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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O NINHO DO DRAGÃO / Emily Rodda
O NINHO DO DRAGÃO / Emily Rodda

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Sem querer, Lief juntou-se à multidão que lotava os degraus largos do palácio de Del. Suas pernas ficavam mais pesadas a cada passo. O ar doce da manhã estava fresco, mas suas mãos estavam molhadas de suor.

Os súditos que se apinhavam nos degraus se afastaram respeitosamente para deixá-lo passar. Alguns se curvaram, muitos sorriram e acenaram, emocionados por ver o rei entre eles. Todos sussurraram e apontaram para o cinturão brilhante coberto de jóias que ele usava — o Cinturão de Deltora.

Lief obrigou-se a sorrir e a acenar de volta, mas seu coração se partia ao ver as pessoas muito magras e com os olhos fundos.

Ele olhou para o alto. As enormes portas esculpidas do palácio abriam-se num bocejo acima dele. Do outro lado, ele só podia ver a escuridão. E da escuridão...

“Estou esperando por você, pequeno rei.”

A voz sibilante do Senhor das Sombras atingiu sua mente. Ele estava preparado para isso, mas mesmo assim ficou paralisado.

“Você está cumprimentando seu povo miserável, pequeno rei?”, a voz zombeteira sussurrou. “Tolos! Eles olham para você e pensam, ‘o rei Lief e seus corajosos companheiros, Barda e Jasmine, livraram Deltora da tirania do Senhor das Sombras e o expulsaram para a Terra das Sombras. O rei Lief resgatou os prisioneiros que o inimigo mantinha como escravos e os devolveu aos seus lares. Agora, com certeza, ele vai nos fazer felizes para sempre... ’”

A voz se afastou com um riso zombeteiro. Lief cerrou os dentes e continuou a subir.

Ele não podia deixar a voz expulsá-lo de volta para a ferraria, que agora era novamente a sua casa.

Aquela seria uma noite de Lua cheia, o que significava que aquele era o dia da reunião pública mensal. O povo tinha vindo de longe para falar com seu rei, e ele não podia desapontá-lo.

No alto das escadas, ele olhou para trás como se quisesse guardar um último relance da luz da manhã antes que as sombras frias do palácio se fechassem a sua volta.

Um pássaro preto voava em sua direção vindo do céu azul-claro e segurava um objeto nas garras.

“Kree!”, pensou Lief, mais animado. “Kree, trazendo um recado de Jasmine! Talvez ela tenha decidido deixar minha mãe e Perdição no oeste e voltar a Del antes do esperado. Talvez ela esteja aqui agora!”

Lief olhou ansioso para a estrada, mas não viu a figura conhecida de cabelos pretos entre o grande número de pessoas que se dirigiam ao palácio. E, quando o pássaro mergulhou para o chão, Lief percebeu que não era Kree.

Imóvel, Lief observou o pássaro, que fez uma volta acima dele, marcando a sua posição com os olhos amarelos. Logo depois, um minúsculo pacote caiu aos pés de Lief com um barulho abafado.

 

 

 

 

 

 

Ele apanhou o pacote do chão. O pássaro soltou um grito estridente e voou para longe em direção ao noroeste.

Agitadas, as pessoas nas escadas olharam o pacote. Jasmine tinha começado a treinar pássaros mensageiros há pouco tempo e eles ainda não eram vistos com freqüência em Del. Além disso, quase sempre tinham sido encarados como um mau sinal, na época do Senhor das Sombras.

— É apenas uma mensagem da Montanha do Medo — Lief avisou com a maior tranqüilidade que pôde. Ele abriu o pacote e pôs à mostra o bilhete enrolado com firmeza ao redor da ponta de uma flecha e amarrado com um cordão.

“Você parou novamente, covarde. Muito sensato. Agora vire e corra, como o filho chorão do ferreiro, o que você realmente é.”

Lief passou rapidamente pelas portas do palácio e entrou no imenso saguão de entrada.

O espaço já estava lotado de pessoas que falavam sem parar. Lief sabia que o barulho devia ser grande, mas ele tinha a sensação de estar preso dentro de uma bolha, e o ruído lhe parecia um leve zumbido sufocado.

Todos os sons fora da bolha eram abafados. Somente o sussurro maligno dentro dela parecia real.

“Ah, você está mais perto de mim, agora. Está vendo o povo à sua volta, amontoado como ratos esfomeados?”

Lief olhou para o cinturão coberto de jóias. O rubi estava descorado. A esmeralda, sem brilho. As pedras sentiam o perigo. O mal...

— Lief? Quais são as novidades?

Ele ouviu a voz forte e confiante, estremecendo a bolha e libertando-o.

Lief ergueu os olhos e viu Barda andando em sua direção, vestido para a reunião em seu uniforme de chefe da guarda do palácio.

O uniforme azul-claro com enfeites dourados era muito diferente das roupas rústicas que Barda usava quando Lief o conheceu. Mas o rosto moreno e barbado do amigo era o mesmo, embora o sorriso largo fosse um pouco forçado, e ele olhou para Lief com atenção quando apertou sua mão.

Sem dizer nada, Lief mostrou-lhe a ponta da flecha.

Barda olhou ao redor do saguão lotado e fez sinal com a cabeça para um corredor fechado com uma corda num dos lados.

— Vamos ter sossego na nova biblioteca — ele murmurou. — O velho Josef ainda está tomando café.

Lief concordou, juntos pularam a corda e desceram o corredor às pressas. Não demorou para que chegassem à enorme sala cheia de caixas que deixava Josef, o bibliotecário, desesperado.

Josef não tinha querido mudar a biblioteca para o andar térreo. A antiga biblioteca no terceiro andar tinha sido seu orgulho e alegria, e ele queria que ficasse exatamente como sempre tinha sido.

Mas Lief insistira. O terceiro andar do palácio não era seguro. Ele tinha de ser fechado para nunca mais ser usado, pois lá, no final de um corredor lacrado, no centro de um quarto branco de tijolos, estava...

“Você nunca vai se livrar de mim, Lief de Deltora. Posso falar sempre que quiser com você, e com quem quiser, quando chegar o momento. Ah, não vejo a hora de brincar com essas mentes fracas e débeis. Elas se dobram e quebram com muita facilidade...”

Lief sentiu Barda agarrar seu ombro.

— Você também o escuta? — Lief perguntou desanimado.

“O cristal é a janela pela qual a minha voz e minha mente podem alcançá-lo. Você nunca vai se livrar de mim. Nunca...”

— Acho que não como você — Barda respondeu. — Eu só tenho uma sensação muito desagradável...

Lief olhou para o amigo. O rosto de Barda estava sombrio.

— Você não devia dormir no palácio, Barda. Isso está piorando.

— É muito pior para você do que para mim — disse Barda. — Você não devia ter vindo.

— Mesmo na ferraria, os sussurros entram nos meus sonhos — Lief balbuciou. — E, além do mais, o palácio é o único lugar grande o bastante para a reunião mensal.

— Então pare com as reuniões durante algum tempo — Barda sugeriu. — Até que se possa construir...

— Não! — Lief interrompeu. — Isso é o que ele quer, Barda! Ele está tentando fazer com que o povo perca a fé em mim. As coisas já vão bastante mal como estão. Eu não deveria fazer essas reuniões apenas em Del e deixar todas as viagens para minha mãe e Perdição. Mas não posso levar o Cinturão para longe daqui e deixar a cidade desprotegida dessa... dessa coisa que está lá em cima!

Quase sem olhar para o pacote, Lief puxou a corda amarrada ao redor da ponta de flecha e soltou o bilhete. Enquanto alisava o papel, Barda bufou aborrecido.

— Por que esse bobo escreve em código? — Barda explodiu. — Devíamos estar vivendo um tempo de paz!

— Os Gnomos do Medo sempre foram desconfiados — disse Lief. — Talvez os jovens mudem com o tempo, mas os velhos como Fa-Glin nunca vão mudar.

Lief deu de ombros.

— E, seja como for, esse código é muito simples e só tem a intenção de atrapalhar quem o lê sem atenção. Está vendo? Fa-Glin só escreveu a mensagem colocando todas as letras em grupos de quatro, sem pontuação.

Barda pegou o bilhete, praguejou baixinho porque não tinha percebido o truque de imediato e então começou a lê-lo devagar em voz alta.

“Sinto dizer que a colheita que esperávamos com ansiedade foi decepcionante. As videiras nasceram doentes e só colhemos seis cestas de uvas azedas. A colheita de inhame também foi muito ruim e muitos apodreceram na terra. A caça é pouca e há poucos peixes no riacho.”

Ele fez uma pausa, balançou a cabeça e continuou.

“Se ao menos pudéssemos comer os frutos das árvores boolong, como nossos vizinhos, os kin! As árvores boolong crescem fortes como ervas daninhas que são. Receio que vá ser mais um inverno duro na Montanha do Medo.”

Barda devolveu o bilhete para Lief muito preocupado.

— Então — ele murmurou. — Mais notícias ruins. Norte, sul, leste e oeste, tudo a mesma história. Mas Fa-Glin não pediu que mandássemos comida, como as outras tribos.

— Ele é muito orgulhoso para fazer isso — respondeu Lief. — Ele prefere morrer de fome a pedir ajuda. E talvez ele adivinhe que não temos muita coisa para mandar.

De repente, Lief amassou o bilhete e o jogou para o outro lado da sala.

— Ah, o que vamos fazer? — ele gemeu. — O povo trabalhou tanto e nós o ajudamos como pudemos. Mas parece que nada cresce em Deltora, além de ervas daninhas e espinhos. É como se a terra estivesse envenenada.

— Ou amaldiçoada — disse uma voz trêmula atrás dele.

 

Lief e Barda voltaram-se assustados. Josef, o bibliotecário, estava ali parado, apoiado na bengala. Ele tinha entrado na sala tão silenciosamente que eles não o tinham ouvido.

— Que bobagem é essa, Josef? — Barda disparou, olhando preocupado para o rosto tenso de Lief. — Colheitas ruins não são novidade em Deltora. Nós vivemos mortos de fome nos anos de terror do Senhor das Sombras, mas quase nem percebemos. Você só tem tempo para se queixar da dor de um pequeno ferimento ou das botas apertadas depois da batalha, quando se sente seguro.

Josef seguiu o olhar de Barda para a expressão fixa e cheia de medo de Lief e ficou muito triste.

— Desculpem-me — disse Josef, adiantando-se com passo incerto. — Estou cansado e falei sem pensar. Barda está certo. A ameaça da fome tem perseguido Deltora há séculos.

— Sim — Lief respondeu em voz baixa. — Mas nem sempre foi assim. Nós dois sabemos disso, Josef.

Ele apontou a prateleira bem-arrumada na sala enorme onde estava guardada uma fileira de grandes livros azuis-claros.

— Os primeiros volumes dos Anais de Deltora estão cheios de histórias de colheitas fantásticas, melões premiados, redes tão cheias de peixes que chegavam a rasgar — ele contou. — Quando essas coisas começaram a mudar? E por quê?

Josef olhou ansiosamente para o rosto tenso de seu rei e para o de Barda.

— Eu... eu não sei — ele balbuciou. — Isso simplesmente aconteceu aos poucos. Mas, às vezes... pensei...

— Em quê? — Lief perguntou, inclinando-se para a frente. — O que você pensou, Josef?

— Parece que... — ele começou hesitante, molhando os lábios.

— Parece que o enfraquecimento da terra foi conseqüência do enfraquecimento dos dragões de Deltora.

Lief e Barda olharam um para o outro. Na mente dos dois, surgiu a imagem do dragão dourado que tinham visto nas colinas Os-Mine.

O dragão estava dominado por um profundo sono encantado, e eles não tinham contado nada a ninguém, pois aquela caverna guardava um mundo subterrâneo secreto que tinham jurado não revelar.

— Não vejo como a terra possa ter sido prejudicada por causa da extinção dos dragões — Barda comentou, pigarreando. — Pelo que sabemos, essas feras eram uma ameaça.

— Acho que tenho de discordar — ele retrucou. — Venham, vou mostrar-lhes algo.

Josef andou com dificuldade até a prateleira onde muitos volumes dos Anais de Deltora estavam guardados.

— Ah, por que lhe dei uma desculpa para começar a remexer nesses malditos livros? — murmurou Barda, estalando a língua com impaciência. — Agora, vai ser uma chateação sem fim.

— Josef, a reunião já vai começar — disse Lief. — Não temos tempo para...

Mas o velho homem já tinha largado a bengala e tirado um livro azul-claro da prateleira.

— Sempre achei que os dragões de Deltora estavam ligados à terra muito mais do que a maioria das pessoas imagina — ele falou, virando as páginas amareladas, agitado. — Por exemplo, vocês sabiam que os dragões estavam divididos em sete tribos como os primeiros povos de Deltora?

— Não! E também não me importo — respondeu Barda grosseiro.

— Se você prefere a ignorância ao conhecimento, é problema seu — Josef respondeu, tirando os olhos do livro com cara feia. — Mas o rei, que leu minha obra, O livro dos monstros de Deltora, sabe exatamente do que estou falando. Não é verdade, Majestade?

— Ah... sim! — Lief gaguejou.

Na verdade, embora ele tivesse dado uma olhada nas maravilhosas figuras do livro de Josef, não tinha ainda achado tempo para lê-lo.

Felizmente, Josef não notou sua confusão, pois tinha encontrado a página que estava procurando. Nela, havia um mapa de Deltora de que Lief se lembrava vagamente.

Curioso, apesar de tudo, Lief postou-se ao lado do velho para olhar.

— Este mapa foi feito há muito tempo pelo explorador Doran, o amigo dos dragões — informou Josef, batendo na folha com o dedo. — Os mapas de Doran não eram muito caprichados, mas sempre foram precisos. Este mostra as fronteiras dos territórios dos sete dragões. Doran os desenhava sempre, mas infelizmente apenas uma das cópias que ele fez para viajantes se salvou. E eu a mantenho trancada em segurança.

— Essas fronteiras parecem coincidir com as velhas fronteiras das sete tribos — notou Barda, olhando por cima do ombro.

— E são mesmo! — Josef exclamou animado. — É isso que estou querendo dizer! Os territórios das pessoas, dos dragões e das pedras de Deltora correspondem exatamente.

— E daí? — Barda retrucou entediado.

— Você não vê como isso é importante? — Josef exclamou. — Você não está raciocinando, capitão da guarda! Porque você, dentre todas as pessoas, deveria entender.

Barda continuou em silêncio. Josef olhou para ele sério.

— A magia do Cinturão de Deltora, criado por seu primeiro rei, o ferreiro Adin, e herdado por seus sucessores, protege a terra do Senhor das Sombras — ele disse com paciência, como se falasse com uma criança pequena. — Cada uma de suas pedras: o topázio, o rubi, a opala, o lápis-lazúli, a esmeralda, a ametista e o diamante, veio do fundo de nossa terra, e cada uma foi o talismã de uma tribo de Deltora.

— Barda conhece bem essa história, Josef — Lief disse com suavidade. — Agora, precisamos mesmo...

— Esperem! — Josef ordenou, mostrando as palavras ao lado do mapa. — Leia o que Doran diz aqui. Leia!

Certa vez, os sete dragões cercaram Deltora com sua força. Bestas antigas e muito sábias, os dragões eram os guardiões e protetores de seus territórios. Agora eles temem que seu tempo esteja chegando ao fim. Eles estão sendo atacados e mortos em grande número pelos monstruosos abutres — os pássaros da Terra das Sombras conhecidos como os sete Ak-Babas. Apesar dos meus pedidos, o rei nada faz, e a magia do Cinturão continua trancada longe dele na torre.

O povo está feliz, pois pode evitar que seus animais sejam caçados pelos dragões. Mas tenho certeza de que a perda dos dragões é desastrosa para Deltora, e era essa a intenção. Eles estão sendo destruídos por um motivo. Estou determinado a procurar os últimos que restam e, se puder, encontrar um jeito de protegê-los.

Vou partir amanhã, rezando para não chegar tarde demais.

 

— Josef, Doran foi um grande explorador — disse Lief, franzindo a testa. — Mas ele não foi chamado de amigo dos dragões por nada. Ele era fascinado por esses animais. Ele teria dito qualquer coisa para conseguir apoio e salvá-los.

Josef suspirou, e grande parte de sua animação desapareceu, fazendo-o parecer um homem velho e frágil outra vez.

— Sem dúvida, o senhor está certo — ele concordou. Esfregou o queixo com a mão trêmula e então ergueu os olhos.

— Sinto, por tê-lo feito perder tempo, majestade — ele disse com dignidade. — É só que... quero tanto ajudá-lo. Desculpe-me por dizer isso, mas o senhor é muito jovem para carregar um peso tão grande.

De repente, Lief não conseguiu mais fingir.

— Receio que não o esteja carregando com muita coragem no momento, Josef — ele confessou, com um nó na garganta.

Josef pôs a mão em seu ombro com timidez.

— Eu já vivi muito — ele disse. — Passei por momentos terríveis e vi muita desgraça, mas nunca perdi a fé. Foi ela que me salvou. O senhor precisa ter fé em si mesmo e no seu destino, majestade.

— Destino — Lief repetiu.

— Sim! — o homem balançou a cabeça com entusiasmo. — O senhor é o verdadeiro herdeiro do grande Adin, e não apenas porque o sangue dele corre em suas veias. O senhor acha que foi por acidente que nasceu e foi criado não neste palácio imenso, mas na antiga casa de Adin? E lá, um dia depois do outro, trabalhou com seu pai na mesma ferraria onde Adin trabalhou com o aço que se transformou no Cinturão de Deltora!

Lief soltou uma exclamação abafada, mas Josef continuou apressado.

— O senhor é herdeiro de todo o poder e magia do Cinturão, meu rei — ele afirmou. — E eles certamente vão ajudá-lo. Está vendo como o topázio de Del, o símbolo da fé, brilha para o senhor?

Os dedos de Lief deslizaram e tocaram o topázio dourado no Cinturão de Deltora, mas mesmo assim ele não levantou a cabeça nem falou.

Nervoso, Josef olhou para Barda, que estava observando espantado e quase com medo.

Os dois se assustaram quando ouviram uma leve batida na porta. Os três se voltarem e viram a cabeça coberta de macios cabelos dourados e o pequeno rosto de Paff, a assistente de Josef, espiando atrás da porta.

— Desculpem-me, Josef, majestade... hã... e capitão da guarda — disse Paff, sem fôlego, mexendo inquieta o nariz de ponta cor-de-rosa.

— Mas... o povo está ficando agitado. Mandaram-me para pedir que...

— A Lua cheia — Lief murmurou. — Lua cheia... Claro. Mas preciso de Perdição, e ele está no oeste, em Tora. Preciso...

Paff arregalou os olhos. Sua boca pequena se abriu.

— Paff! — Josef exclamou. — Saia! Sua majestade não vai...

Mas Lief levantou a cabeça, e seus olhos estavam claros e brilhantes.

— Josef! Uma pena e papel, depressa, por favor! — ele disse. — Barda, preciso do pássaro-mensageiro mais rápido que tivermos — o preferido de Jasmine, Ebony, se estiver aqui. E Paff, por favor, avise ao povo que vou vê-lo daqui a pouco. Vamos fazer nossa reunião e então... vou dizer-lhe uma coisa muito importante.

 

A reunião seguiu o rumo normal durante o dia. Relatórios e reclamações foram apresentados, perguntas foram feitas e respondidas. Nenhuma das notícias era boa, mas Lief não escondeu nada.

Ele sabia que não adiantava dar um falso conforto às pessoas. Elas tinham olhos e ouvidos, sabiam muito bem que os tempos eram difíceis e perceberiam rapidamente se alguém estivesse tentando enganá-las.

Para ser visto por todos, Lief tinha de ficar nas escadas que levavam para os andares superiores do palácio. Só um pouco mais perto da origem da voz que logo voltou para atormentá-lo.

Lief lutou contra ela mantendo as mãos no Cinturão de Deltora: usando o poder das pedras, conservando a ponta dos dedos na ametista que acalmava, no diamante que dava força, no topázio que clareava a mente.

Mas a voz não desistia, e sua maldade envenenava a mente de Lief, hora após hora, até seu estômago revirar e suas roupas ficarem molhadas de suor.

Em breve, ele disse a si mesmo. Em breve...

“O Cinturão não pode salvá-lo, reizinho.”

De repente, a voz o deixou e ele sentiu-se tonto com a inesperada liberdade. Lief percebeu que Barda estava segurando seu braço e que o povo olhava para ele atemorizado. Ele se deu conta de que devia ter perdido o equilíbrio.

— Desculpem-me — ele disse. — Estou um pouco cansado.

— Agora o rei precisa descansar — Barda avisou. — Obrigado a todos...

A multidão se agitou quando uma mulher carregando um bebê adormecido esforçou-se para levantar. Ela era magra e as roupas, apesar de cuidadosamente lavadas e passadas, estavam esfarrapadas. Ela parecia nervosa, mas ficou em pé, ereta, com os ombros para trás.

— Sou Íris de Del, faço e remendo botas, e sou mulher de Paulie e mãe de Jack — ela começou, identificando-se como era costume nessas reuniões. — Tenho uma pergunta.

Quando Lief encontrou seu olhar, sabia exatamente o que ela iria perguntar, assim como Barda. O homenzarrão ficou com o corpo rígido e fez menção de levantar a mão como para dizer que era muito tarde, que ninguém deveria perguntar mais nada.

— Sim, Íris — Lief disse depressa.

A mulher hesitou, mordendo o lábio como se estivesse arrependida de sua ousadia. Então, olhou para o bebê que estava em seus braços e pareceu ganhar confiança.

— Tem uma coisa que está preocupando o meu marido e eu, senhor — ela disse. — Tenho certeza de que isso também está preocupando muitas outras pessoas, mas ninguém tocou no assunto ainda.

Lief viu que muitas pessoas no meio da multidão estavam concordando e murmurando entre si. Ele percebeu que os boatos tinham se espalhado. Melhor assim, pois isso facilitaria sua tarefa de revelar a elas o que tinha de contar, se estivessem preparadas. Ele só queria que...

Lief abriu a boca para falar, mas ficou paralisado quando percebeu uma agitação perto da porta. Duas mulheres gritaram e se abaixaram, um homem gritou e uma criança pequena soltou uma exclamação animada.

E então todo o povo olhou para o alto, e soltava exclamações.

Um pássaro-mensageiro passou pela porta num vôo rasante e entrou no palácio. O coração de Lief deu um grande salto quando o pássaro se aproximou dele depressa.

— Kree! — Barda murmurou.

Kree pousou no braço estendido de Lief e esperou até que ele tivesse tirado o papel enrolado de seu bico, antes de grasnar um cumprimento. Lief desenrolou o bilhete.

 

MENSAGEM RECEBIDA

JASMINE E EU ESTAREMOS

COM VOCÊ EM BREVE.

PERDIÇÃO

 

— Obrigado, Kree — ele disse, passando o bilhete para Barda. Ele não sabia o que pensar. Ele precisava que Perdição viesse com urgência, e se encheu de alívio ao pensar que a magia de Tora o trazia rapidamente para Del. Mas ele preferia que Jasmine tivesse ficado em Tora, no oeste, onde ela estaria em segurança.

Então, ele balançou a cabeça. Como podia ter pensado que Jasmine concordaria com isso?

— Acho que estava louco — ele disse em voz alta. Barda o cutucou, e ele ergueu os olhos. Íris continuava parada no meio da multidão, com o olhar atordoado.

— Continue, Íris — disse Lief, sorrindo para ela. — Desculpe pela interrupção.

A mulher engoliu em seco, segurou o bebê com mais força e falou de novo.

— Parece bobagem, mas Paulie e eu ficamos com um pouco de medo de vir para cá hoje — ela disse. — Principalmente porque tivemos de trazer o pequeno Jack. Ouvimos boatos de que o Senhor das Sombras encontrou um jeito de voltar, que ele anda pelo palácio e fica num quarto lá em cima. Isso pode ser verdade?

— Não, não é — Barda retrucou, antes que Lief pudesse falar. — Como vocês sabem bem, o inimigo está exilado na Terra das Sombras.

Mas o olhar ansioso não deixou o rosto de Lief.

— Ouvimos dizer que o inimigo fala com o senhor, em sua mente — ela disse em voz baixa. — E talvez com outros também.

— Isso é verdade — Lief disse devagar, ignorando a pressão da mão de Barda em seu braço. — E chegou a hora de contar a vocês. Eu ia mesmo fazer isso hoje, assim que a seção de perguntas chegasse ao fim. Obrigado por me mostrar como começar.

Muito perturbada, sem saber se ficava satisfeita ou com medo, Íris voltou a se sentar ao lado do marido. Ele a abraçou e tocou delicadamente o rosto do bebê com os dedos manchados da tinta usada no trabalho.

Todos ficaram em silêncio quando Lief começou a falar.

— No terceiro andar do palácio, num quarto trancado, existe um objeto que chamamos de cristal — ele contou. — É um pedaço de vidro grosso colocado sobre uma pequena mesa que tem estado lá por centenas de anos. O Senhor das Sombras pode falar através dele, assim como vocês ou eu podemos falar por uma janela aberta.

Um murmúrio se espalhou pela multidão.

— O Inimigo costumava usá-lo para falar com os espiões do palácio — Lief continuou. — Agora ele começou a usá-lo para me atormentar, para me distrair do meu trabalho e, acima de tudo, para tentar me deixar desesperado. Ele também atormenta Barda e Jasmine. E, se ele se fortalecer, tenho receio de que comece a perturbar outras pessoas.

— Mas esse mal não pode ser destruído? — alguém do fundo da sala perguntou. — Se ele é feito de vidro...

— Tentei várias vezes destruir o cristal, sem sucesso — Lief contou. A sua voz calma não demonstrou quantas lutas cansativas ele tinha travado na sala branca do andar superior. Mas todos podiam ver isso, todos próximos o bastante para ver o suor em sua testa e as sombras que escureciam seu olhar.

— O cristal foi feito com feitiçaria e só pode ser destruído por alguma força igualmente poderosa. Apenas o Cinturão de Deltora não é suficiente. Mas, pouco antes de esta reunião começar, eu de repente vislumbrei outro jeito. Nesta noite vou tentar, pela última vez, destruir esse cristal que ameaça a todos nós.

— Lief, o que você está dizendo? — Barda balbuciou.

O murmúrio da multidão tinha se transformado num rugido surdo. À sua frente, Lief via um mar de rostos assustados e atônitos. As pessoas estavam com medo. Medo por ele e por si mesmas. E elas tinham razão, mas entrar em pânico não ajudaria ninguém.

— Não posso fazer nada sem a ajuda de vocês — ele continuou, por cima da gritaria. — Por favor, escutem.

O povo ficou em silêncio.

— Isto é o que todos vocês devem fazer — continuou Lief. — Quando saírem daqui, vão diretamente para suas casas. Tranquem as portas, fechem as janelas e não saiam até que escutem os sinos tocar avisando que tudo está bem. Isso é para a sua segurança. Entenderam?

As pessoas assentiram em silêncio, apavoradas com a seriedade do rei.

— Ótimo — Lief respondeu satisfeito. — Agora, há outra coisa que aqueles que querem ajudar ainda mais podem fazer. Escolham a posição mais confortável possível e fiquem acordados durante toda a noite e, sempre que puderem, pensem em mim. Mandem-me a sua força.

— E isso é tudo o que quer de nós, rei Lief? — gritou um homem no meio da multidão. — Nossos pensamentos? Porque nós lhe daríamos a nossa vida!

