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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O NOME DA ROSA - p.2 / Umberto Eco
O NOME DA ROSA - p.2 / Umberto Eco

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O NOME DA ROSA

Parte II

 

TERCEIRO DIA

DE LAUDAS A PRIMA

 

Onde se encontra um pano sujo de sangue na cela de Berengário, desaparecido, e é tudo.

 

Enquanto escrevo sinto-me cansado, como me sentia naquela noite, ou melhor, naquela manhã. Que dizer? Depois do ofício, o Abade incitou a maior parte dos monges, já em alarme, a procurar por toda a parte, sem resultado.

 

Quando estavam para chamar as laudas, procurando na cela de Berengário, um monge encontrou debaixo do enxergão um pano branco sujo de sangue. Mostraram-no ao Abade, que viu nele tenebrosos auspícios. Estava presente Jorge, que, ao ser informado, disse: «Sangue!», como se a coisa lhe parecesse inverossímil. Disseram-no a Alinardo, que abanou a cabeça e disse:

 

- Não, não, à terceira trombeta a morte vem pela água...

 

Guilherme observou o pano e depois disse:

 

- Agora tudo é claro.

 

- Então, onde está Berengário? - perguntaram-lhe.

 

- Não sei - respondeu.

 

Ouviu-o Aymaro, que elevou os olhos ao céu e sussurrou a Pedro de Sant Albano:

 

- Os ingleses são assim.

 

Cerca de prima, quando já não havia sol, foram enviados servos a explorar os pés da escarpa, a toda a volta das muralhas. Voltaram a terça, não tendo encontrado nada.

 

Guilherme disse-me que não podíamos ter feito melhor. Era preciso esperar os eventos. E dirigiu-se à forja entretendo-se em cerrada conversa com Nicolau, o mestre vidreiro.

 

Eu sentei-me na igreja, junto ao portal central, enquanto se celebravam as missas. Assim devotamente adormeci, e longo tempo, porque parece que nós, jovens, temos mais necessidade de sono que os velhos, que já dormiram tanto e se preparam para dormir pela eternidade.

 

TERCEIRO DIA

TERÇA

 

Onde Adso reflete no scriptorium sobre a história da sua ordem e sobre o destino dos livros.

 

Saí da igreja menos cansado mas com a mente confusa, porque o corpo não goza um repouso tranqüilo senão nas horas noturnas. Subi ao scriptorium, pedi licença a Malaquias e comecei a folhear o catálogo. E enquanto lançava olhares distraídos às folhas que me passavam debaixo dos olhos, observava na realidade os monges.

 

Fiquei impressionado com a calma e com a serenidade com que eles estavam absorvidos pelo seu trabalho, como se um seu irmão não fosse afanosamente procurado por todo o recinto e outros dois não tivessem já desaparecido em circunstancias pavorosas. Aqui se vê disse para comigo, a grandeza da nossa ordem: durante séculos e séculos homens como estes viram irromper as turbas dos bárbaros, saquear as suas abadias, precipitar os reinos em vértices de fogo, e todavia continuaram a ler a meia voz palavras que se transmitiam há séculos e que eles transmitiam aos séculos vindouros. Continuaram a ler e a copiar quando, se aproximava o milênio, porque não haviam de continuar a fazê-lo agora?

 

No dia anterior, Bêncio tinha dito que estaria disposto a cometer um pecado para ter um livro raro. Não mentia nem gracejava. Um monge deveria decerto amar os seus livros com humildade, querendo o seu bem e não a glória da sua própria curiosidade: mas aquilo que é para os leigos a tentação do adultério e para os eclesiásticos seculares a ambição de riquezas é, para os monges, a sedução do conhecimento.

 

Folheei o catálogo e dançou diante dos meus olhos uma festa de títulos misteriosos: Quinti Serení de medicamentis, Phaenomena, Líber Aesopi de natura animalium. Líber Aethici peronymi de cosmographia, Libri tres quos Arculphus episcopus Adamnano excipiente de loas sanctis ul-tramarínis designavit conscribendos, Libellus Q. lulii Hilaríonis de origine mundi, Solini Polyhisíor de situ orbis terrarum et mirabili-bus, Almagesthus...... Não me espantava que o mistério dos delitos girasse à volta da biblioteca. Para estes homens votados à escrita, a biblioteca era ao mesmo tempo a Jerusalém celeste e um mundo subterrâneo nos confins entre a terra incógnita e os infernos. Eles eram dominados pela biblioteca, pelas suas promessas e pelos seus interditos. Viviam com ela, por ela e talvez contra ela, na esperança culpável de violar um dia todos os seus segredos. Porque não haviam de se arriscar à morre para satisfazer uma curiosidade da sua mente, ou matar para impedir que alguém se apropriasse de um seu segredo ciosamente guardado?

 

Tentações, decerto, soberba da mente. Bem diverso era o monge escrivão imaginado pelo nosso santo fundador, capaz de copiar sem compreender, abandonado à vontade de Deus, escrevente porque orante e orante enquanto escrevente. Porque já não era assim? Oh, não eram decerto apenas aquelas as degenerescências da nossa ordem! Tinha-se tornado demasiado poderosa, os seus abades rivalizavam com os reis, não tinha acaso em Abbone o exemplo de um monarca que com ar de monarca procurava resolver controvérsias entre monarcas? O próprio saber que as abadias tinham acumulado era agora usado como moeda de troca, razão de soberba, motivo de ostentação e prestígio; tal como os cavaleiros ostentavam armaduras e estandartes, os nossos abades ostentavam códices iluminados... E tanto mais (loucura! ) quanto agora os nossos mosteiros tinham perdido até a palma da sabedoria: agora as escolas catedrais, as corporações urbanas, as universidades copiavam livros, talvez mais e melhor do que nós, e produziam-nos novos - e talvez fosse esta a causa de tantas desventuras.

 

A abadia em que me encontrava talvez fosse ainda a última a ostentar uma certa excelência na produção e reprodução da sabedoria. Mas, talvez precisamente por isso, os seus monges já não se satisfaziam com a obra santa da cópia, queriam também eles produzir novos complementos da natureza, impelidos pela cobiça de coisas novas. E não se apercebiam, intuí confusamente naquele momento (e sei-o bem hoje, já encanecido pelos anos e pela experiência), que, assim fazendo, eles sancionavam a ruína da sua excelência. Porque, se aquele novo saber que eles queriam produzir refluísse livremente para fora daquelas muralhas, nada mais distinguiria aquele sagrado lugar de uma escola catedral ou de uma universidade citadina. Permanecendo oculto, pelo contrário, mantinha intactos o seu prestígio e a sua força, não era corrompido pela disputa, pela arrogância quodlibetal que quer submeter ao exame do sic et non todo o mistério e toda a grandeza. Eis, disse para comigo, as razões do silêncio e da obscuridade que circundam a biblioteca, ela é reserva de saber mas só pode manter esse saber intacto se impedir que chegue a qualquer um, até aos próprios monges. O saber não é como a moeda, que permanece fisicamente íntegra mesmo através das trocas mais infames: ele é antes, como um fato belíssimo, que se consome através do uso e da ostentação. Não é assim de fato o próprio livro, cujas páginas se esfarelam, cujas tintas e ouros se tornam opacos se demasiadas mãos lhe tocam? Aí está, via a pouca distância de mim Pacífico de Tivoli, que folheava um volume antigo cujas folhas se tinham como que colado umas às outras devido à umidade. Molhava o indicador e o polegar com a língua para folhear o seu livro, e a cada toque da sua saliva aquelas páginas perdiam vigor, abri-las queria dizer dobrá-las, oferecê-las à severa ação do ar e do pó, que roeriam as finas veias em que o pergaminho se encrespava no esforço e produziriam novos mofos lá onde a saliva tinha amolecido mas enfraquecido o canto da folha. Como um excesso de doçura torna mole e inábil o guerreiro, este excesso de amor possessivo e curioso predisporia o livro à doença destinada a matá-lo.

 

Que se deveria fazer? Cessar de ler, somente conservar? Eram justos os meus temores? Que diria o meu mestre?

 

Vi, não muito longe, um rubricador, Magnus de Iona, que tinha acabado de esfregar o seu velo com a pedra-pomes e o amolecia com o gesso, para depois lhe alisar a superfície com a plaina. Um outro a seu lado, Rábano de Toledo, tinha fixado o pergaminho à mesa, marcando-lhe as margens com pequenos furos laterais de ambos os lados, entre os quais agora riscava com um estilete metálico linhas horizontais finíssimas. Dentro em pouco as duas folhas encher-se-iam de cores e de formas, a página tornar-se-ia como um relicário, fúlgida de gemas encastoadas naquele que seria depois o tecido devoto da escritura. Aqueles dois irmãos disse para comigo, estão vivendo as suas horas de paraíso na terra. Estavam produzindo novos livros, iguais àqueles que o tempo havia depois de destruir inexoravelmente... Portanto, a biblioteca não podia ser ameaçada por nenhuma força terrena, era portanto uma coisa viva... Mas, se era viva, porque não devia abrir-se ao risco do conhecimento? Era isto o que queria Bêncio e, provavelmente, o que tinha querido Venancio?

 

Senti-me confuso e temeroso com os meus pensamentos. Talvez eles não conviessem a um noviço que devia apenas seguir com escrúpulo e humildade a regra durante os anos futuros - o que depois fiz, sem me pôr outras perguntas, enquanto à minha volta o mundo se afundava numa tempestade de sangue e de loucura.

 

Era a hora da refeição matinal, e dirigi-me à cozinha, onde já me tinha tornado amigo dos cozinheiros, que me deram alguns dos melhores bocados.

 

TERCEIRO DIA

SEXTA

 

Onde Adso recebe as confidências de Salvador, que não se podem resumir em poucas palavras, mas que lhe inspiram muitas e preocupantes meditações.

 

Enquanto comia vi, evidentemente reconciliado com o cozinheiro, Salvador, que a um canto devorava com satisfação um pastel de carne de ovelha. Comia como se nunca tivesse comido na sua vida, sem deixar cair sequer uma migalha, e parecia dar graças a Deus por aquele fato extraordinário.

 

Piscou-me o olho e disse-me, na sua linguagem bizarra, que comia por todos aqueles anos em que tinha jejuado. Interroguei-o. Contou-me a sua infância penosa numa aldeia em que os ares eram maus, as chuvas muito freqüentes e os campos apodreciam enquanto tudo era viciado por mortíferos miasmas. Houve, assim o entendi, aluviões durante estações e estações, a ponto de os campos já não terem regos e com um moio de semente se fazer um sesteiro, e depois o sesteiro ainda se reduzia a quase nada. Até os senhores tinham rostos brancos como os pobres, embora, observou Salvador, os pobres morressem mais do que os senhores, talvez (observou com um sorriso) porque eram em maior número... Um sesteiro custava quinze soldos, um moio sessenta soldos, os pregadores anunciavam o fim dos tempos, mas os pais e os avós de Salvador recordavam-se que também tinha sido assim de outras vezes, de modo que daí tinham tirado a conclusão que os tempos estavam sempre para acabar. E assim, quando haviam comido todas as carcaças das aves e todos os animais imundos que se podiam encontrar, correu voz que alguém na aldeia começava a desenterrar os mortos. Salvador explicava com muita habilidade, como se fosse um histrião, como costumavam fazer aqueles «homeni malissimi», que escavavam com os dedos debaixo da terra, nos cemitérios, no dia seguinte às exéquias de alguém. «Gnam!», dizia, e cravava os dentes no seu pastel de ovelha, mas eu via no seu rosto o trejeito do desesperado que comia o cadáver. E depois, não contentes com escavar em terra consagrada, uns piores do que os outros, como ladrões de estrada, agachavam-se na floresta e surpreendiam os viandantes. «Zás!», dizia Salvador, a faca na garganta, e «Gnam!» E os piores de todos atraiam as crianças com um ovo ou uma maçã e davam cabo delas, mas, como Salvador me precisou com muita seriedade, cozendo-as primeiro. Contou o caso de um homem que foi à aldeia vender carne cozida por pouco dinheiro, e ninguém conseguia capacitar-se de tamanha sorte; depois o padre disse que se tratava de carne humana, e o homem foi desfeito em pedaços pela multidão enfurecida. Mas, nessa mesma noite, um qualquer da aldeia foi escavar a fossa do morto e comeu das carnes do canibal, de modo que, quando foi descoberto, a aldeia condenou-o também à morte.

 

Mas Salvador não me contou só esta história. Com palavras truncadas, empenhando-me eu em recordar o pouco que sabia de provençal e de dialetos italianos, contou-me a história da sua fuga da aldeia natal e o seu vagabundear pelo mundo. E no seu relato reconheci muitos que já tinha conhecido ou encontrado ao longo do caminho, e muitos outros que conheci depois reconheço-os agora, de modo que não tenho a certeza de não lhes atribuir, à distância no tempo, aventuras e delitos que foram de outros, antes dele e depois dele, e que, agora, na minha mente cansada, se aplanam para desenhar uma única imagem precisamente pela força da imaginação que, unindo a recordação do ouro à do monte, sabe compor a idéia de uma montanha de ouro.

 

Freqüentemente durante a viagem tinha ouvido Guilherme nomear os simples, termo com que alguns do seus irmãos designavam não só o povo mas ao mesmo tempo os iletrados. Expressão que me pareceu sempre genérica, porque nas cidades italianas tinha encontrado homens de comércio e artesãos que não eram clérigos mas que não eram iletrados, embora os seus conhecimentos se manifestassem através do uso da língua vulgar. E, devo dizer, alguns dos tiranos que governavam naquele tempo a península eram ignorantes em ciência teológica, e médica, e lógica, e em latim, mas não eram decerto simples ou ingênuos. Por isso, creio que também o meu mestre, quando falava dos simples, usava um conceito bastante simples. Mas, indubitavelmente, Salvador era um simples, vinha de uma terra castigada, durante séculos, pela penúria e pelas prepotências dos senhores feudais. Era um simples mas não era um tolo. Aspirava a um mundo diverso, que, no tempo em que fugiu de casa dos seus, pelo que me disse, assumia o aspecto do país de Cocanha, onde, das árvores que transpiram mel, crescem formas de queijo e salpicões perfumados.

 

Impelido por esta esperança, como se se recusasse a reconhecer este mundo como um vale de lágrimas, em que (como me ensinaram) até a injustiça foi predisposta pela providência para manter o equilíbrio das coisas, cujos desígnios freqüentemente nos escapam, Salvador viajou por várias terras, do seu Monferrate natal até à Ligúria, e subindo depois da Provença às terras do rei de França.

 

Salvador vagueou pelo mundo, mendigando, roubando aqui e ali, fingindo-se doente, pondo-se ao serviço transitório de algum senhor, seguindo de novo a via da floresta, da estrada principal. Pelo relato que me fez, vi-o associado àqueles bandos de vadios que depois, nos anos que se seguiram, vi cada vez mais vaguear pela Europa: falsos monges, charlatões, embusteiros, corcundas, pedintes e maltrapilhos, leprosos e estropiados, andarilhos, vagabundos, cantores ambulantes, clérigos sem pátria, estudantes itinerantes, batoteiros, malabaristas, mercenários inválidos, judeus errantes, escapados aos infiéis com o espírito incapacitado, loucos, fugitivos do degredo, malfeitores de orelhas cortadas, sodomitas, e entre eles artesãos ambulantes, tecelões, caldeireiros, cadeireiros, amoladores, empalhadores, pedreiros, e ainda canalhas de toda a espécie, batoteiros, malandros, malandrões, patifes, velhacos, guiões, burlões, zés-ninguém, pedintes, e canônicos e padres simomacos, e aldrabões e gente que então vivia à custa da credulidade alheia, falsários de bulas e selos papais, vendedores de indulgências, falsos paralíticos que se deitavam à porta das igrejas, vadios em fuga dos conventos, vendedores de relíquias, perdoadores, adivinhos e quiromantes, necromantes, curandeiros, falsos mendigos, e fornicadores de toda a espécie, corruptores de monjas e de raparigas com enganos e violências, simuladores de hidropisia, epilepsia, hemorróidas, gota e chagas, e até de loucura melancólica. Havia-os que aplicavam emplastros pelo corpo para fingirem úlceras incuráveis, outros que enchiam a boca com uma substancia cor de sangue para simularem escarros de tísica, patifes que fingiam ser débeis de um dos membros, usando bengalas sem necessidade e imitando a epilepsia, sarnas, bubões, inchaços, aplicando vendas, tinturas de açafrão, usando ferros nas mãos, faixas na cabeça, enfiando-se fedorentos nas igrejas e deixando-se cair de repente nas praças, cuspindo baba e revirando os olhos, deitando pelas narinas sangue feito de sumo de amoras e vermelhão, para arrancar comida ou dinheiro às gentes atemorizadas que recordavam os convices dos santos padres à esmola: divide com o esfomeado o teu pão, leva para casa quem não tem teto, visitemos Cristo, acolhamos Cristo, vistamos Cristo, porque como a água purga o fogo assim a esmola purga os nossos pecados.

 

Mesmo depois dos fatos que narro, ao longo do curso do Danúbio, vi e ainda vejo muitos destes charlatões, que tinham os seus nomes e as suas subdivisões em legiões, como os demônios: capões, lotori, protomédicos, pauperes verecundi, cangalheiros, esfomeados, cruzeiros, chagados, relicários, enfatinhados, apalpadores, incchi specrini, cochini, esfarrapados e atarantados, acconi e admiracti, muruadores, tremelicantes, vira-latas, falsos-bordões, desdentados, lacrimejantes e farsantes.

 

Era como um lodo que escorria pelas veredas do nosso mundo, e entre eles insinuavam-se pregadores de boa-fé, hereges à procura de novas presas, agitadores de discórdia. Tinha sido precisamente o papa João, sempre temeroso dos movimentos dos simples que pregassem e praticassem a pobreza, que se tinha lançado contra os pregadores mendicantes, que, segundo ele, atraíam os curiosos arvorando estandartes pintados com figuras, pregavam e extorquiam dinheiro. Estaria o papa simoníaco e corrupto, na verdade, quando equiparava frades mendicantes, que pregavam a pobreza, a estes bandos de deserdados e de rapinadores? Eu, naqueles dias, depois de ter viajado um pouco pela península italiana, já não tinha as idéias claras: tinha ouvido frades de Altopascio que, pregando, ameaçavam excomunhões e prometiam indulgências, absolviam de roubos e fratricídios, de homicídios e perjúrios contra o desembolso de dinheiro, davam a entender que no seu hospital se celebravam por dia até cem missas, para as quais recolhiam doações, e que, com os seus bens, dotavam duzentas raparigas pobres. E tinha ouvido falar de frade Paulo Coxo, que na floresta de Rieri vivia como eremita e se gabava de ter tido diretamente do Espírito Santo a revelação de que o ato carnal não era pecado: assim, seduzia as suas vítimas, que chamava suas irmãs, obrigando-as a entregar ao açoite a carne nua, fazendo em terra cinco genuflexões em forma de cruz, antes de apresentar as suas vítimas a Deus e de pretender delas aquilo a que chamava o beijo da paz. Mas seria verdade? E que coisa ligava estes eremitas, que se diziam iluminados, aos frades da vida pobre que percorriam as estradas da península fazendo verdadeiramente penitência, malvistos pelo clero e pelos bispos cujos vícios e roubos fustigavam?

 

Pelo relato de Salvador, tal como se misturava com as coisas que eu já sabia por mim, estas distinções não apareciam à luz do dia: tudo parecia igual a tudo. Por vezes parecia-me um daqueles pedintes aleijados de Turena de que fala a fábula , os quais, ao aproximarem-se dos despojos milagrosos de São Martinho, se puseram em fuga temendo que o santo os curasse, tirando-lhes assim a fonte dos seus lucros, e o santo, sem piedade, agraciou-os antes de chegarem à fronteira, punindo-os da sua malvadez ao restituir-lhes o uso dos membros. Outras vezes, pelo contrário, o rosto ferido do monge iluminava-se de luz dulcíssima quando me contava como, vivendo entre aqueles bandos, tinha escutado a palavra dos pregadores franciscanos, como ele clandestinos, e tinha compreendido que a vida pobre e errante que levava não devia ser tomada como uma sombria necessidade mas como um gesto alegre de dedicação, e tinha começado a fazer parte de seitas e grupos penitenciais cujos nomes estropiava e cuja doutrina definia de modo bastante impróprio. Dai deduzi que tinha encontrado patarinos e valdenses, e talvez cátaros, arnaldistas e humilhados, e que, vagueando pelo mundo, tinha passado de grupo em grupo, assumindo gradualmente como missão a sua condição de errante e fazendo pelo Senhor aquilo que antes fazia pelo seu ventre.

 

Mas como e até quando? Pelo que compreendi, uns trinta anos antes, ele tinha-se agregado a um convento de menoritas na Toscana e ai tinha endossado o saio de São Francisco, sem tomar ordens. Ali, creio, tinha aprendido o pouco latim que falava, misturando-o com os falares de todos os lugares em que, pobre sem pátria, tinha estado e de todos os companheiros de vagabundagem que tinha encontrado, desde os mercenários das minhas terras aos bogomilos dálmatas. Ali se tinha entregue a uma vida de penitência, dizia (penitenciagite, citava-me com olhos inspirados, e de novo ouvi a fórmula que tinha intrigado Guilherme), mas, segundo parece, também os frades menores junto de quem estava tinham idéias confusas, porque, irados contra o canônico da igreja vizinha, acusado de roubos e outras ações nefandas, invadiram-lhe um dia a casa e fizeram-no rolar pelas escadas, de maneira que o pecador morreu, e depois saquearam a igreja. Por isto, o bispo enviou homens armados, os frades dispersaram-se, e Salvador vagueou longo tempo pela alta Itália com um bando de fraticelli, ou melhor, de menoritas mendicantes sem outra lei ou disciplina.

 

Refugiou-se então na região de Toulouse, onde lhe aconteceu uma estranha história, enquanto se inflamava ao ouvir o relato das grandes empresas dos cruzados. Uma massa de pastores e de gente humilde, em grande procissão, reuniu-se um dia para atravessar o mar e combater contra os inimigos da fé. Chamaram-lhes pastorelli. De fato, o que eles queriam era fugir da sua terra maldita. Havia dois chefes, que lhes inculcaram falsas teorias, um sacerdote, que tinha sido privado da sua igreja devido à sua conduta, e um monge apóstata da ordem de São Bento. Estes tinham feito perder a cabeça àqueles ingênuos a tal ponto que, correndo em bandos atrás deles, até rapazes de dezesseis anos, contra a vontade dos pais, levando consigo apenas uma sacola e um bordão, sem dinheiro, abandonando os campos, os seguiam como um rebanho e formavam uma grande multidão. Então, já não seguiam nem a razão nem a justiça, mas apenas a força e a sua vontade. Encontraram-se todos juntos, finalmente livres e com uma obscura esperança de terras prometidas, como que os embriagou. Percorriam as aldeias e as cidades apoderando-se de tudo, e se um deles era preso assaltavam as prisões e libertavam-no. Quando entraram na fortaleza de Paris para fazer sair alguns dos seus companheiros que os senhores tinham mandado prender, pois que o preboste de Paris tentava opor resistência, feriram-no e atiraram-no pelos degraus da fortaleza e quebraram as portas do cárcere. Depois alinharam-se em posição de batalha no prado de Saint-Germain. Mas ninguém ousou fazer-lhes frente, e saíram de Paris dirigindo-se para a Aquitania. E matavam todos os judeus que iam encontrando e despojavam-nos dos seus bens...

 

- Porquê os judeus? - perguntei a Salvador.

 

E ele respondeu-me:

 

- E porque não?

 

E explicou-me que toda a vida tinham ouvido os pregadores que os judeus eram os inimigos da cristandade e acumulavam os bens que a eles lhes eram negados. Perguntei-lhe se não era porém verdade que os bens eram acumulados pelos senhores e pelos bispos, através das décimas, e que, portanto, os pastorelli não combatiam os seus verdadeiros inimigos. Respondeu-me que, quando os verdadeiros inimigos são demasiado fortes, é preciso então escolher inimigos mais fracos. Refleti que, por esse motivo, os simples são assim chamados. Só os poderosos sabem sempre com grande clareza quem são os seus verdadeiros inimigos. Os senhores não queriam que os pastorelli pusessem em perigo os seus bens, e foi portanto uma grande sorte para eles que os chefes dos pastorelli insinuassem a idéia de que muitas das riquezas estavam entre os judeus.

 

Perguntei quem tinha metido na cabeça à multidão que era preciso atacar os judeus. Salvador não se recordava. Creio que, quando se reúnem tais multidões seguindo uma promessa e pedindo de imediato alguma coisa, nunca se sabe quem fala no meio deles. Pensei que os seus chefes tinham sido educados nos conventos e nas escolas episcopais, e falavam a linguagem dos senhores, embora a traduzissem em termos compreensíveis a pastores. E os pastores não sabiam onde estava o papa, mas sabiam onde estavam os judeus. Em suma, tomaram de assalto uma alta e sólida torre do rei de França, onde os judeus, assustados, tinham acorrido a refugiar-se em massa. E os judeus que saíam por baixo das muralhas da torre defendiam-se corajosa e tenazmente, lançando lenha e pedras. Mas os pastorelli pegaram fogo à porta da torre, torturando os judeus barricados com o fumo e o fogo. Os judeus, não podendo salvar-se, preferindo matar-se a morrer às mãos dos não circuncisos, pediram a um deles, que parecia o mais corajoso, que os matasse com a espada. Ele consentiu, e matou quase quinhentos. Depois saiu da torre com os filhos dos judeus, e pediu aos pastorelli para ser batizado. Mas os pastorelli disseram-lhe: «Tu fizeste um tal massacre entre a tua gente e agora pretendes livrar-te da morte?», e fizeram-no em pedaços, poupando as crianças, que mandaram batizar. Depois dirigiram-se para Carcassonne, perpetrando muitas e sangrentas rapinas pelo caminho. Então o rei de França apercebeu-se que eles tinham passado os limites e ordenou que se lhes opusesse resistência em todas as cidades por onde passassem e se defendessem inclusivamente os judeus como se fossem homens do rei...

 

Porque é que o rei se tornou tão solícito para com os judeus naquela altura? Talvez por ter receio daquilo que os pastorelli poderiam fazer em todo o reino e que o seu número crescesse demasiado. Então sentiu ternura até pelos judeus, quer porque os judeus eram úteis ao comércio do reino quer porque agora era preciso destruir os pastorelli, e era necessário que todos os bons cristãos achassem razão para chorarem sobre os seus delitos. Mas muitos cristãos não obedeceram ao rei, pensando que não era justo defender os judeus, que sempre tinham sido inimigos da fé cristã. E em muitas cidades a gente do povo, que tivera de pagar usura aos judeus, sentia-se feliz, porque os pastorelli os puniam pela sua riqueza. Então, o rei ordenou sob pena de morte que não se desse ajuda aos pastorelli. Reuniu um numeroso exército e atacou-os, e muitos deles foram mortos, outros escaparam pela fuga e refugiaram-se nas florestas, onde pereceram à mingua. Em pouco tempo foram todos aniquilados. E o representante do rei capturou-os e enforcou-os aos vinte e trinta de cada vez nas árvores mais altas, para que a vista dos seus cadáveres servisse de exemplo eterno e mais ninguém ousasse perturbar a paz do reino.

 

O fato singular é que Salvador me contou esta história como se se tratasse de uma virtuosíssima empresa. E, de fato, continuava convencido que a multidão dos pastorelli se tinha agitado para conquistar o sepulcro de Cristo e libertá-lo dos infiéis, e não me foi possível fazer-lhe crer que esta belíssima conquista já tinha sido feita, no tempo de Pedro, o Eremita e de São Bernardo e sob o reinado de Luís, o Santo, de França. De qualquer modo, Salvador não foi para a terra dos infiéis, porque teve de se afastar o mais depressa possível das terras francesas. Passou pela província de Novara, disse-me, mas sobre o que então aconteceu foi muito vago. E finalmente chegou a Casale, onde conseguiu que o acolhessem no convento dos menoritas (e creio que aqui tinha encontrado Remígio), precisamente no tempo em que muitos deles, perseguidos pelo papa, mudavam de saio e procuravam refúgio em mosteiros de outra ordem, para não acabarem por ser queimados. Como de fato nos tinha contado Ubertino. Por causa das suas longas experiências em muitos trabalhos manuais (que tinha feito com fins desonestos quando errava livremente e com fins santos quando errava por amor de Cristo), Salvador foi logo escolhido pelo despenseiro como seu ajudante. Eis porque há muitos anos estava naquele sitio, pouco interessado nos fatos da ordem, muito na administração da cave e da despensa, livre de comer sem roubar e de louvar o Senhor sem ser queimado.

 

Esta foi a história que dele ouvi, entre duas dentadas, e perguntei-me o que teria ele inventado e o que teria calado.

 

Olhei-o com curiosidade, não pela singularidade da sua experiência mas antes precisamente porque o que lhe tinha acontecido me parecia um epítome esplêndido de tantos eventos e movimentos que tornavam fascinante e incompreensível a Itália daquele tempo.

 

Que tinha emergido daquela conversa? A imagem de um homem de vida aventurosa, capaz até de matar um seu semelhante sem dar conta do seu próprio delito. Mas, embora naquele tempo uma ofensa à lei divina me parecesse igual a qualquer outra, começava já a compreender alguns dos fenômenos de que ouvia falar, e compreendia que uma coisa é o massacre que uma multidão, arrebatada quase ao êxtase e trocando as leis do diabo pelas do Senhor, podia cometer, e outra coisa é o delito individual perpetrado a sangue-frio, no silêncio e na astúcia. E não me parecia que Salvador pudesse ter-se manchado com um crime semelhante.

 

Por outro lado, queria descobrir alguma coisa sobre as insinuações feitas pelo Abade, e estava obcecado pela idéia de frei Dolcino, de quem não sabia quase nada. E no entanto o seu fantasma parecia adejar sobre muitas conversas que tinha ouvido naqueles dois dias.

 

Assim, perguntei-lhe à queima-roupa:

 

- Nas tuas viagens nunca conheceste frei Dolcino?

 

A reação de Salvador foi singular. Arregalou os olhos, se acaso pudesse tê-los ainda mais arregalados, benzeu-se repetidas vezes, murmurou algumas frases entrecortadas, numa linguagem que daquela vez, verdadeiramente não entendi. Mas pareceram-me frases de negação. Até então tinha-me olhado com simpatia e confiança, diria com amizade. Naquele instante olhou-me quase com rancor. Depois, com um pretexto qualquer, foi-se embora.

 

A partir de agora não podia resistir mais. Quem era este frade que incutia terror a quem o ouvia nomear? Decidi que não podia ficar mais tempo subjugado pelo meu desejo de saber. Uma idéia me atravessou a mente. Ubertino! Ele próprio tinha pronunciado aquele nome, na primeira noite em que o encontramos, ele sabia tudo das vicissitudes claras e obscuras dos frades, fraticelli e outras raças daqueles últimos anos. Onde podia encontrá-lo aquela flora? Certamente na igreja, mergulhado na oração. E foi ali, visto que gozava de um momento de liberdade, que me dirigi.

 

Não o encontrei, e não o encontrei mesmo até à noite. E assim fiquei com a minha curiosidade, enquanto aconteciam os outros fatos que devo agora narrar.

 

TERCEIRO DIA

NONA

 

Onde Guilherme fala a Adso do grande rio herético, da Junção dos simples na igreja, das suas dúvidas sobre a cognoscivilidade das leis gerais, e quase por acaso conta como decifrou os sinais necrománticos deixados por Venancio.

 

Encontrei Guilherme na forja, trabalhando com Nicolau, ambos bastante absorvidos pelo seu trabalho. Tinham disposto sobre o balcão muitos minúsculos discos de vidro, talvez já prontos para serem inseridos nas juntas de um vitral, e tinham reduzido alguns, com os instrumentos adequados, à espessura desejada. Guilherme experimentava-os, pondo-os diante dos olhos. Nicolau, por seu lado, estava dando instruções aos ferreiros para que construíssem a forquilha em que os vidros melhores deveriam ser depois encastoados.

 

Guilherme resmungava irritado, porque, até àquele momento, a lente que mais o satisfazia era cor de esmeralda, e ele, dizia, não queria ver os pergaminhos como se fossem prados. Nicolau afastou-se para vigiar os ferreiros. Enquanto se atarefava com os seus pequenos discos, contei-lhe o meu diálogo com Salvador.

 

- O homem teve várias experiências – disse -, talvez tenha estado realmente com os dolcinianos. Esta abadia é um verdadeiro microcosmo; quando tivermos cá os legados do papa João e frei Miguel o quadro estará realmente completo.

 

- Mestre - disse-lhe -, eu já não compreendo nada.

 

- A propósito de quê, Adso?

 

- Primeiro, acerca das diferenças entre grupos heréticos. Mas isso pergunto-vo-lo depois. Agora estou preocupado com o próprio problema da diferença. Tive a impressão de que, falando com Ubertino, vós tentastes demonstrar-lhe que são todos iguais, santos e hereges. E, ao invés, falando com o Abade, vós esforçáveis-vos por lhe explicar a diferença entre herege e herege, e entre herege e ortodoxo. Isto é, vos censuráveis a Ubertino que considerasse diferentes aqueles que no fundo eram iguais, e ao Abade que considerasse iguais aqueles que no fundo eram diferentes.

 

Guilherme pousou por um instante as lentes sobre a mesa.

 

- Meu bom Adso - disse -, procuremos fazer distinções, e distingamos então nos termos das escolas de Paris. Então, dizem por lá, todos os homens têm a mesma forma substancial, ou engano-me?

 

- Decerto - disse, orgulhoso do meu saber – são animais racionais e se distinguem por serem capazes de rir.

 

- Muito bem. Porém, Tomás é diferente de Boaventura, e Tomás e gordo enquanto Boaventura é magro, e até pode acontecer que Ugaccione seja mau enquanto Francisco é bom, e Aldemaro é fleumático enquanto Agilulfo é bilioso. Ou não?

 

- Sem dúvida, é assim.

 

- Então isso significa que há identidade, em homens diferentes, quanto à sua forma substancial e diferença quanto aos acidente, ou melhor, quanto às suas terminações superficiais.

 

- É, sem dúvida alguma, assim.

 

- E então, quando digo a Ubertino que a mesma natureza humana, na complexidade das suas operações, preside tanto ao amor do bem como ao amor do mal, procuro convencer Ubertino da identidade da natureza humana. Quando depois digo ao Abade que há diferença entre um cátaro e um valdense, insisto na variedade dos seus acidentes. E insisto nisso porque acontece que se queima um valdense atribuindo-lhe os acidentes de um cátaro e vice-versa. E quando se queima um homem queima-se a sua substancia individual e reduz-se a puro nada aquilo que era um concreto ato de existir, bom em si pelo mesmo, pelo menos aos olhos de Deus, que o mantinha no ser. Parece-te uma boa razão para insistir sobre as diferenças?

 

- Sim, mestre - respondi com entusiasmo. - Agora compreendi porque falais assim, e aprecio a vossa boa filosofia!

 

- Não é a minha - disse Guilherme -, e nem sequer sei se é a boa. Mas o importante é que tu tenhas compreendido. Vamos agora à tua segunda pergunta.

 

- É que – disse - creio que não sirvo para nada. Já não consigo distinguir a diferença acidental entre valdenses, cátaros, pobres de Lião, humilhados, beguinos, santanários, lombardos, joaquimitas, patarinos, apostólicos, pobres lombardos, arnaldistas, guilhermistas, seguidores do livre espírito e luciferinos. Que hei-de fazer?

 

- Oh, pobre Adso - riu Guilherme, dando-me uma afetuosa palmadinha na nuca -, não estás errado de todo! Vês, é como se nos últimos dois séculos, e ainda antes, este nosso mundo tivesse sido percorrido por ventos de intolerância, esperança e desespero, todos juntos... Ou então não, não é uma boa analogia. Pensa num rio, denso e majestoso, que corre por milhas e milhas entre robustos diques, e tu sabes onde está o rio, onde o dique, onde a terra firme. A certa altura, o rio, de cansaço, porque correu por demasiado tempo e demasiado espaço, porque se aproxima o mar, que anula em si todos os rios, já não sabe o que é. Torna-se o seu próprio delta. Permanece talvez um braço maior, mas muitos outros se ramificam, em todas as direções, e alguns confluem uns nos outros, e já não sabes o que está na origem do que é, e por vezes não sabes o que ainda é rio e o que é já mar...

 

- Se bem compreendo a vossa alegoria, o rio é a cidade de Deus, ou o reino dos justos, que se aproxima do milênio, e nesta incerteza ele já não se contém, nascem falsos e verdadeiros profetas, e tudo conflui na grande planície onde terá lugar o Armagedon...

 

- Não pensava exatamente nisso. Mas também é verdade que entre nós, franciscanos, continua viva a idéia de uma terceira idade e do advento do reino do Espírito Santo. Não, procurava antes fazer-te compreender como o corpo da Igreja, que também foi durante séculos o corpo de toda a sociedade, o povo de Deus, se tornou demasiado rico, e denso, e arrasta consigo as escórias de todos os países que atravessou, e perdeu a sua pureza própria. Os braços do delta são, se quiseres, outras tantas tentativas do rio para correr o mais depressa possível para o mar, ou seja, para o momento da purificação. Mas a minha alegoria era imperfeita, servia apenas para te dizer como os ramos da heresia e dos movimentos de renovação, quando o rio já não se contém, são numerosos e se confundem. Podes ainda acrescentar à minha péssima alegoria a imagem de alguém que tenta à viva força reconstruir os diques do rio, mas não consegue. E alguns braços do delta são enterrados, outros reconduzidos ao rio por canais artificiais, outros ainda deixam-nos correr, porque não se pode conter tudo, e é bom que o rio perca parte da sua água se quer manter-se íntegro no seu curso, se quer ser um curso reconhecível.

 

- Cada vez compreendo menos.

 

- Também eu. Não sou forte a falar de modo parabólico. Esquece esta história do rio. Procura antes compreender como nasceram muitos dos movimentos que nomeaste, há pelo menos duzentos anos, e já morreram, outros são recentes...

 

- Mas quando se fala de hereges nomeiam-se todos em conjunto.

 

- É verdade, mas este é um dos modos pelos quais a heresia se difunde e um dos modos pelos quais é destruída.

 

- Não compreendo novamente.

 

- Meu Deus, como é difícil. Bem. Imagina que és um reformador dos costumes e reúnes alguns companheiros no cimo de um monte, para viver na pobreza. E, algum tempo depois, vês que muitos vêm a ti, mesmo de terras distantes, e te consideram um profeta, ou um novo apóstolo, e te seguem. Vêm verdadeiramente por ti ou por aquilo que dizes?

 

- Não sei, espero. Porquê de outro modo?

 

- Porque ouviram aos seus pais histórias de outros reformadores lendas de comunidades mais ou menos perfeitas, e pensam que esta aquela e aquela é esta.

 

- Assim, qualquer movimento herda os filhos dos outros.

 

- Decerto, porque a ele acorrem na sua maior parte os simples, que não têm sutileza doutrinal. E no entanto os movimentos de reforma dos costumes nascem em lugares e de modos diversos e com diversas doutrinas. Por exemplo, confundem-se freqüentemente os cátaros e os valdenses. Mas existe entre eles uma grande diferença. Os valdenses pregavam uma reforma dos costumes no interior da Igreja, os cátaros pregavam uma Igreja diversa, uma diversa visão de Deus e da moral. Os cátaros pensavam que o mundo estava dividido entre as forças opostas do bem e do mal, e tinham constituído uma Igreja em que se distinguiam os crentes perfeitos dos simples, e tinham os seus sacramentos e os seus ritos; tinham constituído uma hierarquia muito rígida, quase tanto como a da nossa Santa Madre Igreja, e não pensavam de forma nenhuma em destruir qualquer forma de poder. O que te explica porque aderiram aos cátaros mesmo homens de comando, proprietários, feudatários. Também não pensavam em reformar o mundo, porque a oposição entre bem e mal para eles não poderá jamais ser desfeita. Os valdenses, pelo contrário (e com eles os arnaldistas ou os pobres lombardos), queriam construir um mundo diverso a partir de um ideal de pobreza, por isso acolhiam os deserdados e viviam em comunidade do trabalho das suas própria mãos. Os cátaros negavam os sacramentos da Igreja, os valdenses não, negavam só a confissão auricular.

 

- Mas porque é que então são confundidos e se fala deles como da mesma planta má?

 

- Já to disse, aquilo que os faz viver é também aquilo que os faz morrer. Enriquecem com os simples que foram estimulados por outros movimentos e que crêem que se trata do mesmo movimento de revolta e de esperança; e são destruídos pelos inquisidores, que atribuem a uns os erros dos outros, e se os seguidores de um movimento cometeram um delito, este delito será atribuído a cada seguidor de cada um dos movimentos. Os inquisidores estão errados segundo a razão, porque juntam doutrinas contrastantes; têm razão segundo o erro dos outros, porque quando nasce um movimento, verbigratia, de arnaldistas, numa cidade, para aí convergem também aqueles que seriam ou foram cátaros ou valdenses algures. Os apóstolos de frei Dolcino pregavam a destruição física dos clérigos e dos senhores, e cometeram muitas violências; os valdenses são contrários à violência, e os fraticelli também. Mas tenho a certeza de que nos tempos de frei Dolcino convergiram no seu grupo muitos que já tinham seguido a pregação dos fraticelli ou dos valdenses. Os simples não podem escolher a sua heresia, Adso, agarram-se a quem prega na sua terra, a quem passa pela aldeia ou pela praça. É com isto que jogam os seus inimigos. Apresentar aos olhos do povo uma única heresia, que possa aconselhar ao mesmo tempo não só a recusa do prazer sexual mas também a comunhão dos corpos, é boa arte de pregador: porque mostra os hereges como um único enredo de diabólicas contradições que ofendem o senso comum.

 

- Portanto não há relação entre eles e é por engano do demônio que um simples que quereria ser joaquimita ou espiritual cai nas mãos dos cátaros ou vice-versa?

 

- E, no entanto, não é assim. Procuremos recomeçar do princípio, Adso, e asseguro-te que procuro explicar-te uma coisa sobre a qual nem eu sequer creio possuir a verdade. Penso que o erro é crer que primeiro vem a heresia, depois os simples que a ela se dão (e se condenam). Na verdade, primeiro vem a condição dos simples, depois a heresia.

 

- E como?

 

- Tu tens uma visão clara da constituição do povo de Deus. Um grande rebanho, ovelhas boas e ovelhas más, refreadas por cães mastins, os guerreiros, ou melhor, o poder temporal, o imperador e os senhores guiados pelos pastores, os clérigos, os intérpretes da palavra divina. A imagem é clara.

 

- Mas não é verdadeira. Os pastores combatem com os cães, porque cada um deles quer os direitos do outro.

 

- É verdade, e é exatamente isso que torna imprecisa a natureza do rebanho. Perdidos como são para se dilacerarem mutuamente, cães e pastores já não cuidam do rebanho. Uma parte dele fica de fora.

 

- Como de fora?

 

- Nas margens. Camponeses não são camponeses, porque não têm terra, ou aquela que têm não os alimenta. Cidadãos não são cidadãos, porque não pertencem nem a uma arte nem a outra corporação, são a arraia-miúda, presa de qualquer um. Viste alguma vez nos campos grupos de leprosos?

 

- Sim, uma vez vi cem juntos. Disformes, com a carne a desfazer-se e toda esbranquiçada, de muletas, pálpebras inchadas, os olhos ensangüentados, não falavam nem gritavam: chiavam como ratos.

 

- Eles são para o povo cristão os outros, os que se encontram nas margens do rebanho. O rebanho odeia-os, eles odeiam o rebanho. Quereriam ver-nos todos mortos, todos leprosos como eles.

 

- Sim, recordo uma história do rei Tristão, que devia condenar Isolda, a Bela, e a fazia subir à fogueira e vieram os leprosos e disseram ao rei que a fogueira era castigo leve e que havia um pior. E gritaram-lhe: dá-nos Isolda, que pertença a todos nós, o mal acende os nossos desejos, dá-a aos teus leprosos, olha, os nossos farrapos estão colados às chagas que gemem, ela, que a teu lado se comprazia com os ricos tecidos forrados de baio e com as jóias, quando vir a corte dos leprosos, quando tiver de entrar nos nossos tugúrios e deitar-se conosco, então reconhecerá deveras o seu pecado e terá saudades deste belo fogo de sarças!

 

- Vejo que, sendo um noviço de São Bento, tens leituras bastante curiosas - gracejou Guilherme, e eu corei, porque sabia que um noviço não devia ler romances de amor, mas entre nós, rapazinhos, circulavam no mosteiro de Melk, e liamo-los de noite à luz da vela. - Mas não importa - continuou Guilherme -, compreendeste o que queria dizer. Os leprosos excluídos quereriam arrastar todos na sua ruma. E tornar-se-ão tanto piores quanto mais os exclusos, e quanto mais os representares como uma corte de lêmures que querem a tua ruína tanto mais eles serão excluídos. São Francisco compreendeu isto, e a sua primeira escolha foi ir viver entre os leprosos. Não se muda o povo de Deus se não se integrarem no seu corpo os marginais.

 

- Mas vós faláveis de outros excluídos, não são os leprosos que compõem os movimentos heréticos.

 

- O rebanho é como uma série de círculos concêntricos, das mais amplas distâncias do rebanho à sua periferia imediata. Os leprosos são sinal da exclusão em geral. São Francisco tinha-o compreendido. Não queria ajudar apenas os leprosos, que a sua ação Ter-se-ia reduzido a um bem pobre e impotente ato de caridade. Queria significar outra coisa. Contaram-te as prédicas aos pássaros?

 

- Oh, sim, ouvi essa historia belíssima e admirei o santo que gozava da companhia daquelas ternas criaturas de Deus – disse com grande fervor.

 

- Pois bem, contaram-te uma história falsa, ou melhor, a história que a ordem está hoje a reconstruir. Quando Francisco falou ao povo da cidade e aos seus magistrados e viu que estes não o compreendiam saiu para o cemitério e pôs-se a pregar a corvos e pegas, a gaviões, a aves de rapina que se alimentavam de cadáveres.

 

- Que coisa horrenda – disse -, não eram então pássaros bons!

 

- Eram aves de rapina, aves excluídas, como os leprosos. Francisco pensava decerto naquele verso do Apocalipse que diz: «Vi um anjo, levantado no Sol, gritar com voz forte e dizer a todas as aves que voavam ao sol, vinde e reuni-vos todas no grande banquete de Deus, comei a carne de reis, a carne de tribunos e de soberbos, a carne de cavalos e de cavaleiros, a carne de livres e de escravos, de pequenos e de grandes!»

 

- Então, Francisco queria incitar os excluídos à revolta?

 

- Não, isso fizeram-no quando muito Dolcino e os seus. Francisco queria chamar os excluídos, prontos para a revolta, a fazer parte do povo de Deus. Para recompor o rebanho era preciso reencontrar os excluídos. Francisco não conseguiu, e digo-te com muita amargura. Para reintegrar os excluídos devia agir no interior da Igreja, para agir no interior da Igreja devia obter o reconhecimento da sua regra, da qual sairia uma ordem, e uma ordem, como daí resultou, recomporia a imagem de um círculo, à margem do qual estão os excluídos. Então compreendes, agora, porque existem os bandos dos fraticelli e dos joaquimitas, que reúnem à sua volta os excluídos, uma vez mais.

 

-Mas não estávamos a falar de Francisco, mas de como a heresia é o produto dos simples e dos excluídos.

 

- De fato. Falávamos dos excluídos do rebanho das ovelhas. Durante séculos, enquanto o papa e o imperador se digladiavam nas suas diatribes de poder, estes continuaram a viver nas margens, eles, os verdadeiros leprosos, dos quais os leprosos são apenas a imagem disposta por Deus para que nós compreendêssemos esta admirável parábola e dizendo «leprosos» compreendêssemos «excluídos, pobres, simples, deserdados, desenraizados dos campos, humilhados nas cidades». Não compreendemos, o mistério da lepra continuou a obcecar-nos porque não reconhecemos a sua natureza de sinal. Excluídos como eram do rebanho, todos eles estavam prontos a escutar, ou a produzir, qualquer pregação que, reclamando-se da palavra de Cristo, pusesse com eleito sob acusação o comportamento dos cães e dos pastores e prometesse que um dia eles seriam punidos. Isto, os poderosos sempre o compreenderam. A reintegração dos excluídos impunha a redução dos seus privilégios, por isso os excluídos que assumiam consciência da sua exclusão eram rotulados de hereges, independentemente da sua doutrina. E estes, por seu lado, cegos pela sua exclusão, não estavam verdadeiramente interessados em nenhuma doutrina. A ilusão da heresia é esta. Qualquer um é herege, qualquer um é ortodoxo, não conta a fé que um movimento oferece, conta a esperança que propõe. Todas as heresias são a bandeira de uma realidade da exclusão. Raspa a heresia, encontrarás o leproso. Qualquer batalha contra a heresia quer somente isto: que o leproso permaneça tal como é. Quanto aos leprosos, que lhes queres pedir? Que distingam no dogma trinitário ou na definição da eucaristia o que é justo e o que é errado? Vamos, Adso, estes são jogos para nós, homens de doutrina. Os simples têm outros problemas. E, repara, resolvem-nos todos da pior maneira. Por isso se tornam hereges.

 

- Mas porque é que alguns os apóiam?

 

- Porque servem o seu jogo, que raramente diz respeito à fé e mais freqüentemente à conquista do poder.

 

- É por isso que a Igreja de Roma acusa de heresia todos os seus adversários?

 

- É por isso, e é por isso que reconhece como ortodoxia a heresia que pode reconduzir sob o seu próprio controle ou que tem de aceitar, porque se tornou demasiado forte e não seria bom tê-la como adversária. Mas não há uma regra precisa, depende dos homens, das circunstâncias. E isto é válido também para os senhores laicos. Há cinqüenta anos, a comuna de Pádua emitiu uma ordem pela qual quem matava um clérigo era condenado à multa de um denário grande...

 

- Nada!

 

- Exato. Era um modo de encorajar o ódio popular contra os clérigos, a cidade estava em luta contra o bispo. Agora compreendes porque, há tempos, em Cremona, os fiéis do império ajudaram os cátaros, não por razões de fé, mas para colocar em embaraço a Igreja de Roma. Por vezes, as magistraturas citadinas encorajam os hereges porque traduzem em língua vulgar o Evangelho: o vulgar é hoje em dia a língua das cidades, o latim é a língua de Roma e dos mosteiros. Ou então apóiam os valdenses porque afirmam que todos, homens e mulheres, pequenos e grandes, podem ensinar e pregar, e o operário que é discípulo dez dias depois procura outro para se tornar seu mestre...

 

- E assim eliminam a diferença que torna insubstituíveis os clérigos! Mas então porque acontece depois que as próprias magistraturas citadinas se revoltam contra os hereges e dão mão forte à Igreja para os mandar queimar?

 

- Porque se apercebem que a sua expansão também porá em crise os privilégios dos leigos que falam em língua vulgar. Já no concílio de Latrão de mil cento e setenta e nove (vê que são histórias que remontam a quase a duzentos anos atrás), Walter Map punha em guarda contra aquilo que aconteceria dando crédito àqueles homens idiotas e iletrados que eram os valdenses. Disse, se bem recordo, que eles não têm morada fixa, caminham descalços sem nada possuírem, mantendo tudo em comum, seguindo nus o Cristo nu; ora começam deste modo humildíssimo porque são excluídos, mas, se se lhes deixa demasiado espaço, expulsá-los-ão a todos. Por isto, depois as cidades favoreceram as ordens medicantes e a nós franciscanos em particular: porque permitíamos estabelecer uma relação harmoniosa entre necessidade de penitência e vida citadina, entre a Igreja e os burgueses que se interessavam pelos seus mercados...

 

- Atingiu-se, então, a harmonia entre amor de Deus e amor dos negócios?

 

- Não, bloquearam-se os movimentos de renovação espiritual, canalizaram-se nos limites de uma ordem reconhecida pelo papa. Mas aquilo que serpenteava por baixo não foi canalizado. Acabou, por um lado, nos movimentos dos flagelantes, que não fazem mal a ninguém, nos bandos armados como os de frei Dolcino, nos ritos de bruxaria como os dos frades de Montefalco de que falava Ubertino...

 

- Mas quem tinha razão, quem tem razão, quem está errado? - perguntei perdido.

 

- Todos tinham as suas razões, todos erraram.

 

- Mas vós - gritei quase num ímpeto de rebelião -, porque não tomais posição, porque não me dizeis onde está a verdade?

 

Guilherme ficou algum tempo em silêncio, levantando para a luz a lente sobre a qual estava a trabalhar. Depois baixou-a sobre a mesa e mostrou-me, através da lente, um ferro de trabalho:

 

- Olha - disse-me -, que vês?

 

- O ferro, um pouco maior.

 

- Aí está, o máximo que se pode fazer é ver melhor.

 

- Mas é sempre o mesmo ferro!

 

- Também o manuscrito de Venancio será sempre o mesmo manuscrito quando puder lê-lo graças a esta lente. Mas quando ler o manuscrito talvez conheça melhor uma parte da verdade. E talvez possamos tornar melhor a vida da abadia.

 

- Mas não basta!

 

- Estou a dizer mais do que parece, Adso. Talvez que te falo de Roger Bacon. Provavelmente não foi o homem mais sábio de todos os tempos, mas sempre me fascinou a esperança que animava o seu amor pela sabedoria. Bacon acreditava na força, nas necessidades, nas invenções espirituais dos simples. Não teria sido um bom franciscano se não tivesse pensado que os pobres, os deserdados, os idiotas e os iletrados falam muitas vezes com a boca de Nosso Senhor. Se tivesse podido conhecê-los de perto, teria prestado mais atenção aos fraticelli que aos provinciais da ordem. Os simples têm qualquer coisa mais que os doutores, que muitas vezes se perdem à procura das leis mais gerais. Eles têm a intuição do individual. Mas esta intuição, só por si, não basta. Os simples captam uma verdade sua, talvez mais verdadeira que a dos doutores da Igreja, mas depois consomem-na em gestos irrefletidos. Que é preciso fazer? Dar a ciência aos simples? Demasiado fácil ou demasiado difícil. E depois, que ciência? A da biblioteca de Abbone? Os mestres franciscanos puseram-se este problema. O grande Boaventura dizia que os sábios devem levar a uma clareza conceptual a verdade implícita nos gestos dos simples...

 

- Como o capítulo de Perugia e as doutas memórias de Ubertino que transformam em decisões teológicas o apelo dos simples à pobreza - disse.

 

- Sim, mas viste-o, chega tarde e, quando chega, a verdade dos simples já se transformou na verdade dos poderosos, mais adequada para o Imperador Luís que para um frade de vida pobre. Como ficar próximo da experiência dos simples mantendo-lhe, por assim dizer, a virtude operativa, a capacidade de operar para a transformação e para o melhoramento do seu mundo? Este era o problema de Bacon: «Quod enim laicali ruditate turgescit non habet effectum nisi fortuito», dizia. A experiência dos simples tem saídas selvagens e incontroláveis. «Sed opera sapientiae certa lege vallantur et in finem debitum efficaciter diriguntur.» Que é como dizer que mesmo na condução das coisas práticas, sejam elas a mecânica, a agricultura ou o governo de uma cidade, é preciso uma espécie de teologia. Ele pensava que a nova ciência da natureza devia ser a nova grande empresa dos doutos para coordenar, através de um conhecimento diverso dos processos naturais, as necessidades elementares que constituíam também o acervo desordenado, mas a seu modo verdadeiro e justo, das expectativas dos simples. A nova ciência, a nova magia natural. Só que para Bacon esta empresa devia ser dirigida pela Igreja, e creio que dizia isso porque, no seu tempo, a comunidade dos clérigos identificava-se com a comunidade dos sábios. Hoje já não é assim, nascem sábios fora dos mosteiros, e das catedrais, e até das universidades. Vê por exemplo neste país, o maior filósofo do nosso século não foi um monge, mas um boticário. Falo daquele florentino cujo poema terás ouvido nomear, que eu nunca li porque não compreendo o seu vulgar, e pelo que sei me agradaria muito pouco, porque divaga sobre coisas muito distantes da nossa experiência. Mas escreveu, creio, as coisas mais sábias que nos é dado compreender sobre a natureza dos elementos e de todo o cosmo, e sobre a condução dos estados. Assim, penso que, como eu e os meus amigos consideramos hoje que para a condução das coisas humanas não compete à Igreja legislar mas à assembléia do povo, do mesmo modo, no futuro, competirá à comunidade dos doutos propor esta novíssima e humana teologia, que é filosofia natural e magia positiva.

 

- Uma belíssima empresa – disse -, mas é possível?

 

- Bacon acreditava nisso.

 

- E vos?

 

- Também eu acreditava nisso. Mas para acreditar nisso será preciso estar certo de que os simples têm razão porque possuem a intuição do individual, a única que é boa. Porém, se a intuição do individual é a única que é boa como poderá a ciência chegar a recompor as leis universais através das quais, e pela interpretação das quais, a boa magia se torna operante?

 

- Pois – disse -, como poderá?

 

- Já não sei. Tive muitas discussões em Oxford com o meu amigo Guilherme de Oscam, que está agora em Avinhão. Semeou de dúvidas o meu espírito. Porque, se só a intuição do individual é justa, o fato que causas do mesmo gênero tenham efeitos do mesmo gênero é proposição difícil de provar. Um mesmo corpo pode ser frio ou quente, doce ou amargo, úmido ou seco, num lugar... e num outro lugar não. Como posso descobrir a relação universal que torna ordenadas as coisas se não posso mover um dedo sem criar uma infinidade de novos seres, pois que, com tal movimento, mudam todas as relações de posição entre o meu dedo e todos os outros objetos? As relações são os modos pelos quais a minha mente capta a relação entre seres singulares, mas qual é a garantia de que este modo é universal e estável?

 

- Mas vós sabeis que a uma certa espessura de um vidro corresponde um certo poder de visão, e é porque o sabeis que podeis agora construir lentes iguais àquelas que perdestes, senão como poderíeis?

 

- Sutil resposta, Adso. Com efeito, eu elaborei esta proposição, que a espessura igual deve corresponder igual poder de visão. Emiti-a porque de outras vezes tive intuições individuais do mesmo tipo. Decerto é conhecido de quem experimenta a propriedade curativa das ervas que todos os indivíduos herbáceos da mesma natureza têm no paciente igualmente disposto, efeitos da mesma natureza, e por isso o experimentador formula a proposição que toda a erva desse tipo ajuda o doente febril, ou que toda a lente de tal tipo aumenta em igual medida a visão do olho. A ciência de que falava Bacon versa indubitavelmente sobre estas proposições. Repara, falo de proposições sobre as coisas, não de coisas. A ciência tem a ver com as proposições e os seus termos, e os termos indicam coisas singulares. Compreendes, Adso, eu tenho de acreditar que a minha proposição funciona, porque o aprendi com base na experiência, mas para o acreditar tenho de supor que há leis universais, e no entanto não posso falar delas, porque o próprio conceito de que existem leis universais e uma dada ordem das coisas implicaria que Deus fosse prisioneiro delas, enquanto Deus é coisa tão absolutamente livre que, se quisesse, e com um só ato da sua vontade, o mundo seria de outra maneira.

 

- Portanto, se bem compreendo, fazeis, e sabeis porque fazeis, mas não sabeis porque sabeis que sabeis aquilo que fazeis?

 

Devo dizer com orgulho que Guilherme me olhou com admiração.

 

- Talvez seja assim. De qualquer modo, isso diz-te porque me sinto tão inseguro da minha verdade, mesmo se creio nela.

 

- Sois mais místico que Ubertino! - disse maliciosamente.

 

- Talvez. Mas, como vês, trabalho sobre as coisas da natureza. E também na investigação que estamos desenvolvendo não quero saber quem é bom ou quem é mau, mas quem esteve no scriptorium ontem à noite, quem pegou nos óculos, quem deixou sobre a neve as pegadas de um corpo que arrasta outro corpo, e onde está Berengário. Isto são fatos depois tentarei ligá-los entre si, se acaso for possível, porque é difícil dizer qual o efeito que é produzido por uma certa causa; bastaria a intervenção de um anjo para tudo mudar, por isso não é de admirar se não se pode demonstrar que uma coisa é a causa de outra coisa. Mesmo que seja preciso tentar sempre, como estou fazendo.

 

- É uma vida difícil, a vossa - disse.

 

- Mas encontrei Brunello - exclamou Guilherme, aludindo ao cavalo de dois dias antes.

 

- Então há uma ordem do mundo! – gritei triunfante.

 

- Então há um pouco de ordem nesta minha pobre cabeça – respondeu Guilherme. Naquele momento entrou Nicolau, trazendo uma forquilha quase pronta e mostrando-a triunfante. - E quando esta forquilha estiver sobre o meu pobre nariz – disse Guilherme - talvez a minha pobre cabeça esteja ainda mais condenada.

 

Veio um noviço informar-nos que o Abade queria ver Guilherme e o esperava no jardim. O meu mestre foi obrigado a adiar as suas experiências para mais tarde, e apressamo-nos para o lugar do encontro. Enquanto nos encaminhávamos para lá, Guilherme deu uma palmada na testa, como se só naquele momento se recordasse de alguma coisa que tinha esquecido.

 

- A propósito – disse -, decifrei os sinais cabalísticos de Venancio.

 

- Todos?! Quando?

 

- Quando dormias. E depende daquilo que estenderes por todos. Decifrei os sinais que apareceram à chama, aqueles que tu copiaste. Os apontamentos em grego têm de esperar que eu tenha umas novas lentes.

 

- Então? Tratava-se do segredo do finis Africae?

 

- Sim, e a chave era bastante fácil. Venancio dispunha dos doze signos zodiacais e de oito signos para os cinco planetas, os dois luminares e a Terra. Vinte signos ao todo. O bastante para lhes associar as letras do alfabeto latino, dado que podes usar a mesma letra para exprimir o som das duas iniciais de unum y velut. A ordem das letras, sabemo-la. Qual podia ser a ordem dos signos? Pensei na ordem dos céus, quando o quadrante zodiacal na última periferia. Portanto, Terra, Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, etcétera, e depois, em seguida, os signos zodiacais na sua seqüência tradicional, tal como também os classifica Isidoro de Sevilha, a começar pelo Carneiro e pelo solstício da Primavera, acabando com os Peixes. Ora, se experimentares aplicar esta chave, eis que a mensagem de Venancio adquire um sentido.

 

Mostrou-me o pergaminho, sobre o qual tinha transcrito a mensagem em grandes letras latinas: Secretum finís Africae manus supra idolum age primum et septimum de quatuor.

 

- É claro? - perguntou.

 

- A mão sobre o ídolo opera sobre o primeiro e sobre o sétimo dos quatro... - repeti, abanando a cabeça. - Não é mesmo nada claro!

 

- Eu sei. Seria preciso antes de mais nada saber o que entendia Venancio por idolum. Uma imagem, um fantasma, uma figura? E depois, que serão estes quatro que têm um primeiro e um sétimo? E que é preciso fazer deles? Movê-los, empurrá-los, puxá-los?

 

- Então não sabemos nada e estamos no ponto de partida – disse com grande desapontamento.

 

Guilherme parou e olhou para mim com um ar nada benévolo.

 

- Meu rapaz – disse -, tens diante de ti um pobre franciscano que, com os seus modestos conhecimentos e um pouco de habilidade, que deve ao infinito poder do Senhor, conseguiu, em poucas horas, decifrar uma escrita secreta que o seu autor tinha a certeza de que permaneceria hermética para todos menos para ele... e tu, miserável malandro iletrado, permites-te dizer que estamos no ponto de partida?

 

Desculpei-me com muita atrapalhação. Tinha ferido a vaidade do meu mestre, sabendo quanto ele era orgulhoso da rapidez e segurança das suas deduções. Guilherme tinha na verdade concluído uma obra digna de admiração, e não era culpa sua se o astutíssimo Venancio não só tinha ocultado quanto tinha descoberto sob as aparências de um obscuro alfabeto zodiacal, mas tinha ainda elaborado um indecifrável enigma.

 

- Não importa, não importa, não te desculpes - interrompeu-me Guilherme. - No fundo tens razão, sabemos ainda muito pouco. Vamos.

 

TERCEIRO DIA

VÉSPERAS

 

Onde se fala ainda com o Abade, Guilherme tem algumas idéias mirabolantes para decifrar o enigma do labirinto, e o consegue de modo mais razoável. Depois ele e Adso comem queijo em pasteizinhos.

 

O Abade esperava-nos com ar sombrio e preocupado. Tinha na mão um papel.

 

- Recebi agora uma carta do Abade de Conques - disse. - Comunica-me o nome daquele a quem João confiou o comando dos soldados franceses, e o cuidado da incolumidade da delegação. Não é um homem de armas, não é um homem de corte, e será ao mesmo tempo um membro da delegação.

 

- Raro conúbio de diferentes virtudes - disse Guilherme inquieto. - Quem será?

 

- Bernardo Gui, ou Bernardo Guidoni, como queirais chamar-lhe.

 

Guilherme explodiu com uma exclamação na sua própria língua, que eu não compreendi, nem o Abade, e talvez fosse melhor para todos, porque a palavra que Guilherme disse sibilava de modo obsceno.

 

- A coisa não me agrada - acrescentou logo. - Bernardo foi durante anos martelo dos hereges na região de Toulouse e escreveu uma Practica officii inquisitionis heretice pravi-tatis para uso de todos aqueles que tenham de perseguir e destruir valdenses, beguinos, santanários fraticelli e dolcinianos.

 

- Eu sei. Conheço o livro, admirável de doutrina.

 

- Admirável de doutrina - admitiu Guilherme. - É dedicado a João, que em anos passados lhe confiou muitas missões na Flandres e aqui na Alta Itália. E, mesmo quando foi nomeado bispo da Galiza, nunca o viram na sua diocese e continuou a atividade inquisitorial. Agora julgava que se tivesse retirado no bispado de Lodève, mas, ao que parece, João repõe-no em ação e precisamente aqui na Itália Setentrional. Porquê precisamente Bernardo e porquê com a responsabilidade dos homens armados?

 

- A resposta existe - disse o Abade - e confirma todos os temores que vos exprimia ontem. Sabeis bem, mesmo que não queirais admiti-lo comigo, que as posições sobre a pobreza de Cristo e da Igreja defendidas pelo capítulo de Perugia, embora com abundância de argumentos teológicos, são as mesmas que, de modo muito menos prudente e com um comportamento menos ortodoxo, defendem muitos movimentos heréticos. Não é preciso muito para demonstrar que as posições de Miguel de Cesena, feitas suas pelo imperador, são as mesmas de Ubertino e de Angelo Clareno. E até aqui as duas delegações estarão de acordo. Mas Gui poderia fazer mais, e tem habilidade para isso: procurará defender que as teses de Perugia são as mesmas dos fraticelli, ou dos pseudo-apóstolos. Estais de acordo?

 

- Dizeis que as coisas estão assim ou que Bernardo Gui dirá que estão assim?

 

- Digamos que digo que ele o dirá - concedeu prudentemente o Abade.

 

- Concordo também eu. Mas isso estava previsto. Quero dizer, sabia-se que se chegaria a isso mesmo sem a presença de Bernardo. No máximo, Bernardo fá-lo-á com mais eficiência do que muitos curiais de pouco valor, e tratar-se-á de discutir contra ele com maior sutileza.

 

- Sim - disse o Abade -, mas nesse caso estamos diante da questão suscitada ontem. Se não encontramos até amanhã o culpado de dois ou talvez três delitos, terei de conceder a Bernardo que exerça uma vigilância sobre as coisas da abadia. Não posso ocultar a um homem investido com o poder de Bernardo (e por nosso mútuo acordo, recordemo-lo) que aqui na abadia aconteceram, estão ainda a acontecer, fatos inexplicáveis. Senão, no momento em que ele o descobrisse, no momento em que (Deus não queira) acontecesse um novo fato misterioso, ele teria todo o direito de gritar que tinha havido traição...

 

- É verdade - murmurou Guilherme preocupado. - Não há nada a fazer. É preciso estarmos atentos e vigiar Bernardo, que vigiará o misterioso assassino. Talvez seja um bem, porque Bernardo, ocupado a cuidar do assassino, estará menos disponível para intervir na discussão.

 

- Bernardo ocupado em descobrir o assassino será um espinho no flanco da minha autoridade, recordai-vos disso. Esta obscura história impõe-me pela primeira vez a cedência de parte do meu poder dentro destas muralhas, e é um fato novo não só na história desta abadia mas da própria ordem clunicense. Faria fosse o que fosse para o evitar. E a primeira coisa a fazer seria negar hospitalidade às delegações.

 

- Rogo ardentemente a Vossa Sublimidade que reflita sobre essa grave decisão - disse Guilherme. - Vós tendes nas mãos uma carta do imperador que vos convida calorosamente a...

 

- Sei aquilo que me liga ao imperador - disse bruscamente o Abade -, e sabei-lo também vós. E portanto sabeis que infelizmente não posso retroceder. Mas tudo isto está muito feio. Onde está Berengário?, que lhe aconteceu?, que estais fazendo?

 

- Sou apenas um frade que conduziu há muito tempo eficazes investigações inquisitoriais. Vós sabeis que não se encontra a verdade em dois dias. E, afinal, que poder me haveis concedido? Posso entrar na biblioteca? Posso fazer todas as perguntas que quiser, defendido sempre pela vossa autoridade?

 

- Não vejo a relação entre os delitos e a biblioteca – disse carrancudo o Abade.

 

- Adelmo era miniaturista, Venancio tradutor, Berengário ajudante-bibliotecário... - explicou pacientemente Guilherme.

 

- Nesse sentido, os sessenta monges têm que ver com a biblioteca, tal como têm a ver com a igreja. Porque é que então não procurais na igreja? Frade Guilherme, vós estais conduzindo um inquérito por meu mandado e nos limites em que vos pedi para o conduzirdes. Quanto ao resto, dentro deste recinto, eu sou o único senhor depois de Deus, e por sua graça. E isto valerá também para Bernardo. Por outro lado - acrescentou em tom mais manso -, nem sequer é dito que Bernardo esteja aqui para o encontro. O abade de Conques escreve-me também que desce à Itália para prosseguir para o sul. Diz-me também que o papa pediu ao cardeal Bertrando do Poggetto para vir de Bolonha e se dirigir para aqui para tomar o comando da delegação pontifícia. Bernardo vem aqui talvez para se encontrar com o cardeal.

 

- O que, numa perspectiva mais ampla, seria pior. Bertrando é o martelo dos hereges na Itália Central. Este encontro entre dois campeões da luta anti-herética pode anunciar uma ofensiva mais vasta no país, para envolver no fim todo o movimento franciscano...

 

- E disto informaremos imediatamente o imperador - disse o Abade -, mas neste caso o perigo não seria imediato. Vigiaremos. Adeus.

 

Guilherme ficou um momento silencioso enquanto o Abade se afastava. Depois disse-me:

 

- Sobretudo, Adso, procuremos não nos deixar dominar pela pressa. As coisas não se resolvem rapidamente quando têm de se acumular tantas pequenas experiências individuais. Eu volto ao laboratório, porque sem as lentes não só não poderei ler o manuscrito mas também não convirá sequer que se volte esta noite à biblioteca. Tu vai informar-te se se sabe alguma coisa de Berengário.

 

Naquele momento correu ao nosso encontro Nicolau de Morimondo, portador de péssimas notícias. Quando procurava lapidar melhor a melhor lente, aquela em que Guilherme depositava tantas esperanças, esta quebrara-se. E uma outra, que talvez pudesse substitui-la, tinha-se rachado quando tentava encaixá-la na forquilha. Nicolau mostrou-nos desconsoladamente, o céu. Era já a hora de vésperas, e a obscuridade estava descendo. Naquele dia já não se poderia trabalhar. Mais um dia perdido, reconheceu amargamente Guilherme, reprimindo (como me confessou depois) a tentação de agarrar pelo pescoço o vidreiro desajeitado, que, aliás, já estava bastante humilhado.

 

Deixamo-lo com a sua humilhação e fomos informar-nos acerca de Berengário. Naturalmente, ninguém o tinha encontrado.

 

Sentíamo-nos num ponto morto. Passeamos um pouco pelo claustro, sem saber que fazer. Mas, pouco depois, vi que Guilherme estava absorto, com o olhar perdido no ar, como se não visse nada. Havia pouco tinha tirado do saio um raminho daquelas ervas que o tinha visto colher semanas antes, e estava-o mastigando como se dele retirasse uma espécie de calma excitação. De fato parecia ausente, mas de vez em quando os seus olhos iluminavam-se, como se no vazio da sua mente se tivesse acendido um idéia nova; depois recaía naquele seu singular e ativo hebetismo. De repente disse:

 

- Decerto, poder-se-ia...

 

- O quê? - perguntei.

 

- Pensava num modo de nos orientarmos no labirinto. Não é simples de realizar, mas seria eficaz... No fundo, a saída é no torreão oriental, e isso sabemo-lo. Ora supõe que tínhamos uma máquina que nos diz de que lado está o setentrião. Que aconteceria?

 

- Que naturalmente bastaria girar para a direita e dirigir-nos-íamos para oriente. Ou então bastaria ir em sentido contrário, e saberíamos que íamos para o torreão meridional. Mas, mesmo admitindo que existisse semelhante magia, o labirinto é precisamente um labirinto, e mal nos dirigíssemos para oriente encontraríamos uma parede que nos impediria de ir a direito e perderíamos de novo o caminho... - observei.

 

- Sim, mas a máquina de que falo indicaria sempre a direção do setentrião, mesmo que nós tivéssemos mudado o caminho, e a cada momento dir-nos-ia para que lado voltar.

 

- Seria maravilhoso. Mas seria preciso ter essa máquina, e ela deveria ser capaz de reconhecer setentrião de noite e em local fechado, sem poder ver nem o Sol nem as estrelas... E não creio que mesmo o vosso Bacon possuísse uma máquina semelhante! - ri.

 

- E no entanto enganas-te - disse Guilherme -, porque uma máquina do gênero foi construída e alguns navegadores usaram-na. Ela não tem necessidade das estrelas nem do Sol, porque desfruta a força de uma pedra maravilhosa, igual àquela que vimos no hospital de Severino, aquela que atrai o ferro. E foi estudada por Bacon e por um mago picardo, Pedro de Maricourt, que descreveu os seus múltiplos usos.

 

- E vós saberíeis construí-la?

 

- Em si não seria difícil. A pedra pode ser usada para produzir muitas mirabilia, entre elas uma máquina que se move perpetuamente sem nenhuma força externa, mas o achado mais simples foi também descrito por um árabe, Baylek al Qabayaki. Pegas num vaso cheio de água e pões-lhe a flutuar uma rolha de cortiça em que enfiaste uma agulha de ferro. Depois passas a pedra magnética sobre a superfície da água, com um movimento circular, até que a agulha adquira as mesmas propriedades da pedra. E então a agulha, mas fá-lo-ia também a pedra se tivesse tido a possibilidade de se mover em torno de um eixo, coloca-se com a ponta na direção de setentrião, e se tu te moveres com o vaso, ele volta-se sempre para o lado da tramontana. É inútil que te diga que se tiveres marcado no bordo do vaso, em relação a transmontana, também as posições de austro, aquilão e assim sucessivamente, saberás sempre para que lado te hás-de mover na biblioteca para chegar ao torreão oriental.

 

- Que coisa maravilhosa! - exclamei. - Mas porque é que a agulha aponta sempre para setentrião? A pedra atrai o ferro, eu vi, e imagino que uma imensa quantidade de ferro atraia a pedra. Mas então... então na direção da Estrela Polar, nos limites extremos do globo, existem grandes minas de ferro!

 

- Alguém sugeriu de fato que é assim. Salvo que a agulha não aponta exatamente na direção da estrela náutica, mas para o ponto de encontro dos meridianos celestes. Sinal que, como foi dito, «hic lapis gerit in se similitudinem coeli», e os pólos do magnete recebem a sua inclinação dos pólos do céu e não dos da terra. O que é um belo exemplo de movimento impresso a distância e não por direta causalidade material: um problema de que se está ocupando o meu amigo João de Gianduno, quando o imperador não lhe pede que faça afundar Avinhão nas vísceras da terra...

 

- Então vamos buscar a pedra de Severino, e um vaso, e água, e uma rolha de cortiça - disse excitado.

 

- Devagar, devagar - disse Guilherme. - Não sei porquê, mas nunca vi uma máquina que, perfeita na descrição dos filósofos, seja perfeita depois no seu funcionamento mecânico. Enquanto a pôdoa de um camponês, que nenhum filósofo jamais descreveu, funciona como deve ser... Tenho receio de que girando pelo labirinto com uma candeia numa mão e um vaso cheio de água na outra... Espera, ocorre-me outra idéia. A máquina indicaria setentrião mesmo se estivéssemos fora do labirinto, não e?

 

- Sim, mas nesse caso não nos serviria porque teríamos o Sol e as estrelas... - disse.

 

- Eu sei, eu sei. Mas, se a máquina funciona tanto fora como dentro, porque não havia de ser assim também para a nossa cabeça?

 

- A nossa cabeça? Decerto que ela funciona também fora, e, efetivamente, de fora sabemos muito bem qual é a orientação do Edifício! Mas é quando estamos dentro que já não compreendemos nada!

 

- Exatamente. Mas esquece agora a máquina. Pensar na máquina induziu-me a pensar nas leis naturais e nas leis do nosso pensamento. Eis a questão: temos de encontrar de fora um modo de descrever o Edifício como é por dentro...

 

- E como?

 

- Deixa-me pensar. Não deve ser assim tão difícil...

 

- E o método que mencionavas fazer? Não queríeis percorrer o labirinto fazendo sinais com um carvão?

 

- Não – disse -, quanto mais penso nisso, menos me convence. Talvez consiga recordar bem a regra, ou talvez para andar num labirinto seja preciso ter uma boa Ariana que te espere à porta segurando a ponta de um fio. Mas não existem fios assim tão longos. E ainda que existissem, isso significaria (muitas vezes as tabulas dizem a verdade) que só se sai dum labirinto com uma ajuda externa. Onde as leis do exterior sejam iguais às do interior. Pronto, Adso, usaremos as ciências matemáticas. Só nas ciências matemáticas, como diz Averroes, se identificam as coisas conhecidas por nós com as conhecidas de modo absoluto.

 

- Então vedes que admitis conhecimentos universais.

 

- Os conhecimentos matemáticos são proposições construídas pelo nosso intelecto de modo a funcionarem sempre como verdadeiras, ou porque são inatas ou porque a matemática foi inventada antes das outras ciências. E a biblioteca foi construída por uma mente humana que pensava de modo matemático, porque sem matemática não se fazem labirintos. E, portanto, trata-se de confrontar as nossas proposições matemáticas com as proposições do construtor, e deste confronto pode surgir ciência, porque é ciência de termos sobre termos. E, em todo o caso, pára de me arrastar para discussões metafísicas. Que bicho te mordeu hoje? Melhor, tu que tens bons olhos pegar num pergaminho, numa tabuinha, alguma coisa em que fazer sinais, e um estilete... bem, tens tudo, ótimo, Adso. Vamos dar uma volta em torno do Edifício, enquanto temos ainda um pouco de luz.

 

Andamos portanto longamente em torno do Edifício. Isto é, examinamos de longe os torreões oriental meridional e ocidental com as paredes que os ligavam. Porque, quanto ao resto, dava para o despenhadeiro, mas, por razões de simetria, não devia ser diferente daquilo que víamos.

 

E aquilo que víamos, observou Guilherme enquanto me fazia tomar notas precisas na minha tabuinha, era que cada muro tinha duas janelas, e cada torreão cinco.

 

- Ora raciocina - disse-me o meu mestre. - Cada uma das salas que vimos tinha uma janela...

 

- Menos as de sete lados - disse.

 

- E é natural, são as do centro de cada torre.

 

- E menos algumas que encontramos sem janelas e não eram heptagonais.

 

- Esquece-as. Primeiro encontremos a regra, depois procuremos justificar as exceções. Portanto, teremos no exterior cinco salas por cada torre e duas salas por cada muro, cada uma com uma janela. Mas se de uma sala com janela se prossegue para o interior do edifício encontra-se uma outra sala com janela. Sinal de que se trata das janelas interiores. Ora que forma tem o poço interior, tal como se vê na cozinha e no scriptorium?

 

- Octogonal - disse.

 

- Ótimo. E de cada lado do octógono, no scriptorium, abrem-se duas janelas. Isto quer dizer que por cada lado do octógono há duas salas interiores? Exato?

 

- Sim, mas e as salas sem janela?

 

- São oito ao todo. De fato, a sala interna de cada torreão, de sete lados, tem cinco paredes que dão para cada uma das cinco salas de cada torreão. Com que confinam as outras duas paredes? Não com uma sala situada ao longo das paredes exteriores, porque haveria janelas, nem com uma disposta ao longo do octógono, pelas mesmas razões, e porque seriam então salas exageradamente compridas. Tenta efetivamente traçar um desenho de como poderá aparecer a biblioteca vista do alto. Vês que correspondendo a cada torre deve haver duas salas que confinam com a sala heptagonal e dão para duas salas que confinam com o poço octogonal interior.

 

Tentei traçar o desenho que o meu mestre me sugeria e lancei um grito de triunfo.

 

- Mas então sabemos tudo! Deixai-me contar... A biblioteca tem cinqüenta e seis salas, das quais quatro heptagonais e cinqüenta e duas mais ou menos quadradas, e, destas, quatro não têm janelas, enquanto vinte e oito dão para o exterior e dezesseis para o interior!

 

- E os quatro torreões têm cada um cinco salas de quatro lados e uma de sete... A biblioteca está construída segundo uma harmonia celeste a que se podem atribuir vários e miríficos significados...

 

- Esplêndida descoberta – disse -, mas então porque é tão difícil orientarmo-nos nela?

 

- Porque aquilo que não corresponde a nenhuma lei matemática é a disposição das passagens. Algumas salas permitem a passagem a muitas outras, algumas outras a uma só, e há que perguntar se não haverá salas que não permitem a passagem a nenhuma. Se considerares este elemento, mais a falta de luz e a ausência de indício fornecido pela posição do Sol (e acrescenta-lhes as visões e os espelhos), compreenderás como o labirinto é capaz de confundir quem quer que o percorra, já agitado por um sentimento de culpa. Por outro lado, pensa como nós estávamos desesperados ontem a noite quando não conseguíamos encontrar o caminho. O máximo de confusão conseguido com o máximo de ordem: parece-me um cálculo sublime. Os construtores da biblioteca eram grandes mestres.

 

- Como faremos então para nos orientarmos?

 

- No ponto em que estamos não é difícil. Com o mapa que tu traçaste, e que bem ou mal deve corresponder ao traçado da biblioteca, logo que estejamos na primeira sala heptagonal, mover-nos-emos de modo a encontrar imediatamente uma das duas salas cegas. Depois voltando sempre à direita, depois de três ou quatro salas, deveremos estar de novo num torreão, que não poderá ser senão o torreão setentrional, até voltar a uma outra sala cega, que à esquerda confinará com a sala heptagonal e à direita deverá permitir-nos encontrar um trajeto análogo àquele que te acabo de dizer, até chegar ao torreão ocidental.

 

- Sim, se todas as salas dessem para todas as salas...

 

- De fato. E para isso precisamos do teu mapa, para marcar as paredes inteiras, de modo a saber que desvios vamos fazendo. Mas não será difícil.

 

- Mas temos a certeza de que funcionará? - perguntei perplexo, porque me parecia tudo demasiado simples.

 

- Funcionará - respondeu Guilherme. - «Omnes enim causae effectuum naturalium dantur per lineas, ángulos et figuras. Aliter enim impossibile est scire propter quid in illis.» - citou. - São palavras de um dos grandes mestres de Oxford. Mas infelizmente não sabemos ainda tudo. Aprendemos a maneira de não nos perdermos. Agora trata-se de saber se há uma regra que governa a distribuição dos livros nas salas. E os versículos do Apocalipse dizem-nos muito pouco, até porque muitos se repetem igualmente em salas diferentes...

 

- E no entanto o livro do apóstolo permitiria encontrar bem mais de cinqüenta e seis versículos!

 

- Sem dúvida. Portanto, só alguns versículos são bons. Estranho. Como se tivessem tido menos de cinqüenta, trinta, vinte... Oh, pela barba de Merlim!

 

- De quem?

 

- Não tem importância, é... um mago da minha terra... Usaram tantos versículos quantas as letras do alfabeto! Claro que é assim! O texto dos versículos não conta, contam as letras iniciais. Cada sala é assinalada por uma letra do alfabeto, e todas juntas compõem um texto que temos de descobrir!

 

- Como um carme figurado, em forma de cruz ou de peixe!

 

- Mais ou menos, e provavelmente no tempo em que a biblioteca foi constituída este tipo de carmes estava muito em voga.

 

- Mas de onde se inicia o texto?

 

- Duma inscrição maior que as outras, da sala heptagonal do torreão da entrada... ou então... mas é claro, das frases a vermelho!

 

- Mas são tantas!

 

- E portanto haverá muitos textos, ou muitas palavras. Agora tu vais copiar melhor e em ponto maior o teu mapa, depois, ao visitar a biblioteca, não só marcarás com o teu estilete, e ao de leve, as salas por onde passarmos, e a posição das portas e das paredes (não falando das janelas), mas também a letra inicial do versículo que aí aparece, e, de qualquer modo, como um bom miniaturista, farás maiores as letras a vermelho.

 

- Mas como é que - disse admirado - fostes capaz de resolver o mistério da biblioteca olhando-a de fora e não o resolvestes quando estáveis lá dentro?

 

- Assim Deus conhece o mundo, porque o concebeu na sua mente, como do exterior, antes que fosse criado, enquanto nós não lhe conhecemos a regra, porque vivemos dentro dele encontrando-o já feito.

 

- Assim podem conhecer-se as coisas observando-as do exterior!

 

- As coisas da arte, porque voltamos a percorrer na nossa mente as operações do artífice. Não as coisas da natureza, porque não são obra da nossa mente.

 

- Mas para a biblioteca isso basta-nos, não é verdade?

 

- Sim - disse Guilherme. - Mas só para a biblioteca. Agora vamos descansar. Eu não posso fazer nada até amanhã de manhã quando tiver... espero... as minhas lentes. Mais vale dormir e levantarmo-nos cedo. Procurarei refletir.

 

- E a ceia?

 

- Ah, sim, a ceia. Passou a hora entretanto. Os monges já estão em completas. Mas talvez a cozinha ainda esteja aberta. Vai buscar alguma coisa.

 

- Roubar?

 

- Pedir. A Salvador, que agora é teu amigo.

 

- Mas roubará ele.

 

- És por acaso o guarda do teu irmão? - perguntou Guilherme com as palavras de Caim.

 

Mas apercebi-me que gracejava e queria dizer que Deus é grande e misericordioso. Por isso pus-me à procura de Salvador, e encontrei-o perto das cavalariças.

 

- Belo - disse apontando para Brunello, e como para puxar conversa. - Gostava de o montar.

 

- No se puede. Abbonis est. Mas não é preciso um bom cavalo para correr muito. - Indicou-me um cavalo robusto mas desajeitado - Mesmo aquele sufficit... Vide illuc, tertius equi...

 

Queria indicar-me o terceiro cavalo. Ri-me do seu engraçadíssimo latim.

 

- E que farás com aquele? - perguntei-lhe.

 

E contou-me uma história estranha. Disse que se podia tornar qualquer cavalo, mesmo o animal mais velho e fraco, tão veloz como Brunello. É preciso misturar na sua aveia uma erva que se chama satirião, bem moída, e depois untar-lhe as coxas com gordura de veado. Depois sobe-se para o cavalo e antes de o esporear volta-se-lhe o focinho para levante e pronunciam-se-lhe ao ouvido, três vezes em voz baixa, as palavras «Gaspar, Melchior, Melquisardo». O cavalo partirá à desfilada e fará numa hora o caminho que Brunello faria em oito horas. E se se lhe tivesse suspenso ao pescoço os dentes de um lobo que o próprio cavalo, correndo, tivesse morto, o animal não sentiria sequer o cansaço.

 

Perguntei-lhe se alguma vez tinha experimentado. Disse-me, aproximando-se circunspecto e sussurrando-me ao ouvido, com o seu hálito deveras desagradável, que era muito difícil, porque o satirião agora só era cultivado pelos bispos e pelos cavaleiros seus amigos, que se serviam dele para aumentarem o seu poder. Pus fim ao seu discurso e disse-lhe que naquela noite o meu mestre queria ler uns livros na cela e desejava comer lá em cima.

 

- É cá comigo – disse -, faço um pastelzinho de queijo.

 

- Como é?

