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O OLHO DA TEMPESTADE / Jack Higgins
O OLHO DA TEMPESTADE / Jack Higgins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O OLHO DA TEMPESTADE

 

Faltava pouco para anoitecer quando Dillon surgiu de um beco e parou na esquina. A chuva cruzava o Sena em saraivadas, misturando-se à neve, e fazia muito frio, mesmo para o mês de janeiro em Paris. Ele vestia um casaco do tipo usado por marinheiros, boné, jeans e botas, e parecia apenas mais um marinheiro de uma das barcaças que trabalhavam no rio, o que definitivamente não era.

Acendeu um cigarro com as mãos em concha e ficou ali, nas sombras, por um momento, observando a praça calçada com pedras, à luz do pequeno café que se localizava do outro lado. Depois de um certo tempo, jogou fora o cigarro, enterrou as mãos nos bolsos e dirigiu-se para lá.

Na escuridão da entrada, dois homens esperavam, observando-o aproximar-se.

— Deve ser ele — sussurrou um dos homens.

Fez então um movimento e o outro o deteve.

— Não, espere até ele entrar.

Dillon, cujos sentidos haviam sido aguçados por anos e anos de uma vida na total ilegalidade, estava atento aos dois homens, mas não demonstrou qualquer sinal. Fez uma pausa na entrada, deslizou a mão esquerda sob o casaco, verificando se a Walther PPK estava segura de encontro à parte inferior de suas costas, enfiada na cintura do jeans; a seguir, abriu a porta e entrou.

Era um local como tantos outros encontrados naquela parte do rio: meia dúzia de mesas com cadeiras, um balcão com tampo de zinco e garrafas alinhadas contra um espelho quebrado por trás. A porta que dava para os fundos do bar era oculta por uma cortina de contas.

O barman, um velho de bigode grisalho, vestia um casaco de alpaca, as mangas puídas nos punhos, e uma camisa sem gola. Pôs de lado a revista que estava lendo e levantou-se de seu banco.

— Pois não, monsieur?

Dillon desabotoou o blusão e pousou o boné sobre o balcão. Era um homem pequeno, não mais de l,65m de altura, cabelos claros e olhos que pareceram ao barman de uma cor indefinida, mas que eram os mais frios que ele já vira em sua vida. O velho estremeceu, sentindo um medo inexplicável, e então Dillon sorriu. A transformação foi impressionante: de súbito, nada mais havia nele senão simpatia e um imenso charme. Quando falou, seu francês era impecável.

— Será que haveria na casa algo como uma meia garrafa de champanhe?

O velho encarou-o atônito.

— Champanhe? Monsieur deve estar brincando. Tenho apenas dois tipos de vinho: um tinto e outro branco.

Ele pousou uma garrafa de cada sobre o balcão. A bebida era de qualidade tão ruim que as garrafas tinham tampas de rosca em vez de rolhas.

— Tudo bem — conformou-se Dillon. — Vamos ao branco. Dê-me um copo.

Pôs de novo o boné na cabeça, levantou-se e escolheu uma mesa encostada à parede, de onde podia ver tanto a entrada como a porta coberta pela cortina, que dava para os fundos do bar. Abriu a garrafa, despejou um pouco do vinho no copo e experimentou-o.

— De que safra é esse vinho? Da semana passada?—perguntou ao barman.

— Como, monsieur?! — O velho parecia confuso.

— Deixe para lá. — Dillon acendeu um outro cigarro, recostou-se na cadeira e pôs-se a esperar.

O homem de pé próximo à cortina, espiando através dela, estava na casa dos cinqüenta anos; tinha estatura mediana e as feições ligeiramente decadentes. A gola de pele de seu sobretudo escuro estava levantada para protegê-lo do frio. Parecia um próspero homem de negócios—a começar pelo Rolex de ouro no pulso esquerdo, o que ele não deixava de ser, tendo a posição de adido comercial sênior da Embaixada soviética em Paris. Era também coronel do KGB, um certo Josef Makeev.

O homem mais jovem, de cabelos escuros, trajando um caro sobretudo de pele de vicunha, que espiava por sobre o ombro do outro, chamava-se Michael Aroun.

— Isso é ridículo. Esse não pode ser o nosso homem. Parece não ser de nada — sussurrou ele.

— Um erro grave que muitos já cometeram, Michael — disse Makeev. — Vamos esperar para ver.

A campainha tilintou quando a porta externa se abriu, deixando a chuva e o vento entrarem, assim como os dois homens que estiveram esperando na entrada quando Dillon cruzou a praça. Um deles tinha mais de 1,80m de altura, usava barba e possuía uma feia cicatriz saindo do olho direito. O outro era bem mais baixo e os dois vestiam blusões no estilo dos marinheiros e calças de brim. Pareciam ser exatamente o que eram: confusão.

Pararam diante do balcão e o velho parecia preocupado.

— Sem problemas — disse o mais jovem. — Só queremos uma bebida.

O grandalhão se virou e olhou para Dillon.

— Parece que temos uma bem aqui. — Dirigiu-se à mesa e apanhou o copo de Dillon, bebendo o seu conteúdo.—Nosso amigo não se importa, não é mesmo?

Sem levantar-se de sua cadeira, Dillon ergueu o pé esquerdo, atingindo a rótula do joelho do homem barbudo, que se abaixou com um grito abafado, agarrando-se à mesa, enquanto Dillon punha-se de pé. O homem barbudo tentou erguer-se e caiu sobre uma das cadeiras. Seu amigo tirou a mão do bolso, fazendo saltar a lâmina de uma faca de destrinchar, e a mão esquerda de Dillon surgiu segurando a Walther PPK.

— Ponha a faca sobre o balcão. Deus do céu! Os tipos como vocês nunca aprendem, não é mesmo? Agora ajude esse monte de merda a ficar de pé e dêem o fora daqui, enquanto ainda estou de bom humor. Acho que vocês vão precisar ir ao hospital mais próximo. Parece que desloquei a rótula do joelho dele.

O homem mais baixo foi até o amigo, fazendo um grande esforço para ajudá-lo a erguer-se. Ficaram ali parados um momento, o rosto do homem de barba contraído numa careta de dor. Dillon adiantou-se e abriu a porta, a chuva caindo incessantemente lá fora.

— Tenham uma boa noite — disse, quando os dois passaram cambaleando por ele, e a seguir fechou a porta.

Ainda segurando a Walther na mão esquerda, acendeu um cigarro com um fósforo apanhado no depósito sobre o balcão e sorriu para o velho barman, que parecia aterrorizado.

— Não se preocupe, meu velho, o problema não é com você. — A seguir, recostou-se no balcão e gritou: — Tudo bem, Makeev, sei que você está aí, portanto pode aparecer.

A cortina se abriu e Makeev e Aroun se adiantaram.

— Sean, meu querido, é bom vê-lo outra vez.

— Você não é mesmo uma gracinha? — zombou Dillon, um leve traço de sotaque irlandês, da região do Ulster. —Num minuto você tenta me apanhar, no seguinte é todo simpatia e doçura.

— Foi preciso, Sean — retrucou Makeev. — Eu tinha de mostrar uma coisinha ao meu amigo aqui. Deixe-me apresentá-los.

— Não é necessário — interrompeu-o Dillon. — Já vi muitas fotografias dele. Quando não no caderno de finanças, nas colunas sociais. Michael Aroun, não é? O homem que tem todo o dinheiro do mundo.

— Nem todo, Sr. Dillon.—Aroun estendeu a mão, que Dillon ignorou.

— Deixemos de lado as cortesias, meu velho camarada, e diga a quem quer que esteja do outro lado dessa cortina para sair.

— Rashid, faça o que ele diz — gritou Aroun, acrescentando para Dillon: — É apenas meu assistente.

O jovem que surgiu tinha a pele escura e o olhar alerta, e vestia uma jaqueta de couro, a gola levantada, as mãos enfiadas nos bolsos.

Dillon sabia reconhecer um profissional quando o encontrava.

— Nada de truques — disse, fazendo um movimento com a Walther. Rashid sorriu e retirou as mãos dos bolsos. — Muito bem, então. Eu já estou de saída.

Ele virou-se e abriu a porta.

— Sean, seja razoável. Só queremos conversar. Trata-se de um trabalho — disse Makeev.

— Sinto muito, mas não gosto dos seus métodos de trabalho.

— Nem mesmo por um milhão, Sr. Dillon? — perguntou Michael Aroun.

Dillon parou e voltou-se para olhá-lo com calma, e então sorriu, exibindo mais uma vez seu grande charme.

— E isso seria em libras ou dólares, Sr. Aroun? — Saiu para a chuva, sem esperar resposta à sua pergunta.

— Nós o perdemos — disse Aroun quando a porta bateu.

— Em absoluto — replicou Makeev. — Um homem estranho esse, acredite. — Virou-se para Rashid: — Você tem aí o telefone celular?

— Sim, coronel.

— Ótimo. Vá atrás dele. Grude nele como carrapato. Quando ele parar em algum lugar, telefone para mim. Estaremos na Avenida Victor Hugo.

Rashid não disse palavra; simplesmente saiu. Aroun apanhou a carteira, retirando dela uma nota de mil francos, que deixou sobre o balcão.

— Somos muito gratos ao senhor — disse ao barman, que o olhava completamente atônito. A seguir virou-se e seguiu Makeev.

— Ele não hesitou um só momento lá dentro — disse ao russo, enquanto se sentava ao volante do Mercedes preto.

— Um homem notável, esse Sean Dillon — acrescentou Makeev quando se afastavam dali. — A primeira vez em que pegou numa arma para o IRA foi em 1971. São vinte anos, Michael, vinte anos, e ele não esteve numa prisão nem uma só vez. Ele estava envolvido naquele caso Mountbatten; depois tornou-se problemático demais para o seu próprio pessoal lidar com ele e então mudou-se para a Europa. Como eu já lhe disse, já trabalhou para todo mundo. A OLP, a Brigada Vermelha na Alemanha, nos velhos tempos. Para o movimento nacional basco, o ETA. A mando deles, matou um general espanhol.

— E para o KGB?

— Naturalmente. Já trabalhou para nós muitas vezes. Usamos sempre o melhor e Sean Dillon é exatamente isso. Ele fala inglês e irlandês com perfeição, francês e alemão fluentes, e árabe, italiano e russo razoavelmente.

— E, em vinte anos, ninguém nunca o apanhou. Como alguém pode ter tanta sorte assim?

— Porque ele tem o mais extraordinário talento para representar, meu amigo. Um gênio, pode-se dizer. Quando era garoto, seu pai o levou de Belfast para morar em Londres, onde ele ganhou uma bolsa de estudos para a Academia Real de Arte Dramática. Chegou a trabalhar no Teatro Nacional quando tinha dezenove ou vinte anos. Nunca vi alguém que possa mudar tanto a personalidade e a aparência somente com a linguagem corporal. Raramente lança mão da maquiagem, embora eu admita que esse artifício ajude bastante. Ele é uma lenda sobre a qual os serviços secretos da maioria dos países mantêm silêncio, pois não podem lhe atribuir um rosto e portanto não sabem o que procuram.

— E o que me diz dos ingleses? Afinal, eles devem ser especialistas no que diz respeito ao IRA.

— Não, nem mesmo os ingleses. Como eu já disse, ele nunca foi preso, nem uma única vez, e, ao contrário de muitos de seus amigos do IRA, ele nunca cortejou a publicidade da mídia. Duvido que exista em algum lugar uma foto dele, exceto as da infância.

— E da sua época de ator?

— Bem, talvez, mas isso foi há vinte anos, Michael.

— E você acha que ele aceitaria essa missão se eu lhe oferecesse dinheiro bastante?

— Não, o dinheiro por si só nunca foi suficiente para esse homem. Quando se trata de Dillon, o que importa é o próprio trabalho. Como posso explicar? É uma coisa muito interessante. Para esse homem, representar é tudo. E o que estamos lhe oferecendo é um novo papel. No teatro das ruas, talvez, mas ainda assim trata-se de representar. — Ele sorriu quando o Mercedes juntou-se ao trânsito que contornava o Arco do Triunfo. — Vamos aguardar e ver o que acontece. Espere até Rashid nos dar notícias.

 

Naquele momento, o capitão Ali Rashid encontrava-se à margem do Sena, na extremidade de um pequeno píer que se projetava sobre o rio. A chuva caía pesadamente, a neve ainda misturando-se a ela. Os holofotes estavam acesos na Notre Dame e o efeito era de uma imagem vista parcialmente através de uma cortina de filó. Ele observou Dillon atravessar o estreito píer até o edifício sobre estacas na outra extremidade, esperou-o entrar e o seguiu.

O local era bem antigo e construído em madeira, com barcaças e barcos de vários tipos atracados por toda parte. O letreiro acima da porta dizia Le ChatNoir. O capitão espiou através da janela com cautela. O estabelecimento possuía um balcão e várias mesas, exatamente como no outro bar. A única diferença era que havia pessoas comendo ali. E até mesmo um homem sentado num banco, encostado à parede, tocando acordeom. Tudo muito parisiense. Dillon estava de pé diante do balcão, falando com uma jovem.

Rashid afastou-se, voltando à extremidade do píer, parou ao lado da amurada, abrigado por uma pequena cobertura, apanhou o telefone celular e discou o número do apartamento de Aroun, na Avenida Victor Hugo.

Houve um ligeiro clique quando a Walther foi engatilhada e Dillon empurrou a boca do cano com violência em sua orelha direita.

— Agora, meu chapa, quero algumas respostas — disse com firmeza. — Quem é você?

— Meu nome é Rashid — declarou o jovem. — Ali Rashid.

— O que você é? É da OLP?

— Não, Sr. Dillon. Sou um capitão do Exército iraquiano, designado para proteger o Sr. Aroun.

— E o que me diz de Makeev e do KGB?

— Digamos apenas que ele está do nosso lado.

— Do jeito que as coisas vão no Golfo, vocês precisam mesmo de alguém do seu lado, meu velho. — Ouviu-se uma voz distante vinda do telefone celular. — Vamos, responda.

— Rashid, onde está ele? — soou a voz de Makeev.

— Bem aqui, em frente a um café na margem do rio, perto da Notre Dame — respondeu Rashid. — Com o cano da Walther bem dentro da minha orelha.

— Ponha-o na linha — ordenou Makeev.

Rashid passou o telefone a Dillon.

— E então, seu velhaco?

— Um milhão, Sean. Em libras se você preferir.

— E o que eu precisaria fazer por todo esse dinheiro?

— O melhor trabalho da sua vida. Deixe que Rashid o traga aqui e conversaremos.

— Não, acho que não — respondeu Dillon. — Prefiro que você levante esse rabo daí e venha pessoalmente nos apanhar.

— Está certo — concordou Makeev. — Onde vocês estão?

— Na Margem Esquerda, em frente à Notre Dame. Num barzinho em um píer, chamado Le Chat Noir. Estaremos à sua espera.

Deslizou a pistola para o bolso e devolveu o telefone a Rashid.

— Então ele está vindo? — indagou o capitão.

— É claro que sim. — Dillon sorriu. — Agora vamos entrar, nos acomodar e tomar um drinque.

 

Na sala de estar do andar térreo do apartamento da Avenida Victor Hugo, com vista para o Bois de Boulogne, Josef Makeev pôs o fone no gancho e dirigiu-se ao sofá onde estava seu sobretudo.

— Era Rashid? — perguntou Aroun.

— Era. Ele está com Dillon nesse momento, num lugar no rio. Estou indo buscá-los.

— Irei com você.

Makeev vestiu o casaco.

— Não é necessário, Michael. Você fica aqui, na defesa do forte. Não demoraremos.

E saiu. Aroun apanhou um cigarro numa caixa de prata, acendeu-o e ligou a televisão. O noticiário já ia pela metade e mostrava a cobertura direta de Bagdá. Caças-bombardeiros Tornado da Força Aérea Real britânica atacavam em baixa altitude. Ele sentiu uma raiva amarga. Desligou o aparelho, serviu-se de uma dose de conhaque e sentou-se diante da janela.

Michael Aroun tinha quarenta anos e era um homem notável em todos os aspectos. Nascido em Bagdá de mãe francesa e pai iraquiano, um oficial do Exército, tivera uma avó materna americana, de quem sua mãe herdara dez milhões de dólares e alguns contratos de exploração de petróleo no Texas.

Sua mãe morrera no mesmo ano em que Aroun se formara na Faculdade de Direito de Harvard deixando tudo para o filho, pois o pai, general reformado do Exército iraquiano, sentia-se satisfeito em passar o resto de seus dias na velha casa da família em Bagdá, na companhia de seus livros.

Como a maior parte dos grandes homens de negócios, Aroun não tinha qualquer formação acadêmica no ramo. Ele nada sabia de planejamento financeiro ou administração de empresas. Sua frase favorita, citada com freqüência, era: “Quando preciso de um novo contador, compro um.”

Sua amizade com Saddam Hussein evoluíra naturalmente, devido ao fato de o presidente do Iraque haver recebido, no início de sua carreira política, grande apoio do pai de Aroun, que era também um importante membro do Partido Baath. Tal apoio deixara Aroun numa posição privilegiada no que dizia respeito à exploração dos campos de petróleo de seu país, trazendo-lhe riquezas incalculáveis.

“Depois do primeiro bilhão, a gente pára de contar” era outra de suas máximas favoritas. E agora ele se via diante do desastre. Não só lhe arrancavam as riquezas garantidas dos campos de petróleo do Kuwait, como também secara a parte de suas riquezas proveniente do Iraque, como resultado dos maciços ataques aéreos dos Aliados que devastavam seu país desde 17 de janeiro.

Ele não era nenhum tolo. Sabia que o jogo chegara ao fim, que provavelmente não devesse sequer ter começado, e que o sonho de Saddam Hussein fora abortado. Como homem de negócios, ele conhecia o jogo das porcentagens e este não oferecia ao Iraque muitas chances nos combates terrestres que acabariam por acontecer.

Em termos pessoais, ele estava longe da ruína. Ainda tinha negócios petrolíferos nos Estados Unidos e o fato de ter cidadania francesa e iraquiana representava um problema para Washington. Havia ainda seu império naval e inúmeras propriedades em várias capitais de todo o mundo. Não era essa, porém, a questão. Ele sentia raiva quando ligava a televisão todas as noites e via o que estava acontecendo em Bagdá porque — coisa surpreendente em alguém tão egocêntrico — ele era um patriota. Havia também o fato — infinitamente mais importante — de que seu pai fora morto num bombardeio, na terceira noite de combates aéreos.

E havia um grande segredo em sua vida, pois em agosto, pouco depois da invasão do Kuwait pelas forças iraquianas, Aroun fora chamado pelo próprio Saddam Hussein. Sentado ali, diante da janela de sacada, um copo de conhaque em uma das mãos, a chuva caindo oblíqua sobre o terraço, olhando o Bois de Boulogne sob a luz noturna, ele recordou aquele encontro.

 

Estava sendo realizado um ataque aéreo simulado, enquanto ele era conduzido por um Land Rover do Exército pelas ruas de Bagdá imersas na escuridão. O motorista era um jovem capitão do serviço de informações de nome Rashid e ele já o encontrara anteriormente; o capitão era um dos oficiais da nova linhagem, treinado pelos britânicos em Sandhurst. Aroun ofereceu-lhe um cigarro inglês, acendendo um para si mesmo também.

— Qual a sua opinião? Acha que tomarão alguma atitude?

— Os americanos e ingleses? — A atitude de Rashid era cautelosa. — Quem sabe? Com certeza estão reagindo. O presidente Bush parece estar adotando uma postura inflexível.

— Não, você está enganado — retrucou Aroun. — Já estive com o homem frente a frente por duas vezes, em cerimônias na Casa Branca. Ele é o que nossos amigos americanos chamam de “um cara legal”. Não há nada de durão naquele homem.

Rashid deu de ombros.                

— Sou um homem simples, Sr. Aroun, um soldado, e talvez eu veja as coisas de modo muito simplório. Estamos falando de um homem que foi piloto combatente da Marinha aos vinte anos, que vivenciou o serviço ativo, que foi atingido sobre o mar do Japão e que sobreviveu para ser condecorado com distinção. Eu não subestimaria tal homem.

Aroun franziu o cenho.

— Convenhamos, meu amigo, os americanos não vão dar meia volta ao mundo com um exército só para proteger um pequeno país árabe.

— Não foi exatamente isso que fizeram os ingleses na Guerra das Malvinas? — lembrou-lhe Rashid. — Os argentinos não esperavam aquela reação. Naturalmente que eles, os britânicos, tinham a determinação de Margaret Thatcher por trás deles.

— Mulher amaldiçoada! — praguejou Aroun e recostou-se no banco, enquanto cruzavam os portões do palácio presidencial, sentindo-se subitamente deprimido.

 

Ele seguiu Rashid ao longo de corredores revestidos com o esplendor do mármore, o jovem oficial mostrando o caminho com a ajuda de uma lanterna. Era uma experiência estranha, um tanto sobrenatural, seguir aquele pequeno feixe de luz no chão, seus passos ecoando. Havia um guarda em cada lado da pomposa porta diante da qual finalmente se detiveram. Rashid a abriu e ambos entraram.

Saddam Hussein encontrava-se sozinho, em seu uniforme, sentado a uma grande mesa iluminada por um único abajur. Ele estava escrevendo, lenta e cuidadosamente, e ergueu os olhos, sorrindo e pondo de lado a caneta.

— Michael. — Ele contornou a mesa e abraçou Aroun como um irmão. — Seu pai? Ele está bem?

— Em perfeita saúde, meu Presidente.

— Dê-lhe lembranças minhas. Você parece ótimo, Michael. Paris está lhe fazendo muito bem. — Sorriu outra vez. — Sinta-se à vontade para fumar. Sei que você gosta. Infelizmente, os médicos me aconselharam a parar, senão...

Acomodou-se novamente por trás da mesa e Aroun sentou-se diante dele, ciente da presença de Rashid, encostado na parede, na escuridão.

— Foi ótimo passar uns tempos em Paris, mas agora, nesse momento difícil, meu lugar é aqui.

Saddam Hussein abanou a cabeça.

— Não é bem assim, Michael. Tenho soldados em abundância, mas poucos homens como você: rico, famoso, aceito nos mais altos níveis da sociedade e do governo em todos os lugares do mundo. Mais do que isso, graças à sua adorada mãe, cuja lembrança é abençoada, você é não só iraquiano como também francês. Não, Michael, quero você em Paris.

— Mas por quê, meu Presidente? — indagou Aroun.

— Porque um dia posso precisar que seja feito um serviço para mim e para o seu país que somente você poderá realizar.

— Pode contar sempre comigo, o senhor sabe disso — declarou Aroun.

Saddam Hussein ergueu-se, caminhou até a porta, abriu-a e passou ao terraço. O toque que indicava o final do ataque simulado soou melancolicamente pela cidade e luzes começaram a surgir aqui e ali.

— Ainda espero que nossos amigos na América e na Inglaterra fiquem em seu próprio território, mas caso isso não aconteça... — Ele encolheu os ombros.—Talvez então tenhamos que lutar contra eles em seu próprio quintal. Lembre-se, Michael, como o Profeta nos ensina no Corão, há mais verdade na espada de um homem do que em dez mil palavras. — Fez uma pausa e então prosseguiu, o olhar ainda pousado sobre a cidade: — Um atirador de elite na noite, Michael, do SAS britânico ou um israelense, isso de fato não importa, e que golpe! A morte de Saddam Hussein.

— Deus nos livre! — exclamou Michael Aroun.

Saddam voltou-se para ele.

— Seja feita a vontade de Deus, Michael, em todas as coisas, mas você entende o que estou querendo dizer? O mesmo se aplicaria a Bush ou a Margaret Thatcher. A prova de que meu poder se estende por toda parte. O golpe definitivo.—Deu-lhe as costas. — Você seria capaz de preparar algo assim, caso fosse necessário?

Aroun nunca experimentara tamanha excitação em toda a sua vida.

— Creio que sim, meu Presidente. Tudo na vida é possível, principalmente quando há dinheiro suficiente à disposição. Este seria meu presente ao senhor.

— Ótimo—assentiu Saddam.—Você voltará a Paris imediatamente. O Capitão Rashid o acompanhará. Ele disporá dos detalhes de certos códigos que usaremos em radiotransmissões, esse tipo de coisa. O dia pode nunca chegar, Michael, mas se chegar... — Deu de ombros. — Temos amigos nos lugares certos.—Voltou-se para Rashid. — Como é mesmo o nome daquele coronel do KGB na Embaixada soviética em Paris?

— Coronel Josef Makeev, meu Presidente.

— Isso mesmo. — Saddam Hussein dirigiu-se a Aroun. — Como muitos iguais a ele, não está muito satisfeito com as mudanças que estão ocorrendo em Moscou. Ele nos ajudará de todas as formas que puder. Já deixou clara sua disposição para isso. — Abraçou Aroun, mais uma vez como um irmão. — Agora vá. Tenho muito o que fazer.

As luzes ainda não haviam se acendido no palácio e Aroun mergulhou na escuridão do corredor, seguindo o feixe de luz da lanterna de Rashid.

 

Desde sua volta a Paris, passara a conhecer bem Makeev, mantendo seu relacionamento, deliberadamente, num mero nível social, encontrando-se quase sempre em cerimônias na Embaixada. E Saddam Hussein tinha razão: o russo estava com toda certeza do lado deles, ansioso por fazer algo que trouxesse problemas para os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha.

Naturalmente, as notícias vindas de casa não eram boas. A formação daquele exército gigantesco, quem poderia ter imaginado? E então, nas primeiras horas do dia 17 de janeiro, a guerra aérea tivera início. Uma desgraça após outra, e ainda havia os combates terrestres por vir.

Aroun serviu-se de mais uma dose de conhaque, recordando a dor e o desespero ao receber a notícia da morte de seu pai. Ele nunca tivera tendências religiosas, mas fora até uma mesquita, numa rua secundária de Paris, para orar. Não que isso tenha lhe dado qualquer conforto. A sensação de impotência era como algo vivo dentro dele, e então chegara o dia em que Ali Rashid entrara apressado na sala de estar ricamente decorada, um bloco de anotações em uma das mãos, o rosto pálido e excitado.

— Chegou, Sr. Aroun. A mensagem que aguardávamos. Acabo de recebê-la no radiotransmissor, vinda de Bagdá.

 

Os ventos do paraíso estão soprando. Execute tudo que está sobre a mesa. Que Deus esteja convosco.

 

Aroun olhava as palavras com espanto, a mão trêmula segurando o bloco, e quando ele falou a voz soou rouca:

— O presidente estava certo. Chegou o dia.

— Exato — retrucou Rashid. — Execute tudo que está sobre a mesa. Entraremos em ação. Farei contato com Makeev e marcarei um encontro o mais rápido possível.

 

Dillon parou diante da janela de sacada e percorreu com os olhos a Avenida Victor Hugo até o Bois de Boulogne, assoviando baixinho uma estranha canção.

— Isso deve ser o que os corretores de imóveis chamam de uma localização privilegiada.

— Aceita uma bebida, Sr. Dillon?

— Uma taça de champanhe viria em boa hora.

— O senhor tem preferência? — perguntou Aroun.

— Ah, o homem que tem de tudo — observou Dillon. — Bem, para mim Krug está ótimo, mas não-vindimado. Prefiro a mistura de uvas.

— Vejo que o senhor é um homem de bom gosto. — Aroun fez um sinal a Rashid, que abriu uma porta lateral e saiu.

Dillon, desabotoando o blusão de marinheiro, tirou do bolso um cigarro e o acendeu.

— Então?você precisa dos meus serviços, é o que me diz essa velha. — Fez um sinal na direção de Makeev, que se a recostado na lareira, aquecendo-se. — O maior trabalho de minha vida, disse ele, e por um milhão de libras. Bem, o que preciso fazer em troca de tudo isso?

Rashid entrou rapidamente com a garrafa de Krug em um balde e três taças em uma bandeja. Pousou tudo sobre a mesa e pôs-se a abrir a garrafa.

— Não sei ao certo, mas tem de ser alguma coisa muito especial. Algo para mostrar ao mundo que Saddam Hussein pode chegar aonde quiser.

— Ele precisa mesmo de alguma coisa, o pobre coitado — observou Dillon, zombeteiro. — As coisas não estão indo muito bem por lá. — Quando Rashid terminou de encher as três taças, o irlandês acrescentou: — E qual é o seu problema, filho? Não vai nos fazer companhia?

Rashid sorriu e Aroun respondeu:

— Apesar de Winchester e Sandhurst, Sr. Dillon, o capitão Rashid continua sendo um muçulmano convicto. Ele não bebe nada que contenha álcool.

— Bem, um brinde a você. — Dillon ergueu sua taça. — Eu respeito um homem de princípios.

— Precisamos de algo grande, Sean, coisa pequena não serve. Não estamos falando de mandar para os ares cinco pára-quedistas do Exército inglês em Belfast — disse Makeev.

— Ah, é o Bush que você quer? — Dillon sorriu. — O presidente dos Estados Unidos caído de costas com uma bala na testa?

— Isso seria esperar demais? — perguntou Aroun.

— Nesse momento sim, filho — retrucou Dillon. — George Bush resolveu desafiar não só Saddam Hussein, mas todo o povo árabe. Bem, isso é uma grande bobagem, naturalmente, mas é como muitos árabes fanáticos vêem a coisa. Grupos como o Hizbollah, a OLP ou os curingas, como o pessoal da Ira de Alá. O tipo de gente que se sentiria feliz em amarrar uma bomba à própria cintura e detoná-la enquanto o presidente estende o braço para cumprimentar mais um na multidão. Conheço pessoas desse tipo. Sei como suas mentes funcionam. Ajudei a treinar pessoal para o Hizbollah em Beirute. E também já trabalhei para a OLP.

— O que você está dizendo é que nesse momento ninguém consegue chegar perto de Bush?

— Leia os jornais. Qualquer um que tenha uma ligeira semelhança com um árabe está evitando sair às ruas por esses dias em Nova York e Washington.

— Mas você, Sr. Dillon, não se parece nem de longe com um árabe — observou Aroun. — Em primeiro lugar, seu cabelo é claro.

— O de Lawrence da Arábia também era e ele costumava passar por árabe. — Dillon balançou a cabeça. — O presidente Bush tem a melhor segurança do mundo, creia-me. Um círculo de aço e, nas atuais circunstâncias, ele vai é ficar em casa, enquanto essa questão do Golfo ferve. Guarde bem as minhas palavras.

— E o que você me diz do secretário de Estado, James Baker? — sugeriu Aroun. — Ele vem fazendo visitas diplomáticas por toda a Europa.

— Sim, mas o problema é saber quando. Anunciam que ele estará em Londres ou Paris quando ele já se foi e então o mostram na televisão. Não, pode esquecer os americanos nesse assunto.

Fez-se silêncio na sala e Aroun parecia abatido. Makeev foi o primeiro a falar.

— Dê-me então o benefício de sua experiência profissional, Sean. Onde é que se encontra a segurança mais falha no que diz respeito aos líderes das nações?

Dillon soltou uma gargalhada.

— Ah, creio que o seu homem aqui pode responder a essa pergunta, já que esteve em Winchester e Sandhurst.

Rashid sorriu.

— Ele tem razão. Os ingleses são provavelmente os melhores do mundo em operações de dissimulação. O sucesso do seu SAS, o regimento aéreo especial, fala por si mesmo. Em outras áreas no entanto... — Ele balançou a cabeça.

— Seu principal problema é a burocracia — afirmou Dillon. — O Serviço de Segurança britânico opera em duas seções principais. O que a maioria das pessoas ainda chama de MI5 e MI6. O MI5 ou DI5, para ser mais pedante, especializa-se em contra-espionagem na Grã-Bretanha. O outro grupo opera fora do país. Ainda temos a Divisão Especial da Scotland Yard que precisa ser acionada no caso de qualquer captura. A Yard também tem um esquadrão antiterrorismo. E há ainda unidades de informações do Exército em abundância. Está tudo ali e eles estão uns nos pés dos outros e é aí, cavalheiros, que os erros começam a aparecer.

Rashid serviu-lhe um pouco mais de champanhe.

— Então você está afirmando que isso faz com que a segurança de seus líderes seja falha? No caso da rainha, por exemplo?

— Ora, vamos — respondeu Dillon. — Não faz tantos anos assim que a rainha acordou um dia no Palácio de Buckingham e encontrou um intruso sentado em sua cama. Faz quanto tempo, seis anos, que o IRA quase pegou Margaret Thatcher e todo o Gabinete britânico em um hotel em Brighton, durante o congresso do Partido Conservador? — Pousou a taça sobre a mesa e acendeu outro cigarro. — Os ingleses são muito antiquados. Eles gostam que um policial vista um uniforme para que saibam quem ele é, e não gostam que lhes digam o que fazer. É o caso dos ministros do Gabinete, que não vêem nada demais em andar a pé pelas ruas, de suas casas em Westminster até o Parlamento.

— Sorte a nossa — observou Makeev.

— Exatamente — concordou Dillon. — Além disso, eles precisam ir bem de leve com os terroristas, pelo menos até certo ponto, ao contrário do serviço secreto francês. Santo Deus, se os rapazes do Serviço de Ação pusessem as mãos em mim, eles me amarrariam e dariam choques elétricos nos meus colhões antes que eu percebesse o que estava se passando. Vejam bem, até mesmo eles estão passíveis de um erro ocasional.

— O que você quer dizer com isso? — indagou Makeev.

— Você tem à mão um exemplar do jornal vespertino?

— Claro, ainda há pouco eu estava lendo—respondeu Aroun. Ali, está sobre a minha mesa.

Rashid voltou a seguir com um exemplar do Paris Soir.

— Página dois — indicou Dillon. — Leia em voz alta. Vai achar interessante.

Ele serviu-se de mais champanhe, enquanto Rashid lia a matéria em voz alta.

— A Sra. Margaret Thatcher, até pouco tempo primeira-ministra da Inglaterra, passará a noite em Choisy, como convidada do presidente Mitterrand Os dois conversarão mais pela manhã. Às duas da tarde, ela parte para um campo de pouso de emergência da força aérea, em Valenton, onde um avião da RAF a levará de volta à Inglaterra.

— É incrível, não é mesmo, que tenham permitido esse press release, mas garanto que os principais jornais de Londres publicarão a mesma história.

Houve um silêncio pesado, que foi então quebrado por Aroun:

— Você não está sugerindo que...?

— Você deve ter aí alguns mapas rodoviários. Traga-os — pediu Dillon a Rashid, que deixou a sala rapidamente.

— Santo Deus, Sean, nem mesmo você... — balbuciou Makeev.

— E por que não? — perguntou Dillon calmamente, voltando-se para Aroun. — Quero dizer, você quer algo grande, um golpe de vulto? Será que Margaret Thatcher serve ou só estamos aqui fingindo?

Antes que Aroun pudesse replicar, Rashid retornou com dois ou três mapas rodoviários, abrindo um deles sobre a mesa. Todos olharam para o mapa estendido, exceto Makeev, que permaneceu ao lado da lareira.

— Aqui está Choisy — apontou Rashid. — Quarenta e oito quilômetros de Paris. E aqui está o campo da força aérea em Valenton, a apenas onze quilômetros de distância.

— Você tem um mapa em escala maior?

— Sim. — Rashid desdobrou uma das outras cartas.

— Muito bom—observou Dillon.—Está perfeitamente claro que apenas uma estrada rural liga Choisy a Valenton e aqui, a cerca de cinco quilômetros do campo de pouso, existe uma passagem de nível. Perfeito.

— Para quê? — perguntou Aroun.

— Para uma emboscada. Veja, sei como essas coisas funcio-~Haverá um carro, dois no máximo, e uma escolta. Talvez uma dúzia de policiais da CRS em motocicletas.

— Deus do céu! — sussurrou Aroun.

— Bem, Deus tem muito pouco a ver com isso. A coisa pode funcionar. É rápido e muito simples. O que os ingleses chamam de uma moleza.

Aroun voltou-se para Makeev, pedindo-lhe ajuda, e este deu de ombros.

— Ele fala sério, Michael. Você disse que era isso que queria, portanto tome sua decisão.

Aroun respirou fundo e virou-se para Dillon.

— Está certo.

— Ótimo — retrucou Dillon calmamente. Estendeu o braço para apanhar um bloco de papel e um lápis sobre a mesa, escrevendo com rapidez. — Aí estão os dados da minha conta numerada em Zurique. A primeira coisa que você fará amanhã de manhã será transferir um milhão de libras para ela.

— Adiantados? — questionou Rashid. — Isso não é pedir demais?

— Não, meu velho, são vocês que estão pedindo muito e as regras mudaram. Ao bem-sucedido término da missão, esperarei mais um milhão.

— Agora, ouça aqui... — começou Rashid, mas Aroun interrompeu-o com um gesto.

— Está bem, Sr. Dillon, é um preço justo. Agora, o que podemos fazer para ajudá-lo?

— Preciso de dinheiro para as despesas ordinárias. Suponho que um homem como o senhor mantenha grandes quantias do vil metal pela casa, estou certo?

— Imensas quantias. — Aroun sorriu. — Quanto?

— O senhor pode conseguir dólares? Digamos vinte mil?

— Naturalmente. — Aroun fez um sinal com a cabeça para Rashid, que se dirigiu à outra extremidade da sala e empurrou um grande quadro a óleo para um lado, deixando ver na parede um corre, que ele se pôs a abrir.

— E o que eu posso fazer? — perguntou Makeev.

— O velho armazém na rue de Helier, aquele que já usamos antes. Você ainda tem a chave?

— É claro.

— Ótimo. Tenho quase tudo de que preciso guardado lá, mas para esse trabalho gostaria de uma metralhadora leve. Uma com tripé. Uma Heckler & Koch ou uma M60. Qualquer coisa no gênero serve. — Olhou para o relógio. — Oito horas. Gostaria que você me entregasse isso antes das dez. Está bem?

— É claro — repetiu Makeev.

Rashid voltou para junto deles trazendo uma pequena valise.

— Vinte mil dólares. Receio que em notas de cem.

— Existe algum modo pelo qual elas possam ser rastreadas? — perguntou Dillon.

— Impossível — informou-lhe Aroun.

— Muito bem. Eu levarei os mapas.

Encaminhou-se para a porta, abriu-a e começou a descer a escada curva que levava ao hall. Aroun, Rashid e Makeev seguiram-no.

— Mas isso é tudo, Sr. Dillon? — indagou Aroun. — Não há mais nada que possamos fazer pelo senhor? Não vai precisar de ajuda?

— Quando preciso, recorro às classes marginais — declarou Dillon. — Criminosos honestos que fazem o trabalho por dinheiro costumam ser mais confiáveis do que fanáticos motivados politicamente. Nem sempre, mas na maioria das vezes sim. Não se preocupe, terá notícias minhas, de uma forma ou de outra. Quando isso acontecer, já estarei longe daqui.

Rashid abriu a porta. A chuva misturada à neve entrou com o vento e Dillon pôs o boné.

— Uma noite horrível para uma coisa dessas.

— Um detalhe, Sr. Dillon — disse Rashid. — O que acontece se as coisas não funcionarem? Quero dizer, o senhor terá seu milhão adiantado e nós...

— Não terão nada? Não se preocupe com isso, meu velho. Pensarei num alvo alternativo. Se for este o caso, ainda há o novo primeiro-ministro britânico, o tal John Major. Suponho que a cabeça dele numa bandeja também sirva ao seu chefe lá em Bagdá.

Sorriu mais uma vez e saiu para a chuva, fechando a porta atrás de si.

 

Dillon parou diante do Le Chat Noir, na extremidade do pequeno píer, pela segunda vez naquela noite. O estabelecimento estava quase deserto, um casal de jovens em uma mesa a um canto, de mãos dadas, uma garrafa de vinho entre eles. O acordeom produzia uma música suave e o instrumentista, ao mesmo tempo, conversava com o homem por trás do balcão. Tratava-se dos irmãos Jobert, gângsteres de segunda categoria do submundo parisiense. Suas atividades haviam sido drasticamente restringidas desde que Pierre, o que se encontrava por trás do balcão, perdera a perna esquerda num acidente de automóvel depois de um assalto a mão armada três anos antes.

Quando a porta se abriu e Dillon entrou, o outro irmão, Gaston, parou de tocar.

— Ah, Monsieur Rocard já está de volta.

— Gaston. — Dillon trocou com ele um aperto de mãos e voltou-se para o barman: — Pierre.

— Veja, ainda lembro daquela sua musiquinha irlandesa. Gaston tocou algumas notas no acordeom.

— Muito bom — disse Dillon. — Um verdadeiro artista.

Às suas costas, o jovem casal levantou-se e se foi. Pierre tirou do refrigerador uma garrafa de champanhe com o líquido já pela metade.

— Champanhe como de costume, não é, meu amigo? Não é nada especial, pois somos pobres aqui.

— Assim vou acabar inundando o bar de lágrimas — brincou Dillon.

— E o que nós podemos fazer por você?—perguntou Pierre.

— Ah, vim aqui para lhes oferecer um trabalhinho. — Dillon fez um sinal em direção à porta. — Acho que seria uma boa idéia fechar o bar.

Gaston pousou a acordeom sobre o balcão e dirigiu-se à porta, trancando-a e descendo as persianas. Voltou e sentou-se em seu banco.

— E então, meu amigo?

— Esse pode ser um grande dia para vocês dois, garotos. — Dillon abriu a valise e tirou um dos mapas rodoviários, deixando ver os maços de notas de cem dólares. — Vinte mil dólares americanos. Dez agora e dez depois do trabalho terminado com êxito.

— Meu Deus! — exclamou Gaston com espanto, mas Pierre tinha uma expressão sombria.

— E o que a gente precisaria fazer por tanto dinheiro?

Dillon sempre fora de opinião que valia a pena manter-se o mais próximo possível da verdade, e abriu o mapa sobre o balcão.

— Fui contratado pela União Corsa para resolver um probleminha—explicou ele, citando a mais temida organização criminosa da França. — O que vocês chamariam de rivalidade nos negócios.

— Ah, entendo—disse Pierre. — E é você quem vai eliminar o problema?

— Exatamente. Os homens em questão estarão passando por essa estrada aqui em direção a Valenton pouco depois das duas noras da tarde de amanhã. Pretendo apanhá-los aqui nesta passagem de nível.

— E como vai ser isso? — perguntou Gaston.

— Uma emboscada muito simples. Vocês dois ainda estão nos negócios de veículos, não estão? Carros e caminhões roubados?

— Você deveria saber. Já comprou conosco diversas vezes -—. disse-lhe Pierre.

— Uns dois furgões, não é pedir demais, certo?

— E o que mais?

— Daremos um passeio até lá esta noite. — Olhou para o relógio. — Partiremos daqui às onze horas. Só levará uma hora.

Pierre sacudiu a cabeça.

— Olhe, isso pode ser barra-pesada. Estou ficando muito velho para as armas.

— Maravilhoso — observou Dillon. — Quantos você matou quando trabalhou para a OAS?

— Eu era mais jovem então.

— Bem, creio que o mesmo se aplica a todos nós. Nada de brincadeirinhas com armas. Vocês dois estarão fora disso tão rápido que nem saberão o que aconteceu. Uma moleza. — Tirou vários maços de notas de cem dólares da valise e colocou-os sobre o balcão do bar. — Dez mil. Negócio fechado?

E, como sempre, a cobiça saiu-se vitoriosa quando Pierre correu as mãos sobre as notas.

— Sim, meu amigo, creio que sim.

— Ótimo. Estarei de volta às onze.

Dillon fechou a valise, Gaston abriu a porta para ele e o irlandês partiu.

Gaston voltou a trancar a porta e virou-se para o irmão.

— O que você acha?

Pierre serviu duas doses de conhaque.

— Acho que nosso amigo Rocard é um grande mentiroso.

— E também um homem muito perigoso — observou Gaston. — Então, o que faremos?

— Vamos esperar para ver. — Pierre ergueu o copo. — Salut.

 

Dillon fez a pé o percurso até o armazém na rue de Helier, ziguezagueando de uma rua para a outra, de vez em quando desaparecendo na escuridão para verificar se não estava sendo seguido. Há muito que ele aprendera que o problema com todos os grupos revolucionários políticos era que se encontravam cheios de facções e informantes, uma grande verdade no que dizia respeito ao IRA. Era por esse motivo, como dissera a Aroun, que, sempre que sempre preferia usar criminosos profissionais para ajudá-lo. “Vigaristas honestos que faziam o trabalho por dinheiro” era a frase que ele usava. Infelizmente, nem sempre era esse o caso, e parecia haver algo de estranho nas maneiras do grandalhão Pierre.

Havia uma portinhola engastada na porta dupla maior do armazém. Ele a destrancou e entrou. Encontravam-se ali dois carros: um da Renault e um Ford Escort, além de uma motocicleta BMW da Polícia, coberta com um lençol. Ele se certificou de que estava tudo em ordem e subiu os degraus de madeira que levavam ao sótão. Essa não era sua única casa; possuía também uma barcaça no rio, mas às vezes esse armazém era muito útil.

Sobre a mesa da pequena sala de estar havia uma mochila de lona com um bilhete que dizia apenas: Como pedido. Ele sorriu e abriu o zíper da mochila. Ali dentro, encontrou uma metralhadora Kalashnikov PK, último tipo. O tripé estava desmontado e o cano separado para facilitar o transporte; havia ainda uma grande caixa de munição e uma outra semelhante ao lado. Dillon abriu uma gaveta do armário, tirou dali um lençol dobrado e o colocou na mochila, fechando de novo o zíper. Verificou a Walther em sua cintura e desceu os degraus com a mochila em uma das mãos.

Trancou a portinhola e desceu a rua, a excitação tomando conta dele, como sempre acontecia. Quando o jogo começava, ele experimentava a melhor sensação do mundo. Dobrou na rua principal e alguns minutos mais tarde fazia sinal para um táxi e dizia ao motorista que o levasse ao Le Chat Noir.

 

Saíram de Paris em furgões Renault idênticos, exceto pelo fato de que um era preto e o outro, branco. Gaston ia na frente, Dillon ao seu lado, no banco do passageiro, e Pierre os seguia. Fazia muito frio e a neve ainda se misturava à chuva, embora não se acumulasse sobre o chão e os edifícios. Os dois falaram muito pouco; Dillon havia se recostado no assento, fechando os olhos, de modo que o rances pensou que ele estivesse dormindo.

Perto de Choisy, o furgão derrapou na pista.

— Santo Cristo! — gritou Gaston, lutando com o volante.

— Calma, agora não é hora de cairmos num buraco. Onde estamos? — perguntou Dillon.

— Acabamos de passar pela entrada para Choisy. Falta pouco agora.

Dillon endireitou-se no assento. A neve cobria as cercas vivas mas não a estrada.

— Olhe só para isso. Que merda de noite! — comentou Gaston.

— Pense em todos aqueles dólares adoráveis — disse-lhe Dillon. — Talvez isso ajude você a suportar esta noite.

Parou de nevar e o céu limpou, deixando ver uma meia-lua; abaixo deles, no pé da colina, podia-se ver a luz vermelha da passagem de nível, ao lado da qual havia um velho edifício abandonado, as janelas cobertas por tábuas, o pavimento de pedras diante dele salpicado levemente pela neve.

— Pare aqui — ordenou Dillon.

Gaston obedeceu e parou, desligando o motor. Pierre aproximou-se no Renault branco, saltou um tanto desajeitado devido à perna postiça e juntou-se a eles.

Dillon encontrava-se de pé, examinando a passagem de nível, alguns metros adiante e assentiu com a cabeça.

— Perfeito. Dê-me as chaves.

Gaston fez o que lhe era pedido. O irlandês destrancou a porta traseira do furgão e apanhou a mochila. Abriu o zíper, enquanto os dois irmãos observavam, tirou a Kalashnikov, encaixou com perícia o cano no lugar e então a posicionou voltada para a porta. Encheu a caixa de munição, enfiando a fita de cartuchos no lugar apropriado.

— Parece ser uma puta arma — observou Pierre.

— Cartuchos de 7,2mm, misturados a traçadores e perfuradores de blindados — declarou Dillon. — Esta é mesmo uma matadora. Kalashnikov. Já vi uma delas fazer em pedaços um Land Rover cheio de pára-quedistas ingleses.

— É mesmo? — exclamou Pierre e, quando Gaston estava prestes a dizer alguma coisa, ele pousou a mão no braço do irmão, em advertência. — O que há na outra caixa?

— Mais munição.

Dillon tirou o lençol da mochila, cobrindo a metralhadora com ele, e então trancou a porta. Sentou-se ao volante, deu partida no motor e parou o furgão alguns metros adiante, numa posição em que a traseira apontava num certo ângulo na direção da passagem de nível. Ele saiu do veículo e trancou a porta; nuvens passaram velozes diante da lua e a chuva recomeçou, dessa vez a neve misturando-se a ela com maior intensidade.

— E então? Você vai deixar isso aí? — indagou Pierre. — E se alguém vier olhar?

— Se vier alguém? — Dillon ajoelhou-se ao lado do pneu traseiro esquerdo, tirou um canivete do bolso, fez saltar a lâmina e introduziu-a na extremidade da roda. Ouviu-se um silvo de ai escapando, e o pneu esvaziou-se rapidamente.

Gaston assentiu.

— Muito esperto. Qualquer curioso pensará que se trata simplesmente de uma avaria.

— E o que me diz de nós?—perguntou Pierre. — O que espera que a gente faça?

— É simples. Gaston vem até aqui com o Renault branco pouco depois das duas da tarde de hoje, bloqueia a estrada diante da passagem de nível... a linha do trem não, somente a estrada... sai do furgão, tranca a porta e deixa ele aí. A seguir, dá o fora daqui. — Voltou-se para Pierre: — Você o segue com um carro, o apanha e voltam direto para Paris.

— E você? — perguntou o homenzarrão.

— Eu já estarei aqui, esperando no furgão. Eu me viro sozinho. Agora vamos voltar a Paris. Vocês me deixam no Le Chat Noir e caso encerrado. Não me verão outra vez.

— E o restante do dinheiro? — perguntou Pierre, sentando-se ao volante do Renault, Gaston e Dillon reunindo-se a ele.

— Vocês o terão, não se preocupem — afirmou Dillon. — sempre cumpro minha palavra, assim como espero que os outros cumpram as suas. Uma questão de honra, meu amigo. Agora vamos.

Fechou de novo os olhos, recostando-se no banco. Pierre lançou um olhar para o irmão, ligou o motor e partiu.

 

Era exatamente uma e meia da manhã quando eles chegaram ao Le Chat Noir. Havia uma garagem fechada em frente ao bar. Gaston abriu a porta e Pierre entrou com o furgão.

— Bem, já vou indo — despediu-se Dillon.

— Você não vai entrar? — perguntou o homenzarrão. — Então Gaston pode levá-lo até em casa.

Dillon sorriu.

— Em toda a minha vida, ninguém nunca me levou em casa.

Virou as costas e se afastou, dobrando em uma rua secundária, e Pierre falou ao irmão:

— Vá atrás dele e não o perca de vista.

— Mas por quê? — quis saber Gaston.

— Porque quero saber onde ele está, é por isso. Essa coisa toda fede, Gaston, como peixe podre. Agora vá andando.

 

Dillon mudava rapidamente de uma rua para outra, seguindo seu costume de sempre, mas Gaston, ladrão desde menino e expert nessas questões, conseguiu não perdê-lo de vista, sem contudo aproximar-se demasiadamente. Dillon pretendia voltar ao armazém na rue de Helier, mas, ao parar na esquina de um beco para acender um cigarro, olhou para trás e podia jurar ter percebido um movimento. Estava certo, pois tratava-se de Gaston, ocultando-se em um pórtico fora da sua visão.

Para Dillon, a suspeita já era o bastante. A noite toda tivera um pressentimento em relação a Pierre, um mau pressentimento. Virou à esquerda, percorrendo o caminho de volta ao rio, e andou ao longo da calçada, passando por uma fileira de caminhões com os pára-brisas cobertos pela neve. Chegou a um hotelzinho de última categoria, do tipo usado por prostitutas e motoristas de caminhão para passar a noite, e entrou.

O homem na recepção era muito velho e se protegia contra o frio com a ajuda de um sobretudo e uma echarpe. Seus olhos eram embaciados. Deixou de lado o livro que estava lendo e esfregou os olhos.

— Pois não, monsieur?

— Trouxe uma carga de Dijon há algumas horas e pretendia voltar esta noite mesmo, mas estou tendo problemas com a droga do caminhão Portanto, preciso de uma cama.

— Trinta francos, monsieur.

— Está brincando! Vou embora assim que amanhecer... — argumentou Dillon.

O velho encolheu os ombros.

— Está certo. Pode ficar com o quarto dezoito no segundo andar por vinte francos, mas os lençóis não foram trocados.

— E quando é que fazem isso? Uma vez por mês? — Dillon apanhou a chave, deu-lhe os vinte francos e dirigiu-se ao andar superior.

O quarto era tão nojento quanto ele imaginara, mesmo à luz difusa que vinha do corredor. Fechou a porta, caminhando com cuidado na escuridão e espreitou a rua pela janela. Percebeu um movimento sob uma árvore do outro lado da rua, à margem do rio. Gaston Jobert surgiu das sombras e caminhou apressadamente pela calçada.

— Vejam só — sussurrou Dillon, acendendo um cigarro. Deitou-se na cama e pôs-se a refletir, os olhos fitos no teto.

 

Pierre, sentado ao lado do balcão do Le Chat Noir, esperando que o irmão voltasse, folheava o Paris Soir por falta de algo melhor para fazer, quando bateu os olhos na matéria sobre o encontro de Margaret Thatcher com Mitterrand. Seu estômago se contraiu e ele releu a matéria, horrorizado. Foi nesse momento que a porta se abriu e Gastou entrou quase correndo.

— Que noite! Estou congelado até os ossos. Me dê um conhaque.

— Tome. — Pierre despejou a bebida num copo. — E enquanto você bebe, leia essa matéria interessante no Paris Soir.

Gaston fez o que irmão lhe disse e, de repente, engasgou com o conhaque.

— Meu Deus, ela está em Choisy!

— E o avião dela parte daquele velho campo da força aérea em Valenton. Ela sairá de Choisy às duas horas. Quanto tempo leva até aquela passagem de nível? Dez minutos?

— Deus, não! — gemeu Gaston. — Estamos liquidados. Isso não é para o nosso bico, Pierre. Se isso acontecer, todos os tiras da França estarão nas ruas.

— Mas não vai acontecer. Eu sabia que aquele patife não era flor que se cheire. Há algo de estranho nele. Você conseguiu segui-lo?

— Sim, ele se esquivou pelas ruas por um tempo, mas acabou indo para aquele pulgueiro que o velho François cuida, na margem do rio. Pela janela, eu o vi se registrando. — Ele estremeceu — Mas o que vamos fazer? — Estava quase soluçando. — É o fim, Pierre. Eles nos trancarão e jogarão fora a chave.

— Não, não farão isso — disse-lhe Pierre. — Não se nós o entregarmos. Ficarão muito gratos. Podem até nos dar uma recompensa, quem sabe? Bem, qual é o número do telefone da casa do inspetor Savary?

— Ele deve estar dormindo.

— Naturalmente, seu idiota, bem aconchegado sob as cobertas com a sua coroa, como devem estar todos os bons detetives. Teremos de acordá-lo.

 

O inspetor Jules Savary despertou praguejando quando o telefone tocou ao lado da cama. Ele estava sozinho, pois a mulher fora passar uma semana em Lyon, na casa da mãe. Savary tivera uma longa noite. Dois assaltos a mão armada e um estupro. Só agora conseguira dormir.

Atendeu o telefone.

— Aqui é Savary.

— Sou eu, inspetor, Pierre Jobert.

Savary olhou para o relógio ao lado da cama.

— Pelo amor de Deus, Jobert, são duas e meia da manhã.

— Sei disso, inspetor, mas tenho algo especial para você.

— É o que você sempre diz e, portanto, pode esperar até amanhã de manhã.

— Creio que não, inspetor. Estou lhe dando a oportunidade de se tornar o tira mais famoso da França. Vai ser a grande prisão da sua vida.

— Conte essa a outro, Jobert — replicou Savary.

— Margaret Thatcher. Ela vai passar esta noite em Choisy e parte para Valenton às duas da tarde, não é? Posso lhe dar todas as informações sobre o homem que vai providenciar para que ela nunca chegue lá.

Jules Savary nunca despertara com tanta rapidez.

— Onde você está? No Le Chat Noir?

— Isso mesmo — confirmou Jobert.

— Estarei aí em meia hora. — Savary bateu o telefone, pulou da cama e começou a se vestir.

 

Foi nesse exato momento que Dillon decidiu sair dali. O fato de Gaston o haver seguido não significava necessariamente nada além do fato de que os dois irmãos estavam ansiosos em saber mais sobre ele. Por outro lado...

Ele saiu, trancando a porta, encontrou a escada dos fundos e desceu, cautelosamente. Havia uma porta no fim dos degraus que se abriu com relativa facilidade e que dava acesso para um quintal. Uma viela o levou até a rua principal, que ele cruzou, andando ao longo de uma fila de caminhões estacionados. Escolheu um a cerca de cinqüenta metros do hotel, que lhe dava uma boa visão. Tirou o canivete do bolso, pondo-se a trabalhar com este na parte superior da janela do passageiro. Depois de algum tempo, o vidro cedeu e ele pôde introduzir os dedos e pressioná-lo para baixo. Um minuto depois, estava no interior da cabine. Era melhor não fumar e ele se sentou, a gola levantada, as mãos nos bolsos, e pôs-se a esperar. Eram três e meia da manhã, quando os quatro carros sem identificação pararam diante do hotel. Deles desceram oito homens, todos sem uniforme, fato bastante interessante.

— Ou eu muito me engano ou é o Serviço de Ação — murmurou Dillon.

Gaston Jobert desceu do último carro, falou com os homens por um momento e então todos entraram no hotel. Dillon não sentia raiva, estava apenas satisfeito por haver desconfiado. Saiu do caminhão, atravessou a rua em busca do abrigo do beco mais próximo e começou a caminhada até o armazém da rue de Helier.

 

O serviço secreto francês, conhecido durante anos como SDECE teve, no governo Mitterrand, seu nome mudado para Direction Générale de la Sécurité Extérieure — DGSE — numa tentativa de melhorar a imagem de uma organização sombria e implacável, com a reputação de não se deter diante de coisa alguma. O que equivale dizer que, levando-se em conta os resultados, poucos serviços de inteligência no mundo eram tão eficientes.

O serviço, como nos velhos tempos, ainda era dividido em cinco seções e muitos departamentos, dos quais o mais famoso — ou o mais infame, dependendo do ponto de vista — era a Seção Cinco, mais conhecida como Serviço de Ação — o departamento responsável pela destruição da OAS.

O coronel Max Hernu participara de tudo isso, perseguira a OAS impiedosamente, como todos os outros, apesar de haver servido como pára-quedista tanto na Indochina quanto na Argélia. Aos 61 anos de idade, era um homem elegante, de cabelos brancos, que se encontrava agora sentado à sua mesa no escritório do primeiro andar do quartel-general do DGSE, no Boulevard Mortier. Faltava pouco para as cinco da manhã e Hernu, com seus óculos de leitura de aro de chifre, examinava o relatório diante dele. Acabara de chegar de sua casa de campo, a sessenta quilômetros de Paris, onde passara a noite. O inspetor Savary o observava, respeitosamente.

Hernu tirou os óculos.

— Odeio esta hora da manhã. Parece que estou de volta a Dien Bien Phu, à espera do fim. Você pode me servir mais um café, por favor?

Savary apanhou sua xícara, dirigiu-se à cafeteira na mesinha e serviu o café, puro e forte.

— Qual a sua opinião, senhor?

— Esses irmãos Jobert, você acredita que eles estão nos contando tudo?

— Totalmente, senhor. Eu os conheço há anos. O grandalhão Pierre trabalhou para a OAS, o que ele acredita que lhe deu classe, mas na verdade não passam de vigaristas de segunda categoria, eficientes no roubo de carros.

— Então esse caso estaria fora da alçada deles?

— Definitivamente. Eles me confessaram que já venderam carros antes a esse tal Rocard.

— Carros roubados?

— Sim. senhor.

— É claro que estão falando a verdade. Os dez mil dólares falam por eles. Mas esse tal Rocard... Você é um policial experiente, inspetor. Há quantos anos está nas ruas?

— Quinze, senhor.

— Me dê a sua opinião.

— A descrição física do sujeito é interessante, pois, de acordo com os Jobert, não existe uma descrição para ele. É baixo, não mais de l,65m. Olhos de cor indefinida, cabelos claros. Gaston disse que a primeira vez que o viu pensou que ele não fosse de nada até que o homenzinho aparentemente quase matou um cara com o dobro do seu tamanho num bar, em cerca de cinco segundos.

— Prossiga. — Hernu acendeu um cigarro.

— Pierre diz que o francês dele é absolutamente perfeito.

— O que ele quer dizer com isso?

— Ele mesmo não sabe. Mas acha que há algo de estranho.

— Acha que ele não é francês?

— Exato. E aí temos duas coisas interessantes: ele está sempre assoviando uma musiquinha engraçada. Gaston a aprendeu porque toca acordeom. Ele afirma que Rocard uma vez lhe disse tratar-se de uma canção irlandesa.

— Bem, isso é interessante.

— Mais uma coisa: quando ele estava montando a metralhadora na traseira do Renault, em Valenton, disse aos rapazes que aquela era uma Kalashnikov. E que o que ali havia não eram apenas cartuchos comuns. Tinha também traçadores, perfuradores de blindados, tudo. E contou a eles que já vira uma daquelas arrasar um Land Rover cheio de pára-quedistas ingleses. Pierre não ousou perguntar-lhe onde.

— Então, você está sentindo o cheiro do IRA aí, não é inspetor? Já tomou alguma providência?

— Pedi ao seu pessoal para apanhar os livros de fotografias, coronel. Os Jobert estão dando uma olhada neles nesse exato momento.

— Excelente. — Hernu levantou-se e dessa vez ele mesmo tornou a encher sua xícara de café. — Qual a sua opinião sobre o negócio do hotel? Acha que ele foi avisado?

— Talvez, mas não necessariamente — retrucou Savary. — Quero dizer: de quem estamos tratando aqui, senhor? De um verdadeiro profissional disposto a executar o maior golpe de sua vida. Talvez ele só estivesse tomando um cuidado extra, apenas para se certificar de que não estava sendo seguido ao seu verdadeiro destino. Isto é, eu não confiaria nem um pouco nos Jobert, então por que ele deveria confiar?

