Cordilheira de Huayllas, 5 de abril de 1533
Rédeas na mão, pousando com cuidado as botas nas pedras quebradiças, Gabriel vai à frente, precedido apenas por dois carregadores que levam lonas para tendas. A largura da trilha só permite que seu cavalo baio possa segui-lo sem se assustar.
Desde o alvorecer, eles avançam ao longo de uma falésia sem nenhum ponto de referência. A cerração é tão forte que não dá para ver o céu nem o rio, cujo rugido estrondoso eles ouvem ao longe, vindo de baixo. Mas, de repente, como sugada por uma boca gigante, a bruma se levanta desde a base da montanha vertical. Estende-se, ora se concentrando, ora se esgarçando nas arestas dos rochedos. Qual uma carícia, uma brisa cálida roça o rosto de Gabriel.
Ele pestaneja, pousa uma das mãos no lombo do cavalo e pára. Num instante, a claridade torna-se fulgurante e o céu, de um azul lavado.
Só então, vê que chegaram apenas à metade do abismo. A picada não sobe um vale, mas sim um corte na montanha, tão estreito que parece ter sido talhado por um machado gigante. Ao sol, uma miríade de plantas suculentas e liquens grudados no paredão da falésia cintila com um brilho molhado. Cem toesas abaixo, o rio engrossado pelas chuvas dos dias precedentes ruge como fera, o ventre aberto revolto. Está tão cheio de terra e areia desbarrancadas que suas águas agitadas ganharam um tom ocre escuro, grossas como barro para encher taipa. Aqui e ali, elas arrastam troncos, galhos, maços de mato ou moitas de orquídeas e de cantutas.
Olhando para trás, como uma serpentina colorida no pano de fundo da rocha esverdeada, Gabriel vê agora a longa coluna que o segue a uma certa distância. Cem carregadores vergados sob o peso do ouro, quase o mesmo número de lhamas, seladas como burros, atrás deles, espanhóis puxando seus cavalos pelas rédeas, a pluma vermelho sangue do morrião incrustado de prata de Hernando Pizarro e, finalmente, a grande maca do "convidado" de honra, o general inca Chalkuchimac.
Há cinco semanas, Gabriel deixou Cajamarca para ir ter com o irmão do Governador, que foi para o sul buscar o máximo de ouro possível. Os homens estão de volta, a missão mais que cumprida.
Com seu jeito, manhoso e violento, sem se incomodar mais em bater do que em mentir, Hernando convenceu o primeiro dos generais do Inca prisioneiro Atahualpa a unir-se a eles. Assim, Chalkuchimac, considerado o mais terrível guerreiro inca, segue-os na liteira até Cajamarca para encontrar seu senhor. Se há 20 de seus soldados a escolta-lo, é muito! Apesar do desprezo cada vez maior que sente pelo comportamento de Hernando, Gabriel só pode apreciar o feito. Esse modo de captura pacífica do general inca talvez acalme os eternos receios da tropa. Desde o episódio que os espanhóis entre si gostam de chamar de a Grande Batalha de novembro, não há um soldado que acorde de manhã sem medo de ter que enfrentar um ataque do exército de Atahualpa que, segundo os rumores, ainda é numeroso e poderoso...
- Ei! - resmunga Pedro o Grego atrás de Gabriel -, o senhor vai se dignar a avançar ou deveremos ficar plantados aqui até o Natal?
Gabriel sorri sem replicar. O gigante grego está rabugento desde de manhã. Como muitos, está cansado de puxar o cavalo em vez de montá-lo! A menos que o fato de não ter a seu lado o inseparável companheiro, o negro Sebastian, que segue um pouco mais adiante na coluna, seja a causa de seu mau humor.
Os homens retomam a caminhada com prudência, levando as montarias com rédea curta para evitar intervalos.
Ora sobem regularmente, felizes de sentir afinal o calor do sol no rosto, ora uma sombra passageira esconde o sol, correndo como um traço escuro nos flancos da falésia.
Gabriel ergue o rosto: um pássaro imenso plana sobre o canion com uma lentidão circunspecta, sem bater asas. Embora no alto, parece imenso.
A cada meia jornada, Gabriel deduz o tempo, lentíssimo, que ainda o mantém afastado de Anamaya. Perscruta cada cume de montanha esperando, contra a lógica, que aquela seja a última e que finalmente eles estejam descendo para Cajamarca.
Sente falta de tudo da amada: da voz, da boca, da nuca, do perfume de relva seca e flor apimentada. Quisera beijar seus ombros e seu ventre, mas sua boca só sorve o frio da montanha. À noite, acorda como se esperasse suas carícias, seus sussurros, o azul imenso de seus olhos quando fazem amor. Sonha com aquele corpo que ela sabe lhe negar e lhe entregar, com sua doçura selvagem, com seu jeito de inclinar a cabeça semicerrando as pálpebras quando ele diz baixinho que a ama. Ri ao se lembrar de sua timidez quando ele lhe ensinou esta palavra na língua da Espanha.
Levanta-se, gelado, e vai esperar a aurora, enrolado numa manta úmida. Através das brumas e das chuvas, nos cumes das montanhas e nas curvas dos vales, quer encontrá-la. Então esse Peru, essa terra tão estranha quanto uma estrela espetada no céu, lhe parece magnífico por ser a terra dela. E às vezes, durante as longas caminhadas do dia, ele observa os olhos tristes e assustados dos carregadores, procurando decifrar algo dela em seus traços.
- Ei! Sonhador - diz bruscamente Candia atrás dele, apontando o dedo enluvado -, olhe um pouco o que nos espera!
Trezentos passos adiante, numa curva do rio e um pouco abaixo, uma ponte de cordas liga os dois lados abruptos do cânion. Uma ponte tão comprida que pende como um colar sobre um peito encovado.
Gabriel diminui o passo. O gigante grego, o rosto lívido sob a barba cerrada, alcança-o resmungando:
- Não estou gostando disso. E os cavalos vão gostar menos ainda!
Gabriel, sem escutá-lo, assobia entre os dentes, admirado.
- Por Santiago! Como eles conseguiram construir essa ponte?! - exclama.
- Essa é uma questão que não me interessa a mínima, companheiro! Você devia era querer saber como vai passar em cima dela e se ela vai agüentar...
- Botando um pé na frente do outro, acho eu - graceja Gabriel. - Você estaria com medo, Grego?
- Não estou com medo. Não estou é gostando disso!
- Na verdade, amigo, acho que sua única saída é tentar gostar! Ou transformar seu cavalo em Pégaso...
Pedro faz uma expressão contrariada, sem convicção.
Enquanto avançam de novo ao longo da falésia, os homens descobrem no fim do caminho os pilares monumentais onde se prendem as cordas da ponte. Finamente trançadas, elas são da grossura de uma coxa de homem.
Toda uma rede de cordas e nós forma o guarda corpo da obra, mais larga que as trilhas por onde eles acabam de passar.
Gabriel fica um instante petrificado de admiração. Os operários e os arquitetos incas, mesmo sem possuir nenhum instrumento de ferro, nem serra, nem goiva, nem plaina, conseguiram fazer uma construção tão elegante quanto prática. Três das enormes cordas sustentam um tabuleiro de toras minuciosamente presas umas às outras. Para tornar a superfície menos escorregadia e perigosa, finos ramos são encaixados em cima das toras, para nivelar a superfície.
- Por Nossa Senhora! - blasfema Candia. - Olhe!... Olhe, Gabriel, a ponte se mexe! Fica cavada...
É verdade, constata Gabriel. É um volume pesado, uma verdadeira rampa que desce para o rio rugindo lá embaixo, e balança suavemente ao vento que, no entanto, não é violento.
- Digo-lhe que não vai agüentar o peso dos cavalos! - insiste Pedro. - Ei, Grego! Você já foi mais corajoso! Está vendo o tamanho das cordas e o peso dos troncos, é coisa sólida...
Do outro lado, aparecem guardas indígenas. O resto da tropa começa a ir ao encontro deles e os carregadores aguardam com uma atitude indolente, na qual a curiosidade desponta sob a apatia, que os estrangeiros dêem os primeiros passos com os cavalos.
Gabriel tira o comprido lenço azul da cor dos olhos de Anamaya, o qual não sai mais de seu pescoço, e começa a vendar com ele os olhos de seu cavalo baio.
- Faça como eu, Pedro - diz. - Tape os olhos do seu cavalo, para ele não ver o abismo nem o rio...
Com prudência, segurando no alto a rédea do baio, sussurrando-lhe palavras que tranqüilizam a ele mesmo, Gabriel se aventura entre os pilares. Com alguns passos, está em cima do abismo. Quanto mais avança, mais violento fica o rugido do rio, como um ladrar constante a subir do vazio.
Por entre as cordas, ele vê a coluna, a liteira do general inca, a pluma do capacete de Hernando chegarem ao início da ponte. Todos o espreitam. Ele grita:
- Siga-me, Pedro, está tudo bem!
- Já estou atrás de você! - berra Candia com sua voz estentórea. - Não vá pensar que vou deixar você bancar o herói sozinho!
Gabriel sorri e aperta um pouco o passo. O cavalo o acompanha bem, confiando em seu comando. Descem com facilidade rumo ao ponto mais baixo da ponte. Parece que a rampa se acentua. Gabriel tem que jogar os ombros para trás, como se a cada passo enfiasse o salto da bota na lama e não nesse leito de galhos. Com a mão esquerda, agarra-se às cordas ásperas, enquanto os cascos do cavalo escorregam e descobrem as toras.
O ronco do rio fica ensurdecedor. Dá para ver a lama correndo, os vagalhões quebrando nas rochas numa explosão de espuma tão violenta que sobe uma espécie de chuvisco nessa parte do cânion.
Um ruído surdo, um grito, chega então a Gabriel. Seu cavalo lhe bate no ombro, bufando ruidosamente. Gabriel se vira e ouve Pedro vociferando:
- Raio de ponte miserável!
Gabriel quase riu. O Grego escorregou e caiu sentado, uma bota já no abismo. Mas continua segurando as rédeas do cavalo, e o animal, o pescoço arqueado, as patas dianteiras cavando o piso, segura o amo.
Inclinando-se para o lado, Candia agarra uma corda e consegue se ajoelhar, bufando. A pluma rosa de seu capacete se parte e voa para o vazio, girando devagar. Custa muito a ser devorada pela fúria do rio.
- Está tudo bem? - pergunta Gabriel.
- E por que não estaria? - berra Candia.
Lá em cima, na entrada da ponte, Gabriel vê Hernando sorrindo, cercado por seus homens de confiança. Mesmo ao longe, mesmo com a sombra da barba, adivinha o desprezo odiento desse sorriso.
- Vamos em frente - resmunga de si para si.
Mas o incidente mudou o equilíbrio da ponte e, estranhamente, parece lhe ter dado vida. Ao balanço lateral, alia-se uma estranha ondulação, como se o tabuleiro da ponte tivesse sido colhido por uma onda. Quanto mais avançam, mais violento fica esse movimento. A cada subida da onda, a cada sacolejo, o cavalo hesita. Gabriel puxa a rédea, mas é vencido pelo enjôo. Num instante, o suor lhe cola no corpo a camisa e o gibão.
Então, tudo pára de repente. Eles estão suficientemente próximos da outra margem para que as cordas se estiquem. Os guardas indígenas lhes sorriem. Com o estômago embrulhado e o coração na boca, Gabriel aperta o passo e termina a travessia quase correndo. Sem se dar conta, berra como numa estocada. Os guardas param de sorrir e saem correndo, sumindo num grupo de construções cercadas por um muro.
O Grego o encontra na ampla plataforma situada na saída da ponte, e os dois se abraçam rindo muito, trocando palmadas nas costas.
Durante quase uma hora, os lhamas e os carregadores indígenas atravessam a ponte sem incidentes. A destreza dos carregadores da liteira do general inca é espantosa. Eles parecem literalmente deslizar ao longo das cordas, sem fazer caso do balanço. A própria liteira permanece estável e horizontal, e as cortinas quase não balançam.
Já a destreza dos cavaleiros e soldados de infantaria espanhóis é desigual. Eles se encorajam com gritos inúteis e seus gestos não têm o ritmo e a precisão dos índios. Alguns vomitam na própria ponte; a maioria chega pálida a outra margem.
Sebastian atravessa sem problema e vem se postar ao lado dos dois amigos, saudando-os com uma simples piscadela.
O sol logo está a pino. Uma leve brisa dispersa as últimas nuvens que obstruem o oeste do vale. Naquela claridade violenta, o verde dos arbustos ganha uma profundidade de esmeralda. Riscando o azul profundo do céu, já não é um condor, mas dois, três, dez que rondam num balé majestoso. Gabriel não consegue deixar de admirá-los, encantado de vê-los chegar cada vez mais perto. Identifica melhor os longos pescoços, os bicos enormes, curvos como uma adaga turca. Mas são as asas, sobretudo, que o impressionam. De um negro absoluto, refletindo o sol como placas de aço adamascadas e imensas, parecem eternamente imóveis, vibrando apenas com as correntes de ar. Pelo que Gabriel está vendo, a envergadura dos maiores condores ultrapassa com folga o corpo de um cavalo!
Insensivelmente, as aves vão fazendo voltas mais amplas. Inclinando-se nas curvas mais secas, vão mais longe rio acima. Voltam, voando tão baixo que, de repente, apesar do barulho do rio, ouve-se um farfalhar vibrando no ar.
Os últimos carregadores a atravessar a ponte estão na metade do caminho quando isso acontece.
Dois a dois, tendo pousada no ombro uma comprida vara de bambu de onde pendem carcaças de lhamas jovens com que os espanhóis gostam de se banquetear, dez índios avançam com prudência. Já avançaram bastante e pegaram o ritmo da ondulação da ponte, a não ser uma dupla de retardatários que parece ter dificuldade em manter o equilíbrio.
De repente, os primeiros carregadores interrompem a marcha, olhando para o céu com uma expressão aflita. Só então Gabriel compreende. Um dos condores está voando tão baixo, tão perto das cabeças dos últimos carregadores que parece que vai bater neles. Espantados, os dois índios erguem o braço para se proteger. A carcaça do lhama cai, girando sobre si mesma, imediatamente seguida por um segundo condor, antes de se precipitar nas corredeiras.
Descrevendo uma curva graciosa, a imensa ave de rapina imediatamente ganha altura, soberba e insolente, para tornar a mergulhar em cima da ponte. parece furiosa por ter deixado escapar a presa. Suas congêneres entram por sua vez no balé. Uma após a outra, asas a frente, o pescoço enfiado no colar imaculado, bicam os carregadores, agora deitados na ponte e uivando de medo.
Gabriel consegue finalmente entendê-los:
- Kuntur! Kuntur!
Sob o olhar estupefato de todos os que estão na margem, dois índios brandem as carcaças de lhamas por cima das cordas da ponte.
Então o primeiro condor, majestoso, vem até eles, tão lentamente que parece que vai pousar. Abre as garras compridas como uma mão humana, agarra a presa e a leva para o céu.
Gabriel, ofegante, ouve o gemido que sai da boca dos índios enquanto as aves desaparecem:
- Kuntur! Kuntur! ..
- Meu Deus, o que deu neles? - pergunta Pedro o Grego, os olhos ainda arregalados.
- O condor é um animal sagrado para eles - explica Gabriel -, os incas vêem nele um mensageiro do Deus Sol deles e...
Mas não tem tempo de dizer mais nada. Um rugido de fúria faz com que ele se vire.
Hernando, na entrada da ponte, insulta os carregadores que chegam correndo.
- Bando de imbecis! Vocês têm medo das aves! Quem mandou jogarem esses lhamas?
Os carregadores, o medo ainda estampado nos olhos, param a alguns passos do irmão do Governador. Hernando agarra bruscamente Felipillo pelo ombro, o tradutor que os segue desde o desembarque de Tumbez.
- Diga a esses macacos que não quero que se desperdice comida! - ordena.
Felipillo resmunga alguma coisa. A cabeça baixa, o mais velho dos índios responde de modo quase inaudível:
- Eles dizem que é preciso alimentar o condor quando ele tem fome, senão o Deus Sol fica furioso!
- Selvagens do inferno! - berra Hernando. - Alimentar as aves e o que mais? Eu não quero saber da fúria do sol! É a minha que vocês vão conhecer...
Em três passos, Hernando passa de novo embaixo dos pilares, agarra o velho carregador e, com embalo, levanta-o e balança-o por cima das cordas da ponte com um grito de lenhador.
Sem acreditar em seus olhos, Gabriel vê o espanto nos rostos, a grande mão aberta do carregador caindo no vazio, sua boca aberta para deixar sair um grito que não vem. Depois o homem não é mais que um fantoche gesticulando. Bate na quina de uma pedra que o projeta como uma massa mole no rio. Some nas águas como se nunca tivesse existido.
No silêncio, Hernando vira-se para os espanhóis e sorri.
- Aí está um que não sabe voar, parece - diz ele com uma alegria sinistra.
Os índios ficam perturbados, sem ousar sequer olhar para a torrente. Sebastian não conseguiu conter um soluço de surpresa e seu eterno sorriso virou uma careta; o escravo, o rosto cinza, treme, impotente. Gabriel, invadido pela raiva, aproxima-se de Hernando como se tivesse que deslocar um corpo de chumbo. Planta-se diante do irmão do Governador, tão perto que sente seu bafo na cara.
- Dom Hernando, o senhor é um merda e fede!
Hernando não responde. Seus olhos se apertam até virarem fendas através das quais brilha o ódio. Profundo, infinito. Em voz baixa, ele diz afinal:
- Não ouvi direito o que você disse, seu bosta filho da mãe.
- A sua presença empesteia o ar, dom Hernando. O senhor não é una homem, nem um cristão. O senhor envergonha seu nome. Seu sangue é lama e seu cérebro está podre há muito tempo!
- Por Cristo!
A espada de Hernando sai da bainha. Gabriel só tem tempo de abaixar os ombros para evitar a lâmina que quer atingir seu pescoço.
- Ahh!
Aos berros, Hernando fustiga o ar e se dobra, mas outra vez Gabriel foi mais vivo, esquivando-se com um pulo, os braços abertos, com um movimento de dança.
- No dia em que o senhor morrer, dom Hernando - diz ainda Gabriel, a voz menos trêmula, quase divertida -, nem os bichos que comem carniça vão querê-lo!
- Venha lutar! - grita Hernando tirando o morrião para ficar mais à vontade. - Pegue a espada, seu idiota filho da mãe!
Em volta deles, todos recuaram. A lâmina ágil de Gabriel range e refulge quando ele a saca com desenvoltura. Os ferros se chocam tinindo. Por um instante, a cena parece transcorrer em câmera lenta, como se entre eles tivesse se formado um bloco invisível, intransponível.
Depois Hernando afasta as pernas. Sua lâmina desliza sobre a de Gabriel, que pára, joelho e cintura flexionados, erguendo a espada acima do ombro. Os ferros se chocam com força. Gabriel repele Hernando e se desvencilha girando, um sorriso nos lábios. O irmão do Governador está pesado, esbaforido de raiva, embrutecido pela violência. Fustiga o vazio com a lâmina como um cão abana a cauda. Gabriel se contenta agora em se preparar aos poucos. Vê a fúria louca nos olhos de Hernando. Então, aproxima-se de um salto, o tronco de perfil. Sua lâmina desliza sobre a espada de Hernando, envolvendo-a agilmente. Gabriel põe todo o peso do corpo nas armas e, com um movimento ágil, abre o braço para a direita.
Com um tinido de sino, a espada de Hernando voa aos pés de Candia, que não consegue conter o riso.
Espetando o gibão de Hernando com a ponta da espada, Gabriel o empurra, obriga-o a recuar. A boca deformada, os olhos de Hernando transmitem uma expressão que Gabriel nunca viu. Está com medo, pensa com prazer.
- O senhor ignora que o sofrimento tem duas faces, dom Hernando - sussurra. - O medo nos olhos dos outros o excita, mas o que diz do medo que agora está lhe torcendo as entranhas? Mais um esforço e seus calções receberão um peso extra...
Sem parar de falar, Gabriel força Hernando a recuar até a beira do rio, exatamente onde ele jogou o desventurado carregador.
- Pode ficar com medo, não vou matá-lo. Mas tenha certeza de que o Governador dom Francisco terá que julgar seus delitos. O senhor está levando muito ouro para Cajamarca, e um grande general do senhor desta terra. Isso não vai desculpá-lo por tudo.
Pode me ameaçar, pela Virgem Santíssima! Vamos ver quem vai sofrer no final.
Hernando brincou, mas todos sentem que não está achando graça. A humilhação que acaba de sofrer é demasiado flagrante.
- Paz, senhores, a lição está dada! - corta Candia, o Grego, tocando o braço de Gabriel. - Deus é testemunha: dois conquistadores não podem lutar um contra o outro sem dignidade nem perigo, pelo bem da Conquista! Dom Hernando, aqui está sua espada. Vamos seguir em frente, por favor.
Hernando e Gabriel se olham de alto a baixo, Gabriel baixa a espada. Mas é Hernando quem abaixa os olhos.
Atrás deles, a cortina que protege a liteira do general Chalkuchimac se fecha sem ruído.
Na hora em que a coluna se põe em marcha, Sebastian pega Gabriel pelo braço. Dá alguns passos com ele, em silêncio. Depois se inclina em seu ouvido e diz:
- Obrigado.
Cajamarca, 14 de abril de 1533, ao amanhecer
"Amo você", murmura Anamaya para o dia que vai raiando pálido sobre Cajamarca. A noite ainda está escura, mas a fumaça que paira sobre os telhados de palha se tinge de azul.
Anamaya está sozinha.
De mansinho, deixou o palácio onde Atahualpa está preso. Afastou-se, rápida como uma sombra, pelas ruas estreitas que correm ao longo da ladeira que domina a praça. Logo chegou ao rio e ao caminho de acesso à estrada real.
- Amo você - repete. - Te quero!
As palavras lhe vêm com tanta facilidade na língua dos espanhóis que todos se espantam, conquistadores ou índios! Junto aos seus, isso até despertou uma desconfiança antiga. Mais uma vez, ficaram falando dela por trás. Pouco importa!
Ela desliza correndo ao longo das casas, confundindo-se com a escuridão dos muros para fugir da vista dos guardas que vigiam o palácio de Atahualpa e o quarto do resgate onde os tesouros vieram se amontoar aos milhares.
Só a visão dessas cargas preciosas parece embriagar os que ganharam a batalha de Cajamarca e ousaram botar a mão no único Senhor Atahualpa. Como se o ouro pudesse lhes conferir poderes mágicos que eles não possuem!
Em Anamaya, essa pilhagem provoca apenas uma tristeza profunda e silenciosa.
Mas os homens são insaciáveis. Para encher ainda mais o salão do resgate, dom Hernando Pizarro foi pilhar o grande templo de Pachacamac, na longínqua praia do mar do Sul. Como demorasse a voltar, o Governador dom Francisco enviou Gabriel e alguns homens de confiança atrás de seu irmão.
Gabriel... Anamaya deixa o nome lhe vir ao coração, sonoridade tão estranha e tão doce... Evoca o rosto do estrangeiro de cabelos de sol, sua pele tão branca, o sinal do puma escondido em seu ombro, marcando a ligação deles, essa ligação secreta que ela lhe revelará um dia.
Gabriel não gosta de ouro. Ela o viu mais de uma vez permanecer indiferente e até se irritar com a alegria louca dos companheiros com o mero contato com algumas folhas de ouro.
Gabriel não aceita que os índios sejam espancados a toa, nem que sejam acorrentados e mortos.
Gabriel salvou o único Senhor da espada.
Anamaya se lembra das palavras de Atahualpa, quando possuíam ainda todos os poderes do único Senhor. Na véspera da grande batalha, vendo os estrangeiros pela primeira vez, ele dissera:
- Gosto dos cavalos deles, mas, a eles, eu não entendo.
Ela poderia dizer como ele: "Gosto de um deles, o que atravessou o oceano por mim. Mas, a eles, eu não entendo."
Ela ultrapassou os muros altos de Cajamarca e, ao subir as primeiras ladeiras da estrada real, diminui o passo. As casas de muros de adobe se espaçam. A luz da aurora desliza agora pelas encostas das colinas, despertando os campos de milho e de quinoa agitados pela brisa matinal. Às vezes, a sombra de um camponês, já vergada sob um fardo, se destaca na claridade do dia que nasce. O coração de Anamaya se enche de uma ternura inquieta. Quer correr para o homem e ajudá-lo a suportar seu fardo. Pensa na dor que oprime seu povo.
Seu povo! Pois agora, aquela que foi por tanto tempo a estranhíssima criança de olhos azuis, a menina alta e magra demais, sabe o quanto todos os que vivem no Reino do Inca formam o "seu povo". Não falam todos a mesma língua, não ostentam os mesmos trajes e as vezes só aparentemente acreditam nos mesmos deuses. Muitas vezes já guerrearam entre si e o espírito da guerra permanece neles. No entanto, no fundo do coração, Anamaya desejaria que todos fossem irmãos de sangue.
Quando chega à garganta, já é dia. A luz do nascente toca as encostas das colinas que cercam a cidade. Reflete-se nos charcos, avança na planície imensa, até as colinas onde se esconde o caminho de Cuzco.
Como todas as vezes que volta ali, Anamaya não pode evitar o fluxo de recordações. Aqueles dias, não tão distantes, em que a multidão de tendas brancas do exército invencível de Atahualpa cobria a planície toda. Atahualpa, o único Senhor que soubera vencer a crueldade de seu irmão Huascar, o Louco de Cuzco.
Lá embaixo, no lado oposto a encosta onde ela está, fumegam as águas das termas onde ele repousava e agradecia com um longo jejum a seu Pai Inti. ofegante, o coração apertado, Anamaya se lembra, como se estivessem para sempre gravados em sua carne, desses dias intermináveis em que se anunciava a chegada dos estrangeiros. Em que todos zombavam e em que o medo crescia dentro dela. E depois, desse crepúsculo em que ele estava presente, de repente, ele, Gabriel. Tão lindo, tão atraente que não dava para entender!
No resto, ela não quer mais pensar. O Único Senhor Atahualpa é apenas uma sombra do que foi, prisioneiro em seu próprio palácio, enquanto seus templos são destruídos.
Assim se realiza a vontade do Sol.
Assim se realizam as terríveis palavras do falecido Inca Huayna Capac que viera ao seu encontro em forma de criança: " O que é velho se quebra, o que é grande demais se quebra, o que é forte demais não tem mais força... É isso o grande pachacuti... Alguns morrem e outros crescem. Não tema nada por você, Anamaya... Você é quem deve ser. Não tenha medo, o puma há de acompanhá-la no tempo que virá!"
Assim, do Outro Mundo, o Inca anterior lhe anunciara ao mesmo tempo o fim de Atahualpa e a vinda de Gabriel!
Na verdade, desde que sua boca encostou na de Gabriel, desde que beijou seu ombro estranhamente marcado, há muitas coisas que Anamaya não consegue entender. Tantas sensações, tantas emoções desconhecidas vivem agora dentro dela! E é tudo tão violento que se torna cruel como se as garras de um puma de verdade lhe lacerassem o coração.
Há o significado dessas palavras: "amo você", que Gabriel tanto teimou em lhe ensinar, chegando até a se enfurecer porque ela o escutava sorrindo, recusando-se a repeti-las!
Depois, há esse mistério: como um dos estrangeiros, um de seus inimigos, pode ser o puma que vai acompanhá-la no futuro?
Anamaya vai de mansinho até a extremidade do platô que se estende no topo da garganta. Equilibrada na encosta, enrola-se em sua capa e se deita na relva ainda molhada de sereno. Os olhos voltados para os altos picos do leste, contempla os primeiros raios do sol.
Anamaya fecha os olhos. Deixa a luz lhe acariciar as pálpebras e apagar as lágrimas que ela deixou se formarem ali. E tão logo o sol lhe aquece o rosto, contra o vermelho das pálpebras, é Gabriel que lhe aparece. Ele, o estrangeiro tão lindo, de olhos de brasa, de riso de criança e gestos suaves.
Então as palavras se formam ainda em seus lábios. Ela as sussurra como se pudessem voar pelos ares, como beija-flores: "Amo você."
Ao se aproximar de Cajamarca, num ímpeto que não consegue conter, Gabriel esporeia o cavalo. A trote longo, sobe à frente da coluna. O sangue fervilha em seu coração. Desde o enfrentamento com Hernando, não dorme há três noites. Há três noites, contempla as estrelas, compartilhando a vigília dos vigias, no acampamento ou nas escalas dos tambos. Mas hoje, finalmente terminou.
Vai encontrá-la.
Daqui a pouco, estará diante de seus olhos azuis, poderá tocar sua boca tão doce, tão macia, que um beijo seu o derrete, alheio a todas as realidades. Mais duas léguas e ele poderá ver seu vulto alto e magro, único entre as índias. E saber disso já lhe dá um aperto nas entranhas.
Espera também que nada lhe tenha acontecido durante sua ausência. Quando deixou Cajamarca, anunciava-se a chegada do mariscal Almagro, o velho cúmplice de dom Francisco, com mais cavalos e mais homens...
Ele treme de alegria e, no entanto, se ousasse, daria um grito enorme para espantar o medo.
Passa as padiolas levadas pelos índios com os objetos mais pesados, grande bacia de ouro, estátua de ouro, trono de ouro, placas murais dos templos de ouro! Ouro, ouro! Há ouro por toda parte, nos cestos de vime, em sacos de couro, em albardas de tapeçaria! Os carregadores estão dobrados em dois sob o peso dos fardos, os lhamas somem embaixo dos tesouros. A coluna vai mais devagar, como se a tropa inteira, desde Jauja, estivesse mais pesada com todo o ouro e a prata do Peru...
E dizer que aquilo é apenas uma amostra: corre o boato que esses tesouros não são nada ao lado dos que logo chegarão de Cuzco, aonde o Governador enviou três homens, entre eles o execrável Pedro Martin de Moguer, para missão de reconhecimento.
A cada instante, os cavaleiros espanhóis estão em alerta. Nervosos, irri,4a, apesar da docilidade dos índios, procuram o menor sinal de agitação. Gabriel não tem muitos amigos entre eles. São todos homens de Hernando.
Sua intimidade pessoal com o irmão do Governador já era conhecida há muito tempo... Aquele duelo os imobilizou num ódio glacial. Mais por prudência que por sabedoria, o irmão da pluma vermelha faz tudo para evitar Gabriel.
Quando este alcança as liteiras dos dois grandes sacerdotes do templo de pochacamac que Hernando achou por bem acorrentar, é chamado por uma
voz familiar.
- Estamos com pressa, Sua Graça?
Gabriel puxa bruscamente as rédeas. Docilmente, com uma manobra graciosa, seu cavalo emparelha com Sebastian. O negro, seu raro amigo e confidente desde a primeira hora daquela epopéia, segue a pé. O preço dos cavalos ficou inacessível, mas, sobretudo, dom Hernando o proibiu de pegar o animal de um doente que acabou morrendo dois dias antes de deixarem Pachacamac.
As palavras do insulto ainda vibram nos ouvidos dos dois amigos: "Ei, crioulo! Quem você acha que é? Esqueceu que só os cavaleiros armados com espada podem ter um cavalo? Chutar o rabo dos índios não lhe dá o direito de se julgar um homem!"
Inclinando-se no pescoço da montaria, Gabriel aperta efusivamente a mão que Sebastian lhe estende`. O gigante negro não tem cavalo, mas seu gibão de couro é novo em folha, macio como uma segunda pele. Seus calções foram feitos com todo tipo de tecido espanhol que chegou a Cajamarca. Estão cortados, ao que parece, na última moda de Castela: bufantes, com grandes abas verdes, vermelhas e amarelas, ou azul claras, de veludo e de cetim, e até com um pouco de renda no cordão que os segura dentro das botas. O que levou Gabriel, sempre tão sóbrio no trajar, a dizer que tinha a impressão de estar desfilando num cortejo de donzelas de Toledo que tivessem escondido as nádegas com seus corpetes!
- Aonde vai nesse trote acelerado? - pergunta Sebastian.
- Isso aqui está fedendo - resmunga Gabriel olhando em direção à Barda de Hernando. - Preciso respirar um pouco de ar puro.
O gigante negro sorri para ele, malicioso:
Ah... Pensei que sua impaciência tivesse uma natureza mais... elevada!
Gabriel esboça um sorriso.
- O que mais, na verdade, além da minha pressa em prestar contas de minha missão ao Governador?
- Não vejo mais nada, mesmo.
Sebastian balança a cabeça, calado e já sem brincar. O olhar de Gabriel pousa nos cumes que cercam Cajamarca. Há alguns meses, essa paisagem desconhecida só escondia ameaças. Agora, tornou-se familiar, quase amigável. E, naturalmente, contém a mais bela das promessas.
Bruscamente, Gabriel tira o pé do estribo e pula no chão com agilidade. Com uma das mãos, guia o cavalo, e com a outra, abraça Sebastian. Inclinasse para ele.
- Você tem razão - diz em voz baixa, os olhos brilhantes -, estou com pressa... E não tem nada a ver com o lixo desse Hernando... - Então?
Gabriel faz um gesto vago, abraçando as colinas.
- Ela diz que não pode casar comigo. É uma espécie de sacerdotisa da antiga religião deles... Não pode fazer isso, nem sequer pode se casar com um índio. Mas...
- Mas?
- Mas eu a amo. Nossa, Sebastian. Só de pensar nela, meu coração explode como uma bala de metralha! Eu a amo como se nunca tivesse sabido o que isso queria dizer.
Sebastian cai na gargalhada.
- Faça como eu, amigo. Ame muitas ao mesmo tempo. Uma aqui, outra ali, mas sempre uma para quere-lo. Uma cama macia aqui, uma cama de fogo ali... Assim você saberá o que amar quer dizer!
Uma expressão de desaprovação se mistura ao sorriso de Gabriel quando ele torna a montar a cavalo.
- Às vezes, companheiro, eu gostaria que você parasse um pouco de gozar...
Sebastian esboça um sorriso, mas seu olhar está negro como sua pele. - Eu também gostaria, as vezes. E depois...
- E depois o quê?
A coluna diminuiu o passo, alongou-se, depois parou, enquanto a estrada real encolhe nas proximidades da última garganta acima de Cajamarca.
- E depois o quê? - insiste Gabriel.
Sebastian balança a cabeça. Com um gesto, convida Gabriel a seguir a galope:
- Outra hora lhe digo, quando você estiver menos impaciente.
O martelar que faz Anamaya acordar assustada não é o de seu coração.
passo dos homens e dos cavalos que ela ouve subir da terra. Ela se levanta vai se esconder numa sebe de acácias e agaves, não muito longe da via real.
Uma tropa de lhamas que pastava pacatamente nos campos vizinhos age ao lado dela, fugindo nervosamente aos pulos para o outro lado da garganta. O tinir tão característico das armas de ferro dos espanhóis ressoa no ar cálido. Vai aumentando lentamente, entremeado de risos, gritos e do barulho dos cascos nas lajes de pedra.
Ela os vê saindo de um bosque na base da encosta. As lanças e as plumas coloridas dos cavaleiros primeiro, depois os rostos escuros e barbados embaixo dos morriões, os carregadores indígenas, os espanhóis que seguem a pé, pouco a pouco, aparece toda a longa coluna comandada pelo irmão do Governador.
Anamaya fica ofegante. Procura-o com os olhos.
Porém, por mais que perscrute as caras, as roupas e os chapéus dos cavaleiros, Gabriel não parece estar entre esses homens que se aproximam da garganta. Ela não reconhece seu gibão preto, nem seu cavalo baio com uma comprida mancha branca na garupa. Não vê o lenço azul que ele usa sempre no pescoço, para "levar a cor de seus olhos com ele", como diz, e que em geral lhe permite vê-lo de longe.
Os dedos de Anamaya tremem sem que ela perceba. Seu coração bate acelerado. Ela tem vergonha de seu medo, mas puxa um galho baixo para ter uma visão melhor, mesmo correndo o risco de ser vista.
Mas finalmente surge a mancha azul do lenço, fugaz, atrás da liteira. Anamaya entrevê o cavalo baio. Um sorriso involuntário brota em seu rosto.
E se fixa em seus lábios.
Seu olhar não vai até Gabriel. Permanece fixo nas cortinas que fecham a liga. Ela reconhece a padronagem e as cores, as linhas enviesadas formadas de retângulos e triângulos vermelho sangue, dourados e azul celestes.
É a liteira do general Chalkuchimac, o mais poderoso dos guerreiros de Atahualpa.
Então os estrangeiros o convenceram a vir até a prisão do único Senhor! Por que cilada, que traição?... Agora, todos os Poderosos Senhores do clã de Atahualpa serão prisioneiros deles.
Anamaya vê Gabriel passando diante da liteira, parecendo protege-la. Seu coração já não bate tanto com a felicidade de revê-lo. Sua alegria está semeada de sombras. Ela se censura por essa tristeza.
Sabe muito bem como vão as coisas. Sabe, mais do que ninguém, o que acontecerá ao único Senhor.
Um grito a faz se virar. Vindo do outro lado da garganta, um pequeno grupo de cavaleiros pena na ladeira demasiado puxada. O primeiro dos espanhóis, o Governador Francisco Pizarro vai à frente, todo de preto, a barba grisalha pousada num estranho tecido branco cheio de furos. Mais atrás, penando para acompanhá-lo, fraco e franzino, e em cima de uma égua alta demais para ele, vem Almagro. Tem uma cara assustadora. Uma tira de pano verde lhe cobre um olho. Sua pele é rachada, sulcada, percorrida por placas avermelhadas que os pêlos esparsos de sua barba não conseguem esconder. Sua boca é bruta, com poucos dentes. No entanto, quando ele fala, sua voz às vezes é doce, quase queixosa.
De novo, um grito ressoa no ar, e mais outros. Vibram risadas, lanças erguem-se e se agitam. Quando os cavaleiros da longa coluna estão a poucos passos dele, o Governador dom Francisco Pizarro apeia do cavalo com agilidade e encaminha-se para o irmão de braços abertos.
Antes mesmo que eles se abraçassem, Anarnaya já chegou ao capim alto e corre para a cidade pela picada escarpada dos pastores.
A última rampa da garganta é puxada para os cavalos. Segurando a rédea curta na altura do peito, Gabriel guia com prudência sua montaria. As lajes são escorregadias e os carregadores vacilam. Quando ele se aproxima, as conversas são interrompidas: entre os índios, é sabido que ele fala um pouco da língua deles.
Ouvem-se chamados e gritos à frente da coluna. Gabriel apressa um pouco seu cavalo e se afasta da liteira do general inca. Lá em cima, no terraço formado pela garganta, ele vê Hernando Pizarro encontrando-se com seu irmão Francisco.
Gabriel não consegue conter um sorriso irônico. Dom Francisco vestiu suas melhores roupas para receber o irmão. Um cabeção de renda de Cádiz, e ter custado seu peso em ouro para lhe chegar ao pescoço, realça sua bem aparada. Porém, por mais que o Governador tenha se esforçado, é limão Hernando, mais alto, mais confiante na força de seu corpo e na reza de sua origem, que parece um verdadeiro príncipe. Diante de toda a tropa, os dois irmãos se estreitam num abraço efusivo. afastados, os dois irmãos mais moços do Governador, o belo Gonzalo seus cachos escuros e o pequeno Juan, com seu sinal no pescoço, conp plarn os dois, chapéu na mão e um sorriso largo na boca.
Gabriel sabe o que valem essas expressões. O que detém seu olhar é um arpo franzino, um rosto enrugado e de uma feiúra de espantar criança. Embora só o tenha visto poucas vezes, anos atrás e antes da partida para o Peru, Gabriel o reconhece imediatamente.
Com que então, durante sua ausência, dom Diego de Almagro chegou do Panamá! Aquele que há dez anos pagou do próprio bolso para sustentar a mais louca empreitada de dom Francisco, aquele que sonhou vir a ser adelanipddo ao lado de seu velho companheiro agora Governador, aquele que o rei Carlos nomeou apenas lugar-tenente da praça de Tumbez com um salário miserável e só um título de fidalgo, este vem reclamar seus direitos!
Os carregadores retomam sua lenta marcha adiante, prudentes nos degraus largos, sempre escorregadios, da descida que mergulha nas primeiras ruas da cidade. O intérprete Felipillo, lábios finos cerrados, o olhar inconstante e fugidio, não deixa a liteira mais rica, a mais decorada - a de Chalkuchimac.
Quando o cortejo chega perto da praça onde o Governador, seus irmãos e dom Diego Almagro já entraram, as cortinas da liteira se entreabrem. Gabriel vê surgir uma forte mão, grande o suficiente para triturar o pescoço de um lhama.
Felipillo acorre, inclina-se com respeito e murmura algumas palavras que Gabriel não consegue captar.
Ao se levantar, Felipillo grita uma ordem. Os carregadores da liteira param, olhos baixos. A cortina que fecha a liteira é levantada e totalmente aberta.
O general Chalkuchimac enverga um magnífico unku de algodão e seda.
tecido da túnica é salpicado de lantejoulas de ouro. Na cintura, finíssimos Pus desenham uma faixa púrpura. Seus cabelos são grossos e compridos até os ombros, escondendo um pouco seus brincos. Estes são de ouro, mas Parecem menores que os dos outros nobres que Gabriel pôde ver. No entanto a cara de Chalkuchimac impõe respeito. É difícil lhe atribuir uma idade, mas ele tem a força e a impassibilidade de uma estátua, como se fosse talhado de um bloco na rocha sagrada das montanhas.
Ele se debruça, lança um olhar rápido para Gabriel. Algumas palavras saem de seus lábios:
- Tenho que ir ver meu senhor.
Palavras que soam como reclamação. Gabriel não tem certeza se entendeu alguma coisa. No entanto, Felipillo corre para junto da liteira. O general inca ergue a mão, repele-o sem sequer tocá-lo.
Ele se afasta agilmente de sua liteira, encaminha-se para um dos carregadores e lhe arranca o fardo das mãos. O nativo fica trêmulo, as mãos vazias, olhando para o chão.
Chalkuchimac põe nas costas o enorme cesto, e é assim, vergado em dois sob o peso de seu fardo, que entra na cidade.
- Agora - afirma lentamente Atahualpa - eles vão me libertar.
O Único Senhor está sentado em seu tripé real, uma capa de lã fina nos ombros. Sua voz é surda. Como se apenas repelisse o silêncio.
O aposento é grande e sempre escuro. Nem luz nem ar penetram ali, e a fumaça dos braseiros encardiu as pedras, o alto das tapeçarias e as vigas de madeira. Vários nichos estão vazios ou contêm apenas magníficas urnas rituais de madeira entalhada para a cerveja sagrada. A maioria dos potes de ouro, as taças de prata, as estatuetas de divindades, tudo está há muito tempo amontoado no quarto do resgate.
Assim é que a cada visita de Anamaya, o único Senhor manda saírem as criadas, as mulheres, as concubinas. A intimidade de um instante é tudo o que resta de sua antiga liberdade.
Pela abertura que dá para o pátio do palácio, o sol só chega ao limiar. Desenha um retângulo amarelo-claro no lajedo.
O vulto de Atahualpa sai penosamente do escuro. Anamaya não consegue deixar de estremecer ao pensar que aquele que foi o Inca, deslumbrante de sol, desliza agora lentamente para o mundo de baixo.
O llautu, a faixa real, continua em sua testa, com as plumas negras e brancas do curiguingue, o símbolo supremo do poder do único Senhor. Anamaya nota que ele já não tem mais brincos de ouro nas orelhas. O lobo esquerdo, aberto como um anel de carne morta, bate em seu ombro. Suas esposas lhe fizeram uma tira de fina alpaca que lhe prende os cabelos para esconder o lobo rasgado da outra orelha.
Anamaya evita olhar para esses sinais lamentáveis de um poder que se esbate. Dia a dia, parece que a alma de Atahualpa o vai deixando. As virgens ainda lhe tecem túnicas para cada novo dia. Oferecem-lhe o alimento em potes que ninguém mais utiliza. Os de sua casa, mulheres ou homens, os poucos poderosos que, como ele, estão prisioneiros nos palácios de Cajamarca, temem suas palavras como antes. Os estrangeiros se inclinam diante dele antes de falar e o Governador espanhol lhe manifesta o respeito devido a um senhor. No entanto, Anamaya não consegue deixar de ver em tudo isso uma encenação que se desgasta. Vê que o único Senhor está ficando encurvado, que seu rosto está ficando flácido, que o vermelho de seus olhos vai se escurecendo. Sua boca não está tão bonita nem tão autoritária. Sua imobilidade demasiado freqüente e pesada. Seu corpo todo parece estranhamente menor.
Nele desaparece o conquistador, o filho do grande Huayna Capac. Atahualpa ainda e o único Senhor que vive no palácio de Cajamarca, porém não é mais o poderoso Filho do Sol que venceu seu irmão louco de Cuzco. Não passa de um prisioneiro sem correntes sonhando com a libertação.
Ela queria lhe contar o que acaba de ver na estrada da garganta. Avisá-lo de que Chalkuchimac está lá, em sua liteira, como a primeira das jóias de ouro que os estrangeiros não param de trazer. Mas não ousa, e Atahualpa repete:
- Agora, já há ouro suficiente, eles vão me deixar ir embora.
- Não sei - responde Anamaya desviando o olhar. - O quê?
- Não sei - repete ela.
Atahualpa faz um gesto de irritação apontando para a sala do resgate. - Escolhi o maior aposento de meu palácio, tracei no muro uma linha
que marcaria a altura que o tesouro atingiria para o meu resgate. Essa altura foi atingida.
- Eu me lembro, único Senhor - aprova Anamaya com delicadeza.
Os estrangeiros riam, achavam que a loucura o tivesse dominado.
- Indiquei-lhes onde encontrar nossos objetos de ouro e prata. Disse eles poderiam pegar tudo, em todas as casas, menos nas que foram de meu pai.
- Sei disso, único Senhor.
Um sorriso clareia o olhar de Atahualpa.
- Não ignoro que estou falando com a esposa do Irmão Duplo de meu pai...
Anamaya marca uma pausa imperceptível e recomeça:
- Único Senhor, os que partiram para o Pachacamac estão de volta hoje.
- Como sabe?
Anamaya não responde. Não quer sublinhar sua fraqueza. - Eles estão chegando com muito ouro.
Um sorriso ilumina o rosto do Inca.
- Não é o que eu lhe dizia? Vou ficar livre.
- Único Senhor - diz ela com uma voz tão baixa que é quase inaudível. - O grande aposento estará repleto de ouro, com todos os nossos objetos sagrados, os mais antigos assim como aqueles que os joalheiros acabam de terminar. Mas os estrangeiros não sairão de seu reino. Vão querer ir até a Cidade Sagrada. Vão encher a grande sala e irão tomar o ouro de Cuzco. E mesmo que lhe tenham prometido pelo Deus e pelo Rei deles não tocar em nada que for de seu pai Huayna Capac, só de ver o ouro, esquecerão a promessa. Você sabe disso, único Senhor...
Atahualpa baixa os olhos.
Anamaya não quer mais se calar. Prossegue com doçura.
- Outros estrangeiros estão chegando em seu reino, único Senhor. Com cavalos, armas, e também querem ouro.
- Sim - murmura Atahualpa. - Não gosto daquele que é muito feio, que é caolho...
As palavras são confusas na boca de Atahualpa, como se fossem de uma criança hesitante.
- Almagro é o nome dele.
- Não gosto dele - repete o Inca. - Os olhos dele não mentem! Ele e os que vieram com ele tomam mulheres sem a minha permissão. Depois riem se lhes proíbo isso. Ele se diz amigo de Pizarro, mas, em seus olhos, vejo que isso não é verdade...
- Por que esses homens estão aqui, único Senhor, senão para tomar mais e mais ouro?
- O irmão de Pizarro há de me proteger - diz Atahualpa. - Ele é poderoso.
- Hernando? Perdoe-me, único Senhor, mas não confie nele. Ele é um impostor.
Atahualpa sacode a cabeça:
- Não! Ele é poderoso e os outros têm medo dele.
- Está dizendo isso porque ele tem um porte imponente e cuida do traje, ao contrário dos outros, que andam ma afiambrados, sujos como esses
animais que importaram e que infestam nossas ruas. A pluma em cima de seu capacete é vermelha, mas sua alma é negra.
Uma esperança envergonhada invadiu o semblante de Atahualpa. - Ele prometeu que me ajudaria. Se não fizer isso...
Sua voz fica um tom mais baixa. Ele faz sinal para que Anamaya se aproxime. A luz volta a seus olhos, que brilham com uma excitação ingênua. - Se ele não fizer isso, os milhares de combatentes reunidos por meus fiéis generais virão me libertar. Chalkuchimac está em Jauja, e está pronto.
Vai avisar os outros...
Anamaya abafa um grito.
- Ó, único Senhor!
Mas, enquanto ela hesita, ouvem-se gritos no pátio. Um servo vem se curvar à entrada do aposento. Anamaya sabe o que ele vai dizer e fica gelada. - Único Senhor... O general Chalkuchimac está aqui. Pergunta se quer vê-lo.
A princípio, Atahualpa não se mexe. Depois, o sentido das palavras chega a seu coração e as cores fogem de seu rosto.
- Estou morto - sussurra.
- Ele deve entrar? - torna a perguntar o servo que não escutou. - Estou morto - repete Atahualpa.
Na entrada do palácio, Chalkuchimac não se livrou do fardo que lhe pesa nas costas. Gabriel olha para ele, dobrado em dois, os olhos mergulha dos no chão, como um suplicante carregando sua cruz.
Almagro resmunga:
- Vamos acabar com o raio dessa comédia! A única coisa que esse macaco deve fazer é nos dizer onde escondeu o resto do ouro.
Dom Francisco ergue a mão calçada com uma luva preta. - Paciência, Diego. Paciência...
Os guerreiros incas que protegem a entrada do pátio recuaram com respeito diante de Chalkuchimac. No centro do espaço, em um chafariz baixo, a jorra da boca e da cauda de uma serpente de pedra. A toda volta, vêem se as flores vermelho vivas das cantutas, a flor dos incas. Há uma serva ali exclusivamente para recolher as pétalas murchas.
Enquanto Chalkuchimac, de joelhos, chegou ao meio do pátio, Atahualpa sai de seu aposento. Gabriel mal o vê. Atrás do Inca, na penumbra que lhe esconde parcialmente os traços, ele vê Anamaya.
Quando ela finalmente ergue os olhos para ele, ele custa a se conter para não ir até ela.
Atahualpa senta-se lentamente num banco de madeira vermelha, com cerca de um palmo de altura, onde ele costuma ficar. Aproximam-se mulheres, sem tirar os olhos dele, prontas para servi-lo.
Chalkuchimac deposita finalmente seu fardo nas mãos do carregador que o seguiu desde a entrada da cidade. Descalça-se e ergue as mãos espalmadas para o céu, para o sol escondido.
Lágrimas lhe escorrem pelo rosto rústico.
De seus lábios escapam algumas palavras, das quais Gabriel capta apenas as que expressam gratidão a Inti e balbucios de amor ao Inca.
Em seguida, Chalkuchimac aproxima-se de seu senhor. Sem parar de chorar, beija-lhe o rosto, as mãos e os pés.
Atahualpa permanece imóvel como se um fantasma o tocasse. Seus olhos se perdem ao longe. Gabriel já viu o Inca muitas vezes, mas não consegue compreender suas reações nem as expressões de seu rosto.
- Seja bem-vindo, Chalkuchimac - diz afinal o Inca com uma voz monocórdia e desprovida de calor.
Chalkuchimac se levanta e torna a virar as mãos espalmadas para o céu. - Se eu estivesse lá - diz com uma voz vibrante -, nada teria acontecido. Os estrangeiros não teriam posto a mão em você.
Os olhos de Atahualpa pousam finalmente nele. O olhar de Gabriel procura o de Anamaya. Os olhos azuis da jovem mergulham nos dele na hora em que dom
Francisco toca em seu ombro e pergunta baixinho, um tanto impressionado: - O que estão dizendo?
- Palavras de boas-vindas.
- Jeito estranho de se desejar boas-vindas - resmunga o Governador. Chalkuchimac se endireita. Seu rosto recuperou a nobreza e a impassibilidade.
- Aguardei suas ordens, único Senhor - diz em voz baixa. - A cada dia, cada vez que nosso Pai Sol subia no céu, eu queria vir socorre-lo. Mas você sabe, eu não podia fazer isso sem a sua vontade. E o chaski me trazendo a sua ordem nunca chegou. Ó meu único Senhor, por que não me deu ordem de destruir os Estrangeiros?
Atahualpa não responde.
O general inca aguarda, calado, uma resposta, uma palavra calorosa. Não vem nada. Não virá nunca.
Dom Francisco pergunta ainda:
- E agora, o que diz ele?
Gabriel sente pesar sobre ele o azul imenso e magnífico dos olhos de Anamaya falando-lhe, e de repente ele compreende. O que torna Atahualpa tão imóvel, o que o congela naquele silêncio terrível é a raiva.
- O general lamenta não ter servido melhor ao Inca - murmura Gabriel. - Lamenta que ele esteja preso...
Chalkuchimac dá dois passos para trás.
- Aguardo suas ordens, único Senhor - repete. - Estávamos sozinhos. Seus generais, Quizquiz com o capitão Guaypar e os outros também estão sós. Se não der a ordem, eles não virão libertá-lo.
Então ele vira as costas àquele que foi seu senhor e sai do pátio com um passo lento, encurvado, como se carregasse nos ombros um fardo mais pesado do que o que carregava ao entrar.
No escuro, Gabriel anda com prudência entre os sacos, os cestos e os jarros.
A passagem leva ao recinto do palácio propriamente dito, no fundo de um pequeno aposento onde se conservam as conchas cor-de-rosa, os mullus, tão preciosas para os rituais dos incas.
Anamaya fez com que ele a descobrisse pouco antes da Grande Batalha.
teve que prometer guardar segredo sobre ela. Ele se lembra de ter brincado:
- Você queria que eu trouxesse o Governador por aqui?
Então, as palavras entre eles eram incertas, os gestos ainda substituíam as frases e, juntamente com os olhares, eram só o que sabia manifestar e parar o amor. Eles continuavam sem liberdade para escapar até a cabana perdas nascentes de água quente, a da primeira noite. A passagem tornou-se o de encontro do casal.
Atravessando o aposento, Gabriel mergulha a mão nos grandes jarros de conchas e extrai dali uma estranha e agradável sensação marinha. A sala é cercada desses nichos em forma de trapézio com que ele já está familiarizado e que, no início da ocupação espanhola, foram despojados dos objetos de ouro que continham e tapados com cortinas de algodão. Ele levanta uma dessas cortinas, o coração palpitando.
O túnel está escavado numa pequena subida. Uma fina camada de terra batida cobre a rocha. Antigamente, segundo lhe explicou Anamaya, atravessava toda a colina, passando pelo acllahuasi e atingindo a fortaleza em forma de caracol - a que os conquistadores começaram a demolir desde que chegaram.
A passagem é extraordinariamente seca e limpa, e, de quando em quando, em recantos, há cofres onde deviam estar armazenadas algumas reservas de alimentos e roupas. Um rugido sobe das entranhas da terra; são os rios subterrâneos que atravessam a montanha.
Sua vista ainda não se acostumou ao escuro, e ele grita de surpresa quando a mão se fecha sobre a sua com uma leveza de borboleta. - Anamaya!
A mão da jovem voa até seu rosto e vem fechar seus lábios cheios, e afagar suas faces barbadas, suas pálpebras e sua testa. Ele tenta beijá-la, apertá-la, mas ela o envolve e foge dele ao mesmo tempo. Eles riem baixinho.
Na hora em que ele pára de tentar agarrá-la, ela pára de fugir. Ele ouve sua respiração perto da sua, vê seu rosto oferecido. Os dois sorriem um para o outro sem se ver, no escuro protetor.
- Você está aqui - sussurra ela afinal.
Em sua voz, ele percebe uma timidez e um pudor tão profundos que o perturbam. Essas palavras tão singelas fizeram um caminho longuíssimo para chegar até seus lábios.
Ela está tão perto que ele sente seu perfume.
Quando a atrai para si, ela se deixa ir, tímida e pudica como sua confissão. Os braços de Gabriel se fecham em volta dela, ele sente no peito seus seios rijos, nas pernas, as suas pernas. Os dois de repente ficam agarrados, tomados pela vertigem do desejo, que lhes dói na barriga e nos rins.
Toda a força e a violência dentro deles, toda a espera acumulada há dias refluem de repente, num estremecimento que eles acalmam com carícias.
Gabriel quer ser apenas ternura. Sua mão mergulha nos cabelos fartos de Anamaya. Os dois ficam um instante imóveis, o coração batendo tão forte que é como se os corpos estivessem batendo um no outro.
Ela é quem pousa os lábios nos dele, é quem o toca, o descobre, o empurra de mansinho para fazê-lo dobrar os joelhos e, lentamente, deitar-se no chão.
Gabriel sente a pedra fria nas costas.
Sente a boca de Anamaya indo e vindo, fazendo uma onda de calor percorrer seu rosto, seu pescoço e, logo, seu peito.
Então suas mãos se deixam ir e vão pousar com força nas coxas finas e musculosas, nuas sob a túnica de fina lã. Imóveis, deixam sua marca, e ele parece ouvir, misturado ao ruído da água, um murmúrio, um gemido novo. Anamaya murmura em seu ouvido palavras novas que ele não compreende, palavras vivas e felizes.
"Ela é leve", pensa ele enquanto seus corpos nus ardem e se fundem um no outro.
Depois, as carícias os levam e ele sai voando com ela.
Cajamarca, 14 de abril de 1533
Anamaya descansa em seu quarto, olhos fechados. O pequeno aposento está mergulhado numa penumbra suave. Nos palácios do Inca, a Coya Camaquen tem o privilégio de gozar de um quarto só para ela. Mas, ao contrário do de Atahualpa, os nichos ali estão vazios e as tapeçarias desapareceram. As finas serpentes de pedra que encimam as paredes são os únicos ornamentos. Suas ondulações brincam com a luz e as vezes parecem ficar muito reais.
Anamaya sonha com o dia em que poderá dormir a noite inteira ao lado de Gabriel, como uma esposa ao lado de seu marido. Mas será que algum dia isso acontecerá? Há tantas coisas impossíveis.
Ela ainda está impregnada da paixão deles, o corpo inteiro estranhamente pesado e leve do bem-estar do amor. Uma leve brisa agita a cortina da entrada.
Parece fazer uma última carícia em seu corpo, após aquelas do amante. Bruscamente, uma corrente de ar mais violenta a sobressalta:
- Coya Camaquen!
É um sussurro, apenas um murmúrio. Ela se apoia nos cotovelos.
- Coya Camaquen!
Anamaya distingue uma forma agachada no escuro, como um bichinho assustado.
- Quem é você? - pergunta baixinho.
- Coya Camaquen, preciso da sua ajuda...
- Quem é você? - repete Anamaya.
Como resposta, ela escuta apenas uma respiração rápida, tensa. Senta-se na esteira e estende as mãos para a forma encolhida.
- Venha cá... Não tenha medo.
Devagarinho, timidamente, a forma se levanta. Surgem dois olhos vivos e escuros, cabelos desgrenhados. É uma menina, quase uma criança, o rosto triangular, vestida com uma sóbria túnica suja de lama e uma capa cinzenta grande demais para ela. Adianta-se, encurvada como se sob o peso de um fardo, e pára à beira da esteira. Numa postura de pedinte, estende as duas mãozinhas, palmas viradas para cima, a nuca trêmula.
- O que está fazendo aqui? - pergunta Anamaya.
Os olhos negros fixam-na sem responder.
Anamaya e invadida por uma ternura infinita por essa frágil desconhecida. Imagina o medo que deve ter tido ao se esgueirar por entre os guardas e atravessar o pátio correndo para chegar a ela.
- Se você não me disser - prossegue, fingindo um ar severo -, nunca vou saber se posso ajudá-la!
- Eu me chamo Inguill e venho de Cuzco - diz de um só fôlego a menina. - Sou do clã do Poderoso Senhor Manco.
Manco! A garganta de Anamaya se fecha.
Manco, o amigo fiel apesar das guerras e dos ódios de clã! Manco, que fugiu aconselhado por ela para as colinas de Cajamarca, com o Irmão Duplo de ouro, na terrível noite que se seguiu ao Grande Massacre e à captura de Atahualpa!
Manco, aquele que o falecido Inca Huayna Capac, a última vez que veio visitá-la do outro Mundo, designou como "o primeiro nó dos tempos futuros...”
Tomada por uma inquietação súbita, ela agarra os ombros de Inguill:
- Como vai ele?
- Ele me disse para procurá-la - responde a menina um tanto assustada. - Disse: "Vá procurar a Coya Camaquen, ela saberá lhe arranjar um lugar junto dela. Ela é aquela que vê a marcha do tempo a nossa frente..."
Anamaya reprime um suspiro. Quem dera! O que diria ela hoje a Manco? Não, eu não sei mais ir ao Outro Mundo e o único Senhor Huayna Capac não vem mais me visitar desde que um estrangeiro faz vibrar meu Varação e toca em meu corpo como nenhum homem jamais tocou? Um esgeiro tão diferente dos outros e que tem na carne a marca do puma? Contenta-se em sorrir, esboçando uma carícia no ombro da mensageira. - Então ele está bem!
Inguill balança a cabeça, e afinal relaxa.
- Ele também me disse que você não deve se afligir por causa dele e do Irmão Duplo. Cada um está onde deve estar.
Anamaya aprova com um pestanejar e pede:
- Conte-me a sua história sem medo...
- Como você sabe, Huascar, aquele que quis ser o Inca no lugar do Único Senhor Atahualpa, morreu pouco depois que vocês foram derrotados pelos estrangeiros. Mas, mesmo daqui, daqui deste palácio de Cajamarca, a vingança que o único Senhor Atahualpa ordenou contra os clãs de Cuzco submissos a Huascar foi terrível. Minha família pertencia a um desses clãs. Os soldados do único Senhor Atahualpa entraram na cidade e mataram todos os homens. Esmagaram as cabeças deles com tacapes de bronze até quando eles estavam dormindo. Depois, quando o sangue começou a correr nas valas das ruas no lugar da água sagrada, eles nos levaram. A nós crianças, as moças e as mulheres... Nos empurravam com as lanças. Nos batiam com o cabo dos machados, rindo. Diziam que dariam nosso sangue para o puma beber e que os condores iriam ler o futuro nas nossas tripas... Eles...
Inguill fala com uma voz calma e tímida que até então não havia tremido. Agora não está quebrada, apenas fica mais baixa. Tão baixa que Anamaya precisa se inclinar junto a ela para ouvi-la.
- Eles arrancaram o filho que minha mãe trazia no ventre. Cortaram a criança em dois na frente da minha mãe antes que ela morresse...
Anamaya não responde. Não consegue mais ver Inguill. As lágrimas embaralham seus olhos e deixam tudo trêmulo.