 

- Facilis. Pegas no queijo que não seja demasiado velho, nem demasiado salgado, e cortado em fatias, em bocados quadrados ou sicut te agradar. Et postea porás um pouco de manteiga, ou melhor, de banha fresca à rechauffer sobre a brasia. E dentro vamos a pôr duas fatias de queijo, e quando te parecer que está quente, zucharum et canela supra positurum du bis. E manda-o imediatamente in tabula, que se que comido quente.

 

- Vai pelo pastelzinho de queijo - disse-lhe.

 

E ele desapareceu em direção às cozinhas, dizendo-me que o esperasse. Chegou meia hora depois com um prato coberto com um pano. O cheiro era bom.

 

- Toma - disse-me, e estendeu-me também uma grande candeia cheia de azeite.

 

- Para fazer o quê? - perguntei.

 

- Sais pas, moi - disse com ar manhoso. - Fileisch o teu magiste quer ir ao lugar escuro esta noite.

 

Salvador sabia evidentemente mais do que eu suspeitava. Não investiguei o quê, e levei a comida a Guilherme. Comemos, e eu retirei-me para minha cela. Ou, pelo menos, fingi. Queria ainda encontrar Ubertino, e as escondidas entrei na Igreja.

 

TERCEIRO DIA

DEPOIS DE COMPLETAS

 

Onde Ubertino conta a Adso a História de frei Dolcino, Adso evoca ou lê outras histórias na biblioteca por sua conta e depois sucede que tem um encontro com uma rapariga bela e terrível como um exército alinhado para a batalha.

 

De fato encontrei Ubertino ao pé da estátua da Virgem. Uni-me silenciosamente a ele e, por um momento, fingi (confesso-o) que rezava. Depois atrevi-me a falar-lhe.

 

- Padre santo - disse-lhe -, posso pedir-lhe luz e conselho?

 

Ubertino olhou para mim, tomou-me pela mão e levantou-me, conduzindo-me a sentar-me com ele numa cadeira. Estreitou-me nos seus braços, e pude sentir o seu hálito no meu rosto.

 

- Filho caríssimo - disse -, tudo aquilo que este pobre velho pecador puder fazer pela tua alma, será feito com alegria. Que te perturba? As ânsias, não é verdade? - perguntou quase com ânsia ele também. - As ânsias da carne?

 

- Não - respondi corando -, quando muito as ânsias da mente, que quer conhecer demasiadas coisas...

 

- E é mal. O Senhor conhece as coisas, a nós cabe apenas adorar a sua sapiência.

 

- Mas a nós cabe também distinguir o bem do mal e compreender as paixões humanas. Sou noviço, mas serei monge e sacerdote, e tenho de aprender onde está o mal e que aspecto tem, para um dia o reconhecer e para ensinar os outros a reconhecê-lo.

 

- Isso é justo, rapaz. E então que queres conhecer?

 

- A planta má da heresia, padre - disse com convicção. E depois, tudo de uma vez: - Ouvi falar de um homem malvado que seduziu outros, frei Dolcino.

 

Ubertino ficou em silêncio. Depois disse:

 

- É justo, ouviste-nos fazer-lhe referência uma noite destas com frade Guilherme. Mas é uma história muito triste, de que me faz mal falar, porque ensina (sim, neste sentido deverás sabê-la, para tirar dela um útil ensinamento), porque ensina, dizia, como do amor de penitência e do desejo de purificar o mundo pode nascer sangue e extermínio.

 

Sentou-se melhor, alargando o seu abraço em volta dos meus ombros, mas mantendo sempre uma mão no meu pescoço, como para me comunicar não sei se a sua sapiência ou o seu ardor.

 

- A história começa antes de frei Dolcino – disse -, há mais de sessenta anos, e eu era uma criança. Foi em Parma. Ali começou a pregar um certo Gerardo Segalelli, que convidava todos à vida de penitência e percorria as estradas gritando «penitenciagite!», que era o seu modo de homem inculto para dizer: «Penitentiam agite, appropinquabit enim regnum coelorum.» Convidava os seus discípulos a tornarem-se semelhantes aos apóstolos, e quis que a sua seita fosse denominada na ordem dos apóstolos e que os seus percorressem o mundo como pobres mendicantes vivendo só de esmolas...

 

- Como os fraticelli - disse. - Não era este o mandato de Nosso Senhor e do vosso Francisco?

 

- Sim - admitiu Ubertino com uma ligeira hesitação na voz e com um suspiro. - Mas provavelmente Gerardo exagerou. Ele e os seus foram acusados de já não reconhecerem a autoridade dos sacerdotes, a celebração da missa, a confissão, e de vagabundearem no ócio.

 

- Mas também foram acusados disso os franciscanos espirituais. E não dizem hoje os menoritas que não se deve reconhecer a autoridade do papa?

 

- Sim, mas não a dos sacerdotes. Nós próprios somos sacerdotes. Meu rapaz, é difícil distinguir nestas coisas. A linha que divide o bem do mal e tão sutil... De qualquer modo, Gerardo errou e manchou-se de heresia... Pediu para ser admitido na ordem dos menores, mas os nossos irmãos não o aceitaram. Passava os dias na igreja dos nossos frades, e ali viu pintados os apóstolos com sandálias nos pés e capas em volta dos ombros, e assim deixou crescer os cabelos e a barba, pôs sandálias nos pés e a corda dos frades menores, porque seja quem for que queira fundar uma nova congregação vai sempre buscar alguma coisa à ordem do beato Francisco.

 

- Mas então estava na verdade...

 

- Mas errou nalguma coisa... Vestido com um manto branco sobre uma túnica branca e com os cabelos compridos conquistou entre os simples fama de santidade. Vendeu uma casita que tinha e, recebido o pagamento, subiu a uma pedra de onde, em tempos antigos, as autoridades costumavam pregoar, e, com o saquinho das moedas na mão, não as espalhou nem as deu aos pobres, mas, tendo chamado uns malandros que jogavam ali perto, espalhou-as entre eles dizendo: «Que as leve quem quiser», e aqueles malandros pegaram no dinheiro e foram jogá-lo aos dados, e blasfemavam contra Deus vivo, e ele, que tinha dado, ouvia e não corava.

 

- Mas Francisco também se despojou de tudo, e ouvi hoje a Guilherme que foi pregar a gralhas e gaviões, e também aos leprosos, isto é, à ralé, que o povo dos que se diziam virtuosos mantinha à margem...

 

- Sim, mas Gerardo nalguma coisa errou, Francisco nunca entrou em choque com a Santa Igreja, e o Evangelho manda dar aos pobres, não aos malandros. Gerardo deu e não recebeu nada em troca, porque tinha dado a gente má, e teve mau princípio, mau prosseguimento e mau fim, porque a sua congregação foi condenada pelo papa Gregório X.

 

- Provavelmente – disse - era um papa menos clarividente que aquele que aprovou a regra de Francisco...

 

- Sim, mas nalguma coisa Gerardo errou, e Francisco, pelo contrário, sabia bem o que fazia. E enfim, rapaz, estes guardadores de porcos e de vacas que de um dia para o outro se tornam pseudo-apóstolos queriam, beatamente e sem suor, viver das esmolas daqueles que os frades menores tinham educado com tanta fadiga e com tão heróico exemplo de pobreza! Mas não se trata disso - acrescentou logo -, é que para se assemelhar aos apóstolos, que ainda eram judeus, Gerardo Segalelli fez-se circuncidar, o que vai contra as palavras de Paulo aos Gálatas, e tu sabes que muitas e santas pessoas anunciam que o Anticristo futuro virá do povo dos circuncisos... Mas Gerardo fez pior, andava reunindo os simples e dizia: «Vinde comigo à vinha», e aqueles que não o conheciam entravam com ele na vinha alheia, julgando-a sua, e comiam as uvas dos outros...

 

- Não devem ter sido os frades menores a defender a propriedade dos outros - disse impudentemente.

 

Ubertino fixou-me com olhar severo:

 

- Os frades menores pedem para ser pobres, mas nunca pediram aos outros que fossem pobres. Não se pode impunemente atentar contra a propriedade dos bons cristãos, os bons cristãos apontar-te-ão como um bandido. E assim aconteceu a Gerardo. De quem disseram, enfim (repara eu não sei se é verdade, e confio nas palavras de frade Salimbene, que conheceu aquela gente), que, para pôr à prova a sua força de vontade e a sua continência, dormiu com algumas mulheres sem ter relações sexuais; mas, quando os seus discípulos tentaram imitá-lo, os resultados foram bem diversos... Oh, não são coisas que deva saber um rapaz, a fêmea é baixel do demônio... Gerardo continuava a gritar «penitenciagite», mas um seu discípulo, um certo Guido Putagio, procurou tomar a direção do grupo, e andava com grande pompa com muitas cavalgaduras e fazia grandes despesas e banquetes como os cardeais da Igreja de Roma. E depois houve rixas entre eles pelo comando da seita, e aconteceram coisas de grande torpeza. E no entanto muitos vieram junto de Gerardo, não só camponeses, mas também gente das cidades, inscritos nas artes, e Gerardo mandava-os despir a fim de que nus seguissem Cristo nu, e mandava-os pelo mundo a pregar, mas ele, para si, mandou fazer uma veste sem mangas, branca, de tecido grosso, e assim vestido mais parecia um bufão que um religioso! Viviam ao ar livre, mas por vezes subiam aos púlpitos das igrejas interrompendo a assembléia do povo devoto e expulsando os pregadores, e uma vez puseram um menino no trono episcopal da igreja de Sant Orso, em Ravena. E diziam-se herdeiros da doutrina de Joaquim de Fiore...

 

- Mas também os franciscanos – disse -, também Gerardo de Borgo San Donnino, também vós o disseste! - exclamei.

 

- Acalma-te, rapaz. Joaquim de Fiore foi um grande profeta e foi o primeiro a compreender que Francisco havia de marcar a renovação da Igreja. Mas os pseudo-apóstolos usaram a sua doutrina para justificar as suas loucuras, Segalelli trazia consigo uma «apóstola», uma certa Tripia ou Ripia, que tinha a pretensão de ter o dom da profecia. Uma mulher, compreendes?

 

- Mas, padre - tentei objetar -, vós mesmo faláveis há dias da santidade de Clara de Montefalco e de Angela de Foligno...

 

- Essas eram santas! Viviam na humildade reconhecendo o poder da Igreja, nunca se arrogaram o dom da profecia! Pelo contrário, os pseudo-apóstolos asseveravam que as mulheres também podiam andar de cidade em cidade a pregar, como fizeram muitos outros hereges. E já não conheciam diferença alguma entre solteiros e casados, nem voto algum voltou a ser considerado perpétuo. Em resumo, para não te aborrecer demasiado com histórias tristíssimas cujos pormenores não podes compreender bem, o bispo Obizzo de Parma decidiu finalmente pôr Gerardo a ferros. Mas aqui aconteceu uma coisa estranha, que te diz como é fraca a natureza humana e insidiosa a planta da heresia. Porque, finalmente, o bispo libertou Gerardo e acolheu-o junto de si, à sua mesa, e ria com as suas piadas, e conservava-o como seu bufão.

 

- Mas porquê?

 

- Não sei, ou receio sabê-lo. O bispo era nobre e não gostava dos mercadores e dos artesãos da cidade. Talvez não lhe desagradasse que Gerardo, com as suas prédicas de pobreza, falasse contra eles e passasse do pedido de esmola à rapina. Mas finalmente interveio o papa, e o bispo voltou à sua justa severidade, e Gerardo acabou na fogueira como herege impenitente. Era o início deste século.

 

- E que tem a ver com estas coisas frei Dolcino?

 

- Tem, e isto diz-te como a heresia sobrevive à própria destruição dos hereges. Este Dolcino era bastardo de um sacerdote que vivia na diocese de Novara, nesta parte da Itália, um pouco mais a setentrião. Alguém disse que nasceu noutro lugar, no vale do Ossola, ou em Romagnano. Mas pouco importa. Era um jovem de agudíssimo engenho e foi educado nas letras, mas roubou o sacerdote que se ocupava dele e fugiu para oriente, para a cidade de Trento. E ali retomou as pregações de Gerardo, de modo ainda mais herético, afirmando ser o único verdadeiro apóstolo de Deus, e que todas as coisas deviam ser comuns no amor, e que era lícito andar indiferentemente com todas as mulheres, pelo que ninguém podia ser acusado de concubinato, mesmo que andasse com a mulher e com a filha...

 

- Pregava verdadeiramente essas coisas ou foi acusado disso? Porque ouvi dizer que os espirituais também foram acusados de crimes como aqueles frades de Montefalco...

 

- De hoc satis - interrompeu bruscamente Ubertino. - Esses já não eram frades. Eram hereges. E precisamente conspurcados por Dolcino. E por outro lado, escuta, basta saber aquilo que Dolcino fez depois para o definir como malvado. Como chegou ao conhecimento das teorias dos pseudo-apóstolos não faço a menor idéia. Provavelmente passou por Parma, quando jovem, e ouviu Gerardo. Sabe-se que manteve contato na província de Bolonha com aqueles hereges depois da morte de Segalelli. Mas ao certo sabe-se que iniciou a sua pregação em Trento. Ali, seduziu uma rapariga lindíssima e de família nobre, Margarida, ou ela seduziu-o a ele, como Heloísa seduziu Abelardo, porque, recorda-te, é através da mulher que o diabo penetra no coração dos homens! Nessa altura, o bispo de Trento expulsou-o da sua diocese, mas Dolcino já tinha reunido mais de mil sequazes, e iniciou a sua marcha que o reconduziu às terras onde tinha nascido. E ao longo do caminho juntavam-se-lhe outros ingênuos, seduzidos pelas suas palavras, e provavelmente juntaram-se-lhe muitos hereges valdenses que habitavam as montanhas por onde passava, ou ele queria reunir-se aos valdenses dessas terras a setentrião. Chegando à província de Novara, Dolcino encontrou um ambiente favorável à sua revolta, porque os vassalos que governavam o país de Gattinara em nome do bispo de Vercelli tinham sido expulsos pela população, que acolheu portanto os bandidos de Dolcino como bons aliados.

 

- Que tinham feito os vassalos do bispo?

 

- Não sei, e não me compete a mim julgá-lo. Mas, como vês, a heresia casa-se com a revolta contra os senhores, em muitos casos, e por isso o herege começa a pregar a dona pobreza e depois cai presa de todas as tentações do poder, da guerra, da violência. Havia uma luta entre famílias na cidade de Vercelli, os pseudo-apóstolos aproveitaram-se disso, e estas famílias valeram-se da desordem trazida pelos pseudo-apóstolos. Os senhores feudais recrutavam aventureiros para roubar os citadinos, e os citadinos pediam a proteção do bispo de Novara.

 

- Que história complicada. Mas Dolcino com quem estava?

 

- Não sei, participava por si próprio, tinha-se inserido em todas estas disputas e dai tirava ocasião para pregar a luta contra a propriedade alheia em nome da pobreza. Dolcino acampou com os seus, que eram então três mil, num monte próximo de Novara, chamado da Parede Calva, e construíram pequenos castelos e habitáculos, e Dolcino dominava sobre toda aquela multidão de homens e mulheres que viviam na promiscuidade mais vergonhosa. Dali enviava cartas aos seus fiéis, em que expunha a sua doutrina herética. Dizia e escrevia que o seu ideal era a pobreza, e que não estavam ligados por nenhum vínculo de obediência exterior, e que ele, Dolcino, tinha sido mandado por Deus para desselar as profecias e compreender as escrituras do Antigo e do Novo Testamento. E chamava ministros do diabo aos clérigos seculares, pregadores e frades menores, e desobrigava qualquer um do dever de lhes obedecer. E distinguia quatro idades da vida do povo de Deus: a primeira do Antigo Testamento, dos patriarcas e dos profetas, antes da vinda de Cristo, em que o matrimônio era bom porque a gente se devia multiplicar; a segunda a idade de Cristo e dos apóstolos, e foi a época da santidade e da castidade; depois veio a terceira, em que os pontífices tiveram a principio de aceitar as riquezas terrenas para poder governar o povo, mas quando os homens começaram a afastar-se do amor de Deus veio Bento, que falou contra toda a possessão temporal; quando depois os monges de Bento voltaram também a acumular riquezas, vieram os frades de São Francisco e de São Domingos, ainda mais severos do que Bento na pregação contra o domínio e a riqueza terrena. Mas, enfim, agora, que a vida de tantos prelados de novo contradizia todos aqueles bons preceitos, tinha-se chegado ao fim da terceira idade e era necessário converter-se aos ensinamentos dos apóstolos.

 

- Mas então Dolcino pregava aquelas coisas que tinham pregado os franciscanos, e entre os franciscanos precisamente os espirituais, e vós mesmo, padre!

 

- Oh, sim, mas tirava daí um pérfido silogismo! Dizia que para pôr fim a esta terceira idade da corrupção era necessário que todos os clérigos, os monges e os frades morressem de morte crudelíssima; dizia que todos os prelados da Igreja, os clérigos, as monjas, os religiosos e as religiosas e todos aqueles que fazem parte das ordens dos pregadores e dos frades menores, dos eremitas, e do próprio papa Bonifácio deveriam ser exterminados pelo imperador escolhido por ele, Dolcino, e este seria Frederico da Sicília.

 

- Mas não foi precisamente Frederico que acolheu na Sicília com favor os espirituais expulsos da Umbria, e não são os menoritas que pedem precisamente que o imperador, ainda que agora seja Luís, destrua o poder temporal do papa e dos cardeais?

 

- É próprio da heresia, ou da loucura, transtornar os pensamentos mais retos e levá-los a conseqüências contrárias à lei de Deus e dos homens. Os menoritas nunca pediram ao imperador que matasse os outros sacerdotes.

 

Enganava-se, sei-o agora. Porque, quando alguns meses depois, o Bávaro instaurou a sua própria ordem em Roma, Marsílio e outros menoritas fizeram aos religiosos fiéis ao papa precisamente aquilo que Dolcino pedia que se fizesse. Com isto não quero dizer que Dolcino estivesse na verdade sendo justo, mas em todo o caso, diria que Marsílio estava equivocado. Mas eu começava a perguntar-me, especialmente depois do colóquio daquela tarde com Guilherme, como era possível aos simples que seguiam Dolcino distinguir entre as promessas dos espirituais e a aplicação que lhes dava Dolcino. Acaso não era ele culpado de pôr em prática aquilo que homens reputados como ortodoxos tinham pregado por via puramente mística? Ou, talvez ali estivesse a diferença, a santidade consistia em esperar que Deus nos desse aquilo que os seus santos tinham prometido, sem procurar obtê-lo por meios terrenos? Agora sei que é assim e sei porque Dolcino estava em erro não se deve transformar a ordem das coisas, ainda que se deva esperar fervorosamente na sua transformação. Mas naquela noite era dominado por pensamentos contraditórios.

 

- Enfim - dizia-me Ubertino -, a marca da heresia encontrá-la-á sempre na soberba. Numa segunda carta, Dolcino, no ano de mil trezentos e três, nomeava-se chefe supremo da congregação apostólica, nomeava como seus lugares-tenentes a pérfida Margarida (uma mulher) e Longino de Bérgamo, Frederico de Novara, Alberto Carentino e Valderico de Brescia. E começava a divagar sobre uma seqüência de papas futuros, dois bons, o primeiro e o último, dois maus, o segundo e o terceiro. O primeiro é Celestino, o segundo é Bonifácio VIII, de quem os profetas dizem: «A soberba do teu coração te infamou, ó tu que habitas nas fendas das rochas.» O terceiro papa não é nomeado, mas Jeremias dele teria dito: «Ei-lo, qual leão.» E, infâmia, Dolcino reconhecia o leão em Frederico da Sicília. O quarto papa para Dolcino era ainda desconhecido, e deveria ser o papa santo, o papa angélico de que falava o abade Joaquim. Deveria ser eleito por Deus, e então Dolcino e todos os seus (que naquela altura eram já quatro mil) receberiam em conjunto a graça do Espírito Santo, e a Igreja seria assim renovada até ao fim do mundo. Mas nos três anos que precediam a sua vinda todo o mal deveria ser consumado. E foi isso o que procurou fazer Dolcino, levando a guerra a toda a parte. E o quarto papa, e aqui se vê como o demônio joga com os seus súcubos, foi precisamente Clemente V, que proclamou a cruzada contra Dolcino. E foi justo, porque, naquelas cartas, Dolcino já defendia teorias inconciliáveis com a ortodoxia. Ele afirmou que a Igreja Romana é uma meretriz, que não deve obediência aos sacerdotes, que todo o poder espiritual tinha doravante passado para a seita dos apóstolos, que só os apóstolos formam a nova Igreja, que os apóstolos podem anular o matrimônio, que ninguém, poderá ser salvo se não fizer parte da seita, que nenhum papa pode absolver do pecado, que não se devem pagar as décimas, que é vida mais perfeita viver sem votos do que com votos, que uma igreja consagrada não vale nada para a oração, não mais do que um estábulo, e que se pode adorar Cristo nos bosques e nas igrejas.

 

- Disse verdadeiramente essas coisas?

 

- Decerto, isto é seguro, escreveu-as. Mas fez infelizmente pior. Logo que tomou posição na Parede Calva, começou a saquear as aldeias do vale, a fazer incursões para arranjar abastecimentos, conduzindo em suma uma autêntica guerra contra os sítios vizinhos.

 

- Todos contra ele?

 

- Não se sabe. Provavelmente recebeu apoios de alguns, disse-te que se tinha inserido num nó inextricável de discórdias locais. Tinha caído entretanto o Inverno de mil trezentos e cinco, um dos mais rigorosos dos últimos decênios, e havia por toda a parte uma grande penúria. Dolcino enviava uma terceira carta aos seus sequazes, e muitos ainda se lhe juntavam, mas lá em cima a vida tinha-se tornado impossível e chegaram a uma fome tal que comiam a carne dos cavalos e de outros animais e feno cozido. E muitos morreram por isso.

 

- Mas contra quem se batiam agora?

 

- O bispo de Vercelli tinha apelado para Clemente V, e tinha sido proclamada uma cruzada contra os hereges. Foi estabelecida uma indulgência plenária para quem quer que nela participasse, foram solicitados Luis de Sabóia, os inquisidores da Lombardia, o arcebispo de Milão. Muitos pegaram na cruz para ajudarem os vercelenses e os novarenses, mesmo da Sabóia, da Provença, da França, e o bispo de Vercelli teve o comando supremo. Eram contínuos os reencontros entre as vanguardas dos dois exércitos, mas as fortificações de Dolcino eram inexpugnáveis, e, de uma maneira ou de outra, os ímpios recebiam socorros.

 

- De quem?

 

- De outros ímpios, creio, que tiravam satisfação daquela fonte de desordem. Ao findar o ano de mil trezentos e cinco, o heresiarca foi obrigado porém a abandonar a Parede Calva deixando os feridos e os doentes, e transferiu-se para o território de Trivero, onde se entrincheirou num monte que então se chamava Zubello e que dali em diante passou a dizer-se Rubello ou Rebello, porque se tinha tornado a fortaleza dos rebeldes à Igreja. Em suma, não te posso contar tudo aquilo que aconteceu, e foram massacres terríveis. Mas no fim os rebeldes foram obrigados a render-se, Dolcino e os seus foram capturados e acabaram com justiça na fogueira.

 

- A bela Margarida também?

 

Ubertino olhou para mim:

 

- Recordaste-te que era bela, não é verdade? Era bela, dizem, muitos senhores do lugar pensaram fazer dela sua esposa para a salvarem da fogueira. Mas ela não quis, morreu impenitentemente com o impenitente do seu amante. E que isto te sirva de lição, livra-te da meretriz da Babilônia, mesmo quando assume a forma da criatura mais delicada.

 

- Mas agora dizei-me padre. Sei que o despenseiro do convento, e talvez também Salvador, encontraram Dolcino e estiveram com ele de alguma maneira...

 

- Cala-te, e não pronuncies juízos temerários. Conheci o despenseiro num convento de menoritas. Depois dos fatos que se relacionam com a história de Dolcino, é verdade. Muitos espirituais naqueles anos, antes de decidirmos encontrar refúgio na ordem de São Bento, tiveram uma vida agitada, e tiveram de deixar os seus conventos. Não sei onde terá estado Remígio antes de eu o encontrar. Sei que foi sempre um bom frade, ao menos do ponto de vista da ortodoxia. Quanto ao resto, ai de mim, a carne é fraca...

 

- Que pretendeis dizer?

 

- Não são coisas que devas saber. Pois bem, em suma, já que falamos disso, e tens de poder distinguir o bem do mal... – hesitou ainda - dir-te-ei que ouvi murmurar aqui, na abadia, que o despenseiro não sabe resistir a certas tentações... Mas são murmurações. Porem deves aprender a nem sequer pensar nestas coisas. - Puxou-me de novo para si, abraçando-me com força, e indicou-me a estátua da Virgem: - Tu deves iniciar-te no amor sem mácula. Eis aquela em que a feminilidade foi sublimada. Por isso, dela podes dizer que é bela, como a amada do cântico dos Cânticos. Nela - disse com o rosto arrebatado por um gáudio interior, precisamente como o Abade no dia em que falou das gemas e do ouro dos seus vasos -, nela até a graça do corpo se faz sinal das belezas celestes e por isso o escultor a representou com todas as graças de que a mulher deve ser adornada. - Indicou-me o busto delicado da Virgem, erguido e apertado por um corpete atado ao centro com cordões, com que brincavam as pequenas mãos do Menino. – Vês? Pulchra enim sunt ubera quae paululum supereminent et tument modice, nec fluitantia licenter, sed leniter restricta, repressa sed non depressa... Que sentes diante desta dulcíssima visão?

 

Corei violentamente, sentindo-me agitado como por um fogo interior. Ubertino deve tê-lo percebido, ou talvez reparasse no ardor das minhas faces, porque logo acrescentou:

 

- Mas deves aprender a distinguir o fogo do amor sobrenatural do deliquo dos sentidos. É difícil até para os santos.

 

- Mas como se reconhece o amor bom? - perguntei, tremendo.

 

- Que é o amor? Não há nada no mundo, nem homem nem diabo, nem coisa alguma, que eu considere tão suspeito como o amor, que este penetra na alma mais que qualquer outra coisa. Não existe nada que tanto ocupe e ligue o coração como o amor. Por isso, a menos que tenha as armas que a governam, a alma precipita-se por amor numa imensa ruína. E eu creio que, sem as seduções de Margarida, Dolcino não se teria condenado, e sem a vida proterva e promíscua da Parede Calva muitos não teriam sentido o fascínio da sua rebelião. Repara, eu não te digo estas coisas apenas do amor nocivo, que naturalmente deve ser evitado por todos como coisa diabólica, eu digo isto, e com grande medo, mesmo do amor bom que corre entre Deus e o homem, entre o homem e o seu próximo. Freqüentemente acontece que dois ou três, homens ou mulheres, se amem muito cordialmente e nutram uns pelos outros uma singular afeição, e desejem viver sempre juntos, e quando uma parte deseja a outra quer. Aí confesso-te que um sentimento deste gênero experimentei-o eu por mulheres virtuosas como Angela e Clara. Pois bem, também isto é bastante reprovável, ainda que se faça espiritualmente e por Deus... Porque mesmo o amor sentido pela alma, se não está armado mas é acolhido com calor, vem depois a cair, ou então opera desordenadamente. Oh, o amor tem diversas propriedades, a princípio por ele a alma se enternece, depois cai enferma... Mas depois pressente o calor verdadeiro do amor divino e grita, e lamenta-se, faz-se pedra metida na fornalha para se desfazer em cal, e crepita lambida pela chama...

 

- E esse é o amor bom?

 

Ubertino acariciou-me a cabeça, e quando o olhei vi que tinha os olhos enternecidos de lágrimas:

 

- Sim, este é enfim amor bom. - Retirou a mão dos meus ombros. - Mas como é difícil - acrescentou -, como é difícil distingui-lo do outro. E, por vezes, quando a tua alma é tentada pelos demônios sentes-te como o homem enforcado pela garganta que, de mãos atadas atrás das costas e olhos vendados, permanece suspenso da forca e no entanto vive, sem nenhum auxilio, sem nenhum apoio, sem nenhum remédio, a girar no vazio... - O seu rosto já não estava banhado apenas pelo pranto, mas por uma camada de suor. - Agora vai-te embora - disse-me à pressa -, disse-te aquilo que querias saber. Por aqui o coro dos anjos, por ali a garganta do inferno. Vai, e seja louvado o Senhor.

 

Prostrou-se de novo diante da Virgem, e ouvi-o soluçar baixinho. Rezava.

 

Não saí da igreja. O colóquio com Ubertino tinha-me introduzido no espírito e nas vísceras um estranho fogo e uma indizível inquietação. Talvez por isso me achei inclinado à desobediência e decidi voltar sozinho à biblioteca. Nem eu sequer sabia o que procurava. Queria explorar sozinho um lugar ignoto, fascinava-me a idéia de me poder orientar sem a ajuda do meu mestre. Ali subi como Dolcino tinha subido ao monte Rubello.

 

Tinha comigo a candeia (porque a tinha levado?, já nutria talvez esse desígnio secreto?), e penetrei no ossário quase de olhos fechados Em pouco tempo cheguei ao scriptorium.

 

Era uma noite fatal, creio, porque, enquanto revistava as mesas, descobri uma sobre a qual estava aberto um manuscrito que um monge copiava naqueles dias. O título atraiu-me logo: Historia fratris Dulcini Heresiarche. Creio que era a mesa de Pedro de Sant Albano, de quem me tinham dito que estava a escrever uma monumental história da heresia (depois do que aconteceu na abadia naturalmente que já não a escreveu... mas não antecipemos os eventos). Não era pois anormal que ali estivesse aquele texto, e outros havia de assunto afim, sobre os patarinos e sobre os flagelantes. Mas tomei como um sinal sobrenatural, não sei ainda se celeste ou diabólico, aquela circunstância, e pus-me a ler avidamente o escrito. Não era muito longo, e na primeira parte dizia, com muitos outros pormenores que esqueci, o que me tinha dito Ubertino. Ai se falava também dos numerosos delitos cometidos pelos dolcinianos durante a guerra e o assédio. E da batalha final, que foi das mais cruentas. Mas aí encontrei também aquilo que Ubertino não me tinha contado, e dito por quem evidentemente tinha visto tudo e com isso tinha ainda a imaginação inflamada.

 

Soube portanto como em Março de 1307, em sábado santo, Dolcino, Margarida e Longino, finalmente presos, foram conduzidos à cidade de Biella e entregues ao bispo, que esperava a decisão do papa. O papa, logo que soube a notícia, transmitiu-a ao rei de França, Filipe, escrevendo: «Chegaram-nos notícias muitíssimo agradáveis, fecundas de alegria e exultação, porque aquele demônio pestífero, filho de Belial, e horrendíssimo heresiarca Dolcino, depois de longos perigos, fadigas, massacres e freqüentes incursões com os seus sequazes, está finalmente prisioneiro nos nossos cárceres, por obra do nosso venerável irmão Raniero, bispo de Vercelli, capturado no dia da santa ceia do Senhor, e a numerosa gente que estava com ele, infectada pelo contágio, foi morta naquele mesmo dia.» O papa foi impiedoso em relação aos prisioneiros e ordenou ao bispo que lhes desse a morte. Então, em Julho do mesmo ano, no primeiro dia do mês, os hereges foram entregues ao braço secular. Enquanto os sinos da cidade tocavam a rebate, foram postos em cima de um carro, circundados pelos carrascos e seguidos pela milícia, que percorreu toda a cidade, enquanto, a cada esquina, com tenazes em brasa, rasgavam as carnes aos réus. Margarida foi a primeira a ser queimada diante de Dolcino,que não moveu um único músculo do rosto, tal como não tinha soltado um lamento quando as tenazes lhe mordiam os membros. Depois o carro continuou o seu caminho, enquanto os carrascos enfiavam os seus ferros em vasos cheios de fachos ardentes. Dolcino sofreu outros tormentos, e ficou sempre mudo, salvo quando lhe amputaram o nariz, porque encolheu um pouco os ombros, e quando lhe arrancaram o membro viril, pois nessa altura lançou um longo suspiro, como um gemido. As últimas coisas que disse soaram a impenitência, e advertiu que ressuscitaria ao terceiro dia. Depois foi queimado, e as cinzas foram dispersas ao vento.

 

Fechei o manuscrito com as mãos a tremer. Dolcino tinha cometido muitos delitos, tinham-me dito, mas tinha sido horrorosamente queimado. E tinha-se comportado na fogueira... como?, com a firmeza dos mártires ou com a arrogância dos danados? Enquanto subia vacilando as escadas que levavam à biblioteca, compreendi porque estava tão perturbado. Lembrei-me de repente de uma cena que tinha visto não muitos meses antes, pouco depois da minha chegada à Toscana. Perguntava-me mesmo como é que a tinha quase esquecido até então, como se a minha alma doente tivesse querido apagar uma recordação que lhe pesava como um pesadelo. Ou melhor, não a tinha esquecido, porque cada vez que ouvia falar dos fraticelli revia imagens daquele acontecimento, mas logo as rechaçava para os recantos do meu espírito, como se fosse um pecado ter sido testemunha daquele horror.

 

Tinha ouvido falar pela primeira vez de fraticelli nos dias em que, em Florença, tinha visto queimar um na fogueira. Tinha sido pouco antes de encontrar em Pisa frade Guilherme. Ele estava demorando a sua chegada àquela cidade, e meu pai tinha-me dado licença para visitar Florença, cujas belíssimas igrejas tínhamos ouvido elogiar. Tinha vagueado pela Toscana, para aprender melhor a língua vulgar italiana, e tinha finalmente ficado uma semana em Florença, porque tinha ouvido falar muito daquela cidade e desejava conhecê-la.

 

Foi assim que, mal ali cheguei, ouvi falar de um grande caso que estava agitando toda a cidade. Um fraticello herético, acusado de delitos contra a religião, e levado à presença do bispo e outros eclesiásticos, era naqueles dias submetido a severa inquisição. E, seguindo aqueles que me falavam disso, encaminhei-me até ao lugar onde se desenrolava o evento, enquanto ouvia a gente dizer que aquele fraticello, de nome Miguel, era em verdade um homem muito piedoso, que tinha pregado penitência e pobreza, repetindo as palavras de São Francisco, e tinha sido arrastado diante dos juízes pela malícia de certas mulheres que, fingindo confessar-se a ele, lhe tinham depois atribuído propostas heréticas; e, mais, tinha sido apanhado pelos homens do bispo precisamente em casa daquelas mulheres, fato esse que me espantava, porque um homem da Igreja não deveria ir administrar os sacramentos em lugares tão pouco adequados, mas esta parecia ser a fraqueza dos fraticelli, não terem na devida consideração as conveniências, e talvez houvesse algo de verdadeiro na voz do povo, que os achava, além de hereges, de costumes duvidosos (tal como se continuava a dizer que os cátaros eram búlgaros e sodomitas).

 

Cheguei à igreja de São Salvador, onde se desenrolava o processo, mas não pude entrar por causa da grande multidão que estava em frente. Porém, alguns tinham-se içado e agarrado às grades das janelas, e viam e ouviam quando ali se passava, e contavam-no aos outros que se encontravam em baixo. Estavam então relendo a frade Miguel a confissão que tinha feito no dia anterior, em que dizia que Cristo e os seus apóstolos «não tiveram nenhuma coisa nem em particular nem em comum por razão de propriedade», mas Miguel protestava que o tabelião lhe tinha acrescentado agora «muitas falsas conseqüências» e gritava (e isto ouvi-o de fora): «Haveis de prestar contas disto no dia do Juízo!» Mas os inquisidores leram a confissão como a tinham redigido e no fim perguntaram-lhe se queria humildemente conformar-se com as opiniões da Igreja e de todo o povo da cidade. E ouvi Miguel que gritava em voz alta que queria era conformar-se com aquilo em que acreditava, isto é, que «queria manter Cristo como pobre crucificado e o papa João XXII como herege, pois que dizia o contrário». Seguiu-se uma grande discussão, em que os inquisidores, entre os quais muitos franciscanos, queriam fazer-lhe compreender que as escrituras não tinham dito aquilo que ele dizia, e ele acusava-os de negarem a regra da sua própria ordem, e aqueles caíam-lhe em cima perguntando-lhe se porventura julgava entender as escrituras melhor do que eles, que eram mestres na matéria. E frei Miguel, deveras muito pertinaz, contestava-os, tanto que aqueles punham-se a atacá-lo com provocações como: «E agora queremos que tu mantenhas Cristo como se fosse proprietário e o Papa João como católico e santo.» E Miguel, não desistindo: «Não, herético.» E aqueles diziam que nunca tinham visto ninguém tão duro na própria iniqüidade. Mas entre a multidão fora do palácio ouvi muitos que diziam que ele era como Cristo entre os fariseus, e apercebi-me que entre o povo muitos acreditavam na santidade de frade Miguel.

 

Finalmente, os homens do bispo levaram-no de novo para a prisão e puseram-no a ferros. E à noite disseram-me que muitos dos frades amigos do bispo tinham ido insultá-lo e pedir-lhe que se retratasse, mas ele respondia como alguém que estivesse seguro da sua própria verdade. E repetia a todos que Cristo era pobre, e que o mesmo tinham dito também São Francisco e São Domingos, e que, se por professar esta reta opinião devia ser condenado ao suplício, tanto melhor, porque em breve poderia ver o que diziam as escrituras, e os vinte e quatro velhos do Apocalipse, e Jesus Cristo e São Francisco, e os gloriosos mártires. E disseram-me que disse: «Se lemos com tanto fervor a doutrina de certos santos abades com tanto mais fervor e alegria devemos desejar estar no meio deles.» E a palavras deste gênero os inquisidores saíam do cárcere de rosto sombrio gritando indignados (e eu ouvi-os): «Tem o diabo no corpo!»

 

No dia seguinte soubemos que a condenação tinha sido pronunciada, e dirigindo-me ao episcopado pude ver o pergaminho, e uma parte copiei-a na minha tabuinha.

 

Começava «In nomine Domini amen. Hec est quedam condemnatio corporalis et sententia condemnationis corporalis lata, data et in hiis criptis sententialiter pronumptiata et promulgata...», etcétera, e prosseguia com uma severa descrição dos pecados e das culpas do dito Miguel, que aqui em parte reproduzo para que o leitor julgue com prudência:

 

Johannem vocatum fratrem Micchaelem lacobi, de comitatu Sancti Fre-diani, hominem male condictionis, et pessime conversationis, vite et fame, hereticum et herética labe pollutum et contra fidem cactolicam credentem et affirmantem... Deum pre oculis non habendo sed potius humani generis inimicum, scienter, studiose, appensate, nequiter et animo et intentione, exer-cendi hereticam pravitatem stetit et conversatus fuit cum Fraticellis, vocatis fraticellis della povera vita hereticis et scismaticis et eorum pravam sectam et heresim secutus fuit et sequitur contra fidem cactolicam... et accessit ad dictam civitatem Florentie et in locis publicis dicte civitatis in dicta inquisi-tione contentis, credidit, tenuit et pertinaciter affirmavit ore eí corde... quod Christus redentor noster non habuit rem aliquam in proprio vel comuni sed habuit a quibuscumque rebus quas sacra scriptura eum habuisse testatur, tantum simplicem facti usum.

 

Mas não eram apenas estes os delitos de que era acusado, e um, entre outros, pareceu-me dos mais torpes, embora eu não saiba (tal como se desenrolou o processo) se ele terá na verdade afirmado tal coisa, mas dizia-se, em suma, que o dito menorita tinha defendido que São Tomás de Aquino não era santo nem gozava da eterna salvação, mas, pelo contrário, era condenado e em estado de perdição! E a sentença concluía cominando a pena, pois que o acusado não tinha querido emendar-se:

 

Costal nobis etiam ex predictis et ex dicta sententia lata per dictum do-minum episcopum florentinum, dictum Johannem fore hereticum, nolle se tantis herroribus et heresi corrigere et emendare, et se ad rectam viam fidei dirigiere, habentes dictum Johannem pro irreducibili, pertinace et hostinato in dictis suis perversis herroribus, ne ipse Johannes de dictis suis sceleribus et herroribus perversis valeat gloriari, et ut eius pena alus transeat in exemplum; idcirco, dictum Johannem vocatum fratrem Micchaelem hereticum et scismaticum quod ducatur ad locum iustitie consuetum, et ibidem igne et flammis igneis accensis concremetur et comburatur, ita quod penitus moria-tur et anima a corpore separetur.

 

E, depois que a sentença foi tornada pública, foram ainda homens da Igreja à prisão e advertiram Miguel daquilo que iria acontecer, e ouvi-os até dizer: «Frei Miguel, já estão feitas as mitras com as capas, e têm pintados fraticelli acompanhados por diabos.» Para o amedrontar e obrigá-lo enfim a retratar-se. Mas frade Miguel pôs-se de joelhos e disse: «Eu penso que à volta da fogueira estará o nosso padre Francisco e, digo mais, creio que ai estarão Jesus e os apóstolos, e os gloriosos mártires Bartolomeu e Antônio.» O que era um modo de recusar pela última vez as ofertas dos inquisidores.

 

Na manhã seguinte também eu estive na ponte do episcopado onde se tinham reunido os inquisidores, à presença dos quais foi levado, sempre acorrentado, frade Miguel. Um dos fiéis ajoelhou-se diante dele, para receber a bênção, e foi preso pelos homens de armas e conduzido imediatamente para a prisão. Depois, os inquisidores voltaram a ler a sentença ao condenado e perguntaram de novo se queria arrepender-se. Cada vez que a sentença dizia que ele era um herege, Miguel respondia «herege não sou, pecador, sim, mas católico», e quando o texto nomeava «o venerabilissimo e santíssimo papa João XXII» Miguel respondia «não, mas herege». Então o bispo ordenou que Miguel fosse ajoelhar-se diante dele, e Miguel disse que não se ajoelhava diante dos hereges. Obrigaram-no a ajoelhar-se à força, e ele murmurou: «Sou desculpado diante de Deus.» E, como tinha sido levado para ali com todos os seus paramentos sacerdotais, iniciou-se um rito em que peça a peça os paramentos lhe eram tirados, até que ficou apenas com aquele saiote que em Florença chamam cioppa. E como manda o uso para o padre que se desconsagra, com um ferro cortante rasparam-lhe as pontas dos dedos e raparam-lhe o cabelo. Depois foi confiado ao capitão e aos seus homens, que o trataram muito duramente e o puseram a ferros, levando-o de novo para o cárcere enquanto ele dizia à multidão: «Per Dominum moriemur.» Devia ser queimado, assim ouvi, só no dia seguinte. E nesse mesmo dia foram perguntar-lhe se queria confessar-se e comungar. E recusou cometer pecado aceitando os sacramentos de quem estava em pecado. E nisto, creio, fez mal, e mostrou-se corrompido pela heresia dos patarinos.

 

E chegou enfim a manhã do suplício, e foi buscá-lo um porta-bandeira que me pareceu pessoa amiga, porque lhe perguntou que espécie de homem era e porque se obstinava quando bastava afirmar aquilo que todo o povo afirmava e aceitar a opinião da Santa Madre Igreja. Mas Miguel duríssimo: «Eu creio em Cristo pobre crucificado.» E o porta-bandeira foi-se embora abrindo os braços. Chegaram então o capitão e os seus homens e levaram Miguel para o pátio onde estava o vigário do bispo, que lhe voltou a ler a confissão e a condenação. Miguel interveio ainda para contestar opiniões falsas que lhe eram atribuídas: e eram na verdade de tão grande sutileza que eu não as recordo e então não as compreendi bem. Mas sobre elas se decidia a morte de Miguel, decerto, e a perseguição dos fraticelli. De tal modo que eu não compreendia por que motivo homens da Igreja e do braço secular se encarniçavam tanto contra pessoas que queriam viver na pobreza e consideravam que Cristo não tinham tido bens terrenos. Porque, dizia para comigo, quando muito, deviam temer homens que querem, viver na riqueza e subtrair dinheiro aos outros, e levar a Igreja para o pecado e introduzir nela práticas de simonia. E falei disto a um que estava perto de mim, porque não resistia a ficar calado. E aquele sorriu trocista e disse-me que um frade que pratica a pobreza torna-se mau exemplo para o povo, que depois já não se habitua aos frades que não a praticam. E que, acrescentou, aquela pregação de pobreza metia idéias nocivas na cabeça do povo, que da sua pobreza retiraria razões de orgulho, e o orgulho pode levar a muitos atos orgulhosos. E enfim, que eu devia saber que nem sequer para ele era claro por meio de que silogismo, ao pregar a pobreza para os frades, se estava do lado do imperador, e isso não agradava ao papa. Pareceram-me todas ótimas razões, ainda que ditas por um homem de pouca doutrina. Salvo que, sendo assim, não compreendia por que motivo frei Miguel queria morrer tão horrendamente para satisfazer o imperador, ou resolver uma questão entre ordens religiosas. E, de fato, alguém entre os presentes dizia: «Não é um santo, foi enviado por Luís para semear a discórdia entre os citadinos, e os fraticelli são toscanos mas por trás deles estão os enviados do Império.» E outros: «Mas é um louco, esta possuído pelo demônio cheio de orgulho, e goza do martírio por danada soberba; obrigam estes frades a ler demasiadas vidas de santos, melhor seria que tomassem mulher!» E outros ainda: «Não, teríamos necessidade que todos os cristãos fossem assim, prontos a testemunhar a sua fé como no tempo dos pagãos.» E ao escutar aquelas vozes, quando já não sabia que pensar, aconteceu-me que pude ver de frente o condenado, que a espaços a multidão diante de mim escondia. E vi o rosto de alguém que olha alguma coisa que não é desta rerra, como algumas vezes vi nas estátuas dos santos arrebatados em visões. E compreendi que, fosse louco ou vidente, ele, lucidamente, queria morrer, porque acreditava que, morrendo havia de, derrotar o seu inimigo, fosse ele qual fosse. E compreendo que o seu exemplo levaria outros à morte. E apenas fiquei assombrado por tanta firmeza porque ainda hoje não sei se neles prevalece um amor orgulhoso pela verdade em que crêem, que os leva à morte, ou um orgulhoso desejo de morte, que os leva a testemunhar a sua verdade, qualquer que ela seja. E por isso me sinto arrebatado de admiração e temor.

 

Mas voltemos ao suplício, que já se estavam todos encaminhando para o lugar da condenação à morte.

 

O capitão e os seus levaram-no para fora da porta, com o saiote vestido, e parte dos botões desapertados, e ele andava com passo largo e a cabeça inclinada, recitando o seu ofício, que parecia um dos mártires. E a multidão era tanta que não se acreditava, e muitos gritavam: «Não morras!», e ele respondia: «Quero morrer por Cristo.» «Mas tu não morres por Cristo», diziam-lhe, e ele: «Mas pela verdade.» Chegando a um lugar chamado o canto do Proconsolo, um gritou-lhe que pedisse a Deus por todos eles, e ele abençoou a multidão. E nos Fondamenti de Santa Liperata um disse-lhe: «Que tolo que és, crê no papa!», e ele respondeu: «Fizestes um deus deste vosso papa», e acrescentou: «Estes vossos papados bem vos amanharam» (que era um jogo de palavras, ou chiste, que tornava os papas como animais, no dialeto toscano, como me explicaram): e todos se espantaram que fosse para a morte dizendo piadas.

 

Em San Giovanni gritaram-lhe: «Salva a vida!», e ele respondeu: «Salvai-vos dos pecados!»; no Mercaro Vecchio gritaram-lhe: «Salva-te, salva-te!», e ele respondeu: «Salvai-vos do inferno»; no Mercaro Nuovo bradaram-lhe: «Arrepende-te, arrepende-te!», e ele respondeu: «Arrependei-vos das usuras.» E chegando a Santa Croce viu os frades da sua ordem que estavam na escadaria e censurou-os porque não seguiam a regra de São Francisco. E alguns deles encolhiam os ombros, mas outros, envergonhados cobriam o rosto com o capucho.

 

E andando em direção à porta da Giustizia muitos diziam-lhe: «Nega, nega, não queiras morrer!», e ele: «Cristo morreu por nós.» E eles: «Mas tu não és Cristo, não deves morrer por nós!», e ele: «Mas eu quero morrer por Ele.» No prado da Giustizia, um disse-lhe se não podia fazer um certo frade seu superior que tinha negado, mas Miguel respondeu que não tinha negado, e vi muitos entre a multidão que concordavam e incitavam Miguel a ser forte assim, eu e muitos outros compreendemos que aqueles eram dos seus e apartamo-nos.

 

Chegou-se enfim fora da porta e diante de nós apareceu a pira, ou choupana, como ali lhe chamavam, porque a lenha era disposta em forma de cabana, e ai se fez um círculo de cavaleiros armados para que a gente não se aproximasse demasiado. E foi então que ataram frade Miguel à coluna. E ouvi ainda um gritar-lhe «Mas o que é isto, por quem queres morrer?», e ele respondeu «Esta é uma verdade que habita dentro de mim, da qual não se pode dar testemunho senão pela morte.» Acenderam o fogo. E frade Miguel, que já tinha entoado o Credo, entoou depois o Te Deum. Cantou talvez oito versos, depois dobrou-se, como se fosse espirrar, e caiu por terra, porque tinha ardido as cordas. E já estava morto, porque antes que o corpo arda de todo já se morre pelo grande calor, que faz rebentar o coração, e pelo fumo, que invade o peito.

 

Depois a cabana ardeu completamente como uma tocha e fez-se um grande clarão, e se não fosse pelo pobre corpo carbonizado de Miguel que ainda se via entre os paus incandescentes teria dito que estava diante da sarça ardente. E estive tão perto de ter uma visão que (recordei enquanto subia as escadas da biblioteca) me tinham subido espontaneamente aos lábios algumas palavras sobre o arrebatamento extático que tinha lido nos livros de Santa Hildegarda: «A chama consiste numa esplêndida claridade, num inato vigor e num ígneo ardor, mas a esplêndida claridade possui-a para reluzir e o ígneo ardor a fim de queimar.»

 

Recordei-me de algumas frases de Ubertino sobre o amor. A imagem de Miguel na fogueira confundiu-se com a de Dolcino, e a de Dolcino com a de Margarida, a Bela. Senti de novo aquela inquietação que me tinha invadido na igreja.

 

Tentei não pensar nisso e prossegui decididamente para o labirinto. Penetrava ali sozinho pela primeira vez, as longas sombras projetadas pela candeia no pavimento aterrorizavam-me como as visões das noites anteriores. Temia a cada instante encontrar-me diante de outro espelho, porque a magia dos espelhos é tal que, mesmo sabendo que são espelhos, não deixam de te inquietar.

 

Além disso não procurava orientar-me nem evitar a sala dos perfumes que provocam visões. Prosseguia como possuído pela febre e não sabia onde queria ir. De fato não me afastei muito do ponto de partida, porque pouco depois achei-me de novo na sala heptagonal por onde tinha entrado. Aqui, sobre uma mesa, estavam dispostos alguns livros que não me parecia ter visto na noite anterior. Adivinhei que eram obras que Malaquias tinha retirado do scriptorium e que não tinha ainda recolocado nos lugares a elas destinadas. Não compreendia se estava muito distante da sala dos perfumes, porque me sentia como aturdido, e podia ser por algum eflúvio que chegava até aquele lugar ou pelas coisas que tinha fantasiado até então. Abri um volume ricamente iluminado, que, pelo estilo, me parecia que provinha dos mosteiros da última Thule.

 

Fiquei impressionado, numa página em que começava o santo evangelho do apóstolo Marco, com a imagem de um leão. Era certamente um leão, ainda que nunca os tivesse visto em carne e osso, e o miniaturista tinha-lhe reproduzido com fidelidade as feições, inspirando-se talvez ao ver leões de Hibernia, terra de criaturas monstruosas, e convenci-me de que este animal, como aliás diz o Fisiólogo, concentra em si todos os caracteres das coisas mais horrendas e majestosas ao mesmo tempo. Assim aquela imagem me evocava simultaneamente a imagem do inimigo e a de Cristo Nosso Senhor, e nem sabia em que chave simbólica devia lê-la, e tremia todo, quer pelo temor quer pelo vento que penetrava pelas fendas das paredes.

 

O leão que vi tinha uma boca eriçada de dentes, e uma cabeça finamente coberta por escamas como a das serpentes, o corpo enorme, que se segurava em quatro patas de unhas pontiagudas e ferozes, assemelhava-se pelo velo a um daqueles tapetes que mais tarde vi trazer do Oriente, de escamas vermelhas e esmaragdinas, onde se desenhavam, amarelos como a peste, horríveis e robustos entablamentos de ossos. Amarela era também a cauda, que se retorcia do dorso subindo até à cabeça, terminando com uma última voluta de tufos brancos e negros.

 

Já estava muito impressionado com o leão (e mais de uma vez me tinha voltado para trás como se esperasse ver aparecer de repente um animal com aquele aspecto), quando decidi ver outras folhas, e o meu olhar caiu, no início do evangelho de Mateus, sobre a imagem de um homem. Não sei porquê, assustou-me mais ele do que o leão: o rosto era de homem, mas este homem estava couraçado numa espécie de casula rígida que o cobria até aos pés, e esta casula ou couraça estava incrustada de pedras vermelhas e amarelas. Aquela cabeça, que sobressaia, enigmática, de um castelo de rubis e topázios, surgiu-me (quanto o terror me fez blasfemo!) como o assassino misterioso cujo impalpável rasto seguíamos. E depois compreendi porque ligava tão estreitamente a fera e a couraça ao labirinto: porque ambas, como todas as figuras daquele livro, emergiam de um tecido figurado de labirintos entrelaçados, onde linhas de ônix e esmeralda, fios de crisoprásio, fitas de berilo pareciam aludir todos ao novelo de salas e corredores em que me encontrava. O meu olhar perdia-se, sobre a página, por caminhos resplandecentes, como os meus pés se iam perdendo na teoria inquietante das salas da biblioteca, e ver representado naqueles pergaminhos o meu errar encheu-me de inquietação e convenceu-me de que cada um daqueles livros contava por misteriosas gargalhadas a minha história daquele momento. «De te fabula narratur», disse para comigo, e perguntei-me se aquelas páginas não conteriam já a história dos instantes futuros que me esperavam.

 

Abri outro livro, e este pareceu-me de escola hispânica. As cores eram violentas, os vermelhos pareciam sangue ou fogo. Era o livro da revelação do apóstolo, e caí uma vez mais, como na noite anterior, sobre a página da mulier amicta sole. Mas não era o mesmo livro, a iluminura era diferente, aqui o artista tinha insistido mais longamente sobre as feições da mulher. Comparei-lhe o rosto, o seio, as ancas flexuosas à estátua da Virgem que tinha visto com libertino. O traço era diferente, mas esta mulier também me pareceu belíssima. Pensei que não devia insistir nestes pensamentos, e voltei algumas páginas. Encontrei outra mulher, mas desta vez era a meretriz da Babilônia. As suas feições não me impressionaram tanto como o pensamento que também ela era uma mulher como a outra, e, no entanto, esta era baixel de todo o vício, aquela era receptáculo de toda a virtude. Mas as feições eram femininas em ambos os casos, e a certa altura já não fui capaz de compreender o que as distinguia. De novo senti uma agitação interior, a imagem da Virgem da igreja sobrepôs-se à da bela Margarida. «Estou condenado!», disse para comigo. Ou «Estou louco.» E decidi que não podia ficar mais tempo na biblioteca.

 

Por sorte estava próximo da escada. Precipitei-me por ela abaixo com risco de tropeçar e apagar a candeia. Achei-me de novo sob as amplas abóbadas do scriptorium, mas nem ali me detive, e lancei-me pela escada que levava ao refeitório.

 

Ali parei ofegante. Pelas vidraças penetrava a luz da Lua, naquela noite resplandecente, e quase já não tinha necessidade da candeia, indispensável, porém, pelas células e cubículos da biblioteca. Todavia, mantive-a acesa, como a procurar conforto. Mas ainda ofegava, e pensei que devia beber água para acalmar a tensão. Pois que a cozinha era ao lado, atravessei o refeitório e abri lentamente uma das portas que dava para a segunda metade do rés-do-chão do Edifício.

 

E, nesse instante, o meu terror, em vez de diminuir, aumentou. Porque me apercebi imediatamente que alguém estava na cozinha, junto ao forno do pão; ou pelo menos, apercebi-me de que naquele canto brilhava uma candeia e, cheio de medo, apaguei a minha. Assustado como estava, incuti medo, e, de fato, o outro (ou os outros) apagaram rapidamente a sua. Mas em vão, porque a luz da noite iluminava o bastante a cozinha para desenhar diante de mim, no pavimento, uma ou mais sombras confusas.

 

Eu, enregelado, já não ousava nem retroceder nem avançar. Ouvi um balbucio e pareceu-me ouvir, submissa, uma voz de mulher. Depois, do grupo informe que se desenhava obscuramente junto do forno, uma sombra escura e tosca destacou-se e fugiu para a porta exterior, que evidentemente estava entreaberta, voltando a fechá-la atrás de si.

 

Fiquei eu, no limiar entre refeitório e cozinha, e qualquer coisa de impreciso junto ao forno. Qualquer coisa de impreciso e - como dizer? - de gemebundo. De fato provinha da sombra um gemido, quase um pranto submisso, um soluçar rítmico, de medo.

 

Nada infunde mais coragem ao medroso que o medo alheio. Mas não me movi para a sombra impelido pela coragem; antes, diria, impelido por uma embriaguez não diferente daquela que me tinha dominado quando tinha tido as visões. Havia na cozinha qualquer coisa de afim dos sufumígios que me tinham surpreendido na biblioteca no dia anterior. Ou talvez não se tratasse das mesmas substancias, mas aos meus sentidos superexcitados elas fizeram o mesmo efeito. Sentia um odor de traganta, alúmen e tártaro, que os cozinheiros usavam para aromatizar o vinho. Ou talvez, como soube depois, se estivesse naqueles dias preparando a cerveja (que naquela plaga a norte da península era tida num certo apreço), e produzia-se segundo a moda do meu país, com urze, mirto dos pauis e rosmaninho de pântano selvagem. Todos eles aromas que, mais do que as minhas narinas, inebriaram a minha mente.

 

E, enquanto o meu instinto racional era gritar «vade retro!» e afastar-me da coisa gemente que certamente era um súcubo que me fora evocado pelo maligno, qualquer coisa na minha vis apetitiva me impeliu para a frente, como se quisesse participar de um prodígio.

 

Assim, aproximei-me da sombra, até que, à luz da noite, que caía das altas janelas, me apercebi que era uma mulher, a tremer, que com uma mão apertava contra o peito um embrulho e que se retraía chorando para a boca do forno.

 

Deus, a Santíssima Virgem e todos os santos do paraíso me assistam agora ao dizer o que me aconteceu. O pudor, a dignidade do meu estado (agora velho monge neste belo mosteiro de Melk, lugar de paz e serena meditação) aconselhar-me-iam as mais piedosas cautelas. Deveria dizer simplesmente que qualquer coisa de mal aconteceu, mas que não é honesto repetir o que foi e não me perturbaria a mim próprio nem ao meu leitor.

 

Mas propus-me contar, sobre aqueles fatos remotos, toda a verdade, e a verdade é indivisível, brilha pela sua própria evidência, e não consente ser diminuída pelos nossos interesses e pela nossa vergonha. O problema é, sobretudo, dizer que aconteceu não como agora o vejo e o recordo (mesmo se agora recordo tudo com impiedosa vivacidade, e nem sei se é o arrependimento que se seguiu a fixar de modo tão vivo casos e pensamentos da minha memória ou a insuficiência daquele mesmo arrependimento que ainda me atormenta dando vida, na minha mente angustiada, a cada um dos mais pequenos pormenores da minha vergonha), mas como o vi e o senti então. E posso fazê-lo, com fidelidade de cronista, porque, se fechar os olhos posso repetir não só tudo quanto fiz como quanto pensei naqueles instantes, como se copiasse um pergaminho escrito então. Devo portanto prosseguir deste modo, e São Miguel Arcanjo me proteja: porque, para edificação dos leitores futuros e para flagelação da minha culpa, quero agora contar como um jovem pode incorrer nas tramas do demônio, a fim de que elas possam ser conhecidas e evidentes, e quem ainda nelas incorrer possa vencê-las.

 

Era, pois uma mulher. Que digo, uma rapariga. Tendo tido até então (e a partir de então, sejam dadas graças a Deus) pouca familiaridade com os seres daquele sexo, não sei dizer que idade podia ter. Sei que era jovem, quase adolescente, talvez tivesse dezesseis ou dezoito primaveras, ou talvez vinte, e fui atingido pela impressão de humana realidade que emanava daquela figura. Não era uma visão, e pareceu-me em todo o caso valde bona. Talvez porque tremia como um passarinho no Inverno, e chorava, e tinha medo de mim.

 

Assim, pensando que o dever de todo o bom cristão é socorrer o seu próximo, aproximei-me dela com grande doçura e em bom latim disse-lhe que não devia ter medo, porque era um amigo, em todo o caso não um inimigo, certamente não o inimigo como ela, talvez, receava.

 

Talvez devido à suavidade que emanava do meu olhar, a criatura acalmou-se e aproximou-se de mim. Apercebi-me que não compreendia o meu latim e, por instinto, dirigi-me a ela na minha língua vulgar alemã, e isto assustou-a muitíssimo, não sei se por causa dos sons ásperos, insólitos para a gente daquela plaga, ou porque estes sons lhe recordavam alguma outra experiência com soldados da minha terra. Então sorri, considerando que a linguagem dos gestos e do rosto é mais universal que a das palavras, e ela aquietou-se. Sorriu-me também e disse-me algumas palavras.

 

Conhecia pouquíssimo a sua língua vulgar, e em todo o caso era diferente da que em parte tinha aprendido em Pisa, mas apercebi-me pelo tom que ela me dizia palavras doces, e pareceu-me que dizia qualquer coisa como: «Tu és jovem, tu és belo...» Raramente acontece a um noviço, que tenha passado toda a sua infância num mosteiro, ouvir afirmações acerca da sua própria beleza, e, pelo contrário, é costume avisarem-nos que a beleza corporal é fugaz e é de ter em bastante vil conta: mas as tramas do inimigo são infinitas, e confesso que aquela alusão à minha venustidade, por mais enganadora que fosse, desceu docemente aos meus ouvidos e deu-me uma irreprimível emoção. Tanto mais que a rapariga, ao dizer isto, tinha estendido a mão e com as pontas dos dedos tinha aflorado a minha face, então completamente imberbe. Senti como uma impressão de desfalecimento, mas naquele momento não conseguia divisar sombra de pecado no meu coração. Tanto pode o demônio quando quer pôr-nos à prova e apagar do nosso espírito as marcas da graça.

 

Que senti? Que vi? Eu recordo apenas que as emoções do primeiro instante foram privadas de toda a expressão, porque a minha língua e a minha mente não tinham sido educadas para nomearem sensações daquele tipo. Enquanto não me lembraram outras palavras interiores, ouvidas noutro tempo e noutros lugares, certamente ditas com outros fins, mas que me pareceram harmonizar-se admiravelmente com o meu gáudio daquele momento, como se tivessem nascido consubstancialmente para o exprimir. Palavras que se tinham recalcado nas cavernas da minha memória subiram à superfície (muda) dos meus lábios, e esqueci que elas tinham servido nas escrituras ou nas páginas dos santos para exprimir bem mais fúlgidas realidades. Mas havia pois verdadeira diferença entre as delícias de que tinham falado os santos e as que o meu espírito exagitado experimentava naquele instante? Naquele instante anulou-se em mim o sentido vigilante da diferença. Que é precisamente, parece-me, o sinal do arrebatamento nos abismos da identidade.

 

De repente, a rapariga surgiu-me como a virgem negra mas bela de que fala o Cântico. Ela trazia um pobre vestido coçado de tecido cru que se abria de modo bastante impudico sobre o peito, e tinha ao pescoço um colar feito de pedrinhas coloridas e, creio, de nenhum valor. Mas a cabeça erguia-se altivamente sobre um pescoço branco como torre de marfim, os seus olhos eram claros como as piscinas de Hesebon, o seu nariz era uma torre do Líbano, as madeiras da sua cabeça como púrpura. Sim, a sua cabeleira surgiu-me como um rebanho de cabras, os seus dentes como rebanhos de ovelhas que saem do banho, todas aos pares, de modo que nenhuma delas estava antes da companheira. «Como és bela, minha amada, como és bela», pus-me a murmurar, «a tua cabeleira é como um rebanho de cabras que desce das montanhas de Galaad, como fitas de púrpura são os teus lábios, gomo de romã é a tua face, o teu pescoço é como a torre de David a que estão suspensos mil broqueis.» E perguntava-me, deslumbrado e aturdido, quem era aquela que se elevava diante de mim como a aurora, bela como a Lua, fúlgida como o Sol, terribilis ut castrorum acies ordinata.

 

Então a criatura aproximou-se de mim ainda mais, atirando para um canto o embrulho escuro que até ai tinha mantido apertado contra o peito, e levantou outra vez a mão para me acariciar o rosto, e repetiu mais uma vez as palavras que eu já tinha ouvido. E enquanto não sabia se fugir dela ou aproximar-me ainda mais, enquanto a minha cabeça pulsava como se as trombetas de Josué estivessem para fazer derrubar as muralhas de Jericó, e ao mesmo tempo desejava e receava tocar-lhe, ela teve um sorriso de grande alegria, emitiu um gemido submisso de cabra enternecida, e desfez os laços que lhe apertavam o vestido sobre o peito, e fez deslizar o vestido do corpo como uma túnica, e ficou diante de mim como Eva devia ter aparecido a Adão no jardim do Éden. «Pulchra sunt ubera quae paululum supere-minent et tument modice», murmurei, repetindo a frase que tinha ouvido a Ubertino, porque os seus seios me surgiram como dois veados, gêmeos de uma gazela que pastavam entre os lírios, o seu umbigo foi uma taça redonda onde nunca falta vinho drogado, o seu ventre um montão de trigo contornado de flores dos vales.

 

«O sidus clarum puellarum», gritei-lhe, «o porta clausa, fons hortorum, celia cusios unguentorum, celia pigmentaria!», e achei-me sem querer encostado ao seu corpo, sentindo-lhe o calor e o perfume acre de ungüentos jamais conhecidos. Lembrei-me: «Filhos, quando vem o amor louco, nada pode o homem!», e compreendi que, fosse quanto sentia trama do inimigo ou dom celeste, já nada podia fazer para contrariar o impulso que me movia, e: «Oh, langueo», gritei, e: «Causam languoris video nec caveo!», também porque um odor róseo emanava dos seus lábios e eram belos os seus pés nas sandálias, e as pernas eram como colunas e como colunas as curvas dos seus flancos, obra de mão de artista. Ó amor, filha de delícias, um rei ficou preso à tua trança, murmurava dentro de mim, e fiquei entre os seus braços, e caímos juntos sobre o pavimento nu da cozinha e, não sei se por minha iniciativa ou por artes dela, achei-me livre do meu saio de noviço, e não tivemos vergonha dos nossos corpos et cuneta erant bona.

 

E ela beijou-me com os beijos da sua boca, e os seus amores foram mais deliciosos que o vinho e ao odor eram deliciosos os seus perfumes, e era belo o seu pescoço entre as pérolas e as suas faces entre os brincos, como és bela, minha amada, como és bela, os teus olhos são pombas (dizia), e deixa-me ver a tua face, deixa-me sentir a tua voz, que a tua voz é harmoniosa e a tua face encantadora, fiquei louco de amor, minha irmã, fiquei louco com um só olhar teu, com uma só gema do teu pescoço, favo que goteja são os teus lábios, mel e leite sob a tua língua, o perfume da tua respiração é como o dos pomos, os teus seios em cachos, os teus seios como cachos de uva, o teu palato um vinho delicioso que vai direito ao meu amor e flui sobre os lábios e sobre os dentes. Fonte de jardim, nardo e açafrão, canela e cinamomo, mirra e aloés, eu comia o meu favo e o meu mel, bebia o meu vinho e o meu leite, quem era, quem era afinal esta que se elevava como a aurora, bela como a Lua, fúlgida como o Sol, terrível como tropas em fileiras?

 

Oh, Senhor, quando a alma é arrebatada, então a única virtude está em amar aquilo que vês (não é verdade?), a suma felicidade em ter aquilo que tens, então a vida bem-aventurada bebe-se na sua fonte (não foi dito?) então saboreia-se a verdadeira vida que depois desta morte nos tocará viver junto dos anjos na eternidade... Isto pensava, e parecia-me que as profecias se verificavam, enfim, enquanto a rapariga me acumulava de doçuras indescritíveis, e era como se o meu corpo fosse todo ele um olho de frente e de trás e visse as coisas circundantes num relance. E compreendia que disso, que é o amor, se produzem a um tempo a unidade e a suavidade e o bem e o beijo e o amplexo, como já tinha ouvido dizer julgando que me falassem de outra coisa. E só por um instante, enquanto a minha alegria estava prestes a tocar o zênite, lembrei-me que estava talvez experimentando, e de noite, a possessão do demônio meridiano condenado enfim a mostrar-se na sua mesma natureza de demônio à alma que no êxtase pergunta «quem és?», ele que sabe arrebatar a alma e iludir o corpo. Mas súbito me convenci que diabólicas eram decerto as minhas hesitações, porque nada podia ser mais justo, mais delicioso, mais santo que aquilo que estava sentindo e cuja doçura crescia momento a momento. Como uma pequena gota de água infusa numa certa quantidade de vinho toda se dispersa para tomar cor e sabor de vinho, como o ferro incandescente e inflamado se torna quase igual ao fogo perdendo a sua forma primitiva, como o ar inundado pela luz do Sol é transformado no máximo esplendor e na mesma claridade, a ponto de já não parecer iluminado mas de ser ele mesmo luz, assim eu me sentia morrer de terna liquefação, de modo que me restou apenas força para murmurar as palavras do salmo: «Eis que o meu peito é como o vinho novo, sem abertura, que rompe odres novos», e de súbito vi uma fulgidíssima luz e nela uma forma cor de safira que se abrasava toda num fogo rutilante e suavíssimo, e aquela luz esplêndida difundiu-se por todo o fogo resplendente e aquela luz fulgidíssima e aquele fogo rutilante pela forma inteira.

 

Enquanto, quase esvaído, caía sobre o corpo a que me tinha unido, compreendi, num último sopro de vitalidade, que a chama consiste numa esplêndida claridade, num inato vigor e num ígneo ardor, mas a esplêndida claridade possui-a para reluzir e o ígneo ardor a fim de queimar. Depois compreendi o abismo, e os abismos ulteriores que ele invocava.

 

Agora que, com a mão trêmula (e não sei se pelo horror do pecado de que falo ou pela culpável nostalgia do fato que rememoro), escrevo estas linhas, apercebo-me de ter usado para descrever o meu hediondo êxtase daquele instante as mesmas palavras que usei, não muitas páginas atrás, para descrever o fogo que queimava o corpo mártir do fraticello Miguel. E não foi por acaso que a minha mão, submissa executora da alma, traçou as mesmas expressões pare duas experiências tão diferentes, porque provavelmente as vivi do mesmo modo, então, quando as apreendi, e há pouco, quando procurava fazê-las reviver a ambas no pergaminho.

 

Há uma misteriosa sabedoria pela qual fenômenos dispares entre si podem ser nomeados com palavras análogas, a mesma pela qual as coisas divinas podem ser designadas com nomes terrenos, e por símbolos equívocos Deus pode ser dito leão ou leopardo, e a morte, ferida, e a alegria, chama, e a chama, morte, e a morte, abismo, e o abismo, perdição, e a perdição, delíquio, e o delíquio, paixão.

 

Porque é que eu, jovem, nomeava o êxtase de morte que me tinha impressionado no mártir Miguel com as palavras com que a santa tinha nomeado o êxtase de vida (divine) mas com as mesmas palavras não podia nomear o êxtase (culpável e passageiro) de gozo terreno, que, por seu lado, logo depois me tinha parecido sensação de morte e anulamento? Eu procuro agora raciocinar sobre o modo como apreendi, a poucos meses de distância, duas experiências igualmente exaltantes e dolorosas, e sobre o modo como naquela noite na abadia rememorei uma e apreendi sensivelmente a outra, a poucas horas de distância e ainda o modo como ao mesmo tempo as revivi agora, traçando estas linhas, e como nos três caves as recitei a mim mesmo com as palavras da diversa experiência de uma alma santa que se anulava na visão da divindade. Acaso terei blasfemado (então, agora)? Que havia de símile no desejo de morte de Miguel, no arrebatamento que senti à vista da chama que o consumia, no desejo de conjunção carnal que senti com a rapariga, no místico pudor com que o traduzia alegoricamente, e no mesmo desejo de anulamento jubiloso que movia a santa a morrer do seu próprio amor pare viver mais e eternamente? É possível que coisas tão equivocal possam dizer-se de modo tão unívoco? E, no entanto, é isto, parece, o ensinamento que nos deixaram os maiores entre os doutores: omnos ergo figura tanto evidentius veritatem demonstrat quanto apertius per dissimilem similitudinem figuram se esse et nom veritatem probat. Mas, se o amor da chama e do abismo são figura do amor de Deus, podem ser figura do amor da morte e do amor do pecado? Sim, tal como o leão e a serpente são a um tempo figura de Cristo e do demônio. É que a justeza da interpretação não pode ser fixada senão pela autoridade dos padres, e no cave que me aflige não tenho autorictas a que a minha mente obediente posse referir-se, e ardo na dúvida (e de novo a figura do povo intervém para definir o vazio de verdade e a plenitude de erro que me anulam!). Que se passa, ó Senhor, na minha alma, agora que me deixo prender pelo vórtice das recordações e suscito a conflagração de tempos diversos, como se estivesse para alterar a ordem dos astros e a seqüência dos seus movimentos celestes? Certamente supero os limites da minha inteligência pecadora e doente. Vamos, voltemos à tarefa que humildemente me tinha proposto. Estava falando daquele dia e do total esmorecimento dos sentidos em que abismei. Eis que disse aquilo de que me recordei naquela ocasião, e que a isto se limite a minha débil pena de fiel e verídico cronista.

 

Fiquei estendido, não sei por quanto tempo, com a rapariga a meu lado. Com um movimento leve, apenas a sua mão continuava a tocar o meu corpo, agora úmido de suor. Sentia uma exaltação interior, que não era paz, mas como o último ardor abafado de um fogo tardasse a extinguir-se sob a cinza quando a chama é já morta. Não hesitaria em chamar bem-aventurado àquele a quem fosse concedido sentir algo de semelhante (murmurava como no sono), ainda que raramente, nesta vida (e de fato só o senti aquela vez, e apenas rapidamente, e pelo espaço de um só instante). Como se já não se existisse, não se sentir por completo a si mesmo, ser abatido, quase aniquilado, e se algum dos mortais (dizia para comigo) pudesse por um só instante e rapidamente saborear o que eu saboreei logo veria com maus olhos este mundo perverso, seria perturbado pela malícia do viver quotidiano, sentiria o peso do seu corpo de morte... Não era isto o que me tinham ensinado? Aquele convite de todo o meu espírito a perder a memória na beatitude era decerto (agora o compreendia) a irradiação do sol eterno, e a alegria que ele produz abre, distende, engrandece o homem, e a garganta completamente aberta que o homem traz em si mesmo já não se fecha com tanta facilidade, é a ferida aberta pelo golpe de espada do amor, e não há aqui em baixo nada que seja mais doce e mais terrível. Mas tal é o direito do Sol, ele seteia o ferido com os seus raios e todas as pregas se alargam, o homem abre-se e dilata-se, as suas próprias veias são completamente abertas, as suas forças já não são capazes de executar as ordens que recebem mas são unicamente movidas pelo desejo, o espírito arde abismado no abismo do que agora toca, vendo o seu próprio desejo e a sua própria verdade superados pela realidade que viveu e que vive. E assiste-se estupefato ao seu próprio delíquio.

 

Foi imerso em tais sensações de inenarrável júbilo interior que adormeci.

 

Reabri os olhos algum tempo depois, e a luz da noite, talvez por causa de uma nuvem, era muito mais débil. Estendi a mão de lado e já não senti o corpo da rapariga. Voltei a cabeça: já não estava.

 

A ausência do objeto que tinha desencadeado o meu desejo e saciado a minha sede fez-me apreender de repente a sanidade daquele desejo e a perversidade daquela sede. Omne animal triste post coitum. Tomei consciência do fato de ter pecado. Agora, a anos e anos de distância, quando ainda choro amargamente a minha falta, não posso esquecer que naquela noite eu tinha sentido um grande júbilo, e ofenderia o Altíssimo, que criou todas as coisas em bondade e beleza, se não admitisse que naquela história de dois pecadores sucedeu alguma coisa que em si, naturaliter, era bom e belo. Mas, provavelmente, é a minha velhice atual que me faz sentir culpavelmente como belo e bom tudo o que foi da minha juventude. Agora que deveria voltar o meu pensamento para a morte, que se aproxima. Então, jovem, não pensei na morte, mas sentida e sinceramente chorei pelo meu pecado.

 

Levantei-me tremendo, também porque tinha estado longo tempo sobre as pedras gélidas da cozinha e tinha o corpo entorpecido. Voltei a vestir-me, quase febrilmente. Então distingui num canto o embrulho que a rapariga tinha abandonado ao fugir. Inclinei-me para examinar o objeto: era uma espécie de pacote feito de tecido enrolado, que parecia provir das cozinhas. Desdobrei-o, e no momento não compreendo o que tinha dentro, tanto por causa da pouca luz como da forma informe do seu conteúdo. Depois compreendi: entre coágulos de sangue e bocados de carne mais flácida e esbranquiçada, estava diante dos meus olhos, morto mas ainda palpitante da vida gelatinosa das vísceras mortas, sulcado de nervos ávidos, um coração, de grandes dimensões.

 

Um véu escuro desceu-me sobre os olhos, uma saliva acídula subiu-me à boca. Lancei um urro e caí como cai um corpo morto.

 

TERCEIRO DIA

NOITE

 

Onde Adso, transtornado, se confessa a Guilherme e medita sobre a função da mulher no plano da criação, porém, descobre depois o cadáver de um homem.

 

Voltei a mim quando alguém me banhava o rosto. Era frade Guilherme, que trazia uma candeia e me tinha posto alguma coisa debaixo da cabeça.

 

- Que sucedeu, Adso - perguntou-me -, que andas de noite a roubar fressuras pela cozinha?

 

Em resumo, Guilherme tinha acordado, tinha-me procurado já não sei por que razão, e, não me encontrando, tinha suspeitado que tivesse ido fazer alguma bravata à biblioteca. Aproximando-se do Edifício pelo lado da cozinha, tinha visto uma sobra que saía pela porta para o horto (era a rapariga que se afastava, talvez por ter ouvido alguém que se aproximava). Tinha procurado compreender quem era e segui-la, mas ela (ou melhor, aquilo que para ele era uma sombra) tinha-se afastado para o muro da cerca e depois tinha desaparecido. Então, Guilherme - depois de uma exploração nos arredores - tinha entrado na cozinha e, ali, tinha-me encontrado desmaiado.

 

Quando lhe apontei, ainda aterrorizado, para o embrulho com o coração, balbuciando qualquer coisa sobre um novo delito, pôs-se a rir:

 

- Adso, mas que homem poderia ter um coração tão grande? É um coração de vaca, ou de boi, mataram justamente hoje um animal! Melhor, como se encontra nas tuas mãos?

 

Naquela altura, oprimido pelos remorsos, além de aturdido pelo terror, desatei num pranto violento e pedi que me administrasse o sacramento da confissão. O que ele fez, e eu contei-lhe tudo sem lhe ocultar nada.

 

Frade Guilherme escutou-me com grande seriedade, mas com uma sombra de indulgência. Quando acabei, tomou um ar sério e disse-me:

 

- Adso, tu pecaste, é certo, e contra o mandamento que te impõe não fornicar, e contra os teus deveres de noviço. Para tua desculpa, conta o fato que te encontraste numa daquelas situações em que se teria condenado até um padre no deserto. E sobre a mulher como fonte de tentação já falaram o bastante as escrituras. Da mulher diz o Eclesiastes que a sua conversação é como fogo ardente, e os Provérbios dizem que ela se apodera da alma preciosa do homem e que os mais fortes foram arruinados por ela. E diz ainda o Eclesiastes: descobri que mais amarga que a morte é a mulher, que é como o laço dos caçadores, o seu coração é como uma rede, as suas mãos são cadeias. E outros disseram que ela é baixel do demônio. Apurado isto, querido Adso, eu não consigo convencer-me que Deus tenha querido introduzir na criação um ser tão imundo sem o dotar de alguma virtude. E não posso deixar de refletir sobre o fato que Ele lhe concedeu muitos privilégios e motivos de apreço, dos quais pelo menos três, muito grandes. De fato, criou o homem neste mundo vil, e da lama, e a mulher num segundo tempo, no paraíso e da nobre matéria humana. E não a formou dos pés ou das entranhas do corpo de Adão, mas da costela. Em segundo lugar, o Senhor, que pode tudo, poderia ter encarnado diretamente num homem de algum modo miraculoso, e escolheu, pelo contrário, habitar no ventre de uma mulher, sinal de que não era tão imunda como isso. E, quando apareceu depois da ressurreição, apareceu a uma mulher. E, enfim, na glória celeste nenhum homem será rei naquela pátria, pelo contrário, aí será rainha uma mulher que nunca pecou. Se portanto o Senhor teve tantas atenções para com a própria Eva e para com as suas filhas, é assim tão anormal que também nós nos sintamos atraídos pelas graças e pela nobreza daquele sexo? Aquilo que quero dizer-te, Adso, é que de certeza não deves voltar a fazê-lo, mas que não é assim tão monstruoso que tu tenhas sido tentado a fazê-lo. E, por outro lado, que um monge, ao menos uma vez na vida, tenha tido experiência da paixão carnal, de modo a um dia poder ser indulgente e compreensivo com os pecadores a quem dará conselho e conforto... Pois bem, querido Adso, é coisa para não auspiciar antes que aconteça, mas nem sequer para vituperar demasiado depois de ter acontecido. E portanto vai com Deus e não falemos mais nisso. Mas, em vez disso, para não estar a medicar demasiado sobre alguma coisa que será melhor esquecer, se o conseguires - e pareceu-me que nesta altura a sua voz enfraqueceu como por alguma comoção interior -, perguntemo-nos antes o sentido de quanto aconteceu esta noite. Quem era essa rapariga e com quem tinha encontro?

 

- Isso é que eu não sei, e não vi o homem que estava com ela - disse.

 

- Bem, mas podemos deduzir quem era por muitos indícios absolutamente seguros. Antes de mais nada, era um homem feio e velho, com quem uma rapariga não vai de boa vontade, especialmente se é bela como tu dizes, mesmo que me pareça, meu querido lobato, que estavas Dronenso a achar delicado qualquer alimento.

 

- Porquê feio e velho?

 

- Porque a rapariga não ia ter com ele por amor, mas por um pacote de rojões. Certamente era uma

rapariga da aldeia que, talvez não pela primeira vez, se entrega por fome a algum monge luxurioso e obtém como recompensa alguma coisa para meter à boca, ela e a sua família.

 

- Uma meretriz! – exclamei horrorizado.

 

- Uma camponesa pobre, Adso. Talvez com os irmãozinhos para sustentar. E que, podendo, se daria

por amor e não por lucro. Como fez esta noite. De fato, dizes-me que te achou jovem e belo e te deu grátis e por amor tudo o que a outros daria, ao invés, por um coração de boi e algum pedaço de pulmão. E sentiu-se tão virtuosa pelo dom gratuito que fez de si, e consolada, que fugiu sem levar nada em troca. Eis porque penso que o outro, ao qual te comparou, não era nem jovem nem belo.

 

Confesso que, embora o meu arrependimento fosse vivíssimo, aquela explicação me encheu de dulcíssimo orgulho, mas calei-me e deixei continuar o meu mestre.

 

- Esse velhote feio devia ter a possibilidade de descer à aldeia e ter contatos com os camponeses, por algum motivo ligado ao seu ofício. Devia conhecer o modo de fazer entrar e sair gente da cerca, e saber que na cozinha havia aquelas fressuras (e talvez amanhã se dissesse que, ficando a porta aberta, um cão tinha entrado e as tinha comido). E, enfim, devia ter um certo sentido da economia, e um certo interesse em que a cozinha não fosse privada de vitualhas mais preciosas, senão ter-lhe-ia dado um bife ou outra parte mais saborosa. E vês agora que a imagem do nosso desconhecido se desenha com muita clareza e que todas estas propriedades, ou acidentes, bem convêm a uma substancia que não teria receio em definir como o nosso despenseiro, Remígio de Varagine. Ou, se me enganasse, como o nosso misterioso Salvador. O qual, entre outras coisas, sendo destas paragens sabe falar bastante bem com as gentes do lugar e sabe como convencer uma rapariga a fazer aquilo que queria fazê-la fazer, se tu não tivesses chegado.

 

- É decerto assim - disse convencido - mas que nos serve agora?

 

- Nada. E tudo - disse Guilherme. - A história pode estar relacionada ou não com os delitos de que nos ocupamos. Por outro lado, se o despenseiro foi dolciniano, isto explica aquilo e vice-versa. E sabemos agora enfim que esta abadia, de noite, é lugar de muitas e errantes vicissitudes. E quem sabe se o nosso despenseiro, ou Salvador, que a percorrem no escuro com tanta desenvoltura, não sabem em todo o caso mais do que aquilo que dizem.

 

- Mas di-lo-ão a nós?

 

- Não, se nos comportarmos de modo compassivo, ignorando os seus pecados. Mas, se tivéssemos mesmo de saber alguma coisa, teríamos na mão um modo de os persuadir a falar. Por outras palavras, se houver necessidade disso, o despenseiro ou Salvador são nossos, e Deus nos perdoará esta prevaricação, visto que perdoa tantas outras coisas - disse, olhando-me com malícia, e eu não tive animo para fazer observações sobre o caráter lícito dos seus propósitos. – E agora deveríamos ir para a cama, porque daqui a uma hora são matinas. Mas vejo-te ainda agitado, meu pobre Adso, ainda temeroso do teu pecado... Não há nada como uma boa pausa na igreja para nos distender o animo. Eu absolvi-te, mas nunca se sabe. Vai pedir confirmação ao Senhor.

 

E deu-me uma palmada bastante enérgica na cabeça, talvez como prova de paternal e viril afeto, talvez como indulgente penitência. Ou talvez (como culpavelmente pensei naquele momento) por uma espécie de benigna inveja, de homem sedento de experiências novas e ardentes como era.

 

Encaminhamo-nos para a igreja, saindo pela nossa via habitual, que percorri depressa fechando os olhos, porque todos aqueles ossos me recordavam com demasiada evidência, naquela noite, como também eu era pó e quão insensato tinha sido o orgulho da minha carne.

 

Ao chegar à nave vimos uma sombra diante do altar-mor. Julgava que era ainda Ubertino. Mas era Alinardo, que à primeira vista não nos reconheceu. Disse que já era incapaz de dormir, e tinha decidido passar a noite a rezar por aquele jovem monge desaparecido (não recordava sequer o seu nome). Rezava pela sua alma se estivesse morto, pelo seu corpo se jazesse enfermo e só em qualquer sítio.

 

- Demasiados mortos – disse -, demasiados mortos... Mas estava escrito no livro do apóstolo. Com a primeira trombeta veio o granizo, com a segunda, a terça parte do mar tornou-se sangue, e um encontraste-lo no granizo, o outro no sangue... A terceira trombeta adverte que uma estrela ardente cairá na terça parte dos rios e das fontes. Assim, digo-vos, desapareceu o nosso terceiro irmão. E temei pelo quarto, porque será atingida a terça parte do Sol, e da Lua e das estrelas, de modo que a obscuridade será quase completa...

 

Enquanto saíamos pelo transepto, Guilherme perguntou-se se nas palavras do velho não haveria algo de verdadeiro.

 

- Mas - fi-lo observar - isso pressuporia que uma única mente diabólica, usando o Apocalipse como guia, tivesse predisposto os três desaparecimentos, admitindo que Berengário também esteja morto. Pelo contrário, sabemos que o de Adelmo foi devido à sua vontade...

 

- É verdade - disse Guilherme -, mas a mesma mente diabólica, ou doente, poderia ter tirado inspiração da morte de Adelmo para organizar de modo simbólico as outras duas. E, se assim fosse, Berengário deveria encontrar-se num rio ou numa fonte. E não há rios e fontes na abadia, pelo menos não tais que alguém se possa afogar ou aí possa ser afogado...

 

- Há apenas os banhos - observei quase por acaso.

 

- Adso! - disse Guilherme -, sabes que essa pode ser uma idéia? Os balnea!

 

- Mas aí já devem ter olhado...

 

- Vi os servos esta manhã quando faziam as suas buscas, abriram a porta da construção dos balnea e deram uma olhadela em torno, sem revistar, não esperavam ainda ter de procurar algo de bem escondido, esperavam um cadáver que jazesse teatralmente em qualquer parte, como o cadáver de Venancio na talha... Vamos dar uma olhadela, entretanto ainda está escuro e parece-me que a nossa candeia arde ainda com gosto.

