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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O OLHO VERMELHO DO SISTEMA BETA / Clark Darlton
O OLHO VERMELHO DO SISTEMA BETA / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O OLHO VERMELHO DO SISTEMA BETA

 

Um adversário muito antigo, já quase esquecido, surge novamente. E Gucky fez questão de ver os lagartos voarem.

História da Terceira Potência em poucas palavras:

• O foguete Stardust alcança a Lua e Perry Rhodan descobre a nave exploradora dos arcônidas, que realizou um pouso de emergência (vol. 1).

• Instalação da Terceira Potência contra a resistência das grandes potências terrenas e defesa contra tentativas de invasão extraterrena (vols. 2 a 9).

• Primeira intervenção da Terceira Potência nos acontecimentos galácticos. Perry Rhodan defronta-se com os tópsidas e procura solucionar o enigma galático (vols. 10 a 18).

• A Stardust-III descobre o planeta Peregrino e Perry Rhodan alcança a imortalidade relativa (vol. 19).

• Perry Rhodan regressa à Terra e luta por Vênus (vols. 20 a 24).

• O Supercrânio ataca (vols. 25 a 27).

• Chegada dos saltadores, que pretendem eliminar a concorrência potencial da Terra no comércio galático (vols. 28 a 37).

• Primeiro contato de Perry Rhodan com Árcon e atuação como delegado do cérebro positrônico que exerce o governo no grupo estelar M-13 (vols. 38 a 42).

Para dar mais impressão de verdadeira Terra, Rhodan mandara seus dois cruzadores, Centauro e Terra, para se estabelecerem no planeta Três, se defenderem dos ataques, simulando que aquele planeta era realmente a invejada Terra dos homens.

Porém o planeta Quatro já estava ocupado pelos tópsidas, os quais...

 

                                            

 

Além dos dois arcônidas Crest e Thora, do rato-castor Gucky e dos próprios terranos, não havia ninguém, no Universo inteiro, que pudesse saber a posição do planeta Terra, com exceção de duas criaturas.

A primeira chamava-se Topthor. Era um comerciante das Galáxias da estirpe dos Superpesados, 1,60 m de altura e o mesmo tanto de largura, pele esverdeada e senhor absoluto de uma respeitável frota de espaçonaves.

A segunda era o cérebro positrônico, instalado na nau capitania do próprio Topthor, na mesma espaçonave com a qual tentara atacar a Terra, há meses atrás, ao descobri-la casualmente. Porém, nem o computador positrônico, nem Topthor, sabiam que os mutantes de Perry Rhodan haviam alterado completamente a programação dos dados, no setor de alimentação do computador.

Conforme esta alteração, passou a ser registrado como Terra o terceiro planeta do gigantesco sol Beta, 272 anos-luz do nosso sistema solar.

Uma alteração que provocaria um lamentável engano — lamentável para dois grandes povos das Galáxias — embora seu grande adversário, um terrano com o nome de Perry Rhodan, juntamente com seu pequeno planeta pátrio, ficariam excluídos dos dados lançados.

E era exatamente este o objetivo de Rhodan.

A Terra, isto é, a Humanidade, já estava evoluída e já havia realizado em seu planeta o que até então parecia mero sonho de idealistas.

A unificação da Terra num só governo não era mais utopia. Todos os povos da Terra tinham se unido, fronteiras e barreiras alfandegárias não mais existiam. O ministro das finanças da Terra, Homer G. Adams, introduziu um padrão monetário único, o chamado Solar, moeda de toda a Terra. As grandes nações e os pequenos estados de outrora tinham sua representação no Conselho Geral que se reunia periodicamente em Terrânia, capital do Mundo.

O fantasma da guerra era coisa do passado. O dinheiro colossal dispendido outrora com armamentos, servia agora para a construção de uma gigantesca frota espacial, dependente diretamente do governo mundial. Inicialmente, as unidades já existentes da frota eram comandadas pelos homens da Terceira Potência, um organismo estatal construído com o auxílio dos arcônidas.

Em Terrânia, situada no coração do deserto de Gobi, era grande a agitação. A megalópole, célula-mater da Terra unificada, aguardava com ansiedade o relatório de seu primeiro cidadão, que depois de uma ausência de seis meses, estava regressando ao planeta pátrio. Ninguém sabia o que havia sucedido neste meio ano, mas todos sabiam que a prolongada ausência de Perry Rhodan só podia ter sido causada por acontecimentos da maior gravidade.

O engenheiro-chefe Kowalski e o técnico de eletrônica Harper, haviam terminado o trabalho do dia e permaneciam sentados diante da televisão, em seu aposento coletivo, do qual compartilhavam ainda dois outros colegas, que faziam serão.

A tela mostrava o espaço. No fundo, estava a Via Láctea e, mais para frente, a sombra de uma espaçonave em forma de um torpedo. Uma única palavra indicava a estação que estava transmitindo: Terrânia.

Qualquer pessoa na Terra sabia que um grande acontecimento estava iminente. Certamente não havia ninguém que fosse perder esta transmissão. O governo mundial falaria a toda a população da Terra, provavelmente o próprio presidente — Perry Rhodan.

— Acabou de chegar hoje — disse Kowalski, e Harper sabia de quem estava falando. Todo mundo vira a gigantesca esfera espacial quando descia. Uma nave, que a Terra nunca havia visto igual. Quilômetro e meio era o diâmetro do gigante do espaço. Com letras pretas, lia-se em sua fuselagem o nome: Titan.

— Estou curioso para ouvir as novidades que nos traz.

Ele, Perry Rhodan, o homem que tinha unificado a Terra, e a transformado numa superpotência galáctica. Era, talvez, o único homem vivo que não tinha inimigos — pelo menos na Terra e entre os homens.

Lá fora, porém, no infinito do espaço...

— Vamos ver — murmurou Harper, virando-se na poltrona. — De qualquer maneira, uma coisa não mudou ainda: as pausas na televisão. Parece que vai começar agora.

A cintilante Via Láctea desapareceu da tela, dando lugar ao rosto de um homem. Era o coronel Albrecht Klein, substituto de Rhodan. Durante a ausência do presidente, dirigia os negócios da Terceira Potência e do governo mundial, com o apoio decidido de Allan D. Mercant.

— Amigos terranos!

O coronel Klein fez uma pausa muito enfática, olhando com um sorriso afável para a câmera, e portanto para quase dois bilhões de homens.

— Perry Rhodan voltou de sua expedição ao espaço e vai informá-los dos acontecimentos mais importantes, sucintamente. Um relatório mais detalhado pode ser esperado para os próximos dias, de maneira que peço compreensão dos telespectadores, pelo fato de nosso presidente fazer apenas um resumo dos fatos. Passo assim a palavra a Perry Rhodan!

Coronel Klein se afastou com um sorriso e sua imagem desapareceu do vídeo.

— Foi breve e indolor — observou Harper, olhando com interesse quando a câmera ainda apresentava a retirada de Klein e depois o ambiente onde já se encontravam os membros do Conselho do Governo, numa mesa em meia-lua.

— Lá está ele.

Kowalski já havia visto Rhodan há mais tempo. O uniforme da Frota Espacial, bem talhado, salientava sua figura esbelta. Levantou-se com um leve sorriso, dirigindo-se ao estrado dos microfones. Apertou a mão do coronel Klein e ficou de pé diante da câmera, que levava a imagem por todas as partes da Terra, até mesmo para o menor povoado no centro da África. Centenas de tradutores convertiam suas palavras em todas as línguas da Terra, para as diversas regiões do mundo. Todos podiam compreendê-lo, embora falasse em inglês.

— Terranos...

A voz de Rhodan soava um pouco cansada, embora seu sorriso fosse permanente. Em seus olhos castanhos parecia cintilar a perenidade do espaço infinito, que realmente se tornara sua segunda pátria. Mas esta perenidade não tinha o brilho de sempre; trazia laivos de preocupação no fundo de sua alma.

— Nestes últimos seis meses, muita coisa mudou, tanto aqui na Terra como no espaço infinito. Vocês todos se lembrarão que iniciamos uma expedição para procurarmos o Império dos Arcônidas nas Galáxias, no conjunto sideral M-13, distante de nós trinta e quatro mil anos-luz. Encontramos Árcon, o sistema central, tivemos, porém uma amarga decepção. Há seis anos, os arcônidas foram substituídos por um cérebro positrônico de tamanho inimaginável, maior do que todo cérebro que existiu ou existe nas Galáxias.

Rhodan fez uma pausa curta, para dar ênfase a suas palavras. A câmera se afastou um pouco, fotografando agora os dois arcônidas Crest e Thora bem de perto. Harper assobiou baixinho, dizendo:

— Que mulher fantástica, esta Thora, alta e esbelta. Os cabelos brancos e os olhos avermelhados não atrapalham nada. Não é propriamente bela, mas tem um encanto especial a que não posso resistir.

Rhodan apareceu de novo no vídeo.

— Conseguimos tomar do Império a maior belonave até hoje construída no universo, a Titan. Atacado por inimigos externos, o cérebro positrônico se sentiu ameaçado, aliando-se a nós. Ajudamos o regente do Império Arcônida e granjeamos sua confiança, se é que se pode falar em confiança em se tratando de um cérebro robotizado. No decorrer das operações, se evidenciou cada vez mais que o grande Império e a nossa pequena Terra têm um inimigo comum, que deve ser tomado muito a sério, isto é, os saltadores. Vocês todos já ouviram falar nesta raça de humanóides, descendentes dos arcônidas. São também chamados de comerciantes das Galáxias. Foram eles que, há tempos, atacaram a Terra e foram rechaçados. O superpesado Topthor conhece a posição da Terra, ou pelo menos julga conhecer. Ele e o cérebro positrônico de sua nave.

“Mas ainda existe alguém que gostaria de saber onde está a Terra: o gigantesco cérebro robotizado de Árcon. Terranos, nosso mundo não conhece inimigo mais perigoso do que este cérebro robotizado, que não suporta competir com outra potência. E a Terra está em vias de se tornar uma superpotência das Galáxias.”

Rhodan foi interrompido pelo aplauso geral dos delegados. Agradeceu-lhes, com um sinal de cabeça e continuou:

— O cérebro positrônico de Árcon consiste de lógica fria e total ausência de compromissos. Não vê em nós a não ser um auxílio oportuno, que pode usar à vontade quando interessar a seus desígnios. A Terra, porém, não tem nenhum interesse em ser colônia de Árcon.

Irrompeu novo e vibrante aplauso. Harper e Kowalski batiam palmas com entusiasmo. A televisão exibia de novo Crest e Thora que evitavam qualquer manifestação de sentimento. Imóveis e calmos estavam eles em seus lugares. Nos olhos de Crest houve brilho breve, mas ninguém poderia dizer se era de indignação. Thora não deixava um momento de olhar para Rhodan. Seu olhar estava pregado em seus lábios, como que aguardando dele uma revelação.

Rhodan esperou até que se fizesse silêncio.

— Volto a insistir na lógica fria do cérebro robotizado. Quando ele souber de nossa resolução, isto é, de não querermos mais continuar como seus criados, haverá de cair sobre nós, sem piedade e destruir-nos. Porém, não sabe onde se localiza o sistema solar no infinito do espaço... Ainda não sabe.

“E Topthor não nos pode mais trair, porque nós alteramos os dados do computador eletrônico, alimentando-o com dados falsos. Se ele recorrer ao cérebro positrônico para saber da nossa posição, receberá a resposta de que a Terra é o terceiro planeta do grande sol Beta, em Orion, duzentos e setenta e dois anos-luz distante de nós.

“Penso que os saltadores e talvez até mesmo o cérebro robotizado de Árcon destruam este terceiro planeta e acreditem piamente que destruíram a Terra. Conforme os catálogos dos arcônidas, este terceiro planeta é considerado inabitado, mas nós cuidaremos de fazer com que ninguém perceba isto. A Terra, oficialmente, deixará, pois, de existir. Só depois é que teremos tempo para construirmos nossa frota espacial, com calma, até que um dia possamos nos apresentar diante de Árcon de cabeça erguida e impor nossas condições. Não mais como povo dependente, mas, ao menos como nação soberana, de igual para igual.”

Novos aplausos, até mesmo por parte dos dois arcônidas, a quem era sumamente descabível que um robô dirigisse o grande Império. Harper comentou:

— Que planos tem nosso Rhodan! Acho isto um pouco difícil. Mas compreendo que não há outra possibilidade. Portanto, desapareçamos de cena, até ficarmos mais fortes.

— É fácil falar — respondeu Kowalski, olhando para o relógio. — Foi sucinto e não assustou ninguém, colocando-nos praticamente diante de fatos consumados. Estou curioso para ouvir o anunciado relatório. Serão verdadeiros romances de aventura. Seis meses no espaço não é brincadeira.

Não sabia como seu palpite estava perto da verdade. Harper ia responder, mas Rhodan continuou:

— Terranos, expus-lhe, em poucas palavras, meu plano, para que compreendam mais tarde nosso modo de agir. Ainda esta semana, partirão dois dos nossos grandes cruzadores em direção a Orion para dar a um planeta não habitado a impressão de ser habitado. Temos que contar com o fato de o superpesado Topthor não demorar muito em destruir a odiada Terra. Que ele faça o que quiser.

Rhodan levantou a mão, cumprimentando. A imagem desapareceu, voltando o habitual sinal de Terrânia.

Kowalski se levantou, desligando o aparelho. Olhou para Harper.

— Que diz de tudo isto? Não foi magnificamente planejado?

— Não sei, não — respondeu Harper, meio duvidoso. — Num cálculo de aparência perfeita, sempre pode haver um pequeno engano. E está tudo acabado.

— Bobagem! — Kowalski estava um tanto zangado. — Perry Rhodan não comete erro.

Harper abanou a cabeça e se levantou.

— É possível, Kowalski, mas desta vez tenho a impressão de que está cometendo um. Permita Deus que eu esteja errado. Mas, uma coisa eu digo a você, caro amigo: se houver uma falha desta vez no cálculo, então... Deus nos acuda.

Kowalski não respondeu. Olhou calado para o amigo que desapareceu no outro aposento. Escutou ruído de talheres. Abriu-se uma garrafa.

O engenheiro-chefe da Polônia franziu a testa. O que poderia haver de errado no fato de os saltadores destruírem com sua frota um planeta desabitado, que julgavam ser a Terra, e isto a quase 300 anos-luz dali? O que poderia haver de errado em tudo isto?

 

— Esta injustiça clama aos céus e eu vou apresentar minha queixa sobre estes fatos injustos.

A voz era muito estridente e o tom não apenas irritado, mas de veemente protesto. Porém não parecia exercer muita influência em Rhodan, pois sorria calmo, sossegando o interlocutor acariciando-lhe o pêlo da nuca.

— Mas Gucky, por que tanta raiva assim? Você não merece realmente umas férias? Eu também fico por aqui.

Gucky continuava zangado. Estava ao lado da poltrona de Rhodan, de pé, com toda sua imponência, ostentando sua estatura de um metro e meio de altura. As orelhas compridas traíam uma audição acurada; o focinho longo e afunilado, um olfato fora do comum; o amplo traseiro com uma cauda volumosa espraiada em leque, demonstrava pouco entusiasmo para longas caminhadas. Gucky também não tinha necessidade disso. Era teleportador e podia se locomover para qualquer lugar sem o menor esforço. Podia também ler os pensamentos, era um grande telepata e, além de tudo, movia qualquer matéria à distância, graças à sua força mental, sem usar força física. Faculdade esta conhecida sob o nome de telecinese.

Gucky era realmente dotado de propriedades tão extraordinárias que quem o visse pela primeira vez não achava possível.

— Está certo — disse ele meio zangado, deixando ver seu dente roedor, cuja ocupação predileta era roer cenouras. — Mas, dez mutantes voam para o espaço, só eu é que fico aqui.

— Minha resolução está tomada — disse Rhodan, cortando qualquer tipo de argumentação, com certa energia.

Virando-se novamente para os homens que estavam reunidos, acompanhando com interesse o diálogo com Gucky, falou:

— Major Deringhouse assume o comando da Centauro e major McClears o da Terra. Cada um dos cruzadores terá uma tripulação de quatrocentos homens e será equipado com compensadores estruturais. Ninguém poderá rastrear os hipersaltos. Além disso, dez membros do corpo de mutantes tomam parte na expedição. John Marshall é o seu chefe. Recebe de mim poderes absolutos. Apenas Deringhouse lhe dará ordens.

Ao lado de Rhodan estava um subordinado, homem espadaúdo, de cabelos vermelhos e hirsutos, de rosto largo. Nos seus olhos de um azul-claro pairava uma pergunta não expressa, quando, quase imperceptivelmente sacudiu a cabeça. Rhodan percebeu.

— Que há, Bell? Alguma objeção?

Reginald Bell, o melhor amigo de Rhodan e seu íntimo confidente, antigo ministro da segurança da Terceira Potência, parecia um tanto desconcertado por ser interpelado assim à queima-roupa.

— Não, está tudo claro. Queria apenas dar razão a Gucky.

— O que quer dizer isto?

— Acho injusto, quando exatamente nós é que sobramos. O que é que vamos fazer, quando a trezentos anos-luz daqui se decide a vida ou a morte da humanidade? Gucky é o melhor e eu... eu...

— Oh... — e Rhodan começou a sorrir. — E você...?

— Sou de qualquer maneira amigo de Gucky — foi tudo que Bell pôde alegar a seu favor.

Agachado em sua poltrona, Gucky esticou as orelhas e seus olhos brilhavam felizes.

— Obrigado, velho companheiro de lutas, muito obrigado, não vou esquecer isso, mas tenho receio que nossos esforços sejam inúteis. O plano de combate está traçado. Desta vez não somos necessários.

Rhodan continuou sorrindo para ele.

— Ainda bem que você compreendeu bem a situação, Gucky. As duas espaçonaves já estão prontas para decolar e vão iniciar o vôo para Beta ainda esta noite. Major Deringhouse, você conhece bem o plano. Juntamente com McClears você vai simular a defesa do terceiro planeta. Retire-se e desapareça, assim que o adversário tiver destruído totalmente o terceiro planeta. Somos obrigados a sacrificar este mundo, mas ele não possui vida inteligente. Os saltadores não demorarão a dar como completamente destruído o mundo dos homens. Até mesmo o cérebro robotizado de Árcon lhes será grato, do ponto de vista lógico. É pena, porque eu mesmo já estava me simpatizando com a cúpula de aço de Árcon.

Os dois cruzadores pesados eram naves esféricas de duzentos metros de diâmetro. Seus raios de ação eram praticamente ilimitados. Com saltos através do hiperespaço, podiam transpor distâncias inimagináveis na rapidez de segundos. Apenas a aferição positrônica das respectivas coordenadas consumia maior espaço de tempo que não estava, aliás, em proporção com a duração da viagem. O armamento consistia de radiadores de impulsos e de outros meios de destruição de proveniência arcônida. Poderosos envoltórios energéticos protegiam os cruzadores de qualquer ataque. Campos antigravitacionais neutralizavam quaisquer choques em manobras de frenagem, aterrissagem ou decolagem.

Crest pigarreou.

— E o que acontece, então? — perguntou em voz baixa.

Rhodan o fitou por um instante:

— Depois que a destruição da Terra for simulada, não é isto que quer dizer? Quem sabe precisamos então de anos e anos para atingirmos o objetivo, talvez um decênio. Mas com toda certeza, só podemos enfrentar Árcon novamente, quando não precisarmos mais nos esconder, ou seja, esconder a posição da Terra, de uma Terra que de repente começa a existir. Uma Terra que esteja em situação de impor condições ao cérebro robotizado de Árcon. Acho que isto é interessante para vocês, Crest e Thora.

Os dois arcônidas concordaram.

Bell começou a sorrir de uma hora para outra. Bateu nas costas de Gucky, deu uma piscadela para Rhodan e exclamou muito patético:

— Com o nosso renascimento, algumas pessoas ficarão admiradas...

 

Rhodan, Bell, os dois arcônidas e Allan D. Mercant estavam à beira do espaçoporto quando as possantes esferas espaciais faziam a contagem regressiva. Os refletores inundavam o campo de aviação de uma claridade intensa. Mais ao longe, na outra extremidade do espaçoporto, a noite caía no deserto. Como imensa campânula, o céu envolvia os dois pesados cruzadores, incumbidos da mais extraordinária missão, que nave alguma jamais recebera. A história da humanidade é um rosário de guerras e missões de todos os tipos. Mas nunca um planeta foi dado como sendo a Terra, para ser destruído.

