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Os homens tratam-me com um ar divertido, as mulheres com simpatia. O meu nome é Mary Lou Bateson, mas a alcunha Dunk seguiu-me de Dês Moines para Nova Iorque. Tenho quase um metro e oitenta e dois - descalça - e quando calço sapatos com salto a minha cabeça fica acima das outras todas, pelo menos foi o que me disse certa vez um homem.
- Não te preocupes com isso, Dunk - aconselhou-me o meu pai. - As pessoas olham-te de baixo para cima.
Isto pode dar-lhes uma ideia do seu subtil sentido de humor
- isto e também o facto de ter chamado aos meus três irmãos tom, Dick e Harry. Creio que se eu tivesse mais duas irmãs, seríamos Fé, Esperança e Caridade.
Acerca do Dunk... Tanto o meu pai como a minha mãe eram altos, e os meus três irmãos tinham todos um metro e noventa antes de fazerem os quinze anos. Se relacionam isso com o basquetebol têm razão, pois existiu um aro de barril preso à parede da garagem desde que me lembro. Como não tinha irmãs e era alta de mais para arranjar amigas, dediquei-me desde muito nova a praticar diariamente o basquetebol com os meus irmãos.
Dividíamo-nos em equipas de dois. tom e Dick atiravam uma moeda ao ar para escolher o parceiro e o que perdia ficava comigo. Mas, eu trabalhava tanto como eles e, após meses de prática para dominar o lançamento dunk, consegui fazê-lo suficientemente bem para ficar com essa alcunha. Assim toda a gente passou a chamar-me Dunk.
Os meus irmãos eram estrelas na escola secundária, e eu jogava ao centro na equipa das raparigas. Ganhámos todo o género de torneios e a nossa casa estava cheia de trofeus. A minha mãe tinha um álbum com recortes de jornais que falavam dos nossos feitos: o Register referia-se a mim como "a alta e delgada Dunk Bateson". Eu sabia que eles eram bem-intencionados, mas a verdade é que me senti magoada.
Nesse mesmo ano fui a uma festa numa piscina e usei um biquini. Ouvi então uma rapariga dizer: "Parece um pau de vassoura com dois pensos rápidos", e tive de suportar as conversas habituais: "Como está o tempo lá em cima?" "Costuma sangrar muitas vezes do nariz?" Muitas vezes as pessoas podem ser cruéis sem, na verdade, terem tal intenção.
Tentei passar por tudo isso com um sorriso. Usava sempre saltos rasos e dizia a mim própria que não me deixaria abater, mas é difícil ser uma rapariga muito alta, e as atenções que nos são dispensadas por rapazes muito baixos também não ajudam. Nunca saí com colegas enquanto frequentei a escola secundária e ia às festas com o meu irmão Harry e com a namorada dele, uma loura graciosa que lhe chegava ao cinto. Toda a gente dizia que formavam um par adorável, mas se eu tivesse aparecido num baile com um rapaz da altura dela todos se ririam de mim. Não é justo.
Os meus irmãos, devido a serem bons atletas, obtiveram bolsas de estudo para universidades prestigiadas e eu fui parar ao Chase, um colégio de artes liberais, no qual não existiam ainda actividades desportivas femininas, a não ser hóquei em campo. Contudo, eu já decidira que os meus dias de competição estavam acabados.
Chase foram umas férias de quatro anos que me afastaram das realidades da vida. Passei jovialmente em todas as disciplinas e, nos últimos dois anos, "ingeri" uma forte dose de história de arte e de conhecimentos com ela relacionados. Não fazia a menor ideia do que ia ser a minha vida, mas, para jogar pelo seguro, aprendi a escrever à máquina e a trabalhar com um computador. Nunca se sabe.
O ponto alto da minha carreira em Chase foi ter perdido a minha virgindade (devia ser a única virgem de dezanove anos em todo o estado de lowa), e isso sucedeu na relva, por baixo de um cartaz onde se lia "Coca-Cola: a pausa que refresca." O meu pai teria gostado disso.
Agarrada ao meu canudo, escrito em latim e que eu não compreendia, regressei acasa, a Dês Moines, e joguei indolentemente basquetebol com os meus irmãos. Em fins de Agosto, com o dinheiro que os meus pais me ofereceram como prenda da minha formatura, vim para Nova Iorque, decidida a procurar fama e fortuna, ou, pelo menos, a arranjar um homem com quem pudesse dançar: um homem alto.
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Isso foi há vários anos, mas mesmo nessa altura era já difícil encontrar apartamentos com uma renda razoável (agora é impossível), pelo que fui parar a um cubículo na Rua Setenta e Seis, Oeste. Foi antes de o West Side se tornar do tamanho de Madison Avenue, e havia naquele bairro um sabor a cidade pequena, sabor esse que eu apreciava. Além disso, o meu apartamento era tão pequeno que, por menos de quinhentos dólares o pude mobilar com móveis do Exército de Salvação.
Ali estava eu, portanto, vivendo na cintilante Manhattan, e demasiado pobre para poder fazer mais alguma coisa do que passear pelas ruas, comer sanduíches de atum e percorrer angustiadamente as colunas de anúncios do Times à procura de emprego, como se essas páginas fossem edições de Em Busca do Tempo Perdido (1).
Compareci a numerosas entrevistas desencorajadoras, nenhuma das quais levou a grande coisa. Durante uns tempos vendi luvas de homem no Macy, trabalhei ao balcão da Chock Full of Nuts (Chocolate com Nozes) e enderecei sobrescritos para uma firma que, comercializava pelo correio, um remédio para a calvície e um preparado para tirar as rugas.
A minha vida, durante esse período, era pouco menos que estática: conheci alguns homens que me pareceram esfomeados e libidinosos, por essa ordem - geralmente comíamos sanduíches de atum - e não tinha amigas. Suponho que me sentia solitária, mas havia tanta coisa em Manhattan, tanto que eu queria fazer e ver, que não posso dizer com sinceridade se seria infeliz. Evitei resolutamente sentir pena de mim própria.
Tive um breve caso (cerca de seis semanas) com um homem alguns anos mais velho do que eu e alguns centímetros mais baixo. Disse-me que não era casado, mas tinha apanhado bastante sol no Verão anterior e as suas mãos estavam ainda bronzeadas, pelo que se notava perfeitamente o lugar habitualmente ocupado pela aliança. Era óbvio que a tirava sempre antes de ir encontrar-se comigo, mas nunca lhe disse que percebera isso.
Era simpático, divertido, e embora eu soubesse que aquilo não podia durar, não tinha importância. Muitas vezes, e antes de tudo, tentava imaginar por que razão ele começara a andar comigo, mas depois decidi que fora pelo mesmo motivo por que os homens escalam montanhas: eu estava ali.
* (1) Romance do escritor francês Marcel Proust (1871-1922). (N. da T.)
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Além disso, há homens que procuram algo de invulgar nas suas relações pessoais: mulheres muito altas, muito baixas, muito obesas, excessivamente feias, aleijadas ou cegas. Contudo o assunto é demasiado deprimente para se pensar nele.
De qualquer maneira, acabámos tudo passadas seis semanas (sem lágrimas): ele voltou para a mulher e eu recomecei a responder a anúncios, entre os quais um muito lacónico pedindo alguém que estivesse interessado em se tornar secretário e assistente de um numismata.
Em criança eu tinha coleccionado moedas com cabeças de índios e de búfalos, que metia numa lata vazia (era tudo quanto sabia acerca de moedas), mas quem não arrisca não petisca e enviei uma carta com o meu currículo. Lembro-me de ter respondido da mesma maneira a meia dúzia de outros anúncios, nesse fim-de-semana, mas não alimentava grandes esperanças em relação a qualquer deles.
Duas semanas mais tarde recebi uma carta do numismata pedindo-me que comparecesse a uma entrevista. Senti-me tentada a correr para uma biblioteca e estudar a história das moedas, mas decidi que seria uma perda de tempo. Alguns dias de estudo não chegariam para encobrir a minha ignorância. Se me quisessem contratar teriam de me aceitar tal como era.
O nome dele era Enoch Wottle e possuía uma pequena loja poeirenta na Rua Cinquenta e Sete, Oeste. Era verdadeiramente um buraco, apenas com uma pequena montra com grades. A porta da entrada estava fechada à chave e, quando toquei à campainha, ele espreitou-me por detrás de um deteriorado estore verde. Mostrei-lhe a carta que recebera, ele examinou-a cuidadosamente e depois abriu-me a porta apenas o suficiente para eu poder entrar.
Olhou-me, sorriu e declarou:
- Está contratada.
Trabalhei para Enoch Wottle quase durante três anos. Os dois sozinhos e fechados à chave na pequena loja escura e cheia de pequenos armários de vidro com moedas e um cofre, colocado na sala das traseiras, tão pesado e tão grande como o de um banco. Começámos por nos tratar por Mr. Wottle e Miss Bateson, mas seis meses depois éramos Enoch e Dunk.
Era o homem mais meigo e simpático que eu jamais conhecera. Tinha perto de setenta anos e uma auréola de cabelos brancos emoldurava-lhe o rosto. Sofria terrivelmente de artrite,
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mal podia segurar a pinça com que observava as moedas, e fora por isso que contratara uma ajudante depois de haver trabalhado sozinho durante tantos anos.
Era viúvo há vinte anos e vivia agora sozinho num imenso apartamento, a um quarteirão de distância da loja. O seu único filho, casado, vivia no Arizona e insistia constantemente com o velho para que fosse passar os últimos anos da sua vida num clima quente e seco.
Contudo, Enoch resistia, a loja era a sua vida, disse-me, e desistir dela seria render-se à idade e à mortalidade.
- Não quer conviver com os seus netos? - perguntei-lhe.
- Vejo-os ocasionalmente - respondeu. - Falo com eles ao telefone e trago as suas fotografias na minha carteira.
Não creio que fosse um homem rico, mas vivia bem e era generoso para mim. Quando comecei pagava-me pouco mais do que o salário mínimo, mas, ao fim dos três anos, ganhava realmente bastante bem. Mudara-me para um novo apartamento, com outro mobiliário, e comprava as minhas roupas e sapatos (caros) em boutiques para mulheres altas.
O negócio de Wottle era estranho, nada de excepcional, mas possuía uma clientela tão fiel, que a maior parte dela o contactava pelo telefone ou por carta. Era tão grande a sua reputação de honradez e as pessoas confiavam de tal modo nas suas apreciações, que lhe compravam moedas valiosas, sem sequer as verem senão quando chegavam às suas casas, enviadas pelo correio ou por mensageiro.
Ele, por sua vez, adquiria-as a coleccionadores, e outros negociantes numismatas, ou em leilões, e a maior parte dessas transacções eram ajustadas pelo telefone, por carta ou por telegrama. Passado certo tempo comecei a ir semanalmente ao banco fazer depósitos, e pude ver então como era realmente lucrativo o negócio de Wottle, que não fazia, aliás, qualquer esforço para minimizar o seu sucesso ou ocultar-mo.
Apesar de negociar com todos os géneros de dinheiro e mesmo com algumas medalhas, a especialidade dele eram as moedas gregas antigas e a maior parte dos seus rendimentos derivava da compra e venda desses pedacinhos de ouro, prata, cobre e bronze.
Enoch ensinou-me muito. Fiquei a saber tudo a respeito de decadracmas, tetrobols e trihemitartemorions (experimentem pronunciar isto!), e aprendi a distinguir o electro de formas mais Puras de ouro e de prata. Fiquei até a saber diferençar o
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extremamente bom do muito bom e o bom do medíocre, distinções muito aproximadas, na verdade.
Certa vez, numa sombria tarde de Novembro, Enoch tentou explicar-me o fascínio dessas antigas moedas gregas, enquanto bebíamos uma chávena de chá e comíamos uns biscoitos antes de fecharmos e irmos para casa.
Ele estava sentado à sua velha secretária, tão gasta e usada que brilhava como um espelho, olhando com calma satisfação os armários de vidro com as suas moedas, que resplandeciam como estrelas aprisionadas. Enoch conhecia a sua história e a dos homens que as tinham cunhado, trabalhado para as obter, lutado e morrido por elas, gente maravilhosa que levara uma vida curta e difícil, mas que nunca perdera a capacidade de sentir alegria, nem o amor pela beleza.
Aqueles discos de metal que ele amava eram simultaneamente um elo com o passado e uma promessa de futuro. De uma maneira que não sabia definir, Enoch Wottle via as suas moedas como uma prova de imortalidade - não da sua própria, claro, mas da raça humana. Quando grandes pensamentos fossem esquecidos, grandes guerras ignoradas, a grande arte desdenhada e os monumentos de pedra se desfizessem em pó, as moedas sobreviveriam ainda.
Nessa noite creio que me contagiou com a sua paixão.
No entanto, nada daquilo podia durar. A sua artrite piorava progressivamente, e depois veio a intimação do senhorio. Todo o quarteirão, incluindo a pequena loja de Wottle, devia ser demolido para naquele lugar se erguer um luxuoso arranha-céus. Era altura de partir, mas Enoch não mostrou azedume, afirmou não o sentir.
- Lá tenho de ir para o Arizona - disse, tentando sorrir. vou fechar a minha loja e vender o conteúdo aos Fretcher Brothers, em Lexington Avenue. Há anos que me dirigem propostas. Agora o importante é: que vai fazer?
Beijei-o e abracei-o com força.
O que ele fez por mim excedeu tudo o que se poderia esperar, ultrapassou até as minhas mais fantásticas expectativas. Deu-me três meses de salário como indemnização, parte da sua valiosa biblioteca, incluindo volumes raros e lindamente ilustrados sobre a cunhagem de moedas gregas, e todos os seus catálogos de leilões de moedas dos últimos anos.
E, sobretudo, fez vários telefonemas para velhos amigos, e na altura em que o fui acompanhar ao comboio para o Arizona
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(recusou-se a ir de avião), obtivera já uma promessa de emprego para mim na Grandby & Sons, a antiga e respeitada casa de leilões de Madison Avenue, para onde iria trabalhar, no departamento de avaliação, como numismata. Precisamente onde a minha grande aventura começou.
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- O meu nome é Felicia Dodat - disse a mulher, olhando-me com assombro. - Escreve-se D-o-d-a-t, mas pronuncia-se Do-day. Por favor, não esqueça isto. Dirigirei o seu trabalho na Grandby & Sons.
Disse que sim com a cabeça, jovialmente, mas detestei-a de imediato. Ela era tudo o que eu nunca poderia ser: pequena, esbelta e vestida com uma elegância negligente que me desesperava. Era morena, com cabelo escuro macio como penas, e usava uma maquilhagem brilhante. Percebi que os homens se deviam interessar por ela, mas considerei-a má pessoa desde o início.
- Você será responsável pela apreciação de todas as moedas - disse asperamente, pousando as mãos de unhas muito vermelhas sobre o tampo de vidro da secretária. - Ocasionalmente, será necessário sair da cidade para as avaliar. Compreende?
Disse mais uma vez que sim, com um aceno, começando a sentir-me como essas bonecas chinesas cuja cabeça abana sem cessar.
- Infelizmente dispomos de pouco espaço e não lhe posso dar um gabinete individual. Terá de partilhar uma sala com Hobart Juliana, que trata de selos, autógrafos e documentos antigos. Devo dizer-lhe desde já que ele é homossexual. Isso faz-lhe diferença?
- De maneira alguma.
- bom. Então vamos instalá-la, para que possa começar a trabalhar imediatamente.
Um encanto de senhora. Avancei atrás dela por um comprido corredor, mobilado com velhos cadeirões, mesas com tampos de mármore partidos e quadros a óleo representando peixes
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mortos. Ela parou diante de uma sólida porta de carvalho com um pequeno postigo.
Este será o seu gabinete - informou Felicia Dodat severamente. - Visto que você e Hobart examinarão objectos e documentos valiosos, a porta deverá estar sempre fechada à chave. Entendido?
O meu sinal de assentimento mudo começava a provocar-me tonturas.
Ela bateu com decisão e, daí a pouco, o postigo abria-se e uns olhos espreitavam-nos. Alguém deu a volta à chave e a porta abriu-se.
- Hobart - disse a minha patroa, sorrindo com ar de vencedora -, esta é a sua nova colega, Mary Lou Bateson. Tenho a certeza de que se vão entender lindamente. Mostre-lhe como isto funciona, está bem?
Depois Felicia saiu, a porta fechou-se à chave e Hobart virou-se para mim e disse:
- O meu nome é Felicia Dodat. Escreve-se D-o-d-a-t, mas pronuncia-se Do-day. Por favor, não esqueça isto.
Era uma imitação tão perfeita que não pude deixar de rir. Ele sorriu e estendeu-me a mão.
- Hobie - disse.
- Dunk - respondi.
- Dunk? É um doughnut no café ou uma bola de basquete no cesto?
- Basquetebol - retorqui.
- Ah... bem. Bem-vinda ao Zoo.
Hobie tinha uma pequena máquina de café perto da sua secretária e bebemos ambos uma chávena. A minha era de papel e a dele de porcelana, com qualquer coisa escrita num dos lados.
- é melhor trazer uma chávena para si - aconselhou ele. A respeito da patroa, é uma maçadora, como provavelmente reparou, mas pode também ser perigosa, por isso é melhor tentar entender-se com ela. Dirige a parte de avaliação de propriedades, e tem muito poder. Dá muita graxa a "deus".
- A deus?
- Stanton Grandby, o dono desta coisa toda, ele e a sua imensa família. É bisneto de Isaac Grandby, o fundador da casa, em mil oitocentos e qualquer coisa. Encontrá-lo-á eventualmente, mas deve é agradar a Felicia Dodat. Dizem as más línguas que ela tem um caso com Stanton Grandby.
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Fez um gesto que abarcava o escritório, o qual me parecia enorme depois de ter passado três anos metida no cubículo de Wottle. Hobie fez notar que cada um de nós ficava perto de uma janela com vista para um esplêndido saguão e tinha também uma secretária de madeira maciça, ficheiros e prateleiras com vidros. Tudo um pouco velho, mas, em todo o caso, apto para o que era necessário.
- Que sucedeu a quem ocupou antes o meu lugar?
- Foi despedida - respondeu Hobart, fitando-me. - Não quero assustá-la, Dunk, mas receio que ela fosse um pouco atraente de mais. "Deus" mostrou-se interessado e Madame Dodat ofendeu-se.
- Oh! Assim mesmo?
- É verdade.
- Bem, Felicia nada tem a recear de mim, por esse lado.
- Teria - retorquiu ele -, se "deus" fosse sensato.
- Foi o melhor cumprimento que já ouvi em muitos anos - respondi-lhe, e sorrimos um para o outro, sabendo que iríamos ser amigos.
Grandby & Sons datava de 1883 - e o mesmo sucedia com a maior parte do mobiliário. Estávamos instalados numa elegante mansão de Madison Avenue, a sul da Rua Oitenta e Dois, mas a casa parecia-se com um antiquário recentemente aberto ao público: cortinados de veludo, candeeiros Tiffany, canapés vitorianos cobertos de moiré, relógios cheios de ornatos, objectos chineses e peças de arte dispersas que tinham sido compradas com propriedades e nunca haviam sido vendidas.
Outro gracejo que ali se dizia era que na Grandby & Sons tudo estava à venda excepto as cartas de jogar... Não era verdade, claro, mas devo confessar que o ambiente era um tanto desconcertante, com todas aquelas velharias à nossa volta. Era como se trabalhássemos num pequeno museu.
Contudo, eu gostava da Grandby & Sons e a minha carreira prosseguiu sem atritos. Aprendi muito a respeito da minha nova profissão, não cometi grandes erros e contribuí com a minha parte para o negócio, levando a um leilão algumas colecções de moedas de antigos clientes de Enoch Wottle.
Apesar de não ser tão importante nem faustosa como a Christie ou a Sotheby, a casa Grandby era realmente um bom local para se trabalhar, especialmente para mim e Hobart Juliana, no nosso gabinete fechado à chave. Nós éramos pequenos especialistas, visto que a maioria das vendas da Grandby consistiam
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em quadros, esculturas, desenhos, pratas, jóias, gravuras, armas antigas e armaduras - coisas desse género. Os selos e as moedas estavam muito abaixo na escala de importância e não havia grande pressão sobre nós para a obtenção de lucros.
Por isso éramos deixados bastante à vontade com as nossas pinças, lupas, lentes de aumentar e lâmpadas de alta voltagem. Um observador que entrasse casualmente no nosso santuário devia considerar-nos um par de lunáticos. Hobie estudava um pedacinho de papel com cola e eu examinava um minúsculo bocado de metal danificado. Ambos trocávamos comentários a meia voz:
- Vejam esta marca de água!
- Foi cortado, que pena!
- Não está perfurado; ainda bem!
- Um exemplar romano.
- Um hemidracma de prata do tempo dos aqueus. Muito interessante.
Ocasionalmente ficávamos tão excitados com uma "descoberta" que Hobie me chamava à sua mesa de trabalho para observar uma falsa assinatura de Herman Melville, ou eu o incitava a vir examinar um belo tetradracma datado do ano
420 a.C. com uma águia de asas abertas e um caranguejo no reverso.
Creio que éramos um par de antiquários muito jovens, mas ambos gostávamos das coisas do passado e simpatizávamos um com o outro, e isso ajudava a tornar o nosso trabalho agradável. Algumas vezes jantávamos juntos - mas não frequentemente. O amante de Hobie, com quem ele vivia, era terrivelmente ciumento e desconfiava de que ele tivesse tendências heterossexuais, o que não era verdade.
Hobie era um rapaz de cabelos claros, ares delicados e bastante sentido de humor, que vestia muito bem e me deu bons conselhos a respeito da melhor maneira de disfarçar a minha magreza e altura. Creio que nos entendíamos bem porque o mundo nos considerava a ambos criaturas estranhas, por diferentes razões, claro. Sentíamo-nos um pouco discriminados, mas a nossa amizade era real.
Estava na Grandby & Sons há pouco mais de dois anos quando - numa manhã de fim de Abril chuvosa e tempestuosa: um portento! - fui chamada por Felicia Dodat. Ela usava nesse dia um perfume particularmente opressivo, com um cheiro adocicado a flores, e o seu gabinete parecia uma estufa.
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Seguindo o conselho de Hobie, mantivera as minhas relações com a querida Felicia numa base fria, profissional. Mostrávamo-nos cordiais uma com a outra e se ela se revelava ocasionalmente áspera, eu considerava que isso se devia às pressões do seu trabalho. Nunca Felicia gracejou a respeito da minha altura, mas tinha uma maneira de me olhar - começando pelos pés e subindo lentamente até à cabeça, como se estivesse a olhar o monte Evereste - que me causava um certo ressentimento.
- Conhece um homem chamado Archibald Havistock? perguntou.
- Havistock? Não, não me recordo desse nome.
Felicia deitou-me um dos seus olhares que pareciam punhais.
- É proprietário do que parece ser uma valiosa colecção de moedas antigas, quase quinhentas avaliadas em dois milhões. Estou surpreendida por você nunca ter ouvido falar dele.
- Miss Dodat - expliquei eu, o mais pacientemente que me foi possível -, ninguém conhece os nomes dos grandes coleccionadores de moedas. Por razões de segurança compram e vendem através de agentes, procuradores ou negociantes profissionais, nunca se ouvem os nomes deles mencionados em leilões ou em qualquer outro sítio. Por vezes, são conhecidos apenas pelas suas alcunhas no negócio. "Midas", por exemplo, é um xeque da Arábia Saudita, mas ninguém sabe como se chama; uma mulher, designada por "a Dama de Boston", tem uma das mais belas colecções de moedas gregas antigas do país; "o Homem de Dallas" é outro grande coleccionador. Essas pessoas usam de todo o cuidado para manter os seus nomes em segredo, pois quando se possui tão grandes valores em propriedade móvel - uma colecção de moedas antigas de dois milhões de dólares pode ser transportada num saco de plástico vulgar não se quer fazer publicidade do nome nem da morada.
- E então porque não guardam as moedas no cofre de um banco?
Olhei-a com espanto.
- Porque querem olhar para elas, tocar-lhes, sonhar com elas. A maior parte dessas pessoas não investe em moedas antigas para ter lucros, apreciam é a beleza, a história e o romance que envolve essas moedas.
Felicia fez um gesto, como se varresse tudo o que acabara de dizer.
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Archibald Havistock - repetiu. - Ele deseja leiloar toda
a sua colecção de moedas ou vendê-la directamente. Estou certa de que contactou a Christie e a Sotheby, e provavelmente também outras casas. Tenho aqui uma cópia do inventário feito pela companhia de seguros. Quero que o examine com muito cuidado, e me dê uma estimativa precisa de quanto acha que a Grandby poderia ganhar se a colecção fosse levada a leilão ou se seria melhor comprá-la directamente.
Miss Dodat, não posso fazer isso sem examinar as peças à
vista. Até mesmo um inventário de seguro pode não ser muito exacto. Os valores no mercado das moedas mudam rapidamente.
- Então trate de arranjar maneira de as ir ver - replicou Felicia irritadamente. - Ele vive em Manhattan, por isso não deve ser difícil. Tome, é seu. Espero um relatório dentro de uma semana.
Entregou-me uma pasta com documentos, peguei-lhe e tentei sorrir, pensando se devia despedir-me com um cumprimento. Comecei a dirigir-me para a porta.
- Na próxima quinta-feira - gritou ela antes de eu sair. Hobie encontrava-se na Virgínia, avaliando uma colecção de
selos deixada aos herdeiros por uma nonagenária recentemente falecida. A Grandby prestava este serviço aos testamenteiros em troca de um pagamento, mesmo que não fôssemos nós os escolhidos para fazer o leilão ou para proceder directamente à compra.
Tinha, portanto, o escritório só para mim nessa manhã. Enchi uma chávena de café forte - a chávena que levara de casa
- e comecei a examinar o inventário da colecção Havistock.
No meu trabalho tenho encontrado coleccionadores e acumuladores. Os primeiros são pessoas de bom gosto e discernimento, que têm conhecimentos sobre a história, proveniência e valor intrínseco daquilo que adquirem, e a maior parte deles compra por amor. Os acumuladores são gananciosos que adquirem tudo, sem olhar à raridade e às condições, e que se preocupam apenas com o valor das suas colecções, as quais, muitas vezes, se encontram sujeitas a uma grande inflação, o que acontece sempre que eles as querem vender.
Estudando o inventário tornou-se óbvio para mim que Archibald era um coleccionador muito discriminatório. A lista incuía algumas verdadeiras preciosidades, mas as estimativas do seguro datavam de há quatro anos atrás e não levavam
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em conta a inflação nem a recente subida de valor das moedas
A "estrela" da colecção, uma verdadeira peça de museu, era um decadracma de prata que datava de cerca de 470 a.C. tratava-se de uma moeda famosa, uma das grandes clássicas da cunhagem grega, chamada Demaretion, e fora considerada como estando em "óptimas condições". Consultei os meus catálogos e descobri que o mais recente Demaretion, em condições análogas, apresentado no mercado fora vendido por quase um quarto de milhão de dólares, mas o valor que fora atribuído a este no inventário do seguro cifrava-se apenas em cento e cinquenta mil dólares. Eu pensava que a Grandby podia leiloar aquela moeda possivelmente por trezentos e cinquenta mil dólares. . .
Li a carta recebida na Grandby & Sons, peguei no telefone e
liguei para Archibald Havistock.
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Nas minhas vagabundagens por Manhattan descobrira que este não era afinal senão um insólito aglomerado de casas pobres e ricas, feias e bonitas, antigas e modernas, e, dentro desses bairros, até mesmo um único quarteirão podia ter características distintas, que o diferenciavam dos vizinhos, como uma erva daninha num ramalhete de papoulas, ou uma rosa num monte de urtigas.
Archibald Havistock vivia num quarteirão único no seu género da Rua Setenta e Nove, Este, que ainda não recebera transplantações de vidro e de aço para ganhar altura. As imensas casas de apartamentos de tijolo tinham todas a aparência de blindados e pareciam estar na mesma desde a sua construção, cinquenta anos antes. Possuíam um aspecto de sombria permanência, pelo que qualquer pessoa seria levada a pensar que os ocupantes dessas casas, de sete, nove e onze divisões, teriam assimilado as características do ambiente.
O vestíbulo, com paredes de um mármore varicoso, era uma pequena Grand Central Station, com um porteiro atrás de uma secretária tão trabalhada como o mármore. Disse o meu nome. Ele pegou num telefone interno, anunciou a minha chegada a Havistock e depois informou-me sobre o número do apartamento. Foi tudo tão formal como se estivéssemos numa repartição pública.
O homem que me abriu a porta do apartamento não me pareceu um Archibald, mas antes um Tony ou um Mike. Vim depois a saber que era um Orson - tanto pior para a minha persPicácia. Apresentou-se como Orson Vanwinkle, sobrinho e secretário de Archibald Havistock. Apertámos as mãos e senti que a dele estava húmida, desagradável ao tacto.
Era um tipo moreno, com nariz adunco; um perfeito Iago
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com esse género de ar ameaçador e bem-parecido que creio que algumas mulheres acham atraente, mas que a mim me provoca ligeiras náuseas. Além disso, a água-de-colónia que usava cheirava a frutos suculentos.
Segui-o ao longo de um corredor atapetado, reparando em diversas gravuras na parede, não muito aliciantes, que pareciam ser todas de Liverpool na maré vazia, mas logo a seguir Vanwinkle fez-me entrar numa sala espantosa: uma sala-biblioteca de outras eras. O chão, de tijoleira brilhante, estava quase oculto por uma macia carpete oriental, as paredes eram de nogueira, formando painéis, e espessos cortinados de veludo pendiam, presos por cordões tão grossos como cordas. Quadros a óleo com molduras douradas, incluindo dois Hoppers, e um armário lateral, com pratas e cristais, completavam a decoração.
E em profundas prateleiras de carvalho viam-se pequenas caixas envidraçadas, com armação de teca, que continham a colecção de moedas de Havistock.
O homem que se encontrava atrás da enorme secretária levantou-se e saudou-me com um sorriso frio. Era uma figura corpulenta, envolta num fato de flanela cor de peito de rola, com uma risca fina como um cabelo. A sua camisa de seda branca realçava uma gravata de pintas azuis, a qual condizia com o colete debruado a branco - a primeira vez que eu via tal coisa. Impressionavam igualmente os cabelos, prateados e brilhantes, e os olhos, de um azul muito, muito frio.
- Miss Bateson - disse estendendo-me uma mão de unhas manicuradas -, sou Archibald Havistock. Tenho muito prazer em conhecê-la.
A minha reacção foi instantânea: travara conhecimento com alguém importante, e mais tarde, ao tentar analisar o meu assombro, achei que fora devido aos seus modos imponentes, à voz, ao conjunto da sua presença. Dava, de facto, a impressão de ser uma pessoa cônscia do seu valor, controlada, e mesmo num ambiente menos impressionante creio que teria, da mesma maneira, transmitido uma ideia de poder e distinção. Era muito completo.
E - como se precisasse disso - era bonito, como alguns homens de meia-idade o são por vezes. Um rosto pesado, com algumas rugas em volta da boca, lábios cheios, queixo sólido e, é claro, o cabelo prateado e os olhos azuis como cubos de gelo. Podia ser presidente da direcção do universo. Os seus botões de
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punho eram pequenas reproduções de um quadro de Picasso, de esmalte, e tenho a certeza de que os considerava um capricho divertido.
Sentámo-nos e fiquei em frente da enorme secretária de Havistock. Orson Vanwinkle instalou-se atrás de mim, numa cadeira de costas direitas, perto da porta, quase como um guarda-costas ou um agente de segurança.
Comecei a explicar que para a Grandby & Sons poder fazer uma estimativa do valor que a sua colecção poderia obter num leilão ou numa venda directa, eu precisava de examinar as moedas para as avaliar. Ele ergueu a mão da palma rosada e voltou a sorrir sem alegria, havia algo de triste na sua expressão.
- Compreendo perfeitamente - respondeu. - Como calcula, contactei outras firmas de leilões, e todas elas procedem da mesma maneira. Quer começar a trabalhar agora?
Levara comigo aquilo a que eu chamava "a minha maleta de médico" - preparada para avaliações fora do escritório. Era uma pequena pasta preta contendo uma lâmpada de alta voltagem, uma lupa, uma grande e forte lente de aumentar, luvas de seda e um estojo com produtos químicos, usados para testar o metal. Espalhei todas estas coisas sobre o tampo da secretária, em frente de Havistock, e Orson Vanwinkle levantou-se e foi buscar a primeira caixa envidraçada, colocando-a cuidadosamente diante de mim.
Devo descrever agora pormenorizadamente como estava organizada a colecção Havistock, visto que isso acarretou importantes e dramáticas consequências.
Constava de quatrocentas e noventa e sete moedas, incluindo o Demaretion, as quais se encontravam alojadas em pequenas caixas envidraçadas com, aproximadamente, sessenta por cinquenta centímetros. Cada uma estava dividida em quarenta e dois compartimentos forrados de veludo, com apenas uma moeda, e cada um desses pequenos estojos, sem tampa, tinha um pequeno número gravado, correspondente ao do inventário do seguro.
Se as minhas contas estavam correctas, as moedas poderiam ser arrumadas em doze vitrinas, com sete compartimentos vagos. Explico isso de imediato...
A primeira caixa que Orson Vanwinkle colocou na minha frente estava completamente cheia. Passei um momento a examiná-la, passando os dedos ao de leve sobre a madeira reluzente, pela fechadura de metal, pelos gonzos.
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- Esta caixa - disse eu, olhando para Archibald Havistock - é esplêndida!
- Sim - respondeu com um sorriso um pouco mais afável. - Foi feita propositadamente para mim por Nate Colescui, de Greenwich Village. O melhor homem para esse género de trabalhos. Orson, podes fazer o favor de abrir.
Vanwinkle tirou uma argola de chaves do bolso, escolheu uma pequena, complicada, de metal amarelo e abriu a caixa. Levantou a tampa de vidro, emoldurada em teca e verificou se o suporte da tampa estava bem seguro. Comecei a trabalhar, verificando a cópia do inventário que tinha a meu lado.
Tornou-se rapidamente visível que quem elaborara aquele inventário sabia o que fazia; a apreciação era muito precisa e discordei dela apenas em dezassete moedas: doze delas mereciam uma valorização mais alta e apenas cinco, em minha opinião, valiam menos. De "muito bom" para "bom" e de "bom" para "suficiente". Contudo, aos preços actuais, toda a colecção estava segura por uma quantia demasiado baixa.
Demorei-me quase três horas, perfeitamente encantada, e só outro numismata poderia avaliar o que eu sentia. A beleza daquelas moedas! Esculturas em miniatura, perfis de deuses e de deusas, cavalos e carros, peixes e aves, animais e carrancas, e tantos jovens sem nome, com rostos de alegria esperançosa, que eu quase chorava ao vê-los. Todos desaparecidos.
Durante aquelas três horas, Havistock ou Vanwinkle deixavam ocasionalmente a sala, mas nunca ambos ao mesmo tempo: um deles esteve sempre presente. Não os censurei nem um bocadinho, e até, com todas aquelas caixas, cheias de tesouros, abertas, preferia ter uma testemunha para atestar que eu não engolira subitamente uma daquelas maravilhosas obras de arte.
E, finalmente, a décima terceira caixa...
Foi colocada na minha frente por Orson Vanwinkle como se fosse a pièce de résistance de um cozinheiro cordon bleu. Se ele tivesse tirado a tampa de um prato coberto e dito voilá! eu não ficaria admirada.
Ali estava o Demaretion brilhando no seu estojo de veludo.
Não havia engano: era um grosso decadracma, mais ou menos do tamanho de meio dólar americano. Numa das faces via-se uma quadriga com um condutor de pé e, por baixo, um leão a saltar. No verso, quatro golfinhos nadavam em volta do perfil de Artémis, que tem na cabeça uma coroa de oliveira.
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Não vou dizer-lhes que seja esta a mais bela das moedas gregas antigas - na minha opinião não é -, mas é verdadeiramente encantadora, com uma excelente cunhagem (as pernas dos cavalos estão especialmente bem feitas) e, é claro, a sua raridade faz aumentar ainda mais o seu valor. Isso e a história romântica que envolve a existência do Demaretion, de que mais tarde hei-de falar.
Levantei os olhos e vi que Archibald Havistock me observava, ostentando, de novo, nos lábios o sorriso distante...
Gosta? - perguntou com a sua voz de baixo.
É esplêndida! - exclamei. - Até agora só as tenho visto
em fotografias, mas não lhes fazem justiça.
Ele disse que sim com a cabeça.
- É uma perfeição. Comprei-a há trinta anos, pagando por ela mais do que podia na altura, mas tinha de a possuir.
Assim falam os verdadeiros coleccionadores. São capazes de vender a mãe para adquirirem algo que qualquer outra pessoa pode considerar banal... Mas naquele caso eu concordava com o proprietário; o Demaretion era um tesouro.
Saí pouco depois, prometendo a Havistock que receberia a avaliação da Grandby & Sons dentro de uma semana, incluindo recomendações sobre reservas de valores (quando a oferta final é mais baixa do que os preços base, os artigos são retirados do leilão).
Orson Vanwinkle acompanhou-me novamente ao longo do corredor sombrio e à saída insistiu em me apertar a mão, deixando ficar a minha um pouco tempo de mais no seu aperto húmido. Não direi que o homem fosse viscoso, mas apostava que seria capaz de se rir de um cão abandonado à chuva.
Voltei ao meu gabinete e comecei a trabalhar. Vi imediatamente que tentar leiloar quatrocentas e noventa e sete moedas uma por uma levaria um tempo imenso - e seria contraproducente. O melhor era dividir as moedas em lotes, por períodos: arcaicas, clássicas e helenísticas, e por países de origem: Gália, Espanha, Sicília, Inglaterra, etc. (os Gregos deram muitas voltas).
Depois de ter dividido o grosso das moedas em lotes que poderiam atrair coleccionadores especializados, destaquei catorze para serem vendidas separadamente, nelas incluindo o
demaretion, claro. Comecei então a calcular os preços de reserva e os preços máximos para essas moedas separadas e para Os lotes, trabalho que demorou quatro dias.
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Entretanto Hobart Juliana voltou da Virgínia, trazendo consigo histórias fascinantes acerca da vida das pessoas de lá. Fomos almoçar juntos. Eu falei-lhe da colecção Havistock, a maior avaliação que eu já fizera e Hobie mostrou-se ainda mais entusiasmado do que eu.
- Dunk, isso é maravilhoso. Se conseguires que a venda seja feita por nós, o negócio trará muito dinheiro para a casa e provavelmente um aumento para ti.
- Nem pensar - respondi sombriamente. - Se conseguir alguma coisa, Felicia Dodat é que ficará com todo o crédito.
- Nem por sombras! - exclamou decididamente, abanando a cabeça. - Acontece que partilhas um gabinete com o indivíduo mais tagarela que possa haver. Se conseguires fazer com que a colecção seja vendida por nós, toda a gente ficará a saber, incluindo "deus", que isso se ficou a dever à tua inteligência, perseverança, bom senso e excelente apreciação analítica.
Ri e agarrei-lhe a mão, era bom ter alguém do meu lado, apoiando-me. Noutras circunstâncias nós poderíamos ser... bem, para quê falar disso?
Entrava cedo no escritório e ficava a trabalhar até tarde. Depois ia para casa, descongelava e comia uma boa refeição, e deitava-me. Dava voltas entre os lençóis, com o cérebro sempre em agitação, e, quando adormecia, era a sonhar com moedas antigas, com um guerreiro de pé a conduzir quatro elegantes cavalos. Mas que sonhos eram aqueles para uma mulher americana saudável e normal? Pff!
Quando cheguei ao fim entreguei a Felicia Dodat um relatório lindamente dactilografado, que incluía os preços base e os valores máximos de vinte e dois lotes de moedas e de mais catorze consideradas separadamente (trezentos e cinquenta mil dólares pelo Demaretion). Deixei a Dodat (ou a "deus", ou aos contabilistas), o trabalho de pensarem na oferta que deviam fazer a Archibald Havistock, se ele se decidisse a vender imediatamente a sua colecção.
- Obrigada - disse laconicamente Felicia pousando negligentemente o relatório sobre a secretária.
- Quando acha que possamos ter uma resposta? - arrisquei-me a perguntar.
- Quando cá chegar - respondeu apenas Felicia.
Senti uma vontade louca de lhe dar uns açoites, aquela mulher fazia vir ao de cima o pior que havia em mim.
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Durante quase duas semanas nada sucedeu. Eu andava de
lado para o outro no gabinete, quase incapaz de responder à
minha correspondência ou de fazer avaliações dos objectos que
me eram entregues, enquanto Hobie me aconselhava paciência,
paciência e mais paciência.
O que nunca deves fazer - dizia-me ele - é pressionar
Felicia Dodat. Trata-a com naturalidade, fá-la pensar que avaliar uma colecção de dois milhões de dólares é apenas rotina e que não te importas de que as moedas de Havistock sejam ou não vendidas pela Grandby. É preciso calma, Dunk.
Mas eu não podia estar calma, elas significavam demasiado para mim, especialmente o lindo Demaretion. Comecei então a percorrer loucamente as salas de espectáculos, galerias de arte e restaurantes novos da cidade. Quando ia para casa bebia um grande gole de licor de framboesa para dormir bem.
Finalmente, na terceira semana, numa bela tarde de Maio, fresca e clara, levei a minha chávena e a de Hobie para a casa de banho das senhoras, para as lavar, esperando tirar-lhes as manchas escuras que as cobriam.
Felicia Dodat encontrava-se de pé em frente de um dos espelhos, retocando o seu cabelo negro e alisando as sobrancelhas com a ponta de um dedo.
Meti as chávenas dentro de um lavatório e deixei correr-lhe água quente por cima. Depois tirei um pedaço de uma toalha de papel, e comecei a esfregar as chávenas.
- Creio que lhe chamam Dunk - disse Felicia, continuando a examinar-se ao espelho, voltando-se para um lado e para o outro.
- É verdade.
- Dunk - repetiu. - Que nome tão estranho. Fiquei calada.
Ela levantou a saia para puxar a cinta, o que eu nunca faria à frente de ninguém, homem ou mulher. Depois, alisou a saia, inspeccionou-se outra vez e iria apostar que chegou a baixar a cabeça num gesto de aprovação.
Dunk - disse ela outra vez, e riu. Começou a dirigir-se para a saída e parou à porta.
Oh, a propósito... - disse, como se se tivesse subitamente lembrado de qualquer coisa sem importância. - Já não me lembro se lhe disse que ficámos com a colecção Havistock?
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Novos problemas que nunca tivera antes: a complicação de mudar a colecção da casa do seu proprietário, na Rua Setenta e Nove, Este, para o cofre da casa da Grandby & Sons, na Madison Avenue. Stanton Grandby assinara o contrato para o leilão, mas o trabalho maçador ficara para mim.
Encontrei-me quatro vezes com Havistock, com Vanwinkle, com um representante da companhia de seguros, que trazia uma apólice da colecção, e com um cavalheiro corpulento do serviço de transportes blindados que devia transportar as moedas. Concordámos, finalmente, num plano que dividia as responsabilidades de tal maneira que agradasse a todas as partes interessadas.
A mudança seria efectuada da seguinte maneira: Archibald Havistock fecharia as treze caixas, que continham as suas moedas, com tiras de adesivo dos quatro lados, selando depois o volume com um pedaço de lacre perto da fechadura, no qual imprimiria o sinete de um anel de prata que costumava usar algumas vezes.
Apresentei uma ligeira objecção a esta forma de fechar as caixas, receando que a bela superfície polida das mesmas se danificasse.
Havistock, porém, declarou que não precisaria delas uma vez vendidas as moedas e que, em qualquer caso, seriam facilmente restauradas.
Eu seria a testemunha que assistiria ao fechar das caixas e cabia-me verificar que cada uma delas continha o número certo de moedas. Uma vez seladas, as caixas seriam metidas em contentores de esferovite, dentro dos quais, segundo me disseram, o seu fabricante, Nate Colescui, as enviara. Cada contentor teria escrito de forma bem legível o nome e a morada de Havistock
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assim como os da Grandby & Sons e seriam numerados de um a treze.
Depois de eu ter presenciado o carregamento dos contentores de esferovite, e de os ver selar com adesivo, os homens do serviço de transportes, então já escoltados por guardas armados levá-los-iam para o elevador de serviço até ao rés-do-chão, onde dariam entrada na carrinha. Uma vez acondicionados na viatura, o motorista assinaria três recibos, sendo um deles entregue a Mr. Havistock, outro à Grandby & Sons e o terceiro à companhia seguradora.
Eu correria então para o meu escritório, de táxi, se conseguisse encontrar um - não me era permitido viajar na carrinha blindada -, a fim de assistir à descarga dos treze contentores e ao seu armazenamento em segurança nos cofres da Grandby & Sons. Logo que as treze caixas aqui se encontrassem teria de assinar um recibo com cópias para todos - e a colecção Havistock ficaria então à responsabilidade da Grandby & Sons.
Parecia tudo muito simples e lógico.
Devo mencionar agora o facto de que, durante os preparativos para esta mudança, havia travado conhecimento com dois membros da família Havistock: a mulher de Archibald, Mabel, e uma filha solteira, Natalie (conhecida por Nettie). Disseram-me, além disso, que os Havistocks tinham um filho, Luther, casado com uma tal Vanessa, e outra filha também casada, Roberta, cujo marido se chamava Ross Minchen.
Mas, devo frisá-lo, quando a colecção foi mudada, eu só conhecia pessoalmente Archibald Havistock e a mulher, Mabel, o sobrinho Orson Vanwinkle, e a filha solteira, Nettie.
Mabel Havistock era uma matrona corpulenta, quadrada, com o cabelo azulado e queixo de estivador, que aparentava pertencer ao género de mulheres que normalmente usam um colete castanho com todo o género de fivelas e tiras, rendas e adornos. Parecia-se um pouco com um ogre, mas devo confessar que se mostrou suficientemente delicada, apesar de o seu olhar frio imediatamente me indicar que era do tipo das mulheres que usam pérolas. E as dela eram verdadeiras...
Gostei muito mais de Natalie, a filha solteira, a mais nova da família Havistock, e do seu aspecto descontraído. Usava umas jeans desbotadas e uma T-shirt sem soutien por baixo, o que me fez pensar mais uma vez como a vida é injusta. Os seus cabelos encaracolados e louros pareceram-me desgrenhados e sujos.
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Nettíe e eu conversámos durante pouco tempo, mas logo descobrimos sermos ambas grandes apreciadoras de pizzas. Ela perguntou-me se podia passar pela Grandby & Sons, a fim de ver como iria preparar o leilão da colecção do pai, e disse-lhe para o fazer quando quisesse. Gostava de ver qual seria a reacção de Felicia Dodat perante aquela rapariga descontraída e faladora.
A data marcada para a grande mudança chegou finalmente: uma terça-feira maravilhosa de Junho, a que só faltava o canto dos pássaros em Manhattan para ser perfeita. Pareceu-me um bom presságio e esperava que o dia terminasse tão esplendidamente como começara.
Alertei o nosso encarregado do cofre e fiquei satisfeita por saber que ele já arranjara espaço para a colecção Havistock. Depois dirigi-me para a Rua Setenta e Nove, Este, e fiquei descansada ao certificar-me de que o carro blindado já estava estacionado junto da porta de serviço do prédio, com um motorista, de ar aborrecido, sentado ao volante.
O porteiro já me conhecia e por isso limitou-se a acenar-me com a mão gorducha. Dirigi-me directamente para o elevador e subi até ao nono andar. No corredor permanecia parado um carrinho pertencente ao carro blindado. Dois guardas armados e uniformizados encontravam-se junto dele, fumando. Olharam-me quando eu cheguei.
- Tudo preparado? - perguntei com satisfação.
- Estamos prontos - respondeu um deles.
Quem me abriu a porta do apartamento foi uma empregada que eu ainda não conhecia. Uma mulher de expressão azeda, vestida com uma bata preta e um avental branco. Criada, governante, cozinheira?
- Sou Mary Bateson da... - comecei a dizer.
- Estão todos lá atrás - respondeu ela com um gesto.
Caminhei sozinha ao longo do corredor deprimente, pensando que se tivesse dito à mulher: "Sou Ma Baker e venho roubar a colecção Havistock", ela teria dito a mesma coisa e feito o mesmo gesto, por cima do ombro, para me indicar o caminho. Aquilo é que era segurança!
Estavam todos à minha espera na esplêndida biblioteca, e começaram logo a selar as caixas com as moedas. Orson Vanwinkle cortava tiras de adesivo e o tio colava-as dos lados e nas tampas. Se Archibald Havistock experimentava alguma tristeza ou amargura por se despojar da sua colecção, não o mostrava. Como já disse, era um homem muito controlado.
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Eu levara comigo dois inventários, o da companhia de seguros e o meu próprio, e ia assim verificando cuidadosamente se cada moeda se encontrava no compartimento correcto. Depois, Vanwinkle aplicava o lacre sobre o adesivo e Havistock comprimia sobre ela o seu anel de sinete, após o que o primeiro introduzia a caixa num contentor de esferovite. Finalmente este era também devidamente selado e a embalagem ficava então pronta.
Inclinei-me sobre a décima terceira caixa, olhando através do vidro para o Demaretion, que cintilava.
Não vai sentir a falta dela? - perguntei a Havistock.
Ele tentou sorrir e encolheu os ombros.
- Como alguém disse, as pessoas passam metade da vida a coleccionar coisas e a outra metade a verem-se livres delas - observou.
Depois, já com o Demaretion selado e devidamente guardado na caixa número treze preparei-me para sair.
- vou mandar chamar os guardas do carro blindado - disse - e depois desço, para ter a certeza de que os contentores entram em segurança na carrinha e para ir buscar o meu recibo.
- Creio que a acompanho - exclamou Orson Vanwinkle sorrindo ligeiramente - para receber o nosso recibo.
Ficámos os dois à espera, perto da porta de serviço, e daí a cerca de dez minutos apareceram os guardas empurrando o carrinho carregado. Os treze contentores começaram logo a ser colocados dentro da viatura blindada, enquanto um outro guarda ia assinalando na sua lista à medida que os volumes iam sendo arrumados.
Depois assinou os recibos do carregamento, um exemplar para mim, outro para Orson Vanwinkle.
- Encontramo-nos no leilão - disse eu jovialmente.
- Antes disso, espero - respondeu ele com um sorriso. Nem eu imaginava como ele tinha razão!
Tive a sorte de arranjar um táxi, quase imediatamente depois de ter ligado para o escritório a dizer que preparassem a recepção à colecção Havistock. A Grandby & Sons tinha a sua própria segurança, por isso eu falara ao chefe dos guardas - para estarem a postos na altura da chegada do carro blindado.
Quando este se deteve em frente da casa, os nossos guardas encontravam-se efectivamente de sentinela ali, e assim permaneceram, enquanto os contentores eram descarregados e transportados até à cave, para serem metidos no cofre. Fiquei junto
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da porta aberta e contei-os à medida que iam sendo guardados. Eram treze, não restavam dúvidas, e com todos os adesivos intactos.
Assinei então um recibo pela Grandby & Sons e entreguei-o ao motorista do carro blindado, que se retirou com os seus dois ajudantes. As moedas de Havistock estavam finalmente em segurança no nosso cofre, cuja porta não obstante ser suficientemente forte para deter um míssil de cruzeiro, estava tão perfeitamente equilibrada e oleada que eu podia abri-la com uma só mão.
Hobart Juliana apareceu junto de mim, rindo, vinha oferecer-me um café bem forte.
- Conseguiste trazê-los?
- Sãos e salvos - respondi. - E sinto-me satisfeita por isto ter acabado. Olha para as minhas mãos: estão a tremer.
- Acalma-te, Dunk. - respondeu Hobie. - A tua quota-parte do trabalho terminou.
- Creio que sim - disse, começando a aperceber-me de que os meus contactos com a colecção Havistock tinham acabado. A partir dali o trabalho diria respeito à secção de leilões e vendas.
- Hobie, quero mostrar-te algo que te vai fazer sair os olhos pelas órbitas: o Demaretion, uma verdadeira obra de arte.
Pousei a minha chávena de café, tirei o contentor número treze do cofre e abri os adesivos que o fechavam. Depois retirei cuidadosamente do seu interior a caixa de vidro, transportei-a com carinho e mostrei-a com orgulho a Hobie.
- Vê isto, Hobie.
Ele olhou para a caixa e depois ergueu lentamente os olhos para mim. Algo sucedeu à cara dele, foi como se se tivesse assustado.
- O quê? - perguntou em voz baixa.
Olhei-o durante um segundo ou dois e depois baixei os olhos para a caixa selada.
Estava vazia, o Demaretion desaparecera.
Conhecem as palavras de abertura do livro de Dickens, História de Duas Cidades? "Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos..." A última parte foi, decerto, escrita para mim.
Mais tarde Hobart disse-me que receara que eu fosse desmaiar ao ver que a moeda desaparecera. Aproximou-se para me agarrar, se eu começasse a cair.
- Não se tratou de ficares pálida - contou ele. - Ficaste
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completamente lívida, como se alguém te tivesse dado um pontapé no estômago.
A minha reacção inicial foi de incredulidade, depois, de assombro, em seguida, de raiva. Mais tarde veio a sensação de culpa quando compreendi que assinara um recibo responsabilizando-me por uma moeda que valia trezentos e cinquenta mil dólares e que ela desaparecera. Não sabia como, mas a verdade é que o valioso decadracma não se encontrava nos cofres da Grandby & Sons. Adeus ao emprego, à carreira, à reputação. Via-me já condenada a ser desprezada durante o resto da vida, e teria muitos dias e muitas noites para tentar resolver o mistério da moeda roubada de uma caixa selada, colocada dentro de um contentor também selado.
Quando fizemos soar o alarme, felizmente que toda a gente veio a correr, pois eu queria muitas pessoas que testemunhassem o facto de a caixa de madeira e vidro estar vazia, ainda com todos os seus selos intactos. Então foi-me feita a pergunta: estaria realmente a moeda dentro da caixa quando Archibald Havistock aplicara o seu sinete no lacre?
Eu jurei que sim. Toda a gente me olhava, mas não chorei.
Stanton Grandby, o "deus", era um homem gorducho e de ar enfadado que vestia como um pinguim. Podia imaginar, pela sua boca franzida e olhos cintilantes, que estava a calcular mentalmente o que aquele desaparecimento custaria ao negócio da família.
Claro que a Grandby & Sons tinha grandes seguros para cobrir casos daqueles, e as perdas em dinheiro não preocupavam tanto o "deus" como os malefícios que o assunto podia trazer para a reputação da casa. Quem quereria, de futuro entregar obras de arte valiosas, selos, pinturas, moedas e esculturas à Grandby & Sons se fosse sabido que corriam o risco de desaparecer dos cofres da firma?
Comecei a trabalhar, examinando atentamente as outras doze caixas, através dos vidros, sem as abrir, para ver se continham todas as moedas. A colecção estava completa - faltava apenas o Demaretion. Então Grandby, após ter conversado baixinho com Felicia Dodat, decidiu informar do desaparecimento todos os interessados: Archibald Havistock, a Polícia, a Companhia de Seguros e a firma encarregada do transporte. E é melhor telefonarmos também aos nossos advogados - acrescentou Stanton Grandby, olhando colericamente
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para mim. - Isto transformou-se numa confusão e precisamos de conselhos legais.
O resto desse dia foi horrível, uma monstruosidade que acho difícil recordar, tão doloroso se tornou. Uma equipa de detectives da NYPD foi a primeira a chegar ao local, logo seguida pelo homem corpulento dos serviços de transporte blindados. Pouco depois apareceram representantes das duas companhias seguradoras envolvidas no caso e por fim Lemuel Whatswortth, sócio da firma Phlegg, Sample, Haw, Jugson e Pinchnik, advogados da Grandby & Sons.
Devo ter repetido a minha história pelo menos meia dúzia de vezes, contando os pormenores exactos de como as moedas tinham sido inventariadas e de como eu assistira ao fecho das caixas. Jurei seis vezes que vira o Demaretion ser selado e guardado no contentor número treze.
Curiosamente, essa narrativa repetida do que se passara não me aborrecia, não me irritava, nem me ofendia. com efeito, gostava de recordar uma e outra vez os factos, esperando que eu ou alguém descortinasse uma falha fatal nos preparativos da mudança da colecção. Quase desejava que alguém gritasse: "Ah! Aí é que você fez mal. Foi assim que as coisas se passaram."
Contudo, não descobri fosse o que fosse, nem eu, nem ninguém. Era impossível que o Demaretion tivesse desaparecido, mas a verdade é que tal acontecera.
Finalmente, ao crepúsculo, quando as luzes das ruas se acenderam, todos os meus interrogadores se foram embora deixando-me sozinha para pensar no que me caíra em cima. Desejava, mais do que qualquer coisa, telefonar a Archibald Havistock, pedir-lhe desculpa pelo sucedido e lamentar com ele o desaparecimento de um objecto que eu sabia que tanto estimava, mas Lemuel Whattsworth dissera-me, em termos firmes, que não devia tentar contactar com Archibald Havistock ou qualquer outra pessoa da casa.
Hobart Juliana - Deus o abençoe! - não me quis abandonar durante todo o dia e confortou-me nos intervalos das sessões de interrogatório. Quando as luzes do escritório se apagaram e todos partiram, ele perguntou-me:
- Dunk, tens um sofá em tua casa?
- Um sofá? - perguntei sem o perceber. - Claro que tenho, porquê?
- Não creio que seja bom ficares sozinha esta noite. Deixa-me ir para tua casa. Durmo no sofá.
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Oh, Hobie - respondi. - Não precisas de fazer isso.
Eu sei que não preciso, mas quero fazê-lo. Por favor deixa-me ir. .
Está bem - retorqui desanimadamente.
Tens alguma coisa que se coma lá em casa?
Alguns pratos feitos, congelados.
- Isso serve esplendidamente. Algo para beber? Vinho, algum vodca e licor de framboesa.
- Óptimo. Deixa-me fazer um telefonema e vamos já. Foi uma conversa demorada, em voz baixa. Não ouvi o que
ele disse, mas sabia que estava a explicar ao seu companheiro por que razão não ia para casa nessa noite.
Hobie foi muito bondoso para mim e não sei como teria passado sem ele. Preparou a refeição, serviu o vinho, pôs tudo na minha frente e em seguida lavou a loiça. Mais tarde ficámos calmamente sentados, beberricando um pouco de licor e eu comecei a contar outra vez a minha história, passo a passo.
Hobie abanou a cabeça.
- Não vejo que tivesses feito algo que não devesses. Parece-me que executaste tudo com a maior segurança.
- Mas alguém tirou o Demaretion.
- Sim - respondeu ele tristemente. - Alguém o fez.
- Que achas que me vai suceder, Hobie? Sou a suspeita número um?
- Talvez não sejas a número um - respondeu cautelosamente -, mas é bom que te prepares para um grande inquérito que incidirá sobre a tua vida privada. As companhias de seguros não pagarão sem procederem a uma investigação muito, muito cerrada. E a Polícia de Nova Iorque fará o mesmo. Vais passar um mau bocado, Dunk.
- Eu não roubei a moeda, Hobie. Sabes isso, não sabes?
- Claro que sei, e não poderias tê-lo feito, mesmo que quisesses. Hoje não tocaste na maldita moeda, pois não?
- Nunca, nem uma só vez. Apenas a vi.
- Bem, aí tens, mas alguém lhe tocou.
Comecei então a soluçar. Hobie aproximou-se, sentou-se ao meu lado e passou-me um braço por cima dos ombros.
- Vamos, Dunk - disse. - Tu és uma rapariga forte, sei que és. Tudo irá correr bem. A Polícia há-de descobrir quem o fez e tu ficarás completamente ilibada.
- Achas realmente que será assim? - perguntei, fungando. com certeza.
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Era um homem bom, frágil, com a pele clara e o cabelo louro, mas quando se tratava de socorrer alguém mostrava-se forte, cheio de simpatia e compreensão, pronto a ajudar sempre que essa ajuda era mais necessária.
O dia fora uma provação para nós ambos e passado um bocado fui buscar lençóis, uma almofada, um cobertor e fiz-lhe a cama.
- Vais acordar com dores nas costas - avisei.
- Não - respondeu ele. - Durmo bem em qualquer parte. É o que faz ter um coração puro.
Abracei-o, apesar de ele mal me chegar ao queixo.
- Tens realmente um coração puro. Obrigada por tudo o que fizeste por mim. Gosto muito de ti, Hobie.
- E eu também gosto muito de ti, Dunk. Tenta dormir, as coisas parecerão melhores amanhã de manhã.
Esperava que assim fosse, mas tinha dúvidas. Beijámo-nos castamente e eu fui para o quarto. Não sei se foi da tensão do dia ou do licor de framboesa, mas a verdade é que adormeci quase instantaneamente. Dormi de um sono sem sonhos, mas quando o despertador tocou e acordei as coisas não me pareceram melhores que na véspera. Receava os novos choques que aquele dia poderia trazer-me.
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Lemuel Whattsworth era um homem delgado: rosto magro, corpo e cara estreitos, voz débil, e até mesmo no que tinha para dizer era lacónico, pois utilizava expressões como "visto que", "até aqui", "não obstante", e outras semelhantes.
Ali estávamos nós, reunidos na sala de conferências: Whattsworth, Stanton Grandby, Felicia Dodat e eu, esperando julgamento. O advogado tentava explicar os possíveis resultados (ramificações) da perda do Demaretion.
Tentando seguir as palavras dele, percebi que não fora ainda apresentada qualquer queixa, mas ele calculava (tinha a intuição) que Archibald Havistock não reclamaria os cento e cinquenta mil dólares do valor do seguro, mas sim os trezentos e cinquenta mil da Grandby & Sons, visto ser esse o valor pelo qual a moeda fora avaliada e que constava no contrato assinado entre Havistock e a Grandby & Sons.
- De facto, naturalmente - continuou Whattsworth -, a companhia seguradora apoiá-lo-ia. O recibo da entrega da moeda foi assinado por uma representante da Grandby & Sons - lançou um olhar frio na minha direcção - por isso legalmente esta casa é culpada. A Grandby responsabilizou-se, com efeito, por um objecto que devia achar-se em seu poder, quanto de facto não o estava.
Mais um pouco daquela conversa e eu daria em doida.
- As investigações estão a ser feitas - prosseguiu ele na sua voz monótona - e podemos esperar que este caso grave seja satisfatoriamente resolvido quando o culpado comparecer perante a justiça. Até isso acontecer sou de opinião de que Miss Mary Lou Bateson seja temporariamente afastada das suas funções, sem receber salário, até o assunto estar convenientemente explicado. Tal modo de agir destina-se, de certo
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modo, a proteger a reputação profissional da Grandby & Sons.
- E fará com que eu pareça ser uma ladra! - exclamei irritadamente.
- De modo algum - respondeu o advogado com a sua voz fraca. - É meramente uma medida temporária destinada a evitar os rumores e a confusão que a sua presença aqui acarretariam. Afinal, Miss Bateson, deve perceber que se encontra profundamente envolvida neste triste incidente, e estou certo de que compreende a necessidade que a Grandby & Sons tem de se distanciar do seu envolvimento pessoal.
Olhei para o "deus" e para Felicia Dodat, esperando encontrar apoio e encorajamento, mas nada. Stanton Grandby olhava-me com uma expressão impassível e Felicia Dodat examinava com toda a atenção o verniz vermelho das suas enormes unhas.
Então era isso. Depois, sentindo-me como se andasse à deriva, dirigi-me ao meu gabinete para guardar a minha chávena de café e alguns outros objectos pessoais. Estava a escrever um curto bilhete a Hobart Juliana, contando-lhe a minha situação, quando bateram à porta. Espreitei pelo postigo e vi na minha frente a chapa de identificação de um detective da Polícia de Nova Iorque. Abri a porta.
O detective era mais ou menos da minha altura, o que tornava fácil ver bem os seus espantosos olhos de um azul brilhante. - Sou Al Georgio - disse. - Posso entrar e falar alguns minutos consigo a respeito do roubo?
- Já falei - respondi - ontem, e demoradamente, com dois dos seus homens.
- Bem sei, tenho os relatórios deles, mas o caso foi-me entregue e eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas antes de prepararmos uma declaração para você assinar. Está bem?
- com certeza. Entre. Quer um café? Tem é de ser numa chávena de plástico.
- Agradeço - respondeu ele. - com açúcar e leite, se tiver.
Deitei o café nas chávenas e entreguei-lhe um pacotinho de açúcar e outro de creme que costumávamos guardar para as visitas.
- Apanhou-me por pouco - expliquei. - Mais cinco minutos e eu já não estaria aqui. Fui despedida.
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- Foi o que me disseram. Mas não foi despedida, apenas afastada por uns tempos.
Sem vencimento - repliquei com azedume.
Ele encolheu os ombros.
É assim a vida nesta grande cidade.
Era um homem grande, tão amarrotado, que parecia ter dormido vestido. Devia contar entre trinta e sete e quarenta anos, calculei. O seu rosto parecia uma almofada socada, mas os olhos tinham uma imensa vivacidade e o sorriso era na verdade afectuoso. Achei-o simpático.
- Então que posso dizer-lhe? - perguntei.
- Quem se encontrava no apartamento de Havistock quando assistiu à embalagem das moedas?
- Mister Archibald Havistock e o secretário dele, Orson Vanwinkle, que é também seu sobrinho. Uma mulher que eu nunca tinha visto, vestida como criada ou governante, abriu-me a porta.
O detective Georgio tirou uma pequena agenda do bolso e folheou-a.
- É a governante, Ruby Querita. O irmão dela está preso por causa de droga.
Olhei-o com assombro.
- Vocês mexem-se depressa, não?
- Ocasionalmente - replicou ele. - Não viu mais ninguém no apartamento?
- Mais ninguém. No corredor estavam dois guardas do serviço de transporte blindado. Do apartamento só conheço o corredor e a biblioteca onde estavam as moedas, mas tenho a impressão de que se trata de uma casa grande.
- Sim, muito grande. Onze divisões e três casas de banho. E estava lá uma quantidade de gente que você não viu.
- Conheci Mistress Mabel Havistock e Natalie, a filha mais nova do casal, mas ontem não as vi.
Ele consultou novamente a agenda.
- Elas encontravam-se lá, assim como Luther Havistock, com a mulher, Vanessa. Também lá estavam a outra filha, Roberta Minchen, com o marido, Ross. A família ia almoçar toda junta.
- Festejavam alguma coisa?
- Sim, mais ou menos. Era o aniversário de Mistress Havistock.
- Oh, o roubo deve ter perturbado a festa!
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- Roubo... - repetiu o detective. - Sim, creio que sim. Havistock pôs de facto a moeda dentro da caixa, não foi?
Levantei a mão.
- Não pôs. A moeda já lá estava quando eu inspeccionei tudo.
- Então não houve possibilidade de qualquer truque? De fazer desaparecer a moeda na manga?
- De maneira nenhuma. O Demaretion estava no seu estojo. Vi-o através do vidro da caixa.
- Era o verdadeiro? Não seria uma imitação?
- Era o verdadeiro.
- E viu a caixa ser selada?
- Vi.
- E viu-a ser metida dentro do contentor de esferovite?
- Vi também isso. Depois o contentor foi fechado com adesivo, que estava ainda intacto quando eu o abri, já no cofre.
- e o contentor já fora marcado com o número treze?
- é verdade.
Ele levantou subitamente os olhos das notas que estava a ler e perguntou-me:
- Quem pensa que tenha roubado a moeda? Fiquei sobressaltada.
- Não faço a mínima ideia - respondi.
- Eu também não - replicou Al, sorrindo-me de novo com a sua expressão afectuosa.
Era na verdade um homem muito atraente, com Um ar um pouco cansado, como um actor francês gasto, mas mais agradável por isso. O que quero dizer é que não tentava parecer o que não era. O seu rosto pesado, as roupas amarrotadas, a maneira como se movia - tudo nele parecia dizer: sou tal qual o que pareço.
Acabou de beber o café e levantou-se. Olhou para os catálogos, livros, gorro de malha, botas de neve, etc., que eu empilhara em cima da secretária.
- Vai-se mudar? - perguntou. - Vai levar tudo isso para casa?
- vou.
- Onde mora?
- Não está escrito no seu livrinho?
- Claro que sim. Rua Oitenta e Três, Oeste. Tenho um carro lá fora. Posso levá-la a casa.
Estava desconfiada.
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Os detectives não são violadores loucos, não?
Eu não - retorquiu ele. - Não tenho energia para isso.
Ajudou-me a transportar as coisas até ao seu Plymouth azul desbotado, e levou-me a casa. Depois auxiliou-me a carregar tudo para dentro.
Tenho vodca - ofereci.
- Não posso aceitar, mas outro café seria bem-vindo, se não lhe der muito trabalho.
- Tenho café instantâneo...
- Óptimo - disse ele. - O meu preferido.
Quando Hobart Juliana saíra, nessa manhã, eu dobrara os lençóis e o cobertor e pusera tudo em cima da almofada, sobre o sofá. Al Georgio reparou nisso, mas não disse nada.
Fiz-lhe uma chávena de café instantâneo, sem cafeína. Ele soprou-o para o arrefecer, tal como o meu pai costumava fazer.
- Fale-me acerca da moeda, por favor.
Descrevi-lhe o Demaretion e depois mostrei-lhe uma fotografia da moeda, em tamanho natural, num dos meus catálogos.
- Não me parece nada de especial - disse Al Georgio.
- Mas é - repliquei indignadamente. - Um belo exemplar das antigas moedas gregas.
- E porque vale tanto?
- Por ser uma raridade, é uma verdadeira peça de museu, e pela qualidade da cunhagem. Além disso, há uma história relacionada com a moeda. Foi feita na Sicília quando os Gregos ocuparam a ilha. Gélon, o comandante grego, derrotou os Cartagineses na batalha de Hímera, no ano de quatrocentos e oitenta antes de Cristo, e julgo que ia cortar as cabeças a todos eles, ou coisa assim - creio que não era muito boa pessoa -, quando a mulher, Demárete, intercedeu a favor dos presos, convencendo Gélon a tornar os termos da rendição menos duros. Como prova da gratidão, os Cartagineses deram a Demárete uma coroa de ouro com o valor de cem talentos, com a qual ela mandou fazer uma série de moedas grandes, decadracmas, que tomaram o nome de Demaretions por sua causa. é uma história romântica, não é?
Ele olhou-me pensativamente.
- Julguei que a moeda fosse de prata.
- E é. Não de prata pura, claro, seria demasiado maleável, mas é uma liga com um alto teor de prata.
Como é que, tendo ela recebido uma coroa de ouro as
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moedas são de prata? Porque não mandou fundir a coroa e fez cunhar moedas de ouro. Não pude deixar de rir.
- Você é realmente um detective, não é? Uma quantidade de numismatas fizeram essa mesma pergunta. Alguns pensam que a história é pura invenção. Outros procuram um Demaretion de ouro, mas nunca apareceu tal moeda. Só de prata.
- Quantas existem?
- No mundo inteiro? Talvez uma dúzia, possivelmente quinze. Pelo menos são as que se conhecem, mas podem existir mais algumas em colecções privadas.
Ele abanou a cabeça.
- Quanto vale um talento de ouro?
- Cerca de seis mil dracmas. Pergunte o que vale um antigo dracma grego em dinheiro actual, ou um antigo siclo sírio, e ouvirá um milhão de hipóteses. Ninguém sabe ao certo.
Al Georgio suspirou.
- Bem. Suponho que o que me interessa saber é que o Demaretion desaparecido foi seguro por cento e cinquenta mil dólares e avaliado pela Grandby em trezentos e cinquenta mil. Trata-se de um roubo, digam o que disserem.
- Não pensa que fui eu quem a roubou, pois não? - perguntei olhando-o.
Ele fitou-me tranquilamente.
- Comecei agora a trabalhar no caso. Gostaria de lhe dizer: não, não creio que fosse, mas não posso afirmar tal coisa. Neste momento todas as pessoas da família Havistock e todos aqueles que estiveram relacionados com a transferência das moedas são suspeitos, incluindo você. Compreende isso, não compreende?
- Creio que sim - respondi tristemente. - Mas eu nunca seria capaz de o fazer. Gosto demasiado de moedas para isso.
Ele atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada cheia de jovialidade.
- Mas que diabo de álibi o seu! - exclamou.
Então ri também, apercebendo-me daquilo que dissera.
- Que vai fazer a seguir? Qual é o próximo passo? O detective ficou sério e franziu a testa.
- Creio que irei encontrar-me com Havistock e com o secretário dele, Vanwinkle. Quero ouvir a história da maneira : como foi feita a transferência, contada por eles.
- Repetirão tudo o que eu já disse.
- Acha que sim? - Depois, subitamente, acrescentou: -
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Gostaria que fosse comigo. Se eles disserem alguma coisa que não concorde com aquilo de que se lembra, quero que o afirme na presença deles. Algumas vezes um confronto entre as testemunhas pode ajudar.
Pensei no assunto durante um momento.
O advogado da Grandby disse-me que não tivesse qualquer contacto com o Havistock, mas isso foi na altura em que ainda fazia parte do pessoal da casa. Agora estou de licença sem vencimento e quero, acima de tudo, ilibar o meu nome. Está bem, vou consigo.
Óptimo. Ainda bem que pensa assim - respondeu Al
Georgio.
- Ouça - disse eu. - Aparentemente vamos ver-nos mais vezes, por isso quero saber como o hei-de tratar: detective Georgio? Mister Georgio?
- Pode chamar-me Al - replicou com um sorriso.
- Diminutivo de Albert?
Pareceu-me que ele corou, pelo menos olhou para o ar, por cima da minha cabeça.
- Alphonse - respondeu em voz baixa. Não me ri.
- As pessoas chamam-me Dunk - disse.
- Dunk? Por causa do basquetebol? Acenei afirmativamente.
- bom. Eu sou adepto dos Nets - levantou-se para se ir embora. - Obrigado pelo café. Telefono-lhe quando tiver marcado a entrevista com Havistock e Vanwinkle. Está bem?
- Está. Poderei ir em qualquer altura. Não tenho mais nada para fazer.
Al Georgio dirigiu-se para a porta.
- Al - chamei e ele voltou-se. - Tem alguma ideia de como alguém possa ter tirado o Demaretion de dentro de um contentor selado?
Ele sorriu sem alegria.
- Dunk, o meu velho trabalhou no Departamento da Polícia praticamente durante toda a vida e lidou com toda a espécie de gatunos e de vigaristas. Ele ensinou-me muita coisa. Não, não é possível, ninguém tirou de lá a moeda, a caixa é que foi mudada.
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Nessa tarde, às duas horas, recebi um telefonema que veio deitar outra acha na fogueira.
- Miss Mary Lou Bateson? - perguntou uma voz de homem.
- Sim - respondi. - Quem fala?
- O meu nome é John Smack. Trabalho para a Findus, Holding, Incorporated. Somos a...
- Sei quem são - interrompi. - São os seguradores da Grandby & Sons. Falei ontem com uma pessoa da sua companhia, Mister Smack. Contei-lhe tudo o que sabia acerca do roubo do Demaretion.
- Bem sei. Falou com Ed Morphy, que trata das contas com a Grandby. Eu sou investigador e gostaria de lhe fazer algumas perguntas, se possível. Quando lhe convier, claro.
Suspirei. Aquilo nunca mais tinha fim.
- Estou tão ansiosa por esclarecer o caso como os senhores
- respondi. - Onde e quando quer que nos encontremos?
- Estou a telefonar da Grandby. Esperava encontrá-la no seu gabinete, mas informaram-me de que se encontra de licença.
- Não por minha decisão - retorqui. Ele riu.
- É só uma coisa temporária, tenho a certeza. Poderia ir agora a sua casa? Tenho a morada e estaria aí dentro de vinte minutos.
- Está bem - respondi. - Venha. Espero que traga com que se identificar.
- O meu cartão da empresa, mas, se tem dúvidas, pode telefonar a Stanton Grandby ou a Felicia Dodat. Eles responsabilizam-se por mim.
Depois de desligar resolvi telefonar para Hobart Juliana, pois
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não tinha grande vontade de falar com "deus" ou com a Felicia podat. Pedi a Hobart que verificasse se John Smack era realmente investigador da Findus, Holding, Incorporate, e cinco minutos depois ele dizia-me que sim, que Smack era genuíno.
Chamam-lhe Jack Smack. Já estou a sentir a tua falta,
punk - acrescentou tristemente Hobie. - Isto não é o mesmo sem ti.
- E eu também sinto a tua. Talvez estes detectives todos obtenham resultados e eu volte para aí dentro de pouco tempo. Gosto desse trabalho, Hobie, e quero conservar o meu lugar.
- Eu sei.
- Além disso, preciso do dinheiro que ganho, apesar de todos os descontos.
- Ouve, Dunk - disse ansiosamente Hobie - se tiveres algum problema e precisares de alguma coisa, eu possuo alguns decadracmas que te posso emprestar.
- bom rapaz - exclamei, desligando logo a seguir.
Jack Smack era um homem muito elegante, na verdade. Devia ter uns trinta e cinco anos e era um pouco mais alto que eu. Usava um fato de seda preta de corte italiano e uns sapatos muito bonitos.
Perguntei-lhe se tomava alguma coisa e ele optou por vodca com um pouco de água e gelo. Eu preferi não beber, precisava de ter as ideias bem claras.
- Não tem dúvidas de que o verdadeiro Demaretion se encontrava dentro da caixa quando ela foi selada? - perguntou.
- Não tenho qualquer dúvida a esse respeito.
- Viu a caixa ser selada e metida dentro do contentor, que foi selada por sua vez?
- Exactamente.
- E quando voltou a ver o contentor treze foi na altura em que o carro blindado o entregou na Grandby?
- Certo.
Smack descruzou as pernas, tendo o cuidado de verificar se o vinco das calças se mantinha impecável. Depois bebeu pensativamente o vodca, batendo ao de leve com a beira do copo nos seus dentes brancos.
Era realmente um bonito homem: delgado, gracioso, movendo-se com agilidade, e com um sorriso oblíquo - mas isso podia fazer parte da representação. Havia nele algo de teatral, o que não diminuía o facto de ser atraente. Era, possivelmente, o homem mais bem-parecido que eu já vira, a não ser o meu
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irmão mais velho, tom, que bem podia ter sido esculpido numa moeda grega, com uma coroa de louros em volta da cabeça.
- Sei que é Al Georgio que está a tratar do caso da parte da Polícia.