Uma cena muito longínqua a invade e rasga seu coração, desperta um sofrimento que ela julgava adormecido. O rosto terno e amoroso de sua própria mãe enche sua mente. E a imagem deformada da pedra de funda, lançada pelo soldado inca, a lhe entrar na cabeça! Com uma precisão e uma lentidão insuportáveis, ela revê sua mãe cair na lama segurando sua mão. Revê a si mesma, em pé junto à mãe morta. Sozinha e perdida.
A dor lhe tira o fôlego. Ela não existe mais, a Coya Camaquen, a protegida do grande Huayna Capac, aquela que salvou Atahualpa, aquela que conhece o futuro do império!
Durante alguns segundos, Anamaya volta a ser aquela menina apavorada com a brutalidade dos guerreiros, aquela menina sozinha a quem as noites não podem trazer descanso. Mal ouve Inguill acrescentar:
- Uma noite, os soldados beberam chicha para agradecer ao Pai Sol e ao Raio Illapa de terem vencido definitivamente os clãs que haviam apoiado Huascar. Quando eles adormeceram, eu fugi. Como não sabia aonde ir, voltei a Cuzco. O Poderoso Senhor Manco vivia ali no templo dos ancestrais dele. Seu irmão Paullu acabava de fugir da cidade para se esconder perto do lago Titicaca... E como eu não tinha mais ninguém da família, nem casa para ir, nem irmãs ou irmãos, o Senhor Manco me disse que você me ajudaria se eu chegasse até você.
- Vou ajudá-la - murmura Anamaya.
Pega a mão da menina que hesita antes de segura-la com os dedos ainda duros de medo. Pouco a pouco, Inguill pára de tremer. Então as lágrimas chegam. Ela cai à frente, a cabeça apertando a barriga de Anamaya. Os soluços lhe sacodem o peito, cortando suas frases:
- Há luas e luas que parti... Achei que não chegaria nunca. Nevava quando atravessei as montanhas de Jauja. Estava convencida de que ia morrer... Mas, um dia, vi a coluna dos estrangeiros... com o general Chalkuchimac. Meti-me no meio dos carregadores... Ninguém falou nada! Eu só precisava arrastar uma manta cheia de copos de ouro o dia inteiro...
- Agora acabou - diz Anamaya afagando-lhe a nuca. - Acabou.
Inguill se levanta, orgulhosa, enxugando os olhos com as costas dos punhos finos. Esboça um sorriso para dizer:
- Aqui, precisei tomar cuidado com os soldados estrangeiros. Por isso não pude vir antes até você. Primeiro, tive muito medo deles. Quando me vim, eles riam e queriam me agarrar. Mas eles não correm muito...
Ambas deixam o silêncio voltar e lhes acalmar a respiração. A brisa do norte está um pouco mais forte agora. A cortina na entrada do quarto balança mais regularmente.
Anamaya ainda segura a mão de Inguill e a sente tremer. Balança a cabeça, já quase serena. Diz baixinho:
- O Grande Massacre apagou tudo o que havia antes. A ordem antiga morreu. Quem ainda tem a pretensão de saber e dizer o que é, assim como adivinhar o que deve ser, parece uma criança cega que vê a noite em pleno dia. Ninguém aqui percebe isso. O mundo está mudado, o que é forte passa a ser fraco. E amanhã é apenas um ponto na escuridão do céu entre as estrelas... O Pai Sol e a Mãe Lua nos observam em silêncio e não dizem o que devemos r. Cada um age a seu modo e muitos se enganam. Os estrangeiros só penso em ouro. E entre os que servem ao único Senhor Atahualpa, muitos ainda são possuídos pelo espírito de vingança contra o povo de Cuzco... Você deve
calada de agora em diante, Inguill. Não conte sua história a ninguém.
- Eu sei. O senhor Manco me disse: "Só fale com ela. Ela vai saber ouvir!"
- De hoje em diante - acrescenta Anamaya -, você não deve mais chorar. Deve sorrir e mostrar o quanto está feliz de servir ao Inca.
- Tudo que você quiser se me deixar ficar ao seu lado, Coya Camaquen! Anamaya se levanta enquanto Inguill dá um salto. - Para começar, vou lhe arranjar umas roupas... Inguill olha para ela com adoração:
- Como você é linda... O Senhor Manco me disse que era a mulher mais linda do Império das Quatro Direções... Achei que dizia isso só porque gosta muito de você. Mas você é linda e os seus olhos...
- Não diga isso! - protesta Anamaya com uma veemência um tanto exagerada. - E não se esqueça: quando não estivermos sozinhas, você só deve falar comigo se eu autorizar...
Como para amenizar a dureza de suas últimas palavras, Anamaya pega o rosto da menina entre as mãos e o traz de encontro ao seu.
- Todo mundo sabe que não tenho irmã. Vou ter de dizer que você é minha criada. Mas em meu coração, você é a irmã enviada pelo Poderoso Manco.
- Não estou satisfeito - diz o Governador Francisco Pizarro olhando nos olhos de Gabriel -, e você sabe por quê.
- Fale, dom Francisco, para que eu possa ouvir de sua boca.
Pizarro suspira. Ele saiu com o jovem do palácio do Inca, levando-o para longe da praça, pela ladeira que sobe ao longo do palácio do Inca, em direção a colina onde fica essa estranha construção que eles chamam de "forte" por hábito, uma vez que nunca se encontrou arma ou soldado algum lá dentro.
- Você insultou seriamente meu irmão Hernando e o desafiou em duelo na frente dos homens...
- É essa a história horrível que ele lhe contou? - Não lhe permito isso!
Apesar da severidade do tom, Gabriel não está realmente preocupado. Se Hernando tivesse convencido o Governador, não seria a um passeio na cidade que ele teria direito, mas a um tribunal nas devidas condições. Prudente, o Governador deve ter ido se informar do incidente com Candia.
- Vamos ganhar tempo, dom Francisco. Diga a seu irmão que me ameaçou com as piores punições. E assumirei a humilhação de dizer que lhe manifestei meu arrependimento total e sincero...
- Se fosse só isso!
Gabriel está intrigado com o abatimento que parece ter se apoderado do Governador.
- De que diabo se trata, dom Francisco? Seu irmão foi tocado pela graça divina e, arrependido dos crimes que cometeu, ameaça se isolar num mosteiro para expiar os pecados e morrer com cheiro de santo?
- Pare com essa brincadeira, aprendiz. Meu irmão é um herói para todos desde que voltou com esse general. Meu irmão é admirado e temido por todos os índios. E meu irmão exige desculpas...
Gabriel dá uma sonora gargalhada.
- Seu irmão ainda não me conhece bem. Mas achei que a ponta da ;minha espada...
- Pare! Estou dizendo - vocifera Pizarro tapando os ouvidos -, não quero saber mais.
- Então não me peça mais, dom Francisco.
Os dois chegaram ao topo do cerro que domina a planície onde se estende a cidade de Cajamarca. Ao longe, eles vêem as fumaças das fogueiras das Termas do Inca, onde Atahualpa os esperava.
Entendo você - diz Pizarro com uma voz surda - e, no seu lugar, sem dúvida, eu recusaria. Mas lhe peço mesmo assim...
A mudança de tom de Pizarro alerta Gabriel que fica calado aguardando o que vem pela frente.
- Preciso de meu irmão. Conheço todos os seus defeitos. Mas preciso da ausência de escrúpulos e da autoridade dele... e do dinheiro...
- Enquanto o tesouro se amontoa!
- Você não sabe mesmo de nada! Esse tesouro não é nada, perto das montanhas de dívidas que acumulei, nada perto do que espera meu sócio, o caolho Almagro, nada perto das promessas que tive de prodigalizar quando a conquista não passava de um sonho louco na minha cabeça... Se Hernando
deixar, estou...
Pizarro não termina a frase, mas acompanha-a com um gesto cortante mão no pescoço, mais eloqüente que um longo discurso. Sua sinceridade Gabriel mais do que a ameaça.
- E se eu não apresentar minhas desculpas...
- ... em público...
- ... em público, Hernando ameaça largar tudo.
Pizarro concorda. O coração de Gabriel dispara e um suor frio lhe escorre pelas costas.
- Não sei, dom Francisco, não sei bem...
Pizarro balança a cabeça.
- Faça o que quiser, filho.
Gabriel não diz nada, mas, no fundo do coração, já sabe que aceitou. Uma curiosa mistura de alívio e fúria o deixa trêmulo. Não vê o leve sorriso que, como uma nuvem, passa pelo olhar de Pizarro.
Chalkuchimac está em pé, parado na praça, grande e furioso como um urso.
- O que está acontecendo? - ruge.
Nenhum dos poucos nobres de seu séquito ousa responder. Olham para a frente, olhos arregalados.
Onde se erguia a elegante pirâmide do ushnu, há apenas um monte de pedras. Com esses escombros, os estrangeiros cobertos de pó erguem uma estranha construção, cheia de paredes e tetos, algo nunca visto no império. Paredes tão finas e tortas, pedras tão ridiculamente assentadas que um vento, uma fúria do céu poderiam derrubá-las e reduzi-las a lama!
Chalkuchimac vira-se para Felipillo e ladra ainda:
- Que horror é esse?
- É um templo para o Pai do Céu deles. É assim que chamam aquele que permitiu que eles vencessem o único Senhor Atahualpa - responde o intérprete com uma submissão exagerada.
- E quem os autorizou a destruir o ushnu para fazer "isso"? - reclama ainda Chalkuchimac, vermelho de raiva.
O olhar desconfiado de Felipillo procura no rosto dos nobres uma ajuda que não vem.
- Ninguém.
Chalkuchimac esboça um gesto de cólera, mas, nesse instante, surge um cavaleiro dos prédios da praça. O general inca fica imóvel, aturdido.
- Ele estava no Templo do Sol com o animal... - murmura como se não acreditasse no que via.
Em volta dele, os Poderosos e Felipillo se calam, abaixando a cabeça. Sem tirar os olhos do cavaleiro, Chalkuchimac estende o braço para ele, ameaçador, e berra:
- Ele estava no Templo do Sol com o animal! Você vai me dizer afinal o que se passa aqui?
Felipillo se curva:
- O Governador Pizarro... Abri, o Machu Kapitu deles escolheu o Templo para ser a casa dele e...
Felipillo se interrompe, pois o barulho dos cascos do cavalo na imensa praça de repente fica fortíssimo. O cavaleiro levou a montaria para o outro lado, perto da porta das termas, fazendo-a bruscamente dar meia volta. Usando as esporas que reluzem em suas botas, parte com o cavalo para cima do grupo dos Incas. Levantando-se nos estribos, a aba do chapéu quase chapada na testa, faz o animal galopar. Felipillo e os nobres não conseguem mais tirar os olhos da boca aberta do cavalo, vidrados naquelas ventas dilatadas e naqueles olhos saltados. Mas Chalkuchimac se contenta em fechar lentamente a boca numa expressão cheia de desprezo.
O barulho do galope repercute no peito dos homens. Quando o animal está a menos de 100 passos, os nobres incas dão um grito de medo e recuam, saindo de seu caminho. De um salto, Felipillo se esgueira atrás deles. A boca branca, os beiços arregaçados sobre os dentes amarelos, o cavalo bufa levantando bem os jarretes. Está só a 50 passos e Chalkuchimac não se mexe.
Olha o cavaleiro, um homenzinho que se encolhe todo para se agüentar na sela. Um homem de uma feiúra estranha, com um olho só e a tez roída Péla doença.
Quando o cavaleiro e os cascos do cavalo estão quase em cima dele, Chalkuchimac endireita os ombros, com um movimento seco, como se quisesse ficar mais largo ainda. O ódio e o desprezo acentuam o ríctus de seus
lábios. Ele já sabe como os estrangeiros puderam ter a ousadia de destruir o ushnu para lá construir sua casa ridícula. Vê de que são capazes. Vê o que deixou o único Senhor Atahualpa tão fraco e frouxo. Então, nessa fração de rido, ouvindo às suas costas os gritos dos nobres tão pouco poderosos, fúria é tão violenta que ele parece se transformar em pedra. Bem em cima dele, os lábios carnudos do cavaleiro tremem de excita0o. No último instante, enquanto os cascos do cavalo jogam cascalho em as pernas, o cavaleiro estica o braço esquerdo e puxa as rédeas. Chalkuchimac recebe no peito o impacto da bota e sente o fedor ácido do animal. O rabo do cavalo fustiga o ar em cima dele.
Chalkuchimac não se mexe. Nem vira os olhos quando, sempre rindo, o estrangeiro faz a montaria rodeá-lo, tão junto que o cavalo pisoteia em sua sombra.
Chalkuchimac continua imóvel. Seu sangue congelou. Só o ódio que tem dos estrangeiros e a raiva que tem do único Senhor Atahualpa, que permitiu tal vergonha, ainda vivem dentro dele.
O cavalo fica rondando. Sua baba, seu suor acre e a poeira sujam o unku de alpaca do general Chalkuchimac. Mas ele já não escuta o riso do cavaleiro. Nada disso existe.
Reais, só são Inti e Quilla, os apus, os ancestrais de pedra que habitam para lá das colinas, nas montanhas, por trilhas sagradas.
No céu carregado de nuvens desponta um raio de sol.
O cavaleiro acaba de se colocar bem na frente dele. Pressionando os joelhos, faz o cavalo empinar. O animal relincha, os cascos golpeiam furiosa mente o ar acima da cabeça do general vencido.
Chalkuchimac continua imóvel.
Oferece o rosto ao Pai Sol. Sorri. Seu rosto se franze como uma montanha no nascimento do mundo.
E é o estrangeiro de um olho só que fica com medo.
Ao lado do palácio onde se instalou seu irmão o Governador, o que abriga dom Hernando Pizarro já parece um palácio da Espanha. Não se sabe por que milagre, o irmão conseguiu que lhe despachassem malas e malas, e sua casa vive infestada de artesãos índios, cuja habilidade é formada com maior ou menor brutalidade pelos espanhóis.
O aposento que ele transformou em sala de jantar tem a pretensão de lembrar um palácio de Carlos V, com sua grande mesa grosseiramente entalhada, seus candelabros, sua baixela de ouro e prata. Até os criados têm uma libré própria - vermelha como seu penacho. Não se está às ordens de Hernando como as de uma pessoa qualquer...
Quando dom Francisco e Gabriel entram ali, Hernando já está à mesa com os irmãos mais moços Gonzalo e Juan, Soto e os principais capitães espanhóis dos quais falta apenas Candia. São recebidos com gargalhadas.
- Meu irmão - diz o tímido Juan -, dom Hernando estava justamente contando como jogou aquele bárbaro no rio mandando-o voar como um pássaro.
O silêncio cai em volta da risada forçada de Juan. Todos os olhares se voltam para Gabriel.
- Seu irmão lhe contou o resto da história, dom Juan? Dizem que é divertida.
- Não me lembro - diz Hernando. - Talvez queira nos elucidar, senhor.
- Minhas luzes nesses assuntos são limitadíssimas, dom Hernando, e eu não saberia me lembrar do que o senhor teria esquecido.
Os olhos de Hernando soltam chispas e dom Francisco fica rígido ao lado de Gabriel, que sente sua extrema tensão.
- A sabedoria lhe chegou tarde - diz agressivamente Hernando.
- Isso é apenas prudência, Vossa Senhoria, ou fraqueza. Não darei a esse esquecimento o belo nome de sabedoria.
- Realmente, está faltando alguma coisa, alguma coisa de essencial. Gabriel desata a rir, com entusiasmo. - Vossa Senhoria, falta tanto para eu chegar perto disso... - Faça então um esforço.
- É que, por mais que tente, não consigo. E uma burrice.
- Uma burrice, senhor, e daquelas - rosna Hernando mergulhando Os olhos furiosos nos do irmão -, como eu nem sei...
Hernando, que ficou o tempo todo em pé, as mãos apoiadas na mesa, *o agüenta mais. Derruba a cadeira de repente e se dirige para Gabriel. Gabriel, com um movimento ágil, dá meia volta e dirige-se para a cortina que faz as vezes de porta.
Dando as costas a Hernando, murmura:
- Apresento-lhe as minhas desculpas, dom Hernando.
Desaparece com tanta rapidez que Hernando fica atônito diante da cor na panejando. Volta-se, furioso, para a assembléia.
- O que esse animal disse?
- Ele lhe apresentou suas desculpas, meu irmão - diz Juan, com um constrangido. - Pode nos dizer por que?
Cajamarca, junho de 1533
Reina uma atmosfera estranha no pátio do único Senhor Atahualpa.
Logo em frente ao local do banco do Inca, numa esteira delicadamente tecida com juncos verdes, as mulheres depositam recipientes de ouro, prata e terracota que servirão para sua refeição. Como no tempo antes dos estrangeiros, contêm as carnes mais finas, peixes provenientes do oceano distante. Contudo, essa requintada promessa de felicidade se realiza numa coreografia silenciosa e triste.
A alguns passos dali, em pé à sombra de uma parede, longe dos braseiros, Gabriel e Anamaya estão lado a lado. Não exatamente cara a cara, nem ombro a ombro. Eles agora têm o hábito de ficar assim quando diante dos olhares dos outros. Imóveis, contendo os gestos quando sentem o desejo de se tocar. Mas nada os pode impedir de sentir vibrar a união estranha que é a deles. Nem mesmo a tristeza que invade todos os recantos do palácio de Atahualpa.
À meia voz, Gabriel conta como, à custa de mentiras, Hernando Pizarro enganou Chalkuchimac, garantindo-lhe que seu senhor Atahualpa precisava vê-lo. Descreve a indiferença desdenhosa do general diante dos pedidos prementes de ouro e prata do irmão do Governador. A insistência de Hernando, suas ameaças veladas. A excitação de toda a tropa quando se ouviu dizer que Moguer e seus companheiros haviam chegado a Cuzco, de onde estavam enviando um tesouro ainda mais fabuloso do que tudo o que já havia sido descoberto até então.
- Você devia ter visto o olhar enlouquecido deles... Nem se lhes tivessem prometido a vida eterna estariam mais excitados. Alguns se recusavam a dormir à noite porque o tesouro poderia chegar...
- O quarto do resgate já está quase cheio - murmura Anamaya.
- Anamaya, não é de um quarto que eles estão precisando, nem de um palácio, é de uma cidade inteira de ouro, e, quando tiverem isso, não vão estar satisfeitos...
- São homens estranhos, os seus irmãos. Não paro de olhar para eles para compreender em que são diferentes de você e em que são parecidos... Gabriel não sabe o que responder. Olha para Anamaya, a cabeça inclinada. Seus olhos azuis ficam a maior parte do tempo voltados para o chão, mas às vezes vêm pousar rapidamente no rosto animado de Gabriel.
- O Único Senhor Atahualpa jamais será livre - murmura ela.
- Dom Francisco prometeu que ele reinaria tranqüilamente no Norte, em Quito, onde nasceu.
- Isso não vai acontecer - diz Anamaya balançando a cabeça com delicadeza.
- O Governador prometeu - teima Gabriel, franzindo o cenho. - Todos deverão obedecer às ordens dele. Conosco é assim. Até aquele que é rei acima do Governador dom Francisco deseja que Atahualpa continue sendo o Único Senhor de vocês...
- Você acaba de dizer que o ouro era a única lei de vocês... - A única lei deles! - emenda orgulhosamente Gabriel.
- Você tem a pretensão de fazer com que eles mudem de lei?
Mais uma vez, Gabriel fica sem voz. Anamaya mergulha seu olhar nos olhos dele. Ele se sente perdido, flutuando e quase inconsciente na força desse olhar, nessa beleza fresca e simples como um lago parado. Sem uma palavra, ela é capaz de lhe transmitir suas certezas, seu conhecimento implacável da verdade. Toda vez, Gabriel sai abalado desse encontro. Toda vez, parece sentir uma força de cuja existência, até então, nunca suspeitara.
Um pouco como uma criança, para não se deixar convencer, protesta de trovo:
- Se eles quiserem lhe fazer mal, não vou deixar!
Falou tão alto que as mulheres se sobressaltam. Anamaya vira-se para elas. Sob seu olhar, as servas se dispersam como aves em revoada. Gabriel enrubesce, depois continua, em tom mais baixo:
- Desde o dia em que o seu rei foi capturado, quando impedi que o matassem, o Governador me pediu para velar sobre a vida dele... Anamaya fecha a capa, puxa-a até o pescoço fino. - Você não vai poder lutar contra o que deve ser...
Como ela torna a se calar, Gabriel pergunta, num tom mais duro do que desejava:
- O que é que deve ser?
- O tempo passa. Existem forças contra as quais é inútil se opor. Nem você, que é bom, consegue...
Comovido com a ternura dessas palavras, Gabriel baixa os olhos. Não vê Atahualpa sair do aposento principal. O Único Senhor está envolto numa capa de uma lã marrom muito fina, fechada no peito por um tupu de ouro incrustado de pedras preciosas.
Uma mulher se precipita para varrer os poucos metros que levam até seu banco. Mesmo de costas, Anamaya reconhece a silhueta mais gorda de Inti Palla. A falsa amiga e verdadeira inimiga que tantas vezes quis sua perdição. Embora morando praticamente sob o mesmo teto, em várias luas, elas não se falaram mais que duas vezes.
Anamaya se levanta e, com um sussurro, pede que Gabriel se afaste.
Nesse instante, ecoando até as colinas mais distantes, um grito rasga o silencio. Um uivo, antes um rugido, de uma nitidez apavorante. Tudo pára, depois o lamento se repete, rouco e dilacerante.
- Chalkuchimac! - sussurra Anamaya voltando-se para o Inca. Gabriel sente um frio na espinha.
Diante deles, Atahualpa não demonstra ter ouvido o menor ruído. Estende a mão para um dos potes de ouro, Inti Palla se inclina para segurá-lo e para se aproximar dele. Na hora em que o rugido corta de novo o céu de Cajamarca, o Inca leva à boca uma fina lasca de carne de vicunha. Um pouco de caldo escorre em seus lábios e uma gota de sangue cozido cai em sua túnica.
Sem esperar mais e sem respeitar o pátio sagrado do Inca, Anamaya e Gabriel correm para a porta. Erguendo a espada sem desembainhá-la, Gabriel empurra os guerreiros incas e os soldados espanhóis que vigiam a entrada do palácio.
Enquanto Inti Palla continua segurando a tigela de carne, os olhos voltados para a porta por onde Anamaya e Gabriel desapareceram, Atahualpa apenas ergue os olhos para eles. Espera um instante, mastigando os grãos de milho. Depois deixa o banco, volta para dentro do palácio e some no escuro, com o passo lento do homem que dirige o tempo e o espaço.
Uma aglomeração se formou na praça, na entrada do antigo Templo do Sol, onde o Governador Francisco Pizarro se instalou para morar. O muro de adobe que o protege continua cercado por uma sebe de quinoa. Gabriel e Anamaya atravessam o grupo silencioso dos índios. Na entrada, Gabriel avista o vulto alto e o nariz adunco do gigante grego, Pedro de Candia.
- O que está havendo, Pedro?
- Soto perguntou educadamente se ele conhecia os esconderijos de ouro e ele não quis responder.
O grego lança um olhar por cima do ombro de Gabriel e vê Anamaya. Sorri com um ar entendido.
Gabriel se afasta, empurra alguns homens. Atravessa uma sala mais ou menos mobiliada à espanhola e chega a claridade do pátio. Ao lado dele, ouve o gritinho de surpresa de Anamaya.
No meio do pátio, foi erguido um poste. Chalkuchimac está firmemente amarrado ali. Seus pés descansam em cima de um monte de palha e madeira seca. Embora o fogo ainda não tenha sido ateado, a túnica do general está fumegando, parcialmente calcinada, suas panturrilhas estão pretas. Atrás dele, índios cañaris seguram tochas. Na frente, ao lado do intérprete Felipillo, ergue-se Soto. O capitão conserva a silhueta de cavaleiro, corpo imponente, pernas curtas demais, pisando nas lajes do pátio com suas botas guarnecidas de ferro, como se a terra nunca estivesse à sua altura. Mas seu olhar, em geral tranqüilo, de bom grado irônico, está inflamado de fúria. Seu indicador aponta para o peito de Chalkuchimac.
- Me entenda bem! Você é general, é corajoso, tem uma cabeça de boi e um coração de pedra. Mas eu, que sou apenas capitão, posso saber onde está seu ouro! - berra Soto. - Quero saber também onde estão as suas tropas e as ordens que você deu aos seus capitães. Quero saber, e vou saber, ou então você vai assar como um porco!
O intérprete Felipillo se debruça sobre um maço de palha como se tivesse medo de queimar junto. Com os olhos fechados, murmura no ouvido de Chalkuchimac. O rosto do general inca continua impenetrável, mas uma faia de seu pescoço pulsa.
Gabriel adianta-se no pátio.
- Soto!
O capitão volta-se para ele, conservando o olhar furioso.
- Fique fora disso, meu amigo.
- O Governador...
- Dom Francisco me deu ordem de interrogar esse bugre imbecil e estou interrogando - atalha Soto num tom que não admite réplica.
Gabriel o conhece suficientemente bem para saber que o homem não é de mentir.
Nesse instante, escapando dos lábios de Chalkuchimac, ecoa o grito, o mesmo que foi ouvido no palácio de Atahualpa. Gabriel identifica uma palavra articulada, mas não entende. Volta-se para Anamaya, que os espanhóis presentes espreitam com um sorriso malicioso. Ela não o vê. Seus olhos azuis estão vidrados no rosto de Chalkuchimac. Seus lábios se mexem no mesmo ritmo do grito do general. Um murmúrio, uma palavra. Uma palavra que Gabriel consegue reconhecer.
- Inti! Inti!
O general inca não grita de dor nem de medo. O que lhe sai da garganta é um apelo poderoso como uma trompa ecoando no topo de uma montanha. - Inti!
Chalkuchimac invoca o Sol! Entrega-se a ele, totalmente, com uma fé
inabalável. Seu olhar recai em Anamaya e ele acrescenta com uma voz calma: - Coya Camaquen. Chame aqui o meu amo, o único Senhor.
- Pode queimá-lo até as tripas - rosna Gabriel para Soto. - Ele não vai lhe dizer nada. Você não lhe mete mais medo do que uma mosca. Ele mandou chamar o rei. Só o Inca vai faze-lo falar.
O capitão o encara, prestes a explodir de raiva. Mas pestaneja. Suspira dando levemente de ombros e concorda.
Uma calma ameaçadora se instala no pátio. Há um clima de expectativa no ar, enquanto Anamaya saiu novamente. Os olhares fogem e o único que não pisca é o general inca que fita Soto, com um ar de desafio desdenhoso.
O barulho atrás de Gabriel o faz virar-se assim como o conjunto dos espectadores. O Governador chegou ao pátio e Atahualpa está a seu lado. O olhar de dom Francisco vai de Gabriel a Soto, esboça-se um sorriso entre os fios de sua barba. Ele aponta para o Inca e anuncia:
- O Senhor Atahualpa aceita falar com seu general. Talvez ele se saia bem onde sua persuasão falha, dom Hernando...
Gabriel vê a hesitação de Anamaya. Sente que ela precisa se conter para não ir a frente do Inca que se aproxima de Chalkuchimac.
Amarrado ao tronco de tortura, o general olha seu senhor de alto a baixo. Ele, que mostrou tanta submissão e fidelidade ao encontrá-lo, fica absolutamente imóvel quando Atahualpa se aproxima. Não faz um gesto de afeição. Ao contrário, o ríctus de sua boca se acentua, duro e desdenhoso.
Atahualpa pára a alguns passos da fogueira. Suas palavras são baixas mas bastante claras para que Gabriel possa compreender:
- Eles ameaçam queimá-lo, mas você não deve acreditar nisso. Não vão lhe fazer mal, porque seria fazer mal a mim. Eles não têm essa maldade.
Chalkuchimac fica um instante sem responder. Encara o Inca. Volta seu olhar pesado para Anamaya, ignora os espanhóis como se fossem sombras. Pergunta:
- O Único Senhor conhece ainda a vontade de seu Pai Sol? Ainda é o nosso Inca para amanhã e depois de amanhã?
Atahualpa estremece como se tivesse levado uma bofetada. Endireita-se e, por um instante, os espanhóis vêem em sua ira o homem cheio de orgulho e poder que ele foi.
- Como ousa falar assim comigo? - rosna ele para Chalkuchimac.
- Parece que o único Senhor tem medo de morrer - retruca o general, decidido a provocá-lo. - É verdade?
- Você está perdendo o juízo, Chalkuchimac. Seria melhor ficar calado diante dos estrangeiros. Tem mais medo do fogo deles do que tenho medo da morte. Ninguém tocará no Filho de Inti.
- Eles já botaram a mão em você.
- Não olhe. Não escute.
- Por quê? - pergunta Chalkuchimac com aspereza.
Gabriel sente o constrangimento de Atahualpa. Nenhum dos espanhóis sabe a que se refere esse "por que", mas Chalkuchimac e Atahualpa se entendem perfeitamente.
- Cale a boca - diz afinal o Inca.
- Por que não me chamou quando eu estava pronto? Por que não permitiu que eu morresse para libertá-lo? Vim a você cheio de lágrimas de afeição, e ~ só me recebeu com silêncio. Olho-o e vejo que treme diante dos estrangeiros. Eles não passam de saqueadores de templos e ladrões de ouro. Não são eles
destroem o Império das Quatro Direções, Atahualpa, é o seu medo!
Com um rugido rouco, Chalkuchimac cospe na palha de sua fogueira. ualpa desvia o olhar. O sangue em seus olhos parece ter engolido até as Papilas. Anamaya tem a cabeça baixa, como se quisesse se encolher. Gabriel cerra os punhos, tamanho é o seu desejo de ir tomá-la nos braços. Mas sabe seu gesto causará mais mal do que bem.
A um sinal de Soto, os índios cañaris já se aproximam com as tochas e acendem a palha que arde em pequenas chamas claras.
No silêncio brusco do pátio, Anamaya ouve o crepitar do fogo. Ergue o rosto, a boca aberta como se fosse gritar. A mão de Pizarro aperta o braço de Gabriel antes de ele fazer algum movimento.
- Não se preocupe, filho - sussurra dom Francisco. - O Inca tem razão, isso é só uma brincadeira...
As chamas da palha acendem a lenha com estalos irregulares. A fumaça é densa e acre. Envolve Chalkuchimac que olha para a frente, os lábios ligeiramente entreabertos.
Atahualpa está de novo à sua frente. Imperturbável, olha o fogo propagando-se pela fogueira toda.
As labaredas crescem, a madeira estala. Anamaya aperta as mãos até prender a circulação. O calor do braseiro chega ao rosto de Gabriel. Enquanto Chalkuchimac, voltado para Atahualpa, berra novamente furioso:
- Tirem esse Senhor da minha frente! Mandem-no embora! Tirem-me da vista dele... Vou falar e vocês vão ouvir!
Mal ele acabou de dizer essas palavras, Felipillo gritou a tradução.
- Façam o que ele diz e apaguem esse fogo - ordena a voz calma de dom Francisco.
Enquanto os cañaris jogam jarros d'água na fogueira, soldados conduzem delicadamente Atahualpa para fora do pátio, e ele sai sem se virar.
O fogo transforma-se num vapor branco e malcheiroso. O azul dos olhos de Anamaya chega finalmente até Gabriel. O belo rosto da Coya Camaquen está tão triste quanto sereno.
Gabriel prefere virar-se e não enfrentar seu olhar. Tudo o que ele pensa e vê lhe é insuportável.
Chalkuchimac está preto de cinzas, e só se ouve a sua respiração. Desamarram-no. Ele tem as pernas em carne viva dos pés aos joelhos e as mãos e os braços cobertos de bolhas. No entanto, quando lhe oferecem uma esteira para deitar, ele se nega a faze-lo. Afastam-no um pouco da fogueira. Ele repele os cañaris a cotoveladas e, sem demonstrar dor alguma senão pela respiração ofegante que lhe sacode o peito, permanece de pé, aguardando o Governador chegar até ele.
Soto agora balança a cabeça como diante de um louco.
As frases vingativas do general indomável jorram na mesma proporção dos insultos.
Sim, há ouro, muito, na cidade de Cuzco. Sim, há tesouros ali. Se Atahualpa proibiu que se tocasse nos bens de seu pai, o Inca Huayna Capac, é que ele é o mais poderoso e o mais rico de todos os soberanos: está morto neste mundo mas vivo no outro. Bebe, come, e seu templo está abarrotado de ouro...
Mas não é só isso: por quatro vezes, ele chegou perto de Cajamarca com tropas poderosas, a pedido do único Senhor. Por quatro vezes, o Inca recuou na última hora. Por quatro vezes, deixou de dar a ordem de ataque e ele, Chalkuchimac, teve que recuar, furioso.
Gabriel mal percebe que Anamaya sai do pátio. A fumaça da fogueira irrita a vista e espalha no ar um cheiro de vergonha e carne assada.
Chalkuchimac fala e diz as palavras que o Governador e Soto desejam ouvir. Mas são palavras de vingança e ninguém sabe se contêm alguma verdade.
A forja ilumina as noites de Cajamarca. A distribuição do butim começou e prossegue dia e noite. Agora que o quarto do resgate, no coração do palácio, está cheio até a linha traçada pelo Inca, os carregamentos vão diretamente para lá. Na forja incandescente, o ouro escorre, vira um rio, líquido mágico, cintilante. Depois esfria. Torna-se barra, peso de júbilo. O ouro se amontoa, é empilhado em sacos e cestos inteiros de lingotes.
Nos primeiros dias, os espanhóis estavam presentes, a cara vermelha como as brasas dos braseiros, as bochechas soprando ao mesmo tempo que os foles. Havia até quem queimasse os dedos querendo afagar depressa demais as barras da felicidade! Diante dessa sopa de ouro que os plateros vertiam com suas conchas de ferro fundido, tudo se apagava. Todas as lembranças desagrad4veis, os medos, as doenças, os ódios, as amizades. Mas o ouro não pára de escorrer, então isso acaba se tornando banal como o amanhecer.
Os soldados agora torcem o nariz quando são designados para guardar o local pretextando que só há escolha entre queimar a bunda ou o saco. Mas, noite e dia, enquanto os objetos de ouro mais estranhos, espigas de milho, as, cântaros, colares, brincos, ídolos, ou simples chapas são fundidos, um índio, nem dos mais fiéis, tem o direito de se aproximar.
Sebastian observa o monte díspar de ouro que acaba de ser depositado te da forja. Como sempre, vasos e baixelas, mas também tubos, bacias de chafarizes delicadamente trabalhados, cadeiras e até pepitas de ouro.
Todos esses tesouros brilham ao luar e ao clarão da forja. Refletem-se em seu rosto.
Gabriel resmunga a seu lado:
- Tem horas em que fico feliz de não ter acesso ao butim e não ter nada disso... Meu maior tesouro ainda é meu cavalo!
- Ah! Um verdadeiro tesouro dessa vez: três mil pesos de ouro num
dia!
- Não imagine nada, ele não está à venda.
- Não banque o sentimental, você nem deu um nome a ele... Gabriel fica pensativo.
- Não é por falta de vontade, sabe-se lá por que, não consigo. Nenhum nome parece adequado para ele. Ele é meu cavalo, meu companheiro, e isso me basta...
Sebastian balança a cabeça.
- De minha parte, eu ficaria bem feliz se me dessem um. Mas Hernando não deixa...
- Esse borra-botas!
Ao ouvir o nome odiado, o grito saiu da boca de Gabriel como uma cusparada.
- Pode gritar, amigo, e, cá entre nós, você me deu o maior prazer quando cutucou o pescoço dele outro dia... Mas isso não muda em nada a minha condição: escravo sou, pobre devo continuar.
- Você vai conseguir pegar umas sobrinhas de metal aqui e ali...
Sebastian é sacudido por uma risada silenciosa que faz vibrar seu corpo todo. Aponta com o polegar para os homens na forja:
- Veja um pouco se eles deixam alguma sobra.
- Não chore - resmunga ainda Gabriel. - Você vai achar uma alma caridosa para lhe dar um pouco desse ouro de infelicidade!
- Ora, ora. Tenho dois amigos aqui neste fim de mundo: você e Candia. E você tem logo que ser o único conquistador sem direito ao butim e que ainda por cima não gosta de ouro! Um autêntico louco que só gosta dos olhos azuis de uma índia!
Gabriel olha o companheiro de alto a baixo, já pronto para se irritar, mas só vê ternura, humor e admiração em Sebastian. Ri baixinho também. - Não se preocupe, Candia gosta de você tanto quanto de ouro.
- Infelizmente! É o mesmo que dizer que ele é um pouco melhor que
você e nunca será rico.
Gabriel suspira, o sorriso ainda nos lábios.
- Quem sabe se talvez não seja você quem vai ficar mais rico dentre nós todos?
O gigante negro desata a rir, levando a mão ao lado.
- Sem cavalo? Sem espada?
- Essa espada vai chegar: tudo tem seu tempo, tudo tem seu preço, isso como o resto...
Gabriel se interrompe para acompanhar com os olhos um grupinho de espanhóis seguindo dois índios de perto. Estes vêm carregando um ídolo de ouro, do tamanho de uma boneca grande. Atrás, cercado de alguns de seus íntimos, dom Diego Almagro, com cara mal-humorada.
- Dom Diego não vai agüentar por muito tempo ver todo esse ouro aqui escorrer nas barbas dele - murmura baixinho Sebastian. - Desde que chegou aqui, parece louco!
Os índios depositam a estatueta no chão com mil cuidados, como se se tratasse de uma criança frágil.
- A regra não está valendo hoje - responde Gabriel baixinho. - O ouro de Cajamarca só vai para os que participaram da batalha e da captura do Inca! - Não brinque - resmunga Sebastian. - As regras são feitas para serem quebradas. Basta ser o mais forte.
- O que quer dizer?
- Que dom Diego não vai demorar muito a melhorar o gosto da sopa dele. - Vai fazer guerra ao Governador? Sebastian dá de ombros.
- Todo mundo está interessado no ouro. Todo mundo deve ficar com algum.
Gabriel vê a excitação de Almagro diante da estátua. Ele se agacha, afaga o ídolo e ri, o olho único aceso.
- É verdade que você o salvou da morte? - pergunta Gabriel a Sebastian, apontando dom Diego com o queixo.
- Parece... Foi há tanto tempo. E até agora isso me dá mais direitos que deveres.
- É ele que poderá tornar você rico.
Sebastian desata a rir.
- Não, ele poderia me libertar! Eu pertenço a ele. Ele só me emprestou a Companhia que fundou com o Governador. O ouro dele é a minha liberdade!
Houve uma época, pensa Gabriel caminhando pelas ruas escuras, cortadas por gritos e discussões, em que esta cidade era habitada por homens que só faziam seguir os deuses e teme-los. E agora estamos aí, com todas as nossas febres, ávidos de ouro e de glória como aves agourentas! Às vezes, na curva de uma rua, brilha a tocha de um dos 50 cavaleiros do quarto noturno. Os últimos a chegar - os homens de Almagro - são os mais nervosos, porque são os mais pobres. Não têm nenhum peso, nem mulher, só têm a conta para beber...
"Já, já, você vai ver...", lhes diz o pessoal de Cajamarca, que compra alho com lingotes de ouro.
Ao sair na praça, Gabriel inicialmente toma o caminho do palácio de Pizarro. Depois vê, do outro lado, atrás da igreja em construção, uma aglomeração diante do maior dos entrepostos antigos, as kallankas, como são chamados, onde Hernando se instalou.
Aí é que Chalkuchimac descansa essa noite, os braços e os pés queimados, os nervos à flor da pele.
Alguns soldados guardam a entrada, tensos diante da multidão de índios, e no entanto calmos. Os homens conversam a meia voz. É difícil captar sequer o brilho escuro de seus olhos.
Uma mão toca seu ombro, e ele se assusta, a mão no punho da espada. - Não tenha medo...
- Anamaya!
A noite está agradável. Ela vestiu um añaco amarrado na cintura com uma faixa própria. É frágil e magnífica, uma estrela pousada na terra. Fica ao lado dele, sem tocá-lo.
- O que estão esperando? - pergunta Gabriel apontando para os índios.
- Querem servir a Chalkuchimac.
- Por quê?
Ela se vira para ele, o rosto impassível, mas com uma ternura gozadora na voz.
- Você quer sempre saber o porquê, mas nem sempre eu sei. Sei o que há. Eles perderam o Inca, mas precisam de um novo senhor. - O Inca continua vivo...
- Seu Pai Sol não se levanta mais para ele.
- Você quer dizer que ele se levantou para esse aí? - pergunta Gabriel apontando para a porta do palácio.
- Não. Só digo que eles têm o desejo de servir.
- Servir a quem, se não for ao Inca?
Anamaya não responde. Seu olhar se perde nas colinas, na lua, nas montanhas, nas neves eternas.
Quando seus olhos voltam a Gabriel, ela vai se encostando nele muito devagarinho.
- Venha - sussurra ela.
Juntos, alheios à tristeza dos índios, a embriaguez dos espanhóis, caminham ao longo do muro da praça e pegam a estrada das Termas do Inca. Foi por ali que, no outono, o magnífico cortejo de Atahualpa chegou para conhecer num único dia sua glória e seu fim. Foi por ali que, naquela noite, eles fugiram para encontrar seu destino.
Quando eles se embrenham no escuro, o murmúrio de suas vozes se mistura com os das águas. Em pouco tempo, os dois se confundem com a noite.
Cajamarca, 25 de julho de 1533, ao amanhecer
No azul tímido do alvorecer, Gabriel segue a cavalo pelo caminho bem calçado que domina o rio Hatunmayo. Protegido do vento matinal por uma mata cerrada, ele avista ao longe o topo das colinas com laivos de ouro pálido ao sol nascente. A temperatura está agradável. O sereno da noite se esvai gota a gota nas folhas das árvores.
À medida que ele ganha altura em relação a Cajamarca, seu coração fica mais leve. Ilusão do vento, embriaguez da brisa"... É como se ele finalmente escapasse, a galope, da tensão que dia a dia vai ganhando a tropa dos conquistadores.
Hernando, o irmão do Governador, voltou para a Espanha. Acompanhado por alguns fidalgos, vai levar a boa-nova da vitória de Cajamarca com a prova do quinto do Rei: um navio inteiro cheio de ouro.
Gabriel não tem tempo de se regozijar com sua partida. Em matéria de maldade, os jovens irmãos do Governador se eqüivalem a Hernando. Reina tensão na cidade entre "os que têm" e "os que não têm": ouro, sempre ouro... Quanto mais chega, mais aumenta a avidez: os que já estão ricos queriam mais e os que só recolheram migalhas estão prontos a matar para conseguir alguma coisa. Diz-se à boca pequena que a tensão entre os dois colegas de Panamá, Almagro e Pizarro, está no auge.
Depois, novos boatos deixam os espíritos irritados. Secretamente dirigidos por Chalkuchimac, sempre detido no próprio palácio de Hernando Pizarro, os índios estariam reunindo tropas nas montanhas em volta da cidade. O intérprete Felipillo afirma que o exército do Inca é tão numeroso que seus generais têm que dividi-lo em três ou quatro corpos para que possa ser abastecido mais facilmente.
Chalkuchimac foi novamente interrogado. Mas, dessa vez, ficou calado. Dom Francisco enviou Soto com um destacamento à cidade de Cajas por desencargo de consciência.
Todos os dias, os cavaleiros percorrem os caminhos dos arredores da cidade à procura de pistas de alguma vanguarda, a preparação de algum ataque que não acontece.
Pouco a pouco, insidiosamente, o medo volta.
Não é o medo terrível do outono, quando descobriram o poderio do império, ou o pânico da noite da batalha, quando souberam que a luta seria um contra várias centenas. É o medo mais surdo, que aperta as entranhas e não larga. À noite, fica adormecido, volta, se esconde num vento ou nos passos de um animal nas matas de corte...
E aí, esse galope que faz Gabriel mudar de posição na sela um pouco rápido demais.
- Dom Gabriel! Dom Gabriel!
Gabriel reconhece o gibão de veludo verde-escuro, o cavalo malhado com as rédeas tacheadas de prata. Pedro Cataño é um homem elegante, mas um dos raros espanhóis cuja companhia Gabriel não odeia. Os dois têm a mesma idade e, por pouco, poderiam ter se conhecido nos bancos da universidade. Cataño é um dos raros homens dessa aventura a saber ler e escrever. Aliás, a escrever, ele passa muito tempo, como se estivesse apaixonado por sua própria história. É também um dos que se comportaram com mais dignidade na batalha de novembro, nunca procurando insultar o Inca. Aliás, por isso e por sua tez morena, com as maçãs tão salientes que quase o faziam ser confundido com um nativo, ele era chamado de índio.
- Ei, Pedro! Por que esse galope? Má notícia?
Cataño balança a cabeça, sorriso nos lábios, um pouco ofegante.
- Não! Vi que você estava partindo e me deu vontade de ir junto.
- Não é certo que eu esteja precisando de companhia - diz Gabriel sem severidade.
- Gabriel - responde Cataño sem se perturbar -, pensei que as ordens eram para ninguém se aventurar sozinho nas colinas...
- Ah, as ordens! - resmunga Gabriel com um suspiro fatalista.
Devagar, a passo, os dois chegam ao primeiro cume. Acima deles, o rio corre tranqüilo. O dia já vai alto e uma leve brisa impede que o calor aumente.
É difícil acreditar que milhares de homens armados de machados e fundas se escondem nesse esplendor.
Cataño faz seu cavalo emparelhar com Gabriel. Os dois homens, lado a lado, admiram a beleza da cidade cujos tetos fumegam.
- Que bobagem esses boatos - acaba dizendo Gabriel. - Aposto todo o ouro que eu não tenho que não há um guerreiro inca num raio de léguas!
Cataño sorri:
- Isso é que é apostar bem!
- Estão nos contando mentiras, Pedro! E sabemos por que, não?
Cataño faz uma expressão prudente. Ele tem uma timidez reservada revestida de uma audácia que parece quase ilimitada. E suas palavras às vezes não têm rodeios:
- Quer dizer que o pessoal de Almagro quer se livrar do Inca Atahualpa? Que está com tanta pressa de chegar a Cuzco e fundir o próprio ouro que desobedeceria às ordens reais?
- O resgate de Atahualpa foi pago, até em excesso - aprova Gabriel. - Os recém-chegados encabeçados por dom Diego não agüentam mais esperar. A presença de Atahualpa e os supostos riscos de um ataque dos soldados de Chalkuchimac para libertá-lo estão lhes dando nos nervos. E, de fato, não podemos nos enterrar aqui... Você não acha?
Cataño apenas hesita.
- Dom Francisco não deixaria. Quer dizer: matar o Inca.
Gabriel afaga com carinho o pescoço de seu cavalo baio. Quando evocam diante dele a retidão do Governador, ele não consegue evitar sentir ainda nas narinas o cheiro de carne assada que sentiu perto da fogueira de Chalkuchimac.
- Digo que é preciso esperar.
- Ele sabe dessa ameaça?
- Dom Francisco sabe tudo e entende tudo. Ninguém aqui conhece a situação melhor do que ele. E todo mundo vê que ele não foi muito correto com dom Diego. Eles se aventuraram juntos nessa história, durante dez anos, contra todos os obstáculos, foram companheiros de todas as horas. Mas eis que hoje um está rico e é Governador, enquanto o outro perdeu tudo e não passa de um capitão!
Em silêncio, enquanto essas palavras calam dentro deles, os dois admiram mais um pouco o esplendor da planície. Depois, Cataño balança a cabeça com um sorriso cansado:
- Entendo agora por que os irmãos do Governador o odeiam tanto, dom Gabriel! Até agora, eu só via nisso ciúme de sua intimidade com Dom Francisco. Mas você é muito perspicaz. Não vão lhe perdoar nada...
Gabriel ri baixinho e olha para ele com amizade.
- Cabe a você julgar se também pode ser perspicaz, Pedro. Sem ignorar os dissabores que esse excesso de visão pode lhe trazer.
Pedro olha para ele sem responder. Mas seu meio sorriso, cheio de afeto reconhecimento, deixa claro que sua escolha já está feita.
Após uma breve saudação, sem dizer mais nada, Gabriel esporeia o cavalo e toma o rumo da cidade.
Ao calçar suas sandálias de palha, Anamaya encontra na tira uma aranha gorda de luzidias patas cabeludas. Após um movimento de repulsa, deixa o inseto lhe subir pela perna nua, hesitar em volta do joelho antes de descer e sair correndo pelas lajes de pedra. Rápida como uma sombra, a aranha some embaixo de uma esteira.
Anamaya fica um instante imóvel. Não gosta mais como antes das manhãs. Levanta-se muitas vezes toda suada, o coração transtornado por pressentimentos, entristecido com as mentiras, os silêncios carregados demais que pesam na cancha do palácio. Escondem do Inca os servos que morrem, os que fogem, a imperceptível degradação das coisas. Traçam em volta dele um círculo invisível, cada vez menor. Ali, ele ainda é o senhor absoluto. Fora dali, reina o caos, a impotência, a confusão...
É uma vida estranha à qual o amor de Gabriel não traz nenhuma certeza, mas sim uma perturbação ainda maior.
- Está sonhando, Anamaya?
Inguill nunca perdeu o hábito de entrar sorrateiramente em seu quarto com sua agilidade de viscacha. Assim sobreviveu, assim circula pelo palácio inteiro. Na confusão reinante, poucas perguntas foram feitas sobre essa criada que surgiu por milagre. Precisa-se de todas as mãos.
- Estou tentando acordar - sorri Anamaya.
- Tenho o direito de falar com você?
Inguill tem esse jeito infantil e sério que faz Anamaya sentir-se uma mãe.
- Você ouviu, como eu, os boatos que correm sobre Inti Palla...
- Não quero saber de Inti Palla.
Sem querer, Anamaya deixou transparecer raiva no que disse a Inguill. A lembrança do ódio daquela que foi uma princesa tão linda não se apaga. Inguill a fita, surpresa.
- Desculpe - emenda Anamaya num tom mais suave, pegando a mão de Inguill. - E que boatos são esses?
- Dizem que Inti Palla foi seduzida por aquele que serve aos espanhóis e traduz tudo o que se diz.
- Felipillo?
Inguill faz que sim com a cabeça.
- Inti Palla é... vai à cama de Felipillo?
- Você não sabia?
Anamaya ergue os ombros com desprezo.
- É impossível. Inti Palla é uma das mulheres de Atahualpa! Como ela ousaria isso?
Inguill assume um ar de teimosia, aperta o punho de Anamaya, levada por sua certeza.
- Como não! Eu vi. Eu não estava dormindo naquela noite e fui à cancha antes de me esconder no templo das divindades. Bem, eles... - Eles...?
- Felipillo pegava nela e ela estava toda feliz...
Um pouco da velha aversão pela pérfida princesa renasce no coração de Anamaya. Sua voz está mais dura quando pergunta: - Eles viram você?
- Acho que não.
- Eu disse para você tomar cuidado, Inguill!
- Coya Camaquen! Eu ouvi quando eles falaram o nome de Atahualpa. Eu tinha que lhe dizer!
- Sim... Eu lhe agradeço. Não se esqueça de ser cuidadosa. E agora, me deixe, menina.
Os olhos de Inguill se demoram um pouco em Anamaya, depois, a contragosto, ela obedece.
Só, Anamaya fica inteiramente imóvel. Sente uma dor lhe subir nos rins. A vergonha, o medo e a decepção formam venenos dentro de seu corpo. Ela deveria ir correndo falar com o Inca, avisá-lo do perigo, como vem fazendo tantas vezes há luas e estações.
Mas, dessa vez, só sente dor e necessidade de ficar só.
- Imbecil! Cretino!
Pela abertura do muro, Gabriel ouve os insultos. Apeia do cavalo, entrega as rédeas a um dos índios que ficam sempre na frente das canchas, e entra no pátio. Um espanhol está batendo só com o punho da espada num índio, agredindo-o com pancadas violentas na cabeça, nas orelhas e no pescoço. O homem sangra e grita.
- O que está havendo aqui? - pergunta Gabriel.
O espanhol se vira, cachos castanhos revoltos emoldurando um rosto ainda rechonchudo de criança que lhe dá um ar de anjinho. De costas, Gabriel não reconheceu imediatamente Gonzalo Pizarro, o mais moço dos irmãos do Governador. O homem mais bonito de Cajamarca. Uma beleza que é apenas a máscara de uma alma diabólica.
Gonzalo sorri com uma amabilidade fingida, mostra com a ponta da espada uma mesa aos pés da qual está a enxó.
- A gente manda esse animal fazer uma mesa. Uma mesa, está entendendo? Não um púlpito nem uma cadeira trabalhada: uma mesa. E olhe só!
Gonzalo se apoia na mesa, que balança imperceptivelmente.
- E aí? - pergunta Gabriel, esforçando-se para sorrir com tanta naturalidade quanto Gonzalo.
- Aí ela está bamba.
Gabriel vai até a ponta da mesa e põe a mão ali por sua vez.
- Não está, não - diz ele calmamente.
- Estou dizendo que está.
Gabriel se abaixa para pegar a enxó e a entrega ao índio cujos olhos estão assustados.
- Tome - diz em quíchua. - Não tenha medo.
O homem hesita, pega timidamente a ferramenta olhando apavorado para Gonzalo.
- Acho que não balança, não - diz Gabriel para Gonzalo em tom de brincadeira. - Mas, se balançasse, o Governador seu irmão concordaria comigo que isso não vale a vida de um pobre diabo.
A mão de Gonzalo está crispada no punho da espada. O nome do Governador, seu irmão, o deixa pensativo.
- Cuidado - diz finalmente.
- Caramba - brinca ainda Gabriel -, é que estou noite e dia em alerta.
As maçãs do rosto de Gonzalo ficam rubras com a gozação.
- Você não vai sair dessa comigo como saiu com meu irmão - sibila. - Estou ouvindo, Gonzalo. É que estou com saudades daquele seu
irmão mais velho do penacho vermelho. E depois, tenho tanto medo de você
quanto tinha dele. Não vê como estou tremendo?
Gabriel gira nos calcanhares, sai do pátio e dá uma fruta ao índio que segurou seu cavalo sem se mexer.
Gonzalo dá um safanão no artesão que olha fixo para o chão.
- Refaça essa mesa, seu bugre macaco! - grita. - E que ela não balance mais.
Depois, vira-se para o vão pelo qual Gabriel foi embora e aponta para ali com o punho cerrado.
- Cuidado - repete só para seu prazer.
E sorri.
Sentado na tiana, o trono real, o Único Senhor tem os olhos fechados e o rosto impassível, totalmente imóvel, como se já fosse sua própria múmia.
Quando abre as pálpebras, suas pupilas são dois minúsculos pontos negros perdidos no meio do lago avermelhado das íris.
Anamaya está calada. Um sentimento antigo, mais forte que a raiva contra Atahualpa, mais forte que a tristeza e a amargura.
A ternura.
Mas, de repente, como se tivesse percebido essa afeição, o Único Senhor faz um movimento inaudito. Escorrega do banco para o chão coberto de peles de guanaco e mantas de lã de vicunha. Estende as mãos para Anamaya. Um sussurro mal se mistura à sua respiração.
- Coya Cama quen!
Então ela se adianta de joelhos, pousa as mãos na mão do Filho do Sol, palma contra palma.
O Único Senhor treme. Seu corpo todo treme, seus lábios, suas mãos, seu peito, tudo nele treme no abalo do mundo. Ele treme até bater queixo. Treme como as pedras de múltiplos ângulos mil vezes polidas tremem nos templos quando Pacha Mama, a Mãe Terra, põe as entranhas em movimento.
Então os braços do Inca envolvem Anamaya e a estreitam. Ele se agarra a ela como seu pai Huayna Capac uma vez se agarrara em sua casa por uma noite inteira antes de morrer. Estreita-a junto ao coração como no passado quando, guiada pelo cometa, ela lhe indicava seu destino de triunfo e glória.
Ouvem-se passos nas lajes do pátio. Quando chega à porta do aposento, é abraçados assim que o Governador Francisco Pizarro os encontra.
Pizarro hesita ali, constrangido. Atrás dele, o olhar ladino de Felipillo está estupefato com o que vê. O Governador espera alguns instantes, depois, como nada aconteça, chama com uma espécie de delicadeza e respeito:
- Senhor Atahualpa!
O Inca abre os braços, e Anamaya se levanta sem pressa. Vai para trás de Atahualpa, que tornou a sentar-se na tiana. Ela fita Felipillo. O intérprete vira a cabeça, incomodado. Ela pensa nas palavras de Inguill, mas as três palavras que saem da boca do Governador captam toda a sua atenção:
- Você está livre!
Ela não tem certeza se entendeu direito.
O Governador fita intensamente o rosto de Atahualpa.
- Você está livre - retoma ele -, mas eu não o entendo.
Felipillo traduz olhando Anamaya de baixo para cima.
- O que significa isso? - pergunta o Inca. - O que o Machu Kapitu está dizendo?
Anamaya repete por sua vez, encarando o Governador cuja alma ela não consegue ler.
- Ouço boatos, senhor Atahualpa! - prossegue Pizarro mais à vontade. - Eu os afasto, mas os boatos não param... Em meu palácio, quase todos os dias, os seus caciques vêm me dizer que partem ordens suas para todas as regiões do país para reunir tropas contra nós... O seu general Chalkuchimac está aqui, conosco, mas você envia instruções a seus outros capitães, Quizquiz e também Ruminavi. Mas gosto muito de você e não acredito em tudo que me contam. No entanto, pergunto-lhe: tenho razão para não acreditar neles?
O rosto de Atahualpa se ilumina.
- Você tem razão! São brincadeiras.
O Governador ouve a tradução de Felipillo e balança a cabeça.
- Tanto melhor! Nesse caso, você poderá logo voltar a seu reino do norte como eu lhe havia prometido e reinar em paz ali, com a minha proteção, para a glória de nosso Imperador Carlos V e a de Nosso Senhor. Enquanto isso...
Atahualpa ouve com atenção. Espera. Mas Pizarro também se cala de repente, sem mostrar impaciência alguma.
- Vou morrer - declara finalmente Atahualpa.
- Como assim, morrer? - espanta-se o Governador. - Em breve vou me unir a meu Pai.
Pizarro não nega, não protesta...
Pela cortina, Anamaya de repente vê enquadrar-se o vulto de Gabriel que se esgueira para junto do Governador.
- Me perdoe! Dom Francisco! - sussurra ele, esbaforido. - Não pude voltar mais depressa.
Pizarro não se vira para ele. Não tira os olhos do Inca.
- Não diga isso, meu amigo - fala num tom doce. - Você não vai morrer. Se tem inimigos, vamos protege-lo deles! E também dos cristãos que não o compreenderem. Prezo muito nossa amizade.
- Estou cansado - replica o Inca em tom monocórdio.
- Descanse. Fique em paz e tenha um bom dia.
Pizarro sai após uma saudação que dobra em dois sua silhueta seca, seguido de Felipillo e Gabriel.
- Onde eles estão? - pergunta no pátio.
Os dois soldados se aproximam. Estupefato, Gabriel vê Sebastian, a cara fechada, trazendo correntes da grossura de um punho de criança. - Mas o que está fazendo com isso? - pergunta Gabriel. Sebastian não responde. Gabriel vira-se para o Governador: - Dom Francisco, me explique, por favor!
- Venha - diz Pizarro a Gabriel, após ter indicado com um gesto a entrada do quarto do Inca aos dois soldados. - Temos que conversar.
Anamaya ficou atrás de Atahualpa. Ao ver a cortina tornar a se levantar e as correntes nas mãos dos espanhóis, ela faz um movimento de recuo.
- Não se preocupe - diz Atahualpa -, está tudo bem.
Sebastian se aproxima do Inca imóvel. Seu olhar foge, pousa um instante nas íris azuis de Anamaya e torna a fugir.
- Mande que eles façam o que têm a fazer - pede tranqüilamente Atahualpa.
O gigante negro põe um colar de ferro no pescoço do Inca, com atenção para não apertar demais. Ata uma corrente ao colar, que é preso com um cadeado na viga mais baixa da estrutura.
Atahualpa continua imóvel. Um sorriso pálido ilumina seus olhos e relaxa seu semblante.
- Vê - diz a Anamaya -, estou livre!
Cajamarca, noite de 25 de julho de 1533
Dia após dia, a maior sala do Templo do Sol foi se transformando, com os meios disponíveis, em vago eco dos palácios da Espanha. Móveis de fabricação grosseira, mesas e cadeiras de espaldar alto, muitas vezes bambas, é verdade, foram construídos. Tapeçarias de padrões desbotados pendem nas paredes, enquanto aqui e ali há algumas arcas empilhadas. Num dos nichos, miniaturas da Virgem Maria com o Menino Deus, apreciadas pelo Governador Pizarro, substituem as máscaras de pumas, os lhamas de ouro ou prata já fundidos, as cerâmicas quebradas.
Em volta da grande mesa onde pinga a cera dos candelabros, há quatro lugares postos. Por ora, só há três convivas: dom Diego de Almagro está em frente a Gabriel, enquanto Pizarro ficou em pé.
Essa noite, dom Diego não está usando a faixa atravessada no rosto furado de bexigas. Gabriel não sabe para que olho deve olhar. O perfurado por uma lança indígena é estranhamente atraente em sua monstruosidade. Uma massa preta e seca, que parece às vezes se mexer no ritmo do olho sadio. Com seu ar grosseiro e rústico, dom Diego, que dizem ser corajosíssimo, sabe ser astuto e tirar partido de sua deficiência.
- Fui vê-lo - diz com seu sotaque arrastado da Mancha que jamais perdeu. - Fui à cela dele e pedi que ele se acalmasse.
- De quem está falando, dom Diego? - pergunta Gabriel.
- De Pedro Cataño! Seu amigo, ao que me parece! Ele veio há pouco fazer um escândalo no Conselho, interrompendo dom Francisco para afirmar que você e ele haviam abortado um complô contra o Inca! Pelo sangue de Cristo, ele não estava dizendo que daria a vida por ele? Será que é um dos seus mil e duzentos filhos, para falar assim? Embora, pela cor da pele dele, a gente possa se fazer essa pergunta...
Pizarro sorri, mas Gabriel empalidece e precisa cerrar os dentes para não insultar o caolho.
- O Governador mandou botá-lo no xadrez para acalmá-lo - ri dom Diego. - O que mais podia fazer?
- Não botar - resmunga Gabriel -, e simplesmente aconselhar que ele calasse a boca!
- Paz, senhores! - intervém Pizarro esfregando as mãos por uma vez sem luvas. - Pedi que nosso amigo Cataño viesse jantar com a gente. Não é uma boa idéia, dom Diego?
Revirando o olho, Almagro ergue os braços para o céu.
- Conheço a profundidade insondável de sua bondade, Francisco. Insondável e, se me permite: perigosa.
O semblante de Pizarro se desanuvia. Sejam quais forem as causas e a acrimônia de sua rivalidade, Almagro tem esse privilégio de ser uma das raras pessoas capazes de lhe arrancar um sorriso.
- Se Vossas Senhorias me obsequiassem com uma explicação - pede Gabriel com uma certa malícia, prevendo o que vai ouvir.