Savary deu de ombros e Max Hernu, perspicaz, observou:

— Ainda tem mais. Me conte tudo.

— Tenho um mau pressentimento em relação a esse homem, coronel. Creio que se trata de alguém especial. Na minha opinião, ele deve ter usado o artifício do hotel porque suspeitava que Gaston pudesse segui-lo e queria saber por quê. Os Jobert estavam sendo apenas curiosos ou haveria algo mais aí?

— Então você acha que ele poderia estar ali por perto, na rua, observando nosso pessoal chegar?

— É bem possível. Por outro lado, talvez ele não soubesse que Gaston o estava seguindo. Talvez o artifício do hotel seja uma precaução rotineira. Um velho truque da Resistência nos tempos da guerra.

Hernu assentiu.

— Certo. Vamos ver se já terminaram. Faça-os entrar.

Savary saiu e voltou acompanhado pelos irmãos Jobert, que ficaram ali de pé, parecendo preocupados.

— Pois bem? — disse Hernu.

— Sem sorte, coronel. O homem não está em nenhum dos livros.

— Muito bem — assentiu Hernu. — Esperem lá embaixo. Vocês serão levados para casa e os apanharemos de novo mais tarde.

— Mas para quê, coronel? — perguntou Pierre.

— Para que seu irmão possa ir até Valenton no Renault e você possa segui-lo num carro, como Rocard lhes disse. Agora saiam. — Eles saíram apressados e Hernu disse a Savary: — Cuidaremos para que a Sra. Thatcher seja levada em segurança por outro caminho, mas é uma pena desapontarmos nosso amigo Rocard.

— Caso ele apareça, coronel.

— Nunca se sabe. Talvez ele apareça. Você fez um bom trabalho inspetor. Creio que serei obrigado a requisitá-lo para a Seção Cinco. Você se importaria?

Você se importaria? Savary quase engasgou de emoção

— É uma honra, senhor.

— Ótimo. Agora vá, tome um banho e o café da manhã. Eu o verei mais tarde.

— E o senhor, coronel?

— Eu, inspetor? — Hernu deu uma risada e olhou para o relógio. — São cinco e quinze. Vou ligar para a inteligência britânica em Londres e perturbar o sono de um velho amigo meu. Se alguém pode nos ajudar com nosso homem misterioso, essa pessoa é ele.

 

A Diretoria Geral do Serviço de Segurança britânico ocupa um grande edifício de tijolos brancos e vermelhos, não muito longe do Hilton Hotel, na Park Lane, embora muitos de seus departamentos encontrem-se instalados em vários lugares, por toda Londres. O número que Max Hernu discou era o de uma seção conhecida como Grupo Quatro, localizada no terceiro andar do Ministério da Defesa. Essa seção fora criada em 1972 com o objetivo de tratar de questões relacionadas ao terrorismo e à subversão nas ilhas britânicas. Era subordinada exclusivamente ao primeiro-ministro. À sua frente, desde o início, estava um único homem—o general-de-brigada Charles Ferguson, que se encontrava dormindo em seu apartamento na Cavendish Square, quando o telefone ao lado da cama o despertou.

— Ferguson — identificou-se ele, prontamente desperto, sabendo que àquela hora deveria ser algo importante.

— É de Paris, general — informou uma voz anônima. — Prioridade número um. Coronel Hernu

— Ponha-o na linha e acione o scrambler.

Ferguson sentou-se, um homem grande, desgrenhado, de 65 anos, com cabelos grisalhos amarfanhados e uma papada sob o queixo.

— Charles? — disse Hernu em inglês.

— Meu querido Max. O que o faz me telefonar numa hora tão desagradável? Você tem sorte de eu ainda estar neste telefone. O sistema está tentando me tornar obsoleto, assim como ao Grupo Quatro.

— Que bobagem!

— Eu sei, mas o diretor geral nunca esteve muito satisfeito com meu status de pirata esses anos todos. Em que posso ajudá-lo?

— A Sra. Thatcher está pernoitando em Choisy. Temos detalhes de um plano para atacá-la no caminho para o campo de aviação de Valenton amanhã.

— Santo Deus!

— Já está tudo sob controle. Ela agora vai tomar um outro caminho. Ainda esperamos que o homem em questão apareça, embora eu duvide muito. Contudo, esta tarde estaremos à espera.

— Quem é ele? Alguém que conhecemos?

— Pelo que dizem nossos informantes, suspeitamos que seja irlandês, embora seu francês seja bom o bastante para que passe como nativo. A questão é que as pessoas envolvidas vasculharam todas as nossas fotografias de membros do IRA sem nenhum sucesso.

— Você tem uma descrição dele?

Hernu passou-lhe as informações que possuía.

— Receio que não seja o bastante para prosseguirmos.

— Mandarei que verifiquem nos computadores e ligo de volta para você. Me conte a história toda.

Foi o que Hernu fez.

— Você o perdeu, meu velho — comentou Ferguson quando Hernu chegou ao fim do relato.—Aposto um jantar no Savoy Grill da próxima vez que vier até aqui.

— Tenho um pressentimento em relação a esse homem. Creio que ele é especial — observou Hernu.

— E no entanto ainda não está nos seus álbuns. E olhe que nós mantemos vocês sempre atualizados.

— Sei disso — concordou Hernu. — E sei que você é o expert — no que diz respeito ao IRA. Então, o que fazemos?

— Você está enganado — declarou Ferguson. — O maior especialista no IRA está bem aí em Paris, e é Martin Brosnan, nosso amigo de sangue irlandês e americano. Afinal, ele lutou por eles até 1975. Ouvi dizer que Brosnan agora é professor de filosofia política na Sorbonne.                                                     .

— Você tem razão — disse Hernu. — Eu havia me esquecido dele.

— Hoje em dia ele é muito respeitável. É escritor e vive com bastante conforto com todo aquele dinheiro que a mãe deixou para ele quando morreu em Boston, há cinco anos. Se você tem nas mãos um mistério, é provável que seja ele o homem para resolvê-lo.

— Obrigado pela sugestão — agradeceu Hernu. — Mas primeiro veremos o que acontece em Valenton. Manterei contato com você.

Ferguson desligou o telefone, apertou um botão na parede e saiu da cama. Um momento mais tarde a porta se abriu e seu criado, um ex-gurca, entrou, ajudando-o a vestir um roupão sobre o pijama.

— Emergência, Kim. Ligarei para a capitão Tanner e lhe direi para vir aqui. E então tomarei um banho. Sirva o café da manhã quando ela chegar.

O gurca retirou-se. Ferguson apanhou o telefone e discou um número.

— Mary? Aqui é Ferguson. Trata-se de algo importante. Quero que você esteja aqui, na Cavendish Square, em uma hora. Ah, é melhor usar seu uniforme. Temos aquele compromisso no Ministério da Defesa às onze. Você sempre os impressiona quando usa o traje de gala completo.

Pousou o fone no gancho e dirigiu-se ao banheiro, sentindo-se bem desperto e muitíssimo contente.

 

Eram seis e meia quando o táxi apanhou Mary Tanner nos degraus da entrada do prédio da Lowndes Square, onde ela morava. O motorista ficou impressionado, o que acontecia com a maioria d pessoas. Ela vestia o uniforme de capitão do Corpo Feminino do Exército com o distintivo de piloto da Unidade Aérea do Exército no lado esquerdo do peito. Abaixo deste, a fita da George Medal uma condecoração de bravura de considerável mérito, e fitas de campanha pela Irlanda e pelo serviço junto à Força de Paz das Nações Unidas em Chipre.

Era uma mulher pequena, os cabelos negros cortados bem curtos, 29 anos de idade e uma grande experiência no serviço militar. Filha de um médico, graduara-se em língua inglesa na Universidade de Londres, começara a lecionar e detestara o trabalho. Foi então que viera o Exército. Grande parte do seu tempo de serviço fora na Polícia Militar. Por algum tempo servira em Chipre e fizera três viagens em missão ao Ulster. Fora devido ao acontecido em Derry que recebera a George Medal e que ganhara a cicatriz na face esquerda, e isso chamara a atenção de Ferguson para ela. Fazia agora dois anos que era sua assistente.

Ela pagou o táxi, dispensando-o, e subiu apressada as escadas até o apartamento no primeiro andar, abrindo a porta com sua própria chave. Ferguson encontrava-se sentado no sofá ao lado da lareira, na elegante sala de estar, um guardanapo sob o queixo, enquanto Kim servia-lhe ovos quentes.

— Bem a tempo — observou ele. — O que você quer no café da manhã?

— Chá, por favor. Earl Grey, Kim, torradas e mel.

— É, temos mesmo de cuidar do peso.

— A hora não é muito própria para piadinhas machistas, mesmo para o senhor, general. Bem, qual é o problema?

Ele contou tudo a ela, enquanto tomava seu desjejum, Kim trouxe o chá com torradas e ela sentou-se diante do general-de-brigada, ouvindo.

— Esse Brosnan, nunca ouvi falar dele — disse ela, quando ele terminou.

— Ele não é do seu tempo, minha querida. Deve estar com cerca de 45 anos agora. Você encontrará um dossiê sobre ele no meu escritório. É natural de Boston, nascido numa daquelas famílias americanas podres de ricas. Alta sociedade. A mãe dele era dublinense. Ele fez tudo certo: foi para Princeton, formou-se e então estragou tudo, quando se apresentou como voluntário para o Vietnã e como praça. Creio que isso foi em 1966. Comandos aéreos. Ele deu baixa como sargento, muito condecorado.

— E o que o torna tão especial?

— Ele poderia ter evitado o Vietnã, permanecendo na universidade, mas não o fez. Além disso, alistou-se como praça. Algo bastante incomum para uma pessoa de sua posição social.

— Você é que é muito esnobe. O que aconteceu com ele depois disso?

— Foi para o Trinity College, em Dublin, fazer doutorado. A propósito, ele é protestante, mas sua mãe era católica devota. Em agosto de 69, ele estava visitando um tio por parte de mãe, um padre, em Belfast. Lembra-se do que aconteceu? Como tudo começou?

— Turbas de orangistas dizimando os católicos? — lembrou-se ela.

— E a polícia sem fazer quase nada a respeito. A turba incendiou a igreja do tio de Brosnan e deu início ao distúrbio na Falls Road. Um punhado de homens do IRA com alguns fuzis e revólveres os detiveram e, quando um destes levou um tiro, Brosnan apanhou seu fuzil. Instintivamente, suponho. Devido ao Vietnã, é o que quero dizer.

— E daí em diante ele estava comprometido?

— Em grande parte sim. É bom lembrar que naqueles primeiros tempos havia no movimento muitos homens como ele. Homens que acreditavam na liberdade da Irlanda e em coisas desse tipo.

— Lamento, senhor, mas vi sangue demais nas ruas de Derry para ter alguma simpatia por esse sujeito.

— Eu sei. Não estou tentando transformá-lo em herói. Ele matou um número considerável de homens naquela época, mas sempre frente a frente, isso eu tenho a dizer em seu favor. E se tornou bastante famoso. Havia uma fotógrafa de guerra, uma francesa, chamada Anne-Marie Audin. Ele salvou a vida dela no Vietnã depois da queda de um helicóptero. Uma história bem romântica, apareceu em Belfast e Brosnan a levou para ver o submundo durante uma semana. Ela fez uma série de fotografias para a revista Life. A brava luta irlandesa. Esse tipo de coisa, você sabe.

— E o que aconteceu depois?

— Em 1975, ele foi para a França negociar uma compra de armas, o que na verdade era uma armadilha, e encontrou a polícia à sua espera. Infelizmente, matou um deles com um tiro e foi condenado à prisão perpétua, escapando da cadeia em 1979, com a minha ajuda, devo acrescentar.

— Mas por quê?

— Por causa de uma outra pessoa que não é do seu tempo, um terrorista de nome Frank Barry, que começou no Ulster com um grupo de dissidentes chamado Filhos de Erin, ingressando então no circuito terrorista europeu, um gênio do mal, se é que já existiu um. Tentou pegar Lorde Carrington numa viagem à França quando este era secretário de Relações Exteriores. Os franceses evitaram o ataque, mas o primeiro-ministro ficou furioso. Deu-me ordens diretas para caçar Barry a qualquer custo.

— Ah, agora compreendo. Você precisava de Brosnan para essa missão?

— Aquela coisa de encarregar um ladrão de pegar o outro. Ele o pegou para nós.

— E depois?

— Voltou para a Irlanda e terminou o doutorado.

— E essa Anne-Marie Audin? Eles se casaram?

— Não que eu saiba, mas ela lhe prestou um favor maior ainda. Sua família é uma das mais antigas da França, muito poderosa politicamente, e ele recebeu a Legião de Honra por salvá-la no Vietnã. De qualquer modo, a pressão exercida por ela nos bastidores deu fruto há cinco anos. O presidente Miterrand concedeu-lhe o perdão. E ele começou vida nova.

— E é assim que ele agora está na Sorbonne? Deve ser o único professor por lá que já matou um policial.

— Na verdade, houve um ou dois depois da guerra que haviam feito exatamente isso quando serviam à Resistência.

— Não dizem que pau que nasce torto morre torto?—perguntou ela.

— Ah, onde está a sua fé nas pessoas? Como já disse, você encontrará o dossiê dele no escritório, se desejar saber mais. — Entregou-lhe um pedaço de papel. —Eis aí a descrição do homem misterioso. Não é muito, mas verifique nos computadores, de qualquer forma.

Ela saiu..

Kim entrou na sala, trazendo uma cópia de The Times. Ferguson passou os olhos pelas manchetes e então virou para a página dois, onde sua atenção voltou-se imediatamente para a mesma matéria sobre a visita da Sra. Thatcher à França que aparecera no Paris Soir.

— Bem, Max, desejo-lhe sorte — murmurou ele, servindo-se de uma outra xícara de café.

 

Mais tarde naquela manhã, a temperatura se elevou em Paris e, por volta do meio-dia, quase toda a neve havia desaparecido. Nos campos o mesmo acontecera, restando apenas um pouco de neve aqui e ali nas sebes que ladeavam o caminho, à medida que Dillon se dirigia a Valenton, mantendo-se nas estradas laterais. Ele pilotava a motocicleta BMW, que estivera guardada no armazém, e estava vestido como um policial da CRS, com capacete, óculos, uma metralhadora pendurada em diagonal na frente do uniforme impermeável de cor escura.

Era loucura ter vindo, é claro, mas ele não podia resistir ao espetáculo gratuito. Depois de consultar o mapa, parou num caminho estreito, perto da entrada de uma fazenda, e seguiu a pé por uma trilha através de um pequeno bosque, chegando a um muro baixo de pedras numa colina. Bem abaixo, a cerca de uns duzentos metros, ficava a passagem de nível, o Renault preto ainda parado onde ele o deixara. Não havia vivalma por perto. Uns quinze minutos mais tarde, um trem passou por ali.

Ele olhou para o relógio. Duas e quinze. Focalizou o binóculo Zeiss naquele ponto mais uma vez e então o Renault branco surgiu, descendo a estrada e parando atravessado no meio dela, bloqueando assim a passagem de nível. Atrás dele vinha um Peugeot, Pierre já virando o volante, dando meia-volta, enquanto Gaston corria na sua direção. Tratava-se de um modelo antigo, pintado de escarlate e creme.

— Muito bonito — murmurou Dillon enquanto o Peugeot desaparecia mais além na estrada. — Agora, vamos à cavalaria — acrescentou, acendendo um cigarro.

Levou cerca de dez minutos para que um grande caminhão surgisse descendo a estrada e parasse, impedido de prosseguir. A carroceria tinha grandes laterais de lona onde se lia “Steiner Eletronics”.

— Eletrônica o cacete! — exclamou Dillon.

Uma metralhadora pesada surgiu de dentro do caminhão, atirando pela lateral, varrendo o Renault. Quando a rajada cessou, Dillon tirou do bolso um detonador eletrônico de plástico preto, acionou-o e puxou a antena.

Uma dúzia de homens em macacões pretos e capacetes de proteção, todos armados com carabinas automáticas, saltou do caminhão. Quando se aproximavam do Renault, Dillon pressionou o detonador. A carga autodestruidora que se encontrava na segunda caixa preta, onde ele dissera a Pierre que continha munição extra, explodiu instantaneamente, fazendo com que o veículo se desintegrasse, partes da lataria erguendo-se no ar em câmera lenta. Vários homens jogaram-se ao chão, outros correram em busca de abrigo.

— Aí está. Engulam essa, cavalheiros — disse Dillon em voz alta.

Caminhou de volta pelo bosque, ergueu a BMW de seu descanso, passou uma perna sobre ela e partiu.

 

Ele abriu a porta do armazém na rue de Helier, montou de novo na BMW, entrou com ela e estacionou. Quando se virou para fechar a porta, Makeev gritou lá de cima:

— Deu tudo errado, é o que suponho.

Dillon tirou o capacete.

— Receio que sim. Os irmãos Jobert me entregaram.

Quando subia a escada, Makeev observou:

— Gosto do seu disfarce. Para as pessoas, um policial é apenas um policial. Não há nada para descrever.

— Exatamente. Há alguns anos, trabalhei para um grande irlandês de nome Frank Barry durante algum tempo. Já ouviu falar dele?

— Certamente. Um autêntico Carlos o Chacal.

— Era melhor do que Carlos. Foi assassinado em 79, não sei por quem. Ele usava bastante o disfarce do tira da CRS na motocicleta. Carteiros também são ótimos. Ninguém nunca presta atenção num carteiro.

Acompanhou o russo até a sala de estar.

— Conte-me o que aconteceu — pediu Makeev.

Dillon o pôs a par da situação.

— Eu arrisquei usar aqueles dois e me dei mal. Isso é tudo.

— E agora?

— Como eu disse na noite passada, arranjarei um alvo alternativo. Sabe como é, todo aquele dinheiro... Tenho de pensar na minha velhice.

— Besteira, Sean, você não dá a mínima para a sua velhice. É o jogo que o excita.

— Talvez você tenha razão. — Dillon acendeu um cigarro. — Só sei de uma coisa: não gosto de ser derrotado. Pensarei em algo para você e acertarei minhas contas.

— Com os Jobert? Eles merecem que você se dê a esse trabalho?

— Ah, merecem — respondeu Dillon. — É uma questão de honra, Josef.

Makeev suspirou.

— Irei ver Aroun e lhe dar as más notícias. Manterei contato com você.

— Aqui ou na barcaça. — Dillon sorriu. — Não se preocupe, Josef. Até agora eu nunca falhei, não quando me disponho de verdade a fazer algo.

Makeev desceu os degraus. Seus passos ecoaram pelo armazém e a portinha bateu atrás dele. Dillon virou as costas e voltou para a sala de estar, assoviando baixinho.

 

— Não compreendo — disse Aroun. — Não se falou uma palavra sequer na televisão.

— E não falarão. — Makeev afastou-se da janela de sacada que dava para a avenida Victor Hugo. — Nada aconteceu. É assim que os franceses agirão. A idéia de que a Sra. Thatcher possa ter corrido algum risco em solo francês seria considerada uma afronta nacional.

Aroun estava pálido de raiva.

— Ele falhou, esse seu homem. Muita conversa, Makeev, mas no fim nenhum resultado. Ainda bem que não transferi aquele dinheiro para a conta dele em Zurique hoje pela manhã.

— Mas você disse a ele que o faria — afirmou Makeev. — Ele poderá ligar a qualquer momento para verificar se o depósito foi feito.

— Meu caro Makeev, tenho quinhentos milhões de dólares depositados naquele banco. Diante da possibilidade de eu transferir meus negócios para outro banco, o gerente concordou mais do que prontamente com uma mentirinha quando Rashid falou com ele hoje de manhã. Caso Dillon telefone para verificar, o depósito será confirmado.

— Esse homem com quem você está lidando é altamente perigoso — advertiu Makeev. — Se ele descobrir...

— Quem irá lhe dizer? Não você, por certo, e no final ele receberá seu pagamento, mas somente se nos der algum resultado.

Rashid serviu-lhe uma xícara de café e dirigiu-se a Makeev:

— Ele prometeu oferecer um alvo alternativo, chegou a mencionar o primeiro-ministro britânico. O que ele tem em mente?

— Fará contato conosco quando tomar uma decisão — respondeu Makeev.

— Conversa.—Aroun caminhou até a janela e ficou ali de pé, bebericando o café. — Só conversa.

— Não, Michael — discordou Josef Makeev. — Você não poderia estar mais enganado.

 

O apartamento de Martin Brosnan ficava à margem do rio, no Quai de Montebello, diante da Île de la Cité, e possuía uma das melhores vistas da Notre Dame em Paris. Ficava a uma distância relativamente curta da Sorbonne, o que lhe servia perfeitamente, permitindo que fosse até lá a pé.

Acabara de dar quatro horas e ele se encaminhava para casa, um homem alto, de ombros largos, vestindo uma capa de chuva fora de moda. O cabelo era escuro, sem um fio branco sequer — apesar de seus 45 anos —, e bastante longo, emprestando-lhe a aparência de um sicário do século XVI. Martin Aodh Brosnan. Aodh era o correspondente gaélico de Hugh e sua ascendência irlandesa mostrava-se nos malares salientes e nos olhos cinzentos.

A temperatura estava caindo outra vez e ele estremeceu quando dobrou a esquina do Quai de Montebello, apressando-se na direção do edifício de apartamentos, todos de sua propriedade, o que lhe permitira ficar com o apartamento de esquina no primeiro andar, o mais bem-localizado. Algumas armações de andaimes subiam pela quina do edifício até o quarto andar, onde estavam empreendendo algum tipo de obras.

Quando estava prestes a galgar os degraus que levavam à entrada decorada do edifício, uma voz o chamou:

— Martin?

Ele olhou para cima e viu Anne-Marie Audin debruçando-se sobre a balaustrada do terraço.

— De onde é que você surgiu? — perguntou ele, atônito.

— Cuba. Acabo de chegar.

Ele subiu os degraus de dois em dois e ela já havia aberto a porta quando chegou lá. Ele a ergueu do chão, num imenso abraço, e a levou de volta para o hall.

— Que maravilha vê-la! Por que Cuba?

Ela o beijou e o ajudou a tirar a capa de chuva.

— Ah, fui enviada pela Time para uma matéria bastante interessante. Venha até a cozinha e eu faço um chá para você.

Uma brincadeira habitual entre os dois há anos, a do chá. Era surpreendente num americano, mas ele não suportava café. Brosnan acendeu um cigarro e sentou-se à mesa, observando-a mover-se pela cozinha, o cabelo curto tão escuro quanto o seu, uma mulher extremamente elegante que tinha a mesma idade que ele, mas parecia doze anos mais jovem.

— Você está maravilhosa — disse-lhe, quando ela trouxe o chá que ele experimentou e assentiu em aprovação. — Está ótimo. Exatamente como você aprendeu a fazer lá em South Armagh, em 1971, quando eu e Liam Devlin mostrávamos a você a dura realidade de como funcionava o KA.

— Como está aquele velho patife?

— Ainda morando em Kilrea, nos arredores de Dublin. Ele faz algumas palestras no Trinity College. Diz ter setenta anos, mas isso é uma mentira deslavada.

— Ele nunca vai envelhecer.

— É, e você também está maravilhosa — cumprimentou-a Brosnan. — Por que é mesmo que não nos casamos?

Essa era uma pergunta ritual que ele fazia há anos, agora já transformada em anedota. Houve um tempo em que eram amantes, mas já fazia alguns anos que eram apenas amigos. Não que seu relacionamento fosse de algum modo comum. Ele teria dado a vida por ela, e quase o fizera num pântano do Vietnã, na primeira vez em que se encontraram.

— Agora que já deixamos as formalidades de lado, fale-me sobre seu novo livro — pediu ela.

— Trata-se de uma filosofia do terrorismo. Coisa muito maçante. Poucos serão os que comprarão o livro.

— Uma pena — lamentou-se ela —, vindo de um expert no assunto como você.

— Não importa — observou ele. — O conhecimento dos motivos não fará com que as pessoas tenham uma reação diferente.

— Cínico. Ande, vamos tomar uma bebida de verdade.—Ela abriu o refrigerador e tirou de lá uma garrafa de Krug.

— Não-vindimado?

— Poderia ser outro?

Dirigiram-se à magnífica sala de estar. Havia um espelho com moldura de ouro entalhado sobre a lareira de mármore, plantas por toda parte, um piano de cauda, sofás confortáveis displicentemente dispostos e uma imensa quantidade de livros. Ela deixara as janelas de sacada que levavam ao balcão entreabertas. Brosnan foi fechá-las enquanto ela abria o Krug sobre o aparador e apanhava duas taças. Naquele momento, a campainha soou.                        

Quando Brosnan abriu a porta, deparou-se com Max Hernu e Jules Savary em pé diante da porta, os irmãos Jobert atrás deles.

— Professor Brosnan? — indagou Hernu. — Sou o coronel Max Hernu.

— Sei muito bem quem é você — retrucou Brosnan — Do Serviço de Ação, não é mesmo? O que isso significa? Meu passado negro vindo em minha captura?

— Não exatamente. Na verdade, precisamos da sua ajuda. Este é o inspetor Savary e estes dois são Gaston e Pierre Jobert.

— É melhor vocês entrarem então — convidou Brosnan, sentindo o interesse despertar mesmo contra a sua vontade.

 

Os irmãos Jobert ficaram aguardando no hall, segundo as ordens de Hernu, quando este e Savary seguiram Brosnan até a sala de estar. Anne-Marie voltou-se na direção deles, franzindo o cenho ligeiramente, e Brosnan fez as apresentações.

— Um grande prazer. — Hernu beijou-lhe a mão. — Sou um seu admirador de longa data.

— Martin?—Ela agora parecia preocupada. — Você não está se envolvendo em algo, está?

— Claro que não — assegurou-lhe Brosnan. — Então, o que posso fazer por vocês, coronel?

— Uma questão de segurança nacional, professor. Fico constrangido em mencionar isso, mas Mademoiselle Audin é uma fotógrafa de grande distinção.

Ela sorriu.

— Discrição total. Dou-lhe minha palavra, coronel.

— Estamos aqui por sugestão do general-de-brigada Charles Ferguson, de Londres.

— Aquela velha raposa? E por que ele sugeriria que vocês me procurassem?

— Porque o senhor é um expert em questões relacionadas a IRA, professor. Deixe-me explicar tudo.

E foi o que fez narrando todo o caso o mais sucintamente possível.

— Veja bem, professor — concluiu ele —, os irmãos Jobert vasculharam nossos livros de fotografias de membros do IRA sem que o encontrassem, e Fergusson também não teve nenhum êxito com a sumária descrição que lhe fornecemos.

— Eu diria que vocês têm um grande problema nas mãos.

— Meu amigo, esse homem não é um qualquer. Ele deve ser mesmo especial para tentar uma coisa desse gênero, mas não sabemos mais nada além de acharmos que é irlandês e que fala francês fluentemente.

— O que vocês querem que eu faça então?

— Que fale com os Jobert.

Brosnan olhou para Anne-Marie, e então deu de ombros.

— Pois bem, faça-os entrar.

Sentou-se na borda da mesa, bebendo seu champanhe, enquanto os dois irmãos ficavam de pé à sua frente, pouco à vontade em tais circunstâncias.

— Qual a idade dele?

— É difícil dizer, monsieur—respondeu Pierre. — Ele muda de um minuto para o outro. É como se fosse mais de uma pessoa. Eu diria que deve estar beirando os quarenta.

— E como ele é?

— Baixo e de cabelos claros.

— Parece uma criatura insignificante — opinou Gaston. — Pensamos que não fosse de nada até que certa noite ele quase matou um sujeito grandalhão em nosso café.

— Está certo. Ele é pequeno, de cabelos claros, tem quase quarenta anos e sabe se defender. O que os faz pensar que seja irlandês?

— Quando ele estava montando a Kalashnikov, fez um comentário a respeito de já ter visto uma daquelas arrasar um Land Rover cheio de pára-quedistas ingleses.

— Isso é tudo?

Pierre franziu o cenho. Brosnan apanhou a garrafa de Krug no balde.

— Não, há mais uma coisa. Ele está sempre assoviando uma musiquinha engraçada, um tanto estranha. Consegui tirá-la no acordeom. Ele me disse que era irlandesa.

O rosto de Brosnan ficou imóvel. Ele ficou ali parado, em uma das mãos, a taça na outra.

— E ele gosta disso aí, monsieur—disse Pierre, apontando a garrafa.

— Champanhe? — perguntou Brosnan.

— Bem, sim, qualquer champanhe é melhor do que nada, mas Krug é o seu favorito.

— Como este, não-vindimado?

— Isso mesmo, monsieur. Ele nos disse que prefere a mistura de uvas — informou Pierre.

— O canalha sempre preferiu.

Anne-Marie pousou a mão no braço de Brosnan.

— Você o conhece, Martin?

— Com quase toda certeza. Você poderia tocar a tal canção no piano? — indagou a Gaston.

— Tentarei, monsieur.

Ergueu a tampa do piano e experimentou de leve o teclado, tocando a seguir o início da canção com um só dedo.

— É o suficiente. — Brosnan voltou-se para Hernu e Savary. — Uma velha canção folclórica irlandesa, A Cotovia no Céu Claro, e vocês estão mesmo em apuros, cavalheiros, pois o homem que estão procurando é Sean Dillon.

— Dillon? — surpreendeu-se Hernu. — Mas é claro! O homem de mil rostos, como já o chamaram certa vez.

— Um certo exagero — observou Brosnan—, mas não deixa de ser um título apropriado para ele.

 

Eles dispensaram os irmãos Jobert e Brosnan e Anne-Marie sentaram-se num sofá, de frente para Hernu e Savary. O inspetor tomava notas enquanto o americano falava.

— Sua mãe morreu no parto. Creio que isso foi em 1952. Seu pai era eletricista e foi trabalhar em Londres, de modo que Dillon freqüentou escolas inglesas. Ele possuía um incrível talento para representar, um verdadeiro gênio. É capaz de se transformar diante dos seus olhos, curvar os ombros, envelhecer quinze anos. É impressionante.

— Então você o conheceu bem? — indagou Hernu.

Em Belfast nos velhos tempos, mas antes disso ele ganhou uma bolsa para a Real Academia de Arte Dramática, onde só ficou um ano, porém. Não havia nada lá para ele aprender. Fez um ou dois trabalhos no Teatro Nacional, nada mais. Era muito jovem, vejam bem. Então, em 1971, seu pai, que voltara para casa em Belfast, foi morto por uma patrulha do Exército britânico. Foi apanhado num fogo cruzado. Um acidente.

— E Dillon não aceitou bem o fato?

— Pode-se dizer que não. Ofereceu-se ao IRA Provisório. E gostaram dele por lá. Dillon era inteligente e tinha habilidade para línguas. Mandaram-no para a Líbia, para um daqueles campos de treinamento de terroristas por alguns meses. Um curso rápido em armamento. Foi o suficiente. Ele nunca olhou para trás. Só Deus sabe quantos ele já matou.

— Quer dizer que ele ainda trabalha para o IRA?

Brosnan abanou a cabeça.

— Não, isso já faz muitos anos. Bem, ele ainda se considera um soldado, mas acha que há um bando de velhotas na liderança. E eles não puderam mais com ele. Se achasse necessário, mataria o papa. E sentia-se feliz fazendo coisas contraprodutivas. Dizem que ele esteve envolvido no caso Mountbatten.

— E depois? — perguntou Hernu.

— Beirute, Palestina. Trabalhou muito para a OLP. A maioria dos grupos terroristas usou seus serviços. — Brosnan assentiu com a cabeça. — Vocês estão com um problema e tanto.

— Por que diz isso?

— O fato de ele ter usado dois vigaristas como os Jobert, por exemplo. Ele sempre faz isso. Bem, dessa vez não deu certo, mas ele conhece a fraqueza de todos os movimentos revolucionários. Sabe que estão cheios de sujeitos precipitados ou de delatores. Você disse que ele é um homem sem rosto e tem razão, pois duvido que encontre alguma fotografia dele em qualquer arquivo e, para ser sincero, não adiantaria de muita coisa se encontrasse.

— Por que leva essa vida? — perguntou Anne-Marie. Não é com fins políticos, estou certa?

— Porque é o que ele gosta de fazer — retrucou Brosnan. — Porque é viciado nisso. Ele é um ator, lembre-se, um ator de verdade e muito bom.

— Tenho a impressão de que não gosta muito dele — observou Hernu. — Em termos pessoais, quero dizer.

— Bem, ele tentou me matar e a um grande amigo meu há muito tempo — disse-lhe Brosnan. — Isso responde à sua pergunta?

— É motivo mais do que suficiente. — Hernu ergueu-se e Savary o imitou. — Temos de ir andando. Quero contar tudo isso ao general-de-brigada Ferguson o mais rápido possível.

— Certo — assentiu Brosnan.

— Espero que possamos contar com sua ajuda nesse caso, professor.

Brosnan lançou um olhar para Anne-Marie, cujo rosto estava impassível.

— Ouça — disse ele —, eu não me importo de conversar com vocês outra vez se isso ajudar, mas não desejo envolver-me pessoalmente. Sabe o que fui, coronel. O que quer que aconteça, não vou mais fazer nada semelhante àquilo. Prometi isso a uma pessoa há muito tempo.

— Compreendo perfeitamente, professor. — Hernu voltou-se para Anne-Marie. —Mademoiselle, foi um imenso prazer.

— Acompanharei os senhores — anunciou ela, adiantando-se a eles.

Quando retornou à sala, Brosnan abrira as janelas e encontrava-se de pé, olhando o rio e fumando um cigarro. Ele passou um braço em torno dela.

— Tudo bem?

— Sim, claro — respondeu ela. — Perfeitamente. — E recostou a cabeça em seu peito.

 

No preciso momento em que Ferguson encontrava-se sentado diante da lareira no apartamento da Cavendish Square, o telefone tocou. Mary Tanner atendeu no estúdio. Depois de algum tempo, ela apareceu.

— Era da Downing Street. O primeiro-ministro deseja vê-lo.

— Quando?

— agora, senhor.

Ferguson pôs-se de pé e tirou os óculos de leitura.

— Dê ordens para trazerem o carro. Você vem comigo e me aguarda.

Ela apanhou o fone, falou rapidamente e o pôs de volta no gancho.

— O senhor acha que se trata de quê, general?

— Não estou muito certo. Minha iminente aposentadoria ou a sua volta a serviços mais mundanos. Ou então esse caso na França. A essa altura já contaram tudo a ele. Bem, seja o que for, vamos lá para ver. — E encaminhou-se para a porta.

Foram inspecionados e passaram pelos portões de segurança no fim da Downing Street. Mary Tanner ficou no carro, enquanto Ferguson era admitido, passando pela porta mais famosa do mundo. Estava tudo bastante calmo se comparado à última vez em que ele estivera ali, numa festa de Natal oferecida pela Sra. Thatcher aos funcionários no Salão das Colunas. Faxineiros, datilógrafos, auxiliares de escritório. Bem típico dela, aquilo. O outro lado da Dama de Ferro.

Ele lamentava a sua partida, isso era um fato, e suspirou enquanto seguia um jovem ajudante-de-ordens, subindo a escada principal, onde se alinhavam réplicas de retratos de todos aqueles grandes personagens históricos. Peel, Wellington, Disraeli e muitos outros. Alcançaram o corredor, o jovem bateu à porta e a abriu.

— O general-de-brigada Ferguson, primeiro-ministro.

A última vez em que Ferguson estivera ali, aquele era o estúdio de uma mulher, o toque feminino inequivocamente presente, mas agora as coisas eram diferentes, um pouco mais austeras, de uma forma bem sutil, ele estava ciente disso. A noite descia rápido lá fora e John Major estava examinando algum relatório, a caneta em sua mão movimentando-se com considerável rapidez.

— Desculpe-me, isso só vai levar um momento — disse ele.

Foi a cortesia que surpreendeu Ferguson, as boas maneiras simples e básicas que não se vêem com freqüência nos chefes de Estado. Major assinou o relatório, deixou-o de lado e recostou na cadeira, um homem simpático, de cabelos grisalhos, óculos de aro de chifre, o mais jovem primeiro-ministro do século XX. Era quase desconhecido do público em geral quando de sua sucessão a Margaret Thatcher e, no entanto, sua habilidade no controle da crise no Golfo já o caracterizara como um líder de grande estatura.

— Por favor, queira sentar-se, general. Minha agenda está apertadíssima, portanto irei direto ao assunto. Trata-se do caso que envolve a Sra. Thatcher na França. Obviamente, foi uma coisa muito desconcertante.

— De fato, primeiro-ministro. Graças a Deus não houve maiores conseqüências.

— Sim, mas parece que foi mais uma questão de sorte do que qualquer outra coisa. Conversei com o presidente Mitterrand e ele concordou que em todos os nossos assuntos e principalmente no que diz respeito à presente situação no Golfo a segurança será mais rigorosa.

— E quanto à imprensa, primeiro-ministro?

— Nada chegará à imprensa, general—disse-lhe John Major. — Creio que os franceses não conseguiram apanhar o indivíduo envolvido, não é mesmo?

— Receio que sim, segundo minhas últimas informações, mas o coronel Hernu, do Serviço de Ação, está mantendo contato constante comigo.

— Falei à Sra. Thatcher e foi ela que me sugeriu a sua presença, general. Pelo que entendo, a seção de informações conhecida como Grupo Quatro foi criada em 1972, subordinada apenas ao primeiro-ministro, com o propósito de cuidar de casos específicos de terrorismo e subversão, correto?

— Correto.

— O que significa que você já serviu a cinco primeiros-ministros, se incluirmos a mim.

— Na verdade, primeiro-ministro, isso não é bem exato — observou Ferguson. — Temos um problema no momento.

— Ah, sim, estou a par desse fato. A existência da sua seção nunca agradou ao pessoal da segurança comum, general, pois vocês se assemelham muito a um exército particular do primeiro-ministro. É por isso que pensaram que uma mudança no Número Dez seria uma boa ocasião para se livrarem de vocês.

— Temo que sim, primeiro-ministro.

— Bem, só que não era esse o caso e tampouco é agora. Conversei com o diretor geral de serviços de segurança e já está tudo resolvido.

— Eu não poderia estar mais satisfeito.

— Ótimo. Sua primeira tarefa, obviamente, é liquidar quem quer que esteja por trás desse episódio na França. Se é alguém do IRA, então está dentro de nossa alçada, não concorda?

— Totalmente.

— Perfeito. Deixarei que você vá agora e cuide de tudo. Mantenha-me informado de todos os passos importantes numa base confidencial.

— Naturalmente, primeiro-ministro.

A porta atrás dele abriu-se como num passe de mágica, o ajudante-de-ordens surgiu para conduzi-lo até a saída, e o primeiro-ministro já voltava a atenção para outro maço de papéis, enquanto a porta se fechava e Ferguson era acompanhado até o primeiro andar.

 

Enquanto a limusine se afastava, Mary Tanner inclinou-se para frente e fechou a divisória que os separava do motorista.

— O que aconteceu? O que ele queria?

— Ah, é esse caso na França. — O tom de Ferguson era curiosamente distante.—Sabe de uma coisa? Esse homem tem algo de estranho.

— Deixe isso para lá, senhor — replicou Mary. — Honestamente, não acha que uma mudança nos fará bem depois de todos esses anos com os conservadores no governo?

— Você daria uma excelente porta-voz para os trabalhadores. Seu velho e querido pai, que Deus o tenha, era professor de cirurgia em Oxford, sua mãe é dona de metade de Herefordshire. Aquele seu apartamento da Lowndes Square, vale quanto mesmo? Um milhão? Por que será que os filhos dos ricos são sempre tão radicalmente esquerdistas, ao mesmo tempo em que insistem em jantar no Savoy?

— O senhor está exagerando muito.

— Falando sério, minha querida, já trabalhei para primeiros-ministros tanto do Partido Conservador quanto do Trabalhista o partido político não importa muito. O marquês de Salisbury, quando foi ministro, Gladstone, Disraeli, todos tiveram problemas muito semelhantes aos que temos hoje: fenianos, anarquistas, bombas em Londres, só que de dinamite em vez de Semtex. E quantos atentados à sua vida sofreu a rainha Vitória? — Ele olhou para o trânsito na Whitehall, enquanto se dirigiam para o Ministério da Defesa. —- As coisas continuam sempre as mesmas.

— Muito bem, fim do sermão. Mas, afinal, o que aconteceu? — indagou ela.

— Bem, voltamos à atividade, é isso que aconteceu — declarou ele. — Receio que tenhamos de cancelar sua transferência de volta à Polícia Militar.

— Que maravilha!—exclamou ela, abraçando-o num impulso.

 

O gabinete de Ferguson no terceiro piso do Ministério da Defesa situava-se nos fundos, na extremidade do corredor, de frente para a Horse Guards Avenue, deixando ver o aterro Victoria e o rio ao fundo. Ele mal se instalara atrás de sua mesa, quando Mary entrou apressada.

— Fax codificado de Hernu. Já o coloquei no decodificador. Você não vai gostar disso nem um pouquinho.

Ali estava a essência do encontro de Hernu com Martin Brosnan, os fatos sobre Sean Dillon — tudo.

— Santo Deus! — exclamou Ferguson. — Não poderia ser pior. É como um fantasma, esse tal Dillon. Ele existe de verdade ou não? Tão terrível quanto Carlos em termos de terrorismo internacional, só que totalmente desconhecido da mídia e do público e geral. Não temos absolutamente nada sobre ele.

— Mas temos uma coisa, senhor.

— E o que é?

— Brosnan.

— É verdade, mas será que ele vai se dispor a ajudar? — Ferguson levantou-se e foi até a janela. — Tentei fazer com que Martin me auxiliasse num caso há pouco tempo. Ele não quis nem chegar perto. — Virou-se para ela e sorriu. — Por causa da namorada, compreende? Anne-Marie Audin. Ela sente-se horrorizada diante da possibilidade de ele voltar a ser o que já foi um dia.

— Sim, posso entender.

— Mas não importa. É melhor fazermos um relatório sobre os últimos progressos do pessoal na França para o primeiro-ministro. E que seja bem sucinto.

Ela apanhou uma caneta e escreveu o que ele ditou.

— Mais alguma coisa, senhor? — perguntou ao terminar as anotações.

— Creio que não. Mande datilografar. Uma cópia para o arquivo, a outra para o primeiro-ministro. Mande direto para o Número Dez por intermédio de um mensageiro. Confidencial.

 

A própria Mary datilografou um rascunho do relatório e seguiu pelo corredor até a sala de datilografia e fotocópia. Havia uma dessas salas em cada um dos andares, e todos os funcionários possuíam antecedentes acima de qualquer suspeita. A copiadora estava em funcionamento quando ela entrou. O homem diante da máquina já passara dos cinqüenta anos, tinha cabelos brancos, óculos com armação de metal no modelo usado por militares e as mangas da camisa estavam arregaçadas.

— Olá, Gordon — cumprimentou Mary. — Temos uma prioridade aqui. Capriche na datilografia e faça uma cópia para o arquivo pessoal. Pode fazer imediatamente?

— Claro que sim, capitão Tanner. — Ele passou os olhos pelo papel. — Levarei para a senhora em quinze minutos.

Ela saiu e ele sentou-se diante da máquina de escrever, inspirando profundamente a fim de acalmar-se enquanto lia o que estava ali escrito. Confidencial para o Primeiro-Ministro. Gordon Brown servira no Corpo de Informações Militares durante 25 anos, alcançando o posto de suboficial. Uma carreira digna, mesmo que sem nada de espetacular, culminando com o recebimento do título de Membro da Ordem do Império Britânico e a oferta de um cargo no Ministério da Defesa quando da sua reforma no Exército. E tudo transcorrera muito bem até que, no ano anterior, sua mulher morrera de câncer. Não tinham filhos e, aos 55 anos, ele se viu só num mundo frio, e foi aí que um milagre aconteceu.

Sempre havia convites circulando pelo Ministério para recepções nas embaixadas de vários países em Londres. Com freqüência ele apanhava um desses convites. Ao menos era algo para fazer e em uma exposição de arte na Embaixada alemã, ele conhecera Tânia Novikova, secretária e datilografa na Embaixada soviética.

A simpatia entre os dois foi mútua. Ela estava com trinta anos e não era particularmente bonita, mas quando o levara para a cama em seu segundo encontro no apartamento dele, em Camden, foi uma revelação. Brown nunca conhecera o sexo daquela forma e, instantaneamente, foi dominado pela obsessão. E foi aí que tudo começou. As perguntas sobre seu trabalho, tudo que se passava no Ministério da Defesa. Então houve um esfriamento. Ele não mais a via e ficou perturbado, quase fora de si. Ligou para o apartamento dela. A princípio ela fora fria, distante, e então lhe perguntara se ele estava fazendo algo interessante.

Ele percebeu o que estava acontecendo, mas não se importou. Havia uma série de relatórios sendo feitos sobre as mudanças no Exército britânico em vista das mudanças políticas na Rússia. E era fácil tirar cópias extras. Quando ele as levou ao apartamento dela, tudo voltou a ser como antes e ela o conduziu a êxtases que ele nunca antes soubera existirem.

Daí em diante ele passou a fazer qualquer coisa, fornecendo-lhe cópias de tudo que pudesse interessar a ela. Confidencial Para o Primeiro-Ministro. Que gratidão ela não sentiria por aquilo. Ele terminou de datilografar e tirou duas cópias extras, uma para ele mesmo. Mantinha agora um arquivo desses relatórios numa gaveta em seu quarto. A outra cópia era para Tânia Novikova, que não era nenhuma secretária ou datilografa na Embaixada soviética como dissera a Brown, mas uma oficial do KGB.

 

Gaston abriu a porta da garagem que ficava diante do Le Chat Noir e Pierre acomodou-se atrás do volante do velho Peugeot creme e escarlate. O irmão instalou-se no banco traseiro e ele deu a partida.

— Estive pensando numa coisa — disse Gaston. — E se eles não o pegarem? Ele poderia vir atrás da gente, Pierre.

— Que bobagem! A essa altura ele já está longe, Gaston. Quem seria maluco de ficar aqui depois do que aconteceu? Não, acenda um cigarro para mim e cale a boca. Teremos um jantar maravilhoso e depois iremos ao Zanzibar. Aquelas duas irmãs suecas ainda estão lá fazendo o show de strip-tease.

Era pouco antes das oito da noite e as ruas naquela área estavam silenciosas e desertas, as pessoas dentro de casa devido ao frio extremo. Chegaram a uma pequena praça e, quando começavam a cruzá-la, um policial da CRS numa motocicleta surgiu atrás deles, piscando os faróis.

— Tem um tira atrás da gente — disse Gaston.

O policial alcançou-os e fez sinal para que parassem.

— Imagino que seja uma mensagem de Savary — disse Pierre, parando o carro junto à calçada.

— Talvez o tenham apanhado — acrescentou Gaston, excitado.

O policial parou atrás deles, apoiou a motocicleta no descanso e aproximou-se. Gaston abriu a porta traseira, inclinando-se para fora.

— Pegaram o filho da puta?

Dillon tirou uma Walther munida com um silenciador Carswell da aba de sua capa de chuva e deu-lhe dois tiros no coração. Tirou os óculos de motociclismo e voltou-se para Pierre, que se benzeu.

— É você!

— Sim Pierre. Uma questão de honra.

A Walther disparou duas vezes mais, Dillon colocou-a de volta na capa de chuva, subiu na BMW e deu a partida. Começou a nevar um pouco e um grande silêncio reinava na praça. Cerca de meia hora depois, um policial numa ronda a pé, agasalhado com um manto contra o frio, encontrou os dois corpos.                      

 

O apartamento de Tânia Novikova ficava numa rua transversal à Bayswater Road, não muito longe do prédio da Embaixada soviética. Ela tivera um dia duro e pretendia dormir cedo. Faltava pouco para as dez e meia quando a campainha da porta tocou. Tânia estava se enxugando depois de um banho agradável e relaxante, e vestiu um robe, descendo as escadas.

O turno de trabalho de Gordon Brown terminara às dez. Ele mal podia esperar para vê-la e teve a costumeira dificuldade para estacionar seu Ford Escort. Parou diante da porta e tocou a campainha, impaciente, imensamente excitado. Quando ela abriu a porta e viu quem era, irritou-se de imediato e puxou-o para dentro.

— Disse-lhe para nunca vir aqui, Gordon, em quaisquer circunstâncias.

— Mas trata-se de algo especial — implorou ele. — Veja o que eu trouxe para você.

Na sala de estar ela pegou o envelope grande das mãos dele, abriu-o e tirou dali o relatório. Confidencial para o Primeiro-Ministro. Sua euforia era intensa enquanto o lia. Era incrível que esse idiota lhe levasse uma tal preciosidade. Os braços dele estavam ao redor de sua cintura, deslizando para os seios e ela tinha consciência da excitação dele.

— É coisa boa, não é? — perguntou ele.

— Excelente, Gordon. Você foi um ótimo menino.

— Mesmo? — Suas mãos apertaram-na ainda mais. — Posso passar a noite aqui, então?

— Ah, Gordon, é uma pena, mas hoje estou no turno da noite.

— Por favor, querida. — Ele tremia como uma folha.—Pelo menos alguns minutos.

Ela tinha de mantê-lo satisfeito, sabia disso, e então pôs o relatório sobre a mesa, puxando Gordon pela mão.

— Quinze minutos, Gordon, isso é tudo. Depois você vai embora.

E o levou até o quarto.

 

Depois de livrar-se dele, vestiu-se apressada, conjecturando sobre o que fazer. Ela era uma comunista ferrenha e engajada. Fora criada assim e era assim que morreria. Mais do que isso, ela servia ao KGB com total lealdade. Foram eles que cuidaram dela, que a educaram, que lhe deram qualquer que fosse o status que ela ocupava em seu mundo. Para uma jovem mulher, Tânia era surpreendentemente antiquada. Não dava a mínima para Gorbachev ou os tolos da Glasnot que o cercavam. Infelizmente, muitos no KGB o apoiavam e um desses era o seu chefe na embaixada em Londres, o coronel Yuri Gatov.

Qual seria sua atitude diante deste relatório, perguntou-se ela ao sair para a rua e começar a caminhar. Qual seria a reação de Gorbachev à tentativa fracassada de assassinato da Sra. Thatcher? Provavelmente, a mesma sensação de ultraje que o primeiro-ministro britânico deveria estar sentindo e, se Gorbachev pensasse assim, o mesmo pensaria o coronel Gatov. Então, o que fazer?

Ocorreu-lhe então, enquanto caminhava pela calçada coberta de gelo da Bayswater Road, que havia alguém que poderia muito bem interessar-se, e não só por pensar como ela, mas porque ele próprio estava bem no centro de toda a ação—Paris. Tratava-se de seu antigo chefe, coronel Josef Makeev. Isso mesmo. Makeev saberia melhor como usar aquelas informações. Ela dobrou a esquina, na direção de Kensington Palace Gardens e dirigiu-se à Embaixada soviética.

 

Por acaso, Makeev estava trabalhando até mais tarde em seu escritório naquela noite, quando sua secretária espiou pela porta.

— Uma chamada de Londres no scrambler. Capitão Novikova — anunciou ela.

Makeev apanhou o fone vermelho.

— Tânia — respondeu ele com uma certa afeição na voz, pois haviam sido amantes durante os três anos em que ela trabalhara para ele em Paris. — Em que posso ajudá-la?

— Soube que houve um incidente que diz respeito ao Império aí hoje — disse ela.

Era um velho código do KGB, usado durante anos sempre que se referiam a tentativas de assassinato de qualquer tipo nos escalões do governo envolvendo a Inglaterra.                      

Makeev pôs-se imediatamente alerta.

— Isso mesmo. O tipo do “caso que não aconteceu” de sempre.

— Você tem algum interesse no caso?

— Muito.

— Estou enviando a você um fax codificado. Ficarei aqui no escritório para o caso de você querer falar a respeito.

Tânia Novikova pôs o fone no gancho. Ela possuía seu próprio aparelho de fax codificador numa mesa lateral. Foi até ele, digitando os detalhes necessários rapidamente e verificando no visor se estava tudo certo. Acrescentou o número pessoal de Makeev, inseriu o relatório e ficou à espera. Alguns minutos depois, obteve o sinal de mensagem recebida. Ergueu-se, acendeu um cigarro, caminhou até a janela e ficou ali de pé, aguardando.

A mensagem embaralhada foi recebida na sala de rádio e codifica­ção na embaixada em Paris. Makeev esperava, impaciente, que o aparelho terminasse a recepção. O operador estendeu-a a ele e o coronel a introduziu no decodificador, digitando sua senha. Ele mal podia esperar para ver o conteúdo, e foi lendo pelo corredor, tão excitado quanto Tânia Novikova ao ver as palavras Confidencial para o Primeiro-Ministro. Sentou-se à sua mesa e releu todo o relatório. Refletiu durante algum tempo e então levou a mão ao telefone vermelho.

— Você foi ótima, Tânia. Esse caso é a menina dos meus olhos.

— Fico muito satisfeita.

— Gatov está a par disso?

— Não, coronel.

— Muito bom. Vamos manter as coisas assim.

— Há algo mais que eu possa fazer?

— Muito mais. Mantenha seu contato e avise-me novamente de qualquer novidade. Pode haver mais trabalho para você. Tenho um amigo que está indo para Londres. Exatamente esse amigo a respeito de quem você leu.

— Ficarei aguardando.

Ela desligou o telefone, totalmente eufórica, e dirigiu-se à cantina.

 

Em Paris, Makeev ficou lá sentado por um momento, o cenho franzido, e então ergueu o fone e ligou para Dillon. Houve uma certa demora até o irlandês atender.

— Quem fala?

— Josef, Sean, estou indo para aí. É de extrema importância.

Makeev pousou o fone no gancho, apanhou o sobretudo e saiu.

 

Brosnan levara Anne-Marie ao cinema naquela noite e depois foram a um pequeno restaurante em Montmartre chamado La Place Anglaise. Era um de seus favoritos há muito tempo porque, apesar do nome, uma das especialidades da casa era o cozido irlandês. O local não estava muito cheio e eles haviam acabado o prato principal quando Max Hernu apareceu, Savary de pé atrás dele.

— Neve em Londres, neve em Bruxelas e neve em Paris.

Hernu sacudiu a neve da manga e abriu o casaco.

— Devo deduzir por sua aparição aqui que eu estava sendo seguido? — indagou Brosnan.

— Em absoluto, professor. Fomos até seu apartamento e lá o porteiro nos disse que o senhor havia ido ao cinema, tendo também a gentileza de citar três ou quatro restaurantes onde o senhor poderia estar. Este é o segundo.

— Então é melhor vocês se sentarem e beberem um conhaque com café — disse-lhe Anne-Marie. — Os dois parecem congelados.

Tiraram os casacos e Brosnan fez sinal ao maitre, que atendeu de pronto, tomando o pedido.

— Lamento estragar sua noite, mademoiselle, mas o assunto é muito importante — desculpou-se Hernu. — Um acontecimento infeliz.

Brosnan acendeu um cigarro.

— Conte-nos o pior.

Foi Savary quem falou.

— Há cerca de duas horas os corpos dos irmãos Jobert foram encontrados no carro deles por um policial que fazia a ronda numa pequena praça, não muito longe do Le Chat Noir.

— Foram assassinados, é isso o que o senhor está dizendo? — adiantou-se Anne- Marie

— Isso mesmo, mademoiselle — respondeu ele. — Assassinados a tiros.

— Dois tiros no coração de cada um? — perguntou Brosnan.

— Bem, exato, professor. Foi o que o patologista nos disse no início do exame. Não ficamos até o final. Como é que o senhor soube?

— Foi Dillon, sem dúvida nenhuma. É a atitude de um verdadeiro profissional, coronel, e o senhor deveria saber disso. Nunca atire uma vez só, sempre duas, para que o outro não consiga atirar em você como reflexo.

Hernu mexeu o café.

— O senhor esperava por isso, professor?

— Ah, mas claro. Ele iria atrás deles mais cedo ou mais tarde. Dillon é um homem estranho. Sempre cumpre a palavra, nunca quebra um contrato, e espera o mesmo daqueles que trabalham com ele. É o que ele chama de questão de honra. Pelo menos chamava, nos velhos tempos.

— Posso lhe perguntar uma coisa? — pediu Savary. — Estou nas ruas há quinze anos. Conheço uma imensa variedade de assassinos e não só os gângsteres que vêem a coisa como parte do trabalho, mas também aquele pobre coitado que mata a mulher porque ela o traiu. Dillon parece ter algo mais. Isto é, seu pai foi morto por soldados ingleses e então ele alistou-se no IRA. Posso compreender isso, mas não as coisas que aconteceram depois. Vinte anos nessa vida. Todos esses atentados, que não são sequer em seu próprio país. Por quê?

— Não sou psiquiatra — respondeu Brosnan. — Se perguntarem a um deles, ele lhe daria todos aqueles nomes elaborados, de psicopata para baixo. Conheci homens como ele no Exército, no Vietnã, nas forças especiais, e eram bons homens alguns deles, mas uma vez que começassem, refiro-me aos assassinatos, a coisa parecia tomar conta deles como uma droga. Começavam a agir por compulsão. O estágio seguinte, sempre, era matar desnecessariamente. Matar sem emoção. Lá no Vietnã, era como se as pessoas houvessem se tornado, como posso dizer, simples coisas.

— E é o que acha que aconteceu com Dillon? — pergunta Hernu.

— Aconteceu comigo, coronel — declarou Martin Brosnan friamente.

Houve um silêncio quebrado finalmente por Hernu.

— Temos de pegá-lo, professor.

— Sei disso.

— Então o senhor se juntará a nós nessa caçada?

Anne-Marie pousou a mão sobre o braço de Brosnan, a aflição estampada em seu rosto, e voltou-se para os dois homens, numa espécie de raiva desesperada.

— Essa é a função de vocês, não a de Martin.

— Está tudo bem — acalmou-a Martin. — Não se preocupe. — Dirigiu-se a Hernu: — Estou à sua disposição para lhes dar todos os conselhos que puder, quaisquer informações que possam ajudar, mas sem qualquer envolvimento pessoal. Sinto muito, coronel, mas é assim que tem de ser.

— O senhor nos disse que certa vez ele tentou matar o senhor e um amigo — observou Savary.

— Isso foi em 74. Eu e ele trabalhávamos ambos para esse meu amigo, um homem chamado Devlin, Liam Devlin. Este era o que se poderia chamar de um revolucionário da antiga. Pensava que ainda se podia lutar como nos velhos tempos, um exército secreto contra as tropas. Algo semelhante à Resistência na França durante a guerra. Ele não gostava de bombas, de alvos indefesos, esse tipo de coisa.

— O que aconteceu? — perguntou o inspetor.

— Dillon desobedeceu às ordens e a bomba que se destinava à polícia matou meia dúzia de crianças. Eu e Devlin fomos atrás dele e ele tentou nos liquidar.

— Sem sucesso, obviamente.

— Bem, não éramos exatamente dois meninos ingênuos. — Sua voz mudara de uma forma bem sutil, adquirindo um tom mais duro e cínico. — Ele me deixou com um buraco no ombro e eu o deixei com um no braço. Foi então que ele sumiu de vista pela primeira vez, vindo para a Europa.

— E você não voltou a vê-lo?

— Estive na prisão por mais de quatro anos a partir de 1975, inspetor. Belle Isle. O senhor está esquecendo a sua própria história. Ele trabalhou com um homem de nome Frank Barry durante algum tempo, um outro desertor do IRA a surgir no cenário europeu. Um tremendo mau-caráter, o tal Barry. Lembra-se dele?

— Lembro, de fato, professor — respondeu Hernu. — Se não me falha a memória, ele tentou assassinar Lorde Carrington, secretário das Relações Exteriores inglês, quando este fazia uma visita à França, em 1979, em circunstâncias bem semelhantes a esse caso recente.

— É provável que Dillon estivesse repetindo a mesma operação. Ele idolatrava Barry.

— Que, pelo que eu saiba, o senhor matou em nome do serviço secreto britânico.

— Com licença — desculpou-se Anne-Marie, erguendo-se e dirigindo-se ao toalete.

— Nós a aborrecemos — comentou Hernu.

— Ela se preocupa comigo, coronel. Teme que alguma circunstância possa pôr uma arma em minha mão outra vez e que eu mergulhe de volta no passado.

— Sim, compreendo, meu amigo. — Hernu pôs-se de pé e abotoou o casaco. — Já tomamos muito do seu tempo. Minhas desculpas a Mademoiselle Audin.

— Fico imaginando suas palestras na Sorbonne, professor. Os alunos devem amá-lo. Aposto que o auditório fica sempre cheio.

— Sempre — afirmou Brosnan.

Ele os observou afastarem-se e Anne-Marie voltou.

— Sinto muito, meu amor — disse-lhe ele.

— Não foi culpa sua. — Ela parecia cansada. — Acho que vou para casa.

— Não vai comigo até meu apartamento?

— Hoje não. Quem sabe amanhã.

O maitre trouxe a conta, que Brosnan pagou, e então ajudou-os a vestirem os casacos, acompanhando-os até a porta. Lá fora a neve salpicava sobre as pedras do calçamento. Ela estremeceu e virou-se para Brosnan.

— Você mudou, Martin, ainda há pouco quando conversava com eles. Começou a se transformar naquele outro homem de novo.

— É mesmo? — perguntou ele e sabia que era verdade.

— Vou pegar um táxi.

— Deixe-me ir com você.

— Não, prefiro que não.

Ele a observou descer a rua, então fez meia-volta e seguiu o caminho oposto, pensando em Dillon, imaginando onde ele estaria e o que estaria fazendo.

 

A barcaça de Dillon encontrava-se atracada em uma pequena bacia no Quai St. Bernard. Ali havia principalmente lanchas motorizadas, embarcações de lazer cobertas com lonas devido ao inverno. O interior da barcaça era surpreendentemente luxuoso, um salão com revestimento de mogno, onde havia dois confortáveis sofás e urna televisão. O aposento para dormir ficava num camarote adiante, tendo um divã como cama e um pequeno banheiro adjacente. A cozinha ficava do outro lado do corredor, pequena mas muito moderna, com tudo que um bom cozinheiro pudesse desejar. Era ali que ele se encontrava naquele momento, esperando que a água no bule fervesse, quando ouviu o som de passos no convés. Abriu uma gaveta, tirou dali uma Walther, engatilhou-a e enfiou-a na cintura, nas costas. Então, saiu da cozinha.

Makeev desceu a escada do tombadilho e entrou no salão. Sacudiu a neve de seu sobretudo e o despiu.