Mercant parecia mais jovem do que realmente era. Mas Rhodan pôde constatar que, nos últimos meses, o ex-chefe do Conselho Internacional de Defesa tinha envelhecido bastante. A tremenda responsabilidade que pesava em seus ombros consumia suas forças. Os cabelos louros em volta de sua careca central estavam bem grisalhos.

— Lá vão eles e permita Deus que voltem logo! — exclamou em tom enfático, tendo o cuidado de não pisar um escaravelho que se arrastava pelo chão. Mercant, apesar de sua famosa rigidez no trabalho, ou talvez por este motivo, era um grande amigo dos animais. — Desta vez, felizmente, não vou ficar sozinho aqui na Terra.

Rhodan não perdia de vista as duas esferas cintilantes.

— A Titan fica em permanente prontidão, Mercant — lembrou ele. — Assim que receber qualquer notícia alarmante de Deringhouse já estarei a caminho.

Mercant contraiu a fisionomia.

— O que poderá acontecer de alarmante?

— Você parece se esquecer de que nós não conhecemos o sistema Beta. Nossos dados se apóiam nos catálogos dos arcônidas. Pois bem, o terceiro planeta é um mundo de florestas virgens, onde talvez, só daqui a milhões de anos poderá existir vida. O que haverá, porém, no primeiro e no segundo planeta ou no quarto? Beta é um gigantesco sol avermelhado. Seu diâmetro é quatrocentas vezes maior que o do nosso sol. Eu até estranho muito que o terceiro planeta tenha mesmo ou deva ter vegetação.

“Você é político, meu caro Mercant, não cientista. O tamanho do sol, nem mesmo sua irradiação de calor, não têm nenhuma importância, se os planetas estão bem afastados dele. As regiões de vida de um sistema dependem da proporção certa das distâncias e do calor irradiado ou respectivamente recebido. Teremos que aguardar que surpresas nos reserva esta segunda Terra — olhou para o relógio. — Em dois minutos eles decolam.”

Bell estava estranhamente calado, sem se mover, parado no meio da noite, olhando para a Centauro e para Terra. Rhodan sabia o que se passava em seu íntimo. Bell gostava de estar presente, quando se tratava de pregar uma peça nos saltadores. Mas agora tinha que ficar na Terra.

Mais um minuto.

— Se o plano der certo — disse Crest, quebrando o silêncio — então a Terra venceu mais de uma batalha.

— Esta é a finalidade do nosso plano — concordou Rhodan.

Os segundos voavam. Nada poderia agora interromper o rumo da história. Ninguém o pretendia também.

— Agora — disse Crest.

Sem ruído, as duas colossais esferas espaciais se levantaram e penetraram no céu escuro. Os refletores do espaçoporto as seguiram por uns instantes. Depois as esferas reluzentes escaparam do alcance dos faróis e mergulharam no grande nada.

Rhodan deu um suspiro.

— É isso, agora só nos resta aguardar. Esperamos que nossos cálculos estejam exatos. Uma fração mínima de erro seria fatal.

Crest, Thora e Mercant concordaram. Apenas Bell resmungou:

— Matemática é meu lado fraco, quem sabe eu deveria ter seguido com eles.

— Para estragar tudo? — disse-lhe Rhodan, sorrindo. — Não, é mesmo melhor que você cometa seus erros de cálculo aqui.

Mas esta brincadeira em nada melhorou o mau humor de Bell, que queria descarregar sua fossa em Gucky, mas não o encontrou.

 

Depois que a Centauro se materializou, após a transição, Deringhouse viu uma coisa que lhe fez esquecer imediatamente a dor de cabeça causada pela transição. Estava na cúpula de observação, próxima ao equador da nave. O teto transparente dispensava qualquer tipo de tela de vídeo. Dava a impressão de se estar pessoalmente no meio do espaço.

A bombordo surgia a nave gêmea, Terra.

Mas não foi isto que impressionou tanto a Deringhouse, que aliás já conhecia uma grande parte das Galáxias.

Foi a estrela que estava diante das duas naves que avançavam com a velocidade da luz.

Beta!

Como um olho gigantesco alaranjado, a estrela flutuava no infinito do Universo, a maior e a mais poderosa de todas as estrelas que Deringhouse havia visto. Os outros sóis empalideceram perante o brilho fosco do gigante. Parecia até que se envergonhavam devido às suas ridículas claridades.

Era o sol Beta, o gigante vermelho. Se o colocássemos em lugar do nosso sol, suas protuberâncias chegariam até a órbita de Marte. Era menos quente que o sol da Terra, porém suas dimensões inimagináveis compensavam este fator.

Em volta do sol Beta, gravitam quatorze planetas, cuja temperatura superficial atinge cerca de dois mil e quinhentos graus centígrados. Quatorze planetas, dos quais o terceiro deverá ocupar, falsamente, o lugar da Terra.

Caso Topthor não se lembre de outras coisas, de uma certamente não se esquecerá: de que a Terra era o terceiro planeta do sistema solar. Naturalmente, em pouco tempo perceberia seu erro, pois como poderia um comerciante das Galáxias confundir Beta com o sol da Terra? — assim explicava Rhodan, com um sorriso. — Mas então seria tarde demais para corrigir o erro.

Um sentimento de angústia se apoderou de Deringhouse, quando fitou o gigantesco olho vermelho. Até então nunca tinha dado importância a pressentimentos, mas desta vez parecia-lhe diferente. Talvez fosse conseqüência da singularidade do plano, talvez também das múltiplas incógnitas da equação; de qualquer modo, Deringhouse tinha que reunir todas as forças para não sucumbir às suas dúvidas.

De qualquer maneira, estas dúvidas não adiantavam nada mesmo. Sentiu um estremecimento e se levantou. Bem empertigado, deixou o observatório e se dirigiu à central pela escada rolante, onde seu primeiro-oficial, capitão Lamanche, já o esperava.

— Terminada a última transição — anunciou o oficial mais idoso, repetindo aliás o óbvio. — O objetivo está a dois dias-luz da Centauro.

— Obrigado — disse Deringhouse e começou a olhar para a tela panorâmica. Reproduzia com toda fidelidade o espaço em volta da nave, caso não se ligasse para ampliação especial. Mas não era este o caso no momento. — Está tudo normal?

— Perfeitamente, Senhor.

McClears aguarda suas diretrizes na Terra.

Deringhouse sorriu satisfeito. Havia desaparecido sua incerteza.

— Ponha-me em contato com ele — foi sua ordem calma.

Enquanto esperava pelo aquecimento da tela do telecomunicador, tentou se lembrar do que sabia a respeito do sistema solar que tinha à sua frente. Não era muito. O terceiro planeta não era habitado, disso não havia dúvida. Somente no quarto planeta é que devia haver vida muito primitiva. Assim, pelo menos, dizia o catálogo sideral. A superfície era em grande parte coberta de água, o que impedia a evolução de uma raça verdadeiramente inteligente. Todas essas afirmações estavam catalogadas.

No entanto, tudo isso eram dados que poderiam estar certos, mas poderiam também estar desatualizados. Ninguém tinha a menor idéia de quando os arcônidas tinham descoberto o sistema Beta e quando o haviam catalogado. Poderia ter sido já há séculos.

Major McClears apareceu no vídeo.

— Aí estamos — disse ele num tom firme, como se estivesse descobrindo um novo Universo. — Que sol imenso, não acha?

— Gigantesco — foi a resposta sucinta de Deringhouse. Sem o querer, seus olhos pousaram na tela anexa, onde o olho vermelho cintilava, parecendo observá-lo. — A gravitação deve ser fantástica.

— Nem tanto, se mantivermos o distanciamento prescrito, Deringhouse. O terceiro planeta está a alguns bilhões de quilômetros da superfície da fotosfera.

— O senhor não acha que nós deveríamos visitar antes o quarto planeta?

— Por que razão?

— Porque existe vida nele. Vida primitiva, mas vida.

McClears deu uma olhada nos mapas.

— O terceiro planeta está bem diante de nós, enquanto que o quarto está atrás do sol. Seria uma volta muito grande e, além disso, foi o terceiro planeta que nós...

— Está certo, McClears, vamos combinar uma coisa: damos uma olhada no terceiro planeta e depois vamos para o quarto. Gostaria de saber quem vive em nossa vizinhança, para nos orientarmos quando os saltadores atacarem o terceiro planeta.

— De acordo, Deringhouse. Permaneçamos com velocidade inferior à da luz.

— Perfeitamente. Não sou a favor de um salto, porque quero ver tudo com calma, quando penetrarmos no sistema. Os saltadores acreditam encontrar aqui a Terra. Quem sabe já chegaram antes de nós, e estão aí com suas naves. Devemos ter muita cautela. Talvez nos devamos separar.

Os saltadores, sabia Deringhouse, eram os maiores inimigos no caminho da paz no Universo. A raça dos saltadores não devia ser classificada como guerreira. Eram comerciantes muito egoístas e com uma determinação exagerada de não permitir concorrência. Comerciavam com tudo e com todos, mas só sob as condições que eles próprios impusessem. Quem colocasse em risco seu monopólio seria afastado sem o menor escrúpulo. Para isto existiam os superpesados, sua tropa de assalto especial.

Mas aí estava Perry Rhodan, para fazer a justiça. Considerava o comércio pacífico e justo como uma garantia para a convivência das diversas raças. Exatamente por esta concepção, se havia transformado em adversário gratuito dos saltadores, que não tinham propriamente um planeta como pátria, mas viviam por toda parte nas Galáxias.

A luta duraria séculos. Com o truque de Rhodan, porém, devia terminar logo. E então...

— Separar? — perguntou McClears, interrompendo as divagações de Deringhouse. — Por que isto? Será necessário?

— Por minha causa, não. Permaneçamos então juntos — disse Deringhouse, deixando-se convencer. — Diminuiremos a velocidade nas proximidades do terceiro planeta, para observarmos um pouco. Depois iremos direto para o quarto planeta, também para observá-lo. Já que temos de dar a volta por Beta, sugiro que façamos duas transições curtas. As coordenadas exatas, darei logo mais. Vamos ficar em contato, McClears.

A tela apagou, mas as duas centrais de rádio continuaram ligadas.

Deringhouse virou-se para o capitão Lamanche:

— Manter o curso. Vou para a cúpula de observação. Diga a Marshall que quero falar com ele.

Lamanche apertou o botão do intercomunicador.

Deringhouse deixou a central de comando e cinco minutos depois entrou de novo na cúpula de vidro. Embora não estivesse ligada nenhuma luz, o aposento irradiava leve clarão avermelhado. Os planetas externos estavam para trás da Centauro, no espaço infinito. Eram imensos mundos de gelo, isolados e em eterno crepúsculo, gravitando em suas órbitas, sem o menor sinal de vida.

O quinto planeta estava mais para frente, a bombordo, um gigante de reflexos avermelhados, duas vezes maior do que Júpiter. Análises espectrais mostravam que já estava fora da zona com possibilidade de vida.

Deringhouse sentou-se. Impressionado, estava ele de olhos fixos no vazio do gigantesco sistema. Mesmo com a velocidade da luz, seriam gastas semanas para atravessá-lo.

O sol Beta estava se tornando maior, mas ainda a dias-luz de distância. Se Deringhouse quisesse ser sincero, teria de confessar que a visão não o decepcionou. Era mais ou menos assim a idéia que fazia do gigantesco sol, quando ele, há muito tempo, o viu na constelação de Orion, numa noite tranqüila de sua terra natural. Mesmo da longínqua Terra, o olho vermelho cintilava, com cara de zangado e ameaçador, através dos espaços infinitos. Durante séculos-luz sempre exerceu uma grande atração sobre os espectadores. E o fato de o sol Beta alterar irregularmente sua luminosidade, dava aos espectadores a impressão de estar piscando, piscando através da imensidão. Ninguém, porém, seria capaz de dizer se era uma piscadela de simpatia, como acontece entre amigos, ou de ameaça, uma piscadela de admoestação: Cuidado, vermezinho Terra!

Atrás de Deringhouse, abriu-se uma porta.

— O senhor quer falar comigo, major?

John Marshall tinha entrado na cúpula.

Claro que sua pergunta era supérflua, pois era telepata e sabia tudo que o comandante queria. Mas sempre fazia esforço para que ninguém percebesse seus dons.

Deringhouse respondeu apenas sacudindo a cabeça, sem olhar para trás.

— Sente-se, Marshall, aqui, por favor. O que sabe sobre o sistema Beta?

Marshall sentou-se. Por alguns segundos, ficou contemplando o espaço vazio entre os planetas. Depois, seu olhar se deteve no cintilante sol gigantesco.

— O sistema Beta será a grande encruzilhada da história da Humanidade — murmurou pensativo. — Rhodan não poderia ter procurado outro sistema solar tão apropriado para esse evento.

Deringhouse não respondeu nada. Contemplava calado a estrela cujos raios penetravam na cúpula, filtrados por grossos vidros, que os deixavam inofensivos. O sol Beta tinha raios vermelhos e quentes, mas não muito claros, para ofuscarem a vista.

— O senhor não participa desta opinião? — perguntou o telepata, embora já soubesse da resposta.

— Claro — confirmou o major. — Penso como você. Mas o sistema Beta não me parece simpático. Sua aparência me faz pensar em Marte e os homens fizeram de Marte o deus da guerra.

— Certo, major. Mas o senhor bem sabe que mais tarde se percebeu o engano. Marte é um mundo pacífico, sem comparação nenhuma com este inferno de fogo em nossa frente. Quem sabe sua aparência também engana.

— Esperamos que sim — respondeu Deringhouse, cuja voz não parecia muito convicta.

Depois, mudando de assunto, continuou:

— Por que tanto cuidado com o sol Beta? Não pretendemos nada com ele, pois nos interessa apenas o terceiro planeta.

Marshall começou a sorrir sobre a maneira como seu superior imediato procurava escapar de seus próprios pressentimentos.

— E o quarto? — lembrou-o Marshall.

— Claro, este de um modo especial. O catálogo dos arcônidas assinala vida primitiva. Sua superfície deve ser noventa por cento água. Vamos examinar um pouco o único continente, atravessar a cadeia de ilhas e depois nos dirigiremos ao terceiro planeta, onde então esperamos pelos saltadores. Aposto como este Topthor está crente que este é o melhor momento para atacar a Terra. Mas vai ter uma surpresa...

— Esperemos que não tenha mais tempo para esta surpresa — observou Marshall com alguma dúvida. — Se perceber cedo demais que está diante de uma Terra falsa, o plano de Rhodan cai por terra.

Deringhouse sacudiu a cabeça.

— Daremos um jeito de que ele esqueça.

 

Era um mundo que lembrava muito Vênus.

Devagar e a baixa altitude, os dois cruzadores percorriam a superfície do terceiro planeta. Dois continentes nadavam num imenso mar primitivo, recobertos de matas virgens bem cerradas, interrompidas raras vezes por enormes planaltos. Picos de montanhas alcantiladas penetravam nas nuvens que deslizavam a baixa altura. De permeio, havia amplos vales.

Parecia mesmo inacreditável que não houvesse aqui uma vida dotada de inteligência. Mas, por mais que procurassem, não encontraram o menor vestígio.

É claro que de lá de cima não se podia comprovar nada, mas uma coisa parecia certa: não havia seres inteligentes no terceiro planeta.

Apareceu na tela o rosto de McClears.

— Esta é pois a Terra II — disse sem grande entusiasmo. — É pena, realmente, pois daria para outra coisa.

— Você pensa em fazer dela uma colônia? — perguntou Deringhouse. — Você tem razão. Mas o plano de Rhodan é mais importante. Mais importante do que a existência deste planeta.

McClears pigarreou.

— Vocês querem dar uma olhada no quarto planeta antes de descermos neste. Acham que devo acompanhá-los ou que devo ficar por aqui esperando.

Deringhouse fez uma pausa. Depois concordou:

— Quem sabe é uma boa idéia nos separarmos agora. Em vinte horas, estarei de volta, não preciso mais do que isto para dar uma olhada neste “mundo d’água”. Assim que aparecer uma espaçonave dos saltadores, encontramo-nos na Terra II e agiremos conforme as ordens. Nossas centrais de rádio continuam ligadas.

McClears respirou aliviado.

— Nesse ínterim eu terei tempo para observar bem a Terra II — parecia que, com estas palavras, pretendia consolar Deringhouse. — Assim que estiver de volta, lhe farei um relatório completo. Acha necessário prepararmos um ponto de apoio?

— Na Terra II? — Deringhouse sacudiu a cabeça. — Não, não será preciso. Quando os saltadores atacarem, não nos devem encontrar na superfície do planeta. Seria muito perigoso — pensou uns instantes a respeito. — Você pode mandar um aparelho de telerreconhecimento, tipo Gazela, se quiser. Com a Terra, porém, é melhor ficar no espaço. Você não é da mesma opinião?

McClears aceitou a idéia.

Após uma série de instruções, informações e conselhos, Deringhouse se despediu e partiu com a Centauro para novo rumo. Rompeu a densa camada de nuvem do terceiro planeta e desapareceu no espaço infinito. A primeira transição levou a Centauro para um local, de onde os dois planetas podiam ser vistos ao lado do sol gigantesco. À direita, cintilava branca e resplandecente a camada de nuvens da Terra II, ao passo que à esquerda o quarto planeta brilhava numa luz azul-rosa, quase artificial. O planeta no espaço dava a impressão de uma gota de água do mar, pairando no infinito.

Enquanto que o cérebro de bordo calculava os dados para a segunda transição, Deringhouse contemplava aquela estranha gota d’água. Ao seu lado estava John Marshall, enquanto que o capitão Lamanche ocupava-se com os controles.

— Tem uma aparência maravilhosa — disse Marshall, lendo os pensamentos do major.

Deringhouse confirmou.

— Como um diamante azul recebendo raios de luz avermelhada. Um espetáculo magnífico. Planeta quatro do sistema Beta é uma expressão muito vazia para tanta beleza, vamos chamá-lo de Aqua?

— O planeta das águas... Por que não? O nome combina muito bem com ele.

— Portanto, seu nome será Aqua — confirmou Deringhouse. — Estou curioso para saber o que encontraremos nele.

— Provavelmente água — chilreou uma voz aguda, meio tímida, do canto da central de controle. Deringhouse virou-se lentamente e ficou olhando para o lado escuro, aguardando que os olhos se adaptassem à escuridão.

John Marshall deu um pulo para trás, como se uma cobra o tivesse mordido.

Agachado no canto, estava Gucky, sorrindo meio acanhado, com o único dente roedor à mostra, como que pedindo desculpas com seus suaves olhos castanhos.

— Você?!... — exclamou Deringhouse, quase caindo da poltrona.

— Eu mesmo — confirmou Gucky, olhando para Marshall que ainda estava parado, perplexo com a inesperada aparição. — Não se esqueça de respirar, John, olha que o ser humano não agüenta mais do que três minutos sem oxigênio... e seria pena se você...

Marshall respirou profundamente.

— Como é que você entrou aqui?

Gucky se encostou, apoiando-se na parede. Notou que Marshall estava menos tenso.

— Você não vai acreditar, mas foi com a Centauro.

— Não diga besteira, Gucky. Trouxe nove elementos do corpo de mutantes e você não constava da lista.

— Que nada, você trouxe dez — disse Gucky tentando uma desculpa esfarrapada. — Naturalmente, Rhodan não sabe nada disso. Ficará bobo quando souber.

Marshall levantou-se devagar e caminhou para Gucky.

— Receio que você ficará mais bobo ainda, meu caro. Por que tem sempre de desobedecer às instruções? Você entrou clandestino a bordo, quando foi isto?

— Clandestino, não é bem o termo. Naturalmente, eu me teleportei de Terrânia para cá. Mas somente agora é que tive coragem de me apresentar. Não fique zangado comigo, John.

Marshall ficou olhando para o criminoso, que o fitava suplicante com seus olhos castanhos. O pêlo marrom-ferrugem estava liso, o que demonstrava o ânimo pacato do rato-castor. Há muito que o dente roedor estava escondido atrás dos beiços do focinho pontiagudo.

Gucky não sorria mais e isto queria dizer muita coisa.

Marshall fazia grande esforço para se manter sério.

— Você tem que prestar contas a Rhodan, Gucky. Dele é que vai depender o castigo pela sua desobediência. Eu não o posso nem prender, pois como se pode deter um teleportador?