- No conselho de guerra por onde seu amigo Cataño irrompeu tão bruscamente, discutíamos com efeito o destino do Inca. O capelão Valverde e eu somos da opinião que ele é um homem que poderia ser convertido ao cristianismo, mas outros...
O bruxuleio dos candelabros lança sombras sinistras no rosto de Almagro.
- Outros acham que isso é perigoso - aprova Almagro com sua voz aguda brincando com um copo de vinho ruim. - Outros acham que não é mais possível adiar a expedição à capital do Império. Moguer e Bueno foram categóricos quando voltaram de Cuzco. Ali há tesouros muito mais consideráveis do que os que vimos até agora. Quero dizer que vocês que acompanharam dom Francisco, meu amigo e Governador, coletaram, fundiram e embolsaram cuidadosamente...
- Todavia, nenhum de nós duvida que seja necessário nesta aventura demonstrar um espírito muito cristão - replica Pizarro impassível. - Nosso Imperador Carlos V deve poder usufruir de nossas obras quando elas lhe forem entregues.
- As ordens reais são claras - intervém Gabriel. - Mandam que a vida dos Príncipes, Reis e Senhores das Índias seja salvaguardada na medida do possível.
- Na medida do possível, portanto, não em caso de traição - resmunga Almagro.
- Que traição? - pergunta Gabriel, levantando a voz.
- Não, traição, não - diz suavemente o Governador aproximando-se da mesa. - Talvez a possibilidade de, Diego! Talvez apenas, em falta de provas da traição do Inca, devamos proteger a vida dele... Enquanto aguardamos a volta de Soto.
- Temos provas! - exaspera-se Almagro batendo com o copo na mesa. - Quais? - pergunta Gabriel.
- Os depoimentos da gente deles!
- Umas bobagens, dom Diego! Sabe muito bem que entre eles só há intrigas e vinganças...
- Bobagem sua, meu rapaz! Quer a verdade? Digo-lhe uma: não podemos pegar as estradas de Cuzco arrastando esse animal emplumado atrás da gente! Todos os índios do universo cairão em cima de nós!
- O que sabe sobre isso? Ele os acalma com uma palavra! Eu já vi.
- Não viu nada, meu caro! Quem viu fui eu que tenho um olho só! Há 40 anos que vejo do que essa raça é capaz. E Francisco sabe disso tão bem quanto eu, não?
- Gosto de fazer as coisas segundo a lei e a ordem, dom Diego.
- Pois sim! Tome então as providências, Governador! Decida a data da partida para Cuzco e não deixe o emplumado vir atrás de nós!
- Isso é indigno - exclama Gabriel se levantando. - Não podem... Dom Francisco faz sinal pedindo-lhe calma e vira-se para a Virgem. - O Inca está sob a nossa proteção. Se deve ser culpado, um tribunal
vai julgar, como na Espanha.
Almagro balança a cabeçorra disforme, morde com raiva um pãozinho de milho e dá um grito.
- Diego, o que foi?
- Raios que me partam! Quebrei um dente - resmunga Almagro furioso. - Deixe para lá a sua Virgem Santa e mande nos servirem a carne, Francisco. Estou com fome!
Dom Diego de Almagro cospe o canino no chão.
A escuridão afoga os recantos do palácio de Atahualpa. O Único Senhor ordenou que não se acendessem as tochas. Negou-se a comer e a receber as visitas dos curacas, e a solicitude das concubinas e das mulheres.
Só quer a presença de Anamaya ao seu lado.
Enquanto a luz do dia entra no nicho do puma de ouro, ele se mantém calado. Somente quando é noite fechada é que pronuncia as primeiras palavras:
Sou uma fera que não sabe mais saltar.
Não há aí amargura nem tristeza: é uma constatação. Ele toca o colar, agita a corrente que o prende à parede.
- Venha cá, Coya Cama quen. Me abrace...
Anamaya pousa as mãos no Único Senhor. Sob a maciez da roupa, sente seu corpo esgotado cujo calor já se atenua. Um homem que morre por vontade própria. Um homem que já pertence ao mundo de baixo.
- Sei tudo, agora - diz Atahualpa calmamente. - É tarde demais e não tenho remorso, pois é minha própria vida que é o preço desse conhecimento. Sei o que meu pai lhe disse antes de morrer, pois estou na mesma noite que ele e logo vou encontrá-lo. Não é mais a minha voz que lhe fala, mas a dele ainda. E ouça... Ouça: por trás da nossa, há as de nossos Pais! Minha voz é mais antiga que eu e vai durar muito tempo depois de nós. Coya Cama quen, doce menina de olhos de lago, nunca se esqueça de levar a voz dos Filhos de Inti!
- Há luas, sei que o Único Senhor deve partir - murmura afinal Anamaya. - No entanto, agora que chegou a hora, tenho medo.
- Eu não tenho. Fique comigo como ficou com meu pai.
A respiração de Anamaya mistura-se à do Inca e eles são um ser só na noite.
- Já não há nenhum clã em Cuzco - sussurra Atahualpa. - Exerci minha vingança como um homem embriagado, injusto e cheio de cólera. Já não há irmãos nem inimigos... Os filhos do império hoje estão acorrentados como eu. Eles choram e sofrem por minha culpa.
Seus joelhos dobram, Anamaya o apoia, mas o colar aperta a garganta do Inca. Um grunhido de dor vibra em seu peito.
- O norte e o sul se enfraqueceram por minha culpa, o sangue do Sol correu por minha causa. Chalkuchimac tinha razão: os estrangeiros não têm nada com isso! - retoma ele com uma voz rouca. - Eles não são iguais às aves de rapina que esperam a presa se esgotar por si só. Eu, Atahualpa, filho de Inti e do grande Huayna Capac, dividi o Império das Quatro Direções e os estrangeiros se aproveitam disso. Constróem com poeira numa montanha de fogo que um dia há de despertar e queimá-los até suas cinzas se dispersarem e se espalharem no Oceano que os trouxe.
A voz não sai mais de seu peito. Está rouca como a de um vento proveniente das entranhas da terra. É a voz de todos os ancestrais, dos pais e dos filhos que construíram essa linhagem infinita desde a criação do mundo.
- Durante muito tempo rejeitei meu irmão Manco. Agora vejo o que você viu sem ousar me dizer: ele é o primeiro nó dos tempos futuros.
- E o puma?
A pergunta saiu sem querer da boca de Anamaya. Não há surpresa nenhuma na voz de Atahualpa quando ele responde:
- O puma não está mais comigo, mas você deve confiar nele. Faça o que meu pai lhe ordenou, siga esses conselhos...
No alívio que invade seu coração, Anamaya sabe que se quebra nesse instante a cadeia do silêncio que apertava sua própria garganta. Finalmente o Único Senhor conseguiu ver e compreender ele mesmo o que ela viu e compreendeu há luas. Finalmente ele está de novo próximo dos anciãos do Outro Mundo. Sim, está no caminho do fim do corpo.
Por muito tempo, na noite, os olhos fechados e o espírito tranqüilo, o Único Senhor e a Coya Cama quen se unem na mesma alegria. Já não há fronteira entre sua vigília e o sonho, a noite e o dia, a carne e a ausência de carne. Qual aves transparentes, abrem suas asas e sobrevoam as montanhas e as planícies do país bem-amado, viajando pelos tempos antigos e futuros, pelo lago de suas origens e o rio sagrado do céu, pela prata da Lua e o ouro do Sol.
Prisioneiros, eles são livres.
Os comensais já estão descascando as frutas quando Pedro Cataño entra na sala de jantar do Governador mancando. A raiva e o medo por ter sido preso lhe devastam os traços. Dom Francisco se levanta para pegá-lo pelo ombro, esse gesto bem conhecido de Gabriel, com o qual ele oferece sua afeição e exige submissão.
- Acalme-se, Pedro! Sente-se e coma!
Cataño senta-se e solta uma tirada bem pensada olhando Almagro de alto a baixo à sua frente:
- Senhores, Governador, agradeço-lhes por exercer a justiça que o Senhor Atahualpa merece.
Almagro ri, um pedaço de goiaba entre os dentes, enquanto Pizarro pergunta como se não tivesse ouvido:
- O que acham de um carteado? - Um carteado!
Gabriel não acredita no que ouve.
- Nosso nobre dom Gabriel estaria se achando sábio demais para um carteado? - brinca dom Diego.
- Excelente - retoma dom Francisco fazendo um sinal para as servas nativas. - Diego, você joga com nosso amigo Cataño, mas deixe-o acabar de comer a ave...
Almagro pega as cartas com um ar de fastio e resignação enquanto Cataño mergulha o nariz na escudela de estanho.
Nesse instante, ouve-se uma algazarra no pátio, vozes se elevando, gritos de raiva. Gabriel vai até a porta. Dois soldados cercam um dos escravos índios chegados da Nicarágua e tentam passar pela barreira dos guardas. Gabriel reconhece Pedro de Añades, um homenzinho de barba rala que não pára de transpirar, com todo o aspecto de ser do grupo de Almagro.
- Então, Añades - chama Gabriel. - O que está acontecendo?
- Esses aí não estão deixando a gente passar - berra Añades apontando para os guardas. - Preciso ver dom Diego de Almagro agora mesmo. - Agora mesmo? Você não quer mais nada! - Dom Diego está jogando cartas com o Governador.
O semblante de Añades se desanuvia.
- Então o menino Jesus é meu irmão, dom Gabriel. Também preciso falar com o governador.
- Posso lhe perguntar por quê? Añades aponta para o escravo.
- Acho - diz Añades com um ar importante - que Suas Senhorias ficariam com raiva de mim se eu não lhes levasse o testemunho desse aí... - O testemunho?
Añades leva um dedo aos lábios.
- Perdão, dom Gabriel, mas a coisa é tão grave que não posso autorizar esse homem a falar senão na frente do Governador e de dom Diego.
Há no rosto de Añades algo como a chama do prazer perverso. Gabriel, dor um instante, pensa que parece muito com as chamas de uma fogueira.
az um gesto na direção dos guardas:
- Deixem-nos entrar - ordena.
- Vossas Senhorias - começa pomposamente Añades uma vez dentro da sala de jantar. - É da maior importância que...
- Seja sucinto - atalha Pizarro.
Anãdes fica perturbado, dá uma olhada para a mesa, as comidas, as cartas, como se encontrasse aí o caminho mais curto para chegar a seu objetivo.
Acaba descompondo o índio que trouxe com ele até ali: - Fale você...
O índio se cala, olha em redor com os olhos assustados. Seus lábios se agitam mas não sai nenhum som. Añades, a cara brilhando, fala afinal:
- Esse homem diz que viu, a três léguas de Cajamarca, uma multidão de guerreiros índios em marcha para a cidade...
- Pelo que estou ouvindo, esse homem não diz nada - observa friamente Pizarro.
- Calma, Francisco! - intervém Almagro largando as cartas e pulando da cadeira. - Por São Tiago, a ameaça está em cima de nós e você nos fala como no tribunal em Sevilha!
- Esse homem pode dizer ou não. Quero ouvir o que ele diz.
- Fale - pede Gabriel com delicadeza. - Conte o que viu, ficaremos contentes.
O escravo se controla e começa em frases curtas, entrecortadas:
- Vi esses guerreiros, muitos deles, muitos... Eles vêm do norte... Eu estava escondido numa aldeia! Eles destruíram um campo de milho. Cantavam. Falavam em atacar a cidade na próxima noite...
O coração de Gabriel dispara enquanto o índio, olhos baixos, continua seu relato. A cada frase, Pizarro abaixa um pouco mais a cabeça. - Então? - pergunta afinal Añades, com um ar satisfeito. O silêncio lhe responde.
Depois a voz de Almagro ecoa:
- Vossa Senhoria vai permitir que, pelo amor de Cataño, morramos todos?
Pizarro olha-o de alto a baixo e resmunga:
- Poupe-me de suas besteiras, Diego, conheço todas elas.
Ninguém responde. Pizarro cerra o punho enluvado e sai, sem olhar para Gabriel. Almagro segue, depois Añades, seu companheiro e escravo. Apesar do clarão das chamas, o rosto moreno do jovem Cataño está cinza. - Acabou. Eles vão matá-lo. Nós perdemos, não?
Gabriel deixa sua raiva se aplacar. O peso em seu peito vai saindo lentamente e suas idéias se arrumam de novo.
- Pedro - diz em voz baixa -, estávamos juntos hoje de manhã? Cataño balança a cabeça com um ar infeliz.
- Você viu o que eu vi? Campos, ar e silêncio. Não há exército nenhum em volta de Cajamarca - mantém Gabriel. - No entanto, esse homem... - Esse homem mente!
Cajamarca, manhã de 26 de julho de 1533
- Prove-me que ele mente! - grita Pizarro.
- Não é preciso nenhuma prova: vi com meus olhos os campos e as montanhas sem nenhum exército! Dou-lhe minha palavra e lhe digo: esse homem mente. Cruzes, dom Francisco! Minha palavra não vale mais que a de um escravo? - irrita-se Gabriel.
Ele entrou sem ser convidado no quarto de Pizarro na hora em que o Governador estava se vestindo. Dom Francisco ajeita meticulosamente em volta do pescoço o cabeção de renda branca. Com as poucas plumas de cor de seu chapéu, é o único adorno que ele se permite para alegrar seu eterno traje preto.
- Dom Francisco, espere pelo menos a volta de Soto - insiste Gabriel. - Saberemos mais sobre isso. Daqui a Cajas, ele e seus cavaleiros hão de ter explorado cada ravina. Se houver mais de três índios armados, ele haverá de os ter visto ou pelo menos ouvido.
Sua voz é dura, seu olhar, furioso. Ele gostaria de ser mais calmo, mais comedido. Sabe que o Governador detesta que o pressionem demais. Aliás, Pizarro rejeita sua proposta erguendo as sobrancelhas com desdém.
- Esperar! O que vou dizer ao Conselho agora de manhã, meu rapaz? O que vou dizer a Almagro, aos Oficiais Reais?
- Senhor, se bem me lembro de nossa partida de Sevilha, o senhor não se preocupou muito com os Oficiais Reais naquela altura... Nem com o Conselho, nem com Almagro! Queria é que as coisas se passassem a seu modo e que os elementos o seguissem em vez de precedê-lo...
Pizarro olha para Gabriel. Uma expressão de divertimento brilha em suas pupilas desgastadas. Ele gosta que o lembrem dessa "extravagância". No entanto, balança a cabeça negativamente.
- O passado é o passado, meu rapaz! Agora, sou responsável por essa cidade, por você e seus companheiros. Sou o Governador, e este país deve viver segundo as leis da Espanha.
- Exatamente! - observa Gabriel com acrimônia. - Se o rei souber que esse senhor foi executado sem prova...
Os dedos do Governador tremem na aba do chapéu. A exasperação deixa sua voz surda, ele martela as palavras:
- Quantas vezes precisarei lhe dizer isso? Você não me dá a prova de que o índio de dom Diego esteja mentindo! Como não me prova que Atahualpa não esteja contando histórias para nos fazer dormir!
- Dê-me tempo para lhe fornecer essa prova e a terá.
- Chega!
Pela primeira vez, Pizarro eleva a voz e ergue a mão já calçada com a luva preta para Gabriel.
- Chega! Basta, Gabriel Montelucar y Flores! Lembre-se de quem você é e do que me deve! Lembre-se do que me prometeu!
Gabriel se empertiga, lívido de repente com a alusão à sua bastardia e ao nome odiado. Quanto ao resto, lembra-se como no primeiro dia.
Mas o Governador já está mordendo o lábio, como se estivesse embaraçado, e se corrige:
- Para a sua origem, você sabe muito bem que estou pouco ligando. Sou como você. Mas não se esqueça do resto... Você prometeu sempre se submeter ao meu julgamento. E nessa condição você é... Sim, é como um filho.
A voz do Governador se apaga depois de mencionar essa afeição secreta e ambígua que os une. "O cachorrão... ", pensa Gabriel, sem poder conter a emoção.
- Preciso da sua confiança, Gabriel - retoma dom Francisco apertando-lhe o braço. - Não se deixe influenciar demais por essa nativa, essa feiticeira do séquito de Atahualpa. Isso não é bom.
- Isso só diz respeito a mim, dom Francisco!
- Não sei...
Eles se medem um instante, olhos nos olhos. Finalmente, Pizarro agita mão como se espantasse uma mosca.
- Ah, mulher não é importante! Estou lhe dizendo isso porque meus irmãos estão incomodados de vê-lo com essa moça estranha.
Então cá estamos, pensa Gabriel quase achando graça. Esse macaco velho desvia o assunto, e quer tocar no que ele julga ser o meu ponto fraco. - Sabe o que acho dos seus irmãos, dom Francisco. Eu não me permito falar das nativas que eles pegam e largam ao bel-prazer deles...
Gabriel tem quase certeza de ter visto uma expressão de divertimento brilhar no velho rosto de Pizarro. Aproveita isso para acrescentar: - Falávamos de coisas sérias, Excelência.
- E... Tem razão. Então ouça bem. Não é só que exerço aqui o poder, por incumbência do Rei. Você me conhece suficientemente bem para saber que não me satisfaço com isso. Ninguém mais do que eu tem noção de dever e de justiça. Ninguém, está me ouvindo?
- Eu sei, dom Francisco.
- Acha que passo as noites fazendo orações inúteis, só produzindo sons com a boca? Ou acha que escuto o que a Santíssima Virgem me diz? - Eu sei - repete Gabriel.
- Não estou aqui pelo ouro, Gabriel, nem para ter terras com milhares de escravos. Deixo isso para dom Diego de Almagro e os outros... Estou aqui para escrever uma lenda para glória de Nosso Senhor Jesus Cristo e do rei Carlos V.
- Então não se deixe manchar de sangue...
Pizarro enfia o chapéu até a testa, mergulha os olhos no escuro. Fecha o boldrié com um golpe seco e coloca a mão no punho de ouro da espada como se posasse para um pintor:
- Você mantém que Añades e o escravo estão mentindo? - Mantenho.
- Mostre-me a prova.
- E depois?
- Depois nada. Traga-me essa maldita prova, e só.
Para surpresa de Gabriel, apesar da hora matinal, a praça de Cajamarca está em polvorosa. Grupos de índios conversam em voz baixa e os espanhóis patrulham, com um ar ameaçador.
A guarda foi redobrada. A noite inteira, l00 cavaleiros se alternaram nas ruas e nas estradas das imediações de Cajamarca. Todos os espanhóis dormiram armados. Ao amanhecer, o padre Valverde celebrou, na igreja inacabada, uma missa que, pelo fervor e a palidez dos semblantes, lembrava aos velhos de Cajamarca aquela da Grande Batalha de novembro.
- Gabriel!
A exclamação o sobressaltou. Sebastian aproxima-se dele, o sorriso habitual descobrindo os dentes cuja brancura e a solidez enchem os conquistadores de inveja.
- Quer vir comigo um instante?
Os dois contornam a igreja. As paredes da nave só foram erguidas até a
altura de um homem. Sobre o altar de pedra, foi erigida uma simples cruz de madeira. E estranho o efeito desses pilares apontando para o céu azul dos Andes.
- Por que foi você que acorrentou o Inca? - pergunta duramente Gabriel.
- Porque eles me deram essa ordem - responde simplesmente Sebastian.
- Eles?
- Almagro e o próprio Governador.
- Mas por que você?
A risada de Sebastian é sinistra. Sua voz está azeda:
- Meu amigo, por que você precisa sempre redescobrir as coisas mais simples? Eu, porque eu sou a coisa de dom Diego. Porque minha pele é preta e nenhum espanhol que se preze haveria de querer sujar as mãos botando corrente em pescoço de um rei, mesmo de um rei emplumado do Peru! Nunca se sabe o dia de amanhã, quando se é branco, espanhol e dom alguma coisa! Mas eu sei: a mesma bosta que ontem e hoje!
Gabriel cerra os punhos. Há tanta dor contida na voz de seu amigo que pada palavra é um soco em seu estômago. Desvia o olhar e acha o esboço da igreja mais hediondo que um rosário de mentiras.
- Minha pergunta era idiota, Sebastian, me perdoe, amigo.
- Há um oceano entre você e mim, dom Gabriel. A amizade nem sempre serve para se navegar do começo ao fim...
- Já lhe disse: eu sei e lhe peço desculpas. Será preciso pedir de joelhos?
irrita-se Gabriel. - Nossa, está bem! Você não tem culpa. Só que estou
usado de me impingirem gato por lebre. E essa noite que acabamos de passar me parece ter sido das mais negras e mais cheias de miados!
O sorriso volta aos lábios de Sebastian, deixando à mostra seus dentes
mucos.
- Eu talvez possa lhe dar uma luz. Esse índio que testemunhou ontem...
- O homem de Añades?
- É. Índio, mas escravo. Ele nem sabe mais de quem, o bugre! Eu o vi ontem à noite e tomei com ele umas daquelas cervejas deles macias na goela e que soltam a nossa língua rapidinho. Na terceira, ele já não tinha certeza se tinha visto exércitos de índios ou manadas de lhamas. Na quarta, já não tinha certeza de ter ido passear nos campos em volta da garganta. Na quinta, mostrava o alfinete de ouro que Añades generosamente lhe deu para contar essa história!
- Você é a minha salvação, Sebastian! Onde ele está? - Se eu soubesse...
- Como assim?
- Ele se apavorou quando ficou sóbrio e não consigo mais encontrá-lo...
- Pelo sangue de Cristo!
- Isso mesmo! Se você não fizer que ele fale na frente do Governador, eu é que serei o Judas! Eles me designaram para garrotear o Inca.
Gabriel olha nos olhos do amigo. Há dez minutos, teria explodido de raiva. Agora, sente-se inundado por uma amargura sem fim. Só uma última esperança ainda faz seu coração bater.
- Você não me pergunta por quê? - diz Sebastian. - Não recomece, sim!
Sebastian lhe agarra o punho e o encara com os olhos tristes enquanto descarrega, mais áspero que um ranger de serra num barrote velho:
- Se eu torcer o pescoço do Inca, o próprio dom Diego vai me dar uma espada, e o próprio dom Hernando Pizarro não vai ser contra eu sentar minha augusta bunda no lombo de um cavalo. Moguer me chamará de dom Sebastian! É um comércio que se faz, o que acha?
Gabriel contém a fúria que lhe rói a garganta. Cerra as mandíbulas e impede que sua boca solte palavras inúteis.
Sebastian tem razão: é um comércio.
Anamaya vê sem emoção a multidão de espanhóis entrar no quarto do Inca. Reconhece todos. O Governador vem à frente, depois Almagro o Caolho, o padre Valverde de Bíblia em punho e os Oficiais Reais. O intérprete Felipillo bem como os dois jovens irmãos do Governador, Gonzalo e sua beleza de diabo, Juan e seu estranho andar de orgulho e timidez misturados.
A noite inteira, ela não deixou Atahualpa.
A um sinal de Pizarro, um soldado tira o colar. Atahualpa toca seu pescoço. Seu olhar perscruta os espanhóis, um a um, com mágoa, desprezo, indiferença. Depois volta-se para o Governador.
- Por que fez isso, meu amigo?
Pizarro não responde. Chuta o colar de ferro caído no chão, como para afastá-lo do Inca e suprimir qualquer vestígio de sua existência.
- Você veio para jogar xadrez, não?
Durante a tradução, corre um murmúrio entre os espanhóis. Anamaya teve vontade de rir. Atahualpa disse isso com uma segurança serena... A noite foi cheia de reconforto para o Único Senhor.
A um sinal do Inca, um servo traz uma mesa de junco trançado. Um banco é colocado ao lado de Pizarro, depois o tabuleiro de xadrez. Atahualpa pegou gosto por esse jogo durante seu cativeiro. Perto do palácio, ao lado das oficinas de tecelagem agora vazias, são fabricados para ele tabuleiros cujos materiais e tamanho ele escolhe com atenção.
- Você fica com as brancas - declara o Único Senhor. - E eu, com as pretas. Está na ordem das coisas.
Se está surpreso, o Governador não demonstra. Descalça a luva da mão direita. Anamaya vê sua mão pequena e seca que arruma as peças com nervosismo.
Sempre em pé, o Único Senhor tira um a um os atributos de seu poder a .os entrega a Anamaya. Ela recebe o peitoral de mullus rosa e vermelho de urna delicadeza inaudita, o llautu, a fita real, e até o lenço que esconde sua orelha rasgada. O silêncio é absoluto. Todos os espanhóis têm os olhos grudados no Único Senhor Atahualpa. Quanto mais se despoja, mais ele é o fica.
Quando está com a capa e só lhe resta a túnica, diz tranqüilamente a Pizarro:
- Vamos jogar.
As servas, as mulheres, os Senhores do séquito se espremem nos nichos do fundo do aposento. Os espanhóis saem para o pátio, deixando os dois jogadores sozinhos. E Felipillo se mantém prudentemente em pé atrás de urro, lançando esporadicamente um olhar fugidio para Anamaya.
Na claridade que vem do pátio, ela não pode ter certeza, mas lhe parece que os olhos de outro espanhol procuram os seus com insistência. Um dos irmãos do Governador. Gonzalo? Juan? Cada vez que julga surpreender o olhar de um dos dois irmãos, capta apenas um sorriso de lado, como se eles quisessem gozá-la.
Lá fora, há um conciliábulo entre os espanhóis. As vozes se superpõem e o tom sobe.
Atahualpa, indiferente, move seus peões com majestade e segurança. Os movimentos de Pizarro são mais desordenados, menos regulares, menos pensados. Logo Almagro o Caolho volta ao aposento e vem se colocar tão perto do Governador que lhe encosta o punho da espada nos ombros.
- Dom Francisco, não viemos aqui para assistir a uma partida de xadrez.
Um murmúrio de aprovação percorre o pátio. Anamaya vê que o Governador já perdeu mais peças que Atahualpa.
- Dom Francisco! - insiste Almagro.
Pizarro apenas vira a cabeça.
- O que há, dom Diego?
- Nossa, Francisco! Afinal o que é isso, Sua Senhoria? Não estamos aqui para jogar, mas sim para notificar ao Inca a sentença dele.
Felipillo parou de traduzir. Anamaya faz isso, em voz baixa, ao pé do ouvido ferido do Inca. A palavra "sentença", ele se empertiga ligeiramente. Balança a cabeça.
- Bem, faça isso, meu amigo, faça - resmunga Pizarro.
Enquanto Almagro se vira para os oficiais reais balançando a cabeça em sinal de desdém, o Governador contempla o enigma indecifrável do tabuleiro. Sua mão pousa ao acaso numa das peças que lhe restam antes de passar à seguinte, sempre indecisa.
Quando ele finalmente olha para o Inca, Anamaya surpreende seu olhar confuso. Parece que Pizarro vai pedir a ajuda do Único Senhor.
Porém, o mais jovem dos oficiais acaba de entrar no aposento e desenrola um documento. Começa a ler, interrompendo-se a cada frase para recobrar o fôlego. Felipillo faz ridiculamente a mesma coisa. O Único Senhor, estalando a língua, ordena-lhe que pare. O espanhol no entanto continua a ler a ladainha do rolo de palavras. Ajoelhada junto ao Inca, Anamaya traduz apenas as mais violentas: duplicidade... mentira... traição... assassinato... exércitos hostis...
A cada palavra, o sorriso de Atahualpa aumenta.
Quando o oficial real termina a leitura, o Inca dirige-se a Pizarro:
- É por isso que vocês me matam.
Não é uma pergunta. Pizarro se perturba e deixa cair a peça que procurava mover. O Único Senhor Atahualpa se abaixa, pega a peça, coloca-a na mão dele e fecha-lhe os dedos devagar.
Seu sorriso é belo, tão terno que o vermelho de seus olhos fica esmaecido:
- Tem certeza que não quer mais ouro? Nem baixelas bonitas, está tuas, chafarizes?
Os espanhóis entraram até o centro do aposento. Ouve-se a respiração deles. O silêncio é pesado, violento.
O Único Senhor move um derradeiro peão. O Governador não tem mais peças enquanto o Inca tem quase todas.
- Está em mate, meu irmão - diz Juan com uma animação forçada.
Atahualpa pega seu próprio rei, ergue-o acima do tabuleiro. Gira-o na mão como se o visse pela primeira vez.
- É um grande rei - diz ele -, com tropas poderosas... Mas deve ter metido pecados graves...
Com um golpe seco, quebra a peça na borda do tabuleiro. A cabeça rola chão como um dado. Ninguém ousa recolhê-la.
O silêncio volta. Dom Francisco Pizarro pega a luva no banco e calça-a, tardo os dedos.
- Um grande rei, mas uma partida ruim - suspira ele. - Não posso fazer nada.
- Tem certeza?
A pergunta não pede nem recebe resposta.
Os espanhóis franzem os olhos de preocupação. Quando o Inca procura mão de Anamaya, alguns dão um passo atrás. Todos observam essa mão ura apertando a mão da Coya Cama quen como se fosse quebrá-la.
Eles ignoram o sentido desse gesto. Pensam que o Inca tem medo, que precisa do apoio de uma mulher.
Quando o Único Senhor relaxa a pressão, Anamaya vai até a peça quebrada e recolhe a cabeça do rei. Segura-a entre as duas mãos. Atahualpa sorri balançando ligeiramente a cabeça.
- Vamos - diz. - Leve-me para onde tem que me levar, meu amigo Pizarro.
Cajamarca, 26 de julho de 1533, crepúsculo
Na residência de Añades, Sebastian e Gabriel encontraram a porta fechada. Um velho escravo de boca trêmula, sentado numa cadeira bamba encostada na parede, só sabia balbuciar palavras sem nexo. Eles passaram o dia percorrendo a cidade, inspecionando cada ruela, cada palácio, cada cancha, rica ou pobre.
Terminaram encontrando-o num pátio miserável, de terra batida, com porquinhos-da-índia mascando folhas podres e passeando entre crianças nuas. Quatro escravos giram, gemendo, uma mó. Do lado de fora da cancha, alguns servos índios aguardam os sacos de farinha de milho. Sebastian mostra a Gabriel o homem sentado num tamborete:
- Esse é o homem que você está procurando, não é? - pergunta. Gabriel vê dois olhos apavorados pousarem nele e reconhecerem-no. - E ele mesmo - diz.
Ao mesmo tempo, os dois se precipitam sobre o pobre bugre antes que ele possa esboçar um gesto. Na confusão, os porquinhos-da-índia fogem guinchando e as crianças começam a gritar. Mas, por prudência, os índios largam a mó e se refugiam no escuro de um aposento miserável.
- Não quero matá-lo - murmura Gabriel, arrastando o homem para fora do pátio.
Diante dele, a fila de servos foge para as extremidades da ruela.
- Vou deixar você - diz Sebastian. - Eles estão me esperando. Ande logo. O gigante negro desaparece por sua vez correndo. Gabriel encosta o
escravo contra o muro de barro.
- Seu nome?
- Não tenho nome...
Toda a frustração acumulada durante o dia, toda a fúria da injustiça que vai ser cometida explodem em Gabriel. Com as costas da mão, duras como a lâmina de uma espada, bate na cara do homem, tirando-lhe sangue da boca e do nariz.
- Você nem sabe o seu próprio nome, é isso? - esbraveja Gabriel fora de si. - Quantos tupus lhe deram para esquecer o que sabe e se lembrar do que não viu? Quantos?
Mas no olhar do outro encontra a ironia de Sebastian pela manhã: "Há um oceano entre nós dois..."
Com a mesma violência que a raiva lhe veio, a vergonha e o cansaço lhe imobilizam os braços. Ele larga o homem que se encolhe, pingando de suor misturado com sangue.
- Seu nome?
Olhos desconfiados se erguem, olhos que só vêem medo. Gabriel se afixa e pega-o pelo ombro com uma delicadeza inesperada.
- Não tenha medo, não vou mais lhe bater.
Senta-se no chão ao lado dele, em meio ao lixo ali jogado. Deixa com diferença um porquinho-da-índia lhe mordiscar a bota. Por um vão, ele vê vulto agachado de duas mulheres. Ao longe, o som sinistro das trombetas, trazido pela brisa.
- Conte. O que seu amo lhe pediu?
- Ele me ameaçou se eu contar - murmura o homem baixinho.
- Não se preocupe, eu compreendo...
- Ele me disse que íamos todos ser mortos se eu não contasse a coisa mo ele queria... Disse que o Governador ficaria contente. Me deu o alfinete ouro.
- Você não viu soldados. Você não viu os guerreiros do Inca?
O homem esfrega os pés no chão sem responder. Segura um porquinho da índia e o joga longe sem brutalidade. E finalmente faz que não com a beça.
- O que você dirá se eu o levar ao Governador agora?
- Se eu disser a verdade, eles me matarão quando você virar as costas. - Não - diz Gabriel levantando-se e espanando a poeira. - Posso lhe prometer que você não será morto se disser a verdade.
Entre o palácio de Atahualpa e o tronco de execução que foi erguido no meio da praça, uma barreira de soldados deixa uma passagem no meio da multidão. Quando o Único Senhor sai, acorrentado, a cabeça descoberta, os nativos se jogam no chão gritando, como se estivessem bêbados. Ao redor da praça, os cavaleiros espreitam, de capacete, a mão no punho da espada.
Atahualpa está cercado pelo padre Valverde, o intérprete Felipillo e um capitão espanhol. Anamaya segue alguns passos atrás dele. O Inca volta-se para ela:
- Fique comigo até eu poder ver meu Pai - pede.
Ela balança a cabeça, com um nó na garganta, incapaz de responder. - Pergunte a eles - diz calmamente Atahualpa a Felipillo - por que
me condenam à morte.
O intérprete fica perturbado. Baixinho, na esperança de que Anamaya não o escute, diz ao capitão e ao padre:
- O Inca pergunta se pode dar mais ouro para evitar a morte.
Não é a primeira vez que o intérprete deturpa o que é dito. Anamaya está a ponto de protestar quando Atahualpa, sem se preocupar com a resposta à sua pergunta, diz com uma voz tão forte que a multidão em volta ouve:
- Desde que vocês me têm em seu poder, estrangeiros, o que fiz senão lhes trazer ouro, mais ouro, prata, pedras preciosas? O que fizeram minhas mulheres, meus servos, meus filhos senão servir-lhes e obedecer-lhes em tudo? Vocês me dizem que meus exércitos marcham para atacá-los. Mostrem-me esses exércitos. Vocês me prenderam e acorrentaram, vocês torturam o Poderoso Chalkuchimac. Há alguma vontade aqui que não seja a de vocês? Agora, se cansaram da minha presença. Querem me tirar a vida. Tirem-na. Só estarão tirando a minha presença deste mundo. Sou o Único Senhor do Tahuantinsuyu, nada pode interromper minha viagem para o outro mundo. Há muitas estações, meu Pai Sol lançou sua semente de ouro nessas montanhas para assegurar meu nascimento. Minha Mãe Lua derramou seu leite de prata em minha boca para que eu fosse forte e poderoso. Só terei alegria e paz voltando afinal para junto de Inti.
A tradução de Felipillo é, de novo, hesitante e mal-intencionada. Mas o Único Senhor Atahualpa levantou a voz e suas palavras se dirigem mais ao povo que aos espanhóis.
Quando ele se cala, um pesado gemido de dor percorre a praça. Lágrimas escorrem e brilham até no rosto dos homens. Até aqueles que se queixaram da dureza e da indiferença do Inca se curvam sentidos. Hoje, como se o sol rompesse finalmente as nuvens, a coragem e o sofrimento do chefe tornam-se os seus. Com ele, enfrentam a impotência de ser homens e mulheres do Império das Quatro Direções, com ele, sofrem o vendaval de destruição provocado pelos estrangeiros.
Dois homens o amarram ao tronco de cedro. Anamaya reconhece o homem pele negra, o amigo de Gabriel que, na véspera, colocou o colar no pescoço de ualpa. Procura o olhar dele e ali só encontra uma resignação infinita. - Onde está o Governador, meu amigo Pizarro? - pergunta Atahualpa - Quero falar com ele.
Frei Vicente Valverde, com um gesto e um suspiro, pede ao capitão a gentileza de ir buscar dom Francisco.
É então que o povo se cala bruscamente. Anamaya vê Gabriel repelindo soldados, arrastando um índio atrás de si.
- Onde está o Governador? - grita. - Tenho a prova! Tenho a prova e ele me pediu! O escravo de Añades mentiu, estão ouvindo?! Não há nenhum exército indígena, o Inca é inocente!
Após um tempo de surpresa, Valverde lhe responde irritado:
- O que quer com o Governador?
- Frei Vicente, o Inca é inocente!
- Inocente de quê? De achincalhar a vontade de Deus, certamente o! Meu amigo, se quiser ser útil a essa criatura, deveria antes rezar por ela que vociferar como um louco.
Gabriel mostra o homem tremendo ao seu lado e grita:
- Frei Vicente, devo lhe lembrar que vão massacrar o Inca não por causa de Deus, mas sob o pretexto de que ele quer aniquilar seus exércitos. Ora, esse homem aqui mentiu por ordem de Anãdes. Não há um único soldo num raio de 50 léguas! Isso lhe é indiferente?...
O dominicano fica calado.
- Pelo sangue de Cristo, frei Vicente, responda-me!
Mas Valverde não precisa responder. Um grito desvia a atenção deles:
- Senhores! Senhores! Dom Francisco desapareceu! Ninguém sabe onde está...
- Está vendo - murmura Valverde -, é inútil complicar as coisas.
Gabriel, chocado, vira-se para Felipillo, que traduz para o Inca mais as palavras. Fugazmente, vê os lábios de Anamaya também murmurando. ualpa procura o olhar de Gabriel com um pouco de espanto. Nada mais. m um gesto, manda Felipillo se calar e se dirige diretamente a ele:
- Será preciso dizer ao Governador que continuo amigo dele e confio meus filhos à sua proteção.
Antes que Gabriel possa reagir, Valverde, erguendo a cruz no alto, põese no meio deles:
- Esqueça seus filhos, Inca. Esqueça suas mulheres! Pense em Deus, pense no rosto de Deus e morra como um cristão.
- Meus filhos são pequenos, numerosos e muito pequenos - insiste Atahualpa procurando ainda o olhar de Gabriel por cima do ombro do sacerdote.
- Deus quis que você morresse pelos excessos que cometeu neste mundo. Deve se arrepender de tudo isso e Deus há de perdoá-lo.
- Meus filhos são fracos, precisam de proteção...
Gabriel escuta a voz de Atahualpa, mas os braços erguidos do frade escondem seu rosto. De repente, são os olhos de Anamaya que lhe pesam, que
pousam nele como se ela pousasse as mãos em seu peito. Então, sobrepondo-se ao sermão de Valverde, diz bem alto:
- Não se preocupe, único Senhor, falarei com o Governador a respeito de seus filhos.
Valverde gira de repente, as faces rubras, a cruz ameaçadora. - Basta! Cale-se!
Atrás dele, o rosto de Atahualpa é quase sorridente.
- Posso pedir para não ser queimado? - pergunta suavemente.
- A sentença manda que você seja - diz Valverde com um suspiro. - A não ser que morra reconhecendo a vontade de Deus Todo poderoso. - Por quê?
- Porque Deus o perdoará e você terá a clemência dele.
Os olhos de Atahualpa deixam os de Valverde. Por um instante, ele olha para a multidão como se quisesse gravar cada rosto em sua memória. E, abruptamente, exclama:
- Povo do Tahuantinsuyu, vou morrer!
Um clamor sobe da multidão, um grito mais profundo que o das trompas, um rugido mais ensurdecedor que o dos tambores.
- Vou deixá-los para finalmente ir ao encontro de meu Pai! Vou para o mundo de baixo começar minha longa viagem... Voltarei para vocês como já voltei, na forma de uma serpente... Os estrangeiros dizem que não me queimarão se eu me tornar cristão, como eles. Dizem que devo respeitar o Deus deles.
O povo se cala. O peito de Atahualpa infla apesar das cordas que o prendem.
- Povo do Tahuantinsuyu, meu corpo não deve virar cinzas para poder me levar até meu Pai. Assim, vou fazer o que eles dizem. Mas lembrem-se: u o Filho de Inti!
De repente há tanto orgulho nas últimas palavras que a multidão se anta e grita:
- É, sim, único Senhor!
- Eu sou o Filho do Sol!
- E, sim, único Senhor!
Com indiferença, em meio aos brados, às vociferações, às lágrimas, aos elos, Atahualpa se deixa batizar por Valverde.
Anamaya fecha os olhos e se lembra. Lembra-se do dia em que ajudou o único Senhor a fugir e os guardas estupefatos só encontraram em sua cela a pele de cobra... Lembra-se da manhã do Grande Massacre, quando ele interpelou o povo com as mesmas palavras, exatamente.
O manto da noite já escurece o grande vale enquanto os cumes das montanhas estão rubros. Tochas se acendem aqui e ali. Gabriel gostaria de se adiantar, apertar o corpo de Anamaya nas mãos. O índio que ele fez ir até ali observa, pasmo. Ele lhe faz sinal para desaparecer na multidão. Ao levantar o rosto, vê o olhar de Sebastian. Sem querer e sem saber bem o que pode significar esse sinal, balança a cabeça.
Sebastian põe a correia de couro no pescoço do Inca, depois passa as pontas no orifício do garrote. É um parafuso de madeira, parecido com e um quebrador de nozes. Dá uma volta na manivela, e a correia entra na carne de Atahualpa.
O rugido do povo fica ensurdecedor, fazendo coro com o céu. Girando o punho, Sebastian dá outra volta. A carne escura do único Ser clareia com a pressão da correia. Sua glote estremece enquanto sua boca se abre em silencio. Seus lábios tão bem delineados se contraem com a dor.
Anamaya abriu os olhos, fita os olhos vermelhos de Atahualpa como se quisesse se fundir em seu último olhar. Enquanto a multidão continua gritando e Valverde recita com violência, ela mal ouve a ordem de Gabriel.
- Com mais força, Sebastian, mais rápido!
O negro, dessa vez, parece girar o garrote com todo o corpo. Um estalo a corta algazarra. A espinha do único Senhor quebrou. Seus olhos caem naquilo que ninguém vê.
Gabriel percebe que Anamaya está tão perto dele que seus ombros e seus quadris se tocam. Sente as costas da mão dela roçando a sua. Ela murmura: - Ninguém pode lutar contra o que tem que ser, nem você.
Os gritos ásperos das mulheres se elevam na noite cada vez mais escura.
Os homens rasgam as vestes, arranham o peito. As chamas das tochas estão loucas. Anamaya aperta a mão de Gabriel.
- Está tudo bem - diz.
Sebastian está sentado perto da fogueira. Suas faces estão secas, mas seus ombros tremem como se ele estivesse morrendo de febre.
Cajamarca, noite de 26 de julho de 1533
É uma noite sem a luz de Quilla, a Lua. O palácio do único Senhor ahualpa está mergulhado numa escuridão que nunca terá fim.
Em toda parte, nos vastos como nos pequenos aposentos, nos pátios e nos depósitos, gemidos ecoam na noite. Ainda ontem, algumas das esposas, concubinas e das servas sonhavam servir aos estrangeiros. O povo se queixava do Inca, lembrava-se de sua dureza, sua indiferença... Agora tudo é só or. O sangue nunca correrá o bastante por esse sofrimento.
Anamaya sente-se fervendo e pára no chafariz do pátio, para mergulhar mãos na água clara. As gotas d'água escorrem em seu rosto sem refrescar.
Inguill vem ao seu encontro, sem uma palavra, aninha-se em seu peito.
Anamaya deixa e a consola. Ela também, a menina de Cuzco, a protegida Manco, chora a morte daquele cujas ordens e a crueldade causaram a morte de sua mãe e de seus irmãos.
Depois, devagarinho, Anamaya se afasta dela. Olha-a um instante no escuro, aquele rosto de passarinho banhado em lágrimas.
- Agora me deixe - murmura com ternura -, tenho o que fazer...
Inguill desaparece na noite.
Anamaya entra sorrateiramente no amplo quarto de Atahualpa. Só há a tocha acesa no fundo do aposento, não iluminando nada, mas criando o ambiente de uma casa que vai baixando lentamente ao Outro Mundo.
Seu pé bate num objeto que produz um som metálico: é o colar que acorrentava o Inca há pouco. Tateando, habituando a vista pouco a pouco à penumbra, ela encontra tudo o que cercava o Inca ainda vivo e que conserva a marca de seu calor, de sua força apagada: a tiana de madeira vermelha, a mesa de junco trançado, o tabuleiro virado...
- Você também voltou!
Um medo tremendo a percorre num instante. - Inti Palla!
O vulto da jovem sai do escuro. Anamaya tem um movimento de recuo e tropeça no banco do Inca.
- Não tenha medo...
Não é a voz da antiga Inti Palla, aquela em cuja amizade acreditou e que a traía com palavras melifluas, por trás das quais escondia-se o ciúme. - Me dê a mão, por favor.
Inti Palla está quase implorando, no entanto suas palavras parecem vir de um mundo já distante. Após alguma hesitação, Anamaya pega a mão estendida, que está gelada apesar da temperatura agradável e da umidade da noite.
- Tenho tanto remorso a noite, dormindo ou acordada, e meu espírito se agita em vão para fugir desse sentimento. Meu remorso é um quipu cujos nós já não se contam...
Inti Palla dá uma risadinha que se transforma em tosse e lhe sacode o peito.
- Não sou nada e no entanto compartilhei o leito do Inca. Quando nós duas estávamos juntas na casa das virgens de Quito, eu não queria outra coisa. Consegui o que queria. Depois, não sei como, as traições vieram povoar minha cama com mais freqüência que o único Senhor. As vinganças e as decepções se sucederam às traições...
A princesa se aproxima de Anamaya. Seu braço e seu ombro roçam nela. Sua pele está estranhamente seca e rugosa, como se todo o corpo de Inti Palla se preparasse para o Outro Mundo.
- Você via muito bem essas traições. Eu tinha medo que você o roubasse de mim. E de ser rejeitada como as concubinas esquecidas que os soldados dividem entre si. Eu, tão delicada.
Nova risada. Sem alegria.
- O remorso que sinto, sabe, é por não ter mentido, não é nem por ter traído Atahualpa com Felipillo... Meu remorso é você, menina dos olhos azuis. Amei e admirei você mais que a qualquer pessoa.
Anamaya tem outro sobressalto, retira a mão. Mas Inti Palla se agarra a ela até lhe cravar as unhas compridas na palma da mão.
- Você não quer acreditar em mim, não é? Duvida muito de mim? Não acredita em mais nada que sai da minha boca!
- Acredito em você, Inti Palla...
- Eu o queria tanto! Anamaya, nenhum outro momento de minha 'da me atormenta mais a memória do que aquele dia em que você chegou no acllahuasi. Esse dia, em que você pôs os olhos em mim pela primeira vez. Seus olhos estranhos, tão lindos, tão profundos, que o ciúme me dilacerou o ração na mesma hora. Você tinha algo que eu nunca teria... Com o tempo, compreendi que seu olhar, na verdade, só pedia amizade e fidelidade. Uma amizade para a vida toda. Mas meu orgulho, meu medo, logo me proibiram a amizade. Para a vida inteira!... Agora vou morrer. Essa noite mesmo, vou morrer com esse remorso no coração.
- Você é minha amiga - sussurra Anamaya.
Ela se surpreendeu com as próprias palavras. Estas não mentem. Apenas em voltar uma emoção muito antiga e longínqua que ela pode oferecer nesse instante a princesa perdida.
Em sua mão, a mão de Inti Palla ficou paralisada. Parece-lhe menos fria.
- Vê como é estranho - diz finalmente Inti Palla mais baixo ainda - ora não tenho mais medo.
As duas jovens se abraçam no quarto transformado em prisão e misturam suas lágrimas silenciosas. Anamaya sente a respiração de Inti Palla se mar, seu corpo se retesar com uma vontade nova e forte.
- Eu queria que você me ajudasse agora - pede a princesa que foi tão linda.
- Sim - diz Anamaya.
Pizarro está com a cabeça descoberta, uma faixa preta na manga da casa preta. Ergue o copo de prata quando Gabriel entra.
- Sabe o que estou bebendo?
Gabriel não responde. Perto de Anamaya, sua raiva havia passado, mas voltando a cada passo que o aproximava do Governador.
- Obrigado, não estou com sede - diz secamente. - Prove, filho!
O tom do Governador não admite réplica. Gabriel pega o copo que lhe é merecido e molha os lábios. Para imediatamente cuspir o líquido. Dom Francisco
o balança a cabeça, sem esboçar nenhum sorriso, e pega de volta o copo.
- Vinagre! Passarei a semana toda bebendo isso e comigo aquele caolho do Almagro e todos os outros!
- Dom Francisco, se acha que isso vai... Soto!
E quase um grito que Gabriel dá ao ver Soto entrar pesadamente no aposento, ainda de chapéu e à frente de alguns homens. O capitão está com o aspecto negro dos maus dias. Seus olhos estão cansados, sua barba, tão desgrenhada quanto sua roupa está empoeirada. Antes mesmo que ele abra a boca, Gabriel sabe o que vai dizer:
- Nada! Nada, dom Francisco! Nem sequer um soldado índio, uma tropa, uma coluna. Num raio de 100 léguas em direção ao sul, eu lhe digo: nada! Há tantos exércitos do Inca nas estradas quanto nas costas de minha mão... As únicas armas que vimos são as pás de pedra dos camponeses! É isso: nada... Mentiram para nós!
Pizarro suspira. Olhos baixos, revolve o vinagre no copo. - Fui enganado!
Soto volta-se para Gabriel, o cansaço lhe endurecendo a voz:
- O que está acontecendo aqui, Gabriel? Dizem-me que o Inca morreu. Atravesso a cidade e em toda parte escuto berros de gelar o sangue!
Gabriel estremece. Todos os seus músculos estão doloridos como se ele tivesse passado dias cavalgando em vão.
- Garroteado - murmura.
- Garroteado? Sem julgamento?
- Com julgamento.
- Mas se eu estava na estrada...
A boca do capitão treme. Ele se cala. Já entendeu.
- Com que, então, Almagro teve ganho de causa.
Abaixa a cabeça um instante, sacudindo-a como se quisesse livrar-se de uma mosca importuna.
- Governador - retoma lentamente com um tom severo. - É verdade que a presença do Inca tornava a expedição a Cuzco delicada, mas havia outras soluções que não essa execução... Lamento a morte do Senhor Índio. Ela não é boa. Nem para o senhor, nem para nós.
"E você não viu tudo", pensa Gabriel, que não consegue tirar da cabeça a imagem do colar de ferro.
Pizarro sustenta por um momento o olhar de Soto, depois enche o copo de vinagre. Molha os lábios ali sem franzir o cenho:
- Eu também lamento, dom Hernando.
Há na voz de Pizarro uma solenidade, uma tristeza que impõem respeito. Soto contempla-o em silêncio, procurando um olhar, esperando mais uma palavra. Que não vem. Ele torna a botar o chapéu e sai com seus homens.
- Conte-me - diz então dom Francisco a Gabriel. - Conte-me como ele morreu.
Elas se encontram num pequeno aposento dos fundos do palácio, cercadas de pilhas de unkus cuja variedade de formas, de tramas, de tecidos e cores é inaudita. Há ali com que vestir os únicos Senhores por várias gerações.
Elas não acharam nenhuma corda de agave no depósito. Inti Palla roubou uma dessas compridas rédeas de couro com que os espanhóis amarram seus cavalos. Entrega-a a Anarnaya esboçando um sorriso:
- O Único Senhor Atahualpa morreu com uma correia parecida.
Anamaya põe as mãos em volta do pescoço de Inti Palla. Dá com habilidade um nó sólido e corrediço na correia. Na carne fina e macia cujo tom moreno de mel atraía a cobiça dos homens, isso fica como uma espécie de lar quase bonito.
Olha a princesa. Inti Palla aprova com um leve aceno de cabeça.
- Se arrebentar - diz -, cairei no meio das túnicas do Inca e sonharei que sou a concubina que ele teve na última noite.
Ela põe um banco em cima de outro e sobe com agilidade nessa pilha bamba. Com habilidade, prende a corda na viga principal do madeiramento que sustenta o telhado de palha.
- Agora me deixe só. Anamaya sai sem se virar.
Chegando ao pátio, ouve o baque surdo dos bancos de madeira virando. É o único barulho que Inti Palla faz, ao partir para o mundo de baixo. Anamaya diminui o passo e vai beber um pouco de água fresca que continua correndo no chafariz.
Naquela noite, no palácio de Atahualpa, nas canchas de Cajamarca, no acllahuasi, dezenas de mulheres morrem assim para seguir o Inca.
Para respeitar o que mandava a sentença, de qualquer maneira foi necessário acender uma pequena fogueira. Algumas labaredas lamberam as roupas
do Inca morto, chamuscaram sua carne e seus cabelos para que se pudesse dizer mais tarde que ele havia sido queimado.
O mau cheiro dessa simulação ainda paira no ar de Cajamarca quando Gabriel deixa a residência do Governador. Um ar já irrespirável, impregnado de gritos e gemidos.
No meio da praça, o tronco de execução continua erguido. Atahualpa está amarrado ali, como um Cristo índio, mártir da noite revestido com o lamento de um povo inteiro. O sofrimento propagado por sua morte não se apaga. Vai, como uma flecha lenta, cravar-se no fundo dos corações, ferindo-os e despedaçando-os.
Mandíbulas cerradas, Gabriel atravessa a multidão. Os rostos na maioria das vezes tão impassíveis brilham de lágrimas. Várias vezes naquela noite os espanhóis, esgotados, tentaram evacuar a praça, mas isso se mostrou impossível. Homens e mulheres, os índios estão deitados no chão de terra como cadáveres, indiferentes aos chutes ou às estocadas, indiferentes ao medo ou ao sofrimento, tanto que alguns se deixaram pisotear, arrebentar a cabeça pelos cascos dos cavalos.
Ao longe, das colinas que cercam a cidade e de mais longe ainda, de onde ficava o coração pulsante do Império das Quatro Direções, ecoam as trompas e os tambores, as torrentes, a trovoada da tempestade. No céu, as estrelas se movem lentamente em seu rio de eternidade.
A respiração dos deuses incas atravessa a noite.
Chegando à fogueira, Gabriel faz o que não havia feito para ninguém até então. Ajoelha-se e une as mãos, em silêncio, diante do corpo de Atahualpa. Ele, que prometeu a si mesmo não mais rezar desde que fora preso nas masmorras da Inquisição, encontra sem dificuldade palavras e um fervor que o espantam.
- Eu sabia que você viria...
É apenas um sussurro, mas ele imediatamente reconhece a voz e o sotaque. Não se vira. O coração aos pulos, os olhos fechados, sente a presença de sua amada.
- Fiz de tudo para eles não o matarem - murmura.
O mau cheiro passa, ele respira o perfume dela, ela está tão perto que o envolve nos braços, lhe fecha a boca com a mão leve. - Eu sei.
- Eu tinha a prova. Soto voltou. O Governador agora está convencido. Porém, não adianta mais nada. É tarde demais.
Anamaya o abraça devagarinho, seu peito treme contra o braço de Gabriel.
- Não. Nem cedo nem tarde demais. Isso aconteceu quando tinha que acontecer. Eu lhe disse: está tudo bem. O Único Senhor agora está onde devia estar. Você também fez o que devia fazer. Como um de nossos heróis, um guerreiro vivo no meio dos soldados de pedra...
- De pedra?
Ela balança a cabeça, calma, serena.
Eles estão juntos na noite. Suas respirações se harmonizam. Apesar do horror em volta deles, ele se espanta com a violência súbita de seu desejo por ela. Com uma ponta de constrangimento, sente seu membro se enrijecer enquanto os dedos de Anamaya deslizam sob sua camisa, finos, ágeis. Em seu ombro, encaixam-se nos contornos da marca do puma.
- Há coisas que você deve saber - sussurra ela. - Esse sinal em seu ombro... O que beijei na primeira noite...
A carícia é deliciosa, a doçura o percorre todo.
- Eu me lembro...
- Esse sinal representa exatamente um animal de nossas montanhas, um animal que encontramos em nossos ritos, em nossas grutas sagradas, e que nos acompanha...
- Como se chama?
- O puma. Uma noite, já há muitas luas, quando eu não passava de uma menina trêmula, o pai de Atahualpa, o Inca Huayna Capac, me chamou. Ele me confiou segredos do passado do império, mas também de seu futuro...
A voz de Anamaya é doce, carinhosa como sua mão e sua boca. Gabriel se deixa arrastar sem esforço nem espanto, enquanto ela lhe conta como se tornou a Coya Camaquen, a esposa do Irmão Duplo da múmia do grande rei.
Como ela o acompanhou, perdeu e voltou a encontrar no coração da huaca, do labirinto de pedra sagrada.
- Foi ali, no escuro do terror, que o vi pela primeira vez. Você era o uma de olhos de luz. Aquele cujas garras apavoram, aquele cujo bote atravessa as montanhas... Eu não sabia se você iria me devorar. E ouvi a voz de uayna Capac me dizer: Confie no puma...
Gabriel não tem certeza se entende tudo o que Anamaya diz. As palavras atravessam seu espírito sem parar, como aves noturnas, e voltarão em seus sonhos.
- Quando tive você na minha frente, quando vi os seus olhos e o puma em seu ombro, vi que tinha chegado até mim. De onde você vinha. Para onde voltava...
Ela ergue os olhos azuis para o cadáver de Atahualpa.
- Há uma vida aqui, mas outras além, em vários mundos... Viajamos deste mundo para o mundo de baixo e do mundo de baixo para o outro mundo, do céu, o mais lindo e mais perfeito... Nós voltamos, nós nos transformamos...
- Você também? Anamaya, você fez essa viagem? Ela não responde.
Vira os olhos azuis para os dele e seu sorriso aumenta seus olhos de lago, seus olhos de céu, seus olhos de noite, e ele mergulha ali com confiança, para uma viagem da qual sabe que não quererá voltar.
Cordilheira de Huayhuash, 5 de outubro de 1533
- Cuidado!
O grito ecoa bem em cima de Gabriel. Instintivamente, ele abaixa a cabeça sob o escudo prontamente erguido e crispa a mão sobre a rédea de seu cavalo, forçando-o contra o muro. Fragmentos de rocha despencam como uma metralha no abismo, blocos enormes caem ali com um estrondo. O impacto das pedras nas lajes e no ferro dos escudos ecoa como golpes de maça enquanto os homens prendem o fôlego. Alguns pedriscos repicam na garupa dos cavalos que bufam. Depois, tudo se cala.
Quase simultaneamente, os longos vultos de Candia e Sebastian se levantam. Como Gabriel, eles deixam cair os escudos e olham para o alto da encosta.
O desmoronamento deve ter sido bem em cima do ressalto que ainda esconde a garganta. Preocupado, Gabriel vira-se para os carregadores que seguem. Mas todos souberam se proteger e somente alguns fardos rasgaram.
- Maldita artilharia! - reclama o Grego. - E eu entendo disso!
Os olhos de Candia estão brilhantes. Os três amigos se fazem a mesma pergunta: o desmoronamento é natural ou foi provocado pelos guerreiros de Quizquiz e Guaypar?
Na verdade, de onde eles estão, é impossível dizer.
- É o terceiro desde hoje de manhã - observa Sebastian com um esgar irônico. - Se não provocaram esse, é que têm um deus para fazer o trabalho no lugar deles!
Candia murmura um insulto que se perde no vazio.
- Em marcha - ordena Gabriel estalando as rédeas na garupa do cavalo baio. - Não vale a pena ficar congelando aqui.
Atrás deles, a imensa coluna se estende fumegando por toda a encosta. É como se um povo inteiro estivesse avançando pela encosta da montanha. Os 400 espanhóis conduzidos pelo Governador, Soto e dom Diego Almagro estão afogados, engolidos por essa legião imensa composta de milhares de índios, escravos ou tropas aliadas dos cañaris, guerreiros da costa, servos dos pequenos senhores locais, reunidos de bom grado ou a contragosto ao poderio novo e fascinante dos estrangeiros.
Mas o tempo está violento, encoberto, frio e úmido. A montanha ergue seu picos e suas gargantas diante deles assim como outras tantas provações destruidoras. Parece elevar-se sempre mais alto, envolvendo-se nas brumas e no ar gelado. Um concerto de tosses e gemidos, de gritos e imprecações mistura-se à percussão espaçada dos cascos.
Quase no meio da coluna, pouco atrás do pelotão de cavaleiros que cerca o Governador dom Francisco Pizarro, vem a liteira de Chalkuchimac. De longe, mesmo na claridade cinza, ela é identificável pela variedade de plumas que a decoram. Desde os primeiros passos da manhã até o esgotamento da noite, uma barreira cerrada de soldados da infantaria espanhola o cerca, trocada a cada cinco horas. As torturas enfraqueceram o general inca, mas a lenda de sua coragem não perdeu intensidade entre os guerreiros índios. Não há dia em que o Governador e os seus não temam um ataque para libertá-lo.
Na subida íngreme e escorregadia, o caminho real que conduz à capital serpeia em curvas cada vez mais fechadas. Todos os cavaleiros apearam há muito tempo para aliviar os cavalos que respiram com gemidos de forja.
A bruma ora se esgarça, ora se adensa, ao sabor de aragens invisíveis. Às vezes, quando se aproximam de alguma garganta, Gabriel fica ofuscado pela luz violenta do sol, enquanto o azul do céu fica profundo como o de um oceano.
O mundo que ele descortina não parece ser o da terra. As ladeiras se suavizam numa ondulação macia e nua, lavadas pela chuva e varridas por ventos loucos. A poeira das rochas cobre capins curtos e amarelos, queimados pela geada. Não há um arbusto, uma planta, uma árvore sequer. Apenas enormes penedos negros brotam aqui e ali do solo ocre e vermelho, como cancros. Esse mundo já não pertence aos homens - só se pode contar com a sorte para atravessá-lo sem estragos.
Aqui, mal se pode respirar. Cada passo parece mais pesado, como se todo o ouro fundido em Cajamarca tivesse sido vertido dentro dos saltos das botas!
A última noite de Gabriel foi apenas um longo pesadelo. Vinte vezes ele acordou, gelado e suando, a boca aberta, certo de que estava sufocando. Vinte vezes sonhou que caminhava num país sem ar, levantando-se em cima de suas cobertas com um gemido de animal agonizante. E 20 vezes, ao seu redor, escutou os gemidos dos amigos acossados por um medo semelhante.
Ao acordar, não comeu quase nada. No meio da tarde, proibiu-se de pensar que não ia encontrar forças para prosseguir, que devia ficar à beira do caminho. Contou seus passos de 100 em 100, depois de dez em dez, e agora só os conta de um em um, espantando-se de ainda conseguir por um pé na frente do outro.
Quando seu cavalo escorrega numa das pedras do caminho, a rédea o puxa e é ele que perde o equilíbrio. Precisa se agarrar a cabeça da sela para recuperar a firmeza das pernas.
Cada esforço o esgota um pouco mais. Mas o esforço também o obriga a sair do torpor que às vezes o invade como uma droga.