— Que noite! Um tempo miserável.

— Está pior em Moscou — disse-lhe Dillon. — Café?

— Por que não?

Makeev serviu-se de uma dose de conhaque de uma garrafa sobre o aparador e o irlandês voltou com uma caneca de porcelana em cada mão.

— Bem o que aconteceu?

— Em primeiro lugar, minhas fontes me informaram que os irmãos Jobert estão muito bem mortos. Você acha que foi uma atitude sábia?

— Para usar uma expressão imortal de um daqueles velhos filmes de James Cagney, eles receberam o que mereciam. Então, o que mais aconteceu?

— Ah, entrou em cena um velho amigo do seu passado obscuro. Um tal Martin Brosnan.

— Santa Mãe de Deus! — Dillon pareceu transfigurado por um momento. — Martin? Martin Brosnan? De que parte do inferno ele ressurgiu?

— Ele está morando bem aqui em Paris, um pouco mais acima de você no rio, no Quai de Montebello, no edifício na esquina em frente à Notre Dame. Um que tem a entrada bem sofisticada. Dá para ir a pé daqui. Não há como errar. Há algumas armações de andaimes na frente. Estão fazendo algum tipo de obra no prédio.

— Tudo muito detalhado. — Dillon apanhou uma garrafa de Bushmills no armário e serviu-se de uma dose. — Por quê?

— Dei uma olhada quando vinha para cá.

— E o que isso tudo tem a ver comigo?

Então Makeev contou-lhe sobre Max Hernu, Savary, Tânia Novikova em Londres, tudo.

— Bem — observou ao terminar —, pelo menos sabemos o que pretendem nossos amigos.

— Essa garota, Novikova, pode me ser muito útil — afirmou Dillon. — Ela vai seguir as nossas regras do jogo?

— Sem dúvida. Ela trabalhou para mim durante alguns anos. Uma jovem muito inteligente e que, como eu, não está muito satisfeita com as mudanças que estão ocorrendo em nosso país. Com o chefe dela em Londres, a história é outra. Coronel Yuri Gatov. Totalmente a favor da mudança. É um deles.

— Sim, ela pode vir a ser importante — ratificou Dillon.

— Devo entender então que você deseja ir a Londres?

— Assim que eu souber, direi a você.

— E Brosnan?

— Eu poderia cruzar com ele na rua sem que ele me reconhecesse.

— Tem certeza?

— Josef, posso passar até mesmo por você sem que você reconheça. Nunca me viu sofrer uma transformação de verdade, não é mesmo? Você veio de carro?

— É claro que não. Vim de táxi. Espero conseguir um de volta.

— Vou pegar meu casaco e acompanhá-lo por um trecho do caminho.

Deixou o salão e Makeev abotoou o casaco, servindo-se a seguir de mais um conhaque. Houve um pequeno ruído atrás dele e, quando o russo se voltou, lá estava Dillon de boné e casaco de marinheiro, encurvado de uma forma estranha. Até mesmo a forma do seu rosto parecia diferente. Tinha a aparência de um homem quinze anos mais velho. A mudança na linguagem corporal era incrível.

— Meu Deus, é impressionante! — exclamou Makeev.

Dillon endireitou os ombros e sorriu.

— Josef, meu velho, se eu tivesse continuado no palco, a essa altura já teria sido condecorado pela rainha. Ande, vamos logo.

 

A neve salpicava levemente o chão, as barcaças deslizavam pelo rio e a Notre Dame, iluminada pelos holofotes, flutuava na noite. Os dois alcançaram o Quai de Montebello sem que nenhum táxi aparecesse.

— Aqui estamos, diante da casa de Brosnan. Ele é dono de todo o edifício. Parece que a mãe o deixou muito bem de vida.

— Verdade?

Dillon olhou para os andaimes.

— Apartamento quatro, o da esquina no primeiro andar — informou Makeev.

— Ele mora sozinho?

— Bem, não é casado. Tem uma amiga, Anne-Marie Audin...

— A fotógrafa de guerra? Eu a vi uma vez em 71, em Belfast. Brosnan e Devlin, meu chefe na ocasião, estavam lhe oferecendo uma visão privilegiada do IRA.

— Você chegou a conhecê-la?

— Pessoalmente não. Eles vivem juntos?

— Parece-me que não.

Um táxi surgiu de uma rua lateral, vindo na direção deles, e Makeev ergueu o braço.

— Bem, conversaremos amanhã.

O táxi se foi e Dillon estava prestes a dar meia-volta quando Brosnan dobrou a esquina. Dillon reconheceu-o instantaneamente.

— Veja só, Martin, seu grande canalha — sussurrou.

Brosnan subiu os degraus e entrou. Dillon deu meia-volta, sorrindo, e afastou-se dali, assoviando baixinho uma canção.

 

No apartamento na Cavendish Square, Ferguson estava se aprontando para ir dormir, quando o telefone tocou.

— Más notícias. Ele despachou os irmãos Jobert.

— Santo Deus! — exclamou Ferguson. — Ele não brinca em serviço, não é mesmo?

— Fui ver Brosnan para pedir-lhe que se junte a nós nesse caso. Lamento que ele tenha recusado. Ofereceu-se para nos aconselhar etc., mas não se envolverá ativamente.

— Bobagem — disse Ferguson. — Não podemos nos contentar com isso. Quando o navio está afundando, precisamos de toda a tripulação nas bombas, e este navio está afundando com muita rapidez.

— O que você sugere?

— Acho que seria uma boa idéia eu ir até aí falar com ele. Não tenho certeza de quando, pois antes preciso providenciar algumas coisas. É possível que eu vá esta tarde. Avisaremos a você.

— Excelente. Fico muito satisfeito.

Ferguson ficou lá, sentado, pensando em tudo aquilo por algum tempo e então ligou para o apartamento de Mary Tanner.

— Suponho, como eu, você esperava ter uma noite relativamente calma, depois de ter acordado tão cedo esta manhã — disse ele.

— Bem, essa idéia de fato passou pela minha cabeça. Aconteceu alguma coisa?

Ele atualizou-a sobre os últimos fatos.

— Acho que seria uma boa idéia ir até lá amanhã, conversar com Hernu e depois com Brosnan. Ele precisa ser conscientizado sobre a gravidade do caso.

— Você quer que eu o acompanhe?

— Naturalmente. Não consigo entender nem mesmo um cardápio por lá, ao passo que todos sabemos que um dos benefícios de sua educação tão dispendiosa é a fluência na língua francesa. Entre em contato com o funcionário responsável pelos transportes no Ministério e diga-lhe que quero o jato Lear pronto amanhã.

— Cuidarei disso. Mais alguma coisa?

— Não. Vejo você no escritório pela manhã e não se esqueça do seu passaporte.

Ferguson desligou o telefone, deitou-se na cama e apagou a luz,

 

De volta à barcaça, Dillon pôs a chaleira no fogo, despejou uma dose de uísque Bushmills em uma caneca, acrescentou um pouco de suco de limão, açúcar e a água fervendo, e voltou ao camarote, sorvendo a bebida quente. Meu Deus, Martin Brosnan depois de todos esses anos. Sua mente voltou aos velhos dias passados com o americano e Liam Devlin, seu antigo líder. Devlin, a lenda viva do IRA. Dias loucos e excitantes, enfrentando o poderio do Exército britânico, frente a frente. Nada jamais seria como aquilo.

Havia uma pilha de jornais londrinos sobre a mesa. Ele os comprara numa banca de jornais na Gare de Lyon mais cedo naquele dia. Lá estavam o Daily Mail, o Express, The Times e Telegraph. Eram as seções políticas que mais o interessavam e todas as histórias eram semelhantes. A crise no Golfo, os ataques aéreos a Bagdá, especulações sobre quando começariam os combates em terra. E havia, naturalmente, as fotos. O primeiro-ministro John Major diante do Número Dez da Downing Street. A imprensa inglesa era maravilhosa. Havia debates sobre segurança, especulações sobre possíveis ataques terroristas árabes e artigos que incluíam até mesmo mapas e plantas das ruas da área ao redor da Downing Street. E mais fotos do primeiro-ministro e dos ministros chegando para as reuniões diárias do Gabinete de Guerra. Londres, era ali que estava a ação, não havia a menor dúvida. Dillon guardou os jornais em ordem, terminou sua bebida e foi para a cama.

 

Uma das primeiras coisas que Ferguson fez ao chegar ao escritório foi ditar um outro breve relatório para o primeiro-ministro, pondo-o a par dos acontecimentos e informando-o sobre sua viagem a Paris. Mary levou o rascunho para a sala de cópias. A funcionária em serviço, prestes a chegar ao fim do turno de trabalho, era a Sra. Alice Johnson, uma viúva de guerra cujo marido fora morto nas Malvinas. Ela pôs-se a datilografar o relatório imediatamente e acabara de introduzi-lo na copiadora quando Gordon Brown chegou. Ele estava trabalhando em turnos partidos. Três horas, das dez à uma da tarde, e mais três, de seis às dez da noite. Ele pôs a valise de lado e tirou a jaqueta.

— Quando quiser pode ir, Alice. Alguma coisa especial?

— Apenas este relatório para a capitão Tanner. É um trabalho para o Número Dez. Eu disse que levaria até ela.

— Eu levo para você — ofereceu-se Brown. — Pode ir embora.

Ela lhe entregou as duas cópias do relatório e começou a arrumar a mesa. Não havia chance de fazer uma cópia extra, mas pelo menos ele podia ler o conteúdo, o que fez enquanto se dirigia pelo corredor ao escritório de Mary Tanner. Ela estava sentada à mesa quando ele entrou.

— O relatório que a senhora queria, capitão Tanner. Quer que arranje um mensageiro?

— Não, obrigada, Gordon. Eu cuido disso.

— Mais alguma coisa, capitão?

— Não, estou apenas limpando a mesa. Eu e o general-de-brigada Ferguson estamos indo a Paris. — Ela lançou um olhar para o relógio em seu pulso. — Tenho de ir. Devemos partir de Gatwick às onze.

— Bem, espero que se divirta.

Quando ele voltou à sala de cópias, Alice Johnson ainda lá.

— Ouça, Alice, você se importaria de ficar um pouquinho mais? Surgiu um probleminha. Depois eu compensarei no seu horário.

— Tudo bem — concordou ela. — Pode ir.

Ele vestiu o casaco, desceu as escadas correndo em direção à cantina e alcançou uma das cabines de telefone público. Tania Novikova só estava em seu apartamento devido ao avançado da hora em que deixou a embaixada na noite anterior.

— Já lhe disse para não telefonar para cá. Deixe que eu ligo para você — censurou-o ela.

— Preciso ver você. Estou livre à uma.

— Impossível.

— Vi um outro relatório. O mesmo assunto.

— Sei. Você tem uma cópia?

— Não, não foi possível, mas eu o li.

— O que dizia?

— Eu lhe direi na hora do almoço.

Ela se deu conta então de que um controle severo de sua parte se fazia necessário. Sua voz soou fria e dura quando ela falou.

— Não me faça perder meu tempo, Gordon. Estou ocupada. Creio que é melhor pôr um fim a essa conversa. Talvez eu lhe telefone qualquer hora, talvez não.

Imediatamente ele entrou em pânico.

— Não, deixe-me contar a você. Não havia muita coisa. Somente que os dois vigaristas franceses envolvidos foram assassinados, presumem eles que pelo tal Dillon. Ah, e o general-de-brigada Ferguson e a capitão Tanner estão indo para Paris no jato Lear na hora do almoço.

— Para quê?                                                       .     .

— Eles esperam persuadir o tal Martin Brosnan a ajudá-los.

— Ótimo — disse ela. — Você agiu muito bem, Gordon. Vejo você hoje à noite em seu apartamento. Às seis horas. E traga sua escala de trabalho das próximas semanas. — Ela desligou.

Brown subiu as escadas, exultante.

 

Ferguson e Mary Tanner fizeram um excelente vôo e pousaram no aeroporto Charles de Gaulle pouco depois da uma da tarde. Por volta das duas horas estavam sendo levados ao gabinete de Hernu no quartel-general da DGSE no Boulevard Mortier.

Hernu deu um rápido abraço em Ferguson.

— Charles, sua velha raposa, há quanto tempo!

— Veja bem, não me venha com esses modos engraçados dos franceses — disse-lhe Ferguson. — Daqui a pouco você vai querer me beijar as bochechas. Essa é Mary Tanner, minha assistente.

Ela usava um elegante terninho Armani de calça comprida marrom escuro e um par de botas à altura dos tornozelos de Manolo Blahnik, brincos de brilhante e um pequeno Rolex de ouro do tipo mergulhador completava o quadro. Para uma garota que não era considerada particularmente bonita, ela parecia estonteante. Hernu, que sabia reconhecer a classe onde ela existia, beijou-lhe a mão.

— Capitão Tanner, sua reputação a precede.

— Espero que apenas o lado bom dela — replicou Mary num francês fluente.

— Ótimo — disse Ferguson. — Agora que já cumprimos as formalidades, vamos aos fatos. O que me diz de Brosnan?

— Falei com ele hoje pela manhã e ele concordou em nos receber em seu apartamento às três horas. Bem, ainda há tempo para um almoço tardio. Temos uma cantina excelente aqui. Todos se misturam lá, do diretor para baixo. — Ele abriu a porta. — Sigam-me. Pode não ser exatamente a melhor comida de Paris, mas com certeza é a mais barata.

 

No salão da barcaça, Dillon servia-se de uma taça de Krug e estudava um mapa de Londres em escala ampliada. À sua volta, presos às paredes de mogno, havia artigos e reportagens de todos os jornais, referindo-se especificamente a assuntos do Número Dez, à Guerra do Golfo e ao sucesso que John Major estava alcançando. Havia também fotos do primeiro-ministro mais jovem do século, várias delas. De fato, os olhos pareciam segui-lo pelo salão. Era como se John Major o estivesse observando.

—Eu também estou de olho em você, meu chapa — sussurrou Dillon.

O que o intrigava eram as constantes reuniões diárias do Gabinete de Guerra britânico no Número Dez. Todos aqueles calhordas, todos juntos num mesmo local. Um alvo e tanto. Uma repetição de Brighton, quando haviam chegado perto de liquidar todo o governo inglês. Mas o Número Dez como alvo? Isso não parecia possível. O prédio fora apelidado por alguns de Fortaleza Thatcher depois das melhorias na segurança implantadas por aquela formidável senhora.

Dillon ouviu o som de passos no convés acima de sua cabeça, abriu uma gaveta da mesa negligentemente, deixando ver um revólver .38 Smith & Wesson, e fechou-a outra vez quando Makeev entrou.

— Eu podia ter telefonado, mas achei que era melhor falar com você pessoalmente — disse o russo.

— O que houve agora?

— Trouxe-lhe algumas fotos que tiramos de Brosnan como está agora. Ah, e essa é a namorada dele, Anne-Marie Audin.

— Ótimo. Mais alguma coisa?

— Tive mais notícias de Tânia Novikova. Parece que o general-de-brigada Charles Ferguson e sua assistente, a capitão Mary Tanner, vieram para cá. Deveriam decolar de Gatwick às onze. — Lançou um olhar para o relógio em seu pulso. — Eu diria que, nesse momento, devem estar falando com Hernu.

— Com que propósito?

— O verdadeiro motivo da viagem é conversar com Brosnan. Tentar persuadi-lo a participar de uma forma ativa da sua procura.

— É mesmo? — Dillon sorriu friamente. — Martin está se tornando um sério inconveniente. Talvez eu tenha de fazer algo esse respeito.

Makeev indicou os recortes nas paredes.

— Sua galeria particular?

— Estou apenas conhecendo o homem — retrucou Dillon. — Aceita uma bebida?

— Não, obrigado. — De repente, Makeev sentiu-se pouco à vontade. — Tenho muito o que fazer. Manterei contato.

Ele subiu a escada do tombadilho e Dillon serviu-se de um pouco mais de champanhe; bebericou um pouco e então foi até a cozinha e despejou toda a garrafa pia abaixo. Um grande desperdício, mas sentira o ímpeto de fazê-lo. Voltou ao salão, acendeu um cigarro e olhou de novo os recortes. Entretanto, não conseguia parar de pensar em Martin Brosnan. Apanhou as fotografias que Makeev lhe trouxera e as prendeu ao lado dos recortes.

 

Anne-Marie encontrava-se na cozinha de Quai de Montebello, Brosnan sentado à mesa revendo uma palestra, quando a campainha tocou. Ela correu para atender, enxugando as mãos em um pano.

— Devem ser eles. Vou abrir a porta. Bem, não se esqueça da sua promessa.

Ela tocou-lhe a nuca de leve e saiu. Brosnan ouviu algumas vozes no hall e a seguir Anne-Marie voltou acompanhada por Ferguson, Hernu e Mary Tanner.

— Vou fazer um café — disse Anne-Marie, indo em direção à cozinha.

— Meu querido Martin. — Ferguson estendeu a mão. — Há quanto tempo!

— É impressionante — observou Brosnan. — Nós só nos encontramos quando você precisa de alguma coisa.

— Alguém que você ainda não conhece: minha assistente, capitão Mary Tanner.

Brosnan examinou-a rapidamente, uma garota pequena e morena, com uma cicatriz no lado esquerdo do rosto, e gostou do que viu.

— Você não conseguiu encontrar um trabalho melhor do que o que esse velho patife pode lhe oferecer? — perguntou Martin à moça.

Estranho que ela se sentisse ligeiramente sem ar diante desse homem de 45 anos, com os ridículos cabelos longos e um rosto de quem já vira muito do que havia de pior nesse mundo.

— Estamos enfrentando uma recessão. É preciso pegar o que aparece — disse ela, a mão delicadamente pousada na dele.

— Certo. Já fizemos as encenações e agora vamos ao trabalho — interrompeu Ferguson. Hernu caminhou até a janela, Ferguson e Mary sentaram-se no sofá defronte Brosnan.

— Max me disse que conversou com você ontem à noite depois do assassinato dos irmãos Jobert.

Anne-Marie entrou na sala carregando uma bandeja com café.

— Isso mesmo — falou Brosnan.

— Ele me disse que você se recusou a nos ajudar.

— Isso é exagerar um pouco as coisas. O que eu disse foi que faria tudo que pudesse, menos me envolver pessoalmente. E se você veio até aqui com o objetivo de tentar mudar minha opinião, está perdendo seu tempo.

Anne-Marie serviu o café.

— Você concorda com ele, Srta. Audin?

— Martin deixou essa vida há muito tempo, general — respondeu ela, cautelosa. — Eu não desejaria vê-lo voltar a ela por qualquer que fosse o motivo.

— Mas você com certeza compreende que um homem como Dillon deve ser detido?

— Então outros devem detê-lo. Por que Martin, pelo amor de Deus? — Ela agora estava angustiada e irritada. — É obrigação de vocês, pessoas como o senhor. É assim que vocês ganham a vida.

Max Hernu aproximou-se e apanhou uma xícara de café.

— Mas o professor Brosnan encontra-se numa posição privilegiada no que diz respeito a esse caso, a senhora deve reconhecer isso, mademoiselle. Ele conheceu Dillon intimamente, trabalhou com ele durante vários anos. Poderia ser de grande ajuda para nós.

— Eu não quero vê-lo com uma arma nas mãos — afirmou ela — e é isso que fatalmente aconteceria. Uma vez que ele coloque o pé outra vez nesse caminho, só pode haver um final.

Ela estava muito aflita e deu-lhe as costas, voltando cozinha. Mary Tanner a seguiu e fechou a porta atrás de si. Marie estava recostada contra a pia, os braços cruzados co estivesse se contendo, a agonia estampada no rosto.

— Eles não compreendem, não é? Eles não compreendem o que quero dizer.

— Eu compreendo — disse Mary com simplicidade. — Entendo perfeitamente o que você está sentindo.

E quando Anne-Marie começou a soluçar baixinho, ela se aproximou e a abraçou.

 

Brosnan abriu a janela de sacada e ficou de pé no terraço, próximo às armações dos andaimes, inspirando profundamente o ar frio. Ferguson juntou-se a ele.

— Sinto muito pelo aborrecimento que causamos a ela.

— Não, não sente. Você enxerga apenas o objetivo em vista. Sempre foi assim.

— Ele é um crápula, Martin.

— Eu sei — assentiu Martin. — O canalha dessa vez nos trouxe um problema de verdade. Preciso fumar um cigarro.

Ele voltou ao interior do apartamento. Hernu estava sentado perto da lareira. Brosnan encontrou um maço de cigarros, hesitou por um momento e então abriu a porta da cozinha. Anne-Marie e Mary estavam sentadas uma de frente para a outra, as mãos dadas sobre a mesa.

Mary voltou-se.

— Ela vai ficar bem. Deixe-nos a sós um pouco.

Brosnan voltou ao terraço, acendeu um cigarro e recostou-se à balaustrada.

— Parece uma mulher e tanto essa sua assistente. Aquela cicatriz no lado esquerdo de seu rosto. Estilhaços de bomba. Qual é a sua história?

— Ela estava a serviço como tenente da polícia militar em Londonderry. Um camarada do IRA estava dirigindo um carro-bomba quando o motor pifou. Ele abandonou o veículo junto ao meio-fio e fugiu. Infelizmente, o carro estava diante de um lar para idosos. Mary passava por ali num Land Rover quando um civil a alertou. Ela entrou no carro, soltou o freio e conseguiu fazer com que descesse desligado morro abaixo até um terreno baldio. O carro explodiu quando ela se afastava, correndo.

— Santo Deus!

— Sim, fiquei chocado na ocasião. Quando ela saiu do hospital, recebeu uma séria reprimenda por desobedecer às ordens estabelecidas e a George Medal pela bravura do seu ato. E depois eu a convoquei para trabalhar comigo.

— Há muita força contida dentro dela. — Brosnan suspirou e atirou o cigarro no espaço quando Mary Tanner se reuniu a eles.

— Ela foi se deitar um pouco.

— Tudo bem — disse Brosnan. — Vamos entrar. — Sentaram-se na sala e ele acendeu outro cigarro. — Vamos acabar com isso. O que você tinha a dizer?

Ferguson voltou-se para Mary.

— Sua vez, minha querida.

— Vasculhei todo o arquivo, verifiquei todos os tipos de informação que o computador pôde nos dar. — Ela abriu a bolsa marrom e tirou dali uma fotografia. — O único retrato de Dillon que pudemos encontrar. Trata-se de uma foto em grupo tirada na Academia Real de Arte Dramática há vinte anos. Pedimos a um especialista do departamento que a ampliasse.

Não havia definição na imagem, a textura era granulosa e o rosto era totalmente anônimo. Apenas mais um jovem. Brosnan devolveu a fotografia.

— Inútil. Eu mesmo não o reconheci.

— Ah, mas é ele mesmo. O homem à sua direita ficou bastante famoso na TV. Agora está morto.

— Não por causa de Dillon, foi?

— Ah não, câncer no estômago. Em 1981, porém, ele foi procurado por um de nossos homens e confirmou que era mesmo Dillon ao seu lado na fotografia.

— O único retrato que temos — afirmou Ferguson. — E não serve para droga nenhuma.

— Você sabia que ele tirou um brevê, podendo pilotar aviões comerciais também? — indagou Mary.

— Não, eu nunca soube disso — respondeu Martin.

— Segundo um de nossos informantes, ele o consegui no Líbano alguns anos atrás.

— Por que o seu pessoal estava atrás dele em 1981 ? — quis saber Brosnan.

— Bem, é uma coisa interessante — contou-lhe Mary. — Você disse ao coronel Hernu que ele brigara com o IRA, deixando-o e indo integrar-se ao circuito terrorista internacional.

— Correto.

— Parece que o receberam de volta em 1981. Estavam enfrentando problemas em suas unidades de serviço ativo na Inglaterra. Muitas prisões, esse tipo de coisa. Através de um informante no Ulster, soubemos que ele estava operando em Londres por um tempo. Houve pelo menos três ou quatro incidentes que lhe foram atribuídos. Dois carros-bombas e o assassinato de um informante da polícia no Ulster, que fora remanejado com a família para Maida Vale.

— E não chegamos nem mesmo perto de apanhá-lo — declarou Ferguson.

— Bem, vocês não conseguiriam — disse-lhe Brosnan. — Deixe-me dizer-lhes mais uma vez: ele é um ator genial. Pode se transformar de verdade diante dos seus olhos, através do simples uso da linguagem corporal. Vocês precisariam ver para crer. Imaginem então o que ele pode fazer com a ajuda de maquiagem e tintura para o cabelo. Ele tem apenas l,65m, lembrem-se. Já o vi vestir-se de mulher e enganar soldados numa patrulha a pé em Belfast.

Mary Tanner estava inclinada para a frente, muito atenta.

— Prossiga — pediu ela, baixinho.

— Querem saber outra razão por que nunca o pegaram? Ele cria uma série de nomes falsos, muda a cor do cabelo, usa os truques de maquiagem necessários e então tira as fotografias que usa nos passaportes ou documentos de identidade falsos. Tem uma coleção deles e quando precisa agir transforma-se no homem da fotografia.

— Engenhoso — observou Hernu.

— Exatamente. Por isso, não há nenhuma esperança de obter ajuda através de anúncios do tipo “Vocês já viram esse homem?” na televisão e nos jornais. Aonde quer que vá, ele desaparece sob a superfície. Se estivesse trabalhando em Londres e precisasse de qualquer coisa: ajuda, armas, o que quer que fosse, ele simplesmente fingiria ser um criminoso comum e usaria o submundo.    

— Você está dizendo que ele não se aproximaria de qualquer contato do IRA? — perguntou Mary.

— Duvido que o fizesse. Talvez alguém que tivesse um disfarce seguro há anos, alguém em quem ele pudesse confiar de verdade, e pessoas desse tipo não são muito fáceis de serem encontradas.

— Há um ponto nisso tudo no qual ninguém ainda tocou — observou Hernu. — Para quem ele está trabalhando?

— Bem, certamente não é para o IRA — declarou Mary, — Fizemos uma checagem imediata através do computador e temos acesso tanto ao computador da Real Polícia do Ulster quanto ao do serviço de informações do Exército britânico em Lisburn: não há o menor vestígio sobre o atentado à Sra. Thatcher.

— Bem, eu acredito — afirmou Brosnan —, embora não se possa ter certeza absoluta.

— E, é claro, há os iraquianos—sugeriu Ferguson.—Saddam adoraria arrasar com todos nesse momento.

— É verdade, mas não se esqueça do Hizbollah, da OLP, da Ira de Alá e outros tantos. Dillon já trabalhou para todos eles — lembrou-lhes Brosnan.

— Sim — concordou Ferguson. — E checar nossas fontes em todos esses grupos levaria muito tempo e não creio que tenhamos esse tempo.

— Você acha que ele tentará outra vez? — perguntou Mary.

— Não tenho nada de concreto, minha querida, mas estou nessa vida há muito tempo. Sempre sigo meus instintos e dessa vez eles me dizem que há mais coisa aí.

— Bem, não posso ajudá-los mais. Já fiz tudo que pude. — Brosnan pôs-se de pé.                                                          

— Tudo para que está preparado, é o que você quer dizer. — indagou-lhe Ferguson.

Dirigiram-se ao hall e Brosnan abriu a porta.

— Suponho que estejam voltando a Londres.

— Bem, eu não sei. Pensei em ficarmos aqui um pouco e usufruir das delícias de Paris. Ainda não havia me hospedado no Ritz depois das reformas.

— Isso significará um golpe e tanto para as finanças — observou Mary Tanner, estendendo a mão. — Até logo, professor Brosnan, foi bom conhecê-lo pessoalmente.

— Coronel — disse ele, inclinando a cabeça na direção de Hernu, e fechou a porta atrás deles.

 

Quando voltou à sala de estar, Anne-Marie saiu do quarto, o rosto extenuado e pálido.

— Tomou alguma decisão? — perguntou ela.

— Eu lhe dei a minha palavra. Ajudei-os no que pude. Agora se foram e vamos pôr um ponto final nessa história.

Ela abriu a gaveta da mesa. Lá dentro havia uma variedade de canetas, envelopes, papéis de carta, selos. Havia também uma pistola Browning High Power 9mm, uma das armas mais letais no mundo, a favorita do SAS entre todas.

Ela não disse uma palavra sequer, apenas fechou a gaveta e olhou para ele, tranqüila.

— Vou fazer um café — disse e foi para a cozinha.

 

Na limusine, Hernu comentou:

— Você o perdeu. Ele não vai nos ajudar.

— Eu não teria tanta certeza assim. Discutiremos isso durante o jantar no Ritz mais tarde. Espero que você nos acompanhe. Oito horas está bem?

— Estou encantado. O Grupo Quatro deve ser bem mais generoso em suas despesas do que meu pobre departamento.

— Ah, é tudo por conta da nossa querida Mary aqui — respondeu Ferguson. — Ela me apresentou a esse maravilhoso pedaço de plástico que lhe foi enviado pela American Express um dia desses. O cartão Platina. Acredita, coronel?

— Ora, general! — censurou-o Mary.

Hernu recostou-se no assento e riu incontrolavelmente.

 

Tânia Novikova saiu do banheiro do apartamento de Gordon Brown, em Camden, penteando os cabelos. Ele vestiu um roupão.

— Você precisa mesmo ir? — perguntou ele.

— Preciso. Venha até a sala. — Ela vestiu o casaco e virou de frente para ele. — Não vá mais ao apartamento da Bayswater, não me telefone mais. Quanto à escala de trabalho que você me mostrou, no próximo mês, todos os seus turnos são partidos. Por quê?

— Eles não são muito populares, principalmente entre as pessoas que têm família. Isso não é problema para mim, e então concordei em ficar neles por enquanto. E o salário é melhor.

— Então, você termina à uma da tarde e recomeça às seis?

— Exato.

— Você tem uma secretária eletrônica do tipo que se pode ligar para casa da rua e ouvir os recados?

— Tenho sim.

— Ótimo. Podemos manter contato dessa forma.

Ela encaminhou-se para a porta e ele segurou-lhe o braço.

— Mas quando eu a verei de novo?

— Está difícil no momento, Gordon, precisamos tomar cuidado. Se você não tiver nada melhor para fazer, venha sempre para casa no intervalo entre os turnos. Farei o que puder.

Ele a beijou afoito.

— Minha querida...

Ela o afastou.

— Preciso ir agora, Gordon.

Ela abriu a porta, desceu as escadas e saiu pela porta da rua. Ainda estava muito frio e Tânia levantou a gola do casaco.

— Meu Deus, as coisas que faço pela Mãe Rússia — murmurou, indo até a esquina e acenando para um táxi.

 

À noite o frio era ainda mais intenso, uma frente fria vinda da Sibéria varrendo a Europa, fria demais até mesmo para a neve. No apartamento, pouco antes das sete, Brosnan colocou um pouco mais de lenha na lareira.

Anne-Marie, deitada no sofá, mudou de posição e sentou-se.

— Então, jantamos em casa?

— Creio que sim — disse ele. — A noite está horrível.

— Muito bem, verei o que posso fazer na cozinha.

Ele ligou a televisão num noticiário. Mais ataques aéreos contra Bagdá, mas ainda nenhum sinal dos combates em terra. Desligou o aparelho e Anne-Marie surgiu da cozinha, apanhando o casaco na cadeira onde o deixara.

— Como de hábito, sua geladeira está quase vazia. A menos que você queira que eu prepare uma refeição a partir de um pedaço de queijo um tanto bolorento, um ovo e meia caixa de leite, terei que ir à delicatessen da esquina.

— Irei com você.

— Besteira — disse ela. — Por que deveríamos sofrer os dois? Voltarei logo.

Ela atirou-lhe um beijo e saiu. Brosnan abriu a janela de sacada. Ficou no balcão, tremendo, e acendeu um cigarro, esperando por ela. Um minuto depois, ela saiu pela porta da frente e pôs-se caminhar pela calçada.

— Adeus, meu amor — gritou ele, dramaticamente. — A partida é um doce sofrimento.

— Seu bobo! — gritou ela de volta. — Entre antes que pegue uma pneumonia.

Ela afastou-se, caminhando com cuidado sobre a calçada coberta de gelo, e desapareceu na esquina.

Naquele momento, o telefone tocou. Brosnan virou-se e entrou apressado, deixando a janela de sacada aberta.

 

Dillon fizera uma refeição mais cedo, em um pequeno café que costumava freqüentar. Ele estava a pé e, em seu caminho de volta à barcaça, passou diante do prédio de apartamentos de Brosnan. Parou do outro lado da rua, sentindo frio, apesar do casaco de marinheiro e do gorro de lã puxado sobre as orelhas. Ficou ali de pé, agitando os braços vigorosamente, olhando para as janelas iluminadas do apartamento.

Quando Anne-Marie saiu do prédio, ele a reconheceu no mesmo instante e recuou um passo, escondendo-se nas sombras. A rua estava silenciosa, sem qualquer movimento de trânsito, e quando Brosnan se debruçou sobre a balaustrada, falando em voz alta com ela, Dillon ouviu cada uma de suas palavras, que lhe deram a impressão totalmente falsa de que ela estava indo embora. Quando a mulher dobrou a esquina, desaparecendo, ele atravessou a rua rapidamente. Verificou a Walther na cintura, às suas costas, deu uma rápida olhada para os dois lados, certificando-se de que não havia ninguém por perto, e então pôs-se a subir pelas armações dos andaimes.

 

Era Mary Tanner ao telefone.

— O general-de-brigada Ferguson imaginou se não poderíamos vê-lo outra vez pela manhã antes de irmos embora?

— Não vai servir de nada para vocês — respondeu-lhe Brosnan.

— Isso quer dizer sim ou não?

— Tudo bem — concordou ele com relutância. — Se vocês acham necessário...

— Eu compreendo — disse ela. — De verdade. Anne-Marie já se recuperou?

— Ela é uma mulher forte — retrucou ele. — Já cobriu mais guerras do que podemos imaginar. É por isso que eu sempre achei estranha a atitude dela em relação a certas coisas que me dizem respeito.

— Ai, meu Deus! Vocês homens podem ser incrivelmente estúpidos às vezes. Ela o ama, professor, é simplesmente por isso. Nos veremos pela manhã.

Brosnan pôs o fone no gancho. Uma corrente de ar frio entrou pela janela, o fogo na lareira inflamou-se bruscamente. Ele virou-se e deparou-se com Sean Dillon de pé diante da janela, a Walther na mão esquerda.

— Que Deus abençoe todos aqui — disse Dillon.

 

A delicatessen na rua transversal, assim como tantos estabelecimentos comerciais hoje em dia, era dirigida por um indiano, o Sr. Patel. Ele era muito atencioso com Anne-Marie, carregando a cestinha para ela enquanto andavam por entre as prateleiras. Deliciosas bisnagas de pão francês, leite, ovos, queijo brie, um belo quiche.

— Feito pela minha própria mulher — assegurou-lhe o Sr. Patel. — Ponha no microondas por dois minutos e pronto: terá uma refeição perfeita.

Ela riu.

— Então, tudo que precisamos é uma lata grande de caviar e um pouco de salmão defumado para complementá-lo.

Ele colocou os produtos cuidadosamente em sacolas para ela.

— Porei na conta do professor Brosnan, como de costume.

— Obrigada — despediu-se ela.

O indiano abriu a porta para que ela passasse.

— Foi um prazer, mademoiselle.

Anne-Marie tomou o caminho de volta pela calçada coberta de gelo, sentindo-se de súbito inexplicavelmente feliz.

 

— Santo Deus, Martin! Os anos foram bondosos com você. — Dillon tirou a luva da mão direita com os dentes e encontrou um maço de cigarros no bolso. Brosnan, a um metro da mesa em cuja gaveta se encontrava a Browning High Power, fez um movimento cauteloso. — Seu travesso! — Dillon fez um gesto com a Walther. — Sente-se no braço do sofá e ponha as mãos atrás da cabeça.

Brosnan obedeceu.

— Você está se divertindo, não é, Sean?

— Estou sim. Como é que anda aquele velho patife do Liam Devlin?

— Vivo e bem. Ainda em Kilrea, nas proximidades de Dublin. Bem, mas disso você já sabe.

— É verdade.

— O trabalho em Valenton, com a Sra. Thatcher—mencionou Brosnan. — Muito descuido, Sean. Digo, ir com dois vagabundos como os Jobert. Você deve estar mesmo perdendo a forma.

— Acha mesmo?

— Provavelmente tinha muito dinheiro na jogada.

— Muito mesmo — concordou Dillon.

— Espero que você o tenha recebido adiantado.

— Muito engraçado.—Dillon estava começando a se aborrecer.

— Uma coisa me intriga — afirmou Brosnan. — O que você quer comigo depois de todos esses anos?

— Ah, eu sei tudo sobre você — respondeu Dillon. — Como é que eles estão lhe arrancando informações sobre mim. Hernu, o coronel do Serviço de Ação, o velho canalha do Ferguson e aquela garota, a sombra dele, capitão Tanner. Não há nada que eu não saiba. Tenho os amigos certos, veja só, Martin, o tipo de gente que tem acesso a qualquer coisa.

— De fato, mas será que eles ficaram contentes quando você falhou com a Sra. Thatcher?

— Aquilo foi apenas uma tentativa, uma possibilidade. Prometi a eles um alvo alternativo. Você sabe como funciona esse jogo.

— Certamente que sei e uma das coisas que sei também o IRA não paga pelos serviços que lhe prestam. Nunca pagou.

— Quem disse que eu estou trabalhando para o IRA? — Dillon sorriu — Há muitas outras pessoas com razões suficientes para atingir os ingleses hoje em dia.

Brosnan então compreendeu, ou pensou ter compreendido.

— Bagdá?

— Sinto muito, Martin, mas você irá ao encontro do seu criador quebrando a cabeça quanto a isso por toda a eternidade.

— Ao menos satisfaça minha curiosidade. Seria um grande golpe para Saddam. Quero dizer, a guerra está indo mal. Ele precisa de algo com urgência.

— Cristo, você como sempre fala demais!

— O presidente Bush não sai de Washington, o que faz com que restem apenas os ingleses. Você falha com a mulher mais conhecida no mundo, então o que vem a seguir? O primeiro-ministro?

— No lugar para onde você vai isso não tem a menor importância, filho.

— Mas eu estou certo, não estou?

— Maldito seja você, Brosnan, sempre bancando o esperto! — explodiu Dillon, irado.

— Você nunca vai conseguir se sair bem dessa — disse Brosnan.

— É o que você pensa? Então terei que provar que está errado.

— Como eu já disse, você deve estar perdendo a forma, Sean. Esse atentado fracassado à Sra. Thatcher me traz à lembrança um trabalho que o velho e querido Frank Barry realizou em 79, ao tentar atingir o secretário de Relações Exteriores britânico, Lorde Carrington, quando este passava por St. Etienne. Fiquei bastante surpreso por você usar o mesmo plano básico, mas também você sempre acreditou que Barry fosse especial, não é?

— Ele era o melhor.

— E no final acabou bem morto — observou Brosnan.

— Sim, mas quem quer que o tenha acertado deve ter feito isso pelas costas — argumentou Dillon.

— Não é verdade — retrucou Brosnan. — Pelo que me lembro, estávamos frente a frente.

— Você matou Frank Barry? — sussurrou Dillon.

— Bem, alguém tinha de fazê-lo. É o que geralmente a com os cães loucos. Por falar nisso, eu estava a serviço de Fergusson.

— Seu filho da puta! — Dillon ergueu a Walther, apontou-a com cuidado para Brosnan, a porta se abriu e Anne-Marie entrou com as sacolas de compras.

Dillon virou-se em sua direção.

— Cuidado! — gritou Brosnan, jogando-se ao chão, e Dillon atirou duas vezes no sofá.

Anne-Marie gritou, não de terror, mas de fúria, jogou as sacolas no chão e atirou-se sobre ele. Dillon tentou desviar-se dela e recuou cambaleando, na direção da janela de sacada. Lá dentro, Brosnan arrastou-se até a mesa, alcançando a gaveta. Anne-Marie arranhou o rosto de Dillon, que praguejou, empurrando-a para longe dele Ela bateu contra a balaustrada, caindo por cima desta.

Nesse momento, Brosnan abriu a gaveta, quebrou o abajur na mesa lateral, fazendo a sala mergulhar na escuridão, e apanhou a Browning. Dillon atirou três vezes seguidas e correu para a porta. Brosnan atirou duas vezes, já tarde demais. A porta bateu. Ele ergueu-se, correu para o balcão, olhando por cima deste. Anne-Marie encontrava-se caída na calçada lá embaixo. Brosnan deu meia-volta e atravessou correndo a sala de estar na direção do hall, abriu a porta e desceu os degraus de dois em dois. Estava chovendo quando ele chegou à rua. De Dillon não havia o menor sinal, mas o porteiro noturno estava ajoelhado ao lado de Anne-Marie.

O porteiro ergueu os olhos.

— Havia um homem, professor, com uma arma. Ele atravessou a rua correndo.

— Não se preocupe com isso. — Brosnan sentou-se e a aninhou em seus braços. — Chame uma ambulância, depressa.    

A neve agora caía bem rápido. Ele apertou-a contra si e ficou ali, esperando.

 

Ferguson, Mary e Max Hernu divertiam-se muito no magnífico restaurante do Ritz. Já estavam em sua segunda garrafa de champanhe Louis Roederer Crystal e o general-de-brigada estava muito animado.

— Quem foi que disse que quando um homem enjoa de champanhe já enjoou da vida? — perguntou ele.

— Com certeza foi um francês — disse-lhe Hernu.

— É provável, mas acho que chegou o momento de brindarmos a quem está nos proporcionando este banquete. — Ele ergueu a taça. — A você, Mary, minha querida.

Ela estava prestes a responder, quando viu pelo espelho na parede o inspetor Savary na entrada, falando ao maître.

— Acho que o senhor está sendo procurado, coronel — disse a Hernu.

Ele olhou para trás.

— O que terá acontecido agora?

Ergueu-se, ziguezagueando por entre as mesas, e aproximou-se de Savary. Conversaram por alguns minutos, olhando com freqüência para a mesa.

— Não sei quanto ao senhor, mas estou com um mau pressentimento — confessou Mary.

Antes que ele pudesse replicar, Hernu voltou até eles, uma expressão grave no rosto.

— Receio que eu tenha notícias muito desagradáveis.

— Dillon? — indagou Ferguson.

— Ele fez uma visita a Brosnan há pouco.

— O que aconteceu? — perguntou Ferguson, impaciente. — Está tudo bem com Brosnan?

— Ah, sim. Houve alguns tiros. Dillon conseguiu escapar. — Ele suspirou pesadamente. — Mas Mademoiselle Audin está no Hospital St.-Louis. Pelo que me disse Savary, parece não estar muito bem.

 

Brosnan encontrava-se na sala de espera do segundo pavimento, andando de um lado para o outro com o cigarro na boca, quando eles chegaram. Seus olhos expressavam fúria, uma ira que Mary Tanner nunca vira antes.

Ela foi a primeira a alcançá-lo.

— Sinto muito.

— O que aconteceu? — perguntou Ferguson.

Brosnan contou-lhes, fria e sucintamente. Ao terminar, um homem alto e grisalho, vestido com um avental do tipo usado por cirurgiões, aproximou-se.

— Como ela está, Henri? — indagou ele e virou-se para outros: — Este é o professor Henri Dubois, meu colega na Sorbonne.

— Não está nada bem, meu amigo — informou-lhe Dubois. — Os traumatismos na perna esquerda e na espinha são muito graves, mas ainda mais preocupante é a fratura no crânio. Ela está sendo preparada agora para a cirurgia. Farei a operação imediatamente.

O médico deixou a sala. Hernu pôs um braço em torno dos ombros de Brosnan.

— Vamos tomar um café, meu amigo. Creio que esta será uma longa noite.

— Mas eu só bebo chá — retrucou Brosnan, o rosto muito branco e os olhos escuros. — Nunca tolerei café. Isso não é a coisa mais engraçada que você já ouviu?

 

Havia um pequeno café no primeiro andar. Não havia muitas pessoas ali àquela hora da noite. Savary se fora para agir o lado policial da questão, os outros sentaram-se a uma mesa no canto.

— Sei que você não está com cabeça para isso agora, mas existe algo que possa nos contar? Algo que ele tenha lhe dito?

— Ah sim, muitas coisas. Ele está a serviço de alguém que com certeza não é o IRA. Está sendo pago por este trabalho e, pela maneira como se vangloriou, é muito dinheiro.

— Alguma idéia de quem?

— Quando sugeri que fosse Saddam Hussein, ele se irritou- A minha opinião é de que vocês não precisam procurar mais além. Uma coisa interessante: ele sabia de todos vocês.

— Todos nós? — surpreendeu-se Hernu.—Você tem certeza?

— Sim, ele também se vangloriou a respeito disso. — Voltou-se para Ferguson. — Sabia até mesmo que você e a capitão Tanner estão na cidade para arrancar informações de mim. Foram essas as palavras dele. Disse que tem os amigos certos. — Brosnan franziu o cenho, tentando lembrar-se da frase com exatidão. — O tipo de gente que tem acesso a qualquer coisa.

— Foi o que ele disse?— Ferguson olhou para Hernu. — Isso é bastante preocupante.

— E vocês têm um outro problema. Ele falou do caso Thatcher como uma simples tentativa, disse que tem um alvo alternativo.

— Continue — pediu Ferguson.

— Consegui fazer com que ele perdesse a calma, alfinetando-o sobre o fiasco que fizera em Valenton. Creio que vocês descobrirão que ele pretende atentar contra a vida do primeiro-ministro.

— Tem certeza disso? — indagou Mary.

— Tenho sim — assentiu ele. — Joguei verde em relação a isso, disse-lhe que ele nunca conseguiria sair-se bem dessa. Ele se irritou e disse que teria de provar que estou errado.

Ferguson olhou para Hernu e suspirou.

— Então agora sabemos. É melhor eu ir direto à embaixada alertar todo o nosso pessoal em Londres.

— Farei o mesmo aqui — informou Hernu. — Afinal, ele terá de deixar o país em algum momento. Alertaremos os aeroportos e a capitania dos portos. Os procedimentos de hábito, mas com discrição, naturalmente.

Levantaram-se e Brosnan falou:

— Vocês estão perdendo o seu tempo. Não o pegarão, não através dessas medidas rotineiras. Vocês não sabem nem mesmo o que estão procurando.

— Talvez, Martin — replicou Ferguson. — Mas teremos de fazer o melhor que pudermos, não é?

Mary Tanner acompanhou-os até a porta.

— Ouça, se o senhor não precisa de mim, general, eu gostaria de ficar aqui.

— é claro, minha querida. Verei você mais tarde.

Ela se dirigiu ao balcão e pediu duas xícaras de chá.

— Os franceses são maravilhosos — disse. — Eles sempre pensam que nós somos loucos quando pedimos chá com leite.

— Há gente para tudo nesse mundo — disse ele e ofereceu-lhe um cigarro. — Ferguson me contou como você conseguiu essa cicatriz.

— Um souvenir da velha Irlanda. — Ela deu de ombros.

Ele tentava desesperadamente pensar em algo para dizer.

— E sua família? Mora em Londres?

— Meu pai era professor de cirurgia em Oxford. Morreu algum tempo atrás. De câncer. Minha mãe ainda está viva. Tem uma propriedade em Herefordshire.

— Irmãos e irmãs?

— Tinha um irmão dez anos mais velho que eu. Foi morto com um tiro em Belfast, em 1980. Um atirador de elite o pegou em Divis Flats. Ele era capitão de um comando dos Fuzileiros Navais.

— Sinto muito.

— Isso já faz muito tempo.

— Compreendo que você não sinta uma grande simpatia por um homem como eu.

— Ferguson me explicou como você veio a se envolver com o IRA depois do Vietnã.

— Mais um maldito ianque metendo o nariz onde não é chamado. É isso que você pensa? — Ele suspirou. — Parecia a coisa certa a fazer naquele momento, de verdade, sem fingimentos. Estive envolvido até o pescoço naquilo por cinco longos e amaldiçoados anos.

— E o que você pensa agora?

— Da Irlanda? — Ele deixou escapar uma risada amarga. — Do modo como estou me sentindo, eu a veria afundar no mar com prazer. — Pôs-se de pé. — Venha, vamos esticar as pernas. — E seguiu em direção à saída.

 

Dillon estava na cozinha da barcaça, fervendo água na chaleira, quando o telefone tocou.

— Ela está no Hospital St.-Louis. — disse Makeev. Tivemos de ser discretos em nossas indagações, mas pelo que meu informante pode afirmar, o seu estado é crítico.

— Maldição! — praguejou Dillon. — Se ela ao menos tivesse vindo para cima de mim.

— Isso pode causar uma confusão dos diabos. É melhor eu ir até aí com você.      

— Estarei aqui.

Dillon despejou a água quente numa bacia e dirigiu-se ao banheiro. Primeiro, tirou a camisa e a seguir apanhou uma valise sob a pia no armário. Era exatamente como Brosnan dissera. Dentro da valise havia uma variedade de passaportes, todos contendo um retrato dele devidamente disfarçado. Encontrava-se ali também um kit de maquiagem de primeira classe.

Durante todos esses anos, ele entrara e saíra da Inglaterra muitas vezes, freqüentemente através de Jersey, nas ilhas Normandas. Jersey era solo britânico. Uma vez lá, um cidadão inglês não precisava de passaporte para voar até o território inglês. O mesmo acontecia com um turista francês de férias em Jersey. Ele escolheu um passaporte em nome de Henri Jacaud, um vendedor de automóveis de Rennes.

Para acompanhá-lo, encontrou uma carteira de motorista de Jersey, em nome de Peter Hilton, com endereço em St. Helier, a principal cidade da ilha. As carteiras de motoristas expedidas em Jersey, ao contrário do tipo rotineiro na Inglaterra, traziam uma fotografia. Era sempre útil ter uma identificação imediata, fora o que ele aprendera muitos anos antes. Nada melhor do que as pessoas poderem comparar o rosto à fotografia, e as fotos na carteira de motorista e no passaporte eram idênticas. Era isso que contava.

Ele dissolveu um pouco de tintura de cabelo em água morna e começou a espalhá-la pelo cabelo claro. Era impressionante a diferença que fazia a simples mudança da cor do cabelo. Dillon usou um secador e ajeitou o cabelo com brilhantina, e então selecionou entre uma coleção na valise um par de óculos de aro de chifre, as lentes ligeiramente escurecidas. Ele fechou os olhos, pensando em seu novo papel e, quando voltou a abri-los, Henri Jacaud fitou-o do espelho. Era extraordinário. Fechou a valise, recolocando-a no armário, vestiu a camisa e retornou ao salão, levando consigo o passaporte e a carteira de motorista.

Naquele preciso momento, Makeev descia a escada do tombadilho.

— Santo Deus! — exclamou. — Por um instante, pensei que fosse uma outra pessoa.

— E sou — disse Dillon. — Henri Jacaud, vendedor de carros de Rennes, a caminho de Jersey para umas férias de inverno. Tomarei um aerobarco em St. Malo. — Ele mostrou a carteira de motorista. — E também sou o habitante de Jersey Peter Hilton, contador em St. Helier.

— Não é necessário passaporte para ir até Londres?

— Não para os residentes em Jersey, que é território britânico A carteira de motorista me empresta um rosto e isso faz com que as pessoas se sintam mais tranqüilas. Faz com que pensem que sabem quem você é, e isso se aplica até mesmo à polícia.

— O que aconteceu esta noite, Sean? O que aconteceu de fato?

— Achei que tinha chegado a hora de cuidar de Brosnan. Ora, vamos, Josef, ele me conhece bem demais. De uma forma que ninguém mais conhece, e isso pode ser perigoso.

— Compreendo. Um sujeito esperto, o professor.

— Mais do que isso, Josef. Ele sabe como eu ajo, como eu penso. Somos da mesma espécie. Já habitamos o mesmo mundo, e as pessoas não mudam. Não importa o quanto ele pense que mudou, sob a superfície ainda é o mesmo, um dos homens mais temidos que o IRA já teve nos velhos tempos.

— Então resolveu eliminá-lo?

— Foi um impulso. Eu estava passando diante da casa dele e vi a mulher saindo. Ele gritou algumas palavras para ela, que me deram a impressão de que ela tinha ido embora. Então, resolvi arriscar e subi pelos andaimes.

— E o que aconteceu?

— Eu o tive sob a minha mira.

— Mas não o matou?

Dillon riu, saiu da cozinha e retornou com uma garrafa de Krug e duas taças.

— Ora, Josef, frente a frente depois de tantos anos. Havia coisas a serem ditas — argumentou Dillon, enquanto tirava a rolha da garrafa.

— Você não lhe disse para quem estava trabalhando, disse?

— Claro que não — mentiu Dillon alegremente e serviu o champanhe. — O que você pensa que sou?

Brindou com Makeev, que disse:

— O que quero dizer é que se ele souber que você tem um alvo alternativo, que pretende ir atrás de Major... — Encolheu os ombros. — Isso significaria que Ferguson também saberia. E eu consideraria sua missão em Londres impossível e estou certo que Aroun quereria abortar todo o negócio.

— Bem, ele não sabe. — Dillon bebeu um pouco mais de champanhe. — Portanto, Aroun pode ficar descansado. Afinal, eu quero aquele segundo milhão. Por falar nisso, chequei com Zurique e a primeira parte foi depositada.

Makeev mexeu-se, incomodado.

— Naturalmente. Então, quando pretende partir?

— Amanhã ou depois. Vou resolver. Enquanto isso, há algo de que você pode cuidar para mim. Essa Tânia Novikova em Londres. Precisarei da sua ajuda.

— Sem problemas.

— Em primeiro lugar: meu pai tinha um primo em segundo grau, um irlandês de Belfast que morava em Londres, chamado Danny Fahy.

— Do IRA?

— Sim, mas não era ativo. Um homem com um disfarce seguro. Brilhante com as mãos. Trabalhava em engenharia elétrica e era muito habilidoso. Usei-o em 1981, quando realizava alguns trabalhos para a organização em Londres. Naquela época, ele morava no número dez da Tithe Street, em Kilburn. Quero que Novikova o localize.

— Mais alguma coisa?

— Sim, vou precisar de um lugar para ficar. Ela pode cuidar disso para mim também. Suponho que não more na embaixada.

— Não, ela tem um apartamento próximo à Bayswater Road.

— Não desejaria ficar lá, pelo menos não numa base regular. Ela pode estar sob vigilância. A Divisão Especial da Scotland Yard tem o hábito de fazer isso com funcionários da Embaixada soviética, não é mesmo?

— Ah, já não é mais como antigamente. — Makeev sorri Graças àquele tolo do Gorbachev, supostamente somos todos amigos agora.

— Ainda prefiro ficar num outro local. Farei contato com ela em seu apartamento, nada mais que isso.

— Existe um problema — lembrou Makeev. — Quanto a aparelhagens, explosivos, armas, coisas do gênero que você possa vir a precisar, receio que ela não poderá ajudá-lo nessa questão. Uma arma curta, talvez, nada mais. Como disse da primeira vez que lhe falei sobre ela, seu chefe, coronel Yuri Gatov, que está no comando da seção do KGB em Londres, é um homem de Gorba­chev, e com uma disposição muito favorável aos nossos amigos ingleses.

— Está tudo bem — afirmou Dillon. — Tenho meus próprios contatos para esse tipo de coisa, mas precisarei de mais dinheiro para as despesas. No caso de eu ser revistado na alfândega no vôo de Jersey a Londres, não posso me arriscar a ser apanhado com uma grande quantia de dinheiro na mala.

— Tenho certeza de que Aroun pode cuidar disso para você.

— Então, está certo. Gostaria de encontrar-me com ele mais uma vez antes de partir. Amanhã de manhã, creio eu. Pode arranjar isso?

— Não há problema. — Makeev ajustou o casaco. — Eu o manterei informado sobre a situação no hospital.—Chegou à base da escada do tombadilho e voltou-se: — Há mais uma coisa: digamos que você consiga sucesso nessa missão. Isso detonaria uma caçada humana das mais ferozes. Como pretende sair da Inglaterra?

Dillon sorriu.

— É exatamente nisso que vou pensar agora. Vejo você manhã.

Makeev subiu a escada do tombadilho, Dillon serviu-se de mais uma taça de Krug, acendeu um cigarro e sentou-se à mesa, examinando os recortes presos à parede. Estendeu a mão para a pilha de jornais, folheou-os e finalmente encontrou o que procurava: um exemplar da revista Paris Match do ano anterior, que trazia na capa a fotografia de Michael Aroun. No miolo, uma matéria de destaque de sete páginas sobre seu estilo de vida e seus hábitos. Dillon acendeu outro cigarro e começou a ler.

 

Era uma hora da manhã e Mary Tanner encontrava-se sentada sozinha na sala de espera quando o professor Henri Dubois entrou. Ele aparentava um enorme cansaço, os ombros curvados; afundou, abatido, numa cadeira e acendeu um cigarro.

— Onde está Martin? — perguntou ele.

— Parece que o único parente próximo de Anne-Marie é o avô. Martin está tentando entrar em contato com ele. O senhor o conhece?

— Quem não o conhece, mademoiselle? Um dos industriais mais ricos e mais poderosos da França. Bastante idoso. Oitenta e oito anos, creio. Ele já foi meu paciente. Sofreu um derrame no ano passado. Acho que Martin não vai conseguir muita coisa com ele. Atualmente, mora na propriedade rural da família, Château Vercors, que fica a cerca de doze quilômetros de Paris.

Brosnan voltou para a sala de espera, parecendo extremamente cansado. Mas quando viu Dubois, perguntou, ansioso:

— Como está ela?

— Não vou mentir, meu amigo. Ela não está bem, não está nada bem. Já fiz tudo que pude. Agora temos de esperar.

— Posso vê-la?

— Aguarde mais um pouco. Eu o chamarei quando puder.

— Você vai ficar aqui?

— Vou sim. Vou dormir um pouco no sofá do meu consultório. Como é que foi com Pierre Audin?

— Não consegui falar com ele. Tive de tratar com o secretário dele, Fournier. O velho está confinado a uma cadeira de rodas. Não tem noção sequer da hora do dia.

Dubois suspirou.

— Era o que eu suspeitava. Falo com você mais tarde.

Quando ele se afastou, Mary observou:

— Você também deveria dormir um pouco.

Ele conseguiu sorrir sombriamente.

— Do modo como me sinto agora, parece que não vou conseguir dormir nunca mais. De certa forma, foi tudo culpa minha.

O desespero estava estampado em seu rosto.

— Como é que você pode dizer isso?

— Tudo porque eu sou quem sou ou, para ser mais específico, quem eu fui. Se não fosse assim, nada disso teria acontecido.  

— Não pode falar uma coisa dessas — censurou-o ela. — a vida não funciona assim.

O telefone sobre a mesa tocou e ela atendeu, falando durante alguns minutos, e desligou a seguir.

— Era só Ferguson querendo saber notícias. — Pousou a mão no ombro dele. — Vamos, deite-se um pouco neste sofá. Feche os olhos. Eu vou estar aqui e acordo você no momento em que houver novidades.

Relutante, ele obedeceu e, surpreendentemente, mergulhou num sono profundo e sem sonhos. Mary Tanner ficou lá sentada, perdida em seus pensamentos, ouvindo sua silenciosa respiração.

 

Passava pouco das três quando Dubois reapareceu. Como se pressentisse sua presença, Brosnan acordou sobressaltado e sentou-se.

— O que aconteceu?

— Ela recuperou a consciência.

— Posso vê-la? — Brosnan pôs-se de pé.

— Sim, naturalmente.—Quando Martin se encaminhava para a porta, Dubois segurou-lhe o braço. — Martin, a situação não é nada boa. Creio que você deve se preparar para o pior.

— Não. — Brosnan quase engasgou-se. — Não pode ser.

Percorreu apressado o corredor, abriu a porta do quarto dela e entrou. Havia uma jovem enfermeira sentada ao lado de Anne-Marie, que estava muito pálida, a cabeça tão envolta em ataduras que se assemelhava a uma noviça.

— Esperarei lá fora, monsieur — informou-lhe a enfermeira e deixou-os.

Brosnan sentou-se. Segurou a mão dela e Anne-Marie abriu os olhos, dirigindo-lhe um olhar vazio. Reconheceu-o então e sorriu.

— Martin, é você?

— Quem mais poderia ser? — Ele beijou-lhe a mão.

Atrás deles, a porta deu um estalido ao ser entreaberta quando Dubois veio ver se estava tudo bem.

— Seu cabelo. Comprido demais. Ridiculamente comprido. — Ela ergueu a mão para tocá-lo. — No Vietnã, no pântano, quando os vietcongues iam atirar em mim. Você surgiu por entre os juncos como um guerreiro medieval. Seu cabelo também estava comprido demais naquela época e você usava uma faixa na cabeça.

Ela fechou os olhos e Brosnan falou:

— Descanse agora, não tente falar.

— Mas eu preciso. — Ela voltou a abrir os olhos. — Esqueça-o, Martin. Dê-me sua palavra. Não vale a pena. Não quero que você volte a ser o que era. — Apertou-lhe a mão com uma força surpreendente. — Prometa-me.

— Você tem a minha palavra — afirmou ele.

Ela recostou-se, os olhos voltados para o teto.

— Meu adorado e rebelde irlandesinho. Sempre o amei, Mar­tin, a ninguém mais.

Seus olhos cerraram-se suavemente, o aparelho de monitoração ao lado da cama mudou o tom. Num segundo, Henri Dubois estava no quarto.

— Saia, Martin, espere lá fora.

Ele empurrou Brosnan para fora e fechou a porta. Mary estava de pé no corredor.

— Martin?

Ele lançou-lhe um olhar vago e em seguida a porta se abriu, fazendo surgir Dubois.

— Sinto muito, meu amigo. Receio que ela tenha partido.

 

Na barcaça, Dillon acordou sobressaltado no instante em que o telefone tocou.

— Ela morreu — disse Makeev.

— É uma pena — retrucou Dillon. — Não era minha intenção.

— E agora?

— Acho que vou partir hoje à noite. Creio que é uma boa idéia tendo em vista as atuais circunstâncias. O que me diz de Aroun?

— Ele nos receberá às onze horas.

— Ótimo. Ele sabe do ocorrido?

— Não.

— Então vamos deixar as coisas assim. Encontrarei você na frente do apartamento dele pouco antes das onze.

Repôs o fone no gancho e recostou-se contra o travesseiro. Anne-Marie Audin. Um acontecimento lamentável. Nunca gostara de matar mulheres. Uma informante, certa vez em Derry, mas ela merecera. Dessa vez foi um acidente, mas cheirava a azar, e isso o deixava preocupado. Apagou o cigarro no cinzeiro e tentou dormir novamente.