— É verdade, já fiz esta pergunta a mim mesmo — chilreou Gucky com simplicidade.

Marshall respirava nervosamente.

Deringhouse se levantou, dirigiu-se até a tela panorâmica, como se não quisesse saber nada do assunto. O rato-castor pertencia ao corpo de mutantes. Portanto o incidente com Gucky era da alçada de Marshall.

— Está bem — murmurou o telepata. — Deixemos de lado o assunto, até que Rhodan decida o que deve ser feito. Receio que você deva estar preparado para alguma coisa desagradável.

— Se puder ser útil aqui em alguma coisa, não será tão sério assim — disse Gucky, parecendo já mais confiante. Andou um pouco para frente e ao lado de Deringhouse ficou olhando a tela panorâmica. — Isto é o quarto planeta? Que que há com ele?

— Nada de especial. E o que poderia haver com ele? — disse Deringhouse, virando-se para Gucky e o encarando com severidade.

O pobre Gucky afastou-se assustado, dizendo:

— Foi apenas uma idéia minha, porque você está olhando para ele de uma tal maneira...

Chamava de você a todos, sem distinção de hierarquia ou de idade. Isto talvez proviesse do fato de que todos o chamavam de você, pois ninguém ousaria chamar de senhor um rato-castor.

— Estou raciocinando — corrigiu-o Deringhouse. — E espero o sinal para o próximo salto. Será ainda permitido raciocinar?

Gucky se levantou, olhou rapidamente para Marshall.

— Permitido é sim, major. Mas, como a história da Humanidade comprova, já saiu uma infinidade de besteira daí. Bobagens estas que eu teria muito prazer em estudar, quando estava na Terra, para...

— Pare! — gritou Deringhouse. — Com quem que você está aprendendo a falar desta maneira? Com estas frases rebuscadas? Horrível...

— É assim que fala Bell, quando quer se expressar com elegância — defendeu-se o rato-castor. — Naturalmente me ensinou também outras coisas, mas...

— É verdade, já ouvi falar disso — murmurou Deringhouse e se concentrou de novo na imagem da tela. — Bell não é um homem de maneiras finas e nunca o será.

Por uns instantes Gucky parecia meio desorientado, depois deixou à vista o dente roedor e voltou para o canto da central. Fez uma grande curva em tomo de Marshall. O telepata simulou compaixão e disse:

— Não gostaria de estar na sua pele, quando Rhodan ficar a par de tudo, Gucky. Acho que desta vez não será tão complacente como em Aralon. |

— Se eu conseguir salvar vocês todos da desgraça certa, haverá certamente complacência — disse Gucky com voz mais pausada e mais grave, estendendo-se no chão, como se quisesse dormir. — Aceito até entrar calmamente numa situação de encrenca, aí então vocês precisarão de mim.

Falou e fechou os olhos.

Marshall ficou olhando uns instantes para ele, depois voltou para sua poltrona junto dos controles. Não reparou em Lamanche. O francês soube se manter afastado do caso, sem se comprometer nem com um lado, nem com o outro.

— Escute, Deringhouse, não acha bom avisarmos Rhodan? Quem sabe estão procurando Gucky e se preocupando demasiadamente com ele.

Do canto ouviu-se um gemido. Deringhouse fez um sinal para Marshall.

— Preocupado? Quem é que vai se preocupar com um rato-castor tão desobediente? Aposto até que ninguém deu por falta de Gucky. Ninguém perceberá a ausência dele.

Outro ruído se fez ouvir do canto. Um pouco abafado, mas dava para se escutar.

— É verdade — continuou Deringhouse — ninguém sentirá falta dele.

Do seu canto, Gucky ouvia tudo. Seu dente de roedor, porém, reluzia de tanta vontade de lutar. Ergueu-se e se plantou diante de Deringhouse:

— Então, ninguém vai sentir falta de mim? E você ainda quer apostar? Pois bem, apostemos duas arrobas de cenoura e duas horas de coçar.

— Duas horas de quê? — perguntou Deringhouse perplexo.

— Duas horas de coçar. Simplesmente coçar, para aliviar a coceira. De preferência na nuca — explicava o rato-castor alegre. — Posso permitir o serviço até em prestações de meia hora. Bell cocou uma vez durante cinco horas...

— Sim, é verdade. Já ouvi falar nisso — interrompeu o major, passando a mão pelos ralos cabelos. — Mas eu não caio nos seus truques. Aposte com quem quiser, mas não comigo. Virou-se para Lamanche: — Então, o que há? Pronto?

— As coordenadas estão aí — disse o francês. — Podemos saltar.

Gucky voltou ao seu canto. Em outra oportunidade, ele lembraria Deringhouse da aposta.

 

Quando voltaram do hiperespaço para a continuidade do tempo-espaço, o planeta Aqua estava apenas a dois minutos-luz deles. O dispositivo de retardamento diminuiu fortemente a velocidade da Centauro. Deringhouse ligou o sistema manual, para manobrar melhor a nave.

O planeta azul crescia a olhos vistos. Seu aspecto era de fato uma coisa nunca vista. Parecia realmente uma imensa gota d’água pairando no infinito, iluminada por um ciclópico feixe de luz avermelhada. O sol Beta tinha agora, aparentemente, o mesmo tamanho do sol da Terra e estava a muitos bilhões de quilômetros afastado. A luz precisava de muitas horas para vencer aquela distância.

Deringhouse apertou o botão do intercomunicador e fez a ligação com o laboratório de bordo.

— Meier, aqui é a central. Providencie, durante o vôo, a mais completa análise do corpo celeste que temos em frente. Necessito da composição da atmosfera, dados sobre a rotação, sobre a translação e naturalmente sobre as estações do ano, dependentes da translação. Apresente-me os resultados, o mais rápido possível.

— Entendido, comandante — foi a resposta.

Deringhouse desligou e se dirigiu a Marshall:

— Estou curioso sobre o que haveremos de descobrir.

O telepata respondeu com um pequeno gesto.

— Não compreendo bem seu interesse neste planeta, major. O senhor é o comandante e eu não gostaria de me intrometer em seus assuntos. Mas, se me permitir uma pergunta: qual é a razão do grande interesse seu por este planeta, o quarto, se nossa missão consiste em fazer com que os saltadores destruam o terceiro?

— Talvez seja mesmo pura curiosidade — respondeu Deringhouse. — Mas meu pensamento principal é a segurança. Neste sistema, entram em questão, para seres inteligentes, apenas dois planetas: o terceiro e o quarto. Se o terceiro está destinado à destruição, queria apenas saber se o quarto se presta para ulteriores operações. Isso, você compreende, Marshall. Além disso, a nossa segurança exige que estejamos informados sobre as condições neste sistema, com exatidão. Acho que posso me responsabilizar pelo pequeno atraso. Não perdemos nada. Se os saltadores surgirem, receberemos imediatamente o chamado de McClears.

O telepata constatou que Deringhouse falou exatamente o que pensava.

— Concordo com o senhor, major. Tem também a intenção de aterrissar em Aqua?

— Depende das circunstâncias. Se puder contar como encontrar vida inteligente, tentarei naturalmente contatos...

Ouviu-se um zunido:

— Desculpe, é do laboratório — disse Deringhouse interrompendo a conversa com Marshall.

Logo a seguir, apertou um botão e se apresentou:

— Aqui é a central.

— Aqui Meier, do laboratório. Os dados já existentes: o quarto planeta tem um dia de quarenta e oito horas. A translação em torno do sol Beta leva duzentos e setenta anos da Terra. A variação das estações do ano é, portanto, muito lenta e mesmo insignificante, pois quase não existe eclíptica. Atmosfera, respirável, um tanto pobre em oxigênio, rica em vapor. Um trecho de terra firme mais ou menos nas dimensões da Europa, forma o único continente, além de uma série de ilhas menores. O resto da superfície é de água. O mar não é muito fundo. É isto o que temos até o momento.

— Obrigado, Meier.

Deringhouse permaneceu calado por uns instantes, olhando para a tela. O planeta azul já estava bem grande, enchendo quase todo o campo visual da tela. Ao brilho dos raios avermelhados do sol, destacavam-se os contornos do único trecho de terra, perdido na imensidão das águas. Se lá existissem seres inteligentes, deveriam viver principalmente do mar e dos seus produtos. Navegação marítima só poderia existir em pequena escala, pois, por que razão se iria atravessar o mar, se não havia outras praias? Uma espécie de civilização, completamente diferente, ter-se-ia desenvolvido aqui. Deringhouse estava ansioso para conhecê-la.

— Procuremos no continente um bom local para aterrissar — resolveu ele, finalmente. — Os habitantes do planeta não devem conhecer a navegação aérea.

— Quem? Habitantes? — perguntou Marshall, acentuadamente.

Não obteve resposta.

A Centauro deu uma volta em torno do planeta. Passou bem próxima do deserto azul das águas e se aproximou depois do litoral do continente. Os grupos de pequenas ilhas não demonstravam nenhum indício de civilização. Cobertas de densas florestas, lembravam as ilhas paradisíacas dos Mares do Sul. Enseadas de areia eram um convite para o repouso, mas Deringhouse não tinha em mente tirar férias. O que procurava eram seres inteligentes diferentes, e Aqua tinha que ter vida.

A primeira visão que prendeu a atenção de Deringhouse foi uma construção baixa, com cúpulas, nas imediações do litoral, a menos de dois quilômetros da praia. A água devia ser muito rasa neste trecho, pois se podia ver facilmente o fundo. A cúpula, na sua parte superior se elevava para fora d’água, tinha uma plataforma e um corrimão. Como vigias, as janelas se enfileiravam em redor do edifício, cuja parte inferior estava imersa na água e certamente iria até o fundo do mar.

A Centauro diminuiu a velocidade. Deringhouse dirigia com o olhar fixo no acontecimento. John Marshall chegou até ele, olhando também para a cúpula. Lamanche, como de hábito, ficou alheio ao que se passava. Sua preocupação eram os controles e realmente ele cuidava que o pesado cruzador seguisse sua rota.

— Considerável desenvolvimento — disse o telepata. — Gostaria de saber por que construíram aquilo na água, quando têm tanto espaço em chão firme.

Deringhouse continuava olhando para o litoral, já bem próximo.

— Você tem razão. Não se vê nada semelhante em terra. Eu esperaria, no mínimo, uma cidade por aqui, mas vejo só mata virgem, litoral arenoso e em parte cheio de rochas. Misterioso, verdadeiramente misterioso.

A cúpula ficou para trás, ao atingirem o litoral. Foram penetrando uns quilômetros. A seus pés, terra jamais tocada por ser inteligente, sem nenhum vestígio de trabalho que denotasse inteligência; o terreno subia brandamente, apresentava cadeias de montanha de pequeno porte, grandes estepes e florestas a perder de vista. De uma civilização, não se podia falar.

“É uma coisa singular”, pensava Deringhouse, fitando o continente. “O planeta só tem este continente e a gente supõe que os habitantes teriam que aproveitar cada metro quadrado. Devia haver lá embaixo um emaranhado de casas e instalações, como em nossas capitais. E o que vemos? Nada, absolutamente nada. Onde estão os homens?”

— Se não tivéssemos visto a cúpula, eu diria que não há nada por aqui — disse Marshall sarcástico.

— Mas a cúpula está aí. Existe vida em Aqua e nós temos que encontrar.

Com esta constatação, apoiou-se no espaldar da poltrona, parecendo completamente alheio ao que se passava ao redor dele. Marshall acenou amigavelmente para Lamanche e deixou a central, seguido por Gucky que lhe estava lendo os pensamentos. Marshall se dirigiu diretamente para o local da nave onde estavam reunidos os dez mutantes.

Mal havia fechado a porta da central, Deringhouse despertou de sua profunda meditação. Avançou um pouco mais para frente e postou-se diante da tela panorâmica, dizendo a seu oficial:

— Qual é sua opinião, Lamanche?

O francês alteou os ombros, esperou um pouco e falou:

— Não sabemos o que representa aquela cúpula. Quem sabe se trata até de uma espaçonave derrubada? Devemos examiná-la, aproximando-nos. Assim se confirmaria minha tese de que não há vida inteligente por aqui.

Deringhouse não parecia de maneira alguma satisfeito com esta resposta.

— Espaçonave derrubada ou caída. Puxa, a cúpula é um edifício, está firme no chão! A minha pergunta é apenas, por quê? — parou de repente.

Lamanche levantou os olhos e acompanhou o olhar do comandante.

Na tela, ainda se via nitidamente a superfície do quarto planeta. Aos poucos, as cores se tornavam mais naturais.

E Lamanche viu também, nas bordas do grande planalto, as pequenas saliências, em forma de cúpulas. Estas saliências tinham um reflexo avermelhado com os raios do sol, fulgiam como se fossem de metal. Não somente seu aspecto, mas também sua disposição simétrica denunciavam sua origem artificial.

No mesmo instante, a Centauro começou a aterrissar.

 

Na reunião dos mutantes houve um grande grito de surpresa, quando Marshall entrou acompanhado de Gucky.

— Que surpresa agradável! — exclamou Ras Tschubai, o africano teleportador, todo contente. — Você é a arma secreta nesta missão?

— Nada de arma secreta — murmurou Marshall — o malandro penetrou clandestinamente a bordo, contra ordem expressa de Rhodan.

O africano fez uma cara de espanto:

— Então, Gucky, eu não quero estar na sua pele.

— Ele não tem um pêlo grosso e lindo — disse a jovem Betty Toufry, inclinando-se, para coçar sua nuca.

Gucky estava feliz. Aliás, gostava muito da jovem telepata, cujas faculdades paranormais eram muito semelhantes às suas, pois Betty era também telecineta.

— Rhodan vai desculpar você, Gucky, não se preocupe — comentou Betty.

— Se você der uma palavra a meu favor, com toda certeza — disse Gucky, parecendo mais confiante.

O perscrutador japonês Doitsu Ataka sacudiu a cabeça.

— Disciplina é isto: fazer somente o que o chefe manda. Agora, para mim está bem. A vida não será mais tão monótona, pois Gucky sempre inventa umas gozações.

Marshall lançou um olhar de desaprovação para o japonês. O rapaz falou de disciplina e foi o primeiro a quebrá-la. Mas Gucky aproveitou a situação a seu favor.

— Você tem razão, Ataka — disse ele contente. — Quem é que sabe até quando estaremos vivos? Por que não podemos estar alegres? Rhodan quer que nós todos morramos, naturalmente só aparentemente. Portanto, vamos morrer, pelo menos, alegres. Proponho um torneio de coçar e me apresento como voluntário para...

Marshall achou conveniente mudar de assunto.

— Prestem bem atenção ao que vou dizer — disse ele, cortando todo sorriso. — Acabamos de descobrir, neste quarto planeta, que o comandante apelidou de Aqua, os primeiros indícios de vida inteligente. Vamos aterrissar. Ninguém sabe o que vamos encontrar, uma coisa está fora de dúvida: isto não tem nada que ver com nossa missão verdadeira.

Foi, infelizmente, uma dedução falsa, ilógica, mas Marshall só o percebeu mais tarde, como os outros também.

No momento, não lhes sobrou tempo para pensar.

O alarme tocava por toda a nave. Por uns instantes, Marshall parecia paralisado, como que ouvindo a si mesmo; depois, um estremecimento percorreu todo seu corpo.

— Deringhouse, que está acontecendo? Seus pensamentos são caóticos e confusos...

Ouviu-se um zumbido estridente.

A tela do intercomunicador, que liga entre si todas as seções da nave, acendeu. Nela apareceu a imagem de Deringhouse, com fisionomia de atônito e indeciso.

—Atenção geral — disse com voz áspera. — Prontidão de emergência. Ocupar todos os postos de defesa. Alguém está exercendo todos os controles sobre a Centauro e nos está puxando para baixo. Estamos aterrissando.

Fez uma pausa, como se estivesse pensando, depois continuou:

— Marshall, seus mutantes devem estar preparados. Talvez precisemos de seu auxílio.

— Que está se passando com a nave? — perguntou Marshall. Já experimentou...?

— Inútil, caímos sob a ação de poderosos raios de atração, que paralisaram todos os nossos controles. Para lhe ser sincero, Marshall, não tenho intenção de me defender contra os inimigos. Aguardemos, pois, para saber o que pretendem de nós.

— Não acha estranho, que uma raça, de cuja atividade não conseguimos ver nada na superfície de Aqua, tenha desenvolvido meios técnicos tão avançados de poder subjugar por forças mentais uma nave tão grande como a Centauro?

Deringhouse esboçou um leve sorriso.

— É exatamente o que estou querendo descobrir. O que estamos presenciando é paradoxal e impossível. Que existisse aqui neste mundo uma civilização não me admiraria muito. Mas, deste jeito...?

Marshall percebeu como o assoalho a seus pés estremeceu todo. Depois veio um solavanco que quase o derrubou. Após o quê, reinou silêncio.

Deringhouse, diante da tela, deu uma olhada para o lado, antes de se dirigir aos que o viam.

— Já aterrissamos — disse sem expressão na voz. — Encontramo-nos no meio de um planalto rochoso. Estamos cercados por cúpulas de metal cintilante. Mas não vejo armas. De homens ou outros seres vivos, não há nenhum sinal. Devemos esperar até que os desconhecidos queiram entrar em contato conosco. Pensem, porém, numa coisa: não estamos indefesos, meus senhores. Ao menor vestígio de uma ação hostil do lado oposto, nós nos defendemos sem consideração. Mas não seremos os primeiros a iniciar a guerra. Sem o meu comando, não abriremos fogo.

Marshall ouviu como os postos de defesa estavam se preparando para se manterem de prontidão. Deu algumas instruções aos mutantes e deixou o aposento para se dirigir ao posto de comando, de onde se tinha uma vista melhor. Em caso de emergência, podia-se dali mesmo comandar o ataque dos mutantes.

Deringhouse estava de pé diante da galeria panorâmica, observando toda a circunferência da Centauro já ancorada. Lançou um rápido olhar para Marshall, sem se perturbar em suas observações. Lamanche estava sentado fora dos controles do envoltório energético, que estavam desligados.

— Não podem saber de onde viemos, embora possuam rastreadores estruturais — disse Deringhouse meio incerto. — A Centauro e a Terra estão equipadas com os compensadores correspondentes. Ninguém pode localizar nossos hipersaltos. Esta arma me tranqüiliza.

— Apesar disso, puxaram-nos do espaço — disse o telepata pensativo.

— Não tem importância, Marshall. Confesso que no início estávamos impotentes e tínhamos que nos submeter aos fatos, mas agora, creio eu, já podemos bombardear suas instalações. Mas não vejo razão para isto. Queremos saber primeiro como são e quem são eles.

Olhou novamente para a tela, Marshall o acompanhava.

O pesado cruzador estava parado num amplo planalto. A uma distância de trezentos metros estava a primeira cúpula metálica, que escondia um trecho da beira da floresta. No horizonte cintilavam os picos de montanhas distantes, ao sol do meio-dia. A segunda cúpula estava mais à direita, depois a terceira e a quarta. Formavam um círculo em cujo centro estava a Centauro.

Lamanche acordou de sua letargia.

— Uma verdadeira cilada, uma teia de aranha invisível — dizia ele acabrunhado.

— Estamos presos, exatamente no foco dos raios de atração. Jamais teria imaginado que estes fulanos chegariam a tanto. Por que não se manifestam?

— Devem ter seus motivos — respondeu o comandante. Estava de olhos fixos num determinado ponto à margem da floresta. — Acho que nossa curiosidade será satisfeita em pouco tempo. Lá vem uma viatura.

Os outros dois homens também estavam olhando.

Das sombras das árvores enormes, de conformação esquisita, despregava-se uma coisa escura, rolando lentamente pela planície afora. Deringhouse ligou o dispositivo de ampliação. Agora se via mais nitidamente. Era uma espécie de carro blindado, embora sem a torre de artilharia. Em compensação, a cúpula semi-esférica era de um material diáfano. Carros deste tipo eram utilizados freqüentemente para exploração de mundos desconhecidos, principalmente quando a atmosfera pudesse ser nociva.

Atrás da cúpula viam-se, com pouca nitidez, os contornos de algumas figuras. A distância não permitia ver detalhes.

Deringhouse virou-se para trás e olhou para Marshall.

— Nenhuma novidade? Ainda não há impulsos de pensamentos?