 

Assim fizemos, e abrimos sem dificuldade a porta da construção dos balnea, encostada ao hospital.

 

Resguardadas umas das outras mediante amplas cortinas, estavam as banheiras, não recordo quantas. Os monges usavam-nas para a sua higiene, quando a regra lhes fixava o dia, e Severino usava-as por razões terapêuticas, porque nada melhor que um banho para acalmar o corpo e a mente. Uma chaminé num canto permitia facilmente aquecer a água. Encontramo-la suja de cinza fresca, e diante dela estava um grande caldeirão entornado. A água tirava-se de uma fonte num canto.

 

Olhamos nas primeiras banheiras, que estavam vazias. Só a última, dissimulada por uma cortina estendida, estava cheia, e a seu lado jazia, um monte, uma veste. À primeira vista, à luz da nossa lâmpada, a superfície do líquido pareceu-nos calma: mas, como a luz lhe bateu de cima, entrevimos no fundo, inanimado, um corpo humano, nu. Tiramo-lo lentamente para fora: era Berengário. «E este», disse Guilherme, «tinha verdadeiramente o aspecto de um afogado.» As feições do rosto estavam inchadas. O corpo, branco e mole, privado de pêlos, parecia o de uma mulher, salvo o espetáculo obsceno das flácidas pudenta. Corei, depois tive um arrepio. Benzi-me, enquanto Guilherme abençoava o cadáver.

 

 QUARTO DIA

LAUDAS

 

Onde Guilherme e Severino examinam o cadáver de Berengário e descobrem que tem a língua negra, coisa singular para um afogado. Depois discutem sobre venenos dolorosíssimos e sobre um furto remoto.

 

Não me demorarei a dizer como informamos o Abade, como toda a abadia acordou antes da hora canônica, os gritos de horror, o espanto e a dor que se viam nos rostos de todos, como a notícia se propagou a todo o povo do planalto, com os servos que se benziam e pronunciavam esconjuros. E não sei se naquela manhã o primeiro ofício se desenrolou segundo as regras, e quem nele tomou parte. Eu segui Guilherme e Severino, que mandaram envolver o corpo de Berengário e ordenaram que o estendessem sobre uma mesa no hospital.

 

Mal o Abade e os outros monges se afastaram, o ervanário e o meu mestre observaram longamente o cadáver com a frieza dos homens da medicina.

 

- Morreu afogado - disse Severino -, não há dúvida. A cara está inchada, o ventre está raso...

 

- Mas não foi afogado por outros - observou Guilherme -, senão ter-se-ia rebelado contra a violência do homicida, e teríamos encontrado marcas de água espalhada em torno da banheira. Pelo contrário, estava tudo arrumado e limpo, como se Berengário tivesse aquecido a água, enchido a banheira, e nela se tivesse acomodado de livre vontade.

 

- Isso não me admira - disse Severino. - Berengário sofria de convulsões, e eu próprio lhe tinha dito várias vezes que os banhos tépidos servem para acalmar a excitação do corpo e do espírito. Várias vezes me tinha pedido licença para ter acesso aos balnea. Assim poderia ter feito esta noite...

 

- A noite passada - observou Guilherme -, porque este corpo, como vês, ficou na água pelo menos um dia...

 

- É possível que tenha sido a noite passada - concordou Severino.

 

Guilherme pô-lo parcialmente ao corrente dos acontecimentos da noite anterior. Não lhe disse que tínhamos estado furtivamente no scriptorium mas, ocultando-lhe várias circunstâncias, disse-lhe que tínhamos perseguido uma figura misteriosa que nos tinha tirado um livro. Severino compreendeu que Guilherme lhe dizia apenas uma parte da verdade mas não fez mais perguntas. Observou que a agitação de Berengário, se era ele o ladrão misterioso, podia tê-lo levado a procurar a tranqüilidade num banho restaurador. Berengário, observou, era de natureza muito sensível, por vezes uma contrariedade ou uma emoção provocavam-lhe tremores, suores frios, arregalava os olhos e caía por terra cuspindo uma baba esbranquiçada.

 

- Em todo o caso - disse Guilherme -, antes de vir para aqui esteve em qualquer outro sítio, porque não vi nos balnea o livro que roubou.

 

- Sim - confirmei com um certo orgulho -, levantei a sua veste, que jazia ao lado da banheira, e não encontrei marcas de nenhum objeto volumoso.

 

- Muito bem - sorriu-me Guilherme. - Portanto esteve em qualquer outro sítio, depois admitamos ainda que, para acalmar a sua própria agitação, e talvez para se subtrair às nossas buscas, se tenha enfiado nos balnea e tenha mergulhado na água. Severino, julgas que o mal de que sofria era suficiente para lhe fazer perder os sentidos e fazê-lo afogar?

 

- Podia ser - observou Severino duvidando. - Por outro lado, se tudo aconteceu há duas noites, podia ter havido água em torno da banheira, que depois secou. Assim, não podemos concluir que tenha sido afogado à viva força.

 

- Não - disse Guilherme. - Alguma vez viste um assassinado que, antes de se deixar afogar, despe a roupa?

 

Severino abanou a cabeça, como se aquele argumento já não tivesse grande valor. Há alguns instantes que estava examinando as mãos do cadáver:

 

- Eis uma coisa curiosa... - disse.

 

- O quê?

 

- No outro dia observei as mãos de Venancio, quando o corpo foi limpo do sangue, e notei um pormenor a que não tinha dado muita importância. As pontas de dois dedos da mão direita de Venancio estavam escuras, como enegrecidas por uma substancia escura. Exatamente, vês? Como agora as pontas de dois dedos de Berengário. Mais, aqui temos mesmo algumas marcas no terceiro dedo. Então pensei que Venancio tinha tocado nas tintas do scriptorium...

 

- Muito interessante - observou Guilherme pensativo, aproximando os olhos dos dedos de Berengário. A Alba estava surgindo, a luz no interior era ainda fraca, o meu mestre sofria evidentemente pela falta da suas lentes. - Muito interessante - repetiu. - O indicador e o polegar estão escuros nas pontas, o médio só na parte interna, e levemente. Mas também há marcas mais leves na mão esquerda, pelo menos no indicador e no polegar.

 

- Se fosse só a mão direita, seriam os dedos de quem agarra alguma coisa pequena, ou comprida e delgada...

 

- Como um estilete. Ou um alimento. Ou um inseto. Ou uma serpente. Ou um ostensório. Ou um pau. Demasiadas coisas. Mas se tinham um sinal na outra mão também podia ser uma faca, a direita segura bem e a esquerda colabora com menor força...

 

Severino esfregava agora ligeiramente os dedos do morto, nelas a cor escura não desaparecia. Notei que tinha posto um par de luvas, que provavelmente usava quando manuseava substancias venenosas. Cheirava, mas sem tirar dai sensação alguma.

 

- Poderia citar-te muitas substancias vegetais (e até minerais) que provocam marcas deste tipo. Algumas letais, outras não. Os miniaturistas têm por vezes os dedos sujos de pó de ouro...

 

- Adelmo era miniaturista - disse Guilherme. – Suponho que diante do seu corpo esfacelado tu não

pensaste em examinar-lhe os dedos. Mas estes podiam ter tocado nalguma coisa que tenha pertencido a Adelmo.

 

- Verdadeiramente não sei - disse Severino. - Dois mortos, ambos com os dedos negros. Que deduzes?

 

- Não deduzo nada, nihil sequitur geminis ex particularibus unquam. Seria preciso reconduzir ambos os casos a uma regra. Por exemplo: existe uma substancia que

enegrece os dedos dos que tocam...

 

Terminei triunfante o silogismo:

 

- ... Venancio e Berengário têm os dedos enegrecidos, cargo tenham tocado essa substancia!

 

- Muito bem, Adso - disse Guilherme -, pena que o teu silogismo não seja válido, porque aut semel aut iterum médium genera-liter esto, e neste silogismo o termo médio nunca aparece como geral. Sinal de que escolhemos mal a premissa maior. Não devia dizer: todos aqueles que todos os que tocam certa substancia tem os dedos negros, pois também podia haver pessoas com os dedos negros e que não tivessem tocado a substancia. Devia dizer: todos aqueles e só todos aqueles que têm os dedos negros tocaram certamente uma dada substancia. Venancio e Berengário etcétera. Com o que teríamos um Darii, um ótimo terceiro silogismo de primeira figura.

 

- Então teremos a resposta! -disse todo contente.

 

- Ai, Adso, como te fias em silogismos! Temos apenas e de novo a pergunta. Isto é, pusemos a hipótese que Venancio e Berengário tocaram a mesma coisa, hipótese sem dúvida razoável. Mas, uma vez que imaginamos uma substancia que, única entre todas, provoca este resultado (o que é ainda para apurar), não sabemos qual é nem onde eles a terão encontrado, e porque a terão tocado. E, repara bem, não sabemos sequer se é afinal a substancia que tocaram aquela que os conduziu à morte. Imagina que um louco queria matar todos aqueles que tocam no pó de ouro. Diríamos que é o pó de ouro que mata?

 

Fiquei perturbado. Sempre tinha acreditado que a lógica era uma arma universal, e apercebia-me agora como a sua validade dependia do modo como se usava. Por outro lado, freqüentando o meu mestre, tinha-me dado conta, e dei-me conta cada vez mais dos dias que se seguiram, que a lógica podia servir de muito com a condição de entrar dentro dela e depois sair.

 

Severino, que não era decerto um bom lógico, refletia entretanto segundo a sua própria experiência:

 

- O universo dos venenos é vário, como vários são os mistérios da natureza - disse. Indicou uma série de frascos e ampolas que já uma vez tínhamos admirado, dispostos em boa ordem nas estantes ao longo das paredes, junto de muitos volumes. - Como já te disse, muitas destas ervas, devidamente compostas e dosadas, poderiam dar lugar a bebidas e ungüentos mortais. Eis ali datura stramonium, beladona, cicuta: podem dar sonolência, excitação, ou ambas; administradas com cautela são ótimos medicamentos, em doses excessivas levam à morte. Ali está a fava de Santo Inácio, a angustura pseudo-ferrugínea, a nux vômica, que poderiam tirar a respiração...

 

- Mas nenhuma destas substancias deixaria sinais nos dedos?

 

- Nenhuma, creio. Depois, existem substancias que só se tornam perigosas se ingeridas, e outras que, pelo contrário, atuam sobre a pele. O heléboro branco pode provocar vômitos em quem o agarra para o arrancar da terra. Existem begônias que quando estão em flor provocam embriaguez nos jardineiros que as tocam, como se tivessem bebido vinho. O heléboro negro, só de o tocar provoca diarréia. Outras plantas provocam palpitações de coração, outras na cabeça, outras ainda fazem perder a voz. Pelo contrário, o veneno da víbora, aplicado na pele sem penetrar no sangue, produz apenas uma ligeira irritação... Mas uma vez mostraram-me um composto que, aplicado na parte interna das coxas de um cão, perto dos órgãos genitais, leva o animal a morrer em pouco tempo, no meio de convulsões atrozes, com os membros que pouco a pouco se tornam rígidos...

 

- Sabes muitas coisas sobre os venenos - observou Guilherme com um tom de voz que parecia de admiração.

 

Severino fixou-o e suportou o seu olhar por alguns instantes:

 

- Sei aquilo que um médico, um ervanário, uma pessoa que cultiva a ciência e a saúde humana deve saber.

 

Guilherme ficou longo tempo distraído. Depois pediu a Severino que abrisse a boca do cadáver e que lhe observasse a língua. Severino, intrigado, usou uma espátula delgada, um dos instrumentos da sua arte médica, e executou. Deu um grito de estupefação:

 

- A língua está negra!

 

- Então é isso - murmurou Guilherme. - Agarrou alguma coisa com os dedos e ingeriu-a... Isto elimina os venenos que citaste antes, que matam penetrando através da pele. Mas não torna mais fáceis as nossas induções. Porque agora temos de pensar, para ele e para Venancio, num gesto voluntário, não casual, não devido a distração ou a imprudência, nem induzido pela violência. Agarraram alguma coisa e introduziram-na na boca conscientes do que faziam.

 

- Um alimento? Uma bebida?

 

- Talvez! Talvez! O que seria? Um instrumento musical, por exemplo uma flauta.

 

- Absurdo! – disse Severino.

 

- Decerto que é absurdo. Mas não devemos transcutar nenhuma hipótese, por extraordinária que seja. Mas agora procuremos remontar à matéria venenosa. Se alguém que conhece os venenos como tu se tivesse introduzido aqui e tivesse usado algumas destas tuas ervas teria podido compor um ungüento mortal capaz de produzir aqueles sinais nos dedos e na língua? Capaz de ser posto num alimento, numa bebida, numa colher, nalguma coisa que se mete à boca?

 

- Sim - admitiu Severino -, mas quem? E depois, mesmo adquirindo essa hipótese, como teria sido administrado o veneno aos nossos pobres irmãos?

 

Francamente também eu não conseguia imaginar Venancio ou Berengário deixando-se abordar por alguém que lhes estendia uma substancia misteriosa que alguém o oferecera. Mas Guilherme não pareceu perturbado por esta extravagância.

 

- Nisso pensaremos depois – disse -, porque agora queria que tu procurasses recordar algum fato que talvez não te tenha ainda voltado à mente, não sei, alguém que tenha feito perguntas sobre as suas ervas. alguém que tenha acesso fácil ao hospital....

 

- Um momento - disse Severino -, há muito tempo, falo de anos, conservava numa daquelas estantes uma substancia muito forte, que me tinha dado um irmão que tinha viajado por países distantes. Não sabia dizer-me de que era feita, certamente de ervas, e nem todas conhecidas. Era, na aparência, viscosa e amarelada, mas aconselharam-me que não lhe tocasse, porque se ficasse mesmo só em contato com os lábios ter-me-ia morto em pouco tempo. O irmão disse-me que, mesmo ingerida em doses mínimas, provocava no espaço de meia hora uma sensação de prostração, depois uma lenta paralisia de todos os membros, e por fim a morte. Não queria levá-la consigo, e fez-me presente dela. Conservei-a por longo tempo, porque me propunha examiná-la de alguma maneira. Depois, um dia, houve no planalto uma grande tempestade. Um dos meus ajudantes, um noviço, tinha deixado a porta do hospital aberta, e o furacão tinha devastado toda a sala em que agora estamos. Ampolas quebradas, líquidos espalhados pelo pavimento, ervas e pós dispersos. Trabalhei um dia a pôr de novo em ordem as minhas coisas, e pedi ajuda apenas para varrer os cacos e as ervas já irrecuperáveis. No fim apercebi-me que faltava precisamente a ampola de que te falava. Primeiro preocupei-me, depois convenci-me que se tinha quebrado e confundido com outros detritos. Mandei lavar bem o pavimento do hospital e as estantes.

 

- E tinhas visto a ampola poucas horas antes do furacão?

 

- Sim... Ou melhor, não, agora que penso nisso. Estava atrás de uma fila de frascos, bem escondida, e não a fiscalizava todos os dias...

 

- Então, pelo que sabes, podiam ter-te tirado mesmo muito tempo antes do furacão, sem tu saberes?

 

- Agora que me fazes refletir, sim, sem dúvida nenhuma.

 

- E esse teu noviço podia ter-te tirado e depois podia ter aproveitado o ensejo do furacão para deixar de propósito a porta aberta e criar a confusão entre as tuas coisas...

 

Severino pareceu muito excitado:

 

- Decerto, sim. Não só, mas recordando quanto aconteceu, admirei-me muito que o furacão, por muito violento que fosse, tivesse derrubado tantas coisas. Poderia perfeitamente dizer que alguém aproveitou o furacão para devastar a sala e produzir mais danos que o vento poderia ter feito!

 

- Quem era o noviço?

 

- Chamava-se Agostinho. Mas morreu o ano passado, ao cair de um andaime quando, com outros monges e servos, limpava as esculturas da fachada da igreja. E depois, pensando bem, ele tinha jurado e tresjurado que não tinha deixado a porta aberta antes do furacão. Fui eu, enfurecido, que o considerei responsável pelo incidente. Talvez estivesse verdadeiramente inocente.

 

- E assim temos uma terceira pessoa, talvez bem mais esperta que um noviço, que tinha conhecimento do teu veneno. A quem tinhas falado nisso?

 

- Disso, precisamente, não me recordo. Ao Abade, claro, pedindo-lhe licença para conservar uma substancia tão perigosa. E a mais alguém, talvez precisamente na biblioteca, porque procurava herbários que pudessem revelar-me alguma coisa.

 

- Mas não me disseste que conservas junto de ti os livros mais úteis à tua arte?

 

- Sim, e muitos - disse, indicando num angulo da sala algumas estantes carregadas de dezenas de volumes. - Mas na altura procurava certos livros que não poderia conservar e que até Malaquias era reticente em me deixar ver, de tal modo que tive de pedir autorização ao Abade. - A sua voz tornou-se mais baixa, como se tivesse escrúpulo em que eu a ouvisse. - Sabes, num lugar desconhecido da biblioteca conservam-se mesmo obras de necromancia, de magia negra, receitas de filtros diabólicos. Pude consultar algumas destas obras, por dever científico, e esperava encontrar uma descrição daquele veneno e das suas funções. Em vão.

 

- Então, falaste nisso a Malaquias.

 

- Decerto, sem dúvida a ele, e talvez também ao próprio Berengário, que lhe assistia. Mas não tires conclusões apressadas: não me recordo, talvez enquanto falava estivessem presentes outros monges, sabes, por vezes no scriptorium há bastante gente...

 

-Não suspeito de ninguém. Procuro apenas compreender o que pode ter acontecido. Em todo o caso dizes-me que o fato aconteceu há alguns anos, e é curioso que alguém tenha tirado com tanta antecipação um veneno que havia de vir a usar tanto tempo depois. Seria indício de uma vontade maligna que incubou longamente na sombra um propósito homicida.

 

Severino benzeu-se com uma expressão de horror no rosto.

 

- Deus nos perdoe a todos! - disse.

 

Não havia mais comentários a fazer. Voltamos a cobrir o corpo de Berengário, que devia ser preparado para as exéquias.

 

QUARTO DIA

PRIMA

 

Onde Guilherme induz primeiro Salvador e depois o despenseiro a confessar o seu passado, Severino encontra as lentes roubadas, Nicolau traz as novas e Guilherme, com seis olhos, vai decifrar o manuscrito de Venancio.

 

Íamos a sair quando entrou Malaquias. Pareceu contrariado com a nossa presença, e fez menção de se retirar. Do interior, Severino viu-o e disse:

 

- Procuravas-me? É por...

 

Interrompeu-se, olhando para nós. Malaquias fez-lhe um sinal, imperceptível, como para dizer «Falaremos depois...» Nós íamos a sair, ele vinha a entrar, encontramo-nos todos três no vão da porta. Malaquias disse, de modo bastante redundante:

 

- Procurava o irmão ervanário... Tenho... tenho dores de cabeça.

 

- Deve ser o ar fechado da biblioteca - disse-lhe Guilherme com um tom de pressurosa compreensão. - Devias fazer sufumígios.

 

Malaquias moveu os lábios como se ainda quisesse falar, depois, desistiu, baixou a cabeça e entrou, enquanto nós nos afastávamos.

 

- Que vai fazer junto de Severino? - perguntei.

 

- Adso - disse-me com impaciência o mestre -, aprende a raciocinar com a sua cabeça. - Depois mudou de conversa: - Temos de interrogar algumas pessoas, agora. Pelo menos - acrescentou, ao mesmo tempo que, com o olhar, explorava o planalto -, enquanto ainda estão vivas. A propósito: doravante prestemos atenção àquilo que comemos e bebemos. Tira sempre os teus alimentos do prato comum e as tuas bebidas da caneca de onde já se tenham servido os outros. Depois de Berengário, somos aqueles que sabem mais coisas. Além, naturalmente, do assassino.

 

- Mas quem quereis interrogar agora?

 

- Adso - disse Guilherme -, terás observado que aqui as coisas mais interessantes acontecem de noite. De noite se morre, de noite se anda pelo scriptorium, de noite se introduzem mulheres na cerca... Temos uma abadia diurna e uma abadia noturna, e a noturna parece desgraçadamente mais interessante que a diurna. Portanto, toda a pessoa que ande de noite nos interessa, incluindo por exemplo o homem que viste ontem à noite com a rapariga. Talvez a história da rapariga não tenha nada a ver com a dos venenos, ou talvez sim. Em todo o caso tenho cá a minha idéia sobre o homem de ontem à noite, que deve ser pessoa que sabe também outras coisas sobre a vida noturna deste santo lugar. E, fala-se do lobo, ei-lo que justamente vai a passar lá em baixo.

 

Apontou-me Salvador, o qual, por sua vez, nos tinha visto. Notei uma leve hesitação no seu passo, como se, desejando evitar-nos, tivesse parado para voltar atrás. Foi um instante. Evidentemente tinha dado conta de que não podia furtar-se ao encontro, e retomou a marcha. Dirigiu-se a nós com um largo sorriso e um «benedicite» um tanto untuoso. O meu mestre quase não o deixou acabar e falou-lhe em tom brusco.

 

- Sabes que amanhã chega aqui a inquisição? - perguntou-lhe.

 

Salvador não pareceu contente. Com um fio de voz perguntou.

 

- E eu?

 

- E tu farás bem em dizer-me a verdade a mim, que sou teu amigo, e sou frade menor como tu foste, em vez de a dizeres amanhã aos outros que conheces muito bem.

 

Assaltado assim bruscamente, Salvador pareceu abandonar qualquer resistência. Olhou com ar submisso para Guilherme como para lhe fazer compreender que estava pronto a dizer-lhe aquilo que lhe perguntasse.

 

- Esta noite estava na cozinha uma mulher. Quem estava com ela?

 

- Oh, femena que véndese come mercandía non puede num-quam ser bona ni tener cortesía! - recitou Salvador.

 

- Não quero saber se era boa rapariga. Quero saber quem estava com ela!

 

- Deus, como são as femenas malvadas e espertas! Pensam dia e noite como o homem enganar...

 

Guilherme agarrou-o bruscamente pelo peito:

 

- Quem estava com ela, tu ou o despenseiro?

 

Salvador compreendeu que não podia mentir durante mais tempo. Começou a contar uma estranha história, pela qual fadigosamente ficamos a saber que ele para agradar ao despenseiro, lhe arranjava raparigas na aldeia, fazendo-as entrar durante a noite na cerca por vias que não nos quis dizer. Mas tresjurou que agia por puro bom coração, deixando transparecer um cômico remorso pelo fato de não encontrar modo de também tirar daí o seu prazer, de modo que a rapariga, depois de ter contentado o despenseiro, lhe desse qualquer coisa também a ele. Disse tudo isto com viscosos e lúbricos sorrisos, e piscadelas de olhos, como para dar a entender que falava com homens feitos de carne, acostumados às mesmas práticas. E olhava para mim de soslaio, e eu não podia retorquir-lhe como quereria, porque me sentia ligado a ele por um segredo comum, seu cúmplice e companheiro de pedaço.

 

Guilherme decidiu naquela altura tentar tudo por tudo. Perguntou-lhe de chofre:

 

- Conheceste Remígio antes ou depois de teres estado com Dolcino?

 

Salvador ajoelhou-se a seus pés, suplicando-lhe entre lágrimas que não quisesse perdê-lo e que o salvasse da inquisição, Guilherme jurou-lhe solenemente que não dizia a ninguém quanto viesse a saber, e Salvador não hesitou em entregar o despenseiro à nossa mercê. Tinham-se conhecido na Parede Calva, ambos do bando de Dolcino, com o despenseiro tinha fugido e entrado no convento de Casale, com ele se tinha transferido entre os clunicenses. Mastigava implorando perdão, e claro que dele não se poderia saber mais. Guilherme decidiu que valia a pena apanhar Remígio de surpresa, e deixou Salvador, que correu a refugiar-se na igreja.

 

O despenseiro estava na parte oposta da abadia, diante dos celeiros, e estava a negociar com alguns aldeões do vale. Olhou-nos com apreensão, e procurou mostrar-se muito atarefado, mas Guilherme insistiu para falar com ele. Até então tínhamos tido com aquele homem poucos contatos; ele tinha sido cortês conosco, nós com ele. Naquela manhã, Guilherme dirigiu-se-lhe como teria feito com um irmão da sua ordem. O despenseiro pareceu embaraçado com aquela confiança e respondeu a princípio com muita prudência.

 

- Pelas razões do teu ofício, tu és obrigado a vaguear pela abadia mesmo quando os outros dormem, imagino - disse Guilherme.

 

- Depende - respondeu Remígio -, por vezes há pequenos serviços a despachar e tenho de lhes dedicar algumas horas de sono.

 

- Não te aconteceu nada, nestes casos, que possa indicar-nos quem terá vagueado, sem ter as tuas justificações, entre a cozinha e a biblioteca?

 

- Se tivesse visto alguma coisa, teria dito ao Abade.

 

- Certo - concordou Guilherme, e mudou bruscamente de conversa: - A aldeia do vale não é muito rica, pois não?

 

- Sim e não - respondeu Remígio -, habitam aí alguns prebendários que dependem da abadia, e estes partilham da nossa riqueza nos anos de abundância. Por exemplo, no dia de São João receberam doze moios de malte, um cavalo, sete bois, um touro, quatro novilhas, cinco vitelos, vinte ovelhas, quinze porcos, cinqüenta frangos e dezessete colméias. E, depois, vinte porcos fumados, vinte e sete formas de banha, meia medida de mel, três medidas de sabão, uma rede de pesca...

 

- Já compreendi, já compreendi - interrompeu Guilherme -, mas tens de admitir que isso ainda não me diz qual é a situação da aldeia, quais os habitantes que são prebendários da abadia, e quanta terra tem de cultivar por sua conta quem não é prebendário...

 

- Oh, para isso - disse Remígio -, uma família normal lá em baixo chega a possuir até cinqüenta tábuas de terreno.

 

- Quanto é uma tábua?

 

- Naturalmente, quatro trabucos quadrados.

 

- Trabucos quadrados? quantos são?

 

- Trinta e seis pés quadrados por trabuco. Ou, se quiseres, oitocentos trabucos lineares fazem uma milha piemontesa. E calcula que uma família, nas terras para norte, pode cultivar oliveiras para ao menos meio saco de azeite.

 

- Meio saco?

 

- Sim, um saco tem cinco heminas, e uma hemina tem oito taças.

 

- Já compreendi - disse o meu mestre desanimado. - Cada região tem as suas medidas. Vós por exemplo, o vinho medi-lo em canadas?

 

- Ou em almudes. Seis almudes, um barril, e oito barris uma pipa. Se quiseres, um almude tem seis pintas de duas canadas.

 

- Creio que tenho as idéias claras - disse Guilherme resignado.

 

- Desejas saber mais alguma coisa? - perguntou Remígio, com um tom que me pareceu um desafio.

 

- Sim! Perguntava-te sobre o modo como viviam no vale porque meditava hoje na biblioteca sobre as prédicas de Humberto de Romans às mulheres, e em particular sobre o capítulo Ad mulleres pauperes in villulis. Onde diz que estas, mais que outras, são tentadas aos pecados da carne, por causa da sua miséria, e sabiamente diz que elas peccant enim mortaliter, cum peccant cum quocumque laico, mortalius vero quando cum Clerico in sacris ordinibus constituto, máxime vero quando cum Religioso mundo mortuo. Tu sabes melhor que eu que, mesmo em lugares santos como as abadias, as tentações do demônio meridiano nunca faltam. Perguntava-me se, nos teus contatos com a gente da aldeia, terás vindo a saber que alguns monges, Deus não queira, tenham induzido algumas raparigas a fornicação.

 

Embora o meu mestre dissesse estas coisas com tom quase distraído, o meu leitor terá compreendido como aquelas palavras perturbavam o pobre despenseiro. Não sei dizer se empalideceu, mas direi que tanto esperava que empalidecesse que o vi empalidecer.

 

- Perguntas-me coisas que, se as soubesse, já teria dito ao Abade - respondeu humildemente. - Em todo o caso, se, como imagino, essas notícias servem à tua investigação, não te calarei nada que possa vir a saber. Melhor, agora que me fazes pensar, a propósito da tua primeira pergunta... Na noite em que morreu o pobre Adelmo, eu circulava pelo pátio... sabes, uma história de galinhas... rumores que tinha captado sobre um certo ferrador que de noite andava a roubar na capoeira... Pois bem, naquela noite aconteceu-me ver... de longe, não poderia jurar... Berengário, que reentrava no dormitório ladeando o coro, como se proviesse do Edifício... Não me admirei, porque, entre os monges, murmurava-se há algum tempo sobre Berengário, talvez tenhas sabido...

 

- Não, diz-me.

 

- Bem, como dizer? Suspeitava-se que Berengário nutria paixões que... não convêm a um monge...

 

- Queres talvez sugerir-me que tinha relações com raparigas da aldeia, como te estava a perguntar?

 

O despenseiro tossiu, embaraçado, e teve um sorriso bastante imundo:

 

- Oh, não... paixões ainda mais inconvenientes...

 

- Porque um monge que se deleite carnalmente com raparigas da aldeia pratica, pelo contrário, paixões de algum modo convenientes?

 

- Não disse isso, mas tu ensinas-me que há uma hierarquia na depravação como na virtude. A carne poder ser tentada segundo a natureza e... contra a natureza.

 

- Tu estás a dizer-me que Berengário era movido por desejos carnais por homens do seu sexo?

 

- Eu digo que isso se murmurava dele... Comunicava-te estas coisas como prova da minha sinceridade e da minha boa vontade...

 

- E eu agradeço-te. E concordo contigo que o pecado de sodomia é bem pior que outras formas de luxúria, sobre as quais francamente não me sinto inclinado a investigar...

 

- Misérias, misérias, se acaso se verificassem - disse com filosofia o despenseiro.

 

- Misérias, Remígio. Somos todos pecadores. Jamais procuraria o argueiro no olho do irmão, tanto temo ter uma grande trave no meu. Mas ficar-te-ei grato por todas as traves de que me quiseres falar no futuro. Assim, conversaremos sobre grandes e robustos troncos de madeira e deixaremos que os argueiros volteiem no ar. Quanto dizias que é um trabuco?

 

- Trinta e seis pés quadrados. Mas não te preocupes. Quando quiseres saber alguma coisa com precisão vem ter comigo. Conta que tens em mim um amigo fiel.

 

- Como tal eu te considero - disse Guilherme com calor. – Ubertino disse-me que, em tempos, pertenceste à mesma ordem que eu. Jamais trairia um antigo irmão, especialmente nestes dias em que se espera a chegada de uma delegação pontifícia conduzida por um grande inquisidor, famoso por ter queimado tantos dolcinianos. Dizias que um trabuco tem trinta e seis pés quadrados?

 

O despenseiro não era tolo. Decidiu que já não valia a pena jogar ao gato e ao rato, tanto mais que se apercebia de ser o rato.

 

- Frade Guilherme – disse -, vejo que tu sabes muito mais coisas do que eu imaginava. Não me traias e eu não te trairei. É verdade, sou um pobre homem carnal, e cedo aos engodos da carne. Salvador disse-me que tu ou o teu noviço o tínheis surpreendido ontem à noite na cozinha. Tu tens viajado muito, Guilherme, sabes que nem sequer os cardeais de Avinhão são modelos de virtude. Sei que não é por estes pequenos e miseráveis pecados que me estás a interrogar. Mas compreendo também que soubeste alguma coisa sobre a minha história de outros tempos. Tive uma vida bizarra, como aconteceu a muitos de nós, menoritas. Há anos acreditei no ideal de pobreza, abandonei a comunidade para me entregar à vida errante. Acreditei na pregação de Dolcino, como muitos outros como eu. Não sou um homem culto, recebo ordens mas mal sei dizer missa. Sei pouco de teologia. E talvez não consiga sequer afeiçoar-me às idéias. Vês, em tempos tentei rebelar-me contra os senhores, agora sirvo-os, e pelo senhor destas terras comando outros como eu. Ou rebelar-se ou trair, dão-nos pouca escolha, a nós simples.

 

- Por vezes, os simples compreendem as coisas melhor que os doutos - disse Guilherme.

 

- Talvez - respondeu o despenseiro com um encolher de ombros. - Mas nem sequer sei porque fiz aquilo que fiz, então. Vês, para Salvador era compreensível, vinha dos servos da gleba, de uma infância de penúria e de doenças... Dolcino representava a rebelião e a destruição dos senhores. Para mim foi diferente, era de família citadina, não fugia da fome. Foi... não sei como dizer, uma festa de loucos, um belo carnaval... Nos montes com Dolcino, antes de sermos reduzidos a comer a carne dos nossos companheiros mortos em combate, antes de morrerem tantos de privações que não se podia comê-los a todos, e atiravam-se como pasto às aves e às feras nas encostas do Rebello... ou talvez mesmo nesses momentos... respirássemos um ar... posso dizer de liberdade? Não sabia antes o que era a liberdade, os pregadores diziam-nos. «A verdade vos fará livres.» Sentíamo-nos livres, pensávamos que era a verdade. Pensávamos que tudo aquilo que fazíamos era justo...

 

- E ai começaste... a unir-vos livremente com uma mulher? - perguntei, e nem sequer sei porquê, mas obcecavam-me desde a noite anterior as palavras de Ubertino, e aquilo que tinha lido no scriptorium, e os próprios casos que me tinham acontecido.

 

Guilherme olhou para mim intrigado, provavelmente não esperava que eu fosse tão audacioso e impudente. O despenseiro fixou-me como se eu fosse um estranho animal.

 

- No Rebello – disse - havia gente que durante toda a infância tinha dormido, aos dez e mais, em poucos côvados de terra batida, irmãos e irmãs, pais e filhas. Que queres que fosse para eles aceitar esta nova situação? Faziam por eleição aquilo que antes tinham feito por necessidade. E depois, de noite, quando temes a chegada das esquadras inimigas e te aconchegas ao teu companheiro, sobre a terra, para não sentir frio... Os hereges: vós, mongezinhos que vindes de um castelo e acabais numa abadia, credes que é um modo de pensar, inspirado pelo demônio. Pelo contrário; é um modo de viver, e é... e foi... uma experiência nova...Já não havia patrões, e Deus, diziam-nos, estava conosco. Não digo que tivéssemos razão, Guilherme, e de fato vês-me aqui porque os abandonei bem depressa. Mas é que nunca compreendi as vossas disputas doutas sobre a pobreza de Cristo e o uso e o fato e o direito... Já to disse, foi um grande carnaval, e no carnaval fazem-se as coisas ao contrário. Depois tornas-te velho, não te tornas sábio, mas tornas-te glutão. E aqui faço de glutão... Podes condenar um herege, mas queres condenar um glutão?

 

- Já chega Remígio - disse Guilherme. - Não te interrogo por aquilo que sucedeu então, mas por aquilo que aconteceu recentemente. Ajuda-me, e eu não procurarei decerto a tua ruína. Não posso e não quero julgar-te. Mas tens de me dizer o que sabes sobre os fatos da abadia. Andas demasiado, de noite e de dia, para não saberes alguma coisa. Quem matou Venancio?

 

- Não sei, juro-te. Sei quando morreu e onde.

 

- Quando? Onde?

 

- Deixa-me contar. Naquela noite, uma hora depois de completas, entrei na cozinha...

 

- Por onde, e por que razões?

 

- Pela porta que dá para o horto. Tenho uma chave que há algum tempo mandei fazer aos ferreiros. A porta da cozinha é a única que não é trancada por dentro. E as razões... não contam, disseste tu mesmo que não queres acusar-me pelas fraquezas da minha carne... - Sorriu embaraçado. - Mas não queria tão-pouco que julgasses que passo os meus dias na fornicação... Naquela noite procurava comida para oferecer à rapariga que Salvador devia fazer entrar na cerca...

 

- Por onde?

 

- Oh, a cerca das muralhas tem outras entradas, além do portal. Conhece-as o Abade, conheço-as eu... Mas naquela noite a rapariga não veio, mandei-a voltar para trás precisamente por causa daquilo que descobri e que vou contar. Eis porque tentei fazê-la voltar ontem à noite. Se vós tivésseis chegado pouco depois, ter-me-ieis encontrado a mim em vez de Salvador, foi ele que me avisou que havia gente no Edifício, e eu voltei para a minha cela...

 

- Voltemos à noite entre domingo e segunda.

 

- Pois bem: eu entrei na cozinha e vi por terra Venancio, morto.

 

- Na cozinha?

 

- Sim, perto da pia. Acabava talvez de descer do scriptorium.

 

- Nenhuma marca de luta?

 

- Nenhuma. Ou melhor, perto do corpo estava uma chávena quebrada, e havia sinais de água no chão.

 

- Porque sabes que era água?

 

- Não sei. Pensei que fosse água. Que podia ser?

 

Como Guilherme me fez observar depois, aquela chávena podia significar duas coisas diversas. Ou precisamente ali na cozinha alguém tinha dado de beber a Venancio uma poção venenosa, ou o desgraçado já tinha ingerido o veneno (mas onde?, e quando) e tinha descido a beber para acalmar um improviso ardor, um espasmo, uma dor que lhe queimava as vísceras, ou a língua (que, certamente, a sua devia estar negra como a de Berengário).

 

Em todo o caso, de momento não se podia saber mais nada. Descoberto o cadáver, e aterrorizado, Remígio tinha-se perguntado o que fazer, e tinha decidido não fazer nada. Se pedisse socorro, devia admitir que tinha vagueado durante a noite pelo Edifício, e isso não teria valido de nada ao irmão já perdido. Portanto, tinha decidido deixar as coisas como estavam, esperando que alguém descobrisse o corpo na manhã seguinte, ao abrir as portas. Tinha corrido a deter Salvador, que já estava a fazer entrar a rapariga na abadia, depois – ele e o seu cúmplice - tinham voltado a dormir, se acaso se podia chamar sono à vigília agitada que tiveram até matinas. E a matinas, quando os porqueiros foram avisar o Abade, Remígio julgava que o cadáver tinha sido descoberto onde ele o tinha deixado, e tinha ficado interdito ao descobri-lo na talha. Quem tinha feito desaparecer o cadáver da cozinha? Sobre isto, Remígio não tinha nenhuma idéia.

 

- O único que pode mover-se livremente pelo edifício é Malaquias - disse Guilherme.

 

O despenseiro reagiu com energia:

 

- Não! Malaquias não. Isto é, não creio... Em todo o caso, não fui eu que te disse algo contra Malaquias...

 

- Está tranqüilo, qualquer que seja a dívida que te liga a Malaquias. Sabe alguma coisa de ti?

 

- Sim - corou o despenseiro -, e comportou-se como homem discreto. Se estivesse no teu lugar eu vigiaria Bêncio. Tinha estranhas ligações com Berengário e Venancio... Mas, juro-te, não vi mais nada. Se souber alguma coisa, dir-te-ei.

 

- Por agora pode chegar. Voltarei junto de ti, se tiver necessidade.

 

O despenseiro, evidentemente aliviado, voltou aos seus negócios, repreendendo asperamente os aldeões, que tinham deslocado não sei que sacos de sementes.

 

Naquele entretanto chegou junto de nós Severino. Trazia na mão as lentes de Guilherme, as que lhe tinham tirado duas noites antes.

 

- Encontrei-as no saio de Berengário - disse. - Vi-as no nariz, no outro dia na biblioteca. São as tuas, não são?

 

- Deus seja louvado - exclamou alegremente Guilherme. – Resolvemos dois problemas! Tenho as minhas lentes e sei finalmente que era Berengário o homem que nos derrubou a noite passada no scriptorium!

 

Mal tínhamos acabado de falar quando chegou a correr Nicolau de Morimondo, ainda mais triunfante que Guilherme. Tinha nas mãos um par de lentes acabadas, montadas na sua forquilha:

 

- Guilherme – gritava -, consegui-o sozinho, acabei-as, creio que funcionam!

 

Depois viu que Guilherme tinha outras lentes no rosto e ficou petrificado. Guilherme não quis humilhá-lo, tirou as suas velhas lentes e mediu as novas:

 

- São melhores que as outras - disse. - Quer dizer que terei as velhas de reserva e usarei sempre as tuas. - Depois voltou-se para mim: - Adso, agora retiro-me para a minha cela para ler aqueles papéis que sabes. Finalmente! Espera-me em qualquer sítio. E obrigado, obrigado a todos vós, caríssimos irmãos.

 

Soava a hora terça e dirigi-me para o coro, para recitar com os outros o hino, os salmos, os versículos e o Kyrye. Os outros rezavam pela alma do morto Berengário. Eu agradecia a Deus por nos ter feito encontrar não um mas dois pares de lentes.

 

Devido à grande serenidade, esquecidas todas as torpezas que tinha visto e ouvido, adormeci, acordando quando o ofício terminou. Dei-me conta que naquela noite não tinha dormido, e perturbei-me pensando que tinha, além disso, usado muitas das minhas forças. E naquela altura, saindo para o ar livre, o meu pensamento começou a ser obcecado pela recordação da rapariga.

 

Procurei distrair-me, e pus-me a andar depressa pelo planalto. Experimentava uma sensação de leve vertigem. Esfregava as mãos entorpecidas uma contra a outra. Batia com os pés no chão. Ainda tinha sono, e no entanto sentia-me acordado e cheio de vida. Não compreendia o que me estava acontecendo.

 

QUARTO DIA

TERÇA

 

Onde Adso se debate nos padecimentos de amor, depois chega Guilherme com o texto de Venancio, que continua a permanecer indecifrável, mesmo depois de ter sido decifrado.

 

Na verdade, depois do meu encontro pecaminoso com a rapariga, os outros terríveis acontecimentos quase me tinham feito esquecer aquela aventura, e, por outro lado, logo depois de me ter confessado a frade Guilherme, o meu espírito tinha-se aliviado do remorso que havia sentido ao acordar depois da minha culpável cedência, de tal maneira que me parecia ter entregado ao frade, com as palavras, o próprio fardo de que elas eram a voz significativa. Para que outra coisa serve, com efeito, a benéfica purificação da confissão, senão pare descarregar o peso do pecado, e do remorso que comporta, no próprio seio de Nosso Senhor, obtendo com o perdão uma nova aérea ligeireza de alma, de forma a esquecer o corpo martirizado pela inequícia? Mas não me tinha libertado de tudo. Agora que passeava ao sol pálido e frio daquela manhã invernal, circundado pelo fervor dos homens e dos animais, começava a recorder os acontecimentos passados de modo diverso. Como se de tudo quanto tinha acontecido já não restassem o arrependimento e as palavras consoladoras da purificação penitencial, mas apenas imagens de corpos e de membros humanos. Saltava-me à mente sobreexcitada o fantasma de Berengário inchado de água, e estremecia de nojo e de piedade. Depois como para afugentar aquele lêmure, a minha mente dirigia-se a outras imagens de que a memória fosse fresco receptáculo, e não podia deixar de ver, evidente aos meus olhos (aos olhos da alma, mas quase como se aparecesse diante dos olhos carnais), a imagem da rapariga, bela e terrível, como exército alinhado pare a batalha.

 

Comprometi-me (velho amanuense de um texto nunca escrito até agora, mas que durante longos decênios falou na minha mente) a ser cronista fiel, e não só por amor da verdade, nem pelo desejo (aliás muito digno) de instruir os meus leitores futuros; mas também para libertar a minha memória ressequida e cansada de visões que durante toda a vida a têm atormentado. E por isso devo dizer tudo, com decência mas sem vergonha. E devo dizer, agora, e com todas as letras, aquilo que então pensei e quase tentei esconder a mim próprio, passeando pelo planalto, pondo-me por vezes a correr para poder atribuir ao movimento do corpo o bater improvisado do meu coração, parando para admirar as obras dos vilãos e imaginando que me distraía na sua contemplação, aspirando o ar frio a plenos pulmões, como faz quem bebe vinho para esquecer temor ou dor.

 

Em vão. Eu pensava na rapariga. A minha carne tinha esquecido o prazer, intenso, pecaminoso e passageiro (coisa vil) que me tinha dado a união com ela; mas a minha alma não tinha esquecido o seu rosto, e não conseguia sentir como perversa essa recordação, melhor, palpitava como se naquele rosto resplandecessem todas as doçuras da criação.

 

Percebia, de modo confuso e quase negando a mim próprio a verdade de quanto sentia, que aquela pobre, suja, impudente criatura que se vendia (quem sabe com que proterva constância) a outros pecadores, aquela filha de Eva que, frágil como todas as suas irmãs, tinha tantas vezes feito comércio com a sua própria carne, era todavia qualquer coisa de esplêndido e de mirífico. O meu intelecto sabia-a fonte de pecado, o meu apetite sensitivo percebia-a como receptáculo de toda a graça. É difícil dizer aquilo que eu sentia. Poderia tentar escrever que, ainda preso pelas tramas do pecado, desejava, culpavelmente, vê-la aparecer a todo o instante, e quase espiava o trabalho dos operários para perscrutar se, do ângulo de uma cabana, do escuro de um estábulo, aparecia a figura que me tinha seduzido. Mas não escreveria a verdade, ou então tentaria pôr um véu à verdade para atenuar a sua força e a sua evidência. Porque a verdade é que eu «via» a rapariga, via-a nos ramos da árvore despojada que palpitavam ligeiramente quando um pássaro transido voava para aí procurar refúgio; via-a nos olhos das novilhas que saíam do estábulo, e ouvi-a no balido dos cordeiros que se cruzavam com o meu errar. Era como se toda a criação me falasse dela, e desejava, sim, voltar a vê-la, mas também estava pronto a aceitar a idéia de jamais voltar a vê-la, e de jamais me unir a ela, contando que pudesse gozar do júbilo que me invadia naquela manhã, e tê-la sempre perto ainda que estivesse, e por toda a eternidade, longe de mim. Era, procuro agora compreender, como se o universo inteiro, que claramente é quase um livro escrito pelo dedo de Deus, onde cada coisa nos fala da imensa bondade do seu criador, em que cada criatura é quase escritura e espelho da vida e da morte, em que a mais humilde rosa se faz glosa do nosso caminho terreno, como se tudo em suma, não me falasse de outra coisa senão do rosto que apenas tinha entrevisto nas sombras odorosas da cozinha. Cedia a estas fantasias porque me dizia (ou melhor, não me dizia, porque naquele momento não formulava pensamentos traduzíveis em palavras) que, se o mundo inteiro está destinado a falar-me do poder, bondade e sabedoria do criador, e se naquela manhã o mundo inteiro me falava da rapariga, que (por pecadora que fosse) sempre era ainda um capítulo do grande livro da criação, um versículo do grande salmo cantado pelo cosmo - dizia-me (agora digo) que, se isto acontecia, não podia deixar de fazer parte do grande desígnio teofânico que rege o universo, disposto em forma de citara, milagre de consonância e harmonia. Quase inebriado, gozava então da presença dela nas coisas que via, e, desejando-a nelas, à vista delas me saciava. E, no entanto, sentia como uma dor, porque, ao mesmo tempo, sorria de uma ausência, mesmo sendo feliz com tantos fantasmas de uma presença. Torna-se-me difícil explicar este mistério de contradição, sinal de que o espírito humano é bastante frágil e nunca prossegue diretamente ao longo dos caminhos da razão divina, que construiu o mundo como um pericito silogismo, mas deste silogismo colhe apenas proposições isoladas e freqüentemente desconexas, de onde a nossa facilidade em cair vítima das ilusões do maligno. Era uma ilusão do maligno a que naquela manhã tanto me emocionava? Hoje penso que era, porque era noviço, mas penso que o humano sentimento que me agitava não era mau em si, mas apenas em relação ao meu estado. Porque, em si, era o sentimento que move o homem para uma mulher a fim de que um se una com a outra, como quer o apóstolo dos gentios, e ambos sejam carne de uma só carne, e juntos procriem novos seres humanos e se assistam mutuamente da juventude à velhice. Só que o apóstolo falou assim para aqueles que procuram o remédio para a concupiscência e para quem não quer arder, recordando porém que bem mais preferível é o estado de castidade, a que eu, monge, me tinha consagrado. E assim eu sofria, naquela manhã, aquilo que era mal para mim, mas para outros talvez fosse bem, e bem dulcíssimo, pelo que agora compreendo que a minha perturbação não era devida à perversidade dos meus pensamentos, em si dignos e suaves, mas à perversidade da relação entre os meus pensamentos e os votos que tinha pronunciado. E, assim, fazia mal em gozar de uma coisa sob uma certa razão e má sob outra, e o meu direito estava em tentar conciliar com o apetite natural os ditames da alma racional. Agora sei que sofria pelo contraste entre o apetite intelectivo, onde deveria manifestar-se o império da vontade, e o apetite sensitivo, sujeito das paixões humanas. Com eleito, actus appetitus sensitivi in quantum habent transmutationem corporalem annexam, passiones dicuntur, non autem actus voluntatis. E o meu ato apetitivo era precisamente acompanhado por um tremor de todo o corpo, por um impulso físico a gritar e a agitar-me. O angélico doutor diz que as paixões em sí não são más, salvo que devem ser moderadas pela vontade guiada pela alma racional. Mas a minha alma racional estava naquela manhã adormecida de cansaço, o qual refreava o apetite irascível, que se dirige para o bem e para o mal enquanto conhecidos. Para justificar a minha irresponsável leviandade de então, direi hoje, e com as palavras do doutor angélico, que era indubitavelmente possuído de amor, que é paixão e é lei cósmica, porque também a gravidade dos corpos é amor natural. E por esta paixão era naturalmente seduzido, porque nesta paixão appetitus tendit in appetibile realiter consequendum ut sit ibi finis motus. Pelo que, naturalmente, amor facit quod ipsae res quae amantur, amanti aliquo modo uniantur et amor est magis cognitivus quam cognitio. Com efeito, eu via agora a rapariga melhor do que a tinha visto na noite anterior, e compreendia-a intus et in cute, porque nela compreendia-me a mim e em mim ela mesma. Pergunto-me agora se aquilo que sentia era o amor da amizade, em que o semelhante ama o semelhante e quer apenas o bem de outrem, ou amor de concupiscência, em que se quer o seu próprio bem e o incompleto quer apenas o que o completa. E creio que amor de concupiscência tinha sido o da noite, em que queria da rapariga alguma coisa que nunca tinha tido, enquanto naquela manhã da rapariga não queria nada, e queria apenas o seu bem, e desejava que ela fosse subtraída à cruel necessidade que a obrigava a dar-se por pouca comida, e fosse feliz, e não queria pedir-lhe mais nada, mas apenas continuar a pensá-la e a vê-la nas ovelhas, nos bois, nas árvores, na luz serena que envolvia de júbilo a cerca da abadia.

 

Agora sei que causa do amor é o bem, e o que é bem define-se por conhecimento, e não se pode amar senão aquilo que se apreendeu como bem, enquanto a rapariga a tinha apreendido, sim, como bem do apetite irascível mas como mal da vontade. Mas, então, era presa de tantos e tão contrastantes movimentos do espírito, porque aquilo que sentia era semelhante ao amor mais santo, precisamente como o descrevem os doutores: ele produzia-me o êxtase, em que amante e amado querem a mesma coisa (e, por misteriosa iluminação, eu naquele momento sabia que a rapariga, onde quer que estivesse, queria as mesmas coisas que eu próprio queria ), e por ela eu sentia ciúme, mas não o mau, condenado por Paulo na primeira aos coríntios, que é principium contentionis e não admite consortium in amato, mas aquele de que fala Dionísio nos Nomes Divinos, pelo que também Deus é dito ciumento propter multum amorem quem habet ad existentia (e eu amava a rapariga precisamente porque ela existia, e era feliz, não invejoso, de que ela existisse). Era ciumento do modo em que, para o angélico doutor, o ciúme é motus in amatum, ciúme de amizade que leva a mover-se contra tudo aquilo que prejudica o amado (e eu outra coisa não fantasiava naquele instante senão libertar a rapariga do poder de quem lhe estava comprando as carnes sujando-a com as próprias paixões nefastas).

 

Agora sei, como diz o doutor, que o amor pode levar o amante quando é excessivo. E o meu era excessivo. Tentei explicar aquilo que então sentia, não tento de modo nenhum justificar o que sentia. Falo do que foram os meus culpáveis ardores de juventude. Eram maus, mas a verdade impõe-me que diga que, então, os percebi como extremamente bons. E que isto sirva para instruir quem, como eu, cair nas redes da tentação. Hoje, velho, conheceria mil formas de escapar a tais seduções (e pergunto-me até que ponto devo ter orgulho nisso, pois que estou liberto das tentações do demônio meridiano; mas não liberto de outras, de tal modo que me pergunto se quanto estou fazendo não será culpável condescendência para com a paixão terrestre da rememoração, estúpida tentativa de fugir ao fluxo do tempo e à morte).

 

Então salvei-me quase por instinto miraculoso. A rapariga aparecia-me na natureza e nas obras humanas que me circundavam. Procurei, pois, por feliz intuição da alma, mergulhar na detalhada contemplação daquelas obras. Observei o trabalho dos vaqueiros que levavam os bois para fora do estábulo, dos porqueiros que davam comida aos porcos, dos pastores que atiçavam os cães a reunir as ovelhas, dos camponeses que levavam espelta e milho aos moinhos e saíam deles com sacos de boa comida. Mergulhei na contemplação da natureza, procurando esquecer os meus pensamentos e procurando olhar os seres apenas como nos aparecem, e olvidar-me na sua visão, jucundamente.

 

Como era belo o espetáculo da natureza ainda não tocada pela sabedoria, muitas vezes perversa, do homem!

 

Vi o cordeiro, a quem foi dado este nome quase em reconhecimento da sua pureza e bondade. Com efeito, o nome agnus deriva do fato que este animal agnoscit reconhece a sua própria mãe e reconhece a sua voz no meio do rebanho, enquanto a mãe, entre tantos cordeiros de idêntica forma e de idêntico balido, reconhece sempre e apenas o seu filho, e alimenta-o. Vi a ovelha, que oris se diz ab oblatione, porque servia desde os primeiros tempos para os ritos sacrificiais; a ovelha que, como é seu costume, ao chegar o Inverno, procura a erva com avidez e se enche de forragem antes de os pastos serem queimados pelo gelo. E os rebanhos eram vigiados pelos cães, assim chamados por canor por causa do seu latido. Animal perfeito entre os outros, com dons superiores de agudeza, o cão reconhece o seu próprio dono, e é adestrado para a caça às feras nos bosques, para a guarda dos rebanhos contra os lobos, protege a casa e os filhos do seu dono, e por vezes, em tais funções de defesa, encontra a morte. O rei Garamante, que tinha sido feito prisioneiro pelos seus inimigos, foi reconduzido à pátria por uma matilha de duzentos cães que abriram caminho no meio das fileiras adversárias; o cão de Jasão Lício, depois da morte do dono, continuou a recusar a comida até morrer de inanição; o do rei Lisímaco lançou-se na fogueira do próprio dono para morrer com ele. O cão tem o poder de curar as feridas lambendo-as com a língua, e a língua dos seus cachorros pode curar as lesões intestinais. Por natureza costuma utilizar duas vezes o mesmo alimento, depois de o ter vomitado. Sobriedade que é símbolo de perfeição de espírito, tal como o poder taumatúrgico da sua língua é símbolo da purificação dos pecados obtida através da confissão e da penitência. Mas que o cão volte àquilo que vomitou é também sinal de que, depois da confissão, se volta aos mesmos pecados de antes, e esta moralidade foi-me bastante útil naquela manhã para admoestar o meu coração, enquanto admirava as maravilhas da natureza.

 

Entretanto, os meus passos levavam-me para os estábulos dos bois, que estavam a sair em grande número guiados pelos seus boieiros. Pareceram-me logo tal como eram e são, símbolos de amizade e de bondade, porque cada boi no trabalho volta-se para procurar o seu companheiro de arado, se por acaso ele, naquele momento, estiver ausente, e para ele se volta com efetuosos mugidos. Os bois, obedientes, aprendem a voltar sozinhos ao estábulo quando chove, e quando se abrigam na manjedoura estendem continuamente a cabeça para olhar para fora a ver se o mau tempo cessou, porque aspiram a voltar ao trabalho. E com os bois saíam, naquele momento, os vitelinhos, que, fêmeas e machos, tiram o seu nome da palavra viriditas, ou mesmo de virgo, porque naquela idade eles são ainda frescos, jovens e castos, e mal tinha feito e fazia, disse para comigo, em ver nos seus movimentos graciosos uma imagem da rapariga não casta. Nestas coisas pensei, reconciliado com o mundo e comigo mesmo, observando o alegre trabalho da hora matutina. E não pensei mais na rapariga, ou melhor, esforcei-me por transformar o ardor que sentia por ela num sentimento de alegria interior e de paz devota.

 

Disse para comigo que o mundo era bom e admirável. Que a bondade de Deus se manifesta até nos animais mais horríveis, como explica Honório Augustoduniense. É verdade, há serpentes tão grandes que devoram os cercos e nadam através dos oceanos, e há a besta cenocroca, de corpo de burro, cornos de cabra-montês, peito e faces de leão, pé de cavalo mas fendido como o do boi, um corte na boca que chega até às orelhas, a voz quase humana e no lugar dos dentes um único sólido osso. E há a besta mantícora, de rosto de homem, uma tripla ordem de dentes, corpo de leão, cauda de escorpião, olhos glaucos, cor de sangue e voz semelhante ao sibilo das serpentes, ávida de carne humana. E há monstros com oito dedos em cada pé, e focinhos de lobo, unhas aduncas, pele de ovelha e latido de cão, que se tornam negros em vez de brancos com a velhice, e excedem em muito a nossa idade. E há criaturas com olhos nos ombros e dois furos no peito em vez de narinas, porque lhes falta a cabeça, e outras ainda que habitam ao longo do rio Ganges, que vivem só do odor de um certo pomo, e morrem quando se afastam dele. Mas mesmo todas estas bestas imundas cantam na sua variedade os louvores do Criador e a sua sabedoria, como o cão, o boi, a ovelha, o cordeiro e o lince. Como é grande, disse então para comigo, repetindo as palavras de Vicente Belovacense, a mais humilde beleza deste mundo, e como é agradável aos olhos da razão considerar atentamente não só os modos e os números e as ordens das coisas, tão decorosamente estabelecidos por todo o universo, mas também o volver dos tempos que incessantemente se enovelam através de sucessões e quedas, marcados pela morte daquilo que nasceu. Confesso, como pecador que sou, com a alma ainda há pouco prisioneira da carne, que fui movido então por espiritual doçura para com o criador e a regra deste mundo, e admirei com jubilosa veneração a grandeza e a estabilidade da criação.

 

Nesta boa disposição de espírito me encontrou o meu mestre quando, arrastado pelos meus pés e sem dar conta, completado quase o périplo da abadia, me encontrei de novo onde nos tínhamos deixado duas horas antes. Ali estava Guilherme, e o que me disse distraiu-me dos meus pensamentos e fez-me volver de novo a mente para os tenebrosos mistérios da abadia.

 

Guilherme parecia muito contente. Tinha na mão a folha de Venancio, que finalmente tinha decifrado. Fomos para a sua cela, longe de ouvidos indiscretos, e ele traduziu-me aquilo que tinha lido. Depois da frase em alfabeto zodiacal (secretum finis Africae manus supra idolum age primum et septimum de quatuor), eis o que dizia o texto grego:

 

O veneno tremendo que dá a purificação...

 

A arma melhor para destruir o inimigo...

 

Usa as pessoas humildes vis e brutas, tira prazer do seu defeito... Não devemos morrer.. Não nas casas dos nobres e dos poderosos mas das aldeias dos camponeses, depois de abundante repasto e libações.. Corpos toscos, caras disformes.

 

Estupram virgens e deitam-se com meretrizes, não malvados, sem temor

 

Uma verdade diversa, uma diversa imagem da verdade...

 

As veneráveis figueiras.

 

A pedra desavergonhada rola pela planura... Sob os olhos.

 

É necessário enganar e surpreender enganando, dizer as coisas ao contrario do que se acreditava, dizer uma coisa e entender outra.

 

Para eles as cigarras cantarão da terra.

 

Nada mais. Na minha opinião, demasiado pouco, quase nada. Pareciam os desvarios de um demente, e disse-o a Guilherme.

 

- Podia ser. E parece sem dúvida mais demente do que era por causa da minha tradução. Conheço o grego duma forma bastante aproximativa. E todavia, posto que Venancio fosse louco, ou fosse louco o autor do livro, isto não nos diria porque é que tantas pessoas, e nem todas loucas, tanto fizeram, primeiro para esconder o livro e depois para o recuperar...

 

- Mas as coisas que estão escritas aqui provêm do livro misterioso?

 

- Trata-se sem dúvida de coisas escritas por Venancio. Vê-lo também tu, não se trata de um pergaminho antigo. E devem ser notas tiradas ao ler o livro, senão Venancio não teria escrito em grego. Ele recopiou certamente, abreviando-as, frases que encontrou no volume subtraído ao finis Africae. Levou-o para o scriptorium e começou a lê-lo, anotando aquilo que lhe parecia digno de nota. Depois aconteceu qualquer coisa. Ou se sentiu mal, ou ouviu alguém subir. Então repôs o livro, com as notas, debaixo da mesa, provavelmente prometendo-se retomá-lo na noite seguinte. Em todo o caso, é apenas partindo desta folha que poderemos reconstruir a natureza do livro misterioso, e é só da natureza daquele livro que será possível inferir a natureza do homicida. Porque em todo o delito cometido para possuir o objeto, a natureza do objeto deveria fornecer-nos uma idéia, embora pálida, da natureza do assassino. Se se mata por um punhado de ouro, o assassino será pessoa ávida, se por um livro, o assassino estará ansioso por guardar para si os segredos daquele livro. É preciso portanto saber o que diz o livro que nós não temos.

 

- E vós sereis capaz, por estas poucas linhas, de compreender de que livro se trata?

 

- Querido Adso, estas parecem as palavras de um texto sagrado, cujo significado vai para além da letra. Lendo-as esta manhã, depois de termos falado com o despenseiro, impressionou-me o fato de também aqui se fazer referência aos simples e aos camponeses como portadores de uma verdade diversa da dos sábios. O despenseiro deixou compreender que alguma estranha cumplicidade o ligava a Malaquias. Que Malaquias tivesse escondido algum perigoso texto herético que Remígio lhe tinha entregado? Então Venancio teria lido e anotado alguma misteriosa instrução respeitante a uma comunidade de homens rudes e vis em revolta contra tudo e todos. Mas...

 

- Mas?

 

- Mas dois fatos estão contra esta minha hipótese. Um é que Venancio não parecia interessado em tais questões: era um tradutor de textos gregos, não um pregador de heresias... O outro é que frases como a das Figueiras, da pedra ou das cigarras não seriam explicadas por esta primeira hipótese...

 

- São talvez enigmas com outro significado - sugeri. - Ou tendes outra hipótese?

 

- Tenho, mas é ainda confusa. Parece-me, lendo esta página, já ter lido algumas destas palavras, e voltam-me à mente frases quase semelhantes que vi algures. Parece-me que esta folha fala de algo de que já se falou nos dias anteriores... mas não me recordo o quê. Tenho de pensar nisso. Talvez tenha de ler outros livros.

 

- Como assim? Para saber o que diz um livro tendes de ler outros?

 

- Por vezes pode fazer-se assim. Muitas vezes os livros falam de outros livros. Muitas vezes um livro inócuo é como uma semente, que florescerá num livro perigoso, ou inversamente, é o fruto doce de uma raiz amarga. Não poderias, lendo Alberto, saber o que poderia ter dito Tomás? Ou, lendo Tomás, saber o que terá dito Averroes?

 

- É verdade - disse admirado. Até então tinha pensado que cada livro falava das coisas, humanas ou divinas, que estão fora dos livros. Agora apercebia-me que, não raro, os livros falam dos livros, ou melhor, é como se falassem entre si. À luz desta reflexão, a biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era portanto o lugar de um longo e secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminhos e pergaminhos, uma coisa viva, um receptáculo de poderes que uma mente humana não podia dominar, tesouro de segredos emanados de tantas mentes, e sobrevivendo à morte daqueles que os tinham produzido ou deles se tinham feito mensageiros – Mas então - disse - para que serve esconder os livros, se dos livros patentes se pode remontar aos ocultos?

 

- No arco dos séculos não serve de nada. No arco dos anos e dos dias serve para alguma coisa. De fato, vês como nós nos encontramos perdidos.

 

- E, assim, uma biblioteca não é um instrumento para distribuir a verdade, mas para retardar a sua aparição? –perguntei espantado.

 

- Nem sempre e não necessariamente. Neste caso é.

 

QUARTO DIA

SEXTA

 

Onde Adso vai procurar trufas e encontra os menoritas a chegar na abadia, estes têm um longo colóquio com Guilherme e Ubertino e se sabem coisas muito tristes sobre João XXII.

 

Depois destas considerações, o meu mestre decidiu não fazer mais nada. Já disse que tinha por vezes destes momentos de total falta de atividade, como se o ciclo incessante dos astros tivesse parado, e ele com um e outros. Assim fez naquela manhã. Estendeu-se no enxergão com os olhos abertos no vazio e as mãos cruzadas sobre o peito, movendo apenas os lábios, como se recitasse uma oração, mas de modo irregular e sem devoção.

 

Pensei que ele pensava, e resolvi respeitar a sua meditação. Voltei ao pátio e vi que o sol tinha enfraquecido. De bela e límpida que era, a manhã (enquanto o dia se preparava para consumir a sua primeira metade) estava a tornar-se úmida e brumosa. Grossas nuvens moviam-se de setentrião e estavam a invadir o cume do planalto, cobrindo-o de uma camada ligeira. Parecia névoa, e talvez também subisse névoa da terra, mas àquela altura, era difícil distinguir as brumas que vinham de baixo das que desciam do alto, começava a ver-se com dificuldade a mole dos edifícios mais distantes.

 

Vi Severino, que reunia os porqueiros e alguns dos seus animais com alegria. Disse-me que iam ao longo das faldas do monte, e ao vale, à procura de trufas. Eu não conhecia ainda aquele fruto do fundo do bosque que crescia naquela península e parecia típico das terras beneditinas, quer em Norcia – negro - quer naquelas terras - mais branco e perfumado. Severino explicou-me o que era, e como era gostoso, preparado dos modos mais variados. E disse-me que era dificílimo de encontrar, porque se escondia debaixo da terra, mais secreto que um cogumelo, os únicos animais capazes de o encontrar, seguindo o olfato, eram os porcos. Salvo que, mal o encontrassem, queriam devorá-lo, e era preciso afastá-los logo e intervir para o desenterral. Soube depois que muitos gentis-homens não desdenhavam entregar-se àquela caça, seguindo os porcos como se fossem sabujos muito nobres, e seguidos, por sua vez, pelos servos com as enxadas. Recordo até que, alguns anos mais tarde, um senhor das minhas terras, sabendo que eu conhecia a Itália, me perguntou como é que lá tinha visto senhores que levavam os porcos a pastar, e eu ri compreendendo que, pelo contrário, andavam à procura de trufas. Mas como eu disse àquele que estes senhores desejavam encontrar o «tar-tufo» debaixo da terra para depois o comerem, aquele compreendeu que eu dizia que procuravam «der Teufel», ou melhor, o diabo, e benzeu-se devotadamente olhando-me assombrado. Depois o equívoco desfez-se, e rimo-nos ambos. Tal é a magia das falas humanas, que por humano acordo significam muitas vezes, com sons iguais, coisas diversas.

 

Intrigado com os preparativos de Severino, decidi segui-lo, até porque compreendi que ele se entregava àquela busca para esquecer os tristes casos que a todos oprimiam; e eu pensei que, ajudando-o a esquecer os seus pensamentos, teria talvez, senão esquecido, pelo menos refreado os meus. E não escondo, pois que decidi escrever sempre e só a verdade, que, secretamente, me seduzia a idéia de que, descendo o vale, poderia talvez entrever alguém que não digo. Mas a mim próprio e quase em voz alta afirmei pelo contrário que, como naquele dia se esperava a chegada das duas delegações, poderia talvez avistar uma.

 

À medida que se desciam as curvas do monte, o ar tornava-se mais claro; não que voltasse o sol, que a parte superior do céu estava carregada de nuvens, mas as coisas distinguiam-se nitidamente, porque a névoa permanecia sobre as nossas cabeças. Melhor, tendo descido muito, voltei-me para olhar o cimo do monte, e não vi mais nada: de metade da subida em diante, o cume da colina, o planalto, o Edifício, tudo desaparecia entre as nuvens.

 

Na manhã da nossa chegada, quando já estávamos entre os montes, em certas curvas, era ainda possível distinguir, a pouco mais de dez milhas e talvez menos, o mar. A nossa viagem tinha sido rica de surpresas, porque, de repente, encontrávamo-nos como sobre um terraço montanhoso que dava a pique para golfos belíssimos, e não muito depois penetrava-se em gargantas profundas, onde montanhas se elevavam entre as montanhas, e uma embotava à outra a vista da costa longínqua, enquanto o sol penetrava a custo no fundo dos vales. Nunca como naquele lugar da Itália tinha visto tão estreitas e repentinas interpenetrações de mar e montes, de litorais e paisagens alpinas, e no vento que sibilava entre as gargantas podia perceber-se a luta alternada dos bálsamos marinhos e dos gélidos sopros rupestres.

 

Naquela manhã, porém, tudo era cinzento e quase branco-leite. Não havia horizontes mesmo quando as gargantas se abriam para as costas longínquas. Mas demoro-me em recordações de pouco interesse para a história que nos preocupa, meu paciente leitor. Assim, não falarei das sucessivas vicissitudes da nossa bisca dos «derteufel». E falarei antes da delegação dos frades menores, que fui o primeiro a avistar, correndo imediatamente para o mosteiro, para avisar Guilherme de sua chegada.

 

O meu mestre deixou que os recém-chegados entrassem e fossem saudados pelo Abade segundo o rito. Depois foi ao encontro do grupo, e foi uma seqüência de abraços e de saudações fraternas.

 

Já tinha passado a hora da refeição, mas haviam posto uma mesa para os hóspedes, e o Abade teve a delicadeza de os deixar entre si e sozinhos com Guilherme, dispensados dos deveres da regra, livres de se alimentarem e de trocarem ao mesmo tempo as suas impressões: dado que afinal se tratava, Deus me perdoe a desagradável comparação, como de um conselho de guerra a reunir-se o mais depressa possível antes que chegasse o nosso inimigo, isto é, a delegação avinhonense.

 

É inútil dizer que os recém-chegados também se encontraram logo com Ubertino, que todos saudaram com a surpresa, a alegria e a veneração que eram devidas à sua longa ausência, e aos temores que tinham rodeado o seu desaparecimento, e às qualidades daquele corajoso guerreiro que há décadas tinha caminhado com eles na mesma batalha.

 

Dos frades que compunham o grupo direi depois, falando da reunião do dia seguinte. Até porque eu falei pouquíssimo com eles, preso como estava pelo conselho a três que se estabeleceu imediatamente entre Guilherme, Ubertino e Miguel de Cesena.

 

Miguel devia ser um homem bem estranho: ardente na sua paixão franciscana (tinha por vezes os gestos, as inflexões de Ubertino nos seus momentos de arrebatamento místico); muito humano e jovial na sua natureza terrestre de homem das Romagne, capaz de apreciar a boa mesa e feliz por se voltar a encontrar com os amigos; sutil e evasivo, tornando-se de repente astuto e hábil como uma raposa, manhoso como uma toupeira, quando se afloravam problemas de relações entre os poderosos; capaz de grandes risadas, de fervidas tensões, de eloqüentes silêncios, hábil em desviar o seu olhar do interlocutor quando a pergunta daquele exigia que se mascarasse, com a distração, a recusa da resposta.

 

Dele já disse alguma coisa nas páginas precedentes, e eram coisas que tinha ouvido dizer, mas por pessoas, que por sua vez, também tinham ouvido dizer. Agora, porém, compreendia melhor muitas das suas atitudes contraditórias e as repentinas mudanças de desígnio político com que nos últimos anos tinha espantado os seus próprios amigos e sequazes. Ministro geral da ordem dos frades menores, era em princípio o herdeiro de São Francisco, de fato o herdeiro dos seus intérpretes: devia competir com a santidade e a sabedoria de um predecessor como Boaventura de Bagnoregio, devia garantir o respeito da regra, mas ao mesmo tempo as fortunas da ordem, tão poderosa e vasta, devia dar ouvidos às cortes e às magistraturas citadinas das quais a ordem obtinha, seja embora sob a forma de esmolas, dons e legados, motivo de prosperidade e riqueza; e devia, ao mesmo tempo, olhar a que a necessidade de penitência não arrastasse para fora da ordem os espirituais mais acesos, dissolvendo aquela esplêndida comunidade, de que era o chefe, numa constelação de bandos de hereges. Devia agradar ao papa, ao império, aos frades de vida pobre, a São Francisco, que decerto o vigiava do céu, ao povo cristão, que o vigiava da terra. Quando João tinha condenado todos os espirituais como hereges, Miguel não tinha hesitado em entregar-lhe cinco entre os mais obstinados frades da Provença, deixando que o pontífice os mandasse para a fogueira. Mas percebendo (e não devia ter sido estranha a ação de Ubertino) que muitos na ordem simpatizavam com os sequazes da simplicidade evangélica, tinha justamente agido de modo que o capítulo de Perugia, quatro anos depois, fizesse suas as instâncias dos queimados. Naturalmente, procurando reabsorver uma necessidade, que podia ser herética, nos modos e nas instituições da ordem, e querendo que aquilo que a ordem agora queria o quisesse também o papa. Mas, enquanto esperava convencer o papa, sem cujo consenso não quereria prosseguir, não tinha desdenhado aceitar os favores do imperador e dos teólogos imperiais. Ainda dois anos antes do dia em que o vi tinha intimado os seus frades, no capítulo geral de Lião, a falar da pessoa do papa apenas com moderação e respeito (e isto poucos meses depois de o papa ter falado dos menoritas protestando contra «os seus latidos, os seus erros e as suas insânias»). Mas agora estava à mesa, amicíssimo, com pessoas que do papa falavam com respeito menos que nulo.

 

O resto já o disse. João queria-o em Avinhão, ele queria e não queria ir, e o encontro do dia seguinte deveria decidir sobre os modos e sobre as garantias de uma viagem que não deveria aparecer como um ato de submissão nem, tão-pouco, como um ato de desafio. Não creio que Miguel tivesse alguma vez encontrado João pessoalmente, pelo menos desde que este era papa. Em todo o caso, não o via há muito tempo, e os seus amigos apressavam-se a pintar-lhe com tintas muito negras a figura daquele simoníaco.

 

- Uma coisa terás de aprender - dizia-lhe Guilherme -, a não te fiar nos seus juramentos, que ele mantém sempre à letra, violando-os na substancia.

 

- Todos sabem - dizia Ubertino - o que aconteceu no tempo da sua eleição...

 

- Não lhe chamaria eleição, mas sim imposição! - interveio um comensal, a quem ouvi depois chamar Hugo de Newcastle, de inflexão afim à do meu mestre. - Entretanto, já a morte de Clemente V nunca foi muito clara. O rei nunca lhe tinha perdoado por ter prometido processar a memória de Bonifácio VIII, e depois ter feito tudo para não desacreditar o seu predecessor. Como é que morreu em Carpentras, ninguém sabe bem. O fato é que, quando os cardeais confluem a Carpentras para o conclave, dele não sai o novo papa, porque (e justamente) a disputa se desloca para a escolha entre Avinhão e Roma. Não sei bem o que sucedeu naqueles dias, um massacre, dizem-me, com os cardeais ameaçados pelo sobrinho do papa morto, os seus servos trucidados, o palácio pasto das chamas, os cardeais que apelam ao rei, este que diz que nunca quis que o papa desertasse de Roma, que tenham paciência, e que façam uma boa escolha... Depois Filipe, O Belo, morre, também ele sabe Deus como...

 

- Ou sabe-o o diabo - disse benzendo-se, imitado por todos, Ubertino.

 

- Ou sabe-o o diabo - admitiu Hugo escarninho. - Em suma, sucede-lhe outro rei, sobrevive dezoito meses, morre, morre em poucos dias também o seu herdeiro recém-nascido, seu irmão, o regente, sobe ao trono...

 

- E é precisamente este Filipe V que, quando ainda era conde de Poitiers, tinha voltado a reunir os cardeais que fugiam de Carpentras - disse Miguel.

 

- De fato - continuou Hugo - reúne-os em conclave em Lião, no convento dos dominicanos, jurando defender a sua incolumidade e não os manter prisioneiros. Porém, mal aqueles se põem à sua mercê, não só os manda fechar à chave (o que seria, afinal, o justo costumes) mas diminui-lhes os alimentos dia a dia até que tomem uma decisão. E promete a cada um apoiá-lo nas suas pretensões ao sólio. Quando depois sobe ao trono, os cardeais, cansados de estarem prisioneiros há dois anos, com temor de ali permanecerem mesmo toda a vida, comendo pessimamente, aceitam tudo, os glutões, colocando na cátedra de Pedro aquele gnomo de mais de setenta anos...

 

- Gnomo decerto, sim - riu Ubertino -, e de aspecto tísico, mas mais robusto e mais astuto que se julgava!

 

- Filho de sapateiro - resmungou um dos legados.

 

- Cristo era filho de carpinteiro! - repreendeu-o Ubertino. - Não é esse o fato. É um homem culto, estudou leis em Montpellier e medicina em Paris, soube cultivar as suas amizades dos modos mais apropriados para ter as sedes episcopais e o chapéu cardinalício quando lhe parecia oportuno, e quando foi conselheiro de Roberto, O Sábio, em Nápoles, espantou muitos com a sua agudeza. E como bispo de Avinhão deu todos os conselhos justos (justos digo, para aquela esquálida empresa) a Filipe, O Belo, para arruinar os Templários. E depois da eleição conseguiu fugir a um conluio de cardeais que queriam matá-lo... Mas não é isto que queria dizer, falava da sua habilidade em trair os juramentos sem poder ser inculpado de perjúrio. Quando foi eleito, e para ser eleito, prometeu ao cardeal Orsini que havia de levar novamente a sede pontifícia para Roma, e jurou sobre a hóstia consagrada que, se não mantivesse a sua promessa, nunca mais montaria um cavalo ou mulo. Pois bem, sabeis o que fez aquela raposa? Quando se fez coroar em Lião (contra a vontade do rei, que queria que a cerimônia tivesse lugar em Avinhão), viajou depois de Lião a Avinhão de barco!

 

Os frades riram todos. O papa era um perjuro, mas não se lhe podia negar um certo engenho.

 

- É um despudorado - comentou Guilherme. - Hugo não disse que não tentou sequer esconder a sua má-fé! Não me contaste tu, Ubertino, aquilo que disse a Orsini no dia da sua chegada a Avinhão?

 

- Decerto - disse Ubertino -, disse-lhe que o céu de França era tão belo que não via porque devia pôr os pés numa cidade de ruínas como Roma. E que como o papa, tal como Pedro, tinha o poder de ligar e de desligar, ele exercia agora esse poder, e decidia permanecer ali onde estava e onde se encontrava tão bem. E como Orsini procurou recordar-lhe que o seu dever era viver na colina vaticana, chamou-o severamente à obediência, e cortou a discussão. Mas não acabou a história do juramento. Quando desceu do barco, devia montar uma égua branca, seguido pelos cardeais em cavalos negros, como manda a tradição. Mas, pelo contrário, foi a pé para o palácio episcopal. E não me consta que, na verdade, tenha mais alguma vez montado a cavalo. E deste homem tu, Miguel, esperas que se mantenha fiel às garantias que te der?

 

Miguel ficou longo tempo em silêncio. Depois disse:

 

- Posso compreender o desejo do papa de permanecer em Avinhão, e não o discuto. Mas ele não poderá discutir o nosso desejo de pobreza e a nossa interpretação do exemplo de Cristo.

 

- Não sejas ingênuo, Miguel - interveio Guilherme -, o vosso, o nosso desejo faz aparecer o seu a uma luz sinistra. Tens de te dar conta que há séculos que nunca ascenderá ao trono pontifício um homem mais ávido. As meretrizes de Babilônia contra as quais bradava em tempos o nosso Ubertino, os papas corruptos de que falavam os poetas do teu país, como o Alighieri, eram cordeiros mansos e sóbrios em confronto com João. É uma pega ladra, um usurário hebreu, em Avinhão fazem-se mais trágicos que em Florença! Soube da ignóbil transação com o sobrinho do Clemente, Bertrand de Goth, o do massacre a Carpentras (em que, entre outras coisas, os cardeais foram aliviados de todas as suas jóias): este tinha lançado a mão ao tesouro do tio, que não era pouca coisa, e a João não tinha escapado nada daquilo que tinha roubado (na Cum venerabiles enumera com precisão as moedas, os vasos de ouro e de prata, os livros, os tapetes, as pedras preciosas, os ornamentos...) João, porém, fingiu ignorar que Bertrand tinha lançado a mão a mais de um milhão e meio de florins de ouro durante o saque de Carpentras, e discutiu outros trinta mil florins que Bertrand confessava ter recebido do tio para «um propósito pio», isto é, para uma cruzada. Estabeleceu-se que Bertrand ficaria com metade da soma para a cruzada e a outra metade iria para o solio pontifício. Afinal Bertrand nunca fez a cruzada, ou pelo menos ainda não a fez e o papa não viu um florim...

 

- Não é afinal assim tão hábil, então - observou Miguel.

 

- Foi a única vez que se deixou enganar em matéria de dinheiro - disse Ubertino. - Deves saber bem com que raça de mercador tens de lidar. Em todos os outros casos tem mostrado uma habilidade diabólica para juntar dinheiro. É um rei Midas, aquilo em que toca torna-se ouro que aflui às caixas de Avinhão. De todas as vezes que entrei nos seus aposentos encontrei banqueiros, cambistas de moeda, e mesas carregadas de ouro, e clérigos que contavam e empilhavam florins uns sobre os outros... E verás que palácio mandou construir, com riquezas que noutros tempos se atribuíam apenas ao imperador de Bizâncio ou ao Grande Cão dos tártaros. E agora compreendes porque emitiu todas aquelas bulas contra a idéia da pobreza? Mas sabes bem que impeliu os dominicanos, pelo ódio à nossa ordem, a esculpirem estátuas de Cristo com a coroa real, túnica de púrpura e ouro e calçado suntuoso? Em Avinhão foram expostos crucifixos com Jesus pregado só por uma mão, enquanto com a outra toca numa bolsa presa à cintura, para indicar que Ele autoriza o uso do dinheiro para fins de religião...

 

- Oh, o despudorado! - exclamou Miguel. - Mas isso é pura blasfêmia!

 

- Acrescentou - continuou Guilherme - uma terceira coroa à tiara papal, não é verdade, Ubertino?

 

- Decerto. No início do milênio, o papa Hildebrando tinha adotado uma, tendo escrito Corona regni de manu Dei, o infame Bonifácio tinha-lhe acrescentado recentemente uma segunda, escrevendo nela Diadema imperii de manu Petrí, e João não fez mais que aperfeiçoar o símbolo: três coroas, o poder espiritual, o temporal e o eclesiástico. Um símbolo dos reis persas, um símbolo pagão...

 

Havia um frade que até então tinha permanecido em silêncio, ocupado com muita devoção a engolir os bons pratos que o Abade tinha mandado levar para a mesa. Lançava um ouvido distraído aos vários discursos, emitindo de vez em quando um riso sarcástico dirigido ao pontífice, ou um grunhido de aprovação às interjeições de indignação dos comensais. Mas, quanto ao resto, cuidava em limpar do queixo os molhos e os pedaços de carne que deixava cair da boca desdentada mas voraz, e as únicas vezes que tinha dirigido a palavra a um dos seus vizinhos tinha sido para louvar a qualidade de alguma guloseima. Soube depois que era monsenhor Jerônimo, o bispo de Caffa, que Ubertino dias antes julgava já defunto (e devo dizer que aquela idéia de que tinha morrido há dois anos circulou como notícia verdadeira por toda a cristandade por muito tempo, porque a ouvi mesmo depois; e, com efeito, morreu poucos meses depois daquele nosso encontro, e continuo a pensar que terá falecido pela grande raiva que a reunião do dia seguinte lhe terá metido no corpo: quase julguei que rebentasse súbita e imediatamente, tanto era frágil de corpo e bilioso de humor).

 

Intrometeu-se naquele ponto no discurso, falando com a boca cheia:

 

- E, depois, sabeis que o infame elaborou uma constituição sobre as taxae sacrae paenitentiariae, onde especula sobre os pecados dos religiosos para daí tirar mais dinheiro. Se um eclesiástico comete pecado carnal, com uma monja, com uma parente, ou mesmo com uma mulher qualquer (porque também isto sucede!), apenas poderá ser absolvido pagando sessenta e sete libras de ouro e doze soldos. E se cometer bestialidades serão mais de duzentas libras, mas se as cometer só com crianças ou animais, e não com fêmeas, a multa será reduzida cem libras. E uma monja que se tenha entregado a muitos homens, seja ao mesmo tempo seja em momentos diversos, fora ou dentro do convento, e depois queira ser abadessa, deverá pagar cento e trinta e uma libras de ouro e quinze soldos...

 

- Vamos, monsenhor Jerônimo - protestou Ubertino -, sabeis que amo pouco o papa, mas sobre isso devo defendê-lo! É uma calúnia posta a circular em Avinhão, nunca vi essa constituição!

 

- Existe - afirmou vigorosamente Jerônimo. - Tão-pouco eu a vi, mas existe.

 

Ubertino abanou a cabeça, e os outros calaram-se. Apercebi-me que estavam habituados a não levar demasiado a sério monsenhor Jerônimo, que no outro dia Guilherme tinha definido como sendo um tolo. Guilherme em todo o caso, procurou retomar a conversação:

 

- De qualquer maneira, quer seja verdadeiro ou falso, esse rumor diz-nos qual é o clima moral de Avinhão, onde qualquer um, explorados e exploradores, sabe que vive mais num mercado do que na corte de um representante de Cristo. Quando João subiu ao trono falava-se de um tesouro de setenta mil florins de ouro, e agora há quem diga que terá amontoado mais de dez milhões.

 

- É verdade - disse Ubertino. - Miguel, Miguel, não sabes que vergonhas fui obrigado a ver em Avinhão!

 

- Procuremos ser honestos - disse Miguel. - Sabemos que os nossos também cometeram excessos. Tive notícias de franciscanos que atacavam com armas os conventos dominicanos e desnudavam os frades inimigos para lhes imporem a pobreza... É por isso que não ousei opor-me a João no tempo dos casos da Provença... Quero chegar a um acordo com ele, não humilharei o seu orgulho, pedir-lhe-ei apenas que não humilhe a nossa humildade. Não lhe falarei de dinheiro, pedir-lhe-ei apenas que condescenda com uma sã interpretação das Escrituras. E é o que deveremos fazer com os seus legados, amanhã. Ao fim e ao cabo, são homens de teologia, e nem todos serão rapaces como João. Quando homens sábios tiverem deliberado sobre uma interpretação das Escrituras, ele não poderá...

 

- Ele? - interrompeu Ubertino. - Mas tu não conheces ainda as suas loucuras no campo teológico. Ele quer ligar verdadeiramente tudo pela sua mão, no céu e na terra. Na terra vimos o que faz, Quanto ao céu.. Pois bem, ele ainda não exprimiu as idéias que te digo, não publicamente pelo menos, mas eu sei de fonte segura que murmurou com os seus fiéis. Ele está a elaborar algumas proposições loucas, se não perversas, que mudariam a própria substancia da doutrina e tirariam toda a força à nossa pregação!

 

- Quais? - perguntaram muitos.

 

- Perguntai a Berengário, ele sabe-o, foi ele que me falou disso.

 

Ubertino tinha-se voltado para Berengário Talloni, que tinha sido nos últimos anos um dos mais decididos adversários do pontífice na sua própria corte. Vindo de Avinhão, tinha-se reunido há dois anos ao grupo dos outros franciscanos, e com eles tinham chegado à abadia.

 

- É uma história obscura e quase incrível - disse Berengário. – Pois bem, parece portanto que João tem em mente defender que os justos não gozarão da visão beatífica senão depois do Juízo. Há bastante tempo que está refletindo sobre o versículo nove do capítulo sexto do Apocalipse, lá onde se fala da abertura do quinto selo: onde aparecem sob o altar aqueles que foram mortos por testemunharem a palavra de Deus e pedem justiça. A cada um é dada uma veste branca pedindo-lhes que tenham um pouco mais de paciência... Sinal, argumenta João, que eles não poderão ver Deus na sua essência senão ao cumprir-se o Juízo Final.

 

- Mas quem disse essas coisas? - perguntou Miguel aterrado.

 

- Até agora a poucos íntimos, mas a voz espalhou-se, dizem que está a preparar uma intervenção aberta, não de imediato, talvez dentro de alguns anos, está consultando os seus teólogos...

 

- Ah! Ah! - troçou Jerônimo mastigando.

