie, e de Herr Fischer a divertirem-se à sua volta, revivia as sensações que experimentara quando ele a beijara. Tudo e todos se desvaneceram e só ficou ele, destacando-se com grande nitidez em cada pormenor, uma presença física que parecia tocar-lhe, apesar do espaço que os separava. Ele acabou por se aproximar casualmente de si, pregando-a ao chão, como que prisioneira da magia de um feiticeiro.

 

- Amanhã - murmurou, ao passar por ela. - Iremos cavalgar de novo. Amanhã, depois do piquenique.

 

- Amanhã, depois do piquenique - sussurrou ela, como se a murmurar uma oração na igreja. Sabia que, ao dizer aquelas palavras, não haveria como voltar atrás.

 

Manteve a noção da presença de Henry mesmo depois de este passar por trás dela, assim como durante o resto da tarde; depois, ao jantar, em volta da fogueira, com o vulto dele a dançar por trás das chamas; à noite, nos seus sonhos agitados; e durante toda a manhã seguinte, quando deu consigo, sem saber muito bem como, a brincar com as crianças e até a conversar durante algum tempo com o Dr. Airton. Era como se um autómato tivesse saído do seu interior para agir independentemente dela própria e a guiasse nas suas funções sociais - rindo, dizendo piadas, sendo agradável, como de costume -, quando, na realidade, todo o seu ser estava concentrado na figura de Henry, que podia vislumbrar a ler, num banco, perto da sua tenda, do outro lado da clareira. Desejava que ele erguesse a cabeça e olhasse para ela; sentia inveja do livro, puído e velho, de Virgílio, que lhe absorvia a atenção queria ser uma das páginas que ele virava com os seus dedos elegantes. “Amanhã, depois do piquenique.” As palavras sussurradas por ele repetiram-se vezes sem conta na sua mente, ecoando, intensificando-se em andamento e volume, até se tornarem um coro que ia a par da sinfonia musical proporcionada pelo ruído da catarata, que, por seu turno, servia de contraponto ao pulsar do seu sangue e ao latejar da excitação que lhe corria nas veias.

 

E no entanto, o tempo tardava em passar.

 

Foi o autómato, desprendido do seu ser, que manteve uma conversa animada com Herr Fischer e Charlie durante o piquenique. Mal reparou no esplêndido local que Charlie escolhera: o alto de um rochedo que dava para a catarata, com os cumes das colinas Negras por cima deles, e, em baixo, o tapete composto pela floresta; tão-pouco deu o devido valor aos esforços dos criados para carregar os tapetes pelo declive escarpado até ao alto do rochedo, os woks e os cestos repletos de comida, enquanto os convidados seguiam atrás, mais devagar. Só tinha olhos para Henry, apoiado de lado a uma rocha, enquanto brincava com George e Jenny, revelando o seu descaramento ao tecer elogios à irmã Elena, e até tentando amolecer Nellie com o seu encanto, enquanto ela se limitava a contar os minutos até poder estar de novo a sós com ele.

 

Mais tarde, ao recordar-se da situação, nunca perceberia como conseguira ele libertá-los das actividades planeadas por Charlie para a tarde. Sem saber bem como, deu-se conta, de súbito, da sensação familiar de estar novamente numa sela, com as costas de Henry à sua frente, ouvindo o bater dos cascos da mula de Lao Zhao atrás, enquanto um calafrio provocado pela deliciosa sensação de liberdade e de expectativa a percorria.

 

- Tenham cuidado com o tempo! - ouvira o médico dizer-lhes. - E não se afastem muito!

 

Depois, os cavalos desceram por uma vereda estreita e viram-se envolvidos pela escuridão da floresta. Helen julgou avistar um esquilo, que desapareceu por entre os ramos de uma árvore, mas não havia quaisquer outros sinais de aves ou de vida animal. Era um mundo silencioso e húmido; até mesmo o ruído dos cascos dos cavalos no solo era abafado pelas folhas húmidas que atapetavam o solo da floresta. De quando em vez, um ramo tocava-lhe no rosto, lançando-lhe gotículas geladas pela nuca abaixo, e ela estremecia involuntariamente. Henry seguia à frente, em silêncio. Parecia tenso e preocupado, mas voltou-se, com um sorriso caloroso, quando ela lhe perguntou a medo para onde iam.

 

- Deve haver uma saliência, mais à frente, onde nos livraremos destas árvores e teremos uma bela vista - respondeu. - Depois, seguiremos por uma velha ladeira, coberta por pedras soltas e vegetação, que já não é usada e sobe pelo flanco do penhasco. A floresta continua lá em cima, e, ao que parece, existe um templo tauista algures.

 

- Não quero ir ver outro templo. Só quero estar consigo.

 

- E eu consigo - murmurou Henry.

 

- Ignorou-me toda a manhã, enquanto lia aquele livro.

 

- Estava à procura de uma passagem que aprendi na escola. Et vera incessu patuit dea. “E, pelo seu andar, via-se que na verdade era uma deusa.” Pensei que descrevia Dido, mas na realidade refere-se a Vénus. De qualquer maneira, quando ontem à noite a vi à chuva lembrei-me de si na margem do rio, e aquela passagem veio-me à memória, porque era o que você parecia.

 

- Oh, Henry, o que vamos fazer? Como foi que nos envolvemos desta maneira?

 

Ele contemplou a abóbada formada pelas copas das árvores, que começavam a farfalhar e a agitar-se sob o vento cada vez mais forte.

 

- Penso, que, antes de tudo o mais, é melhor encontrarmos um abrigo - respondeu. - Repare como escureceu. Parece de noite, aqui. Vem aí uma tempestade. É melhor afastar-se das árvores, que um raio... templo deve ficar algures por aqui. Siga-me.

 

E estugou o cavalo, que avançou pela ladeira. Lançaram-se num meio-galope, mas nem sempre era fácil identificar, por entre a folhagem, que carreiro estreito ou que rego era o indicado e por vezes Henry e Lao Zhao paravam para determinar, numa encruzilhada, qual o caminho por onde deviam seguir. Durante algum tempo, tinham ouvido trovões ao longe; depois, seguiu-se o som de um crepitar, e grossas mas espaçadas gotas de chuva começaram a cair.

 

- Receio que a tempestade nos tenha alcançado - comentou Henry. - Tem de ser naquela direcção. Continuem a subir, sempre em frente, porque não deve faltar muito para alcançarmos a clareira. Sigam-me o mais depressa que puderem.

 

Continuaram num galope perigoso durante cerca de cem metros, com a chuva a vergastá-los na escuridão, picando as faces de Helen, enquanto ela se esforçava por manter ao alcance da vista a garupa do cavalo de Henry, que oscilava agilmente sobre a sela para se desviar dos troncos das árvores altas mas não havia qualquer indicação de que as árvores começassem a escassear e, pouco depois, Henry teve de abrandar para um trote, à medida que as aberturas entre os abetos se tornaram cada vez mais estreitas. A chuva esmagava agora tudo à volta deles, tornando a visibilidade muito reduzida, a que se associava a escuridão. Helen começou a sentir o peso da água na sua capa de montar de tweed, e percebeu que até mesmo aquele tecido grosso não evitaria que ficasse encharcada. Os trovões ribombavam agora mais perto, intensificando a sensação opressiva de claustrofobia.

 

Henry gritou algo, por entre o barulho infernal.

 

- Estamos perdidos...! - conseguiu Helen ouvir. - ... única esperança... continuar a subir... Muito longe para voltarmos...

 

Voltou-se para se certificar de que Lao Zhao ainda seguia atrás dela. Mal conseguia ver os traços do seu rosto na escuridão, mas pareceu-lhe que ele lhe sorriu, encorajando-a.

 

Nesse preciso instante, a floresta iluminou-se com um clarão branco, e, nas trevas que imediatamente se lhe seguiram, o trovão rebentou acima das suas cabeças. O cavalo de Helen relinchou e deu um coice, arqueando o lombo. Um outro clarão, e ela viu Henry gesticular e apontar para a frente; o seu rosto estava reduzido a uma careta, ao gritar, tentando em vão fazer-se ouvir por entre o ribombar dos trovões. Helen esporeou o cavalo assustado para que continuasse a subir, e pouco depois saíram da floresta, aparentemente para um vácuo negro. Um vento sibilante atingiu-a, a ela e à sua montada. Sentiu que mãos fortes seguravam nas rédeas, enquanto a voz de Henry lhe gritava ao ouvido:

 

- Mantenha-se ao meio, ao meio! Dirija-se para o penhasco em frente. Cuidado! Há precipícios dos dois lados!

 

O mundo explodiu noutro clarão branco e, por momentos que lhe pareceram uma eternidade, Helen teve a impressão de que voava. Por baixo dos seus pés, estendiam-se as copas brancas das árvores, bem como uma fileira de montanhas, mais ao longe, ao fundo de uma planície iluminada por um tom cinzento fantasmagórico. Acima dela, nuvens semelhantes a imponentes ameias e edificações que pareciam destinadas a cercos guerrilhavam no céu, arremessando umas às outras projécteis pontiagudos em forma de raios, que rachavam a abóbada escura no lugar onde iam cravar-se. Só então se apercebeu de que seguiam precariamente por um carreiro estreito de turfa que unia duas colinas. Alguns passos para a esquerda ou para a direita, e ela e o cavalo cairiam num desfiladeiro sem fundo. Antes que o clarão se apagasse e ela fosse novamente envolvida pela luz sobrenatural da tempestade, pôde ver a parede do penhasco, do outro lado do desfiladeiro, a que Henry se referira. Forçou o cavalo a continuar, avançando, pouco a pouco, por entre o vento e as trevas, cheia de medo do vazio que se estendia de cada lado, com o rosto e o corpo encharcados e os olhos cegos pela chuva torrencial. A sua mente entorpecida agarrava-se à imagem do penhasco que vira à luz do relâmpago, como um refúgio contra a violência da Natureza. Apenas precisavam da protecção de uma fissura nas rochas, disse a si própria, uma pequena fenda onde pudessem aninhar-se, e fingir que aquele pesadelo ia acabar. O temporal provocou outro raio, fazendo-a tremer, com o trovão a ribombar, tão perto dela que lhe pareceu ecoar dentro da sua cabeça. Perdeu o controlo do cavalo assustado, que de súbito guinou para a direita, em direcção ao precipício. Com um grito de puro desespero, lançou-se para o lado oposto...

 

... E caiu nos braços fortes de Henry, que a apanhou e a manteve colada a si até a colocar em solo firme.

 

- Está na vereda! Não se preocupe! - gritou-lhe ao ouvido. - Está a salvo. E há uma caverna. Venha. O Lao Zhao levará os cavalos.

 

Uma fenda profunda na rocha abria-se para uma caverna. No seu interior, Helen experimentou mais uma vez a sensação de estar envolta pelo vácuo. Henry deixou-a, a tremer, na escuridão, enquanto ele e Lao Zhao tratavam de prender os cavalos e de explorar o abrigo. Podia ouvi-los a moverem-se no escuro. Tinha frio, estava cansada, tiritava, e as roupas encharcadas começavam a gelar-lhe o corpo - mas não se importava; os trovões chegavam agora abafados e ali dentro não chovia. Era o bastante. Tanto lhe fazia que tivesse de morrer ali, que aquela caverna rochosa se tornasse o seu túmulo, desde que não houvesse mais chuva nem trovões.

 

- Helen, sente-se bem? - ouviu Henry perguntar; a sua voz ecoava do interior da caverna, mas não conseguiu localizar de que direcção vinha.

 

Fez um esforço.

 

- Estou a divertir-me imenso - conseguiu dizer, ouvindo a sua própria voz ecoar mas com menos intensidade. Não há dúvida de que você sabe tomar conta de uma rapariga.

 

O riso dele ricocheteou de rocha em rocha, como o som de uma bola a bater na raqueta num court de ténis.

 

- É assim mesmo! - gritou. - Ouça, nem tudo são más notícias. Parece que esta caverna já foi usada antes. Há aqui uma pilha de lenha, e o Lao Zhao está neste momento a preparar uma fogueira... E, sim, posso sentir... Há uma abertura na rocha e corre uma ligeira corrente de ar. É uma espécie de chaminé, por isso não ficaremos expostos ao fumo.

 

- Que conveniente - respondeu ela. Já tinha as mãos e os pés entorpecidos, tremia em espasmos, e batia os dentes. Pressionou o pulso contra a boca, tentando parar de tremer. O rosto, nos pontos em que lhe tocara, estava tão frio como o mármore.

 

- O que foi que disse? Não consigo ouvi-la bem! - chamou Henry. - Não faz mal. Ouça, não estamos tão mal como isso. Até há um tapete de agulhas de pinheiro no chão e está seco. Provavelmente, foi a cama de alguém. Não desanime miúda, vamos ficar bem.

 

Ela forçou-se a responder, por entre os dentes cerrados:

 

- Mas que luxo. Lençóis de agulhas de pinheiro. Também há uma cama de dossel?

 

- O quê? Disse cama de dossel? - De novo o riso ricocheteou. - É verdade. O Savoy fica a perder ao pé disto. É, no mínimo, uma suíte real. Vai ficar muito confortável.

 

Helen fechou os olhos. Os seus ombros começaram a tremer, não sabia se por humor, se por histeria, ou apenas pela dolorosa sensação de estar enregelada. Na escuridão, o frio era como um amante, acariciando-a, abraçando-a, respirando sobre a sua garganta, em frias rajadas que lhe apunhalavam os pulmões. Estava exausta. Queria deitar-se. Seria fácil sucumbir àquele abraço e fugir para o calor irreal da inconsciência

 

- Ele conseguiu! - ouviu Henry gritar, muito ao longe. - Já temos lume!

 

Sombras avermelhadas bruxulearam nas paredes da caverna e ela ouviu o estalar de lenha seca. Uma parte dela percebia que a caverna, na realidade, era um túnel comprido e recurvo. Henry e Lao Zhao haviam ateado um lume algures, ao fundo, e fora do alcance da vista dela. Deu um passo vacilante na direcção da chama, e no momento seguinte Henry estava a seu lado, carregando-a nos braços até ao fundo da caverna.

 

- Bem-vinda ao Savoy das colinas Negras! - ouviu-o exclamar. - E aqui temos a nossa própria fogueira. Lao Zhao vai acender outra para ele, perto da entrada da caverna.

 

- Ele não pode partilhar a nossa? - perguntou, estupidamente. Para ela, era um grande esforço falar e, ao mesmo tempo, controlar o tremor que lhe invadira todo o corpo.

 

- É melhor não - respondeu Henry. - Primeiro, tem de tirar todas as roupas ou apanha uma pneumonia. Fique aqui junto à fogueira, enquanto eu a ajudo.

 

Reparou no sorriso de Lao Zhao quando este passou por ela, segurando um tição em brasa na mão. Depois, não se apercebeu de mais nada, a não ser da fogueira crepitante, de uma coluna de chamas vermelhas que se elevava de uma pilha alta de troncos, e do calor, doloroso, sensual, que lhe enrubescia as faces, e se enroscava nos seus membros adormecidos, trazendo de volta uma agonizante sensibilidade aos dedos das mãos e dos pés.

 

Gentilmente, Henry tirou-lhe a capa de montar encharcada e desabotoo-lhe o casaco e a camisa, igualmente molhados. Desapertou-lhe a saia, que escorregou até ao chão. Ela ali ficou, com um meio sorriso, sem oferecer resistência, deixando que ele lhe erguesse os braços por cima da cabeça para lhe tirar a camisa que pingava, ou levantando-lhe uma perna de cada vez, para lhe descalçar as meias encharcadas. Pouco depois, estava nua.

 

Henry fez uma pausa, com a trouxa de roupas molhadas nos braços, e admirou o corpo dela. As sombras da fogueira reflectiram-se naquele corpo esguio e branco. O seu cabelo Desgrenhado e molhado, de um vermelho-vivo à luz da fogueira, caía-lhe em ondas sobre os ombros e cobria-lhe um seio. A curva redonda e plena do outro seio espreitava, convidativa, como uma pêra escondida num cesto de folhas de ácer. Um ligeiro tremer do seu estômago fazia ondular o brilho da pele e a penugem macia das coxas, cujas tonalidades variavam imperceptivelmente como a luz de uma vela reflectida num vestido de cetim. Alguns pêlos eriçados pelos arrepios misturavam-se com as sardas. Respirava agora de forma mais regular e os tremores haviam quase cessado. Mantinha-se de pé, despida de qualquer artifício - virginal, como uma pequena potra -, apoiando o peso numa só perna, com uma mão caída em frente do púbis e os olhos a contemplar serenamente Henry.

 

- Que bela que é - murmurou Henry. - Igual à Vénus de Botticelli. Só falta a concha e os tritões. “E, pelo seu andar, via-se que na verdade era uma deusa.” É encantadora.

 

- E agora vai seduzir-me? - perguntou-lhe, com voz sonolenta. - Como fez com Lady Caroline?

 

- Eu não seduzi a Caroline. Ela é que me seduziu a mim.

 

- Pouco importa.

 

- Não, vou aquecê-la. Envolva-se neste cobertor. Foi uma sorte eu ter um de sobra com os meus oleados. Está húmido mas não está encharcado. Sente-se. As agulhas de pinheiro são macias. Espere, deixe-me deitar outro tronco na fogueira. Daqui a nada, tanto você como o cobertor estarão secos. É importante mantermo-nos quentes e secos.

 

- Mas vai seduzir-me mais tarde?

 

- Logo se verá.

 

- Vai despir-se!

 

- Vou ser obrigado a fazê-lo, se também quiser ficar quente e seco.

 

- É uma boa ideia. Você também é belo.

 

Deve ter-se deitado e adormecido, por instantes, porque sentiu uma agulha de pinheiro na face e um momento de desorientação. Henry encontrava-se no mesmo sítio onde estava minutos antes, pendurando as roupas dela num cordel que estendera perto do lume, sorrindo-lhe, com os seus olhos enrugados. Nada mudara - à excepção de que ela já não tinha quaisquer dúvidas. Sabia o que queria. Henry era um patife e no seu íntimo, sabia que nunca poderia confiar nele. Mas ele era tão, tão belo. E tudo o que ela tinha de fazer era estender as mãos e tocar-lhe.

 

- Se vai seduzir-me, este é o momento ideal - disse, bocejando. - E um óptimo lugar, também. Afinal, com todas essas citações de Virgílio, devia ter em mente algo como isto. Eneias seduziu Dido numa caverna, depois de uma tempestade, não foi? Foi isso que lhe deu a ideia? É muito romântico da sua parte. Uma encenação maravilhosa. - Apoiou a cabeça sobre um braço. O cobertor deslizou, deixando a descoberto um mamilo rosado. - Aposto que era isso que planeava, esta manhã, quando estava a ler o livro. Estou muito impressionada e sinto-me deveras lisonjeada.

 

Henry despira-se enquanto ela falava. Sorrindo, ajoelhou-se a seu lado. Envolvendo-lhe o seio com uma mão, beijou-a ao de leve nos lábios, movendo depois a boca pela linha do pescoço, massajando o mamilo com a língua, enquanto a outra mão se enfiava debaixo do cobertor e os dedos lhe acariciavam a coxa.

 

- Claro que eu fiz aparecer, como que por magia, a tempestade só para si... Mas uma vez que temos de partilhar um só cobertor... e enquanto esperamos que as roupas sequem...

 

- É como Eneias, não é verdade? Um viajante, um exilado - disse ela, em tom sonhador. - Só é pena que a Dido dele tenha tido um fim tão trágico.

 

- Calma - sussurrou ele. - Não vale a pena estar nervosa.

 

O corpo dela arqueou-se e estremeceu, mas não de frio, enquanto a língua de Henry traçava um percurso encaracolado pelo seu ventre, demorando-se no monte de Vénus e deflagrando um calor húmido mais abaixo.

 

- Oh... - gemeu, apertando os dedos no cabelo dele.

 

- Beija-me de novo, Henry! Beija-me de novo antes que um de nós se arrependa disto.

 

Enquanto os lábios quentes de Henry pressionavam os dela, sentiu as mãos explorando-lhe o ventre, percorrendo as coxas, Os braços, aflorando os seios. As suas línguas tocaram-se, por breves instantes. Depois, a boca dele percorreu-lhe novamente o seio. Sentiu o toque dos seus dentes e um calor langoroso espalhou-se-lhe pelos braços e pernas. Os dedos de Henry rodopiaram sobre o seu estômago, parando entre a coxa e a anca e passando para a outra coxa. Era como se fosse feita de mil filamentos de seda macia. Os dedos dele passaram pelos seus pêlos finos acima do monte de Vénus. Então, a mão dele envolveu-lhe o sexo e ela experimentou uma sensação que nunca conhecera, nem mesmo em imaginação, enquanto os dedos sensíveis dele entravam nas suas partes mais íntimas, parando, explorando, provocando, despoletando a cada toque uma nova nota de prazer numa sinfonia insustentável que ela desejava, ao mesmo tempo, que acabasse, porque a dominava por completo, e que continuasse para sempre, porque não poderia suportar que parasse.

 

As suas próprias mãos acariciavam o peito e os ombros de Henry. Pressionou a face contra a dele e ouviu a sua respiração ritmada como se viesse de dentro dela. Sentiu-lhe os músculos duros por baixo da carne suave e macia dos ombros. Mal se atrevendo a respirar, a sua mão desceu até ao baixo-ventre dele e cercou-lhe o sexo, soltando um grito abafado ao sentir o membro duro e pesado na mão.

 

- Sim, minha querida... - sussurrou-lhe ele, enquanto aflorava com os lábios a testa, o nariz, os olhos. - Oh, meu amor...

 

E ela sentiu a respiração dele nos seus ouvidos.

 

- Sim, sim - murmurou. - Oh, sim, meu querido. Por favor, por favor.

 

Sentiu o peso do corpo de Henry sobre o seu. Abriu as pernas, guiando-o com a mão para os mil fogos que ele havia ateado com os dedos. Parecia a coisa mais natural de se fazer neste mundo. Sentiu uma pressão, depois uma dor súbita, que a fez gritar; ouviu o seu grito ricochetear nas paredes de pedra, mas, muito rapidamente, o tom dos gritos mudou quando a dor deu lugar ao êxtase e, com as pernas e os braços, tentou envolver aquele homem e mantê-lo dentro de si para todo o sempre.

 

Na outra extremidade da caverna, Lao Zhao, acocorado nu, perto da sua pequena fogueira, secava o casaco almofadado na ponta de um pau. Ouviu os ruídos e sorriu.

 

O grito lancinante da dor. Apostava que era o hímen. Então, ela sempre era virgem. Geralmente, nunca se enganava quanto a essas coisas. Depois, os ruídos ritmados, os gemidos e os suspiros. Lá estava ela a gemer de novo, o que era bom; a gritar de prazer, o que era excelente. O amo devia ter uma técnica excelente. Não era comum uma mulher atingir as nuvens e a chuva tão satisfatoriamente na sua primeira tentativa. Um acasalamento afortunado.

 

Pôs-se de pé e saiu nu da caverna, sentando-se sobre os calcanhares no rebordo do precipício, para admirar a paisagem. A tempestade passara, e podia discernir traços do céu azul. O sol estava no ocaso e havia um clarão avermelhado, a oeste, onde as margens carmesins dos cirros partilhavam o céu com as poucas nuvens negras, tudo o que sobrara da tempestade. Agora que o céu limpara, podia ver exactamente onde estavam e perceber o quanto se haviam perdido; julgava mesmo discernir a clareira com as tendas, lá em baixo. Não demorariam muito a descer o penhasco. Devido ao temporal, os outros talvez pensassem em enviar um grupo de resgate até ali - o médico devorador de ratos era um homem nervoso. Assim, ele ficaria de guarda à entrada da caverna, para poder avisar o casal com alguma antecedência se alguém se aproximasse.

 

Dispunham de mais uma hora, o que lhes dava, pelo menos, uma oportunidade - talvez duas - de alcançar as nuvens e a chuva.

 

Pensou que a mulher era feia; escanzelada, com uma cor de pele esquisita. Observara-a de perto no rio quando envergara aquele vestido transparente. Que estranho como os seus pêlos, na parte de baixo, eram da cor do carmesim, iguais ao cabelo. Não a achava bonita. Os bárbaros só serviam para os outros bárbaros, pensou filosoficamente; se lhe dessem a escolher, preferia uma rapariga humana, uma daquelas do Norte, grande, de pele macia. Ainda assim, pensar no casal dentro da caverna fazia-o sentir-se libertino. Não tinha grandes hipóteses ali, ao frio, concluiu, olhando para o seu sapo mirrado, mesmo que não fosse indigno servir-se da mão, na sua idade. Seria agradável regar os ovos de tartaruga lá em baixo no vale, daqui de cima da falésia, com a sua essência odorífera. Mas não, provavelmente passaria pela casa atrás da loja de bolinhos de massa de Ren Ren no dia seguinte, quando regressasse a Shishan. Supunha que o amo iria ao Palácio dos Prazeres Celestiais, como fazia quase todas as noites. Duvidava de que um homem como Ma Na Si, mesmo depois de ter concluído o acto com a rapariga estrangeira, alterasse os seus hábitos. Podia compreender que um bárbaro quisesse praticar com uma rapariga bárbara de tempos a tempos (nunca se perdia o gosto pela comida caseira), mas, após ter tido a sorte, no último mês, de provar uma rapariga humana - especialmente uma dessas da classe alta que havia no Palácio dos Prazeres Celestiais -, Ma Na Si devia estar agora a pensar em carnes mais delicadas. Por outro lado, nunca se sabia muito bem o que esperar dos demónios do oceano, mesmo os semi-humanos como Ma Na Si. Trabalhar para eles tornava-se um passatempo muito intrigante. Nunca se conseguia adivinhar o que fariam a seguir.

 

A MÃE CHOROU QUANDO PARTIMOS. VENTO FUSTIGA-ME, ATRAVÉS DO MEU CASACO; PÉS PEQUENO SANGRAM; ENTANTO, ANDÁMOS DEZ LI

 

Regressaram ao acampamento pouco depois do pôr do Sol. Não houve excessiva preocupação pela sua ausência, apesar da violenta tempestade. Todos aceitaram, sem quaisquer comentários, a história de que se haviam abrigado da chuva num templo tauista. Na verdade, o médico, os filhos e a irmã Elena estavam mais interessados em relatar as suas próprias aventuras durante o temporal. Rindo-se, descreveram como haviam debandado, às pressas e na mais completa confusão, montanha abaixo, no meio de cestos, mesas e cadeiras, e como Charlie, invectivando os céus por lhe haverem estragado o piquenique que planeara com tanta antecedência, tropeçara e rolara perigosamente pela encosta até ir parar, ileso mas muito abalado, nos ramos de um pinheiro. O grupo passara uma tarde à chuva até encontrar maneira de o tirar do poleiro.

 

- Consegue imaginar uma visão mais desoladora - exclamara o médico, não contendo o riso - do que um chinês, em todo o seu colorido esplendor, a pairar como um papagaio molhado no alto de uma árvore? Deu um novo significado ao termo celeste! Mas eu não devia rir-me. Ainda vai demorar algum tempo até o pobre Charlie recuperar a dignidade. Mandámo-lo para a tenda, onde está a consolar-se com uma garrafa de clarete e um queijo gruyère.

 

Helen esboçara um sorriso educado, um pouco atordoada por, de regresso ao mundo que deixara havia algumas horas (ou fora há uma eternidade?), tudo continuar a parecer tão normal, como se nada tivesse acontecido. Estava admirada por ninguém se aperceber de uma mudança nela. Como podiam eles não reparar que deixara de ser a mesma pessoa? Que estava mudada? Agora, era uma mulher. Sentia um formigueiro em todo o corpo e doíam-lhe os seios e o baixo-ventre. Como podiam eles não se aperceber do brilho de felicidade que lhe saía de todos os poros da pele e irradiava dos olhos? Precisou de toda a sua força de vontade para não agarrar na mão de Henry e beijá-la, à vista de todos, para não cobrir todo o rosto e o corpo dele de beijos. Pouco se importava. Só queria gritar ao mundo como estava feliz - mas ele mantinha-se a seu lado, numa postura descontraída, rindo-se, quase com naturalidade, da história do médico, e piscando-lhe um olho quando acendeu um charuto.

 

Apenas Nellie ouvira atentamente a história deles, comentando que sorte haviam tido por encontrar um pequeno templo no meio do nada, que não só os abrigara como também, ao que parecia, estava dotado de um serviço de lavandaria para lhes secar as roupas.

 

- De facto, tivemos muita sorte - respondeu calmamente Henry. - As freiras conduziram a Helen para um kang quente, nos seus aposentos, enquanto o Lao Zhao e eu tivemos de nos remediar com um fogão no cubículo do porteiro. Mas elas foram muito bondosas. E acabou por ser uma aventura, não é verdade, Helen?

 

Ao ver a piscadela de olho de Henry, com uma expressão cúmplice, Helen experimentara uma vaga de total abandono.

 

- Sim, Mistress Airton! - respondeu. - Foi uma aventura maravilhosa. E muito educativa, também - acrescentou, com um sorriso doce. Henry voltou a cabeça para disfarçar o sorriso irónico.

 

- A sério? - exclamou Nellie, erguendo as sobrancelhas. A noite fora uma frustração. Tudo o que Helen queria era estar com Henry, mas as crianças puxaram-na por um braço, levando-a para brincar com elas. Quando ficou novamente livre, depois de Nellie ir deitar as crianças, descobriu que o Dr. Airton e Herr Fischer já tinham enredado Henry numa conversa de homens, acompanhada por conhaque e charutos, que ia prolongar-se pela noite fora. Sentou-se num banquinho, escutando sem grande atenção a irmã Elena, que não parava de tagarelar a seu lado, contemplando do outro lado da fogueira a imagem bruxuleante do seu amante. O seu amante. Deleitou-se com aquela frase. De tempos a tempos, ele virava o rosto na sua direcção e sorria-lhe, o que lhe fazia subir o sangue às faces. Quando chegou a hora de recolher, seguiu com relutância a irmã Elena até ao interior da tenda que ambas partilhavam, sentindo os olhos penetrantes de Henry fixos nas suas costas.

 

Ficou acordada até ao amanhecer, revivendo cada doce momento na caverna. Quando acabou por adormecer, sonhou que uma pantera lhe lambia o corpo e a levava pelas planícies, deixando para trás a condessa Esterhazy montada num burro.

 

No dia seguinte, trotaram à frente da caravana, com os dois cavalos muito próximos um do outro, fazendo com que os seus joelhos se tocassem. Sempre que podiam, davam as mãos. Quando avistaram a colina que levava à missão, lançaram-se num galope, deixando para trás os outros de forma a ficarem fora do alcance da vista. Henry inclinou-se e beijou-a. Ela encostou a cabeça no peito dele.

 

- Não te vou deixar partir... - sussurrou.

 

- Amanhã - replicou ele. - Verei se posso escapulir-me. Enviar-te-ei um recado. até aos túmulos em ruínas.

 

Mas na manhã seguinte começou a nevar. Helen olhou para o céu cinzento e para as extensões de relva brancas, e começou a desesperar. Só se acalmou ao ver o rosto sorridente de Lao Zhao, que se aproximava com uma carta na mão, mas mesmo depois de combinarem a hora e o local do encontro, Helen experimentou o receio de que Henry não aparecesse; o tempo parecia não passar, e o almoço revelou-se um pesadelo.

 

- Como pode ir sair num dia como este? - insurgiu-se Nellie. Helen já vestira o traje de montar, à espera que Henry chegasse.

 

- O mafu do Henry trouxe-me um recado esta manhã respondeu. - Existe um templo perto do rio...

 

- Templos! - comentou Nellie, em tom incrédulo. Será realmente nos templos que está tão interessada, jovem? Ou em outra coisa?

 

- Receio não ter percebido de que está a falar - replicou Helen, corando.

 

- Nem eu sei bem do que é que estou a falar - resmungou Nellie entre dentes. - Só sei que ficarei mais satisfeita quando o seu pai e o seu noivo estiverem de volta.

 

Helen lançou-lhe um olhar furioso.

 

- Se quer que eu faça as malas e regresse ao hotel, Mistress Airton...

 

- Deixe-se disso! Não diga disparates. Esse ar ofendido não lhe fica bem, minha menina. De qualquer maneira, ali vem o seu encantador companheiro de passeios. Nem sei porque é que ainda me dou ao trabalho... Vocês os dois, não faz qualquer sentido... Vá lá sair com ele. Morra de frio, se quiser. Tanto se me faz. Não sei é o que hei-de dizer ao seu pai...

 

Duas horas mais tarde, Helen estava deitada nos braços de Henry, no átrio de um antigo túmulo. Havia sido construído quinhentos anos antes para um general chinês morto numa batalha contra tribos de bárbaros. Fora moldado como os túmulos imperiais em Pequim, mas numa escala mais pequena, conveniente a uma patente mais baixa. Quando intacto, devia ter sido magnífico.

 

Mesmo passados tantos anos detinha uma beleza selvagem e romântica. Dois pátios interiores - cobertos de neve - levavam a uma torre alta. O telhado estava a desfazer-se e as telhas e as vigas achavam-se caídas num emaranhado sobre a relva. Atrás ficava a elevação de terra que cobria o túmulo. Era circundado por um muro com ameias, que também revelava sinais de dilapidação. Árvores e raízes espreitavam por entre as pedras. Na torre, uma laje grande e oblonga repousava sobre uma tartaruga esculpida, onde estavam inscritos o nome do defunto e os feitos do bravo guerreiro. Henry estendera peles de lobo num dos lados da esteia para improvisar uma cama. Haviam feito amor no calor emanado pela pelagem salpicada de pintas, e agora ela estava deitada com a cabeça apoiada sobre o seu braço, contemplando os flocos de neve que entravam em rodopios pelo arco. Um floco pousou-lhe sobre o nariz, e ela riu. Aninhou-se mais no braço de Henry, que lhe beijou os olhos e o queixo.

 

- Podia ficar aqui deitada para sempre a teu lado - sussurrou.

 

- Não sei o que o general pensaria disso.

 

- Acho que ficaria feliz - continuou Helen, aconchegando-se contra o peito de Henry. - E, se ele for bondoso, deixarei que tu me partilhes com ele.

 

- Ah, sim? - riu-se Henry. - Mas que menina tão espevitada. Já a pensar em outros homens...

 

- Só quando me fartar de ti. E isso só acontecerá daqui a muitas centenas de anos.

 

- Pobre general. Vai ficar muito frustrado.

 

Helen riu-se, baixinho. Rolou até ficar por cima do peito de Henry e beijou-o nos lábios. Ao fazê-lo, as peles escorregaram e as suas costas nuas ficaram expostas ao ar e ao frio. Uma rajada de vento entrou, depositando-lhe neve nas nádegas. Helen guinchou e voltou-se para puxar para cima as peles de lobo. Sentiu um choque ao avistar a cabeça grisalha de Lao Zhao, a fumar um cachimbo de haste comprida, espreitando do arco para o interior do túmulo. Ele sorriu-lhe e cumprimentou-a com um aceno de cabeça. Dando outro grito, ela escondeu o rosto por baixo das peles.

 

- Lao Zhao, seu... - vociferou Henry. - O que estás a fazer aqui?

 

- Desculpe, amo. Os cavalos estão a ficar com frio. Bem, e eu também. E a neve está a acumular-se. Pensei se podiam... bem... apressarem as nuvens e a chuva, para que possamos voltar para casa.

 

Praguejando, Henry pegou numa das suas botas e arremessou-a à cabeça de Lao, que fugiu.

 

Helen tremeu, de tanto rir, por baixo das peles.

 

- O descaramento do sujeito! Se bem que tenha alguma razão...

 

- Sim, também acho... - rematou Helen deslizando a mão até ao ventre de Henry.

 

- Sua desavergonhada! - exclamou ele, rindo. Puxou as peles por cima das suas cabeças. Pouco depois, as peles subiam e desciam num movimento ritmado, como se os animais tivessem voltado de novo à vida.

 

- Não vai ser possível, sabes... - afirmou Henry, quando cavalgavam na viagem de regresso através da extensão de terras brancas, curvados devido ao vento glacial que soprava. À frente deles, Lao Zhao conduzia o cavalo de Helen, porque ela se sentara atrás de Henry, na sela, agarrada ao amante, com a cabeça pousada no ombro dele.

 

- O quê? - murmurou ela, mordiscando-lhe de seguida uma orelha.

 

- Olha à tua volta. O Inverno chegou, É um nevão invulgarmente precoce, e provavelmente vai derreter. mas a Nellie tem razão. Não poderemos ir dar mais passeios a cavalo.

 

- Então irei até ao acampamento do caminho-de-ferro.

 

- Meu Deus! Isso há-de deixar Herr Fischer chocado. E o Charlie...

 

Ele riu-se.

 

- Tenho uma ideia melhor. Quando o Tom e o teu pai regressarem, vais voltar para o hotel, não é verdade? E eles sairão todos os dias para irem até ao entreposto de álcali.

 

- Não podemos fazê-lo no hotel! - exclamou Helen, emitindo um risinho malicioso. - E os criados? E Ma Ayi?

 

- Não, mas tu podes ir às compras à tarde, não podes? Acontece que me ofereceram um local na cidade. Um pavilhão chinês, que não fica muito longe do hotel. Penso que é o local ideal. Aliás, foi concebido para isso.

 

- Continua... - sussurrou ela, enquanto passava os lábios pelo pescoço dele e enfiava os dedos por baixo da camisa.

 

- É melhor parares com isso ou ainda caio do cavalo.

 

- Então, para onde me vais levar?

 

- Para o Palácio dos Prazeres Celestiais.

 

Frank e Tom regressaram a Shishan eufóricos com a viagem, convencidos de que o projecto de tinturaria com Mr. Ding seria um êxito. Foram buscar Helen a casa dos Airton e, juntamente com os comerciantes chineses, ofereceram um grande jantar, num restaurante, para comemorar a ocasião. Helen partilhou do seu entusiasmo, não ficando atrás dos homens nos brindes. Tom sorria, deliciado. Raramente a vira tão feliz e parecia mais bela do que nunca.

 

Estavam ansiosos por saber todas as novidades. Quando voltaram para o hotel, Helen narrou-lhes a expedição às colinas Negras, fazendo-os rir com o relato da barafunda que pontuara a cerimónia e do acidente ridículo que acontecera a Charlie. Frank quis saber mais sobre o avanço do caminho-de-ferro. Helen tentou recordar-se do que Herr Fischer lhe dissera acerca do túnel e do fim das obras, mas o pai começara a agitar-se na cadeira.

 

- Tudo isso é muito bonito - exclamou. A sua voz tornara-se arrastada pelo álcool que já consumira. - O Fischer é um excelente sujeito, o seu caminho-de-ferro é uma das sete maravilhas do mundo, e todos faremos grandes fortunas quando os comboios começarem a circular, mas o que eu quero saber, e isto é importante - acrescentou, dando uma palmada na sua coxa -, é se tu e esse tal Manners já praticam os ensinamentos do Buda.

 

- Desculpe? - murmurou Helen, espantada com aquela pergunta.

 

- Que quer dizer com isso, Mister Delamere? - perguntou Tom.

 

- Sabem bem que refiro replicou Frank. - Todos esses passeios pelos templos que andaram a fazer juntos. Já se podem considerar verdadeiros Budas?

 

Helen pegou-lhe nas mãos, com um sorriso.

 

- Não, pai - respondeu com doçura. - Acabaram-se os templos e os passeios a cavalo com o Henry.

 

- A sério, HF? - exclamou Tom. - Deixaste-te de visitas turísticas na companhia do Henry?

 

Helen voltou-se e sorriu-lhe.

 

- Queres que te diga a verdade, Tom? Se vir outro templo, acho que morro de tédio. Quanto ao Henry, bom, não achas que já era tempo de ele voltar para o caminho-de-ferro ou seja lá o que foi que veio cá fazer?

 

- Não discutiste nem te zangaste com ele, pois não? quis saber Tom, franzindo as sobrancelhas.

 

- Não, claro que não. Mas... - E pegou na mão do noivo. - Ele não és tu, Tom... Senti muito a tua falta e estou feliz por teres regressado.

 

Inclinando-se, beijou-o na face.