Apesar do lenço azul que amarrou sobre a boca, seu rosto começa a congelar. Dentro das luvas de couro grosso, não sente mais os dedos. No entanto, um suor gelado molha seus rins. Um zumbido ecoa em suas têmporas, embaralhando-lhe a vista. Sua garganta está em fogo.
Os conselhos de Anamaya giram no que lhe resta de consciência: "Não are, não pare, mesmo se não agüentar mais, você não descansará e ficará esgotado mais rápido ainda! Quando estiver cansado", acrescentou ela afagando-o, "masque lentamente o que vou lhe dar."
Sim, ela lhe deu... Por que não se lembrou disso antes?
Com uma lentidão incompreensível, seus dedos insensíveis procuram e encontram a bolsa de tecido, a chuspa que ela pendurou em seu ombro. A geada dou na lã. Ele tira dali algumas folhas verdes que enfia na boca sem se dar tempo para pensar. O gosto é insosso, ligeiramente acre, e ele por pouco não cospe imediatamente. Depois, começa a mascar maquinalmente; uma sensação de leveza o invade e sua dor de cabeça diminui.
Em alguns pontos, o caminho é ladeado por um muro com mais de nove metros de altura, cujas pedras estão assentadas com essa arte da alvenaria que ele aprendeu a conhecer e que beira a magia. Seu cavalo hesita novamente, como se sentisse sua própria apreensão. O precipício parece de repente perigosamente próximo e Gabriel se surpreende pensando: por que diabos construir um muro no meio do nada? No entanto, é invadido por uma estranha euforia ao enfrentar assim os elementos, e fica praticamente indiferente às saraivadas de granizo que lhe açoitam o rosto.
Depois do muro, vem uma curva acima da qual se percebe finalmente a garganta. Gabriel vira-se para a coluna que avança como pode. Vê os cavalos derrapando e caindo, os carregadores penando, essa chuva gelada que vara as roupas e pica os homens até os ossos. A fila é às vezes interrompida por um homem doente, derrubado no meio do caminho pelo esgotamento ou pelas náuseas.
- Você viu?
Gabriel vê aparecer como um fantasma o sorriso de Sebastian. Olha de novo para a garganta. Dois enormes blocos escuros marcam a passagem, como uma porta entalhada por gigantes. Ele faz que sim e sorri também. Cada subida é mais longa que a descida precedente, e, ao mesmo tempo, ele sustenta uma espécie de esperança absurda de que seja a última.
Há algumas semanas, quando deixaram Cajamarca, a tensão entre os partidários de Pizarro e os de Almagro era violenta. O Governador responsabilizava o marechal por uma execução injusta que podia sensibilizar a Coroa; Almagro invectivava contra a traição dos compromissos e o roubo permanente de que ele e seus partidários eram vítimas na divisão do ouro... Nas montanhas que se erguem quase sem limites, diante dos precipícios, das pedras que voam e da neve que tudo abafa, na preocupação surda que aumenta, já não há partidários de um ou de outro, nem ricos nem pobres - apenas homens que simplesmente tentam sobreviver.
Num claro de luz, Gabriel vê o céu se desanuviar, o branco leitoso de sua coberta se esgarçar para deixar passar um azul límpido luminoso e tranqüilizador. E no meio desse claro, um pássaro negro cujas asas largas terminam em pontas semelhantes a dedos. O condor plana e dança no ar, dando uma impressão de poder e liberdade ilimitados. É belo, e, no entanto, Gabriel não consegue evitar a lembrança do ataque na ponte de Huayllas, os carregadores jogados no chão, seu duelo com Hernando.
Por um momento, esquece o cansaço e o frio.
Depois, tão bruscamente quanto abrira, o céu torna a se fechar, e um vento glacial traz flocos cada vez mais gordos. Gabriel só pode abrir os olhos de modo fugaz, para ver o vulto colocado à sua frente, vergado pelo vento e o esforço.
Nesse momento de esgotamento das forças, de solidão extrema, ele se sente inexplicavelmente invadido por uma confiança que aquece seus membros exaustos e derrete seu medo.
Ele tem certeza de que Anamaya está ali, presente ao seu lado.
Na garganta, a tempestade se acalmou bruscamente, como o vento, e o céu vai se desanuviando lentamente. Gabriel aperta os olhos e respira devagarinho, o rosto em fogo, enquanto os poucos espanhóis que chegaram antes dele bebem demoradamente em seus cantis.
Os nativos depuseram seus fardos e se agacharam, com a indiferença habitual. Um deles olha para Gabriel, que lhe dirige um sorriso; o homem mostra os dentes verdes, aponta para os dentes de Gabriel e começa a rir em silêncio.
- Coca - diz ele satisfeito -, coca!
A alguns passos dali, um jovem do grupo de Almagro, de quem Gabriel não sabe sequer o nome, está sentado encostado numa pedra. O rosto cinzento, inchado, ele está com uma tosse seca e tem a respiração irregular, chiante.
vezes, vira-se para cuspir uma espécie de espuma rosa que cai na neve mo uma flor vermelha.
- O que você tem, colega?
- Estou vendo... estou vendo... - repete ele num estertor que lhe
arranha a garganta.
- Está vendo o que?
O homem não responde e leva as mãos a cabeça, apertando-a como se
quisesse quebra-la, atormentado por uma violenta dor.
- Tem ouro - diz o rapaz -, muito ouro, e esse cavaleiro de armas que o guarda...
Suas palavras são entrecortadas de acessos de tosse e Gabriel se sente evadido por uma ternura profunda por esse jovem desconhecido que sonhava com aventura e fortuna e que, sem dúvida, está morrendo nessa garganta e uma doença misteriosa.
Ajoelha-se ao lado dele, pega-lhe a mão entre as suas, tentando aquecê-lo. A mão está fria como mão de defunto.
Então Gabriel o envolve nos braços. Encosta o ouvido no peito coberto pela casaca encharcada. É como se ouvisse um lago furioso agitando-se dentro daquele corpo. As vezes a respiração pára abruptamente mas, lá dentro, essa chiadeira e incessante.
Afasta o rosto do homem, mas continua tocando nele.
- De onde você é? - pergunta com uma voz que procura manter firme. - Como se chama sua mãe?
O jovem está de olhos fechados. Seu corpo é agitado por convulsões que ele não pode mais controlar. Quando cospe, sacode-se todo.
Os homens que chegam mantêm-se afastados dele e só Gabriel permanece a seu lado.
Ele parece adormecer de repente, como se um torpor o invadisse e o levasse. No entanto, Gabriel ainda sente vida bater em seu pulso.
- Estremadura - murmura afinal o rapaz, tão baixo que Gabriel precisa debruçar-se sobre ele para ouvir. - Maria...
- Sou da mesma região que você e minha mãe tem o mesmo nome que a sua. Não tenha medo, estou com você.
A mão do homem se crispa, e seu rosto é deformado por uma dor que não deixa nada incólume. Ele levanta o corpo como se quisesse sair da terra.
- Estou com calor - diz -, estou sufocando! Abra a janela!
- Você vai rever nossa terra queimada bem antes de mim, meu amigo, e o rosto da sua mãe o estará olhando de cima como quando você era criança.
A vida o deixa num derradeiro frêmito. Ele já não está em paz nem em guerra. Viu, antes de morrer, o rosto de sua mãe e o do cavaleiro que defendia o ouro. Está morto.
Gabriel se levanta. A vida está dentro dele, toda gelada, suada, miserável. A vida, estranha fronteira que as raivas, os medos, as ânsias não transpõem...
Ele vai titubeando em direção à massa dos homens que desviaram os olhos e taparam os ouvidos.
No céu que de repente ganha as cores do crepúsculo, enquanto a tempestade se afasta, ele vê primeiro um ponto negro, depois outro. Os condores voltam a pairar em cima da garganta, sinistros e majestosos.
Um dos grandes penedos negros, na passagem da garganta, está escavado na parte de trás numa espécie de rebaixo semelhante à abside de uma igreja. Destaca-se contra o céu de um preto azulado e de repente o coração de Gabriel palpita: sua forma casa exatamente com a da montanha situada ao fundo, cujo pico nevado o poente tinge de ouro. Gabriel vira-se para os espanhóis ao seu redor; eles estão de cabeça baixa, ombros encurvados, e murmuram o que o padre diz. Sob o céu estrelado, no frio que começa a apertar, diante do morto que logo foi coberto com uma manta para os nativos não verem, eles encontram o caminho desse Deus a quem não rezaram muito.
Gabriel não chega a se perder na oração. O olhar enigmático do rapaz não pára de persegui-lo e ele sente uma mão a puxá-lo para o outro lado da noite. Não se cansa de olhar esse rochedo, a montanha que está atrás; seu olhar segue os alinhamentos de pedra que os cercam, volta para a mesa montada em dois grandes blocos de pedra situada no centro e onde se encontra o padre. Um altar em plena montanha...
Ele dá meia volta, recua alguns passos na neve que estala. Ao sair da proteção natural do rochedo, sente uma brisa leve e glacial. Não há outra luz além da das milhares de estrelas que cintilam no céu e que não deixam de intrigá-lo; sejam eles da Estremadura ou de Castela, da Galícia ou mesmo da Grécia, os Conquistadores todos nasceram sob o mesmo céu. Esse aqui é diferente, como se um deus brincalhão tivesse se divertido jogando as estrelas ali caoticamente. Sim, é mesmo um outro mundo.
As suas costas, ele ouve o rumor da oração e dos responsos indistintos de seus companheiros. Porém, mais abaixo, vindo das vastas tendas índias que foram montadas na plataforma natural situada na garganta, ele escuta uma espécie de zumbido musical monótono e triste. Não há tambores nem trompas - é apenas o murmúrio das vozes dos índios que, reunidos por tribos, contam suas histórias uns para os outros e evocam seus deuses.
Assim, ignorando-se mutuamente, não se entendendo, separados pela guerra, os espanhóis e os índios acabam sendo homens parecidos em seu medo da morte e seu assombro diante do céu.
A parte, numa tenda erguida atrás de uma pequena elevação de pedra e neve, Gabriel ouve algumas vozes gritando. Aproxima-se. Embaixo da tenda, homens bufam e se animam, tentando cavar o chão congelado com uma espécie de enxada cuja extremidade, visivelmente de bronze e não de ferro, morta ao bater na terra gelada.
- Ferramenta de merda! - resmunga Sebastian.
Ele entrevê a cara suada do amigo, e também a de Diego Mendez, um almagrista de cabeça de fuinha, mas cuja cara e cujos olhos incharam a tal ponto que um deles é apenas uma fenda. Estranho mal das montanhas, que escolhe seus homens indiscriminadamente, para lhes infligir seus ataques e os deixar vivos ou mortos.
- Venha suar com a gente! - chama Sebastian. Gabriel volta para a noite sem responder.
As tendas incas estão reunidas ao redor da de Chalkuchimac e são reconhecíveis pelas linhas de motivos geométricos que ornam suas lonas de algodão branco.
Quando ele se aproxima, as vozes ficam mais baixas ou se calam, os homens e as mulheres se enrolam em suas mantas, e desviam o olhar quando ele os encara.
- Eles não têm medo de você.
Gabriel se vira. Protegida por uma capa de lã cinza e preta, Anamaya esgueirou-se para junto dele. Gabriel sorri no escuro para si mesmo. - Eu estava procurando você...
- Tive medo por você.
Sem fogo para iluminá-los, Gabriel não pode ver a expressão do rosto de Anamaya; mas ouve a terna preocupação em sua voz. Sente o corpo dela junto ao seu, e um arrepio que não é de frio o percorre. Precisa cerrar os dentes para não se entregar ao desejo de beijá-la, abraçá-la...
- Os soldados de Quizquiz estão na montanha - retoma ela -, e Guaypar é um deles...
- Guaypar?
O nome do capitão inca lhe traz aos olhos a imagem de um homem de testa e nariz orgulhosos, com o olhar enclausurado no ódio.
- Eles agora conhecem vocês - diz Anamaya -, e sabem que são mortais... Não terão mais a ingenuidade do Grande Massacre... Vocês agora estão no território deles e seus cavalos escorregam, suas espadas atrapalham vocês, enquanto as pedras deles voam e acertam...
Gabriel fica calado. Há dias, está com essa sensação de impotência e essa preocupação, como estão todos os espanhóis.
Em volta deles, progressivamente, os índios retomam suas conversas normalmente. Ele se sente cercado por essa presença onde toda hostilidade está adormecida. Por enquanto. Atrás de uma tenda, ele vê a claridade de uma fogueira, sombras que se agitam. Volta-se para Anamaya.
- Eles encontraram lenha?
Ela não responde e ele não insiste. Às vezes seus silêncios o intimidam. Eles caminham juntos para o rochedo, onde, há pouco, o padre celebrava a missa.
Passam por um grupinho de espanhóis que riem e brincam em volta de uma espécie de fortim quadrado feito com baús e sacos. Prenderam guizos nos arreios dos cavalos, para que seja dado o alerta ao primeiro movimento suspeito na noite.
- O ouro - suspira Gabriel.
- Eles o protegem melhor que a si mesmos...
Gabriel faz um gesto de impotência. Por causa de sua fuga com Anamaya, Pizarro privou-o do butim; essa humilhação acabou sendo uma bênção e ele está feliz de nada ter e nada querer.
Eles se aproximam do penedo negro, cuja sombra agora se confunde completamente com a noite.
- Conhece este lugar? - pergunta Anamaya. - Não.
- Para nós, as montanhas são deuses, como o Sol e a Lua, como as nascentes e os ventos ou ainda esses penedos, cuja forma indica a presença de uma divindade... Estes lugares foram trabalhados pela mão de nossos ancestrais para assinalá-los para nós... desde então, fazemos sacrifícios ai para agradecer aos deuses sua prodigalidade... Chamamos essas pedras de huacas. Uma voz surge da escuridão:
- O Deus cristão também conheceu os sacrifícios... Mas segurou a - mão de Abraão sobre seu filho Isaac, fez os homens obstinados se dobrarem e lhes enviou Cristo para redimir seus pecados...
A voz é doce e nela não se identificam os tons vingativos de frei Vicente Valverde. Instintivamente, Gabriel levanta-se para proteger Anamaya. - Não tenha medo - diz o homem de voz suave -, conheço você... O vulto sai da sombra da pedra e aproxima-se deles sem fazer barulho na neve pisada. O homem levanta a mão direita e diz a Gabriel com um sorriso:
- Sabe de onde venho, agora?
Gabriel, confuso, olha os olhos cinzentos no rosto glabro, muito jovem ao mesmo tempo velhíssimo do homem, e essa mão que ele ergue acima ele, sem ameaça, como para abençoá-lo, essa mão da qual dois dedos - o indicador e o anular - são colados. Lembranças indistintas se agitam dentro ele até que ele exclama:
- Meu Deus!
- Está vendo que você sabe se voltar para ele quando é necessário, amigo de Erasmo...
- Frei Bartolomé!
- Quando penso - diz Bartolomé virando-se para Anamaya - que passamos dois meses juntos e que esse homem havia apagado tudo da memória, salvo um triste acidente da natureza...
A emoção percorre Gabriel de alto a baixo. Há muito tempo não tornara a pensar naquela masmorra, não evocava a lembrança do medo de ser torturado, da raiva que sentia do pai e de sua sensação de humilharão diante dele... Nem a lembrança - que chega a envergonhá-lo - de doña Francesca.
- Era uma outra vida - diz Gabriel.
- No entanto, é a mesma.
Os dois homens se olham na noite até que, num só movimento, se abraçam.
- Desde quando aderiu à expedição?
- Cheguei a Cajamarca alguns dias depois que você partiu. - Mas como é que não o vi até agora?
- Como, não é?
- Não banque o teólogo comigo, frei Bartolomé, respondendo a uma pergunta com outra pergunta.
- Quando uma pergunta não tem resposta, mais vale fazer outra. Ou então ficar quieto...
- Ficar quieto... Foi o que me aconselhou, há muitos anos. E ainda não sei se serei capaz de ficar...
- Você me parece capaz de muitas coisas - diz alegremente Bartolomé olhando para Anamaya.
Os dois homens e Anamaya chegaram a tenda onde Sebastian e seus companheiros cavavam a sepultura.
- Devo abençoar esse infeliz - diz Bartolomé. - O que está fazendo aqui, frei Bartolomé?
O monge não pestaneja nem desvia o olhar. Mas não responde. - O ministério de Deus - diz finalmente com um sorriso. - Quando não há resposta para uma pergunta... - Não lhe respondi?
Bartolomé entra na tenda.
Gabriel fica um momento contemplando a noite. Depois Anamaya o leva.
- Esse homem não é como os outros - diz ela. - Não é como você, mas não e como os outros.
- Para mim também ele é estranho, sabe... - Ele será capaz de nos massacrar?
O olhar de Gabriel procura adivinhar as estrelas cujo esplendor ilumina o céu, varar a noite na qual os pássaros se acham escondidos, cortar o frio... - Não acredito - diz finalmente -, mas não sei.
Hatun Sausa, 11 de outubro de 1533
Ao avistar o campo, na claridade cinzenta da aurora, os homens todos se calaram. O que a mão semeou generosamente aqui não é o malva delicado da quinoa, nem o ouro do milho: é a morte.
A batalha entre os partidários de Huascar e os de Atahualpa aconteceu semanas antes, mas os guerreiros permaneceram onde caíram, uns com a cabeça na lama, outros com os olhos voltados para o céu. No entanto, Gabriel sente nessa paz eterna uma impressão atroz: é o cheiro pestilento dos corpos em decomposição, é o movimento irresistível do mato crescendo, é o alvoroço dos vermes alimentando-se dos ferimentos, são os pássaros que arrancaram os olhos das órbitas... Ao todo, quase quatro mil cadáveres juncam a planície, estranha colheita que a terra absorverá, que o verde logo cobrirá.
O dia está lindo e os homens vomitam.
Gabriel desvia o olhar e tenta encher os olhos com a paisagem verdejante. Após a dureza das gargantas, da neve e do frio, reina nesse amanhecer uma temperatura clemente, uma promessa de calor, um irresistível impulso que dá vontade de rir e chorar ao mesmo tempo.
A frente da longa coluna, só o governador dom Francisco Pizarro parece indiferente à carnificina como à beleza. Pára com freqüência seus guias nativos para observar um acidente do terreno e pedir uma explicação. Guarda junto de si, com grandes declarações de amizade, o curaca da cidade, um huanca de cabelos longos cingidos por uma coroa de quatro dedos de largura. "Vamos cuidar de você", diz ele volta e meia. "Vamos libertá-lo dos Incas." Quando traduzem o que ele diz, o olhar do homem se ilumina, e ele aprova com grandes movimentos de cabeça.
Pizarro passou a noite orando, como nos primeiros tempos da conquista. Os velhos de Cajamarca sentem uma apreensão conhecida lhes apertar o estômago, deixando-os excitados e temerosos.
- Vamos lutar.
A vertente da montanha domina a cidade de Hatun Sausa. Trata-se de uma bela cidade inca, com seu templo do sol, seu acclahuasi, seu ushnu na característica forma de pirâmide no meio de sua vasta praça, as canchas muradas, os entrepostos, as ruelas estreitas... É uma bela cidade situada no fundo de um grande vale, encostada num rio largo.
É uma bela cidade inca, mas está em chamas.
Um pouco mais alto na montanha, Pizarro acabou retido pelas dificuldades de avanço da liteira de Chalkuchimac. Embora o general nunca se mostre, embora esteja confirmado que os ferimentos decorrentes de suas torras o impedem de caminhar, o Governador se convenceu de que ele dirige ais ou menos secretamente os movimentos das tropas indígenas; por isso, ao aproximar-se a batalha, não quer sair de perto dele.
Para diminuir a impaciência de seu irmão Juan e a de Almagro, ele deu ordem ao grupo dos cavaleiros de Soto para se dirigirem à cidade... Vai longe tempo em que Gabriel precisava implorar para fazer parte da vanguarda. Com um sinal de cabeça, Pizarro pede que ele siga Soto. "Por via das dúvidas, mo sempre", pensa Gabriel achando graça. Com os calcanhares, acelera seu valo e se coloca entre os 15 cavaleiros que vão em fila, dois a dois.
Logo na entrada da cidade, Soto pára o grupo de 15 cavaleiros. O essencial as tropas indígenas está concentrado do outro lado do rio, mas vêem-se nitidamente soldados de túnicas coloridas, empunhando tochas, ateando fogo metodicamente aos prédios principais, começando pelas collcas onde estão armazenadas as reservas de comida.
- É preciso ir lá! - grita Diego de Agüero, um dos caballeros mais fogosos.
- É preciso aguardar - diz Soto.
- Você é bem prudente, capitão Soto - intervém Gabriel. Soto sorri.
- Obedeço às ordens do Governador.
- Tudo está queimando, Soto, em duas horas não sobrará nem uma espiga de milho, nem uma carne-seca nesta cidade - reclama um caballero.
- Soto - retoma Gabriel -, deixe-me fazer uma patrulha com Agüero e Candia...
- E comigo - diz um cavaleiro que estava atrás.
- E com ele - diz Gabriel sem se virar. - Um galope bem conduzido poderia rechaçá-los sem que tudo fique em chamas.
Soto pensa um instante.
- Eu digo, isso é responsabilidade de vocês! Fiquem vivos, meus amigos, até chegarmos com reforços.
- Não se preocupe, capitão. Vamos pôr a mesa. Procure apenas não faltar ao jantar!
A trote, atravessam o vau. Gabriel vai a galope até as casinholas em forma de cone truncado onde o caminho real se transforma em ruela. Uma fumaça densa e acre já está estagnada entre as casas. Na entrada da praça, um índio, túnica rasgada, rosto sujo de fuligem, ergue os braços. Sem grande espanto diante da presença deles, grita em quíchua, correndo atrás dos cavalos:
- Estão queimando tudo! Salvem-nos!
Os huancas estão entre essas tribos que os Incas submeteram à força e que nunca aceitaram bem a dominação. Gabriel vira-se para os três companheiros:
- Estão nos acolhendo como libertadores! - diz.
- Vamos libertá-los logo então - diz Candia, apontando para o maior dos prédios da praça, uma kallanka, que os soldados incas se preparam para incendiar. - Senão tudo vai assar, conosco junto!
Gabriel, os olhos irritados com a fumaça, saca a espada e afaga seu cavalo que a acidez do calor repugna. Lá embaixo, os soldados que saem da kallanka estão armados de machados e fundas. Um oficial que os viu grita uma ordem. O som grave de uma trompa ressoa na praça enquanto 20 guerreiros já se precipitam para os espanhóis, sem medo dos cavalos.
Um uivo selvagem sai do peito de Candia, um "Santiago!" violento que bem poderia ser o grito de um animal. Todos os quatro, movidos por um mesmo instinto, se inclinam no pescoço dos animais, espada em riste, a lâmina luzindo na luz opalescente. Os cavalos também se animam com a corrida, como se respirassem melhor assim.
A primeira carga racha o grupo dos índios. As espadas quebram as lanças, cortam as correias das fundas, massacram os punhos que seguram os tacapes e os machados. O ombro aberto, um primeiro homem cai gritando de dor. Os outros debandam para as ruelas estreitas. Gabriel os persegue, acompanhado por Candia. Ao longe, na nuvem de fumaça, Agüero e seu companheiro partem na direção do rio.
- Cuidado, cuidado! - grita Candia.
A frente deles, o espaço entre as casas é demasiado estreito para dois cavaleiros passarem lado a lado. Gabriel vai à frente, deitado no pescoço do cavalo. Transposta a ruela, um homem tropeça e cai pesadamente sob os cascos de seu cavalo. Com repugnância, Gabriel sente até nas coxas o pisoteio. Uma pedra de onda por um triz não atinge as orelhas de seu animal, e Gabriel vê o atirador condido na entrada de uma cancha. Ao chegar aonde ele está, aproxima bem u cavalo para que a ponta de sua espada perfure o peito do homem. Por uma ação de segundo, enfrenta os olhos arregalados. Em seu rosto e em seus lábios correm as gotas de sangue de sua primeira vítima.
Logo resta apenas um fugitivo à sua frente, um homem cuja corrida não parece querer perder o ritmo. Um orelhudo com o pesado capacete de oficial m plumas azuis. Os enormes brincos de ouro enfiados em suas orelhas tem em seus ombros a cada um de seus saltos.
Gabriel logo vê que ele procura chegar ao rio. Do outro lado, o grosso tropas indígenas aguarda parado. Ele tenta jogar o cavalo em cima do oficial para lhe barrar o caminho, mas este, ao se ver imprensado, pára. Debaixo da poeira e da fuligem, Gabriel, estupefato, o reconhece. Esse olhar meio de orgulho, esse nariz reto como a vertente de um penedo, ele nunca esqueceu.
- Guaypar! - exclama. - Sei quem você é!
- Você fala a nossa língua? - diz o homem furiosamente. - Isso lhe serve de alguma coisa para me matar?
- Pensei em você muitas vezes, Guaypar - sorri Gabriel.
A expressão de Guaypar não denota surpresa, mas Gabriel se sente hesitar à sua frente esse homem que quis proteger Anamaya durante o massacre de Cajamarca o faz sentir um peso estranho nos ombros. Como se de pente o ferro de sua espada pesasse terrivelmente.
- Você deveria me matar - diz Guaypar, percebendo a hesitação dele.
Gabriel mantém o cavalo absolutamente imóvel. Acima do rio, pairam maças. Na outra margem, os combatentes que viram seu capitão isolado se concentram e gritam. Outros gritos enchem a aldeia. Mas ele permanece imóvel. Guaypar parece dominado por sua própria dúvida e fica absolutamente imóvel.
É então que, a 20 passos deles, com um rugido de fera, um teto de palha pega fogo. Gabriel desvia a cabeça um instante para ver as labaredas subirem. Mais sente do que vê Guaymar saltar com agilidade para evitar o cavalo, pular no talude de relva rasteira na beira do rio e jogar todo o ouro de seus adereços no redemoinho.
- Você devia ter me matado, pois agora sou eu quem vai matá-lo!
Por onde quer que passe, Gabriel encontra os grupos de homens, mulheres e crianças saindo das casas e das kallankas chorando e gritando palavras de agradecimento. Isso lhe dá um mal-estar que ele exprime repelindo-os sem delicadeza.
Alguns conseguem arrastá-lo para uma cancha onde jaz um soldado inca, de perna quebrada e empunhando um machado, cercado por um grupo de jovens huancas xingando-o aos berros mas sem ousar se aproximar. Uma criança puxa a bainha de sua espada.
- Não tenho tempo! - grita ele.
Parte novamente a galope pela planície, recusando-se a perder tempo com a imagem do homem que vai morrer. Não enxerga nenhum vestígio de Agüero nem de Candia. Dirige-se para a ponte. A lembrança de Anamaya o transpassa, mas ele a afasta para bem longe, para onde o sangue não corre.
Do outro lado do rio, mais de 200 combatentes nativos se reuniram protegidos na retaguarda por 15 outros que procuram incendiar a palha e as cordas da ponte. Agüero e Candia já tentam em vão abrir passagem no meio da tropa para impedi-los.
Agüero luta com valentia, girando a espada, esquivando-se das pedras e aparando os golpes de tacape, usando seu cavalo com destreza; Candia é mais comedido nos movimentos, mas igualmente eficaz. Porém, o que impressiona Gabriel e o congela quando se reúne aos dois companheiros, são esses índios que os enfrentam e, como os de Cajamarca, ainda estão prontos a morrer sem um grito, sem um protesto para permitir que os companheiros incendeiem a ponte, impedindo assim a passagem dos espanhóis.
Como para se encorajar e apagar suas dúvidas, ele se esgoela e lança o cavalo na confusão. A risada de Candia soa, incongruente e reconfortante.
- Você demorou! - sussurra o gigante grego.
Gabriel desfere seus golpes com tanta violência, decepando braços, furando peitos, dilacerando caras, que é tomado pela febre da morte. Nenhuma das proteções tradicionais dos incas é própria para resistir ao fio do ferro. São dez, depois 20 a cair, quase impotentes. Alguns morrem sufocados sob o peso dos combatentes que caem em cima deles, outros se arrastam até o rio, feridos, mutilados, e se afogam ali. Mas seus companheiros voltam à carga, brandindo a maça, machado em riste, olhos loucos.
Na confusão, um combatente mais audaz chamou a atenção de Gabriel. É mais alto e mais forte, de porte mais nobre, e em nenhum momento o desânimo parece atingi-lo, ao passo que não pára de falar aos companheiros. Por diversas vezes o ferro de uma espada ou o casco de um cavalo roçam nele. Ele evita a morte como se dançasse. Depois, com um movimento ágil, salta
a garupa do cavalo de Candia, agarra o grego pelo ombro enquanto a outra mão procura o machado para golpear as costelas do cavaleiro.
Fazendo seu cavalo saltar, Gabriel já está atrás deles. Seu braço parte orno um tiro de besta, ele sente na mão o ferro ranger entre os tecidos coloridos e as carnes.
O combatente inca dá um grito e se levanta, pondo todo o peso na espada. Por um instante, parece que nada vai acontecer. As pernas do índio continuam apertando o cavalo e Gabriel julga sustentá-lo com seu ferro. Depois abraço se desfaz. O índio cai sob os cascos do cavalo.
- Raios me partam - diz Candia massageando as costelas -, você é bem vindo, dom Gabriel!
- A ponte está destruída, vai arder completamente - responde Gabriel, mostrando as labaredas que sobem.
Aliás, os índios retrocedem, deixando os cadáveres e os feridos para trás. combate cessa como por magia. Agüero e seu companheiro se unem a eles, lhos esgazeados, botas e calções ensangüentados. Apeiam do cavalo e levam os morrióes. Os rostos estão banhados de suor, de sangue, as faces e os lábios ainda contraídos pelo medo.
- Senhores - resmunga Candia -, tenho uma boa notícia: estamos vivos!
Soto e seus cavaleiros reuniram-se a eles; depois, por volta do meio-dia, Pizarro e o resto da coluna. Em toda parte na cidade só se ouvem gritos de alegria, mas os espanhóis não perdem tempo com a festa nem com os presentes que lhes são oferecidos.
Pizarro chega à beira do rio, ladeado por seus irmãos Gonzalo e Juan, o capitão Soto e Almagro.
- Em que pé estão as coisas, Gabriel?
Gabriel aponta para o outro lado do rio, onde há cerca de 600 combatentes incas a enfrentá-los.
- Nós os perseguimos, dom Francisco, e como vê, desencorajamos alguns. Mas eles conseguiram destruir a ponte.
- Covarde! Poltrão!
O grito de desprezo irrompe dos lábios de Gonzalo.
Gabriel limpa o suor que continua em sua testa e se aproxima do diabo de cachos castanhos, um sorriso mau nos lábios. Um sorriso que lhe veio há pouco, quando matou, e continua nele ainda, como um lanho.
Gonzalo recua três passos e volta à carga:
- Já sabemos como você combateu, covarde, deixando o chefe dele fugir...
Gabriel fica surpreso. Hesita um instante antes de compreender que se trata de Guaypar.
- Chega, Gonzalo! - ordena Pizarro.
O tom peremptório do governador não admite réplica, e Gonzalo e Gabriel ficam se desafiando um instante, o desprezo e o ódio deformando seus traços.
Dom Francisco olha com indiferença para o monte de vítimas, depois para o rio profundo e rápido que os separa da estrada onde desapareceram os agressores da aldeia. Sem se virar, pede voluntários para uma carga suplementar.
- É preciso lhes dar uma lição - diz. - Não vamos deixá-los acreditar que podem sair dessa com facilidade.
Por que Gabriel é um dos primeiros a se oferecer? Nem ele sabe. A raiva faz seu coração bater mais rápido. Ele mal ouve os outros. - Eu também! - diz Juan.
- Eu também! - diz Soto.
- E eu! - resmunga Almagro, como se despertasse de um longo sono.
Pizarro sorri. Os quatro cavaleiros seguidos de alguns homens descem a ribanceira até o rio. Gabriel é o primeiro a se lançar na travessia. Jovens huancas, entusiastas na vingança, lançam-se atrás deles nas águas geladas, admirando os cavalos que empinam as ventas acima dos redemoinhos.
A corrente é forte. Eles precisam descrever um arco de círculo para não esgotar as montarias. Mas a encosta da margem oposta é suave, fácil de subir. Tão logo chegam à estrada, Almagro e os seus partem para a montanha para esperar um revés, enquanto Juan e um pequeno grupo costeiam o rio. Cabe a Soto e a Gabriel irem atrás dos guerreiros nativos e abatê-los na praia.
Gabriel já não sente cansaço algum. O insulto de Gonzalo gira em seu cérebro como uma verruma. Suas coxas seguram firmemente o baio e sua ao, apertando o punho da espada, pesa sobre sua coxa direita como se toda realidade do mundo estivesse ali.
Um primeiro grupo de combatentes surge diante deles. Parecem agitar braços idiotamente. Mas na hora que Soto grita "Cuidado!", uma chuva de pedras de funda se abate sobre eles. O cavalo, atingido no ombro, tropeça e abre as pernas. Os guerreiros índios já se espalham, compreendendo que não deviam permanecer em grupo.
Mas, 100 passos adiante, outros atiradores de funda se posicionam e, dessa vez, descarregam uma saraivada de pedras sobre o grupo de Pizarro, que m que retroceder.
É então que Gabriel tem essa idéia louca. Arremete seu cavalo enquanto outros guerreiros, numa linha impecável, recarregam suas fundas. Com um uivo de demente, investe a galope sobre eles. Isso não leva mais que uma fração de segundo, enquanto os combatentes índios, fascinados, ficam paralisados. E ele grita ainda:
- Santiago! Santiago!
O desejo de morte galopa em suas veias, seu espírito é apenas um fogo violência. Ao ver os primeiros rostos, as primeiras bocas abertas, ele se uca escorregar para o lado, agarrando a cabeça da sela com a mão esquerda.
machado de bronze passa zunindo por cima dele, mas ele não vê. Só olha a as gargantas dos guerreiros. Só sente o balanço ritmado do baio em seus
Seu braço direito é mais duro que carvalho. Meio dobrado, segura a ma da espada inclinada para trás. E está em cima deles.
- Santiago!
O ferro mergulha nas gargantas. Uma a uma! Uma a uma, com a velocidade de um raio, a lâmina de Gabriel ceifa o fôlego e a vida de 12 homens que nem têm do que gritar.
Quando ele se ajeita na sela para se levantar e faz seu cavalo girar, vê 12 meus homens tombando, braços e pernas grotescamente agitados, inundando a relva de sangue.
Parece-lhe que um silêncio estranho cai no vale. Uma luz branca o atordoa. Ele precisa se agarrar à crina do cavalo para não cair da sela. Lá embaixo, à esquerda, apavorados, os índios fogem sob a cobertura do arvoredo.
- Covarde e poltrão - murmura ele, como se não compreendesse as palavras que saem de sua boca.
Gritos irrompem atrás dele, Almagro e os huancas partem no encalço dos fugitivos. Gabriel passa uma das mãos no rosto.
Soto alcançou-o. Eles se observam. O capitão balança a cabeça com um respeito no qual Gabriel julga ver uma espécie de medo. Eles voltam, ao mesmo tempo, como homens esgotados.
Uma hora mais tarde, há mais de 600 cadáveres na margem do rio. Do batalhão de Guaypar, não restam mais que alguns vultos que tentam, o mais das vezes em vão, fugir mergulhando na espuma lamacenta.
Hatun Sausa, 15 de outubro de 1533
No crepúsculo, os tetos e a estrutura das casas de Hatun Sausa se consoem num clarão avermelhado. O ar está empesteado de fumaça e cheiro de sangue. Por todo o vale ecoam os gritos da vitória. Às vezes são risadas de crianças e mulheres, entrecortadas por uma estranha música. Um som grave de flauta ao qual se misturam cantos lancinantes de moças e a percussão interminável dos tambores.
Gabriel ainda não teve coragem de atravessar novamente o rio e participar da festa. Na margem, seu cavalo baio pasta o capim pisoteado entre os cadáveres dos guerreiros incas que ninguém removeu ainda.
De vez em quando, companheiros vêm chamá-lo da outra margem. O próprio Soto grita alguma coisa para ele. Por que não se reúne a eles? Está ferido?
Não, seu sangue não está correndo fora de suas veias. Mas ele está como envenenado pelas imagens da carnificina. Na escuridão que aumenta, vê ainda sua
lâmina penetrar nas carnes, cortar, perfurar, matar.
Não, ele não está ferido. Mas a repugnância lhe causa uma dor no peito que ele não consegue aplacar. Sonha com Anamaya. Gostaria que seus lábios doces pousassem nele, em seus olhos em brasa. Gostaria de envolve-la com braço dolorido de tanto levantar para bater. Gostaria que ela lhe murmurou-se algumas palavras de perdão e de amor.
No entanto, ele sabe que, nesse instante, nem sequer ousaria pronunciar nome. Não suportaria que ela olhasse para ele nem que o tocasse.
Quando anoitece, Gabriel chama finalmente seu cavalo e atravessa o rio. A água gelada borbulhando contra suas botas lhe faz bem. Ao chegar à outra margem, faz seu cavalo andar num trote curto. Evita os olhares, ignora os gritos exuberantes e roucos do entusiasmo da vitória que o chamam de todos os lados.
Chega à praça central da cidade enquanto os companheiros de Almagro, na presença do próprio Governador e do cacique de Hatun Sausa, tiram os tesouros da kallanka que continua fumegando.
Como sempre, dezenas de pratos e copos, máscaras e estatuetas de ouro se amontoam. Apesar da fuligem do incêndio, tudo isso reluz à luz das tochas. Os olhos dos espanhóis brilham mais ainda. Eles riem, jogam para cima com a ponta da espada tigelas de ouro deformadas pelo calor, que os escravos conseguiram salvar do fogo. De longe, os índios os observam, intrigados.
O semblante de dom Francisco permanece imperturbável. Ele olha ouro se amontoar como se não estivesse vendo. Ligeiramente escondidos pela barba impecável, seus lábios apenas murmuram. Gabriel, mesmo sem escutar, sabe que ele está rezando à Santíssima Virgem Maria. Dom Francisco nunca abandona os hábitos antigos. Oferece à Santíssima com o Menino o sangue, os mortos, o sofrimento e a alegria do ouro, sabendo assim purificar-se dele. Gabriel o inveja por alguns instantes.
Finalmente, dom Francisco se vira e vê Gabriel junto dele, a pé e segurando ainda as rédeas do cavalo na mão crispada.
- Ah! Você está aí... - diz com urra brilho de ternura nos olhos.
Examina Gabriel dos pés à cabeça, passa em revista seus calções encharcados e rasgados, seu gibão imundo com a manga direita aberta, preta de sangue seco. Quando chega ao rosto encovado pelas sombras, às faces arranhadas, ao olhar embrutecido, a afeição se apaga e é o divertimento que faz o Governador franzir os olhos.
- Você está num estado incrível, meu rapaz! Não é tão mau assim para um covarde...
Gabriel ignora o cumprimento e a negação implícita das palavras ofensivas de Gonzalo. Tremendo de frio e cansaço, desvia o olhar para os homens que amontoam os objetos de ouro em grandes cestos de vime trazidos por nativas.
Depois, de repente, o Governador faz um sinal para o corneteiro Alconchel.
- Execute o toque de reunir!
Alconchel leva seu instrumento à boca. Os índios da aldeia, surpresos, dão um passo atrás. Os que vêm seguindo os espanhóis desde Cajamarca acham graça e explicam de onde vem o lamento que sobe e se propaga pelo ar denso e ruidoso do vale.
- O que está acontecendo, dom Francisco? - pergunta Gabriel.
- Aqueles que você esquartejou eram só um destacamento. O grosso do exército deles, com 15 mil guerreiros, está a seis léguas ao sul. Agora que os homens e os cavalos estão descansados, quero que 50 cavaleiros partam à procura deles.
Gabriel fica desorientado.
- Não estou falando para você, filho. Você deve descansar, agora. O seu dia acabou... Divirta-se, aproveite das iguarias e das mulheres que nossos novos amigos nos oferecem...
Pizarro o abraça.
Uma risada azeda ecoa atrás deles enquanto eles se afastam emocionados.
- Que cena agradável!
O busto excessivamente arqueado, o gibão aberto em cima de uma camisa suja e rasgada, um bafo de cerveja, Gonzalo Pizarro continua rindo, cheio de desprezo, macaqueando uma saudação de cerimônia.
- Com certeza, meu irmão, você está abraçando um verdadeiro herói!
- Mas você também é, Gonzalo! - replica o Governador abrindo os braços ostensivamente. - E se a sua felicidade puder estar num abraço do eu Governador, é de muito bom grado que lhe dou um.
Ignorando as mãos estendidas, Gonzalo volta-se para os cavaleiros que o odeiam e goza ainda mais:
- Tirem o chapéu, senhores! Por ter finalmente estripado um punhado e índios, dom Gabriel é dos nossos. Seja bem-vindo, bastardo!
O Governador empalidece ao ouvir o insulto. Seus traços ficam tão gelados como se a afronta fosse dirigida a ele. Sua mão esquerda agarra o punho e Gabriel e o contém, enquanto sibila entre os dentes:
- Gonzalo, um dia você ainda vai se envenenar com seu próprio veneno. E não garanto que então eu sinta pena de você!
O sorriso presunçoso de Gonzalo se apaga imediatamente. Ele olha para dom Francisco com estupefação. Abre a boca para replicar, mas se cala quando Gabriel, desvencilhando-se do Governador, dá um passo à frente para olhar para ele de alto a baixo.
- Tem razão, dom Gonzalo: alguns aqui são bastardos. Mas nenhum fede tanto a merda quanto o senhor.
Quando gira nos calcanhares, Gabriel não ouve uma risada, só as primeiras ordens de marcha. A voz de dom Francisco está novamente calma, como se nada tivesse acontecido.
Com um andar afetando indiferença, o corpo ainda dolorido das violências da tarde, ele atravessa a praça. Só um pouco mais tarde, ao preparar-se para ir até as tendas fora do vilarejo, vê a liteira de Chalkuchimac, rodeada de guerreiros. Uma meia dúzia de nobres idosos a seguem, cercando Anamaya com seu olhar severo.
Num reflexo, Gabriel entra depressa numa ruela minúscula que cheira a água estagnada. Por nada no mundo gostaria que ela o visse, os calções, o coração e o olhar ainda sujos de sangue dos índios que ele matou naquele dia.
As tochas plantadas no pé da escada do ushnu tornam seus traços trêmulos e indistintos. Com uma piscadela, Chalkuchimac ordena que tragam as hastes besuntadas de pez.
Em silêncio, sem que se ouça o atrito de si as sandálias nas lajes, dez jovens correm. Como não há argolas de pedra nos muros mais próximos, eles param em volta dos Poderosos Senhores, segurando as tochas com o braço estendido.
Agora Anamaya vê melhor o rosto deles.
Formando uma espécie de círculo em volta de um defumados onde ardem folhas de coca, há nove pessoas. Quatro velhos cansados da viagem, dois Poderosos Senhores de Cuzco, um governador da região nomeado por Atahualpa, Chalkuchimac e ela, a Coya Cama quen.
O general Chalkuchimac é o mais impressionante. Nem uma ruga de seu rosto demonstra as dores de que vem padecendo há semanas. Não consegue andar, nem sequer levar o alimento à boca. As extremidades de seus membros, queimados durante as torturas que sofreu em Cajamarca, ainda estão em carne viva. As mulheres que o tratam aplicam ungüentos nas chagas de manhã e à noite, trocam os panos que as cobrem, mas as queimaduras não param de sorar e se aprofundar mais ainda, como se procurassem devorar todo o corpo do poderoso guerreiro.
No entanto, sentado ali na esteira, encostado num banco de liteira, enrolado numa grande manta que só lhe deixa o rosto de fora, ele parece a Anamaya mais robusto e determinado que qualquer um daqueles homens presentes. Foi ele quem convocou essa assembléia enquanto os estrangeiros agora festejam e se esbaldam nos pátios internos da cidade para celebrar a vitória e rir dos mortos que apodrecem no rio.
O olhar de Chalkuchimac percorre um a um os rostos graves e calados. Fixa-se, penetrante, no de Anamaya. No clarão das tochas, o branco de seus olhos se tinge de vermelho. Por um breve instante, ela julga encontrar à sua frente o olhar de Atahualpa. Mas as pupilas de Chalkuchimac se desviam e sua voz explode:
- Estamos avançando como crianças com os olhos vendados. Não temos mais coragem nem discernimento. Os estrangeiros querem entrar na idade Sagrada, e nós lhes damos a mão para conduzi-los até lá! No entanto, abemos o que eles querem fazer ali. Olhem em volta de vocês: eles vão pilhar s pátios dos clãs, tomar o ouro dos templos. No entanto, Poderosos Senhores, ao ver a expressão de vocês e ouvir suas palavras, parece-me que isso lhes indiferente. Que todo o destino do Império lhes é indiferente!
Um dos mais velhos Senhores levanta a mão para interrompe-lo e diz com uma voz ácida:
- Você sempre pensa e age como guerreiro, Chalkuchimac. Só conhece as palavras da força. Isso foi bom para você enquanto a força de Inti estava com você. Hoje, que você é fraco e submisso à vontade dos estrangeiros, só ala a língua da derrota. Olhe o que aconteceu hoje! Centenas de seus bravos guerreiros morreram pela mão dos estrangeiros que não foram mais que um unhado a lutar! Que isso lhe agrade ou não, os cavalos dão aos braços deles ma força que você não tem...
- Chalkuchimac, ouça a alegria dos habitantes de Hatun Sausa! - diz outro Ancião, furioso. - Ouve-os cantar e dançar? Os seus soldados vieram incendiar esse vale para que os estrangeiros só encontrassem cinza e fumaça no ninho! Ouça como os habitantes dessa província estão felizes agora que os
estrangeiros esvaziam as reservas do inca e tomam as mulheres como se elas lhes pertencessem! É isso que você quer por todo o Império das Quatro Direções?
- Basta! - ordena com uma voz calma o mais poderoso dos Senhores Cuzco. - É inútil discutir.
Por um instante, o silêncio os envolve a todos, quebrado pelos gritos e risadas agora provenientes das tendas em volta da cidade, na beira do rio.
O Poderoso de Cuzco é um homem redondo, de maçãs muito salientes pele tão acobreada que seu rosto se parece com algumas cerâmicas pintadas.
Sob seu olhar, Chalkuchimac permanece impassível. Seus brincos de ouro pesam em seus ombros e faíscam. Ele não pestanejou sob os ataques, e sua mandíbula agora parece larga como a de uma fera.
- Chalkuchimac enuncia parte da verdade - retoma o Poderoso de Cuzco. - E eu, Tisoc Inca, concordo com ele quando diz que avançamos como crianças de olhos vendados. Está na hora de designar um Único Senhor. Está na hora de Inti encontrar de novo um filho entre nós.
Anamaya vê os velhos abaixarem a cabeça. Chalkuchimac sorri, desdenhoso:
- Suponho que o Poderoso Tisoc queira que um de seus irmãos de clã seja designado!
- A raiva está fazendo você se exaltar em vão, Chalkuchimac. Quem for designado deverá ter o apoio de seu pai Sol como dos ancestrais do Outro Mundo. É só o que peço.
- Para mim, é de espantar que você não tenha ninguém em mente - diz Chalkuchimac contraindo as feições.
- Como vamos designar um Único Senhor, se não temos nem sacerdote nem adivinho para nos dizer qual é a vontade de Inti e de Quilla? - pergunta um Ancião que até agora estava calado. - Como vamos escolhê-lo se o Único Senhor Atahualpa antes de morrer não transmitiu a mascapaicha real a nenhum de seus filhos?
- Ele não tinha que fazer isso - replica secamente Chalkuchimac. - Todos sabem que o filho preferido de Atahualpa é Atoc Xopa. É ele que deve usar sobre a testa as duas plumas de curiguingue, como seu pai.
Mais uma vez, as palavras de Chalkuchimac mergulham cada um deles no silêncio. Mas este é pesado. Olhares voltam-se para Anamaya. Ela sabe o que eles esperam, mas prefere que todas as palavras e segundas intenções dos Poderosos se despejem e se confrontem antes que ela diga o que precisará dizer.
- Atoc Xopa é uma criança - observa o Poderoso de Cuzco. - Ainda por cima, está morando atualmente na capital do norte, bem longe daqui e dos estrangeiros. Como poderia fazer ouvir a sua vontade?
- Tisoc, você não entendeu as palavras de Chalkuchimac! - ridiculariza um dos Anciãos. - Tem razão: o filho preferido de Atahualpa é uma criança. Mora no norte e ninguém aqui conhece a cara dele. Ele nunca entrou em Cuzco. Mas é isso mesmo que agrada ao general Chalkuchimac!
- Se o nomearmos - reforça outro -, ele será uma sombra frágil sob a influência de Chalkuchimac, que será o verdadeiro senhor do Império, embora não seja filho de Inti!
Todos os rostos viraram-se para Chalkuchimac. Ele enfrenta as acusações sem mover um músculo do rosto. Anamaya não consegue evitar admirar essa força e essa calma. No entanto, a tensão é tão grande que ela vê as mãos dos velhos Poderosos tremerem. O mais idoso diz ainda, levantando a mão de dedos tortos:
- Ouvi o que Chalkuchimac dizia ao Machu Kapitu dos estrangeiros através do intermediário que fala a língua deles. Propunha, sozinho e sem o nosso consentimento, que Atoc Xopa fosse nosso Único Senhor.
- É verdade, Chalkuchimac?
Estranhamente, antes de responder a Tisoc Inca, o velho guerreiro volta seu olhar para Anamaya. Fita-a intensa e demoradamente, como se quisesse ver dentro dela. Depois se endireita, sorri e diz:
- É.
Um rugido de cólera escapa das bocas dos Poderosos. Mas Chalkuchimac parece agora dirigir-se apenas a Tisoc Inca:
- O que está acontecendo com vocês todos? São como Atahualpa, que achava que os estrangeiros pegariam o ouro que ele lhes oferecia e iriam logo embora? Atahualpa se foi e nenhum de nós sabe se ele pode se reunir ao Pai no Outro Mundo!
De novo, um rugido faz vibrar o peito daqueles homens. Então, num gesto de fúria, Chalkuchimac afasta a manta que o cobre. Todos vêem as mãos que ele estende. Estão em carne viva, e nelas brilha um sangue escuro. Seus pés e suas pernas estão cobertos de chagas onde se formaram crostas que dessoram uma secreção amarela:
- Por que acham que aceitei isso? - pergunta Chalkuchimac vermelho. - Minha carne queimada empesteis o ar do Império das Quatro Direções. Minha dor sobe até o negro do céu para que Inti, ao amanhecer, encontre seu caminho! E ele não quer que eu sare, para que cada um de nossos guerreiros sinta esse cheiro e saiba que eu jamais me prosternarei diante dos estrangeiros. Tisoc! Eles não são doces nem bons! Eles comem ouro e o estômago deles não tem fundo! Tisoc Inca, você não compreende que quando eles chegarem a Cuzco tomarão sem dar nada em troca? Tomarão suas terras, suas mulheres, seus filhos, seus servos... Tomarão, tomarão sempre, pois estão aí para tomar! Eu, Chalkuchimac, lhes digo: é preciso matá-los enquanto eles são poucos.
- Nesse caso, por que designar uma criança sem experiência? - pergunta um velho asperamente.
O sorriso de Chalkuchimac parece o de um demônio do Mundo de Baixo, e Anamaya não consegue conter um arrepio:
- Porque os estrangeiros se julgarão os senhores do Único Senhor. Dirão a ele: faça isso, faça aquilo! Vamos sorrir para eles. Lhes dar ouro. Mas, enquanto isso, eu serei livre. Poderei conduzir nossos guerreiros numa grande batalha, onde eles morrerão todos!
- Como hoje? - brinca Tisoc.
- Vocês são uns poltrões! - exclama Chalkuchimac brandindo as mãos feridas. - Inti os reduzirá a cinzas!
- Inti não escuta você, Chalkuchimac! - replica secamente Tisoc. - Você esquece que quem tem fome acaba sempre morrendo ou se saciando. A sua escolha não é sábia nem judiciosa. Sabemos todos a quem devemos designar como Único Senhor. É Manco, filho de Huayna Capac, Poderoso do clã De Cima. Ele é o mais sábio dos que ainda estão vivos. Com ele, teremos a paz e a unidade do Império...
O rugido de desagrado de Chalkuchimac é quase uma risada. Ele se vira para Anamaya. Seu olhar é tão duro que daria para quebrar uma pedra de funda.
- Foi você quem sugeriu essa escolha, Coya Cama quen? Você está muito calada! Era mais tagarela junto de Atahualpa!
- Chalkuchimac! - diz um dos Anciãos. - Como ousa zombar da Coya Cama quen?
Chalkuchimac contrai o rosto, pois suas mãos feridas esbarraram em sua roupa. Balança a cabeça e diz mais baixo:
- Não! Não, Poderoso Ancião, não estou zombando. Sei quem é a Coya Cama quen...
- Chalkuchimac - retoma Tisoc Inca num tom conciliador -, a querela não leva a nada. Urge escolhermos um Único Senhor. Aqui não há adivinhos nem um servo de Inti para nos fazer conhecer os oráculos. A Coya Cama quen pode fazer isso. Ela soube designar o Único Senhor Atahualpa antes que o cometa passasse no céu de Quito. Ele sempre confiou nela em todas as decisões que tomou, você sabe. Todos sabemos que ele compartilhou suas únicas palavras do Mundo daqui com ela, como havia feito seu pai Huayna Capac, em Quito...
- Sim! - aprova ruidosamente um velho. - É isso que precisa ser feito.
- Aceite, Chalkuchimac! Que a Coya Cama quen designe o Único Senhor, que ela escolha entre Manco e Atoc Xopa!
O olhar de Chalkuchimac não deixou Anamaya, que, pela primeira vez, vê ali medo, dúvida e quase um brilho de amizade. Ele bufa de repente como uma forja, fecha as pálpebras e pergunta:
- Então, qual é a sua palavra, poderosa Anamaya?
Anamaya não consegue impedir seu coração de bater tão forte que abafa suas palavras. Sabe o peso do que vai dizer. Todos os seus músculos e seus ossos ficam duros como pedra. Mas as frases sobem em sua garganta e saem de sua boca como que livres. Embora as pronuncie, elas não vêm de sua boca.
- Na noite antes do Grande Massacre de Cajamarca, o Único Senhor Huayna Capac veio me ver do Outro Mundo. Tinha a aparência de uma criança. Ele me disse: " O que é velho se quebra, o que é grande demais se quebra, o que é forte demais não tem mais força... É isso o grande pachacuti. O mundo se comprime e recomeça. Tudo mudou..."
Um murmúrio de espanto a envolve. Ninguém pensa em pôr sua palavra em dúvida: é como se, por sua boca, o próprio grande Huayna Capac estivesse falando. Ela vê os rostos tensos que parecem colher suas palavras como brasas. E diz ainda:
- O Único Senhor Huayna Capac acrescentou: "Cuide de meu filho que salvou da serpente, pois ele é o primeiro nó das cordas do futuro... " Há muito tempo, quando eu era ainda uma menina inexperiente, assisti à cerimônia onde o poderoso Manco tornou-se um homem. Nesse dia, ele ganhou a corrida. Mas, enquanto ele corria, uma víbora ficou atravessada no meio do caminho dele para picá-lo quando ele passasse. Vi isso a tempo. Pude afugentar a cobra e Manco continua vivo.
O silêncio é absoluto. Agora não há mais clamores na planície, nem risos e cantoria na noite.
- Assim, Coya Cama quen, Manco é a sua escolha - murmura Chalkuchimac.
- Poderoso Chalkuchimac - responde Anamaya com uma audácia que surpreende a ela própria -, a escolha não é minha: há muito tempo os ancestrais do Outro Mundo designaram Manco. Mas permita-me dizer que ele é nobre e direito. É justo e não é covarde, você sabe disso. Saberá reunir todas as partes do Império sem se submeter aos estrangeiros como uma criança. E para fazer a guerra que deseja, se ela tiver que ser feita, é preciso primeiro paz. É preciso limpar as feridas da guerra entre os irmãos que tanto enfraqueceu o Único Senhor Atahualpa. Sim, Chalkuchimac, você é um grande guerreiro. Mas hoje a guerra tem a forma da paz. Só ela nos permitirá ser fortes, quando chegar o dia, se Inti e Quilla quiserem.
- Ela tem razão! Falou bem! - aprovam dois dos velhos.
- Chalkuchimac - diz Tisoc -, todos aqui concordamos com a Coya Cama quen. Confiamos nela. Amanhã, quando o dia raiar, ela partirá ao encontro de Manco para lhe comunicar nossa escolha...
Franzindo um pouco as pálpebras, Chalkuchimac olha um instante para seus ferimentos. Depois levanta o rosto para encarar Tisoc, amargo:
- O que aconteceria se eu não fosse da opinião da Coya Cama quen? - pergunta.
Tisoc não responde. O silêncio é atravessado por suspiros cansados desses Senhores que só extraem suas forças dos lábios e da memória de uma jovem. Anamaya olha para Chalkuchimac com admiração e pena.
- O que aconteceria? - pergunta Chalkuchimac com uma voz mais baixa e ameaçadora.
Anamaya fita Tisoc por um breve instante, mas não espera sua aprovação para responder afinal, com uma doçura tremenda:
- Nada, poderoso Chalkuchimac. Não vai acontecer nada. Eu parto amanhã.
Os olhos de Chalkuchimac mergulham nos seus. Pela primeira vez, ela vê ali um sentimento que não é de raiva nem revolta: é de resignação. E uma tristeza infinita.
O dia nasce numa névoa espessa que cobre de umidade as rochas e as lonas das tendas. O ar recende ainda a cinzas frias. Não há mais barulho senão o do rio correndo e um guincho esporádico de algum pássaro.
Envolto em sua longa capa de cavalo, Gabriel está sentado num cepo meio afastado do acampamento dos senhores incas. Dormiu mal a noite, acordando a toda hora, enfrentando ainda o combate da véspera como se este não tivesse fim. Tinha o coração batendo com o desejo brutal, violento, de correr até a tenda de Anamaya. Imaginou-se tomando-a nos braços, afogando-se em suas carícias e em seu ventre para apagar o fogo de sua memória num prazer de amor que não teria fim. Não ousou fazê-lo.
Como não ousa ir encontrá-la agora que ela se prepara para a partida.
Dom Francisco avisou-o da partida: os Senhores incas escolheram um novo rei. "Com a minha concordância", indicou Pizarro, sem mais detalhes, antes de acrescentar: "A sacerdotisa deles foi designada para ir comunicar ao eleito e autorizei-a a deixar a coluna." A palavra "sacerdotisa", o olho negro de Pizarro cruzou numa fração de segundo com o olhar de Gabriel, que desviou o olhar, quase envergonhado.
Agora, nessa aurora úmida e silenciosa, junto ao rio, carregadores preparam a liteira da Coya Cama quen. Um pouco afastados, sob o comando de um jovem oficial, dez guerreiros formando a escolta aguardam. Mas Gabriel só tem olhos para o grupo reunido entre as tendas dos Senhores.
Lá, diante dos velhos que a saúdam com respeito, Anamaya está resplandecente. Envolta numa capa de vicunha com motivos entrelaçados em azul, púrpura e amarelo vivo. Uma espécie de diadema de ouro com três plumas amarelas cinge sua testa. Seus punhos estão cobertos de placas de ouro. Ela leva na mão uma haste de milho de ouro também.
Jamais Gabriel a viu com um traje tão imponente. Ela lhe parece realmente uma estrangeira, princesa de um mundo ainda distante para ele, tão inacessível que ele sente um ciúme idiota.
- Vai pelo menos se despedir dela? - pergunta ao seu lado uma voz que o sobressalta.
- Frei Bartolomé!
O rosto estranhamente pálido de frei Bartolomé sorri. Ele tem uma espécie de ternura nos olhos cinzentos. Estende a mão com os dedos colados na direção de Anamaya, enquanto os velhos se inclinam diante dela.
- Sei o que essa mulher é para você, amigo Gabriel. Nenhuma indiscrição de minha parte: tudo se sabe, tudo se cochicha na coluna. As mentiras vicejam ali como as verdades, mas basta pouca luz para discerni-las...
Gabriel hesita um instante antes de responder.
- Não sei julgar se se trata de um desses casos onde é melhor guardar silêncio, frei Bartolomé, segundo suas próprias recomendações. O que acha?
- Mihi secretum meum, não é? Faça como achar melhor, meu amigo. Mas não vai me impedir de ler em seus olhos as respostas que seus lábios não me dão.
Gabriel balança lentamente a cabeça e seus olhos perscrutam a cena, lá embaixo. Cercada pelos soldados índios e os três senhores, com um séquito de um punhado de servos, Anamaya aproxima-se da liteira. Gabriel sabe que ela já o viu.
- Dizem que é uma princesa diferente das outras - diz apenas Bartolomé, olhando Gabriel.
Gabriel descontrai-se pela primeira vez e contém um sorriso de lado. É mais agradável ceder à inteligência que à maldade.
- Ela tem dons que fazem com que seja temida e amada pelos índios - diz ele. - O falecido rei Huayna Capac lhe teria confiado segredos dos quais eles julgam que seu destino depende.
Gabriel se interrompe, hesita.
- Talvez para o senhor, frei Bartolomé, isso poderia parecer diabólico...
O frade sorri:
- Não sou propenso a ver o diabo em toda parte, Gabriel. Por outro lado, sei ver a beleza quando ela se impõe a mim. E a beleza não é sempre obra de Deus?
Gabriel sente uma alegria autêntica em encontrar de novo a habilidade sutil e amiga do monge. E é como se seu sorriso tivesse atraído a atenção de Anamaya. Ela está só a algumas toesas da liteira. Seu passo é hesitante. Mas seu caminho está tão bem traçado quanto o da cerimônia. Um velho Senhor indica com um gesto a liteira, os carregadores, a escolta...
A mão de Bartolomé pousa no braço de Gabriel:
- Deixe-me perguntar de novo: por que não vai lhe desejar boa viagem?
- Ontem - responde ele com uma voz surda -, ontem matei muitos homens. Muitos índios.
- E tem medo que ela o censure por isso?
- Não sei. Mas tenho essa lembrança estranha de que os matava com vontade; até com prazer...
Bartolomé dá uma leve risada.
- Isso você devia dizer era a mim, não a ela.
Os olhos cinzentos de frei Bartolomé desviam-se do rosto de Gabriel para observar o cortejo indígena. Ele se cala um instante, o bastante para ver Anamaya se instalar no banco da liteira. Quando começa a falar, sua voz é viva e clara:
- Ontem, Gabriel Montelucar y Flores, você cumpriu seu dever. Tornou-se um herói para seus companheiros e hoje de manhã muitos o admiram. É provável que você não de importância a isso, pois é muito orgulhoso e os considera meio selvagens. Não importa. Se isso conta para você, diga a si mesmo que as vidas que tomou, você já devolveu a Deus...
Quanto ao amor que existe em seu coração, não conte comigo para chamá-lo de pecado...