 

Passavam poucos minutos das dez quando Mary Tanner recebeu Ferguson e Hernu no apartamento de Brosnan.

— Como está ele? — indagou Ferguson.

— Está se mantendo ocupado. O avô de Anne-Marie não está bem, portanto Martin está tomando todas as medidas necessárias para o funeral junto com o secretário do Sr. Audin.

— Tão rápido? — surpreendeu-se Ferguson.

— Vai ser amanhã, na propriedade da família em Vercors.

Ela os conduziu até a sala. Brosnan estava de pé, ao lado da janela, fitando a noite. Voltou-se para cumprimentá-los, as mãos nos bolsos, o rosto pálido e esgotado.

— E então? — perguntou.

— Nenhuma novidade — informou-lhe Hernu. — Já notificamos todos os portos e aeroportos, discretamente, é claro. — Ele hesitou. — Achamos que é melhor não tornar a coisa pública, professor. Refiro-me ao infeliz falecimento de Mademoiselle Audin.

Brosnan parecia curiosamente indiferente.

— Vocês não o pegarão aqui. Londres é o lugar para se procurar, e quanto mais cedo melhor. Provavelmente ele já e caminho nesse momento e, em Londres, vocês irão precisar de mim.

— Quer dizer que vai nos ajudar? Vai se juntar a nós? — perguntou-lhe Ferguson.

— Vou.

Brosnan acendeu um cigarro, abriu as janelas de sacada e ficou ali no balcão. Mary juntou-se a ele.

— Você não pode, Martin. Prometeu a Anne-Marie.

— Eu menti — disse ele calmamente. — Para tornar mais fácil a partida. Não há mais nada depois. Apenas a escuridão.

Seu rosto estava duro como pedra, os olhos gélidos. Ela estava diante de um estranho.

— Ah, meu Deus — murmurou ela.

— Eu o pegarei — anunciou Brosnan. — Eu o verei morto, mesmo que seja a última coisa que eu faça neste mundo.

 

Faltavam poucos minutos para as onze quando Makeev parou diante do apartamento de Michael Aroun, na avenida Victor Hugo. O motorista estacionou ao lado do meio-fio e, quando desligava o motor, a porta se abriu e Dillon acomodou-se no assento traseiro.

— Tomara que você não esteja usando sapatos caros — disse ele. — Há neve e lama por toda parte.

Ele sorriu e Makeev inclinou-se para fechar a divisória que os separava do motorista.

— Você parece estar de excelente humor, levando-se em conta a situação.

— E por que eu não deveria estar? Só quero me certificar de que você não falou nada a Aroun sobre Anne-Marie Audin.

— Não, é claro que não.

— Ótimo. — Dillon sorriu mais uma vez. — Não gostaria que nada estragasse os meus planos. Agora vamos entrar e falar com ele.

 

Rashid abriu a porta para eles e uma criada apanhou seus casacos. Aroun os esperava na magnífica sala de estar.

— Valenton, Sr. Dillon, foi uma grande decepção.

— Nada é perfeito nessa vida, o senhor já deveria saber — retrucou ele. — Prometi-lhe um alvo alternativo e pretendo ir atrás dele.

— O primeiro-ministro britânico? — perguntou Rashid.

— Isso mesmo — assentiu Dillon. — Estou de partida para Londres ainda hoje. Pensei que poderíamos bater um papinho antes que eu fosse.

Rashid lançou um olhar para Aroun, que disse:

— É claro, Sr. Dillon. Em que podemos ajudá-lo?

— Primeiro, vou precisar de mais dinheiro para as despesas. Trinta mil dólares. Quero que o senhor consiga esse dinheiro com alguém em Londres. Cash, naturalmente. O coronel Makeev pode acertar os detalhes.

— Sem problemas — declarou Aroun.

— Em segundo lugar, há a questão de como eu vou escapar da Inglaterra depois de bem-sucedida a empreitada.

— O senhor parece muito autoconfiante, Sr. Dillon — observou Rashid.

— Bem, é preciso acreditar sempre, meu filho — retrucou Dillon. — O problema de qualquer grande golpe, como vim a descobrir nesses anos, não é tanto obter êxito, mas escapar com a pele intacta depois. Isto é, se eu pegar o primeiro-ministro, meu maior problema será sair da Inglaterra, e é aí que o senhor entra, Sr. Aroun.

A criada aproximou-se, trazendo uma bandeja com café. Aroun esperou, enquanto ela pousava as xícaras na mesa e servia o café. Quando a mulher se retirou, ele pediu:

— Por favor, explique-se.

— Um de meus pequenos talentos é pilotar aviões, talento este que temos em comum, pelo que sei. De acordo com um artigo num antigo exemplar da Paris Match que andei lendo, o senhor comprou uma propriedade na Normandia chamada Château St. Denis, a cerca de doze quilômetros ao sul de Cherbourg, no litoral.

— Correto.

— O artigo mencionava o quanto o senhor gosta da propriedade, que é isolada e intacta. Um recanto do século XVIII.

— Exatamente aonde o senhor quer chegar, Sr. Dillon? — interrompeu-o Rashid.

— A revista dizia também que a propriedade possui sua própria pista de pouso, e que é sabido de todos que o Sr. Aroun voa até lá de Paris quando deseja, pilotando seu próprio avião.

— É verdade — confirmou Aroun.

— Ótimo. Então, é assim que as coisas vão se desenrolar. Quando eu estiver próximo... ahn, como vamos dizer?... ao desfecho da história, informarei ao senhor, que voará até a tal propriedade. Sairei da Inglaterra depois de terminado o trabalho e me encontrarei lá com o senhor, que então providenciará para que eu prossiga minha viagem.

— Mas como? — indagou Rashid. — Onde vai encontrar um avião?

— Existem inúmeros clubes de aviação, meu filho, e aviões para alugar. Eu vou simplesmente sumir do mapa. Desaparecer, ou o termo que preferir. Sendo piloto também, deve saber que uma das maiores dores de cabeça das autoridades é a vasta extensão de espaço aéreo não-controlado. Uma vez que eu pouse em St. Denis, você pode fazer o circo pegar fogo. — Olhou de Rashid para Aroun. — Estamos combinados?

Foi Aroun quem se pronunciou:

— Perfeitamente, e se houver algo mais que possamos fazer...

— Makeev lhe informará. Agora, já vou indo. — Dillon dirigiu-se para a porta.

Lá fora, ele parou na calçada, ao lado do carro de Makeev, a neve caindo suavemente.

— Bem, então é isso. Não nos veremos mais, pelo menos durante algum tempo.

Makeev entregou-lhe um envelope.

— O endereço e o telefone de Tânia. — Lançou um olhar para o relógio. — Não consegui falar com ela hoje de manhã, mas deixei uma mensagem dizendo que ligaria para ela ao meio-dia.      

— Ótimo — disse Dillon. — Telefonarei para você de St. Malo, antes de tomar o aerobarco para Jersey, só para me certificar de que está tudo certo.

— Levarei você em casa — ofereceu-lhe Makeev.

— Não, obrigado. Quero me exercitar um pouco. estendeu-lhe a mão. — Até nosso próximo e feliz encontro.

— Boa sorte, Sean.

Dillon sorriu.

— A sorte também é algo de que sempre precisamos. — Deu meia-volta e se afastou.

 

Ao meio-dia, Makeev falou com Tânia pelo telefone que dispunha de scrambler, o aparelho que tornava ininteligível a ligação no caso de o telefone estar grampeado.

— Tenho um amigo que irá visitá-la — disse ele. — Possivelmente ainda esta noite. Aquele de quem lhe falei.

— Cuidarei bem dele, coronel.

— Você nunca participou de um negócio tão importante assim, acredite. Por falar nisso, ele vai precisar de outras acomodações. Escolha uma de fácil acesso ao seu apartamento.

— Claro.

— E quero que você localize um homem.

Forneceu-lhe os dados sobre Danny Fahy e, ao terminar, ela falou:

— Não deve haver qualquer problema. Mais alguma coisa?

— Sim, ele gosta de Walthers. Tenha cuidado, minha querida. Manterei contato.

 

Quando Mary Tanner entrou na suíte do Ritz, Ferguson estava tomando seu chá da tarde ao lado da janela.

— Ah, você chegou — disse ele. — Estava me perguntando o porquê da sua demora. Precisamos partir.

— Para onde? — perguntou ela.

— De volta a Londres.

Ela inspirou profundamente.

— Eu não vou, general. Eu fico.

— Fica? — surpreendeu-se ele.

— Para o funeral em Château Vercors às onze horas de amanhã. Afinal de contas, ele vai fazer o que você quer. Não lhe devemos algum apoio?

Ferguson ergueu a mão defensivamente.

— Está certo, já me convenceu. Entretanto, eu preciso voltar a Londres agora. Você pode ficar se quiser e ir amanhã à tarde. Providenciarei para que o jatinho apanhe vocês dois. Está bem assim?

— Não vejo por que não. — Ela deu um sorriso luminoso levou a mão ao bule de chá. — Mais uma xícara, general?

 

Sean Dillon tomou o expresso com destino a Rennes e fez a troca de trens para St. Malo às três horas. Eram poucos os turistas. Aquela época do ano não era própria ao turismo e o tempo atroz em toda a Europa não ajudava muito. Não havia mais de vinte passageiros no aerobarco para Jersey. Dillon desembarcou em St. Helier pouco antes das seis da tarde, no Albert Quay, e tomou um táxi para o aeroporto.

Ele sabia que teria problemas mesmo antes de chegar lá, pois quanto mais se aproximavam, mais densa se tornava a neblina. Aquilo era comum em Jersey e não era nenhum fim do mundo. Dillon confirmou que ambos os vôos para Londres naquela noite haviam sido cancelados, deixou o edifício do aeroporto, tomou outro táxi e pediu ao motorista que o levasse a um hotel decente.

Trinta minutos mais tarde, ele telefonava a Makeev em Paris.

— Lamento não ter tido oportunidade de telefonar de St. Malo. O trem se atrasou e eu me arriscaria a perder o aerobarco. Conseguiu contactar Novikova?

— Ah, consegui — informou-lhe Makeev. — Está tudo em ordem. Ela está ansiosa por encontrá-lo. Onde você está?

— No Hotel L’Horizon em Jersey. O aeroporto estava coberto de neblina. Espero sair daqui de manhã.

— Estou certo de que conseguirá. Mantenha-se em contato.

— Farei isso.                                                                            

Dillon desligou o telefone, vestiu a jaqueta e desceu ao bar do hotel. Ouvira em algum lugar que o restaurante ali era muito bom. Depois de algum tempo, um italiano simpático e robusto aproximou-se dele, apresentando-se como Augusto, maître do restaurante. Dillon aceitou, grato, o cardápio que lhe era oferecido, pediu uma garrafa de Krug e relaxou.

 

Foi mais ou menos naquele mesmo momento que a campainha soou no apartamento de Brosnan, no Quai de Montebello. Quando ele abriu a porta, um copo duplo de uísque em uma das mãos, deparou-se com Mary Tanner.

— Olá — cumprimentou ele. — Que surpresa!

Ela pegou o copo de uísque da sua mão e o entornou num vaso de planta que ficava próximo à porta.

— Isso não vai lhe fazer nenhum bem.

— Se é o que você diz... O que deseja?

— Pensei que você estaria sozinho e não achei que essa fosse uma boa idéia. Ferguson falou com você antes de partir?

— Sim, disse que você ficaria. Sugeriu que partíssemos amanhã à tarde.

— Bem, isso nos deixa sem nada para fazer hoje à noite. Imagino que você não deva ter comido nada o dia inteiro e portanto sugiro que saiamos para comer algo. E não ouse recusar.

— Eu nem sonharia fazer isso, capitão. — Ele fez uma continência.

— Não seja bobo. Deve haver algum lugar perto daqui de que você goste.

— Existe, de fato. Vou lá dentro apanhar um casaco e volto já.

 

Era um típico bistrô numa rua secundária, pequeno, simples e despretensioso, com divisórias que ofereciam privacidade aos clientes e aromas vindos da cozinha que eram do outro mundo. Brosnan pediu champanhe.

— Krug? — interessou-se ela quando trouxeram a garrafa.

— Eles me conhecem aqui.

— Você sempre bebe champanhe?

V Levei um tiro no estômago há alguns anos, o que me deixou fortes seqüelas. Os médicos me proibiram bebidas alcoólicas fortes em quaisquer circunstâncias. Vinho tinto nem pensar. Champanhe é permitido. Você reparou no nome desse lugar?

— La Belle Aurore.

— O mesmo nome do café em Casablanca. Humphrey Bogart? Ingrid Bergman? — Ele ergueu o copo. — Eles estão aqui observando você, garota.

Ficaram ali sentados, num silêncio solidário, por algum tempo e então ela disse:

— Podemos falar de trabalho?

— Por que não? Em que você está pensando?

— O que vai acontecer agora? Isto é, Dillon consegue desaparecer no ar, foi você mesmo quem disse. Como espera encontrá-lo?

— Ele tem um ponto fraco — respondeu Brosnan — Não recorrerá a nenhum contato do IRA, temendo uma traição. Isso o deixa com uma única opção, a que ele usa habitualmente: o sub­mundo. Qualquer coisa de que ele precise, armas, explosivos, até mesmo de ajuda humana, ele irá até o local óbvio. E você sabe que local é esse?

— O East End de Londres?

— Isso mesmo. Quase tão romântico quando Little Italy em Nova York, ou o Bronx. Os irmãos Kray, a coisa mais próxima que a Inglaterra já teve dos gângsteres do cinema, a gangue dos Richardson. Você sabe algo sobre o East End?

— Pensei que isso tudo não passasse de histórias.

— Nem tudo. Muitos dos grandões, os governadores como eles os chamam, enquadraram-se na legalidade até certo ponto, mas todos os crimes antiquados, como assaltos a bancos, a carros-fortes, são cometidos basicamente pelo mesmo grupo. Todos homens de família, que vêem isso como um simples negócio, mas que não hesitarão em matá-la se você se puser no caminho deles.

— Que simpático!

— Todos sabem quem são eles, inclusive a polícia. E nessa fraternidade que Dillon buscará ajuda.

— Perdoe-me — disse ela —, mas essa comunidade deve se bastante fechada.

— Você está absolutamente certa, mas acontece que eu tenho o que se pode chamar de passe de entrada.

— E como é que você tem isso?

Ele lhe serviu outra taça de champanhe.

— No Vietnã, em 1968, durante minha juventude rebelde e tola, fui um pára-quedista dos Comandos Aéreos. Fazia parte de um destacamento das Forças Especiais designado para operar no Camboja, inteiramente ilegal, devo acrescentar. Seus membros foram recrutados em todas as divisões das forças armadas. Homens com qualificações especializadas. Tínhamos entre nós até mesmo alguns fuzileiros, e foi assim que conheci Harry Flood.

— Harry Flood? — perguntou ela, franzindo o cenho. — Não sei porquê, mas esse nome parece familiar.

— Talvez seja. Deixe-me explicar. Harry tem a minha idade. Nasceu no Brooklyn, e sua mãe morreu de parto. Ele cresceu com o pai que morreu quando Harry tinha dezoito anos. Então alistou-se no Corpo de Fuzileiros Navais em busca de algo para fazer e foi parar no Vietnã, que foi onde eu o conheci. — Brosnan deu uma risada. — Nunca vou me esquecer da primeira vez em que o vi. Estávamos enterrados até o pescoço num mangue fedorento no delta do Mekong.

— Ele parece um sujeito interessante.

— Isso e muito mais. Ganhou várias condecorações: a Cruz de Prata, a Cruz do Mérito Naval. Em 69, quando eu estava saindo, Harry ainda tinha um ano de serviço para cumprir. Eles o transferiram para Londres, para a Guarda da Embaixada. Ele era então um sargento e foi aí que tudo aconteceu.

— Tudo o quê?

— Certa noite ele conheceu uma garota no velho salão de baile do Liceu, uma garota chamada Jean Dark. Uma simples garota, bonita e simpática, de vinte anos, num vestido de algodão. No entanto, havia um porém. A família Dark era formada por gângsters, o que eles chamam no East End de vilões de verdade. O pai dela tinha seu próprio império na margem do rio e era, ao seu modo, tão famoso quanto os irmãos Kray. Ele morreu algum tempo depois naquele mesmo ano.

— E o que veio a seguir? — Ela estava completamente fascinada.

— A mãe de Jean tentou assumir o o comando dos negócios. Mãe Dark, era como todos a chamavam. Havia diferenças, gangues rivais, coisas do gênero. Harry e Jean se casaram, ele legalizou sua situação em Londres, ficou e se viu envolvido. Liquidou com os rivais e seguiu em frente.

— Está dizendo que ele se tornou um gângster?

— Falando francamente, sim, mas foi mais do que isso, muito mais. Ele se tornou um dos maiores governadores no East End de Londres.

— Meu Deus, agora eu me lembro. Ele é o proprietário de todos aqueles cassinos. É ele quem está por trás de todas aquela construções nas margens do Tâmisa.

— Correto. Jean morreu de câncer há cerca de cinco ou seis anos. Sua mãe morreu muito antes disso. Ele simplesmente continuou com os negócios.

— Ele se naturalizou cidadão inglês?

— Não, Harry nunca abriu mão de sua cidadania norte-americana. As autoridades inglesas nunca puderam expulsá-lo, pois ele não tem antecedentes criminais. Não passou um único dia na prisão.

— E ainda é um gângster?

— Isso depende do que você chama de gângster. Há muitas contravenções de que ele, ou sua gente, escaparam impunes no passado. O que se poderia chamar de crimes fora de moda.

— Quer dizer nada de deplorável como drogas ou prostituição? Somente assaltos a mão armada, proteção, essas coisinhas?

— Não seja irônica. Ele é dono dos cassinos, tem participações em indústrias eletrônicas e empreendimentos imobiliários. É proprietário de metade de Wapping. Quase toda a margem do rio. Está inteiramente legal.

— Mas ainda é um gângster?

— Digamos que ele ainda é o governador para muitos moradores do East End. O Ianque, é assim que o chamam. Você gostar dele.

— Vou? — Ela parecia surpresa. — E quando é que vamos nos conhecer?

— O mais rápido que eu puder ajeitar. Harry e sua gente sabem de qualquer coisa que se passe no East End. Se alguém pode me ajudar a pegar Sean Dillon, esse alguém é ele.

O garçom voltou e colocou tigelas de sopa de cebola francesa diante deles.

— Muito bem — disse Brosnan. — Agora vamos comer que eu estou morrendo de fome.

 

Harry Flood agachou-se em um dos cantos do buraco, os braços cruzados de encontro ao tronco para manter o calor do corpo. Estava nu da cintura para cima, descalço, vestido apenas com uma calça de camuflagem. O buraco tinha cerca de um metro quadrado de área e a chuva caía ininterruptamente através da grade de bambu acima de sua cabeça. Às vezes, o vietcongue o observava lá de cima através da grade e mostrava aos visitantes o pobre-diabo americano acocorado em meio à sua própria sujeira, embora há muito ele já tivesse se acostumado ao mau cheiro.

Parecia que ele estava ali há séculos e o tempo já não tivesse qualquer significado. Nunca antes ele experimentara um tal desespero. Agora chovia mais rápido, a água descendo pelas bordas do buraco como uma espécie de cachoeira, subindo de nível rapidamente. Ele se pôs de pé e, contudo, num instante, a água chegara ao seu peito e ele lutava contra ela, que continuava a descer incansavelmente sobre sua cabeça, e seus pés já não conseguiam tocar o chão, e ele se debatia e movimentava os pés na tentativa de manter-se flutuando, tentando respirar, agarrando-se às paredes do buraco. De súbito, uma mão agarrou a sua, uma mão forte, e o puxou acima da água, e ele pôde respirar outra vez.

 

Acordou sobressaltado e sentou-se na cama. Há anos que ele tinha esse mesmo sonho intermitentemente, desde o Vietnã, e isso era há muito tempo mesmo. O sonho em geral terminava com ele se afogando. A mão que o salvava da água era algo novo.

Procurou o relógio à beira da cama. Eram quase dez horas. Ele sempre tirava uma soneca no início da noite, antes de visitar um dos clubes, mas dessa vez dormira demais. Pôs o relógio no pulso, correu para o banheiro e tomou um banho rápido. Havia agora alguns fios grisalhos em seu cabelo escuro, percebeu enquanto se barbeava.

— Acontece com todos nós, Harry — murmurou e sorriu.

Na verdade, ele sorria quase todo o tempo, embora qualquer um que o observasse mais de perto teria notado um certo cansaço da vida. O sorriso de um homem que descobrira que a vida era, num todo, desapontadora. Ele era bastante atraente, com uma aparência vigorosa, tinha músculos definidos e ombros largos. Nada mau para 46 anos, era o que ele geralmente dizia a si mesmo pelo menos uma vez por dia, como encorajamento. Vestiu uma camisa de seda preta, abotoada até o colarinho, sem gravata, e um terno Armani de corte amplo, em seda crua marrom escuro. Examinou a imagem no espelho.

— Lá vamos nós de novo, garoto — disse e saiu.

Seu apartamento era enorme, parte da expansão de um armazém em Cable Wharf. As paredes de tijolos na sala de estar eram brancas, o chão de madeira laqueada, tapetes indianos espalhados por toda parte. Alguns sofás confortáveis e garrafas de todos os tipos concebíveis alinhadas atrás do bar. Somente para convidados. Ele nunca bebia nada de teor alcoólico. Havia uma grande escrivaninha defronte a parede dos fundos, a qual era toda coberta por estantes de livros.

Abriu as janelas de sacada e saiu no balcão que dava para o rio. A noite estava muito fria. A Ponte da Torre ficava à sua direita, a Torre de Londres um pouco além, toda iluminada. Um navio descia o rio, vindo da enseada de Londres à sua frente, as luzes tão nítidas na escuridão que ele podia ver membros da tripulação trabalhando no convés. Essa vista sempre o reanimava e ele inspirou profundamente aquele ar frio.

Aporta abriu-se na extremidade oposta da sala, deixando entrar Mordecai Fletcher, um homem com mais de l,80m de altura, cabelos de um cinza cor de aço, o bigode bem aparado, vestido num blazer de fino corte, abotoamento duplo, e uma gravata ao estilo da guarda real. Sua aparência convencional era prejudicada pelas cicatrizes ao redor dos olhos e pelo nariz achatado, resultado de mais de uma fratura.

— Você já se levantou — disse categoricamente.

— É o que parece, não é? — retrucou Flood.

Mordecai era seu braço direito há quase quinze anos, um pugilista peso pesado muito útil, que tivera o juízo de deixar o ringue antes que seus miolos fossem misturados. Ele foi até o bar, despejou água Perrier num copo, acrescentou gelo e limão e o levou até Flood que apanhou o copo sem agradecer.

— Deus do céu, como eu adoro este velho rio. Alguma novidade?

— Seu contador ligou. Alguns papéis para assinar referentes à construção daquele mercado. Pedi-lhe que esperasse até amanhã de manhã.

— Isso é tudo?

— Maurice ligou do Embassy. Disse que Jack Harvey esteve lá para comer com aquela puta da sobrinha dele.

— Myra? — Flood abanou a cabeça. — Aconteceu alguma coisa?

— Maurice contou que Harvey perguntou se você apareceria mais tarde. Disse que voltaria para tentar a sorte nas mesas. — Fletcher hesitou. — Você sabe do que o patife está atrás, Harry, e por isso o tem evitado.

— Não estamos à venda, Mordecai, e certamente não queremos nenhum sócio. Jack Harvey é o pior criminoso do East End. Ele faz com que os irmãos Kray pareçam criancinhas do jardim de infância.

— Pensei que esse fosse você, Harry.

— Nunca fiz transações com drogas, Mordecai, não prostituí garotas, você sabe disso. Tudo bem, fui um vilão de verdade por alguns anos, nós dois fomos. — Dirigiu-se à escrivaninha na sala de estar e apanhou a fotografia na moldura de prata que ficava sempre ali. — Quando Jean estava morrendo, durante aqueles e longos meses... — Ele sacudiu a cabeça. — Nada mais parecia ter importância e você sabe o que ela me fez prometer já no fim. Deixar de vez aquela vida.

Mordecai fechou a janela.

— Eu sei, Harry. Ela era uma mulher e tanto, Jean.

— É por isso que fiz questão de legalizar nossos negócios, e afinal eu não tinha razão? Sabe qual o valor líquido da empresa? Quase cinqüenta milhões de libras. Cinqüenta milhões. — Ele sorriu. — Portanto, deixemos que Jack Harvey e outros como ele continuem sujando suas mãos se quiserem.                            

— Sim, mas para a maioria das pessoas no East End você ainda é o governador, Harry, você ainda é o Ianque.

— Não estou reclamando. — Flood abriu um armário e tirou dele um sobretudo de cor escura. — Em certas ocasiões, isso ajuda muito nos negócios, eu sei disto. Agora vamos andando. Quem dirige esta noite?

— Charlie Salter.

— Ótimo.

Mordecai hesitou.

— Devo levar uma arma, Harry?

— Pelo amor de Deus, Mordecai, nós agora somos legais. Eu vivo dizendo isso a você.

— Mas Jack Harvey não, é esse o problema.

— Deixe Jack Harvey comigo.

Eles desceram no velho elevador de carga da construção original até o armazém, onde se encontrava à espera o seda Mercedes preto. Charlie Salter, recostado no automóvel, lendo um jornal, era um homem pequeno e magro num uniforme cinza de chofer. Dobrou o jornal rapidamente e abriu a porta traseira.

— Para onde vamos, Harry?

— Para o Embassy, e dirija com cuidado. Há muito gelo nas ruas esta noite. Ah, eu fico com o jornal.

Salter acomodou-se ao volante e Mordecai sentou-se ao seu lado, estendendo a mão para o controle eletrônico da porta. As portas do armazém se abriram e eles viraram na direção do cais. Flood abriu o jornal, recostou-se no banco e começou a se atualizar sobre o andamento da Guerra do Golfo.

 

O clube Embassy ficava a apenas oitocentos metros de numa transversal da Wapping High Street. Fora inaugurado há somente seis meses, mais um dos empreendimentos de Harry nas dependências de um antigo armazém. O estacionamento ficava em uma rua secundária atrás do clube e já estava bastante cheio. Havia um velho negro de serviço, sentado numa pequena guarita.

— Guardei o seu lugar, Sr. Flood — disse ele, saindo da guarita.

Flood desceu do carro com Mordecai e puxou a carteira do bolso, enquanto Salter estacionava. Apanhou uma nota de cinco libras e deu-a ao velho.

— Não vá esbanjar, Freddy.

— Com isto? — O velho sorriu. — Hoje em dia não pagaria nem mesmo uma mulher atrás do bar. A inflação é uma coisa terrível, Sr. Flood.

Flood e Mordecai riam enquanto subiam a rua lateral e Salter alcançou-os quando dobravam a esquina, chegando à entrada do clube. Lá dentro o ambiente era quente e luxuoso, ladrilhos brancos e pretos no chão, revestimento de carvalho nas paredes, pinturas a óleo. Quando a garota do vestiário apanhava seus casacos, um homenzinho em traje a rigor correu para recebê-los. Seu sotaque era inegavelmente francês.

— Ah, Sr. Flood, que grande prazer! O senhor irá jantar?

— Creio que sim, Maurice. Mas primeiro daremos uma olhadinha por aí. Algum sinal de Harvey?

— Por enquanto não.

Desceram os degraus até a principal sala de jantar. A atmosfera do clube continuava ali, as paredes forradas, as pinturas, compartimentos com mesas e assentos de couro que ofereciam uma certa privacidade. O lugar estava quase totalmente cheio, os garçons bastante ocupados. Um trio tocava em um pequeno tablado a um canto e havia ali também uma pista de dança, embora não muito grande.

Maurice ziguezagueou por entre as mesas ao lado da pista e abriu a porta acolchoada em couro que levava às dependências do cassino, que estava igualmente lotado, as pessoas se acotovelando em torno da roleta, as cadeiras ocupadas na maior parte das mesas.

— Estamos perdendo muito? — indagou Flood a Maurice.

— Ora ganhamos, ora perdemos, Sr. Flood. Tudo equilibrado, como de hábito.

— Muitos apostadores, de qualquer forma.

— E nem um árabe à vista — observou Mordecai.

— Eles não estão se mostrando muito por aí com essa história do Golfo — disse-lhe Maurice.

— Você não faria o mesmo? — Flood sorriu.—Ande, vamos comer.

Flood tinha seu compartimento particular ao lado da banda, com uma visão geral do salão. Pediu salmão defumado, ovos mexidos e água Perrier. Apanhou um Camel numa cigarreira de prata antiga. Os cigarros ingleses eram algo com que nunca conseguira se acostumar. Mordecai deu-lhe um isqueiro e recostou-se na parede. Flood ficou ali sentado, pensando, observando à sua volta, experimentando um daqueles momentos sombrios em que você se pergunta o que significa a vida, e Charlie Salter desceu os degraus de entrada, caminhando apressado, por entre as mesas, na sua direção.

— Jack Harvey e Myra. Acabam de chegar — informou.

 

Harvey era um homem de cinqüenta anos, estatura mediana e obeso, fato que o terno azul-marinho não conseguia esconder, apesar de cortado em Savile Row. Era quase totalmente careca e possuía o rosto gordo e decadente de um imperador romano imoral.

Sua sobrinha, Myra, tinha trinta anos, mas parecia mais jovem, o cabelo preto-azeviche preso num coque com uma tiara de diamantes. Usava pouca maquiagem, exceto nos lábios, onde cintilava um batom vermelho-sangue. Estava vestida com uma jaqueta bordada com lantejoulas e uma minissaia preta de Gianni Versace e sapatos pretos de salto muito altos, pois tinha pouco mais de l,50m de altura. Era muitíssimo atraente e os homens se viravam para olhá-la. Era também o braço direito do tio, formada em administração pela Universidade de Londres, sendo também tão impiedosa e inescrupulosa quanto ele.

Flood não se levantou, ficou ali sentado, à espera.

— Harry, meu velho — cumprimentou-o Harvey, sentando-se. — Não se importa se lhe fizermos companhia, não é?

Myra inclinou-se e beijou Flood na bochecha.

— Gosta do meu perfume novo, Harry? Custou uma fortuna, mas Jack diz que é um afrodisíaco, de tão bom que é o cheiro.

— Isso é o máximo para você, não é? — perguntou-lhe Flood.

Ela sentou-se ao seu lado e Harvey apanhou um charuto. Cortou a ponta e ergueu os olhos para Mordecai.

— Vamos, onde está a porcaria do seu isqueiro?

Mordecai tirou o isqueiro do bolso e acendeu-o com a expressão impassível.

— Será que poderíamos beber algo? — perguntou Myra. — Sabemos que você não bebe, Harry, mas pense no resto de nós, pobres coitados.

Sua voz tinha um ligeiro sotaque cockney, mas não exagerado, o que tinha um certo encanto. Ela pousou a mão no joelho de Flood, que disse:

— Coquetel de champanhe, não é o que você gosta?

— Serve para começar.

— Não para mim. Não consigo beber essa porcaria — declarou Harvey. — Scotch e água. Duplo.

Maurice, que estivera observando atento, falou com um garçom e então sussurrou no ouvido de Flood:

— Os ovos mexidos, Sr. Flood.

— Pode servir agora.

Maurice afastou-se e, um minuto depois, um garçom aproximava-se com uma salva de prata. Retirou a redoma e depositou o prato diante de Flood, que começou a comer imediatamente.

— Ainda não o vi comer uma refeição decente, Harry. O que há de errado com você? — perguntou Harvey.

— Nada, de fato. A comida não significa muita coisa para mim. Quando eu era um garoto no Vietnã, fui prisioneiro dos vietcongues por algum tempo. Aprendi que se pode sobreviver com muito pouco. Mais tarde, levei um tiro na barriga e perdi mais de quarenta centímetros dos meus intestinos.

— Você vai ter de me mostrar a cicatriz um dia desses — disse Myra.

— Mas há males que vêm para bem. Se eu não tivesse sido ferido, o Corpo de Fuzileiros Navais não teria me transferido para o agradável posto de guarda na embaixada em Londres.    

— E você não teria conhecido Jean — completou Harvey. — Lembro-me do ano em que se casou com ela, Harry, o ano em que o pai dela morreu. Sam Dark. — Abanou a cabeça. — Ele era como um rei sem coroa no East End depois que os Kray foram enjaulados. E Jean... — Abanou a cabeça mais uma vez. — Quanta energia ela tinha! Os rapazes faziam fila por ela. Havia até mesmo um oficial da guarda, um lorde. — Ele voltou-se para Myra. — Coisa fina.

— E, no entanto, ela se casou comigo — acrescentou Flood

— Poderia ter sido pior, Harry. Isto é, você a ajudou a manter as coisas em ordem, principalmente depois que a mãe morreu, todos sabemos disso.

Flood afastou o prato e limpou a boca com o guardanapo.

— Esta é a noite dos elogios, Jack? Bem, o que o traz aqui de fato?

— Você sabe o que eu quero, Harry. Quero fazer parte disto aqui. Os cassinos são quatro agora e mais quantos clubes, Myra?

— Seis — informou ela.

— E todos esses empreendimentos à margem do rio — prosseguiu Harvey. — Você tem de dividir esse bolo.

— Só há um probleminha aí, Jack — interveio Flood. — Sou um empresário dentro da lei, já há muito tempo, ao passo que você... — Balançou a cabeça. — Uma vez cafajeste, sempre cafajeste.

— Seu ianque calhorda — esbravejou Harvey. — Você não pode falar assim comigo.

— Acabo de fazer isso, Jack.

— Vamos participar desse negócio, Harry, quer você goste ou não.

— Experimente — disse Flood.

Salter atravessara correndo o salão e se recostara na parede ao lado de Mordecai. Este sussurrou em seu ouvido e Salter afastou-se.

— Ele fala sério, Harry, portanto seja razoável. Tudo que estamos pedindo é uma fatia do bolo.

— Se eu fizer sociedade com vocês, entrarão nos negócios de computadores, empreendimentos imobiliários, clubes e cassinos — disse-lhe Flood. — O que significaria que eu me associaria a vocês com os cafetões, as prostitutas, as drogas e a extorsão. Eu tomo três banhos por dia, doçura, e isso não seria suficiente para me sentir limpo.

— Seu ianque cafajeste!

Ela ergueu a mão e ele agarrou-lhe o pulso.

Harvey pôs-se de pé.

— Deixe pra lá, Myra, deixe pra lá. Vamos embora. Voltaremos a nos ver, Harry.

— Espero que não — retrucou Flood.

Saíram e Mordecai inclinou-se na direção de Flood.

— É um sujeitinho nojento. Ele sempre me revoltou o estômago, ele e seus amiguinhos.

— Há gosto para tudo nessa vida. Não se deixe levar por seus preconceitos, Mordecai, e me traga uma xícara de café.

 

— O porco! — praguejou Jack Harvey, quando ele e Myra caminhavam pela calçada, dirigindo-se ao estacionamento. — Falando comigo daquela maneira, vai acabar indo parar no inferno.

— Eu lhe disse que estávamos perdendo nosso tempo — comentou ela.

— Certo. — Deslizou as luvas pelas mãos grandes. — Teremos de mostrar a ele que estamos falando sério, não é mesmo?

Um furgão de cor escura estava estacionado no fim da rua. Quando eles se aproximaram, as lanternas do veículo se acenderam e o jovem sentado ao volante inclinou-se para fora. Tinha cerca de 25 anos, a aparência rude e perigosa com a jaqueta de couro preta e o boné.

— Sr. Harvey — cumprimentou ele.

— Bom garoto, Billy, bem na hora. — Harvey voltou-se para a sobrinha. — Não creio que você conheça Billy Watson, Myra.

— Não, creio que não — disse ela, examinando o rapaz.

— Quantos você tem aí atrás? — perguntou Harvey.

— Quatro, Sr. Harvey. Ouvi dizer que esse tal Mordecai Fletcher é um animal. — Apanhou um bastão de beisebol. — Isto deve acalmá-lo.

— Nada de revólveres, como já lhe disse, certo?

— Certo, Sr. Harvey.

— Corpo a corpo, isso basta. Talvez algumas pernas quebradas. Fique a postos. Ele terá de sair, mais cedo ou mais tarde.

Harvey e Myra seguiram pela calçada.

— Cinco? — perguntou ela. — Acha que é suficiente?

— Suficiente?—Ele riu asperamente.—Quem ele pensa que é? Sam Dark? Esse sim, era um homem. Quanto a esse maldito ianque... Eles o aleijarão, o deixarão de muletas por uns seis meses. Esses garotos são duros, Myra.

— Mesmo? — retrucou ela.

— Bem, agora vamos sair desse frio maldito — disse, entrando no estacionamento.

 

Uma hora mais tarde, Harry Flood preparou-se para sair. Enquanto a garota do vestiário o ajudava com seu casaco, ele perguntou a Mordecai:

— Onde está o Charlie?

— Ah, pedi há alguns minutos que ele fosse na frente para aquecer o carro. Está gelado lá fora, Harry, logo, logo o maldito Tâmisa estará coberto de gelo.

Flood riu e eles desceram os degraus, começando a andar pela calçada. Quando aconteceu, foi muito rápido. As portas traseiras do furgão estacionado do outro lado da rua escancaram-se de repente, homens saíram lá de dentro e atravessaram a rua correndo. Todos carregavam bastões de beisebol. O primeiro a alcançá-los bateu com força, Mordecai abaixou-se, evitando o golpe, e arremessou o rapaz por sobre os quadris nos degraus de um pavimento subterrâneo atrás deles.

Os outros quatro pararam e os cercaram, os bastões preparados.

— Isso não vai ser nada bom para vocês — anunciou Watson. — É hora de alguns ossos quebrados.

Ouviu-se um tiro vindo de detrás deles, ecoando no ar enregelante, e mais um outro. Quando se voltaram, Charlie Salter emergiu da escuridão, recarregando uma espingarda de cano serrado.

— Agora soltem esses bastões — gritou ele. — A menos que vocês queiram virar geléia na calçada.

Os rapazes obedeceram e ficaram ali parados, à espera do que viria a seguir. Mordecai aproximou-se, examinando-os, e então agarrou o mais próximo pelos cabelos.

— Para quem vocês estão trabalhando, amiguinho?

— Não sei, senhor.

Mordecai atirou-o de encontro à grade, segurando seu rosto pouco acima das pontas de ferro.

— Perguntei para quem vocês estão trabalhando?

O rapaz rendeu-se imediatamente.

— Jack Harvey. Foi um trabalho pago. Foi Billy quem nos recrutou.

— Seu patife! Vou pegar você por isso — ameaçou-o Billy.

Mordecai lançou um olhar para Flood, que assentiu. O homem corpulento disse a Billy:

— Você fica. O resto de vocês, fora daqui!

Eles se viraram e correram. Billy Watson ficou ali, encarando-os, cheio de ódio.

— Esse aí precisa de uma boa lição — disse Salter.

De repente, Billy apanhou um dos bastões e ergueu-o defensivamente.

— Tudo bem, vamos lá. Harry Flood, o chefão. Você não é de nada sozinho, não é, meu chapa?

Mordecai deu um passo à frente e Flood o deteve.

— Não — disse, aproximando-se de Billy. — Vamos lá, filho.

Billy atirou-se sobre ele, que desviou o corpo para um lado e agarrou o pulso direito do adversário, torcendo-o. Billy gritou de dor e deixou cair o bastão e, no mesmo instante, o americano deu meia-volta, atingindo-o violentamente no rosto com o cotovelo e atirando-o ao chão de joelhos.

Mordecai apanhou o bastão de beisebol.

— Não, ele já entendeu o recado. Vamos embora — disse Flood.

Acendeu um cigarro, enquanto desciam pela rua.

— E quanto a Harvey? Você vai dar um jeito nele? — indagou Mordecai.

— Vou pensar no assunto — respondeu Flood e dirigiram-se para o estacionamento.

 

Billy Watson aprumou-se, segurando-se às grades durante tempo. Nevava um pouco quando ele se virou e atravessou a rua, mancando, até o furgão. Quando dava a volta até a porta do motorista, Myra Harvey surgiu de um beco estreito, mantendo a gola do casaco de pele erguida em torno do pescoço.

— Bem, as coisas não correram muito bem, não é mesmo?

— Srta. Harvey — grasnou ele. — Pensei que tivesse ido embora.

— Quando meu tio me deixou em casa, peguei um táxi de volta. Queria ver o espetáculo.

— Está me dizendo que esperava que as coisas acontecessem exatamente como aconteceram?

— Receio que sim, meu bem. Meu tio às vezes se precipita. Deixa-se levar pelas emoções. Você acha mesmo que cinco marginaizinhos como vocês poderiam acabar com Harry Flood? — Ela abriu a porta do motorista e o empurrou para dentro do furgão. — Vamos, chegue para lá. Eu dirijo.

Acomodou-se atrás do volante, o casaco de pele abriu-se e a minissaia subiu o mais que podia.

— Mas para onde estamos indo? — quis saber Billy.

— De volta à minha casa. O que você precisa é de um bom banho quente, meu bem. — Sua mão esquerda apertou a coxa do rapaz com força, ela ligou o carro e partiram.

 

O vôo proveniente de Jersey chegou ao Terminal Um do aero­porto de Heathrow pouco depois das onze da manhã do dia seguinte. Meia hora se passou até a mala de Dillon ser liberada e ele sentou-se fumando e lendo o jornal enquanto esperava. As notícias sobre a guerra eram boas para as forças aliadas. Sofreram a baixa de alguns pilotos no Iraque, mas os ataques aéreos estavam tendo um efeito terrível.

Finalmente ele apanhou a mala e seguiu seu caminho. Havia uma grande correria entre os funcionários da alfândega pois vários aviões chegaram quase que ao mesmo tempo. Pareciam não estar revistando ninguém naquela manhã, não que encontras­sem algo com ele, caso procurassem. Sua mala continha apenas uma muda de roupa e artigos de toalete, nada mais, e a valise somente alguns jornais. Tinha também dois mil dólares na carteira, em vinte cédulas de cem dólares, mas não havia nada de errado com isso. Dillon destruíra o passaporte francês no hotel em Jersey. Agora não havia volta. Quanto retornasse à França, seria certamente por uma rota diferente e até lá a carteira de motorista de Jersey, em nome de Peter Hilton, era toda a identificação de que precisava.

Dirigiu-se pela escada rolante até o piso superior e entrou na fila de um dos balcões de câmbio, trocando quinhentos dólares por libras. Repetiu a mesma operação em três outros bancos, então desceu para o piso inferior a fim de tomar um táxi assoviando baixinho.

Pediu ao motorista que o deixasse na estação de Paddin onde guardou a mala em um locker. Telefonou a Tânia Novikova, no número que Makeev lhe dera, para o caso de ela encontrar-se em casa, e a secretária eletrônica atendeu. Dillon não deixou qualquer mensagem, mas saiu e fez sinal para um táxi, dizendo ao motorista que o levasse até Covent Garden.

Com os óculos de lentes coloridas, a gravata de listras e a capa Burberry azul-marinho, tinha uma aparência totalmente respeitável.

— Tempo terrível, chefe. Creio que em breve vamos ter uma nevasca muito forte — disse o motorista do táxi.

— Eu não me surpreenderia. — O sotaque de Dillon era impecavelmente inglês.

— O senhor vive em Londres, chefe?

— Não, estou na cidade por alguns dias a negócios. Moro no exterior há algum tempo — respondeu Dillon prontamente. — Nova York. Há anos que não venho a Londres.

— Há muitas mudanças. Nada é mais como antes.

— Acredito. Li no outro dia que não se pode mais andar pela Downing Street.

— E isso mesmo, chefe. A Sra. Thatcher instalou um novo sistema de segurança, e há portões na extremidade da rua.

— Verdade? — perguntou Dillon. — Gostaria de ver isso.

— Podemos passar por lá se o senhor quiser. Posso levá-lo pela Whitehall e então voltar para Covent Garden.

— Está bem para mim.

Dillon recostou-se no banco, acendeu um cigarro e ficou observando. Desceram a Whitehall a partir da Trafalgar Square, passando pelo quartel da Cavalaria Real, com os dois soldados montados de guarda, usando pesados sobretudos contra o frio, as espadas desembainhadas.

— Deve estar terrivelmente frio para os cavalos — observou o motorista, acrescentando a seguir: — Aqui estamos nós, chefe: Downing Street. — Ele reduziu um pouco a velocidade. — Não se pode parar aqui. Se alguém faz isso, os tiras vêm e querem saber o que você está fazendo.

Dillon olhou para a extremidade da rua.

— Então são aqueles os famosos portões?

— Um exagero da parte de Thatcher, dizem algumas pessoas, mas se quer saber a minha opinião, ela quase sempre tinha razão. O maldito IRA realizou algumas proezas em Londres durante os últimos anos. Por mim, eu os mataria a todos. Se eu o deixar em Long Acre está bom para o senhor, chefe?

— Está ótimo — disse Dillon e reclinou-se no assento, pensando naqueles portões magníficos no fim da Downing Street.

O táxi parou junto ao meio-fio e Dillon deu ao motorista uma nota de dez libras.

— Pode ficar com o troco — disse, afastando-se rapidamente pela Langley Street.

A área de Covent Garden estava tão agitada como sempre, as pessoas agasalhadas contra o frio extremo, fazendo com que a cidade parecesse mais Moscou do que Londres. Dillon acompanhou a multidão e por fim encontrou o que procurava numa ruazinha estreita próximo a Neal’s Yard, uma pequena loja de artigos para teatro, cuja vitrine encontrava-se cheia de máscaras de fantasias antigas e maquiagem. Um sino tilintou quando ele entrou. O homem que surgiu através da cortina nos fundos da loja tinha cerca de setenta anos, os cabelos brancos como neve e o rosto redondo e gordo.

— Em que posso ajudá-lo? — perguntou.

— Um pouco de maquiagem, creio. O que o senhor tem aí?

— Tenho alguns kits muito bons — respondeu o velhinho, apanhando uma das caixas e abrindo-a sobre o balcão. — Eles usam isso aqui no Teatro Nacional. O senhor é profissional?

— Não, sou amador,do grupo da igreja. — Dillon verificou o conteúdo da caixa. — Excelente. Levarei também mais um batom, vermelho vivo, uma tintura preta para o cabelo e um pouco de solvente.

— O senhor está mesmo entusiasmado. Por falar nisso, meu nome é Clayton. Tome aqui o meu cartão para o caso de precisar de mais alguma coisa. — Apanhou os produtos pedidos, colocou-os dentro da caixa de maquiagem, fechando-a. — Trinta libras à vista, e não se esqueça, qualquer coisa de que precisar...

— Não me esquecerei — asseverou Dillon e saiu, assoviando.

 

Nevava na vila de Vercors, quando o cortejo deixou a casa. Apesar do tempo, seus habitantes enfileiravam-se na rua, os homens tirando os chapéus, enquanto Anne-Marie Audin era levada ao local de seu descanso final. Havia apenas três automóveis seguindo o carro fúnebre; o velho Pierre Audin e seu secretário iam no primeiro, alguns empregados nos que vinham a seguir.

Brosnan e Mary Tanner, acompanhados por Max Hernu, caminharam por entre as lápides e se detiveram quando o ancião foi retirado do carro e acomodado em uma cadeira de rodas, que prosseguiu empurrada, seguida pelos outros.

Era uma igreja muito antiga e típica de vilarejos, as estações da Via Sacra representadas nas paredes caiadas; lá dentro estava frio, muito frio. Na verdade, Brosnan nunca sentira tanto frio em sua vida e ficou ali sentado, tremendo ligeiramente, mal se dando conta do que estava sendo dito, erguendo-se e ajoelhando-se obedientemente junto com todos os outros. Foi apenas quando o serviço chegou ao fim e todos se puseram de pé, enquanto alguns homens carregavam o caixão pelo corredor, que ele percebeu que Mary Tanner segurava sua mão.

Caminharam pelo cemitério até o mausoléu da família, do tamanho de uma pequena capela e construído em granito cinza e mármore, com um teto gótico alcantilado. As portas de carvalho estavam abertas. O padre deteve-se para dar a bênção final e o caixão foi levado para dentro. O secretário manobrou a cadeira de rodas e passou por eles, empurrando-a, o velho encurvado, uma manta sobre seus joelhos.

— Lamento tanto por ele — disse Mary.    

— Não lamente, ele não tem consciência nem mesmo da do dia — retrucou Brosnan.

— Nem sempre é assim.

Ela caminhou até o carro e pousou a mão sobre o ombro do ancião, sentado em sua cadeira de rodas. Depois voltou para junto de Brosnan.

— Bem, meus amigos, de volta a Paris — anunciou Hernu.

— E a seguir para Londres — completou Brosnan.

Mary passou o braço pelo dele enquanto se dirigiam ao carro.

— Amanhã, Martin, amanhã de manhã é a hora certa, e eu não aceitarei um não como resposta.

— Tudo bem — concordou ele. — Amanhã de manhã. — acomodou-se no banco traseiro do automóvel e recostou-se, subitamente esgotado. Sentado ao lado de Mary, ele fechou os olhos, enquanto Hernu dava a partida.

 

Passava pouco das seis quando Tânia Novikova, ouvindo a campainha, desceu as escadas e abriu a porta. Lá estava Dillon, a mala em uma das mãos, a valise na outra.

— Josef lhe manda lembranças.

Tânia estava perplexa. Desde que falara com Makeev, acessara os arquivos do KGB em Londres a fim de descobrir tudo que pudesse sobre Dillon e ficara estarrecida diante de seu currículo. Esperara algum tipo de herói moreno e, em lugar disso, tinha à sua frente um homem pequeno de capa de chuva, gravata colegial e óculos de lentes coloridas.

— Você é Sean Dillon? — perguntou ela.

— Nunca deixei de ser.

— É melhor entrar.

As mulheres nunca tiveram grande importância para Dillon. Encontravam-se à disposição para satisfazer uma necessidade em determinadas ocasiões, mas ele nunca tivera o menor envolvimento emocional com uma delas. Seguindo Tânia Novikova escada acima, deu-se conta de que ela tinha um bom corpo e que a calça preta do terninho que usava lhe caía muito bem. O cabelo estava preso na nuca com um laço de veludo, mas, quando Tânia se voltou para ele na luz plena da sala de estar, Dillon percebeu que ela era um tipo bastante comum.

— Fez uma boa viagem? — indagou ela.

— Sem maiores problemas. Fiquei preso em Jersey na noite passada devido à neblina.

— Aceita uma bebida?

— Um chá seria ótimo.

Ela abriu uma gaveta, tirando de lá uma Walther, dois pentes extras de balas e um silenciador Carswell.

— Segundo Josef, sua arma preferida.

— Definitivamente.

— Pensei também que isto aqui poderia vir a ser útil. — Entregou-lhe um pequeno pacote. — Dizem que pode deter uma bala calibre .45 à queima-roupa. É feito de nylon e titânio.

Dillon desdobrou-o. Não se tratava de um dos volumosos coletes à prova de balas tradicionais; este fora desenhado como um pequeno spencer ajustado ao corpo por tiras de velcro.

— Excelente — disse ele, pondo o colete na valise junto com a Walther e o silenciador. Desabotoou a capa de chuva, acendeu um cigarro e ficou parado na porta da cozinha, observando-a preparar o chá.

— Você está perto da Embaixada soviética aqui?

— Ah, sim, posso ir a pé. — Ela levou o chá em uma bandeja para a sala de estar. — Reservei um quarto para você num hotelzinho, dobrando a esquina na Bayswater Road. É o tipo de lugar onde pessoas que vêm à cidade a trabalho pernoitam.

— Ótimo. — Ele bebericou o chá. — Vamos aos negócios. Alguma notícia sobre Fahy?

— Até agora nada. Há alguns anos mudou-se de Kilburn para uma casa em Finchley. Ficou lá apenas um ano e mudou-se de novo. A partir daí não sei mais. Mas eu o encontrarei. Tenho alguém cuidando disso.

— Precisa encontrá-lo. É essencial. A seção do KGB em Londres ainda tem um departamento de falsificação?

— Naturalmente.

— Muito bem. — Tirou do bolso a carteira de motorista de Jersey. — Quero uma licença de piloto comercial no mesmo nome e endereço. Você vai precisar de uma foto. — Deslizou um dedo sob a cobertura plástica da carteira e tirou dali algumas fotografias idênticas à do documento. — É sempre útil ter algumas destas.

Ela apanhou uma.

— Peter Hilton, Jersey. Posso perguntar qual é a necessidade disso?

— Porque, quando chegar o momento certo, a hora de dar o fora daqui, vou querer voar e eles não alugam um avião a menos que você tenha uma licença emitida pela Autoridade de Aviação Civil. — Serviu-se de um pouco mais de chá. — Diga ao seu funcionário que quero habilitação para bimotores e instrumentos.

— Anotarei esses detalhes. — Abriu a bolsa, tirou dela um envelope, guardando ali a fotografia, e fez algumas anotações na parte externa. — Mais alguma coisa?

— Sim, gostaria de obter detalhes completos sobre o atual sistema de segurança no Número Dez da Downing Street.

Ela prendeu a respiração.

— Devo deduzir que é esse o seu alvo?

— Não exatamente. O homem que está lá dentro é o meu alvo, mas isso é outra coisa. A agenda diária do primeiro-ministro, é fácil consegui-la?

— Depende do que você deseja. Ele sempre tem compromissos fixos durante o dia. A sessão de perguntas na Câmara dos Comuns, por exemplo. É claro que agora as coisas estão um pouco diferentes por causa do Golfo. O Gabinete de Guerra se reúne todos os dias às dez da manhã.

— Na Downing Street?

— Isso mesmo, na Sala do Gabinete. Mas ele tem outros compromissos no decorrer do dia. Ontem mesmo, fez um pronunciamento na Rede das Forças Britânicas para as tropas no Golfo.

— Foi gravado na BBC?

— Não, eles têm seu próprio estúdio em Bridge House, que fica perto da estação de Paddington, não muito longe daqui.

— Interessante. Pergunto-me, como terá sido a segurança?

— Não muito grande, creia-me. Alguns agentes, nada mais que isso. Os ingleses são loucos.

— Eles têm é uma sorte e tanto. Esse seu informante, o que lhe deu todos os detalhes sobre Ferguson. Fale-me dele. — Ela atendeu o seu pedido e, ao chegar ao fim, ele assentiu. — Quer dizer então que você o pegou de verdade pelos colhões, hein?

— Pode-se dizer que sim.

— Vamos manter as coisas nesse pé. — Ele levantou-se e abotoou o casaco. — É melhor eu ir andando e me registrar no tal hotel.

— Já jantou?

— Não.

— Tenho uma sugestão. Um pouco acima do hotel, na mesma rua, há um excelente restaurante italiano, o Luigi’s. Um daqueles pequenos estabelecimentos de propriedade de uma família. Você se acomoda no hotel, enquanto eu vou até a embaixada. Verificarei em nossos arquivos o que temos sobre o sistema de segurança da Downing Street e verei seja há alguma novidade sobre Fahy.

— E quanto à licença de piloto?

— Também providenciarei isso.

— Vinte e quatro horas.

— Está certo.

Ela apanhou um casaco e um cachecol, desceu as escadas com ele e saíram juntos. As calçadas estavam cobertas por uma camada de gelo. Tânia carregou a valise para ele, segurando em seu braço, até chegarem ao hotel.

— Vejo você daqui a uma hora — despediu-se ela e seguiu adiante.

Era o típico hotel que provavelmente fora muito próspero no final da era vitoriana. Os atuais proprietários fizeram o melhor que puderam, mas isso não fora muito. A sala de jantar, à esquerda do vestíbulo, não era nada convidativa e não havia ali mais do que meia dúzia de pessoas jantando. O recepcionista, um velho cujo rosto parecia uma caveira, vestindo um uniforme marrom desbotado, movimentava-se com infinita lentidão, enquanto registrava Dillon e lhe entregava as chaves. Obviamente, esperava-se dos hóspedes que carregassem sua própria bagagem.

O quarto era exatamente o que imaginara. Duas camas de solteiro, lençóis baratos, um banheiro, uma televisão que funcionava quando se introduzia moedas por uma abertura que havia nela, e uma pequena cesta ao lado, contendo saquinhos de café, chá e leite em pó. Bem, de qualquer forma, não ficaria ali por muito tempo. Abriu a mala e guardou seus pertences no armário.

Entre os negócios de Jack Harvey, havia uma casa funerária em Whitechapel. Tratava-se de um estabelecimento bastante grande e bem rendoso, pois, como ele gostava de brincar, os mortos estão sempre conosco. O prédio era um imponente edifício de três andares, em estilo vitoriano, que Harvey reformara. Myra residia na cobertura e era ela quem dirigia o negócio. Harvey ocupava um escritório no primeiro andar.

Ele pediu ao motorista que esperasse, subiu os degraus e tocou a campainha. O porteiro noturno atendeu.

— Minha sobrinha está? — perguntou Harvey.

— Creio que sim, Sr. Harvey.

Harvey atravessou a loja principal, onde os caixões eram expostos, e o corredor com pequenas capelas de ambos os lados, onde os parentes podiam velar os corpos. Subiu dois lances de escada e tocou a campainha na porta de Myra.

A sobrinha já estava à sua espera, alertada por um discreto telefonema do porteiro. Deixou-o esperar um momento e então abriu a porta.

— Tio Jack!

Ele passou apressado por ela e, ao vê-la com um minivestido bordado de lantejoulas douradas, meias e sapatos pretos, perguntou:

— Vai sair ou algo assim?

— Bem, vou a uma discoteca.

— Esqueça isso agora. Falou com os contadores? Há alguma forma de eu pegar Flood legalmente? Algum problema com as licenças? Qualquer coisa?

— Não há a mínima chance — afirmou Myra. — Passamos um pente fino em todos os seus negócios. Não encontramos nada.

— Certo, então eu terei de pegá-lo à força.

— Isso não funcionou muito bem na noite passada, não é mesmo?

— Eu usei lixo, foi por isso. Um bando de idiotinhas que não merecem que se perca tempo com eles.

— Então o que você pretende?

— Pensarei em alguma coisa. — Quando ele se virou direção da porta de saída, ouviu um ruído no quarto. — Ora, quem está aí? — Abriu a porta, deparando-se com Billy Watson ali de pé, com o olhar assustado. — Jesus! — Harvey voltou-se para Myra. — É repulsivo. Você só pensa em sexo.

— Pelo menos faço isso da maneira correta — retrucou Myra

— Foda-se! — exclamou ele.

— Não é necessário. Ele fará isso por mim.

Harvey desceu as escadas bufando.

— Você não dá a mínima para ninguém, não é? — observou Billy.

— Meu amor, esta é a casa dos mortos — disse ela, apanhando o casaco de pele e a bolsa. — Eles estão lá embaixo em seus caixões e nós estamos aqui vivos. As coisas são simples assim, portanto tire o máximo proveito delas. Agora, vamos indo.

 

Dillon estava sentado em um pequeno reservado a um canto no Luigi’s, bebendo o único champanhe disponível no estabelecimento — um Bollinger não-vindimado bastante razoável —, quando Tânia chegou. O velho Luigi cumprimentou-a pessoalmente, como a um cliente especial, e ela sentou-se.

— Champanhe? — perguntou Dillon.

— Por que não? — Ergueu os olhos para Luigi. — Faremos o pedido daqui a pouco.

— Uma das coisas que não mencionamos foi o dinheiro para as despesas. Trinta mil dólares. Aroun deveria providenciar essa quantia — disse Dillon.

— Já cuidaram disso. O homem em questão entrará em contato comigo amanhã. Trata-se de um contador de Aroun em Londres.

— Certo. Então, que notícias você me traz? — perguntou ele.

— Nada ainda sobre Fahy. Quanto à licença para voar, já está em andamento.

— E o que me diz do Número Dez?

— Dei uma olhada nos arquivos. O acesso à Downing Street sempre foi aberto ao público. Mas o fato de o IRA ter chegado tão perto de mandar pelos ares todo o Gabinete durante o congresso do Partido Conservador em Brighton, há pouco tempo, provocou uma mudança na opinião a respeito da segurança. A campanha de bombas em Londres e os ataques a autoridades aceleraram as coisas.

— E então?

— Bem, o povo costumava ficar em frente ao Número Dez, observando os grandões entrarem e saírem, mas agora não pode mais. Em dezembro de 89, Margaret Thatcher ordenou novas medidas de segurança. De fato, o lugar agora é uma fortaleza. As grades de aço têm mais de três metros de altura. Aliás, os portões são no estilo neovitoriano, um toque de classe dado pela Dama de Ferro.

— Sim, eu os vi hoje.

Luigi rodeava-os ansioso e eles interromperam a conversa, pedindo sopa minestrone, costeletas de vitela, batatas sauté e uma salada de folhas.

— Algumas pessoas acusaram-na de haver se tornado vítima de delírios paranóicos — retomou Tânia. — Isso é besteira, é claro. Aquela mulher nunca teve delírios em relação a coisa alguma na vida. De qualquer modo, do outro lado dos portões há uma tela de aço projetada para erguer-se rapidamente no caso de um veículo não-autorizado tentar passar por eles.

— E o prédio em si?

— As janelas possuem vidraças especialmente resistentes, inclusive as janelas georgianas. Ah, e as cortinas de filó são definitivamente um milagre da tecnologia moderna. São à prova de explosivos.

— Sem dúvida alguma, você dispõe dos fatos.

— É incrível, mas tudo que eu lhe disse foi publicado por revistas ou jornais. A imprensa inglesa põe o seu direito de informar acima de qualquer outra coisa. Simplesmente recusa-se a admitir as implicações de segurança. Nos arquivos de qualquer um dos principais jornais ingleses, você encontrará detalhes do interior do Número Dez, de Chequers, a casa de campo do primeiro-ministro e até mesmo do Palácio de Buckingham.

— E o que você me diz de entrar lá como um funcionário?

— Essa costumava ser uma verdadeira brecha na segurança. A maior parte das festas é organizada por firmas particulares e o mesmo ocorre com parte da limpeza, mas eles são muito rígidos na verificação dos antecedentes dessas pessoas. É claro que as falhas sempre ocorrem. Já aconteceu de um bombeiro hidráulico, trabalhando na casa do ministro da Fazenda, no Número Onze, abrir uma porta e ver-se perambulando no Número Dez, tentando achar a saída.

— Isso parece piada.