Gritos animados se fizeram ouvir e ecoaram para o teto alto do grande saguão.

Lief sentiu lágrimas arderem em seus olhos.

— Obrigado — ele conseguiu dizer. — Vou levar suas palavras comigo. Elas vão me ajudar mais do que imaginam.

O Sol tinha se escondido no horizonte e a Lua cheia estava surgindo quando seis dos mais fortes guardas de Barda apanharam um objeto coberto da sala trancada no terceiro andar do palácio.

A expressão dos guardas era sombria. Eles estavam espantados com o peso imenso do pequeno objeto que carregavam. Todos estavam com muito medo.

Lief caminhava à frente dos guardas e Barda, atrás. Os dois estavam inclinados para a frente como se sentissem dor, mas nenhum deles dizia uma palavra enquanto percorriam o corredor em direção às escadas.

E, como eles não vacilavam, os guardas tampouco interrompiam a caminhada. Sofrendo sem se queixar, eles suspenderam a carga coberta acima da pilha de tijolos que antes fechava o corredor, passaram pela antiga biblioteca, desceram as grandes escadarias, atravessaram a entrada deserta do saguão e saíram do palácio.

Somente depois de atravessar os jardins e descer a colina, um dos guardas falou. Ele se chamava Nirrin e tinha sido resgatado há pouco tempo da escravidão na Terra das Sombras.

— Aonde estamos indo, senhor? — ele perguntou temeroso. — Acho que ajudaria se... nós soubéssemos. Estamos longe?

Lief se virou para ele. Mais tarde, Nirrin contaria à mulher que nunca tinha visto uma expressão tão torturada quanto a do rei naquela noite de Lua cheia. Somente os céus sabiam o que o rapaz estava passando, que pesadelo o atormentava, vindo de baixo do pano.

Nirrin se oferecera para essa tarefa e nunca se arrependeu, embora tenha tido pesadelos durante meses depois dessa terrível jornada.

Ele nunca ouvira falar do cristal, mas o objeto tinha conseguido afetá-lo. Muito tempo depois de tê-lo carregado, o peso de seu mal parecia tentar derrubá-lo, dificultando sua respiração, mesmo quando estava seguro em sua cama.

E ele nunca se esqueceria do olhar de Lief.

— O rei só me olhou por um momento — ele contou para a mulher. — Os olhos dele pareciam... dois poços fundos. A boca se abriu, mas nenhuma palavra saiu. Então, ele conseguiu gemer uma resposta.

“Não estamos longe”, ele disse. Então, apontou para o fim da colina e, mais adiante, eu vi um brilho entre as árvores. “Só até a antiga casa de Adin, e a minha, Nirrin. Só até a ferraria.”

 

Jasmine esperava junto dos portões parcialmente abertos da ferraria. Kree estava imóvel sobre seu ombro. Os dois eram iluminados por um brilho vermelho estranho, e sombras saltavam atrás deles. Acima, o grande círculo dourado da lua deslizava no alto das árvores, que pareciam recortes de papel preto contra o céu cinzento.

Quando a estranha procissão vinda do castelo apareceu, Kree soltou um grito agudo. Estava claro que aquilo era um sinal pois foi respondido por um grito vindo de dentro da ferraria. O brilho vermelho ficou mais forte e Jasmine abriu totalmente os portões.

Agora, os guardas cansados podiam ver as chamas do lado de dentro e a figura poderosa do ferreiro que trabalhava com o fole, aumentando o calor, os músculos dos braços nus brilhando de suor.

— Jasmine, afaste-se! — disse Lief com a voz entrecortada, enquanto os homens atrás dele se aproximavam, gemendo sob o peso da carga terrível. Mas, ou ele falou baixo demais, impedindo-a de ouvir, ou ela preferiu não escutar e disparou na direção dele. No momento seguinte, o braço dela estava em volta da cintura de Lief e ela o ajudava a andar enquanto atravessavam o portão.

Ele tentou empurrá-la para longe, sem conseguir.

— Não, Lief — ela pediu, irritada. — Se Barda pode lutar contra ele, eu também posso! — O sangue fugia de seu rosto enquanto falava, mas Jasmine segurou Lief com força e, juntos, continuaram a andar.

Eles chegaram cada vez mais perto do fogo até sentirem o calor queimando os seus rostos. O ferreiro ergueu os olhos quando se aproximaram, mas continuou a trabalhar com os foles, e o fogo da fornalha parecia produzir chamas líquidas.

— Mais quente do que isso é impossível — ele gritou acima do barulho ensurdecedor.

O rosto dos guardas mudou quando o reconheceram, quando viram, espantados, que aquele homem com uma tira de pano amarrada na testa, o ferreiro com suor escorrendo pelo rosto sujo, era o lendário Perdição.

“Perdição.” O nome estranho foi murmurado por eles, sussurrado entre o ar quente. “Perdição. É Perdição.”

Perdição, o homem com a cicatriz no rosto, o misterioso líder da Resistência nos tempos do Senhor das Sombras. Perdição, o viajante severo e solitário. Perdição, o cruel, que ainda mantinha os malfeitores de Deltora na palma da mão.

Perdição, que tinha sacrificado todo o seu mundo por seu rei.

“E ali estava ele”, Lief pensou. “No lugar ao qual pertencia antes da vinda do Senhor das Sombras, quando tudo mudou. Onde ele consertava arados, fazia espadas e ferraduras. Onde o meu pai, gentil e falante, também ficou, em sua época, e onde, muito tempo atrás, Adin tinha feito o Cinturão de Deltora.”

Ele olhou para a forja em brasa. Antes, ela tinha sido usada para criar. Agora, estava sendo usada para destruir. Se ele pudesse encontrar a força.

“Você não pode me destruir...”

Ele viu que os guardas tinham começado a sentir dificuldades. Era como se, de repente, o objeto que levavam tivesse se tornado dez vezes mais pesado. Eles o estavam arrastando e dois já estavam de joelhos...

“Você não pode me destruir...”

Através da névoa cor de fogo, Lief viu Barda passar pelos homens e agarrar a carga escondida pelo pano com as próprias mãos. O esforço fez as veias saltarem em seu pescoço, seus dentes ficaram à mostra, os músculos fortes dos braços e ombros quase romperam a camisa.

O objeto mal saiu do lugar. Barda levantou-o mais uma vez. Para mais perto da chama, um pouco mais perto... perto o suficiente. Mas então...

“Eles nunca vão conseguir erguê-lo para dentro da forja”, Lief pensou de repente.

Uma dor atravessou sua cabeça, e o fez dobrar o corpo, e soltar-se das mãos de Jasmine.

Vagamente, ele escutou Perdição e Barda gritando, Jasmine chamando seu nome, mas suas vozes estavam distantes. A única voz que era forte e real sussurrava maldosamente em sua mente, no centro imóvel de um redemoinho de dor.

“Sou forte demais para você. Você não pode me vencer...”

Cegamente, instintivamente, Lief pôs as mãos sobre o Cinturão de Deltora. Seus dedos encontraram o topázio, e a pedra pareceu estremecer ao seu toque. Ele pensou que ela derretia em seus dedos, dourada e quente, como se quisesse fazer parte dele.

“O topázio, símbolo da fé”, pensou Lief atordoado. E em sua mente enevoada surgiu a imagem das palavras impressas no papel. Palavras que ele tinha lembrado de repente, naquela manhã na biblioteca. Palavras do Cinturão de Deltora, o pequeno livro azul que ele já carregara como um talismã:

 

O topázio é uma pedra poderosa e sua força aumenta em períodos de Lua cheia. O topázio protege quem o possui dos terrores da noite. Ele tem o poder de abrir portas para o mundo espiritual. Ele fortalece e clareia a mente...

 

A dor na cabeça de Lief começou a ceder. E, enquanto endireitava o corpo devagar e ficava ereto, pareceu-lhe que muitas outras pessoas estavam se reunindo a ele. Rostos claros e enevoados, sérios e serenos. Vultos do presente e do passado. Dezenas, centenas de vozes sobrepondo-se àquela outra voz, falando em separado e em conjunto...

Tenha coragem, meu filho. Estamos com você. Nós vamos ajudá-lo, garoto. Tenha fé... Rei Lief... estamos pensando em você, como pediu. Nós lhe daríamos nossas vidas...

 

Lief se inclinou para o objeto coberto que estava diante da forja e foi como se centenas de mãos invisíveis estivessem ao lado dele. Ele ergueu os olhos, viu os guardas exaustos e ofegantes, o rosto assustado de Barda e os olhos verdes de Jasmine dominados pelo medo.

— Para trás! — Lief gritou. E, com um movimento, agarrou a coisa maligna e lançou-a para dentro da forja em fogo.

Perdição soltou um grito selvagem de triunfo. Os guardas gemeram surpresos e aterrorizados.

O grosso tecido que recobria o objeto pegou fogo e desapareceu numa nuvem de cinzas. A moldura de madeira da mesa, com as pernas curtas voltadas para cima, começou a queimar.

— Tirem a mesa daí! — Perdição berrou. — A madeira vai apagar as brasas de carvão.

Jasmine adiantou-se num salto e puxou a mesa para longe do fogo, separando-a do vidro que tinha sustentado por tanto tempo. Ela a jogou para o lado, nas sombras, onde ficou, ardendo devagar.

E então o cristal surgiu na forja à vista de todos. Ele estava sobre o carvão em brasa e se retorcia como se estivesse vivo. Espirais cinzentas com as bordas avermelhadas giravam na sua superfície agitada, e seu centro era uma escuridão oca e sussurrante.

— Saiam! — Barda ordenou aos seus guardas. — Corram, estou mandando!

Os guardas se levantaram com esforço e obedeceram. Eram homens fortes e corajosos, mas nenhum teve vergonha de confessar, mais tarde, que correra para salvar a própria vida na noite em que o cristal queimou na ferraria de Del.

Somente Lief, Barda, Perdição e Jasmine viram o que aconteceu em seguida.

O cristal estremeceu e seu centro escureceu ainda mais. Então, com um som desagradável e terrível, ele rachou de um canto a outro. Faíscas vermelhas voaram para o alto e um uivo horrível encheu o ar.

Barda, Jasmine e Lief foram jogados para trás, enquanto seus cabelos cobriam-lhes o rosto como que atingidos por uma lufada de vento quente. Os foles caíram das mãos de Barda e ele tapou os ouvidos, ao mesmo tempo em que seu rosto se transformava numa máscara de agonia.

Mas o fogo da forja de Adin, em que o Cinturão de Deltora tinha sido feito, continuava a queimar implacável. O grande topázio, que tinha reunido os vivos e os mortos para ajudar Lief, emitia um brilho dourado, como o da Lua cheia. E devagar, muito devagar, os uivos se transformaram num fraco gemido, o cristal começou a ficar enevoado e a amolecer.

Lief, Barda e Jasmine levantaram-se devagar. Eles viram que Perdição tinha apanhado os foles e voltava para junto da forja. Seu rosto estava sombrio, mas, cerrando os dentes, ele levantou os foles e começou a aumentar o calor do fogo mais uma vez.

Algo se partiu com um estrondo. De repente, o ruído se transformou num murmúrio que aumentava e abaixava como se centenas de moscas estivessem presas dentro do vidro. Então, para terror de todos, um líquido espesso, cinzento e sem brilho começou a borbulhar da rachadura no cristal, gotejando pela superfície de vidro.

Enojado, Lief foi tropeçando até onde estava o grande martelo, ao lado da forja. Ele o apanhou e sentiu seu peso enorme. Com firmeza, agarrou o conhecido cabo que ficara liso pela ação de tantas mãos e se virou...

— Chegue mais perto, escravo!

A voz do Senhor das Sombras saiu como um assobio do cristal. Lief deu um salto, quase perdendo o equilíbrio por causa do peso do martelo. Durante um segundo, sentiu um misto de pavor e grande desapontamento. Então, ele ouviu uma segunda voz.

— Sim, mestre.

A voz era débil e fria, muito baixa, mas clara, e também vinha do cristal.

Lief escutou Jasmine e Barda exclamarem atrás dele. Ele viu Perdição arregalar os olhos, enojado e horrorizado. O líquido que gotejava na superfície do cristal estava formando o contorno de um rosto magro e cruel cujos lábios retorcidos se moviam.

— Estou aqui, mestre. O que deseja?

— Aquele garoto idiota chamado Endon foi proclamado rei, escravo?

— Sim, mestre.

— E o Cinturão?

Um dos lados do rosto cinzento que deslizava no vidro inchou terrivelmente e voltou ao seu lugar. Os lábios finos se curvaram num sorriso.

— O Cinturão foi devolvido à torre e espera para servi-lo.

— Ah... — A voz sibilante suspirou com satisfação maligna.

 

Uma onda de fúria que queimava como brasas de carvão no fogo percorreu Lief. Ele impeliu o martelo para o ar e o abaixou com toda força. O Instrumento mergulhou no vidro enfraquecido do cristal, que se curvou, sem quebrar-se. O líquido cinzento escorreu para as brasas quentes, chiando e queimando.

Lief puxou o martelo violentamente e preparou-se para dar outro golpe.

— Pare, Lief — Perdição disse devagar. — Deixe o fogo terminar seu trabalho.

O zumbido vinha desigual, agora, em ondas curtas e estridentes. Em algum lugar no fundo do vidro, uma luz vermelha e fraca piscava.

— O que era essa outra voz? — Jasmine perguntou, estremecendo. — Por que ela falou de Endon, seu pai, Lief?

— Era uma lembrança — Lief respondeu, molhando os lábios. — Era o conselheiro-chefe de meu pai, o espião Prandine, falando com o Senhor das Sombras logo depois que meu pai se tornou rei.

— Então, de algum modo, o cristal deve manter registrado tudo o que passou por ele — disse Jasmine espantada. — E agora que está quebrado e perto do fim está soltando trechos de conversas que deveriam ficar escondidas para sempre. Esses zumbidos... acho que são vozes.

— Sem dúvida, são os sons de séculos de conspirações, traições e maldades — Barda comentou sombrio. — Não tenho vontade de ouvir isso.

Ele se inclinou sobre o vidro que derretia devagar e cuspiu nele, a expressão cheia de ódio. Então se aproximou de Perdição.

— Os seus braços estão cansados — ele disse, de repente. — Dê-me os foles. Precisamos de mais calor.

Perdição concordou, Barda tomou seu lugar ao lado da forja e começou a trabalhar sem parar.

Os carvões em brasa se inflamavam. O cristal começou a perder a forma e a cor. Ouviu-se um leve clique no fundo do vidro embaçado; a luz vermelha piscou fracamente e a voz do Senhor das Sombras surgiu outra vez.

— As Quatro Irmãs estão no seu lugar, escravo. As Irmãs do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste. Você fez a sua parte?

— Ah, sim, mestre. Tudo o que ordenou. — Essa voz, mais alta e chorosa, não era a de Prandine.

Lief imaginou que pertencesse a um conselheiro-chefe anterior, de outro rei ou rainha.

Ele se sentiu mal e fez menção de se afastar, quando ouviu algo que congelou seu sangue.

— Ótimo. As Irmãs vão fazer um bom trabalho, e os desgraçados de Deltora nunca vão saber quem acabou com sua terra, mesmo que eles partam ou morram — a voz do Senhor das Sombras sibilou.

— Mas o senhor vai saber, mestre. E eu também — disse a outra voz ansiosa.

O Senhor das Sombras soltou um riso comprido e baixo.

— Você, Drumm? Ah, não. Como todos os bons planos, esse vai levar tempo para dar frutos. Até lá, eu já vou estar cansado de sua bajulação, e você vai estar morto há muito tempo.

Drumm choramingou, mas sabiamente não se queixou mais.

— Eu tenho meus planos, Drumm — a voz áspera e sussurrante continuou. — Planos dentro de planos e todos com um só objetivo. Deltora precisa ser minha. Eu preciso dela por causa das pedras e dos metais que existem debaixo de sua terra e por causa de seus portos calmos do sul, perfeitos para lançar navios de guerra.

— E-entendo, mestre — gaguejou Drumm. — E Deltora vai ser sua, como deseja. As Quatro Irmãs vão garantir que...

— Você não entende nada! — o Senhor das Sombras vociferou. — Se tudo der certo, Deltora vai ser minha sem a ajuda das irmãs. Prefiro apanhar as pessoas vivas. Mesmo desgraçados miseráveis como os habitantes de Deltora podem trabalhar e proporcionar... diversão.

Lief tapou a boca com a mão para não soltar um gemido. Ele sentiu quando Jasmine agarrou seu braço e ouviu Barda e Perdição sussurrando palavrões. Esforçando-se ao máximo, ele se inclinou na direção do cristal que se derretia e se desmanchava, fechou os olhos e escutou.

Barda tinha deixado cair os foles, mas os carvões ainda faiscavam com o calor. A voz sibilante do Senhor das Sombras estava cada vez mais fraca, mais trêmula e mais parecida com um zumbido.

— Mas se o que aquela adivinha idiota ousou dizer antes que eu lhe arrancasse a língua for verdade... — o sussurro maligno continuou. — Se chegar uma época em que um rei sairá do meio do povo, como o maldito Adin, para usar o Cinturão e derrotar os meus planos... Então, escravo, vou ter o prazer de saber que esse rei me desafiou somente para assistir à destruição de seu reino e à morte de seu povo. E Deltora vai ser minha, apesar de sua existência.

— Mas... — Houve um barulho abafado, como se Drumm estivesse pigarreando nervoso. — Mas, mestre, se esse rei realmente existir... espero que não... talvez ele descubra sobre as Quatro Irmãs e tente encontrá-las e destruí-las. O inimigo, esse arrogante cujo nome não devo pronunciar, ousou marcar num mapa onde se encontram e...

— Já cuidei disso — o mestre sussurrou. — O arrogante teve o destino que merece. Além disso, o mapa foi removido e minhas marcas foram colocadas sobre ele.

— Mas ele não foi destruído — Drumm choramingou. — Acho que deveria...

Ele percebeu tarde demais que tinha falado sem pensar. O próximo som que soltou foi um grito agudo de dor.

— Não questione minhas decisões — a voz do Senhor das Sombras gemeu. — Você não me contou que tinha seguido minhas ordens? Que a parte do mapa que lhe foi dada está em segurança?

— Sim, mestre, sim! — Drumm soluçou. — Está num lugar muito seguro. Debaixo do meu e do seu nariz...

— Então, esse rei nunca vai achá-lo. Eu o desafio a tentar e apressar a sua morte — o mestre disse em tom zombeteiro e riu.

O riso ainda ecoava nos ouvidos de Lief, quando o vidro do cristal começou a borbulhar e a luz vermelha finalmente se apagou.

“... esse rei nunca vai achá-lo. Eu o desafio a tentar e apressar a sua morte.”

O tom zombeteiro queimava na lembrança de Lief.

Ele sabia que era o rei de quem a infeliz adivinha tinha falado. Era para ele que o Senhor das Sombras tinha preparado uma armadilha. Era ele que estava destinado a salvar seu povo da tirania somente para vê-lo morrer de fome.

Já passava muito da meia-noite. A bolha retorcida de vidro derretido, que antes tinha sido o cristal do Inimigo, tinha sido resfriada, pisoteada e transformada em pó. Mas o triunfo que os quatro companheiros na forja deveriam estar sentindo não durou muito.

Eles sabiam que deveriam voltar correndo para o palácio, tocar os sinos para avisar o povo de que estavam seguros e que o cristal tinha sido destruído. Mas nenhum deles tinha coragem de fazê-lo.

Eles andaram a esmo pelo quintal da ferraria e se sentaram juntos sob a luz da Lua.

— Parece que resolvemos um problema e já temos de enfrentar outro — Barda disse cansado. — Isso me lembra dos pássaros de madeira pintada que os viajantes às vezes oferecem, aqueles que se podem abrir ao meio. Você abre o primeiro e tem outro menor lá dentro. Abre o menor e encontra outro ainda menor. E assim por diante, até que achamos um pássaro do tamanho da unha de um polegar. E dentro está um ovo minúsculo.

“Tenho muitos planos. Planos dentro de planos...” Lief enrijeceu o corpo, mas a voz em sua mente era apenas uma lembrança.

“O cristal foi destruído”, ele disse a si mesmo. “Pelo menos, essa ameaça desapareceu. A minha mente é só minha outra vez.”

— As Quatro Irmãs — Perdição murmurou. — Irmãs do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste. Parece uma charada!

— O homem que eles chamam de inimigo e arrogante sabia a resposta, pois ele desenhou o mapa que mostra onde estão as Irmãs — disse Lief. — Se ao menos pudéssemos descobrir quem foi! Nossa única pista é que ele vivia no tempo de um conselheiro-chefe chamado Drumm. Josef certamente pode nos contar quem era.

— O homem em si não é importante, Lief! — Jasmine exclamou. — O importante é o mapa! Drumm tinha parte dele e o escondeu num lugar seguro. Talvez, ele ainda exista.

— Depois de centenas de anos? — Perdição zombou.

— Por que não? — Jasmine respondeu irritada. — O palácio está cheio de coisas que estão lá há séculos. Esse é um dos motivos por que eu o considero um túmulo. E certamente o palácio é o lugar em que Drumm esconderia alguma coisa valiosa. Ele morava lá.

— Sim. E ele disse ao Senhor das Sombras que a sua parte do mapa estava debaixo do nariz dele — Barda ajuntou.

— Debaixo do meu e do seu nariz... — Lief disse devagar. — Foi isso que ele disse.

De repente, uma idéia luminosa surgiu em sua mente. Ele se ergueu de um salto e seu coração começou a bater muito depressa.

— E o que estava debaixo do nariz do Senhor das Sombras e do de Drumm?

— Essa é outra charada? — Barda grunhiu. — Se for isso, não estou com humor para resolvê-la.

Mas Lief já estava correndo em direção à ferraria. Em instantes, ele voltou arrastando a moldura da mesa escurecida pelo fogo que tinha servido de base para o cristal.

— Debaixo do nariz deles! — ele disse ofegante. — O que mais isso pode querer dizer, senão... isto?

— Mas ela foi lançada no fogo! — Jasmine gritou apavorada. — Se o mapa estava dentro dela...

Lief balançou a cabeça e jogou a moldura no chão sob a luz forte da Lua.

— Drumm seria mais cuidadoso que isso — ele disse. — Se o mapa estiver nessa moldura, deve haver um compartimento secreto em algum lugar.

Ele se agachou e começou a passar os dedos sobre a madeira queimada. Não demorou muito para que Jasmine, Perdição e Barda o ajudassem.

A busca foi demorada. O verniz da madeira tinha inchado e borbulhado no fogo, deixando a superfície da moldura de madeira tão áspera que Lief logo perdeu as esperanças de encontrar um compartimento secreto pelo toque, como imaginara.

Nesse momento, Jasmine gritou animada. Quando os outros se voltaram para olhar, o dedo dela mostrou um retângulo pequeno no interior de uma das pernas da mesa.

— Aqui, um pedaço de madeira foi tirado e depois substituído — ela disse. — Estão vendo? O pedaço cabe perfeitamente, mas os veios da madeira não combinam bem.

Lief, Barda e Perdição olharam confusos para a perna da mesa. Eles não viam nada de diferente nas ranhuras da madeira, mas nenhum deles duvidou de Jasmine. Ela tinha crescido nas Florestas do Silêncio e conhecia todos os tipos de árvores como ninguém.

Eles observaram quando ela encaixou a ponta da adaga na fresta que só ela enxergava. Logo um pequeno bloco de madeira caiu no chão e Jasmine explorou com os dedos o buraco raso agora visível para todos.

— Tem alguma coisa aqui — ela sussurrou. — Achei! — E, com muito cuidado, ela puxou o objeto para fora.

Entre seus dedos, havia um pedaço de papel amarelado e dobrado.

— Não acredito! — Barda murmurou.

Delicadamente, Jasmine desdobrou o papel. Era um pedaço de um mapa, velho e amassado, mas estranhamente conhecido.

— É a região a leste de Deltora — Lief murmurou. — E imagino que isso mostre onde mora a primeira irmã — ele completou, apontando o grande “S” marcado no lado direito do mapa.

— Num lugar chamado O Ninho do Dragão — Barda completou. — Não gosto nada disso.

— Eu não gosto da rima — Perdição ajuntou.

E todos se fixaram nas duas estrofes do verso que tinha sido acrescentado ao mapa em letras maiúsculas e estranhas.

 

QUATRO IRMÃS,

BRUXAS DO MAL,

TRAZEM À TERRA

UM LONGO E

TRISTE FINAL.

 

Quando Lief, Barda, Jasmine e Perdição finalmente voltaram ao palácio, viram que ele estava totalmente iluminado. O saguão de entrada estava lotado de pessoas que os aguardavam.

Guardas e funcionários do rei tinham saído de seus quartos e se reunido, assim que o cristal deixara o palácio. Todos esperaram acordados para passar força ao seu rei. A história contada pelos seis guardas que tinham fugido da ferraria apenas os deixou mais determinados a continuar a vigília.

O coração de Lief se apertou de dor, ao ver a alegria no rosto do povo e ouvir os gritos de triunfo e alívio, quando contou que o cristal tinha sido destruído. O pedaço de papel amarelado escondido em sua jaqueta parecia queimá-lo, e as palavras da rima maligna o atormentavam.

Quando os sinos começaram a tocar e as comemorações tiveram início, ele se dirigiu sem ser visto para a nova biblioteca. Ela estava envolta em sombras e parecia deserta, mas uma luz brilhava no fundo do aposento e vinha do quarto de Josef.

O velho bibliotecário estava sentado à sua mesa de trabalho, de costas para a porta aberta.

A mesa estava cheia de desenhos e pincéis e o velho tinha nas mãos uma ilustração ainda incompleta para um novo livro. Mas os pincéis estavam limpos e os frascos de tinta, fechados.

Estava claro que Josef não tinha trabalhado, mas ficara sentado à escrivaninha, o que contrariava o seu hábito. Ele, também, estivera em vigília.

Lief bateu à porta suavemente. Josef se virou na cadeira, com o corpo ereto e a expressão severa. Mas, ao reconhecer seu visitante, seu rosto se abriu num sorriso feliz.

— Majestade! — ele exclamou, levantando-se com esforço. — Pensei que era Paff. Como é bom vê-lo em segurança. Eu sabia que teria sucesso!

— Foi graças ao senhor que tive coragem de tentar.

Lief entrou no quarto, tomou as mãos que o homem lhe estendia e apertou-as com afeto. Então, ele hesitou, sem saber como continuar.

— Josef, tem uma coisa que preciso... — ele começou.

— Eu sei — Josef interrompeu. — Assim que ouvi os sinos tenho pensado no assunto. E... o senhor vai ficar surpreso... mas resolvi que devemos ficar onde estamos.

Ele notou a confusão de Lief e ficou surpreso.

— Vossa majestade não ia falar sobre a biblioteca? — ele perguntou. — Em levá-la de volta ao terceiro andar, agora que a ameaça foi afastada?

— Ah, sim, isso também, Josef, é claro — Lief disse depressa, sem muita convicção.

— Levei muito tempo para mudar todos os livros para baixo — tornou o velho. — Não suporto a idéia de mandar levá-los de volta para cima outra vez. Paff faz o melhor que pode, mas temo que seu trabalho como assistente nunca vá chegar aos pés do de Ranesh. E ela fala tanto!

Lief sorriu, apesar da impaciência. Paff também o aborrecia, embora, ao mesmo tempo, sentisse pena dela. Josef não era um bom companheiro para uma garota tão jovem.