— Sim, mas muito insignificantes. Estão se protegendo, já tiveram que lidar com telepatas. Talvez sejam também telepatas e conhecem as medidas de segurança necessárias, para se protegerem das radiações do cérebro.

Deringhouse mexia na regulagem da ampliação da imagem e nada respondeu. Notou-se nos seus olhos um brilho maior quando observava o carro se aproximando. Queria dizer alguma coisa, mas acabou ficando calado. Marshall reparou que as mãos do comandante tremiam.

— Gucky!... — enviou sua ordem telepática. — Teleporte-se imediatamente para a central.

O pensamento ainda não tinha terminado, quando o ar estremeceu no meio da central e do nada surgiu o rato-castor. Ouviu a ordem de Marshall e veio no mesmo instante.

— Que há? — chilreou ele, bem disposto como sempre.

— Estamos entrando em contato com os estranhos, Gucky. Infelizmente estão protegendo o pensamento. Temos que saber com quem estamos lidando. Você podia...

— Se posso!... — disse Gucky entusiasmado, mas continuou com um sorriso malicioso: — não é verdade, você vai dizer uma palavrinha a meu favor, quando o chefe...

— Isto é suborno — disse Deringhouse, sem olhar para trás. — Mas está bem, eu o defenderei, se você dentro de dez segundos me disser quem é que se aproxima de nós naquela viatura. Talvez eu me engane, mas os contornos daquelas figuras apagadas me parecem conhecidos...

Marshall teve um calafrio.

— Conhecidos... Meu Deus... Eu tive a mesma impressão com os impulsos dos pensamentos. Será um acaso?

— Por que discutir? — perguntou Gucky. — Tenho apenas cinco segundos. Até logo...

Nova cintilação no ar e o lugar onde estava Gucky ficou vazio.

Dois segundos depois, já estava de volta. No seu semblante, lia-se grande espanto. Com as orelhas de pé o pêlo eriçado, sentou-se nas patas traseiras, apoiando-se na ampla cauda.

— Não, uma coisa desta... — disse, soltando um longo suspiro. — Quem teria pensado, como o mundo é pequeno, aliás, o mundo, não: como o universo é pequeno!

— Mas o que houve? — insistiu Deringhouse, já irritado, deixando de lado a tela panorâmica. — Não nos deixe malucos, Gucky, como são eles?

— Fale logo, Gucky — acudiu Marshall, que não podia mais se livrar de uma sensação esquisita. Começou a suspeitar que estavam diante de uma terrível surpresa. — Você os viu?

O rato-castor fez que sim, vagarosamente.

— Materializei-me no carro, no meio deles. Por motivo de precaução, mantive a respiração, porque nunca se sabe se a atmosfera é apropriada para nossos pulmões. Mas meus cuidados foram inúteis. Respiram o nosso ar. E ficaram espantados quando me viram.

— Puxa vida, Gucky! — gritou Deringhouse, com o rosto vermelho. — Quero saber como parecem eles. São seres da água?

— Que idéia maluca é esta? — perguntou Gucky, que não perdia a calma. — Você acredita que peixes inteligentes montaram uma base terrestre aqui? Já se ouviu besteira maior?

— Gucky — disse Deringhouse, alteando a voz. — Você talvez não saiba como é importante, mas eu lhe peço mais uma vez para responder minha pergunta: como é que parecem os estranhos? E o que quer dizer sua expressão: “o Universo é tão pequeno”...?

— Vocês não me vão acreditar, mas eles se parecem com os tópsidas. E se me posso expressar mais claramente, sem decepcioná-los, gostaria de jurar que são os tópsidas.

Para Deringhouse e para Marshall foi como se uma mão gelada lhes apertasse o pescoço. É verdade que já se haviam passado dez anos desde que estes sáurios altamente desenvolvidos e muito inteligentes tinham sido encontrados no sistema Vega. Mas as escaramuças com eles ainda estavam bem impregnadas na memória dos dois homens. Os tópsidas, de estatura mais ou menos idêntica à do homem, tinham duas pernas e dois braços, geralmente utilizados como braços mesmo. Os dedos das mãos eram seis, o corpo era coberto por uma camada de escamas marrom-escuras. A cabeça era de um lagarto grande, com a conformação característica dos sáurios; os olhos redondos, negros e móveis pareciam ver tudo que acontecia num raio de 180 graus.

— Tópsidas! — falou Deringhouse, respirando profundamente. Depois comentou: — É só o que nos faltava. Estes miseráveis crocodilos devem estar metidos em toda parte?

— Eles dominam seu pequeno império sideral — disse Marshall, pensando nervosamente. — Se não me engano, este império é em algum lugar da Constelação de Orion, portanto aqui nesta região.

— Sim, afastado da Terra por oitocentos anos-luz. É bem longe daqui.

— Nem tanto assim — contradisse Marshall. — De qualquer maneira, está na mesma direção. Não é, pois, de se estranhar que tenham uma base por aqui.

— Num mundo desabitado? Por que motivo?

Gucky tinha ouvido a conversa de cabeça baixa, aparentemente sem maior interesse. Mas chegou a hora de intervir:

— Por que vocês estão quebrando a cabeça com isso? Perguntem diretamente a eles, o que estão fazendo aqui. Olhem aí, já estão chegando.

Deringhouse deu a volta para chegar à tela. A viatura com uma pequena cúpula já estava parada a uns trinta metros da Centauro. Não havia dúvida de que os sáurios já sabiam há mais tempo que se tratava de uma belonave dos arcônidas. Quem sabe, esta circunstância poderia ser aproveitada de uma maneira ou de outra.

A cúpula da viatura se abriu e dela saíram três sáurios. Usavam uma espécie de uniforme que lhes encobria parcialmente o corpo de escamas. Todos traziam o radiador energético num coldre preso ao cinto. Davam a impressão de arrogância. A julgar pelas aparências, a superioridade estava com a tripulação da Centauro, mas Marshall sabia muito bem que os tópsidas, por índole, não conheciam o medo. E não conhecendo o medo, estavam acostumados a lutar até a última gota de sangue, mesmo numa situação sem saída. O medo de um ditador era maior que o da morte.

— Têm nervos de aço — dizia Deringhouse, que havia conhecido os tópsidas como comandante dos ágeis caças espaciais. — Colocam-se simplesmente diante das bocas de nossos canhões e esperam para ver o que vamos fazer. Poderíamos transformá-los em átomos.

— ...o que não resultaria em vantagem para ninguém — permitiu-se Lamanche observar.

— Querem que eu os faça correr daqui? — ofereceu-se Gucky prontamente.

— Você ficou maluco? — perguntou Deringhouse. — Quero saber o que procuram aqui e o que querem de nós. Marshall, você vai me acompanhar. Vamos dar uma olhada nos rapazes. Esperamos que entre eles não haja ninguém que nos conheça.

— Não há possibilidade disso. Para eles, nós parecemos todos iguais, como eles para nós. Eu não conseguiria distinguir um do outro. Mas que lhes vamos dizer quando nos perguntarem quem somos?

Deringhouse deu as últimas instruções a Lamanche e se dirigiu para a porta com Marshall.

— Não podem, em hipótese alguma, saber que somos da Terra. Expliquemos a eles que pertencemos a um ramo dos saltadores. Provavelmente haverão de acreditar, embora os saltadores não costumem usar naves esféricas. Acho bom assim, porque não são muito amigos dos arcônidas e sabem que também os saltadores não se dão bem com os arcônidas.

— Tenho a impressão — dizia Gucky caminhando atrás dos dois homens — de que aqui começa uma trama. Esperemos para ver.

Lamanche ficou olhando para eles.

— Se correr tudo bem, Jean — disse ele para si mesmo — vou devorar três robôs de combate no almoço. Sem mostarda.

Ao que Gucky, virando-se na porta, acrescentou:

— Sem mostarda, esta é a condição.

 

Quando a escotilha da saída principal da Centauro se abriu, a mais de cinqüenta metros do solo, John Marshall percebeu um ruído desagradável no lado de trás.

A escada rolante, brilhando como prata, estirou-se da escotilha para o chão lá embaixo. Deringhouse apalpou a coronha da arma, para ver se não estava presa. Depois subiu no degrau superior, que imediatamente começou a movimentar-se para baixo.

Marshall o seguiu.

Os três sáurios estavam imóveis diante da gigantesca nave, esperando, convencidos de sua força. Para eles eram dois prisioneiros, e seus olhos negros e redondos eram um misto de expectativa e de malícia. A aparência dos dois homens parece que não os surpreendeu.

Marshall se lembrou do que acontecera outrora no sistema Vega. Lá, pela primeira vez, os terranos se defrontaram com a raça dos sáurios. Rhodan conseguiu tirar deles a grande belonave arcônida Stardust III. Por fim, conseguiram expulsar os tópsidas, reinando depois a calma.

E agora se defrontam novamente, aliás de maneira bem diversa, pelo menos conforme os planos de Deringhouse.

As mãos dos tópsidas, verdadeiras garras, já empunhavam as armas. Marshall penetrou-lhes o pensamento e não achou nada, a não ser curiosidade misturada com grande atenção. Estavam muito seguros de si.

Quando Deringhouse saltou da escada rolante e se encaminhou para os três sáurios, a tensão entre os homens e os tópsidas parecia uma muralha invisível. O major parou a dez metros deles, sempre com a mão direita na coronha de sua pistola energética. Nos lábios, um leve sorriso. Conhecia bem a mentalidade dos sáurios, para não duvidar de qualquer emboscada.

Marshall se mantinha a alguns passos atrás de Deringhouse, tentando decifrar os pensamentos do adversário e ver suas intenções. O resultado era mínimo.

Antes que os dois terranos pudessem dizer uma palavra, falou o tópsida em puro intercosmo:

— Os senhores se encontram em território de nossa soberania e serão portanto solicitados a ficar sujeitos às nossas ordens. Não lhes acontecerá nada, se não quiserem resistir. Quem são os senhores?

Deringhouse não aparentou a menor surpresa.

— Não tínhamos nenhuma intenção de descer em seu território, fomos forçados a Isto. Sou um saltador, da estirpe de Gatzel.

O tópsida fez um sinal com a cabeça.

— É o que estávamos pensando, estranho. Sua aeronave, no entanto, é de origem arcônida. Conhecemos bem este tipo.

— Tem razão — respondeu Deringhouse, com um sorriso calmo. — Tipo cruzador pesado. Nós o tomamos dos arcônidas, por ocasião de um ataque. O senhor tem alguma objeção a fazer?

O tópsida começou a sorrir, mas não com espontaneidade.

— Não, contra isto não temos absolutamente nada. Os arcônidas não podem ser considerados nossos amigos. Que pretendem os senhores neste sistema? Não há nada para se comerciar, e quando houver, nós mesmos o faremos.

Deringhouse ergueu os ombros.

— Estávamos em vôo de rotina, quando descobrimos este mundo. Quem sabe teria vida, pensávamos nós e começamos a examiná-lo. Não achamos nada, a não ser estas misteriosas cúpulas.

— Pertencem ao nosso sistema de proteção — explicou o tópsida. — O planeta das águas foi por nós descoberto há muitos anos e nós o ocupamos. Serve-nos de base.

— Pelo menos até que alguém se mexa, tudo estará em ordem — disse Deringhouse com um pouco de cautela. — E já que parece não existir nativos por aqui...

O tópsida continuava sorrindo.

— Existem alguns. Aceitaram o nosso domínio.

Houve uma curta pausa, depois:

— Não lhes sobrou outra alternativa. Deringhouse não conseguiu ocultar por mais tempo sua admiração.

— Nativos? Neste mundo? Não vimos nada disto durante nosso vôo.

— Os senhores não têm, certamente, os instrumentos necessários para observar a vida sob a água.

Na mesma hora, Deringhouse e Marshall compreenderam tudo. É claro que num mundo como este, seres inteligentes teriam que se desenvolver na água. E se os tópsidas julgaram conveniente estabelecer uma base neste planeta, devia se tratar de um ser vivo que merecesse mais respeito.

Marshall estava pensando na grande construção das cúpulas, feita a poucos metros da praia. Seu formato não tinha relação nenhuma com as instalações habituais dos tópsidas. Certamente haviam sido construídas na água, para que os habitantes do mar entrassem em contato com seus senhores.

Aos poucos, foi se projetando uma imagem mais clara na mente de Marshall.

— Meu nome é Al-Khor — disse o tópsida do meio. — Sou comandante da base nesta parte do continente. Posso lhes pedir o favor de deporem as armas? Não gostaria que, por um motivo qualquer, surgisse um conflito entre nós e os saltadores. Assim que eu liberar sua nave, receberão de volta suas armas.

Deringhouse hesitou um pouco. Uma multidão de idéias passou por sua cabeça, sem que conseguisse colocá-las em ordem. Como a pedir socorro, deu uma olhada para Marshall. O telepata fez sinal que sim. Sabia já há muito que os tópsidas realmente faziam questão de não pôr em risco a paz existente entre eles e os saltadores.

— Está certo — respondeu Deringhouse, retirando a pistola energética da cintura. — Queremos nos submeter às suas ordens.

Um dos sáurios apanhou a arma com as garras pontudas e a ficou olhando com interesse. Marshall também entregou as armas.

— Como compensação — propôs Deringhouse — dê-nos a garantia de que o senhor não nos deterá contra nossa vontade e nos autorize a qualquer momento a pedirmos as armas de volta e deixarmos este planeta.

Al-Khor continuava sorrindo.

— É claro que lhes damos a garantia, com todo prazer. Ninguém vai impedi-los de usufruírem de nossa hospitalidade, se não nos quiserem dar este prazer. Mas antes, creio eu, devemos conversar um pouco. Certamente o senhor terá alguma coisa para nos contar. E a vida, creia-me o senhor, numa base tão solitária como o “mundo d’água” é muito monótona. Venha, por favor.

— E a minha tripulação? Não gostaria que uma ação impensada deles...

— Não nos opomos a que o senhor dê instruções à sua tripulação — interrompeu Al-Khor. — Dê-lhes o conselho de não abandonarem a nave e de não tomarem nenhuma iniciativa.

Deringhouse aceitou a idéia e ligou o minitransmissor de pulso.

— Lamanche — disse ele em inglês — estamos aceitando, na aparência, as condições dos tópsidas. Ponha-se em contato com McClears. Ele deve vir para cá e aguardar novas ordens. Por enquanto não existe perigo iminente. Fim.

— Entendido — foi a resposta curta. Al-Khor comprimiu desconfiado os olhos redondos:

— Por que não falam intercosmo?

— Meu substituto é muito jovem, Al-Khor, só entende o dialeto de minha estirpe. Disse a ele que ficasse tranqüilo e esperasse a nossa volta.

O tópsida parecia contente. Com a mão estendida, num sinal de convite, indicou a porta aberta da viatura de cúpula e deu a preferência para seus hóspedes não voluntários.

Ainda com o carro em movimento, Marshall fez contato com Gucky e lhe transmitiu o plano de Deringhouse, que tinha acabado de ler telepaticamente.

 

Major McClears pautava seus atos sempre em deduções lógicas. Quando recebeu a mensagem alarmante de Lamanche, não pôde deixar de praguejar horrivelmente. Depois, começou a pensar o que teria acontecido se Deringhouse não tivesse voado para o quarto planeta. E a resposta a esta hipótese seria muito simples: teriam esperado com toda calma, no terceiro planeta, até que os saltadores aparecessem; atacariam e se retirariam, assim sucessivamente, como se quisessem defender mesmo a Terra. A mudança constante de cada ataque daria a impressão de que se tratava de uma grande frota de super cruzadores, que de maneira alguma poderiam ser destruídos. Com o passar do tempo, os saltadores já teriam chegado à idéia de colocar uma bomba de gravitação na pátria dos terranos e assim destruí-la parcialmente. Estaria tudo perfeito... mas no quarto planeta estavam os tópsidas.

Eis o ponto nevrálgico.

E aí então os pensamentos e especulações de McClears começaram fluir inconscientemente no mesmo sentido que os de seu amigo Deringhouse. Por este motivo, teria que negligenciar sua própria segurança. Mais tarde, quando Rhodan se recordava deste fato, tinha que conceder que um ser racional não podia agir de outra maneira, colocando sua segurança em segundo plano em relação à segurança da Terra.

E foi assim que uma ação errada de McClears iniciou o mais genial de todos os lances que Perry Rhodan jamais empreendeu. Fez apenas o que era necessário para dar um toque de veracidade à mentira de Deringhouse referente aos tópsidas.

Seus pensamentos se atropelaram, enquanto dava ao encarregado do rádio a ordem de chamar de volta o tenente Tifflor. O mais competente oficial da nova geração de Rhodan, estava exatamente em viagem com a Gazela para informar-se das condições na superfície. O disco voador achatado — trinta metros de diâmetro e dezoito de altura — era a nave ideal para tais empreendimentos. A ordem o alcançou exatamente quando acabava de aterrissar numa planície e já ia botando o pé em terra. Não foi com boa vontade que atendeu à ordem de voltar à espaçonave Terra. Sua disposição era a melhor do mundo quando se viu frente a frente com McClears na Central.

— Um planeta maravilhoso, mas infelizmente sem vida animal. Algo incompreensível para mim, pois não posso imaginar condições melhores. Ah!... o senhor me mandou chamar de volta. Suponho que seja por motivos muito imperiosos.

— Realmente muito imperiosos — respondeu McClears seco. Ainda não tinha chegado a um ponto final com seus encrencados pensamentos, mas num particular seu plano já estava traçado. — Deringhouse aterrissou no quarto planeta, que batizou de Aqua.

— Nada de extraordinário nisso, não acha?

McClears não perdeu a calma.

— Infelizmente, não foi o primeiro que se enamorou do “mundo d’água”, tenente Tifflor. Outros chegaram antes dele: os tópsidas.

— Tópsidas? — Tifflor fez um esforço para se lembrar.

Naquele tempo, era ainda jovem demais e sabia dos tópsidas só por ouvir falar. Mas lembrou-se vagamente de um filme a que assistira sobre a invasão dos sáurios do sistema Vega.

— O senhor não está se referindo àqueles seres parecidos com crocodilos que pretendiam destruir a Terra e por engano acabaram caindo em cima dos ferrônios?

— Exatamente deles é que estou falando — disse McClears.

— O que eles procuraram por aqui?

— Não tenho a menor idéia, recebi uma mensagem muito curta de Deringhouse de que os tópsidas obrigaram a Centauro a fazer uma aterrissagem forçada e prenderam o comandante. Recebemos instruções de nos dirigirmos para Aqua e lá aguardar novas ordens.

— Como quer Deringhouse dar ordens, se está preso? — queria saber Tifflor. — Ou se trata apenas de uma prisão simulada?

— Parece que é mais ou menos isto. De qualquer maneira, veremos os detalhes em Aqua mesmo. Não me agrada ter os tópsidas na vizinhança. Mas já que estão aí, temos que fazer tudo para tirar proveito da situação. Tenho a impressão de que Deringhouse pensa assim também, pois do contrário não se deixaria prender tão facilmente.

— O senhor tem algum plano?

— Tenho. Se bem que um tanto vago, mas preste atenção...

E McClears começou a explicar seu plano.

Logo depois das primeiras frases, o jovem tenente compreendeu tudo. Um sorriso iluminava seu semblante, mas não interrompeu o oficial mais velho, que continuou explicando, enquanto a Terra já estava na direção certa. Depois da segunda transição, quando Aqua já despontava na tela, concluiu com as palavras:

— Estou plenamente certo de que assim matamos dois coelhos com uma só cajadada. Se soubesse como colocar Deringhouse a par do meu plano... Estou convencido de que ele concordaria e pediríamos novas ordens a Rhodan. Sem consentimento dele, não quero fazer nenhuma ligação telegráfica com a Terra.

— Os mutantes! — lembrou Tifflor.

— Uma possibilidade — concedeu McClears. — Infelizmente não temos nenhum telepata a bordo da Terra. Não vejo outra alternativa a não ser agir separado de Deringhouse. Deixamos a Terra circulando a grande altitude de Aqua e descemos com a Gazela para a superfície.

— E o risco que corremos com isto?

— Está incluído na operação — disse o major. — Deringhouse vai fazer uma cara de bobo, quando souber que vencemos depois de uma luta curta, mas violenta. Espero apenas que não tenha cuidados inúteis por nossa causa.

— E eu espero — acrescentou Tifflor céptico — que seus cuidados, se ele os tiver, não sejam realmente inúteis.