— Há pouco descobriu-se que funcionários de firmas contratadas para prestar serviços de limpeza, cujos antecedentes haviam sido checados, operavam sob identidade falsa. Alguns deles tinham autorização para trabalhar no Ministério do Interior, entre outros.

— Sei, o que você está querendo dizer é que há falhas no sistema.

— Isso mesmo.—Ela hesitou. — Você tem alguma coisa em mente?

— Refere-se a tiros ao acaso com um rifle de precisão, de cima de um telhado a duzentos metros de distância, quando ele passar pela porta? Creio que não. Não, na verdade não tenho nenhuma idéia sólida no momento, mas encontrarei uma solução. Eu sempre encontro. — O garçom trouxe-lhes a sopa. — Bem, o cheiro está bom. Vamos ver o sabor.

 

Depois do jantar, ele a acompanhou até o apartamento. Nevava pouco e fazia muito frio.

— Esse tempo deve lhe trazer recordações de casa — disse Dillon.

— De casa? — Ela pareceu desconcertada por um momento e então riu. —Moscou, você quer dizer? — Deu de ombros. — Já faz muito tempo. Gostaria de subir?

— Não, obrigado. Já está tarde e uma noite de sono me fará bem. Estarei no hotel amanhã de manhã. Digamos, até o meio-dia. Pelo que vi, não creio que consiga almoçar por lá. Estarei de volta às duas, se você precisar falar comigo.

— Ótimo — disse ela.

— Boa noite, então.

Tânia fechou a porta, Dillon deu meia-volta e afastou-se. Foi somente quando ele dobrou a esquina da Bayswater Road que Gordon Brown saiu das sombras de um portal no outro lado da rua e ergueu os olhos para a janela de Tânia. A luz se acendeu. Ele deixou-se ficar ali por mais algum tempo, depois virou-se e foi embora.

 

Em Paris, na manhã seguinte, a temperatura se elevou três ou quatro graus e o gelo começou a derreter. Mary e Hernu, no Citroën preto do coronel, apanharam Brosnan pouco antes do meio-dia. O professor os aguardava na entrada do prédio no Quai de Montebello, vestindo uma capa de chuva e um boné de tweed, e levando na mão uma mala, que o motorista guardou no porta-malas. Brosnan sentou-se no banco traseiro ao lado dos outros dois.

— Novidades? — perguntou ele.

— Nada — respondeu o coronel.

— Como eu disse, provavelmente ele já está lá. E quanto a Ferguson?

Mary olhou para o relógio em seu pulso.

— Ele deve estar falando com o primeiro-ministro agora, alertando-o quanto à seriedade desse caso.

— É tudo que ele pode fazer — afirmou Brosnan. — Além de prevenir as outras divisões dos serviços de segurança.

— E como é que você agiria, meu amigo? — indagou Hernu.

— Saemos que Dillon trabalhou para o IRA em Londres, em 1981. Como eu já disse a Mary, ele deve ter usado contatos no submundo para conseguir o equipamento de que precisava. É o que ele sempre faz, e desta vez não será diferente. É por isso que fazer uma visita ao meu velho amigo Harry Flood.

— Ah, sim, o temível Sr. Flood. A capitão Tanner esteve me falando sobre ele. Mas e se ele não puder ajudar?

— Existe um outro caminho. Tenho um outro amigo na Irlanda, bem perto de Dublin, em Kilrea, chamado Liam Devlin. Não há nada que ele não saiba sobre a história do IRA nos últimos anos, quem fez o quê. É uma idéia. — Acendeu um cigarro e reclinou-se no assento.—Mas eu pegarei o canalha, de uma forma ou de outra. Eu o pegarei.

O motorista os levou até a entrada do terminal dos aviões particulares no Charles de Gaulle, onde o jatinho estava à sua espera. Não houve nenhuma formalidade. Tudo já fora providenciado. O motorista carregou a bagagem até o local onde o co-piloto os aguardava.

— Capitão, se me permite o atrevimento — disse Hernu, beijando Mary gentilmente nas duas bochechas. — E você, meu amigo — voltou-se para Brosnan, estendendo-lhe a mão —, lembre-se sempre de que quando se parte numa jornada cujo objetivo é a vingança, é necessário antes de tudo cavar-se duas covas.

— Filosofia a essa hora? — ironizou Brosnan. — E a essa altura da vida? Até logo, coronel.

Sentaram-se no avião, ajustaram os cintos de segurança, o co-piloto recolheu a escada, trancou a porta e foi juntar-se ao companheiro na cabine.

— Hernu tem razão, você sabe disso — observou Mary.

— Sim, eu sei — disse Brosnan. — Mas não há nada que eu possa fazer quanto a isso.

— Eu compreendo, acredite, compreendo mesmo — disse ela, enquanto o avião deslizava na pista.

 

Quando Ferguson foi levado até o estúdio no Número Dez, o primeiro-ministro encontrava-se de pé junto à janela, bebendo uma xícara de chá. Ele voltou-se e sorriu.

— O chá que refresca, general.

— Dizem que foi graças ao chá que sobrevivemos à guerra, primeiro-ministro.

— Bem, já está bom se ele me ajudar à sobreviver à minha agenda atual. Temos uma reunião do Gabinete de Guerra às dez todas as manhãs, como o senhor sabe, e há ainda todas as questões prementes ligadas ao Golfo.

— E as questões diárias do país — completou Ferguson.

— É, fazemos o melhor que podemos. Ninguém nunca disse que a política era fácil, general. — Pousou a xícara sobre a mesa. Li seu último relatório. Acha provável que o tal Dillon já esteja aqui, em algum lugar de Londres?

— Pelo que ele disse a Brosnan, creio que podemos concluir que sim, primeiro-ministro.

— Já alertou todas as divisões dos serviços de segurança?

— Naturalmente, mas, como o senhor sabe, não temos um rosto para ele. Há uma descrição, é claro: pequeno, cabelos claros e assim por diante, mas, como diz Brosnan, a essa altura sua aparência deve estar inteiramente diferente.

— Sugeriram-me que talvez fosse aconselhável alguma cobertura da imprensa.

— Bem, é uma idéia — disse Ferguson —, mas duvido que servisse para alguma coisa. O que poderiam dizer? Para o andamento de uma investigação, a polícia gostaria de entrar em contato com um homem chamado Sean Dillon, que porém não usa esse nome? Quanto à sua descrição, não sabemos qual é a sua aparência e, se soubéssemos, ele não mais teria essa aparência.

— Meu Deus, o senhor expressou-se com tanta clareza, general. — O primeiro-ministro explodiu numa risada.

— É claro que poderia haver manchetes mais sensacionalistas: Chacal do IRA caça o primeiro-ministro.

— Não, não vamos fazer nenhuma dessas bobagens — declarou com firmeza o ministro. — Por falar nisso, quanto à sugestão de que Saddam Hussein poderia estar por trás desse caso, devo dizer-lhe que seus outros colegas do serviço secreto discordam. Eles estão firmes na opinião de que essa é uma questão do IRA e devo dizer-lhe que é assim que eles a estão investigando.

— Bem, se a Divisão Especial acredita que o encontrarão visitando bares irlandeses em Kilburn, é problema deles.

Houve uma batida na porta e um ajudante-de-ordens entrou.

— Somos esperados no Savoy em quinze minutos, primeiro- ministro.

John Major sorriu com grande charme.

— Mais um daqueles intermináveis almoços, general. Para começar, coquetel de camarão...

— E, a seguir, salada de frango — completou Ferguson.

— Encontre-o, general — disse-lhe o primeiro-ministro. — Encontre-o para mim.

O ajudante-de-ordens acompanhou Ferguson até a saída.

 

Tânia, de posse de boas notícias para Dillon, sabia que de nada adiantava ir ao hotel antes das duas e portanto dirigiu-se para o seu apartamento. Enquanto procurava a chave na bolsa, Gordon Brown atravessou a rua.

— Esperava encontrá-la — disse ele.

— Pelo amor de Deus, Gordon. Você deve estar louco.

— E o que faço quando surge algo importante que você precisa saber? Não posso esperar até você entrar em contato comigo. Pode já ser tarde demais. Então é melhor eu entrar, não é?

— Não pode. Tenho de voltar à embaixada em trinta minutos. Vou tomar um drinque com você, isso é tudo.

Ela deu meia-volta e caminhou até o bar na esquina antes que ele pudesse protestar. Sentaram-se a um canto, numa sala mais reservada que estava vazia, cientes do barulho que vinha do bar principal. Brown pediu uma cerveja e Tânia, uma vodca com lima.

— O que você tem para mim? — perguntou ela.

— Não sou eu quem deveria fazer essa pergunta? — Ela ergueu-se imediatamente e ele pousou a mão em seu braço. — Desculpe. Não vá.          

— Então comporte-se. — Voltou a sentar-se. — Agora diga logo.

— Ferguson teve uma reunião com o primeiro-ministro pouco antes do meio-dia. Às 12:30 estava de volta ao escritório, antes que eu terminasse a primeira metade do meu turno. Ele ditou um relatório a Alice Johnson, uma das datilógrafas de confiança que trabalham comigo. O relatório era para ser arquivado.

— Você conseguiu uma cópia?

__ Não, mas fiz o mesmo que da última vez. Levei-o até o escritório dele para ela, e o li no caminho. A capitão Tanner ficou em Paris com Brosnan para assistir ao funeral de uma francesa.

— Anne-Marie Audin? — lembrou ela.

— Estão vindo para cá hoje. Brosnan prometeu total cooperação. Ah, todas as outras divisões dos serviços de inteligência foram notificadas a respeito de Dillon. Segundo instruções do primeiro-ministro, não haverá qualquer cobertura por parte da imprensa. A impressão que tive foi que ele disse a Ferguson para fazer o possível e o impossível.

__Ótimo — disse ela. — Muito bem, você deve continuar atento, Gordon. Agora eu preciso de ir.

Tânia começou a se levantar e ele agarrou-lhe o pulso.

— Noite passada, por volta das onze horas, eu a vi voltando para casa com um homem.

— Você estava vigiando meu apartamento?

— Eu sempre passo por ali no meu caminho para casa.

Sua raiva era genuína, mas ela a conteve.

— Então, se você estava ali, saberá que o cavalheiro em questão, um colega da embaixada, não entrou. Ele simplesmente me acompanhou até em casa. Agora deixe-me ir, Gordon.

Ela se desvencilhou dele e saiu, e Brown, completamente deprimido, foi até o bar e pediu mais uma cerveja.

 

Quando ela bateu na porta do quarto de Dillon, pouco depois das duas ele a abriu de imediato. Tânia entrou, passando rapidamente por ele.

— Você parece satisfeita consigo mesma.

— Tenho motivos.

Dillon acendeu um cigarro.

— Vá em frente, conte-me.

— Antes de tudo, conversei com meu informante do Grupo Quatro. Ferguson acaba de falar com o primeiro-ministro. Eles acreditam que você já esteja aqui e todas as divisões dos serviços de inteligência já foram alertadas. Brosnan e a tal mulher, a Tanner, estão vindo de Paris. Brosnan ofereceu cooperação total.

— E Ferguson?

— O primeiro-ministro determinou que não haveria publicidade na imprensa. Apenas disse a Ferguson que fizesse o possível e o impossível para pegar você.

— É muito bom ser querido.

— Em segundo lugar: — Ela abriu a bolsa e tirou de lá um livrete semelhante a um passaporte. — Uma licença de piloto emitida pela Autoridade de Aviação Civil para um certo Peter Hilton.

— Isso é maravilhoso—disse Dillon, apanhando a licença da mão dela.

— É, o homem que faz esse tipo de coisa se esmerou dessa vez. Eu disse a ele as suas necessidades e ele decidiu que lhe daria uma licença comercial. Aparentemente, você também é instrutor.

Dillon checou a fotografia e virou rapidamente as páginas.

— Excelente. Não poderia ser melhor.

— E isso não é tudo — declarou Tânia. — Você não queria saber o paradeiro de Daniel Maurice Fahy?

— Você o encontrou?

— Exato, mas ele não está mais morando em Londres. Eu trouxe um mapa rodoviário para você. — Ela desdobrou a carta. — Ele tem uma fazenda aqui, um lugar chamado Cadge End, em Sussex. Fica a cerca de quarenta ou cinqüenta quilômetros de Londres. Você toma a estrada que vai até Horsham, passando por Dorking, e então segue para o campo.

— Como é que você sabe disso tudo?

— O agente a quem incumbi dessa missão conseguiu encontrá-lo no fim da tarde de ontem. Quando parou num bar da vila a fim de fazer algumas perguntas, depois de haver examinado o local, já era muito tarde e ele só regressou a Londres depois da meia-noite. Recebi o relatório hoje de manhã.

— E então?

— Ele diz que a fazenda é bastante afastada da estrada, próxima a um rio chamado Arun. Fica numa área pantanosa. O nome da vila é Doxley e a fazenda fica a um quilômetro e meio ao sul desta. Há uma placa indicando.

— Esse seu homem é bastante eficiente.

— Bem, ele é jovem e está tentando mostrar serviço. Pelo que ouviu no bar da vila, Fahy tem um pequeno rebanho de ovelhas e dedica-se amadoristicamente a maquinarias agrícolas.

Dillon assentiu.

— Isso faz sentido.

— Um detalhe que pode ser uma surpresa para você: há uma garota morando com ele, uma sobrinha-neta ao que parece. Meu homem a viu.

— E o que foi que ele disse?

— Que ela veio até o bar buscar algumas garrafas de cerveja. Tem cerca de vinte anos e eles a chamam de Angel, Angel Fahy. Ele disse que ela parece uma camponesa.

— Maravilha. — Ele se pôs de pé e apanhou a jaqueta. — Eu preciso ir até lá imediatamente. Você tem um carro?

— Sim, mas é um Mini. É mais fácil estacioná-lo em Londres.

— Não há problema. Como você disse, são cinqüenta quilômetros no máximo. Você pode me emprestar o carro, então?

— É claro. Está numa garagem no fim da minha rua. Vou até lá com você.

Ele vestiu a capa de chuva, abriu a valise, tirou de lá a Walther, encaixando um pente de balas, e a enfiou no bolso esquerdo. O silenciador ele guardou no bolso direito.

— Para qualquer eventualidade — disse ele e saíram.

O automóvel era de fato um Mini Cooper, o que significava bom rendimento; era preto com frisos dourados.

— Excelente — observou Dillon. — Irei agora mesmo.

Acomodou-se atrás do volante e ela perguntou:

— O que há de tão importante em relação a esse Fahy?

— Ele é um engenheiro capaz de fazer qualquer coisa com as mãos, um fabricante de bombas genial e que há anos tem um disfarce muito seguro. Ele me ajudou quando da minha última operação aqui, em 81, ajudou-me bastante. O fato de ele ser primo em segundo grau do meu pai também ajuda bastante. Eu o conheci aqui quando ainda era garoto. Por falar nisso, você ainda não mencionou o dinheiro que Aroun ficou de providenciar.      

— Vou apanhá-lo hoje às seis. Tudo muito teatral. Um Mercede pára na esquina da Brancaster Street com a Town Drive, que não fica muito longe daqui. Eu digo: “Está frio, mesmo para época do ano”, e o motorista me entrega uma valise.

— Que Deus nos ajude. Ele deve andar vendo televisão demais — disse Dillon. — Manterei contato. — E deu a partida.

 

Ferguson fizera uma parada no escritório do Ministério da Defesa após deixar a Downing Street, para atualizar o arquivo sobre o caso Dillon e despachar outros assuntos gerais. Como sempre, ele preferia trabalhar em seu apartamento e, portanto, retornou a Cavendish Square, pediu a Kim que lhe preparasse um almoço tardio de ovos mexidos e bacon, e estava passando os olhos pelo Times, quando a campainha soou. Um momento depois, Kim levava até ele Mary Tanner e Brosnan.

— Meu querido Martin. — Ferguson pôs-se de pé, apertando-lhe a mão. — Então aqui estamos nós mais uma vez.

— É o que parece — retrucou Brosnan.

— Correu tudo bem no funeral? — indagou Ferguson.

— Tão bem quanto pode transcorrer um funeral — respondeu Brosnan asperamente e acendeu um cigarro. — Então, em que ponto estamos? O que há de novo?

— Encontrei-me outra vez com o primeiro-ministro. Não haverá nenhuma publicidade na imprensa.

— Concordo com ele nesse aspecto — assentiu Brosnan. Não teria qualquer utilidade.

— Todas as agências de inteligência importantes, mais a Divisão Especial, naturalmente, foram notificadas. Farão o que puderem.

— O que não é muita coisa — retrucou Brosnan.

— Uma outra questão — interveio Mary. — Sabemos que ele ameaçou o primeiro-ministro, mas não temos a menor pis do que ele pretende ou quando fará qualquer coisa. Pelo que sabemos, ele pode estar preparando algo para esta noite mesmo.

Brosnan abanou a cabeça.

— Não, na minha opinião não vai ser tão rápido assim. Essas coisas levam tempo. Eu sei disso.

— Então, por onde você vai começar?—perguntou Ferguson.

— Com meu velho amigo Harry Flood. Quando Dillon esteve aqui em 1981, ele provavelmente usou contatos no submundo para supri-lo do que precisava. Talvez Harry possa descobrir alguma coisa.

— E se não puder?

— Então pedirei emprestado esse seu jato outra vez e irei até Dublin trocar algumas palavras com Liam Devlin.

— Ah, sim — lembrou-se Ferguson —, quem melhor do que ele?

— Quando Dillon veio a Londres em 1981, ele deveria estar sob as ordens de alguém. Se Devlin conseguisse descobrir quem é essa pessoa, teríamos uma pista e tanto.

— Parece-me um caminho lógico. Então você irá ver Flood hoje à noite?

— Creio que sim.

— Onde você vai se hospedar?

— No meu apartamento — declarou Mary.

— Na Lowndes Square? — As sobrancelhas de Ferguson arquearam-se. — Mesmo?

— Vamos lá, general, não seja antiquado. Lembre-se de que tenho quatro quartos em meu apartamento, cada um com seu próprio banheiro, e o professor Brosnan pode ficar com um que tenha uma tranca por dentro.

Brosnan soltou uma gargalhada.

— Venha, vamos embora. Vejo o senhor mais tarde, general.

Tomaram emprestado o carro de Ferguson. Ela fechou o vidro divisório que os separava do motorista e disse:

— Você não acha que é melhor ligar primeiro para o seu amigo, avisá-lo de que deseja vê-lo?

— Suponho que sim, mas preciso verificar o número do telefone.

Ela tirou um caderninho da bolsa.

— Eu o tenho aqui. Não consta do catálogo telefônico está. Cable Wharf. Fica em Wapping.

— Muito eficiente.

— E aqui está o telefone.

Ela estendeu-lhe o telefone do carro.

— Você gosta mesmo de estar no comando — disse ele discando o número.

Foi Mordecai Fletcher quem atendeu.

— Harry Flood, por favor — pediu Brosnan.

— Quem deseja falar com ele?

— Martin Brosnan.

— O professor? Aqui é Mordecai. Não temos notícias suas há quanto tempo... três ou quatro anos? Santo Deus, ele vai ficar muito contente.

Um momento depois uma voz perguntava:

— Martin?

— Harry?

— Eu não acredito. Você voltou para me assombrar, seu patife.

 

Para Dillon, no Mini Cooper, a curta viagem de Londres transcorrera satisfatoriamente. Embora houvesse uma fina camada de neve sobre os campos e arbustos, as estradas estavam limpas e sem muito trânsito. Em meia hora, ele atravessava Dorking, seguindo na direção de Horsham e parando num posto de gasolina a cerca de oito quilômetros da cidade.

Quando o frentista recolocava a tampa do tanque de gasolina, Dillon abriu o mapa rodoviário.

— Você conhece um lugar chamado Doxley?

— A uns oitocentos metros mais acima na estrada, à sua direita, há uma placa indicando Grimethorpe. Trata-se de um campo de aviação, mas antes de chegar lá o senhor verá uma placa indicando Doxley.

— Então é perto daqui?

— Uns cinco quilômetros, talvez, mas parece mais o fim do mundo. — O frentista riu, satisfeito, quando apanhou o dinheiro que Dillon lhe dera. — Não há muita coisa por lá, senhor.

— Vou dar uma olhada. Um amigo me disse que lá deve haver algum chalé para fins de semana.

— Se há, eu nunca ouvi falar.

Dillon retomou seu trajeto, avistando dentro de poucos minutos a placa que indicava Grimethorpe. Seguiu a estrada estreita e chegou à indicação de Doxley, como o frentista dissera. A estrada ficou ainda mais estreita, com barrancos altos bloqueando a visão, até que chegou ao topo de uma pequena colina, de onde se descortinava uma paisagem desoladora, salpicada pela neve. Havia pequenos bosques ocasionais, campos esparsos pontilhados de arbustos e então uma área pantanosa que se estendia até um rio que deveria ser o Arun. Ali perto, talvez a menos de dois quilômetro, Dillon divisou algumas casas, cerca de doze a quinze, cobertas de telhas romanas vermelhas, e uma pequena igreja. Tratava-se obviamente de Doxley. Começou a descer a colina até o vale dos bosques e, ali chegando, avistou uma porteira aberta e uma placa de madeira caindo aos pedaços, que dizia: Fazenda Cadge End.

A trilha seguia pelo bosque e o levou quase que imediatamente até o conjunto de construções da fazenda. Havia algumas galinhas correndo aqui e ali, uma casa e dois galpões ligados a ela, de forma que o conjunto se fechava em torno de um pátio. Tudo parecia terrivelmente abandonado, como se nada houvesse sido feito ali em anos, mas, como Dillon sabia, muitas pessoas do campo preferiam viver daquela forma. Ele saiu do Mini e se dirigiu à porta da frente da casa, bateu e tentou abri-la. Estava trancada. Virou-se e caminhou até o primeiro galpão. As velhas portas de madeira estavam abertas. Havia lá dentro um furgão Morris e um automóvel Ford sem rodas, apoiado sobre tijolos, e máquinas agrícolas por todos os lados.

Dillon apanhou no bolso um cigarro e, quando o acendia com as mãos em concha, uma voz soou atrás dele:

— Quem é você? O que quer aqui?

Ele voltou-se e se deparou com uma garota parada no umbral, vestida com calças largas enfiadas em um par de botas de borracha, um pesado suéter de gola alta sob um velho impermeável e uma boina de tricô que parecia um gorro escocês do tipo que se encontra em vilas de pescadores na costa oeste da Irlanda. A moça segurava uma espingarda de cano duplo ameaçadoramente e, quando Dillon deu um passo na sua direção, ela engatilhou a arma.

— Fique parado aí.—O sotaque irlandês era muito acentuado.

— Você seria aquela a quem chamam Angel Fahy ?—perguntou ele.

— Angela, se é que lhe interessa.

O agente de Tânia tinha razão. Ela parecia de fato uma camponesinha. Os malares amplos, o nariz arrebitado e uma certa dureza no olhar.

— Você teria mesmo coragem de atirar com essa coisa?

— Se fosse preciso.

— É uma pena, pois a única coisa que quero é falar com o primo em segundo grau de meu pai, Danny Fahy.

Ela franziu o cenho.

— E quem é o senhor?

— Meu nome é Dillon, Sean Dillon.

Ela riu asperamente.

— Essa é uma mentira deslavada. O senhor nem mesmo é irlandês, e Sean Dillon está morto, todo mundo sabe disso.

Dillon pôs-se a falar com o forte sotaque, próprio de Belfast:

— Plagiando as palavras de um grande homem, minha querida menina, tudo que eu posso dizer é que as notícias de minha morte foram muitíssimo exageradas.

As mãos da moça afrouxaram sobre a arma.

— Santa Maria! Você é mesmo Sean Dillon?

— Nunca deixei de sê-lo. As aparências podem ser decepcionantes.

— Oh, meu Deus ! — exclamou ela. — Tio Danny fala sobre você o tempo todo, mas eu pensei que não passassem de histórias, que não houvesse nada de verdade nelas. E aqui está você.

— Onde está ele?

— Ele fez conserto num carro para o dono do bar e o levou há cerca de uma hora. Disse que voltaria caminhando, mas ainda vai ficar bebendo por lá um pouco, tenho certeza.

— A essa hora? O bar não fica fechado até a noite?

— Talvez seja o que diz a lei, Sr. Dillon, mas não em Doxley. Eles nunca fecham.

— Pois então vamos até lá buscá-lo.

Ela deixou a espingarda sobre um banco e sentou-se no Mini ao lado dele. Enquanto se afastavam, ele perguntou:

— Então, qual é a sua história?

— Cresci numa fazenda em Galway. Meu pai era Michael, sobrinho de Danny. Ele morreu há seis anos, quando eu tinha quatorze. Um ano depois, minha mãe se casou outra vez.

— Deixe que eu adivinhe — pediu Dillon. — Você não gostava do seu padrasto e ele não gostava de você, certo?

— Mais ou menos isso. Tio Danny foi até lá para o enterro do meu pai; foi quando eu o conheci e gostei dele. Quando as coisas ficaram muito difíceis por lá, saí de casa e vim para cá. Ele foi maravilhoso comigo. Escreveu para minha mãe e ela concordou que eu ficasse. Ficou feliz em se livrar de mim.

Não havia qualquer tom de autopiedade em sua voz e Dillon simpatizou-se com ela.

— Dizem que todas as coisas têm seu lado bom.

— Estou aqui pensando numa coisa — disse ela. — Se seu pai era primo em segundo grau de Danny, que é meu tio-avô, então nós dois somos parentes, não é mesmo?

Dillon riu.

— Podemos dizer que sim.

Ela parecia extasiada quando se reclinou no banco.

— Eu, Angel Fahy, parente do maior terrorista que o IRA Provisório já teve.

— Bem, acho que, quanto a isso, há algumas pessoas que discordariam — disse ele no momento em que chegavam à vila e paravam diante do bar.

O lugarejo era pequeno e desolado, não mais que quinze chalés bastante arruinados e uma igreja normanda com uma torre e um cemitério cuja grama estava muito alta. O bar chamava-se Green Man e mesmo Dillon precisava abaixar-se para passar pela porta. O teto era muito baixo e tinha o vigamento exposto. O chão fora construído com pesados lajedos de pedra, desgastados com os anos, e as paredes eram caiadas. O homem detrás do balcão, em mangas de camisa, tinha pelo menos oitenta anos.

Ele ergueu os olhos e Angel perguntou:

— Ele está aqui, Sr. Dalton?

— Perto do fogo, bebendo uma cerveja — informou o velho.

O fogo ardia numa ampla lareira de pedra e havia uma mesa e o banco de madeira diante dela. Danny Fahy encontrava-se ali lendo o jornal, um copo à sua frente. Tinha 65 anos e uma barba grisalha e desleixada; usava uma boina de lã e um velho terno de tweed escocês.

— Trouxe alguém que deseja vê-lo, tio Danny — anunciou Angel.

Ele levantou os olhos para ela, voltando-os a seguir para Dillon, o aturdimento estampado em seu rosto.

— E o que posso fazer pelo senhor?

Dillon tirou os óculos.

— Que Deus abençoe todos aqui! — disse no sotaque de Belfast. — E principalmente você, seu velho canalha.

Fahy empalideceu devido ao choque intenso.

— Que Deus nos perdoe! É você, Sean? E eu pensando que você já tivesse dado adeus a esse mundo há muito tempo.

— Bem, ainda não dei e aqui estou eu. — Dillon tirou uma nota de cinco libras da carteira e a entregou a Angel.—Duas doses de uísque, irlandês de preferência.

Ela dirigiu-se ao balcão e Dillon voltou-se para Danny Fahy, que tinha lágrimas nos olhos, e o abraçou.

— Santo Deus, Sean, não tenho palavras para dizer o quanto é bom revê-lo.

 

A sala de estar da fazenda estava bagunçada e atravancada de móveis muito velhos. Dillon sentou-se num sofá, enquanto Fahy acendia a lareira. Angel preparava uma refeição na cozinha, que se comunicava com a sala de estar, e Dillon podia vê-la movimentando-se.

— E como tem sido a sua vida, Sean? — Fahy encheu um cachimbo e o acendeu. — Faz dez anos que você armou a maior confusão em Londres. Por Deus, garoto, você deu aos ingleses um trabalho dos diabos.

— Eu não poderia ter feito nada sem você, Danny.

— Bons tempos aqueles. E o que aconteceu depois?

— Europa, Oriente Médio. Continuei em movimento. Trabalhei muito para a OLP. Aprendi até mesmo a pilotar aviões.

— Verdade?

Angel aproximou-se e pousou pratos de ovos e bacon sobre a mesa.

— Comam enquanto está quente. — Ela voltou com uma bandeja contendo um bule de chá, leite, três canecas e uma travessa cheia de pão com manteiga. — Lamento que não haja nada melhor, mas não esperávamos visita.

— Para mim parece ótimo — assegurou-lhe Dillon, pondo-se a comer com apetite.

— Então aqui está você, Sean, vestido como um perfeito cavalheiro inglês. — Fahy voltou-se para Angel. — Já lhe contei que ator sensacional é este homem? Nunca conseguiram pôr as mãos nele em todos esses anos, nem uma única vez.

Ela assentiu, animada, sorrindo para Dillon, e o entusiasmo provocara uma mudança em sua personalidade.

— O senhor está aqui a trabalho agora, Sr. Dillon? Para o IRA, eu quero dizer.

— É mais fácil fazer frio no inferno do que eu me arriscar por aquele bando de velhas lavadeiras — declarou Dillon.

— Mas você não está trabalhando em alguma coisa, Sean?— indagou Fahy. — Sei que está. Vamos lá, conte pra gente.

Dillon acendeu um cigarro.

— E se eu lhe disser que estou trabalhando para os árabes, Danny, para Saddam Hussein em pessoa?

— Santo Deus, Sean! E por que não? O que ele quer que você faça?

— Ele quer algo agora, um golpe. Algo grande. A América está muito longe. Então restam os ingleses.

— O que poderia ser melhor? — Os olhos de Fahy cintilavam.

— Margaret Thatcher esteve na França no outro dia para um encontro com Mitterrand. Eu tinha planos para ela no trajeto para o aeroporto. Tudo perfeitamente planejado, uma calma estrada no campo, e então alguém em quem eu confiava me deixou na mão.

— E não é isso que sempre acontece? — observou Fahy. — Portanto, você está procurando um outro alvo? Quem, Sean?

— Estava pensando em John Major.

— O novo primeiro-ministro? — perguntou Angel com espanto — O Senhor não se atreveria.

— E por que não, Angel? Os rapazes não quase conseguiram apanhar todo o maldito governo inglês em Brighton? — ponderou Danny Fahy. — Vamos, Sean, conte-nos qual é o seu plano.

— Ainda não tenho nenhum, Danny. Esse é o problema. Você não acreditaria no que pagariam por esse trabalho.

— E esse motivo é mais do que suficiente para fazer tudo direitinho. Então você veio até o tio Danny procurar ajuda? — Fahy foi até um armário e voltou com uma garrafa de Bushmills e dois copos, enchendo-os. — Você não tem absolutamente nenhuma idéia?

— Por enquanto não, Danny. Você ainda trabalha para o movimento?

— Mantenha-se num disfarce seguro, foi a ordem que recebi de Belfast há tantos anos que já esqueci quantos. Desde então, nem uma só palavra, e eu fiquei entediado até a alma e me mudei para cá. O lugar combina comigo. Gosto da região, gosto das pessoas. Cada um vive no seu canto. Estabeleci um negócio razoável consertando maquinaria agrícola e crio algumas ovelhas. Estamos felizes aqui, eu e Angel.

— Mas, no entanto, entediado até a alma. Por falar nisso, lembra-se de Martin Brosnan?

— Lembro sim. Vocês não eram muito bons amigos.

— Tive um probleminha com ele em Paris recentemente. Com certeza ele aparecerá em Londres à minha procura, trabalhando para o serviço de informações inglês.

— Patife! — Fahy franziu o cenho, tornando a encher o cachimbo. — Eu andei ouvindo umas histórias fantásticas de como Brosnan entrou no Número Dez da Downing Street, disfarçado de garçom, há alguns anos e não fez nada lá dentro.

— Também ouvi essas histórias. Um rasgo de fantasia. Atualmente, ninguém entraria lá como garçom ou qualquer outra coisa. Sabia que eles fecharam a rua? O local é uma fortaleza. Não há jeito de entrar lá, Danny.

— Sempre há um jeito, Sean. Um dia desses eu li numa revista que um grupo da Resistência Francesa, durante a Segunda Guerra Mundial, ficou preso em um quartel da Gestapo. Suas celas eram no térreo e as salas da Gestapo ficavam no primeiro andar. A RAF mandou um companheiro num Mosquito e, a cinqüenta pés de altitude, ele lançou uma bomba que entrou por uma janela do primeiro andar matando todos os malditos membros da Gestapo que lá estavam e os companheiros no térreo puderam fugir.

— Que diabos você está tentando me dizer? — perguntou Dillon.

— Que eu acredito plenamente no poder da bomba e na ciência da balística. Você pode fazer uma bomba ir a qualquer lugar se souber o que está fazendo.

— O que quer dizer com isso? — impacientou-se Dillon.

— Vamos, mostre a ele, tio Danny — interveio Angel.

— Mostrar o quê? — quis saber Dillon.

Danny Fahy pôs-se de pé, acendendo de novo o cachimbo.

— Venha comigo, então. — Deu meia-volta e encaminhou-se para a porta.

 

Fahy abriu a porta do segundo galpão e seguiu na frente dos dois. O lugar era imenso, com vigas de carvalho erguendo-se até o telhado alcantilado. Havia um sótão cheio de feno, para o qual se subia por uma escada. Vários itens de maquinaria agrícola, inclu­sive um trator, espalhavam-se pelo galpão e viam-se ali também um Land Rover relativamente novo e uma velha motocicleta BSA, de quinhentas cilindradas, ainda em boas condições, apoiada no descanso.

— Que beleza! — exclamou Dillon com genuína admiração.

— Eu a comprei de segunda mão no ano passado. Pensei em reformá-la para vender, mas agora que terminei o trabalho não consigo mais me desfazer dela. É tão boa quanto uma BMW.

Havia mais um veículo nas sombras no fundo do galpão; Fahy acendeu uma lâmpada, revelando um furgão Ford Transit branco.

— E então?—interrogou Dillon. — O que há de tão especial nesse furgão?

— Espere, Sr. Dillon — respondeu-lhe Angel. — Trata-se de algo realmente fantástico.

— Não é o que aparenta — afirmou Fahy.

Ele tinha uma expressão de excitação, uma espécie de orgulho tampado no rosto, quando abriu a porta de correr. Dentro do veículo havia um conjunto de tubos de metal, três ao todo, apara­fusados ao piso, apontando para um canto do teto.

— Morteiros, Sean, iguais aos que os rapazes vêm usando no Ulster.

— Você está querendo dizer que essa coisa aí funciona? — perguntou Dillon.

— Não, porque não tenho explosivos. Mas pode funcionar, é tudo que posso dizer.

— Explique-se.

— Soldei uma plataforma de aço no piso, a fim de agüentar o coice do disparo, e também soldei os tubos um ao outro. Isso aí é ferro fundido comum que se encontra em qualquer lugar. Os temporizadores elétricos são extremamente simples. Coisa que você pode comprar em qualquer loja de equipamento eletrônico.

— E como é que isso funciona?

— Uma vez que o sistema seja acionado, você tem um minuto para sair do furgão e correr para bem longe. O teto está cortado. Isso aí que você vê é apenas polietileno esticado cobrindo o buraco. Você pode ver que eu o pintei da mesma cor. O buraco serve para propiciar aos morteiros uma saída livre. Criei até mesmo um aparelhinho extra, ligado ao temporizador, que fará com que o furgão se autodestrua depois de lançar os morteiros.

— E onde é que ficariam os morteiros?

— Bem aqui. — Fahy dirigiu-se a uma bancada de trabalho. — Cilindros de oxigênio comuns. — Havia vários deles empilhados, as placas do fundo removidas.

— E do que você precisa para prepará-los? Semtex? — indagou Dillon, citando o explosivo tcheco, popular entre os terroristas de todo o mundo.

— Eu diria que cinco quilos e meio em cada um seria o suficiente, mas não é fácil comprar isso por aqui.

Dillon acendeu um cigarro e deu uma volta em torno do furgão, a expressão sombria.

— Você é um menino mau, Danny. O movimento lhe disse para manter um disfarce seguro.

— Como eu já lhe disse, há quantos anos foi isso? — contrapôs Fahy. — Qualquer um ficaria louco.

— Então você encontrou algo com que se ocupar?

— Foi fácil, Sean. Você sabe que eu trabalhei com engenharia elétrica durante muitos anos.

Dillon ficou ali de pé, olhando para o equipamento.

— O que o senhor acha? — perguntou Angel.

— Acho que ele fez um bom trabalho.

— Tão bom quanto qualquer coisa que eles já fizeram no Ulster — completou Fahy.

— Talvez, mas todas as vezes em que foram usados, o ponto forte nunca foi a precisão.

— Funcionaram perfeitamente naquele ataque ao posto policial de Newry há seis anos. Nove tiras morreram.

— E o que me diz de todas as outras vezes em que não conseguiram atingir nem mesmo a porta de um celeiro? Houve uma ocasião em que alguém chegou mesmo a explodir junto com uma dessas coisas em Portadown. A probabilidade de sucesso é um tanto incerta.

— Não do modo como eu faria. Posso assinalar o alvo em um mapa de escala ampliada, fazer o reconhecimento da área a pé de antemão, posicionar o furgão no ponto certo e isso é tudo. Veja bem, estou estudando se algum tipo de barbatana soldada aos cilindros de oxigênio não ajudaria a estabilizá-los na sua rota. Uma bela curva ampla, a queda, e então tudo vai pelos ares. Nem toda a segurança do mundo conseguiria evitar. Digo, para que serve portões, se você pode passar por cima deles?

— Você está falando da Downing Street? — perguntou Dillon.

— E por que não?

— Eles se reúnem às dez todas as manhãs na sala do Gabinete. É o que chamam de Gabinete de Guerra. Você pegaria não só o primeiro-ministro, mas virtualmente todo o governo.

— Santa Mãe de Deus! Esse seria o golpe máximo.

— Canções seriam feitas em sua homenagem, Danny — disse Dillon. — Nos próximos cinqüenta anos, Danny Fahy seria cantado nos bares de toda a Irlanda.

Fahy bateu com o punho fechado na palma da outra mão.

— Tudo conversa fiada, Sean. Não se pode fazer nada sem o Semtex e, como eu já disse, é impossível consegui-lo por aqui.

— Não tenha tanta certeza assim, Danny — afirmou Dillon. — Deve haver uma fonte. Agora vamos entrar, beber um Bushmills e pôr as idéias em ordem.

 

Fahy abriu um mapa de Londres em escala ampliada sobre a mesa e pôs-se a examiná-lo com uma lente de aumento.

— Este seria o local — disse ele. — Horse Guards Avenue, subindo a partir do aterro Victoria, ao lado do Ministério da Defesa.

— Certo — assentiu Dillon.

— Se deixarmos o Ford na esquina com a Whitehall, então, contanto que eu tenha dado uma olhada anteriormente a fim de determinar a direção, acredito que os morteiros passariam por sobre esses tetos, traçando uma grande curva, e cairiam diretamente sobre o Número Dez da Downing Street! — Ele pousou o lápis ao lado da régua. — Ouça, eu gostaria de dar uma olhada no local.

— É o que você irá fazer — assegurou-lhe Dillon.

— Será que isso vai dar certo, Sr. Dillon? — perguntou Angel.

— Ah, vai — afirmou ele. — Eu acredito mesmo nisso. Dez horas da manhã, todo o maldito Gabinete de Guerra reunido. — Ele começou a rir. — É maravilhoso, Danny, maravilhoso. — Segurou o braço do outro homem. — Você vai entrar nessa comigo?

— É claro que sim.

— Ótimo — declarou Dillon. — É muito, muito dinheiro, Danny. Vou cuidar da sua velhice. Luxo total. Espanha, Grécia, qualquer lugar que você queira. — Fahy enrolou o mapa e Dillon decidiu: — Vou dormir aqui hoje à noite. Iremos até Londres amanhã para dar uma olhada. — Sorriu e acendeu mais um — Está tudo indo bem, Danny. Muito bem. Agora me fale esse campo de aviação que fica aqui perto, em Grimethorpe

— Um lugar completamente largado. Fica a apenas quilômetros daqui. O que você quereria em Grimethorpe?

— Eu já lhe disse que aprendi a pilotar aviões no Oriem Médio. É uma boa maneira de sair rápido de algum lugar. Agora diga-me qual é a situação desse campo em Grimethorpe.

— A sua construção remonta a um passado longínquo. No anos trinta, era usado como clube de aviação. Então, a RAF utilizou-o como posto de abastecimento durante a Batalha da Inglaterra e construiu três hangares. Alguém tentou reativá-lo como clube de aviação há alguns anos. Existe lá uma pista alcatroada. Bem, seja como for, o projeto fracassou. Há cerca de três anos, surgiu por lá um sujeito chamado Bill Grant e ele mantém ali dois aviões. É tudo que sei. Sua firma tem o nome de Grant Táxis Aéreos. Ouvi recentemente que ele se encontra em apuros. Os dois mecânicos se foram. Os negócios vão mal. — Fahy sorriu. — Estamos numa recessão, Sean, e ela afeta até mesmo os ricos.

— O tal Grant mora no local?

— Mora—respondeu Angel. — Ele tinha uma namorada por lá, mas ela também foi embora.

— Acho que gostaria de ir vê-lo — declarou Dillon. — Talvez você possa ir até lá comigo, Angel.

— É claro.

— ótimo, mas primeiro preciso dar um telefonema.

Ele ligou para o apartamento de Tânia Novikova. Ela atendeu imediatamente.

— Sou eu — disse ele.

— Correu tudo bem?                        

— Você não pode imaginar. Amanhã eu lhe conto. Apanhou o dinheiro?

— Sim, sem problemas.

— Ótimo. Estarei no hotel ao meio-dia. Vou passar a noite aqui. Vejo você amanhã. — E desligou.

 

Brosnan e Mary Tanner subiram no elevador de carga, acompanhados por Charlie Salter, e encontraram Mordecai à sua espera. Ele sacudiu vigorosamente a mão de Brosnan para cima e para baixo.

— Como é bom revê-lo, professor. Não posso expressar o que sinto. Harry está ansioso para encontrá-lo.

— Esta é Mary Tanner — apresentou Brosnan. — É bom você comportar, pois ela é capitão do Exército.

— Bem, é um prazer, senhorita. — Mordecai apertou-lhe a mão. — Servi na Guarda Real de Granadeiros, mas não consegui passar de cabo.

Ele os levou até a sala de estar. Harry Flood, que se encontrava sentado à mesa, examinando algumas contas, ergueu os olhos e pôs-se de pé num salto.

— Martin. — Contornou rapidamente a mesa e abraçou Brosnan, rindo de puro deleite.

— Mary Tanner—apresentou mais uma vez Brosnan. — Ela é do Exército, Harry, do alto escalão. Portanto, muito cuidado. Estou a serviço do general-de-brigada Charles Ferguson, do serviço de informações britânico, e ela é sua assistente.

— Sendo assim, vou me comportar. — Flood apertou-lhe a mão. —Agora venham até aqui tomar um drinque, enquanto você me conta essa história toda, Martin.

 

Sentaram-se no conjunto de sofás no canto da sala e Brosnan narrou todos os fatos, nos mínimos detalhes. Mordecai ouvia de pé, encostado à parede, sem nenhuma expressão no rosto. Quando Brosnan chegou ao fim, Flood indagou:

— Então, o que você quer de mim, Martin?

— Ele sempre trabalha com o submundo, Harry, é aí que consegue tudo de que precisa. Não só ajuda física, como também explosivos, armamentos. Irá fazer o mesmo dessa vez, eu sei que vai.

— Portanto, o que você deseja saber é a quem ele irá recorrer?

— Exatamente.

Flood olhou para Mordecai.

— O que você acha?

— Não sei, Harry. Quero dizer, há inúmeros negociantes de armas legais, mas o que você procura é alguém que esteja disposto a fornecer para o IRA.

— Alguma idéia? — perguntou Flood.

— Para ser sincero, não, chefe. A maioria dos verdadeiros vilões do East End adoram Maggie Thatcher e usam cuecas com a bandeira do Reino Unido. Eles não teriam muita simpatia por velhacos irlandeses lançando bombas sobre o Harrods. Naturalmente que poderíamos fazer algumas perguntas.

— Então faça isso—ordenou Flood.—Espalhe a notícia, mas com discrição.

Mordecai saiu e Harry Flood apanhou a garrafa de champanhe

— Você continua não bebendo? — perguntou Brosnan.

— Continuo, meu velho, mas não há nenhum motivo para vocês não beberem. Você pode me pôr a par dos acontecimentos dos últimos anos e a seguir iremos juntos ao Embassy, um dos meus clubes mais respeitáveis, para comer alguma coisa.

 

Por volta daquela mesma hora, Sean Dillon e Angel Fahy seguiam pela escura estrada rural que levava de Cadge End a Grimethorpe. As luzes do carro revelavam uma fina camada de neve e gelo sobre as sebes ao lado da estrada.

— É muito bonito, não acha? — perguntou a moça.

— Creio que sim.

— Gosto daqui. Da região e de tudo mais. Gosto do tio Danny também. Ele tem sido muito bom para mim.

— É, faz sentido você gostar daqui, já que foi criada no campo, lá em Galway.

— Era diferente. A terra lá era pobre. Era muito difícil ganhar o sustento e esse sofrimento se mostrava nas pessoas; na minha mãe, por exemplo. Era como se tivessem ido à guerra, perdido e não houvesse mais nada para esperar do futuro.

— Você tem habilidade com as palavras, garota — observou Dillon.

— Minha professora de inglês costumava dizer isso. Ela me falou que, se me esforçasse e estudasse, poderia fazer qualquer coisa.

— Bem, isso deve ter lhe servido de consolo.

— Não me ajudou em nada. Meu padrasto só via em mim o trabalho braçal gratuito. É por isso que vim para cá.

O faróis iluminaram uma placa que dizia Campo de Aviação Grimethorpe, a tinta já descascando. Dillon entrou numa estreita estrada alcatroada, cheia de buracos. Alguns minutos mais tarde, chegavam ao campo de aviação. Havia ali três hangares, uma velha torr de comando, alguns abrigos do tipo militar, a luz filtrando-se pelas janelas de um deles. Um Jeep estava estacionado ali defronte e Dillon parou ao lado dele. Quando saltavam do carro, a porta do abrigo se abriu e um homem ficou parado na soleira.

— Quem é que está aí?

— Sou eu, Sr. Grant, Angel Fahy. Trouxe uma pessoa para falar com o senhor.

Grant, como a maioria dos pilotos, era pequeno e magro. Aparentava quarenta e poucos anos, vestia jeans e uma velha jaqueta do tipo usado pela tripulação de bordo da Força Aérea americana, durante a Segunda Guerra Mundial.

— É melhor vocês entrarem, então.

O interior do abrigo estava agradável, aquecido por um fogão a carvão, cuja chaminé projetava-se do telhado. Era óbvio que Grant usava aquele recinto como sala de estar. Havia ali uma mesa com os restos de uma refeição, uma velha espreguiçadeira perto do fogão, diante de um aparelho de televisão que ficava no canto. Sob as janelas, na parede oposta, via-se uma comprida mesa com o tampo inclinado, mostrando alguns mapas.

— Este é um amigo de meu tio — apresentou Angel.

Hilton — declarou Dillon. — Peter Hilton.

Grant estendeu a mão, parecendo desconfiado.

— Bill Grant. Eu não lhe devo dinheiro, devo?

— Não que eu saiba. — Dillon estava de volta ao seu papel de garoto bem-educado.

— Bem, isso faz uma grande diferença. Em que posso ajudá-lo?

— Desejo alugar um avião nos próximos dias. Queria checar se o senhor teria alguma coisa antes de tentar em outro lugar.

— Bem, depende.

— De quê? O senhor tem um avião, eu suponho.

— Tenho dois. O único problema é por quanto tempo o banco me permitirá conservá-los. Quer dar uma olhada?                  

— Por que não?

Deixaram o abrigo, cruzaram o pátio até o último hangar e Grant abriu uma pequena porta para que pudessem entrar. Ele deu um passo para o lado, encontrando o interruptor, e as luzes se acenderam. Havia ali dois aviões, lado a lado, ambos bimotores.

Dillon dirigiu-se ao mais próximo.

— Conheço esta belezinha, um Cessna Conquest. E o outro, o que é?

— Um Navajo Chieftain.

— Se as coisas estão tão difíceis como o senhor afirma, o que me diz do combustível?

— Mantenho meus aviões bem alimentados, Sr. Hilton, sempre de tanques cheios. Estou nisso há muito tempo para que aja de outra forma. Nunca se sabe quando vai aparecer um trabalho. — Ele sorriu, pesaroso. — Veja bem, serei franco com o senhor. Com essa recessão, não há muitas pessoas querendo alugar um avião hoje em dia. Aonde gostaria que eu o levasse?

— Na verdade, estava pensando em fazer um vôo solo um dia desses — declarou Dillon. — Não estou bem certo quando.

— Então o senhor tem brevê? — Grant parecia incerto.

— Ah, mas é claro. — Dillon tirou do bolso a licença e entregou-a ao outro homem, que a examinou rapidamente e devolveu.

— Você está habilitado para pilotar qualquer um desses dois, mas eu prefiro acompanhá-lo, só por segurança.

— Sem problema — retrucou Dillon, tranqüilamente. — É para o sudoeste que estou pensando em ir. Cornualha. Há um campo de aviação no cabo Land’s End.

— Conheço bem o lugar. A pista é de grama.

— Tenho amigos ali perto. Provavelmente vou querer passar a noite.

— Para mim está bem. — Grant apagou as luzes e eles voltaram ao abrigo. —Qual o seu ramo de atividade, Sr. Hilton?

— Ah, finanças, contabilidade, esse tipo de coisa.

— Tem alguma idéia de quando irá? Devo avisá-lo de que esse tipo de vôo custa caro. Por volta de duas mil e quinhentas libras. Com meia dúzia de passageiros isso não é muito, mas para um só...

— Tudo certo — afirmou Dillon.

— E haveria também minhas despesas de hospedagem. Um hotel e tudo mais.

— Não há problema. — Dillon tirou da carteira dez notas de cinqüenta libras e colocou-as sobre a mesa. — O senhor tem aí quinhentas libras de depósito. Estou fazendo uma reserva para um dos próximos quatro ou cinco dias. Telefonarei para avisar a data certa.

O rosto de Grant se iluminou ao recolher as cédulas.

— Está certo. Posso oferecer-lhes um café ou qualquer outra coisa antes de irem?

— Por que não? — retrucou Dillon.

Grant dirigiu-se à cozinha na extremidade oposta do abrigo. Eles ouviram-no encher uma chaleira e Dillon pôs os dedos sobre os lábios, fazendo um sinal a Angel, e caminhou até a mesa dos mapas. Folheou-os rapidamente, encontrou o que mostrava a área geral do canal da Mancha e a costa francesa. Angel ficou ao seu lado, observando-o, enquanto ele percorria o dedo pelo litoral da Normandia. Localizou Cherbourg e desceu para o sul. Lá estava St. Denis, com a pista de aterrissagem claramente assinalada. Dillon colocou os mapas de volta no lugar. Grant, na cozinha, estivera observando pela porta entreaberta. Quando a água ferveu, ele preparou o café imediatamente em três canecas e levou-as para a sala.

— Esse tempo está atrapalhando muito? — perguntou Dillon. — Com a neve?

— Irá atrapalhar se começar a acumular — afirmou Grant. — Poderia dificultar o pouso e a decolagem naquela pista de grama em Land’s End.

— Teremos então de manter os dedos cruzados. — Dillon pousou a caneca sobre a mesa. — É melhor voltarmos.

Grant acompanhou-os até a porta. Entraram no Mini e partiram. Grant acenou para eles, fechou a porta e foi até a mesa a fim de examinar os mapas. Era o terceiro ou o quarto, tinha certeza. Área geral do canal da Mancha e costa francesa.

Franziu o cenho e murmurou para si mesmo:

— Eu me pergunto: qual será o seu jogo, cavalheiro?

 

Quando voltavam pelas veredas escuras do campo, Angel falou:

— Nada tem nada a ver com Land’s End, Sr. Dillon; aquele lugar na Normandia, St. Denis, é para lá que o senhor quer voar.

— Segredo nosso — disse ele, pousando a mão esquerda sobre a dela, enquanto dirigia. — Posso pedir que me prometa uma coisa?

— Qualquer coisa, Sr. Dillon.

— Vamos manter esse segredo, pelo menos por enquanto. Não quero que Danny saiba disso. Você dirige, não é mesmo?

— Se dirijo? É claro que sim. Eu levo as ovelhas até o mercado no furgão Morris sozinha.

— Diga-me: gostaria de fazer uma viagem a Londres amanhã de manhã? Eu, você e Danny?

— Gostaria muito.

— Ótimo. Então está certo.

Enquanto eles prosseguiam através da noite, os olhos dela cintilavam.

 

A manhã estava muito fria, enregelante, o inverno em seu apogeu, mas as estradas encontravam-se desimpedidas quando Dillon voltou para Londres, Angel e Danny Fahy indo atrás dele no furgão Morris. Era Angel quem dirigia e com grande habilidade. Ele podia vê-la pelo retrovisor, seguindo-o bem de perto por todo o percurso, inclusive quando entraram em Londres e alcançaram a Bayswater Road. Havia um plano já quase totalmente formado em sua mente e Dillon saltou do Mini Cooper, estacionou-o junto ao meio-fio e abriu as portas da garagem de Tânia.

Quando Angel e Danny pararam logo atrás, ele disse:

— Ponha o Morris na garagem.

Angel obedeceu. Ao saírem, Dillon fechou as portas.

— Você se lembrará da rua e da garagem caso se perca de mim?

— Que bobagem, Sr. Dillon. E claro que sim — respondeu Angel.

— Ótimo. Isso é importante. Agora, entrem no Mini. Vamos dar uma voltinha.

 

Harry Flood estava sentado à mesa, no apartamento de Cable Wharf, conferindo os números do cassino da noite anterior, quando Charlie Salter trouxe uma bandeja com café. O telefone tocou e o homenzinho atendeu, passando-o a Flood.

— É o professor.

— Martin, como vão as coisas? A noite passada foi divertida. A Srta. Tanner é mesmo muito especial.

— Alguma novidade, Harry? Já conseguiu descobrir ai coisa? — perguntou Brosnan.

— Ainda não, Martin. Aguarde um minuto. — Flood cobriu o fone com a mão e voltou-se para Salter: — Onde está Mordecai?

— Dando um giro, Harry, como você pediu que ele fizesse. Investigando discretamente.

Flood voltou a falar com Brosnan:

— Sinto muito, meu velho, estamos fazendo tudo que podemos, mas vai levar algum tempo.

— Tempo de que não dispomos — observou Brosnan. — Tudo bem, Harry, sei que está fazendo o melhor. Manterei contato.

Ele encontrava-se de pé, ao lado da mesa, na sala de estar do apartamento de Mary Tanner, na Lowndes Square. Recolocou o fone no gancho, caminhou até a janela e acendeu um cigarro.

— Descobriram algo? — perguntou ela, atravessando a sala e parando ao seu lado.

— Receio que não. Como Harry acabou de dizer, isso leva tempo. Fui um tolo ao pensar que pudesse ser de outra maneira.

— Tente ser paciente, Martin. — Ela pousou a mão no braço dele.

— Mas não consigo — retrucou ele. — Tenho um pressentimento difícil de explicar. É como estar no meio de uma tempestade, à espera de um maldito trovão, daqueles ensurdecedores, que você sabe que virá. Conheço Dillon, Mary. Ele está agindo depressa. Tenho certeza disso.

— Então, o que você gostaria de fazer?

— Ferguson está na Cavendish Square nesta manhã?

— Está.

— Então vamos até lá falar com ele.

 

Dillon estacionou o Mini Cooper próximo a Covent Garden. Uma informação tomada numa livraria ali perto levou-os a uma loja, nas proximidades, especializada em mapas de todos os tipos. Dillon pôs-se a examinar os mapas em escala ampliada da área central de Londres até encontrar o que cobria a área geral de Whitehall.

— Vê os detalhes neste mapa? — sussurrou Fahy. — O jardim do Número Dez deve ter cerca de um centímetro e meio.

Dillon comprou o mapa e o vendedor o enrolou, inserindo-o num tubo de papelão protetor. A mercadoria foi paga e eles voltaram ao carro.

— E agora? — indagou Danny.

— Vamos dar uma volta pela área. Prestem atenção ao local.

— Acho uma boa idéia.

Angel sentou-se no banco traseiro, o tio ao lado de Dillon e seguiram no sentido do rio, dobrando na Horse Guards Avenue. Dillon parou por um breve momento na esquina antes de virar na Whitehall e tomar a direção da Downing Street.

— Há muitos tiras por aí — observou Danny.

— Para se certificarem de que as pessoas não estacionem aqui. Um carro parara junto ao meio-fio à sua esquerda e, quando se desviaram, passando por ele, viram que o motorista consultava um mapa.

— Um turista, espero — comentou Angel.

— E veja o que acontece — disse-lhe Dillon.

Ela virou-se para trás e viu dois policiais se aproximarem do carro. Trocaram algumas palavras com o motorista, que deu a partida e se afastou.

— Eles não perdem tempo — observou Angel.

— Downing Street — anunciou Dillon um minuto mais tarde.

— Vejam só aqueles portões!—exclamou Danny, maravilhado. — Gosto do toque gótico. Sem dúvida fizeram um bom trabalho ali.

Dillon seguiu o fluxo do tráfego, dando a volta na Praça do Parlamento e voltando para a Whitehall no sentido da Trafalgar Square.

— Esmos voltando para a Bayswater Road — disse ele. — Reparem no caminho que escolhi.

Ele deixou para trás o trânsito da Trafalgar Square, passando pelo Admiralty Arch, ao largo do Mall, dando a volta pelo monumento da Rainha Victoria além do Palácio de Buckingham e passando pelo Constitution Hill, chegando por fim ao Marble Arch, através da Park Lane, e entrando na Bayswater Road.

— É muito simples — declarou Danny Fahy.

— Ótimo — disse Dillon. — Então vamos tomar uma boa xícara de chá naquele hotel horrível.

 

— Você está ficando muito impaciente, Martin — observou Ferguson.

— É a espera — retrucou-lhe Brosnan. — Flood está fazendo tudo que pode, sei disso, mas não creio que o tempo esteja do nosso lado.

Ferguson, que olhava pela janela, voltou-se e bebeu um gole da xícara de chá que segurava.

— Então, o que você quer fazer?

Brosnan hesitou, olhou para Mary e respondeu:

— Gostaria de ir ter com Liam Devlin em Kilrea. Talvez ele tenha alguma idéia.

— Isso é coisa que nunca lhe faltou. — Ferguson dirigiu-se a Mary: — O que você acha?

— Acho que faz sentido, senhor. Afinal, uma viagem a Dublin não é nada demais. Uma hora e quinze, saindo de Heathrow, pela Aer Lingus ou pela British Airways.

— E a casa de Liam em Kilrea fica a apenas meia hora da cidade — acrescentou Brosnan.

— Está certo — assentiu Ferguson. — Vocês dois me convenceram, mas irão partir de Gatwick, no Lear, para o caso de acontecer alguma coisa e vocês precisarem estar de volta bem rápido.

— Obrigada, senhor — disse Mary.

Quando alcançaram a porta, Ferguson falou:

— Darei um telefonema ao velho patife para avisá-lo de que vocês estão a caminho. — E dirigiu-se ao telefone.

Enquanto desciam pelas escadas, Brosnan desabafou:

— Graças a Deus! Finalmente sinto que estamos faz alguma coisa.

— E por fim eu vou conhecer o grande Liam Devlin — disse Mary, conduzindo-o até a limusine.

 

No pequeno café do hotel, Dillon, Angel e Fahy sentaram-se a uma mesa no canto, bebendo chá. Fahy tinha o mapa que haviam comprado parcialmente aberto sobre os joelhos.

— É extraordinário. As coisas que eles revelam. Todos os detalhes.

— O plano pode ser executado, Danny?

— Mas é claro, sem problemas. Lembra-se do cruzamento da Horse Guards Avenue com a Whitehall? É aquele o lugar, com o furgão ligeiramente atravessado. Já posso visualizá-lo em minha mente. Com este mapa aqui, posso calcular a distância daquela esquina até o Número Dez com exatidão.

— Tem certeza de que conseguiria evitar os edifícios que estão entre a esquina e o alvo?

— Ah, sim. Já disse isso antes, Sean: a balística é uma ciência.

— Mas não se pode parar naquele local — contrapôs Angel. — Vimos o que aconteceu com aquele homem no carro. A polícia chegou junto dele em questão de segundos.

Dillon voltou-se para Fahy:

— Danny?

— Bem, alguns segundos é tudo de que preciso. Estará tudo cronometrado, Angel. É só apertar o botão certo para ativar o circuito, saltar do furgão e os morteiros começarão a ser lançados dentro de um minuto. Nenhum guarda poderia agir com rapidez suficiente para impedir.

— Mas e o que aconteceria com o senhor? — perguntou ela.

Foi Dillon quem respondeu:

— Ouçam isto: uma manhã bem cedinho saímos de Cadge End, você, Danny, no Ford Transit, e eu e Angela no furgão Morris, onde levaremos aquela motocicleta BSA. Angel estacionará o Morris, como hoje, na garagem no fim da rua. Levaremos também uma tábua para que eu possa tirar a moto.

— E você me seguirá. É isso?

— Estarei bem na sua traseira. Quando chegarmos ao cruzamento da Horse Guards Avenue com a Whitehall, você aciona o botão, sai do furgão e salta na minha garupa, e já estaremos longe. O Gabinete de Guerra se reúne todas as manhãs às dez. Com sorte pegaremos todos eles.

— Jesus, Sean, eles nunca saberão o que os atingiu.

— E voltamos direto para a Bayswater, onde Angel nos espera na garagem com o Morris. Guardamos a moto nele e saímos de lá. Enquanto eles ainda tentam apagar o fogo, já estaremos em Cadge End.

— Brilhante, Sr. Dillon — cumprimentou-o Angel.

— Exceto por um único detalhe — disse Fahy. — Sem o maldito explosivo, não teremos nenhuma bomba.