A surpresa de Gabriel é tamanha que ele se vira para procurar o olhar do frade.
- É o senhor que está me dizendo isso, frei Bartolomé? Essa mulher nem é batizada! Se eu escutar frei Vicente Valverde...
Bartolomé corta com impaciência:
- E se escutar a mim, pecado é ignorar a força do amor. O apóstolo Paulo não fala outra coisa e Santo Agostinho...
- Mas eles falam do amor de Deus!
- Veja só o espírito forte teologizando! É a mim que você quer ensinar a força do amor divino? Vou lhe dizer que há uma centelha divina em seu amor...
As últimas palavras de Bartolomé são quase abafadas pelo som da trompa de bronze que anuncia a partida do cortejo.
- Vá! Ande logo! - insiste frei Bartolomé.
E Gabriel, como aliviado do peso que o entravava desde a véspera, afasta soldados e senhores para ir ver sua amada.
A liteira já está na saída da aldeia quando Gabriel se aproxima. Um tanto surpresos, os soldados índios vêem-no acertar o passo com eles. Com uma palavra, Anamaya faz os carregadores pararem.
Quando ela sai da liteira para aproximar-se dele, um frêmito percorre a nuca de Gabriel. Ele nunca viu tanta nobreza e tanta doçura na mesma pessoa. É ela que o puxa meio de lado. Ele repara que nenhum dos carregadores, dos soldados ou dos servos ousa virar os olhos para eles.
- Estou feliz que você tenha vindo - diz Anamaya.
Ela deixa passar um breve silêncio e acrescenta:
- Tive medo que não viesse. Eu não queria partir sem ver seu rosto perto de mim.
Levanta a mão, aproximando-a dos lábios dele como para tocá-lo. Mas quando ele quer beijá-la, ela recua ligeiramente. O sorriso, porém, não deixa seus lábios.
- Isso não é possível - diz com doçura. - Não aqui, e não agora...
Com um nó na garganta, incapaz de encontrar as palavras no coração fervilhante, Gabriel é percorrido por um tremor. Parece-lhe intolerável não ter o corpo dela junto ao seu antes da separação.
Anamaya chega mais perto, e eles estão suficientemente próximos para seus corpos quase se tocarem. Quando ele torna a abrir as pálpebras, encontra os olhos azuis de Anamaya a fitá-lo e a esquadrinhar o fundo de sua alma.
- Sei o que é a guerra - diz ela. - Aqui também a gente mata os inimigos.
- Vou sentir sua falta - diz afinal Gabriel. - Não há uma hora que passe sem que eu sinta sua falta. -
- Em breve - diz ela - haverá paz. Designamos um novo Inca. Ele é como um irmão para mim, é sábio. Saberá fazer a paz com o seu Governador.
Lá embaixo, o cortejo continua parado. Ninguém, homem ou mulher, faz um gesto. Gabriel pensa em Guaypar, que ele enfrentou no combate da véspera e deixou ir embora.
- A paz ainda não chegou - murmura. - Seja prudente.
- É você - diz ela - quem deve ser prudente...
De repente, ela o olha com tanta intensidade, quase preocupação, que
ele se perturba.
- Você veio de muito longe para me encontrar. Não quero perdê-lo. Você colocou uma fraqueza em mim, uma fissura que se tornou urna vala, e tenho mais medo por você do que jamais tive por mim.
Ela diz essas palavras sem olhar para ele e, embora sua voz esteja surda e firme e seu rosto impassível, ele sente a emoção que quase a faz tremer também.
Ele não consegue falar.
Faz um gesto para tocar sua mão, e dessa vez ela permite que ele o faça e até se lança para se apoiar nele com um ímpeto que quase os faz se darem um encontrão. Aperta a mão dele até machucar, arranha-o, esmaga-o, e nesse único abraço talvez tenha se entregado mais do que em qualquer das vezes em que fizeram amor.
Na bruma que passa diante de seus olhos, ele surpreende olhares pousados neles e se lembra das palavras dela: "Não aqui, não agora...", e é ele quem primeiro se desvencilha dela, o coração quente e as costas geladas.
Ficam um pouco lado a lado, a terra balançando sob seus passos. Não conseguem se mexer nem falar. Um cheiro de flores passa no ar e Gabriel se refugia ali, fechando os olhos.
Ela faz um primeiro movimento para voltar ao cortejo. Pára e se vira. - Cuide bem de você - diz ele, a voz estrangulada.
Ela abre a boca para falar, volta atrás. Ele fica atento a seus lábios, a seus olhos.
- Amo você...
E sem lhe dar tempo de compreender que é a primeira vez que pronuncia essas palavras para ele, volta correndo para o cortejo.
Vale do Apurimac, 30 de outubro de 1533
O homem é baixo. Brincos de ouro pendem de suas orelhas, e ele usa a túnica dos governadores de pontes. Enquanto a liteira continua nos ombros dos carregadores, ele se ajoelha nas pedras do caminho e se inclina. O oficial dos guardas, tacape na mão, observa-o circunspecto.
- Seja bem-vinda ao vale do Apurimac, Coya Cama quen. E uma honra para mim fazê-la atravessar esse rio!
Anamaya sorri de tanto que o homem parece temê-la. Não há dia, desde sua partida de Hatun Sausa, em que ela não veja até que ponto sua fama e seu cortejo impressionam tanto os modestos habitantes das cidades como os funcionários do Império.
O governador da ponte tem algumas razões para estar preocupado. A 200 passos embaixo deles, as águas furiosas do Apurimac correm entre enormes rochedos. Seu ronco ecoa no vale que se alarga para o sul. Mas onde deviam estar penduradas as cordas de uma ponte, só se vê vazio.
- Levante-se - ordena Anamaya. - E me explique por que a ponte desapareceu.
- Há dez noites, Coya Cama quen, vieram uns soldados queimá-la. Eu quis impedi-los e ordenei a meus guardas que os repelissem. Mas éramos só dez enquanto o pelotão do general Quizquiz tinha mais de 100 homens!
- Quizquiz? - espanta-se Anamaya.
- Sim, Coya Cama quen. Foi assim que eles se apresentaram: como soldados do grande general do Único Senhor Atahualpa. - Disseram por que queimavam a ponte?
- Para impedir os estrangeiros ladrões de ouro de chegarem a Cuzco.
O homenzinho estende o braço para o sul do vale e acrescenta:
- Dizem que há tropas por toda parte na montanha até Cuzco.
- Agora como se atravessa esse rio? - pergunta Anamaya com um tom seco para cortar a tagarelice que ela sente vir.
Sua pergunta parece arrebatar o homenzinho. Ele se curva novamente num movimento de respeito.
- Um mensageiro anunciou sua vinda já há três dias, Coya Cama quen. E nós preparamos o que era preciso. Balsas...
- Balsas?
- Sim, Coya Cama quen. Mas não aqui, na passagem normal da ponte, as correntes são muito fortes e muito perigosas. Há um lugar mais propício aqui perto. Se me permite levá-la até lá.
- Coya Cama quen - intervém o jovem oficial da escolta. - Não é prudente se afastar do caminho real. Isso poderia ser uma cilada!
- Como está vendo - replica Anamaya -, o caminho real já não existe sobre o rio. E eu preciso continuar minha viagem, apesar de tudo. Trate então de me proteger!
Precisaram caminhar quase uma hora por uma trilha às vezes difícil e íngreme até chegar a um ponto em que as águas do rio de repente ficavam mansas.
Surgindo entre duas encostas arborizadas, o Apurimac de repente fica mais lento e mais regular. Descreve uma longa curva entre os campos, atravessando um vale curto. No outro extremo, torna a quebrar, levantando uma nuvem de espuma de encontro a uma pedra alta e cinzenta que anuncia uma nova sucessão de corredeiras.
Ali, o rio, sentindo-se à vontade, se alarga. No entanto, perto da margem, basta olhar para compreender que a correnteza ali é apenas um pouco menos perigosa que mais abaixo.
- Está vendo - explica o governador da ponte -, as balsas devem ser postas na água naquele ponto. É preciso se deixar ir na correnteza e chegar à outra margem antes da pedra grande.
- Onde estão as balsas? - pergunta Anamaya.
- Guardadas na mata ali embaixo, Coya Cama quen. Não queríamos que os soldados as descobrissem e as destruíssem antes de sua chegada.
- Já atravessou o rio? - pergunta o oficial, desconfiado.
- Já, uma vez! - responde com um sorriso largo o governador da ponte. - Ida e volta.
- Bem, esta será a segunda vez - diz ela tranqüilamente.
O homenzinho, lisonjeado com o estímulo, se alvoroça todo nos instantes seguintes. Seus ajudantes puxam da borda da mata duas pesadas balsas de toras e varas. Com a ajuda de outras toras menores, habilmente fazem-nas atravessar os campos até o Apurimac, e deixam a maior delas deslizar para a água.
Dez homens seguram-na com cordas enquanto outros seis depositam ali a liteira de onde Anamaya saltou. Uma vez que a cadeirinha está bem escorada, os ajudantes do governador da ponte prosternam-se e aguardam a Coya Camaquen se instalar na balsa para se levantarem. Então, munidos de longas varas, mantêm como podem a estabilidade da embarcação.
A correnteza é tão violenta que Anamaya sente a liteira vacilar. Os troncos, amarrados uns aos outros com uma certa folga, mexem de maneira impressionante.
Enquanto os homens têm cada vez mais dificuldade para segurar a balsa perto da margem, começa uma discussão violenta entre o oficial da escolta e o governador da ponte.
- Tenho que acompanhar a Coya Cama quen com no mínimo cinco soldados - diz o oficial.
- Impossível! Será muito peso para a balsa, oficial. Não poderemos mais dirigi-la com segurança. Dois homens no máximo. Olhe: as toras já estão afundando...
- É que você não fez direito o seu trabalho!
- É que a liteira está mais pesada do que o previsto. E, depois, há a segunda balsa. Seus soldados poderão seguir ali a Coya Cama quen...
- Isso basta! - intervém Anamaya. - Oficial, venha nesta balsa com o governador da ponte. Se a balsa dele estiver malfeita, ele sofrerá as conseqüências como nós!
Na verdade, desde que a embarcação é largada na correnteza, Anamaya compreende a preocupação dos homens que procuram dirigi-la. Além de jogar cada vez mais, ganha uma grande velocidade ao chegar ao meio do rio. Em alguns segundos, a força das águas parece arrastá-la, vencendo a força dos homens que afundam suas varas com uma rapidez espantosa.
De repente, um deles grita. Surge um redemoinho inesperado e fundo. Os seis homens vão para o mesmo lado da balsa para empurrar para a direita.
Mas tudo acontece muito rápido. O choque levanta Anamaya uma primeira vez. As toras pulam e raspam a pedra escondida pela água. A liteira levanta-se de novo e cai de lado. O oficial da escolta joga-se na cadeirinha para segurá-la. Anamaya agarra-se aos pés do banco, o tronco dobrado para contrabalançar sua inclinação.
A liteira cai pesadamente, mas um dos pés corta uma das amarrações já enfraquecida pelo choque. A tora central da balsa que se soltou afunda perigosamente enquanto a balsa inteira começa a rodopiar.
A pedra cinza, ali à frente, que anuncia a correnteza e parecia bastante longe, se aproxima agora com uma rapidez louca. É então que o governador da ponte lança uma espécie de uivo, depois outro. E mais outro. Então, numa sintonia perfeita, os seis homens das varas remam juntos.
Parece um balé. As varas sobem e descem, envergam e deslizam, tornam a subir, descem e se inclinam. O suor poreja nas nucas, mas a balsa se estabiliza. Melhor, afasta-se do centro da correnteza. Os uivos continuam, as varas envergam tanto que parecem prestes a quebrar. Mas, finalmente, enquanto o ronco das corredeiras ribomba no ar como uma ameaça iminente, a balsa vai mais devagar. Começa a deslizar para a margem.
O governador da ponte sorri. Vira-se para Anamaya e cumprimenta-a. Cada um de seus homens se dá conta de que a Coya Cama quen não disse uma palavra, não deu um grito de medo durante o perigo.
Ela sorri também, surpresa pela delicadeza do contato das toras com a margem.
Enquanto a liteira é depositada na relva, ela observa os homens alternadamente, sentindo o frescor do ar e esse prazer recente e ainda tão estranho: os olhares pousados nela estão cheios de admiração e de um novo respeito.
- Estamos longe de Rimac Tambo? - pergunta ela ao governador da ponte.
- A menos de um dia de marcha. Se quiser nos dar a honra de aceitar nossa hospitalidade por esta noite...
Anamaya não o deixa terminar.
- Eu lhe agradeço. Falarei com o Senhor Manco sobre sua eficiência. Mas temos que estar hoje à noite em Rimac Tambo.
O ronco do rio sobe como um suspiro tranqüilizador. No crepúsculo, as acostas das montanhas, ao redor da cidade, parecem pétalas protetoras. De fronte à cancha, um vale profundo e estreito abre-se para o leste. Na noite que chega, ainda encoberto pela névoa translúcida, o vale adquire uma palidez estranha.
Hoje, Anamaya sabe aonde esse vale leva: à cidade sagrada cujo nome ninguém deve pronunciar. Picchu!
Nada mudou em Rimac Tambo. É uma sensação estranha.
Há anos, ela estava ali, num crepúsculo semelhante. Os belos muros que sustentam a esplanada das cerimônias, com juntas perfeitas, tinham essa mesma calma tranqüila dessa noite. As ladeiras íngremes que encerram o vale, lembrando triângulos e retângulos encaixados no chão, já faziam pensar nos desenhos geométricos feitos diariamente pelas virgens dos acllahuasis. Já possuíam essa mesma força um tanto preocupante. Só Anamaya era diferente. Era apenas uma menina aflita que o sábio Villa Oma esforçava-se para tornar vigilante e segura de si.
Foi ali mesmo, para grande espanto deles, que, num crepúsculo como aquele, aparecera-lhes, dentro do vale proibido, o cometa designando o Único Senhor Atahualpa.
Basta Anamaya fechar os olhos para tornar a vê-lo. Uma bola de fogo amarelo clara, como um sol da noite. Subia no horizonte negro, entre as primeiras estrelas. Atrás, flutuava sua imensa cabeleira levantada pelo vento do Outro Mundo.
Basta evocar suas lembranças para ouvir a voz do sábio: "Deixe seu medo para trás, Coya Camaquen. Deixe seu espírito conduzi-la. Lembre-se de sua viagem à pedra dos ancestrais. Abandone o medo..."
O pio de uma ave a faz estremecer e ela abre os olhos sobressaltada.
Ao seu redor, a esplanada está deserta. Anamaya sente um pouco de frio. Sua capa de gala não é suficientemente quente para essas montanhas. Apesar de tudo, ela se obriga a usá-la há dois dias, para receber o Único Senhor Manco quando ele chegar. Mas, quando a noite cai, arrepios congelam sua nuca e seus rins.
Ouve-se mais um pio, mais perto do rio. E outro ainda, atrás do tambo.
Anoitece rápido. O vale de repente parece mais escuro e ameaçador. As pedras do caminho real, reto na ladeira íngreme que fecha o vale ao sul, aparecem no meio da vegetação. Formam uma estranha imagem, como se a montanha fosse cortada por uma linha clara, fria, dura.
Anamaya contém um estremecimento que dessa vez se deve mais à preocupação que ao frio do crepúsculo.
Muitos camponeses de Rimac Tambo confirmaram as palavras do governador da ponte. Nas montanhas ao redor, há centenas de soldados rondando, pilhando as canchas, maltratando as cidades. Seus oficiais recusam-se a se submeter às ordens de paz com os estrangeiros dadas pelos Poderosos Senhores. Alguns afirmam que só respeitam a vontade do General Chalkuchimac, que jamais aceitará que os estrangeiros cheguem a Cuzco. Enquanto Manco demora a chegar, Anamaya receia ser informada que ele esteja nas mãos dessas hordas de guerreiros.
Será que vai ser sempre assim? Violência, ódio e lutas fratricidas apesar da vontade dos Ancestrais numa época tão grave e tão conturbada?
Na verdade, esse vale aparentemente tão calmo guarda até em seu solo tantas recordações dramáticas que se torna ameaçador. Anamaya se lembra muito bem do massacre dos velhos que acompanhavam o Corpo Seco do Único Senhor Huayna Capac ocorrido exatamente ali!
De novo as aves guincham na floresta que escurece. Na escuridão crescente, o rumor do rio correndo torna-se mais lancinante e misterioso. Anamaya aperta a capa em volta dos ombros gelados mas se recusa a entrar na cancha, como se sua paciência pudesse proteger Manco no caminho que o conduz até ela.
Desde o crepúsculo, ela não se mexeu. Agora, é noite fechada. Colocaram junto dela um braseiro onde ela pode esquentar as mãos e o rosto. O tempo passa devagar enquanto ela acompanha a subida das estrelas.
De quando em quando, guinchos e latidos ecoam no escuro da montanha. Embora esteja atenta, só no último momento é que ouve o barulho de passos no capim. Não tem tempo de se virar antes que uma mão grande e forte lhe tape a boca, impedindo-a de dar um grito. Um corpo se abraça a ela e a levanta como uma boneca.
- Manco!
- Ah! - murmura Manco soltando-a. - Você me reconheceu logo!
Eles se encaram. A emoção brilha em seu olhar. Anamaya esquece a saudação oficial que ela se prometera fazer ao avistar Manco. O homem que está à sua frente irradia força e distinção. Ela sente um grande prazer em revelo, em avaliar a passagem do tempo no rosto dele desde o primeiro encontro dos dois, em Tumebamba. Ele também se sente perturbado diante dela. Dá um passo atrás para admirá-la melhor.
- Está quase noite, mas você brilha como uma estrela, minha irmã - diz ele com ternura.
- É um prazer revê-lo, Manco. Um prazer muito grande também ver que...
Ela tropeça na palavra e se interrompe. Gostaria de lhe dizer que ele adquiriu a beleza e a imponência que convêm a um Único Senhor. Que ele tem, no desenho dos lábios e no brilho dos olhos, a determinação e a segurança de um Filho do Sol. Mas não ousa. Por uma fração de segundo, sente a perturbação de seu amor por Gabriel. O pachacuti transtorna não só o mundo, como também seu coração. Em sua perturbação, ela não queria que Manco se enganasse e entendesse suas palavras como um desejo de sedução.
- Estou feliz que você tenha chegado aqui sem problema - acaba dizendo ela.
- Sim, há tropas de Quizquiz e de Guaypar rondando por toda parte. Mas essa gente do Norte não conhece a montanha tão bem como eu!
Ele sorri com uma ponta de desdém antes de acrescentar ternamente:
- Como você não teve medo e me reconheceu tão rápido? A Coya Cama quen agora teria tantos poderes que tem dois olhos nas costas?
- Eu esperava você há horas! Sentia medo por você, prestava atenção nos barulhos da noite aguardando você...
Ela se interrompe com um sorriso e acrescenta:
- ... e uma vez você me surpreendeu assim mesmo, neste mesmo lugar. Eles riem juntos, felizes e ao mesmo tempo embaraçados.
- Venha - diz Manco. - Vamos entrar no tambo. Será melhor para conversarmos, e estou com fome.
A chegada do Poderoso Manco criou um grande alvoroço dentro dos prédios. Os poucos Senhores que o acompanharam instalaram-se numa sala comum com o oficial da escolta de Anamaya. As servas correm pelos aposentos para abastecer os defumadores, preparar a comida, trazer chicha, cobertores e tochas.
Ao entrarem na sala reservada para Manco, tão logo desce a cortina da porta, Anamaya se ajoelha e por duas vezes se prosterna. - Anamaya! - exclama Manco desapontado.
- Único Senhor Manco...
- Anamaya! Por que me chama assim? - atalha Manco inclinando-se para ela. - Somos irmãos...
Anamaya balança a cabeça sem erguer os olhos para ele.
- Logo não seremos mais: os Poderosos se reuniram. Escolheram você para ser seu Único Senhor.
Manco se endireita. Seus lábios estão contraídos.
- Chegou a hora - murmura ainda Anamaya.
Manco observa-a um instante. Agarra-a pelos ombros e a obriga a se levantar. Fita-a bem nos olhos.
- Lembro-me da primeira vez que vi seus olhos. Éramos crianças. O azul dos seus olhos entrou direto no meu coração naquele dia. Mesmo Paullu, meu irmão querido, sentiu um pouco de ciúme!
O coração de Anamaya se perturba de novo, como a cada vez que ele evoca seus sentimentos por ela. Fecha os lábios para que ele não vá adiante. Manco, para alívio seu, não demonstra ter visto seu constrangimento. Deixa passar um silêncio com um sorriso sonhador.
- Sinto falta de Paullu - suspira ele com doçura. - Há meses ele está às margens do Titicaca. Só gosta de ficar lá...
O olhar de Manco fica mais firme. Ele retoma o fio de seu raciocínio.
- Lembro-me também da última vez que nos vimos, Anamaya, minha irmã. Aquela terrível noite do Grande Massacre de Cajamarca me perseguiu por dias e dias.
- Naquela noite, Poderoso Manco, eu lhe avisei que o Único Senhor estaria caminhando para o fim dele neste Mundo daqui e que em breve você deveria tomar seu lugar. Essa hora chegou.
- Sim. Suas palavras ficaram em mim. Não esqueci. Como não esqueço que desde sempre você traça meu caminho para o Mundo dos meus Ancestrais.
- Não sou eu - protesta Anamaya. - Eu sou apenas a boca que fala por eles. Sou apenas a Esposa do irmão duplo do seu Pai Huayna Capac. É ele quem o escolhe. É ele quem coloca o futuro do Império das Quatro Direções nas suas mãos.
- Preciso entender, Anamaya, entender o que aconteceu naquela noite... Tantas coisas foram ditas: que os estrangeiros eram deuses, que cuspiam fogo e formavam um corpo único com os animais deles... Em Cuzco, corre o boato que o Sol se apagou desde que eles botaram a mão em meu irmão Atahualpa.
Anamaya mede suas palavras.
- Não conheço o sentido de tudo que acontece no Império, Manco. Seu pai não vem mais me guiar. Meus sonhos estão cheios de silêncio. Mas vivo ao lado dos estrangeiros há várias luas e posso lhe garantir que eles não vêm do Outro Mundo. Eles são homens! Homens ávidos de ouro. Não cospem fogo nem têm mais poderes que nós. As armas deles são simplesmente mais poderosas que as nossas.
Manco balança a cabeça, solta os ombros de Anamaya e vai sentar na cama acolchoada no fundo do aposento.
- Venha cá - pede.
- Único Senhor...
- Não! Ainda não. Ainda não sou isso! Venha. Não tenha medo. Só preciso sentir seu calor junto de mim, irmãzinha. Como antigamente!
Anamaya vai até ele, hesitando um pouco. Manco lhe dá a mão. Ela pousa os dedos em sua palma, e ele os aperta com doçura.
- Fale-me dos estrangeiros - pede. - Ajude-me a compreende-los. Devemos detestá-los ou podemos respeitar alguns deles, amá-los como humanos do nosso mundo?
Confusa, ela sente o coração palpitar com força. Estaria ele sabendo de Gabriel? Não. O olhar de Manco está apenas preocupado, curioso.
- Eles não são bons para nós - diz ela com sinceridade. - Na grande maioria... São estrangeiros e difíceis de entender. Amam a própria força como se fosse uma deusa. Falam de um jeito e fazem as coisas de outro. Quase todos...
- Eles lhe dão medo?
Anamaya não responde imediatamente.
- Não - confessa afinal. - Não. Mas eles têm medo. Isso os torna cruéis e astuciosos.
- Fazer a paz com eles não é uma vergonha?
- Acho que a paz com eles é necessária no momento, como é em toda parte no Tahuantinsuyu. Há sangue e mortos demais. Todos os clãs e todas as famílias sofrem, mas ninguém sabe mais por quê. Precisamos ganhar fôlego antes de dar um salto para o que nos espera.
Manco suspira e balança a cabeça.
- Chalkuchimac foi contra minha designação.
Não se trata de uma pergunta, mas sim de uma constatação. Mais urna vez, Anamaya admira a nova maturidade daquele que será, que já é o Inca.
- Foi.
- Como você conseguiu convencer os outros a me escolherem?
- Todos os Poderosos Senhores de Cuzco, encabeçados por Tisoc, se opuseram a Chalkuchimac. Eu só lembrei as palavras de seu pai quando ele veio me ver na véspera do Grande Massacre. Foi o bastante.
Manco balança a cabeça, aprovando:
- Parece que eu não sou o único a apreciar seus poderes, menina. Mas todos temos que ser prudentes. Desconfio de Chalkuchimac. Ele continua comandando os soldados dele na montanha. Fará tudo para me impedir de colocar a borla na testa. E alguns chaskis me contaram que Guaypar se preparava para atacar os estrangeiros.
Anamaya empalidece, mas fica calada.
Manco não olha para ela. Tem os olhos perdidos na noite, na meditação de seu destino.
- Eles querem guerra. Querem guerra com os estrangeiros e conosco, os de Cuzco. Gostam de guerra e não acham que a paz seja um bom alimento para o Império. Anamaya, você precisa avisar os estrangeiros dessa ameaça. Se as forças de Chalkuchimac se pegarem com eles, é sobretudo para me esperar. Eles esperam provocar a raiva dos estrangeiros contra nós todos e impedir que eu venha a ser o Único Senhor!
Anamaya não responde. Sabe que Manco tem razão. Mas sabe também, sem conseguir explicar como, que nem Chalkuchimac nem Guaypar poderão impedir Manco de colocar a mascapaicha real na testa.
Manco a observa com atenção. Seu olhar é tão intenso que Anamaya tente seu peso nas faces, nos lábios, na testa, como se se tratasse de uma verdadeira carícia. A mão de Manco se levanta, seus dedos tocam o pescoço e Anamaya:
- Estou muito feliz de estar ao seu lado - murmura. - Estou muito feliz de respirar o perfume de sua presença. Senti muito sua falta, irmã Anaaya. Nenhuma mulher, posso lhe garantir, é tão linda e forte quanto você.
Ela sorri, inclina polidamente a cabeça.
- Também senti sua falta, irmão Manco... Mas sabia que chegaria o a em que poderia me inclinar diante de você e chama-lo de meu Único senhor... Onde está o Irmão Duplo de ouro? - pergunta como para não responder ao convite contido na carícia.
- Cuidadosamente escondido em Cuzco, Coya Cama quen! - respondeu um tanto secamente.
- Também sinto falta dele - murmura Anamaya, ignorando seu mau humor. - Ficarei muito feliz de estar perto ele. Desde o Grande Massacre, o Único Senhor Huayna Capac nunca mais me levou ao Outro Mundo.
- Você agora é uma mulher na acepção da palavra - diz Manco com uma voz melancólica. - Vai ver que não é mais possível ser a Esposa do Irmão Duplo. Se quiser, seu lugar poderá ser importante ao meu lado.
Anamaya mergulha os olhos no olhar de Manco e vê ali tanto desejo quanto ternura verdadeira. Pega a mão do jovem príncipe, leva-a aos lábios e sussurra:
- Irmão Manco, você sabe muito bem que não é assim que devem ser as coisas. Amanhã, quando partir de madrugada, você será o Único Senhor. Amanhã, só você poderá impedir que o Império das Quatro Direções se divida. Ninguém poderá tocar em você nem olhá-lo, nem mesmo eu, pois seu Pai Sol não vai querer. É a lei. Você precisará respeitar a Lei para que o Império seja forte e unido. É assim que você terá o apoio de seu Pai Sol. No entanto, você sabe que sempre, sempre poderá se apoiar em mim, aconteça o que acontecer.
Manco perscruta o rosto dela. Há uma dureza, talvez até um pouco de raiva em seu olhar. No entanto, ele também leva a mão de Anamaya aos lábios e lhe beija os dedos.
- Conte-me, irmãzinha. Conte-me tudo o que viu nesses últimos meses. Conte-me sobre a morte de Atahualpa e que espécie de homem é o Machu Kapitu dos estrangeiros. Conte-me mais, até que sua boca esteja seca e meus ouvidos estejam cansados, pois preciso entender.
Vilcaconga, 8 de novembro de 1533
O nativo observa Gabriel com um sorriso contido tão curioso quanto receoso. Repete sua resposta lentamente, para que o estrangeiro possa entedê-la melhor:
- Sim, ela estava aqui há três dias. Eu a vi.
- A Coya Cama quen?
- Eu sou apenas um hatunruna. Não sei o nome das princesas incas.
- Então, como pode ter certeza que era ela?
- Os olhos. Você disse que os olhos dela eram da cor do céu. Eu nunca i outra princesa com olhos como aqueles.
Gabriel aprova com um gesto de cabeça. Esboça um sorriso e se contém para não dizer que também nunca viu princesa alguma com um olhar mo aquele.
É de manhãzinha, as encostas abruptas das montanhas que cercam a aldeia de Rimac Tambo estão envoltas numa bruma leve que já se levanta em tiras transparentes. As encostas e os cumes formam uma imagem bela e enganadora de pétalas protetoras. Gabriel percorre-as com um breve olhar decepcionado que se afoga no ronco do rio. Anamaya não deve estar muito longe. m algum lugar na floresta. Nos dias precedentes, enquanto cavalgava ao do de Soto no caminho real, ele estava sempre esperando ver sua liteira voltando da embaixada. Em vão. De modo que sua decepção misturou-se m preocupação. Teria acontecido alguma infelicidade com ela? A não ser que ela tenha continuado a viagem até Cuzco? Mas não era o que estava revisto.
- Ela estava lá com um Poderoso de Cuzco - diz ainda o homem, como se lesse os pensamentos de Gabriel.
- Sabe em que direção ela foi?
O homem não tem tempo de responder. Uma voz os sobressalta: - Boas ou más notícias?
Soto sorri amigavelmente. Gabriel repara que ele vestiu a casaca de algodão acolchoado por cima do gibão. Sua mão esquerda, que repousa no punho da espada, também está protegida pela grande luva de couro forrada de chapinhas de metal que Soto gosta de usar nos combates.
Gabriel responde amuado:
- Nem boas nem más, por enquanto.
Torna a virar-se para o índio. Aponta para as montanhas em volta e pergunta:
- Sabe se há guerreiros na floresta?
O homem hesita. A chegada de Soto em traje de guerra o impressiona. Gabriel insiste:
- Soldados do Norte, dos que pilham, que destroem suas pontes e suas aldeias?
O índio se decide. Com os dedos de homem da terra, aponta para as encostas abruptas ao sul.
- Há duas noites, pouco antes da chegada de vocês, havia muitas fogueiras lá em cima. Mas, depois, mais nada.
Soto não precisa que Gabriel traduza.
- Claro que estão por lá - murmura. - Eles devem estar alguns dias à nossa frente para destruir as últimas pontes antes da capital!
Por um instante, os dois homens olham ainda na direção indicada pelo índio. A menos de uma légua da aldeia, a estrada real se transforma numa subida íngreme como eles nunca viram. O caminho não é mais calçado e é tão puxado que, sob a bruma que se levanta, no coração da floresta, seu traçado claro parece a prumo.
- Essa ladeira vai ser dura para nós, porém mais ainda para os cavalos - observa Gabriel. - Pois eles ainda não descansaram do ritmo em que estamos
andando nesses últimos dias. Talvez fosse melhor esperarmos o Governador aqui. Com o rosto franzido, Soto balança a cabeça. - Não gosto desse vale. Não gosto desse rio, não gosto disso - diz. Com o indicador nu, Soto aponta para a garganta estranha e estreita que se abre para leste, em frente a poderosas construções incas. Uma garganta estranha e funda. Enquanto por toda parte o nevoeiro se dissipa, deixando entrever o azul do céu, ali ele permanece. Denso, imóvel e ameaçador. Suas volutas translúcidas lhe dão em alguns pontos o aspecto de um animal monstruoso mas vivo.
- Ontem, o dia todo - acrescenta Soto -, a cerração não saiu dessa garganta. Parece que ela não leva a lugar nenhum, ou então vai dar direto onde mora o diabo!
Gabriel não contém um sorriso divertido.
- Eu não sabia que você era tão supersticioso a ponto de ter medo até das formas da natureza, dom Hernando!
- Um efeito do clima, sem dúvida... Você faz mal em caçoar, Gabriel! Observe a composição da paisagem. Esses bugres índios são capazes de passar dias escondidos nesse vale enevoado para cair em cima de nós quando menos esperarmos.
- É um risco contra outro. Estaremos à mercê deles quando subirmos essa ladeira. Os cavalos não nos ajudarão em nada, muito pelo contrário.
- Então precisamos andar logo. Será bem pior se esperarmos o mau tempo. Olhe esse céu, o dia vai ser deslumbrante, quente e salutar!
- Na verdade - resmunga Gabriel, a quem a serenidade do céu não convence muito -, o capitão é você!
- Basta, amigo! - exclama Soto, zombeteiro, agarrando o braço de Gabriel. - Já vi você mais entusiasmado diante da aventura. Será que, como
nosso caro dom Francisco, você desconfia que eu esteja muito apressado ara chegar a Cuzco?
- Desconfio, sim - responde Gabriel no mesmo tom. - E acho que, esta vez, minha desconfiança tem fundamento, Soto! Mas, pouco importa.
essa encosta que não me diz nada que preste.
- E eu lhe garanto que é esse vale que não me diz nada!
- Então, um de nós está errado - sorri Gabriel.
- Não, meu amigo! Reze antes para que nós dois estejamos enganados!
Enquanto os dois voltam para os dois prédios onde os espanhóis estão em polvorosa, o índio chama Gabriel. Aponta para uma montanha que domina o vale, a norte:
- Senhor estrangeiro - diz -, a princesa dos olhos azuis foi para essa montanha há dois dias.
Não é preciso muito tempo para que os 60 cavaleiros selem os cavalos, vistam uma sobrepeliz de algodão acolchoado ou, em alguns casos, uma cota de malha. De fato, o dia está muito bonito para que se possa achar que vai chover.
Os três arcabuzes estão carregados de pólvora bem seca e colocados num cavalo sem cavaleiro. Os cavaleiros que possuem escudos prenderam-nos às suas selas. As cordas de tripa das pequenas bestas com cardenal foram lubrificadas na véspera, tendo sido trocadas as que pareciam mais fracas. Algumas já estão retesadas, prontas para disparar, e a agulha à mão na aljava da sela.
O mais demorado é designar 12 homens para guardar o ouro de Rimac Tambo até a chegada do Governador. Finalmente, como ninguém quer se submeter a isso, Soto designa um punhado de homens sem cavalo e os dois mais jovens cavaleiros. Com ele, virão Gabriel e os bons cavaleiros, a começar por Rodrigo Orgoñez e sobretudo um dos mais valentes deles todos, o nobre Hernando de Toro.
É com uma expressão fechada de raiva e decepção que eles ouvem, pouco antes do meio-dia, ser dada a ordem da partida. O sol é pesado como um fogo de forja. Pesa tanto nos capacetes quanto neles reflete.
O início da subida é feito com prazer e entusiasmo. Por duas ou três vezes, Soto grita para os companheiros diminuírem o passo e não forçarem demais os animais.
Mas todos entendem logo. A terra sucede às lajes do caminho. Escorrega, muito barrenta ou muito arenosa, dependendo do lugar, mas sempre íngreme demais! Os animais às vezes parecem tão pesados que nem se agüentam. De vez em quando, só avançam aos pulos, como cabras, perdendo logo o fôlego.
Transposto um quarto da encosta, o caminho se encolhe entre os arbustos enquanto a floresta se espaça. Cada vez há menos sombra e mais calor. Os homens, como os cavalos, vão de boca aberta, a língua pastosa e com falta de ar. Soto dá ordem de só avançarem em grupos de quatro.
Gabriel e seus três companheiros se afastam do caminho. As botas escorregam no mato, ficam presas nos galhos frondosos das amoreiras e dos algodoeiros silvestres, mas os animais se sentem mais à vontade ali e penam menos.
Os homens abrem as sobrepelizes acolchoadas embaixo das quais sufocam. Desatam os cinturões, desapertam as camisas. Os olhos piscam, tamanha é a claridade do sol. As mãos estão molhadas segurando as rédeas dos cavalos. Ninguém fala, mas não há silêncio. O atrito das botas, o impacto dos cascos, as respirações curtas ecoam no ar cristalino. Os corações batem pesado nos peitos oprimidos. As veias intumescem nos pescoços e nas têmporas. Gengivas e tocos de dentes aparecem entre as barbas e desenham ríctus cadavéricos nas caras deformadas pelo esforço.
Ninguém pensa mais nos índios, mas apenas nos metros de montanha que é preciso galgar e que não param de aumentar diante deles.
No meio da tarde, eles só venceram a metade da encosta.
O calor os sufoca completamente. O céu não tem uma nuvem. Sob os capacetes, os rostos pingam, sujos de terra, abatidos pelo esforço. As bestas já eram há muito tempo presas às selas dos cavalos que também não agüentam ais. Seus beiços e seus peitorais estão cobertos de espuma, as cilhas de couro tão pretas de umidade. Alguns animais reviram os olhos, arfando sem parar, mo se cada respiração lhes dilacerasse os pulmões.
A encosta é a tal ponto vertiginosa que eles têm uma visão de pássaro. Embaixo deles, o estreito vale de Rimac Tambo não é maior que uma toalha de mesa. Não fosse o ronco ininterrupto e os turbilhões de espuma que surgem aqui e ali, poder-se-ia achar que o rio cinza azulado estava imóvel, como uma serpente adormecida.
Finalmente, Soto, que desde a base da encosta foi sempre na frente, dá ma ordem. Todos olham para cima e vêem uma espécie de pequeno planalto de longo talude de relva formando um estranho balcão a meia encosta.
- Meia hora de descanso - grita Soto.
- Uma hora! - reclama um homem com um nariz tão grande que parece talhado num pepino. - Não são só os cavalos que precisam respirar...
- Então, peça a um cavalo para soprar no seu rabo, Soytina, que você andar mais rápido! - replica Soto de um fôlego só. - Meia hora, e nada ais. Dêem de beber aos cavalos e lhes dêem também o milho que carregamos até aqui! Mais vale estar na barriga que no lombo deles!
Os homens se deixam cair sentados e tiram os capacetes que se tornaram suportáveis. Após um instante de estupor, eles aspergem a cabeça com os tis antes de umedecerem as ventas trêmulas dos cavalos.
Gabriel continua em pé para controlar melhor a respiração.
Apesar do peitoral sacudido por espasmos, seu cavalo agüenta. Gabriel o beber lentamente, sussurrando-lhe palavras para acalmá-lo. Orelhas em pé, o cavalo está ligado demais nas próprias dores para escutá-lo. O frescor da água e o carinho de Gabriel, no entanto, surtem efeito.
Quando seu animal se acalma, Gabriel revira maquinalmente a bolsa de pano que Anamaya lhe ofereceu e que ele não larga. Tira dali algumas folhas de coca. O sumo espesso e insípido se forma em sua boca, quando Soto e Hernando de Toro o encontram. Ao vê-lo mascar sua bola de coca, Soto franze o cenho mas se contenta em comentar com um sorriso cansado:
- Mais uma hora e eu terei tido razão. O pior está feito.
Gabriel franze os olhos olhando para o topo da encosta. Mora o caminho, trata-se apenas de um monte de pedras vagamente cobertas de vegetação.
- Eu diria ainda uma légua - sussurra ele. - Uma légua inteira de subida tão íngreme como se subíssemos ao céu por uma escada de Jacó.
- Bela imagem - resmunga Soto com um suspiro.
- Cavalo não sobe esse tipo de escada - observa Hernando de Torc.
- E o que eu queria dizer - replica Gabriel alisando o pescoço de seu cavalo.
Com um gesto curto, Soto aponta para a encosta.
- O que me aborrece - diz - é que agora somos obrigados a ficar no caminho. Se mandarmos os cavalos para os lados, eles vão quebrar as patas nas pedras.
- Com certeza - concorda Hernando de Toro. - Mas isso também nos protege. Nenhum homem poderia correr numa encosta como essa sem quebrar o pescoço!
Gabriel não diz nada. Sente os dois homens com muita vontade de se tranqüilizar. Os três ficam um bom tempo olhando para a encosta como se esperassem que ela fosse se dissolver à sua frente.
- Não se vê nada - resmunga Soto. - Nem uma cabeça, nem sequer um daqueles insuportáveis lhamas deles.
Hernando de Toro enxuga o rosto com a luva:
- Chegando lá em cima é que será preciso ser prudente.
- Vou na frente - diz Soto. - Em grupos de quatro, com cinco côvados de distância. Vocês dois, Gabriel e você, Hernando, fecham a marcha.
Os homens recomeçam a subir após a ordem de Soto. De quatro em quatro, a pé, puxando as montarias pelas rédeas, mais que as conduzindo.
A cada passo, as botas ficam mais pesadas para levantar. Nenhum deles está usando a cota acolchoada.
O sol se inclinou, as sombras se alongam diante deles. Eles se vêem no caminho, penosos vultos vacilantes. O pouco que descansaram logo se apaga. m alguns minutos, estão novamente molhados e ofegantes.
É nesse instante que isso acontece.
O clamor é tão imenso que parece que o céu se rasga.
Todos olham para o topo da encosta. Todos param petrificados. O pânico aperta a base das espinhas.
- Caramba! - murmura Hernando de Toro.
Os guerreiros índios cobrem todo o alto da montanha, ombro a ombro. Tantos são, é impossível dizer. Mais de dois mil, estima Gabriel, com um na garganta.
Mais de dois mil a berrar, gritar, bater os escudos no ritmo louco de tambores de guerra. Mais de dois mil a sapatear brandindo os machados e os capes e a girar as fundas. Mais de dois mil homens formando uma franja curiosamente colorida no cume verde da montanha, qual uma corrente de veneno prestes a levá-los.
- Caramba! - repete Hernando de Toro.
- Alinhar, alinhar! - ordena Soto, já empunhando a espada. - A cavalo! - berra alguém.
Lá em cima, os índios continuam berrando, mas o alinhamento se dessas primeiras levas de guerreiros pulam na encosta. Ao contrário do que achava Hernando de Toro, alguns homens sabem correr nesse amontoado de pedras diabólico!
- Cuidado com as pedras! Cuidado com as pedras! - grita uma voz.
Gabriel dá-se conta que é a sua. Em volta dele, é só pânico. Os homens, os ao mesmo tempo, fecham suas sobrepelizes acolchoadas, tentam montar aproveitando a estreita plataforma pedregosa, sacam as espadas, procurando soltar os capacetes dos escudos, enfiar as correias dos escudos no braço, mar as bestas, prender as agulhas. Mas nada dá certo.
- Os arcabuzes! - grita alguém. - Por Nossa Senhora, os arcabuzes.
Mas não, as armas estão inatingíveis, muito bem amarradas numa movia atrás de Soto que chicoteia como um demente seu próprio cavalo castrado. O clamor dos índios não pára, cada vez mais agudo, frenético. Os cavalos têm medo. Escorregam e pateiam. Impossível montá-los. Os homens tropeçam,
caem de joelhos, sem ar, os olhos em sangue.
- Monte, puto desgraçado, monte! - berra uma voz que naquele alarido Gabriel não identifica.
Mas os que estão montados não conseguem mais fazer os cavalos andarem na encosta. Os índios se espalham no meio das pedras, ágeis como feras, e é uma cena de uma beleza terrível. São tão numerosos, tão compactos, tão coloridos, que parecem um imenso tecido estendido desde o topo da montanha.
- Cuidado com as pedras! Cuidado com as pedras!
Como outros, Gabriel coloca o escudo no pescoço do cavalo, no que faz muito bem. Num zumbido que faz o ar vibrar, centenas de pedras se abatem sobre eles. Martelam os escudos, o capim, as cotas, as pernas, os peitorais, as nucas, as caras. É um horror. Gritos, gemidos irrompem ao longo da coluna. Animais bufam, fogem para os montes de pedra, ficam nervosos e procuram descer.
- Segurem os cavalos! - gritam em uníssono Gabriel e Hernando de Toro.
De canto de olho, Gabriel vê Soto e Ortiz na frente, já lutando com os índios, cortando e batendo, os ferros das espadas soltando faíscas em contato com os machados de bronze.
Em seguida, por um bom tempo, tudo fica confuso. Os guerreiros índios afluem às centenas, cercando-os, sempre emitindo seus gritos de guerra alucinados, atirando pedras, lanças, flechas, ferindo os cavalos, os homens. Eles ainda não ousam partir para o corpo a corpo pleno. Dançam diante dos homens emperrados pelas armaduras, diante dos cavalos loucos de medo. Fazem caretas horríveis, dão botes, dão golpes de tacape ou de machado que racham o couro dos escudos, rasgam as rodelas, e logo recuam, esquivando-se do silvo das espadas. E recomeçam a gritar!
- Para o alto, para o alto - diz Gabriel empurrando Hernando de Toro.
Mas metade dos homens não está montada. Eles se empurram no caminho estreito, tropeçando uns nos outros, incapazes de se defender com eficiência.
E, de repente, um relincho assustador e mais outro sobrepujam o alarido. Uma vala forrada de chuços afiados e coberta de galhos desmoronou com o cavalo de Marquina. As pontas lhe atravessam o pescoço e as costelas, o lombo se dilacera em chagas escarlates. Com os olhos arregalados pela visão da morte, ele se debate, aumentando seu sofrimento, perdendo sangue aos borbotões. Ileso, Marquina consegue sair da vala, ajudado por Soytina, e subir para o caminho. Mas os dois não são suficientemente rápidos. Meia dúzia de índios pula. O machado se crava profundamente nas costas do soldado e seu nariz explode com um golpe de tacape, transformando seu rosto numa papa de sangue, carnes esmagadas e cartilagens trituradas.
Quanto a Marquina, sempre no chão, são três a se precipitar sobre ele. Ao mesmo tempo, atingem-no com tanta força no crânio que o racham em dois. Bestificados, os espanhóis vêem os índios puxarem o corpo do cavaleiro para as pedras, rugindo de alegria diante do cérebro que se espalha pelo chão.
O imenso clamor vibrou no ar qual uma revoada de pássaros negros.
- Parem! - ordena Anamaya aos carregadores de sua liteira.
Desde a véspera, após ter deixado Manco, voltando a Cuzco por caminhos secundários, eles seguem as trilhas de cume para evitar também as tropas de Guaypar e Quizquiz.
O clamor continua, violento, terrível. Parece fazer tremer até a folham das árvores.
O oficial da escolta vira-se para Anamaya e diz:
- É o grito de guerra.
Todos escutam, as mãos crispadas. O clamor continua.
Anamaya mal respira. Seu estômago vira um nó mais duro que uma pedra.
- Eles são numerosos - comenta o oficial.
Ela não precisa fechar os olhos para imaginar.
Não deveria temer o sofrimento dos estrangeiros, porém faz mais do que temer.
- Eles estão em Rimac Tambo - murmura.
- Estão - confirma o oficial. - Os estrangeiros têm que tentar atravessar o passo de Vilcaconga. É um bom local para uma cilada. Quizquiz adora esse lugar.
O alarido que parecia amainar recomeça, mais agudo, mais feroz. Anamaya imagina os incontáveis guerreiros se desabalando pela encosta pedregosa, a rampa tão inclinada que os próprios carregadores de liteira às vezes se apoiam em cordas para conseguir subir.
Ela não quer pensar nele. No entanto, desde o primeiro instante, lera-se das palavras de Manco, do frio que se abateu sobre ela. Gabriel está perigo.
Ela sente isso, todo seu corpo sente. Sabe que ele está lá embaixo no combate.
Quer ser racional. Mas o amor que tem por ele vira uma dor que lhe enrijece a cintura, lhe esmaga o peito.
Os gritos não param de ecoar na floresta e no ar frio do cume.
Anamaya treme. Praticamente sem se dar conta, murmura uma prece: "O Inti, ó Poderoso do Outro Mundo, ó Sol Pai dos Ancestrais, ó Quilla minha Mae, não quebrem o salto do Puma! O Único Senhor que me designou, não me abandone no caminho aonde me conduziu. O vocês que decidem o dia, que decidem a noite, não o levem para o mundo de baixo me deixando só!"
Com um grande esforço, ela se controla e vê que todos à sua volta, carregadores e soldados, observam-na com espanto. Mas todos também baixam os olhos sob seu olhar.
Em meio aos uivos que vibram no ar, ronca a trovoada. Anamaya reconhece a arma de fogo dos estrangeiros. Um outro estrondo sobressalta os carregadores. Mal o eco das explosões se dispersa, o clamor dos guerreiros volta com mais força e mais fúria.
Com uma voz neutra, ela ordena:
- Dêem meia volta. Quero descer para Rimac Tambo o quanto antes.
Há quanto tempo estão lutando? Gabriel já não sabe mais nada. Suas sombras são longas e estão ensangüentadas.
O tumulto não pára, os uivos dos índios não param. As pedras, os golpes, as flechas não param. O sangue brilha nos flancos dos cavalos. Os animais só haviam subido meia légua quando as bestas foram descarregadas a queima-roupa, matando às vezes dois índios com o mesmo tiro. Mas os guerreiros incas, em vez de se intimidarem, ficaram mais furiosos. Eles aprenderam a conhecer essas máquinas. Sabem que é preciso tempo para recarregá-las e baixam sobre os cavaleiros desmontados com gritos de espanto.
Após tê-lo feito transpor a vala com os chuços, Gabriel solta seu cavalo, com uma forte palmada na garupa. Aos pinotes furiosos, mordendo ao passar, o cavalo abre um caminho morro acima. Ao lado de Gabriel, um grupo de índios se agarra ao rabo de um animal para segurá-lo e derrubar o cavaleiro. Com um grito de fúria, Gabriel investe e decepa uma mão e o rabo. O índio cai para trás, berrando de dor. Gabriel vê distintamente o medo nos olhares. Apara uma machadada com o punhal e a espada cruzados, e com um chute na barriga repele o agressor que cai na encosta.
Hernando de Toro grita acima dele:
- Soto está lá em cima! Ele chegou!
Ele queria falar mais, porém o ataque de um grupo de índios os obriga à vigilância.
Gabriel e ele defendem uma passagem perto da vala de chuços para que os retardatários possam passar. Pulando para a direita e para a esquerda, cada
vez mais esbaforidos, repelem os golpes de tacape e as machadadas sem nunca conseguir contra-atacar.
Hernando de Toro dá um grito de dor. Gabriel o vê cambalear, uma ponta de lança na coxa. Corre para seu companheiro girando a longa espada no ar, dando-lhe tempo para tirar a lança da carne.
- Suba - grita Gabriel -, suba, eu protejo você!
Sua voz é abafada pelos tiros de arcabuz. Dois.
Mas os únicos índios que as balas atingem estão a dez passos de Soto.
Restam centenas ao longo da encosta, tão numerosos que se derrubam e se pisoteiam a si mesmos.
E é como se a pólvora desencadeasse a loucura deles.
A retaguarda da coluna progride passo a passo. Os últimos cavalos não
agüentam mais. Hernando de Toro só sobe se arrastando no chão, agarrando-se às pedras e aos galhos dos arbustos, enquanto Gabriel no flanco direito mantém os índios à distância, atingindo braços e peitos. O sangue zune em as têmporas e perturba sua visão. Sua espada começa a pesar tanto que suas tocadas encontram mais ar do que carnes. Um cansaço inominável o vence, mo se ele também andasse de rastros. O fedor do medo e do sangue o foca. Ele mal percebe que um índio dá um salto espetacular e cai de pés tos em cima de Hernando de Toro.
O combate e rápido. Toro lança seu punhal num derradeiro esforço exatamente na hora em que a maça em forma de estrela penetra em sua face e lhe quebra a mandíbula. Hernando de Toro, os olhos arregalados, pôde ver o guerreiro índio levantar sua arma e lhe lançar a morte na testa.
Sem pensar, Gabriel gira, curvado, para a frente. Sua lâmina chata irrompe no ar cheia de sangue. A ponta do ferro corta a nuca do índio. Mas a pada, com a violência do golpe, lhe escapa das mãos.
Estranhamente, ele perde o medo. O tempo parece andar mais devagar.
Seu esgotamento e seu cansaço de sangue são absolutos.
Ele se endireita lentamente, o punhal pendendo na ponta de seu braço. No meio do tumulto, ele entrevê os olhares dos guerreiros do Império das Quatro Direções. Já não são as caras resignadas daqueles que eles massacraram em Cajamarca, nem em Hatun Sausa. São combatentes que encontraram o orgulho perdido.
Como vindo de muito longe, ele ouve os gritos de Soto chamando-o. Mas a pedra de funda, vindo de cima, vai mais rápido que seu nome.
Ele ainda ouve o impacto surdo em seu capacete e mergulha finalmente no vazio.
É quase noite quando a liteira de Anamaya divisa ao longe os terraços de Rimac Tambo.
Gritos, batidas de tambor se fazem ouvir ainda no alto da encosta de Vilcaconga. Os guerreiros feridos chegam até o rio. Alguns estão em tão mau estado, braços decepados, peito ou costas retalhados, que desabam na ribanceira e morrem em contato com a água gelada.
A pedido de Anamaya, o oficial da escolta enviou dois de seus soldados na frente para ter notícias. Quando os dois homens dobram os joelhos diante da liteira, apesar do escuro do entardecer, Anamaya vê no rosto deles que as noticias são terríveis.
- Falem! - ordena ela secamente.
- Dois mil guerreiros do exército do general Quizquiz, dirigidos pelo capitão Guaypar, esperavam os estrangeiros no topo da montanha. Deixaram que eles subissem bastante para que estivessem cansados, assim como seus animais, e não pudessem se deslocar tão depressa quanto de hábito.
O soldado se cala, olhos baixos, cabeça inclinada. Anamaya adivinha que o mais importante não é dito.
- Continue - ordena ela.
- Cinco estrangeiros foram mortos pelos soldados, Coya Cama quen, e muitos estão feridos. Dois dos grandes lhamas deles morreram.
Ela precisa fazer um esforço para não deixar transparecer seu medo. Pergunta, um tanto devagar:
- E agora?
- Os estrangeiros estão no alto do passo. Eles encontraram um refúgio e estão descansando os cavalos. Os guerreiros de Guaypar pararam de atacá-los. Mas amanhã, ao amanhecer, os capitães darão a ordem de atacar com as flechas de fogo para assustar os cavalos.
Lá em cima na encosta, já ecoam mais forte os tambores e os cantos de guerra noturna. Anamaya pensa um instante em Guaypar. Ele certamente está lá, com sua fúria, sua loucura assassina. E conhecendo bem a guerra e os estrangeiros. Vai impedir que eles durmam, que tenham um mínimo de descanso durante a noite. Quando começar a clarear, será uma brincadeira de criança massacrar Gabriel e seus companheiros.
Ela encontra o olhar do oficial da escolta. Vê sua perturbação e adivinha facilmente o motivo. Pela primeira vez, guerreiros do império matam estrangeiros e estão prestes a vence-los numa verdadeira batalha. Ele gostaria de se regozijar com isso, mas não ousa fazê-lo na frente dela.
Ela sai da liteira e, com um gesto, chama o jovem oficial de lado. Na beira do rio, agora há fogueiras e vêem-se os camponeses que levam comida para os guerreiros feridos que continuam chegando em pequenos grupos. Muitos parecem ter apenas quebrado algum membro, braço ou perna caindo nas pedras.
- Oficial - diz Anamaya. - Sabe que falei com o Único Senhor Manco.
Só com essa evocação, o homem inclina a cabeça e se curva.
- Sei, Coya Camaquen.
- Ele quer paz em todo o Império e paz com os estrangeiros. Os que fazem guerra lá em cima no passo estão desobedecendo a ele. O oficial se cala.
- O Único Senhor deseja que ajudemos os estrangeiros para que eles possam chegar a Cuzco onde ele espera recebe-tos e lhes mostrar sua força - z ela com uma voz clara. - Se for preciso, nós mesmos devemos combater ~s traidores. Só existe um Único Senhor, e devemos todos obedecer a ele.
Compreende a minha vontade, oficial?
O oficial se cala ainda um instante e depois se levanta lentamente.
- Sim, Coya Cama quen. Farei o que me ordenar.
- Eu lhe agradeço e me lembrarei disso.
No olhar do oficial há um pouco de tristeza.
- Disseram-me que uma tropa de estrangeiros a cavalo não estava muito longe na estrada do outro lado do rio - diz baixinho.
Anamaya precisa fazer um esforço para reprimir um gesto de alegria.
- Então, envie seus homens ao encontro deles! - ordena. - Que eles atravessem o rio o quanto antes! Eles devem estar aqui antes do amanhecer.
Quando volta a si, Gabriel sabe que anoiteceu realmente. Sabe que o inferno da dor alojou-se em sua cabeça. Uma chuva fina cai em seu rosto com uma doçura bem-vinda.
- Que coisa desagradável! Muito desagradável! - resmunga Soto levantando-se, os dedos grudados de sangue.
Gabriel mais sente do que vê os homens à sua volta. O rosto do próprio Soto está consumido por sombras móveis.
- Não se mexa, amigo Gabriel - diz ainda Soto, rouco de tanto ter gritado. - Cuidamos de você e vamos todos sair dessa.
Gabriel duvida. Gostaria de sorrir e dizer uma palavra a Soto, ter idéia ao menos do número de mortos, saber se Soto ainda pode se defender com os homens válidos, salvar os feridos. Outros que não ele, pois para ele parece que é o fim. Uma idéia à qual ele se habitua estranhamente, que não o assusta. Não, pelo contrário. A morte é uma idéia que o acalma.
Mas nem um som sai de sua boca, a não ser um lento estertor que ele não escuta. O que é estranho, também, é que ele não sente dor de cabeça, mas o braço esquerdo o incomoda violentamente.
Ele já não se lembra muito bem do que aconteceu após a morte de Hernando Toro. Voltou a si quando o arrastavam para o alto da encosta no meio de uma carga de índios. Foi assim que imprensou o braço nas pedras, e quase o quebrou.
No entanto, ele sabe: a dor está em seu braço mas a morte já lhe consome a cabeça. Perdeu tanto sangue que uma crosta pegajosa lhe cobre o rosto. Enfaixaram-lhe a cabeça com a manta de um cavalo morto. Porém, nada mais nele funciona normalmente, nem os membros, nem a visão, nem a audição, nem a fala.
E ele vê que é noite, mas não sabe se a noite sobre o mundo é o começo da sua.
Ele se pergunta se o combate terminou.
Ele se pergunta se os índios continuam berrando.
Ele julga ouvir gritos de novo e como que um som de trombeta. Pensa que entra no domínio dos mortos e se pergunta se é Deus quem manda tocar essas trombetas. Pensa que é como um barco frágil, arrastado por uma correnteza imensa. No entanto, o som das trombetas é terrível, insuportável. Ele só tem vontade de uma coisa: estar ainda mais longe no escuro e na libertação da morte.
Depois, sente apenas o torpor feliz que o leva, e se deixa ir.
Vilcaconga, noite de 8 para 9 de novembro de 1533
Eles só param para ganhar fôlego. Pouco importa que os índios e os espanhóis tenham marchado sem descanso para chegar a Rimac Tambo, pouco importa a noite e o tempo que se deterioram, e a umidade pegajosa que atravessa as roupas, grudando-as na pele.
Enquanto vai subindo, Anamaya é invadida pela lembrança da terrível cilada que, exatamente ali, há alguns anos, custara a vida dos Poderosos Anciãos, valorosos servos de Huayna Capac e vítimas da loucura de Huascar. A medida que ela vê os primeiros vestígios do combate, as armas quebradas, os feridos gementes, cadáveres com os membros abertos, parece-lhe que as atrocidades se repetem e se correspondem.
Chegando à vala de chuços onde jazem os cadáveres de um cavalo e de dois homens brancos, o rosto esmagado por maças de pedra, os gritos de raiva dos estrangeiros fazem-na temer que eles se virem contra ela. Mas Almagro já discursa para seus homens ordenando que prossigam.
- Não podemos fazer mais nada por esses! Vamos subir até o topo, Soto deve estar nos esperando lá em cima, e os desgraçados desses índios sem dúvida querem recomeçar a luta.
Na montanha, próximo dali, ecoam os gritos de triunfo e os cantos abafados, o rufar dos tambores e as trompas dos soldados vitoriosos de Guaypar. Anamaya sabe que os incas não lutam à noite. No entanto, com um chefe como Guaypar, tudo é possível. Quem sabe se, embriagado por esse primeiro sucesso, ele não sonhe com um massacre final que desencorajaria os estrangeiros?
Atrás, ela ouve as reclamações esbaforidas dos soldados espanhóis que, puxando seus cavalos, penam para avançar nas pedras da encosta.
Por vezes, ela fecha os olhos, continuando a subida como se fosse conduzida unicamente pela presença de Gabriel, lá em cima, pelo violento desejo de encontrá-lo, de tocá-lo. De certificar-se que ele esteja vivo.
Quando atingem o topo, a algazarra dos guerreiros de Guaypar se acalma. Talvez tenham se afastado, já advertidos da presença dos reforços espanhóis. Os cavalos estão tão cansados que não levantam a cabeça na direção dos que chegam. Mas os soldados de Soto acorrem ao encontro deles com gritos de alegria. Afastando-se dos abraços, Anamaya mais sente do que vê sombras reunidas, coladas umas às outras, na extremidade da plataforma, imóveis. Escuras na noite, parecem não ser desse mundo nem do outro.
O que resta do grupo do capitão Soto não acendeu nenhuma fogueira para evitar formar um alvo demasiado fácil na noite. Um cavalo jaz sobre o flanco, dois homens esgotados deitados na terra lamacenta se levantam e tentam penosamente se pôr de pé. Adiante, um gemido fraco rasga a noite. Almagro corre para junto do capitão:
- Soto!
Soto se vira. A boca cansada, cumprimenta apenas com um gesto. A parte superior de sua cota de malha está rasgada, seus calções duros de sangue testemunham a fúria do combate. Mas sobretudo a cólera e a dor formam uma máscara gelada em seu rosto.
- Quantos dos nossos? - pergunta Almagro.
- Cinco, que eu saiba - suspira Soto. - Marquina, Soytina, Hernando de Toro, Ruiz e Rodas. Mas o sexto não passará desta noite. Se é que já não se foi...
- Quem?
- Gabriel.
- Montelucar y Flores? - precisa Almagro com o esboço de um sorris . - O protegido de Francisco?
Soto faz que sim com a cabeça, mas se assusta quando Anamaya lhe agarra o braço:
- Onde está ele?
- O que faz aqui? - pergunta Soto desvencilhando-se.
- Foi a escolta dela que nos avisou do ataque - diz Almagro.
- Por favor - insiste Anamaya. - Onde está ele?
Com o queixo, Soto aponta para o grupo de sombras que ela notou há pouco.
- Com os outros feridos, ali.
Ela corre. Para surpresa dos índios de sua escolta, a Coya Cama quen corre de um estirão só até os corpos deitados e gementes que parecem querer se fundir na noite.