 

- Sei que é um egoísmo da minha parte, mas não posso dizer que lamento, HF. Sabes, enquanto estive em Tsitsihar, não parava de pensar em ti e no Henry, juntos, durante um dia inteiro, e., bom... havia algo que não me agradava nessa ideia... Pronto, já está dito!

 

Oh, Tom, és mesmo querido.

 

- Mas... Espera... E agora o que vais fazer nas tuas tardes? Sabes que tenho de estar no entreposto o dia todo.

 

- É verdade - resmungou Frank, com voz ensonada, meneando a cabeça, com os olhos fechados.

 

- Oh, não te preocupes comigo - replicou Helen alegremente. - Hei-de encontrar coisas para fazer. Tenho os rneus livros e o meu diário para manter em dia. E há muito que fazer e ver na cidade. Além do mais, sabes como nós, as mulheres, gostamos de fazer compras.

 

- Então, que vais bem, De verdade?

 

- Não me lembro de ser tão feliz na minha vida - respondeu Helen.

 

Estendida, nua, sobre os lençóis vermelhos, contemplava o seu reflexo no espelho. Henry, também ele nu e recostado a um dos pilares da cama, fumava um charuto, sorrindo-lhe.

 

De súbito, ela ergueu as pernas até ficarem na vertical. Estendendo os braços, agarrou os tornozelos e começou a balouçar, com as costas curvadas como um arco. Depois, bateu com as mãos nos lençóis e rolou até ficar de lado. Por fim, apoiou-se a um cotovelo, ergueu a cabeça e lançou um olhar cheio de malícia a Henry.

 

- Estás muito fogosa, hoje... Ela suspirou.

 

- Humm.... E que tencionas fazer quanto a isso?

 

- Já não fiz o bastante? És insaciável!

 

Ela fez beicinho, mas acabou por sorrir. Estendendo uma mão por trás da cabeça, tirou de debaixo da almofada um livro com uma capa de seda vermelha. Com as sobrancelhas franzidas, fingindo concentrar-se no seu conteúdo, enquanto ia virando as páginas, delineou com o dedo as ilustrações até encontrar o que queria. Num gesto ousado, fez deslizar o livro até ao fundo da cama, para que Henry pudesse ver a ilustração, enquanto esticava os dedos dos pés para que lhe tocassem no pénis. Os seus olhos verdes brilharam de divertimento quando, empurrando a perna dela, Henry se debruçou para ver o que escolhera.

 

- Macaco Abraçado Árvore? - uma gargalhada. - Só podes estar a brincar! Podes ser muito atlética, mas não me parece que eu o seja...

 

- Por favor... - pediu ela, fazendo novamente beicinho

 

- Não. Já basta. Aquele maldito Burros da Primavera a que me obrigaste ainda há pouco quase me ia partindo as costas. Começo a estar arrependido de te ter mostrado o maldito livro...

 

- Não mo mostraste - corrigiu ela, com o seu risinho zombeteiro. - Eu é que o encontrei naquela gaveta, junto do cachimbo de ópio. Henry, que lugar é este? É o que penso?

 

- É o Palácio dos Prazeres Celestiais, minha querida, já to disse.

 

- Então todas aquelas raparigas que vemos no pátio... Aquela mulher que está no pavilhão, do outro lado... São...?

 

- Isso choca-te?

 

Ela sentou-se na cama, cruzando as pernas.

 

- Não - respondeu, pensativa. - Pelo contrário; creio que me excita. E... De uma estranha forma, era o que eu esperava encontrar quando vim para a China. Era o que ansiava encontrar.

 

- As freiras do teu colégio devem ter-te ensinado uma estranha espécie de geografia, minha querida - murmurou Henry, sentando-se a seu lado, enquanto lhe passava o bigode pelo braço.

 

- Sabes ao que me refiro - replicou ela, dando-lhe um soco ao de leve no ombro. - O misterioso Oriente em toda a sua sensualidade: exótico, decadente, emocionante. Uma corrupção de séculos. Este lugar é muito parecido contigo, sabias?

 

- Parecido comigo? Então, sou o quê? Sensual, decadente ou corrupto?

 

- És tudo isso - respondeu-lhe, beijando-o. - E também um homem com má reputação... Mas por isso é que és tão excitante. Volta a fazer amor comigo - murmurou, puxando-o para si.

 

- Macacos sussurrantes, hem? - perguntou ele, so rindo.

 

- Não - replicou ela, cravando-lhe as unhas nas costas. Quero que me possuas como na caverna. Quero-te dentro de miim. Quero que me faças esquecer de tudo o resto. Que me leves ao completo abandono. Oh, sim, sim...

 

E as suas palavras reduziram-se a suspiros quando as mãos dele começaram a explorar-lhe todo o corpo e as suas línguas se entrelaçaram.

 

- Oh, Henry... - suspirou, quando acabaram. - Achas que sou perversa?

 

- Não - murmurou Henry. - Tu és tu e eu sou eu e a Mãe Natureza juntou-nos. Não seria natural se não o fizéssemos.

 

- Não seria? Achas? Sim, parece-me realmente natural e certo quando estou contigo. Como se eu pudesse ser qualquer coisa e fazer tudo o que quero. Henry, é errado querer tentar fazer tudo?

 

- Chiu... Dorme.

 

- Sabes uma coisa? Acho que vou gostar de enganar o Tom e o meu pai. É uma conduta vergonhosa da minha parte?

 

Henry resmungou algo incompreensível. Tinha adormecido. Helen encostou-se a ele, olhando embevecida o seu rosto. Uma madeixa de cabelo caía-lhe sobre a sobrancelha e tapava-lhe um olho. Afastou-a ao de leve e depois fez correr gentilmente o dedo pela face e por cima dos pêlos finos do bigode. Pousou a cabeça sobre o seu peito e sorriu. Assim ficou, sem se mexer, abraçada ao corpo dele, mas o sangue corria-lhe veloz no interior do corpo. Ainda se sentia nervosa, agitada, inebriada. Com todo o cuidado para não o acordar, pôs as pernas fora da cama. De pé sobre o tapete azul de Tientsin, espreguiçou-se, esticando os braços por cima da cabeça. Os seus olhos perscrutaram o quarto: as tapeçarias, as cadeiras Ming, os rolos nas paredes. O seu olhar pousou na papeleira de laca vermelha onde encontrara o manual erótico. Lembrou-se do cachimbo de ópio que se achava ao lado da papeleira. Avançou preguiçosamente, pegou-lhe e foi sentar-se numa das cadeiras de madeira. O mogno macio pareceu-lhe frio em contacto com as suas nádegas nuas. Examinou o cachimbo. A haste comprida e oca parecia uma flauta, pensou. Colocando-a entre os seios, fingiu tocar um instrumento de sopro. Sentiu urn sabor estranho e bafiento na boca. Fungou. Tinha um cheiro pungente, agridoce.

 

- O que estás a fazer?

 

Henry apoiara-se sobre um braço e observava-a.

 

- Henry, já fumaste ópio?

 

- Uma ou duas vezes.

 

- Posso experimentar? Parece haver uma bolsa com uma pasta preta lá dentro, no bufete.

 

Ele fitava-a calmamente.

 

- Tens a certeza de que é boa ideia? - perguntou. Sabes que pode tornar-se um vício.

 

- Não és viciado em ópio, pois não?

 

- Não, não sou, mas o ópio afecta as pessoas de maneiras diferentes.

 

Os olhos verdes de Helen nunca se haviam parecido tanto com os de um gato travesso.

 

- Mal não me fará se eu experimentar apenas uma vez. Eu disse-te que queria tentar fazer tudo. Por favor...

 

Henry riu-se.

 

- Está bem. Mas só uma vez. Talvez eu fume um cachimbo contigo. Sempre será mais repousante do que aquele teu maldito manual de sexo.

 

Lá fora, o vento frio ululava. Era um Inverno rigoroso. Pouco mais nevara, porque não se havia formado muita humidade no ar, naquele ano de seca no Norte da China. Ventanias glaciais varriam campos áridos, desnudados, e os camponeses tinham de se contentar com a magra colheita para as suas refeições nas cabanas geladas.

 

Para os estrangeiros de Shishan, o Inverno era uma época confortável de casacos de peles pesados e de castanhas assadas ao calor das lareiras. Para George e Jenny, significava esquiar e fazer corridas de trenó no rio e nos lagos cobertos por uma espessa camada de gelo. Os negócios não paravam. A construção da ponte do caminho-de-ferro continuava, apesar do frio, e Herr Fischer e Charlie gabavam-se de que a via-férrea estaria concluída na Primavera. O consultório do Dr. Airton estava apinhado de pacientes verdadeiros, que sofriam de todas as doenças trazidas pelo Inverno, e de outros que procuravam junto ao fogão uma pausa para o clima glacial que tinham de suportar lá fora. O próprio Airton tinha menos tempo para os seus debates filosóficos com o mandarim, muito embora visitasse o yamen sempre que podia. Frank e Tom estavam concentrados na preparação das vasilhas de álcali para a expedição que teria lugar na Primavera. Regressavam todas as noites ao aconchego do albergue, enregelados após a viagem a cavalo, para encontrar uma sorridente Helen à espera deles, com uma bandeja onde não faltava a garrafa de uísque; às vezes, mostrava-lhes uma peça de seda ou um vaso de porcelana, que, conforme lhes explicava, comprara durante as suas regulares deambulações à tarde pelos mercados de antiguidades. Nem um nem outro faziam a menor ideia de que, em regra, aquelas peças haviam sido escolhidas pelo mafu de Henry Manners, Lao Zhao, enquanto Helen estava no Palácio dos Prazeres Celestiais.

 

Podia considerar-se extraordinário, numa comunidade tão pequena, onde pouco se podia ocultar dos olhares curiosos e das línguas afiadas, que as visitas quase quotidianas de uma mulher estrangeira envolta numa capa preta à mais famosa casa da cidade pudessem ser um segredo. Na praça do mercado, na loja de bolinhos de Ren Ren, os mexericos proliferavam mas havia sempre um acordo tácito, pelo menos entre os chineses, de que algumas coisas não deviam ser partilhadas com os estrangeiros. Nem os pecadilhos dos demónios do oceano eram de grande interesse para um povo imerso na sensualidade havia milénios. O pequeno segredo de Helen estava tão seguro como se houvesse sido preso com correntes e escondido no fundo de um poço, como uma concubina indesejada.

 

Havia, claro, outros segredos, autênticos segredos, que não circulavam, mesmo entre os chineses. Poucos eram aqueles em Shishan que sabiam, ou sequer que julgavam ter ouvido dizer que nos andares superiores daquele mesmo Palácio dos Prazeres Celestiais em que a senhora elegante se divertia com o seu inglês durante longas tardes havia outro estrangeiro, uma criança abandonada, magricela e espancada, com a pintura do rosro borrada pelas lágrimas. Amarrada a uma cama, com as calças enroladas à volta dos tornozelos, ali ficava, dominada pelo terror e pelo desespero, à espera do girar da maçaneta da porta e do inevitável suplício que se seguia. Era um segredo obscuro, profundo, e mesmo aqueles que tinham ouvido falar dele, fossem raparigas excessivamente curiosas que trabalhavam no Palácio dos Prazeres Celestiais, ou mercadores que o frequentavam, sabiam que havia certas coisas que era melhor esquecer.

 

Na verdade, aquele último Inverno do velho século caracterizou-se pelo esquecimento. Poderia dizer-se que, com os primeiros nevões em Novembro, uma amnésia deliberada se abatera da mesma forma, tanto sobre os chineses como sobre os residentes estrangeiros em Shishan. Uns e outros prosseguiam com as suas vidas. Faziam os seus planos. Conspiravam, maquinavam e divertiam-se, no Palácio dos Prazeres Celestiais ou nas suas salas de visitas. Os Boxers já não eram assunto de conversa na casa dos Airton, por muito sinistros que fossem os editoriais que liam no The North China Herald. E, durante algum tempo, até nas casas de chá dirigidas pelos Bastões Negros, os homens deixaram de ouvir aquela música hipnótica do Sul, proveniente de aldeias e templos, que os havia atraído por algum tempo no início do ano; tão-pouco eram afectados pela profunda magia que fora evocada das profundezas da terra e da alvorada dos tempos e se misturava de forma explosiva com os gritos de lástima de um povo sofredor; o toque de clarim lançado pelos Boxers instigando os deuses a deixar os seus palácios celestiais e os seus prazeres para se juntarem na terra aos justos e ao sempre maior e invencível exército que se reunia para empurrar os demónios até ao oceano. Era uma ideia atractiva - os habitantes do céu a descer em grande número pelos raios do sol-poente, com as suas lanças e estandartes a brilhar com todas as cores do arco-íris, prontos a postar-se, invisíveis, por detrás dos leais guerreiros dos Punhos Harmoniosos, dando-lhes força com a sua magia, assegurando a sua vitória. Mas, em geral, os habitantes de Shishan estavam mais interessados em comer bolinhos de massa e bossas de camelo, ou contar os seus taéis de prata, fazendo o balanço dos negócios da estação. Quanto aos Airton, andavam ocupados com as decorações de Natal.

 

Por conseguinte, foi um choque quando, pouco depois do Dia de Ano Novo - esse dia especial e inesquecível, em que as crianças tinham autorização para ficar acordadas até depois da meia-noite, para entrar no novo século -, tiveram conhecimento da notícia de que um jovem missionário inglês, Sidney Brooks, fora cruelmente assassinado na distante Shantung. Aparentemente, fora assaltado enquanto cavalgava sozinho por uma estrada campestre na noite do último dia do ano velho. A princípio, ninguém mencionou os Boxers - mas todos sabiam.

 

A hibernação que os protegera da realidade acabara.

 

Uma ou duas semanas depois, o Dr. Airton recebeu uma carta de um amigo em Tsinan, que conhecera Mr. Brooks e também soubera dos pormenores macabros do seu assassínio. O corpo nu fora descoberto num fosso, retalhado e mutilado por inúmeros golpes de faca. Tinham-lhe cortado a cabeça. Mais horrível ainda, os assassinos fizeram um buraco no nariz da vítima, ao qual atarem um cordel. Nos seus últimos momentos de vida, o pobre homem fora puxado como um burro, escarnecido pelos assassinos. O mais espantoso de tudo era que, segundo parecia, Mr. Brooks tivera uma premonição quanto ao seu destino. Durante o Natal, dissera à irmã que vira em sonhos o seu nome numa tabuleta de mártires, pendurada nos claustros do colégio que em tempos frequentara. A carta terminava dizendo que, de facto, fora nisso que Mr. Brooks se tornara: um mártir cristão que morrera gloriosamente pela sua fé e pela Sociedade para a Propagação do Evangelho.

 

Uma ou duas semanas mais tarde, o médico recebeu uma outra carta de um amigo missionário, que tinha consultório perto de Baoding, no Sudoeste de Chih-li. Anunciava-lhe a decisão de voltar para Inglaterra. Dizia ele que havia algum tempo que as autoridades locais fechavam os olhos às actividades dos Boxers; estes estavam a tornar-se, a cada dia que passava, mais ultrajantes e ameaçadores. Resultado: ele começara a temer pela segurança da mulher e dos filhos.

 

- O Weathers foi sempre um medroso - dissera por entre dentes o Dr. Airton a Nellie durante o café. - Nunca achei que fosse talhado para a vida de missionário.

 

- Ao menos demonstra preocupação com o bem-estar da família - replicara Nellie. - O que não pode dizer-se de outros missionários. Pelo menos, Mister Weathers não está a enterrar a cabeça na areia.

 

- O que queres dizer com isso? Quem está a enterrar a cabeça na areia, Nellie? Procurei os mais sábios conselhos e foi-me assegurado que nada há a temer dos Boxers. Pelo menos, não em Shishan.

 

- Isso é o que tu dizes, meu querido, mas eu estou a pensar nos meus filhos.

 

- Isso nem parece teu, querida. - Debruçara-se sobre a mesa e pegara na mão da esposa. - São novamente os mexericos dos criados, não é assim? Tens de proibir a Jenny e o George de perderem tempo com essas conversas fúteis com o Ah Lee e de ouvir esses disparates. Prometo-te que se ouvir algo de concreto te ponho a ti e às crianças no primeiro barco que partir da China. E se a situação chegar a esse ponto, eu próprio seguirei no barco. Mas não há motivos para alarme, querida. Vá lá, Nellie, tu e eu vivemos na China há tempo suficiente para não darmos importância boatos alarmistas. Além de que, se há pessoa que saberia em primeira mão que algo nos ameaçava, seria eu. O mandarim avisar-me-ia. Podemos contar com isso. Bem sabes que ele me avisaria.

 

Não houve mais assassínios. De facto, os assassinos de Mr. Brooks foram rapidamente descobertos e executados pelas autoridades. Veio a apurar-se, de forma algo confusa, que eram não só bandidos como também Boxers - ou melhor, um grupo de bandidos que se virara para as artes marciais.

 

- Assim, não se conseguiu provar nada - concluíra o médico na altura. - Além do mais, aconteceu tudo muito longe daqui.

 

O assunto, contudo, não ficou por aí. O Dr. Wilson, o padrinho de Jenny, era, tal como Airton, um membro da Missão Médica Escocesa e o seu melhor amigo na China. Escreveu-lhe uma longa carta em meados de Fevereiro. No ano anterior, fora transferido para um hospital da missão do interior da China, perto de Taiyuanfu. Descrevia como nos últimos dois meses a loucura dos Boxers se espalhara de súbito para oeste, ultrapassando as fronteiras de Chih-li em direcção a Shanxi, progredindo com a velocidade de um relâmpago. Nas aldeias do seu distrito, permitia-se que os Boxers praticassem abertamente as suas artes marciais nas praças dos templos e, por vezes, que construíssem os seus altares em frente dos portões dos yamens. A tensão aumentava entre as famílias convertidas e os camponeses, cujos filhos se juntavam aos bandos de Boxers. Até mesmo a pequena nobreza local patrocinava as sociedades de artes marciais. O Dr. Wilson não se deixara abalar. Ouvira dizer que Pequim nomeara um novo governador, mais poderoso, para controlar a província. Esperava que a chegada iminente daquele homem poderoso pusesse fim aos distúrbios.

 

- O que foi que eu te disse, Nellie? - exclamou Airton, depois de lhe ler a carta. - Isto é uma prova do que o governo pensa acerca de rebeldes como os Boxers. Mais uma demonstração de força e desaparecem nos fumos da superstição e do folclore de onde saíram.

 

No entanto, quando três semanas mais tarde o Dr. Wilson escreveu novamente, foi para exprimir a sua desilusão e surpresa por o novo homem poderoso ser o mesmo vice-rei Yu que havia sido destituído do seu cargo em Shantung no ano transacto, em consequência das suas simpatias pelos Boxers. Longe de enviar as suas tropas para os pôr na ordem, recrutara um grupo de praticantes de artes marciais para a sua guarda pessoal. Nellie e o médico trocaram poucas palavras depois de lerem aquela carta. O único som que quebrava o silêncio opressivo que se abatera na sala era o tilintar das facas e dos garfos.

 

Agora, o único consolo era saber que tudo aquilo acontecia longe dali.

 

Já não era uma comunidade estrangeira contente que se reuniu no acampamento de Herr Fischer, num dia frio em fins de Março, para celebrar a chegada do primeiro comboio a vapor vindo de Tientsin.

 

OBSERVÁMOS OS PRATICANTES DE ARTES MARCIAIS NA PRAÇA:

UM RAPAZ PARTIU UMA BARRA DE FERRO COM OS PUNHOS

 

Herr Fischer, com um chapéu de coco reluzente e uma casaca que lhe estava demasiado grande, olhou pouco à vontade pelos binóculos. Uma grande multidão, levada pela curiosidade, seguira o palanquim do mandarim pela rua principal em direcção a uma das portas da cidade e depois pelos campos. Fischer podia ver a poeira girar num torvelinho, por cima das sebes dos arbustos invernais. O cortejo devia ter centenas de pessoas. Muito embora ainda não conseguisse discernir qualquer figura humana, podia ver os topos dos estandartes e vários papagaios de papel e ouvir o som de trombetas e o crescente ruído de vozes. A expectativa em redor da chegada do primeiro carro de fogo a Shishan provocara uma certa excitação no povo. Perante aquela reacção, perguntou a si próprio se preparara espaço suficiente para todos.

 

Enfiou a mão no bolso do colete e consultou o relógio. Pelos seus cálculos, o cortejo ainda demoraria uns vinte minutos até chegar ao acampamento. Era importante que o mandarim se achasse já no lugar que lhe fora reservado na tribuna, por baixo das bandeiras e das decorações, um quarto de hora antes de a locomotiva a vapor surgir. Ia ser à tangente. Já ouvira o apito do comboio. Devia ter entrado no túnel e estar naquele momento a atravessar a planície. Herr Fischer consolou-se com o facto de o maquinista, o engenheiro Bowers, ser um homem regrado, de confiança, que recebera instruções para chegar a Shishan ao meio-dia em ponto. Ainda havia tempo. Nem sequer eram onze e dez.

 

Ele e Charlie tinham planeado tudo ao mais ínfimo pormenor. Herr Fischer estava satisfeito com a tribuna destinada aos dignitários, que tinha o aspecto de um pavilhão. Apesar do tempo frio de Março lá fora, as pesadas abas de feltro e as braseiras a carvão mantinham o interior devidamente aquecido, o que levara os convidados estrangeiros a tirar os seus abafos.

 

As bebidas estavam ao fundo sobre mesas feitas de tábuas, e os criados tinham recebido o devido treino. Só faltava chegar o mandarim.

 

Nervosamente, Fischer passou os olhos pelas anotações que fizera para o seu discurso.

 

- “Vossa Ilustríssima Excelência” - ensaiou -, “é com grande prazer e honra...” - Não. “Prazer” estava muito perto de “honra”. Era redundante. - “Vossa Graciosa Excelência.” “Vossa Estimável Excelência.”

 

Não valia a pena. Teria de engolir o orgulho e pedir conselho a Manners. O homem, embora arrogante e desrespeitoso, era nobre por nascimento e devia conhecer as formas protocolares de se dirigir a palavra a alguém, na alta sociedade mesmo que nem sempre ele próprio se comportasse como um cavalheiro. Naquele dia, Manners não usava o traje de cerimónia que Herr Fischer achava adequado para uma tal ocasião. Lançou um olhar furioso ao inglês, que fumava, com expressão distraída, na sua cadeira, situada atrás da de Herr Fischer. Um funcionário oficial da companhia do caminho-de-ferro trajado com o habitual fato castanho! Desconfiava que aquela despropositada informalidade era apenas para o irritar. Herr Fischer olhou para os outros estrangeiros, sentados numa fila de cadeiras na tribuna cerimonial. Ao menos, o médico, Mr. Delamere e Mr. Cabot, todos se haviam esforçado por se vestir adequadamente, se bem que a cartola de Mr. Cabot talvez fosse um tudo-nada pequena para a sua grande cabeça e a sua casaca de abas de grilo parecesse apertada nos ombros. Isso não interessava, concluiu. Era a intenção que contava. A intenção de fazer as coisas como devia ser.

 

Não tinha motivos de queixa no que dizia respeito às senhoras. Mrs. Airton estava muito bem, com o seu chapéu de abas largas ornado de flores e o seu vestido às riscas azuis cingido na cintura e com mangas de balão, tão na moda. Herr Fischer sempre a achara uma mulher magnífica. Admirava o seu porte nobre e o seu belíssimo cabelo castanho. Além do mais, sempre se sentira impressionado pela forma como ela, mesmo naquele país de bárbaros, conseguia manter uma casa arrumada e limpa ou ser motivo de orgulho para o marido. Se fosse alemã, não teria sido melhor dona de casa. Herr Fischer reparou, com ar aprovador, que as crianças tinham tomado banho e estavam muito limpas, com os seus fatos de marinheiro. Mostravam-se sossegadas, sentadas nos seus lugares, fitando com expressão admirada a ponte acabada de construir adornada com bandeiras, as fileiras aprumadas de cules, nos seus devidos lugares, de cada lado da via-férrea, com os martelos e as picaretas aos ombros, enquanto a banda afinava os instrumentos musicais e os carris prateados reluziam, estendendo-se orgulhosamente de um ponto longínquo no horizonte até aos pára-choques, em frente da tribuna. De facto, era algo digno de se ver. Uma obra magnífica e concluída na data prevista. Uma ferrovia moderna para uma China moderna. Por breves instantes, os olhos de Herr Fischer humedeceram-se. Ele e o seu amigo Charlie podiam sentir-se orgulhosos. De certa forma, e apesar do seu pequeno contributo, estavam a fazer história.

 

Pigarreando, olhou para além dos Airton e das duas freiras - por Deus, pareciam mais excitadas do que as crianças - em direcção ao local onde Miss Delamere estava sentada, ao lado do noivo. Como sempre, irradiava frescura e beleza, com um toque de modernidade conferido pelo vestido lilás e o chapéu de palha. Como florescera naqueles poucos meses! A rapariga tornara-se uma mulher.

 

Sempre fora um regalo para a vista mas agora havia uma nova maturidade no seu porte, uma confiança que transparecia no queixo empinado e no olhar desafiador. Acima de tudo, havia uma paixão em todo o seu ser. Brilhava-lhe nos olhos e tremia-lhe nos lábios. Mas notava-se também uma impaciência, uma expectativa reprimida, que se revelava na vivacidade dos seus movimentos e na forma como virava nervosamente a cabeça. Era evidente que ansiava por se ver casada. Que mais podia ser? Se bem que fosse solteiro, Herr Fischer podia perceber quando o amor iluminava o rosto de uma mulher. Mr. Cabot era realmente um homem de sorte. E, como uma deusa no Festival do Primeiro de Maio, ela viera conferir graça à cerimónia que ele preparara. Herr Fischer sentia-se muito honrado pela amizade demonstrada pelos outros estrangeiros residentes em Shishan.

 

Somente Manners o tinha desiludido, e não era a primeira vez.

 

- Mister Manners - começou -, pode conceder-me um minuto? Preciso de lhe pedir um conselho. Pode ter a bondade de me dizer qual o adjectivo mais adequado para se usar antes de “Excelência”? Será “graciosa”? Ou “estimada”? Ou “magnífica”?

 

- Porque não tenta “veneranda” - replicou Manners, com a sua voz sempre arrastada -, ou “inefável”? Pode dizer o que quiser, meu velho. Não fará a menor diferença na tradução feita por Charlie.

 

- Mister Manners, é meu dever para com a companhia de caminho-de-ferro mostrar-me correcto, tanto em inglês como em chinês. É uma honra para nós que um magistrado venha inaugurar a nossa linha, e devemos mostrar-lhe todo o respeito que lhe é devido.

 

- A única vez que me dirigi a um magistrado - interviera Frank Delamere - foi para dizer: “Desculpe, Meretíssimo, mas não fui eu.” Mesmo assim, aplicou-me uma multa de dez xelins e ainda se alongou no sermão que me pregou.

 

- Fala mais baixo, papá - murmurara Helen.

 

Foi assim que um desconsolado Herr Fischer fez mais algumas anotações com um lápis que tirou do bolso de peito da sua casaca. Consultou novamente o relógio. Eram onze e vinte e cinco e o mandarim ainda não chegara.

 

- Estive a admirar os preparativos e tenho de lhe dar os parabéns, Herr Fischer - comentou o médico, que reparara no nervosismo do alemão. - Que triunfo. Deve sentir-se muito orgulhoso, hoje.

 

- Poderá dar-me os parabéns quando a cerimónia tiver terminado - replicou Herr Fischer. - Neste momento, estou preocupado por terem aparecido tantas pessoas.

 

- Na sua maioria, para lhe prestarem a devida homenagem, meu velho - acrescentou Delamere. O seu rosto enrugou-se perante um súbito pensamento. - Espero que não haja nenhum desses Boxers na multidão. Os caminhos-de-ferro não são uma das coisas que os irrita? Fantasmas e espíritos que silvam nos carris, monstros que vomitam fumo e outras coisas que tais?

 

O médico tentou interrompê-lo.

 

- Delamere, não me parece que seja a melhor altura...

 

- Não se preocupe, Airton. Não é nada que devamos temer - continuava Delamere, não se apercebendo do reparo do médico. - As superstições dos camponeses são sempre as mesmas, em toda a parte. Certa vez, tivemos problemas em Assam. Houve uns motins quando alguém instalou um gerador eléctrico na mina de estanho. Os Indianos julgaram que tínhamos acordado o demónio ou um deus antigo. Mas como nós é que mandávamos, não houve azar. Nada que os Gurkhas não conseguissem resolver, não é verdade? Abata-se o cabecilha do motim, como de costume, e tudo volta à normalidade.

 

- Só que nós não temos qualquer autoridade aqui - interveio Manners, quebrando o silêncio que se seguiu.

 

- Mas o mandarim tem. E ele está do nosso lado, certo? E ainda há o major Lin e as suas tropas.

 

- Se chegarmos a esse ponto, está assim tão certo da direcção para onde o major Lin disparará? - perguntou Maners.

 

Herr Fischer, que escutava a conversa com crescente ansiedade, não conseguiu conter-se por mais tempo.

 

- Cavalheiros, cavalheiros! Mas que história é essa acerca de disparos? Esta é uma ocasião festiva. Um dia em que se celebra o progresso. Um dia... histórico. - Dito aquilo, brandiu as anotações que fizera para o discurso. - Vejam, é o que digo nas palavras que preparei. Estamos a banir a superstição. Estamos a destruir o feudalismo, a expulsar a tirania provocada pela pobreza e pela carência. Com as nossas locomotivas a vapor estamos a fortalecer o poder da maioria para o progresso da humanidade. Está aqui escrito. Aqui. Estamos a despertar a China do seu sono de milénios, e a mover novas forças, das quais Shishan ainda não se deu conta...

 

- Pois parece-me que são essas novas forças que Mister Delamere receia - atalhou Manners, com uma risada irónica. - Os Boxers.

 

- Não, não, não! - gritou Herr Fischer, com o rosto vermelho pela fúria. - Referia-me às forças modernas, as forças racionais, às forças económicas! Não aos Boxers!

 

- Desconfio, meu velho, que tenha de lidar com eles antes de ver as forças da modernidade. Não subestime a sua obra, Herr Direktor. É um grande ju-ju que vai hoje chegar aqui. Os tambores estão a tocar, os feiticeiros estão zangados, os nativos estão agitados.

 

Herr Fischer tremia de raiva e empertigou-se.

 

- Mister Manners, recordo-lhe que é um oficial da Companhia do Caminho-de-Ferro Pequim-Mukden e que eu... eu sou o seu superior. Sim, é verdade, sou seu superior. Sou um engenheiro, cavalheiro. E não passei um ano a fazer... ju-ju.

 

Manners sorriu ao colega enervado, que se virou furioso, fingindo arrumar alguns papéis no púlpito do orador.

 

O Dr. Airton, como eterno apaziguador que era, tentou intervir.

 

- Mister Manners - disse calmamente -, não é sensato falar dos Boxers na presença de crianças impressionáveis. E indicou com um aceno de cabeça Jenny e George, que mantinham os olhos esbugalhados perante todo o aparato que os envolvia. - Além de que, segundo penso, deveria mostrar maior sensibilidade para com os sentimentos de Herr Fischer, especialmente num dia como o de hoje.

 

- Sim, acalme-se, meu velho - murmurou Delamere, talvez por começar a sentir-se culpado de ter despoletado aquela discussão. - Talvez viesse a calhar um pedido de desculpas? Que tal? Para desanuviar o ambiente?

 

- Pai! - sibilou Helen, mas já era tarde de mais. Manners esboçou um sorriso perigoso.

 

- Um pedido de desculpas, Mister Delamere? bem. Não posso permitir que o pequeno teutão se arrelie no seu grande dia, pois não?

 

Dito aquilo, levantou-se da cadeira.

 

O médico também se levantou, como que para impedi-lo.

 

- Mister Manners, imploro-lhe que seja discreto.

 

Por seu lado, Fischer, que escutara cada palavra do que fora dito, voltou-se. Os seus olhos chispavam.

 

- Fica já avisado, Mister Manners: se disser mais uma palavra desrespeitosa, ordenar-lhe-ei que saia da minha plataforma! - sibilou, brandindo os punhos.

 

Nesse mesmo instante, banhando a via-férrea como um cocktail colorido, o cortejo do mandarim chegou, com os estandartes a adejar, os tambores a tocar e as cornetas a soar. Virando-se para a frente, Herr Fischer viu o palanquim ser baixado junto à tribuna. Os guardas do major Lin empurraram para trás uma multidão risonha de rostos curiosos. O mandarim saiu daquela confusão e, sem sequer fazer uma pausa, subiu os degraus até ao local onde os ocidentais aguardavam. Um sorriso rasgado iluminou-lhe o rosto.

 

Horrorizado, Herr Fischer apercebeu-se de que ainda tinha os punhos cerrados, como um pugilista. Apressou-se a baixar os braços e a fazer uma vénia. Sentia a garganta seca. Mas onde estaria Charlie, o intérprete?

 

- Vossa Inefável, Ilustre Excelência - cumprimentou, num tom de voz que mais parecia um grasnado. - Em nome da Companhia do Caminho-de-Ferro Pequim-Mukden, seja bem-vindo à Estação de Shishan.

 

Feita a vénia, ergueu a cabeça, vendo, para seu grande desgosto, que o mandarim o ignorara, passando por ele como se não existisse, e estava a apertar a mão do odioso Manners. Os dois homens trocavam cumprimentos em chinês, como se fossem velhos amigos. Foi então que o mandarim reparou em Airton e seguiu-se outro ritual íntimo de reconhecimento, com muitas risadas à mistura e exuberantes palmadas nas costas dadas pelo mandarim.

 

Herr Fischer começou a sentir-se um estranho na sua própria cerimónia.

 

Após o que lhe pareceu uma eternidade, viu o médico apontar na sua direcção e indicá-lo. O mandarim voltou-se e acenou-lhe, com um sorriso afável. Enquanto voltava a fazer uma elaborada vénia, pensou que, finalmente, a cerimónia iria prosseguir de forma ordeira. Mas quando ergueu a cabeça de novo viu que o mandarim voltara a afastar-se, desta vez para afagar a cabeça dos dois filhos de Airton, que lhe interessavam muito mais do que Herr Fischer. Despenteou-os e apertou-lhes as bochechas, emitindo um grunhido de puro deleite, quando Jenny o cumprimentou num chinês perfeito.

 

O mandarim transbordava bonomia. Recebeu as vénias das senhoras com prazer e examinou as freiras com uma expressão divertida. Ele próprio se curvou perante Mrs. Airton, em sinal de respeito para com o seu companheiro de palestra, o daifu. Estendeu a mão a Delamere e Cabot, e parou durante bastante tempo em frente de Helen, mirando-a de alto a baixo, sem qualquer pudor. Depois, dirigindo-se a Henry Manners, teceu um comentário, que fez o jovem soltar uma gargalhada, o médico sorrir e Tom Cabot corar violentamente. Helen Francês, o assunto do comentário, olhou para um lado e para o outro, confusa. O mandarim riu-se alto e pegou no envergonhado Tom com uma mão, enquanto com a outra lhe apertava os bíceps. Depois empurrou gentilmente Helen na direcção do noivo, entrelaçou-lhes os braços, recuou, como um escultor admirando a sua obra, e fez um outro comentário a Manners, que provocou mais risadas.

 

- O que foi que ele disse? O que foi que ele disse? sussurrou Fischer a Charlie, que finalmente aparecera e se colocara a seu lado, depois de ter convidado a sentarem-se outros dignitários chineses, entre eles Jin Lao e o major Lin.

 

- Receio que o que ele disse seja muito ordinário - respondeu Charlie, em tom afectado. - Não lhe parece que ele está a comportar-se com excessiva informalidade?

 

- Importa-se de traduzir o que foi que ele disse, por favor? Não queria ter ripostado naquele tom, mas a sua paciência atingira todos os limites.

 

- Ele disse que - e a voz de Charlie reduziu-se a um murmúrio - Mister Cabot parece um garanhão, e que não admira que Miss Delamere tenha decidido casar-se com ele. Acrescentou que se Mister Manners quiser uma mulher, então é melhor começar a treinar, porque, por muito habilidoso que seja como cavaleiro, o que uma mulher quer é uma montada cheia de vigor que possa controlar. E depois houve outros comentários picantes acerca de éguas e garanhões. Eu avisei-o de que eram comentários ordinários.

 

- Isso é intolerável! - resmungou Fischer. - Planeamos uma cerimónia para marcar uma ocasião histórica e eles comportam-se como se estivessem num... num cocktail. A locomotiva deve estar a chegar a qualquer momento.

 

Tirou o lenço do bolso e começou a enxugar a transpiração que lhe escorria da testa. De súbito, o mandarim surgiu à sua frente, sorrindo-lhe. Estava de braço dado ao médico e a Henry Manners, e Herr Fischer teve uma visão incongruente de uma gorda anfitriã de uma festa da sociedade arrastando dois convidados para os apresentar a um terceiro. Enfiou à pressa o lenço no bolso, bateu os calcanhares dos sapatos e fez uma vénia, pela terceira vez.

 

- Seja bem-vindo, Vossa Adoração, perdão, queria dizer Vossa Excelência, à nossa estação - começou, mas deteve-se porque alguém lhe gritava ao ouvido. Era Charlie, que traduzia energicamente o que ele dizia.

 

O mandarim examinou-o. As ranhuras por baixo das suas pálpebras descaídas estreitaram-se ainda mais.

 

- Então é este o grande engenheiro - disse, sorrindo -, cuja obra viemos celebrar. A princípio pensei que era um guerreiro poderoso que queria lutar comigo. - Erguendo os punhos cerrados, imitou Herr Fischer, tal como o vira quando chegara. - Ah, ah! É assim que vocês praticam as vossas artes marciais ocidentais? - E deu uma palmada ao de leve no peito de um envergonhado Herr Fischer, mas com uma força de tal modo surpreendente para um movimento tão leve que o engenheiro perdeu o equilíbrio. imediato, Herr Fischer sentiu à volta dos ombros um braço forte que o amparava para depois lhe desferir um murro nas costas. Rindo às gargalhadas, o mandarim conduziu-o pela mão, até à cadeira da primeira fila, marcada com uma almofada vermelha.

 

- Oh, respeitável engenheiro Xiansheng, sente-se a meu lado e conte-me tudo acerca dessas maravilhas da ciência moderna que nos vai trazer.

 

- Eu... Eu não sei o que dizer... Tenho um discurso preparado - replicou Herr Fischer, olhando ansiosamente para as anotações que deixara no púlpito.

 

- Excelente, excelente! - comentou o Mandarim, enquanto se acomodava no seu lugar. - Esta ocasião é digna de um discurso. - Bocejou e olhou à sua volta, como se lhe faltasse alguma coisa. - O que vinha a calhar eram uns refrescos - murmurou. - Dê-me algo de estranho e ocidental.

 

Hoje, vim até ao vosso mundo e estou desejoso de experimentar tudo o que seja novidade. Daifu, que bebida é aquela que me diz ser superior aos nossos vinhos?

 

- Provavelmente, recomendei-lhe uísque, Da Ren - respondeu Airton, com um sorriso, inclinando-se para a frente. O elixir da vida, pelo menos para nós, escoceses. Mas Herr Fischer insiste em que consegue melhor do que isso com o seu schnapps alemão. Não é verdade, meu caro?

 

- Mas, doutor Airton, o schnapps é para o brinde. Está reservado para depois da cerimónia. Ainda não é a altura... Como aperitivos, só mandei preparar chá, limonada e biscoitos. Ah, sim, e garibáldis...

 

- Deus nos valha - murmurou Manners, com um suspiro, revirando os olhos num desespero teatral. Aquela expressão não passou despercebida a Helen, cujos ombros tremiam por via das risadas abafadas que tentava desesperadamente fazer passar por um ataque de tosse. Tom, sentado, muito hirto, com os braços cruzados, lançou-lhe um olhar severo.

 

- Pelo amor de Deus, HF - sussurrou-lhe. - A situação já é embaraçosa o bastante.

 

- D-desculpa - balbuciou ela, com as faces molhadas pelas lágrimas, sem que o peito parasse de estremecer. - Não consigo...