 

- Não somente, parece que quer ir mais longe e defender que o inferno também não será aberto antes daquele dia... Nem sequer para os demônios.

 

- Jesus Senhor, ajuda-nos! – exclamou Jerônimo. - E que contaremos então aos pecadores se não podemos ameaça-los com um inferno imediato, logo após a morte?!

 

- Estamos nas mãos de um louco - disse Ubertino. - Mas não compreendo porque quer defender essas coisas...

 

- Desfaz-se em fumo toda a doutrina das indulgências – lamentou Jerônimo -, e nem mesmo ele poderá vender mais. Porque é que um padre que tenha pecado por bestialidade deve pagar tantas libras de ouro para evitar um castigo remoto?

 

- Não tão remoto como isso - disse com força Ubertino -, os tempos estão próximos!

 

- Sabe-lo tu, caro irmão, mas os simples não o sabem. Eis como estão as coisas! – gritou Jerônimo, que já não tinha o ar de se deleitar com a sua própria comida. - Que idéia nefasta, devem ter-lha metido na cabeça esses frades pregadores... Ah! – e abanou a cabeça.

 

- Mas porquê? - repetiu Miguel de Cesena.

 

- Não creio que haja uma razão - disse Guilherme. - É uma prova que ele se concede, um ato de orgulho. Quer ser verdadeiramente aquele que decide pelo céu e pela terra. Sabia desses rumores, tinha-mo escrito Guilherme de Occam. Veremos no fim se levará a melhor o papa ou se levarão a melhor os teólogos, a voz de toda a Igreja, os próprios desejos do povo de Deus, os bispos...

 

- Oh, em matérias doutrinais ele poderá dobrar até os teólogos - disse Miguel, triste.

 

- Não se sabe - respondeu Guilherme. - Vivemos em tempos em que os sábios em coisas divinas não têm receio de proclamar que o papa é um herege. Os sábios em coisas divinas são, a seu modo, a voz do povo cristão. Contra o qual já nem o próprio papa poderá ir.

 

- Pior, pior ainda - murmurou Miguel assustado. - De um lado um papa louco, do outro o povo de Deus, que, seja embora pela boca dos seus teólogos, pretenderá dentro em pouco interpretar livremente as Escrituras...

 

- Porquê, que fizestes vós de diferente em Perugia? – perguntou Guilherme.

 

Miguel estremeceu como picado ao vivo:

 

- Por isso quero encontrar-me com o papa. Nada podemos nós sobre aquilo com que também ele não concordar.

 

- Veremos, veremos - disse Guilherme de modo enigmático.

 

O meu mestre era na verdade muito perspicaz. Como é que conseguia prever que o próprio Miguel havia depois de decidir apoiar-se nos teólogos do império e no povo para condenar o papa? Como é que conseguia prever que, quando, quatro anos depois, João havia de enunciar pela primeira vez a sua incrível doutrina, haveria sublevação por parte de toda a cristandade? Se a visão beatífica era retardada a esse ponto, como é que poderiam os defuntos interceder pelos vivos? E onde iria parar o culto dos santos? Precisamente os menoritas haviam de iniciar as hostilidades condenando o papa, e Guilherme de Occam havia de estar na primeira fila, severo e implacável nas suas argumentações. A luta havia de durar três anos, até que João, já próximo da morte, faria uma parcial emenda. Ouvi descrevê-lo anos depois, como apareceu no consistório de Dezembro de 1334, mais pequeno do que jamais tinha parecido até então, ressequido pela idade, monagenário e moribundo, de rosto pálido, e teria dito (a raposa, tão hábil em jogar com as palavras não só para violar os seus próprios juramentos mas também para renegar as suas próprias obstinações): «Nós confessamos e cremos que as almas separadas do corpo e completamente purificadas estão no céu, no paraíso com os anjos e com Jesus Cristo, e que elas vêem Deus na sua divina essência, claramente e face a face...», e depois, com uma pausa, nunca ninguém soube se devida à dificuldade da respiração ou à vontade perversa de sublinhar a última cláusula como adversativa, «na medida em que o estado e a condição da alma separada o permita.» Na manhã seguinte, era domingo, fez-se instalar numa cadeira de encosto e, de costas reclinadas, acolheu o beija-mão dos seus cardeais e morreu.

 

Mas novamente divago, e conto coisas diferentes das que devia contar. Também porque, no fundo, o resto daquela conversação à mesa não acrescenta muito à compreensão das vicissitudes que narro. Os menoritas concordaram sobre a atitude a manter no dia seguinte. Pesaram um a um os seus adversários. Comentaram com preocupação a notícia, dada por Guilherme, da chegada de Bernardo Gui. E ainda mais o fato de que a presidir à delegação avinhonense estaria o cardeal Bertrando do Poggetto. Dois inquisidores eram de mais: sinal de que se queria usar contra os menoritas o argumento da heresia.

 

- Tanto pior - disse Guilherme -, nós tratá-los-emos de hereges a eles.

 

- Não, não - disse Miguel -, procedamos com cautela, não devemos comprometer nenhum acordo possível.

 

- Pelo que consigo pensar - disse Guilherme -, embora tendo trabalhado para a realização deste encontro, e tu bem o sabes, Miguel, não creio que os avinhonenses venham aqui para obter algum resultado positivo. João quer-te em Avinhão sozinho e sem garantias. Mas o encontro terá ao menos uma função: fazer-te compreender isto. Teria sido pior se tu tivesses ido antes de ter esta experiência.

 

- Assim, tu esforçaste-te, e durante muitos meses, para realizar uma coisa que crês inútil - disse amargamente Miguel.

 

- Tinha-me sido pedido, por ti e pelo imperador – disse Guilherme. - E, enfim, nunca é inútil conhecer melhor os próprios inimigos.

 

Naquela altura vieram avisar-nos que estava a entrar nas muralhas a segunda delegação. Os menoritas levantaram-se e foram ao encontro dos homens do papa.

 

QUARTO DIA

NONA

 

Onde chegam o cardeal do Poggetto, Bernardo Gui e os outros homens de Avinhão, e depois cada um faz coisas diversas.

 

Homens que já se conheciam há bastante tempo, homens que sem se conhecerem tinham ouvido falar uns dos outros saudavam-se no pátio com aparente benevolência. Ao lado do Abade, o cardeal Bertrando do Poggetto movia-se como quem tem familiaridade com o poder, como se fosse ele próprio um segundo pontífice, e distribuía a todos, especialmente aos menoritas, cordiais sorrisos, auspiciando maravilhas de entendimento para o encontro do dia seguinte, e transmitindo explicitamente os votos de paz e de felicidade (usou intencionalmente esta expressão cara aos franciscanos) da parte de João XXII.

 

- Muito bem, muito bem - disse-me, quando Guilherme teve a bondade de me apresentar como seu escrivão e discípulo.

 

Depois perguntou-me se conhecia Bolonha, e louvou-me a sua beleza, a boa comida e a esplêndida universidade, convidando-me a visitá-la, em vez de voltar um dia. disse-me, para as minhas gentes alemãs, que tanto estavam fazendo sofrer o papa nosso senhor. Depois deu-me o anel a beijar, quando já dirigia o seu sorriso para outro qualquer.

 

Por outro lado, a minha atenção voltou-se logo para o personagem de que mais tinha ouvido falar naqueles dias: Bernardo Gui, como lhe chamavam os franceses, ou Bernardo Guidoni ou Bernardo Guido, como lhe chamavam noutros lugares.

 

Era um dominicano de cerca de setenta anos, frágil mas direito de figura. Impressionaram-me os seus olhos cinzentos, frios, capazes de fixar sem expressão, em que muitas vezes, porém, havia de ver bailar lampejos equívocos, hábil tanto em ocultar pensamentos e paixões como em exprimi-los de propósito.

 

Na troca geral das saudações, não foi como os outros afetuoso ou cordial, mas sempre e apenas cortês. Quando viu Ubertino, que já conhecia, foi muito diferente com ele, mas fixou-o de modo tal que provocou em mim um estremecimento de inquietação. Quando saudou Miguel de Cesena, teve um sorriso difícil de decifrar, e murmurou sem calor: «Lá em baixo esperam-vos há muito tempo», frase em que não consegui colher nem um aceno de ansiedade, nem uma sombra de ironia, nem uma injunção, nem por outro lado, uma réstea de interesse. Encontrou-se com Guilherme, e, logo que soube quem era, olhou-o com educada hostilidade: mas não porque o rosto traísse os seus sentimentos secretos, tinha a certeza (embora não tivesse a certeza se ele jamais nutria sentimento algum), mas porque certamente queria que Guilherme o sentisse hostil. Guilherme devolveu a sua hostilidade sorrindo-lhe de modo exageradamente cordial dizendo-lhe:

 

- Há bastante tempo que desejava conhecer um homem cuja fama me serviu de lição e de aviso para muitas importantes decisões que inspiraram a minha vida.

 

Sentença sem dúvida elogiosa e quase aduladora para quem não soubesse, como porém Bernardo bem sabia, que uma das decisões mais importantes da vida de Guilherme tinha sido a de abandonar o ofício de inquisidor, fiquei com a impressão de que, se Guilherme veria de boa vontade Bernardo nalguma masmorra imperial, Bernardo veria certamente com agrado Guilherme colhido de morte acidental e súbita; e, como Bernardo tinha sob o seu próprio comando naqueles dias homens de armas, temi pela vida do meu bom mestre.

 

Bernardo já devia ter sido informado pelo Abade acerca dos delitos cometidos na abadia. De fato, fingindo não captar o veneno contido na frase de Guilherme, disse-lhe:

 

- Parece que nestes dias, a pedido do Abade, e para cumprir a tarefa que me foi confiada nos termos do acordo que nos vê aqui reunidos, terei de me ocupar de casos tristíssimos em que se percebe o pestífero odor do demônio. Falo-vos disso porque sei que em tempos remotos, em que estaríeis mais próximo de mim, também vós a meu lado... e ao lado dos que são como eu... vos batestes no campo que via travar a batalha das fileiras do bem contra as fileiras do mal.

 

- De fato - disse calmamente Guilherme -, mas depois eu passei para o outro lado.

 

Bernardo agüentou valentemente o golpe:

 

- Podeis dizer-me alguma coisa de útil sobre estas coisas delituosas?

 

- Infelizmente não - respondeu urbanamente Guilherme. - Não tenho a vossa experiência em coisas delituosas.

 

A partir daquele momento perdi o rasto de uns e de outros. Guilherme, depois de outra conversa com Miguel e Ubertino, retirou-se para o scriptorium. Pediu a Malaquias para poder examinar certos livros, e não cheguei a ouvir-lhes o título. Malaquias olhou-o de modo estranho, mas não pôde negar-lhos. Caso curioso, não teve de os procurar na biblioteca, já estavam todos na mesa de Venancio. O meu mestre mergulhou na leitura, e decidi não o perturbar.

 

Desci à cozinha. Ali vi Bernardo Gui. Talvez quisesse dar-se conta da disposição da abadia, e andava por todo o lado. Ouvi-o interrogar os cozinheiros e outros servos, falando de qualquer maneira a língua vulgar do lugar (recordei-me que tinha sido inquisidor na Itália Setentrional). Pareceu-me que pedia informações do trabalho no mosteiro. Mas, mesmo fazendo as perguntas mais inocentes, olhava o seu interlocutor com olhos penetrantes, depois fazia de repente outra pergunta, e nessa altura a sua vítima empalidecia e gaguejava. Concluí que, de algum modo singular, ele estava inquirindo, e valia-se de uma arma formidável que todo o inquisidor no exercício da sua função possui e manobra: o medo do outro. Porque, em geral, todo o inquirido diz ao inquisidor, com medo de ser suspeito de alguma coisa, aquilo que pode servir para tornar suspeito qualquer outro.

 

Durante todo o resto da tarde, à medida que me movia, vi Bernardo proceder assim, quer junto dos moinhos quer no claustro. Mas quase nunca abordou monges, nem sequer frades laicos ou camponeses. Ao contrário do que até então tinha feito Guilherme.

 

QUARTO DIA

VÉSPERAS

 

Onde Alinardo parece dar informações preciosas e Guilherme revela o seu método para chegar a uma verdade provável através de uma série de seguros erros.

 

Mais tarde, Guilherme desceu do scriptorium de bom humor. Enquanto esperávamos que chegasse a hora da ceia, encontramos Alinardo no claustro. Recordando o seu pedido, desde o dia anterior que tinha arranjado grãos-de-bico na cozinha, e ofereci-lhos. Agradeceu-me, enfiando-os na boca desdentada e babosa.

 

- Viste rapaz - disse-me -, o outro cadáver também jazia lá onde o livro o anunciava... Espera agora a quarta trombeta!

 

Perguntei-lhe porque é que pensava que a chave para a seqüência dos crimes estava no livro da revelação. Olhou-me espantado:

 

- O livro de João oferece a chave de tudo! - E acrescentou com um trejeito de rancor: - Eu sabia-o, eu dizia-o há muito tempo... Fui eu, sabes, a propor ao Abade... ao de então, que recolhesse o maior número de comentários ao Apocalipse que fosse possível. Eu devia vir a ser bibliotecário... Mas depois o outro conseguiu que o mandassem a Silos, onde encontrou os manuscritos mais belos, e voltou com uma bagagem esplêndida... Oh, ele sabia onde procurar, falava até a língua dos infiéis... E assim ele recebeu a guarda da biblioteca, e não eu. Mas Deus puniu-o, e fê-lo entrar antes do tempo no reino das trevas. Ah, ah... - riu com maldade aquele velho que até então me tinha parecido, imerso na serenidade dos seus cabelos brancos, semelhante a um menino inocente.

 

- Quem era esse de quem falais - perguntou Guilherme.

 

Olhou para nós atônito.

 

- De quem falava? Não me recordo... Foi há muito tempo. Mas Deus castiga, Deus apaga, Deus ofusca até as recordações. Muitos atos de orgulho foram cometidos na biblioteca. Especialmente desde que caiu na mão dos estrangeiros. Deus castiga ainda...

 

Não conseguimos arrancar-lhe mais palavras e abandonamo-lo ao seu quedo e rancoroso delírio. Guilherme declarou-se muito interessado por aquele solilóquio:

 

- Alinardo é um homem a escutar, de cada vez que fala diz qualquer coisa de interessante.

 

- Que disse desta vez?

 

- Adso - disse Guilherme -, resolver um mistério não é a mesma coisa que deduzir de princípios primeiros. E não equivale sequer a recolher muitos dados particulares para depois inferir deles uma lei geral. Significa antes encontrar-se diante de um, dois ou três dados particulares, que aparentemente não têm nada em comum, e procurar imaginar se podem ser outros tantos casos de uma lei geral que não conheces ainda e que talvez nunca tenha sido enunciada. Decerto, se sabes, como diz o filósofo, que o homem, o cavalo e o mulo são todos sem fel e todos vivem muito tempo, podes tentar enunciar o princípio pelo qual os animais sem fel vivem muito tempo. Mas imagina o caso dos animais com cornos. Porque é que têm cornos? Repentinamente apercebes-te de que todos os animais com cornos não têm dentes na mandíbula superior. Seria uma bela descoberta, se não te desses conta de que, infelizmente, há animais sem dentes na mandíbula superior e que todavia não têm cornos, como o camelo. Finalmente apercebes-te que todos os animais sem dentes na mandíbula superior têm dois estômagos. Bem, podes imaginar que quem não tem dentes suficientes mastiga mal e, portanto, tem necessidade de dois estômagos para poder digerir melhor a comida. Mas os cornos? Então tentas imaginar uma causa material dos cornos, pela qual a falta de dentes prevê o animal com um excesso de matéria óssea que tem de despontar em qualquer outro sitio. Mas é uma explicação suficiente? Não, porque o camelo não tem dentes superiores, tem dois estômagos, mas não tem cornos. E então tens de imaginar também uma causa final. A matéria óssea exterioriza-se em cornos apenas nos animais que não têm outros meios de defesa. O camelo, pelo contrário, tem uma pele duríssima e não tem necessidade de cornos. Então, a lei poderia ser...

 

- Mas que vêm aqui fazer os cornos? - perguntei com impaciência -, e porque vos ocupais de animais com cornos?

 

- Eu nunca me ocupei disso, mas o bispo de Lincoln ocupou-se muito, seguindo uma idéia de Aristóteles. Honestamente, eu não sei se as razões que encontrou são boas, e nunca controlei onde é que o camelo tem os dentes e quantos estômagos tem: mas era para te dizer que a procura das leis explicativas, nos fatos naturais, procede de modo tortuoso. Diante de alguns fatos inexplicáveis, tu deves tentar imaginar muitas leis gerais, cuja conexão com os fatos de que te ocupas não vês ainda: e, de repente, na conexão imprevista de um resultado, um caso e uma lei, perfila-se a teus olhos um raciocínio que te parece mais convincente que os outros. Tentas aplicá-lo a todos os casos semelhantes, usá-lo para dele extrair previsões, e descobres que tinhas adivinhado. Mas, até ao fim, nunca saberás quais os predicados a introduzir no teu raciocínio e quais deixar cair. E assim faço eu agora. Alinho uns tantos elementos desconexos e imagino hipóteses. Mas tenho de imaginar muitas, e muitas delas são tão absurdas que me envergonharia de tas dizer. Vês, no caso do cavalo Brunello, quando vi as marcas, eu imaginei muitas hipóteses complementares e contraditórias: podia ser um cavalo em fuga, podia ser que naquele belo cavalo o Abade tivesse descido ao longe do declive, podia ser que um cavalo Brunello tivesse deixado os sinais sobre a neve e um outro cavalo Favello, no dia anterior, as crinas no arbusto, e que os ramos tivessem sido quebrados por homens. Eu não sabia qual era a hipótese certa enquanto não vi o despenseiro e os servos, que procuravam com ânsia. Então compreendi que a hipótese de Brunello era a única boa, e procurei provar se era verdadeira, apostrofando os monges como fiz. Venci, mas podia também ter perdido. Os outros julgaram-me sábio porque venci, mas não conheciam os numerosos casos em que fui estulto porque perdi, e não sabiam que, poucos segundos antes de vencer, eu não tinha a certeza de não perder. Ora, sobre os casos da abadia, tenho muitas e belas hipóteses, mas não há nenhum fato evidente que me permita dizer qual é a melhor. E então, para depois não parecer tolo, renuncio a parecer astuto agora. Deixa-me ainda pensar, até amanhã, ao menos.

 

Compreendi naquele momento qual era o modo de raciocinar do meu mestre, e pareceu-me bastante dissimil do do filósofo que raciocina sobre os princípios primeiros, de modo que o seu intelecto assume quase os modos do intelecto divino. Compreendo que, quando não tinha resposta, Guilherme se propunha muitas e muito diferentes entre si. Fiquei perplexo.

 

- Mas então - ousei comentar - estais ainda longe da solução...

 

- Estou pertíssimo - disse Guilherme -, mas não sei de qual.

 

- Então não tendes uma única resposta às vossas perguntas?

 

- Adso, se a tivesse ensinaria teologia em Paris.

 

- Em Paris têm sempre a resposta verdadeira?

 

- Nunca - disse Guilherme -, mas estão muito seguros dos seus erros.

 

- E vós - disse com infantil impertinência - nunca cometeis erros?

 

- Freqüentemente - respondeu. - Mas, em vez de conceber um só, imagino muitos, assim não me torno escravo de nenhum.

 

Tive a impressão de que Guilherme não estava de modo nenhum interessado na verdade, que mais não é que a adequação entre a coisa e o intelecto. Ele, pelo contrário, divertia-se a imaginar o maior número de possíveis que fosse possível.

 

Naquele momento, confesso, desesperei do meu mestre, e surpreendi-me a pensar: «Ainda bem que chegou a inquisição.» Tomei partido pela sede de verdade que animava Bernardo Gui.

 

E com estas culpáveis disposições de espírito, mais perturbado que Judas na noite de Quinta-Feira Santa, entrei com Guilherme no refeitório para consumir a ceia.

 

QUARTO DIA

COMPLETAS

 

Onde Salvador fala de uma magia portentosa.

 

A ceia para a delegação foi soberba. O Abade devia conhecer muito bem não só as fraquezas dos homens mas também os usos da corte papal (que não desagradaram, devo dizê-lo, sequer aos menoritas de frei Miguel). Com os porcos mortos há pouco, devia haver chouriço de sangue à moda de Montecassino, disse-nos o cozinheiro. Mas o desgraçado fim de Venancio tinha obrigado a deitar fora todo o sangue dos porcos, enquanto não se procedesse a degolar mais. Além disso, creio que naqueles dias repugnava a todos matar criaturas do Senhor. Mas tivemos estufado de borrachinhos, marinados no vinho daquelas terras, e coelho assado, pãezinhos de Santa Clara, arroz com amêndoas daqueles montes, ou seja, o manjar-branco das vigílias, folhas tostadas de borragem, azeitonas recheadas, queijo frito, carne de ovelha com molho cru de pimentas, favas brancas, e doçarias requintadas, doce de São Bernardo, pastéis de São Nicolau, olhinhos de Santa Luzia, e vinhos, e licores de ervas que puseram de bom humor o próprio Bernardo Gui, habitualmente tão austero: licor de citronela, miolo de noz, vinho contra a gota e vinho de genciana. Parecia uma reunião de glutões, se cada gole ou cada bocado não fosse acompanhado de devotas leituras.

 

No fim, todos se levantaram muito alegres, alguns alegando vagos mal-estares para não descerem a completas. Mas o Abade não se ofendeu. Nem todos têm o privilégio e as obrigações que resultam de se ter consagrado à nossa ordem.

 

Enquanto os monges se encaminhavam, demorei-me, curioso, pela

cozinha, onde estavam a preparar-se para o fecho noturno. Vi Salvador, que se escapulia para o horto com um embrulho no braço. Intrigado, segui-o e chamei-o. Ele procurou esquivar-se, depois, às minhas perguntas, respondeu que levava no embrulho (que se movia como habitado por coisa viva) um basilisco.

 

- Cave basilischium! Est lo reys das serpentes, tant pleno de veneno que lhe reluz todo por fora! Que dictam, o veneno, o fedor vem-lhe para fora que te mata! Intoxica-te... Et tem manchas brancas no dorso, et caput como galo, et metade vai direita sopre a terra et metade vai por terra como as outras serpentes. E mata-o a bellula...

 

- A bellula?

 

- Oc! Bestiola parvissima est, mais comprida alguma coisa que o rato, et odeia-a o rato muchissimo. E assim a serpente et o sapo. Et quando eles a mordem, a bellula corre à fenícula ou à circerbita et a mordisca, et redet ad bellum. Et dicunt que engendra pelos oculi, mas os mais dizem que eles dizem falso.

 

Perguntei-lhe que fazia com um basilisco, e disse que eram assuntos seus. Disse-lhe, já picado pela curiosidade, que naqueles dias, com todos aqueles mortos, já não havia assuntos secretos, e que falaria nisso a Guilherme. Então Salvador implorou-me ardentemente que me calasse, abriu o embrulho e mostrou-me um gato de pêlo negro. Puxou-o para o pé de si e disse-me com um sorriso obsceno que não queria mais que o despenseiro ou eu, porque éramos um poderoso e o outro jovem e belo, pudéssemos ter o amor das raparigas da aldeia e ele não, porque era feio e pobretana. Que conhecia uma magia absolutamente portentosa para fazer cair qualquer mulher nas malhas do amor. Era preciso matar um gato preto e arrancar-lhe os olhos, depois metê-los dentro de dois ovos de galinha preta, um olho num ovo, um olho no outro (e mostrou-me dois ovos que me assegurou ter tirado das galinhas certas). Depois era necessário pôr os ovos a apodrecer dentro de um montão de esterco de cavalo (e tinha apontado um precisamente num cantinho do horto onde nunca passava ninguém), e dali nasceria por cada ovo, um diabinho, que depois se poria ao seu serviço proporcionando-lhe todas as delícias deste mundo. Mas, infelizmente, disse-me, para que a magia resultasse era necessário que a mulher cujo amor queria cuspisse nos ovos antes de serem enterrados no esterco, e aquele problema angustiava-o, porque era preciso ter ao lado, naquela noite, a mulher em questão, e fazer-lhe fazer o seu ofício sem ela saber para que servia.

 

Fui tomado por um súbito ardor na cara, ou nas vísceras, ou em todo o corpo, e perguntei com um fio de voz se naquela noite tinha levado para a cerca a rapariga da noite anterior. Ele riu, troçando de mim, e disse que eu estava mesmo preso por um grande cio (eu disse que não, perguntava por pura curiosidade), e depois disse-me que na aldeia mulheres havia muitas, e que tinha levado uma outra, ainda mais bela que aquela de que eu gostava. Eu supus que me mentia para me afastar dele. E por outro lado, que podia eu fazer? Segui-lo durante toda a noite quando Guilherme me esperava para empresas bem diversas? E voltar a ver aquela (se acaso dela se tratava) para quem os meus apetites me impeliam enquanto a minha razão dela me desviava - e que não devia ver nunca mais ainda que desejasse sempre vê-la outra vez? Decerto não. E, assim, convenci-me a mim mesmo que Salvador dizia a verdade, naquilo que dizia respeito à mulher. Ou que mentia talvez sobre tudo, que a magia de que falava era uma fantasia da sua mente ingênua e supersticiosa, e que não faria nada disso.

 

Irritei-me com ele, tratei-o rudemente, disse-lhe que naquela noite teria feito melhor em ir dormir, porque os archeiros circulavam na cerca. Ele respondeu que conhecia a abadia melhor que os archeiros, e que, com aquele nevoeiro, ninguém veria ninguém. Mais, disse-me, agora eu escapo-me, e nem sequer tu me verás mais, ainda que estivesse ali a dois passos a divertir-me com a rapariga que desejas. Ele exprimiu-se com outras palavras, bastante mais ignóbeis, mas este era o sentido daquilo que dizia. Afastei-me indignado, porque não era próprio de um ser como eu, nobre e noviço, meter-me em despique com aquela canalha.

 

Fui ter com Guilherme, e fizemos aquilo que se devia. Isto é, dispusemo-nos a seguir completas, ao fundo da nave, de modo que quando o ofício acabou estávamos prontos para empreender a nossa segunda viagem (terceira para mim) nas vísceras do labirinto.

 

QUARTO DIA

DEPOIS DE COMPLETAS

 

Onde se visita de novo o labirinto, se chega ao limiar do finis Africae mas não se pode aí entrar porque não se sabe o que são o primeiro e o sétimo dos quatro e por fim Adso tem uma recaída, aliás bastante douta, no seu mal de amor.

 

A visita à biblioteca levou-nos longas horas de trabalho. A falar, o controle que devíamos fazer era fácil, mas caminhar à luz da candeia, ler as inscrições, assinalar no mapa as passagens e as paredes plenas, registrar as iniciais, perfazer os vários percursos que o jogo das aberturas e das barreiras nos permitia foi coisa bastante longa. E fastidiosa.

 

Estava muito frio. A noite não era ventosa, e não se ouvia aqueles silvos sutis que nos tinham impressionado na primeira noite, mas pelas seteiras penetrava um ar úmido e gélido. Tínhamos calçado luvas de lã para poder tocar nos volumes sem que as mãos se entorpecessem. Mas eram precisamente daquelas que se usavam para escrever no Inverno com a ponta dos dedos descobertos, e por vezes tínhamos de aproximar as mãos da chama, ou metê-las no peito, ou batê-las uma contra a outra, saltitando transidos.

 

Por isso, não completamos toda a obra de seguida. Parávamos a vasculhar nos armários, e agora que Guilherme - com os seus novos vidros no nariz - podia demorar-se a ler os livros, a cada título que descobria irrompia em exclamações de alegria, ou porque conhecia a obra, ou porque há muito tempo a procurava, ou, enfim, porque nunca a tinha ouvido mencionar e estava sobremodo excitado e intrigado. Em suma cada livro era para ele como um animal fabuloso que encontrasse numa terra desconhecida. E enquanto ele folheava um manuscrito, incumbia-me de procurar outros.

 

- Vê o que há naquele armário!

 

E eu, soletrando e deslocando volumes:

 

- Historia anglorum, de Beda... E, sempre de Beda, De aedificatione templi, De tabernáculo, De temporibus et computo et chronica et circuli Dionysi, Onographia, De ratione metrorum, Vita Sancfi Cuthberti, Ars métrica...

 

- É natural, todas as obras do Venerável... E olha estes! De rhetorica cognatione, Locorum rhetoricomm distinctio, e aqui tantos gramáticos, Prisciano, Honorato, Donato, Maxímio, Vitorino, Metrório, Eutiques, Sérvio, Focas, Asperus... Estranho, pensava à primeira vista que aqui houvesse autores da Anglia... Olhemos mais abaixo...

 

- Hisperica... famina, o que é?

 

- Um poema hibérnico. Escuta:

 

Hoc spumans mundanas obvallat Pelagus oras terrestres amniosis fluctibus cudit margines. Sáxeas undosis molibus irruit avionias. ínfima bomboso vértice miscet glareas asprifero spergit spumas sulco, sonoreis frequenter quatitur flabris...

 

Eu não compreendia o sentido, mas Guilherme lia fazendo rolar as palavras na boca de tal modo que parecia ouvir o som das ondas e da espuma marinha.

 

- E este? É Adhelm de Malmesbury, ouvi esta página: Primitus pantomm procerum poematorum pió potissimum paterno-que presertim privilegio panegiricum poemataque passim prosatori sub polo promúlgalas... As palavras começam todas pela mesma letra!

 

- Os homens das minhas ilhas são todos um pouco loucos – dizia Guilherme com orgulho. - Vejamos no outro armário.

 

- Virgílio.

 

- Que faz aqui? O quê de Virgílio? As Geórgicas?

 

- Não. Epítomes. Nunca tinha ouvido falar.

 

- Mas não é o Marão! É Virgílio de Toulouse, o retórico, seis séculos depois do nascimento de Nosso Senhor. Foi reputado como um grande sábio...

 

- Aqui diz que as artes são poema, rethoria, grama, leporia, dialecta, geometria... Mas que língua fala?

 

- Latim, mas um latim de sua invenção, que ele reputava bastante mais belo. Lê aqui: diz que a astronomia estuda os signos do zodíaco, que são: mon, man, tonte, pirón, dameth, perfellea, belgalic, margaleth, lutamiron, taminon e raphalut.

 

- Era louco?

 

- Não sei, não era das minhas ilhas. Ouve ainda, diz que existem doze modos de designar o fogo: ignis, coquihabin (quia in-cocta coquendi habet dictionem), ardo, calax ex calore, fragon ex fragore flammae, rusin de rubore, fumaton, ustrax de uren-do, vitius quia pene mortua membra suo vivificat, siluleus, quod de sílice siliat, unde et silex non recte dicitur, nisi ex qua scinti-lla silit. Y aeneon, de Aenea deo, qui in eo habitat, sive a, quo elementis flatus fertur.

 

- Mas não há ninguém que fale assim!

 

- Felizmente. Mas eram tempos em que, para esquecer um mundo mau, os gramáticos se deleitavam com abstrusas questões. Disseram-me que nessa época, durante quinze dias e quinze noites, os retóricos Gabundus e Terentius discutiram sobre o vocativo de ego, e por fim pegaram em armas.

 

- Mas também isto, ouvi... - Tinha agarrado num livro maravilhosamente iluminado com labirintos vegetais de cujas gavinhas assomavam macacos e serpentes. - Ouvi que palavras: cantamen, collamen, gongelamen, stemiamen, plasmamen, sonerus, alboreus, gaudifluus, glaucicomus...

 

- As minhas ilhas - disse de novo com ternura Guilherme. - Não sejas severo para com esses monges da longínqua Hibérnia, se existe esta abadia, e se ainda falamos de sacro Império Romano, devemo-lo talvez a eles. Naquele tempo, o resto da Europa estava reduzido a um amontoado de ruínas, um dia declararam inválidos os batismos ministrados por alguns padres nas Gálias, porque aí se batizava in nomine patris et filiae, e não porque praticassem uma nova heresia e considerassem Jesus uma mulher, mas porque já não sabiam o latim.

 

- Como Salvador?

 

- Mais ou menos. Os piratas do extremo norte chegavam ao longo dos rios para saquearem Roma. Os templos pagãos caíam em ruínas e os dos cristãos não existiam ainda. E foram apenas os monges da Hibérnia que nos seus mosteiros escreveram e leram, leram e escreveram, e iluminaram, e depois se lançaram em navicelas feitas de pele de animais e navegaram até estas terras e as evangelizaram como se fossem infiéis, compreendes? Estiveste em Bobbio, foi fundado por São Columbano, um deles. E, portanto, deixa-os lá se inventavam um latim novo, visto que na Europa já não se sabia o velho. Foram grandes homens. São Brandão chegou até às ilhas Afortunadas e costeou as costas do inferno, onde viu Judas acorrentado num rochedo, e um dia aportou a uma ilha e aí desceu, e era um monstro marinho. Naturalmente eram loucos - repetiu com satisfação.

 

- As suas imagens são... de não acreditar nos meus olhos! E quantas cores! - disse, extasiado.

 

- Numa terra que cores tem poucas, um pouco de azul e muito verde. Mas não estamos a discutir sobre os monges hibérnicos. Aquilo que quero saber é porque estão aqui com os anglos e com gramáticos de outros países. Vê no teu mapa, onde deveríamos estar?

 

- Nas salas do torreão ocidental. Também transcrevi as inscrições. Portanto, saindo da sala cega, entra-se na sala hepragonal, e há uma única passagem a uma única sala do torreão, a letra a vermelho é H. Depois passa-se de sala em sala dando a volta ao torreão e volta-se à sala cega. A seqüência das letras dá... tendes razão! HIBERNI!

 

- HIBERNIA, se das ala cega tornas à heptagonal, que tem como as outras três o Ade Apocalypsis. Por isso, aí estão as obras de autores da última Thule, e ainda os gramáticos e os retóricos, porque os ordenadores da biblioteca pensaram que um gramático deve estar com os gramáticos hibérnios, mesmo que seja de Toulouse. É um critério. Vês que começamos a compreender alguma coisa?

 

- Mas nas salas do torreão oriental por onde entramos lemos FONS... Que significa?

 

- Lê bem o teu mapa, continua a ler as letras das salas que se seguem pela ordem de acesso.

 

- FONS ADAEU...

 

- Não, FONS ADAE, o U é a segunda sala cega oriental, recordo-me, talvez se insira numa outra seqüência. E que encontramos no Fons Adae, isto é, no paraíso terrestre (recorda-te que aí fica a sala com o altar que dá para o nascer do Sol)?

 

- Havia muitas Bíblias, e comentários à Bíblia, só livros de escrituras sagradas.

 

- E, então, vês a palavra de Deus em correspondência com o paraíso terrestre, que, como todos dizem, fica longe para oriente. E aqui a ocidente a Hibérnia.

 

- Então o traçado da biblioteca reproduz o mapa do mundo universal?

 

- É provável. E os livros são aí colocados segundo os países de proveniência, ou o lugar onde nasceram os seus autores, ou, como neste caso, o lugar onde deveriam ter nascido. Os bibliotecários disseram para consigo que Virgílio, o gramático, nasceu por engano em Toulouse e deveria ter nascido nas ilhas ocidentais. Repararam os erros da natureza.

 

Prosseguimos o nosso caminho. Passamos por uma seqüência de salas ricas de esplêndidos Apocalipses, e uma destas era a sala onde tinha tido as visões. Assim de longe vimos de novo a candeia, Guilherme tapou o nariz e correu a apagá-la, cuspindo sobre as cinzas. E pelo sim pelo não, atravessamos a sala à pressa, mas recordava que tinha aí visto o belíssimo Apocalipse multicolor com a mulier amicta sole e o dragão. Reconstruímos a seqüência destas salas a partir da última a que acedemos e que tinha como inicial a vermelho um Y. A leitura ao invés deu a palavra YSPANIA, mas o último A era o mesmo com que terminava HIBERNIA. Sinal, disse Guilherme, que restavam salas em que se recolhiam obras de caráter misto.

 

Em todo o caso, a zona denominada YSPANIA pareceu-nos povoada por muitos códices do Apocalipse, todos de belíssima feitura, que Guilherme reconheceu como arte hispânica. Reparamos que a biblioteca tinha talvez a mais ampla coleção de cópias do livro do apóstolo que existia na cristandade, e uma quantidade imensa de comentários sobre aquele texto. Volumes enormes eram dedicados ao comentário sobre o Apocalipse de Beato de Liébana, e o texto era mais ou menos sempre o mesmo, mas encontramos uma fantástica variedade de variações nas imagens, e Guilherme reconheceu a menção de alguns entre aqueles que ele considerava entre os maiores miniaturistas do reino das Astúrias, Magius, Facundus e outros.

 

Fazendo estas e outras observações, chegamos ao torreão meridional, em cujas proximidades já tínhamos passado na noite precedente. A sala S de YSPANIA - sem janelas – introduzia numa sala E, e girando sucessivamente pelas cinco salas do torreão chegamos à última, sem outras passagens, que apresentava um L a vermelho. Relemos ao contrário e encontramos LEONES.

 

- Leones, meridião, no nosso mapa estamos em África, hic sunt leones. E isto explica porque encontramos aqui tantos textos de autores infiéis.

 

- E há mais - disse rebuscando nos armários. - Canon de Avicena, e este belíssimo códice em caligrafia que não conheço...

 

- A julgar pelas decorações, deve ser um Corão, mas infelizmente não conheço o árabe.

 

- O Corão, a Bíblia dos infiéis, um livro perverso...

 

- Um livro que contém uma sabedoria diversa da nossa. Mas compreendes porque o puseram aqui, onde estão os leões, os monstros. Eis porque vimos aí aquele livro sobre os animais monstruosos onde encontraste também o unicórnio. Esta zona chamada LEONES contém aqueles que para os construtores da biblioteca eram os livros da mentira. Que há além?

 

- São em latim, mas do árabe. Ayyub al Ruhawi, um tratado sobre a hidrofobia canina. E este é um livro dos tesouros. E este o De aspectibus, de Alhazen...

 

- Vês, puseram entre os monstros e as mentiras também obras de ciência das quais os cristãos tanto têm a aprender. Assim se pensava no tempo em que a biblioteca foi constituída...

 

- Mas porque puseram entre as falsidades também um livro com o unicórnio? - perguntei.

 

- Evidentemente, os fundadores da biblioteca tinham estranhas idéias. Terão considerado que este livro, que fala de animais fantásticos e que vivem em países longínquos, fazia parte do repertório de mentiras difundido pelos infiéis...

 

- Mas o unicórnio é uma mentira? É um animal de uma grande doçura e altamente simbólico. Figura de Cristo e da castidade, ele só pode ser capturado pondo uma virgem no bosque, de modo que o animal sentindo-lhe o odor castíssimo vá pousar a cabeça no seu colo, oferecendo-se como presa aos laços dos caçadores.

 

- Assim se diz, Adso. Mas muitos inclinam-se a pensar que é uma invenção fabulosa dos pagãos.

 

- Que desilusão - disse. - Gostaria de encontrar um atravessando um bosque. Senão, qual é o prazer de atravessar um bosque?

 

- Não quer dizer que não exista. Talvez seja diferente de como o representam estes livros. Um viajante veneziano andou por terras muito distantes, bastante próximas do fons paradisi de que falam os mapas, e viu unicórnios. Mas achou-os rudes e sem graça, e feíssimos e negros. Creio que terá visto animais verdadeiros com um corno à frente. Foram provavelmente os mesmos que os mestres da sabedoria antiga, nunca de todo errônea, que receberam de Deus a oportunidade de ver coisas que nós não vimos, nos transmitiram com uma primeira descrição fiel. Depois, esta descrição, viajando de autorictas em autorictas, transformou-se por sucessivas composições da fantasia, e os unicórnios tornaram-se animais graciosos e brancos e mansos. Por isso, se souberes que num bosque vive um unicórnio, não vás lá com uma virgem, porque o animal pode ser mais parecido ao testemunho veneziano que ao deste livro.

 

- Mas como acontece que os mestres da sabedoria antiga tiveram de Deus a revelação sobre a verdadeira natureza do unicórnio?

 

- Não a revelação, mas a experiência. Tiveram a ventura de nascer em terras em que viviam unicórnios ou em tempos em que os unicórnios viviam nessas mesmas terras.

 

- Mas, então, como podemos confiar na sabedoria antiga, cujo rastro vós procurais sempre, se ela nos é transmitida por livros mentirosos que a interpretaram com tanta licença?

 

- Os livros não são feitos para se crer neles, mas para serem submetidos a investigação. Diante de um livro não devemos perguntar-nos que coisa diz, mas que coisa quer dizer, idéia que foi muito clara para os velhos comentadores dos livros sagrados. O unicórnio, tal como dele falam estes livros, encerra uma verdade moral, ou alegórica, ou analógica, que permanece verdadeira, como permanece verdadeira a idéia de que a castidade é uma nobre virtude. Mas, quanto à verdade literal que sustenta as outras três, resta ver de que dado de experiência originária nasceu a letra. A letra deve ser discutida, ainda que o sentido principal permaneça certo. Num livro está escrito que o diamante se corta só com o sangue do bode. O meu grande mestre Roger Bacon disse que não era verdade, simplesmente porque ele tinha experimentado, e não tinha conseguido. Mas se a relação entre diamante e sangue caprino tivesse um sentido superior, este permaneceria intacto.

 

- Então, podem dizer-se verdades superiores mentindo quando à letra - disse. - E, no entanto, ainda lamento que o unicórnio, tal como é, não exista, ou não tenha existido, ou não possa existir um dia.

 

- Não nos é lícito pôr limites à onipotência divina, e, se Deus quisesse, poderiam existir mesmo os unicórnios. Mas consola-te, eles existem nestes livros, os quais, se não falam do ser real, falam do ser possível.

 

- Mas é preciso, então, ler os livros sem recorrer à fé, que é virtude teologal?

 

- Restam mais duas virtudes teologais. A esperança que o possível seja. E a caridade, para quem acreditou de boa-fé que o possível era.

 

- Mas de que vos serve o unicórnio se o vosso intelecto não crê nele?

 

- Serve como me serviu o rasto dos pés de Venancio sobre a neve, arrastado à cuba dos porcos. O unicórnio dos livros é como uma marca. Se há a marca, deve ter havido alguma coisa que deixou essa marca.

 

- Mas diferente da marca, dizeis-me.

 

- Decerto. Nem sempre uma marca tem a mesma forma do corpo que a imprimiu e nem sempre nasce da pressão de um corpo. Por vezes reproduz a impressão que um corpo deixou na nossa mente, é marca de uma idéia. A idéia é sinal das coisas, e a imagem é sinal da idéia, sinal de um sinal. Mas, pela imagem, reconstruo, se não o corpo, a idéia que outros tinham dele.

 

- E isso basta-vos?

 

- Não, porque a verdadeira ciência não deve contentar-se com as idéias, que são precisamente sinais, mas deve encontrar as coisas na sua verdade singular. E, portanto, gostaria de remontar desta marca de uma marca ao unicórnio indivíduo que está no início da cadeia. Tal como gostaria de remontar dos sinais vagos deixados pelo assassino de Venancio (sinais que poderiam referir-se a muitos) a um indivíduo único, o próprio assassino. Mas nem sempre é possível em breve tempo e sem a mediação de outros sinais.

 

- Mas, então, posso sempre e só falar de alguma coisa que me fala de algo distinto, e assim sucessivamente, sem que exista algo final e verdadeiro?

 

- Mas existe, e é o indivíduo unicórnio. Não temas, passe o tempo e o encontrará, mesmo que seja negro e feio.

 

- Unicórnios, leões, autores árabes e mouros em geral – disse. – Sem dúvida, estou na África de que falam os monges.

 

- Sem dúvida,está. E se estamos, deveríamos encontrar os poetas africanos que Pacifico de Tivole aludiu.

 

Assim retrocedemos a sala L, encontramos um armário onde havia uma coleção de livros de Floro, Frontón, Apuleyo, Marciano Capella y Fulgencio.

 

- Acho que é aqui que Berengário dizia que deveria estar a explicação de certo segredo – disse.

 

 

- Quase aqui. Usou a expressão «finis Africae»,e ao escutar essas palavras foi quando Malaquias se enfadou tanto. E finalmente poderia ser esta a última sala, ou bem... – lançou um grito: - Pelas sete igrejas de Clonmacnois! Não notou nada?

 

- Quê?

 

- Regressemos a sala S, é de lá que temos que partir!

 

Regressamos a primeira sala cega cuja inscrição dizia: Super thronos viginti quatuor. Tinha quatro aberturas. Uma comunicava-se com a sala. E tinha uma janela aberta no octágono. A outra se comunicava com a sala P, que, seguindo a parede externa, se insertava na seqüência YSPA-NIA. A que dava para o Torreão comunicava-se com a sala E, que acabávamos de atravessar. Depois havia uma parede sem aberturas, e por último um paço que se comunicava com a segunda sala cega cuja inicial era U. A sala S era de espelho, e por sorte este se encontrava na parede situada imediatamente a minha direita, porque se não, teria novamente levado um bom susto. Olhando bem o mapa, descobri que aquela sala tinha algo especial. Como as demais salas cegas dos outros três torreões, tinha que se comunicar com a sala heptagonal central. Mas não era assim, a entrada ao heptágono deveria estar na sala cega ao lado, na U. Porem não era assim: esta última, que comunicava com uma sala T com janela no octágono interno, e com a sala S, era conhecida, tinha as restantes, três paredes cheias de armários, ou seja, sem aberturas. Olhando ao nosso redor descobrimos algo que antes não parecia evidente, também raciocinando com o mapa: por razoes não só de estrita simetria, mas também de lógica, aquele torreão devia ter uma sala heptagonal, e, era esta sala que faltava.

 

- Não existe – disse.

 

- Não é que não exista. Se não existisse, as outras salas seriam maiores, enquanto são mais ou menos do formato das dos outros lados. Existe, mas não se chega lá.

 

-É murada?

 

- Provavelmente. E eis o finis Africae, eis o lugar em torno do qual giravam aqueles curiosos que estão mortos. É murada, mas não quer dizer que não exista uma passagem. Mais, existe seguramente, e Venancio tinha-a encontrado, ou tinha sabido a sua descrição através de Adelmo, e este de Berengário. Voltemos a ler os seus apontamentos. - Tirou do saio o papel de Venancio e releu: - A mão sobre o ídolo opera sobre o primeiro e sobre o sétimo dos quatro. - Olhou em torno: - Mas decerto! O idolum é a imagem do espelho! Venancio pensava em grego, e naquela língua, mais ainda que na nossa, eidolon é tanto imagem como espectro, e o espelho devolve-nos a nossa imagem deformada, que nós mesmos, na noite passada, confundimos com um espectro! Mas que serão então as quatro supra speculum? Algo sobre a superfície refletora? Mas então deveríamos pôr-nos de um certo ponto de vista de modo a poder distinguir algo que se reflete no espelho e que corresponde à descrição dada por Venancio...

 

Movemo-nos em todas as direções, mas sem resultado. Para além das nossas imagens, o espelho devolvia confusos contornos do resto da sala, dificilmente iluminada pela lâmpada.

 

- Então - meditava Guilherme -, por supra speculum poderia querer dizer para além do espelho... O que imporia que primeiro fôssemos para além, porque certamente este espelho é uma porta...

 

O espelho era mais alto que um homem normal, encaixado na parede por uma robusta moldura de carvalho. Tocamo-lo de todas as maneiras, procuramos introduzir os dedos, as unhas entre a moldura e a parede, mas o espelho estava seguro como se fizesse parte da parede, pedra na pedra.

 

- E, se não é para além, poderia ser super speculum – murmurava Guilherme, e entretanto levantava o braço e erguia-se na ponta dos pés, e deixava escorregar a mão pelo bordo superior da moldura, sem encontrar mais que pó. - Por outro lado – refletia melancolicamente Guilherme -, se mesmo ali atrás houvesse uma sala, o livro que procuramos, e que outros procuraram, naquela sala já não está, porque o levaram, primeiro Venancio e depois, quem sabe para onde, Berengário.

 

- Mas talvez Berengário o tenha voltado a trazer para aqui.

 

- Não, naquela noite nós estávamos na biblioteca, e tudo nos leva a crer que ele tenha morrido não muito tempo depois do furto, naquela mesma noite, nos balnea. Senão teríamos voltado a vê-lo na manhã seguinte. Não importa... Por agora apuramos onde fica o finis Africae, e temos quase todos os elementos para aperfeiçoar melhor o mapa da biblioteca. Tens de admitir que muitos dos mistérios do labirinto já estão esclarecidos. Todos, diria, menos um. Creio que tirarei maior partido de uma releitura atenta do manuscrito de Venancio que de outras inspeções. Viste que o mistério do labirinto o descobrimos melhor de fora que de dentro. Esta noite, diante das nossas imagens deformadas, não chegaremos ao cabo do problema. E, por fim, a candeia está a enfraquecer. Anda, vamos pôr em ordem as outras indicações que nos servem para definir o mapa.

 

Percorremos outras salas, registrando sempre as nossas descobertas no meu mapa. Encontramos salas dedicadas somente a escritos de matemática e astronomia, outras com obras em caracteres aramaicos que nenhum de nós dois conhecia, outras em caracteres mais desconhecidos ainda, talvez textos da Índia. Movíamo-nos entre duas seqüências imbricadas que diziam IUDAEA e AEGYPTUS. Em suma, para não enfadar o leitor com a crônica da nossa decifração, quando mais tarde pusemos definitivamente em ordem o mapa, convencemo-nos que a biblioteca era na verdade constituída e distribuída segundo a imagem do globo terráqueo. A setentrião encontramos ANGLIA e GERMANI, que ao longo da parede ocidental se ligavam a GALLIA, para depois gerar no extremo ocidente HIBERNIA e para meridional ROMA (paraíso de clássico latinos!) e YSPANIA. Vinham depois a meridiano os LEONES, o AEGYPTUS, que para oriente se tornavam IUDAEA e FONS ADAE. Entre oriente e setentrião, ao longo da parede, ACAIA, uma boa sinédoque, como se exprimiu Guilherme, para indicar a Grécia, e de fato naquelas quatro salas havia grande abundância de poetas e filósofos da antigüidade pagã.

 

O modo de leitura era bizarro, por vezes procedia-se numa única direção, outras vezes andava-se ao contrário, outras vezes ainda em círculo, freqüentemente, como disse, uma letra servia para compor duas palavras diversas (e nestes casos a sala tinha um armário dedicado a um assunto e um outro a outro). Mas não havia que procurar uma regra áurea naquela disposição. Tratava-se de mero artifício mnemotécnico para permitir ao bibliotecário encontrar as obras. Dizer de um livro que se encontrava em quarta Acaiae significava que estava na quarta sala a contar daquela em que aparecia o A inicial, e quanto ao modo de a identificar supunha-se que o bibliotecário sabia de cor o percurso, ou reto ou circular, a fazer. Por exemplo, ACAIA estava distribuído por quatro salas dispostas em quadrado, o que quer dizer que o primeiro A era também o último, coisa que, aliás, também nós tínhamos apreendido em pouco tempo. Tal como logo tínhamos apreendido o jogo das barreiras. Por exemplo, vindo de oriente, nenhuma das salas de ACA1A introduzia nas salas seguintes: o labirinto terminava naquele ponto, e para chegar ao torreão setentrional era necessário passar pelos outros três. Mas, naturalmente, os bibliotecários, entrando pelo FONS, sabiam bem que para ir, supúnhamos, a ANGLIA, deviam atravessar AEGYPTUS, YSPANIA, GALLIA e GERMANI.

 

Com estas e outras belas descobertas terminou a nossa frutuosa exploração à biblioteca. Mas antes de dizer que, satisfeitos, nos dispusemos a sair dela (para tomar parte em outros eventos que daqui a pouco contarei), devo fazer uma confissão ao meu leitor. Disse que a nossa exploração foi conduzida, por um lado, procurando a chave do misterioso lugar e, por outro, demorando-nos de vez em quando nas salas que identificávamos quanto a colocação e assunto a folhear livros de vário gênero, como se explorássemos um continente misterioso ou uma terra incógnita. E, de costume, esta exploração fez-se de comum acordo, eu e Guilherme demorando-nos sobre os mesmos livros, eu indicando-lhe os mais curiosos, ele explicando-me muitas coisas que não conseguia compreender.

 

Mas, a certa altura, e precisamente enquanto vagueávamos pelas salas do torreão meridional, chamadas LEONES, aconteceu que o meu mestre se deteve numa sala rica de obras árabes com curiosos desenhos de óptica; e, visto que naquela noite não dispúnhamos de uma mas de duas candeias, eu afastei-me por curiosidade para a sala ao lado, apercebendo-me que a sagacidade e a prudência dos legisladores da biblioteca tinham reunido ao longo de uma das suas paredes livros que, decerto, não podiam ser dados a ler a qualquer um, porque, de modos diversos, tratavam de variadas doenças do corpo e do espírito, quase sempre obras de sábios infiéis. E caíram-me os olhos num livro que não era grande, adornado de miniaturas muito diferentes (felizmente!) do tema, flores, gavinhas, animais aos pares, alguma erva medicinal: o título era Specu-lum amoris, de frei Máximo de Bolonha, e reproduzia citações de muitas outras obras, todas sobre o mal de amor. Como o leitor compreenderá, não era preciso mais para despertar a minha curiosidade doente. Assim, o próprio título bastou para reacender a minha mente, que desde manhã se tinha aquietado, excitando-a de noco com a imagem da rapariga.

 

Como durante todo o dia tinha rechaçado de mim os pensamentos matinais, dizendo-me que não eram de um noviço são e equilibrado, e como, por outro lado, os eventos do dia tinham sido bastante ricos e intensos para me distraírem, os meus apetites tinham-se aquietado, de modo que julgava então ter-me libertado daquilo que não tinha sido mais que uma inquietação passageira. Bastou, porém, a vista daquele livro para me fazer dizer «de te fábula narratur» e para me descobrir mais doente de amor do que eu julgava. Aprendi depois que, ao ler livros de medicina, convencemo-nos sempre que sentimos as dores de que eles falam. Foi assim que, justamente, a leitura daquelas páginas, que espreitei à pressa com receio que Guilherme entrasse na sala e me perguntasse com que estava doutamente entretido, me fez convencer que eu sofria realmente daquela doença, cujos sintomas eram tão esplendidamente descritos que, se por um lado me preocupava achar-me doente (e na escolta infalível de tantas auctoritates), por outro alegrava-me ver pintada com tanta vivacidade a minha situação; fui-me convencendo de que, se acaso estava doente, a minha doença era, por assim dizer, normal, dado que tantos outros dela tinham sofrido do mesmo modo, e os autores citados pareciam ter-me tomado precisamente a mim como modelo das suas descrições.

 

Assim me comovi sobre as páginas de Ibn Hazm, que define o amor como uma doença rebelde, cuja cura reside em si própria, de modo que quem está doente não quer curar-se dela e quem está enfermo não deseja melhorar (e Deus sabe se não era verdade!). Dei-me conta porque de manhã era tão excitado por tudo o que via, porque parece que o amor entra através dos olhos, como também diz Basílio d’Ancira, e – sintoma inconfundível - quem está atacado por um tal mal manifesta uma excessiva alegria, enquanto deseja ao mesmo tempo ficar à parte e privilegia a solidão (como eu tinha feito naquela manhã), enquanto outros fenômenos que o acompanham são a inquietação violenta e o aturdimento que tolhe as palavras... Assustei-me lendo que ao sincero amante, a quem se impede a vista do objeto amado, não pode senão sobrevir um estado de consumpção que muitas vezes chega a obrigá-lo a recolher ao leito, e por vezes o mal ataca o cérebro, perde-se o tino e delira-se (evidentemente não tinha atingido ainda aquele estado, porque tinha trabalhado bastante bem na exploração da biblioteca). Mas li com apreensão que, se o mal piorar, pode sobrevir a morte, e perguntei-me se a alegria que a rapariga me dava ao pensar nela valia este sacrifício supremo do corpo, à parte qualquer justa consideração sobre a saúde da alma.

 

Até porque encontrei outra citação de Basílio, segundo o qual «qui animam corpori per vitia conturbationesque commiscent, utrinque quod habet utile ad vitam necessarium demoliuntur, animamque lucidam ac nitidam carnalium voluptatum limo per-turbant, et corporis munditiam atque nitorem hac ratione mis-centes, inutile hoc ad vitae officia ostendunt». Situação extrema em que realmente não queria encontrar-me.

 

Vim a saber também por uma frase de Santa Hildegarda que aquele humor melancólico que durante o dia tinha experimentado, e que atribuía a um doce sentimento de pena pela ausência da rapariga, se assemelha perigosamente ao sentimento que experimenta quem se desvia do estado harmônico e perfeito que o homem sente no paraíso, e que esta melancolia «nigra et amara» é produzida pelo sopro da serpente e pela sugestão do diabo. Idéia também partilhada por infiéis de igual sabedoria, porque me caíram debaixo dos olhos as linhas atribuídas a Abu Bakr-Muhammad Ibn Zaka-riyya ar-Razi, que num Líber continents identifica a melancolia amorosa com a licantropia, que leva quem dela é atingido a comportar-se como um lobo. A sua descrição apertou-me a garganta: primeiro os amantes aparecem mudados no seu aspecto exterior, a vista enfraquece-lhes, os olhos tornam-se cavos e sem lágrimas, a língua seca lentamente e aparece coberta de pústulas, todo o corpo fica seco, e sofrem continuadamente de sede: então passam o dia estendidos com a face por terra, no rosto e nas tíbias aparecem sinais semelhantes a mordeduras de cão, e por fim vagueiam de noite pelos cemitérios como lobos.

 

Não tive enfim mais dúvidas sobre a gravidade do meu estado quando li citações do grande Avicena, onde o amor é definido como um pensamento assíduo, de natureza melancólica, que nasce por força de pensar e repensar nas feições, nos gestos ou nos hábitos de uma pessoa de sexo oposto (como Avicena tinha representado com fiel vivacidade o meu caso!): ele não nasce como doença mas em doença se transforma quando, não sendo satisfeito, se torna obsessivo (e porque é que me sentia obcecado, eu que, afinal, Deus me perdoe, me tinha satisfeito tão bem?, ou será que aquilo que tinha acontecido na noite precedente não era satisfação de amor?, mas como se satisfaz então este mal?), e como conseqüência tem-se um movimento continuo das pálpebras, uma respiração irregular, ora se ri ora se chora, e o pulso bate (e, na verdade, o meu batia, e a respiração quebrava-se enquanto lia aquelas linhas!). Avicena aconselhava um método infalível ali proposto por Galeno para descobrir de quem uma pessoa está enamorada: segurar o pulso do doente e ir pronunciando muitos nomes de pessoas de outro sexo, até se perceber a que nome o ritmo do pulso se acelera: e eu temia que de repente entrasse o meu mestre e me agarrasse o braço e espiasse na pulsação das minhas veias o meu segredo, do que muito me teria envergonhado... Ai de mim, Avicena sugeria, como remédio, unir os dois amantes no matrimônio, e o mal seria curado. Era bem verdade que era um infiel, embora avisado, porque não tinha em conta a condição de um noviço beneditino, condenado portanto a jamais curar - ou melhor, consagrado, por sua escolha, ou por prudente escolha dos seus pais, a jamais adoecer. Felizmente, Avicena, embora não pensando na ordem clunicense, considerava o caso dos amantes que não se podem unir, e aconselhava como cura radical os banhos quentes (que Berengário quisesse curar do seu mal de amor pelo desaparecido Adelmo?, mas podia alguém sofrer de mal de amor por um ser do mesmo sexo, ou aquilo não era senão bestial luxúria?, e não era acaso bestial a luxúria da minha noite passada?, não, decerto, dizia-me imediatamente, era dulcíssima - e logo depois: enganas-te, Adso, aquilo foi ilusão do diabo, era bestialíssima, e se pecaste sendo um animal pecas ainda mais agora não querendo dar-te conta disso!). Mas depois li também que, sempre segundo Avicena, havia ainda outros meios: por exemplo, recorrer à assistência de mulheres velhas e experientes que passam o tempo a denegrir a amada - e parece que as mulheres velhas são mais experientes que os homens nesta tarefa. Talvez esta fosse a solução, mas mulheres velhas na abadia não as podia encontrar (nem jovens, na verdade), e, portanto, deveria pedir a algum monge que me falasse mal da rapariga, mas a quem? E, depois, podia um monge conhecer bem as mulheres como as conhecia uma mulher velha e bisbilhoteira? A última solução sugerida pelo sarraceno era francamente impudica, porque postulava que se fizesse unir o amante infeliz com muitas escravas, coisa bastante inconveniente para um monge. Enfim, dizia para comigo, como pode curar de mal de amor um jovem monge, não há realmente salvação para ele? Devia talvez recorrer a Severino e às suas ervas? De fato encontrei um excerto de Arnaldo de Villanova, autor que já tinha ouvido citar com muita consideração a Guilherme, o qual fazia nascer o mal de amor de uma abundância de humores e de pneuma, isto é, quando o organismo humano se encontra em excesso de umidade e de calor, dado que o sangue (que produz o sêmen gerador), crescendo por excesso, provoca excesso de sêmen, uma «complexio venerea», e um desejo intenso de união entre homem e mulher. Há uma virtude estimativa situada na parte dorsal do ventrículo médio do encéfalo (o que é?, perguntei-me) cuja função é apreender as intentiones não sensíveis que estão nos objetos sensíveis captados pelos sentidos, e quando o desejo pelo objeto apreendido pelos sentidos se torna demasiado forte, eis que a sua faculdade estimativa é perturbada, e nutre-se apenas do fantasma da pessoa amada; então verifica-se uma inflamação de toda a alma e o corpo, com a tristeza alternando com a alegria, porque o calor (que nos momentos de desespero desce às partes mais profundas do corpo e enregela a cútis) nos momentos de alegria sobe à superfície inflamando o rosto. A cura sugerida por Arnaldo consistia em procurar perder a confiança e a esperança de alcançar o objeto amado, de modo que o pensamento se afastasse dele.

 

Mas então estou curado, ou em vias de cura, disse para comigo, porque tenho pouca ou nenhuma esperança de voltar a ver o objeto dos meus pensamentos, e, se o visse, de o alcançar, e, se o alcançasse, de possuí-lo de novo, e, se o voltasse a possuir, de o conservar junto de mim, tanto por cause do meu estado monacal como dos deveres que me são impostos pela categoria da minha família... Estou salvo, disse para comigo, fechei o fascículo e recompus-me, precisamente no momento em que Guilherme entrava na sala. Continuei com ele a viagem através do labirinto já desvendado (como já contei) e de momento esqueci a minha obsessão.

 

Como se verá, voltaria a encontrá-la dentro em breve, mas em circunstâncias (se de mim!) bem diversas.

 

QUARTO DIA

NOITE

 

Onde Salvador se deixa miseravelmente descobrir por Bernardo Gui, a rapariga amada por Adso é presa e acusada de bruxaria, e todos vão para a cama mais infelizes e preocupados que antes.

 

Íamos de fato a descer de novo para o refeitório quando ouvimos uns clamores, e umas luzes débeis cintilarem do lado da cozinha. Guilherme apagou de repente a candeia. Seguindo as paredes, aproximamo-nos da porta que dava para a cozinha, e sentimos que o rumor provinha do exterior mas que a porta estava aberta. Depois as vozes e as luzes afastaram-se, e alguém fechou a porta com violência. Era um grande tumulto que preludiava a qualquer coisa de desagradável. Velozmente, passamos de novo pelo ossário, reaparecemos na igreja, deserta, saímos pelo portal meridional e distinguimos um reluzir de archotes no claustro.

 

Aproximamo-nos, e na confusão parecia que também nós tínhamos acorrido juntamente com os muitos que já estavam no lugar, saindo quer do dormitório quer da casa dos peregrinos. Vimos que os archeiros estavam segurando Salvador, branco como o branco dos seus olhos, e uma mulher que chorava. Senti um aperto no coração: era ela, a rapariga dos meus pensamentos. Logo que me viu, reconheceu-me e lançou-me um olhar implorante e desesperado. Tive o impulso de me lançar a libertá-la, mas Guilherme deteve-me sussurrando-me alguns impropérios nada afetuosos. Os monges e os hóspedes acorriam agora de todas as partes.

 

Chegou o Abade, chegou Bernardo Gui, a quem o capitão dos archeiros fez um breve relatório. Eis o que tinha acontecido.

 

Por ordem do inquisidor, eles patrulhavam de noite toda a esplanada, com particular atenção pela avenida que ia do portal de entrada à igreja, a zona do horto e a fachada do Edifício (porquê?, perguntei-me e compreendi: evidentemente porque Bernardo tinha ouvido aos servos ou aos cozinheiros rumores sobre alguns tráficos noturnos, talvez sem saber quem eram exatamente os seus responsáveis, que tinham lugar entre o exterior da cerca e as cozinhas, e quem sabe se o estúpido Salvador, como me tinha dito a mim os seus propósitos, não teria já falado na cozinha ou nos estábulos a algum desgraçado que, atemorizado pelo interrogatório da tarde, tinha lançado à curiosidade de Bernardo esta murmuração). Girando circunspectos e no escuro no meio do nevoeiro, os archeiros tinham finalmente surpreendido Salvador, em companhia da mulher, enquanto manobrava diante da porta da cozinha.

 

- Uma mulher neste lugar santo! E com um monge! – disse severamente Bernardo dirigindo-se ao Abade. – Magnificentissimo senhor – prosseguiu -, se se tratasse só da violação do voto de castidade, a punição deste homem seria coisa da vossa jurisdição. Mas, uma vez que não sabemos ainda se as manobras destes dois desgraçados têm alguma coisa a ver com a saúde de todos os hóspedes, devemos primeiro fazer luz sobre este mistério. Vamos, falo contigo, miserável - e arrancava do peito de Salvador o evidente embrulho que ele julgava ocultar -, que tens aí dentro?

 

Eu já o sabia: uma faca, um gato preto, que mal foi aberto o embrulho fugiu, miando enfurecido e dois ovos, já quebrados e viscosos, que a todos pareceram sangue, ou bilis amarela, ou outra substancia imunda. Salvador estava para entrar na cozinha, matar o gato arrancar-lhe os olhos, e, sabe-se lá com que promessas, tinha convencido a rapariga a segui-lo. Com que promessas, soube-o logo. Os archeiros revistaram a rapariga, entre risadas maliciosas e meias palavras lascivas, e encontraram-lhe um galito morto, ainda por depenar. A desgraça quis que à noite, em que todos os gatos são pardos, o galo parecesse preto também, como o gato. Eu pensei, pelo contrário, que não era preciso mais nada para a atrair, a pobre esfomeada que já na noite passada tinha abandonado (e por amor de mim!) o seu precioso coração de boi...

 

- Ah! Ah! - exclamou Bernardo com tom de grande preocupação. Gato e galo pretos... Mas eu conheço-os, estes parafernais... - Avistou Guilherme entre os circunstantes: - Não os conheceis também vós frade Guilherme? Não fostes inquisidor em Kilkenny, há três anos, onde uma rapariga tinha comércio com um demônio que lhe aparecia sob a forma de um gato preto?

 

Pareceu-me que o meu mestre se calava por covardia. Agarrei-o pela manga, sacudi-o, sussurrei-lhe desesperado:

 

- Mas dizei-lhe que era para comer...

 

Ele libertou-se da minha mão e dirigiu-se educadamente a Bernardo:

 

- Não creio que vós tenhais necessidade das minhas antigas experiências para chegardes às vossas conclusões - disse.

 

- Oh, não, existem testemunhas bem mais autorizadas - sorri Bernardo. - Estevão de Bourbon conta no seu tratado sobre os sete dons do Espírito Santo como São Domingos, depois de ter pregado em Fanjeaux contra os hereges, anunciou a certas mulheres que elas veriam quem tinham servido até então. E de repente saltou no meio delas um gato medonho com as dimensões de um grande cão, com os olhos grandes e chamejantes, a língua sanguinolenta que lhe chegava ao umbigo, a cauda curta e espetada no ar de modo que, de qualquer lado que o animal se voltasse, mostrava a torpeza do seu traseiro, fétido como nenhum, como convém àquele anus que muitos devotos de Satanás, e os cavaleiros templários estão longe de ser os últimos, costumavam beijar sempre no curso das suas reuniões. E depois de ter girado em volta das mulheres durante uma hora, o gato saltou para a corda do sino e ai trepou, deixando para trás os seus restos fedorentos. E não é o gato o animal amado pelos cátaros, que, segundo Alano das Ilhas, se chamam assim precisamente de catus, porque beijam o posterior deste animal, considerando-o encarnação de Lúcifer? E não confirma também esta repugnante prática Guilherme de Alvernia no De legibus? E não diz Albelto Magno que os gatos são demônios em potência? E não refere o meu venerável irmão Jacques Fournier que no leito de morte do inquisidor Godofredo de Carcassonne apareceram dois gatos pretos, que mais não eram que demônios que queriam escarnecer daqueles despojos mortais?

 

Um murmúrio de horror percorreu o grupo dos monges, muitos dos quais fizeram o santo sinal da cruz.

 

- Senhor Abade, senhor Abade - dizia entretanto Bernardo com ar virtuoso -, talvez a Vossa Magnificência não saiba o que costumam fazer os pecadores com estes instrumentos! Mas eu sei-o bem, não quisesse Deus! Vi mulheres de grande perversidade, nas horas mais escuras da noite, juntamente com outras da mesma laia, usarem gatos pretos para obterem prodígios que nunca puderam negar: tal como andarem a cavalo de certos animais e percorrerem com o favor noturno espaços imensos, arrastando os seus escravos, transformados em incubos de desejos loucos. E o próprio diabo se lhes mostra, ou pelo menos eles acreditam nisso firmemente, sob a forma de um galo, ou de outro animal todo negro, e com ele chegam, não me pergunteis como, a deitar-se. E sei de fonte segura que com necromancias deste gênero, não há muito, precisamente em Avinhão, se prepararam filtros e ungüentos para atentar contra a vida do próprio senhor papa, envenenando-lhe a comida. O papa pôde defender-se e identificar o tóxico apenas porque estava munido de prodigiosas jóias em forma de língua de serpente, fortificadas por admiráveis esmeraldas e rubis que, por virtude divina, serviam para revelar a presença de veneno na comida! Onze tinha-lhas oferecido o rei de França, dessas línguas preciosíssimas, graças ao céu, e só assim o nosso senhor papa pôde escapar à morte! É verdade que os inimigos do pontífice fizeram ainda mais, e todos sabem o que se descobriu do herege Bernard Délicieux, preso há dez anos: foram-lhe encontrados em casa livros de magia negra anotados precisamente nas páginas mais perversas, com todas as instruções para construir figuras de cera através das quais causar dano aos próprios inimigos. E, acreditá-lo-íeis?, em casa também lhe foram encontradas figuras que reproduziam, com arte decerto admirável, a própria imagem do papa, com pequenos círculos vermelhos nas partes vitais do corpo: e todos sabem que tais figuras, mantidas suspensas por uma corda, se põem diante de um espelho, e depois atingem-se os círculos vitais com alfinetes e... Oh, mas porque me demoro com estas misérias repugnantes? O próprio papa falou delas e descreveu-as, condenando-as, precisamente o ano passado, na sua constituição Super illius specula! E espero bem que tenhais um exemplar nesta vossa rica biblioteca, para meditar nela como se deve...

 

- Temos um, temos um - confirmou fervorosamente o Abade, muito perturbado.

 

- Está bem - concluiu Bernardo. - Agora o fato parece-me claro. Um monge seduzido, uma bruxa, e algum rito que felizmente não teve lugar. Com que fins? E o que saberemos, e quero tirar algumas horas ao sono para saber. Queira a Vossa Magnificência pôr à minha disposição um lugar onde este homem possa ser vigiado...

 

- Temos umas celas no subsolo do laboratório dos ferreiros - disse o Abade - que felizmente se usam bastante pouco e estão vazias há anos...

 

- Felizmente ou infelizmente - observou Bernardo.

 

E ordenou aos archeiros que pedissem para lhes indicarem o caminho e conduzissem a duas celas diferentes os cativos, e que prendessem bem o homem a algum anel fixo na parece, de modo que ele pudesse em breve descer a interrogá-lo olhando-o bem na cara. Quanto à rapariga, acrescentou, era claro o que era, e não valia a pena interrogá-la naquela noite. Outras provas a esperariam antes de ser queimada como bruxa. E, se bruxa era, não falaria facilmente. Mas o monge podia talvez ainda arrepender-se (e fixava Salvador, que tremia, como a dar-lhe a entender que lhe oferecia ainda uma possibilidade), contando a verdade e, acrescentou, denunciando os seus cúmplices.

 

Os dois foram arrastados para fora: um silencioso e desfeito, quase num estado febril, a outra que chorava, e dava pontapés, e gritava como um animal no matadouro. Mas nem Bernardo, nem os archeiros, nem eu mesmo entendíamos o que dizia na sua língua de camponesa. Por mais que falasse, era como se fosse muda. Há palavras que dão poder, outras que tornam uma pessoa ainda mais desamparada, e desta espécie são as palavras vulgares dos simples, a quem o Senhor não concedeu saberem exprimir-se na língua universal da sabedoria e do poder.

 

Mais uma vez fui tentado a segui-la, mais uma vez Guilherme, de rosto extremamente sombrio, me reteve.

 

- Está quieto, tolo - disse -, a rapariga está perdida, é carne queimada.

 

Enquanto observava aterrado a cena, num turbilhão de pensamentos contraditórios, fixando a rapariga, senti que me tocavam no ombro. Não sei porquê, mas, ainda antes de me voltar, reconheci pelo toque Ubertino.

 

- Tu olhas para a bruxa, não é? - perguntou-me.

 

E eu sabia que ele não podia saber da minha aventura, e portanto falava assim apenas porque tinha captado, com a sua terrível penetração das paixões humanas, a intensidade do meu olhar.

 

- Não... - esquivei-me - não olho para ela... isto é, talvez olhe para ela, mas não é uma bruxa... não sabemos, talvez esteja inocente...

 

- Tu olhas para ela porque é bela. É bela, não é? - perguntou-me com extraordinário calor, apertando-me o braço. - Se olhas para ela porque é bela, e ficas perturbado (mas sei que ficas perturbado, porque o pecado de que é suspeita torna-ta ainda mais fascinante), se olhas para ela e sentes desejo, por isso mesmo ela é uma bruxa. Toma cuidado, meu filho...A beleza do corpo limita-se à pele. Se os homens vissem o que está debaixo da pele, tal como acontece com o lince da Beócia, estremeceriam de horror à visão da mulher. Toda aquela graça se compõe de mucosidades e de sangue, de humores e de bílis. Se se pensa naquilo que se esconde nas narinas, na garganta e no ventre, não se achará senão imundície. E se te repugna tocar no muco ou no esterco com a ponta do dedo, como é que poderemos desejar abraçar o próprio saco que contém o esterco?

 

Tive um acesso de vômito. Não queria escutar mais aquelas palavras. Veio em meu socorro o meu mestre, que tinha ouvido. Aproximou-se bruscamente de Ubertino, agarrou-lhe o braço e arrancou-o do meu.

 

- Já chega, Ubertino - disse. - Aquela rapariga estará daqui a pouco sob tortura, e depois na fogueira. Tornar-se-á exatamente como tu dizes, muco, sangue, humores e bílis. Mas serão os nossos semelhantes que arrancarão de baixo da sua pele aquilo que o Senhor quis que fosse protegido e adornado por aquela pele. E, do ponto de vista da matéria-prima, tu não és melhor que ela. Deixa o moço em paz.

 

Ubertino perturbou-se:

 

- Talvez tenha pecado - murmurou. - Sem dúvida que pequei. Que mais pode fazer um pecador.

 

Já todos estavam entrando de novo, comentando o acontecido, Guilherme demorou-se um pouco com Miguel e com os outros menoritas, que lhe perguntavam as suas impressões.

 

- Bernardo tem agora um argumento na mão, embora equívoco. Pela abadia vagueiam necromantes, que fazem as mesmas coisas que foram feitas contra o papa em Avinhão. Não é decerto uma prova, e em primeira instância não pode ser usada para perturbar o encontro de amanhã. Esta noite procurará arrancar àquele desgraçado qualquer outra indicação, da qual, tenho a certeza, não fará uso logo amanhã de manhã. Tê-la-á de reserva, servir-lhe-á mais adiante para perturbar o andamento das discussões, se acaso tomarem um caminho que lhe desagrade.

 

- Poderia obrigá-lo a dizer qualquer coisa a usar contra nós? - perguntou Miguel de Cesena.

 

Guilherme ficou na dúvida:

 

- Esperemos que não - disse.

 

Dei-me conta de que, se Salvador dizia a Bernardo aquilo que nos tinha dito a nós sobre o seu passado e o do despenseiro, e se fazia a menor alusão à relação de ambos com Ubertino, por mais fugaz que tivesse sido, criar-se-ia uma situação bastante embaraçosa.

 

- Em todo o caso, esperemos os eventos - disse Guilherme com serenidade. - Por outro lado, Miguel,

já tudo foi decidido antes. Mas tu queres provar.

 

- Pois quero - disse Miguel -, e o Senhor me ajudará. Que São Francisco interceda por todos nós.

 

- Amém - responderam todos.

 

- Mas não se sabe - foi o irreverente comentário de Guilherme. - São Francisco poderia estar em qualquer parte, à espera do juízo, sem ver o Senhor face a face.

 

- Maldito seja o herético João! - ouvi resmungar monsenhor Jerônimo enquanto cada um voltava a ir dormir. – Se agora nos tira também a assistência aos santos, onde iremos nós, pobres pecadores?

 

QUINTO DIA

PRIMA

 

Onde tem lugar uma fraterna discussão sobre a pobreza de Jesus.

 

Com o coração agitado por mil angústias, depois da cena da noite, levantei-me na manhã do quinto dia: já soava a hora prima, quando Guilherme me sacudiu rudemente avisando-me que dentro em pouco se iam reunir as duas delegações. Olhei para fora da janela da cela e não vi nada. O nevoeiro do dia anterior tinha-se tornado um manto leitoso que dominava manifestamente o planalto.

 

Mal saí, vi a abadia como ainda a não vira até então; apenas algumas construções maiores, a igreja, o Edifício, a sala capitular se destacavam mesmo à distância, embora de forma imprecisa, sombras entre as sombras, mas o resto do casario só era visível a poucos passos. Parecia que as formas, das coisas e dos animais, surgiam, de improviso do nada; as pessoas pareciam emergir da bruma primeiro cinzentas como fantasmas, depois pouco a pouco e dificilmente reconhecíveis.

 

Nascido nos países nórdicos não era novo para mim aquele elemento, que noutros momentos me teria recordado com alguma doçura a planície e o castelo do meu nascimento. Mas naquela manhã as condições do ar pareceram-me dolorosamente afins às condições da minha alma, e a impressão de tristeza com que tinha acordado cresceu à medida que me aproximava da sala capitular.

 

A poucos passos da construção vi Bernardo Gui, que se despedia de outra pessoa que à primeira não reconheci. Como depois passou a meu lado, apercebi-me que era Malaquias. Olhava em seu redor como quem não quer ser avistado enquanto comete um delito: mas já disse que a expressão deste homem era por natureza de quem esconde, ou tenta esconder, um inconfessável segredo.

 

Não me reconheceu, e afastou-se. Eu, movido pela curiosidade, segui Bernardo e vi que estava percorrendo com o olhar uns papéis, que talvez Malaquias lhe tivesse entregado. No limiar do capítulo chamou com um gesto o chefe dos archeiros, que estava ali perto, e murmurou-lhe algumas palavras. Depois entrou. Eu fui atrás dele.

 

Era a primeira vez que punha os pés naquele lugar, que por fora era de modestas dimensões e de formas sóbrias; apercebi-me que tinha sido reconstruído em tempos recentes sobre os restos de uma primitiva igreja abacial, talvez destruída em parte por um incêndio.

 

Entretanto de fora passava-se sob um portal à moda nova, de arco em ogiva, sem decorações e encimado por uma rosácea. Mas, no interior, encontrávamo-nos num átrio, refeito sobre os vestígios de um velho nártex. Defronte apresentava-se outro portal, com o arco à moda antiga, o tímpano em meia-lua admiravelmente esculpido. Devia ser o portal da igreja desaparecida.

 

As esculturas do tímpano eram igualmente belas mas menos inquietantes que as da igreja atual. Também aqui o tímpano era dominado por um Cristo no trono; mas a seu lado, em várias poses e com vários objetos nas mãos, estavam os doze apóstolos, que dele tinham recebido o mandato de irem pelo mundo a evangelizar os gentios. Sobre a cabeça de Cristo, num arco dividido em doze painéis, e aos pés de Cristo, numa procissão ininterrupta de figuras, estavam representados os povos do mundo, destinados a receber a boa nova. Reconheci pelos seus trajes os hebreus, os capadócios, os árabes, os indianos, os frígios, os bizantinos, os armênios, os citas, os romanos. Mas, misturados com eles, em trinta medalhões que se dispunham em arco sobre o arco dos doze painéis, estavam os habitantes dos mundos desconhecidos, de que apenas nos falam o Fisiólogo e os discursos incertos dos viajantes. Muitos deles ignorava-os, outros reconheci-os: por exemplo, os brutos com seis dedos em cada mão, os faunos que nascem dos vermes que se formam entre a casca e o tronco das árvores, as sereias com a cauda escamosa, que seduzem os marinheiros, os etíopes de corpo todo negro, que se defendem do ardor do Sol escavando cavernas subterrâneas, os onocentauros, homens até ao umbigo e burros para baixo, os ciclopes com um único olho do tamanho de um escudo, Escila com cabeça e peito de rapariga, ventre de loba e cauda de golfinho, os homens peludos da Índia que vivem nos pauis e no rio Epigmáride, os cinocéfalos, que não podem dizer palavra sem se interromperem e ladrar, os chápodos, que correm velozmente com a sua única perna e, quando se querem abrigar do Sol , estendem-se e erguem o grande pé como um sombreiro,

os astómatos da Grécia, privados de boca, que respiram pelas narinas e vivem só de ar, as mulheres barbudas da Armênia, os pigmeus, os epistigios, a que alguns também chamam blêmios, que nascem sem cabeça, têm a boca no ventre e os olhos nos ombros, as mulheres monstruosas do mar Vermelho, de doze pés de altura, com cabelos que lhes chegam aos calcanhares, uma cauda bovine no fundo das costas e cascos de camelo, e aqueles que têm a planta dos pés voltada pare trás, de modo que quem os seguir olhando pare as suas pegadas chega sempre a donde eles vêm e nunca a onde vão, e ainda os homens com três cabeças, os olhos cintilantes como lâmpadas e os monstros da ilha de Circe, corpos humanos e cerviz dos animais mais variados...

 

Estes e outros prodígios estavam esculpidos naquele portal. Mas nenhum deles provocava inquietação, porque eles não queriam significar os males desta terra ou os tormentos do inferno, mas eram, pelo contrário, testemunhos do fato de que a boa nova tinha chegado a toda a terra conhecida e se estava estendendo à desconhecida, pelo que o portal era jubilosa promessa de concórdia, de conseguida unidade na palavra de Cristo, de esplêndida ecumene.

 

Bom auspicio, disse comigo, pare o encontro que se desenrolará para lá deste umbral, em que homens tornados inimigos uns dos outros por opostas interpretações do evangelho talvez hoje se reencontrem pare conciliarem as suas querelas. E disse para comigo que era um pobre pecador a padecer pelo meu cave pessoal quando iam verificar-se eventos de tanta importância para a história da cristandade. Confrontei a pequenez das minhas penas com a grandiosa promessa de paz e de serenidade encerrada na pedra do tímpano. Pedi perdão a Deus pela minha fragilidade e, mais sereno, transpus o umbral.

 

Mal entrei vi os membros das duas delegações completas, que estavam frente a frente numa série de cadeirões dispostos em semicírculo, divididas as duas frentes por uma mesa a que estavam sentados o Abade e o cardeal Bertrando.

 

Guilherme, que eu segui para tomar notas, pôs-me do lado dos menoritas, onde estavam Miguel com os seus e outros franciscanos da corte de Avinhão: porque o encontro não devia parecer um duelo entre os italianos e franceses, mas um dispute entre defensores da regra franciscana e os seus críticos, todos unidos por uma sã e católica fidelidade à corte pontifícia.

 

Com Miguel de Cesena estavam frade Arnaldo da Aquitania, frade Hugo de Newcastle e frade Guilherme Alnwick, que tinham tomado parte no capítulo de Perugia, e depois o bispo de Caffa e Berengário Talloni, Bonagrazia de Bérgamo e outros menoritas da corte avinhonense. Do lado oposto estavam sentados Lourenço Decoalcone, bacharel de Avinhão, o bispo de Pádua e Jean d’Anneaux, doutor de teologia em Paris. Ao lado de Bernardo Gui, silencioso e absorto, estava o dominicano Jean de Baune, a quem na Itália chamavam Giovanni Dalbena. Este, disse-me Guilherme, tinha sido anos antes inquisidor em Narbona, onde tinha processado muitos beguinos e santanários; mas como tinha imputado de heresia precisamente uma proposição respeitante à pobreza de Cristo, tinha-se levantado contra ele Berengário Talloni, leitor no convento daquela cidade, apelando ao papa. Então, João estava ainda inseguro sobre esta matéria, e tinha convocado ambos à corte para discutirem, sem se chegar a uma conclusão. Tanto que, pouco depois, os franciscanos tinham tomado a posição, de que já falei, no capítulo de Perugia. Enfim, do lado dos avinhonenses, estavam outros ainda, entre os quais o bispo de Alborea.

 

A sessão foi aberta por Abbone, que considerou oportuno resumir os fatos mais recentes. Recordou que no ano do Senhor de 1322 o capítulo geral dos frades menores, reunido em Perugia sob a direção de Miguel de Cesena, tinha estabelecido com madura e diligente deliberação que Cristo, para dar exemplo de vida perfeita, e os apóstolos, para se adequarem ao seu ensinamento, nunca tinham tido em comum coisa alguma, tanto por razões de propriedade como de senhorio, e que esta verdade era matéria de fé sã e católica, como se deduzia de várias citações dos livros canônicos. Por isso era meritória e santa a renúncia à propriedade de todas as coisas, e que a esta regra de santidade se tinham conformado os primeiros fundadores da igreja militante. Que a esta verdade se tinha conformado em 1312 o concílio de Vienne, e que o próprio papa João, em 1317, na constituição sobre o estado dos frades menores que se inicia com Quorundam exigit, tinha comentado as deliberações daquele concilio como santamente compostas, lúcidas, sólidas e maduras. E dai o capítulo de Perugia, considerando que aquilo que por sã doutrina a sede apostólica tinha sempre aprovado sempre se devia ter por aceite, e que de modo nenhum se devia apartar dele, não tinha feito mais que selar de novo tal decisão conciliar, pelo nome de mestres em sagrada teologia, como frade Guilherme de Inglaterra, frade Henrique da Alemanha, frade Arnaldo de Aquitania, provinciais e ministros; assim como com o selo de frade Nicolau, ministro de França, frade Guilherme Bloc, bacharel, do ministro geral e de quatro ministros provinciais, frade Tomás de Bolonha, frade Pedro da província de São Francisco, frade Fernando de Castello e frade Simão de Turónia. Porém, acrescentou Abbone, no ano seguinte o papa emitia a decretal Ad conditorem canonum, contra a qual apelava frade Bonagrazia de Bérgamo, considerando-a contrária aos interesses da sua ordem. O papa tinha então arrancado aquela decretal das portas da igreja maior de Avinhão, onde tinha sido pregada, e tinha-a emendado em vários pontos. Mas, na realidade, tinha-a tornado ainda mais áspera, e prova disso era que, como conseqüência imediata, frade Bonagrazia tinha sido mantido um ano na prisão. E não se podia ter dúvidas sobre a severidade do pontífice, porque no mesmo ano emitia a já conhecidíssima Cum ínter nonnullos, em que definitivamente se condenavam as teses do capítulo de Perugia.

 

Falou neste ponto, interrompendo cortesmente Abbone, o cardeal Bertrando, e disse que era necessário recordar como, a complicar as coisas e a irritar o pontífice, tinha intervindo em 1324 Luís, o Bávaro, com a declaração de Sachsenhausen, onde se assumiam sem qualquer razão válida as teses de Perugia (e não se compreendia, notou Bertrando com um fino sorriso, porque é que o imperador aclamava tão entusiasticamente uma pobreza que ele estava longe de praticar), pondo-se contra o senhor papa, chamando-lhe inimicus pacis e dizendo que ele pretendia suscitar escândalos e discórdias, tratando-o por fim de herege, melhor, de heresiarca.

 

- Não exatamente - tentou mediar Abbone.

 

- Em substancia, sim - disse secamente Bertrando.