— Deixe isso comigo — afirmou Dillon. — Conseguirei o explosivo. — Ele se pôs de pé. — Mas agora tenho algumas coisas a fazer. Vocês dois voltem para Cadge End e aguardem. Entrarei em contato com vocês.

— E quando será isso, Sean?

— Breve, muito breve. — Dillon sorria, enquanto eles se afastavam.

 

Tânia bateu à sua porta ao meio-dia em ponto. Ele a recebeu e perguntou:

— Conseguiu?

Ela trazia na mão direita uma valise, que abriu sobre a mesa, deixando ver os trinta mil dólares que ele pedira.

— Ótimo—disse Dillon.—De início, só vou precisar de dez mil.

— E o que fará com o restante?                                       .

— Pedirei na recepção que guardem a valise no cofre do hotel.

— Você já tem um plano em mente, posso perceber. — parecia excitada. — O que aconteceu lá em Cadge End?

Ele contou a ela tudo em detalhes, todo o plano.

— O que você acha?—perguntou, ao chegar ao fim do relato.

— Incrível. O golpe máximo. Mas e os explosivos? Vocês precisariam de Semtex.

— Isso não é problema. Quando estive a serviço aqui em Londres, em 81, fiz algumas transações com um homem que tinha acesso a Semtex. — Ele riu. — Aliás, ele tinha acesso a tudo.

—E quem é esse homem? Como você pode estar certo de que ele ainda está por aqui?

— Um vigarista de nome Jack Harvey. E ainda está aqui, sim. Já encontrei seu endereço.

— Não compreendo.

— Entre outras coisas, ele tinha uma casa funerária em Whitechapel. Procurei nas Páginas Amarelas e ainda está no mesmo lugar. Por falar nisso, posso continuar a usar o seu Mini?

— É claro que sim.

— Muito bom. Eu o deixarei estacionado na rua. Quero aquela garagem livre.

Dillon apanhou o casaco.

— Venha, vamos comer alguma coisa e depois eu irei ver Harvey.

 

— Suponho que você tenha lido o arquivo sobre Devlin — disse Brosnan a Mary Tanner, quando atravessavam de carro o centro de Dublin. Cruzaram o rio Liffey na altura do St. George’s Quay e seguiram para o outro lado da cidade, levados por um chofer em uma limusine da embaixada.

— Li, sim, mas será tudo verdade? Aquela história do seu envolvimento na tentativa dos alemães de pegarem Churchill du­rante a guerra...

— Ah, é verdade sim.

— O mesmo homem que o ajudou a escapar daquela prisão francesa em 1979?

— Devlin em pessoa.

— Mas, Martin, você disse que ele afirma ter setenta anos. Deve ter mais idade que isso.

— Alguns anos a mais ou a menos são um detalhe mínimo quando se trata de Liam Devlin. Vamos colocar a coisa nesse plano: você está prestes a conhecer o homem mais extraordinário que já viu em sua vida. Erudito, poeta e guerrilheiro do IRA.

— Essa última parte não serve de recomendação para ninguém, no que me diz respeito — declarou ela.

— Sei disso. Mas nunca cometa o engano de confundir Devlin com o tipo de lixo que o IRA emprega atualmente.

Ele calou-se, subitamente melancólico, e o carro seguiu para a região rural irlandesa, deixando a cidade para trás.

 

Kilrea Cottage era o nome da propriedade, localizada nos arredores da vila que ficava próxima a um convento. Tratava-se de um prédio antigo, de um só pavimento, com cumeeiras góticas e janelas chumbadas ladeando o pórtico. Eles se abrigaram ali da chuva fina, enquanto Brosnan puxava a corda da campainha antiga. Ouviram o som de passos e a porta se abriu.

— Cead mile fáilte — cumprimentou-os Liam Devlin em irlandês. — Mil vezes bem-vindos. — E abraçou Brosnan.

 

O interior da casa era tipicamente vitoriano. Quase toda a mobília era de mogno, o papel de parede uma réplica de William Morris, mas os quadros na parede, todos de Atkinson Grimshaw, eram autênticos.

Liam Devlin voltou da cozinha trazendo uma bandeja com chá.

— Minha governanta vem apenas de manhã. Uma das caridosas irmãs do convento aqui perto. Precisam do dinheiro.

Mary Tanner estava totalmente perplexa. Esperara encontrar um velho e vira-se diante de uma criatura de idade indefinida, vestido com uma camisa italiana de seda preta, pulôver também preto, calças cinza no corte da última moda. Ainda havia cor considerável no cabelo que um dia fora preto, e o rosto exibia uma certa palidez, mas ela pressentia que fora sempre assim. Os olhos azuis eram extraordinários, assim como o perpétuo sorriso irônico, com o qual ele parecia rir tanto do mundo quanto de si mesmo.

— Então você trabalha para Ferguson, garota? — perguntou ele a Mary, enquanto servia o chá.

— Isso mesmo.

— Aquele episódio em Derry há pouco tempo, quando removeu o carro com a bomba. Aquilo foi um feito e tanto.

Ela sentiu-se enrubescer.

— Nada demais, Sr. Devlin. Apenas me pareceu a coisa certa a fazer na ocasião.

— Ah, todos nós temos essa sensação às vezes, mas nem sempre reagimos a ela. É a ação que conta. — Ele voltou-se para Brosnan: — Foi uma pena o que aconteceu a Anne-Marie, filho.

— Eu o quero, Liam — declarou Brosnan.

— Por você mesmo ou pela causa comum? — Devlin sacudiu a cabeça. — Deixe o fator pessoal de lado, Martin, ou você cometerá erros, e isso é algo a que você não pode se dar o luxo com Sean Dillon.

— Sim, eu sei — concordou Brosnan. — Eu sei.

— Quer dizer que ele pretende atentar contra a vida desse camarada, John Major, o novo primeiro-ministro? — indagou Devlin.

— E como é que o senhor acha que ele tentará fazer isso, Sr. Devlin? — quis saber Mary.

— Bem, pelo que tenho ouvido sobre a segurança no Número Dez da Downing Street nesses dias, eu não consideraria as chances de ele entrar lá muito boas. — Olhou para Brosnan e sorriu.—Veja bem, Mary, minha querida, lembro-me de um jovem amigo meu, chamado Martin Brosnan, que entrou no Número Dez, bancando o garçom de uma festa há menos de dez anos. Deixou uma rosa na mesa do primeiro-ministro. Naturalmente, naquela época era uma mulher.

— Isso foi no passado, Liam, mas e agora? — replicou Brosnan.

— Ah, ele vai agir como sempre, usando contatos no submundo.

— E não do IRA?

— Duvido que o IRA tenha qualquer coisa a ver com esse caso.

— Mas tinha da última vez que ele operou em Londres, há dez anos.

— E então?

— Estava pensando numa coisa: se soubéssemos quem o recrutou naquela ocasião, talvez isso ajudasse.

— Entendo o que quer dizer. Poderíamos ter uma pista de quem trabalhou com ele em Londres, não é?

— Bem, não é grande coisa, mas é só o que temos, Liam

— Ainda há o seu amigo Flood de Londres.

— Sim, eu sei, e sei que ele fará tudo que estiver ao alcance, mas para isso é preciso tempo, coisa de que não dispomos.

Devlin assentiu com a cabeça.          

— Correto, filho. Deixe comigo e verei o que posso fazer — Olhou para o relógio em seu pulso. — Uma da tarde. Vamos comer um sanduíche e quem sabe beber um Bushmills juntos. Depois sugiro que vocês peguem o Lear e voltem depressa para Londres. Entrarei em contato com vocês, acreditem, assim que souber de alguma coisa.

 

Dillon estacionou depois de dobrar a esquina próxima à casa funerária de Jack Harvey, em Whitechapel, e encaminhou-se para lá, a valise em uma das mãos. Tudo ali era discreto e de bom gosto, nos mínimos detalhes, até mesmo no sino que os visitantes tocavam para que o porteiro abrisse a porta.

— O Sr. Harvey está me aguardando — mentiu Dillon alegremente.

— Desça o corredor, passando pelas capelas, e suba as escadas. O escritório dele fica no primeiro andar. Qual o seu nome, senhor?

— Hilton. — Dillon olhou em torno, observando os caixões expostos, as flores. — Não há muita coisa acontecendo por aqui.

— O senhor se refere aos clientes? — O porteiro encolheu os ombros. — Tudo é feito pela entrada dos fundos.

— Entendi.

Dillon atravessou o corredor, parando para olhar uma das capelas, observando as coroas de flores e as velas. Entrou e olhou para o corpo de um homem de meia-idade, vestido num impecável terno escuro, as mãos entrelaçadas, o rosto retocado por maquiagem.

— Pobre coitado — murmurou Dillon, saindo dali.

Na mesa de recepção, o porteiro apanhou o telefone.

— Srta. Myra? Uma visita. Um tal Sr. Hilton. Ele diz que está sendo esperado.

Dillon abriu a porta da ante-sala do escritório de Harvey e entrou. Não havia ali mobília de escritório, apenas alguns vasos de plantas e várias poltronas. A porta que dava para o escritório propriamente dito abriu-se e Myra surgiu, vestindo calças justas pretas, botas também pretas e um cafetã escarlate até os quadris. Sua aparência era esplêndida.

— Sr. Hilton?

— Exato.

— Sou Myra Harvey. O senhor disse que tinha um encontro com meu tio.

— Eu disse?

Ela o olhou de cima a baixo, de maneira casual. Atrás dela a porta se abriu, fazendo surgir Billy Watson. Estava claro que tudo fora combinado previamente. Ele se encostou na porta, devidamente ameaçador em um terno preto, os braços cruzados.

— Bem, qual é o seu jogo? — indagou Myra.

— Essa atitude é para o Sr. Harvey. Não fica bem em você.

— Ponha-o daqui para fora, Billy — ordenou ela, dirigindo-se para a porta.

Billy pousou a mão rudemente sobre o ombro de Dillon. O pé deste desceu pela perna direita do rapaz, esmagando-lhe o peito do pé, enquanto ele girava sobre si mesmo e o atacava de lado, os nós dos dedos atingindo a têmpora de Billy, que gritou de dor, desabando sobre uma das poltronas.

— Ele não é muito bom, não é mesmo? — disse Dillon.

Ele abriu a valise e tirou de lá dez notas de cem dólares presas por um elástico, jogando-as para Myra. Ela não conseguiu pegar o maço no ar e teve de se abaixar para apanhá-lo.

— Vejam só isso — admirou-se ela. — Novinhas em folha.

— É, dinheiro novo tem um cheiro muito bom — observou Dillon. — Agora diga a Jack que um velho amigo, com outras iguaizinhas a essas, gostaria de vê-lo.

Ela ficou ali parada, olhando-o por um momento, os olhos apertados, e então deu meia-volta e abriu a porta que dava para o escritório de Harvey. Billy tentou erguer-se e Dillon lhe disse:

— Eu não o aconselharia a fazer isso.

Billy aquietou-se e a porta se abriu com Myra de volta

— Tudo bem, ele o receberá.

O ambiente era surpreendentemente comercial, com paredes revestidas em carvalho, um tapete verde de seda georgiana e um fogareiro a gás que quase parecia natural, queimando em uma bacia de aço dentro da lareira. Harvey estava sentado atrás de uma maciça mesa de carvalho, fumando um charuto.

Ele tinha diante de si os mil dólares e examinou Dillon calmamente.

— Meu tempo é limitado; portanto, não me faça perdê-lo, meu caro. — Apanhou as notas. — Você tem outras destas?

— Exato.

— Eu não o conheço. Você disse a Myra que é um velho amigo meu, mas eu nunca o vi antes.

— Faz muito tempo, Jack, dez anos para ser mais preciso. Eu tinha uma outra aparência então. Vinha de Belfast para fazer um trabalho aqui. Fizemos negócios juntos, eu e você. Se bem me recordo, você teve um bom lucro na transação. Todos aqueles dólares maravilhosos levantados por simpatizantes do IRA na América.

— Coogan. Michael Coogan — disse Harvey.

— O próprio — afirmou Dillon, tirando os óculos.

Harvey assentiu com a cabeça lentamente e disse à sobrinha:

— Myra, um velho amigo: Sr. Coogan, de Belfast.

— Compreendo — disse ela. — Um daqueles.

Dillon acendeu um cigarro, sentou-se, a valise no chão ao seu lado, e Harvey falou:

— Você passou por Londres como o terrível Átila o Huno naquela ocasião. Eu deveria ter cobrado mais pelo material.

— Você me deu um preço, eu paguei — retrucou Dillon. — O que poderia ser mais justo?

— E o que o traz aqui desta vez?

— Preciso de um pouco de Semtex, Jack. Posso me virar com uns vinte quilos, mas isso é o mínimo. Vinte e cinco seria o ideal.

— Você não quer muita coisa, não é mesmo? Esse negócio é como ouro. O controle do governo é muito rigoroso.

— Porra nenhuma—disse Dillon. — Ele sai da Tchecoslováquia para a Itália, a Grécia, a Líbia. Está em todo lugar, Jack, você sabe disso e eu também sei; portanto, não me faça perder tempo. Vinte mil dólares. — Ele abriu a valise sobre os joelhos e atirou o restante dos dez mil dólares, maço por maço, sobre a mesa. — Dez agora e dez na entrega.

A Walther com o silenciador Carswell atarraxado na extremidade do cano estava dentro da valise, pronta para qualquer eventualidade. Ele esperou, a tampa levantada, e então Harvey sorriu.

— Está certo, mas vai lhe custar trinta mil dólares.

Dillon fechou a valise.

— Impossível, Jack. Vinte e cinco eu posso conseguir, nada mais.

Harvey assentiu.

— Está bem. Para quando você quer?

— Vinte e quatro horas.

— Acho que posso conseguir. Onde podemos encontrá-lo?

— O inverso, Jack. Eu entro em contato com você.

Dillon pôs-se de pé e Harvey disse, afavelmente:

— Mais alguma coisa que possamos fazer por você?

— Bem, na verdade, há sim—respondeu Dillon. — Digamos que uma prova de sua boa vontade. Eu ficaria contente se você tivesse aí uma arma curta sobressalente.

— É um prazer, meu velho. — Jack afastou a cadeira da mesa e abriu a segunda gaveta à sua direita. — Faça a sua escolha.

Havia ali um .38 Smith & Wesson, um Cesca tcheco e uma Beretta italiana, que foi a escolhida por Dillon. Ele checou o pente de balas e enfiou a arma no bolso.

— Esta está ótima.

— Arma de mulher — afirmou Harvey —, mas você é quem sabe. Nos veremos amanhã então.

Myra abriu a porta.

— Foi um prazer, Srta. Harvey — despediu-se Dillon, passando por Billy na saída.

— Gostaria de quebrar as pernas desse filho da puta — resmungou Billy.

Myra deu-lhe um tapinha na bochecha.

— Deixe isso para lá, benzinho. De pé você é inútil. É na posição horizontal que você mostra que é bom. Agora vá brincar com sua moto ou outra coisa qualquer. — E voltou para o escritório do tio.

Dillon parou na base da escada e guardou a Beretta na valise. A única coisa melhor que uma arma eram duas armas. Significava sempre um trunfo guardado. Ele caminhou ligeiro de volta ao Mini Cooper.

— Eu não confiaria nem um pouquinho nesse sujeito — afirmou Myra.

— Um grande patife — disse Harvey. — Quando ele esteve aqui em 1981 a serviço do IRA, forneci a ele armas, explosivos, tudo. Naquela época você estava na universidade e não trabalhava comigo, então provavelmente não se lembrará.

— Coogan é o nome verdadeiro dele?

— Claro que não. — Abanou a cabeça. — É, ele é um demônio. Eu estava tendo muitos problemas naquela ocasião com George Montoya, lá em Bermondsey, aquele a quem chamavam George Espanhol. Coogan o liquidou para mim uma noite, a ele e ao irmão, diante de um bar chamado Flamenco. Fez isso de graça.

— Mesmo? — perguntou Myra. — Mas onde é que vamos conseguir Semtex para ele?

Jack Harvey deu uma risada, abriu a primeira gaveta e tirou dali um molho de chaves.

— Vou mostrar a você. — Saiu da sala, seguido por ela, percorreu o corredor e abriu uma das portas trancadas a chave. — Algo que até mesmo você desconhece, minha querida.

A sala era repleta de prateleiras de arquivos. Ele pousou a mão sobre a prateleira do meio na parede dos fundos e esta se abriu. Harvey estendeu a mão e acendeu uma lâmpada, revelando um depósito de armas de todos os tipos.

— Meu Deus! — exclamou ela.

— Tudo de que você precisar tem aqui. Armas curtas, rifles de assalto AK, fuzis M15 — Ele deu uma risadinha. — E Semtex. — Havia três caixas de papelão sobre uma mesa. — Vinte e cinco quilos em cada uma dessas caixas.

— Então por que você disse a ele que precisaria de algum tempo para conseguir?

— Para mantê-lo em suspense. — Ele a conduziu de volta e trancou as portas. —Talvez consiga arrancar dele um dinheiro a mais.

Enquanto retornavam ao escritório, ela perguntou:

— O que você acha que ele está planejando?

— Não me importo nem um pouco. E por que você se preocuparia com isso? Virou de repente uma patriota imbecil ou qualquer coisa parecida?

— Nada disso. Só estou curiosa.

Ele cortou a ponta de outro charuto.

— Ouça, acabo de ter uma idéia. Seria muito conveniente se eu conseguisse que esse patife liquidasse Harry Flood para mim. —E soltou uma gargalhada.

 

Passava pouco das seis e Ferguson se preparava para deixar o gabinete no Ministério da Defesa, quando o telefone tocou. Era Devlin.

— Pois então, seu velhaco, tenho novidades para vocês.

— Prossiga — pediu Ferguson.

— O chefe de Dillon em Belfast, em 81, era um homem de nome Tommy McGuire. Lembra-se dele?

— Lembro sim. Ele não foi morto com tiros há alguns anos? Algum tipo de rixa interna no IRA?

— Foi essa história que se espalhou, mas ele ainda está vivo, com uma outra identidade.

— E qual seria essa?

— Isso eu ainda preciso descobrir. Tenho de visitar algumas pessoas em Belfast, para onde estou indo hoje à noite. Por falar nisso, presumo que o fato de eu me envolver pessoalmente dessa forma me torna um agente oficial do Grupo Quatro, não é? O que quero dizer é que não gostaria de ir parar na cadeia, não na minha idade.

— Você terá cobertura total, tem a minha palavra. Agora me diga: o que quer que façamos?

— Estava pensando que se Brosnan e a sua capitão Tanner querem participar da ação, podiam ir até Belfast de manhã naquele seu jato Lear, e esperar por mim no bar do Hotel Europa. Peça a Brosnan que se identifique ao chefe da portaria. Entrarei em contato com eles provavelmente por volta do meio-dia.

— Cuidarei disso — afirmou Ferguson.

— Só mais uma coisa: você não acha que nós dois estamos ficando um pouquinho velhos demais para esse tipo de jogo?

— Fale apenas por você — retrucou Ferguson, desligando o telefone.

Ficou pensando alguns minutos e então pediu, pelo interfone uma secretária. Ligou também para Mary Tanner, em seu apartamento da Lowndes Square. Enquanto falava com ela, Alice Johnson entrou com um bloco de papel e um lápis. Ferguson fez sinal para que se sentasse e prosseguiu a conversa com Mary.

— Então, o dia vai começar bem cedo amanhã. Acho que é melhor sair do Gatwick novamente. No Lear, vocês estarão lá em uma hora. Vão sair para jantar hoje à noite?

— Harry Flood convidou-nos para o River Room, no Savoy. Ele gosta da orquestra que está tocando lá.

— Parece divertido.

— Gostaria de ir conosco, senhor?

— Para ser sincero, gostaria sim — respondeu Ferguson.

— Então nos encontramos lá, às oito.

Ferguson pôs o fone no gancho e voltou-se para Alice Johnson:

— Um recado breve, confidencial para o primeiro-ministro, e uma cópia para o arquivo especial. — Ditou rapidamente um relatório com os fatos recentes, inclusive a conversa com Devlin. — Providencie um mensageiro bem depressa e traga as cópias para eu assinar. Quero ir embora logo.

Ela voltou ligeira para a sua sala, onde Gordon Brown estava de pé, ao lado da copiadora. Alice Johnson sentou-se diante da máquina de escrever.

— Pensei que ele já tivesse ido embora — disse Brown.

— Eu também, mas ele acaba de me dar uma tarefa extra. Outro relatório confidencial ao primeiro-ministro.

— É mesmo?

Ela se pôs a datilografar furiosamente e, em dois minutos, já havia acabado. Pôs-se de pé.

— Ele terá de esperar. Preciso ir ao banheiro.

— Eu faço as cópias para você.

— Obrigada, Gordon.

Ela saiu, caminhando ao longo do corredor, e já estava abrindo a porta do banheiro quando se deu conta de que havia esquecido a bolsa sobre a mesa. Fez meia-volta e voltou apressada ao escritório. A porta estava parcialmente aberta e ela podia ver Gordon, de pé ao lado da copiadora, lendo uma cópia do relatório. Para sua surpresa, ele dobrou o papel e o enfiou num bolso interno, e apressou-se a tirar mais uma cópia.

Alice estava totalmente transtornada, sem a menor idéia do que fazer. Transpôs o corredor, voltando ao banheiro, entrou e tentou se acalmar. Depois de algum tempo, retornou à sala.

O relatório e uma cópia anexa estavam sobre a sua mesa.

— Tudo pronto — declarou Gordon Brown. — Já chamei um mensageiro.

Ela conseguiu dar um ligeiro sorriso.

— Eu as levarei para ele assinar.

— Certo. Estou indo até a cantina. Vejo você mais tarde.

Alice caminhou pelo corredor, bateu na porta de Ferguson e entrou. Ele estava sentado à mesa, escrevendo, e ergueu os olhos.

— Ah, ótimo. Vou assinar e você pode mandar a cópia do Primeiro-ministro para a Downing Street imediatamente. — Ela estava tremendo e ele franziu o cenho. — Minha cara Sra. Johnson, o que aconteceu?

Ela contou a ele.

Ferguson ficou ali sentado, ouvindo, a expressão soturna, e quando ela terminou, ele estendeu a mão para o telefone.

— Divisão Especial, mande o detetive-inspetor Lane para o general-de-brigada Ferguson do Grupo Quatro. Prioridade máxima, sem demora. Estou no escritório.

Desligou o telefone.

— Ouça o que você irá fazer: volte agora para a sua sala e aja como se nada tivesse acontecido.

— Mas ele não está lá, general, ele foi para a cantina.

— É mesmo? Bem, por que ele iria para lá?

 

Quando Tânia ouviu a voz de Gordon Brown ficou imediatamente irritada.

— Já conversei com você sobre isso, Gordon.

— Sim, mas é urgente.

— Onde você está?

— Na cantina do ministério. Consegui outro relatório.

— É importante?

— Muito.

— Leia para mim.

— Não, eu o levarei até aí quando terminar meu turno, às dez.

— Verei você em seu apartamento, Gordon, eu prometo, mas quero saber o que você tem aí agora e, se você se recusar, então não se dê ao trabalho de ligar outra vez.

— Não, está certo. Eu vou ler.

Foi o que ele fez e, quando terminou, ela disse:

— Bom menino, Gordon. Verei você mais tarde.

Ele desligou o telefone e se virou, dobrando a cópia do relatório. A porta da cabine telefônica abriu-se bruscamente e Ferguson arrancou o relatório de suas mãos.

 

Dillon estava em seu quarto no hotel quando Tânia telefonou.

— Tenho notícias bem quentes—disse ela. — Eles estão indo para Belfast em busca de uma pista sobre você.

— Conte-me tudo — pediu ele.

Ao terminar, ela perguntou:

— Isso faz sentido para você?

— Faz — afirmou ele. — McGuire era um nome importante para os provos naquela época.

— Ele está morto mesmo ou ainda está em atividade?

— Devlin está certo. Espalhou-se a notícia da sua morte, supostamente devido a brigas internas no movimento, mas isso foi apenas uma artimanha para ajudá-lo a sair de circulação.

— Se eles o encontrarem, isso poderá lhe trazer problemas?

— Talvez, mas não se eu o encontrar primeiro.

— E como você conseguiria isso?

— Conheço seu meio-irmão, um sujeito chamado Macey. Ele deve saber onde McGuire está.

— Mas isso significa que você terá de ir a Belfast.

— O que não é nenhum problema. Uma hora e quinze minutos pela British Airways. Só não sei a que horas o último avião parte esta noite. Terei de verificar.

— Espere só um minuto. Eu tenho a tabela com os horários da British Airways aqui — disse ela, abrindo a gaveta de sua mesa. Encontrou a tabela e procurou os horários para Belfast. — O último avião é às oito e meia. Não dá mais para pegá-lo. Já são quinze para as sete. É loucura ir para o Heathrow no trânsito noturno e esse tempo toma as coisas ainda piores. Você levaria no mínimo uma hora ou talvez uma hora e meia.

— Sim, eu sei — concordou Dillon. — E os horários da manhã?

— O primeiro também é às oito e meia.

— Então, vou precisar acordar cedo.

— Essa viagem não é arriscada?

— Existe alguma coisa na vida que não seja arriscada? Vou dar um jeito, não se preocupe. Manterei contato.

Ele pousou o fone no gancho, ponderou durante alguns minutos, então ligou para a British Airways e reservou um lugar no vôo da manhã com a volta em aberto. Acendeu um cigarro e dirigiu-se à janela. Não seria arriscado?, perguntara Tânia. Ele tentou lembrar-se do que Tommy McGuire soube a seu respeito em 81. De Danny Fahy, ele nada sabia, isso era certo, pois não se esperava que Fahy se envolvesse naquela ocasião. Aquilo fora um favor pessoal. Jack Harvey, porém, era outra questão. Afinal, fora o próprio McGuire quem lhe indicara Harvey como negociante de armas.

Ele vestiu a jaqueta, apanhou a capa no armário e saiu. Cinco minutos mais tarde, acenava para um táxi na esquina. Entrou e pediu ao motorista que o levasse a Covent Garden.

 

Gordon Brown encontrava-se sentado diante da mesa de Ferguson, à meia-luz. Nunca ele se sentira tão amedrontado em toda sua vida.

— Eu não pretendia fazer nada de mau, general, eu juro.

— Então, por que tirou uma cópia do relatório?

— Foi só um capricho. Uma coisa estúpida, eu sei, mas estava intrigado com o fato de ser para o primeiro-ministro.

— Você percebe o que fez, Gordon? Um homem com a sua folha de serviço, todos aqueles anos no Exército. Isso pode significar a perda de sua pensão.

O detetive-inspetor Lane, da Divisão Especial, estava se aproximando dos quarenta anos e, no terno de tweed amarrotado e de óculos tinha a aparência de um mestre-escola.

— Vou lhe perguntar mais uma vez, Sr. Brown — disse ele, encostado à borda da mesa. — O senhor já tirou cópias como essa outras vezes?

— Não, em absoluto, eu juro.

— Ninguém nunca lhe pediu que fizesse uma coisa dessas?

Gordon conseguiu fingir-se chocado.

— Pelo amor de Deus, inspetor, isso seria traição. Fui subtenente no serviço de informações militar.

— Sim, Sr. Brown, todos nós sabemos disso — afirmou Lane.

O telefone interno tocou e Ferguson atendeu. Era Mackie, um sargento subordinado a Lane.

— Estou aqui fora, general. Acabo de voltar do apartamento de Brown, em Camden. Gostaria que o senhor e o inspetor viessem aqui para falar comigo.

— Obrigado — disse Ferguson e desligou o telefone. — Certo, acho que lhe daremos algum tempo para pensar no que fez, Gordon. Inspetor?

Ele fez um sinal a Lane, ergueu-se e dirigiu-se para a porta, seguido por Lane. Mackie encontrava-se de pé na ante-sala, ainda de chapéu e capa de chuva, uma sacola plástica nas mãos.

— Encontrou alguma coisa, sargento? — indagou Lane.

— Acho que podemos dizer que sim, senhor. — Mackie apanhou um fichário de papelão na sacola e o abriu. — Uma coleção bastante interessante.

As cópias dos relatórios estavam arquivadas ordenadamente, os últimos relatórios confidenciais ao primeiro-ministro por cima.

— Santo Deus, general! — exclamou Lane. — Ele vem fazendo isso já há algum tempo.

— É o que parece — retrucou Ferguson. — Mas com que propósito?

— O senhor acha que ele está trabalhando para alguém?

— Sem dúvida. A presente operação em que me encontro empenhado é extremamente delicada. Houve um ataque a um homem a meu serviço em Paris. Uma mulher morreu. Ficamos imaginando como o sujeito envolvido no caso teria descoberto sobre eles. Compreende? Agora sabemos. Os detalhes descritos nesses relatórios foram passados a uma terceira pessoa. Só pode ser isso.

Lane assentiu com a cabeça.

— Então teremos de trabalhar um pouco mais nele.

— Não, não temos tempo. Vamos tentar de outra forma. Vamos simplesmente deixar que ele se vá. Brown é um homem simples. Acho que tomará a atitude mais simples.

— Certo, senhor. — Lane voltou-se para Mackie. — Se você o perder, voltará a trabalhar nas ruas lá em Brixton, e eu também, pois irei com você.

Saíram apressados e Ferguson voltou ao seu gabinete. Sentou-se por trás da mesa.

— Um episódio muito desagradável, Gordon.

— O que vai acontecer comigo, general?

— Preciso pensar a respeito. — Ferguson apanhou a cópia do relatório. — Que coisa mais estúpida. — Suspirou. — Agora vá para casa, Gordon. Eu o verei pela manhã.

Gordon Brown mal podia acreditar na sua sorte. Conseguiu abrir a porta e saiu, caminhando apressado ao longo do corredor até o vestiário dos funcionários. Escapara por um triz. Poderia ter sido o fim de tudo. Não só o fim de sua carreira e da pensão, como também poderia ter significado a prisão. Mas já estava decidido: não faria mais aquilo e Tânia teria de aceitar sua decisão. Desceu a escada para o estacionamento, vestindo o casaco, localizou seu carro e, alguns minutos mais tarde, dobrava a esquina da Whitehall, Mackie e Lane seguindo atrás dele no Ford Capri sem identificação do sargento.

 

Dillon sabia que em Covent Garden era comum fazer compras tarde da noite. Ainda havia muitas pessoas por ali, apesar do frio do inverno, e ele caminhou apressado até a loja de artigos teatrais, onde estivera antes, próximo a Neal’s Yard. As luzes da loja esta acesas e a porta abriu ao seu toque, o sino tilintando.

Clayton surgiu através da cortina de contas e sorriu.

— Ah, é o senhor. Em que posso ajudá-lo?

— Perucas — respondeu Dillon.

— Tenho uma grande variedade delas aqui.

Ele estava certo. Havia de tudo ali: curtas, compridas, encaracoladas, louras, ruivas. Dillon escolheu uma grisalha, na altura dos ombros.

— J sei — disse Clayton. — Vai fazer uma vovó.

— lgo nesse gênero. E quanto às roupas? Não quero nada muito elaborado. Tem aí alguma coisa de segunda mão?

— Lá dentro.

Clayton atravessou a cortina de contas, sendo seguido por Dillon. Havia cabides e mais cabides de roupas e uma pilha em desordem num canto. Dillon examinou tudo rapidamente e selecionou uma saia comprida marrom, de cintura elástica, e uma capa de chuva esfarrapada que chegava quase aos seus tornozelos.

— Que personagem você vai fazer?—perguntou Clayton. — Uma mendiga?

— Você ficaria surpreso se eu lhe contasse.

Dillon vira um jeans no topo da pilha no canto e o apanhou. Revirou uma pilha de sapatos ao lado, escolhendo um par de tênis, que já havia visto dias melhores.

— Já é suficiente — disse ele. — Ah, e mais isso. — Apanhou uma velha echarpe em um cabide. — Ponha tudo em sacolas plásticas. Quanto é?

Clayton começou a embalar os artigos.

— Pelo certo, eu deveria lhe agradecer por estar levando essas coisas, mas nós todos precisamos sobreviver. São dez libras para o senhor.

Dillon pagou e apanhou as sacolas.

— Muito obrigado.

Clayton abriu a porta para ele.

— Faça um bom espetáculo, meu querido, divirta-os bastante.

— Ah, com certeza — disse Dillon, caminhando rapidamente para a esquina. Fez sinal para um táxi e pediu ao motorista que o levasse de volta ao hotel.

 

Quando Tânia Novikova desceu as escadas para atender a campainha e abriu a porta, deparando-se com Gordon Brown, ela já sabia, por instinto, que algo estava errado.

— O que é isso, Gordon? Eu lhe disse que iria ao seu apartamento.

— Preciso falar com você, Tânia. É importantíssimo. Aconteceu uma coisa terrível!

— Acalme-se — disse ela. — Não fique nervoso. Vamos lá em cima e você me conta o que aconteceu.

 

Lane e Mackie estacionaram no fim da rua e o inspetor ligou para Ferguson pelo telefone do carro, passando-lhe o endereço.

— O sargento Mackie fez uma rápida inspeção na entrada, senhor. O cartão tem o nome de uma tal Srta. Tania Novikova.

— Santo Deus! — exclamou Ferguson.

— O senhor a conhece?

— Trata-se supostamente de uma secretária da Embaixada soviética, inspetor, mas na verdade ela é capitão do KGB.

— Isso significa que é uma agente do coronel Yuri Gatov, senhor. Ele dirige a seção de Londres.

— Não estou tão certo assim. Gatov é um homem de Gorbachev, totalmente pró-Ocidente. Por outro lado, sempre achei que essa mulher, Tânia Novikova, fosse mais favorável a Genghis Khan. Eu ficaria surpreso se Gatov tivesse conhecimento disso.

— O senhor irá notificá-lo?

— Por enquanto não. Vamos ver primeiro o que ela tem a dizer. É atrás de informações que todos nós estamos.

— Devemos entrar, senhor?

— Não, esperem por mim. Estarei aí em vinte minutos.

 

Tânia olhou cautelosamente por uma fresta na cortina. Viu Mackie de pé ao lado do carro no fim da rua e foi o bastante. Ela podia farejar um policial em qualquer lugar do mundo: Moscou, Paris, Londres — em toda parte, eram sempre os mesmos.

— Conte-me mais uma vez exatamente o que aconteceu.

Gordon Brown obedeceu e ela ficou ali sentada, ouvindo pacientemente. Quando ele terminou, Tânia abanou a cabeça.

— Tivemos sorte, Gordon, muita sorte. Vá à cozinha e faça um pouco de café para nós. Preciso dar alguns telefonemas. — Sua mão pressionou a dele. — Depois, vamos ter uma noite muito especial.

— Verdade? — Seu rosto iluminou-se e ele saiu da sala.

Ela apanhou o telefone e ligou para o apartamento de Makeev em Paris. O aparelho tocou durante algum tempo e ela estava prestes a desligá-lo quando alguém respondeu do outro lado da linha.

— Josef, aqui é Tânia.

— Eu estava no chuveiro — disse ele. — Estou molhando o carpete todo.

— Tenho apenas alguns segundos, Josef. Só queria dizer adeus. Estou liquidada. Meu informante foi descoberto. Eles estarão batendo aqui na porta a qualquer momento.

— Meu Deus! — disse ele. — E Dillon?

— Ele está seguro. Está tudo indo de vento em popa. O que esse homem planejou irá atear fogo ao mundo.

— Mas, e você, Tânia?

— Não se preocupe. Não vou deixar que eles me apanhem. Adeus, Josef.

Ela desligou o telefone, acendeu um cigarro e então ligou para o hotel, pedindo o quarto de Dillon, que atendeu imediatamente.

— Aqui é Tânia — disse ela. — Temos problemas.

Ele reagiu com muita calma.

— Qual é a gravidade?

— Descobriram meu informante, deixaram-no sair e o pobre idiota veio direto para cá. Posso sentir o cheiro da Divisão Especial no fim da rua.

— Entendi. O que você pretende fazer?

— Não se preocupe, não estarei aqui para lhes dizer coisa suma. Ah, um detalhe: eles sabem que Gordon me informou sobre o conteúdo do relatório de hoje à noite. Ele estava na cabine telefônica na cantina do ministério quando Ferguson o prendeu.

— Compreendo.

— Me prometa uma coisa — pediu ela.

— O que é?

— Mande-os pelos ares, todos eles. — A campainha soou. Ela disse: — Preciso ir. Boa sorte, Dillon.

Quando punha o fone no gancho, Gordon Brown entrou com café.

— Foi a campainha que tocou?

— Foi sim. Seja bonzinho, Gordon, e vá ver quem é.

Ele abriu a porta e começou a descer os degraus. Tânia respirou fundo. Morrer não era difícil. A causa em que acreditava sempre fora a coisa mais importante em sua vida. Apagou o cigarro, abriu uma gaveta da mesa, apanhou a pistola Makarov e deu um tiro em sua têmpora direita.

Gordon Brown, já no meio da escada, fez meia-volta e subiu ligeiro, entrando correndo na sala. Ao vê-la ali caída ao lado da mesa, a pistola ainda na mão direita, deixou escapar um grito horrível e caiu de joelhos.

— Tânia, minha querida — gemeu ele.

E então, ao ouvir algo pesado batendo contra a porta lá embaixo, ele soube o que deveria fazer. Apanhou a pistola da mão dela e, quando a ergueu, sua própria mão tremia. Respirou fundo para controlar-se e puxou o gatilho no momento exato em que a porta da frente era arrombada, e Lane e Mackie corriam escada acima, seguidos por Ferguson.

 

Havia uma pequena multidão no fim da rua, exibindo a costumeira curiosidade pública. Dillon misturou-se às pessoas, a gola do casaco levantada, as mãos nos bolsos. Começou a nevar ligeiramente no momento em que abriam as portas traseiras da ambulância. Ele viu as duas macas envoltas em cobertores serem colocadas ali e a ambulância se afastar. Ferguson ficou na calçada durante alguns minutos conversando com Lane e Mackie. Dillon reconheceu o general-de-brigada imediatamente, tendo visto a sua fotografia há muitos anos. Lane e Mackie com toda a certeza eram policiais.

Depois de algum tempo, Ferguson entrou em seu carro e o motorista deu a partida. Mackie voltou para o apartamento e Lane também partiu de carro. O estratagema era óbvio. Mackie deveria esperar para o caso de aparecer alguém. Uma coisa era certa: Tânia Novikova estava morta e o mesmo se aplicava ao namorado, e Dillon sabia que, graças ao seu sacrifício, ele estava a salvo.

Voltou para o hotel e telefonou para Makeev em seu apartamento de Paris.

— Tenho más notícias, Josef.

— Tânia?

— Como é que você sabe?

— Ela telefonou. O que aconteceu?

— Ela foi descoberta, ou melhor, o seu informante é que foi. Ela se matou, Josef, preferiu fazê-lo a ser apanhada. Uma mulher dedicada.

— E o informante? O namorado?

— Fez o mesmo. Acabo de ver os corpos sendo levados por uma ambulância. Ferguson estava lá.

— E como isso lhe afeta?

— De maneira nenhuma. Estou indo para Belfast pela manhã para eliminar a única chance que eles têm de conseguir uma pista minha.

— E depois?

— Eu o surpreenderei, Josef, a você e ao seu amigo árabe. Que tal lhe parece todo o Gabinete de Guerra britânico?

— Santo Deus! Você não pode estar falando sério?

— Mas estou. Entrarei em contato muito em breve.

Repôs o fone no gancho, vestiu a jaqueta e dirigiu-se ao bar, assoviando.

 

Ferguson estava sentado em um reservado do bar que se localizava defronte a Kensington Park Gardens e à Embaixada soviética, à espera do coronel Yuri Gatov. Quando o russo, um homem alto e grisalho num sobretudo de pêlo de camelo, chegou, parecia agitado, avistou Ferguson e caminhou depressa na sua direção.

— Charles, não consigo acreditar. Tânia Novikova morta. Por quê?

— Yuri, eu e você nos conhecemos há mais de 25 anos, a maior parte dos quais como adversários, mas eu vou lhe dar um crédito de confiança agora, vou acreditar que você deseja mesmo ver uma mudança em nosso tempo e um fim para o conflito entre Oriente e Ocidente.

— Mas é o que quero, você sabe disso.

— Infelizmente, nem todos no KGB partilham da mesma opinião que você, e Tânia Novikova era uma dessas pessoas.

— Ela era linha-dura, é verdade, mas o que você está querendo dizer, Charles?

Então Ferguson contou-lhe tudo: Dillon, o atentado a Margaret Thatcher, Gordon Brown, Brosnan, tudo.

— Esse curinga do IRA pretende atentar contra a vida do primeiro-ministro, é isso que você está me dizendo? E Tânia estava envolvida?

— De forma bem direta.

— Mas, Charles, eu não sabia de nada, juro.

— E eu acredito em você, velho camarada, mas ela devia ter uma ligação com alguém. Isto é, ela conseguiu transmitir informações vitais para Dillon em Paris. Foi assim que ele tomou conhecimento de Brosnan e tudo mais.

— Paris — ponderou Gatov. — Acabo de lembrar de uma coisa. Você sabia que ela esteve em Paris durante três anos antes de ser transferida para Londres? E você sabe quem é o chefe da seção do KGB em Paris?

— Naturalmente. Josef Makeev — respondeu Ferguson.

— Que é tudo, menos um homem de Gorbatchev. Ele é da velha guarda.

— Isso explicaria muita coisa — afirmou Ferguson. — Mas nunca conseguiremos provar nada.

— É verdade — assentiu Gatov. — Mas, de qualquer forma, vou telefonar a ele, ao menos para deixá-lo preocupado.

Makeev não se afastara do telefone e ergueu o fone no momento em que o aparelho tocou.

— Aqui é Makeev.

— Josef? Yuri Gatov. Estou ligando de Londres.

— Yuri. Que surpresa! — disse Makeev, imediatamente alerta.

— Tenho notícias desagradáveis, Josef. É sobre Tânia Novikova.

— O que aconteceu com ela?

— Ela cometeu suicídio no início desta noite junto com o namorado, um funcionário do Ministério da Defesa.

— Santo Deus! — Makeev tentou parecer convincente.

— Ele estava fornecendo informações confidenciais para ela. Acabo de ter um encontro com Charles Ferguson do Grupo Quatro. Você o conhece?

— É claro.

— Fiquei bastante chocado. Devo dizer-lhe que eu não tinha o menor conhecimento sobre as atividades de Tânia. Ela trabalhou para você durante três anos, Josef, portanto você a conhece melhor do que ninguém. Tem alguma idéia do que ela estava fazendo?

— Receio que não.

— Ah, bem, se você se lembrar de alguma coisa, me avise.

Makeev serviu-se uma dose de scotch, caminhou até a janela e olhou para a rua parisiense coberta de gelo. Por um louco momento, sentiu um impulso de telefonar para Michael Aroun, mas de que adiantaria? E Tânia falara com tanta certeza. Atear fogo ao mundo, foram essas suas palavras. Ele ergueu o copo.

— A você, Dillon — murmurou. — Vejamos se você consegue.

 

Eram quase onze horas e no River Room, no Savoy, a orquestra ainda tocava. Harry Flood, Brosnan e Mary Tanner pensavam em se retirar quando por fim Ferguson apareceu.

— Se em algum momento eu já precisei de uma bebida, esse momento é agora. Um scotch duplo.

Flood chamou um garçom e fez o pedido.

— O que aconteceu? — perguntou Mary, ansiosa.

Ferguson fez um breve resumo dos acontecimentos da noite.

Quando terminou, Brosnan disse:

— Isso explica muita coisa, mas o mais irritante é que não nos aproxima nem um pouco de Dillon.

— Devo ressaltar um fato — observou Ferguson. — Quando prendi Brown na cantina do Ministério, ele estava ao telefone e tinha o relatório nas mãos. Acredito que ele estivesse então falando com Tânia Novikova.

— Compreendo o que o senhor está querendo dizer — afirmou Mary. — Acha que, por sua vez, ela deve ter transmitido a informação a Dillon?

— Possivelmente — respondeu Ferguson.

— Então, o que você está sugerindo? — indagou Brosnan. — Que Dillon também irá a Belfast?

— Talvez. Se for importante.

— Teremos de aguardar os acontecimentos então. — Brosnan virou-se para Mary. — Amanhã o dia começará cedo. É melhor irmos andando.

Enquanto atravessavam o vestíbulo em direção à entrada, Brosnan e Ferguson iam na frente, conversando. Mary perguntou a Flood:

— Você o tem em alta conta, não é mesmo?

— Martin? — Ele assentiu. — Os vietcongues me prenderam em um buraco durante várias semanas. Quando a chuva vinha, o buraco ficava cheio d’água e eu tinha de passar a noite toda em pé para não me afogar. Ali tinha de tudo: sanguessugas, vermes, o que você imaginar, e então um dia, quando as coisas não podiam ser piores, uma mão veio lá de cima e me puxou. Era Martin, com uma faixa na cabeça, o cabelo comprido e o rosto pintado como um apache. Ele é uma pessoa especial.

Mary olhou Brosnan adiante.

— Isso mesmo — disse ela. — Creio que essa é a melhor definição para ele.

 

No hotel, Dillon pediu que um táxi o apanhasse às seis horas. Estava à espera, nos degraus de entrada, a mala em uma das mãos e a valise na outra, quando o táxi chegou. Dillon vestia capa de chuva, terno, gravata de listras e óculos, personificando Peter Hilton, e levava consigo a carteira de motorista e a licença de piloto como prova de identidade. Na mala havia uma necessaire e os artigos que compra­ra na loja de Clayton, em Covent Garden, arrumados com cuidado. Ele incluíra uma toalha do hotel, meias e roupas de baixo. Tudo parecia bastante normal e a peruca poderia ser facilmente explicada.

O trajeto até o aeroporto de Heathrow era rápido àquela hora da manhã. Dillon apanhou a passagem no setor de reservas, despachou a mala e obteve a indicação do assento. Ele não estava armado. Não havia meios de carregar uma arma, não com o tipo de segurança máxima com que operavam os vôos para Belfast.

Comprou alguns jornais, subiu para o restaurante do aeroporto e pediu um café da manhã completo. Começou então a ler os jornais, checando as notícias sobre a guerra no Golfo.

 

Em Gatwick, a neve cobria levemente as laterais da pista, no momento em que o Lear levantava vôo.

— Como você está se sentindo? — perguntou Mary, quando o avião se estabilizou.

— Não sei ao certo — respondeu Brosnan. — Faz muito tempo desde a última vez em que estive em Belfast. Liam Devlin, Anne-Marie. Tanto tempo.

— E Sean Dillon?

— Não se preocupe, não me esqueci dele. Não poderia esquecê-lo.

Ele se virou e seu olhar perdeu-se na distância, enquanto o jatinho erguia-se acima das nuvens, tomando o rumo noroeste.

 

Embora Dillon não tivesse conhecimento desse fato, Brosnan e Mary já haviam aterrissado e estavam a caminho do Hotel Europa, quando seu avião tocou o solo do aeroporto de Aldergrove, nos arredores de Belfast. Esperou cerca de meia hora pela bagagem e, quando apanhou a mala, dirigiu-se à saída, juntando-se ao fluxo de pessoas no aeroporto. Os agentes da alfândega pararam algumas delas, mas ele não se incluía, e cinco minutos mais tarde estava do lado de fora, tomando um táxi.

— O senhor é inglês? — indagou o motorista.

Dillon passou a falar com seu sotaque de Belfast.

— O que o faz pensar isso?

— Minha nossa! Me desculpe. Para onde o senhor deseja ir?

— Gostaria que me levasse a um hotel na Falls Road. Próximo à Craig Street.

— Não vai conseguir grande coisa nessa área.

— Cenas da minha juventude — disse-lhe Dillon. — Trabalho em Londres há vários anos e vim só por uma noite. Gostaria de ver os velhos lugares que costumava freqüentar.

— Se é assim que o senhor deseja. Existe lá o Deepdene, mas não é grande coisa, vou logo avisando.

Um carro blindado sarraceno passou por eles e, quando entraram numa estrada de movimento, viram uma patrulha do exército.

— Nada mudou — observou Dillon.

— Com toda certeza. E a maioria desses garotos não tinha nem nascido quando tudo começou — disse-lhe o motorista. — Eu me pergunto o que temos pela frente. Mais cem anos de guerra?

— Só Deus sabe — afirmou Dillon respeitosamente e abriu o jornal.

 

O motorista tinha razão. O Deepdene não era grande coisa. Um alto edifício vitoriano, numa rua pobre, transversal à Falls Road. Ele pagou a corrida, entrou e viu-se em um hall mal conservado, um tapete gasto no chão. Quando tocou a sineta sobre a mesa da recepção, uma mulher robusta, de aparência maternal, apareceu.

— Posso ajudá-lo, meu querido?

— Um quarto — respondeu ele. — Só por uma noite.

— Está certo. — Ela empurrou um formulário de registro na sua direção e entregou-lhe uma chave. — Quarto nove, no primeiro andar.

— Devo pagar agora?

— Não é necessário. Então eu não sei quando estou diante de um cavalheiro?

Ele subiu a escada, encontrou o quarto e destrancou a porta. O cômodo era tão pobre quanto ele imaginara: uma cama de solteiro em bronze, um armário. Pousou a mala sobre a mesa e saiu novamente, trancando a porta. Seguiu pelo lado oposto ao que viera no corredor, encontrando a escada dos fundos. Abriu a porta no final desta, deparando-se com um quintal em desordem. A ruela em que viera dar servia de fundos para algumas casas em péssimo estado, mas isso não o deixou nem um pouco deprimido. Esta era uma área que ele conhecia como a palma da sua mão, um local onde, nos velhos tempos, fizera o Exército britânico dançar conforme a sua música. Ele caminhou pelo beco, um sorriso estampado no rosto, recordando aquela juventude, e alcançou a Falls Road.

 

Eu me lembro de quando inauguraram isso aqui em 71 — disse Brosnan a Mary, diante da janela do quarto no sexto andar do Hotel Europa, na Great Victoria Street, próximo à estação de trem. — Durante algum tempo, este foi um dos principais alvos dos terroristas do IRA, aqueles que achavam que era melhor explodir qualquer coisa do que nada.

— Naturalmente, você não era um deles.

Havia na voz dela uma leve ponta de sarcasmo que ele ignorou.

— É claro que não. Eu e Devlin gostávamos muito do bar do hotel. Vínhamos sempre aqui.

Ela riu, perplexa.

— Que besteira! Você está querendo mesmo que eu acredite que, com o Exército britânico caçando-os por toda Belfast, você e Devlin vinham se sentar aqui no bar do Hotel Europa?

— Às vezes no restaurante também. Venha, vou lhe mostrar. É melhor levarmos os casacos para o caso de recebermos algum recado enquanto estamos lá embaixo.

Quando desciam pelo elevador, ela perguntou:

— Você não está armado, não é?

— Não.

— Ótimo. É melhor assim.

— E quanto a você?

— Estou — respondeu, tranqüila. — Mas no meu caso é diferente. Sou uma oficial da Coroa a serviço na sua jurisdição.

— O que você tem aí?

Mary abriu a bolsa, deixando-o ver a arma rapidamente. Não era muito maior que a palma da mão dela, uma pequena pistola automática.

— Do que se trata? — indagou ele.

— É uma arma bastante rara. Uma velha Colt .25. Eu a comprei na África.

— Não se trata de uma arma própria para abater elefantes.

— Não, mas dá conta do serviço. — Ela sorriu friamente. — Isto é, contanto que você possa atirar.

A porta do elevador se abriu e eles atravessaram o saguão.

 

Dillon andava rapidamente pela Falls Road. Nada mudara, absolutamente nada. Era tudo como nos velhos tempos. Por duas vezes, ele viu patrulhas da Real Polícia do Ulster reforçadas por soldados e, num determinado momento, passaram por ele dois veículos blindados para o transporte de tropas, mas ninguém nas ruas prestava atenção a isso. Finalmente, ele encontrou o que procurava na Craig Street, a menos de dois quilômetros do hotel. Tratava-se de uma pequena loja, de frente dupla, com venezianas de aço nas janelas. Viam-se as três bolas de bronze que simbolizavam uma casa de penhores penduradas sobre a porta, junto à placa que dizia: Patrick Macey.

Dillon abriu a porta e penetrou no silêncio bolorento. A loja mal iluminada estava entulhada por uma variedade de artigos: aparelhos de televisão, videocassetes, relógios. Viam-se até mesmo um fogareiro a gás e um ursinho de pelúcia num dos cantos.

Havia uma tela de ourives cobrindo todo o balcão e o homem que ali estava, sentado em um banco atrás do balcão, trabalhava em um relógio, com uma lente de joalheiro em um dos olhos. Ele ergueu o rosto, um sujeito definhado na casa dos sessenta anos, cinzento e pálido.

— Em que posso ajudá-lo?

— Nada mudou, Patrick. Este lugar ainda tem o mesmo cheiro — disse Dillon.

Macey tirou a lente do olho e franziu o cenho.

— Eu o conheço?

— Como poderia não conhecer, Patrick? Lembra-se daquela noite quente, em junho de 72, quando pusemos fogo no armazém daquele orangista de nome Stewart e atiramos nele e em seus dois sobrinhos enquanto corriam? Deixe-me ver... Éramos três. — Dil­lon pôs um cigarro na boca e o acendeu lentamente. — Éramos eu, você e seu meio-irmão, Tommy McGuire.

— Santa Mãe de Deus! Sean Dillon, é você mesmo?

— Nunca deixei de sê-lo, Patrick.

— Santo Deus, Sean, não pensei em vê-lo em Belfast nova­mente. Pensei que você estivesse...

Ele fez uma pausa e Dillon perguntou:

— Pensou que eu estivesse onde, Patrick?

— Em Londres — respondeu Patrick Macey. — Em algum lugar assim — acrescentou ele, pouco convincente.

— E de onde você tirou essa idéia? — Dillon foi até a porta, trancando-a, e cerrou as persianas.

— O que você está fazendo? — perguntou Macey, alarmado.

— Só quero ter uma conversinha em particular com você, Patrick, meu velho.

— Não, Sean, não quero mais saber disso. Não estou mais envolvido com o IRA.

— Sabe o que eles dizem, Patrick? Uma vez dentro, não se consegue mais sair. Por falar nisso, como é que vai o Tommy?

— Ah, Sean, pensei que você soubesse. O coitado do Tommy morreu há cinco anos. Levou um tiro de um dos companheiros. Uma rixa estúpida entre os provos e um dos grupos dissidentes. Suspeitou-se do INLA.

— É mesmo? — Dillon abanou a cabeça. — Você ainda vê alguma das velhas raposas? Liam Devlin, por exemplo?

E foi aí que Dillon o apanhou, pois Macey não conseguiu esconder a expressão de alarme.

— Liam? Eu não o vejo desde a década de setenta.

— Verdade? — Dillon ergueu o tampo na extremidade do balcão e aproximou-se dele. — Você é um grande mentiroso. — E esbofeteou-o. — Agora, vamos lá para dentro. — E empurrou-o, atravessando a cortina que separava a loja do escritório nos fundos.

Macey estava aterrorizado.

— Eu não sei de nada.

— Sobre o quê? Eu ainda não lhe perguntei nada. Primeiro eu vou lhe dizer algumas coisinhas. Tommy McGuire não está morto. Ele mora em alguma parte desta linda cidade, com outro nome, e você vai me dizer onde. Em segundo lugar, Liam Devlin veio aqui ver você. Estou certo nos dois casos, não estou? — Macey estava paralisado de medo, aterrorizado, e Dillon esbofeteou-o outra vez. — Não estou?

O outro homem então cedeu.

— Por favor, Sean, por favor. O meu coração... Posso ter um ataque cardíaco a qualquer momento.

— E terá se não abrir a boca, prometo a você.

— Está bem. Devlin esteve aqui hoje cedo, fazendo perguntas sobre Tommy.

— Posso lhe dizer o que ele falou?

— Por favor, Sean. — Macey estava tremendo. — Estou doente,

— Ele disse que o malvado do Sean Dillon estava à solta na cidade de Londres e que ele queria ajudar a liquidá-lo. E que outra fonte de informações haveria melhor do que seu velho camarada, Tommy McGuire? Estou certo?

Macey assentiu com a cabeça.

— Está.

— Ótimo, agora estamos chegando a algum lugar. — Dillon acendeu outro cigarro e fez um sinal com a cabeça na direção do cofre antigo, que ficava a um canto. — É ali que estão as armas?

— Que armas, Sean?

— Vamos, não me faça perder tempo. Há anos que você negocia com armas curtas. Abra logo.

Macey apanhou uma chave na gaveta da mesa, dirigiu-se ao cofre e o abriu. Dillon empurrou-o para um lado. Ali dentro havia várias armas: um velho Webley, alguns revólveres Smith & Wesson. O que lhe chamou a atenção foi um Colt .45 automático usado pelo Exército americano. Ele sopesou a arma e verificou o carregador.

— Maravilha, Patrick. Eu sabia que podia contar com você. — Ele pousou a arma sobre a mesa e sentou-se diante de Macey.

— Então, o que aconteceu?

O rosto de Macey começara a adquirir uma coloração muito estranha.

— Não estou me sentindo bem.

— Você se sentirá melhor depois que tiver me contado. Vá em frente.

— Tommy mora sozinho a aproximadamente um quilômetro daqui, na Canal Street. Ele reformou o velho armazém no fim da rua. Seu nome agora é Kelly, George Kelly.

— Conheço bem aquela área, cada pedacinho dela.

— Devlin pediu o número do telefone de Tommy e ligou para ele daqui mesmo. Disse que era essencial que Tommy o recebesse, que era sobre Sean Dillon. Tommy concordou em vê-lo às duas horas.

— Ótimo — disse Dillon. — Viu como foi fácil? Agora eu posso fazer uma visita a Tommy antes de Devlin e falar sobre os velhos tempos. Só que não vou me dar ao trabalho de telefonar. Vou lhe fazer uma surpresa. É mais divertido.

— Você não vai conseguir entrar — afirmou Macey. — Só se pode entrar pela frente, todas as outras portas foram soldadas. Há anos que ele sofre de paranóia, aterrorizado com a idéia de que alguém quer liquidá-lo. Você não conseguirá entrar pela porta da frente. Há monitores de TV e coisas desse tipo por todos os lados.

— Existe sempre uma maneira — declarou Dillon.

— Existe sempre uma maneira para você. — Macey puxou com violência a gola da própria camisa, sentindo-se sufocado. — Os comprimidos... — gemeu ele, abrindo a gaveta à sua frente.

O vidro que ele apanhou caiu de suas mãos e ele desmoronou pesadamente sobre a cadeira. Dillon ergueu-se, contornou a mesa e apanhou o vidro.

— O problema, Patrick, é que no instante em que eu passar por aquela porta, você irá telefonar a Tommy. E isso não seria nada bom não é mesmo?

Ele dirigiu-se à lareira e despejou o vidro de comprimidos sobre as brasas incandescentes. Houve um ruído atrás dele e Dillon virou-se, vendo que Macey tombara da cadeira, e debruçou-se sobre ele por um momento. O rosto de Macey agora estava arroxeado e suas pernas mexiam-se convulsivamente. De súbito, deu um grande arquejo, como se o ar escapasse, a cabeça caiu para um lado e ele quedou-se completamente imóvel.

Dillon pôs o Colt no bolso, cruzou a loja e abriu a porta, trancando-a e deixando as persianas abaixadas. Um minuto depois, ele dobrava a esquina da Falls Road e voltava para o hotel, caminhando o mais rápido que podia.

Ele dispôs o conteúdo da mala sobre a cama no quarto rústico do hotel e então se despiu. Primeiro, vestiu o jeans, o velho par de tênis e um pesado macacão. A seguir veio a peruca. Sentou-se diante do espelho da pequena penteadeira, ajeitando o cabelo grisalho até este ter a aparência de malcuidado e despenteado. Amarrou a echarpe em torno da cabeça e estudou-se no espelho. Vestiu então a saia que lhe chegava aos tornozelos. A velha capa de chuva, demasiadamente grande, completava a vestimenta.

Pôs-se de pé diante do armário, examinando-se no espelho. Fechou os olhos, pensando em seu papel, e quando voltou a abri-los, não se tratava mais de Dillon, e sim de uma mendiga decrépita e maltrapilha.

A maquiagem era quase desnecessária: apenas uma base para lhe emprestar uma aparência pálida e doentia e um toque de batom carmim nos lábios. Tudo errado, é claro, mas perfeitamente adequado ao personagem. Apanhou meia garrafa de uísque em uma sacola na valise e despejou um pouco nas mãos, espalhando pelo rosto, e então espargiu um pouco mais na frente da capa. Colocou o Colt, alguns jornais e a garrafa de uísque em uma sacola plástica e preparou-se para sair.

Olhou no espelho mais uma vez aquela velha estranha e horri­pilante.

— Hora do espetáculo — sussurrou e saiu.

Estava tudo silencioso quando desceu pela escada dos fundos e chegou ao pátio. Fechou a porta cuidadosamente atrás de si e encaminhou-se para o portão que levava à viela. Quando o alcançou, a porta do hotel abriu-se atrás dele.

— Ei, o que você pensa que está fazendo? — gritou uma voz.

Dillon voltou-se e viu um ajudante de cozinha num sujo avental branco, jogando uma caixa de papelão na lata de lixo.

— Vá se foder! — grasnou Dillon.

— Vamos, dê o fora daqui, sua velha mendiga! — gritou o ajudante.

Dillon fechou o portão atrás de si.

— Nota dez, Sean — murmurou ele, atravessando o beco.

Dobrou a esquina da Falls Road e começou a caminhar arrastando os pés pela calçada, uma figura tão estranha que as pessoas saíam de seu caminho para evitá-la.

 

Era quase uma hora da tarde e Brosnan e Mary Tanner, no bar do Hotel Europa, começavam a pensar no almoço, quando um jovem carregador aproximou-se deles.

— Sr. Brosnan?

— Eu mesmo.

— Seu táxi já chegou, senhor.

— Táxi? — espantou-se Mary. — Mas não pedimos nenhum.

— Pedimos sim — disse Brosnan.

Ele a ajudou a vestir o casaco e os dois seguiram o jovem pelo vestíbulo, descendo os degraus da entrada principal até o táxi preto que os aguardava junto ao meio-fio. Brosnan deu uma libra ao rapaz e entraram no carro. O motorista, do outro lado da divisória de vidro, usava um boné de tweed e um velho casaco de marinheiro. Mary Tanner deslizou a divisória para um dos lados.

— Suponho que o senhor saiba para onde estamos indo — disse ela.