 

Foi quando Manners lhe piscou o olho e ela teve novo ataque de riso. Tom fitou o outro homem, com uma expressão de ódio momentânea.

 

Por aquela altura, o mandarim olhava com ar desconfiado para um biscoito garibáldi, em que pegara com o polegar e o dedo médio de uma mão, enquanto equilibrava um copo de limonada na outra.

 

- Estas coisas pretas no recheio - perguntou. - São insectos?

 

- Oh, não, Da Ren, de maneira nenhuma! São frutos. Uvas. Uvas secas - apressou-se a explicar o médico.

 

Manners não conseguiu resistir a intervir:

 

- Mas os fabricantes fazem o seu melhor para que pareçam moscas esmagadas, Da Ren. Aliás, faz parte do seu atractivo.

 

Mais risos abafados, vindos da cadeira ocupada por Helen Francês, e da zona onde as crianças estavam sentadas.

 

- Mas que interessante! - exclamou o mandarim, e deu uma dentada. - Delicioso!

 

Foi um Herr Fischer completamente desmoralizado que se encaminhou para o púlpito. Consultou o relógio. Faltava um minuto para o meio-dia; estavam atrasados. Desejou ardentemente que Bowers estivesse também atrasado, porque não teria tempo para terminar o seu discurso. Espreitou nervosamente por cima dos óculos, para a sua audiência, uma multidão tagarela, e depois para os cules, alinhados ao lado dos carris, e para os dignitários chineses, sentados atrás dele. O mandarim parecia confortavelmente instalado e olhava para a bandeja dos biscoitos. Atrás do magistrado, um oficial de idade avançada, com uma longa barba branca, tirava com cuidado todas as uvas secas do seu biscoito.

 

- Vossa Inefável Excelência - gritou Herr Fischer, tentando fazer-se ouvir por entre o barulho provocado pela multidão -, minhas senhoras e meus senhores, este é um dia histórico.

 

Charlie fitava-o.

 

- Vá, traduza! - sibilou-lhe Fischer. - O que se passa, homem?

 

- Tem a certeza de que quer dizer “Inefável”, Herr Fischer? Será apropriado? O mandarim não é o imperador... Está bem, está bem, eu traduzo - resmungou Charlie, ao ver o patrão erguer uma mão, com semblante carregado. A tradução em chinês saiu como “Oh, divino e misterioso Da Ren, nobres homens e camponeses...”

 

- Divino e misterioso? - espantou-se o mandarim. Nunca me tinham chamado isso, antes. Que encantador! E virou-se para Airton. - Você não me considera divino e misterioso, pois não, Daifu?

 

- Misterioso, talvez, Da Ren, mas não divino. Penso que já conhece os meus pontos de vista a esse respeito.

 

O mandarim recostou-se na cadeira. Adorava os debates filosóficos com o seu amigo médico, e já estava entediado com as frases insinceras que jorravam da boca de Herr Fischer. Na verdade, nenhum dos oficiais chineses se dava ao trabalho de escutar o discurso de Herr Fischer, e, a pouco e e pouco, tanto a sua voz como a de Charlie foram-se tornando mais altas, na tentativa de se fazerem ouvir pela multidão que tagarelava animadamente atrás deles.

 

Enquanto isso, o mandarim reagiu ao desafio implícito de Airton.

 

- De facto, conheço os seus pontos de vistas - disse, com voz melíflua. - Você idolatra o tirânico Jesus Cristo, com os seus terríveis conceitos absolutos acerca do que é certo e do que é errado. Tremam e obedeçam. Tremam e obedeçam. Não é assim?

 

- Não, Da Ren. O meu Deus é de uma misericórdia e de um amor infinitos.

 

- Isso é o que você diz, mas eu li os vossos dez mandamentos. Adora-me apenas a Mim. Não roubes. Não mates. Não durmas com a mulher de outro homem... Diga-me, Daifu: acredita que o vosso Jesus desfrutou da sua vida na terra? Ma Na Si Xiansheng - continuou, virando-se para Henry -, o daifu e eu somos velhos, mas você é novo e, por conseguinte, sábio. O que pensa desses mandamentos cristãos? O virtuoso daifu acha que é errado cobiçar a mulher de outro homem. Como é evidente, eu também acho errado, enquanto magistrado. Mas já fui novo, Ma Na Si... Diga a este velho homem: é mau amar a mulher de outro homem?

 

O seu sorriso amável pareceu abranger todo o grupo de estrangeiros. O médico observava-o atentamente. Fora imaginação sua ou os olhos de pálpebras descaídas haviam-se detido por uma fracção de segundo em Helen e Tom? E, logo depois, não haviam brilhado novamente, para se deterem por momentos na figura rígida do major Lin? Não podia ter a certeza, mas conhecia o mandarim há já bastante tempo, e sentia que ele tinha qualquer coisa em mente. Teria havido um subentendido, um desafio ou um sinal que o mandarim transmitira ao jovem Manners, quando os dois homens se fitaram olhos nos olhos? Airton não conseguia imaginar o que podia ser. Salvo... mas, não, já rejeitara as suspeitas de Nellie, por lhe parecerem um preconceito infundado. As duas mulheres não gostavam uma da outra, desde a recusa de Helen à oferta de Nellie para trabalhar no hospital. As coisas não melhoraram quando Helen ficara hospedada em sua casa, durante a longa ausência de Frank e de Tom no Norte. Geralmente Nellie era boa a avaliar o carácter dos outros, mas naquele caso parecia ter sido dominada pelos sentimentos, e não estava a agir de modo muito diferente de uma coscuvilheira. Por seu lado, o médico nunca detectara nada de censurável no comportamento de Miss Delamere, muito menos quaisquer sinais de um relacionamento menos próprio com Manners. Era uma jovem encantadora e bem-educada, e ele acreditava piamente que a amizade entre Mr. Manners e Helen Francês não passava disso. De uma amizade. Bastava olhar para Tom e Helen juntos para perceber quanto estavam apaixonados um pelo outro. Além de que Tom e Manners eram amigos. De qualquer forma, os apetites do jovem Manners eram saciados num outro local, como o médico sabia. Não o vira já certa vez ao fim da tarde, a sair da ruela que conduzia àquele abominável estabelecimento que Frank Delamere frequentava? O Palácio dos Prazeres Celestiais, ou lá como lhe chamavam. Não lhe competia julgar Manners. Os jovens seriam sempre jovens, e nunca esperara que Manners fosse diferente do que era. Mas de uma coisa tinha a certeza: se Manners se divertia com cortesãs, então nunca poderia estar a fazer ao mesmo tempo a corte à noiva do amigo. Ninguém podia ser assim tão depravado. O que quisera insinuar então o mandarim? Se é que insinuara alguma coisa... E como poderia ele saber algo acerca de Helen e de Manners? E o que significara o olhar que este lançara ao major Lin? “Velho idiota”, recriminou-se. “Não tarda nada, pões-te a perseguir a tua própria sombra.” Entretanto, Manners esboçava o mais indolente dos seus sorrisos.

 

- Não passo de um simples soldado, Da Ren, e não estou habituado a reflectir sobre questões tão elevadas e filosóficas...

 

- Ah, ah! Questões elevadas e filosóficas! É assim que chamam ao adultério? Então, Ma Na Si, estou apenas a levantar uma questão hipotética. Enquanto o bom engenheiro enfada a multidão com as suas lições de história e o seu hino à maquinaria, conhece melhor maneira de passar o tempo do que com um debate moderado? Diga-me, que resposta me daria?

 

- Tal como já disse, Da Ren, não passo de um soldado, e a minha moralidade, se é que tenho alguma (nunca pensei nisso), provavelmente baseia-se nos regulamentos do exército.

 

- A sério? E que lhe dizem esses regulamentos? O sorriso de Manners abriu-se.

 

- Bom, para nunca deixar passar qualquer oportunidade de garantir uma vantagem táctica em campo. E creio que foi Napoleão que disse, certa vez, que não há nada que tenha mais êxito do que a audácia.

 

- Ah! Audácia? Ouça o que ele disse, Daifu. Aqui está um jovem que sabe exactamente o que quer e como obtê-lo. Evidentemente, não o vai revelar a dois velhos patetas e pedantes como eu e você, que só servem para estar sentados junto à lareira a discutir religião. Os jovens são tão egocêntricos, não acha? E também cruéis.

 

“Já alguma vez lhe falei - continuou - da máxima do antepassado de alguns dos nossos maiores imperadores, Temujin, o Khan dos Khans, que, segundo se diz, conquistou o mundo inteiro com os seus exércitos? Ele era um soldado, Ma Na Si, como você e... sim, como o nosso major Lin. Sabe o que foi que ele afirmou? ”Não há maior prazer do que derrubar um inimigo através da astúcia, matá-lo, fazer dos seus filhos nossos escravos, queimar as suas colheitas e levar as suas esposas e filhas para a nossa cama.

 

- Esse sentimento é monstruoso e bárbaro. É maléfico insurgiu-se o médico.

 

- Sim, é verdade. Contradiz quase todos os vossos dez mandamentos, mas tem uma nota de sinceridade, não é verdade, Ma Na Si? O credo de um soldado. Na realidade, à sua maneira, é tão absoluto e implacável como as regras acerca do certo e do errado a que vocês obedecem na vossa religião. Só que os valores estão invertidos. Como seria interessante assistir a uma conversa entre o meu Temujin e o vosso Jesus Cristo! Deveria ser uma troca de opiniões interessante...

 

- Da Ren, não posso permitir que brinque com tais assuntos. Há um limite para tudo.

 

- Mas eu não estou a brincar. Eu e você representamos dois opostos. Você é o idealista. Eu sou o pragmático. Ou assim parece. Mas estaremos assim tão longe um do outro? Chegará o dia em que o meu amigo será pragmático? E eu, idealista? Quem sabe? Quem sabe o que o destino nos reserva, nestes tempos conturbados de mudança? Qual será o vosso teste? E o meu? Seremos ambos fiéis às nossas crenças? Ou encontrar-nos-emos na relativa posição do jovem Ma Na Si, garantindo as nossas vantagens tácticas em campo?

 

“Mas, escutem... Que barulho ensurdecedor é este que está a abafar por completo o discurso do engenheiro? E o que é esse apito estridente? Será finalmente o som da civilização por que tanto esperámos? Será o progresso que nos prometeu, Daifu? Perdoar-me-á por comentar que, neste caso, a civilização parece estar a tomar dimensões físicas e violentas.

 

Todos os olhos estavam postos na via-férrea e na nuvem de fumo que se aproximava rapidamente. O ar parecia esmagado pelo barulho do vapor e o chocalhar das carruagens sobre os carris. Uma exclamação de espanto elevou-se da multidão, que ondulava como uma serpente malhada, enquanto toda a gente tentava pôr-se nas pontas dos pés para ver melhor. Mesmo aqueles que se achavam na tribuna - e não era a primeira vez que a maioria via um comboio - levantaram-se, como que hipnotizados pela massa imponente de metal vermelho e preto, brilhante, que avançava na sua direcção. A chaminé e a caldeira eram agora perfeitamente visíveis. Os apitos assemelhavam-se ao uivar dos lobos nas florestas; a sirene silvava como uma rajada de vento e de neve, num vendaval. Fumo cinzento saía da chaminé, enquanto fumo azul saía de cada lado da locomotiva, como ondas separadas por uma escuna, a toda a velocidade. Herr Fischer, que interrompera o discurso apercebera-se a meio deste, com tristeza, de que ninguém o ouvia -, conseguiu discernir o rosto barbudo e sorridente do engenheiro Bowers, que puxava alegremente o cordão. Os seus fogueiros chineses, debruçados da cabina, sorriam, na sua excitação. Herr Fischer percebeu que Bowers planeava levar a locomotiva até à estação a todo o vapor, para um efeito ainda mais espectacular, confiando nos travões para imobilizar a locomotiva antes de esta embater nos pára-choques. Como o Holandês Voador, levado a abrigar-se de uma tempestade, o comboio alcançara os portões do acampamento.

 

- Bravo, Fischer! Bravo! - ouviu o médico gritar a seu lado.

 

- Magnífico! - ouviu Delamere exclamar.

 

Lançou um rápido olhar de soslaio aos seus convidados chineses. O mandarim, impassível, estava sentado, assim como o oficial militar. O camareiro, contudo, visivelmente assustado, enterrara-se na cadeira. A multidão também revelava sinais de nervosismo. Algumas pessoas corriam de um lado para o outro, mas a linha formada pelos cules da companhia mantinha-os afastados dos carris e de qualquer perigo. Tudo ia correr bem, disse a si próprio.

 

Ouviu o ranger áspero dos travões e viu que Bowers calculara tudo à perfeição. Com um chocalhar de metal, a locomotiva estremeceu nos carris. Centelhas disparavam das rodas grandes. A locomotiva parecia avançar ainda a grande velocidade, mas Fischer sabia que se imobilizaria uns cem metros à frente, e sentiu-se pronto para festejar.

 

Foi então que viu um homem, de pé na via-férrea.

 

A multidão viu-o ao mesmo tempo, produzindo um ruído estranho, algo entre um grito e uma colectiva respiração entrecortada. Bowers também viu o homem; fez tudo o que pôde, puxando a alavanca de marcha atrás e abrindo a válvula reguladora. Esguichos de vapor saltaram dos lados da locomotiva, mas o comboio não podia abrandar mais a velocidade. Aqueles que se achavam mais perto dos carris tentavam recuar, enquanto os que se achavam mais atrás os empurravam para a frente, a fim de ver melhor. Horrorizado, Herr Fischer percebeu que, na confusão que se seguiu, as pessoas se pisavam umas às outras. Os seus gritos misturaram-se de forma doentia ao grito generalizado de alarme que soava de todos os lados. Helen reconheceu o homem assim que o viu, e um calafrio percorreu-lhe as costas.

 

- É ele outra vez! - balbuciou Frank. Tom empalideceu.

 

Era o padre dos Boxers, calmamente postado na via-férrea enquanto a morte corria na sua direcção. Ergueu a mão, como um mago afastando um espírito do mal, e logo depois foi envolvido pelo vapor e o monstro metálico passou por cima do local onde se encontrava.

 

A locomotiva parou a escassos centímetros dos pára-choques. Houve um último jacto de vapor e o silêncio caiu O silvo da locomotiva, que começava a arrefecer, tornou-se menos penetrante, enquanto os choros e os gritos da multidão espezinhada quebravam o silêncio.

 

Herr Fischer estava tão chocado como todos os outros. Sentia-se mesmo responsável pelo acidente, mas apesar do sucedido, ou por causa disso mesmo, achou que a única forma de restaurar a ordem era prosseguir com a cerimónia. Ignorando o facto de o Dr. Airton, as freiras e Tom terem deixado a tribuna, acorrendo aos feridos, fez uma vénia em frente do mandarim.

 

- Vossa Excelência, por favor... - disse, fazendo-lhe sinal para que se levantasse e se dirigisse ao púlpito. Ali, apontou para uma alavanca e pediu ao mandarim que a puxasse. Ele e Charlie haviam planeado aquilo com todo o cuidado. Quando a alavanca levantasse uma lingueta, uma garrafa de champanhe oscilaria de um poste para ir embater e partir-se contra a caldeira quente da locomotiva. Ao mesmo tempo, as cordas que prendiam uma rede ao tecto seriam desatadas e uma chuva de pétalas secas espalhar-se-ia pelo ar, caindo sobre o comboio e a multidão.

 

- Em nome da Companhia do Caminho-de-Ferro Pequim-Mukden, declaro oficialmente inaugurada a ramificação da linha Pequim-Mukden - declarou Herr Fischer.

 

Foi então que o schnapps foi trazido. Foi também o sinal para a pequena banda que Charlie passara meses a treinar se lançar numa versão desafinada mas alegre de Garryowen.

 

Foi preciso algum tempo e empenho por parte das tropas do major Lin para restaurar a ordem. A monstruosa máquina assustara a multidão; estavam chocados com a aparente morte do padre chinês, e ainda mais alarmados ficaram, quando não se conseguiu encontrar qualquer vestígio do corpo por baixo das rodas do comboio. Afinal, seria a. magia dos Boxers mais poderosa do que a magia ocidental? Seriam verdadeiras as histórias de que os adeptos dos Punhos Harmoniosos não podiam ser feridos pelas armas e pelas máquinas dos demónios do oceano? Para muitos, aquela era a primeira vez que deparavam com uma prova da existência dos Boxers. Já toda a gente tinha ouvido falar deles e sabia que se tinham implantado em outras cidades. Mas naquele dia, a natureza maligna da máquina estrangeira - com o seu ruído e emanações infernais, provocando o pânico à medida que se aproximava - e a coragem e o desafio demonstrados por um líder do culto, apesar dos contornos dramáticos que tomara, levaram muita gente a pensar seriamente naquilo que, até então, viam como discursos fanáticos de instigadores e de charlatães. A gota de água foi aquele insensível derramar de pétalas de flores sobre a multidão assustada e a banda tocando as músicas triunfais do Ocidente. Até parecia que os estrangeiros troçavam de propósito das suas superstições e escarneciam da morte do padre. Alguns lembraram-se do discurso arrogante do engenheiro estrangeiro - a maior parte não se dera ao incómodo de o ouvir na altura, mas agora todas as suas palavras eram recordadas e extrapoladas. Não se vangloriara ele de ter invocado novas forças que fariam desaparecer as suas tradições milenares? Não dissera que máquinas monstruosas, como aquele carro de fogo, reduziriam no futuro a actividade de honestos trabalhadores, como os carreteiros e os carregadores, cujo meio de sustento dependia do transporte de produtos que seriam agora transportados por aquela máquina de metal e de fogo? Não fora ainda mais longe, ao afirmar que a nova ciência ocidental - magia com outro nome - alteraria o modo de vida das pessoas, quebrando a ordem da antiga sociedade e substituindo-a por idéias novas? Não era uma tentativa de desafiar a ordem cósmica eterna e derrubar o Trono do Dragão? Não foi preciso muito tempo para que os ânimos da multidão se exaltassem e para que as primeiras pedras fossem atiradas ao comboio, partindo os vidros das janelas de algumas carruagens.

 

O major Lin tivera de enviar uma companhia de homens para resgatar o médico e a sua mulher, as duas freiras, Tom e Helen, que ainda se encontravam perto dos carris, prestando cuidados médicos às pessoas espezinhadas. Tinham-se visto cercados por um grupo de rapazes enfurecidos, que, primeiro lhes tinham gritado injúrias, depois, atirado lama e, finalmente, projécteis mais duros, um dos quais atingira a têmpora da irmã Elena. Fora o bastante para os soldados do major Lin dispararem uma salva de tiros para o ar, a fim de dispersar a multidão. O médico e os outros tinham continuado calmamente a fazer o seu trabalho, sob a vigilância dos soldados. Felizmente, havia poucos feridos graves. Trataram dos feridos com rapidez e eficácia, e pouco depois puderam regressar à segurança que a tribuna cerimonial oferecia.

 

Bowers e a sua equipa, bem como os dois passageiros que tinham viajado com eles até Shishan, também foram escoltados até à tribuna. Bowers, um homem alto, barbudo, de disposição puritana, estava consumido pela angústia e pelos remorsos de ter atropelado um homem. Ficara estupefacto quando lhe disseram que o corpo do homem desaparecera.

 

- Mas eu vi-o! Eu vi-o cair por baixo das rodas! Vi com os meus próprios olhos! Nenhum pobre diabo pode sobreviver à investida de um comboio. Se não há nenhum corpo, então é porque os outros o tiraram de lá. Não há outra explicação.

 

Manners reconhecera um dos passageiros.

 

- Taro-san! - gritou ele, chamando o homem que se achava na outra extremidade da tenda. - Seu velho malandro! Aceitou o meu convite!

 

Atravessou a distância que os separava e abraçou um japonês alto e bem proporcionado, que parecia ao mesmo tempo elegante e desleixado nas suas roupas ocidentais. Usava um fato de tweed e botas de couro. Sobre os ombros trazia um sobretudo militar preto. Ostentava um bigode fino e franzira as sobrancelhas, numa expressão divertida.

 

- Meu caro amigo Manners - cumprimentou, num inglês perfeito. - Quando recebi o seu telegrama a falar-me da caça que há aqui, como poderia eu resistir?

 

- Vamos, deixe-me apresentá-lo.

 

O mandarim sentara-se perto de uma mesinha onde havia uma bandeja com uma pilha de sanduíches de carne de conserva, que ia provando, enquanto bebia schnapps. Se ficara perturbado pelo comportamento ameaçador da multidão, não o deixara transparecer. Na realidade, exibia a mesma frivolidade e bonomia que mantinha desde o início.

 

Ergueu o olhar para os dois homens e sorriu. Taro bateu Os calcanhares e fez uma grande vénia.

 

- Da Ren, apresento-lhe o coronel Taro Hideyoshi, adido da Legação Japonesa em Pequim - disse Manners.

 

- Ah, sim - exclamou o mandarim, enquanto petiscava uma sanduíche. - Ouvi falar de si, coronel, através de Ma Na Si Xiansheng, assim como do comandante da minha guarnição, o major Lin.

 

- O major e eu tivemos a honra de nos conhecer na última guerra, Da Ren. - O chinês de Taro, tal como o de Manners, era fluente. - Na altura, o tenente Lin e eu éramos adversários, mas rapidamente estabelecemos uma amizade de soldados.

 

- A sério? Não seria antes uma relação entre carcereiro e prisioneiro? O major Lin parece ter-lhe ficado muito grato. Deve ter sido muito bondoso para com ele. Na vossa cultura, como na minha, respeitam-se as obrigações da amizade. Também achamos vergonhoso ser-se derrotado numa batalha, e tendemos a desprezar aqueles que se deixaram capturar. Provavelmente, isto gera uma contradição... Fico muito feliz por saber que você e o major Lin, com a vossa amizade de soldados, conseguiram resolver essa contradição.

 

O coronel Taro sorriu.

 

- Ma Na Si Xiansheng falou-me muitas vezes nas suas cartas da sagacidade do mandarim. É uma honra para mim poder conhecer uma tal entidade.

 

- Estou certo de que o major Lin está ansioso por reatar a vossa amizade, coronel. Suponho, pela forma calorosa com que ele fala de si, que eram amigos íntimos...

 

- Vossa Excelência é muito amável. De facto, era uma amizade muito calorosa - replicou Taro. - Posso perguntar onde está o major Lin?

 

- Anda por aí, a disparar sobre os camponeses que se as sustaram quando o vosso comboio a vapor chegou, mas sem dúvida que regressará daqui a pouco. - O mandarim pegou noutra sanduíche. Seja bem-vindo a Shishan, O Ma Na Si falou-me dos seus planos para caçar aqui. Na verdade, falou sobre isso com o major Lin, que me relatou a conversa. Estou bastante interessado em que vocês os três sejam bem-sucedidos no vosso desporto e que matem a caça que procuram. Como deve compreender, um homem da minha posição não pode juntar-se a vós nessa actividade, muito embora anseie - e muito - por ver os vossos trofeus.

 

- O apoio de Vossa Excelência encoraja-me. Posso informá-lo de que também eu pus o meu ministro a par das minhas intenções de caçar aqui, e o informei acerca do tipo de caça que procuro. Ele desejou-me boa sorte. Aliás, honrou-me ao dar-me alguma sugestões muito úteis, e indicou-me que trofeus gostaria de ver. Como é óbvio, tal como o senhor, Da Ren, ele não poderá juntar-se a nós, em razão dos seus deveres.

 

- É gratificante para mim que todos nos tenhamos compreendido tão bem desde o início, coronel. Faça-me saber, por intermédio do major Lin, em que poderei ser-lhe útil, durante a sua estadia em Shishan. Tenho a certeza de que ele cuidará de tudo o que o senhor necessitar. Claro que, sendo um amigo tão íntimo, sabe exactamente quais são os seus gostos. Ali vem ele, coronel, entusiasmado com as suas vitórias militares. Não quero atrasar mais a vossa alegre reconciliação.

 

O major Lin entrara atrás do médico e do grupo que estivera a tratar dos feridos. Não viu logo o coronel Taro. Tirou as luvas e o sobretudo acolchoado, com expressão absorta, e aqueceu as mãos junto ao fogão. Sobressaltou-se quando um sorridente Taro lhe deu uma palmadinha no ombro, e foi com um franzir de sobrancelhas petulante que se virou para ver quem o incomodara. Estacou, antes de se voltar completamente.

 

- Taro-sama! - A palavra saiu-lhe entrecortada da boca. O mandarim e Manners, que observavam o reencontro, do outro lado da tenda, viram o jovem oficial empalidecer e uma expressão quase aterrorizada distorcer-lhe as feições do rosto.

 

- Meu meu velho - exclamou Taro, abraçando Lin. Trémulo, o major libertou-se dos braços do outro homem. Os seus lábios estremeciam, o rosto crispara-se pelo conflito de emoções que espelhava. Foi somente após um visível esforço que conseguiu recuperar a habitual expressão de total frieza. Bateu os calcanhares e inclinou a cabeça para a frente.

 

- Coronel Taro, seja bem-vindo a Shishan.

 

- Que comovente - comentou o mandarim. - Não me apercebera de que a amizade entre soldados podia ser tão apaixonada.

 

- O coronel Taro disse que era uma amizade íntima replicou Manners, sorrindo.

 

- Desconfio de que o major Lin gostaria de esquecer até que ponto a amizade deles foi íntima - murmurou o mandarim. A sua voz perdera o tom irónico, e olhou para o inglês friamente. Quando voltou a falar, foi com grande calma. Ma Na Si, você e eu sabemos o que aconteceu quando Lin foi prisioneiro daquele homem, e como comprou a sua vida ou, pelo menos, a dispensa de trabalhos pesados a custo da sua própria desonra. Não sou homem para culpar seja quem for. Beneficio dos conhecimentos militares que o Lin aprendeu enquanto foi... amigo do coronel Taro. Tudo isso pertence agora ao passado. Todos nós temos o nosso passado, não é verdade, Ma Na Si?

 

“Porém, deparamos agora com uma situação interessante. O passado voltou para atormentar o nosso bravo jovem oficial. Conto consigo para conduzir com êxito as negociações. A relação entre aqueles dois homens, como direi, equilibra-se em dois pesos diferentes. Aposto, Ma Na Si, que, no frágil equilíbrio entre obrigação e vergonha, e, como sabe, o major Lin sente ambos, o prato oscilará levemente para o lado da vergonha. Na balança que pesa o amor e o ódio, os pratos penderão, mesmo que com pouca diferença, para o lado do ódio, porque o major Lin negociará e regateará o preço mais baixo, para me beneficiar. Mas os dois pratos deverão oscilar apenas ao de leve; caso contrário, não haverá qualquer negócio.

 

“Compreende o que lhe disse? Claro que sim. Por isso lhe falo com tanta sinceridade. Não lhe revelei nada que você já não tivesse pensado. Porque é você que pesa os pratos da balança, inglês. Devo recordar-lhe que não lucrará nada se os pesos penderem excessivamente para um dos lados.

 

- No meu país, Da Ren, costumamos dizer que a palavra de um inglês é o seu bem mais precioso.

 

- A sua palavra não vale nada. Você é um oportunista. Meu amigo, confio apenas nos seus interesses próprios e na sua fome.

 

- Eu também tenho muito respeito por si, Da Ren.

 

- Ah! Ma Na Si, compreendemo-nos um ao outro. É por isso que gosto de si. No entanto, vou dar-lhe um conselho. Seja faminto, mas não seja ganancioso.

 

- E isso quer dizer...?

 

- A Fan Yimei, a rapariga do bordel, pertence ao major Lin. Contente-se com a rapariga inglesa ruiva que roubou àquele jovem idiota. Divirta-se com as outras prostitutas do Palácio dos Prazeres Celestiais. Deixe a Fan Yimei para o major.

 

- Compreendo. Não lhe pergunto como sabe essas coisas. É verdade que a Fan Yimei é bonita e que eu... reparei nela. Estou admirado, contudo, por um homem tão grandioso como o Da Ren se interessar por quem detém a propriedade de uma prostituta ou pelo que sente o coração de um bárbaro.

 

- Você não tem coração, Ma Na Si. E também é impertinente. De facto, interesso-me por aquela rapariga. Digamos que a coloquei sob a minha protecção. Certa vez, o pai dela... Não interessa. Não posso tirá-la daquela casa, mas ela pode ser o meu presente, Ali. É uma forma de a proteger. Também serve os meus interesses, e, de momento, foi dada ao major Lin, que está apaixonado por ela. Ele está a atravessar um momento complicado e não quero que tenha mais problemas do que já tem.

 

- E assim que o nosso negócio ficar concluído? Quando deixar de importar que o major Lin tenha problemas?

 

- Você é mesmo arrogante, inglês, mas aceito. Quando o negócio for selado, falaremos. Prepare-se para pagar um preço elevado por ela. Pensarei numa troca apropriada. Mas não falemos mais, por enquanto. Está quase na altura de me ir embora, e, em nome da cortesia, ainda tenho de trocar algumas banalidades com o seu cómico colega, o engenheiro, e o seu intérprete meio estrangeiro.

 

O Dr. Airton, que depois de regressar à tribuna tencionava entabular conversa com o mandarim, ficara admirado e até um pouco entristecido por vê-lo numa palestra tão íntima com Manners. Era impressionante como um recém-chegado conseguira tão rapidamente cair nas boas graças das pessoas mais importantes de Shishan. Também parecia ter-se tornado íntimo do major Lin, o que era espantoso para quem conhecia o ódio que o jovem oficial sentia pelos estrangeiros. E, ainda por cima, vira o major ser abraçado pelo garboso visitante japonês que chegara no comboio. O rosto de Lin tinha sido digno de se ver! Que teria levado o homem a fazer tal coisa? Os Japoneses eram realmente um mistério. Por conhecer Lin, o médico esperara uma reacção violenta. Contudo, já tinham passado dez minutos, e não se produzira qualquer incidente. Aliás, os dois homens continuavam a falar amigavelmente, a um canto. Não conseguiu perceber, mas o que queria mesmo era uma chávena de chá.

 

- Doutor Airton? - perguntou uma voz forte, com pronúncia americana. Era o segundo passageiro, um homem sobriamente trajado, já de idade, mas de aspecto enérgico, que usava um chapéu de feltro e uma capa de viagem. - Permita-me que me apresente. O meu nome é Burton Fielding e faço parte da Comissão Americana para as Missões Estrangeiras, com sede em Tientsin. Teve a gentileza de nos enviar uma carta.

 

- Sim, meu caro amigo, enviei-vos uma carta a respeito do pobre Millward. Bom, para lhe ser sincero, nunca esperei que me respondessem. Parecia-me algo impertinente da minha parte.

 

- De maneira nenhuma. A comissão a que pertenço levou muito a sério a sua carta. Estamos bastante preocupados, especialmente com a terrível perda do filho, segundo bem compreendi, desequilibrou mentalmente Mister Millward.

 

- Bom, ele já era desequilibrado. Por muito compreensivo que...

 

- Não diga mais. Exprimiu-se com grande eloquência na sua carta. Ficarei três dias aqui, até o comboio partir novamente, e espero que, nesse espaço de tempo, possa chegar a um acordo com Mister Millward, de modo a evitar-lhe mais embaraços, a si e ao resto da comunidade.

 

- Que posso dizer? Seja bem-vindo a Shishan. Lamento que a sua chegada tenha sido ensombrada por um acidente tão trágico.

 

- Vivemos tempos imprevisíveis, doutor Airton. Se não são os Boxers, é outra coisa qualquer. - A súbita gargalhada gutural de Fielding era contagiosa. - Mas quem disse que o trabalho de um missionário é fácil? Doutor, já ouviu falar da Escola da Vida e das Dificuldades? Foi onde me licenciei. Aceito as coisas como elas são. Dê-me uma canga de bom senso à frente e o chicote do Senhor atrás. Isso basta para me fazer atravessar rios e ultrapassar todos os obstáculos. A minha filosofia é ser pragmático, crer em Jesus, aceitar a vida e as pessoas como são, e nunca, pelo amor a Deus, mas mesmo nunca, preocupar-me com coisas que não posso controlar.

 

Algo no entoar melodioso e ritmado de Fielding soava excitante e familiar; as figuras de retórica e a voz arrastada recordaram a Airton as suas revistas.

 

- Mister Fielding, posso perguntar-lhe de que parte dos Estados Unidos é oriundo?

 

- Venho de uma cidade chamada Laredo, que fica no condado de Webb, no Sudoeste do Texas. Na fronteira com o México, perto do rio Grande.

 

- Rio Grande? - exclamou o médico, com os olhos a brilhar. - Isso não uma zona de cobóis?

 

- É, sim. O meu pai era pregador, um missionário dos índios da região, os Pueblos, até um bandido o apanhar num desfiladeiro e o crivar de chumbo. Vim do colégio onde estava, em Albuquerque, para assistir ao seu funeral. Penso que foi quando estava perante a sepultura do meu pai, com as montanhas áridas à minha volta, os cactos a reluzir por entre a neblina do deserto e o silêncio a pairar naquela cúpula do céu, que soube que Deus está em toda a parte... Foi ali, naquele instante, que decidi tornar-me missionário como o meu pai; só que vim para mais longe do que ele alguma vez foi e aqui estou.

 

- Nellie - disse Airton, dirigindo-se à mulher, que se aproximara discretamente dele -, acreditas se eu te disser que este cavalheiro é oriundo do Faroeste, da zona do rio Grande? E que vai ficar na nossa casa esta noite?

 

- Isso seria um abuso, minha senhora - protestou Fielding. - Era minha intenção ficar em casa dos Millward.

 

- Não, senhor - replicou Nellie. - Não sei quem é e porque veio até cá mas posso dizer-lhe uma coisa: em circunstância alguma permitirei que fique em casa dos Millward. Eles não o receberiam, nem o senhor quereria descansar ali, assim que visse a casa deles. Além do mais, se realmente vem do Faroeste, então vai ter de aturar o meu marido numa conversa que só vai acabar amanhã de manhã. O pobre homem pode parecer um pai idoso e respeitável da Igreja Presbiteriana Escocesa, mas a verdade é que é mais infantil do que o meu filho pequeno, e só sonha em assaltar comboios e ser um cobói. A sua biblioteca está repleta de fascículos e de romances baratos, um triste exemplo para o seu rebanho e uma vergonha e um embaraço para a família. Por isso, quem quer que o senhor seja, é uma graça divina para nós. Conto com o senhor para curar o meu marido das suas ilusões.

 

A gargalhada de Fielding ressoou em toda a tenda.

 

- Posto o caso dessa maneira, minha senhora, parece-me que não tenho outra escolha. Doutor, nunca pensei que faria uma viagem tão longa até aqui para salvar a sua alma! Tão-pouco sei que tipo de livros andou a ler, mas suponho que lidar com os Millward será fácil, comparado com a conversão de um homem que crê em Buffalo Bill. Minha senhora, o meu nome é Burton Fielding. Não sei se estarei à altura do que me pede, mas posso assegurar-lhe que me sinto honrado por aceitar a vossa hospitalidade.

 

O mandarim levantou-se abruptamente da cadeira onde estava sentado. Despediu-se de Herr Fischer com um aceno de mão lânguido e encaminhou-se para a entrada. Jin Lao apres sou-se a colocar a capa de peles sobre os seus ombros e a er guer a aba de feltro para deixar passar o seu superior. Foi um sinal para que todos os outros chineses partissem. O palanquim esperava lá fora. A guarda do major Lin circundava-o mas após o incidente de há pouco a multidão dispersara e os cules do caminho-de-ferro tinham recolhido, irritados, às casernas. Algum lixo era arrastado pelo vento, rodopiando por cima da lama do pátio deserto, onde, em todo o seu melancólico esplendor, a locomotiva e as carruagens repousavam, inertes, sobre os carris. Toda a sua violência e energia se esvaíra. Era espantoso como um monte de metal sem vida despoletara terrores tão básicos. O mandarim subiu para o palanquim e partiu, com os guardas a segui-lo, em fila. Nenhum tambor rufou. Nenhuma trombeta tocou. Pouco depois, desapareciam de vista.

 

Entretanto, os europeus tinham começado a vestir os seus agasalhos.

 

- Uma cerimónia magnífica, Fischer. Um espetáculo maravilhoso - disse Frank Delamere, ao sair com a filha e Tom Cabot.

 

- Acha mesmo? - perguntou o engenheiro, muito sério.

 

- Oh, sim - respondeu Delamere. - Fez história, como você próprio disse.

 

- Lamento, Jin Lao, mas o rapaz estrangeiro esta tarde está ocupado... com um cliente que paga.

 

Mãe Liu deleitou-se com o passageiro crispar dos lábios de descontentamento do velho, mas teve de o observar de perto para captar aquela expressão. Quando Jin Lao pousou a chávena de chá, o rosto já retomara a habitual impassibilidade.

 

- De qualquer forma, eu também começava a fartar-me dele - retorquiu alegremente. - Ele choraminga.

 

- Isso é porque é infeliz. A criatura compreendeu que o Ren Ren já não o ama.

 

Ambos se riram.

 

- Devia tê-lo compreendido há mais tempo - disse Jin Lao. - No entanto, esperava que ele pudesse desenvolver um certo afecto por mim. Sempre o tratei com toda a bondade, fiquei muito aborrecido quando...

 

- Quando ele tentou cortar os próprios pulsos e tivemos de deitá-lo de barriga para baixo e amarrá-lo à cama durante uma semana? Mas você não pareceu aborrecido na altura, Jin Lao. Entrava e saía como uma andorinha a fazer o ninho nos beirais do palácio. Nunca o vi tão excitado. Parecia uma cabra com o cio.

 

- Bom, era tentador - sorriu. - Pobre rapaz, com a almofada molhada pelas lágrimas. Tive pena dele.

 

- Tornou-o libidinoso, isso sim.

 

- Oh, que demónio de saias de língua afiada você me saiu!

 

Mãe Liu sorriu, satisfeita, e serviu mais chá.

 

- Então, conte-me - pediu Jin Lao -, quem é esse tal cliente que pagou? Ou é segredo? Deve ser alguém com uma enorme fortuna, caso contrário a minha amiga nunca teria corrido um risco tão grande. Só espero que a discrição desse tal cliente seja tão grande como a sua bolsa. Não é perigoso colocar uma mercadoria tão exótica em mercado aberto? Lembre-se de tudo o que passámos para apagar qualquer vestígio da existência do rapaz.

 

- Não temos segredos um para o outro, Jin Lao. Sabe quanto me sinto grata para consigo e para com o mandarim. É sempre tão gentil, ao lembrar-mo todos os meses... Quanto obteve de mim hoje? Trezentos taéis?

 

- Consideravelmente menos do que costumo pedir murmurou Jin Lao.

 

- Mas eu estou a fazer bastante mais por si, não é verdade? Primeiro, foi o major Lin com o seu monopólio sobre a minha melhor rapariga e o meu melhor pavilhão. E tudo livre de encargos. Depois, foi a casa aberta para o estrangeiro, o Ma Na Si. Disse-me que ele era importante para o mandarim e que eu o deixasse escolher as raparigas que mais lhe agradassem. Ele tem um certo encanto, é verdade, é muito popular junto das raparigas e também é generoso ao pagar, ao contrário de outros, mas muitos dos meus clientes não gostam da ideia de um bárbaro provar primeiro as minhas flores. Não havia problemas, antigamente, quando podíamos enganar aquele nojento De Falang com uma cabra como a Shen Pine, maldita seja! Mas este Ma Na Si não é assim tão parvo.

 

“O meu filho não gosta disso, Jin Lao. Não é feliz. E depois daquele incidente na estação do caminho-de-ferro na semana passada, duvido que haja outros cidadãos de Shishan dispostos a receber um bárbaro na sua casa. Não ouviu o que se diz por aí? Todos eles são mágicos demoníacos que estão a tentar derrubar o Império. Pelo menos, é o que o Ren Ren me diz.

 

- De facto, compreendo que deve ser complicado para si...

 

- E agora, o Ma Na Si traz aquela prostituta estrangeira e usa a minha casa como seu ninho secreto de amor! E eu nem sequer recebo qualquer renda.

 

- Que prostituta estrangeira?

 

- Sabe bem quem é. A mulher ruiva que parece uma fada-raposa.