 

E acrescentava que tinha sido precisamente para rebater a importuna intervenção do imperador que o senhor papa tinha sido obrigado a emitir a decretal Quia quorundam, e que tinha enfim severamente convidado Miguel de Cesena a apresentar-se perante ele. Miguel tinha mandado cartas de desculpa dizendo-se doente, coisa de que ninguém duvidava, enviando em seu lugar frade João Fidanza e frade Modesto Custódio de Perugia. Mas dava-se o caso, disse o cardeal, que os guelfos de Perugia tinham informado o papa que, longe de estar doente, frei Miguel estava mantendo contatos com Luís da Baviera. E em todo o caso, tendo sido aquilo que tinha sido, agora frei Miguel parecia de belo e sereno aspecto, e esperavam-no portanto em Avinhão. Era, aliás, melhor, admitia o cardeal, ponderar antes, como se estava fazendo agora, na presença de homens prudentes de ambas as partes, o que Miguel diria depois ao papa, dado que o fim de todos sempre era, afinal, o de não agravar as coisas e compor fraternalmente uma diatribe que não tinha razão de ser entre um pai amorável e os seus filhos dedicados e que até então se tinha reacendido apenas pelas intervenções de homens do século, fossem imperadores ou vigários, os quais nada tinham a ver com as questões da Santa Madre Igreja.

 

Interveio então Abbone e disse que, embora sendo homem da Igreja e abade de uma ordem a que a Igreja tanto devia (um murmúrio de respeito e deferência correu de ambos os lados do semicírculo), não considerava todavia que o imperador devesse permanecer estranho a tais questões, pelas inúmeras razões que frade Guilherme de Baskerville depois diria. Mas, continuava a dizer Abbone, era todavia justo que a primeira parte do debate se desenrolasse entre os enviados pontifícios e os representantes daqueles filhos de São Francisco que, pelo próprio fato de terem intervindo neste encontro, se demonstravam filhos dedicadíssimos do pontífice. E, assim, convidava frade Miguel, ou alguém por ele, a dizer o que entendia defender em Avinhão.

 

Miguel disse que, com sua grande alegria e comoção, se encontrava entre eles naquela manhã Ubertino de Casale, a quem o mesmo pontífice, em 1322, tinha pedido uma fundada relação sobre a questão da pobreza. E precisamente Ubertino poderia resumir, com a lucidez, a erudição e a fé apaixonada que todos lhe reconhecíamos, os pontos capitais daquelas que já eram, e indefectivelmente, as idéias da ordem franciscana.

 

Levantou-se Ubertino, e mal começou a falar compreendi porque é que tinha suscitado tanto entusiasmo como pregador e como homem de corte. Apaixonado no gesto, persuasivo na voz, fascinante no sorriso, claro e conseqüente no raciocínio, ele prendeu a si os ouvintes durante todo o tempo em que teve a palavra. Ele iniciou uma disquisição muito douta sobre as razões que confortavam as teses de Perugia. Disse que, antes de mais, se devia reconhecer que Cristo e os seus apóstolos tiveram um duplo estado, porque foram prelados da Igreja do novo testamento e deste modo possuíram, quanto a autoridade de dispensa e de distribuição, para darem aos pobres e aos ministros da Igreja, como está escrito no quarto capítulo dos Atos dos apóstolos, e sobre isto ninguém discute. Mas, secundariamente, Cristo e os apóstolos devem ser considerados como pessoas singulares, fundamento de toda a perfeição religiosa, e perfeitos desprezadores do mundo. E a este propósito propõem-se dois modos de ter, um dos quais é civil e mundano, que as leis imperiais definem com as palavras in bonis nostris, porque nossos são chamados os bens que estão à nossa guarda e que, sendo-nos tirados, temos o direito de reclamar. Por isso, uma coisa é defender civil e mundanamente o bem próprio daquele que no-lo quer tirar, apelando ao juiz imperial (e dizer que Cristo e os apóstolos tiveram coisas desta maneira é afirmação herética, porque, como diz Mateus no V capítulo, àquele que quer contender contido em juízo e tirar-te a túnica deixa também o manto, e Lucas não diz diversamente no VI capitulo, com cujas palavras Cristo remove de si todo o domínio e senhorio e isto mesmo impõe aos seus apóstolos, veja-se ainda Mateus, capítulo XXIV, onde Pedro diz ao Senhor que para o seguir deixaram todas as coisas); mas de outro modo podem todavia ter-se as coisas temporais, em razão da caridade fraterna comum, e deste modo Cristo e os seus tiveram bens por razão natural, a qual razão é por alguns chamada jus poli, isto é, razão do céu, para sustentar a natureza que sem ordenação humana é consoante à reta razão; enquanto o jus fori é poder que depende de humana estipulação. Anteriormente à primeira divisão das coisas, estas, quanto ao domínio, foram como agora são as coisas que não resultam entre os bens de alguém e se concedem a quem as ocupa e foram, num certo sentido, comuns a todos os homens, enquanto só depois do pecado os nossos progenitores começaram a dividir entre si a propriedade das coisas, e desde então começaram os domínios mundanos como são conhecidos hoje. Mas Cristo e os apóstolos tiveram as coisas do primeiro modo, e assim tiveram o vestuário e os pães e os peixes, e, como diz Paulo na primeira a Timóteo, temos os alimentos, e com que nos cobrirmos, e estamos contentes. Por isso, Cristo e os seus tiveram estas coisas não em posse, mas em uso, permanecendo salva a sua absoluta pobreza. O que já tinha sido reconhecido pelo Papa Nicolau II pelo decretal Exiit qui seminat.

 

Mas levantou-se do lado oposto Jean d’Anneaux e disse que as posições de Ubertino lhe pareciam contrárias não só à reta razão mas à reta interpretação das escrituras. Pois que, nos bens perecíveis com o uso, como o pão e os peixes, não se pode falar de simples direito de uso, nem se pode haver uso, sem abuso. Todos os que acreditam em comum na Igreja primitiva, como se deduz dos Atos segundo e terceiro, tinham-no como base no mesmo tipo de domínio que detinham antes da conversação; os apóstolos, depois da descida do Espírito Santo, possuíram propriedades na Judéia; o voto de viver sem propriedade não se estende àquilo de que o homem precisa necessariamente para viver, e quando Pedro disse que tinha deixado todas as coisas não queria dizer que tivesse renunciado à propriedade; Adão teve domínio e propriedade das coisas; o servo que recebe dinheiro do seu patrão decerto não faz dele nem uso nem abuso; as palavras da Exüt qui seminal a que os menoritas se referem sempre e que estabelecem que os frades menores têm só o uso daquilo de que se servem, sem dele terem o domínio e a propriedade, devem referir-se somente aos bens que não se esgotam com o uso, e, de fato, se a Exüt compreendesse os bens perecíveis, defenderia uma coisa impossível; o uso de fato não se pode distinguir do domínio jurídico; todo o direito humano, em cuja base se possuem bens materiais, está contido nas leis dos reis; Cristo, como homem mortal, desde o instante da sua concepção, foi proprietário de todos os bens terrenos e, como Deus, teve do pai o domínio universal de tudo; foi proprietário de vestes, alimentos, dinheiro por contributos e ofertas dos fiéis, e, se foi pobre não foi porque não teve propriedade, mas porque não lhe recebia os frutos, pois que o simples domínio jurídico, separado da cobrança dos interesses. não torna rico quem o detém; e finalmente, se acaso a Exüt tivesse dito coisas diversas, o pontífice romano, pelo que se refere à fé e às questões morais, pode revogar as determinações dos seus predecessores e fazer mesmo asserções contrárias.

 

Foi naquele ponto que se levantou com veemência frade Jerônimo, bispo de Caffa, com a barba que lhe tremia de ira, embora as suas palavras procurassem parecer conciliadoras. E iniciou uma argumentação que me pareceu um tanto confusa.

 

- Aquilo que quero dizer ao santo padre, e eu mesmo lho direi, ponho desde já sob a sua correção, porque creio verdadeiramente que João é vigário de Cristo, e por esta confissão fui preso pelos sarracenos. E começarei citando um fato referido por um grande doutor, sobre a disputa que surgiu um dia entre monges sobre quem era o pai de Melquisedeque. E então o abade Copes, interrogado sobre isto, sacudiu a cabeça e disse: cuidado, Copes, porque procuras apenas as coisas que Deus não te manda procurar e és negligente naquelas que ele te manda. Pronto, como limpidamente se deduz do meu exemplo, é tão claro que Cristo e a bem-aventurada Virgem e os apóstolos não tiveram nada nem em especial nem em comum, que menos claro seria reconhecer que Jesus foi homem e Deus ao mesmo tempo, e, porém, parece-me claro que quem negasse a primeira evidência deveria depois negar a segunda!

 

Disse triunfante, e vi Guilherme que levantava os olhos ao céu. Suspeito que reputava o silogismo de Jerônimo um tanto defeituoso, e não posso dizer que não tinha razão, mas mais defeituosa ainda me pareceu a irritadíssima e contrária argumentação de João Dalbena, o qual disse que quem afirma alguma coisa sobre a pobreza de Cristo afirma aquilo que se vê (ou não se vê) com os olhos, enquanto para definir a sua humanidade e divindade intervém a fé, pelo que as duas proposições não podem ser igualadas. Na resposta, Jerônimo foi mais sutil que o adversário:

 

- Oh, não, meu caro irmão - disse -, parece-me verdade precisamente o contrário, porque todos os evangelhos declaram que Cristo era homem e comia e bebia e, por força dos seus evidentíssimos milagres, era também Deus, e tudo isto salta mesmo aos olhos!

 

- Também os magos e os adivinhos fizeram milagres – disse Dalbena com insuficiência.

 

- Sim - rebateu Jerônimo -, mas por operação de arte mágica. E tu queres igualar os milagres de Cristo à arte mágica? - A assembléia murmurou indignada que não queria tal. - E, enfim - continuou Jerônimo, que já se sentia próximo da vitória -, o senhor cardeal do Poggetto quereria considerar herética a crença na pobreza de Cristo quando sobre esta proposição assenta a regra de uma ordem como a franciscana, de modo que não há reino onde os seus filhos não tenham andado pregando e espalhando o seu sangue desde Marrocos até à Índia?

 

- Santa alma de Pedro Hispano - murmurou Guilherme -, protege-nos tu.

 

- Irmão diletíssimo - vociferou então Dalbena, dando um passo em frente -, fala embora do sangue dos teus frades, mas não te esqueças que esse tributo foi pago também por religiosos de outras ordens...

 

- Salva a devida reverência ao senhor cardeal - gritou Jerônimo -, nunca dominicano algum morreu entre os infiéis, enquanto, só no meu tempo nove menoritas foram martirizados!

 

De rosto vermelho, levantou-se então o dominicano, bispo de Alborea:

 

- Então, eu posso demonstrar que, antes de os frades menores irem para a Tartária, o papa Inocêncio mandou para lá três dominicanos!

 

- Ah, sim? - troçou Jerônimo. - Pois bem, eu sei que há oitenta anos que os menoritas estão na Tartária e têm quarenta igrejas por todo o país, enquanto os dominicanos têm apenas cinco postos na costa e ao todo serão quinze frades! E isto resolve a questão!

 

- Não resolve questão nenhuma - gritou Alborea -, porque esses menoritas, que parem santanários como as cadelas parem cachorrinhos, atribuem tudo a si, gabam-se de mártires e depois têm belas igrejas, paramentos sumptuosos e compram e vendem como todos os outros religiosos!

 

- Não, meu senhor, não – interveio Jerônimo -, eles não compram e vendem eles próprios, mas através dos procuradores da sede apostólica, e os procuradores detêm a posse, enquanto os menoritas têm apenas o uso!

 

- Deveras? - escarneceu Alborea -, quantas vezes então tu vendeste sem procuradores? Sei a história de algumas propriedades que...

 

- Se o fiz, errei - interrompeu precipitadamente Jerônimo -, não atires para cima da ordem aquilo que pode ter sido uma fraqueza minha!

 

- Mas, veneráveis irmãos - interveio então Abbone -, o nosso problema não é se são pobres os menoritas mas se era pobre o Nosso Senhor...

 

- Pois bem - fez-se neste ponto ouvir ainda Jerônimo -, tenho sobre tal questão um argumento que corta como a espada...

 

- São Francisco, protege os teus filhos... – disse desanimadamente Guilherme.

 

- O argumento é - continuou Jerônimo - que os orientais e os gregos, bem mais familiarizados que nós com a doutrina dos santos padres, têm por certa a pobreza de Cristo. E se aqueles heréticos e cismáticos defendem tão limpidamente uma tão límpida verdade, quereremos nós ser mais heréticos e cismáticos que eles e negá-la? Esses orientais, se ouvissem alguns de nós pregar contra esta verdade lapidá-los-iam!

 

- Que me estas dizendo? - zombou Alborea -, e porque é que então não lapidam os dominicanos que pregam precisamente contra isso?

 

- Os dominicanos? Mas se nunca os vi por lá!

 

Alborea, de rosto violáceo, observou que este frade Jerônimo tinha estado na Grécia talvez quinze anos, enquanto ele lá tinha estado desde a infância. Jerônimo rebateu que ele, o dominicano Alborea talvez também tivesse estado na Grécia, mas a fazer vida de sociedade em belos palácios episcopais, enquanto ele, franciscano, lá tinha estado não quinze mas vinte e dois anos e tinha pregado diante do imperado: em Constantinopla. Então Alborea, à falta de argumentos, tentou atravessar o espaço que o separava dos menoritas, manifestando em voz alta, e com palavras que não ouso referir, a sua firme intenção de arrancar a barba ao bispo de Caffa, cuja virilidade punha em dúvida, e que precisamente segundo a lógica de talião queria punir, usando aquela barba como flagelo.

 

Os outros menoritas correram a fazer barreira em defesa do seu irmão, os avinhonenses consideraram útil dar mão forte ao dominicano, e seguiu-se (Senhor, tem misericórdia dos melhores entre os teus filhos!) uma rixa que o Abade e o cardeal tentaram em vão aplacar. No tumulto que se seguiu, menoritas e dominicanos disseram-se reciprocamente coisas muito graves, como se cada um fosse um cristão em luta com os sarracenos. Os únicos que permaneceram nos seus lugares foram de um lado Guilherme, do outro Bernardo Gui. Guilherme parecia triste e Bernardo alegre, se de alegria se podia falar pelo pálido sorriso que enrugava o lábio do inquisidor.

 

- Não há argumentos melhores - perguntei ao meu mestre, enquanto Alborea se encarniçava sobre a barba do bispo de Caffa - para demonstrar ou negar a pobreza de Cristo?

 

- Mas tu podes afirmar ambas as coisas, meu bom Adso - disse Guilherme -, e jamais poderás estabelecer com base nos evangelhos se Cristo considerava de sua propriedade, e até que ponto, a túnica que usava e que depois provavelmente deitava fora quando estava gasta. E, se queres, a doutrina de Tomás de Aquino sobre a propriedade é mais ousada que a defendida por nós, menoritas. Nós dizemos: não possuímos nada e tudo temos em uso. Ele dizia: considerai-vos também possuidores, contanto que, se a alguém falta aquilo que vós possuís, lhe concedais o uso, e por obrigação, não por caridade. Mas a questão não é se Cristo era pobre, é se deve ser pobre a Igreja. E pobre não significa tanto possuir ou não um palácio, mas ter ou abandonar o direito de legislar sobre as coisas terrenas.

 

- Eis então - disse - porque o imperador se interessa tanto pelos discursos dos menoritas sobre a pobreza.

 

- De fato. Os menoritas fazem o jogo imperial contra o papa. Mas, para Marsílio ou para mim, o jogo é duplo, e quereríamos que o jogo do império fizesse o nosso jogo e servisse a nossa idéia do humano governo.

 

- E isso di-lo-eis quando tiverdes de falar?

 

- Se o disser, cumpro a minha missão, que era manifestar a opinião dos teólogos imperiais. Mas, se o disser, a minha missão falha, porque eu deveria facilitar um segundo encontro em Avinhão, e não creio que João aceite que eu vá ali dizer estas coisas.

 

- E então?

 

- E então estou preso entre duas forças contrárias, como um burro que não sabe de qual de dois sacos de feno comer. É que os tempos não estão maduros. Marsílio fantasia uma transformação impossível, agora, e Luis não é melhor que os seus predecessores, ainda que por agora permaneça o único baluarte contra um miserável como João. Talvez deva falar, a menos que estes não acabem antes por se matarem uns aos outros. Em todo o caso escreve, Adso, que ao menos fiquem vestígios do que está hoje acontecendo.

 

- E Miguel?

 

- Temo que perca o seu tempo. O cardeal sabe que o papa não procura uma mediação, Bernardo Gui sabe que deve fazer falhar o encontro; e Miguel sabe que irá a Avinhão em qualquer caso, porque não quer que a ordem quebre todos os vínculos com o papa. E arriscará a vida.

 

Enquanto assim falávamos - e na verdade não sei como podíamos ouvir-nos um ao outro -, a disputa tinha atingido o auge. Tinham intervindo os archeiros, a um sinal de Bernardo Gui, para impedir que as duas fileiras se encontrassem de vez. Mas, como assediantes e assediados de ambos os lados das muralhas de uma fortaleza, eles lançavam-se contestações e impropérios, que aqui refiro ao acaso, já sem conseguir atribuir-lhes a paternidade e ficando assente que as frases não foram pronunciadas cada uma por sua vez como sucederia numa disputa na minha terra, mas à moda mediterrânica, umas cavalgando as outras, como as ondas de um mar raivoso.

 

- O evangelho diz que Cristo tinha uma bolsa!

 

- Cala-te com essa bolsa que pintais até nos crucifixos! Que dizes então do fato de Nosso Senhor, quando estava em Jerusalém, voltar todas as noites a Betania?

 

- E, se Nosso Senhor queria ir dormir a Betania, quem és tu para criticar a sua decisão?

 

- Não, velho, cabrão, Nosso Senhor voltava a Betania porque não tinha dinheiro para pagar um albergue em Jerusalém!

 

- Bonagrazia, cabrão és tu! E que comia Nosso Senhor em Jerusalém?

 

- E tu dirias que o cavalo que recebe aveia do dono para sobreviver tem a propriedade da aveia?

 

- Olha que comparas Cristo a um cavalo...

 

- Não, és tu que comparas Cristo a um prelado simoníaco da tua corte, reservatório de esterco!

 

- Sim? E quantas vezes a Santa Sé teve de se meter em processos para defender os vossos bens?

 

- Os bens da Igreja, não os nossos! Nós tínhamos o seu uso!

 

- O seu uso para comer, para fazer belas igrejas com estátuas de ouro, hipócritas, baixéis de iniqüidade, sepulcros caiados, sentinas de vício! Sabeis bem que é a caridade, e não a pobreza, o princípio da vida perfeita!

 

- Isso disse-o aquele glutão do vosso Tomás?

 

- Tem cuidado ímpio! Aquele a quem chamas glutão é um santo da Santa Igreja romana!

 

- Santo das minhas sandálias, canonizado por João para fazer arreliar os franciscanos! O vosso papa não pode fazer santos, porque é um herege! Melhor, é um heresiarca.

 

- Essa bela proposição já a conhecemos! É a declaração do fantoche da Baviera em Sachsenhausen, preparada pelo vosso Ubertino!

 

- Vê lá como falas, porco, filho da prostituta de Babilônia e de outras galdérias ainda! Tu sabes que nesse ano Ubertino não estava com o imperador mas estava precisamente em Avinhão, ao serviço do cardeal Orsini, e o papa ia enviá-lo como mensageiro a Aragão!

 

- Eu sei, eu sei que fazia voto de pobreza à mesa do cardeal, como o faz agora na abadia mais rica da península! Ubertino, se não estavas lá tu, quem sugeriu a Luís o uso dos teus escritos?

 

- Que culpa tenho eu se Luís lê os meus escritos? Decerto não pode ler os teus, que és um iletrado!

 

- Eu um iletrado? Era letrado o vosso Francisco, que falava com os patos?

 

- Blasfemaste! - És tu que blasfemas, fraticello de barrica!

 

- Eu nunca fiz de barrica, e tu bem sabes!!!

 

- Fazias sim, com os teus fraticelli, quando te enfiavas na cama com Clara de Montefalco!

 

- Que Deus te fulmine! Eu era inquisidor nesse tempo, e Clara já tinha expirado em odor de santidade!

 

- Clara expirava odor de santidade, mas tu aspiravas outro odor quando cantavas matinas às monjas!

 

- Continua, continua, a ira de Deus atingir-te-á, como atingirá o teu senhor, que deu abrigo a dois hereges como aquele ostrogodo do Eckhart e aquele necromante inglês que chamais Branucerton!

 

- Veneráveis irmãos, veneráveis irmãos! - gritavam o cardeal Bertrando e o Abade.

 

QUINTO DIA

TERÇA

 

Onde Severino fala a Guilherme de um estranho livro e Guilherme fala aos legados de uma estranha concepção do governo temporal.

 

A querela continuava ainda furiosa, quando um dos noviços de guarda à porta entrou, passando por aquela confusão como quem atravessa um campo batido pelo granizo, e veio sussurrar a Guilherme que Severino lhe queria falar com urgência. Saímos para o nártex, apinhado de monges curiosos que procuravam apanhar através dos gritos e dos rumores algo do que se passava no interior. Na primeira fila vimos Aymaro de Alexandria, que nos acolheu com o seu habitual esgar de comiseração pela estultícia do mundo universal:

 

- É certo que, desde que surgiram as ordens mendicantes, a cristandade se tornou mais virtuosa - disse.

 

Guilherme afastou-o, não sem alguma rudeza, e dirigiu-se para Severino, que nos esperava num canto. Estava ansioso, queria falar-nos de parte, mas não se conseguia encontrar um lugar tranqüilo naquela confusão. Queríamos sair para o ar livre, mas da soleira da sala capitular aparecia Miguel de Cesena, que incitava Guilherme a entrar de novo, porque, dizia, a querela estava a recompor-se, e devia continuar-se a série das intervenções.

 

Guilherme, dividido entre estes dois sacos de feno, incitou Severino a falar, e o ervanário procurou não se fazer ouvir pelos circunstantes.

 

- Berengário esteve certamente no hospital antes de ir para os balnea - disse.

 

- Como sabes?

 

Alguns monges aproximaram-se, intrigados pela nossa conversa. Severino falou em voz ainda mais baixa, olhando à sua volta.

 

- Tu tinhas-me dito que aquele homem... devia ter alguma coisa consigo... Bem, encontrei alguma coisa no meu laboratório, confundido com os outros livros... um livro que não é meu, um estranho livro...

 

- Deve ser esse - disse Guilherme triunfante -, traz-mo imediatamente.

 

- Não posso - disse Severino -, depois explico-te, descobri... creio que descobri algo de interessante... Tens de vir tu, tenho de te mostrar o livro... com cautela...

 

Não continuou. Apercebemo-nos que, silencioso como era seu costume, Jorge tinha surgido quase de improviso a nosso lado. Estendia as mãos para a frente como se, não habituado a mover-se naquele lugar, procurasse compreender para onde ia. Uma pessoa normal não teria podido entender os sussurros de Severino, mas tínhamos aprendido há muito tempo que o ouvido de Jorge, como o de todos os cegos, era particularmente agudo.

 

O velho pareceu, todavia, não ter ouvido nada. Moveu-se antes numa direção oposta à nossa, tocou num dos monges e perguntou qualquer coisa. Aquele pegou-lhe com delicadeza no braço e conduziu-o para fora. Naquele momento reapareceu Miguel, que de novo solicitou Guilherme, e o meu mestre tomou uma resolução:

 

- Peco-te - disse a Severino -, volta depressa para de onde vens. Fecha-te por dentro e espera por mim. Tu - disse-me a mim -, segue Jorge. Mesmo que tenha entendido alguma coisa, não creio que se faça conduzir ao hospital. Em todo o caso, vê se me dizes onde vai.

 

Fez por entrar de novo na sala, e distinguiu (como distingui também eu Aymaro, que abria caminho entre a multidão dos presentes para seguir Jorge, que saía. Aqui, Guilherme cometeu uma imprudência, porque, desta vez em voz alta, de um lado ao outro do nártex, disse a Severino, já na soleira externa:

 

- Toma cuidado. Não consintas a ninguém que... aqueles papéis... voltem para de onde saíram!

 

Eu, que me estava preparando para seguir Jorge, vi naquele instante, encostado à grade da porta exterior, o despenseiro, que tinha ouvido as palavras de Guilherme e olhava alternadamente para o meu mestre e para o ervanário, com o rosto contraído de medo. Distingui Severino, que saía para o ar livre, e seguiu-o. Eu, na soleira, temia perder de vista Jorge, que já ia a ser engolido pelo nevoeiro: mas também os outros dois, na direção oposta, iam a desaparecer na caligem. Calculei rapidamente o que devia fazer. Tinham-me ordenado que seguisse o cego, mas porque se temia que fosse para o hospital. Porém, a direção que estava tomando, com o seu acompanhante, era outra, porque estava a atravessar o claustro, direito à igreja, ou ao Edifício. Ao contrário, o despenseiro estava certamente seguindo o ervanário, e Guilherme estava preocupado com o que poderia acontecer no laboratório. Por isso, foi aqueles dois que me pus a seguir, perguntando-me entre outras coisas onde teria ido Aymaro, se acaso não tinha saído por razões bastante diversas das nossas.

 

Mantendo-me a uma distância razoável, não perdia de vista o despenseiro, o qual estava a abrandar o passo, porque se tinha apercebido que eu o estava seguindo. Não podia compreender se a sombra que lhe ia no encalço era eu, como eu não podia compreender se a sombra cujo encalço ia era ele, mas, como eu não tinha dúvidas sobre ele, ele não tinha dúvidas sobre mim.

 

Obrigando-o a controlar-me, impedi-o de apertar de perto Severino. Assim, quando a porta do hospital apareceu no nevoeiro, ela já estava fechada. Severino já tinha entrado, fossem dadas graças ao céu. O despenseiro voltou-se mais uma vez para olhar para mim, que estava agora quedo como uma árvore do horto, depois pareceu tomar uma decisão e meteu para a cozinha. Pareceu-me ter cumprido a minha missão, Severino era um homem de bom senso, proteger-se-ia sozinho sem abrir a ninguém. Não tinha mais nada a fazer e sobretudo ardia de curiosidade para ver aquilo que acontecia na sala capitular. Por isso, decidi voltar para apresentar o meu relatório. Talvez tenha feito mal, devia ter continuado de guarda, e teríamos poupado muitas outras desventuras. Mas isso sei-o agora, não o sabia então.

 

Quando voltava a entrar, quase esbarrei com Bêncio, que sorria com ar cúmplice:

 

- Severino encontrou qualquer coisa deixada por Berengário, não foi?

 

- Que sabes tu disso? - respondi-lhe rudemente, tratando-o como a um coetâneo, em parte pela ira e em parte por causa do seu rosto jovem agora com uma atitude de malícia quase infantil.

 

- Não sou tolo - respondeu Bêncio. - Severino corre a dizer qualquer coisa a Guilherme, tu controlas que ninguém o siga...

 

- E tu observas-nos demasiado a nós, e a Severino – disse irritado.

 

- Eu? Decerto que vos observo. Desde anteontem que não perco de vista nem os balnea nem o hospital. Se pudesse, já lá teria entrado. Daria os olhos da cara para saber que coisa encontrou Berengário na biblioteca.

 

- Tu queres saber coisas de mais sem ter esse direito!

 

- Eu sou um estudante e tenho o direito de saber, eu vim dos confins do mundo para conhecer a biblioteca e a biblioteca permanece fechada como se contivesse coisas más e eu...

 

- Deixa-me ir - disse em tom brusco.

 

- Deixo-te ir, de qualquer maneira disseste-me aquilo que eu queria.

 

- Eu?

 

- Também calando se fala.

 

- Aconselho-te a não entrares no hospital - disse-lhe.

 

- Não entro, não entro, está tranqüilo. Mas ninguém me proíbe de olhar de fora.

 

Não o ouvi mais e voltei a entrar. Aquele curioso, pareceu-me Que não representava um grande perigo. Voltei a encostar-me a Guilherme pu-lo brevemente ao corrente dos fatos. Ele anulou em sinal de aprovação, depois fez-me sinal para me calar. A confusão já estava diminuindo. Os legados de ambas as partes já estavam trocando o beijo da paz. Alborea louvava a fé dos menoritas, Jerônimo exaltava a caridade dos pregadores todos cantavam hinos à esperança de uma Igreja não mais agitada por lutas intestinas. Uns celebrando a fortaleza dos outros, e estes a temperança daqueles, todos invocavam a justiça e apelavam à prudência. Nunca vi tantos homens tão sinceramente empenhados no triunfo das virtudes teologais e cardinais.

 

Mas já Bertrando do Poggetto estava convidando Guilherme a exprimir as teses dos teólogos imperiais. Guilherme levantou-se, de má vontade: por um lado estava a ver que o encontro não tinha utilidade nenhuma, por outro tinha pressa de se ir embora, e o livro misterioso importava-lhe mais, naquela altura, que a sorte do encontro. Mas era claro que não podia subtrair-se ao seu dever.

 

Começou, pois, a falar entre muitos «eh» e «oh», talvez mais que de costume e mais do que devia, como para fazer compreender que estava absolutamente inseguro sobre as coisas que ia dizer, e exordiou afirmando que compreendia muito bem o ponto de vista daqueles que tinham falado antes dele, e que, por outro lado, aquela a que outros chamavam a «doutrina» dos teólogos imperiais não passava de um certo número de observações dispersas que não pretendiam impor-se como verdade de fé.

 

Disse então que, dada a imensa bondade que Deus tinha manifestado em criar o povo dos seus filhos, amando-os todos sem distinções, desde aquelas páginas do Gênesis em que não se fazia ainda menção de sacerdotes e de reis, considerando ainda que o Senhor tinha dado a Adão e aos seus descendentes o poder sobre as coisas desta terra, contando que obedecessem às leis divinas, era de suspeitar que ao próprio Senhor não era estranha a idéia que nas coisas terrenas o povo seja legislador e primeira causa efetiva da lei. Por povo, disse, seria bom entender a universalidade dos cidadãos, mas, visto que entre os cidadãos se devem considerar também as crianças, os obtusos, os malfeitores e as mulheres, talvez se pudesse aceder de modo razoável a uma definição de povo como a parte melhor dos cidadãos embora ele, de momento, não considerasse oportuno pronunciar-se sobre quem efetivamente pertencia a essa parte.

 

Tossicou, desculpou-se perante os presentes sugerindo que naquele dia a atmosfera estava indubitavelmente muito úmida, e pôs a hipótese de que a maneira como o povo poderia exprimir a sua vontade podia coincidir com uma assembléia geral eletiva. Disse que lhe parecia sensato que uma tal assembléia pudesse interpretar, mudar ou suspender a lei, porque, se é só um que faz a lei, ele poderia agir mal por ignorância ou por malícia, e acrescentou que não era necessário recordar aos presentes quantos desses casos se tinham dado recentemente. Apercebi-me que os presentes, bastante perplexos perante as suas palavras precedentes, não podiam senão concordar com estas últimas. Pois que cada um estava evidentemente a pensar numa pessoa diversa, e cada um considerava péssima a pessoa em que pensava.

 

Bem, continuou Guilherme, se um só pode fazer mal as leis, não será melhor a maioria? Naturalmente, sublinhou, estava a falar-se de leis terrenas, respeitantes ao bom andamento das coisas civis. Deus tinha dito a Adão que não comesse da árvore do bem e do mal, e essa era a lei divina; mas depois tinha-o autorizado, que digo?, encorajado a dar nomes às coisas, e sobre isso tinha deixado livre o seu súdito terrestre. De fato, se bem que alguns, nos nossos dias, digam que nomina sunt consequentia rerum, o livro do Gênesis é, aliás, bastante claro sobre este ponto: Deus conduziu ao homem todos os animais para ver como lhes chamaria, e, fosse qual fosse a maneira como o homem tivesse chamado cada ser vivo, esse devia ser o seu nome. E, se bem que o primeiro homem tenha sido certamente tão avisado que chamou, na sua língua edênica, cada coisa e cada animal segundo a sua natureza, isso não impede que ele não exercesse uma espécie de direito soberano ao imaginar o nome que, segundo ele, melhor correspondia àquela natureza. Porque, de fato, sabe-se hoje em dia como são diversos os nomes, que os homens impõem para designar os conceitos, e iguais para todos são só os conceitos, sinais das coisas. De modo que certamente a palavra nomen vem de nomos, ou melhor, lei, dado que precisamente os nomina são dados pelos homens ad placitum, isto é, por livre e coletiva convenção.

 

Os presentes não ousaram contestar esta douta demonstração. Por isso, dai concluiu Guilherme, vê-se bem como a legislação sobre as coisas desta terra, e portanto sobre as coisas das cidades e dos reinos, nada tem a ver com a guarda e a administração da palavra divina, privilégio inalienável da hierarquia eclesiástica. Infelizes, pois, disse Guilherme, os infiéis, que não têm semelhante autoridade que interprete para eles a palavra Divina (e todos tiveram dó dos infiéis). Maspodemos por isto dizer, talvez, que os infiéis não têm tendência para fazer leis e para administrar as suas coisas mediante governos sejam eles, reis, imperadores ou sultões e califas? E podia negar-se que muitos imperadores romanos tinham exercido o poder temporal com sabedoria, que se pensasse em Trajano? E quem deu, a pagãos e a infiéis, essa capacidade natural de legislar e de viver em comunidades políticas? Talvez as suas divindades mentirosas que necessariamente não existem (ou não existem necessariamente, seja como for que se queira entender a negação desta modalidade)? Decerto que não. Não podia senão ter-lhe conferido o Deus dos exércitos, o Deus de Israel, pai de Nosso Senhor Jesus Cristo... Admirável prova da bondade divina, que conferiu a capacidade de julgar sobre as coisas políticas mesmo a quem desconhece a autoridade do pontífice romano e não professa os mesmos sagrados, doces e terríveis mistérios do povo cristão! Mas que mais bela demonstração, se não esta, do fato que o domínio temporal e a jurisdição secular nada têm a ver com a Igreja e com a lei de Jesus Cristo, e foram ordenados por Deus fora de qualquer confirmação eclesiástica e até antes que surgisse a nossa santa religião?

 

Tossiu de novo, mas não sozinho desta vez. Muitos dos circunstantes agitavam-se nos seus cadeirões e pigarreavam. Vi o cardeal passar a língua pelos lábios e fazer um gesto ansioso mas cortês, para convidar Guilherme a ir ao âmago da questão. E Guilherme afrontou aquelas que então pareciam a todos, mesmo a quem não as partilhava, as conclusões talvez desagradáveis daquele irrefutável discurso. Disse então Guilherme que as suas deduções lhe pareciam sustentadas pelo próprio exemplo de Cristo, o qual não veio a este mundo para mandar mas para se submeter segundo as condições que no mundo encontrava, pelo menos naquilo que se referia às leis de César. Ele não quis que os apóstolos tivessem mando e domínio, e por isso parecia coisa sábia que os sucessores dos apóstolos devessem ser aliviados de qualquer poder mundano e coativo.

 

Se o pontífice, os bispos e os padres não estivessem submetidos ao poder mundano e coativo do príncipe, a autoridade do príncipe ver-se-ia invalidada, e invalidar-se-ia com isto uma ordem que, como se tinha demonstrado antes, tinha sido disposta por Deus. Devem decerto considerar-se alguns casos muito delicados, disse Guilherme, como o dos hereges, sobre cuja heresia só a Igreja, guardiã da verdade, pode pronunciar-se, e todavia só o braço secular pode agir. Quando a Igreja detecta hereges deverá decerto assinalá-los ao príncipe, que é bom que seja informado das condições dos seus cidadãos. Mas que deverá fazer o príncipe com um herege? Condená-lo em nome da verdade divina de que não é o guarda? O príncipe pode e deve condenar o herege se a sua ação prejudica a convivência de todos, isto é, se o herege afirma a sua heresia matando ou impedindo aqueles que não a partilham. Mas nesse ponto se detém o poder do príncipe, porque ninguém sobre esta terra pode ser obrigado com suplícios a seguir os preceitos do evangelho, senão onde iria parar aquela livre vontade por cujo exercício cada um será depois julgado no outro mundo? A Igreja pode e deve avisar o herege que ele está saindo da comunidade dos fiéis, mas não pode julgá-lo na terra e obrigá-lo contra a sua vontade. Se Cristo quisesse que os seus sacerdotes obtivessem poder coativo, teria estabelecido preceitos precisos, como fez Moisés com a lei antiga. Não o fez. Portanto não o quis. Ou pretende-se sugerir a idéia que ele o queria mas que lhe faltara o tempo ou a capacidade de o dizer, em três anos de pregação? Mas era justo que não o quisesse, porque, se o tivesse querido, então o papa poderia impor a sua vontade ao rei, e o cristianismo já não seria lei de liberdade, mas intolerável escravidão.

 

Tudo isto, acrescentou Guilherme de rosto risonho, não é uma limitação aos poderes do sumo pontífice mas sim uma exaltação da sua missão: porque o servo dos servos de Deus está sobre esta terra para servir e não para ser servido. E, enfim, seria pelo menos bizarro se o papa tivesse jurisdição sobre as coisas do império e não sobre os outros reinos da terra. Como é sabido, aquilo que o papa diz sobre as coisas divinas vale para os súditos do rei de França como para os do rei de Inglaterra, mas deve valer também para os súditos do Grande Cão ou do sultão dos infiéis, que infiéis são precisamente porque não são fiéis a esta bela verdade. E portanto, se o papa se atribuísse a jurisdição temporal - enquanto papa - apenas sobre as coisas do império, poderia deixar suspeitar que, identificada a jurisdição temporal com a espiritual, por isso mesmo ele não só não teria jurisdição espiritual sobre os sarracenos ou sobre os tártaros mas nem sequer sobre os franceses ou os ingleses - o que seria uma delituosa blasfêmia. Eis a razão, concluía o meu mestre, por que lhe parecia justo sugerir que a Igreja de Avinhão fazia injúria à humanidade inteira afirmando que lhe competia aprovar ou suspender aquele que tinha sido eleito imperador dos romanos. O papa não tem sobre o império maiores direitos que sobre os outros reinos, e, como não estão sujeitos à aprovação do papa nem o rei de França nem o sultão, não se vê uma boa razão para que deva estar-lhe sujeito o imperador dos alemães e dos italianos. Tal sujeição não é de direito divino, porque as escrituras não falam dela. Não é sancionada pelo direito dos gentios, em virtude das razões acima aduzidas. Quanto às relações com a disputa da pobreza, disse por fim Guilherme, as suas modestas opiniões, elaboradas em forma de afáveis sugestões por ele e por alguns como Marsílio de Pádua e João de Gianduno, levavam às seguintes conclusões: se os franciscanos Queriam permanecer pobres, o imperador não podia nem devia opor-se a um desejo tão virtuoso. Decerto que, se a hipótese da pobreza de Cristo tivesse sido provada, isso não só teria ajudado os menoritas mas teria reforçado a idéia de que Jesus não teria querido para si nenhuma jurisdição terrena. Mas tinha ouvido naquela manhã pessoas bastante sábias afirmar que não se podia provar que Jesus tinha sido pobre. E, daí, parecia-lhe mais conveniente inverter a demonstração. Visto que ninguém tinha afirmado, e teria podido afirmar, que Jesus tinha requerido para si e para os seus alguma jurisdição terrena, este afastamento de Jesus das coisas temporais parecia-lhe um indício suficiente para convidar a pensar sem pecar que Jesus tinha igualmente preferido a pobreza.

 

Guilherme tinha falado num tom modesto, tinha exprimido as suas certezas de modo tão dubitativo que nenhum dos presentes tinha podido levantar-se para o refutar. Isto não quer dizer que todos estivessem convencidos daquilo que tinha dito. Não só os avinhonenses se agitavam agora de rostos carregados e sussurrando comentários entre si, mas o próprio Abade parecia muito desfavoravelmente impressionado por aquelas palavras, como se pensasse que não era aquele o modo como tinha imaginado as relações entre a sua ordem e o império. E, quanto aos menoritas, Miguel de Cesena estava perplexo, Jerônimo aterrado, Ubertino pensativo.

 

O silêncio foi quebrado pelo cardeal do Poggetto, sempre sorridente e descontraído, que perguntou com gentileza a Guilherme se iria a Avinhão para dizer aquelas mesmas coisas ao senhor papa. Guilherme perguntou o parecer do cardeal, este disse que o senhor papa tinha ouvido pronunciar muitas opiniões discutíveis ao longo da sua vida, e era um homem amantíssimo para com todos os seus filhos, mas que, seguramente, aquelas proposições o teriam atormentado muito.

 

Interveio Bernardo Gui, que até então não tinha aberto a boca:

 

- Eu ficaria muito contente se frade Guilherme, tão hábil e eloqüente a expor as suas idéias, viesse a submetê-las ao juízo do pontífice...

 

- Acabais de me convencer, senhor Bernardo - disse Guilherme. - Não irei. - Depois, dirigindo-se ao cardeal, em tom de desculpa: - Sabeis, esta fluxão que me está tomando o peito desaconselha-me a empreender uma viagem tão longa nesta estação...

 

- Mas então porque falastes tão longamente? - perguntou o cardeal.

 

- Para testemunhar a verdade - disse Guilherme humildemente. – A verdade tornar-nos-á livres.

 

- Isso não! - explodiu nessa altura João Dalbena. - Aqui não se trata da verdade que nos fará livres, mas da excessiva liberdade que quer tornar-se verdadeira!

 

- Também isso é possível - admitiu Guilherme com doçura.

 

Senti por uma súbita intuição que estava para rebentar uma tempestade de corações e de línguas bem mais furiosas que a primeira. Mas nada aconteceu. Enquanto Dalbena falava ainda, o capitão dos archeiros tinha entrado e tinha ido sussurrar qualquer coisa ao ouvido de Bernardo, o qual se levantou de repente e com a mão pediu audiência.

 

- Irmãos - disse -, pode ser que esta proveitosa discussão possa ser retomada, mas agora um acontecimento de enorme gravidade obriga-nos a suspender os nossos trabalhos, com autorização do Abade. Talvez tenha superado, sem querer, as expectativas do próprio Abade, que esperava descobrir o culpado dos vários delitos dos últimos dias. Esse homem está agora nas minhas mãos. Mas, infelizmente, foi apanhado demasiado tarde, mais uma vez... Alguma coisa sucedeu além... - e indicava vagamente o exterior.

 

Atravessou rapidamente a sala e saiu, seguido por muitos, Guilherme entre os primeiros e eu com ele.

 

O meu mestre olhou para mim e disse-me:

 

- Temo que tenha acontecido alguma coisa a Severino.

 

QUINTO DIA

SEXTA

 

Onde se encontra Severino assassinado e já não se encontra o livro que ele tinha encontrado.

 

Atravessamos a esplanada a passo rápido e cheios de angústia. O capitão dos archeiros conduzia-nos em direção ao hospital, e logo que ali chegamos entrevimos na densa penumbra umas sombras que se agitavam: eram monges e servos que acorriam, eram archeiros que estavam diante da porta e impediam o acesso.

 

- Aqueles homens armados foram enviados por mim para procurarem um homem que podia fazer luz sobre tantos mistérios – disse Bernardo.

 

- O irmão ervanário? - perguntou o Abade estupefato.

 

- Não, agora vereis - disse Bernardo, abrindo caminho no interior.

 

Penetramos no laboratório de Severino, e aqui um penoso espetáculo se ofereceu aos nossos olhos. O desventurado ervanário jazia morto num lago de sangue, com a cabeça partida. Em torno, as estantes pareciam ter sido devastadas pela tempestade: ampolas, garrafas, livros, documentos estavam espalhados por todo o lado em grande desordem e ruína. Ao lado do corpo estava uma esfera armilar, pelo menos duas vezes maior que a cabeça de um homem, de metal finamente trabalhado, encimada por uma cruz de ouro e fixada sobre um pequeno tripé decorado. Já outras vezes a tinha notado sobre a mesa à esquerda da entrada.

 

No outro extremo da sala, dois archeiros seguravam firmemente o despenseiro, que se debatia protestando a sua inocência e que aumentou os seus clamores quando viu entrar o Abade.

 

- Senhor - gritava -, as aparências são contra mim! Entrei quando Severino já estava morto e encontraram-me quando estava observando sem palavras este massacre!

 

O chefe dos archeiros aproximou-se de Bernardo, e com sua licença fez-lhe um relatório, diante de todos. Os archeiros tinham recebido ordem para encontrarem o despenseiro e para o prenderem, e há mais de duas horas que o procuravam pela abadia. Devia tratar-se, pensei, da disposição dada por Bernardo antes de entrar no capítulo, e os soldados, estranhos ao lugar, tinham provavelmente conduzido as buscas nos lugares errados, sem se aperceberem que o despenseiro, ignorando ainda o seu destino, estava com outros no nártex; e por outro lado o nevoeiro tinha tornado mais árdua a sua caça. Em todo o caso, pelas palavras do capitão, deduzia-se que, quando Remígio, depois de eu o ter deixado, tinha ido em direção às cozinhas, alguém o tinha visto e tinha avisado os archeiros, os quais tinham chegado ao Edífico quando Remígio se tinha afastado de novo, e há muito pouco, porque estava na cozinha Jorge, que afirmava ter acabado de lhe falar. Os archeiros tinham então explorado o planalto na direção do horto, e aqui, emergindo do nevoeiro como um fantasma, tinham encontrado o velho Alinardo, que quase se tinha perdido. Precisamente Alinardo tinha dito que tinha visto o despenseiro, pouco antes, entrar no hospital. Os archeiros tinham ido até lá, encontrando a porta aberta. Lá dentro, tinham encontrado Severino inanimado e o despenseiro, que, freneticamente, estava revistando no meio das estantes, deitando tudo ao chão, como se estivesse procurando qualquer coisa. Era fácil compreender o que tinha sucedido, concluía o capitão. Remígio tinha entrado, tinha-se atirado ao ervanário, tinha-o morto, e estava depois procurando aquilo por que tinha matado.

 

Um archeiro levantou do chão a esfera armilar e estendeu-a a Bernardo. A elegante arquitetura de círculos de cobre e prata, sustentada por uma armação mais robusta de anéis de bronze, empunhada pela haste do tripé, tinha sido vibrada com força sobre o crânio da vítima, de forma que, no impacto, muitos dos círculos mais finos tinham-se quebrado ou esmagado de um lado. E que aquele era o lado que se tinha abatido sobre a cabeça de Severino revelavam-no as marcas de sangue e até os grumos de cabelo e as imundas salpicaduras de matéria cerebral.

 

Guilherme inclinou-se sobre Severino para verificar a sua morte. Os olhos do infeliz, velados pelo sangue que tinha corrido a jorros da cabeça, estavam arregalados, e perguntei-me se era acaso possível ler na pupila imobilizada, como se consta que aconteceu em outros casos, a imagem do assassino, último vestígio das percepções da vítima. Vi que Guilherme procurava as mãos do morto, para verificar se tinha manchas negras nos dedos, embora naquele caso a causa da morte fosse mais que evidente: mas Severino usava as mesmas luvas de pele com que algumas vezes o tinha visto manipular ervas perigosas, lagartos, insetos desconhecidos.

 

Entretanto, Bernardo Gui dirigia-se ao despenseiro:

 

- Remígio de Varagine, é este o teu nome, não é verdade?

Tinha-te mandado procurar pelos meus homens com base noutras acusações e para confirmar outras suspeitas. Agora vejo que tinha agido retamente, se bem que, e por isso me censuro, demasiado tarde. Senhor - disse ao Abade -, considero-me quase responsável por este último crime, porque desde esta manhã sabia que era necessário entregar este homem à justiça, depois de ter escutado as revelações do outro miserável preso esta noite. Mas, como também vós vistes, durante a manhã estive ocupado com outros deveres, e os meus homens fizeram o melhor que puderam...

 

Enquanto falava, em voz alta para que todos os circunstantes ouvissem (e a sala tinha-se entretanto apinhado, com gente que se enfiava em todos os cantos, olhando para as coisas espalhadas e destruídas, apontando para o cadáver e comentando a meia-voz o grande crime), descobri no meio da pequena multidão Malaquias, que observava sombriamente a cena. Também o descobriu o despenseiro, que precisamente naquele momento ia ser arrastado para fora. Arrancou-se das mãos dos archeiros que o prendiam e atirou-se ao irmão, agarrando-o pelo hábito e falando-lhe breve e desesperadamente cara a cara, enquanto os archeiros não voltaram a prendê-lo. Mas, quando já o levavam com brutalidade, voltou-se ainda para Malaquias gritando-lhe:

 

- Jura, e eu juro!

 

Malaquias não respondeu logo, como se procurasse as palavras adequadas. Depois, quando o despenseiro já estava ultrapassando à força o umbral, disse-lhe:

 

- Não farei nada contra ti.

 

Guilherme e eu olhamo-nos, perguntando-nos o que significava esta cena. Bernardo também a tinha observado, mas não pareceu perturbado, antes sorriu a Malaquias como para aprovar as suas palavras e selar com ele uma sinistra cumplicidade. Depois anunciou que logo depois da refeição se reuniria no capítulo um primeiro tribunal para instruir publicamente aquele inquérito. E saiu ordenando que conduzissem o despenseiro às forjas, sem o deixar falar com Salvador.

 

Naquele momento sentimos que Bêncio nos chamava atrás de nós:

 

- Eu entrei logo depois de vós - disse num sussurro -, quando a sala estava ainda meio vazia, e Malaquias não estava.

 

- Terá entrado depois - disse Guilherme.

 

- Não - assegurou Bêncio -, eu estava ao pé da porta, vi quem entrava. Digo-vos, Malaquias já estava dentro... antes.

 

- Antes de quê?

 

- Antes de entrar o despenseiro. Não posso jurá-lo, mas creio que saiu daquela cortina, quando já aqui estávamos muitos – e apontou para um amplo cortinado que protegia um leito onde habitualmente Severino punha a repousar quem tinha acabado de sofrer um tratamento.

 

- Queres insinuar que foi ele quem matou Severino e que se retirou ali atrás quando o despenseiro entrou? - perguntou Guilherme.

 

- Ou então que ali de trás tenha assistido a quanto aconteceu aqui. Senão, porque é que o despenseiro lhe teria implorado que não o prejudicasse prometendo em troca não o prejudicar a ele?

 

- É possível - disse Guilherme. - Em todo o caso estava aqui um livro, e deveria ainda estar, porque tanto o despenseiro como Malaquias saíram de mãos vazias.

 

Guilherme sabia pelo meu relatório que Bêncio sabia: e naquele momento tinha necessidade de ajuda. Aproximou-se do Abade, que observava tristemente o cadáver de Severino, e pediu-lhe que os mandasse sair a todos, porque queria examinar melhor o lugar. O Abade consentiu e saiu ele também não sem lançar a Guilherme um olhar de cepticismo, como se o censurasse por chegar sempre tarde. Malaquias procurou ficar aduzindo várias razões, de todo vagas: Guilherme fez-lhe observar que ali não era a biblioteca e que naquele lugar não podia alegar direitos. Foi cortês mas inflexível, e vingou-se de quando Malaquias não lhe tinha consentido examinar a mesa de Venancio.

 

Quando ficamos os três, Guilherme libertou uma das mesas dos cacos e dos papéis que a ocupavam e disse-me que lhe passasse, uns a seguir aos outros, os livros da coleção de Severino. Pequena coleção, comparada à imensa do labirinto, mas tratava-se mesmo assim de dezenas e dezenas de volumes, de vários tamanhos, que primeiro estavam em boa ordem nas estantes e agora jaziam por terra em desordem, entre vários outros objetos, e já baralhados pelas mãos febris do despenseiro, alguns até rasgados, como se ele não procurasse um livro mas algo que devia estar entre as páginas de um livro. Alguns tinham sido despedaçados com violência, separados da sua encadernação. Apanhá-los, examinar rapidamente a sua natureza e repô-los numa pilha sobre a mesa não foi empresa fácil, e feita à pressa, porque o Abade tinha-nos concedido pouco tempo, dado que, depois, deviam entrar os monges para recomporem o corpo martirizado de Severino e para o prepararem para a sepultura. E tratava-se ainda de andar à procura por todo o lado debaixo das mesas, atrás das estantes e dos armários, se alguma coisa tivesse escapado a uma primeira inspeção. Guilherme não quis que Bêncio me ajudasse e consentiu-lhe apenas que ficasse de guarda à porta. Malgrado as ordens do Abade, muitos insistiam em entrar, servos aterrados pela notícia, monges chorando o seu irmão, noviços que chegavam com lençóis brancos e bacias de água para lavar e envolver o cadáver...

 

Devia, pois, proceder-se depressa. Eu agarrava nos livros, estendia-os a Guilherme, que os examinava e os punha sobre a mesa. Depois demo-nos conta que o trabalho era longo e procedemos em conjunto, isto é, eu apanhava um livro, recompunha-o se estava descomposto, lia-lhe o título, pousava-o. E em muitos casos tratava-se de folhas dispersas.

 

- De plantis libri tres, maldição, não é este - dizia Guilherme, e atirava o livro para a mesa.

 

- Thesaurus herbarum - dizia eu.

 

E Guilherme:

 

- Deixa lá esse, procuramos um livro grego!

 

- Este? - perguntava eu, mostrando-lhe uma obra de páginas cobertas de caracteres abstrusos.

 

E Guilherme:

 

- Não, este é árabe, tolo! Tinha razão Bacon quando dizia que o primeiro dever do sábio é estudar as línguas!

 

- Mas árabe, nem sequer vós sabeis1 - rebatia eu, picado.

 

Ao que Guilherme respondia:

 

- Mas ao menos compreendo quando é árabe!

 

E eu corava, porque ouvia Bêncio a rir atrás de mim.

 

Os livros eram muitos, e muitos mais os apontamentos, os rolos com desenhos da esfera celeste, os catálogos de plantas estranhas, manuscritos provavelmente pelo defunto em folhas soltas. Trabalhamos muito tempo, exploramos o laboratório por todo o lado, Guilherme chegou até, com grande frieza, a desviar o cadáver, para ver se não havia qualquer coisa debaixo, e revistou-lhe o hábito. Nada.

 

- É indispensável - disse Guilherme. - Severino fechou-se aqui dentro com um livro. O despenseiro não o tinha...

 

- Não o terá acaso escondido no hábito? - perguntei.

 

- Não, o livro que vi na manhã passada debaixo da mesa de Venancio era grande, teríamos dado conta.

 

- Como estava encadernado? - perguntei.

 

- Não sei. Estava aberto e vi-o só por poucos segundos, o suficiente para me dar conta que era em grego, mas não me recordo de mais nada. Continuemos: o despenseiro não o levou, e Malaquias também não, creio.

 

- Evidentemente que não - confirmou Bêncio -, quando o despenseiro o agarrou pelo peito viu-se que não podia tê-lo debaixo do escapulário.

 

- Bem. Isto é, mal. Se o livro não está nesta sala, é evidente que mais alguém, além de Malaquias e do despenseiro, tinha entrado antes.

 

- Isto é, uma terceira pessoa que matou Severino?

 

- Gente de mais - disse Guilherme.

 

- Por outro lado – disse -, quem podia saber que o livro estava aqui?

 

- Jorge, por exemplo, se nos ouviu.

 

- Sim - disse -, mas Jorge não poderia ter morto um homem robusto como Severino, e com tanta violência.

 

- Certamente que não. Além disso, tu viste-o dirigir-se para o Edifício, e os archeiros encontraram-no na cozinha pouco antes de encontrarem o despenseiro. Portanto, não teria tido tempo de vir para aqui e depois de voltar para a cozinha. Calcula que, embora se mova com desenvoltura, tem todavia de avançar costeando as paredes, e não teria podido atravessar o horto e a correr...

 

- Deixai-me raciocinar com a minha cabeça - disse, eu que já tinha a ambição de emular o meu mestre. - Portanto, não pode ter sido Jorge. Alinardo andava nas proximidades, mas também ele se segura com dificuldade nas pernas, e não pode ter dominado Severino. O despenseiro esteve aqui, mas o tempo decorrido entre a sua saída das cozinhas e a chegada dos archeiros foi tão breve que me parece difícil que tenha podido conseguir que Severino lhe abrisse a porta, enfrentá-lo, matá-lo e depois arranjar todo este pandemônio. Malaquias podia ter precedido todos os outros: Jorge ouviu-nos no nártex, foi ao scriptorium informar Malaquias que um livro da biblioteca estava com Severino. Malaquias vem para aqui, convence Severino a abri-lhe a porta, mata-o, sabe Deus porquê. Mas, se procurava o livro, deveria tê-lo reconhecido sem revistar desta maneira porque é ele o bibliotecário! Então, quem resta?

 

- Bêncio - disse Guilherme.

 

Bêncio negou vigorosamente sacudindo a cabeça:

 

- Não, frade Guilherme, vós sabeis que ardia de curiosidade. Mas se tivesse entrado aqui e tivesse podido sair com o livro, agora não estaria a fazer-vos companhia, mas em qualquer outro lado a examinar o meu tesouro...

 

- Uma prova quase convincente - sorriu Guilherme. - Porém, também tu não sabes como é o livro. Poderias ter matado e agora estarias aqui a procurar identificá-lo.

 

Bêncio corou violentamente:

 

- Eu não sou um assassino! - protestou.

 

- Ninguém o é, antes de cometer o primeiro delito - disse filosoficamente Guilherme. - Em todo o caso o livro não está aqui, e esta é uma prova suficiente do fato de que tu não o deixaste aqui. E parece-me razoável que, se o tivesses apanhado antes, te terias escapulido para fora durante a confusão. - Depois voltou-se para considerar o cadáver. Pareceu que só então se dava conta da morte do seu amigo. - Pobre Severino - disse -, também tinha suspeitado de ti e dos teus venenos. E tu esperavas a insídia de um veneno, senão não terias calçado estas luvas. Temias um perigo da terra e afinal chegou-te da esfera celeste... - Voltou a pegar na esfera, observando-a com atenção. - Quem sabe porque usaram precisamente esta arma...

 

- Estava ao alcance da mão.

 

- Pode ser. Também havia outras coisas, vasos, instrumentos de jardineiro... É um belo exemplar de arte dos metais e de ciência astronômica. Estragou-se e... Santo Deus! - exclamou.

 

- O que é?

 

- E foi atingida a terça parte do Sol e a terça parte da Lua e a terça parte das estrelas... - recitou.

 

Eu conhecia bem de mais o texto do apóstolo João:

 

- A quarta trombeta! - exclamei.

 

- De fato. Primeiro o granizo, depois o sangue, depois a água, e agora as estrelas... Se é assim, tudo tem de ser revisto, o assassino não agiu ao acaso, seguiu um plano... Mas será acaso possível imaginar uma mente tão malvada que mata só quando pode fazê-lo seguindo os ditames do livro do Apocalipse?

 

- Que acontecerá com a quinta trombeta? - perguntei aterrado. Procurei recordar-me: - E viu um astro caído do céu sobre a terra e a ele foi dada a chave do poço do abismo... Morrerá alguém afogado no poço?

 

- A quinta trombeta promete-nos muitas outras coisas - disse Guilherme. - Do poço sairá o fumo de uma fornalha, depois sairão gafanhotos que atormentarão os homens com um aguilhão semelhante ao dos escorpiões. E a forma dos gafanhotos será semelhante à dos cavalos com coroas de ouro na cabeça e dentes de leão... O nosso homem teria à disposição vários meios para realizar as palavras do livro... Mas não corramos atrás de fantasias. Procuremos antes recordar o que nos disse Severino quando nos anunciou que tinha encontrado o livro...

 

- Vós disseste-lhes que vo-lo trouxesse, e ele disse que não podia...

 

- De fato, depois fomos interrompidos. Porque é que não podia? Um livro pode transportar-se. E porque é que pôs as luvas? Há qualquer coisa na encadernação do livro relacionada com o veneno que matou Berengário e Venancio? Uma insídia misteriosa, uma ponta infectada...

 

- Uma serpente! - disse.

 

- Porque não uma baleia? Não, estamos ainda a fantasiar. O veneno vimo-lo, deveria passar pela boca. Depois, não é que Severino tenha dito que não podia transportar o livro, disse que preferia mostrar-mo aqui. E pôs as luvas... De momento, sabemos que naquele livro se toca com luvas. E isto é válido também para ti Bêncio, se o encontrares como esperas. E, visto que és tão serviçal, podes ajudar-me. Volta para o scriptorium e mantém Malaquias debaixo de olho. Não o percas de vista.

 

- Assim se fará! - disse Bêncio, e saiu, contente pareceu-nos, com a missão.

 

Não pudemos reter mais tempo os outros monges, e a sala foi invadida de gente. Já tinha passado a hora do almoço e, provavelmente, Bernardo já estava reunindo no capítulo a sua corte.

 

- Aqui não há mais nada a fazer - disse Guilherme.

 

Uma idéia atravessou-me a mente:

 

- O assassino - disse não podia ter lançado o livro pela janela para depois ir buscá-lo atrás do hospital?

 

Guilherme olhou com cepticismo para as grandes janelas do laboratório, que pareciam hermeticamente fechadas.

 

- Tentaremos verificar - disse ele.

 

Saímos e inspecionamos o lado posterior da construção, que estava quase encostado ao muro da cerca, deixando apenas uma estreita passagem. Guilherme avançou com cautela, porque naquele espaço a neve dos últimos dias tinha-se conservado intacta. Os nossos passos imprimiam sobre a crosta gelada, mas frágil, sinais evidentes, e, portando se alguém tivesse passado antes de nós, a neve ter-no-lo-ia assinalado. Não vimos nada.

 

Abandonamos com o hospital a minha pobre hipótese, e, enquanto atravessávamos o horto, perguntei a Guilherme se confiava verdadeiramente em Bêncio.

 

- Não completamente - disse Guilherme -, mas em todo o caso não lhe dissemos nada que ele não soubesse já, e inspiramos-lhe medo do livro. Finalmente, fazendo-o vigiar Malaquias fazemos com que o vigie também a ele Malaquias, o qual está evidentemente procurando o livro por sua conta.

 

- E o despenseiro que queria?

 

- Em breve o saberemos. Decerto queria qualquer coisa, e queria-a imediatamente, para evitar um perigo que o aterrorizava. Essa qualquer coisa deve ser do conhecimento de Malaquias, senão não explicaríamos a invocação desesperada que Remígio lhe dirigiu...

 

- De qualquer modo, o livro desapareceu...

 

- Esta é a coisa mais inverossímil - disse Guilherme quando já estávamos a chegar ao capítulo. - Se lá estava, e Severino disse que estava, ou o levaram ou ainda lá está.

 

- E como lá não está, alguém o levou - conclui.

 

- Não quer dizer que o raciocínio não seja feito partindo de outra premissa menor. Como tudo confirma que ninguém pode tê-lo levado...

 

- Então devia ainda lá estar. Mas não está.

 

- Um momento. Nós dizemos que não estava porque não o encontramos. Mas talvez não o tenhamos encontrado porque não o vimos onde ele estava.

 

- Mas olhamos por toda a parte!

 

- Olhamos e não vimos. Ou, então, vimos mas não reconhecemos... Adso, como é que Severino nos descreveu aquele livro, que palavras usou?

 

- Disse que tinha encontrado um livro que não era dos seus, em grego...

 

- Não. Agora me recordo. Disse um estranho livro. Severino era uma pessoa culta, e para pessoa culta um livro em grego não é estranho, ainda que essa pessoa não saiba grego, porque, pelo menos, reconheceria o alfabeto. E uma pessoa culta não definiria como estranho nem sequer um livro árabe, ainda que não conheça o alfabeto... - Interrompeu-se. - E que fazia um livro árabe no laboratório de Severino?

 

- Mas porque é que havia de definir como estranho um livro árabe?

 

- Esse é o problema. Se o definiu como estranho é porque tinha um aspecto insólito, insólito pelo menos para ele, que era ervanário e não bibliotecário... E nas bibliotecas acontece que muitos manuscritos antigos são por vezes encadernados em conjunto, reunindo num volume textos diversos e curiosos, um em grego, outro em aramaico...

 

- ... e outro em árabe! - gritei, fulminado por aquela iluminação.

 

Guilherme arrastou-me brutalmente para fora do nártex, fazendo-me correr para o hospital:

 

- Besta de teutão, nabo, ignorante, olhaste só para as primeiras páginas e não para o resto!

 

-Mas, mestre - ofegava -, fostes vós que olhastes para as páginas que vos mostrei e dissestes que era árabe e não grego!

 

- É verdade, Adso, é verdade, sou eu a besta, corre depressa!

 

Voltamos ao laboratório e tivemos dificuldade em lá entrar, porque os noviços estavam já transportando para fora o cadáver. Outros curiosos andavam pela sala. Guilherme precipitou-se sobre a mesa, levantou os volumes procurando o fatídico, ia-os atirando para o chão sob os olhos espantados dos circunstantes, depois abriu-os e reabriu-os todos duas vezes. Infelizmente, o manuscrito árabe já lá não estava. Recordava-me vagamente da velha capa, que não era robusta, bastante gasta, com finas bandas metálicas.

 

- Quem é que entrou aqui depois de eu ter saído? - perguntou Guilherme a um monge.

 

Este encolheu os ombros, era claro que tinham entrado todos e ninguém.

 

Procuramos considerar as possibilidades. Malaquias? Era verossímil, sabia o que queria, tinha-nos talvez vigiado, tinha-nos visto sair sem nada na mão, havia voltado com toda a segurança. Bêncio? Recordei que, quando se dera a altercação sobre o texto árabe, ele se tinha rido. Então, tinha julgado que se ria da minha ignorância, mas talvez se risse da ingenuidade de Guilherme, ele sabia bem de quantas maneiras se pode apresentar um velho manuscrito, talvez tivesse pensado naquilo que nós não tínhamos pensado logo, e que deveríamos ter pensado, isto é, que Severino não sabia árabe e que, portanto, era singular que conservasse entre os seus um livro que não podia ler. Ou, então, havia um terceiro personagem?

 

Guilherme estava profundamente humilhado. Procurava consolá-lo, dizia-lhe que ele estava procurando há três dias um texto em grego e que era natural que tivesse apartado no curso do seu exame todos os livros que não apareciam em grego. E ele respondia que é certamente humano cometer erros, porém existem seres humanos que cometem mais que os outros, e são chamados estultos, e ele estava entre esses, e perguntava-se se tinha valido a pena estudar em Paris e em Oxford para ser incapaz de pensar que os manuscritos também se encadernam em grupos, coisa que até os noviços sabem, mesmo os estúpidos como eu, e um par de estúpidos como nós dois teria um rico êxito nas feiras, e era isso que devíamos fazer e não procurar resolver os mistérios, especialmente quando tínhamos diante gente muito mais astuta que nós.

 

- Mas é inútil chorar - concluiu depois. - Se o levou Malaquias, já o voltou a pôr na biblioteca. E só o encontraríamos se soubéssemos entrar no finis Africae. Se o levou Bêncio, terá imaginado que, mais tarde ou mais cedo, eu teria a suspeita que tive e voltaria ao laboratório, senão não teria agido tão depressa. E portanto ter-se-á escondido, e o único ponto onde decerto não se escondeu é aquele em que nós o procuraríamos imediatamente, isto é, a sua cela. Por isso voltemos ao capítulo e vejamos se durante a instrução o despenseiro dirá alguma coisa de útil. Porque, no fim de contas, não tenho ainda muito claro o plano de Bernardo, ele que procurava o seu homem antes da morte de Severino, e com outros fins.

 

Voltamos ao capítulo. Teríamos feito bem em ir à cela de Bêncio, porque como depois soubemos, o nosso jovem amigo não tinha realmente em tão grande estima Guilherme e não tinha pensado que voltasse tão depressa ao laboratório; por isso, julgando não ser procurado daquele lado, tinha precisamente ido esconder o livro na sua cela.

 

Mas sobre isto falarei depois. Entretanto aconteceram fatos tão dramáticos e inquietantes que nos fizeram esquecer o livro misterioso. E, se todavia o não esquecemos, fomos tomados por outras tarefas urgentes, relacionadas com a missão de que Guilherme continuava, apesar de tudo, encarregado.

 

QUINTO DIA

NONA

 

Onde se administra a justiça e se tem a estranha impressão de que todosr estão errados.

 

Bernardo Gui colocou-se ao centro da grande mesa de nogueira na sala do capítulo. Junto dela, um dominicano desempenhava as funções de tabelião, e dois prelados da delegação pontifícia estavam a seu lado como juízes. O despenseiro estava de pé diante da mesa, entre dois archeiros.

 

O Abade dirigiu-se a Guilherme, sussurrando-lhe:

 

- Não sei se o processo é legítimo. O concílio de Latrão de mil duzentos e quinze sancionou no seu canone trinta e sete que não se pode citar ninguém a comparecer diante de juízes que exerçam a mais de dois dias de marcha do seu domicílio. Aqui, a situação é talvez diversa, é o juiz que vem de longe, mas...

 

- O inquisidor está isento de qualquer jurisdição regular - disse Guilherme - e não tem de sentir as normas do direito comum. Goza de privilégio especial e não é sequer obrigado a escutar os advogados.

 

Olhei para o despenseiro. Remígio estava reduzido a um estado miserável. Olhava à sua volta como um animal amedrontado, como se reconhecesse os movimentos e os gestos de uma temida liturgia. Agora sei que temia por duas razões, igualmente medonhas: uma porque tinha sido apanhado, como tudo parecia indicar, em flagrante delito, outra porque, desde o dia anterior, quando Bernardo tinha iniciado o seu inquérito, recolhendo murmúrios e insinuações, ele temia que viessem à luz os seus erros passados; e havia começado a agitar-se ainda mais quando tinha visto prender Salvador.

 

Se o desventurado Remígio era presa dos seus próprios terrores, Bernardo Gui conhecia por seu lado os modos de transformar em pânico o medo das suas vítimas. Ele não falava. Enquanto já todos esperavam que desse início ao interrogatório, mantinha as mãos sobre os papéis que tinha diante, fingindo ordená-los, mas distraidamente. O seu olhar estava na verdade postado sobre o acusado, e era um olhar misto de hipócrita indulgência (como a dizer: «Não temas, estás nas mãos de uma assembléia fraterna, que só pode querer o teu bem.»), de gélida ironia (como a dizer: «Não sabeis ainda qual é o teu bem, e eu daqui a pouco to direi.»), de impiedosa severidade (como a dizer: «Mas, em todo o caso, o teu único juiz aqui sou eu, e tu és coisa minha.») Tudo coisas que o despenseiro já sabia, mas o silêncio e a demora do juiz serviam para lho fazer recordar, quase saborear melhor, a fim de que - em vez de se esquecer - ele cada vez mais daí tirasse motivo de humilhação, a sua inquietação se transformasse em desespero e do juiz se tornasse coisa exclusiva, cera mole entre as suas mãos.

 

Finalmente, Bernardo rompeu o silêncio. Pronunciou algumas fórmulas rituais, e disse aos juizes que se procederia ao interrogatório do imputado por dois delitos igualmente odiosos, dos quais um era a todos evidente, mas não menos desprezível que o outro, porque, com efeito, o imputado tinha sido surpreendido a cometer o homicídio quando era procurado por delito de heresia.

 

Tinha-o dito. O despenseiro escondeu o rosto entre as mãos, que movia com dificuldade porque estavam apertadas em correntes. Bernardo deu início ao interrogatório.

 

- Quem és tu? - perguntou.

 

- Remígio de Varagine. Nasci há cinqüenta e dois anos e entrei ainda criança no convento dos menoritas de Varagine.

 

- E como é que acontece que te encontres hoje na ordem de São Bento?

 

- Há anos, quando o pontífice emitiu a bula Sancta Romana, como temia ser contagiado pela heresia dos fraticelli... embora nunca tenha aderido às suas proposições... pensei que era mais útil à minha alma pecadora subtrair-me a um ambiente carregado de seduções e consegui ser admitido entre os monges desta abadia, onde há mais de oito anos sirvo como despenseiro.

 

- Subtraíste-te às seduções da heresia - ironizou Bernardo – ou melhor, subtraíste-te ao inquérito de quem estava designado para descobrir a heresia e arrancar-lhe a planta má, e os bons monges clunicenses julgaram cumprir um ato de caridade acolhendo-te a ti e a outros como tu. Mas não basta mudar de saio para apagar da alma a torpeza da depravação herética, e por isso nós estamos agora aqui para investigar o que se move pelos recessos da tua alma impenitente e o que fizeste antes de chegar a este santo lugar.

 

- A minha alma está inocente e não sei que coisa entendeis quando falais de depravação herética - disse cautelosamente o despenseiro.

 

- Vedes? - exclamou Bernardo, dirigindo-se aos outros juízes. - São todos assim! Quando um deles é preso, apresenta-se a juízo como se a sua consciência estivesse tranqüila e sem remorsos. E não sabem que este é o sinal mais evidente da sua culpa, porque o justo, no processo, apresenta-se inquieto! Perguntai-lhe se conhece a causa pela qual eu tinha predisposto a sua prisão. Conhece-la, Remígio?

 

- Senhor - respondeu o despenseiro -, ficaria contente em ouvi-la da vossa boca.

 

Fiquei surpreendido, porque me pareceu que o despenseiro respondia às perguntas de rito com palavras igualmente rituais, como se conhecesse bem as regras da instrução e as suas armadilhas e há muito tempo tivesse sido instruído para enfrentar um evento semelhante.

 

- Aí está - exclamava entretanto Bernardo -, a típica resposta do herege impenitente! Percorrem veredas de raposas e é muito difícil apanhá-los em falta, porque a sua comunidade admite o seu direito a mentir para evitarem a devida punição. Eles recorrem a respostas tortuosas tentando fazer cair em engano o inquisidor, que já tem de suportar o contato com gente tão desprezível. Portanto, frei Remígio, tu nunca tiveste nada a ver com os chamados fraticelli, ou frades da pobre vida, ou beguinos?

 

- Eu vivi as vicissitudes dos frades menores, quando longamente se discutiu sobre a pobreza, mas nunca pertenci à seita dos beguinos.

 

- Vedes? - disse Bernardo. - Nega que foi beguino, porque os beguinos, embora participando da mesma heresia que os fraticelli, consideram estes últimos um ramo seco da ordem franciscana e julgam-se mais puros e perfeitos que eles. Mas muitos dos comportamentos de uns são comuns aos outros. Podes negar, Remígio, ter sido visto na igreja encolhido com o rosto voltado para a parede, ou prostrado com a cabeça coberta pelo capucho, em vez de ajoelhado de mãos postas como os outros homens?

 

- Também na ordem de São Bento nos prostramos por terra, nos momentos devidos...

 

- Eu não te pergunto o que fizeste nos momentos devidos, mas nos não devidos! Portanto, não negas ter adotado uma ou outra posição, típica dos beguinos! Mas tu não és beguino, disseste... E então diz-me: em que crês?

 

- Senhor, creio em tudo aquilo em que crê um bom cristão...

 

- Que santa resposta! E em que crê um bom cristão?

 

- Naquilo que ensina a Santa Igreja.

 

- E qual Santa Igreja? Aquela que é considerada como tal pelos crentes que se definem perfeitos, os pseudo-apóstolos, os fraticelli heréticos, ou a Igreja que eles comparam à meretriz de Babilônia e em que todos nós, pelo contrário, firmemente acreditamos?

 

- Senhor - disse, perdido, o despenseiro -, dizei-me vós qual acreditais que é a verdadeira Igreja...

 

- Eu creio que é a Igreja romana, una, santa e apostólica, dirigida pelo papa e pelos seus bispos.

 

- Assim eu o creio - disse o despenseiro.

 

- Admirável astúcia! - gritou o inquisidor. - Admirável argúcia de dicto! Ouviste-lo: ele quer dizer que ele crê que eu creio nesta Igreja e subtrai-se ao dever de dizer em que é que crê ele! Mas conhecemos bem estas artes de fuinha! Vamos à questão. Crês tu que os sacramentos foram instituídos por Nosso Senhor, que para fazer uma reta penitência é necessário confessar-se aos servos de Deus, que a Igreja romana tem o poder de desligar e ligar sobre esta terra aquilo que será ligado e desligado no céu?

 

- Não deveria acaso crer nisso?

 

- Não te pergunto em que deverias crer, mas em que crês!

 

- Eu creio em tudo o que vós e os outros bons doutores me ordenais que creia - disse o despenseiro, assustado.

 

- Ah! Mas os bons doutores a que fazes alusão não são acaso aqueles que comandam a tua seita? É isto que querias dizer quando falavas dos bons doutores? É a estes perversos mentirosos que se consideram os únicos sucessores dos apóstolos que te referes para reconhecer os teus artigos de fé? Tu insinuas que, se eu creio naquilo em que eles crêem, então acreditarás em mim, senão acreditarás só neles?

 

- Eu não disse isso, senhor - balbuciou o despenseiro -, sois vós que mo fazeis dizer. Eu creio em vós, se vós me ensinais aquilo que é bem.

 

- Oh, arrogância! - gritou Bernardo, batendo com o punho na mesa. - Repetes de cor com torva determinação o formulário que se ensina na tua seita. Tu dizes que acreditarás em mim só se pregar aquilo que a tua seita considera o que é o bem. Assim respondes tu agora, talvez sem te aperceberes, porque reafloram aos teus lábios as frases que um dia reensinaram para enganar os inquisidores. E é assim que te estás acusando com as tuas próprias palavras, e eu só cairia na tua armadilha se não tivesse uma longa experiência de inquisição... Mas vamos à verdadeira questão, homem perverso. Alguma vez ouvistes falar de Geraldo Segalelli de Parma?

 

- Ouvi falar dele - disse o despenseiro, empalidecendo, se acaso se pudesse ainda falar de palidez para aquele rosto desfeito.

 

- Alguma vez ouviste falar de frei Dolcino de Novara?

 

- Ouvi falar dele.

 

- Alguma vez o viste pessoalmente, conversaste com ele?

 

O despenseiro ficou uns instantes em silêncio, como para avaliar até que ponto lhe convinha dizer uma parte da verdade. Depois decidiu-se, e com um fio de voz:

 

- Vi-o e falei com ele.

 

-Mais alto! - gritou Bernardo -, que finalmente se possa ouvir uma palavra verdadeira sair dos teus lábios! Quando é que falaste com ele?

 

- Senhor - disse o despenseiro -, eu era frade num convento de província de Novara quando as gentes de Dolcino se juntaram naquelas paragens, e passaram também perto do meu convento, e a princípio não se sabia quem eram...

 

- Tu mentes! Como podia um franciscano de Varagine estar num convento da província de Novara? Tu não estavas no convento, tu já fazias parte de um bando de fraticelli que percorria aquelas terras vivendo de esmolas e juntaste-te aos dolcinianos!

 

- Como podeis afirmar isso, senhor? - disse, tremendo, o despenseiro.

 

- Dir-te-ei como posso, melhor, devo afirma-lo - disse Bernardo, e ordenou que fizessem entrar Salvador.

 

A vista do desgraçado, que certamente tinha passado a noite num interrogatório não público e mais severo, encheu-me de piedade. O rosto de Salvador, já o disse, era habitual ente horrível. Mas naquela manhã parecia ainda mais semelhante ao de um animal. Não apresentava sinais de violência, mas o modo como o corpo se movia, acorrentado, com os membros deslocados, quase incapaz de se mover, arrastado pelos archeiros como um macaco atado à corda, patenteavam muito bem o modo como devia ter-se desenrolado o seu atroz responso.

 

- Bernardo torturou-o... - sussurrei a Guilherme.

 

- Que idéia - respondeu - Um inquisidor nunca tortura. O cuidado do corpo do imputado é confiado sempre ao braço secular.

 

- Mas é a mesma coisa! - disse eu.

 

- De modo nenhum. Não o é para o inquisidor, querem as mãos limpas, e não o é para o inquirido, que, quando vem o inquisidor, acha nele um inesperado apoio, um lenitivo para as suas penas, e abre-lhe o coração.

 

Olhei para o meu mestre:

 

- Vós estais brincando - disse assombrado.

 

- Parecem-te coisas sobre as quais se brinque? – respondeu Guilherme.

 

Bernardo estava agora interrogando Salvador, e a minha pena não consegue transcrever as palavras entrecortadas e, se acaso fosse possível, ainda mais babélicas com que aquele homem já diminuído, agora reduzido à categoria de um babuíno, respondia, compreendido com dificuldade por todos, ajudado por Bernardo, que lhe punha os quesitos de modo que ele não pudesse responder senão que sim ou não, incapaz de qualquer mentira. E o que disse Salvador pode bem o meu leitor imaginar. Contou, ou admitiu ter contado durante a noite, uma parte daquela história que eu já tinha reconstruído: as suas vagabundagens como fraticello, pastorello ou pseudo-apóstolo; e como nos tempos de frei Dolcino, ele tinha encontrado Remígio entre os dolcinianos e com ele se tinha salvado após a batalha de monte Rebello, refugiando-se depois de várias vicissitudes no convento de Casale. Além disso, acrescentou que o heresiarca Dolcino, próximo da derrota e da captura, tinha confiado a Remígio algumas cartas, para levar não sabia ele onde ou a quem. E Remígio tinha sempre trazido consigo aquelas cartas, sem ousar expedi-las, e à sua chegada à abadia, temeroso de as conservar ainda consigo mas não querendo destruí-las, tinha-as entregado ao bibliotecário, sim, a Malaquias precisamente, para que as escondesse em qualquer parte nos recessos do Edifício.

 

Enquanto Salvador falava, o despenseiro olhava-o com ódio, e a certa altura não pôde conter-se que não lhe gritasse:

 

-Serpente, macaco lascivo, fui teu pai, amigo, escudo, assim me pagas.

 

Salvador olhou para o seu protetor, agora necessitado de proteção, e respondeu a custo:

 

- Senhor Remígio, pudesse eu e seria teu. E eras-me diletíssimo. Mas tu conheces a família do alcaide. Qui non habet caballum vadat cum pede...

 

- Louco! -gritou-lhe ainda Remígio. - Esperas salvar-te? Não sabes que morrerás como um herege tu também? Diz que falaste sob tortura, diz que inventaste tudo!

 

- Que sei eu, senhor, que nome têm todas estas risias... Paterinos, gazesos, leonistas, arnaldistas, esperonistos, circuncisos... Eu não sou homo literatus, peccavi sine malitia, e o senhor Bernardo magnificentíssimo el sabe, et ispero na indulgentia sua indulgência suya in nomine patre et filio et spiritis sanctis...

 

- Seremos indulgentes quanto nos for concedido pelo nosso ofício - disse o inquisidor - e apreciaremos com paternal benevolência a boa vontade com que nos abristes o teu espírito. Vai, vai, volta para a tua cela a meditar e espera na misericórdia do Senhor. Agora temos de debater uma questão de alcance bem diverso. Portanto, Remígio, tu trazias contigo cartas de Dolcino e deste-as ao teu irmão que cuida da biblioteca.

 

- Não é verdade, não é verdade! - gritou o despenseiro, como se aquela defesa tivesse ainda alguma eficácia. E justamente Bernardo interrompeu-o:

 

- Mas não é de ti que nos serve uma confirmação, mas sim de Malaquias de Hildesheim.

 

Mandou chamar o bibliotecário, que não estava entre os presentes. Eu sabia que estava no scriptorium, ou em torno do hospital, à procura de Bêncio e do livro. Foram procurá-lo, e quando apareceu, perturbado e procurando não olhar ninguém de frente, Guilherme murmurou desapontado:

 

- E agora Bêncio poderá fazer o que quiser.

 

Mas enganava-se, porque vi o vulto de Bêncio despontar acima dos ombros de outros monges, que se apinhavam às portas da sala para seguirem o interrogatório. Apontei-o a Guilherme. Pensamos então que a curiosidade por aquele evento era ainda mais forte que a sua curiosidade pelo livro. Soubemos depois que, naquela altura, já ele tinha concluído um seu ignóbil mercado.

 

Malaquias apareceu portanto diante dos juízes, sem nunca cruzar o seu olhar com o do despenseiro.

 

- Malaquias - disse Bernardo -, esta manhã, depois da confissão feita esta noite por Salvador, perguntei-vos se tínheis recebido do imputado aqui presente umas cartas...

 

- Malaquias! - bradou o despenseiro -, há pouco juraste-me que não farás nada contra mim!

 

Malaquias voltou-se apenas para o imputado, colocado atrás dele, e disse em voz tão baixa que quase não o ouvia:

 

- Não cometi perjuro. Se podia fazer alguma coisa contra ti já o fizera. As cartas tinham sido entregues ao senhor Bernardo esta manhã, antes de tu matares Severino...

 

- Mas tu sabes, tu deves saber que eu não matei Severino! Tu sabe-lo porque já lá estavas!

 

- Eu? - perguntou Malaquias. - Eu entrei ali depois de te terem descoberto.

 

- E, mesmo assim - interrompeu Bernardo-, que procuravas tu junto de Severino, Remígio?

 

O despenseiro voltou-se para olhar para Guilherme com olhos desvairados, depois olhou para Malaquias, depois ainda para Bernardo:

 

- Mas eu... eu ouvi esta manhã frade Guilherme aqui presente dizer a Severino que guardasse certos papéis... eu desde ontem à noite, depois da captura de Salvador, temia que se falasse daquelas cartas...

 

- Então tu sabes alguma coisa dessas cartas! – exclamou triunfantemente Bernardo.

 

O despenseiro já estava na armadilha. Encontrava-se apertado entre duas urgências, desculpar-se da acusação de heresia e afastar de si a suspeita de homicídio. Resolveu provavelmente enfrentar a segunda acusação, por instinto, porque agora agia sem regra e sem conselho:

 

- Falarei das cartas depois... justificarei... direi como cheguei à sua posse... Mas deixai que explique o que aconteceu esta manhã. Eu pensava que se falaria dessas cartas, quando vi Salvador cair nas mãos do senhor Bernardo, há anos que a memória dessas cartas me atormenta o coração... Então, quando ouvi Guilherme e Severino falarem de alguns papéis... não sei, preso pelo medo, pensei que Malaquias se tinha desembaraçado delas e as tivesse dado a Severino... queria destruí-las, e por isso fui ter com Severino... a porta estava aberta e Severino estava já morto, pus-me a rebuscar entre as suas coisas para procurar as cartas... apenas tinha medo...

 

Guilherme sussurrou-me ao ouvido:

 

- Pobre estúpido, atemorizado por um perigo, atirou-se de cabeça para outro...

 

- Admitamos que tu dizes quase, digo quase, a verdade - interveio Bernardo. - Tu pensavas que Severino tinha as cartas e procuraste-as junto dele. E porque é que pensaste que as tinha? E porque matastes antes também os outros irmãos? Pensavas talvez que essas cartas circulavam há muito tempo pelas mãos de muitos? Talvez se use nesta abadia andar à caça das relíquias dos hereges queimados?

 

Vi o Abade estremecer. Não havia nada de mais insidioso que a acusação de recolher relíquias de hereges, e Bernardo era muito hábil a misturar os delitos à heresia, e o todo à vida da abadia. Fui interrompido nas minhas reflexões pelo despenseiro, que gritava que ele nada tinha a ver com os outros delitos. Bernardo indulgentemente tranqüilizou-o: não era aquela de momento a questão sobre a qual se estava discutindo, ele era interrogado por delito de heresia, e que não tentasse (e aqui a sua voz fez-se severa) desviar a atenção do seu passado herético falando de Severino ou procurando tornar suspeito Malaquias. Que se voltasse portanto às cartas.

 

- Malaquias de Hildesheim - disse, virado para a testemunha -, vós não estais aqui como acusado. Esta manhã respondestes às minhas perguntas e à minha petição sem tentar esconder nada. Agora repetireis aqui o que dissestes esta manhã e não tereis nada a temer.

 

- Repito quanto disse esta manhã - disse Malaquias. - Pouco tempo depois de ter chegado aqui, Remígio começou a ocupar-se das cozinhas, e tivemos freqüentes contatos por razões de trabalho... eu como bibliotecário estou encarregado do fecho noturno de todo o Edifício, e portanto também das cozinhas... Não tenho motivo para ocultar que nos tornamos fraternos amigos, e nem eu tinha motivo para nutrir suspeitas contra ele. E ele contou-me que tinha consigo alguns documentos de natureza secreta, confiados em confissão, que não deviam cair em mãos profanas e que não ousava ter junto de si. Como eu guardava o único lugar do mosteiro interdito a todos os outros, pediu-me que lhe conservasse aqueles papéis longe de qualquer olhar curioso, e eu consenti, não presumindo que os documentos fossem de natureza herética, e nem sequer os li, colocando-os... colocando-os no mais inatingível dos penetrais da biblioteca, e desde então tinha-me esquecido deste fato, até que esta manhã o senhor inquisidor lhes fez alusão, e então fui buscá-los e entreguei-lhos...

 

O Abade tomou a palavra, irritado:

 

- Porque não me informaste desse teu pacto com o despenseiro? A biblioteca não é reservada a coisas de propriedade dos monges!

 

O Abade tinha posto a claro que a abadia nada tinha a ver com aquela história.