— Com certeza, meu amor. — Liam Devlin sorriu-lhe por sobre o ombro, ligou o carro e partiu.

Passava pouco da uma e meia quando Devlin dobrou com o táxi a esquina da Canal Street.

— É aquela casa no fim da rua — disse ele. — Vamos estacionar naquele terreno ao lado.

Saltaram do carro, voltaram à rua e aproximaram-se da entrada.

— Comportem-se bem, vocês estão sendo filmados — avisou Devlin e puxou o cordão da campainha ao lado da maciça porta cujas folhas eram presas por ferro.

— Não parece muito aconchegante — comentou Mary.

— É, mas com o passado de Tommy McGuire ele precisa mais de uma fortaleza do que de uma casinha aconchegante e isolada num lindo terreno. — Devlin virou-se para Brosnan: — Você está armado?

— Não, mas ela está. E você também, creio eu.

— Chame a isso de precaução inata ou talvez de um mau hábito já arraigado.

Uma voz soou pelo interfone ao lado da porta.

— É você, Devlin?

— Quem mais poderia ser, seu malandro estúpido? Estou acompanhado por Martin Brosnan e por uma amiga dele e estamos congelando neste maldito frio. Portanto, abra logo a porta.

— Você está adiantado. Combinamos duas horas.

Ouviram passos do outro lado e então a porta se abriu, mostrando um homem alto e cadavérico de sessenta e poucos anos. Ele vestia um pesado pulôver Aran e um jeans largo e trazia consigo uma metralhadora portátil Sterling.

Devlin passou rápido por ele, entrando na frente.

— O que você pretende fazer com essa coisa? Começar outra guerra?

McGuire fechou a porta, cerrando-a com a tranca.

— Só se eu for obrigado. — Olhou-os com desconfiança. — Martin? — Ele estendeu a mão. — Há quanto tempo. Já você, seu velho patife — disse ele a Devlin —, o que quer que o esteja mantendo longe do túmulo, deveria ser engarrafado e vendido. Ganharíamos uma fortuna. — Examinou Mary. — E quem é você?

— Uma amiga—respondeu Devlin.—Vamos logo com isso.

— Está bem. Venham por aqui.

O interior do armazém estava totalmente vazio, exceto por um furgão parado a um canto. Uma escada de aço levava a um patamar acima onde antes havia escritórios envidraçados. McGuire subiu na frente e entrou no primeiro escritório. Via-se ali uma mesa e uma bancada com o equipamento de TV, uma tela mostrando a rua, e outra, a entrada. Ele pousou a Sterling sobre a mesa.

— Você mora aqui? — indagou Devlin.

— Lá em cima. Transformei o sótão que se usava para armazenar mercadorias em um apartamento. Agora, vamos ao assunto, Devlin. O que é que você quer? Você mencionou o nome de Sean Dillon.

— Ele está à solta outra vez — disse Brosnan.

— Pensei que Dillon já tivesse se dado mal. Já faz tanto tempo... — McGuire acendeu um cigarro. — Bem, o que eu tenho a ver com isso?

— Ele tentou liquidar o Martin em Paris. Só que em seu lugar matou uma amiga dele.

— Santo Deus! — exclamou McGuire.

— Agora ele está à solta em Londres e eu quero pegá-lo — disse Brosnan.

McGuire voltou-se outra vez para Mary.

— E onde é que ela entra nessa história?

— Sou capitão do Exército britânico — respondeu ela, enérgica. — Meu nome é Tanner.

— Pelo amor de Deus, Devlin, o que isso quer dizer? — interrogou McGuire.

— Está tudo certo — tranqüilizou-o Devlin. — Ela não veio até aqui para prendê-lo, embora todos nós saibamos que se Tommy McGuire ainda estivesse no mundo dos vivos, pegaria uns vinte e cinco anos.

— Seu canalha!

— Seja sensato — prosseguiu Devlin. — Basta responder a algumas perguntas e você pode voltar a ser George Kelly outra vez.

McGuire ergueu uma mão defensivamente.

— Está bem, já entendi. O que vocês querem saber?

— Mil novecentos e oitenta e um, os atentados a bomba em Londres — começou Brosnan. — Você era o chefe de Dillon.

McGuire olhou para Mary.

— Isso mesmo.

— Sabemos que Dillon deve ter enfrentado os problemas costumeiros no que se refere a armas e explosivos, Sr. McGuire — acrescentou Mary. — E já me foi dado a entender que, em tais circunstâncias, ele prefere usar contatos no submundo. Estou certa?

— Sim, ele costumava trabalhar dessa forma — anuiu McGui­re, relutante, e sentou-se.

— Você tem alguma idéia de quem ele usou em Londres em 81?—insistiu Mary.

McGuire parecia assustado.

— Como eu poderia saber? Pode ter sido qualquer um.

— Seu patife mentiroso — interveio Devlin. — Você sabe, sim. Sei que você sabe. — Sua mão direita saiu do bolso do casaco empunhando uma pistola Luger antiga, que ele encostou na testa de McGuire. — Seja rápido. Fale logo ou eu...

McGuire empurrou a arma para um lado.

— Está bem, Devlin, você ganhou. — Acendeu outro cigarro. — Ele fez uma transação em Londres com um grande negociante chamado Jack Harvey, um gângster de verdade.

— Aí está. Não foi tão difícil assim, não é? — disse Devlin. Houve uma batida forte na porta lá embaixo e todos olharam para a tela do monitor, vendo uma velha maltrapilha nos degraus de entrada. Sua voz soou clara pelo interfone:

— Sr. Kelly, sei que o senhor é uma alma caridosa. Será que não podia dar uma libra a uma pobre coitada?

McGuire disse pelo interfone:

— Dê o fora daqui, velha mendiga!

— Pelo amor de Deus, Sr. Kelly, vou morrer aqui na sua porta nesse frio horrível e o mundo inteiro saberá.

McGuire ergueu-se.

— Vou até lá me livrar dela. É só um minuto.

Ele desceu as escadas apressado e tirou uma nota de cinco libras de uma velha carteira. Abriu a porta, segurando-a.

— Tome isto e dê o fora.

A mão de Dillon surgiu da sacola plástica segurando o Colt.

— Cinco libras, Tommy! Você está ficando generoso na velhice. Para dentro.

Dillon empurrou-o e fechou a porta. McGuire estava em pânico.

— Ei, o que é isso?

— Nêmesis — respondeu Dillon. — Pagamos nossos pecados nesta vida, Tommy, todos nós. Lembra-se daquela noite em 72, quando eu, você e Patrick atiramos nos Stewart, enquanto fugiam do fogo?

— Dillon? — murmurou McGuire. — É você? — Ele começou a se virar e ergueu a voz: — Devlin! — gritou.

Dillon acertou dois tiros em suas costas, quebrando-lhe a espinha e derrubando-o, o rosto voltado para o chão. Quando Dillon abria a porta, Devlin surgiu no patamar, a Luger na mão, já atirando. Dillon atirou três vezes seguidas, quebrando a vidraça de um dos escritórios, e então já estava do lado de fora, batendo a porta atrás de si.

Quando subia a rua, dois Land Rovers, com quatro soldados em cada um deles, desviaram-se da rua principal, atraídos pelo tiroteio, e vieram em sua direção. Um azar e tanto, mas Dillon não hesitou. Quando passou por um bueiro na sarjeta, fingiu escorregar e jogou o Colt pela grade.

Quando já se levantava, alguém gritou: — Fique onde está!

Tratava-se de pára-quedistas em uniformes camuflados, coletes à prova de balas e boinas vermelhas, todos com os rifles prontos, e Dillon brindou-os com a grande performance de sua vida. Cambaleou para a frente, gemendo, chorando e agarrando-se ao jovem tenente no comando.

— Santo Deus, senhor, coisas horríveis estão acontecendo lá naquele armazém. Eu estava lá, me escondendo do frio, e de repente saem um caras e começam a atirar um no outro.

O jovem oficial sentiu o cheiro do uísque e o empurrou para longe.

— Veja o que ela tem na sacola, sargento.

O sargento remexeu rapidamente na sacola.

— Só tem uma garrafa de uísque vagabundo e alguns jornais, senhor.

— Certo, espere ali adiante. — O oficial empurrou Dillon pela calçada atrás da patrulha e apanhou um alto-falante em um dos Land Rovers. — Vocês, aí dentro — gritou ele. — Joguem suas armas pela porta e saiam com as mãos para cima. Vocês têm dois minutos antes que entremos aí para buscá-los.

Todos os membros da patrulha estavam de prontidão, a atenção voltada para a entrada. Dillon esquivou-se na direção do terreno ao lado, dobrou a esquina e correu, passando pelo táxi de Devlin e achando em segundos o que procurava: uma entrada de inspeção da rede de esgotos. Ergueu a tampa e desceu pela escada de aço, puxando a tampa de volta para o lugar. Este fora um dos métodos que usara muitas vezes para escapar ao Exército britânico nos velhos tempos, e ele conhecia perfeitamente o sistema de esgotos na Falls Road.

O túnel era pequeno e muito escuro. Engatinhou ao longo dele, ciente do som de água corrente, e saiu na borda em aclive de um túnel maior, o esgoto principal. Havia saídas para o canal que iam dar no Lago Belfast, ele sabia. Tirou a saia, a peruca e jogou-as na água, usando a echarpe para limpar os lábios e o rosto, esfregando-os vigorosamente, e então apressou-se até encontrar uma outra escada de aço. Pôs-se a subir na direção dos raios de luz que brilhavam através dos buracos na tampa de ferro fundido, esperou um momento, e então a ergueu. Encontrava-se em um caminho pavimentado por pedras ao lado do canal, tendo do outro lado os fundos de casas decadentes, com tábuas nas janelas. Repôs a tampa no lugar e dirigiu-se à Falls Road o mais rápido possível.

 

No armazém, o jovem oficial encontrava-se de pé ao lado do corpo de McGuire, examinando a identidade de Mary Tanner.

— É perfeitamente autêntica — disse ela. — Pode verificar.

— E quanto a esses dois?

— Eles estão comigo. Ouça, tenente, o senhor receberá uma explicação completa do meu chefe, o general-de-brigada Charles Ferguson, do Ministério da Defesa.

— Está bem, capitão — disse ele, defensivamente. — Só estou cumprindo minha obrigação. Aqui já não é mais como nos velhos tempos, a senhora sabe. Temos a Real Polícia do Ulster no nosso pé. Todas as mortes têm de ser investigadas cuidadosamente, do contrário, cria-se uma encrenca danada.

O sargento entrou.

— O coronel está na linha, chefe.

— Ótimo — disse o jovem tenente e saiu.

Brosnan dirigiu-se a Devlin:

— Você acha que era Dillon?

— Duvido que não fosse. Uma velha maltrapilha? — Devlin balançou a cabeça. — Quem teria pensado nisso?

— Somente Dillon seria capaz.

— Vocês estão tentando dizer que ele veio de Londres até aqui especialmente para isso? — perguntou Mary.

— Graças a Gordon Brown, ele sabia o que pretendíamos fazer. E qual a duração do vôo de Londres a Belfast? — ponderou Brosnan. — Uma hora e quinze?

— Isso significa que ele terá de voltar a Londres — observou Mary.

— Talvez — assentiu Liam Devlin. — Mas nada é absoluto nesta vida, garota, você vai aprender isso. E você está lidando com um homem que se manteve longe das mãos da polícia de toda a Europa por vinte anos ou mais.

— Bem, já é hora de pegarmos o canalha. — Ela abaixou os olhos para o corpo de McGuire. — Nada agradável, não é?

— A violência, as mortes. Brinque com o Demônio e é este o resultado — disse-lhe Devlin.

 

Dillon entrou pela porta dos fundos do hotel, exatamente às duas e quinze, e apressou-se em direção ao seu quarto. Tirou o jeans e o macacão, colocou-os na mala e a jogou dentro da parte superior do armário. Lavou o rosto rapidamente e a seguir vestiu uma camisa branca, gravata, um terno escuro e um casaco de tecido impermeável azul. Cinco minutos após ter entrado, já se encontrava fora do quarto, descendo as escadas dos fundos, a valise numa das mãos. Caminhou pelo beco, virando na Falls Road, onde pôs-se a caminhar apressado. Mais cinco minutos e havia conseguido um táxi, pedindo ao motorista que o levasse ao aeroporto.

 

O oficial no comando do serviço de informações do Exército na área de Belfast era o coronel McLeod, que não estava muito satisfeito com a situação diante da qual se encontrava.

— Isso não está nada certo, capitão Tanner — disse ele. — Não podemos permitir que vocês venham até aqui como cowboys e ajam por sua própria conta. — Virou-se para olhar Devlin e Brosnan. — E acompanhados de pessoas de reputação bastante duvidosa. Atualmente estamos numa situação delicada e ainda temos a Real Polícia do Ulster para dar satisfações. Eles vêem isto aqui como domínio deles.

— Bem, talvez seja assim — disse-lhe Mary. — Mas seu sargento lá fora foi gentil o bastante para checar os vôos para Londres para mim. Haverá um às quatro e meia e outro às seis e meia. O senhor não acha que seria uma boa idéia fazer uma inspeção completa nos passageiros?

— Não somos de todo estúpidos, capitão. Já tomei providências nesse sentido, mas estou certo de que não preciso lembrar-lhe que não somos um exército de ocupação. Aqui não existe nenhuma lei marcial. Seria impossível fecharmos o aeroporto, eu não tenho essa autoridade. Tudo que posso fazer é notificar a polícia e a segurança do aeroporto segundo a rotina e, como a senhora já tentou explicar, no que diz respeito a esse tal Dillon, não temos muitas informações a passar. — O telefone tocou e ele atendeu. — General Ferguson? Lamento incomodá-lo, senhor. Coronel McLeod, do quartel-general de Belfast. Parece que temos um problema aqui.

 

Dillon, porém, no aeroporto, não tinha a menor intenção de voltar num vôo direto para Londres. Talvez ele não tivesse maiores problemas, mas seria loucura tentar quando havia outras alternativas. Passava pouco das três quando ele começou a examinar o quadro de embarques. Perdera por pouco o vôo para Manchester, mas havia um para Glasgow, programado para as três e quinze, e que estava atrasado.

Dirigiu-se ao balcão de reservas.

— Eu esperava pegar o vôo para Glasgow — disse ele à jovem operadora —, mas cheguei muito tarde. Agora vejo que o vôo também está atrasado.

Ela verificou no computador.

— Isso mesmo. Está com um atraso de meia hora, senhor, e ainda temos muitos lugares. Gostaria de ir nele?

— Com certeza — disse ele, agradecido, e tirou o dinheiro da carteira, enquanto ela preenchia o bilhete.

Não houve qualquer problema com a segurança. De qualquer forma, o conteúdo de sua valise era de todo inofensivo. Os passageiros já haviam sido chamados e Dillon embarcou, ocupando um lugar bem ao fundo. Tudo correra satisfatoriamente. Só uma coisa não fora bem: Devlin, Brosnan e a mulher chegaram primeiro a McGuire. Uma pena, pois levantava a questão de o que ele lhes havia falado. Harvey, por exemplo. Precisava agir rápido, por precaução.

Dillon sorriu, encantador, quando a aeromoça perguntou-lhe se queria uma bebida.

— Uma xícara de chá está ótimo — disse ele e apanhou um jornal na valise.

 

McLeod levou Brosnan, Mary e Devlin para o aeroporto e chegaram pouco antes de os passageiros serem chamados para o embarque no vôo de quatro e meia para Londres. Um inspetor da Real Polícia do Ulster acompanhou-os à sala de embarque.

— São apenas trinta passageiros, como vocês podem ver, e checamos todos eles cuidadosamente.

— Sou de opinião de que estamos fazendo uma busca inútil — opinou McLeod.

Os passageiros foram chamados e Brosnan e Devlin ficaram ao lado da porta, observando cada um deles, à medida que passavam. Quando todos já haviam passado, Devlin sugeriu:

— Aquela freira idosa, Martin, não acha que deveríamos ter feito uma revista completa?

McLeod interveio, impaciente:

— Ora, pelo amor de Deus, vamos sair daqui.

— Que sujeito mais irascível — observou Devlin, quando o coronel se afastou. — Devem ter empregado métodos muito rígidos na escola dele. Então, vocês dois vão voltar para Londres?

— Sim, e é melhor nos apressarmos — respondeu Brosnan.

— E o senhor, Sr. Devlin? — indagou Mary. — Vai ficar bem?

— Ah, para ser sincero, Ferguson me assegurou um “atestado de saúde” há alguns anos devido a serviços prestados junto ao serviço secreto britânico. Ficarei bem. — Ele a beijou no rosto. — Foi um grande prazer, minha querida.

— Também para mim.

— Cuide desse garoto aí. Dillon é cheio de truques.

Eles haviam alcançado o saguão para onde as pessoas afluíam. Sorriu para eles e de súbito desapareceu em meio à multidão. Brosnan respirou fundo.

— Pois bem, voltemos a Londres. E rápido. — Segurou-a pelo braço, deixando para trás a aglomeração de pessoas.

 

O vôo para Glasgow durou apenas 45 minutos. Às quatro e meia, Dillon estava em solo escocês. Havia uma ponte aérea para Londres às cinco e quinze. Ele comprou uma passagem no balcão e dirigiu-se apressadamente para a sala de embarque, onde a primeira coisa que fez foi telefonar para Danny Fahy, em Cadge End. Foi Angel quem atendeu.

— Chame seu tio Danny. Aqui é Dillon.

— É você, Sean? — perguntou Danny.

— Decerto. Estou em Glasgow esperando o avião. Desembarcarei no Terminal Um do Heathrow às seis e meia. Você pode ir até lá me encontrar? Há tempo suficiente.

— Sem problemas, Sean. Levarei Angel comigo.

— Está certo e, Danny, prepare-se para trabalhar durante a noite. Amanhã pode ser o grande dia.

— Santo Deus, Sean! — exclamou ele, mas Dillon já havia desligado antes que Fahy pudesse dizer mais alguma coisa.

A seguir, ligou para o escritório de Harvey na funerária, em Whitechapel. Foi Myra quem atendeu.

— Aqui quem fala é Peter Hilton. Nós nos conhecemos ontem. Gostaria de trocar uma palavrinha com seu tio.

— Ele não se encontra. Foi a um compromisso em Manchester. Só estará de volta amanhã de manhã.

— Isso não é nada bom — disse Dillon. — Ele prometeu que entregaria minha encomenda em 24 horas.

— Ah, já está aqui — informou Myra. — Mas espero receber cash na entrega.

— É o que terá. — Ele olhou para o relógio, calculando o tempo que levaria do Heathrow a Bayswater para apanhar o dinheiro. — Estarei aí por volta de quinze para as oito.

— Estarei à sua espera.

Quando Dillon pousou o fone no gancho, o vôo foi anunciado e ele se juntou ao grupo de passageiros que se dirigia ao embarque.

 

Myra, de pé ao lado da lareira no escritório do tio, tomou uma decisão. Apanhou a chave da sala secreta na gaveta da mesa e saiu, parando no alto da escada.

— Billy, você está aí embaixo?

Ele subiu em um minuto.

— Aqui estou eu.

— Você estava na sala dos caixões de novo, não é? Vamos, eu preciso de você. — Ela caminhou ao longo do corredor até a última porta, abriu-a e empurrou a parede falsa. Apontou para uma das caixas de Semtex. — Leve isto para o escritório.

Quando ela voltou à sala do tio, Billy já havia colocado a caixa sobre a mesa.

— Um peso dos diabos. O que tem aí dentro?

— É dinheiro, Billy. Isso é tudo que você precisa saber. Agora me ouça com atenção: aquele sujeito baixinho, o que o surrou ontem...

— O que tem ele?

— Ele vai aparecer aqui às quinze para as oito para me pagar muito dinheiro pelo que tem aí dentro desta caixa.

— E daí?

— Daí que quero que, às sete e meia, você esteja lá fora esperando naquela sua linda roupa preta de couro com sua BMW pronta. Quando ele sair, você o seguirá, Billy, até a maldita Cardiff, se necessário. — Deu um tapinha no rosto dele. — E se você o perder, benzinho, não se dê ao trabalho de voltar aqui.

 

Nevava ligeiramente no Heathrow, quando Dillon surgiu no Termi­nal Um. Angel estava à sua espera e acenou, animada.

— Glasgow! — exclamou ela. — O que estava fazendo lá?

— Tentando descobrir o que os escoceses usam sob as saias.

Ela riu, pendurando-se no braço dele.

— Você é terrível!

Saíram, caminhando pela neve até o furgão Morris, onde se econtrava Fahy.

— Que bom vê-lo de novo, Sean. Para onde vamos?

— Para o meu hotel em Bayswater. Quero apanhar minhas coisas e sair de lá.

— Você vai ficar com a gente? — perguntou Angel.

— Vou — respondeu Dillon —, mas primeiro preciso buscar um presente para Danny numa funerária em Whitechapel.

— E que presente é esse? — indagou Fahy.

— Ah, uns vinte e cinco quilos de Semtex.

O furgão deu uma guinada e derrapou ligeiramente, Fahy lutando para controlá-lo.

— Santa Mãe de Deus! — exclamou ele.

 

Na funerária, o porteiro da noite admitiu Dillon pela entrada principal.

— Sr. Hilton, não é? A Srta. Myra está esperando o senhor.

— Conheço o caminho.

Dillon subiu a escada, percorreu o corredor e abriu a porta da sala que antecedia o escritório. Myra o aguardava.

— Entre — convidou.

Ela vestia um conjunto de blusa e calça comprida pretas e fumava um cigarro. Sentou-se atrás da mesa e tamborilou os dedos sobre a caixa de papelão.

— Eis aqui. Onde está o dinheiro?

Dillon pousou a valise sobre a caixa e a abriu, tirando dali quinze mil dólares e deixando-os cair diante dela, maço por maço. Restavam ainda cinco mil dólares na valise, a Walther com o silenciador Carswell e a Beretta. Ele fechou a valise e sorriu.

— Foi um prazer fazer negócio com você.

Ele apanhou a caixa com a valise em cima, ela adiantou-se e abriu a porta.

— O que você vai fazer com isso? Mandar o Parlamento pelos ares? — perguntou ela.

— Isso foi coisa de Guy Fawkes — retrucou ele e percorreu de volta o corredor, descendo as escadas.

A calçada estava coberta de gelo e ele caminhou pela rua, dobrando a esquina e alcançando o furgão. Billy, esperando ansioso nas sombras, guiou a BMW, sem ligar o motor, por entre os carros estacionados na rua, até que pôde ver Dillon parar junto ao Morris. Angel abriu a porta traseira e Dillon guardou lá dentro a caixa de papelão. Ela fechou a porta e deram a volta, sentando-se ao lado de Fahy.

— É aquele pacote, Sean?

— Isso mesmo, Danny, uma caixa com vinte e cinco quilos de Semtex, ainda com o selo da fábrica em Praga. Agora, vamos sair daqui. Temos uma longa noite pela frente.

Fahy cruzou algumas ruas secundárias e virou na rua principal e, enquanto ele acompanhava o fluxo do trânsito, Billy o seguia na motocicleta.

 

Por motivos técnicos, o jato Lear não obteve autorização para decolar do aeroporto de Aldergrove antes das cinco e meia da tarde. Já eram quinze para as sete, quando Brosnan e Mary aterrissaram no Gatwick, onde uma limusine do Ministério da Defesa os aguardava. Mary usou o telefone do carro e encontrou Ferguson no apartamento da Cavendish Square. Ele estava de pé ao lado da lareira, aquecendo-se, quando Kim entrou acompanhando os dois.

— O tempo está abominável e receio que ainda haja muita neve vindo por aí. — Sorveu um gole de chá. — Bem, pelo menos vocês estão inteiros, meus queridos. Deve ter sido uma experiência muito estimulante.

— Pode-se dizer que sim.

— Vocês têm absoluta certeza de que era Dillon?

— Bem, digamos que, se não era ele, foi uma enorme coincidência alguém ter escolhido aquele momento para matar Tommy McGuire. E ainda há o truque da velha mendiga. Típico de Dillon.

— É, um truque notável.

— O certo é que ele não voltou no vôo para Londres, senhor — afirmou Mary.

— Você quer dizer que acha que ele não estava no vôo — Ferguson corrigiu-a. — Pelo que sei, o maldito sujeito pode ter-se feito passar até pelo piloto. Ele parece capaz de qualquer coisa.

— Há um outro avião que parte para Londres às oito e meia, senhor. O coronel McLeod garantiu-nos que faria a inspeção completa dos passageiros.

— Uma perda de tempo.—Ferguson voltou-se para Brosnan: — Creio que você concorda comigo, não é, Martin?

— Receio que sim.

— Agora vamos analisar os fatos outra vez. Contem-me tudo que aconteceu.

Quando Mary chegou ao fim do relato, Ferguson disse:

— Verifiquei há pouco o horário dos vôos que saem do Aldergrove. Havia lugares disponíveis nos vôos para Manchester, Birmingham e Glasgow. Havia até mesmo um vôo para Paris às seis e meia. Não é nenhum absurdo voltar para Londres de lá. Ele estaria aqui amanhã.

— E também ainda há a possibilidade de uma parte do trajeto pelo mar — lembrou-lhe Brosnan. — É só tomar o ferry de Larne a Stranraer, na Escócia, e um trem expresso dali para Londres.

— E mais o fato de que ele pode ter cruzado a fronteira irlandesa, ido até Dublin e prosseguido de lá de várias formas — disse Mary. — O que não nos leva a lugar nenhum.

— O interessante disso tudo são as razões por trás dessa viagem dele — observou Ferguson. — Até a noite passada, ele não tinha conhecimento da sua intenção de ir atrás de McGuire, quando Brown revelou o conteúdo daquele relatório para Tânia Novikova. Não obstante, ele foi correndo para Belfast, o mais rápido que pôde. Por que teria feito isso?

— Para calar a boca de McGuire — respondeu Mary. — É interessante observar que nosso encontro com McGuire foi marcado para as duas horas, mas nós chegamos quase meia hora antes. Se não fosse por isso, Dillon o teria alcançado antes de nós.

— De qualquer forma, ele não sabe o que McGuire lhes disse, se é que disse alguma coisa.

— Mas o importante, senhor, é que Dillon sabia que McGuire tinha alguma informação sobre ele. Foi por isso que se deu ao trabalho de ir atrás dele. E é óbvio que a informação era a de que esse tal Jack Harvey foi seu fornecedor de armas na campanha de Londres de 81.

— Bem, depois que vocês falaram comigo do Aldergrove antes de virem para cá, eu fiz uma investigação. O detetive-inspetor Lane, da Divisão Especial, me informou que Harvey é um conhecido gângster, com atividades em larga escala: drogas, prostituição, entre outras coisas. Há anos que a polícia está atrás dele, mas sem sucesso. Infelizmente, ele agora é também um homem de negócios legalizado: imóveis, clubes, casas de apostas e assim por diante.

— O que o senhor está tentando dizer? — quis saber Mary.

— Que a coisa não é tão fácil quanto vocês possam estar pensando. Não podemos simplesmente prender Harvey para um interrogatório porque um homem que agora está morto o acusou de algo acontecido há dez anos. Sejam sensatos, meus queridos. Ele ficaria quieto, a boca bem fechada, e uma equipe dos melhores advogados de Londres o poria em liberdade num tempo recorde.

— Em outras palavras, seríamos ridicularizados na corte? — observou Brosnan.

— Exatamente. — Ferguson suspirou. — Sempre tive uma grande simpatia pela idéia de que, no que diz respeito às classes criminosas, a única forma de conseguirmos alguma justiça é levar todos os advogados à praça mais próxima e fuzilá-los.

Brosnan olhou, através da janela, a neve que caía suavemente.

— Há um outro meio.

— Suponho que esteja falando de seu amigo Flood. — Ferguson sorriu, tenso. — Não há nada que os impeça de se aconselhar com ele, mas estou certo de que vocês se manterão dentro dos limites da legalidade.

— Ah, com certeza, general, eu prometo. — Brosnan apanhou o casaco. — Vamos, Mary, vamos falar com Harry.

 

Seguir o Morris não era tarefa muito difícil para Billy em sua BMW. A neve cobria apenas as laterais da estrada e a pista estava molhada. O trânsito, bastante intenso de Londres a Dorking, estava mais tranqüilo na estrada para Horsham, embora ainda fosse suficiente para lhe dar cobertura.

Ele teve sorte quando o Morris dobrou na placa sinalizando a entrada para Grimethorpe, pois parara de nevar e o céu clareara, deixando surgir uma meia-lua. Billy desligou o farol e seguiu as luzes do Morris a uma certa distância, anônimo em meio à escuridão. Quando o furgão entrou no caminho indicado pela placa de Doxley, Billy seguiu com mais cuidado, parando no alto do morro e observando o veículo atravessar o portão da fazenda.

Ele desligou o motor e desceu a encosta do morro, parando ao lado do portão e da tabuleta onde se lia Fazenda Cadge End. Caminhou pela trilha em meio às árvores e pôde ver o interior iluminado do galpão na outra extremidade do pátio, com Dillon, Fahy e Angel ao lado do Morris. Dillon virou-se, saiu e cruzou o pátio.

Billy bateu em retirada rapidamente, montou na BMW e desceu com ela a encosta, só voltando a ligar o motor quando já se encontrava a alguma distância da fazenda. Cinco minutos mais tarde, ele já estava na estrada principal, a caminho de Londres.

 

Na sala de estar, Dillon ligou para Makeev, em Paris.

— Sou eu — disse ele.

— Estou preocupado — disse-lhe Makeev. — O que aconteceu a Tânia...

— Tânia escolheu sua própria saída — interrompeu-o Dillon —, eu já lhe disse. Foi sua maneira de se assegurar de que não conseguiriam arrancar-lhe nada.

— E essa história que você mencionou, a viagem a Belfast?

— Já está tudo resolvido. A engrenagem já começou a funcionar, Josef.

— Quando será?

— O Gabinete de Guerra se reúne às dez da manhã na Downing Street. É quando atacaremos.

— Mas como?

— Os jornais dirão. O importante agora é que você diga a Michael Aroun que voe até a propriedade em St. Denis amanhã de manhã. Espero estar chegando lá de avião à tarde.

— Rápido assim?

— Bem, eu não vou ficar aqui de bobeira, não é? E quanto a você, Josef?

— Acho que seria bom eu ir também para St. Denis com Aroun e Rashid.

— Ótimo. Então, até nosso feliz encontro, e lembre a Aroun sobre aquele outro milhão.

Dillon desligou o telefone, acendeu um cigarro, voltou a erguer o fone e ligou para o Campo de Aviação Grimethorpe. Após alguns momentos, obteve resposta.

— Aqui é Bill Grant. — A voz soava ligeiramente como a de um bêbado.

— Peter Hilton, Sr. Grant.

— Ah, certo. E em que posso servi-lo?

— Aquela viagem que eu queria fazer a Land’s End, acho que vai ser amanhã.

— A que horas?

— Se puder estar pronto de meio-dia em diante... Assim está bem?

— Contanto que não neve muito. Se nevar mais do que isso, poderemos ter problemas.

Grant descansou o fone lentamente no gancho, estendeu a mão para a garrafa de scotch e serviu-se de uma dose generosa. A seguir, abriu a gaveta da mesa. Havia ali um velho revólver Webley, do tipo usado pelas forças armadas, e uma caixa de cartuchos .38. Ele carregou a arma e tornou a guardá-la na gaveta.

— Muito bem, Sr. Hilton. Vamos ver o que o senhor pretende, certo? — E engoliu a dose de uísque de uma só vez.

 

— Se eu conheço Jack Harvey? — Harry Flood começou a rir, sentado à sua mesa, e olhou para Mordecai Fletcher. — Conheço, Mordecai?

O homem corpulento sorriu para Brosnan e Mary, de pé diante da mesa, ainda vestidos com seus casacos.

— Sim, acho que se pode dizer que conhecemos o Sr. Harvey bastante bem.

— Sentem-se, pelo amor de Deus, e me contem o que aconteceu em Belfast — pediu Flood.

Foi o que Mary Tanner fez, num breve relato de todo o episódio.

Ao final, ela perguntou:

— Você acha possível que Harvey tenha sido o fornecedor de armas de Dillon em 81?

— Nada me surpreenderia em relação a Jack Harvey. Ele e a sobrinha, Myra, dirigem um pequeno e sólido império que inclui todos os tipos de atividades criminosas: prostituição, drogas, extorsão, roubo armado em grande escala, o que você imaginar. Mas armas para o IRA? — Ergueu os olhos para Mordecai: — O que você acha?

— Ele desenterraria o corpo da avó e o venderia se pudesse obter algum lucro com isso — respondeu Fletcher.

— Muito apropriado. — Flood voltou-se para Mary: — Aí está a sua resposta.

— Muito bem — refletiu Brosnan. — E se Dillon usou Harvey em 81, é provável que o faça novamente.

— A polícia não conseguiria nada com Harry, partindo dessa sua história, vocês devem saber. Ele conseguiria escapar facilmente — observou Flood.

— Imagino que o professor esteja pensando em uma abordagem mais sutil, como por exemplo arrancar as informações do canalha — disse Mordecai, esmurrando a palma da mão com o outro punho fechado.

Mary virou-se para Brosnan, que deu de ombros.

— O que mais você sugeriria? Ninguém vai conseguir nada de um homem como Harvey com delicadeza.

— Tenho uma idéia — anunciou Harry Flood. — Harvey vem me pressionando muito ultimamente para fazermos uma sociedade. Que tal se eu lhe disser que quero me encontrar com ele para discutirmos os detalhes?

— Ótimo — disse Brosnan. — Mas tem de ser o mais rápido possível. Não temos tempo a perder, Harry.

 

Myra estava sentada à mesa do tio, examinando as contas de um dos clubes, quando Flood ligou.

— Harry! Que surpresa agradável!

— Queria dar uma palavrinha com Jack.

— Não vai ser possível, Harry. Ele está em Manchester, na festa de algum clube esportivo no Midland.

— Quando ele volta?

— Amanhã bem cedo. Ele tem alguns negócios a resolver pela manhã e vai acordar cedo e deixar Manchester às sete e meia na ponte aérea.

— Então ele deve estar chegando por volta das nove, certo?

— Mais provável por volta das nove e meia, devido ao trânsito do aeroporto para cá de manhã. Ouça, do que se trata, Harry?

— Estive pensando, Myra. Talvez eu tenha sido tolo. Em relação a uma sociedade, quero dizer. Talvez Jack tenha alguma vantagem a me oferecer. Há muitas coisas que poderíamos fazer se nos associássemos.

— Bem, estou certa de que ele vai ficar satisfeito ao ouvir isso — disse Myra.

— Verei vocês, então, às nove e meia em ponto com o meu contador — disse-lhe Flood e desligou o telefone.

Myra ficou ali sentada, olhando para o telefone durante algum tempo, então ergueu-o novamente, ligou para o Midland, em Man­chester, e pediu para falar com seu tio. Jack Harvey, já com algumas doses de champanhe e conhaque no sangue, encontrava-se em excelente estado de humor quando atendeu ao telefone na portaria do hotel.

— Myra, minha querida, o que aconteceu? Um incêndio ou coisa parecida? Ou um súbito afluxo de corpos?

— Melhor que isso. Harry Flood telefonou.

Ela lhe narrou a conversa telefônica e a sobriedade de Harvey voltou de pronto.

— Então ele quer se encontrar comigo às nove e meia?

— Isso mesmo. O que você acha?

— Acho que isso é um monte de besteiras. Por que ele mudaria de idéia tão de repente? Não, não gosto nada disso.

— Devo ligar para ele e cancelar?

— Não, em absoluto. Vou recebê-lo. Só que vamos tomar algumas precauções, só isso.

— Ouça — disse ela —, Hilton ou qualquer que seja seu nome ligou e disse que queria a sua mercadoria. Ele veio até aqui, pagou em dinheiro vivo e se foi. Está tudo certo?

— Você agiu muito bem. Agora, quanto ao Flood, o que estou dizendo é para você se preparar para lhe dar uma recepção adequada, se for necessário. Entende o que quero dizer?

— Creio que sim, Jack — retrucou ela. — Creio que sim.

 

— Vamos nos encontrar diante da Casa Funerária Harvey pouco antes das nove e meia, então. Levarei Mordecai comigo e você fingirá que é meu contador — disse Harry Flood a Brosnan.

— E onde é que eu entro? — perguntou Mary.

— Veremos depois.

Brosnan ergueu-se e parou diante da janela de sacada, olhando para o rio.

— Gostaria de saber o que o canalha está fazendo neste momento — disse ele.

— Amanhã, Martin — retrucou Flood. — Cada coisa a seu tempo.

 

Era cerca de meia-noite quando Billy estacionou a BMW nos fundos do prédio da funerária e entrou. Subiu a escada, exausto, até o apartamento de Myra. Ela o ouviu chegar, abriu a porta e ficou ali de pé, a luz filtrando-se através do tecido da camisola curta.

— Olá, meu bem, você conseguiu.

— Estou totalmente congelado.

Ela fez com que ele entrasse, sentou-o em uma poltrona e começou a abrir o zíper da roupa de couro.

— Para onde ele foi?

Ele apanhou uma garrafa de conhaque, serviu-se de uma dose generosa e bebeu de uma só vez.

— Um lugar a apenas uma hora de Londres, Myra, mas muito afastado da estrada.

Então ele descreveu todo o percurso para ela: Dorking, a estrada para Horsham, Grimethorpe, Doxley e a Fazenda Cadge End.

— Você foi brilhante, benzinho. Agora o que você precisa é de um bom banho quente.

Myra foi até o banheiro e abriu a torneira da banheira. Quando ela voltou à sala de estar, Billy estava dormindo a sono solto no sofá, as pernas esparramadas.

— Oh, Deus — suspirou ela. Apanhou um cobertor, ajeitou-o sobre ele e foi para a cama.

 

Quando Makeev bateu à porta na Avenida Victor Hugo, foi recebido por Rashid.

— Tem novidades para nós? — perguntou o jovem iraquiano.

Makeev assentiu com a cabeça.

— Onde está Michael?

— À sua espera.

Rashid conduziu-o até o estúdio, onde encontraram Aroun de pé ao lado da lareira, vestido com um smoking, pois acabara de chegar da ópera.

— Do que se trata? — perguntou ele. — Aconteceu alguma coisa?

— Falei com Dillon na Inglaterra pelo telefone. Ele quer que você vá de avião para St. Denis amanhã de manhã. Pretende chegar lá durante a tarde.

Aroun estava pálido de excitação.

— E então? O que ele pretende fazer?

Aroun serviu uma dose de conhaque ao russo e Rashid entre­gou-lhe o copo.

— Ele me disse que pretende algum tipo de ataque ao Gabinete de Guerra britânico na Downing Street.

Fez-se um silêncio absoluto, a perplexidade estampada no rosto de Aroun. Foi Rashid quem quebrou o silêncio:

— O Gabinete de Guerra? Todos eles? Impossível. Como é que ele poderia sequer tentar tal coisa?

— Não tenho a menor idéia — retrucou Makeev. — Estou simplesmente contando a vocês o que ele me disse: que o Gabinete de Guerra se reúne às dez da manhã e que é aí que ele vai atacar.

— Deus seja louvado! — exclamou Michael Aroun. — Se ele conseguir isso, agora, em plena guerra, antes que tenha início a ofensiva por terra, o efeito em todo o mundo árabe será incrível.

— Posso imaginar que sim.

Aroun deu um passo à frente e segurou com força a lapela de Makeev.

— Será, Josef, será que ele consegue?

— Ele parece seguro — eximiu-se Makeev de qualquer responsabilidade. — Só estou repetindo as palavras dele.

Aroun fez meia-volta e ficou olhando o fogo na lareira. A seguir, disse a Rashid:

— Partiremos às nove do Charles de Gaulle com o Citation. Estaremos lá em pouco mais de uma hora.

— Como o senhor quiser — respondeu Rashid.

— Ligue agora para o velho Alphonse no Château. Quero que ele esteja fora de lá bem cedo. Diga-lhe que pode tirar alguns dias de folga. Não o quero por perto.

Rashid assentiu e deixou o estúdio.

— Alphonse? — perguntou Makeev, curioso.

— O caseiro. Nessa época do ano ele fica sozinho, a menos que eu lhe diga para buscar os empregados no vilarejo local. Todos ficam à disposição.

— Se não se importa, eu gostaria de ir com vocês — disse Makeev.

— Naturalmente, Josef. — Aroun serviu mais duas doses de conhaque. — Deus me perdoe, sei que estou bebendo quando não deveria, mas nestas circunstâncias... — Ele ergueu o copo. — A Dillon, e que tudo corra conforme seus planos.

 

Era uma hora da manhã e Fahy estava trabalhando em um dos cilindros de oxigênio sobre a bancada, quando Dillon entrou no galpão.

— Como está indo?                          

— Tudo bem — disse Fahy. — Quase tudo pronto. Só faltam este e mais outro. Como é que está o tempo?

Dillon foi até a porta aberta.

— Parou de nevar, mas espera-se que venha mais por aí. Foi o que ouvi na televisão.

Fahy levou o cilindro para o Ford Transit, entrou e encaixou-o cuidadosamente em um dos tubos, enquanto Dillon observava. Angel surgiu com uma jarra e duas canecas nas mãos.

— Café? — ofereceu ela.

— Maravilha.

Seu tio segurou uma caneca, enquanto ela servia, e depois foi a vez de Dillon.

— Estive pensando numa coisa — ponderou Dillon. — A garagem onde você deveria aguardar com o furgão, Angel, não estou certo se é uma boa idéia esperar lá.

Fahy fez uma pausa, uma chave inglesa na mão, e ergueu os olhos.

— Por que não?

— Era onde a mulher russa, meu contato, guardava o carro. A polícia provavelmente sabe disso. Se eles estiverem vigiando o apartamento dela, é quase certo que estejam de olho na garagem também.

— Então o que você sugere?

— Lembra-se de onde eu estava hospedado, o hotel na Bayswater Road? Há um supermercado ao lado com um grande estacionamento nos fundos. É para lá que iremos. Não vai mudar muita coisa — disse ele para Angel. — Mostrarei a você quando chegarmos lá.

— O que o senhor quiser, Sr. Dillon. — Ela ficou observando Fahy terminar a fixação do morteiro improvisado e voltou à bancada. —Estive pensando, Sr. Dillon, este lugar na França, St. Denis...

— O que tem o lugar?

— O senhor vai direto para lá depois?

— Isso mesmo.

— E como é que nós ficamos? — perguntou ela com cuidado.

Fahy parou e limpou as mãos.

— A pergunta dela procede, Sean.

— Vocês estarão bem, os dois — respondeu Dillon. — Este trabalho é limpo, Danny, o mais limpo que já realizei. Nenhuma pista, nenhuma ligação com vocês ou com este local. Se amanhã tudo der certo, e vai dar, estaremos aqui de volta às onze e meia no máximo e tudo estará acabado.

— Se é o que você diz... — disse Fahy.

— É sim, Danny, e se é com o dinheiro que você está preocupado, não há necessidade. Vocês receberão a sua parte. O homem para o qual estou trabalhando pode providenciar pagamentos em qualquer parte. Vocês poderão receber aqui ou na Europa se preferirem.

— O dinheiro nunca foi o mais importante, Sean — disse Fahy. — Você sabe disso. É só que, se houver uma chance de alguma coisa sair errada, uma chance mínima... — Ele encolheu os ombros. — É em Angel que estou pensando.

— Não precisa se preocupar. Se houvesse um risco por menor que fosse, eu seria o primeiro a querer que vocês me acompanhassem. Mas não há o menor perigo. — Dillon passou o braço em torno dos ombros da garota. — Você está excitada, não é mesmo?

— Estou com um nó terrível no estômago, Sr. Dillon.

— Vá para a cama. — Ele a empurrou na direção da porta. — Sairemos daqui às oito.

— Não vou conseguir pregar o olho.

— Tente. Ande, vá. Isso é uma ordem.

Ela se foi, relutante. Dillon acendeu outro cigarro e voltou-se para Fahy:

— Posso fazer alguma coisa?

— Nada. Mais meia hora e já terei terminado. Vá e se deite também, Sean. Quanto a mim, estou tão nervoso quanto Angel. Não creio que eu conseguisse dormir. Ah, por falar nisso, encontrei umas roupas antigas de motociclista para você — acrescentou ele. — Estão ali perto da moto.

Havia uma jaqueta, calça e botas de couro, todos já bastante usados, e Dillon sorriu.

— Fazem eu me lembrar da minha juventude. Vou experimentá-las.

Fahy fez uma pausa e passou as mãos sobre os olhos, num gesto de cansaço.

— Ouça, Sean, tem mesmo de ser amanhã?

— Há algum problema?

— Eu lhe disse que queria soldar uma espécie de barbatana nos cilindros de oxigênio para imprimir maior estabilidade ao vôo. Não tenho tempo para isso agora. —Ele jogou a chave inglesa sobre a bancada. — Está tudo sendo feito muito às pressas, Sean.

— Culpe Martin Brosnan e seus amigos, não a mim, Danny — disse-lhe Dillon. — Eles estão bem no meu encalço. Quase me pegaram em Belfast. Só Deus sabe quando é que vão aparecer outra vez. Não, Danny, é agora ou nunca.

Ele deu meia-volta e saiu. Fahy apanhou a chave com relutância e voltou ao trabalho.

 

As roupas não estavam de todo mal e Dillon postou-se diante do espelho do armário, enquanto fechava o zíper da jaqueta.

— Vejam só isso — murmurou ele. — É como se eu tivesse dezoito anos outra vez, quando o mundo era novo e tudo parecia possível.

Abriu o zíper da jaqueta, tirou-a e a seguir apanhou a valise e desdobrou o colete à prova de balas que Tânia lhe dera em seu primeiro encontro. Vestiu-o, ajustou-o e aderiu as fitas de velcro, e então voltou a vestir a jaqueta.

Sentou-se na borda da cama, tirou a Walther da valise, examinou-a e ajustou o silenciador Carswell no lugar. Em seguida, checou a Beretta e a colocou na cabeceira da cama, à mão. Guardou a valise de volta no armário, apagou a luz e deitou-se na cama, olhando o teto em meio à escuridão.

Nunca fora emotivo em relação a coisa alguma, e agora, na véspera do maior feito de sua vida, não era diferente.

— Você estará fazendo a história, Sean — sussurrou para si mesmo. — A história.

Fechou os olhos e algum tempo depois dormia.

 

Voltou a nevar durante a noite e pouco depois das sete Fahy foi caminhar ao longo da trilha para dar uma olhada na estrada. Quando retornou, encontrou Dillon na porta, comendo um sanduíche de bacon, uma caneca de chá na mão.

— Não sei como você pode — disse-lhe Fahy. — Não conseguiria comer nada. Poria tudo para fora imediatamente.

— Está com medo, Danny?

— Morrendo.

— Isso é bom. Aguça os sentidos, e isso pode fazer toda uma diferença.

Caminharam até o galpão e pararam ao lado do Ford Transit.

— Bem, ele está mais do que pronto — disse Fahy.

Dillon pousou a mão em seu ombro.

— Você fez um ótimo trabalho, Danny, muitíssimo bom.

Angel apareceu atrás deles. Já estava pronta para partir, vestida com suas velhas calças, botas, impermeável, suéter e a boina irlandesa.

— Já estamos de partida?

— Logo, logo — respondeu Dillon. — Agora vamos guardar a moto no furgão.

Abriram as portas traseiras do Morris, puseram a prancha de madeira no lugar e subiram a motocicleta. Fahy jogou a prancha para dentro e entregou um capacete a Dillon.

— Isto é para você. Levarei um para mim no Ford. — Ele hesitou. — Você está armado, Sean?

Dillon tirou a Beretta de dentro da jaqueta de couro preta.

— E você?

— Santo Deus, Sean! Sempre tive horror a armas, você sabe disso.

Dillon voltou a guardar a Beretta e fechou o zíper da jaqueta. Cerrou as portas do furgão e virou-se:

— Todos prontos?

— Então já vamos partir? — perguntou Angel.

Dillon consultou o relógio.

— Ainda não. Eu disse que sairíamos daqui às oito. Não queremos chegar cedo demais. Ainda há tempo para tomarmos outra xícara de chá.

Voltaram a casa e Angel pôs a chaleira no fogo. Dillon acendeu um cigarro e recostou-se na pia, observando-a.

— O senhor não tem nervos? — perguntou ela. — Posso ouvir as batidas do meu coração.

— Venha ver isto, Sean — gritou Fahy da sala.

Dillon foi até lá. A televisão estava ligada e o programa da manhã falava sobre a neve que caíra sobre Londres durante a noite. As árvores nas praças, as estátuas, os monumentos, tudo estava coberto, inclusive grande parte das calçadas.

— Nada bom — observou Fahy.

— Pare de se preocupar. As estradas continuam limpas — disse Dillon no momento em que Angel entrava com a bandeja. — Uma bela xícara de chá, Danny, com bastante açúcar para dar energia, e poremos o pé na estrada.

 

No apartamento da Lowndes Square, Brosnan estava diante do fogão, cozinhando ovos e vigiando as torradas na torradeira, quan­do o telefone tocou. Ele ouviu Mary atender e, depois de alguns minutos, ela veio até a cozinha.

— É o Harry. Quer falar com você.

Brosnan foi até o telefone.

— E então?

— Tudo certo, meu velho. Só estou checando se você já está de saída.

— Como é que vamos agir?

— Teremos de seguir o instinto, mas acho também que precisaremos ser duros.

— Concordo — disse Brosnan.

— Estou certo em supor que isso seria um problema para Mary?

— Receio que sim.

— Então, definitivamente ela não pode entrar. Deixe comigo. Cuidarei disso quando chegarmos lá. Até daqui a pouco.

Brosnan desligou o telefone e voltou à cozinha, onde Mary já pusera os ovos e as torradas na mesa e estava servindo o chá.

— O que ele tinha a dizer? — indagou ela.

— Nada de especial. Só estava se perguntando qual seria a melhor abordagem.

— E suponho que você pense que seria acertar Harvey na cabeça com um bastão bem grande.

— Algo nesse gênero.

— Por que não anjinhos, Martin, aqueles aparelhos de tortura que esmagam os dedos?

— É, por que não? — Ele apanhou uma torrada. — Se for necessário...

 

O trânsito matinal na estrada de Horsham até Dorking e depois até Londres estava mais lento que o habitual devido ao tempo. Angel e Dillon iam na frente, no Morris, seguidos de perto por Fahy, no Ford Transit. A garota estava obviamente tensa, os nós dos dedos brancos porque ela segurava o volante com muita força. Mas, apesar de tudo, ela dirigiu muitíssimo bem. Passaram por Epsom, em seguida Kingston e depois seguiram na direção do Tâmisa, que cruzaram sobre a ponte Putney. Já eram nove e quinze quando entraram na Bayswater Road, na direção do hotel.

— Ali adiante — indicou Dillon. — Lá está o supermercado. A entrada para o estacionamento é na rua lateral.

Ela dobrou a esquina, reduzindo para a primeira e entrando bem devagar no estacionamento que já estava bastante cheio.

— Bem lá no fundo — disse Dillon. — O lugar perfeito. Havia um imenso trailer estacionado ali, protegido por uma capa plástica coberta pela neve. Ela estacionou por trás dele e Fahy parou ao seu lado. Dillon saltou, pondo o capacete, deu a volta e abriu as portas. Posicionou a prancha de madeira no lugar, entrou e desceu a motocicleta com a ajuda de Angel. Quando ele passou uma perna sobre o assento, ela jogou a prancha de volta para dentro do furgão e fechou as portas. Dillon ligou a chave e a BSA respondeu suavemente, ressuscitando com um leve ronco. Ele olhou para o relógio. Eram nove e vinte. Deixou a moto apoiada no descanso e foi até Fahy, no Ford.

— Lembre-se: cronometrar o tempo é essencial. Não podemos ficar dando voltas e mais voltas por Whitehall. Alguém pode desconfiar. Se estivermos muito adiantados, tente retardar as coisas no Aterro Victoria. Finja que enguiçou e eu paro, como se estivesse ajudando. Mas lembre-se de que do Aterro, subindo pela Horse Guards Avenue, até o cruzamento com a Whitehall só leva um minuto.

— Meu Deus, Sean. — Fahy parecia aterrorizado.

— Calma, Danny, calma — tranqüilizou-o Dillon. — Vai dar tudo certo, você vai ver. Agora vamos embora.

Montou novamente na BSA e Angel lhe disse:

— Rezei pelo senhor a noite passada, Sr. Dillon.

— Bem, então vai dar tudo certo. Até daqui a pouco.

E se foi, seguindo o Ford Transit.

 

Harry Flood e Mordecai esperavam no Mercedes, Salter ao volante, quando um táxi parou diante da funerária em Whitechapel e Brosnan e Mary saltaram. Caminharam com cuidado em meio à neve que cobria a calçada e Flood abriu a porta do carro para que entrassem.

Flood consultou o relógio.

— São quase nove e meia. Podemos entrar imediatamente.

Ele tirou uma Walther do bolso interno do casaco e verificou o carregador.

— Você quer uma, Martin? — perguntou ele.

Brosnan assentiu com a cabeça.

— Acho que é uma boa idéia.

Mordecai abriu o porta-luvas, tirou dali uma Browning e passou-a por sobre o assento.

— Essa serve, professor?

— Pelo amor de Deus! Alguém que os visse pensaria que vocês estão pretendendo iniciar a Terceira Guerra Mundial — disse Mary.

— Ou evitar que a comecem. Já pensou por este ângulo? — retorquiu Brosnan.

— Vamos logo — disse Flood.

Brosnan seguiu-o, saltando do carro, e Mordecai saiu pelo outro lado. Quando Mary tentou acompanhá-los, Flood disse: — Desta vez não, minha querida. Eu disse a Myra que traria meu contador, o que justifica a presença de Martin; quanto a Mordecai, ele me acompanha a todos os lugares. Eles não esperam mais ninguém.

— Ouçam aqui — começou ela —, sou a agente em serviço neste caso, o representante oficial do ministério.

— Ótimo para você. Cuide dela, Charlie — disse Flood a Salter e encaminhou-se para a entrada, onde Mordecai já tocava a campainha.

O porteiro que os recebeu sorriu, obsequioso.

— Bom dia, Sr. Flood. O Sr. Harvey apresenta seus cumprimentos e pergunta se os senhores não se importariam de aguardar na sala de espera por alguns minutos. Ele acaba de chegar do Heathrow.

— Está tudo bem — disse Flood, seguindo-o.

A sala de espera era adequadamente decorada com poltronas de couro escuro, as paredes e o carpete cor de ferrugem. A luz provinha essencialmente de velas artificiais e a música, apropriada ao tipo de estabelecimento, fluía suave pelo sistema estereofônico.

— O que você acha? — perguntou Brosnan.

— Acho que ele acabou mesmo de chegar do Heathrow — disse Flood. — Não se preocupe.

Mordecai espiou pela porta, vislumbrando a entrada e uma das capelas.

— Flores, é isso que acho engraçado nesses lugares. Sempre associo a morte às flores.

— Lembrarei disso quando chegar a sua vez de partir — disse Flood. — A pedido, nada de flores.

 

Eram aproximadamente nove e quarenta quando o Ford Transit parou no acostamento no Aterro Victoria. As mãos de Fahy suavam. Pelo espelho retrovisor, ele viu Dillon apoiar a BSA no descanso e vir andando em sua direção, e debruçou-se na janela.

— Tudo bem com você?

— Tudo bem, Sean.

— Ficaremos aqui pelo tempo que pudermos. Quinze minutos seria o tempo ideal. Se um guarda de trânsito se aproximar, dê a partida e eu o seguirei. Então prosseguimos cerca de um quilômetro pelo Aterro, damos meia-volta e retornamos.

— Certo, Sean. — Os dentes de Fahy castanholavam. Dillon tirou um maço de cigarros do bolso, pôs dois na boca, acendeu-os e passou um para Fahy.

— Só para mostrar que sou um tolo romântico. — E pôs-se a rir.

 

Quando Harry Flood, Brosnan e Mordecai chegaram à ante-sala, Myra encontrava-se à espera. Ela vestia um terninho preto e botas, e segurava um maço de documentos em uma das mãos.

— Você parece uma verdadeira executiva, Myra — disse-lhe Flood.

— É o que sou, Harry. Com a quantidade de trabalho que há por aqui... — Ela o beijou no rosto e acenou para Mordecai: — Olá, Sr. Músculos. — A seguir, desviou o olhar para Brosnan: — E quem é esse?

— Meu novo contador: Sr. Smith.

— É mesmo? — Ela meneou a cabeça. — Jack está nos aguardando. — Abriu a porta e precedeu-os no escritório.

O fogo crepitava na lareira, a sala estava aquecida e a temperatura agradável. Harvey encontrava-se sentado à mesa, fumando o charuto de hábito. Billy, sentado no braço de um sofá à esquerda, tinha a capa de chuva casualmente jogada sobre os joelhos.

— Jack, prazer em revê-lo — cumprimentou Harry Flood.

— Verdade? — Olhou para Brosnan: — Quem é ele?

— O novo contador de Harry, tio Jack. — Myra contornou a mesa e ficou de pé ao lado do tio. — É o Sr. Smith.

Harvey abanou a cabeça.

— Nunca vi um contador com a aparência do Sr. Smith, você já, Myra? — Ele voltou-se para Flood: — Meu tempo é valioso, Harry. O que você quer comigo?

— Dillon — respondeu Flood. — Sean Dillon.

— Dillon? — Harvey parecia completamente atordoado. — E quem é esse tal Dillon?

— Um homem de estatura pequena — disse Brosnan. — É irlandês, embora possa passar por qualquer coisa que quiser. Você vendeu armas e explosivos a ele em 1981.

— Muito feio da sua parte isso, Jack — disse Harry Flood. — Ele mandou pelos ares grandes áreas de Londres e achamos que agora está pretendendo fazer o mesmo.

— E onde mais ele iria em busca do equipamento necessário senão com seu velho amigo Jack Harvey? — acrescentou Brosnan. — Faz sentido, não é?

A mão de Myra, no ombro do tio, aumentou a pressão e Harvey, o rosto congestionado, gritou:

— Billy!

Flood ergueu a mão.

— Só queria avisar que, se é uma arma que ele tem embaixo da capa, é bom que esteja engatilhada.

Billy atirou de imediato, através da capa, acertando Mordecai na coxa esquerda no momento em que este sacava a pistola. A Walther de Flood surgiu em sua mão num piscar de olhos e ele atingiu Billy no peito, derrubando-o por sobre o encosto do sofá, e sua arma disparou mais uma vez, atingindo Flood no braço esquerdo.

Jack Harvey abriu uma gaveta da mesa e sua mão apareceu empunhando um Smith & Wesson. Brosnan atirou, acertando-o deliberadamente no ombro. Por um momento o caos reinou na sala, o ar cheio de fumaça e cheiro de cordite.

Myra debruçou-se sobre o tio, que afundou na cadeira, gemendo. O rosto da moça tinha uma dura expressão de fúria.

— Seus canalhas! — esbravejou ela.

Flood voltou-se para Mordecai:

— Você está bem?

— Ficarei assim que o Dr. Aziz der um jeito em mim, Harry. O safado foi bem rápido.

Flood, ainda com a Walther na mão, segurou o braço esquerdo, o sangue brotando entre os dedos. Ele olhou para Brosnan.

— Tudo bem, vamos acabar logo com isso. — Deu dois passos na direção da mesa e apontou a Walther diretamente para Harvey.

— Vou acertar bem no meio dos seus olhos, se você não disser o que queremos saber. Onde está Sean Dillon?

— Vá se foder! — gritou Jack Harvey.

Flood abaixou a Walther por um momento e então voltou a apontá-la para Harvey, decidido, e Myra gritou:

— Não, pelo amor de Deus, deixe-o em paz. O homem que vocês estão procurando usa o nome de Peter Hilton. Foi com ele que tio Jack fez a transação em 81, quando usava um outro nome: Michael Coogan.

— E desta vez?

— Desta vez ele comprou 25 quilos de Semtex. Apanhou na noite passada e pagou em dinheiro vivo. Depois mandei que Billy o seguisse de moto.

— E para onde ele foi?

— Aqui. — Ela apanhou uma folha de papel sobre a mesa. — Escrevi tudo aqui para Jack.

Flood deu uma olhada no papel e o entregou a Brosnan, conseguindo sorrir apesar da dor.

— Fazenda Cadge End, Martin. Parece interessante. Vamos dar o fora daqui.

Dirigiu-se para a porta e Mordecai foi mancando à sua frente, deixando atrás de si um rastro de sangue. Myra fora até onde estava Billy, que começou a gemer alto. Ela voltou-se para os homens que saíam e disse com a voz estridente:

— Vocês vão me pagar por isso, todos vocês!

— Não vamos, não, Myra — disse-lhe Harry Flood. — Se você for sensata, vai tomar isso como uma lição e ligar o mais rápido possível para o seu médico. — Voltou-lhe as costas e saiu, seguido por Brosnan.

Faltava pouco para as dez quando eles entraram no Mercedes.

— Santo Deus, Harry, o carro está ficando todo sujo de sangue! — exclamou Charlie Salter.

— Vamos, Charlie, você sabe para onde ir.

Mary parecia zangada.

— O que aconteceu lá dentro?

— Isto aqui. — Brosnan ergueu a folha de papel com as indicações para se chegar à Fazenda Cadge End.

— Meu Deus! — exclamou Mary enquanto lia. — É melhor eu ligar para o general.

— Não, não ligue — interveio Flood. — Eu acho que esse é um prazer que nós merecemos, levando-se em conta tudo por que passamos. Você não concorda, Martin?

— Sem dúvida nenhuma.

— Então a primeira coisa a fazer é dar uma passadinha numa tranqüila clínica de repouso em Wapping, dirigida pelo meu bom amigo Dr. Aziz, para que ele cuide de Mordecai e dê uma olhada no meu braço. Depois, então, vamos para Cadge End.

Quando Fahy saiu do trânsito do Aterro Victoria, entrando na Horse Guards Avenue, na altura do Ministério da Defesa, estava suando, apesar do frio. A rua estava limpa e molhada, devido ao tráfego constante, mas havia neve nas calçadas, nas árvores e nos edifícios de ambos os lados. Ele podia ver Dillon pelo retrovisor, uma figura sinistra vestida de preto sobre a motocicleta. Então chegou a hora da verdade e tudo pareceu acontecer num segundo.

Fahy parou na esquina da Horse Guards Avenue com a Whitehall, no ângulo já calculado previamente. Do outro lado da rua, na Horse Guards Parade, viam-se dois soldados da Cavalaria Real, montados como de costume, com as espadas desembainhadas.