 

- A filha do De Falang? Ora, ora...

 

- Pensava que soubesse. Ele disse-me que o mandarim aprovou. Ocupam um dos pavilhões à tarde, para foderem e fumarem ópio. Tudo feito às escondidas. Ela chega numa cadeira fechada, envolta num manto como você. Sou a única que tem autorização para saber o que se passa. E é assim que quero que continue a ser. Que o céu me ajude, se o Ren Ren descobre. Mas agora pergunto: que espécie de estabelecimento dirijo eu? Um bordel para bárbaros?

 

- De facto, parece haver muitos bárbaros por aí - murmurou Jin Lao, com simpatia. - E o De Falang? Também voltou? Detestaria imaginá-lo a encontrar a filha aqui. Seria uma cena cómica, digna de uma ópera.

 

- Poupe-me. Não. esteve aqui uma ou duas vezes, com os seus amigos mercadores, e sempre à noite. Ofereci-lhe a Chen Meina, mas ele não estava interessado.

 

- Porque queria a Shen Ping, sem dúvida. Já lhe transmitiu a trágica notícia?

 

- Claro que não. Julga que ela voltou para a sua aldeia.

 

- Sempre foi um animal crédulo.

 

- Jin Lao, está a fingir ou realmente não sabia do ninho de amor do estrangeiro?

 

- Não sabia de nada, Mama. Foi um grande atrevimento por parte do Ma Na Si, se usou o nome do mandarim para a convencer. Contudo, fez bem em recebê-lo. Prezamos esse homem no yamen. Mas, no que diz respeito à rapariga, que notícia tão interessante... Então a presunçosa filha do De Falang é uma prostituta? E uma fumadora de ópio? Ora, ora... Vejo abrirem-se várias possibilidades...

 

- Também eu, Jin Lao.

 

Os dois trocaram sorrisos cúmplices.

 

- Diga-me: como se dá o Ma Na Si - perguntou Jin Lao, como se acabasse de lhe ocorrer um pensamento sem importância - ... como se dá ele com o major Lin? A improvável amizade deles continua?

 

- Eu própria mal posso acreditar. Comem juntos. Conversam pela noite fora. Por vezes, olham para mapas e consultam listas e documentos. A única pessoa que permitem que fique no quarto com eles é a Fan Yimei, mas ela nunca me conta nada. Não faço ideia porque deixa o major Lin que o Ma Na Si fique perto dela. Qualquer pessoa pode ver que o bárbaro está louco por ela. Aliás, talvez lhe ofereça aquela cabra. Assim, vingar-me-ia dos três de uma só assentada. Você não me impediria, pois não, meu caro camareiro? Sei que não morre de amores pelo major e que o sentimento é recíproco. Não gostaria de vê-lo encornado? E que pena que o major, quando o descobrisse, assassinasse o Ma Na Si... E, é claro, o Ren Ren teria de castigar a pequena Menina Virtude depois... com uma visita, que já lhe foi prometida há muito, à cabana do jardim. Eu própria arrancaria a carne das costas daquela cabra!

 

- Tão irritada que você está hoje. Foi alguma coisa que comeu ao almoço! A sua proposta é divertida, mas pouco profissional. Penso que está a esquecer-se de que o mandarim quer tanto o major Lin como o Ma Na Si vivos e a cooperar um com o outro.

 

- Que andam eles a tramar, Jin Lao? Qual o objectivo de todas aquelas reuniões? Que andam eles a conspirar? Tenho dado voltas à cabeça para o descobrir.

 

O velho homem esboçou um sorriso comprometido.

 

- Assuntos de estado, minha querida Mama. Nada que deva saber.

 

- Claro, claro... Os assuntos de estado são apenas para os sábios do yamen. Mas, diga-me: onde entra nisso tudo o japonês?

 

Desta vez, estava certa de ter surpreendido Jin Lao. Soube-o porque ele abriu a boca, fechou-a, os seus olhos moveram-se rapidamente de um lado para o outro e cofiou o queixo.

 

- O japonês? Que japonês? Está a falar do homem que veio no comboio? - perguntou, recuperando rapidamente o controlo. - Suponho que o inglês o tenha trazido ao bordel. E depois? Que significado pode isso ter? Porque não haveria ele de trazer o companheiro de caça até aqui, para uma noite de prazer?

 

- Por nada, se fosse assim tão simples. Só que ele o trouxe para ver o major Lin. E agora o japonês vem sozinho para ver o major Lin, e nessas ocasiões até mesmo a Fan Yimei é posta fora do pavilhão. O major Lin e o japonês encontram-se a sós.

 

Jin Lao fitou-a. Mãe Liu soltou uma risada triunfal.

 

- Vá, admita, Jin Lao - grasnou. - Não sabe o que se passa, pois não? Desta vez, o mandarim não confiou em si, não é verdade? Aliás, parece-me que há algum tempo que não goza da confiança dele. Será que ele confia agora no major Lin e não em si?

 

- Somos ambos funcionários do yamen - respondeu Jin Lao em voz baixa, com as sobrancelhas franzidas. - O mandarim apenas me diz o que eu preciso de saber e nada mais. Sempre lhe fui fiel.

 

- É tão modesto... - comentou Mãe Liu.

 

Jin Lao ignorou o sarcasmo da mulher e sorveu lentamente o chá.

 

- De facto, o major pareceu reconhecer o japonês, quando ele chegou - murmurou. - Na altura, achei aquilo estranho. Mas que possível relação pode haver entre o major Lin e japonês? Sabemos que o Major Lin foi feito prisioneiro, em tempos, mas está a escapar-me alguma coisa. Algo mais se passa e eu desconheço o que é.

 

- Talvez não sejam só assuntos de estado - retorquiu Mãe Liu, com um sorriso rasgado. - Eu disse-lhe que o rapaz estrangeiro está com um cliente que pagou. Quem acha você que é?

 

- Claro! - exclamou Jin Lao. Os olhos brilharam e esboçou um ligeiro sorriso. Parecia mais do que nunca um velho sábio. - Claro! E foi o Lin que tratou de tudo?

 

- Sim, foi o major Lin que tratou de tudo... e que pagou. Foi a primeira vez que recebi dinheiro dele.

 

- A sério? Ora, ora, um oficial da China a arranjar um rapazinho para o Exército Imperial Japonês. Faz-nos pensar na relação que eles próprios tiveram no passado, não concorda? Minha querida Mama, sinto-me bastante satisfeito por ter uma amiga como você. Nunca saí da sua casa desiludido.

 

- Disso tenho a certeza, se de cada vez me leva trezentos taéis - riu-se ela.

 

- Então, então, o que é uma importância insignificante entre amigos? Esqueça tudo isso. Estava a pensar em termos de prazer: abelha rouba o néctar selvagem / E deleita-se com o seu primeiro sabor; / O papa-figos dourado debica o pêssego, / Derretendo a polpa macia na sua boca...” Ora então, privou-me do meu rapaz estrangeiro. Que outra diversão me preparou para esta tarde?

 

- Pode observar o japonês a fazer de tigre com o rapaz estrangeiro, mas isso talvez o deixe com ciúmes. Que tal algo mais exótico? E se eu o levasse a ver um demónio do oceano a fazer amor com uma fada-raposa? Gosta da ideia?

 

- Eles estão aqui, neste momento?

 

- Sim. E depois de se rir das suas bizarrias pode enfiar-se na banheira de água quente que mandei preparar para si, onde um belo e jovem flautista de Yang-chow estará à sua espera, com instruções para satisfazer todos os seus desejos.

 

- Deixou de ser divertido, não foi?

 

Tinham feito amor e estavam deitados, aninhados um contra o outro nos lençóis vermelhos, por baixo das tapeçarias de cores vivas e bordadas com uma profusão de bestas míticas. Henry tirou delicadamente as mãos dos seios de Helen apoiou a cabeça num dos braços e contemplou-a.

 

- Porque dizes isso? - perguntou, após uma longa pausa preenchida apenas pelo tiquetaque do relógio de pêndulo a um canto do quarto.

 

Ela não lhe respondeu. Uma lágrima rolou-lhe pela face para cair sobre a almofada de brocado. Henry afastou-lhe uma madeixa de cabelo da testa suada.

 

- Abraça-me - murmurou Helen, enterrando o rosto no peito de Henry. - Sei que nunca me amaste - disse, após outro longo silêncio. - Não, não digas nada, meu querido. Desde o princípio que soube que era apenas um... um jogo para ti. Foste amado por tantas mulheres. Eu era apenas...

 

- Não.

 

- Eu também não te amava, a princípio. Sentia-me lisonjeada, excitada e curiosa... E foi maravilhoso na caverna, e depois, naquela noite em que trepaste até à janela do meu quarto, e o médico...

 

- ... passeava de um lado para o outro no jardim, fumando cachimbo, enquanto contemplava a Lua?

 

- Sim. não reparou no teu cavalo, apesar de estar amarrado mesmo à frente dele. Foi tão cómico.

 

Nenhum deles se riu.

 

- O Natal foi um verdadeiro inferno - continuou Helen, com voz trémula, abraçando-o com mais força.

 

Henry beijou-a no alto da cabeça.

 

- Eu sei. Tive pena de ti.

 

- O Tom está tão apaixonado por mim...

 

- Mas tu não o amas...

 

- Não, mas nutro um grande carinho por ele. E o meu pai vê nele o filho que nunca teve. Estavam os dois tão felizes, com aqueles chapéus ridículos, a fazer o flambé do pudim de Natal.

 

Henry afagou-lhe o cabelo.

 

- Não sei se conseguirei fingir por mais tempo... - disse ela.

 

- O que é que mudou?

 

- O Tom, penso eu. Está mais sério. Talvez seja por causa do trabalho. Ou por causa de todo esse falatório acerca dos Boxers. Por vezes, não consigo deixar de pensar que ele desconfia que há algo entre nós. Tornou-se demasiado solene. Costumava ser alegre e brincalhão. Agora, é mais rígido. Não, não é essa a palavra indicada. Está mais pensativo e responsável. Até começou a fumar cachimbo - acrescentou, com uma gargalhada triste. - A propósito, ficou furioso contigo depois daquela horrível cerimónia na companhia do caminho-de-ferro, quando foste tão mau para com Herr Fischer.

 

- O Tom é inglês. Aprecia o fair-play.

 

- Mas deixou de ser o idiota de coração de ouro que era antigamente. A princípio, foi fácil, quando ele regressou da sua primeira viagem a Tsitsihar. Tomava-me nos braços e fazia-me rodopiar pelo pátio, sempre estupidamente feliz por estar comigo, inundando-me de presentes. Ou tratando-me por “rapariga” ou “HF”. E eu desprezava-o. Beijava-me enquanto eu ainda sentia o teu suor no corpo. Ele abraçava-me e eu pensava na forma como tinhas tocado na minha pele. Achava que ele merecia ser traído por se mostrar tão confiante. Por isso, não me importava. Na verdade, era... excitante.

 

Henry beijou-a na face.

 

- E agora sentes a consciência pesada, tanto tempo depois? - murmurou.

 

Helen fechou os olhos, que encheram-se de lágrimas, quando replicou:

 

- Já não tenho consciência. Só me sinto viva quando estou contigo. Só me sinto eu própria quando estou contigo. Era capaz de viver na mentira fosse com quem fosse, se tu me amasses... mas não me amas.

 

Abruptamente, desprendeu-se de Henry e saiu da cama.

 

- Onde está o ópio? Quero outro cachimbo. a cortina de gaze e avançou, nua, para o ténue raio de sol no tapete. Onde está? - exclamava, enquanto abria uma gaveta e dava um pontapé a um tamborete. Caiu de joelhos, desfeita. - Quero um cachimbo... - gemeu.

 

Ouviu-se um raspar do lado de fora da porta do pavilhão o farfalhar de seda e um murmúrio. Helen atirou uma almofada na direcção do som, e seguiu-se um correr assustado de pequenas passadas.

 

- Aquela velha horrível! - gritou. - Bisbilhoteiros depravados! Odeio este lugar!

 

Os ombros curvaram-se, a cabeça tombou para a frente e lágrimas silenciosas rolaram-lhe pelo rosto.

 

Henry ajoelhou-se atrás dela, pressionando a face contra a dela e envolvendo-a com os seus braços. Unidos naquele abraço protector, embalaram-se de um lado para o outro.

 

Henry levantou-se, dirigiu-se a um bufete e tirou um tubo comprido, parecido com uma flauta, munido de uma ampola metálica numa das extremidades. Do interior de uma pequena caixa de laca, raspou uma pasta preta, que fez rolar entre os dedos até formar uma bola. Enfiou-a no pequeno recipiente, situado num dos lados do cachimbo, na extremidade oposta à da ampola metálica. Pegou numa vela que havia na mesa e com o cachimbo e a vela acesa regressou para junto de Helen e ajoelhou-se a seu lado.

 

Ela enroscara-se na posição fetal, sobre as almofadas, com a cabeça apoiada sobre um suporte de madeira. Estendeu a mão para o cachimbo e apertou os lábios em volta da haste. O seu olhar cruzou-se com o de Henry.

 

- É a última vez que te dou isto - disse ele. - Nunca me perdoarei, se ficares viciada.

 

Ela soltou um risinho triste.

 

- Acho que já me incutiste demasiados maus hábitos. Lentamente, Henry moveu a chama da vela para a frente e para trás, por baixo da ampola. Enquanto o metal aquecia, e a bola de ópio começava a derreter, soltando um fumo azul de odor doce, Henry disse-lhe:

 

- Expira. Isso. Traga o fumo. Agora.

 

Ela inalou o fumo até aos pulmões, tossiu, voltou a deitar-se e fechou os olhos. Henry repetiu o processo, tragou ele próprio uma baforada e, após um momento de langor, voltou a colocar o cachimbo e o ópio no bufete. Pegou em Helen e carregou-a até à cama. Ficaram deitados, lado a lado, entregues à indolência provocada pela droga. Ela pousou a cabeça na curva do braço dele. Henry acariciou-lhe o ombro, descendo até à curva do seu braço e aos seios, enquanto ela traçava com os dedos um percurso pelo ventre dele. Encostou-se a ele, desfrutando do calor que lhe invadia o corpo.

 

- Henry? - murmurou.

 

- Sim?

 

- Quando estás sozinho, aqui, quando não estou contigo, com todas aquelas raparigas disponíveis, alguma vez... tu...?

 

Ele calou-a com um beijo.

 

- Chiu... - sussurrou-lhe. - Não...

 

- Não me importaria se o tivesses feito - continuou ela. - Se eu fosse homem, tenho a certeza de que o teria feito... Hoje, quando cheguei, olhei para uma delas. Era tão bonita. Estava à porta do pavilhão, do outro lado do carreiro. Um rosto tão pálido, e olhos lindos, de um cinzento escuro e reluzente... Era esguia, graciosa, com um cabelo bonito, mas parecia muito, muito triste. Tudo nela era tristeza. Quem é?

 

- Provavelmente era a Fan Yimei.

 

- Gostei dela. Os nossos olhares cruzaram-se, sabes, por uma fracção de segundo. Pareceu tão... compreensiva. Que estranho. Foi a primeira chinesa que vi e me fez sentir que podia ser minha amiga. Não é esquisito? Nunca falei com ela. Alguma vez tu...? Com ela?

 

- Não.

 

- Talvez devesses fazê-lo.

 

Percorreu com a boca o ombro dele, beijou-lhe uma orelha, o pescoço, o queixo, enquanto, com uma mão, lhe tocava no sexo. Ele começou a reagir. Ela aproximou-se, pressionando o seu corpo contra o peito dele, e fitou-o com um olhar triste.

 

- Esta será a última vez, Henry.

 

- Porquê? - perguntou ele, ofegante, sentindo a carícia da mão dela. - Pensava que gostavas disto.

 

- Vivo para isto.

 

- Então, porquê?

 

- Porque nunca serás meu e não posso ter duas vidas.

 

- Oh, minha querida... - suspirou ele. - Não é o que eu quero... Eu quero, a sério que quero....

 

- Amar-me? - sussurrou ela, sentada em cima dele.

 

Não precisas de o dizer, meu querido. Eu compreendo.

 

E guiou as mãos dele até aos seus seios, suspirando quando ele lhe tocou nos mamilos.

 

- Tenho um trabalho para fazer aqui - murmurou. -

 

Minha querida, é um papel que tenho de desempenhar. Não sou a pessoa que tu... Meu Deus, se eu pudesse...

 

Gemeu enquanto ela se enterrava sobre o seu corpo, montando-o.

 

- Não interessa. Eu compreendo... Não interessa. Eu vou ficar bem. Ficarei bem. Prometo. Eu compreendo...

 

As suas palavras eram ofegantes, enquanto se balançava ao ritmo do movimento por baixo dela.

 

- Não compreendes... - Ele arqueou-se para cima, agarrando-a pelas costas, e mantendo-se dentro dela, sem quebrar o ritmo. A sua boca encontrou a dela e sugaram-se avidamente. - Não podes. Não podes casar-te com aquele idiota sussurrou, enquanto tirava a língua, mas ela só conseguiu ouvi-lo gemer, porque começara também a gemer e a chorar, enquanto a paixão e o ardor se intensificavam, e o suor escorria dos seus corpos, que tinham agora uma cadência própria, uma vida própria, oscilando violentamente até ao momento de libertação final...

 

Jin Lao fechou o postigo.

 

- Exótico, como disse, Mama. Uma demonstração deveras curiosa, mas muito pouco talentosa. E a mulher é extraordinariamente feia.

 

- Todas as mulheres são feias para si, Jin Lao. A questão é: será ela feia para outros homens?

 

- Suponho que, para esses libertinos, que se saciaram com todas as outras variações possíveis, a perspectiva de ir para a cama com uma fada-raposa possa ter algum atractivo.

 

- Poderá ter algum atractivo para o mandarim, Jin Lao?

 

- Sim, julgo que sim. como conseguiria torná-la uma prostituta da sua casa? Só em sonhos, querida amiga.

 

- Viu que ela fuma ópio. pode ser um engodo.

 

- Sim, mas está protegida por um pai, um amante e um noivo pateta que é suficientemente idiota para a querer mesmo quando o Ma Na Si se fartar dela. Como se propõe lidar com eles?

 

- Talvez não tenha de lidar com eles, Jin Lao. Você estava presente quando o carro de fogo chegou. Viu o padre desaparecer por magia. O meu filho diz-me que os Punhos Harmoniosos se tornarão poderosos em Shishan, muito em breve. Quando esse dia chegar, que valor terá a protecção de um estrangeiro? De que valerá mesmo a protecção do mandarim?

 

Jin Lao lançou-lhe um olhar severo durante muito tempo.

 

- Quem sabe que futuro reserva, Liu? É mais prudente não especularmos. Tudo o que posso dizer é que se uma eventualidade como a que descreveu se proporcionar, o proxenetismo de um demónio de saias estrangeiro será a menor das nossas preocupações. Prefiro limitar os meus prognósticos ao que é tangível, assim sendo, que mencionou qualquer coisa acerca de um banho...

 

De braço dado, os dois amigos atravessaram o carreiro do jardim de regresso ao edifício principal. Mãe Liu apertou o xaile em volta do corpo. O ar estava frio, prenunciando a queda de neve.

 

O PEQUENO IRMÃO CONSEGUE IMITAR o BELO GROU; MESTRE ZHANG DIZ QUE A PRÁTICA NOS TORNARÁ DIGNOS DOS DEUSES

 

As crianças andavam a tramar alguma coisa.

 

Não era normal a que ponto Jenny e George se tinham tornado dóceis quando chegava a hora de deitar, especialmente nas noites em que os Airton tinham convidados. Até mesmo nas outras noites, os dois irmãos recolhiam aos quartos assim que acabavam de jantar, sem esboçar o mais pequeno protesto.

 

Quando Nellie entrava e lhes anunciava que era hora de apagar a luz, não havia pedidos como “Só mais uns minutos” ou “Posso acabar o capítulo?”. Sem uma palavra, os livros eram fechados e colocados na mesa-de-cabeceira. Com um movimento fluido, as crianças saíam das camas e ajoelhavam-se para recitar as orações. Depois, com a mesma rapidez, enfiavam-se novamente na cama, puxavam os lençóis até ao nariz, olhando para cima com os seus grandes olhos inocentes, à espera do beijo de boas noites, e não se ouvia sequer o mais leve murmúrio quando Nellie soprava a vela. Era tudo deveras misterioso.

 

Nellie teria descoberto o segredo se porventura se lembrasse de levantar a pesada toalha de linho da mesa enquanto jantava com o marido. Encontraria os filhos debaixo da mesa, com os braços cruzados à volta dos joelhos dobrados, os olhos a brilhar no escuro, sempre atentos à floresta de pernas que podiam, a qualquer momento, esticar-se ou mexer-se e descobri-los. Há já várias semanas que os dois pequenos malandros, no seu esconderijo, escutavam histórias de encantar verdadeiras, reveladas durante a conversa dos adultos, enquanto estes jantavam, histórias muitas vezes mais excitantes do que as aventuras de Henty ou do capitão Marryat que liam nos livros.

 

Isto porque era ao jantar que os pais de Jenny e de George falavam acerca dos Boxers.

 

Tinham desistido de avisar os pais do que Ah Lee e Ah Sun lhes contavam em segredo na cozinha: histórias acerca do sempre crescente e invencível exército que andava a espalhar a sua magia ameaçadora pelos campos. Eles próprios tinham visto o padre dos Boxers ser esmagado pelas rodas do comboio, e depois desaparecer como um mágico. Tinham pesadelos com aquele homem, de rosto pálido e sem olhos. E, agora que o americano muito alto, Mr. Fielding, se achava em casa deles, estavam convencidos de que iriam finalmente obter algumas respostas. O sacerdote era não só uma pessoa muito interessante, para um adulto (tinha sido cobói no Faroeste), como o seu papel de comissário das Missões Estrangeiras o levara a viajar por toda a China, e, mais importante ainda, dissera ao pai, logo na primeira noite, ter estado cara a cara com os Boxers!

 

E estava naquele momento a descrevê-los!

 

- No Sul, os Boxers já não são propriamente uma novidade - dizia Mr. Fielding. Acabara de acender o seu segundo charuto. - É normal encontrá-los a vagabundear em grupos pelas estradas de qualquer aldeia da província de Shantung e de Chih-li. Geralmente, há algumas demonstrações de artes marciais, como pano de fundo: um deles, em tronco nu, faz rodopiar uma grande espada por cima da cabeça, enquanto a multidão o admira, ou também pode ser uma demonstração de força, partindo tijolos com as mãos... E espantoso o que eles conseguem fazer. Normalmente, não nos prestam atenção, quando passamos por eles. Podem, quanto muito, lançar uma piada hostil ou assobiar, mas se lhes respondemos no mesmo tom eles riem-se. Lá no fundo, são camponeses simples, apesar de toda a sua colorida aparência.

 

- Colorida? - exclamou o pai. - Refere-se ao uniforme?

 

- Bom, acho que podemos chamar-lhe uniforme... Parece mais uma espécie de fato de fantasia que poderíamos encontrar no guarda-roupa de um actor de uma trupe ambulante: túnicas amarelas, lenços vermelhos, faixas de cor azul-celeste atadas à volta da cintura e caracteres vermelho-sangue pintados no peito. Alguns assaltaram os arsenais das aldeias e pavoneiam-se com armaduras antigas, brandindo grandes facas.

 

- Pela sua descrição, mais parecem cómicos.

 

- Oh, mas não são cómicos, doutor. Seria o mesmo que dizer que o Cochise1 era cómico, só porque usava uma tanga de pele e uma cartola com uma pluma. Passei algum tempo com os Apaches, na qualidade de pregador, quando era novo Trabalhei numa reserva, um daqueles campos infernais e miseráveis onde tentávamos domar o espírito de um povo selvagem e orgulhoso, impingindo-lhes a civilização por meio da fome e da bebida. Dei-lhes aulas sobre as Escrituras, e lembro-me do ódio paciente nos seus olhos, enquanto as moscas lhes picavam os rostos e o orgulho. Era um povo desfeito, e fico doente só de pensar nisso. Mas, doutor, se tivesse visto um apache chiricahua montado no seu cavalo, com uma espingarda na mão, como eu vi uma vez Jerónimo, o sucessor de Cochise, depois de liderar a debandada da reserva de San Carlos, onde tinham sido enfiados, então teria contemplado um verdadeiro homem. Altivo como uma águia, livre como o vento, apesar de as suas roupas não serem mais do que aquilo a que eu e o senhor chamaríamos trapos e de os seus haveres se limitarem às suas armas, alguns ossos de dedos e umas quantas contas. Tão assustador como um lince, o assassino mais implacável que Deus alguma vez trouxe a este mundo. Ainda assim, mal-grado estar tudo contra ele, manteve a cabeça erguida. Doutor, custa-me muito dizer isto, mas aquele homem tinha algo em comum com estes Boxers.

 

- Quer dizer que eles são selvagens perigosos?

 

- Se os provocar, podem de facto ser muito perigosos, mas não era a isso que estava a referir-me. O que eu vi nos olhos deles, doutor, foi orgulho. Ambos vivemos na China há muitos anos, o senhor há mais tempo do que eu. Habituámo-nos à natureza oprimida e submissa dos camponeses chineses. Vamos, não o negue. Alguma vez um camponês o fita olhos nos olhos quando está no seu consultório? O muleteiro mantém

 

1 Cochise: líder índio (c. 1810-1874) de um grupo de apaches chiricauas que durante algumas décadas defrontou as tropas norte-americanas no território compreendido entre o Arizona e o México. (N. do E.)

 

o seu caminho quando o senhor se aproxima dele a cavalo? Não. O primeiro cumprimenta-o com um murmúrio, evitando fitá-lo; o segundo anseia por se desviar do seu trajecto. Há uma subserviência inveterada em cada chinês, desde que nasce. É uma sociedade de superiores e de inferiores, onde uma pessoa ou oprime ou é humilhada, e o camponês situa-se no ponto mais baixo dessa escala. Mas quando um desses Boxers me olha na estrada, eu vejo um homem. Não é um selvagem como um apache, mas fita-me olhos nos olhos com a mesma expressão ameaçadora e, assim Deus me proteja, eu trato-o com todo o cuidado e respeito e sigo o meu caminho tão depressa quanto me é possível.

 

- Acredita realmente que os missionários correm perigo com os Boxers, Fielding?

 

As crianças ouviram o americano suspirar, reflectindo sobre a pergunta, e em seguida, o tilintar de vidro, quando se serviu de um pouco mais de vinho do Porto.

 

- Perigo? A nível físico? Não me parece. Pelo menos, por enquanto. São os pobres convertidos que são ameaçados. Eles voltar-se-ão contra os da sua própria raça antes de se voltarem contra nós. Existem relatos corroborados de assassínios de aldeões cristãos nas províncias de Shantung e de Chih-li. E já houve, de facto, actos de fogo posto em paróquias isoladas. Casas cristãs incendiadas, fogos em igrejas, esse tipo de coisas. Os tempos não estão fáceis e aqueles antigos moços de lavoura, na sua loucura, são capazes dos actos mais cruéis. Atrevo-me mesmo a afirmar que os bandos de Boxers têm a sua parte de criminosos e de bandidos que os incitam à violência. Como é normal, as comunidades de convertidos em todo o Norte da China sentem medo...

 

“O que me assusta, contudo, é como o governo e aqueles que detêm o poder podem tentar manipular todos esses distúrbios para atingir os seus próprios objectivos. Até agora, pelo menos em geral, os mandarins têm-se mantido do lado da lei e da ordem. Todos os que cometeram actos violentos contra os cristãos continuam a ser punidos. No entanto, os Boxers constituem uma faca de dois gumes. Ouvi dizer que as facções que se opõem à presença dos estrangeiros que se rno vem na corte, lideradas pelo príncipe Tuan e outros da sua laia, apoiam secretamente os Boxers, que têm aumentado em número. Parece-me que há uma espécie de encorajamento tácito. Ou que, pelo menos, uma das facções viu uma oportunidade de nos assustar, de nos tirar algumas concessões, de se vingar de algumas das humilhações políticas dos últimos anos.

 

- O governo nunca quebrará os tratados que assinoo - contrapôs o Dr. Airton. - Você bem sabe que tipo de retribuições as potências lhe exigiriam. Mas fiquei alarmado com o que me disse sobre os convertidos. Mesmo nos momentos mais calmos, há sempre uma certa tensão entre os convertidos e a comunidade local. Disputas normais, acerca de terras, desembocam por vezes em acesas discussões religiosas. E existem outro tipo de ressentimentos.

 

- Receio que todo o nosso trabalho tenha criado, inadvertidamente, um barril de pólvora. A comunidade cristã em Shishan é grande, doutor?

 

- Não, grande não é. Existem três ou quatro aldeias nas cercanias. Infelizmente, não posso afirmar que tenha sido eu que as converti. São fiéis à Igreja Católica e não à Igreja Reformista. As minhas duas freiras italianas efectuam o trabalho pastoral como podem, o que é difícil, sem um padre. Contudo, visitam as aldeias de tempos a tempos.

 

- Já reparei que a sua missão é digna de louvar por ser ecuménica, Airton.

 

- Tudo isso é consequência de circunstâncias especiais. Um dia, um novo padre, nomeado por Roma, virá substituir o falecido padre Adolphus, e eu perderei duas excelentes enfermeiras, mas se o que diz corresponde à realidade, parece-me que, mais do que ninguém, nós, os missionários, devíamos mostrar-nos solidários uns com os outros neste momento, para contra-atacar a superstição em torno dos Boxers. Mas pergunto a mim próprio: devemos realmente levá-los a sério?

 

- O meu conselho é levá-los muito a sério. Não quero que fique com uma ideia errada. Não me deixarei intimidar pelos Boxers nem por nenhum outro bando de homens. Ainda não emiti nenhum comunicado exortando a evacuação das missões americanas, nem o farei, por não me parecer necessário. Na verdade, neste momento difícil, acho que nos convém ficar. É esse o nosso dever. Precisamos de manter a calma. Se a mantivermos e tivermos fé em Deus, estaremos em segurança. Fez uma pausa. Os dois irmãos ouviram um ruído, quando ele despejou a cinza do charuto no cinzeiro.

 

- Entretanto, do que não precisamos, num momento como este, é de loucos varridos como o Septimus Millward, a envergonhar o nosso bom nome e a confirmar todos os preconceitos que já existem a nosso respeito.

 

- Ah, já se encontrou com ele...

 

- Sim, fui esta tarde a sua casa, se é que se pode chamar casa àquilo. A imundície numa reserva dos Araphaos é mais requintada. Doutor, quase desesperei quando vi uma família que mais parecia um bando de esqueletos com vida. Perguntei-lhe porque não comiam, e sabe o que ele me respondeu? Que o Senhor lhe ordenara que toda a família jejuasse até ao regresso do filho pródigo.

 

- Sim, ele acredita que o filho está vivo.

 

- E parece que tem razão. Como deve saber, Mister Millward é visitado regularmente por visões celestiais. O último boletim do céu relata que o Hiram se entrega ao vício e à luxúria entre os prostíbulos de Babilónia, que, segundo ele, estão situados em frente do templo de Baal.

 

- O homem está louco.

 

- Não posso dizer que discorde. Explicou-me que o tal prostíbulo de Babilónia fica situado por cima de uma loja de bolinhos de massa, na praça do mercado da cidade. Afirma que viu o rosto pintado do filho a olhar para ele de uma janela, enquanto os lacaios de Satanás o espancavam, cá em baixo.

 

Sabe, certa vez ele foi espancado na praça do mercado. Estava a tentar evitar uma decapitação. Na verdade, era a execução dos assassinos do filho, que ele insistia em afirmar que tinham sido falsamente acusados. Acontece que há de facto um bordel por cima de uma loja de bolinhos de massa, ali perto, e fica mesmo em frente do templo confucionista.

 

- Nesse caso, há algum método na sua loucura, mas é evidente que o homem enlouqueceu, doutor. O que mais me perturba é que a sua tragédia pessoal parece ter intensificado ainda mais o seu zelo como missionário. A sua casa, imunda como é, está cheia de crianças e de bebés órfãos, que brincam na lama, no meio de cães e de galinhas. Devem ser umas cem crianças. E, quando lá estive, vi a mulher dele voltar com dois bebés nos braços. Ao que parece, tinha acabado de encontrá-los, abandonados à porta do mosteiro budista onde fora pedir esmola. Imagine... De uma maneira ou de outra, eles lá sobrevivem naquele antro. Só Deus sabe como se sustentam. Também há adultos. Deficientes e mendigos, que, segundo o Millward, ele próprio baptizou. Disse-me que está a ensiná-los a falar novas línguas. Sim, línguas. E planeia uma nova campanha evangélica que levará o mundo de Deus ao palácio da Babilónia. Receio que ele se estivesse a referir ao yamen do mandarim. Todo aquele bando de crianças e aleijados marchará em procissão até ao yamen; depois, quando os malfeitores tiverem sido castigados, o Senhor pensará em devolver-lhe o filho. Não se ria. Jesus ordenou-lhe pessoalmente tudo isto, numa visão.

 

- Já vi que consigo se mostrou muito falador.

 

- Foi a afabilidade em pessoa. Vê-me como comandante da sua ordem, a quem, no seu delírio, tem de apresentar um relatório. E não anda muito longe da verdade. Tecnicamente, ele responde perante a Comissão Americana para as Missões Estrangeiras. que me deixa numa situação difícil. Não posso criticá-lo por salvar órfãos nem por converter mendigos, mas a sua abordagem é extremamente perigosa. Aquela casa é muito pouco higiénica. Se um daqueles órfãos adoece e morre...

 

- Voltarão a ouvir-se as antigas acusações de que nós, cristãos, recolhemos crianças a fim de lhes extrair partes dos corpos para os nossos rituais.

 

- Exactamente. E a marcha que ele está a planear... Consegue imaginar algo mais provocador, numa altura como esta?

 

- Pode ordenar-lhe que volte para a América?

 

- Não. A minha visita tem como único objectivo apurar os factos. Uma exoneração teria de ser decidida por toda a comissão, talvez até mesmo pelo próprio bispo. E a sua aplicação é.... bem, é difícil. Meu Deus, provavelmente teria de envolver as autoridades civis. Mas tenho de fazer alguma coisa, para bem do Millward.

 

- E para bem dos seus filhos - acrescentou calmamente o médico.

 

- Bom, rezemos para que nada de grave aconteça nos próximos dois ou três meses. Deve ser esse o tempo necessário para pôr a burocracia do nosso lado em marcha. Ao menos, agora, Shishan tem comboio, pelo que eu e o senhor podemos comunicar mais facilmente. Não me agrada sobrecarregá-lo com um assunto do qual não deveria ocupar-se, mas ficava-lhe muito agradecido se me mantivesse informado. Em troca, prometo-lhe que me encarregarei daquele pobre homem, de uma maneira ou de outra, o mais depressa que puder.

 

- Meu caro - ouviram o pai exclamar -, estou tão ansioso como você por ver resolvidos os problemas daquela triste família.

 

- O mais trágico é que o Septimus Millward, em tempos, se revelou prometedor como missionário. Li os relatórios do Colégio de Oberlin. Ele era uma inspiração para os colegas, sabia? O seu conhecimento das Sagradas Escrituras era extraordinário, e demonstrava uma generosidade e uma bondade que inspiravam respeito e devoção. Não havia pessoa que o conhecesse que não gostasse dele. Todos se regozijaram quando ele e a família resolveram vir para a China. Encararam-no como um verdadeiro David que vinha travar uma batalha com os pagãos. Ele enfrentou as colocações mais difíceis, nas condições mais adversas, e as cartas que escrevia eram sempre alegres, entusiásticas, cheias de compaixão... Foi depois de vir para Shishan que... Algo o possuiu aqui. Demónios. Fantasias...

 

- Então, Fielding, julgava que já tínhamos encerrado o assunto dos demónios que possuem pessoas quando falámos dos Boxers. Só falta dizer-me que aquele pobre Millward resolveu aprender artes marciais.

 

- Dê-lhe tempo! - A risada do americano ressoou na sala e a palmada que deu na mesa fez estremecer a louça. Dê-lhe tempo!

 

Quando os dois irmãos voltaram de mansinho para os seus quartos, George sussurrou ao ouvido de Jenny:

 

- Ouviste aquilo? Mister Fielding pensa que Mister Millward está possuído! Tal como os Boxers!

 

- Ele é cristão. Não pode estar possuído.

 

- Pois não, mas pode estar possuído por espíritos cristãos. Por anjos, como... como São Miguel. O Ah Lee disse que se tivéssemos de lutar contra os Boxers, teríamos de equiparar a nossa magia à deles. Talvez Mister Millward seja a nossa arma secreta! Só que ninguém se apercebe disso.

 

Poucos dias depois de Mr. Fielding partir, Helen voltou para casa dos Airton. Espantara toda a gente ao aceitar, inesperadamente, o convite para trabalhar no hospital, o que a princípio deixara as crianças encantadas, mas não precisaram de muito tempo para perceber que ela mudara de uma forma que não sabiam definir.

 

Continuava a ser dócil e bondosa, e sorria-lhes, com ar sonhador, sempre que os via, mas já não brincava com eles. Tinha um ar distante. Ao fim da tarde, depois do trabalho, ficava sentada horas seguidas, com uma revista aberta nas mãos, contemplando o espaço à sua frente. Deixara de andar a cavalo ou de fazer exercício. Por vezes, Tom e o pai dela visitavam-na, mas não parecia feliz por vê-los e, quando falava, os seus sorrisos pareciam forçados. Mr. Manners nunca a visitava, e talvez fosse isso o que mais desapontava os dois irmãos.

 

O mais estranho era que a aparência física de Helen também mudara. As crianças lembravam-se dela como uma rapariga corada, saudável, alegre e enérgica. Agora, as suas faces eram pálidas e apresentava profundas olheiras. De certa forma, parecia mais bela do que nunca, com o cabelo de um vermelho mais intenso, realçado pela palidez da pele, e os olhos verdes ainda mais acetinados, se bem que reflectissem um brilho triste e ténue, muito diferente do brilho contagioso de que as crianças se recordavam. Era como se tivesse perdido todas as energias.

 

- Não pode ser só o cansaço - comentara George certo dia, depois de Helen recusar gentilmente o convite para jogar ao arco com eles no pátio. - A mamã e a irmã Elena nunca parecem cansadas depois de trabalharem no hospital.

 

- Ela ainda é nova - opinou Jenny. - Talvez ainda não esteja habituada. E é sinistro trabalhar com aqueles horríveis opiómanos. Pergunto a mim própria porque foi que ela os escolheu. Passa horas lá enfiada.

 

- Não sei. A mim, dão-me arrepios, a vaguear por aí com olhos muito brilhantes e com as costelas à mostra. Vão contra as coisas ou ficam sentados nas camas, como fantasmas. A irmã Elena disse que ela se ofereceu para trabalhar especialmente na enfermaria dos viciados em ópio. Disse ao papá que não queria trabalhar em mais lado nenhum.

 

- Sabes o que eu penso? - exclamou Jenny. - Que ela teve um desgosto amoroso e que é por isso que quer passar o dia todo com pessoas infelizes.

 

- Oh, não! - resmungou George. - Não me venhas outra vez com a história do caso de amor com Mister Manners! Ouve, Jen, eu prometi que deixava de falar das fadas-raposas. Porque não te calas com essa treta do amor de uma vez por todas? Ela vai casar-se com o Tom.

 

- Ela está a ficar tão pálida que agora se parece um pouco com uma fada-raposa - dissera a irmã, com ar pensativo. De qualquer maneira, acho que eles estavam apaixonados. Afinal, vimos as pernas e os pés deles tocarem-se por baixo da mesa, no Outono passado, não foi? Não foi?

 

- Cala-te, Jen. És mesmo chata. Ela vai casar-se com o Tom.

 

E a troca de opiniões ficara por ali, com Jenny a deitar a língua de fora a George e com este a correr atrás dela pelo pátio, até a apanhar e lhe puxar o cabelo. Duas noites mais tarde, contudo, ouviram uma conversa que tornou as suas brincadeiras infantis em algo muito mais sério.