 

- Senhor - respondeu Malaquias, confuso -, parecera-me coisa de pouca importância. Pequei sem malícia.

 

- Decerto, decerto - disse Bernardo em tom cordial -, estamos todos convencidos que o bibliotecário agiu de boa-fé, e a franqueza com que colaborou com este tribunal é a prova disso. Peço fraternalmente à Vossa Magnificência que não o culpe por aquela antiga imprudência. Nós acreditamos em Malaquias. E só lhe pedimos que nos confirme agora sob juramento que os papéis que agora lhe mostro são aqueles que ele me deu esta manhã e são aqueles que Remígio de Varagine lhe entregou há anos, depois da sua chegada à abadia.

 

Mostrava dois pergaminhos que tinha tirado das folhas pousadas sobre a mesa. Malaquias olhou para eles e disse com voz firme:

 

- Juro por Deus Pai Onipotente, pela Santíssima Virgem e por todos os santos que assim é e assim foi.

 

- Basta-me - disse Bernardo. - Podeis ir, Malaquias de Hildesheim.

 

Quando Malaquias saía de cabeça baixa, pouco antes de chegar à porta, ouviu-se uma voz elevar-se do grupo dos curiosos amontoados ao fundo da sala:

 

- Tu escondias-lhe as cartas e ele mostrava-te o cú dos noviços na cozinha!

 

Estalaram algumas risadas, Malaquias saiu rapidamente dando empurrões à direita e à esquerda, eu teria jurado que a voz era a de Aymaro, mas a frase tinha sido gritada em falsete. O Abade, de rosto violáceo, bradou que estivessem em silêncio e ameaçou tremendos castigos para todos, intimando os monges a evacuarem a sala. Bernardo sorria lubricamente, o cardeal Bertrando, do outro lado da sala, inclinava-se ao ouvido de Jean d’Anneaux e dizia-lhe qualquer coisa a que o outro reagia tapando a boca com a mão e inclinando a cabeça como se tossisse. Guilherme disse-me:

 

- O despenseiro não era só um pecador carnal para seu prazer mas também fazia de rufião. Mas a Bernardo nada disto importa, a não ser quanto baste para colocar em embaraço Abbone, mediador imperial...

 

Foi interrompido precisamente por Bernardo, que agora se dirigia a ele:

 

- Interessar-me-ia depois saber de vós, frade Guilherme, de que papéis estáveis falando esta manhã com Severino, quando o despenseiro vos ouviu e daí se enganou.

 

Guilherme susteve o seu olhar:

 

- Enganou-se, precisamente. Falávamos de um exemplar do tratado sobre a hidrofobia canina de Ayyub al Ruhawi, admirável livro de doutrina que vós decerto conheceis pela sua fama e que vos terá sido freqüentemente de muita utilidade... A hidrofobia, diz Ayyub, reconhece-se por vinte e cinco sinais evidentes...

 

Bernardo, que pertencia à ordem dos domini canes, não julgou oportuno enfrentar uma nova batalha.

 

- Tratava-se, portanto, de coisas estranhas ao caso em questão - disse rapidamente. E prosseguiu a instrução: - Voltemos a ti, frade Remígio menorita, bem mais perigoso que um cão hidrófobo. Se frade Guilherme tivesse prestado mais atenção à baba dos hereges que à dos cães, talvez ele tivesse descoberto também que serpente se aninhava na abadia. Voltemos a estas cartas. Agora sabemos como certo que estiveram nas tuas mãos e que te preocupaste em escondê-las como se fossem um veneno perigosíssimo, e que inclusivamente mataste... - impediu com um gesto uma tentativa de negação - ...e do assassínio falaremos depois... que mataste, dizia, para que eu jamais as tivesse. Então reconheces estes papéis como coisa tua.

 

O despenseiro não respondeu, mas o seu silêncio era bastante eloqüente. Pelo que Bernardo prosseguiu:

 

- E que são estes papéis? São duas páginas redigidas pelo punho do heresiarca Dolcino, poucos dias antes de ser preso, e que ele confiava a um seu acólito para que as levasse aos seus outros sectários ainda espalhados pela Itália. Poderia ler-vos tudo aquilo que nelas se diz, e como Dolcino, temendo o seu fim iminente, confia uma mensagem de esperança, diz ele aos seus irmãos, no demônio! Ele consola-os avisando que, por mais que as datas que ele aqui anuncia não concordem com as das suas cartas precedentes, onde tinha prometido para o ano de mil trezentos e cinco a destruição completa de todos os padres por obra do imperador Frederico, todavia essa destruição não estaria longe. Mais uma vez o heresiarca mentia, porque mais de vinte anos se passaram desde aquele dia e nenhuma das suas nefastas predições se verificou. Mas não é sobre as ridículas presunções destas profecias que devemos discutir, mas sim sobre o fato de Remígio ser seu portador. Podes ainda negar, frade herético e impenitente, que tiveste comércio e contubérnio com a seita dos pseudo-apóstolos?

 

O despenseiro agora já não podia negar.

 

- Senhor - disse -, a minha juventude foi povoada de erros bem funestos. Quando soube da pregação de Dolcino, já seduzido como estava pelos erros dos frades da pobre vida, acreditei nas suas palavras e juntei-me ao seu bando. Sim, é verdade, estive com eles na província de Brescia e na província de Bérgamo, estive com eles em Como e em Valsesia, com eles me refugiei na Parede Calva e no vale de Rassa e por fim no monte Rebello. Mas não tomei parte em nenhuma malfeitoria, e quando eles cometeram saques e violências eu trazia ainda em mim o espírito de mansidão que foi próprio dos filhos de Francisco, e precisamente no monte Rebello disse a Dolcino que já não me sentia disposto a participar na sua luta, e ele deu-me licença para me ir embora, porque, disse, não queria medrosos com ele, e pediu-me apenas que lhe levasse aquelas cartas a Bolonha...

 

- A quem? - perguntou o cardeal Bertrando.

 

- A alguns dos seus sectários, cujos nomes me parece que recordo, e, como recordo, digo-vo-los, senhor - apressou-se a assegurar Remígio.

 

E pronunciou os nomes de alguns que o cardeal Bertrando mostrou conhecer, porque sorriu com ar de satisfação, fazendo um sinal de entendimento a Bernardo.

 

- Muito bem - disse Bernardo, e tomou nota daqueles nomes. Depois perguntou a Remígio:

 

- E porque é que agora nos entregas os teus amigos?

 

- Não são meus amigos, senhor, e prova seja que as cartas nunca as entreguei. Melhor, fiz mais, e digo-o agora depois de ter tentado esquecê-lo durante tantos anos: para poder deixar aqueles lugares sem ser preso pelo exército do bispo de Vercelli, que nos esperava na planície, consegui pôr-me em contato com alguns deles, e em troca de um salvo-conduto indiquei-lhes algumas passagens para poderem assaltar as fortificações de Dolcino, pelo que parte do sucesso das forças da Igreja foi devido à minha colaboração...

 

- Muito interessante. Isto diz-nos que não só foste herege mas também que foste vil e traidor. O que não muda a tua situação. Como hoje para te salvares tentaste acusar Malaquias, que no entanto te tinha prestado um favor, assim agora para te salvares entregaste os teus companheiros de pecado às mãos da justiça. Mas traíste os seus corpos, nunca traíste os seus ensinamentos, e conservaste estas cartas como relíquias, esperando um dia ter a coragem, e a possibilidade, sem correr riscos, de as entregar, para te tornares de novo bem aceite pelos pseudo-apóstolos.

 

- Não, senhor, não - dizia o despenseiro, coberto de suor, com as mãos a tremer. - Não; juro-vos que...

 

- Um juramento! - disse Bernardo. - Eis outra prova da tua malícia! Queres jurar porque sabes que eu sei que os hereges valdenses estão prontos a qualquer astúcia, e até à morte, do que a jurar! E se são impelidos pelo medo fingem jurar e resmungam falsos juramentos! Mas eu sei bem que tu não és da seita dos pobres de Lião, raposa maldita, e procuras convencer-me de que não és aquilo que não és a fim de que eu não diga que tu és aquilo que és! Então juras? Juras para seres absolvido, mas fica sabendo que um único juramento não me basta! Posso exigir um, dois, três, cem, quantos quiser. Sei muito bem que vós, os pseudo-apóstolos, concedeis dispensa a quem jura falso para não trair a seita. E, assim, cada novo juramento será uma nova prova da tua culpabilidade!

 

- Mas então que devo fazer? - bradou o despenseiro, caindo de joelhos.

 

- Não te prostes como um beguino! Não deves fazer nada. Agora só eu sei o que se deverá fazer - disse Bernardo com um sorriso tremendo. - Tu não deves senão confessar. E serás danado e condenado se confessares, e serás danado e condenado se não confessares, porque serás punido como per juro! Então confessa, ao menos para abreviar este dolorosíssimo interrogatório, que perturba as nossas consciências e o nosso sentido da brandura e da compaixão!

 

- Mas que devo confessar?

 

- Duas ordens de pecados. Que foste da seita de Dolcino, que partilhaste as suas proposições heréticas e os costumes e as ofensas à dignidade dos bispos e dos magistrados citadinos, que, impenitente, continuas a partilhar as suas mentiras e ilusões, mesmo depois do heresiarca ter morrido e da seita ter sido dispersa, embora não de todo debelada e destruída. E que, corrompido no íntimo do teu espírito pelas práticas que aprendeste na seita imunda, és culpado das desordens contra Deus e os homens perpetradas nesta abadia, por razões que ainda me escapam mas que não deverão sequer ser de todo esclarecidas, uma vez que se tenha luminosamente demonstrado (como estamos fazendo) que a heresia daqueles que pregaram e pregam a pobreza, contra os ensinamentos do senhor papa e das suas bulas, não pode levar senão a obras delituosas. Isto deverão aprender os fiéis e isto me bastará. Confessa.

 

Nesta altura foi claro o que Bernardo queria. Nada interessado em saber quem tinha matado os outros monges, queria apenas demonstrar que Remígio de certo modo partilhava as idéias propugnadas pelos teólogos do imperador. E depois de ter mostrado a conexão entre aquelas idéias, que eram também as do capítulo de Perugia e as dos fraticelli e dos dolcinianos, e de ter mostrado que um só homem, naquela abadia, participava de todas aquelas heresias e tinha sido o autor de muitos delitos, daquela maneira ele daria um golpe deveras mortal aos seus próprios adversários. Olhei para Guilherme e compreendi que tinha compreendido, mas não podia fazer nada, mesmo que o tivesse previsto. Olhei para o Abade e vi-o de rosto sombrio: dava-se conta, tarde, de ter sido também ele arrastado para uma armadilha e de que a sua própria autoridade de mediador se estava esboroando, agora que ia aparecer como o senhor de um lugar em que todas as infâmias do século tinham marcado encontro. Quanto ao despenseiro, agora já não sabia qual era o delito de que podia ainda desculpar-se. Mas talvez naquele momento ele não fosse capaz de nenhum cálculo, o grito que saiu da sua boca era o grito da sua alma, e com ele descarregava anos de longos e secretos remorsos. Ou então, depois de uma vida de incertezas, entusiasmos e desilusões, vilezas e traições, posto diante da inelutabilidade da sua ruína, ele decidia professar a fé da sua juventude, sem já se perguntar se era certa ou errada, mas quase para mostrar a si mesmo que era capaz de alguma fé.

 

- Sim, é verdade - gritou -, estive com Dolcino e partilhei dos seus delitos, licenças, talvez eu estivesse louco, confundia o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo com a necessidade de liberdade e o ódio aos bispos, é verdade, pequei, mas estou inocente de quanto aconteceu na abadia, juro!

 

- Entretanto obtivemos alguma coisa - disse Bernardo. - Portanto admites ter praticado a heresia de Dolcino, da bruxa Margarida e dos seus comparsas. Admites ter estado com eles quando, perto de Trivero, enforcavam muitos fiéis de Cristo, entre os quais um menino inocente de dez anos? E quando enforcaram outros homens na presença das suas mulheres e dos pais porque não queriam entregar-se ao arbítrio daqueles cães? E porque é que, então, cegos pela vossa fúria e pela vossa soberba, defendíeis que ninguém se podia salvar se não pertencesse à vossa comunidade? Fala!

 

- Sim, sim, acreditei nessas coisas e pratiquei aquelas!

 

- E estavas presente quando capturaram alguns fiéis dos bispos e deixaram morrer alguns de fome no cárcere, e cortaram a uma mulher grávida um braço e uma mão, deixando-a depois dar à luz uma criança que morreu logo sem batismo? E estavas com eles quando deitaram por terra e pegaram fogo às aldeias de Mosso, Trivero, Cossila e Flecchia, e muitas outras localidades da zona de Crepacorio e muitas casas em Mortiliano e em Quorino, e incendiaram a igreja de Trivero, sujando primeiro as imagens sagradas, arrancando as lápides dos altares, quebrando um braço à estátua da Virgem, saqueando os cálices, os paramentos e os livros, destruindo o campanário, quebrando os sinos, apropriando-se de todos os vasos da confraria e dos bens do sacerdote?

 

- Sim, sim, eu estava lá, e já ninguém sabia o que fazia, queríamos antecipar o momento do castigo, éramos as vanguardas do imperador mandado pelo céu e pelo papa santo, devíamos apressar o momento da descida do anjo de Filadélfia, e então todos receberiam a graça do Espírito Santo e a Igreja seria renovada, e depois da destruição de todos os perversos apenas reinariam os perfeitos!

 

O despenseiro parecia possuído e iluminado ao mesmo tempo, parecia que agora o dique do silêncio e da simulação se tinha quebrado, que o seu passado voltava não só em palavras mas por imagens e que ele voltava a experimentar as emoções que o tinham exaltado em tempos.

 

- Então - instava Bernardo -, tu confessas que honrastes como mártir Gerardo Segalelli, que negastes toda a autoridade à Igreja romana, que afirmáveis que nem o papa nem autoridade alguma podia prescrever-vos um modo de vida diferente do vosso, que ninguém tinha o direito de excomungar-vos, que desde o tempo de São Silvestre todos os prelados da Igreja tinham sido prevaricadores e sedutores, salvo Pedro de Morrone, que os leigos não são obrigados a pagar as décimas aos padres que não pratiquem um estado de absoluta perfeição e pobreza como o praticaram os primeiros apóstolos, que as décimas, portanto, deviam ser pagas só a vós, os únicos apóstolos e pobres de Cristo, que para rezar a Deus uma igreja consagrada não vale mais que um estábulo, que percorríeis as aldeias e seduzíeis as gentes gritando «penitenziagite», que cantáveis o Salvie Regina para atrair perfidamente as multidões, e que vos fazíeis passar por penitentes levando uma vida perfeita aos olhos do mundo, e que depois vos concedíeis todas as licenças e todas as luxúrias, porque não acreditáveis no sacramento do matrimônio, nem em qualquer outro sacramento, e, considerando-vos mais puros que os outros, podíeis permitir-vos toda a sujeira e toda a ofensa do vosso corpo e do corpo dos outros? Fala!

 

- Sim, sim, eu confesso a verdadeira fé em que então tinha acreditado com toda a alma, confesso que abandonamos as nossas vestes em sinal de espoliação, que renunciamos a todos os nossos bens, enquanto vós, raça de cães, jamais renunciastes a eles, que desde então deixamos de aceitar dinheiro de qualquer pessoa e nem o trazíamos conosco, e vivemos de esmolas e não guardávamos nada para o dia de amanhã, e quando nos acolhiam e nos punham a mesa comíamos e partíamos deixando sobre a mesa quanto tinha sobejado...

 

- E incendiastes e saqueastes para vos apoderardes dos bens dos bons cristãos!

 

- E incendiamos e saqueamos, porque tínhamos eleito a pobreza como lei universal e tínhamos o direito de nos apropriarmos das riquezas ilegítimas dos outros e queríamos atingir no coração a trama de avidez que se estendia de paróquia em paróquia, mas nunca saqueamos para possuir, nem matamos para saquear, matávamos para punir, para purificar os impuros através do sangue, talvez estivéssemos dominados por um desejo desmedido de justiça, também se peca por excesso de amor de Deus, por superabundância de perfeição, nós éramos a verdadeira congregação espiritual convidada pelo Senhor e reservada à glória dos últimos tempos, procurávamos o nosso prêmio no paraíso antecipando os tempos da vossa destruição, só nós éramos os apóstolos de Cristo, todos os outros tinham traído, e Gerardo Segalelli tinha sido uma planta divina, planta Dei pullulans in radice fidei, a nossa regra vinha-nos diretamente de Deus, não de vós, cães danados, pregadores mentirosos que espalhais em redor o odor do enxofre e não o do incenso, cães vis, carcaças pútridas, corvos, servos da puta de Avinhão, prometidos como estais à perdição! Então eu acreditava, e também o nosso corpo se tinha redimido, e éramos a espada do Senhor, era preciso matar mesmo inocentes para poder matar-vos a todos o mais depressa possível. Nós queríamos um mundo melhor, de paz e de gentileza, e a felicidade para todos, nós queríamos matar a guerra que vós trazíeis com a vossa avidez, porque nos repreendeis se para estabelecer a justiça e a felicidade tivemos de derramar um pouco de sangue... é... é que não faltava muito, para agir depressa, e valia bem a pena tingir de vermelho toda a água do Carnasco, naquele dia em Stavello, era também sangue nosso, não nos poupávamos, sangue nosso e sangue vosso, muito depressa, muito depressa, os tempos da profecia de Dolcino urgiam, era preciso apressar o curso dos acontecimentos...

 

Tremia todo, passava as mãos pelo hábito como se quisesse limpá-las do sangue que evocava.

 

- O glutão tornou-se um puro - disse-me Guilherme.

 

- Mas é esta a pureza? - perguntei, horrorizado.

 

- Deve existir também de outro tipo - disse Guilherme -, mas, qualquer que ela seja, faz-me sempre medo.

 

- O que é que mais vos aterroriza na pureza? - perguntei.

 

- A pressa - respondeu Guilherme.

 

- Basta, basta - dizia agora Bernardo -, pedíamos-te uma confissão, não um apelo ao massacre. Está bem, não só foste herege mas ainda o és. Não só foste assassino mas continuaste a matar. Então diz-nos como mataste os teus irmãos nesta abadia, e porquê.

 

O despenseiro deixou de tremer, olhou em seu redor como se saísse de um sonho:

 

- Não - disse -, com os delitos da abadia nada tenho a ver. Confessei tudo aquilo que fiz, não me façais confessar aquilo que não fiz...

 

- Mas que resta ainda que tu não possas ter feito? Agora dizes-te inocente? Ó cordeiro, ó modelo de mansidão! Vós ouviste-lo, teve em tempos as mãos sujas de sangue e agora está inocente? Talvez nos tenhamos enganado, Remígio de Varagine é um modelo de virtudes, um filho fiel da Igreja, um inimigo dos inimigos de Cristo, sempre respeitou a ordem que a mão vigilante da Igreja se esforçou por impor a aldeias e cidades, a paz dos comércios, as oficinas dos artesãos, os tesouros das igrejas. Ele está inocente, não cometeu nada, vem aos meus braços, irmão Remígio, que eu te possa consolar das acusações que os malvados levantaram contra ti! - E enquanto Remígio olhava para ele com olhos desvairados, como se de repente estivesse acreditando numa absolvição final, Bernardo recompôs-se e dirigiu-se em tom de comando ao capitão dos archeiros. - Repugna-me recorrer a meios que a Igreja sempre criticou quando são praticados pelo braço secular. Mas há uma lei que domina e dirige mesmo os meus sentimentos pessoais. Pedi ao Abade um lugar onde se possam preparar os instrumentos de tortura. Mas que não se proceda imediatamente. Que fique três dias numa cela, a ferros de pés e mãos. Depois, que lhe mostrem os instrumentos. Somente. E ao quarto dia que se proceda. A justiça não é movida pela pressa, como acreditavam os pseudo-apóstolos, e a de Deus tem séculos à sua disposição. Que se proceda devagar e por graus. E, sobretudo, recordai quanto foi dito repetidamente: que se evitem as mutilações e o perigo de morte. Uma das graças providenciais que este processo reconhece ao ímpio é precisamente que a morte seja saboreada, e esperada, mas não venha antes que a confissão seja plena, e voluntária, e purificadora.

 

Os archeiros inclinaram-se para levantarem o despenseiro, mas este fincou os pés em terra e fez resistência, indicando que queria falar. Obtida licença, falou, mas as palavras saíam-lhe a custo da boca, e o seu discurso era como o entaramelar de um bêbado e tinha algo de obsceno. Só à medida que falava recuperou aquela espécie de energia selvagem que tinha animado a sua confissão pouco antes.

 

- Não, senhor. A tortura não. Eu sou um homem vil. Traí então, reneguei durante onze anos neste mosteiro a minha fé de outrora, cobrando as décimas de vinhateiros e de camponeses, inspecionando as cavalariças e os estábulos para que florescessem para enriquecer o Abade, colaborei de bom grado na administração desta fábrica do Anticristo. E achava-me bem, tinha esquecido os dias da revolta, deleitava-me nos prazeres da gula e noutros ainda. Eu sou um vil. Vendi hoje os meus antigos irmãos de Bolonha, vendi então Dolcino. E como vil, disfarçado como um dos homens da cruzada, assisti à captura de Dolcino e de Margarida, quando os levaram no sábado santo para o castelo de Bugello. Vagueei em torno de Vercelli durante três meses, até que chegou a carta do papa Clemente com a ordem da condenação. E vi Margarida cortada em pedaços diante dos olhos de Dolcino, e gritava, massacrada como estava, pobre corpo que uma noite tinha tocado eu também... E, enquanto o seu cadáver dilacerado ardia, foram sobre Dolcino e arrancaram-lhe o nariz e os testículos com tenazes em brasa, e não é verdade aquilo que disseram depois, que não lançou sequer um gemido. Dolcino era alto e robusto, tinha uma grande barba de diabo e os cabelos ruivos que lhe caíam em anéis sobre os ombros, era belo e poderoso e quando nos guiava com um chapéu de abas largas, e a pluma, e a espada cingida sobre a veste talar, Dolcino fazia medo aos homens e fazia gritar de prazer as mulheres... Mas, quando o torturaram, também ele gritava de dor, como uma mulher, como um vitelo, perdia sangue de todas as feridas enquanto o levavam de um canto para outro, e continuavam a feri-lo pouco, para mostrarem quão longamente podia viver um emissário do demônio, e ele queria morrer, pedia que acabassem com ele, mas morreu demasiado tarde, quando chegou à fogueira, e era apenas um amontoado de carne ensangüentada. Eu seguia-o e alegrava-me comigo mesmo por ter fugido àquela prova, tinha orgulho na minha astúcia, e aquele patife do Salvador estava comigo, e dizia-me: como fizemos bem, irmão Remígio, em comportar-nos como pessoas avisadas, não há nada mais terrível que a tortura! Eu teria abjurado mil religiões, naquele dia. E há anos, muitos anos, que digo a mim mesmo como fui vil, como fui feliz por ser vil, e todavia esperava sempre poder mostrar a mim mesmo que não era assim tão vil. Hoje, tu deste-me essa força, senhor Bernardo, foste para mim aquilo que os imperadores pagãos foram para os mais vis dos mártires. Deste-me a coragem de confessar aquilo em que acreditei com a alma, enquanto o corpo se retraía. Porém, não me imponhas demasiada coragem, mais que pode suportar esta minha carcaça mortal. A tortura não. Direi tudo aquilo que tu quiseres, mais vale a fogueira logo, morre-se sufocado antes de arder. A tortura, como a Dolcino, não. Tu queres um cadáver, e para o teres tens necessidade que assuma em mim a culpa por outros cadáveres. Cadáver serei em breve, em todo o caso. E assim te dou quanto pedes. Matei Adelmo de Otranto por ódio à sua juventude e à sua habilidade em jogar com monstros iguais a mim, velho, gordo, pequeno e ignorante. Matei Venancio de Salvemec porque era demasiado sabedor e lia livros que eu não compreendia. Matei Berengário de Arundel por ódio à sua biblioteca, eu que fiz teologia espancando os párocos demasiado gordos. Matei Severino de Sant'Emmerano... porquê?, porque colecionava ervas, eu que estive no monte Rebello, onde, as ervas, as comíamos sem nos interrogarmos sobre as suas virtudes. Na verdade, poderia matar também os outros, incluindo o nosso Abade: com o papa ou com o império, ele faz sempre parte dos meus inimigos e sempre o odiei, mesmo quando me dava de comer porque lhe dava de comer. Basta-te? Ah, não, queres saber também como matei toda aquela gente... Mas matei-os... vejamos... invocando as potências infernais, com a ajuda de mil legiões que consegui comandar com a arte que me ensinou Salvador. Para matar alguém não é necessário ferir, o diabo fá-lo por vós, se souberdes comandar o diabo.

 

Olhava para os circunstantes com ar cúmplice, rindo. Mas era então o riso de um demente, embora, como me fez depois observar Guilherme, este demente tivesse tido a perspicácia de arrastar na sua ruína Salvador, para se vingar da sua delação.

 

- E como podias comandar o diabo? - instava Bernardo, que assumia este delírio como legítima confissão.

 

- Sabe-lo tão bem como eu, não se faz comércio tantos anos com os endemoninhados sem assumir o seu hábito! Sabe-lo tão bem como eu, torturador de apóstolos! Pegas num gato preto, não é verdade?, que não tenha sequer um pêlo branco (e tu bem sabes), e atas-lhe as quatro patas, depois leva-lo à meia-noite a uma encruzilhada, então gritas em voz alta: ó grande Lúcifer, imperador do inferno, eu te tomo e te introduzo no corpo do meu inimigo tal como agora tenho prisioneiro este gato, e se levares o meu inimigo à morte, no dia seguinte à meia-noite, neste mesmo lugar, eu te oferecerei este gato em sacrifício, e tu farás quanto te ordeno pelos poderes da magia que eu agora exerço segundo o livro oculto de São Cipriano, em nome de todos os chefes das maiores legiões do inferno, Adramelch, Alastor e Azazele, que eu agora invoco com todos os seus irmãos... - O lábio tremia-lhe, os olhos pareciam saídos das órbitas, e começou a rezar... ou melhor, parecia que rezava, mas elevava as suas implorações a todos os barões das legiões infernais... - Abigor, pecca pro nobis... Amón, miserere nobis... Samael, libera nos a bono... Belial aleyson... Focalor, in corruptionem meam intende... Haborym, damnamus dominum... Zaebos, anum meum aperies... Leonardo, asperge me spermate tuo et inquinabor...

 

- Basta, basta! - bradavam os presentes, benzendo-se.

 

- Oh, Senhor, perdoa-nos a todos!

 

O despenseiro agora calava-se. Depois de ter pronunciado os nomes de todos estes diabos, caiu de face por terra, deitando saliva esbranquiçada pela boca torcida e pela fiada dos dentes, que rangia. As suas mãos, embora mortificadas pelas correntes, abriam-se e apertavam-se de modo convulsivo, os seus pés davam de vez em quando pontapés irregulares para o ar. Percebendo que eu tinha sido tomado por uma tremura de horror, Guilherme pousou-me a mão na cabeça, quase me agarrou pela nuca, apertando-ma e dando-me de novo a calma:

 

- Aprende - disse-me -, sob tortura, ou ameaçado de tortura, um homem não só diz aquilo que fez mas também aquilo que quereria ter feito, embora o não soubesse. Remígio agora quer a morte com toda a sua alma.

 

Os archeiros levaram dali o despenseiro, ainda tomado por convulsões. Bernardo reuniu os seus papéis. Depois fixou os circunstantes, imóveis, presos por grande perturbação.

 

- O interrogatório acabou. O imputado, réu confesso, será conduzido a Avinhão, onde terá lugar o processo definitivo, com escrupulosa salvaguarda da verdade e da justiça, e só depois desse processo regular será queimado. Ele, Abbone, já não vos pertence, nem já me pertence a mim, que fui apenas o humilde instrumento da verdade. O instrumento da justiça está noutro sitio, os pastores fizeram o seu dever, agora é a vez dos cães, que separem a ovelha infecta do rebanho e a purifiquem com o fogo. O miserável episódio que viu este homem culpado de tantos delitos atrozes está concluído. Agora, que a abadia viva em paz. Mas o mundo... - e aqui elevou a voz e dirigiu-se ao grupo dos legados - o mundo ainda não encontrou paz, o mundo é dilacerado pela heresia, que encontra abrigo até nas salas dos palácios imperiais! Que os meus irmãos recordem isto: um cingulum diaboli liga os perversos sectários de Dolcino aos honrados mestres do capítulo de Perugia. Não o esqueçamos, diante dos olhos de Deus as divagações daquele miserável que acabamos de entregar à justiça não são diferentes das dos mestres que se banqueteiam à mesa do alemão excomungado de Baviera. A fonte nefanda dos hereges brota de muitas pregações, embora honradas, ainda impunes. É dura paixão e humilde calvário o de quem foi chamado por Deus, como a minha pessoa pecadora, a reconhecer a serpente da heresia onde quer que se aninhe. Mas cumprindo esta obra santa aprende-se que não é herético apenas quem pratica a heresia às claras. Os defensores da heresia podem reconhecer-se através de cinco indícios probantes. Primeiro, aqueles que os visitam às escondidas enquanto são mantidos na prisão; segundo, aqueles que choram a sua captura e foram seus amigos íntimos em vida (é difícil, de fato, que não saiba da atividade do herege quem o freqüentou durante muito tempo); terceiro, aqueles que defendem que os hereges foram condenados injustamente, mesmo quando tenha sido demonstrada a sua culpa; quarto, aqueles que vêem com maus olhos e criticam aqueles que perseguem os hereges e pregam com êxito contra eles, e pode-se deduzi-lo pelos olhos, pelo nariz, pela expressão que procuram esconder, mostrando odiar aqueles por quem sentem amargura e amar aqueles cuja desgraça tanto lhes dói. Quinto sinal é, por fim, o fato de se recolherem as cinzas dos hereges queimados e de se fazer disso objeto de veneração... Mas eu atribuo altíssimo valor também a um sexto sinal, e considero manifestamente amigos dos hereges aqueles em cujos livros (ainda que eles não ofendam abertamente a ortodoxia) os hereges tenham encontrado as premissas para os seus silogismos perversos.

 

Falava, e olhava para Ubertino. Toda a delegação franciscana compreendeu bem a que aludia Bernardo. A partir de então, o encontro tinha falhado, ninguém mais ousaria retomar a discussão da manhã, sabendo que cada palavra seria escutada pensando nos últimos e desgraçados acontecimentos. Se Bernardo tinha sido enviado pelo papa para impedir uma recomposição entre os dois grupos, tinha-o conseguido.

 

QUINTO DIA

VÉSPERAS

 

Onde Ubertino se põe em fuga, Bêncio começa a observar as leis e Guilherme faz algumas reflexões sobre os vários tipos de luxúria encontrados naquele dia.

 

Enquanto a assembléia dispersava lentamente da sala capitular Miguel aproximou-se de Guilherme, e a ambos reuniu-se Ubertino. Todos juntos saímos para o ar livre, discutindo em seguida no claustro, protegidos pelo nevoeiro, que não dava sinais de diminuir, antes tornava-se ainda mais denso com as trevas.

 

- Creio que não é necessário comentar quanto aconteceu - disse Guilherme. - Bernardo derrotou-nos. Não me pergunteis se aquele imbecil dolciniano é verdadeiramente culpado de todos aqueles delitos. Por aquilo que me é dado compreender, não, sem dúvida alguma. O fato é que estamos como antes. João quer-te sozinho em Avinhão, Miguel, e este encontro não te forneceu as garantias que procurávamos. Pelo contrário, deu-te uma imagem de como cada palavra tua, lá, poderia ser desvirtuada. Daqui se deduz, parece-me, que tu não deves ir.

 

Miguel abanou a cabeça:

 

- Todavia irei. Não quero um cisma. Tu, Guilherme, hoje falaste claro e disseste o que quererias. Pois bem, não é o que eu quero, e dou-me conta que as deliberações do capítulo de Perugia foram usadas pelos teólogos imperiais para além das nossas intenções. Eu quero que a ordem franciscana seja aceita, nos seus ideais de pobreza, pelo papa. E o papa terá de compreender que só se a ordem assumir em si o ideal da pobreza se poderão reabsorver as suas ramificações heréticas. Eu não penso na assembléia do povo ou no direito das gentes. Eu tenho de impedir que a ordem se dissolva numa pluralidade de fraticelli. Irei a Avinhão e, se for necessário, farei ato de submissão a João. Transigirei em tudo, menos sobre o princípio de pobreza.

 

Interveio Ubertino:

 

- Sabes que arriscas a vida?

 

- Assim seja - respondeu Miguel -, é melhor que arriscar a alma.

 

Arriscou seriamente a vida e, se João estava na verdade (o que eu ainda não creio), também perdeu a alma. Como todos sabem, Miguel foi ter com o papa, na semana que se seguiu aos fatos que agora narro. Fez-lhe frente durante quatro meses, até que, em Abril do ano seguinte,João convocou um consistório em que o tratou de louco, temerário, teimoso, tirano, promotor de heresia, serpente nutrida pela Igreja no seu próprio seio. E há que pensar que, então, segundo o modo como ele via as coisas, João tinha razão, porque, naqueles quatro meses, Miguel tornara-se amigo do amigo do meu mestre, o outro Guilherme, o de Occam, e perfilhava as suas idéias - não muito diferentes, talvez ainda mais extremistas, daquelas que o meu mestre perfilhava com Marsílio e tinha expresso naquela manhã. A vida destes dissidentes tornou-se precária, em Avinhão, e, no fim de Maio, Miguel, Guilherme de Occam, Bonagrazia de Bérgamo, Francisco d'Ascoli e Henri de Talheim puseram-se em fuga, seguidos pelos homens do papa em Nice, Toulon, Marselha e Aigues Morres, onde se lhes juntou o cardeal Pierre de Arrablay, que procurou em vão induzi-los a voltar, sem vencer as suas resistências, o seu ódio para com o pontífice, o seu medo. Em Junho chegaram a Pisa, acolhidos em triunfo pelos imperiais, e nos meses seguintes Miguel havia de denunciar João publicamente. Demasiado tarde, porém. A fortuna do imperador estava a diminuir, de Avinhão João manobrava para dar aos menoritas um novo superior geral, obtendo por fim a vitória. Melhor teria feito Miguel naquele dia em não decidir ir ter com o papa: teria podido cuidar de perto da resistência dos menoritas, sem perder tantos meses à mercê do seu inimigo, enfraquecendo a sua posição... Mas talvez assim o tivesse predisposto a onipotência divina - e agora já nem sei quem de todos eles estava na verdade, e depois de tantos anos também o fogo das paixões se extingue, e com ele aquilo que se julgava ser a luz da verdade. Quem de nós é já capaz de dizer se tinham razão Heitor ou Aquiles, Agamémnon ou Príamo, quando se debatiam pela beleza de uma mulher que agora é cinza de cinzas?

 

Mas perco-me em melancólicas divagações. Devo, em vez disso, dizer o fim daquele triste colóquio. Miguel tinha decidido, e não houve modo de o convencer a desistir. À parte que se punha agora um outro problema, e Guilherme enunciou-o sem embargue: já nem o próprio Ubertino estava em segurança. As frases que lhe tinha dirigido Bernardo, o ódio que por ele já nutria o papa, o fato de que, enquanto Miguel representava ainda um poder com o qual tratar, Ubertino, pelo contrário, tinha permanecido sozinho, como partidário de si próprio...

 

- João quer Miguel na corte e Ubertino no inferno. Se bem conheço Bernardo, até amanhã, e com a cumplicidade do nevoeiro, Ubertino será morto. E, se alguém se perguntar por quem, a abadia bem poderá suportar outro delito, e dir-se-á que eram diabos invocados pelo Remígio com os seus gatos pretos, ou algum dolciniano supérstite que ainda vagueia por estas muralhas...

 

Ubertino estava preocupado:

 

- E então? - perguntou.

 

- Então - disse Guilherme -, vai falar com o Abade. Pede-lhe uma cavalgadura, provisões, uma carta para alguma abadia distante, para lá dos Alpes. E aproveita o nevoeiro e o escuro para partires imediatamente.

 

- Mas os archeiros não guardam ainda as portas?

 

- A abadia tem outras saídas, e o Abade conhece-as. Basta que um servo te espere numa das curvas inferiores com uma cavalgadura, e, saindo por alguma passagem da cerca, terás apenas de percorrer um pedaço de bosque. Deves fazê-lo imediatamente, antes que Bernardo se refaça do êxtase do seu triunfo. Eu tenho de me ocupar de mais alguma coisa, tinha duas missões, uma falhou, que ao menos não falhe a outra. Quero deitar a mão a um livro e a um homem. Se tudo correr bem, tu estarás fora daqui ainda antes que eu me preocupe contigo. Portanto adeus.

 

Abriu os braços. Comovido, Ubertino estreitou-o nos seus:

 

- Adeus, Guilherme, és um inglês louco e arrogante, mas tens um grande coração. Voltaremos a ver-nos?

 

- Voltaremos a ver-nos - tranqüilizou-o Guilherme. - Deus há-de querer.

 

Deus, afinal, não quis. Como já disse, Ubertino morreu misteriosamente assassinado dois anos depois. Vida dura e aventurosa a deste velho combativo e ardente. Talvez não tenha sido um santo, mas espero que Deus tenha premiado aquela sua adamantina certeza de o ser. Quanto mais envelheço e mais me abandono à vontade de Deus, menos aprecio a inteligência que quer saber e a vontade que quer fazer: e reconheço como único elemento de salvação a fé, que sabe esperar pacientemente sem interrogar demasiado. E Ubertino teve certamente muita fé no sangue e na agonia de Nosso Senhor crucificado.

 

Talvez eu pensasse também então nestas coisas, e o místico velho apercebeu-se disso, ou adivinhou que as havia de pensar um dia. Sorriu-me com doçura e abraçou-me, sem o ardor com que me tinha apertado algumas vezes nos dias anteriores. Abraçou-me como um avô abraça o neto, e com o mesmo espírito lho retribuí. Depois afastou-se com Miguel para procurar o Abade.

 

- E agora? - perguntei a Guilherme.

 

- E agora voltamos aos nossos delitos.

 

- Mestre - disse -, hoje sucederam coisas muito graves para a cristandade e falhou a vossa missão. E no entanto pareceis mais interessado na solução deste mistério que no reencontro entre o papa e o imperador.

 

- Os loucos e as crianças dizem sempre a verdade, Adso. Será porque, como conselheiro imperial, o meu amigo Marsílio é mais dotado que eu, mas como inquisidor o mais dotado sou eu. Até mais dotado que Bernardo Gui, Deus me perdoe. Porque a Bernardo não interessa descobrir os culpados, mas sim queimar os imputados. E eu, pelo contrário, encontro o maior deleite, a maior alegria em deslindar uma meada bem intrincada. E será ainda porque, no momento em que, como filósofo, duvido que o mundo tenha uma ordem, me consola descobrir, se não uma ordem, pelo menos uma série de conexões em pequenas porções dos assuntos do mundo. Por fim há provavelmente outra razão: é que nesta história talvez estejam em jogo coisas maiores e mais importantes que a batalha entre João e Luís...

 

- Mas é uma história de roubos e de vinganças entre monges de pouca virtude! - exclamei duvidando.

 

- A volta de um livro proibido, Adso, à volta de um livro proibido - respondeu Guilherme.

 

Os monges estavam-se encaminhando agora para a ceia. A refeição já ia em meio quando se sentou a nosso lado Miguel de Cesena, avisando-nos que Ubertino tinha partido. Guilherme soltou um suspiro de alívio.

 

No fim da ceia evitamos o Abade, que estava conversando com Bernardo, e localizamos Bêncio, que nos saudou com um meio-sorriso, tentando chegar à porta. Guilherme alcançou-o e obrigou-o a seguir-nos para um canto da cozinha.

 

- Bêncio - perguntou-lhe Guilherme -, onde está o livro?

 

- Qual livro?

 

- Bêncio, nenhum de nós dois é tolo. Falo do livro que procurávamos hoje no laboratório de Severino e que eu não reconheci e que tu reconheceste muito bem e foste buscar depois...

 

- Que vos faz pensar que eu o tenha levado?

 

- Penso que é assim e tu também pensas. Onde está?

 

- Não posso dizê-lo.

 

- Bêncio, se não mo dizes, falarei com o Abade.

 

- Não posso dizê-lo por ordem do Abade - disse Bêncio com ar virtuoso. - Hoje, depois de nos termos visto, aconteceu alguma coisa que tendes de saber. Depois da morte de Berengário, faltava um ajudante-bibliotecário. Hoje à tarde, Malaquias propôs-me tomar o seu lugar. Precisamente há meia hora, o Abade concordou, e a partir de amanhã de manhã, espero, serei iniciado nos segredos da biblioteca. É verdade, peguei no livro esta manhã, e tinha-o escondido no enxergão da minha cela sem sequer olhar pare ele, porque sabia que Malaquias me vigiava. E a certa altura Malaquias fez-me a proposta que eu vos disse. E agora fiz aquilo que deve fazer um ajudante-bibliotecário: entreguei-lhe o livro.

 

Não pude impedir-me de intervir, e com violência.

 

- Mas, Bêncio, ontem, e antes de ontem, tu... vós dizíeis que ardíeis de curiosidade de conhecer, que não queríeis que a biblioteca encerrasse mais mistérios, que um estudante deve saber...

 

Bêncio calava-se, corando, mas Guilherme deteve-me:

 

- Adso, já há algumas horas que Bêncio passou para o outro lado. Agora ele é o guarda daqueles segredos que queria conhecer, e enquanto os guarda terá todo o tempo que quiser pare os conhecer.

 

- Mas os outros? - perguntei. - Bêncio falava em nome de todos os sábios!

 

- Antes - disse Guilherme.

 

E arrastou-me consigo, deixando Bêncio na maior confusão.

 

- Bêncio - disse-me depois Guilherme - é vítima de uma grande luxúria, que não é a de Berengário nem a do despenseiro. Como muitos estudiosos, tem a luxúria do saber. Do saber em si mesmo. Excluído de uma parte deste saber, queria apoderar-se dele. Agora apoderou-se dele. Malaquias conhecia o seu homem e usou o melhor meio pare reaver o livro e selar os lábios de Bêncio. Tu perguntar-me-ás de que serve controlar tanta reserve de saber se se aceita não o pôr à disposição de todos os outros. Mas é precisamente por isso que falei de luxúria. Não era luxúria a sede de conhecimento de Roger Bacon, que queria empregar as ciências para tornar mais feliz o povo de Deus, e portanto não procurava o saber pelo saber. A de Bêncio é apenas curiosidade insaciável, orgulho do intelecto, um modo como qualquer outro, pare um monge, de transformar e apaziguar os desejos da sua carne, ou o ardor que fez de outro um guerreiro da fé ou da heresia. Não existe apenas a luxúria da carne. É luxúria a de Bernardo Gui, desvairada luxúria de justiça que se identifica com uma luxúria de poder. É luxúria de riqueza a do nosso santo e já não romano pontífice. Era luxúria de testemunho e de transformação e de penitência e de morte a do despenseiro quando jovem. E é luxúria de livros a de Bêncio. Como todas as luxúrias, como a de Onan, que espalhava o seu próprio sêmen por terra, é luxúria estéril, e nada tem a ver com o amor, nem sequer com o carnal...

 

- Eu sei - murmurei sem querer.

 

Guilherme fingiu que não ouviu. Mas, como continuando o seu discurso, disse:

 

- O amor verdadeiro quer o bem do amado.

 

- Não será que Bêncio quer o bem dos seus livros (que agora são também seus) e pensa que o seu bem é ficarem longe de mãos rapaces? - perguntei.

 

- O bem de um livro reside em ser lido. Um livro é feito de signos que falam de outros signos, os quais por sua vez falam das coisas. Sem um olho que o leia, um livro é portador de signos que não produzem conceitos, e portanto é mudo. Esta biblioteca nasceu talvez para salvar os livros que contém, mas agora vive para os sepultar. Por isso tornou-se fonte de impiedade. O despenseiro disse que traíra. Assim fez Berengário. Traiu. Oh, que dia horrível, meu bom Adso! Cheio de sangue e de ruína. Por hoje já chega. Vamos nós também a completas, e depois vamos dormir.

 

Saindo da cozinha, encontramos Aymaro. Perguntou-nos se era verdade aquilo que se murmurava, que Malaquias tinha proposto Bêncio como seu ajudante. Não pudemos senão confirmar.

 

- Este Malaquias fez muitas coisas boas, hoje - disse Aymaro com o seu habitual esgar de desprezo e de indulgência. - Se houvesse justiça, o diabo viria buscá-lo esta noite.

 

QUINTO DIA

COMPLETAS

 

Onde se escuta um sermão sobre a vinda do Anticristo e Adso descobre o poder dos nomes próprios.

 

O ofício de vésperas tinha tido lugar de modo confuso, ainda durante o interrogatório do despenseiro, com os noviços curiosos que tinham escapado à alçada do seu mestre para seguirem por janelas e aberturas quanto se passava na sala capitular. Era necessário agora que toda a comunidade rezasse pela boa alma de Severino. Pensava-se que o Abade falaria a todos, e perguntava-se o que diria. Pelo contrário, depois da ritual homilia de São Gregório, o responsório e os três salmos prescritos, o Abade subiu ao púlpito, mas apenas para dizer que naquela noite se calaria. Demasiadas desventuras tinham afligido a abadia, disse, para que mesmo o pai comum pudesse falar com o tom de quem censura e admoesta. Era necessário que todos, sem excluir ninguém, fizessem um severo exame de consciência. Mas, visto que era preciso que alguém falasse, propunha que a admoestação viesse de quem, por ser o mais velho de todos e já próximo da morte, fosse de todos o menos envolvido nas paixões terrestres que tinham ocasionado tantos males. Por direito de idade, a palavra caberia a Alinardo de Grottaferrata, mas todos sabiam como a saúde do venerável irmão era frágil. Logo depois de Alinardo, na ordem estabelecida pelo volver inexorável dos tempos, vinha Jorge. A ele dava o Abade agora a palavra.

 

Ouvimos um murmúrio do lado das estalas onde se sentavam habitualmente Aymaro e os outros italianos. Imaginei que o Abade tivesse confiado o sermão a Jorge sem consultar Alinardo. O meu mestre fez-me notar a meia-voz que o fato de não falar tinha sido para o Abade uma prudente decisão: porque fosse o que fosse que ele dissesse seria sopesado por Bernardo e pelos outros avinhonenses presentes. O velho Jorge, pelo contrário, limitar-se-ia a algum dos seus vaticínios místicos, e os avinhonenses não lhe dariam grande peso.

 

- Porém, eu não - acrescentou Guilherme -, porque não creio que Jorge tenha aceite, e talvez pedido para falar, sem um objetivo bem preciso.

 

Jorge subiu ao púlpito, amparado por alguém. O seu rosto era iluminado pelo trípode que, sozinho, dava luz à nave. A luz da chama punha em evidência a treva que pesava sobre os seus olhos, que pareciam dois buracos negros.

 

- Irmãos diletíssimos - começou ele -, e vós todos nossos hóspedes muito caros, se quiserdes escutar este pobre velho... As quatro mortes que afligiram a nossa abadia (para não falar dos pecados, remotos e recentes, dos mais desgraçados entre os vivos) não devem, vós bem sabeis, atribuir-se aos rigores da natureza que, implacável nos seus ritmos, administra a nossa jornada terrena desde o berço à cova. Todos vós pensareis talvez que, por mais que vos tenha perturbado de dor, esta triste história não envolve a vossa alma, porque todos, menos um, estais inocentes, e quando esse for punido restar-vos-á decerto chorar a ausência dos desaparecidos, mas não tereis que vos justificar a vós mesmos de nenhuma imputação diante do tribunal de Deus. Assim pensais vós. Loucos! - gritou com voz terrível -, loucos e temerários que vós sois! Quem matou suportará diante de Deus o fardo das suas culpas, mas apenas porque aceitou tornar-se intermediário dos decretos de Deus. Tal como era necessário que alguém traísse Jesus para que o mistério da redenção se cumprisse, e todavia o Senhor decretou condenação e vitupério para quem o traiu, assim alguém nestes dias pecou trazendo morte e ruína, mas eu digo-vos que esta ruína foi, se não querida, pelo menos permitida por Deus para humilhação da nossa soberba!

 

Calou-se e dirigiu o olhar vazio para a sombria assembléia, como se com os olhos pudesse captar-lhe as emoções, enquanto de fato com o ouvido saboreava o seu consternado silêncio.

 

- Nesta comunidade - continuou - serpenteia há muito tempo a áspide do orgulho. Mas que orgulho? O orgulho do poder num mosteiro isolado do mundo? Não, decerto. O orgulho da riqueza? Meus irmãos, antes que no mundo conhecido ressoassem os ecos de longas querelas sobre a pobreza e sobre a posse, desde os tempos do nosso fundador, nós, mesmo quando tivemos tudo, não tivemos nada, sendo a nossa única verdadeira riqueza a observância da regra, a oração e o trabalho. Mas do nosso trabalho, do trabalho da nossa ordem, em particular do trabalho deste mosteiro faz parte (é substancia, aliás) o estudo, e a guarda do saber. A guarda, digo, não a busca, porque é próprio do saber, coisa divina, ser completo e definido desde o início, na perfeição do verbo que se exprime a si próprio. A guarda, digo, não a busca, porque é próprio do saber, coisa humana, ter sido definido e completado no arco dos séculos que vai da pregação dos profetas à interpretação dos padres da Igreja. Não há progresso, não há revolução de eras, na aventura do saber, mas, no máximo contínua e sublime recapitulação. A história humana marcha com movimento irreprimível desde a criação, através da redenção, em direção ao retorno do Cristo triunfante, que aparecerá circundado de um nimbo para julgar os vivos e os mortos, mas o saber divino e humano não segue este curso: firme como uma rocha inamovível, ele permite-nos, quando nos fazemos humildes e atentos à sua voz, seguir, predizer este curso, mas não é por ele corrompido. Eu sou aquele que é, disse o Deus dos hebreus. Eu sou o caminho, a verdade e a vida, disse Nosso Senhor. Aqui está, o saber não é mais que o atônito comentário destas duas verdades. Tudo quanto se disse a mais foi proferido pelos profetas, pelos evangelistas, pelos padres e pelos doutores para tornar mais claras estas duas sentenças. E por vezes um oportuno comentário também lhes veio dos pagãos, que as ignoravam, e as suas palavras foram assumidas pela tradição cristã. Mas, para além disto, não há mais nada a dizer. Há a remeditar, glosar, conservar. Este era e deveria ser o ofício desta nossa abadia com a sua esplêndida biblioteca, nada mais. Diz-se que um califa oriental um dia pegou fogo à biblioteca de uma cidade famosa e gloriosa e orgulhosa e que, enquanto aqueles milhares de volumes ardiam, disse que eles podiam e deviam desaparecer: porque ou repetiam aquilo que já dizia o Corão, e portanto eram inúteis, ou contradiziam aquele livro sagrado para os infiéis, e portanto eram perniciosos. Os doutores da Igreja, e nós com eles, não raciocinaram assim. Tudo aquilo que soa a comentário e clarificação da escritura deve ser conservado, porque aumenta a glória das escrituras divinas; tudo aquilo que as contradiz não deve ser destruído, porque só conservando-o poderá por sua vez ser contradito, por quem possa e tenha esse ofício, nos modos e nos tempos que o Senhor quiser. Daqui a responsabilidade da nossa ordem através dos séculos, e o fardo da nossa abadia hoje: orgulhosos da verdade que proclamamos, humildes e prudentes em guardar as palavras inimigas da verdade, sem por elas nos deixarmos sujar. Ora, meus irmãos, qual é o pecado de orgulho que pode tentar um monge estudioso? O de entender o seu próprio trabalho não como guarda mas como busca de alguma notícia que não tenha ainda sido dada aos humanos, como se a última não tivesse já ressoado nas palavras do último anjo que fala no último livro das escrituras: «Agora declaro a quem quer que escute as palavras de profecia deste livro que, se alguém lhe acrescentar alguma coisa, Deus porá sobre ele as pragas escritas neste livro, e se alguém retirar alguma coisa às palavras de profecia deste livro Deus lhe retirará a sua parte do livro da vida e da cidade santa e das coisas que estão escritas neste livro.» Pois bem... não vos parece, meus desventurados irmãos, que estas palavras mais não refletem do que quanto aconteceu recentemente entre estas muralhas, enquanto tudo quanto aconteceu entre estas muralhas mais não reflete do que as próprias vicissitudes do século em que vivemos, tendence na palavra como nas obras, nas cidades como nos castelos, nas soberbas universidades e nas igrejas catedrais a procurar com afã descobrir novos codicilos às palavras da verdade, deformando o sentido daquela verdade já rica de todos os escólios, e necessitando apenas de intrépida defesa e não de estólido incremento? Este é o orgulho que serpenteou ou ainda serpenteia por estas muralhas: e eu digo a quem se afadigou e se afadiga em quebrar os sigilos dos livros que não lhe são devidos que é este o orgulho que o Senhor quis punir e que continuará a punir se ele não diminuir e não se humilhar, porque ao Senhor não é difícil encontrar, ainda e sempre, por causa da nossa fragilidade, os instrumentos da sua vingança.

 

- Ouviste, Adso? - murmurou-me Guilherme. - O velho sabe mais do que aquilo que diz. Que tenha ou não as mãos nesta história, ele sabe, e adverte que se os monges curiosos continuarem a violar a biblioteca a abadia não recuperará a sua paz.

 

Jorge agora, depois de uma longa pausa, recomeçava a falar.

 

- Mas quem é afinal o próprio símbolo deste orgulho, de quem os orgulhosos são figura e mensageiros, cúmplices e estandartes? Quem em verdade agiu e age talvez entre estas muralhas, de modo a avisar-nos que os tempos estão próximos, e a consolar-nos, porque, se os tempos estão próximos, os sofrimentos serão decerto insustentáveis, mas não infinitos no tempo, dado que o grande ciclo deste universo está para se cumprir? Oh, vós compreendeste-lo muito bem, e receais dizer o seu nome, porque é também o vosso, e vós tendes medo dele, mas, se vós tendes medo, não o terei eu, e esse nome di-lo-ei em voz bem alta, a fim de que as vossas vísceras se torçam de pavor, e os vossos dentes batam até vos cortarem a língua, e o gelo que se formará no vosso sangue faça descer um véu escuro sobre os vossos olhos... Ele é a besta imunda, ele é o Anticristo!

 

Fez outra longuíssima pausa. Os circunstantes pareciam mortos. A única coisa móvel em toda a igreja era a chama do trípode, mas até as sombras que ela formava pareciam ter-se enregelado. O único rumor, rouco, era o arquejar de Jorge, que enxugava o suor da fronte. Depois, Jorge continuou:

 

- Quereis vós talvez dizer-me: não, esse não está ainda para vir, onde estão os sinais da sua vinda? Insipiente quem o dissesse! Mas se as temos diante dos olhos, dia após dia, no grande anfiteatro do mundo, e na imagem reduzida da abadia, as catástrofes anunciadoras... Foi dito que, quando o momento estiver próximo, se levantará no ocidente um rei estrangeiro, senhor de imensas fraudes, ateu, matador de homens, fraudulento, sedento de ouro, hábil na astúcia, malvado, inimigo dos fiéis e seu perseguidor, e no seu tempo não se terá em conta a prata mas ter-se-á em apreço somente o ouro! Eu sei bem: vós que me escutais apressais-vos agora a fazer os vossos cálculos para saber se aquele de que falo se assemelha ao papa ou ao imperador ou ao rei de França ou a quem quiserdes, para poder dizer: ele é o meu inimigo e eu estou do lado bom! Mas não sou tão ingênuo que vos indique um homem, o Anticristo quando vier vem em todos e para todos, e cada um é parte dele. Estará nos bandos de salteadores que saquearão cidades e regiões, estará em imprevistos sinais do céu onde aparecerão de improviso arco-íris, cornos e fogos, enquanto se ouvirão mugidos de vozes e o mar ferverá. Disse-se que os homens e os animais gerarão dragões, mas queria dizer-se que os corações conceberão ódio e discórdia, não olheis em redor para descobrir os animais das iluminuras que vos deleitam nos pergaminhos! Disse-se que as jovens há pouco desposadas parirão meninos já capazes de falar perfeitamente, os quais portarão o anúncio da maturidade dos tempos e pedirão para serem mortos. Mas não procureis entre as aldeias do vale, os meninos demasiado sábios já foram mortos entre estas muralhas! E como os das profecias, tinham o aspecto de homens já encanecidos, e da profecia eles eram os filhos quadrúpedes, e os espectros, e os embriões que deveriam profetizar no ventre das mães pronunciando encantamentos mágicos. E tudo foi escrito, sabeis? Foi escrito que muitas serão as agitações nas seitas, nos povos, nas igrejas; que se levantarão pastores inócuos, perversos, cheios de desprezo, ávidos, desejosos de prazeres, amantes do lucro, contentando-se com vãos discursos, fanfarrões, soberbos, gulosos, protervos, imersos na sensualidade, à procura de vanglória, inimigos do evangelho, prontos a repudiar a porta estreita, a desprezar a palavra verdadeira, e terão ódio a todo o caminho de piedade, não se arrependerão do seu pecar, e por isso no meio dos povos dilatarão a incredulidade, o ódio fraterno, a maldade, a dureza, a inveja, a indiferença, o latrocínio, a embriaguez, a intemperança, a lascívia, o prazer carnal, a fornicação e todos os outros vícios. Serão escassos a aflição, a humildade, o amor da paz, a pobreza, a compaixão, o dom das lágrimas... Vamos, coragem, não vos reconheceis, todos vós aqui presentes, monges da abadia e poderosos vindos de fora?

 

Na pausa que se seguiu ouviu-se um roçar ligeiro. Era o cardeal Bertrando, que se agitava no seu cadeirão. No fundo, pensei, Jorge estava procedendo como grande pregador, e enquanto fustigava os seus irmãos não poupava sequer os visitantes. E teria dado não sei o quê para saber o que passava naquele momento pela cabeça de Bernardo, ou dos gordos avinhonenses.

 

- E será nesse justo momento, que é justamente este - troou Jorge -, que o Anticristo terá a sua blasfema parusia, macaco que quer ser de Nosso Senhor. Nesses tempos (que são estes) serão subvertidos todos os reinos, haverá fome e pobreza, e penúria de meses, e Invernos de excepcional rigor. E os filhos desse tempo (que é este) já não terão quem administre os seus bens e conserve nos seus depósitos os alimentos e serão vexados nos mercados de compra e de venda. Bem-aventurados então aqueles que não viverem, ou que, vivendo, conseguirem sobreviver! Chegará então o filho da perdição, o adversário que se glorifica e se incha, exibindo múltiplas virtudes para enganar toda a terra e para prevalecer sobre os justos. A Síria cairá e chorará os seus filhos. A Cilícia levantará a cabeça até que apareça aquele que é chamado a julgá-la. A filha de Babilônia levantar-se-á do trono do seu esplendor para beber do cálice da amargura. A Capadócia, a Lícia e a Licaónia dobrarão a espinha porque multidões inteiras se verão destruídas na corrupção da sua iniqüidade. Acampamentos de bárbaros e carros de guerra aparecerão por toda a parte para ocuparem as terras. Na Arménia, no Ponto e na Bitínia, os adolescentes perecerão ao fio da espada, as meninas cairão prisioneiras, os filhos e as filhas consumarão incestos, a Pisídia, que se exalta na sua glória, será prostrada, a espada passará no meio da Fenícia, a Judéia vestir-se-á de luto e preparar-se-á para o dia da perdição por causa da sua impureza. De toda a parte então aparecerão desprezo e desolação, o Anticristo vencerá o Ocidente e destruirá as vias de tráfico, terá nas mãos espada e fogo ardente e queimará com furor de violência de chama: sua força será a blasfêmia, engano a sua mão, a direita será ruína, a esquerda portadora de trevas. Estes são os traços que o distinguirão: a sua cabeça será de fogo ardente, o seu olho direito injetado de sangue, o seu olho esquerdo de um verde felino, e terá duas pupilas, e as suas pálpebras serão brancas, o seu lábio inferior grande, terá débil o fêmur, grossos os pés, o polegar achatado e alongado!

 

- Parece o seu retrato - escarneceu Guilherme num fio de voz.

 

Era uma frase muito ímpia, mas agradeci-lhe, porque se me eriçavam os cabelos na cabeça. Contive a custo uma risada, enchendo as bochechas e deixando sair um fio de ar dos lábios fechados. Rumor que, no silêncio que se tinha seguido às últimas palavras do velho, se ouviu perfeitamente, mas por sorte todos pensaram que fosse alguém que tossia ou que chorava, ou estremecia, e todos tinham bem de quê.

 

- É o momento - dizia agora Jorge - em que tudo cairá no arbítrio, os filhos levantarão as mãos contra os pais, a mulher tramará contra o marido, o marido chamará a juízo a mulher, os patrões serão desumanos com os servos e os servos desobedecerão aos patrões, já não haverá reverência pare com os velhos, os adolescentes pedirão o comando, o trabalho parecerá a todos uma inútil fadiga, por toda a parte se elevarão cânticos de glória à licença, ao vício, à dissoluta liberdade dos costumes. E, depois disto, estupros, adultérios, perjúrios, pecados concranatura seguir-se-ão em grandes vagas, e males, e adivinhações, e encantamentos, e aparecerão no céu corpos volantes, surgirão no meio dos bons cristãos falsos profetas, falsos apóstolos, corruptores, impostores, bruxos,

estupradores, avaros, perjuros e falsificadores, os pastores transformar-se-ão em lobos, os sacerdotes mentirão, os monges desejarão as coisas do mundo, os pobres não acorrerão em ajuda dos chefes, os poderosos serão sem misericórdia, os justos far-se-ão testemunhas de injustiça. Todas as cidades serão sacudidas por terremotos, haverá pestilências em todas as regiões, tempestades de vento erguerão a terra, os campos serão contaminados, o mar segregará humores negros, novos desconhecidos prodígios terão lugar na Lua, as estrelas abandonarão a sua curva normal, outras (desconhecidas) sulcarão o céu, nevará no Verão e fará um calor tórrido no Inverno. E serão chegados os tempos do fim e o fim dos tempos... No primeiro dia, à hora terça, elevar-se-á no firmamento uma voz grande e potente, uma nuvem purpúrea avançará de setentrião, trovões e relâmpagos a seguirão, e sobre a terra descerá uma chuva de sangue. No segundo dia, a terra será arrancada do seu lugar e o fumo de um grande fogo passará através das portas do céu. No terceiro dia, os abismos da terra retumbarão dos quatro cantos do cosmo. Os pináculos do firmamento abrir-se-ão, o ar encher-se-á de pilares de fumo, e haverá fedor de enxofre até à hora décima. No quarto dia, de manhã cedo, o abismo liquefar-se-á e emitirá estrondos, e cairão os edifícios. No quinto dia, à hora sexta, ver-se-ão desfeitas as potências de luz e a roda do Sol, e haverá trevas no mundo até à noite, e as estrelas e a Lua cessarão o seu ofício. No sexto dia, à hora quarta, o firmamento fender-se-á de oriente a ocidente, e os anjos poderão olhar para a terra através da fenda dos céus e todos aqueles que estão sobre a terra poderão ver os anjos que olham do céu. Então, todos os homens se esconderão nas montanhas pare fugirem ao olhar dos anjos justos. E no sétimo dia chegará o Cristo na luz de seu pai. E haverá então o juízo dos bons e a sua ascensão na beatitude eterna dos corpos e das almas. Mas não é sobre isto que meditareis esta noite, irmãos orgulhosos! Não é aos pecadores que caberá ver a alba do oitavo dia, quando se elevará do oriente uma voz doce e terna, no meio do céu, e manifestar-se-á aquele Anjo que tem poder sobre todos os outros anjos santos, e todos os anjos avançarão juntamente com ele, sentados sobre um carro de nuvens, cheios de alegria, correndo velozes pelo ar, para libertarem os eleitos que tiverem acreditado, e todos juntos se regozijarão, porque a destruição deste mundo terá sido consumada! Não é com isto que devemos, nós, orgulhosamente regozijar-nos esta noite! Meditaremos em vez disso sobre as palavras que o Senhor pronunciará para expulsar de si quem não mereceu salvação: ide para longe de mim, malditos, para o fogo eterno que vos foi preparado pelo diabo e pelos seus ministros! Vós próprios bem o merecestes, e agora gozai-o! Afastai-vos de mim, descendo nas trevas exteriores e no fogo inextinguível! Eu dei-vos forma, e vós fizeste-vos sequazes de um outro! Fizeste-vos servos de um outro senhor, ide morar com ele na escuridão, com ele, a serpente que não repousa, no meio do ranger de dentes! Dei-vos o ouvido para prestardes atenção às escrituras, e vós escutastes as palavras dos pagãos! Modelei-vos uma boca para glorificardes a Deus, e vós usaste-la para as falsidades dos poetas e para os enigmas dos histriões! Dei-vos os olhos para que vísseis a luz dos meus preceitos, e vós usaste-los para perscrutar na treva! Eu sou um juiz humano, mas justo. A cada um darei aquilo que merece. Quereria ter misericórdia de vós, mas não encontro óleo nos vossos vasos. Seria impelido a apiedar-me, mas as vossas lâmpadas estão fumadas. Afastai-vos de mim... Assim falará o Senhor. E aqueles... e nós talvez, desceremos ao eterno suplício. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

 

- Amém! - responderam todos a uma voz.

 

Todos em fila, sem um sussurro, foram os monges para os seus catres. Sem desejo de se falarem desapareceram os menoritas e os homens do papa, aspirando ao isolamento e ao repouso. O meu coração estava pesado.

 

- Para a cama, Adso - disse-me Guilherme, subindo as escadas do albergue dos peregrinos. - Não é uma noite para ficar fora. A Bernardo Gui poderia vir em mente antecipar o fim do mundo começando pelas nossas carcaças. Amanhã procuraremos estar presentes a matinas, porque logo a seguir partirão Miguel e os outros menoritas.

 

- Também partirá Bernardo com os seus prisioneiros? - perguntei com um fio de voz.

 

- Seguramente, não tem mais nada a fazer aqui. Quererá preceder Miguel em Avinhão, mas de modo que a chegada deste coincida com o processo ao despenseiro, menorita, herético e assassino. A fogueira do despenseiro iluminará como archote propiciatório o primeiro encontro de Miguel com o papa.

 

- E que acontecerá a Salvador... e à rapariga?

 

- Salvador acompanhará o despenseiro, porque deverá testemunhar no seu processo. Pode ser que em troca deste serviço Bernardo lhe conceda a vida. Poderá mesmo deixá-lo escapar para depois o mandar matar. Ou talvez o deixe ir verdadeiramente, porque um tipo como Salvador não interessa a um tipo como Bernardo. Quem sabe, talvez acabe como estrangulador nalguma floresta do Languedoc...

 

- E a rapariga?

 

- Já te disse, é carne queimada. Mas arderá primeiro, pelo caminho, para edificação de alguma aldeota cátara ao longo da costa. Ouvi dizer que Bernardo se deve encontrar com o seu colega Jacques Fournier (recorda-te deste nome, por agora queima albigenses, mas visa mais alto), e uma bela bruxa sobre a pira aumentará o prestígio e a fama de ambos...

 

- Mas não se pode fazer nada para os salvar? - gritei. - Não pode intervir o Abade?

 

- Por quem? Pelo despenseiro, réu confesso? Por um miserável como Salvador? Ou tu pensas na rapariga?

 

- E se assim fosse? - ousei. - No fundo, é dos três a única verdadeiramente inocente, vós sabeis que não é uma bruxa...

 

- E crês que o Abade, depois daquilo que sucedeu, quererá arriscar o pouco prestígio que lhe resta por uma bruxa?

 

- Mas assumiu a responsabilidade de deixar fugir Ubertino!

 

- Ubertino era um dos seus monges e não era acusado de nada. E, depois, que tolices me estás a dizer, Ubertino era uma pessoa importante, Bernardo só o poderia atingir pelas costas.

 

- Então o despenseiro tinha razão, os simples pagam sempre por todos, mesmo por aqueles que falam a seu favor, mesmo por aqueles, como Ubertino e Miguel, que com as suas palavras de penitência os impeliram à revolta!

 

Estava desesperado, e não considerava sequer que a rapariga não era um fraticello seduzido pela mística de Ubertino. No entanto, era uma camponesa, e pagava por uma história que não lhe dizia respeito.

 

- Assim é - respondeu-me tristemente Guilherme. - E, se realmente procuras um raio de justiça, dir-te-ei que um dia os cães grandes, o papa e o imperador, para fazerem a paz, passarão sobre o corpo dos cães mais pequenos que se encarniçaram ao seu serviço. E Miguel ou Ubertino serão tratados como hoje é tratada a tua rapariga.

 

Agora sei que Guilherme profetizava, ou melhor, silogizava, com base em princípios de filosofia natural. Mas naquele momento as suas profecias e os seus silogismos não me consolaram absolutamente nada. A única coisa certa era que a rapariga seria queimada. E sentia-me co-responsável, porque era como se na fogueira ela expiasse também o pecado que eu tinha cometido com ela.

 

Sem pudor algum, desatei aos soluços e fugi para a minha cela, onde durante toda a noite mordi o enxergão e gemi impotente, porque nem sequer me era concedido - como tinha lido nos romances de cavalaria com os meus companheiros de Melk - lamentar-me invocando o nome da amada.

 

Do único amor terreno da minha vida não sabia, e jamais soube, o nome.

 

SEXTO DIA

MATINAS

 

Onde os príncipes sederunt, e Malaquias desaba por terra.

 

Descemos a matinas. Aquela última parte da noite, quase a primeira do novo dia iminente, estava ainda enevoada. À medida que atravessava o claustro, a umidade penetrava-me até ao fundo dos ossos, moídos pelo sono inquieto. Embora a igreja estivesse fria, foi com um suspiro de alívio que me ajoelhei sob aquelas abóbadas, ao abrigo dos elementos, confortado pelo calor dos outros corpos, e da oração.

 

O canto dos salmos tinha-se iniciado há pouco, quando Guilherme me indicou um lugar vazio nas estalas à nossa frente, entre Jorge e Pacifico de Tivoli. Era o lugar de Malaquias, que de fato se sentava sempre ao lado do cego. E não éramos nós os únicos que nos tínhamos apercebido daquela ausência. De um lado surpreendi um olhar preocupado do Abade, que decerto já sabia bem como aquelas faltas eram portadoras de sombrias notícias. E do outro reparei numa singular inquietação que agitava o velho Jorge. O seu rosto, habitualmente tão indecifrável por causa dos seus olhos brancos privados de luz, estava quase inteiramente imerso na sombra, mas as suas mãos estavam nervosas e irrequietas. De fato, várias vezes tateou o lugar a seu lado, como para verificar se estava ocupado. Fazia e voltava a fazer o gesto a intervalos regulares, como esperando que o ausente reaparecesse de um momento para o outro, mas temesse não o ver reaparecer.

 

- Onde estará o bibliotecário? - sussurrei a Guilherme.

 

- Malaquias - respondeu Guilherme - era agora o único que tinha o livro nas mãos. Se não é ele o culpado dos delitos, então poderia não conhecer os perigos que aquele livro encerrava...

 

Não havia mais nada a dizer. Devia-se apenas esperar. E esperamos, nós, o Abade, que continuava a fixar a estala vazia, Jorge, que não cessava de interrogar o escuro com as mãos.

 

Quando se chegou ao fim do ofício, o Abade recordou aos monges e aos noviços que era necessário prepararem-se para a grande missa natalícia e que, por isso, como de costume, se empregaria o tempo antes de laudas experimentando o afinamento da comunidade inteira na execução de alguns dos cantos previstos para aquela ocasião. Aquela fileira de homens devotos estava com efeito harmonizada como um só corpo e uma só voz, e por um longo cortejo de anos reconhecia-se unida, como uma única alma, no canto.

 

O Abade convidou a entoar o Sederunt:

 

Sederunt principes et adversus me loquebantur, iniqui. Persecuti sunt me. Adjuva me, Domine, Deus meus salvum me fac propter magnam misericordiam tuam.

 

Perguntei-me se o Abade não teria escolhido mandar cantar aquele gradual precisamente naquela noite, quando ainda estavam presentes à função os enviados dos príncipes, para recordar como há séculos a nossa ordem estava pronta a resistir à perseguição dos poderosos, graças à sua privilegiada relação com o Senhor, Deus dos exércitos. E na verdade o início do canto deu uma grande impressão de poder.

 

Com a primeira silaba se começou um coro lento e solene de dezenas e dezenas de vozes, cujo som baixo encheu as naves e pairou sobre as nossas cabeças, e todavia parecia surgir do coração da terra. E não se interrompeu, porque, enquanto outras vozes começavam a tecer, sobre aquela linha de profundidade e continua, uma série de vocalizos e de melismos, ele - telúrico - continuava a dominar, e não cessou durante todo o tempo que é necessário a um recitante de voz cadenciada e lenta pare repetir doze vezes a Ave-Maria. E, como libertas de todo o temor pela confiança que aquela obstinada sílaba, alegoria da duração eterna, dava aos orantes, as outras vozes (e acima de todas as dos noviços) sobre aquela base pétrea e sólida elevavam cúspides, colunas, pináculos de neumas liquescentes e pontiagudos. E enquanto o meu coração entontecia de doçura ao vibrar de um climacus ou de um porrectus, de um torculus ou de um salicus, aquelas vozes pareciam dizer-me que a alma (a dos orantes e a minha que os escutava), não podendo suportar a exuberância do sentimento, através deles se dilacerava pare exprimir a alegria, a dor, o louvor, o amor, com impulso de sonoridades suaves. Entretanto, o obstinado afinco das vozes atônicas não cedia, como se a presença ameaçadora dos inimigos, dos poderosos que perseguiam o povo do Senhor, permanecesse irresoluta. Até que aquele netúnico tumultuar de uma só nota pareceu vencido, ou pelo menos convencido e cativo do júbilo aleluiático de quem se lhe opunha, e desvaneceu-se num majestoso e perfeitíssimo acordo e num neuma supino.

 

Pronunciado com dificuldade quase obtusa o «sederunt», elevou-se no ar o «príncipes», numa grande e seráfica calma. Deixei de me perguntar quem eram os poderosos que falavam contra mim (contra nós), tinha desaparecido, tinha-se dissipado a sombra daquele fantasma sentado e ameaçador.

 

E outros fantasmas, acreditei então, se dissiparam naquela altura, porque olhando de novo para a estala de Malaquias, depois de a minha atenção ter sido absorvida pelo canto, vi a figura do bibliotecário entre as dos outros orantes, como se jamais tivesse faltado. Olhei para Guilherme e vi uma ligeira expressão de alívio nos seus olhos, a mesma que distingui de longe nos olhos do Abade. Quanto a Jorge, tinha de novo estendido as mãos e, encontrando o corpo do seu vizinho, tinha-as prontamente retirado. Mas, quanto a ele, não saberia dizer que sentimentos o agitavam.

 

Agora o coro estava entoando festivamente o «adjuva me», cujo a claro se espalhava alegremente pela igreja, e mesmo o u não parecia sombrio, como o de «sederunt», mas cheio de santa energia. Os monges e os noviços cantavam, como quer a regra do canto, com o corpo direito, a garganta livre, a cabeça olhando para o alto, o livro quase à altura dos ombros de modo que se possa ler sem que, baixando a cabeça, o ar saia com menor energia do peito. Mas a hora era ainda noturna e, apesar de ressoarem as trombetas da jubilação, a caligem do sono insidiava muitos dos cantores que, perdidos talvez na emissão de uma longa nota, confiantes na própria onda do cântico, por vezes reclinavam a cabeça, tentados pela sonolência. Então, os vigilantes, mesmo naquela circunstancia, exploravam os rostos com a lanterna, um a um, para os reconduzirem justamente à vigília, do corpo e da alma.

 

Foi pois um vigilante o primeiro que descobriu Malaquias a cabecear de modo estranho, a oscilar como se de repente tivesse caído outra vez nas névoas cimérias de um sono que provavelmente naquela noite não tinha dormido. Aproximou-se dele com a lâmpada, iluminando-lhe o rosto e atraindo assim a minha atenção. O bibliotecário não reagiu. O vigilante tocou-lhe, e ele caiu pesadamente para a frente. O vigilante mal teve tempo de o suster antes que ele se precipitasse no solo.

 

O canto abrandou, as vozes extinguiram-se, houve um breve alvoroço.

 

Guilherme tinha imediatamente saltado do seu lugar e tinha-se precipitado para onde já Pacifico de Tivoli e o vigilante estavam estendendo por terra Malaquias, inanimado.

 

Alcançamo-los quase ao mesmo tempo que o Abade, e à luz da lâmpada vimos o rosto do infeliz. Já descrevi o aspecto de Malaquias, mas naquela noite, àquela luz, ele era então a própria imagem da morte. O nariz afilado, os olhos cavos, as têmporas encovadas, as orelhas brancas e contraídas com os lobos voltados para fora, a pele da cara já estava rígida, tesa e seca, a cor das faces amarelada e coberta de uma sombra escura. Os olhos ainda estavam abertos e uma respiração difícil saía daqueles lábios requeimados. Abriu a boca e, inclinado para trás de Guilherme, que se tinha inclinado sobre ele, vi agitar-se na fiada dos seus dentes uma língua já negra. Guilherme levantou-o, abraçando-o pelos ombros, com a mão limpou-lhe um véu de suor que lhe tornava lívida a fronte. Malaquias sentiu um toque, uma presença, olhou fixamente diante de si, certamente sem ver, seguramente sem reconhecer quem estava à sua frente. Levantou uma mão trêmula, agarrou Guilherme pelo peito, puxando-lhe a cara até quase tocar a sua; depois, débil e roucamente, proferiu algumas palavras: - Tinha-mo dito... na verdade... tinha o poder de mil escorpiões...

 

- Quem to tinha dito? - perguntou-lhe Guilherme. - Quem?

 

Malaquias tentou ainda falar. Depois foi sacudido por um grande tremor e a cabeça caiu-lhe de novo para trás. O rosto perdeu toda a cor, toda a aparência de vida. Estava morto.

 

Guilherme levantou-se. Descobriu a seu lado o Abade, e não lhe disse uma palavra. Depois viu, atrás do Abade, Bernardo Gui.

 

- Senhor Bernardo - perguntou Guilherme -, quem matou este, se vós tão bem encontrastes e encarcerastes os assassinos?

 

- Não mo pergunteis a mim - disse Bernardo. - Nunca disse ter entregue à justiça todos os malvados que vagueiam por esta abadia. Tê-lo-ia feito de boa vontade, se pudesse - e olhou para Guilherme. - Mas os outros agora deixo-os à severidade... ou à excessiva indulgência do senhor Abade.

 

Disse, enquanto o Abade empalidecia em silêncio. E afastou-se.

 

Naquele entretanto ouvimos como um pipilar, um soluço abafado. Era Jorge, dobrado sobre o seu genuflexório, segurado por um monge que devia ter-lhe descrito o acontecido.

 

- Jamais acabará - disse com voz entrecortada. - Oh, Senhor, perdoa-nos a todos!

 

Guilherme inclinou-se ainda um momento sobre o cadáver. Agarrou-lhe os pulsos, voltando-lhe para a luz as palmas das mãos. As pontas dos primeiros dedos da mão direita estavam escuras.

 

SEXTO DIA

LAUDAS

 

Onde é eleito um novo despenseiro, mas não um novo bibliotecário.

 

Era já a hora de laudas? Era mais cedo ou mais tarde? A partir daquele momento perdi a noção do tempo. Passaram talvez horas, talvez menos, em que o corpo de Malaquias esteve estendido na igreja sobre um catafalco, enquanto os irmãos se dispunham em leque. O Abade dava disposições para as próximas exéquias. Ouvi-o chamar a si Bêncio e Nicolau de Morimondo. No espaço de menos de um dia, disse, a abadia tinha sido privada do bibliotecário e do despenseiro.

 

- Tu - disse a Nicolau - assumirás as funções de Remígio. Conheces o trabalho de muitos, aqui na abadia. Põe alguém em teu lugar de guarda às forjas, provê às necessidades imediatas de hoje, na cozinha, no refeitório. Estás dispensado dos ofícios. Vai. - Depois, a Bêncio: - Precisamente ontem à noite foste nomeado ajudante de Malaquias. Provê à abertura do scriptorium e vigia que ninguém suba sozinho à biblioteca.

 

Bêncio fez timidamente observar que ainda não tinha sido iniciado nos segredos daquele lugar. O Abade fixou-o com severidade:

 

- Ninguém disse que o serás. Tu vigia que o trabalho não pare e seja vivido como oração pelos irmãos mortos... e por aqueles que morrerão ainda. Cada um trabalhará apenas sobre os livros que já lhe foram entregues, quem quiser poderá consultar o catálogo. Nada mais. Estás dispensado das vésperas, porque àquela hora fecharás tudo.

 

- E como sairei? - perguntou Bêncio.

 

- É verdade, fecharei eu as portas de baixo depois da ceia. Vai.

 

Saiu com eles, evitando Guilherme, que procurava falar-lhe. No coro ficavam, em pequeno grupo, Alinardo, Pacifico de Tivoli, Aymaro de Alexandria e Pedro de Sant'Albano. Aymaro escarnecia.

 

- Agradeçamos ao Senhor - disse. - Morto o alemão, corríamos o risco de termos um novo bibliotecário mais bárbaro ainda.

 

- Quem pensais que será nomeado para o seu lugar? - perguntou Guilherme.

 

Pedro de Sant'Albano sorriu de modo enigmático:

 

- Depois de tudo o que aconteceu nestes dias, o problema já não é o bibliotecário, mas sim o Abade...

 

- Cala-te - disse-lhe Pacífico.

 

E Alinardo, sempre com o seu olhar absorto:

 

- Vão cometer outra injustiça... como nos meus tempos. É preciso impedi-los.

 

- Quem? - perguntou Guilherme.

 

Pacífico pegou-lhe confidencialmente por um braço e acompanhou-o para longe do velho, em direção à porta.

 

- Alinardo... tu bem sabes, amamo-lo muito, representa para nós a antiga tradição e os dias melhores da abadia... Mas por vezes fala sem saber o que diz. Todos nós estamos preocupados por causa do novo bibliotecário. Deverá ser digno, e maduro, e sábio... Eis tudo.

 

- Deverá conhecer o grego? - perguntou Guilherme.

 

- E o árabe, assim quer a tradição, assim exige o seu ofício. Mas há muitos entre nós com estes dotes. Eu, humildemente, e Pedro, e Aymaro...

 

- Bêncio sabe grego?

 

- Bêncio é demasiado jovem. Não sei porque é que Malaquias o escolheu ontem como seu ajudante, mas...

 

- Adelmo conhecia o grego?

 

- Creio que não. Aliás, não, sem dúvida.

 

- Mas conhecia-o Venancio. E Berengário. Está bem, agradeço-te.

 

Saímos para ir tomar qualquer coisa à cozinha.

 

- Porque queríeis saber quem conhecia o grego? - perguntei.

 

- Porque todos aqueles que morrem com os dedos negros conhecem o grego. Portanto não será mal esperarmos o próximo cadáver entre aqueles que sabem grego. Eu incluído. Tu estás salvo.

 

- E que pensais das últimas palavras de Malaquias?

 

- Tu ouviste-as. Os escorpiões. A quinta trombeta anuncia entre outras coisas a saída dos gafanhotos que atormentarão os homens com um aguilhão semelhante ao do escorpião, bem o sabes. E Malaquias fez-nos saber que alguém lho tinha anunciado.

 

- A sexta trombeta - disse eu - anuncia cavalos com cabeças de leões de cuja boca sai fumo e fogo e enxofre, montados por homens cobertos de couraças cor de fogo, jacinto e enxofre.

 

- Coisas de mais. Mas o próximo delito poderia ter lugar perto das cavalariças. Será preciso tê-las debaixo de olho. E preparemo-nos para o sétimo ressoar. Mais duas pessoas, portanto. Quem são os candidatos mais prováveis? Se o objetivo é o segredo do finis Africae, aqueles que o conhecem. E, que eu saiba, existe só o Abade. A menos que a trama não seja ainda outra. Como ouviste, há pouco, estavam conjurando para depor o Abade, mas Alinardo falou no plural...

 

- Será preciso prevenir o Abade? - disse eu.

 

- De quê? Que o matarão? Não tenho provas convincentes. Eu procedo como se o assassino raciocinasse como eu. Mas se perseguisse um outro desígnio? E se, sobretudo, não houvesse um assassino?

 

- Que pretendeis dizer?

 

- Não sei exatamente. Mas, como te disse, é preciso imaginar todas as ordens possíveis, e todas as desordens.

 

SEXTO DIA

PRIMA

 

Onde Nicola conta muitas coisas enquanto se visita a cripta do tesouro.

 

Nicolau de Morimondo, no seu novo papel de despenseiro, estava dando ordens aos cozinheiros, e estes estavam a dar-lhe informações sobre os usos da cozinha. Guilherme queria falar-lhe, e ele pediu-nos que esperássemos alguns minutos. Depois, disse, deveria descer à cripta do tesouro para vigiar o trabalho de limpeza das custódias, que ainda lhe competia, e ali teria mais tempo para conversar.

 

Pouco depois, de fato, convidou-nos a segui-lo, entrou na igreja, passou por trás do altar-mor (enquanto os monges estavam dispondo um catafalco na nave, para velar os despojos mortais de Malaquias), e fez-nos descer uma escada estreita, aos pés da qual nos encontramos numa sala de abóbadas muito baixas sustentadas por grossas pilastras de pedra não trabalhada. Estávamos na cripta em que se guardavam as riquezas da abadia, lugar de que o Abade era muito cioso e que se abria apenas em circunstancias excepcionais e para hóspedes de muito respeito.

 

A toda a volta havia custodias de diferentes tamanhos, no interior das quais a luz das rochas (acesas por dois ajudantes da confiança de Nicolau) fazia resplandecer objetos de maravilhosa beleza. Paramentos dourados, coroas de ouro com incrustações de gemas, escrínios de vários metais historiados com figuras, trabalhos de nielo, marfins. Nicolau mostrou-nos, extasiado, um evangeliário cuja encadernação ostentava admiráveis placas de esmalte que compunham uma variedade unidade de compartimentos regulares, divididos por filigranas de ouro e fixados, como pregos, por pedras preciosas. Indicou-nos uma delicada edícula com duas colunas de lápis-lazúli e ouro que enquadravam uma deposição do sepulcro representada em delicado baixo-relevo de prata encimada por uma cruz de ouro com treze diamantes incrustados sobre um fundo de ônix variado, enquanto o pequeno frontão era armado em ágata e rubis. Depois vi um díptico criselefantino dividido em cinco partes, com cinco cenas da vida de Cristo, e ao centro um cordeiro místico composto de alvéolos de prata dourada com massa de vidro, única imagem policroma sobre um fundo de cérea brancura.

 

O rosto, os gestos de Nicolau, à medida que nos indicava estas coisas, iluminavam-se de orgulho. Guilherme louvou as coisas que tinha visto, depois perguntou a Nicolau que espécie de pessoa era Malaquias.

 

- Estranha pergunta - disse Nicolau -, tu também o conhecias.

 

- Sim, mas não o bastante. Nunca compreendi que pensamentos ocultava... e... - hesitou em pronunciar juízos sobre alguém que há pouco tinha desaparecido - ...e se os tinha.

 

Nicolau umedeceu um dedo, passou-o sobre uma superfície de cristal que não estava perfeitamente polida e respondeu com um meio-sorriso, sem olhar Guilherme no rosto:

 

- Vês que não tens necessidade de fazer perguntas... É verdade, no dizer de muitos, Malaquias parecia bastante pensativo, mas era, pelo contrário, um homem muito simples. Segundo Alinardo, era um idiota.

 

- Alinardo guarda rancor a alguém por um acontecimento remoto, quando lhe foi negada a dignidade de bibliotecário.