- Conhece o detective Georgio? - perguntei.
- Trabalhámos juntos nalguns casos - retorquiu.
- Estou a detectar um ligeiro tom de hostilidade na sua voz - observei.
- Muito leve - replicou Smack com uma certa ironia -, mas é uma coisa que nada tem a ver com Al pessoalmente. Até simpatizo com ele, mas é da Polícia e eu sou dos seguros, e nem sempre vemos as coisas com os mesmos olhos.
- Não consigo compreender isso. Ambos desejam a mesma coisa, não é verdade? Apanhar o ladrão.
- Às vezes - respondeu ele. - Mas nem sempre. - Inclinou-se para a frente, com os braços apoiados nos joelhos, segurando o copo com as duas mãos. Muito sério, muito atento.
- Olhe, veja se percebe como as coisas se passam: um tipo qualquer rouba um quadro, que nós tínhamos segurado, por exemplo, por cem mil dólares. Os polícias começam a trabalhar, tentando descobrir quem foi o ladrão, e este, como já terá muita sorte se ganhar dez por cento daquele valor passando o quadro a um receptador, contacta-nos e faz um acordo connosco. Nós pagamos-lhe, digamos, uns vinte mil dólares e ele entrega-nos o quadro. O ladrão recebe o dobro do que obteria de um receptador e nós ficamos só sem vinte mil dólares, o que é muito melhor do que pagar os cem mil correspondentes ao valor do seguro do quadro.
Olheio-o, perplexa.
- Há quanto tempo se fazem essas coisas? Ele riu.
- Desde que se inventaram seguros. Na verdade, o ladrão não rouba um objecto de valor, rapta-o para pedir um resgate por ele. Os polícias detestam isso, porque quando nós pagamos, o tipo vai-se embora a assobiar alegremente.
- Compreendo que a Polícia não goste dessas transacções
- disse eu -, mas para as companhias de seguros representa muito dinheiro.
- Por isso aumentamos o preço das apólices - replicou, com um encolher de ombros.
- Acha que isso possa suceder com o Demaretion?
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- É possível.
-. Já alguém lhe telefonou, oferecendo-se para devolver a moeda?
- Ainda não. Bem, eu vim aqui para lhe fazer perguntas e afinal parece-me que é você que está a fazê-las.
Pergunte que eu respondo.
Smack sorriu.
- Não consigo lembrar-me de mais nada. Na Grandby disseran-me que lhe chamam Dunk.
- É verdade.
- Posso tratá-la assim?
- com certeza.
- Só se me chamar Jack. Creio que Jack Smack não é um nome muito bonito, mas estou habituado a ele. Espero que possamos trabalhar juntos nisto, Dunk. Sei que está com licença sem vencimento, o que eu acho absolutamente injusto e incorrecto, e deve querer ilibar-se o mais rapidamente possível. Por isso, talvez pondo os nossos dois grandes cérebros a trabalhar em conjunto possa voltar ao trabalho mais cedo do que julga.
Smack sorriu, e era difícil resistir àquele sorriso. Al Georgio também tinha encanto, mas Jack Smack mostrava consciência do seu encanto. Todas as mulheres com mais de quatro anos são capazes de perceber essa diferença, o que não significa que sejam capazes de resistir ao fascinador deliberado.
Jack Smack levantou-se para sair e parou por um momento: um efeito dramático.
- A propósito - disse. - Ninguém tirou a moeda do contentor selado. O próprio contentor é que foi mudado.
Depois de ele ter saído fiquei a pensar que encontrara dois homens altos e simpáticos no espaço de poucas horas - e que por isso o dia não fora totalmente perdido. Contudo, reconhecia furiosamente a minha própria estupidez em não ter visto que o contentor treze fora substituído por outro semelhante (mas sem a moeda), de facto a única maneira de o roubo poder ter sido cometido.
Dois investigadores masculinos, Georgio e Smack, tinham percebido isso imediatamente, e eu, testemunha e participante, havia dado voltas e mais voltas à minha pobre cabeça para imaginar como o roubo se dera. Sentia-me humilhada.
Sempre fui uma pessoa competitiva, creio que os jogos de basquetebol com os meus irmãos contribuíram para isso, e, de
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qualquer maneira, estava decidida a mostrar a Georgio e a Smack que não era apenas mais uma cara bonita, que tinha miolos. Não se tratava de feminismo nem nada disso, era uma coisa pessoal.
Raciocinei desta maneira:
Aceitava a teoria deles de que os contentores tinham sido substituídos, pois era a única maneira possível de roubar o Demaretion, mas a caixa vazia que mostrei a Hobie, no cofre, era absolutamente idêntica às que eu vira em casa de Havistock, o que significava que existiam pelo menos catorze caixas iguais, para ficar uma extra, vazia, selada pronta a substituir a que continha o Demaretion.
Precisava de me lembrar do nome do fabricante das caixas. O melhor homem da cidade para esse género de trabalho, dissera Havistock. O primeiro nome era Nate, disso lembrava-me eu, mas o apelido? Calesque? Colliski? Callico? - qualquer coisa assim. E trabalhava em Greenwich Village. Peguei na lista telefónica de Manhattan e na das páginas amarelas e comecei a procurar.
Levei cerca de um quarto de hora, mas encontrei-o: Nathaniel Colescui, carpintaria em Carmine Street. Vesti um casaco de camurça, pus uma mala ao ombro e saí. Percorri rapidamente a Rua Oitenta e Seis, a Broadway e entrei no metropolitano. Todas as pessoas baixas que iam na carruagem me olhavam, mas eu já estava habituada a isso.
Saí do metro em Houston Street e fui a pé até Carmine Street. A loja de Colescui não foi difícil de encontrar, ficava mesmo ao lado de um restaurante tipo pub que ostentava um letreiro com letras douradas na montra: "Fundado em 1984." Isso surpreendeu-me, pois quando um restaurante consegue durar dois anos em Manhattan, já é qualquer coisa.
A montra de Colescui não tinha qualquer letreiro desse género. Dizia apenas: "Carpintaria. Tudo por encomenda." Lá dentro cheirava agradavelmente a madeira recente serrada e havia uma leve poeira no ar. Uma mulher negra, de meia-idade, escrevia numa velha máquina. Trazia uma boina na cabeça e eu podia perceber porquê.
Quando eu entrei, parou de escrever e perguntou:
- Que deseja?
- Queria saber as condições para mandar fazer umas caixas para guardar moedas.
A mulher fez girar a cadeira e gritou lá para dentro:
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Nate! Uma cliente!
Ouvi o ruído da serra eléctrica diminuir e depois desaparecer. Em seguida apareceu um homenzinho muito baixo, vindo das traseiras, puxando uns óculos protectores para a cabeça calva. Usava um avental de cabedal por cima do que parecia um conservador fato de três peças, uma camisa branca e gravata. E todo ele, cabeça, sobrancelhas, fato, avental, sapatos,
tudo se encontrava coberto de serradura, como se alguém o
tivesse estado a polvilhar vigorosamente.
Não devia medir mais de metro e sessenta, de modo que olhou para mim, sorriu e disse:
Se nós dois tivéssemos um filho, devia ficar na altura
certa.
- Grande ideia - repliquei. - Quando quer começar?
- Oh, oh! - exclamou ele. - Uma senhora fresca. Eu gosto de senhoras assim. Ouviste isto, Clara? Perguntou-me quando queria eu começar.
- Ouvi - disse a dactilógrafa. Depois dirigiu-se a mim. Não lhe dê ouvidos. Aquilo é só língua.
Isso fez com que o homenzinho risse. A sua maneira de rir traduziu-se em bater as dentaduras, comprimir os lábios, fechar os olhos e sacudir-se, todo o seu corpo se agitava para cima e para baixo.
Quando a agitação sísmica desapareceu, perguntei:
- É Mister Colescui?
- O próprio, mas a senhora pode chamar-me Nate.
- Nate - repeti -, vinha saber se se encarregaria de fazer umas caixas para a minha colecção de moedas. Faz trabalhos desse género?
- Faço tudo - respondeu. - Caixas, mesas, estantes, cadeiras, molduras, seja o que for. De que tamanho as queria?
- Bem, estive uma destas noites em casa de uns amigos - comecei a dizer, sentindo-me um pouco envergonhada por estar a enganar daquela maneira um homem tão simpático - e vi uma colecção de moedas guardada em lindas caixas. Disseram que foi o senhor que as fez. Gostava de ter umas iguais.
- Oh, oh! - murmurou Colescui inclinando a cabeça para um lado. - E como se chama esse meu cliente?
- Havistock. Archibald Havistock.
Nate dirigiu-se para um ficheiro, abriu a gaveta de cima e começou a procurar.
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- Habley, Hammond, Harrison... Sim, aqui está: Havistock. - Retirou a ficha, abriu-a e começou a ler, segurando-a muito perto dos olhos. - Oh, sim, lembro-me agora, já foi há uns anos. Tratou-se de uma grande encomenda: a melhor teca, vidros temperados, forros de veludo, fechaduras de latão. Tudo do melhor. - Olhou-me de uma maneira simpática e acrescentou: - É caro.
- Quanto poderia custar? - perguntei.
- Mister Havistock pagou quatrocentos dólares por cada caixa, mas, como disse, isso foi há vários anos. Receio que hoje lhe custassem consideravelmente mais. Digamos uns seiscentos dólares por caixa. - Ele deve ter percebido o meu choque, porque acrescentou: - Claro que podia fazer o mesmo modelo em pinho, com umas ferragens de pior qualidade. Tirar uma coisa aqui e ali. Enfim, torná-las acessíveis.
- Mas não ficariam com o aspecto das de Mister Havistock.
- Não - respondeu ele com um sorriso compreensivo. Não ficariam.
- Bem - murmurei com um suspiro -, não fazia ideia que fossem tão caras.
Ele encolheu os ombros.
- Dão muito trabalho e é tudo material do melhor.
- Quantas caixas mandou Mister Havistock fazer? - perguntei casualmente.
Nate consultou novamente a ficha.
- Quinze.
- Oh! A minha pequena colecção não precisava de tantas. Bem, muito obrigado pela sua cooperação, Nate. Se decidir mandar fazer caixas voltarei a maçá-lo.
- Não é maçada nenhuma, é sempre um prazer conversar com uma senhora descontraída e simpática. Apareça sempre que queira.
Saí da loja e dirigi-me para Sheridan Square. O dia começara bonito, mas agora levantara-se vento e o azul do céu desaparecera atrás de nuvens cinzentas. Os transeuntes apressavam-se, muitos traziam sombrinhas fechadas. Foi uma coisa que sempre me espantou em Nova Iorque: o dia pode estar perfeitamente claro, depois aparecem nuvens, começa a chuviscar e toda a gente tem um chapéu-de-chuva - excepto eu.
Contudo, a possibilidade de ser surpreendida por um aguaceiro e manchar o meu casaco de camurça não me preocupava tanto como as quinze caixas mandadas fazer por Havistock.
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"Treze delas continham as moedas e isso deixava duas vazias, presumivelmente guardadas em sua casa.
Se faltasse uma dessas caixas, seria uma prova de que havia sido utilizada para substituir a que continha o Demaretion. Sentia-me muito satisfeita com os meus novos talentos de detective quando subitamente parei no meio do passeio, ao lembrar-me de que o ladrão podia muito bem ter tirado o Demaretion da caixa para a colocar junto da outra vazia. Assim continuariam a existir duas caixas excedentes e tudo pareceria certo.
Recomecei a andar em direcção ao metropolitano e lembrei-me de que se o ladrão tivesse feito isso a caixa poderia apresentar marcas dos adesivos e do lacre, a não ser que fosse suficientemente esperto para a mandar restaurar.
Principiava a aperceber-me da complexidade da tarefa dos detectives: todos os imponderáveis, os "se" e as possibilidades. Senti uma grande admiração por Jack Smack e por Al Georgio, mas cheguei à conclusão de que se eles conseguiam abrir caminho pelo emaranhado dos factos, fantasias e suposições, também eu seria capaz de o fazer, pelo que decidi prosseguir a minha carreira.
Vim a descobrir mais tarde que essa seria a mais importante jogada que eu jamais tentara.
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Al Georgio foi-me buscar no seu velho Plymouth azul, esperou até entrarmos no trânsito, em direcção ao apartamento dos Havistocks, e depois começou a falar.
- Que diabo julga que está a fazer? - perguntou severamente.
- O quê? - exclamei, sobressaltada.
- Porque foi ontem visitar Nate Colescui?
- Oh! - exclamei confusa. - Bem, queria saber quantas caixas para expor moedas tinha Archibald Havistock mandado fazer, porque a vazia era genuína. Se havia sido substituída... - a minha voz esmoreceu.
- Deixe o papel de detective para os profissionais, está bem? - replicou Al irritadamente. - Fui esta manhã a Carmine Street e descobri que Jack Smack e você já lá tinham ido. Colescui não percebe o que se passa. Já três pessoas o foram interrogar acerca das caixas que ele fez para Havistock.
- Desculpe - respondi humildemente. - Apenas queria saber donde tinha vindo a caixa extra.
- Ahh... eu não estou aborrecido consigo, o meu ego é que está a sofrer, porque você e Smack se lembraram disso antes de mim e foram lá primeiro. Não tem importância. Telefonei a Havistock. Sim, ele mandou fazer quinze caixas. Tinha duas a mais, guardadas num armário do quarto. Pedi-lhe que verificasse se ainda lá estavam. Ele foi ver e voltou dizendo que só lá havia agora uma caixa. Falta uma, a que foi trocada pela que continha o Demaretion.
Pensei um pouco no assunto.
- Isso iliba-me, não é verdade? - perguntei-lhe. - Eu não podia saber da existência dessas caixas, e, mesmo que soubesse,
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como havia de descobrir que estavam fechadas num armário do quarto de Havistock? Ele nunca falou nelas.
- você está fora de questão - concordou Al - e,
pelas mesmas razões, os homens da carrinha blindada também.
- Bem, então... quem fica envolvido?
A família - respondeu Al Georgio. - Como costumam
dizer na televisão, trata-se de um trabalho interno.
Atravessámos parte do Central Park em silêncio. Depois:
Lamento ter gritado consigo, Dunk - disse ele.
Não tem importância, Al - respondi. - Não queria de
facto meter-me no seu trabalho, estava apenas ansiosa por me ver ilibada.
com certeza, compreendo muito bem, mas não faça mais
investigações por sua conta. Alguém cometeu um crime e, não quero assustá-la, mas quando estamos a lidar com grandes quantias, como esta, tudo pode acontecer.
- Quer dizer que eu podia ficar em perigo?
- As pessoas fazem coisas terríveis quando se encontra em jogo muito dinheiro e muitos anos de prisão.
Não acreditei nele, mas enganava-me.
- Quando falarmos com essa gente - prosseguiu Al -, deixe-me ser eu a conduzir a conversa. Conta a sua história tão franca e pormenorizadamente quanto puder. Eu verei então como eles reagem e resolverei o que devo fazer.
- Farei como diz, Al - respondi.
Reunimo-nos na sala de estar do apartamento de Havistock, uma "caverna" que eu nunca vira, parecida com um mausoléu e decorada com veludo castanho. Tive de resistir ao impulso de olhar à minha volta para procurar um caixão e, se um órgão tivesse começado a tocar, eu não me surpreenderia.
à nossa espera estavam Archibald Havistock, a mulher, Mabel, a filha casada, Roberta Minchen, e o marido, Ross, Orson Vanwinkle e uma senhora que nos foi apresentada como sendo a advogada da família, Lenore Wolfgang. Era quase tão alta como eu, mas forte. Um verdadeiro jogador base, vestida com um saia-e-casaco preto de tecido de gabardina que parecia ter sido arrancado de um tronco de nogueira.
Todos apertámos as mãos, mostrámos os dentes e sentámo-nos nos horrorosos cadeirões de veludo e nas obesas cadeiras. Nada intimidado, o detective Georgio começou imediatamente a dirigir a entrevista, e admirei os seus modos sensatos e graves.
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- vou pedir a Miss Bateson - disse - que relate em pormenor, o melhor que se lembrar, o que exactamente se passou na manhã em que as moedas foram acondicionadas para seguirem para a Grandby. Por favor, não a interrompam. Quando ela terminar pedir-lhe-ei a si, Mister Havistock, e também a Mister Vanwinkle que digam se as vossas recordações diferem de maneira apreciável da narrativa dela. Miss Bateson, faça favor.
Comecei mais uma vez o meu recital, agora tão familiar como a Barbara Frietchie, que decorei no meu quinto ano: "Vinda dos campos, ricos de milho, na manhã clara e fresca de Setembro..." Enquanto falava, quase mecanicamente, ia passando em revista todos os rostos, fixando-me em Roberta Minchen e em seu marido, Ross.
Ela parecia-me um pudim de maçã, enfiada num vestido de chiffon florido, de gola subida, suficientemente solto para ocultar as gorduras. Um rosto corado com olhos salientes e lábios carnudos. Usava o cabelo cortado curto, o que era um erro, e parecia-me que pestanejava como um coelho, mas talvez isso fosse devido aos seus dentes incisivos, compridos e brilhantes.
O marido, Ross, era um desses jovens solenes, prematuramente calvos, que penteiam os cabelos ralos atravessados sobre o crânio. Assustadoramente pálido, tinha o aspecto de uma carpideira profissional, e fazia estalar constantemente os nós dos dedos, até que a mulher estendeu a mão para o deter. Enquanto explanava a minha narrativa, imaginei de repente aqueles dois na cama e quase perdi o fio ao discurso.
Quando acabei, olhei para Al Georgio.
- Muito obrigado, Miss Bateson - disse ele. - Fez uma descrição muito completa. - Voltou-se para Archibald Havistock. - Diga-me, senhor, lembra-se de se ter passado alguma coisa de modo diferente daquele que Miss Bateson contou?
Havistock olhou-me inexpressivamente, com o pesado queixo erguido.
- Não - declarou decididamente -, Miss Bateson fez um relato muito preciso.
- Mister Vanwinkle? - perguntou o detective. - Algumas alterações ou adições?
- Não, não creio - respondeu o secretário, com um gesto lânguido. - Sucedeu tudo exactamente como ela disse.
Al Georgio tirou a sua agenda do bolso, uma esferográfica e tomou algumas notas. Pareceu impressionar toda a gente -
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menos a mim. Depois recostou-se para trás, cruzou as pernas e respirou fundo.
Bem - disse -, chegámos agora ao ponto em que Miss
Bateson e Mister Vanwinkle saem da biblioteca e deixam os contentores selados para irem chamar os guardas, que se encontravam junto da porta, a fim de estes os virem buscar. Correcto?
Sim - respondi. - Foi assim.
Indicaram-lhes onde eles deviam ir e desceram ambos
para assistir à entrada dos contentores na viatura?
- Não foi exactamente isso que se passou - respondeu Vanwinkle. - Miss Bateson ficou na escada e eu conduzi os dois guardas armados à biblioteca.
- Sim? E quando entrou na biblioteca o seu tio ainda lá estava?
A advogada, Lenore Wolfgang, falou então:
- Qual é o propósito deste interrogatório? - quis saber. Georgio olhou-a friamente.
- O propósito deste interrogatório é saber quem roubou o Demaretion. Mister Vanwinkle, quando acompanhou os dois guardas à biblioteca o seu tio ainda lá estava? - insistiu.
- Bem, não - retorquiu o secretário. - Não o vi lá. O detective voltou-se para Havistock.
- É assim?
- Sim, sim - replicou este, um tanto nervosamente. A família encontrava-se toda reunida aqui, por isso eu vim saber como estavam.
- Era o dia dos meus anos -, informou Mistress Havistock -, por isso preparávamo-nos para fazer uma pequena festa.
- Por outras palavras - continuou Georgio -, não se achava ninguém na biblioteca quando o senhor lá entrou com os guardas para irem buscar os contentores. Certo?
Olhou para todos. Ninguém respondeu. '
- Mister Havistock, quanto tempo esteve afastado da biblioteca?
- Um minuto ou dois. Não podia ter sido mais.
- Mister Vanwinkle, desde o momento em que saiu da biblioteca e regressou com os guardas, quanto tempo se terá passado?
- Não pode ter sido mais de dois minutos. Depois o meu tio voltou, ficou a dirigir o carregamento dos contentores no carrinho e eu fui ter com Miss Bateson, que me esperava no corredor.
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Em seguida descemos ambos para a rua, a fim de vigiarmos a entrada dos contentores na viatura blindada.
Georgio tomava notas. Depois levantou os olhos da agenda.
- Resumindo: os contentores com as moedas ficaram abandonados na biblioteca por um espaço de tempo de mais ou menos dois minutos.
- Lamento dizer - declarou Havistock com a sua voz forte - que tem razão. A culpa foi minha. Nunca devia ter saído da biblioteca.
O detective ignorou essas palavras.
- Quando entrou na sala quem estava presente? Havistock franziu a testa.
- é difícil lembrar-me. As pessoas andavam de um lado para o outro e algumas iam à cozinha provar aquilo que o fornecedor trouxera.
- O fornecedor? - perguntou Georgio, alerta. - Quando chegou esse fornecedor?
- Oh! Isso foi pelo menos duas horas antes - informou Mistress Havistock. - Tudo pratos frios. Os homens que fizeram a entrega já se tinham ido embora muito antes de Miss Bateson chegar e começarem a acondicionar as caixas.
- Bem, ponhamo-los de parte - disse Georgio. - Vamos então saber quem se encontrava aqui quando Mister Havistock saiu da biblioteca. Estava aqui, Mistress Havistock?
- Sim - declarou firmemente. Depois hesitou. - Creio que sim. Fui algumas vezes à cozinha ver o que Ruby fazia.
- Mistress Minchen encontrava-se aqui?
- Sim - respondeu ela com uma voz inesperadamente fresca, de rapariga -, sentada exactamente onde estou agora.
- Bem, não era exactamente aí, querida - emendou o marido. - Sentámo-nos ambos no sofá cor de chocolate. Lembras-te?
- E onde estava a jovem Miss Havistock quando Mister Havistock entrou na sala?
- Aqui mesmo - respondeu este último.
- E o seu filho e a sua nora?
Todos olharam uns para os outros, sem responderem.
- Ouça - disse irritadamente Havistock - já lhe disse que as pessoas se haviam espalhado, que iam à cozinha, que preparavam bebidas. Faço objecções à forma como conduz o interrogatório. Parece querer insinuar que um membro da minha família roubou o Demaretion.
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Al Georgio fechou o seu bloco de apontamentos com uma pancada seca, que sobressaltou toda a gente. Depois fitou-os.
Os guardas da carrinha não podem tê-lo feito - explicou,
dirigindo-se a Havistock - e, Miss Bateson também não. De quem quer que suspeite? Do homem na Lua?
Isso não me agrada - disse Lenore Wolfgang.
Paciência - ripostou o detective, levantando-se. - Isto é
apenas o começo. Voltarei.
Encaminhou-se para a porta, depois voltou-se subitamente e fitou Havistock.
- Quem tinha conhecimento da existência das duas caixas vazias que guardava no armário do seu quarto? - perguntou.
Pela primeira vez, Havistock pareceu perturbado, mal conseguia falar.
- Bem... - murmurou quase gaguejando -, suponho que toda a gente... toda a família.
Georgio disse que sim com a cabeça, com ar sombrio e saiu. Eu levantei-me apressadamente e segui atrás dele. Quando estávamos novamente no carro, Georgio perguntou:
- Quer ir almoçar, Dunk? Um hamburger?
- Óptimo - respondi. - Eu pago o meu.
- Está bem - exclamou jovialmente. - Conheço um bom lugar, no Lex. Fazem hamburgers britânicos, com bacon.
Foi isso que nós comemos sentados numa minúscula mesa para dois, junto da parede: hamburgers com batatas fritas e chá em copos.
- Creio que correu bem - disse Al. - Dei-lhes uma sacudidela e fi-los olharem uns para os outros. Devem estar a começar a pensar: "Quem terá sido?"
- Orson Vanwinkle - declarei eu.
- Porque diz isso?
- Não gosto dele.
Al soltou uma tal gargalhada que quase se engasgou com um pedaço de bacon.
- Linda coisa. Se eu dissesse isto ao procurador distrital ele dava-me um pontapé e atirava-me da janela a baixo. Porque não gosta de Vanwinkle?
- é uma personagem sinuosa.
- Mas como pode ter sido ele? Nunca ficou sozinho com os contentores selados.
- Mas foi, e hei-de descobrir como.
- Mas quem diabo é você? Nancy Drew? - Depois,
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subitamente, surpreendendo-me: - Que diz a jantarmos juntos esta noite?
- Você é casado, Al? - perguntei, fitando-o.
- Divorciado. Quase há dois anos.
- Tem filhos?
- Uma rapariga, Sally. Quer ver o retrato dela?
- com certeza.
Tirou a carteira do bolso e mostrou-me uma fotografia protegida por um plástico.
- É muito bonita - disse eu, e era verdade.
- Não é? - respondeu ele, olhando demoradamente para a fotografia. - Vai dilacerar muitos corações.
- Que idade tem?
- Quase doze.
- Vê-a muitas vezes?
- Não tantas como gostaria - respondeu tristemente. Tenho direito a duas semanas por mês, mas a minha profissão. .. Por isso é que a minha mulher se divorciou de mim. Não é fácil ser casada com um polícia, o trabalho está sempre em primeiro lugar.
- Está bem, Al - respondi. - Jantarei consigo esta noite. Preciso de me vestir a rigor?
Ele riu.
- Está a brincar? Olhe para mim, acha que sou homem para essas coisas? O sítio onde a vou levar não é elegante, mas tem as melhores ostras de Nova Iorque.
Por isso vesti o meu uniforme habitual: jeans, camisola preta de gola alta, casaco de camurça e boina. Al disse que eu parecia uma guerrilheira da América Central, e que, para tanto, só me faltava uma arma à bandoleira. Ele vestia, como sempre, um fato amarrotado. Nunca tinha conhecido um homem tão desprovido de vaidade, mas achava-o afectuoso.
Al levou-me a um restaurante modesto na Pequena Itália e assim que chegaram até mim os odores deliciosos dos cozinhados compreendi que estava em casa. Logo que entrámos, o proprietário veio a correr abraçar Al e os dois conversaram em italiano. Em seguida o homem, que tinha um bigode branco farfalhudo suficiente para encher uma almofada, voltou a sua atenção para mim.
Beijou-me as pontas dos dedos e recomeçou a falar, mas só consegui perceber duas palavras: bella e bellissima!
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Ele diz - traduziu Al - que se você estiver disposta a
fugir com ele, abandona a mulher, seis filhos e onze netos.
- Diga-lhe que antes de comer não - respondi.
Al transmitiu as minhas palavras, e o velhote deu uma palmada na coxa e retorceu as pontas do bigode para cima, fazendo rolar os olhos. Quarenta anos antes devia ser o terror das
damas.
Finalmente, sentámo-nos e antes de pedirmos alguma coisa o proprietário trouxe-nos dois copos de vinho tinto.
É feito em casa, na cave. Muito bom.
Era de facto, tão macio e aveludado que eu seria capaz de ficar a beber a noite inteira.
- Como descobriu esta maravilha? - perguntei.
- Nasci a dois quarteirões de distância daqui, e este pequeno restaurante já existia, com o mesmo vinho e a mesma ementa. Alguns dos criados ainda são os mesmos. Nada mudou e espero que isso não venha a acontecer.
Tivemos uma refeição memorável: uma grande terrina com caldeirada de marisco, incluindo camarões, amêijoas, pedaços de caranguejo e de lagosta (era capaz de encher uma banheira com aquele molho e de me rebolar nele); salada, fresca, estaladiça, também especial; e depois, cappuccino com tortoni. Al ensinou-me até a deitar uma colher de gelado em cima do café. Delicioso!
O proprietário trouxe-nos então dois copinhos de Strega e, a verdade é que, depois de beber um golo, senti-me capaz de me mudar para ali e nunca mais me ir embora. Revelei a Al quanto gostara do jantar e ele limitou-se a dizer que sim com a cabeça, com ar ausente.
- Ouça, Dunk - perguntou de repente -, encontrou-se com Natalie Havistock, não é verdade?
- com Nettie? Sim, saí com ela uma vez.
- Que impressão lhe causou?
- Bem, é a hippy da família. Não se parece nada com os outros, mas gosto dela.
- Entendem-se bem as duas?
- Sim. Ela foi um dia à Grandby para ver como era organizado o leilão da colecção do pai e depois fomos comer uma pizza juntas.
- Humm - mumurou Al olhando para um ponto acima da minha cabeça. - Devo dizer-lhe que Nettie anda com más companhias, um bando em que alguns se metem na droga e
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outros andam armados. Temos uma unidade especial, na Polícia, para tratar desses casos e esperamos apanhá-los antes deles fazerem algo de absurdo, como fazer ir pelos ares a Estátua da Liberdade...
- A Nettie? - murmurei abanando a cabeça. - Não posso crer.
- Oh, sim. Ela e os amigos são um bando de marginais.
- Acha que podem ter roubado o Demaretion?
- Possivelmente, mas duvido. Não é o género deles, preferem assaltar bancos ou carros blindados - uma coisa em que possam usar máscaras e empunhar pistolas-metralhadoras. Que diz a telefonar a Nettie e combinar um encontro com ela?
- Para quê?
- Para tentar saber coisas por seu intermédio. Ela é uma reminiscência dos anos sessenta e eu um polícia - portanto, para ela, sou um porco. Mas você diz que Nettie se mostrou simpática para consigo e talvez lhe conte coisas da família, a respeito de conflitos e outras coisas. Numa família daquele tamanho tem de haver invejas e ressentimentos e eu gostaria de os conhecer.
Olhei-o, tentando sorrir.
- E eu que pensava que você me tinha convidado por gostar da minha companhia.
Al inclinou-se para a frente.
- E é verdade, Dunk, foi exactamente por isso. Se não quer falar com Nettie diga-me e não se pensa mais nisso.
- Bem, você avisou-me, o trabalho está sempre em primeiro lugar. Está bem, tentarei falar com Nettie, mas só porque estou tão curiosa e ansiosa por ver este caso resolvido como você.
- Óptimo. Tente falar-lhe amanhã, se puder.
- E que fará você?
- Tenho uma entrevista com Luther e Vanessa Havistock.
- Se eu lhe disser o que souber de Nettie conta-me o que se passar com Luther e Vanessa?
Ele estendeu-me a sua mão grande e forte.
- Está combinado. - Apertámos as mãos e Al continuou: Tenho uns relatórios a escrever esta noite, por isso é melhor levá-la a casa, Dunk. Estava a ser honesto quando disse que a tinha convidado apenas pelo prazer da sua companhia. Acredita nisso, não acredita?
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- Acho que sim.
Podemos voltar a jantar juntos, ou a almoçar?
com certeza. Eu sou uma alma benevolente. Continue a
alimentar-me assim e nada lhe recusarei.
O sorriso encantador apareceu outra vez.
E aposto que não engordou um grama. Eu invejo
pessoas assim. Olhe para o meu estômago. Não é desgostante?
Georgio parou o carro em frente do prédio onde eu vivia e ficámos ali sentados uns minutos, falando a respeito dos Havistocks.
Por enquanto aquilo é uma confusão, mas daqui a alguns
dias creio que poderei pôr de lado alguns suspeitos e as coisas tornar-se-ão mais simples.
Olhei para ele na obscuridade.
- Porque faz tudo isto, Al?
- Porque é a minha obrigação - respondeu, admirado.
- Bem sei, mas acho que é mais do que isso. É quase uma cruzada, para si.
Al encolheu os ombros.
- Apenas não gosto de "espertinhos" que pensam que podem fazer tudo o que querem mesmo até roubar uma moeda antiga. Detesto pessoas assim, gente que passa por cima dos outros e que julga que as leis não foram feitas para eles.
- E sente prazer em metê-los atrás das grades?
- Não direi prazer, mas sim satisfação. é o que me parece certo.
- Você é um homem muito, muito profundo - observei.
- Não, nada disso, sou apenas um polícia seboso. Falará com Nettie amanhã?
Suspirei.
- Sim, falarei amanhã com Nettie. Obrigada pelo maravilhoso jantar.
Inclinei-me para a frente e beijei-o na face.
Creio que ficou chocado, mas recompôs-se rapidamente.
- Obrigado - disse. - Você é uma rapariga encantadora, Dunk.
Fiquei no passeio até ele se afastar e ambos dissemos adeus. Voltava-me para entrar na porta do meu prédio quando vi um homem sair da sombra. Respirei fundo e abri a boca, preparada Para gritar.
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- Olá - disse Jack Smack. - Passou uma noite agradável?
- Patife! - exclamei irritadamente. - Pregou-me um enorme susto.
- Sim? - perguntou, sorrindo. - Veja o que eu arranjei, uma gloriosa garrafa de vodca. Para si. Que diz a convidar-me para uma bebida?
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Jack Smack estava sentado no meu sofá, de pernas cruzadas e com um braço estendido por cima do encosto. Nessa noite usava um fato de macia flanela cinzenta, uma camisa cinzenta mais clara e um lenço ao pescoço. Os sapatos, leves, tinham um brilho intenso. Era, na verdade, um homem extremamente elegante.
- Onde compra as suas roupas? - perguntei.
- Em lojas económicas - respondeu ele com uma gargalhada trocista.
Bebia um vodca duplo com gelo, mas eu, depois daquele jantar, decidira tomar apenas uma chávena de café forte. Não tinha medo dele, mas causava-me uma certa desconfiança, e como não sabia bem o que queria, não me atrevia a falar-lhe com o cérebro pouco lúcido.
- Não creio - disse Smack com um sorriso lento - que me conte o que Al Georgio lhe disse esta noite a respeito dos Havistocks.
- Tem razão. Não lhe contarei.
Jack descruzou as pernas e inclinou-se para a frente, subitamente sério e atento.
- Fico satisfeito por ouvir isso, Dunk - declarou solenemente. - Estou contente por saber que você é discreta. Posso confiar em que também nada dirá a Georgio do que eu lhe contar?
- Claro que sim, mas acho que isso é um disparate. Vocês dois deviam trabalhar em conjunto, trocar informações e tudo o mais.
- Pois é, mas nem sempre as coisas podem ser assim. Por vezes é melhor cada um investigar sozinho. A minha companhia recebeu hoje uma carta anónima, dactilografada em papel
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barato, com carimbo dos correios de Manhattan. Quem a escreveu quer saber se estamos interessados em comprar o Demaretion.
Sentei-me direita, atenta.
- Meu Deus, Jack, acha que isso é verdade? Ele encolheu os ombros.
- Parece ser. Mandámos examinar a carta ao laboratório com que habitualmente trabalhamos. A máquina é uma Olympia Standard e não há impressões digitais. Eles pensam que tenha sido escrita por um homem.
- Como sabem isso?
- Pelas frases, pelo ordenamento das palavras.
- Quanto pedem pelo Demaretion?
- Não dizem. Só perguntam se estamos interessados em comprar.
- E, se estiverem, como entram em contacto com quem escreveu a carta.
- Parece uma história de capa e espada. Nós ocupamos o nono andar de um edifício da Terceira Avenida. Se estivermos interessados em comprar, devemos, num dia qualquer de trabalho da próxima semana, fechar todos os estores da casa, e quando a pessoa que escreveu a carta os vir assim envia-nos outra carta dizendo o preço.
- Vão fazer isso?
- Não sei. O caso está a ser debatido pelos chefes. Pode ser aldrabice, claro, uma colossal vigarice. Por isso vou continuar as minhas investigações.
- E como vão elas?
- Assim, assim, vou andando. Um bocadinho aqui, outro pedacinho ali. O irmão da governanta-, Ruby Querita, está preso por posse de droga, o que pode significar alguma coisa. A filha mais nova do casal, Nettie, anda metida com um bando de marginais, o que também nos pode levar a Qualquer sítio. Arvorou o seu sorriso encantador. - E eu sei que você descobriu que Havistock tinha duas caixas a mais, iguais às que foram usadas para guardar a colecção.
Disse que sím com a cabeça, imaginando que Nate Colescui lhe falara da minha visita.
Subitamente ficou sério e sincero outra vez.
- Foi uma boa ideia, Dunk. Antecipou-se a mim e a Al Georgio.
As suas rápidas mudanças de humor, passando do ar brincalhão
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e despreocupado para o solene, desconcertavam-me um pouco. Pensei se ele o faria deliberadamente para me confundir e queria provar-lhe que não estava a conseguir.
- Há alguma máquina de escrever no apartamento dos Havistocks? - perguntei.
Você é esperta, menina - disse Smack com um sorriso
frio. - A sua mãe não a educou para ser uma idiota. Sim, existe uma máquina em casa deles, mas é uma IBM Selectric, não é uma Olympia. Vanwinkle serve-se dela para a correspondência. Por isso a carta que recebemos deve ter sido escrita em qualquer outro sítio, o que é fácil. Há hotéis na cidade onde se pode alugar uma máquina de escrever à hora.
Vi que o copo dele estava quase vazio e peguei-lhe. Depois fui à cozinha, voltei a enchê-lo com cubos de gelo e deitei-lhes por cima uma boa porção de vodca. Se ele tentava confundir-me com as suas súbitas mudanças de humor, eu também podia fazer o meu jogo - dar-lhe de beber de modo a que falasse mais do que queria.
- Jack - perguntei, entregando-lhe a bomba -, quando é encarregado de uma investigação como esta, por onde começa?
- Pelo motivo - replicou prontamente. - Alguém precisa de dinheiro, certo? Então rouba qualquer coisa de valor.
Abanei a cabeça.
- Não é necessariamente assim, pelo menos quando se trata de moedas antigas, quadros ou documentos raros. Por vezes não são roubados pelo dinheiro, mas sim porque o ladrão quer possuí-los. É o instinto do coleccionador, ter um objecto de grande raridade e beleza. Não quer lucros à custa dele, deseja apenas olhá-lo, devorá-lo com os olhos e pensar: Meu, meu, meu!
- Pensa que foi isso que sucedeu com o Demaretion?
- É possível. Um coleccionador particular pode ter contratado um ladrão, pagando-lhe uma certa quantia. Depois a moeda desaparece. Que se pode fazer com ela? É tão rara que nenhum negociante de moedas poderá transaccioná-la sem saber donde vem e de que maneira o vendedor entrou na posse dela.
Smack olhou-me pensativamente.
- é um aspecto em que eu não tinha ainda pensado: um ladrão contratado por um coleccionador particular desejoso de possuir a moeda. Contudo, a carta anónima que recebemos destrói essa teoria, não é verdade?
- Nem por isso. Imaginemos que um rico coleccionador
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paga a um profissional dez mil dólares para roubar o Demaretion. O ladrão consegue furtar a moeda, mas apercebe-se depois do seu verdadeiro valor e diz para consigo: "Por que razão corri tantos riscos para ganhar esta ninharia se posso receber cinco ou dez vezes mais da Companhia de Seguros?" Atraiçoa então o coleccionador que o contratou e entra em contacto com vocês.
- Dunk! - exclamou Smack com admiração -, tem um cérebro sinuoso e eu gosto disso. Espero que possamos trabalhar juntos nisto. Preciso da sua ajuda, dos seus conhecimentos.
- E que ganho eu com o negócio? - perguntei ousadamente.
- Quanto mais cedo se esclarecer o caso, mais cedo voltará à Grandby, talvez com um bom aumento por ter ajudado. Isso não seria suficiente para si?
Pensei durante um momento. Depois respondi:
- Sim, seria.
- Então podemos trabalhar juntos? Fiz um gesto de assentimento.
- A primeira coisa que gostaria que me arranjasse - disse Smack - era uma lista de negociantes de moedas do mundo inteiro. Queremos escrever-lhes a pedir-lhes que estejam alerta se alguém tentar vender-lhes um Demaretion. Pode arranjar isso?
- com certeza - respondi. - Não há qualquer problema. Posso emprestar-lhe a mais recente lista da associação.
- Óptimo - disse ele, mas depois hesitou um momento. Gostaria que fizesse mais uma coisa, se estiver disposta a isso, claro.
- O quê?
- Encontrar-se particularmente com Orson Vanwinkle: uma conversa, almoço, jantar, qualquer coisa.
- Porquê com ele?
Jack Smack recostou-se para trás, de testa franzida.
- Não sei bem, mas há qualquer coisa naquele homem que não me agrada.
- Concordo. Também não gosto dele.
- Não vejo como possa ter sido possível ele roubar a moeda, mas o tipo causa-me má impressão. Há algo nele que soa a falso, a fraude.
- Não posso telefonar-lhe a convidá-lo para almoçar...
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Bem sei - replicou Jack Smack -, mas talvez consiga
descortinar alguma coisa. Você é uma mulher esperta, descubra a maneira de lhe falar particularmente. Ele mostrou-se interessado por si?
Talvez - admiti -, mas pode ser que trate todas as mulheres assim.
- Bem, pense nisso - repetiu. - Se resolver ir com ele a algum sítio, telefone-me para combinarmos o que havemos de tentar saber. - Depois, de repente: - Gostaria que eu passasse aqui a noite?
Olhei-o com severidade.
- Não, não gostaria.
- Pronto - respondeu calmamente. - Se não perguntasse não sabia, não é verdade? Tem alguma pessoa, Dunk?
- Tenho várias - respondi mentindo descaradamente.
- Gostava que me acrescentasse à sua lista - pediu ele. Sou solteiro, tenho um Jaguar e sei fazer bifes Wellington. Sorriu outra vez daquela maneira que me fazia tremer os joelhos. Oh, Deus, era tão simpático! - Isto nada tem a ver com o nosso acordo, Dunk, é entre mim e si.
- Oh, com certeza - respondi.
Smack acabou de beber o vodca e levantou-se, sem dar mostras de aborrecimento. O meu plano não tivera êxito. Quereria que ele se fosse embora? Quereria que ficasse? Se Jack pretendia confundir-me, estava a consegui-lo bem.
- vou buscar a sua garrafa - disse-lhe.
- Oh, não, é para si. Talvez volte a convidar-me para tomar uma bebida.
- Quando quiser - respondi. Era eu a falar?
À porta voltou-se e beijou-me nos lábios. Foi agradável.
- Vá-se embora - disse eu, ofegante.
- com certeza - respondeu Jack, fitando-me nos olhos. Não se esqueça do Vanwinkle. Creio que há qualquer coisa ali.
Depois saiu. Fechei a porta à chave, tranquei-a e pus a corrente. Estava ainda abalada pelo beijo. O porco! O encantador porco!
Enquanto me despia lentamente pensava em todos os acontecimentos daquele dia tão cheio: a reunião em casa dos Havistocks, o almoço e o jantar com Al Georgio na Pequena Itália e, finalmente, a visita de Jack Smack.
Dei por mim a sorrir. é que vivera até então uma existência tão plácida que não me apercebera de como estivera solitária e
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aborrecida. Agora começava a conhecer pessoas diferentes, a ficar envolvida com paixões fortes - e gostava disso. Subitamente, a minha vida parecia ter-se aberto, cheia de emoções que nunca sentira antes. Supunha que era o processo normal de aprender, mas, naquela altura, parecia-me uma verdadeira revelação - como provar caviar pela primeira vez.
Antes de ir para a cama bebi um bocadinho do vodca de Jack com sumo de toranja. Era mesmo o que eu precisava, porque mais tarde, quente e aconchegada, à espera de adormecer, pensei, sorrindo, que com dois homens altos e bem-parecidos interessados por mim, "ela", a "pequena" Mary Lou Bateson, de Dês Moines, estava a sair-se muito bem.
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Essa manhã com Nettie Havistock constituiu uma das mais desconcertantes experiências de toda a minha vida. Quando, finalmente, consegui estabelecer a ligação (o seu número particular no apartamento dos Havistocks esteve interrompido durante mais de uma hora), ela disse-me que gostaria de conversar comigo e sugeriu que nos encontrássemos junto do balcão dos tecidos da Saks, para fazermos umas compras juntas antes do almoço.
Apareceu vestida de uma maneira que me fez esbugalhar os olhos: ténis velhos, pesadas perneiras tricotadas por cima das calças de ganga desbotadas, uma T-shirt onde se via escrito "escorregadia quando húmida", e por cima um casaco de ganga enfeitado com medalhas militares ornadas de fitas. Na cabeça trazia um boné de homem, manchado de suor, colocado por cima dos caracóis louros. Usava ao ombro uma mala de cabedal com franjas e enfeitada com contas e conchas.
- Olá querida - disse ela quando me viu, ignorando o meu olhar assombrado. - Não quero comprar nada de especial. Apenas ver o que há de novo.
Fui, portanto, atrás dela. Percorremos demoradamente todo o andar principal da Saks e levei uns cinco minutos para perceber que ela estava a roubar. Coisas pequenas, sabonetes importados, lenços de seda, uma gravata de homem, uma corrente com banho de ouro. Fazia aquilo com tanta prática e naturalidade que eu bem vi que era costume antigo. Metia as coisas, pela cintura, para dentro das calças largas ou na grande mala que levava ao ombro, sempre sorrindo, caminhando e conversando comigo...
Sentia-me aterrorizada, apetecia-me virar costas e fugir, não podia acreditar no que via. Sabia que ela poderia comprar com
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toda a facilidade aquilo que estava a roubar. Cleptomania? Era essa a defesa legal? Olhava nervosamente à minha volta, certa de que, a qualquer momento, seríamos vistas pelos detectives da loja e apanhadas.
- Já chega - declarou alegremente Nettie. - Vamos arranjar qualquer coisa para comer.
Fomos a pé até Madison. Nettie tagarelava incansavelmente, mas eu não a ouvia. Debatia comigo própria se devia falar-lhe ou não no seu comportamento criminoso, em qual devia ser a minha reacção e em que grau isso afectaria as minhas relações com ela e o inquérito que desejava fazer sobre o roubo do Demaretion.
- Aquelas coisas que eu tirei - perguntou com um sorriso descarado. - Quer algumas?
- Não obrigada - respondi apressadamente.
- Não preciso daquilo para nada - disse ela. - É apenas um jogo. Deito sempre tudo fora.
- E se for apanhada?
- O meu pai paga para eu sair - declarou confiantemente.
- Fá-lo sempre.
Tive pena de Archibald Havistock, esse homem completo. Os seus modos sólidos ocultavam o que deviam ser graves problemas familiares.
Almoçámos num pequeno restaurante, apinhado, em Madison Avenue, depois de termos aberto caminho pelo emaranhado de pequenas mesas. Finalmente, arranjámos lugar perto das portas da cozinha, por onde as criadas entravam e saíam apressadamente.
- É uma casa nova - disse Natalie Havistock olhando à sua volta - mas não passa duma espelunca.
Aquele comentário fez-me sentir mal, mas não me atrevi a perguntar o que queria ela dizer com aquilo. Pedimos, finalmente, salada de galinha e chá gelado, e enquanto esperávamos Nettie tirou um cigarro amarrotado do fundo do saco.
- é o meu primeiro, hoje - disse estendendo-mo para eu ver. - Quer um?
- Creio que não - respondi.
- É bom.
- Nettie, sabe o que está a fazer?
- Não - respondeu ela alegremente. - E você, sabe?
- Não sei bem, confesso.
- Então já vê...
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Acendeu o seu cigarro, de fabrico caseiro, e quando o cheiro dele me chegou às narinas receei que alguém protestasse. Ninguém o fez.
Nettie, lamento imensamente ter desaparecido aquela
moeda ao seu pai.
Ele tem dinheiro para comprar outra... além disso receberá do seguro, não é verdade?
Suponho que sim, mas a moeda está segura por uma
quantia muito inferior ao seu valor actual. Devia estar por muito, muito mais.
Então não é grande negócio. A Polícia pensa que foi algum de nós que a roubou, não é isso?
Disse que sim com a cabeça.
- Eu não fui - declarou ela. - Que faria eu com essa estúpida moeda?
Não a podia compreender. Momentos antes não mostrava qualquer remorso por roubar os artigos nas lojas e logo a seguir encolhia os ombros por terem roubado a moeda ao pai. com quem estaria ela revoltada? com a família? com a sociedade? Consigo mesma?
Pouco depois chegou a nossa comida e Nettie entregou à criada o que restava do cigarro.
- Uma pequena passa para si, amor - disse sorrindo. A criada pegou na beata, cheirou-a e replicou:
- Obrigada, querida. É disto mesmo que eu preciso. Aquilo nunca poderia suceder em Dês Moines. Ou poderia? Olhei para a criada, enquanto comíamos as nossas saladas.
Era uma rapariga magra (vinte e dois, vinte e quatro anos), cheia de aparente energia, movimentos rápidos e ágeis, mas tive a impressão de que se tratava de uma pessoa infeliz, de que existia nela um profundo desespero oculto pelo sorriso alegre e pelos modos desembaraçados. Havia nos olhos dela uma tristeza que a maquilhagem não podia encobrir.
- Ruby Querita? - perguntei. - Poderia ter sido ela?
- Ruby? Nem pensar. O irmão é um drogado, mas ela é uma óptima pessoa. Trabalha como danada para manter o filho na escola particular, pois ele é um mago nas matemáticas.
- Então quem?
Nettie encolheu os ombros.
- Ross Minchen, o meu cunhado, é um parvo. Não consigo imaginá-lo a roubar mais do que um cinzeiro do McDonald, e Roberta é tão horrorosa como ele.
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- Certamente não foi a sua mãe. Nettie riu.
- Não esteja tão certa disso e não se deixe enganar pelo cabelo azul; é uma mulher muito dura. Mas porque havia de roubar a moeda? Segundo ouvi dizer, quase tudo o que o meu pai possui está em nome dela.
Lembrei-me que sabia muito pouco sobre a origem da fortuna dos Havistocks.
- O seu pai está reformado?
- Mais ou menos. Ele era dono de uma fábrica de têxteis, mas depois vendeu-a a uma empresa maior. Contudo, ainda ganha como consultor, e Luther trabalha para eles, isso faz parte do acordo.
- E Luther? Acha que poderia ser ele?
Nettie parou, com o garfo a meio caminho da boca.
- é possível - respondeu pensativamente.
- Nunca vi o seu irmão.
- Luther tem problemas, sobretudo com a mulher. Vanessa é uma víbora, gasta mais do que ele ganha, dá cabo dele.
- Vejo que não a suporta.
- Vê correctamente, Dunk. É uma verdadeira cabra.
- Poderia ter sido Vanessa a roubar a moeda?
- Não seria nada de impossível, pois adora dinheiro, mas nunca o faria ela própria; arranjaria um homem que o fizesse. Tem olhos para tudo que use calças, sobretudo se os donos dessas calças possuírem uma carteira bem recheada. Estava a atirar-se de tal maneira a Ross Minchen que, por fim, o meu pai teve de intervir para que ela o deixasse em paz. É uma coisa engraçada o que se passa com Vanessa: gosta de agitar os homens, isso dá-lhe uma sensação de poder, creio.
- é atraente?
- Como uma cobra. Sim, suponho que se possa considerar atraente. Eu não acho, mas os homens olham para ela e desabotoam as braguilhas.
Soltei uma gargalhada.
- E Orson Vanwinkle também o fez?
Nettie acabou de beber o chá gelado antes de responder.
- Orson é um cobardolas. Julga-se uma grande coisa, é vaidoso e atiradiço, mas não passa de um cobarde. Uma vez provocou-me, a sério, fisicamente, mas dei-lhe um pontapé nas bolas e o caso terminou aí. Sabe, ele é o equivalente feminino de Vanessa. Creio que são dois fura-vidas.
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Pensa que haja alguma coisa entre eles?
Duvido. Tenho-os visto juntos muitas vezes e nunca
notei coisa alguma. Creio que desconfiam um do outro, porque são da mesma espécie. Um casal de cretinos. Bem... - observou, afastando o prato e recostando-se -, gostou da minha análise dos Havistocks? Uma família normal, bem adaptada, da classe média, certo?
Nettie - repliquei, sentindo-me culpada -, não quero
realmente meter-me nos problemas dos seus, mas gostaria de ver o caso esclarecido para voltar o mais depressa possível ao meu trabalho.
- com certeza, queridinha, compreendo muito bem.
- Se tivesse de indicar uma pessoa da família como o principal suspeito, quem escolheria?
Nettie pensou durante uns momentos, enquanto tentava retirar um pedaço de galinha que lhe ficara preso num dente.
- Orson Vanwinkle - disse finalmente. - Ou o meu irmão Luther.
- Por que razão?
- Porque estão ambos desesperados por dinheiro. Depois a criada trouxe a conta.
- Obrigada pela beata, querida. Fez-me bem. Natalie Havistock agarrou no papel.
- Vá-se embora - disse-me. - Espere-me na rua. Eu vou ter consigo.
- Mas eu quero pagar a minha parte - respondi, remexendo na carteira.
- Esqueça isso - insistiu ela. - Vá!
Saí então, passei pelas mesas, pelo balcão, pela caixa e esperei em Madison Avenue. Nettie apareceu uns cinco minutos depois, trazendo na mão um saco de papel branco. Percorremos meio quarteirão e deitou-o para um caixote do lixo.
- Café e bolo - observou. - Quem precisa disso?
- Que está a fazer, Nettie?
- O nosso almoço foram quase quinze dólares - explicou ete- - Por isso parei ao balcão, pedi café e um bolo, escondi a conta, paguei só dois dólares e saí tranquilamente, sem problemas. Há ali uma grande desorganização.
- E a gorjeta para a criada?
- Dei-lhe o resto do cigarro, não dei?
- Nettie! - exclamei -, você é horrível.
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- Pois sou, e gosto de o ser - retorquiu sorrindo.
Beijámo-nos, prometemos voltar a encontrar-nos e ela apanhou um táxi para Madison. Pensei como iria ela enganar o motorista, e, embora não devesse ter rido, o facto é que o fiz. Decidi ir para casa a pé, pois tinha muitas coisas em que pensar.
Estava um dia bonito em Manhattan: uma tarde aveludada de Junho, com um sol brilhante num céu limpo, e uma brisa ligeira, suficientemente fresca para a sentirmos. Era uma longa caminhada até à Rua Oitenta e Três, Oeste, mas eu tinha boas pernas e fazia-me bem exercitá-las.
Vivia em Nova Iorque já há vários anos, mas nunca deixava de me admirar com o seu emaranhado. Havia verdadeiras multidões nas ruas! Via Manhattan como um grande e apinhado campo de basquetebol e a única maneira de um peão avançar naqueles passeios cheios de gente era atirar-se para a frente, esquivando-se e girando sobre si mesmo. Eu era boa nisso e fui para casa como se estivesse a driblar os meus adversários durante um jogo de basquetebol - era uma coisa física e automática. Enquanto avançava pelos passeios apinhados, o meu cérebro pensava na família Havistock e naquilo que Natalie me contara. A franqueza dela era espantosa, eu nunca teria coragem de falar assim da minha família a uma pessoa quase desconhecida.
Não percebia se a franqueza de Nettie provinha de rancor contra os pais, irmãos e cunhados, ou se a rapariga teria outras razões ocultas. Talvez quisesse pôr a sua própria sensação de culpa em alguém - era estranho, mas possível.
Cheguei, finalmente, à conclusão de que a sua falta de discrição se devia ao ódio que ela nutria à hipocrisia. Tratava-se de uma pessoa tão aberta e franca que não podia suportar a mentira nos outros - era verdadeiramente uma idealista, ou pelo menos uma romântica.
Al Georgio acusara-me de eu estar a querer ser uma Nancy Drew e agora diria que eu era um outro Sigmund Freud!
Parei numa mercearia próxima, comprei um iogurte de amora, uma embalagem com salada e, depois, num impulso, levei também duas cervejas. Dirigi-me então a casa, tirei os sapatos logo que entrei, sentei-me numa cadeira e abri uma das latas de cerveja.
Recostada no sofá, rememorei então tudo o que Nettie me contara a respeito dos Havistocks. Uma bela galeria, mas, com
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toda a sinceridade, não era capaz de ver qualquer deles como o ladrão do Demaretion.
Estava a pensar se me sentia com forças para lavar a cabeça quando o telefone tocou. Al Georgio parecia-me tenso.
Sempre falou com Natalie Havistock hoje?
Falei. Almoçámos juntas.
bom. vou a casa de Luther e de Vanessa às seis da tarde,
é a hora a que ele chega do emprego e quero apanhar os dois juntos. Calculo que devo levar cerca de uma hora, não mais do que isso. Ora você disse que era grande apreciadora de pizzas, certo? Que lhe parece se eu levar uma pepperoni e talvez uma garrafa de vinho tinto e estiver em sua casa por volta das sete ou oito. Você conta-me então o que lhe disse Nettie e eu relato-lhe o que se passou com Luther e Vanessa.
- Está bem - respondi -, mas traga pizza com anchovas, é a minha preferida.
- Tem muito sal e isso não lhe faz bem.
- E o alho e as especiarias não são bons para si.
- Está bem, está bem. A você dá-lhe um ataque de coração e eu pioro da úlcera - disse Al, rindo. - Até logo, Dunk.
Al Georgio apareceu um pouco antes das oito horas, trazendo uma grande caixa com a pizza e a meia garrafa de vinho numa embalagem de vime. Como de costume parecia amarrotado e cansado. A sua cara revelava uma expressão de fadiga, mas os olhos azuis mantinham-se brilhantes e cheios de vivacidade.
- Um dia difícil? - perguntei.
- São todos difíceis - respondeu -, mas não vim aqui para me lamentar. Vamos comer.
Sentámo-nos no sofá e puxámos uma mesinha baixa para junto de nós. Fui buscar copos e guardanapos de papel e comemos glutonamente e sem cerimónias.
Foi um jantar simples, mas agradou-me.
- Primeiro você - disse Georgio -, a respeito de Nettie... Então, por entre pedaços de pizza e goles de vinho contei-lhe
toda a história, sem omitir o que ela roubara na Saks e o que fizera no restaurante. Al riu ao ouvir isso.
- É terrível! - exclamou.
- Pois é, mas mesmo assim não me parece que tenha roubado o Demaretion.
- Hummm... Talvez sim, ou talvez não. E que mais? Repeti então tudo o que Nettie me contara a respeito da
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família Havistock. Al ouviu-me atentamente, sem me interromper e sem interromper a liquidação e consequente desaparecimento da pizza (a metade dele era pepperoní).
- Você tem boa memória, Dunk - disse Georgio, recostando-se e limpando a boca ao guardanapo. - Tudo o que acaba de me dizer condiz com as informações que recolhemos acerca dos Havistocks. Acha que Nettie não é suspeita?
- Creio que não. Pode ser uma louca, mas não a imagino a roubar o próprio pai.
Georgio ficou pensativo.
- Pode tê-lo feito por incumbência de outros. Já lhe falei do bando com quem ela anda metida. O amante dela é um negro que usa uma boina vermelha na cabeça e um brinco de ouro. Pode tê-la compelido a roubar a moeda.
- Ela é uma rapariga muito confusa - murmurei, suspirando.
- Isso é verdade - replicou Al. - Assim como eu e como você, mas nós não andamos a tirar objectos das lojas onde entramos. A primeira coisa que tem de aprender, se quer ser detective, Dunk, é que não deve deixar que as suas simpatias ou antipatias pessoais lhe influenciem as opiniões. Nettie pode muito bem ter roubado a moeda. Concorda com isto?
- Sim - respondi, com a certeza de que ele se enganava. Agora conte-me a respeito de Luther e Vanessa.
- A descrição que Nettie fez deles é óptima. Luther é uma vítima, um perdedor. Vanessa é uma verdadeira mulher fatal
- disse arrastando propositadamente as palavras. - Até se atirou a mim, a mim, um ranhoso.
- Você não é ranhoso, Al - retorqui eu.
- Não, não sou, mas também não me considero nenhum Gary Grant. Eu percebi o que ela estava a fazer, Dunk. Mas digo-lhe que é uma mulher realmente excitante.
- Bonita?
- Diferente, causa impacte, dá a impressão de estar disponível. Não se mostra óbvia a esse respeito, não mostra as pernas nem os seios, nada disso. com efeito até estava vestida de uma maneira conservadora, mas toda ela irradia sexo. Creio que o que Nettie lhe disse está certo: Vanessa gosta de jogar com os homens. Tive pena do marido.
- Que espécie de homem é para a deixar fazer esse jogo?
- é um vencido, mas está muito apaixonado por ela, ou
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obcecado, ou o que quer que se lhe possa chamar, de maneira que nunca pensará em deixá-la.
Acha que se Vanessa o mandasse roubar o Demaretion
Luther o faria?
- Se lhe ordenasse que cortasse a sua própria garganta, ele
obedeceria. Você precisa de conhecer essa mulher, Dunk. É qualquer coisa.
Quando eu perguntei a Nettie quem é que ela achava capaz de se apoderar do Demaretion, respondeu-me "Luther ou Vanwinkle", afirmando que ambos estavam desesperados por dinheiro.
Acredito que isso se passe com Luther. Devia ver o apartamento deles, em Park Avenue, e as jóias que ela usava. Tinha um anel que dava para alimentar uma família porto-riquenha durante dez anos. Luther trabalha para a empresa têxtil que era de Archibald Havistock e se ganhar setenta e cinco mil dólares por ano já tem sorte. Mas creia, Dunk, que cem mil não são suficientes para cobrir as despesas com aquele apartamento, com o Mercedes, com as jóias de Vanessa e com a casa de Verão, em Montauk. A não ser que o paizinho o esteja a ajudar, ele deve estar muito endividado. Aparenta um ar de bancarrota: pálido, trémulo, lábios comprimidos e umas gargalhadas estridentes. Tenho visto outras pessoas assim: são as que tentam manter o seu estilo de vida quando afinal não possuem dois cêntimos para esfregar um no outro.
- Então talvez o Demaretion resolvesse os problemas dele. , - Certamente que ajudaria muito - respondeu Georgio. -
É certo que Luther tem um bom motivo, mas ainda não imaginei como conseguiria roubar a moeda...
O telefone tocou e ele calou-se. Tenho um telefone na parede da cozinha e uma extensão no quarto. Como uma idiota dirigi-me para a cozinha e assim Al podia ouvir-me perfeitamente.
- Está? - perguntei.
- Olá, querida - respondeu jovialmente Jack Smack. Pode falar?
- Não muito bem - retorqui.
- Oh, oh. Tem companhia. Al Georgio?
- Estou ocupada - respondi.
- Telefono-lhe amanhã - disse Jack, desligando. Voltei para a sala.
- Era o Jack Smack? - quis saber Georgio.
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Como não lhe podia mentir, disse que sim com a cabeça.
- Não tem importância. Sei que você não é pessoa para lhe ir contar o que aqui dizemos.
- Pois não sou - repliquei acaloradamente.
- Eu sei isso - repetiu pacientemente Al, tentando sorrir. - Jack também tem o seu trabalho a fazer.
No entanto, ficou um certo constrangimento entre nós.
- Então... que vai fazer agora?
- vou investigar mais fundo, tentar descobrir quem beneficiaria mais. O caso ainda está muito confuso. Tem lido os jornais? Há grandes títulos, perguntando: "Quem roubou a moeda de valor inestimável"? E o Departamento não me larga.
- Calculo. Quer mais um pouco de vinho? Ainda há muito.
- É uma esplêndida ideia.
O sorriso de Al voltou a ser confiante e afectuoso. Acabou de encher o meu copo e fez o mesmo ao dele.
- Onde vive, Al? - perguntei.
- Em Queens, numa cave. A minha ex-mulher ficou com a casa. Mas não me estou a queixar, tenho um sítio onde dormir.
- Cozinha para si?
- Claro, e sou um bom cozinheiro. ?
- Aposto que sim. Comida italiana?
- Principalmente, mas sou capaz de preparar um peito de galinha de maneira que você pense que está a comer vitela.
- Não diga mais. Parece-me que estou a engordar só por o ouvir.
Ele olhou-me.
- Se eu a convidasse seria capaz de ir jantar comigo a minha casa?
- Experimente - respondi.
- Obrigado, Dunk. Você é uma boa rapariga.
Peguei na caixa de pizza vazia e nos guardanapos usados e levei tudo para a cozinha, para deitar no caixote do lixo. Não posso ter demorado mais de um minuto, mas quando voltei Al Georgio dormia profundamente. Fora instantâneo. Tinha o queixo caído sobre o peito, respirava profundamente e o copo de vinho que empunhava oscilava perigosamente.
Tirei-lhe o copo da mão, com todo o cuidado, e coloquei-o sobre a mesa. Apaguei as luzes do tecto e acendi um candeeiro colocado junto da única cadeira confortável que tinha, um cadeirão de braços com almofadas suficientes para eu me sentar
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li confortavelmente. Pus os óculos e puxei para junto de mim as lãs e o tapete afegã que andava a fazer há quatro meses.
Gosto de trabalhos de agulha, são uma grande terapia, pois quando se está entretida com esse género de coisas as nossas mãos voam quase sem darmos por isso. É um prazer criar qualquer coisa e é tão automático que os nossos pensamentos podem divagar. Tenho ouvido dizer que há mulheres que tricotam enquanto vêem os programas da televisão e creio que é possível.
Enquanto trabalhava com cores azuis-claras, bem mais claras que os olhos de Al - talvez azul cor do céu - e ele dormitava, ia pensando nas vidas dos Havistocks, bastante mais baralhadas do que as minhas lãs.
A complexidade daquela família assustava-me e fascinava-me. A minha vida fora até então muito simples e pouco rocambolesca. Claro que tivera problemas e preocupações, mas nada de cataclismos, nem sequer de dramático. Agora mergulhara na existência fabulosa dos Havistocks - ou pelo menos assim me parecia. Desempenhava um pequeno papel secundário, mas achava-o excitante.
Rememorei os membros da família, tentando perceber qual fora o ladrão, pois tanto Al Georgio como Jack Smack pensavam que o roubo fora cometido por um deles, e eu concordava. Al dissera-me que não deixasse que as minhas simpatias e antipatias influíssem na minha opinião, mas era homem e eu mulher, e não estava certa de que tivesse razão. Os homens são, apaixonados pela lógica, mas a verdade é que esta não explica tudo. Deixei, portanto, os meus instintos falarem. Acabei por achar que o ladrão fora Orson Vanwinkle, ou que, se não roubara pessoalmente a moeda, estava envolvido no caso. Por que razão acreditava eu nisso? Por ele ter umas mãos húmidas, pegajosas, e me tratar de uma maneira desagradável? Isso fora o suficiente para o condenar, aos meus olhos, considerando-o aquilo a que a minha avó chamava um lagarto de sala.
Estava a matutar nesse quebra-cabeças, tentando imaginar como Vanwinkle trocara os contentores, quando de repente Al Georgio acordou. Endireitou a cabeça e olhou à sua volta, ainda tonto com sono.
- Meu Deus! - exclamou. - Que horas são? Quanto tempo estive a dormir. Dunk?
- Cerca de meia hora.
- Peço desculpa.
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- Não o faça. Obviamente precisava de descansar.
- Onde fica a casa de banho? Talvez um pouco de água fria na cara me faça bem.
Al voltou a sacudir a cabeça.
- Não sei o que me aconteceu.
- Foi do vinho - respondi.
- Na. Não bebemos quase nada. Creio que o melhor é ir para casa e dormir durante oito horas seguidas.
- Tem a certeza que conduzirá bem? Não prefere dormir aqui no sofá?
Outra vez o sorriso encantador.
- Agradecido, Dunk, mas é melhor não. Corria o risco de eu nunca mais querer sair daqui.
- Não me importo de correr esse risco.
Al riu e aproximou-se de mim para me beijar na face.
- Gosto de a ver com óculos - disse.
- Gosta? - perguntei, admirada, olhando-o por cima dos aros. - Porque diz isso?
- Não sei - retorquiu, encolhendo os ombros. - Parece-me que a tornam mais sexy.
- Então vou passar a usá-los sempre. A garrafa está quase cheia de vinho. Leve-a.
- Não. Fique com ela, será uma desculpa para cá voltar.
- Venha quando quiser - respondi, lembrando-me imediatamente de que fizera o mesmo convite a Jack Smack. Dunk Bateson - mulher fatal!
À porta, Al disse:
- Obrigado pela hospitalidade e pela soneca. Para a próxima vez tentarei estar mais desperto. Porque está a olhar assim para mim?
Às vezes, como eu já aprendera, pode-se surpreender os homens com uma franqueza total.
- Estava a pensar - repliquei - que se você me tivesse pedido para passar aqui a noite, não no sofá mas na minha cama, o que teria eu respondido.
Prendeu-me nos seus braços e apertou-me contra si. Era muito quente, sólido, reconfortante. Tocou-me nos cabelos.
- Quando se decidir, posso ser eu o primeiro a saber? perguntou.
- Certamente que sim - prometi.
- Ah, Dunk - continuou quase com um gemido -, o que se está a passar?
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Não vou preocupar-me com isso. E você?
Al afastou-se um pouco e olhou-me.
Você tem muito mais coisas dentro da cabeça do que pode
parecer à primeira vista - disse. É isso mesmo - concordei. - Não sou apenas mais uma
cara bonita.
Ambos nos começámos a rir, e, como imbecis, apertámos firmemente as mãos antes de ele se ir embora.
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Já alguma vez tiveram uma experiência como esta?
Trata-se de recordar o nome de um velho amigo, o título de uma canção antiga, ou o actor que fazia o papel principal em determinado filme - mas não se consegue, por mais que se tente e por mais sugestões que o cérebro apresente. Em seguida adormece-se ainda a pensar no assunto.
Depois, de manhã, sem se saber como, o nome ocorre de repente. Ó cérebro trabalha durante o sono e resolveu o problema.
Eu tinha feito a narrativa do que se passara em casa dos Havistocks, desde o acondicionamento das moedas até elas serem entregues no cofre da Grandby & Sons, pelo menos uma dúzia de vezes, a várias pessoas, e relembrara mentalmente esses acontecimentos outras tantas. Sempre que o fizera tentara recordar algo que faltasse, alguma coisa de que eu e todas as outras pessoas não nos tivéssemos apercebido e que fosse uma chave vital para a solução do mistério.
Sentei-me na cama na manhã seguinte, bem acordada, sabendo de repente o que faltara, e sentindo-me furiosa comigo mesmo por não ter dado por isso mais cedo. Contudo, a verdade é que, tanto quanto eu sabia, mais ninguém se lembrara.
Tomei um duche, lavei a cabeça e pensei pela centésima vez no que devia fazer com o meu cabelo. Não estava curto nem comprido, caía-me até aos ombros sem ondas nem caracóis, e resolvi que quando tivesse alguns dólares disponíveis me entregaria aos cuidados de um cabeleireiro qualquer - alguém chamado Louis ou Pierre - para o pentear como quisesse.
Olhando para o relógio, vi que ainda era cedo de mais para Hobart Juliana se encontrar no escritório, e, portanto, para confirmar a "grande revelação" que me fizera acordar tão cedo 80
nessa manhã. Por isso saí, comprei um croissant e a Times, voltei para casa e fui fazer um café sem cafeína.
Quando o relógio da cozinha marcava nove e meia liguei para a Grandby & Sons, esperando que Hobie não tivesse saído para fazer qualquer avaliação. Mas não, encontrava-se no gabinete e pareceu ficar encantado ao ouvir-me. Conversámos e rimos quase durante dez minutos e fiquei a par das tagarelices do escritório, incluindo a história de que Felicia Dodat fora a um cirurgião plástico submeter-se a uma operação.
Depois ficámos sérios e eu mencionei o motivo do meu telefonema.
Hobie, preciso da tua ajuda numa coisa - pedi.
com certeza - respondeu imediatamente - o que for
preciso.
- No dia em que a colecção Havistock foi para a Grandby eu voltei de casa deles para receber os contentores aí e depois tu apareceste, levando-me um café. Lembras-te? Queria que tu visses o Demaretion, por isso abri o décimo terceiro contentor e tirei de lá a caixa onde a moeda se devia encontrar. Foi então que reparaste que não havia nada lá dentro. Está tudo correcto, Hobie?
- Exactamente - respondeu ele com seriedade. - Foi mesmo assim que as coisas se passaram. Estou pronto a jurá-lo.
- Está bem. E lembras-te da maneira como essa caixa vinha selada?
- com certeza. com tiras de adesivo dos quatro lados sobrepondo-se na tampa, e na frente, perto da fechadura, havia um pedaço de lacre, com uma marca. Tu disseste que era do anel de sinete de Archibald Havistock.
- Tens a certeza disso? Viste o lacre e o sinal impresso nele?
- De certeza.
- Eu também vi, só queria a confirmação. Muito obrigada. Silêncio... Depois...
- E é só isso que tens para me dizer, Dunk?
- Por agora é.
- Tens alguma ideia, não é verdade?
- Sim, creio que descobri algo importante. Falo contigo mais tarde, Hobie, e obrigada pela tua ajuda.
Desliguei antes que ele pudesse fazer mais perguntas. Voltei a sentar-me, bebi o resto do meu café morno e passei mentalmente em revista aquilo que havia descoberto.
Aquela décima terceira caixa que eu mostrara a Hobie fora
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selada da mesma maneira que as outras, e o lacre tinha o sinete de Havistock, poderia testemunhar tudo isso num tribunal.
Seguindo a lógica masculina - que às vezes faz jeito - isso significava: primeiro, que Archibald Havistock utilizara o seu sinete para lacrar uma caixa vazia; segundo, que alguém lhe roubara "ou pedira emprestado" o anel de sinete para selar a mesma caixa; ou, terceiro, que havia um duplicado, um ou mais, desse anel e que essa cópia servira para selar a já referida caixa.
E Al Georgio não vira isso, nem Jack Smack! Confesso que ri em voz alta, encantada. Os grandes detectives! Resolvi imediatamente não contar a nenhum deles, pelo menos por enquanto. Agora era eu que tinha a bola e lembrava-me dessa sensação: correr pelo campo e fazer o lançamento, a tempo. Quando tudo corria perfeitamente não havia outra que se lhe igualasse.
E, melhor do que tudo, eu tinha uma razão - a minha razão - para telefonar a Orson Vanwinkle: precisava de descobrir o que se passava com esse estúpido anel de sinete. Pensei durante um grande bocado em como devia abordar o assunto. Não queria mentir a quem quer que fosse, mas também não desejava falar de mais.
A primeira coisa que decidi fazer foi procurar o cartão de Jack Smack e telefonei depois para o escritório dele. Fui atendida por uma secretária de sotaque inglês, que me disse que Mr. Smeck - era assim que ela pronunciava - não estava, mas que, se eu deixasse o meu número, ele ligaria para mim logo que chegasse. Jack telefonou-me dois minutos depois, por isso não devia estar longe - não é verdade?
- Dunk! bom dia. Lamento ter interrompido o seu tête-à-tête ontem à noite.
- Não tem importância - respondi. - Não faz mal. Olhe, decidi falar com Orson Vanwinkle.
- Óptimo - comentou. - Fico muito satisfeito por saber isso.
- Acho que lhe vou telefonar a dizer como estou preocupada com o desaparecimento do Demaretion, o que é verdade, pedindo-lhe que transmita as minhas preocupações a Mister Havistock. Que diz a isto?
- Ele não acreditará numa só palavra - respondeu prontamente Smack. - Vai pensar que você está desejosa de se encontrar com ele e que o telefonema é um pretexto para isso. Aquele tipo tem um ego que nunca mais acaba. Mas está bem, podemos servir-nos disso.
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Bem, que quer que tente saber? Não é coisa que me agrade.
- bem sei, Dunk, mas se não pensasse que você seria capaz de o
fazer, não lho teria sugerido. Se ele se atirar demasiado a si, o melhor é mandá-lo passear. Eu gostaria de saber duas coisas: primeira, se foi roubada mais alguma coisa do apartamento dos Havistocks, como pratas, jóias, dinheiro, obras de arte - peças pequenas que pudessem facilmente ser levadas dali. Estou agora a pensar em Natalie e acho-a capaz de roubar coisas desse género a fim de comprar erva'para o bando. Segunda: será que Ross Minchen e Vanessa terão algum romance? Ouvi uns rumores disso. Se alguém souber, esse alguém deve ser Orson Vanwinkle, ele é do género que sente prazer em que os outros sejam tão depravados como ele.
Está bem, Jack. vou tentar descobrir alguma coisa, mas sem
garantias.
- Compreendo, e quero que saiba que agradeço o que está a fazer por mim. Posso telefonar-lhe mais tarde, Dunk?
- Não - respondi. - Eu comunico consigo depois de falar com Vanwinkle. - Se chegar a fazê-lo.
- Talvez possamos jantar juntos logo.
- Talvez - respondi.
Perdida por dez, perdida por mil; por isso telefonei a Orson Vanwinkle, decidida a mostrar-me triste e lamentosa. Perguntei-lhe timidamente se ele poderia transmitir as minhas desculpas a Archibald Havistock pela perda do Demaretion.
- com certeza, boneca - concordou Vanwinkle, com uma gargalhada que só posso descrever como diabólica. - Eu falarei ao velhote. e que diz a encontrarmo-nos?
Como a minha avó o definiria, era um lagarto de sala.
- Quando?
- Deixe-me deitar uma vista de olhos à minha agenda. Ah, sim. tenho um almoço de negócios no Four Seasons, à uma hora. Uma maçada, questões de impostos e coisas dessas. Devem deixar-me em paz a tempo de eu ir ter consigo às três ao bar do Four Seasons. Tomamos uma bebida ou duas e contamos um ao outro as histórias das nossas vidas. Que diz?
- Acho bem - respondi debilmente. - Não se esquece de dizer a Mister Havistock quanto lamento...
- Esteja descansada, bebé - disse Vanwinkle, desligando. Como durante aquela curta conversa eu fora "boneca" e "bebé",
com certeza não tardaria a tratar-me por "queridinha" ou coisa no género.
é agora uma boa altura para lhes contar algo acerca da geografia
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do meu apartamento, porque isso tem muito a ver com o que se passou nas semanas seguintes.
Era uma cave (ou rés-do-chão) ao qual se tinha acesso descendo três degraus (quem vinha do passeio, depois de passar pelos contentores do lixo). Do pequeno vestíbulo da entrada partia uma escada, que conduzia aos cinco andares do edifício, e o meu apartamento ficava ao fundo de um pequeno corredor.
Era chamado um "apartamento-jardim" (dá para rir) e tinha uma porta nas traseiras, que se abria para um pedaço de deserto sombreado por uma árvore nobre. Eu tentara cultivar qualquer coisa naquele bocado de terra seca e árida, mas tivera de desistir.
Entrava-se no meu apartamento por um pequeno corredor com largura suficiente para ali colocar apenas um armário e duas pequenas cadeiras. O quarto de dormir ficava à direita e em frente era a sala de estar, bastante espaçosa, confesso, mas com um tecto tão baixo que eu receava sempre bater lá com a cabeça. À esquerda havia a pequena casa de banho e logo à direita desta a cozinha, com uma porta gradeada que dava para o "jardim".