Nenhum dos espanhóis que tratam dos feridos diz qualquer coisa quando ela os afasta e se ajoelha diante de Gabriel. Uma manta o cobre até o pescoço. Outra está enrolada embaixo de sua cabeça, envolta em tiras de camisa. Ele tem uma palidez estranha, e a mancha de sangue do lado parece ainda mais opressiva e terrível com isso. Seus lábios estão entreabertos, deixando passar uma respiração imperceptível. A febre agita suas pálpebras. Quando Anamaya toca em seu rosto, seus dedos se molham num suor gelado.
Ela respira fundo, procurando calma dentro de si mesma, recusando-se a ceder ao medo. No entanto, quando uma mão pousa delicadamente em seu ombro, ela se sobressalta com um grito de medo.
- Deixe comigo...
Ela reconhece a voz doce antes de encontrar os olhos cinzentos de Bartolomé.
- Vou tratar dele - diz ainda o frade.
- O que vai fazer? - pergunta ela em voz baixa.
- Meu dever: ajudá-lo a passar para o outro mundo como cristão... Anamaya olha para ele balançando a cabeça. Levanta as mãos e o
empurra:
- Se é para isso, vá tratar de outra coisa e deixe-me com ele.
Há uma secura em sua voz, mas uma firmeza que fecha a boca de Bartolomé. Ele a vê inclinando-se sobre o rosto de Gabriel, debruçando-se sobre ele e murmurando em seu ouvido. Ouve um murmúrio estranho onde se misturam o quíchua e o castelhano. Depois ela leva as mãos ao peito do ferido, por baixo da manta. Lenta e regularmente, massageia o tórax de Gabriel, no lugar do coração. Sem levantar a cabeça, pede em espanhol:
- Acendam uma fogueira de cada lado dele e tragam outra manta.
Ela não se preocupa em ser ouvida ou obedecida. Repete sua ordem em quíchua e os soldados de sua escolta que se mantêm afastados olham com uma expressão tão incrédula quanto os espanhóis.
- Façam o que ela diz - ordena Bartolomé.
Pouco depois, quando as primeiras labaredas oscilam entre as ramagens, Soto acorre gritando:
- Vocês estão doidos? Eu disse: nada de fogo.
Anamaya, que despiu o torso de Gabriel e o esfrega com a lama fina, responde-lhe sem interromper seu movimento:
- A batalha acabou, senhor Soto. Vocês não serão mais atacados, nem hoje nem amanhã. Não viram que os tambores de guerra se calaram?
E sem esperar resposta, dá mais umas ordens em quíchua antes de se deitar em cima de Gabriel como se o abraçasse para um corpo a corpo de amor. Correndo, os índios trazem mantas com as quais os cobrem até faze-los desaparecer.
A estupefação de Soto vence sua ira. Bartolomé levanta aquela mão de dedos estranhos e diz:
- Ela tem razão, capitão Soto. Vamos deixar isso com ela, por favor...
Logo dois grandes braseiros ardem ao lado deles inundando de luz a plataforma, tirando do escuro as caras espantadas e esgotadas.
Embaixo das cobertas, Anamaya não pára de acariciar o corpo inerte de Gabriel. Ela sopra em sua carne nua como se quisesse atiçar as brasas da vida. Tira do cinto sua bolsa de coca, masca as folhas avidamente e deixa o sumo escorrer entre os lábios ardentes de seu amante. E continua massageando seu peito, obrigando seu coração a bater. Finalmente, depois que os barulhos do acampamento estão calmos há algum tempo, ela ouve um estertor fraco na garganta de Gabriel. Logo depois, ele tem a barriga sacudida por espasmos.
De novo, ela o faz engolir um pouco de sumo de coca. A respiração dele fica mais pesada, mais rouca e mais funda. Seu coração bate nos ossos do peito. Anamaya pousa ali os lábios, depois as faces quentes. Uma alegria tímida e terrível surge dentro dela, como se a vida renascesse por inteiro nela como nele.
Vilcaconga, 10 de novembro de 1533
Na entrada da tenda, frei Bartolomé contém o passo. Entre os panos de lona levantados, ele os vê.
No fundo da tenda, num leito feito de tapetes amontoados, Gabriel está acordado, rosto lavado, cabeça envolvida numa espécie de turbante azul. Olhos bem abertos, beija as mãos de sua bela amiga, a jovem índia que é tida como uma princesa influente entre os incas. E uma espécie de feiticeira!
Por uma fração de segundo, ele não sabe se vai em frente ou retorna. Percebendo que sua presença não foi notada, não faz uma coisa nem outra, entregando-se apenas ao pecado irresistível da curiosidade.
Um sorriso nasce nos lábios de frei Bartolomé. Feiticeira, a jovem nativa certamente é! O que, com seus próprios olhos, ele a viu fazer há duas noites lhe valeria a fogueira na Espanha.
Agora, os dois amantes se beijam com delicadeza. A ternura da noite os une como um halo de luz. Frei Bartolomé hesita de novo, mas a curiosidade é mais forte.
Ele a vê, desvencilhando-se docemente do beijo. Ela pousa o braço ferido de Gabriel de lado, acaricia seu rosto com uma risadinha. Por uma fração de segundo, parece-se com todas as jovens apaixonadas do universo.
No entanto, logo depois, quando se endireita, volta a ser a princesa de gestos comedidos, de uma severidade quase grande demais para sua beleza. E o vê.
Gabriel acompanha o olhar de sua amante e também o vê.
Frei Bartolomé dá um passo e os cumprimenta sem mais constrangimento.
- Bem, parece-me que aí está um Lázaro bem ressuscitado! - ironiza.
Sua risada perde-se no vazio. Seja como for, o olhar da jovem princesa o impressiona. Sem pestanejar, ela lhe dirige um breve cumprimento de cabeça.
- Não tenha medo de mim - diz ele.
Ela o fita com um olhar inexpressivo. É ele que se sente mal, como se ela conseguisse ver no fundo dele, até os meandros que ele preferiria esquecer. Finalmente, julga ver o brilho de um sorriso no azul suntuoso do olhar dela.
Mas é algo tão fugaz que ele não sabe ao certo o que viu.
A princesa dirige algumas palavras rápidas em quíchua a Gabriel. Com um movimento rápido, ajusta a manta sedosa nos ombros e sai da tenda com uma desenvoltura que impressionaria até a rainha da Espanha.
Bartolomé segue-a com o olhar e ouve às suas costas a voz surda de Gabriel:
- Não se equivoque, frei Bartolomé. Anamaya gosta do senhor. Mas desconfia de todos os espanhóis.
- Você não devia se queixar disso! - Por que está dizendo isso?
- Você devia ver como ela me afastou de você... É verdade que, como os outros, eu já via você morto, enquanto ela o via bem vivo...
No frade, há uma espécie de alegria leve que intriga Gabriel, cujo espírito e o corpo ainda estão confusos. Ele dá um sorriso cansado, enquanto o
religioso prossegue:
- Uma coisa é certa. Ela salvou sua vida, eu sou testemunha. Bartolomé olha por um instante as pálpebras escuras que Gabriel tornou a fechar.
Sem abri-las, Gabriel sorri e pergunta:
- Conte-me, frei Bartolomé. Ela não quis me dizer nada. E eu não me lembro de nada, a não ser desse frio...
Um arrepio o percorre só de pensar nisso.
- ... e daqueles olhos mergulhados nos meus quando voltei a mim. - Todo mundo, menos Deus, já dava você como morto. Começando pelo capitão de Soto! - assevera frei Bartolomé. - Você estava sem nenhuma reação. Não se sentia mais a sua respiração. O capitão de Soto pediu-me para lhe dar a extrema-unção. Eu estava prestes a fazer isso quando ela chegou até você.
Gabriel imagina a cena e não contém um sorriso.
- Sabe o que ela fez? - prossegue frei Bartolomé. - Até de manhã, manteve você colado a ela e como no centro do braseiro para aquecé-lo. Ah, devo dizer que você tinha bom porte e que isso podia impressionar...
Gabriel dá asas à imaginação. A emoção lhe aperta a garganta. Ele abre os olhos, disfarçando a perturbação com uma ironia:
- E o senhor a deixou fazer isso?
Frei Bartolomé faz que sim com a cabeça. Seus dois dedos estranhamente grudados deslizam da têmpora ao queixo num gesto pensativo.
- Deixei. É estranho e muito pouco decente, concordo. Mas na agitação que o cercava, naquela noite que se seguia a tantos sofrimentos, isso parecia quase... normal. No entanto, amigo Gabriel, é melhor que quem não assistiu ao espetáculo não fique sabendo. Entende?
Gabriel não reage. Sente o doce calor em seu corpo e pensa que foi preciso ele estar à beira da morte para Anamaya se entregar completamente a ele. "E dizer que eu mal estava ali para aproveitar..." Este pensamento lhe provoca um sorriso que mais parece uma careta.
Frei Bartolomé balança a cabeça e acrescenta:
- No dia seguinte, desde que você se instalou nesta tenda, a princesa cobriu suas feridas com uma lama trazida das margens do rio. Depois disso, obrigou-o a beber grandes quantidades de uma infusão preparada por ela.
- Só isso? - espanta-se Gabriel.
- Só. E já é muito.
- O que quer dizer?
- Que depois você estava curado.
Frei Bartolomé diz isso num tom que deixa Gabriel sem jeito.
- Decerto - prossegue Bartolomé - você delirou um pouco. Mas com muita alegria. Parecia achar que era algum animal selvagem. Era difícil compreendê-lo, pois, curiosamente, falava a língua de sua bela amiga em vez de castelhano. Como sabe, estou aprendendo essa língua, mas só sei os rudimentos...
- Devia ser uma infusão para aliviar a dor - assegura Gabriel. - Os índios daqui são muito sábios no uso das plantas e Anamaya... quer dizer, a princesa sabe esses segredos. É uma coisa normal neste país.
- Sem dúvida. Porém o mais estranho, sabe, é que seu ferimento da cabeça parou imediatamente de sorar e de sangrar. Você mesmo pode constatar, já está cicatrizando. O do braço também.
Há no tom de frei Bartolomé uma doçura que faz Gabriel estremecer. Lembra-lhe conversas muito longínquas. Lembra-lhe esse jeito insidioso de sorrir para melhor preparar suas ciladas, próprio apenas de uma raça de padres.
- Aonde quer chegar? - pergunta.
- Essa bela princesa me fez pensar muito - diz muito sério Bartolomé. - Não dizem que ela tem poderes que impressionam até o mais poderoso senhor inca?
Gabriel se levanta, o rosto duro, sem mais nenhum vestígio de amizade, toda a desconfiança antiga desperta.
- Se está pensando em alguma feitiçaria, digo-lhe que está enganado, frei Bartolomé. Anamaya não é um demônio em forma de mulher!
- Eu disse isso?
- Prefiro que nem cogite.
- Você se engana, meu amigo.
Frei Bartolomé parece sinceramente surpreso. Até sua risada soa franca.
Ele pousa sua mão curiosamente deformada no ombro de Gabriel.
- O que tem em mente, Gabriel? Acha que quero o mal de sua amiga?
Ou está com raiva de mim por. tê-lo ajudado a ver claro em seu coração quando ali reinava a confusão?
Gabriel descarta com uma expressão desdenhosa a alusão do frade.
- Nunca vi um homem da Igreja tolerar por muito tempo o que não compreende!
- Não! - protesta Bartolomé erguendo-se bruscamente. - Não, você se engana e me conhece mal, Gabriel. Eu não vim a este país para criar sofrimento, mas sim para aplacá-lo. Se isso é possível. Você deve acreditar em mim.
- Veremos - replica secamente Gabriel deixando-se cair na cama. Frei Bartolomé olha um instante para ele.
- Cristo é testemunha. O mais importante para mim, meu amigo, é justamente aprender o que não me parece compreensível.
Gabriel o vê sair da tenda.
Fecha os olhos, esgotado. Apesar da hostilidade que ainda reina nele, lembra-se que sem esse estranho frade, de uma bondade desorientadora, talvez não tivesse se despedido de Anamaya nem recebido o carinho desse "amo você" que ficou dentro dele e talvez o tenha salvado... É tarde demais para lembrar disso. Mas ele adormece, sorrindo.
Rimac Tambo, 13 de novembro de 1533
- Vão em paz - diz Valverde.
Na vasta esplanada do tambo, os homens de armadura assistiram à missa num recolhimento inusitado. Não havia nenhum dos murmúrios ou dos gemidos habituais - só o relincho de um cavalo, o canto do regato lá embaixo.
Apesar do chamado do padre, eles não se mexem.
No centro da esplanada, os corpos cobertos com uma mortalha estão colocados num estrado montado às pressas, e todos fitam aquilo como se não conseguissem olhar para outra coisa.
Gabriel está atrapalhado com a rigidez de seu braço na tipóia. Não vestiu sua cota de malha, só o plastrão de algodão revestido de couro, agora batizado por seu sangue.
Desde o amanhecer, mesmo os mais fiéis dos aliados nativos mantêm os olhos baixos ao cruzar com um espanhol. Quanto aos nobres que acompanham Chalkuchimac, é como se eles tivessem sumido nas montanhas. O próprio general não saiu da liteira.
Dom Francisco Pizarro atravessa as fileiras para se colocar no centro, bem diante dos corpos, ao lado de Valverde. Vestiu sua armadura completa, de onde emerge apenas sua cabeça miúda de pássaro negro. Antes de falar, olha para eles e, um a um, os homens erguem os olhos para o chefe. Mais uma vez, entre eles passa essa febre que alguns deles conheceram, na noite que antecedeu a batalha de Cajamarca, quando ali não havia mais nem soldados nem cavaleiros, nem ricos nem pobres...
- Vocês estão sofrendo - diz ele com uma voz firme - e sentem raiva...
Vira-se para os cadáveres envoltos em panos e aponta para eles.
- Eram nossos amigos e eram bravos soldados, e não quero que esqueçam o nome deles. Juan Alonso de Rodas, Gaspar de Marquina, Francisco Martin Soytina, Miguel Ruiz, Hernando de Toro...
Martela cada um dos nomes com força, como se enumerasse o nome de santos.
- Eles eram do País Basco, de Sevilha, de nossa querida Estremadura... Tinham a tez clara ou morena, alguns sabiam escrever e outros só sabiam lutar, alguns estavam a cavalo, outros a pé... Morreram vítimas da traição, mas morreram como homens...
Gabriel olha para o rosto de Hernando de Soto. O capitão está impassível.
- Eu sei - continua Pizarro - que alguns de vocês se perguntam por que. Vou lhes dizer.
Com um gesto amplo que faz sua armadura estalar, Pizarro mostra a encosta de Vilcaconga. Sua mão continua apontando para além do topo, como se afastasse o horizonte.
- Lembro-me - diz quase rindo - desses que duvidavam que encontrássemos o país do ouro. Eu sabia, meus filhos, eu sabia. Pois bem, estamos aqui, às portas da capital do país do ouro. Estão me ouvindo?
Seus olhos brilham como se fossem pepitas e os olhos da assembléia começam a brilhar com os dele. A voz de Pizarro fica mais baixa de novo, ao mesmo tempo que seu olhar torna a descer para os corpos sem vida.
- Mas acham que por ouro, por todo o ouro da capital do país do puro, eu possa esquecer um minuto quem matou esses homens, esses homens bravos da terra da Espanha?
- Não! Não!
Os gritos irrompem de todos os lados. Gabriel sente o espírito de vingança que ronca mais que o rio...
- Guardem bem essa lembrança, meus caríssimos filhos - insiste com peto o Governador. - Guardem no fundo do coração, e saibam que um será preciso faze-la brilhar na lâmina da espada de vocês!
Subindo a colina de Vilcaconga, Gabriel tem a estranha sensação de que há fantasmas rondando atrás dos rochedos, no leito do rio... O olhar à espreita, julga ver a todo instante surgirem milhares de combatentes, ouve os gritos de reunião, o pânico dos cavalos. Apesar de seu andar lento e da calma reinante, transpira copiosamente.
Fez questão de ir à frente, embora ande com dificuldade nas pedras escorregadias e sofra com as pontadas em seu braço.
- Sua Graça se cansa?
Sem se virar, Gabriel responde:
- Sua Graça quase ficou toda furada para salvar esse seu rabo de negro... Com um único movimento ágil e uma gargalhada, Sebastian está ao lado do amigo.
- Meu amo pressionava o movimento para vir ao seu encontro... Mas dizem que Soto estava com tanta pressa de chegar em Cuzco que... - O que é isso?!
Gabriel aponta para a espada balançando junto à perna de Sebastian, cujo traje colorido é igualmente espetacular.
- Nunca viu uma espada, caballero?
- Onde encontrou isso?
- Essa espada me foi entregue da maneira mais oficial possível por dom Diego de Almagro, em agradecimento por meus serviços passados e como promessa de obediência a Deus, a meu Rei e ao próprio dom Diego de Almagro - recita Sebastian como um estudante.
Gabriel dá um assobio.
- Em que ordem?
- Começando pelo primeiro que solicitar os meus préstimos. - E pode-se saber como você pensa usar isso?
- Ah!
Sebastian faz um gesto de impotência e ignorância. O ar escureceu apesar do céu claro, quase branco. Eles avançam dentro de uma espécie de bosque, no fim do qual avistam o cume da colina.
- Eu esperava que você me desse algumas aulas - diz Sebastian com uma espécie de timidez.
Gabriel olha para ele, pensativo.
- Você faz realmente questão de ser morto, não?
- Eu? Você está maluco, aprendiz. E depois, obedeço à minha lâmina... - O que diz ela?
- Mi dama es mi ley. (minha dama é minha lei)
- Bela promessa...
- Repare, ela não deu sorte ao antigo proprietário... - Que se chamava?
- Miguel Ruiz.
Os dois homens mergulham no silêncio. Ruiz é um dos companheiros de Gabriel que caíram no ataque de Vilcaconga. Um lixo completo, talvez, mas um lixo que já está enterrado. E era filho de um fidalgo de Sevilha com a escrava negra dele...
Ao saírem do bosque e se ofuscarem com a claridade do sol, Gabriel avista o topo da colina.
Sete sombras negras ali se destacam nitidamente.
A manhã inteira, Anamaya não saiu de perto da liteira de Chalkuchimac. Convidou Inguill a se instalar na dela, e caminha ao lado do general inca, apesar da hostilidade dos soldados espanhóis que o acorrentaram de novo, apesar do medo e do cheiro de morte que o envolve.
Ela se debruça na direção da cortina de fina lã de alpaca, numa padronagem quadriculada em preto e branco sobre um fundo vermelho.
- Chalkuchimac?
- Estou lhe ouvindo.
Ela sorri. A voz rude, inflexível do guerreiro inca tem inflexões particulares para ela.
- Ouvi os estrangeiros hoje de manhã e havia ódio a você na voz deles... Eles o consideram responsável pelo que aconteceu.
- Não se preocupe comigo.
- Se quiser fugir, a hora é essa...
Há um riso triste através da cortina.
- Se eu quisesse fugir, há muito tempo já teria feito isso...
Por causa da estreiteza do caminho, Anamaya conseguiu se isolar dos soldados espanhóis, obrigados a se colocar à frente e atrás da liteira.
- Eles não têm nenhuma prova e só eu posso convencer Quizquiz e Guaypar a deporem as armas...
Anamaya sente o pânico de seu coração.
- Você bem sabe que eles não precisam de prova. E depois, eu escolhi Manco, e você não...
- Não foi você que o escolheu, menina estranha, mas nosso pai, o Grande Huayna Capac... Hoje, você vai fazer a paz com os estrangeiros, mas amanhã...
As últimas palavras do general morrem num murmúrio. O caminho se alarga e os soldados espanhóis se aproximam dela, ameaçadores.
- Amanhã haverá a guerra dos incas e de todos os índios contra os estrangeiros e é você que vai conduzi-la...
Um soldado espanhol empurra Anamaya.
- Que complô e que traição vocês ainda estão tramando?
Ela olha para ele com desdém, sem se dignar a responder. Em seu coração, quando ela se afasta, a perturbação das palavras de Chalkuchimac se espalha. Ela vê a guerra, o fogo, o sangue.
E, no meio de sua perturbação, vê o rosto de Manco e o de Gabriel, tão próximos que quase se tocam, testa contra testa, boca contra boca, os cachos louros de um misturando-se à cabeleira negra do outro.
"Então é ele", diz a si mesmo Gabriel vendo o jovem inca envolto em seu manto de algodão amarelo, um passo à frente dos outros, o rosto altivo e ao mesmo tempo tímido.
Com o tempo, Gabriel aprende a distinguir as fisionomia que, inicialmente, lhe pareciam todas iguais, um pouco como aquelas estatuetas de lhamas, milhares das quais, quase idênticas, foram fundidas no tesouro de Cajamarca.
Ele se lembra dos olhos injetados de sangue de Atahualpa, do olhar de ferro de Guaypar, da cara montanha de Chalkuchimac. Mas o que vê no rosto desse jovem é diferente.
Ali há nobreza, sofrimento, força - de uma juventude que já viveu mil vidas, conheceu mortes na idade das brincadeiras infantis.
O pequeno grupo de incas vê os espanhóis chegarem um a um ao cume, aparentemente sem medo - e, em todo caso, sem se mexer. Na frente, sem esperar Pizarro e os intérpretes, Gabriel se aproxima. O jovem nobre dirige-se a ele:
- Sou Manco Inca Capac - diz com voz firme. - Sou filho do Inca Huayna Capac e fui escolhido pelos Poderosos Senhores para ser o Inca do Império das Quatro Direções...
- Eu sei - diz Gabriel em quíchua.
Manco não manifesta nenhum sinal de espanto. Fita Gabriel com um olhar intenso.
- Seu Machu Kapitu está longe? - pergunta afinal.
- Ele já vai chegar.
Os olhos de Gabriel vêem a paisagem que se descortina do topo. Depois dos penhascos do Apurimac, a paisagem se alarga, se suaviza num vasto platô onde as colinas se arredondam. Ao longe, nas encostas, vêem-se as casas agrupadas de Jaquijaguana, depois uma garganta.
A última garganta. E, do outro lado, a cidade do ouro...
Ele se volta na direção dos incas, que olham os homens e os cavalos invadirem o topo da colina. Atrás de Manco se encontram cinco nobres da mesma idade mais ou menos, seus discos de ouro nas orelhas. Ligeiramente à parte, se encontra um índio menor, mais velho, de pele mais escura que os outros. Usa um estranho gorro quadrado nos cabelos compridos que lhe vão até os ombros. Ao contrário dos outros, não olha para os espanhóis, mas sim para as montanhas.
Dom Francisco chega ao mesmo tempo que seus irmãos, acompanhado de Almagro, de Soto, Candia e de todos os principais capitães espanhóis.
O Governador toma as mãos de Manco entre as suas e lhe prodigaliza as declarações de amizade. Um sorriso tímido ilumina o rosto do jovem Inca, que se deixa acolher sem manifestar mais emoção.
- Eu e a gente de Cuzco - diz Manco - tivemos que sofrer os crimes e a vingança da gente do Norte para reinar sobre nós, contra a vontade de seu pai Huayna Capac...
- Eu sei - responde Pizarro com benevolência -, e é por isso que travessei essas montanhas hostis, para socorre-lo...
- São os mesmos, e não os meus, que atacaram seu exército. De nossa arte, queremos paz.
O sorriso de Pizarro se alarga.
- Somos irmãos, então, pois não vim até você para fazer guerra ou tomar os seus bens.
- O que chamo de paz - diz Manco sem abaixar os olhos - é reinar m nossa terra, em paz com os estrangeiros que nos visitam.
- Então, temos a mesma idéia de paz. Esteja certo que vou ajudar você os seus a voltar em paz para sua capital, sem sofrer mais os crimes da gente o Norte.
Os dois homens sorriem um para o outro.
- Quero lhe dizer - prossegue Manco - que os do General Quizquiz e do capitão Guaypar se aproximam de Cuzco, com todos os seus guerreiros, e que eles têm a intenção de incendiar a cidade para que você não encontre ali nenhum tesouro, nem nada para alimentar seus homens.
- Não vamos deixá-los fazer isso. E vamos pôr fim às traições daquele a quem acolhemos e recebemos como amigo e que, desde então, não pára de nos destruir por mensagens secretas e ordens que faz transmitir. Estou falando de Chalkuchimac, esse cachorro.
A palavra "cachorro" saiu violentamente da boca de Pizarro, sibilada como uma flecha. Ele se interrompe e observa Manco, esperando uma reação. Manco se cala.
- Não acha que está na hora de esse cachorro morrer?
Manco continua sem responder. Seus olhos deixam os de Pizarro e se fixam na saída do caminho. A liteira de Anamaya se aproxima, sustentada por oito carregadores, e pára. Anamaya salta.
- A Coya Cama quen deve vir conosco - anuncia Manco com autoridade. - Ela não deve mais nos deixar até Cuzco.
Pizarro vira-se para Gabriel, depois aquiesce com um eloqüente gesto de cabeça.
- Eu lhe digo, meu amiga, se essa é a sua vontade, que assim seja.
Gabriel fica espantadíssimo. Procura encontrar o olhar de Anamaya quando ela passa por ele. Mas ela parece querer ignora-lo. Então, procura o de Manco. Nas pupilas negras, vê com espanto o desafio, i ias também uma espécie de respeito.
Jaquijaguana, noite de 13 de novembro de 1533
Sentado no pátio da cancha, os olhos perdidos no braseiro que os jovens índios vêm alimentar, Manco não consegue dormir. Anamaya ficou perto dele, sozinha com o índio de cabelos longos cujo nome ela agora sabe: Katari. Vê a perturbação de Manco: parece impossível acostumar-se aos barulhos que os estrangeiros fazem, à sonoridade de suas vozes, à violência de suas risadas e seus gritos...
No sereno da noite, Anamaya encolhe-se em sua lliclla demasiado fina. Sente as certezas desaparecerem. Lembra-se de Manco diante de Gabriel, os dois tão próximos e tão distantes, vindo de duas montanhas opostas e no entanto reunidos na estranha casa de seu coração. Censura-se fugazmente por não ter falado com Gabriel. Mas dizer-lhe o quê? Como explicar? Houve um tempo em que as visões se apresentavam a ela com uma espécie de clareza, de evidência. Mas agora, ela não vê mais - e é preciso caminhar, olhos fechados, neste caminho que se abre à sua frente. Confie no puma. Palavras distantes agora e cujo sentido torna a ser misterioso. Amanhã haverá guerra e é você quem vai conduzi-la. Ela não via o rosto de Chalkuchimac e ele parecia já lhe falar do Mundo de Baixo. Todas essas palavras que vivem nela e adquirem força por meio dela.
Seu olhar vai para Katari.
Manco apresentou-o a ela em algumas palavras como o filho de um grande guerreiro kolla que, educado pelo tio materno, cresceu respeitando e conhecendo as divindades antigas antes de aprender a esculpir a pedra. Desde que se lembra, Manco diz que Katari sempre esteve ao seu lado para protegê-lo e lhe mostrar a presença dos deuses.
Ele tem o rosto chato com maçãs salientes, olhos puxados em duas fendas prolongadas por duas rugas que riscam sua cara como dois fios mais claros em sua pele escura. E tem cabelos longos que lhe caem livremente até os ombros.
- Está na hora - diz Katari sem olhar para Manco.
O jovem Inca levanta-se de um salto e faz um sinal para Anamaya, surpresa.
Tudo dorme agora em volta deles, e os únicos soldados espanhóis que velam são os que foram destinados à guarda de Chalkuchimac. Os três jovens deixam a cancha e atravessam silenciosamente as ruelas estreitas do vilarejo encravado na encosta da colina.
Logo estão sozinhos na noite, diante das estrelas, sob a lua quase cheia que derrama seu doce luar branco.
Katari vai à frente, com um passo seguro. Logo as últimas casas desaparecem e eles chegam a uma espécie de esplanada natural, delimitada por quatro penedos negros.
Manco segura o braço de Anamaya para deixar Katari se isolar, alguns passos à frente deles.
O kolla tira a capa e senta-se em cima dela. Fica algum tempo imóvel, a cabeça ligeiramente inclinada para a direita, mergulhando na noite e na calma reencontrada.
Depois, tira um pedaço de pano e o estende à frente, alisando-o de um lado para o outro, orientando cuidadosamente suas pontas no alinhamento dos rochedos que os cercam.
Anamaya vê de repente, como um raio que atravessasse a noite, a direção do alinhamento assim formado: atrás deles, para cá da Cidade Proibida, está o pico do Salcantay, cujas neves brilham com reflexos prateados ao luar. Bem a sua frente, do outro lado do passo, muito mais longe que a Cidade do Puma, fica a impressionante massa do Willkanota.
Silenciosas, as duas montanhas erguem-se na noite: os dois Apus velam sobre a cidade de Cuzco, aninhada no meio de um vale, em algum lugar a frente deles, no centro dessa linha.
Sem dizer uma palavra, os três índios sentem até no próprio corpo essa presença sagrada que Katari simplesmente despertou orientando seu tecido.
Ele agora pega a chuspa entornando metade de seu conteúdo no centro do pano. Pega três das folhas mais bonitas, dispõe-nas em leque entre os dedos, leva-as à boca e sopra nelas virando-se para os Apus que ele invoca com um murmúrio antes de pousá-las num dos cantos do tecido.
Repete a operação em cada canto.
Quando termina, Manco se aproxima, escolhe também três folhas, sopra nelas virando-se a cada vez na direção dos Apus antes de começar a mascá-las.
Katari faz o mesmo, ao mesmo tempo.
Os dois têm os olhos semicerrados. Sem uma palavra, sem um olhar, reina entre eles a perfeita unidade de movimento e intenção. Anamaya fica parada, calma sob a claridade de sua mãe, Mama Quilla a Lua. Nada mais lhe é pedido além de sua presença.
Manco pega então com as duas mãos um punhado de folhas, eleva-as um palmo acima do tecido e as deixa cair como chuva. Katari debruça-se sobre as folhas e, com um gesto discreto, designa Anamaya.
Ela olha o pano: a folha maior aponta para ela.
Manco junta as folhas e recomeça. Três vezes faz as folhas deslizarem em sua mão, três vezes eleva-as acima do pano e três vezes as deixa cair.
Três vezes a folha maior se separa das outras e aponta para Anamaya.
Não há nenhum barulho nessa noite, senão o atrito dos dedos nas folhas no pano - e às vezes o bater de asas de uma ave que passa na brisa leve.
Anamaya se sente leve, livre. Por essa noite, não é mais a que deve compreender suas visões, decifrar as palavras... É simplesmente aquela que as folhas de coca escolhem, a que protege e a que dirige. A que abre o caminho.
Manco tira da chuspa uma pedra negra de basalto, polida e dura como ma pedra de funda. Coloca-a entre as mãos fortes de Katari, que as fecha orno se quisesse aquecer a pedra.
Quando ele abre as mãos, Anamaya se pergunta se está enganada ao ver pedra mais luzidia, como se tivesse adquirido as qualidades da lua que brilha no alto.
Katari levanta as mãos devagar, com a oferenda da pedra no meio. Seus braços chegam à altura de seu rosto e a pedra se ergue sozinha, reta, antes de e suspender no céu.
O tempo pára.
E, nesse exato momento, um rugido rasga a noite.
Só com o ímpeto de sua fúria, frei Vicente Valverde correu para o meio esplanada. Dá uma parada diante do pano antes de pisoteá-lo, depois enrolá-lo como uma bola e atirá-lo longe.
- Paganismo! - cospe entre dentes. - Espírito de idolatria...
Os dois jovens estão imóveis. Viram-se para Anamaya. Manco, arregalando os olhos de surpresa, Katari, quase fechando os seus, puxados como olhos de gato.
Antes de ter tido tempo de responder, Anamaya vê Gabriel chegar com Bartolomé, o jovem frade dos dedos colados.
- Frei Vicente - diz Bartolomé com um tom apaziguador. - Adivinhações, sacrifícios...
- Não ouço nenhum grito de crianças sendo degoladas - diz Bartolomé com uma ironia imperceptível. - Frei Vicente, acalme-se, por favor. Anamaya sente a autoridade na voz doce do homem, mas está ainda sob
o impacto da irrupção do dominicano e da chegada de Gabriel.
- Foi dado o alerta há pouco - diz Gabriel com uma voz impassível.
- Vocês tinham desaparecido... O Governador mandou procurá-los. - Estávamos...
Anamaya se interrompe. Outra história que não pode explicar a ele - ainda. Os Apus, as folhas de coca, a pedra que pára o tempo... O silêncio instala-se entre eles e a confusão do rapaz a perturba. Um dia, em breve...
Bartolomé aproximou-se de Katari. O contraste entre o monge de olhos cinzentos e o jovem sábio de cabelos longos não poderia ser mais impressionante. No entanto, uma mesma serenidade, uma mesma luz emana de suas figuras tão contrastantes.
- Vamos aprender a conhecer os costumes de vocês - diz Bartolomé com uma voz suave. - E orientá-los no conhecimento de seus Todo poderoso, pelo amor e não pela espada...
Katari ouve essas palavras sem compreender, mas sorri. Bartolomé vira-se para Valverde.
- Frei Vicente, compreendo seu zelo e acredite que estou tão empenhado quanto o senhor no progresso da verdadeira fé, mas...
- ... mas tem um interesse exagerado pelo que chama de costumes deles!
- Conhecer melhor, para orientar melhor, meu irmão.
Valverde se cala, talvez incomodado de repente com o acesso de violência que tomou conta dele. Apesar dos gritos que ecoam na noite, apesar dos soldados que se aproximam, volta a calma.
Gabriel aproxima-se de Manco, o coração agitado.
- Por sua própria segurança, não é prudente se afastarem assim...
Embora ele tenha falado em quíchua, Manco não lhe responde diretamente. Vira-se para Anamaya:
- Diga a ele que os Apus que velam sobre mim bastam para minha segurança e que não preciso dos soldados estrangeiros.
- Eu achava - atalha Gabriel - que vocês precisavam de nós para expulsar Quizquiz e Guaypar. Não foi o que disse ao nosso Governador? - Diga a ele que as noites são nossas.
Anamaya sente as palavras dos dois homens colocando-os em confronto, instintiva e violentamente. São como dois felinos se desafiando, ambos jovens e fortes, tão seguros da vitória e tão cheios de fúria.
- Estamos voltando, Gabriel. Por favor, diga ao Governador que não queríamos criar esse problema. Que todos terminem sua noite tranqüilamente. Gabriel olha para ela - um olhar cheio de uma súplica muda que a aflige. Depois, leva. para a cidade Valverde, Bartolomé e os soldados que ficaram atrás.
Ela fica só com Katari e Manco, no silêncio que torna a se instalar. Mas não encontra paz - a maravilhosa paz que desceu quando ela sentiu o alinhamento dos picos, quando a pedra subiu da mão de Katari. E Manco quem quebra o silêncio. - Quem é? - pergunta. E ela não chega a lhe responder.
Jaquijaguana, 14 de novembro de 1533
No centro da praça da cidade, desde o amanhecer, os espanhóis deram ordem de se erguer um tronco. Não foi preciso chicotear os escravos índios para faze-los trazer os gravetos necessários à fogueira.
Quase todos têm no coração um sentimento de vingança contra Chalkuchimac, que eles culpam pelos atos de violência dos soldados do exército do Norte. Já se regozijam com o esjetáculo. A carga de lenha parece levíssima, e é com brincadeiras que eles amontoam a lenha e a palha. Perscrutam o céu, temendo que uma chuva violenta venha afogar as chamas.
Mas não há nenhuma nuvem no céu claro.
Os principais capitães espanhóis, Soto, Almagro, Juan e Gonzalo rodeiam Francisco Pizarro num aposento escuro, iluminado por uma única tocha. Aqui, dizem, era o palácio de um Ancestral - os capitães só vêem uma velha casa triste e escura, cujos aposentos todos contêm esses nichos agora
despojados das riquezas de outrora, guardada por uma velha trêmula.
- O que vai dizer Manco Inca? - pergunta Soto.
- Ele está de acordo, ao que parece - diz Almagro com segurança. Pizarro balança a cabeça, aprovando as palavras do caolho.
- Se nos pedirem, temos todas as provas necessárias: os mensageiros que ele enviava, as jóias que utilizava para fazer passar as informações, com suas Gordinhas também...
- Os quipus - diz Gabriel.
Pizarro olha para ele de alto a baixo. Gonzalo e Juan observam-no e começam a rir.
- Os quipus, os puquis - cantarola Gonzalo. - É um amigo do Inca que diz isso, é preciso escutá-lo.
Pizarro ergue uma autoritária mão para seus jovens irmãos.
- Os quipus, se ele quiser, meus irmãos. Sabemos também que Chalkuchimac revelou-lhes que nossos cavalos eram mortais e nós também, enquanto a massa das tropas deles nos chamava de deuses sem nunca nos ter visto... em esse traidor, Hernando de Toro e os outros ainda estariam entre nós.
- Mas, e Manco? - insiste Soto.
- Ele o odeia do fundo do coração. Só seu orgulho o impede de nos pedir para queimá-lo. E, depois, não temos escolha...
Não há na voz de Pizarro nenhuma das dúvidas, nenhuma das hesitações que envolveram a morte de Atahualpa, morte essa cujo remorso às vezes atormenta a noite quando ele está rezando diante da Virgem. Ele nem se vira para Gabriel antes de se dirigir a Valverde:
- Tente convertê-lo, mas não demore muito tempo nisso!
- Mesmo assim... - protesta o sacerdote.
- Rápido! Estou dizendo. E lembro-lhe que vou queimá-lo, mesmo e ele reconheça nosso Deus. Depois do mal que ele nos fez, frei Vicente, e cachorro não vai ter a undécima hora. E, depois, sei que não há maldição pior nas crenças deles do que morrer queimado... Quero que eles sintam que maldição está nele, por nossa mão.
Bartolomé desapareceu, como se o que fosse acontecer naquela manhã o lhe dissesse respeito. Gabriel não sente mais nada da intimidade fortíssima que os uniu em Hatun Sausa, quando o religioso o impeliu para Anamaya. A simpatia que o atrai para ele mescla-se com um medo vago.
- Então, senhores - diz Pizarro. - Estamos a apenas um passo das riquezas de Cuzco. Sinto que estão impacientes para cumprir seu dever de espanhóis e de cristãos.
Há uma espécie de alegria soturna na voz do Governador, cuja ironia cruel impede que eles riam com gosto. "Como ele os conhece bem", pensa Gabriel, "e como estimula a ganância deles desprezando-a..." Almagro, Soto, Gonzalo e os outros saem com ele da casa - a única grande casa de pedra da cidade onde ele se instalou para passar a noite. Durante a espera, a multidão foi se aglomerando na praça, mas os espanhóis nem sequer levantaram a espada para abrir caminho até o ushnu.
Ao chegarem diante dos degraus da pirâmide, eles se viram para ver aproximar-se o general acorrentado. O Governador negou-lhe o uso de sua liteira, a fim de que todos os índios - sejam incas do Norte ou de Cuzco, aliados ou rebeldes - vissem o estado do general e a força da vingança dos estrangeiros.
Ele caminha com extrema lentidão, o corpo inteiro moído por dores que arrancariam gemidos a qualquer um. Tem as mãos queimadas em carne viva estendidas à frente, e nenhuma das mais sábias infusões de folhas que lhe foram aplicadas pode curá-las ou mesmo aliviá-las.
Mas seu rosto continua fechado e há uma altivez infinita em seus olhos. Seus lábios estão cerrados numa linha reta que indica sua vontade inflexível.
Chalkuchimac vai para a morte sustentado pela recusa.
Pizarro não lhe diz uma palavra e o índio não olha para ele, não olha para nenhum espanhol, como se eles não existissem.
É preciso carregá-lo nos degraus até o tronco e amarrá-lo bem para que, esgotado, ele não escorregue para o chão.
Só Valverde sobe atrás dele e, com uma voz abafada, pronuncia algumas palavras sobre Deus, o inferno e o paraíso. Chalkuchimac mal dá tempo para Felipillo traduzir.
- Amaldiçôo e desprezo vocês e a sua religião. Não conheço seus deuses estrangeiros e nunca vou reconhecê-los.
A força de sua voz contrasta com a fraqueza de seu corpo.
- Vamos parar com isso, Valverde - berra Pizarro. Vamos encerrar.
Quando as tochas se aproximam dos gravetos e as primeiras chamas sobem nas pernas e no torso do general, sua voz ainda se levanta:
- Podem me queimar - grita ele -, como já me queimaram, mas não me matarão! Não matarão nossos deuses, Viracocha que fez todas as coisas e Huanacauri, não podem me queimar, assim como não podem queimar Inti!
Já quase desapareceu nas labaredas, num crepitar infernal,, mas parece que sua voz sobreviveu a seu corpo, destacando-se e elevando-se:
- Quizquiz! Guaypar! Todos vocês, generais incas, capitães e soldados! Venham me vingar e destruir esses traidores, venham destruir esses estrangeiros imundos e gananciosos!
A um sinal de Pizarro, os escravos trouxeram mais lenha para o fogo chegar até o céu. O rugido é tão forte que a voz do general rebelde acaba desaparecendo, engolida pelas chamas.
O fogo reflete-se nos olhos fascinados e silenciosos dos milhares de índios. Não há manifestações de alegria, nem nenhum dos gritos e gemidos que envolveram a morte de Atahualpa - só um espanto, uma espécie de consideração diante dessa furiosa batalha de deuses.
Quando o fogo se acalma e as chamas começam a descer, um derradeiro grito escapa do coração da fogueira, invadindo o céu e batendo em todos os peitos com a força de uma pedra de funda:
- Não!
Quando o eco dessa última recusa se cala, o fogo apaga de repente. Só algumas fagulhas ainda vêm lamber os pés do corpo queimado de maneira atroz, todo carbonizado, mas cujos olhos milagrosamente ficaram abertos e fitam com uma intensidade viva um ponto situado além de seus carrascos, além da multidão silenciosa, além da cidade e das montanhas.
Lá.
Exatamente na hora da morte do general inca, o céu escureceu bruscamente e as primeiras gotas começaram a cair.
Desde então, choveu sem parar. Uma chuva fria que penetra nas cotas de malha e nos calções, enregelando até os ossos. No céu de chumbo, as nuvens passam continuamente, trazendo ainda mais chuva.
O fundo da planície é um pântano no meio do qual os incas construíam um caminho alto, ladeado por dois parapeitos. O imenso cortejo se estende por quase uma légua, no trecho da última subida que leva ao passo de Oxide se descortina Cuzco.
Os rumores de ataque ou de incêndio atravessaram fileiras índias e espanholas - os nomes de Quizquiz e de Guaypar estão em todos os lábios. O medo derruba os carregadores, e até os cavaleiros experientes, sobrecarregados com o peso de suas armaduras, sentem o nervosismo de seus cavalos, que passaram a noite selados e arreados.
A frente do cortejo, segue a liteira de Manco. Estranhamente, foi de talkuchimac que ele a herdou, mandando então despojá-la de todos os que indicassem ter ela pertencido ao general inca. É encimada por a peça de tecido amarela - o mesmo amarelo-ouro da capa com a qual espanhóis o viram - esvoaçando ao vento frio como um estranho estandarte.
O grupo dos irmãos Pizarro e dos outros grandes capitães espanhóis vem logo atrás. Gabriel cavalga ao lado de dom Francisco, o olhar perdido
nas montanhas que os cercam, à procura de uma presença hostil.
- Você me parece muito melancólico, filho - diz de repente Pizarro. Não é uma pergunta, mas antes uma constatação.
- Seria por causa dessa jovem? Como eles a chamam? Coya não sei quê? - Coya Cama quen.
- Bonita moça, não? Compreendo você, meu rapaz!
Pizarro deixa um silêncio pairar. Uma vez mais, Gabriel se surpreende com a intuição desse homem que demonstra uma indiferença absoluta diante das maiores crueldades e se mostra capaz de uma sensibilidade súbita e profunda.
- Compreendo sim. Então não posso lhe dizer o que diria a qualquer um de nossos companheiros: se não tiver essa, vai arranjar outra... Gabriel se retesa.
- Devagar, Gabriel - murmura dom Francisco à meia voz, olhando-o de alto a baixo. - As mulheres são as mulheres, e não estamos aqui por elas.
Com um olhar, indica a liteira de Manco, alguns passos adiante:
- Você o escutou, como eu: aquele ali a quer para ele. Não entendo por que, pois achei que ela fosse casada com o sol ou a lua ou então com o grande condor... Mas ele a reivindica. E é um amigo que a reivindica. Está me entendendo?
Gabriel balança a cabeça. Para sua infelicidade, sempre compreende Pizarro, que louva sua inteligência.
- Preciso dele. Precisamos todos dele. É um rebelde, mas um rebelde que sofreu. Precisamos descansar da guerra, avaliar este país. Para isso, temos que torná-lo nosso amigo... pelo tempo que for possível. Continua me entendendo?
Lentamente, o caminho começou a subir e largos degraus conduzem os homens ao passo. A chuva parou e só as nuvens pesadas continuam passeando pelo céu. Apesar de já estarem habituados à altitude, sentem a respiração se acelerar a cada esforço.
- Não sei se o estou entendendo, dom Francisco - diz finalmente Gabriel. - O senhor está tocando num assunto para o qual não sei se estou com o espírito muito aberto.
- E com o orgulho melindroso, claro! - diz Pizarro com um sorriso malicioso.
- Eu devo a vida a ela, não se esqueça. E essa segunda vida, mesmo que isso possa surpreendê-lo, não é fruto do orgulho, mas do amor... É ela quem deve decidir entre mim ou ele.
A barba do Governador apontou para ele e si ias palavras sibilam como dardos:
- Não, Gabriel Montelucar y Flores. Não será ela nem você. Mas serei eu. Não esqueça o juramento que me fez, nem o que me deve. Também não conte com minha brandura para lhe deixar pôr a perder tudo o que construí neste país!
Sem responder, com um movimento brusco que o faz sentir uma pontada no ombro ferido, Gabriel dá meia volta. Com enérgicos toques de calcanhar, lança seu cavalo num galope que o afasta de Pizarro. A raiva lhe deixa os rins em fogo. Com mais ímpeto do que deveria, ultrapassa a coluna, de onde lhe lançam olhares espantados, e toca para o passo.
Lá chegando, o coração batendo de fúria, o olhar turvo, apeia do cavalo, tira o capacete e atira-o à frente. E só então, acompanhando com os olhos a queda em parafuso do elmo, avista o vale à sua frente.
O choque é tão intenso que ele julga estar vendo um mundo novo.
Vê primeiro o céu que ficou absolutamente azul, lavado e quase transparente.
Vê o berço das montanhas tranqüilas que envolvem a paisagem. Ao longe, um imponente maciço nevado.
Vê o largo vale semeado de culturas cujos terraços se superpõem numa exposição perfeita.
E, depois, vê a cidade.
Esperava, depois das descrições de Moguer e Bueno, um amontoado de ouro. as, sob o sol que ainda não teve tempo de aquecer a terra úmida, trata-se antes de magnífica nave de prata e ouro que ele vê pousada no coração do vale. Na luz, as paredes dos templos, dos palácios, das casas cintilam em mas sutis onde o sol brinca, criando um tesouro a céu aberto - um tesouro cores que dava vontade de colher a mancheias. No fundo do vale, ele vê os s fios de esmeralda dos rios que cortam a cidade.
Seu coração palpita com uma alegria incrível, e ele tem vontade de bater mas. Não ouviu que, um a um, os primeiros do cortejo o alcançaram e iram, como ele, o espetáculo.
- Najay, tucuyquin hatun Cuzco (Salve, grande cidade de Cuxco!) Agora você a vê - diz uma voz doce seu ouvido.
Ele não se vira, mas sente a respiração dela aquecendo seu pescoço, mais doce que a brisa ainda demasiado fria.
- Sabe como a chamam?
Ele balança a cabeça.
- A Cidade do Puma - diz Anamaya. - A cidade nascida do puma... A cidade onde você e eu devemos achar o caminho do futuro.
Então, no esplendor do sol, nos turbilhões da brisa, a doçura dessas palavras produz em Gabriel o efeito de uma promessa que dissipa as dúvidas, os mistérios e as ameaças.
Cuzco, 15 de novembro de 1533
A medida que descem pelos campos de milho já verdes, os espanhóis vêem à esquerda o topo de um morro. Mas, aos poucos, o morro se transforma numa colossal fortaleza. Mesmo de longe, suas muralhas parecem gigantescas, tão altas quanto uma falésia natural. A leste, a oeste e a sul, três torres duas quadradas e uma redonda - mais maciças que as construídas em tela.
Estranhamente, o silêncio os envolve, perturbado apenas pelo tinir das mas, o impacto dos ferros nas pedras do caminho e o ranger das correias de couro. Não trocam uma palavra. Os cavalos, nervosos com a ladeira íngreme, estremecem procurando afagos.
Embaixo, em frente aos terraços bem cuidados, as ruelas retilíneas da de são invadidas por homens e mulheres cujas roupas coloridas cintilam à primeira luz do dia. Fogueiras fumegam nos cercados de flores. Numa grande praça cercada de canchas com diversos pátios e construções esplêndidas, grupos se formam, imóveis. As caras estão voltadas para a coluna dos espanhóis. O ouro brilha nas paredes. O ouro brilha nas roupas dos Senhores que m os estrangeiros se aproximarem. Mais adiante no vale, uma cidade de das prolonga a cidade de pedra. Lá ainda, milhares de olhos estão também fados para os terraços por onde descem os novos senhores do Império.
Pizarro colocou-se à frente. Seu olhar negro esquadrinha essa cidade esplêndida como se quisesse abocanhar cada pedaço. A seu lado, seus irmãos, o caolho Almagro e os principais capitães não ousam pronunciar uma palavra. Não há nenhum soldado índio.
- Gabriel! - chama Pizarro.
Juan e Gonzalo viram-se ao mesmo tempo. Ignorando seus olhares ciumentos, Gabriel, estalando a língua, aproxima seu cavalo da montaria negra do Governador.
- Dom Francisco?
- Fique perto de mim, meu filho. Quero que respire a plenos pulmões o perfume de nossa glória.
A voz de Pizarro está tão baixa que é quase inaudível. Ele olha com desdém para Almagro e seu séquito.
- E esses aí - retoma - não estavam nem em Tumbez, nem em Cajamarca. Só respiram para se encher de ouro. Você, não. Você é como eu, eu sei. Fique ao meu lado, filho, e aproveite este dia: ele é nosso.
A estrada agora está ladeada pelas primeiras casas, cuja base é de pedra e cujos muros são erguidos de tijolos de barro cozidos ao sol. Do alto de suas montarias, eles dominam os tetos de palha, com caimento acentuado.
As dezenas, os índios da cidade agora os rodeiam. Parecem sair de todos os cantos e não aparentam medo. A variedade de seu rosto e de seus trajes, as sonoridades de suas línguas espantam Gabriel.
Pizarro ordena que se faça alto.
- Vá procurar o Inca - diz a Gabriel. - Quero que ele abra o caminho para nós.
Gabriel volta em trote curto pela vanguarda espanhola, indiferente às perguntas espantadas dos companheiros. De longe, sente Manco olhando fixo para ele. A liteira dele é de um luxo fabuloso: o interior é semeado por uma chuva de estrelas e pedras preciosas, de um sol de ouro e uma lua de prata. O banco de madeira preciosa sobre o qual ele se instalou é guarnecido de almofadas de plumas matizadas de papagaios capturados nos confins da selva. O próprio jovem Inca, envolto num amplo manto de algodão amarelo bordado de miríades de fios de ouro, olha para o outro lado e finge não o ver.
Na liteira que acompanha a de Manco, Anamaya, vestida com sua lliclla branca de cinto vermelho, sorri em sua direção. Mas Gabriel sente-a tão distante, tão altiva que se pergunta se já teve essa mulher nos braços. Então, sorrateira, uma dúvida volta a assaltá-lo.
Com rigidez, saúda o Inca e sua voz nada tem de amigável ao anunciar: - Senhor Inca, o Governador Pizarro pede que lhe conceda a honra de tomar a frente do cortejo.
Manco observa Gabriel como se conseguisse penetrar no fundo de sua alma. Depois, sem uma palavra, faz sinal para Anamaya ir ter com ele. Eles trocam algumas palavras, tão rápidas e em voz tão baixa que Gabriel não entende. Mas Anamaya já sobe aos pés do Inca com uma submissão que espalha o fogo gelado do ciúme nas veias de Gabriel.
Irritado, ele dá meia volta com o cavalo. Mantendo-o a passo, com rédea curta, tão empertigado na sela quanto possível, guia a liteira real até a frente do cortejo.
Contudo, enquanto eles se aproximam, ergue-se um clamor da multidão de índios reconhecendo seu Único Senhor. De repente é como se a cidade e o céu se transformassem em um único som, uma só vibração:
- Sapa Inca Manco! Sapa Inca Manco!
O clamor se faz onda e ressaca. Tenham o que tiverem, os espanhóis sentem os pêlos dos braços e do peito se arrepiarem. O ar do vale, por um instante, torna-se tão palpável quanto uma pedra ardente.
Dom Francisco sorri. Um imenso e raro sorriso abre sua barba branca e seu rosto emaciado. Brilhando como se estivessem febris, seus olhos se erguem para o céu de onde o contempla, ele sabe, a Virgem com o Menino, sua eterna fada boa. Sua excitação é tão forte que ele se levanta nos estribos e agarra o ombro de Gabriel, agora grudado nele, bota com bota.
- Sapa Inca Manco! Sapa Inca Manco! - berra ainda a multidão.
Dom Francisco gira na sela para que cada um dos espanhóis o ouça bem grita:
- Ouçam bem esse barulho, senhores. Eles aclamam o chefe deles, mas a nós que festejam sem saber! Encham os ouvidos, senhores: nunca hão de esquecer isso!
Gabriel estremece. Diante dele, quase ao alcance da mão, Anamaya está pé junto de Manco. Sua beleza é tão deslumbrante que ele esquece os tos. Quando vira a cabeça para procurar seu olhar, diz a si mesmo que sim,
Governador tem razão: nunca poderá esquecer esse momento.
Em volta do jovem Inca, são milhares e milhares a se curvar. Do alto da liteira, Anamaya vê esse espetáculo estranho. Os terraços das culturas sagradas, as ruas e as praças transformam-se de repente numa marchetaria de core cabeças. A cidade de Cuzco, o "Umbigo do Mundo", é apenas um tecido de homens e mulheres, qual um unku gigantesco de um padrão inédito. E dessa tapeçaria humana, onde não se vêem nem os rostos nem os olhos, irrompe um rugido incessante:
- Sapa Inca Manco! Sapa Inca Manco!
- Estou sendo chamado para a guerra ou a paz? - pergunta Manco com voz monocórdia.
- Está sendo chamado para tornar-se o Senhor deles. - Você vai me ajudar?
Anamaya cai na gargalhada.
- Você não é mais o garoto que tinha medo do abismo e de cobra... - Sou. Você vai me ajudar?
Anamaya desvia os olhos da multidão e encara-o com surpresa. Manco tem razão: ele tem ainda um rosto de garoto e a multidão o impressiona tanto que, em vez de mostrar sua alegria, ele contrai os lábios para impedi-los de tremer.
- Você está voltando para casa, Manco, para esta cidade de Cuzco onde só soube o que era fugir e ter medo, durante luas. Hoje você é o Senhor aqui; não se alegra?
- Não sei, Anamaya. Meu coração tem vontade de gritar e meu coração tem vontade de chorar. E não chego a esquecer que meu irmão Paullu está longe de mim...
- Você está saindo do caos, Senhor, e ainda reina um pouco de caos em você.
O olhar de Manco se acalma.
- Farei você descobrir Cuzco - diz ele -, os palácios de meus ancestrais...
- Vivi neles.
Manco se espanta.
- Achei que você nunca tivesse vindo aqui.
- Perdoe-me, Senhor, tem razão... Mas as pedras de sua capital são tão sagradas que algumas delas foram levadas para Tumebamba, onde cresci na acllahuasi, com as jovens que me falavam do Umbigo do Império... E naquela noite, naquela noite terrível em que seu pai Huayna Capac se foi, ele me levou a todos os palácios dele...
- Não foi meu pai que me designou para você?
A mão de Manco pousa na de Anamaya, que estremece, imperceptivelmente. O jovem Inca sente isso, e retira a mão sem uma palavra.
A rua por onde eles entram na cidade acompanha um rio cuja água límpida desce entre os muros de alvenaria perfeita. Embora as vias sejam largas, eles só podem avançar aos pares, através de uma multidão que ruge como mil tambores rufando ao longo dos palácios de pedra.
Quando vêem a liteira do Inca, os índios erguem as mãos para o céu em sinal de veneração e oferenda.
Pouco a pouco, o medo deixa Gabriel, assim como sua tristeza por estar separado de Anamaya, seu sentimento do desconhecido. Talvez ele não sinta a embriaguez que toma conta do impávido Pizarro, mas é levado por esse fervor, essa fé que se dirige ao novo Inca e ao mesmo tempo aos que o ladeiam e o protegem. Agora são centenas ao redor deles, comprimindo-se e evitando cuidadosamente tocá-los. Nem uma palavra, somente murmúrios, e o barulho dos passos.
- Está sonhando, amigo?
Bartolomé surgiu sabe-se lá de onde e caminha ao lado de seu cavalo. Pousa a mão com os dedos deformados em sua coxa, ergue os olhos sorridentes para ele e acrescenta:
- Parece que você foi longe. Aquela sua masmorra de Sevilha ficou bem para trás...
- Está enganado! Aqui ela está sempre muito perto.
Como todas as vezes que fala com ele, Gabriel sente uma mistura curiosa de impressões diante de Bartolomé. Uma forte intimidade os aproxima e ao mesmo tempo os separa; um movimento quase irresistível o impeliria a lhe confiar todos os tormentos de sua alma e uma voz secreta manda que ele tome cuidado.
Eles vão dar na vasta praça cujo chão, em vez de ser de pedra como as ruas, é de uma areia fina que range sob os cascos dos cavalos. No centro da raça, há uma elegante fonte em forma de pedra redonda, de onde saem riachos que descem até o rio que corta a praça em dois.
De um lado do rio - o que eles acabam de atravessar -, não há quase construção alguma, somente um muro que está começando a ser construído. as, do outro, abrem-se as fachadas de palácios como eles não viram igual no império. Um deles parece ser feito de um mármore de veios vermelhos, brancos e verdes; uma torre maciça e redonda encimada por um teto cônico esconde uma parte de seu largo portal revestido de chapas de prata e outros metais preciosos...
Sob a espetacular verga, sentado num trono extraordinariamente cinzelado, um Senhor velhíssimo observa imóvel a chegada dos espanhóis. Sua atitude é de uma nobreza e uma impassibilidade que os intimida. Dez mulheres, todas vestidas de branco, azafamam-se suavemente ao redor dele, num balé cuja graça e comovente. Duas delas o abanam com plumas resplandecentes, duas outras alimentam um braseiro que arde a seus pés.
A cena transmite uma impressão de uma força inaudita e a passagem dos capacetes de aço e dos cavalos é um detalhe que em nada afeta a ordem do universo.
O povo vai chegando calado à praça, colocando-se nas laterais. - Meu Deus!
Gabriel ouviu a exclamação escapar dos lábios de Bartolomé e volta-se para ele.
- O que há?
- Não está vendo? - pergunta Bartolomé dirigindo a mão para o trono onde está sentado o velho.
O suor escorre da testa de Gabriel para seu rosto, turvando-lhe a vista.
A cena toda lhe chega através de +ima névoa. Ele não vê nada além de um
senhor absolutamente imóvel, cercado de servos dedicados. - Ele está morto - diz Bartolomé.
- Morto?
- É uma múmia.
Cuzco, 15 de novembro de 1533
É uma modesta cancha recuada no caminho do sul, o que leva a Collasuyu, no bairro que chamam de Pumachupan, o Rabo do Puma, perto do Templo do Sol. Quando uma cerimônia se realiza no Intipampa, escuta-se a voz dos sacerdotes, o som das trompas, dos tambores, dos cânticos.
Anamaya entra timidamente no pátio formado por um muro de aparelhamento simples sem nenhuma decoração. Os aposentos que cercam a cancha estão silenciosos e mergulhados na penumbra.
No entanto, e aqui, ela tem certeza.
Um rugido a sobressalta, e ela mal contém o grito na garganta.
Amarrado a uma viga por uma corda de fio de agave, há um puma na sua frente. Controlando com grande dificuldade o nervosismo de seu coração, ela mergulha os olhos nos dele.
O felino dá alguns passos sem tirar os olhos dela.
- Então, princesa - diz uma voz irônica atrás dela -, esquecendo os amigos?
No muro do Templo do Sol, há um friso de chapas de ouro de um almo de altura e um dedo de largura preso na pedra. O gordo Pedro Martin e Moguer mostra-o a Pizarro com um orgulho de proprietário.
Com o Governador e dom Diego Almagro, são seis a empinar o nariz para ver melhor o ouro.
- Esse aí você não trouxe para Cajamarca, Moguer!
- O ouro cai do céu neste país, Excelência. Brota da terra... Nem bem tirávamos o ouro desses muros, ele os revestia de novo!
Foi Moguer quem "descobriu" Cuzco com Martin Bueno alguns meses antes e foi ele que organizou as primeiras remessas de tesouros da capital para o quarto do resgate, no palácio de Atahualpa, em Cajamarca. Hoje, ele desloca seu corpanzil com uma alegria infantil, fazendo a todos as honras da visita, enquanto um sacerdote índio usando uma longa túnica franjada surge na única abertura do muro. Leva uma estátua dentro de um invólucro de lã. Gabriel surpreende seu olhar penetrante, seus lábios finos de cujas comissuras escorre o sumo verde da coca. O sacerdote é seguido por dois guardas com uma lança na mão e uma maça, e um machado de ouro na cinta. Dois rapazes de libré amarela os precedem com leques, varrendo cada grão de poeira das lajes que, no entanto, parecem limpíssimas.
Ao ver os espanhóis, eles manifestam seu espanto antes de entrar no Templo com dignidade.
- O que está havendo? - pergunta Pizarro.
- Acho que estamos interrompendo a cerimônia deles - diz Gabriel. Ouve-se uma risada atrás dele. Juan e Gonzalo olham-no de alto a baixo, com ar de troça.
- Vê como ele nos diz isso - goza o jovem Gonzalo. - Parece que vamos interromper a missa de Páscoa em Santiago!
- Moguer, você conhece o interior desse templo? - pergunta Pizarro
sem prestar atenção na gozação.
- Sim, Senhor. Pizarro sorri.
- Nesse caso, senhores, vamos ver um pouco como são essas praticas. - Eu também vou - diz uma voz doce.
Sem esperar a anuência de Pizarro, Bartolomé precede-os com um passo enérgico.
Atrás da larga abertura trapezoidal, eles vêem dois guerreiros incas, lanças cruzadas, barrando o caminho. Suas armas não são muito ameaçadoras, mas os espanhóis têm um momento de hesitação.
Atrás dos soldados, Gabriel entrevê uma espécie de claustro. No meio desse claustro, destaca-se uma pedra em forma de banco, coberta por uma carapaça de ouro. O sacerdote coloca a estátua ali.