 

- Também eu ouvi falar disso, mas trata-se de uma velha história, remonta há pelo menos cinqüenta anos. Quando eu aqui cheguei era bibliotecário Roberto de Bobbio, e os velhos murmuravam sobre uma injustiça cometida em prejuízo de Alinardo. Então não quis aprofundar, porque me parecia falta de respeito para com os mais velhos e não queria prestar-me a murmurações. Roberto tinha um ajudante, que depois morreu, e em seu lugar foi nomeado Malaquias, ainda muito jovem. Muitos disseram que não tinha mérito algum, que afirmava saber grego e árabe e não era verdade, era apenas um bom imitador que copiava em bela caligrafia os manuscritos naquelas línguas mas sem compreender o que copiava. Dizia-se que um bibliotecário deve ser bastante mais douto. Alinardo, que então era ainda um homem cheio de força, disse coisas duríssimas sobre essa nomeação. E insinuou que Malaquias tinha sido posto naquele lugar para fazer o jogo do seu inimigo, mas não compreendi de quem falava. Eis tudo. Sempre se murmurou que Malaquias defendia a biblioteca como um cão de guarda mas sem bem compreender aquilo que ela encerrava. Por outro lado, também se murmurou contra Berengário, quando Malaquias o escolheu como seu ajudante. Dizia-se que ele também não era mais hábil que o seu mestre, que era apenas um intriguista. Também se disse... mas, aliás, também tu deves ter ouvido estas murmurações... que havia uma estranha relação entre Malaquias e ele... coisas velhas, depois sabes que se murmurou de Berengário e de Adelmo, e os copistas jovens diziam que Malaquias sofria em silêncio um ciúme atroz... E depois também se murmurava das relações entre Malaquias e Jorge, não, não no sentido que podes imaginar... nunca ninguém murmurou sobre a virtude de Jorge! Mas Malaquias, como bibliotecário, por tradição, devia ter eleito o Abade como seu confessor, enquanto todos os outros se confessam a Jorge (ou a Alinardo, mas o velho já está quase demente)... Pois bem, dizia-se que, apesar disso, Malaquias conversava com demasiada freqüência com Jorge, como se o Abade dirigisse a sua alma, mas Jorge regulasse o seu corpo, os seus gestos, o seu trabalho. Por outro lado, tu sabe-lo, viste-o, provavelmente: se alguém queria uma indicação sobre um livro antigo e esquecido, não a pedia a Malaquias, mas a Jorge. Malaquias guardava o catálogo e subia à biblioteca, mas Jorge sabia o que significava cada título...

 

- Porque é que Jorge sabia tantas coisas sobre a biblioteca?

 

- Era o mais velho, depois de Alinardo, está aqui desde a sua juventude. Jorge deve ter mais de oitenta anos, diz-se que está cego há pelo menos quarenta anos ou talvez mais...

 

- Como é que conseguiu tornar-se tão sabedor antes da cegueira?

 

- Oh, existem lendas sobre ele. Parece que já em criança era tocado pela graça divina, e lá, em Castela, ainda impúbere, lia livros dos árabes e dos doutores gregos. E depois, mesmo após a cegueira, mesmo agora, senta-se longas horas na biblioteca, pede que lhe recitem o catálogo, pede que lhe tragam livros, e um noviço lê para ele em voz alta durante horas e horas. Ele lembra-se de tudo, não é desmemoriado como Alinardo. Mas porque me perguntas todas estas coisas?

 

- Agora que Malaquias e Berengário estão mortos, quem mais possui os segredos da biblioteca?

 

- O Abade, e o Abade deverá agora transmiti-los a Bêncio... se quiser...

 

- Porquê se quiser?

 

- Porque Bêncio é jovem, foi nomeado ajudante quando Malaquias ainda era vivo, ser ajudante-bibliotecário é diferente de ser bibliotecário. Por tradição, o bibliotecário torna-se depois Abade...

 

- Ah, é assim... Por isso o lugar de bibliotecário é tão cobiçado. Mas então Abbone foi bibliotecário?

 

- Não, Abbone não. A sua nomeação teve lugar antes de eu aqui chegar, deve haver agora trinta anos. Antes era abade Paulo de Rimini, um homem curioso de quem se contam estranhas histórias: parece que era um leitor insaciável, conhecia de cor todos os livros da biblioteca, mas tinha uma estranha enfermidade, não conseguia escrever, chamavam-lhe Abbas agraphicus... Tornou-se abade muito jovem, dizia-se que tinha o apoio de Algirdas de Cluny, o Doctor Quadratus... Mas isto são velhos falatórios dos monges. Em suma, Paulo veio a ser abade, Roberto de Bobbio tomou o seu lugar na biblioteca, mas era minado por um mal que o consumia, sabia-se que não poderia presidir aos destinos da abadia, e quando Paulo de Rimini desapareceu...

 

- Morreu?

 

- Não, desapareceu, não sei como, um dia partiu para uma viagem e não voltou mais, foi talvez morto pelos ladrões no decurso da viagem... Em suma, quando Paulo desapareceu, Roberto não podia tomar o seu lugar, e houve tramas obscuras. Abbone, diz-se, era filho natural do senhor desta região, tinha crescido na abadia de Fossanova, dizia-se que ainda moço tinha assistido São Tomás quando ali morreu e tinha velado pelo transporte daquele grande corpo descendo a escada de uma grande torre por onde o cadáver não conseguia passar... aquela era a sua glória, murmuravam as más línguas daqui... O fato é que foi eleito abade, embora não tivesse sido bibliotecário, e foi instruído por alguém, Roberto, creio, nos mistérios da biblioteca.

 

- E Roberto porque foi eleito?

 

- Não sei. Sempre procurei não investigar demasiado sobre estas coisas: as nossas abadias são lugares santos, mas em torno da dignidade abacial são tecidas, por vezes, horríveis tramas. Eu interessava-me pelos meus vidros e pelos meus relicários, não queria ser misturado com estas histórias. Mas agora compreendes porque não sei se o Abade quer instruir Bêncio, seria como designá-lo seu sucessor, um rapaz irrefletido, um gramático quase bárbaro, do extremo norte, como poderia saber deste país, da abadia e das suas relações com os senhores do lugar...

 

- Mas Malaquias também não era italiano, nem Berengário, e no entanto foram postos à frente da biblioteca.

 

- Eis um fato obscuro. Os monges murmuram que de há meio século a esta parte a abadia abandonou as suas tradições. Por isso, há mais de cinqüenta anos, e talvez antes, Alinardo aspirava a dignidade de bibliotecário. O bibliotecário sempre tinha sido italiano, não faltam os grandes engenhos nesta terra. E depois vês... - e aqui Nicolau hesitou, como se não quisesse dizer aquilo que ia dizer - ...vês, Malaquias e Berengário estão mortos, talvez para que não viessem a ser abades. - Sacudiu-se, agitou a mão diante do rosto como para afugentar idéias pouco honestas, depois fez o sinal da cruz. - Que coisa estou eu dizendo? Vês, neste país há muitos anos que se passam coisas vergonhosas, mesmo nos mosteiros, na corte papal, nas igrejas... Lutas para conquistar o poder, acusações de heresia para tirar uma prebenda a alguém... Que horror, eu estou a perder a confiança no gênero humano, vejo conluios e conjures palacianas por toda a parte. A isto devia reduzir-se também esta abadia, um ninho de víboras surgido por magia oculta naquilo que era uma custódia de membros santos. Olha, o passado deste mosteiro!

 

Apontava-nos os tesouros espalhados a toda a volta, e, deixando de lado cruzes e outras alfaias sagradas, levou-nos a ver os relicários que constituíam a glória daquele lugar.

 

- Olhai – dizia -, esta é a ponta da lança que trespassou o lado do Salvador!

 

Era uma caixa de ouro, com tampa de cristal, onde sobre uma almofadinha de púrpura repousava um pedaço de ferro de forma triangular, já roído pela ferrugem mas agora trazido a um vivo esplendor por um longo trabalho de óleos e de ceras. Mas isto ainda não era nada. Porque numa outra caixa de prata com incrustações de ametista, e cuja parede anterior era transparente, vi um pedaço do lenho venerando da santa cruz, trazido para aquela abadia pela própria rainha Helena, mãe do imperador Constantino, depois de ter ido como peregrina aos lugares santos e de ter exumado a colina do Gólgota e o santo sepulcro, construindo nesse lugar uma catedral.

 

Depois Nicolau fez-nos admirar outras coisas, e não saberia falar de todas, pela sua quantidade e pela sua raridade. Estava, numa custódia toda de águas-marinhas, um prego da cruz. Estava numa ampola, pousado num ninho de pequenas rosas murchas, uma parte da coroa de espinhos, e noutra caixa, sempre sobre um tapete de flores secas, um pedacinho amarelecido da toalha da última ceia. E depois estava a bolsa de São Mateus, em malha de prata, e num cilindro, atado com uma fita violeta roída pelo tempo e selado de ouro, um osso do braço de Santa Ana! Vi, maravilha das maravilhas, encimada por um sino de vidro e sobre uma almofada vermelha bordada de pérolas, um pedaço da manjedoura de Belém, e um palmo da túnica purpúrea de São João Evangelista, duas das correntes que apertaram os tornozelos do apóstolo Pedro em Roma, o crânio de Santo Adalberto, a espada de Santo Estêvão, uma tíbia de Santa Margarida, um dedo de São Vital, uma costela de Santa Sofia, o queixo de Santo Eobano, a parte superior da omoplata de São Crisóstomo, o anel de noivado de São José, um dente do Baptista, a vara de Moisés, uma rendinha rasgada e finíssima do vestido nupcial da Virgem Maria.

 

E depois outras coisas que não eram relíquias mas representavam mesmo assim testemunhos de prodígios e de seres prodigiosos de terras longínquas, trazidos pare a abadia por monges que tinham viajado até aos extremos confins do mundo: um basilisco e um hidra empalhados, um corno de unicórnio, um ovo que um eremita tinha encontrado dentro de outro ovo, um pedaço do maná que nutriu os hebreus no deserto, um dente de baleia, uma noz de coco, o úmero de um animal pré-diluviano, a presa de marfim de um elefante, a costela de um golfinho. E depois ainda outras relíquias que não reconheci, cujos relicários eram talvez mais preciosos, e algumas (a avaliar pela fatura dos seus recipientes de prata enegrecida) antiqüíssimas, uma série infinita de fragmentos de ossos, de tecido, de madeira, de metal, de vidro. E frascos com pós escuros, um dos quais soube que continha os detritos calcinados da cidade de Sodoma, e outro cal dos muros de Jericó. Tudo coisas, mesmo as mais modestas, pelas quais um imperador daria mais de um feudo, e que constituíam uma reserva não só de imenso prestígio mas também de verdadeira riqueza material para a abadia que nos hospedava.

 

Continuava a vaguear estupefato, enquanto Nicolau já tinha deixado de nos ilustrar os objetos, que aliás eram descritos cada um por uma etiqueta, já livre de passear quase ao acaso por aquela reserva de maravilhas inestimáveis, por vezes admirando aquelas coisas em plena luz, outras vezes entrevendo-as na semiobscuridade, quando os acólitos de Nicolau se afastavam para outro ponto da cripta com as suas tochas. Estava fascinado por aquelas cartilagens amarelecidas, místicas e repugnantes ao mesmo tempo, transparentes e misteriosas, por aqueles farrapos de vestidos de época imemorial, descorados, desfiados, por vezes enrolados num frasco como um manuscrito desbotado, por aquelas matérias em migalhas que se confundiam com o tecido que lhes servia de leito, detritos santos de uma vida que foi animal (e racional) e agora, aprisionados por edifícios de cristal ou de metal que mimavam na sua minúscula dimensão a ousadia das catedrais de pedra, com as suas torres e as suas agulhas, pareciam transformados também eles em substancia mineral. Assim, então, os corpos dos santos esperam sepultos a ressurreição da carne? Destes estilhaços se haveriam de recompor aqueles organismos que no fulgor da visão divina, readquirindo toda a sua sensibilidade natural, haviam de perceber, como escrevia Piperno, até as mínimas differentias odorum?

 

Sacudiu-me das minhas meditações Guilherme, que me tocava no ombro:

 

- Eu vou-me embora - disse. - Subo ao scriptorium, ainda tenho de consultar uma coisa...

 

- Mas não se poderão obter livros - disse eu - Bêncio recebeu ordem...

 

- Tenho só de examinar ainda o livro que lia no outro dia, e ainda estão todos no scriptorium sobre a mesa de Venancio. Tu, se quiseres, fica aqui. Esta cripta é um belo epítome aos debates sobre a pobreza a que assististe nestes dias. E agora sabes por que coisa se esganam estes teus irmãos, quando aspiram à dignidade abacial.

 

- Mas vós acreditais naquilo que vos sugeriu Nicolau? Os delitos têm a ver então com uma luta pela investidura?

 

- Já te disse que por agora não quero arriscar hipóteses em voz alta. Nicolau disse muitas coisas. E algumas interessaram-me. Mas agora vou seguir uma outra pista ainda. Ou talvez a mesma, mas por outro lado. E tu não te encantes demasiado com estas custódias. Fragmentos da cruz vi muitos outros, noutras igrejas. Se todos fossem autênticos, Nosso Senhor não teria sido supliciado sobre duas hastes cruzadas, mas sobre uma floresta inteira.

 

- Mestre! - disse eu escandalizado.

 

- É assim, Adso. E há tesouros ainda mais ricos. Há tempos, na catedral de Colônia, vi o crânio de João Baptista com a idade de doze anos.

 

- Verdade? - exclamei admirado. Depois, preso por uma dúvida: - Mas o Baptista foi morto em idade mais avançada!

 

- O outro crânio deve estar noutro tesouro - disse Guilherme com ar sério.

 

Eu nunca compreendia quando gracejava. Na minha terra, quando se brinca, diz-se uma coisa e depois ri-se com muito barulho, de modo que todos participem na piada. Guilherme, pelo contrário, ria só quando dizia coisas sérias, e ficava muito sério quando presumivelmente gracejava.

 

SEXTO DIA

TERÇA

 

Onde Adso, escutando o Dies irae, tem um sonho ou visão, como se lhe queira chamar.

 

Guilherme saudou Nicolau e subiu ao scriptorium. Eu já tinha visto bastante do tesouro, e decidi ir para a igreja rezar pela alma de Malaquias. Nunca tinha gostado daquele homem, que me fazia medo, e não escondo que durante muito tempo o tinha julgado culpado de todos os delitos. Agora tinha ouvido que talvez fosse um pobre homem, oprimido por paixões insatisfeitas, vaso de barro entre vasos de ferro, ensombrado porque desorientado, silencioso e evasivo porque consciente de nada ter a dizer. Sentia um certo remorso em relação a ele, e pensei que a oração pelo seu destino sobrenatural poderia aquietar os meus sentimentos de culpa.

 

A igreja estava agora iluminada por uma claridade tênue e lívida, dominada pelos despojos do desventurado, habitada pelo sussurro uniforme dos monges que recitavam o ofício dos mortos.

 

No mosteiro de Melk tinha assistido várias vezes ao trespasse de um irmão. Era uma circunstancia que não posso dizer alegre mas que me parecia todavia serena, regulada pela calma e por um sentido difuso de justiça. Cada um se revezava na cela do moribundo, confortando-o com boas palavras, e cada um pensava no seu coração como o moribundo era feliz, porque estava prestes a coroar uma vida virtuosa e dentro em pouco se uniria ao coro dos anjos, no júbilo que jamais tem fim. E parte desta serenidade, a fragrância daquela santa inveja, comunicava-se ao moribundo, que no fim falecia sereno. Quão diversas tinham sido as mortes daqueles últimos dias! Eu tinha finalmente visto de perto como morria uma vítima dos diabólicos escorpiões do finis Africae, e certamente também tinham morrido assim Venancio e Berengário, procurando conforto na água, com o rosto já desfeito como o de Malaquias...

 

Sentei-me no fundo da igreja, enrosquei-me sobre mim mesmo para combater o frio. Senti um pouco de calor, movi os lábios para me unir ao coro dos meus irmãos orantes. Seguia-os quase sem dar conta do que diziam os meus lábios, com a cabeça que me descaía e os olhos que se me fechavam. Passou muito tempo, creio ter adormecido e acordado pelo menos três ou quatro vezes. Depois o coro entoou o Dies irae... O salmodiar invadiu-me como um narcótico. Adormeci de todo. Ou talvez, mais que adormecer, caí exausto num agitado torpor, dobrado sobre mim mesmo, como uma criatura ainda encerrada no ventre da mãe. E naquela névoa da alma, encontrando-me como numa região que não era deste mundo, tive uma visão ou sonho, tanto faz.

 

Penetrava por uma escada estreita num beco subterrâneo, como se entrasse na cripta do tesouro, mas acedia, descendo sempre, a uma cripta mais ampla, que eram as cozinhas do Edifício. Eram certamente as cozinhas, mas não só operavam fornos e potes mas também foles e martelos, como se também ali tivessem marcado encontro os ferreiros de Nicolau. Era tudo um relampejar vermelho de fogões e de caldeiras, e panelas a ferver que lançavam fumo enquanto à superfície dos seus líquidos subiam grossas bolhas crepitantes que se abriam, depois de repente com rumor surdo e contínuo. Os cozinheiros agitavam espetos pelo ar, enquanto os noviços, todos ali reunidos, davam saltos para capturar os frangos e outras aves enfiadas naqueles ferros em brasa. Mas, ao lado, os ferreiros martelavam com tal força que todo o ar ensurdecia, e nuvens de centelhas levantavam-se das bigornas confundindo-se com as que expeliam os dois fornos.

 

Não compreendia se me encontrava no inferno ou num paraíso como poderia tê-lo concebido Salvador, gotejante de molhos e palpitante de chouriços. Mas não tive tempo para me perguntar onde estava, porque um bando de homenzinhos, de anõezinhos de cabeça grande em forma de panela, entraram a correr e, arrastando-me no seu ímpeto, impeliram-me para a soleira do refeitório, obrigando-me a entrar.

 

A sala estava adornada para uma festa. Grandes tapeçarias e estandartes pendiam das paredes, mas as imagens que as adornavam não eram aquelas que habitualmente fazem apelo à piedade dos fiéis ou celebram as glórias dos reis. Elas pareciam mais inspiradas nos marginalia de Adelmo e, das suas imagens, reproduziam as menos tremendas e as mais grotescas: lebres que dançavam em redor do mastro de cocanha, rios sulcados por peixes que se lançavam espontaneamente na frigideira, segura por macacos vestidos de bispos-cozinheiros, monstros de ventre gordo que dançavam em redor de marmitas fumegantes.

 

Ao centro da mesa estava o Abade, vestido de festa, com um largo hábito de púrpura bordada, empunhando o seu garfo como um cetro. A seu lado, Jorge bebia de uma grande caneca de vinho, e o despenseiro, vestido como Bernardo Gui, lia virtuosamente por um livro em forma de escorpião as vidas dos santos e as passagens do evangelho, mas eram histórias que falavam de Jesus, que gracejava com o apóstolo recordando-lhe que era uma pedra e sobre aquela pedra desavergonhada que rolava pela planura fundaria a sua Igreja, ou a história de São Jerônimo, que comentava a Bíblia dizendo que Deus queria desnudar o traseiro a Jerusalém. E, a cada frase do despenseiro, Jorge ria batendo com o punho na mesa e gritava: «Tu serás o próximo abade, ventre de Deus!», dizia assim mesmo, Deus me perdoe.

 

A um sinal divertido do Abade entrou a teoria das virgens. Era uma fulgurante fila de mulheres ricamente vestidas, no centro das quais me pareceu à primeira vista distinguir minha mãe, depois dei-me conta do engano, porque se tratava certamente da rapariga terrível como exército alinhado para a batalha. Salvo que trazia na cabeça uma coroa de pérolas brancas, em duas fiadas, e outras duas cascatas de pérolas desciam de cada lado do seu rosto, confundindo-se com outras duas fiadas de pérolas que lhe pendiam sobre o peito, e a cada pérola estava preso um diamante grande como uma ameixa. Além disso, de ambas as orelhas descia uma fiada de pérolas azuis que se uniam em gorjeira na base do pescoço, branco e ereto como uma torre do Líbano. O manto era cor de múrice, e na mão tinha uma taça de ouro com incrustações de diamantes, a qual vim a saber, não sei como, que continha o ungüento mortal roubado um dia a Severino. Seguiam esta mulher, bela como a aurora, outras figuras femininas, uma vestida de um manto branco bordado sobre uma veste escura adornada por uma dupla estola de ouro semeada de flores do campo; a segunda tinha um manto de damasco amarelo sobre uma veste rosa-pálido constelada de folhas verdes e com dois grandes quadrados fiados em forma de labirinto escuro; e a terceira tinha o manto vermelho e a veste esmeralda salpicada de pequenos animais vermelhos, e trazia nas mãos uma estola bordada e branca; e, quanto às outras, não observei as suas vestes, porque procurava compreender quem eram aquelas que acompanhavam a rapariga, que agora se parecia com a Virgem Maria; e como se cada uma trouxesse na mão ou lhe saísse da boca uma etiqueta, soube que eram Rute, Sara, Susana e outras mulheres da sagrada escritura.

 

Naquela altura, o Abade gritou: «Traete, filii de puta!», e entrou no refeitório outra fileira bem ordenada de personagens sagrados, que reconheci logo, austera e esplendidamente vestidos, e no centro da fila estava um sentado no trono, que era Nosso Senhor mas era ao mesmo tempo Adão, vestido com um manto de púrpura e um grande diadema vermelho e branco de rubis e pérolas a fechar o manto sobre os ombros, na cabeça uma coroa semelhante à da rapariga, na mão uma taça maior, cheia de sangue dos porcos. Outros santíssimos personagens de que falarei, todos bem meus conhecidos, faziam círculo à sua volta, mais uma fila de archeiros do rei de França, vestidos quer de verde quer de vermelho, com um escudo esmeraldino sobre o qual ressaltava o monograma de Cristo. O chefe daquela brigada dirigiu-se a prestar homenagem ao Abade estendendo-lhe a taça, dizendo: «Sao ko kelle terre per kelle fine ke ki kontene, trenta anni le possette parte sancti Benedicti.» Ao que o Abade respondeu: «Age primum et septimum de quatuor», e todos entoaram: «In finibus Africae, amen.» Em seguida todos sederunt.

 

Dispersas assim as duas fileiras opostas, a uma ordem do Abade Salomão começou a pôr a mesa, Tiago e André trouxeram um molho de feno, Adão acomodou-se no centro, Eva deitou-se sobre uma folha, Caim entrou arrastando um arado, Abel veio com um balde para mungir Brunello, Noé fez uma entrada triunfal remando de pé sobre a arca, Abraão sentou-se debaixo de uma árvore, Isaac deitou-se sobre o altar de ouro da igreja, Moisés agachou-se sobre uma pedra, Daniel apareceu sobre um estrado fúnebre pelo braço de Malaquias, Tobias estendeu-se sobre um leito, José atirou-se sobre um alqueire, Benjamim estendeu-se sobre um saco, e depois ainda, mas aqui a visão tornava-se confusa, David ficou de pé sobre um montinho, João por terra, Faraó na areia (naturalmente, disse para comigo, mas porquê?), Lázaro sobre a mesa, Jesus na borda do poço, Zaqueu nos ramos de uma árvore, Mateus sobre um escabelo, Raab sobre a estopa, Rute sobre a palha, Tecla sobre o parapeito da janela (aparecendo do exterior o rosto de Adelmo, que advertia que se podia mesmo cair no fundo do despenhadeiro), Susana no horto, Judas no meio dos túmulos, Pedro na cátedra, Tiago numa rede, Elias numa sela, Raquel sobre um fardo. E Paulo apóstolo, pousada a espada, escutava Esaú, que resmungava, enquanto Job gemia no esterco e acorriam em seu auxílio Rebeca com uma veste, Judite com um cobertor, Agar com um lençol mortuário, e alguns noviços traziam um grande caldeirão fumegante do qual saltava Venancio de Salvemec, todo vermelho, que começava a distribuir chouriços de sangue de porco.

 

O refeitório apinhava-se agora cada vez mais, e todos comiam à tripa-forra, Jonas trazia para a mesa abóboras, Isaías legumes, Ezequiel amoras, Zaqueu flores de sicômoro, Adão limões, Daniel tremoços, Faraó pimentos, Caim cardos, Eva figos, Raquel maçãs, Ananias ameixas grandes como diamantes, Lia cebolas, Aarão azeitonas, José um ovo, Noé uvas, Simeão caroços de pêssegos, enquanto Jesus cantava o Dies irae e alegremente espalhava sobre todos os alimentos vinagre que espremia de uma pequena esponja que tinha tirado da lança de um dos archeiros do rei de França.

 

«Meus filhos, ó minhas ovelhinhas», disse então o Abade já ébrio, «não podeis cear assim vestidos como pedintes, vinde, vinde.» E percutia o primeiro e o sétimo dos quatro que saíam, disformes como espectros, do fundo do espelho, o espelho voava em estilhaços e dele se precipitavam por terra, ao longo das salas do labirinto, vestes multicolores incrustadas de pedras, todas sujas e rasgadas. E Zaqueu tomou uma veste branca, Abraão uma cor de pardal, Lot uma cor de enxofre, Jonas azulada, Tecla carmim, Daniel leonina, João irisada, Adão uma de peles, Judas de moedas de prata, Raab escarlate, Eva cor da árvore do bem e do mal, e uns tomavam-na colorida, outros cor de esparto, uns cor de cardo e outros azul-marinho, uns verde-árvore e outros purpúrea, ou então cor de ferrugem e negra e jacinto e cor de fogo e enxofre, e Jesus pavoneava-se numa veste cor lumbina e rindo acusava Judas de jamais saber gracejar em santa alegria.

 

E naquela altura Jorge, depois de tirar os vitra ad legendum, acendeu uma sarça ardente com a lenha que Sara tinha trazido, Jefte tinha apanhado, Isaac tinha descarregado, José tinha cortado, e, enquanto Jacob abria o poço e Daniel se sentava junto ao lago, os servos traziam água. Noé vinho, Agar um odre, Abraão um vitelo que Raab atou a um poste enquanto Jesus estendia a corda e Elias lhe atava os pés: depois Absalão prendeu-o pelos cabelos, Pedro estendeu a espada, Caim matou-o, Herodes derramou o seu sangue, Sem deitou-lhe fora as entranhas e o esterco, Jacob pôs o azeite, Molessadão o sal, Antíoco pô-lo ao fume, Rebeca cozinhou-o e Eva foi a primeira a prová-lo e caiu-lhe mal, mas Adão dizia que não pensasse nisso e batia nas costas de Severino, que aconselhava que lhe juntassem ervas aromáticas. Em seguida, Jesus partiu o pão, distribuiu peixes, Jacob gritava porque Esaú lhe tinha comido as lentilhas todas, Isaac devorava sozinho um cabrito no forno e Jonas uma baleia fervida, e Jesus ficou em jejum durante quarenta dias e quarenta noites.

 

Entretanto, todos entravam e saíam trazendo caça escolhida de todas as formas e cores, de que Benjamim ficava sempre com a parte maior e Maria com a parte melhor, enquanto Marta se queixava de ter sempre que lavar a louça toda. Depois dividiram o vitelo, que entretanto se tinha tornado enorme, e João ficou com a cabeça, Absalão a cerviz, Aarão a língua, Sansão a mandíbula, Pedro a orelha, Holofernes a cabeça, Lia o cú. Saul o colo, Jonas o ventre, Tobias o fel, Eva a costela, Maria o seio, Isabel a vulva, Moisés a cauda, Lot as pernas e Ezequiel os ossos. Entretanto, Jesus devorava um burro, São Francisco um lobo, Abel uma ovelha, Eva uma moréia, o Baptista um gafanhoto, Faraó um polvo (naturalmente, disse pare comigo, mas porquê?), e David comia cantáride atirando-se sobre a rapariga nigra sed formosa enquanto Sansão ferrava os dentes no lombo de um leão e Tecla fugia bradando perseguida por uma aranha grande e peluda.

 

Já estavam evidentemente todos ébrios, e havia uns que escorregavam no vinho, que caíam nas panelas ficando só com as pernas de fora cruzadas como dois paus, e Jesus tinha os dedos todos negros e estendia folhas de livro dizendo tomai e comei, estes são os enigmas de Sinfósio, entre os quais o do peixe que é filho de Deus e vosso salvador. E todos a beber, Jesus vinho de passes, Jonas ultramarino, Faraó sorrentino (porquê?), Moisés gaditano, Isaac cretense, Aarão adriano, Zaqueu arbustino, Tecla queimado, João albano, Abel campano, Maria signing, Raquel florentino.

 

Adão gorgulhava voltado pare trás e o vinho saía-lhe da costela, Noé maldizia no sono Cam, Holofernes ressonava sem suspeita, Jonas dormia como uma pedra, Pedro vigiava até ao canto do galo, e Jesus acordou de repente ouvindo Bernardo Gui e Bertrando do Poggerto que resolviam queimar a rapariga; e gritou, pai, se é possível, que passe de mim este cálice! E havia quem deitava mal, quem bebia bem, quem morria a rir e quem ria ao morrer, quem trazia frascos e bebia pelo copo dos outros. Susana gritava que jamais cederia o seu belo corpo branco ao despenseiro e a Salvador por um mísero coração de boi, Pilatos girava pelo refeitório como uma alma penada pedindo água para as mãos, e frei Dolcino, de pluma no chapéu, levava-lha, depois abria a veste chacoteando e mostrava as pudenta vermelhas de sangue, enquanto Caim fazia pouco dele abraçando a bela Margarida de Trento: e Dolcino punha-se a chorar e ia pousar a cabeça no ombro de Bernardo Gui chamando-lhe papa angélico, Ubertino consolava-o com uma árvore da vida, Miguel de Cesena com uma bolsa de ouro, as Marias aspergiam-no de ungüentos e Adão convencia-o a fincar o dente numa maçã acabada de colher.

 

E então abriram-se as abóbadas do Edifício e desceu do céu Roger Bacon sobre uma máquina voadora, unico homine regente. Depois, David tocou a cítara e Salomé dançou com os seus sete véus, e a cada véu que caía soava uma das sete trombetas e mostrava um dos sete selos até que ficou unicamente amicta sole. Todos diziam que nunca se tinha visto uma abadia tão alegre, e Berengário levantava a cada um a veste, homens e mulheres, beijando-os no traseiro. E teve início uma dança, Jesus vestido de maestro, João de guarda, Pedro de reciário, Nemrod de caçador, Judas de delator, Adão de jardineiro, Eva de tecedeira, Caim de ladrão, Abel de pastor, Jacob de bedel, Zacarias de sacerdote, David de red, Jubal de citarista, Tiago de pescador, Antíoco de cozinheiro, Rebeca de aguadeiro, Molessadão de estúpido, Marta de serve, Herodes de doido furioso, Tobias de médico, José de carpinteiro, Noé de bêbado, Isaac de camponês, Job de homem triste, Daniel de juiz, Tamar de prostituta, Maria de patroa, e ordenava aos servos que trouxessem mais vinho porque o insensato do seu filho não queria transformar a água.

 

Foi então que o Abade perdeu as estribeiras porque, dizia, ele tinha organizado uma festa tão bonita e ninguém lhe doava nada: e todos competiram então para lhe levarem presentes e tesouros, um touro, uma ovelha, um leão, um camelo, um veado, um vitelo, uma jumenta, um carro solar, o queixo de Santo Eobano, a cauda de Santa Morimonda, o útero de Santa Arundalina, a nuca de Santa Burgosina, cinzelada como uma taça com a idade de doze anos, e uma cópia do Pentagonum Salomonis. Mas o Abade pôs-se a gritar que assim fazendo procuravam distrair a sua atenção, e de fato saqueavam-lhe a cripta do tesouro, onde agora nos encontrávamos todos, e que lhe tinham tirado um livro preciosíssimo que falava dos escorpiões e das sete trombetas, e chamava os archeiros do rei de França para que revistassem todos os suspeitos. E foram encontrados, para vergonha de todos, um tecido multicolor sobre Agar, um selo de ouro sobre Raquel, um espelho de prata no seio de Tecla, um sifão para beber debaixo do braço de Benjamim, uma coberta de seda entre as vestes de Judite, uma lança na mão de Longino e a mulher de outro nos braços de Abimeleque. Mas o pior aconteceu quando encontraram um galo negro à rapariga, negra e belíssima como um gato da mesma cor, e lhe chamaram bruxa e pseudo-apóstolo, de modo que todos se lançaram sobre ela para a punirem. O Baptista decapitou-a, Abel esganou-a, Adão expulsou-a, Nabucodonosor escreveu-lhe com uma mão em brasa signos zodiacais no seio, Elias raptou-a num carro de fogo, Noé mergulhou-a na água, Lot transformou-a numa estátua de sal, Susana acusou-a de luxúria, José traiu-a com outra, Ananias meteu-a numa fornalha, Sansão acorrentou-a, Paulo flagelou-a, Pedro crucificou-a de cabeça para baixo, Estevão lapidou-a, Lourenço queimou-a na grelha, Bartolomeu esfolou-a, Judas denunciou-a, o despenseiro queimou-a, e Pedro negava tudo. Depois, todos se lançaram sobre aquele corpo cobrindo-o de excrementos, pisando-lhe a cara, urinando-lhe na cabeça, vomitando-lhe no seio, arrancando-lhe os cabelos, golpeando-lhe as nádegas com fachos ardentes. O corpo da rapariga, tão belo e tão doce em tempos, estava agora a descarnar-se, subdividindo-se em fragmentos que se dispersavam pelas custódias e pelos relicários de cristal e de ouro da cripta. Ou melhor, não era o corpo da rapariga que ia povoar a cripta, eram os fragmentos da cripta que redemoinhando pouco a pouco se compunham para formar o corpo da rapariga, agora coisa mineral, e depois de novo se decompunham dispersando-se, poeira sagrada de segmentos acumulados por uma insensata impiedade. Era agora como se um único corpo imenso se tivesse ao longo dos milênios dissolvido nas suas partes e estas partes se tivessem disposto para ocupar toda a cripta, mais resplandecente mas não dessemelhante do ossário dos monges defuntos, e como se a forma substancial do próprio corpo do homem, obra-prima da criação, se tivesse fragmentado em formas acidentais múltiplas e separadas, tornando-se assim imagem do seu contrário, forma já não ideal mas terrena, de pó e estilhaços nauseabundos, apenas capazes de significar morte e destruição...

 

Já não encontrava agora os personagens do banquete, nem os presentes que tinham trazido, era como se todos os hóspedes do simpósio estivessem agora na cripta, cada um mumificado num detrito próprio, cada um diáfana sinédoque de si mesmo, Raquel como um osso, Daniel como um dente, Sansão como um maxilar, Jesus como um farrapo de veste purpurina. Como se no fim do banquete, tendo-se a festa transformado no massacre da rapariga, este se tivesse tornado o massacre universal e aqui visse o seu resultado final, os corpos (que digo?, a totalidade do corpo terrestre e sublunar daqueles comensais famélicos e sequiosos) transformados num único corpo morto, dilacerado e atormentado como o corpo de Dolcino depois do suplício, transformado num imundo e resplandecente tesouro, estendido em toda a sua superfície como a pele de um animal esfolado e dependurado que porém contivesse ainda petrificados, com o couro, as vísceras e os órgãos todos, e os próprios traços do rosto. A pele com cada uma das suas pregas, rugas e cicatrizes, com os seus planos aveludados, com a floresta dos pêlos, da cútis, do peito, e das pudenta, convertidas num suntuoso damasco, e os seios, as unhas, as formações córneas sob o calcanhar, os filamentos das pestanas, a matéria aquosa dos olhos, a polpa dos lábios, a frágil espinha dorsal, a arquitetura dos ossos, tudo reduzido a farinha arenosa, sem que nada porém tivesse perdido a própria figura e disposição recíproca, as pernas esvaziadas e frouxas como um escarpim, a sua carne disposta ao lado como um casulo com todos os arabescos vermelhos das veias, o amontoado cinzelado das vísceras, o intenso e mucoso rubi do coração, a teoria nacarada dos dentes todos iguais dispostos em colar, com a língua como um brinco rosa e azul, os dedos alinhados como círios, o selo do umbigo a reatar os fios deslocados do tapete do ventre... De toda a parte, na cripta, agora escarnecia de mim, sussurrava-me, convidava-me à morte este macrocorpo subdividido em custódias e relicários e todavia reconstruído na sua vasta e irracional totalidade, e era o mesmo corpo que na ceia comia e cabriolava obsceno e que me aparecia no entanto já fixado na intangibilidade da sua ruína surda e cega. E Ubertino, agarrando-me pelo braço até me enterrar as unhas na carne, sussurrava-me: «Vês, é a mesma coisa, aquele que antes triunfava na sua loucura e que se deleitava no seu jogo agora está aqui, punido e premiado, liberto da sedução das paixões, imobilizado pela eternidade, entregue ao gelo eterno que o conserve e que o purifique, subtraído à corrupção através do triunfo da corrupção, porque já nada poderá reduzir a pó aquilo que já é pó e substancia mineral, mors est quies viatoris, finis est omnis laboris...»

 

Mas de repente entrou na cripta Salvador, flamejante como um feio diabo, e gritou: «Estúpido! Não vês que esta é a grande besta liotarda do livro de Job? De que tens medo, meu patrãozinho? Aqui tens o pastelzinho de queijo!» E repentinamente a cripta iluminou-se de clarões avermelhados e era de novo a cozinha, mas, mais que uma cozinha, era o interior de um grande ventre, mucoso e viscoso, e ao centro estava um animal negro como um corvo e com mil mãos, acorrentado a uma grande grelha, que alongava os seus membros para prender todos aqueles que se encontravam em seu redor, e como o vilão que quando tem sede espreme o cacho de uvas assim aquele animal enorme apertava aqueles que tinha capturado, de tal modo que os quebrava todos com as mãos, a uns as pernas, a outros a cabeça, fazendo depois com eles uma grande barrigada, arrotando um fogo que parecia mais fedorento que o enxofre. Mas, mistério altamente admirável, aquela cena já não me incutia pavor, e surpreendia-me a olhar com familiaridade para aquele «bom diabo» (assim pensei) que ao fim e ao cabo não era outro senão Salvador, porque, agora, do corpo humano mortal, dos seus padecimentos e da sua corrupção sabia tudo e não temia mais nada. De fato, à luz daquela chama, que agora parecia gentil e acolhedora, revi todos os hóspedes da ceia, agora restituídos à sua figura, que cantavam afirmando que de novo tudo recomeçava, e entre eles a rapariga, íntegra e belíssima, que me dizia: «Não é nada, não é nada, verás que depois volto mais bela que antes, deixa que vá só um momento arder na fogueira, depois voltaremos a ver-nos aqui dentro!» E mostrava-me, Deus me perdoe, a sua vulva, na qual entrei, e encontrei-me numa caverna belíssima, que parecia o vale ameno da idade de ouro, orvalhado de águas e frutos e árvores sobre as quais cresciam os pasteizinhos de queijo. E todos estavam agradecendo ao Abade pela bela festa, e manifestavam-lhe o seu afeto e bom humor dando-lhe empurrões, pontapés, arrancando-lhe a veste, atirando-o por terra, dando-lhe vergastadas na verga, enquanto ele ria e pedia que não lhe fizessem mais cócegas. E a cavalo em cavalos que lançavam nuvens de enxofre pelas narinas entraram os frades de vida pobre, que traziam à cinta bolsas cheias de ouro com as quais convertiam os lobos em cordeiros e os cordeiros em lobos, e coroavam-nos imperadores com o beneplácito da assembléia do povo, que cantava hinos à infinita onipotência de Deus. « Ut cachinnis dissolvatur, torquea-tur rictibus!», Gritava Jesus agitando a coroa de espinhos. Entrou o papa João imprecando contra a confusão e dizendo: «Por este andar não sei onde iremos parar!» Mas todos se riam dele e, com o Abade à cabeça, saíram com os porcos à procura de trufas na floresta. Eu estava para os seguir quando vi num canto Guilherme, que saia do labirinto e tinha na mão o magnete, que o arrastava velozmente para setentrião. «Não me deixeis, mestre!», gritei. «Também eu quero ver o que há no finis Africae!»

 

«Já viste!», respondeu-me Guilherme já longe. E acordei quando terminavam na igreja as últimas palavras do canto fúnebre:

 

Lacrimosa dies illa qua resurge! ex favilla iudicandus homo reus: huic ergo parce deus! Pie lesu domine dona eis réquiem.

 

Sinal que a minha visão, se não tinha durado, fulminante como todas as visões, mais do que dura um amém, tinha durado pouco menos que um Dies irae.

 

Sexto dIa

DEPOIS DE TERÇA

 

Onde Guilherme explica a Adso o seu sonho.

 

Saí estonteado pelo portal principal e encontrei-me diante de um a pequena multidão. Eram os franciscanos que partiam, e Guilherme tinha descido para os saudar.

 

Juntei-me ao adeus, aos abraços fraternos. Depois perguntei a Guilherme quando partiriam os outros, com os prisioneiros. Disse-me que já tinham partido meia hora antes, enquanto nós estávamos no tesouro, talvez, pensei, enquanto eu já estava sonhando.

 

Por um momento fiquei consternado, depois refiz-me. Antes assim. Não teria podido suportar a visão dos condenados (digo o pobre desgraçado despenseiro, Salvador... e decerto digo também a rapariga), arrastados para longe e para sempre. E, depois, estava ainda tão perturbado pelo meu sonho que os meus próprios sentimentos se tinham como que enregelado.

 

Enquanto a caravana dos menoritas se encaminhava para a porta de saída da cerca, Guilherme e eu ficamos diante da igreja, ambos melancólicos, embora por razões diversas. Depois decidi contar o sonho ao meu mestre. Por mais que a visão tivesse sido multiforme e ilógica, recordava-a com extraordinária lucidez, imagem por imagem, gesto por gesto, palavra por palavra. E assim a contei, sem transcurar nada, porque sabia que os sonhos são muitas vezes mensagens misteriosas em que as pessoas doutas podem ler claríssimas profecias.

 

Guilherme escutou-me em silêncio, depois perguntou-me:

 

- Tu sabes o que sonhaste?

 

- Aquilo que vos disse... - respondi desconcertado.

 

- Decerto, eu compreendi. Mas sabes que, em grande parte, aquilo que tu me contaste já foi escrito? Tu inseriste pessoas e acontecimentos destes dias num quadro que já conhecias, porque a trama do

sonho já a leste em qualquer parte, ou contaram-ta em criança, na escola, no convento. E a Coena Cypriani.

 

Fiquei perplexo por um instante. Depois recordei-me. Era verdade! Talvez me tivesse esquecido do título, mas que monge adulto ou jovem monge irrequieto não sorriu ou riu sobre as várias visões, em prosa ou em rima, desta história que pertence à tradição do rito pascal e dos ioca monachorum? Proibida ou vituperada pelos mais austeros de entre os mestres dos noviços, não há todavia convento em que os monges não a tenham sussurrado em voz baixa, diversamente resumida e arranjada, enquanto alguns piamente a transcreviam, afirmando que sob o véu da jocosidade ela escondia secretos ensinamentos morais; e outros encorajavam a sua difusão, porque, diziam, através do jogo os jovens podiam mais facilmente aprender de cor os episódios da história sagrada. Uma versão em verso tinha sido escrita para o pontífice João VIII, com a dedicatória: « Ludere me libuit, ludentem, Papa Johannes, accipe. Ridere, si placel, ipse potes.» E dizia-se que o próprio Carlos, o Calvo, tinha posto em cena, a modo de jocosíssimo mistério sagrado, uma versão rimada para divertir a cela os seus dignitários:

 

Ridens cadit Gaudericus Zacharias admiratur, supinus in lectulum docet Anastasius...

 

E quantas repreensões tinha apanhado da parte dos mestres, quando eu e os meus companheiros recitávamos passagens dela. Recordava-me de um velho monge de Melk que dizia que um homem virtuoso como Cipriano não tinha podido escrever uma coisa tão indecente, uma semelhante e sacrílega paródia das escrituras, mais digna de um infiel e de um bufão que de um santo mártir... Há anos que tinha esquecido aqueles jogos infantis. Como é que naquele dia a Coena tinha voltado a aparecer tão viva no meu sonho? Sempre tinha pensado que os sonhos eram mensagens divinas, ou que no máximo eram absurdos balbuciamentos da memória adormecida à volta de coisas acontecidas durante o dia. Apercebia-me agora que também se podem sonhar livros, e que, portanto, se podem sonhar sonhos.

 

- Queria ser Artemidoro para interpretar retamente o teu sonho - disse Guilherme. - Mas parece-me que mesmo sem a sapiência de Artemidoro é fácil compreender aquilo que sucedeu. Tu viveste nestes dias, meu pobre rapaz, uma série de acontecimentos em que qualquer reta regra parece ter-se dissipado. E esta manhã reaflorou à tua mente adormecida a recordação de uma espécie de comédia em que, embora talvez com outros intentos, o mundo se punha de cabeça para baixo. Aí inseriste as tuas recordações mais recentes, as tuas ânsias, os teus temores. Partiste dos marginalia de Adelmo para reviver um grande carnaval em que tudo parece andar às avessas, e todavia, como na Coena, cada um faz aquilo que verdadeiramente faz na vida. E no fim perguntaste-te, no sonho, qual é o mundo errado, e que quer dizer prosseguir de cabeça para baixo. O teu sonho já não sabia onde era o alto e onde o baixo, onde a morte e onde a vida. O teu sonho duvidou dos ensinamentos que recebeste.

 

- Eu não - disse virtuosamente -, mas sim o meu sonho. Mas então os sonhos não são mensagens divinas, são divagações diabólicas e não contêm nenhuma verdade!

 

- Não sei, Adso - disse Guilherme. - Temos já tantas verdades nas mãos que no dia em que chegasse também um a pretender extrair uma verdade dos nossos sonhos então estariam deveras próximos os tempos do Anticristo. E, todavia, quanto mais penso no teu sonho mais o acho revelador. Talvez não para ti, mas para mim. Desculpa-me se me apodero dos teus sonhos para desenvolver as minhas hipóteses, eu sei, é uma coisa vil, não se deveria fazer... Mas creio que a tua alma adormecida compreendeu mais coisas do que compreendi eu em seis dias, e acordado...

 

- Deveras?

 

- Deveras. Ou talvez não. Acho o teu sonho revelador porque coincide com uma das minhas hipóteses. Mas deste-me uma grande ajuda. Obrigado.

 

- Mas que havia no meu sonho que vos interessa tanto? Era sem sentido, como todos os sonhos!

 

- Tinha outro sentido, como todos os sonhos, e as visões. Deve ler-se alegoricamente ou anagogicamente...

 

- Como nas escrituras?

 

- Um sonho é uma escritura, e muitas escrituras não são mais que sonhos.

 

SEXTO DIA

SEXTA

 

Onde se reconstrói a história dos bibliotecários e se tem algumas notícias mais sobre o livro misterioso.

 

Guilherme quis voltar a subir ao scriptorium, de onde tinha acabado de descer. Pediu a Bêncio para consultar o catálogo, e folheou-o rapidamente.

 

- Deve estar por estes lados - dizia -, tinha-o visto precisamente há uma hora... - Deteve-se sobre uma página. - Cá está – disse -, lê este título.

 

Sob uma única referência (finis Africae!) estava uma série de quatro títulos, sinal que se tratava de um único volume que continha vários textos. Li:

 

I.          ar. de dictis cujusdam stulti

 

II.         syr. libellus alchemicus aegypt

 

III.        Expositio Magistri Alcofribae de cena beati Cypriani Cartaginensis Episcopi.

 

IV.       Liber acephalus de stupris virginum et meretricum amoribus

 

- De que coisa se trata? - perguntei.

 

- E o nosso livro - sussurrou-me Guilherme. - Eis porque o teu sonho me sugeriu alguma coisa. Agora tenho a certeza que é este. E de fato... - folheava rapidamente as páginas imediatamente precedentes e as seguintes - eis de fato os livros em que pensava, todos juntos. Mas não é isto o que

queria verificar. Escuta. Tens a tua tabuinha? Bem, devemos fazer um cálculo, e procura recordar-te bem quer do que nos disse Alinardo no outro dia quer do que ouvimos esta manhã a Nicolau. Ora, Nicolau disse-nos que ele chegou aqui há cerca de trinta anos e Abbone já tinha sido nomeado abade. Antes era abade Paulo de Rimini. Certo? Digamos que esta sucessão tem lugar à volta de mil duzentos e noventa, mais ano, menos ano, não importa. Depois Nicolau disse-nos que, quando ele chegou, Roberto de Bobbio já era bibliotecário. Está bem? Morre depois, e o lugar é dado a Malaquias, digamos no início deste século. Escreve. Há porém um período que precede a vinda de Nicolau em que Paulo de Rimini é bibliotecário. Desde quando o era? Não no-lo disseram, poderíamos examinar os registros da abadia, mas imagino que estão na posse do Abade, e de momento não queria pedir-lho. Ponhamos a hipótese que Paulo foi eleito bibliotecário há sessenta anos, escreve. Porque é que Alinardo se queixa do fato que, há cerca de cinqüenta anos, lhe devia tocar a ele o lugar de bibliotecário e, ao contrário, foi dado a outro? Aludia a Paulo de Rimini?

 

- Ou a Roberto de Bobbio! - disse eu.

 

- Pareceria. Mas observa agora este catálogo. Sabes que os títulos são registrados, disse-no-lo Malaquias no primeiro dia. pela ordem das aquisições. E quem os escreve neste catálogo? O bibliotecário. Portanto seguindo a mudança de caligrafia nestas páginas, podemos estabelecer a sucessão dos bibliotecários. Agora observemos o catálogo pelo fim, a última caligrafia é a de Malaquias, muito gótica, como vês. E enche poucas páginas. A abadia não adquiriu muitos livros nestes últimos trinta anos. Depois começa uma série de páginas escritas com uma caligrafia trêmula, leio aí claramente a assinatura de Roberto de Bobbio, doente. Também aqui são poucas páginas, Roberto permanece no cargo provavelmente não muito. E eis o que encontramos agora: páginas e páginas de outra caligrafia, direita e segura, uma série de aquisições (entre as quais o grupo de livros que examinava há pouco) verdadeiramente impressionante. Quanto deve ter trabalhado Paulo de Rimini! Demasiado, se pensares que Nicolau nos disse que se tornou abade em idade muito jovem. Mas suponhamos que em poucos anos este leitor voraz enriqueceu a abadia com tantos livros... Não nos foi dito que lhe chamavam Abbas agraphicus por causa daquele estranho defeito, ou doença, devido ao qual não conseguia escrever? E então quem escrevia aqui? Eu diria o seu ajudante-bibliotecário. Mas se, por acaso, este ajudante-bibliotecário tivesse sido depois nomeado bibliotecário, eis que teria continuado a escrever ele, e compreenderíamos porque há aqui tantas páginas redigidas com a mesma caligrafia. Então teríamos, entre Paulo e Roberto, outro bibliotecário, eleito há cerca de cinqüenta anos, que é o misterioso concorrente de Alinardo, o qual esperava suceder ele, mais velho, a Paulo. Depois este desaparece e de qualquer modo, contra as expectativas de Alinardo e de outros, para o seu lugar é eleito Malaquias.

 

- Mas porque estais tão seguro que esta é a seqüência exata? Mesmo admitindo que esta seja a caligrafia do bibliotecário sem nome, porque é que, ao contrário, não poderiam ser de Paulo os títulos das páginas ainda precedentes?

 

- Porque entre essas aquisições estão registradas todas as bulas e as decretais, que têm uma data precisa. Quero dizer, se tu encontras aqui, como encontras, a Firma cautela de Bonifácio sétimo, datada de mil duzentos e noventa e seis, sabes que este texto não entrou antes desse ano, e podes pensar que não terá chegado muito depois. Com isto, eu tenho como que marcos miliários dispostos ao longo dos anos, pelo que, se concedo que Paulo de Rimini se torna bibliotecário em mil duzentos e sessenta e cinco e abade em mil duzentos e setenta e cinco, e encontro depois que a sua caligrafia, ou a de qualquer outro que não é Roberto de Bobbio, dura de mil duzentos e sessenta e cinco a mil duzentos e oitenta e cinco, descubro uma diferença de dez anos.

 

O meu mestre era verdadeiramente muito perspicaz.

 

- Mas que conclusões tirais dessa descoberta? - perguntei então.

 

- Nenhuma - respondeu-me -, apenas premissas.

 

Depois levantou-se e foi falar com Bêncio. Este estava corajosamente no seu posto, mas com um ar muito pouco seguro. Estava ainda à sua velha mesa e não tinha ousado ocupar a de Malaquias junto do catálogo. Guilherme abordou-o com uma certa distância. Não esquecíamos a desagradável cena da noite anterior.

 

- Embora te tenhas tornado tão potente, senhor bibliotecário, quererás dizer-me uma coisa, espero. Naquela manhã em que Adelmo e os outros discutiram aqui sobre os enigmas argutos, e Berengário fez a primeira referência ao finis Africae, alguém nomeou a Coena Cypriani?

 

- Sim - disse Bêncio -, não to tinha dito? Antes de se falar dos enigmas de Sinfósio, foi precisamente Venancio que se referiu à Coena, e Malaquias irritou-se, dizendo que era uma obra ignóbil e recordando que o Abade tinha proibido a todos a sua leitura...

 

- O Abade, hem? - disse Guilherme. - Muito interessante. Obrigado, Bêncio.

 

- Esperai - disse Bêncio -, quero falar-vos.

 

Fez-nos sinal para o seguirmos para fora do scriptorium, para a escada que descia às cozinhas, de modo que os outros não o ouvissem. Tremiam-lhe os lábios.

 

- Tenho medo, Guilherme - disse. - Também mataram Malaquias. Agora eu sei demasiadas coisas. E depois sou malvisto pelo grupo dos italianos... Não querem mais um bibliotecário estrangeiro... Eu penso que os outros foram eliminados precisamente por isso... Eu nunca vos falei do ódio de Alinardo por Malaquias, dos seus rancores...

 

- Quem é que lhe tirou o lugar, há anos?

 

- Isso não sei, ele fala sempre disso de modo vago, e depois é uma história remota. Devem estar todos mortos. Mas o grupo dos italianos à roda de Alinardo faIa muitas vezes... falava muitas vezes de Malaquias como de um homem de palha, posto aqui por qualquer outro com a cumplicidade do Abade... Eu, sem dar conta disso... entrei no jogo oposto de duas facções... Só o compreendi esta manhã... A Itália é uma terra de conjuras, envenenam os papas, imaginemos um pobre rapaz como eu... Ontem não o tinha compreendido, julgava que tudo dizia respeito àquele livro, mas agora já não tenho a certeza, aquele foi o pretexto: vistes que o livro foi encontrado e Malaquias morreu na mesma... Eu devo... quero... queria fugir. Que me aconselhais?

 

- Que estejas calmo. Agora queres conselhos, não é verdade? Mas ontem à noite parecias o dono do mundo. Tolo, se me tivesses ajudado ontem teríamos impedido este último delito. Foste tu que deste a Malaquias o livro que o levou à morte. Mas diz-me ao menos uma coisa. Tu aquele livro tiveste-o nas mãos, tocaste-lhe, leste-o? E porque é que então não estás morto?

 

- Não sei. Juro, não lhe toquei, ou melhor, toquei-lhe para pegar nele no laboratório, sem o abrir, escondi-o sob a túnica e fui metê-lo na cela debaixo do enxergão. Sabia que Malaquias me vigiava e voltei imediatamente para o scriptorium. E depois, quando Malaquias me ofereceu que me tornasse seu ajudante, conduzi-o à minha cela e entreguei-lhe o livro. É tudo.

 

- Não me digas que nem sequer o abriste.

 

- Sim, abri-o, antes de o esconder, para ter a certeza de que era verdadeiramente aquele que também vós procuráveis. Começava com um manuscrito árabe, depois um que creio em sírio, depois havia um texto latino e por fim um em grego...

 

Recordei-me das siglas que tínhamos visto no catálogo. Os primeiros dois títulos eram indicados como ar. e syr. Era o livro! Mas Guilherme insistia:

 

- Portanto tocaste-lhe e não morreste. Então não se morre ao tocá-lo. E do texto grego que me sabes dizer? Olhaste para ele?

 

- Muito pouco, o bastante para compreender que era sem título, começava como se lhe faltasse uma parte...

 

- Liber acephalus... - murmurou Guilherme.

 

- ...procurei ler a primeira página, mas na verdade eu conheço o grego muito mal, teria tido necessidade de empregar mais tempo. E por fim intrigou-me um outro pormenor, precisamente a propósito das folhas em grego. Não as folheei de todo porque não consegui. As folhas estavam, como dizer, impregnadas de umidade, não se separavam bem umas das outras. E isto porque o pergaminho era estranho... mais macio que os outros pergaminhos, o modo como a primeira página estava corroída, e quase se desfazia, era... em suma, estranho.

 

- Estranho: a expressão também usada por Severino – disse Guilherme.

 

- O pergaminho não parecia pergaminho... Parecia tecido, mas fino... - continuava Bêncio.

 

- Charta lintea, ou pergaminho de pano - disse Guilherme. - Nunca o tinhas visto?

 

- Ouvi falar, mas não creio tê-lo visto. Diz-se que é muito cara, e frágil. Por isso se usa pouco. Fazem-na os árabes, não é verdade?

 

- Foram os primeiros. Mas também a fazem aqui em Itália, em Fabriano. E também... Mas com certeza, claro, com certeza! – Os olhos de Guilherme cintilavam. - Que bela e interessante revelação, muito bem, Bêncio, agradeço-te! Sim, imagino que aqui na biblioteca a charta lintea seja rara, porque não vos chegaram manuscritos muito recentes. E depois muitos temem que não sobreviva à passagem dos séculos como o pergaminho, e talvez seja verdade. Podemos imaginar se aqui queriam algo que não fosse mais perene que o bronze... Pergaminho de pano, hem? Bem, adeus. E está tranqüilo. Tu não corres perigo.

 

- Verdade, Guilherme, assegurais-mo?

 

- Asseguro-to. Se estiveres no teu lugar. Já arranjaste bastantes sarilhos.

 

Afastamo-nos do scriptorium deixando Bêncio, se não completamente sereno, mais calmo.

 

- Estúpido! - disse Guilherme entre dentes enquanto vínhamos para fora. - Podíamos já ter resolvido tudo se não se tivesse metido pelo meio...

 

Encontramos o Abade no refeitório. Guilherme encarou-o e pediu-lhe um colóquio. Abbone não pôde tergiversar e marcou-nos encontro, dentro em pouco, na sua casa.

 

SEXTO DIA

NONA

 

Onde o Abade se recusa a escutar Guilherme, fala da linguagem das gemas e manifesta o desejo de que não se indague mais sobre aqueles tristes acontecimentos.

 

A casa do Abade ficava por cima do capítulo, e pela janela da sala, grande e suntuosa, em que ele nos recebeu, podiam ver-se, no dia sereno e ventoso, para lá do teto da igreja abacial, as formas do Edifício.

 

O Abade, em pé diante de uma janela, estava precisamente a admirá-lo, e indicou-no-lo com um gesto solene.

 

- Admirável fortaleza - disse -, que resume nas suas proporções a regra áurea que presidiu à construção da arca. Estabelecida sobre três andares, porque três é o número da trindade, três foram os anjos que visitaram Abraão, os dias que Jonas passou no ventre do grande peixe, os que Jesus e Lázaro passaram no sepulcro; as vezes que Cristo pediu ao Pai que o cálice amargo se afastasse dele, aquelas que se afastou a rezar com os apóstolos. Três vezes o renegou Pedro, e três vezes se manifestou aos seus depois da ressurreição. Três são as virtudes teologais, três as línguas sagradas, três as partes da alma, três as classes de criaturas intelectuais, anjos, homens e demônios, três as espécies do som, vox, flatus e pulsus, três as épocas da história humana, antes, durante e depois da lei.

 

- Maravilhoso concerto de correspondências místicas - conveio Guilherme.

 

- Mas também a forma quadrada - continuou o Abade - é rica de ensinamentos espirituais. Quatro são os pontos cardeais, as estações, os elementos, e o calor, o frio, o úmido e o seco, o nascimento, o crescimento, a maturidade e a velhice, e as espécies celestes, terrestres, aéreas e aquáticas dos animais, as cores constitutivas do arco-íris e o número dos anos que é necessário para fazer um bissexto.

 

- Oh, decerto - disse Guilherme -, e três mais quatro são sete, número místico como nenhum outro, enquanto três multiplicado por quatro são doze, como os apóstolos, e doze vezes são cento e quarenta e quatro, que é o número dos eleitos.

 

E, a esta última manifestação de místico conhecimento do mundo hiperuranio dos números, o Abade não teve mais nada a acrescentar. O que permitiu a Guilherme entrar no assunto.

 

- Deveríamos falar dos últimos fatos, sobre os quais refleti longamente - disse.

 

O Abade voltou as costas para a janela e encarou Guilherme com rosto severo:

 

- Demasiado longamente, talvez. Confesso-vos, frade Guilherme, que esperava mais de vós. Desde que aqui chegastes que se passaram quase seis dias, quatro monges morreram, além de Adelmo, dois foram presos pela inquisição... foi justiça, decerto, mas poderíamos ter evitado esta vergonha se o inquisidor não tivesse sido obrigado a ocupar-se dos delitos precedentes... e por fim o encontro de que eu era medianeiro, e precisamente por causa de todos estes crimes, deu penosos resultados... Convireis que podia esperar um desfecho diverso de todos estes acontecimentos quando vos pedi para investigardes sobre a morte de Adelmo...

 

Guilherme calou-se embaraçado. Decerto que o Abade tinha razão. Disse no início deste relato que o meu mestre gostava de espantar os outros com a prontidão das suas deduções, e era lógico que o seu orgulho ficasse ferido quando o acusavam, e nem sequer injustamente, de lentidão.

 

- É verdade – admitiu -, não satisfiz as vossas expectativas, mas dir-vos-ei porquê, Vossa Sublimidade. Estes delitos não derivam de uma rixa ou de qualquer vingança entre os monges, mas dependem de fatos que têm por sua vez origem na história remota da abadia...

 

O Abade olhou-o com inquietação:

 

- Que pretendeis dizer? Também eu compreendo que a chave não está na desventurada história do despenseiro, que se cruzou com outra. Mas essa outra, essa outra que talvez eu conheça mas da qual não posso falar... esperava que ela se vos tivesse tornado clara, e que dela me falaríeis vós...

 

- Vossa Sublimidade pensa em algum acontecimento de que veio a saber em confissão... - O Abade dirigiu o olhar para o outro lado, e Guilherme continuou: - Se Vossa Magnificência quer saber se eu sei, sem o saber de Vossa Magnificência, se houve relações desonestas entre Berengário e Adelmo, e entre Berengário e Malaquias, pois bem, isto todos o sabem na abadia...

 

O Abade corou violentamente:

 

- Não creio que seja útil falar de coisas semelhantes na presença deste noviço. E não creio, uma vez terminado o encontro, que vós ainda tenhais necessidade dele como escrivão. Sai, rapaz - disse-me em tom imperioso.

 

Humilhado, saí. Mas, curioso como era, agachei-me atrás da porta da sala, que deixei entreaberta, de modo a poder seguir o diálogo.

 

Guilherme recomeçou a falar:

 

- Então, essas relações desonestas, se acaso tiveram lugar, tiveram um escasso papel nestes dolorosos acontecimentos. A chave é outra, e pensava que vós o imaginásseis. Tudo se desenrola em torno do furto e da posse de um livro, que estava escondido no finis Africae, e que agora voltou para lá por obra de Malaquias, sem que, porém, bem o vistes, a seqüência dos crimes se tenha interrompido.

 

Houve um longo silêncio, depois o Abade recomeçou a falar com voz entrecortada e insegura, como de pessoa surpreendida por inesperadas revelações.

 

- Não é possível... Vós... Vós como conseguis saber do finis Africae? Violastes o meu interdito e entrastes na biblioteca?

 

Guilherme deveria ter dito a verdade, e o Abade ter-se-ia irado desmesuradamente. Não queria evidentemente mentir. Escolheu responder à pergunta com outra pergunta:

 

- Não me disse Vossa Magnificência, durante o nosso primeiro encontro, que um homem como eu, que tinha descrito tão bem Brunello sem nunca o ter visto, não teria dificuldade em raciocinar sobre lugares a que não podia aceder?

 

- É assim então - disse o Abade. - Mas porque pensais aquilo que pensais!

 

- Como lá cheguei, é longo de contar. Mas foi cometida uma série de delitos para impedir a muitos de descobrirem algo que não se queria que fosse descoberto. Ora todos aqueles que sabiam alguma coisa dos segredos da biblioteca, ou por direito ou por fraude, estão mortos. Resta apenas uma pessoa, vós.

 

- Quereis insinuar... quereis insinuar...

 

O Abade falava como alguém a quem estivessem inchando as veias do pescoço.

 

- Não me interpretais mal - disse Guilherme, que provavelmente tinha também tentado insinuar -, digo que há alguém que sabe e que quer que mais ninguém saiba. Vós sois o último a saber, vós poderíeis ser a próxima vítima. A menos que não me digais o que sabeis sobre aquele livro interdito e, sobretudo, quem é que na abadia poderia saber tanto como vós sabeis, e talvez mais, sobre a biblioteca.

 

- Está frio aqui - disse o Abade. - Saiamos.

 

Eu afastei-me rapidamente da porta e esperei-os ao cimo da escada que vinha de baixo. O Abade viu-me e sorriu-me.

 

- Quantas coisas inquietantes deve ter ouvido este jovem monge nestes dias! Vamos, rapaz, não te deixes perturbar demasiado. Parece-me que se imaginaram mais tramas que aquelas que existem...

 

Levantou uma mão e deixou que a luz do dia iluminasse um esplêndido anel que usava no anular, insígnia do seu poder. O anel cintilou em todo o fulgor das suas pedras.

 

- Reconhece-lo, não é verdade? - disse-me. - Símbolo da minha autoridade mas também do meu fardo. Não é um ornamento, é uma esplêndida síntese da palavra divina de que sou guarda. – Tocou com os dedos a pedra, ou melhor, o triunfo das pedras variegadas que compunham aquela admirável obra-prima da arte humana e da natureza. - Eis a ametista – disse -, que é espelho de humildade e nos recorda a ingenuidade e a doçura de São Mateus; eis a calcedônia, insígnia de caridade, símbolo da piedade de José e de São Tiago Maior; eis o jaspe, que augura a fé, associado a São Pedro; e a sardônica, sinal de martírio, que nos recorda São Bartolomeu; eis a safira, esperança e contemplação, pedra de Santo André e de São Paulo; e o berilo, são doutrina, ciência e longanimidade, virtudes próprias de São Tomás... Como é esplêndida a linguagem das gemas - continuou, absorto na sua visão mística -, que os lapidários da tradição traduziram do racional de Aarão e da descrição da Jerusalém celeste no livro do apóstolo. Por outro lado, as muralhas de Sião estavam cheias das mesmas jóias, que ornavam o peitoral do irmão de Moisés, salvo o carbúnculo, a ágata e o ônix, que, citados no Êxodo, são substituídos no Apocalipse pela calcedônia, pela sardônica, pelo crisoprázio e pelo jacinto. - Guilherme fez menção de abrir a boca, mas o Abade fê-lo calar levantando uma mão e continuou o seu discurso: - Recordo um livro de litanias em que cada pedra era descrita e rimada em honra da Virgem. Aí se falava do seu anel de noivado como de um poema simbólico resplandecente de verdades superiores manifestadas na linguagem lapidar das pedras que o embelezavam. Jaspe para a fé, calcedônia para a caridade, esmeralda para a pureza, sardônica para a placidez da vida virginal, rubi para o coração a sangrar no calvário, crisólito cuja cintilação multiforme recorda a maravilhosa variedade dos milagres de Maria, jacinto para a caridade, ametista, com a sua mistura de rosa e azul, para o amor de Deus... Mas no engaste estavam incrustadas outras substancias não menos eloqüentes, como o cristal que remete para a castidade da alma e do corpo, o ligúrio, que se assemelha ao âmbar, símbolo de temperança, e a pedra magnética, que atrai o ferro, tal como a Virgem toca as cordas dos corações penitentes com o arco da sua bondade. Tudo substancias que, como vedes, também ornam, embora em mínima e humilíssima medida, a minha jóia. - Movia o anel e deslumbrava os meus olhos com o seu fulgor, como se quisesse aturdir-me. - Maravilhosa linguagem, não é verdade? Para outros padres, as pedras significam outras coisas ainda, para o papa Inocêncio terceiro o rubi anuncia a calma e a paciência e a granada a caridade. Para São Bruno a água-marinha concentra a ciência teológica na virtude dos seus puríssimos reflexos. A turquesa significa alegria, a sardônica evoca os serafins, o topázio os querubins, o jaspe os tronos, o crisólito as dominações, a safira as virtudes, o ônix as potestades o berilo os principados, o rubi os arcanjos e a esmeralda os anjos. A linguagem das gemas é multiforme, cada uma exprime mais verdade, segundo o contexto em que aparecem. E quem decide qual é o nível de interpretação e qual o justo contexto? Tu bem o sabes, rapaz, ensinaram-to: é a autoridade, o comentador entre todos mais seguro e mais investido de prestígio, e portanto de santidade. Senão, como interpretar os sinais multiformes que o mundo põe sob os nossos olhos de pecadores, como não tropeçar nos equívocos com que nos atrai o demônio? Repara, é singular como a linguagem das gemas repugna ao diabo, como testemunha Santa Hildegarda. A besta imunda vê nisso uma mensagem que se ilumina por sentidos ou níveis de sapiência diversos, e ele quereria desvirtuá-la, porque ele, o inimigo, descobre no esplendor das pedras o eco das maravilhas que tinha em seu poder antes da queda e compreende que estes fulgores são produzidos pelo fogo, que é o seu tormento. - Deu-me o anel a beijar, e eu ajoelhei-me. Acariciou-me a cabeça. - E portanto tu, rapaz, esquece as coisas sem dúvida errôneas que ouviste nestes dias. Tu entraste na ordem maior e mais nobre entre todas, desta ordem eu sou um Abade, tu estás sob minha jurisdição. E, portanto, ouve a minha ordem: esquece, e que os teus lábios se selem para sempre. Jura.

 

Comovido, subjugado, teria decerto jurado. E tu, meu bom leitor, não poderias agora ler esta minha crônica fiel. Mas naquela altura interveio Guilherme, e não talvez para impedir de jurar mas por reação instintiva, por enfado, para interromper o Abade, para quebrar aquele encanto que ele tinha certamente criado.

 

- Que tem a ver o rapaz? Eu fiz-vos uma pergunta, eu adverti-vos de um perigo, eu pedi-vos que me dissésseis um nome... Querereis agora que também eu beije o anel e que jure esquecer quanto soube ou quanto suspeito?

 

- Oh, vós... - disse melancolicamente o Abade. - Não espero de um frade mendicante que compreenda a beleza das nossas tradições, ou que respeite a discrição, os segredos, os mistérios de caridade... sim, de caridade, e o sentido da honra, e o voto do silêncio que rege a nossa grandeza... Vós falaste-me de uma estranha história, de uma história incrível. Um livro interdito, pelo qual se mata em cadeia, alguém que sabe aquilo que só eu deveria saber... Patranhas, inferência que carecem de todo sentido. Falai, se quiserdes, ninguém acreditará em vós. E se acaso algum elemento da vossa fantasiosa reconstrução fosse verdadeira, pois bem, agora tudo recai sob o meu controle e a minha responsabilidade. Controlarei, tenho os meios, tenho autoridade para isso. Fiz mal desde o início em pedir a um estranho, por mais sábio, por mais digno de confiança que fosse, que indagasse sobre coisas que são somente da minha competência. Mas vós compreendeste-lo, haveis-mo dito, eu considerava no inicio que se tratava de uma violação do voto de castidade, e queria (imprudente que eu fui) que mais alguém me dissesse aquilo que tinha ouvido dizer em confissão. Bem, agora haveis-mo dito. Estou-vos muito grato por aquilo que fizestes ou tentastes fazer. O encontro das delegações teve lugar, a vossa missão aqui está terminada. Imagino que vos esperam com ansiedade na corte imperial, as pessoas não se privam por muito tempo de um homem como vós. Dou-vos licença para deixardes a abadia. Hoje talvez seja tarde, não quero que viajeis depois do sol-posto, as estradas são inseguras. Partireis amanhã de manhã, cedo. Oh, não me agradeçais, foi uma alegria ter-vos como irmão entre os irmãos e honrar-vos com a nossa hospitalidade. Podereis retirar-vos com o vosso noviço de modo a preparardes a bagagem. Saudar-vos-ei ainda amanhã ao romper da alba. Obrigado, de todo o coração. Naturalmente, não é necessário que continueis a conduzir as vossas investigações. Não perturbeis mais os monges. Ide, pois.

 

Era mais que uma despedida, estava a pôr-nos fora. Guilherme saudou e descemos as escadas.

 

- Que significa? - perguntei.

 

Não compreendia mais nada.

 

- Tenta formular uma hipótese. Deverias ter aprendido como se faz.

 

- Se é assim, aprendi que devo formular ao menos duas, uma em oposição à outra, e ambas inacreditáveis. Bem, então... - Degluti: pôr hipóteses deixava-me pouco à vontade. - Primeira hipótese, o Abade já sabia tudo e imaginava que vós não teríeis descoberto nada. Tinha-vos encarregado do inquérito antes, quando morreu Adelmo, mas pouco a pouco compreendeu que a história, era muito mais complexa, em volve-ode certo modo a ele, e não quer que vós ponhais a nu esta trama. Segunda hipótese, o Abade nunca suspeitou de nada (de quê, afinal, não sei, porque não sei em que vós estais agora pensando). Mas em todo o caso continuava a pensar que tudo fosse devido a um litígio entre... entre monges sodomitas... Agora porém vós abriste-lhe os olhos, ele compreendeu de repente algo de terrível, pensou num nome, tem uma idéia precisa sobre o responsável dos delitos. Mas, sendo assim, quer resolver a questão sozinho e quer afastar-vos, para salvar a honra da abadia.

 

- Bom trabalho. Começas a raciocinar bem. Mas já vês que em ambos os casos o nosso Abade está preocupado com a boa reputação do seu mosteiro. Assassino ou vítima designada que seja, não quer que transpirem para além destas montanhas notícias difamatórias sobre esta santa comunidade. Mata-lhe os monges, mas não lhe toques na honra desta abadia. Ah, por... - Guilherme estava agora a ficar furioso. - Aquele bastardo de feudatário, aquele pavão que ficou célebre por ter feito de coveiro ao Aquinate, aquele odre inchado que existe só porque usa um anel grande como o cú de um copo! Raça de soberbo, raça de soberbos sois vós todos, os clunicenses, piores que príncipes, mais barões que os barões!

 

- Mestre... - ousei, picado, em tom de censura.

 

- Cala-te, tu, que és da mesma massa. Vós não sois simples, nem filhos de simples. Se vos calha um camponês acolhei-lo, talvez, mas, como vi ontem, não hesitais em entregá-lo ao braço secular. Mas um dos vossos não, é preciso cobrir, Abbone é capaz de encontrar o desgraçado e de o apunhalar na cripta do tesouro, e de lhe distribuir os rojões pelos seus relicários, contanto que a honra da abadia seja salva... Um franciscano, um plebeu menorita que descobre o ninho de vermes desta santa casa? Isso não, este Abbone não pode permiti-lo a nenhum preço. Obrigado, frade Guilherme, o imperador precisa de vós, vistes que belo anel que eu tenho, até mais ver. Mas agora o desafio não é apenas entre mim e Abbone, é entre mim e toda esta história, eu não saio desta cerca antes de ter sabido. Quer que eu parta amanhã de manhã? Bem, ele é o dono da casa, mas até amanhã de manhã eu devo saber. Devo.

 

- Deveis? Quem vo-lo impõe, agora?

 

- Ninguém nos impõe que saibamos, Adso. Deve-se, eis tudo, mesmo a custo de compreender mal.

 

Ainda estava confuso e humilhado pelas palavras de Guilherme contra a minha ordem e os seus abades. E tentei justificar em parte Abbone formulando uma terceira hipótese, arte em que me tinha tornado, parecia-me, habilíssimo:

 

- Não considerastes uma terceira possibilidade, mestre - disse. - Notamos nestes dias, e esta manhã pareceu-nos claro, depois das confidências de Nicolau e das murmurações que captamos na igreja, que há um grupo de monges italianos que suportavam mal a seqüência dos bibliotecários estrangeiros, que acusam o Abade de não respeitar a tradição e que, pelo que compreendi, se escondem atrás do velho Alinardo, empurrando-o à sua frente como um estandarte, para pedir um diverso governo da abadia. Estas coisas compreendi-as bem, porque mesmo um noviço ouviu no seu mosteiro muitas discussões, e alusões, e conluios desta natureza. E então talvez o Abade tema que as vossas revelações possam oferecer uma arma aos seus inimigos, e quer resolver toda a questão com grande prudência...

 

- É possível. Mas permanece um odre inchado, e far-se-á assassinar.

 

- Mas vós que pensais das minhas conjecturas?

 

- Dir-te-ei mais tarde.

 

Estávamos no claustro. O vento era cada vez mais furioso, a luz menos clara, mesmo se pouco passava de nona. O dia aproximava-se do ocaso e restava-nos bem pouco tempo. A vésperas certamente o Abade avisaria os monges que Guilherme já não tinha nenhum direito de fazer perguntas e de entrar em toda a parte.

 

- É tarde - disse Guilherme -, e quando se tem pouco tempo o pior é perder a calma. Devemos agir como se tivéssemos a eternidade diante de nós. Tenho um problema a resolver, como penetrar no finis Africae, porque lá deveria estar a resposta final. Depois devemos salvar uma pessoa, ainda não decidi qual. Por fim devemos esperar qualquer coisa do lado das cavalariças, que tu terás debaixo de olho... Olha quanto movimento...

 

De fato, o espaço entre o Edifício e o claustro tinha-se singularmente animado. Um noviço, pouco antes, proveniente da casa do Abade, tinha corrido para o Edifício. Agora saia de lá Nicolau, que se dirigia aos dormitórios. Num canto, o grupo da manhã, Pacífico, Aymaro e Pedro, estavam falando insistentemente com Alinardo, como para o convencerem de qualquer coisa.

 

Depois pareceram tomar uma decisão. Aymaro segurou Alinardo, ainda relutante, e encaminhou-se com ele para a residência abacial. Iam a entrar ali, quando do dormitório saiu Nicolau, que conduzia Jorge na mesma direção. Viu os dois que entravam, sussurrou qualquer coisa ao ouvido de Jorge, o velho sacudiu a cabeça, e prosseguiram mesmo assim para o capítulo.

 

- O Abade toma conta da situação... - murmurou Guilherme com cepticismo.

 

Do Edifício estavam saindo outros monges que deveriam estar no scriptorium, seguidos logo depois por Bêncio, que veio ao nosso encontro cada vez mais preocupado.

 

- Há efervescência no scriptorium - disse-nos -, ninguém trabalha, todos falam animadamente entre si... Que acontece?

 

- Acontece que as pessoas que até esta manhã pareciam as mais suspeitas estão todas mortas. Até ontem todos se guardavam de Berengário, tolo e infiel e lascivo, depois do despenseiro, herege suspeito, por fim de Malaquias, tão antipático a todos... Agora já não sabem de quem se guardar, e têm necessidade urgente de encontrar um inimigo, ou um bode expiatório. E cada um suspeita do outro, alguns têm medo, como tu, outros decidiram meter medo a qualquer outro. Estais todos demasiado agitados. Adso, dá de vez em quando uma olhadela às cavalariças. Eu vou descansar.

 

Deveria ter-me espantado: ir descansar, quando tinha poucas horas ainda à disposição, não parecia a resolução mais sábia. Mas agora conhecia o meu mestre. Quanto mais o seu corpo estava descontraído mais a sua mente estava em efervescência.

 

SEXTO DIA

ENTRE VÉSPERAS E COMPLETAS

 

Onde em breves palavras se contam longas horas de desvario.

 

Torna-se-me difícil contar aquilo que aconteceu nas horas que se seguiram, entre vésperas e completas.

 

Guilherme estava ausente. Eu vagueava à volta das cavalariças, mas sem notar nada de anormal. Os estribeiros estavam fazendo entrar os animais, inquietos por causa do vento, mas quanto ao resto tudo estava tranqüilo.

 

Entrei na igreja. Já todos estavam nos seus lugares nas estalas, mas o Abade notou a ausência de Jorge. Com um gesto atrasou o início do ofício. Chamou Bêncio para que fosse procurá-lo. Bêncio não estava. Alguém fez observar que estava provavelmente dispondo o scriptorium para fechar. O Abade disse, irritado, que se tinha estabelecido que Bêncio não fechasse nada, porque não conhecia as regras. Aymaro de Alexandria levantou-se do seu lugar:

 

- Se Vossa Paternidade consente, vou eu chamá-lo...

 

- Ninguém te pediu nada - disse o Abade bruscamente.

 

E Aymaro voltou para o seu lugar, não sem ter lançado um olhar indefinível a Pacifico de Tivoli. O Abade chamou Nicolau, que não estava. Recordaram-lhe que estava dando as ordens para a ceia, e ele teve um gesto de contrariedade, como se lhe desagradasse mostrar a todos que se encontrava num estado de excitação.

 

- Quero Jorge aqui - gritou -, procurai-o! Vai tu - ordenou ao mestre dos noviços.

 

Um outro fez-lhe notar que faltava também Alinardo.

 

- Eu sei - disse o Abade -, está enfermo.

 

Encontrava-me perto de Pedro de Sant’Albano e ouvi-o dizer ao seu vizinho, Gunzo de Nola, numa língua vulgar da Itália Central que em parte eu compreendia:

 

- Imagino. Hoje quando saiu depois do colóquio o pobre velho estava transtornado. Abbone comporta-se como a puta de Avinhão!

 

Os noviços estavam desorientados, com a sua sensibilidade de crianças ignaras pressentiam todavia a tensão que estava reinando no coro, como a pressentia eu. Passaram-se alguns longos momentos de silêncio e de embaraço. O Abade ordenou que se recitassem alguns salmos, e indicou ao acaso três, que não eram prescritos pela regra para vésperas. Olharam todos uns para os outros, depois recomeçaram a rezar em voz baixa. Voltou o mestre dos noviços seguido de Bêncio, que ocupou o seu lugar de cabeça baixa. Jorge não estava no scriptorium e não estava na sua cela. O Abade ordenou que o ofício tivesse início.

 

No fim, antes de descerem todos para a ceia, fui chamar Guilherme. Estava estendido no seu catre, vestido, imóvel. Disse que não pensava que fosse tão tarde. Contei-lhe brevemente quanto tinha sucedido. Sacudiu a cabeça.

 

À porta do refeitório vimos Nicolau, que poucas horas antes tinha acompanhado Jorge. Guilherme perguntou-lhe se o velho tinha entrado logo nos aposentos do Abade. Nicolau disse que tivera de esperar longamente à porta, porque na sala estavam Alinardo e Aymaro de Alexandria. Depois, Jorge tinha entrado, tinha ficado algum tempo dentro, e ele tinha-o esperado. Em seguida tinha saído e tinha-se feito acompanhar à igreja, uma hora antes de vésperas, ainda deserta.

 

O Abade avistou-nos quando falávamos com o despenseiro.

 

- Frade Guilherme – censurou -, estais ainda inquirindo?

 

Fez-lhe sinal para se sentar à sua mesa, como habitualmente. A hospitalidade beneditina é sagrada.

 

A ceia foi mais silenciosa que de costume, e triste. O Abade comia sem vontade, oprimido por sombrios pensamentos. No fim disse aos monges que se apressassem para completas.

 

Alinardo e Jorge estavam ainda ausentes. Os monges apontavam para o lugar vazio do cego, sussurrando. No fim do rito, o Abade convidou todos a recitarem uma especial oração pela saúde de Jorge de Burgos. Não ficou claro se falava da saúde corporal ou da saúde eterna. Todos compreenderam que uma nova desgraça estava prestes a abater-se sobre aquela comunidade. Depois, o Abade ordenou a cada um que se apressasse, com maior diligência que de costume, para o seu catre. Ordenou que ninguém, e carregou sobre a palavra ninguém, ficasse a circular fora do dormitório. Os noviços, assustados, foram os primeiros a sair, com o capucho sobre o rosto, a cabeça inclinada, sem trocarem as piadas, as cotoveladas, os sorrisinhos, as maliciosas e ocultas rasteiras com que costumavam provocar-se (porque o noviço, embora jovem monge, não deixa de ser uma criança, e de pouco valem as repreensões do seu mestre, que não pode impedir que eles muitas vezes se comportem como crianças, como quer a sua tenra idade).

 

Quando saíram os adultos segui, sem me fazer notar, atrás do grupo que já se caracterizava aos meus olhos como o dos «italianos». Pacifico estava murmurando a Aymaro:

 

- Achas que Abbone não sabe verdadeiramente onde está Jorge?

 

E Aymaro respondia:

 

- Podia muito bem saber, e saber que de onde está não voltará mais. O velho quis talvez demasiado, e Abbone não o queria mais a ele...

 

Enquanto eu e Guilherme fingíamos retirar-nos para o albergue dos peregrinos, avistamos o Abade, que entrava de novo no Edifício pela porta do refeitório ainda aberta. Guilherme aconselhou que esperássemos um pouco, depois, quando a esplanada ficou livre de qualquer presença, convidou-me a segui-lo. Atravessamos rapidamente os espaços vazios e entramos na igreja.

 

SEXTO DIA

DEPOIS DE COMPLETAS

 

Onde, quase por acaso, Guilherme descobre o segredo para entrar no finis Africae.

 

Postamo-nos, como dois sicários, perto da entrada, atrás de uma coluna, de onde se podia observar a capela das caveiras.

 

- Abbone foi fechar o Edifício - disse Guilherme. - Quando tiver trancado as portas por dentro não poderá sair senão pelo ossário.

 

- E depois?

 

- E depois veremos o que faz.

 

Não pudemos saber o que fazia. Uma hora depois ainda não tinha saído. Foi ao finis Africae, disse eu. É possível, respondeu Guilherme. Preparado para formular muitas hipóteses, acrescentei: talvez tenha saído de novo pelo refeitório e tenha ido procurar Jorge. E Guilherme: também isso é possível. Talvez Jorge já esteja morto, imaginei ainda. Talvez esteja no Edifício e está a matar o Abade. Talvez estejam ambos noutro sítio e alguém mais os espere numa emboscada. Que queriam os «italianos»?, e porque é que Bêncio estava tão assustado? Não seria acaso uma máscara que tinha posto no rosto para nos enganar? Porque é que se tinha demorado no scriptorium durante vésperas, se não sabia nem como fechar nem como sair? Queria tentar a via do labirinto?

 

- Tudo é possível - disse Guilherme. - Mas uma única coisa se dá, se deu, ou se está dando. E enfim a misericórdia divina nos está locupletando com uma luminosa certeza.

 

- Qual? - perguntei cheio de esperança.

 

- Que frade Guilherme de Baskerville, o qual tem agora a impressão de ter compreendido tudo, não sabe como entrar no finis Africae. Às cavalariças, Adso, às cavalariças.

 

- E se nos encontra o Abade?

 

- Fingiremos ser dois espectros.

 

Não me pareceu uma solução praticável, mas calei-me. Guilherme estava a ficar nervoso. Saímos pelo portal setentrional e passámos através do cemitério, enquanto o vento sibilava com força, e pedi ao Senhor que não nos fizesse encontrar dois espectros a nós, que de almas penadas, naquela noite, na abadia não havia penúria. Chegamos às cavalariças e sentimos os cavalos cada vez mais inquietos por causa da fúria dos elementos. O portão principal da construção tinha, à altura do peito de um homem, um amplo gradeamento de metal, de onde se podia ver o interior. Entrevimos na obscuridade as silhuetas dos cavalos, reconheci Brunello porque era o primeiro à esquerda. À sua direita, o terceiro animal da fila levantou a cabeça sentindo a nossa presença e relinchou. Sorri:

 

- Tertius equi - disse eu.

 

- O quê? - perguntou Guilherme.

 

- Nada, recordava-me do pobre Salvador. Queria fazer sabe-se lá que magia com aquele cavalo, e no seu latim designava-o como tertius equi. Que seria o u.

 

- O u? - perguntou Guilherme, que tinha seguido o meu devaneio sem lhe prestar muita atenção.

 

- Sim, porque tertius equi quereria dizer não o terceiro cavalo mas o terceiro do cavalo, e a terceira letra da palavra cavalo é o u. Mas é uma tolice...

 

Guilherme olhou para mim, e no escuro pareceu-me distinguir-lhe o rosto alterado:

 

- Deus te abençoe, Adso! - disse. - Mas decerto, suppositio materialis, o discurso assume-se de dicto e não de re... Que estúpido que eu sou! - Deu uma grande palmada na testa, com a mão aberta, de tal modo que se ouviu um estalo, e creio que se tenha magoado. - Meu rapaz, é a segunda vez hoje que pela tua boca fala a sabedoria, primeiro em sonhos e agora durante a vigília! Corre, corre à tua cela e traz a candeia, aliás, aquelas duas que temos escondidas. Não te deixes ver, e vem ter comigo depressa à igreja! Não faças perguntas, vai!

 

Fui sem fazer perguntas. As lâmpadas estavam debaixo do meu enxergão, cheias de azeite, porque já tinha provido a alimentá-las. Tinha o fuzil no saio. Com os dois preciosos instrumentos no peito corri para a igreja.

 

Guilherme estava sob o trípode e estava relendo o pergaminho com os apontamentos de Venancio.

 

- Adso! - disse-me -, primum et septimum de quatuor não significa o primeiro e o sétimo dos quatro, mas do quatro, da palavra quatro!