Não estou a queixar-me, reparem, era uma casa alugada e eu tivera sorte em consegui-la, sabia-o muito bem. Em Dês Moines morava numa vivenda com três andares, cinco quartos, três casas de banho e uma cozinha quase tão grande como todo o meu apartamento, além de uma garagem para dois carros, um relvado na frente da casa e um pátio nas traseiras, mas eu tentava não pensar em nada disso.
De qualquer maneira, tinha três ou quatro horas na minha frente antes de ir ter com Orson Vanwinkle, por isso resolvi passá-las a fazer limpezas. O trabalho caseiro é tão mecânico como o de agulha, mas muito menos compensador e criativo. É preciso fazê-lo e voltar a fazê-lo, nunca está acabado.
Vesti apenas um biquini, cobri o cabelo com uma touca de plástico e pus mãos à obra. Arrumei, lavei, aspirei, limpei o pó. Que maçada! Haverá trabalho mais monótono? Creio que algumas mulheres gostam de o fazer (tolas!), mas julgo que a única coisa boa que ele tem é que se executa mecanicamente. Pode-se ir trabalhando e deixar o nosso pensamento divagar ou sonhar.
Não passei essas três horas a pensar no Demaretion desaparecido, mas a comparar as personalidades e a atracção física de Al Georgio e de Jack Smack. Cheguei até ao ponto de dizer em voz alta: Mary Lou Georgio e Mary Lou Smack.
Mas devem compreender que eu era solteira, estava quase nos
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trinta e começava a imaginar como seria a vida daí a cinco ou dez anos. Manter-me-ia ainda solteira apenas com a companhia das árvores no "jardim"? Por isso deixei a minha fantasia trabalhar, concebendo todo o género de possibilidades.
Parecia-me que Georgio era verdadeiramente um bom tipo, sólido e firme, e sabia que podia confiar nele, que estaria sempre pronto para o que eu precisasse. Mas era polícia e tinha-me dito que o trabalho ficava sempre em primeiro lugar e que fora por essa razão que se divorciara. Como podia uma mulher aceitar esse género de competição?
Jack era um homem superficial, leve e bonacheirão, e a única maneira que uma mulher teria de não o perder seria prendê-lo à cama. O tipo era um verdadeiro Romeu e tinha consciência disso. Realmente, era tão atraente que não se lhe podia censurar tanta vaidade, era estruturalmente assim.
Passei aquelas horas de limpezas em devaneios, gozando cada minuto. Devem perceber que, para mim, ter possibilidades de sonhar acordada com um homem era um acontecimento, com dois era uma bênção. Não contava com Orson Vanwinkle, esse era um desastre.
Chegou depois a altura de tomar um duche (outro) e de me arranjar para o meu encontro com "o desastre", mas não quero maçar ninguém com os problemas das mulheres da minha altura quando se querem vestir elegantemente, pois Hobart Juliana dera-me os melhores conselhos: roupas simples, cores sólidas, nem pregas nem padrões vistosos; evitar rendas, fitas, laços e enfeites juvenis; manter uma silhueta difusa, que insinua o que está por baixo sem nada revelar; e, se se tem seios muito pequenos - o que sucedia comigo -, o melhor é mostrar as costas (eu tinha umas costas fortes, bem musculadas, e às vezes sentia até vontade de andar às arrecuas).
De qualquer modo, para o meu encontro com Vanwinkle vesti um vestido direito, de crepe de seda preto. Decote subido na frente, mas com as costas suficientemente à mostra para deixar ver a parte detrás do soutien - se eu o usasse, o que aliás não sucedia. Calçara meias pretas arrendadas e pusera ao pescoço um colar de contas de madeira esculpidas que comprara numa casa mexicana em Greenwich Village. Não tinha qualquer valor, mas eu gostava dele.
Devo ter-me arranjado bem, porque quando apareci no bar do Four Seasons (com um quarto de hora de atraso, propositadamente), Orson Vanwinkle quase caiu do banco para me cumprimentar.
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- Há, você está deslumbrante, e se não houvesse tanta gente aqui, eu...
Inclinou-se para o lado e endireitou-se para me beijar na cara, enquanto eu pensava quantas vezes já ele utilizara aquele género de procedimento.
Não foi preciso muito tempo para perceber que ele estava toldado: os olhos ligeiramente desfocados, a fala um pouco arrastada, cambaleante - até mesmo oscilante, não obstante permanecer sentado. Devia ter sido um grande almoço de negócios.
Segurava na mão um grande copo, cheio de um líquido castanho-escuro, com gelo. Não sabia o que aquilo era, mas parecia-me letal. Pensei que, se queria obter algumas informações, precisava de agir depressa antes que ele entrasse num estado pré-comatoso.
- Que toma, queridinha? - perguntou, pousando uma mão pesada no meu joelho. - Estou a beber um bourbon duplo para ajudar à digestão. Acompanha-me?
- Apenas um copo de vinho branco, se faz o favor.
Fez estalar os dedos para chamar a atenção do empregado do bar, coisa que detesto ver nos homens.
Quando me serviram a bebida, insistiu em tocar com o seu copo no meu.
- À nossa - murmurou. - Tenho a impressão de que isto vai ser o início de uma bela amizade.
Era de tal modo repelente que eu mal conseguia suportar estar ali.
- Mister Vanwinkle - comecei a dizer, mas ele interrompeu-me, pondo-me um dedo nos lábios.
Foi muito agradável, apeteceu-me saiu dali a correr e ir levar uma injecção de penicilina.
- Chame-me, Orson, ou melhor ainda, Horsy. é assim que me tratam os meus melhores amigos.
- Porquê Horsy? Orson riu.
- É uma longa e suja história. Eu contava-lha, mas não a conheço suficientemente bem - por enquanto.
Olhei-o, examinando e pensando que ele não era mal-parecido, apesar do nariz adunco. Estava lindamente barbeado - uma coisa em que eu sempre reparava nos homens -, vestia bastante bem e trazia vários objectos de ouro. Seria razoavelmente atraente se aprendesse a manter a sua grande boca fechada.
- Orson - disse eu -, o roubo do Demaretion perturbou-me verdadeiramente e eu gostaria de ver o caso resolvido. Puseram-me
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de licença sem vencimento até ser apanhado o ladrão, por isso tenho interesse pessoal na questão. Os detectives parecem pensar que alguém da casa possa estar envolvido no roubo e eu queria perguntar-lhe se houve outros, como de objectos de prata, jóias ou dinheiro, por exemplo. .
Orson Vanwinkle olhou-me por momentos e depois fechou os olhos como se estivesse concentrado em profundos pensamentos.
Não, não me recordo de nada recente. Há cerca de cinco anos,
uma criada roubou cinquenta dólares da carteira da mamã Havistock, mas desde então não me lembro de mais nada.
Abanei a cabeça com um espanto trocista.
É uma família muito invulgar.
Invulgar? São todos uns tarados. Eu sou parente deles, como
sabe, mas não desse ramo da família, graças a Deus. Deviam ir todos para o psiquiatra. Talvez lhes ficasse mais barato. Quer outra bebida?
- Ainda não, obrigada, mas beba você.
Vanwinkle fez estalar novamente os dedos e, quando o empregado do bar se voltou, apontou para o copo vazio. Observou o brandy a ser deitado no copo com a atenção curiosa do bebedor sério, depois pegou nele e começou a beber delicadamente, mostrando que era um epicurista e não um bêbado.
- Oh, não creio que a família Havistock seja assim tão má. Bem sei que não conheço toda a gente. Vanessa, por exemplo.
- Uma pega - disse sombriamente. - Ela não é de facto uma pessoa de quem eu goste.
- Ouvi algumas estranhas histórias a respeito dela.
- Pode acreditar em todas, querida. Sabia que ela tinha uma tatuagem?
- Está a brincar?
Ele ergueu a palma da mão.
- Palavra de honra. Eu não a vi, claro, mas fui buscar as minhas informações a uma fonte muito autorizada. Não lhe direi onde está localizada, você não acreditaria. É uma pega. Julga que inventou o sexo e que tem a patente dele. Deixa-me totalmente frio.
Aquilo significava, supunha eu, que, a dada altura do relacionamento deles, Vanessa o havia rejeitado. Fez-me lembrar os homens que, quando uma mulher os repele, acham que ela é lésbica. O facto de terem mau hálito, uma pele parecida com a superfície da Lua, ou usarem meias brancas, não tem nada a ver com isso...
- Sim - disse eu pensativamente -, ouvi dizer que ela se atira aos homens.
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- Aos homens, às mulheres e a tudo - replicou com um sorriso malévolo. - Chegou mesmo a atirar-se a Ross Minchen, que podia ser presidente da Associação Internacional dos Néscios, mas o velhote acabou com isso.
Era a segunda vez que eu ouvia aquela história, Nettie dissera-me o mesmo durante o almoço.
- Então, de momento, não existe coisa alguma entre eles? - perguntei.
- Nada - respondeu. - Nas festas Ross ainda anda à volta dela, como um ruminante com cio, mas Vanessa não lhe presta a menor atenção. O velhote disse-lhe que se afastasse e como é ele quem controla as massas ela é suficientemente esperta para não o irritar.
Como já sabia o que Jack Smack me pedira que descobrisse, era chegada a altura de fazer algumas investigações por minha conta antes que Horsy Vanwinkle caísse do banco.
Mas tinha esperado tempo de mais. Ele levantou-se subitamente, cambaleando, e despejou a bebida de uma só vez, sem parar. Pensei que estava pronto para ser conduzido a uma unidade de cuidados intensivos.
- Vamos - disse Vanwinkle com voz espessa.
- Vamos? - perguntei feita miss Inocência. - Para onde?
- Para minha casa - retorquiu com um riso feroz. - Ouvimos alguns discos de Sinatra e deixamos a natureza seguir o seu rumo.
- Não tem de voltar para o trabalho?
- Trabalho quando me apetece - gabou-se Vanwinkle - e brinco quando quero.
Dunk, disse para comigo, vais ter problemas.
Não vou dizer-lhes tudo o que se passou na hora seguinte, mas apenas o essencial. Levá-lo a pagar a conta no Four Seasons - com um cartão de crédito, claro, pois era uma despesa de negócios acabou por ser um trabalhão e tive depois de o deixar apoiar-se em mim para descer as escadas até à rua. O cheiro enjoativo da água-de-colónia dele, entontecia-me.
Em seguida, lá fora, levámos um tempo imenso para apanharmos um táxi, enquanto Horsy se apoiava ao Seagram Building e cantava My Wcey, com voz pastosa, o que muito divertia os transeuntes. E uma vez no táxi recusou-se a dizer-me, a mim ou ao motorista, qual era a sua direcção. Tive, finalmente, de lhe tirar a carteira do bolso, enquanto ele ria e tentava abraçar-me. Obtive o endereço por um cartão que garantia ser ele um membro pagante do Clube Exótico - fosse o que fosse.
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Quando indiquei ao motorista qual o nosso destino, ele perguntou:
- Tem a certeza de que quer ir para lá, minha senhora? Achava
melhor levá-lo a Bellevue.
Não havia na carteira dinheiro suficiente para pagar o táxi, por isso tive de pôr o que faltava. Não me sentia muito feliz quando o arrastei para fora do carro, implorando-lhe que se mantivesse direito e que andasse. De facto, estive prestes a deixá-lo caído no chão, como um saco de trapos, e ir-me embora, mas, como continuava interessadíssima em saber o que havia a respeito do anel de sinete de Havistock, decidi ficar.
Vivia no terceiro andar de um prédio de seis pisos e fazê-lo tirar as chaves do bolso acabou por ser uma autêntica farsa, com oscilações, passos em falso e tentativas de abraços.
Por fim, saquei-lhe as chaves, abri a porta da frente e entrámos. Havia ascensor, graças a Deus, e metemo-nos ambos nele. Encostei-o depois a um dos lados do elevador e assim se conservou durante a subida. Para sairmos de lá, repetiu-se a mesma cena ocorrida na rua. Finalmente, consegui abrir a porta do apartamento e levar aquela calamidade para dentro, ainda consciente.
- Preciso de ir ver... - disse com um sorriso vítreo, dirigindo-se apressadamente para o que julguei fosse a casa de banho.
Talvez, pensei, aquele idiota vomitasse o almoço de negócios e voltasse para junto de mim mais sóbrio e calmo, mas não tive essa sorte.
Entretanto olhava à minha volta para uma sala que parecia saída da Playboy. Aço inoxidável, vidro, cadeiras de cabedal fulvo, imitações de quadros célebres nas paredes e carpetes de pele de zebra no soalho. Além disso, havia ali bastante equipamento electrónico para fundir uma dúzia de fusíveis e um bar completamente equipado. estão a ver como era. Não espreitei para o quarto, mas, se ali fosse encontrar espelhos no tecto, não me surpreenderia.
Não era tanto aquele luxo que me chocava, mas sim pensar no preço de uma casa daquelas na Rua Oitenta e Cinco, Este. Ou Vanwinkle ganhava principescamente como secretário de Havistock, ou possuía fortuna pessoal, ou então tinha outras fontes de receitas que lhe proporcionavam grandes rendimentos.
E, no entanto, quando eu perguntara a Nettie se havia alguma coisa entre Orson Vanwinkle e Vanessa, ela respondera-me que duvidava. "Ele não tem dinheiro, por isso Vanessa não deve estar interessada", fora isso que dissera.
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Jack Smack tinha razão, havia algo de pouco claro naquele homem.
Vanwinkle saiu nesse momento do quarto e eu fiquei sem saber se devia rir ou chorar: vestira um jaquetão de veludo vermelho com lapelas de cetim, trazia um lenço de seda mal enrolado em volta do pescoço e um outro branco, que mal espreitava, do bolso do jaquetão. Calculo que fosse o seu uniforme de sedutor, mas, com o seu sorriso retorcido e com aquele andar cambalente, dava-me a ideia de estar perante um palhaço.
- Agora... - murmurou. - Primeiro as coisas mais importantes...
Dirigiu-se para o bar e, embora eu esperasse vê-lo cair a qualquer momento, a verdade é que chegou lá sem chocar com a mobília. Serviu dois copos, um de brandy, para ele, e outro com vinho branco para mim, mas se tinha gelo pareceu não o querer usar, ou talvez não desejasse diluir o vinho. Deixou-se cair num sofá do feitio de dois enormes lábios vermelhos e bateu na almofada ao lado dele.
Peguei no meu copo e fui instalar-me nos lábios - a uma distância respeitável dele. Sentar-me naquele sofá louco era uma experiência nova, tinha a sensação de que se iam fechar a qualquer momento e engolir-me.
- Música - murmurou Vanwinkle. - Discos de Sinatra...
- Mais tarde - respondi. - Porque não conversamos durante um bocado?
- A respeito de quê? - quis saber Orson Vanwinkle, falando com certa dificuldade.
Já contei que ele trazia consigo muitos objectos de ouro: botões de punho, alfinete da gravata, uma pulseira de identificação, com uma corrente suficientemente grossa para prender um barco, e, no terceiro dedo da mão direita, um anel quadrado, de ouro, com um diamante cintilante.
Aproveitei essa pista.
- Que lindo anel - observei. Vanwinkle olhou-o.
- Dois quilates - disse. - Sem uma falha.
- Você trata-se bem - declarei. - Reparei que Mister Havistock tem apenas aquele pobre anel de sinete...
- Oh, ele não usa aquilo, é um objecto sem qualquer valor, uma fantasia. Parece que foi uma coisa que a mamã lhe deu quando se casaram. Ele tem-no por lá.
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- Ah, sim? Não o guarda? Sendo um anel com tão grande valor sentimental, seria de supor que estivesse bem guardado.
- Na, o velhote não é tão sentimental como isso. Ou o tem na
secretária dele ou no quarto, no guarda-jóias.
Fiquei assim a saber o que queria: qualquer pessoa daquela família desmiolada poderia ter facilmente acesso ao anel de sinete.
- Ouça - disse Vanwinkle -, você não está a beber. Tem o copo cheio. Chegue-se para aqui, vamos fazer uma festa.
com certeza - respondi -, porque não? Mas primeiro deixe-me ver o seu maravilhoso apartamento.
Levantei-me, passei por detrás do sofá e aproveitei a ocasião para despejar o conteúdo do meu copo para o vaso de uma planta ornamental. Calculo que daí a um dia ou dois estivesse murcha - ou talvez muito mais alta.
- Lindo apartamento - repeti -, esplêndido.
-? Gosta dele? - perguntou Vanwinkle com voz cada vez mais pastosa. - Quer mudar-se para cá, temporariamente?
- Oh, Horsy-repliquei -, você é capaz de fazer uma rapariga perder a cabeça.
Olhei-o, para ver como recebera a minha resposta, e reparei que oscilava fortemente. Estava a cair para o lado lenta, muito lentamente, com todo o corpo mole. Aproximei-me com rapidez e tirei-lhe o copo das mãos.
Detive-me a observar, fascinada, enquanto ele ficava fora de combate - perdoem a expressão. Minutos depois estava completamente inconsciente, com os olhos fechados, respirando com estertor. A parte superior do seu corpo deslizara para cima dos lábios vermelhos, por isso levantei-lhe as pernas, instalei-o o mais confortavelmente que me foi possível e olhei-o.
- Oh! - exclamei em voz alta - como os poderosos tombam! Como ele não se mexeu, saí e, ao chegar à rua meti-me num táxi,
verificando então que tinha apenas o dinheiro suficiente para pagar ao motorista e dar-lhe uma pequena gorjeta.
- Desculpe, mas é tudo quanto trago - disse.
- Não tem importância, minha senhora, dê-me um beijo e tudo será perdoado.
- Fica para a próxima vez - respondi apressadamente, correndo para o meu santuário, onde me fechei, tranquei e pus a corrente..
Deixei-me cair na minha cadeira preferida, pensando nas últimas horas. Sentia-me um pouco surpreendida por experimentar um
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pouco mais de simpatia por Orson Vanwinkle. Era um pobre diabo, tentando à força parecer aquilo que nunca seria, mas, apesar de ter pena dele, continuava a intrigar-me quanto à fonte dos seus rendimentos.
Foi essa exactamente a mesma pergunta que Jack Smack fez quando telefonou algumas horas mais tarde. Contei-lhe o que se passara com Orson Vanwinkle, sem mencionar o que soubera a respeito do anel de sinete de Archibald Havistock, isso era exclusivamente meu, mas relatei-lhe tudo o resto, incluindo os quadros e o luxo do apartamento.
- Onde irá ele buscar dinheiro para tudo isso? - interrogou-se Smack. - Não é certamente a trabalhar. Não acredito que o seu velho tio lhe pague o suficiente para tanta coisa. Preciso de investigar isso.
- Dir-me-á, se descobrir?
- Certamente, Dunk - respondeu. - Somos sócios, não é verdade? E não há nada entre Vanessa e Orson?
- Não existe qualquer romance entre eles, se é a tal coisa que se refere. Ele chamou-lhe constantemente pega, e creio que com sinceridade.
- Tudo isso é muito curioso. Por outro lado, devo dizer-lhe que fechámos todas as persianas dos nossos escritórios, como pedia quem nos escreveu a carta anónima. É o sinal de que estamos dispostos a negociar, mas, por enquanto, ninguém se manifestou. E agora, mudando de assunto, que diz a jantarmos juntos hoje?
- Não - respondi prontamente. - Agradeço, mas hoje não posso.
- Pronto - retorquiu ele imediatamente, não se mostrando nada decepcionado. - Fica para outra vez. Então boa noite. Voltaremos a entrar em contacto.
Um minuto depois encontrava-me a pensar por que razão teria rejeitado o convite de Smack quando estava vestida para sair, sem lugar algum para onde ir, e sendo ele um homem tão atraente. Além disso, considerando o estado das minhas finanças, far-me-ia jeito um jantar de graça.
Cheguei à conclusão de que a minha decisão tivera alguma coisa a ver com a tarde passada com Orson Vanwinkle. Ficara farta de homens, por aquele dia, sentia-me cansada da confusão. Pode parecer idiota que um breve encontro com um bêbado idiota pudesse ter-me indisposto contra todo o sexo masculino, mesmo só por uma noite, mas foi mesmo assim que as coisas se passaram.
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Por isso despi o meu vestido de seda, tirei o colar mexicano, as meias de renda pretas e enverguei o meu velho roupão de flanela, preso por um cordão. Comi uma lata de sopa de galinha e uma sanduíche de salame, e passei uma noite solitária e monótona. Por vezes não me compreendo a mim própria.
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Permaneciam sentados como duas estátuas da ilha da Páscoa
- Archibald e Mabel Havistock -, monólitos de expressão sombria que me fitavam. Não posso dizer que estivesse assustada, mas sentia-me um pouco espantada.
Ambos se conservavam rigidamente erectos, e eu imaginava se alguma vez se deixariam afrouxar, mesmo na privacidade. Provavelmente não, no mundo deles isso não se fazia. Ela era dura, quadrada, corpulenta, ele mostrava-se, como sempre, impecavelmente bem arranjado e autocontrolado. Podiam ter posado para o Gótico Urbano Americano, ambos tinham aço em si mesmos e não pouca arrogância.
Recebera um telefonema de Orson Vanwinkle, cerca das dez dessa manhã. Não aludiu ao que se passara na véspera, nem pediu desculpas, e mostrou-se tão circunspecto que eu percebi imediatamente que tinha alguém a seu lado.
- Miss Bateson - disse ele -, Mister e Mistress Havistock gostariam de se encontrar consigo, no apartamento deles, às onze e meia da manhã de hoje. Poderá ser?
- Encontrarem-se comigo? - exclamei, surpreendida. Para quê?
- Humm... para discutir um assunto da sua conveniência. Poderá vir?
- Está bem - respondi jovialmente. - Lá estarei.
Fui recebida à porta pela governante Ruby Querita, azeda como sempre, e conduzida para a grande sala onde se encontravam Archibald e Mabel, como se estivessem pregados às suas cadeiras de veludo.
Não perderam tempo e foram logo direitos ao assunto. Mabel Havistock é que conduzia a bola e admirei a maneira como erguia o queixo, quase fazendo desaparecer a papada.
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- Miss Bateson - disse empertigadamente -, tenho a impressão, aliás temos a impressão, de que é uma rapariga inteligente e honesta.
Fez uma pausa e eu fiquei sem saber que dizer ou fazer.
Estou certa - prosseguiu - de que conhece as actividades do detective da Polícia, Al Georgio, e de John Smack, o detective da Companhia onde estava seguro o Demaretion.
Conheço ambos - respondi cautelosamente.
Então sabe que qualquer deles pensa que o roubo foi cometido por um membro da nossa família.
Ridículo! - exclamou Archibald Havistock irritadamente.
Mantive-me calada.
Há dois factores a serem considerados... - continuou
Mabel Havistock. - Primeiro, enquanto algum membro desta família for suspeito, o pagamento do seguro relativo à perda do Demaretion será atrasado; segundo, consideramos um insulto pessoal essa suspeita. Além disso, toda esta pavorosa publicidade me perturba, pois fui educada na crença de que o nome de uma senhora só deve aparecer três vezes nos jornais durante toda a sua vida: quando nasce, quando casa e quando morre. Por último, nego em absoluto que qualquer Havistock possa ser capaz de cometer tal roubo. Archibald, concordas comigo?
- Certamente! - respondeu o marido com a sua voz trovejante.
- O que nós lhe gostaríamos de propor era que trabalhasse para nós particularmente, a fim de investigar o roubo dessa valiosa peça.
Precisei de pensar duas vezes para ter a certeza de que ela se referia ao Demaretion, pois, para mim, era o mesmo que Mabel tivesse dito, referindo-se à Mona Lisa, "essa valiosa peça".
Fiquei tão abalada ao ouvir a proposta que não respondi. Queriam contratar-me para descobrir quem roubara a moeda! Aparentemente, ela tomou o meu choque por rejeição, porque prosseguiu:
- Sabemos que se encontra dispensada do serviço na Grandby & Sons, por isso é dona do seu tempo. Podemos prometer-lhe total colaboração, não só da parte do meu marido e da minha, como de todos os outros membros da família e claro Que queremos pagar os seus serviços. Achamos que nenhum dos investigadores oficiais tem os seus conhecimentos do mundo interior da numismática.
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Nessa altura já eu recuperara a fala e sabia o que havia de responder.
- Mistress Havistock - disse -, se me querem contratar para investigar o roubo do Demaretion, terei muito gosto em aceitar, e aprecio a confiança que depositam em mim, mas se pretendem que eu passe a toda a família um certificado de inocência não podem contar comigo para isso. Aceito o trabalho, mas sem garantias de que não venha a descobrir que um membro da vossa família é culpado.
Ambos se voltaram e olharam um para o outro, mas, se houve algum sinal entre eles, não o notei.
- Veja bem, Mistress Havistock - continuei -, a senhora e o seu marido têm uma fé total na lealdade da vossa família, o que é muito louvável, mas não podem esperar que eu tome parte no encobrimento de alguém, se isso se tornar necessário. Não farei tal coisa e não podemos chegar a acordo. Se, pelo contrário, me derem carta branca e me deixarem tentar descobrir quem realmente cometeu o roubo, seja quem for, então aceito, mas só nessas condições.
- Archibald - disse ela, perturbada -, que dizes?
- Contratamo-la - respondeu este. - Creio que as condições de Miss Bateson são razoáveis.
- Muito bem - disse Mabel, erguendo novamente o queixo forte -, nós contratamo-la sem quaisquer restrições à sua actividade de investigadora. Pagar-lhe-emos cem dólares por semana, além das despesas, durante um mês. No fim desse tempo, se o caso não estiver resolvido, reunimo-nos de novo para vermos se há-de continuar nas mesmas condições ou se deve terminar o seu trabalho para nós. Isto convém-lhe?
- Sim. Desde que me possa garantir a colaboração de todos os membros da sua família.
- Posso prometer-lhe isso - disse sombriamente Archibald Havistock. - Em troca, peço-lhe apenas que, se se der o facto improvável de vir a descobrir que algum deles é o ladrão, eu seja informado antes das autoridades.
Concordei com um gesto, sem poder imaginar as terríveis consequências desse acordo casual.
Passado um bocado, Archibald Havistock foi à sua biblioteca e voltou de lá com um cheque de quatrocentos dólares, que eu aceitei gratamente. Decidimos então que seria melhor eles avisarem Al Georgio e Jack Smack de que me tinham contratado
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como sua detective particular, e pedirem aos dois homens que colaborassem comigo.
Como tenciona começar? - perguntou, com curiosidade,
Havistock.
Não tive de ponderar para responder:
Bem, conheço já todos os membros da família, excepto o
seu filho e a sua nora. Gostaria de me encontrar com eles, mas preferiria que anteriormente lhes explicassem quem sou e o que pretendo fazer. Depois telefonar-lhes-ei para lhes pedir que me recebam.
- Eu trato disso - declarou decididamente Mabel Havistock. - Não terá problemas, eles recebê-la-ão.
Que mulher aquela! Não tinha qualquer dúvida de que faria o que prometera. Tratava-se de uma grande dama e quando dizia a qualquer dos outros membros da família que saltassem, eles perguntavam apenas: "Até que altura?"
Ambos tiveram a delicadeza de se levantar quando eu saí. Apertámos formalmente as mãos e eu assegurei-lhes que lhes proporcionaria periodicamente relatórios verbais, para os ir pondo a par dos progressos, concordando todos que seria melhor não ficar nada escrito.
Quando saí da sala, Orson Vanwinkle aguardava-me no corredor atapetado. Podia ter estado a escutar atrás da porta ou a espreitar pelo buraco da fechadura, achava-o muito capaz disso.
Conduziu-me até à porta, olhou desconfiadamente à sua volta e pôs-me uma das mãos húmidas num ombro, inclinando-se para murmurar:
- Foi tão bom para si como para mim?
- Inesquecível - respondi. Ele sorriu com ar satisfeito.
Não tinha chegado a casa há mais de uma hora quando comecei a receber telefonemas, e os dois primeiros foram de Al Georgio e Jack Smack. Julgara que ficassem aborrecidos por eu ter sido contratada como detective particular para investigar um caso em que eles já trabalhavam, mas ambos pareceram aceitar a minha nova missão com equanimidade.
- Ouça - disse Al -, você terá mais possibilidades de se aproximar da família do que eu, já que sou da Polícia. Trocaremos informações, não é verdade?
- com certeza - respondi. - Estou a contar com isso.
- Continuamos a ser sócios? - perguntou, por sua vez Jack Smack.
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Depois acrescentou: - Eu mantenho-a a par do que se passar, e você conta-me qualquer coisa que vá descobrindo. Está bem?
- com certeza. Estou a contar com isso.
A reacção deles surpreendeu-me até me convencer de que nenhum me considerava uma ameaça. Que experiência de investigadora tinha eu? Era apenas uma mulher com a mania das pizzas e com mais energia do que miolos. Podiam aproveitar a minha ajuda, mas creio que nem um nem outro me levava a sério. Estava bem, se me consideravam um peso-leve eu aceitaria isso, tinha algo a ver com o facto de se apanharem mais moscas com mel do que com vinagre.
O terceiro telefonema foi de Vanessa Havistock e não foi agradável, na verdade, foi mesmo muito hostil.
- Fui informada - começou num tom gélido - de que espera que eu e o meu marido nos encontremos hoje consigo para respondermos a mais perguntas sobre o roubo.
- Sim, mas espero que não seja muita maçada para si, Mistress Havistock. Posso ir ter convosco à hora que sugerir e procurarei ser o mais breve possível.
- Já respondemos a perguntas infindáveis do detective da Polícia e desse outro de nome esquisito da Companhia de Seguros. Quando deixaremos de ser incomodados com esta questão?
Começava a sentir-me irritada, mas decidira fazer tudo com calma. Arranjar inimizade com aquela mulher não me serviria de nada.
- Sei como isso deve ser aborrecido para si, Mistress Havistock - respondi calmamente -, mas preciso realmente de informações.
- Eu não sei nada sobre o caso, absolutamente nada.
- Encontrava-se lá quando a moeda foi roubada - fiz notar -, na festa de anos da sua sogra, e é possível que tenha visto algo que não a impressionasse na altura, mas que nos possa proporcionar uma indicação vital para a solução do roubo.
Uma pausa - depois...
- Acha realmente que sim? - perguntou pensativamente. - Poderei saber alguma coisa que eu própria não saiba que sei?
- É muito possível - respondi com sinceridade -, por isso é que estou tão ansiosa em falar consigo e com o seu marido. Para avivar as vossas memórias e ver se podemos descobrir algo que ajude a solucionar este terrível caso.
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- Tem sido um pesadelo. Todas essas histórias nos jornais. Até o meu cabeleireiro quer falar no assunto. Oh, muito
bem - disse, voltando ao seu tom petulante -, recebê-la-
-emos às dezoito e trinta, durante uma hora, não mais - e
desligou.
Esperava ansiosamente encontrar-me com aquela mulher e decidi vestir-me o pior possível, como Eliza Doolittle, antes de o professor Higgins a transformar numa grande dama. Queria que Vanessa Havistock se sentisse imediatamente superior a mim, subestimando-me e ficando convencida de que nada tinha a recear.
O quarto telefonema foi feito por mim. Como os Havistocks pagavam as despesas, liguei para Tucson, Arizona, a fim de falar com Enoch Wottle. Desde que ele saíra de Nova Iorque, tínhamos trocado correspondência todos os meses.
Mas agora era a primeira vez que nos falávamos desde há três anos e iria ser, por certo, uma experiência comovente para ambos. Eu chorei um bocadinho e creio que também lhe sucedeu o mesmo a ele. Passámos os primeiros minutos a falar de problemas pessoais: da artrite dele e da minha falta de pretendentes, da casa do filho e sobre os netos.
- Enoch, diga-me a verdade, gosta mesmo de Tucson? Ele suspirou.
- Aqui não há Manhattan - disse bem-humorado. - Se quisermos uma sanduíche de pastrami quente às duas horas da madrugada, onde iremos?
Ri.
- Enoch, o senhor nunca comeu uma sanduíche de pastrami quentes a essa hora.
- Bem sei - concordou -, mas em Nova Iorque sabemos que podemos comê-la.
Depois falei no motivo que me levara a telefonar-lhe. Já lhe escrevera a contar o desaparecimento do Demaretion e ele lera a notícia nos jornais e nas revistas numismáticas que continuava a assinar. Pu-lo agora a par dos recentes acontecimentos, incluindo o meu trabalho para os Havistocks, e ele aconselhou-me a ter cuidado.
- Querida Dunk - disse - , está a lidar com alguém que correu o risco de roubar, algo de muito caro, o que significa total ausência de escrúpulos. Peço-lhe que seja muito cautelosa, pois gente desse género é capaz de tudo. Por favor, não corra riscos.
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- Não se preocupe comigo, Enoch - respondi. - Sei tomar conta de mim mesma.
- Ah! O optimismo dos inocentes!
Contei-lhe então que dera a Jack Smack uma lista dos negociantes de moedas de todo o mundo, e que a Companhia de Seguros onde ele trabalhava estava a enviar cartas de aviso e a pedir informações para o caso de aparecer alguém a querer vender o Demaretion.
- Como sabe, isso não servirá de muito. Há compradores que não olham a meios para ganhar uns dólares, especialmente se já estiverem a negociar com um cliente. O Demaretion pode desaparecer numa colecção particular e nunca mais ser visto.
- Receio que tenha razão - respondi com desânimo. Disse-lhe então que sabia que ele tinha muitos velhos amigos
metidos no negócio e pedi-lhe se podia telefonar ou escrever àqueles em quem depositava maior confiança, para me certificar se porventura se falava nalgum Demaretion que tivesse aparecido no mercado.
- Os Havistocks pagarão as despesas - continuei -, mas possivelmente será muito trabalho para si.
- Trabalho? - replicou ele. - Pelo contrário, será um prazer. Claro que farei o que me pede e vou começar hoje já. O decadracma poderá encontrar-se na Suécia, na Arábia Saudita, na Islândia ou em qualquer outro sítio. Fazer passar uma moeda pelas fronteiras é a coisa mais simples que se possa imaginar. Basta metê-la no bolso com outras. Na alfândega nenhum inspector se lembrará de ir inspeccionar os trocos. Pode ter a certeza, Dunk, de que terei muito prazer em tentar ajudá-la, e, ao mesmo tempo isso dá-me algo que fazer. Habitualmente jogo às cartas e detesto jogar.
Contei-lhe então da carta anónima que a Finkus, Holding, Inc., recebera, supostamente do ladrão, propondo-lhe a venda da moeda. A seguradora reagira com o previsto sinal afirmativo mas, tanto quanto eu sabia, até à data não voltara a receber nova carta.
- Não sei bem - respondeu Enoch Wottle com desconfiança -, mas parece-me uma grande aldrabice. Depois de um roubo importante, como este, ser feito pelos grandes tubarões, os pequenos juntam-se para ver se também apanham alguma coisa. Contudo, nunca se sabe, Dunk, trata-se de um caso fascinante. Farei o que puder para ajudar. Telefone-me sempre que queira e mande cobrar as chamadas aqui.
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Nem pensar, eu estou a trabalhar com despesas pagas.
Adeus, querido Enoch, passe bem.
Vou vivendo - respondeu filosoficamente - e, na minha idade, isso já é muito.
Passei o resto dessa tarde a pensar nas perguntas que devia fazer a Vanessa e a Luther. Na verdade, não esperava vir a descobrir algo de importante, apesar do que lhe dissera (a Vanessa) sobre a possibilidade de ela saber qualquer coisa de vital sem se aperceber disso.
O que eu queria, sobretudo, era encontrar-me com eles e ver qual seria a minha reacção. Fizera o mesmo com Ross e Roberta Minchen e chegara à conclusão de que eram verdadeiramente enfadonhos, mas, pelo que ouvira contar de Vanessa, sabia que se tratava de outro pano: lamé dourado.
Natalie chamara-lhe cabra; Al Georgio dissera que ela irradiava sexo; Orson Vanwinkle acusara-a de ser uma pega, afirmando até que tinha uma tatuagem, sem, contudo, a localizar. E, segundo todos diziam, Archibald Havistock tivera de intervir para impedir um escândalo familiar quando ela se "atirara" a Ross Minchen. Mas seria ela capaz de fazer entrar no cesto nove bolas em cada dez, só com uma mão? Eu era.
Por isso vesti-me desmazeladamente para ir ao encontro, sentindo-me bem-disposta e pensando se deveria levar comigo um bloco de apontamentos e uma caneta, para tomar nota do que dissessem. Resolvi não o fazer, achando que eles falariam mais livremente se as suas palavras não estivessem a ser registadas para a posteridade.
Além disso, achariam que eu era totalmente incompetente. Deixá-los pensar...
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Al Georgio falara-me vagamente no luxo do apartamento de Park Avenue, mas eu estava longe de me encontrar preparada para todo aquele esplendor. Levava a que o meu modesto apartamento parecesse uma espelunca e ultrapassava completamente a casa dos Havistocks mais velhos e o apartamento playboy de Vanwinkle. Na verdade, donde provinha a riqueza de Luther?
Fora obrigado a vender o Demaretion?
Um rapazinho, vestido com uma espécie de uniforme, veio abrir-me a porta. Parecia-me uma mistura de motorista e criado, e a farda era de um tom púrpura escuro, destacando-se o peitilho da camisa branca e um laço lilás. Não sei se seria da índia, da Tailândia, da Coreia, do Camboja, do Vietname... ou simplesmente de Detroit, sei apenas que a sua indumentária ofuscava.
Conduziu-me para uma sala que, realmente, não era tão vasta como a Grande Central Station, embora fosse tão luxuosa ê tão grande que eu não consegui abarcá-la com um só olhar. Tive apenas uma impressão inicial de dinheiro, dinheiro, dinheiro. Quadros genuínos, cabedal, cobre, cristal, carpetes onde os meus pés se enterravam até aos tornozelos, porcelanas - era um verdadeiro cenário num palco enorme preparado para acomodar uma boa dúzia de actores.
Luther e Vanessa encontravam-se de pé quando eu entrei, cada um deles com um copo numa das mãos e um cigarro na outra, mas não se incomodaram sequer a apertarem-me a mão. Ofereceram-me um vermute (os copos eram de cristal puro como notei) que eu recusei. Depois sentei-me num pufo de cabedal macio, enorme, a uns três metros de distância deles,
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e se instalaram num sofá forrado com pele de zebra, ou talvez de girafa. Sei que era muito exótico.
Lamento vir incomodá-los - comecei humildemente -,
mas estou certa de que Mistress Havistock os informou de
que...
Mabel - interrompeu-me secamente Vanessa.
... de que fui contratada para tentar descobrir o que sucedeu
ao Demaretion e, no processo, ilibar, se possível, os membros da família da suspeita de qualquer cumplicidade no roubo.
É ridículo! - exclamou Luther. - Ninguém nos acusou.
Só porque o pai não consegue receber o seguro...
A voz dele esmoreceu e eu tive um momento para o observar bem. Não impressionava. Era um homem alto, bem constituído, mas que parecia ter perdido peso desde que mandara fazer aquele fato, que lhe pendia do corpo como se estivesse num cabide. Pensando que poderia ser aquela a sua primeira bebida da noite, procurei ver se ele tremia, como Al Georgio me dissera. Era verdade.
Al achara que Luther Havistock era um homem à beira do desastre financeiro, mas não era essa a minha opinião, via antes um homem a deslizar para um colapso emocional: olhar vago, um tique incontrolável ao canto da boca, o cruzar e descruzar constante das pernas, as gargalhadas agudas e a testa pálida e húmida que estava continuamente a limpar com a mão trémula.
Noutras condições seria um homem apresentável, não tão bem-parecido como Archibald, mas bastante agradável. Fazia lembrar o pai no queixo firme, na boca cheia e nos olhos azuis e frios, mas tudo em escala reduzida. Tive a ideia absurda de uma casa grande, fustigada pelos elementos e destinada a cair em ruínas, sem manutenção. Era esse o problema de Luther Havistock: não ter manutenção.
Rememorei essa manhã e essa tarde em que a colecção Havistock fora acondicionada para ser transportada para o cofre da Grandby & Sons, e eles responderam prontamente às minhas perguntas, confirmando aquilo que Al Georgio e eu tínhamos sabido de Mabel e Archibald Havistock.
- Deve perceber - disse Vanessa olhando com desdém Para a minha saia de ganga - que era um dia de festa. As Pessoas estavam espalhadas, levantadas, sentadas, preparavam bebidas e falavam. É impossível recordar onde se encontravam todos em determinada ocasião.
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- Mas lembra-se de o seu sogro ter entrado na sala durante uns momentos antes de se começar a transportar as moedas?
- Disso lembro-me muito bem. Perguntou se estavam todos presentes e se já tinham tomado os aperitivos. Em seguida voltou para a biblioteca.
- Também me lembro disso - disse Luther. - O pai veio durante uns momentos à sala desempenhar o seu papel de anfitrião.
- E nenhum dos dois viu Mister Vanwinkle conduzir os dois guardas para a biblioteca?
- Não - respondeu Vanessa. - A porta para o corredor estava aberta, mas não dei por nada. E tu deste, querido?
- Também não.
Contudo, eu não estava disposta a desistir.
- Algum dos dois reparou em qualquer coisa inusitada nessa manhã, a que, na altura não tivessem prestado atenção, mas que possa ser de algum interesse?
Olharam um para o outro.
- Eu não - disse Luther limpando de novo a testa húmida. - Eu não vi coisa alguma.
- Também eu não - confirmou Vanessa. - A não ser... mas não, é uma tolice...
- O que foi, Mistress Havistock?
- Bem, como provavelmente sabe, os pratos para o almoço foram encomendados a um restaurante e a comida entregue umas horas antes. Tudo pratos frios. Lembro-me de ter ido à cozinha para ver o que iríamos comer. Esperava que Ruby lá estivesse a preparar tudo, mas não se encontrava ali. Alguns dos pratos haviam sido desembrulhados e outros não, como se ela tivesse saído da cozinha no meio dos preparativos.
- Lembra-se se a sua visita à cozinha foi antes ou depois de Mister Havistock ter aparecido na sala?
Ela olhou-me, sem pestanejar.
- Honestamente, não me recordo.
- E que fez depois de reparar que Ruby Querita não se encontrava ali?
- Tirei um pedaço de bolo de um dos pratos e fui para a sala comê-lo.
- E Mister Havistock encontrava-se na sala quando voltou?
- Honestamente, não me lembro. Oh, não creio que isto signifique alguma coisa. Ruby podia ter ido à porta, podia estar na
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casa de banho, enfim, há uma porção de explicações inocentes para ela não se encontrar na cozinha. Mas, como disse que deseja saber tudo - acrescentou jovialmente -, achei que wmbém devia contar-lhe isto.
Era uma mulher cheia de personalidade, invergava um vestido cujo preço chegaria para pagar a renda de minha casa durante dois meses: direito, de cetim verde-garrafa, preso por uma única alça num ombro, que lhe tocava no corpo ao de leve nas ancas e nas nádegas. Nada de muito provocante, mas insinuante.
Vanessa era quase tão alta como o marido, mas enquanto ele parecia dissecado, sem vitalidade, ela irradiava vigor. Podia perceber por que razão os homens não podiam tirar os olhos dela: irradiava sexo.
Mantinha-se calmamente sentada, de pernas cruzadas e mãos sobre o colo, mas notavam-se bem as amplas curvas do seu corpo cheio. Não era bonita - "notável" seria a palavra mais correcta para a definir. Tinha um cabelo preto comprido e brilhante, dividido ao meio, caindo-lhe pelos ombros como as asas de um corvo, e um rosto comprido que se salvava de parecer duro, devido aos lábios carnudos, coloridos artificialmente. Ao pé dela Felicia Dodat parecia uma escuteira.
Podia ser um pouco de maldade e inveja da minha parte, mas a verdade é que a achei um pouco vulgar, havia nela um relaxamento difícil de explicar. No entanto, podia compreender por que razão os homens a imaginavam nua: existia nela algo de animalesco e na cama devia ser um tigre voraz. Quando zangada certamente que arranhava e mordia.
- Mistress Havistock? - perguntei ousadamente. - Considera a sua família feliz?
- Oh, valha-me Deus! - respondeu ela com uma leve gargalhada. - Essa é uma pergunta pessoal. Todas as famílias têm esqueletos no armário, não é verdade? Mas, de uma maneira geral, a nossa é feliz. Não pensas assim, Luther?
- Sim - respondeu ele, ocupado em voltar a encher o seu copo com vermute tirado de uma garrafa de cristal.
Os meus propósitos de despertar o seu desdém e antipatia haviam falhado, não podia mostrar-se mais graciosa e cooperante. Porque tinha eu a sensação de que estava pelo menos um passo à minha frente?
Talvez fossem as jóias dela que me atordoassem. com aquele vestido verde-garrafa usava colar, pulseira e anel com diamantes.
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Nada de grande ostentação, nem vistoso, mas absolutamente esmagador, e exibia-as com o ar mais casual, como se toda aquela cintilação resultasse de um conjunto de medalhas ganhas por mérito próprio.
Decidi então fazer uma última pergunta à cunhada de Natalie.
- Mistress Havistock, lembra-se de alguém da sua família ou ligada a ela capaz de roubar o Demaretion? Por falta de dinheiro, por questões de vingança ou outras?
Franziu a testa por um momento, pensativa.
- Honestamente, não - disse por fim. - Lembras-te de alguém, Luther?
- Não - respondeu ele.
Subitamente ocorreu-me que nos últimos quinze minutos ela tinha utilizado o advérbio "honestamente" pelo menos três vezes. Talvez fosse a sua maneira de falar afectada, mas a minha mãe ensinou-me a desconfiar das pessoas que estão constantemente a aludir à sua honestidade. "Não lhe iria mentir" e "para lhe dizer a verdade..." Quando ouvires muitas vezes essas frases, dizia a minha mãe, agarra bem a carteira e conta os teus anéis.
Sabia que não conseguiria mais informações quer de Vanessa, quer de Luther, por isso ergui-me, agradeci-lhes a amabilidade e cooperação e dirigi-me para a porta. Então Vanessa surpreendeu-me. Aproximou-se, agarrou-me no braço, lançou-me um sorriso tão cintilante como as suas jóias e disse:
- Simpatizo consigo. Poderíamos almoçar juntas um destes dias?
- Muito obrigada - respondi, sufocada: - Gostaria imenso.
- Hei-de telefonar-lhe, para combinarmos. Apertou-me a mão e o criado de farda púrpura acompanhou-me à porta.
Nessa noite comi esparguete e salada, que comprei antes de voltar a casa. Bebi também dois copos de vinho tinto da garrafa que Al Georgio levara. Por isso, quando ele telefonou, por volta das vinte e duas, estava um bocado amolecida.
- Como passa a detective particular? - perguntou Al.
- Nem êxitos, nem fugas, nem erros - respondi. Pensava que pelo menos a última parte fosse correcta. - Estive esta tarde com Luther e Vanessa.
- Sim? Isso é interessante. Gostava de ouvir a sua opinião a respeito desses dois. Ouça, já acabei o trabalho que tinha a
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fazer aqui e vou agora para casa. Que diz se eu passar por aí, só oor meia hora, juro, para compararmos notas?
- Venha - respondi. - Bebi um pouco do seu vinho, por
isso estou em dívida para consigo. Já jantou?
- Sim. Já comi.
- Que comeu?
- Um hamburger de queijo e uma garrafa de leite com chocolate, aqui, na minha secretária.
Suspirei.
Não é maneira de se alimentar.
Isso sei eu. Estou aí dentro de vinte minutos, Dunk.
Pareceu-me mais cansado do que nunca. No entanto aceitou com gratidão um copo de vinho tinto. Está a trabalhar de mais - disse-lhe eu.
- Pois estou, mas não há nada a fazer. E que tem a contar de Luther e Vanessa?
Fiz-lhe um relato completo, que ele ouviu atentamente, sem me interromper. Quando acabei ergueu-se para voltar a encher o copo.
- O facto de Ruby Querita se encontrar ausente da cozinha é muito pouco significativo, Dunk.
- Eu sei.
- Mas irei verificá-lo. O irmão de Ruby, o tipo que foi condenado por posse de droga, bem, o advogado dele fez apelo para novo julgamento com base em mais provas. Os advogados custam dinheiro, talvez Ruby Querita visse uma oportunidade de arranjar muito. Não creio que ela tenha inteligência para isso, mas, em todo o caso, vou ver. Que acha de Luther?
- Você disse que ele estava à beira do colapso financeiro, mas eu creio que desliza para um colapso emocional... Al, o homem mal funciona.
- Sim, pode ser que tenha razão - retorquiu Al. - E Vanessa?
- Sentiu-se atraído por ela? - perguntei.
- Claro que senti - respondeu de mau modo. - Já lhe disse que se atirou a mim, e mesmo que o não tivesse feito seria a mesma coisa. Ela é uma mulher de truz!
- Pois é, mas é também mais do que isso. Disse-me que
simpatizava comigo e que gostaria de que almoçássemos as duas.
Não me diga que também se atirou a si?
Não, nada disso, creio que ela apenas quer saber o que se
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passa. Quer mostrar-se minha amiga do peito, desculpe a expressão, para saber coisas por mim, o que me faz pensar porque será. Al, você disse que tinha algo a contar-me.
Al alargou a gravata e sentou-se mais comodamente no sofá.
- Algumas coisas. O FBI meteu-se no caso. Trata-se de um crime local, por isso está fora da jurisdição deles, mas sempre que há um caso destes - grandes quantias de dinheiro, objectos de arte, ou qualquer jóia pequena e valiosa - consideram que existem grandes possibilidades dessas coisas passarem a fronteira e ficam interessados. Quiseram saber o que se passava, pediram que os mantivesse informados e perguntaram se não precisava de ajuda, ou seja, as tretas habituais. Não há problema. Depois entrámos em contacto com a Interpol, que também está pronta a cooperar, e isso ajudará um pouco no que respeita às cartas que a Finkus Holding enviou. É a companhia de Seguros de Jack Smack. Sabia que eles estavam a contactar negociantes de moedas de todo o mundo?
Acenei afirmativamente.
- Claro que sabia - comentou ele sem rancor. - E suponho que também sabe que a companhia recebeu uma carta do ladrão, ou de alguém que diz que o é, perguntando se estaria preparada para comprar a moeda?
Disse outra vez que sim com a cabeça.
- Bem, eles, os dos Seguros fizeram sinal que sim, que estavam interessados, e hoje receberam uma segunda carta. O tipo quer duzentos mil dólares pelo Demaretion.
Olhei-o, espantada.
- Al, como sabe tudo isso? Não me diga que foi Jack que lhe contou.
Ele tentou rir.
- Esse tipo não seria capaz de me revelar coisa alguma. Não, não foi ele, mas tenho um contacto na Finkus Holding. Uma mão lava a outra.
- Duzentos mil? - perguntei, ainda admirada. - Não acha que é muito para um ladrão pedir a uma companhia de seguros?
- Muito? Pelo contrário!
- Que pensa que a Finkus Holding irá fazer?
- Tentar regatear com o tipo para o fazer descer o preço. Podem oferecer uns cem mil, mas duvido. Esperarão que o ladrão perceba que não tem outro remédio senão levar a moeda a um receptador e receber dez por cento do seu valor. Então
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chegará a acordo. Continuo a dizer que não se trata de um profissional, é alguém da família.
- Sim, creio que tem razão. Al, posso preparar-lhe uns ovos
mexidos, se está com fome?
Não - o rosto enrugou-se no habitual sorriso afectuoso. Obrigado, Dunk, não é preciso, mas vou beber um pouco de vinho, se não se importa.
Sirva-se. é seu.
Fiquei a observá-lo, sentado no sofá, pensativo. Era um homem grande, cansado, sólido. Como Luther Havistock, precisava de manutenção e não a estava a ter. Nunca me sentira com tanta tendência para dispensar conforto.
Al, da última vez que aqui esteve disse-lhe qualquer coisa
a respeito de passar aqui a noite na minha cama, se quisesse. Você respondeu que quando eu decidisse queria ser o primeiro a saber. Pronto, já sabe. Quer ficar aqui durante a noite?
Ele sorriu timidamente.
- Você é muito querida, e eu gostaria muito, Dunk, mas estou estafado. Preciso de um banho quente e, sobretudo, de dormir. Não seria bom para si.
- Deixe-me ser eu a ajuizar isso. Vá tomar o duche quente. Os corpos são agradáveis, sei que provavelmente isto parece
disparate, mas é verdade. Os corpos são quentes e macios e adaptam-se uns aos outros. Não estou a falar de sexo, refiro-me ao contacto carinhoso e a murmurar palavras tolas. Tiramos a roupa e começamos a rir, não é? Bem, a mim sucede-me isso. Talvez não ria alto, mas sinto vontade de rir.
Al estava enganado, foi muito bom para mim. Há muito a dizer da intimidade e do carinho e era disso que eu estava sedenta. Ele não era nenhum Adónis, mas eu também não era nenhuma Vénus. Se ele tinha uma camada de gordura sobre os músculos duros (os hamburgers de queijo e o leite com chocolate) em mim (por ser muito magra) existia uma pele demasiado esticada sobre os ossos.
Talvez fosse a nossa disparidade física que nos fez sentir tão bem. Não houve nada de pesado naquilo que fizemos. Apenas carícias, beijos e contactos. Creio que havia nele tanta sede disso como em mim. A intimidade não precisa de traduzir-se sempre em gritos e suor, pode ser afeição sorridente.
Fizemos algumas coisas frívolas, suponho, mas na altura pareceram-me importantes e creio que também o foram para ele. Contudo, não houve paixão - nada disso. Se calhar pensam
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que se tratou apenas de uma noite casual, mas não - foi significativa.
Toquei numa cicatriz avermelhada que Al tem no peito.
- O que foi isto? - perguntei.
- Um tiro. Um tipo disparou sobre mim.
- Doeu?
- Não - replicou Al. - Foi agradável.
Al beijou-me os ossos das ancas, que têm o mau costume de me fazer saliências por baixo da pele. Depois beijou-me o estômago, liso e duro como uma tábua.
- Grávida - disse Al. - Definitivamente grávida.
- Morda a língua - respondi eu.
- Não - retorquiu ele. - A sua. E fê-lo.
E foi assim. Apenas um homem e uma mulher que tinham encontrado um remédio temporário para a solidão. Pensei que ele fosse adormecer primeiro que eu, mas deu-se o contrário. Durante a noite acordei e encontrei-me abraçada a ele, os nossos corpos estavam entrelaçados. Gemi de satisfação e encostei-me mais ao seu corpo quente e pesado.
De manhã, totalmente acordada, descobri que ele se levantara e saíra. Na minha mesa-de-cabeceira havia uma folha rasgada do seu bloco de apontamentos. Dizia: "Amo-a, Dunk."
Aquilo perturbou-me.
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A próxima paragem seria em casa dos Minchen.
Era sábado e eu telefonei a Roberta e Ross Minchen, para marcar um encontro com eles nessa tarde. Esperava expressões de desagrado, mas Roberta não podia mostrar-se mais agradável.
- Claro que falaremos consigo. A minha mãe disse-me que foi contratada, e Ross e eu achamos isso uma ideia maravilhosa. Esperamos que consiga esclarecer este maldito caso o mais depressa possível, mas receio que nos seja impossível recebê-la esta tarde. Estamos no meio dos preparativos para uma pequena festa que damos cá em casa logo à noite. Ouça, tive uma ideia fabulosa. Os nossos convidados só chegarão por volta das oito e meia ou nove. Porque não vem uma hora mais cedo para conversarmos antes? Depois pode ficar na festa, creio que gostará dos nossos amigos.
- É muito amável, Mistress Minchen, mas...
- Roberta.
- Roberta, não queria ser intrometida.
- Disparate! Não se intromete coisa alguma. Por favor venha mais cedo e fique para a nossa pequena festa. Quem sabe, pode encontrar um homem fascinante!
Era difícil resistir às efusões dela, mas eu não tinha grande vontade de passar uma noite inteira em casa daquela gente enfadonha. Poderia tomar uma bebida e depois sair, pretextando uma dor de cabeça ou coisa do género.
- Está bem, Roberta, irei. Obrigada. É preciso vestir-me a rigor?
- Au contraire - disse ela alegremente -, é muito informal, vista o que quiser. Tenho a certeza de que toda a gente vai gostar de si.
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Depois soltou uma gargalhadinha inexplicável, a qual devia ter-me avisado de que nem tudo era como eu pensava em casa dos "enfadonhos". Mas como poderia saber? Como podia alguém imaginar?
Viviam num apartamento antigo, quase nas traseiras da casa dos Havistocks. O prédio tinha um vestíbulo semelhante ao desta, com um velho porteiro e paredes de mármore que poderiam ter sido salvas de Pompeia.
Mais espantoso ainda era que os Minchens, um casal novo, houvesse aparentemente decidido fazer da sua casa uma réplica em ponto pequeno da dos Havistocks, ou talvez o mobiliário tivesse vindo da casa dos pais. Encontravam-se ali os mesmos cadeirões e sofás de veludo castanho, cortinados pesados e tantos ornatos e enfeites que o ambiente se tornava sufocante. Havia também grande número de plantas ornamentais que precisavam urgentemente que lhes limpassem o pó.
Contudo, o mais surpreendente, e que ficava deslocado naquela necrópole, era o maior aparelho de televisão que eu já vira. Por cima e dos lados estavam armários com cassettes e uma câmara de vídeo. Estranho.
Roberta e Ross foram receber-me à porta, cheios de amabilidade, ambos vestidos de uma maneira informal: ele com calças leves, uma camisa aberta e um casaco de desporto; ela com um fato de treino florido, de fecho éclair, o que, devido ao seu corpo gordo, lhe dava o aspecto de um Churchill feminino ou talvez de uma enorme boneca Kewpie.
Não eram as pessoas mais atraentes que eu conhecera - ele fazia estalar os nós dos dedos e tratavam-se sempre um ao outro por "querido", ou "amor" -, mas mostraram-se bastante hospitaleiros. Fizeram-me sentar num dos seus cadeirões quentes, estofados, de veludo, e insistiram tanto que eu tomasse qualquer coisa que me decidi por um copo de vinho branco, gelado. Pensei que ambos estivessem a beber vodca com água, mas vim a descobrir que se tratava de gim puro.
Como de costume comecei por me mostrar humilde, dizendo que não queria intrometer-me nas vidas deles, mas que, para tentar resolver o mistério do Demaretion desaparecido, precisava que me respondessem a algumas perguntas.
- Por exemplo - disse, dirigindo-me a Ross Minchen. Nem sequer sei qual é a sua ocupação. Trabalha nos têxteis, com o seu sogro e o seu cunhado?
- Oh, não - respondeu rapidamente -, nada disso. Sou
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vice-presidente da Digman-Findle Corporation. Fazemos exclusões plásticas . .
Não quis revelar a minha ignorância perguntando-lhe que diabo era aquilo.
- Praticamente é ele quem dirige a companhia - declarou
jovialmente a mulher. - Não é verdade, querido?
Bem, não é tanto assim, amor - retorquiu modestamente, levando a mão à cabeça decerto para se assegurar de que os seus compridos cabelos, penteados de lado, estavam no seu lugar e lhe escondiam a calvície.
Não tive coragem de lhe perguntar quais eram os seus rendimentos, mas um vice-presidente costuma significar bastantes dólares. Além disso, toda a gente dizia que Vanessa se tinha atirado a Ross, e uma mulher como ela alguma vez se interessaria por um homem sem dinheiro? Era duvidoso.
Comecei então a falar do assunto que ali me levara, recordando-lhes a manhã e princípio da tarde em que as moedas foram acondicionadas para seguirem para a Grandby & Sons. Ross e Roberta disseram-me o mesmo que os outros: que se encontrava lá muita gente, que as pessoas andavam de um lado para o outro e que era difícil, ou mesmo impossível, afirmar onde se encontravam em determinado momento.
Fiz-lhes a mesma pergunta que já fizera a Vanessa e a Luther Havistock: teria algum deles reparado em algo de inusitado nessa manhã?
Olharam um para o outro e ambos abanaram a cabeça. Não, nada tinham visto!
Experimentei então a sensação de que estava a ser um falhanço como detective. Não era que as pessoas me mentissem, eu é que não lhes fazia as perguntas adequadas.
- Espero que compreendam que o que me contarem será rigorosamente confidencial. Ninguém será citado como sendo a fonte de qualquer informação. Agora, tendo isto em mente, devo dizer-lhes que o detective Al Georgio, da Polícia de Nova Iorque, e John Smack, investigador da Companhia de Seguros da Grandby, pensam ambos que um membro da vossa família está envolvido no roubo do Demaretion. Se o que eles pensam é verdade, e eu ponho ênfase no "se", quem pensam que seria capaz de o ter feito?
Eles entreolharam-se mais uma vez: ele pálido, solene, de testa franzida; ela com os olhos saídos e com o seu ar de coelho, com a boca entreaberta.
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- Orson Vanwinkle - disse finalmente Ross Minchen. Ele seria capaz de roubar a moeda. É um podre.
Podre? Quando tinha eu ouvido aquela palavra pela última vez? Mas não me ri.
- Foi a Natalie, querido - disse Roberta Minchen para o marido. - Foi com certeza ela. - Depois voltou-se para mim, com os incisivos a brilharem. - Detesto lançar suspeitas sobre a minha própria irmã, mas temos de aceitar que ela é uma verdadeira desgraça. Aqueles ditos amigos... Acontece que sei que anda metida na droga e essa gente tem sempre necessidade de dinheiro.
Fui dispensada de responder pela campainha da porta. Os Mínchens levantaram-se de um salto.
- Os nossos convidados! - exclamou Ross.
- Vai gostar deles - disse Roberta. - São tão diferentes. Nos trinta minutos seguintes chegaram quatro casais, mais
ou menos da idade dos Minchens. Fui apresentada a todos, mas nunca mais me lembrei do nome de qualquer deles - o que não tem qualquer importância.
Poderia pensar-se que numa reunião de cinco casais houvesse pelo menos uma mulher bonita ou um homem bem-parecido
- não quero dizer com isto que os estranhos devam ser imediatamente julgados pela sua atracção física e Deus sabe que não sou nenhuma beleza -, mas não é porventura, o aspecto físico que nos faz pensar que vale a pena conhecer alguém que se encontra pela primeira vez?
Não era que os amigos dos Minchens fossem todos feios, não, mas os homens faziam lembrar garrafas de leite - lembram-se do formato delas? - e as mulheres pareciam travesseiros amarrados pelo meio. Os homens começavam a ficar calvos e alguns tinham tiques, pele feia e bigode. as mulheres pintavam-se demasiadamente - e mal - e em vez de rirem quase guinchavam.
Tencionava sair dali o mais depressa possível, mas depois decidi ficar mais um bocado. Não foi por causa das suas personalidades cintilantes - que o não eram - mas sim pela conversa, que para mim era puro chinês.
Diziam coisas como estas:
- Esperem até ver o que nós trouxemos!
- O nosso é melhor!
- Harry diz que é o melhor que já fizemos! "
- Vai ganhar o prémio da Academia!
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Martha diz que eu tenho muito jeito!
Três para um, vamos, parece-me um pouco de mais!
no meio desta conversa os donos da casa iam distribuindo bebidas e eu recebi mais um copo de vinho branco, mas fiquei com ele na mão ao passo que os outros bebiam como se não houvesse dia seguinte. Um dos homens, que estava a tentar deixar crescer a barba - sem, aliás o conseguir muito bem examinou-me dos pés à cabeça e depois disse:
- Espero que passe a fazer parte do nosso grupo. Precisamos de alguém do seu género!
Que quereria ele dizer com aquilo?
As coisas continuaram assim durante cerca de uma hora, e todos iam na segunda ou na terceira rodada de bebidas, quando Ross Minchen gritou:
Chegou a altura do espectáculo!
Imediatamente vários outros repetiram as palavras dele, excitadíssimos.
Sentámo-nos todos, incluindo eu, voltados para o grande ecrã do aparelho. Apagaram-se algumas luzes e Ross meteu uma cassette no vídeo. Nessa altura já eu tinha percebido que não ia ver E Tudo o Vento Levou nem Música no Coração, e, de facto, não se tratava disso.
Era pornografia, claro, e do pior hard-core, mas, como se isso não bastasse, os intérpretes eram Roberta e Ross Minchem e o seu grupo de amigos. A cor era óptima, o som profissional e ali estavam todos eles no ecrã prateado fazendo coisas que nunca me ocorrera que as pessoas pudessem ou quisessem pôr em prática.
Li Havelock Ellis e Kraft-Ebing e, de uma maneira lamentável, sou capaz de compreender que certa espécie de gente possa ter uma paixão louca por um carvalho ou que andem a cheirar um pedaço de cabedal, mas o que eu estava a ver era de mais. Pareciam pessoas tão vulgares - homens de negócio e profissionais, donas de casa e empregadas - que na verdade, vê-los ali nus, a fazerem aquelas coisas, não era realmente nada de excitante, apenas assustador e triste.
Quando começaram a passar a segunda cassette, decidi fugir dali antes que ela acabasse e iniciassem novas filmagens. Julguei que saía sem darem por mim, pois todos tinham os olhos colados ao ecrã e faziam comentários em voz baixa, soltando fisadinhas nervosas, mas Roberta apanhou-me junto da porta e aPertou-me o braço com uma mão forte.
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- Sei que tudo isto é novo para si - murmurou. - Mas há-de voltar, há-de voltar!
Sorri debilmente e saí.
- Foi a Natalie - disse ainda Roberta. - Ela é obscena! Fui para casa o mais depressa que pude, despi-me e tomei
um duche. Ensaboei-me durante bastante tempo e deixei-me ficar debaixo do chuveiro para me sentir bem lavada. Não permiti a mim própria pensar naquilo que vira. Cantarolava canções infantis, para esquecer.
Contudo, daí a pouco, já com o meu velho roupão de flanela vestido, beberricando vodca da garrafa de Jack Smack, tive de pensar naquilo e ponderar nas extravagâncias dos seres humanos, de todos nós. Era tudo muito perturbador, os alicerces pareciam abalados, e recordei um a um todos os jogos de basquetebol em Dês Moines, para me impedir de cair no redemoinho do além.
Não fazia ideia do efeito que pudesse ter tido o comportamento aberrante dos Minchens no desaparecimento do Demaretion - se é que tivera algum -, era apenas outro exemplo de uma família que parecia uma colecção de mal-ajustados, totalmente diferentes do aspecto que apresentavam ao mundo.
Seremos todos assim? Vulgares e apresentáveis, mesmo enfadonhos, em público e depois, na privacidade, algo de diferentes e talvez monstruosos? Seria eu assim?
Creio que isso foi o que mais me deprimiu nessa noite. Aqueles estúpidos filmes pornográficos eram engraçados, quando se pensava bem neles, mas o pior era terem-me levado a duvidar de mim mesma, pensar no que seria capaz de fazer. Só o facto de ter visto aquela gente infeliz na sua acção frenética rebaixou-me sem o desejar, ao nível deles.
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Suponho que devia ter telefonado a Al Georgio e a Jack Smack para lhes contar o que se passava com os Minchens, mas não consegui fazê-lo. Creio que me sentia demasiado envergonhada só por pensar em relatar o que vira, pois não sabia como fazê-lo em termos delicados. Além disso, na altura não via que possíveis relações aquilo pudesse ter com o roubo do Demaretion.
Por isso não lhes telefonei, e esperei passar um domingo tranquilo, em casa, lendo o New York Times e tomando um bom pequeno-almoço, com uma sanduíche de queijo e cebola. Depois tencionava meditar profundamente a respeito dos Havistocks para tentar arranjar uma teoria sobre quem tinha quebrado o Oitavo Mandamento e roubado a moeda.
Mas, afinal, acabou por não ser o dia tranquilo que eu planeara.
Primeiro, Al Georgio telefonou. Ia buscar a filha, Sally, para passarem o dia em Central Park. Depois iriam a um cinema e a um novo restaurante em West Side, que tinha fama de preparar as melhores costeletas grelhadas da cidade. Estaria eu disposta a passar o dia com eles?
- Al - perguntei eu. - Há quanto tempo não vê a sua filha?
- Mais ou menos há um mês.
- Então ela há-de querer passar o dia consigo, os dois a sós, e ficaria ressentida comigo, e com razão. Gostaria de a conhecer, Al, mas tenho a impressão de que hoje a sua filha o quer só para ela, e eu só iria estragar tudo.
- é possível que tenha razão. Sei que ela se encontra excitadíssima com o que vai fazer hoje.
- Claro que sim. Há um mês que não o vê e deve estar a
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pensar que o pai não quer saber dela. Vão os dois sozinhos e passem um dia maravilhoso.
- Está bem, passaremos. Adeus, Dunk.
Esperava que fosse a última interrupção na minha tranquilidade, mas não, daí a pouco tempo o telefone tocou de novo. Dessa vez - surpresa! - era Archibald Havistock.
- Miss Bateson - disse com a sua voz profunda - gostaria de ter uma breve conversa a sós consigo e agora é a altura ideal para isso. Mabel foi para a igreja com os Minchens e Ruby não trabalha aos domingos. Posso pedir-lhe que venha cá agora? Não demorará muito tempo. Seria muita maçada?
- com certeza que não, Mister Havistock. Estarei aí o mais depressa possível.
- Meta-se num táxi.
Porque não? Ele é que pagava as despesas.
Foi o próprio Archibald Havistock quem me abriu a porta do apartamento e me conduziu à biblioteca, onde me sentei em frente dele, do lado oposto da grande secretária. Pediu desculpa, saiu e voltou pouco depois com um tabuleiro de prata com uma cafeteira cheia de café, chávenas de porcelana finíssimas, colheres de prata e guardanapos de linho verde, além de um prato com croissants miniaturais, quentes, uma taça com bolas de manteiga e um boião de doce de laranja.
- Muito obrigado - disse eu, olhando para tudo aquilo. Não precisarei de comer mais durante o dia todo.
O sorriso distante, gelado, apareceu novamente nos lábios dele, enquanto me servia uma chávena de café fumegante.
- Sirva-se - convidou. - Os croissants são de uma patisserie de Lexington Avenue. Creio que são muito bons.
Era quase meio-dia de uma manhã de domingo, mas ele encontrava-se vestido como se fosse para uma reunião de directores ou talvez para um congresso. Creio que se tratava do homem mais impecavelmente vestido que eu já vi. Parecia que brilhava desde o cabelo prateado até às biqueiras dos sapatos reluzentes e pensei se não mandaria passar a ferro os atacadores dos sapatos.
- Não lhe vou pedir um relatório sobre os progressos que já fez nas suas investigações - começou ele e eu pensei que talvez a sua voz forte pudesse estilhaçar uma garrafa de champanhe, se alguma vez gritasse -, pois sei que mal começou, mas há duas coisas que eu quero que saiba. Primeiro, que foi por sugestão de minha mulher que a contratámos. De início, opus-me,
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por achar que seria melhor deixar que os detectives profissionais resolvessem o assunto, já que os conhecimentos de Miss Bateson acerca de moedas gregas antigas, só por si, não me pareciam o suficiente...
- Compreendo perfeitamente, Mister Havistock, eles têm, com certeza, muito mais experiência como detectives.
- ... mas depois, quando soube que os membros da minha família eram suspeitos, mudei de ideias. Acho desesperante que os meus filhos, os seus cônjuges e os nossos empregados possam ser acusados de terem roubado o Demaretion, por isso acedi aos desejos da minha mulher, esperando que Miss Bateson pudesse ser capaz de nos tranquilizar a respeito de nenhum Havistock ter feito tal coisa.
- Eu disse-lhe, senhor, que não podia dar-lhe garantias desse género.
Fez um gesto como que a pôr o assunto de lado, depois continuou:
- Também apreciei que tivesse concordado em informar-me primeiro a mim, se o ladrão fosse um elemento da minha família. Agora, segunda coisa que queria discutir consigo era isto: Orson Vanwinkle contou-me que Miss Bateson lhe fizera perguntas sobre o meu anel de sinete. É correcto?
Aquilo foi um choque para mim, pois iria jurar que Horsy estava tão bêbado que não poderia lembrar-se daquilo que tínhamos dito. Pus manteiga e doce noutro daqueles deliciosos croissants e só então respondi:
- Mister Vanwinkle disse a verdade. Fiz-lhe umas perguntas sobre isso.
Havistock olhou-me com ar grave.
- Fiquei a pensar no seu interesse e percebi... Quem quer que substituiu a caixa do Demaretion por uma vazia serviu-se do lacre com o meu sinete. Não é isto?
Disse que sim com a cabeça porque me era impossível falar: estava com a boca cheia.
Ele bateu as palmas com ar de satisfação, e desta vez o seu sorriso tinha calor.
- Muito, muito inteligente de sua parte, Miss Bateson, e os detectives profissionais ainda não se aperceberam do significado do anel. A minha mulher tem razão, fizemos bem em contratá-la. Você é uma rapariga muito inteligente e cheia de percepção e agora tenho esperanças de que possa ter sucesso naquilo que Georgio e Smack falharem. A minha única objecção
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reside no facto de não me ter feito a pergunta directamente a mim.
Limpei os lábios ao guardanapo de linho e respondi:
- Não o quis incomodar, Mister Havistock.
- Não - disse ele abanando a sua grande cabeça leonina. - Não aceito isso. Quando a minha mulher e eu lhe pedimos que investigasse este triste caso, estava implícito que nós ambos também seríamos interrogados por si. Não esperávamos qualquer tratamento preferencial.
- Está bem - retorqui, servindo-o de outra chávena de café e voltando também a encher a minha.
- Fico satisfeita por ouvir isso. E, já agora, só tem um anel com sinete, ou há mais algum?
- Apenas um, que eu saiba.
- Costuma usá-lo?
- Muito raramente, mas tenho grande estimação nele por ser um presente da minha mulher.
- Onde o guarda?
- Algumas vezes aqui - disse abrindo uma das gavetas da secretária -, outras no meu guarda-jóias, no quarto. É onde se encontra agora.
- Então qualquer pessoa da casa o poderia ter tirado de lá temporariamente ?
- Receio que sim - respondeu Archibald Havistock com um suspiro. - Raramente o uso, apenas para selar documentos e coisas assim, e nunca o tive fechado ou escondido. Sim, qualquer pessoa que soubesse da existência do anel o poderia tirar.
- Tal como teriam fácil acesso às duas caixas vazias que guardava no armário do seu quarto.
- Sim, também. É inútil repetir-lhe quanto tudo isto é doloroso para mim, mas pelo que sei a respeito do crime convenço-me de que Georgio e Smack têm razão e de que um membro da família está realmente envolvido no caso. Não é uma perspectiva muito agradável.
- Quer recuperar o Demaretion, não quer? Havistock olhou-me com assombro.
- Claro que sim, trata-se de uma gloriosa obra de arte.
- Concordo, por isso também não quero que ele desapareça no meio de qualquer colecção particular onde nunca mais será visto.
- Pensa que possa suceder isso?
- Talvez se não o encontrarmos primeiro. Mister Havistock,
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como caracterizaria as suas relações com a sua família? íntimas? Distantes? Frias?
Ele olhou-me fixamente com os olhos azuis a brilharem.
Tentei ser um bom chefe de família, mas sou o primeiro a
confessar que nem sempre o consegui. O meu pai era um homem severo, rígido, despótico, e acho que aprendi muito com ele. Os tempos mudam e eu devia ter mudado também, mas não o fiz, não pude. Maior disciplina, mais dureza, de nada serviram, devia ter sido mais simpático, mais compreensivo quando os meus filhos eram jovens. Fui eu que falhei.
Num repente deixava de ser o homem completo e seguro de si. Admitia o insucesso e a fraqueza, era enfim alguém muito mais humano e simpático.
Não tenho filhos - disse -, por isso não sou a pessoa
indicada para dar conselhos, mas creio que chega uma altura em que é preciso fazê-los saltar do ninho para ver se sabem voar.
- Sim - disse tristemente Havistock - essa altura chega sempre, e os meus caíram todos, como pedras.
- Creio que está a exagerar - respondi ousadamente. Podem não ter estado à altura das suas expectativas, mas vivem já as suas próprias vidas. Deve deixar que eles cometam erros, doutra maneira como poderão aprender?
Archibald Havistock não respondeu, mas eu tive a impressão de que ele estava a par das fragilidades de todos os seus filhos
- e do sobrinho também - e que passava demasiado tempo a meditar no que poderia ter feito de maneira diferente, de forma a assegurar-lhes sucesso e felicidade.
Fui para casa de táxi, com muito em que pensar, mas acabei resolutamente de ler o Sunday Times, desejando ter aceite o convite de Al para passar o dia com ele e com a filha. Depois lavei alguma roupa, bebi um iogurte de amora e preparei-me para passar o serão a ver televisão, ou talvez empreendesse uma breve viagem ao exterior, para comer um hamburger ou um pedaço de pizza de anchovas.
Contudo, cancelei todos esses nobres planos e fiz uma coisa completamente disparatada. Telefonei a Jack Smack, desejando no fundo que ele não atendesse. Mas atendeu.
- Olá, Dunk - disse, parecendo sinceramente satisfeito por me ouvir. - Como está?
- Muito bem. Não interrompi nada?
- Não, estou aqui sentado, sozinho, a contar as paredes.
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Queria que ele percebesse que se tratava de um telefonema profissional e não pessoal.
- Há uma coisa nova a respeito do Demaretion e talvez esteja interessado em saber.
- Sim? Mas talvez seja melhor não falarmos nisso ao telefone. Já jantou, Dunk?
- Ainda não - respondi, detestando-me.
- Há um pequeno restaurante novo em West Side que tem fama de servir as melhores costeletas de porco da cidade. Quer ir experimentar?
- Não - respondi apressadamente. - A carne de porco faz-me borbulhas na pele.
- Está bem - disse Jack -, veremos se isto lhe agrada. vou num instante comprar uns bifes e umas batatas fritas. Tenho em casa os componentes para uma boa salada. Entretanto, você mete-se num táxi para aqui, eu pago a deslocação, jantamos, falamos do Demaretion e em seguida deixamos a natureza seguir o seu curso.
Não gostava da última parte, assustava-me.
- Está bem - retorqui debilmente.
O apartamento dele, um sótão, parecia uma fábrica: alta tecnologia com tudo de metal e fórmica e com uma cozinha completamente equipada - era a maior divisão da casa (a casa de banho era a única sem janela). A cama, reparei nervosamente, era grande, das de água, cheia, macia e lasciva.