 

Tom e o pai de Helen tinham sido convidados para ir jantar a casa deles. Era a última noite que passavam em Shishan antes de partirem numa nova expedição até Tsitsihar. As crianças tinham esperado ansiosamente por aquele jantar durante toda a semana. Agora, os pais nunca falavam dos Boxers à mesa, e esconderem-se lá debaixo tornara-se monótono. Certa noite, tinham até adormecido, descobrindo ao acordar todas as lanternas apagadas e os adultos a dormir. A corrida pela casa imersa na escuridão fora assustadora. Naquela noite, porém, Mr. Delamere ia visitá-los e ele tinha sempre histórias interessantes para contar.

 

Quase foram apanhados ao correr sorrateiramente para a sala de jantar. Helen estava sozinha no corredor, a mirar-se ao espelho. Achava-se tão absorta que nem deu pelo ruído de pequenos passos precipitados, quando os dois irmãos recuaram até à entrada do corredor. Ali ficaram, à espera, enquanto se perguntavam o que acontecera. Podiam ouvir as vozes na sala de jantar, e estavam com grande curiosidade em descobrir por que motivo Helen não se juntara aos outros. Observaram-na atentamente, quando ela fechou os olhos e encostou a cabeça ao espelho, em silêncio. A expressão do rosto revelava uma profunda tristeza. Só depois endireitou os ombros e avançou, cansada, para a sala de estar. Antes de transpor a porta, deteve-se e esboçou um sorriso. As crianças ouviram a voz portentosa do pai dela, a saudá-la, e a voz fina de Helen, como um chilreio, a responder-lhe. O murmúrio geral que se seguiu abafou os passos das crianças, quando entraram a correr na sala de jantar e se enfiaram à pressa debaixo da mesa, mesmo a tempo. No minuto seguinte, Ah Lee entrou e começou a pôr os pratos de sopa.

 

Para variar, foi um jantar alegre. Mr. Delamere estava em boa forma, gabando-se da fortuna que ele e Tom fariam quando vendessem o seu sabão ao novo cliente, Mr. Ding, na Mongólia Interior. Iam partir para lá com oito carroças e dez guardas armados.

 

- Como é evidente, não temos segredos para vocês acrescentou Mr. Delamere, em tom confidencial -, mas na verdade temos de manter esta viagem no maior sigilo. O Lu, o meu sócio, desconfia que um outro mercador está de conluio com o Homem de Ferro Wang. Não posso revelar quem é, Airton, mas digamos que se trata de um respeitável comerciante grossista que ambos conhecemos. - Baixou então o tom de voz até um murmúrio. - Jin Shangui. O patife informa o Wang da data de partida dos carregamentos para que aqueles bandidos nos possam montar uma emboscada.

 

- Meu caro Delamere, se é segredo, então não devia contar-mo - replicou o médico. - Se bem que não acredite em si. Conheço o Jin há muitos anos.

 

- Para lhe ser sincero, eu também fiquei algo admirado confessou Frank -, mas o Lu mostra-se muito seguro quanto a isso. Claro, continuamos todos amigos, para manter as aparências, mas já não dizemos ao Jin o que vamos fazer. Quanto muito, inventamos uma patranha qualquer, de vez em quando, só para o despistar. Tornámo-nos uns verdadeiros agentes secretos. Não é, Tom?

 

O jovem não respondeu. Tanto ele como Helen mal abriram a boca durante todo o jantar.

 

- Não percebo nada dessa vossa conversa sobre segredos e mercadores - comentou Nellie, sentada à cabeceira da mesa -, mas já ouvi falar do Homem de Ferro Wang. Mister Delamere, espero que o senhor e o jovem Tom tenham cuidado nessa vossa grande aventura. Os bandidos só por si já constituem um perigo, mas com todos esses boatos acerca dos Boxers, que ameaçam fazer mal às pessoas tementes a Deus, sinto-me bastante preocupada.

 

- Não tem de se preocupar com os Boxers - riu-se Frank Delamere. - Eles não vêem até ao Norte. Pelo menos, ainda não o fizeram. E já defrontámos o bando do Homem de Ferro Wang antes, não foi, Tom? Ou melhor, você defrontou-o, porque é muito corajoso. Se bem que a coisa prometa, quando regressarmos de Tsitsihar carregados com toda aquela prata que vamos receber pelo álcali. Helen, minha querida, não sabias que o teu noivo e o teu papá vão ficar ricos, pois não? Só espero que os directores da Babbit e Brenner aprovem uma comissão substancial para os seus funcionários, tão empenhados em lutar contra a sujidade, quando ficarem a par dos lucros que lhes vamos proporcionar, desta vez. Alguma vez viu uma carroça carregada de prata até acima, doutor? É lindo de se ver. E é por isso que levamos guardas armados. Não para a viagem de ida, mas para o regresso.

 

- Penso que devias ser mais discreto, papá - comentou Helen, quebrando pela primeira vez nessa noite o silêncio.

 

- Disparate! - exclamou Frank Delamere, servindo-se do leite-creme que Ah Lee trouxe numa bandeja. - Estamos todos em família. Quem poderia estar à escuta, na casa dos Airton? - As crianças viram o seu pesado tronco virar-se na direcção da filha. - Estás um bocado pálida, rapariga! Não te sentes bem? Ou estás triste por ver o teu velho pai lançar-se em mais uma longa viagem?

 

- Não é de si que ela vai sentir saudades, Delamere. É do jovem Cabot - comentou jovialmente Airton.

 

- Sim... Mas, agora que fala nele, também não abriu a boca toda a noite. Mas que par tão tristonho. Ainda bem que a minha pele é demasiado dura para as flechas do Cupido E que parecem os dois uns infelizes. A despedida é sempre difícil, não é assim?

 

- Perguntava eu aos meus botões se seria impertinente da minha parte saber - e o médico pigarreou, antes de prosseguir - se já há uma data marcada para o casamento...

 

- Sim, Tom - adiantou Nellie. - É para nós um prazer acolher a Helen na nossa casa, e prezamos muito a ajuda dela na enfermaria, mas de tempos a tempos perguntamo-nos quais são os vossos planos. Atrevo-me a dizer-lhe que ela sente muito a sua falta, Tom. Ultimamente, tem andado muito calada. E estou de acordo com Mister Delamere, está um pouco pálida.

 

Os dois irmãos repararam que Tom esmurrava ao de leve a palma da outra mão por baixo da mesa, enquanto batia com um pé no chão. Tiveram a impressão de uma tremenda energia que era contida a custo. Deixaram de ver as grandes mãos de Tom e seguiu-se um chocalhar de louça na mesa.

 

- Mistress Airton, doutor Airton, posso abusar da vossa hospitalidade? - exclamou Tom.

 

- Claro que sim - respondeu o médico, por entre o silêncio que aquela intervenção inesperada causou.

 

- Gostaria de ficar alguns momentos a sós com a minha noiva. Nós podemos... nós podemos ir ter convosco à sala de estar daqui a pouco.

 

- Claro que sim - concordou o após uma pausa. - Que estupidez a minha! Como é óbvio, vocês querem ter algum tempo para ficarem a sós. No que estava eu a pensar?

 

- Provavelmente, vinho do Porto e nos xarutos que nos farão muita falta se nos vamos levantar da mesa mais cedo - resmungou Frank Delamere.

 

- Pode beber o seu cálice de porto - interveio Nellie e fumar o seu charuto, além do café, na sala de estar. Venha, penso que estes dois jovens têm muito que dizer um ao outro.

 

As cadeiras arrastaram no chão e dois pares de calças às riscas e um vestido com folhos desapareceram da vista dos dois irmãos. Os resmungos de Frank Delamere deixaram de se ouvir, e pouco depois só as calças de flanela de Tom e a saia às riscas de Helen eram visíveis de debaixo da mesa. Os seus corpos pareciam petrificados, nas respectivas cadeiras. George e Jenny olharam um para o outro, com os olhos muito abertos perante aquele estranho silêncio, enquanto o casal de noivos se confrontava, por cima das suas cabeças.

 

- Amanhã parto novamente para Tsitsihar - disse Tom, após uma pausa. - Não me verás por uns tempos. Pelo menos durante umas seis semanas.

 

Pareceu esperar por uma resposta, mas nenhuma se fez ouvir.

 

- Mister Lu está bastante confiante quanto a Mister Ding comprar todo o álcali. Será a sorte grande para a Babbit e Brenner. Tudo pelo que o teu pai trabalhou.

 

- Estou contente por ele - murmurou Helen. - E por ti. Os dois irmãos tinham de fazer um esforço para escutar a voz dela.

 

Tom, mais uma vez, aguardou, como se esperasse que a noiva dissesse mais alguma coisa.

 

- Bom, também estou contente - continuou ele, volvida outra pausa. - É... É muito gratificante. - Interrompeu-se. - A viagem... - retomou. - Ouve, não te preocupes connosco. Vai correr tudo bem.

 

- O meu pai não devia andar por aí a falar a toda a gente sobre a prata.

 

- Pois não.

 

As crianças repararam que o pé de Tom recomeçara a bater na carpete, e as suas mãos percorriam os braços da cadeira.

 

- Ele tornou-se tão gabarola. Tão estúpido. Tão juvenil! As crianças sobressaltaram-se com aquela veemência estridente por parte de Helen. - Estou farta dele! Farta! Das suas bebedeiras, das suas gabarolices, das suas baboseiras sentimentais acerca da sua menina. Eu não sou a sua menina. Alguma vez ele pensou nos riscos a que te submete? Esse negócio é assim tão importante que justifique pôr as vossas vidas em risco por esses caminhos fora? Ele é um monstro, e tu, um idiota, por alinhares com ele.

 

Tom suspirou.

 

- Então, Helen. Tomámos todas as precauções. Além do mais, já fizemos este trajecto antes. Trata-se de uma vulgar viagem de negócios.

 

- Não pode tratar-se de uma viagem vulgar, com os Boxers a andar por aí, e com os bandidos informados de todos os vossos movimentos. Mas tu não és melhor do que ele, pois não? Que belo par fazem... Os dois alegres aventureiros. Para vocês, tudo se resume a uma piada ou a um jogo de críquete. Desprezo-vos.

 

Perante aquela acusação, o corpo de Tom voltara a petrificar-se, mas Helen também fechara as mãos, por baixo da mesa. Jenny podia ver os nós dos dedos, muito brancos, na obscuridade, e as pernas e o corpo a tremer, por baixo do vestido. Tal como Tom pouco antes, Helen parecia reprimir uma emoção muito forte que tinha grande dificuldade em controlar.

 

- Que se passa, HF? - perguntou Tom, muito calmo. Há semanas... Não; há meses que te comportas de forma estranha.

 

- Tu também? - exclamou Helen, em tom zombeteiro. - Já pareces a Nellie: “Oh, Helen Francês, estamos um pouco pálidas, hoje, não é verdade?” “Oh, Helen Francês, não vamos acabar a canja de galinha?” Se as pessoas me deixassem em paz. Deixem-me... em... paz!

 

- Eu e o teu pai estamos preocupados contigo - disse Tom, num tom de voz pouco convincente.

 

- Tu e o meu pai? É sempre tu e o meu pai, não é assim? Em que par inseparável vocês se tornaram. É por isso que estamos noivos? Faço parte do negócio? Vamos ser o alegre trio que opera maravilhas para a Babbit e Brenner? - Soltou uma gargalhada, mas foi um som desagradável. - Vocês os dois não precisam de mim, Tom. Não faço parte do vosso pequeno clube de rapazolas. Aliás, deviam estar felizes, agora que vos deixei e vim trabalhar para aqui. Assim, podem beber e contar piadas a vosso contento, não é assim? O meu pai já te apresentou a alguma das suas potras? Porque sabes das suas andanças antes de nós chegarmos, não é verdade?

 

Tom suspirou.

 

- Sabes, querida, se eu não tivesse visto que não bebeste nada mais além de água durante toda a noite, diria que tinhas um grão na asa. É que não faço a menor ideia do que estás a falar.

 

- Pobre Tom, sempre tão honesto... És bom demais para seres verdade, sabias?

 

Tom empurrou a cadeira para trás. Os dois irmãos ouviram o ruído das solas dos seus sapatos, enquanto ele andava de um lado para o outro. Helen parecia ter-se acalmado. Pousara as mãos sobre o regaço. Passado poucos minutos, Tom voltou a sentar-se.

 

- Nunca te perguntei o que foi que aconteceu entre ti e o Manners - afirmou, num tom de voz mais doce, mas que revelava, por outro lado, maior firmeza do que até ali - enquanto eu e o teu pai estivemos em Tsitsihar, e depois disso. Nunca fiz quaisquer perguntas, nem a ti, nem a ele. Mistress Airton disse-me certa vez algo acerca de uma tempestade... Tens de compreender uma coisa acerca de mim, HF: sou um homem simples. Não sou imaginativo nem esperto. Acredito no que me dizem. E confio nas pessoas até saber que não devia fazê-lo. Talvez seja uma tolice pensar sempre o melhor das pessoas. Talvez seja uma cobardia, fugir dos factos. Mas, por vezes, temos a esperança, e nada mais do que a esperança, de que, se deixarmos as coisas acontecerem, tudo se resolverá pelo melhor.

 

“Não, não digas nada. Agora, é a minha vez de falar. Já me disseste o que pensavas acerca de mim. Não acredito que me odeies, muito embora nas últimas semanas, sempre que falas comigo, as tuas palavras sejam... bom, não sejam as que um homem quer ouvir da rapariga por quem está apaixonado. Penso não te ter dado motivos para estares zangada comigo.

 

Se fiz alguma coisa que te enfureceu, não foi de propósito, e desde já te peço perdão.

 

“Mas, na realidade, não creio que estejas zangada comigo ou com o teu pai. Penso, isso sim, que estás zangada contigo própria. Das poucas vezes em que perdi as estribeiras na escola, estava quase sempre era a descarregar em outro desgraçado a raiva que sentia pelos meus próprios erros. Não sei como funciona a mente de uma mulher, mas provavelmente funciona da mesma maneira. Deixa-me dizer-te isto de uma vez por todas. Não me interessa o que aconteceu entre ti e o Manners. Mas só se acabou, HF, só se acabou! Desde que tudo tenha acabado, não quero saber. Faz parte do passado. Já o esqueci.

 

- Esqueceste?

 

- Amo-te, HF - disse Tom, com toda a simplicidade. Sim, já o esqueci, e estou a falar a sério. A não ser que ele te tenha magoado... - A voz de Tom tornou-se mais áspera. - Se eu descobrir que ele te magoou, mato-o.

 

George soltou uma exclamação abafada. Jenny apressou-se a tapar-lhe a boca com a mão, mas nenhum dos adultos o ouvira. Tom começara a esmurrar novamente a palma da mão, por baixo da mesa. As duas crianças viram o peito dele alargar-se, quando respirou fundo.

 

- Por outro lado, se não acabou... Se não tiver acabado... - tartamudeou. Fez uma pausa e respirou fundo mais uma vez. - Então, tens de mo dizer, para que eu saia do vosso caminho.

 

As crianças não se atreviam a mexer-se. Helen pegou na sua bolsa, de onde tirou um lenço. Estava húmido, ao voltar a guardá-lo. Quando falou, contudo, a sua voz era calma e inexpressiva. Parecia cansada.

 

- Acabou. Ele não me magoou. Não tens de o matar. Estás contente?

 

Tom afundou-se na cadeira, soltando algo entre um gemido e um soluço. Seguiu-se uma longa pausa. As crianças podiam ouvir o tiquetaque do relógio de pêndulo no corredor. Uma gargalhada ecoou na sala de estar.

 

- E nós? - perguntou, volvido mais algum tempo.

 

- Não sei - respondeu Helen.

 

- E o nosso noivado?

 

- Não sei - repetiu ela, cerrando os punhos.

 

Tom deu um murro na mesa. Os pratos e os copos chocalharam. Um copo de vinho caiu e as crianças viram a toalha manchar-se de vermelho e gotas formando uma poça no soalho.

 

- Por vezes, julgo que o vou matar, de qualquer maneira. Aquele aldrabão. Aquele pulha. Aquele... - O acesso de fúria terminou mal tinha começado. A voz de Tom esmoreceu. Helen não disse nada.

 

Nova explosão. Tom estava de pé, mais uma vez. George e Jenny ouviram-no a andar de um lado para o outro.

 

- Meu Deus, HF! Mas porquê? Porquê? Ela manteve-se em silêncio.

 

As crianças ouviram os passos dele contornarem a mesa até chegarem ao lugar ocupado por Helen. De súbito, o corpo dela foi puxado para cima. Esticando os pescoços, os dois irmãos puderam ver os braços fortes de Tom em volta do corpo dela, mas ela mantinha-se inclinada para trás, sem reagir. Dava a ideia de que Tom a estava a sacudir, tão mole o seu corpo parecia.

 

- Amo-te, amo-te - vociferou, mas a cabeça dela estava virada para o lado. Ao fim de alguns minutos, voltou a colocá-la gentilmente na cadeira. O som dos seus passos continuou.

 

- Vou estar em viagem durante seis semanas, no mínimo, dois meses no máximo - As palavras saíam-lhe desajeitadamente. - Quando eu voltar, perguntar-te-ei se ainda queres casar comigo. Os meus sentimentos por ti não terão mudado. Sou teu, HF. És a minha vida. Nada mais. Amei-te desde o momento em que te vi na casa da tua tia. Entraste e o gás do radiador ardeu com mais intensidade. Não sei descrever melhor aquele momento. Iluminaste-me com o teu brilho. Nunca sonhei... transatlântico, noite, tu... Senti... Como podia um homem merecer tanta felicidade? Suponho que devia estar grato. Terei sempre essa recordação.

 

Os passos cessaram.

 

- Mas não nos divertimos tanto, juntos? Não te lembras de como costumávamos rir-nos? Bastava uma troca de olhares e líamos os pensamentos um do outro... A culpa é minha Nunca devia ter-te deixado sozinha todos os dias durante tanto tempo. Nunca devia ter ficado tão entusiasmado, tal como o teu pai, por aquele maldito processo de fabrico de sabão. Devia ter ficado contigo, de forma a que não tivesses ido andar a cavalo com ele... com aquele...

 

- Não digas mais nada, Tom. A culpa não foi tua.

 

A voz de Helen pouco mais era do que um sussurro. Tom começou por dizer algo, mas deteve-se. As crianças ouviram-no suspirar.

 

- Se a resposta for “não”, quando eu voltar, não te dificultarei a vida. Terás de me perdoar, contudo, se eu não permanecer em Shishan. Nunca aguentaria. A Babbit e Brenner dar-me-á outro posto algures. E mesmo que não dê, tanto faz. Tenho a certeza de que a vida há-de continuar. Como já disse, terei as minhas recordações. E se um homem opta por alimentar o seu desgosto de amor, isso é lá com ele, não é verdade?

 

“Mas pensa bem, HF. Pensa muito bem enquanto eu estiver em viagem. Pouco importa que sacrifiques a minha vida, mas não sacrifiques a tua.

 

A voz dele foi entrecortada pela emoção.

 

- Desculpa. Não consigo encarar mais ninguém esta noite. Agradece a Mistress Airton por mim. Arranja uma desculpa... Meu Deus, HF, o teu cabelo, à luz daquela vela... Como te amo... Que Deus fique contigo, minha querida. Pensa em mim, de vez em quando.

 

A porta do corredor abriu-se e fechou-se suavemente. As crianças ouviram os passos de Tom tornar-se menos nítidos até desaparecerem. Helen não se mexera. Mantinha-se sentada, hirta, na cadeira. Só depois o seu corpo se debruçou para a frente e começou a estremecer, por causa de soluços silenciosos. Um ruído surdo pareceu emanar do seu íntimo, que se intensificou num choro estridente de infelicidade. Balouçou-se de um lado para o outro, enquanto aquele lamento fúnebre que saía de dentro dela se tornava mais alto. Jenny não aguentou mais. Saiu do seu esconderijo por baixo da toalha de mesa, e abraçou Helen, que não parava de chorar. Tinha também os olhos rasos de lágrimas. O lamento parou. Helen pôs os braços à volta da menina e as duas choraram, em silêncio, abraçadas uma à outra. Como uma toupeira, George esticou a cabeça para a luz. Volvido poucos instantes, também ele era arrastado para aquele abraço. Os três balouçaram-se silenciosamente e foi aquele quadro que Frank Delamere viu, de charuto na boca, quando espreitou para a sala de jantar.

 

- Ora, ora! - exclamou, dirigindo-se aos Airton, que se achavam atrás dele. - Aqui temos uma cena digna de Burne-Jones. Mariana debulhada em lágrimas, na casa senhorial rodeada por um fosso, com dois querubins a consolá-la. Nem sinais de Sir Lancelote. Sem dúvida, ficou de tal forma perturbado pelo desgosto de uma separação tão dolorosa que já partiu. Não é comovente? Ora, ora... Anima-te, rapariga. Só vamos até Tsitsihar. Estaremos de volta antes que dês pela nossa falta. Não te preocupes, os sinos repicarão a anunciar o teu casamento muito em breve. Airton, como explica que os seus filhos estejam acordados até tão tarde? Não estará a tornar-se liberal de mais? No meu tempo, mandavam-me para a cama às seis da tarde, com um naco de pão.

 

A três quilómetros dali, no Palácio dos Prazeres Celestiais, Fan Yimei estava prestes a tomar uma decisão. O major Lin ausentara-se com as suas tropas, e ela estava sozinha no pavilhão.

 

Podia ver luzes nas janelas do pavilhão igual ao seu, do outro lado do pátio. Algumas horas antes, o inglês Ma Na Si jantara no pavilhão e depois bebera com o seu amigo japonês. Em princípio, o major Lin devia ter-se-lhes juntado (sem dúvida para outra interminável conversa acerca do contrabando de armas), mas verificaram-se tumultos numa das aldeias mais isoladas - um grupo de rufiões, talvez um dos bandos de Boxers de que toda a gente falava, havia incitado à revolta contra os cristãos locais e um celeiro fora incendiado - e o mandarim ordenara ao major Lin que fosse até lá para restaurar a ordem. Lin resmungara, mas obedecera. Disse-lhe que estaria ausente pelo menos durante dois dias.

 

Fan Yimei reparara que o japonês, que lhe fazia lembrar uma serpente, deixara o pavilhão de Ma Na Si há pouco tempo, seguindo atrás de Mãe Liu em direcção ao edifício principal. Ela sabia para onde ele ia e sentiu uma profunda compaixão pelo rapaz branco que o esperava. Fan Yimei sentira uma profunda repulsa pelo coronel Taro desde a primeira vez em que o vira. Apesar do seu bom aspecto e de todas as suas cortesias, percebera que um temperamento violento espreitava por detrás de toda aquela encantadora máscara de veludo. Os seus olhos nunca se riam; parecidos com os de um lagarto, moviam-se de uma pessoa para outra, com uma expressão fria e calculista. Além do mais, aquele homem produzia um efeito terrível no major Lin. Quanto mais descontraído e insinuante se tornava o japonês, mais rígida e brusca era a reacção do amante de Fan Yimei. Chegava ao extremo da descortesia, como se odiasse aquele homem com quem tinha de negociar. Contudo, sempre que havia uma pausa na conversa, quando a atenção de Taro se concentrava noutra coisa, Fan Yimei observava Lin a olhar para o japonês, com um anseio quase servil espelhado nos olhos. Era o olhar de um amante ou de um adorador.

 

Lin bebia sempre mais do que o costume, antes e depois das visitas do coronel japonês. E, invariavelmente, à noite, quando ficava a sós com ela, aparecia a vara de salgueiro e exigia-lhe que ela o açoitasse. Também se tinha tornado mais bruto, esbofeteando-a e forçando-a a ajoelhar-se à sua frente. Se a possuía, era na posição do cão. Por vezes, Fan Yimei acordava de noite e ouvia-o chorar. Sempre suspeitara de que o amante ocultava alguma vergonha e supunha que remontava ao tempo da guerra. Agora, já não tinha quaisquer dúvidas acerca do que era. Sendo ela própria uma escrava, aprendera a reconhecer os sintomas.

 

As suas suspeitas acerca das inclinações de Taro tinham-se confirmado poucos dias antes, quando Mãe Liu, furiosa e preocupada, a mandara chamar ao edifício principal. A espia de Mãe Liu, Su Liping, conduzira Fan Yimei por um lanço de escadas que ela não sabia existir, e por um corredor de madeira, sem quaisquer decorações e flanqueado por celas. Mãe Liu esperava-a numa daquelas celas. Levantou o cobertor que cobria uma figura enroscada numa cama. Para Fan Yimei, fora como revisitar um pesadelo. Por momentos, teve a ilusão de que o corpo ensanguentado e marcado por contusões era o de Shen Ping, que voltara do túmulo. Depois, o horror dera lugar à curiosidade e à surpresa. Não era uma rapariga chinesa, mas um rapaz estrangeiro, magro e de feições macilentas.

 

- Nem uma só palavra, ouviste? - sibilara Mãe Liu, agarrando-a pela garganta. - Senão, és uma mulher morta. Quero que limpes o miúdo. Trata dele e põe-no bom, como fizeste no ano passado com aquela cabra da Shen Ping. Não quero que este morra. Por enquanto. Ainda tenho de ganhar dinheiro com ele. Compreendeste? Escolhi-te porque tens o dom de curandeira, e és suficientemente inteligente para saber quando deves manter essa boca fechada. É melhor não me desapontares. Ouviste?

 

Atordoada, Fan Yimei iniciara a sua tarefa. Era óbvio que o rapaz fora espancado, mas não indiscriminadamente, como era costume de Ren Ren. Os golpes agrupavam-se nas nádegas e na parte superior das coxas (uma parte vaga da sua mente registou que o major Lin tinha cicatrizes nos mesmos locais do seu corpo). O pior haviam sido as queimaduras feitas com cigarros nos mamilos e nos genitais do rapaz, que estava consciente e chorava de dor. Gritou quando ela lhe aplicou unguento nas feridas. Os olhos pálidos no rosto inchado seguiram receosos os movimentos de Fan Yimei. E quando tentara falar com ele, o rapaz sacudira violentamente a cabeça de um lado para o outro.

 

- Palavras, não... - choramingou. - Palavras, não. Ren Ren vai... Ren Ren vai...

 

E o seu rosto estreito contorcera-se num esgar de puro terror.

 

Levara tempo, mas no terceiro dia a sua doçura finalmente vencera, e o rapaz começara a responder, com grande hesitação, às suas perguntas, num chinês surpreendentemente fluente. Fan Yimei perguntara-lhe se fora espancado por Ren Ren.

 

- Não - disse-lhe, abrindo muito os olhos. - Eu não fiz nada de errado. A sério. Não fiz nada de errado. Por favor, não lhe diga que eu fiz algo de errado. - Esboçou um sorriso forçado. - Quando me porto bem, por vezes, ele vem visitar-me. - As lágrimas rolavam-lhe pelo rosto. - Eu tentei. Eu tentei. O velho gosta de mim. Ele nunca me castigou por causa do velho. Costumava recompensar-me, às vezes, quando eu me portava mesmo bem, ele depois ficava comigo toda a noite. E, desta vez, tentei o meu melhor. Quando o homem me explicou que haveria dor, eu ouvi-o, a sério. Disse-me que não podia haver amor sem castigo. Por isso, deixei-o... Eu deixei-o...

 

- Ren Ren? - perguntara Fan Yimei, confusa.

 

- Não! - gritara o rapaz. - O Ren Ren ama-me. Foi o outro homem. o homem demoníaco a quem eu devia agradar particularmente, como Mãe Liu me disse. Foi o japonês... - sussurrara.

 

Foi então que Fan Yimei percebeu, e o horror que sentia pelo coronel Taro aumentara. Disse a si própria que muitos homens se tornam violentos quando estão bêbedos. Não era raro. Muitos homens entregam-se a paixões violentas quando os seus sentidos estão turvados pelo álcool. Mas o coronel Taro era diferente. Era igual ao Ren Ren, um sádico que gostava de infligir dor, só que, ao contrário de Ren Ren, que tinha os instintos de um animal, aquele japonês praticava a crueldade com requinte e paciência: quanto mais bebia, mais ponderado e frio se tornava.

 

- Ele diz que o amor é uma arte - murmurou o rapaz entre soluços, enquanto ela lhe colocava ligaduras nas feridas das costas e das coxas. - Ele diz que o amor é uma arte.

 

E Fan Yimei, ao compreender, finalmente, sentiu compaixão pelo major Lin. Se o coronel Taro fora o seu captor, durante a guerra, então estava tudo explicado. Pobre homem, tão orgulhoso...

 

Sabia que tinha de preocupar-se com a situação em que ela própria se encontrava. Não fazia ideia porque Mãe Liu lhe permitira conhecer o segredo do quarto escondido e da extraordinária presença de um estrangeiro no bordel. Talvez fosse como a velha tirana dissera: porque se lembrava de como ela tinha cuidado de Shen Ping. O mais provável era que, na forma de ver de Mãe Liu, Fan Yimei fosse dispensável, ou viesse a sê-lo, quando o major Lin se fartasse dela. Mas que diferença podia haver, afinal? Ela já sabia que a cabana do jardim a esperava, mais dia menos dia. Mãe Liu nada tinha a recear. O segredo estava a salvo. Para onde podia ela fugir? Aquém podia contar o que vira? No entanto, sentia pena do rapaz.

 

Então, naquela mesma tarde, a compaixão que sentia pelo rapaz tornara-se em preocupação pela sua segurança. Apercebera-se de que Ren Ren e os seus sequazes tinham comido, bebido e jogado às cartas, numa das salas de jantar do edifício principal; mas não estava preparada para a aparição repentina do grupo no pátio para o qual dava o seu pavilhão, ao princípio da tarde, e, muito menos, para a ruidosa demonstração que se seguira. Usavam lenços amarelos atados à volta das cabeças e um empunhava um estandarte com um desenho de um pau preto e a palavra “Vingança” pintada em caracteres de tom vermelho-sangue. Um outro homem tocava um tambor, enquanto Ren Ren, nu da cintura para cima e empunhando uma espada, gritava e saltava no ar, aparentemente possesso ou bêbedo, numa imitação grotesca de artes marciais. Ordenaram a Fan Yimei que permanecesse no quarto, longe da vista, porque, como lhe explicaram, uma força yin podia contaminar a magia que eles invocavam: a conspurcação feminina desencorajaria os deuses a entrar nos corpos dos praticantes de artes marciais. Pelo menos foi o que lhe gritara o Macaco, um dos homens de confiança mais odiosos de Ren Ren, enquanto a trancava no quarto. Mas isso não impedira Fan Yimei de espreitar pelas fendas da porta e ver o que se passava, nem de escutar os gritos, enquanto Ren Ren e três outros homens dançavam freneticamente. Ela não acreditava que um deus quisesse habitar o corpo de Ren Ren; por isso, supunha que ou ele estava a fingir ou a exibir-se. E conhecia-o bem de mais para saber que, fosse o que fosse, ia prejudicar gravemente alguém.

 

- Salvem os Ch’ing! Aniquilem os estrangeiros! - gritavam. - Morte aos demónios estrangeiros!

 

Um deles correra até ao pavilhão trancado, do outro lado do pátio, e bradara com voz esganiçada: - Aqui é para onde um deles traz a sua fada-raposa, uma prostituta como outra qualquer. Matem-nos! Matem-nos! Matem-nos!

 

Os outros riram-se quando o homem urinou contra a porta. A actuação durou toda a tarde e só terminou quando um exausto Ren Ren tombou no chão. O bando afastara-se então em grupos de dois e de três homens em direcção ao portão que dava para a rua.

 

- Para o altar das colinas Negras! - gritara um deles -, onde o exército celestial descerá à terra!

 

Outro começou a cantar, logo imitado pelos restantes, alguns versos:

 

Não cai chuva do céu, a terra está gretada e seca. E tudo porque as igrejas engarrafaram o céu.

 

Os deuses estão muito zangados, os espíritos procuram vingança. Vêm do céu em massa para ensinar o caminho aos homens

 

Partiram brandindo as espadas e lanças; até mesmo Ren Ren, que se apoiara no braço de um dos seus amigos. O som do tambor e das vozes enfurecidas dissipou-se. Fan Yimei sentou-se na beira da cama muito perturbada.

 

Nunca prestara muita atenção aos mexericos das outras raparigas acerca dos Boxers. O pai tinha-a ensinado a não acreditar em feitiços mágicos e ela não dava qualquer crédito a histórias de deuses que desciam à terra. Nem podia sentir-se entusiasmada com a ideia de um exército que floresceria do solo para purgar a sociedade dos malfeitores e reparar todas as maldades que a dinastia sofrera às mãos dos estrangeiros. Teria de ser um exército excepcional, pensou com azedume, para corrigir as maldades que pobres criaturas como ela sofriam dentro das paredes do Palácio dos Prazeres Celestiais. E nunca o fariam, se fosse um exército constituído por homens.

 

E, afinal, que tinha ela a ver com os problemas da dinastia? Estava tão isolada do mundo lá fora como uma freira budista num convento. Fan Yimei não pôde deixar de sorrir perante tal ideia. E, no entanto, a vida de uma rapariga-flor tinha a sua própria equivalência de regras monásticas, a sua própria noção pervertida do celibato e os seus rituais de opressão, consagrados há séculos. Tudo isso fazia parte da mesma ordem social que os Boxers pretendiam salvar e preservar. Por isso mesmo, que podia ela esperar dos Boxers, a não ser ainda mais opressão? A seu modo, o Palácio dos Prazeres Celestiais era tanto um símbolo da tradição e da ordem estabelecida como o templo, ou o yamen, ou até a própria dinastia. Haveria sempre raparigas-flores. E homens para as explorar. E, entretanto, ali estava Ren Ren, que se juntava aos Boxers. Que mais era preciso dizer?

 

Uma tão grande animosidade para com os estrangeiros constituía uma novidade. Ela lembrava-se do bondoso médico que parecia um rato e tentara salvar a vida do pai. Que tipo de ameaça podia ele constituir para a dinastia? Ou o tolo e apatetado De Falang, que provavelmente ainda desconhecia o que acontecera à sua Shen Ping, acreditando na mentira de Mãe Liu de que a rapariga fora enviada de volta para o campo. Que mal podia ele fazer fosse a quem fosse? E o filho do missionário? Era uma vítima como ela. E só sobrava o Ma Na Si.

 

O Ma Na Si. Como sempre que pensava nele, sobressaltou-se com uma impressão muito nítida de um sorriso e de dois olhos azuis risonhos, que lhe acorriam logo à mente, como se ele estivesse ali no seu quarto. Sim, tinha de o admitir, talvez houvesse algo de perigoso no Ma Na Si. Mal-grado os seus esforços, desenvolvera uma curiosidade por aquele estrangeiro, cortês e confiante, que, com a maior facilidade, exercera a sua mestria sobre o major Lin, e até convencera Mãe Liu a oferecer-lhe os privilégios do outro pavilhão, para ali receber a sua amante estrangeira. Desde aquela primeira noite terrível - a noite do assassínio de Shen Ping - só lhe dirigira elogios educados. E, seguindo as regras da boa educação - afinal, ela era a concubina do major Lin -, ignorara-a, ou fingira ignorá-la. No, entanto, havia algo mais. Por vezes Fan Yimei erguia o olhar do seu chin e via os olhos azuis a observá-la, ou, se os seus olhares se cruzavam, um sorriso lento desenhava-se-lhe no rosto bronzeado. Certa vez - ela ainda mal podia acreditar -, piscara-lhe um olho. Fan Yimei corara e contemplara as mãos. Quando voltara a erguer a cabeça, já o Ma Na Si confabulava com o major Lin. Fan Yimei perguntara a si própria se não fora tudo fruto da sua imaginação, porque ele mal olhara para ela durante o resto da noite. Nem nunca mais lhe dirigira um gesto tão pessoal. No entanto, desde então, Fan Yimei sentia uma cumplicidade silenciosa entre ambos e, mais profundo do que isso, lera no seu olhar límpido uma interrogação, como se ele tentasse encontrar o verdadeiro carácter que se escondia por detrás da sua máscara de rapariga-flor. E por vezes, quando sorria na sua direcção, dava consigo a desejar que ele tivesse descoberto alguma coisa, e cedia à fantasia de que o olhar avaliador do estrangeiro era de respeito.

 

Fan Yimei ficara surpreendida com a sua própria reacção, quando o Ma Na Si ocupara o pavilhão em frente do seu e quando começaram as visitas da mulher estrangeira. Muitas foram as tardes sombrias de Inverno em que esperou, à janela, para ver a figura de uma mulher, envolta numa capa preta, que emergia do cubículo do porteiro a correr, para desaparecer no interior do pavilhão. O Ma Na Si, envergando a habitual camisa branca, abria a porta e puxava-a para o interior. Fan Yimei nunca conseguira ver claramente a mulher, mas certa vez uma madeixa de cabelo avermelhado e sedoso saiu do capuz, puxada pela brisa; ela observara, hipnotizada, enquanto uma mão sardenta saíra nervosamente de debaixo da capa para esconder a madeixa rebelde. Mas não era a mulher estrangeira que a fascinava. O que esperava e temia, ao mesmo tempo, era o vislumbrar do rosto do Ma Na Si, quando acolhia a amante. De cada vez, o seu sorriso radioso de boas-vindas trespassava-lhe o coração. A princípio, Fan Yimei não conseguira compreender os seus sentimentos. Nunca poderia admitir a si própria que tinha ciúmes e, no entanto, quando vira pela primeira vez os braços do Ma Na Si envolverem a capa preta, os seus lábios crisparam-se, os olhos enevoaram-se-lhe, sentiu um aperto no peito e uma veia pulsar-lhe nas têmporas. Nunca mais se permitira aquela emoção. Passara a observá-los triste e calmamente, como observava triste e calmamente tudo o que se passava no Palácio dos Prazeres Celestiais. Afinal, era apenas mais um golpe para um espírito que aprendera a suportar a Morte dos Mil Cortes.

 

Depois, as visitas da mulher cessaram. Havia um mês que os amantes não se encontravam. O Ma Na Si ainda ia ao pavilhão, mas sempre sozinho, e, nessas ocasiões, Fan Yimei detectava um cansaço nos seus passos, como se o desgosto lhe pesasse nos ombros. Ficava sozinho no quarto, durante horas a fio, enquanto a tarde se desvanecia e o crepúsculo se instalava, antes de acenderem as lanternas. A princípio, Mãe Liu levara-lhe raparigas, como Su Liping e Chen Meina, mas nunca ficavam com ele durante muito tempo e, certa vez, ele enxotara Su Liping, furioso. Ren Ren fora chamado, e seguira-se uma cena feia, com muitos gritos, gestos ameaçadores e punhos cerrados por parte de Ren Ren. O dinheiro resolvera o que quer que provocara aquela altercação. O Ma Na Si atirara uma bolsa de ouro aos pés de Ren Ren e, com uma expressão irónica, ficara a ver o jovem a apanhar avidamente as moedas.

 

Na maior parte das noites, o Ma Na Si jantava com o coronel japonês; por vezes, o major Lin juntava-se-lhes. Nessas ocasiões, o major Lin voltava sempre bêbedo, de madrugada. Fan Yimei desconfiava que quando o Ma Na Si ficava sozinho também bebia muito. Certa vez, quando estava de saída, após uma das suas solitárias vigílias, ela reparara que os seus passos eram oscilantes; mas o estrangeiro depressa se endireitara, afastando-se calmamente. Fan Yimei, sentada nas sombras, desejava o impossível - mas punha de parte tais pensamentos. Aprendera há muitos anos que a esperança era a sua maior inimiga.

 

Agora, não era a esperança, mas o medo, que a levava a atravessar o pátio. Reflectira nas implicações do que tinha visto, de tarde, naquele mesmo pátio. Talvez Ren Ren tivesse fingindo ser um dos Boxers, mas havia algo mais naquela demonstração do que a sua habitual vaidade. Os gritos de guerra que ele e os amigos tinham entoado não eram invenção sua. Por conseguinte, as ameaças feitas contra os estrangeiros eram reais. O seu primeiro pensamento foi para o rapaz. Sabia o suficiente para se dar conta de que a vida dele estava presa por um fio: o do secretismo. Não tinha quaisquer dúvidas que Mãe Liu e Ren Ren já deviam ter pensado numa maneira de se desfazerem do rapaz, no caso de haver algum perigo de ele ser descoberto ali. Até mesmo Fan Yimei ouvira falar da execução dos camponeses que alegadamente o tinham assassinado. Assim, era como se o rapazinho já estivesse morto. E agora que Ren Ren abraçara a causa dos Boxers, tinha uma vítima estrangeira ao seu dispor. Um rapazinho cuja única esperança era fugir e voltar para junto dos da sua raça. Fan Yimei pensou no Ma Na Si. Não tinha um plano, mas se alguém pudesse ajudá-lo... De qualquer maneira, o Ma Na Si devia precaver-se... E ela tinha uma oportunidade, naquela noite... Ninguém a veria...