Mas quando Ranesh, o filho adotivo de Josef, tinha deixado Del e ido para o oeste para se casar com seu grande amor, Marilen, Paff tinha vindo timidamente e perguntado se podia tomar o lugar dele.

Josef ficara muito satisfeito, pois ela sabia ler e escrever, o que, infelizmente, não era muito comum entre os jovens criados sob o domínio do Senhor das Sombras. Além disso, não tinham aparecido outros candidatos ao emprego.

Isso não era surpresa. Todos sabiam que Josef era um chefe exigente e muito preocupado com os detalhes. Mas Paff, prisioneira que tinha sido libertada da Terra das Sombras e única sobrevivente de sua família, estava ansiosa para encontrar trabalho o mais depressa possível.

— Pelo menos, ela gosta de trabalhar, Josef — Lief disse para acalmá-lo. — E nós podemos arrumar outro ajudante para você se mudar novamente. Tem certeza de que quer ficar aqui? Eu sei que sente muita falta da antiga biblioteca.

— Reconheço que tenho me queixado muito — Josef respondeu, dando de ombros e sorrindo. — Gosto de fazer as coisas do meu jeito. A verdade, sua majestade, é que nas últimas semanas percebi como ficava isolado no terceiro andar. Aqui, estamos no meio dos acontecimentos. Acho que a biblioteca vai ter muito mais visitantes se ficar num lugar em que todos possam vê-la.

— Isso é mesmo verdade — disse Lief caloroso. — Bem, então, isso está resolvido. Agora... Josef, você pode me ajudar com uma pesquisa que tenho de fazer sobre o passado de Deltora?

— Mas é claro! — respondeu Josef radiante e esfregando as mãos satisfeito. — O que posso fazer pelo senhor?

— Primeiro, preciso descobrir quando viveu um conselheiro-chefe chamado Drumm — Lief contou. — Já ouviu falar dele?

— Conheço esse nome. Só não me lembro onde eu o vi — respondeu aborrecido — Mas vou descobrir logo nos Anais, majestade, não se preocupe.

Ele começou a andar, mancando com dificuldade até a porta.

— Agora não, Josef — Lief disse, segurando-o pelo braço. — Está tarde e nós dois precisamos de um bom sono. Talvez, amanhã cedo. Mas tem outra coisa em que você deve pensar. Você já ouvir falar sobre “As Quatro Irmãs”?

— Ah! — Josef exclamou, o rosto feliz. — Mas é claro! As Quatro Irmãs é uma antiga lenda dos Jalis, uma das canções de Tenna. É sobre quatro irmãs que adoravam cantar juntas. O seu canto era tão doce que aborreceu uma feiticeira malvada, que as expulsou para os quatro cantos do reino. Mas elas ainda cantavam umas para as outras, apesar de estarem separadas.

Lief concordou com um gesto de cabeça preocupado. Sem dúvida, o Senhor das Sombras achou divertido nomear suas fontes de veneno usando o nome das quatro doces irmãs da antiga história do folclore de Deltora. Mas aquela informação não o ajudava muito.

— Sim, As Quatro Irmãs. Eu me lembro de que era uma história encantadora — Josef continuou a contar animado. — Eu não a leio há anos, mas tinha planos de fazer isso em breve, para ver se vale a pena incluí-la nos Contos de Deltora, sabe, o meu livro novo. Eu vou procurá-la para o senhor agora!

Desta vez, ninguém o impediria. Ele saiu correndo do quarto e, seguido relutantemente por Lief, foi depressa para a estante em que se encontravam os Anais de Deltora.

Ele puxou o primeiro volume da prateleira e começou a folheá-lo.

De repente, Lief não agüentou. Estava exausto e sabia que nem mesmo para satisfazer Josef ele conseguiria ficar ali e ler a velha história naquele momento.

Lief colocou a mão com firmeza no ombro do ancião, para que ele parasse de virar as páginas do livro.

— Por favor, Josef, agora não — ele pediu. — Vou ler a história... — e parou de falar de repente paralisado.

Ele percebeu que Josef o olhava espantado, mas por um momento não conseguiu falar. Ele examinou a página em que a mão dele e a do velho descansavam. Aquilo era uma coincidência? Seria possível que...?

— O que foi, majestade? — perguntou Josef nervoso.

Lief endireitou o corpo devagar. Ele deslizou a mão para dentro do bolso da jaqueta e tirou a parte rasgada do mapa.

— Josef — ele disse, tentando controlar o entusiasmo na voz. — Antes que eu lhe mostre isto, você precisa prometer que não vai comentar este assunto com ninguém.

— Sei que andei falando demais no passado, majestade — ele murmurou, mordendo o lábio. — Mas juro que aprendi a lição. Vou levar para o túmulo qualquer segredo que me contar hoje.

— Espero que não chegue a tanto — Lief disse despreocupado. E, ainda se perguntando se estava fazendo a coisa certa, desdobrou o mapa.

— Oh! Como encontrou isto? — Josef se espantou.

— Você reconhece este papel? — Lief perguntou devagar.

— Claro! — Josef exclamou, tocando o mapa com respeito. — Os mapas de Doran, o amigo dos dragões, são inconfundíveis! Ah. mas é uma pena que o senhor só tenha um pedaço.

Lief olhou para ele espantado. Aquilo não era o que esperava ouvir. Mas... Doran, o amigo dos dragões! Claro!

Foi por esse motivo que as marcações no pedaço de mapa pareciam tão familiares, exceto pelos versos. Elas eram muito semelhantes às do mapa dos Territórios dos Dragões, que Josef tinha lhe mostrado exatamente antes do encontro.

— Fui um tolo em não ter percebido isso — ele murmurou.

Mas Josef não estava ouvindo, pois ele estava atento aos versos impressos no canto do papel.

— Ele não só foi rasgado, como alguém teve a ousadia de rabiscar as próprias palavras aqui! — ele disse furioso. — Quem foi esse louco? “Quatro irmãs, bruxas do mal, trazem à terra um longo e triste final...”

Ele parou, de boca aberta, e engoliu em seco.

— Quatro irmãs... — ele sussurrou. — As Quatro Irmãs... Doran... Ah, como pude esquecer? Como não pensei nisso? Como pude...

Ansiosamente, ele tirou o quinto volume dos Anais de Deltora da prateleira e procurou nas páginas até encontrar o mapa dos Territórios dos Dragões. Então, ele diminuiu o ritmo e começou a virar as páginas com mais cuidado.

— Josef, o que você está procurando? — Lief perguntou ansioso e impaciente.

Mas o velho bibliotecário ainda não respondeu. Ele estava murmurando consigo mesmo, completamente envolvido nos próprios pensamentos.

— Mas onde está? — ele perguntava, olhando rapidamente para cada página. — Não pode estar longe, agora. Ahá!

Josef abriu o livro apressado e, triunfante, apontou para a página esquerda que estava coberta com a escrita de Doran.

— Aqui está! — ele disse. — A última entrada de Doran nos Anais. Leia.

— Josef, o que...?

— Leia! — Josef insistiu com o olhar agitado. — Leia tudo! Então, vai entender.

Aqui é o explorador Doran escrevendo apressado. Voltei ontem de uma viagem em busca dos últimos dragões. Entristecido, digo que não há mais nenhum voando pelos céus de Deltora.

E há notícias ainda piores.

Eu sei quanto o Inimigo queria ver os Dragões destruídos. Ele tinha um plano que eles não poderiam suportar.

As Quatro Irmãs. Nos cantos longínquos do reino, ouvi rumores a seu respeito. Se o que ouvi é verdade, as Irmãs do Norte e do Leste já estão em seu lugar.

O sul e o oeste certamente serão os próximos, e posso adivinhar para onde irão, se for possível acreditar nos boatos sobre os esconderijos das outras.

Se alguém ler estas minhas palavras, mostre-as ao rei, se possível. O rei, que usa o Cinturão de Deltora, é a única salvação do reino agora. Ninguém me dá atenção, pois todos acham que estou louco.

Voltei correndo para Del sem parar para comer, tomar banho ou dormir. Para esses idiotas do palácio, de mãos macias e rostos pintados, eu pareço um selvagem.

Preciso partir mais uma vez para procurar provas do que afirmei. Outra longa jornada... talvez a última, pois temo que o Inimigo saiba da minha existência.

Se eu não voltar, procurem-me onde as Quatro Irmãs estiverem.

Isso era tudo. Na página oposta, havia somente um relatório sobre um jantar no palácio, muito bem escrito por um dos bibliotecários. Encabeçando a lista dos presentes, estava o nome de Drumm, o conselheiro-chefe do rei.

Lief chegou a passar mal.

— Sei que as palavras de Doran são impetuosas — Josef disse devagar. — Dizem que o sofrimento de sua última caça aos dragões o enlouqueceu. Há muitas referências a sua loucura em outros pontos dos Anais. Pensar nisso sempre nos deixava muito tristes, a Ranesh e a mim. Doran era um grande homem.

— Isso é verdade — concordou o rapaz, olhando para as palavras escritas apressadamente. Lief ficou abalado ao imaginar o desespero do homem que as tinha escrito. — E ele não estava louco, Josef. A menos que ser o único a ver a verdade seja um tipo de loucura.

Ele abriu ainda mais o livro e apontou para pequenos pedaços de papel rasgado junto da costura do livro.

— Olhe — ele disse devagar.

Josef se esforçou para enxergar e então recuou.

— Mas... mas parece que a página foi arrancada! — ele exclamou. — Isso é impossível! Depois que uma informação é escrita nos Anais, ela fica lá para sempre. Tirar qualquer coisa deles foi terminantemente proibido.

— Drumm não teria se importado com essa proibição — Lief comentou. — Ele estava seguindo ordens do Senhor das Sombras. Acho que isso faz parte da página que falta.

Ele colocou o pedaço do mapa de Doran em cima do livro aberto. Ficou claro no mesmo momento que o papel grosso e amarelado do mapa era igual ao papel usado nos Anais.

Josef olhou horrorizado.

— Doran desenhou um mapa na página oposta à carta para mostrar onde imaginava que as Quatro Irmãs estavam escondidas — ele murmurou. — E essa página foi arrancada! Não há dúvidas de que foi logo depois que ele a escreveu, pois a parte de trás do mapa está em branco. Como o senhor soube disso?

— Eu só desconfiava — Lief contou. — Quando você começou a procurar a história das Quatro Irmãs, percebi que o papel do mapa era o mesmo papel sempre usado nos Anais. Podia ter sido um acaso, mas não foi.

Ele olhou novamente para as últimas linhas da mensagem de Doran.

... temo que o Inimigo saiba da minha existência.

Você disse que essa foi a última vez em que Doran escreveu nos Anais de Deltora?

Ah, sim — Josef respondeu infeliz. — Ele saiu para encontrar as Quatro Irmãs de quem ele fala, mas nunca voltou e ninguém sabia onde procurá-lo. Ele nunca mais foi visto.

 

Alguns dias depois, Lief, Barda e Jasmine saíram de Del a cavalo, acompanhados por um grupo de guardas do palácio. Lief levava com ele o pedaço do mapa encontrado na moldura da mesa e a preciosa cópia do mapa dos territórios dos dragões feita por Doran.

Até onde o povo da cidade sabia, o seu rei e os companheiros estavam partindo para a longa viagem pelo reino, há muito adiada, começando por Broome, bem ao leste.

Somente Perdição e Josef sabiam o verdadeiro objetivo de sua viagem. Encontrar a Irmã do Leste, no Ninho do Dragão, destruí-la, se possível, e talvez, depois de achá-la, tentar adivinhar os esconderijos das outras três.

— Eu daria tudo para ir com vocês — Perdição disse quando se despediu deles nos portões da cidade. — Mas alguém tem de ficar para lidar com as coisas que acontecem por aqui.

Sua boca se retorceu num conhecido sorriso zombeteiro.

— De qualquer forma, vocês três se deram bem sem minha presença no passado — ele acrescentou. — Não quero estragar sua boa sorte.

— Duvido — Lief respondeu, apertando a mão do amigo calorosamente. Ele sabia o quanto custava a Perdição brincar num momento como aquele.

Todos estavam convencidos de que o futuro do reino dependia do resultado dessa perigosa busca. Certamente, dezenas de palavras e conselhos de advertência estavam dançando na boca de Perdição, mas ele ficou calado.

Ele sabia que nada que dissesse poderia ajudar Lief, Barda e Jasmine naquele instante. Ele só podia lhes oferecer sua confiança.

A um grito de Barda, os guardas fizeram os enormes cavalos cinzentos andar num trote uniforme.

Os três companheiros os seguiram, enquanto Kree voava acima deles. Seus cavalos, menores e mais rápidos, cuidadosamente escolhidos por Barda, resfolegavam com prazer, enchendo de névoa o ar fresco da manhã.

Lief montava Honey, uma irrequieta égua dourada, com cauda e crina brancas. Barda montava seu animal favorito, uma égua castanha forte e mansa chamada Bella, e o cavalo de Jasmine era Swift, negro como carvão.

Lief olhou para trás, levantou o braço para responder ao aceno de Perdição e sentiu uma pontada de culpa.

— Anime-se. Perdição não pode se magoar com o que não sabe — Jasmine disse atrás dele.

Jasmine estava sorrindo, aproveitando a liberdade de poder sair da cidade. O vento já embaraçava seus cabelos negros e compridos. Filli chiava sob sua jaqueta, agarrando-se firmemente com as patinhas à gola, os olhos pretos muito abertos. Estava claro que ele achava assustador andar a cavalo.

— Estou levando vocês para o perigo — Lief balbuciou. — E você é filha de Perdição.

— Realmente! — Jasmine disparou, deixando de sorrir. — Tal pai, tal filha. Você já viu Perdição contar todos os seus segredos? Ou fugir do perigo por qualquer motivo?

Lief não respondeu. O relacionamento entre Jasmine e o pai, uma estranha mistura de amor, respeito e rivalidade, era uma coisa que nunca iria entender.

— Além disso — Jasmine continuou, mais calma —, Perdição acha que vamos diretamente para o Ninho do Dragão. Lá, vamos enfrentar a maldade do Senhor das Sombras. Nada do que fizermos no caminho pode ser mais perigoso do que isso.

Lief não tinha tanta certeza. Ele controlou um tremor quando as lembranças voltaram a sua mente... Barda ficou a sua esquerda.

— Assim que não pudermos mais ser vistos de Del, vou dar ordens para virarmos para o norte — ele disse em voz baixa. — Se você ainda estiver determinado a fazer isso, Lief.

— Eu estou — Lief respondeu, molhando os lábios. — Acho que é a única coisa que pode nos ajudar. Precisamos de uma arma em que o Senhor das Sombras não pensou. Por mais poder que o Cinturão de Deltora tenha, talvez não seja suficiente.

— Muito bem — Barda respondeu, sombrio. — Então, vamos para o norte. Para as colinas Os-Mine e ao encontro do dragão.

Um dia e meio depois, eles deixaram os cavalos e os guardas nervosos e confusos numa área gramada e protegida pelas primeiras rampas rochosas das colinas Os-Mine. Barda deixou seus homens sob a chefia de Brid, o segundo homem em comando, e disse que ele, Lief e Jasmine queriam ir até as colinas para colher ervas medicinais.

— Você precisava inventar essa história? — Jasmine sussurrou enquanto os três companheiros se afastavam observados pelos guardas. — Ervas! Agora Brid e os outros vão pensar que viemos para as colinas por minha culpa. Todos já acreditam que eu sou uma bruxa porque converso com pássaros e árvores. Agora, sem dúvida, vão pensar que preciso de ingredientes raros para os meus feitiços.

— Melhor assim — Barda respondeu, balançando os ombros. — O importante é que eles não suspeitem dos verdadeiros motivos de estarmos aqui.

— Por que não podemos simplesmente contar a verdade a eles? — Jasmine exclamou. — Eles vão descobrir cedo ou tarde, se voltarmos trazendo um dragão dourado!

— Trazendo? — Barda grunhiu. — É mais provável que estejamos fugindo dele apavorados.

— Temos de manter a entrada do mundo subterrâneo em segredo, Jasmine, você sabe disso — tornou Lief. — E, de qualquer forma, os guardas entrariam em pânico se soubessem dos nossos planos. Dragões têm péssima reputação. Se o dragão de topázio surgir e concordar em nos ajudar a lutar contra a Irmã do Leste, isso precisa parecer uma surpresa total.

— E, pelo que eu sei, uma grande surpresa vai ser se o dragão tentar qualquer coisa, além de nos comer — Barda resmungou. — Isto é, se ele acordar.

— Ele vai acordar — Lief garantiu, querendo aparentar uma confiança que não sentia. — Tenho certeza de que a presença do Cinturão de Deltora em seu território vai fazê-lo se mexer.

— Espero que o Cinturão também nos proteja de nossos velhos amigos, os Granous — Barda completou. — Eles já acabaram com criaturas malignas antes, tão poderosas quanto eles.

Lief lembrou-se dos dentes amarelos afiados e do hálito malcheiroso das criaturas sedentas de sangue que usavam charadas para torturar suas vítimas e que caçavam em grupos naquelas colinas.

Ele não gostava da idéia de se tornar prisioneiro de um Granous outra vez, mas sabia que não podia contar com o Cinturão para salvá-lo.

— Os Granous são malvados, mas não são criaturas do Senhor das Sombras — ele disse em voz baixa. — Eles são de Deltora. O Cinturão pode deixá-los mais fracos, mas receio que seja só isso.

Eles tinham andado por uma hora e o sol estava alto no céu quando Jasmine parou de repente, levantou a cabeça e escutou com atenção.

— O que foi? — Lief sussurrou.

Jasmine murmurou alguma coisa para Kree, e o pássaro preto levantou vôo. Ele desapareceu no ar, mas logo estava de volta ao ombro de Jasmine, grasnando rapidamente.

— Granous — resumiu Jasmine. — Numa clareira perto daqui, depois do próximo morro.

— Precisamos descobrir um jeito de dar a volta — Barda disse. — Não podemos nos meter numa luta agora. Diga a Kree...

Ele e Lief ficaram paralisados quando, de repente, um grito de terror ecoou nas colinas.

— Se formos cuidadosos, as criaturas não vão nos ouvir e nem sentir o nosso cheiro — Jasmine disse com calma. — Elas estão bastante ocupadas, pois já têm um prisioneiro.

Desanimados, os companheiros olharam para ela.

— Isso é bom para nós — ela disse, olhando para eles. — E o melhor a fazer é não se intrometer.

— Mas não podemos deixar alguém nas mãos dos Granous sem fazer nada! — Lief sussurrou. — Eles vão perguntar suas charadas infernais e, quando a vítima não souber responder, vão começar a comer os dedos de suas mãos e pés. Eles vão matá-la, Jasmine!

— É melhor que eles matem um estranho do que um de nós — ela retrucou. E Lief sabia que ela estava repetindo uma lição que tinha aprendido muito bem no lugar apavorante que eram as Florestas do Silêncio.

Por um momento, Lief hesitou. Ele sabia que não deveria deixar o coração dominar sua cabeça naquele momento. Mas então o grito horrorizado se repetiu, seguido por outro cheio de dor.

— Não! — Lief murmurou e começou a andar.

— Espere! Vou voltar para buscar os guardas — Barda disse, segurando-o pelo braço.

— Não há tempo para isso! — Lief murmurou, soltando-se. — Vocês vêm comigo ou não. Façam o que quiserem.

Ele começou a correr seguido por Jasmine e Barda, como sabia que ia acontecer.

Os três subiram a colina próxima ofegantes. Quando chegaram ao topo, deitaram-se no chão e rastejaram até conseguirem ver o que havia do outro lado.

A colina descia num declive traiçoeiro e pedregoso que terminava num amontoado de rochas gretadas. Além delas, havia um bosque de árvores esguias, de onde vinham gemidos e soluços misturados a risos cruéis.

Os três companheiros começaram a descer a colina. Eles avançaram dolorosamente devagar. Os sons vindos das árvores ficavam cada vez mais altos e perturbadores.

O coração de Lief batia forte. Ele estava enojado com o pensamento do que estaria acontecendo no bosque. Assim que chegou ao chão em frente às árvores, ele pegou a espada.

— Nem mesmo pense em atacar quem estiver lá, Lief! — Barda sussurrou com firmeza em seu ouvido. — Não vamos ter nenhuma chance numa luta corpo a corpo com os Granous. Precisamos tentar separá-los.

Lief cerrou os dentes e concordou. Apesar de estar desesperado para libertar o homem que soluçava e gemia no bosque, ele sabia que Barda tinha razão.

— Jasmine, venha comigo — Barda ordenou. — Vamos tentar atrair alguns deles para longe. Lief, provavelmente existe uma clareira no centro do bosque. Dê a volta e fique atrás do prisioneiro. Solte-o, se puder, mas fique fora da vista das criaturas até eu lhe dar um sinal.

Eles se separaram. Lief andou atrás das árvores sem ser visto até que, por uma abertura na mata, ele viu movimento. Adiantou-se um pouco e sentiu o estômago revirar quando, de repente, conseguiu ver o que estava acontecendo na clareira.

Os Granous estavam reunidos em volta de alguém sentado na beira da clareira. Seus corpos desgrenhados e cinzentos quase escondiam a vítima. Lief conseguiu ver apenas um monte de cabelos castanhos cacheados, ombros curvados, cobertos por um casaco marrom, e mãos apertadas uma na outra, das quais escorria um sangue bem vermelho.

— Hora da próxima pergunta! — cacarejou o maior dos Granous. — Outra pergunta, outro dedo.

Os demais dançaram para trás, gritando de prazer e batendo os dentes. Então Lief viu claramente a vítima que soluçava pela primeira vez.

A criatura estava sentada contra uma árvore, amarrada por cipós grossos. Da cintura para cima, parecia um homem, mas da cintura para baixo estava coberto por pêlos marrons grossos e tinha cascos pretos, pontudos e delicados no lugar dos pés.

Espantado, Lief percebeu que estava olhando para uma criatura que imaginava ser apenas uma lenda. Os Granous tinham capturado um Capricon.

 

O grupo de granous ainda estava gritando e uivando. Aproveitando o barulho, Lief se esgueirou rapidamente por entre as árvores e deu a volta até ficar exatamente atrás do Capricon amarrado.

Tirou a faca, deitou-se e arrastou-se pelo mato. Não demorou muito para que estivesse junto da árvore à qual a criatura estava amarrada.

O tronco da árvore era grosso e o escondia bem, mas, por outro lado, impedia-lhe a visão. O barulho na clareira estava diminuindo. Ele sabia que precisava descobrir onde todos os Granous estavam antes de tentar cortar os cipós.

Um arbusto solitário crescia ao lado da árvore. Lief ficou de joelhos e espiou a clareira com cuidado, usando os galhos da planta como proteção.

O chefe dos Granous estava agachado no chão, diante do prisioneiro, arrumando alguma coisa na terra.

— Muito bem, criatura — ele cacarejou depois de um momento, afastando-se. — Você está pronto para a próxima pergunta?

O Capricon gemeu e tentou se mexer. Lief viu que o Granou tinha arrumado algumas varetas no chão para formar a figura de um peixe.

— Aqui está um peixe do nosso riacho — o Granou explicou, dobrando os dedos finos e magros. — Existem somente alguns desses peixes preciosos, e este é um deles.

Os outros Granous soltaram risos abafados.

— Agora — o líder disse —, esse peixe está nadando para a esquerda. Se ele continuar nessa direção, vai escapar de nossas redes. E não queremos isso. Queremos, amigos?

— Ah, não! — os outros Granous exclamaram em coro, rindo de forma terrível.

— Pois então, criatura — disse o chefe — , você tem de mover três varetas, nem mais, nem menos, e fazer nosso peixe se virar e nadar para a direita.

O Capricon gemeu, balançando a cabeça, sem saber o que fazer.

Os Granous riram e bateram os maxilares.

Com a mente funcionando a toda, Lief se aproximou mais um pouco e começou a serrar os cipós. Eram três cipós muito fortes e estavam presos em nós separados para que, se um arrebentasse, os demais continuassem a prender a vítima.

Ele tinha certeza de que o Capricon sentiria o que ele estava fazendo e rezou para que ele não se denunciasse. Mas o prisioneiro mostrou estar apavorado demais para perceber qualquer coisa. Os gemidos baixos não aumentaram nem pararam.

— Não desista tão facilmente! — Lief escutou o Granou resmungar.

— Por favor! — o Capricon murmurou. — Por favor...

Um dos cipós estava quase cortado. Deixando alguns fios presos para evitar que caísse e alertasse o inimigo, Lief passou para o seguinte.

— Você tem de resolver a charada até terminarmos de contar até vinte — O Granou avisou. — Como antes, se você não conseguir, o castigo é um dedo. Está pronto? Já!

Os outros Granous começaram a contar. — Vinte, dezenove, dezoito... Lief arriscou outra olhada por trás da árvore. O Capricon olhava para o desenho com a boca aberta. Estava claro que ele não tinha a menor idéia de como resolver o problema. Os Granous gritavam e batiam os pés.

— Catorze, treze...

Sorrindo, o chefe se virou e começou a conduzi-los com ar triunfante. Os olhos de todos estavam fixos nele.

“Nenhum deles está me vendo”, Lief pensou. “Agora é nossa chance, mas nunca vou conseguir cortar esses cipós a tempo.”

Ele olhou para o desenho e se obrigou a pensar.

— Dez, nove, oito...

Então, repentinamente, Lief viu a resposta. Sem tomar o devido cuidado, ele se inclinou para a frente e sussurrou no ouvido do Capricon. A criatura deu um salto e gritou assustada.

Felizmente, os Granous estavam ocupados demais batendo os pés e contando para perceber alguma coisa.

— Faça o que eu disse! — Lief sussurrou ansioso. — Depressa!

Mas o Capricon, choramingando e tremendo, parecia incapaz de se mexer.

— Seis, cinco...

Abandonando toda cautela, Lief saiu do esconderijo, estendeu a mão e mudou a posição das varetas. — TRÊS! DOIS! Lief voltou rapidamente para trás do arbusto no último segundo.

O chefe dos Granous se virou, mostrando os dentes amarelos e afiados, rindo e zombando.

— UM!... Oh!

O grupo uivou desapontado, quando viu que o peixe estava agora voltado para a direita. Marcas rasas na terra mostravam onde estiveram as varetas que haviam sido mudadas de lugar.

O chefe dos Granous se arrastou devagar para a frente. Mordiscando uma de suas unhas amarelas e imundas, ele olhou para o desenho. Depois, desconfiado, observou o prisioneiro que estava encolhido de encontro ao tronco.

— Você roubou! — ele acusou. — O castigo para roubar são cinco dedos!

— Não! — o Capricon choramingou, escondendo a mão machucada. — Não, por favor! Não foi minha culpa! Foi... — ele começou a se virar para olhar para trás.

Lief ficou paralisado.

— Vamos continuar o jogo! — outro Granou gritou.

— O jogo! O jogo! — todos os outros berraram.

Furioso, o chefe chutou as varetas no chão, cobrindo o Capricon de poeira.

— A próxima charada não vai ser tão fácil, criatura — ele grunhiu e se virou, saindo da vista de Lief.

Lief começou a cortar o segundo cipó, espiando de vez em quando para a clareira.

Os outros Granous esperaram, resmungando entre si, em voz baixa. Então se ouviu um barulho vindo das árvores na outra ponta da clareira. Todos se viraram depressa para olhar, e dois foram investigar, desaparecendo rapidamente no mato.