— Eu também — concordou McClears.

 

Cercado dos outros mutantes, Gucky encontrava-se agachado no divã da sala dos oficiais. Estava a par dos acontecimentos pelas mensagens telepáticas que Marshall lhe enviava. Por sua vez, Lamanche, que havia assumido o comando da espaçonave, entrava em contato com eles, através do intercomunicador. O sistema por via telepática funcionava muito melhor do que via rádio.

— Estão tratando Deringhouse e Marshall com muita atenção — disse Gucky, mostrando um lugar nas costas em que ele queria ser coçado. — Aparentemente dão muita importância ao fato de manterem com os saltadores boas relações. Até hoje, as duas raças quase não tiveram relações entre si. Como Marshall está deduzindo dos pensamentos do comandante, Deringhouse não tem intenção de incrementar muito estas relações. Alguém de vocês consegue compreender isto?

— Eu, não — Ras Tschubai sacudiu a cabeça e olhou para Ataka, como que pedindo auxílio. — Quanto melhor forem as relações, tanto maiores serão nossas possibilidades de sairmos daqui sem encrenca.

— E o que lucraríamos — disse Gucky com ironia — se sairmos daqui?

— O que você está querendo dizer?

— Penso simplesmente no seguinte: o que nos interessa se os tópsidas tenham uma boa impressão dos saltadores e nos deixem sair em paz? Tem isso alguma influência positiva sobre a missão de que Rhodan nos incumbiu? Não se esqueçam de que os saltadores pretendem destruir o terceiro planeta, pensando se tratar da nossa Terra. E aqui no quarto planeta, estão os tópsidas. E você ainda não está compreendendo?

Ras Tschubai realmente não estava compreendendo, ao invés dele, porém, Lamanche, sentado na central, sem afastar os olhos da tela panorâmica, ouvia a toda a conversa da sala dos mutantes.

Pigarreou perceptivelmente, concentrou-se por uns instantes em seus pensamentos, levantou-se, e abriu a porta da central de rádio.

— Alguma notícia de McClears? — perguntou ele.

O telegrafista em serviço sacudiu a cabeça:

— Há uma meia hora que não, senhor. A Terra saiu para uma órbita maior e continua calma. Nós aqui permanecemos na escuta.

— Avisem-me assim que houver alguma novidade.

— Perfeitamente, senhor. Lamanche agradeceu satisfeito, voltou para seu lugar e começou a refletir de modo mais profundo. Estranhamente, suas especulações se desenvolviam mais ou menos no mesmo sentido como as de Deringhouse e as de McClears. Isso era uma prova evidente de que cérebros que pensam logicamente sempre chegarão aos mesmos resultados.

 

A Gazela saiu dos hangares internos da nave-mãe Terra e se deixou cair verticalmente. Somente a alguns quilômetros antes da superfície de Aqua é que o tenente Tifflor deteve a queda e colocou o aparelho em vôo horizontal. A atmosfera zunia nas paredes externas do disco, achando pequena resistência.

McClears e Tifflor estavam sentados na apertada cabina, já com todas as telas ligadas. Acreditaram ter visto no litoral do enorme e único continente uma espécie de cúpula brilhante no meio da água, mas não deram maior importância. Cada vez mais devagar, a Gazela descia com toda cautela necessária na exploração de um planeta desconhecido. Os dois tripulantes aguardavam com curiosidade a primeira reação dos tópsidas.

E esta não se fez esperar.

Bem perto do pico de uma montanha, viu-se um clarão repentino. A tela mostrou um projétil comprido que, com velocidade cada vez maior, subia vertical. Parecia ter a intenção de cruzar a trajetória da Gazela, exatamente no ponto de encontro dos dois objetos em movimento. Sem dúvida, era um míssil. Tifflor ligou o envoltório de proteção e segundos após uma detonação acompanhada de um forte clarão, causando na Gazela apenas um pequeno abalo, mostrou que o ataque dos tópsidas tinha fracassado.

O mesmo aconteceu ao segundo projétil.

— E agora? — perguntou Tifflor.

— Muito simples, tenente. Vamos agir como se fôssemos saltadores — regulou a rota e deu a direção a Tifflor. — Dê uma volta por cima do cume da montanha e desça um pouco. O envoltório de proteção continua ligado. Vou jogar uns explosivos inofensivos para que eles saibam que temos alguma coisa não muito perigosa a bordo.

Tifflor concordou sorrindo. Os sáurios haveriam, por certo, de acorrer para o local e de tentar pegar vivo o relativamente inofensivo adversário. Assim estava arquitetado todo o plano de McClears.

Dez segundos depois, detonou uma bomba lá embaixo aos pés da montanha, em plena mata virgem. Os estilhaços abriram pequenas clareiras na vegetação, sem produzir maiores danos.

E exatamente dez segundos depois, enguiçou o comando da Gazela. Tifflor, assustado, tentou recuperar o controle do disco voador, mas não conseguiu. Devagar, mas continuamente, o disco foi descendo e com solavanco maior pousou numa clareira, a menos de dois quilômetros do litoral.

Como Tifflor pôde constatar, haviam descido no centro de um círculo, formado por cúpulas de metal, pequenas e cintilantes.

McClears levou as mãos ao alto.

— Está dando tudo certo, os sáurios vão ficar contentes de terem feito tão boa caça. Nossos oito homens continuam a bordo, enquanto nós nos apresentamos ao inimigo.

— Tomara que não nos matem logo de início.

— Não se preocupe, isto seria contra sua mentalidade. Já lhe disse que os tópsidas são extremamente curiosos. Quererão logo saber com quem estão tratando e por que motivos viemos para cá. Devem receber estas informações de nós. E depois você vai ficar admirado de como eles vão agir.

— Esperar! — exclamou Tifflor duvidoso, que naturalmente estava pensando o que Deringhouse haveria de dizer do seu modo arbitrário de agir.

E Rhodan, muito mais.

Aproximou-se da Gazela uma viatura. Saltaram dois tópsidas e ficaram por uns instantes olhando sua presa de guerra. De uma das cúpulas metálicas emergiu ameaçador um negro tubo de canhão, apontando para a Gazela.

— Vamos embora — disse McClears. — Vamos Tifflor. O negócio é sério. E não se esqueça de que somos a vanguarda dos saltadores. O grosso da tropa ainda está a caminho.

Os dois tópsidas olharam para eles com muita calma, quando saíam da escotilha, sem medo, saltando para a terra. Atrás deles, a escada de saída se recolheu automaticamente. Segundos depois, estava ligado de novo o envoltório energético. Embora os tópsidas pudessem deter o disco e impedir sua saída, era-lhes impossível destruir o aparelho ou penetrar nele. Os oito homens da tripulação estavam completamente a salvo de qualquer ataque por parte dos tópsidas.

McClears não entregou sua arma voluntariamente, quando os dois tópsidas lhe pediram. Foi-lhe tirada à força e McClears não perdeu a oportunidade de dar um soco forte na cabeça do lagarto. O impacto lhe doeu muito mais do que ao próprio réptil. Mas isto não tinha importância alguma.

O tratamento foi correspondente. Enquanto Deringhouse ainda era tratado como um possível aliado, declararam McClears e Tifflor como inimigos.

Mas McClears não se deixou intimidar. Enquanto ele e seu jovem tenente eram obrigados a entrar na estranha viatura, sacolejando por uma péssima estrada de terra, em direção do próximo litoral, ia despejando ameaças contra os tópsidas, prometendo-lhes breve e terrível vingança. Seu comportamento era um tanto irreal, diante da situação pouco encorajadora. E assim foi que os dois tópsidas, aparentemente pouco inteligentes, não deram maior atenção às ameaças. McClears acabou também desistindo, esperando poder encontrar depois um exemplar mais inteligente desta desagradável raça.

Um desejo que se realizou logo, mas não lhe trouxe maiores vantagens.

A estrada terminou no litoral. Sob as copas de altas árvores e camuflado por uma cobertura espessa de folhagem, havia um edifício baixo de metal cintilante. O fato dava a entender que os tópsidas não possuíam outro material de construção.

Levaram os dois prisioneiros para um aposento, onde foram presos e entregues a seus destinos.

Em poucos instantes, McClears se convenceu de que sem auxílio de terceiros, não conseguiriam sair dali. Sentou-se num canto, no chão, e começou a meditar.

Tifflor, no entanto tentou se lembrar do microtransmissor embutido em seu corpo. O microdispositivo, cujo segredo nenhum cientista humano conhecia, foi-lhe implantado por cirurgia na cavidade renal direita.

Qualquer telepata, cuja faixa de onda estivesse em sintonia com as supervibrações artificiais do transmissor do corpo de Tifflor, poderia localizar, até uma distância de dois anos-luz, o seu paradeiro.

Além disso, havia ainda a possibilidade de se concentrar nos pensamentos de Tifflor, se a distância não fosse grande demais.

O tenente podia ficar tranqüilo, pois tudo quanto pensasse com concentração, seria recebido pelo telepata John Marshall. Dispunha ainda adicionalmente de um diminuto transmissor na laringe.

Tifflor enviava, mas não podia receber nada...

 

Al-Khor estava um pouco nervoso quando penetrou na cela dos dois prisioneiros. Seus olhos redondos faiscavam ódio. Apenas um resto de ponderação o impediu de mandar fuzilar imediatamente os supostos saltadores.

— Repita o que o senhor, há pouco estava dizendo aos meus dois subalternos — disse ele, ríspido, colocando-se na porta de tal maneira, que os dois sentinelas que o acompanhavam tinham alvo livre pela frente. — Prometo-lhes que não vou castigá-los, se disserem a verdade. Mas, tenho que saber o que aconteceu.

O major sacudiu os ombros:

— Não dê demasiada importância ao que seus subalternos lhe disseram. Podem ter me compreendido mal. O que diz a respeito?

— O senhor sabe perfeitamente o que estou pensando, saltador. Sabe, além disso, que não são os dois únicos prisioneiros que fizemos. Dominamos um cruzador pesado. Um tal de major Deringhouse está em nosso poder.

Numa demonstração de horror, muito bem representada, McClears empalideceu todo, como Tifflor mesmo constatou, levantou-se e deu dois passos na direção de Al-Khor.

As armas dos dois vigias se ergueram ameaçadoras. Al-Khor não se intimidou, não se mexeu um centímetro de onde estava.

— Se o seu depoimento for verdade, suas vidas estão salvas.

McClears deu um rápido olhar para Tifflor. O tenente respondeu com um piscar de olho. Podia estar tranqüilo de que Marshall havia captado todos os impulsos.

— Pode começar a perguntar — disse a Al-Khor.

— Você os ameaçou dizendo que viriam homens para vingá-los? Falou também aos nossos subalternos qualquer coisa de uma invasão iminente por parte de sua gente?

McClears, teatralmente, mordeu a ponta da língua. Uma gota de sangue banhou os lábios inferiores.

— Na minha cólera... desgraçado, não vale a pena mentir. Também não sei por que motivo lhe silenciar uma coisa, que você em poucos minutos saberá plenamente. Os saltadores supõem existir neste sistema uma base de seu eterno inimigo. Você não o conhece, portanto seu nome não tem nenhuma importância no conjunto dos acontecimentos. De qualquer modo, os superpesados estão alarmados. Deve saber que eles são a tropa guerreira dos saltadores. Todo o poderio dos superpesados vai atacar o terceiro e o quarto planetas deste sistema e destruí-los. Posso lhe dar apenas um bom conselho: abandone, o mais depressa possível, este planeta.

— Que nada! Isto é um truque — respondeu Al-Khor.

McClears começou a dar gargalhadas. Riu tanto que lágrimas lhe corriam dos olhos. Depois, cheio de satisfação bateu nos ombros cobertos de escama do tópsida:

— Um truque! Meu caro amigo, eu juro pelos meus antepassados, de que estou dizendo a verdade. Os saltadores estão ultimando seus preparativos para despovoar este sistema, completamente. Nada pode detê-los deste plano, isso eu lhe posso garantir.

— Nada — repetiu Al-Khor encolerizado. Nos seus olhos havia um brilho misterioso. — Acha que nada consegue deter os saltadores? Eu acho que há uma coisa capaz disso. Quando souberem que nós consideramos o quarto planeta como nossa propriedade, ninguém terá coragem de...

— Por que não?

— Porque... — Al-Khor hesitou um pouco. — Porque os comerciantes das Galáxias não têm nenhum motivo de nos fazer hostilidades. Eles não são bem vistos pelo Império. Nós, também não. Por que não podemos estar unidos?

— Por um motivo muito simples, meu caro amigo — disse-lhe McClears com paciência. — Porque nós somos obrigados a supor que você é um aliado do nosso ferrenho inimigo, que tem uma base neste planeta e que praticamente o povoa.

Quem estava rindo à bandeira despregada agora, era o próprio Al-Khor.

— Os seres da água? Seus inimigos de morte? É ridículo. Não é apenas absurdo, mas é também...

— Seres da água? — informou-se cautelosamente McClears. — Não estou compreendendo o que está falando.

— Neste mundo existe uma raça um tanto inteligente, que muito raramente aparece em terra e não precisa mesmo da terra. Por este motivo, pudemos estabelecer nossas instalações, sem prejudicá-los. Estes seres existem somente na água e devem possuir suas cidades lá no fundo do oceano. Fora disso não há nada neste mundo que possa ser uma ameaça. Se não forem estes seres aquáticos, vocês saltadores foram vítimas de um engano.

— Nossas informações estão exatas — continuou McClears. — Estou bem informado sobre os planos dos nossos patriarcas. Nestes planos consta que os tópsidas têm uma base pequena no quarto planeta, cuja existência não precisa ser tomada em consideração. Você está vendo que as negociações não vão servir para nada. Nossos chefes consideram vocês aliados do nosso inimigo.

— Puxa vida! — exclamou o tópsida. — Diga-me finalmente quem é este inimigo figadal.

— Não estou autorizado a fazer isto — respondeu McClears.

— Então vamos obrigá-los a fazer.

— Mas andem depressa — disse o major com toda calma. — Nossas unidades de assalto estão chegando a qualquer momento. E então poderia ser tarde demais para vocês.

Al-Khor deu um grito ininteligível, fez um sinal para os guardas e deixou a cela. A porta se fechou com um estrondo.

McClears olhou para Tifflor, que repetiu baixinho toda a conversa e assim a transmitiu para Marshall e para Gucky.

— Então? — perguntou McClears todo triunfante.

— Vamos ver — respondeu Tifflor, meio céptico — se eles vão agir como criaturas inteligentes e corajosas.

— Claro que vão agir assim. Pode ficar tranqüilo.

Infelizmente, não tiveram a oportunidade de averiguar isto, pois dez minutos mais tarde alguém os apanhou. Levaram-nos numa pequena viatura diretamente para o litoral. Aí, entraram numa pequena embarcação que os transportou para uma ilha de aço. Era a cúpula que há pouco haviam visto do ar. Mesmo para Deringhouse, teria parecido igual. Por uma escada lateral, subiram para o andar superior, cercado por um terraço. Depois um elevador os levou para baixo. Quem os guiava era um tópsida, muito bem armado.

Nem McClears nem Tifflor pensavam em fugir. Um único pensamento os dominava: será que seu truque iria falhar?

O salão tinha paredes de vidro que, de todos os lados, davam para o mar. Tinha-se aqui uma visão magnífica sobre um mundo a dez ou doze metros sob o nível da água. Comportas de vários tamanhos davam a entender que se podia atingir o mar aberto sem que a água penetrasse no salão. Ou vice-versa, podia-se do mar penetrar na cúpula. E isto parecia ser a única finalidade da instalação.

O tópsida se deteve diante de uma porta. Abriu-a e se afastou, dizendo:

— Aqui será a nova prisão. Ficarão aqui até que tudo tenha terminado.

— Terminado o quê? — perguntou McClears, sem receber resposta.

Penetrou no pequeno cubículo acompanhado de Tifflor que logo começou a falar no seu transmissor da laringe.

A porta fechou e eles estavam a sós. Mas onde?

Apenas a porta parecia ser de material compacto. Fora disso, pareciam mergulhados no nada, no meio do mar, cujo fundo tinha um brilho opaco.

Mas logo perceberam a verdade: estavam numa cela de vidro, sob a cúpula ou ao lado dela. O cubículo transparente flutuava. Era água por todos os lados.

McClears sentou-se no chão, bem no canto oposto à porta, tendo a impressão de estar sentado na água. Olhava em torno com muita curiosidade.

— Isto é muito interessante — observou com sarcasmo. — Devemos estudar os segredos do mar, antes que nos afoguem.

Tifflor se espantou um pouco com a frase.

— Você acha que vão nos matar?

— Que nada! É brincadeira minha. Mas você ouviu dizer que aqui existem peixes inteligentes ou coisa semelhante. Acho que deveríamos procurá-los, mas não me pergunte o por quê. Pode ser também o contrário: os peixes devem nos ver, para saberem como parecem os saltadores. Situação maluca, não é?

— Só queria saber se Marshall teve ocasião de transmitir minhas informações a Deringhouse. Infelizmente Deringhouse não é telepata. Mas pelo menos Gucky deve saber onde estamos.

A água era de um azul-claro com reflexos avermelhados, em virtude da luz do sol de Beta. Neste local, o mar não teria talvez vinte metros de profundidade. Agora que a vista dos dois prisioneiros já se adaptara à penumbra do estranho ambiente, o olhar deles penetrava facilmente até o fundo do mar, situado a uns oito metros abaixo do piso de vidro da singularíssima cela.

Plantas marinhas exóticas dançavam ao ritmo de uma correnteza invisível, peixes coloridos cintilavam em grandes cardumes numa determinada direção, como se estivessem sendo perseguidos por um inimigo oculto. Entre estes, flutuavam com calma e dignidade seres transparentes, que lembravam nossas medusas. Pouco mais para a frente, o fundo do mar caía bem íngreme, a água se tornava azul-escuro e infinita.

E subitamente, Tifflor deu um grito semi-abafado.

De olhos arregalados, apontava ele para o azul-escuro do mar aberto. McClears seguiu a direção indicada por seu braço estendido e pela primeira vez olhos humanos puderam ver os legítimos senhores do planeta das águas.

 

As coisas iam se tornando mais críticas. Deringhouse quase não reconheceu mais Al-Khor, quando o tópsida chamou-os.

— Por que razão não me contaram nada do ataque iminente de sua gente? — perguntou o tópsida com uma tremenda calma, embora seus olhos resplandeciam ameaçadores. — Seria obrigação de vocês.

— Obrigação? — questionou Deringhouse admirado. — Seria também sua obrigação nos manter presos contra nossa vontade?

— Ninguém os abrigou na condição de prisioneiros.

— Mas, somos realmente prisioneiros. Você quer também duvidar de que nossa espaçonave...

— Aliás, sua espaçonave... — disse Al-Khor bem espaçadamente, olhando para Deringhouse com certa ironia. — De quem vocês diziam, há pouco, tê-la tirado? Dos arcônidas?

Marshall captou depressa os pensamentos do tópsida e sabia por que fizera esta pergunta. Esperava que Deringhouse percebesse o veneno da pergunta, senão teria que avisá-lo.

— Sim, foi dos arcônidas — disse o major cauteloso. — Mas eu não sei naturalmente se os arcônidas a tomaram de outros. Por que esta pergunta?

Al-Khor concordou, aparentemente mais calmo.

— É provável, pois o nome cravado com letras pretas na fuselagem não está escrito em caracteres arcônidas. Mas esqueçamos isto. O comandante de uma das naves foi colocado em local seguro. Estou preocupado sobre o que devo fazer com eles.

— Deixe-nos ir embora — propôs Deringhouse. O que você ganha nos retendo aqui?

— Reféns — foi a resposta seca de Al-Khor. — Vocês devem estar presentes, com todo seu pessoal, quando os saltadores chegarem para destruir este mundo. E quem sabe, sob minhas vistas, vocês entram em contato com eles antes e os põem a par de tudo.

— Isto não vai adiantar muito — disse Deringhouse com sinceridade. — Não me vão dar ouvidos.

— Então vocês morrerão conosco.

— Bonito — disse o major com um riso forçado. — Assim, nos tornaríamos de qualquer forma aliados, não é verdade?

Al-Khor não respondeu. Sem dizer uma palavra, deixou a cela que servia de domicílio provisório para eles. Marshall franziu a testa.