 

Estava já a meio do pátio quando se apercebeu de quão inútil e irrealista era a missão que impusera a si própria. O principal algoz do rapaz era o japonês e este, por sua vez, era amigo do Ma Na Si. E porque haveria um inglês de ajudá-la? Ou sequer de acreditar nela?

 

Que podia ela oferecer-lhe para o convencer?

 

Sentiu-se empalidecer ao pensar na resposta. Depois, deu por si parada, nos degraus de acesso ao pavilhão, a interrogar-se. Não o soubera desde o princípio? Era mesmo o rapaz que ela viera salvar? Os joelhos tremeram-lhe e cambaleou, nos seus pés de lótus, enquanto se sentia submergir numa vaga de vergonha e de desespero. Apoiou-se a um pilar e as lágrimas afloraram-lhe aos olhos.

 

Ofegando, voltou-se para se afastar. Nesse mesmo instante, a porta abriu-se e Manners apareceu. Estava em camisa e suspensórios e tinha uma garrafa de vinho na mão. Os seus olhos estavam inchados e injectados de sangue e não conseguia equilibrar-se.

 

- Desculpe, Ma Na Si Xiansheng. Desculpe. - A voz dela não era mais do que um sussurro. - Não queria incomodá-lo... Vou-me já embora. Desculpe, desculpe...

 

Manners olhou para ela. Então, apoiando-se ao parapeito da varanda, contemplou as sombras do pátio. Nem um só movimento. Só depois se voltou para Fan Yimei.

 

- Não. Por favor, não se vá embora.

 

- Não devo... Não posso...

 

- Só por alguns minutos... Sente-se a meu lado. Fale comigo. Eu gostava... Eu gostava de ter companhia esta noite.

 

- Eu posso... posso ir chamar a Mãe Liu - murmurou Fan Yimei. - Talvez Chen Meina...

 

- Não. Não me compreendeu... Por favor.

 

- O major Lin... - começou ela.

 

- Eu sei - atalhou Manners. - Eu sei... Mas só por uns minutos. Por favor... Faça-me companhia, esta noite.

 

Fan Yimei manteve-se imóvel, de cabeça baixa. Manners ergueu uma mão pesada e afastou uma madeixa da testa. Encolheu os ombros, ainda tentou dizer algo, mas depois deu um passo em frente e levantou-lhe o queixo, olhando para o fundo dos seus olhos.

 

- Está a chorar. Por favor, não chore. Tome. - Levou a mão ao bolso e tirou um lenço que passou pelas faces de Fan Yimei. - é muito bonita - disse, numa voz doce. - Sempre pensei que não pertencia aqui. Já tenho reparado em si. Sabe escutar e compreende. é instruída. Que tragédia trouxe alguém como você para este inferno?... Este país... - suspirou. - Tantas tragédias... - Recuou para a contemplar. Eu não a magoaria... Por nada deste mundo...

 

Ficaram os dois, ali, frente a frente. Fan Yimei, de cabeça baixa, apoiada ao pilar, e a outra figura, mais alta, balouçando, à entrada. Por fim, ela inclinou a cabeça afirmativamente.

 

- Há um rapaz... - disse, num fio de voz. - Vou pedir-lhe que me ajude.

 

- Sim - replicou ele, após uma pausa. - Como queira. Voltou-se pesadamente e entrou no quarto. Fan Yimei seguiu-o e a porta fechou-se.

 

Reinava o silêncio no pátio. Uma leve brisa fez oscilar o galho de uma árvore. Um cão ladrou na ruela, lá fora.

 

Uma silhueta saiu da penumbra formada pelas árvores.

 

Era uma figura leve, de pés pequenos. Era Su Liping. Agachando-se, avançou com todo o cuidado e subiu os degraus que davam para a varanda que circundava o pavilhão. Em silêncio, encostou-se à parede e avançou um pouco mais. Mal se atrevendo a respirar, moveu um pequeno painel que escondia o postigo. Tremendo, encostou um olho à abertura e observou, durante muito tempo.

 

Na tarde seguinte, George e Jenny, acompanhados por Ah Lee, foram dar um passeio pela vereda que circundava a parte inferior da colina. Era uma tarde solarenga de Primavera. As árvores estavam revestidas de folhas verdes. A desolação invernal dos campos de milho-miúdo começava a cobrir-se com um manto de rebentos. Ameixoeiras em flor eram visíveis nos pomares. Ouviram ao longe um cuco, o primeiro depois de um longo Inverno. Fora ideia da mãe que as crianças apanhassem um pouco de ar puro, indo colher flores silvestres para a jarra da sala de jantar.

 

George falava, muito excitado, da caça anual ao tigre organizada pelo mandarim, marcada para o mês seguinte, nas colinas Negras. Como de costume, os estrangeiros tinham recebido convites. No ano anterior, o pai participara na caçada e tinham tido a sorte de encontrar um tigre. Quando chegava a altura de ir dormir, o doutor contava aos filhos histórias arrepiantes de como uma fera enorme esventrara um dos cães de caça com as patas, derrubara um lanceiro, conjuntamente com o cavalo que este montava, escapara do cerco que os caçadores lhe tinham feito e investira em direcção ao outeiro onde ele e o mandarim esperavam, e de como este sacara do seu arco e matara o tigre com três setas, lançadas em rápida sucessão, enquanto o médico só tivera tempo de soltar uma exclamação assustada e abrir ao fecho de segurança da espingarda. George nunca se esqueceria do tamanho do animal morto, atado a uma vara e transportado por quatro homens, quando o cortejo triunfal regressara a Shishan.

 

Ambos se sentiam muito desapontados por ainda não os considerarem com idade suficiente para acompanhar o pai e Helen, e era um magro consolo o facto de a mãe ter concordado em ficar na cidade a fazer-lhes companhia. Naquele ano, sentir-se-iam particularmente excitados por ver Mr. Manners e o seu amigo, o militar japonês, entre os caçadores. Os dois irmãos estavam convencidos de que Mr. Manners praticaria extraordinários feitos de heroísmo.

 

George encontrara um galho curvado, que colocara sobre um ombro, como uma espingarda. Qual caçador em busca da sua presa, seguia, agachado, à frente de Jenny e de Ah Lee, ocupados a colher violetas nas bermas. A estrada formava naquele local uma curva, e um imponente salgueiro pendia, obscurecendo o caminho, mais à frente. George passou com cuidado por entre os ramos. Na sua imaginação, estava a rastejar por entre uma densa selva, à escuta do rugir do tigre. Com um grito, saltou por entre os ramos do salgueiro e foi aterrar do outro lado da estrada, com a sua espingarda em punho, pronto a disparar.

 

- Pum! Pum! - gritou.

 

Deu de caras com um rapaz chinês da sua idade. O rapazinho, despido da cintura para cima e muito bronzeado como qualquer camponês, contemplou-o em silêncio, com os braços cruzados. George reparou nos dois olhos grandes e brancos no rosto moreno, que, primeiro, o olharam com curiosidade, estreitando-se depois numa expressão arrogante, quando viu o pau que George lhe apontava ao rosto.

 

Quando George deu por si, já o rapazinho dera uma pirueta no ar, emitindo um grito muito estridente, semelhante ao de uma gaivota ou ao de um grou. Pareceu pairar no ar durante um segundo, com um braço e uma perna estendidos para a frente, e a outra perna dobrada para trás. George sentiu o pau saltar-lhe das mãos, quando os pés do rapaz o partiram ao meio. Uma das extremidades do pau voou, rasgando-lhe a face e a têmpora enquanto um novo golpe lateral, atingindo-o no ombro, o fez cair e rolar na lama. Quando ergueu o olhar, o rapaz achava-se no mesmo sítio onde o vira antes com os braços cruzados, a contemplá-lo. Atrás dele, havia vários homens novos; alguns empunhavam lanças e espadas e, na sua maioria, traziam lenços amarelos atados em volta das cabeças. Um dos homens pousou a mão no ombro do rapaz, que olhou para ele com um sorriso orgulhoso. George começou a chorar.

 

Ah Lee e Jenny apareceram na curva da estrada, com os braços cheios de flores.

 

Ah Lee gritou algo e correu para George, deixando cair as flores. O homem que elogiara o rapaz bloqueou-lhe a passagem. Quando Ah Lee tentou desviar-se e passar ao lado do homem de lenço, este moveu-se e voltou a cortar-lhe a passagem. Os outros homens e o rapaz começaram a rir-se.

 

Gentilmente, o homem empurrou Ah Lee, pressionando as mãos contra o seu peito, até ele começar a recuar, aos tropeções. Ah Lee praguejou e desferiu um golpe para atingir o outro na cabeça. O homem desviou-se e, sem o menor esforço, a sua perna esticou-se e Ah Lee caiu, sobre as nádegas, na lama.

 

- Seu ovo de tartaruga - sibilou, atirando-se ao homem, que lhe prendeu a cabeça com um braço e começou a torcê-la.

 

Os outros Boxers gritavam “Sha! Sha! Sha!”, que George sabia ser a palavra “matar”.

 

Jenny estacara, a meio do caminho, apertando as flores contra o peito.

 

De súbito, os Boxers calaram-se. George reconheceu, sobressaltado, o padre no meio dos outros. Era como se tivesse surgido do nada. Usava as mesmas roupas estranhas, ornadas com romãs, em que George reparara, da última vez que o vira, durante aqueles segundos inesquecíveis em que o homem se postara em frente do comboio em movimento. O padre fez um gesto com a mão. Depois, virando as costas, afastou-se pela estrada, em direcção às Colinas Negras. O homem que estrangulava Ah Lee cuspiu e deixou cair a sua vítima ao chão. Deu um pontapé no corpo que gemia, seguindo depois o padre, que já se distanciara. Os outros imitaram-no, incluindo o rapaz. Passado pouco tempo, a estrada estava vazia, à excepção de George, que rastejava em direcção a Ah Lee, sentado na poeira, com uma respiração sibilante, e de Jenny, ainda parada no mesmo sítio, com as violetas e campainhas pressionadas contra a boca aberta, os olhos esbugalhados de horror e medo.

 

OS DEUSES DESCERAM. É VERDADE. VI-O COM OS MEUS PRÓPRIOS OLHOS

 

O Dr. Airton estava sentado, sozinho, em frente da fogueira do acampamento, apertando nas mãos a sua caneca de chá. O carvão em brasa crepitava até se tornar em chama, as árvores altas agigantavam-se, as sombras aproximavam-se e um tambor tocava, ao longe, na floresta. Segundo julgava, os batedores festejavam o êxito da caçada - mas o ruído aumentava e diminuía e, por vezes, cessava por completo, sempre que havia uma rajada de vento. Não saberia dizer de que direcção vinha o som, a que distância se fazia ouvir ou, sequer, se era ou não produto da sua imaginação, o que o fazia sentir-se transtornado e inseguro. A presença dos poucos guardas deixados para trás pelo mandarim, para lá do círculo de luz formado pelo fogo, não lhe oferecia qualquer garantia. Pelo contrário; o facto de rondarem ali perto só fazia aumentar a impressão de uma indefinível ameaça.

 

Geralmente, o médico gostava de acampar. Adorava as noites estreladas e o odor da madeira queimada. Sentia-se humilde e intimidado pelos grandes espaços. Gostava das alvoradas húmidas e do mistério arrebatador, quando os primeiros raios de sol dissipam as brumas da noite e a resplandecente natureza se revela, em toda a sua glória. Nellie perguntara-lhe, certa vez, o que o atraía tanto nas histórias sobre o Faroeste. Ele respondera, muito sério: “Os grandes espaços, minha querida. São histórias de homens que vivem no Paraíso.” E acreditava nisso. As sórdidas lutas entre bandidos armados ou qualquer outro enredo pouco lhe interessavam. Era a viçosa pradaria, em pano de fundo, que despertava a sua imaginação. Os seus pensamentos costumavam como que pairar sobre os cactos, enquanto perscrutava as páginas impressas. O guardador de gado, com a cabeça deitada na sela, ao fim de um árduo dia de cavalgada, a fina coluna de fumo a sair do vagão que transportava os víveres, num céu de nuvens leves, arrastadas pelo vento, os trovões a ressoar por cima de colinas longínquas, e as vacas a mugir, perto do rio de águas profundas - tudo aquilo era a humanidade a viver em paz na tela da Criação, como fora antes da Queda, ou assim fora a mensagem que ele se esforçara por passar à estupefacta congregação de freiras católicas e inválidos chineses, num sermão recente. Citara os Salmos: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento revelou o Seu trabalho.” Para ele, os cobóis viviam num Éden formado pelo deus do sol-nascente e do sol-poente, e dormir por baixo dessa tela imensa aproximava-o dela.

 

Só que, naquela noite, era um deus mais sombrio que dominava aquele acampamento nas colinas Negras.

 

Airton estremeceu e apertou o cobertor em volta dos ombros.

 

- Recompõe-te - resmungou. - Estás a ficar tão nervoso como uma velha que perdeu a dentadura.

 

Fechou os olhos e reteve a respiração, na tentativa de abrandar a pulsação cardíaca, mas o rosto zombeteiro do mandarim brilhou, no fundo da sua retina - e a raiva e a desilusão crescentes dos últimos quinze dias oprimiam-lhe o peito.

 

Esperara durante três dias, e mesmo assim tinham-lhe negado uma audiência. Três dias inteiros, durante os quais George não parara de se voltar, agitado, na cama, e Jenny se encolhera na sua cadeira, sem falar, nem responder sequer a mãe.

 

Tinha muita dificuldade em suportar a dolorosa recordação daquela primeira cena de horror e de caos - a irmã Caterina a irromper no seu gabinete, gritando-lhe uma torrente de palavras em italiano, o que lhe levou vários minutos para compreender o que se passava; depois, a corrida precipitada pelos pátios e corredores até à enfermaria, onde Nellie e Helen tentavam acalmar as crianças, que tremiam convulsivamente nos seus braços. Nellie estancava o sangue que escorria da cabeça do filho. Reparou de imediato na lividez anormal e na expressão de puro terror nos olhos de Jenny. Por um segundo, que lhe parecera uma eternidade, sentiu-se paralisado, incapaz de pensar nas implicações do que via. O seu próprio sangue rugia-lhe nos ouvidos, abafando qualquer som. Nellie chamava-o, mas não conseguia compreender o que ela lhe dizia.

 

A cena tinha algo de mistura entre um pesadelo e uma farsa, como um espectáculo cómico encenado em câmara lenta numa morgue. Em primeiro plano, o sangue do filho a jorrar silenciosamente para o vestido da mulher. Atrás da cena central, Ah Sun a bater no marido com uma pá, amaldiçoando-o, aos gritos, por não ter protegido as crianças. Ah Lee, meio desfalecido numa cama, agarrando o pescoço inchado e vermelho com uma mão, enquanto com a outra tentava sem êxito escapar à agressão da mulher. A um lado do quarto, a irmã Elena, em vez de ajudar o médico, dava azo à sua consternação, gritando e gesticulando ao mordomo, Zhang Erhao, que, encostado à janela, não compreendia as instruções contraditórias da freira. Do lado de fora da janela, os rostos redondos e inexpressivos dos opiómanos observavam a cena.

 

Após o que pareceu uma eternidade, os instintos profissionais do médico voltaram à tona, levando-o a agir maquinalmente. Não conseguia lembrar-se do que dissera ou como restaurara a ordem. Precisara apenas de uma rápida observação para perceber que, felizmente, nenhum deles tinha sofrido ferimentos graves. George apresentava algumas contusões e tinha um grande lanho na têmpora; Jenny - graças a Deus estava ilesa, e Ah Lee, apesar de ter dores no pescoço, iria recuperar rapidamente. Contudo, o terror e o choque a que as crianças tinham sido submetidas era inegável. Por conseguinte, foi num estado de raiva mal controlada que vestiu o seu traje formal e percorreu a pé os intermináveis três quilómetros até ao yamen - para dar de caras com grandes portões de madeira fechados e dois guardas armados que lhe barravam o caminho.

 

- Sabem quem eu sou? - gritou aos homens de rosto impassível. - Sou o daifu estrangeiro, o amigo do mandarim, e exijo que me deixem entrar!

 

Os guardas trocaram sorrisos e cruzaram os braços.

 

Airton contornou-os e bateu com toda a força no portão, servindo-se da bengala, até ser agarrado e atirado ao chão. Os sorrisos dos guardas deram lugar a sobrolhos franzidos e um deles desembainhara a espada.

 

Então, a porta de um dos portões abrira-se e Jin Lao, o camareiro, surgiu, sorridente.

 

- Respeitável Daifu, o que está a fazer, no chão? As suas roupas estão cheias de pó.

 

- Jin Lao! Jin Lao! Nunca pensei ficar tão contente por vê-lo - exclamara, Airton, ofegante, pondo-se de pé. - Tem de levar-me ao mandarim. Aconteceu uma coisa terrível. Tenho de lhe falar imediatamente.

 

- Uma coisa terrível? Fico triste por sabê-lo. Não me diga que um dos outros filhos do americano doido fugiu?

 

- Não, homem! Trata-se dos meus filhos!

 

- Os seus filhos fugiram? É realmente uma contrariedade.

 

- Você não passa de um pavão, cavalheiro! Exijo que me leve ao seu amo. Os meus filhos foram atacados pelos Boxers. Compreendeu? Os Boxers! Sei para onde o bando se dirige. Se nos apressarmos, poderemos detê-los.

 

- Que dramático! Crianças atacadas por Boxers. Nunca.... Disse que eram praticantes de artes marciais? Parece um tanto ou quanto estranho. Aqueles que praticam exercícios matinais de t’ai chi e de qi pong nesta cidade não têm o hábito de atacar crianças, e muito menos crianças estrangeiras. Os seus filhos tê-los-ão provocado, de alguma maneira?

 

- Jin Lao, ou está a ser deliberadamente obtuso ou a troçar de mim. Sabe muito bem a quem me refiro, quando falo em Boxers. Agora, vai ou não levar-me à presença do mandarim?

 

- Primeiro, deixe-me perguntar: os seus filhos estão gravemente feridos? Estropiados? Ou esse ataque foi de cariz sexual?

 

- Não posso acreditar no que estou a ouvir. Não, Jin Lao, não foi um ataque de cariz sexual. E felizmente, graças a Deus, nenhum dos meus filhos está gravemente ferido, se bem que o pequeno George apresente contusões e esteja muito assustado.

 

- Contusões? Lamento ouvi-lo. Pode descrever o homem que infligiu essas contusões ao seu filho?

 

- Bom, na verdade, foi um rapaz, mais ou menos da idade do George, pelo que percebi. Eu não estava presente.

 

O meu criado disse-me que o rapaz tinha a perícia marcial dos Boxers. Era um bando. Agora, por favor, Jin Lao, já perdemos muito tempo. Tenho de falar com o mandarim.

 

- Lamento imenso, Daifu, mas não posso levá-lo à sua presença.

 

- Porque não, homem de Deus? Já lhe disse: andam por aí Boxers à solta!

 

- Porque o mandarim está a descansar - respondeu Jin Lao - e não posso incomodá-lo com uma história fundamentada apenas no relato de um criado acerca de uma rixa entre dois rapazinhos. O senhor admitiu que não houve ferimentos graves. Ora, umas contusões dificilmente constituirão um caso para o tribunal do yamen.

 

- Ah, sua cobra! - sibilou o médico. - É uma gratificação que quer? Eu devia ter calculado. Tome, aqui tem algum dinheiro. Agora, deixe-me entrar.

 

O rosto de pergaminho de Jin Lao não se alterou.

 

- Guarde o seu dinheiro, Daifu. Está muito nervoso e cansado. Caso contrário, nunca pensaria em subornar um oficial do yamen.

 

- Mas o mandarim...

 

- ... Está a descansar. Quando ele acordar, transmitir-lhe-ei o que o senhor acaba de me dizer e, se ele desejar prosseguir com o caso, estou certo de que mandará chamá-lo. Mas, por ora, sugiro que volte para casa.

 

- Não saio daqui enquanto não vir o mandarim. Nunca ninguém me impediu de entrar aqui, até hoje.

 

- Até hoje, Daifu, vinha até cá a convite do Da Ren e por vontade do Da Ren. Permita-me lembrar-lhe que eu também sou um oficial do yamen. Tomei nota da sua petição. Informarei o Da Ren, que poderá ou não responder-lhe, mas, se o fizer, será no momento que ele achar conveniente. Não há mais nada que possa fazer aqui hoje. Sugiro-lhe que volte para casa.

 

E Jin Lao gritara uma ordem. Os dois guardas retomaram a sua postura agressiva em frente dos portões. Depois de se despedir do médico com um breve aceno de cabeça, Jin Lao transpôs a porta, que se fechou atrás dele. Um dos guardas erguera as sobrancelhas, fitando ironicamente o médico.

 

- Riam-se à vontade. Daqui não saio - resmungara Airton, sacudindo a poeira do chapéu. - Vão ver... Vão ter de se explicar quando o mandarim souber o que me fizeram!

 

Esperara e esperara. O sol-poente reluzia nos telhados de Shishan. Um cuco cantava, algures, numa das florestas da colina. Os portões permaneciam fechados. Quando o crepúsculo chegou, uma mulher de idade apareceu, com um bule de chá num cesto. Serviu os guardas. O mais velho, um homem brincalhão, de rosto enrugado e dentes largos, oferecera a sua tigela ao médico. Airton recusou, irritado. O homem encolheu os ombros, enfiou a mão nas pregas do traje e tirou uma garrafa de barro. Desarrolhou-a, levou-a ao nariz e exagerou o prazer que sentia ao experimentar-lhe o odor. Depois, com um grande sorriso, ofereceu a bebida alcoólica ao médico. Airton virou-se, com as orelhas a arder, à espera de ouvir as risadas, mas não ouviu nada. O guarda bebeu um gole da garrafa, passou-a ao companheiro e voltou a enfiá-la nas pregas do traje. A vigília continuou. Um vento frio começara a soprar. Os guardas ocuparam-se a acender as lanternas e a colocá-las por cima dos portões. Airton apertou as abas do casaco. O guarda mais amigável soprou nas mãos e indicou a Lua pálida que se erguera no céu; em seguida, fingiu bocejar e inclinou a cabeça, como se repousasse sobre uma almofada. Airton olhou desesperado para os portões fechados, mas o guarda sacudiu tristemente a cabeça. Volvido algum tempo, o médico cabeceou uma primeira vez, depois uma segunda, decidindo finalmente iniciar a descida da colina.

 

Três semanas depois, encolhido perto do lume na clareira, revivia a vergonha daquele regresso a casa. Todas as pessoas com quem se cruzava pareciam troçar dele. Um grupo de mulheres rira, e ele estugara o passo. Alguém atirara um balde de água suja para a rua, e Airton estugara o passo, baixando a cabeça ao atravessar a rua principal, apinhada de gente. Parecera-lhe ouvir risos zombeteiros saindo de cada ruela.

 

Preferia não se lembrar do regresso desolado ao hospital. As recriminações de Nellie, as lágrimas das freiras e a triste visão dos filhos nas suas camas - o rosto inchado de George e, pior ainda, o silêncio e os olhos esbugalhados da filha. Sentira-se sufocar perante a sua própria impotência. O olhar aterrorizado de Jenny acusava-o duplamente, enquanto pai e médico. Tinha ficado sentado ao pé da filha toda a noite, velando o seu sono agitado e pegando-lhe na mão quando ela gritava nos seus pesadelos. Somente à alvorada se sentira um pouco menos nervoso, quando Jenny acordara, o reconhecera e começara a soluçar nos seus braços.

 

- Promete-me que nunca deixarás os Boxers voltar, papá. Promete-mo, promete-mo! - implorara a menina. E ele tinha prometido, e voltado a prometer, até Jenny, por fim, recuperar o seu sono normal.

 

A luz da manhã e uma revigorante chávena de chá tinham conseguido acalmá-lo e fazê-lo ver as coisas com maior clareza; talvez o mandarim não o tivesse humilhado. O mais provável era o malévolo Jin Lao não lhe ter sequer transmitido o recado. Decidiu escrever directamente ao mandarim. Duvidava que Jin Lao se atrevesse a interceptar uma carta. Quando ficasse a par de tudo, o mandarim mandaria certamente chamá-lo. Zhang Erhao fora enviado ao yamen com um sobrescrito ostentando o lacre mais imponente do médico. Enviara também recados a Herr Fischer e a Henry Manners, no acampamento do caminho-de-ferro, para lhes perguntar se tinha havido incidentes que envolvessem os Boxers. Herr Fischer aparecera à tarde no hospital, muito inquieto. O respeitável Manners estava ausente, como de costume, explicou, sem dúvida a divertir-se na cidade; no que lhe dizia respeito, contudo, não vira nem ouvira falar de qualquer incidente. Nem Charlie. Tinha Airton a certeza de que foram realmente os Boxers e não um outro qualquer bando de vagabundos armados? Os dois homens interrogaram novamente Ah Lee, que, apesar das ordens do médico, já deixara a enfermaria e retomara o seu trabalho na cozinha. Mal-grado o relato, muito pormenorizado, do que já era agora uma batalha épica, o cozinheiro não pudera fornecer qualquer prova convincente de que se tratava dos Punhos Harmoniosos. O médico e Herr Fischer concordaram que teriam de aguardar pelo inquérito conduzido pelo mandarim, antes de chegar a uma conclusão; enquanto isso, tomariam precauções para proteger os seus bens. Decidiram manter-se em contacto diário. Fischer regressara ao acampamento e Airton aguardara a convocação do mandarim, prosseguindo o melhor que podia as suas tarefas de médico. Não recebeu qualquer convocação.

 

Nem no dia seguinte, nem no outro. Em vez disso, na manhã do terceiro dia após o incidente, um dos oficiais do major Lin apareceu no hospital com quatro soldados armados a cavalo, uma cadeirinha com dois carregadores e uma ordem para que o médico se apresentasse imediatamente no tribunal do yamen. Airton protestara que ainda não tinha terminado as consultas matinais e que não estava vestido para uma audiência oficial com o mandarim. O jovem tenente respondera-lhe educadamente, mas em tom firme, que não se tratava de um convite para beber chá. O tribunal criminal estava em sessão e o médico fora convocado como testemunha. Por conseguinte, ficar-lhe-ia grato se o Dr. Airton subisse para a cadeirinha que fora posta à sua disposição. Como podia ver, uma escolta havia sido prevista para a sua segurança.

 

- Trata-se da resposta à minha carta? - perguntou Airton, afastando as cortinas da cadeirinha. - Está relacionado com o ataque que os meus filhos sofreram?

 

O oficial, que cavalgava a seu lado, não se dignara sequer virar a cabeça.

 

Quando chegaram ao yamen, os soldados desmontaram. Dois postaram-se à frente do médico e dois atrás, como um verdadeiro destacamento de conselho de guerra. O tenente, com a espada desembainhada e pousada sobre o ombro, conduzira-os ao portão.

 

- Estou preso? - perguntou o médico. - Qual a razão para a escolta?

 

Em vez de atravessar o pátio principal em direcção aos aposentos do mandarim, o tenente transpusera uma porta pequena e conduzira-os ao longo de um corredor de tijolos, ladeado de bancos, que se abria para um outro pátio, mais pequeno, onde o médico nunca estivera. Soldados armados com lanças guardavam uma porta do outro lado daquele pátio, apinhado de homens e de mulheres, agachados no chão ou encostados às paredes. Eram de todas as classes sociais - o médico reconheceu as túnicas de seda castanha dos mercadores e as roupas de algodão azul dos camponeses. Tinham a expressão triste de quem espera a noite inteira, numa estação, um comboio muito atrasado. Os seus olhares vagos fitaram-no sem qualquer curiosidade. Reparou num homem agachado a um canto, com a cabeça pendida para a frente, quase a tocar no chão, sob o peso de uma canga. Num outro canto, três jaulas de aço pendiam da extremidade de um poste; horrorizado, o médico distinguiu braços e pernas no interior, corpos torcidos que não podiam nem ficar de pé nem sentar-se nem deitar-se. Na penumbra da parede à sua esquerda, os seus olhos aperceberam-se de algemas e de correntes. O tenente mandou parar os soldados.

 

- Vamos esperar aqui - anunciou.

 

- Que lugar é este? - O médico fez um esforço para manter um tom de voz firme. - Trouxeram-me para uma prisão?

 

- Como já lhe disse, este é o tribunal do yamen. Seja paciente, doutor. O seu caso será apreciado daqui a pouco.

 

- O meu caso? - repetiu o médico.

 

Mas o tenente marchava já, com passos indolentes, até à porta em frente da qual estava sentado um oficial, de óculos com lentes escuras, munido de um lápis e de um pergaminho. Ansioso, Airton vira-os conversar. Sentiu que alguém lhe puxava a perna das calças. Baixou a cabeça para encontrar os olhos esbugalhados, a boca muito aberta e o corpo disforme de um mendigo, de imediato agredido por um soldado com a coronha da espingarda. O homem afastara-se, rastejando. Um riso agudo soou à sua direita: um homem novo, hirsuto e bem constituído, com as mãos e os pés acorrentados a uma estaca, piscava-lhe o olho com uma expressão travessa. Airton desviou o olhar.

 

- Exijo saber o que se passa - disse calmamente quando o tenente regressou. - O Liu Da Ren sabe que fui trazido até aqui? Como um vulgar criminoso?

 

Mas o tenente ignorara a sua pergunta, fazendo-lhe sinal para que o seguisse.

 

- O seu caso vai ser ouvido agora.

 

- Que caso? Vou ser julgado? Sob que acusação? É uma loucura! Sou um estrangeiro. Não estou sujeito aos tribunais chineses.

 

- Venha, doutor, está a perder tempo - insistira o tenente.

 

As portas abriram-se para um vestíbulo iluminado por velas. Airton precisou de breves instantes para se adaptar à escuridão. Ao fundo do vestíbulo estava uma mesa elevada revestida por um tecido encarnado. O mandarim presidia à sessão, num magnífico traje azul. Um criado, carregando a sombrinha amarela oficial, mantinha-se de pé atrás dele. A seu lado estava sentado um jovem, também ele protegido por uma sombrinha. Tal como o mandarim, envergava um traje azul, e, na cabeça, exibia um chapéu com o botão verde e a pluma de pavão. Enquanto o mandarim se mostrava impassível e distante, sem deixar transparecer a menor expressão no seu rosto largo, o jovem recostara-se na cadeira, tapando a boca com o leque para esconder um bocejo, passeando indolentemente os olhos pela sala. Parecia estar muito à vontade.

 

O médico sentiu-se confuso. Recapitulou mentalmente tudo o que sabia do protocolo chinês: não havia ninguém em Shishan com patente igual à do mandarim, disso tinha a certeza. Então, quem podia ser aquele atraente jovem, cujos modos indicavam um estatuto igual ao do mandarim, se não mesmo mais elevado?

 

Mais abaixo, estavam sentados os escribas e os funcionários do tribunal. Sem qualquer surpresa, Airton reconheceu Jin Lao, que estudava um rolo.

 

Três pessoas estavam ajoelhadas em frente da mesa do magistrado: eram dois adultos e um rapazinho. O homem da esquerda tinha as mãos atadas atrás das costas. Um guarda armado do yamen mantinha-se atrás dele, a dois passos de distância. Airton achou que havia qualquer coisa de familiar no homem com as mãos atadas, no seu pescoço comprido e magro, e nos seus braços e pernas finos; com um sobressalto de raiva e também de medo reconheceu Ah Lee.

 

O tenente deu então um passo em frente, juntou as mãos por cima da cabeça, ajoelhou-se e curvou-se.

 

- Que o tribunal possa ver o médico estrangeiro, Ai Dun - gritou.

 

- O tribunal já o vê - replicou o mandarim, em tom brusco. - O oficial pode retirar-se.

 

Jin Lao fez ouvir a sua voz esganiçada:

 

- O costume manda que o acusado se curve até tocar o solo com a testa...

 

- O médico estrangeiro pode ser dispensado de se curvar - disse o mandarim. - E não se refira a ele como acusado, camareiro. Como sabe, ele não pode ser julgado por este tribunal. Os estrangeiros estão protegidos por um tratado e por leis de extraterritorialidade. - Virou-se para o jovem sentado a seu lado. - Tanto quanto sei, ainda é assim, príncipe, não é verdade?

 

O jovem sorriu.

 

- Receio bem que sim. Que pena. Teria gostado de ver um bárbaro peludo tentar inclinar-se de uma maneira civilizada.

 

- Pode prosseguir, camareiro - ordenou o mandarim. Jin Lao começou a ler, com a voz de falsete exigida pela tradição para a leitura de uma acusação. As frases eram exageradamente elaboradas e pouco inteligíveis; o médico teve de fazer um esforço para compreender o seu significado, enquanto o seu espírito era embalado pelo ritmo melodioso e os crescendos agudos do camareiro. Podia estar a escutar um virtuoso na ópera (sempre pensara que os procedimentos oficiais chineses se tinham inspirado na ópera) - só que Jin Lao não era um rei do teatro, com bandeiras, uma barba e um rosto maquilhado. As farpas e as investidas contidas na sua linguagem eram como uma lança apontada directamente ao médico, brandida por alguém que Airton nunca mais poderia considerar - dava-se agora conta - como um inofensivo funcionário, mas antes como um inimigo mortal. Sentia os olhos de Jin Lao fixos na sua pessoa, exultantes, triunfais, reptilianos. Unhas compridas emergiam de forma elegante da túnica do camareiro na direcção de Ah Lee - salientando a gravidade da acusação -, como se fossem a varinha de um mágico, mas os olhos de serpente não paravam de se desviar para o médico, desejosos de o arrastar para o seu feitiço. Airton sentiu gotas de suor formarem-se na testa e um calafrio de medo percorrer-lhe todo o corpo. Jin Lao estava a falar dos seus filhos. No tribunal do yamen. Tudo aquilo era irreal. Teve a impressão de se encontrar num sonho. Ou num pesadelo.

 

Por trás da linguagem floreada, as acusações eram simples. Houvera uma rixa entre crianças. O filho e a filha do daifu estrangeiro tinham atacado algumas crianças da aldeia, mais novas do que eles, numa atitude de selvajaria, como só se podia esperar por parte de gaiatos bárbaros ainda não educados segundo os costumes do seu próprio país, muito menos segundo os costumes de uma sociedade civilizada. Um rapaz, mais velho, da aldeia, desgostoso por ver que maltratavam os seus irmãos e irmãs, fora corajosamente em seu socorro e infligira aos brutais estrangeiros um castigo bem merecido, provocando, infelizmente, alguns golpes e nódoas negras ao filho do médico. Era um caso menor, sem qualquer interesse formal para o yamen. Uma certa forma de justiça rudimentar havia sido exercida contra os autores de um acto de delinquência juvenil e o caso podia ter ficado por ali. Fora então que aquele daifu estrangeiro - um bárbaro que tinha sido invulgarmente honrado e venerado em Shishan, conhecido pelas suas pretensas boas acções e que desfrutava até da protecção do Da Ren Liu Daguang em pessoa - revelara a sua verdadeira natureza, orgulho e arrogância. Furioso por alguém ter ousado repreender os seus filhos, tivera a audácia de se apresentar no yamen e exigir que o peso da justiça chinesa se abatesse sobre as cabeças de crianças inocentes, unicamente para satisfazer o seu desejo de vingança quanto ao que ele considerava ser uma afronta contra ele e os cristãos que representava.

 

A menção da palavra “cristãos”, o médico reparou que o jovem ao lado do mandarim, que bocejara durante a parte inicial do discurso de Jin Lao, franzira de súbito as sobrancelhas e acenara com a cabeça, entusiasticamente. O mandarim mantivera-se impassível, fazendo sinal a Jin Lao para continuar, com um leve movimento do seu leque.

 

Ele próprio fora forçado, continuara o camareiro, a interrogar o daifu estrangeiro, naquela ocasião desagradável, no exterior dos portões do yamen, o que não fora minimamente edificante. O médico estava tão enfurecido e irracional que, a dada altura, rolara na poeira e a violência da sua linguagem chocara os guardas. Inventara uma história segundo a qual os seus filhos teriam sido atacados por bandos de criminosos que praticavam artes marciais. Era óbvio que a sua intenção fora enganar o yamen, levando-o a punir uma aldeia inocente, ao que parece uma aldeia que desdenhara as suas actividades de missionário. Mais uma vez, o jovem sentado ao lado do mandarim acenara afirmativamente, com toda a energia. Por conseguinte, tudo não passara de uma vingança, após uma afronta pessoal, ou, ainda mais, de um novo ataque dos cristãos contra os seus inimigos. Jin Lao tinha dito ao homem em fúria que voltasse para casa, o que este acabara por fazer, mas ninguém sabia que rancor ele continuava a guardar no seu peito.

 

Frustrado por não poder usar a lei em sua vantagem, o daifu estrangeiro decidira tomar o caso em mãos e ordenara ao seu criado, um cristão a seu soldo (“Vejam-no - é este insecto que rasteja hoje à nossa frente”), que fosse de noite à aldeia e procurasse o rapaz que ferira o seu filho. Ordenara-lhe que infligisse ao rapaz ferimentos tais que só um médico, conhecedor da arte de curar, e, por conseguinte, conhecedor também da forma mais eficaz de ferir um corpo, podia imaginar. O criado seguira tão escrupulosamente as abomináveis instruções do amo que se temia que o jovem herói da aldeia nunca mais voltasse a andar.

 

- Eis como se comportam os cristãos! - gritara Jin Lao Vejam a sua obra!

 

E apontara o dedo. Um guarda - Airton reconheceu o homem que lhe oferecera de beber em frente do portão - encaminhou-se para as três figuras ajoelhadas e levantou com todo o cuidado o rapazinho que se achava entre os dois adultos.

 

Estava envolto numa grande capa. Carregando-o nos braços, o guarda fez deslizar a capa, que caiu ao chão, para o apresentar, todo nu, ao tribunal. O corpo do rapaz estava de tal forma coberto de nódoas negras e de feridas que sobrava apenas uma pequena porção de carne intacta. O médico reparou no ângulo deformado que indicava que uma das pernas estava partida e precisava de cuidados médicos; quanto à inclinação de um ombro, sugeria que estava deslocado. Airton virou a cabeça, com uma lágrima ao canto do olho. “Animais!” quisera gritar.

 

- Vejam a sua obra! - sibilava Jin Lao. - E o médico cristão, porque desvia ele o olhar? O curandeiro estrangeiro não quer examinar o seu paciente?

 

A voz áspera do mandarim dissipou o ambiente que Jin Lao criara.

 

- O tribunal já viu a prova. Levem o rapaz daqui e arranjem-lhe um médico. Estamos no yamen, não numa barraca de bizarrias de uma feira. Camareiro, termine o seu relato, e depressa.

 

Jin Lao fez uma vénia.

 

- Meu senhor, príncipe Yi, Liu Da Ren, vou apresentar uma última testemunha e terei acabado.

 

Indicou com o dedo a terceira figura ajoelhada, que se pôs rapidamente de pé, quando foi empurrado por um guarda. Airton viu um jovem, bem constituído, de rosto rabugento e com marcas de varíola nas faces. A sua expressão era um meio esgar de troça, um meio sorriso.

 

- Quem é este? - inquiriu o mandarim.

 

- Um patriota e um cidadão-modelo - respondeu Jin Lao. - É proprietário de um restaurante, Mestre Liu Ren Ren. Por sorte, encontrava-se na aldeia na noite em que esta acção condenável foi cometida. Infelizmente, chegou tarde de mais para impedir o espancamento do rapaz, mas conseguiu reconhecer e prender o vilão e identificá-lo como sendo o criado do médico cristão. Devemos-lhe um agradecimento. Sem ele, nenhum dos aldeões teria revelado este caso - acrescentou, em tom grave. - Teriam medo dos cristãos. Devemos agradecer a Mestre Liu por ter trazido este maléfico caso perante a justiça.