Lief deixou alguns fios inteiros do segundo cipó para que não caísse e começou a trabalhar no terceiro. Desta vez, o Capricon sentiu o movimento e choramingou.

— Fique quieto! — Lief sussurrou, serrando desesperado. — Vou soltar você.

Ele ouviu o coro de chamados irritados e espiou outra vez pelo arbusto. Todos os Granous tinham ido até a outra ponta da clareira e estavam chamando os companheiros invisíveis. Quando não ouviram nenhuma resposta, mais dois desapareceram atrás das árvores.

“Jasmine e Barda estão fazendo um bom trabalho”, Lief pensou.

Mas ainda havia sete Granous na clareira... oito, contando o líder.

Eram monstros demais para enfrentar.

Ele voltou à tarefa com nova energia. Quando o terceiro cipó estava quase cortado, ele olhou pelo arbusto outra vez.

O chefe dos Granous estava voltando com uma coisa presa na mão.

— Os cipós estão quase totalmente cortados — Lief disse baixinho para o Capricon. — Fique bem quieto ou vai arrebentá-los e chamar a atenção dos Granous. Mas, quando eu lhe der o sinal, levante-se e corra!

— Não posso correr! — o prisioneiro choramingou. — Eles arrancaram o meu dedo com os dentes! Estou com muita dor.

— Você vai sentir muito mais dor se ficar aqui — Lief sussurrou furioso. — E fale baixo!

O chefe chegou perto da árvore e ficou em pé, rindo para o prisioneiro encolhido.

— Um dos nossos visitantes deixou esta bugiganga conosco — ele disse com um sorriso malvado, segurando uma pequena caixa de madeira ricamente esculpida e coberta com um desenho complicado em vermelho e dourado. — Você só precisa abri-la. Nós, humildes Granous, não conseguimos descobrir o segredo. Mas tenho certeza de que uma criatura legal e inteligente como você pode resolver isso com facilidade.

Ele se inclinou para a frente jogou a caixa no colo do Capricon.

— Não! — o prisioneiro gritou, jogando-se para o lado com violência. Os cipós quase cortados arrebentaram e ele caiu amontoado no chão.

O Granou rugiu surpreso e furioso. O Capricon tentou agarrar-se ao arbusto onde Lief se escondia, dobrando e quebrando os fracos galhos.

— Salve-me! — ele gritou. — Salve-me!

Lief tentou recuar, mas o Capricon agarrou-se a sua capa e segurou com firmeza, soluçando e chorando.

— Inimigo! — o Granou uivou. Ele se jogou para a frente, batendo e rosnando.

Apavorado, Lief sentiu dedos finos agarrarem seu tornozelo. Ele foi jogado para trás com tamanha força que nada pôde fazer para escapar.

No momento seguinte, atordoado, ele se viu deitado na clareira, sentindo o hálito quente e mal-cheiroso do Granou no rosto e o grande peso de seu corpo no peito, prendendo seus braços ao chão.

O resto do grupo voltara correndo e agora estava parado num círculo apertado em volta do líder e do prisioneiro.

Dois deles tinham apanhado o Capricon, que pendia imóvel entre eles. A cabeça dele estava baixa e Lief conseguiu ver os pequenos chifres no meio dos cabelos cacheados. Seus olhos estavam fechados.

O líder dos Granous se abaixou ainda mais e farejou o rosto de Lief com o nariz molhado e negro, enquanto seus olhos pequenos brilhavam de raiva.

— Eu já vi você antes — ele rosnou. — Você é aquele que diz ser rei e que nos fez de bobos antes. Pois bem, você nunca mais vai nos fazer de bobos!

O Granou mostrou seus dentes amarelos e afiados.

“Ele vai me matar agora mesmo”, Lief pensou.

Os dedos entorpecidos apertaram o Cinturão preso ao seu corpo. Ele se concentrou nessa tarefa e, com toda a força, convocou o poder das pedras.

“Ajudem-me!”

A criatura pulou para trás como se tivesse sido picada por algum inseto. Olhou para Lief por um momento e estreitou os olhos.

— Agora sei como escapou da primeira vez — ele sussurrou. — Você nos enganou! Você está carregando uma magia poderosa. Mas não vai escapar desta vez. Você está sozinho e são doze contra um. Nenhum talismã vai poder salvá-lo.

Somente então Lief pensou outra vez em Jasmine e Barda. Será que eles estavam em segurança? Será que estariam observando de trás das árvores, tentando pensar num jeito de resgatá-lo?

“Fiquem onde estão”, ele pediu em silêncio. “Os inimigos são muitos. Eu insisti em vir para cá e agora devo agüentar as conseqüências. Mas, enquanto vocês viverem, vai existir a chance de salvarem o Cinturão de Deltora.”

Os outros Granous mudaram de posição.

— Quatro integrantes do grupo foram para as árvores e ainda não voltaram — um deles grunhiu nervoso. — Se esse rei jogou um feitiço neles...

O líder olhou para cima e rosnou.

— Os feitiços dele não me dão medo — ele resmungou. — Vejam como acabo com ele.

Então, de repente, ele arregalou os olhos assustado.

— Cuidado! — ele rugiu. — Inimigos atrás de vocês!

Mas os dois animais de pêlos emaranhados que seguravam o Capricon já caíam de joelhos, feridos mortalmente.

Com sangue escuro pingando de suas armas, Jasmine e Barda pularam para trás e encararam os demais.

— Matem esses dois! — o líder berrou.

“Salve-os! Ajude-me!”

O Cinturão ficou quente nas mãos de Lief.

Ouviu-se um barulho ensurdecedor na distância e, de repente, o céu se cobriu com centenas de pássaros. As colinas se encheram com seus gritos assustadores e o som de suas asas que batiam freneticamente.

Os outros Granous uivaram e cobriram os olhos, mas seu líder não recuou.

— Morra, feiticeiro! — ele grunhiu. Ele mostrou os dentes gotejantes outra vez e arreganhou tantos os lábios que suas gengivas escuras ficaram à mostra.

Os pássaros se espalharam, o céu escureceu e ouviu-se um rugido ensurdecedor. Uma coisa imensa mergulhou num vôo rasante.

O líder dos Granous olhou para cima e gritou.

Lief viu, aterrorizado, um par de garras grandes e douradas e ouviu o bater de asas fortes.

Aos gritos, o Granou foi agarrado e levado para o céu.

 

Lief se levantou com esforço. Aterrorizados e sem líder,os Granous tinham fugido. Imóvel, o Capricon estava deitado no chão. Apenas Barda e Jasmine permaneciam na clareira.

Eles andaram com dificuldade até onde Lief estava, e os três muito abalados ficaram abraçados por um momento.

— O dragão — Jasmine sussurrou finalmente. — Ele atravessou as árvores e veio...

— Foi o Cinturão — Lief contou. A voz dele parecia abafada e estranha aos próprios ouvidos. — O Cinturão o chamou.

Enquanto falava, ele olhou para cima. O dragão do topázio estava empoleirado no alto de uma colina próxima, como um pássaro numa árvore, comendo.

Lief estremeceu.

— Você acha que ele vai voltar? — Barda murmurou. — Talvez a gente devesse...

O Capricon se mexeu e gemeu no chão aos pés deles. Jasmine se ajoelhou ao lado da criatura.

— Antes de fazer qualquer coisa, precisamos dar um jeito nesse ferimento — ela disse. — Ele já perdeu muito sangue. Seria uma pena se ele morresse, já que quase nos matamos para salvá-lo.

Ela examinou a mão machucada com calma. O dedo mínimo era apenas um toco desigual e sangrava bastante, outra vez. Jasmine pegou a garrafa de água e começou a limpar o ferimento.

Lief ficou enjoado e se virou para o outro lado.

— Ele é um sujeito de aparência estranha. O que ele é? — Jasmine perguntou em voz baixa.

— Um Capricon — Barda informou. — É o primeiro que vejo com meus olhos, embora eu tenha conhecido viajantes que viram grupos pequenos nas montanhas do leste.

— Então, eles são nômades? — Jasmine quis saber.

Lief se perguntou se ela estava querendo desviar a atenção da tarefa terrível que estava realizando com todas aquelas perguntas.

Provavelmente, não. Jasmine nunca foi sensível. Era mais provável que ela estivesse tentando não pensar no dragão que ainda se empanturrava na colina próxima.

Com determinação, ele se virou para encarar a amiga. Ele também preferia não pensar no dragão.

— Os Capricons que sobraram agora são nômades — respondeu Barda. — Mas dizem que antes eles viviam numa cidade cor-de-rosa chamada Capra, a mais linda cidade do leste. Os habitantes de Broome alegam que sua cidade foi construída em cima das ruínas de Capra, mas não sei se isso é verdade.

— Eu gostaria de saber por que os Capricons abandonaram seu lar — Jasmine disse, enquanto passava ungüento no feio machucado e começava a enfaixá-lo rapidamente.

— Talvez, eles tenham sido expulsos pelos servos do Senhor das Sombras, como aconteceu com o povo da Cidade dos Ratos — Lief murmurou.

— Com que objetivo? — Jasmine amarrou a bandagem com firmeza, recuou e ficou apoiada nos calcanhares, suspirando.

— Quem sabe? — Lief retrucou com os olhos no dragão. — Nós também podemos perguntar por que o Senhor das Sombras queria que a Cidade dos Ratos fosse abandonada. Ele poderia simplesmente ter escravizado o povo que vivia lá como fez em outros lugares.

— Seja como for, isso tudo já passou — Barda interveio. — Dizem que Capra estava em ruínas antes de Adin fazer o Cinturão de Deltora, e os Capricons sempre viveram isolados. Não se sabe muita coisa sobre eles.

— Dragões — o Capricon murmurou. — Os dragões tomaram Capra de nós.

Devagar, ele abriu os olhos de um violeta escuro, enevoados pelo susto e pela confusão.

— Houve uma época em que havia muitos Capricons — ele disse com a voz rouca. — Éramos um grande povo com uma grande cidade. Mas os dragões sentiam inveja de nós. Eles queriam Capra para eles, porque era rica e maravilhosa. Assim, eles atacaram repetidas vezes; mataram e destruíram até que o último dos Capricons foi expulso e a cidade ficou em ruínas...

A voz dele diminuiu. Ele levantou a mão enfaixada e olhou para ela atordoado.

— E-estou ferido — ele gaguejou. — Como foi isso?

Então, a expressão de seu rosto mudou, quando a memória voltou aos poucos, e ele começou a tremer.

— Vim das montanhas do leste para pedir ajuda ao rei — ele murmurou. — Ajuda para o meu povo...

Kree pousou no braço de Jasmine com um grasnado de aviso, e ela olhou para cima.

Lief também olhou para o céu e seu coração disparou quando viu que o dragão, depois de terminar a refeição, tinha se virado na direção deles e estava abrindo as asas.

— Barda — ele chamou ansioso. — Você e Jasmine devem ir se esconder entre as árvores. E leve nosso amigo...

— Eu sou Rolf — o Capricon interrompeu. — Rolf, o filho mais velho do clã Dowyn, herdeiro das terras de Capra. Eu...

Sem cerimônia, Barda o ergueu e começou a arrastá-lo para fora da clareira, fazendo com que seus cascos deixassem um rastro no chão.

Jasmine ficou onde estava com o olhar fixo no céu. Filli também olhava para cima, gemendo, assustado. Jasmine murmurou algumas palavras e ele se escondeu sob a gola de sua jaqueta. Mas Kree, imóvel como uma estátua, continuou em seu braço.

— Jasmine — Lief começou.

— Não vou deixar você, Lief— ela respondeu, balançando a cabeça. — Não gaste sua energia discutindo comigo. Prepare-se!

Lief olhou para cima outra vez e, por um breve momento, ele não viu nada além do céu vazio.

Mas o dragão estava se aproximando. Lief sabia disso. Podia ouvir o bater de suas asas, conseguia ver o topo das árvores se quebrando e as folhas se agitando como se estivessem sendo atingidas por uma tempestade.

A clareira escureceu quando alguma coisa encobriu o sol. Lief olhou com atenção em busca do vulto que sabia que ia encontrar.

Então, com um estremecimento de susto e pavor, ele o viu.

Enorme e ameaçador, o dragão dourado sobrevoava a clareira. A parte de baixo de seu corpo era azul-clara e combinava perfeitamente com o céu da tarde, de modo que, visto de baixo, era quase invisível.

Enquanto Lief olhava, ele começou a voar cada vez mais baixo, batendo as asas devagar e com as terríveis garras estendidas.

O Cinturão de Deltora parecia pulsar no mesmo ritmo do bater de asas do dragão. Lief olhou para baixo e viu que o topázio brilhava como o sol.

Sua cabeça girava e ele teve a vaga impressão de estar prendendo a respiração, então obrigou-se a respirar normalmente.

Lief se viu cercado de poeira e sentiu Jasmine agarrar seu braço. O barulho do vento era insuportável, e sua amiga teve de gritar para ser ouvida, mas ele não conseguiu entender o que ela queria.

Uma sombra negra apareceu diante de seus olhos. Era Kree que gritava e batia as asas no rosto dele. E agora Jasmine também estava junto dele, empurrando-o, gritando. Confuso, ele cambaleou para trás até a borda da clareira.

E, somente quando se viu encostado à árvore, à qual o Capricon tinha sido amarrado, Lief percebeu por que Jasmine queria que ele saísse de onde estava. Somente naquele momento, ele ergueu a cabeça, bem a tempo de ver a criatura enorme aterrissar, pousando no chão, enrolando a cauda ao redor do corpo imenso, enchendo totalmente a clareira com um brilho dourado ofuscante.

O dragão virou a cabeça enorme e olhou para ele com os olhos dourados. Lief se sentiu capturado, preso, pois não conseguia desviar o olhar.

— Você usa o cinturão dos antigos — o dragão disse. — O grande topázio brilha para você. Sinto seu poder fluindo para mim como sangue novo nas minhas veias. Você é o rei prometido.

As palavras vibraram nos ouvidos de Lief, abafadas e ecoando como se viessem de um poço profundo. Ele podia ver o próprio reflexo no olho do dragão, dançando ali como uma pequena criatura solitária que afundava num oceano primordial.

Em sua cabeça, não havia nenhum pensamento. Tudo o que tinha planejado dizer tinha desaparecido de sua mente.

O dragão piscou, e o feitiço se quebrou. Repentinamente libertado, Lief abafou um grito e cambaleou.

— Dormi durante muito tempo e sonhei — o dragão continuou. — Eram sonhos bons, de épocas antigas, nas quais os céus eram livres e o ar dos meus domínios era doce. Agora, você me despertou... para isso!

Sua língua negra e bifurcada saltou para fora, sentindo o sabor do vento.

— A terra não está bem. Sinto uma presença maligna, veneno pingando na terra de algum centro escuro. Quem fez isso enquanto eu dormia?

— O Inimigo da Terra das Sombras — Lief disse com voz rouca. — O Inimigo cujas criaturas destruíram a sua raça há muito tempo.

O olho achatado e dourado o observou com frieza.

— A minha raça não foi destruída — o dragão respondeu. — Não estou aqui? Você acha que sou uma miragem?

Lief olhou para ele sem saber o que dizer.

Pensativo, o dragão levantou uma das patas e tirou um pedaço de osso do meio dos dentes brancos e afiados.

— O topázio que está usando me deu vida nova, mas o sono profundo deixou meu corpo fraco — ele disse. — Um Granou é muito pouco para matar a minha fome. Mas, quando eu estiver bem alimentado e tiver recuperado minhas forças, vou procurar essa coisa perversa que está na minha terra até encontrar e vou destruí-la, se puder.

O coração de Lief bateu mais forte.

— São mais que um — ele disse ansioso. — Elas são quatro e são chamadas pelo Inimigo de As Quatro Irmãs. E nós já sabemos onde está uma delas. Ela se esconde na costa leste, num lugar chamado o Ninho do Dragão.

Os olhos do dragão pareceram brilhar.

— A costa leste é território do rubi e não é da minha conta — ele comentou.

— Mas certamente todo o reino de Deltora é da sua conta! — Lief exclamou, corando. — Assim como é da minha!

Os terríveis maxilares do dragão abriram-se, Jasmine soltou um grito de aviso e empunhou a adaga. Mas então eles perceberam que a criatura estava apenas bocejando.

— O território do rubi não me interessa — o dragão repetiu finalmente. — Mesmo que quisesse entrar lá, eu não poderia, sem quebrar o juramento que fiz antes de adormecer. E não posso fazer isso, pois jurei por meu sangue, meus dentes e meus filhos ainda não nascidos, para o homem chamado Amigodosdragões.

O monstro pareceu sorrir quando ouviu o grito de espanto de Lief.

— Já ouviu falar do homem de seu povo chamado Amigodosdragões? — ele perguntou.

— Sim... claro! — Lief balbuciou. — Mas...

— Sete inimigos selvagens percorriam nossos céus naqueles dias — continuou o dragão. — Juntos, eles nos caçaram e mataram repetidas vezes até eu me tornar o último remanescente de toda a minha tribo. O Amigodosdragões me procurou em minha solidão. Ele disse que cada uma das outras tribos de dragões tinha sofrido o mesmo destino.

— Você quer dizer que... somente um dragão sobreviveu em cada uma das sete tribos? — explodiu Lief.

— Foi o que o Amigodosdragões me contou e eu acreditei, pois eu o conhecia há muito tempo, e ele nunca mentiu para mim — replicou o dragão inquieto.

O olho dourado brilhou na direção de Lief, que engoliu em seco e concordou.

— O Amigodosdragões fez um plano para preservar nossas vidas — o dragão continuou. — Ele conhecia nosso modo de vida. Sabia que os dragões conseguem dormir durante séculos, se for preciso. Ele disse que nós sete deveríamos nos esconder do Inimigo e deixar o sono tomar conta de nós até que fosse seguro acordar.

— Mas como... como vocês saberiam que era seguro? — Jasmine perguntou. — O que faria vocês despertarem desse sono prolongado?

O dragão olhou-a com frieza. Lief viu o olho achatado observar os cabelos encaracolados da amiga e desejou que ela tivesse ficado quieta.

— O Amigodosdragões disse que, um dia, cada um de nós seria chamado pela grande pedra de seu território — o dragão contou. — Ele disse que o chamado só viria quando o herdeiro do velho rei Adin estivesse perto de nós, usando o Cinturão do Poder. Isso significaria que o Senhor das Sombras tinha sido derrotado e seus servos expulsos de nossos céus.

— Então, os sete dragões dormiram — Lief sussurrou. — E... cada um de vocês jurou não tirar vantagem do sono do outro para invadir suas terras.

— Foi isso o que aconteceu — o dragão confirmou. — E não vou quebrar meu juramento. Se quiserem descobrir o que há de mau no Ninho do Dragão, terão de despertar o dragão do rubi para ajudá-los.

— Mas e se o dragão do rubi não for encontrado? — perguntou Lief desesperado. — E se ele não estiver disposto a ajudar? Ou estiver morto? Você virá até mim, então?

O dragão fechou os olhos. Depois de um longo momento ele os abriu de novo.

— Se ele não puder ser encontrado, ou não estiver disposto a ajudar, o juramento ao Amigodosdragões deve continuar. Se ele estiver morto... então, veremos.

 

A Noite Caía quando Lief, Jasmine e Barda carregaram Rolf, o Capricon, para longe do sopé das colinas Os-Mine e para seu acampamento.

Mesmo na planície, os uivos dos Granous caçados pelo dragão faminto dançavam no ar. Os companheiros não ficaram surpresos ao encontrar os cavalos resfolegando inquietos, e os guardas reunidos ao redor de uma grande fogueira com tochas e armas prontas para serem usadas.

Do refúgio das árvores em volta da clareira, Rolf tinha visto o dragão. A partir desse momento, ele se fechou num silêncio apavorado. A dor que ele sentia na mão machucada e os gritos assustadores que o perseguiram até o esconderijo só pioraram as coisas.

Agora, seus olhos estavam vidrados, ele não parava de tremer e suas pernas pareciam não poder mais sustentá-lo. Ele não prestava mais atenção aos olhares curiosos dos guardas enquanto era levado ao acampamento.

— Ponham-no perto do fogo — Jasmine disse em voz baixa. — Vou preparar uma bebida para diminuir a dor dele.

— Se o ajudar a dormir, melhor ainda — Barda resmungou. — Não quero que ele fique tagarelando sobre dragões na frente dos homens. Eles já estão bastante nervosos.

Os guardas, muito aliviados por ter o chefe e o rei de volta e em segurança e satisfeitos com as histórias sobre lobos barulhentos nas Colinas, começaram a preparar a refeição.

O Capricon tomou meia xícara do chá de ervas que Jasmine encostou em seus lábios e caiu num sono profundo. E, finalmente, os sons vindos das Colinas desapareceram.

— Nosso amigo escamoso parece ter comido o suficiente por hoje — Barda comentou, deixando-se cair diante da fogueira com seus companheiros.

— É que está escuro demais para ele ver suas presas — Jasmine disse. — Aquele animal parece que nunca vai parar de comer.

— Então, o que vai acontecer quando ele comer todos os Granous das Colinas? — Barda grunhiu.

Lief sentiu um calafrio, mas balançou a cabeça com firmeza.

— Existem muitos Granous — ele disse. — Eles aumentaram de modo assustador, enquanto o dragão dormia.

— Talvez. Mas quem garante que ele não gosta de variar suas refeições de vez em quando? — Jasmine perguntou. — Lembre-se da história de Capra. E não gostei do jeito como ele olhou para mim na clareira. Se você não estivesse lá com o Cinturão, tenho certeza de que ele teria acabado comigo rapidinho.

— Acho que ele só queria os seus cabelos para revestir o ninho — Lief murmurou. — Ele contou uma história muito estranha. Ainda não sei se acredito nela.

— Eu ficaria satisfeito se você pelo menos tentasse — Barda retrucou secamente. — Eu estava entre as árvores cuidando de um Capricon trêmulo enquanto você conversava com o monstro e não ouvi nada. Mas, já que estamos aqui e ele ainda está lá em cima, suponho que ele se recusou a nos ajudar.

— Não é tão simples assim.

Lief contou a história do dragão e Barda ouviu com atenção enquanto brincava com a caixa de segredo que tinha apanhado antes de sair da clareira.

— Então, Doran convenceu os últimos dragões a dormir — ele disse, quando Lief terminou. — Depois, talvez durante a volta a Del, ele começou a escutar rumores sobre as Quatro Irmãs. Mas era tarde demais. Os dragões não iam acordar, nem mesmo para ele.

Barda suspirou, virou a caixa esculpida nas mãos, apertando de um lado e de outro, tentando encontrar o segredo que poderia abri-la.

— Não é de surpreender que a última nota de Doran nos Anais tenha sido tão desesperada — comentou. — Ele deve ter percebido que tinha ajudado o Inimigo quando removeu as últimas barreiras aos seus planos.

— Se ele pensou isso, estava enganado — Jasmine comentou, dando de ombros. Restava apenas um dragão em cada território. Eles teriam sido mortos pelos Ak-Baba, um por um, se tentassem interferir.

— A menos que o Cinturão estivesse com eles — Lief disse devagar. Ele se lembrou das palavras que tinha visto nos Anais de Deltora — palavras rabiscadas com desespero, há muito tempo, pelas mãos de Doran:

 

Se alguém ler estas minhas palavras, mostre-as ao rei, se possível. O rei, que usa o Cinturão de Deltora, é a única salvação do reino agora.

 

Lief olhou para o Cinturão, para o grande topázio, que brilhava com uma nova e estranha profundidade e vida. O dragão dourado tinha aumentado seu poder e o topázio tinha aumentado o poder do dragão. Ele tinha certeza de que aconteceria a mesma coisa com o rubi: se conseguissem encontrar o dragão do rubi.

Se...

Lief procurou dentro da jaqueta o mapa dos Territórios dos Dragões, que Josef lhe dera. Ele o desdobrou com cuidado e o abriu para que os companheiros o vissem.

— Tínhamos planejado voltar para o sul quando saíssemos daqui e depois viajar para leste até o Ninho do Dragão pela estrada da costa — ele disse, mostrando rapidamente o caminho com o dedo. — Mas, se formos por esse caminho, só vamos passar pelo território do rubi quando estivermos perto de atingir o nosso objetivo.

— E isso é importante? — Jasmine quis saber.

— Acho que sim — Lief respondeu. — Não sabemos onde o dragão do rubi dorme, mas quanto menos de seu território cobrirmos, menores serão as chances de encontrá-lo.

Barda concordou com um gesto de cabeça.

— Então você acha que devemos ir para o nordeste — ele disse. — Isso vai nos levar para o território do rubi quase que imediatamente. Mas é um caminho mais comprido. A menos que você queira passar pelas Florestas do Silêncio, o que certamente seria uma loucura!

— As Florestas não são tão perigosas, se ficarmos perto das árvores e formos atentos — disse Jasmine corajosa.

— Com você nos guiando, Jasmine, nós três poderíamos tentar — Lief concordou. — Mas Barda tem razão. Nosso grupo é muito grande para nos arriscarmos a tomar esse atalho perigoso.

Ele guardou o mapa e se espreguiçou, percebendo de repente o quanto estava cansado.

— Acho melhor comermos alguma coisa e dormirmos um pouco — ele disse. — Barda, você pode dizer a Brid que vamos partir ao amanhecer?

— Um pouco antes, eu acho — retrucou Barda, desistindo da caixa com segredo e jogando-a aborrecido no bolso. — Como você quiser, Lief, mas quero estar bem longe daqui antes que o dragão comece a caçar outra vez.

Os dois dias seguintes foram longos e cheios de frustração. A fraqueza de Rolf, o Capricon, que montava vacilante um cavalo reserva conduzido por Barda, não os deixava andar depressa. Além disso, depois que as colinas Os-Mine ficaram para trás, os viajantes começaram a encontrar fazendas e vilas.

Ao ver o grupo de cavaleiros se aproximar, as pessoas corriam para cumprimentá-los, felizes com a visita inesperada de seu rei, emocionadas em ver os heróis Jasmine e Barda, impressionadas com os guardas e fascinadas com o Capricon.

As pessoas estavam cansadas e esgotadas, exaustas do esforço de trabalhar nos campos desertos ao mesmo tempo em que tentavam reconstruir as casas devastadas na época do Senhor das Sombras. Muitas tinham sido prisioneiras na Terra das Sombras e apenas recentemente tinham voltado ao lar.

Era impossível decepcioná-las e recusar seus pedidos para que ficassem um pouco e dividissem a comida e bebida que podiam oferecer.

Mas, mesmo com o coração partido, Lief se preocupava com as horas que perdia, enquanto inspecionava o trabalho que tinham conseguido realizar e se mostrava solidário pelas plantações perdidas e rebanhos magros.

E o pior era que, enquanto ele e seu grupo comiam a carne de frango dura, as maçãs murchas e o pão seco colocados a sua frente, ele ficava tristemente ciente de que a comida não era suficiente para ser dividida.

Os viajantes sempre iam embora deixando um pouco de alimento de suas sacolas, quando finalmente permitiam que partissem, mas Lief sabia que não se comparava ao banquete que tinham recebido. Ele sabia que os moradores das vilas passariam ainda mais fome depois da visita real.

— Se ao menos os guardas não estivessem conosco — ele murmurou enquanto se afastavam de outra multidão feliz, no terceiro dia. — Eles deixam o nosso grupo tão grande que não podemos ir a lugar algum sem que nos notem.