— Não me está agradando — disse ele — e aos meus mutantes, muito menos. Gucky está ansioso para entrar em ação, isto é, para atacar. É com dificuldade que o estou segurando.

— Sua hora está quase chegando, — consolou Deringhouse, enquanto olhava para a parede lisa do cubículo.

— Que está acontecendo com McClears?

— Está detido com Tifflor, numa cela de vidro, abaixo do nível do mar.

Deringhouse começou a rir.

— Pelo menos, tem um pouco de distração — julgava ele. — Portanto, vamos lá, dê nossa posição ao rato-castor. Ele deve nos localizar e dar um pulo até aqui. Vamos pregar um grande susto nos crocodilos, eles estão precisando.

Dois minutos depois, Gucky se materializou contente e sorridente, tornando o cubículo ainda mais estreito. Trouxe duas pistolas energéticas de mão e algumas granadas, não maiores do que nozes comuns, porém de ação terrivelmente devastadora. Ele mesmo trouxe na cintura uma pistola de impulsos, cujo peso lhe dava trabalho.

— Aqui estamos nós — chilreou ele feliz da vida. — Vamos mostrar quem somos.

— Espere um pouco — disse Deringhouse. Virou-se para Marshall, que no momento cambaleava um pouco, captando coisa muito importante; simultaneamente, também a fisionomia de Gucky se transformou numa expressão de piedade. Parecia ter perdido a disposição para qualquer iniciativa.

Deringhouse se manteve na expectativa.

Sabia que os dois telepatas estavam recebendo uma mensagem de Tifflor.

 

McClears soltou um grito abafado. De encontro às paredes de vidro da cela, comprimiam-se dezenas de torpedos submarinos, enfileirados, como se quisessem mandar pelos ares toda a instalação de cúpulas. Os corpos esguios tinham talvez metro e meio de comprimento e refulgiam como prata sob a luz avermelhada do sol. Jatos d’água de grande pressão irrompiam da parte traseira dos terríveis projéteis desfazendo-se logo a seguir.

Só depois de olhar com mais atenção, é que McClears percebeu seu engano: não eram torpedos artificiais, mas seres vivos, semelhantes a focas, com boca enorme, sempre aberta, olhos pequenos, orelhas ovais. A velocidade do pequeno esquadrão, agora, já era menor. O forte jato de água que lançavam para trás já tinha cessado. Que animais seriam estes? Estavam parados...

Com muita curiosidade, nadavam em torno da cela de vidro, olhando sempre para os ocupantes do cubículo, com olhos inteligentes. Um deles chegou bem perto e comprimiu o focinho contra a parede de vidro. MacClears fitou-o cara a cara, sentindo então uma forte vibração.

Tifflor descrevia a cena para Marshall e Gucky.

— São assim os peixes-homens — murmurou McClears. — Vieram para cá como que atirados por jato. Não se movem como os demais peixes por meio das nadadeiras, mas têm um sistema próprio: engolem a água, comprimem-na algum tempo em seu interior, e depois a expelem. Santo Deus, verdadeiros foguetes submarinos vivos — colocou a mão direita sobre a parede de vidro. — Produzem ondas vibratórias — disse pensativo. — Quem sabe é uma maneira de se comunicarem? Ah! Se pudéssemos entendê-los...

Marshall captou a mensagem e informou Deringhouse a respeito.

— Ataka! — disse Gucky.

— Acho que você tem razão, Gucky — disse Deringhouse. — O japonês decifra ondas sonoras, que nenhum ouvido humano consegue captar. Mesmo ultra-som. Se estes seres não são telepatas, e parece que realmente não o são, devem talvez se comunicar através de vibrações ou de sons no campo de ação do ultra-som. Ataka pode constatar isto. Além disso, sua capacidade de percepção está combinada com uma telepatia inconsciente, de maneira que poderá entender sons completamente estranhos para nós. Gucky, vá buscar Ataka.

O rato-castor se levantou, dizendo:

— Cubículo apertado, major! Vocês não vão ficar muito tempo aqui. Sairemos e vamos libertar McClears. O tempo de representar já passou. Não precisamos mais nos camuflar perante os sáurios. Agradeçamos aos deuses do espaço.

— Como assim? Que pretende fazer, Gucky? — perguntou Deringhouse, que não compreendeu as palavras de Gucky.

— Já fiz voar pelos ares robôs e bios — disse o rato-castor, recordando suas bravuras. — Mas fazer voar um crocodilo será uma sensação formidável.

Um segundo a mais e ele já havia desaparecido.

Com voz mais baixa, disse Deringhouse:

— Os tópsidas ficarão surpresos quando souberem que possuímos armas, mas não podemos subestimá-los. Morrem, se for preciso, sem piscar um olho. Só há um ponto em que são muito sensíveis: são muito supersticiosos.

— Então, Gucky é o “homem” certo, major.

— Exatamente — concordou Deringhouse. — E o malandro sabe disso. De acordo com o regulamento, devia estar preso.

— Não há prisão para detê-lo — comentava Marshall uma coisa que todos sabiam. — Em muitos sentidos, Gucky é um ser maravilhoso.

Houve uma vibração no ar e surgiram Gucky e Ataka. O japonês se apertou como pôde. Não dava para ninguém se mexer. A cela era pequena demais. A ventilação também estava horrível.

— Isso é uma bodega — disse Gucky, com ironia.

— Não por muito tempo — acentuou Deringhouse. — Gucky, você consegue abrir o cadeado da porta?

O rato-castor pulou para perto da porta e olhou um pouco o cadeado. A tarefa já era fácil caso se usasse os dedos... Mas Gucky dispunha ainda de outros dedos invisíveis movidos por forças telecinéticas. Estas forças invisíveis do seu pequeno mas incompreensivelmente poderoso cérebro penetraram no cadeado, examinando o mecanismo. Depois, com um pequeno ruído, o cadeado abriu. Deringhouse avançou e empurrou a porta.

— Ótimo, Gucky — disse ele sorrindo para o rato-castor, e apanhando sua pistola energética. — E agora vamos deixar os tópsidas um pouco nervosos. Eles já devem ter muito o que fazer para se defenderem dos ataques dos saltadores.

— Mas é preciso esperar um momento até que estejamos seguros e em condições de agir — disse Marshall, prevenindo contra um otimismo exagerado. — Gucky, você está sentindo algo? Há tópsidas aqui perto de nós?

— Sim, uma grande multidão, lá atrás da porta.

Estavam num corredor comprido, um pouco sinuoso, deixando supor que passava em torno de alguma cúpula. Havia duas portas: uma próxima da outra. Do outro lado da parede, eram janelas. Atrás havia uma paisagem maravilhosa de uma natureza virgem, com montes e florestas. No horizonte, bem afastado, via-se a grande extensão do mar. O sol poente estava exatamente no ponto divisório entre a água e o céu.

Deringhouse se deteve bem rente à porta indicada por Gucky e Marshall.

— É aqui? — perguntou por cautela.

Ao sinal de confirmação dos dois telepatas, Deringhouse ergueu a arma, postou-se de lado, ativou o botão de combustão. O delgado fio de energia atingiu os gonzos da porta, soldando todos com o metal derretido. A porta não se abriria mais.

— Vão cair direitinho na armadilha — disse Ataka contente.

— Eu preferia fazê-los voar — disse Gucky. — Deve ser fantástico quando os crocodilos...

— Esperem — disse Deringhouse, caminhando à frente.

Os outros o seguiam. Gucky era o último da fila, pois quando não se teleportava, suas pernas curtas não lhe permitiam acompanhar os passos largos dos demais. Para tentar abafar seu aborrecimento com isto, começou a assobiar bem alto, como se não houvesse mais tópsidas na redondeza.

O corredor terminava numa porta que estava apenas encostada. Depois dela, não havia mais salas, era a liberdade. Mas que liberdade era esta?

De qualquer maneira, ainda se encontravam em território dos sáurios. Deringhouse ajeitou sua pistola e empurrou a porta. Como o empurrão foi bem forte, quase que a guarita do tópsida virou. O vigia caiu. Levantou-se, virou-se para trás, com um grunhido de desaprovação. Mas a desaprovação se transformou em medo, quando notou a presença de Deringhouse, Marshall e Ataka, passando para perplexidade quando deu com a figura esquisita de Gucky. Gucky não gostou da perplexidade, o que Marshall logo notou, captando também a péssima impressão que o pobre guarda teve de Gucky.

— O quê? — chilreou o rato-castor. — Eu... um bicho horroroso? Você vai ter que voar.

E o tópsida voou. Forças telecinéticas o ergueram do chão e o fizeram subir verticalmente. O coitado gritava desesperado. A Ira de Gucky não durou muito. O pobre vigia, tendo perdido a arma durante suas acrobacias forçadas, fugiu em disparada. Gucky ainda teve tempo de colocá-lo no telhado do grande edifício de cúpulas. Lá de cima, sentado bem na beira, o sáurio não desgarrava os olhos dos três homens. Entre estes estava um animal peludo, semelhante aos ratos gigantes dos canais de Topsid.

— Bicho horroroso... que desaforo! — ia ruminando Gucky, andando por ali, como se não existisse a palavra perigo.

Deringhouse reconheceu num galpão ao lado algumas das viaturas, cujo funcionamento tinha observado com cuidado. Não seria, pois, difícil utilizar um desses carros para empreender a fuga. Gucky poderia também teleportar um por um para a Centauro, mas chamaria muito a atenção dos tópsidas e era necessário que tudo parecesse normal.

— Ali ao lado estão as viaturas — disse ele para Gucky. — Vamos pegar uma delas, mas antes temos que causar alguma confusão aqui.

Isto não foi muito difícil, pois os chefes dos tópsidas estavam presos e no momento não tinham outra preocupação a não ser dinamitar a porta que Deringhouse havia soldado. Marshall atirou duas bombas no edifício e correu atrás de Deringhouse e Ataka que se dirigiam para as viaturas.

À forte detonação, seguiram altas labaredas que em poucos instantes derreteram toda a construção de cúpulas.

De uma entrada lateral surgiram alguns tópsidas que não estavam feridos e começaram a atirar doidamente com as pistolas de raios energéticos. Foi a oportunidade que Gucky aguardava para entrar em ação. Enquanto os três homens tentavam pôr em movimento uma viatura maior, Gucky começou sua “brincadeira”, como ele chamava esta atividade, quando podia usar à vontade seus dons telecinéticos.

Os sáurios não sabiam mais o que se passava com eles. O chão lhes sumiu de repente sob os pés e começaram a flutuar no espaço. Ninguém iria supor que o causador daquele milagre era aquele animal peludo, embora não parecesse estranho a Al-Khor. O comandante da base dos tópsidas levitava sem direção sobre as copas das árvores, quando reconheceu no rato-castor a misteriosa aparição que vira por um instante a seu lado na viatura.

A situação era de deixar perplexos todos os tópsidas. Mas Al-Khor não conhecia o medo. O misterioso prodígio era de carne e osso e, portanto devia ser vulnerável. Ainda tinha a pistola de raios energéticos. Apesar da situação em que se encontrava, apontou-a para aquela figura minúscula de animal, lá embaixo, entre as ruínas do edifício. Apertou o gatilho, mas o resultado foi diferente do que Al-Khor imaginava.

Como levitasse, portanto sem peso algum, o choque de recuo da arma o jogou com grande velocidade para o espaço adentro. Gucky, atento à iniciativa malograda do comandante tópsida, ainda deu mais Impulso ao contrachoque, obrigou Al-Khor a fazer piruetas no ar e acabou colocando o corajoso guerreiro na copa de uma árvore bem alta, cujos galhos estavam a mais de vinte metros do solo. Ele que desse um jeito de descer dali.

Os outros sáurios ainda estavam dançando no ar, formando um emaranhado confuso. Ninguém tinha coragem de atirar, com medo de atingir o colega.

Nesse ínterim a viatura de Deringhouse saiu do galpão. Uma segunda granada destruiu os carros restantes, provocando um grande incêndio. Os tópsidas teriam agora de andar a pé, o que não lhes era agradável.

— Faça-os descer agora, Gucky — disse Marshall acenando para ele, que sentado se divertia fazendo os sáurios girarem em volta dos escombros da grande cúpula.

— Já receberam o que mereciam, mas eu ainda não — disse Gucky, deixando os tópsidas caírem uns dez metros, para depois detê-los.

— Estou notando isso — disse Marshall um tanto áspero, dando algumas instruções a Deringhouse.

A viatura veio para a direção de Gucky.

— Tenho que dar uma mãozinha — continuou Marshall, virando-se um pouco para fora da porta da viatura. Com mão firme apanhou Gucky pelo pescoço, o levantou e o trouxe para dentro do carro. — E agora, faça o que lhe mandei.

Por uns instantes Gucky ficou indeciso, depois, olhando para cima, viu os tópsidas horrorizados, parados e desarmados, aguardando o que aquela “força divina” ainda ia fazer com eles. Deu um grande suspiro de resignação e acabou obedecendo.

Deu novamente uma ordem a seus pensamentos e os tópsidas se colocaram em formação de esquadrilha e voaram a toda velocidade para desaparecerem atrás das copas das árvores. Gucky ainda ficou olhando por uns instantes e, suspirando, disse a Marshall:

— Está bom?

— Que aconteceu com eles? Você não pode deixá-los cair de repente.

— Não caíram não, mestre. Estão sentados em qualquer lugar nas árvores, fazendo ninhos para seus filhotes, caso não queiram descer mais, o que também é possível.

O mau humor do rato-castor era evidente:

— Que devo fazer agora?

Marshall respirou mais aliviado. O pior já tinha passado.

— Vamos libertar McClears que está em piores condições que nós. Está sozinho com Tifflor.

Gucky se concentrou para ouvir alguma coisa.

— Distância exata 37,6 quilômetros, sudoeste. Devo dar um pulinho até lá?

— Ainda não e quando chegar a hora você deve levar Ataka. Pois só ele é capaz de entender a linguagem dos aquas.

— Aquas?

— Sim, senhor, assim chamamos esses estranhos seres. A idéia é de Deringhouse. Mas não quero que, nos combates que possam se realizar, se sacrifiquem vidas inocentes. Ninguém quer isto.

— Que aconteceu com a Centauro? Deringhouse dirigia a viatura por um caminho estreito que levava ao litoral. Operava com seu minitransmissor de pulso, que os tópsidas não lhe haviam tirado, porque não tiveram tempo.

— Capitão Lamanche deve fazer o que pode — dizia o Major. — Estamos seguindo para o litoral onde empreenderemos a libertação de McClears, enquanto a Centauro neutraliza os raios de atração e se encaminha também para o litoral. Nós nos encontramos logo. Quero evitar, de qualquer maneira, que os tópsidas tenham a impressão de que somos seres sobrenaturais. Sabemos por demais que os saltadores lutam com armas e meios convencionais. Portanto, não devemos fazer nada que possa levantar suspeita. Isto vale principalmente para você, Gucky.

— Sou, por acaso, um ser sobrenatural? — perguntou Gucky.

Deringhouse não respondeu. Colocou-se em contato com Lamanche.

— Ouça, capitão. Ligue o envoltório de proteção e destrua, depois de breve aviso, as cúpulas metálicas no centro das quais a Centauro aterrissou. Ali estão, na minha opinião, os geradores para os raios de atração. E depois vá embora. Ponha-se em contato conosco, quando já estivermos no litoral. Aí, então, lhe darei novas instruções.

— Está tudo claro — foi a resposta tranqüila de Lamanche, objetivo como sempre. — Eu sinto muito ter ficado aqui, sem fazer nada, como uma galinha choca em cima dos ovos. Os mutantes estão ansiosos para enfrentarem os sáurios.

— Os mutantes têm de ficar, infelizmente, em segundo plano, pois os tópsidas sabem que Perry Rhodan possui um corpo de mutantes. No entanto, é necessário que eles, os tópsidas, fiquem com impressão de que estão lidando com os saltadores. Está claro?

— Já falei, senhor — foi a resposta seca de Lamanche. — Encontramo-nos no litoral.

Deringhouse ficou uns instantes olhando para o receptor emudecido, depois sorriu, colocando a viatura em movimento.

Não se podia chamar a estrada de boa, mas pelo menos indicava a direção. O carro com cobertura transparente tinha bons amortecedores, mas a conformação dos bancos, feitos não para o corpo humano, obrigava o motorista a uma posição incômoda. O terreno ia em leve declive. Após meia hora, avistaram o litoral. À esquerda ou à direita, não havia uma clareira na floresta virgem, em cuja vegetação homem algum jamais penetrara. A estrada entrava um pouco para a esquerda e se dirigia a um ponto que não podia estar muito afastado do lugar em que, através de dois quilômetros de água, se alcançava a tal ilha metálica onde McClears e Tifflor foram presos.

Mas a estrada atingiu a praia um pouco antes. Aqui, com a areia, a vegetação da mata virgem não achava mais alimentação, de maneira que sobrou uma faixa livre. Ao lado desta faixa, a estrada levava exatamente para o leste.

Deringhouse dirigia o carro sob a ramagem protetora de uma árvore gigantesca. Desligou o motor. Cessou o ruído e, por uns instantes, só se ouvia o marulhar das ondas e o farfalhar da vegetação com o vento suave. A visão da natureza virgem transmitia paz e calma. O mar se espalhava numa extensão imensa. Ter-se-ia que navegar quase todo o planeta para se encontrar terra novamente.

— Gostaria de morar aqui — disse Ataka, quase sonhando. — Como numa ilha desabitada dos Mares do Sul.

— As aparências enganam — disse Deringhouse apontando para o céu.

Todos olharam para aquele ponto. Um objeto voador, pequeno, passou por cima da construção de vidro e desapareceu.

— Estão fazendo vôos de patrulha, mas talvez não saibam o que aconteceu. Se a sorte foi nossa amiga, a instalação de rádio da estação deve estar destruída — explicou Deringhouse.

Marshall virou-se para o japonês:

— Você acha que daqui desta distância pode entrar em contato com os aquas? Em caso negativo, você e Gucky têm que se teleportar para a prisão de McClears, para não levantar a menor suspeita. Os tópsidas têm que acreditar que somos saltadores, sem dons espirituais de nenhum tipo.

— Se a descrição de Tifflor for exata, eles se comunicam por ondas sonoras. Vou tentar entrar em contato, naturalmente na água. Portanto vou tomar um banho agora.

Deixou o uniforme no chão, livrou-se da calça e, como um turista, entrou pelo mar adentro. Gucky olhava para ele, visivelmente com inveja:

— Arranjou um bom pretexto para um banho de mar. Nadar um pouco não me prejudicaria.

— Quem sabe você terá que nadar mais depressa do que pensa — disse-lhe Deringhouse. — E o pior, por muito mais tempo do que deseja.

— Com o ruído das ondas, ele não ouve nada — disse Gucky, para mudar de assunto, quando Ataka transpôs as primeiras ondas mais fortes para penetrar em água mais funda. Para isso, teve que andar uns cinqüenta metros até que a água lhe chegasse à altura do peito. A onda o suspendia e ele abanava a mão para terra, todo feliz.

— Está mesmo convencido de que está de férias! — exclamou Gucky meio invejoso.

De repente, Ataka desapareceu. Mergulhou quase um minuto. Depois, seu rosto sorridente apareceu fora d’água. Gesticulou excitado com as duas mãos.

— Ouviu os aquas — disse Marshall, transmitindo a mensagem telepática de Ataka. — Mas não está entendendo nada, quem sabe está recebendo um grande número de impulsos simultâneos que geram uma confusão. De qualquer maneira já sabemos que eles se comunicam.

— Quem sabe, os aquas são também telepatas? — indagou Gucky.

— Pouco provável — respondeu Marshall. — Mas dentro em breve, saberemos isto.

Ataka continuava acenando. Quando o japonês voltou de outro mergulho, Marshall disse entusiasmado:

— Está sentindo impulsos mais fortes. Já o perceberam lá embaixo.

Todos ficaram olhando. A uns duzentos metros da praia, listras de espuma sulcavam a superfície da água. Quatro ou cinco listras rodeavam Ataka, que parecia estar boiando. As ondas às vezes lhe chegavam até o pescoço, outras somente até a cintura. As cinco listras prateadas o cercavam e a espuma havia desaparecido. Diante de Ataka surgiu então um corpo comprido, semelhante ao de uma foca, pôs-se em posição vertical e começou a gesticular com um braço em forma de nadadeira. Podia-se ver nitidamente a boca oval.