Como tinha um forno de microndas, um quarto de hora depois de eu chegar, Jack servia uma refeição deliciosa numa mesa de vidro leitoso apoiada em dois cavaletes de metal negro. Pôs também na mesa uma garrafa de bom vinho - aquele rapaz sabia viver. Acompanhando as batatas apresentou creme azedo e cebolinho - não faltava nada.
Enquanto comíamos falei-lhe do anel de sinete e no que Vanwinkle e Havistock tinham dito a respeito dele.
Jack parou de comer e bateu com a palma da mão aberta sobre a mesa.
- Que diabo, não me lembrei disso e aposto que Al Georgio também não. - Depois olhou-me com admiração. - Dunk, você tem talento para investigadora! Foi um bom raciocínio.
- Bem, talvez, mas não conduziu a coisa alguma, ou seja, quero dizer que qualquer pessoa da família poderia ter usado o sinete.
- Bem sei, mas eu devia ter pensado nisso, já que sou o profissional. Alguma coisa mais?
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Não - respondi, decidindo não falar no passatempo dos
Minchens. - Nada.
Bem... - murmurou Jack, enquanto comia a salada
(com demasiado sal para o meu paladar). - Recebemos outra carta do ladrão anónimo. O tipo quer duzentos mil dólares pelo Demaretion. Nem pensar!
Que vai fazer agora, Jack?
- Regatear.
E como? Por carta? Pelo telefone?
O tipo é muito esperto, envia-nos cartas de diferentes
pontos de Manhattan, praticamente impossíveis de seguir, e nós respondemos-lhe por meio de notícias da necrologia, em código, publicadas no Times. Sei que tudo isto parece uma história de capa e espada, mas resulta. Se está interessada, fica já a saber que lhe vamos oferecer vinte e cinco mil dólares.
- Acha que ele aceitará?
- Não, creio que não, tem-nos presos pelos cabelos e sabe-o. Provavelmente, ficaremos pelos cinquenta mil dólares, à volta disso. Entretanto, eu vou investigando e talvez o apanhe antes de pagarmos. Bem... já chega de falar de trabalho. Tenho tofutti de chocolate no frigorífico. Está interessada?
- Obrigada - respondi -, mas não me apetece.
- A mim também não, mas tenho um bom conhaque e isso apetece-me.
- Jack, come assim todos os dias?
- Claro que não, ficaria um balão, se o fizesse. Habitualmente descongelo um desses pratos prontos para comer que sabem a cola, mas uma ou duas vezes por semana gosto de cozinhar.
- Para si?
- As vezes - respondeu Jack com um sorriso que trazia muitas insinuações, ou, provavelmente, nada queria dizer.
Deixámo-nos cair na cama de água e fomos bebendo o conhaque por boiões de geleia.
- Tenho copos de cristal - disse Jack -, mas ocasionalmente gosto de beber por estes boiões para me lembrar donde vim.
- E donde foi?
- Da pobreza - respondeu com uma curta gargalhada. Consegui livrar-me dela, Dunk, mas continuo a lembrar-me dos tempos em que uma simples sanduíche de manteiga de amendoim era uma refeição.
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Não fazia a mínima ideia se Jack estava a falar verdade ou a mentir, pois era um actor consumado. Contou-me histórias divertidas numa dúzia de dialectos e os seus movimentos podiam ser tão graciosos como os de um bailarino, ou tão cómicos como os de um palhaço. Parecia ter um grande talento para divertir os outros e, na verdade, eu nunca me sentira tão bem-disposta, não parava de rir.
- Sabe - disse Jack tirando-me o boião da geleia das mãos e pondo-o de lado -, um amigo meu, um grande conquistador, disse-me uma vez que a melhor maneira de seduzir uma mulher era fazê-la rir. Acha que é verdade?
- Bem, é um começo - repliquei.
O problema é que depois de nos encontrarmos nus, balouçando sobre a cama de água, ele continuava a desempenhar o mesmo papel. Não queria pensar com quantas mulheres estivera para aprender todas aquelas coisas. Pois não há dúvida de que me educou. Tratava-se de um perito - mas de certo modo divorciado do que estava a fazer, sem se deixar envolver verdadeiramente, como um actor que tivesse desempenhado um papel demasiadas vezes.
Todas estas reflexões surgiram-me posteriormente, na altura sentia-me apanhada naquele remoinho, incapaz de me concentrar em coisa alguma, a não ser na sua beleza física e na habilidade com que me proporcionava tudo aquilo que eu sentia. Ele sabia como fazer as coisas. Amava-o e detestava-o ao mesmo tempo.
Levou-me a casa no seu Jaguar.
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Começava a saber como os detectives trabalhavam: não se podia ficar sentado no escritório à espera que nos viessem dizer coisas, era preciso procurar, investigar, fazer perguntas embaraçosas, maçar as pessoas e tornar-se aborrecido.
Eu podia fazer tudo isso, pois não só me pagavam para tal (além das despesas), como sentia também um enorme amor pelo Demaretion. Em consequência detestava que a moeda tivesse desaparecido. Além do mais, quem o roubara obrigara-me a fazer figura de idiota e a atravessar um mau bocado, levando-me a passar um recibo por uma caixa vazia - por isso eu tinha interesse pessoal em tudo aquilo. Queria vingar-me:
Mantendo a minha disposição ousada, telefonei a Mabel Havistock, na segunda-feira de manhã, e perguntei-lhe se poderia falar com ela o mais cedo possível.
Prometeu que me receberia às catorze horas em ponto sem se mostrar surpreendida ou contrariada - mas falou-me num tom altivo, como se eu estivesse a pedir uma audiência à rainha. Agradeci-lhe timidamente.
A minha bravura sofreu um grande abalo quando, depois do meio-dia, recebi o correio. Três catálogos, as contas do telefone e da electricidade, e um sobrescrito branco, com o meu nome e endereço dactilografados mas sem qualquer indicação do remetente..
Lá dentro, numa única folha de papel branco, dactilografado a meio da página, em maiúsculas, lia-se: "Afaste-se, senão..." Não tinha assinatura
Muito melodramático e assustador. A minha primeira reacção foi apanhar um avião para Dês Moines e passar o resto da vida a jogar basquetebol junto da garagem.
Segunda reacção: fúria. Quem seria o malandro que estava a
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tentar assustar-me para me afastar do caso do Demaretion? Como se atrevia?
Terceira reacção: chamar a Polícia, que foi o que fiz. Levei quase meia hora a tentar encontrar o detective Al Georgio e contei-lhe então que recebera aquela carta anónima, ameaçando-me.
- Diabos me levem - disse lentamente. - Papel branco, liso?
- Sim.
- Tudo dactilografado?
- Sim.
- Mexeu-lhe?
- Claro que lhe mexi. Se não o fizesse como havia de a ler? Abri-a, tirei de lá a folha de papel, desdobrei-a e li-a. Como havia de fazer tudo isto sem tocar no papel?
- Está bem, está bem - observou Al apaziguadoramente.
- Não merece a pena irritar-se. Eu vou buscar a carta, para a mandar examinar, e sabe o que encontraremos? Nada, zero. Deve ser igual às que a Finkus Holding tem recebido: papel branco, dactilografado numa Olympia vulgar, sem quaisquer impressões digitais. Bem, veremos. Sabe o que isto significa, não sabe, Dunk? É que está a aproximar-se...
- A aproximar-me de quê? - gemi. - Não descobri nada de importante, Al, absolutamente nada.
- Que tem andado a fazer? com quem tem falado? Então, porque já o contara a Jack Smack e não queria de
modo algum favorecer qualquer deles, relatei o que se passara com o sinete e o que Vanwinkle e Archibald Havistock me tinham dito sobre o assunto. A reacção de Al foi idêntica à de Jack.
- É verdade.
- Bem, é difícil de acreditar que essa descoberta tenha provocado a ameaça que hoje recebeu. Deve haver mais alguma coisa.
Fez uma pausa e eu estive tentada a dizer-lhe qual era o passatempo da Roberta e Ross Minchen. Depois, pensei que, como isso nada tinha a ver com o roubo do Demaretion, Al não precisava de saber.
- Que vai fazer hoje? - perguntou Al.
- Dentro de uma hora vou falar com Mabel Havistock. Quero interrogar todos os que se encontravam no apartamento quando o Demaretion desapareceu.
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Isso parece-me sensato, e bastante seguro.
Depois só me falta trocar impressões com Ruby Querita.
Será a seguir.
Al ficou silencioso durante uns momentos. Em seguida:
Dunk, tenha cuidado consigo, não entre muito a fundo
no assunto. A carta assusta-me.
E a mim!
Quer mudar-se para um hotel? Alterar o seu número de
telefone? Posso proporcionar-lhe protecção durante as vinte e quatro horas do dia, sabe isso?
Não, continuarei como até aqui. Talvez eu tenha ouvido
qualquer coisa que ameace o ladrão, mas não faço a menor ideia do que seja. Al, como correu o dia com a sua filha?
- Foi maravilhoso. Perfeito. Falei-lhe em si. Ela disse que gostava de a conhecer.
- É amorosa, e eu também gostava de a conhecer. Para a próxima vez que passar o dia com ela convide-me.
- com certeza. -Tenha cuidado consigo, Dunk.
- Tenciono ter.
- Sabe o número do telefone da minha casa e onde me pode encontrar durante o dia. Não se envergonhe, chame-me em qualquer altura.
- Agradecida, Al. Espero não me ver numa situação crítica, mas, se isso suceder, será bom pensar que você está aí.
- Estou, sim - confirmou ele.
Era um esplêndido dia de Junho! O céu claro, limpo, sol, uma brisa acariciadora. Manhattan não é só um lugar cheio de gente atarefada e de excrementos de cão, algumas vezes a luz a brilhar nas torres cintilantes provoca-me uma grande sensação de prazer. Senti exactamente isso quando comecei a andar por Central Park e me dirigi para East Side, sem sequer olhar para trás. Nada me podia assustar num dia como aquele, a não ser, talvez, a matriarca do clã Havistock.
Se de facto Mabel Havistock não tinha alfinetes no seu corpete, a verdade é que se sentava como se tal acontecesse e fiquei a pensar há quanto tempo não permitiria ela que as suas costas tocassem no encosto das cadeiras. Era realmente uma mulher dominadora e severa e, para evitar sentir-me completamente intimidada, tinha de lembrar a mim própria que fora ela mesma quem quisera contratar-me.
Fui recebida à porta do apartamento por Ruby Querita, que me sorriu, significando isso, provavelmente, que me reconhecia
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agora como amiga da família. Mas a meio do corredor apareceu Orson Vanwinkle e ela afastou-se.
- Olá, boneca - disse Vanwinkle com o seu sorriso lupino, acariciando-me a face. - Madame Defarge está à sua espera - murmurou apontando para a sala. - Vão ter uma agradável conversa?
Respondi que sim, com um baixar de cabeça.
- A respeito de quê?
- Do roubo do Demaretion - retorqui, fitando-o bem nos olhos.
- Oh, essa maçada antiga - replicou, nada desconcertado.
- Para mim não passa de um pedaço de metal. A Companhia de Seguros pagará, vai ver. - Depois baixou o tom de voz e perguntou: - Quando voltamos a ter outra cena?
- Cena?
- Sabe o que é: divertimento e brincadeiras.
Juro que o homem era maluco, mas isso não o tornava menos perigoso. Afastei-me e entrei na sala onde encontrei Sua Majestade sentada, muito direita, num dos detestáveis sofás de veludo castanho. Fez-me graciosamente sinal para me sentar ao seu lado. Cheirava intensamente a lavanda - e tenho a certeza de que as gavetas dela exalavam o mesmo odor.
- Não gosto do seu cabelo - declarou, examinando-me. Precisava realmente de fazer alguma coisa dele.
- Bem sei - respondi, sentindo-me humilhada. - Tenho de o ir arranjar um destes dias.
- Faça isso e, se quiser, posso indicar-lhe um bom cabeleireiro. De que deseja então falar-me?
Não fora um começo muito auspicioso, mas eu resolvi ir direita ao assunto, explicando que estava a entrevistar todas as pessoas que se encontravam presentes no dia em que as moedas tinham sido acondicionadas para serem levadas para o cofre da Grandby.
- Já relatei todas as minhas actividades nessa manhã ao detective Georgio e você estava presente. Respondi a todas as perguntas dele.
- Às dele. As minhas são de índole mais pessoal. Mabel Havistock olhou-me friamente:
- Como, por exemplo?
- O detective Georgio e o investigador da Companhia de Seguros, Smack, estão convencidos de que uma pessoa da vossa família tomou parte no roubo. São ambos homens experientes
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e não fariam tal presunção levianamente. Será capaz de me indicar o nome de uma, ou mais, que possam, eventualmente, estar envolvidas no caso?
Ela fez um gesto nervoso, sobressaltado, com uma mão.
Não lançarei suspeitas sobre quem quer que seja da minha família - respondeu.
Como queira, Mistress Havistock, mas contratou-me
para descobrir a verdade e a sua recusa em cooperar, por mais bem-intencionada que seja, só tornará as coisas mais difíceis. Está bem, ponhamos de parte as pessoas da sua família e falemos de empregados. Há quanto tempo trabalha para si a Ruby Querita?
Quase há dez anos.
- Confia nela?
- Em absoluto.
- Sei que um irmão dela está preso.
- Isso nada tem a ver com Ruby. Tenho total confiança nela.
- Trabalha seis dias por semana?
- Cinco, mais meio dia ao sábado.
- Ela cozinha e faz a limpeza da casa?
- Cozinha, sobretudo, e faz alguns trabalhos leves. Duas vezes por semana vem um homem duma firma de limpezas aspirar e limpar o pó, e uma vez por mês uma equipa da mesma firma faz uma limpeza geral, incluindo as casas de banho.
- Não se encontrava aqui qualquer desses homens no dia do desaparecimento do Demaretion?
- Não.
- Mas tinham conhecimento da colecção de moedas?
- Sim, certamente. Estavam bem à vista, na biblioteca. Pedi várias vezes a meu marido que as guardasse no cofre de um banco, mas ele nunca quis.
- Os numismatas são assim mesmo, minha senhora - respondi suavemente. - Gostam de ter as suas moedas num sítio onde as possam ver, examiná-las, gozar a presença delas. Quem teve a ideia de vender a colecção do seu marido?
- Foi ele, e eu concordei. Estamos presentemente a fazer uma avaliação dos nossos bens e em vez de tentarmos dividir as moedas entre os nossos filhos, deixando umas tantas a cada um, achámos melhor vender a colecção e juntar o dinheiro ao resto dos bens.
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- Então suponho que o seu marido já não seja um coleccionador activo?
- É verdade, creio que fez a sua última compra há cinco anos, e desde então tem vendido muitas. Houve uma altura em que chegou a ter mais de seiscentas moedas.
- Sim? - exclamei, surpreendida. - Não fazia a mínima ideia disso.
- Não consigo perceber como pode a colecção do meu marido ter alguma coisa a ver com o desaparecimento do Demaretion?
- Provavelmente nada - confessei - mas estou a tentar saber o mais possível, pois penso que até uma coisa sem importância nos poderá levar a uma descoberta importante. Respeito a sua decisão de não mencionar ninguém da sua família, mas gostaria que reconsiderasse essa decisão, poderia apressar as coisas se me desse uma indicação, por mais pequena que fosse. Não quer mencionar ninguém'?
Eu observava-a atentamente e quando lhe fiz a pergunta vi que as suas feições pesadas começaram a descair. Foi como se tivesse posto uma máscara de cera muito perto da chama, mas como, naquele caso, era a própria carne que se derretia, todas as suas feições se tornavam flácidas. Coisa terrível de ver, por que a deixava apenas com a sua tragédia e enorme tristeza. Nem sombras já da proverbial força de vontade.
- Não - disse em voz baixa -, não mencionarei quem quer que seja.
Não havia nada a fazer.
Encontrava-me no corredor da escada, à espera do elevador, quando apareceu Natalie Havistock, frenética como sempre. Dava a ideia de se ter vestido para uma mascarada, mas a peça de vestuário de que me lembro melhor era um casaco de lona branco, bastante sujo, com uma espécie de galões militares nos ombros.
- Olá, Dunk! - exclamou. - Tem sabido muitas coisas estes dias?
Abraçou-me e ergueu-se nas pontas dos pés para me beijar ao de leve nos lábios, o que, aliás, eu dispensaria bem.
- Que estava a fazer na morgue? - perguntou ela, e não pude deixar de rir, porque tinha razão.
- Estive a falar com a sua mãe, Nettie.
- com a querida mamã? Ela não tem passado bem estes últimos tempos. Alguma coisa a anda a consumir e aposto que
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não é nenhum homem. Ouça, querida, quer ir a uma festa
logo à noite?
- Uma festa? - perguntei, surpreendida. - De que gé-
Uma festa, uma orgia, em East Village. Centenas de pessoas bebidas e erva com fartura. Talvez Coca-Colas, se tiver sorte. Se não gostar do ambiente, pode ir-se embora. Está
bem? O seu namorado também vai?
Akbar El Raschid? É como se chama a si próprio, mas o
verdadeiro nome dele é Sam Jefferson. Já ouviu falar dele, não é verdade? Estará lá, sim. Então vai?
Está bem - concordei.
Natalie abriu a sua volumosa mala e tirou uma esferográfica e um bloco de apontamentos, com uma capa de pele de porco. Pensei qual teria sido a loja que ela teria honrado com a sua presença e com as mãos leves. Nettie escreveu o endereço, rasgou a folha e meteu-a no bolso do meu casaco de camurça.
- Tente ir - recomendou ela. - Vai gostar.
- A que horas começa?
- Por volta das nove, mas só aquece lá para a meia-noite. Ponha o seu cinto de castidade.
- Agradecida - respondi -, pelo que diz deve ser realmente uma festa muito atraente.
- Na, não é preciso isso, a não ser que você queira. Ouça Dunk, pode emprestar-me dois dólares?
- Posso emprestar-lhe uma nota de cinco.
- Já é o suficiente.
Entreguei-lhe então a nota de cinco dólares, pensando que a poderia incluir nas despesas que o pai dela me pagaria.
- Obrigada. Pago-lhe um destes dias, lembre-me isso. Depois entrou à pressa no apartamento, enquanto eu ficava
pacientemente à espera do elevador.
Que se há-de vestir para uma festa, uma orgia em East Village? Não um vestido preto e um colar de pérolas, com certeza. De resto, também não tinha pérolas. Resolvi, portanto, vestir umas calças de ganga e uma blusa branca, de mangas compridas e um pequeno decote que deixaria ver o início do peito, se eu o tivesse. E o meu casaco de camurça, claro.
Não fazia ideia de como chegar àquela morada indo no metropolitano ou de autocarro, por isso meti-me num táxi.
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O motorista não se sentiu muito satisfeito por me conduzir para aqueles sítios.
- Tem o seu seguro de vida pago? - perguntou-me. Mas, na realidade, quando saí do táxi e olhei à volta, não vi nada que me metesse medo. Não havia cadáveres na valeta e reparei até em duas árvores enfezadas que tentavam sobreviver.
O local da festa não foi difícil de descobrir. Passava pouco das dez horas, mas já havia muita animação. Tocavam uma gravação dos Pink Floyd - creio que The Dark Side of the Moon - e o volume de som era tão exagerado que se tornava ensurdecedor.
Não se encontravam ali "centenas de pessoas", mas talvez chegassem por volta da meia-noite, quando começasse "a animar". No entanto, o último andar do prédio - uma espécie de sótão - estava bastante cheio: umas trinta ou quarenta pessoas, de três cores, cinco raças e cinco sexos, uma espécie de Nações Unidas marginais.
Nettie não exagerara quanto às bebidas e à erva, pois havia grande porção das duas coisas, além de travessas com bolinhos, mas, receando que tivessem haxixe ou qualquer droga mais forte, não lhes toquei. Ninguém me prestava atenção, o que para mim era óptimo. Servi-me de um pouco de vodca num copo de plástico - não havia gelo disponível - e disfarçadamente baixei o volume do som. Ninguém fez objecções, tenho a impressão de que não deram por isso, estavam todos meio surdos.
Procurei Natalie entre a multidão, mas não a encontrei. Vi então um rapaz alto, forte encostado a uma parede, olhando o que se passava à sua volta com um desprezo divertido. Usava um gorro vermelho na cabeça e uma argola de ouro numa orelha. Devia ser Akbar El Raschid, ou melhor, Sam Jefferson. Um rapaz simpático com uma barbicha à Van Dyke. Dirigi-me a ele.
- Creio que temos um conhecimento mútuo - disse.
- Alá? - perguntou, olhando-me indolentemente. Depois endireitou-se e observou-me. - He, você é alta. Jogou nos Globe Trotters?
- Não foi bem. Nos Celtics. Ele fez estalar os dedos.
- Já sei quem é. Dunk, não é? A Nat falou-me de si, diz que é uma mulher esperta. Prazer em conhecê-la.
- Foi você que roubou o Demaretion? - perguntei.
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Se ficou chocado ou se sentiu insultado não o revelou.
Quem? O quê? Onde? Oh, refere-se à moeda que o pai de
NaT perdeu? Na, não a pinei. Era uma moeda. Se me decidisse
à vida do crime, as moedas não me interessariam para nada. Deitava as mãos a notas, que valem mais e são mais fáceis de transportar. As moedas são pesadas de mais. Você sabe como nós os vigaristas costumamos ser: preguiçosos.
Aquela moeda vale muito.
E então? Sabe quantas notas se podem meter numa malinha pequena? E porque está a dizer-me isso a mim? Mesmo agora nos conhecemos, Miss Sherlock Holmes.
Desculpe - retorqui -, mas pagam-me para investigar o
roubo. Pergunto a toda a gente.
- Não diga mais. Mas olhe para mim: sou puro como a neve, certo?
Era difícil resistir ao sorriso dele. Arranjou-me outro vodca, ofereceu-me uma fumaça do cigarro que estava a fumar - que eu recusei - e começou a fazer comentários fascinantes sobre as pessoas que nos rodeavam.
- Olhe para eles - disse. - Têm de ser os primeiros entre os primeiros, novas modas, novos restaurantes, novas músicas, nunca podem ser os segundos. Pegam numa coisa, experimentam-na, põem-na de lado e vão tentar outra nova, tal como frutos kiwi de conserva ou talvez bifes grelhados sobre excrementos de vaca secos. Está a perceber. Eles correm, correm e correm. Qual é a última novidade? Bem, é ser parricida. Então tenho que matar o meu pai. No ano seguinte é matricídio. Lá se vai a mamã. Não há verdades - é o problema deles.
- Onde se formou? - perguntei. Ele olhou-me demoradamente.
- Tenho um MBA de Wharton - disse. - Vai servir-se disso contra mim?
- Não, mas porque não se utiliza desse diploma?
- Prefiro roubar, boa senhora - replicou ele sorrindo e mostrando os dentes mais brancos que eu já vi.
Era delgado, solto, com uma maneira desconjuntada de andar - como uma marioneta com os cordéis frouxos. Parecia ser dois homens - o rapaz turbulento de Harlém e o intelectual observador. Não sabia se o devia levar a sério, talvez tudo aquilo fosse apenas uma máscara para ocultar o seu desespero. Um carácter complexo.
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Nessa altura apareceu Natalie Havistock e agarrou-o por um braço, num gesto de proprietária.
- Olá, Dunk - exclamou. - Ainda bem que pôde vir. O tipo está a impingir-lhe a sua conversa de negro? O MBA da Wharton e tudo o mais? Tudo tretas, não passa de um trabalhador do campo. Enche-me aquela carroça, amarra esse fardo.
Ele mostrou outra vez os dentes e apalpou um dos seios de Natalie.
- Não, minha Nat querida, não foi conversa. A Dunk quis saber se eu roubei a moeda do teu papá e eu confessei que sim, que a tínhamos roubado os dois, trabalhando em conjunto.
- Não lhe dê ouvidos - aconselhou Nettie. - Ele hoje está a voar!
Ele estava a voar e eu também! Já não podia suportar mais aquele ar sufocante, o meu cérebro agitava-se num turbilhão e não só do fumo dos cigarros de erva. Não conseguia discernir se Akbar El Raschid me estaria a enganar, mas pensei que, apesar dos seus modos indolentes, ele tinha um cérebro bem perspicaz. Aquilo a que Nettie chamava a sua conversa de negro podia ser fingimento, uma maneira de desviar as atenções sobre a sua possível culpa.
Como Nettie previra, cerca da meia-noite a festa atingiu o auge, chegava gente de minuto a minuto. Alguém levantou o som do aparelho e os meus ouvidos começaram a latejar. Alguns pares tentaram dançar, mas a maioria limitava-se a oscilar, fumando ou bebendo, ou fazendo ambas as coisas, olhando à sua volta e sorrindo vagamente.
Circulei e falei com várias pessoas. Uma delas revelava interesse pelo "grito primário", outra pela "poesia da Islândia", mas, com alguma sorte não voltarei a ver nenhuma delas.
Realmente aquilo estava longe de ser o meu género de festa. Muitos dos convidados eram ainda adolescentes - na idade deles, eu ia a festas onde se tocava Post Office e Spin the Bottle
- por isso decidi ir-me embora. Ainda não tinha encontrado o dono ou a dona da casa, mas sabia que tentar fazer uma despedida delicada naquele ambiente seria inútil.
Olhei à minha volta à procura de Natalie e, finalmente, encontrei-a num canto, encostada a Akbar El Raschid, agarrando-o pelas lapelas do casaco camuflado que ele usava. Era óbvio que estava zangada, pois gritava com a cara muito perto da dele, que se limitava a olhá-la com o seu sorriso indolente.
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Levei uma infinidade de tempo para descobrir um táxi - a verdade é que não me sentia tentada a percorrer ruas desertas àquela hora -, mas, finalmente, tive a sorte de arranjar um, ferrugento, e lá consegui chegar a casa em segurança, tão satisfeita que dei uma grande gorjeta ao motorista, desejando-lhe um bom dia (às duas da manhã!).
Quando abri a porta o telefone estava a tocar e eu corri para
ele. .
- Está? - perguntei, ofegante.
Dunk? - exclamou Al Georgio. - Onde diabo se meteu? Estava quase disposto a chamar os fuzileiros. Depois da carta que recebeu...
- Agradeço ter-se preocupado comigo - respondi -, mas estou bem. Fui a uma festa em East Village para conhecer o namorado de Natalie Havistock.
- O vadio? E divertiu-se?
- Na verdade não.
- Soube alguma coisa?
- Primeiro ele disse que não tinha nada a ver com o caso e depois afirmou que ele e Natalie haviam sido os autores do roubo. Não sei em que acreditar.
- Sim, o tipo é um vigarista.
- Quando me vim embora estavam a discutir, não sei porquê. Provavelmente, não significa coisa alguma.
- Provavelmente não.
- Al, sabia que os Havistocks utilizam serviços de limpeza comerciais? Vai lá um homem todas as semanas para aspirar e, de mês a mês, uma equipa faz uma limpeza completa à casa.
- Sim. Sei isso.
- E verificou se têm álibis?
- Claro que sim, logo no segundo dia. Nenhum deles pode estar implicado.
- Estava só a perguntar - murmurei humildemente.
- Está bem, Dunk. Pergunte o que quiser. Agora preciso de ir dormir um bocado.
- Mais uma vez muito obrigada por se ter preocupado comigo.
- Nem tem que agradecer - respondeu Al um pouco rabugento.
Tomei um duche e lavei a cabeça, para tirar o cheiro a fumo do cabelo, e depois de o ter secado e penteado, olhei-me ao
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espelho. Mabel Havistock tinha razão, precisava de fazer alguma coisa dele.
Caí na cama, pensando que adormeceria instantaneamente, mas tal não sucedeu, dei voltas e mais voltas na cama. Estava convencida de que ouvira nesse dia qualquer coisa significativa, só que não conseguia lembrar-me do que era. Finalmente, mergulhei num sono perturbado, posso até ter ressonado - já me disseram que o faço ocasionalmente -, mas o certo é que não estava ali homem algum para me tocar com o cotovelo nas costas.
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- Tem de me tratar por Vanessa - disse na maneira mais amável que se possa imaginar, tocando nas costas da minha mão com as suas unhas cor de sangue - e eu chamo-lhe Dunk. Não é essa a sua alcunha?
Disse que sim com a cabeça, com o meu melhor sorriso.
Vanessa voltou-se ligeiramente e ergueu um dedo. Imediatamente apareceu um criado a seu lado, curvando-se com deferência e olhando para o interior do seu decote. Ela causava esse efeito nos homens que se encontrassem num raio de quinze metros: as cabeças voltavam-se, as cadeiras eram arrastadas e, suponho eu, corria a testosterona.
- Quero - disse Vanessa com precisão - um vermute muito seco, puro, apenas com uma azeitona. Dunk?
- Um copo de vinho branco, por favor.
- Disparate! - replicou firmemente. - Já ninguém bebe vinho branco. E um kir royale - disse para o criado, que acenou com a cabeça, sorrindo como um idiota, e afastou-se rapidamente. - Vai gostar. Champanhe e cassis. Olhou em volta.
- Não é um lugar engraçado?
Concordei que o era, na verdade, pois tratava-se de um pub em falso estilo Tudor na Terceira Avenida, perto da Rua Sessenta e Dois, com tecto com vigas, paredes estucadas, lustres, a imitar cristal, madeiras reluzentes, metais cintilantes e veludo vermelho. Um verdadeiro cenário teatral.
A ementa, que estava escrita a giz num quadro preto, compunha-se, sobretudo, de bifes, costeletas, rins grelhados e coisas assim.
Nós éramos duas das cinco mulheres que ali se encontravam, todos os outros clientes pertenciam ao sexo masculino, homens endinheirados, com fatos de três peças, que erguiam de vez em
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quando os olhos do prato para olharem longamente Vanessa Havistock. Eu imaginava que a conversa entre dois deles, poderia ser a seguinte: "Vamos atirar uma moeda ao ar antes de nos metermos com elas. O que perder fica com o poste."
O telefonema dessa manhã fora uma surpresa. Eu julgara que Vanessa quisera apenas ser delicada quando falara em almoçarmos juntas, mas não, lá estava a convidar-me para ir ter com ela "àquele local engraçado da Terceira Avenida". Vestira uma velha saia de corpo, sabendo que não havia qualquer possibilidade de ficar tão bem vestida como ela.
Levei um bocado de tempo a perceber por que razão escolhera aquele pub, depois descobri que era praticamente um estabelecimento onde só iam homens, cheio de fumo dos charutos, e que Vanessa queria estar onde eles estavam. Como todas as mulheres devem ter um passatempo, ela só se sentia bem no meio da admiração que despertava.
Pediu o almoço para as duas - naturalmente não confiava em que eu soubesse o que queria - e comemos fatias de rosbife frio, com uma salada de agriões e alcachofras.
- Tem montes de proteínas - observou Vanessa, dando-me uma palmadinha na mão (que mulher tão física que ela era!) - e é óptima para o sexo. A propósito como vão as coisas consigo neste campo?
- Maravilhosamente - respondi com desenvoltura.
- Alegra-me ouvir isso - disse Vanessa, sabendo perfeitamente que eu mentia.
O kir royale era óptimo, assim como as fatias de rosbife, mas Vanessa em breve mostrou que o encontro não era meramente social.
- Como vão as suas investigações? - perguntou com ar casual, enquanto deitava um pouco de azeite sobre a salada.
- Vão bem. Tenho falado com imensas pessoas.
- Sim? - perguntou de novo Vanessa, partindo a carne. com quem?
- Praticamente com toda a gente. Falei consigo e com o seu marido, claro, com Mister e Mistress Havistock, com Roberta e Ross Minchen, com Orson Vanwinkle, com Natalie e com o namorado dela.
- Oh, não há dúvida de que tem circulado.
Sentia-me fascinada pelo modo como Vanessa comia. Os seus dentes aguçados mastigavam a carne, os vegetais e o pão com uma alegria feroz. Havia uma certa animalidade na sua
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maneira de comer e eu pensei que a minha primeira reacção em relação a ela fora correcta. Possuía muita animalidade.
- Acerca de Ross Minchen... - disse, ocupada com o prato
e sem me fitar. - Não acha que ele é... bem... um pouco estranho.
Estranho? - repeti. - Em que sentido.
- Bem... faz coisas esquisitas - murmurou vagamente.
Iria jurar que ela sabia a história das cassettes vídeo dos Michens, mas não falei nisso.
Que espécie de coisas, Vanessa?
Bem, para já, Ross gosta de compor haiku pornográficos,
esses poemas japoneses com três linhas.
- Minchen sabe escrever japonês?
- Oh, não - respondeu ela rindo alegremente -, escreve-os em inglês. Alguns deles são engraçados, diferentes, apesar de mal feitos e porcos.
Estranhos, todos eles eram estranhos.
Vanessa pediu café e consultou a lista das sobremesas, mas concordámos em que todas pareciam apropriadas para fazer engordar, por isso resolvemos não as comer. Vanessa tirou então um maço de Kent da carteira e estendeu-mo.
- Não, obrigada - respondi. - Não fumo.
- Isso é inteligente da sua parte. Eu estou viciada. - Tirou um cigarro e instantaneamente o criado apareceu junto dela com um isqueiro para lho acender.
- Obrigada - murmurou Vanessa.
- Não tem de quê - respondeu o criado, afastando-se a contragosto.
- Não é um amor? - disse Vanessa, no tom que empregaria para fazer um comentário acerca de um belo fox terrier.
Depois, fumando e beberricando o seu café, perguntou-me quais tinham sido as minhas reacções pessoais em relação à família Havistock.
- Tenho sempre curiosidade em saber o que as pessoas pensam quando falam connosco pela primeira vez.
Percebi que ela queria ficar ao corrente do que eu já investigara a respeito do roubo do Demaretion, por isso disse-lhe que aquilo que eu já descobrira poderia ser gravado na cabeça de um alfinete. Vanessa ouviu as minhas discretas declarações com toda a calma até chegar ao caso de Orson Vanwinkle. Os seus olhos negros faiscaram, depois afastou com uma das mãos o cabelo que lhe caía para a cara. O seu aspecto era absolutamente selvagem.
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- Orson Vanwinkle é um homem vil, vil - disse com intensidade. - Se fosse a si não queria nada com ele.
- Tenho de o interrogar - respondi.
- Acho que sim, mas nunca, nunca deve confiar nele. Todos o detestam e correu uma dúzia de empregos antes de Archibald ter pena dele e o contratar como secretário. Mas foi um erro, esse homem provoca calafrios. Uff! - acrescentou, estremecendo de facto.
Vanessa pediu a conta e, quando esta lhe foi entregue, pagou com um cartão de crédito plastificado, que tirou da bonita mala de brocado.
- O plástico é uma maravilha, não é? - perguntou. Concordei que sim, que era, agradeci-lhe o almoço delicioso
e ela disse que devíamos voltar a encontrar-nos.
Quando íamos a sair, o chefe dos criados, que aparentemente era um amigo de longa data, cumprimentou-a efusivamente. Agradeceu-lhe ela ir ali e afirmou que esperava voltar a vê-la em breve. Depois beijou-lhe a mão e eu iria jurar que lhe entregara um papelinho dobrado. Já no passeio Vanessa abriu a carteira para se certificar de que guardara o seu cartão de crédito, e o papelinho desapareceu. Contudo, fiquei a pensar se tudo aquilo não seria imaginação minha.
- Tenho de a deixar, Dunk, o meu dentista espera-me. Oh, não é nada de grave, apenas revisão e limpeza, mas há muito tempo que ando a adiar a consulta.
- Mais uma vez muito agradecida pelo almoço, Vanessa. Gostei muito.
- Foi muito agradável, não foi? - disse, erguendo-se um pouco para me beijar nas faces.
Comecei a caminhar para sul, pensando em ir a Bloomingdale comprar umas coisas. Percorri uns vinte metros, depois olhei para trás. Vanessa estava ainda parada em frente do restaurante e quando reparou que eu me voltara disse-me adeus. Prossegui então o meu caminho para sul.
Na Rua Sessenta e Um voltei-me outra vez e, embora o passeio se encontrasse cheio de gente, pareceu-me ver Vanessa a avançar rapidamente pela avenida, na direcção oposta à minha. Resolvi segui-la. Tenho pernas compridas e, quando quero, sou capaz de andar bastante depressa. Fui atrás dela até à Rua Sessenta e Cinco, Este.
Era a primeira vez na minha vida que "perseguia" alguém, mas lera bastantes histórias de detectives para ter uma ideia de
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como devia proceder: não me aproximar muito nem ficar demasiado para trás; utilizar as montras das lojas e as janelas como espelhos; se necessário, atravessar a rua e seguir pelo passeio oposto; e tentar dar o menos possível nas vistas - o que era um pouco difícil para uma mulher da minha altura e ainda por cima com uma cabeleira indisciplinada.
Mas, como Vanessa nunca olhou para trás, pensei ter sido bem sucedida. Ela atravessou então a Terceira Avenida, dirigiu-se rapidamente para a Segunda e entrou num edifício a meio do quarteirão. Atravessei por minha vez e fui examinar o prédio. Não havia ali qualquer letreiro que indicasse a existência de um dentista, e tudo levava a crer que se tratava apenas de apartamentos particulares. Vanessa Havistock desaparecera como fumo.
Caminhei ao longo da Segunda Avenida, atravessei-a outra vez e voltei para oeste. Respirando fundo entrei no vestíbulo do prédio onde a vira sumir-se e li rapidamente a placa onde se viam os nomes dos moradores. Não havia nenhum dentista, mas sim um L. Wolfgang que podia ser Lenore Wolfgang, a gorda advogada de Archibald Havistock.
Continuei a andar na direcção da Bloomingdale, mas não cheguei a entrar, fui antes a uma papelaria e comprei uma esferográfica e um bloco de apontamentos. Dirigi-me então para casa e passei o resto da tarde a escrever o que sabia a respeito do desaparecimento do Demaretion. Achava que era chegada a altura de organizar as minhas investigações e registar todos os acontecimentos, conversas, etc., antes que as esquecesse. Levei mais tempo do que julgava - havia tanta coisa - e tive de voltar a trás várias vezes para acrescentar pormenores que omitira. Depois li o que redigira e fiquei convencida de que escrevera mais ou menos tudo, mas aquilo nada adiantava. Pensei em como podiam os detectives, como Al Georgio e Jack Smack, suportar tantas incertezas e coisas em suspenso! A mim enlouqueciam-me.
Enchi um copo de vinho, daquele que Al ali deixara, e estendi-me no sofá, mas como sou comprida, fiquei com os pés e um bocado das pernas de fora. Comecei então a beber lentamente o vinho e a relembrar todas as ocorrências. Nada, não descobrira uma só pista.
Contudo, estava certa de ter ouvido algo de significativo, embora não soubesse o que era. Dei uma palmada na testa, para aclarar as ideias, mas não resultou. Acabei de beber o vinho,
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pus o copo em cima da mesa, para não o pisar quando me levantasse e depois passei pelo sono, confesso que o fiz.
Fui acordada cerca das vinte horas pela campainha, levantei-me, um pouco atordoada, e dirigi-me à porta, descalça. A vantagem de viver no rés-do-chão é poder ver pelo ralo quem é o visitante. Era Al Georgio e carreguei no botão para lhe abrir a porta.
- Venho perturbá-la? - perguntou.
- Acordou-me. Já viu uma coisa assim? A estas horas.
- Quem me dera poder fazer isso.
- Um dia difícil?
- O habitual.
- Comeu?
- Sim, comi qualquer coisa.
- Não me diga, eu sei. Um hamburger de queijo e leite com chocolate.
- Hoje não - respondeu Al com o seu sorriso garoto. Mandámos buscar o jantar a um restaurante chinês. Delicioso.
- Al, ainda há vinho suficiente para dois copos. Quer um?
- Claro que sim.
Sentou-se no sofá, esfregando a testa com ar cansado.
- Não tenho, de facto, nada a dizer-lhe, Dunk, apenas vim aqui num salto para ver se estava bem.
- Estou óptima.
- Não recebeu mais cartas com ameaças?
- Não. Felizmente.
- Quero levar comigo a que recebeu. Como lhe disse, provavelmente nada nos revelará, mas nunca se sabe. Que fez hoje?
- Fui almoçar com Vanessa Havistock.
- Sim? E descobriu alguma coisa?
- Só que ela detesta Orson Vanwinkle - respondi, decidida a não lhe contar que a vira entrar para o prédio da Rua Sessenta e Cinco -, mas como ninguém gosta...
- Sim, o tipo não é nada simpático. Além disso, tem cadastro. Sabia?
- Cadastro?
- Sim, cadastro criminal, mas são coisas pequenas. Infracções de trânsito, queixas dos vizinhos por causa de barulho excessivo, acusação de bebedeiras em público e falta de pagamento de dívidas, que depois veio a saldar. A acusação mais pesada foi por causa de uma infracção mas a queixa foi
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posteriormente retirada. Provavelmente ele pagou a multa. Um patife completo.
Tem todo o aspecto disso - respondi pensativamente.
Mas tudo isto data de há mais de cinco anos - disse
ainda Al. - Aparentemente, a partir daí emendou-se.
Desde que foi trabalhar para Archibald Havistock - observei.
Sim - concordou Al, olhando-me. - Tivemos a mesma
ideia. Creio que deve estar a ganhar bem e que Archibald lhe tenha imposto uma vida certinha.
Abanei a cabeça.
- Um leopardo não pode mudar de hábitos - murmurei.
- E mais vale um pássaro na mão do que dois a voar - retorquiu Al. - Como tem passado, Dunk? Tenho sentido a sua falta.
- E eu também senti a sua, Al.
- A porcaria do trabalho - resmungou Al. - Nunca tenho tempo para fazer o que gostaria.
- Como, por exemplo?
- Viver um pouco, estar consigo, ver a minha filha. Enfim, sentir-me bem.
- Al, pensa que este caso do Demaretion ficará alguma vez resolvido?
- Não sei, parece um bocado parado. Não podemos perder muito tempo com ele, pois estão sempre a surgir novos casos e temos de racionar...
Nessa altura a campainha da porta tocou outra vez.
- Quem poderá ser agora? - perguntou instintivamente.
- Jack Smack - murmurou Al com um sorriso triste. Tinha razão.
Os dois homens cumprimentaram-se friamente.
- Boa noite - disse Jack.
- Como está - respondeu Al.
E foi tudo, nem um aperto de mão; pelo contrário, uma espécie de hostilidade contida. Sentaram-se ambos no sofá. Dei a Jack um copo do vodca que ele ali deixara, mas se Al ficou surpreendido por eu saber o que Jack bebia, não o mostrou.
- Como correm as coisas, Dunk? - perguntou Smack.
- vou sobrevivendo.
- Ela recebeu uma carta com ameaças - interrompeu Georgio. - Creio que se trata do mesmo género das que a sua companhia tem recebido. Podemos vê-la por favor, Dunk?
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Fui buscar a carta. Os dois detectives aproximaram-se e examinaram-na atentamente, pegando-lhe ao de leve pelos cantos.
- É a mesma coisa - exclamou Jack Smack - iria jurá-lo! A mesma máquina, o mesmo papel, e os os estão meio cheios, como nas cartas que recebemos.
Georgio dobrou a folha de papel, meteu-a no sobrescrito e guardou-o no bolso do casaco.
- vou mandá-lo para o laboratório - declarou, mas não creio que possam descobrir mais do que você viu, Jack.
- Não descobrirão, as nossas também foram examinadas. - Olhou para mim pensativamente. - Sabe o que esta carta significa, não sabe? Um membro da família Havistock está com certeza envolvido no caso, pois só eles sabem que você foi contratada e anda a fazer perguntas. Não pode ser alguém de fora.
- Concordo com isso - afirmou Al. Depois voltou-se para Jack: - Trocamos impressões?
- Certamente. Tem alguma novidade?
- Trata-se de questões financeiras. Archibald Havistock vale cerca de seis milhões de dólares, mas grande parte dessa quantia advém do valor de terrenos, e, mesmo assim, estão quase todos em nome da mulher. Não está exactamente no que se chama uma boa situação líquida e, embora não se encontre em maus lençóis, claro, também não navega num mar de rosas.
- Talvez fosse por isso que decidiu vender a colecção - lembrei eu.
- Não ficaria surpreendido - retorquiu Jack. - O filho, Luther, está empenhadíssimo. Tudo o que possui, o apartamento, o carro, a casa de Verão, foi comprado com empréstimos a altos juros, e as despesas dele devem ser brutais.
- Basta olhar para as jóias de Vanessa - afirmei.
- Certo. Creio que Luther está nas lonas. Ganha cerca de sessenta e cinco mil dólares por ano e provavelmente gasta o dobro. Talvez o papá o ajude, mas duvido.
- E os Minchens? - perguntei.
- Esses encontram-se em boa situação financeira - informou Al Georgio. - Além do seu vencimento, Ross tem rendimentos, não muitos, mas o suficiente para pagar a renda da casa. Ao que parece, é um pouco agarrado ao dinheiro.
- Ouvi dizer a mesma coisa - disse Jack Smack - e não compreendo isso. Ross possui uma boa conta bancária, mas nos últimos dois anos tem levantado importantes quantias sem se
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saber de qualquer investimento que o justifique. Cinco mil e dez mil dólares de cada vez.
Georgio olhou-o, imediatamente alerta.
- Tem feito isso com frequência? Mensalmente?
Não - respondeu Jack. - Quatro ou cinco vezes por
ano. Pode ser chantagem, pois, tanto quanto sei, não aposta nas corridas nem tem outros gastos clandestinos.
Talvez, pensei, Ross gaste isso tudo em filmes pornográficos.
- Antes de você chegar falávamos de Orson Vanwinkle. disse então Georgio. - Há cinco anos estava falido, mas agora vive sumptuosamente.
- É verdade - concordou Smack. - Não sei donde lhe vem o dinheiro, mas o tipo vive à grande.
- Talvez Havistock lhe pague um bom vencimento. Jack abanou a cabeça.
- Não sei quanto é mas não seria nunca o suficiente para pagar os seus brinquedos. Duvido até de que o que ganha chegue, ao menos, para o brande que bebe. E sobre a filha mais nova, a hippy, não sabem nada?
- Natalie recebe uma boa mesada - disse Al - proveniente do dinheiro que receberá quando casar... se alguma vez isso suceder. Creio que a maior parte é gasto com o amante e o resto do bando.
Ficámos silenciosos, olhando uns para os outros e depois para as nossas bebidas. De súbito, senti-me tomada de pânico ao pensar que cada um dos dois homens estava a fazer tempo para que o outro saísse primeiro. Se fosse esse o caso, ainda estaríamos os três ali sentados quando o Sol nascesse sobre Brooklyn.
- Bem - declarei por fim -, se admitem que foram os motivos financeiros que levaram ao roubo do Demaretion, então o culpado mais provável é Luther. Não acham?
Os dois detectives disseram que sim com a cabeça, não me parecendo muito convencidos.
- Logicamente faz sentido - concordou Georgio -, mas não parece. Mesmo que ele conseguisse efectuar a troca enquanto Archibald foi à sala, não creio que tivesse coragem para isso.
- Concordo - afirmou Smack -, mas a mulher tinha, e duas pessoas desesperadas por dinheiro, podem trabalhar em conjunto. Se o caso se passou assim, Luther foi impelido por
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ela. Aquela mulher é capaz de roubar o facho à Estátua da Liberdade, se conseguisse arranjar maneira de o transportar. Novo silêncio. Olhei-os, sentados lado a lado no sofá. Al, sólido, pesado e digno de confiança. Jack, leviano, esbelto, despreocupado e elegante. Se tivesse de escolher entre os dois? Bem, não sabia.
- Óptimo - murmurou Georgio suspirando e levantando-se.
- vou andando.
Jack acabou de beber o vodca à pressa.
- Eu também vou. Foi um longo dia.
Vi, com tristeza, dirigirem-se ambos para a porta. Ambos! Apetecia-me bater-lhes com as cabeças uma na outra, mas, em vez disso, beijei-os na face e sorri docemente quando me agradeceram as bebidas. Depois fechei a porta, tranquei-a e pus a corrente. Idiotas!
Lavei os copos, despejei os cinzeiros e fui tomar um duche. Lavei furiosamente a cabeça e, em seguida, tentei fazer alguma coisa do meu cabelo. Como Al teria dito, nada consegui, zero. Vesti o pijama e meti-me na cama, sozinha outra vez. Estava a tornar-se cansativo.
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O dia seguinte foi cheio de peripécias. Começou bem, teve maus momentos e acabou outra vez bem. Um pouco dilacerante, mas não monótono.
Ao pequeno-almoço tomei um sumo de laranja, comi bolos secos com doce de amora e depois bebi um café, enquanto folheava o Times. Em seguida, peguei no meu bloco de apontamentos e tomei nota de tudo o que fora dito na noite anterior sobre a situação financeira dos Havistocks. Estava convencida de que, se fosse organizada e eficiente, as minhas notas me poderiam proporcionar, eventualmente, a solução do caso.
O primeiro telefonema do dia foi de Hobart Juliana - o que me agradou imenso, não só por desejar manter a nossa amizade intacta, mas também por ele me ter dado boas notícias.
- Dunk - disse Hobie -, ouvi umas conversas aqui no escritório e como te dizem respeito achei que gostarias de as conhecer.
- Que é? Que se passa?
- Bem, aparentemente, pelo que ouvi, o detective da Polícia e o investigador da Companhia de Seguros vieram ambos aqui falar com "deus" e com Felicia Dodat. Juraram que tu não podias, de maneira alguma, estar envolvida no roubo do Demaretion e que, por isso, seria da maior justiça voltares a ocupar o teu lugar. Parece-lhes um castigo cruel e inusitado manterem-te de licença sem vencimento.
É possível que as lágrimas me tivessem vindo aos olhos.
- Foi muita bondade da parte deles, Hobie - murmurei.
- Sim, e os nossos chefes disseram que iam discutir o assunto com o advogado, Lemuel Whattsworth, antes de decidirem o que deviam fazer. Pois é isto, minha querida Dunk, quero que saibas que tens alguém do teu lado.
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- Agradecida, Hobie - respondi, sufocada. - Foste um amor por me vires contar isto. Logo que possa convido-te para almoçar. Está bem?
- com certeza. Sinto muito a tua falta, Dunk.
Hobie sentia a minha falta, Al Georgio também, o que era reconfortante. não me encontrava, de facto, sozinha. Quanto a Jack Smack, esse ainda não dissera isso, mas o patife, provavelmente, não sentia falta de ninguém.
Fiquei a pensar no que acabara de saber. Julguei perceber o motivo por que Georgio e Smack tinham tentado que eu voltasse para o emprego: receavam pela minha segurança, por causa da estúpida carta que recebera, pensavam que, se eu recomeçasse a trabalhar na Grandby & Sons, deixaria de ter tempo para me dedicar a investigações e ficaria livre de perigo.
Era realmente de agradecer tantos cuidados e eu senti-me um pouco culpada por lhes ter ocultado a visita de Vanessa àquele prédio e as sessões pornográficas dos Minchens, mas salvei a minha consciência dizendo para comigo que provavelmente eles já saberiam disso.
Julgava compreender as suas razões, mas não estava certa de entender as minhas próprias. Se o pedido deles fosse aceite e eu voltasse ao trabalho, deixaria mesmo as investigações? Nunca.
E porquê?
Porque só ficaria completamente ilibada quando o verdadeiro ladrão fosse descoberto. No entanto, no momento em que descobri isto vi que se tratava de pura racionalização.
A verdadeira razão que me levava a não querer desistir das investigações era o facto de elas constituírem um desafio excitante, que me agradava. Tudo aquilo me fizera ver como a minha vida fora vazia antes de ter ocorrido o roubo do Demaretion.
Além disso, as investigações tinham-me permitido conhecer dois homens interessantes, o que não era de desprezar!
Liguei para o apartamento dos Havistocks, a fim de falar com a dona da casa. Queria fazer umas perguntas a Ruby Querita, mas achava preferível pedir primeiro autorização. Foi a própria Ruby quem atendeu e disse que os Havistocks não estavam em casa, nem Orson Vanwinkle, nem Natalie. Como recebera carta branca para interrogar quem quisesse, não tive dúvidas em comunicar a Ruby Querita a minha intenção de me deslocar à casa onde trabalhava para lhe fazer umas perguntas, desligando antes que ela pudesse pôr objecções.
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Ruby recebeu-me à porta de uma maneira bastante agradável e conduziu-me a uma cozinha suficientemente grande para servir um navio. Sentámo-nos a uma mesa de fórmica e Ruby ocupou-se em descascar alhos enquanto falava. O cheiro a alho era qualquer coisa. Tínhamos um vizinho em Dês Moines que os comia crus e os rebatia depois com uma bebida, mas não um amigo chegado.
O azedume de Ruby parecia ter diminuído desde que a vira pela primeira vez, e agora falava com um tom quase afável. Não era feia, mas também nada tinha de bonita, e o buço que lhe sombreava o lábio superior não ajudava nada. Senti pena dela, parecia-me uma mulher que toda a vida trabalhara, que só conhecera pobreza e que não esperava muito mais da vida até ao fim dos seus dias.
Fi-la recordar os acontecimentos daquela manhã fatídica e ela respondeu prontamente a todas as minhas perguntas. Sim, os homens tinham levado as coisas para o almoço, indo-se embora logo a seguir. Os Minchens chegaram, Natalie estava em casa, depois apareceram Vanessa e Luther. Juntaram-se todos para a festa de aniversário de Mabel Havistock.
As pessoas entravam e saíam da cozinha, preparavam bebidas, provavam isto e aquilo. Ruby dera pela minha vinda e pela chegada dos guardas da carrinha blindada, conduzidos por Orson Vanwinkle. Parecia saber tudo o que se passara nessa manhã.
- Esteve sempre aqui na cozinha? - perguntei. Ruby pensou uns momentos.
- Não - disse finalmente. - Nem sempre. Veio um homem trazer flores para a senhora e abri-lhe a porta. Estive também na sala e fui ainda a um armário, na casa de arrumações, buscar um jarro e copos. Entrava e saía.
Tudo aquilo a nada conduzia. Tinha de lembrar a mim mesma que ela podia estar a mentir, mas não me parecia.
- Sei que o seu irmão está preso - disse suavemente. Ela encolheu os ombros, continuando a descascar alhos e
cortando-os cuidadosamente com uma faca.
- O diabo apoderou-se dele - declarou calmamente.
- O diabo?
Ela ergueu os olhos para mim e, subitamente, aqueles olhos tristes incendiaram-se.
- Ele ofendeu o salvador! - disse com grande convicção.
- Tem de pagar pelos seus pecados.
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Respirei fundo.
- Sei que o advogado apelou da sentença. Está a ajudar o seu irmão?
Ela abanou a cabeça.
- A vingança é Minha, foram palavras do Senhor.
- Ruby - murmurei inclinando-me sobre a mesa -, quem acha que roubou a moeda?
- Isso não sei - retorquiu ela, fitando as mãos -, mas o castigo de Deus há-de cair sobre esta casa.
- Por que razão há-de Deus punir os Havistocks? - perguntei, chocada.
Ruby parou de trabalhar, ergueu a cabeça e fitou-me.
- Por causa dos seus pecados! Eles pecaram aos olhos de Deus Todo-Poderoso e devem sofrer por isso. Julgavam que os seus crimes não eram vistos? Oh, não, amargo é o fruto do pecado. Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros. É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos Céus. Deixai vir a Mim os inocentes? O sangue do cordeiro. Livrem-se dos vossos pecados. Quem perecerá sendo inocente? Abençoados são aqueles que confiam no Senhor. O Senhor é a minha força e o meu escudo.
Ruby acabou finalmente de dizer aquelas frases e eu apressei-me a despedir-me. Estava, de facto, chocada.
Fui a pé para casa e, ao percorrer a Rua Setenta e Nove, Este, olhei para as janelas reluzentes dos grandes apartamentos, pensando no que se estaria a passar lá dentro. De repente tinham deixado de me parecer bastiões da solidez, respeitabilidade ou sequer de racionalismo - eram apenas fachadas de aço e pedra, brilhando ao sol de Junho, e, no interior, a escuridão.
Apesar de ainda me sentir maldisposta quando cheguei a casa, forcei-me a tomar notas sobre a minha entrevista com Ruby Querita. Era tudo fervor religioso, eu sabia-o, mas não haveria alguma verdade no que dissera? Ela estava em posição de saber o que se passava naquela casa, pois há muitos anos que vivia diariamente com a família. Então porque tivera aquela explosão? Quais seriam os terríveis pecados dos Havistocks?
Eram coisas que eu não me atreveria a contar a Al Georgio ou a Jack Smack - eles diriam que aquela mulher não estava boa de cabeça e que eu era ainda pior por me deixar influenciar por ela, mas isso seria a lógica masculina. Às vezes eu sinto as
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coisas, e, nessa altura, sentia que Ruby Querita não era inteiramente irracional, que sabia qualquer coisa.
Quando fico deprimida preciso de comer, por isso abri o frigorífico e fiz uma inspecção - deprimente. Descobri apenas umas batatinhas já cozidas que agora nada tinham de apetitoso. No entanto, aquecia-as, abri uma lata de sardinhas e acompanhei este almoço "delicioso" com uma garrafa de Coca-Cola. Eu realmente sei viver.
Passei a tarde ocupada em tarefas diversas. Fui buscar roupa à lavandaria, comprei refeições prontas a servir, desloquei-me ao sapateiro por causa de uns sapatos que lá estavam para pôr capas nos saltos, e, antes de voltar para casa, passei pela padaria e comprei pão e um bolo de queijo com pedaços de chocolate. Bem, pensei, isto é para compensar o almoço.
Arrumava já as minhas vitualhas quando o telefone tocou e o dia entrou numa fase má. Era Al Georgio.
- Está sentada? - perguntou.
- Não, estou de pé.
- Então agarre-se a qualquer coisa. Encontro-me na Rua Oitenta e Cinco, Este. O corpo de Orson Vanwinkle foi descoberto há duas horas. Foi morto a tiro, assassinado.
Silêncio.
- Dunk? - perguntou Al ansiosamente. - Está lá?
- Sim - respondi debilmente.
- Vim a ter conhecimento do crime porque um colega que sabia que eu estou a trabalhar no caso do Demaretion me avisou. O Departamento de Homicídios é que se ocupa do crime, eu apenas vou sabendo o que eles me dizem.
- O que se passou, Al?
- O corpo só foi descoberto há pouco, ainda é tudo muito recente. Sabe-se apenas que foi atingido na cabeça por dois tiros disparados por uma arma de pequeno calibre.
Nada mais se apurou até agora.
- Al - perguntei desesperadamente -, acha que o crime poderá estar relacionado com o roubo do Demaretion?
- Quer que eu imagine? Está bem, imagino que sim!
- Al, é capaz de me telefonar outra vez se souber mais alguma coisa?
- Pode ser tarde.
- Não me importo. Por favor, Al.
- Certo. Entretanto, tenha cuidado consigo, Dunk. Parece que o tipo que escreveu as cartas não estava a brincar. Seja cuidadosa.
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- Serei - garanti, e depois de desligar fui verificar se todas as portas e janelas estavam bem fechadas.
Sentia-me ainda atordoada com o que ouvira. Orson Vanwinkle morto? Assassinado? Eu não gostava dele, mas ninguém merecia uma coisa daquelas.
Estava confusa. Al dissera que achava que o crime se relacionava com o roubo do Demaretion. Mas como? Consultei freneticamente o meu bloco de apontamentos à procura da pista mágica, mas não descobri nenhuma, claro. De repente, comecei a sentir umas dores de cabeça terríveis e fui tomar dois comprimidos.
Al telefonou-me pouco depois das vinte horas, para dizer que vinha a minha casa, mas só apareceu já passava das vinte e uma, e furioso.
- Patife! - exclamou deixando-se cair sobre o sofá. - Isto vem estragar tudo.
- Creio que ainda não comeu hoje, pois não?
- O quê? Não, não comi.
- Beba um copo de vinho e tente acalmar-se. vou arranjar-lhe qualquer coisa para comer. Prefere almôndegas guisadas ou lasanha de vegetais?
- Prefiro o guisado.
- É bom para si, apenas trezentas calorias, mas à sobremesa comeremos bolo de queijo e chocolate.
- Mas quem está a contar as calorias? Diabos me levem! Ainda não sou capaz de imaginar o que se passou. Por que razão teria Orson Vanwinkle sido morto? Porquê?
Na altura em que eu tinha posto as coisas no forno e deitado o vinho nos copos, Al encontrava-se um pouco mais calmo, mas mantinha-se ainda pensativo.
- Conte-me o que sabe, sim? Al suspirou.
- É pouco. Vanwinkle tinha uma mulher-a-dias que lhe ia limpar a casa duas vezes por semana. Essa mulher trazia consigo a chave do apartamento, e foi o porteiro quem lhe abriu a porta da rua. Ela encontrou o corpo e chamou a Polícia. Não havia sinais de a entrada ter sido forçada, por isso, Orson foi visitado por alguém que conhecia - certo? Sobre a mesa-de-cabeceira estavam duas notas de mil, portanto não se tratou de roubo, não faltava nada, tanto quanto se pode dizer. Foi atingido por dois tiros na nuca, com uma arma de pequeno calibre, talvez vinte e dois. O médico-legista calcula que ele morreu por
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volta da meia-noite de ontem, mas temos de esperar pela autópsia para ficarmos com a certeza.
Respirei profundamente, pois sentia-me um pouco abalada.
Al, que vai fazer a partir daqui?
- Não sou eu, graças a Deus é o Departamento de Homicídios. Vão seguir o rasto dele desde que saiu de casa dos Havistocks, ontem à tarde, cerca das quatro e meia, e têm muito que fazer. Encontraram a agenda dele: muitos nomes, endereços e números de telefone, principalmente de mulheres, e o seu está lá.
- O meu?
- É verdade - disse ele sorrindo ligeiramente. - O tipo ou era um Casanova ou julgava que o era.
- Al, eu juro que... Al ergueu a mão:
- Dunk, eu não a estou a acusar de coisa alguma, mas como o seu nome figura nesse livro, pode esperar uma visita dos rapazes dos Homicídios.
- Que lhes hei-de dizer?
- A verdade, nem mais, nem menos. Sabe-se que andava com uma rapariga, uma loira frisada que parece dos anos vinte. Não tem um bocadinho de cabeça, mas aparentemente ele não a largava há cinco anos. Creio que lhe deixou uma boa maquia.
- Onde estava ela na noite em que o mataram? Georgio olhou-me com admiração.
- Você está realmente a aprender! A loura declarou que fora visitar uma tia em Riverdale e foram verificar o álibi.
Olhei para o relógio.
- O nosso jantar já deve estar descongelado. Tem fome?
- Muita - respondeu Al.
Sentámo-nos na minha pequena mesa de jantar, eu comi a lasanha de vegetais e Al as almôndegas. Graças a Deus que tinha comprado o pão, Al devorou-o. Mas, enquanto comíamos e bebíamos, não pudemos parar de falar da morte de Orson Vanwinkle.
- Quem acha que o poderia detestar ao ponto de o matar? - perguntou Al.
- Provavelmente todos - respondi. - Natalie não gostava dele, Vanessa chamava-lhe um homem vil e, além disso, há Ruby Querita...
Decidi contar-lhe a minha conversa com ela, nessa manhã, e Al ouviu-me atentamente, não parecendo considerar-me tola
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por eu achar que podia haver qualquer coisa naquilo que a mulher dissera.
- Esses fanáticos religiosos devem ser levados a sério, são capazes de massacrar e dizer que foi Deus quem lhes ordenou que o fizessem. Como esse muçulmano amigo de Natalie... quem sabe o que se passa no seu cérebro de passarinho? Mas o meu grande problema é que os rapazes dos Homicídios vão atrapalhar as investigações sobre o roubo do Demaretion.
- Ainda pensa que as duas coisas estão relacionadas: o roubo e o assassínio?
- Claro que sim - respondeu Al, pegando numa côdea e molhando-a no vinho (nunca vira ninguém fazer aquilo). Creio que é tudo o mesmo caso, mas não me agrada a ideia de ser afastado pelos rapazes dos Homicídios. O caso do Demaretion é meu.
- Pois claro que é.
- O que posso fazer é negociar com eles - murmurou Al pensativamente -, um por um. Se eles estiverem dispostos a cooperar eu coopero também. - Olhou-me com um sorriso tímido. - Políticas de interior, é como lhe chamam, mas é assim que as coisas funcionam. Todos nos queremos defender e desejamos que nos dêem crédito pelo nosso trabalho.
- Isso é compreensível - respondi. - As coisas passam-se do mesmo modo na Grandby. E, por falar nisso, quero agradecer-lhe a si e a Jack terem ido interceder para eu voltar ao meu lugar na firma.
- Ah, soube disso? Bem, nós achámos que, depois de receber a carta seria melhor afastá-la da área de perigo. E agora, com o assassínio de Vanwinkle, ainda com mais razão. Desista de fazer investigações, está bem, Dunk?
- Não - repliquei instantaneamente. - Os Havistocks pagam-me para investigar e eu tenciono continuar a fazê-lo.
- Pode apanhar um tiro no traseiro - disse Al. - Sabe isso, não sabe?
- Não creio, não o tenho suficientemente grande para ser alvejado.
Al riu ao ouvir isso.
- Você está sempre a depreciar-se, mas a verdade é que tem um traseiro elegante.
- Creio que é altura perfeita para comermos o bolo de queijo.
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Não lhe perguntei se ele queria passar ali a noite e ele também não me fez tal pergunta. Foi um entendimento tácito.
Al insistiu que cheirava mal e que precisava de tomar um duche. Dei-lhe uma toalha e enquanto eu lavava e limpava a pouca louça que tínhamos sujado ele foi para a casa de banho. Levei o jarro com o vinho e os nossos copos para o quarto, apaguei as luzes e meti-me entre os lençóis frescos. Era delicioso e assustador ao mesmo tempo - decerto percebem o que quero dizer.
Não sendo Al tão perito como Jack Smack, era, no entanto, muito mais sincero. Não tive de pensar se ele estaria a representar, nem sequer quantas mulheres conhecera para mostrar tão grande experiência. De resto, Al não sabia assim tanto, mas revelava-se terno e solícito e havia nele uma espécie de potência brutal que Jack jamais teria. Tudo quanto posso dizer foi que passámos um bom bocado, um bom bocado, realmente.
Mais tarde, sentados na cama, beberricando com prazer o vinho, Al disse:
- Acabámos de pecar. Eu sou católico. Sabia?
- Vai confessar o que fizemos?
- Na. Por que razão havia de ir perturbar um pobre padre? Será o nosso segredo. Aliás creio que não sou muito bom católico.
- Eu fui educada como metodista - repliquei -, mas depois de vir para Nova Iorque nunca mais pratiquei. Já nem sei há quanto tempo não vou à igreja.
Al bateu no colchão.
- Isto é uma igreja tão boa como outra qualquer, Dunk.
- Concordo.
- Depois de me ter divorciado tenho andado com várias mulheres, não muitas, mas bastantes. Coisas passageiras, de uma noite, puro divertimento. Não é muito satisfatório.
- Não - respondi eu. - Não é.
- Gosto de estar consigo, Dunk, aprecio a verdade. Não é apenas o sexo, apesar de isso ser formidável, refiro-me a conversar, a rir, a estarmos juntos. Podemos continuar, não?
- Estou a contar com isso.
- Não tem nenhum homem especial?
- Não - respondi. - Ninguém especial.
- Bem, não me julgo com o direito de lhe pedir que me dedique toda a sua vida, isso é demasiado pesado, quero somente que saiba que, enquanto andar consigo, não procurarei
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outras mulheres. Creio que sou realmente um homem de uma só mulher. Não lhe estou a dizer que altere a sua maneira de viver, nada disso, mas apenas que saiba o que eu sinto. Voltei-me para beijar os seus lábios doces do vinho.
- Você é uma pessoa afectuosa, Al, e eu gosto de estar consigo, mas não lhe posso fazer promessas para depois não as cumprir.
- Sei disso - respondeu Al - e não lhe peço que as faça, basta que continue a andar comigo durante uns tempos.
- Isso posso prometer-lhe - garanti-lhe.
Depois, como ele se mostrava tão amoroso, disse-lhe:
- Al, há uma coisa que lhe quero contar.
- Ouça, você não tem de me contar coisa alguma.
- É a respeito do Demaretion. Este caso significa muito para si, não é verdade?
- Confesso que sim, trata-se de um roubo importante, envolvendo gente da alta sociedade, por isso, se eu descobrisse o ladrão, haveria muita publicidade. Talvez significasse, até, uma promoção para mim, especialmente agora, com o assassínio de Vanwinkle.
- Então acho que é melhor contar-lhe - murmurei, suspirando.
Descrevi-lhe então o serão em casa de Ross e de Roberta Minchen, os convidados e os filmes exibidos no vídeo, e depois contei-lhe também o meu almoço com Vanessa, no fim do qual ela dissera ter de ir ao dentista, acabando por entrar num edifício - na Rua Sessenta e Cinco, Este - onde, de facto, não havia qualquer estomatologista, mas sim um apartamento em nome de L. Wolfgang.
- Talvez seja Lenore Wolfgang - acrescentei -, a advogada de Archibald Havistock que você também conheceu. Não sei o que tudo isso significa, Al, ou se significa alguma coisa.
Al ouvira-me atentamente, sem me interromper, e, quando acabei, não fez comentários estúpidos, como, por exemplo: "Porque não me contou isto mais cedo?" Em vez disso observou:
- Você está a tornar-se uma boa detective, Dunk. Afirmou que a festa pornográfica em casa dos Minchens era
um pormenor interessante, mas que não se queria envolver nele.
- A pornografia na privacidade é coisa em que não podemos interferir - declarou. - Nunca seriam condenados a não
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ser que vendessem os filmes, o que duvido que façam. No entanto, é bom saber isso, pode vir a ser-me útil. A respeito de Vanessa e da entrada dela no tal prédio - isso é interessante. Não reparou no número do prédio, por acaso?
Pois não - respondi, envergonhada. - Afinal não sou
tão boa detective como isso.
Não tem importância. Você é super noutras coisas bem
mais importantes. Talvez amanhã ou depois lhe peça que dê uma volta comigo de carro para me indicar qual é. Está bem? Nessa altura veremos se L. Wolfgang é de facto a advogada de Havistock, há quanto tempo ali vive e qual a sua relação com Vanessa. é uma pista nova e muito boa. Obrigado, Dunk.
Mas deixa-me trabalhar consigo nisto? - perguntei ansiosamente.
- Pode crer que sim - respondeu Al, voltando-se e prendendo-me nos seus braços. - Não vou largá-la.
Al era capaz e eu estava ansiosa, por isso repetimos o que já tínhamos feito. Mais tarde adormecemos como dois bebés bem, não exactamente... Aprovo de todo o coração duas pessoas numa cama, e só espero não ter ressonado.
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Na manhã seguinte - Al saiu antes de eu acordar - olhei para o espelho e achei que fazer amor é bom para a pele. Não é que tivesse um aspecto radiante, ou coisa assim, mas a verdade é que algumas leves rugas que andavam a preocupar-me pareciam ter desaparecido. Não lhes parece que o sexo é uma espécie de creme revitalizante?
Tomei o meu frugal pequeno-almoço e li de alto a baixo a notícia do Times sobre a morte de Vanwinkle, embora não me revelasse nada que eu já não soubesse. No entanto, ver todasaquelas coisas impressas no jornal causou-me um certo choque. Lembrei-me então do pobre idiota a perguntar-me: "Foi tão bom para si como para mim?"
Tal como Al Georgio me dissera, os detectives do Departamento de Homicídios vieram bater-me à porta. Eram dois, um gordo e outro magro - como Laurel e Hardy. Respondi a todas as perguntas o mais honestamente possível, mas para dizer a verdade, não me pareceram muito interessados. Aquele interrogatório afigurava-se ser apenas mera rotina. Fiquei com a impressão de que antes de tudo aquilo, já estava eliminada como possível suspeita, e fiquei-lhes grata por isso.
Enquanto estavam no meu apartamento (ofereci-lhes café), Jack telefonou, mas disse-lhe que estava ocupada e que o contactaria mais tarde. Um pouco depois do meio-dia liguei para ele.
- Que pensa da morte de Vanwinkle? - perguntou-me. Estará relacionada com Demaretion?
- Não tenho a certeza, mas estou convencida de que sim. Você também?
- com certeza, não restam dúvidas a esse respeito. Que outra razão poderia haver para matarem um tipo daqueles?
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Estava decidida a não mostrar qualquer favoritismo e queria ue Jack soubesse o mesmo que eu já contara a Al Georgio, oois juro que nessa altura não tinha qualquer preferência.
jack - disse - tenho umas coisas para lhe contar. Devo
fazê-lo agora ao telefone, ou...
Não - retorquiu prontamente Jack. - Ao telefone não.
Deixe-me ver a minha agenda. Que diz a jantarmos hoje
juntos?
Não - retorqui com a mesma prontidão. Não queria tornar-me uma simples bola atirada de Al para Jack e deste para aquele. - Tenho que fazer.
Está bem - respondeu com toda a calma. - Que diz
então a irmos ao Sacred Cow tomar uns cocktails por volta das cinco? É na Rua Setenta e Dois, Oeste, relativamente perto da sua casa.
- Porquê aí?
- O sítio agrada-me - respondeu. - Encontramo-nos às cinco.
Jack desligou e eu fiquei a olhar para o telefone. Ele dissera, eu concordara e não tinha a certeza de isso me agradar.
Contudo, nessa tarde sucederam outras coisas. Recebi um telefonema de Enoch Wottle - o querido Enoch -, que nem sequer pôs a chamada na minha conta.
- Como está, Dunk?
- Já nem sei bem, Enoch.
- Compreendo porquê, li no jornal que Orson Vanwinkle, secretário particular de Archibald Havistock foi assassinado. Não gosto disso.
- Nem eu, Enoch.
- Por favor, Dunk, não se deixe envolver no caso.
- Enoch, já estou envolvida. Agora não posso afastar-me. O meu velho amigo respirou fundo.
- Que confusão - murmurou. - Bem, talvez o que eu hoje soube possa ajudar. Esta manhã, aqui ainda é manhã, há pouco mais de uma hora, recebi um telefonema de um amigo meu de Roterdão. Negociámos muitas vezes, tenho toda a confiança nele, e é um coleccionador que eu contactei quando você me pediu que tentasse saber se o Demaretion estava a ser oferecido para venda. Este meu amigo disse-me que recebeu um telefonema de um negociante de Beirute, que, segundo as minhas informações, continua a entrar em negócios pouco limpos. Compra a ladrões de túmulos e nunca se sabe donde provêm
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as suas moedas, mas ganha muito dinheiro a vender a coleccionadores particulares. De qualquer modo, o meu amigo disse-me que o tipo de Beirute lhe perguntou se ele estaria interessado em comprar um Demaretion em excelentes condições.
- Oh! - exclamei.
- A minha primeira reacção foi também de surpresa. Quantas vezes aparece no mercado um Demaretion? Claro que pode tratar-se de uma nova descoberta, uma peça encontrada num esconderijo nessa parte do mundo, mas a coincidência é muito grande. Um Demaretion desaparece em Nova Iorque e outro aparece em Beirute. Fascinante, não acha?
- É fascinante, sim - respondi. - Enoch, detesto pedir-lhe mais favores, você tem sido tão generoso para comigo, mas poderia continuar a tratar do caso? Tente descobrir se o comerciante de Beirute tem de facto a moeda.
- Farei todo o possível. Devo dizer-lhe, Dunk, que estou a gostar deste trabalho, é muito, como hei-de dizer... romântico. Mas, por favor, não se exponha, as pessoas que estão envolvidas no caso não são para brincadeiras.
- Bem sei, Enoch - respondi. - Prometo não fazer disparates.
- bom - disse Enoch. - Gosto muito de si e tenho saudades suas.
Outro homem que sentia a minha falta, era o meu dia. Depois de ter desligado fiz uma coisa que já há muito devia: procurar na lista de Manhattan o número do telefone de Lenore Wolfgang, na Rua Sessenta e Cinco, Este. Não encontrei, mas havia dois no nome dela noutros endereços: um da residência, na Rua Noventa e Um, Este, e o outro do escritório, na Quinta Avenida.
Para ter a certeza liguei para as informações e pedi o número de L. Wolfgang, na Rua Sessenta e Cinco, mas a telefonista respondeu-me que não estava na lista. Então era isso, talvez Al Georgio pudesse descobrir.
Escrevi no meu bloco de apontamentos o que Enoch me contara acerca do negociante de Beirute, e também o pormenor de o número de telefone não vir na lista, depois sentei-me e fiquei a olhar para o que escrevera. Nada daquilo fazia sentido, não me ocorria sequer uma única ideia.
Cheguei ao Sacred Cow, na Rua Setenta e Dois, apenas com uns minutos de atraso. Jack Smack encontrava-se já sentado no
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bar com um vodca duplo na mão. Era, sem dúvida, o homem mais bem-parecido que ali se via. Deu-me um grande abraço, beijou-me na cara e apertou-me a mão. Talvez não tivesse sido, afinal, para ele, apenas uma aventura de uma noite.
Pedi um copo de vinho branco, apesar de Vanessa achar que não era chique e depois comecei a falar. Contei a Jack que soubera do fanatismo religioso de Ruby Querita e da visita de Vanessa ao apartamento ocupado por L. Wolfgang.
Quando acabei, ele abanou a cabeça e olhou-me com espanto.
Você é uma mulher dinamite - disse. - Contou tudo
isto a Al Georgio?
Fiz um gesto afirmativo.
- Acho bem. Já conhecia o fanatismo religioso de Ruby Querita, mas que pensa do caso de Vanessa?
- Não faço ideia.
- Estou convencido de que Al irá investigar esse edifício da Rua Sessenta e Cinco.
- Creio que sim.
- Pode ter a certeza de que o fará - retorquiu Jack. - Al é um profissional muito competente.
- A sua companhia voltou a receber alguma outra carta do ladrão?
- Não, e isso preocupa-nos, já devíamos ter resposta à notícia que pusemos no jornal. Talvez o tipo que nos escreveu tenha a moeda, mas não ficasse satisfeito com a nossa oferta e não queira regatear, ou talvez esteja a tentar vendê-la noutro sítio qualquer.
- Em Beirute - respondi.
- O quê?
- Em Beirute - repeti.
Em seguida contei-lhe o que Enoch Wottle me dissera pelo telefone, nessa manhã. Jack ouviu-me atentamente, de testa franzida.