 

Ainda não compreendia, depois tive uma iluminação:

 

- Super thronos viginti quatuor! A inscrição! O versículo! As palavras que estão gravadas sobre o espelho!

 

- Vamos! - disse Guilherme -, talvez possamos ainda salvar uma vida.

 

- De quem? - perguntei, enquanto ele estava já manobrando à volta das caveiras e abrindo a passagem para o ossário.

 

- De um que não merece - disse.

 

E estávamos já no túnel subterrâneo, com as candeias acesas, em direção à porta que conduzia à cozinha.

 

Já disse que naquele ponto se empurrava uma porta de madeira e nos achávamos na cozinha por trás da chaminé, aos pés da escada de caracol que introduzia no scriptorium. E, precisamente quando empurrávamos a porta, ouvimos à nossa esquerda rumores surdos no muro. Vinham da parede ao lado da porta, sobre a qual terminava a fila dos nichos com as caveiras e os ossos. Naquele ponto, no lugar do último nicho, havia um pedaço de parede plena, de grandes blocos de pedra quadrados, com uma velha lápide ao centro, que tinha gravados monogramas quase apagados. As pancadas vinham, parecia, de trás da lápide, ou então de cima da lápide, em parte atrás da parede, em parte quase sobre a nossa cabeça.

 

Se um acontecimento semelhante se tivesse produzido na primeira noite teria pensado imediatamente nos monges mortos. Mas agora estava pronto a esperar pior da parte dos monges vivos.

 

- Quem será? - perguntei.

 

Guilherme abriu a porta e saiu por trás da chaminé. As pancadas ouviam-se também ao longo da parede que costeava a escada de caracol, como se alguém estivesse prisioneiro no muro, ou melhor, na espessura daquela parede (verdadeiramente vasta) que se podia presumir que compreendia o muro interno da cozinha e o exterior do torreão meridional.

 

- Está alguém fechado aqui dentro - disse Guilherme. - Sempre me tinha perguntado se não existia outro acesso ao finis Africae, neste Edifício tão cheio de passagens. Evidentemente que há; do ossário, antes de subir à cozinha, abre-se um troço de parede e sobe-se por uma escada paralela a esta, escondida no muro, desembocando diretamente na sala murada.

 

- Mas quem está agora lá dentro?

 

- A segunda pessoa. Uma está no finis Africae, outra procurou alcançá-la, mas a de cima deve ter bloqueado o mecanismo que regula ambas as entradas. Assim, o visitante foi apanhado na ratoeira. E deve agitar-se muito porque, imagino, para aquele tubo não passará muito ar.

 

- E quem é? Salvemo-lo!

 

- Quem é vê-lo-emos dentro em pouco. E, quanto a salvá-lo, poder-se-á fazê-lo apenas desbloqueando o mecanismo do alto, porque deste lado não conhecemos o segredo. Portanto subamos depressa.

 

Assim fizemos, subimos ao scriptorium, e dali ao labirinto, e alcançamos em breve o torreão meridional. Tive de, por duas vezes, refrear o meu ímpeto, porque o vento que naquela noite penetrava pelas seteiras criava correntes que, insinuando-se por aquelas aberturas, percorriam as salas gemendo, soprando sobre as folhas espalhadas sobre as mesas, e tinha de proteger a chama com a mão.

 

Em breve chegamos à sala do espelho, já preparados para o jogo deformante que nos esperava. Levantamos as lâmpadas e iluminamos os versículos que encimavam a moldura, Super thronos viginti quatuor... Agora o segredo estava esclarecido: a palavra quatuor tem sete letras, era preciso acionar sobre o q e o r. Pensei, excitado, fazê-lo eu: pousei rapidamente a lâmpada sobre a mesa no centro da sala, executei o gesto nervosamente, a chama foi lamber a encadernação de um livro que ali estava pousado.

 

- Atenção, tolo! - gritou Guilherme, e com um sopro apagou a chama. - Queres pegar fogo à biblioteca?

 

Desculpei-me e fiz por reacender a candeia.

 

- Não importa - disse Guilherme -, basta a minha. Toma-a e dá-me luz, porque a inscrição é demasiado alta e tu não chegarias lá. Façamos depressa.

 

- E se estivesse lá dentro alguém armado? - perguntei, enquanto Guilherme, quase às apalpadelas, procurava as letras fatais, erguendo-se na ponta dos pés, alto como era, para tocar o versículo apocalíptico.

 

- Dá-me luz, pelo demônio, e não temas, Deus está conosco! - respondeu-me bastante incoerentemente.

 

Os seus dedos estavam tocando no q de quatuor, e eu, que estava uns passos atrás, via melhor que ele aquilo que estava fazendo. Já disse que as letras dos versículos pareciam entalhadas ou gravadas no muro: evidentemente as da palavra quatuor eram constituídas por silhuetas de metal, por trás das quais estava encaixado e murado um prodigioso mecanismo. Porque, quando foi empurrado para a frente, o q fez ouvir como que um golpe seco, e o mesmo aconteceu quando Guilherme acionou o r. A moldura inteira do espelho teve como que um sobressalto, e a superfície vítrea saltou para trás. O espelho era uma porta, articulada do lado esquerdo. Guilherme inseriu a mão na abertura que se tinha criado entre o bordo direito e o muro e puxou para si. Chiando, a porta abriu-se para nós. Guilherme insinuou-se na abertura e eu deslizei atrás dele, elevando a candeia sobre a cabeça.

 

Duas horas depois de completas, no fim do sexto dia, no coração da noite que dava início ao sétimo dia, tínhamos penetrado no finis Africae.

 

SÉTIMO DIA

NOITE

 

Onde, para resumir as revelações prodigiosas de que aqui se fala, o título deveria ser tão longo como o capítulo, o que é contrário aos costumes.

 

Encontramo-nos no umbral de uma sala semelhante na forma às outras três salas cegas heptagonais, em que dominava um forte odor a fechado e a livros macerados pela umidade. A candeia que mantinha alta iluminou primeiro a abóbada, depois movi o braço para baixo, para a direita e para a esquerda, e a chama despediu vagos clarões sobre as estantes afastadas, ao longo das paredes. Por fim vimos no centro uma mesa, coberta de papéis, e por trás da mesa uma figura sentada, que parecia esperar-nos imóvel no escuro, se acaso ainda estava viva. Ainda antes que a luz iluminasse o seu rosto, Guilherme falou.

 

- Boa noite, venerável Jorge - disse. - Esperavas-nos?

 

A lâmpada agora, avançando nós alguns passos, iluminava o rosto do velho, que nos olhava como se visse.

 

- És tu, Guilherme de Baskerville? - perguntou. - Esperava-te desde hoje à tarde antes de vésperas, quando vim fechar-me aqui. Sabia que chegarias.

 

- E o Abade? - perguntou Guilherme. - É ele que se agita na escada secreta?

 

Jorge teve um momento de hesitação:

 

- Ainda está vivo? - perguntou. - Julgava que já lhe tivesse faltado o ar.

 

- Antes de começarmos a falar - disse Guilherme - queria salvá-lo. Tu podes abrir deste lado.

 

- Não - disse Jorge com cansaço -, já não posso. O mecanismo manobra-se de baixo carregando sobre a lápide, e aqui em cima salta uma alavanca que abre uma porta lá ao fundo, por trás daquele armário - e apontou para trás de si. - Poderias ver ao lado do armário uma roda com uns contrapesos, que governa o mecanismo aqui de cima. Mas quando daqui ouvi a roda girar, sinal de que Abbone tinha entrado por baixo, dei um esticão à corda que sustém os pesos, e a corda quebrou-se. Agora a passagem está fechada de ambos os lados, e não poderias reatar os fios daquele engenho. O Abade está morto.

 

- Porque o mataste?

 

- Hoje, quando me mandou chamar, disse-me que, graças a ti, tinha descoberto tudo. Não sabia ainda o que é que eu tinha procurado proteger, nunca compreendeu exatamente quais eram os tesouros, e os fins da biblioteca. Pediu-me que lhe explicasse aquilo que não sabia. Queria que o finis Africae fosse aberto. O grupo dos italianos tinha-lhe pedido que pusesse fim àquilo que eles chamam o mistério alimentado por mim e pelos meus predecessores. São agitados pela cupidez de coisas novas...

 

- E tu deves ter-lhe prometido que virias aqui e porias fim à tua vida como tinhas posto fim às dos outros, de modo que a honra da abadia fosse salva e ninguém soubesse de nada. Depois indicaste-lhe o caminho para vir, mais tarde, verificar. Afinal, esperava-lo para o matares a ele. Não pensavas que pudesse entrar pelo espelho?

 

- Não, Abbone é pequeno de estatura, não seria capaz de chegar sozinho ao versículo. Indiquei-lhe esta passagem, que só eu ainda conhecia. É aquela que usei eu por tantos anos, porque era mais simples, no escuro. Bastava chegar à capela e depois seguir os ossos dos mortos, até ao fim da passagem.

 

- Assim fizeste-o vir aqui sabendo que o matarias...

 

- Não podia confiar sequer nele. Estava assustado. Tinha-se tornado célebre porque em Fossanova tinha conseguido fazer descer um corpo ao longo de uma escada de caracol. Injusta glória. Agora está morto porque já não conseguiu fazer subir o seu.

 

- Usaste-o durante quarenta anos. Quando te apercebeste que estavas a ficar cego e não poderias continuar a controlar a biblioteca, trabalhaste cautamente. Fizeste eleger abade um homem em quem podias confiar, e fizeste nomear bibliotecário primeiro Roberto de Bobbio, que podias instruir a teu bel-prazer, depois Malaquias, que tinha necessidade da tua ajuda e não dava um passo sem te consultar. Durante quarenta anos foste o senhor desta abadia. É isto o que o grupo dos italianos tinha compreendido, é isto o que Alinardo repetia, mas ninguém lhe dava ouvidos porque o consideravam há largo tempo um demente, não é verdade? Porém, tu ainda me esperavas a mim, e não poderias bloquear a entrada do espelho, porque o mecanismo está murado. Porque me esperavas, como tinhas a certeza que eu chegaria?

 

Guilherme perguntava, mas pelo seu tom compreendia-se que ele adivinhava já a resposta, e que a esperava como um prêmio à sua habilidade.

 

- Desde o primeiro dia compreendi que tu compreenderias. Pela tua voz, pelo modo como me conduziste a debater sobre aquilo de que eu não queria que se falasse. Eras melhor que os outros, chegarias lá de qualquer maneira. Sabes, basta pensar e reconstruir na própria mente os pensamentos do outro. E depois ouvi que fazias perguntas aos outros monges, todas justas. Mas nunca fazias perguntas sobre a biblioteca, como se já conhecesses todos os seus segredos. Uma noite fui bater à tua cela, e tu não estavas. Estavas certamente aqui. Tinham desaparecido duas lâmpadas da cozinha, ouvi dizer a um servo. E enfim, quando Severino veio falar-te de um livro, no outro dia no nártex, tive a certeza que estavas na mesma pista que eu.

 

- Mas conseguiste tirar-me o livro. Foste ter com Malaquias, que até então não tinha compreendido nada. Agitado pelo seu ciúme, o estulto continuava a ser obcecado pela idéia que Adelmo lhe tinha arrebatado o seu adorado Berengário, que então queria carne mais jovem que a sua. Não compreendia que tinha a ver Venancio com esta história, e tu confundiste-lhe ainda mais as idéias. Disseste-lhe que Berengário tinha tido uma relação com Severino, e que para o compensar lhe tinha dado um livro do finis Africae. Não sei exatamente que coisa lhe disseste. Malaquias foi ter com Severino, louco de ciúme, e matou-o. Depois não teve tempo de procurar o livro que tu lhe tinhas descrito, porque chegou o despenseiro. Foi assim?

 

- Mais ou menos.

 

- Mas tu não querias que Malaquias morresse. Ele provavelmente nunca tinha olhado para os livros do finis Africae, confiava em ti, obedecia aos teus interditos. Ele limitava-se a dispor à noite as ervas para assustar os eventuais curiosos. Fornecia-lhas Severino. Por isso naquele dia Severino deixou entrar Malaquias no hospital, era a sua visita diária para levar as ervas frescas, que ele preparava todos os dias por ordem do Abade. Adivinhei?

 

- Adivinhaste. Não queria que Malaquias morresse. Disse-lhe que encontrasse o livro, de qualquer modo, e que o voltasse a pôr aqui, sem o abrir. Disse-lhe que tinha o poder de mil escorpiões. Mas pela primeira vez o insensato quis agir segundo a sua própria iniciativa. Não o queria morto, era um executor fiel. Mas não me repitas o que sabes, eu sei que sabes. Não quero alimentar o teu orgulho, disso já te encarregas tu mesmo. Ouvi-te esta manhã no scriptorium interrogar Bêncio sobre a Coena Cypriani. Estavas pertíssimo da verdade. Não sei como descobriste o segredo do espelho, mas quando soube pelo Abade que lhe tinhas referido o finis Africae tinha a certeza que em breve chegarias. Por isso te esperava. E agora que queres?

 

- Quero ver - disse Guilherme - o último manuscrito do volume encadernado que reúne um texto árabe, um sírio e uma interpretação ou transcrição da Coena Cypriani. Quero ver aquela cópia em grego, feita provavelmente por um árabe, ou por um espanhol, que tu encontraste quando, ajudante de Paulo de Rimini, obtiveste que te mandassem ao teu país para recolher os mais belos manuscritos do Apocalipse de Leão e Castela, um espólio que te tornou famoso e estimado aqui na abadia e te fez obter o posto de bibliotecário, quando respeitava a Alinardo, dez anos mais velho que tu. Quero ver aquela cópia grega escrita em papel de pano, que então era muito rara, e que se fabricava precisamente em Silos, perto de Burgos, tua pátria. Quero ver o livro que tu tiraste de lá, depois de o teres lido, porque não querias que outros o lessem, e que escondeste aqui, protegendo-o de modo avisado, e que não destruíste, porque um homem como tu não destrói um livro, mas guarda-o somente e provê a que ninguém lhe toque. Quero ver o segundo livro da Poética de Aristóteles, aquele que todos consideravam perdido ou jamais escrito, e do qual tu guardas talvez a única cópia.

 

- Que magnífico bibliotecário terias sido, Guilherme - disse Jorge, com um tom simultaneamente de admiração e de mágoa. - Então sabes mesmo tudo. Vem, creio que há um escabelo desse lado da mesa. Senta-te, eis o teu prêmio.

 

Guilherme sentou-se e pousou a candeia, que eu lhe tinha passado, iluminando de baixo o rosto de Jorge. O velho pegou num volume que tinha diante de si e passou-lho. Eu reconheci a encadernação, era aquele que tinha aberto no hospital, julgando-o um manuscrito árabe.

 

- Lê, então, desfolha, Guilherme - disse Jorge. - Ganhaste.

 

Guilherme olhou para o volume, mas não lhe tocou. Tirou do saio um par de luvas, não as suas, com as pontas dos dedos descobertas, mas as que usava Severino quando o tínhamos encontrado morto. Abriu lentamente a encadernação gasta e frágil. Eu aproximei-me e inclinei-me sobre o seu ombro. Jorge, com o seu ouvido finíssimo, ouviu o rumor que eu fazia. Disse:

 

- Também estás aí, rapaz? Far-to-ei ver também a ti... depois.

 

Guilherme percorreu rapidamente as primeiras páginas.

 

- É um manuscrito árabe sobre os ditos de algum louco, segundo o catálogo - disse. - De que se trata?

 

- Oh, néscias lendas dos infiéis, onde se julga que os estultos têm ditos espirituosos que espantam mesmo os seus sacerdotes e entusiasmam os seus califas...

 

- O segundo é um manuscrito siríaco, mas segundo o catálogo traduz um libelo egípcio de alquimia. Como é que se encontra reunido aqui?

 

- É uma obra egípcia do terceiro século da nossa era. Coerente com a obra que se segue, mas menos perigosa. Ninguém daria ouvidos às divagações de um alquimista africano. Atribui a criação do mundo ao riso divino... - Levantou o rosto e recitou, com a sua prodigiosa memória de leitor que desde há quarenta anos repetia a si mesmo coisas lidas quando tinha ainda o bem da vista: - Apenas Deus riu nasceram sete deuses que governaram o mundo, apenas desatou a rir apareceu a luz, à segunda risada apareceu a água, e no sétimo dia que ele ria apareceu a alma... Loucuras. E também o escrito que vem depois, de um dos inúmeros estúpidos que se puseram a glosar a Coena... Mas não são estes os que te interessam.

 

Guilherme, de fato, tinha feito passar rapidamente as páginas e tinha chegado ao texto grego. Vi logo que as folhas eram de matéria diversa e mais mole, quase arrancada a primeira, com uma parte da margem comida, salpicada de manchas pálidas, como de costume o tempo e a umidade produzem em outros livros. Guilherme leu as primeiras linhas, primeiro em grego, depois traduzindo em latim e continuando nesta língua, de modo que também eu pude apreender como começava o livro fatal.

 

No primeiro livro tratamos da tragédia e de como ela, suscitando piedade e medo, produz a purificação de tais sentimentos. Como tínhamos prometido, tratamos agora da comédia (mas também da sátira e do mimo) e de como, suscitando o prazer do ridículo, ela chega à purificação de tal paixão. De como tal paixão é digna de consideração já dissemos no livro sobre a alma, na medida em que - único entre todos os animais - o homem é capaz de rir. Definiremos portanto de que tipo de ações a comédia é imitação, em seguida examinaremos os modos como a comédia suscita o riso, e estes modos são os fatos e o elóquio. Mostraremos como o ridículo dos fatos nasce da assimilação do melhor ao pior e vice-versa, do surpreender enganando, do impossível e da violação das leis da natureza, do irrelevante e do inconseqüente, do abaixamento dos personagens, do uso das pantomimas grotescas e vulgares, da desarmonia, da escolha das coisas menos dignas. Mostraremos em seguida como o ridículo do elóquio nasce dos equívocos entre palavras semelhantes para coisas diversas e diversas para coisas semelhantes da loquacidade e da repetição, dos jogos de palavras, dos diminutivos, dos erros de pronúncia e dos barbarismos...

 

Guilherme traduzia com dificuldade, procurando as palavras justas, detendo-se a espaços. Traduzindo, sorria, como se reconhecesse coisas que esperava encontrar. Leu em voz alta a primeira página, depois parou, como se não lhe interessasse saber mais nada, e folheou à pressa as páginas seguintes: mas depois de algumas folhas encontrou uma resistência, porque sobre a margem lateral superior, e ao longo do corte, as folhas estavam unidas umas às outras, como acontece quando - umedecidas e deterioradas - a matéria do papel forma uma espécie de glute colante. Jorge percebeu que o roçar das folhas viradas tinha cessado e incitou Guilherme.

 

- Vamos, lê, desfolha. É teu, bem o mereceste.

 

Guilherme riu, e parecia bastante divertido:

 

- Então não é verdade que me consideras tão sutil como isso, Jorge! Tu não vês, mas tenho as luvas. Com os dedos assim embaraçados não consigo separar as folhas umas das outras. Deveria proceder de mãos nuas, umedecer os dedos com a língua, como me aconteceu fazer esta manhã lendo no scriptorium, de modo que de repente também este mistério se me tornou claro, e deveria continuar a desfolhar assim enquanto uma boa dose de veneno não me tivesse passado para a boca. Digo o veneno que tu um dia, há muito tempo, tiraste do laboratório de Severino, talvez já então preocupado, porque tinhas ouvido alguém no scriptorium manifestar uma certa curiosidade ou sobre o finis Africae ou sobre o livro perdido de Aristóteles, ou sobre ambos. Creio que tu conservaste a ampola durante longo tempo, reservando-te de fazer uso dela quando percebesses um perigo. E percebeste-o há dias, quando por um lado Venancio chegou demasiado perto do tema desce livro, e Berengário, por leviandade, por vanglória, para impressionar Adelmo, se revelou menos secreto do que tu esperavas. Então vieste e preparaste a tua ratoeira. Mesmo a tempo, porque algumas noites depois Venancio penetrou aqui, levou o livro, desfolhou-o com ansiedade, com voracidade quase física. Em breve se sentiu mal, e correu a procurar auxilio na cozinha. Onde morreu. Engano-me?

 

- Não, continua.

 

- O resto é simples. Berengário encontra o corpo de Venancio na cozinha, teme que daí nasça um inquérito, porque no fundo Venancio estava de noite no Edifício como conseqüência da sua primeira revelação a Adelmo. Não sabe o que fazer, carrega o corpo às costas e lança-o na calha do sangue, pensando que todos se convenceriam que se tinha afogado.

 

- E tu como sabes que aconteceu assim?

 

- Também tu o sabes, vi como reagiste quando encontraram um pano sujo de sangue na cela de Berengário. Com o pano aquele irrefletido tinha limpo as mãos depois de ter metido Venancio no sangue. Mas, uma vez que tinha desaparecido, Berengário não podia senão ter desaparecido com o livro, que agora o tinha intrigado também a ele. E tu esperavas que o encontrassem em qualquer parte, não ensangüentado, mas sim envenenado. O resto é claro. Severino encontra o livro, porque Berengário tinha ido primeiro ao hospital para o ler ao abrigo de olhos indiscretos. Malaquias mata Severino instigado por ti, e morre quando volta aqui para saber o que havia de tão proibido no objeto que o tinha feito tornar-se um assassino. Eis que temos uma explicação para todos os cadáveres... Que estúpido...

 

- Quem?

 

- Eu. Por causa de uma frase de Alinardo tinha-me convencido que a série dos delitos seguia o ritmo das sete trombetas do Apocalipse. O granizo para Adelmo, e era um suicídio; o sangue para Venancio, e tinha sido uma idéia bizarra de Berengário; a água para o próprio Berengário, e tinha sido um fato casual; a terça parte do céu para Severino, e Malaquias tinha ferido com a esfera armilar porque era a única coisa que tinha encontrado à mão. Por fim, os escorpiões para Malaquias... Porque lhe disseste que o livro tinha a força de mil escorpiões?

 

- Por tua causa. Alinardo tinha-me comunicado a sua idéia, depois tinha ouvido a alguém que tu também a tinhas achado persuasiva... Então convenci-me que um plano divino regulava estes desaparecimentos de que eu não era responsável. E anunciei a Malaquias que se fosse curioso pereceria segundo o mesmo plano divino, como de fato aconteceu.

 

- É assim então... Fabriquei um esquema falso para interpretar as manobras do culpado, e o culpado adequou-se a ele. E foi precisamente este esquema falso que me pôs na tua pista. Nos nossos dias, todos estão obcecados pelo livro de João, mas tu parecias-me aquele que mais meditava nele, e não tanto por causa das tuas especulações sobre o Anticristo mas porque vinhas do país que produziu os Apocalipses mais esplêndidos. Um dia alguém me disse que os códices mais belos deste livro, na biblioteca, tinham sido trazidos por ti. Depois, um dia, Alinardo divagou sobre um misterioso inimigo que tinha ido procurar livros a Silos (intrigou-me o fato de dizer que tinha voltado antes do tempo para o reino das trevas: de momento podia pensar-se que queria dizer que tinha morrido jovem, afinal aludia à tua cegueira). Silos fica perto de Burgos, e esta manhã encontrei no catálogo uma série de aquisições que diziam respeito a todos os Apocalipses hispânicos no período em que tu tinhas sucedido ou ias suceder a Paulo de Rimini. E naquele grupo de aquisições estava também este livro. Mas não podia ter a certeza de quanto tinha reconstruído enquanto não soube que o livro era em papel de pano. Então recordei-me de Silos e tive a certeza. Naturalmente, à medida que tomava forma a idéia deste livro e do seu poder venenoso malograva-se a idéia do esquema apocalíptico, e no entanto não conseguia compreender como o livro e a seqüência das trombetas levassem ambos a ti, e compreendi melhor a história do livro precisamente na medida em que, orientado pela seqüência apocalíptica, era obrigado a pensar em ti e nas tuas discussões sobre o riso. De modo que, esta noite, quando já não acreditava no esquema apocalíptico, insisti em controlar as cavalariças, de onde esperava o toque da sexta trombeta, e precisamente nas cavalariças, por outro acaso, Adso forneceu-me a chave para entrar no finis Africae.

 

- Não te sigo - disse Jorge. - Tens orgulho em me mostrar como, seguindo a tua razão, chegaste até mim, e no entanto demonstras-me que chegaste lá seguindo uma razão errada. Que me queres dizer?

 

- Nada, a ti. Estou desconcertado, eis tudo. Mas não importa. Estou aqui.

 

- O Senhor tocava as sete trombetas. E tu, embora no teu erro, ouviste um eco confuso daquele som.

 

- Isso já o disseste na tua prédica de ontem à noite. Procuras convencer-te que toda esta história procedeu segundo um desígnio divino para ocultares a ti mesmo o fato que és um assassino.

 

- Eu não matei ninguém. Cada um caiu seguindo o seu destino, por causa dos seus pecados. Eu fui apenas um instrumento.

 

- Ontem disseste que também Judas foi um instrumento. Isto não impede que tenha sido condenado.

 

- Aceito o risco da condenação. O Senhor me absolverá, porque sabe que agi para a sua glória. O meu dever era proteger a biblioteca.

 

- Ainda há poucos momentos estavas pronto a matar-me também a mim, e mesmo este rapaz...

 

- És mais sutil, mas não melhor que os outros.

 

- E agora que acontecerá, agora que fiz gorar a insídia?

 

- Veremos - respondeu Jorge. - Não quero necessariamente a tua morte. Talvez consiga convencer-te. Mas diz-me primeiro, como adivinhaste que se tratava do segundo livro de Aristóteles?

 

- Não me teriam bastado decerto os teus anátemas contra o riso, nem o pouco que soube da discussão que tiveste com os outros. Fui ajudado por alguns apontamentos deixados por Venancio. Não compreendia à primeira vista que coisa queriam dizer. Mas havia algumas referências a uma pedra desavergonhada que rola pela planura, às cigarras que cantarão de baixo da terra, aos venerandos figos. Já tinha lido qualquer coisa do gênero: verifiquei nestes dias. São exemplos que Aristóteles já dava no primeiro livro da Poética, e na Retórica. Depois recordei-me que Isidoro de Sevilha define a comédia como qualquer coisa que conta stupra virginum et amores meretricum... Pouco a pouco desenhou-se-me na mente este segundo livro como deveria ter sido. Poderia contar-to quase todo sem ler as páginas que deveriam infetar-me. A comédia nasce nas komai, ou seja, nas aldeias dos camponeses, como celebração jocosa depois de uma refeição ou de uma festa. Não fala dos homens famosos e potentes, mas de seres vis e ridículos, não malvados, e não termina com a morte dos protagonistas. Atinge o efeito de ridículo mostrando, dos homens comuns, os defeitos e os vícios. Aqui, Aristóteles vê a disposição para o riso como uma força boa, que pode ter também um valor cognitivo, quando através de enigmas argutos e metáforas inesperadas, embora dizendo-nos as coisas diferentes daquilo que são, como se mentisse, de fato obriga-nos a observá-las melhor, e faz-nos dizer: aí está, as coisas eram mesmo assim, e eu não sabia. A verdade atingida através da representação dos homens, e do mundo, piores do que são ou do que os julgamos, piores em todo o caso de como os poemas heróicos, as tragédias, as vidas dos santos no-los mostraram. É assim?

 

- Quase. Reconstruíste-o lendo outros livros?

 

- Sobre muitos dos quais estava trabalhando Venancio. Creio que Venancio andava há muito à procura deste livro. Deve ter lido no catálogo as indicações que eu também li e deve ter-se convencido que aquele era o livro que ele procurava. Mas não sabia como entrar no finis Africae. Quando ouviu Berengário falar dele a Adelmo, então lançou-se como o cão na pista de uma lebre.

 

- Foi assim, dei-me conta imediatamente. Compreendi que tinha chegado o momento em que deveria defender a biblioteca com unhas e dentes...

 

- E aplicaste o ungüento. Deve ter sido difícil... no escuro.

 

- Hoje em dia vêem melhor as minhas mãos que os teus olhos. A Severino também tinha tirado um pincel. E também eu usei as luvas. Foi uma bela idéia, não foi? Levaste muito tempo a chegar lá...

 

- Sim. Eu pensava num engenho mais complexo, num dente envenenado ou algo de semelhante. Devo dizer que a tua solução era exemplar, a vítima envenenava-se sozinha, e precisamente na medida em que queria ler...

 

Dei-me conta, com um arrepio, que naquele momento aqueles dois homens, enfrentando-se numa luta mortal, se admiravam mutuamente, como se cada um tivesse agido apenas para obter o aplauso do outro. A minha mente foi atravessada pelo pensamento que as artes desenvolvidas por Berengário para seduzir Adelmo e os gestos simples e naturais com que a rapariga tinha suscitado a minha paixão e o meu desejo não eram nada, quanto a astúcia e frenética habilidade em conquistar o outro, em face da aventura de sedução que se desenrolava sob os meus olhos, naquele momento, e que se tinha estendido ao longo de sete dias, cada um dos interlocutores dando, por assim dizer, misteriosos encontros ao outro, cada um aspirando secretamente à aprovação do outro, que temia e odiava.

 

- Mas agora diz-me - estava dizendo Guilherme - porquê? Porque quiseste proteger este livro mais que tantos outros? Porque escondias, mas não a preço do delito, tratados de necromancia, páginas em que se blasfemava, talvez, o nome de Deus, mas por estas páginas condenaste os teus irmãos e te condenaste a ti próprio? Há tantos outros livros que falam da comédia, tantos outros ainda que contêm o elogio do riso. Porque é que este te incutia tanto pavor?

 

- Porque era do Filósofo. Cada um dos livros daquele homem destruiu uma parte da sapiência que a cristandade tinha acumulado ao longo dos séculos. Os padres tinham dito aquilo que era necessário saber sobre a potência do Verbo, e bastou que Boécio comentasse o Filósofo para que o mistério divino do Verbo se transformasse na paródia humana das categorias e do silogismo. O livro do Gênesis diz aquilo que é preciso saber sobre a composição do cosmo, e bastou que se redescobrissem os livros físicos do Filósofo para que o universo fosse repensado em termos de matéria surda e viscosa e para que o árabe Averroes quase convencesse todos da eternidade do mundo. Sabíamos tudo sobre os nomes divinos, e o dominicano sepultado por Abbone... seduzido pelo Filósofo... voltou a nomeá-los seguindo os caminhos orgulhosos da razão natural. Assim, o cosmo, que para o Aeropagita se manifestava a quem soubesse olhar para o alto da cascata luminosa da causa primeira exemplar, tornou-se uma reserva de indícios terrestres dos quais se remonta para nomear uma abstrata eficiência. Primeiro olhávamos para o céu, dignando-nos lançar um olhar carregado à lama da matéria, agora olhamos para a terra e cremos no céu sobre o testemunho da terra. Cada palavra do Filósofo, sobre quem hoje em dia juram mesmo os santos e os pontífices, subverteu a imagem do mundo. Mas ele não tinha conseguido subverter a imagem de Deus. Se este livro se tornasse... se tivesse tornado matéria de aberta interpretação, teríamos franqueado o último limite.

 

- Mas que coisa te assustou neste discurso sobre o riso? Não eliminas o riso eliminando este livro.

 

- Não, decerto. O riso é a fraqueza, a corrupção, a sensaboria da nossa carne. É o folguedo para o camponês, a licença para o avinhado, mesmo a Igreja na sua sabedoria concedeu o momento da festa, do carnaval, da feira, desta poluição diurna que descarrega os humores e entrava outros desejos e outras ambições... Mas assim o riso permanece coisa vil, defesa para os simples, mistérios desconsagrados para a plebe. Também o dizia o apóstolo: em vez de arder, casai-vos. Em vez de vos rebelardes à ordem querida por Deus, ride e deleitai-vos com as vossas imundas paródias da ordem, no fim da refeição, depois de terdes esvaziado as canecas e os garrafões. Elegei o rei dos imbecis, perdei-vos na liturgia do asno e do porco, jogai a representar as vossas saturnais de cabeça para baixo... Mas aqui, aqui... - agora Jorge batia com o dedo na mesa, perto do livro que Guilherme tinha à sua frente – aqui inverte-se a função do riso, eleva-se a uma arte, abrem-se-lhe as portas do mundo dos doutos, faz-se dele objeto de filosofia e de pérfida teologia... Tu viste ontem como os simples podem conceber, e pôr em prática, as mais obscuras heresias, desconhecendo quer as leis de Deus quer as leis da natureza. Mas a Igreja pode suportar a heresia dos simples, os quais se condenam por si mesmos, arruinados pela sua ignorância. A inculta insensatez de Dolcino e dos seus pares jamais porá em crise a ordem divina. Pregará violência e morrerá de violência, não deixará marcas, consumir-se-á como se consome o carnaval, e não importa se durante a festa se produziu na terra, e por breve tempo, a epifania do mundo às avessas. Basta que o gesto não se transforme em desígnio, que este vulgar não encontre um latim que o traduza. O riso liberta o vilão do medo do diabo, porque na festa dos tolos o próprio diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sapiência. Quando ri, enquanto o vinho lhe borbulha na garganta, o vilão sente-se senhor, porque subverteu as relações de senhoria: mas este livro poderia ensinar aos doutos os enigmas argutos, e a partir daquele momento ilustres, com que legitimar a subversão. Então transformar-se-ia em operação do intelecto aquilo que no gesto irrefletido do vilão é ainda e felizmente operação do ventre.

 

Que o riso seja próprio do homem é sinal dos nossos limites de pecadores. Mas deste livro quantas mentes corruptas como a tua extrairiam o extremo silogismo, pelo qual o riso é a finalidade do homem! O riso desvia, por alguns instantes, o vilão do medo. Mas a lei impõe-se através do medo, cujo nome verdadeiro é temor de Deus. E deste livro poderia partir a centelha luciferina que transmitiria ao mundo inteiro um novo incêndio: e o riso designar-se-ia como a arte nova, ignorada até de Prometeu, para anular o medo. Ao vilão que ri, naquele momento, não importa morrer: mas depois, cessada a sua licença, a liturgia impõe-lhe de novo, segundo o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destruidora aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais provido e afetuoso dos dons divinos? Durante séculos, os doutores e os padres segregaram perfumadas essências de santo saber para redimir, através do pensamento daquilo que é alto, a miséria e a tentação daquilo que é baixo. E este livro, justificando como miraculoso remédio a comédia, a sátira e o mimo, que produziriam a purificação das paixões através da representação do defeito, do vício, da fraqueza, induziria os falsos sábios a tentar redimir (com diabólica reviravolta) o alto através da aceitação do baixo. Deste livro derivaria o pensamento que o homem pode querer sobre a terra (como sugeria o teu Bacon a propósito da magia natural) a própria abundância do país de Cocanha. Mas é isto que não devemos nem poderemos ter. Olha para os jovens monges que perdem a vergonha na paródia burlesca da Coena Cyprians. Que diabólica transfiguração da sagrada escritura! E no entanto, ao fazê-lo, sabem que isso é mal! Mas no dia em que a palavra do Filósofo justificasse os jogos marginais da imaginação desregrada, oh, então, verdadeiramente, aquilo que estava à margem saltaria para o centro, e do dentro perder-se-ia qualquer rasto. O povo de Deus transformar-se-ia numa assembléia de monstros expelidos dos abismos da terra incógnita, e naquele momento a periferia da terra conhecida tornar-se-ia o coração do império cristão, os arimaspos no trono de Pedro, os blemos nos mosteiros, os anões de ventre grande e de cabeça enorme de guarda à biblioteca! Os servos a ditarem as leis, nós (mas então tu também) a obedecermos à ausência de qualquer lei. Disse um filósofo grego (que o réu Aristóteles aqui cita, cúmplice e imunda auctoritas) que se deve desmantelar a seriedade dos adversários com o riso, e o riso adversário com a seriedade. A prudência dos nossos padres fez a sua escolha: se o riso é o deleite da plebe, que a licença da plebe seja refreada e humilhada, e atemorizada com a severidade. E a plebe não tem armas pare afinar o seu riso até o fazer tornar instrumento contra a seriedade dos pastores que devem conduzi-la à vida eterna e subtraí-la às seduções do ventre, das pudenta, da comida, dos seus sórdidos desejos. Mas se alguém, um dia, agitando as palavras do Filósofo, e portanto falando como filósofo, levasse a arte do riso à condição de arma sutil, se à retórica da convicção se substituísse a retórica da irrisão, se à tópica da paciente e salvadora construção das imagens da redenção se substituísse a tópica da impaciente demo lição e do desvirtuamento de todas as imagens mais santas e veneráveis... oh, nesse dia também tu e toda a tua sapiência, Guilherme, seríeis arrasados!

 

- Porquê? Bater-me-ia, a minha argúcia contra a argúcia alheia. Seria um mundo melhor que aquele em que o fogo e o ferro em brasa de Bernardo Gui humilham o fogo e o ferro em brasa de Dolcino.

 

- Então estarias preso tu também na trama do demônio. Combaterias do outro lado do campo do Armagedão, onde terá lugar o reencontro final. Mas para esse dia a Igreja deve saber impor uma vez mais a regra do conflito. Não nos fez medo a blasfêmia, porque mesmo na maldição de Deus reconhecemos a imagem extraviada da ira de Jeová, que maldiz os anjos rebeldes. Não nos fez medo a violência de quem mata os pastores em nome de qualquer fantasia de renovação, porque é a mesma violência dos princípios que procuraram destruir o povo de Israel. Não nos faz medo o rigor do donatista, a loucura suicida do circuncelião, a luxúria do bogomilo, a orgulhosa pureza do albigense, a necessidade de sangue do flagelante, a vertigem do mal do irmão de espírito livre: conhecemo-los a todos, e conhecemos a raiz dos seus pecados, que é a mesma raiz da nossa santidade. Não nos fazem medo e sobretudo sabemos como destruí-los, melhor, como deixar que se destruam por si levando orgulhosamente ao zênite a vontade de morte que nasce dos próprios abismos do seu nadir. Aliás, queria dizer, a sua presença é-nos preciosa, inscreve-se no desígnio de Deus, porque o seu pecado incita a nossa virtude, a sua blasfêmia encoraja o nosso canto de louvor, a sua desregrada penitência regula o nosso gosto do sacrifício, a sua impiedade faz resplandecer a nossa piedade, tal como o príncipe das trevas foi necessário, com a sua rebelião e a sua desesperação, para melhor fazer refulgir a glória de Deus, princípio e fim de toda a esperança. Ma se um dia... e já não como exceção plebéia mas como ascese do douto, confiada ao testemunho indestrutível da escritura... se fizesse aceitável, e aparecesse como nobre, e liberal, e já não mecânica, a arte da irrisão, se um dia alguém pudesse dizer (e não ser escutado): eu rio da Encarnação... então não teríamos armas para deter essa blasfêmia, porque ela apelaria às forças obscuras da matéria corporal, aquelas que se afirmam no peido e no arroto, e no arroto e o peido arrogariam para si o direito que é só do espírito, de soprar onde quer!

 

- Licurgo tinha mandado erigir uma estátua ao riso.

 

- Leste isso no libelo de Clorício, que tentou absolver os mimos da acusação de impiedade, que diz como um doente foi curado por um médico que o tinha ajudado a rir. Porque era preciso curá-lo, se Deus tinha estabelecido que a sua jornada terrena tinha chegado ao fim?

 

- Não creio que o tenha curado do mal. Ensinou-o a rir do mal.

 

- O mal não se exorciza. Destrói-se.

 

- Com o corpo do doente.

 

- Se for necessário.

 

- Tu és o diabo - disse então Guilherme.

 

Jorge pareceu não compreender. Se ele pudesse ver, eu diria que teria fixado o seu interlocutor com olhar atônito.

 

- Eu? - disse.

 

- Sim, mentiram-te. O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a arrogância do espírito, a fé sem sorriso, a verdade que nunca é aflorada pela dúvida. O diabo é sombrio porque sabe para onde vai, e, andando, vai sempre para o lugar de onde veio. Tu és o diabo, e como o diabo vives nas trevas. Se querias convencer-me, não o conseguiste. Eu odeio-te, Jorge, e se pudesse conduzir-te-ia lá para baixo, pelo planalto, nu, com penas de voláteis enfiadas no olho do cú e a cara pintada como um malabarista e um bufão, para que todo o mosteiro se risse de ti e não mais tivesse medo. Gostaria de te barrar de mel e depois enrolar-te nas plumas, levar-te à trela pelas feiras, para dizer a todos: este anunciava-vos a verdade e dizia-vos que a verdade tem o sabor da morte, e vós não acreditáveis na sua palavra, mas sim na sua triste figura. E agora eu digo-vos que, na infinita vertigem dos possíveis, Deus também vos consente que imagineis um mundo em que o presumível intérprete da verdade não seja mais que um melro desajeitado, que repete palavras aprendidas há muito tempo.

 

- Tu és pior que o diabo, menorita - disse então Jorge. - És um jogral, como o santo que vos pariu. És como o teu Francisco, que de toto corpore fecerat linguam, que fazia sermões dando espetáculos como os saltimbancos, que confundia o avaro metendo-lhe na mão moedas de ouro, que humilhava a devoção das freiras recitando o Miserere em vez da prédica, que mendigava em francês, e imitava com um pedaço de madeira os movimentos de quem toca violino, que se vestia de vagabundo para confundir os frades glutões, que se lançava nu sobre a neve, falava com os animais e as ervas, transformava o próprio mistério da natividade em espetáculo de aldeia, invocava o cordeiro de Belém imitando o balido da ovelha... Foi uma boa escola... Não era menorita aquele frade Deustesalve de Florença?

 

- Sim - sorriu Guilherme. - Aquele que foi ao convento dos pregadores e disse que não aceitaria comida se primeiro não lhe dessem um pedaço da túnica de frei João, para conservar como relíquia, e quando lha deram limpou a ela o traseiro e depois lançou-a na estrumeira, e com uma vara enrolava-a no esterco gritando: ai de mim, ajudai-me irmãos, porque perdi na latrina as relíquias do santo!

 

- Diverte-te esta história, parece-me. Talvez queiras contar-me também aquela do outro menorita, frade Paulo Milmoscas, que um dia caiu ao comprido sobre o gelo, e os seus cidadãos troçaram dele, e um perguntou-lhe se não queria ter algo de melhor debaixo de si, e ele respondeu-lhe: sim, a tua mulher... Assim vós procurais a verdade.

 

- Assim Francisco ensinava a gente a olhar para as coisas de outra maneira.

 

- Mas disciplinamo-vos. Viste-os ontem, os teus irmãos. Reentraram nas nossas fileiras, já não falam como os simples. Os simples não devem falar. Este livro justificaria a idéia que a língua dos simples é portadora de uma certa sabedoria. Era necessário impedir isso, foi o que eu fiz. Tu dizes que eu sou o diabo: não é verdade. Eu fui a mão de Deus.

 

- Há limites para além dos quais não é permitido ir. Deus quis que sobre certos papéis fosse escrito: hic sunt leones.

 

- Deus também criou os monstros. Mesmo a ti. E de tudo quer que se fale.

 

Jorge alongou as mãos trêmulas e puxou para si o livro. Tinha-o aberto, mas ao contrário, de modo que Guilherme continuasse a vê-lo pelo lado justo.

 

- Então porque é que - disse - deixou que este texto andasse perdido ao longo do curso dos séculos, e se salvasse só uma cópia, que a cópia daquela cópia, que foi parar sabe-se lá onde, permanecesse sepultada durante anos nas mãos de um infiel que não conhecia o grego e depois jazesse abandonada no reduto de uma velha biblioteca onde eu, não tu, eu fui chamado pela providência a encontrá-la, e a trazê-la comigo, e a escondê-la durante mais anos ainda? Eu sei, sei como se o visse escrito em letras de diamante, com os meus olhos que vêem coisas que tu não vês, eu sei que esta era a vontade do Senhor, segundo a qual eu agi. Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo.

 

SÉTIMO DIA

NOITE

 

Onde sobrevêm a ectirose e por causa da demasiada virtude prevalecem as forças do inferno.

 

O velho calou-se. Conservava ambas as mãos abertas sobre o livro, como se lhe acariciasse as páginas, como se estivesse estendendo as folhas para o ler melhor, ou quisesse protegê-lo de uma presa rapace.

 

- Tudo isto não serviu afinal de nada - disse-lhe Guilherme. - Agora acabou-se, encontrei-te, encontrei o livro, e os outros morreram em vão.

 

- Não em vão - disse Jorge. - Talvez em excesso. E, se acaso te servia uma prova de que este livro é maldito, tiveste-a. Mas não devem ter morrido em vão. E, a fim de que não tenham morrido em vão, uma morte não será de mais.

 

Disse, e começou com as suas mãos descarnadas e diáfanas a rasgar lentamente, aos pedaços e às tiras, as páginas moles do manuscrito, metendo-os à boca aos bocados e mastigando-os lentamente como se consumisse a hóstia e quisesse fazê-la carne da sua própria carne.

 

Guilherme olhava-o fascinado e parecia não se dar conta do que se passava. Depois sacudiu-se e debruçou-se para a frente, gritando:

 

- Que fazes?

 

Jorge sorriu, descobrindo as gengivas exangues, enquanto uma baba amarela lhe corria dos lábios pálidos sobre a penugem branca e rala do queixo.

 

- És tu que esperavas o som da sétima trombeta, não é verdade? Escuta agora o que diz a voz: sela aquilo que disseram os sete trovões e não o escrevas, toma-o e devora-o, isso amargará ao teu ventre mas à tua boca será doce como o mel. Vês? Agora selo aquilo que não devia ser dito, na trombeta em que me torno.

 

Riu, precisamente ele, Jorge. Pela primeira vez o ouvi rir... Riu com a garganta, sem que os lábios adquirissem uma expressão de alegria, e quase parecia que chorava:

 

- Não esperavas, Guilherme, esta conclusão, verdade? Este velho pela graça do Senhor, ainda vence, não é verdade?

 

E, como Guilherme procurava tirar-lhe o livro, Jorge, que pressentiu o gesto percebendo a vibração do ar, retrocedeu, apertando o volume ao peito com a mão esquerda enquanto com a direita continuava a rasgar-lhe as páginas e a metê-las à boca.

 

Estava do outro lado da mesa, e Guilherme, que não conseguia tocar-lhe, tentou bruscamente contornar o obstáculo. Mas fez cair o seu banco, enredando nele a veste, de modo que Jorge teve ocasião de perceber o alvoroço. O velho riu ainda, desta vez mais alto, e com insuspeitada rapidez estendeu a mão direita, localizando às apalpadelas a candeia, guiado pelo calor atingiu a chama e carregou-lhe em cima com a mão, sem temer a dor, e a chama apagou-se. A sala mergulhou na obscuridade, e ouvimos pela última vez a risada de Jorge, que gritava:

 

- Encontrai-me agora, porque agora sou eu que vejo melhor!

 

Depois calou-se e não se fez ouvir mais, movendo-se com aqueles passos silenciosos que tornavam sempre tão inesperadas as suas aparições, e só ouvíamos por momentos, em pontos diversos da sala, o rumor do papel que se rasgava.

 

- Adso! - gritou Guilherme -, fica à porta, não o deixes sair!

 

Mas tinha falado demasiado tarde, porque eu, que já há alguns segundos fremia com o desejo de me lançar sobre o velho, ao cair da treva tinha-me atirado para a frente, procurando contornar a mesa do lado oposto àquele em que se tinha movido o meu mestre. Demasiado tarde compreendi que tinha dado espaço a Jorge de alcançar a porta, porque o velho sabia dirigir-se no escuro com extraordinária segurança. E de fato ouvimos um rumor de papel rasgado atrás de nós, e bastante atenuado, porque já provinha da sala contígua. E ao mesmo tempo ouvimos outro rumor, um rangido forçado e progressivo, um gemer de gonzos.

 

- O espelho! - gritou Guilherme. - Está a fechar-nos cá dentro!

 

Guiados pelo rumor, ambos nos atiramos para a entrada, eu tropecei num escabelo e contundi uma perna, mas não fiz caso, porque num relâmpago compreendi que, se Jorge nos tivesse encerrado, nunca mais sairíamos: no escuro não encontraríamos o modo de abrir, não sabendo daquele lado o que se devia manobrar e como.

 

Creio que Guilherme se movia com a mesma desesperação que eu, porque o senti a meu lado enquanto ambos, alcançada a soleira, nos empurrávamos contra a parte de trás do espelho que se estava fechando sobre nós. Chegamos a tempo, porque a porta deteve-se e pouco depois cedeu, reabrindo-se. Evidentemente, Jorge, advertindo que o jogo era desigual, tinha-se afastado. Saímos da sala maldita, mas agora não sabíamos para onde se tinha dirigido o velho, e a escuridão continuava a ser total. De repente lembrei-me:

 

- Mestre, mas eu tenho comigo o fuzil!

 

- Então que esperas? - gritou Guilherme -, procura a lâmpada e acende-a!

 

Eu lancei-me no escuro, voltando ao finis Africae, procurando a candeia, às apalpadelas. Consegui logo, por milagre divino, rebusquei no escapulário, encontrei o fuzil, as mãos tremiam-me e falhei duas ou três vezes antes de o acender, enquanto Guilherme ofegava da porta.

 

- Depressa, depressa! - e finalmente fiz luz. - Depressa - incitou-me ainda Guilherme -, senão aquele come o Aristóteles todo!

 

- E morre! - gritei eu angustiado, alcançando-o e pondo-me com ele à procura.

 

- Não me importa que morra, o maldito! - gritava Guilherme, cravando os olhos em redor e movendo-se de modo desordenado. - De qualquer maneira com aquilo que comeu o seu destino já está marcado. Mas eu queria o livro! - Depois parou, e acrescentou com mais calma: - Pára. Se fizermos assim, nunca mais o encontramos. Calados e quietos um instante.

 

Imobilizamo-nos em silêncio. E no silêncio ouvimos não muito longe o rumor de um corpo que chocava com um armário e o estrépido de alguns livros que caíam.

 

- Por ali! - gritamos ao mesmo tempo.

 

Corremos na direção dos rumores, mas logo nos demos conta que devíamos abrandar o passo. De fato fora do finis Africae, a biblioteca era atravessada naquela noite por rajadas de ar que sibilavam e gemiam na proporção do vento forte do exterior.

 

Multiplicadas pelo nosso ímpeto, elas ameaçavam apagar a candeia, tão duramente reconquistada. Não podendo nós acelerar, seria mister abrandar Jorge. Mas Guilherme teve a intuição oposta e gritou:

 

- Apanhamos-te, velho, agora temos a luz!

 

E foi sábia resolução, porque a revelação pôs provavelmente em agitação Jorge, que deve ter acelerado o passo, comprometendo o equilíbrio daquela sua mágica sensibilidade de vidente das trevas. De fato, pouco depois ouvimos um outro rumor e, quando, segundo o som, entramos na sala Y de YSPANA, vimo-lo, caído por terra, o livro ainda nas mãos, enquanto procurava levantar-se no meio dos volumes que se tinham precipitado da mesa em que ele tinha chocado e que havia virado. Procurava levantar-se mas continuava a rasgar as páginas, como para devorar o mais depressa possível a sua presa.

 

Alcançamo-lo quando já se tinha levantado, e sentindo a nossa presença enfrentava-nos recuando. O seu rosto, à claridade vermelha da candeia, pareceu-nos agora horrendo: as feições alteradas, um suor maligno estriava-lhe a fronte e as faces, os olhos habitualmente brancos de morte tinham-se injetado de sangue, da boca saíam-lhe farrapos de pergaminho como a uma fera famélica que se tivesse empanturrado de mais e já não conseguisse tragar a sua comida. Desfigurado pela ansiedade, pelo ataque do veneno que agora já lhe serpenteava abundantemente nas veias, pela sua desesperada e diabólica determinação, aquela que tinha sido a figura venerável do velho parecia agora repugnante e grotesca: noutros momentos poderia mover ao riso, mas também nós estávamos reduzidos ao estado de animais, a cães que perseguem a caça.

 

Poderíamos tê-lo agarrado com calma, em vez disso precipitamo-nos sobre ele com ênfase, ele debateu-se, apertou as mãos sobre o peito defendendo o volume, eu segurava-o com a mão esquerda enquanto com a direita procurava manter alta a candeia, mas rocei-lhe o rosto com a chama, ele pressentiu o calor, emitiu um som sufocado, um rugido, quase, deixando cair da boca pedaços de papel, abandonou a mão direita com que agarrava o livro, moveu a mão para a candeia e arrebatou-ma de repente, lançando-a para a frente...

 

A candeia foi cair precisamente no monte de livros caídos da mesa, amontoados uns sobre os outros com as páginas abertas. O azeite entornou-se, o fogo pegou-se logo a um pergaminho fragilíssimo que ardeu como um feixe de galhos secos. Tudo aconteceu em poucos instantes, uma grande labareda elevou-se dos volumes, como se aquelas páginas milenares anelassem há séculos pelo ardor e se alegrassem em satisfazer de repente uma imemorial sede de ecpirose. Guilherme apercebeu-se de quanto estava acontecendo e abandonou a presa sobre o velho - o qual, sentindo-se livre, recuou alguns passos -, hesitou um tanto, decerto de mais, sem saber se havia de voltar a agarrar Jorge ou lançar-se a apagar a pequena fogueira. Um livro mais velho que os outros ardeu quase de repente, lançando para o alto uma língua de fogo.

 

As finas lamelas do vento, que podiam apagar uma débil chamazinha, encorajavam pelo contrário uma mais forte e vivaz, e faziam mesmo brotar dela línguas de fogo errantes.

 

- Apaga aquele fogo, depressa! - gritou Guilherme. - Aqui arde tudo!

 

Eu lancei-me em direção à fogueira, depois parei, porque não sabia o que fazer. Guilherme moveu-se ainda em direção a mim, para vir em meu auxílio. Estendemos as mãos para o incêndio, procuramos com os olhos qualquer coisa com que o sufocar, eu tive como uma inspiração, tirei a veste despindo-a pela cabeça e procurei lança-la sobre o braseiro. Mas as labaredas eram agora demasiado altas, morderam a minha veste e dela se alimentaram. Retirei as mãos, que se tinham queimado, voltei-me para Guilherme e vi, mesmo por trás dele, Jorge, que se tinha aproximado de novo. O calor era agora tão forte que ele sentiu-o perfeitamente, soube com absoluta certeza onde estava o fogo, e para aí atirou o Aristóteles.

 

Guilherme teve um gesto de ira e deu um empurrão violento ao velho, que chocou com um armário, batendo com a cabeça contra uma esquina e caindo por terra... Mas Guilherme, a quem creio ter ouvido pronunciar uma horrível blasfêmia, não se preocupou com ele. Voltou aos livros. Demasiado tarde. O Aristóteles, ou melhor, quanto dele tinha restado da refeição do velho, já estava a arder.

 

Entretanto algumas chamas tinham subido pelas paredes e já os volumes de um outro armário se encontravam encarquilhando sob o ímpeto do fogo. A partir de então, não um mas dois incêndios abrasavam a sala.

 

Guilherme compreendeu que não poderíamos apaga-los com as mãos, e resolveu salvar os livros com os livros. Agarrou num volume que lhe pareceu melhor encadernado que os outros, e mais compacto, e procurou usá-lo como uma arma para sufocar o elemento inimigo. Mas, batendo com a encadernação guarnecida de tachas sobre a pira dos livros a arder, não fazia mais que suscitar novas centelhas. Procurou dispersá-las com os pés, mas obteve o efeito oposto, porque se levantaram no ar pedaços de pergaminho quase reduzido a cinzas que esvoaçavam como morcegos pelo ar aliado ao seu aéreo companheiro os enviava a incendiar a matéria terrestre de outras folhas.

 

A desventura quisera que aquela fosse uma das salas mais desordenadas do labirinto. Das prateleiras dos armários pendiam manuscritos enrolados, outros livros já desligados deixavam despontar das suas capas, como de lábios hiantes, línguas de velo ressequido pelos anos, e a mesa devia ter contido uma quantidade grande de escritos que Malaquias (então sozinho há alguns dias) tinha descurado arrumar. De maneira que a sala, depois da ruína provocada por Jorge, estava invadida de pergaminhos que não esperavam mais que transformar-se noutro elemento.

 

Em muito pouco tempo a sala ficou um braseiro, uma carca ardente. Também os armários participavam naquele sacrifício e começaram a crepitar. Dei-me conta que todo o labirinto não era mais que uma imensa pira sacrificial, preparada à espera da primeira fagulha...

 

- Água, é preciso água! - dizia Guilherme, mas depois acrescentava. - E onde se encontra água neste inferno?

 

- Na cozinha, em baixo, na cozinha! - gritei.

 

Guilherme olhou-me perplexo, com o rosto avermelhado por aquele furioso clarão.

 

- Sim, mas antes que desçamos e voltemos a subir... Ao diabo! - gritou depois -, em qualquer caso esta sala está perdida, e talvez também a seguinte. Descíamos imediatamente, eu procuro água, e tu vai dar o alarme, é preciso muita gente!

 

Encontramos o caminho da escada, porque a conflagração iluminava também as salas sucessivas, embora cada vez mais debilmente, de modo que percorremos as últimas duas salas quase às apalpadelas. Em baixo, a luz da noite iluminava palidamente o scriptorium, e dali descemos ao refeitório. Guilherme correu à cozinha, eu à porta do refeitório, manobrando para a abrir do interior, o que consegui depois de não pouco trabalho, porque a agitação me tornava desajeitado e inábil. Sai para o planalto, corri para o dormitório, depois compreendi que não poderia acordar os monges um a um, tive uma inspiração, fui à igreja, procurando o caminho para a torre do campanário. Logo que ai cheguei, agarrei-me a todas as cordas, tocando a rebate. Puxava com força, e a corda do sino maior, subindo de novo, arrastava-me consigo. As mãos na biblioteca tinham-se-me queimado nas costas, ainda tinha as palmas sãs, de modo que as queimei fazendo-as deslizar ao longo das cordas, até que sangraram e tive de largar tudo.

 

Mas já tinha feito bastante barulho, precipitei-me para o exterior, a tempo de ver os primeiros monges que saíam do dormitório, enquanto de longe se ouviam as vozes dos servos que estavam assomando à soleira dos seus alojamentos. Não pude explicar-me bem, porque estava incapaz de formular palavras, e as primeiras que me vieram aos lábios foram na minha língua materna. Com a mão ensangüentada indicava as janelas da ala meridional do Edifício das quais transparecia, através do alabastro, um clarão anormal. Dei-me conta, pela intensidade da luz, que, enquanto descia e tocava os sinos, o fogo se tinha propagado já a outras salas. Todas as janelas da África e toda a fachada entre esta e o torreão oriental reluziam agora com clarões desiguais.

 

- Água, trazei água! - gritava eu.

 

A primeira ninguém compreendeu. Os monges estavam tão habituados a considerar a biblioteca um lugar sagrado e inacessível que não conseguiam capacitar-se de que ela fosse ameaçada por um acidente vulgar, como uma cabana de camponeses. Os primeiros que elevaram o olhar para as janelas benzeram-se murmurando palavras de espanto, e compreendi que acreditavam em novas aparições. Agarrei-me às suas vestes, implorei-lhes que compreendessem, até que alguém traduziu os meus soluços em palavras humanas.

 

Era Nicolau de Morimondo, que disse:

 

- A biblioteca está a arder!

 

- Pois - murmurei, deixando-me cair desfalecido por terra.

 

Nicolau deu prova de grande energia, gritou ordens aos servos, deu conselhos aos monges que o rodeavam, enviou alguém a abrir as outras portas do Edifício, impeliu outros a procurarem baldes e recipientes de toda a espécie, orientou os presentes para as nascentes e os depósitos de água da cerca. Ordenou aos vaqueiros que usassem os mulos e os burros para transportarem cântaros... Se tivesse sido um homem dotado de autoridade a dar estas disposições teria sido imediatamente obedecido. Mas os servos estavam habituados a receber ordens de Remígio, os copistas de Malaquias, todos do Abade. E nenhum dos três estava, infelizmente, presente. Os monges procuravam com os olhos o Abade, à procura de indicações e de conforto, e não o encontravam, e só eu sabia que ele estava morto, ou estava morrendo naquele momento, murado num túnel asfixiante que agora se estava transformando num forno, num touro de Faláride.

 

Nicolau empurrava os vaqueiros para um lado, mas algum outro monge, animado de boas intenções, empurrava-os para o outro. Alguns irmãos tinham evidentemente perdido a calma, outros estavam ainda entorpecidos pelo sono. Eu procurava explicar, porque já tinha recuperado o uso da palavra, mas é necessário recordar que estava quase nu, tendo deitado a túnica às chamas, e a vista do rapaz que eu era, ensangüentado, de rosto enegrecido pela fuligem de corpo indecentemente imberbe, atarantado agora pelo frio, não devia decerto inspirar confiança.

 

Finalmente, Nicolau conseguiu arrastar alguns irmãos e outra gente para a cozinha, que entretanto alguém tinha tornado acessível. Mais alguém teve o bom senso de trazer tochas. Encontramos o local em grande desordem, e compreendi que Guilherme devia tê-lo posto em desalinho para procurar água e recipientes adequados para a transportar.

 

Vi naquele entretanto o próprio Guilherme, que desembocava da porta do refeitório, com o rosto chamuscado, o hábito fumegante, na mão tinha uma grande marmita, e senti piedade dele, pobre alegoria da impotência. Compreendi que, se acaso tinha conseguido transportar ao segundo andar uma panela de água sem a entornar, e se acaso o tinha feito mais de uma vez, devia ter obtido bem pouco. Lembrei-me da história de Santo Agostinho, quando vê uma criança que tenta transvasar a água do mar com uma colher: a criança era um anjo, e fazia isso para brincar com o santo, que pretendia penetrar os mistérios da natureza divina. E como o anjo me falou Guilherme, apoiando-se exausto ao pé direito da porta:

 

- É impossível, jamais conseguiremos, nem sequer com todos os monges da abadia. A biblioteca está perdida.

 

Contrariamente ao anjo, Guilherme chorava.

 

Eu apertei-me a ele, enquanto ele arrancava de uma mesa um pano e tentava cobrir-me. Paramos a observar, já derrotados, aquilo que acontecia a nossa volta.

 

Era um acorrer desordenado de gente, alguns subiam de mãos vazias e cruzavam-se pela escada de caracol com quem de mãos vazias, impelido por estúpida curiosidade, já tinha subido e agora descia a procurar recipientes. Outros mais avisados procuravam logo panelas e bacias, para perceberem que na cozinha não havia água bastante. De improviso, a enorme sala foi invadida por alguns mulos que transportavam cântaros, e os vaqueiros que os empurravam descarregaram-nos e fizeram menção de transportar a água para cima. Mas não sabiam o caminho para subir ao scriptorium, e foi preciso tempo antes que algum dos copistas os instruíssem, e quando subiam chocavam com os que desciam aterrorizados. Alguns dos cântaros quebraram-se e espalharam a água pelo chão, outros foram passados ao longo da escada de caracol por mãos diligentes. Segui o grupo e achei-me no scriptorium: do acesso à biblioteca provinha um fumo denso, os últimos que tinham tentado subir até ao torreão oriental já voltavam, tossindo, com os olhos vermelhos, e declaravam que já não se podia penetrar naquele inferno.

 

Vi então Bêncio. De rosto alterado, com um enorme recipiente subia do andar inferior. Ouviu aquilo que diziam os foragidos e apostrofou-os:

 

- O inferno engolir-vos-á a todos, covardes! - Voltou-se como para procurar auxílio e viu-me:

 

- Adso - gritou -, a biblioteca... a biblioteca...

 

Não esperou pela minha resposta. Correu para os pés da escada e penetrou ousadamente no fumo. Foi a última vez que o vi.

 

Ouvi um rangido que provinha de cima. Das abóbadas do scriptorium caíam pedaços de pedra misturados com cal. Uma chave de abóbada esculpida em forma de flor soltou-se e quase me caía na cabeça. O pavimento do labirinto estava cedendo.

 

Desci a correr ao rés-do-chão e saí para o ar livre. Alguns servos diligentes tinham trazido escadas com as quais tentavam alcançar as janelas dos andares altos e fazer passar a água por aquela via. Mas as escadas mais altas mal chegavam às janelas do scriptorium, e quem ali tinha subido não podia abri-las do exterior. Mandaram dizer que as abrissem do interior, mas já ninguém agora ousava subir.

 

Entretanto, eu observava as janelas do terceiro andar. A biblioteca toda devia ter-se tornado já um único braseiro fumegante, e o fogo agora corria de sala em sala, abrindo-se rápido nos milhares de páginas secas. Todas as janelas estavam agora iluminadas, um fumo negro saía pelo teto: o fogo já se tinha comunicado às traves de cobertura. O Edifício, que parecia tão sólido e tetrágono, revelava naquela circunstancia a sua fraqueza, as suas fendas, os muros comidos a partir do interior, as pedras esboroadas que permitiam à chama atingir as estruturas de madeira onde quer que elas estivessem.

 

De repente, algumas janelas despedaçaram-se como comprimidos por uma força interna, as centelhas saíram para o ar livre salpicando de luzes errantes o escuro da noite. O vento, primeiro forte, tinha-se tornado mais leve, e foi desventura porque, forte, teria talvez apagado as centelhas, leve transportava-as, excitando-as, e com elas fazia voltear no ar pedaços de pergaminho que um facho interno tornara mais finos. Naquela altura ouviu-se um estrondo: o pavimento do labirinto tinha cedido nalguns pontos, precipitando as suas traves chamejantes no andar inferior, porque então vi línguas de chama levantarem-se do scriptorium, também ele povoado de livros e de armários, e de papéis soltos, espalhados pelas mesas, prontas para a solicitação das centelhas. Ouvi gritos de desespero provenientes de um grupo de copistas que se arrancavam os cabelos e ainda se propunham subir heroicamente, para recuperarem os seus tão amados pergaminhos. Em vão, que a cozinha e o refeitório eram agora uma encruzilhada de almas perdidas que se agitavam em todas as direções, onde cada um fazia obstáculo aos outros. A gente chocava, caía, quem tinha um recipiente entornava-lhe o salvítico conteúdo, os mulos que tinham penetrado na cozinha tinham percebido a presença do fogo e pateando precipitavam-se para as saídas, chocando com os humanas e os seus próprios assustadíssimos palafreneiros. Via-se bem que, de qualquer modo, aquela turba de vilãos e de homens devotos e sábios, mas extremamente inábeis, não dirigida por alguém estava estorvando mesmo os socorros que acaso tivessem podido chegar.

 

Todo o planalto era dominado pela desordem. Mas estava-se apenas no início da tragédia. Porque, saindo pelas janelas e pelo teto, a nuvem agora triunfante das centelhas, encorajada pelo vento, estava caindo por todo o lado, tocando as coberturas da igreja. Não há quem não saiba quantas esplêndidas catedrais foram vulneráveis à mordedura do fogo: porque a casa de Deus aparece bela e bem defendida como a Jerusalém celeste por causa da pedra de que faz gala, mas as muralhas e as abóbadas são sustentadas por uma frágil, embora admirável, arquitetura de madeira, e se a igreja de pedra recorda as florestas mais veneráveis pelas suas colunas que se ramificam no alto das abóbadas, ousadas como carvalhos, do carvalho tem muitas vezes o corpo-como tem igualmente de madeira todo o seu recheio, os altares, os coros, as tábuas pintadas, os bancos, os cadeirões, os candelabros. Assim aconteceu à igreja abacial de portal belíssimo que tanto me tinha fascinado no primeiro dia. Ela incendiou-se em brevíssimo tempo. Os monges e toda a população do planalto compreenderam então que estava em jogo a própria sobrevivência da abadia, e todos se puseram a correr ainda mais arrojada e desordenadamente para fazer frente ao perigo.

 

Decerto que a igreja era mais acessível e portanto mais fácil de defender que a biblioteca. A biblioteca tinha sido condenada pela sua própria impenetrabilidade, pelo mistério que a protegia, pela avareza dos seus acessos. A igreja, aberta maternalmente a todos na hora da oração, a todos estava aberta na hora do socorro. Mas não havia mais água, ou pelo menos muito pouca se podia encontrar depositada em quantidade suficiente, as nascentes forneciam-na com natural parcimônia e com lentidão não proporcional à urgência da tarefa. Todos poderiam ter apagado o incêndio da igreja, ninguém sabia agora como. Além disso, o fogo tinha-se comunicado por cima, onde era difícil içar-se para combater as chamas ou sufocá-las com terra e trapos. E, quando as chamas chegaram de baixo, era já inútil deitar-lhes terra ou areia que o teto ruía agora sobre os que traziam socorro, derrubando não poucos.

 

Assim, aos gritos de lamento pelas muitas riquezas que ardiam estavam agora a unir-se os gritos de dor pelos rostos queimados, os membros esmagados, os corpos desaparecidos sob um repentino precipitar de abóbadas.

 

O vento tinha-se feito de novo impetuoso e mais impetuosamente alimentava o contágio. Logo depois da igreja incendiaram-se os estábulos e as cavalariças. Os animais aterrorizados, quebraram as suas cordas, derrubaram as portas, espalharam-se pelo planalto relinchando, mugindo, balindo, grunhindo horrivelmente. Algumas centelhas atingiram as crinas de muitos cavalos, e viu-se a esplanada percorrida por criaturas infernais, por corcéis flamejantes que derrubavam tudo no seu caminho que não tinha nem meta nem trégua. Vi o velho Alinardo, que errava perdido sem ter compreendido o que acontecia, derrubado pelo magnífico Brunello, aureolado de fogo, transportado para o pó e aí abandonado, pobre coisa informe. Mas não tive nem modo nem tempo de o socorrer, nem de chorar o seu fim, porque cenas como aquela repetiam-se agora por toda a parte.

 

Os cavalos em chamas tinham transportado o fogo para onde o vento não o tinha ainda feito: agora ardiam também as oficinas e a casa dos noviços. Bandos de pessoas corriam de um lado para o outro da esplanada, sem meta ou com metas ilusórias. Vi Nicolau, com a cabeça ferida, o hábito em farrapos, que já vencido, de joelhos na alameda de acesso, maldizia a maldição divina. Vi Pacífico de Tivoli, que, renunciando a qualquer idéia de socorro, estava procurando agarrar à passagem um mulo à desfilada, e como conseguiu gritou-me que também eu fizesse a mesma coisa e que fugisse, para escapar àquele torvo simulacro de Armagedão.

 

Perguntei-me onde estava Guilherme e temi que tivesse sido derrubado por um desabamento. Encontrei-o depois de longa busca nas proximidades do claustro. Tinha na mão a sua saca de viagem: quando o fogo já se comunicava à casa dos peregrinos tinha subido à sua cela para salvar ao menos as suas preciosíssimas coisas. Tinha trazido também a minha saca, onde encontrei alguma coisa com que me vestir. Detivemo-nos ofegantes a observar o que acontecia em redor.

 

Agora a abadia estava condenada. Quase todos os seus edifícios estavam, uns mais outros menos, atingidos pelo fogo. Os que estavam ainda intactos não o seriam dentro em pouco, porque tudo agora, desde os elementos naturais à obra confusa dos que socorriam, colaborava para propagar o incêndio. Permaneciam salvas as partes não edificadas, o horto, o jardim diante do claustro... Não se podia fazer mais nada para salvar as construções, mas bastava abandonar a idéia de salvá-las para se poder observar tudo sem perigo, estando em zona aberta.

 

Olhamos para a igreja, que agora ardia lentamente, porque é próprio destas grandes construções arder logo nas partes lenhosas e depois agonizar durante horas, por vezes durante dias. Diversamente ardia agora o Edifício. Aqui, o material combustível era muito mais rico, o fogo já propagado de todo pelo scriptorium tinha agora invadido o andar da cozinha. Quanto ao terceiro andar, onde outrora e durante centenas de anos tinha sido o labirinto, estava agora praticamente destruído.

 

- Era a maior biblioteca da cristandade - disse Guilherme. - Agora - acrescentou - o Anticristo está verdadeiramente próximo, porque nenhuma sapiência lhe fará mais de barreira. Por outro lado vimos o seu vulto esta noite.

 

- O vulto de quem? - perguntei, aturdido.

 

- Jorge, quero eu dizer. Naquele rosto devastado pelo ódio contra a filosofia vi pela primeira vez o retrato do Anticristo, que não vem da tribo de Judas, como pretendem os seus anunciadores, nem de um país longínquo. O Anticristo pode nascer da própria piedade, do excessivo amor de Deus ou da verdade, como o herege nasce do santo e o endemoninhado do vidente. Teme, Adso, os profetas e aqueles que estão dispostos a morrer pela verdade, que de costume fazem morrer muitíssimos com eles, freqüentemente antes deles, por vezes em seu lugar. Jorge cumpriu uma obra diabólica porque amava de modo tão lúbrico a sua verdade que ousava tudo com a condição de destruir a mentira. Jorge temia o segundo livro de Aristóteles porque ele ensinava talvez a deformar deveras o rosto de toda a verdade, a fim de que não nos tornássemos escravos dos nossos fantasmas. Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprender a libertar-nos da paixão insana pela verdade.

 

- Mas, mestre - arrisquei dolente -, vós agora falais assim porque estais ferido no mais profundo da vossa alma. Porém há uma verdade, aquela que descobristes esta noite, aquela a que chegastes interpretando as pistas que lestes nos últimos dias. Jorge venceu, mas vós vencestes Jorge, porque puseste a nu a sua trama...

 

- Não havia uma trama - disse Guilherme -, e eu descobri-a por engano.

 

A afirmação era autocontraditória, e não compreendi se verdadeiramente Guilherme queria que o fosse.

 

- Mas era verdade que as pegadas sobre a neve remetiam para Brunello - disse eu -, era verdade que Adelmo se tinha suicidado, era verdade que Venancio não se tinha afogado no cântaro, era verdade que o labirinto era organizado tal como o havíeis imaginado, era verdade que se entrava no finis Africae tocando a palavra quator, era verdade que o livro misterioso era de Aristóteles... Poderia continuar a enumerar todas as coisas verdadeiras que vós haveis descoberto valendo-vos da vossa ciência...

 

- Nunca duvidei da verdade dos signos, Adso, são a única coisa de que o homem dispõe para se orientar no mundo. Aquilo que eu não compreendi foi a relação entre os signos. Cheguei até Jorge através de um esquema apocalíptico que parecia reger todos os delitos, e no entanto era casual. Cheguei a Jorge procurando um autor de todos os crimes, e descobrimos que cada crime tinha no fundo um autor diferente, ou então nenhum.

 

Cheguei a Jorge perseguindo o desígnio de uma mente perversa e raciocinante, e não havia desígnio algum, ou melhor, mesmo Jorge tinha sido dominado pelo próprio desígnio inicial, e depois tinha-se iniciado uma cadeia de causas e de causas concomitantes, e de causas em contradição entre si, que tinham procedido por conta própria, criando relações que não dependiam de desígnio algum. Onde está toda a minha sabedoria? Comportei-me como um obstinado, perseguindo um simulacro de ordem, quando bem devia saber que não há uma ordem no universo.

 

- Mas imaginando ordens erradas encontrastes mesmo assim alguma coisa...

 

- Disseste uma coisa bela, Adso, agradeço-te. A ordem que a nossa mente imagina é como uma rede, ou uma escada, em que se constrói para alcançar qualquer coisa. Mas depois deve-se deitar fora a escada, porque se descobre que, se acaso servia, era privada de sentido. Er muoz gelíchesame die Leiter abewerfen, so Er an ir ufgestigen ist... Diz-se assim?

 

- Soa assim na minha língua. Quem o disse?

 

- Um místico da tua terra. Escreveu-o em qualquer parte, não me recordo onde. E não é necessário que alguém um dia encontre esse manuscrito. As únicas verdades que servem são instrumentos para deitar fora.

 

- Vós não podeis censurar-vos nada, fizestes o melhor que podíeis.

 

- E o melhor dos homens que é pouco. É difícil aceitar a idéia que não pode haver uma ordem no universo, porque ofenderia a livre vontade de Deus e a sua onipotência. Assim, a liberdade de Deus é a nossa condenação, ou pelo menos a condenação da nossa soberba.

 

Ousei, pela primeira e última vez na minha vida, uma conclusão teológica:

 

- Mas como pode existir um ser necessário totalmente tecido de possível? Que diferença há então entre Deus e o caos primigênio? Afirmar a absoluta onipotência de Deus e a sua absoluta disponibilidade a respeito das suas próprias escolhas não equivale a demonstrar que Deus não existe.

 

Guilherme olhou para mim sem que qualquer sentimento transparecesse dos traços do seu rosto, e disse:

 

- Como poderia um sábio continuar a comunicar o seu saber se respondesse sim à tua pergunta?

 

Não compreendi o sentido das suas palavras:

 

- Quereis dizer - perguntei - que não haveria mais saber possível e comunicável se faltasse o próprio critério da verdade, ou então que já não poderíeis comunicar aquilo que sabeis porque os outros não vo-lo consentiriam?

 

Naquele momento, uma parte dos tetos do dormitório desabou com imenso fragor soprando para o alto uma nuvem de centelhas. Uma parte das ovelhas e das cabras, que erravam pelo pátio, passaram por nós lançando atrozes balidos. Uns servos passaram em tropel a nosso lado, gritando, e quase nos pisaram.

 

- Há aqui demasiada confusão - disse Guilherme. - Non in commotione, non in commotione Dominus.

 

ULTIMO FÓLIO

 

A abadia ardeu durante três dias e durante três noites, e de nada valeram os últimos esforços. Já na manhã do sétimo dia da nossa permanência naquele lugar, quando os supérstites se tinham apercebido que mais nenhum edifício podia ser salvo, quando desabaram os muros externos das construções mais belas, e a igreja, enrolando-se quase sobre si mesma, engoliu a sua torre, naquela altura faltou a todos a vontade de combater contra o castigo divino. Cada vez mais frouxas foram as corridas aos poucos baldes de água que restavam, enquanto ainda ardia pacificamente a sala capitular com a soberba casa do Abade. Quando o fogo atingiu o lado extremo das várias oficinas, os servos já há muito tempo que tinham salvo a maior quantidade de utensílios que podiam, e preferiram bater a colina para recuperarem ao menos parte dos animais, fugidos para fora da cerca na confusão da noite.

 

Vi alguns dos servos que se aventuraram no interior daquilo que restava da Igreja: imaginei que procurassem penetrar na cripta do tesouro para roubarem, antes da fuga, algum objeto precioso. Não sei o que conseguiram, se a cripta não se tinha já afundado, se os velhacos não se afundaram nas vísceras da terra na tentativa de a atingirem.

 

Subiam entretanto homens da aldeia, a prestar socorro, ou a procurarem também eles reunir algum espólio. Os mortos ficaram na maioria entre as ruínas ainda ardentes. No terceiro dia, tratados os feridos, sepultados os cadáveres que ficaram a descoberto, os monges e todos os outros recolheram as suas coisas e abandonaram o planalto ainda fumegante, como um lugar maldito. Não sei para onde se dispersaram.

 

Guilherme e eu deixamos aqueles lugares em duas cavalgaduras encontradas perdidas no bosque e que então consideramos res nullius. Dirigimo-nos para oriente. Chegando de novo a Bobbio, soubemos más notícias do imperador. Chegado a Roma, tinha sido coroado pelo povo. Considerada então impossível qualquer conciliação com João, tinha eleito um antipapa, Nicolau V. Marsílio tinha sido nomeado vigário espiritual de Roma, mas por culpa sua, ou por sua fraqueza, aconteciam naquela cidade coisas bastante tristes de referir. Torturavam-se sacerdotes fiéis ao papa que não queriam dizer missa, um prior dos agostinianos tinha sido atirado à fossa dos leões no Capitólio. Marsílio e João de Jandun tinham declarado João herege, e Luís tinha-o feito condenar à morte. Mas o imperador governava mal, estava atraindo a si a hostilidade dos senhores locais, subtraia dinheiro ao erário público. À medida que ouvíamos estas noticias, retardávamos a nossa descida para Roma, compreendi que Guilherme não queria ver-se como testemunha de eventos que humilhavam as suas esperanças.

 

Quando chegamos a Pomposa, soubemos que Roma se tinha rebelado contra Luís, o qual tinha subido de novo para Pisa, enquanto na cidade papal voltavam a entrar triunfalmente os legados de João.

 

Entretanto, Miguel de Cesena tinha dado conta que a sua presença em Avinhão não levava a qualquer resultado, aliás, temia pela sua vida, e tinha fugido, juntando-se a Luís em Pisa. O imperador tinha entretanto perdido também o apoio de Castruccio, senhor de Luca e Pistóia, que tinha morrido.

 

Em resumo, prevendo os eventos, e sabendo que o Bávaro se dirigia para Munique invertemos o caminho e decidimos precedê-lo ali, até porque Guilherme advertia que a Itália se estava tornando insegura para ele. Nos meses e nos anos que se seguiram, Luís viu desfazer-se a aliança dos senhores gibelinos, no ano seguinte Nicolau antipapa entregar-se-ia a João, apresentando-se-lhe com uma corda ao pescoço.

 

Logo que chegamos a Munique da Baviera eu tive de me separar, no meio de muitas lágrimas, do meu bom mestre. A sua sorte era incerta, os meus parentes preferiram que eu voltasse a Melk. Desde a trágica noite em que Guilherme me tinha patenteado o seu desanimo diante das ruínas da abadia, como por tácito acordo, não tínhamos falado mais daquela história. E nem aludimos mais a ela no curso da nossa dolorosa despedida.

 

O meu mestre deu-me muitos e bons conselhos para os meus estudos futuros, e ofereceu-me as lentes que lhe tinha fabricado Nicolau, tendo ele agora de novo as suas. Eu era ainda jovem, disse-me, mas um dia ser-me-iam úteis (e, na verdade, tenho-as sobre o nariz, agora que escrevo estas linhas). Depois abraçou-me fortemente, com a ternura de um pai, e disse-me adeus.

 

Não o vi mais. Soube muito mais tarde que tinha morrido durante a grande epidemia de peste que infligiu a Europa por volta da metade deste século. Rezo sempre para que Deus tenha acolhido a sua alma e lhe tenha perdoado os muitos atos de orgulho que a sua altivez intelectual lhe tinha feito cometer.

 

Anos depois, homem já bastante maduro, tive ocasião de fazer uma viagem à Itália por mandado do meu Abade. Não resisti à tentação e no regresso fiz um longo desvio para revisitar aquilo que tinha restado da abadia.

 

As duas aldeias nas faldas do monte tinham-se despovoado, as terras em volta estavam incultas. Subi ao planalto, e um espetáculo de desolação e de morte se apresentou aos meus olhos umedecidos de lágrimas.

 

Das grandes e magníficas construções que adornavam aquele lugar restavam ruínas dispersas, como já tinha acontecido aos monumentos dos antigos pagãos na cidade de Roma. A hera tinha revestido os pedaços dos muros, as colunas, as raras arquitraves que ficaram intactas. Ervas selvagens invadiam o terreno por todo o lado, e nem sequer se compreendia onde tinham sido outrora o horto e o jardim. Só o lugar do cemitério era reconhecível, por alguns túmulos que ainda afloravam no terreno. Único sinal de vida, grandes aves de rapina caçavam lagartos e serpentes que, como basiliscos, se escondiam entre as pedras ou deslizavam pelos muros. Do portal da igreja tinham ficado poucos vestígios corroídos de bolor. O tímpano sobrevivia pela metade, ai descobri ainda, dilatado pelas intempéries o enlanguescido de sórdidos líquenes, o olho sinistro do Cristo no trono, e qualquer coisa do vulto do leão.

 

O Edifício, à parte o muro meridional, derrocado, parecia ainda estar em pé e desafiar o curso do tempo. Os dois torreões externos, que davam para o despenhadeiro, pareciam quase intactos, mas por toda a parte as janelas eram olheiras vazias cujas lágrimas viscosas eram trepadeiras pútridas. No interior, a obra da arte, destruída, confundia-se com a da natureza, e por largos espaços da cozinha o olhar corria pelo céu aberto, através do rasgão dos andares superiores e do teto, derrubados como anjos caídos. Tudo aquilo que não era verde de musgo estava ainda negro do fumo de tantos decênios antes.

 

Revolvendo entre os escombros encontrava de vez em quando pedaços de pergaminho, precipitados do scriptorium e da biblioteca e sobrevivendo como tesouros sepultos na terra; e comecei a recolhê-los, como se devesse recompor as folhas de um livro. Depois apercebi-me que de um dos torreões subia ainda, periclitante e quase intacta, uma escada de caracol para o scriptorium, e dali trepando por um declive de escombros, podia-se chegar à altura da biblioteca: a qual era, porém, apenas uma espécie de galeria rente às muralhas externas que dava em todos os pontos para o vazio.

 

Ao longo de um pedaço de muro encontrei um armário milagrosamente de pé ao longo da parede, não sei como escapado ao fogo, podre de água e de insetos. Dentro dele havia ainda algumas folhas. Outras tiras encontrei-as vasculhando nas ruínas de baixo. Pobre messe foi a minha, mas passei um dia inteiro a recolhê-la, como se daquelas disiecta membra da biblioteca devesse chegar-me uma mensagem. Alguns pedaços de pergaminho estavam descorados, outros deixavam entrever a sombra de uma imagem, às vezes o fantasma de uma ou mais palavras. Algumas vezes encontrei folhas em que eram legíveis frases inteiras, mais facilmente encadernações ainda intactas, defendidas por aquilo que tinham sido brochas de metal... Larvas de livros, aparentemente ainda sãs de fora mas devoradas por dentro: e no entanto algumas vezes tinha-se salvo uma meia-folha, transparecia um incipit, um titulo...

 

Recolhi todas as relíquias que pude encontrar, e enchi com elas duas sacas de viagem, abandonando coisas que me eram úteis para salvar aquele mísero tesouro.

 

Ao longo da viagem de regresso e depois em Melk passei muitas e muitas horas a tentar decifrar aqueles vestígios. Muitas vezes reconheci por uma palavra ou por uma imagem resídua de que obra se tratava. Quando, com o tempo, encontrei outros exemplares daqueles livros, estudei-os com amor, como se o fado me tivesse deixado aquele legado, como se o ter-lhe descoberto o exemplar destruído tivesse sido um claro sinal do céu que dizia tolle et lege. No fim da minha paciente recomposição desenhou-se-me como uma biblioteca menor, sinal da maior, desaparecida, uma biblioteca feita de trechos, citações, períodos incompletos cotos de livros.

 

Quando mais leio este elenco mais me convenço que ele é feito do acaso e não contém qualquer mensagem. Mas estas páginas incompletas acompanharam-me por toda a vida que desde então me restou viver, muitas vezes as consultei como oráculo, e quase tenho a impressão de que quanto escrevi nestas folhas, que tu agora lerás, ignoto leitor, mais não é que um centão, um carme figurado, um imenso acróstico que não diz nem repete mais que aquilo que aqueles fragmentos me sugeriram, e já nem sei se eu falei até agora deles ou se falaram eles pela minha boca. Mas, em qualquer dos casos, quanto mais recito a mim mesmo a história que dai saiu menos consigo compreender se nela há uma trama que vai para além da seqüência natural dos eventos e dos tempos que os relacionam entre si.

 

E é coisa dura para este velho monge, às portas da morte, não saber se a letra que escreveu contém algum sentido oculto, e se contém mais de um, muitos, ou nenhum.

 

Mas esta minha inabilidade para ver é talvez efeito da sombra que a grande treva que se avizinha está lançando sobre o mundo encanecido.

 

Est ubi gloria nunc Babylonia? Onde estão as neves de outrora? A terra dança a dança de macabré, parece-me por momentos que o Danúbio percorrido por batéis carregados de loucos que vão para um lugar obscuro.

 

Não me resta senão calar-me. O quam salubre, quam iucundum et suave est sedere in solitudine et tacere et loqui cum Deo! Dentro em pouco reunir-me-ei ao meu principio, e já não creio que seja o Deus da glória de que me tinham falado os abades da minha ordem, ou de alegria, como julgavam os menoritas de então, talvez nem sequer de piedade. Gott ist ein lautes Nichts, ihn rührt kein Nun noch Hier... Em breve me entranharei neste deserto amplíssimo, perfeitamente plano e incomensurável, em que o coração verdadeiramente pio sucumbe bem-aventurado. Afundar-me-ei na treva divina, num silêncio mudo e numa união inefável, e neste afundar-se se perderá toda a igualdade e toda a desigualdade, e nesse abismo o meu espírito se perderá a si mesmo, e não conhecerá nem o igual nem o desigual, nem mais nada: e serão esquecidas todas as diferenças, estarei no fundamento simples, no deserto silencioso onde jamais se vê diversidade, no íntimo onde ninguém se encontra no seu próprio lugar. Cairei na divindade silenciosa e desabitada onde não há obra nem imagem.

 

Está frio no scriptorium, dói-me o polegar. Deixo esta escritura, não sei para quem, já não sei a propósito de quê: stat rosa prístina nomine, nomina nuda tenemus.

 

                                                                                            Umberto Eco  

 

                      

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