Depois, dando-se conta da presença dos estrangeiros, observa-os. Então, com um passo lento, estranhamente preocupante, aproxima-se deles.
- Eu me espanto com o sol cada vez que ele se levanta - diz o Anão -, mas não estou morto.
Anamaya não pára de sorrir.
- Você me fez falta, meu amigo.
- E você, princesa, e você! Lembra-se do dia em que o abominável sacerdote me abandonou na montanha?
- E você gemia "Princesa! Princesa!", com uma voz triste.
- Eu podia morrer, era indiferente para você.
- Não diga bobagens! - diverte-se Anamaya. - Pensei em você mil vezes desde então...
Ela observa o aposento onde eles se refugiaram. Pobre por fora, na verdade é confortávelmente montado, com suas esteiras e seus cobertores de plumas ou de lã. Nas paredes, há nichos onde se alinham delicadas estatuetas, em pedra, de animais - pumas, condores, serpentes.
- Você não está mal instalado, para um miserável...
- Guardião de puma é uma ocupação que nenhum inca saudável quer!
O Anão está vestido com um de seus longos hábitos vermelhos que vão até os pés e cujas franjas varrem o chão. Ele não chega a ficar parado e não pára de fazer estranhos passos de dança ao redor de Anamaya.
- Como você chegou a ocupar esse alto posto?
- Não lhe disseram nada?
- Que você estava vivo...
- Vivo, é modo de falar... Quando entramos na cidade com o Corpo Seco de meu senhor Huayna Capac, para vencer o medo, pus-me à frente do cortejo para gritar e dançar: "Eis me aqui, sou Chimbu, o filho do Grande Huayna Capac! Para trás, para trás!" Mas não adiantou nada: os Poderosos do local agarraram-me para fazer picadinho de mim. "Aborto! Gnomo!", gritavam eles, "como o Sol pode nos tirar o nosso Senhor e nosso Pai que tinha tanto amor por nós e nos fazia tanto bem, para nos dar em seu lugar um ser tão vil como você..." E eles me insultavam, me cuspiam e me batiam até não poder mais, por mais que eu chorasse e suplicasse. Felizmente para mim, as pessoas do cortejo vieram me defender e conseguiram que eu fosse posto com os outros prisioneiros...
Ao se lembrar disso, o rosto do Anão se entristece.
- Conhece a prisão de Sanca Cancha?
- Não.
- É uma visão saída direto do pesadelo do Mundo de Baixo. Aliás, é um subterrâneo cheio de labirintos, crivado de portas e cantos. Suas paredes são revestidas de pedras pontiagudas e sobretudo...
- Sobretudo?
- Não há guardas nessa prisão, só tigres, leões, ursos, cobras e serpentes de todo tipo... Eles nos deixaram ali três dias. Três dias de uivos e terror, três dias de pranto, três dias tão perto da morte como se já estivéssemos mortos... Mas sobrevivemos.
- E eles libertaram vocês.
O Anão faz que sim com a cabeça.
- De todos esses costumes espantosos, esse é o único do qual posso me alegrar. Já morri muitas vezes na vida, mas essa vida é mais cara para mim do que todas as outras...
Durante todo o relato do Anão, Anamaya permaneceu imóvel, fascinada, compartilhando sua terrível viagem. Ela murmura: - E depois?
- Segui os passos dos dois irmãos Manco e Paullu, e prestei serviços a eles, só isso.
- Serviços?
- É - diz o Anão com uma vaidade cômica -, serviços. Escondi Manco aqui mesmo, antes que ele pudesse deixar a cidade. E ainda arrisquei minha vida miserável para levar mensagens a Paullu quando ele estava preso...
- Paullu preso!
- Não por seus feitos militares, garanto-lhe. Foi só porque se engraçou com uma das favoritas de Huascar... Quando a gente do Norte chegou, ele habilmente disse que tinha sido perseguido por causa de sua simpatia por eles. Eles o libertaram desconfiados, mas ele teve a prudência de não esperar que mudassem de opinião e foi se deixar esquecer algum tempo para o lado do lago Titicaca...
Anamaya fica pensativa. Ela se lembra dos dois rapazes que ajudou no huarachiku. Hoje, um deles é o Sapa Inca, ao passo que o outro está fugindo.
- Manco falou-me de você com afeição. Foi ele que me disse como se chegava à sua casa.
- Ele me dá medo, também. E quem sabe no que ele vai se transformar agora que é o Único Senhor?
- Não se preocupe, meu amigo. Esqueceu que devemos velar um pelo outro?
- Caso eu esquecesse, princesa, uma personagem importante encarregou-se de me lembrar isso sempre com o olhar...
- Quem?
O Anão acaba de se plantar na frente de Anamaya e ergue os olhos redondos para ela.
- Não me diga que não sabe, princesa.
Gabriel vê o homem de boca verde chegar tão perto do Governador que quase encosta nele:
- Eu me chamo Villa Oma, sou o sumo sacerdote deste Coricancha, o Templo do Sol criado por nosso ancestral Manco Capac. Aqui, não se admite nenhum estrangeiro...
Gabriel traduz. Pizarro replica, com um gesto tranqüilizador:
- Diga a ele que viemos dar proteção a ele e à gente dele, contra os crimes da gente do Norte...
- E diga também - acrescenta Gonzalo - que viemos fazê-los conhecer o verdadeiro Deus e acabar com essas práticas pagãs!
- Isso, meu amigo, você vai deixar com os homens de Deus - intervém Bartolomé.
Gabriel não consegue conter um sorriso enquanto traduz para o sacerdote as palavras do Governador.
O sacerdote não se acalma nem um pouco e com seu longo corpo magro, os braços abertos como um Cristo índio, continua barrando-lhes o caminho.
- Como ousam entrar aqui, quando quem quer fazer isso tem primeiro que jejuar um ano inteiro e entrar no templo com uma carga nos ombros e descalço?
Gonzalo desata a rir.
- Diga ao emplumado que jejuamos muito mais que isso e nossos ombros estão pesados, pesadíssimos... Quanto a nossos sapatos...
Enquanto o grupo de espanhóis começa a rir, Gonzalo tira uma de suas botas e a sacode diante do sacerdote.
- Veja, frei Bartolomé, temos o maior respeito pelos costumes desses...
Um seixo cai de sua bota e ele torna a calçá-la com caretas que arrancam mais risadas da platéia.
- ... bárbaros. E se deixarmos as coisas de Deus aos homens de Deus, das coisas dos homens, trataremos... como homens.
Com um safanão, ele afasta o sacerdote e entra no templo.
O grupinho de espanhóis o segue até o meio do claustro. Sentem-se reflexos através das aberturas dos prédios distribuídos em volta. Um friso de chapas de ouro corre no alto em volta do pátio, formando uma coroa de ouro.
Nas paredes propriamente ditas, há quatro nichos que parecem tabernáculos, entalhados com molduras extremamente requintadas e revestidos de ouro por dentro. Nos cantos, há pedras preciosas engastadas, esmeraldas e turquesas. O Governador vira-se para Villa Orna:
- Ouvimos o rumor das ameaças que pesam sobre seus palácios e seus templos, e nós mesmos fomos testemunhas, em outras cidades, das destituições de que seus inimigos são capazes. Estamos aqui com um espírito de paz.
O sacerdote Villa Orna franze os olhos com severidade.
Olha para eles em silêncio, depois suas palavras ecoam no claustro: - Não acredito em você.
Pizarro não pestaneja enquanto Gabriel traduz as palavras do sacerdote. Sorri.
- Assegure-o que conquistaremos a confiança dele. Enquanto isso, e para garantir a proteção dele e a dos bens deste Templo, amos fazer um reconhecimento do local. Dom Diego?
O olho solitário de Almagro brilha com todas as riquezas que se escondem ali dentro.
- Conto com a sua autoridade para dividir comigo o cuidado de fazer com que nenhuma placa de ouro deste Templo escape do quinto real.
Almagro responde com um muxoxo. O grupinho dos espanhóis dirige-se à porta do prédio situado defronte, enquanto o sacerdote Villa Oma, que ficou atrás deles, estica o braço e diz:
- O Poderoso Sol, mostre a todos, por um sinal tangível, a sua força!
De cada lado do sol, sentadas em seus tronos com uma dignidade de seres vivos, estão as múmias, parecidas com a que eles viram há pouco na praça. Estão vestidas com uma túnica de lã fina com lantejoulas de ouro e pedras preciosas incrustadas. Têm na testa a franja real e as plumas de cor. Os discos de ouro pendem de suas orelhas. Numa delas, falta apenas a ponta do nariz - uma esquisitice que provoca mais um ataque de riso nos jovens irmãos Pizarro.
De sala em sala, eles dão a volta no pátio, descobrindo uma sala de prata consagrada à lua onde Moguer se contém para não invocar Vênus, depois um prédio cujas paredes são revestidas com as placas de ouro habituais, mas também com um arco-íris cujas cores correm de uma parede à outra.
Eles começaram a visita com uma espécie de alvoroço, como um bando de rapazes que tivessem ido beber e encontrar mulheres. Em cada prédio, desce o silêncio, um pouco mais pesado.
Quando terminam a visita das seis salas e voltam ao pátio, o sumo sacerdote e seus acólitos sumiram. Moguer se cala, o olho de Almagro está estranhamente pensativo e os jovens irmãos do Governador estão provisoriamente calmos.
Por uma passagem aberta a leste, eles vêem que o terreno do Templo é muito maior do que haviam imaginado. Os edifícios e os quartos se sucedem, abrigando servos que escondem o rosto ao vê-los aparecer, contendo provisões suficientes para agüentar semanas de sítio.
Gabriel sente um peso no coração ao ver essas belezas e ao sentir os hares ávidos dos companheiros...
- Quando estivemos aqui - diz Moguer -, havia uma história...
- Qual? - pergunta Pizarro, impaciente.
Mas Moguer não lhe responde. E nenhum deles pensa em lhe perguntar que história.
Sem se dar conta, eles acabam de entrar no jardim de ouro.
O Anão continua contando com sua voz surda e regular:
- Desde que se ouviu falar que os estrangeiros estavam chegando, Manco andou me chamar em Yucay, onde eu estava morando então. Os homens ele me levaram a ele, em Chinchero. Quando vi que estávamos sozinhos, os terraços situados embaixo das concas, com o abominável sacerdote, achei que eles tinham se reconciliado escondido de mim e que retomariam uma das idéias sangrentas deles.
- Manco e Villa Oma? - espanta-se Anamaya.
- Estranho, não e? Na hora, não me detive para pensar que os tempos mudavam. Estava muito ocupado em pensar na minha pele. Felizmente para mim, eles tinham outra coisa em mente...
Anamaya sorri diante da irresistível mistura de terror e comicidade que se esconde nos relatos do Anão.
- Se você continua aí para me contar, com efeito... - Ria, princesa!
Ele suspira.
- Eles queriam que eu cuidasse do seu nobre esposo, o Irmão Duplo... - Você?!
A exclamação escapou da boca de Anamaya sem que ela tivesse tempo de contê-la.
- Foi o que eu disse a eles, mas eles não me escutaram. Disseram-me que, com a ganância que tinham, os estrangeiros iam se apoderar de todo o ouro possível. Disseram que isso era indiferente para eles, que havia tanto ouro que oceanos de estrangeiros nunca o veriam acabar... Mas o Irmão Duplo que estava no Coricancha não devia ser desonrado pelas mãos ímpias deles...
Anamaya é invadida por uma emoção que a abala e faz uma onda de calor e de gelo percorrer todos os seus membros.
- Ele está aqui?
O Anão olha sério para ela.
- Acha que eu cometeria a imprudência, mesmo protegido por um puma feroz, de guardá-lo em minha casa? Iremos à noite. O Irmão Duplo aguarda você.
Tudo é de ouro no jardim: as ervas e as flores, as árvores e os animais, pequenos ou grandes, domésticos ou selvagens. Pelo chão rastejam lagartos e serpentes de ouro, e no ar, suspensos por fios invisíveis, há borboletas e pássaros de ouro.
Um espaço imita um campo de milho e outro, um desses grãos que eles já encontraram e que os nativos chamam de quinoa. Lhamas de ouro, fontes de ouro de onde corre uma água de prata. Os legumes, as árvores frutíferas são de ouro ou de prata, e até os gravetos são de ouro.
O Governador fica boquiaberto.
- Não toquem em nada - articula apenas, a boca seca.
- A história era- diz afinal Moguer - que havia uma estátua toda de ouro, feita à imagem exata de uma dessas múmias que vimos. Mais bonita e maior que todas as estátuas que já vimos...
- De que tamanho? - pergunta Almagro.
- Do tamanho de um homem, mais ou menos, me disseram.
- E o peso?
- Muitas centenas de libras, certamente.
Ninguém pensa mais em zombar de Moguer. Todos traduzem silenciosamente em pesos a imagem sonhada dessa estátua que a lenda, sem dúvida nenhuma, aumentará a cada relato.
- Onde está ela? - pergunta Almagro.
Moguer faz um gesto de ignorância.
- É preciso encontrá-la - diz Gonzalo.
Juan, os olhos brilhantes, aprova.
- Essa estátua tem nome? - pergunta Gabriel.
- Disso eu me lembro - diz orgulhosamente Moguer. - É um nome estranho que me traduziram por Irmão Duplo.
Gonzalo olha de soslaio para Gabriel.
Ao saírem do jardim, enquanto seus companheiros têm os olhos cheios de um mundo inteiramente de ouro, um mundo pertencendo aos contos mais loucos já sugeridos pela imaginação, Gabriel lembra-se das palavras de Anamaya e convence-se de que essas palavras nunca devem transpor a barreia de seus lábios.
Ela lhe disse que era a esposa do Irmão Duplo.
Na confusão de seu espírito, ele ignora o que isso significa para os incas.
Mas sabe, de agora em diante, o que isso irá significar para os seus.
Cuzco, noite de 15 de novembro de 1533
A cidade de Cuzco não dorme. A cidade de Cuzco nunca dorme. A atividade necessária à vida do Império não conhece interrupção - a das jovens que tecem no acllahuasi, a dos ourives, dos escultores, dos sacerdotes, a dos panacas inteiros que não cessam de velar pelos soberanos falecidos, de alimentá-los, festejá-los, recolher as palavras que eles pronunciam e que, vindas de debaixo, continuam a influenciar a marcha do mundo.
Em Sacsayhuaman, nas torres quadradas, os soldados se revezam na guarda. E na torre redonda de Moyocmarka, as pessoas estão prontas, como sempre, para a visita do Inca.
Há muitos cochichos nessa noite, nas casas simples como nos palácios, e
as águas do Huatanay levam segredos que dão medo.
Em seus palácios, as múmias dormem, olhos abertos. As múmias sabem o que os vivos ignoram.
O Anão corre à frente de Anamaya e a guia. pelas ruelas estreitas, escorregadias com a garoa que cai e cuja umidade penetra através de seu añaco.
A cada barulho suspeito, ele pára, ou a puxa para a proteção de um vão em trapézio numa parede. Ele a faz atravessar uma ponte sobre o Huatanay, vai à sua frente em ruelas tão escuras que ela se sente dentro de uma falha no meio de uma huaca.
No começo do caminho, ela procurou imaginar em que parte do corpo do puma estava. Tudo o que sabe agora, à medida que sobem e ela vai vendo as luzes brilhando de quando em quando no alto, nas torres de Sacsayhuaman, é que eles se dirigem para a cabeça.
Finalmente, na saída de uma ladeira íngreme, esbaforida, ela vê uma vasta esplanada coberta com a mesma areia que a Aucaypata. No fundo, encostado na colina, o alinhamento regular dos nichos do muro de um palácio. A sua frente, as luzes que brilham na cidade e nas encostas das montanhas, as tochas e os braseiros.
- Onde estamos? - pergunta ela ao Anão. - Em Colcampata, princesa.
Só essa palavra faz seu coração vibrar. É um dos maiores bairros de Cuzco, situado logo acima de Sacsayhuaman, aquele onde Chima Panaca, a liagem de Manco Capac, venera a memória do fundador da dinastia Inca.
- E agora?
O Anão não responde. Pega-a pela mão e a leva na direção do muro do palácio. Os nichos estão vazios - sem dúvida, as estátuas de ouro que os guarneciam foram tomadas como um butim fácil pelos estrangeiros em sua primeira visita. Onde se desenhava o elegante friso de chapas de ouro, só há a mutilação dos furos dos grampos. E, no entanto, na noite úmida e escura, o lugar não perdeu nem um pouco de sua força. A inclinação dos muros transmite uma impressão de majestade acentuada pelo corte perfeito das pedras.
Eles acompanham o muro, dobram a esquina. O palácio parece aí penetrar na colina enquanto, protegida das luzes da cidade, reina a escuridão. Eles seguem o paredão, fundindo-se com a pedra negra, esgueirando-se em cada ama das aberturas.
Na terceira, o Anão se encosta no muro e empurra-o com todo o seu o. Lenta e silenciosamente, a parede gira.
O véu diante dos olhos de Anamaya se rasga.
Na grande praça, dom Francisco Pizarro deu suas ordens. Para ele, o ócio ao norte, ao longo do rio, e cujo aposento principal é tão vasto que poderia receber facilmente 60 cavaleiros para jogar "a cañas"; para seus irmãos Gonzalo e Juan, o palácio vizinho. Do outro lado da praça, um palácio os muros são ornados de serpentes de pedra receberá Soto.
- Armaremos as tendas - diz o Governador.
Gabriel olha para ele, confuso, apontando para os prédios.
- Quero que continuemos todos em guarda e não quero desordem.
Não quero ninguém nas casas sem minha ordem. Quero paz com o jovem. - O jovem?
- Manco. O Inca. Quero a confiança dele para nossa tranqüilidade. Almagro, Soto, meus irmãos... eles terão tudo que querem. Mas nenhum deles compreende que estamos aqui para ficar e agora é o momento mais perigoso para nós. Se relaxarmos, se eu os deixar começar a pilhar, estamos mortos. Amanhã estarei com o rapaz. Montarei com ele uma expedição contra o exército do Norte.
Os olhos de Pizarro brilham e Gabriel sente em si esse misto de calma e excitação que é sua marca nos momentos difíceis. Ele dá suas ordens aos capitães, e Gabriel logo vê a pequena floresta de tendas se erguer na praça.
- E depois? - pergunta.
Pizarro olha para ele com um sorriso irônico.
- Não me faça perguntas cujas respostas você não gostaria de ouvir. Gabriel vai se afastar, mas Pizarro o retém pousando sua mão fina e seca
em seu ombro.
- Preciso falar com você sobre uma coisa - diz.
A passagem é suficientemente larga para que as pessoas se desloquem por ela sem dificuldade no escuro. Chega-se ali por uma escada de degraus altos, onde a cada passo é preciso prestar atenção para não se pisar num vazio que a escuridão crescente torna assustador.
Dizem que Tupac Inca Yupanqui mandou escavar esse túnel na colina, até a fortaleza de Sacsayhuaman que então estava sendo construída.
A voz do Anão chega a Anamaya abafada pela bruma úmida, e as gotículas em suspensão no ar molham o rosto da princesa.
O caminho faz uma curva e, ali perto, Anamaya vê uma luz fraca vacilando através de uma cortina. O Anão segue à frente de Anamaya antes de se afastar para que ela entre primeiro no aposento.
E uma sala redonda sem nenhum nicho, com paredes pobremente aparelhadas, onde há uma única tocha pendurada. Não há nada no chão, nem esteiras nem cobertores.
Só há um banco simples cuja madeira nada tem de preciosa e não tem nenhum trabalho.
No banco, está sentado o Irmão Duplo.
Um arrepio a percorre dos pés à cabeça, e ela precisa fechar os olhos para não perder o equilíbrio.
Estende a mão para ele sem tocá-lo, abre os braços e deixa um murmúrio rolar entre seus lábios.
Quando torna a abrir os olhos, o Anão desapareceu e a sala está às escuras.
Mas é uma escuridão que não dá medo, uma escuridão em cujo centro rilha o corpo de ouro do Irmão Duplo como um sol noturno, tranqüilizar, eterno.
Parece-lhe que em uma das paredes desenham-se figuras familiares. Talz os animais da floresta, talvez exércitos se enfrentando, pedras de funda assando como raios, machados erguendo-se e golpeando.
Pouco a pouco, essa agitação também se acalma, assim como as batidas c seu coração, e uma paz maravilhosa a invade, deixando-a pesada, fazendo cair no chão, bem aos pés daquele que ela deve seguir e proteger durante todo o seu percurso na superfície do Mundo.
Você está aí.
Será uma voz que ecoou sob a abóbada? Será o sussurro que escapa de seus próprios lábios? Pouco importa - ela finalmente o ouve, ouve aquele r quem julgava ter sido abandonada.
Você e mais forte que a paz, mais forte que a própria guerra. É mais velha e o Inca e atravessou os desertos e as águas para chegar a mim. Tudo o que é seu da noite.
O silêncio se instala e ela não sente mais frio, nem calor, nem umidade, nem secura. Está no coração do universo, maravilhosamente bem no encontro de todos os mundos.
Minhas palavras são de sempre. Você não pode esquecer nada.
A voz desliza até ela através da pedra e pelo ar, ora muito baixa, ora nora como um búzio. Mas é só um ruído imperceptível quando pronuncia palavras que ela aguarda sem ousar admitir isso. Confie no puma.
Ela não tem tempo de gozar o bem-estar que a invade e a relaxa até a ponta de cada um de seus membros.
A luz volta e a ofusca.
Ela grita.
- Qual deles você quer? - pergunta Pizarro a Gabriel, mostrando um palácio cujos muros sólidos se alinham na rua.
- Nenhum. Quero minha tenda.
Pizarro ri com doçura.
- Você sempre vai me surpreender, filho. Deus o expulsou da Espanha e você não veio cá pelo ouro...
- Eu achava que queria a mesma coisa que o senhor, dom Francisco... - Só Deus e a Virgem Santíssima sabem o que eu quero. Eu mesmo às vezes me pergunto...
O barulho das botas deles ecoa no calçamento do chão. Ouve-se um choro de criança na noite, e a doçura do fio d'água a separá-los. - Queria me perguntar alguma coisa, dom Francisco? - Alguma coisa?
O Governador parece sair de um devaneio.
- Ah, sim, filho, alguma coisa... Alguma coisa importante... Gabriel prende a respiração.
- Não é nenhum mistério que você dormiu com essa moça, essa moça de olhos azuis. Não o estou censurando, veja bem, mesmo um velho como eu tem o sangue aquecido por essas nativas.
Gabriel está com o coração aos pulos e sente a boca seca de repente. Pizarro finge não notar sua perturbação.
- Por uma razão que desconheço, o jovem parece gostar muito dela. O que ele quer com ela, não sei... que seja uma de suas mulheres, ou sua concubina real, ou a nova sacerdotisa do culto dele... não gosto dessas feitiçarias, você me conhece, mas, como diz o Eclesiastes, há um tempo para tudo. Em resumo...
Pizarro se interrompe, olha rapidamente para Gabriel, que não consegue controlar seus tremores.
- Em resumo, meu filho, parece-me que, de todas as mulheres, você não escolheu a certa.
- É a que eu amo, dom Francisco.
As palavras escaparam da boca de Gabriel, e ele se arrepende imediata
mente de as ter dito. "Amar"... o que isso pode significar para o Governador? - Você já amou para empregar essa palavra tão levianamente?
- Eu nunca tinha amado, dom Francisco, e é por isso que agora compreendo seu sentido...
- Então esse é um assunto sério...
Não há nenhuma ironia na voz do Governador, antes uma espécie de tristeza inesperada.
- E, no entanto, é preciso terminar, Gabriel... Ou, em todo caso, ser tão prudente que eu não tenha nenhuma preocupação com o rapaz. Está me intendendo?
Gabriel não responde. Sente a mão de Pizarro segurar-lhe o braço e apertá-lo a ponto de machucá-lo.
- Está me entendendo, filho? - Estou tentando.
- Tente direito. E para fazê-lo esquecer essa preocupação... Gabriel riu.
- O senhor me arranjou uma outra mulher? - Bem melhor que isso, filho! Uma missão. - Qual?
- Encontre essa estátua, esse Irmão Duplo a que eles dão tanta importância. Eu gostaria de vê-lo.
Gabriel espera que o Governador não tenha reparado na palidez súbita seu rosto.
A tocha ilumina o rosto de Manco.
Ele se aproxima de Anamaya e olha para ela em silêncio.
Anamaya custa a recobrar o fôlego, transtornada com uma raiva que ela tenta a repelir.
- Seu pai me falava - diz ela simplesmente. - Sinto muito.
Há tanta sinceridade e simplicidade nessa frase que Anamaya se deixa amolecer.
- Ele estava silencioso há essas luas todas... desde a noite da Grande batalha. Havia uma solidão em mim...
- Você o encontrou de novo.
- Ele nunca me deixou. Eu é que tenho de protege-to. As vezes tenho a impressão de que ele só fala comigo para me lembrar do que já me disse, o se eu ainda fosse uma menina a quem educam, no acllahuasi.
- Ele lhe fala de mim?
A voz de Manco é de uma ingenuidade comovente. Ele também é uma criança, pedindo para ser tranqüilizado.
- Eu já lhe disse, ele escolheu você há muito tempo como o primeiro nó dos tempos futuros. Nada do que está acontecendo agora é novo: tudo está na ordem do universo tal como seu pai me transmitiu. Você não deve ter medo. Deve prosseguir com determinação, deixando-se guiar pela força do Sol, como no dia do huarachiku.
- Não posso deixar de ter medo.
- O seu medo não é nada. Não existe. Seu pai não me falou de seu medo, e eu não falei nada sobre ele com os Poderosos quando eles escolheram você. Seu pai tinha medo? E Tupac Inca Yupanqui antes dele, e Pachacútec? Talvez...
- E Manco Capac?
O nome do fundador da dinastia inca deixa Anamaya silenciosa. Eh sabe a que ponto Manco é inspirado por ele.
- Venha - diz ele.
Ela apresenta as mãos abertas ao Irmão Duplo antes de deixá-lo.
- Preciso voltar com a chicha, o milho, a coca...
- O Anão o alimentou e lhe deu de beber regularmente. Mas você tem razão, ele precisa de você.
Eles deixam rapidamente a passagem. Manco faz o muro girar com facilidade simplesmente pousando as mãos sobre ele. Os dois se encontram outra vez numa noite talvez ainda mais escura do que o breu de onde acabam de sair.
Na esplanada de Colcampata, Manco segua Anamaya pelo braço. Leva até a beira do parapeito de pedras que domina a cidade e o vale. A noite quase negra é por vezes rasgada pela luz da lua e das estrelas para deixar que se adivinhem os poderosos cumes, os Apus.
- Manco Capac, meu ancestral, chegou com Mama Occlo por essa montanha, o Huanacauri. Eles haviam percorrido um longo caminho desde as origens, as águas do Titicaca, de cujas profundezas o deus Viracocha fez surgir tudo. Ele viu esse vale; rico, profundo, fértil...
Manco se interrompe, vira-se para Anamaya. .
- Você tem razão, talvez ele tivesse medo, mas isso não importa muito. Havia muitas razões para se viver no medo: o cansaço da viagem, a certeza de seu destino que ele era o único a ver, a própria dúvida, esse inimigo terrível que corrói o nosso interior e nos deixa esgotados antes de ter lutado. A lenda não diz quais desses medos Manco Capac teve certamente que superar para se apoderar de seu facão de ouro, sua tacha, e fender essa terra pela primeira vez. A lenda não fala, mas alguma coisa, no entanto...
De quando em quando, as nuvens negras se rasgam e deixam aparecer o esplendor de um trecho do grande rio estrelado. E, num piscar de lhos, as luzes do céu se harmonizam com as da terra e o mundo é perfeito. Depois, o vento muda, úmido, e a noite torna a se fechar, fria, hostil, inquietante.
- A história diz que ele estava com Mama Occlo. A história diz que ele mandou seu império com a ajuda de uma mulher...
De repente, finalmente, o sentido das palavras de Manco atinge Anamaya. Ela se censura pela fraqueza de sua compreensão. - Acompanhei você tanto quanto eu podia, Manco, e continuarei acompanhando, você bem sabe.
- Não falo disso.
- Você quer mais uma esposa? Não é possível: eu não tenho sangue al. Quer mais uma concubina em sua cama? Já há dezenas aí, e posso lhe garantir que minha arte nesse assunto é bastante pobre...
- Sei disso, Anamaya, você já me disse e não quero lhe mentir com as palavras. No entanto, parece-me que você não falaria desse modo se...
- Se?
Há desafio na voz de Anamaya. Manco aceita-o com uma entonação baixa, sibilante.
- ... se seu coração já não tivesse sido tomado por outro homem.
O silêncio da noite se apodera deles. Anamaya respira devagar, esforçam-se para expulsar o medo que a invadiu ao ouvir a violência contida nas auras daquele que foi um rapaz que ela protegeu, mas que é também o Único Senhor.
- É verdade - diz afinal -, eu amo um deles.
- Um estrangeiro?
- É.
A mão de Manco há muito tempo já soltou seu braço. No entanto, ela te sua respiração pesar como se essa mão estivesse em seu próprio ar. O perfil ave de rapina do rapaz se destaca na noite, pronto para saltar, a arranhar as garras...
- A vinda dele me foi anunciada há muito tempo por seu pai...
- Ah!
O muxoxo de raiva escapou da garganta de Manco e sua mão veio bater violentamente no parapeito.
- Manco!
A indignação faz vibrar a voz de Anamaya.
- Você sabe que sou incapaz de mentir. Acha que poderei ter a audácia ímpia de invocar o nome de seu pai Huayna Capac para esconder não sei que amores vergonhosos?
- Não. Só que...
A raiva de Manco passou rápido como uma tempestade. Ficou apenas uma tristeza infinita e tocante.
- Seu Pai disse que eu aguardasse a vinda do puma. E esse homem é o puma. - É um estrangeiro. Um estrangeiro não pode ser o puma. - Isso é tão estranho para mim quanto para você, Manco. Mas é assim.
Em meu coração, tentei tudo para achar que não fosse. E cada vez que eu n:,
afastava, a voz de seu pai ecoava ordenando que eu confiasse no puma. Manco não responde.
- Ele é generoso, Manco, bom... Você viu, ele já fala nossa língua, não é como os outros, não gosta de ouro... E, depois, eu sei, fui testemunha, ele quer sinceramente nos ajudar...
Manco deixa o silêncio absorver na umidade a lista das qualidades de Gabriel. Anamaya sente-se um pouco idiota e se cala. - E agora? - pergunta Manco.
- Agora?
- Sim, agora que a aliança do Inca é indigna de você, e que você prefere um puma surgido sabe-se lá de onde...
- Sua raiva não é melhor que seu medo, Manco. Talvez seja pior...
- Falo muitas vezes com ela, sabe, como com uma inimiga conhecida, e peço que me deixe em paz. Como criança, achei que ao me tornar o Sapa Inca ficaria curado disso... Agora sei que não é assim.
Sua risada sem alegria ecoa na noite.
- Você não pode pertencer a ele - diz.
- Eu sei.
- Você é a esposa do Irmão Duplo, a Coya Cama quen, e não pode ser mulher de mais ninguém, puma, condor, estrangeiro ou inca...
- Eu sei, Manco. Não escolhi o meu destino, mas o aceito.
Sem que ela quisesse, sua voz fraquejou nas últimas palavras. O rosto de sua mãe, aquele rosto espantado que não diz mais nenhuma daquelas palavras de infinita ternura que lhe aqueciam o coração, aquele rosto se debruçou fugazmente sobre ela e a fez tremer com todo o seu sofrimento antigo. Ela se controla com altivez.
- Eu estava ao lado de seu pai e nunca faltei a Atahualpa. Salvei você da serpente e, por minha voz, você vai se tornar o Inca... Precisa de novas provas e minha fidelidade?
- Confio em você, Anamaya - diz Manco, apaziguador. - Não duvido de você e sei o caminho que percorreu. Sou grato a você por isso, e todos são comigo. Além do mais, continuamos precisando de você nos tempos que se anunciam...
- O que é deve ser.
- O que é deve ser.
A voz de Manco fez coro com a de Anamaya e a ordem voltou ao universo. Mas ele estende a mão para pousá-la novamente em seu braço, como tantas vezes, e interrompe o gesto. Dá um nome à sua dor: o que é deve r, mas o que não é não deve ser, não será - isso é bastante cruel.
Cuzco, fim de novembro de 1533
A única porta do acllahuasi dá para a praça Aucaypata. Seus prédios estão espremidos entre os da Hatun Cancha, onde os espanhóis começam a se instalar, e os do palácio da Amaru Cancha, que foi devolvido pelo Governador Pizarro ao capitão Soto.
Com a chegada dos estrangeiros, os 20 porteiros que guardam a casa das virgens fugiram. Ficou apenas um, por fidelidade ou incapacidade: é cego. Anamaya grita para ele:
- Pode me deixar passar, velho. Não sou um barbudo que veio deixar sua semente numa virgem ou numa esposa do Sol!
O velho resmunga:
- Você não devia brincar com essas coisas No dia que isso acontecer... - Você estará aí para nos defender!
Ele tem um gesto de lassidão e de impotência, e seus olhos brancos se viram para o Sol que ele não vê mais.
Anamaya se embrenha na ruela em volta da qual se distribuem os prédios do acllahuasi, as oficinas primeiro, depois os depósitos cheios de piruas, esses grandes jarros onde se conservam todos os produtos necessários ao Inca. Depois do pátio onde todas as manhãs o ídolo do Sol é venerado, ficam os alojamentos das criadas, das achas comuns, a maioria das quais já voltou para suas famílias e, no final, o das esposas do Sol, onde ninguém pode entrar sob pena de morte.
No acllahuasi de Cuzco, Anamaya é como uma espécie de rainha e até Guri Ocllo, a Coya Cama quen de Manco, não ousaria discutir sua autoridade
As mulheres que ficaram, essas sacerdotisas que consagraram a vida ao culto das divindades, sentem que estão ameaçadas, que todos os palácios e templos em volta da praça foram tomados pelos estrangeiros. Chegaram rumores sobre os estupros que eles cometeram em todas as cidades por onde passaram, e as pessoas se voltam para ela com uma esperança infundada, porque seus olhos azuis acalmam, porque ela tem sempre uma palavra gentil, uma delicadeza para com essas jovens apavoradas e suas servas.
Logo antes dos apartamentos das esposas do Sol, Anamaya tem seu próprio quarto onde ninguém entra sem ser convidado por ela - um quarto vazio, a não ser por sua esteira e um cobertor de lã, e onde o único nicho aberto na parede é uma serpente de pedra.
Ao entrar, ela é recebida por soluços:
- Inguill!
A jovem está encolhida ao pé da esteira e não se mexe nem quando ela entra. Anamaya nunca a tinha visto tão desgostosa.
- Inguill, diga-me o que está havendo com você!
A menina levanta o rostinho desfeito para Anamaya:
- O que adianta eu ter obedecido a ele? O que adianta eu ter atravessando as montanhas, fugido dos soldados que queriam me violentar e me matar? que adianta você ter me recolhido?
- Inguill, se você não me explicar o que está acontecendo com você, u deixá-la aqui chorando sozinha as suas mágoas!
- Ele não vai me deixar ficar junto dele!
- Manco?
- Ele tinha me prometido há muito tempo, mas não vai deixar. Me despreza mais ainda do que a última das concubinas dele...
- Por que você está transtornada assim?
- Ele só falou comigo uma vez desde que entramos em Cuzco...
- Mas ele partiu no dia seguinte com os cavaleiros do capitão de Soto, ara ir atrás dos exércitos do norte, esses que perseguiram você!
- Eu esperava, Anamaya, esperava tanto...
- Escute...
Anamaya não pode dizer a Inguill que fez Manco sofrer da mesma maneira que ele a fez sofrer... Mas pode lhe dizer que este mundo é percorrido r sentimentos estranhos, que nunca se sabe se amar e ser amado é um sono feliz ou infeliz. Fala-lhe do puma, de Gabriel, e os olhos de Inguill brilham de espanto e de prazer após as lágrimas.
- Um estrangeiro!
Mas não diz isso com medo e desprezo, como os outros homens... Faz com que a princesa fale como mulher, pergunta-lhe se as mãos dele são macias e que gosto têm seus lábios. Anamaya deixa deliciosamente as palavras saírem de sua boca, falando de sua ternura e das lágrimas que lhe vêm aos olhos e que ela deve esconder dele quando ele está em seus braços e em seu ventre.
- Mas, enfim, eu não devo vê-lo - conclui com uma secura repentina. - Por quê?
- Manco me deu essa ordem. Ele quer que eu me reserve para„meu marido, o Irmão Duplo, e para a sobrevivência do Império...
Inguill fica calada. Seu instinto de mulher se detém diante dos mistérios do destino dos Incas.
- Falarei de você com Manco - diz finalmente Anamaya. - Não a deixarei sozinha, minha amiga.
Inguill se encolhe em seus braços.
- Os outros gostam de você porque você vê e entende os segredos que eles não compreendem. Mas eu gosto de você porque você é boa.
Anamaya mal a ouve. Falar de Gabriel - finalmente poder compartilhar seu segredo com alguém - foi delicioso. Mas, mal as palavras saíram de sua boca, ela já queria repeti-las, e sua dor e maior que antes. Obedecer a Manco é uma prova que não se torna mais fácil a cada dia, ao contrário. É uma prova que não tem nenhum sentido e não leva a nada.
Ela queria que não houvesse nenhuma palavra, mas sim ele, simplesmente ali, com seus olhos e seu sorriso, aquele j$ o de desejá-la em silêncio e de aproximar-se dela, confiante, imperioso e magnífico.
A primeira vez que Bartolomé parou Katari, na esplanada vazia e cinzenta de Cusipata ao amanhecer, o jovem kolla teve um movimento de medo. Olhou o estrangeiro com seu hábito negro cingido por uma corda branca, seu crânio totalmente desprovido de pêlos, sua mão com dois dedos colados... Depois, mergulhou seu olhar negro nos olhos cinzentos do monge e não o largou mais até que um sorriso iluminasse seu rosto, um sorriso onde não havia nenhuma maldade, nenhuma violência e nenhum medo. O sorriso de um homem que descobre ser estranhamente parecido com outro...
Katari sacudiu os longos cabelos negros e apontou para as torres e os muros poderosos de Sacsayhuaman, acima deles. Depois, apontou para a cidade inteira em seu berço de campos e terraços, para as encostas das montanhas ao redor, e para os primeiros raios do sol se levantando a leste, na direção do Oceano distante e invisível.
Os dois homens começaram a caminhar juntos.
Desde então, quase não há dia em que não se encontrem e não saiam juntos para passeios que os levam aos cantos mais remotos da cidade ou as montanhas acima de Cuzco, onde estão as pedras sagradas, as nascentes e os deuses...
Eles saíram do silêncio para trocar algumas palavras e parece que a linguagem de um penetra a linguagem do outro, mesmo sem ser totalmente compreendida. Com freqüência, Katari se espanta ao ver o monge tirar de dentro da roupa um pano liso e uma espécie de pincel parecido com o dos ceramistas para traçar ali alguns sinais. Mas não pergunta nada. Respira o ar. Deixa-se levar pelo vento. Mostra-lhe os degraus que descem, ao contrário, às profundezas da terra. Ouve-o pronunciar o nome de Deus.
Hoje, a tempestade os faz voltar antes do previsto e Bartolomé o leva para uma casa muito simples onde ele se instalou, em Cantupata, o bairro onde as flores desabrocham com uma riqueza que toca o coração mais do que o do o ouro do mundo.
Katari olha com curiosidade os poucos móveis já colocados ali: a mesa, quatro cadeiras, as prateleiras onde estão alguns volumes. Fica com os olhos grudados no crucifixo. Bartolomé não explica nada, não prega nada. Puxa uma madeira e o convida a sentar-se. Katari olha para ele com uma vaga apreensão, então o frade pressiona delicadamente seu ombro, sentando-o. Katari parece pairar acima da terra - nem deitado, nem agachado, nem de pé... nenhuma posição conhecida do homem...
O monge tira um pedaço de pano branco que coloca diante do amigo, com outro pincel. Molha o pincel numa espécie de pequeno recipiente que contém um líquido negro, sacode uma ou duas gotas, antes de traçar sinais o pano branco. Katari olha para ele, espantado. Depois Bartolomé sopra no tecido e o passa ao rapaz com um sorriso.
- Olhe - diz ele - e faça como eu.
Dá o pincel a Katari e o jovem o mergulha canhestramente no vidrinho. Tenta traçar os sinais no pano, mas nada consegue além das manchas que provocam o riso de Bartolomé. O nativo lança um olhar de raiva, mas o monge o censura com delicadeza e guia sua mão.
- Está bom - diz afinal.
Katari olha para o que traçou, essa espécie de desenho que não representa nada, senão uma cópia canhestra do desenho de Bartolomé. Ele ergue um olhar interrogativo para o monge.
- Amigo - diz este mostrando os signos.
Muitas vezes, o olhar de Katari vai do rosto de Bartolomé aos signos traçados no pano.
Com a ponta dos dedos colados, Bartolomé sublinha cada uma das letras e recomeça pacientemente:
-AMIGO. Amigo!
Depois, com um sorriso, traz a mão de Katari até seu peito. - Você e eu: amigos!
O rosto de Katari se ilumina de repente:
-Amigo!- repete, concordando com a cabeça.
Cuzco, noite de 4 de dezembro de 1533
O Anão esperou uma noite escura envolver a cidade para ousar sair na rua. Quando ouve o bater dos cascos de um cavalo, esconde-se no vão de uma
porta ou simplesmente encosta-se num muro. Não acompanha o Huatanay que o levaria diretamente à Aucaypata. Pega as ruelas desertas parando freqüentemente para virar-se e escutar.
Ao chegar à praça, fica um bom tempo paralisado no escuro, diante da aldeia de tendas que continua abrigando os soldados espanhóis. Por que disse sim a Anamaya, por que arriscar a vida de novo? Ele suspira e se adianta um pouco. Ela lhe indicou a tenda como a mais perto da Amaru Cancha. "Ele
a quíchua", precisou ela, "e lhe contei sobre nossa amizade. Quando ele o ir, saberá logo que você e meu enviado."
Os soldados com quem ele cruza quase não reparam nele, ou, quando o vêem, se cutucam ou dão uma gargalhada. A medida que se aproxima da tenda, sente as pernas lhe faltarem. No momento em que vai transpor a cortina da entrada, uma voz bem próxima ecoa em seus ouvidos e ele rola para entro da tenda.
Reina ali um estranho ambiente. O espetáculo dos homens seminus, o corpo coberto de pêlos negros ou ruivos, é também assustador. Ele vê armas que são mais altas que ele e as carcaças de metal que as tornam invulneráveis. Incapaz de pronunciar uma palavra - que de toda maneira eles não compreenderiam - olha de um para outro, procurando colocar a maior distância entre eles e esperando o milagre de que aquele a quem procura se
mostre.
Mas, gritando e gesticulando, os estrangeiros aproximam-se dele, e ele recua agitando os braços. Quando quer sair da tenda, embaraça-se na lona e cai no chão. As risadas recomeçam mais ruidosas, e ele pensa, achando alguma graça, que dessa vez nenhum grande Huayna Capac estará lá para protege-lo.
- O que faz aí?
O estrangeiro que entrou na tenda chutou-o sem querer. Tem os cabelos claros e o olhar igualmente claro, e menos aspecto de animal selvagem que os outros... Levanta-o sem delicadeza especial.
- O seu nome é Gabriel?
Gabriel olha para ele, perplexo, depois seus olhos se iluminam. Murmura alguma coisa para os outros que estão rindo.
Segue-o por entre as tendas sem dizer mais nada, até La Cassava. Quando estão na ruela que leva a Colcampata, segura o nativo pela gola e lhe diz no, ouvido:
- Vai finalmente me dizer aonde me leva?
- Não, não posso... Basta me seguir.
Gabriel o empurra à frente com um movimento de irritação, mas acompanha-o sem sentir as sombras que os seguem.
O Anão pousa as mãos na parede e Gabriel se sente de repente muito só e muito imprudente. Se caiu numa cilada, caiu de bom humor, sem pensar.
O que o motivou? Uma velha história com o anãozinho que Anamaya lhe contara em Cajamarca. E aquele jeito engraço com que ele pronunciou seu nome: Ga-briel?
A passagem está mergulhada na mais completa escuridão. Ele chama em vão, volta-se para colocar as mãos na parede que lhe escapa. Sente uma vertigem na cabeça e um medo antiquíssimo lhe sobe pelas entranhas. As batidas violentas de seu coração lhe ecoam até as têmporas.
Avança tateando, e seus pés não se tranqüilizam com a uniformidade do piso que tem a mesma consistência arenosa da praça principal. Suas mãos esbarram na pedra dura das paredes. Sem andar muito mais rápido, pelo menos vai com menos nervosismo.
De repente, suas mãos encontram apenas o vazio. Parece-lhe ver uma luz cinzenta muito no alto, uma luz que não ilumina nada. Ele pára, mas seu corpo inteiro gira e ele tem uma sensação de queda que o leva para o fundo de um buraco.
Quando as mãos pousam em seus ombros, ele recua bruscamente e quase perde o equilíbrio.
- Você está aí - diz a voz doce de quem ele ama.
Ele a agarra com uma violência de que não se julgava capaz, tão grande que o medo quase o dominou. Suas mãos apertam o corpo dela e uma espécie de grunhido escapa de seu peito, como se ele fosse um animal ferido. É estranho ter vontade de amá-la e ao mesmo tempo machucá-la, de cobri-la de beijos e socá-la até ela gemer, ou talvez gritar.
Mas, quando ele está se julgando o senhor, é ela quem o arrasta para o chão, para uma esteira cheia de mantas de lã muito macia, e essa maciez aumenta seu desejo e sua fúria. Ele a quer com uma força que nunca teve, um despudor terrível e sem limite.
Faz sua túnica deslizar por seus ombros e sente-a se entregar, também, em total abandono, como se os dias de separação que viveram fizessem cair todas as barreiras. Sua pele é quente, palpitante, vibrando sob cada carícia.
Parece-lhe que a excitação do desejo está em cada parte de seu corpo, que nada escapa, e que, se ela o beija no pescoço, o seio dela toca seu peito, seu joelho passa entre as coxas dela, ele deverá gritar para exprimir toda a tensão que tem dentro de si - e talvez um pouco de raiva também, por ela o deixado esses dias todos sem notícias, parecendo quase fugir dele.
O ventre dela ondula contra o seu também com furor, um frenesi de carência - ele pensa naquelas serpentes das quais ela é amiga e se deixa deliciosamente envolver, arrastar, ceder à força delas. Quando a penetra, sente que ela prende a respiração, que um longo silencio a espanta e a deixa quase inerte, antes que, muito suavemente, recomece o movimento de ondulação e seu corpo, insidioso, irresistível.
A escuridão é tão profunda que ele continua sem distinguir os traços de u rosto e essa ignorância aumenta sua excitação. Que homem não sonhou m uma estrangeira de poderes talvez um tanto maléficos, que o arrastasse ara amores noturnos e proibidos? Ele bem sabe que é ela, mas a perspectiva e que ela tenha se tornado estrangeira para ele o arrebata furiosamente, e ele m medo de não controlar mais nada.
- Ponha as mãos em volta do meu pescoço - diz ela.
A surpresa quase o faz empurrá-la, mas ela está tão profundamente nele que domina sem dificuldade seu impulso. É sua vez de ter um instante de imobilidade. Depois, suas mãos subitamente dóceis e obedientes deixam as coxas esguias de músculos longos, as costas arqueadas, exigentes, os flancos em movimento de dança. Elas acariciam seu pescoço, depois se encontram dedo a dedo, formando um colar. Ele sente sua carne palpitar como um pássaro frágil, enquanto os movimentos de seu corpo se aceleram quase freneticamente. Aperta-a a ponto de senti-la sufocar (mas seu corpo continua se agitando como um mar de vagas em cima do seu) e então relaxa a pressão, e toda sua cólera se esvai nela, enquanto lágrimas brotam de seus olhos.
Ela se enrola com ele numa manta e aninha o rosto no pescoço dele. Ele não consegue mais parar de chorar e ela vem dar lambidinhas em seu rosto como uma gata. Ele se acalma, ainda com tantas perguntas sem resposta."
- Eu não queria machucar você - diz ele.
Depois, após uma pausa:
- Eu queria machucar você.
- Eu pedi as duas coisas: que você não me machucasse, mas que me machucasse.
- E?
- Você sabe bem as duas coisas.
Eles riem com naturalidade, quase com alívio.
- É um mundo estranho - diz ela. - Uma porta que abre como uma rachadura no meio de uma huaca e um mergulho no coração da, terra e quando fica mais escuro, uma luz se acende e ofusca você. Quando você sai, está vivo de novo. Está mudado, transformado. Algum dia, levo você.
- Não é o que acaba de fazer?
- Você ainda não conhece nada.
Ele assobia entre os dentes e ela torna a rir.
- Onde estamos?
- Será que você é como os outros estrangeiros que não suportam mistério e querem conhecer tudo, possuir tudo?
- Você parece conhecer bem esses estrangeiros.
- Você é que me ensinou. Estamos no único lugar de Cuzco onde podemos nos encontrar hoje sem o risco de ser incomodados pelos seus ou pelos meus.
- Manco, não e?
- Manco não vai incomodar você. Mas ele precisa de mim ao lado dele e não devo me furtar às palavras de meu Pai.
- Seu Pai? Eu achava que...
- Meu Pai Huayna Capac...
- Anamaya, não estou entendendo nada. Achei que você fosse casada com esse rei...
- Casada com o Irmão Duplo, sim.
- Onde ele está?
Ele sente que ela se retesa, escapa de seus braços.
- O que há?
- Por que me pergunta onde ele está?
- Para protege-la da avidez dos meus. Os jovens irmãos Pizarro, malditos sejam, ouviram falar na existência dessa estátua de ouro e ela agora lhes parece o que há de mais cobiçável em Cuzco, talvez porque nunca a viram... E o cúmulo é que o Governador me encarregou de encontrá-la.
- E o que faria se a encontrasse?
- O mesmo que os outros, claro: tomaria posse dela, mandaria fundi-la em belos lingotes e ficaria rico! Não foi a minha ganância que seduziu você?
- Diga o que faria, a sério.
- Ajudaria você a esconde-la para escapar da ganância deles. Pois se eu a encontrei, certamente eles também chegarão a ela.
Anamaya foge dele e seus braços estendidos para pegá-la só abraçam o vazio. Sua voz ecoa em vão. Ele está nu, com frio.
Depois a luz de uma tocha vem iluminar fracamente o aposento onde eles estão, que é redondo como um batistério e onde seus olhos a princípio só vêem algumas sombras dançantes: ela, também nua, cujo corpo ágil o atrai mais; no centro, pousado numa base, uma estátua cujo ouro reluz com um brilho fulvo ao clarão da tocha. O Inca está sentado em seu trono, na posição das múmias que Gabriel já viu. Está absolutamente perfeito, a não ser pelo nariz, ao qual falta um pedacinho.
Gabriel estremece, mas já não é de frio. Eles mal tiveram tempo de sair dos jogos do amor, de gozar aquele abandono delicioso que lhes foi recusado por tanto tempo...
- Não é um pecado grave, para o seu povo, como para o meu, não obedecer às ordens recebidas?
- É. Mas quando a obediência é apenas um pretexto para a cupidez de alguns, e preferível até o que eles chamam de traição.
- Talvez você esteja colocando palavras muito nobres atrás de um simples sentimento...
- É esse mesmo sentimento que me dá nobreza.
- Você vai correr grandes perigos, Gabriel.
- Esconda esta estátua, esta noite.
- Não devemos ficar mais tempo juntos. Você deve confiar em mim, sejam quais forem as provas e, talvez, os sinais em contrário, confiar em mim sem me ver, às vezes contra a própria evidência...
- O que quer dizer?
A voz de Anamaya já se afasta quando ele gostaria de tocá-la uma última vez, deixar sua impressão marcada no braço dela, sentir a fugaz carícia de seus lábios.
- Confie em mim como confiei em você. Estarei com você, Gabriel, quando for preciso. Feche os olhos.
Ele lhe obedece, crispando-se todo para ouvir o que lhe diz o instinto. Levá-la. Afrontar Pizarro, Manco, os irmãos... Mas sua voz o persegue num eco suave: confie em mim como confiei em você.
Quando afinal abre os olhos, vê o olhar arregalado do Anão. Nem se vira para o Duplo de ouro enquanto entram na passagem. Sente-se vazio e fraco.
Quando saem na noite, ele vai até o terraço de Colcampata. Procura as estrelas e vê as sombras negras na Via-láctea, ali onde por uma noite, depois da morte de Atahualpa, ela lhe mostrou os bichos que se escondiam na luz - o cão, o lhama, o condor...
De repente, no meio da confusão celeste, ele vê com uma nitidez sobrenatural um felino a olhá-lo, as patas levantadas, a boca aberta. O puma.
Ele caminha sem medo para a praça.
Templo de Cuzco, 20 de dezembro de 1533
Na umidade do nevoeiro que brinca com seus vultos, Anamaya às vezes custa a ver as duas sombras tão díspares que a precedem - a de Villa Oma e a de Katari. O nevoeiro alonga desmedidamente o corpo seco do sábio, enquanto parece achatar a massa já compacta do jovem kolla.
Ninguém dá uma palavra.
Eles estão relativamente perto de Cuzco, mas o tempo está tão mau que bem poderiam estar perdidos na montanha, no coração da cordilheira mais selvagem. É o sábio quem os guia por um caminho estreito, ladeado por muretas, para o templo onde Manco se retirou há três dias para fazer seu jejum ritual antes de receber a mascaipacha.
Quando se viram, eles vêem as casas, a cidade e todo o vale como que engolidos pelo nevoeiro. No entanto, jogos de luz atravessam o céu enviando ao encontro deles sombras de penedos, animais e guerreiros cujos gritos indistintos às vezes são trazidos pelo vento que sobe em rajadas.
O que quer Viracocha?
Finalmente, a massa do templo se desenha diante deles, com sua vasta esplanada e seus blocos regulares, cuja perfeição lembra a de Coricancha. É cercado de terraços de milho cuja largura corresponde exatamente à altura dos muros.
Quando Villa Orna se apresenta aos guardas que vigiam a única entrada aberta no muro, Anamaya se vira e se deixa impressionar pela harmonia do
local. Majestosa e quase desaparecendo, a imagem do mundo deles jamais
esteve tão próxima da do Outro Mundo...
O nevoeiro pesa também no pátio do templo. Parece vir do chão, salpicado de lantejoulas de prata leves como penas de beija-flor, e abafa o barulho constante do chafariz de onde sai uma engenhosa rede de calhas.
Na entrada de seu quarto, Manco está só.
Amanhã, vestirá o traje do Inca, com um unku cerimonial tecido por l00 virgens no acllahuasi, para que ouro e cores resplandeçam em cada uma de suas fibras, com um colar feito de milhares de chaquiras, com o llautu e o curiguingue, os pesados brincos de ouro, o peitoral... Por ora, está usando apenas um simples unku branco com sandálias de palha, e está sentado em sua tiana, olhos voltados para o céu opalescente.
Anamaya, Katari e Villa Oma vêm se colocar diante dele silenciosamente, a cabeça ligeiramente abaixada. Seus olhos deixam o céu e pousam neles. Ele esboça um sorriso que não suaviza seus traços crispados.
- Parece que o Filho do Sol está confuso - diz Katari.
Anamaya se surpreende, Villa Oma quase se sufoca. Há um momento de silêncio, depois Manco começa a rir, uma risada que o sacode inteiro e o faz tossir. O rosto de Katari se ilumina e Anamaya também se deixa ir, enquanto o sábio de boca verde permanece impassível, severo, desaprovados.
- O Filho do Sol confuso... Só a você, Katari, posso perdoar esse sacrilégio. Não é, sábio Villa Oma?
O sacerdote não responde, mas sua desaprovação é palpável. Anamaya encontrou-o mais calado e soturno do que nunca, como se uma raiva profunda lhe contorcesse as entranhas.
- Venham comigo - diz Manco.
Ele os leva a uma das salas em volta do estio. Diferentemente do que aconteceu em muitos templos, esta ainda não foi despojada; além do seu friso de ouro que corre no alto da parede, Mais abaixo da fina viga que sustenta o teto de ichu, há espessas chapas de ouro sobre as quais, numa única linha de contraste, estão desenhadas figuras de animais. Nos nichos, também, os ídolos ainda estão presentes, estátuas dos deuses cujos olhos de pedras preciosas - turquesas e esmeraldas - fitam-nos de todos os cantos do aposento.
Mas, sobretudo, há as pinturas.
Anamaya fica sem ar. Estão executadas em painéis de madeira distribuídos pelas paredes em volta do aposento. Sem nunca os ter presenciado, ela reconhece num piscar de olhos os episódios mais célebres da história dos Incas: a fundação de Cuzco por Manco Capac, a construção de Coricancha por Pachacutec, a batalha contra os Chancas... Fascinada, não consegue se deter exclusivamente numa cena. Tudo é tão presente, tão forte, as cores, tão vivas, as personagens, tão próximas deste mundo, que é de se perguntar se o pintor não está ali em algum lugar, escondido entre eles.
Até Villa Oma parece impressionado com a solenidade do local. E toda a lenda do mundo inca que foi pintada ali entre imagens simples e fortes, mais fortes que as palavras, mais duráveis que o vento e o barulho das armas. De repente, ela recebe um choque no peito.
Numa das pinturas, é o rosto indecifrável, rachado como um pau velho, do grande Huayna Capac que ela descobre, com a nitidez fulgurante de uma visão. Ele está deitado numa esteira, o corpo escondido pelos cobertores de lã e de plumas que o protegem do frio que o invade. E a seu lado, o rosto meio oculto na penumbra, uma menina olha, os olhos azuis tímidos e apavorados, enquanto a mão do velho rei está pousada nela.
Manco olha para Anamaya cujos olhos se enchem de lágrimas. Ela não pode ignorar o papel que representa no império desde a morte de Huayna Capac. Mas nada melhor que essa pintura pode lhe fazer sentir a que ponto ela entrou agora em sua lenda.
- Amanhã - diz lentamente Manco - será um grande dia para os Incas...
Os olhos de Anamaya, deixam a pintura e se fixam no nobre rosto de seu amigo, em seu perfil de águia, em seus olhos tristes vibrando com uma energia vital sem limites.
- Mas o amanhã - prossegue ele com a mesma solenidade - está carregado de perigos. O jejum me aliviou de muitas preocupações inúteis. Mas não dissipou todas as confusões. Preciso de vocês para ver com clareza.
Seu olhar pousa em Villa Oma, que não pestaneja, depois em Katari, cujo rosto está iluminado por um sorriso imperceptível.
Finalmente, detém-se em Anamaya e permanece ali.
A alguns dias do Natal, dom Francisco Pizarro finalmente deu ordem para que se levantassem as tendas da praça e que os homens fossem para seus quartéis. Gabriel está alojado com ele - e não do outro lado da praça com a maioria dos homens - no palácio de La Cassana. Está sozinho num aposento de dimensões modestas, regozijando-se com o único luxo oferecido a ele: uma abertura para a rua, um pequeno trapézio de luz que ele não cobriu, como os outros fizeram, com papel encerado a fim de poder aproveitar a toda hora o espetáculo da rua, o fluxo variado de homens que segue o curso do Huatanay.
- Gabriel?
No escuro, ele adivinha o vulto de Bartolomé e mal reprime a preocupação sem motivo que o aflige.
- Então?
O monge aproxima-se dele, sorri-lhe sem falar, passa de raspão por ele. Posta-se diante da janela e olha por sua vez o movimento da rua. - Eles esperam - diz num tom displicente.
- Esperam o quê?
- O que os homens esperam. Paz, comida, as coxas de uma mulher... E para os nossos, ouro, prata e todo esse tipo de coisa.
- É verdade. O Governador prometeu que as distribuições começariam logo após a coroação.
- Você diz isso sem entusiasmo.
- Você bem sabe que o ouro me é indiferente. E a prata. E todo esse tipo de coisa...
Bartolomé olha curioso para ele.
- Então você só pode estar aqui por uma razão. - E qual é?
- A mesma que eu: a maior glória de Deus.
Alguma coisa vibra no olho de Bartolomé, fazendo os dois homens começarem a rir.
- Palavra de honra, meu frei, em vista 4as circunstâncias em que nos encontramos, acho que é muita caridade de sua parte me dar esse crédito de zelo religioso.
- Estou errado?
Gabriel contém a ironia, amua.
- Você é que vai dizer. Veio para pedir minha ajuda na preparação da missa?
- Não, meu amigo. Para esse ofício, você sabe que o reverendo padre Valverde é insubstituível. Ele já dedicou o palácio que o Governador lhe deu a Nossa Senhora de la Concepción depois de ter expulsado dali não sei que demônios que fugiram aos uivos só de vê-lo.
- A igreja estará construída para o Natal?
- Certamente não. Mas é só porque nós não acreditamos muito em milagres...
- Você não acha que eu possa fazer um, acha?
- Eu gostaria que você deixasse de suspeitas e confiasse em mim, Gabriel. Você está com problemas e eu posso ajudá-lo. Venha.
Os dois homens atravessam o vasto pátio, onde os soldados de armaduras patrulham dia e noite. É aqui, em pleno palácio do Governador, que vêm parar os tesouros tirados dos palácios e dos templos, sob a supervisão do tesoureiro, aguardando serem fundidos, subtraídos do quinto real e finalmente repartidos.
Eles saem na praça que, com o desaparecimento da cidade de tendas, retomou o aspecto normal, e Bartolomé leva Gabriel para o chafariz central. Depois do nevoeiro cerrado do amanhecer, o céu limpou, e um sol quente os ilumina.
- Eles viram você - diz Bartolomé.
- Dá para me falar um castelhano que eu possa compreender? Bartolomé ergue os dois dedos grudados num gesto tranqüilizador.
- Há alguns dias, você foi guiado à noite por um nativo até um dos templos deles. Você, perdoe-me a expressão, "sumiu dentro de um muro" antes de aparecer algumas horas mais tarde. - E aí? - desafia Gabriel.
Bartolomé faz uma pausa.
- Pode me responder como quiser. Mas acho que não vai dar a mesma resposta ao Governador.
Gabriel fica lívido.
- Creio ter uma idéia precisa do que você via naquela noite, e, acredite, mão iria censurá-lo, pense você o que pensar.
Gabriel perscruta a testa glabra do monge e seus olhos cinzentos para detectar a cilada. Vê apenas as rugas de uma preocupação sincera. - Seu problema é que os irmãos Pizarro pensam de outra maneira. E seu problema é que estão convencendo o Governador de que têm razão.
- E o que pensam esses dois cães?
- Pensam que você encontrou essa famosa estátua de ouro que o Governador o encarregou de procurar e que a guardou num lugar seguro para garantir o lucro só para você.
Gabriel sente o chão lhe fugir sob os pés. Bartolomé mergulha os olhos cinzentos nos seus.
- Por Deus, meu castelhano agora está suficientemente bom para Você?