— Aquas! — disse Marshall. — Exatamente como Tifflor descreveu. Depende agora se Ataka pode compreendê-los.

Hesitou um pouco, depois confirmou:

— Foi feito o contato, mas... Gucky, dê um pulo na Centauro e traga-me André Noir.

— Noir? — perguntou Deringhouse. — Que vamos fazer com um hipno? Será que pretendemos hipnotizar os aquas?

— Não, mas com o auxílio dele, poderemos nos fazer compreender. Os homens-peixes não são telepatas e ninguém entende a linguagem deles. Noir poderá sugerir a esses seres nossas intenções.

— Está certo — concordou Deringhouse. — Mas, cuidado, Gucky. Não se esqueça de que Lamanche já... — e parou por aí.

O rato-castor já tinha sumido. Suas pecadas na areia de repente sumiram. Deringhouse estava furioso.

— Ele nem espera que eu termine minha ordem.

— Realmente não é necessário esperar, se ele pode ler os pensamentos — disse Marshall. — Além disso, não temos tempo a perder.

Ataka, nesse ínterim, conversava com os cinco homens-peixes, mas aparentemente sem resultado. Apontava sempre para a praia e devagar foi se encaminhando para lá. Hesitando um pouco, eles o seguiam.

Deringhouse e Marshall olhavam estupefatos. Quando o japonês atingiu a praia e se virou para trás, os cinco aquas também pararam. A água lhes chegava até a metade do corpo. Este brilhava com as escamas prateadas recebendo os raios do sol da última parte da tarde. Deringhouse gostaria de saber se possuíam pés.

Ataka acenou para seus novos amigos. Caminharam mais para frente, desajeitados e vagarosos, até a praia.

Os aquas não possuíam pernas, mas uma possante cauda para nadar, parar e mudar de direção.

Marshall ficou na escuta. De repente murmurou:

— Seus impulsos mentais são bem fortes. Consigo receber seus fluxos. Baixo, mas perceptível. Ah! Se Noir já estivesse aqui. Gostaria de saber por que Gucky demora tanto.

Ataka na praia, apontava mais para cima, onde estavam Deringhouse e Marshall. Os aquas volveram os olhos brilhantes na direção dos dois homens, que lhes deviam parecer completamente estranhos.

— Os aquas podem agüentar duas ou três horas fora da água — disse Marshall. — São pacíficos, mas não sabem como chegamos ao seu mundo. Acham que somos seus aliados e não vão muito com os tópsidas. Já é tempo de nós lhes dizermos a verdade.

Neste exato momento, Gucky se materializou, trazendo André Noir.

— Conseguimos sair, antes que Lamanche partisse. Ele deu um susto nos tópsidas e aniquilou toda a instalação de tração magnética — disse o rato-castor.

Deringhouse suspirou contente.

— De novo uma expressão de Bell, se não me engano. Pois bem, Noir, mostre juntamente com Marshall, que está fazendo o papel de anfitrião, um congraçamento com os aquas.

E assim foi feito.

Marshall recebia os impulsos mentais e os traduzia.

André Noir lia o pensamento dos homens-peixes como uma espécie de quadro mental, que era entendido facilmente. Era um pouco demorado, mas sempre com resultado positivo.

— Vocês são estranhos neste mundo?

— Sim, viemos das estrelas, onde está nossa pátria.

— E por que vieram?

Deringhouse que ouvia e dirigia a conversa, mandou dizer:

— Para avisar vocês e para os ajudar. Mas permitam uma pergunta: Os sáurios são seus amigos? Deram permissão a eles para viver num lugar que pertence a vocês?

A resposta veio imediatamente:

— Não, não pediram licença. Vieram há muitos dias e muitas noites e construíram suas casas. Como é que nos poderiam pedir licença, não nos entendem, nem nós a eles.

— Vocês gostariam que fossem embora daqui?

— Claro que gostaríamos. Mas como podemos expulsá-los, se não temos armas?

— Podemos ajudar vocês?

Houve então uma pausa e depois a resposta demonstrou que os aquas eram inteligentes, mas também desconfiados.

— E o que devemos lhes dar em retribuição?

Deringhouse deu uma risada.

— Somente uma coisa: sua amizade. Vamos comerciar com vocês, trocar mercadorias e construir uma pequena base para que os sáurios não voltem mais.

— Os sáurios nunca comerciaram conosco. Pois bem, estamos de acordo. Vamos avisar nossos chefes.

— Mais uma coisa — Deringhouse se lembrou do mais importante. — Os sáurios prenderam dois dos nossos homens, queremos libertá-los, mas sem o auxílio de vocês será difícil. Querem nos ajudar?

— Vimos os prisioneiros, estão no castelo de água dos sáurios. Vocês podem viver debaixo d’água?

— Não, precisamos de ar para respirar. Debaixo d’água nós morremos.

— Ar? — veio o impulso de pensamentos e depois: Está bem. Vamos cuidar disso. Esperem-nos amanhã cedo neste mesmo local. Quem sabe arranjamos uma solução.

— Quando nossa grande espaçonave chegar, teremos também uma solução — respondeu Deringhouse. — Está bem, nos encontraremos amanhã, quando o sol raiar, neste local. Esperamos por vocês.

— Haveremos de estar aqui — prometeram os aquas, acenando mais uma vez para os homens, olhando curiosos por uns instantes a figura do rato-castor. Depois desapareceram.

Por algum tempo, ainda se podia ver o reflexo prateado à flor d’água. Quando os homens-peixes mergulharam definitivamente para o fundo do mar, o brilho sumiu.

Gucky os estava acompanhando:

— Que vida boa que eles levam, nunca sentem sede!

Deringhouse olhou para o horizonte. Grande e avermelhado, o sol Beta se preparava para desaparecer atrás das ondas do mar. O céu tinha uma coloração rosa, verde e roxo. O firmamento se abria como uma cortina de fogo, num espetáculo completamente diferente do pôr do sol na Terra.

— Amanhã — disse Deringhouse — amanhã saberemos mais.

— Ficaremos aqui? — queria saber Marshall.

— Sim, dormiremos no carro.

— Não é necessário — disse o telepata sacudindo a cabeça. Eu vou com o Gucky buscar a Gazela de McClears. Temos tempo a noite toda.

Deringhouse concordou.

— Então, eu e Ataka vamos tomar um banho com calma, até que vocês voltem. Você também, Noir?

Gucky lançou um olhar desesperado para Marshall, mas quando este sacudiu a cabeça com seriedade, Gucky avançou para o telepata e o abraçou, desaparecendo com ele.

A vida de oito homens estava em jogo.

 

Antes que ficasse mais escuro, a Gazela aterrissou com Marshall e Gucky a bordo, bem perto da viatura camuflada. A ação se deu no momento exato, pois, após a destruição do primeiro ponto de apoio e da terrificante investida da Centauro, que transformou todo o planalto em lava incandescente, os tópsidas deram o alarme geral. Suas belonaves surgiram de todos os cantos do “mundo d`água” e se reuniram num ponto a oitenta quilômetros da ilha metálica.

Logo se deu o ataque à Gazela, que foi naturalmente repelido. Antes que se iniciasse o segundo, mais pesado, apareceram Gucky e Marshall. O pequeno aparelho partiu e desapareceu na penumbra. Como voasse a baixa altitude, seus perseguidores não o conseguiram localizar no radar.

Deringhouse mandou camuflar o pequeno aparelho numa clareira da floresta, de sorte que ninguém o percebesse. Um breve rádio para a Terra era suficiente para dar a localização exata. Já era noite, Deringhouse fez uma ligação para a Centauro.

— Alô, Lamanche! Onde é que você está?

— Em órbita, senhor, esperando pela ordem de atacar.

— Não vai ser tão breve. Fique por aí e mantenha contato com a Terra. Proteja-se dos ataques dos tópsidas, mas fique onde está. Ainda temos de liquidar uns assuntos aqui embaixo.

— Entendido, senhor; se precisar de algum auxílio...

— Não se preocupe, Lamanche. Estamos com Gucky aqui. Fim.

Desligou o aparelho e desceu da Gazela pulando na areia macia, quase pisando na cauda de Gucky.

O rato-castor estava sentado, calmo. Contemplava o céu escuro e as primeiras estrelas que cintilavam, formando constelações diferentes e curiosas, como jamais se poderia observar da Terra.

— Ora essa, que está fazendo aí? Eu pensava que você estivesse tomando banho de mar...

O rato-castor deixou aparecer o dente roedor.

— Vou fazê-lo agora. Acho que posso deixá-lo sozinho por uma meia hora.

— Que é isso? Você está falando como se nós não agüentássemos sem você...

Gucky foi caminhando para o mar, deixando na areia um rastro diferente. Depois de uns dez metros, parou, olhou para trás e chilreou:

— Como seria se vocês não tivessem Gucky... Estou convencido de que vou receber as duas arrobas de cenoura, não é?

Falou e desapareceu com um salto corajoso na onda em rebentação.

Deringhouse sacudiu a cabeça com ar de desaprovação. Estava suspeitando que Gucky queria captar alguma coisa.

 

Vermelho como sangue, o sol se erguia atrás da floresta virgem e recebia o novo dia com cores festivas.

Marshall que teve o último período de vigília, estava bem próximo da água, olhando para o horizonte longínquo. Já estava esperando pelas já conhecidas listras prateadas que anunciavam a chegada dos aquas.

A noite foi calma. A estação de rádio da Gazela, onde todos haviam dormido, ficou sempre de prontidão, porém, não houve novidade alguma. Houve, sim, grande intensidade de rádios entre as várias estações e naves dos tópsidas, mas a grande maioria cifrados. É verdade que o cérebro eletrônico conseguira decifrar o código depois de algum tempo. Mas não adiantou muito, o assunto era apenas a tomada de várias posições pelos tópsidas.

Marshall captou os primeiros impulsos de pensamento dos homens-peixes, ainda bem fracos, quando ainda não eram vistos. Aí é que começou a ver no horizonte as listras prateadas, ainda bem longe. Aproximavam-se com uma velocidade quase incrível, nadando em grupo, pois a formação produzia um enorme sulco que se dirigia no sentido exato da praia. Podia-se calcular: aproximavam-se uns cinqüenta aquas. A uns vinte metros da areia da praia cessaram as listras prateadas. O chefe da turma emergiu e chegou com dificuldade até Marshall. Os outros ficaram na água. Só as cabeças emergiam. Olhos curiosos contemplavam os homens.

— Viemos, como havíamos prometido — foi o pensamento dos homens-peixes. — Mas não conseguimos nenhuma maneira de fazer com que alguém de vocês consiga viver dentro d’água.

Marshall já estava chamando Gucky há vinte segundos e ficou aliviado quando, por fim, teve uma resposta:

— Estou dormindo ainda — eram os sinais de Gucky. — Que há de novo?

— Mande André Noir, mas depressa! Os aquas estão aqui.

Nenhuma resposta, mas, poucos segundos depois, Gucky se materializava bem ao lado de Marshall, que sem querer se assustou. André Noir descia da Gazela e veio correndo.

A comunicação com os homens-peixes estava garantida.

— É inútil perder tempo com tais pensamentos, pois podemos agora permanecer muito tempo sob a água — dizia Marshall. — Existem uniformes especiais com os quais se pode viver no espaço, e o espaço é mais perigoso do que o mar.

— Então vocês podem vir conosco?

— Se vocês forem bem fortes para nos puxar, pois não nadamos tão bem como vocês.

— Quando?

— Esperem-nos só um pouco, temos que fazer uns preparativos.

Meia hora mais tarde, os peixes daquele mar raso, no litoral do único continente do planeta quatro, assistiram a um espetáculo tão estranho, que nunca mais esqueceram.

Com uniformes espaciais fechados, Marshall e Noir estavam montados, cada um, no dorso escamoso de um aqua e se deixavam levar através do verde escuro do mundo submarino. Uma terceira figura, um pouco menor, estava no lombo de um terceiro aqua, era Gucky. Uma vanguarda de uns vinte homens-peixes nadava à frente. O restante formava a retaguarda da frota.

O mais divertido de todos era, sem dúvida, Gucky. Seu uniforme especial parecia até fundido com o corpo. A grande viseira do capacete lhe permitia olhar para todos os lados e já que o mar não era muito fundo, o rato-castor viveu pela primeira vez na vida os encantos do mundo submarino. As pequenas ondulações de areia no fundo, cobertas de plantas marinhas, pareciam um jardim gigantesco. Além disso, a infinidade de pequenos peixes que vinham de todos os lados. À esquerda e à direita a visão era limitada. Em cima havia um clarão de lanterna alaranjada, vindo do sol.

A velocidade era espantosa. Os dois homens perceberam que os aquas eram verdadeiros foguetes vivos de propulsão traseira. Aspiravam a água pela boca, num fluxo contínuo, comprimiam-na no meio do corpo através de um órgão especial e depois expeliam o forte jato através de uma válvula traseira, bem abaixo da cauda. A compressão devia ser muito grande, pois Marshall estava convencido de que os aquas, em atenção a seus visitantes, não usavam nem a metade da força que tinham.

Bem acima da estratosfera, moviam-se os dois grandes cruzadores em suas órbitas. As instalações de rádio estavam na escuta. Todos se encontravam de prontidão.

Também Deringhouse estava esperando na Gazela, escondida ainda sob a ramagem densa das árvores enormes. Achava-se preparada para entrar em ação a qualquer momento. Bastava que Marshall apertasse o botão vermelho do seu minitransmissor de pulso. O som já servia de meio de localização.

Sentados nas prisões de vidro, sem saberem se seus apelos de socorro chegavam a algum lugar, McClears e Tifflor também esperavam.

 

Depois de grandes esforços, Al-Khor conseguiu sentir chão firme debaixo dos pés. Escorregou pelo tronco liso da árvore, esfolando muito a pele e nos últimos cinco metros caiu diretamente. Foi por isso que destroncou a pesada cauda coberta de escamas, que lhe doía tremendamente.

Praguejando e mancando de uma perna, foi abrindo caminho pela vegetação baixa da floresta. Depois de muito procurar, achou sua pistola de raios energéticos e chegou afinal à beira da clareira, onde, há pouco, ainda existia a estação. As granadas de mão dos “saltadores” tinham feito estrago total. A cúpula estava em ruínas, as viaturas destruídas e o pessoal: morto ou ferido ou debandado.

Debandado pelo ar.

É claro que a imaginação de Al-Khor trabalhava. Chegou a uma conclusão, mais ou menos lógica, de que os “saltadores” haviam aperfeiçoado um aparelho, com o qual podiam a qualquer momento interromper a lei da gravidade e fazer então com que os objetos pudessem flutuar à vontade. Não havia outra explicação para o fenômeno que ele próprio sentiu na pele: fora um fato sobrenatural.

Andando pelos escombros, encontrou uma viatura mais ou menos em condições, cujo aparelhamento de rádio ainda funcionava. Chamou a central das Tropas de Ocupação. Ela respondeu imediatamente.

— Aqui fala Al-Khor, do Comando Seccional da Costa Sul. Os “saltadores” presos fugiram e destruíram nossa estação. Peço socorro imediato. Mandem-me uma nave.

A resposta não foi muito alentadora:

— Estamos em alarme de urgência, Al-Khor, e não podemos prescindir de nenhuma nave. Procure abrir caminho no HQ. Perdura o perigo de que os saltadores consigam mais reforços e nos ataquem.

— A quem você está dizendo isto? — disse Al-Khor indignado. — Afinal, fui eu quem lhe chamou a atenção para este fato e...

— Esperamos você no quartel-general.

Ouviu-se o ruído final. Al-Khor praguejando, destruiu o aparelho com um único soco de sua mão, por assim dizer, blindada.

— ...eles é que vejam como liquidar os saltadores.

Não tinha pressa alguma. Procurou na viatura alguma coisa para comer e acabou fazendo sua refeição. Já estava bem escuro, portanto tinha que preparar um abrigo para dormir.

Quando rompeu a madrugada, acordou gelado e ficou contente quando apareceram os primeiros raios do sol para aquecê-lo. Depois de uma boa refeição matinal, ligou o carro e começou a rolar por entre as ruínas em direção ao caminho estreito que levava para o litoral e para o quartel-general.

Estava com remorsos. Sem suspeitar de nada, passou bem perto do esconderijo da Gazela, tomou a direção do leste. Aproximou-se da ilha de aço, antes do litoral, onde o Estado-Maior dos Tópsidas estava reunido em conselho de guerra. Um barco levou Al-Khor aos seus colegas que o receberam admirados, mas com muita reserva. Tinha-se a impressão de que ele era culpado da evasão dos prisioneiros e portanto era acusado de favorecer o inimigo.

Sem dar atenção à sua chegada, o conselho de guerra prosseguiu.

— Estaríamos, portanto, unânimes — afirmou Wor-Lök, comandante-supremo e superior de Al-Khor — em tentar nos defendermos sozinhos, sem auxílio, de ninguém, do iminente ataque dos saltadores.

— Isto é pura loucura — disse Al-Khor bem alto, antes mesmo de tomar seu lugar. — Não podemos cometer erro maior do que este.

Wor-Lök estremeceu todo e fechou a cara. Exatamente quem havia fracassado miseravelmente é que se atrevia a contradizê-lo? Se o ditador de Topsid soubesse disso, Al-Khor estaria perdido. A sombra da desgraça cairia também na cabeça do comandante-supremo do “mundo d’água”.

— Então, quer dizer que estou cometendo um erro? — disse Wor-Lök com cara sinistra. — Talvez o senhor terá a bondade de nos explicar melhor e dar suas razões.

Al-Khor respirou profundamente:

— Não lhes basta o simples fato de dois destes saltadores terem mandado pelos ares toda a nossa estação, depois de haverem fugido da cela fortemente trancada e vigiada? Não pôde haver reação contra eles, pois possuem um aparelho com que neutralizam a força da gravidade. Suponho, além disso, que vão atacar o “mundo d’água” com uma frota bélica jamais vista, aniquilando-nos nos primeiros instantes, se formos tão orgulhosos de não pedirmos auxílio de Topsid.

Houve agitação entre os tópsidas. As palavras de Al-Khor pareciam conter muita coisa séria. Mas Wor-Lök não se deixou levar:

— Quem é que lhe garante que haverá um ataque contra nós?

— Ora, Wor-Lök, o senhor sabe, tão bem como eu, que corremos perigo. E seu orgulho não nos deixa pedir auxílio. O senhor quer se transformar em herói. Mas eu e a maioria de meus colegas preferimos viver.

Um longo aplauso deu-lhe razão. Wor-Lök olhou em volta, mas só viu caras fechadas para ele. Mesmo assim perguntou:

— Os senhores são, portanto de opinião de que devemos expor ao ditador toda a nossa fraqueza?

— Perfeitamente, porque esta fraqueza não é nossa culpa. Estamos prestando ainda um favor ao império — respondeu Al-Khor.

Realmente, não estavam prestando favor nenhum. Mas Al-Khor não podia saber disso. Ninguém o sabia, nem mesmo Rhodan.

— Prestando um favor?

Wor-Lök se levantou, olhou para a porta, onde estavam postados dois guardas com os raios energéticos de mão.

— Sou de opinião contrária e acho que o senhor fracassou. Agora quer arranjar um pretexto. Isto é insubordinação e eu vou chamá-lo à responsabilidade. Guardas, Al-Khor está preso. Levai-o para a prisão submarina. Al-Khor, deponha as armas.

Por um segundo, Al-Khor parecia petrificado. Depois veio vida para seu corpo. Mais do que depressa sacou da arma e dirigiu-a contra o comandante-geral.

— Eu estou preso? E devo depor a arma? Isto é completamente contra o bom senso. Estamos numa época em que devemos nos unir, se não quisermos desaparecer.

Wor-Lök confiava na sua autoridade em decidir sobre a vida e a morte.

— Minha decisão não volta atrás. Guardas, prendam Al-Khor. A partir deste momento, ele está rebaixado de todas as honras militares.

Al-Khor não podia mais hesitar. Com um único tiro certeiro, prostrou seu adversário, que caiu como fulminado por um raio. Depois, virou-se para os guardas, ordenando que voltassem a seus lugares. No seu íntimo, havia um vulcão de emoções, mas externamente estava sereno.