- Isso não me soa bem - retorquiu -, é como se dois tipos diferentes andassem a procurar vender a mesma mercadoria. Nós estamos a tratar com alguém de Nova Iorque - certo? e podíamos ter acedido ao seu pedido - ele devia sabê-lo, não? mas subitamente aparece a oferecer a moeda a um negociante mais ou menos clandestino de Beirute. Não faz sentido, Dunk.
- Concordo que não.
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Jack olhou-me com uma expressão estranha. e de repente fez estalar os dedos.
- A não ser... a não ser...
- A não ser o quê?
- Quando é que o seu amigo do Arizona teve notícias do negociante de Roterdão?
- Esta manhã, uma hora antes de me telefonar.
- E quando recebeu esse negociante o telefonema de Beirute?
- Enoch não me disse, mas fiquei com a impressão de ter sido muito recentemente. Creio que ligou imediatamente para Enoch.
- Sim - disse Jack, olhando-me com um sorriso estranho. - Deve ter sido muito recentemente. Aposto que depois de Orson Vanwinkle ter sido liquidado.
- Que significa isso?
- Que lhe parece isto: Orson Vanwinkle apanha a moeda. Era ele o tipo que tratava connosco, e foi ele que lhe enviou a carta com a ameaça, mas depois é morto e a moeda passa para as mãos de outra pessoa, que trata agora com Beirute. Que lhe parece?
- As coisas talvez se tenham passado assim - respondi -, mas a verdade é que Orson Vanwinkle não podia, de maneira alguma, ter trocado as caixas.
- Claro que sim. Archibald encontrava-se fora da biblioteca quando ele lá entrou com os guardas e podia ter feito a substituição nessa altura.
- Talvez - concordei -, mas como adivinharia Orson Vanwinkle que Havistock se encontrava ausente? Isso é que estraga toda a sua teoria, Jack.
- Bolas! - murmurou Jack desanimadamente. - Tem razão. Bem, voltamos ao princípio. Tomemos mais uma bebida porque depois tenho de me ir embora.
- Algum encontro interessante? - perguntei, detestando-me por o fazer.
- Não sei se será interessante - respondeu Jack. - Trata-se de Dolly LeBaron, a amiguinha de Vanwinkle. Arranjou um agente e está a tentar vender a sua história aos jornais. A vida dela com o homem assassinado - completa, com fotografias íntimas, material muito quente. Não é bonito?
- Lindo. Al acha que ela é totalmente desmiolada.
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E é. Parece que está sempre pronta a dançar o charleston,
seja em que altura for.
Voltei para casa sozinha, cerca de uma hora depois, deprimida. Dizia a mim mesma se não estaria com ciúmes de Dolly LeBaron por Jack Smack ir jantar com ela. Mas ele não me tinha convidado primeiro a mim? No entanto...
Não sentia fome - comera demasiados amendoins salgados no Sacred Cow -, por isso voltei a pegar no meu bloco de apontamentos, li tudo quanto lá escrevera e tentei descobrir qualquer sentido em toda aquela cadeia de acontecimentos, mas em vão. Comecei então a pensar na teoria de Jack Smack: dois ladrões envolvidos no caso. Um rouba o Demaretion e começa a negociar com a Companhia de Seguros, depois outra pessoa apodera-se da moeda e telefona a um negociante duvidoso para obter dinheiro rapidamente.
Parecia-me uma boa teoria, mas a verdade é que continuava a pensar que não podia ter sido Orson Vanwinkle o primeiro ladrão. Estava imensamente confusa e fui salva de um colapso mental total por um telefonema de Al Georgio.
- É só um minuto, para lhe dizer que a noite passada foi a melhor coisa que me sucedeu desde há tanto tempo que só Deus o sabe. Quero agradecer-lhe.
- Não precisava de o fazer, Al.
- Estou cheio de pressa, há imenso trabalho aqui. Agora dizem que o apartamento de Vanwinkle foi revistado.
- Revistado?
- Sim, e muito cuidadosamente. Alguém andou a procurar qualquer coisa.
- O Demaretion?
- Podia ser.
- Al, tenho uma coisa a dizer-lhe. Esta manhã recebi um telefonema de...
- Telefono-lhe amanhã - disse apressadamente Al, desligando.
Portanto, ali estava eu outra vez sozinha. Podia telefonar a qualquer pessoa conhecida, mas resolvi não o fazer e levei o resto da noite a executar tarefas desnecessárias para passar o tempo, como mudar a roupa da cama, limpar os cinzeiros, levantar a bainha de uma saia de ganga, coisas deste género...
Mas não parava de pensar, sobretudo na notícia que Al me dera de que o apartamento de Orson Vanwinkle fora
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revistado, o que condizia com a teoria de Jack Smack sobre a existência de dois ladrões. Orson fora o primeiro, depois alguém procurara e talvez tivesse encontrado o Demaretion.
Alguém que era o segundo ladrão... alguém que não hesitava em assassinar.
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Al Georgio manteve o que dissera e telefonou-me na manhã seguinte, bastante cedo - tão cedo que eu estava ainda a dormir.
- Valha-me Deus! - exclamou ao ouvir a minha voz sonolenta. - Acordei-a?
- Não tem importância.
- Desculpe, Dunk. Quer que eu volte a ligar mais tarde?
- Não, não. Já estou bem acordada.
- Quantas horas dormiu?
- Cerca de sete.
- Tem sorte - replicou. - Eu dormi três. Estou a beber café forte para me manter desperto. Ouça, Dunk, vou permanecer aqui preso todo o dia, mas quero pedir-lhe um favor.
- Dispare.
- Nunca diga isso a um polícia. Não me vai ser possível levá-la à rua onde Vanessa Havistock desapareceu no edifício de que me falou. Acha que poderá voltar lá hoje e ver o número do prédio? Quando souber telefona-me, sim? Nessa altura poderei saber quem é o dono, quem aluga o apartamento e tudo o mais. Faz-me isso?
- Claro que sim, Al. Devia ter reparado no número quando lá estive. Foi estupidez minha ter-me esquecido disso.
- Estúpida é que você não é, Dunk. A propósito, a noite passada disse que tinha uma coisa para me contar.
Relatei uma vez mais a história de Enoch Wottle a respeito do telefonema que recebera de Roterdão e do negociante de Beirute que estava a tentar vender um Demaretion.
- Diabos me levem - exclamou Al quando eu terminei -, isto está a tornar-se mais complicado que um exercício militar chinês. Desculpe a linguagem.
- Já ouvi pior.
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- Contou isto a Jack Smack?
- Sim, contei.
- Qual foi a reacção dele?
Falei-lhe da teoria de Jack acerca de existirem dois ladrões: Orson Vanwinkle, que roubara primeiro a moeda, e o segundo ladrão, que tentava agora vendê-la por intermédio do negociante de Beirute.
- O único problema - disse então - é que não consigo perceber como conseguiu Orson Vanwinkle trocar as caixas.
- Concordo consigo - retorquiu Al.
- Mas disse-me há pouco que o apartamento de Vanwinkle foi revistado.
- Assim parece, mas não se pode garantir que alguém procurasse o Demaretion. Contudo é certo que pretendiam alguma coisa, já lhe disse até que havia dois mil dólares sobre a mesa-de-cabeceira e aparentemente ninguém tocou no dinheiro.
- Como descobriram que o apartamento foi revistado?
- A amiguinha loura de Vanwinkle afirma que costumava dormir ali aos fins-de-semana e que, como sabe exactamente onde tudo se encontrava, tem a certeza de que as coisas foram remexidas.
- Al, eu gostaria de falar com ela. Acha que é possível?
- Porque não? Ela não se encontra presa, nem detida como testemunha material. Sim, fale com ela, talvez consiga saber alguma coisa que nos tenha escapado. Telefone-lhe. Chama-se Dolly LeBaron e vive na Rua Sessenta e Seis, Este. O número vem na lista.
- Na Rua Sessenta e Seis?
- Isso mesmo. A cerca de um quarteirão do prédio de L. Wolfgang. Não é interessante?
- Sim - murmurei lentamente. - Muito interessante. Será coincidência?
- Na minha profissão - replicou ele - não acredito em coincidências. Veja o que consegue saber, Dunk. Volto a falar-lhe mais tarde.
Al tinha o costume de desligar abruptamente, sem se despedir, mas estava bem, pelo menos não dizia: "Passe um dia agradável."
Tomei um duche, rapei as pernas, vesti-me e saí para comprar o Times e um croissant. Eram quase dez e meia quando liguei para Dolly LeBaron e o seu "está?" foi dito numa vozinha aguda, de rapariguinha.
Disse-lhe o meu nome e expliquei que era amiga da família
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Havistock, que encontrara várias vezes Orson Vanwinkle e que queria expressar-lhe os meus sentimentos pelo ocorrido.
Não foi horrível? Absolutamente a pior coisa que alguma
vez me sucedeu.
E a Orson também, pensei.
Miss LeBaron - continuei -, fui contratada pela família
Havistock para investigar o roubo de uma valiosa moeda que desapareceu do apartamento deles. Acho possível que Orson lhe tenha falado no caso e gostava de conversar consigo.
Bem, não sei - respondeu ela, duvidosa. - O meu
agente disse-me que não falasse a ninguém.
Não se trata de uma entrevista para um jornal ou qualquer coisa do género, Miss LeBaron. É uma conversa rigorosamente confidencial.
- Vão tirar-me umas fotografias ao meio-dia - informou Dolly -, em biquini. Para aparecerem na primeira página de qualquer coisa.
- Muito bem - respondi.
- O vermelho, talvez - murmurou Dolly pensativamente -, ou o de malha.
Não tinha a certeza de que ela tivesse os parafusos todos.
- Que diz se nos encontrarmos às quinze horas? - insisti.
- Bem, acho que está bem. Como disse que se chamava? Dolly ciciava ligeiramente.
Repeti.
- Eu chamo-me Dolly LeBaron - declarou vaidosamente.
- Bem sei. Encontramo-nos às quinze.
- Está bem.
Como tinha algumas horas na minha frente, resolvi telefonar a Hobart Juliana e convidá-lo para almoçar. Ficou encantado e combinámos estar ao meio-dia e meia hora num restaurante vegetariano quase à esquina da Grandby & Sons.
- Quem paga sou eu - afirmei. - Falamos sobre o roubo do Demaretion e ponho a conta nas despesas que Archibald Havistock me há-de pagar.
- Certo - concordou alegremente Hobie.
Comemos salada de cogumelos, salada de chicória e sumo de cenoura. Hobie pôs-me a par das tagarelices do escritório: contou-me que "deus" tinha hemorroidas, que Felicia Dodat pintava agora as unhas de verde e também que descobrira uma bela colecção de cartas de Mark Twain que a Grandby & Sons ia leiloar.
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- Isso é maravilhoso, Hobie, parabéns. Já me substituíram?
- Não, continuo sozinho no nosso cubículo. Segundo ouvi dizer, esse cretino do advogado, Lemuel Whattsworth, foi da opinião de que não deviam reintegrar-te sem o ladrão ser apanhado e o bom nome da Grandby & Sons voltar a estar limpo. Ele aconselhou-os a manterem o teu lugar em suspenso. Sabes como fala...
- Que estão a fazer a respeito de avaliações de moedas?
- Utilizam negociantes independentes como consultores, mas isso está a custar ao "deus" uma quantidade de dinheiro, o que me torna feliz. Sabes, Dunk, tu e eu devíamos ganhar mais uns cinquenta por semana.
- Pelo menos - concordei. - Para quando está marcado o leilão da colecção Havistock?
- Não foi marcado, a venda foi adiada indefinidamente. com tantos litígios em curso - toda a gente a processar-se mutuamente ou ameaçando fazê-lo - todos os agentes decidiram adiar o leilão até o caso estar esclarecido. A colecção permanece no cofre da Grandby.
- Isso é horrível e aposto que Archibald Havistock não está nada satisfeito.
- Pois não, acho que ficou furioso, e quem o pode censurar? Agora não tem as moedas nem o dinheiro. Contudo, nada pode fazer, pois assinou um contrato em que se especifica que o leilão será marcado quando aprouver à Grandby, desde que se realize no prazo de doze meses após a entrega da colecção.
- Que pensas do assassínio de Orson Vanwinkle, Dunk?
- Nem sei o que hei-de pensar.
Hobie, que gostava de tagarelar, debruçou-se sobre a mesa, cautelosamente.
- Ouviste dizer algo que não tivesse saído nos jornais? perguntou.
- Algumas coisas - repliquei. - Nada de importância. Ele aproximou-se mais.
- Vou-te dar uma indicação interessante - disse, baixando a voz. - Vanwinkle era conhecido por pertencer à comunidade dos gays. Não era um membro activo, apenas ocasional.
- Isso é impossível! - exclamei. Hobie insistiu:
- Acredita-me, Dunk. Eu sei.
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Mas tinha uma rapariga com quem dormia.
- Isso que quer dizer? Há muitos tipos que dão para os dois
lados. Vanwinkle não era estimado, mas gastava dinheiro às mãos-cheias e por isso toleravam-no.
Depois de deixar Hobie, prometendo-lhe manter-me em contacto com ele, tinha ainda uma hora na minha frente antes de ir falar com Dolly LeBaron, por isso dirigi-me a pé para casa dela, pois havia muito em que pensar. Além disso, queria fazer um pequeno desvio para passar em frente do prédio onde Vanessa entrara.
Caminhava lentamente porque o dia estava quente. Julho espreitava já e a humidade aumentava. O céu permanecia enevoado, baixo, e o Sol via-se por detrás das nuvens brancas. Senti-me satisfeita por não trazer casaco, seria demasiado.
Pensei na minha conversa com Hobart Juliana durante aquele horroroso almoço (não voltaria a beber sumo de cenoura) e curiosamente, não fiquei desapontada por não ter sido ainda reintegrada no meu lugar, apesar dos pedidos de Jack Smack e de Al Georgio. Talvez estivesse a divertir-me muito no papel de mulher detective, e o facto de a Grandby não me ter substituído dava-me uma certa esperança de voltar a ocupar o meu lugar.
Lamentava que a colecção Havistock não fosse a leilão. Sabia que desapontamento isso devia representar para Archibald, mas não dava grande significado ao adiamento. Como me enganava!
Muito mais interessante, pensei, fora a revelação de que Vanwinkle era homossexual. Não sabia o que isso representava para a dupla investigação do roubo e do crime, mas pelo menos era outra indicação sobre a sua personalidade. Ignorava se Al e Jack teriam conhecimento disso e, no caso afirmativo, porque não mo haviam dito. Talvez quisessem proteger a minha sensibilidade. Dava vontade de rir!
Continuei a caminhar, fazendo o possível por não transpirar, e reparei como o ritmo de toda a cidade abrandara. Não se viam já muitos peões a acotovelarem-se nos passeios, as pessoas andavam calmamente e muitos homens levavam o casaco no braço. Até o trânsito se me afigurava menos intenso e, poderia ser imaginação minha, as buzinas dos táxis pareciam emudecidas
enfim, uma pasmaceira sonolenta descera sobre Manhattan.
Parei primeiro na Rua Sessenta e Cinco, Este, para tomar nota do número do edifício onde ficava o apartamento de L.
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Wolfgang, e, com medo de me esquecer escrevi-o na pequena agenda que levava na carteira. Depois dei a volta ao quarteirão para a Rua Sessenta e Seis, encontrando logo o prédio onde morava Dolly LeBaron. Fiquei parada no passeio a olhar para cima, espantada com a altura.
Era um desses arranha-céus de aço e vidro que surgiam por todo o lado em Manhattan. Aquele tinha um brilho duro, era anguloso e fazia lembrar um foguetão prestes a ser lançado nos ares. O vestíbulo dava a ideia de uma estação de metropolitano asseada, com pequenas palmeiras, e o elevador, um cubículo branco, esterilizado, sugeria aquilo a que poderei chamar um falso molar. Por vezes tenho estranhas reacções ao ambiente que me rodeia.
Dolly LeBaron vivia no quadragésimo segundo andar - o que parecia suficiente para me provocar um ataque mortal de delirium tremens. O corredor era semelhante ao de um hospital, e até as portas dos apartamentos - lisas, brancas - tinham o aspecto de pertencer a um gigantesco labirinto. Era, de facto, um local que causava arrepios.
Foi a própria Dolly quem me abriu a porta.
- Chamo-me Dolly LeBaron - declarou com um sorriso radiante. - Qual é o seu nome?
- Mary Lou Bateson - disse pela terceira vez, pensando que ela não tinha grande poder de concentração nem qualquer outro que requeresse esforço mental.
Ao olhá-la, a minha primeira reacção foi de espanto: não tinha mais de metro e meio, apesar de calçar sapatos com salto. Para além disso, era como Jack e Al a haviam descrito: uma jovem loura e gorduchinha, com cabelos loiros e cheios de caracóis. A sua pele parecia tão macia que dava a ideia de que o mais leve toque a magoaria.
Aquilo a que eles não tinham aludido, e que talvez eu imaginasse, relacionava-se com o seu ar de doce inocência: uma rapariguinha num corpo de mulher. Estava envolta num traje largo, de tecido oriental, e, pelo que lhe pude ver dos braços e pernas, o seu corpo não tinha pêlos. Não precisava, com certeza, de depilações.
Conduziu-me para o apartamento de uma só divisão e eu lembrei-me do comentário que o meu pai fizera ao visitar um apartamento semelhante àquele, em Dês Moines: "Parece um harém persa."
De facto, a profusão de veludos, almofadas macias, cortinados,
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animais de porcelana, biombos cheios de ornatos, serigrafias de mulheres nuas nas paredes, estatuetas de mulheres nuas sobre as mesas, além de uma carpete felpuda (manchada) e de um rinoceronte de cabedal tendo no dorso um tabuleiro de metal amarelo, justificava a definição. Só faltava o cheiro a
incenso.
Sentámo-nos num sofá mole como uma maca e Dolly olhou vagamente à sua volta, pensando, sem dúvida, onde se encontrava, quem seria eu e em que dia estaríamos.
Muito obrigada por me ter recebido, Miss LeBaron. Foi
grande amabilidade da sua parte.
Dolly, toda a gente me chama Dolly. Como a tratam a si?
- Por Dunk.
Dunk - repetiu ela, e aparentemente nunca lhe ocorreu
perguntar de que derivava a minha alcunha.
- Como correu a sessão fotográfica? Sempre vestiu o biquini vermelho?
- Oh! - exclamou ela -, foi divertido. O fotógrafo disse que eu tinha um corpo maravilhoso. Chamou-me uma Vénus de bolso. Não foi simpático?
- Muito - repliquei.
- Pretendia tirar-me alguns nus para a revista Playboy, mas o meu agente quer tratar primeiro da questão de dinheiro. É o mais importante, não acha?
- Certamente que sim - concordei.
Mesmo ambas sentadas no sofá onde nos enterrávamos eu ficava muito acima da cabeça dela e precisava de olhar para baixo para a fitar. Dolly era pequena, macia e tinha um aspecto vulnerável. Não sei porquê, mas pensava nela como uma vítima. Parecia-me tão indefesa...
- A respeito de Orson Vanwinkle... - lembrei. - Foi por causa do que lhe sucedeu que vim aqui falar consigo.
- Não foi horrível? - perguntou com os olhos muito abertos. - Horrível.
- Pois foi, Dolly. Há quanto tempo se conheciam?
- Oh ... - murmurou numa incerteza. - Há uns cinco anos, ou talvez mais.
- Ele mostrava-se bom para si?
- Claro que sim, mas na verdade era maluco.
- Maluco?
- Passámos muitos momentos loucos juntos.
- Acredito.
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- Fazíamos coca e tudo.
- Dolly, contou isso à Polícia? Ela tentou recordar-se.
- Pode ser que sim - disse finalmente. - Na verdade, não me lembro. Eles eram tantos.
- Onde conheceu Orson?
- Creio que foi numa festa. Ou talvez num bar.
- Que fazia antes de o encontrar?
- Queria ser uma disc jockey - declarou Dolly. - Uma rapariga disc jockey, não era engraçado?
- Acho que sim.
- Gosto de música, de todos os géneros. Quer ouvir alguma coisa? Tenho uma maravilhosa colecção de gravações.
- Muito obrigada, mas agora não. Fica para outra ocasião. Então encontrou Orson Vanwinkle e...
- Bem, ele por assim dizer tomou conta de mim.
- Mostrava-se generoso?
- Oh, sim. Horsy comprou-me este apartamento e deixou-me mobilá-lo a meu gosto. Não é bonito?
- É encantador - assegurei.
- Sim - murmurou Dolly olhando à sua volta -, encantador. Que acha que me vai suceder agora? Estava em nome dele e pagava-me a manutenção. Julga que mo terá deixado em testamento?
- Não faço ideia.
- Bem, que me importa? - exclamou com uma gargalhada. - Estou a começar agora a ganhar algum dinheiro e talvez possa conservá-lo. Ou então encontrar alguém...
Tudo aquilo era tão triste que tive vontade de chorar.
- Dolly - perguntei -, faz alguma ideia de quem pudesse querer matar Orson?
- Oh, não - respondeu instantaneamente. - Ele era um homem tão bom! Louco, mas bom.
- Amava-o, Dolly?
- Bem... - murmurou ela, desviando o olhar -, tínhamos esta situação... - Ouvi novamente um ligeiro ciciar.
- Orson alguma vez lhe falou de ter sido roubada uma moeda do apartamento do tio?
Dolly franziu a testa, tentando concentrar-se, e eu franzi também a minha, com simpatia.
- Não - respondeu finalmente. - Não me recordo disso.
- Mas ele tinha sempre muito dinheiro?
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Oh, muito - afirmou ela rindo alegremente. - No Inverno passado comprou-me um casaco curto, de arminho, e agora havia-me prometido que iríamos para fora juntos.
Não, para sempre, íamos viver junto de um rio francês.
Um rio francês? Não será antes a Riviera francesa?
Sim, é isso mesmo. Ele contou-me tudo a respeito dessa
terra. É muito bonita e pode-se andar na praia sem a parte de cima do biquini.
Quando deveriam ir?
Muito em breve, daqui a um mês, ou assim.
Seria uma grande mudança, Dolly.
- Bem, Horsy contou-me que ia receber uma herança de um parente rico. Quem me dera ter um, e você?
- Certamente que sim. Quando lhe sugeriu ele, pela primeira vez, irem para a Riviera francesa?
- Ora, não sei - respondeu Dolly divagando outra vez. Há umas semanas possivelmente. Ouça, tem a certeza de que não quer ouvir música? Horsy comprou-me uma aparelhagem. Tenho realmente boa música.
- Talvez numa outra ocasião - repliquei, levantando-me. - Obrigada por me ter recebido.
Dolly ergueu-se também e, de repente, abriu a espécie de roupão que a envolvia, fazendo-me olhar para o seu corpo nu com uma expressão que só posso descrever como de perplexidade.
- Acha que a Playboy estará realmente interessada? - perguntou.
Olhei-a por um momento.
- Penso realmente que sim - respondi.
- Talvez devesse fazer dieta - murmurou ela.
- Não, não faça isso - aconselhei apressadamente. Dolly acompanhou-me à porta. Uma muita alta e outra muito baixa.
- Volte em breve - disse, despedindo-se, com um sorriso meigo.
Logo que cheguei a casa, por qualquer razão que nunca compreenderei, fui buscar um dos meus livros de moedas ilustrados e fiquei a olhar a fotografia do Demaretion. Para a maioria das pessoas não passaria de uma chapa de metal, um meio de troca, mas Enoch Wottle ensinara-me o que ela significava realmente, o que os coleccionadores ávidos viam nela.
Pensávamos na idade que ela tinha, como fora cunhada e as
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utilizações que sofrera: dotes, subornos, tributos, rendas, salários, investimentos e outras coisas. Depois sonhávamos com todas as pessoas, agora mortas e desaparecidas, que lhe haviam tocado.
Se aquele decadracma pudesse falar, que histórias de coragem humana, de fragilidade, de conquistas e de derrotas nos contaria. Essa moeda poderia ter significado sucesso ou insucesso, alegria ou desespero e o mesmo pode ser dito de um dólar dos nossos dias. Peguem numa moeda que encontrem no bolso e deixem a vossa fantasia falar. Quem teriam sido os seus proprietários antes de vós? Como correrão as vidas dessas pessoas? Que significaria essa moeda para elas? Poderia muito bem ter sido aquilo que separa a vida da morte! Era possível...
E ali estava o Demaretion, um pedaço de metal com cerca de dois mil e quinhentos anos, afectando as vidas de gente tão diferente como a da frívola Dolly LeBaron e o austero Archibald Havistock. Existe um enorme sortilégio no dinheiro, cuja magia, por impulsionar - tantas vezes de forma desmedida as pessoas, acaba por afectar as suas vidas e o seu carácter em tal grau que elas próprias, não raro, se surpreendem.
Fechei o livro das moedas e fiquei a olhar para o tecto. A conversa com Dolly tinha-me abalado. Em primeiro lugar a sua meiga vulnerabilidade, e aquela sua inocência ignorante e impensada confiança fizeram-me repensar a minha própria vida - aquilo que eu queria e quais os meus objectivos.
O que Dolly me dissera dera-me uma ideia tão ultrajante, tão inacreditável, que eu tentei afastá-la do meu pensamento, mas, como o não conseguia, dispus-me a consultar de novo o meu caderno de apontamentos para provar ou refutar aquilo que pensava. Tomei então uma decisão, com vista a resolver todos os meus problemas, e resolvi dormir um bocado.
Acordei por volta das dezoito horas, um pouco tonta, e liguei o ar condicionado. Era um aparelho antigo, de pôr na janela, mas como, graças a Deus, funcionava, isso permitiu transformar o ambiente do meu apartamento, de uma espécie de sauna para um meio ambiente agradável, onde se podia realmente viver. Depois fui meter-me debaixo do chuveiro e ainda lá estava quando o telefone tocou - não sucede isso sempre? Saí do duche para ir atender. Era Jack Smack.
- Como está, Dunk? - perguntou.
- A pingar... Estava no duche.
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Oh! que pena! - exclamou ele no tom de quem não se
importava mesmo nada. Gosta de pimentos?
- Gosto muito - respondi, lembrando-me do almoço insípido desse dia. - Óptimo. Há um restaurante mexicano novo na Rua Vinte
e Três, Oeste. Que me diz a encontrarmo-nos lá daqui a cerca de uma hora? Comeremos enchiladas e arroz com pimentos, cebola picada e queijo, jalapenos e beberemos umas cervejas mexicanas geladas. Que acha?
Acho que é propício para apanhar uma úlcera, mas é uma
ideia maravilhosa.
Jack deu-me a direcção e eu fui acabar de tomar o meu duche, pensando naquilo que devia dizer-lhe, a ele e a Al, sobre o que soubera nesse dia por Hobart Juliana e por Dolly LeBaron. Admitia mesmo ocultar-lhes essas coisas, porque tinha quase a certeza de que eles também me não diziam tudo. Se queriam trocar informações, muito bem. Caso contrário, também nada lhes revelaria.
O restaurante mexicano estava cheio de gente, o calor era muito e cheirava bem. Tivemos de esperar no bar durante quase um quarto de hora, mas quando por fim nos sentámos vimos que valera a pena a demora: a comida era realmente boa, quente, embora não demasiado. O fumo não nos saía pelos ouvidos, mas sentíamos a nuca começar a transpirar.
Começámos a comer (os nossos pratos estavam liberalmente polvilhados de pimenta-vermelha) e Jack Smack não perdeu tempo...
- Diga-me então como têm corrido as suas investigações sobre o Demaretion.
- Bem - respondi cautelosamente -, mas nada de especial. Falei hoje com Dolly LeBaron.
- Sim? E soube alguma coisa?
- Não muito. Ela está a competir comigo?
Não sei porque perguntei aquilo e assim que acabei de falar senti-me envergonhada. Jack olhou-me, com ar divertido.
- Não, Dunk, ninguém está a competir consigo. Dolly é uma cabeça de vento.
Inesperadamente tomei a defesa dela.
- Dolly é uma rapariga meiga, inocente e tola que tem sido explorada pelos homens.
He - exclamou Jack. - Não fale comigo como uma feminista.
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Dolly é apenas uma caçadora de homens. Podia estar a vender luvas no Macy, se quisesse, mas prefere seguir pela vida fora sempre à custa dos homens que arranja. Talvez venha a casar com algum, espero que sim, pois detesto pensar no que lhe sucederá quando começar a envelhecer. Jack tinha razão e eu sabia-o, mas não queria admiti-lo.
- Continuo a afirmar que é uma vítima - insisti.
- Dunk, somos todos vítimas - retorquiu pacientemente Jack. - Ela disse-lhe alguma coisa?
- Contou-me que Orson Vanwinkle se mostrara sempre muito generoso para com ela. Comprara-lhe aquele apartamento.
- Isso já eu sabia. Onde ia o tipo buscar tanto dinheiro? Continuo a tentar imaginar como poderia ter roubado o Demaretion.
- Não o pôde ter feito - afirmei.
- É um verdadeiro quebra-cabeças - murmurou Jack com um suspiro. - Dolly contou-lhe mais alguma coisa?
Achei que era altura de negociar.
- Nada de importante. E do seu lado, não há novidades? Receberam mais cartas do homem de Nova Iorque?
- Mais nada. Pusemos alguém a trabalhar nessa ligação com Beirute de que você me falou, mas é ainda cedo para obtermos resultados. Al Georgio já lhe disse alguma coisa acerca do prédio da Rua Sessenta e Cinco, Este?
Jack estava a querer saber coisas por mim e eu senti-me ressentida com isso.
- Não, nem uma palavra - respondi. Depois decidi lançar-lhe uma bola cheia de efeito para o perturbar ainda mais. A propósito - perguntei com ar casual -, sabia que Orson Vanwinkle pertencia à comunidade dos gays?
Jack olhou-me, espantado.
- Está a brincar.
- Não estou. Soube-o de uma fonte muito segura.
- Jesus! - exclamou bebendo meio copo de cerveja. - Isso ainda vem complicar mais as coisas. Nunca vi uma baralhada destas. Você não tem quaisquer ideias, mesmo que lhe pareçam disparatadas?
- Nenhumas - respondi, mentindo, mas olhando-o firmemente. - Para mim também é tudo muito confuso.
- Sim - murmurou desanimado. - Isto é uma grande complicação. Vamos comer um sorvete, ou gelado, para refrescarmos as gargantas.
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Quando saímos do restaurante, a noite mantinha ainda o mesmo calor sufocante que ocorrera durante o dia.
Deixei o carro estacionado perto da esquina - disse Jack
encaminhando-se para lá.
Ele não andava, dançava. Não literalmente, claro, mas caminhava com tal leveza que parecia dançar. Sempre que estava com Jack tinha a impressão de que ele poderia começar a flutuar de um momento para o outro - tal era o seu ar de leveza.
Quando chegámos junto do Jaguar preto, Jack deu a volta ao carro para o inspeccionar. Rodas, vidros, pintura.
- Não falta nada - informou com ar satisfeito. - Nem vidros partidos, nem arranhões, nem pneus furados. É a minha noite de sorte.
Contudo, não era a minha. Creio que tive visões de voltar ao sótão dele e rir perdidamente na sua louca cama de água, mas não iria passar-se nada disso. Jack conduziu-me directamente a casa, agradeceu-me o agradável serão e deu-me um beijo casto na face.
Um perfeito cavalheiro, o patife!
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Na manhã seguinte, acordada mas ainda deitada, ouvindo o barulho do ar condicionado, pensei no jantar com Jack na noite anterior. Os meus sentimentos a respeito dele eram, sem dúvida, ambivalentes.
Era um homem interessante fisicamente, e na cama um verdadeiro tigre. Simpático, com sentido de humor, inteligente. Além disso, tinha um Jaguar e sabia fazer bife à Wellington. Que mais poderia uma rapariga crescida desejar?
A questão era que se tratava de um peso-leve, de um verdadeiro dançarino, e, se possuía alguma capacidade para se prender emocionalmente a alguém, nunca o mostrara. Não quero dizer com isto que aprecie homens solenes, mas gosto de um toque de seriedade aqui e ali. Jack Smack parecia flutuar através da vida, levado pela corrente, para ele era tudo uma brincadeira e rir passava por ser o melhor remédio para tudo.
Contudo, mostrava-se uma companhia agradável e animava-me, não podia negá-lo. Por isso, quando o telefone tocou, junto da cama, tive esperanças de que fosse ele, pedindo-me desculpa por não termos aproveitado melhor a noite anterior. Mas era Al Georgio.
- bom dia, Dunk. Desta vez não a acordei, pois não?
- Não, estou acordada há muito tempo - era um pequeno exagero.
- Você não me telefonou, mas pensei que tivesse tido oportunidade de saber o número do edifício para onde Vanessa entrou.
- Tive, sim - respondi, e disse-lhe o número.
- Óptimo - comentou Al. - Não devemos levar muito tempo a saber o que se passa. Depois digo-lhe o que souber. Ainda estamos às voltas com o caso do assassínio de Vanwinkle. Os rapazes do Departamento de Homicídios visitaram-na?
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Sim, mas fiquei com a impressão de que o fizeram por
mera rotina. - Certo. Eu disse-lhes que você nada tinha a ver com o caso.
Então, e porque já o dissera a Jack Smack e não queria favorecer qualquer deles, declarei:
Se por acaso os homens do Departamento de Homicídios
ainda não descobriram, quero que saiba que Orson Vanwinkle era homossexual, ou melhor, bissexual.
Silêncio.
- Está? Al?
Sim. Onde soube isso?
De uma fonte de confiança.
Calculo que sim - murmurou Al, com um suspiro. -
Isso complica ainda mais as coisas. Obrigado pela informação, Dunk. Vamos trabalhar nela. Agora vou dizer-lhe uma coisa que a vai deixar pasmada.
- Experimente. Já nada me surpreende.
- Vanessa Havistock tem cadastro. Antes de casar com Luther chamava-se Vanessa Pembroke. Não é um nome elegante? Mas, na realidade, o verdadeiro nome dela é Pearl Measley e é da Carolina do Sul, embora isso pouco interesse. Tem registo na Polícia de Nova Iorque. Adivinha por que razão foi presa?
- Comportamento indecente? Al riu.
- Andou perto. Tratou-se de vadiagem com propósitos de prostituição, mas não chegou a ser julgada. Aparentemente foi acusada e depois posta em liberdade. Que diz?
- Incrível.
- Sim. É caso para abrirmos os olhos.
Al desligou abruptamente, como de costume, e eu fui acrescentar mais aqueles dados aos meus apontamentos. Pensei se seria possível um computador assimilar todos aqueles factos, zumbir durante uns minutos e depois deitar cá para fora uma solução lógica para aquele quebra-cabeças, mas duvidava de que isso pudesse vir a suceder. Os computadores lidam com factos e nós - eu, Jack e Al - tínhamos de apreciar um emaranhado de emoções humanas e paixões, o que precisa de ser analisado com intuição e raciocínio. Não é verdade?
Tomei um duche, vesti-me e saí para ir comprar o jornal da manhã e uma arrufada com queijo. Às dez horas tinha devorado a arrufada e o Times, e comecei a pensar no que havia de
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fazer durante o dia para ganhar honestamente o dinheiro que os Havistocks me estavam a pagar, a fim de levar a bom termo as investigações. Então a campainha da porta tocou. Espreitei pelo ralo e vi Dolly LeBaron. Não teria ficado mais assombrada se fosse Martha Washington.
Dolly entrou, sorrindo corajosamente e trazendo nas mãos um embrulho do tamanho de uma caixa de sapatos, feito com papel castanho e preso por metros de fita adesiva. Usava um vestido simples de Perry Ellis, que eu vira anunciado por quatrocentos dólares, de linho rosa-claro, o que lhe ficava lindamente.
- Olá! - comprimentou-me com jovialidade.
- Olá - respondi. - Como me descobriu?
- Bem, depois de você sair escrevi o seu nome. Mary Lou Bateson - certo?
- Certo.
- Em seguida, procurei na lista telefónica - acrescentou triunfantemente.
- Está bem. Quer uma chávena de café ou coisa assim?
- Nada, muito obrigada - respondeu com ar formal. Mas agradeço como se aceitasse.
Sentámo-nos no sofá, lado a lado, olhando uma para a outra. Dolly era realmente engraçada, toda cheia de curvas e com o seu ar de inocência. Não me admirava de que Orson Vanwinkle se sentisse atraído por ela. Aquela garota era um brinquedo vivo e eu calculava que se Orson lhe dissesse para ela se balouçar nua, pendurada num lustre, riria e diria: "Está bem."
- Ouça - disse subitamente Doly -, você é a melhor amiga que eu tenho.
Aquela frase chocou-me profundamente. Só a vira uma vez, durante pouco tempo, e não me parecia que isso nos tivesse tornado amigas. Pensei uma vez mais que ela não regulava muito bem.
- Dolly - disse o mais gentilmente que pude -, com certeza conhece outras mulheres. Eu só falei consigo uma vez.
- Não - retorquiu. - Só a conheço a si, além de alguns homens.
- E a sua família?
- Vive em Wichita. Apenas nos escrevemos.
Isso fez-me lembrar que há mais de duas semanas não escrevia aos meus pais e resolvi fazê-lo logo que ela saísse. Seria uma longa carta e iria pô-la no correio nesse mesmo dia.
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É por causa dos telefonemas, Dunk - explicou Dolly,
franzindo a testa entre as sobrancelhas depiladas.
Que telefonemas?
- Estão constantemente a telefonar-me. Às vezes durante o dia e noutras ocasiões de noite. Acordam-me.
Homem ou mulher?
Homem.
Ouve só uma respiração pesada, ou ele diz alguma coisa?
- Às vezes diz.
A respeito de sexo?
Não, quer matar-me. É assustador.
- Oh, meu Deus! - exclamei, lembrando-me da carta com ameaças que recebera. - Ligou para a companhia dos telefones?
- Não.
- Para a Polícia?
- Não.
- Porque não muda de número ou, ao menos, não o manda tirar da lista?
- Isso não servia de nada - respondeu Dolly, preocupada. - Acabava por me descobrir.
Saberia ela de quem se tratava?
- Quem é que a descobriria, Dolly? Uma pequena pausa. Depois:
- Não sei.
- Tenho um amigo que é detective na Polícia de Nova Iorque. Quer contar-lhe? É uma pessoa muito compreensiva e talvez pudesse fazer alguma coisa.
- Não - respondeu Dolly. - Não poderia ajudar-me. Mas você é a minha melhor amiga, e tenho esperanças de que me faça um favor.
- com certeza - respondi. - O que puder.
Ela entregou-me o embrulho enrolado em fita adesiva.
- São umas coisas pessoais - disse -, mas são valiosas para mim. É só por pouco tempo. Posso ir para fora - acrescentou vagamente.
Reparei que Dolly não estava drogada ou qualquer coisa assim, mas a verdade é que tudo aquilo me parecia estranho.
- Pode esconder-me isto? - perguntou Dolly. Olhei à minha volta, perplexa.
- Talvez o possa pôr na prateleira de cima do armário, ou do guarda-vestidos, com umas coisas em frente para não se
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verem. É o melhor que posso fazer, Dolly, mas, realmente, preferia que não me pedisse isso.
- Não conheço mais ninguém. Faça-me esse favor, sim ? Não podia resistir àquele pedido.
- Está bem, mas promete vir buscá-lo o mais depressa possível?
- com certeza. Logo que possa.
- E se não vier? Quanto tempo devo esperar?
Dolly ficou a pensar durante longos momentos, quase podia ver o esforço que fazia para reflectir.
- Um mês? - sugeriu.
- Vem buscar isto dentro de um mês? Dolly disse que sim com a cabeça.
- E se não vier? - perguntei. - Que lhe faço?
- Queime-o - respondeu prontamente.
- Queimo-o?
- Meta-o no "incinador" - era assim que ela pronunciava. Portanto, se Dolly não viesse reclamar algo que era valioso
para ela, eu devia queimá-lo. Tudo muito estranho, cada vez mais estranho.
Depois de colocar o desajeitado embrulho sobre o sofá, Dolly levantou-se.
- Sabia que podia confiar em si - disse respirando fundo. - Não o abrirá, pois não?
- Claro que não - retorqui, ofendida.
- Sabia que o não faria.
Ergueu-se para me beijar, mas era tão baixa e eu tão alta que tive de me dobrar para ela me chegar à cara. Cheirava bem a algo de doce e fresco, um perfume de rapariguinha.
Depois de Dolly ter saído, voltei para junto do sofá e fiquei a olhar para o estranho embrulho. Peguei-lhe e sacudi-o com suavidade. Naturalmente que suspeitava de que contivesse o Demaretion, mas quem se lembraria de meter uma simples moeda numa caixa de sapatos? Nem mesmo Dolly LeBaron.
De qualquer modo, o embrulho não fez qualquer ruído, o que quer que fosse que ali estava encontrava-se bem acondicionado. Peguei-lhe: era surpreendemente leve. Quanto pesaria uma bomba? Quando essa ideia me passou pela cabeça afastei-a imediatamente, a pobre Dolly nunca faria uma coisa dessas. Ou faria? A não ser que fosse apenas a mensageira.
Outras questões, outras respostas.
Devia abri-lo?
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De modo nenhum, dera-lhe a minha palavra. Devia falar a Jack Smack e a Al Georgio naquilo?
Não.
Então que havia de fazer?
Escondê-lo, mas só durante o tempo que ela dissera.
E depois?
Queimá-lo no incinerador.
peguei no embrulho e andei de um lado para o outro à procura de um bom esconderijo de tal forma que possíveis ladrões com tempo limitado não tivessem possibilidades de o descobrir. Finalmente, resolvi guardá-lo na última prateleira do armário da cozinha, por cima do lava-louças. Pu-lo muito para trás, e coloquei à frente várias embalagens de preparado para bolos e de arroz instantâneo. As baratas iam ter muito que fazer a comer aquela fita adesiva toda.
Escrevi nesse dia para casa - o que me fez sentir virtuosa -, selei a carta e saí para a meter no correio. O dia estava enevoado, o céu pesado ameaçava chuva. Sentia-me deprimida e, a não ser pelo tempo, não percebia porquê.
Depois pensei que fosse da visita de Dolly LeBaron e do embrulho que ela deixara à minha guarda. Isso enervava-me e eu não compreendia por que razão aquele embrulho me parecia tão ameaçador como a chuva que se aproximava. Não me agradava a ideia de guardar algo que não sabia o que era. Podiam ser objectos roubados, drogas ou qualquer coisa ilegal, e isso faria de mim receptadora, não é verdade? Podia ouvir-me a mim própria a dizer ao juiz: "Senhor doutor juiz, ignorava o que continha."
Antes de me ver metida em sarilhos resolvi sair e fazer qualquer coisa. Dispus-me a ir à Sociedade Numismática Americana para tentar descobrir algumas informações sobre a colecção de moedas antigas de Archibald Havistock. Claro que eu sabia quais as existentes na actual colecção guardada nos cofres da Grandby & Sons, mas o que me interessava era o que se relacionava com as que Archibald vendera no decorrer dos últimos cinco anos, segundo me informara a esposa, Mabel.
Por isso pus a mala ao ombro, fechei a porta à chave e saí. Não estava tão alerta quanto deveria estar, pois não vivia "defensivamente", que é como dizem que toda a gente deve fazer em Nova Iorque. De qualquer modo, como não olhei para fora, não vi os três homens que me espreitavam junto da porta da rua, obviamente à minha espera.
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No momento em que passei ao vestíbulo, entre a porta da minha casa e a do prédio, dois dos homens avançaram para mim, enquanto o terceiro ficava a vigiar a rua. Cá está, pensei, vou ser atacada pela primeira vez, ou pior ainda. Contudo, tal não sucedeu.
Os dois homens que se aproximaram de mim deviam ter perto de trinta anos, creio eu. Vestiam calças de ganga, blusões de cabedal e calçavam ténis. Nos pulsos traziam pulseiras com bicos e, no pescoço, colares de dentes de tubarão, ou coisa do género. Recordo-me de que um deles tinha um dente de ouro na frente.
- Olá aí - disse este último, sorrindo. Atirei-lhes com a minha carteira.
- Fiquem com ela, mas peço-lhes que não me façam mal.
- Na - interveio o outro, com um grande bigode louro, à Estaline. - Não queremos a sua massa. É Mary Lou Bateson, não é?
Baixei afirmativamente a cabeça, tentando desesperadamente não molhar as calças.
- Trazemos um recado para si - afirmou o do dente de ouro. - Tem de parar de fazer perguntas. Percebe?
Disse outra vez que sim com a cabeça.
- Está a incomodar uma quantidade de pessoas. Portanto, seja simpática e deixe-se de querer saber coisas, é mais saudável para si.
As vozes deles não eram especialmente ameaçadoras, falavam em voz baixa e calma, como se conversassem, mas o que diziam tornava-se ainda mais perigoso por causa disso. Pareciam homens de negócios, profissionais oferecendo condições para um contrato. Não duvidei deles nem por um instante.
- Ouçam - comecei a dizer -, não...
- Não - respondeu o do dente de ouro -, você é que ouve. Afaste-se do caso da moeda e de tudo o que estiver relacionado com isso. Desista, não tem nada a ver consigo. Certo?
- Estamos a ser delicados, não é verdade? - acrescentou o do bigode. - Siga o nosso conselho e as coisas ficam por aqui. Não lhe tocámos, pois não? Mas, se continuar a meter o nariz onde não é chamada, teremos de voltar.
- E nessa altura podemos não ser tão delicados - disse o do dente de ouro. - Teremos de lhe tocar. Adeus.
Saíram os três e só quando os vi afastarem-se rapidamente, é que tomei consciência das minhas pernas e mãos trémulas.
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Voltei para o meu apartamento e descobri uma garrafinha miniatura de conhaque que tinha guardada para fins medicinais. Consegui, com dificuldade, tirar-lhe a rolha e bebi o seu conteúdo em três goles. Depois dirigi-me para o sofá, ofegante, e deixei-me cair sobre ele à espera de que a minha pulsação normalizasse.
Recordei o breve encontro que acabara de ocorrer e não tive dúvidas a respeito das ameaças: os homens tinham todo o aspecto de fazer o que diziam, eram perfeitamente capazes de qualquer género de violência - de lançar bombas, esfaquear, violar, assassinar. Havia tido sorte, aqueles tipos obedeceriam a qualquer ordem: "Quer que lhe atiremos ácido para a cara, patrão? Está bem."
Contudo, sou teimosa, e à medida que o medo ia diminuindo, a minha indignação aumentava. Os patifes! Pensavam então que eu desistiria facilmente! E qual seria a razão daquilo tudo? Certamente eu ameaçava alguém com as minhas investigações. Mas como, santo Deus! Não conseguira descobrir fosse o que fosse!
A não ser que tivesse ouvido algo de importante sem que de tal me apercebesse.
Repeti mentalmente o diálogo com os dois Scarfaces amadores:
"Afaste-se", dissera o do dente de ouro. "Da moeda e de tudo o que estiver relacionado com ela." Não havia qualquer indicação aí, o aviso dele incluía tudo o que eu fizera e todas as pessoas que eu encontrara desde que fora trabalhar para a Grandby & Sons.
Mas depois, antes de se irem embora, o tipo do dente de ouro, dissera-me: "Adeus, minha senhora." Quem é que já me falara daquela maneira? Sam Jefferson, Akbar El Raschid, o namorado misantropo de Natalie Havistock. Mas que sabia eu a respeito dele?
Dirigia-me ao telefone da cozinha, para fazer uma chamada, quando ele tocou. Sobressaltada, afastei a mão do auscultador como se fosse tocar numa coisa quente. Será que isso nunca lhes sucedeu? Depois peguei-lhe lentamente.
- Está? - perguntei receosa, lembrando-me dos problemas de Dolly LeBaron.
- Miss Bateson.
- Sim.
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- Daqui fala a secretária de Lenore Wolfgang. Miss Wolfgang gostaria de ter uma conversa consigo, esta tarde. Será possível?
- Está bem - respondi. - Onde e quando?
- Aqui, no nosso escritório, às quinze horas.
- Lá estarei - concordei.
- Por favor, seja pontual. Miss Wolfgang tem o tempo muito ocupado hoje.
Vá para o diabo, pensei, enquanto desligava.
Estava a ser incomodada pela secretária da advogada, depois de ser ameaçada por uns patifes e de haver recebido uma carta com ameaças, isto para além de ter à minha guarda um embrulho misterioso que me fora levado por uma tolinha, ex-amante de um homossexual assassinado.
Creio que foi nesse preciso momento que resolvi deixar de ser agradável. Não forneceria mais informações nem a Al Georgio nem a Jack Smack, achava que possuía a coragem suficiente para olhar por mim e resolver os meus problemas. Os homens que fossem para o inferno, amigos ou inimigos.
Por isso, a primeira coisa que fiz foi ligar para a Grandby a fim de falar com Hobart Juliana. Queria pedir-lhe um favor.
- Hobie, lembras-te de me teres dito que Orson Vanwinkle era... tinha... umas certas predilecções?
- Predilecções? - repetiu Hobart, rindo. - Que maneira tão sensível de pôr o problema. Sim, lembro-me.
- Poderás saber se tinha algum amigo regular? Alguém especial?
Uma curta pausa e depois: .
- Isso é importante, Dunk?
- É, para mim, é.
- Bem, vou tentar, mas não garanto. Faço uns telefonemas e depois ligo para aí. Estás em casa?
- Preciso de sair à tarde, mas podes telefonar-me à noite, quer saibas alguma coisa, quer não.
- Está bem.
- És um amor.
- Concordo. E nunca mais voltamos a comer cogumelos cozinhados como os de ontem.
- É exactamente a minha ideia - repliquei.
Em seguida peguei no meu livro de apontamentos e comecei a escrever os acontecimentos desse dia louco. Era já tarde de mais para ir à Sociedade Americana de Numismática, por isso
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comi uma salada de chicória, com tomates e agriões, e saí logo para chegar a horas à entrevista marcada com Lenore Wolfgang. Deus me livrasse de me atrasar, a secretária dela teria um ataque.
Que dia aquele! Caía uma chuva miudinha, quase vapor de água, e havia um vento ligeiro que cheirava como se viesse de algum gigantesco tubo exaustor. Eu vestira um impermeável de plástico e isso fazia com que me sentisse embrulhada em algodão. Finalmente, arranjei um táxi para a Broadway, cujo motorista tinha o rádio ligado. Tocavam uma música de Willie Nelson, o que levou a que eu ficasse um pouco mais bem-disposta - não muito.
Lenore wolfgang tinha o seu escritório num grande prédio de pedra que ficava na Quinta Avenida, a norte da Rua Quarenta e Dois. Era um edifício brutal, enorme, e quando se olhava para cima, tinha-se a impressão de que podia cair sobre nós a qualquer momento. Procurei o nome dela nas placas do vestíbulo e encontrei-o: Getzer, Stubs & Wolfgang. Depois, subi até ao trigésimo sexto andar num elevador de bronze que cheirava a desodorizante de pinheiro, talvez para nos dar a sensação de que nos encontrávamos nas florestas do Norte. Era agradável.
Mandaram-me entrar imediatamente, o que me surpreendeu, pois estava convencida de que ela me faria esperar. Lenore Wolfgang apertou-me a mão como se fosse uma lutadora, e depois indicou-me uma cadeira com estofo de couro em frente da sua secretária. Sentou-se então na cadeira giratória e pôs os pés em cima da secretária. Na sola de um dos seus pesados sapatões via-se uma pastilha elástica, mas eu não mencionei o facto.
A advogada vestia um fato de saia e casaco de corte masculino e uma camisa com um laço ao pescoço. Não usava qualquer jóia. O rosto era grande, largo e poderoso, tratava-se de uma mulher forte e dura, tão alta como eu, mas corpulenta. Se eu fazia lembrar logo uma basquetebolista ela assemelhava-se a uma jogadora dos Steelers. Não ficaria nada surpreendida se soubesse que fumava charuto.
- Soube que os Havistocks a contrataram para investigar o roubo do Demaretion - começou por dizer.
Não percebi se se tratava de uma afirmação ou de uma pergunta, por isso fiquei calada.
- Eu aconselhei-os a não o fazerem - continuou com ar
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grave, fitando-me. - Acho que as investigações criminais devem ser deixadas aos profissionais, não concorda?
- Na maioria dos casos, sim - admiti -, mas neste os profissionais parecem concordar que está envolvido no roubo um membro da família. Os Havistocks sabem isso e tenho a certeza de que se sentem perturbados, por isso quiseram uma representante particular a tratar do assunto.
Lenore Wolfgang agitou-se na cadeira, cruzou as pernas e esticou-se para cobrir os joelhos gordos com a saia de flanela.
- Bem - declarou por fim. - Creio que não deve ter grande importância. Já descobriu alguma coisa?
- Não, nada de especial, e o assassínio de Orson Vanwinkle veio complicar as coisas.
- Como? Acha que foi ele que roubou a moeda?
- É possível.
A advogada abanou a cabeça.
- Não acredito. Era um homem vaidoso, fraco, sem qualquer autodisciplina, mas não consigo imaginá-lo como um vulgar ladrão. Defraudar velhas viúvas seria mais o género dele.
Uma opinião muito dura a respeito de uma vítima de homicídio, mas ele não estava em condições de a processar por calúnia, pois não?
- Apreciaria muito - continuou Lenore Wolfgang - que me mantivesse informada dos progressos das suas investigações. Relatórios semanais, digamos.
Por detrás dela erguia-se uma parede de livros. Tudo naquele escritório era pesado, maciço, cores apagadas, superfícies polidas, tudo ali falava da solidez e majestade da lei. Contudo, eu não permitiria que ela me intimidasse, já me bastara a ameaça que recebera no vestíbulo do meu prédio, poucas horas antes.
- Não creio que deva fazê-lo - repliquei. - Fui contratada pelos Havistocks e prometi-lhes relatórios periódicos dos meus progressos. Mister Havistock dir-lhe-á a si o que entender.
Ela aceitou bem a minha resposta, sem mudar de expressão.
- A única razão que me levou a pedir-lhe isto foi Archibald Havistock ser meu cliente e eu querer proteger os seus interesses.
- Naturalmente. Há quanto tempo Mister Havistock é seu cliente, Miss Wolfgang?
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Oh, há aproximadamente cinco anos. - Depois olhou-me com estranheza. - Porque pergunta isso? Encolhi os ombros. Não tenho qualquer razão especial. Lembrei-me de per-
Ela franziu a testa, tirou os pés de cima da secretária e levantou-se. Ergui-me também, calculando que aquela entrevista incompreensível tivesse terminado, mas nessa altura ela disse-me uma coisa que me fez perceber a razão de haver sido chamada
ali.
A propósito - disse com ar casual -, além do meu apartamento, tenho também um pequeno andar alugado na Rua Sessenta e Cinco, para lá receber clientes de fora e pessoas amigas que aqui vêm de visita. Esta manhã recebi um telefonema do proprietário do edifício, dizendo-me ter sido contactado por um detective da Polícia que lhe fizera perguntas sobre quem alugava o apartamento, quem o habitava e outras coisas assim. Sabe alguma coisa a respeito disso?
Quando jogava basquetebol na escola secundária fui sempre melhor na defesa do que no ataque.
- Não sei de nada - respondi. - Tudo isso é novidade para mim. Suponho que desde o assassínio de Vanwinkle estejam a fazer investigações a todos os que o conheciam.
- Sim - murmurou ela pensativamente. - Suponho que seja isso. Agradeço-lhe ter vindo aqui, Miss Bateson, e espero voltar a vê-la em breve.
Novo aperto de mão de partir os ossos. Quando cheguei à rua vi que a chuva engrossara e que era impossível apanhar um táxi na Quinta Avenida. Por isso fui a pé até à Rua Quarenta e Dois - que não é exactamente um ambiente maravilhoso.
O tráfego era intenso, mas no lento percurso até casa, num táxi que parecia não ter molas nem amortecedores, tive tempo para pensar na entrevista com Lenore Wolfgang.
A advogada estava visivelmente incomodada com o prédio da Rua Sessenta e Cinco, mas essa preocupação podia também ser completamente inocente. Quem gosta que os polícias apareçam a fazer perguntas? Por outro lado, ela entrara em pormenores desnecessários para explicar por que razão alugara aquele andar, além da sua residência particular.
Só depois de me encontrar dentro da minha modesta (e única) residência, com a porta fechada à chave, trancada e com a corrente colocada, é que me lembrei de outro aspecto da conversa.
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Peguei no livro de apontamentos para verificar o que estava a pensar.
Lenore Wolfgang dissera que Archibald Havistock era seu cliente há cerca de cinco anos; Orson Vanwinkle fora secretário particular de Havistock durante cinco anos, começando, também a partir dessa altura, a gastar dinheiro como se fosse água; e fora igualmente desde há cinco anos que Havistock iniciara a venda das moedas da sua colecção. Al Georgio dissera-me que os detectives não acreditam em coincidências. Então que acontecimento catastrófico teria desencadeado toda aquela actividade?
Já mencionei que tinha uma ideia louca do que se passara e do que se estava a passar, uma noção disparatada - na qual nem eu própria conseguia acreditar e que não poderia provar, ou sequer descrever. Contudo, as últimas informações recolhidas junto de Lenore Wolfgang haviam ajudado, as peças começavam a encaixar.
Não me recordo bem do que fiz durante o resto desse dia terrível: sei que Hobie Juliana me telefonou para me informar de que não conseguira saber nada de especial acerca de Orson Vanwinkle, mas que continuaria a tentar, e que Jack Smack e Al Georgio telefonaram também, só para saberem como eu estava. Não me contaram coisa alguma e eu também nada lhes disse, mas foi simpático da parte deles preocuparem-se comigo e saberem se eu estava ainda viva.
À noite chovia a cântaros e por isso jantei em casa. Comi uma sopa ou talvez uns ovos mexidos, qualquer coisa do género. Tentei ver televisão, mas, daí a pouco, estava de novo a folhear o meu bloco de apontamentos. Continuei com o aparelho ligado e prossegui na minha tarefa de tentar encontrar algum sentido em todas aquelas notas.
Fui para a cama cedo, dando graças a Deus por me encontrar dentro de uma jaula fechada, trancada e acorrentada. Os animais estavam todos lá fora, espiando. Adormeci a ouvir o ruído da chuva e dormi um sono sem sonhos, o que acontece apenas aos inocentes e de coração puro. Era eu, que diabo.
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Na manhã seguinte o meu telefone não parou de tocar. Quatro telefonemas antes das dez horas, um novo record do mundo pelo menos para mim. Fiquei assombrada por essa inesperada popularidade e lembrei-me dos tempos em que se passava uma semana ou duas sem receber uma única chamada, e que, mesmo quando tal acontecia, normalmente não passava de um tipo a tentar vender-me enciclopédias sobre os mamíferos da América do Norte.
O primeiro telefonema foi de Roberta Minchen, toda cheia de amabilidades e de risinhos. Estava a pensar que seria agradável almoçarmos as duas na Russian Tea Room, ao meio-dia e meia hora. Não poderia eu ir?
Se queria fazer outra tentativa para me recrutar para o seu elenco de rabos ao léu, não teria sorte nenhuma, mas depois pensei que um almoço de graça não era para desprezar, com a vantagem, talvez, de vir a saber mais alguma coisa, enquanto tomávamos vodca e caviar; por isso aceitei.
A segunda chamada foi de Hobie Juliana.
- Tenho uma informação para ti, Dunk. Não garanto que seja cem por cento segura, mas, em todo o caso, achei que te devia dizer. O falecido e não lamentado Orson Vanwinkle andava, ao que parece, com um negro com um desses nomes árabes...
- Oh, oh! - murmurei.
- Alguma coisa errada? - perguntou.
- Hobie, não seria Akbar El Raschid?
- Creio que sim. Usa um único brinco de ouro.
- E um barrete vermelho.
- Meu Deus, Dunk. Conhece-lo?
Creio que já encontrei esse cavalheiro, Hobie, mas nem
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posso crer. Orson e Akbar deviam constituir o mais estranho dos pares.
- Bem, nunca se sabe - respondeu sensatamente Hobie -, mas como Vanwinkle gastava dinheiro às mãos-cheias, isto pode estar relacionado com esse facto.
- Provavelmente - concordei. - Muito agradecida pela tua ajuda, Hobie.
- Um dia destes contas-me de que se trata?
- Quando eu descobrir hás-de ser o primeiro a saber. Depois de desligar fiquei a pensar nas implicações daquilo
que acabara de ouvir. Estaria Vanwinkle a financiar o bando de Akbar? Saberia Natalie Havistock da ligação do namorado com o primo dela?
De cada vez que surgia alguma coisa nova, em vez de esclarecer as coisas, ainda aumentava mais a complicação, o emaranhado desenvolvia-se de maneira imprevisível. com um suspiro apressei-me a tomar nota de mais aquele dado, pensando que, se aquilo continuasse, teria de passar para o volume segundo.
O terceiro telefonema foi o mais inesperado de todos: era de Felicia Dodat. Mostrou-se encantadora, não podia ser mais amável, repetindo-me que sentiam imenso a minha falta e que estavam ansiosos por que eu voltasse ao trabalho. Pois sim.
com efeito, continuou, ela, Grandby e o advogado Lemuel Whattsworth pensavam que seria "produtiva" uma "conversa informal" comigo, e gostariam de que passasse pela firma nessa mesma tarde. Tratava-se de "rever a minha situação".
"E que situação é essa?", apeteceu-me perguntar, mas não o fiz. Respondi-lhe que ia almoçar, com uma amiga e que provavelmente não poderia chegar à Grandby antes das quinze. Felicia replicou que essa hora seria óptima e que estava ansiosa por voltar a ver-me.
- Já arranjou um homem, Dunk? - perguntou com a sua malevolência habitual.
- Dois - respondi, desligando.
Sabia exactamente por que razão os patrões da Grandby queriam ter uma "conversa informal" comigo. Como não ignoravam que eu estava a trabalhar para os Havistocks, desejavam descobrir em que ponto iam as minhas investigações. A Grandby continuava sem o Demaretion, a companhia seguradora não mostrava pressa em pagar, e eu admitia que esse estado de coisas não fizesse bem às hemorroidas do "deus".
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A última chamada telefónica dessa manhã foi de Vanessa Havistock, com mais um convite para almoçar. Pensei que se aquilo continuasse assim precisava de arranjar uma secretária.
Oh, tenho muita pena - declarei -, mas já recebi outro
convite. com um homem, espero - disse Vanessa do outro lado
do fio.
Então, como uma idiota, expliquei: Não, por acaso é com a sua cunhada, Roberta Minchen.
- Mas isso é maravilhoso - retorquiu imediatamente. vou telefonar à Bobbi e perguntar-lhe se posso ir também. Não se importa, pois não?
- Claro que não.
- Vai ser engraçado - disse Vanessa. - Uma verdadeira reunião de galinhas.
Não percebi se estava a ser irónica ou não, com ela era difícil de saber.
- Agora outra coisa - prosseguiu ela -, Luther e eu oferecemos um jantar de pé, muito informal, na próxima terça-feira, e gostaríamos de que viesse. Está disposta a aceitar o convite?
Senti-me tentada a dizer: "Deixe-me olhar para a minha agenda", mas não tive coragem.
- Sim - respondi. - com todo o gosto. Muito obrigada.
- Boa comida, bebidas à farta e os homens mais elegantes de Manhattan. Creio que vai gostar. - Fez uma pausa durante uns momentos e depois acrescentou: - Ouça, Dunk, tive uma ideia maravilhosa. vou à Vecchio, em Madison Avenue, comprar uns trapos novos para a festa. Poderia encontrar-se comigo lá, digamos às onze horas, e escolheríamos qualquer coisa soberba para mim. Teremos muito tempo até à hora do almoço. Que diz?
Porque ficara com a sensação de estar a ser manipulada?
- Acho bem - respondi debilmente. - Combinei com Roberta ao meio-dia e meia.
- Não há problema, não levarei tanto tempo a escolher um vestido, e gostaria realmente de ouvir a sua opinião. Você tem gosto.
Tretas!
A Vecchio era o género de casa onde nos olham de alto a baixo antes de nos abrirem a porta e na qual, para comprarmos uma blusa que custe menos de seiscentos dólares, ou um vestido a um preço inferior a dois mil teremos de optar por modelos do ano anterior.
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O porteiro recusaria, provavelmente, depois de olhar para o meu vestido de ganga, abrir-me a porta, mas como, no momento em que cheguei, depois de ter caminhado por Central Park, Vanessa saía de um táxi, mostrando as coxas, apressou-se a facultar-nos a entrada.
Lá dentro, um adónis vestido de seda preta veio a correr para Vanessa, beijar-lhe as mãos.
- Signora! - gemia. - Signora!
- Calma, Carlo, calma - disse Vanessa, rindo. Depois apresentou-me.
- Signorina - murmurou, inclinando-se, mas nem sequer mereci um ponto de exclamação.
Tratava-se de uma casa luxuosa: pavimentos de mármore polido, colunas coríntias, luzes indirectas e cadeirões e sofás de pele. Não havia um único vestido à vista. Calculei que a cliente começasse por dizer o que lhe interessava e que só depois as roupas viriam de uma sala interior para a signora escolher.
- Uma coisa bonita, Carlo - pediu Vanessa -, para uma festa. Conhece os meus gostos.
- Mas com certeza - disse Carlo, voltando-se e fazendo sinal a duas empregadas, que se agitaram nervosamente.
- O vermelho com sequins, o branco com drapeados e o preto com franjas.
Elas correram e voltaram apressadamente com os três vestidos. Daria os olhos por qualquer deles, mas claro que nunca os poderia vestir, pareceria uma girafa mascarada.
Carlo exibiu-os dramaticamente, acariciando os tecidos e agitando os vestidos para que eles tomassem vida.
- Bonitos, não?
- Que acha, Dunk? - perguntou Vanessa.
- Gosto de todos - confessei.
- Umm... - murmurou Vanessa examinando-os com ar crítico. - O drapeado é um pouco cheio para mim, e o vermelho com sequins é demasiado vistoso, não acha?
Aquilo dito por uma mulher presa por vadiagem com propósitos de prostituição dava vontade de rir.
Vanessa escolheu o preto, com franjas. Era um vestido direito e curto, com alças, bastante subido na frente e praticamente sem costas. As franjas agitavam-se a cada movimento, balouçando e oscilando à volta do corpo.
- Vamos experimentá-lo - disse Vanessa. Tive vontade de perguntar: as duas?
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Entrámos numa sala de provas mobilada tão elegantemente como um vomitorium romano. Claro que estou a exagerar, mas a verdade é que era muito luxuosa e tinha espelhos por todos os lados. Vanessa começou a despir-se, o que me embaraçou um bocado.
Diga-me - perguntou, enquanto se desabotoava -, já
descobriu quem roubou o Demaretion?
- Não, não descobri.
- A morte de Orson chocou-me muito - continuou. - Eu não gostava dele, como lhe disse, mas, mesmo assim, fiquei abalada. Já sabem quem o matou?
- Estão a investigar.
- Diga-me o que descobriram - pediu Vanessa. - Fui interrogada durante duas horas por um dos detectives e espero que não desconfiem de mim. Seria incapaz de fazer mal a uma mosca.
Vanessa acabou por ficar apenas de saltos altos e com umas calcinhas minúsculas, nada mais. Eu sou um longo monte de cartilagens, mas o corpo de Vanessa era realmente perfeito. Lindamente proporcionado, com cintura estreita, ancas largas e seios firmes. Não vi a tatuagem de que Orson Vanwinkle falara.
Vanessa examinou o seu corpo praticamente nu nos três espelhos, voltando-se e erguendo os braços.
- Que acha? Não estou mal, para a minha idade. As coxas ainda estão firmes.
- Como o resto - concordei.
Ela tocou ao de leve nos seios, numa breve carícia e replicou:
- Aqui já há um pouco de silicon, mas isto fica entre nós, mulheres. Acha que foi Orson?
- O quê? Ah, refere-se ao roubo do Demaretion? Não, não creio que fosse ele. Não podia tê-lo feito.
- Então Natalie - continuou Vanessa com voz abafada, enquanto enfiava o vestido pela cabeça. - Ela é bastante louca para o fazer. Ou Ruby Querita, outra doida.
Vanessa apontava para todas as direcções, e eu pensava se ela falaria ao acaso ou se manteria algum oculto desígnio ao fazer aquelas afirmações. Talvez que o roubo do Demaretion e o assassínio de Orson Vanwinkle fossem as coisas mais dramáticas que tivessem acontecido na sua vida desde há muito tempo e ela tentasse apenas manter a excitação que lhe haviam causado.
Vanessa voltou-me as costas e ordenou:
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- Feche-me o vestido.
Obedeci, correndo o fecho éclair, e ambas observámos o resultado.
E que resultado! O vestido parecia ter sido feito para ela, e as franjas tornavam-no ainda mais sexy. Fez-me lembrar uma bailarina de streap-tease pronta a começar o seu número.
- O que diz? - perguntou Vanessa.
- Muito bonito - respondi -, mas talvez um bocadinho comprido de mais. Eles podem subir a bainha.
Vanessa olhou-me com espanto.
- Tem toda a razão - exclamou. - Por favor, chame Carlo e as modistas.
Dentro de minutos estavam quatro pessoas à volta dela, soltando exclamações e fazendo rolar os olhos. com certeza que a bainha seria subida.
- E talvez, signora - disse Carlo -, as alças pudessem ser encurtadas. Não muito, uma coisa de nada. Fica melhor. Assim. Ah, glorioso!
Depois de lhe terem pregado os alfinetes e feito riscos com giz no vestido, Vanessa despiu-se, vestiu-se e voltámos à sala de entrada. Nem sequer mostrou o cartão de crédito.
- Mande-me a conta - disse alegremente.
- Mas com certeza, signora - concordou Carlo inclinando-se para lhe beijar a ponta dos dedos.
Posso ter imaginado tudo, mas pareceu-me que lhe passou um bilhete dobrado para a mão, tal como o chefe dos criados fizera no pub Tudor, na Terceira Avenida. Depois largou a mão dela e apertou-me a minha.
- Signorina - murmurou, nada interessado.
Nunca soube quanto custou aquele vestido preto, provavelmente mais do que toda a minha conta bancária no Chemical Bank.
Estava disposta a confessar que Vanessa Havistock possuía muitos talentos e um deles era obviamente a sua habilidade para apanhar táxis. Mal tínhamos saído da loja e levantara indolentemente um dedo, logo um parou na nossa frente com um ranger de travões. Gostava de ter essa habilidade.
Quando íamos a caminho da Russian Tea Room, Vanessa perguntou-me subitamente:
- É amiga íntima de Roberta?
- Amiga íntima? - exclamei, surpreendida. - Vi-a apenas duas vezes.
196
Tenha cuidado - aconselhou Vanessa com ar sombrio. ? Roberta não é exactamente uma freira saída do convento. Roberta Mmchen encontrava-se sentada a mesa, a nossa espera. As decorações do Natal continuavam colocadas, como sempre, naquela sala das traseiras. O local estava já apinhado e o tom das conversas ia aumentando de volume.
Vejam o que eu estou a beber - disse Roberta, com um
risinho e erguendo o copo. - Vodca apimentado. É delicioso.
Trazia um dos seus vestidos floridos de gola subida e tentei não me lembrar do aspecto dela na cassette vídeo que vira. Não receberia um prémio da Academia, mas certamente que todos os homens que ali se encontravam achariam que era a melhor actriz secundária.
Vanessa pediu o habitual vermute, "muito seco, apenas com uma azeitona, por favor" e eu um vodca.
Depois, para simplificar as coisas, resolvemos comer todas a mesma coisa: abacate recheado com salada de caranguejo. Estás a viver bem, rapariga, pensei para comigo.
Foram precisos apenas três segundos para a conversa derivar para o roubo do Demaretion e para o assassínio de Orson Vanwinkle. As duas Havistocks concordavam que ambos os acontecimentos estavam ligados.
- Tínhamos todos uma vida tão pacífica, tão tranquila - disse Roberta com os seus dentes de coelho a brilharem - e logo se deram essas duas coisas terríveis, uma atrás da outra. Há, com certeza, uma relação entre elas.
- Concordo - disse Vanessa - e continuo a pensar que Orson tomou parte no roubo. Ele era horroroso.
- Não era? - retorquiu Roberta, pestanejando. - Nunca percebi por que razão o papá o tinha como secretário. Sabes porquê, Vanessa?
- Evidentemente que não - retorquiu esta, tensa. - Porque havia de saber?
Foi a primeira vez que percebi que havia uma certa tensão entre as duas. Talvez não fosse hostilidade, de momento, mas uma certa desconfiança. O ambiente manteve-se durante todo o almoço.
- Nem mesmo a minha mãe gostava dele - continuou Roberta -, mas era sobrinho do papá e creio que ela não queria dizer coisa alguma. Conhecias a namorada dele, Dolly LeBaron?
197
- Vi-a uma vez - replicou Vanessa - e bastou. Eles iam à vossa casa, não iam?
- Tentámos ser amigos, mas durou pouco. Não eram o nosso género de pessoas.
- Sim? Julguei que se dessem bem.
Mantinha-me silenciosa, observando aquele duelo fascinante.
- Orson bebia de mais e ela não passa de uma pateta - afirmou Roberta.
- Achas realmente que sim? Debaixo daquele exterior de Marilyn Monroe barata tenho a impressão de que se trata de uma verdadeira caçadora de homens.
- Cada um sabe de si - declarou Roberta, sorrindo suavemente.
Vanessa fitou-a friamente e depois voltou-se para mim.
- Encontrou alguma vez Dolly LeBaron?
- Sim, falei com ela.
- E qual é a sua opinião?
- Não a achei muito brilhante.
- Mas foi suficientemente esperta para deitar o laço a Orson e apanhar-lhe o que ele tinha. Era para ali que ia todo o dinheiro dele.
Ficámos silenciosas um momento, escavando os nossos abacates, mas as tréguas não duraram muito.
- Como está o Luther? - perguntou Roberta. - Da última vez que o vi achei-o muito magro e pálido.
- Luther está óptimo - retorquiu Vanessa.
- Ainda rói as unhas? - quis saber Roberta.
- E Ross ainda faz estalar os nós dos dedos? - perguntou Vanessa.
Preparei-me para afastar a minha cadeira se os pratos começassem a voar, mas não, a disputa era apenas verbal.
- Afinal - continuou Roberta. - Luther é meu irmão e eu estou interessada no seu bem-estar. Não devias deixá-lo beber tanto.
- Acaba com isso - replicou Vanessa, tornando-se quase feia com a fúria - não digas mais nada. Eu também não te aconselho a respeito do que hás-de fazer com esse cretino com quem casaste.
- Então... - murmurei, mas não serviu de nada.
- Pelo menos - disse Roberta -, Ross ganha muito dinheiro.
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Não quero saber disso. De resto, hoje és tu que ofereces o
almoço e eu nunca insulto a mulher que paga a conta.
Nem o homem - replicou Roberta. - És sempre muito
meiga para quem paga.
Que queres dizer com isso? - perguntou Vanessa.
Se a carapuça te serve, enfia-a.
Felizmente a empregada apareceu nessa altura, para levar os pratos vazios, e juro que se aquele conflito tivesse durado mais tempo, eu levantar-me-ia e sairia com toda a dignidade que pudesse. Era uma situação embaraçosa, mas a criada salvou-a e todas pedimos café com vozes calmas e controladas.
E a respeito de Ruby Querita - disse Vanessa olhando
para Roberta com ar inexpressivo. - Que dizes?
Roberta esticou os lábios com a sua expressão de amuo.
- Sim, acho muito possível que tenha roubado a moeda. Tem o irmão preso e precisa de dinheiro para o libertar.
Olharam ambas para mim.
- E também foi ela quem matou Orson Vanwinkle? - perguntei. - Por que razão o faria?
- Talvez a tivesse visto roubar a moeda e fosse denunciá-la à Polícia. Então ela matou-o.
- Sim - concordou Roberta. - Isso faz sentido.
Tive novamente a sensação de estar a ser empurrada para uma direcção para onde não queria ir.
- Não creio que faça sentido - afirmei. - Foram enviadas cartas à companhia seguradora, oferecendo o Demaretion em troca de dinheiro, e não acho Ruby Querita capaz disso.
- Talvez tivesse arranjado alguém que lhe escrevesse as cartas - sugeriu Vanessa.
- Não acredito. Ruby é muito religiosa, vive segundo os Dez Mandamentos, e não creio que tenha roubado.
- Então foi Natalie - declarou firmemente Roberta. - Ela é muito capaz de roubar como se isso fosse uma brincadeira. Detesto dizer isto da minha própria irmã, mas sei que é verdade.
Que família!
Nunca me senti tão satisfeita como quando aquele horroroso almoço acabou. Disse-lhes que tinha uma entrevista às quinze horas, e logo que foi possível, deixei-as no passeio e afastei-me depois de ter agradecido a Roberta a sua amabilidade.
- Qualquer dia voltamos a almoçar juntas - declarou ela alegremente.
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Talvez em 1998, pensei.
Afastei-me o mais depressa que pude, sem olhar para trás, pois, assim, se começassem a puxar os cabelos uma à outra, o problema era só com elas. E, se chegassem a vias de facto, apostava que quem ganharia era Vanessa. Era a mais forte das duas.
Ainda tinha bastante tempo na minha frente antes da entrevista na Grandby & Sons, por isso sentei-me num banco a descansar, em Central Park. Depois um velhote aproximou-se, deixou cair o jornal das mãos, na minha frente, e baixou-se com lentidão para me ver as pernas. Levantei-me apressadamente e dirigi-me para Madison, onde os malucos eram mais novos e andavam mais bem vestidos.
Que almoço aquele!, pensei. Mas valioso, concluí logo a seguir, pois havia ficado com outra visão das tensões existentes no interior da família Havistock. Não sabia o que tudo aquilo queria dizer, mas nem por um minuto duvidei do seu importante significado. Se conseguisse perceber aquelas inimizades, teria dado um passo em frente no sentido de descobrir quem roubara o Demaretion e quem matara Orson Vanwinkle.
A Madison Avenue, a partir da Rua Cinquenta e Sete para norte, é realmente algo digno de se admirar e constituía o meu passeio preferido para ver montras. Lá existe de tudo: galerias de arte, boutiques, antiquários, joalharias, casas de vinhos, hotéis e pequeninas lojas onde se pode comprar o inimaginável, desde tacos de pólo ou mobílias de fórmica, a molduras de porcelana. O que precisamos é de levar dinheiro.