 

- Que fazia na aldeia, naquela noite? - perguntou o mandarim.

 

- Fui visitar a minha tia - respondeu Ren Ren. - Ela vive ali.

 

- É tão bom sobrinho como defensor público - comentou Jin Lao.

 

- Deveras? - exclamou o mandarim.

 

- O caso parece-me claro - interveio o príncipe. É típico do género de ultrajes que os cristãos têm cometido em outras partes do Império. Tive razão em vir até cá. Penso que deveriam puni-los.

 

- Puni-los? A elest

 

- Muito bem, punir o criado cristão. Essas perniciosas leis extraterritoriais... Basta que repreenda o amo e castigue o criado.

 

- Então, como príncipe, lhes conceder a possibilidade de refutar as acusações?

 

O jovem aristocrata ergueu o sobrolho e sorriu ao mandarim.

 

- Meu caro Daguang, como é meticuloso! De que serve interrogá-los? São cristãos, e os cristãos mentem. A sua culpabilidade já foi devidamente provada pelo seu camareiro, que fez um excelente trabalho. Está de parabéns por isso. Prossiga, prossiga, meu caro amigo. Dê um veredicto exemplar. Depois, iremos almoçar.

 

- Muito bem, príncipe, mas - insistiu o mandarim -, se infringirmos as leis extraterritoriais e isso chegar aos ouvidos das legações...

 

- Oh, eu não me preocuparia com isso, no seu lugar - respondeu o príncipe Yi, com um sorriso. - Como já lhe disse, vai haver algumas mudanças. Grandes mudanças. Vivemos um momento muito excitante.

 

- Da Ren, vou falar.

 

Airton tinha a garganta seca, e teve de repetir o que dizia até se fazer ouvir. Apanhado de surpresa, o príncipe Yi deixou cair o leque.

 

- Céus, o bárbaro sabe realmente falar a nossa língua! Que divertido!

 

O mandarim suspirou.

 

- Daifu - respondeu, e fez sinal a Airton para que continuasse.

 

- Mandarim Da Ren, suplico-lhe que abra o seu espírito e escute a verdade. O que foi descrito é uma... uma paródia. Não sei quem foi o monstro que atacou aquele pobre rapaz, mas não pode ter sido Ah Lee. Ele esteve no meu hospital nestes dois últimos dias, porque ele próprio ficou ferido. Tudo isto é um malvado ataque contra a minha família, os meus criados, a minha fé, usando vítimas inocentes como instrumentos. Conhece-me, Da Ren. Sabe porque vim vê-lo. Foi para o avisar de que os Boxers...

 

- Então, as acusações falsas e interessadas dos cristãos recomeçam - atalhou Jin Lao, com a mesma voz de falsete que empregara no seu discurso,

 

- Calem-se os dois! - berrou o mandarim. - Daifu dirigiu-se a Airton directamente, com os olhos semicerrados -, este tribunal não está a julgá-lo.

 

Lançou um olhar frio ao príncipe Yi e fitou novamente o médico.

 

- Na verdade, nem sequer devia estar aqui, de acordo com as leis actuais. Nem eu estou convencido de que tenha ordenado este crime. O Camareiro, apresentou-nos suposições, quanto a esse ponto, e não provas.

 

Fez uma pausa e depois prosseguiu:

 

- Mas o caso do criado do médico é diferente. Para ele, é necessário um castigo.

 

Airton deu consigo a gritar:

 

- Como pode acreditar nessas mentiras? É óbvio que o Ah Lee é inocente! É incapaz de fazer mal a uma mosca!

 

- Daifu, por favor - disse calmamente o mandarim. Não quero fazê-lo passar pela humilhação de o expulsar. Não posso fazer outra coisa se não punir o seu criado, porque ele próprio confessou.

 

- Confessou?

 

O rosto do mandarim recuperara a habitual expressão impassível.

 

- Sim, ele assinou uma confissão, reconhecendo a sua própria culpabilidade. Aqui está. Não implicou qualquer cúmplice nem disse expressamente ter obedecido às suas ordens. É um documento muito mal escrito, mas o que é interessante é que ele abdica de todos os direitos que poderia ter, enquanto cristão, de ser julgado por um outro tribunal. É surpreendente que um cozinheiro saiba tanto acerca da lei, mas torna as coisas mais fáceis para mim. Isso impedi-lo-á de protestar junto do seu consulado, Daifu. Tendo em consideração este facto, reduzirei o seu castigo dos habituais cem golpes infligidos por agressão para cinquenta.

 

Pegou numa pluma e rabiscou o seu nome na condenação.

 

- Cinquenta golpes, a administrar de imediato, mais uma semana no cepo. Oficiais, que se execute o castigo. Tremam e obedeçam.

 

Enquanto se levantavam para sair juntos, Airton ouviu o príncipe dizer ao mandarim:

 

- Ora, ora, que coração terno você tem. Sabe, não deve preocupar-se com a reacção desses cristãos. Espere até ouvir o que tenho para lhe contar, durante o almoço. Temos de nos despachar. a minha viagem para norte esta tarde.

 

- Queira desculpar-me, príncipe. Tenho ainda uma palavra a dizer ao médico.

 

Parou por um breve instante perto de Airton, para lhe comunicar, em tom de voz brusco:

 

- Na China, fazemos as coisas à nossa maneira chinesa, Daifu. Tente compreender. É importante. Vai acompanhar-me na caçada, espero...

 

- Na caçada?

 

O médico sentia a cabeça a andar à roda.

 

Apercebeu-se de outra presença a seu lado. Os olhos remelentos de Jin Lao, num rosto enrugado, fitavam-no com uma expressão melíflua.

 

- Daifu...

 

Inclinou-se e os seus lábios finos esticaram-se num sorriso beatífico.

 

- Espero que esteja satisfeito por eu ter feito o que lhe prometi, investigando este crime.

 

Airton não respondeu e Jin Lao afastou-se, seguido pela sua jovem testemunha, que passara em frente do médico mirando-o de alto a baixo com uma expressão insolente. Airton ouviu-o rir e proferir a frase “devorador de ratos”, antes de o jovem transpor a porta.

 

Aproximou-se de Ah Lee, ainda agachado no chão, sob a vigilância dos guardas.

 

- Meu amigo, meu amigo, que foi que eles te fizeram? - murmurou Airton, vendo as equimoses no rosto do cozinheiro. - Tens dores?

 

Ah Lee sacudiu a cabeça, mas as lágrimas saltaram-lhe dos olhos, um dos quais estava negro.

 

- Então, porquê, porquê, porque confessaste uma coisa tão inacreditável?

 

- Eles vieram de noite... Pressionaram uma faca contra a garganta da Ah Sun. Disseram que a matavam e me cortavam aos pedaços a seguir, e eu estava aterrorizado. Também disseram que raptariam as meninas Helen Francês e Jenny, e... e... A cabeça caiu-lhe para a frente e todo o seu corpo estremeceu ao ritmo dos soluços. - E eu sabia que iria para o Inferno e arderia no fogo da danação eterna se mentisse, mas, se eles tivessem feito mal a Miss Jenny e a Miss Helen Francês...

 

- Não vais para o Inferno nem arderás no fogo da danação, meu querido amigo.

 

O guarda amigável do yamen pigarreou.

 

- Daifu, chegou o momento. Não nos siga. Não vai querer assistir a este castigo. Não é coisa para ser vista por um Xiansheng como o senhor... Mas também não se preocupe demasiado. Apesar de ser magro, é forte e vai aguentar. Tudo farei para que regresse inteiro.

 

Sentado perto da fogueira, nas colinas Negras, três semanas depois, com o vento a soprar nas brasas, Airton não conseguia esquecer o rosto implorante do cozinheiro, quando o levaram. Nem os gritos e lamentos de Ah Sun quando o corpo torcido e espancado do marido chegara do yamen num carrinho de mão, uma semana depois. Nem o ténue mas ainda ardente sorriso de Ah Lee, tudo o que o homem conseguia fazer, confinado à cama durante vários dias.

 

Estremecendo, Airton estendeu a mão para pegar no bule e encher novamente a caneca. Sabia que devia ter-se retirado para a tenda: tudo o que precisava era de descanso, paz e reflexão - mas a recordação da sua experiência no yamen ainda o atormentava. Sem falar dos novos choques que tivera naquele dia, e que a sua mente se recusava a enfrentar ou a aceitar.

 

Depois, havia aquele mal-estar, mais generalizado, a escuridão glacial, os rufos de tambor na floresta - uma convicção crescente, mesmo que a razão se recusasse a admiti-lo, de que alguma coisa de ameaçador rondava, por ali, naquele momento, algo de primitivo e de maligno.

 

Fora um dia marcado pela violência. Antes do amanhecer, o acampamento acordara ao rufar de tambores e ao queixume estridente das trombetas e cornetas. Ao sair da tenda, o médico vira os batedores, de unifornu, exóticos, desaparecer na neblina que pairava por entre as árvores. O mandarim, Liu Daguang, resplandecente na sua armadura encarnada, com um arco e uma aljava de setas às costas, empunhando uma longa lança ornada com um galhardete, chegara à clareira com um grande chocalhar metálico, vindo do seu acampamento, fazendo o seu cavalo empinar, rindo-se muito alto, um verdadeiro deus da guerra na força da idade, instando e encorajando os outros. Os elegantes caçadores, Henry Manners e o coronel Taro, com as suas caneleiras de couro e capas de tweed, surgiram montados nos seus cavalos e seguidos por Lao Zhao e por um outro muleteiro, que carregavam as espingardas. Os arneses brilhavam, o cavalo de batalha do mandarim soltava vapor pelas narinas e batia no solo com os cascos.

 

- Daifu, ainda não está pronto? Despache-se! Os presságios são-nos propícios. Melhor ainda, as minhas velhas feridas doem-me, sinal de que mataremos hoje. Depressa!

 

- Da Ren, quando poderemos falar?

 

- Falar? - O mandarim soltara uma das suas gargalhadas agudas. - Hoje não é um dia para falar, Daifu. Hoje é um dia para matar.

 

O médico esperava poder ficar no acampamento com Helen, e evitar assim a caçada. Tanto ele como Nellie tinham desaconselhado a jovem de ir até às colinas Negras. Já não era a rapariga saudável de há uns tempos - embora o médico não conseguisse explicar o que a podia ter transformado na criatura lânguida e melancólica das últimas semanas - mas ele preocupara-se demasiado com as crianças, Ah Lee e os Boxers para se inquietar com a sua ajudante. Suspeitava que tudo girava à volta de assuntos do coração e o prolongado noivado com Tom, mas deixava essas coisas ao cuidado de Nellie. No entanto, pouco antes de saírem da missão, ao reparar de súbito nas olheiras profundas que lhe circundavam os olhos avermelhados e a palidez doentia da sua pele, perguntara a si próprio se o estado da jovem não seria provocado por uma doença física.

 

- Se não a conhecesse, diria que parece uma viciada em ópio - dissera, em tom de brincadeira, enquanto lhe examinava a língua. Em resposta, ela brindara-o com um estranho sorriso. - Afinal, talvez o ar fresco lhe faça bem, mas não a deixarei fazer grandes esforços. Nem me parece que uma jovem equilibrada como você queira ver de perto uma actividade tão perigosa como a caça.

 

- Mas eu quero ver a caçada.... - respondera ela.

 

- Talvez possamos aguardar no acampamento até eles trazerem o trofeu. sim, participaremos das celebrações.

 

Ela parecera concordar. Pelo menos, não dissera mais nada.

 

O trajecto, feito a cavalo, até às Colinas Negras, fora desolador. O médico julgara que Helen se mostraria ansiosa por mais um passeio com o seu velho amigo Henry Manners há algum tempo que não cavalgavam juntos -, mas espantara-se ao reparar que os dois se ignoravam mutuamente. Manners cavalgara à frente, com o coronel japonês, de quem o médico não gostava. Uma vez que o mandarim, também ele, se remetera ao silêncio, absorto em papelada, na sua cadeirinha, e que Helen se mantinha calada e taciturna, apesar de cavalgar a seu lado, o médico sentira-se isolado e desgostoso. E também cada vez mais frustrado por não conseguir falar com o mandarim, o principal objectivo que o levara a participar na expedição.

 

E agora, enquanto o mandarim, na sua armadura, galopava em círculo à volta da fogueira, com o major Lin e os seus soldados atrás dele, e Manners e Taro subiam para as suas selas, o médico ficou chocado por ver Helen, com o seu fato de amazona, montar também a cavalo, ajudada por Lao Zhao. Nada podia fazer. Apesar de não se sentir preparado para a caçada, pediu que lhe trouxessem rapidamente o seu cavalo. Poucos minutos depois, conduzido pelo mandarim num galope veloz, o grupo embrenhou-se sob as árvores, seguindo atrás dos batedores - com o médico, no fim da fila, a segurar o chapéu com uma mão.

 

A caçada fora tão brutal e sangrenta como ele calculara. Os batedores tinham feito um bom trabalho; pouco depois, as espingardas de Manners e de Taro e as setas do mandarim abatiam o seu lote de veados em fuga, de lebres e de javalis. À sua frente, ouviam ladrar os cães que acuavam a presa principal - um urso, um tigre, o médico não o sabia. De todos os lados vinha o ruído dos tambores dos batedores e os apelos ásperos das suas trombetas, empurrando os animais que sobravam para o local escolhido para a sua morte. Tudo o que o médico podia fazer era permanecer montado a cavalo. Não tinha qualquer desejo, ao contrário de Manners e do seu amigo, de participar naquela matança. Só queria que a caçada terminasse o mais depressa possível.

 

A caçada terminou numa clareira, com um urso forçado a defender-se. Quanto mais eles se aproximavam, maior era o tumulto: todos os sons provenientes da matilha, murmúrios, latidos e gemidos, se misturavam num alarido infernal. Os batedores tinham cercado a clareira e faziam rufar os tambores; os homens dançavam, fora do alcance do gigante negro. O urso, com a boca muita aberta, exibindo os dentes, os olhos amarelos enraivecidos como os de um demónio, balançando-se sobre as patas traseiras e rugindo de raiva, batia furiosamente nos cães que lhe saltavam ao pescoço. Alguns achavam-se caídos por terra, ganindo, com a espinha partida. O mandarim parou. Os outros agruparam-se, em semicírculo, à sua volta. Levantou alto o braço direito. Um dos homens de Lin soprou com força a sua trombeta. Os tambores calaram-se. Era um sinal. Os homens regressaram, correndo. Emitindo estranhos assobios, os batedores correram por entre a matilha. Alguns arrastavam atrás de si nacos de carne. Lentamente, o tumulto dissipou-se. Após alguns últimos saltos e tombos, os cães seguiram os engodos e afastaram-se. O urso continuava a balouçar-se, no mesmo lugar, espantado pelo súbito silêncio; rugiu uma vez, duas vezes, depois deixou-se cair sobre as quatro patas, sempre a rugir, enquanto os seus olhos amarelos olhavam, desconfiados, para o grupo de cavaleiros.

 

- Ma Na Si Xiansheng - disse o mandarim alegremente. - A quem vai calhar? E com que arma? A espingarda, a lança ou o arco?

 

- Não igualo, com toda a certeza, o Da Ren no arco respondeu Manners, com um sorriso.

 

- E um antigo porta-bandeira, treinado apenas segundo os velhos costumes guerreiros, não conhece nada das espingardas de caça modernas.

 

- Nesse caso, devemos escolher a lança.

 

- É a arma tradicional.

 

- A pé ou a cavalo? - perguntou Manners.

 

- A pé é melhor. Irei primeiro e você seguir-me-á para me cobrir. E o seu amigo? - Olhou para Taro, que se curvou, em resposta ao convite, antes de se virar propositadamente para o major Lin; os olhos de Taro brilharam com uma ironia insolente, enquanto transmitia o desafio tácito. O major corou, mas manteve a sua expressão séria, olhando em frente.

 

- Não, obrigado, Da-Ren-sama - agradeceu o japonês. Ficarei orgulhoso por observar o triunfo de Vossa Excelência e de Mister Manners.

 

Este apeou-se, tirou a capa e ergueu as mãos, enquanto um batedor lhe fazia passar pela cabeça um gibão de couro com tachas e lhe protegia os braços com enormes manoplas.

 

- E o senhor, doutor? - perguntou. - Não pega na lança, hoje?

 

- Não, Manners - respondeu Airton. - E, se quer a minha opinião, acho que está a comportar-se como um autêntico idiota.

 

- Sempre fui um idiota, Airton. Só que hoje sinto-me em segurança. Não é todos os dias que temos um médico à mão, em caso de um acidente... E também uma enfermeira. - Sorriu a Helen, que lhe lançou um olhar frio. - Será que a minha dama me poderá conceder a sua protecção para esta batalha? - pediu-lhe. Helen desviou a cabeça, mordendo os lábios. - É óbvio que não - concluiu Manners.

 

- Ma Na Si! - gritava o mandarim. - É tempo de matar o nosso urso!

 

Airton assistiu, incrédulo, enquanto os dois homens caminhavam pela clareira, com as lanças aos ombros. O urso também os viu. Pôs-se sobre as patas traseiras. Os seus ombros gigantescos alargaram-se, enquanto estendia as patas dianteiras, pronto a apanhá-los, e sacudia a cabeça, da esquerda para a direita, com os dentes arreganhados. O mandarim e o inglês avançaram para o animal, com passos decididos.

 

De súbito, o mandarim começou a correr apontando a sua lança. Uma grande pata varreu o ar. O mandarim rolou no chão para evitar a investida, e arremessou a lança. O urso rugiu, quando a ponta dentada lhe perfurou o peito. O mandarim já se pusera de pé e recuara agilmente, sem desviar os olhos do urso, com outra lança preparada. Os batedores aplaudiram.

 

- Ma Na Si! - chamou.

 

Era a vez de Manners. O urso tombara sobre as patas dianteiras, rugindo, enraivecido pela dor. Quando o inglês deu um passo em frente, a enorme massa de músculos, de pêlo e de garras mortais investiu.

 

- Procure apoie no solo! - gritou o mandarim. - Depressa!

 

Manners deixou-se cair sobre um joelho, cravando a extremidade da haste da lança na relva, com a ponta de frente para a fera.

 

O médico ouviu-se exclamar:

 

- Isso nunca o deterá!

 

Sentiu de imediato a mão de Helen pousar-se sobre o seu ombro. Angustiado, viu o urso aproximar-se.

 

O mandarim corria na direcção de Manners e, com uma agilidade graciosa, ajoelhou-se a seu lado. Uma segunda lança foi atirada e cravou-se no urso. Airton não conseguiu ver mais. Ouviu os homens à sua volta soltar exclamações abafadas de admiração e Helen suspirar. Abriu os olhos.

 

Os dois homens pareciam quase esmagados, sob o peso do urso. Estava empalado nas duas lanças, que oscilavam e se torciam, por cima deles, enquanto a enorme massa de carne se contorcia, em agonia. Com os dentes e as garras, tentava dilacerar os seus agressores, empapando-os com sangue e saliva. Emitia uma espécie de miar furioso enquanto se esforçava por matar. Manners e o mandarim tinham de se baixar e desviar continuamente para manter as suas cabeças desprotegidas fora do alcance das garras mortíferas. Os batedores, em silêncio, assistiam à luta desesperada entre os homens e a fera.

 

Então, ouviu-se um estalido, como uma chicotada, e a haste da lança do mandarim partiu-se. A pata do urso abateu-se, como uma bofetada mortífera, e atingiu o Da Ren no ombro, atirando-o ao chão. O urso cravou-se mais fundo na lança de Manners. O médico podia ver todo o corpo de Henry arqueado pelo esforço de levantar aquele peso impossível. Sabia que a lança rasgaria a carne e os músculos e que o animal aterraria sobre o homem, matando-o. Airton podia ver o mandarim a rastejar, com dificuldade, enquanto gritava algo que ele não conseguiu compreender. Apercebeu-se então do martelar de cascos e o major Lin avançou pela clareira, seguido por Taro. Lin lançou qualquer coisa ao mandarim, que, de um só gesto, apanhou o seu arco e a aljava e ajustou uma seta à corda. Virando-se com grande flexibilidade, soltou a haste da seta, quase na horizontal, em direcção ao peito do urso. Ao mesmo tempo, um disparo retiniu e a cabeça do animal explodiu, numa mistura de sangue e de miolos. Taro fez o seu cavalo mudar de direcção e disparou uma segunda vez; o urso caiu sobre a lança. A luta terminara.

 

Airton apercebeu-se de novo ruído de cascos.

 

- Helen! Não! - gritou. - Ainda é perigoso!

 

Mas ela já galopava na direcção de Manners, e o médico seguiu-a. Poucos minutos depois, Helen desmontara, Manners pusera-se de pé, cambaleando, e ela apoiara a cabeça no seu peito ensanguentado.

 

- O que dizia eu acerca de ter uma enfermeira à mão? - comentou Manners, sorrindo. Então, vencido pelo cansaço, as suas pernas dobraram-se e a sua cabeça tombou sobre o ombro da rapariga. Ao mesmo tempo, o seu braço deslizou, num gesto natural, pelas costas dela até ficar à volta das nádegas. Estremecendo, ela pressionou o seu corpo contra o dele. O doutor apeara-se do cavalo e aproximara-se deles, quando a visão daquele abraço - e a extraordinária intimidade que deixava transparecer - o embaraçou e o fez recuar.

 

- Helen Francês! O que está a fazer?

 

A jovem ergueu lentamente a cabeça e Airton viu lágrimas nos seus olhos, por detrás do cabelo desgrenhado. Ela olhou para ele, primeiro sem o ver, mas, sobressaltando-se, reconheceu-o. O sangue do urso manchava-lhe as faces.

 

- Lamento imenso, doutor - murmurou. - Pensava... Pensava que...

 

- Não faz mal. Eu compreendo - respondera. No entanto, o seu espírito debatia-se com uma descoberta súbita e dramática: “Eles são amantes!-”, gritava-lhe uma voz, no seu íntimo. - Vamos ter de fazer passar novamente o gibão por cima da cabeça dele.

 

Estenderam com todo o cuidado o corpo sobre a erva pisada. A mente de Airton andava vertiginosamente às voltas, mas as suas mãos fizeram gestos profissionais, verificando o pulso de Manners e tacteando o seu corpo para detectar eventuais ferimentos. “Amantes!”, gritava a voz da suspeita na sua cabeça. “Meu Deus, o que irá dizer a Nellie? E nós que encorajámos tudo isto... Oh, Deus! Pobre Tom!” Helen, passado o primeiro momento de medo, era novamente a enfermeira profissional, e estancava o sangue de um golpe no braço de Manners, que, inconsciente, gemia. O médico foi despertado das suas sombrias reflexões por um som do outro lado da enorme carcaça - que ainda pairava, por cima deles, e era agora admirada pelos batedores, que se tinham agrupado para ver o trofeu. Era a voz tonitruante do mandarim. Airton pensou em perguntar-lhe se ele também precisava de cuidados médicos, mas, em vez disso, deu consigo a escutar a conversa.

 

- Coronel Taro - O vento trazia distintamente a voz do mandarim até ele, apesar de o médico estar escondido pela carcaça do animal; nem mesmo as conversas animadas dos batedores abafavam a voz do mandarim. - Fico-lhe reconhecido pela amável atenção que demonstrou, ao salvar-me a vida. Contudo, penso que terá reparado que a minha seta já trespassara o coração do animal.

 

Talvez fosse a frieza na voz de Taro que levou Airton a concentrar-se ainda mais naquela conversa.

 

- Da Ren-sama - sibilou o japonês -, soubesse exactamente a loucura que o inglês e Vossa Excelência tencionavam fazer, teria intervindo mais cedo. Vocês os dois podem morrer numa outra altura, mas devo relembrar-lhe que, por enquanto, ainda temos negócios a concluir, que são importantes para o seu país e para o império do Japão. Não vos posso deixar, nem a si, nem a Manners, sacrificar os nossos interesses imperiais em actos heróicos mas improdutivos com um animal selvagem.

 

Teria ele ouvido bem? Interesses imperiais? O que podia Manners - ou até mesmo o mandarim - ter a ver com os interesses imperiais japoneses?

 

- Estou desiludido - replicou o mandarim. - Ouvi falar muito do vosso código de honra, do vosso bushido, e pensava que um samurai como você apreciaria as tradições da caça.

 

- Da Ren-sama, não brinque comigo, por favor. Se há alguém que deve saber que a guerra não é um desporto, é o senhor. Tal como não o é a conquista do poder. Não vim até aqui para caçar, mas porque o acordo no qual o Manners e o Lin trabalham está a chegar a uma conclusão satisfatória e aceitável para ambas as partes.

 

- Talvez possamos entender-nos, mas primeiro preciso de conhecer os pormenores.

 

- Conhecê-los-á esta noite, através do Manners, que, graças à Providência e à precisão da minha espingarda, ainda está vivo.

 

- Sim, talvez nos encontremos esta noite. Contudo, tenho um outro encontro, que está relacionado com este assunto.

 

- Um outro encontro? Aqui?... Compreendo... Então... Ainda negoceia com esses bandidos para obter espingardas dos Russos? Eu devia ter adivinhado. É por isso que viemos até às colinas Negras, não é verdade? E fala-me você em código de honra, Da Ren-sama?

 

- Coronel, para se concluir um negócio ao melhor preço tem de haver sempre uma outra oferta para comparação. Tudo na vida se resume a negociações e a compromissos. Penso que tem suficiente experiência para o saber, apesar de ainda ser muito novo.

 

- Não tenciono ser velho, Da Ren-sama, como o senhor tem a sorte de ser. Mas regatearei... ainda durante algum tempo.

 

O médico escutou o som de cascos que se afastavam. Taro partira. Endireitou-se e retomou a sua tarefa.

 

- Volte a vestir-lhe a camisa, Helen. Ele não deve apanhar frio.

 

Espingardas? Interesses imperiais japoneses? Negociações com bandidos? As palavras repetiam-se, como minas que explodiam, na sua mente. Horrorizado, baixou os olhos para o homem que estava a assistir e sentiu um calafrio de repulsa. Manners recuperava lentamente os sentidos, mas mantinha os olhos fechados, com a cabeça apoiada no regaço de Helen, e havia o vestígio de um sorriso no seu belo rosto moreno. Quem era aquele homem? O que maquinava ele? Tudo aquilo parecia uma traição. Devia ser uma infâmia. Mas, e se fosse verdade...? E se fosse verdade que Helen se envolvera com um tal homem...? Um criminoso? Um traficante de armas? A reacção de uma Nellie enfurecida quando o soubesse dominava os pensamentos de Airton. Só depois se apercebeu de outra coisa. O mandarim também estava metido no negócio! O homem em quem o médico confiara desde que estava em Shishan. O seu amigo! O seu benfeitor! O homem de quem esperara, ansiosamente, naquele mesmo dia, recolher sábios conselhos acerca dos Boxers, dos seus filhos, do castigo injusto de Ah Lee, das perturbantes insinuações nos comentários que aquele príncipe tecera a propósito dos cristãos - assuntos essenciais, que diziam respeito a toda uma comunidade que se achava a cargo do médico. No entanto, acabara de ouvir aquele paladino falar de tráfico de armas com um agente de uma potência estrangeira! E a propor encontrar-se com bandidos! Os mesmos bandidos contra os quais o mandarim enviara no passado expedições! Mas tê-lo-ia verdadeiramente feito? Não seria tudo mentira? Em quem podia confiar, agora?

 

- Daifu... - O riso do mandarim ecoou por cima de Airton. - Vejo que já fechou as feridas do herói vitorioso, e que lhe facultou uma bela enfermeira para lhe devolver a saúde. Não deve contar ao grande mercador de sabão as proezas que o Ma Na Si efectuou hoje, para que ele não fique com ciúmes. No entanto, que gloriosa vitória eu e o inglês alcançámos há pouco. Viu o nosso combate? Um urso ainda é melhor do que um tigre! Festejaremos esta noite, comendo-lhe as patas!

 

- Vi que o urso o derrubou, Da Ren. Quer que o examine?

 

- Não, obrigado. Estou a apreciar a dor infligida pela patada da ursa, mesmo que não passe de uma grande nódoa negra e um ligeiro latejar. Sabe porquê? Porque me faz recordar a nobreza da criatura que matámos. Vou conservar esta ferida em honra da ursa. Ainda deseja falar comigo, Daifu, agora que a caçada terminou? Tenho tempo, enquanto regressamos ao acampamento.

 

- Obrigado, Da Ren - retorquiu o médico, surpreendendo-se com a sua própria resposta. - Talvez não seja o momento mais oportuno.

 

O mandarim fitou-o com curiosidade.

 

- Não é o momento mais oportuno? No entanto, ainda esta manhã, você mostrou-se bastante inoportuno.

 

- Não era nada de importante, Da Ren. O mandarim fez o cavalo voltar-se.

 

- Não tem nada a perguntar-me acerca dos procedimentos dos nossos tribunais? Nada acerca dos cristãos e dos Boxers? Dos ventos de mudança que parecem soprar neste país? Ou acerca do motivo pelo qual fui honrado com a visita de um membro da corte imperial... Agora me lembro: tenho sido negligente ao esquecer-me de perguntar pelos seus filhos. Já estão melhor?

 

- Sim, obrigado, Da Ren, os meus filhos já estão bem.

 

- Não posso garantir-lhe que venha a ter tempo de novo durante esta excursão para outra conversa, Daifu. Sabe como gosto das nossas conversas. Não quer cavalgar a meu lado? O Ma Na Si parece estar em boas mãos...

 

Airton sentiu-se de súbito dominado por uma cólera fria, e as palavras saíram-lhe da boca antes que pudesse conter-se.

 

- Como se atreve a perguntar pela saúde dos meus filhos, depois do que nos fez no tribunal? E as nossas conversas, Da Ren?

 

Que significam elas para o senhor? Alguma vez me disse uma palavra que tenha sido verdadeira? Não o conheço, Da Ren. Já não o conheço, e é pena, porque o considerava um homem com uma alma nobre.

 

O mandarim bateu os dentes, acalmando o cavalo, que começara a agitar-se.

 

- Ora, ora... Parece que o veneno da ursa o afectou mais a si que ao Ma Na Si ou a mim, Daifu. Mas também é verdade que numa caçada existem mistérios que provocam paixões violentas e estranhas. Talvez tenha razão... Não é um bom dia para uma conversa. Haverá outros, quando voltar a conhecer-me melhor e, atrevo-me a dizê-lo, quando se conhecer melhor a si próprio.

 

“Tenho muito que fazer esta noite, e vou deixá-lo, mas sempre lhe digo uma coisa acerca das nossas conversas, conversas que sempre apreciei, como já lhe disse. Sei que você me tenta converter. Vê no nosso diálogo um debate civilizado entre um cruel e pragmático pagão e você, um homem de ideais. Considera-se afortunado por ter uma fé e tenta reger a sua vida por um código de noções absolutas sobre o bem e o mal, estipulado na vossa Bíblia. É parecido com alguns dos nossos mais sérios confucionistas, os académicos, não os homens práticos. Por outro lado, eu sou um administrador e faço o que tenho a fazer, de acordo com as circunstâncias que se me apresentam. Mas tem a certeza, Daifu, de que o processo de conversão não é uma faca de dois gumes? Que não está algo influenciado pela minha... digamos que pela minha abordagem relativa das coisas? Que nunca adaptará os seus ideais às circunstâncias, Daifu? Com vista a objectivos mais elevados?

 

“Talvez isto o vá surpreender mas interesso-me tanto pela sua alma como o senhor pela minha. Não há, no vosso Livro, uma história sobre Satanás que levou o vosso Jesus a um lugar alto para o tentar com as riquezas do mundo? Gosto muito dessa história. Espero que um dia seja possível retomarmos o nosso debate. Talvez possamos organizar um pequeno teste, tal como uma viagem a esse local elevado, e fazer uma aposta quanto ao resultado.

 

- Está a troçar de mim?

 

- Ouça bem, Daifu: pode em breve chegar o momento em que teremos todos de ser práticos, se quisermos honrar as nossas responsabilidades e proteger as nossas famílias. Lembre-se das minhas palavras. Nunca falo por falar. E sou seu amigo.

 

- Não basta dizer isso, Da Ren. Tratou o meu criado de forma monstruosa. Um homem inocente...

 

- O senhor é um cirurgião. Em determinadas ocasiões, é preciso amputar uma perna ou um braço saudável para salvar o corpo. Respeito o seu sonho cristão de um mundo perfeito. Infelizmente, penso que só vai encontrar uma tal perfeição no céu. A vida é um mar de tristeza, Daifu, um mar de tristeza. Mas nunca se esqueça de que sou seu amigo.

 

O mandarim fez estalar o chicote na garupa do cavalo e partiu a galope, seguido pelos seus criados e pelos homens de Lin.

 

O resto do dia passou-se numa espécie de confusão. O médico acompanhou Manners e Helen ao acampamento. Nenhum deles disse uma só palavra. A jovem mostrava-se melancólica, como de costume, e Manners parecia preocupado. Airton quase se convenceu de que as suas suspeitas eram apenas fruto da imaginação. Qualquer pessoa que observasse aqueles dois pensaria que se detestavam. Helen recusou o convite do mandarim para se sentar à mesa de honra durante o banquete na grande tenda, e, com grande perversidade - ou, até, levada por uma grande falta de educação, pensou o médico -, sentou-se com Lao Zhao e os muleteiros. Entretanto, fazendo grande alarido, Manners e Taro banqueteavam-se, ao lado do mandarim, que não parava de fazer brindes, entoando louvores a ele próprio e a Manners, a propósito das façanhas de ambos naquela tarde. O médico esforçou-se por mostrar-se sociável e bebeu mais do que desejaria. Depois do jantar, Helen pediu licença e regressou à sua tenda, pretextando uma dor de cabeça. Airton dirigiu-se para a fogueira da sua própria clareira, a fim de acender um charuto, à espera que os outros se juntassem a ele. Todos os seus pressentimentos recentes se confirmaram ao verificar que Manners e Taro se demoravam na tenda do mandarim, com este e com o major Lin. Afinal, sempre parecia que tinham todos algo para discutir precisando para o efeito de uma reunião secreta que durou cerca de três horas. Que devia ele fazer? Pensou em escrever a Sir Claude MacDonald, mas isso seria uma estupidez. Que provas tinha? E em que é que tudo aquilo lhe dizia respeito?

 

- Ainda a pé, Airton?

 

Manners surpreendeu o médico, aparecendo subitamente por detrás dele.

 

- Lamento tê-lo deixado sozinho, mas tinha de falar de certos assuntos respeitantes ao caminho-de-ferro com o mandarim...

 

- Muito bem... Fuma um charuto comigo?

 

- Não, obrigado. Foi um dia cansativo. Vou retirar-me para a minha tenda. Talvez o Taro fume um. Você nunca dorme, não é verdade, meu velho?

 

Contudo, o japonês não estava com eles; viram o seu vulto, perto da linha formada pelas árvores. Fumava e parecia contemplar qualquer coisa na floresta. Airton perscrutou a escuridão: havia movimentos, lanternas encarnadas, sombras de cavalos, um grito abafado, um tilintar de arneses, sons e formas que se afastavam como fantasmas, na neblina.

 

- Ora, ora, veja aquilo - comentou Manners. - O mandarim em pessoa, se não me engano, e as tropas do major Lin. Que coisas sombrias pensam eles fazer na floresta, esta noite? Talvez algum ritual pagão. Um sacrifício para acalmar o espírito da ursa que matámos? Estes bosques são sinistros, não acha? Não fique a pé até muito tarde, doutor, se não quer ser raptado por fadas-raposas!

 

- Eu fico bem - replicou Airton. - Não se preocupe comigo.

 

Taro aproximou-se da fogueira, para acabar de fumar o charuto por instantes, e trocaram cortesias embaraçadas. Airton nunca sabia o que dizer ao japonês. Por fim, Taro pediu educadamente licença e o médico ficou sozinho, com os seus pensamentos e o frio. Pouco depois, ouviu tambores ao longe.

 

- Considera-me um homem supersticioso? - perguntou o mandarim ao major Lin. Os cavalos seguiam o seu caminho por entre os pinheiros; mais à frente, a lanterna do guia balouçava, por entre os ramos.

 

- Sou um soldado - resmungou Lin.

 

- É verdade. Por favor, lembre-se disso, independentemente do que vir ou escutar esta noite. Confia nos seus homens?

 

- Eles também são soldados, Da Ren. Escolhi os mais corajosos, tal como me ordenou.

 

- Um homem pode ser corajoso à luz do dia, mas perder toda a coragem na escuridão. O medo, tal como a realidade, é uma coisa que podemos manipular. Vai ter de estar alerta, major. Lembre-se, a todo o instante, de que estaremos a lidar com homens que não são diferentes de nós.

 

- Mas que temos a recear de vulgares bandidos, Da Ren? Além do mais, já nos encontrámos com o Homem de Ferro Wang anteriormente.

 

- Mantenha-se alerta, é tudo o que lhe peço. Prosseguiram o seu caminho. O vento uivava por entre os pinheiros; as neblinas da noite esfumaçavam os contornos dos troncos, por entre os quais os homens serpenteavam numa fila única. Passado algum tempo, aperceberam-se de luzes ténues, flanqueando as árvores de cada lado. Eram archotes empunhados por escoltas invisíveis, que mantinham o mesmo passo que eles e os observavam, como que para lhes indicar o caminho. De tempos a tempos, o couro dos arneses estalava ou um cavalo resfolegava, mas ninguém falava. Ao longe, uma trombeta soou; então, a toda a volta deles, começaram a rufar tambores.

 

As árvores começaram a aparecer mais dispersas, e o grupo penetrou numa clareira, iluminada ao centro por uma grande fogueira. Três homens esperavam-nos, os seus vultos recortados em frente das chamas. O do meio não era alto, mas os seus ombros largos e o pescoço de touro indicavam uma força maciça. Apoiava-se a um machado de lâmina dupla. O reflexo da fogueira bruxuleou nos seus traços impassíveis, enrubescendo as pontas irregulares da espessa barba. O gorro de pele, que usava caído sobre a testa, deixava os olhos na sombra, mas toda a sua postura indicava desconfiança, atenção e vigilância.

 

O mandarim e Lin pararam e os oitos soldados posicionaram-se à volta deles, num semicírculo protector, carregando as espingardas de lado. Enquanto isso, as filas de archotes que os escoltavam havia algum tempo contornaram a clareira, ficando a coberto das árvores; pouco depois, a clareira ficou completamente cercada por um círculo de luzes pálidas. Os tambores invisíveis rufaram em crescendo, acabando por parar. O mandarim desmontou e, acompanhado por Lin, avançou com passos decididos para os homens que se mantinham perto da fogueira.

 

- Mestre Wang, que recepção tão teatral me preparou...

 

O Homem de Ferro Wang contentou-se em resmungar algo, à laia de resposta. Entregou o machado ao mais alto dos seus dois companheiros, e indicou uma mesa e um banco colocados na relva.

 

- Primeiro, comemos e bebemos - disse. - Depois falamos, quando os outros chegarem.

 

Avançou e sentou-se pesadamente num tamborete. Sem esperar que o mandarim estivesse sentado, estendeu a mão para uma garrafa e uma taça de barro e verteu um gole de uma bebida alcoólica branca, que esvaziou ruidosamente. Depois, empurrou a garrafa e a taça para o mandarim, que se instalara delicadamente à frente dele. O major Lin e os dois companheiros do Homem de Ferro observavam atentamente a cena, um pouco distanciados. O mandarim provou a bebida.

 

- É bom - reconheceu. - Um vinho de Shantung. É uma honra.

 

- Obtive-o de uma caravana de mercadores que me deixou assaltar no ano passado. Dez grandes jarros.

 

- Lembro-me de o pobre Jin Shangui me falar da sua perda. O vinho que acabou por servir no casamento do sobrinho não era tão bom.