— Tópsidas, estamos agora sem chefe, mas é necessário tomarmos decisões rápidas. Continuo com minha proposta de nos colocarmos imediatamente em contato com Topsid e expor ao ditador o que está se passando e o que vai acontecer, se não recebermos reforço imediato. Está iminente uma invasão dos saltadores. Eles julgam existir neste planeta uma base de um adversário e pretendem destruir o terceiro e o quarto planetas. Nós, porém, queremos colonizar o “mundo d’água” e mais tarde também o planeta das selvas, temos portanto o direito de prioridade.

“Ainda não notamos nada de um inimigo neste sistema, fora dos próprios saltadores. Peço, portanto, o consentimento do conselho para que possa me comunicar com Topsid.”

A pesada pistola ainda estava firme em sua mão, mas o cano apontando para o chão. Talvez fosse a visão da poderosa arma e o reconhecimento de que Al-Khor não tinha compromissos com ninguém, como tinha comprovado há pouco, que levou todos os presentes a concordarem unanimemente. Um deles se levantou e disse:

— Estamos sem comando supremo. Proponho, pois, que a partir deste momento, Al-Khor tome o cargo de Wor-Lök.

Outra vez, nenhuma voz discordante.

Al-Khor era assim o novo comandante do “mundo d’água”. E começou a agir imediatamente. Virou-se para um oficial:

— Providencie que o hipertransmissor faça logo contato com Topsid. Estarei em poucos instantes na Central de Rádio e falarei diretamente com o ditador. E os senhores — olhou para os demais — dirijam-se imediatamente para suas bases ou naves e aguardem ordens posteriores. O “planeta das águas” está em estado de sítio. Alguém no fundo perguntou:

— Que acontecerá com os prisioneiros que se encontram na cela submarina?

Al-Khor sacudiu a cabeça:

— Ainda bem que você me lembrou. Temos que torná-los incapazes de reagir, antes que fujam também.

— Talvez nos possam dar mais detalhes sobre a invasão iminente...

— Não, não temos mais tempo. Além disso, já disseram tudo que queríamos saber. São muito perigosos para continuarem vivos. Providenciem execução sumária.

O tópsida do fundo concordou, mas ficou sentado, para esperar o fim da conferência.

E exatamente isto não se deu.

 

Tifflor pensava constantemente naquilo que queria transmitir a John Marshall. Não podia fazer mais do que isto. Tinha, porém, esperança de que Marshall captasse seus pensamentos.

McClears, sentado no canto, no chão de vidro, olhava pensativo para o fundo do mar, tão próximo, que agora com a luz do dia ele podia ver tão bem. Os estranhos peixes haviam desaparecido imediatamente, quando foram chamados. A fraca esperança do major estava acabando. Não podiam mais esperar ajuda dos peixes inteligentes. De quem então? Deringhouse e os mutantes estariam certamente a caminho para libertá-los.

O principal era que os tópsidas acreditavam na invasão dos saltadores, a qualquer momento, tomando todas as providências para a defesa.

Valia a pena fazer um sacrifício para isto. Porém, não o sacrifício da própria vida, assim pensava sinceramente McClears. Era um homem honesto, amigo de Rhodan, mas não um suicida. Somente os loucos é que são suicidas e heróis que se autodestroem.

— Não dá para ver mais nada, Tifflor? Desde ontem à tarde que eles não aparecem mais. Será que não se interessam mais por nós?

— Não sabemos, major, quais suas relações com os tópsidas. Talvez receberam ordens de não aparecer mais aqui.

— Para que, então, nos prenderam numa cabina de vidro dentro do mar? Só para que os homens-peixes nos ficassem contemplando?

— Não sabemos nada certo — dizia Tifflor. — O melhor a fazer é esperar o que vai acontecer.

Era mais fácil falar do que praticar. Estavam parados ali desde ontem. Não se ouviu mais nada depois disso, ninguém pensara em trazer alguma coisa para comer ou beber. Por muita sorte, McClears ainda achou no bolso uns tabletes que ajudavam um pouco contra a fome e a sede aguda.

Ouviram passos, de repente. Sentiram uma vibração e se levantaram. Achavam que era melhor receber os sáurios de pé. Quem sabe também era um aviso de subconsciente, que os levou a isto.

Souberam no mesmo instante em que dois tópsidas abriram a porta e penetraram na cela de vidro, o que lhes ia acontecer. As armas apontadas contra eles e os olhares com sinistra determinação traíam nitidamente suas intenções.

— Vão nos matar — sussurrou Tifflor, se concentrando para pensar. — Socorro! Marshall, Gucky. Não temos mais muito tempo. Posição: ilha de metal, diante do litoral, vinte metros de profundidade. Obrigam-nos a deixar a cela. Depressa.

Lá fora no corredor, estava claro. Do teto e das paredes, penetrava luz muito clara, que ofuscava os homens. Os tópsidas empurravam os prisioneiros para frente com os canos das armas. Com os lábios bem apertados, McClears e Tifflor caminhavam para um destino desconhecido.

O corredor fez uma grande curva e terminou numa porta metálica. Uma roda dava a entender que se tratava de uma comporta, de ar ou de água?

Um dos guardas girou a roda, a porta gingou devagar para fora deixando ver um aposento vazio pela frente.

— Podem ir — disse o tópsida em intercosmo — bom proveito!

McClears ficou parado. Tifflor continuou andando, repetindo sem interrupção seus gritos mentais de socorro. Descrevia a situação e esperava que os amigos não demorassem muito em aparecer. Estava realmente na hora.

McClears não se movia. Cada segundo era precioso.

— Que está acontecendo conosco? — perguntou ele.

O focinho de lagarto se retorceu num sorriso sarcástico:

— Al-Khor, o novo comandante-geral, os condenou à morte. Vocês não vão sofrer muito. A gente afoga facilmente.

— Por que devemos morrer? Não dissemos tudo que era importante para vocês?

— Não fomos nós que demos a sentença — explicou o tópsida. — Mas eu acho que é justa, vocês causaram muito estrago. Uma estação foi pelos ares, os outros prisioneiros fugiram, um grande número de tópsidas foi assassinado. Vocês merecem a morte. E agora, vamos.

McClears não desistiu.

— Será que nós temos que ser responsáveis pelos atos dos outros saltadores? Não fomos nós quem ordenou a invasão.

— Chega de falação, saltador. Vamos. Apontou a arma para o major. McClears percebeu que não havia mais um segundo. Virou-se e encaminhou-se para o local em que Tifflor já o esperava.

— Se quiserem deixar a água entrar aqui — disse ele baixinho, enquanto a porta pesada se fechava — terão que abrir a comporta externa. Aí, nós mergulhamos.

— Tenho receio de que haverão de ficar esperando até que tenhamos nos afogado. Não são tão ingênuos assim, para não preverem esta hipótese. Podemos apenas prender a respiração, nada mais. E naturalmente, esperar.

McClears nada respondeu.

Pelo lado do mar, surgiu no chão uma fenda estreita de onde começou a entrar água na comporta. A fenda foi aumentando depressa. Já atingia o peito deles.

— A fenda — disse Tifflor, assustado. — Se aumentar um pouco mais, podemos passar por ela.

Mas a porta vertical estava parada e o nível da água subia constantemente, atingindo já o pescoço.

— Respirar profundamente — disse McClears — prender a respiração e procurar chegar até embaixo. Felicidades, Tifflor, talvez tenhamos sorte.

Num borbulhão repentino, o mar invadiu a comporta. Cobriu tudo em fração de segundo. Os dois prisioneiros seguravam o ar e foram para o fundo. Sentiram a pressão da água, os ouvidos começaram a zumbir e a falta de oxigênio lhes tolhia os movimentos. McClears tocou com os dedos a margem superior da fenda, até que deu com alguma coisa que se movia. Não fosse a água que o envolvia, teria dado um grito. Mas um pouco do ar acumulado no pulmão escapou, subindo em bolhas. Mais um segundo e estaria tudo acabado.

 

Os aquas da vanguarda diminuíram a velocidade e formaram de novo uma espécie de frota bem agrupada.

— Que está acontecendo? — perguntou André Noir, através de uma imagem mental. Marshall e Gucky receberam prontamente a resposta:

— A fortaleza d’água dos estranhos. Estamos chegando. Têm portas especiais que levam daqui lá para dentro.

No mesmo segundo, chegaram os pedidos de socorro de Tifflor. Gucky se orientou e transmitiu telepaticamente para Marshall:

— A menos de dez metros de nós. Devo saltar?

— Não, espere. Quem sabe podemos ajudar, sem que os tópsidas percebam.

Na frente deles, cintilavam, na eterna penumbra do mar, as paredes da ilha artificial. Apoiavam-se em pilastras redondas e terminavam a uns vinte metros do nível da água. Uma fila de muitas fendas indicava a presença das comportas. Dali em diante, os aquas penetrariam no domínio dos tópsidas.

— Estão sendo procurados. Marshall fez um sinal com seu capacete.

Era uma sensação esquisita cavalgar no lombo de um peixe esguio.

— Orientação, Gucky.

O rato-castor, que em outras circunstâncias estaria se divertindo muito, conduziu seu animal de sela para perto da parede escura da ilha de metal. Parou diante de uma comporta.

— Estão aqui, Tifflor já está na câmera.

Marshall já sabia disso há tempo. Sabia mais:

— Lá em cima, na plataforma, estão dois guardas armados para o caso de McClears ou Tifflor emergirem...

Noir era um sugestor, naturalmente também um telepata fraco. Podia compreender bem os impulsos de Marshall e de Gucky e estava sendo bem informado, transmitindo logo as instruções aos aquas. Os homens-peixes, sem peso nas costas, começaram a fazer suas piruetas, como era de costume. Atiravam-se como setas, de um canto para o outro, revolvendo toda a superfície do mar, pulando metros para cima no ar ensolarado e caindo com estrépito em seu elemento natural.

Os tópsidas abaixaram as armas. Era um espetáculo com que já estavam acostumados.

— Agora a água está penetrando — pensava Tifflor para Gucky.

Depois de alguns instantes o rato-castor transmitiu:

— A fenda é estreita demais para McClears e Tifflor passarem.

Marshall respondeu:

— Gucky, abrir.

O rato-castor se aproximou mais da parede e se concentrou. Lentamente a parte inferior da comporta foi se levantando. É claro que a água penetrou imediatamente na câmera de trás, mas a fenda estava agora bem maior, dando passagem fácil para os dois homens. Provavelmente haveriam de compreender o que estava acontecendo. E compreenderam mesmo.

Gucky fez seu aqua abaixar um pouco mais e meteu a mão na fenda. Sentiu logo um braço que apalpava e o puxou para fora. Era McClears. O major tinha os olhos meio abertos mas parecia não ver nada. Uma grande bolha de ar saiu de sua boca e subiu rápida para a superfície.

— Depressa, Marshall! Ele pode agüentar ainda dez segundos. Leve-o bem para frente e depois para cima.

Marshall pegou McClears que não reagia, nem percebia o que estava acontecendo. Noir retransmitiu a ordem aos aquas. Marshall teve dificuldade em segurar o corpo de McClears, de tão forte que era a velocidade com que os aquas disparavam através do mar.

Gucky não hesitou mais um segundo. Atravessou a estreita fenda, penetrando na comporta e viu imediatamente o pobre Tifflor que tinha desistido de fugir e já estava boiando de encontro ao teto, onde não havia mais um centímetro cúbico de ar. Gucky deu um pulo e pegou o pé de Tifflor. O peso do uniforme o fez descer um pouco. O mais rápido possível, comprimiu Tifflor contra a fenda, saindo para o mar, onde o aqua que servia a Gucky já estava esperando. O homem-peixe pegou o corpo do tenente e saiu em disparada, sem se preocupar com Gucky. Este, depois de hesitar um pouco, retornou para dentro da comporta.

Os dois tópsidas que haviam enclausurado McClears e Tifflor no pequeno dique, ainda estavam diante da porta, conversando. Depois de dez minutos, a comporta externa devia ser fechada e esvaziada. Portanto ainda sobrava tempo. Não perceberam que a roda de regulagem estava girando, por mãos invisíveis. De repente a porta abriu. Entrou uma golfada enorme de água que, envolvendo os dois guardas distraídos, os arrastou.

Gucky abriu também a porta externa, de forma que, em poucos instantes, toda a parte inferior da estação estava submersa. Os sáurios que ali se encontravam morreram afogados. Alguns, que conseguiram escapar, levaram a trágica notícia para os oficiais que estavam reunidos no andar superior em importante conselho de guerra.

A água subiu até a altura da plataforma e assim a ilha metálica não podia mais servir de base de operação.

Gucky passou de novo pela fenda, atingiu o mar, e tentou sair dali o mais rápido possível, pois o local, em volta da ilha, se tornava agora perigoso.

Gucky captou os impulsos de Marshall, que estava a duzentos metros e já havia alcançado a superfície com McClears. Os tópsidas na plataforma estavam agora demasiadamente ocupados para se preocuparem com coisas que estavam acontecendo no mar. A ilha não iria, propriamente, cair, mas três quartos dela estavam inundados.

Gucky poderia se utilizar de seus dons telecinéticos, mas estava adorando nadar debaixo d’água. McClears e Tifflor já estavam fora de perigo, como lhe dizia nitidamente a mensagem telepática de Marshall. Os aquas estavam fazendo tudo para que os dois resgatados do castelo de vidro saíssem o mais depressa possível da zona perigosa.

O rato-castor se divertia mergulhando bem fundo, junto das plantas marinhas. Deu de cara com um enorme peixe que ao vê-lo disparou assustado.

E assim foi que ele chegou duas horas mais tarde que os outros para o lugar onde estava a Gazela. Havia tomado o seu muito desejado banho de mar, mas não se havia molhado.

 

Perry Rhodan estava conversando com Crest e Thora sobre a possibilidade de uma colonização interestelar, quando um zunido muito agudo se fez ouvir. Assustou-se um pouco, apertou depois o botão de seu aparelho receptor de pulso.

— Aqui fala Rhodan. O que há?

— Mensagem urgente do sistema Beta senhor. Quer que eu a receba?

— Comunique-se com Reginald Bell e espere. Vou atender.

Crest e Thora viram-no sair correndo do local, antes que lhe pudessem fazer uma pergunta. Levantaram-se para acompanhá-lo, pois estavam muito interessados em saber o que acontecera a 272 anos-luz da Terra.

O elevador levou Rhodan em cinco minutos à central de radiocomunicação. O operador-chefe Eilman fez posição de sentido e anunciou:

— Major Deringhouse, Centauro, sistema Beta, solicitou transmissão especial. Distância duzentos e setenta e dois anos-luz.

— Meu querido Eilman — disse Rhodan — você é o homem das notícias. Só não compreendo bem por que repete tanto coisas já conhecidas. De qualquer maneira é melhor do que inventar novas. Que há com Deringhouse?

— Apresenta-se exatamente dentro de trinta segundos.

Rhodan sorriu e tomou lugar à mesa de controle. Neste instante, Bell entra porta a dentro, cumprimentou Eilman com um aceno de mão e sentou-se ao lado de Rhodan.

— Agora, estou realmente ansioso.

— Não é por menos — respondeu Rhodan. — Onde estará o sujeito?

— Vou lhe puxar os pêlos — prometeu Bell, com o que se tornou claro que falavam do Gucky, cuja ausência lhes era um problema desde a partida dos dois cruzadores pesados.

— Espere — recomendou Rhodan tranqüilo.

Acendeu uma lâmpada verde à sua frente, ouvindo então uma voz desfigurada no alto-falante:

— Aqui fala Deringhouse. Estou chamando Terrânia.

Do outro lado, estava Rhodan:

— Como é bom ouvir sua voz, Deringhouse. Antes de você começar a falar, diga-me uma coisa: você viu Gucky por algum lugar?

Pequeno intervalo, depois veio a resposta de Deringhouse:

— Gucky está conosco, senhor.

— Está bem. Dê então as notícias. Os saltadores já se manifestaram?

— Como posso entender a pergunta, senhor? Nós somos os “saltadores”. Ao menos para os tópsidas. Além disso, os verdadeiros...

— Um momento, Deringhouse, você falou tópsidas?

O major começou seu relato. Rhodan e Bell ouviam compenetrados, sem interrompê-lo uma vez sequer. No fim, resumiu seu ponto de vista:

— Este foi o plano que cada um de nós dois elaborou separadamente, sem combinação prévia. Eu presumo que o senhor concorde com nosso ponto de vista. Naturalmente que seria muito simples destruir as bases dos tópsidas e suas naves com o auxílio da Centauro e da Terra, mas não lucraríamos muito com isto. Assim temos a possibilidade de matar dois coelhos com uma só cajadada. Merece atenção especial o fato de que o comandante-geral dos tópsidas, um tal Al-Khor, há poucas horas atrás enviou uma mensagem de socorro para Topsid. Pede auxílio ao ditador e soberano do Reino Estelar dos Tópsidas, para salvar o sistema Beta do iminente ataque dos saltadores. Este ditador está revoltado contra o pretendido ataque dos saltadores e prometeu a Al-Khor de lhe enviar uma poderosa frota de guerra. Estamos esperando por ela.

Rhodan olhou para Bell, que fitava meio desconcertado o alto-falante, como se esperasse do aparelho uma sugestão.

— Excelente, Deringhouse — continuou Rhodan. — Se seu plano funcionar, e eu aposto que vai funcionar, atingiremos nosso objetivo inicial, sem movermos uma palha. Os saltadores, que atacarem, haverão de ver nas espaçonaves dos terríveis e corajosos tópsidas as naves da Terra ou de seus aliados. Mas os tópsidas têm plena razão quando consideram os saltadores como saltadores mesmo, apenas desconhecem a razão do seu ataque. Temos, porém, que evitar que não haja nenhuma relação mais clara entre os dois adversários. Infelizmente não recebi ainda nenhuma notícia sobre Talamon, o superpesado com quem temos amizade. Não sei se vai tomar parte no ataque.

— Quais são suas ordens, senhor? — perguntou Deringhouse.

Rhodan começou a sorrir.

— Deve esperar, Deringhouse, o melhor é vocês se retirarem para o terceiro planeta e agir como se ele fosse a Terra. Quem sabe vocês conseguem até atrair para lá os tópsidas. Assim este planeta terá maior semelhança com a Terra.

— Entendido, senhor. Ligarei novamente quando as coisas se desenrolarem mais.

— Aparecerei logo por aí — prometeu Rhodan — para recebermos com alegria nossos amigos. — Desta vez, os tópsidas são nossos aliados. É pena que não saibam nada disto. Antes de desligar, uma pergunta, Deringhouse: você deu ordem de prisão individual para o violador da disciplina, Gucky?

Deringhouse titubeou um pouco, depois falou:

— Sinto muito, senhor, mas nós precisamos muito da ação do rato-castor. Se quiser ser sincero, sem Gucky não teríamos conseguido nada. Posso fazer uma observação?

— Claro que sim — disse Rhodan, continuando a sorrir mais ainda.

Bell acrescentou:

— Estou curioso.

Podia-se ouvir a respiração de Deringhouse.

— Não se deve olhar para o caso de Gucky assim. Foi simples zelo pelo dever, mas não um desrespeito ao regulamento por motivos inferiores. É claro que chamei sua atenção para o erro. Mas depois se comportou maravilhosamente, chegando mesmo a salvar a vida de McClears e de Tifflor. Ninguém fora dele, poderia fazer isto. Portanto, acho que se devia...

— Certo, Deringhouse, diga a Gucky que ele está perdoado. No próximo semestre, porém, não receberá cenoura. Quer dizer mais alguma coisa, Deringhouse?

— Senhor, acho que isto não causará transtorno a Gucky.

— Acho que sim. Ele gosta muito de cenoura e vai sentir muita falta.

— Não sei, tenho que confessar que perdi uma aposta...

Bell começou a dar gargalhada. Estava bem por dentro destas apostas. Já tinham custado a muita gente uma boa soma de dinheiro em cenouras e rabanetes... e pontas de dedo paralisadas de tanto coçar pêlo de animal.

— Está certo — ria também Rhodan. — Que ele coma bastante, mas não deixe comer demais e estragar o estômago, pois precisamos muito dele contra os tópsidas e contra os saltadores. Até logo mais, Deringhouse, saudações a todos os homens e a Gucky. Fim.

Do depósito de víveres da Centauro, os robôs levaram caixas e mais caixas de cenoura para a cabina de Gucky, onde o rato-castor estava sentado no sofá como um verdadeiro paxá, enquanto o major Deringhouse cumpria sua primeira hora de “coçagem”.

Quem fizesse aposta com Gucky teria sempre cem por cento de certeza de que ia perder.

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

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