Ainda havia em mim muito de provinciana, pelo que uma rua como aquela representava todo um mundo que eu nunca conheceria. Não podia deixar de rir, porque sabia que nunca aquele universo me diria respeito - mas era-me permitido admirá-lo. Isso não me deprimia, sentia-me feliz só por pasmar diante de todas aquelas coisas, sonhar, e depois ir para casa comer uma refeição descongelada. As coisas são importantes, mas não são tudo, não é verdade?
Fui caminhando tranquilamente de modo a chegar à Grandby alguns minuntos antes das quinze. Se a entrevista não durasse muito tempo, planeava ir ter com Hobart Juliana e dar-lhe um abraço de agradecimento pela sua ajuda.
Encontrámo-nos na sala de reuniões da Grandby, uma divisão austera que apenas precisava de velas e um caixão para se transformar em câmara funerária. Sentámo-nos em volta de
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uma mesa polida e o advogado Lemuel Whattsworth, com o seu ar empertigado tomou então a palavra.
Miss Bateson, foi contratada pela família Havistock para
descobrir quem roubou o Demaretion. Correcto?
É verdade.
Compreende, é claro, que tecnicamente é ainda empregada da Grandby & Sons e que se encontra apenas de licença temporária.
Tecnicamente, sim, o que significa que não me pagam.
Existe aqui um conflito de interesses - prosseguiu
Whattsworth chupando os dentes com satisfação - pelo que é muito possível que a Grandby e Archibald Havistock possam, eventualmente, se este assunto não for rápida e satisfatoriamente resolvido, encontrarem-se em litígio pela perda do Demaretion e pela recompensa pedida pelo seu valor, como está estipulado no contrato do leilão.
- E então? - perguntei.
- Percebe certamente a posição difícil em que está a colocar o seu legítimo empregador - refiro-me, é claro, à Grandby & Sons. É, com efeito, mercenária de alguém que pode vir a ser adversário da firma num tribunal.
- Mercenária! Veja bem o que diz. Estou apenas a querer limpar o meu nome.
Stanton Grandby, parecendo mais do que nunca um pinguim, soltou uma tossezinha seca e tentou sorrir. Não conseguiu.
- O que nós gostaríamos realmente de saber - disse - é se tem feito progressos nas suas investigações.
- Não muitos - respondi com ar casual, voltando a sentar-me. Deixá-los suar.
- Dunk - disse Felicia Dodat -, não tem qualquer suspeito?
Usava de facto verniz verde nas unhas.
- Oh, há muitos suspeitos - respondi - demasiados, mas se me perguntar se sei quem roubou o Demaretion, a resposta é não.
Olharam uns para os outros e depois para mim.
- Mas acha que está a fazer progressos? - perguntou ansiosamente Stanton Grandby.
Pensei um bocado e respondi finalmente.
- Creio que sim, recolhi uma porção de informações. Concordo com o detective Georgio e com o investigador Smack: o roubo foi cometido por um membro da família Havistock.
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- Ah, sim? - perguntou Whattsworth com alguma satisfação. - Tem a certeza disso?
- Não, não tenho certeza alguma. A sua confiança evaporou-se.
- Quanto tempo - perguntou com a sua voz fraca - acha que irão durar as suas investigações?
- Não faço ideia.
Mais uma vez se deu uma troca de olhares, mas se houve algum sinal entre eles, não o vi.
- Dadas as circunstâncias - declarou o advogado - parece injusto que os seus rendimentos derivem apenas de uma parte contra a qual a Grandby & Sons pode muito bem vir a estar em litígio.
Depois de meditar bem naquelas palavras tortuosas, cheguei à conclusão de que ele dizia que eu não estava a ganhar o suficiente.
- Concordo - disse.
- Portanto - continuou -, sugerimos que deixe de trabalhar para Archibald Havistock. A sua licença sem vencimento acabará e voltará a receber vencimento da Grandby & Sons. Fica entendido que ficará liberta das suas tarefas regulares, e que isso lhe permitirá prosseguir com as investigações sobre o roubo do Demaretion.
- Não - respondi prontamente.
- Não? - gritou Stanton Grandby.
- Não? - repetiu Felicia Dodat.
- Não - repeti com firmeza. - Os Havistocks ofereceram-me um salário depois de esta casa me ter afastado, e eu prometi-lhes fazer tudo o que pudesse para resolver o mistério que envolve o crime. Tenciono manter essa promessa.
- Mas eles não puseram certas condições? - interrompeu astutamente o advogado. - Que não devia investigar os membros mais próximos da família?
- De modo algum - respondi. - Pedi pulso livre e foi-me dado. A única condição com que eu concordei foi que, se se descobrisse que o ladrão era um membro da família, eu informaria Mister Havistock antes de as autoridades serem avisadas. Calculo que a razão para isso é o facto de quererem arranjar um defensor legal para o membro da família acusado, antes que ele (ou ela) venha a ser incriminado.
- Sim - disse secamente Whattsworth -, diria que se trata de uma suposição lógica. No entanto, não tem nada a ver
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com os interesses básicos da Grandby & Sons. O que lhe proponho é que continue a trabalhar para a família Havistock, já que insiste, mas que volte ao mesmo tempo a uma situação salarial na Grandby & Sons. com o entendimento, é claro, de que seremos nós os primeiros a saber o resultado das informações, sem prejuízo de o revelar ao mesmo tempo a Mister Havistock, e que nos fornecerá semanalmente relatórios escritos relativos aos seus progressos.
Relatórios verbais - repliquei -, escritos não. E não
semanais, periódicos, sempre que tenha algo para lhes dizer.
Oh, Dunk - disse Felicia Dodat, queixando-se -, você
está a mostrar-se tão difícil.
- Sério? - respondi. - Julguei que isto é cooperar. O advogado olhou para o "deus".
- Mister Grandby, está disposto a aceitar estas condições? O pinguim franziu a testa e acabou por dizer:
- Está bem.
- Oh, Dunk - murmurou Felicia. - É tão bom tê-la de novo entre nós.
Para ela tinha duas palavras, e não eram "feliz aniversário".
Passei pelo meu gabinete para ver Hobie Juliana e dar-lhe a notícia, mas ele saíra para fazer uma avaliação. Saí da Grandby e dirigi-me para casa, pelo Central Park, orgulhosa da maneira como tratara do caso. Tinha agora dois salários e completa liberdade para conduzir as investigações como quisesse. Que grande golpe!
Sabia o que a Grandby pretendia, é claro, e por que razão iam voltar a pagar-me salário. Se um membro da família de Archibald Havistock estivesse envolvido no roubo, eles queriam sabê-lo o mais depressa possível, pois dar-lhes-ia vantagem no processo. Além disso, pagando-me, pensavam que se precaviam contra qualquer possível encobrimento da minha parte.
Não era muito abonatório para mim, mas compreensível.
Nessa noite - misericordiosamente sem telefonemas - permaneci deitada na cama durante muito tempo, pensando nos acontecimentos e conversas do dia, e acabei por concluir que estava a preocupar-me mais com os meus problemas do Que com as investigações.
Sentia que passava por uma mudança e tinha consciência disso. Não quero dizer que fosse ingénua antes de me envolver neste caso da colecção Havistock, mas a verdade é que tendia
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para aceitar as pessoas por aquilo que elas pareciam, e também nunca duvidava do que me diziam. Creio que vivi uma existência protegida: crimes e violências homicidas eram coisas que eu lia nos jornais, ou em romances, ou via na televisão.
Contudo, nas últimas semanas, havia entrado em contacto íntimo com o que se pode chamar a parte oculta da vida. As pessoas mentiam, estavam longe de ser aquilo que pareciam, e eram muito capazes de agir irracionalmente, impelidas por paixões que não podiam controlar.
As minhas experiências com Al Georgio e Jack Smack provavam-me também que, não raro, o coração e as glândulas acabam por dominar o cérebro e o bom senso. Suponho que devia ter aprendido isso mais cedo, mas tal não sucedera. Estava agora finalmente a perder a ingenuidade, senão a inocência... a tornar-me mais sensata, mais cínica, mais sabida. Por consequência algo fora perdido e algo ganho, mas, se me perguntassem o fundamento de tudo isso, decerto que não saberia responder.
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Depois do pequeno-almoço, na manhã seguinte, dediquei-me a tarefas caseiras, que na minha casa de Iowa consideramos obrigatórias mas aborrecidas: despejar o lixo, sacudir o pó, mudar a roupa da cama, limpar a casa de banho, etc. Quando fiquei satisfeita com o aspecto da minha casa (podia ficar mais cintilante se tivesse a coragem de lavar as janelas), verifiquei que precisava de ir buscar roupa à lavandaria.
Desta vez, porém, antes de sair, tive o cuidado de espreitar para ver se estava alguém no vestíbulo ou na entrada. A caminho da lavandaria passei por uma papelaria e lembrei-me de comprar a Vogue para ver as modas que devia usar, mas que, de facto, não usava nem nunca usaria. Contudo, a ideia desapareceu logo que se me deparou a primeira página do Post e o título: "Hippy da alta sociedade tenta suicidar-se." E vinha uma fotografia de Natalie Havistock com um sorriso de drogada, uma faixa na cabeça e uns brincos que pareciam ter sido cortados de uma lata de sardinhas.
Comprei o jornal e li a notícia parada no passeio, sem me importar com as pessoas que passavam. Dizia que Natalie Havistock, filha mais nova do rico magnata Havistock (terá alguma vez havido um magnata pobre, pensei), fora encontrada inconsciente na sua cama, em casa dos pais, na Rua Setenta e Nove, Este, aparentemente depois de haver ingerido álcool e drogas ainda não identificadas.
Fora levada à pressa para o Wilson Memorial Hospital, a três quarteirões de distância, onde, após ter sido assistida, os médicos consideravam a sua situação como estacionária. Os pais afirmaram que não haviam encontrado qualquer bilhete e que não conheciam a razão que levara a filha a tentar suicidar-se.
Corri para casa, esquecida do que ia fazer à rua, e liguei para
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o apartamento dos Havistocks, mas o telefone estava interrompido. Tentei uma e outra vez, até que, finalmente, Ruby atendeu.
- Como está Nettie? - perguntei. - Sabe alguma coisa?
- Nada - respondeu sombriamente. - Foram todos para o hospital. Não sei como correm as coisas.
- Está bem, Ruby, obrigada. Talvez eu vá ao hospital saber o que se passa.
A voz dela transformou-se num sussurro:
- Eu disse-lhe, não é verdade? Pecam e têm de pagar. Esta família está marcada. Eu não a avisei?
- Sim, Ruby - respondi, desligando.
A minha ideia de hospital é um lugar branco, reluzente, impecável, mas o Wilson Memorial parecia um castelo em ruínas do Young Frankenstein, sombrio, com corredores estreitos, paredes pintadas de um castanho feio e soalhos recobertos de oleado gastos. Vim a saber mais tarde que se tratava de uma espécie de refúgio temporário para casos de doenças incuráveis, e acredito. Mesmo que quem para lá fosse não estivesse a morrer, o hospital por certo que lhe tiraria o que ainda lhe restasse de vida.
A enfermeira da recepção acolheu-me com um sorriso triste. Disse-lhe que queria ver Natalie Havistock.
- Pertence à família chegada? - perguntou-me.
- Não - respondi. - De resto, não venho visitar Natalie. Tenho um recado importante para o pai dela, Mister Havistock, que julgo encontrar-se aqui. Logo que lho dê, saio.
O estratagema resultou.
- Quarto quatrocentos e doze - disse a enfermeira, entregando-me um cartão -, mas, por favor, demore-se o menos possível.
- Esteja descansada. Os hospitais deprimem-me.
- A mim também - retorquiu com ar triste, e eu pensei que era uma coisa demasiado estranha para ser dita por uma enfermeira.
Encontrei depressa o corredor onde ficava o quarto de Natalie e deparei com Ross Minchen sentado num velho banco de madeira a fazer estalar os nós dos dedos como um maluco.
- Olá, Ross - disse eu.
Ele olhou-me e levou um bocado a reconhecer-me.
- Olá - respondeu, sem se levantar. - É a Dunk, não é? Como tem passado?
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- E a Nettie, como está?
- Creio que não corre perigo. Fizeram-lhe uma lavagem ao stômago e sai ao meio-dia. Mabel e Archibald estão agora com
ela. Os polícias foram-se embora.
- Julguei que Roberta e Vanessa estivessem aqui.
- Já saíram. Creio que tinham umas compras para fazer.
E Luther? Não veio cá?
Luther? Não, não apareceu, creio que está ocupado. Fiquei à espera para levar os meus sogros a casa. Depois tenho de ir para o escritório.
O trabalho amontoa-se, não?
É verdade. Basta não ir lá um dia para que logo tudo se
atrapalhe.
Olhando-o, com os cabelos cuidadosamente penteados de lado para lhe cobrir a calvície, era difícil imaginar que fora ele o produtor dos filmes que eu vira no vídeo.
- Tem alguma ideia da razão que levou Nettie a fazer isto, Ross? - perguntei.
- Sinceramente, não. Claro que ela anda com aquele bando selvagem, metida com drogas e tudo o mais. Não sei onde este mundo vai parar.
Eu também não sabia.
Depois, estupidamente, perguntei:
- Vocês vão à festa da Vanessa?
Quando percebi o que tinha dito apeteceu-me cortar a língua.
- Não - respondeu ele. - Ela vai dar uma festa?
- Provavelmente, depois disto que se passou com a Natalie, desistirá. Era uma coisa muito vaga - apressei-me a responder.
- Não os vemos muitas vezes - murmurou Ross, olhando para as mãos largas e achatadas. - Vanessa e Roberta não se entendem.
- é uma pena - retorqui. - As famílias deviam ser unidas.
- Sim, é o que eu penso. Tentei atraí-los para o nosso círculo, mas não se mostraram interessados. E você? - perguntou mais animado. - Já pensou nisso?
- Frequentemente.
- E?
- Ainda estou a pensar.
- Não tem nada de especial - disse ele. - É divertido, vai ver. Na sexta-feira temos outra sessão. Quer ir?
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- Não sei se posso - respondi. Depois mudei rapidamente de assunto. - Não acha horrível o que sucedeu a Orson Vanwinkle?
Ross fitou-me sem pestanejar.
- Não valia nada. Não quero dizer que desejasse vê-lo morto, mas não posso ser hipócrita e fingir que senti um grande desgosto com a sua morte. Acho que teve o que merecia.
- Ninguém parecia gostar dele - retorqui. - A não ser Dolly LeBaron.
- Oh, essa - murmurou desdenhosamente. - Tão gananciosa como ele. Estavam bem um para o outro. Ouça, na próxima sexta-feira, porque...
Fui salva de ter de arranjar mais desculpas pelo aparecimento de Mabel e Archibald Havistock, que saíam nesse momento do quarto. Levantei-me e dirigi-me para eles.
- Como está Nettie? - perguntei ansiosamente.
- Muito melhor - disse Mabel Havistock. - Levamo-la para casa daqui a uma hora. Muito obrigada pela sua preocupação e por ter cá vindo.
- Como soube? - perguntou Archibald. Achei que ela devia ter visto os jornais.
- A notícia vem na primeira página do Post.
- Ah, sim - murmurou com amargura. - Logo vi. Ross Minchen estava ainda sentado no banco de madeira a
fazer estalar monotonamente os nós dos dedos. Conduzi os Havistocks ao longo do corredor, para longe dele, e parámos perto de uma janela, donde se via um pátio sombrio.
O casal tinha um ar amargurado, os seus rostos estavam vincados de desgosto e preocupação, mas mantinham a dignidade, ambos direitos e firmes. Não pude deixar de admirar a coragem deles, ambos pareciam capazes de aguentar sucessivos golpes sem se dobrarem e sem se lamentarem. Bem, pensei, têm-se um ao outro, é isso que lhes dá forças, por isso é que sobrevivem.
- Prometi-lhes um relatório sobre as minhas investigações - comecei -, mas se acham que é má ocasião, vou-me embora e falo-lhes noutra altura.
- Não, não - respondeu Archibald. - Diga o que tem a dizer. Que descobriu?
- Em primeiro lugar, devo dizer-lhes que a Grandby me readimitiu, com a condição de eu poder ocupar-me livremente
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da investigação do roubo. Contudo, se puserem objecções e acharem que existe um conflito de interesses, rejeitarei a oferta deles e ficarei apenas convosco.
Ele olhou-me durante um longo momento.
- Obrigado, você é uma rapariga muito recta e isso agrada-me. Não, não vejo qualquer razão para não poder trabalhar também para a Grandby. Afinal nós queremos o mesmo que eles, não é verdade? Já descobriu quem roubou o Demaretion?
Não, não descobri, mas creio que estou a fazer progressos. Orson Vanwinkle tinha prometido à namorada deixarem o país e irem viver para a Riviera francesa, o que parece indicar que esperava receber em breve uma grande soma de dinheiro e fez dele o suspeito número um.
Marido e mulher trocaram um breve olhar, direi apenas que se tratou de um ligeiro pestanejar.
- Mas eu não acredito nisso - continuei -, principalmente porque não consigo imaginar como poderia Orson Vanwinkle trocar as caixas. Trata-se de uma impossibilidade física.
- Talvez tivesse cúmplices - disse debilmente Mabel Havistock.
- Quem? Os guardas da carrinha blindada? Ruby Querita? Não creio. O senhor, Mister Havistock, esteve fora da biblioteca durante dois minutos apenas e a troca tinha de ser feita nessa altura: precisava de haver uma caixa igual às outras, vazia e selada, pronta a substituir a que continha o Demaretion. Foi uma coisa feita por alguém da família, alguém que se encontrasse presente para a festa de aniversário.
- Não foi Nettie, pois não? - perguntou Havistock sem que as suas feições austeras se alterassem ou os seus olhos azuis, de um brilho frio, algo revelassem. - Não me diga que foi a Nettie.
Não lhe respondi a essa pergunta, mas fiz-lhe outra.
- O Post diz que Nettie não deixou qualquer nota. Isso é correcto?
Mabel disse que sim, com os olhos húmidos, pela dor.
- Não conseguimos compreender o que sucedeu. Ela mostrava-se sempre tão alegre e cheia de vida, sempre a rir e a brincar. Talvez fosse alguma coisa que nós fizéssemos, ou que não tivéssemos feito.
Discutira comigo mesmo se havia de lhes dizer ou não, mas agora, ao ver aquela mulher a sofrer por uma culpa imaginária, achei que devia falar.
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- Há certas coisas que devem saber, embora o que vou contar-lhes sejam rumores e suposições, nada está provado. Orson Vanwinkle era bissexual, tinha muitos encontros homossexuais, isto foi-me dito por uma fonte de confiança. O namorado de Nettie é um negro. Sabiam disso?...
- Sim - respondeu gelidamente Havistock.
- ... E era também um dos contactos homossexuais de Orson - continuei. - Gostava de lhes poupar isto, mas não quero que se culpem por uma situação sobre a qual não têm o mínimo controle.
Eles não soçobraram, pelo contrário, deu-me a impressão de que se endireitaram e respiraram fundo. Pareciam ter uma fonte de energia que eu gostava de descobrir.
- Tem a certeza disso? - perguntou Archibald.
- Mister Havistock, não tenho a certeza de coisa alguma, estou apenas a dizer o que ouvi, para isso é que me paga. Mas penso que é verdade, e talvez isso explique a tentativa de suicídio de Natalie. Ela descobriu as tendências sexuais do namorado, discutiram e, provavelmente, ele ter-se-á recusado a mudar a sua maneira de viver.
- Não compreendo - replicou Mabel completamente assombrada. - Que podiam ter esses dois homens em comum? Pertencem a mundos diferentes.
- O dinheiro - respondi prontamente. - Penso que, Orson pagava a Akbar El Rashid e que, indirectamente, financiava o bando chefiado por este. Talvez Orson gostasse apenas da excitação, da ameaça da violência, do choque radical.
Archibald Havistock ficou pensativo durante um grande bocado, enquanto todos olhávamos para o pátio sombrio. Depois voltou-se para mim.
- É possível. Orson era aquilo a que eu chamaria um instável, não se mostrava tão equilibrado quanto eu gostaria. A Polícia tem conhecimento daquilo que me contou, Miss Bateson?
- Não ignora as actividades sexuais de Vanwinkle
- respondi -, mas não sei se conhece ou não a ligação dele com o namorado de Nettie. - Provavelmente, virão a descobrir.
Archibald Havistock baixou a cabeça num sinal de concordância.
- Tem mais alguma coisa a dizer-nos?
- Não, de momento não. Muitas suposições, algumas ideias
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disparatadas, rumores que tenho de verificar, mas nada que se pareça com factos ou provas. Deseja que prossiga com as investigações?
com certeza - retorquiu Mabel Havistock. - Queremos saber a verdade. Não é assim, Archibald?
- Sim - disse ele.
Está bem, vou continuar. Agora gostaria de lhes pedir um
favor. Ficaram à espera.
Posso ir ver Natalie só por uns minutos?
Olharam um para o outro.
Não irá perturbá-la? Fazer-lhe perguntas?
- Claro que não. Gosto dela e quero que ela o saiba.
- Está bem - concordou Archibald. - Só por uns minutos.
Afastei-me uns passos, voltei-me e dirigi-me a Mabel Havistock.
- Minha senhora - disse -, da última vez que falei consigo informou-me de que, juntamente com o seu marido, estava a fazer um levantamento dos vossos bens.
- Sim - replicou ela. - É verdade.
- Isso inclui um novo testamento?
- Sim - retorquiu Havistock. - Porque pergunta?
- Não sei exactamente - respondi com franqueza - mas o dinheiro parece ser a mola real de todo este caso, desde o roubo do Demaretion até ao assassínio de Orson Vanwinkle. O testamento já está pronto?
- Não, ainda não.
Achei que ele me falava um pouco friamente e pensei que não gostasse de que me intrometesse nos seus assuntos pessoais, mas isso não me deteria.
- Os membros da vossa família tinham conhecimento de que iam fazer novo testamento?
- Penso que sim. Não achas, Mabel?
- Estou certa de que sabiam. Não fizemos segredo disso.
- Muito agradecida. Voltarei a vê-los, logo que tenha algo de novo para vos dizer.
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A pobre Natalie estava muito fraca e abatida, branca como os lençóis da cama. Estendeu-me uma mão magra.
- Não sou capaz de fazer nada bem feito, pois não? - perguntou.
- Está viva - respondi, beijando-lhe os dedos frios. - Isso é que importa, minha querida. Como se sente?
- Oh, não sei bem, não sou capaz de pensar direito.
- Isso não tem importância - garanti-lhe. - Passei por aqui só por uns minutos, para a ver.
- Foi muito simpático da sua parte - replicou Natalie. Já descobriu quem roubou a moeda?
- Ainda não.
- Mas descobrirá, você é uma rapariga decidida. A Polícia também ainda não sabe quem matou Orson, pois não?
Abanei a cabeça.
- Bem, quem se importa? Aquela pequena que ele tinha, como se chama ela?
- Dolly LeBaron.
- Sim, parece uma verdadeira boneca. Há-de encontrar outro que lhe pague as contas e dentro de um ano, ou se calhar de um mês, o mundo continuará a ser igual para ela. E é o que nos sucederá a todos, não acha?
- Não fale assim, Nettie. Os seus pais estão lá fora, amam-na e querem que tenha uma vida feliz. Você é muito importante para eles.
- Creio que só tenho sido uma fonte de preocupações - murmurou com um suspiro. - Dois mundos diferentes, sabe?
- A sua fotografia apareceu na primeira página do Post de hoje - disse-lhe.
- Ah, sim? - exclamou, animando-se. - Tem-o aí?
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Não, deixei-o em casa. Guardo-o para você ver, se
não conseguir encontrar um exemplar do jornal. É uma fotografia em que a Natalie tem uma fita na cabeça e uns grandes brincos.
- Ah! É muito antiga, tirada há anos no Slipped Disco. Estava completamente drogada.
- Tem aspecto disso - respondi, e ambas rimos.
Ela estendeu-me a mão outra vez.
Ouça, Dunk, quando eu voltar ao mundo dos vivos poderemos encontrar-nos de novo?
- com certeza. - Promete?
Claro que sim, estou a contar com isso, mas primeiro
quero que me prometa também uma coisa.
- O quê?
- Que se alguma vez lhe apetecer fazer o mesmo que hoje me telefona primeiro?
- Okay - retorquiu Natalie. - Está prometido. Entrelaçámos os nossos dedos mínimos, agitámos as mãos e
ambas dissemos:
- Está jurado!
Não sei o que foi - talvez o calor daquele dia sufocante de Julho, ou o gesto infantil da jura -, o certo é que senti um desejo irresistível, súbito, de mastigar um chocolate gelado. E nem sequer estava grávida! De qualquer modo parei numa loja, comprei três e, quando cheguei a casa, meti-os no frigorífico e esperei pacientemente. Lembrava-me de que gostava deles bem gelados, quase a dar a impressão de que iria partir os dentes - mas sem que isso realmente sucedesse. As alegrias da minha juventude!
Estava a tomar nota dos acontecimentos dessa manhã no meu bloco de apontamentos, quando o telefone tocou pela primeira vez nesse dia. Pensei que pudesse ser Al - ou Jack para me dar conhecimento da tentativa de suicídio de Natalie, mas era uma chamada de Enoch Wottle, do Arizona.
- Meu querido Enoch - disse - fico muito satisfeita por ter notícias suas, mas não quero que esteja a pagar as chamadas. Não é justo que continue a utilizar o seu dinheiro com os meus assuntos.
Não tem importância - replicou ele. - Nunca hei-de gastar os meus rendimentos. Diga-me o que está a suceder e como tem passado, querida Dunk.
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Fiz-lhe um relato conciso dos últimos acontecimentos, incluindo a notícia da minha reintegração na Grandby & Sons.
- Óptimo - retorquiu com firmeza. - Eles deviam ter vergonha de a ter posto de licença sem vencimento. Está então mais perto de descobrir quem roubou o Demaretion, não é verdade?
- Creio que sim, Enoch, mas isso não é o suficiente. Ainda não estou certa de quem o tenha feito.
- Mas desconfia de alguém?
- Desconfio, mas é uma ideia tão louca que nem me atrevo a falar dela.
- Está bem, então vou falar eu. Sei uma coisa que talvez a possa a ajudar. Falei com o meu amigo de Roterdão que, por sua vez, contactou com o negociante de Beirute. Pelo que dizem, se falam verdade, o Demaretion oferecido para venda é absolutamente autêntico, e a sua proveniência será indicada se as negociações se concretizarem. Isto parece-me genuíno, estou convencido de que o decadracma oferecido para venda é de facto autêntico. Serve-lhe de algum auxílio, Dunk?
- Creio que sim - respondi lentamente. - Não sei ainda como, mas todas as informações são preciosas. Muito obrigada, Enoch, a sua ajuda tem sido inestimável.
- E agora? - perguntou ansiosamente. - Que faço a seguir?
- Enoch, já fez muito, maçando-se e gastando o seu dinheiro por minha causa. Não posso pedir-lhe mais nada.
- Peça - pediu Enoch -, por favor. Deixe-me dizer-lhe uma coisa, minha querida: a minha vida está a chegar ao fim, eu sei-o, e acha que é bom estar sentado, à espera? Aquilo que lhe faço a si, é também por mim. Manter-me ocupado, ser preciso, ser útil, é qualquer coisa de muito importante na minha idade.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas.
- Pronto, Enoch, a suas informações são preciosas. Quem mais possui os seus conhecimentos e a sua experiência? Diga-me uma coisa: que razão poderia levar um coleccionador, não um especulador mas um verdadeiro coleccionador, a vender parte das suas moedas?
- Necessidades financeiras - sugeriu Enoch passado um momento - seriam provavelmente o primeiro motivo. Algum investimento que tenha corrido mal e que o obrigue a arranjar dinheiro e a vender algumas das suas moedas. Outro motivo
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poderia ser querer melhorar a colecção. Desfaz-se então das de menor importância, talvez algumas que tenha em duplicado,
para assim comprar outras de melhor qualidade.
Mas é estranho que um verdadeiro coleccionador venda
as suas moedas e não adquira outras, não é?
a não ser que tenha absoluta necessidade de dinheiro.
- Archibald Havistock tem vendido moedas há já cinco anos, umas cem, talvez mais. Gostaria de saber quanto é que recebeu por elas. vou à Sociedade?
Não - respondeu imediatamente Enoch -, lá não devem ter essas informações, e mesmo que soubessem nunca lhas forneceriam. Sabe com quem ele negociou?
Não, não sei, mas Havistock é um homem rico, muito
sério, muito honesto. Não transaccionaria com gente duvidosa.
Isso significa que deve ter tratado com meia dúzia de pessoas em Manhattan. Conheço-as todas. Quer que me informe?
- Seria capaz disso?
- Sou e vou fazê-lo já. É um trabalho importante para mim.
- O senhor é que é importante, Enoch, e eu gosto muito de si.
- Porque não há-de ter mais cinquenta anos? - gemeu Enoch. - Tocaríamos uma bela música juntos.
- Enoch! - respondi, rindo. - Você é um velho sujo!
- Fui um homem novo sujo - retorquiu ele - e não mudei. Ouça, querida Dunk, pode ser que leve algum tempo a conseguir as informações que pretende. Quando souber alguma coisa volto a falar-lhe.
- Está bem, só lhe peço que obtenha informações precisas e que faça as chamadas a serem pagas aqui.
- Está bem - concordou. - Obrigado, Dunk.
Depois de desligarmos limpei os olhos. Que homem encantador! A agradecer-me. O quê? Mas eu compreendia-o. Voltei ao meu diário e continuei a escrever as últimas informações obtidas nesse dia. Em seguida fui ao frigorífico e tirei um dos chocolates do congelador. Ainda não estava muito duro, mas comi-o com grande satisfação, recordando os dias quentes de Verão em Dês Moines, quando era ainda toda pernas e tinha um estômago que nunca estava cheio.
Acreditam que devorei os três chocolates nessa tarde? Pois é verdade, e não me envergonho. Devo confessar que, apesar de normalmente ter uma alimentação frugal, por vezes abuso, mas como possuo um metabolismo abençoado isso permite-me comer
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sem aumentar um grama. No entanto, às vezes, gostava de engordar - nos sítios certos.
Talvez tanto açúcar me desse toda a energia que sentia, ou talvez o que tivesse sabido nessa manhã me levasse a pensar que estava a progredir nas investigações. Fosse como fosse, não me apetecia passar o serão sozinha, e telefonei por isso a Al Georgio.
Enquanto ouvia a campainha tocar, comecei a pensar porque não teria ligado para Jack Smack. A minha escolha indicaria uma preferência, ou fora apenas um acto sem significado? Não sabia.
Esperei quase três minutos antes que o localizassem e o chamassem. Por fim falou, ofegante, mas bem-disposto.
- Ia ligar para si daqui a meia hora, juro. Como tem passado?
- vou sobrevivendo. E você?
- vou sobrevivendo também - respondeu. - Julgo que sabe o que sucedeu a Natalie Havistock?
- Li a notícia no Post e fui esta manhã vê-la ao hospital.
- Sim? Não me deixariam entrar. Ela disse-lhe por que razão fez aquilo?
- Não, nem eu lhe fiz perguntas. Estive com ela apenas uns minutos e tivemos apenas uma conversa de raparigas. Sabe mais alguma coisa acerca do roubo do Demaretion?
- Na - disse desgostosamente. - Não temos nada de concreto, e o mesmo se passa com o assassínio de Vanwinkle. Os tipos dos Homicídios estão a investigar todos aqueles cujos nomes se encontravam na agenda dele. Dei-lhes a informação que você me transmitiu a respeito das inclinações sexuais de Orson e estão a trabalhar também sob esse aspecto. Por enquanto nada descobriram.
- Ouça, Al - disse com súbita ousadia -, gostaria que jantasse comigo hoje.
- Ah, sim? Esse é o melhor convite que recebo desde há muitos anos. Que festejamos?
- Fui reintegrada na Grandby & Sons e estou ainda a trabalhar para os Havistocks, por isso quero celebrar. Que diz?
- Acho óptimo, mas pagaremos a meias. Tem alguma ideia do sítio onde quer ir?
- Há um novo restaurante chinês aqui perto que eu gostaria de experimentar. A ementa colocada na montra parece-me boa, é comida picante. Não gosta?
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- Está a brincar? Deito tabasco nos meus Corn Flakes. De que se ri? A graça não é assim tão cómica.
- O nome do restaurante... - disse eu. - É Hung Lo.
- Óptimo. Quer que a vá buscar por volta das oito?
- Tente deixar o carro estacionado perto se puder. Iremos a pé a partir da minha casa, são apenas dois quarteirões.
O Hung Lo, se bem que tivesse aberto recentemente, tinha o aspecto de qualquer outro dos milhares de restaurantes chineses existentes em Nova Iorque, mas viam-se às mesas muitos orientais, o que Al e eu considerámos um bom sinal. Além disso, a ementa dizia que os pratos se podiam comer com ou sem picante e, neste último caso, terem pouco, bastante ou muito.
- Vamos para o "bastante" - sugeri. - Desse modo, se acharmos que é pouco, podemos acrescentar-lhe pimenta, mas se pedirmos muito e for demasiado picante, já não há remédio.
Foi o que fizemos. Pedimos rolinhos de ovos e costeletas grelhadas para começar, sopa de barbatanas de tubarão, camarão com amendoins, carne de porco com molho de alho e arroz branco e frito a acompanhar.
- E cerveja em vez de chá - disse Al ao criado -, bem fria. Está bem, Dunk?
- Óptimo - respondi.
Sentia fome, apesar dos chocolates, e Al também parecia esfomeado, pelo que devorámos tudo aquilo com enorme apetite. Eu bebi uma garrafa de cerveja e Al duas. Depois, comemos gelado de pistácias e abrimos os nossos bolinhos com as sinas. O meu tinha dentro: "Os seus mais caros desejos realizar-se-ão." O de Al dizia: "O homem sensato deseja para nada."
- A história da minha vida - observou. - É isso que eu tenho conseguido: nada.
Levantei-me, dizendo-lhe que precisava de ir à casa de banho, mas procurei o criado, paguei a conta e dei-lhe uma gorjeta. Depois voltei para a mesa.
- Vamo-nos embora? - perguntou Al. - vou chamar o empregado.
- Já paguei - retorqui.
Al olhou-me, abanando a cabeça.
- Você é teimosa - afirmou. - Combinámos dividir a despesa.
- Isso foi o que você decidiu - repliquei - mas, eu não disse que concordava.
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Al riu, pegou-me na mão e beijou-ma.
- Você é qualquer coisa - murmurou. - A nova mulher.
- Nova? Um pouco gasta já.
- Bem, se é assim, então eu estou puído.
Caminhámos lentamente em direcção a minha casa. Al insistiu em comprar uma embalagem com seis cervejas geladas e não me opus, pois ainda sentia o estômago a arder. Felizmente que não tínhamos pedido a comida "muito picante", pois se tal houvesse acontecido, provavelmente, até as pestanas acabariam por se queimar.
Não trocáramos uma só palavra sobre o roubo do Demaretion ou a morte de Orson Vanwinkle durante toda a noite. Creio que ambos queríamos descansar um pouco de tudo isso, razão por que conversámos indolentemente a respeito de filmes e de pratos excepcionais - discutindo se o pato assado ficaria melhor com laranja ou com cerejas escuras - e até sobre os problemas que Al tinha com a mulher que lhe fazia a limpeza à casa. Parecia que esta lhe roubava a cera para o soalho.
- A não ser que a coma - concluiu Al.
Quando chegámos a casa, ele perguntou se se podia pôr à vontade e como lhe respondi naturalmente que sim, tirou então o casaco e descalçou-se. Vestia uma camisa de malha de algodão sem qualquer animal estampado, o que o fez subir na minha consideração.
Al não era de modo algum elegante, não tinha corpo para isso e nem se importava, mas havia algo de reconfortante na sua corpulência. Nem Winston Churchill nem o papa João XXIII tinham qualquer semelhança com o Belo Brummell, mas era bom olhar para qualquer desses homens. Talvez por serem sólidos, talvez ainda por nos darem a impressão de saberem que a vida não podia ser levada com ligeireza. Passava-se o mesmo com Al Georgio.
- Saio com a minha filha num dos próximos domingos - disse ele - e gostaria de que fosse connosco. Quer ir?
- Tem a certeza de que dará certo?
- Não, não tenho a certeza - respondeu - mas podemos experimentar.
- Está bem.
- Gosta de praia?
- Gosto muito, mas preciso de ter cuidado com o sol. Fico cheia de sardas, vermelha e depois cai-me a pele.
- Então não se exponha muito - respondeu Al com um
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encolher de ombros. - Talvez possamos ir a Jacob Hills, a água já deve estar suficientemente morna. Sabe nadar?
- Como um peixe, ou melhor como uma enguia.
- Você está sempre a menosprezar-se. Sente complexos por ser alta e delgada?
Ambos bebíamos as cervejas frescas directamente da garrafa e engoli um longo gole antes de lhe responder.
Obrigada por dizer delgada em vez de magrizela. Não
sinto complexos, mas sei o que sou: olho-me ao espelho e vejo como as pessoas me fitam às vezes. Além disso, também tenho dificuldade em comprar roupas que me fiquem bem, mas não é nada que não consiga suportar.
Creio que você é uma mulher que não se atrapalha -
respondeu Al. - Também eu, há quinze anos atrás era delgado. Veja agora o meu corpanzil.
- Você não tem um corpanzil - respondi indignadamente. - É apenas, humm, um homem muito robusto.
- É isso mesmo, robusto - repetiu Al.
Disse-o de uma maneira tão cómica que ambos desatámos a rir, e isso fez com que as nossas imperfeições físicas não parecessem importantes.
- E você - perguntou Al fitando-me. - Que deseja? casar? Ter um filho?
- Não sei - respondi, olhando para a garrafa de cerveja. Não sei se já estarei preparada para isso. Primeiro quero fazer qualquer coisa.
- Parece-me que já tem feito muito.
- Não foi o bastante. O meu bolo com a sina dizia que os meus maiores desejos se realizarão, mas, se quer que lhe diga, não sei quais são. Ando a flutuar.
- Isso não tem importância, eu sinto-me da mesma maneira, mas, mais cedo ou mais tarde, as coisas apontarão numa direcção ou noutra. Não merece a pena tentar forçar seja o que for.
- é isso que eu penso. As coisas hão-de suceder naturalmente.
- é o que acontece sempre. - E, de repente, perguntou: - Posso passar aqui a noite?
Sabia que, se eu dissesse que não, ele teria respondido: "Está bem", mas repliquei:
- Claro que pode, paguei o jantar, não paguei?
Al não parava de rir, e quando finalmente se dominou, disse:
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- Gosto de si, Dunk, realmente gosto. Você é uma grande mulher.
- Nada que você não saiba controlar - retorqui.
- Bem, vou tentar.
Al era ponderado na cama, quase solene, parecia evidente que o sexo era para ele uma coisa séria, e é agradável estar com um homem que não pensa que se trata apenas de recreação. Al achava que era importante e que cada beijo implicava um compromisso.
Deus sabe que eu não era uma amante cheia de artifícios ou experiência. Possuía muito pouca experiência, por isso aquilo que Al me ensinava era novo para mim. Ele mostrava-se honesto, sem subtilezas, sincero. Não sei se estarei a explicar-me bem, mas creio que me dava mais conforto que prazer. Só o facto de me aninhar nos seus braços fortes me fazia experimentar uma sensação de alívio e de contentamento.
Era como se tivesse chegado a casa.
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Acordei na manhã seguinte e descobri que Al já saíra, deixando um bilhetinho na minha mesa-de-cabeceira, uma página rasgada do seu bloco-notas: "Obrigado pelo jantar - e por tudo, especialmente por tudo. Al." Era uma pessoa encantadora.
Depois de ter tomado o meu duche - batendo com a cabeça no chuveiro, como de costume -, vesti-me, após o que logo percebi que estava cheia de fome, a qual não se apaziguaria com uma chávena de café e um croissant. Sentia-me esfomeada. Conhecia um pequeno restaurante em Columbus Avenue, um sítio acanhado que cheirava a falta de limpeza e à comida deliciosa que preparavam, e decidi ir ali comer o grão e bologna frita. Se ainda não provaram, não sabem o que é bom.
Ao fazer a minha investigação habitual antes de sair, espreitando para o vestíbulo, não vi ninguém, mas quando cheguei à esquina da rua avistei Sam Jefferson, também conhecido por Akbar El Raschid, negligentemente encostado à caixa do correio. Sorriu, com os seus dentes muito brancos.
- bom dia, boa senhora - cumprimentou.
Depois, quando percebeu a minha reacção - eu não sabia se havia de gritar, correr, ou fazer as duas coisas-, ergueu ambas as mãos, com as palmas rosadas voltadas para mim.
- Veja - disse. - Nem navalha, nem arma, nem qualquer objecto contundente. Desejo apenas alguns minutos do seu valioso tempo.
- Já perdi alguns minutos - repliquei - com dois dos seus "amigos". O do bigode e o do dente de ouro.
-? Sim - respondeu -, bem sei. Isso foi uma espupidez, uma grande estupidez e eu peço desculpa. Está bem?
- Não gosto de ser intimidada.
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- E conhece alguém que goste? Que diz: novamente amigos?
- De que me quer falar? - perguntei passado um momento.
- De Nettie, da mulher que é para mim a mais importante.
- vou tomar o pequeno-almoço - respondi. - Grão e bologna frita. Quer acompanhar-me?
- Grão! - repetiu com os olhos a brilharem. - Há cinco anos que não como disso. Oh, sim, vamos. Quem paga sou eu.
No pequeno restaurante gordurento sentámo-nos a uma mesa a um canto. Sam olhou à sua volta e, ao examinar a ementa, murmurou:
- O cozinheiro deve ser meu irmão. Quem mais poderia sugerir pés de porco para o pequeno-almoço. Se a comida for tão boa como parece, já não saio daqui. Vamos a isto.
Devorámos assim um pequeno-almoço de cavador, acompanhado por um café misturado com chicória que era de beber e chorar por mais.
- A respeito de Nettie - perguntou Sam, enquanto comia.
- Soube o que lhe sucedeu?
Disse que sim com a cabeça.
- Mulher tola, tola - murmurou, num gemido. - Não tinha razão para fazer aquilo.
- Aparentemente achou que sim. A sua discussão com ela foi a respeito de Orson Vanwinkle, não foi?
- Oh, sabe disso? - perguntou, sem se surpreender. A Polícia também e não me têm largado com perguntas. Sim, a nossa discussão foi por causa desse cretino. Sabe uma coisa? Alguns tipos como ele são loucos e divertidos, mas ele era só louco. Um miserável, para se dizer a verdade.
- Então porque andava metido com ele? - perguntei. Sam Jefferson parou de comer, olhou-me e esfregou o polegar e o indicador.
- Por causa das massas, boa senhora, do papel. Acha que eu lhe teria prestado a menor atenção se não fosse isso? Mas ele espalhava notas verdes às mãos-cheias e eu tenho grandes planos, preciso de capital.
- E Nettie descobriu?
- Sim, descobriu. Foi a Nettie que nos apresentou, mas não sabia que ele era borboleta. Pensou que se tratava apenas de um bêbado louco com a carteira aberta. Ouça, Dunk, quero
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que saiba que não fui eu que o liquidei, nem eu nem os meus rapazes.
Acredito.
Por que razão havia de matar a galinha dos ovos de ouro?
Alguém o despachou e eu fiquei triste, mas só por o banco ter fechado. Estou a contar-lhe a verdade.
- Acredito - repeti.
Por isso... - continuou fazendo um gesto para a criada
encher de novo as nossas chávenas de café - o meu grande problema agora é a Nettie. Ela significa muito para mim.
- Sim?
Não estou a brincar. Queria dizer-lhe o que sinto, mas
não consigo contactar com ela. Ligo para o seu número particular, mas responde-me sempre outra pessoa que nunca a chama. Eles cercaram-na.
- Censura-os?
- Creio que não, não sou o bom rapaz americano que desejariam para ela. Mas veja as coisas do meu ponto de vista: gosto realmente de Nettie e quero que ela o saiba. O caso com o Vanwinkle foi apenas negócio, é isso mesmo, um negócio. Agora só quero transmitir-lhe o que sinto e se ela me disser que a deixe em paz fá-lo-ei e será o fim de tudo entre nós, juro-lhe.
- Que quer então que eu faça? Como poderei ajudá-lo?
- Queria que lhe telefonasse, deve ser fácil para si, e que lhe dissesse que eu estarei toda a tarde no número, sete, oito, sete. Ela sabe o que é, e se quiser ligar para mim, é formidável. Se não, será a decisão dela e eu aceitá-la-ei. Fará isso?
Pensei no assunto durante uns momentos.
- Está bem, vou tentar, mas ela pode não estar em casa.
- Vá tentando - pediu Jefferson. - Ficarei nesse número todas as tardes, nos próximos dias.
Endireitei-me, limpei os lábios a um guardanapo e reprimi um arroto.
- Diga-me uma coisa - pedi. - Sabe onde Orson Vanwinkle ia buscar tanto dinheiro?
- Não faço a mais pequena ideia. Nettie e eu costumávamos falar disso. Ele era apenas secretário do tio, não é verdade, mas tinha dinheiro aos montes, e uma grande porção ia para a loirinha. Talvez o fabricasse na casa de banho, mas a verdade é que nunca lhe faltava, nunca.
Olhei para Jefferson.
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- Você não gostava do homem, ele enojava-o, mas andava com ele por causa do dinheiro. Certo?
Ele fitou-me bem de frente.
- É isso mesmo. Se acreditamos suficientemente nalguma coisa, então nada daquilo que tenhamos de fazer nos assusta. Existe um objectivo e isso é que conta.
- E qual é o seu? - perguntei.
- Uma coisa pequena - respondeu Sam, mostrando os dentes brancos. - Quero apenas refazer o mundo. Nada mais.
- Boa sorte - respondi.
- Nós é que temos de fazer a nossa sorte. Aprendi isso há muito tempo. Telefona à Nettie?
- vou tentar.
- Está bem, agradeço-lhe. E há mais uma coisa que lhe quero perguntar: você é alta ou eu sou baixo?
- Eu é que sou alta - respondi, rindo. - Isso desagrada-lhe?
- Pelo contrário - respondeu. - Se não fosse a Nettie, gostaria até de passar uns momentos consigo. Mas sendo as coisas o que são, tal não pode passar de uma louca fantasia.
- É bom que acredite nisso - respondi.
Quando cheguei a casa, liguei para o apartamento dos Havistocks e disse que queria falar com Natalie. Atendeu Ruby Querita e informou-me de que Nettie fora ao seu médico particular, com os pais para ser examinada, e que, provavelmente, não estariam em casa senão daí a uma hora. Pedi-lhe então que desse um recado a Nettie: eu telefonara e gostaria de que ela ligasse para minha casa.
Depois instalei-me a ler o Times matinal, mas a minha intenção desviava-se constantemente da leitura do jornal para pensar no que El Rashid me dissera e que era mais ou menos o que eu imaginara. Onde iria Orson Vanwinkle buscar tanto dinheiro? O meu passo seguinte, pensei, seria perguntar directamente a Archibald Havistock quanto lhe costumava pagar. Ele podia não me querer responder, mas isso já por si seria uma resposta.
Natalie telefonou-me quase duas horas depois e disse que se sentia já muito melhor, com as ideias mais claras. Estava decidida, afirmou, a resolver todos os seus problemas um a um e a não se deixar dominar por todos ao mesmo tempo.
- Isso é bom para si, assim mesmo é que deve proceder, Natalie. Agora não sinto tantos remorsos de lhe pôr outro problema.
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Contei-lhe então que tinha tomado o pequeno-almoço com o namorado dela e transmiti-lhe o que ele me pedira. Se quiser falar com ele, já sabe que se encontra no número sete, oito, sete todas as tardes dos próximos dias. Agora é
consigo.
Como o achou? - perguntou ansiosamente.
Pareceu-me bem. Tinha o mesmo aspecto que quando o
conheci, na festa.
Não é o homem mais bonito que já viu? - quis saber
Natalie.
E muito bem-parecido.
Aquela barbicha louca que ele tem, põe-me doida.
Desliguei com a sensação de que desde que o Demaretion fora roubado eu vagueara por uma terra de ninguém.
Até agora, as minhas actividades de detective tinham-se limitado a fazer perguntas e a tentar descobrir algum sentido naquilo que me era dito. Calculava que fosse assim que eles trabalhavam, não os imaginava à procura de pegadas numa carpete, examinando-a polegada a polegada com uma lupa. Os interrogatórios eram a alma do jogo.
Contudo, as conversas que tinha mantido com as principais pessoas envolvidas no caso haviam resultado mais em quebra-cabeças do que em soluções. Uma das coisas que ainda me preocupava era o edifício da Rua Sessenta e Cinco, Este, para onde vira Vanessa entrar. Lenore Wolfgang dera-me uma explicação fácil da razão que a levara a alugar ali um apartamento, mas isso não explicava a ida (ou idas) da mulher de Luther Havistock ao prédio. Aparentemente Al Georgio aceitara a história da advogada, pelo menos nada me dissera em contrário, mas a verdade é que havia muitas coisas que eu não lhe revelara, pelo que resolvi ir saber mais alguma coisa.
Meti-me num táxi e dirigi-me para a Rua Sessenta e Cinco, Este. A tarde escaldante de Julho parecia ter mergulhado toda a cidade numa grande sauna, mas eu ia demasiado ocupada a pensar como devia proceder para que o calor me preocupasse. O que tencionava fazer era falar com o porteiro do prédio e, por simpatia ou suborno, levá-lo a contar-me o que sabia: se alguém ocupava permanentemente o apartamento alugado por Lenore Wolfgang, quem lá ia, etc. Depois descreveria Vanessa Havistock e perguntar-lhe-ia se a teria visto no local.
Cheia de confiança, entrei no vestíbulo para ver qual o número do apartamento de Lenore Wolfgang, mas senti um choque:
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a placa com o nome da advogada já não se encontrava ali, fora substituída por outra ainda sem qualquer indicação. Fiquei parada a olhar, sem poder acreditar no que via.
Precisei de alguns momentos para me recompor. Que se teria passado? De um dos lados havia um pequeno letreiro que dizia: "Tocar para a cave para chamar o porteiro." Olhei em volta, mas não vi qualquer campainha. Saí então do vestíbulo, desci três degraus que davam para a porta da rua e descobri-a. Carreguei no botão e improvisei um novo lote de perguntas, enquanto esperava.
Havia ali duas portas, uma delas com uma espécie de grade de ferro forjado com um bonito padrão de folhas, e foi essa que se abriu, aparecendo por detrás dela uma espécie de gorila vestido de homem, que ficou parado a olhar-me. Tinha um começo de barba, mas creio que não tencionava deixá-la crescer. Devia ser apenas preguiça de se barbear - há uns três dias.
- Boa tarde - disse eu, sorrindo jovialmente. - Ouvi dizer que há um apartamento vago neste prédio.
- Ouviu mal - resmungou o homem. - Não há nada disponível.
E começou a fechar a porta.
- Espere um minuto - pedi desesperadamente. - Foi Lenore Wolfgang que se mudou?
- Sim, mudou-se - respondeu o porteiro -, mas a casa já foi alugada. Os novos locatários entram amanhã. Tínhamos pelo menos cinquenta pessoas na lista de espera.
Abri a mala que trazia ao ombro, tirei de lá uma nota de dez dólares, dobrei-a e meti-a pela grade.
- Para que é isto? - perguntou o gorila. - Não posso pô-la na lista de espera, isso é com o senhorio. O nome e a morada dele estão no vestíbulo.
Agitei a nota de dez dólares.
- Não quero ficar na lista de espera - disse. - Desejo apenas que me dê umas informações.
A mão dele estendeu-se como uma serpente, arrancando-me a nota dos dedos.
- Que quer saber? - perguntou.
- Quando é que Lenore Wolfgang se mudou?
- Há uns dois dias. Os novos inquilinos vêm amanhã. É tudo?
- Por dez dólares acho que é pouco - retorqui indignadamente. - Nunca viu entrar para o apartamento de Lenore
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Wolfgang uma mulher alta, de corpo cheio, cabelo preto comprido, muito maquilhada e muitas jóias?
Nos olhos do homem apareceu uma expressão que mostrava
que ele sabia o que eu estava a perguntar.
Sim - respondeu. - Vi essa mulher muitas vezes. Uma
mulher bonita.
Ela servia-se do apartamento de Lenore Wolfgang?
O porteiro acenou afirmativamente com a cabeça.
- Nunca viu entrar homens quando ela lá se encontrava?
O porteiro fitou-me.
Não - respondeu. - Nunca vi.
A porta fechou-se e eu concluí que alguém lhe pagara mais do que eu. O porteiro era um homem honrado - à sua maneira.
Regressei a casa de autocarro - um erro, pois foi uma viagem horrível, sufocante, mas eu tinha muita coisa em que pensar. Vanessa utilizara a casa de Lenore Wolfgang, como eu desde logo suspeitara, e cerca de uma semana depois de Al Georgio ter interrogado o proprietário, Lenore desistira do apartamento - o que, em Manhattan, equivale a fazer haraquiri.
O facto de Vanessa se portar daquela maneira não era surpresa para mim, pois nunca a imaginara como esposa fiel e também não podia acreditar que mantivesse relações lésbicas, especialmente com Lenore Wolfgang, que usava pastilha elástica nas solas dos sapatos. Não, Vanessa andava metida com um homem - ou com vários - e servia-se daquele apartamento para isso. Seria então daí que vinha o dinheiro para as jóias, para o belo apartamento e para a casa de Verão? Uma ideia interessante: manteria Vanessa os seus antigos propósitos de prostituição?
Tudo isto eram suposições, claro - puras hipóteses -, mas os dados condiziam e quanto mais pensava neles mais sentido faziam. Havia apenas uma coisa errada: não conseguia descobrir qualquer relação entre aqueles factos e o desaparecimento do Demaretion. Devia ter pensado um pouco mais profundamente e em extensão.
Não recebi mais telefonemas durante o resto do dia, o que me irritou, pois queria que Jack Smack e Al Georgio me dessem voluntariamente informações que me permitissem resolver o mistério com o aplauso de todos. Percebi como isso era injusto - eu ocultava-lhes o que ia sabendo e queria que eles me
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informassem -, mas a verdade é que eu não passava de uma amadora e eles eram profissionais. Podiam lançar-me umas migalhas, não podiam?
Fiquei tão enervada ao pensar em tudo isto que precisei de tricotar durante duas horas para me acalmar. Al e Jack tinham o seu trabalho e as suas responsabilidades profissionais, e estava certa de que ambos desejavam a glória de solucionar o mistério, pelo menos tanto como eu. Ri então da minha zanga e pensei que devia tentar resolver o caso sozinha ou nunca o deslindaria.
Nessa noite o meu estúpido aparelho de ar condicionado avariou-se e eu tive de dormir nua entre os lençóis, lendo o último livro da série "Como Triunfar na Vida". Folheei-o à procura da fórmula mágica e secreta que me permitiria ter sucesso, ser irresistível e mais baixa, mas não a descobri.
Ao mesmo tempo ouvia um programa de rádio no aparelho que tinha na mesa-de-cabeceira, até que resolvi que, depois do noticiário da meia-noite, o desligaria, apagaria a luz e esperaria que o sono chegasse.
Mais tarde recordei-me de que estivera presente na altura em que o Demaretion fora roubado, de que Al Georgio me telefonara a contar-me da morte de Vanwinkle e de que soubera pela imprensa diária da tentativa de suicídio de Natalie Havistock. Agora ia tomar conhecimento da última tragédia através do rádio, enquanto me encontrava deitada na cama, completamente nua, lendo um livro para melhorar a personalidade. Se aquilo não era estar em cima dos acontecimentos, então não sei o que seria.
A notícia foi breve, o locutor não lhe deu grande importância. Limitou-se a dizer que fora encontrado o corpo de uma jovem, aparentemente estrangulada, num apartamento da Rua Sessenta e Seis. A vítima fora identificada como Dolly LeBaron e a Polícia dissera que se tratava de uma amiga íntima de Orson Vanwinkle, cujo recente assassínio estava a ser investigado.
Após o impacte inicial, descobri que chorava: pobre rapariga, com o seu biquini de malha vermelha e os seus sonhos de grandeza. Ela dissera-me que eu era a sua melhor amiga, o que me parecera ridículo, mas agora, ao saber da sua morte violenta, pensei que talvez isso tivesse sido verdade, o que me fez, chorar ainda mais intensamente.
Nem sequer pensei que o crime pudesse ter incidências sobre
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as investigações relativas ao roubo do Demaretion e ao assassínio de Orson Vanwinkle. apenas uma coisa me preocupava: saltei da cama e corri nua pelo apartamento, acendendo luzes por todo o lado.
Na cozinha, abri o armário por cima do lava-louças e procurei atrás das embalagens, com as mãos trémulas. Queria o embrulho que Dolly LeBaron deixara ao meu cuidado.
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Li os sinistros pormenores nos jornais da manhã: o corpo de Dolly fora descoberto por vizinhos que tinham visto a porta do apartamento dela entreaberta. Estava deitada de costas, na sala, com o seu roupão oriental vestido, e nada mais. A Polícia achava que ela não fora violentada sexualmente, mas esperava pela autópsia para ter a certeza.
O vistoso apartamento encontrava-se num caos: mobília partida e espalhada por toda a casa, os armários despejados e as gavetas voltadas. O assassino procurava obviamente qualquer coisa (eu poderia dizer-lhe onde estava - na minha cozinha). As informações sobre os antecedentes de Dolly eram poucas. Revelavam que ela viera de Wichita para Nova Iorque para tentar fazer carreira no palco e havia algumas referências pouco abonatórias à vida que levava, como se isso fosse suficiente para justificar o que lhe fora feito.
Era dado grande realce ao relacionamento de Dolly com Vanwinkle - ambos assassinados em poucas semanas. A rapariga fora estrangulada e Orson morto a tiro, mas a Polícia investigava a possibilidade de um mesmo assassino ser o responsável pelas duas mortes. Tinham também descoberto marijuana e cocaína no apartamento destroçado.
Os pais viriam de Cansas, de avião, para reclamarem o corpo, que lhes seria entregue depois de completada a autópsia. Olhei para as fotografias da primeira página, que mostravam Dolly com o seu biquini vermelho. Ela teria gostado disso.
Mal tivera tempo de tomar o pequeno-almoço, de ler os jornais e de pensar no significado daquilo tudo, quando Al Georgio me telefonou. Foi muito rápido.
- Acabei de falar com Jack Smack - informou. - Ele
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nada tem a ver com os assassínios de Orson Vanwinkle e de Dolly LeBaron, mas julga que estão relacionados com o roubo da moeda e eu também penso o mesmo. Talvez seja a altura de nos sentarmos os três e compararmos as notas. Que diz?
Sim - respondi. - Acho bem. Onde querem que nos
encontremos?
Pode ser em sua casa? Tem alguma objecção?
Claro que não. Quando?
Hoje ao meio-dia. Nós levaremos qualquer coisa para comer e beber, por isso não se preocupe.
O que eles trouxeram foram três hamburgers de queijo e três pequenas tones, além de batatas fritas suficientes para encherem uma almofada e de uma embalagem de seis cervejas. Sentámo-nos os três de volta da mesa da sala, conversando enquanto comíamos.
- Da maneira como as coisas estão - disse Al -, basta esperarmos o tempo suficiente e todos os que se encontram relacionados com este caso acabarão por ser liquidados. Dessa maneira o assunto fica resolvido e acabam-se as nossas preocupações.
- Al - perguntei -, sabe alguma coisa sobre a morte de Dolly que não tenha vindo nos jornais?
- Pouco, a não ser que não havia sinais de entrada forçada. Ela abriu a porta a alguém que conhecia.
- Tal como Vanwinkle - observou Jack. - Pensa que se trata do mesmo assassino?
- Parece provável - respondeu Al. - Agora temos de voltar a interrogar todas as pessoas cujos nomes se encontram no livrinho preto de Orson para averiguarmos o que faziam quando Dolly foi morta.
- Roubaram alguma coisa do apartamento?
- A casa está de tal maneira que é difícil saber isso. Foi necessário, pelo menos, meia hora para fazer todos aqueles estragos. Podem imaginar tal coisa? O assassino matou Dolly e depois permaneceu no local durante trinta minutos ou mais, destruindo tudo. Devia estar desesperado.
- Acham que descobriu o que procurava? - perguntou Jack.
- Quem diabo há-de saber! - exclamou Al.
- Seria o Demaretion? - sugeri.
- Sim - disse Al -, pode ter sido, partindo do princípio de que Orson Vanwinkle roubou a moeda. Depois de o matar,
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o assassino revistou-lhe a casa e não a encontrou. Calculou então que ele a tivesse dado a guardar a Dolly LeBaron e procedeu do mesmo modo em relação a esta. - E dirigindo-se agora a Smack: - Jack, que tem de novo para nos dizer?
- Infelizmente pouca coisa. O nosso contacto no Líbano afirma que o negociante de moedas de Beirute está a tentar vender um Demaretion que parece autêntico, mas não conseguiu descobrir quem é o seu proprietário.
- Isso é de facto pouco - murmurou Al. - E você, Dunk, tem novidades para nos dar?
- Chegou a saber mais alguma coisa sobre o apartamento da Rua Sessenta e Cinco? - perguntei, iludindo a resposta.
- Falei com o proprietário - explicou Al. - Sim, está de facto alugado a Lenore Wolfgang advogada de Archibald Havistock. Ela mantém aquele apartamento para amigos ou para clientes de fora da cidade. Não tive tempo para esclarecer mais profundamente o assunto.
- Eu fiz isso - declarei -, fui lá ontem. Lenore Wolfgang deixou o apartamento há dias, mas, enquanto o manteve, Vanessa Havistock serviu-se frequentemente dele. O porteiro, no entanto, não confirmou que ela se encontrasse ali com homens.
Os dois detectives olharam-me, surpreendidos.
- Que diabo quer isso dizer? - perguntou Al.
- Nada - afirmou Jack. - Que Vanessa faça essas coisas não me assombra, mas isso em nada altera o resto.
Aquilo ofendeu-me.
- O apartamento de Lenore Wolfgang ficava muito perto da casa onde Dolly LeBaron foi assassinada. O que é isso? Uma coincidência?
Al acabou de comer o seu hamburger de queijo, recostou-se na cadeira e abriu a sua segunda cerveja.
- Está bem - disse -, fantasiemos todos um pouco. Não precisamos de ser lógicos ou de tocar em todas as bases, basta termos uma vaga ideia do que se passou. vou começar. Imagino que Orson Vanwinkle engendrou um plano para deitar a mão à moeda e que foi ele que planeou tudo, mas a troca foi feita por outra pessoa da família. O meu principal suspeito é Luther Havistock, que estava aflito para arranjar dinheiro. Depois zangam-se por causa da divisão, Luther deseja um quinhão maior por ter sido ele a trocar as caixas, e, desesperado, procura o Demaretion em casa de Orson e depois de Dolly,
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matando-os primeiro. Agora, antes de desfazerem esta história, contem as que vocês imaginaram. Jack, é a sua vez.
Este inclinou-se sobre a mesa, engolindo batatas fritas como se fossem vitaminas, pensou um pouco e começou:
- Estou de acordo com a sua ideia de que houve dois ladrões - disse. - Em primeiro lugar recebemos as cartas dactilografadas oferecendo negociar a moeda, depois deixámos de as receber e sabemos que alguém está a tentar vendê-la por intermédio de um negociante de Beirute. Isto faz pensar em dois tipos diferentes - certo? Concordo que Orson estava envolvido no caso, deve ter sido ele quem nos escreveu as cartas e também a outra a ameaçar Dunk, mas não creio que o seu sócio fosse Luther Havistock; inclino-me para a sua irmã mais nova, Natalie, e esta trabalhava para o namorado, Sam Jefferson, que afirma ser o muçulmano Akbar El Raschid. Bem, ele pode sê-lo ou não, mas se tiver, de facto, contactos muçulmanos que sítio melhor para negociar a moeda do que o Líbano. Não acham que isto faz sentido?
- Não tinha pensado nessa faceta - disse Al Georgio. - É possível. Dunk, conte-nos agora o que imaginou.
Não queria revelar-lhes a minha ideia, porque pensava que ririam da minha solução com divertido desdém. Era uma flor tão frágil que não queria vê-la pisada antes de desabrochar. Além disso, nem eu própria estava assim tão segura dela.
- Também estou de acordo com a teoria dos dois ladrões - comecei cautelosamente. - Vanwinkle achava-se envolvido, sem dúvida, mas não consigo imaginar Natalie ou Luther como comparsas do caso. Natalie é capaz de roubar na Saks da Quinta Avenida, mas não a julgo pessoa para fazer isso ao próprio pai. Chamem-lhe intuição feminina ou o que quiserem, mas não acredito que ela seja culpada. Quanto a Luther, sim, está em má situação e parece prestes a entrar em colapso, mas acham que tivesse sido capaz de matar duas pessoas? E se o fez, quem estará então a tentar vender a moeda por intermédio do negociante de Beirute? Se se trata realmente do Demaretion de Archibald por que razão revolveram os apartamentos de Vanwinkle e de Dolly LeBaron para o procurar? Não. Há mais alguém metido no caso, alguém que tem agora a moeda.
- Oh, meu Deus! - gemeu Al -, não me diga que pensa que há três pessoas envolvidas no roubo.
- Não sei - respondi desesperadamente. - Suponho que isto pareça disparate, mas não nos podemos esquecer de que a
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moeda foi oferecida ao negociante de Beirute antes de Dolly ser morta.
Olhámo-nos com ar sombrio e a seguir todos estendemos as mãos para mais comida e bebida e continuámos a devorar.
- Sabem o que eu penso? - disse finalmente, e os dois detectives olharam-me esperançosamente. - Concordo com os dois que os assassínios de Orson e de Dolly estão relacionados com o roubo do Demaretion, mas analisemos os factos. Qual poderá ser realmente o elo de ligação? Por o roubo e os crimes se terem seguido rapidamente, nós achamos que esse elo existe, mas quando olhamos para o caso com lógica vemos que a única relação deriva do facto de se passar tudo dentro da mesma família. A moeda preferida de Archibald Havistock é roubada e, depois, o seu secretário particular e a namorada desse secretário são assassinados. Deixem-me perguntar-lhes: há alguma prova evidente de Orson ter estado envolvido no roubo? Jack e Al ficaram pensativos durante um bocado.
- Não - respondeu por fim Al. - Não temos qualquer certeza.
- Ele pareceu-nos apenas o suspeito mais provável - acrescentou Jack. - Acha que não é, Dunk?
- Não disse isso, mas não estou certa de que tenha sido morto por haver roubado a moeda. Ele levava uma vida estranha e talvez existissem outros motivos. Creio que estamos todos a querer solucionar isto tentando fazer com que os factos se insiram nas nossas teorias e pondo de lado tudo aquilo que não se adapta a elas.
- Muito obrigado - replicou Jack Smack. - Está a dar-me grande confiança.
- Não sei onde quer chegar, Dunk - disse Al, franzindo a testa. - Está a sugerir que os assassínios de Vanwinkle e de Dolly LeBaron não tiveram nada a ver com o facto de a moeda haver sido roubada?
- é possível, não é? Creio que não estou a explicar isto muito bem, mas parece-me que podem ter ocorrido dois crimes diferentes. Orson era provavelmente o elo entre eles, mas não será concebível que o assassino tenha revistado os dois apartamentos para procurar algo que não o Demaretion?
- Então o quê - perguntou Al. - Drogas? Encontrámo-las no apartamento de Dolly. Estavam quase à vista e ninguém lhes tocou.
- Dinheiro? - sugeriu Jack. - Vanwinkle tinha a fama de
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gastar muito e talvez nós estejamos a dar demasiada importância a uma ocorrência que, provavelmente, se circunscreve a uma situação em que um ladrão, apanhado a roubar, entra em pânico e acaba por matar.
- Você não acredita nisso, pois não? - disse Al.
- Não, não acredito. A moeda está forçosamente envolvida
no caso. Alguém tem mais alguma coisa a acrescentar?
Olhámos uns para os outros inexpressivamente.
Quando eu era miúda e vivia em Dês Moines, depois do jantar, às sextas-feiras, a minha mãe saía sempre para ir aos ensaios do coro. Então o meu pai, os meus três irmãos e eu sentávamo-nos à volta da mesa da cozinha para jogar póquer. Era a fósforos, mas divertíamo-nos imenso.
Tornei-me uma jogadora bastante boa, principalmente por ter aprendido a apreciar os lances que o meu pai e os meus irmãos se preparavam para fazer apenas pela linguagem corporal. Quando estavam a guardar qualquer coisa boa, remexiam-se, pestanejavam repetidamente ou tamborilavam com os dedos sobre a mesa; quando faziam bluffas feições deles imobilizavam-se, julgando que não revelavam coisa alguma.
Agora, olhando para Jack e para Al, tive a sensação de que estavam ambos a fazer bluff; não só não me contavam tudo quanto sabiam, como também não o diziam um ao outro. Para mim isso era bom, pois impedia-me de sentir remorsos por também não lhes revelar tudo.
- Bem - murmurou Al, esvaziando a sua lata de cerveja -, creio que chegámos até onde pudemos. Não descobrimos nada de concreto e talvez tenhamos cometido muitos erros. Esperemos encontrar em breve uma solução para este mistério.
- Ámen - concordou Jack. - Se olharmos para o caso, no seu conjunto e friamente, ficamos com a impressão de estarmos ainda no princípio, não é?
- Eu não diria isso - protestei. - Creio que conseguimos reunir muitas informações.
- Está bem - retorquiu Al. - Mas que significam as nossas informações? Obrigado pela reunião, Dunk. - Levantou-se, Jack fez o mesmo e dirigiram-se ambos para a porta. Al ficou uns passos para trás e aproximou-se de mim.
- Domingo? - perguntou em voz baixa. - com a minha filha?
Respondi que sim com a cabeça.
- Eu telefono-lhe - acrescentou Al.
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Depois saíram e deixaram-me a limpar os restos do almoço, mas não me importei. Ficara ainda uma tarte, que embrulhei em papel de alumínio e guardei no frigorífico. com uma boa salada seria o meu jantar.
Voltei para a sala e pus-me a tricotar enquanto pensava. Os dois detectives pareciam convencidos de que Orson Vanwinkle estivera envolvido na troca das caixas e de que levara a que tinha o Demaretion. E eu também acreditava nisso, mas não considerava que fosse o roubo da moeda a causa da morte dele ou da de Dolly. Por que razão iriam procurar a moeda nos apartamentos de ambos quando, ao mesmo tempo, alguém a queria transaccionar em Beirute? Que confusão.
Jack Smack lembrara-se de que Akbar El Raschid pudesse estar a tentar vender a moeda no Líbano, por causa dos seus contactos muçulmanos, o que era uma ideia - mas eu não concordava com ela. Não tinha qualquer motivo lógico para isso - tratava-se apenas de pura intuição. Natalie e Akbar podiam ser dois jovens transviados, mas não os considerava capazes de aquitectarem o inteligente roubo da moeda, e muito menos de cometerem dois crimes a sangue-frio.
Luther? Talvez, mas eu duvidava, pelas razões que apontara a Al e a Jack. Admito que seguia muito as minhas reacções viscerais, mas que outra coisa poderia fazer? Não tinha os recursos da Polícia ou da companhia seguradora de Jack, trabalhava sozinha, sem apoios.
Que outra pessoa poderia ter conspirado com Orson? Vanessa? Muito, muito duvidoso. Haviam dito que se detestavam mutuamente e eu acreditava. Os Minchens? Que motivo poderiam invocar Roberta e Ross para liquidarem Orson e Dolly? E Ruby Querita? Era uma possibilidade, ela era de tal modo fanática que até podia matar e dizer que fora a mão de Deus. Mas, finalmente, eu tinha de encarar a causa de tudo aquilo e tentava adiar uma decisão muito importante. Que iria fazer do embrulho, cheio de fita adesiva, que Dolly me levara? Suspirando, considerei as premissas do caso: primeira, Dolly dissera que o viria buscar dentro de um mês (obviamente não o faria); segunda, dissera também que, no caso de não voltar a reclamá-lo, eu o deveria queimar; terceira, fizera-me prometer que não o abriria.
Sentia-me confusa. O que de facto devia fazer era queimar o embrulho, como prometera a Dolly, mas se ela o tivesse deixado a alguém em testamento? Prometera não o abrir, mas se
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tivesse qualquer pista quanto à identidade do assassino? Iria obedecer aos desejos da pobre Dolly, ou contrariá-los na
esperança de encontrar naquele embrulho as respostas para os meus problemas? Um dilema.
Acabei por resolver não fazer coisa alguma. Deixei o embrulho onde estava, sem sequer lhe tocar, e decidi, por enquanto, não falar no assunto a Jack e a Al. Creio que podia chamar-lhe o meu trunfo escondido.
passei uma tarde triste. Já lhes disse que sou habitualmente uma pessoa animada - vejo o lado positivo das coisas, penso construtivamente, acho que tudo se resolverá pelo melhor mas nessa noite, sentia-me em baixo, a morte de Dolly deixara-me abatida. Não sentia pena de Orson, tratava-se realmente de um tipo asqueroso, mas Dolly era diferente.
Não ignoro que todos a consideravam uma inútil, uma leviana, e sei que o era, mas era também jovem, bonita e cheia de sonhos. Custava-me a crer que pudesse ter feito alguma coisa que justificasse o seu fim.
Isso fez-me pensar profundamente na minha vida, nas minhas esperanças e sonhos, e em como tudo isso se podia frustrar. Ninguém gosta de pensar na morte - pois não? Claro que no mais íntimo do nosso ser todos sabemos que somos mortais, mas afastamos sempre essa ideia e concentramo-nos nas nossas fantasias. É difícil encarar a realidade da própria dissolução.
Fiz nessa noite uma coisa que abandonara há anos: ajoelhei-me junto da cama, juntei as mãos, curvei a cabeça e rezei pela alma imortal de Dolly LeBaron, concluindo com a oração infantil, que começa: "com Deus me deito..."
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O velho Plymouth azul estava à minha espera quando saí de casa nessa manhã de domingo, às oito da manhã. Ao volante, Al Georgio, com umas calças verdes e uma camisa desportiva, de quadrados. No banco de trás sentava-se a filha, Sally, vestindo calças de ganga e uma T-shirt, com uma fita azul a prender-lhe o cabelo comprido e louro. Uma verdadeira beldade!
- Olá - disse ela quando eu me instalei à frente.
- Olá - respondi.
- É a namorada do meu pai? - perguntou.
- Na, sou uma desconhecida que pediu boleia.
- Ah! - exclamou Al. - Já vi que vai ser um grande dia.
A caminho de Jacob Hills Park, começou a formar-se no nosso espírito a ideia de que poderia ser exactamente isso - um grande dia.
Ignorei Al e voltei-me para trás para poder conversar com Sally, o que não era difícil, pois ela mostrava-se uma criança alegre, faladora, com opiniões sobre tudo.
- Porque usa o seu cabelo assim? - perguntou.
- Assim como? - observei. - Não o uso de maneira nenhuma, é esse o meu problema.
Sally olhou-me gravemente, inclinou a cabeça para um lado e observou:
- Penso que o devia cortar e deixá-lo depois solto e levemente curvo, sabe?
- Não é má ideia - concordei.
- O papá disse-me que lhe chamasse Dunk. Está bem?
- Óptimo.
- Quanto mede, Dunk?
- Mais ou menos um metro e oitenta.
- É modelo?
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Sou modelo de qualquer coisa, mas não sei de quê.
É bastante bonita para poder ser modelo.
- E tu és um amor por me dizeres isso. Que trazes nesse
cesto?
O almoço: galinha frita e salada de batata. Provavelmente
o papá comprou tudo feito num restaurante sebento.
- Há, o que é isso? - interrompeu indignadamente Al. -
O frango fui eu mesmo que o cozinhei e a salada de batata é de uma excelente casa de comidas.
- Estava a brincar - replicou a filha. - Também trazemos bolo de queijo, uma garrafa de limonada e uma outra de vinho para os velhotes.
- Continua assim - avisou o pai - e ainda vais a pé para Jacob Hills.
Ela soltou uma pequena gargalhada e inclinou-se para trás, com os braços em redor dos joelhos.
- Eu trago um biquini - declarou daí a pouco Sally. E tu?
- Um maillot preto do último modelo - respondi.
- É um muito cavado nas pernas e sem costas? - perguntou ela.
- É esse mesmo.
- Gosto muito dele - murmurou sonhadoramente a rapariguinha. - Talvez para o ano já seja suficientemente crescida para ter um, isto é, se o meu velhote mo comprar.
- Continuas a falar assim - disse Al ferozmente - e não haverá "para o ano".
Sally soltou nova risadinha e na hora que se seguiu conversámos ambas sobre modas, os estudos dela, os seus colegas de escola, estrelas de cinema, grupos de rock, espectáculos de televisão e os prós e os contras de pôr cerveja no cabelo. Era uma miúda conhecedora, não se envergonhava de exprimir as suas opiniões e falava com ar firme e convencido.
Sally trazia maquilhagem - pouca, mas alguma -, o que me surpreendeu um bocadinho. Quando eu tinha a idade dela, seria posta fora de casa se usasse apenas sabonete perfumado, mas os tempos tinham mudado. E mesmo sem o brilho artificial nos lábios e sem o toque de eyeliner, Sally seria sempre uma verdadeira beldade. Iria certamente destroçar muitos corações e creio que o sabia.
- Creio que o meu pai devia casar-se - disse-me. - Não achas?
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- Acabas com isso, Sally? - interrompeu Al, rindo. Prometeste portar-te bem.
- Cruzei os dedos atrás das costas - disse ela. - E tu não viste. Bem, não achas que ele se devia casar?
- Se ele quiser - respondi.
Sally ficou calada uns momentos, de testa franzida.
- Julgo que a minha mãe vai tornar a casar. Ela tem um namorado.
- Gostas dele?
- Acho que é boa pessoa, mas usa poupa, e isso desagrada-me.
- Aaaah!
Al ria tanto que batia com as palmas das mãos abertas sobre o volante.
Àquela hora ainda não havia muito trânsito e chegámos à praia mais cedo do que pensáramos. Al levava um chapéu-de-sol no porta-bagagens, uma esteira e duas cadeiras dobráveis. Transportou tudo isso enquanto eu levava o cesto, e Sally corria à nossa frente. Instalámo-nos a uns dez metros da água. O mar mostrava-se razoavelmente calmo e claro, o sol brilhava e o céu estava limpo. Um belo dia.