— Eles são a nossa escolta oficial — disse Barda, virando-se na cela para acenar a um par de crianças magras e ruivas que corriam atrás deles e tentavam acompanhar os cavalos. — Não podemos mandá-los para casa sem levantar suspeitas em Del de que o motivo dessa viagem não é o que alegamos. Os boatos vão começar, as pessoas vão entrar em pânico e isso é exatamente o que não queremos.

Barda olhou para o rosto triste de Lief.

— Não se desespere — ele disse. — De acordo com meus cálculos, estamos para entrar no território do rubi. Fique de olho no Cinturão, pois não podemos nos arriscar a passar pelo dragão.

Lief acenou com a cabeça e endireitou as costas envergonhado por estar tão aborrecido. Ele olhou para o Cinturão. O topázio ainda brilhava, mas o rubi estava pálido, e não vermelho brilhante, como deveria ser.

Perigo. Perigo aqui ou muito perto.

Ele olhou preocupado para os lados e para trás, mas não viu nada. A estrada estava deserta. Mesmo os gêmeos ruivos tinham desaparecido. Ele imaginou que eles tinham se cansado da perseguição e voltado para a vila.

— Há uma estrada que cruza com esta, mais adiante — Jasmine exclamou, ficando de pé nos estribos e protegendo os olhos com a mão. — Mas estou vendo uma placa.

Logo depois, eles alcançavam a placa. Ela estava amassada e desbotada e se inclinava para a frente, como se estivesse cansada dos longos anos de serviços.

— Ótimo! Ringle! — exclamou Barda satisfeito. — Fica no nosso caminho. Imaginei mesmo que haveria uma placa. É uma cidade bem grande, ou costumava ser.

— Outra cidade! Desse jeito, nunca vamos chegar ao Ninho do Dragão — resmungou Jasmine, enquanto conduziam os cavalos para a direita. — É claro que todas essas paradas não teriam tanta importância se pudéssemos andar mais depressa quando estivéssemos na estrada.

Lief olhou para Rolf, que já estava caído para a frente.

— Eu sei que Rolf está nos atrasando, mas não podemos deixá-lo aqui para que os fazendeiros cuidem dele — ele disse em voz baixa. — Eles não têm comida suficiente para eles mesmos! E o Capricon ainda está muito fraco para ser deixado sozinho.

— Ele poderia ser forte, se quisesse — Jasmine disparou irritada, sem se preocupar em falar baixo. — Come e dorme bastante, e o ferimento está sarando. Ele usa toda a sua energia para ficar com pena de si mesmo.

— Ele perdeu a coragem — disse Barda. — Já vi isso acontecer com soldados que sofreram muito nas batalhas. Ver o dragão foi demais para ele.

— Tudo é demais para ele! — Jasmine retrucou. — Duvido que ele tivesse alguma coragem para perder.

— Não discutam — Lief pediu, sentindo que estava prestes a explodir. — Neste momento, não temos outra escolha além de continuar como estamos. Podemos tirar o melhor proveito disso e esperar que aconteça algo que mude as coisas logo.

Não demorou muito para que alguma coisa realmente acontecesse, mas não era bem o que ele esperava.

 

A estrada logo se estreitou e se transformou numa trilha irregular e tortuosa. Mais de uma hora se passou, sem sinal de Ringle ou das fazendas que a cercavam.

O chão do lado esquerdo do caminho começou a apresentar um declive acentuado. No fim, os viajantes se viram obrigados a cavalgar em fila única, tendo uma colina íngreme e pedregosa de um lado e um abismo recortado do outro.

Lief puxou as rédeas de Honey e a fez parar.

— Acho que alguém mudou a posição daquela placa no cruzamento — ele disse, olhando o precipício assustador a sua esquerda. — Esse não pode ser o caminho para Ringle.

— Concordo com você — Barda resmungou atrás dele. — Acho que fomos conduzidos ao desfiladeiro da Floresta do Fim. A placa estava quase caída. Com certeza, ela se soltou quando foi virada.

— Mas quem faria uma coisa dessas? — Jasmine exclamou irritada.

— Algum idiota de cérebro minúsculo que acha divertido fazer viajantes se perderem — Barda disse, dando de ombros.

Mas Lief não tinha certeza se a resposta era tão simples assim. O rubi e a esmeralda do Cinturão de Deltora ainda estavam sem brilho, como pedras de rio. A pele dele formigava, indicando perigo, e ele tinha a sensação de que alguém ou alguma coisa queria o seu mal.

Obedecendo a um impulso, abaixou a mão e apertou o rubi, fechou os olhos e pensou no dragão do rubi com toda a força.

— Seja onde for que esteja dormindo, dragão, acorde! — ele sussurrou. — Eu estou convocando você! O Cinturão de Deltora está convocando você!

Lief abriu os olhos, mas nada tinha mudado, nada se movia na colina pedregosa ou no abismo. O céu estava calmo e vazio.

— Vamos voltar — ele murmurou. Impacientemente, tentou virar Honey, mas a égua empinou e resfolegou aterrorizada, quando a terra na beira da trilha estreita se desmanchou sob seus cascos.

Jasmine, Barda, Rolf e os guardas gritaram ao mesmo tempo. Terra e pedras caíram nas profundidades abaixo.

Lief se manteve firme, virando a cabeça de Honey para a frente outra vez, impelindo-a a encontrar terra firme até ficar parada e trêmula, mas segura.

Atordoado, ele a acariciou e falou com ela suavemente, amaldiçoando a própria estupidez.

— Não é seguro virar os cavalos aqui — Barda disse desnecessariamente. Lief se virou na sela para olhar para ele e viu o rosto do amigo coberto de suor.

Kree levantou vôo obedecendo a uma palavra de Jasmine. Ele voou para o alto, fez um grande círculo sobre suas cabeças e voltou momentos depois soltando gritos agudos.

— Kree está dizendo que existe uma ponte sobre o desfiladeiro — Jasmine informou, ignorando o olhar fascinado dos guardas.

O grupo de viajantes continuou sua jornada. E, de fato, logo depois da curva seguinte, onde o desfiladeiro se estreitava um pouco, uma frágil ponte de madeira cobria o abismo perigoso. Ao seu lado, estava uma placa pintada.

Os companheiros observaram a placa em silêncio e depois se entreolharam. Barda levantou as sobrancelhas. Lief e Jasmine acenaram com a cabeça.

— Então, as coisas são assim — Barda comentou sombrio.

— Sim — Lief respondeu, mordendo o lábio. — Eu tive receio disso por um tempo. Aqui está a prova.

Naquele momento, os guardas do início da tropa tinham visto a placa, e as temidas palavras “Florestas do Silêncio” eram sussurradas até o fim da fila. Rolf tinha se encolhido na sela, com os olhos arregalados e cheios de medo.

— Vamos ter de levar os cavalos para o outro lado, senhor — Brid disse a Barda. — Eles vão precisar ser convencidos. Devo dizer aos homens que desmontem?

— Não — Barda grunhiu sem se virar. — Não sei se vamos atravessar essa ponte. Mas vamos continuar.

Brid ficou sentado, rígido, olhando para a frente. Ele estava claramente aterrorizado, mas era bem treinado demais para se queixar das ordens do chefe.

Rolf, entretanto, soltou um grito alto e estrangulado.

— Nós não podemos continuar! — ele berrou. — Você não pode nos levar para as Florestas do Silêncio para morrer!

Barda saltou do cavalo, andou com passos firmes até a placa e passou os dedos nela pensativo.

Enquanto seus homens o observavam com atenção, ele puxou a grande faca de caça da cintura. E, delicada, mas firmemente, começou a raspar a parte da frente da madeira.

Pedaços de tinta branca caíram ao chão enquanto trabalhava e, quando se afastou para o lado, os guardas abafaram um grito.

— Pois então — Barda disse, limpando a faca na calça para tirar os pedaços de tinta ainda presos na lâmina. — Foi o que pensei. Não contente em nos desviar do caminho, alguém pintou a placa para tentar acabar conosco. Felizmente, o trabalho é recente e foi tão malfeito que vimos o truque na hora. Do contrário...

Franzindo a testa, ele guardou a faca, apanhou uma pedra grande e a jogou nas primeiras tábuas da ponte. A ponte gemeu, mas ficou firme.

Barda levantou outra pedra e jogou-a mais longe, para que caísse no meio da ponte.

Desta vez, vários pedaços de madeira cederam, a ponte balançou, curvou-se e a pedra mergulhou no ar, despedaçando-se no chão bem abaixo.

Ouviram-se gemidos abafados quando todos os que ali estavam imaginaram o que teria acontecido se Lief, Barda e Jasmine tivessem começado a travessia da ponte. Ninguém disse nada e Barda tornou a montar seu cavalo.

O grupo continuou a jornada, liderado pelos companheiros. Rolf e os guardas se viravam com freqüência, olhando para a ponte arrebentada até que a perderam de vista. Mas Lief, Barda e Jasmine não olharam para trás nenhuma vez. Eles conversavam em voz baixa.

Se alguém estava curioso para saber sobre o que conversavam, essa curiosidade certamente ficou insatisfeita. Barda deixou a rédea que conduzia o cavalo de Rolf o mais longe possível, abrindo um espaço entre os três e seus acompanhantes, para que ninguém pudesse ouvir o que falavam.

Aos poucos, o desfiladeiro foi se estreitando e logo, como estava escrito na placa, os viajantes chegaram à outra ponte.

A trilha terminava ali e logo adiante o desfiladeiro foi engolido por uma grande e assustadora quantidade de árvores. Todos sabiam que aquele era a Floresta do Fim, a última das três Florestas do Silêncio.

Do outro lado da ponte, havia uma estrada cheia de curvas que desaparecia na distância. A ponte parecia resistente e quase nova, do seu lado havia uma imponente pedra esculpida.

— Agora, escutem com atenção — Barda falou alto para que todos pudessem ouvir. — Por duas vezes, as placas que surgiram no nosso caminho foram alteradas, e achamos que isso foi feito de propósito para nos ferir. Assim, para a segurança de todos, decidimos que nosso grupo deve se separar.

Rolf soltou um pequeno gemido de protesto, mas logo tapou a boca com a mão. Os guardas olhavam fixamente.

— Sob o comando de Brid, vocês devem ir para os arredores de Ringle — Barda continuou. — Ali, sem perturbar os moradores, vocês vão acampar durante a noite. No dia seguinte, devem continuar a viagem até Broome. Entenderam?

— E o senhor, o que vai fazer? — Brid perguntou pigarreando. — O senhor, dona Jasmine e o rei?

— Nós também vamos para Broome — Barda disse devagar. — Mas nós vamos a pé e por outro caminho.

Todos os homens olharam a floresta adiante, com os rostos cheios de medo. Rolf apertou o peito e começou a choramingar.

— E eu? — ele gritou. — O que vai acontecer comigo?

— Você vai com os guardas — Lief respondeu depressa, quando ouviu Jasmine respirar fundo, pronta para dar uma resposta irritada. — Você vai ficar totalmente seguro, Rolf, eu garanto. Não é verdade, Brid?

Brid concordou com um gesto de cabeça, sem demonstrar o que pensava.

— Então, não vamos mais perder tempo — Barda finalizou, dando um tapinha nas costas de Brid. — Tomem cuidado.

— O senhor também — Brid murmurou. Sua expressão era preocupada, mas ele fechou os lábios com força e não disse mais nada. Ele se voltou para seus homens e começou a dar-lhes ordens.

Em poucos instantes, os guardas atravessavam a ponte. Brid, guiando o cavalo de Rolf, ia à frente. Honey, Bella e Swift, presos com cordas, os seguiam.

Lief suspirou aliviado, quando todo o grupo chegou ao outro lado em segurança. Ele viu os homens se virarem e se despedirem com um aceno e retribuiu o cumprimento.

— Espero que estejamos fazendo a coisa certa — Barda murmurou.

— Brid acha que estamos loucos.

— Brid acha que qualquer coisa fora do comum é loucura — Jasmine comentou irritada. — Ele é tão sem graça!

— Brid sobreviveu dez anos como escravo na Terra das Sombras — Barda respondeu devagar. — Acho que isso fez dele uma pessoa previdente.

— Eu não tive a intenção de falar mal — Jasmine retrucou, mordendo o lábio. — Mas você não pode deixar que a desaprovação dele o abale, Barda. Essa é a melhor chance que temos de despistar o nosso Inimigo e chegar a Broome sem mais atrasos.

Ela suspirou.

— É uma pena sermos obrigados a deixar os cavalos, mas não tínhamos escolha. Cavalos não podem dormir em árvores, como nós.

Filli chiou, concordando, satisfeito de ter se livrado das criaturas enormes que o sacudiam de um lado para o outro.

Barda grunhiu. O pensamento de dormir nos galhos de uma árvore não lhe agradava nem um pouco.

Lief não disse nada. Ele ficou espantado ao perceber que, apesar de tudo, sentia-se muito feliz.

“Será que sou tão louco quanto Brid pensa?”, ele se perguntou. “Não há nenhum motivo para estar feliz!”

Mas ele estava contente. Sim, ele estava preocupado com o que tinham passado e sabia que o perigo os esperava adiante. Mas, naquele momento, sentia vontade de cantar ao lado de Barda e Jasmine, enquanto observava os guardas se afastarem.

“Observando os guardas se afastarem...”

“É isso,” ele pensou de repente, “devia ser a resposta.”

Os guardas sempre o trataram com muito respeito. Eles o admiravam, mas isso não lhe agradava. Ao contrário, fazia com que se sentisse uma fraude e terrivelmente consciente de sua pouca idade, quando comparado com eles. E ele sentia que tinha de agir como rei o tempo todo, para não assustá-los ou decepcioná-los.

Naquele momento, porém, apenas na companhia de Jasmine e Barda, podia ser ele mesmo. Ele estava livre.

Lief sentiu o sangue correr rápido nas veias. Era como se o ar estivesse mais fresco e as cores do mundo mais vivas do que antes.

— Vamos! — ele gritou. E começou a correr em direção à floresta.

 

Depois de andarem várias horas, a fervilhante felicidade de Lief tinha se transformado numa sensação de contentamento tranqüilo. As árvores retorcidas e recobertas por ervas daninhas da borda da floresta tinham ficado para trás. A Floresta do Fim era agora um lugar maravilhoso, cheio de cantos de pássaros. Manchas douradas de sol pintavam a terra macia, e samambaias se agrupavam junto das raízes das árvores imponentes.

Os três companheiros sabiam, porém, que a reputação de maldade das Florestas do Silêncio tinha razão de ser. Eles também sabiam que o terror podia estar à espreita na maior das belezas. Assim, caminharam em silêncio, um atrás do outro, atentos a sinais de perigo.

Logo antes do pôr-do-sol, Jasmine procurou uma árvore para eles, e o grupo subiu para os galhos altos, onde poderia comer e dormir em segurança.

Não foi uma noite tranqüila. Eles cochilaram em turnos inquietos, enquanto criaturas invisíveis deslizavam e se arrastavam abaixo deles. Nas horas mais escuras da noite, quando a Lua tinha se escondido, começou um coro baixo e assustador de uivos e gritos. Durou apenas alguns minutos, mas depois disso os companheiros não conseguiram mais dormir.

Eles receberam o amanhecer com alegria, mas se obrigaram a esperar até que a luz do sol iluminasse o chão da floresta, antes de se aventurar a descer de seu esconderijo e continuar.

Como já tinha acontecido antes, Jasmine os conduziu caminhando quase em silêncio entre as árvores, roçando a casca macia de cada uma com a ponta dos dedos ao passar. Kree voava a sua frente, uma sombra negra contra o fundo verde e dourado.

Depois de algum tempo, Jasmine começou a andar mais depressa. Lief e Barda, com os músculos rígidos e doloridos depois da noite na árvore, enfrentaram dificuldades para não perdê-la de vista.

— Jasmine, vá mais devagar! — Lief chamou em voz baixa. Mas Jasmine se virou de cara feia, com o dedo sobre os lábios, fez um sinal impaciente e recomeçou a andar, ainda mais depressa do que antes.

Finalmente, Lief percebeu que um novo barulho tinha se misturado ao canto dos pássaros. Era o som de água corrente, um riacho não longe dali.

Isso o fez se dar conta de que estava com muita sede, mas não ousou parar e tomar água de seu cantil. Naquele momento, Jasmine estava quase correndo e tudo o que podia fazer era segui-la.

O som gorgolejante e ondulante ficou mais alto, e Jasmine parou afinal.

Lief viu que ela tinha chegado ao riacho cujo barulho ele tinha ouvido por tanto tempo. Largo e raso, ele atravessava a sua trilha e era iluminado por rios de sol dançando na água límpida que passava em seu leito de pedras.

Do outro lado, não havia árvores, apenas uma massa gigantesca de samambaias que se erguiam como uma barreira emplumada, escondendo totalmente o que havia atrás.

Kree voou até a beira da água. Jasmine esperou que ele bebesse e, somente quando ele terminou e voou para se empoleirar num galho bem acima de sua cabeça, ela também matou a sede.

Filli desceu do ombro e também começou a beber. Sua minúscula língua cor-de-rosa trabalhava sem parar, mas durante o tempo todo os seus olhos pretos disparavam de um lado para outro, para que ele não fosse surpreendido.

— Você tinha de correr tanto? — Barda resmungou quando ele e Lief finalmente chegaram ao riacho e se agacharam ao lado de Jasmine para acabar com a sede intensa.

— As árvores disseram que estamos sendo seguidos — Jasmine resumiu. — Alguém está atrás de nós desde o amanhecer, depois do desfiladeiro da Floresta do Fim.

Ela olhou para cima enquanto falava, para onde Kree estava vigiando. Ele estava tão imóvel que parecia fazer parte da árvore em que estava empoleirado. Apenas seus olhos amarelos se mexiam, atentos e brilhantes.

Lief tinha levantado a mão cheia de água até os lábios e sentiu o corpo percorrido por uma deliciosa sensação gelada.

Ele olhou para o Cinturão. O topázio ainda brilhava intensamente, mas o rubi estava embaçado novamente.

— Quem? — ele murmurou.

Jasmine levantou Filli até o ombro, secou a boca com as costas da mão e ergueu-se.

— Acho que é o mesmo inimigo que tentou nos fazer cair e morrer no desfiladeiro da Floresta do Fim — ela disse. — As árvores só conseguem me contar que ele é alto, feroz e que anda muito mais depressa do que nós. Nos trechos em que viajamos acima do chão, ele fez o mesmo, saltando de uma árvore a outra. Onde caminhamos, ele correu curvado, farejando o chão como um animal.

As palavras de Jasmine criaram uma imagem perturbadora e Lief sentiu um calafrio.

— Ele está muito perto agora? — Barda perguntou. Houve uma época em que o grandalhão zombava da idéia de que Jasmine podia entender a linguagem das árvores, mas aqueles dias tinham passado há muito tempo.

— Ele já está perto do lugar onde passamos a noite — Jasmine informou. — Precisamos fazer com que ele não sinta nosso cheiro. Foi por isso que vim depressa até o riacho. Se andarmos pela água, ele não vai poder farejar nossos passos. Ele não vai saber se fomos para a direita ou para a esquerda, e assim talvez consigamos escapar.

— Por que deveríamos tentar escapar? — Barda grunhiu. — Por que não ficar e enfrentá-lo? Eu gostaria de agradecer de forma apropriada tudo o que ele fez por nós. — Franzindo as sobrancelhas, ele pôs a mão na espada.

— Nós seguimos este caminho para ganhar tempo, Barda — Jasmine argumentou com frieza. — A borda da floresta não pode estar longe agora. Queremos desperdiçar energia lutando com um homem-animal que tem raiva de nós? Ou queremos chegar ao Ninho do Dragão o mais depressa possível?

— Queremos chegar ao Ninho do Dragão — Lief respondeu hesitante. — Vamos usar o riacho, como Jasmine sugeriu.

Ele sentia o mesmo que Barda, mas sabia que o plano de Jasmine era melhor. Para ela, só a tarefa que tinham de realizar era importante. Orgulho, vingança, curiosidade... essas coisas não eram importantes e podiam esperar.

“E elas podem esperar, com toda a certeza”, Lief disse para si mesmo. Mas, secretamente, ele compreendeu Barda quando este resmungou aborrecido.

Jasmine entrou no córrego e andou um pouco para a direita. Ela tocou as violetas com freqüência e deixou que seus cabelos se emaranhassem nas samambaias que pendiam sobre as margens. Então, ela se virou, prendeu os cabelos dentro da gola da jaqueta, agachou-se e voltou rastejando com cuidado para não encostar em nada.

— Isso deve servir para despistá-lo — ela disse, sorrindo. — Agora, sigam-me. Fiquem no meio do riacho e andem abaixados para que as samambaias não encostem em nós.

Ela começou a andar para a esquerda, Lief e Barda a acompanharam.

Eles caminharam na água fria pelo que pareceu muito tempo. As mãos de Lief estavam dormentes e seus dentes batiam quando finalmente Jasmine lhes pediu que parassem.

— Acho que já andamos o bastante — ela sussurrou, levantando-se. — Ei, olhem isto aqui!

Ela apontou para a margem ao seu lado. Ali, com surpresa, Lief viu um caminho tortuoso feito de pedras grandes e redondas desaparecendo por entre as samambaias.

— Deve ser a nascente de outro córrego que antes se juntava a este — Jasmine disse. — Se continuarmos com sorte, pelo menos ele vai nos levar até o outro lado das samambaias e, talvez, até a borda da floresta.

— Faço qualquer coisa para sair desta maldita água! — Barda resmungou, levantando-se com esforço.

Tremendo, os companheiros saíram do riacho e começaram a seguir a trilha coberta de musgo.

Pouco tempo depois, passavam por algo parecido com um túnel verde e macio. Copas de árvores grandes e curvas se encontravam acima de suas cabeças e os impediam de ver o céu.

O ar estava tomado pelo cheiro de terra molhada e de folhas mortas. O vento não soprava, e os pássaros não cantavam. Eles andavam com as mãos no punho das armas e apenas respiravam, sem nada dizer.

Lief olhou para baixo. Ele não conseguia afastar o pensamento de que havia algo muito estranho naquele caminho.

Ele tentou se convencer de que Jasmine estava certa e que era o leito de um antigo rio. No entanto, as pedras eram muito grandes e distribuídas uniformemente — quase como se alguém as tivesse reunido e colocado na trilha, uma por uma.

Mas quem teria feito isso? E com que objetivo, no meio da selva?

— Oh!

Lief olhou para cima imediatamente quando ouviu Jasmine abafar um grito, e a espada estava em sua mão antes de perceber que ela não estava em perigo.

Ela estava parada como uma estátua, abrindo as folhas de uma samambaia, olhando para algo adiante.

— Olhem! — ela sussurrou.

Lief e Barda juntaram-se atrás dela, espiaram sobre seu ombro... e viram uma coisa que parecia a ilustração de um livro de contos de fadas.

Além das samambaias, cresciam inúmeras árvores pequenas, carregadas de frutas douradas, numa grande piscina rasa de água parada. Elas estavam perfeitamente refletidas na superfície da água que parecia um espelho, e seus troncos graciosos se erguiam na direção do céu, suas folhas largas e verdes se espalhavam, e seus frutos brilhavam como pequenos sóis flutuantes.

Jasmine se aproximou.

— Espere, Jasmine! — Barda gritou depressa. — Espere! Nós não sabemos...

Mas Jasmine já tinha entrado na água, que não passava dos seus tornozelos. Ela virou a cabeça e sorriu.

— Está morna — ela informou. — Ah, e veja as frutas! Vocês sentem o seu perfume?

Realmente, Lief sentia o aroma das frutas. Era um cheiro delicioso, forte e doce, que começou a lhe dar água na boca.

Kree voou do ombro de Jasmine e pousou no galho de uma árvore próxima. Faminto, ele bicou um dos frutos dourados.

O seu suco pingou na água formando ondas circulares onde caía. A fragrância ficou ainda mais forte.

Filli começou a choramingar e a tagarelar. Jasmine foi até a árvore, esparramando água para os lados e deixou a pequena criatura pular para o lado de Kree.

As frutas douradas eram do tamanho de Filli, mas isso não o desanimou. Ele agarrou uma delas com as patas e começou a mordiscá-la ansiosamente.

Aquilo era demais para Lief. Ele entrou na água e ficou ao lado de Jasmine.

— As árvores disseram que podemos comer as frutas? — ele perguntou.

— Essas árvores falam só umas com as outras e guardam seus segredos — ela disse, dando de ombros. — Mas Filli e Kree parecem ter certeza de que está tudo bem.

Lief estendeu a mão e apanhou uma das frutas. Ela tinha o formato de uma pêra, mas era muito maior e mais pesada. A sua casca macia era levemente manchada de rosa.

Ele a levou até o nariz e inalou sua deliciosa fragrância.

Então, quase sem querer, ele deu uma mordida.

 

Um sabor maravilhoso encheu a boca de Lief, e o suco doce e dourado escorreu por seu queixo. Então, de repente, ele percebeu que algo muito amargo se misturava à doçura da fruta.

No mesmo instante, ele cuspiu na mão, com uma careta, a casca que tinha mastigado.

— A casca é amarga — ele disse, franzindo o nariz. — Ah, é nojento! Como Filli e Kree agüentam isto?

Jasmine riu e pegou a faca.

— Eles não são tão exigentes com comida como nós — ela disse. — Que bom que você experimentou a fruta antes de mim.

Ela apanhou uma fruta da árvore e começou a descascá-la. Em instantes, estava enterrando os dentes na polpa dourada e brilhante, murmurando com prazer.

Lief seguiu seu exemplo e, depois de observar desconfiado por alguns momentos, Barda fez o mesmo.

Não demorou para que todos estivessem entretidos em silêncio, aproveitando o raro banquete. A água ao redor de seus pés ficou cheia de cascas e caroços compridos e achatados, encontrados no meio das frutas.

O tempo passou, e o sol ficou alto no céu. Lief se agachou para descansar as pernas doloridas.

Ele fechou os olhos e começou a sonhar acordado como contaria ao povo faminto das vilas sobre a abundância de alimento que crescia praticamente a sua porta.

“Assim que souberem da novidade, as pessoas podem vir e colher as frutas todos os anos”, ele pensou com preguiça. “Talvez elas possam inundar um campo ou dois e plantar as sementes. Isso seria maravilhoso! Como seria bom...”

Ele percebeu que Kree tinha começado a gritar e que Filli estava chiando com a voz aguda. Franziu a testa aborrecido. Por que eles o estavam perturbando com aquele barulho?

Lief abriu os olhos e foi então que percebeu, com uma leve surpresa, que não estava mais agachado, mas sim deitado de costas na água.

“Que estranho”, pensou. Ele sorriu e não tentou se mexer. A água estava morna e havia algumas pedras grandes enterradas na lama macia sobre as quais estava deitado, mas elas eram agradavelmente redondas e lisas.

“Como as que vi na trilha”, ele pensou sonhador, empurrando a mão na lama para tocar a pedra com os dedos.

Enquanto acariciava as pedras lisas e mornas, ocorreu-lhe que as pedras do caminho poderiam ter sido tiradas do fundo daquela água morna e agradável. Elas poderiam ter sido tiradas e usadas por alguém que queria formar uma trilha até aquele lugar, para que criaturas grandes e pequenas viessem até ali ver a beleza do lugar e experimentar as frutas.

Alguém. Ou alguma coisa...

O pensamento dançou na névoa dourada que se formou na mente de Lief como uma pequena nuvem escura.

Ele queria afastá-lo, pois estava com tanto sono, tão confortável...