 

O Homem de Ferro Wang pigarreou e escarrou. Depois, limpando a boca com a mão, apontou para uns pratos tapados que havia na mesa.

 

- É carne. Coma.

 

- Talvez mais tarde. Quem mais convidou para este... este festim?

 

- O velho Tang.

 

- Pensava que, desta vez, trabalhava independentemente do Bastão Negro. Não sei se aprovo.

 

Os olhos negros do Homem de Ferro Wang pestanejaram, impertinentemente.

 

- A sério? Pois bem, talvez já nenhum de nós tenha outra alternativa. O Tang logo lho dirá.

 

- Terei muito interesse em ouvi-lo.

 

- Beba. Ele estará aqui em breve.

 

Os tambores escondidos recomeçaram a rufar, a princípio com lentidão, ao ritmo de uma pulsação cardíaca; depois, aumentaram de ritmo, no mesmo crescendo de há momentos, parando da mesma forma súbita. O mandarim distinguiu vultos que se aproximavam, a pé, da outra extremidade da clareira. Um era estreito e curvado, envolto numa pesada capa de pele; o outro era conduzido por um rapazinho. O reflexo das chamas da fogueira tremeluziu numa cabeça calva e em vestes coloridas. Havia qualquer coisa de familiar no vulto do homem e no corte do seu traje, mas, na escuridão, o mandarim não podia ter a certeza. Enquanto os vultos se aproximavam devagar, um outro círculo de carregadores de archotes, cujas figuras não se viam, tomou lugar na clareira, aumentando o brilho que iluminava a vegetação, por trás das árvores; as luzes moveram-se e mudaram de posição, como pirilampos no escuro; dava a ideia de que o contorno da clareira fora atacado por espíritos pálidos. Quando os recém-chegados alcançaram o centro da clareira, o homem da capa fez sinal ao rapazinho e ao segundo homem - o padre que se pusera à frente do comboio - para que parassem; permaneceram na penumbra, do outro lado da fogueira, enquanto o homem encapuzado se dirigia penosamente para a mesa. Ali chegado, deixou-se cair com alívio num tamborete, ao lado do mandarim.

 

- Já estou muito velho para isto - suspirou o mercador de estanho Tang Dexin, puxando para trás o capuz e revelando o seu rabicho branco -, mas hoje é um dia importante. Da Ren, fico muito honrado por vê-lo aqui connosco. Faz feliz um velho homem. Dê-me apenas uns momentos para recobrar o fôlego.

 

- Para mim é também uma honra ser recebido pelo grão-mestre da Sociedade do Bastão Negro - respondeu o mandarim. - Mas uma honra inesperada. Hoje contava ter apenas a companhia de Mestre Wang, para falar em privado de uns assuntos particulares.

 

- Estou a par do vosso negócio - afirmou Wang. Mas isso agora já não interessa.

 

- Não interessa?

 

- Aconselho-o a não levar avante o negócio. O Homem de Ferro e eu pensamos que não é o momento propício para lidar com os bárbaros, em especial com esses russos nojentos que ocupam já uma grande parte do nosso território sagrado, no Norte. E se a presença de um soldado japonês na sua caçada significa o que penso, e tem em mente uma contraproposta para a proposta russa, também o aconselho a reconsiderar. Os Chineses não precisam de armas estrangeiras. Se quiser perdoar a um velho a impertinência de lhe fazer um aviso, com todo o respeito, creio que o Da Ren foi muito indulgente para com os estrangeiros da nossa cidade. Não precisamos nem deles nem dos seus brinquedos.

 

- A sério? Você e Mestre Wang tornaram-se subitamente muito patriotas e altruístas. Mestre Wang? Homem de Ferro, é verdade? Já não está interessado em ajudar-me na minha transacção?

 

O bandido encolheu os ombros.

 

- O Tang vai explicar-lhe - resmungou, em tom mal-humorado.

 

- Sim, é melhor - replicou o mandarim.

 

- Ouvi dizer que, recentemente, teve a visita de um príncipe da corte imperial - declarou Tang.

 

- Não é nenhum segredo. O príncipe Yi procedia a uma ronda de inspecção. Não é nada excepcional, nesta altura do ano.

 

- Compreendo. No entanto, por essa ocasião, creio que o príncipe também lhe transmitiu notícias sobre certas deliberações recentes em Pequim, respeitantes às leis sobre os cristãos...

 

- Vou ter de despedir outro dos meus criados. De facto, lembro-me de uma conversa privada acerca desse assunto, durante o almoço. Como suponho que os seus espiões são eficientes, já deve conhecer todos os pormenores.

 

- Não todos, Da Ren. Mas os suficientes para saber que certas facções na corte pensam que o Império corre perigo, e que é tempo de os chineses leais - todos os chineses leais unirem as suas forças, a fim de salvar os Ch’ing dos seus inimigos e das potências obscuras que ameaçam o nosso país.

 

- Há muitas facções na corte e muitas opiniões que se lhes opõem.

 

- O que importa é que, desta vez, a velha Buda em pessoa parece apoiar os elementos mais patrióticos agrupados em volta do príncipe Tuan. A estrela do seu velho mestre Li Hung-chang, o colaboracionista, está a extinguir-se, e rapidamente, ao que parece. Da Ren, tem consciência de que estão a organizar-se forças neste país que apelam à expulsão dos bárbaros, da sua religião e de todo o mal que trouxeram com eles?

 

- Sim, tenho consciência de que grupos de instigadores foram presos em diversas partes do Império, por vandalismo e insurreição.

 

O velhote suspirou e apertou o seu casaco de peles em volta dos ombros.

 

- Espero sinceramente que consigamos entender-nos, esta noite. - A sua boca fendeu-se num sorriso, e um dente de ouro brilhou à luz das chamas. - O Bastão Negro deseja manter a amizade que lhe tem, Da Ren. E tenho a certeza de que falo também em nome do Homem de Ferro Wang e de todas as outras grandes forças que estão connosco e não param de crescer.

 

- Segundo a minha experiência, os interesses são algo mais fiável do que as relações de amizade. Poderia começar por me dizer que interesses o Bastão Negro e os bandidos do Homem de Ferro têm em comum com os Punhos Harmoniosos. Suponho que esteja a referir-se aos Boxers, não é verdade? O bonzo que ali está na sombra é o padre que efectuou uma demonstração dos seus truques de magia no acampamento do caminho-de-ferro, não é assim? Porque não o trazem até aqui? Ou são vocês a boca dele, esta noite? Lembro-me que é cego e mudo.

 

- Ouvirá a sua eloquência antes que a noite termine, e, se tiver sorte, também verá o que ele vê. Estamos prestes a entrar num período de maravilhas, Ren... maravilhas.

 

- Como já lhe disse, respeito apenas os interesses. E não consigo ver qual o benefício, para qualquer das vossas organizações, em juntar-se a uma revolta de camponeses.

 

- Se a corte nos apoia, não é uma simples revolta. Julga que o Bastão Negro é apenas um bando de criminosos, Da Ren? Duvido de que haja servos mais leais e dedicados ao imperador e à dinastia do que o Homem de Ferro Wang e eu. E, no entanto, vivemos exilados, na clandestinidade ou do lado errado da lei, assistindo a ladrões e bárbaros roubar-nos a nossa herança, vendo o nosso bem-amado imperador sucumbir às intimidações dos estrangeiros, vendo a magia envenenada dos cristãos a espalhar-se como um cancro pela nossa terra. O Homem de Ferro talvez viva na floresta, entre os animais, mas as suas virtudes são as dos antigos...

 

- Pilhando as caravanas dos mercadores?

 

O Homem de Ferro emitiu um grunhido irritado. Tang Dexin sorriu.

 

- Uma taxa cobrada àqueles que o merecem. Não foi assim que a descreveu certa vez, Da Ren? O Homem de Ferro saiu-se muito bem, para nosso proveito mútuo, no passado, e talvez continue, ainda durante algum tempo, a fazê-lo. O carregamento de prata que vem de Tsitsihar, por exemplo, seria um útil suplemento...

 

- Os mercadores de sabão ingleses acompanharão Lu Jincai. Acha realmente que é uma boa ideia?

 

- O Da Ren está assim tão preocupado com a segurança dos bárbaros?

 

- Um ataque contra um estrangeiro gera sempre complicações e papelada.

 

- Talvez não por muito mais tempo.

 

- “Exterminem os estrangeiros. Salvem os Ch’ing.” Está a tentar dizer-me a Sociedade Bastão passou a adoptar oficialmente o mote dos Boxers? Pensava que fossem mais práticos do que isso.

 

- Da Ren, conhecemo-nos há muitos anos. Vai dizer-me, com toda a sinceridade, que não aprova o que está a acontecer no nosso país? Não vê os Punhos Harmoniosos como o que eles são realmente? E as forças que desencadearam? Não é apenas um exército de homens, sem quaisquer ajudas, que vai expulsar os estrangeiros. Mas quando os deuses vierem, eles próprios, aos milhares, apoiar-nos...

 

- Meu caro amigo Tang Dexin...

 

- Da Ren, Da Ren, eu também não acreditava, a princípio. Porque haveria de acreditar? Como o senhor, só creio na verdade dos factos. Só que os meus olhos iluminaram-se com as coisas espantosas a que assisti. Olhe à sua volta. Escute. Não o sente? Escute com todos os seus sentidos, não com a sua mente. Escute com o seu coração.

 

Até ali, o mandarim julgara apenas que o vento se tornara mais forte, mas agora dava-se conta de que aquele murmúrio no ar, que ele distinguia quase inconscientemente, era na realidade um cântico longínquo. Vozes de homens e de mulheres elevavam-se de diferentes direcções para depois se calarem, com um leve vestígio de uma flauta melancólica por trás. As luzes continuavam a rodopiar, atrás das árvores. Os tambores rufavam a intervalos irregulares.

 

- Portanto, agora vai mostrar-me truques de magia. E o que se seguirá? Fantasmas? Talvez esteja a ficar velho, Tang Lao. Não demonstra o menor respeito pela minha inteligência. Ou a sua única intenção é intimidar os meus guardas?

 

Tang Dexin, porém, tinha-se voltado e esforçava-se por ver para além do mandarim. O Homem de Ferro Wang já se pusera de pé e procurava o seu machado, como que para se confortar. Tinha os olhos fixos, enquanto um músculo lhe tremia no rosto.

 

O padre cego, conduzido pelo rapazinho, aproximara-se da luz da fogueira. Estacara, mas estendera os braços e os seus olhos cegos estavam fixos num ponto acima das árvores. O som do cântico não parava de aumentar.

 

Um fulgor fosforescente e branco pareceu crescer no alto de alguns pinheiros, subindo em filamentos de fumo amarelos e verdes.

 

- Fogos-de-artifício, Tang Lao? É muito bonito.

 

O velhote ignorou-o e continuou a olhar. Inconscientemente, levou a mão à boca e começou a chuchar no dedo.

 

Uma parte do fulgor descia por entre os mais altos ramos das árvores, como fiapos de um tecido diáfano que serpenteavam e giravam ao ritmo dos tambores e do cântico longínquo. Era singular, mas o mandarim julgou distinguir formas vagas naquele fumo, um reflexo prateado sobre braços brancos, a cauda de um vestido deslizando por trás dos ramos dos pinheiros. A música - o som de um alaúde misturava-se agora ao da flauta - tornou-se mais alta e nítida.

 

O mandarim voltou-se discretamente para observar o efeito produzido sobre os seus homens. O major Lin estava atrás dele, imóvel, com a boca aberta, os olhos semicerrados e uma mão sobre o coldre da pistola. Os soldados estavam como que petrificados, sobre os seus cavalos, olhando fixamente para o céu, com expressões assustadas. O Homem de Ferro Wang e os seus homens também pareciam estupefactos, e Tang Dexin deixava escapar gemidos surdos; parecia estar em transe.

 

Era indiscutível que silhuetas se mexiam, ou antes, deslizavam, no alto das árvores. O mandarim reconheceu várias apsaras, as elegantes donzelas celestes dos manuscritos budistas e das pinturas dos mosteiros, que pareciam flutuar na cintilante neblina. Então, o fumo mudou de tonalidade: de amarelo passou para vermelho e naquele novo clarão rosado o mandarim julgou ver uma procissão de senhoras, magnificamente vestidas de sedas e de véus brancos, que se moviam lentamente por entre os ramos brancos. As vozes das invisíveis cantoras alcançaram timbres estranhos mas belos - e o mandarim surpreendeu-se ao sentir uma melancolia e um langor, quase um desejo que lhe incendiava o corpo todo. Depois, começaram a desaparecer tão subitamente como tinham surgido, substituídas por pesados e insistentes rufares de tambores e o som dissonante das trombetas. A música palaciana deu lugar ao chamamento para a guerra. Ao mesmo tempo, silhuetas ainda mais irreais tomavam forma nos ramos mais altos.

 

O mandarim tinha perdido a noção do tempo. Algo desviou a sua atenção das copas das árvores - e saltou, com o choque. A clareira estava repleta de homens.

 

Eram às centenas, dispostos em fileiras e em companhias, um exército num campo de batalha. Cada companhia tinha o seu próprio uniforme e a sua cor. Os turbantes encarnados, com túnicas da mesma cor, brandiam lanças e chuços; os turbantes amarelos, com casacos da mesma cor, brandiam pesadas espadas. Um grupo estava vestido com peles de tigre e carregava estandartes. Havia também uma pequena companhia de raparigas, minúsculas nas suas vestes encarnadas, cujos olhos brilhavam com uma expressão desafiadora; estavam também armadas com espadas, enquanto outras empunhavam grandes lanternas encarnadas. O mandarim passara revista a tropas durante toda a sua vida. Bastou-lhe um simples olhar para perceber que eram fileiras disciplinadas. No entanto, na maior parte, os homens eram muito novos - metade parecia ter menos de dezasseis ou dezassete anos - e visivelmente de origem camponesa: os rostos rústicos, de pele tisnada e olhos grandes, contemplavam as visões no alto das árvores, com o deslumbramento crédulo das crianças. Mas os homens mais maduros e mais duros também fitavam, bem como os raros, dispersos aqui e ali, que exibiam a expressão dos vadios da cidade talvez membros do bando do Homem de Ferro e do Bastão Negro. Mas o que mais impressionou o seu exame profissional e o fez sentir um calafrio foi verificar que, se aqueles eram os Punhos Harmoniosos, não constituíam a ralé que ele tinha imaginado. Talvez fossem jovens e inexperientes, mas não eram diferentes dos jovens recrutas que, como ele próprio, quarenta anos antes tinham formado fileiras nas praças das aldeias, para se juntarem aos Bravos do Hunan - e para se tornarem um dos mais formidáveis exércitos que o Império jamais conhecera. Que força diabólica pudera reunir um tal número de pessoas em tão pouco tempo - em segredo e sem qualquer método, tanto quanto ele sabia -, no seu próprio distrito e à sua revelia? Havia em tudo aquilo qualquer coisa de muito estranho.

 

O fumo no topo das árvores voltara a mudar; agora, amplas extensões de neblina pareciam estender um estrado no ar.

 

As formas pálidas e fantasmagóricas que o mandarim vira antes de baixar os olhos tinham-se tornado mais substanciais. Com um arrepio, reconheceu-as. Ali, a cavalo, com a sua barba e o seu carrapito, claramente visíveis por cima da armadura, com as espessas sobrancelhas franzidas numa careta, reproduzida em milhares de estátuas, em milhares de templos, e brandindo a sua enorme lança, estava o deus da guerra, Guandi, cintilando na noite, uma estátua de pedra que ganhara vida de forma assustadora. Um grito possante elevou-se quando centenas de homens soltaram em uníssono uma exclamação, uns por medo, outros por espanto, abafando por momentos o troar dos tambores e das trombetas. O mandarim ficou chocado por ouvir o seu próprio grito, ínfimo, no meio dos outros.

 

O padre não mudara de posição, sempre com os braços estendidos, mas agora os seus lábios mexiam-se, no que podia ser uma invocação ou prece silenciosa. A luz das chamas reflectia sombras no seu rosto pálido, mas os globos oculares, brancos e cegos, mantinham-se fixos no céu. Não parecia aperceber-se das fileiras e das companhias que não paravam de aumentar, atrás dele. No entanto, o mandarim tinha a sensação de que era ele que orquestrava aquele agrupamento, tal como fazia aparecer as visões nas árvores... Mas, claro, disse a si próprio, não sem algum esforço, era isso o que queriam fazer-lhe crer. Tinha de resistir àquele arrebatamento. Esforçou-se por se concentrar. “É um fogo-de-artifício. São caminhos suspensos, por entre as árvores e arames invisíveis, sim, arames para as apsaras se baloiçarem. Tudo isto é um espectáculo um circo, uma ilusão. São apenas homens...”

 

Uma nova e longa exclamação de surpresa abafou o rufar dos tambores. A toda a volta da clareira, por cima do topo das árvores, outras formas emergiam do clarão fosforescente para se tornarem reconhecíveis, e depois marcharem resolutamente até se postarem, com as suas armas, no grande estrado de neblina. O mandarim reconheceu os companheiros de Guandi, da Guerra dos Três Reinos, Liu Bei, Zhang Fei, Zhu Geliang c o seu inimigo Cão Cão, cuja barba branca oscilava na brisa. Havia ainda o guerreiro Shang, Zhao Yun e o manco Sun Bin dos Estados Opostos. A multidão gritou de novo ao reconhecer os protagonistas de A Peregrinação ao Oeste1: o deus-macaco mágico, Sun Wu-kong, com os seus discípulos Sandy e coPiggy. O rugido mais sonoro estava reservado para a aparição do Imperador de Jade em pessoa, flanqueado pelos seus enormes guardas. Todas aquelas personagens cintilavam na noite escura, por cima da copa das árvores, indistintas devido à distância a que se encontravam do solo, mas claramente identificáveis através das suas encarnações no folclore, mexendo-se e conversando entre si, contemplando com benevolência os seus adoradores.

 

Os tambores invisíveis batiam a um ritmo furioso. O padre cruzou lentamente os braços; a sua pesada cabeça tombou para a frente e os buracos brancos dos olhos pareciam fitar directamente o grupo que se achava perto da mesa. O mandarim deu-se conta de que o padre marchava deliberadamente na sua direcção. Com esforço, compôs um rosto calmo e fitou os glóbulos oculares vazios. O padre cego estava debruçado sobre ele; e, apesar de isso ser impossível, parecia contemplá-lo, estudá-lo, ler-lhe o espírito. O mandarim sentiu gotas de suor formarem-se-lhe na testa.

 

O padre foi debruçar-se sobre Tang Dexin, que se encolheu no seu casaco de peles e desviou o olhar. O padre manteve-se assim, durante muito tempo, e depois avançou para o lugar onde se achava o Homem de Ferro Wang, muito hirto, apertando o seu machado com as duas mãos. Estendendo a mão, o padre tocou no cabo do machado e tirou-o delicadamente das mãos do bandido, fazendo-o oscilar sem dificuldade, como se fosse um objecto muito leve. Estendeu o outro braço, pegou no Homem de Ferro Wang pela mão e conduziu-o para a fogueira. O Homem de Ferro Wang não ofereceu resistência. Parecia um homem em transe, ou um aluno que seguia o seu severo mestre, resignado com o castigo que merecia.

 

O padre largou a mão do Homem de Ferro, mas manteve-se agarrado ao machado. Moveu-se lentamente até ao centro

 

1 Romance clássico da autoria de Wu Cheng’en (1560-1582), de temática sobrenatural. (N. do E.)

 

da clareira, onde a luz da fogueira se reflectia nas primeiras fileiras de Boxers. Vários rostos contemplavam-no com fervor, embora muitos outros não conseguissem desviar os olhos das visões que flutuavam acima das suas cabeças. O Homem de Ferro seguiu atrás do padre cego, que ergueu o rosto em direcção à primeira visão que aparecera, o deus da guerra Guandi. Com as duas mãos, brandiu o machado por cima da cabeça, como se fizesse uma oferenda. O seu corpo curvou-se graciosamente numa vénia; caiu de joelhos, levantou-se e tornou a cair sem qualquer esforço aparente, para efectuar as nove vénias devidas a um imperador ou a um deus. O Homem de Ferro dobrou os joelhos e imitou-o, mas mais desajeitadamente. Ainda estava ajoelhado quando o padre se voltou para ele, com o machado, que ergueu mais uma vez, colocando-o em seguida nas mãos do Homem de Ferro. Recuou, com os braços cruzados, à espera.

 

O Homem de Ferro olhou nervosamente para ambos os lados e depois para cima, em direcção à figura de Guandi, cuja capa rodopiava, agitada pela brisa. A figura brandiu o seu grande machado. O Homem de Ferro levantou o seu na mesma posição; primeiro lentamente depois com crescente confiança, fê-lo girar em grandes círculos, à volta da cabeça. Atirou-o ao ar com uma mão e apanhou-o sem esforço com a outra, antes de se lançar para a frente e recuar bruscamente, continuando a girar o cabo do machado à sua volta, como se fosse um simples pau. Imperceptivelmente, o Homem de Ferro começou a dançar. Todo o seu corpo tremia, animado por uma força interior, os seus pés saltando e desferindo pontapés, com uma graciosidade inesperada num homem com aquela corpulência. As duas lâminas do machado rodopiavam, espalhando os reflexos encarnados da fogueira por todo o contorno da clareira. Enquanto a velocidade e a violência dos seus movimentos não paravam de aumentar, o Homem de Ferro começou a acentuar, com gritos, os golpes que desferia. O mandarim estava perplexo com a rapidez dos seus movimentos. Aquela manifestação revelava artes marciais de um nível muito avançado.

 

O padre tinha-se voltado novamente para o deus da guerra e erguido os braços. Um grande murmúrio percorreu as fileiras dos Boxers: as figuras de Guandi e do seu cavalo pareciam agora crescer e, ao mesmo tempo, esfumar-se; fumo verde começou a rodopiar à volta do seu grande corpo. De repente, desapareceu. Onde houvera um cavalo e um deus, estava agora apenas um espaço negro e vazio. Nesse mesmo instante, o Homem de Ferro parou, a meio de um movimento, uma perna no chão, a outra dobrada, o machado por cima da cabeça. Parecia uma estátua num templo. O mandarim observou-o. Continuava a ser o Homem de Ferro: tinha ainda as sobrancelhas e a barba espessas, as faces achatadas, mas a sua expressão alterara-se imperceptivelmente, e o que o mandarim contemplava era agora a inequívoca expressão feroz de Guandi.

 

- Viram? Viram? - gemia Tang Dexin.

 

Rugidos brotaram das fileiras dos Boxers: “Guandi! Guandi!” Um movimento de excitação percorreu as fileiras, enquanto todos esticavam os pescoços para ver a transformação que se dera mesmo à sua frente.

 

Pouco a pouco, o Homem de Ferro endireitou-se, colocou o machado ao ombro e virou-se para encarar a multidão. Parecia mais alto e movia-se com uma repentina graciosidade. Ergueu o machado acima da cabeça para cravá-lo no chão, com tanta força que uma das lâminas ficou completamente enterrada na relva.

 

- Exterminem os estrangeiros e salvem os Ch’ing! - rugiu, e a multidão em coro repetiu o mote.

 

O padre e ele percorreram juntos as fileiras e as companhias, examinando os excitados recrutas. Perscrutaram atentamente os rostos dos homens e, quando julgavam o exame satisfatório, faziam sair um candidato das fileiras. A maior parte dos seleccionados apressou-se a avançar e a inclinar-se energicamente, atrás do padre e do Homem de Ferro, enquanto apresentavam as armas ao deus que fora escolhido para cada um deles. Em breve, a clareira encheu-se de homens que dançavam e giravam sobre si próprios, ao ritmo frenético dos tambores, dominados pela loucura que se apossara deles. Uma a uma, as figuras da nuvem dissiparam-se, enquanto em baixo uma nova estátua rígida e possessa substituía o que instantes antes não passava de um praticante de artes marciais em transe; uma estátua que, pouco depois, caminhava por entre os Boxers com as características do deus que encarnava.

 

Tang Dexin balançava os ombros estreitos cobertos pelas peles, acometido por um riso incontrolável.

 

- Eu tinha-lhe dito, Da Ren! Eu avisei-o! Queria armas de fogo para os seus preciosos soldados, e eu dou-lhe uma milícia comandada pelos deuses!

 

- Major Lin! - chamou o mandarim. - Major Lin!

 

- Estou aqui, Da Ren...

 

O major levou algum tempo a recobrar a compostura, mas ainda estava algo aturdido; como os outros, fora hipnotizado pelo espectáculo.

 

- Se é realmente um soldado, reúna as suas tropas e ordene-lhes que se posicionem à nossa volta. E lembre-se do que lhe disse: estamos a lidar apenas com homens.

 

- Mas, Da Ren, o senhor viu...

 

- Vi homens, Nada mais. Agora, calmamente as suas tropas. Vamos sair deste lugar. Sem problemas, espero.

 

- Sim, Da Ren!

 

Lin inclinou-se num gesto brusco e correu para junto dos seus soldados, que estavam debruçados, por cima das cabeças dos cavalos, sussurrando e esticando o dedo para o interior da clareira. O mandarim virou-se e o seu coração parou quando viu o major Lin gesticular junto a um dos sargentos, que brandia a carabina com uma expressão selvagem e olhos furiosos. Conteve a respiração quando Lin encostou a sua pistola à testa do homem. E suspirou de alívio quando, ao fim do que lhe pareceu uma eternidade, o homem estremeceu, voltou à realidade e saudou o superior. Lin conhecia os seus homens. Os dois conseguiriam restabelecer rapidamente a ordem na pequena companhia. Receara tê-los perdido para os Boxers. O mandarim virou-se então para um balbuciante Tang Dexin.

 

- Então, o Homem de Ferro vai comandar uma milícia patriótica financiada pela Sociedade do Bastão Negro?

 

- É o deus Guandi que vai conduzir a milícia, Da Ren. Viu-o descer do céu.

 

- E em que momento terei o privilégio de receber essa divina ajuda em Shishan?

 

- Quando o momento chegar, Da Ren. Os deuses escolherão o momento propício para livrar o nosso país dos bárbaros. Já agraciam a corte imperial com a sua sabedoria. Falta pouco. Mas deve preparar-se para esse dia. - Tang debruçou-se para a frente e agarrou o mandarim por uma manga. -. Ainda continua a ser o Tão Tai, Da Ren. A autoridade é sua. Mas ajudá-lo-emos. Eu sabia que nos apoiaria, quando visse.

 

“Exterminem os estrangeiros! Salvem os Ch’ing!” era o grito que ecoava à sua volta. O mandarim viu o padre, o Homem de Ferro e os outros escolhidos para líderes daquela bizarra cerimónia marcharem com passos decididos na sua direcção.

 

- Eles tornaram-se invencíveis, Da Ren - disse Tang Dexin rindo-se. - Não podemos matar um deus. Nem com um daqueles brinquedos estrangeiros. Já não é preciso comprar armas de fogo. Quer que lhe mostre? Penso que devo mostrar-lhe. - Enfiou a mão no interior do casaco de peles e tirou uma pistola. - Porque não dispara contra o Homem de Ferro agora? Só para ver o que acontece? Não se preocupe, ele nada sofrerá. É isso que quero provar-lhe. Não quer experimentar? Então, permita-me...

 

- Sente-se, Tang Lao, se quer continuar a viver.

 

Mas Tang Dexin, com um sorriso tresloucado no rosto, levantara-se alegremente e dirigira-se aos tropeções, brandido a pistola, para o grupo que se aproximava.

 

- Homem de Ferro, senhor Guandi, temos de demonstrar novamente a vossa invulnerabilidade ao Da Ren. Ficaria honrado...

 

Tudo se passou muito rapidamente. O padre imobilizou-se e pareceu cheirar o ar; depois, apontou o dedo para Tang Dexin, que recuou. Como que contra a sua vontade, a pistola disparou duas vezes. Ainda estava apontada ao Homem de Ferro Wang, quase à queima-roupa, mas o bandido não estrebuchou sequer e continuou a avançar, com grandes passos, no seu novo andar divino. Ao mesmo tempo, ergueu o machado à altura dos ombros e lançou-o com ambas as mãos. A cabeça de Tang Dexin saltou-lhe do corpo e a capa de pele caiu lentamente no solo. Um grito triunfal ergueu-se das fileiras de Boxers.

 

- Guandi! Guandi!

 

O rapazinho que acompanhava o padre correu a apanhar a cabeça de rabicho branco antes que esta parasse de rolar. Entregou-a ao padre, que a brandiu no ar. O Homem de Ferro apoiara-se ao seu machado. Os Boxers entoaram os seus gritos de guerra, entrechocaram as lanças, agitaram os estandartes. Alguns dos que tinham sido feitos deuses inspeccionaram a cabeça sem demonstrar a mínima emoção. Um deles, com um rosto bexigoso e uma expressão mal-humorada - que parecia familiar ao mandarim, muito embora não soubesse onde já o vira -, tirou a cabeça das mãos do padre, esboçou um sorriso demoníaco, que parecia ser de triunfo, deixou-a cair e, com um pontapé, atirou-a para cima da multidão de Boxers, onde foi agarrada com grandes gritos e passou de mão em mão.

 

- Exterminem os estrangeiros! Salvem os Ch’ing!

 

O grito tornara-se um refrão insistente, tão ruidoso como os tambores.

 

- Da Ren! - Apesar da algazarra, o mandarim conseguiu escutar a voz que lhe gritava ao ouvido. - O seu cavalo! Depressa!

 

Com um gesto instintivo, agarrou nas rédeas e saltou para a sela, sem desviar o olhar do pequeno grupo de homens. Os olhos do padre cego pareciam trespassá-lo; o jovem capitão de rosto bexigoso sorria. Quando ao Homem de Ferro, continuava apoiado no seu machado, com ar sinistro.

 

- Tão Tai, pode partir - disse. - Mas deve estar pronto para mim quando chegar o momento de matar os estrangeiros.

 

O mandarim fez virar o cavalo e seguiu o major Lin e a sua companhia, a galope, abandonando a clareira. De súbito, lembrou-se onde vira o jovem bexigoso: tinha sido a testemunha no julgamento do cozinheiro do médico.

 

O médico acabou por se recolher à tenda. Ao longe, na floresta, os tambores continuavam a rufar. Deitou-se vestido sobre a cama desdobrável e dormitou, mas o seu espírito estava demasiado agitado para conseguir mergulhar num sono profundo. Num estado meio inconsciente, teve o mesmo sonho vezes sem conta: conversava com Nellie na cozinha de Ah Lee, com o cozinheiro e Ah Sun em pano de fundo a depenar frangos e a espalhar as penas a toda a volta; ele esforçava-se por explicar à mulher por que motivo Henry Manners ia casar com Jenny e tornar-se seu genro, assim que o médico comprasse um couraçado e uma espingarda... mas Nellie mostrava-se, como de costume, obstinada, não revelando a menor compreensão pela sua posição difícil...

 

Acordou sobressaltado. Um ruído de cascos e o resfolegar de cavalos soou no exterior da tenda. Reconheceu a voz do mandarim e a de Manners, que lhe respondia. Aos apalpões, aproximou o relógio de bolso da lanterna e olhou para o mostrador: eram quatro da manhã. Que faziam eles àquela hora? Tão sorrateiramente quanto pôde, rastejou até à aba da tenda e perscrutou a escuridão. O mandarim estava a cavalo, com um cobertor sobre os ombros, e Manners, que não vestia nada mais do que as ceroulas, achava-se de pé a seu lado (devia tê-lo acordado). Era patente que a conversa entre os dois chegara ao fim. Manners estendeu a mão; o mandarim contemplou-a por instantes, com ar preocupado, mas acabou por também estender a sua e apertar rapidamente a do inglês. Deu meia volta ao cavalo e saiu da clareira a passo.

 

O médico esperava que Manners voltasse para a sua tenda, mas marchou para o local onde o coronel Taro erigira a dele. Ficou ali, parado por um momento. Ia sem dúvida acordar o japonês, para o informar das notícias que acabara de receber, mas pareceu reconsiderar, bocejou, espreguiçou-se e acabou por regressar à sua tenda. A meio caminho, teve de passar em frente da tenda de Helen e, mais uma vez, parou. O médico, que ainda continuava a observá-lo, sentiu um nó no estômago. Manners permaneceu em frente da entrada durante alguns instantes, indeciso. Por fim, virou-se para se afastar mas reconsiderou e pronunciou o nome de Helen Francês e aguardou. Seguiu-se um longo, longo silêncio, e Airton recobrou o fôlego; ela não o ouvira. Foi então que a pala da entrada se ergueu, deixando ver um rosto estriado de lágrimas e emoldurado por cabelo ruivo, lívido como um espectro, à luz das estrelas. Dois braços brancos apareceram, puxaram Manners para o abraçar e os dois desapareceram na obscuridade da tenda. O médico deixou-se cair no seu banco e levou as mãos à cabeça.

 

- Pensava que tinhas morrido - disse ela, depois de fazerem amor, sentindo a cabeça de Henry encontrar a sua posição familiar sobre o seu peito. - Pensava que a ursa te tinha matado.

 

- Poderás perdoar-me por me ter exibido para ti?

 

- Não, não te exibiste para mim. Vi o brilho dos teus olhos quando falavas com o mandarim. Serás sempre egoísta e seguirás o teu próprio caminho. E eu amar-te-ei, mesmo assim. Vês o que me fizeste? E importas-te com isso, por acaso?

 

Henry suspirou e rolou até ficar deitado, de costas, a seu lado.

 

- Não, não pares - murmurou ela. - Há tanto tempo que não me tocas...

 

Ele enfiou as mãos por baixo dos braços dela e apertou-a contra si.

 

- Tens de acreditar em mim - sussurrou, em tom insistente, mergulhando os olhos nos seus. - As coisas não são o que parecem...

 

- Sim, eu sei. Já mo disseste. Se ao menos eu soubesse realmente... Mas pouco me importa, Henry. Pouco me importam os teus segredos. Não tem importância. Asseguro-to. De qualquer maneira, partirei em breve. Não posso continuar a esconder o que se passou por muito mais tempo. A Nellie já desconfia.

 

- Ninguém desconfia de nós - murmurou Henry, beijando-a. - Confia em mim.

 

- Confiar em ti? - Ela afastou-o para, depois, se debruçar sobre ele, com um estranho sorriso. - Confiar em ti? repetiu, com uma risada breve e áspera, antes de menear a cabeça. - É do Tom que tenho pena... Porque, obviamente, acabou tudo, não é verdade? De qualquer maneira, eu não o mereço. Estou a pensar ir para Xangai. Disseram-me que as pessoas podiam desaparecer lá, nos antros de ópio.

 

- Oh, meu Deus, Helen, não me digas que continuas a...

 

- Julgas que parei, quando te deixei? Não, Henry... Porque julgas tu que trabalho no hospital? Na enfermaria dos opiómanos? Mas não te preocupes. Gosto do... meu hábito. É praticamente a única coisa que me resta e que me faz lembrar de ti.

 

- Meu Deus, o que foi que te fiz?

 

- Serviste-te de mim - respondeu-lhe ela, beijando-o. Mas já te disse que não tem importância. Porque é a tua maneira de ser. Porque é a minha maneira de ser. Tenho tanta culpa como tu. Mais, até.

 

Sorriu a Henry, que respirava com dificuldade e cuja boca se crispara, como se não soubesse o que dizer. Helen alisou-lhe os cabelos com uma mão, e acariciou-lhe o peito com a outra.

 

- Podias levar-me contigo - sussurrou. - Contentar-me-ia com uma situação qualquer.

 

- Eu... Eu não posso partir agora - repetiu Henry, contemplando-a com fervor. - Não posso.

 

Ela riu-se e rolou sobre as costas, estendendo os braços.

 

- Claro que não podes. O caminho-de-ferro é tão importante. O médico pensa que vai levar os Chineses até Jesus. É o que tu também fazes? Levar os Chineses até Jesus?

 

- Helen, minha querida, prometo-te... Hei-de pensar em alguma coisa... Por favor, não...

 

Mas ela pousou-lhe um dedo sobre os lábios e cobriu-lhe a boca com a sua, deitando-se sobre ele e pedindo-lhe que a amasse de novo.

 

Longe dali, em Tsitsihar, na derradeira fria obscuridade antes do amanhecer, Frank Delamere, Lu Jincai e Tom Cabot vistoriavam o carregamento das arcas de prata nas carroças com taipais. A seu lado, Mr. Ding agitava-se, dando-lhes sugestões tão inúteis como bem-intencionadas.

 

Mais ou menos ao mesmo tempo, nas colinas Negras, a alvorada esfiapava nuvens rosadas por cima das clareiras onde os caçadores acordavam, num acampamento onde só um homem - o coronel Taro - ainda dormia tranquilamente.

 

Um céu igualmente rosado iluminava a grande clareira onde, após uma noite em claro, companhias de Boxers estavam sentadas em volta das fogueiras. Comiam grãos de cereais mondados e olhavam para as árvores de onde, horas antes, tinham visto descer os deuses. O Homem de Ferro Wang que pouco se pareceria com um deus, naquela manhã - estava sentado com os seus novos ermitães, sob um abrigo de madeira tosco, a examinar um mapa e a rosnar ordens, por cima de um pernil de carneiro em que pegava com a sua grande mão peluda. Atrás dele, o padre dormia sobre um tapete, os seus olhos cegos abertos para o céu, com o rapazinho sempre a seu lado.

 

Seis quilómetros mais a leste já chovia. Ren Ren, agora um capitão dos Boxers, cavalgava orgulhosamente pela floresta, levando no seu alforge as ordens do Homem de Ferro Wang aos anciãos do Bastão Negro; ia comunicar-lhes a mudança de chefia na sociedade e pedir-lhes que ajudassem o novo grão-mestre. Ren Ren não se preocupava por estar molhado; pensava antes na surpresa da mãe, quando lhe revelasse o seu novo estatuto. Gostava de surpreender.

 

Também chovia em Shishan, e, pela sua janela, Fan Yimei olhava para o edifício principal, onde o rapaz estrangeiro se encontrava aprisionado. Agora que estava sozinha - com Lin e o Ma Na Si longe -, tivera tempo para se ajoelhar em frente do seu pequeno altar e rezar, pedindo imaginação para engendrar um plano para salvar o rapaz. Salvar Hiram tornara-se o único objectivo da sua vida inútil. Agradecera à misericordiosa Dama Guanyin por lhe dar a oportunidade de se redimir dos seus pecados e dos seus fracassos. Tinha falhado com Shen Ping, mas a Providência dera-lhe uma outra oportunidade. Sabia que o Ma Na Si a ajudaria, agora que ela se lhe entregara. Ele tinha prometido, e era um homem em quem se podia confiar. Assim, agora só precisava de um plano.

 

Para lá das muralhas da cidade, na missão, duas crianças choravam e agitavam-se, nos seus pesadelos, enquanto a mãe dormitava, sentada numa poltrona, entre as duas camas. No hospital, Ah Sun levava uma colher de congee à boca do seu marido ferido, para grande embaraço deste. Numa outra missão, mais deteriorada, a oeste da aldeia, a família Millward estava ajoelhada, entregue às suas preces.

 

Nuvens negras rolavam sobre o Nordeste da China, pressagiando uma tempestade.

 

Várias centenas de quilómetros mais a sul, neblinas cinzentas planavam sobre a capital, rodopiando à volta dos telhados verdes e pretos das legações, onde Sir Claude MacDonald e os outros ministros dormiam.

 

A enorme extensão da Cidade Proibida dormitava na penumbra da manhã, mesmo quando as lanternas das torres de vigia empalideciam, à medida que a luz do dia rompia as nuvens espessas. No entanto, as lanternas brilhavam ainda com todo o seu fulgor nos aposentos da imperatriz viúva, onde a velha senhora, envolta num manto para se proteger do frio, lia um documento que lhe fora apresentado pelo príncipe Tuan e por alguns dos outros membros da corte. O seu eunuco principal e conselheiro, Li Lien-ying, inclinava-se, lendo o documento atentamente, a seu lado.

 

- Pois que assim seja - declarou, baixando os óculos e estendendo a mão para o pincel e a tinta de cinábrio. - “Exterminem os estrangeiros e salvem os Ch’ing.”

 

                                                                                 Adam Williams  

 

                      

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