Logo que estendemos a esteira, Sally tirou os sapatos, as calças e a camisola. O seu pequeno biquini era engraçado: cor-de-rosa estampado, com franzidos em cima e nas ancas. Que corpo aquela garota tinha! Iria ser um problema, mas eu não disse isso a Al.
Sally arrancou a fita azul que trazia na cabeça e correu para a água com o cabelo louro a flutuar à brisa.
- Não nades enquanto eu não estiver aí - gritou-lhe Al. Depois voltou-se para mim. - Sally nada um pouco, mas no entanto... Espero que não se tenha aborrecido, Dunk. Ela sai-se com cada coisa.
- Aborrecer-me? Gosto muito dela. Nunca precisará de fazer um curso para aprender a defender-se.
- Isso é verdade, é tão esperta que às vezes me assusta. Quer ir experimentar a água ou prefere sentar-se primeiro ao sol?
- Primeiro vou nadar, depois é que apanho sol. Descalcei as sandálias e despi o vestido de ganga. Al olhava-me.
- Já sei - disse eu. - Pareço uma girafa em fato de banho.
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Você é muito bonita - respondeu Al, e creio que falava
com sinceridade.
Não fiz, por meu lado, qualquer referência aos seus velhos calções de banho, manchados de sal, que quase lhe chegavam aos joelhos.
Sally manteve-se junto da praia, flutuando, sem nunca ir para fora de pé, mas Al e eu afastámo-nos um bocado. Ele nadava como o género de pessoa que era, com braçadas fortes, pesadas, resfolegando um bocado, mas avançando a um ritmo certo. Tinha bons músculos nos ombros e nos braços e creio que, se quisesse, seria capaz de chegar à Europa.
Era a primeira vez que nadava naquele Verão e achei muito agradável. Quando saímos da água, Sally já estava estendida sobre a esteira, toda besuntada. Sequei-me e espalhei cuidadosamente o meu creme protector número quinze. Al tinha uma pele que se queimava facilmente e creio que lhe seria mais fácil bronzear-se a passear pela Broadway do que eu durante um Verão inteiro na praia.
Sentámo-nos os dois nas cadeiras de praia, debaixo do chapéu-de-sol, e Al abriu a garrafa de vinho rose gelado. Cada um de nós bebeu por um copo de papel. Muito bom.
- O oceano é formidável - disse eu. - É pena não haver disto em Iowa.
- Não pensa em voltar para lá? - perguntou Al.
- De visita, com certeza, mas permanentemente não creio, pelo menos por enquanto. Não é o género de vida que me atraia.
- Realmente não sei muita coisa a seu respeito, pois não? Refiro-me aos seus antecedentes, ao que fazia antes de vir para Nova Iorque.
- Se há alguma coisa que quer saber pergunte.
- Não - disse Al -, na verdade, não. Mas também não sabe muito acerca de mim, pois não?
- Não, e também não vou perguntar. Se quer contar-me alguma coisa, conte.
- Você é terrivelmente confiante - observou ele. - Eu poderia ser Átila, o Huno, que você não saberia, nem se importaria com isso.
- Podem fazer o favor de falar mais baixo? - interveio severamente Sally. - Estou a tentar dormir um bocado e não me sinto disposta a ouvir as vossas confissões pessoais.
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- Que grande aldrabice - replicou o pai. - Estás a saborear cada palavrinha que nós dizemos.
Sally riu.
- és terrível. Se não fosses meu pai não te aturava.
- Não tens outro remédio senão suportar-me, e eu a ti. Mas é bom, não é?
- Sim - respondeu Sally suspirando e voltando-se para bronzear as costas.
Haverá porventura alguma coisa nova que se possa dizer a respeito de uma esplêndida tarde de Julho à beira-mar? Uma morna lassitude, uma brisa ligeira, o ruído da rebentação, o silêncio reconfortante apenas quebrado pelos gritos alegres de crianças. Tão relaxante que chegamos a pensar que os nossos ossos vão derreter-se.
- Creio que, se fizéssemos isto todos os dias, acabava por se tornar maçador - disse eu.
- Acredita nisso?
- Não e vou dizer-lhe uma coisa que o chocará, Al.
- O que é?
- Estou com fome.
- Eu também - gritou Sally levantando-se de um salto. Vamos comer.
Alterámos a posição do chapéu-de-sol de forma a que a sombra incidisse sobre a esteira e sentámo-nos todos sobre ela. Comemos a galinha preparada por Al (deliciosa), devorámos a salada de batata e ainda uma bela salada de alface. Al não se esquecera do sal, da pimenta e dos guardanapos de papel. Aquele homem era um tesouro.
Quando acabámos de comer, Sally surpreendeu-me - e surpreendeu o pai - limpando os pratos e levando os restos para o caixote de lixo mais próximo.
- Oh, oh - exclamou Al. - Ela quer qualquer coisa.
- Não sejas assim - disse Sally irritadamente. Depois, com uns grandes ares, acrescentou: - vou dar um pequeno passeio sozinha, para descontrair.
- Para encontrares alguns rapazes - disse Al. - É isso, não é?
- Pai, às vezes és capaz de ser mesmo grosseiro. Ficámos a vê-la afastar-se, e não se encontraria à beira da
água há mais de dois minutos quando dois rapazes, mais ou menos da idade dela, se aproximaram.
- Não haverá problema? - perguntei ansiosamente.
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Não se preocupe com a Sally - aconselhou Al. - Sabe
tomar conta dela.
Espero que sim.
Ficará suficientemente perto para eu a poder vigiar.
Verá.
Sally procedeu exactamente como ele predissera, e era uma alegria observar aquela garota: corria para o mar com água até aos joelhos, recuava com fingido horror da água fria, ria e prendia os cotovelos com os braços e fazia balouçar o seu comprido cabelo de um lado para o outro. Os rapazes estavam encantados.
A sua ex-mulher irá realmente voltar a casar? - perguntei a Al.
Ele abrira uma segunda garrafa de vinho rose, que apesar de já estar morno, ainda era agradável.
- Provavelmente, uma vez que anda com esse tipo. Nunca o vi, mas pelo que sei, dito por Sally e pela mãe, parece-me um homem sólido e boa pessoa. É contabilista.
- Que sente com isso? Al encolheu os ombros.
- É a vida dela. A única coisa que me aborrece é que Sally vai ter um novo pai, um padrasto, e talvez se esqueça de mim.
- De maneira alguma - respondi. - Sally gosta de si e nunca o porá de lado.
- Pensa realmente assim?
- com certeza. Além disso, o Al não usa poupa. Al sorriu.
- Sim, é isso. Não sei que faria se perdesse esta garota. A minha vida já é bastante difícil assim e, se ela se afastasse, ficaria à deriva.
- Não tem hipóteses de voltar a viver com a sua ex-mulher?
- Oh, não - respondeu imediatamente. - Ela não quer ser mulher de um polícia e não posso censurá-la por isso. Foi a minha profissão que nos afastou. As horas de trabalho sem horário certo, a preocupação dela. Não é que seja assim tão perigoso ser polícia, mas ela achava que sim e de cada vez que um era morto chorava durante dias. Eu dizia-lhe que a percentagem de mortes não é muito alta, mas não podia tirar da cabeça que um dia lhe aparecia um inspector à porta para lhe dar a má notícia. Uma porção de mulheres de polícias bebem - sabia?
- Não, mas posso compreender.
- No entanto - prosseguiu Al -, é a minha vida. Se não
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fosse polícia, que seria? Guarda-nocturno? Guarda-costas de qualquer estrela rock? Não era com certeza presidente da General Motors.
Estávamos novamente sentados debaixo do chapéu-de-sol. O sol aquecia a areia e eu começava a sentir a pele a arder. Não tardaria muito que não me vestisse.
Al estendeu a mão para o lado, agarrando-me os dedos e apertando-os ao de leve.
- E você, Dunk? Está pronta para assentar?
- Não sei - respondi, embaraçada e confusa. - Não sei de facto o que quero. Por enquanto estou apenas a flutuar. Acho que me sinto ainda muito insegura e que é preferível esperar para ter mais a certeza daquilo que pretendo.
- Sim - concordou Al -, isso é sensato, mas não espere demasiado. O tempo passa tão depressa Lembro-me de que, quando era miúdo e andava a estudar, as férias nunca mais chegavam. O tempo avançava com uma grande lentidão, mas agora corre. Semanas, meses, anos e você pode acordar um dia e perguntar: que me sucedeu? Para onde foi tudo?
Ficámos sentados em silêncio, de mãos dadas, observando Sally, à beira-mar e os dois rapazes, que agora jogavam à bola. Garotos com sorte, ainda não sabiam que iriam crescer e ter problemas.
- A propósito - disse Al -, tivemos finalmente acesso à conta bancária de Orson Vanwinkle. Tinha mais de cem mil dólares, o que não é nada mau para um secretário, não acha? Especialmente se tomarmos em atenção o facto de que levava uma vida larga.
- Concordo. Deixou testamento?
- Não há sinais disso, era um idiota. Não tinha parentes próximos, só uns primos afastados. Provavelmente o dinheiro irá para eles, mas, entretanto, fará as delícias de algum advogado.
- E acerca de Dolly LeBaron?
Possuía cerca de cinco mil dólares no banco. Não é grande coisa. Calculo que Orson lhe pagasse a alimentação e as contas, mas aparentemente não lhe dava dinheiro suficiente para ela poder fazer o seu pé-de-meia.
- Isso é verdade - respondi. - Orson parecia ter muito dinheiro para uma quantidade de outras pessoas.
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Sim - disse Al, voltando-se para mim. - Para Akbar El
Raschid, por exemplo. Você sabia isso, não sabia?
Sabia - admiti -, mas tanbém há uma porção de coisas
que você não me diz.
Talvez - respondeu de má vontade. - Coisas pequenas,
sem importância.
- Além disso - repliquei, começando a aborrecer-me com aquilo -, fui eu que o avisei sobre as tendências bissexuais de Orson. Achei que viria a descobrir as relações dele com Akbar, e conseguiu.
- Depois de muito trabalho - retorquiu Al. - Podia ter-me poupado tempo.
Larguei a mão dele.
- Não tenho obrigação disso - respondi, irritada.
- Jesus! - gemeu Al -, que diabo estamos nós a fazer? Um dia lindo como este, na praia, e tornamos a falar sobre homicídios. Desculpe, Dunk, mão consigo esquecer-me do meu trabalho. Não falemos mais disto durante o resto do dia. Está bem?
- Para mim está óptimo.
- Tréguas? - perguntou, agarrando-me outra vez na mão. - Não está zangada comigo?
- Como podia estar com um homem que cozinha um frango tão delicioso?
- Não fui eu que o fiz, comprei-o numa casa de frangos, que há perto da minha casa.
- Aldrabão! - gritei.
- Sim, mas podia tê-lo feito assim tão bom, se tivesse tempo.
- Isso é o que você diz, nunca mais acredito em si.
- Só minto acerca de coisas sem importância - disse Al. Aí vem a Miss América daqui a dez anos.
Sally aproximava-se a correr. Por que razão os garotos da idade dela nunca se cansam? Correm com toda a velocidade, gastam montes de energia... quem me dera ter alguma.
- Ainda há limonada? - perguntou Sally.
- Sacode o termo - disse o pai. - Tu é que a bebeste. Sally despejou o resto da limonada para um copo, que ficou
meio cheio, e bebeu de um gole.
- Diz-nos então, Cleópatra, deste-lhes o teu número do telefone? - perguntou Al.
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- Eles vivem em Jérsia - respondeu a miúda. - Já viram? A quem interessa isso?
- Melhor sorte para a próxima vez - disse Al.
Apanhámos mais meia hora de sol e resolvemos que era melhor regressarmos antes de o trânsito ser mais intenso. Arrumámos tudo e dirigimo-nos para o parque de estacionamento. O carro estava um forno e tivemos de deixar as portas abertas durante uns minutos antes de lá entrarmos. Sentei-me no banco de trás, com Sally.
- Que sou eu? - quis saber Al. - O motorista?
- Faça um bom trabalho - repliquei - e talvez apanhe uma gorjeta.
- Pequena - acrescentou Sally.
Não estávamos na estrada há mais de dez minutos quando a cabeça de Sally descaiu pesadamente sobre o meu ombro. Pus-lhe um braço em volta dos ombros e ela aninhou-se. Adormeceu quase instantaneamente, respirando fundo, com um ligeiríssimo ressonar. Cheirava a óleo bronzeador, a sol, a sal e a juventude, era encantadora.
Al observou-nos pelo espelho retrovisor e sorriu.
- Conquistada? - perguntou suavemente.
- Ela merece-o.
- Também tem sono? Durma.
- Eu? Não, não tenho.
Era mentira e jurei a mim própria que, quando chegasse a casa, tomaria um duche quente e me meteria na cama.
Voltámos para Manhattan num silêncio quase total, cortado apenas por umas palavras menos delicadas de Al quando outro condutor o irritava. Logo que parou diante do prédio onde eu morava, tirei cuidadosamente o braço que rodeava os ombros de Sally e deixei-a ficar estendida sobre o assento, sempre a dormir. Tive de massajar o braço.
- Eu não dormi - murmurei -, mas o meu braço sim.
- Deixe-a dormir - disse Al, voltando-se e vendo a filha caída sobre o banco. - Quando chegar a casa acordo-a.
Inclinei-me para a frente e beijei-lhe os lábios.
- Obrigada por este dia maravilhoso - disse. - Foi realmente maravilhoso.
- Teve os seus bons momentos, não é? Havemos de o repetir?
- Basta-lhe assobiar e eu virei a correr.
- Dunk... - murmurou Al.
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-O que é? -
Ele tinha uma estranha expressão, toda torcida e eu não sabia no que estava a pensar.
Nada, fica para outra vez.
- Quando queira.
- Sally gosta de si, percebi bem isso. São parecidas: duas
tolinhas. ,
Você precisa de mulheres como nós na sua vida.
Bem o sei - retorquiu. - Julga que não? Eu espero aqui
até que entre em casa. Parei à porta, voltei-me, disse-lhe adeus, e ele atirou-me um
beijo. Antiquado, mas agradável.
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Dormi durante quatro horas nesse entardecer de domingo, completamente esgotada pelo sol e pelo ar puro. Depois acordei, fui descalça até à cozinha, bebi água e comi uma tangerina gelada. Em seguida voltei para a cama. Que outra coisa havia de fazer?
Quando me vi ao espelho, na manhã seguinte, notei o feitio do fato de banho marcado no meu corpo, mas a pele não me ardia, estava apenas ligeiramente bronzeada, e admiti que não me viesse a cair - o que era uma bênção. Para ter a certeza de que isso não me sucederia, besuntei-me com creme amaciador. Detesto que me caia a pele, como a uma cobra.
Sentia-me bastante bem-disposta. Anotei, no meu livro de apontamentos, aquilo que Al me contara sobre a conta bancária de Orson Vanwinkle e de Dolly LeBaron, e depois saí para comprar o jornal da manhã e um brioche. De volta a casa abri-o e enchi-o com queijo creme e doce de amora. Isto é que é viver!
Veio a ser um dia ocupado, que condizia perfeitamente com a minha disposição: apetecia-me fazer qualquer coisa. Quando o telefone tocou, estendi a mão para ele, pensando que fosse Al Georgio a agradecer-me a mais excitante e memorável tarde da sua vida, mas tratava-se afinal de Archibald Havistock, o que também era óptimo.
- Miss Bateson - disse ele -, quero pedir-lhe desculpa. com a confusão que se seguiu à morte do meu secretário e ao recente incidente com a minha filha, não paguei a tempo as minhas contas pessoais. Vi agora que lhe devo duas semanas de trabalho e peço-lhe desculpa pela demora. Já passei o cheque. Quer que lho envie ou prefere passar por aqui para o vir buscar?
- Preferia ir buscá-lo - respondi prontamente. - Sobretudo
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para ter oportunidade de trocar impressões consigo durante uns minutos. Poderá ser?
- com certeza - respondeu Archibald Havistock com a sua voz profunda, ressonante. - Espero estar em casa todo o dia. Venha quando quiser.
E posso falar também com Ruby Querita?
Uma pausa. Depois:
- Sim. Ela também aqui está.
Muito obrigada, Mister Havistock. Até já.
Vesti-me muito cuidadosamente: uma blusa de seda branca de gola subida e mangas compridas e uma saia preta, direita. Se tivesse prendido o cabelo para cima, num carrapito, e o atravessasse com um lápis, poderia passar por secretária de J. P. Morgan. Era a impressão que queria dar a Havistock: a de uma empregada sóbria, cumpridora e competente. Ele não poderia saber que eu comera três chocolates gelados só numa tarde.
Olhei mais uma vez para o espelho e fiquei a pensar se Sally não teria razão quanto ao meu corte de cabelo. com efeito, o cabelo curto, a descrever uma ligeira curva, talvez pudesse mudar toda a minha vida.
Estava já à porta para sair, quando o telefone tocou outra vez. Dessa vez tinha mesmo de ser Al e corri para o telefone.
- Mary Bateson? - perguntou uma voz de mulher.
- Sim.
- Aceita pagar uma chamada do Arizona. De Enoch Wottle.
- Sim, sim.
- é a própria Mary Bateson?
- Sou.
- Muito obrigada, podem falar.
- Fiz o que me pediu! - disse Enoch triunfantemente. Liguei para aí e você é que paga a chamada.
- Ainda bem, Enoch - respondi, rindo. - Como se sente?
- Se me sentisse ainda melhor seria inconsciente. E você, como está, Dunk?
- Óptima.
Contei-lhe então que, na véspera, passara o dia na praia e Enoch informou-me de que lhe haviam pedido que escrevesse um artigo sobre a cunhagem de moedas gregas nas tribos gaulesas para um jornal da especialidade. Enoch pareceu-me cheio de vivacidade - o que era excelente.
- Bem, basta de tagarelices - disse por fim Enoch. - Falei
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com os meus amigos de Nova Iorque para saber quem tinha negociado com Archibald Havistock, e tanto quanto apurei, ele tratou sobretudo com três, o que já de si não é vulgar.
- Porquê?
- Para quê três? Os coleccionadores mais sérios trabalham sempre com o mesmo negociante. Encontra-se alguém, de quem se goste, em quem se confie, e não se muda.
- Nem todos são como o senhor, Enoch. Talvez Havistock procurasse obter o melhor preço.
- É possível. De qualquer modo, pelo que pude saber, Havistock, em cinco anos, recebeu pelas moedas... está preparada para o choque?
- Quanto? - perguntei ansiosamente.
- Quase meio milhão.
- Oh! Devia ter coisas muito boas.
- Na verdade, o homem é, ou era, um excelente coleccionador, todas as suas moedas são valiosas. E, é claro, os negociantes também ganharam muito com o negócio. Todos lucraram, claro, mas mesmo assim é difícil de compreender...
- O quê, Enoch?
- Que uma pessoa passe uma vida inteira a reunir uma bela colecção para depois a vender. Talvez precisasse, de facto, do dinheiro, mas é triste espalhar assim uma tão bela colecção. Ele não está na miséria, pois não?
- Longe disso.
- Pronto. Aqui tem, querida Dunk. Acha que isto a poderá ajudar a encontrar o Demaretion?
- com franqueza não lhe sei dizer - respondi lentamente. - É outra informação a juntar às que se encontram já no meu livro, mas não estou certa do que significa exactamente.
- Bem. Este assunto ficou resolvido. Que se segue? Procurei desesperadamente lembrar-me de qualquer coisa
que o meu velho amigo pudesse fazer, pois sabia como era importante para ele sentir-se útil.
- Há ainda uma coisa em que poderia ajudar-me, Enoch. Lembro-me de que, quando aparecia um cliente novo na loja, o senhor verificava sempre o estado das finanças dele.
- com certeza, é conveniente saber a reputação da pessoa com quem se está a negociar. Será de confiança? Paga as suas contas? Os seus cheques são válidos? É bom ter certezas.
- Poderia fazer uma verificação desse género em relação a Archibald Havistock?
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Havistock? - repetiu Enoch, chocado. - Trata-se de
um homem rico, de boa reputação.
Eu sei, mas, em todo o caso, gostaria de conhecer bem a
sua situação financeira.
Tratava-se rigorosamente de arranjar trabalho para Enoch. Al Georgio e Jack Smack tinham já investigado e, por isso, eu conhecia muito bem tal situação - os rendimentos de Havistock e o facto de a maior parte das suas propriedades estarem em nome da mulher -, mas não prejudicaria conhecer outra versão.
vou tentar - respondeu duvidosamente Enoch. - Está
a querer descobrir por que terá ele vendido as suas belas moedas durante os últimos cinco anos?
É isso - confirmei. - Pouco mais que bisbilhotice feminina.
- Para lhe dizer a verdade, Dunk - disse Enoch -, eu próprio sinto uma certa curiosidade.
Desligámos, despedindo-nos afectuosamente, e dirigi-me para a porta, esperançada em que, dessa vez, nada me impedisse de sair.
Como estava um dia quente e opressivo resolvi não ir a pé até East Side, e, assim apanhei um táxi que felizmente tinha ar condicionado e cheirava apenas a charutos apagados.
Quando eu fora para Nova Iorque, deslocarmo-nos de West Side para East Side significava quase o mesmo que ir de Calcutá a Paris, mas as coisas tinham mudado e continuavam a mudar. A cidade (Manhattan) estava a tornar-se um potpourri de boutiques, lojas de antiguidades, salões de cabeleireiro unissexo e lojas de verduras. Dentro de cinco anos, a Broadway teria uma sucursal da Tiffany e a Park Avenue salões de massagistas.
Ruby Querita abriu-me a porta do apartamento dos Havistocks. Vestia, como habitualmente, de uma forma que fazia lembrar uma das bruxas de Macbeth, mas sorriu-me sem frieza e eu toquei-lhe num braço.
- Como vai Ruby? - perguntei.
- Tenho saúde, graças a Deus - respondeu ela.
- Mister Havistock está à minha espera. É capaz de lhe dizer que já cheguei?
- vou já.
- Encontra-se mais alguém em casa? Mistress Havistock? Natalie?
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Ruby abanou a cabeça.
- Bem, depois de ter acabado de falar com o dono da casa gostaria de trocar umas palavrinhas consigo. Pode ser?
- com certeza. Estou na cozinha.
- O seu escritório - disse, tentando um gracejo que ela aliás, ignorou.
Archibald Havistock levantou-se quando eu entrei na biblioteca e fez-me sinal para me sentar numa cadeira em frente da sua enorme secretária, debaixo da qual se poderia esconder um corpo.
Trocámos umas banalidades e depois entregou-me um sobrescrito branco. Era mesmo dele, preferia não me dar o cheque em mão, seria demasiado grosseiro. O dinheiro devia ser castamente escondido.
- Muito obrigada - agradeci, guardando o sobrescrito na carteira, sem verificar o seu conteúdo. Seria tão circunspecta como ele. - No entanto gostava de sentir que estava a fazer mais para o ganhar.
Archibald Havistock mantinha-se muito direito, sentado na sua confortável cadeira giratória. com uma toga negra pareceria um juiz, mas vestia nesse dia um fato cinzento com uma camisa de seda azul-claro, de colarinho e punhos brancos, e uma gravata discreta. Aqueles olhos azuis! E aqueles cabelos prateados! Oh, meu Deus, pensava eu, se ele tivesse menos trinta anos, ou eu mais trinta!
- Não tem feito progressos? - perguntou Archibald Havistock com um leve sorriso.
- Bem... - respondi, não querendo confessar que estava completamente às escuras -, avancei bastante no que diz respeito a obter uma considerável quantidade de informações, mas ainda não fui capaz de retirar, de todas elas, uma ideia que me explique tudo o que aconteceu.
- Tenho a certeza de que há-de conseguir - respondeu ele. - A minha mulher tem grande confiança em si.
"A minha mulher?" Isso significaria que ele não tinha? Ou estaria eu agora com manias?
Archibald Havistock balouçava-se ligeiramente na cadeira. O perfume da água-de-colónia que usava chegava-me às narinas, mas não era nenhuma que eu conhecesse, antes algo de mais forte e subtil. Talvez noutro homem aquele aroma pudesse ser exagerado, mas ele tinha bastante presença para o usar. A minha impressão era de que não queria saber do que os outros
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pensavam da maneira de ele vestir, falar e viver - conseguira atingir uma espécie de soberana serenidade. - Diga-me uma coisa: como regista todos os acontecimentos de que vai tendo conhecimento? De memória?
Gostava de que ela fosse tão boa que o pudesse fazer.
Não, tomo notas numa espécie de diário, e todos os dias escrevo aquilo que vou sabendo.
Muito sensato. Eu também tenho um diário de negócios,
onde registo conversas telefónicas, conferências e outras coisas. Pode ser muito útil.
Espero que os meus apontamentos venham a ser úteis,
mas por enquanto ainda não consegui tirar deles nada de concreto.
Proferira uma pequena mentira, pois as coisas tinham já começado a fazer sentido.
- Disse que gostava de falar comigo, Miss Bateson. Algo de especial?
- É apenas uma pergunta, Mister Havistock, mas pode não querer responder-me. Gostaria de saber quanto pagava a Orson Vanwinkle.
Ele olhou-me uns momentos, antes de falar:
- Isso é importante para as suas investigações?
- Creio que sim?
- Não vejo razão para não responder. Pagava-lhe oitocentos dólares por semana, por cheque, e há um registo que permite esclarecer os investigadores. Porque pergunta?
- Não sei bem - respondi pouco à vontade -, mas creio que ele fazia uma vida muito larga para quem ganhava oitocentos dólares semanais.
- Eu sabia disso - comentou Havistock -, e avisei-o mais de uma vez, mas não servia de nada. Como creio que já lhe disse, o meu sobrinho não era um homem muito sólido, só que, sendo da família, não queria afastá-lo. E devo dizer que cumpria as suas obrigações. Contudo, recomendei-lhe sempre que não arranjasse dívidas.
Não o informei de que o querido Horsy deixara cem mil dólares na sua conta bancária, pois em breve o saberia e, pela minha parte, preferia não ser eu a dizer-lho.
- Muito obrigada - disse, levantando-me - por me ter dispensado estes momentos. Agora gostaria de falar com Ruby durante uns minutos, se não se importa.
Archibald Havistock ergueu-se e estendeu-me a mão.
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- com certeza, o tempo que quiser. Despedimo-nos com um vago sorriso. O aperto de mão dele
era exactamente como ele: frio, seco, firme.
Quando cheguei à cozinha fui encontrar Ruby Querita inclinada sobre o lava-louças de aço inoxidável, preparando feijão-verde e chorando. Pus-lhe um braço por cima dos ombros.
- Que se passa, Ruby? - perguntei. Ela abanou a cabeça, sem responder.
- É por causa do seu irmão? - insisti. Ruby fez um sinal que sim e murmurou:
- A vida é injusta.
Apeteceu-me dizer: então que há de novo? Mas fiquei calada.
- Ruby - disse por fim -, você pode ser responsável pela sua própria vida, mas não pela dos outros, não é verdade?
A mulher baixou a cabeça, concordando, e passou os feijões, que estavam dentro de um passador, por água fria. Em seguida, limpou as mãos a uma toalha de cozinha e sentámo-nos as duas à mesa. Parara de chorar.
Inclinei-me para ela, falando em voz baixa. Iria ser uma conversa confidencial, para ficar só entre nós duas.
- Ruby - disse eu, quase sussurrando -, estou a tentar descobrir quem roubou o Demaretion. Todos são suspeitos, até você e a Polícia acha que talvez esteja envolvida no caso, que podia ter tirado a moeda para ajudar o seu irmão a sair da cadeia. Eu sei que isso é completamente ridículo e que você nunca faria uma coisa dessas, mas preciso de que me ajude a descobrir quem foi o verdadeiro ladrão. Percebe isso, não percebe?
Ruby manteve-se silenciosa.
- Seja o que for que me diga é rigorosamente confidencial. Não transmitirei a ninguém o que me contar, mas preciso de saber o que se passa nesta família.
- A Natalie - começou Ruby - anda metida com gente má. Rouba, fica fora de casa durante muitas horas, por vezes desaparece durante o dia todo, ou até dois dias. Desconfio de que se droga e tem um namorado preto. é uma selvagem e não vai à igreja.
Até ali nada de novo para mim.
- E depois?
- A irmã, Roberta, casou com um homem mau, muito mau! Eles fazem coisas! Não lhe digo o que é, mas às vezes
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ouço-os falar. Como sou criada julgam que não tenho ouvidos, ? mas Deus há-de castigá-los.
Olhei para Ruby pensando se Roberta e Ross teriam alguma vez tentado recrutá-la para as suas filmagens. Era difícil de acreditar, mas com pessoas tão doidas como os Minchens tudo era possível. Se soubesse que incluíam no elenco uma girafa e um cocker spaniel não ficaria nada surpreendida.
- isso é terrível, Ruby - respondi, tentando mostrar-me
chocada. - É um horror pensar que fazem coisas dessas.
Oh, sim - concordou Ruby. - Mas é verdade.
Acha que Mister e Mistress Havistock sabem disso?
Ruby pensou um momento.
A respeito de Natalie - disse finalmente -, sabem.
Acerca de Roberta e do marido creio que não, só desconfiam, ouviram coisas. Mas como pode uma pessoa repelir os filhos?
- Não se pode - disse eu.
- Não, não se pode, por isso é preciso sofrer e esperar que eventualmente eles vejam a Luz de Deus, que faz a glória dos nossos dias.
- E Luther e a mulher, Ruby? Portam-se bem?
- Essa mulher! - exclamou Ruby. - É um demónio. Gosta de se exibir, sabe? Tenta os homens, levando-os a pecar. Nada de bom pode partir dela, vendeu a alma.
- Ouvi dizer que, em tempos, se atirou ao marido de Roberta e que Mister Havistock teve de intervir. É verdade?
Ruby Querita disse que sim, com uma expressão sombria.
- é verdade, e faz o mesmo com os amigos da família e com todos os homens. Gosta de mostrar o seu poder diabólico. Há-de arder no inferno!
Comecei a sentir-me um pouco assustada, aquele género de mania religiosa intimidava-me. Se levássemos tal ideia às últimas consequências, poderíamos até ser tentados a livrar o mundo dos diabólicos, matando-os. Era Deus que assim o queria, não era?
- E Luther não é capaz de controlar a mulher? Fazer com que ela não proceda assim?
- Luther não é um homem - declarou desdenhosamente Ruby. - É um escravo.
- De quê?
Ruby levou uma mão aos seios chatos, por baixo do vestido preto, e a outra escondeu-a debaixo da mesa, dando-me a impressão de que estava a tocar no sexo. O gesto era inegavelmente
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grosseiro, mas não havia engano quanto ao seu significado.
- É um homem possesso, e ainda há mais coisas - acrescentou, fitando-me nos olhos. - Mas são tão más que não lhas revelarei.
E, apesar de eu lhe pedir, nada mais me disse. Saí, sentindo que precisava de respirar o ar pesado da rua para me libertar dos fumos opressivos que suportara dentro do apartamento dos Havistocks. Que estranha tribo aquela!
Confessei a mim própria que, além de ter ficado a saber que Orson Vanwinkle recebia oitocentos dólares por semana, nada mais era novidade para mim. O que Ruby Querita me dissera já eu sabia, ou adivinhara, mas o fanatismo emprestava às suas revelações um peso assustador. Afastei-me depressa da mansão dos Havistocks antes que caísse um raio que os destruísse a todos. Aquela mulher apavorava-me.
Pensei no que saberia ela de tão mau que não me dizia e depois decidi o que havia de fazer a seguir. Encontrei uma cabina telefónica a funcionar (já era a terceira que tentava) e liguei para Hobart Juliana, que, felizmente, estava.
- Como vais, Hobie? - perguntei jovialmente.
- Muito mal. Estou para aqui sozinho e ansioso por ter companhia. A tua companhia. Quando voltas ao trabalho?
- Em breve, espero. Hobie, estou perto e gostaria de te ver, mas receio ir aí com medo de que a madame me peça um relatório sobre as minhas investigações. Não poderás sair por um bocado? Ofereço-te uma bebida no Bedlington Bar. Está bem?
- vou já pôr-me a caminho - declarou Hobie, cheio de satisfação.
Foi tão bom vê-lo outra vez! Hobie era, na verdade, uma pessoa muito simpática. Sentámo-nos no bar tranquilo, silencioso (além de nós só havia outro cliente), e ele pôs-me a par das últimas tagarelices do escritório. Corriam rumores de que Felicia Dodat usava espartilho e de que Stanton Grandby tomava pílulas para a flatulência. Fascinante.
- E tu, Dunk? - perguntou Hobie, quase com o nariz em cima do meu, na obscuridade. - Tens avançado mais alguma coisa no caso do Demaretion?
- Creio que sim, julgo que estou a chegar a uma conclusão, mas têm sido precisas muitas investigações. Hobie, já me ajudaste tanto que me custa pedir-te outro favor.
- Diz. Para que servem os amigos?
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- Gostas de intrigas? - perguntei.
Se gosto? Adoro!
Bem, trata-se de Vanessa Havistock, que é casada com
Luther, filho de Archibald. Tem um corpo absolutamente divino e não se importa de o mostrar.
Não me faz qualquer diferença - respondeu Hobie, sorrindo.
- Bem sei, estou apenas a tentar descrevê-la. Creio que engana o marido. Dizem que se oferece a todos os homens, mas podem ser más-línguas. Ela é bonita e as pessoas têm inveja
dela.
Talvez - respondeu Hobie -, mas geralmente não há
fumo sem fogo.
Do que eu gostaria - prossegui - era de ter a certeza da
verdade. Ela compra as roupas numa boutique italiana em Madison, a Vecchio. Conheces?
- Terrivelmente cara.
- É essa. Penso que talvez o gerente, um tipo chamado Carlo, possa estar envolvido com ela de certa maneira. Percebes?
- Creio que sim.
- És bom actor, Hobie?
- bom? O palco perdeu uma grande estrela quando decidi dedicar a minha vida aos selos. Que queres que eu faça?
- Que lhe telefones, o número dela está na lista, e lhe digas que és de Wilkes-Barre, ou de Walla-Walla, ou de qualquer outro sítio. Encontras-te na cidade em negócios, sentes-te solitário e gostarias de ir jantar com uma linda mulher. Diz-lhe também que foi Carlo, da Vecchio, quem te sugeriu que lhe telefonasses.
- Oh, meu Deus! - exclamou Hobie. - Isso é bonito! Dunk, tu és uma rapariga mazinha, muito mazinha!
- Bem sei, mas quero saber qual é a reacção dela. Se desligar o telefone, é uma resposta; se se mostrar interessada é outra.
- vou já telefonar-lhe - disse Hobie. - Há um telefone no vestíbulo.
- Ela pode não estar em casa - avisei.
- Se não conseguir agora tentarei então mais tarde - disse Hobie, levantando-se.
Tinha uma maneira de andar que fazia lembrar John Wayne,
mas nunca me apercebi se era natural ou se estava a imitá-lo.
Depois de Hobie ir telefonar, fiquei a pensar se devia ter-lhe
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contado que em tempos Vanessa fora presa por vadiagem e suposta prostituição, mas concluí que o teste seria mais genuíno se ele nada soubesse do registo policial dela.
Hobie voltou em menos de cinco minutos, esvaziou o seu uísque e fez sinal ao empregado do bar para lhe servir outro.
- Ela estava? - perguntei.
- Estava e é culpada como o diabo. Disse-lhe que me chamava Ralph Forbes (é o nome do homem que vive comigo), que era de Tulsa e que me encontrava na cidade por causa de uma convenção de banqueiros. Carlo, da Vecchio, sugerira que eu lhe telefonasse. Poderia ela ir jantar comigo ao Lutèce e depois passar a noite em qualquer sítio? Cabarets, discotecas, bares - o que mais lhe agradasse. Se Vanessa fosse inocente ter-me-ia mandado passear e desligaria imediatamente, mas não, quase podia ouvi-la espetar as orelhas, Dunk.
- Ela concordou? - perguntei ansiosamente.
- Claro que não - respondeu Hobie. - É demasiado esperta para isso. Falou-me em ter de cancelar planos prévios e afirmou que me telefonaria mais tarde. O que vai fazer, claro, é perguntar a Carlo se deu o nome dela a um tal Raph Forbes, de Tulsa.
- Quando disse que te telefonava mais tarde que número deste?
- O daquele donde estava a falar, claro. Qual havia de ser? Inclinei-me para lhe dar um beijo na cara.
- És um génio, Hobie. Achas que, se Carlo confirmasse, ela te telefonaria?
- Tenho a certeza, aquela mulher é fogo. Não é do género daquelas a quem se paga antecipadamente, mas sim uma com quem se sai e depois se diz: "Oh, querida, fizeste-me tão feliz! Gostava de te comprar uma lembrança, mas, como não sei os teus gostos e medidas, dou-te o dinheiro para tu própria escolheres a que mais te agradar e que melhor sirva para te recordar que fui eu quem ta ofereci." Ela protestará e acabará por concordar. Uma quantidade de mulheres são assim, e mais homens do que imaginas; eu próprio já o fiz. Dá-nos uma certa noção de estima por nós mesmos, é melhor que encontrar o dinheiro em cima da mesa depois de o tipo se ter ido embora.
- Oh, Hobie - disse, apertando-lhe um braço -, foste uma grande ajuda. Quando tudo estiver acabado não deixarei de te oferecer o melhor jantar que já comeste, no Four Seasons.
Hobie pegou-me na mão e beijou-me os dedos.
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o jantar não é assim tão importante para mim, o que quero
é a tua companhia no escritório. Isso é que me tornará feliz.
Olhámos um para o outro com ternura e tristeza.
É um mundo louco, não é? - observou Hobie.
pois é - respondi.
Quando saímos do Bedlington o ar refrescara, e achei que podia ir a pé para casa sem receio de cair asfixiada aos pés da estátua de Daniel Webster. A longa caminhada deu-me tempo para pensar, sobretudo, em Vanessa Havistock.
A maneira como ela vivia parecia-me inexplicável. Casada Com um homem bem empregado, com um apartamento em park Avenue e uma casa de Verão, uns sogros ricos...
Então para que fazer aquele jogo sujo? Talvez a pergunta encerrasse a resposta: ela comprazia-se com esse jogo. A sua sexualidade estridente definia a personagem que gostava de desempenhar, como tinha um corpo sensual, usava-o como uma máscara.
Julgava começar a perceber. Aquilo tinha pouco a ver com o desaparecimento do Demaretion, mas eu queria entender as pessoas envolvidas no caso. Al Georgio dissera-me que Vanessa se chamava realmente Pearl Measley e que viera da Carolina do Sul, e podia tirar muita coisa desses dois factores: era uma rapariga de uma cidade pequena à deriva numa grande cidade, sem ter nada para vender a não ser a si própria.
Depois, talvez com recordações de uma infância pobre, ela começa a desejar coisas: jóias, vestidos de noite, quadros, carro, um apartamento elegante e uma bela casa de Verão - tudo panóplias da riqueza -, mas nunca se esquece donde tudo isso vem - é produto da lascívia.
Era assim que eu a via: não tanto uma mulher ávida por dinheiro, como uma mulher aterrorizada pela pobreza e por sentir a falta de estatuto social. Faria tudo, com certeza, para manter a vida que agora tinha - duramente conquistada na sua batalha contra o mundo. Vencera Pearl Measley - era agora Vanessa Havistock e precisava de não o esquecer.
Quando cheguei a casa, suada e com as pernas doridas da caminhada, tirei o correio da caixa e dei precisamente com uma carta de Vanessa. Era um convite para um jantar informal na terça-feira à noite. "Vista o que quiser - ou coisa nenhuma!", acrescentara à mão.
Não deixaria de ir por nada deste mundo.
Tomei um duche, lavei a cabeça e vesti uma enorme camisa
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de caqui que comprara muitos anos antes numa loja de excedentes do exército, na Rua Quarenta e Dois. Fora lavada e passada tantas vezes que parecia seda e era tão grande que podia vesti-la sem mais nada, pois parecia um albornoz. Andei descalça pela casa, apenas com a camisa vestida, sentindo-me deliciosamente depravada.
Mal começara a tomar notas no meu livro de apontamentos quando o telefone tocou. Era Jack Smack e parecia ligeiramente irritado.
- Onde diabo esteve, Dunk? - perguntou. - Tenho estado a telefonar-lhe todo o dia.
- Fui almoçar com Hizzoner - respondi - e a seguir desloquei-me à Reserva Federal para resolver uma disputa sobre taxas de juros.
Jack riu.
- Está bem. Mereci isso. Como vão as coisas com o Demaretion?
- Como dizem os polícias: zero.
- Da minha parte também e não vejo solução para o caso. Talvez seja melhor a minha companhia pagar, não acha?
- Não sei - repliquei, decidida a não dizer nada sem me revelarem algo em troca.
- Descobri uma coisa interessante. Luther Havistock anda a consultar um psiquiatra três vezes por semana.
- Sim - murmurei lentamente. - Isso é interessante. Creio que o pobre homem precisa disso, mas deve ser muito dispendioso.
- Talvez o pai pague as contas - sugeriu Jack, fazendo depois uma pequena pausa à espera da contrapartida.
- Talvez fosse por isso que Archibald Havistock precisasse de dinheiro. Há cinco anos que vende moedas da sua colecção. Sabia?
Silêncio. Depois...
- Não, não sabia - respondeu Jack. - Tem a certeza?
- Tenho.
- Sabe qual foi a totalidade das vendas?
- Não, não sei - retorqui, surpreendida por saber mentir com tanta facilidade.
- Talvez eu vá investigar isso - murmurou pensativamente Jack. - Mas já chega de falar de negócios. Que diz a jantarmos juntos amanhã?
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Acho boa ideia - repliquei -, mas não posso. vou a
uma festa.
pode levar-me?
Acho que é melhor não.
Ah, sim? - observou sem rancor. - Bem, ouça: se a
festa se tornar uma maçada, telefone-me. Ficarei em casa toda a noite.
Está bem. Farei isso.
- Porei uma luz à janela - disse alegremente Jack. - Gostaria realmente de a ver, Dunk.
Tentarei ir ter consigo. De qualquer modo, telefono-lhe.
Você é um amor. Já lhe disse isto?
- Não, e já era altura de o fazer.
Jack emitiu o som de um beijo ao telefone e desligou. Um louco, mas um louco simpático.
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Que festa aquela! Exactamente como eu imaginava que seriam as requintadas soirées em Manhattan, quando ainda me encontrava em Dês Moines a jogar basquetebol. Mulheres elegantemente vestidas, homens simpáticos, champanhe, comidas exóticas. Toda a gente a dizer coisas inteligentes. Não faltava nada.
Então porque não me sentiria entusiasmada? Porque havia algo de muito forçado em toda aquela gente. Se era certo que Vanessa Havistock representava um papel, a verdade é que os seus convidados o faziam igualmente. Todos se mostravam alegres, descontraídos, tentando dizer graças e fazendo o possível por menosprezar os outros. "Não me diga que ainda está a comer frutos kiwi!"
Sei o que o meu pai teria dito acerca de toda aquela gente: "Mais dólares do que senso!"
Sofri o primeiro choque quando vi Roberta e Ross Minchen junto do bar, sorrindo e conversando animadamente com alguém que se aproximara deles. Estavam sem dúvida a tentar contratar mais alguém para as suas filmagens, pensei.
A presença deles surpreendeu-me, já que, depois da troca de amabilidades entre Vanessa e Roberta, na Russian Tea Room, julguei que não quisessem voltar a ver-se e muito menos em festas. Mas ali estavam, aparentemente sem rancor e bem-dispostos.
Olhei à minha volta para ver se descobria o dono ou a dona da casa e vi Vanessa a falar, com ar sério, imaginam com quem? com Carlo, da Vecchio. Esse Adónis tinha, como sempre, um ar esplêndido, que o jaquetão de veludo vermelho-escuro, a camisa com folhos e o laço de lamé, mais realçava. Era pena ser uma pessoa de um aspecto duvidoso.
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Depois descobri Luther, sozinho a um canto, tendo na mão um copo tão grande que parecia um balde de gelo. Abri caminho por entre a multidão, sorrindo para todos aqueles desconhecidos, mas ninguém parecia ligar-me importância. Finalmente, parei em frente de Luther.
Boa-noite - disse jovialmente.
Ele fitou-me, tentando recordar-se de mim.
Boa-noite. - Depois: - Oh, é Miss Bateman.
- Bateson.
Bateson, sim, desculpe. Está a divertir-se?
- Acabo de chegar, mas parece-me uma festa encantadora.
- Sim? - inquiriu, olhando à sua volta com um olhar apagado. - Não conheço nenhuma destas pessoas...
- Claro que sim. Pelo menos a sua irmã e o marido.
- Oh, esses não contam. Mas os outros... Vêm aqui, bebem o meu uísque, comem até ficarem agoniados, roubam os cinzeiros - quem são eles? Os chamados amigos de Vanessa?
- Certamente conhece alguns deles.
- Não quero conhecer, são umas sanguessugas. É o que estou farto de dizer a Vanessa, mas ela não me ouve. Pensa que são as pessoas da sociedade, e não passam de uns vândalos que me invadem a casa e gastam o meu dinheiro.
Soltou uma pequena gargalhada aguda e estendeu-me o copo.
- Faz-me um favor? Vá ao bar e encha-me isso. Não quero falar aos Munchens.
- Minchens.
- Eu chamo-lhes Munchens (comilões) - replicou Luther, soltando nova gargalhada frenética.
Estava ainda mais pálido do que da última vez em que eu o vira, mas, como as mãos ainda não lhe tremiam, pensei que começara a beber há pouco tempo. Peguei no copo.
- Que quer? - perguntei.
- Gim.
- Gim com quê?
- Só gim, mas verifique se é de noventa e quatro graus. Não tem ainda uma bebida?
- Não, mas vou arranjar qualquer coisa para mim.
- Experimente o champanhe - aconselhou Luther. - é bom, e custou um dinheirão - acrescentou.
No bar, onde trabalhava uma espécie de anão vestido de palhaço, fui cumprimentada por Roberta e Ross com uma alegria
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efusiva. Insistiram em beijar-me - o que me pareceu desnecessário - e começámos a falar sobre coisas sem importância. Finalmente, consegui afastar-me deles com a minha taça de champanhe e com o copo cheio de gim para Luther.
Uma das vantagens de se ser alta é poder ver o que se passa por cima das cabeças das outras pessoas e assim descobri Vanessa no seu papel de dona de casa, conversando, sorrindo, dando palmadinhas ou abraços. Reparei que estava corada de excitação. Prendera o cabelo negro num carrapito, seguro por dois pauzinhos de marfim, e a maquilhagem fora certamente feita por um profissional. Trazia o vestido preto que comprara na Vecchio e mostrava-se absolutamente deslumbrante.
Eu vestira a minha blusa branca de poeta e uma saia de brocado que me faziam parecer uma otomana. O meu cabelo, como habitualmente, mostrava-se despenteado, como se eu tivesse acabado de sair de um túnel.
Entreguei a bebida a Luther.
- Aqui tem. Um gim duplo on the rocks.
- Muito obrigado. Acha que eu devia suicidar-me?
- Penso que não - respondi. - Porque havia de o fazer?
- Oh, não sei - respondeu vagamente. - Gostaria de fazer qualquer coisa.
Bebeu um grande gole da sua bebida e parte dele escorreu-lhe pelo queixo. Limpou-o com as costas da mão.
- Gosto de si - declarou abruptamente.
- Obrigada - respondi. - Eu também gosto de si.
- Gosta? - interrogou, surpreendido. - Isso é estranho.
- Estranho? Porquê?
- Ninguém gosta de mim.
- Então - respondi, sentindo-me enervada com aquela conversa louca. - A sua mulher, os seus pais, as suas irmãs, os seus amigos - uma quantidade de gente gosta de si.
Luther fitou-me com olhos de mocho.
- Não creio, penso que apenas me suportam, tal como eu me suporto a mim mesmo. É verdade - prosseguiu, mostrando-se subitamente mais animado -, você anda à procura da moeda, certo?
- Certo.
- Já a encontrou?
- Ainda não. Tem ideia de quem a poderá ter?
- Talvez Vanessa. Ela tem tudo. Achei que aquilo era do gim e disse:
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A sua mulher é muito bonita.
Claro que é, até à meia-noite. Depois transforma-se num
sapo- Bem. Acho que vou esperar até à meia-noite para ver isso.
- Vai ver - respondeu ele solenemente. - Vai ver. Tentei mudar de assunto.
Os seus pais não estão aqui esta noite.
- Raramente saem à noite. Ficam em casa, a pensar sentados, a olharem um para o outro.
Não podia continuar com aquele diálogo, estava a tornar-se demasiado desagradável.
- Creio que vou procurar a sua mulher - disse eu - para lhe apresentar os meus respeitos.
- Você respeita-a? - perguntou malevolamente. - Isso é uma novidade.
Toquei-lhe no braço, sorri e afastei-me. O tipo não estava bom da cabeça. Vanessa deu-me um grande abraço. Cheirava divinamente.
- Ainda bem que pôde vir, Dunk - murmurou. - Está a divertir-se?
- Imenso.
- É agradável, não é? - observou ela, olhando à sua volta. - Não se esqueça de comer. O bufete está na outra sala. Experimente o caviar com o salmão fumado, é excelente. E a propósito: já sabe que fez uma conquista?
- Fiz?
- Carlo andava à sua procura. Lembra-se do Carlo? Da Vecchio? O pobre rapaz parecia todo interessado. Queria falar consigo, mas você estava a conversar com Luther. De que falaram durante tanto tempo?
Nada lhe escapava.
- Gracejámos apenas. O seu marido tem grande sentido de humor.
- Tem? - perguntou duvidosamente. - Nunca dei por isso. Dunk, eu tenho de circular e fazer o meu papel de dona de casa. Prometa ser simpática para Carlo.
- Claro que sim.
Ela inclinou-se para mim e murmurou:
- Creio que ele se deixou mesmo prender.
Depois soltou uma gargalhada e afastou-se para ir ao encontro de uns convidados que chegavam nessa altura. Passei por entre a multidão para me dirigir à casa de jantar e inspeccionar
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o bufete. Era majestoso, presidido por um chefe com um barrete branco e tendo na mão um garfo e uma faca de trinchar.
O prato forte era um assado de vaca fumegante, com um aspecto delicioso e rodeado por milhões de calorias de todos os géneros dispostas nas travessas laterais: vegetais frios e frutos, aperitivos de todas as qualidades, lindas sobremesas e um gelado em forma de escultura, que representava Leda e o cisne. O que o cisne estava a fazer a Leda não o quero eu dizer.
O chefe, um negro idoso que sabia trinchar como um cirurgião, preparou-me um prato com bocadinhos de quase tudo, mas equilibrar aquilo, além dos talheres e de um guardanapo de linho engomado, querendo ao mesmo tempo manter a minha taça de champanhe direita, não era tarefa fácil. Procurava um sítio onde me sentar quando fui salva por Carlo, que apareceu junto de mim, rindo, e me aliviou das minhas deliciosas cargas. Conduziu-me para um foyer com paredes de espelho, onde havia uma pequena mesa com tampo de mármore, ladeada por duas cadeiras de ferro muito bonitas, mas extremamente desconfortáveis.
- Espere um bocadinho - ordenou. - Eu volto já.
E regressou segurando um prato com apenas um pouco de carne e vegetais frios. Trazia também, debaixo do braço, uma garrafa de champanhe por abrir.
- Pronto - exclamou, sentando-se à minha frente e tirando habilmente a rolha à garrafa de champanhe.
Voltou a encher a minha taça, fez o mesmo à dele e depois recostou-se, cruzando as pernas e tendo o cuidado de verificar se o vinco das calças ficava direito. Que dandy!
- Fiquei muito satisfeito por a encontrar aqui esta noite - começou, vendo-me comer. - Sinto-me feliz por ter oportunidade de lhe falar.
- Sim? - respondi, concentrando-me na comida. Vanessa tinha razão, o caviar como salmão era excelente.
- Mas é claro. No outro dia, no Vecchio, não podia falar. Não com a signora presente. Compreende.
Disse que sim com a cabeça, pouco certa de compreender.
- Sempre tive um fraco por mulheres altas - continuou Carlo, mostrando uns dentes brancos que pareciam chiclets. Uma paixão secreta.
Ri e Carlo mostrou-se ofendido.
- Duvida de mim? - perguntou.
- Claro que não. É que fiquei... embaraçada.
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- Isso é natural - retorquiu generosamente -, mas estou a falar verdade, Dunk. Posso chamar-lhe Dunk?
- Pode - retorqui. - Não come? A carne está deliciosa.
- Mais tarde - respondeu Carlo. - Penso que nós dois podíamos ser... sabe? Bons amigos. Muito bons amigos.
- Isso é bom, nunca se têm amigos a mais. Não é? Carlo ficou perplexo.
- Refiro-me a amigos especiais - dizia speciale.
Tinha uma almôndega no garfo e ia levá-la à boca, mas parei a olhá-lo. Não duvidava nem um minuto de que fora Vanessa quem o encarregara daquele sednetio ad absurdum - mas porquê?
Carlo bebeu um gole de champanhe e olhou-me por cima do copo com os olhos muito abertos. Era realmente um bom actor, fazia-me lembrar Rudolfo Valentino, na tenda, com os olhos a brilharem de desejo.
- Poderemos ver-nos mais vezes, Dunk? - sussurrou.
- Se você quiser. Porque não? Mas deve ser difícil. Ando muito ocupada.
- Ah, sim. Você é detective, não é?
- Amadora. De facto, percebo pouco disso.
Carlo cortou minuciosamente a carne que tinha no prato em pedacinhos do tamanho de selos. Possuía bonitas mãos, de unhas manicuradas, claro. As de Al Georgio estavam roídas.
- Gostaria de ser detective - declarou Carlo, mantendo a minha taça de champanhe cheia.
- Outra paixão secreta? - perguntei.
Olhou-me para ver se eu o estava a gozar, mas mantive uma expressão séria e interessada.
- Sim - afirmou -, outro sonho. Usaria uma elegante trincheira inglesa, claro, e um Borsalino preto com a aba descida. Muito ameaçador.
Rimos ambos e eu pensei que afinal de contas ele não era tão pateta como parecia.
- Diga-me uma coisa - murmurou inclinando-se sobre a mesa para espetar com o garfo uma das ostras fumadas que eu tinha no prato. - Como trabalha um detective? Faz perguntas a uns e a outros e tenta apanhar as pessoas a mentir, é assim?
- é mais ou menos isso. Recolhem-se todas as informações possíveis.
- Mas como pode lembrar-se depois de tudo? - insistiu.
- O que as pessoas disseram, o que fizeram. Guarda tudo aqui? - E bateu com o indicador na testa.
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- Ninguém tem uma memória tão boa. Os detectives profissionais preenchem relatórios, eu possuo um livro de apontamentos, para ter a certeza de que não me esqueço de coisa alguma. Escrevo lá tudo.
- Ahh! - disse tristemente Carlo -, então não posso ser detective. A minha mãe, na Toscânia, queixa-se amargamente. Porque não me escreves?, pergunta. Mas é que eu estou muito ocupado com outras coisas.
- Podia arranjar tempo para lhe escrever. Carlo encolheu os ombros.
- Umas pessoas escrevem, outras vivem. Dunk, vi um tiramisu no bufete. É feito com maçapão, uma sobremesa de sonho. Já provou.
- Não, não provei. É bom?
- Delizioso - respondeu Carlo, beijando as pontas dos dedos. - Deixe-me ir buscar um bocado para nós.
- Sim, mas muito pouco para mim - pedi. - Estou cheia.
- Também para mim - disse ele, levantando-se e batendo no estômago liso. - Preciso de me manter em forma - acrescentou com um sorriso lascivo.
Estava enganada, era mesmo pateta.
O Tiramisu era celestial - mas tão doce! O champanhe seco ajudou e Carlo também, tornando-se muito divertido e contando histórias hilariantes a respeito de certas clientes que iam à Vecchio, incluindo a de um travesti que gastara uma fortuna em vestidos de cocktail enfeitados a sequins.
- Um corpo fantástico - contou Carlo. - Tudo silicon, claro, mas ele, ou ela, era bonita. - Vamos juntar-nos aos outros?
Levantei-me, pouco segura nas pernas, e Carlo segurou-me um braço.
- Sente-se bem? - perguntou.
- Óptima, foi do tiramisu.
- Claro que sim - disse ele. - Tem brandy. Eu não lhe disse?
Voltámos à sala, Carlo pediu desculpa para se afastar e nunca mais voltei a vê-lo. Que teria sucedido à sua paixão secreta? Procurei com o olhar Luther Havistock, mas não o vi em parte alguma. Os Minchens encontravam-se ainda junto do bar e Vanessa continuava de um lado para o outro, a falar com os convidados e a levar as pessoas para o bufete.
Fui procurar um telefone. Parecia haver um em cada sala, mas estavam todos a ser utilizados, com certeza por convidados
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que falavam para os seus amigos em Hong Kong, ou coisa assim. Finalmente, levada pela necessidade, entrei numa casa de banho, onde se me deparou também um, de elegante desenho. Liguei para Jack Smack três vezes porque tive de esperar que houvesse uma linha livre, e finalmente consegui a chamada.
- Olá, Dunk! - exclamou bem-humorado. - Boa festa?
- Não excepcional, mas boa. Champanhe e óptima comida. Estou um bocadinho desorientada.
- Um bocadinho desorientada - repetiu Jack, rindo. Quer dizer que está perdida de bêbeda.
- Não estou nada - respondi indignadamente. - E desminto essa... que é que eu desminto?
- A acusação? A insinuação?
- Sim - respondi, dizendo que sim com a cabeça para o telefone. - Desminto a insinuação. O seu convite continua de pé?
- Claro que sim. Quer que a vá buscar?
- Sou muito capaz - repliquei altivamente - de navegar sozinha.
- com certeza que sim. Promete apanhar um táxi?
- Prometo.
- E não falar com o motorista?
- Não posso dizer pelo menos boa-noite ao entrar e ao sair?
- Apenas isso e nada mais. Promete?
- Vá para o diabo - retorqui com uma gargalhada, desligando.
Apesar do meu estado nebuloso ainda me lembrei de que, como a minha querida mãe me ensinara, devia procurar a dona da casa para lhe agradecer o encantador serão. Entretanto e como aquele apartamento se transformara numa verdadeira casa de doidos - havia pessoas sentadas no chão, comendo dos pratos, alguns bêbados estendidos sobre os tapetes, dois pares a dançarem sem música que eu ouvisse -, decidi ir-me embora sem nada dizer. Resolvi também que, no dia seguinte, enviaria um bilhete de agradecimento a Vanessa.
À porta voltei-me e olhei a sala, para poder ver a multidão que a enchia. A um canto, perto do bar, descobri Vanessa, Roberta Minchen e Carlo, que falavam com ar sério. Não tagarelavam nem sorriam e subitamente tive a desagradável sensação de haver falado de mais com Carlo, o dandy falsamente apaixonado.
Seguindo as instruções de Jack, meti-me num táxi e dirigi-me para casa dele, calada e pensativa.
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- Preciso de um copo de água - pedi a Jack. - Imediatamente.
- Água? - admirou-se ele. - Que ideia.
Mas trouxe-me um jarro com água e uma caneca com cubos de gelo. Encheu-a, esperou que eu a esvaziasse e voltou a enchê-la.
- Sente-se melhor? - perguntou.
- Comi, bebi e falei de mais.
- Quem ofereceu essa festa?
- Vanessa Havistock.
- Oh, oh! E eu não fui convidado? Preciso de mudar de desodorizante. Soube alguma coisa?
- Sim, soube que Luther Havistock está a ficar maluco de todo. Posso descalçar os sapatos?
- Tire o que quer que a incomode - disse Jack. Reparei que ele trazia sandálias sem meias, calças claras e
uma camisa comprida, com as mangas dobradas e a fralda de fora, mas sempre elegante e natural. Carlo, ao pé dele, parecia um manequim. Jack movia-se, de facto, com a graça de um bailarino, isenta de qualquer afectação.
- Sei do que você precisa - disse Jack.
- Não esteja tão seguro de si - repliquei.
- Faça o que o papá lhe diz. Beba um cálice de conhaque. Engula muito, muito calmamente. Daqui a vinte minutos estará como nova, pronta para correr a maratona. Confie em mim.
- Nunca, mas vou experimentar o conhaque.
Jack tinha razão. O primeiro gole ardeu, mas depressa suavizou e eu comecei a voltar àquilo a que se costuma chamar, rindo, a normalidade.
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Como agiu Vanessa esta noite? - perguntou Jack. -
Atirou-se a todos os homens à vista?
- Portou-se muito bem. Se eu fosse homem, ficaria interessado.
Jack abanou a cabeça.
- É uma caçadora - disse. - Assusta-me. Falei duas vezes com ela e das duas, depois de me afastar, verifiquei se ainda tinha a carteira.
Eu ri.
- Não me diga que o grande Romeu tem medo de uma pobre mulher?
- Quem disse que ela era uma pobre mulher? É uma leoa, e este Romeu nunca aprendeu a trabalhar com uma cadeira e um chicote. Sucedeu mais alguma coisa na festa?
- Os Minchens estavam lá, o que me surpreendeu. Almocei uma vez com Vanessa e Roberta, que nessa altura revelaram grande hostilidade uma para com a outra. Julguei que fossem inimigas mortais, mas esta noite mostravam-se muito amigas. Talvez tivessem tomado parte no mesmo filme pornográfico.
- Dunk - murmurou Jack com ar confuso -, de que está a falar?
- Julguei que já lhe tinha contado. Se calhar disse só a Al Georgio, mas ele não deu grande importância ao caso. Posso dizer-lhe de que se trata.
Relatei-lhe então a história do meu serão com os Minchens, sem ocultar que eles haviam tentado recrutar-me para o seu círculo de amigos.
- Eles apareciam nos filmes? - perguntou Jack. - Não eram comerciais?
- Apareciam, sim - garanti. - Tratava-se de produções caseiras.
- Grandes porcos! - disse pensativamente Jack. - Quem os vê, parece que não partem um prato. Tenho um vídeo, mas nunca gravo filmes pornográficos. Jamais penso em sexo como espectador. Quer ver Música no Coração?
- Não, obrigado.
- Ainda bem. Não o tenho. E King Kong?
- Para que estamos a perder tempo a falar em videocassettes?
- Não sei bem, mas creio que tentava ser cavalheiro.
- Ainda há-de chegar esse dia - disse.
Jack era um amante espantoso. Voltou-me de baixo para
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cima e de dentro para fora. Depois de me ter beijado os seios eu disse-lhe:
- Agora case comigo.
Ele riu, com uma gargalhada sonora.
- He, você é branca, livre e tem vinte e um anos.
- Pelo menos. O que vem a seguir?
- Provavelmente eu - respondeu Jack, gemendo e voltando à função.
Que brincalhão me saíra aquele tipo! Além de ser amoroso, era divertido e um verdadeiro mestre. Sabia exactamente em que teclas devia tocar, e eu nem queria pensar como aprendera tudo aquilo.
Cobria-me dos pés à cabeça, com uma língua terrível e uma total falta de inibições, o que fez com que eu lhe correspondesse, é claro. É ou não verdade que quando nos encontramos num país estrangeiro, tentamos adoptar os costumes dos nativos? Já era preciso ter coragem para chamar animal a Vanessa! Aquele Fulano era um verdadeiro tigre.
Mais tarde, quando acabámos e o meu coração e as minhas pulsações abrandaram, fiquei razoavelmente certa de que não teria de ser admitida numa unidade de cuidados intensivos. Jack foi bastante inteligente para me envolver num abraço horizontal. Não lhe falhava nada.
- Diga-me agora o que pensa do Fundo Monetário Internacional.
Soltei uma gargalhada e bati-lhe num braço.
- Gostava de o poder detestar, mas não consigo.
- Porque havia de me detestar?
- Porque não é grande coisa.
- Isso é verdade - concordou -, mas também nunca afirmei que era um escuteiro. Sabe o que eu vou fazer agora?
- Tenho medo de perguntar.
- vou beber uma cerveja. Venho já.
Quando voltou, pôs a lata de cerveja fria sobre o meu estômago.
- Patife! - murmurei, ofegante.
- Dunk, disse que Luther Havistock estava completamente doido. Que queria significar com isso?
Jack era como Al Georgio, não podia esquecer o trabalho.
- Creio que existe nele um potencial de violência. Mostrava-se abatido, mas in vino veritas. Falou de maneira estranha, entre outras coisas aludiu ao suicídio e disse coisas desagradáveis a respeito da mulher. Não me pareceu muito equilibrado.
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- Creio que ele tem grandes preocupações, naturalmente por causa de dinheiro. Será por isso que se mete nos copos?
- Em parte, mas há mais do que isso. Vanessa levou-o para uma situação que ele não consegue aguentar.
- Sim, é também o que eu penso. Acha que ele tenha roubado o Demaretion?
- Não, não creio que o pobre homem seja capaz de decidir o que quer almoçar, quanto mais arquitectar um roubo inteligente. O tipo está à beira do colapso.
Jack olhou-me estranhamente.
- É uma rapariga esperta, Dunk, e tenho de lhe pedir desculpa. Quando a conheci, pensei que fosse apenas mais uma cara bonita, agora sei que não é assim. Você tem miolos.
- Por isso me atraiu para esta cama louca?
- Não - respondeu Jack, rindo. - Isso não teve nada a ver com o seu cérebro. Foi por causa do seu umbigo.
- Do meu quê?
- É um pouco saído - explicou. - Há anos que não via nenhum assim.
- Posso beber um gole dessa cerveja? - perguntei.
- Só um golinho - respondeu Jack, levando-me a lata aos lábios. Bebi um pouco e então ele deixou cair umas gotas sobre o meu peito e lambeu-as.
- Hummm - murmurou.
- Por falar de miolos - disse eu. - Você, se os tivesse, seria perigoso, Jack.
- Sucede que sou um intelectual de gabinete - respondeu ele -, mas há tempo para tudo. Dunk, detesto fazer-lhe esta confissão vergonhosa, mas acho que você é uma pessoa muito simpática.
- Eu também sou capaz de o suportar - respondi. - Jack, faça-me um favor.
- Se puder.
- Esqueci-me se foi você ou Al quem mo disse, mas não ignoro que Ross Minchen tem levantado grandes quantias da sua conta bancária, no decorrer dos últimos anos. Poderá saber como ele as gasta?
- Isso é muito difícil. Se passasse um cheque a alguém talvez eu ainda o pudesse fazer, mas, se levanta o dinheiro, é praticamente impossível determinar o que faz dele. No entanto, vou tentar. Porquê essa pergunta?
- Porque o dinheiro parece ser a única constante de todo o
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mistério, desde o roubo do Demaretion até aos assassínios de Orson Vanwinkle e de Dolly LeBaron. Claro que parecem estar envolvidas no caso fortes paixões humanas, mas o dinheiro deve ser o motivo.
- Falando de paixões humanas - disse Jack, olhando-me
- Sim?
- Tenho uma forte paixão humana.
- Que coincidência! - exclamei.
Foi um êxtase. Ele ensinou-me muito e, com toda a modéstia, creio que, pelo meu lado, também improvisei um pouco. Foi tudo tão despreocupado e delicioso! Divertimento e prazer
- suponho que lhe chamariam assim -, mas a mim parecia-me que existia algo mais do que isso, que havia uma espécie de primitivismo selvagem, alegre e infantil. Em vez de nos encontrarmos naquelas águas-furtadas em Sono, podíamos estar na selva ou numa ilha deserta, ou seja, quero dizer que nos comportávamos como se fôssemos as últimas pessoas da Terra.
Perdi todo o sentido do tempo. Lembro-me de que, a determinada altura da madrugada, Jack despertou o suficiente para dizer:
- Não sou capaz de me levantar e de a ir levar a casa.
- E eu também não posso ir - respondi sonolentamente.
- Até ao pequeno-almoço - disse Jack, voltando a adormecer instantaneamente.
De manhã tomámos duche juntos - e foram risadas constantes. Depois Jack vestiu um roupão turco e eu enfiei a camisa dele com as mangas enroladas. Descongelámos alguns croissants, comemo-los com marmelada de lima e bebemos muito café, café forte, puro - não a mistura instantânea, sem cafeína. Não falámos muito, olhávamos um para o outro e sorríamos.
Eram quase oito horas quando conseguimos sacudir a nossa lassidão e vestir-nos. Depois, Jack conduziu-me a casa no seu Jaguar, estacionando em frente do prédio.
- Que posso dizer depois de afirmar que lamento?
- Lamenta o quê? - perguntei.
Jack agarrou-me na cara e beijou-me os lábios.
- Não lamento coisa alguma.
- Sou da mesma opinião - retorqui, saindo do carro. Depois voltei-me:
- Jack, sempre vai investigar a questão do dinheiro que Ross Minchen levantou do banco?
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com certeza.
É um amor.
- Serei a última pessoa a negá-lo - replicou Jack, piscando-me um olho e partindo com um ranger de pneus.
Eu tinha duas fechaduras no meu apartamento, e mais uma interior, com correntes. A de baixo possuía um espigão e a de cima um ferrolho. Nunca, mas nunca, deixava o apartamento sem fechar esse ferrolho com o espigão. Era um hábito e eu procedia sempre da mesma maneira, mesmo que saísse por poucos momentos, só para ir à esquina comprar o jornal, ou pôr uma carta no marco do correio.
Agora, ao meter as chaves nas fechaduras, descobri que o ferrolho não estava corrido e que a outra fechadura tinha apenas uma volta. Fiquei paralisada a olhar, incapaz de perceber por que fora tão descuidada. Inclinei-me depois para examinar as fechaduras e a porta, mas não havia ali qualquer arranhão ou amolgadela, nem o mais leve sinal de esta ter sido forçada. Lembrei-me do que Al Georgio dissera quando dos assassínios de Vanwinkle e de Dolly LeBaron: "Não havia sinais de entrada forçada."
Eu sabia muito bem o que devia fazer, pois a Polícia emitira bastantes avisos: "Se suspeitar de que há um intruso na sua casa, não entre. Chame a Polícia ou, pelo menos, peça a um vizinho corpulento que a acompanhe." Todas as mulheres que viviam sozinhas em Nova Iorque sabiam isso.
Contudo, receando que as fechaduras abertas fossem apenas o resultado da minha estupidez, abri a porta uns centímetros e disse:
- Olá! Como vai o cúmulo da estupidez?
Se estivesse um ladrão dentro de casa, esperava que ele respondesse, mas não, não obtive resposta. Apenas silêncio.
Entrei cautelosamente, voltei-me e fechei, tranquei e acorrentei a porta. Outro erro idiota: se houvesse alguém dentro de casa para que serviria trancar a porta? Devia tê-la deixado aberta, para o caso de ser necessário proceder a uma retirada rápida e histérica, mas não estava a pensar com clareza.
Percorri lentamente o apartamento, nada vendo de anormal, e depois fui examinar a porta das traseiras, que dava para o minúsculo jardim. Conservava-se fechada e com a corrente colocada. Espreitei pela janela e não descobri ninguém lá fora.
Dediquei-me então a abrir todos os armários, espreitei para debaixo da cama e fui ver ao chuveiro. Não havia ninguém.
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Parada no meio da sala, com as mãos nas ancas e olhando à minha volta, continuava a ter a sensação nítida de que alguém ali estivera.
A porta do móvel da sala estava ligeiramente entreaberta, isto não obstante ser meu hábito fechá-la sempre bem, por causa do pó, e, além disso, outros objectos não se encontravam na posição em que eu costumava deixá-los. E havia ainda qualquer coisa no ar, um odor leve, diferente, assinalando uma presença estranha. a almofada da minha cadeira de balouço fora igualmente remexida.
Contudo, o aparelho de televisão, os dois rádios, a caixinha com as minhas poucas jóias, e quase cem dólares em dinheiro que tinha na gaveta da mesa-de-cabeceira estavam no mesmo sítio. Então, dei uma palmada na testa, soltei uma exclamação, corri para a cozinha e passei revista ao armário por cima do lava-louças: o embrulho que Dolly LeBaron me entregara ainda lá estava, graças a Deus!
Voltei para a sala, deixei-me cair sobre o sofá e tentei reflectir. Tinha a certeza absoluta de que não estava a inventar coisa alguma, de que alguém estivera no meu apartamento - mas por que razão? com um suspiro, decidi deixar de pensar no assunto e resolvi ir apontar no meu bloco de notas as últimas ocorrências... mas claro que o livrinho desaparecera...
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Liguei para Al Georgio e, dessa vez, tive sorte: apanhei-o à primeira tentativa.
- Al, preciso de o ver imediatamente.
Ele deve ter percebido algo na minha voz, porque perguntou:
- Dunk, está bem?
- Estou, mas preciso de falar consigo.
Al não disse qualquer frase como "é importante?" ou "não pode esperar?", mas apenas:
- vou já para aí - e desligou. O homem era uma torre de força.
Eu não raciocinava ainda claramente, se tal se verificasse teria por certo tirado as roupas que vestira na véspera à noite - a blusa de poeta e a saia comprida de brocado - e vestido umas calças de ganga e uma T-shirt, mas não me ocorreu. Por isso, quando Al chegou, olhou-me da cabeça aos pés, e tenho a certeza de que percebeu que eu estivera fora toda a noite, ou não fosse ele detective. Contudo, não fez a mais pequena alusão ao meu traje.
- Está bem, Dunk? - perguntou ansiosamente.
- Creio que sim, não sei bem. Fiz agora café. Quer uma chávena?
- Agradeço, sim. Mas que lhe sucedeu? Parece transtornada.
Sentámo-nos na sala, a beber o café e eu contei-lhe o que se passara. Al levantou-se, foi à porta e examinou-a.
- Dunk - declarou -, estas fechaduras não valem nada. Eu conseguia entrar aqui com uma simples lima de unhas, um gancho de cabelo ou um cartão de crédito plastificado.
- Que hei-de fazer então? - perguntei desesperadamente.
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- Compre uma dessas fechaduras com grandes chapas de ferro e um ferrolho que vem de cima a baixo, cobrindo toda a porta. Mesmo assim não é seguro, mas é melhor do que isto. Diz que lhe tiraram apenas o seu livrinho de apontamentos?
- É verdade.
- O que tinha lá?
- Tudo - respondi desanimadamente -, tudo quanto fui sabendo acerca do roubo do Demaretion, incluindo as informações recolhidas sobre a família Havistock. Também lá escrevera o que sei acerca das mortes de Orson Vanwinkle e de Dolly LeBaron e aquilo que você e Jack Smack me contaram. Al, nesse livrinho achava-se condensado todo o meu trabalho desde que comecei a investigar o caso. Sinto-me completamente perdida sem ele.
- Não consegue lembrar-se do que escreveu?
- vou tentar. Creio que me recordo, mas era tanta coisa. Precisava dessas notas.
- Bem sei - disse com simpatia Al. - Eu releio vezes sem conta os meus relatórios, na esperança de descobrir neles qualquer coisa que me ajude a solucionar o mistério.
- Pode fazer alguma coisa? - perguntei esperançadamente.
- Como, por exemplo, mandar ver se o intruso deixou impressões digitais? Será pura perda de tempo. Quem levou o seu livrinho certamente usou luvas e não se demorou aqui mais de quinze minutos. Onde o guardava?
- Na gaveta de cima desse armário.
- Fechado à chave?
- Não.
Al suspirou.
- Foi-se, Dunk. E duvido de que volte a vê-lo. vou perguntar aos vizinhos se viram ou ouviram alguma coisa, é o melhor que posso fazer.
- Deixe isso - pedi. - Tem razão, Al. Desapareceu e pronto.
- Acha que foi a noite passada?
- Sim - respondi. - Eu não fiquei cá.
- Teve sorte. Foi melhor assim do que se estivesse a dormir quando aqui entraram. Quem sabia que tomava notas num livro de apontamentos?
Segurei a cabeça entre as mãos, tentando pensar.
- Contei a Enoch Wottle, o meu amigo do Arizona, mas ele
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não é suspeito. Falei nisso também a Archibald Havistock e ele, provavelmente, disse-o à mulher.
- Sim, à mesa, quando Natalie e Ruby Querita também o
podiam ter ouvido.
Concordei com um gesto desanimado.
- E ainda a um amigo de Vanessa, a noite passada. Por isso ela pode ter sabido da existência do livrinho. E Luther, e os Minchens.
- Valha-a Deus, Dunk, porque não pôs um anúncio na primeira página de um jornal para toda a gente ficar a saber que estava a tomar notas sobre o roubo do Demaretion?
- Falei demasiado - concordei tristemente -, mas como imaginar que alguém estivesse interessado em roubá-lo?
- Foi obviamente quem se sentiu ameaçado pelas suas investigações e desejava saber com exactidão o que você sabia. Quem é esse amigo de Vanessa?
- É Carlo, o gerente de uma boutíque de Madison Avenue, onde Vanessa gasta balúrdios. - Depois decidi contar-lhe o resto. - Fui a uma festa que ela ofereceu a noite passada e foi aí que, talvez por ter ficado um pouco tonta, falei a respeito do livro de apontamentos. Só cheguei a casa de manhã cedo, por isso qualquer pessoa que estivesse na festa poderia aqui ter vindo tirar o livro.
Felizmente Al não me perguntou onde eu passara o resto da noite, mas talvez soubesse - ou calculasse. Acabou de beber o café e recostou-se no sofá.
- Não vale a pena pensar mais nisso, Dunk. É melhor tentar recordar-se do que escreveu e imaginar o que teria originado que alguém se arriscasse a entrar aqui para lhe levar o livro. Soube alguma coisa na festa?
Contei-lhe o que já confiara a Jack Smack a respeito de ter achado Luther num estado lamentoso - em minha opinião, muito perto da violência - e informei-o também de que os Minchens estavam presentes e aparentemente em muito boas relações com Vanessa.
- Não faço ideia do que isso possa significar - disse Al. E você?
- Eu também não - respondi, pois não estava ainda preparada para lhe falar da minha louca teoria.
De momento, não sentia também disposição para lhe confessar que guardava um embrulho misterioso que Dolly LeBaron
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me entregara, o qual se encontrava agora no meu armário da cozinha, por cima do lava-louças.
Ficámos sentados um bocado em silêncio. Al parecia não ter pressa de se ir embora - o que para mim era excelente. Depois daquilo que sucedera era bom ter um polícia forte ali em casa.
- Algo de novo nos Homicídios? - perguntei.