Mas Filli estava gritando, ele também ouvia os grasnados de Kree e o bater de suas asas.

Com um esforço enorme para despertar, Lief virou a cabeça na direção do barulho. Ele viu Jasmine e Barda deitados imóveis perto dele. Os cabelos deles flutuavam como algas na água. Seus olhos estavam fechados e suas expressões, tranqüilas. Seus peitos subiam e desciam devagar.

Seus amigos estavam profundamente adormecidos. Mas como aquilo era possível? Kree voava desesperado em volta da cabeça de Jasmine, roçando o rosto dela com as asas.

“Ele está tentando acordá-la”, Lief pensou sonhador. “Pobre Kree.”

Então, ele ergueu o olhar e viu alguma coisa se movendo entre as árvores, na direção deles.

Era um pássaro gigante, tão alto quanto as árvores. O peito, a cabeça e o pescoço eram brancos como a neve, e as asas eram pretas.

Depressa e em silêncio, o pássaro entrou na água com suas pernas compridas e cor de laranja, erguendo um pé após o outro com delicadeza, quase sem perturbar a superfície espelhada.

Seus olhos fixos e vidrados pareciam pintados em sua cabeça. O pescoço lembrava uma cobra branca e lisa.

Lief tentou gritar, mas a língua estava grossa e pesada, e a garganta parecia inchada. O único som que ele conseguiu soltar foi um gemido rouco.

Ele também não conseguia se mexer. Seus membros pareciam presos na lama do fundo do lago.

O Cinturão. O diamante... para conseguir força.

Sua testa se cobriu de suor quando ele empurrou a mão esquerda até a cintura. Seus dedos se moveram com uma lentidão dolorosa ao lado do fecho, enquanto os olhos aterrorizados observavam o pássaro se aproximar de Jasmine.

Kree voou na direção do gigante, gritando e bicando, mas a enorme criatura nem lhe deu atenção.

A criatura inclinou a cabeça para o lado e examinou a garota indefesa com frio interesse. Então, sem pressa, mergulhou o bico comprido como uma espada na água e começou a afiá-lo numa pedra.

Lief sentiu um arrepio de medo. Seus dedos tocaram o diamante, e uma sensação de formigamento subiu por seu braço e percorreu-lhe todo o corpo. Era como se a força estivesse lutando contra a fraqueza que corria em suas veias.

Uma pedra. Jogue uma pedra.

Lief obrigou os dedos entorpecidos a envolver a pedra que estava acariciando. Ele puxou e a pedra se soltou da lama com um som aspirado.

Suja de lama e pingando água, ela subiu à superfície, então Lief viu o que era.

Era um crânio humano. A lama estava grudada em suas mandíbulas sorridentes. Vermes compridos e finos pendiam do buraco dos olhos e caíam de volta na água, retorcendo-se.

Instintivamente, Lief recuou, deixando cair a coisa horrenda, com nojo.

No momento seguinte, ele compreendeu a terrível realidade.

Eles tinham sido atraídos para um matadouro e, como muitos antes deles, comeram as frutas deliciosas que os fizeram dormir.

Dessa forma, o pássaro gigantesco que vivia entre as árvores podia se aproximar com seus passos rápidos e seu pescoço de serpente. Podia matar e se alimentar, fazendo com que os ossos de suas presas afundassem finalmente na lama macia e morna de seu território.

Muito mais tarde, limpos pelos vermes, polidos pela água lamacenta, os crânios podiam ser usados para enfeitar a trilha — para torná-la ainda mais larga e convidativa.

O pássaro tirou o bico da água e o levantou acima do corpo de Jasmine. Um movimento de sua cabeça e a ponta afiada como uma lâmina atravessaria o coração da garota.

Com um grito estrangulado, Lief ergueu ligeiramente o corpo, apanhou novamente o crânio e o jogou desesperado.

O crânio inofensivo bateu no peito branco gigantesco e caiu na água. O pássaro parou e inclinou a cabeça, observando Lief com o olhar parado e inexpressivo.

Talvez, ele estivesse se perguntando por que aquela presa estava se mexendo ou talvez não estivesse pensando em nada.

Enquanto Lief procurava desajeitadamente outra arma e Kree voava e gritava ao redor de sua cabeça, o pássaro se virou para Jasmine e levantou o bico outra vez.

Um vulto acinzentado saiu de um galho próximo e, de repente, algo se agarrou ao pescoço comprido e branco.

Era Filli, de um jeito que Lief nunca tinha visto, com os pêlos arrepiados e os pequenos dentes à mostra. No momento seguinte, Filli atacou e mordeu com força, fazendo com que uma mancha de sangue aparecesse nas penas brancas.

No mesmo instante, a ave retorceu o pescoço, virou a cabeça e atacou Filli com violência.

Sem soltar nenhum som, Filli caiu na água e ali se debateu, um pequeno vulto coberto de pêlos cinzentos molhados que se movia debilmente.

O pássaro gigante olhou para ele e levantou uma pata imensa para empurrar o animalzinho para a lama.

Os dedos de Lief se fecharam em volta de um osso comprido. Ele o arrancou do chão encharcado e o atirou. O osso girou no ar e atingiu o pé erguido.

Desta vez, o pássaro sentiu dor e soltou um grito profundo. Ele encolheu o pé, virou a cabeça outra vez e observou Lief com o olhar frio.

As penas na parte de trás de seu pescoço se eriçaram. O pássaro abaixou o pé ferido e começou a andar na direção de Lief, pois, aparentemente, tinha decidido que o rapaz se tornara um transtorno.

Lief se esforçou para levantar e gritar, mas seu corpo ainda estava muito pesado, e ele ainda não conseguia emitir nenhum som, além de gemidos baixos e roucos. Ele tinha outro osso nas mãos, mas era pequeno e inútil. Sua espada estava presa às costas e, mesmo com a ajuda do diamante, ele não conseguiu alcançá-la.

O pássaro olhou para ele com uma expressão vazia e ergueu o bico para atacar.

Então, de repente, ouviu-se um rugido vindo da beira do lago, uma lança voou por cima do corpo de Lief e atravessou a asa preta da ave antes de mergulhar na água atrás dela.

O pássaro vacilou e deu um passo para trás. As penas de seu pescoço se arrepiaram ainda mais e ele abriu o bico.

O rugido se repetiu e se ouviu o som de água espirrando para os lados, quando alguém correu no pequeno lago, na direção deles.

— Fora daqui, Zelador do Pomar! — uma voz retumbou. — Essas pessoas são minhas!

Outra lança cortou o ar, desta vez raspando o pescoço do pássaro.

Ele decidiu que aquilo era o suficiente. Virou-se e começou a se afastar depressa, momentos depois já tinha desaparecido entre as árvores.

A fuga da ave foi seguida de uma risada zombeteira. Uma sombra cobriu o rosto de Lief. Ele olhou para cima tonto e apertando os olhos.

Uma figura enorme, usando um gorro de pele se erguia acima dele, tapando a luz do sol. Um braço se estendeu para tirar as lanças da lama.

— Essa foi por pouco — a voz retumbou. — Um instante mais e você estaria morto. Eu venho seguindo vocês desde o raiar do sol, mas vocês conseguiram pregar uma peça em mim com aquele truque no riacho! Se o pássaro preto não tivesse gritado feito louco, eu nunca teria encontrado vocês.

Lief se esforçou, mas não conseguiu falar.

O riso forte se fez ouvir outra vez. A sombra se mexeu e pernas compridas amarradas com tiras de couro passaram por cima de Lief.

Lief observou confuso, quando o estranho gigante levantou Filli da água, examinou-o, cheirou seu pêlo molhado, fez um gesto com a cabeça e o colocou delicadamente no peito de Jasmine.

— Quem... é... você? — Lief conseguiu murmurar.

— Ora, a sua vista ficou tão ruim quanto a sua voz, Lief de Del? Você não me reconhece? — o estranho rugiu, arrancando o gorro de pele.

Alívio e surpresa tomaram conta de Lief quando ele viu os olhos pretos e vivos, as sobrancelhas escuras e retas e, o detalhe mais inconfundível de todos, a cabeça raspada e pintada com círculos vermelhos.

— Lindal! — ele conseguiu sussurrar. — Lindal de Broome! Mas como...? Por quê...? Ah, como é bom ver você!

— Você não vai pensar assim quando ouvir as novidades que tenho para contar — Lindal disse sombria. — Mas isso vai ter de esperar. Primeiro, preciso pôr você e seus amigos idiotas de pé. Precisamos sair daqui, e eu não posso carregar todo mundo.

Ela andou até a árvore mais próxima, espirrando água para os lados e apanhou uma fruta dourada. Depois, voltou até onde Lief se encontrava e se abaixou ao lado dele.

— Coma isto! — ela mandou, tirando parte da casca do fruto e apertando-a contra a boca de Lief.

Ele engasgou e tentou cuspir a polpa amarga.

— Não! — Lindal gritou, pondo as mãos nos lábios dele. — Mastigue e engula! Você quer ficar deitado neste cemitério de ossos, coaxando como um sapo para sempre? A casca é o antídoto para a Fruta do Sono. Você deve ter comido um pouco antes ou estaria tão fraco quanto seus amigos.

Quando viu que Lief tinha entendido, ela tirou a mão e se levantou.

— Agora, um pouco para os outros — ela disse, rindo das caretas que ele fazia ao mastigar a casca de gosto horrível. — Eu vou ter de dar o antídoto para eles aos pouquinhos, pelo menos até que eles comecem a se mexer. Quando você puder ficar em pé, venha me ajudar. O pássaro pode voltar muito zangado, e eu não quero ter de lutar com ele até matá-lo. Dizem que dá azar matar um Zelador do Pomar.

 

O sol já estava baixo no horizonte quando Barda e Jasmine acordaram. Os três companheiros estavam fracos, e Filli estava atordoado e ferido, mas Lindal insistiu para que continuassem.

— Não estamos muito longe da borda da floresta — ela disse. — Quando sairmos dela, vocês podem descansar em segurança.

Recusando-se a dizer qualquer outra coisa, ela começou a andar com passos rápidos.

Lief, Barda e Jasmine não tiveram outra escolha senão acompanhá-la. Com Kree voando à frente deles e Filli deitado imóvel sob a camisa de Jasmine, eles abriram caminho entre um emaranhado de samambaias, grupos de arbustos e amoreiras silvestres com as pernas trêmulas, as cabeças doendo.

Finalmente, quando o sol se pôs, eles chegaram a um terreno aberto onde havia uma grande planície. O céu estava manchado de vermelho e laranja e uma brisa fresca soprava em seus rostos.

O grupo parou exausto e olhou ao redor.

— Esta é minha terra — Lindal contou satisfeita. — Sentem-se e descansem. Vou acender um fogo e caçar alguma coisa para comer.

Lief, Jasmine e Barda estavam tão cansados que desabaram no chão onde estavam.

Quando acordaram, o céu acima deles parecia um lençol de veludo negro coberto de diamantes. O fogo tinha se transformado num amontoado de carvões em brasa e o ar estava tomado pelo cheiro de comida.

Lindal já estava comendo, sentada de pernas cruzadas e mordiscando um osso com prazer.

Quando viu os companheiros acordarem, jogou o osso fora, lambeu os dedos para apanhar uma faca de aspecto estranho e começou a cortar um pedaço de carne que ainda assava nas brasas.

— Aqui — ela disse, passando pedaços quentes e suculentos para todos. — Porco do mato... e dos grandes.

Até Jasmine, que raramente comia carne, caiu sobre a comida cheirosa e saborosa. Havia também um pão achatado, assado nas cinzas da fogueira, e algumas folhas verdes e frescas que Lief nunca tinha visto antes. Elas tinham um sabor forte, mas eram crocantes e estranhamente refrescantes.

— Erva do viajante. Bom para o estômago — Lindal informou, enfiando um punhado de folhas na boca com uma das mãos e batendo na barriga com a outra. — Tive sorte em encontrar algumas. Não há muitas por aqui ultimamente. Antigamente, podiam ser encontradas em qualquer vala.

O entusiasmo dela pareceu um pouco forçado e, de repente, Lief se lembrou de que ela tinha falado em más notícias. Ele percebeu que Lindal estava adiando o momento de contá-las.

Lief se inclinou para a frente, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Barda falou.

— Que refeição, Lindal! — ele elogiou. — Nossos guardas iam ficar com muita inveja. Sem dúvida, eles estão comendo uma refeição horrível de pão velho e peixe seco.

Lindal pareceu preocupada.

“Chegou a hora” Lief pensou, repentinamente assustado. “É alguma coisa sobre os guardas.”

O sorriso desapareceu do rosto de Barda.

— O que aconteceu? — ele perguntou. — Por que vocês estão com essas caras?

— Tem uma coisa que preciso contar a vocês — Lindal murmurou. — Uma coisa ruim. Os seus homens...

Ela curvou a cabeça, esfregou o crânio pintado e então olhou para Barda.

— Seus homens estão todos mortos — ela contou.

Assustada, Jasmine abafou um grito. O rosto de Barda parecia ter se transformado em pedra.

— Como? — Lief se ouviu perguntando e imaginou como sua voz podia parecer tão calma, quando a mente estava tomada pelo sofrimento e horror.

— O acampamento nas redondezas de Ringle foi atacado na noite passada — Lindal informou, olhando fixamente para o fogo. — Todos na cidade ouviram os gritos e acordaram.

— Assim como nós — Lief sussurrou, lembrando-se dos gritos distantes que tinham ouvido na noite escura.

— Muitas pessoas em Ringle pegaram suas armas e correram até o acampamento — Lindal continuou. — Mas, quando chegamos lá, os guardas estavam mortos... e queimando.

— Queimando! — Jasmine sussurrou. Ela olhou para Lief e uma onda de calor o percorreu.

Não podia ser! Aquilo não podia ser verdade.

— Eles devem ter sido pegos de surpresa — Barda disse com dificuldade, molhando os lábios. — Atacados por alguém de quem nunca suspeitariam. Traição...

De repente, ele olhou para Lindal desconfiado.

— E por que você estava em Ringle justo nessa noite, Lindal de Broome? — ele perguntou, tocando o cabo da espada.

— Não preciso responder a essa pergunta, seu idiota orgulhoso — ela respondeu irritada. — Assim como você não precisa dizer por que está viajando pelo interior, e não pela estrada da costa, como o planejado.

Ela o olhou com desprezo.

— Ou porque escolheu bancar o herói nas Florestas do Silêncio enquanto seus homens foram para Ringle ao encontro da morte — ela acrescentou.

Barda se levantou com um rugido e puxou a espada, espalhando o restante de sua refeição no fogo.

Mas Lindal ficou de pé com a mesma rapidez com uma lança nas mãos.

Furiosos, os dois gigantes se encararam por cima do fogo com as armas brilhantes, os corpos avermelhados pela luz dos carvões incandescentes.

— Barda! — Lief gritou. — Lindal! Parem!

Mas nenhum dos dois moveu um músculo sequer.

— Vocês são dois idiotas — Jasmine berrou aborrecida. — Vocês estão assustados e magoados e querem aliviar a dor se virando um contra o outro. Ah, que ótimo!

O olhar de Lindal se virou na direção de Jasmine e segurou a lança com mais força. Durante um momento terrível, Lief achou que a amiga tinha falado demais.

Mas então Lindal relaxou e abaixou a lança, apontando-a para o chão.

— Eu estava passando a noite em Ringle porque a cidade fica no caminho das colinas Os-Mine — Lindal explicou, olhando direto para Barda. — Eu li relatórios sobre tumultos nas colinas. Gritos e incêndios.

“Claro, o Dragão caçando os Granous”, Lief pensou atordoado.

— Viajei pelas colinas várias vezes — Lindal continuou com precisão. — Achei que ajudaria o meu rei se investigasse as agitações e pudesse lhe contar o que aconteceu, quando o encontrasse em Broome. Sou uma cidadã leal de Deltora, não importa o que certas pessoas pensem.

Barda guardou a espada e curvou a cabeça.

— Peço perdão por duvidar de você — ele murmurou. — É que... eu não consigo aceitar o que aconteceu. Pensávamos que nós estávamos em perigo. Um inimigo preparou armadilhas para nós e foi por isso que entramos na floresta. Nunca imaginamos que nossa escolta poderia ser atacada.

Ele balançou a cabeça com o rosto tomado pela dor.

— Aqueles guardas eram homens escolhidos a dedo: ótimos lutadores e soldados! Como eles podem ter sido derrotados?

— Eles não tiveram chance — Lindal disse perturbada. — Nenhuma chance sem o Cinturão de Deltora para protegê-los.

As palavras atingiram Lief como um chicote. Seus olhos ficaram enevoados quando Lindal soltou a lança, abaixou-se para a sacola de couro ao seu lado e tirou um rolo parecido com papel-pergaminho.

— Deve ter sido um ataque repentino e terrível — Lindal comentou, levantando-se devagar com o rolo na mão. — Todo o acampamento estava escurecido, cheio de fumaça e tomado pelo fogo. Os cavalos corriam agitados pelos campos, loucos de medo. Os homens... foram despedaçados. Os pedaços de seus corpos foram amontoados, e o monte estava queimando.

Lief sentiu o peito apertado. Agora, ele sabia a verdade. Seu desejo infantil de liberdade tinha matado doze homens corajosos.

E Rolf, o Capricon.

“Você vai ficar totalmente seguro, Rolf, eu garanto.”

Suas palavras vieram atormentá-lo. Será que Rolf tinha se lembrado delas quando morreu, como quando o povo de Capra tinha morrido, muito tempo atrás? Sendo despedaçado, queimado, aos gritos...

— Foi uma visão horrível — Lindal contou com suavidade, retorcendo a boca. — Nunca vi nada igual, mesmo nos tempos do Senhor das Sombras. Gostaria de poder esquecer.

Barda gemeu baixinho.

— De algum jeito, um homem escapou do fogo — Lindal continuou, olhando para ele. — Um homem com a marca do Senhor das Sombras no rosto.

— Brid — Jasmine murmurou. — Brid...

— Ele estava terrivelmente queimado — Lindal contou. — Havia um grande ferimento em seu peito e ele tinha perdido parte da perna, na altura do joelho. Mas ele era valente. Mesmo assim, conseguiu se arrastar até uma árvore e escrever uma mensagem com o próprio sangue.

Ela mostrou o rolo duro e marrom.

— Eu tirei a casca da árvore com a faca, pois achei melhor que o povo de Ringle não visse isso.

Lief pegou a casca de suas mãos e a desenrolou.

Lief leu horrorizado as palavras rabiscadas.

— É... é impossível — disse ele perturbado. — Brid certamente estava tendo visões por causa da perda de sangue. Talvez... bandidos...

— Nenhum grupo de bandidos poderia fazer o que eu vi — Lindal respondeu. — E algumas das pessoas que correram comigo para o acampamento disseram que viram uma sombra enorme no céu voando para o leste. Eles disseram que se parecia com um antigo dragão.

Lindal deu de ombros.

— Eu disse que eles estavam vendo coisas, que não havia dragões em Deltora, há centenas de anos. Então, cheguei ao lugar do ataque e encontrei a mensagem na árvore. Não sei o que pensar.

— Eu sei — Barda resmungou. — Eu seu muito bem o que pensar. A expressão de Lindal não mudou, mas ela o observou com atenção. Barda se virou para Lief, os punhos fechados.

— Podemos contar a verdade a Lindal de Broome, pois logo todos vão saber — ele disse com amargura. — Acordamos uma coisa que não podemos controlar. O dragão dourado mentiu para você. Ele o enganou com sua conversa sobre fronteiras e juramentos. Assim que recuperou a força, ele veio atrás de nós, sedento de sangue.

O coração de Lief batia com força. As palavras de Lindal que descreveram o que o povo de Ringle tinha visto ainda estavam em seus ouvidos.

“... uma sombra enorme no céu voando para o leste.”

Por que o dragão do topázio voaria para o leste? Por que motivo, com a sua fome saciada, ele não tinha voltado para a sua toca nas colinas Os-Mine?

Ele obrigou os lábios entorpecidos a se mexerem.

— Talvez, eu tenha realmente acordado uma coisa que não posso controlar, Barda — ele concordou. — Mas não acho que esse tenha sido o dragão do topázio. Eu acho... temo... que seja uma coisa pior.

 

Os dias que se seguiram, quando atravessaram a planície deserta com Lindal, foram os piores que Lief já tinha vivido.

Na primeira noite, ele contou aos amigos sobre o medo que sentia. Ele tinha visto a expressão deles ficar mais séria, enquanto o ouviam e compreendiam suas palavras. Ele tinha se sentado e conversado com eles durante horas, tomando decisões, fazendo planos.

Ao raiar do sol do dia seguinte, Kree partiu para Del com uma mensagem para Perdição. Os companheiros sabiam que as notícias sobre a tragédia em Ringle iriam se espalhar rapidamente e que Perdição logo ouviria a respeito. Uma descrição de Brid iria alertá-lo para o fato de que os homens mortos faziam parte da escolta real e que estavam longe da estrada costeira por onde deveriam passar.

E, a menos que fosse informado de outra forma, ele certamente pensaria que Lief, Jasmine e Barda tiveram o mesmo fim.

Lief tinha escrito o bilhete com o coração pesado e usou o código simples que ele e Perdição tinham usado várias vezes antes.

Era estranho caminhar sem ver Kree voando adiante deles. Jasmine estava muito quieta. Ela estava preocupada com Filli, que estava ferido e indiferente, e Lief sabia que ela também tinha medo por Kree, pois os céus não eram mais seguros.

Com tristeza, ele lamentou que seus atos tivessem gerado a situação em que estavam.

Todas as conversas e os planos não tinham aliviado sua culpa ou a raiva que sentia de si mesmo.

Jasmine, Barda e Lindal não disseram uma palavra de censura, mas Lief sabia que tinha falhado com eles, da mesma forma que falhara com os guardas, Rolf e todo o povo do leste, que agora enfrentava não só a fome, mas também o terror.

Muitas vezes, enquanto atravessavam com dificuldade a terra deserta e acidentada durante o dia e deitavam-se debaixo de uma cobertura de estrelas à noite, ele se lembrava da marcha pela trilha estreita ao lado do desfiladeiro da Floresta do Fim com os dedos apertando o grande rubi.

Ele tinha tentado chamar o dragão do rubi e teve certeza de que tinha falhado.

Mas e se não tivesse fracassado?

E se o dragão do rubi realmente tinha acordado? E se ele tivesse acordado em algum esconderijo escuro ali perto e estivesse deitado por algum tempo imóvel, para recuperar as forças?

E se ele tinha se escondido até que Lief e o Cinturão estivessem bem longe das Florestas do Silêncio e somente então rastejasse para a luz com o estômago atormentado pela fome de séculos?

Lief nunca tinha pensado que, ao chamar o dragão do rubi, ele poderia não vir até ele de imediato, como fizera o dragão do topázio.

Nunca passara por sua cabeça que ele poderia simplesmente subir aos céus sem pensar em mais nada, além de matar a fome.

Ele receava que não houvesse outra explicação para o que tinha acontecido no acampamento perto de Ringle.

O dragão do topázio não tinha nada contra os guardas ou Rolf, pois nunca os tinha visto. Se ele só estivesse em busca de comida, certamente teria atacado uma das vilas perto das Colinas. E, se estava procurando o Cinturão de Deltora, teria seguido Lief até as Florestas do Silêncio.

Ele não teria motivos para atacar os guardas.

Mas o dragão do rubi, esfomeado depois do longo sono, atraído para o acampamento pelo cheiro do Capricon, sua presa antiga, teria todos os motivos para fazer isso.

Assim como teria bons motivos para voar para o leste depois de terminar o terrível banquete. Voar para leste de Broome, onde antes ficava Capra, sua conquista de muitos anos antes.

Ou, talvez, voar ainda mais longe, para o lugar chamado o Ninho do Dragão.

Eles tinham chegado ao fim da planície e começaram a escalar uma série de colinas baixas. Muito perto deles, ao norte, as montanhas recortadas que marcavam a fronteira da Terra das Sombras se elevavam escuras e sinistras contra o céu.

Lief, Barda e Jasmine tinham visto no mapa que, do outro lado das colinas, havia uma parte estreita e isolada de Deltora, que se estendia como um dedo magro para dentro do mar do leste. Eles sabiam que, quando chegassem ao ponto mais alto das colinas, veriam a costa e a solitária cidade de Broome.

Mas, mesmo que não soubessem, o comportamento de Lindal lhes mostraria isso. Ela tinha começado a andar mais depressa e, a todo momento, levantava a cabeça e farejava o ar.

Lief sabia que ela estava tentando sentir o cheiro de fogo, pois tinha medo do que poderia ver, quando olhasse para a sua casa.

Ela temia, assim como ele, Barda e Jasmine, que a história tivesse se repetido e que nada tivesse sobrado junto ao mar, além de ruínas carbonizadas.

Mas, quando finalmente olharam para a cidade de Broome, lá embaixo, na mesma hora viram que estava tudo bem.

A cidade estava em pé e intocada, e as bandeiras brilhantes em suas torres brancas e quadradas balançavam ao vento.

Carroças percorriam as ruas, barcos de pesca com velas vermelhas e amarelas flutuavam no porto cintilante.

— O dragão não esteve aqui — Lindal disse. Ela se virou para Lief e o olhou aliviada.

— Está vendo? — ela perguntou. — Todas as bandeiras foram hasteadas. Broome está se preparando para a sua visita. Mas, se passarmos com cuidado, não seremos vistos. O rei não é esperado tão cedo, e os guardas não vão prestar atenção a quatro viajantes empoeirados.

Lief olhou para a cidade cintilante e acolhedora.

Com tristeza, pensou em quantas bandeiras estariam erguidas se o povo de Broome soubesse da ameaça que ele tinha libertado em seu território.

“Pelo menos, não preciso enfrentá-los agora”, Lief pensou quando Lindal começou a descer a colina.

Eles tinham feito seus planos na noite em que Lief tinha confessado seus medos sobre o dragão do rubi e, deixando todo o cuidado de lado, contado para Lindal sobre a viagem para encontrar a Irmã do Leste.

Eles tinham decidido que, se Broome estivesse em segurança, iriam direto para o Ninho do Dragão, para enfrentar qualquer coisa que os esperasse lá.

Lindal iria guiá-los. Isso também tinha sido decidido, ou melhor, Lindal tinha anunciado e se recusado a ouvir qualquer argumento.

— É claro que eu preciso levar vocês — ela gritou. — Eu conheço o caminho para o Ninho do Dragão desde criança. Naquela época, eu estava proibida de ir até lá. Minha mãe ameaçava me dar uma surra, se eu me aproximasse daquele lugar. E assim, é claro, sempre que podia eu chegava tão perto quanto minha coragem permitia. Quando criança, eu era boba, teimosa e não tinha bom senso.

— E o que mudou? — Barda perguntou.

— Ora, agora eu sou grande e posso fazer o que quiser sem medo de apanhar — ela retrucou com uma forte gargalhada. — A menos que você queira lutar comigo, urso velho.

— Não — Barda grunhiu. — Eu poderia perder e isso não seria bom para o orgulho do chefe da guarda.

Mas ele disse a frase sorrindo. Ficou claro para todos que ele tinha ficado muito satisfeito com a companhia de Lindal.

Lief olhou para a costa à esquerda do porto de Broome, para a linha de espuma branca onde as ondas batiam contra os rochedos pontiagudos.

Aos poucos, as montanhas da fronteira da Terra das Sombras se aproximavam da linha branca como se estivessem marchando para o mar. E, finalmente, no ponto mais a leste de Deltora, as rochas da costa e as montanhas se encontravam e se juntavam numa mistura de pedras cinzentas.