A alguns metros dali, um policial se virou e viu o furgão. Fahy desligou o motor, acionou os temporizadores e pôs o capacete de motociclista. Quando saiu do veículo, batendo a porta, o policial gritou e correu em sua direção. Dillon deu uma guinada na BSA, Fahy passou uma perna por sobre o assento da garupa e partiram, descrevendo um semicírculo em torno do atônito policial e seguindo rápido na direção da Trafalgar Square. Quando Dillon se misturou ao trânsito em torno da praça, ouviu-se a primeira explosão. Seguiu-se mais uma, talvez duas, e então tudo pareceu juntar-se numa só, com a explosão maior do Ford Transit se autodestruindo. Dillon prosseguiu, sem correr demasiado, passando pelo Admiralty Arch e pelo Mall. Em dez minutos já estava no Marble Arch, entrando na Bayswater Road, e seguiu até o estacionamento do supermercado. Assim que os viu, Angel saltou do furgão, abriu as portas e posicionou a prancha de madeira. Dillon e Fahy subiram a moto, batendo as portas a seguir.

— Deu certo? — perguntou Angel. — Tudo funcionou?

— Deixe isso para depois. Entre e dirija — disse-lhe Dillon.

Ela obedeceu e ele e Fahy sentaram-se ao seu lado. Um minuto depois, dobravam na Bayswater Road.

— Volte pelo caminho que viemos sem correr demais — ordenou Dillon.

Fahy ligou o rádio, passando pelas várias estações da BBC.

— Nada — disse ele. — Só música e papo furado.

— Deixe ligado e tenha um pouco de paciência — retrucou Dillon.—Você vai saber de tudo logo, logo. — Acendeu um cigarro e se recostou no banco, assoviando baixinho.

 

Na pequena sala de cirurgia da clínica de repouso, que se localizava numa rua transversal à Wapping High Street, Mordecai Fletcher estava deitado na mesa de operação, enquanto o Dr. Aziz, um indiano de cabelos grisalhos e óculos de aros de metal redondos, examinava sua coxa.

— Harry, meu amigo, pensei que você já tivesse parado com essas coisas — disse ele. — Mas cá estamos nós de novo, como numa terrível noite de sábado em Bombaim.

Flood estava sentado numa cadeira, sem a jaqueta, enquanto uma jovem enfermeira indiana cuidava do seu braço. Ela cortara a manga da camisa e estava limpando o ferimento. Brosnan e Mary, de pé ao lado, observavam.

— Como é que ele está? — perguntou Flood a Aziz.

— Vai precisar ficar aqui uns dois ou três dias. Só vou poder tirar alguns desses estilhaços de bala com anestesia. Além disso, uma artéria foi atingida. Agora vamos dar uma olhadinha em você.

O médico segurou o braço de Flood, examinando delicadamente com um par de pequenas pinças. A enfermeira segurava uma bacia esmaltada. O Dr. Aziz deixou cair ali um estilhaço de bala, seguido de mais dois. Flood fez uma careta de dor. O indiano encontrou mais um.

— Pode ser que seja só isso, Harry, mas vamos precisar tirar uma radiografia.

— Por ora, bastam uma bandagem e uma tipóia — disse Flood. — Voltarei mais tarde.

— Se é assim que você quer...

O médico enfaixou o braço habilmente, assistido pela enfermeira, e a seguir abriu um armário, tirando dali um pacote de ampolas de morfina. Aplicou uma no braço de Flood.

— Como no Vietnã, Harry — comentou Brosnan.

— Vai melhorar a dor — disse Aziz a Flood, enquanto a enfermeira o ajudava a vestir a jaqueta. — No entanto, eu o aconselho a voltar aqui o mais tardar esta noite.

A enfermeira amarrou uma tipóia por trás do pescoço de Flood. Quando ela punha o sobretudo sobre os ombros do americano, a porta abriu-se bruscamente e Charlie Salter entrou.

— O caos é geral, acabo de ouvir no rádio. Um ataque de morteiros ao Número Dez da Downing Street.

— Ah, meu Deus! — exclamou Mary Tanner.

Flood a precedeu na saída e ela voltou-se para Brosnan:

— Vamos, Martin, pelo menos sabemos para onde o canalha foi.

 

Naquela manhã, o Gabinete de Guerra estava mais numeroso do que de hábito, num total de quinze homens, incluindo o primeiro-ministro. A reunião mal havia começado, na Sala do Gabinete, nos fundos do Número Dez da Downing Street, quando o primeiro morteiro, descrevendo um grande arco de cerca de duzentos metros a partir do furgão Ford Transit, parado na esquina da Horse Guards Avenue com a Whitehall, caiu. Houve uma enorme explosão, que foi ouvida claramente da sala do general-de-brigada Charles Ferguson, no Ministério da Defesa, que dava para a Horse Guards Avenue.

— Deus do céu! — exclamou Ferguson e, como a maior parte das pessoas no prédio, correu para a janela.

Na Downing Street, na Sala do Gabinete, as vidraças reforçadas se racharam, mas a maior parte do explosivo foi absorvida pelas cortinas feitas de uma rede especial à prova de explosivos. A primeira bomba deixou uma cratera no jardim, arrancando uma cerejeira. As outras duas caíram além do alvo, em Mountbatten Green, próximo à estátua de Lorde Mountbatten, onde alguns veículos de radiodifusão estavam estacionados. Apenas um destes foi atingido, mas naquele mesmo instante o furgão também explodiu, no momento em que entrou em ação o mecanismo de autodestruição criado por Fahy. Surpreendentemente, foi pequeno o pânico provocado na Sala do Gabinete. Todos se abaixaram, alguns buscando a proteção da mesa. Uma corrente de ar frio entrou na sala pelas vidraças partidas, acompanhada de vozes à distância.

O primeiro-ministro pôs-se de pé e conseguiu dar um sorriso. Com uma calma impressionante, ele falou:

— Cavalheiros, acho que é melhor recomeçarmos a reunião num outro local — e guiou-os para fora da sala.

 

Mary e Brosnan estavam no banco traseiro do Mercedes, Harry Flood no assento ao lado de Charlie Salter, que ia o mais rápido que podia por entre o trânsito intenso.

— Ouçam, preciso falar com o general Ferguson. É essencial — disse Mary.

Eles atravessavam a ponte Putney. Flood voltou-se e olhou para Brosnan, que assentiu.

— Está certo — disse Brosnan. — Faça como quiser.

Mary usou o telefone celular do carro, ligando para o Ministério da Defesa, mas Ferguson não se encontrava mais lá. Ninguém sabia ao certo para onde ele tinha ido. Ela deixou o número do telefone do Mercedes com a sala de controle e desligou.

— Ele deve estar correndo para lá e para cá, ensandecido, como todo mundo — disse Brosnan, acendendo um cigarro.

Flood dirigiu-se a Salter:

— Certo, Charlie, primeiro Epsom, depois Dorking e a estrada para Horsham. E pise fundo.

 

O plantão de notícias da BBC que foi ouvido no rádio do furgão Morris foi transmitido com a habitual calma e impessoalidade. Ocorrera um ataque de bombas ao Número Dez da Downing Street, aproximadamente às dez horas. O prédio sofrerá alguns danos, mas o primeiro-ministro e os membros do Gabinete de Guerra que se reuniam naquele momento nada haviam sofrido. O furgão deu uma guinada quando Angel soluçou:

— Ah, meu Deus, não!

Dillon segurou o volante.

— Calma, garota — disse ele, tranqüilo. — Preste atenção apenas na direção.

Fahy parecia estar passando mal.

— Se eu tivesse tido tempo de colocar aquelas barbatanas nos cilindros, teria sido totalmente diferente. Você foi apressado de­mais, Sean. Deixou-se pressionar por Brosnan e isso foi fatal.

— Pode ser que sim — disse Dillon. — Mas no fim o que importa é que falhamos.

Ele tirou um cigarro do bolso, acendeu-o e de súbito começou a rir incontrolavelmente.

 

Aroun deixara Paris às nove e meia, pilotando o jato Citation, Rashid tendo a qualificação de segundo piloto necessária de acordo com os regulamentos da aviação. Makeev, na cabine atrás deles, estava lendo o jornal quando Aroun chamou a torre de controle no aeroporto de Maupertus, em Cherbourg, pedindo autorização para pousar na pista particular de St. Denis.

O controlador autorizou o pouso e então informou:

— Acabamos de ouvir no plantão do noticiário: houve um ataque de bombas ao Gabinete britânico na Downing Street em Londres.

— O que aconteceu? — perguntou Aroun, perplexo.

— Isso é tudo que eles informam no momento.

Aroun sorriu, excitado, para Rashid, que também ouvira a mensagem.

— Assuma o comando e cuide da aterrissagem. — Ele se deslocou com uma certa dificuldade até a cabine e sentou-se diante de Makeev. — Acabaram de transmitir um flash do noticiário: um ataque a bomba no Número Dez da Downing Street.

Makeev atirou o jornal para um lado.

— O que aconteceu?

— Isso é tudo que sabem por enquanto. — Aroun ergueu os olhos para o céu, abrindo os braços. — Deus seja louvado.

 

Ferguson encontrava-se ao lado dos furgões de radiodifusão, em Mountbatten Green, em companhia do detetive-inspetor Lane e do sargento Mackie. A neve caía lentamente e uma equipe da perícia realizava uma inspeção cuidadosa no terceiro morteiro de Fahy, que não explodira.

— Uma coisa terrível, senhor — observou Lane. — Para usar uma expressão antiga: bem no coração do Império. Eu me pergunto, como é que podem escapar impunes de uma coisa dessas?

— Porque vivemos numa democracia, inspetor. Porque a vida das pessoas têm de prosseguir normalmente, o que significa que não podemos transformar Londres numa fortaleza armada no estilo da Europa oriental.

Um jovem policial aproximou-se deles com um telefone celular e sussurrou algo para Mackie. O sargento falou:

— Desculpe, general, é urgente. Seu gabinete está tentando se comunicar com o senhor. A capitão Tanner ligou para lá.

— Eu atendo. — Ferguson apanhou o telefone. — Aqui é Ferguson. Sei. Dê-me o número. — Ele fez um gesto para Mackie, que apanhou um bloquinho de papel e um lápis e escreveu os números que Ferguson ditou.

 

O Mercedes estava cruzando Dorking quando o telefone tocou. Mary atendeu de pronto.

— General?

— O que está acontecendo? — perguntou ele.

— O ataque dos morteiros ao Número Dez. Só pode ter sido Dillon. Descobrimos que ele comprou 25 quilos de Semtex de Jack Harvey, ontem à noite, em Londres.

— Onde é que vocês estão agora?

— Saindo de Dorking, senhor, tomando a estrada para Horsham. Eu, Martin e Harry Flood. Temos o endereço de onde Dillon está.

— Dê-me o endereço. — Ele fez sinal para Mackie mais uma vez e repetiu o endereço em voz alta para que o sargento pudesse anotá-lo.

— A estrada não está boa, senhor, devido à neve, mas devemos chegar à tal Fazenda Cadge End em meia hora.

— Ótimo. Não tome nenhuma atitude temerária, Mary, minha querida, mas não deixe o patife escapar. Mandaremos reforço para vocês o mais rápido possível. Estarei no meu carro; portanto, você tem o telefone.

— Está bem, senhor.

Ela desligou e Flood virou-se para trás:

— Tudo certo?

— O reforço está a caminho, mas não devemos deixá-lo escapar.

Brosnan apanhou a Browning no bolso e a examinou.

— Ele não vai escapar — disse, sombrio. — Não desta vez.

 

Ferguson contou a Lane calmamente o que acontecera.

— O que você acha que Harvey deve estar fazendo, inspetor?

— Recebendo tratamento de algum médico desonesto numa clínica de repouso pequena e agradável em algum lugar, senhor.

— Certo, verifique isso por favor e, se for como você diz, não interfira. Vigie-os apenas. O que vamos fazer agora é ir bem rápido para essa tal Fazenda Cadge End. Agora vá e organize os carros.

Lane e Mackie afastaram-se com passos ligeiros e, quando Ferguson se dispunha a segui-los, o primeiro-ministro surgiu, dobrando a esquina do prédio. Vestia um sobretudo escuro e vinha acompanhado pelo secretário do Interior e vários assistentes. Quando avistou Ferguson, veio em sua direção.

— Obra de Dillon, general?

— Creio que sim, primeiro-ministro.

— Chegou bem perto. — Ele sorriu. — Perto demais, para que tenhamos tranqüilidade. Um homem notável esse Dillon.

— Não por muito tempo mais, primeiro-ministro. Finalmente consegui o endereço dele.

— Então não me deixe retê-lo, general. Vá em frente, custe o que custar.

Ferguson fez meia-volta e partiu, apressado.

 

Em Cadge End, a trilha por entre as árvores estava coberta por uma camada de neve mais espessa do que quando eles haviam partido pela manhã. Angel a percorreu aos solavancos até o pátio da fazenda, entrando no galpão. Desligou o motor e tudo parecia terrivelmente silencioso.

— E agora? — perguntou Fahy.

— Acho bom tomarmos uma bela xícara de chá. — Dillon saltou do furgão, deu a volta e abriu as portas traseiras, tirando a prancha de lá. — Ajude-me aqui, Danny.—Tiraram a motocicleta, deixando-a apoiada no descanso. — A sua performance foi brilhante. Você fez um bom trabalho, Danny.

Angel tomou a frente e, enquanto a seguiam, Fahy falou:

— Você não tem nervos, não é, Sean?

— Nunca vi qualquer utilidade em tê-los.

— Bem, eu tenho, Sean, e o que preciso não é de nenhuma porcaria de chá, e sim de uísque.

Ele se dirigiu à sala de estar e Dillon foi para o quarto onde dormira. Encontrou lá uma velha mochila e arrumou-a rapidamente com o terno, a capa de chuva, as camisas, os sapatos e outros pertences seus. Deu uma olhada na carteira: havia ali cerca de quatrocentas libras. Abriu a valise que continha os cinco mil dólares que restavam do dinheiro das despesas e a Walther com o silenciador Carswell na extremidade. Engatilhou a arma, deixando-a pronta para qualquer eventualidade, colocou-a de volta na valise junto com a carteira de motorista de Jersey e o brevê de piloto. Abriu o zíper da jaqueta, apanhou a Beretta e verificou se estava tudo em ordem, enfiando-a a seguir no cós da calça de couro, às suas costas, e escondendo o punho da arma sob a jaqueta.

Quando ele desceu a escada com a mochila e a valise, Fahy estava de pé na sala, olhando a TV. A tela mostrava imagens de Whitehall com a neve caindo, Downing Street e Mountbatten Green.

— Acabaram de mostrar o primeiro-ministro no local, examinando os prejuízos. Parecia um homem que não tem com o que se preocupar.

— É, ele tem muita sorte — retrucou Dillon.

Angel entrou e entregou a ele uma xícara de chá.

— O que vai acontecer agora, Sr. Dillon?

— Você sabe muito bem o que vai acontecer, Angel. Vou desaparecer do mapa.

— Vai para aquele tal lugar? St. Denis?

— Exato.

— Ótimo para você, Sean. E nós ficamos aqui para segurar a peteca — disse Fahy.

— E que peteca seria essa?

— Você sabe o que estou querendo dizer.

— Ninguém tem a menor pista sobre você, Danny. Vocês estão mais do que seguros. É atrás de mim que os canalhas estão. Brosnan, a garota e o general-de-brigada Ferguson; é a mim que eles atribuirão a culpa.

Fahy voltou-lhe as costas e Angel perguntou:

— Não podemos ir com o senhor?

Ele deixou a xícara de chá e pousou as mãos sobre os ombros da garota.

— Não há necessidade disso, Angel. Sou eu que preciso fugir, não você ou Danny. Eles não sabem nem mesmo que vocês existem.

 

Dillon foi até o telefone e discou para o Campo de Aviação Grimethorpe. Grant atendeu de imediato.

— Alô, quem fala?

— Peter Hilton, amigo. — Dillon voltou a assumir o papel do inglês bem-educado. — Tudo certo para o meu vôo? A neve não vai atrapalhar?

— O tempo está limpo lá para o sudoeste — informou Grant. — Contudo, pode ser complicado levantar vôo aqui. Quando é que o senhor está pensando em ir?

— Estarei aí em meia hora. Está bem assim? — perguntou Dillon.

— Estarei à sua espera.

No momento em que Dillon desligou o telefone, Angel gritou:

— Não, tio Danny!

Dillon virou-se e se deparou com Fahy no vão da porta tendo nas mãos uma espingarda.

— Mas não está nada bem para mim, Sean. — Ele engatilhou a arma.

— Danny, meu chapa — Dillon estendeu as mãos. — Não faça isso.

— Nós vamos com você, Sean, e ponto final.

— É o dinheiro que o está preocupando, Danny? Não lhe falei que o homem para quem estou trabalhando pode arranjar para que o pagamento seja feito em qualquer lugar?

Fahy agora estava tremendo, a espingarda vacilando em suas mãos.

— Não, não se trata do dinheiro. — Ele fraquejou um pouco então. — Estou com medo, Sean. Meu Deus, quando eu vi aquilo na televisão. Se me pegarem, vou passar o resto da vida na prisão. Estou velho demais para isso, Sean.

— Então por que é que você entrou nisso comigo?

— Quisera eu saber. Eu aqui parado, esses anos todos, o tédio tomou conta de mim. O furgão, os morteiros, eram simplesmente alguma coisa para fazer, uma fantasia. E então você apareceu e os transformou em realidade.

— Entendo — disse Dillon.

Fahy ergueu a espingarda.

— Então é isso, Sean: se nós não formos, você também não vai.

A mão de Dillon, nas costas, encontrou o punho da Beretta, seu braço descreveu um arco e ele acertou Fahy duas vezes no coração, fazendo com que cambaleasse de costas pelo corredor e batesse contra a parede, do outro lado, deslizando para o chão.

Angel gritou, correu e se ajoelhou ao lado do tio. Lentamente, ela se ergueu, encarando Dillon.

— Você o matou.

— Ele não me deu outra escolha.

Ela se virou, agarrou a porta da frente e saiu correndo, Dillon atrás dela. A garota atravessou o pátio em disparada, entrou em um dos galpões e desapareceu. Dillon entrou no primeiro galpão e ficou ali, à escuta. Ouviu um barulho no sótão e um pouco de palha caiu lá de cima.

— Angel, ouça-me: eu levo você comigo.

— Não vai levar não. Vai me matar, como matou tio Danny. Você é um maldito assassino. — Sua voz foi sufocada.

Por um momento, ele ergueu o braço esquerdo, apontando a Beretta para o sótão.

— E o que você esperava? O que você pensou que eu fosse?

Não houve resposta. Ele fez meia-volta e correu para a casa, passando por cima do corpo de Fahy. Voltou a guardar a Beretta na cintura, às suas costas, apanhou a valise e a mochila com suas roupas, voltou ao galpão e pôs tudo no banco de passageiros do Morris.

Fez mais uma tentativa:

— Venha comigo, Angel. Eu nunca machucaria você, juro. — Nenhuma resposta. — Então vá para o inferno! — praguejou, acomodando-se atrás do volante e afastando-se pela trilha.

 

Algum tempo depois, quando o silêncio voltou a reinar, Angel desceu a escada e foi para a casa. Sentou-se ao lado do corpo do tio, encostada à parede, uma expressão vazia no rosto, e ficou ali sem se mexer, nem mesmo quando ouviu o som de um carro entrando no pátio lá fora.

 

A pista em Grimethorpe estava completamente coberta pela neve. As portas do hangar encontravam-se fechadas e não havia o menor sinal de nenhum dos dois aviões. A fumaça saía pela chaminé do fogão de ferro, o único sinal de vida que Dillon divisava enquanto seguia até os abrigos e a velha torre, parando ali. Saltou do furgão com a mochila e a valise e encaminhou-se para a porta. Ao entrar, deparou-se com Bill Grant de pé ao lado do fogão, tomando café.

— Ah, aí está você, meu amigo. O lugar parece deserto — disse Dillon. — Estava começando a ficar preocupado.

— Sem necessidade. — Grant, vestido com um velho macacão preto do tipo usado por pilotos e uma jaqueta preta, apanhou uma garrafa de scotch e despejou um pouco na caneca de café.

Dillon descansou a mochila, mas manteve a valise na mão direita.

— Veja bem, isso é sensato, amigo? — perguntou, na sua voz mais educada.

— Eu nunca fui muito sensato, meu velho. — Grant parecia estar zombando dele agora. — É por isso que acabei numa espelunca como esta.

Caminhou até a mesa e sentou-se. Dillon viu que havia um mapa sobre a mesa, mostrando a área do Canal da Mancha, a costa da Normandia, a região de Cherbourg, o mapa que ele verificara com Angel naquela primeira noite.

— Ouça, gostaria de partir logo, meu amigo — disse ele. — Se é o restante do dinheiro que o está preocupando, posso pagar cash. — Ergueu a valise. — Estou certo de que você não irá se incomodar em receber dólares americanos.

— Não, mas me incomoda quando tentam me fazer de idiota. — Grant apontou para o mapa. — Land’s End o diabo! Vi você examinando este mapa na outra noite com a garota. Canal da Mancha e litoral da França. O que eu gostaria de saber é em que você está pensando que vai me meter?

— Você está sendo muito tolo — observou Dillon.

Grant abriu a gaveta da mesa e tirou de lá o velho revólver Webley.

— Veremos, certo? Agora ponha a valise em cima da mesa e dê um passo para trás, enquanto eu vejo o que temos aí.

— Certo, amigão. Não há necessidade de violência.

Dillon se aproximou e pousou a valise sobre a mesa, ao mesmo tempo em que puxava a Beretta da cintura, às suas costas, debruçava-se sobre a mesa e atirava à queima-roupa.

Grant caiu para trás, derrubando a cadeira. Dillon voltou a guardar a Beretta, dobrou o mapa, pondo-o debaixo do braço, apanhou a mochila e a valise e saiu, caminhando com dificuldade em meio à neve até o hangar. Entrou pela portinhola e, lá dentro, desaferrolhou a porta grande de correr, deixando ver os dois aviões. Escolheu o Cessna Conquest por nenhum outro motivo senão o de estar mais próximo. A escada que levava à porta estava abaixada. Ele jogou a mochila e a valise para dentro e subiu, puxando a porta atrás de si.

Acomodou-se no assento do piloto, à esquerda, e pôs-se a estudar o mapa. Eram aproximadamente 220 quilômetros até a pista de pouso em St. Denis. A menos que tivesse problemas com ventos de proa, num avião como aquele, deveria chegar lá em 45 minutos. Não havia registro do vôo, naturalmente, e assim ele seria um espectro no radar de alguém, mas isso não importava. Se ele fosse direto para o mar na altura de Brighton, desapareceria no meio do canal antes que alguém se desse conta do que estava acontecendo. Havia um problema quanto à chegada em St. Denis, mas se ele se aproximasse da costa numa altura de seiscentos pés, com um pouco de sorte estaria abaixo da tela de radar operada no aeroporto de Maupertus, em Cherbourg.

Dillon pôs o mapa sobre o outro assento, onde podia vê-lo, e acionou primeiro o motor esquerdo e a seguir o direito. Guiou o Conquest para fora do hangar e parou, fazendo uma verificação completa da cabine. Exatamente como Grant se gabara, os tanques de combustível estavam cheios. Dillon ajustou os cintos de segurança e taxiou pelo pátio de manobras, descendo até a extremidade da pista.

Virou na direção do vento e seguiu adiante. Percebendo imediatamente a resistência da neve, aumentou a potência até o limite máximo, deslizando o manche com cuidado. O Conquest ergueu-se e começou a subir. Dillon inclinou o avião lateralmente, tomando o rumo de Brighton, e divisou lá embaixo uma limusine preta, saindo de entre as árvores e tomando a direção dos hangares.

— Bem, não sei quem são vocês — murmurou ele —, mas se é atrás de mim que vocês estão, chegaram tarde demais. — E descreveu uma grande curva com o Conquest, rumando para o litoral.

 

Angel encontrava-se sentada à mesa da cozinha, segurando a cane­ca de café que Mary lhe dera. Brosnan e Harry Flood, este com o braço na tipóia, estavam de pé, ouvindo, e Charlie Salter recostava-se na porta.

— Eram Dillon e seu tio na Downing Street, é isto que você está dizendo? — perguntou Mary.

Angel assentiu com a cabeça.

— Eu dirigi o Morris levando a motocicleta do Sr. Dillon. Ele seguiu tio Danny, que estava no Ford Transit. — Ela parecia entorpecida. — Eu os trouxe de volta, da Bayswater até aqui, e tio Danny estava com medo, medo do que poderia acontecer.

— E Dillon? — indagou Mary.

— Ele ia partir de Grimethorpe, o campo de aviação que fica mais acima na estrada. Ele já tinha combinado tudo com o Sr. Grant, o dono do campo. Disse que queria ir para Land’s End, mas não era verdade.

Ela agarrava-se à caneca, o olhar perdido no espaço.

— Para onde ele queria ir, Angel? Você sabe? — perguntou Brosnan, gentilmente.

— Ele me mostrou o lugar no mapa. Era na França, descendo de Cherbourg pelo litoral. Havia a indicação de uma pista de pouso. Um lugar chamado St. Denis.

— Tem certeza? — reforçou Brosnan.

— Tenho sim. Tio Danny pediu a ele que nos levasse, mas ele não quis, e então tio Danny se aborreceu, apanhou a espingarda e... — Começou a soluçar.

Mary a abraçou.

— Está tudo bem agora, está tudo bem.

— Você se lembra de mais alguma coisa? — indagou Brosnan.

— Creio que não. — Angel ainda parecia entorpecida. — Ele ofereceu dinheiro ao tio Danny. Disse que o homem para o qual estava trabalhando podia arranjar para que recebêssemos o dinheiro em qualquer lugar do mundo.

— Ele disse quem era esse homem? — continuou Brosnan.

— Não, nunca falou o seu nome.—Ela pareceu animar-se. — Ah, mas falou algo sobre trabalhar para os árabes da primeira vez que esteve aqui.

Mary olhou para Brosnan.

— Iraque?

— Sempre pensei nesta possibilidade.

— Certo, vamos andando — disse Flood. — Vamos checar esse campo Grimethorpe. Você fica aqui com a garota, Charlie — ordenou ele a Salter —, até o reforço chegar. Vamos levar o Mercedes. — Fez meia-volta, seguido pelos outros na saída.

 

No Great Hall, em St. Denis, Rashid, Aroun e Makeev bebiam champanhe, à espera do noticiário na TV.

— Um dia de alegria em Bagdá — declarou Aroun.—O povo saberá agora o quanto seu presidente é forte.

Na tela, o locutor falou brevemente e a seguir vieram as imagens: Whitehall sob a neve, os guardas da Cavalaria Real, os fundos do Número Dez da Downing Street, as cortinas penduradas nas janelas quebradas, Mountbatten Green e o primeiro-ministro inspecionando os prejuízos. Os três homens ficaram ali em silêncio, chocados.

Foi Aroun quem quebrou o silêncio:

— Ele falhou — sussurrou. — Tudo isso para nada. Algumas janelas quebradas, um buraco no jardim.

— O atentado foi realizado — protestou Makeev. — O mais sensacional ataque ao governo britânico de todos os tempos, e na sede do poder.

— E quem se importa com isso? — Aroun atirou a taça de champanhe na lareira. — Precisávamos de um resultado positivo e não foi isso que ele nos deu. Ele falhou com Margaret Thatcher e falhou com o primeiro-ministro britânico. Apesar de toda a sua bela conversa, Josef, não temos nada senão o fracasso.

Aroun sentou-se em uma das cadeiras de espaldar alto à mesa de jantar e Rashid falou:

— Ainda bem que não lhe pagamos um milhão de libras.

— É verdade — concordou Aroun. — Mas o dinheiro é o que menos conta. É a minha posição com o presidente que está em jogo.

— E então? O que vamos fazer? — perguntou Makeev.

— O que vamos fazer? — Aroun ergueu os olhos para Rashid. — Vamos dar ao nosso amigo Dillon uma recepção bem calorosa neste dia frio, não é, Ali?

— Como o senhor determinar, Sr. Aroun — disse Rashid.

— E você, Josef, está conosco nisto? — indagou Aroun.

— É claro — respondeu Makeev, pois nada mais havia que pudesse dizer. — É claro que sim. — Quando se serviu de mais uma taça de champanhe, suas mãos tremiam.

 

No momento em que o Mercedes saía de entre as árvores, em Grimethorpe, o Conquest descrevia uma curva e voava para o horizonte. Brosnan estava ao volante, Mary ao seu lado e Harry Flood no banco traseiro.

Mary inclinou-se para fora da janela.

— Acha que é ele?

— É possível — respondeu Brosnan. — Logo, logo descobriremos.

Eles passaram pelo hangar aberto que deixava ver o Navajo Chieftain e pararam diante dos abrigos.Tbi Brosnan, o primeiro a entrar, quem encontrou o corpo de Grant.

— Olhem aqui — disse ele. Mary e Flood juntaram-se a ele.

— Então era mesmo Dillon naquele avião — observou Mary.

— É óbvio — disse Brosnan, sombrio.

— O que significa que o canalha escapou de nossas mãos — concluiu Flood.

— Não tenha tanta certeza — retrucou Mary. — Havia outro avião no hangar. — E ela se virou, correndo para lá.

— O que está acontecendo? — perguntou Flood, seguindo Brosnan na mesma direção.

— Entre outras coisas, a garota é piloto da Unidade Aérea do Exército — disse-lhe Brosnan.

Quando os dois chegaram ao hangar, a escada do Navajo estava descida e Mary já se encontrava dentro da cabine. Ela ergueu-se e saiu.

— Os tanques estão cheios.

— Você quer segui-lo? — perguntou Brosnan.

— Por que não? Com um pouco de sorte, estaremos bem atrás. — Ela parecia firme e determinada. Apanhou sua bolsa e tirou dela o telefone celular. — Não vou deixar que esse homem escape depois do que fez. Ele precisa ser tirado de cena de uma vez por todas.

Com isto, ela saiu, puxou a antena do telefone e ligou para o carro de Ferguson.

 

A limusine, liderando um comboio de seis carros sem identificação da Divisão Especial, acabava de entrar em Dorking, quando Ferguson recebeu o chamado. O detetive-inspetor Lane estava sentado ao seu lado, o sargento Mackie na frente com o motorista.

Ferguson ouviu o que Mary tinha a dizer e tomou uma decisão.

— Estou de pleno acordo. Você deve seguir Dillon o mais rápido possível para esse lugar chamado St. Denis. O que você precisa que eu faça?

— Que fale com o coronel Hernu do Serviço Cinco. Peça-lhe que descubra quem é o dono da pista em St. Denis para que saibamos com quem estamos nos metendo. O coronel quererá ir pessoalmente, é claro, mas isso iria levar muito tempo. Peça a ele para tomar as providências junto às autoridades no aeroporto de Maupertus, em Cherbourg. Eles podem atuar como um contato entre nós e o coronel quando nos aproximarmos da costa francesa.

— Vou cuidar disso imediatamente. E anote esta freqüência de rádio. — Ele ditou rapidamente o código para ela. — Assim você irá me alcançar diretamente no Ministério da Defesa. Caso eu ainda não esteja de volta a Londres, eles a porão em contato comigo.

— Certo, senhor.

— E, Mary, minha querida — acrescentou ele —, tome cuidado. Muito cuidado.

— Farei o melhor que puder, senhor. — Ela desligou o telefone celular, recolocou-o na bolsa e voltou ao hangar.

— Estamos a caminho, então? — perguntou Brosnan.

— Ele vai falar com Max Hernu, em Paris, que nos arranjará uma ligação com o aeroporto de Maupertus, em Cherbourg, para que saibamos em que estamos nos metendo. — Ela sorriu sombriamente. — Então, vamos logo. Seria lamentável chegarmos lá e descobrir que ele já se foi.

Ela subiu no Navajo e se dirigiu para a cabine. Harry Flood a seguiu e acomodou-se em um dos assentos do avião. Depois foi a vez de Brosnan, que puxou a escada, fechando a porta, e então tomou o assento do co-piloto, ao lado de Mary. Ela ligou primeiro um motor e depois o outro, completou a verificação de todos os instrumentos e guiou o Navajo para fora do hangar. Começara a nevar e um vento ligeiro varria a pista, formando uma cortina, enquanto ela taxiava até a extremidade da pista e fazia a curva.

— Pronto? — perguntou ela.

Brosnan assentiu. Ela aumentou a potência, o Navajo roncou pela pista e subiu na direção do céu cinzento, no momento em que ela puxava de volta o manche.

 

Max Hernu estava sentado à mesa, em seu escritório no quartel-ge­neral da DGSE, examinando alguns papéis com o inspetor Savary, quando a ligação de Ferguson foi passada a ele.

— Charles, que momentos excitantes vocês tiveram em Londres esta manhã.

— Não ria, meu velho, porque essa confusão toda pode acabar indo parar nas suas mãos — disse Ferguson. — Existe uma pista de pouso particular em um lugar chamado St. Denis, no litoral mais abaixo de Cherbourg. A quem ela pertence?

Hernu tapou o fone com a mão e disse a Savary:

— Verifique no computador quem possui uma pista de pouso particular em St. Denis, no litoral da Normandia. — Savary saiu apressado e Hernu voltou ao telefone: — Conte-me o que está acontecendo, Charles.

Foi o que Ferguson fez. Ao chegar ao fim do seu relato, ele falou:

— Precisamos pegar esse canalha desta vez, Max, liquidá-lo de uma vez por todas.

— Concordo com você, meu amigo. — Savary entrou, trazendo na mão um papel e o entregou a Hernu, que, ao ler o que estava ali, deu um assovio. — A pista de pouso em questão faz parte da propriedade Château St. Denis, que pertence a Michael Aroun.

— O bilionário iraquiano? — Ferguson riu asperamente. — Então está tudo explicado. Você vai providenciar a autorização para Mary Tanner pousar e também cuidar para que ela receba essa informação?

— É claro, meu amigo. E vou providenciar um avião de imediato e partir para lá pessoalmente com uma equipe do Serviço Cinco.

— Boa caçada para todos nós — desejou Charles Ferguson e desligou o telefone.

 

Havia uma grande massa de nuvens baixas sobre a costa da Normandia. Dillon, ainda a algumas milhas da costa, emergiu delas a cerca de mil pés de altura e foi descendo, aproximando-se do litoral a cerca de quinhentos pés, sobre um mar turbulento e espumoso.

A viagem transcorrera como um sonho, sem qualquer tipo de problema. A navegação aérea sempre fora seu forte e ele deixou para trás o mar, divisando o Château St. Denis encarapitado no alto dos rochedos, a pista de pouso a alguns metros além. Havia ali alguma neve, mas não tanta quanto na Inglaterra. Avistou um pequeno hangar pré-fabricado, o Citation estacionado diante dele. Dillon sobrevoou a casa, virando na direção do vento e baixou os flaps para uma aterrissagem perfeita.

Aroun e Makeev estavam sentados diante da lareira, no Great Hall, quando ouviram o barulho de um avião acima de suas cabeças. Rashid correu e abriu as janelas de sacada. Os outros dois seguiram-no, indo para o terraço coberto de neve, Aroun segurando um binóculo. A cerca de trezentos metros mais abaixo, na pista de pouso, o Cessna Conquest pousava e taxiava na direção do hangar, alinhando-se com o Citation.

— Então, aí está ele — disse Aroun.

Focalizou o avião com o binóculo, viu a porta se abrir e Dillon surgir. Aroun passou o binóculo a Rashid, que, depois de dar uma olhada, entregou-o a Makeev.

— Vou até lá buscá-lo com o Land Rover — disse Rashid.

— Não vai não. — Aroun abanou a cabeça. — Deixe que o safado ande no meio da neve. Uma recepção bem adequada para ele. E, quando chegar aqui, estaremos à sua espera.

 

Dillon deixou a mochila e a valise dentro do Conquest e desceu. Caminhou até o Citation e acendeu um cigarro, examinando o avião. Fora num daqueles que ele voara muitas vezes no Oriente Médio, um dos seus preferidos. Dillon terminou o cigarro e acendeu um segundo. Estava terrivelmente frio e tudo muito silencioso. Quinze minutos se passaram e nenhum sinal de qualquer veículo para apanhá-lo.

— Então é assim, não é? — murmurou ele, caminhando de volta ao Conquest.

Abriu a valise, checou a Walther e o silenciador Carswell, e deslizou a Beretta para dentro das calças, nas costas. Segurou a mochila com uma das mãos, a valise com a outra, atravessou a pista e seguiu a trilha por entre as árvores.

 

A cinqüenta milhas da costa, Mary identificou-se à torre de comando no aeroporto de Maupertus, obtendo resposta instantaneamente.

— Estávamos aguardando vocês.

— Tenho autorização para aterrissar na pista em St. Denis? — perguntou ela.

— As coisas estão ficando difíceis por lá. Tínhamos teto de mil pés há apenas vinte minutos. Está a seiscentos agora, no máximo. Aconselho que pousem aqui.

Brosnan ouvia toda a conversa no outro headphone e voltou-se para ela, alarmado.

— Não podemos fazer isso, não agora.

Ela voltou a falar com Maupertus:

— É urgentíssimo que eu pouse lá mesmo.

— Temos uma mensagem para você do coronel Hernu.

— Leia — pediu ela.

— A pista de pouso em St. Denis faz parte do Château St. Denis, de propriedade do Sr. Michael Aroun.

— Obrigada — agradeceu ela calmamente. — Câmbio, desligo. — Ela voltou-se para Brosnan. — Ouviu isso? Michael Aroun!

— Um dos homens mais ricos do mundo — observou Brosnan. — E iraquiano.

— Tudo se encaixa.

Ele soltou o cinto de segurança.

— Vou lá contar a Harry.

 

Dillon caminhou penosamente em meio à neve, dirigindo-se à varanda na entrada da casa, onde os três homens o observavam chegar.

— Você sabe o que fazer, Josef — disse Aroun.

— É claro. — Makeev tirou uma Makarov automática do bolso, certificou-se de que estava pronta para a ação e tornou a guardá-la.

— Vá e faça-o entrar, Ali — ordenou Aroun a Rashid.

O capitão iraquiano saiu. Aroun foi até o sofá ao lado da lareira e apanhou um jornal. A seguir dirigiu-se à mesa, abriu o jornal à sua frente, tirou um revólver Smith & Wesson do bolso e deslizou-o para debaixo do jornal.

Rashid abriu a porta e Dillon subiu os degraus cobertos pela neve.

— Sr. Dillon — cumprimentou-o o jovem capitão. — Então, o senhor conseguiu?

— Uma carona teria sido bem-vinda — retrucou Dillon.

— O Sr. Aroun está esperando lá dentro. Deixe-me levar sua bagagem.

Dillon entregou-lhe a mochila e continuou segurando a valise.

— Eu fico com isto. — Ele sorriu. — O que restou dos dólares.

Ele seguiu Rashid pela enorme extensão de ladrilhos pretos e brancos e entrou no Great Hall, onde Aroun aguardava, sentado à mesa.

— Entre, Sr. Dillon — convidou o iraquiano.

— Deus, abençoe todos aqui — disse-lhe Dillon e caminhou até a mesa, ficando ali de pé, a valise na mão direita.

— Você não se saiu muito bem — comentou Aroun.

Dillon deu de ombros.

— Às vezes a gente ganha, às vezes perde.

— Prometeram-me grandes feitos. Você iria atear fogo ao mundo.

— Quem sabe de uma outra vez. — Dillon pousou a valise sobre a mesa.

— Uma outra vez! — Subitamente o rosto de Aroun estava desfigurado pela raiva. — Outra vez? Deixe-me dizer o que você fez. Você desapontou não só a mim, você decepcionou Saddam Hussein, presidente do meu país. Eu empenhei minha palavra com ele e, graças ao seu fracasso, minha honra está em farrapos.

— O que você quer que eu faça? Que diga que sinto muito?

Rashid estava sentado na borda da mesa, balançando uma perna. Ele falou a Aroun:

— Nestas circunstâncias, foi uma decisão sábia não pagar a este homem.

— Do que ele está falando? — perguntou Dillon.

— Daquele um milhão adiantado que você me instruiu para que depositasse em Zurique.

— Eu falei com o gerente, que confirmou o depósito na minha conta — declarou Dillon.

— Seguindo minhas instruções, seu idiota! Tenho milhões depositados naquele banco. Precisei apenas ameaçar transferi-los para outro banco para convencer o gerente.

— Você não deveria ter feito isso—disse Dillon calmamente. — Eu sempre cumpro a minha palavra, Sr. Aroun, e espero que os outros também cumpram a sua. Uma questão de honra.

— Honra? Você vem falar de honra comigo? — Aroun soltou uma gargalhada. — O que você acha disso, Josef?

Makeev, que estivera até aquele momento atrás da porta, surgiu, empunhando a Makarov. Dillon virou-se de lado e o russo lhe disse:

— Calma, Sean, calma.

— Não é o que eu tenho sempre, Josef? — perguntou Dillon.

— Ponha as mãos na cabeça, Sr. Dillon — ordenou Rashid.

Dillon obedeceu e Rashid abriu o zíper da jaqueta de couro do irlandês, procurando uma arma, e nada encontrou. As mãos dele contornaram a cintura de Dillon e descobriram a Beretta.

— Muito astuto — disse, pondo a arma sobre a mesa.

— Posso fumar um cigarro? — Dillon pôs a mão no bolso e Aroun atirou o jornal para um lado, apanhando o Smith & Wesson. Dillon tirou um maço de cigarros do bolso. — Tudo bem? — Ele pôs um cigarro na boca e Rashid acendeu-o para ele. O irlandês ficou ali de pé, o cigarro pendendo do canto de sua boca. — O que acontece agora? Josef me elimina?

— Não, esse é um prazer que eu reservo para mim mesmo — respondeu Aroun.

— Sr. Aroun, sejamos razoáveis. — Dillon abriu os fechos da valise e começou a erguer a tampa. — Eu lhe devolvo o que restou do dinheiro das despesas e ficamos quites. Que tal?

— Você acha que o dinheiro vai consertar a situação? — indagou Aroun.

— Na verdade, não — disse Dillon, tirando a Walther com o silenciador Carswell da valise e acertando-o entre os olhos. Aroun tombou, derrubando a cadeira, e Dillon, dando meia-volta, jogou-se ao chão, apoiando-se em um dos joelhos, e atingiu Makeev duas vezes, no momento em que o russo dava um tiro às cegas.

No segundo seguinte Dillon já estava de pé e girando, a Walther apontada, e Rashid ergueu as mãos.

— Não há necessidade disso, Sr. Dillon. Eu posso lhe ser útil.

— Não tenho a menor dúvida quanto a isso — disse-lhe Dillon.

Ouviu-se o súbito ronco de um avião sobrevoando a casa.

Dillon agarrou Rashid pelo ombro e o empurrou na direção da janela de sacada.

— Abra — ordenou.

— Está bem. — Rashid obedeceu e eles saíram no terraço, de onde podiam ver o Navajo aterrissando, apesar da neblina espessa.

— Bem, quem pode ser agora? — perguntou Dillon. — Amigos de vocês?

— Não estávamos esperando ninguém, eu juro — afirmou Rashid.

Dillon o empurrou de volta para dentro de casa e encostou a ponta do silenciador no lado do pescoço do iraquiano.

— Aroun tinha um belo cofre oculto no apartamento da Avenida Victor Hugo, em Paris. Não venha me dizer que ele não tinha um aqui também.

Rashid não hesitou.

— Fica no estúdio. Eu vou lhe mostrar.

— É claro que vai — disse Dillon, empurrando-o na direção da porta.

 

Mary taxiou o Navajo ao longo da pista, alinhando-o ao Conquest e ao Citation. Quando ela desligou o motor, Brosnan já deixara a cabine e abria a porta, descendo rapidamente e virando-se para ajudar Flood a descer. Mary os seguiu. Estava tudo muito quieto, o vento erguendo a neve em lufadas.

— E este Citation? — perguntou Mary. — Não pode ser Hernu. Não houve tempo suficiente.

— Deve ser de Aroun — disse-lhe Brosnan.

Flood apontou para os passos de Dillon, claramente visíveis na neve, que levavam à trilha por entre as árvores, o castelo erguendo-se majestoso do outro lado.

— É por ali que vamos — disse ele, tomando a frente, seguido por Brosnan e Mary.

 

O estúdio era surpreendentemente pequeno, as paredes revestidas por carvalho, os costumeiros retratos a óleo de antepassados aristocratas nas paredes. Havia ali uma escrivaninha e uma cadeira antigas, uma lareira vazia, um aparelho de TV e um de fax e prateleiras em uma das paredes, onde os livros se alinhavam.

— Seja rápido — disse Dillon, sentando-se na borda da mesa e acendendo um cigarro.

Rashid foi até a lareira e pousou a mão sobre o revestimento da parede à direita. Obviamente, deveria haver ali uma mola oculta. Um dos painéis do revestimento se abriu, revelando um pequeno cofre. Rashid girou o disco no centro para trás e para a frente, e então tentou a fechadura. O cofre recusou-se a abrir.

— Você terá de se sair melhor do que isto — disse-lhe Dillon.

— Me dê um pouco de tempo. — Rashid estava suando. — Devo ter tentado a combinação errada. Deixe que eu tente de novo.

Foi o que ele fez, interrompendo-se apenas para enxugar o suor dos olhos com a mão esquerda, e então houve um clique ouvido até mesmo por Dillon.

— Pronto — disse Rashid.

— Ótimo — retrucou Dillon. — Vamos com isso. — Ele estendeu o braço esquerdo, a Walther apontada para as costas de Rashid.

O iraquiano abriu o cofre, levou o braço lá dentro e voltou-se, uma Browning na mão. Dillon acertou-o no ombro, fazendo-o girar, e atirou de novo, atingindo-o nas costas. O jovem iraquiano bateu com força contra a parede, deslizou para o chão e rolou, ficando com o rosto voltado para baixo.

Dillon debruçou-se sobre ele por um momento.

— Vocês nunca aprendem — murmurou.

Examinou o interior do cofre. Estavam ali arrumadas várias pilhas de cédulas de cem dólares, francos franceses, libras esterlinas. Ele voltou ao Great Hall e apanhou a valise. Novamente no estúdio, abriu-a sobre a mesa e a encheu com quanto dinheiro pôde, assoviando para si mesmo. Quando não cabia mais nada na valise, ele a fechou. Foi naquele instante que ouviu a porta da frente se abrir.

 

Brosnan subiu na frente os degraus cobertos de neve, a Browning que Mordecai lhe dera firme na mão direita. Hesitou por um momento e então tentou a porta principal, que se abriu ao seu toque.

— Cuidado — disse Flood.

Brosnan espiou lá dentro, cauteloso, observando a vasta extensão de ladrilhos brancos e pretos, a escada em curva.

— Silencioso como um túmulo. Vou entrar.

Quando ele se adiantou, Flood disse a Mary:

— Espere aqui um momento. — E seguiu Brosnan.

As portas duplas que davam para o Great Hall estavam totalmente abertas e Brosnan viu o corpo de Makeev de imediato. Parou por um instante, e entrou a seguir, a Browning pronta para atirar.

— Ele esteve aqui, isto é certo. Quem será este?

— Há mais um do outro lado da mesa — informou Flood.

Contornaram a mesa, Brosnan ajoelhou-se e virou o corpo emborcado para cima.

— Ora, ora. Até eu sei quem é este — disse Flood. — É Michael Aroun.

 

Mary caminhou até o hall de entrada, fechando a porta atrás de si, e viu os dois homens entrarem no Great Hall. Houve um ruído estranho à sua esquerda e ela virou-se, percebendo a porta aberta para o estúdio. Apanhou o Colt .25 na bolsa e adiantou-se.

Quando se aproximou da porta, a mesa ficou à vista e ela pôde ver também o corpo de Rashid no chão, ao lado. Deu um rápido passo para a frente, numa espécie de ação reflexa, e Dillon saiu de detrás da porta e arrancou o Colt de sua mão, guardando-o no bolso.

— Ora vejam — disse ele —, que prazer inesperado! — E apertou a Walther de encontro às suas costelas.

 

— Mas por que ele o mataria? — Flood perguntou a Brosnan. — Não compreendo.

— Porque o canalha me enganou. Porque não queria pagar sua dívida.

Os dois viraram-se e se depararam com Mary na porta, tendo Dillon atrás dela, a Walther na mão esquerda e a valise na outra. Brosnan ergueu a Browning.

— Ponha a arma no chão e a empurre para cá, Martin, ou ela morre — ameaçou Dillon. — Você sabe que falo sério.

Brosnan pôs a arma no chão com cuidado e a empurrou, fazendo com que deslizasse pelo piso de parquete.

— Muito bem — disse Dillon. — Assim está bem melhor. — Empurrou Mary na direção dos outros e chutou a Browning pela porta.

— Aroun nós reconhecemos, mas só por curiosidade, quem era este aqui? — Brosnan apontou para Makeev.

— Coronel Josef Makeev, KGB, divisão de Paris. Foi ele o camarada que me meteu nesta. Um linha-dura que não gostava de Gorbachev e do que ele está tentando fazer.

— Há um outro corpo no estúdio—informou Mary a Brosnan.

— Um capitão do serviço de informações do Iraque, chamado Ali Rashid, guardião de Aroun — retrucou Dillon.

— Um pistoleiro de aluguel? É isto o que você é, Sean? — Brosnan indicou com a cabeça o corpo de Aroun. — Diga a verdade: por que você o matou?

— Eu já lhe disse. Porque ele não queria pagar sua dívida. Uma questão de honra, Martin. Eu sempre cumpro a minha palavra, você sabe disso. Não foi o que ele fez. Mas, mudando de assunto, como é que vocês me encontraram?

— Uma mulher chamada Myra Harvey mandou segui-lo ontem à noite. Isto nos levou a Cadge End. Você está ficando negli­gente, Sean.                

— Pelo visto, sim. Se isso lhe serve de consolo, o único motivo por que não mandamos todo o Gabinete de Guerra para o inferno foi porque você e seus amigos estavam chegando perto demais, me obrigando a agir com pressa, o que é sempre fatal. Danny queria soldar barbatanas estabilizadoras naqueles cilindros de oxigênio que usamos como morteiros. Isso teria feito uma grande diferença, no que se refere à precisão, mas não havia tempo, graças a você.

— Folgo em sabê-lo — retrucou Brosnan.

— E como é que me acharam aqui?

— Aquela pobre garota desconsolada nos contou — respondeu Mary.

— Angel? Sinto muito por ela. Uma ótima garota.

— E quanto a Danny Fahy e Grant, no campo de aviação? Sente muito por eles também? — perguntou Brosnan.

— Eles não deveriam ter se metido comigo.

— Belfast e o assassinato de Tommy McGuire. Foi você? — quis saber Mary.

— Uma de minhas melhores atuações.

— E você não voltou no vôo direto para Londres — acrescentou ela. — Estou certa?

— Voei para Glasgow e de lá peguei a ponte aérea para Londres.

— E então, o que vai acontecer agora? — indagou Brosnan.

— Comigo? — Dillon ergueu a valise. — Tenho aqui uma quantia bem grande, que estava no cofre de Aroun, e posso até optar por um avião. O mundo é o meu esconderijo. Qualquer lugar, menos o Iraque.

— E quanto a nós? — Harry Flood parecia estar sentindo-se mal, o rosto contraído de dor, e afrouxou o braço esquerdo na tipóia.

— Sim, e quanto a nós? — perguntou Mary. — Você matou todos os outros. Que diferença faz mais três?

— Mas eu não tenho outra alternativa... — respondeu Dillon, paciente.

— Não, mas eu tenho, seu canalha!

A mão direita de Harry Flood deslizou para dentro da tipóia, sacando a Walther que estava escondida ali e acertou-o duas vezes no coração. Dillon recuou, batendo contra a parede e deixando a valise cair, e deslizou para o chão, contorcendo-se numa espécie de convulsão. De repente, ele ficou imóvel, caído ali com o rosto voltado para baixo, a Walther com o silenciador Carswell ainda segura na mão esquerda.

 

Ferguson estava no carro, a meio caminho de volta a Londres, quando Mary ligou para ele do telefone no estúdio de Aroun.

— Nós o pegamos, senhor — disse ela simplesmente, quando ele atendeu.

— Conte-me tudo.

Foi o que Mary fez: Michael Aroun, Makeev, Ali Rashid, tudo. Ao terminar o relato, ela disse:

— Isso é tudo, senhor.

— É o que parece. Estou voltando a Londres. Acabo de passar por Epsom. Deixei o detetive-inspetor Lane para cuidar das coisas em Cadge End.

— E agora, general?

— Pegue o avião que usou e saia daí imediatamente. Vocês estão em território francês, lembrem-se disso. Vou falar com Hernu agora e ele vai cuidar de tudo. Agora vá e volte no mesmo avião. Faça contato comigo no caminho e eu lhe darei os detalhes para a aterrissagem.

Ela desligou e, no momento seguinte, Ferguson telefonou para o gabinete de Hernu no quartel-general da DGSE. Foi Savary quem atendeu.

— Aqui é Ferguson. Você tem a hora de chegada do coronel Hernu em St. Denis?

— O tempo não está muito bom por aqui, general. Eles irão pousar no aeroporto de Maupertus, em Cherbourg, e prosseguir de carro.

— Bem, o que ele vai encontrar por lá é páreo duro com o último ato de Macbeth — disse Ferguson. — Portanto, vou lhe contar para que você possa adiantar as informações para ele.

 

A visibilidade não ia além de cem metros na pista de pouso, a neblina flutuando, vinda do mar, no momento em que Mary taxiava o Navajo até a extremidade da pista. Brosnan sentava-se ao seu lado e Flood, curvado em seu assento, olhava para dentro da cabine.

— Tem certeza de que podemos ir? — perguntou ele.

— É aterrissar num lugar assim que é perigoso e não levantar vôo — disse ela, guiando o Navajo para a frente, em meio à parede cinzenta. Ela puxou o manche e começou a subir, deixando aos poucos a neblina para trás. Tomou a direção do mar, planando a cerca de novecentos pés. Depois de algum tempo, acionou o piloto automático e recostou-se no assento.

— Você está bem? — perguntou Brosnan.

— Estou. Um pouco cansada, só isso. Ele era tão... tão elemental. Não consigo acreditar que esteja morto.

— Está muito bem morto — disse Flood alegremente, uma meia garrafa de scotch em uma das mãos e um copo plástico, desajeitado, na outra, pois ele descobrira o compartimento de bebidas do Navajo.

— Pensei que você não bebesse — observou Brosnan.

— Só em ocasiões especiais. — Flood ergueu o copo. — A Dillon. Que ele queime no inferno!

 

Dillon tomou consciência das vozes, da porta da frente se fechando. Quando voltou a si, foi como se ressuscitasse. A dor em seu peito era excruciante, mas isso não era de se surpreender. O choque provocado por um tiro à queima-roupa era considerável. Ele examinou os dois buracos irregulares na jaqueta de couro e abriu o zíper, descansando a Walther no chão. As balas que Flood lhe acertou encontravam-se incrustadas no colete de titânio e nylon que Tânia lhe dera naquela primeira noite. Dillon soltou as tiras de velcro e tirou o colete, jogando-o para um lado. A seguir, apanhou a Walther e pôs-se de pé.

Ele estivera de fato inconsciente durante algum tempo, mas isso era comum quando se levava um tiro à queima-roupa, qualquer que fosse o tipo de colete à prova de balas que se usasse. Ele caminhou até o armário das bebidas e serviu-se de um conhaque, olhando os corpos espalhados pela sala ao seu redor, a valise ainda no chão onde a largara. Quando ouviu o ronco do motor do Navajo decolando, compreendeu tudo. Eles haviam partido para deixar que os franceses cuidassem de tudo, o que tinha lógica. Afinal, aquele era território francês, e isso significava que Hernu e os rapazes do Serviço de Ação deviam estar a caminho.

Hora de ir embora. Mas, como? Serviu-se de uma outra dose de conhaque e pensou um pouco. Havia o jato Citation de Michael Aroun, mas para onde ele poderia ir sem deixar algum tipo de pista? Não, a melhor resposta, como sempre, era Paris. Ele sempre conseguira desaparecer no ar naquela cidade. Havia a barcaça e o apartamento em cima do armazém, na rue de Helier. Era tudo de que precisaria.

Terminou o conhaque, apanhou a valise e hesitou por um momento, olhando para o colete de titânio com as duas balas incrustadas, no chão. Sorriu e murmurou:

— Você vai ter essa para amargar, Martin.

Abriu as janelas de sacada, parou na varanda por um instante, inspirando profundamente o ar frio, e então desceu pelos degraus até o gramado e pôs-se a caminhar rapidamente por entre as árvores, assoviando baixinho.

 

Mary sintonizou o rádio na freqüência que Ferguson lhe dera e foi imediatamente captada na sala de rádio do Ministério da Defesa, onde um sofisticado scrambler começou a operar, e a sua chamada foi transferida a Ferguson.

— Estamos bem em cima do canal, senhor, a caminho de casa.

— Você vai aterrissar no Gatwick — informou ele. — Estarão à sua espera. Hernu acaba de me telefonar do carro a caminho de St. Denis. Exatamente o que pensei. Os franceses não querem esse tipo de confusão em seu território. Aroun, Rashid e Makeev morreram num acidente de automóvel, Dillon vai direto para um túmulo de indigente. Nenhum nome, apenas um número. O mesmo tipo de coisa aqui do nosso lado com o tal Grant.

— Mas como, senhor?

— Um dos nossos médicos já foi avisado para atestar a sua morte devido a um ataque cardíaco. Temos nosso próprio estabelecimento para cuidar desse tipo de coisa desde a Segunda Guerra Mundial. Quiet Street, na zona norte de Londres. Temos lá nosso próprio crematório. Amanhã, Grant não vai ser nada além de dois quilos de cinzas. Sem nenhuma autópsia.

— E quanto a Jack Harvey?

— Bem, o caso dele é um pouco diferente. Ele e o jovem Billy Watson continuam fazendo parte deste mundo e estão internados numa pequena casa de repouso particular em Hampstead. A Divisão Especial está de olho neles.

— Estou com a impressão de que não vamos fazer nada a respeito deles. Acertei?

— Não será preciso. Harvey não deseja passar vinte anos na prisão por prestar serviços ao IRA. Ele e sua corja de idiotas vão ficar de bico calado. O mesmo, aliás, se aplica ao KGB.

— E o que me diz de Angel?

— Pensei que talvez fosse bom ela vir passar algum tempo com você. Tenho certeza de que pode cuidar dela, minha querida. O toque feminino, essas coisas. — Fez uma pausa e a seguir acrescentou: — Veja bem, Mary, nada disso aconteceu, nunca.

— Então isto é tudo, senhor?

— Isso mesmo, Mary. Até breve.

 

— O que o velho patife tinha a dizer? — perguntou Brosnan.

Mary lhes contou e, ao chegar ao fim, Flood riu alto.

— Então isso nunca aconteceu? Que maravilha!

— E agora, Martin? — indagou Mary.

— Só Deus sabe. — Ele se recostou no banco e fechou os olhos.

Ela voltou-se para Harry Flood, que ergueu o copo, como se brindasse, esvaziando-o a seguir.

— Não pergunte a mim — disse ele.

Ela suspirou, desativou o piloto automático, assumiu o controle do avião e prosseguiu, rumo ao litoral da Inglaterra.

 

Ferguson, escrevendo rapidamente, terminou o relatório e fechou o arquivo. Ergueu-se e caminhou até a janela. Voltara a nevar quando ele olhou para a esquerda, na direção do cruzamento da Horse Guards Avenue com a Whitehall, onde tudo se passara. Ele estava cansado, como não se sentia há muito tempo, mas ainda havia uma coisa a fazer. Voltou à mesa e já levava a mão ao telefone, quando este tocou.

— Charles, estou em St. Denis e temos problemas — soou a voz de Hernu.

— Fale — disse Ferguson, o estômago já se contraindo.

— Só encontramos três corpos: Makeev, Rashid e Michael Aroun.

— E Dillon?

— Nenhum sinal dele, apenas um moderno colete à prova de balas no chão, com duas balas de uma Walther engastadas nele.

— Ah, meu Deus! — exclamou Ferguson. — O malandro ainda está por aí!

— Receio que sim, Charles. Vou avisar a polícia, naturalmente, e todas as agências costumeiras, mas não posso dizer que esteja muito esperançoso.

— E por que você estaria? — perguntou Ferguson. — Não conseguimos pôr as mãos em Dillon durante vinte anos. Por que seria diferente agora? — Respirou fundo. — Tudo bem, Max, manterei contato.

Voltou à janela e ficou ali, olhando a neve cair lá fora. Não fazia sentido comunicar-se com o Navajo agora. Mary, Brosnan e Flood saberiam da má notícia em breve, mas ainda havia uma coisa a fazer. Voltou à mesa, relutante, apanhou o scrambler, hesitando apenas por um momento antes de discar para o Número Dez da Downing Street e pedir para falar com o primeiro-ministro.

 

Começava a anoitecer e a neve caía pesadamente enquanto Pierre Savigny, um fazendeiro da aldeia de St. Just, além de Bayeux, guiava com cuidado o velho caminhão Citroên pela estrada princi­pal, a caminho de Caen. Ele quase não viu o homem com a roupa de motociclista que surgiu na estrada, o braço levantado.

O Citroen freou bruscamente e Dillon abriu a porta do passageiro, sorrindo.

— Sinto muito — desculpou-se ele em seu francês impecável —, mas estou andando há um bocado de tempo.

— E para onde é que você está indo numa tarde horrível como esta? — perguntou Savigny, enquanto Dillon acomodava-se no assento ao seu lado.

— Para Caen. Espero conseguir pegar o trem noturno para Paris. Minha moto quebrou. Tive de deixá-la em uma garagem em Bayeux.

— Então você está com sorte, meu amigo — disse Savigny. — Estou indo para Caen, levando tomates para a feira de amanhã. — Engatou a primeira e pôs-se a caminho.

— Excelente. — Dillon pôs um cigarro na boca, acendeu-o com o isqueiro e ficou ali sentado, a valise sobre os joelhos.

— Então é um turista, monsieur? — indagou Savigny, ganhando velocidade.

Sean Dillon sorriu, amável.

— Não exatamente — respondeu. — Estou apenas de passagem.

E ele recostou-se no banco, fechando os olhos.

 

                                                                                Jack Higgins  

 

                      

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