- O quê? - exclamou Al saindo do seu devaneio. - Não, nada de novo. Parecemos estar perante um muro de pedra. A não ser que tenhamos um inesperado golpe de sorte, possivelmente o caso vai ser arquivado.
- Não podem fazer isso - retorqui com ardor.
- Não? - perguntou Al com um sorriso amargo. - Sabe quantos assassínios já houve nesta cidade depois de Orson Vanwinkle e de Dolly LeBaron terem sido mortos? É uma questão de tempo e de homens, Dunk, não podemos trabalhar num caso durante meses ou anos. Além disso, o problema dessas mortes é com os tipos dos Homicídios, não é comigo, já me chega tentar descobrir quem roubou o Demaretion. Os meus chefes não estão exactamente satisfeitos com a maneira como eu tenho ou, melhor, não tenho dado seguimento ao assunto.
- Jack Smack também não conseguiu melhor - respondi. - Nem eu. A culpa não é sua, Al.
Al sorriu, com o seu sorriso lento e encantador.
- Obrigado pela sua lealdade, aprecio muito isso, Dunk. Falei com a Sally ao telefone a noite passada. Manda-lhe um beijinho.
- Um beijinho também para ela. Como está?
- Óptima. Tem tido boas notas na escola, e agora vai entrar numa peça, onde canta uma canção. Está excitadíssima com isso.
- Imagino.
- Gosta dela, Dunk?
- Gosto dela? Que pergunta! Gosto imenso. É uma garota encantadora.
- Sim, eu também acho. Só queria saber o que você sentia.
Depois ficou silencioso outra vez, sentado como um saco gigantesco, amarrotado como sempre. Do que Al precisava, pensei, era duma mulher meiga, que o animasse todas as manhãs e o mandasse para o trabalho com o fato bem passado e os sapatos bem engraxados, necessitava que o acarinhassem, e de saber que alguém se importava com ele. Começava a parecer um eremita, e não me parecia que apreciasse a solidão.
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Está a pensar nalguma coisa, Al? Acho-o estranhamente
silencioso.
Sim - murmurou inclinando-se para a frente, com os
cotovelos apoiados nos joelhos. - Estou a pensar numa coisa. Quer casar comigo, Dunk?
Eu supunha que se tratava de uma figura literária dizer que o queixo de alguém caíra de espanto, mas a verdade é que sentia o meu assim! Acabara de admitir que Al necessitava de uma mulher para dar significado à sua vida, mas que choque saber que fora eu a escolhida!
- Meu Deus, Al - murmurei. - Não está a falar a sério, com certeza!
- Nunca o fiz mais a sério na minha vida. Ouça-me, antes de se rir de mim.
- Eu nunca faria tal coisa, sabe-o bem.
- Bem, vou ser sincero. Há muito tempo que ando a pensar nisso, desde que a conheci e a trouxe a casa - lembra-se? Deixe-me dizer-lhe primeiro o que acho que a pode afastar. Como sabe, a minha mulher deixou-me, não podia aguentar as pressões da minha profissão. Está bem, posso compreender isso, mas se você casasse comigo essas pressões continuavam a existir. O trabalho está sempre em primeiro lugar: chegar tarde a casa, refeições tardias, às vezes um dia ou mesmo dois sem aparecer, apenas um telefonema. Não é exactamente uma vida de romance, até porque há sempre possibilidade de algum louco me fazer saltar os miolos. Uma possibilidade remota, mas real. Além disso, confesso, posso ser teimoso. A síndroma machista italiana, sabe? Tento controlá-la, mas às vezes aparece.
- Você fá-lo muito bem - disse eu.
- Faço? Bem, pelo menos tento. E depois há uma porção de pequenas coisas capazes de fazerem enlouquecer uma mulher. Por exemplo, talvez, por ser um bom cozinheiro, tenho tendência para criticar aquilo que me é servido às refeições, e também creio, além disso, que não sou muito arrumado. Estou a tentar dar-lhe uma ideia do que lhe poderá desagradar, Dunk.
Sorri e peguei-lhe na mão.
- Agora as coisas que penso não serem más: ganho bastante, não muito mas bastante, e talvez um dia venha a ser tenente, não é certo, apenas possível, e o ordenado será melhor; se a minha mulher voltar a casar, o que desejo que suceda, então deixarei de lhe dar a pensão alimentar; sou saudável,
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tenho peso a mais, mas sou saudável; sei de facto, cozinhar; e não me importo de ajudar no trabalho caseiro, se disponho de tempo. Mas o mais importante de tudo, Dunk, o realmente importante é que a amo. Se chegarmos a casar nunca a enganarei, nem sequer sonharia em fazê-lo, e estarei sempre consigo.
Era a minha primeira proposta de casamento e eu não sabia como recebê-la. Sentia-me tão confusa que achava que o melhor seria adiar, demorar a resposta, esperar até poder determinar os meus sentimentos. Mas Al, felizmente, tornou as coisas fáceis para mim.
- Ouça, não espero uma resposta imediata. Você é uma mulher que gosta de pensar e eu sei que há-de querer avaliar os prós e os contras. Leve o tempo que quiser. Se disser que não, não irei bater o pé e amuar, a decisão é sua; se disser que sim, serei o homem mais feliz de Nova Iorque. Contudo, não deixe que os meus sentimentos afectem a sua decisão, faça o que achar que é melhor para si.
Tive de o beijar. Al era tão honesto, tão recto, tão sólido, que nunca duvidei da sua integridade nem por um momento. Era exactamente o homem que parecia ser, não fingia, não representava. O que se via, era o que se tinha.
- Al - comecei -, em primeiro lugar quero agradecer-lhe ter pensado em mim para sua mulher. Foi a primeira vez que me pediram em casamento e é sempre uma ocasião grande para o ego de uma rapariga.
- Ouça - disse Al. - Se quiser fazer algumas perguntas, não receie formulá-las. Coisas como conta bancária, dívidas, religião. Responderei a tudo. Também acerca de filhos? Quer tê-los ou não? Serão coisas em que é preciso falar, se se resolver a dizer que sim, mas devemos pôr desde logo as cartas na mesa. Eu acho que é melhor assim.
- Concordo. Como você disse, Al, não lhe darei ainda uma resposta. Preciso de pensar bem no assunto.
- Não vai já dizer peremptoriamente que não?
- Não, não farei isso!
- Para mim já é bom - respondeu, levantando-se. E lembre-se do que eu lhe disse: faça o que achar que é melhor para si.
Beijámo-nos e eu abracei-o com força. Tentei não chorar. A primeira proposta de casamento recebida por uma mulher
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dificilmente é motivo de melancolia, mas creio que, se tal se me aplicava, era por naquele momento sentir uma grande ternura por ele.
Após Al sair, e depois de me ter aferrolhado, fui finalmente despir-me e vestir algo de mais confortável e informal. Enquanto fazia isso andava sonhadoramente de um lado para o outro, como uma sonâmbula. Pensava no pedido de Al e tentava imaginar como seria a minha vida como Mrs. Al Georgio, Mrs. Mary Lou Georgio, Mrs. Dunk Georgio.
Não conseguia ver-me claramente no papel de esposa. Imaginava facilmente Al como marido, exceptuando a sua profissão incómoda, pois tinha todos os atributos para ser um bom, sólido e fiel companheiro, e sabia que levaria a sério os votos do casamento, especialmente aquela parte "até que a morte nos separe".
Mas que espécie de esposa seria eu? Decidi, com um suspiro, que nunca o saberia até experimentar. Podia ter as melhores intenções do mundo, mas, muitas vezes, o acaso e as circunstâncias comprometem as mais sinceras intenções. Creio que, se na verdade, o casamento me assustava, era um grande passo no desconhecido. Quem poderia prever se seria uma bênção ou uma maldição? Eu não, com certeza.
Por isso releguei essa decisão para o fundo da minha mente, deixando-a assentar lentamente, e voltei a atenção para exigências mais prementes. Como iria substituir o meu livro de apontamentos? Saí e dirigi-me para uma papelaria que havia perto da minha casa. Escolhi ali um bloco-notas, de capa amarela, e passei também pelo supermercado para comprar seis latas de cerveja, pois tinha uma sede que ainda não se apaziguara.
De regresso a casa, enquanto bebia por uma das latas, fui escrevendo sucintamente tudo o que me ocorria daquilo que registara no livrinho desaparecido e acreditei, por fim, que o roubo do livro era, afinal, um bem disfarçado. Tenho a certeza de que esqueci uma porção de pormenores sem significado, mas deu-se aparentemente uma espécie de selecção mental de entre aquilo que eu recordei e logo anotei. O que eu estava a assentar agora eram os factos significativos, os quais me pareciam revelar uma lógica que antes não lhes descobrira.
A minha louca teoria não me pareceu afinal assim tão dementada, era afinal uma explicação racional e verificável de tudo quanto sucedera. Tinha em conta todos os acontecimentos e
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fornecia motivos e razões para a solução dos quebra-cabeças que nos atormentavam.
Fiquei até com uma boa ideia acerca do que poderia conter o embrulho que Dolly LeBaron me dera a guardar, e que ainda permanecia arrumado entre os pacotes de bolos e de arroz instantâneo, no armário da cozinha.
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- Lamento, querida Dunk - desculpou-se Enoch Wottle falando do Arizona -, mas o que consegui saber a respeito das finanças de Havistock ou nada é a mesma coisa.
- Não tem importância, Enoch - respondi. - Tentou e eu agradeço-lhe encarecidamente.
- Os comerciantes com quem falei tiveram contactos com ele talvez há uns quatro ou cinco anos e, nessa altura, a sua reputação era óptima, nunca tiveram qualquer problema. Por isso, não viram razão para investigar outra vez.
- Claro que não - concordei -, porque o fariam? Enoch, mais uma vez muito obrigada pela sua ajuda. Nada teria conseguido sem si.
- Conseguido o quê? - perguntou Enoch, sempre alerta. - Dunk, parece que já sabe alguma coisa.
- Sim? - respondi, pensando que a proposta de Al me havia dado confiança. - Ainda não tenho a certeza se é algo de decisivo, mas creio que estou no caminho certo para encontrar a solução do problema.
- E recuperará a moeda?
- Espero que sim.
- Também eu. Dir-me-á o que se passar?
- com certeza. Obrigada por ter telefonado.
Enoch não me dissera aquilo que eu queria ouvir, mas há muitas maneiras de matar coelhos.
Era quinta-feira de manhã e eu sentia-me cheia de vigor e de decisão, planeando como havia de passar um dia que acabaria, inevitavelmente, com o triunfo total de Dunk Bateson, mas as coisas não se passariam exactamente dessa maneira.
Tirei, do meu armário, uma velha mala de ir às compras, castanha com pegas, e enchi-a com livros, catálogos, um
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chapéu-de-chuva dobrável, uma capa de plástico metida numa bolsa, uma caixa de Alka-Seltzer e a chávena de café que costumava usar no escritório. Depois dirigi-me para Grandby & Sons parando numa casa de vinhos, a fim de comprar um presente para Hobart Juliana: uma garrafa de um uísque que ele adorava. Hobie ficou encantado quando entrei e radiante quando me viu começar a tirar as coisas da mala e arrumá-las na secretária e na estante.
- Mamã e Papá Kettle vão estar novamente juntos! - cantarolou.
Festejámos o meu regresso bebendo uma chávena de café e abrindo a garrafa que eu levara a Hobie para fazer um brinde.
- Tenho de telefonar a Felicia - disse eu. - Creio que é a primeira vez que vou mentir premeditadamente e com malícia.
- Bem-vinda ao mundo real - replicou Hobie, sorrindo. Liguei para a extensão de Felicia Dodat e esperei impacientemente que a secretária dela a pusesse em linha.
- Querida Dunk - gorjeou Felicia -, que agradável ouvi-la. Tem boas notícias para nós?
- Creio que sim. Encontro-me no meu gabinete e gostaria de falar consigo e com Mister Grandby, se fosse possível.
- Receio que não - respondeu ela. - Stanton não está. É o seu dia do squash e sauna.
A ideia do "deus" sentado nu numa sauna era mais do que eu podia suportar. Aquele pinguim reluzente!
- Trata-se de um relatório dos seus progressos, Dunk?
- Sim, mais ou menos isso - respondi.
- Então não há motivo para que não mo apresente a mim, e eu transmitirei tudo a Stanton logo que ele me fale.
- Não - disse com decisão. - Quero que ele esteja presente, e, se possível, também o advogado. Mister Lemuel...
- Whattsworth.
- Sim, gostaria de que ele assistisse. Pode arranjar isso?
- Bem - retorquiu Felicia, obviamente ofendida pelo meu tom peremptório. - Verei o que posso fazer. Quanto tempo se demorará aqui?
- Cerca de quinze minutos.
- vou tentar entrar em contacto consigo antes de sair. Se não, ligo-lhe para casa. É importante?
- Muito - respondi, desligando, satisfeita com a minha ousadia.
- De que se trata? - perguntou cuidadosamente Hobie.
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Preciso que me dêem umas informações - expliquei -,
mas, se os prevenisse do que pretendo, recusar-se-iam a atender-me. Assim, insinuei que lhes quero apresentar um relatório dos meus progressos nas investigações e eles vêm a correr, julgando que terão algum motivo para processarem Archibald Havistock.
- Dunk, estás a tornar-te muito matreira.
- Tenho aprendido. Bebemos outra chávena desse glorioso elixir?
- Tantas quantas quiseres - disse Hobie enchendo as chávenas de café. - É outra vez como nos velhos tempos.
Pusemos os pés em cima das nossas secretárias e erguemos as chávenas.
- Hobie, fazes-me mais um favor? É o último, juro.
- O último? Queres dizer que o caso vai finalmente deslindar-se?
- Creio que sim. Faz cruzes.
- Está bem. Qual é o favor que queres?
- É apenas uma opinião. Quando fizeste perguntas acerca das actividades de Orson Vanwinkle, ficaste com a ideia de que ele poderia ser um homem que se meteria... bem, como hei-de exprimir-me com delicadeza... no sexo em grupo?
- Bacanais, queres tu dizer? - explicou Hobie sorrindo. com certeza que sim, Dunk. Pelo que ouvi o homem era absolutamente maluco... ou, melhor, totalmente selvagem.
- Obrigada, Hobie - disse com gratidão. - Quando escrever um romance sobre este caso, tu terás um papel importante nele.
- Poderias referir-te a mim como Rodney em vez de Hobart? Sempre gostei do nome de Rodney. Hobart faz-me lembrar um souflé estragado.
Rimos e conversámos disto e daquilo. Havia-me já levantado e estava preparada para sair, quando o telefone tocou. Era Felicia, e informou-me que arranjara uma reunião com Stanton Grandby, Lemuel Whattsworth e consigo própria, claro, para as dez horas do dia seguinte, sexta-feira.
- Está bem? - concluiu.
- Tem de estar - respondi laconicamente, na minha nova atitude ofensiva.
Começava realmente a gostar de me impor.
- Até amanhã, Hobie. Voltarei carregando o meu escudo, ou empunhando-o.
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Ele lançou-me um olhar cheio de ternura.
- Adeus, Dunk, e boa sorte.
- A propósito, acho que Hobart é um nome perfeitamente maravilhoso - disse-lhe. - Experimenta chamar-te Dunk durante uns tempos e verás.
Fui para casa de táxi, tomada de uma excitação febril, porque sabia o que iria fazer a seguir. Logo que entrei, corri as persianas, fechei os cortinados - como uma idiota - e tirei o embrulho de Dolly LeBaron do armário onde o guardara.
Virei-o de todos os lados, examinando-o, sopesando-o, depois peguei numa tesoura e comecei a cortar a fita adesiva que o envolvia por completo. Finalmente, rasguei o papel castanho e apareceu uma caixa de sapatos, como eu suspeitava. Por fora estava escrito: "4-B, Vermelho."
Abri-a com cautela, como se desactivasse uma bomba, rezando mentalmente a Deus para que permitisse que eu tivesse acertado.
Dentro da caixa havia alguns papéis vermelhos. Tirei-os lenta e cuidadosamente, e depois agarrei no seu conteúdo: o segredo. Não sabia se havia de gritar de alegria, ou chorar de tristeza.
A minha hipótese estava correcta, mas não queria sequer pensar nisso, não queria ponderar, interrogar ou analisar. Era preciso acção e assim comecei a fazer telefonemas, levando quase meia hora para coordenar tudo, mas não deixando de me mostrar sempre insistente. Quando liguei para Jack Smack ele perguntou-me:
- É por causa das quantias que Ross Minchen levantou do banco, Dunk? Esqueça isso, o dinheiro desfez-se em fumo. Ou o gastou com mulheres ou nas corridas - quem sabe?
- Isso agora não é importante - repliquei impacientemente, e depois disse-lhe o que queria.
- Porque tem de ser em minha casa? - queixou-se. - Estou muito ocupado aqui no escritório.
- Tem de ser. Confie em mim. Às quinze horas.
- Está bem - retorquiu resignadamente. - Lá estarei. Al Georgio foi mais fácil.
- O que há, Dunk? - perguntou.
- Uma coisa interessante - respondi. - Algo que o vai ajudar a ser tenente.
- Sim? - disse ele. - Então, preciso de saber o que é. Está bem, dê-me a direcção.
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Por isso, por volta das quinze horas encontrávamo-nos todos em casa de Jack Smack, em Soho. Eu levava o embrulho que )olly LeBaron me entregara bem apertado contra mim, como se se tratasse dos planos para uma bomba atómica, o que, de certa maneira, não deixava de ser verdade.
Os dois homens olharam-me como se eu não estivesse boa da cabeça.
- Dunk, o que é isto? - resmungou Al. Não lhe respondi. Em vez disso, perguntei:
- Jack, você tem um vídeo, não tem?
Ele olhou-me, perplexo, mas, pelo menos, teve o bom senso de não dizer: "Bem sabe que tenho, até lhe disse se não queria ver o King Kong na noite que passou aqui comigo" - o que teria feito erguer as espessas sobrancelhas de Al -, limitando-se a responder:
- Sim, tenho um vídeo.
- Então passe esta videocassette para nós vermos, sim? pedi, desembrulhando o embrulho e entregando-lhe a cassette de Dolly.
Jack observou-a.
- O que é isto? Uma visita de crianças ao Jardim Zoológico de Central Park?
- Se for - respondi, tentando não rir, nem mostrar o meu nervosismo -, vou passar o resto da minha vida a limpar ovos da cara. Mas passe-a, está bem?
Jack deixou aquecer o aparelho, inseriu a cassette e recostámo-nos nas cadeiras. A gravação começou a ser exibida: as cores estavam nítidas, o som perfeito. Tinham passado cinco segundos quando Al gritou:
- Jesus Cristo!
Depois disso vimos em silêncio.
Era aquilo que eu imaginara: um pás de quatre sexual, tendo por estrelas Roberta e Ross Minchen, Orson Vanwinkle e Dolly LeBaron. Não era bonito, mas explícito, e o facto de dois dos participantes terem sido brutalmente assassinados dava àqueles gemidos e gritos uma qualidade surrealista. Contudo, na verdade, o filme era mais disparatado que excitante.
Quando acabou, Jack retirou a cassette e entregou-a a Al Georgio.
- Creio que vai precisar dela - disse.
E ficámos calados, deprimidos, olhando tristemente uns Para os outros. Por fim.
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- Onde arranjou isto, Dunk? - perguntou Al calmamente. Expliquei como Dolly LeBaron fora a minha casa pouco antes de ter sido morta, deixando a caixa de sapatos selada ao meu cuidado.
- Fez-me prometer que a destruiria se não voltasse para a ir buscar - expliquei. - Após ela ser assassinada fiquei sem saber o que fazer ou dizer, mas depois raciocinei e cheguei à conclusão que precisava de conhecer o que Dolly me dera a guardar.
Julgara que Al Georgio me ralhasse por eu estar a ocultar provas, ou coisa assim, mas ele perguntou apenas:
- Que raciocínio a levou a querer ver o que continha o embrulho, Dunk?
- Pensei que Vanwinkle vivia à larga, gastando muito mais do que oitocentos dólares semanais que ganhava como secretário de Havistock. Então onde ia buscar o dinheiro? Tinha fama de ser um louco disparatado, um bêbado sensual. Até a pobre Dolly admitia que ele fazia "coisas loucas".
- Está bem - disse Al -, a partir daí posso continuar eu. Orson e Dolly foram a uma das "festas extravagantes" dos Minchens e fizeram uma gravação das suas ginásticas em conjunto.
- Chantagem - prosseguiu Jack Smack. - Orson roubou a cassette na altura das filmagens ou numa sessão posterior, e começou a ameaçar os Minchens, o que explica as quantias que Ross retirou do banco.
- Os Havistocks estavam empenhados em fazer novos testamentos - acrescentei. - Que sucederia se Vanwinkle mostrasse a cassette a Mabel e a Archibald? Provavelmente Roberta e Ross ficariam sem a herança, por isso pagaram a Orson para o calar. Como poderiam agir doutra forma? Ele tinha a prova.
Al Georgio levantou-se e começou a andar para trás e para diante, com as mãos metidas nos bolsos das calças.
- Ó resto é fácil de entender. Vanwinkle não largava os Minchens, não lhes dava descanso (os chantagistas procedem sempre assim), cada vez aumentava mais a pressão. Finalmente, Ross Minchen conclui que não pode suportar mais esse estado de coisas e decide acabar com a chantagem, de uma vez por todas. Que dizem a esta hipótese: Vanwinkle pede mais dinheiro e Ross Minchen concorda. Vai ao apartamento de Orson, este abre-lhe a porta, esperando ir receber o dinheiro, mas em vez disso é despachado com duas balas na nuca. Então Minchen revista o apartamento à procura da cassette.
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Mas não a encontra - intervim eu -, já que Vanwinkle a
dera à namorada para guardar.
- Acha que Minchen se tenha por fim convencido disso? perguntou Al.
- Provavelmente. Dolly disse-me que recebia telefonemas ameaçadores, ou talvez tivesse decidido fazer chantagem por conta própria. com Orson morto como havia de pagar o apartamento, os biquinis e tudo o resto? Seja como for que as coisas se tenham passado, Ross Minchen, então completamente desesperado, foi a casa dela e matou-a, após o que devastou o apartamento, à procura da cassette, mas mais uma vez não a encontrou. De facto, a gravação estava guardada no armário da minha cozinha.
Al disse que sim com a cabeça, com satisfação.
- Cada vez melhor. Isto já é qualquer coisa que eu posso levar aos meus chefes. Muito obrigado, Dunk. Terá de fazer um depoimento sob juramento da maneira como entrou na posse da cassette e repetir o que Dolly lhe disse. Está bem?
- com certeza - respondi.
- Então vou-me embora para pôr todos os mecanismos em andamento.
- Mandato de captura? - perguntou Jack. Al pensou durante um momento.
- Pode não ser necessário. com os levantamentos de dinheiro feito por Ross Minchen e graças a esta coisa - ergueu a cassette - creio que podemos demonstrar a sua culpabilidade à luz de uma causa mais que provável, isto tendo em atenção a gravidade dos crimes. Mas o Departamento de Justiça é que decidirá. Dir-lhes-ei depois o que se passa. - Parou à porta, antes de sair. - Jack, faça-me um favor.
- O que é?
- Para próxima vez que exibir um filme destes arranje pipocas com manteiga.
Depois de Al Georgio sair, Jack foi buscar uma garrafa de refrigerante ao frigorífico e encheu dois copos. Ficámos sentados, a beber com lentidão, olhando-nos inexpressivamente.
- Você é realmente fantástica - disse finalmente Jack. Salvou Al de um grande fracasso, sabe? Ele não estava a chegar a parte alguma com o caso do Demaretion, mas o facto de esclarecer os homicídios fará diminuir a pressão. Como conseguiu isto?
- Tinha a cassette.
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- Pois tinha, mas ignorava o seu conteúdo. Quanto ao resto, Al e eu sabíamos praticamente o mesmo que você, mas não fomos capazes de ligar os factos. Realmente é um espanto.
- Muito obrigada.
- E a respeito de me ajudar a mim? - perguntou Jack. .
Acha que as mortes estão relacionadas com o desaparecimento do Demaretion?
- Não, são dois casos diferentes.
- Vanwinkle não roubou o Demaretion?
- Não.
- Então quem o fez? Pensei um momento.
- Amanhã digo-lhe - respondi.
- Está a brincar! - exclamou Jack, fitando-me.
- Não. Falta-me apenas saber uma coisa.
- Então amanhã a que horas?
- Bem, por volta das quinze no apartamento dos Havistocks.
- Lá estarei.
- Pode ser que seja uma perda de tempo, mas se as coisas não forem como eu penso, dir-lhes-ei tudo o que sei.
- Está bem. E que diz a jantarmos hoje juntos?
- Não, preciso de ir para casa. Tenho coisas a fazer. vou proceder a uma revisão geral.
Jack não insistiu e era uma coisa que eu admirava nele: aceitava a rejeição e o fracasso tão calmamente como o sucesso e o triunfo. Mas talvez fosse apenas por não se importar.
Olhei para a casa grande, espaçosa. Tectos com três metros e uma grande clarabóia. Aquele sótão era o dobro da minha casa, tudo aberto e arejado. O Ballet Russo podia dançar ali O Lago dos Cisnes sem tocar sequer numa parede.
- Gosta? - perguntou Jack calculando o que eu estava a pensar.
- Claro que sim.
- Quer mudar-se para cá?
- Gostaria muito. Quando sai?
- Não saio. Quero que se mude para cá comigo aqui. Há muito espaço, posso até comprar uma cama normal.
Olhei-o, assombrada, sem poder acreditar que tivesse ouvido bem - mas tinha. Jack olhava-me atentamente, sem brincar, e eu fiquei sem saber que lhe responder, ou como proceder.
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devia dar-lhe uma bofetada? Mostrar-me ofendida? Ou soltar uma risadinha infantil?
- Jack, isso é uma brincadeira? - perguntei.
- Não é brincadeira, Dunk. Gosto de si, gosto de estar consigo. Se sente o mesmo a meu respeito, porque não experimentarmos viver juntos?
- Durante quanto tempo?
Ele encolheu os ombros.
- Enquanto durar. Quem pode prever? Você pode querer ir-se embora passados dois dias, eu posso desejar que vá. Mas experimentemos.
- com que finalidade?
- É preciso as coisas terem sempre uma finalidade? Nunca procede impulsivamente, sem querer saber das consequências? Eu faço-o constantemente, e resulta bem, mais vezes do que mal. Eu pago a renda e os outros encargos fixos, e dividiremos ao meio as despesas com a comida e as bebidas. Pode conservar o seu apartamento, se quiser, é uma segurança, mas ficaria a viver aqui.
- Até você se aborrecer.
- Ou até a Dunk se aborrecer. Será uma rua com dois sentidos. Se se quiser ir embora ou eu desejar que vá - não são precisas quaisquer explicações, nem queixas, nem desculpas. Mas creio que podemos passar bons bocados juntos, enquanto durar, pois não prevejo grandes discussões. Ainda não tivemos nenhuma, pois não?
- Não - respondi debilmente. - Ainda não.
- Disse-lhe que gostava de si e é verdade. Também gosta de mim, Dunk?
Fui obrigada a dizer que sim com a cabeça.
- Portanto, faz sentido - disse Jack. - Não é nada de especial. Estou farto de andar por aí sozinho e creio que você também gostará de chegar a casa e. encontrar alguém. Não?
Mais uma vez me vi forçada a dizer que sim. Ele conhecia-me.
- Bem, então - disse ele -, porque não experimentamos? Que temos a perder? Você conserva o seu apartamento e o seu emprego. Não quero dizer que vivermos juntos seja tudo rosas, mas pode revelar-se qualquer coisa de bom.
- Mas casamento não? Jack desviou o olhar.
- É um bocado cedo para falarmos disso. Será um
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"casamento experimental", como se costuma dizer. É isso que eu estou a sugerir. Que pensa?
- Quer uma resposta imediata?
- Não, claro que não, leve o tempo que quiser. Tenho grande admiração por si, é uma mulher inteligente e sensacional na cama. Creio que somos sexualmente compatíveis, não acha?
Disse mais uma vez que sim com a cabeça, pensando que, se continuasse assim, ele acabaria por me saltar ao pescoço.
- Pense bem. Você poderá continuar a viver a sua própria vida, como até aqui, e eu também, mas além dos nossos empregos, ter-nos-emos um ao outro, e isso já é qualquer coisa, não acha?
Jack era um bom vendedor - um vendedor simpático, libertino, encantador.
- vou pensar nisso - concordei, chocada ao perceber que, depois de tantos anos de solidão, caía sobre mim um súbito dilúvio: duas propostas (uma legal e outra ilegal) em outros tantos dias.
- Faça-o - disse Jack. - Não pretendo passar pelo que não sou, sei que tenho hábitos de liberdade e que dificilmente me fixo. - Encolheu os ombros. - Mas nada dura para sempre, pois não? Agarra o que puderes, é a minha filosofia. Estarei enganado, Dunk?
Olhei para o meu relógio de pulso e levantei-me.
- Preciso de me ir embora.
- Quer que a leve a casa?
- Não, obrigada, vou de táxi. Archibald Havistock ainda me está a pagar as despesas.
- Promete que vai pensar nisso? Em viver comigo?
- com certeza que sim, garanto-lhe que o farei.
- Óptimo - disse Jack, dando-me um beijo casto no rosto antes de nos separarmos. Usava outra vez a sua habitual água-de-colónia.
Que noite aquela! Queria pensar a valer na investigação sobre o roubo do Demaretion, mas os problemas pessoais intrometiam-se constantemente. Finalmente, desisti e comecei a fazer uma análise aprofundada do meu caso, tentando encarar a decisão que tinha de tomar: aceitar a proposta de Jack, o pedido de casamento de Al, ou nenhuma das duas coisas. Estava decidida a ser muito lógica.
Julgava conhecer os dois homens bastante bem, o que me
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permitiria uma escolha racional, e sabia que os dois formavam um contraste total: Al era pesado, sério, de total confiança, seria sempre um trabalhador infatigável e um bom marido; Jack era um peso-leve, elegante e despreocupado, um homem para quem a ironia jamais deixaria de ser uma maneira de estar na vida e para o qual um compromisso representava uma maldição.
Al necessitava de uma mulher; Jack não precisava de ninguém. Al era um pai dedicado; Jack, um camaleão social. Al conduzia um velho Plymouth; Jack possuía um reluzente Jaguar. Al queria legalizar as nossas relações; Jack queria uma companheira para a cama. Al dizia que me amava; Jack afirmava gostar de mim. Finalmente, ambos sabiam cozinhar.
Podem agora imaginar a confusão que ia na minha cabeça. Estava quase doida! Comi qualquer coisa nessa noite, mas não sei o quê, provavelmente, bocadinhos disto e daquilo. Lembro-me de ter caminhado quilómetros de um lado para o outro, dentro de casa, apertando os cotovelos e pensando que género de pessoa era eu e que género de vida desejava - mas não havia respostas fáceis para tais perguntas.
Deitei-me cedo, passei uma hora sem dormir, às voltas na cama, e depois levantei-me, suspirando. Vesti um roupão, fui para a sala e peguei no meu tricô, que costumava ser uma cura certa para a insónia, mas que dessa vez não resultou. O meu cérebro continuava a funcionar sem descanso, e eu desejava que alguém - mãe, pai, Enoch Wottle, qualquer pessoa! aparecesse e me dissesse o que havia de fazer.
Levantei os olhos da malha. O apartamento nunca parecera tão vazio, eu nunca me sentira tão só - e creio que foi nesse momento que tomei a minha grande decisão.
Depois pude dormir.
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Lembro-me do que comi ao pequeno-almoço nessa sexta-feira, porque foi especial. Calculei que ia ter um dia momentoso, por isso segui os conselhos da minha mãe: "Quando há trabalho a fazer é melhor levar o estômago cheio." Uma opinião discutível - não consigo imaginar um trapezista a encher-se de esparguete e de almôndegas antes de um espectáculo - mas, no entanto, eu acreditava nela.
Dirigi-me, portanto, a um pequeno restaurante das redondezas e comi ovos mexidos, arenque fumado e batatas fritas, tudo acompanhado por um grande copo de sumo de tomate. Em seguida mandei vir um brioche com doce de maçã e duas chávenas de café forte. Depois voltei ao meu apartamento com o Times debaixo do braço e procurei se havia notícias da prisão de Ross Minchen, mas nada encontrei.
Pus o jornal de lado, para o ler mais tarde, e comecei a apontar, no meu bloco de capa amarela, o que pensava fazer nesse dia. As horas marcadas pareciam-me certas. A primeira coisa a fazer, decidi, era contactar com Al Georgio e dizer-lhe que se dirigisse ao apartamento dos Havistocks por volta das quinze horas, para aquilo que poderia, ou não, vir a ser o grande desenlace, mas ele telefonou-me primeiro. A sua voz estava terrível.
- Que sucedeu, Al? - perguntei ansiosamente.
- Mantive-me de pé quase toda a noite - explicou. Bem, dormi talvez umas duas horas em cima de um divã e coberto com uma manta tão fina que parecia panqueca seca, mas depois acordaram-me e recomecei a trabalhar. Há boas e más notícias. Quais prefere saber primeiro?
- Valha-me Deus! - protestei. - Detesto essa estúpida pergunta. Vá, primeiro as boas. Talvez me dêem força para as más.
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- Okay. Deitámos a mão a Ross Minchen, está agora atrás das grades, com o advogado a procurar que saia sob fiança. Não confessou coisa alguma, mas encontrámos-lhe em casa uma enorme quantidade de videocassettes pornográficas, todas de fabrico artesanal, e também um revólver de calibre vinte e dois, em cujo tambor faltavam duas balas. O idiota nem sequer limpou a arma, nem se deu ao trabalho de a voltar a carregar. pode imaginar-se tal coisa? O procurador distrital diz que, se se provar que as balas que faltam na arma são as que se encontraram no corpo de Vanwinkle, o acusará de homicídio em primeiro grau, e mesmo que a defesa declare que estava a ser vítima de chantagem, não deixará de ser condenado. Isto torna-a feliz?
- E sobre a morte de Dolly LeBaron? - perguntei.
- Bem, é suficiente provar um crime. Se ele for condenado apenas por um homicídio não fica satisfeita?
- Acho que sim - respondi, pensando na pobre Dolly, cuja morte parecia não ser importante para ninguém.
- Agora as más notícias - prosseguiu Al. - Vai ser um choque para si.
- Diga.
- Lembra-se de eu lhe ter dito que, se levássemos muito tempo a esclarecer o caso, as pessoas a ele ligadas iriam morrendo todas? Bem, isso continua a suceder. Vanessa Havistock está morta.
- Morta? - exclamei, começando a tremer. - Al, não posso acreditar nisso.
- Mas é a verdade - retorquiu ele. - Eu fui ver o corpo e preferia não o ter feito. Aconteceu esta madrugada, às quatro ou cinco horas, calcula o médico-legista. Foi assassinada, mas não há qualquer mistério acerca disso: Luther Havistock matou-a, depois telefonou para a esquadra e confessou o que fizera. Quando a Polícia chegou, estava sentado, à espera. Leram-lhe os seus direitos, mas ele não ligou a coisa alguma, não ocultou nada. Creio que o tipo enlouqueceu e os advogados vão provavelmente invocar isto mesmo.
- Como a matou, Al? - perguntei.
- À pancada, com os punhos e com os pés. Destruiu-a. Você tinha razão quando dizia que Luther se encontrava à beira da violência. Perdeu finalmente o controle.
- Oh, meu Deus! - murmurei, maldisposta e triste. Pobre homem, pobre mulher, pobres de nós.
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- Sim - murmurou Al. - Sei o que quer dizer. Detesto ser eu a dar-lhe estas notícias, mas, de qualquer modo, acabaria por ter conhecimento delas e queria informá-la a respeito do sucedido com Ross Minchen.
- com certeza, Al. Obrigada por ter telefonado. Vai agora para casa?
- Na. Gostava de poder ir, mas é impossível. Preciso de assistir aos interrogatórios de Ross Minchen e de Luther Havistock, por isso estarei a pé e meio acordado durante todo o dia.
- bom. Poderá ir ter comigo ao apartamento dos Havistocks às quinze horas?
Al ficou silencioso durante um momento. Depois perguntou:
- Trata-se de alguma coisa boa, Dunk?
- Creio que sim.
- Sobre o roubo do Demaretion?
- Espero que tudo corra bem. Se eu falhar dou-lhes todas as informações que souber. Jack Smack também irá.
- Estamos a tornar-nos uma espécie de três mosqueteiros - comentou Al.
- Parece-me que somos antes os três patetas - retorqui.
- Então até logo à tarde, em casa dos Havistocks - respondeu Al, rindo e desligando.
Al estava familiarizado com a violência e com os crimes sangrentos, podia aceitá-los estoicamente, mas eu não, e por isso chorei por Vanessa Havistock, embora não muito. Sabia que havia qualidade na vida e supunha que também existia na morte. Sentira mais pena de Dolly LeBaron, pois a estouvada rapariga fora uma verdadeira vítima, ao passo que Vanessa engendrara a sua própria destruição.
As duas formavam contraste em aspecto, inteligência e estilos de vida, mas cada uma delas tinha algo da outra. Pensando bem nisso, percebi que Dolly era uma espécie de Vanessa quando esta, ainda com o nome de Pearl Measley, viera da Carolina do Sul para a grande cidade, na esperança de abrir caminho na vida. Vanessa conservava também os apetites próprios de uma rapariga da província deslumbrada pela riqueza e pelas oportunidades.
Agora estavam ambas mortas e todos os seus sonhos e ambições tinham desaparecido com elas. Havia uma moral em tudo isso, supunha eu, mas não a descobria, só podia lamentar
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aquelas duas vidas ceifadas tão cedo, aniquiladas por paixões descontroladas que se transformavam em pecados.
O facto de Luther ter assassinado Vanessa dava maior credibilidade à minha teoria sobre o que se passara e aumentava as minhas esperanças de, finalmente, ver deslindado o caso, mas não sentia satisfação nisso. Se eu houvesse sido mais rápida, mais esperta, talvez tivesse conseguido evitar o derramamento de sangue. Era uma ideia que me deprimia e, por isso, não queria pensar nela.
Arranquei as folhas escritas do meu bloco, dobrei-as, guardei-as na minha carteira e saí para à entrevista na Grandby & Sons, disposta a não me deixar dominar. Estava decidida a fazer as coisas à minha maneira.
Reunimo-nos na funérea sala que já conhecia. Felicia usava um dos seus "vestidos pretos simples" que parecia estar-lhe colado à pele, Stanton Grandby envergava o seu uniforme de pinguim e Lemuel Whattsworth trazia o habitual fato de três peças, de cor terrosa, que parecia pronto para ser moldado. Os três arvoraram expressões de frio interesse para ouvirem o que eu tinha para lhes dizer.
- Bem, Dunk - disse Felicia com o seu sorriso mais radiante -, espero que traga boas notícias para nos dar.
Ignorei-a.
- Mister Grandby - perguntei -, Archibald Havistock apresentou queixa pelo desaparecimento do Demaretion?
"Deus" olhou para o seu advogado.
- O litígio ainda não foi iniciado - respondeu cautelosamente Whattsworth. - Contudo, existe essa possibilidade e em minha opinião, somos legalmente vulneráveis dada a forma como se verificou o desaparecimento da moeda, visto que Miss Dunk, uma empregada da Grandby & Sons, assinou o recibo.
Ele tinha de me lembrar isso - o malvado!
- Mas Mister Havistock não apresentou ainda qualquer queixa?
- Até à altura presente, não - respondeu o advogado. Tirei as folhas dobradas da minha mala e fingi folheá-las,
parando ocasionalmente para as ler, mas era tudo fingimento, eu sabia exactamente o que lá tinha escrito.
- Mister Grandby - continuei -, tem alguns planos para fazer o leilão da colecção Havistock sem o Demaretion?
- Não - replicou o pinguim -, pelo menos enquanto o
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caso não for esclarecido. Segundo o contrato, temos um ano para o realizar.
- Portanto, até à data Mister Havistock ainda não recebeu coisa alguma e a sua colecção encontra-se nos cofres da Grandby & Sons?
- Isso é correcto.
- Dunk - interrompeu Felicia -, o que pretende com isto?
Mais uma vez a ignorei, e como gostei de o fazer!
- Mister Grandby, sei que quando alguém deseja que se faça um leilão dos seus bens - quer se trate de mobiliário, quadros, selos, moedas ou qualquer outra coisa - é norma proceder a uma investigação para determinar a confiança que o cliente merece. Ora, como presumo que tal investigação tivesse sido realizada em relação a Archibald Havistock, pode dizer-me quais foram os resultados?
- Trata-se de uma informação confidencial - declarou Lemuel Whattsworth com a sua vozinha fraca.
Levantei-me, guardei na carteira as folhas que tinha na mão e olhei-os desafiadoramente.
- Estão a pagar-me para investigar o desaparecimento do Demaretion - disse com uma voz que pretendia ser gélida. Se não querem colaborar comigo o problema é vosso, não meu. Pedi-lhes uma informação e, se se recusam a responder-me, apresento imediatamente a minha demissão e terão de encarar a possibilidade de pagarem o valor do Demaretion.
Stanton Grandby gemeu:
- Por amor de Deus, Lemuel, diga-lhe.
- Sou contra isso - avisou o advogado.
- Então digo-lho eu - declarou Stanton Grandby. - Sente-se, Miss Bateson. A investigação sobre o estado das finanças de Archibald Havistock foi satisfatória. Ele era, e é, um homem rico, mas a maior parte da sua fortuna consiste em terrenos não urbanizados, quase todos em nome da mulher. Chegámos à conclusão de que não se encontrava numa situação muito líquida, isto é, não dispunha de muito dinheiro em relação ao valor da sua fortuna total.
- Sei o que quer dizer "situação líquida" - respondi, não deixando que eles me tomassem por ignorante.
Agora que o gato estava fora do saco, o advogado prosseguiu:
- Não se trata de uma situação invulgar em pessoas que desejam leiloar parte dos seus bens, pois invariavelmente
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pretendem converter as suas colecções em dinheiro. Contudo, não consigo perceber o que terá a ver a falta de liquidez de Mister Havistock com o roubo do Demaretion. Se essa moeda fosse incluída no leilão, este renderia muito mais.
- Isso é verdade - concordei. - Muito mais.
Creio que nessa altura estavam todos confundidos e isso agradava-me. Deixá-los sofrer um bocado. Daí a pouco iria animá-los, mas, entretanto, gostava de ver a sua perplexidade, em contraponto com o empertigamento inicial.
- Quero esclarecer este ponto - disse eu. - Se o Demaretion não for recuperado, a Grandby & Sons terá de compensar Mister Havistock pelo seu desaparecimento, e nessa altura será a vossa companhia seguradora, a Finkus, Holding, Incorporated, quem pagará, não é assim?
- Isso é essencialmente correcto - afirmou Whattsworth.
- Menos o que terá de ser deduzido, é claro, importância que, posso dizê-lo sem receio de contradição, atingirá uma quantia apreciável.
- Tudo isso não vale uma mão-cheia de feijões - declarou impacientemente Stanton Grandby, e a partir desse momento quase comecei a gostar dele. - A perda do dinheiro não nos irá arruinar, o pior são os prejuízos que um caso destes pode trazer à nossa reputação, pois a Grandby nunca teve um escândalo desta magnitude na nossa longa e memorável história. As pessoas confiam-nos valores consideráveis, esperando que os guardemos como se fossem nossos, e se formos forçados a admitir que existiu falta de cuidado ou de incompetência, o resultado será semelhante ao da corrida a um banco. Os clientes perderão a confiança na nossa casa e isso eu não permitirei que suceda.
Então olharam os três para mim como se eu fosse a salvadora deles, a Joana d'Arc que resolveria todos os seus problemas, espirituais e temporais.
- Veremos - disse eu, levantando-me. - Muito obrigada pela vossa cooperação.
- Dunk! - gritou Felicia Dodat. - Não tem mais nada para nos dizer?
- De momento não - respondi -, mas as coisas estão a avançar muito rapidamente. Tenho a certeza de que sabem do assassínio de Orson Vanwinkle, secretário particular de Mister Havistock. Pois bem, a noite passada, Ross Minchen, genro de Mister Havistock, foi preso e acusado desse homicídio, e esta manhã, Luther, filho de Mister Havistock, confessou ter
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assassinado brutalmente a mulher. Por isso já vêem que o assunto é mais complicado e que não se trata apenas do roubo de uma antiga moeda grega.
Deixei-os assombrados e perplexos.
Tinha muito tempo para ir a pé até ao apartamento dos Havistocks, que não era longe, mas não pedira que me recebessem, porque provavelmente diriam que não. Deviam estar preocupados e entristecidos, pelo menos, com a prisão do filho, mas decidira aguardar o tempo necessário até poder falar com Mabel ou Archibald, ou com os dois. Devia-lhes isso.
O dia estava pesado, o céu enevoado e o ar espesso como um pudim, não havia a mais ligeira brisa. As pobres folhas poeirentas das árvores das ruas não se mexiam e as pessoas caminhavam molemente, parecendo guardarem todas as energias para respirar. E não se respirava bem...
Esperara encontrar uma multidão de repórteres à porta dos Havistocks, e talvez mesmo pessoal da TV, mas o vestíbulo do prédio estava deserto. Toquei à campainha e esperei. A porta abriu-se cautelosamente uns centímetros com a corrente ainda colocada. Ruby Querita espreitou.
- Sou eu, Ruby. Posso?
Ela deixou-me entrar e voltou a fechar apressadamente a porta, prendendo-a com a corrente e trancando-a.
- Tem vindo cá muita gente que eu não conheço.
- Imagino. Grandes complicações, Ruby, cada vez maiores complicações.
Ela respirou fundo e percebi que havia estado a chorar. O seu rosto azedo apresentava-se cheio de rugas e tinha uma expressão mais sombria do que nunca. Compreendi que, apesar das suas previsões de desgraça, ela gostava daquela família e que por isso sofria.
- Sente-se bem?
- vou vivendo - respondeu Ruby. - E tento entender a justiça de Deus.
Falávamos em sussurros, como se um corpo se encontrasse na sala contígua.
- Está alguém em casa? - perguntei.
- Natalie fechou-se no quarto. Não quer sair de lá.
- bom. Deixe-a. Mister Havistock?
- Saiu. Foi falar ao advogado.
- E Mistress Havistock.
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- Está na sala. Todo o dia sentada a olhar para o vazio. Não come.
- Ruby, pode dizer-lhe que eu estou aqui? Eu espero. Se ela não me quiser receber vou-me embora.
A governante afastou-se - nunca reparara como ela se movia tão silenciosamente - e passados momentos vinha de volta.
- Ela diz que entre - informou Ruby. - Por favor, seja boa para ela. Está quebrada - e Ruby fez o gesto de torcer, dois punhos fechados movendo-se em direcções opostas. Tenta não o mostrar, mas eu sei.
- Procurarei não a perturbar, Ruby. Às quinze horas hão-de vir dois homens. Pode dizer-me quando chegarem? Um deles é da Polícia.
Ruby fitou-me.
- Ah! - murmurou. - Então é o fim?
- Sim. Creio que é o fim.
Deixei-a a chorar, as lágrimas desciam-lhe lentamente pelas faces cavadas e sombrias.
Quando entrei na solene sala de estar, Mabel Havistock encontrava-se sentada num cadeirão severo, de costas direitas, encostada, como se quisesse apoiar a sua rígida espinha. Aqueles largos ombros mantinham-se, como sempre, levantados, o queixo firme e erguido. Não vi qualquer sinal exterior daquilo que Ruby dissera. Aquela mulher não parecia nada quebrada.
- Muito obrigada por ter vindo, Miss Bateson - disse com uma leve sugestão de sorriso.
- Minha senhora - murmurei, totalmente incapaz de me exprimir adequadamente -, lamento o sucedido.
Mabel Havistock fez um gesto imperceptível com a cabeça, mas o corpo pesado, sujeito ao corpete, não afrouxou um instante. Como sempre estava impecavelmente bem vestida e maquilhada, com o cabelo azulado bem penteado e o vestido de chiffon sem uma ruga. Os olhos mostravam a frieza habitual, sem revelarem sinais da tensão que, por certo, a dominava. Que mulher sólida e dura ela era! Podia estar no alto do monte Rushmore.
- Por favor - disse com um gesto -, sente-se. Deseja uma chávena de chá? Café? Qualquer coisa?
- Não, muito obrigada, Mistress Havistock - respondi, comovida pelos seus esforços para se mostrar uma anfitriã delicada.
Sentei-me numa dessas cadeiras baixas, obesas, em frente
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dela, ficando a um nível mais baixo, pelo que precisava de levantar a cabeça para a olhar - o que, de certo modo, me parecia bem.
- Na verdade vim falar com o seu marido, minha senhora, mas Ruby disse-me que ele não estava.
- Sim. Foi consultar os advogados por causa do nosso filho Luther. Creio, cremos, que o rapaz esteja temporariamente enlouquecido e que precise... bem, que precise de tratamento.
- Concordo inteiramente. A última vez que o vi pareceu-me à beira do colapso.
Mabel Havistock olhou-me e murmurou:
- Todos os meus filhos... - Não compreendi o significado daquilo.
Depois abanou a cabeça forte, como que para aclarar as ideias.
- Porque queria falar com o meu marido? - perguntou.
A pergunta fez-me sentir muito desconfortável. Poderia encarar Archibald Havistock e dizer-lhe a verdade sem hesitar, mas, àquela mulher - o sobrinho assassinado, a filha que tentara suicidar-se, o genro preso por homicídio, o filho um assassino confesso -, não tinha coragem para aumentar ainda mais os seus desgostos; seria demasiado doloroso para ela e para mim.
Mabel Havistock adivinhou, por certo, os meus pensamentos, porque ergueu ligeiramente o queixo e disse:
- Sou mais forte do que julga.
E olhou-me de tal maneira, com um olhar tão directo, que eu tive a certeza absoluta de que ela sabia o que eu descobrira e lhe ia dizer.
- Mistress Havistock - comecei, sentindo-me corar de confusão e embaraço -, soube sempre, não soube?
- Não tinha a certeza - replicou em voz em baixa, erguendo um dedo -, mas suspeitava.
Respirei fundo. Que família aquela! Rodas dentro de rodas.
- Quando aceitei a proposta para fazer investigações por vossa conta - continuei - concordei que, se descobrisse que um membro da família estava envolvido no roubo do Demaretion, viria falar primeiro convosco, antes de contactar com as autoridades.
- Recordo-me perfeitamente disso - respondeu Mabel Havistock com calma.
- Então por que razão me contrataram? - gritei.
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Ela levou a mão ao de leve aos cabelos azulados.
- Insisti nisso porque a achei uma rapariga inteligente e persistente, e talvez a tivesse considerado uma espécie de anjo vingador que poria certo o que estava errado. - Ficou silenciosa uns momentos e acrescentou: - Erros que não arranjei coragem para corrigir.
Como eu a admirava! Que mulher tão directa, tão honesta. Podia compreender os seus sentimentos em conflito. Suspeitava mas não tinha a certeza, e não queria tê-la porque essa certeza poderia significar o fim da sua vida como mulher, esposa e matriarca daquela família dissoluta.
- Eu não sou um anjo - respondi-lhe - e quanto a vingar alguém, ou qualquer coisa, não tenho de facto interesse nisso. O meu motivo inicial para iniciar esta investigação foi ilibar o meu nome, foi puramente egoísta, mas depois, confesso, deixei-me prender pelo desafio que as investigações representavam.
- E agora chegaram ao fim? - perguntou.
- Sim, Mistress Havistock. Pedi ao detective Al Georgio e ao investigador da companhia da seguros, John Smack, que viessem ter comigo aqui. Quando eles chegarem e o seu marido voltar é melhor acabarmos com tudo isto.
- Sim - respondeu com um suspiro. - É chegada a altura. Quando começou a perceber o que se havia passado?
- Levei um certo tempo, pois havia muitas pistas falsas. Depois tive esta ideia louca em que mal podia acreditar, mas, à medida que o tempo passava, ia-me parecendo cada vez mais lógica. Não lógica, talvez, mas compreensível.
- Irracional - replicou ela. - Totalmente irracional! Devia ter-lhe falado das minhas suspeitas desde o início. Procedi como uma mulher fraca.
- Fraca não, nunca, apenas uma mulher que tentou proteger a sua família, o seu casamento, a sua casa. Não a censuro. Ninguém pode censurá-la.
Ouvi uma leve tosse à porta. Era Ruby Querita.
- Estão ali aqueles dois homens - informou.
- Faça favor de os mandar entrar - disse Mabel Havistock tão serenamente como se estivesse a convidar dois dignitários.
Al Georgio e Jack Smack entraram, cumprimentando-nos com um ligeiro baixar de cabeça. Eu levantei-me.
- Minha Senhora - disse para Mabel Havistock -,
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preciso de falar com estes senhores, explicar-lhes o que aconteceu. Talvez fosse melhor conversarmos no corredor ou noutra sala.
- Não - retorquiu decididamente -, pode falar-lhes aqui, na minha presença. Garanto-lhe que não me sentirei chocada, nem insultada.
- Como queira - respondi.
Esperei que Al e Jack se sentassem, lado a lado, num daqueles horríveis sofás de veludo castanho, depois voltei-me um pouco de lado na cadeira, de maneira a ficar voltada para eles e também para Mabel Havistock. Queria ver as reacções dela ao que eu tinha a declarar e procurei ser directa e concisa quanto pude.
- Durante os últimos cinco anos - comecei -, ou talvez mais, Mister Havistock teve uma ligação com Vanessa, mulher de seu filho. Encontravam-se num apartamento da Rua Sessenta e Cinco, Este, alugado por Lenore Wolfgang, advogada da família. Estou certa de que ele pagava a Vanessa os seus favores sexuais, suponho que sob a forma de "presentes", mas, seja qual for o nome, dava-lhe muito dinheiro.
Fiz uma pausa e olhei para Mabel. O seu rosto naturalmente rosado, empalidecera, mas os lábios estavam comprimidos e não fez qualquer tentativa para interromper a minha narrativa.
- Tenho boas razões para crer - prossegui -, que Vanessa andava também com outros homens e que deles recebia igualmente "presentes" em dinheiro. Se Mister Havistock sabia ou não destas "operações" não faço ideia. No entanto, desconfio que sim, mas estava tão obcecado que não era capaz de a deixar, e o mesmo se passava em relação ao marido. Luther devia conhecer a origem de todo aquele dinheiro, mas, como continuava enfeitiçado pela mulher, suportava as suas infidelidades. Passou, porém, a beber muitíssimo e acabou por ficar à beira da loucura.
Al e Jack entreolharam-se inexpressivamente, depois voltaram-se outra vez para mim. Eu não fazia ideia de como eles estavam a aceitar tudo aquilo, mas certamente que, sendo detectives, teriam muitas perguntas a fazer-me mais tarde.
- Agora vamos ver o que se passou com Orson Vanwinkle
- prossegui. - Veio trabalhar como secretário particular de Mister Havistock há cerca de cinco anos, e sendo como era, não tardou a descobrir o que se passava entre o tio e Vanessa. Começou então a fazer chantagem e para lhe pagar o que ele exigia, Mister Havistock viu-se obrigado a vender moedas da sua
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colecção. Os gastos deviam ser terríveis, pois não só retribuía com toda a liberalidade a Vanessa essas tardes na Rua Sessenta e Cinco, como pagava a Orson Vanwinkle para o manter calado. Quer fazer algum comentário, minha senhora? - perguntei a Mabel Havistock.
- Não, não tenho qualquer comentário a fazer.
Creio que isto impressionou Georgio e Smack mais do que tudo o resto, ao verem que a mulher não fazia objecções àquela sórdida história do adultério do marido. Começavam por fim a acreditar que tudo aquilo era verdade e percebi que o interesse deles aumentava pela forma como se inclinavam para a frente, à espera de mais revelações.
- E então - disse eu -, como Vanwinkle e a sua tola namorada, Dolly LeBaron, foram a uma das sessões de filmagens em casa dos Minchens, Orson viu surgir-lhe uma nova oportunidade de aumentar os seus rendimentos. Roubou a videocassete e começou a fazer chantagem com Ross Minchen, não sendo pois de admirar que este levantasse dinheiro às mãos-cheias.
- O Demaretion - disse Jack Smack em voz baixa.
- Está bem - concordei. - Vamos agora ver o que se passou com o Demaretion. Orson decidiu extorquir uma grande quantia final às suas duas últimas vítimas para poder ir viver com Dolly para a Riviera francesa, mas, como para isso era necessário muito dinheiro, podemos calcular o que teria exigido. Foi de mais, para Ross Minchen... e ele acabou por matar Orson Vanwinkle e Dolly LeBaron. Mas, como Mister Havistock não era um criminoso, achou que a melhor maneira de se ver livre do sobrinho e secretário era pagar-lhe para ele sair do país, e que a sua única possibilidade de reunir tal quantia residia em mandar leiloar a colecção de moedas. Ficaria então com o suficiente para pagar a Orson e para manter a sua ligação com Vanessa. Al, está a seguir-me?
- Estou. Pode continuar, Dunk.
- Bem, agora vem a parte mais difícil. É preciso compreender a mentalidade de um verdadeiro coleccionador: eles não compram para investir ou para fazer negócio, mas sim porque os objectos são raros ou belos, ou ambas as coisas, e os amam. Mister Havistock era, e é, um verdadeiro coleccionador, já-lhe deve ter custado muito vender moedas durante os últimos cinco anos, mesmo possuindo duplicados, ou tratando-se de moedas de menor importância, mas agora precisava de liquidar tudo, incluindo o Demaretion. Certamente deve ter sido
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angustiante para ele desfazer-se dessas gloriosas moedas que passara uma vida inteira a coleccionar, mas fez, apesar disso, o contrato para o leilão. Depois, no último minuto, decidiu ficar com o Demaretion, não podia vendê-lo, era a obra-prima da sua colecção. Aos olhos dele não tinha preço, e pensou que, se o escondesse, talvez recebesse o dinheiro do seu seguro. Jack Smack olhou-me com assombro.
- Dunk, está a dizer-nos que Mister Havistock roubou o Demaretion?
- Como pode uma pessoa roubar o que já é seu? - perguntei. - O que estou a dizer é que ele preparou uma caixa selada, vazia, meteu-a dentro de um contentor, marcou-a com o número treze e trocou depois as caixas. Quem mais o poderia ter feito? Orson Vanwinkle não, com certeza, pois encontrava-se com os guardas da carrinha blindada. As outras pessoas da família também não, já que não podiam saber como as caixas que continham as moedas foram seladas e numeradas. Não, só podia ter sido Mister Havistock.
- E que fez à caixa que continha o Demaretion? - perguntou Al.
Encolhi os ombros.
- Provavelmente guardou-a debaixo da secretária, no mesmo sítio onde escondera a vazia. Uma vez feita a troca dirigiu-se à sala e conversou uns minutos com a família, enquanto a caixa vazia foi levada para a carrinha com as outras. Como sabem, só depois de todas estarem no cofre e de eu ter assinado o recibo é que dei pelo desaparecimento da moeda. Mistress Havistock concorda que as coisas se devem ter passado assim?
- Não faço ideia - respondeu friamente. - Não posso garantir se os pormenores são correctos, só sei que o meu marido gostava muito das suas moedas, especialmente do Demaretion. No entanto, é muito possível que tenha sido assim.
- Um minuto - disse Jack Smack -, se Mister Havistock ficou com a moeda, então quem escreveu as cartas à companhia de seguros para tentar negociar?
- Orson Vanwinkle - respondi prontamente. - Quando a moeda desapareceu, percebeu imediatamente que apenas Mister Havistock poderia ter feito a troca, foi mais esperto e mais rápido do que eu, mas, como tinha mentalidade de criminoso, achava que toda a gente era como ele. Falou com Mister Havistock e exigiu parte do seguro do Demaretion, pouco lhe importando que o tio gostasse da sua moeda e quisesse conservá-la.
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Enviou as cartas à sua companhia, Jack, a fim de levantar rapidamente dinheiro, e escreveu-me a mim uma com ameaças.
- Então quem estava a tentar negociar a moeda no Líbano?
- quis saber Al Georgio.
- Mister Havistock - respondi. - Depois de Vanwinkle ser morto, as cartas para a companhia de seguros pararam e o negociante de Beirute ofereceu a moeda para venda. Mister Havistock não devia ignorar a reputação duvidosa deste, afinal de contas encontrava-se envolvido na compra e venda de moedas antigas há muitos anos e provavelmente conhecia todos os negociantes, mas se estão admirados de ele tentar vender a moeda por intermédio do tipo de Beirute, a resposta é simples: precisava do dinheiro, pois, se Orson morrera, havia ainda Vanessa e os "presentes". A Grandby adiou o leilão da colecção, as companhias de seguro atrasavam o pagamento e um processo judicial podia levar anos, por isso, numa palavra, Mister Havistock achou-se falido, ou, pelo menos, com pouco dinheiro. Precisava de vender, se queria manter Vanessa "feliz" e teve de escolher entre um tesouro esplêndido, representado pela antiga moeda grega, e a mulher que era para ele uma obsessão. Vanessa ganhou - por uns tempos.
Ficámos todos silenciosos, a olhar uns para os outros, e Mabel Havistock, que permanecera severa e direita durante toda a narrativa, começava agora a deixar-se abater. Não se mostrava tão dura, tão inflexível. ouvir tudo aquilo, dito em voz alta, tirara-lhe qualquer coisa. Atingira-a como uma notícia gritante no cabeçalho de um jornal e eu sabia que ela se sentia magoada.
- Uma história interessante - disse por fim Al Georgio - e eu acredito em todas as palavras que acabou de dizer, mas sabe o que temos, Dunk?
- Zero, zero e zero - respondi com um suspiro.
- É verdade - confirmou Al. - Jack?
- Nada. A companhia de seguros dele não lhe pagou um cêntimo e a minha não reembolsou a Grandby. Então como podemos dizer que houve fraude? De momento nada temos contra ele.
- Não sofreu já bastante? - perguntei.
- Não - declarou Mabel Havistock. - Não foi suficiente. Al Georgio olhou-a directamente.
- Minha senhora - disse com suavidade -, sabe que a mulher não pode ser compelida a depor contra o marido, mas,
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se o quiser fazer voluntariamente, o seu depoimento vale tanto como o de qualquer outra testemunha.
- Então ofereço-me - disse sombriamente Mabel Havistock.
- Ofereces-te para quê? - perguntou uma voz ressonante atrás de nós.
Todos nos voltámos e encarámos com Archibald Havistock. O dono da casa ficara imóvel e olhava-nos com os seus olhos azuis. Al, Jack e eu levantámo-nos e enfrentámos esse olhar.
- Senhor - disse Al -, poderíamos ter uma conversa particular consigo?
Havistock mostrou-se irritado.
- com que direito - perguntou - invadem a minha casa e importunam a minha mulher? Tenho de lhes pedir que saiam imediatamente.
- Mister Havistock - retorquiu Al com toda a calma -, peço-lhe que não fale assim. Ou conversamos aqui, tranquilamente, ou vamos para a esquadra e falamos lá. é isso que deseja?
Os dois homens altos fitaram-se e foi Havistock que pestanejou.
- Muito bem - disse secamente. - Venham à minha biblioteca. Peço-lhes o favor de serem breves.
- Seremos - prometeu Al.
Dirigimo-nos todos para o corredor e depois para a biblioteca. Mabel Havistock viu-nos sair da sala, com os olhos brilhantes de lágrimas, e, pela primeira vez, pensei que Ruby Querita tinha razão: ela estava mesmo desfeita.
Al agarrou-me num braço e deteve-me por um instante.
- Quem lhe roubou o seu livro? - perguntou em voz baixa.
- Deve ter sido Carlo, um dos comparsas de Vanessa. Ela devia tê-los espalhados por todo o East Side.
- Que mulher - murmurou abanando a cabeça. - Devia formar uma empresa pública e vender acções.
Na biblioteca não esperámos pelo habitual convite para nos sentarmos em círculo em frente de Archibald Havistock, que se instalou na sua cadeira giratória, atrás da secretária. Olhei-o com atenção.
Encontrava-se impecavelmente vestido, como sempre - engomado, aprumado, reluzente -, o único sinal de perturbação era uma madeixa prateada que lhe caíra para a testa. Ele empurrava-a para trás, com a palma da mão, mas logo a seguir ela
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tombava de novo para a frente. Sei que isto pode parecer fantasia, mas a verdade é que o cabelo fora do lugar simbolizava para mim a total desintegração daquele homem.
- Espero que isto não demore muito - disse Havistock para Al Georgio.
- Só depende de si- retorquiu Al. - vou começar por lhe contar o que sabemos.
Então, de maneira mais dura e mais cortante do que eu o fizera, repetiu tudo o que eu acabara de dizer na sala, rapidamente e sem expressividade, como se se tratasse de um relatório oficial da Polícia. Sentia-me impressionada, mas Havistock, além de continuar a afastar o cabelo que teimava em cair-lhe sobre a testa, não apresentava nenhum outro sinal de perturbação. Ocorreu-me então que me pudesse ter enganado. Oh, meu Deus!
- Por isso - concluiu Al -, creio que a melhor solução será entregar-me a moeda. Se o fizer, creio poder afirmar que não haverá prisão, nem qualquer acusação. Jack?
- Pelo nosso lado - afirmou este -, queremos apenas que a moeda seja devolvida.
Archibald Havistock recostou-se na cadeira e olhou-nos com o que só posso descrever como um sorriso benévolo.
- Um conto de fadas - disse com a sua voz forte, trovejante. - Não há em tudo isso uma só palavra de verdade. E dirigindo-se a Al: - Tem algumas provas do que acaba de me dizer?
- Então nega que as coisas se tenham passado assim?
- Completamente - afirmou Havistock, inclinando-se para a frente, sobre a secretária. - Se era destes disparates que me queriam falar, devo pedir-lhes outra vez que saiam.
Al suspirou:
- Mister Havistock, sei que está metido em grandes sarilhos: o seu filho e o seu genro encontram-se presos, acusados de homicídio; o seu sobrinho e a sua nora foram mortos; a sua filha tentou suicidar-se. São problemas que sobejam para qualquer homem, mas, se continua a falar assim, vejo-me obrigado a aumentar os seus problemas. vou dar-lhe mais uma oportunidade: onde está o Demaretion?
Archibald olhou-o com ar desconfiado, pareceu ficar pensativo durante uns instantes, mas depois abanou a cabeça.
- Garanto-lhes que não o tenho e que não sei onde ele se encontra.
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- Quer que eu me mostre verdadeiramente aborrecido? perguntou Al. - Posso sê-lo. - Depois deu-lhe uma lição sobre o que um agente da lei pode fazer com o peso da sua autoridade. - Aqui está o programa: primeiro, levo uma fotografia sua ao porteiro do prédio da Rua Sessenta e Cinco, insistirei com ele e, por mais que o senhor lhe tenha pago para se calar, acabará por confessar que o viu entrar no apartamento duas, três ou quatro tardes por mês, com Vanessa; em seguida, obterei cópias dos seus telegramas para esse negociante de moedas de Beirute, pois foi, por certo, por esse meio que contactou com ele, ou então pelo telefone, mas nesse caso a companhia terá o registo das chamadas; na sequência do que lhe disse arranjo um mandado de busca, viro esta casa de pernas para o ar e, mesmo que não encontre nada, os vizinhos não deixarão de saber, o que não será agradável; além disso, terei uma conversa com o pobre, confuso, Luther, só para ficar com a certeza de que ele sabia que o pai andava metido com a mulher; depois disto tudo, falarei com Carlo e com os outros alcoviteiros de Vanessa, e os jornais vão delirar com as declarações deles; mais tarde pedirei ao procurador distrital que deite uma vista de olhos às actividades de Lenore Wolfgang, especialmente no que diz respeito ao aluguer do vosso ninho de amor (não sei se o que ela fez será ou não pouco ético, mas pode muito bem bastar para que a expulsem do foro); não me esquecerei também de pedir ao fisco que investigue as vossas declarações de rendimentos para saber, se declarou os montantes provenientes das vendas das moedas nos últimos cinco anos, assim como os rendimentos de Luther, Vanessa e das outras pessoas da família; e finalmente, para aumentar ainda mais os seus problemas, convocarei Mistress Havistock para uma longa conversa, pois essa senhora está disposta a falar e, depois do que o senhor lhe fez, a ela e à família, creio que contará a verdade. Vê como posso ser incomodativo, Mister Havistock? Ainda insiste em que tudo quanto lhe disse não passa de um conto de fadas?
Durante todo o discurso de Georgio, Archibald Havistock mantivera-se sentado muito direito, com as palmas das mãos apoiadas sobre a secretária. Não vi qualquer mudança na expressão dele, enquanto Al ia enunciando o que faria, apenas a madeixa de cabelo lhe tombara mais para a testa, cobrindo-lhe quase um olho, sem que fizesse qualquer gesto para a afastar.
O silêncio era tão grande na biblioteca que se ouvia o ruído do tráfego na rua e, assim o julguei, a sereia de um barco em
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East River e o ruído de um avião a descer no Aeroporto de La Guardia. Ninguém falava, todos esperávamos.
Havistock, que fitara friamente Al Georgio, voltou agora o seu olhar para mim e fixou-me longamente.
- Tentei convencer a minha mulher a não a contratar, mas ela insistiu. Sabia que você estava ansiosa por encontrar a moeda: alguém a obrigara a fazer figura de tola e queria-se vingar.
- Daria tudo para que as coisas não tivessem sido assim - retorqui. - Eu admirava-o.
- Sim? - observou. Depois, com ar desamparado, acrescentou: - Quem me dera dizer o mesmo.
- O Demaretion, Mister Havistock - insistiu Al, impacientemente.
Archibald Havistock abriu a gaveta de cima da sua secretária, tirou de lá uma pequena chave e depois fez girar a cadeira, voltando-nos as costas. Inclinou-se, abriu uma portinha debaixo das belas prateleiras, retirou de lá uma caixa de esferovite, levantou-se e colocou-a sobre a secretária. O adesivo fora removido, mas eu reconheci imediatamente o contentor treze.
Archibald Havistock tirou do contentor uma caixa de madeira e vidro, e logo todos nos debruçámos sobre a secretária, para olhar: era o Demaretion.
Aquela linda, amaldiçoada moeda! Parecia um sol de prata, tão brilhante, tão forte! Ficámos calados a olhar e eu lembrei-me de todas as pessoas que a tinham possuído, mesmo por pouco tempo. Amores, crimes, traições, desgostos e alegrias, tudo isso o Demaretion vira, permanecendo incólume, brilhante e completo.
- É isto, Dunk? - perguntou Jack Smack.
- Sim - murmurei com voz rouca. - É linda, não é? Levantei os olhos para Havistock, mas ele desviou o olhar e
voltou-se.
- Muito obrigado, Mister Havistock - disse alegremente Al. - Vamos levá-la.
Meteu novamente a caixa de madeira e vidro no contentor de esferovite e dirigiu-se para a porta, fazendo-nos sinal para o seguirmos. Parou à saída e voltou-se para mais um pouco de oratória:
- Deixo-o entregue à terna mercê da sua esposa, Mister Havistock. Boa sorte.
Só quando chegámos ao passeio, em frente do prédio, é que parámos e sorrimos uns para os outros.
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- Dunk - disse Al -, você é um génio - e inclinou-se para me beijar na face.
- Um duplo génio - afirmou Jack, beijando-me a outra face. - Um triplo génio! Al, que pensa de esta mulher detective conseguir que fizéssemos figura de parvos?
- Estou encantado - declarou Georgio. - Eu é que ficarei com os louros da descoberta, e o Departamento agradecer-me-á ter encerrado o caso. Não se passará o mesmo consigo, na sua companhia?
- Pode apostar que sim - afirmou Jack. - A moeda foi devolvida e era isso a única coisa que nos interessava. Al, Havistock não será incomodado, pois não?
- Não. De que poderíamos acusá-lo? Todas as ameaças que eu enunciei pouco valiam. Podia ter feito aquilo tudo, mas não o conseguiria condenar por coisa alguma, apenas ficaria com a vida mais miserável do que já tem. Deixemo-lo em paz.
- Se não o vai prender para que precisa do Demaretion? perguntei, e tirei-lhe a caixa de esferovite das mãos. - Isto pertence-me, assinei um recibo em como a tinha recebido.
Al olhou-me um momento, espantado. Depois riu.
- Tem razão, Dunk, é seu. Quer que a acompanhe à Grandby?
- Não - respondi. - vou fazer isto à minha maneira, e se alguém tentar roubar-me haverá outro homicídio para investigar. Não o meu, mas o do ladrão.
- Tenha cuidado, Dunk - avisou Jack.
- Logo telefono-lhes - disse, afastando-me.
Já era tarde e sabia que havia muito poucas probabilidades de arranjar um táxi, praticamente corri até à Grandby & Sons, apertando a caixa contra o peito e tentando não gritar de triunfo.
Subi a quatro e quatro as escadas para o meu antigo gabinete e bati com força à porta, começando, em seguida, a dar-lhe pontapés. Hobart Juliana espreitou pelo postigo e depois abriu.
- Dunk! - exclamou, assombrado. - Que diabo...?
- Vê! - gritei. - Olha para isto!
Retirei a caixa de madeira e vidro do contentor de esferovite e coloquei-a sobre a secretária de Hobie. Ele inclinou-se para ver a moeda, aninhada sobre o veludo, no compartimento do meio. Depois endireitou-se e voltou-se para mim.
- Oh, meu Deus! O Demaretion. Dunk, isto é formidável!
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- Sim - concordei, apetecendo-me rir e chorar ao mesmo tempo. - E tão lindo! Tão lindo!
Hobie soltou um grito de alegria, agarrou-me e começámos os dois a dançar, tão excitados e alegres que eu julguei não ir aguentar a emoção.
Hobie parou subitamente.
- Vamos, vamos impressionar Madame Dodat e o "deus" com a tua incrível vitória.
Por isso lá fomos pelo corredor, eu com a caixa na mão, em direcção ao gabinete de Felicia. Passámos pela indignada secretária, entrámos, e Felicia olhou-nos, chocada por aquela súbita intrusão. Pousei a caixa à sua frente.
- Aqui está - disse. - O Demaretion! Ela olhou-o durante um momento.
- Oh, Dunk! - exclamou - Que bom. vou telefonar a Mister Grandby. Ele vai ficar muito satisfeito.
Dez minutos depois deviam estar umas doze pessoas no escritório de Felicia, todas debruçadas sobre a secretária para examinarem o Demaretion, rindo, beijando-me ou apertando-me a mão. Stanton Grandby, o "deus", também ali se encontrava, mas só conseguia dizer: "Bem, bem, bem", repetia constantemente "bem, bem, bem". Toda a gente queria saber como eu recuperara a moeda, mas eu limitava-me a sorrir misteriosamente e a piscar um olho. Um grande momento da minha vida, um tiro certeiro.
Finalmente, Felicia Dodat pôs toda a gente fora, excepto Grandby, Hobie e eu.
- Então, Dunk, conte-nos agora como conseguiu isto - pediu com o seu melhor sorriso.
Tinha a minha história preparada. Disse-lhes apenas que Archibald Havistock, um coleccionador apaixonado, não fora capaz, no último minuto, de se separar do Demaretion, mas não lhes contei coisa alguma a respeito das relações dele com a nora ou do facto de estar a ser vítima de chantagem por parte do sobrinho. Se os jornalistas viessem a saber da história, eles teriam tempo de conhecer todos os pormenores. Por mim tal não aconteceria.
Aceitaram prontamente a minha versão e todos concordámos que os verdadeiros coleccionadores chegam a ser maníacos. Depois formámos os quatro uma procissão triunfal em direcção aos cofres. Stanton Grandby transportava a caixa com o Demaretion, que, finalmente, ficou guardado em segurança.
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- Bem, bem, bem - disse Stanton Grandby, sorrindo. Creio que isto pede uma celebração. Querem jantar comigo?
E fomos jantar com ele ao Bedlington, onde bebemos todos Chateaubriand a acompanhar o melhor molho holandês que eu jamais provara, e ainda duas garrafas de champanhe. O meu patrão não estava a proceder como um pinguim, chegou até a dizer-me ao ouvido que eu podia contar com um bom aumento de salário pelos meus "notáveis esforços" em favor da Grandby & Sons.
Separámo-nos cerca das vinte horas. Felicia Dodat e o "deus" partiram juntos - para um apartamento da Rua Sessenta e Cinco, pensei? Hobie e eu despedimo-nos na rua e jurei-lhe que na segunda-feira de manhã lá estaria, no nosso gabinete. Depois ele foi para casa, ter com o companheiro, e eu meti-me num táxi e dirigi-me, sozinha, para a minha.
Não havia nada de interessante no meu correio - só contas e propaganda -, por isso tirei os sapatos e estendi-me no sofá, cansada depois daquele dia excitante. Não existia qualquer razão para me sentir deprimida - vencera, não? -, mas o facto é que me sentia.
Apercebi-me então de que o que me entristecia era a sorte de Archibald Havistock. Considerava-o uma estátua, agora derrubada, quebrada, em ruínas, e tentei compreender como tudo aquilo pudera suceder, por que motivo um homem inteligente, racional, agira tão estupidamente.
Talvez fosse a menopausa masculina, talvez não fosse mais do que o desejo por um corpo jovem, lascivo, mas eu achava que era mais do que isso. Havistock devia ser um homem profundo, sabia exactamente que seria loucura deixar-se arrastar pela mulher do filho, fazer dela sua amante, e pôr assim em causa a felicidade da sua casa, mas não pudera resistir.
Subitamente ocorreu-me que se apaixonara, talvez, por ela, e concluí que isso era possível. Aquele homem reservado, imponente, completo, podia, pela primeira vez na sua vida, ter sentido uma paixão avassaladora, que dera significado aos seus dias, e rendera-se a esse impulso, sem se importar com coisa alguma, por ser novidade, por jamais ter experimentado tão intensas emoções.
Contudo, fossem quais fossem os seus motivos e obsessões nada poderia desculpar o seu comportamento ilógico.
Suspirei e dirigi-me ao quarto, pois tinha dois telefonemas a fazer: o primeiro para Al Georgio, dizendo a esse homem estimável que não, que não casaria com ele; o segundo para Jack Smack, confirmando a esse bailarino superficial que sim, que iria viver com ele. Podemos ser lógicos a respeito das vidas das outras pessoas, mas nunca acerca da nossa.
Lawrence Sanders
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