Em algum lugar daquela confusão sombria, estava o Ninho do Dragão. Ali, Lief agora tinha certeza, eles encontrariam o dragão do rubi.

A lembrança das palavras rabiscadas apressadamente por Doran, nos Anais de Deltora, estava clara em sua cabeça.

Agora sei por que o Inimigo queria ver os dragões destruídos. Ele tinha um plano que os dragões não aceitariam.

Lief tinha certeza de que, depois de ter saciado sua fome terrível, o dragão do rubi tinha percebido a presença de intrusos em seu território e voara rapidamente para o Ninho do Dragão para destruí-los.

“Talvez agora mesmo ele esteja fazendo o trabalho por nós”, ele pensou, andando com dificuldade atrás de Lindal.

Mas a chama de esperança era pequena e castigada pelos ventos frios do medo. O dragão do rubi estava fora de controle e era apenas um.

Sem o Cinturão para ajudar Lief, ele poderia não conseguir destruir o mal que se escondia no Ninho do Dragão. Então, a raiva do dragão realmente aumentaria e ele atacaria qualquer coisa que atravessasse o seu caminho.

E não demoraria para ficar com fome outra vez.

As sombras se alongavam quando eles chegaram ao fim das colinas e, como Lindal tinha previsto, passaram por Broome sem ser notados.

Quando estavam longe da cidade e o sol tinha começado a se pôr, Lief se virou para olhar para trás.

Ele abafou um grito e ficou parado, olhando, sem conseguir acreditar no que via.

A cidade estava banhada numa luz cor-de-rosa e todo o seu formato tinha mudado. Ela tinha se transformado num lugar de magia e sonhos, com pontas altas e delicadas e domos de vidro brilhantes.

Os muros fortes que a cercavam tinham desaparecido. Em seu lugar, havia bosques de árvores esguias, enfeitadas com globos vermelhos e brilhantes que tiniam levemente quando o vento os agitava, criando uma música doce e suave.

Tão lindo...

Seus olhos se encheram de lágrimas.

— Lief, o que aconteceu? — Jasmine perguntou. Ela também se virou para olhar a cidade, mas não viu nada de diferente.

— Ah... ele está vendo Capra — Lindal disse baixinho. — Com certeza, o topázio do Cinturão o deixa sensível, e dizem que o pôr-do-sol é uma hora perigosa.

Ela pegou Lief pelo braço e o sacudiu.

— Isso não é real, Lief — ela sussurrou. — É uma visão de algo que já morreu e se foi. Pare de olhar para lá.

Lief não se mexeu.

Lindal puxou seu braço com mais força, quase fazendo com que ele perdesse o equilíbrio e então começou a andar rapidamente outra vez, arrastando-o com ela.

Ele tropeçou nos calcanhares dela e balançou a cabeça como se tivesse acordado de um sonho.

— Tão lindo... — ele murmurou.

— Lindo, mas perigoso — Lindal retrucou, continuando a puxá-lo. — Continue a andar. Eu devia ter avisado, mas tinha me esquecido das velhas histórias. Alguns mortais comuns conseguem ver Capra. Eu não conheço ninguém de Broome que já tivesse visto.

Ela sentiu Lief arrastar os pés e apertou mais o seu braço.

— Não se vire de novo — ela avisou. — Ainda bem que você não estava sozinho quando teve essa ilusão. Há histórias que falam de viajantes solitários que morreram de sede de tanto ficar olhando para Capra. Depois que você a viu, ela captura a sua mente e o prende. Pelo menos, é o que o povo conta.

— Uma cidade fantasma! — Barda murmurou fascinado.

— Sim. Eles dizem que é por isso que os últimos Capricons ainda assombram as montanhas, em vez de mudar para Broome ou construir uma nova cidade — Lindal disse, continuando a andar com passos rápidos. — Eles cuidam de Capra ao pôr-do-sol. Os velhos ensinam os jovens a amá-la e a chorar pelo que perderam.

— Mas Capra foi destruída antes da época de Adin! — Jasmine exclamou. — Há quanto tempo foi isso?

— Se os Capricons preferem lamentar o que perderam em vez de viver no presente, isso é problema deles — ela disse com indiferença.

— Eles não podem ser convencidos a agir de maneira diferente. Os poucos que sobraram convivem entre si e desprezam as outras criaturas.

— Rolf não era assim — Lief disse, finalmente conseguindo falar.

— Ele saiu das montanhas e viajou para Del para procurar ajuda para o seu povo.

E assim foi morto por seu pior pesadelo.

O pensamento o feriu como uma flecha.

— O seu amigo teria encontrado bastante ajuda se tivesse ido para Broome — disse Lindal ríspida. — Ele também teria ficado sabendo que você estava a caminho e que ele só teria de esperar. Mas ele não quis entrar em Broome, ah, não!

Ela balançou a cabeça e continuou a andar com os olhos fixos no horizonte.

— Ele não queria se rebaixar e falar com mortais comuns. Só o rei era bom o bastante para merecer a presença de um Capricon!

— Ele foi criado para pensar desse jeito — defendeu Lief. — Os seus ancestrais...

— Os meus ancestrais eram grandes guerreiros que comiam os cérebros de seus inimigos mortos — Lindal contou. — Você acha que devo fazer a mesma coisa?

— Lindal está totalmente certa — Jasmine disparou. — Rolf foi covarde, vaidoso e idiota. Vamos negar isso só porque ele está morto? Eu acho...

— Acho que devemos parar de discutir e acender algumas tochas — Barda interferiu com calma. — Eu quase não enxergo um palmo à frente do nariz e tem alguma coisa escrita numa pedra ali na frente. Acho que é um aviso.

 

A Pedra era muito antiga e tinha o aspecto desagradável de uma lápide. Só o fato de vê-la encheu Lief de medo. Ele teve de fazer um esforço para se aproximar, erguer a tocha e ler as palavras gravadas nela.

— Essa pedra me dá uma sensação ruim — Jasmine murmurou, estremecendo. — Quem será que escreveu isso?

— Ninguém sabe — disse Lindal. — Ela sempre esteve aqui e manteve a maioria das pessoas bem longe do Ninho do Dragão.

— Mas não você — disse Barda de mau humor.

— Eu, não — Lindal admitiu. — Como eu lhe disse, eu era uma criança teimosa e desobediente. Mesmo assim, detestava passar por essa pedra. Eu sempre fechava meus olhos para não vê-la. Não sei bem por que e nem a razão de ter pesadelos com ela depois. As palavras são sinistras, mas...

— Não são só as palavras — Lief ajuntou devagar.

Tinha esfriado muito. Ondas batiam nas rochas muito perto deles. Ele percebeu que se aproximavam do grupo de rochedos que tinham visto das colinas. Um tremor desagradável começara a percorrer o seu corpo. Seu braço ficou insuportavelmente pesado quando ele aproximou a tocha da pedra.

— Não são só as palavras — ele repetiu. — São também os entalhes ao fundo, estão vendo? Essas marcas são os sinais das Irmãs repetidos sem parar. E a inscrição na borda...

Barda se inclinou para a frente, examinou a borda e ergueu os olhos perturbado.

— Desespere-se e morra... — ele murmurou.

Filli choramingou sob a gola de Jasmine, e ela o acariciou para acalmá-lo.

— Toda a pedra é uma maldição — ela disse devagar. — É uma coisa perversa, cheia de ódio.

— Afastem-se dela — Lindal disse abruptamente, dando um passo para trás.

Barda deu um sorriso forçado e seus dentes brancos brilharam no escuro.

— Parece que você era mais corajosa quando criança do que agora, Lindal! — ele brincou.

— Só mais boba — Lindal replicou. — Mas mesmo assim nunca passei pela pedra à noite. O caminho para o Ninho do Dragão é assustador, mesmo durante o dia. À noite...

Lief se afastou da pedra segurando o Cinturão de Deltora com as duas mãos. Aliviado, ele sentiu a mente começar a clarear, e o tremor intenso diminuir.

— Precisamos mesmo parar — ele conseguiu dizer. — Devemos comer e dormir. Vamos continuar amanhã cedo. Tudo parece melhor à luz do dia.

Lindal escolheu um lugar para acampar, bem longe da pedra maligna. O grupo acendeu uma pequena fogueira para se aquecer, alimentou-se e, finalmente, dormiu, mantendo vigilância em turnos.

Mas o sono não foi nada tranqüilo. O barulho das ondas quebrando nas rochas era frio e solitário, e sombras escuras e sem forma assombravam os seus sonhos.

Eles partiram imediatamente depois do amanhecer. Um por um, eles passaram pela pedra fincada no chão sem olhar para ela, observando apenas o mar agitado.

Não havia nenhuma trilha a seguir depois da pedra, somente uma confusão de pedras enormes empilhadas umas sobre as outras.

Lindal guiava o grupo, passando com dificuldade por aquele labirinto, quase sempre rastejando em vez de caminhar de pé. Lief, Barda e Jasmine logo perceberam que, sem ela, ficariam irremediavelmente perdidos.

Kree ainda não tinha voltado. Ninguém tocou no assunto, mas o medo por ele os ameaçava como uma nuvem.

Eles continuaram durante horas a fio e não viram nada além de pedras frias, montanhas altas e o céu. Eles ouviam apenas o bater constante das ondas como se fosse um tambor gigante.

Não havia sinal de vida, tudo estava frio e parado.

Os dedos dos companheiros ficaram adormecidos e pesados. Uma sensação de medo crescia dentro deles, deixando-os desanimados.

“Fiquem desesperados e morram...”

Lief balançou a cabeça e tentou se livrar da lembrança do que vira escrito na pedra. Mas a mensagem se prendia à sua mente como uma parasita perversa que tirava a sua força enquanto espalhava seu veneno.

As montanhas da fronteira da Terra das Sombras tornaram-se maiores e mais próximas. O barulho das ondas ficou mais forte. Eles podiam sentir a água do mar espirrando em seus rostos e o gosto de sal em seus lábios ressecados, mas ainda não viam nada.

E então, finalmente, Lindal parou ao pé de uma grande rocha achatada e inclinada para o alto.

— Aqui — ela disse em voz baixa.

Adiante deles, as pedras desciam formando um amplo vale arredondado espremido entre as montanhas e o mar. A escarpa era tão íngreme que da beirada onde os companheiros estavam não podiam ver o fundo do vale.

As montanhas ameaçadoras e cheias de segredos estendiam-se sobre o vale. Ondas batiam contra uma de suas encostas, enchendo os rochedos de espuma.

Lief imaginou que, durante a maré cheia, o vale devia inundar-se de água, pois as pedras que estavam nas margens eram arredondadas e lisas, e fios de algas ressecadas estavam espalhados sobre elas como fios de cabelos emaranhados.

O Ninho do Dragão...

Lief não precisou olhar para a esmeralda no Cinturão de Deltora, pois sabia que ela estaria tão cinzenta quando as rochas onde estava parado. Ele podia sentir o mal arrastando-se a sua volta como uma névoa pegajosa, fazendo os pêlos de seus braços e de sua nuca se arrepiarem.

Sua mente estava envolta em sombras, o corpo coberto por um suor frio, e o tremor intenso e terrível tinha recomeçado.

Debilmente, ele pôs a mão sobre o Cinturão, desejando que sua magia o ajudasse como já fizera tantas vezes.

O topázio para clarear a mente, a ametista para tranqüilizar e acalmar, o diamante para dar força...

— Este era o meu posto de observação. Nunca cheguei mais perto que isso do Ninho — gritou Lindal para ser ouvida por causa do forte barulho das ondas. — Eu fui uma criança imprudente, mas não totalmente louca.

Lindal curvou os ombros.

— Ah, eu quase tinha esquecido essa sensação! É como se um vapor invisível e repugnante surgisse do vale. Ele faz sua pele formigar.

— É a Irmã do Leste — Lief murmurou quase sem mexer os lábios. — O dragão não esteve aqui ou não foi capaz de destruí-la.

Uma onda enorme ribombou nas rochas com tanta força que as gotículas voaram para o ar, formando uma chuva que caiu sobre o vale e salpicou de água gelada os companheiros.

Abafando um grito, eles desceram com dificuldade para a base do rochedo achatado.

— A maré está subindo — Lindal avisou, sacudindo a água da cabeça pintada como um cachorro. — Levamos mais tempo para chegar aqui do que eu esperava. Temos de andar depressa, antes que o Ninho seja inundado. Do contrário, vamos ter de esperar neste lugar maldito durante horas até que a maré desça outra vez.

Juntos, eles avançaram sob o barulho ensurdecedor das ondas. O vento cruel soprava forte à volta deles e, de vez em quando, eram atingidos pela espuma congelante.

Quando chegaram ao vale, eles se arrastavam de bruços, tremendo e sem fôlego.

Eles rastejaram para a beirada e, quando olharam para baixo, prenderam a respiração assustados.

Aquilo não se parecia em nada com qualquer coisa que eles tivessem imaginado.

O ninho de pedra imenso e redondo estava completamente vazio, com exceção de um vulto pequeno e digno de pena deitado e encolhido no centro.

Lief observou a cabeça escura e cacheada, os braços finos, as pernas estendidas cobertas de pêlos com delicados cascos na ponta.

— Rolf! — ele sussurrou. — É Rolf! O dragão deve tê-lo carregado até aqui. Mas por quê?

— Todas as criaturas gostam de deixar um pouco de sua comida favorita para mais tarde — Lindal comentou, olhando o Capricon com interesse.

Naquele momento, o corpo encolhido de Rolf se mexeu fracamente.

— Ele ainda está vivo — Jasmine sussurrou. Lief sentiu um nó formar-se em seu estômago.

— Não o chame! Não faça nenhum barulho! — Barda avisou preocupado, examinando as montanhas. — O monstro deve estar por perto. Não queremos que perceba a nossa presença.

Num gesto impulsivo, Lief se preparou para descer as paredes íngremes do Ninho. Barda o segurou e o impediu.

— Não, Lief! — ele sussurrou. — Pense! Descendo até lá, vamos ficar indefesos, se o dragão atacar. E não sei se Lindal está certa. Para mim, o Capricon tem o aspecto desagradável de uma isca.

— Isca? — Lief murmurou. — Isca para quê?

— Possivelmente para outros Capricons que andam pelas montanhas. Mas desconfio, ou melhor, receio que a isca seja para nós.

— Você enlouqueceu? — Lief lutou para se livrar das mãos de Barda. — O que o dragão do rubi sabe a nosso respeito?

— Você esqueceu o inimigo que nos enganou, para que entrássemos no desfiladeiro da Floresta do Fim? — Barda perguntou, apertando mais o braço do amigo. — O que esse inimigo fez depois que entramos nas Florestas do Silêncio?

Lief ficou imóvel, mas sua cabeça parecia girar.

— O que poderia ter acontecido se a primeira coisa que o dragão do rubi viu quando acordou tivesse sido o rosto do inimigo, e o primeiro som que ouviu tivesse sido sua voz? — Barda perguntou. — E se eles fizeram algum tipo de acordo? Para nos prender ou matar, e defender a Irmã do Leste?

— Isso é impossível — Lief sussurrou, molhando os lábios.

— Não parece provável — Lindal concordou. — Segundo dizem os velhos moradores, dragões não fazem acordos nem mesmo entre si. E certamente seu inimigo imaginou que vocês iam morrer na Floresta do Fim. Na verdade, vocês quase morreram.

— Ele pode ter imaginado isso, mas não podia ter certeza — Barda disse. — O Senhor das Sombras não suporta que seus servos cometam erros.

Lief balançou a cabeça teimoso.

— O dragão não iria me prejudicar — ele disse. — Não enquanto eu estiver usando o Cinturão de Deltora. E ele nunca iria concordar em defender a Irmã. Nenhum dragão suportaria uma coisa dessas em seu território. Doran disse...

— Esqueça o que Doran disse! — Barda interrompeu. — Quem sabe o que pode ter acontecido com o corpo e o cérebro de um monstro que dormiu centenas de anos?

Barda cerrou os punhos.

— Você não pode ir contra os fatos, Lief! O dragão esteve aqui, mas não tentou encontrar a Irmã e destruí-la. O Ninho não foi perturbado. Não tem uma pedra fora do lugar.

Uma onda gigante bateu contra os rochedos atrás do Ninho, espalhando uma chuva de gotas geladas. Bem abaixo deles, o Capricon se retorcia e choramingava.

— Vocês estão perdendo tempo — Jasmine interferiu irritada. — Essa discussão não tem sentido. Estamos aqui para destruir a Irmã do Leste. Sabemos que ela está em algum lugar do Ninho do Dragão, bem aqui embaixo, escondida entre as pedras. Assim, precisamos entrar no Ninho e procurar. É tudo muito simples.

— Simples! — Barda grunhiu. — Com um dragão escondido e Rolf gemendo e se retorcendo aos nossos pés?

— Ah, acho que vamos ter de tirar Rolf de lá primeiro — Jasmine disse com impaciência. — Do contrário, ele vai nos atrapalhar.

— Lief vai ter de descer para buscá-lo — Lindal disse, espiando para o Capricon choroso. — Seria esperar demais que ele colaborasse com qualquer outra pessoa, mesmo que seja para salvar a própria vida.

Jasmine concordou e se virou para Lief, tirando o rolo de corda que levava no cinto.

— Barda vai descer você, Lief — ela disse. — As pedras nas laterais no Ninho parecem estar soltas demais para agüentar o seu peso. Leve minha corda para Rolf. Então, Barda e Lindal podem puxar os dois para cima.

— Ora, veja só como esse ratinho está dando ordens, urso velho! — ela brincou, dando um cutucão nas costelas de Barda. — Você vai ficar quieto?

— Parece que sim — ele murmurou, enquanto Lief começava a amarrar a corda na cintura. — Acho que não tenho escolha.

 

Como Jasmine temia, não havia lugar seguro para apoiar os pés nas paredes íngremes do ninho. As pedras rolavam para baixo assim que eram tocadas, fazendo Lief oscilar na ponta da corda como um boneco. E, quanto mais ele descia, mais frio ficava e mais medo ele sentia.

“É a Irmã”, ele dizia para si mesmo, lutando para manter a mente aberta. Mas seus dentes começaram a bater e seu coração batia forte no peito como se fosse explodir.

Lief aterrissou desajeitadamente no chão do Ninho, mergulhando quase até os joelhos na forração de pedras soltas. Elas escorregavam debaixo de seus pés, e o mato seco se emaranhava em seus tornozelos, enquanto ele andava aos tropeços na direção de Rolf, com a ponta da corda de Jasmine na mão.

“As pedras vão até o fundo”, ele pensou entorpecido. “Muito, muito fundo. A Irmã do Leste estará muito embaixo? Quanto tempo vamos levar para encontrá-la? Talvez, nem mesmo esteja sob o piso do Ninho. Talvez, esteja nas laterais. E, então, o que vamos fazer?”

Ondas de náusea ameaçavam tomar conta dele. Cada passo era difícil, e ele percebeu que tinha começado a cambalear.

“Esse lugar vai nos derrotar”, ele pensou de repente. “A maldade aqui é muito grande. Ninguém poderia cavar nestas pedras por mais de alguns minutos por vez. Não vamos conseguir.”

Lutando contra o desespero, ele alcançou o corpo encolhido de Rolf e ajoelhou-se ao lado dele.

— Rolf! — ele chamou com voz rouca.

O Capricon sentou-se com um grito abafado. Ele estendeu a mão para Lief e agarrou-se a ele com os imensos olhos violeta cheios de lágrimas de pavor.

— Ah, por que você me abandonou? — ele gemeu. — Os guardas não me protegeram! Você disse que eles iam me proteger, mas não foi o que aconteceu! Ah, os gritos... o sangue... o fogo! Nunca vou esquecer!

— Eu sei, Rolf — Lief murmurou. — Agora, fique quieto.

— O dragão me pegou... me carregou. — De repente, Rolf parou e olhou a sua volta, confuso. — Mas onde estão os seus amigos? — ele guinchou. — Eles não vieram com você?

— Eles estão esperando lá em cima — Lief disse rapidamente. Com dificuldade, ele libertou os braços e começou a prender a corda de Jasmine em volta, da cintura de Rolf.

— Ah! — Rolf cobriu o rosto com as mãos e balançou a cabeça de um lado para o outro. — Ah, o dragão não vai demorar a voltar! Nós precisamos sair daqui!

— Então, fique quieto! — Lief implorou. Ele puxou a corda para se certificar de que estava bem presa e então levantou Rolf. Com as forças que lhe restavam, ajudou-o a chegar até a beira do Ninho.

Jasmine estava parada acima deles vigilante. Barda e Lindal estavam ajoelhados, espiavam por cima da borda do Ninho e seguravam as cordas, prontos para puxar.

Lief fez um sinal e imediatamente eles começaram a puxar.

Rolf olhou para cima quando a corda apertou sua cintura e seus pés deixaram o chão do Ninho. Quando viu o rosto sombrio e os braços estendidos de Lindal acima dele, ele deu um grito.

— Fique quieto! — Lief sussurrou.

— Mas a mulher de Broome está me puxando! — Rolf exclamou horrorizado. — Como vocês deixaram que ela me levantasse? Ela e seu povo são demônios que dançam sobre os restos de Capra! Ela não vale...

— Cale a boca, Rolf! — Lief ordenou irritado.

— Se você quiser, terei o maior prazer em deixar você cair, Capricon — ameaçou Lindal.

Rolf choramingou e fechou a boca com força. Ele se agarrou à corda como um peso morto, enquanto ele e Lief eram alçados devagar por sobre as pedras soltas e escorregadias.

Entretanto, assim que chegaram ao topo, ele foi para longe de Lindal e evitou contato com suas mãos.

— Não me toque, mulher imunda de Broome! — ele tagarelou, arrancando a corda da cintura e jogando-a para o lado como se estivesse envenenada. — Fique longe de mim!

— Com prazer — Lindal disse com desprezo. Barda agarrou o punho da espada.

— Como ousa insultar Lindal que arriscou a vida para salvar você? — ele vociferou, olhando para Rolf com raiva.

Rolf olhou a espada desconfiado e se levantou.

— Meu rei — ele exclamou com a voz trêmula. — O seu homem está me ameaçando!

Mas Lief, ainda caído no chão onde Barda o tinha deixado, sabia que não podia interferir, mesmo que quisesse. Ele estava enjoado e se sentia muito fraco, como se tivesse contraído uma doença grave, e se perguntava como Rolf conseguia se mexer.

Barda deu um passo ameaçador na direção do Capricon encolhido.

— Lindal tem mais força no dedinho do que você em todo o corpo — ele grunhiu. — O cérebro dela é melhor do que o que você vai ter durante toda a vida e um coração maior do que cem iguais a você juntos.

— Puxa, obrigada, Barda — Lindal murmurou, levantando as sobrancelhas. — Apesar de que, agora que estou pensando no assunto, até que não é um elogio tão grande assim.

— Saia da minha vista — ele disse irritado para Rolf, ignorando Lindal. — Vá e esconda o seu ser desprezível do dragão e não nos aborreça mais!

Engolindo em seco e, finalmente, com um olhar de súplica para Lief, ele se afastou e logo desapareceu entre as pedras gigantescas.

— Já vai tarde — Jasmine disse com calma. — Agora podemos trabalhar. Por onde vamos começar?

Lief se sentiu observado por Jasmine e se esforçou para sentar, mas ficou tonto e caiu com um gemido.

Ele ouviu Barda e Jasmine exclamarem e percebeu quando se ajoelharam ao seu lado. Ele tentou se concentrar nos rostos ansiosos que o observavam em meio a uma névoa agitada.

— Eu... eu não sei por onde começar — ele murmurou. — Eu não sei o que fazer. O Cinturão não está me ajudando. O Ninho está dominado pela maldade. Ela nos atinge de todos os lados. É como...

“Fiquem desesperados e morram.”

Outra onda gigante bateu nas rochas. Água gelada caiu como chuva sobre eles e escorreu para o Ninho.

— Temos de tirá-lo daqui — Lief escutou Barda resmungar.

— Não! — Lief conseguiu dizer. — A sensação está passando. Só preciso de um momento para...

— CUIDADO!

O grito alto e aflito de Lindal foi mais forte do que o barulho das ondas. De repente, uma ventania gelada soprou nos rochedos. Uma sombra negra se instalou no céu e bloqueou o sol.

Jasmine e Barda soltaram um grito e se levantaram depressa.

E, quando se mexeram, Lief viu algo horroroso acima dele: uma coisa brilhante, inchada, grande e vermelha.

As asas pontudas da besta cortavam o ar como facas. A massa mirrada de calombos e espinhos que formava a sua cauda se retorcia e batia. Seus pequenos olhos vermelhos, escondidos entre dobras inchadas de pele escamosa, eram os olhos vermelhos de um matador.

“Quem sabe o que pode ter acontecido com o corpo e o cérebro de um monstro que dormiu centenas de anos?”

As palavras de Barda ressoaram na mente de Lief.

Desesperado, ele lutou para se erguer, dominar a tontura e a fraqueza, e procurou a espada.

Garras curvas e negras, inacreditavelmente compridas, atacavam sem piedade. Lief rolou, e a pata do monstro não o atingiu por pouco, raspando nas rochas.

A criatura rugiu furiosa — um som áspero e alto como o de vidro se quebrando. Fogo saltava de suas mandíbulas abertas, um lodo vermelho fervente pingava de suas presas e caía, chiando, nas pedras, fazendo o vapor subir para o céu.

Perdido no meio do vapor, indefeso e sem enxergar, Lief agarrou o Cinturão de Deltora.

Ele fixou o pensamento no grande rubi. Com toda a força, ele fez com que o dragão sentisse o poder da enorme pedra, para que o ouvisse e entendesse.

Mas a besta urrou enraivecida e o atacou outra vez, envolta numa fúria cintilante, vermelha como sangue.

Lief sentiu Jasmine e Barda segurarem seus braços e o puxarem para trás. Ele ouviu as garras afiadas como lâminas rasparem nas rochas novamente e sentiu o sopro quente em seu rosto.

Uma onda atingiu as rochas altas atrás deles como um trovão. A água fria os encharcou e virou vapor no fogo do monstro na mesma hora.

Barda urrava com toda a força de seus pulmões.

— Vamos nos aproximar da água o máximo que pudermos! — ele gritava. — Nossa única chance...

Mas o dragão estava acima deles, golpeando-os, fazendo-os se arrastarem sobre as pedras escorregadias, rolando e rastejando para longe de suas garras e das chamas de seu fogo.

E então, em meio ao véu agitado de vapor, Lief viu o vulto alto de Lindal, firme como uma rocha e com o braço erguido.

— Lindal! — Barda berrou, levantando-se com dificuldade. — Abaixe-se!

Uma lança voou pelo ar, atingiu a cauda agitada do dragão, pulou para longe e caiu inútil no chão.

Lindal não recuou. Outra lança já estava em sua mão e ela a atirou. Desta vez, a arma atingiu o alvo. Sua ponta penetrou a carne macia e clara da barriga do monstro.

A criatura soltou um urro agudo, arrancou a lança do corpo e se voltou para encarar sua atacante.

Todos viram os dentes de Lindal se mostrarem num sorriso selvagem de triunfo.

— Agora! Andem! — ela gritou. Barda hesitou.

— Barda! — Jasmine chamou, puxando o braço dele.

— Não desperdice todo o meu trabalho, seu burro orgulhoso — Lindal rugiu, pegando a última lança. — Vão para a água!

Barda obedeceu com um grunhido. Ele deu as costas para ela, pegou Lief com o braço livre e pulou nas pedras altas onde o mar tinha criado um pequeno lago, as ondas formavam uma chuva contínua e a água corria sem parar.

Eles entraram num espaço entre as rochas e se viraram aterrorizados, bem a tempo de ver Lindal cair encolhida e sangrando debaixo da asa do dragão.

A besta virou a cabeça horrível sobre o pescoço inchado e olhou para o inimigo caído. Ela rugiu e lançou uma rajada de fogo.

As roupas de Lindal se incendiaram, as poças de água a sua volta chiaram e se transformaram em vapor.

Lief e Jasmine gritaram de sofrimento e horror, mas Barda ficou rígido e silencioso como as rochas.

Uma onda gigantesca caiu atrás deles, dessa vez a espuma rolou sobre eles e correu pelas pedras lisas até chegar ao Ninho do Dragão.

A besta rosnou e balançou a cabeça como se quisesse limpar os olhos. De repente, ela virou o pescoço novamente e olhou para cima e para o vapor que girava sobre sua cabeça.

O monstro soltou um grito enfraquecido e ficou de boca aberta, enquanto atirava a língua bifurcada de um lado para outro. Começou a bater com violência as asas que pareciam ser feitas de couro. Seu corpo desajeitado se retorceu como se ele estivesse em pânico, e a cauda espinhenta e curta bateu na rocha cheia de vapor.

Em seguida, repentinamente, o vapor desapareceu como se o vento o tivesse soprado. O coração de Lief deu um pulo quando viu, mergulhando do céu, uma criatura vermelha, grande e cintilante como o sol, com olhos vermelhos como carvões em brasa, asas semelhantes a velas escarlate e uma cauda fina e comprida como um rio de fogo.

— Outro dragão! — Jasmine exclamou. — Outro dragão do rubi!

Mas Lief estava olhando para o Cinturão de Deltora, para a estrela escarlate brilhante em que o rubi tinha se transformado e se perguntava como ele podia ter sido enganado.

— Não — ele gritou. — Não é outro dragão do rubi. O verdadeiro dragão do rubi finalmente chegou.

 

Rosnando, o monstro que estava no chão levantou-se para se defender. Ele agitava as patas no ar e soltava fogo pela boca, mas logo o seu inimigo caiu sobre ele e a batalha terminou em instantes.

Na verdade, não houve batalha, pois a criatura tomada pela fúria que atendera ao chamado desesperado de Lief tinha coração, mente e disposição de dragão, ao contrário de sua cópia de pesadelo que estava no chão.

A cópia podia despedaçar seres humanos frágeis e seu fogo podia queimar sua carne e transformá-la em cinzas, mas não era páreo para a mais antiga e misteriosa besta de Deltora.

Em segundos, ele estava deitado de costas com a garganta rasgada e ensangüentada, o corpo arquejante, enquanto a vida o abandonava.

O dragão do rubi levantou a cabeça, estendeu as asas e rugiu num triunfo selvagem, enquanto as ondas ribombavam nas rochas e espirravam água que caía como chuva.

Ele lambeu os lábios como se saboreasse o sal e virou a grande cabeça para o mar.

E, enquanto o eco de seu rugido ainda ressoava como trovão nas Montanhas, ele se lançou ao ar e se foi.

Trêmulos, Lief, Barda e Jasmine arrastaram-se para fora do esconderijo. Eles estavam ensopados e com muito frio. Tremendo, viraram-se na direção das ondas e olharam para cima.

O dragão do rubi era uma mancha vermelha vívida contra o céu azul. Água escorria de suas escamas e na sua boca brilhava um peixe prateado que logo desapareceu. O dragão virou e mergulhou outra vez.

— Ele vai voltar — Barda murmurou. Ele começou a andar pelas pedras na direção do lugar onde Lindal tinha caído.

A besta escarlate estava caída, atravessada no caminho. Suas escamas tinham escurecido, mas todos podiam ver que ainda vivia.

Ao se aproximarem com cuidado, seus olhos minúsculos se abriram e se fixaram neles com uma expressão de ódio impotente.

— Fiquem longe dele — Jasmine recomendou. — Ele nos atacaria mesmo agora, se pudesse.

O monstro sibilou como se estivesse com nojo e, de repente, as dobras grossas de seu corpo deformado começaram a se levantar e rolar como ondas do mar, enquanto as escamas brilhavam como água escura iluminada pela Lua.

Os companheiros saltaram para trás, assistindo ao monte de carne se dobrar sobre si mesmo e derreter.

Logo depois, ele tinha sumido e tudo o que restou nas pedras foi o corpo despedaçado de Rolf, o Capricon.

— Rolf! — Lief sussurrou. E, de repente, uma série de fatos que o tinham confundido passou a fazer sentido.

A forma como ele o tinha exposto aos Granous, a cor embaçada do rubi quando não havia nenhum inimigo à vista, a sensação de coração mais leve quando os guardas se afastaram com Rolf, a tropa tomada de surpresa apesar da vigilância noturna, o fato de terem poupado a vida dos cavalos, a falta de surpresa de Rolf ao ver Lindal com eles, a força do Capricon depois de ter estado no Ninho...

E, acima de tudo, o falso dragão, feio como um pesadelo.

Os lábios pálidos de Rolf se esticaram num sorriso perverso.

— Seus idiotas! — ele disse. — Como foi fácil enganar vocês! Um dedo foi um preço pequeno a pagar por sua confiança, ao contrário do sacrifício de meu orgulho.

A cabeça dele rolou de um lado para o outro.

— Vocês pensam que não sei como me desprezavam? — ele gemeu. — Eu! O que podia ter transformado e despedaçado vocês a qualquer momento, se não fosse por esse maldito Cinturão.

Ele parou ofegante e lambeu os lábios manchados de espuma.

— Eu sabia que tinha de esperar até vocês chegarem à casa da Irmã, o centro do meu poder, onde nem mesmo o Cinturão poderia salvá-los. Assim, eu fiquei observando e me controlei, mesmo quando a horrível mulher de Broome se juntou a vocês e senti vontade de atacar.

As mãos dele se retorceram como se quisesse pegar o ar. Seu ódio era quase visível e parecia pingar dos poros da pele e pairar ao seu redor como uma nuvem venenosa.

— Eu esperava que todos viessem para a armadilha juntos, mas fui enganado e isso não aconteceu — ele disse irritado. — Assim, esperei mais uma vez até que vocês estivessem todos reunidos de novo, pois eu dei minha palavra de honra que nenhum de vocês escaparia à minha ira como escaparam no desfiladeiro da Floresta do Fim.

Ele voltou a sorrir com maldade.

— Vocês nunca suspeitaram de mim — ele sussurrou. — Sou esperto demais para vocês.

— Você não parece tão esperto agora — Barda disparou, olhando para Rolf.

— O seu monstro perverso foi a minha morte, mas existem outros, outros servos do mestre, que esperam por vocês. Essa é sua última batalha. Vocês são o lixo do mundo. E é uma batalha que nunca vão vencer.

— O que o Senhor das Sombras lhe prometeu que o fez trair o seu rei? — Lief perguntou furioso.

— Você não é meu rei, Lief de Del — Rolf respondeu, mal-educado. — O que você sabia sobre mim antes de eu me jogar em seu caminho nas colinas Os-Mine? O que você sabia de Rolf, o filho mais velho do clã Dowyn, herdeiro das terras de Capra?

— Eu não sabia nada — Lief respondeu em voz baixa. — Mas como poderia saber, Rolf? Vocês se mantiveram escondidos, longe de tudo, mesmo do povo de Broome.

— Não discuta com ele, Lief — Jasmine murmurou. — A verdade não é importante para ele. A mente dele se alimenta de orgulho e raiva, nada mais.

— Você não se importava nem um pouco comigo, rei — Rolf continuou. — Mas o mestre me conhecia e conhecia o meu valor. A voz do mestre chegou até mim, certo dia ao pôr-do-sol, enquanto eu estava encolhido nas Montanhas, olhando para Capra. O mestre compreendeu minha grandeza. Ele me deu presentes preciosos em agradecimento por meus serviços. E muitos outros virão... muitos outros...

Ele respirava com dificuldade agora, e seus maravilhosos olhos cor de violeta estavam vidrados.

— Eu sirvo ao mestre — ele sussurrou. — Por ele, vou proteger a Irmã do Leste. E em troca ele me tornou um grande feiticeiro. Posso fazer coisas com que meus ancestrais nunca sonharam. Posso mudar minha aparência, posso voar, posso despedaçar e queimar meus inimigos e ouvi-los gritar como merecem.

Barda praguejou baixinho e fechou os punhos com força, mas não disse nada nem se mexeu.

— Quando o mestre triunfar, vou ser o soberano do leste, como sempre foi meu direito — Rolf murmurou. — Capra vai reviver, e os desprezíveis estranhos que vivem em minhas terras se transformarão em cinzas e pó debaixo dos meus pés.

Ele sorriu novamente, o seu olhar ficou parado e as suas mãos inquietas ficaram imóveis. Ele estava morto.

Os companheiros se viraram enojados.

Uma onda atingiu os penhascos e jogou água sobre eles, enquanto a espuma escorria entre as pedras.

E, durante o curto momento de silêncio entre uma onda e outra, todos ouviram um leve gemido.

Os companheiros arrastaram-se na direção do barulho.

Lindal tinha rolado para uma abertura funda entre duas rochas. O lado esquerdo de seu rosto mostrava a marca vermelha deixada pelo golpe do dragão. Suas roupas estavam escurecidas e seu braço esquerdo, coberto de bolhas. Seus olhos vidrados piscavam, e ela estava totalmente molhada.

Mas estava viva!

— Ajudem-me a sair desse maldito buraco! — ela pediu, levantando o braço ferido. — Sempre que uma onda bate nas pedras, a água escorre por cima de mim como um rio. Estou congelada!

— Pare de se queixar — Barda gritou, levantando-a contente. — Na última vez em que a vimos, você estava queimando como uma tocha. As ondas devem ter apagado o fogo.

Lindal se levantou vacilante e trêmula e olhou ao redor com indiferença. Estava claro que ela não compreendia o que tinha acontecido.

Ela viu o corpo de Rolf caído nas pedras e franziu a testa confusa. Depois, olhou para cima e havia medo em seu rosto.

— O dragão está voltando! — ela avisou. — Está voando direto para nós.

E realmente o dragão estava vindo, voltando do mar com o corpo escarlate molhado e cintilante recortado contra o céu.

Filli começou a guinchar inquieto, pois não queria mais saber de dragões.

Lindal procurou as lanças, lembrou-se de que as tinha usado e lançou-se para a frente, procurando-as no chão desesperada.

— Minhas lanças! — ela murmurou. — Preciso encontrar...

Barda a segurou pelo braço e delicadamente a puxou para trás.

— Fique quieta, Lindal — ele disse. — Vamos explicar tudo mais tarde. Agora, fique quieta e espere.

O grupo recuou e se encostou nas rochas mais próximas, pois não havia outro lugar para onde ir.

Uma sombra enorme voou acima deles. Eles se curvaram sob o vento das asas poderosas e, de repente, esse vento parou. Então, eles olharam para cima.

O dragão tinha pousado na beira do Ninho e os observava com calma.

“Fale com ele”, Lief disse a si mesmo. “Ele está esperando.”

Mas sua boca estava seca e ele teve a impressão de que suas costas tinham se tornado parte das rochas. Ele reuniu coragem e se obrigou a dar um passo à frente.

O dragão do rubi olhou para ele e pareceu sorrir.

— Pois então! — ele disse com a voz baixa e sussurrante. — Você veio, rei de Deltora, usando o grande rubi do meu território. Exatamente como Doran prometeu.

— Sim — Lief respondeu. — Eu procurei você e finalmente o encontrei.

— Ou eu encontrei você! — o dragão respondeu. Seus olhos faiscaram e sua língua bifurcada se retorceu. — Há maldade neste lugar. Maldade e intenções perversas. Você permitiu que um intruso entrasse no meu território enquanto eu dormia.

Lief sentiu um estremecimento de medo, mas se obrigou a continuar a encarar os olhos vermelhos do dragão.

— Não fui eu — ele respondeu. — Isso aconteceu há muito tempo. Você pode destruir esse mal do mesmo jeito que destruiu seu guardião?

Ele olhou para o corpo desfalecido de Rolf caído nas pedras.

— Vamos ver — disse o dragão do rubi. — Chegue mais perto, mas venha sozinho.

Lief fez o que ele pediu, embora seus joelhos estivessem tremendo e ele quase não conseguisse ficar em pé.

— Mais perto — o dragão falou.

Lief se aproximou tanto que poderia tocar as escamas cintilantes e vermelhas do pescoço do monstro se estendesse a mão. O cheiro do animal encheu suas narinas, um cheiro forte de metal quente misturado ao de folhas queimadas.

O rubi no Cinturão de Deltora brilhava como fogo.

O dragão abriu as asas e fechou os olhos.

Durante um longo momento, ele pareceu se aquecer ao calor do rubi. E, quando abriu os olhos outra vez, Lief teve a impressão de que eles estavam mais profundos e escuros do que antes.

— Agora — o dragão disse.

Com as asas ainda abertas, ele mergulhou no vale chamado de Ninho do Dragão. Com as patas poderosas, ele começou a tirar as pedras do centro e jogá-las para longe, às centenas.

 

As pedras atingiam os companheiros como uma forte geada. Eles cobriram as cabeças com os braços e se afastaram, aos tropeços, da beira do ninho.

Eles pararam a uma distância segura e viram, atordoados, as pedras saírem voando do buraco e se amontoarem em grandes pilhas ao redor da beirada. Mas, aos poucos, seu entusiasmo desapareceu e foi substituído por um mau pressentimento.

À medida que o dragão cavava mais fundo e as pilhas de pedras ficavam maiores, o ar ficava mais pesado e respirar, mais difícil. A luz estava enfraquecendo e um som estranho e tilintante foi ficando mais forte.

Ondas gigantes quebravam na praia e às vezes jogavam sua espuma sobre o topo das rochas altas, escorrendo para baixo como cachoeira entre as pedras.

Mas nem as ondas conseguiam evitar que o terrível canto da Irmã do Leste subisse do vale.

Era um canto cheio de desespero, destruição e sofrimento, de monotonia e morte, feito de notas baixas, persistente, penetrante, cruel.

E, o que era pior, estranhamente familiar.

Filli choramingava debaixo da gola da jaqueta de Jasmine, que estava agachada e com a expressão sombria como se sentisse dor. Lindal sentara nas pedras com ar desanimado, a cabeça baixa e as mãos tapando os ouvidos.

— Eu não sabia — Barda murmurou. Lief olhou para ele e viu que o rosto do amigo estava coberto de suor.

— Tenho ouvido esse som toda a minha vida — Barda balbuciou quase sem mexer os lábios. — Mas não desse jeito, que me deixasse perceber que ele estava ali. Agora sei que nunca me deixou, como o sol no meu rosto ou o ar que respiro. Eu nem sabia que era um som. Achava que era o som do silêncio.

— Sim — Lief respondeu.

E então ambos perceberam que as pedras tinham parado de cair e que não havia mais movimento dentro do buraco.

“Onde estão vocês? Venham até onde estou!”

Lief não sabia se tinha ouvido a voz do dragão em sua mente ou se o chamado era real.

“Isso não importa”, ele disse a si mesmo devagar. “Só importa que eu tenho de ir.”

Lief se obrigou a andar através do ar pesado e subir uma pilha de pedras. Rastejou até o alto e espiou o Ninho do Dragão.

A superfície ampla e achatada do Ninho se transformara em um buraco aberto na base de um imenso funil.

O dragão tinha cavado até chegar à rocha nua. Naquele momento, ele estava agachado nas pedras, no centro do buraco, olhando para o objeto que tinha encontrado.

O objeto se parecia com um ovo brilhante e pulsante. Sua cor era de um amarelo que lembrava algo venenoso e tinha um brilho tão intenso que feria os olhos.

Seu canto contínuo e baixo penetrava nos ouvidos de Lief e dele saía uma maldade tão intensa que a garganta do jovem rei se fechou e sua pele queimava.

“Venha até onde estou ou estou perdido.”

A voz do dragão estava muito fraca. Lief viu aterrorizado que a cor viva de suas escamas estava enfraquecendo.

Sem hesitar, sem pensar e nem mesmo ouvir os gritos de alarme de Barda, ele saltou sobre a beirada.

Tropeçando ofegante, escorregou pela pilha de pedras para dentro do buraco onde o dragão se encontrava.

Ele pousou pesadamente perto das patas traseiras do monstro, fazendo com que várias pedras batessem nas asas dobradas do dragão e cobrissem parte de sua cauda.

A criatura não disse nada nem se mexeu. Sua pele não estremeceu, suas patas não se moveram. Seu corpo enorme estava totalmente imóvel.

Lief tentou ficar em pé, mas constatou que não conseguia. O canto sinistro da Irmã do Leste enchia seus ouvidos e sua mente. Seu poder maligno o atingiu e o derrubou no chão.

Ele não podia ficar em pé nem podia andar, e o dragão estava lá, rígido, cada vez mais pálido. A Irmã do Leste continuava a cantar e a espalhar seu terror e seu veneno.

Lief começou a rastejar com cuidado para não encostar no corpo do dragão ao passar.

Respirando com dificuldade, ele se esforçou para chegar perto do objeto amarelo perverso que irradiava terror e desespero, sabendo apenas que precisava ser destruído — pois, se isso não acontecesse, tudo estaria perdido.

Mas, pouco a pouco, sua força estava se esgotando. Seus braços e pernas tremiam como se ele tivesse sido acometido por uma febre alta, apesar de estar gelado até os ossos. Ele temia que logo ficasse totalmente incapaz de se mover.

Quase sem perceber o que fazia, ele apertou o grande rubi no Cinturão de Deltora com as mãos.

Um calor forte atravessou seus dedos e subiu por seus braços. Lief percebeu que um novo som se misturava ao canto suave da Irmã.

Era uma batida lenta e pesada como a de um tambor. E, aos poucos, Lief se deu conta de que era o coração do dragão.

“O Cinturão... Estamos ligados pelo poder do Cinturão”, ele pensou vagamente.

As palavras de Doran passaram por sua mente como um relâmpago:

“O rei, que usa o Cinturão de Deltora, é a única salvação do reino agora...”

Seguindo um impulso que não entendeu, mas não questionou, Lief tirou uma das mãos do Cinturão e a colocou na pele fria e seca do dragão.

No mesmo instante, seus dedos formigaram e seu coração inchou no peito, quando ele sentiu o poder correr em seu corpo como uma torrente violenta do rubi até o monstro.

O dragão se moveu, as escamas desbotadas sob a mão de Lief brilharam e recuperaram a cor escarlate. Espantado, Lief viu a mancha de cor se espalhar sob sua mão, firme e rapidamente, até que todo o corpo do dragão se tornou brilhante como o próprio rubi.

O dragão levantou a cabeça, seus olhos vermelhos faiscaram e as batidas de seu coração ressoaram como trovões.

O poder do rubi continuava a passar por Lief e ele não conseguiria tirar a mão das escamas cintilantes, mesmo que quisesse.

Ele não podia se mexer nem falar, mas sabia que isso não era importante.

Ele estava fazendo tudo o que tinha de fazer. Ele era o elo, a ligação entre o dragão e o rubi, o talismã antigo tirado das profundezas das terras do dragão.

O dragão fixou os olhos vermelhos no ovo amarelo que pulsava a sua frente, e soltou um rugido, um estreito jato de fogo saiu de sua boca e envolveu em chamas o ovo.

O dragão rugiu novamente e várias vezes mais. Banhado em fogo, o ovo ficou vermelho e depois branco. Incandescente, cintilou e queimou como uma estrela perversa.

Ouviu-se um barulho forte quando sua superfície rachou, e seu canto fraco se transformou num grito agudo. Durante um longo momento, o tempo pareceu parar.

Então, o dragão sibilou como uma cobra gigante e, debaixo de uma rajada de calor tão intensa que Lief teve medo de que sua própria carne fosse derreter, a Irmã do Leste faiscou com uma chama branca, simplesmente se retorceu e se transformou em pó.

Lief fechou os olhos ardentes. Como se tivesse sido libertada de repente, sua mão soltou o dragão. Lief ainda estava imóvel, deitado na rocha. Sua mente estava vazia e ele tinha consciência apenas das ondas que batiam acima dele e, a seu lado, do pulsar lento e regular do coração do dragão.

Quando Lief tornou a abrir os olhos, descobriu que não estava mais com o dragão do rubi e nem mesmo na beira do Ninho do Dragão.

Ele podia ouvir as ondas, mas elas pareciam estar um pouco distantes. Lief estava deitado sobre uma coberta, diante de uma fogueira aconchegante.

Do outro lado, Barda, Jasmine e Lindal conversavam em voz baixa. A luz do fogo tremulava em seus rostos, mas seus corpos estavam escondidos pela sombra e, atrás deles, havia uma luz fraca e estranhamente manchada de rosa.

No início, Lief ficou com medo de que sua visão tivesse sido prejudicada pelo calor do fogo do dragão, então olhou para cima.

A primeira coisa que viu foi Kree pousado na ponta de uma rocha recortada. Finalmente, ele tinha voltado!

Então, como água fresca, um grande alívio tomou conta de seu ser. Então, ele percebeu que o céu atrás de Kree estava cheio de listras vermelhas e laranja e suspirou agradecido.

Não havia nada de errado com sua visão... o sol estava se pondo.

Ele se sentou com cuidado, sentindo o corpo todo dolorido.

— Você aproveitou bem a sua noite de sono — Jasmine comentou. — Nós o tiramos daquele buraco e o carregamos para longe dos espirros de água muitas horas atrás. — A voz dela era a de sempre, mas seu rosto se mostrava muito aliviado.

— O dragão... — Lief comentou, estremecendo. Sua garganta estava seca e dolorida. Ele aceitou o cantil que Jasmine lhe ofereceu e bebeu agradecido.

— O dragão está no mar pescando mais peixes — Barda contou, colocando de lado a pequena caixa com que estivera brincando. — Duvido que o vejamos antes do amanhecer.

— Ainda bem — disse Jasmine. — A besta me deixa nervosa. Ela parece gostar da aparência dos meus cabelos ainda mais do que o outro dragão.

Lindal riu, acariciando a cabeça raspada.

— Ele não gosta da minha nem um pouco... — ela brincou. — ...porque não pode vê-la! Esse é exatamente o motivo pelo qual é tradição para as mulheres do meu povo raspar totalmente a cabeça.

Então, ela ficou séria.

— Antigamente, havia muitos dragões escarlate no leste. Ouvi histórias assustadoras sobre eles desde que eu era muito pequena. Agora, pelo menos um deles voltou.

— Sem ele, a Irmã do Leste não poderia ter sido destruída — Lief lembrou.

— Eu sei — Lindal concordou pensativa. — E sei disso porque, com o fim da Irmã, os campos do leste vão ser abundantes outra vez, e os pescadores não vão mais voltar para a praia com as redes vazias depois de três dias no mar. Isso é motivo de grande alegria.

Lindal suspirou.

— Mas, ainda assim, tudo tem seu preço. O dragão respeita você, Lief, pois você usa o Cinturão de Deltora. Mas tenho medo do que pode acontecer ao povo de Broome, quando você for embora. As montanhas do norte ficam muito longe de...

Jasmine soltou uma exclamação de aborrecimento e Barda cutucou as costelas de Lindal, que tapou a boca com a mão.

— As montanhas do norte? — Lief exclamou, com o coração pesado.

— O quê?...

Evitando o olhar de Lief, Barda pegou a pequena caixa e começou a virá-la nas mãos outra vez.

— Não! — Lief protestou. — Vocês precisam me contar. Vocês sabem de alguma coisa que eu não sei?

— Queríamos esperar até que você estivesse mais forte antes de contar — Jasmine murmurou. — Queríamos que descansasse só esta noite e que não pensasse em...

— Não pensasse em quê? — Lief rugiu, e depois gemeu e esfregou a garganta dolorida.

Jasmine olhou para Barda. Ele deu de ombros hesitante.

— Enquanto você dormia, enterramos Rolf como deve ser feito — ele contou. — Mas antes disso...

— Antes disso, examinei o corpo — Jasmine informou com calma, pegando um papel amarelado e dobrado de um dos seus muitos bolsos.

— Barda não concordou, mas encontrei isto costurado na barra do casaco do Capricon.

Ela entregou o papel a Lief. Ansioso, ele o desdobrou e, como esperava, era a segunda parte do mapa de Doran.

Jasmine se inclinou para apontar o símbolo da Irmã.

— Aqui — ela disse. — É por esse motivo que vamos para as montanhas do norte.

— Portal das Sombras — Lief murmurou, lendo o nome do lado do símbolo. — Nunca ouvi falar dele nem o vi nos mapas.

— Eu também não — disse Barda sombrio, franzindo a testa diante da caixa em suas mãos. — Não parece um lugar agradável.

— O Ninho do Dragão também não era — Jasmine retrucou. — Mas, no Ninho do Dragão, transformamos os versos escritos no mapa numa mentira. Não só encontramos a primeira Irmã, como também a destruímos. E sobrevivemos! É nisso que devemos pensar nesta noite, Lief.

Ela tirou o pedaço de mapa de Lief e o guardou novamente.

— Nesta noite, precisamos descansar e relaxar — ela disse com firmeza. — De que adianta se preocupar com o futuro? Ele vai chegar rapidinho.

— Isso mesmo! — Lindal concordou animada. — Agora é hora de comemorar, não de resmungar e se preocupar com coisas que não podem ser mudadas. Vamos para Broome de uma vez! — ela disse, levantando-se de um salto. — Vamos chegar de surpresa, é melhor assim. Detesto discursos e desfiles. Banhos quentes, peixe ensopado, boa cerveja, música alta e amigos para nos dar tapas nas costas. O que mais uma pessoa pode querer?

— Nada — Barda respondeu com satisfação.

Houve um leve clique e ele gritou surpreso. De alguma forma, seus dedos grossos tinham encontrado um fecho escondido na caixa esculpida. Uma pequena vareta de madeira polida agora saía do cubo, muito perto do topo.

Ansioso, Barda empurrou a tampa da caixa, mas ela continuou firmemente fechada. Ele ergueu os olhos e tinha uma expressão engraçada de desânimo no rosto.

— Tem mais de uma fechadura! — ele exclamou. — Maldito brinquedo!

Lindal riu ruidosamente.

— Jogue isso fora, urso velho! — ela exclamou. — Você nunca vai resolver esse problema.

— Vou, sim — Barda resmungou, enfiando a caixa no bolso. — Vou resolver essa charada, nem que seja a última coisa que eu faça.

Lief sentiu um calafrio na espinha, estremeceu e se perguntou o que estaria acontecendo.

“Estou com frio”, ele disse a si mesmo. “Estou com frio e cansado, é só isso.”

— Lief! — Jasmine gritou, pulando para cima e chutando o fogo para apagá-lo. — Você está pronto?

O rosto de Jasmine estava voltado para ele, cheio de amor e risos. Barda e Lindal erguiam-se atrás dela, brigando entre si como crianças.

O coração de Lief lhe mandou um aviso.

“De que adianta se preocupar com o futuro? Ele vai chegar rapidinho.”

— Sim — ele respondeu, sorrindo e se levantando. — Vamos lá! Estou pronto.

 

 

                                                                                                    Emily Rodda

 

 

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