A discussão é longa, áspera, difícil. Em geral, Manco e Villa Oma é que se opõem, sob o olhar de Katari. Anamaya tem às vezes a sensação estranha de mergulhar em sua própria lembrança quando, quase sem querer, perscruta o painel representando a morte de Huayna Capac.
- É preciso fazer a guerra agora - martela Villa Orna. - Não se deve recomeçar o erro de seu irmão Atahualpa. É preciso destruí-los enquanto ainda podemos. É preciso reunir tropas em todas as aldeias. Chamar seu irmão Paullu, talvez até se entender com Quizquiz, Guaypar...
Manco ruge.
- Esses eu vou perseguir até o Outro Mundo, se preciso for... Eu os persegui e botei para correr...
- Com a ajuda dos estrangeiros! Você acredita no sorriso falso e nas palavras simpáticas deles? Acredita mesmo nas histórias que eles lhe contam para enganá-lo, que você vai reinar sob o rei deles, fazer seus deuses viverem sob os deuses deles? Vai servir a eles como um escravo...
- Villa Orna!
- Você está indo longe demais, sábio - intervém Anamaya.
- Não acuso Manco de ser covarde - esbraveja Villa Orna. - Digo simplesmente que conhecemos os estrangeiros, sabemos que eles só querem nos despojar, tomar nossa prata depois do nosso ouro, nossas esmeraldas depois de nossas turquesas, e destruir nossos templos... De que mais precisamos? Quanto tempo temos que esperar para nos preparar para a revolta?
- Não estamos prontos, sábio Villa Oma - diz simplesmente Anamaya, fazendo um gesto para Manco se calar. - Só isso.
O sábio observa a jovem a quem ensinou, há muitas luas, os ritos do mundo inca. Um sorriso triste se acende em seu rosto cinza, sulcado de rugas.
- Você mudou bastante, jovem Anamaya.
- Ouvi - diz ela -, e aprendi. Conheço os estrangeiros - ela evita o olhar de Manco ao dizer isso - e conheço as intenções deles. Mas o recado de nosso pai Huayna Capac é que Manco deve reinar... Seu reino começará como o reino da serpente, que desliza entre as pedras, some entre as folhas, e não como o do condor, que é o senhor dos céus.
Manco vira-se para Katari:
- O que acha?
O rapaz balança os cabelos longos.
- Anamaya tem razão. - E você, Villa Oma?
O sábio não responde, mas faz um imperceptível movimento afirmativo com a cabeça, reconhecendo a derrota. Por ora.
- O Irmão Duplo está em local seguro?
A pergunta de Manco saiu como uma acusação.
- Ele deixou Colcampata e Cuzco e se dirige para outra morada secreta
- diz simplesmente Anamaya.
- Será que esta também será mostrada ao estrangeiro?
Anamaya não imagina como ele sabe, mas a vergonha a faz empalidecer.
- Não.
Katari e Villa Oma ficam calados. O sábio tem o olhar severo, desdenhoso, dos dias ruins. Anamaya sente um acesso de revolta subir dentro dela,
mas Katari intervém antes:
- Você está errado, Manco.
O jovem inca hesita um instante. Sua confiança em Katari é infinita,
mas sentimentos confusos se agitam dentro dele.
- A Coya Camaquen sempre serviu ao Império - diz Villa Orna.
As palavras são ditas com a rudeza habitual do sábio, mas Anamaya sente que elas surtem efeito. Manco toca o ombro dela com um gesto furtivo. - Preciso de você, Anamaya. O Império das Quatro Direções precisa de você.
Sua voz é tão tímida de repente que Anamaya fica comovida. Revê o adolescente paralisado diante da cobra, a quem ela teve de abrir o caminho. - Tudo está preparado para a capa cocha.
Anamaya fica gelada e olha para o sábio que acaba de sibilar essas palavras entre seus lábios verdes.
- É impossível! - exclama, virando-se para Manco que permanece impassível.
- Impossível? - ironiza o sábio. - De todas as direções do império já chegam os filhos das famílias mais nobres para receber a honra de ser sacrificados para a glória do Filho do Sol...
Anamaya tenta controlar o nervosismo e a fúria que se apoderaram dela.
- Os estrangeiros jamais aceitarão isso. - Os estrangeiros!
É a vez de Villa Oma tomar Manco como testemunha. Mas o jovem Inca continua sem se manifestar.
- Quem são os estrangeiros - reclama Villa Oma - para mudar as tradições que reinaram entre os Incas desde a fundação do império? Quem são eles para nos impor as leis e os deuses deles?
Anamaya fita o sábio, e sua raiva é substituída inexplicavelmente por uma calma soberana.
- Você se engana, sábio.
Durante toda a altercação entre a jovem e o sacerdote, Katari não abriu a boca, não se mexeu mais que Manco. Mas a essas últimas palavras, ele simplesmente vem se colocar ao lado de Anamaya, os longos cabelos tocando os
ombros da Coya Camaquen.
Villa Orna cospe de desprezo.
- Então, Manco?
Anamaya colocou toda a doçura possível em sua voz, mas não conseguiu evitar um tremor. A imagem passou diante dela num piscar de olhos - a daquela meninazinha que o condor levou, há muitas luas, ao topo da montanha que domina a Cidade Secreta.
Manco desvia o olhar.
- Os estrangeiros não devem ver nada - diz. - Mas... - Mas?
- ... mas meu reino não pode começar sem a capa cocha.
Anamaya não responde. Tenta fitá-lo, mas ele desvia obstinadamente o
olhar. Ela reprime as palavras de irritação e desagrado que lhe vêm à boca. A expressão capa cocha ressoa em sua cabeça como um eco terrível
enviado num estreito semicírculo de montanhas.
Enquanto eles deixam o templo, sob um céu enfim azul, o eco não pára de ressoar dentro dela.
A grande sala de La Cassana fervilha de gente. Os caciques locais, com suas túnicas coloridas e seus discos de ouro nas orelhas, circulam por perto dos soldados - uns sequiosos de alguma vantagem a aproveitar, alguma traição a fomentar, outros procurando informações para o sábio ou Manco. Outros ainda querendo as duas coisas ao mesmo tempo, e Gabriel, ao atravessar essa multidão, revê num piscar de olhos a corte de Toledo, esse nó de ambições e mediocridades. Natureza humana...
- Então, meu filho?
Na véspera de seu triunfo (pois é a coroação do Inca, mas também a vitória de Pizarro), o Governador parece enfim relaxar. Já não veste nem a armadura nem a cota de malha, e um colete carmim veio - incrível audácia! - se insinuar em seu eterno traje negro. Até o cabeção branco tem ares de primavera e as plumas no chapéu se agitam como se ainda pertencessem a um pássaro.
Dom Francisco afasta o grupinho que o cerca, onde Gabriel nota logo o olhar hostil dos irmãos e os sorrisos de Soto e de Pedro de Candia, para vir até ele.
- Não tenho visto você ultimamente.
- Dom Francisco, preciso lhe falar.
- E o que acho, efetivamente.
O rosto amigável e paternal não mudou, mas Gabriel sente um tom de ameaça na voz. Agradece silenciosamente a Bartolomé por ter-lhe avisado. Pizarro dá o braço a Gabriel e leva-o de volta para o grupo, apesar de sua reticência.
- Gabriel quer falar conosco - diz com um tom satisfeito.
- Eu disse que queria lhe falar.
- O que há para ouvir? As orelhas de meus irmãos seriam tenras demais? As do capitão de Soto, grandes demais?
Gabriel não se engana; as palavras, sob seu verniz agradável, prometem uma lição severa. Soto levanta uma apaziguadora mão e se inclina antes de desaparecer sem uma palavra e se retirar. Candia quer fazer o mesmo mas, com um olhar, Gabriel pede ao gigante grego que fique a seu lado.
- Só os traidores e os ladrões fazem um mistério assim - sibila Gonzalo.
Gabriel enrubesce com o insulto e leva a mão ao punho da espada.
- Cale-se, Gonzalo. Se você não fosse irmão do Governador, eu já o teria feito comer seus cachos de anjinho do diabo.
- Conheço você, bastardo! Meu irmão Hernando me falou de você e eu disse a você para tomar cuidado...
Gabriel olha de esguelha para dom Francisco. A palavra bastardo não o fez sequer pestanejar. Ele até parece estar gozando curiosamente a situação. Em volta deles, as conversas não pararam, e formou-se um círculo. Os dentes se arregaçam à espera do confronto. Gabriel vê o rosto de Sebastian fitando-o com amizade e uma ponta de preocupação.
- Vou corrigi-lo, garoto. E não serei clemente com você como fui com ele...
- Sei tudo sobre você, imbecil. Terei a sua espada e suas bolas. Terei a estátua de ouro que você guardou para você. E, depois, terei sua mulher de olhos azuis a quem abrirei as pernas para lhe mostrar o que é um verdadeiro caballero.
Sem esperar o fim da frase, Gabriel atira-se em cima de Gonzalo. Com um soco, arrebenta-lhe o supercílio, de onde jorra um fio de sangue. - Parem!
Ouve-se a ordem de Pizarro, mas Gonzalo está tão ansioso para lutar quanto Gabriel, e são necessários dois ou três homens e mais seu irmão Juan para segura-lo. Já não há nada de primaveril no olhar negro de Pizarro quando ele se vira para Gabriel.
Gabriel sente sua respiração como uma forja em seu peito. Desafia com o olhar o Governador, seu senhor.
- Gabriel, algum dia você vai deixar de agir como criança? Você tem todas as felicidades nas mãos: minha amizade, minha confiança e o respeito daqueles que o viram lutar. Por que teimar em perder tudo? - censura Pizarro. - O que importam as provocações de um homem por quem não tenho
nenhuma estima mesmo que seja meu irmão? Você me vê a mim, o Governador, procurar atrito com ele por causa das barbaridades que ele diz?
Com um movimento seco, Gabriel se desvencilha, olhando para Gonzalo, que enxuga como pode o sangue que escorre de seu supercílio.
- Tem razão, Senhor. Inútil falar à toa. Siga-me, já que faz tanta questão de saber onde guardo meu tesouro.
Quando ele dá um passo, todos fazem menção de segui-lo. Ele pára, apontando para os irmãos do Governador:
- Não, vocês, não! Dom Francisco, Candia e Sebastian. Ninguém mais.
Ele vira as costas sem esperar oposição ou aquiescência. Pizarro não deixa transparecer espanto. Ignora os protestos furiosos de seus irmãos e, com uma piscadela para Candia, segue atrás de Gabriel.
O dia cai. Pizarro e Gabriel não trocaram uma palavra desde que tomaram o caminho de Colcampata; eles entraram sozinhos na passagem. Na esplanada, Sebastian e Pedro de Candia aguardam, também quase sem falar.
- E aí? - diz o grego.
Sebastian não responde, a princípio. Depois: - Estou esperando.
Ò grego masca um pedaço de mecha que acaba cuspindo.
Quando Pizarro e Gabriel saem finalmente da passagem, os dois gigantes - o preto e o branco - viram-se para eles, o olhar interrogativo. Os
semblantes de Gabriel e Pizarro estão impenetráveis. Candia é o primeiro a não conseguir conter a impaciência:
- Então, Gabriel?
Gabriel aponta para Pizarro.
- Não há nada - diz o Governador. - Nada além dos degraus impossíveis que descem até uma passagem murada, alguns ratos e algumas cobras. - A estátua?
- Não tem estátua.
Os dois amigos contêm o suspiro de alívio que lhes sobe no peito. - Deixem-nos - diz Pizarro.
Candia e Sebastian se afastam. O silêncio entre o Governador e seu protegido ainda não foi quebrado. Gabriel deixa seu olhar se perder nas montanhas ao longe, douradas pelo poente.
- Não o censuro por ter me desobedecido, encontrando-se com ela - diz Pizarro com doçura.
Gabriel vira-se para ele sem responder.
- Não o censuro talvez nem por me mentir sobre essa estátua. Eu castigo os ladrões que apanho, mas sei que se tivesse que afastar os ladrões e os
mentirosos do meu exército, eu teria partido sozinho.
Ele se interrompe com uma risadinha seca. - Eu nem teria partido. Um sorriso passa pelo rosto de Gabriel.
- Não lhe censuro nada, afinal. Simplesmente tive um pouco de pena.
Não gosto de ninguém nesse exército, você sabe. Quer dizer, gosto desses homens em conjunto, quando falo com eles, quando eles lutam, quando ouço as vozes deles unidas para rezar. Mas, individualmente...
Um assobio desdenhoso sai de seus lábios.
- Ladrões e mentirosos, hipócritas, bêbados, criminosos, todos ou quase
todos, começando por meus irmãos. Acha que não sei?
Gabriel balança a cabeça.
- Mas você - diz Pizarro com um pouco de paixão, mas sem olhar para ele - eu reconheci e escolhi e... adotei!
A palavra quase faz Gabriel, que continua calado, se sobressaltar. Mas, no fundo de suas entranhas, a hostilidade acumulada começa a derreter.
- E você mentir, me esconder alguma coisa, isso me..
Ele gesticula com as mãos finas e brancas como para desenhar no ar a palavra que não encontra.
- Olhe, dom Francisco!
Com um instante de atraso, Pizarro acompanha com os olhos o braço de Gabriel.
- E aqui! E ali!
O braço de Gabriel gira como o ponteiro nervoso de uma bússola. O que os dois homens vêem no crepúsculo são colunas inteiras que, vindo de todas as direções ao mesmo tempo, convergem lentamente para Cuzco, desenhando no espaço inteiro das montanhas e do vale uma espécie de imensa rosados ventos humana.
- O que é? - pergunta o Governador estupefato. - Um exército?
Nunca se viu um exército avançar com essa ordem... - Nem com cães, lhamas, mulheres, crianças... - Então o que é?
Gabriel deixa seu ombro tocar o de Pizarro.
- É um espanto, dom Francisco.
Os dois homens voltam a mergulhar no silêncio, finalmente interrompido por Pizarro.
- Você achou a palavra, filho - diz com sua voz baixa. - Você me esconder alguma coisa também é um espanto.
Cuzco, 25 de dezembro de 1533
O som grave das trompas enche o vale inteiro. Ninguém sabe se há instrumentistas invisíveis respondendo-se mutuamente de encosta em encosta, ou se aquilo é simplesmente o eco que as montanhas não param de enviar umas às outras. A cada nota surda, embalada pelo movimento dos carregadores, Anamaya se deixa invadir pela emoção alegre e solene da festa.
Na partida de Coricancha, Villa Orna estremeceu de prazer quando Manco lhe deu a ordem de tomar o lugar de honra, logo atrás dele, e ao lado da liteira do Corpo Seco de seu Pai Huayna Capac.
De manhã, Anamaya deu essa idéia a Manco: de que a presença de seu Pai no Outro Mundo e a do grande sábio Villa Oma, o fiel de Atahualpa, prova que a coroação do décimo terceiro Inca não representa a vitória de um clã sobre o outro.
Anamaya se lembra quase achando graça da expressão de Villa Oma quando ela manifestou a idéia. Por uma fração de segundo, o rosto do sábio quase explodiu de fúria: como, mais uma vez, ela ousava falar como se dirigisse o Império! Depois, a verdade lhe bateu na testa e ele olhou nos olhos dela com um respeito irritado: A Coya Camaquen tem razão, admitiu simplesmente, reconhecendo mais uma vez (uma a mais!) que podia ter-se tornado a Segunda Pessoa do Império, mas a sombra dessa mulher estranha tinha mais peso que ele nas decisões do Único Senhor.
Anamaya também conseguiu que o lugar a seu lado na procissão permanecesse vago: era ali que deveria estar o Irmão Duplo, mas o desvario dos estrangeiros, sua falta de escrúpulos, torna impossível seguir a tradição. Terminada a coroação, eles seriam capazes de se apoderar do Irmão Duplo e enviá-lo para ser fundido no palácio do Governador.
Essa idéia a aflige e, mais que nunca, a aceitação de seu destino a deixa serena.
Na lenta subida de Coricancha para a Aucaypata, a multidão fica mais compacta e a procissão diminui o passo. Anamaya ouve os cantos e as danças, mas também, e sobretudo, cada vez mais, o clamor da multidão que reconhece o Inca. Manco? Seu pai? Sem vaidade, Anamaya se orgulha de que, por uma vez, a primeira em luas e luas, a paixão de quase todas as tribos indígenas possa se voltar para uma mesma e única direção. -
A guerra que Quizquiz e Guaypar teimam em travar no norte parece pertencer a outro tempo, que se afasta e se encolhe - a outro mundo. Curiosamente, o rosto de Guaypar aparece muitas vezes em seus sonhos, sempre virado para ela, impassível e severo, com esse ar de ameaça e desafio, essa cólera que vibra em seus olhos; mas, com o tempo, os traços ficam mais indistintos e às vezes se apagam, como a água faz desaparecerem as pegadas na areia.
Anamaya sente em seu corpo, como uma espécie de carícia, o ímpeto dos tambores, o movimento que leva a multidão como uma onda que vem quebrar em todo o vale.
Depois, sua expressão se entristece de repente, e ela tem que fechar os olhos com o impacto da dor que lateja em seu crânio. Gabriel.
As ricas cortinas de cor que a protegem, os travesseiros de plumas, o búzio de sua liteira que flutua, levada pelo mar de homens - ela já não vê beleza em nada disso, nem paz, nem nenhuma forma de esperança, apenas uma agitação que a deixa com uma febre inquieta.
Gabriel.
Murmura o nome dele, repete-o num tom de voz cada vez mais alto.
E quando a procissão chega à Aucaypata, numa algazarra onde é impossível distinguir os gritos, a cantoria, os tambores e as trompas, ela grita o nome dele com toda a força de seu peito.
Durante toda a missa, Gabriel não tirou os olhos de Bartolomé, que celebra ao lado do bispo Valverde. Esteja ele abrindo o livro santo para ele, oferecendo-lhe o cálice, por mais profundas que sejam sua discrição e sua humildade, não se pode deixar de reparar em sua autoridade na calma precisão de seus gestos bem como na luz que emana de seus olhos cinzentos.
Há uma curiosa mistura de recolhimento e excitação na grande sala de La Cassava, transformada por ora em nave de igreja. Nos preparativos, Gabriel viu soldados trazerem dois lhamas de ouro: cobertos com uma tábua, depois com uma discreta toalha branca, eles fazem um altar bastante apresentável. O bacharel de idéias livres não consegue deixar de pensar, com um sorriso, que o bezerro de ouro passeia até o fim do mundo.
Todos os espanhóis estão reunidos, e também muitos índios - os que já se converteram por medo ou oportunismo ou os que vieram por uma espécie de curiosidade ver de perto a que deuses os estrangeiros devem sua força.
Ao fundo da grande sala, na linha desse altar improvisado, foram fabricadas as primeiras portas e as primeiras fechaduras de Cuzco para guardar a sala do tesouro. Atrás do ouro, mais ouro e prata... Nas paredes, dezenas de tochas foram acesas, evocando a imagem da iluminação de uma catedral da Espanha. A direita do altar, a única imagem religiosa do lugar é uma Virgem de madeira policromada - a que Pizarro já tinha em Cajamarca e que o acompanha por toda parte.
Os olhos dos homens também brilham. Estão felizes de cantar os salmos cujas palavras eles repetem sem compreender nada. E rogam com um fervor único que Deus lhes dê uma boa, uma grande parte na porra desses tesouros que lhes escorrem entre as mãos há tantos dias enquanto o Governador - paz a sua Grandeza! - só diz: "Amanhã, amanhã..." Bem, amanhã começa hoje.
Alonso diz a si mesmo que merece mais que Diego, e Cristobal, o cavaleiro, acha que deveria ter o dobro de Pedro, o soldado de infantaria... No entanto, por mais que eles sejam gananciosos, olhando para seus rostos iluminados pelas chamas das tochas e do desejo, Gabriel entende o que Pizarro quis dizer ao falar de sua admiração por eles. Brutos e grosseiros, sem dúvida, mas cheios de coragem, incansáveis, animados por uma fé de criança.
Quando Valverde dá a bênção final, o olhar de Gabriel procura Pizarro. Toda a multidão olha para o bispo, mas dom Francisco tem o olhar perdido na direção da Virgem. Sem ver seus lábios, Gabriel sabe que, mais uma vez, ele reza para ela e lhe rende graças.
Nesse instante, sente os olhos cinzentos de Bartolomé pousados nos seus, e se. perturba como se tivesse sido flagrado cometendo um pecado, feliz com o pretexto da onda que leva seus companheiros para a saída.
Pizarro à frente, eles saem do palácio numa confusão alegre. Espanhóis e índios, fidalgos e yanaconas, ricos e pobres. Abrindo caminho entre a multidão dez, l00 vezes maior que veio receber o Inca, dirigem-se para o centro da praça. Gabriel fica, por acaso, alguns passos atrás de dom Francisco, espremido entre Candia e Sebastian.
O sol é magnífico e o céu de um azul puro, intenso e profundo.
O que todos vêem é Manco no traje do Inca, sentado em sua tiana, esperando o Governador como um rei espera um vassalo; é o conjunto das múmias que voltaram, em cima de seus pedestais de ouro; é o sacerdote Villa Orna e seu comprido vulto rígido e hostil; são os braseiros que começam a fumegar e as jarras de chicha.
Gabriel vê isso tudo, mas seus olhos fascinados seguem com obstinação uma borboleta branca perdida na cerimônia e que vem voar sobre as cabeças dos poderosos antes de ir embora numa espiral de fumaça.
Ele procura Anamaya, mas não a encontra.
- Lembra-se, Vossa Graça?
Ele não precisa se virar para reconhecer a voz. Não precisa responder para deixar as lembranças fluírem. Sente na boca o gosto acre e delicioso de uma tigela de vinho ruim, vê a tabuleta "Ao pichel livre" e dois gigantes sentados à mesa esperando uma aventura que veio e arrastou todos eles para mais longe do que jamais haviam sonhado.
De repente, sente uma forte mão procurar e segurar a sua. É a de Sebastian. Gostaria de ver seus olhos, mas o gigante negro teima em olhar para a frente, para o grupo dos senhores Incas.
Tudo o que consegue surpreender é um sorriso oblíquo, amigável, caloroso, enquanto essa mão tritura a sua.
O olhar de Bartolomé abraça num só movimento a assembléia dos nobres Incas - Manco, naturalmente, em sua tiana de ouro, recostado em almofadas, os pés esticados em cima de preciosos tecidos, mas também o sacerdote de rosto comprido cujo banco é de prata, e todos os caciques que estão sentados em níveis decrescentes, em tronos de estanho, depois de madeira, de bambu e, finalmente, de palha.
Ele não pode deixar de se impressionar com a beleza desta ordem do mundo, cheio de uma harmonia de cores e de metais preciosos, com a nobreza e a altivez dos rostos.
Bem à sua frente, Pizarro, em seu traje de veludo de seda, a espada de gala ao lado, parece-lhe quase ter o porte rústico de um funcionário de província. Está espremido dentro de roupas apertadas demais para ele, e o cabeção de renda branca não esconde a magreza de seu pescoço.
No entanto, não há insegurança nenhuma no tom de sua voz quando ele se dirige a Manco.
- Poderoso Senhor, viemos aqui como amigos, guiados pelo Verdadeiro Deus...
Enquanto Felipillo traduz, Bartolomé procura entre os índios o rosto de seu novo amigo. Não o vê, e essa ausência lhe provoca no estômago uma desagradável sensação.
- ... e como reza a nossa lei, agora vão ouvir a leitura do requerimento. Pedimos que diga que compreendeu e acata essa leitura, você e os nobres de seu conselho. Depois disso, seremos amigos para sempre, e você terá conquistado nossa proteção contra seus inimigos.
Manco balança imperceptivelmente a cabeça em sinal de compreensão, e Pizarro faz um sinal a Pedro Sanchez de la Hoz.
Pedro é famoso entre os espanhóis por sua voz azeda e sem força. É um mistério e motivo de chacota entre eles o fato de Pizarro o ter escolhido para ler uma proclamação dessa importância. Seu tom ainda está mais apagado que de costume. Para garantir que as palavras sejam ouvidas? Para que os Índios tenham fugido antes do fim da leitura?
As palavras são como pedras pesadas e majestosas. No entanto, a voz que as transmite lança-as como se fossem pequenos seixos ridículos.
- Da parte do Imperador e rei dom Carlos e de doña Juana sua mãe, reis de Castela, Leão, Aragão, das Duas Sicílias, de Jerusalém, Navarra, Granada, Toledo, Valença, Galícia, Majorca...
A cada novo nome, a voz de Pedro tenta em vão se encorpar, carregar-se de todas essas províncias, de todas essas regiões...
- ... condes de Roussillon e Cerdanha, marqueses de Oristano e Gótia, arquiduques da Áustria, duques de Borgonha e Brabante, condes de Flandres e do Tirol. A vós, soberanos dos povos bárbaros do Peru e a vós seus súditos, notificamos e fazemos saber como melhor podemos que Deus Nosso Senhor, Único e eterno, criou o céu e a terra.
A voz de Pedro não é mais solene que a de Felipillo, desagradável e rouca.
Bartolomé é acometido de uma vontade que o perturba e à qual é difícil resistir.
Tem vontade de rir.
- ... por causa do grande número de gerações nascidas desde que o mundo foi criado há mais de cinco mil anos, tornou-se necessário que alguns homens fossem de um lado para o outro da terra, e que se dividissem em muitos reinos e províncias. Dentre toda essa gente, Deus Nosso Senhor encarregou um homem que se chamou São Pedro de ser o Senhor de todos os homens do Mundo...
Quando seus olhos encontram finalmente os de Katari, Bartolomé se dá conta de que o índio já o observa há algum tempo, sorrindo. Não é um sorriso de mofa, antes de interrogação, como que pedindo: "Você me dirá o que significam essas palavras estranhas..."
- Por conseguinte, e como melhor podemos, rogamo-vos e intimamo-vos a bem compreender o que acabamos de dizer...
Interminável, o requerimento se arrasta, e as palavras "fé católica" e "tergiversações maliciosas", "majestades" e a promessa da ajuda de Deus repicam nas paredes dos palácios, escorrem com a água do chafariz.
Por diversas vezes, quase constrangido, Bartolomé desvia o olhar de Katari; mas quando torna a encará-lo, vê que o índio continua fitando-o com um olhar amigável e cheio de dúvida.
- ... mas se não o fizerdes, certificamo-vos que com a ajuda de Deus vos enfrentaremos com força e vos faremos guerra em toda parte. Submeter-vos erros ao jugo e à obediência da Igreja e de Suas Majestades; apoderar-nos emos de vossas pessoas, de vossas mulheres e vossos filhos e os escravizaremos; vende-los emos como tal; tomaremos os vossos bens e vos faremos todo o mal e todo o dano que pudermos, como vassalos que não obedecem, que não querem aceitar o Senhor, resistem e se opõem a ele. Declaramos com veemência que os mortos e os prejuízos daí decorrentes seriam culpa vossa e não de Suas Majestades, nem nossa, nem dos cavaleiros que estão conosco.
Ao longo da tradução, Bartolomé vê o to de Katari se entristecer e sua expressão mudar, até ficar marcada por uma profunda incredulidade. Quando, por sua vez, deseja enviar-lhe um sinal de amizade que limite a violência que emana dessas palavras, já não encora mais o olhar do amigo.
Pizarro aproxima-se de Manco e se inclina como se para banco, mas o Inca permanece imóvel em seu banco.
Enquanto o porta-estandarte ergue por duas vezes o estandarte real, as trombetas começam a tocar.
Finalmente, Manco se levanta.
"Ela não está ali."
Durante toda a cerimônia, Gabriel se sente perdido na imensa praça, perdido no meio dos seus, perdido diante dos rostos impenetráveis dos índios, enquanto zumbem em seus ouvidos as palavras do requerimento.
Ela não está, e ele não consegue pensar em mais nada, nem sentir, ver ou ouvir mais nada.
O último abraço continua nele como uma queimadura que não se apaga, um sofrimento que não cessa, uma vontade que o faz lamentar não ter sido ainda mais violento, mais do que ela pedia, mais violento que seu medo... Violento? Ele se espanta e se emenda: antes terno, de uma ternura infinita, com carícias pelo corpo todo, dizendo aquelas palavrinhas que não têm nenhum sentido e no entanto fazem toda a recompensa do amor.
De quando em quando, uma brisa faz esvoaçarem os panos das túnicas, os suntuosos adereços de plumas, os grandes leques...
De quando em quando, uma trompa ecoa pelo vale...
De quando em quando, um raio de sol vem pousar no ídolo do Sol que foi descoberto pelo sacerdote Villa Oma no centro da praça, bem ao lado do chafariz.
De quando em quando, ele julga surpreender um movimento na impassibilidade das múmias que, uma a uma, majestosas em seus tronos de ouro, cada qual cercada por uma multidão de riquezas, chegaram à praça, como se todo o passado pudesse presidir ao presente.
Mas Gabriel só sabe de uma coisa: quem ele ama não está ali, e sua solidão é extrema, seu sangue ferve de impotência. Ele fita Manco com uma espécie de ódio frio, murmurando silenciosamente palavras de provocação e desprezo, xingando-o, convocando-o a duelos atrozes. Mas Manco não olha para ele, como não olha para Pedro Sancho de la Hoz a declamar, como não olha para Felipillo: seus olhos não deixam Pizarro.
Quando Manco se levanta e Anamaya finalmente aparece atrás dele, sua boca se abre como para gritar, e ele precisa morder os lábios para não fazê-lo.
Pizarro cumprimenta cada um dos Senhores Incas, e começam a irromper gritos e cantoria de toda parte, de cada canto da praça, das ruas e dos palácios, do vale inteiro, das montanhas e talvez de mais longe ainda.
É uma alegria, uma alegria absurda, uma esperança não se sabe de que - mas, no tremor que se apoderou de seu corpo, Gabriel também está cheio de alegria e de esperança, ainda que o ciúme continue dentro dele como um veneno poderoso.
A terra inteira começa a se movimentar para uma festa que deve durar várias noites e vários dias, uma festa que deve engolir todos os medos e todas as guerras.
Quem está sendo coroado? Quem triunfa?
Que importância isso tem?
Tudo começa a dançar.
Gabriel e Anamaya estão imóveis, cara a cara, sozinhos e juntos. Não sabem nada, mas seu amor tudo sabe.
Cuzco, janeiro de 1534
As noites se sucedem e se parecem. São cheias de gritos e cantos, de bebedeira e festins. Na Aucaypata, como nas outras praças da cidade, nos palácios e nas canchas mais afastadas, as jarras de chicha se esvaziam e se enchem num balé incessante, os braseiros ardem de manhã à noite: alimentam vivos e os mortos. De tanto se ver as múmias saírem dos templos e chegam à praça, sentadas em seus tronos de ouro, cercadas e assistidas, acaba-se vindo o murmúrio de suas vozes, o eco de sua antiga força.
Até Gabriel ouve.
As múmias falam da lenda do Império, de combates furiosos, de deuses e se mostram, de inimigos vencidos - falam do sol e do raio, da solidão montanhas onde o ar é rarefeito e onde apenas o condor aparece.
Desde o dia da coroação, ele não tornou a ver Anamaya e paira nessa festa perpétua uma frustração que se torna irritante e o deixa de mau humor.
Em La Cassana, os conciliábulos entre o Governador, seus irmãos, Soto Almagro empestam o ar desde de a manhã até a noite. O que pouco importa verdade, pois ele já não é mais bem-vindo ali. Desde o caso da estátua desaparecida, o próprio dom Francisco passou a evitá-lo tenazmente. Sua “traição" fez dele um pária, por assim dizer, bem feliz: ele não tem nenhuma atenção de participar dessas ridículas comemorações. Só que precisa ocupar dias para pelo menos não se afogar no desespero para onde o atrai a ausência de Anamaya. Então, anda de um lado para outro, percorre essa cidade tão estranha, reservando seu sorriso para as crianças e as velhas, como o estrangeiro que é, até para seus próprios amigos.
- Gabriel!
A voz o sobressalta e ele leva instintivamente a mão à cinta. - Quem é?
- Ei, amigo, sei que lhe ensinei bem a arte do ataque e da finta, mas não quero ser alvo disso, a menos que seja absolutamente necessário!
Onde havia duas sombras ameaçadoras, Gabriel vê afinal os vultos imensos mas amigáveis de Pedro e Sebastian.
- Perdão, meus amigos, eu procurava...
- ... nos evitar, por Nossa Senhora! Você não faz outra coisa!
E o grego que censura amigavelmente, mas nem o sorriso largo e a benevolência o aquecem.
- Nós procuramos - emenda Sebastian - um remédio para o seu langor, e achamos que encontramos...
Apesar do mau humor, Gabriel não consegue conter toda a sua curiosidade.
- E qual é esse antídoto poderoso? Sêmen de condor? Bosta de lhama? - Muito melhor que tudo isso! Venha, pare de resmungar e venha conosco...
Após um momento de hesitação, Gabriel os acompanha.
A cancha está às escuras, mas ouve-se a voz das mulheres escapando dos aposentos como cantos de pássaros.
Gabriel faz um movimento de recuo, mas seus dois amigos o arrastam com uma palmada nas costas e ele se deixa levar, como que entorpecido.
O aposento onde eles entram é caloroso. Não há ali, como no interior das casas Incas, nenhum móvel, mas uma riqueza de cortinas, de esteiras, de cobertores de lã e plumas coloridas. Há sob tudo três jovens que se calam quando eles entram, mas cujos sorrisos largos em que já conhecem seus dois companheiros e que não têm medo de ser apresentadas a ele.
Estão vestidas com túnicas coloridas que cobrem jovens formas promissoras. Suas pernas nuas até os joelhos mostram clarões dessa pele de mel que agrada aos espanhóis.
- Estamos em campanha - diz Sebastian com uma falsa solenidade - contra a barbárie que em nossas fileiras leva o vulgo a forçar as jovens... Tendo ouvido que o requerimento foi bem recebido pelo Inca e sua gente, iniciamos um movimento visando ensinar a verdadeira galanteria do caballero à população local...
Gabriel não consegue deixar de sorrir. Pelo alvoroço das jovens em volta deles, a lição rendeu frutos precoces. Mãos macias pousam em seus ombros convidando-o a sentar-se com seus amigos em uma das esteiras cujas mantas prometem uma indolência deliciosa.
- Eu não... - começa ele timidamente.
- Fique quieto e deixe a coisa por nossa conta - diz Pedro.
De fato, é muito agradável deixar as coisas correrem. Por que querer se esgotar numa luta incessante e vã com um destino adverso? Reina no aposento um calor suave, as jovens se agitam em volta deles num balé bem sincronizado, trazendo-lhes bebida em copos de ouro e murmurando em suas línguas que os estrangeiros são bem bonitos e rijos, entreolhando-se e soltando risadinhas como todas as jovens do mundo, com uma espantosa liberdade.
- Não quero ser sacrílego - comenta Candia persignando-se - e o reverendo Valverde que me perdoe, mas acho que o paganismo tem qualidades.
- Disso, meu amigo - replica Sebastian -, eu sabia desde que nasci. - Sim, mas os anos entre nós, o serviço de dom Diego Almagro, o ?batismo, uma espada... tudo isso transforma você em homem... Olhe essas vens. Não se pode dizer que alguma espécie de interpretação errada dos livros sagrados as incitasse a resistir a nós...
- Eu diria mais, meu caro Pedro, parece que elas leram outro tipo de livro onde se dizia que deviam nos encontrar e nos conhecer...
Sorrindo sem querer, Gabriel os ouve. O cansaço, a decepção, a ligeira embriaguez que se apodera dele - tudo o arrasta para um mundo onde dei-se estar nos braços de uma jovem que lhe sorri é a única filosofia, a única rança que vale.
Mãos hábeis já desabotoam os gibões e as camisas de seus dois amigos ficam de torso nu. Ele entrevê a musculatura forte de Sebastian e a de Pedro de Candia, esta mais fina porém não menos imponente. Depois, sente par de olhos negros fitando-o, olhos jovens, inocentes, interrogativos, cheios de uma promessa que não dá margem a nenhuma dúvida. - Você é bonita - diz ele em quíchua. A jovem não manifesta nenhuma surpresa ao ouvi-lo falar sua língua. olhar só fica mais intenso, mais carinhoso, e seus lábios entreabertos deixam entrever uma fileira de dentes brancos delicadamente cinzelados, dentes que tanto podem dar mordidinhas leves como morder realmente.
Ela desliza, agachada, para a esteira, até tocá-lo, mas detém-se sem que ele tenha esboçado um gesto, quando está quase encostando nele. Ele sente um aroma de árvores e flores, e fecha os olhos para melhor absorver o perfume, deixá-lo penetrar em seu corpo e irrigá-lo.
O crepitar de um pedaço de lenha ardendo no fogo, uma risada abafada, só há o silêncio dos prazeres, cheio de paz e abandono. A mão da jovem toca sua testa, desce péla aresta de seu nariz, onde pára na imperceptível cicatriz de uma antiga discussão, demora-se em sua boca... Ele fica de olhos fechados, e seus lábios, apesar do desejo que sobe dentro dele, não a beijam. Sua respiração acelera, e parece-lhe que seu peito e seu corpo todo crescem brutalmente quando ela desabotoa sua camisa e pousa as mãos em sua pele que esquenta, queima, pede... Meu Deus, diz ele para si mesmo com espanto, como a desejo...
Mas que em meio a suas sensações, ao abandono de seu instinto, uma palavra, uma idéia tenha vindo se insinuar é algo que o perturba. Ele tenta espantar essa idéia como se espanta uma mosca, mas, ao contrário, ela se instala e ressoa, chama outras. Anamaya, Anamaya, você foge de mim, mas não foge, você me escapa, mas não me escapará... Enquanto ela descobre seus ombros e ele sente, sabe que está rijo e retesado de desejo e até quer estar assim, abre os olhos.
Vê o aposento, seus dois amigos já mergulhados numa onda de carícias - e essa jovem sempre olhando para ele, os olhos semicerrados, como observando através de persianas. Segura as mãos dela, e ela deixa. Sempre essa ausência de espanto, sempre esse abandono... O que você quiser você vai ter, qualquer coisa... Essa liberdade, essa força o fazem sorrir e lhe parecem violentamente ridículas.
Ele a levanta da esteira e a coloca à sua frente. Afaga seus cabelos e ela ronrona como um gato, fechando os olhos também. Ele se levanta, ajustando a camisa nos ombros, e a deixa aconchegar se a ele.
Ele balança.
Dança uma música silenciosa que o arrasta a violência do desejo para a ternura, suavemente, sem apressá-la mais do que ela apressou. "Quero você", murmura para si mesmo, "mas não tanto quanto quero e era-la... Ah, como essa espera é terrível! Mas, graças a você, sei que nada é mais do que essa espera..."
Lentamente, seu corpo relaxa, e quando ele a afasta de ela lhe sorri.
- Você é bonita - repete, e seus olhos terminam a frase e ele interrompeu -, você é bonita, mas...
Com a mão, joga-lhe um beijo que ela recebe com o mesmo olhar sem espanto, e ele sai do aposento, atravessa a cancha, entra na rua onde sorve o ar dos Andes a plenos pulmões.
É nesse instante que começa a apanhar.
Por um breve instante, seu corpo se recusa a sentir qualquer outra coisa senão o calor do aposento que ele acaba de deixar, o toque das carícias, a intensidade do desejo e essa doce e maravilhosa leveza que se apoderou dele. Depois, com a sucessão de socos, a violência o abala, e sua impotência faz a raiva subir dentro dele e as lágrimas lhe brotarem nos olhos.
São quatro homens - dois agarrando-o por trás e se contentando em segurá-lo, apesar de seus esforços furiosos para se desvencilhar, e dois batendo, desferindo socos e pontapés, com regularidade e método.
Não há nenhuma palavra, nada a não ser a respiração e os gemidos dos contendores, com esse barulho estranho que ele custa um pouco a identificar: é o estertor que já lhe sobe do peito, o estertor de sua fraqueza, o esgotamento inútil de seus esforços para fugir ou escapar do sofrimento da surra que está recebendo.
A noite protege a cara de seus agressores, que ainda por cima tiveram o cuidado de cobrir o nariz e a boca com um lenço; ele só vê intermitentemente o turbilhão de olhos negros.
Na lassidão que se apodera dele, uma névoa vermelha passa diante de seus olhos: é o sangue que escorre de sua cabeça e o cega, misturando-se às suas lágrimas, a seu suor, à secreção de seu nariz... Alguma coisa de imbecil e vital, no fundo de suas entranhas, o impele a não desfalecer, a continuar lutando... Lutando? Alguns movimentos desordenados, alguns gestos tão eficazes quanto os de uma rã - no entanto, uma recusa que os deixa mais encarniçados.
Pedaços de frases, lembranças de lógica passam por sua mente. "Se quisessem me matar..." Se quisessem matá-lo, ele já estaria morto, a cabeça rachada, a espada a quatro passos dele.
É assim, lutando mesmo quando já não se mexe mais, que desmaia. Julga ver, pairando sobre seu rosto como um anjo do mal, os traços encantadores e sorridentes, os cachos louros e bem arranjados de Gonzalo.
Mas essa visão precede mesmo sua perda de consciência? Ou é a primeira imagem do pesadelo que o leva?
Ele jaz, como um bêbado no meio da rua.
Mas o que escorre do canto de seus lábios para o riacho e sangue.
Cuzco, janeiro de 1534
- Meu pobre amigo...
O olhar de Pizarro pousado nele é um misto de ironia e tristeza, de desprezo e piedade. Gabriel sente que nenhuma parte de seu corpo foi poupada, mas não teve coragem, desde que conseguiu se arrastar até o palácio de La Cassava, de se olhar num espelho.
- Você esteve com Juan de Balboa?
- Não se preocupe comigo, dom Francisco, não preciso do cirurgião... - Eu não saberia dizer de que você precisa mais, filho... De conselhos? Conselhos não lhe faltariam, se você os ouvisse...
O Governador cuida para que seu quarto seja sempre igual, por onde quer que passe, esteja ele instalado num palácio ou numa tenda. Uma cama estreita, uma mesa e duas cadeiras, um quadro de sua querida Virgem Santíssima. Ele faz sinal para que Gabriel se sente, mas o jovem só consegue ficar em pé, moído de dor.
- Então, já que você não ouve nada, vou escutá-lo.
- O senhor nem sequer me perguntou o que me deixou nesse estado, dom Francisco.
- E preciso perguntar?
Um vago sorriso desprovido de ironia ma o rosto magro do Governador. - O senhor não precisa perguntar por u a simples razão: é que já sabe. - Estaria você me acusando?
- Acusando-o, dom Francisco... Palavra de honra o sei como me referir ao que recrimino no senhor...
- Diga, isso lhe evitaria o trabalho de fazer essa referência.
- Seus irmãos, dom Francisco, seus irmãos...
Só de falar neles, Gabriel empalideceu. Raça imunda de irmãos de merda...
- Então, meus irmãos? - pergunta calmamente Pizarro, que finge ignorar a raiva de Gabriel.
- Não contentes de serem ladrões e não serem mais humanos que um porco, dom Francisco, não contentes de desonrar seu nome pela covardia, a ganância, a hipocrisia...
Gabriel quase se engasga com sua ladainha e Pizarro ergue a luva negra para interrompê-lo.
- Não fale mais nada, rapaz. Nem uma palavra mais.
Os dois homens se enfrentam com o olhar. Gabriel treme.
- Quero perdoar você - diz lentamente Pizarro, num tom neutro. - Eles lhe aplicaram um corretivo severo e você está falando movido pela humilhação...
- A humilhação é que me autoriza a lhe dizer uma verdade que todo mundo comenta e todo mundo esconde do senhor.
Pizarro dá uma gargalhada seca.
- Acha que não os conheço? Acha que não sei por que estão comigo e o que esperam? Acha que cheguei a Cuzco cego pelos laços do sangue?
- Há muito tempo que lá não sei mais no que acredito, dom Francisco - diz Gabriel com uma amargura que não consegue conter.
- É isso, rapaz, é isso mesmo: você perdeu a cabeça desde que viu essa jovem sacerdotisa de olhos azuis, desde que se dedicou a não sei que manobras com essa estátua de ouro... você passou a ser governado pelas emoções e não pela cabeça e depois disso, insulta meus irmãos.
A contragosto, Gabriel não reage ao choque. Pizarro toca num ponto onde ele sabe que as coisas não estão totalmente claras. No entanto, como já constatou muitas vezes, e nesse momento que recobra a calma e a lucidez, do mesmo modo que no coração das batalhas.
- Admito que tem razão, dom Francisco. Mas em sua razão, e até na minha confusão, é o senhor que continua errado...
- Explique isso.
- O senhor acha que seus irmãos são um mal necessário mas limitado, que os comanda sem problema, como faz com dom Diego Almagro e todos os homens que o seguiram. O senhor é superior a esses homens. Tem mais resistência, coragem, procura algo que está além e acima do ouro. Acha que sua mão não treme: o senhor e um chefe e eles são cães que mordem. Nisso tem razão. Mas não vê que esses homens, seus irmãos, dom Diego, estão prontos para se virar contra o senhor e só esperam um momento de fraqueza para fazer isso...
- Meus irmãos?
- Seus irmãos não o atacarão; mas lhe farão tanto mal que será como se lhe dessem socos ao lado dos quais os que recebi seriam carícias femininas.
Por uma vez, o rosto de Pizarro revela um ligeiro espanto, uma espécie de vaga perplexidade que não está entre seus hábitos. No silêncio que se instala, os dois homens continuam se fitando. Em seu olhar, passa toda sua estranha história - e esse elo do coração que os une, contra sua própria vontade, dir-se-ia as vezes.
Dom Francisco abre finalmente os braços.
- É que você gosta muito de mim, afinal.
- Com certeza, dom Francisco.
O rosto do Governador se ilumina.
- Com certeza... Isso é bem do aprendiz! Ora, não tem importância. Vou ajudá-lo, filho.
- Me ajudar?
- Salvá-lo, até!
Gabriel ouve o Governador sem interrompê-lo mais. Enquanto ele fala, sente-se derrotado, apanhando mais do que com os socos.
E quando sai, titubeando, do palácio de La Cassava, a luz o ofusca e ele vai tateando até o chafariz.
Quando começa a chover, fica só. O dia passa. Ele não se mexe. A umidade, o frio, o calor que volta, a dores instáveis - nada o afeta realmente senão essas palavras que ecoam em sua memória. O crepúsculo se aproxima. Camaradas passam, olham para ele com pena ou escárnio. Alguns o chamam. Ele ignora os sussurros. Fica obstinadamente olhando para cima: as montanhas, a fortaleza, cuja sombra que vai se pondo c m o sol ele acompanha. Ele desliza, sempre imóvel, para o frio da noite. Uma tocha se aproxima dele e ilumina seu rosto. Ele levanta a mão para se proteger do ofuscamento.
- Quem me quer bem? - brinca ele.
- Eu.
- Você é como o outro querendo me salvar?
Bartolomé não responde. Pega seu braço delicadamente e o puxa. Gabriel não resiste; desde ontem não fez outra coisa senão resistir. Resistir aos olhos negros da jovem, resistir aos socos e pontapés, às palavras do Governador. Está farto de lutar contra tudo e contra todos.
Atravessam o palácio de La Cassava com passos lentos e, como se guiasse um enfermo, Bartolomé o leva até seu quarto.
Uma vela magra os ilumina, deixando reflexos de um amarelo pálido dançarem em seus rostos. Gabriel deita-se com todo o cuidado, contendo os gemidos que sobem de seu corpo dolorido. Bartolomé senta-se na cama e pousa os dois dedos colados em seu peito. Gabriel deixa. Quando sua respiração se acalma, Bartolomé finalmente abre a boca.
- Então? - pergunta.
A tristeza de repente sufoca Gabriel, apertando-o dos pés à cabeça. Ele gostaria de falar, mas não consegue, e toda sua solidão, sua impotência, sua raiva, tudo se empurra entre seu coração e seus lábios. Ele se sente uma torrente de soluços incoerentes.
Bartolomé o deixa chorar sem uma palavra. Só sua mão e seus olhos cinzentos pousados nele, amigáveis e curiosos, o acalmam.
- Que guerreiro! - diz finalmente Gabriel.
- Quem diz que os guerreiros não choram?
- Você fala bem, irmão...
Bartolomé contenta-se em sorrir.
- Ele disse que eu devia segui-lo. Que logo deixaria Cuzco para fundar a capital do reino e que precisava de mim. Disse que, se ficasse em Cuzco, eu morreria e que, morto, eu não serviria para ninguém. Disse que, se eu ficasse em Cuzco, ela morreria porque seus irmãos não recuariam diante de nada ata saciar sua sede de vingança... Disse que isso era uma ordem para mim.
disse que voltaríamos um dia...
- O que vai fazer?
- Você é engraçado, irmão. Vou obedecer, claro. Porque ele tem razão, porque achou palavras detestáveis e justas. Ele sabe que não tenho medo de seus irmãos malditos. Mas também sabe que temo mais por ela que por minha vida.
- O que posso fazer por você?
Gabriel ergue um olho espantado para Bartolomé. - Por mim? Nada. O que queria fazer por mim? - O que me pedisse...
- Só isso! Meu irmão, o Senhor lhe dá acesso a esses caminhos mais impenetráveis...
- Diga.
Bartolomé continua sorrindo. Gabriel sonha em voz alta. - O que eu queria... O que eu queria...
- Vou tentar - diz Bartolomé.
Gabriel abre a boca estupefato.
- Como...
- Não é isso que você quer? Eu vou tentar, pode acreditar.
O frade se levanta e desaparece com a vela antes que Gabriel tenha tido tempo de dizer o que quer que seja.
Kenko, janeiro de 1534
Gabriel não sabe por quanto tempo seguiu o Anão.
As vezes, é tomado por uma espécie de sonolência e não sabe bem se caminha ou se o caminho se desenrola sob seus passos, como uma espécie de fita sobre a qual ele deslizaria, puxado por uma invisível mão.
De início, seu espírito não conseguia deixar de arquitetar hipóteses. Colcampata, a fortaleza? E depois as casas desapareciam, os muros rareavam, ele deixava para trás as torres de Sacsayhuaman. Essa direção do nordeste que ele estimou no início não tem mais muita importância. Avançando com os braços à frente, ele tem a estranha sensação de nadar entre as estrelas. A noite é grande, larga, infinita - traga a terra.
Seus ferimentos o deixam em paz, suas dores estão adormecidas. Que engraçado é o homem, filosofa ele mancando: de manhã, desesperado e, mal a noite lhe abre suas promessas, sentindo-se livre, quase despreocupado.
Mesmo a certeza da partida não parece mais tão cruel: amanhã, mais tarde... A verdade se acha em algum lugar no coração dessa noite, e não nas ameaças do Governador.
Ele não sabe onde, mas, subindo mais alto que Cuzco, tem a impressão de estar em outro mundo. É o ar mais rarefeito, é a ausência de árvores e a pedra que predomina nas colinas que se arredondam, é a noite líquida... Ele é um viajante do espaço e do tempo e acha que compreende a presença dos deuses.
O Anão não abriu a boca, não respondeu a nenhuma de suas tentativas
de puxar assunto. O Anão é, talvez, o primeiro habitante desse outro mundo, para o qual está indo.
Quando ele sai repentinamente da estrada, Gabriel o segue sem hesitar para um afloramento rochoso cuja extensão só vê no último instante: uma espécie de anfiteatro natural, em volta do qual há nichos escavados que lembram os dos templos e dos mais belos palácios. Quando se vira, o Anão sumiu.
No centro, um rochedo do qual ele se aproxima e diante do qual fica de pé atrás. Não sabe o que representa, mas sente palpitar toda sua força.
- A mão de um homem passou pela pedra. Mas foi um deus que nasceu. - Achei que não a veria mais - diz simplesmente Gabriel. Uma risada lhe responde.
- Você ainda não está me vendo. Siga-me...
Para onde quer que olhe, Gabriel na verdade só vê uma sombra dançante que o leva por uma ladeira suave para uma gruta escavada na colina. - Anamaya...
Ele hesita na entrada da gruta a que se tem acesso por largos degraus de pedra.
Ele desce alguns degraus e pára na escuridão mais negra que a noite. Vai tateando à procura de um obstáculo, mas só encontra uma umidade fria, que sobe das entranhas da terra. Inspira um perfume de ervas queimadas, um cheiro adocicado que o atrai e ao mesmo tempo o repugna.
Avançando alguns passos, tropeça e cai pesadamente. Seu grito de dor ecoa na gruta.
- Anamaya!
O som indistinto de sua voz ecoa. Não há resposta, a não ser o chamado enviado em vão de uma parede a outra.
- Anamaya!
- Venha...
O sussurro está bem próximo e ele se deixa guiar, já sem medo. Passo a passo, ele avança até ela, cujo sorri o e os olhos negros brilhando na noite ele sente. Ela segura seus punhos e ousa suas mãos numa espécie de altar, de mesa de pedra.
- Eu lhe disse que estaria o seu lado...
- Foi há tanto tempo...
- Eu lhe disse para confia em mim...
As mãos de Anamaya toca as suas e correm suavemente por seus braços, seus ombros, seu pescoço por todas as suas contusões - sem machucá-lo. No entanto, ele se contrai.
- Não tenha medo...
Ele fecha os olhos e a deixa passear por seu corpo e aliviá-lo como se fosse uma brisa, um regato. Sente uma sensação de torpor deliciosa, um calor para cujo seio basta ele se deixar deslizar. Sua respiração se acalma e seu corpo relaxa.
- O homem de olhos cinzentos encontrou Katari e lhe disse que você precisava de mim...
- Bartolomé?
- Eu não sabia o nome dele. Katari e ele se vêem muito e trocam o que sabem...
Gabriel faz um gesto de impaciência.
- Recebi ordem de partir, Anamaya.
- Eu sei.
A tranqüilidade da voz de Anamaya deixa Gabriel pasmo, procurando a verdade em seus olhos.
- Há perigos demais ameaçando você aqui. E melhor se afastar...
- Manco?
- Eu disse que Manco não lhe faria mal. Falo da sua gente, você sabe.
- Há outros perigos que eu não conheça?
- Há sempre perigos que a gente não conhece - sorri Anamaya. - Quem acha outra coisa é muito ignorante.
- Ou muito sábio.
Ele adivinha o sorriso dela.
- Ou muito sábio, sim. Mas, assim mesmo, você deve partir.
Gabriel escuta o silêncio e sente o estranho odor que impregna o ar.
- Onde estamos?
- Numa huaca, um de nossos lugares sagrados. Há centenas deles em volta de Cuzco, dispostos segundo linhas que formam uma espécie de roda cujo centro é nossa capital. Alguns contêm tesouros dos quais a sua gente ai facilmente se apossar; outros são tão secretos que vocês nunca hão de encontrá-los.
- E um local de sacrifícios?
Ele percebe a hesitação, a reticência de Anamaya.
- Houve sacrifícios aqui, sim.
De repente, como se a certeza o fulminasse, Gabriel compreende a natureza do cheiro que o sufocou. E um cheiro de carne assada, de sangue derramado... Ele sente um frio na espinha.
Percebendo seu mal-estar, Anamaya o leva.
- Venha, vamos sair.
O ar puro lhe faz bem, e, apesar da escuridão da gruta, ele tem a impressão de dia claro sob a luz cias estrelas. Chegam ao topo da huata por uma escada de pedra. - Tempos difíceis se anunciam - diz ela.
- E devo sumir nesses tempos difíceis?
- Há essa paz, essa paz cheia de mentiras e falsidades... - Está falando de Manco? De sua gente?
- Falo de todos, Gabriel...
- É por isso que devo sumir? Responda.
Há uma dureza involuntária em sua voz. E um pouco de confusão na de Anamaya quando ela responde.
- Não. É porque você precisa viver, viver antes de mais nada!
De uma frase à outra, Gabriel se tranqüilizou. No entanto, a ternura dos sentimentos não basta para acalmar a preocupação que brota dentro dele como uma nascente negra.
Do topo da colina, sai um curioso riacho ziguezagueando pela rocha. Surgem figuras entalhadas nos penedos, e no meio do nada se erguem duas protuberâncias de pedra, redondas como abitas de amarração.
Gabriel olha Anamaya com um ar interrogativo. Ela se contenta em sorrir e abraçar-se a ele.
Os dois se deitam na pedra.
Gabriel não sente suas dores.
- Diga - começa ele -, diga por quê...
A mão fina de Anamaya vem lhe fechar a boca.
- Olhe o céu - diz -, olhe as estrelas... E pare de perguntar por quê. Ele viaja com ela.
Esquece tudo o que não sabe, todas as suas perguntas e todas as suas dúvidas. Salta como o puma, voa como o condor, atravessa o céu como o raio. E, enquanto isso, está de mão dada com ela. Não dizem uma palavra.
Ela o levanta e se aninha a ele.
Ele fica emocionado porque ela o deixa sentir sua fraqueza também e, sempre sem dizer nada, o sofrimento por sua partida, sua preocupação talvez, tão humana e tão simples.
Quando ela se separa dele, olha-o demoradamente, e ele tem a oportunidade de ler tudo o que quer em seu olhar - ver passar sua história toda, o que dela sabe, o que adivinha, o que ela cala no fundo do coração.
- Olhe - diz ela afinal.
Sob a lua, o luar faz um desenho em volta de duas pedras redondas que ficaram como dois olhos amarelos brilhando na noite. O escuro delimita a
figura de um felino, tranqüila e ameaçadora.
O puma.
Ele não pergunta mais nada.
Quando chegam os primeiros clarões da aurora, ela já desapareceu há muito.
Os olhos do puma voltaram a ser duas pedras redondas no topo de um rochedo.
Gabriel não desce de novo para a gruta.
Toma o caminho de Cuzco, sentindo em suas entranhas que o caminho será muito mais longo.
Cuzco, julho de 1535
É tão cedo nesse dia de julho, quando os irmãos do Governador chegam ao palácio do Único Senhor Manco, que a bruma do amanhecer ainda cobre os campos de milho sagrados diante do Colcampata.
Gonzalo enfiou belíssimas plumas azuis e amarelas na fita de seu chapéu. Já Juan decorou o seu curiosamente com uma faixa de seda branca. Os dois riem ruidosamente. Suas gargalhadas repercutem entre os altos muros da ruela, misturando-se ao barulho de seus passos e os dos dez capangas armados de chuços e bestas que os seguem.
Na entrada da cancha real, guerreiros índios comandados por um capitão cujo capacete foi despojado das insígnias de ouro fingem defender a passagem. Chapando a mão no peito do oficial inca, Gonzalo Pizarro o empurra com desprezo. Fingindo indignação, Juan segura-o pelo colarinho.
- Atenção, Gonzalo! Não se esqueça que estamos vindo aqui como amigos!
A observação provoca em Gonzalo um ataque de riso que logo contagia todos. Sob o olhar furioso de impotência e humilhação dos soldados Incas, eles endireitam os gibões um tanto amarrotados. Tornam a formar uma fila dupla, tão impecável como se fossem se apresentar à revista num palácio da Andaluzia. Num passo longo, atravessam o primeiro terreiro da cancha e entram no seguinte. Servas e senhores param, estupefatos com sua intrusão.
Com um sorriso radioso iluminando seu rosto perfeitíssimo, dom Gonzalo conduz seu pessoal direto para a porta do maior prédio. Os jovens guardas que a protegem erguem suas lanças. Um espanhol pula na frente dos irmãos do Governador. Ele nem precisa dar um passo à frente para que os índios renunciem, após uma breve hesitação, à sua exibição de proteção.
Gonzalo é o primeiro a entrar. Curioso e achando graça, fica paralisado.
Torso ainda nu, o Único Senhor Manco está em pé diante da esposa e das concubinas. Curvadas, olhos baixos, cada uma lhe apresenta uma túnica diferente, tecidos finos como plumagem de pássaro. Uma delas sente a chegada dos estrangeiros. Sem ousar levantar a cabeça, dá um grito. Manco se retesou. A surpresa paralisa seus traços num movimento de cólera que ele logo contém.
- Nós o saudamos, Sapa Inca! - diz Gonzalo curvando-se. Ignorando a interpelação, o olhar de Manco volta para os unkus. Ele hesita ostensivamente, não se apressa.
- Vamos deixá-lo vestir-se - sugere Juan já virando as costas.
- Claro, meu irmão! Não somos selvagens - brinca Gonzalo entrando mais no aposento.
Aproxima-se tanto de uma das esposas que a jovem recua, desviando o olhar. Gonzalo pega a túnica que ela oferece. Sacode-a na frente de seu bando. Os espanhóis caem na gargalhada quando ele a põe na frente de seu gibão guarnecido com cabeção, levantando a barba bem cuidada, batendo as pálpebras com um ar feminino:
- Essa roupa de rei ficaria muito bem em mim! - diz com uma ironia fria que provoca algumas risadas grosseiras.
Sempre indiferente, sem olhar para eles, Manco apontou para um unku azul noite, decorado com motivos geométricos púrpura. Apesar das piadas dos estrangeiros, duas mulheres trêmulas o ajudam a vesti-lo, enquanto outra já oferece uma manta dobrada onde está depositada a faixa real.
Atraída pela cena, uma multidão se aglomerou no pátio, mulheres e homens, servas e senhores, protestando e murmurando. No sol oblíquo da manhã, seus olhos brilham de pavor diante da humilhação feita ao Único Senhor.
- Gonzalo...
Juan interrompe-se para olhar o que provoca os gritos e as risadas ali em volta. Gonzalo arrancou das mãos de uma serva uma as túnicas desprezadas pelo Inca.
Aproxima-se de uma concubina e lhe apresenta o unku, convidando-a a vesti-lo em meio a gargalhadas. Mais apavorada pelo sacrilégio do que pela violência do estrangeiro, ela se defende fracamente.
- É que ela gosta disso - diz Gonzalo. - Basta encorajá-la...
- Gonzalo... - continua Juan, cujo constrangimento aumenta.
As outras mulheres se reuniram no fundo do aposento enquanto Manco, cujo rosto permanece impassível, não se move um milímetro, nem quando a jovem índia cai de joelhos para escapar de Gonzalo. Parece apenas olhar a cena.
É então que se ouve uma voz que todos reconhecem.
- Senhores, o Único Senhor nunca recebe no quarto. Saiam para o pátio, por favor, e ele lhes dará audiência como desejam.
O grupo de espanhóis se sobressalta e se afasta praguejando. A porta, Anamaya, o azul de seus olhos endurecido pela fúria, percorre cada rosto. Gonzalo estremece antes de rir ao ver o irmão Juan esboçar uma reverência.
- Para dizer a verdade, bela dama - diz ele -, você ainda não sabe, mas chegou na hora certa: precisamos de você.
Anamaya fita os dois irmãos. Não se deixa afogar pelo desprezo, a fúria e o medo que estão dentro dela. Está empertigada e altiva, e até Gonzalo precisa desviar os olhos diante dela.
- Você nos mentiu - protesta Gonzalo. - Prometeu-nos ouro, e onde está esse ouro?
Ele anda e gesticula ao sol. Manco permanece sentado em sua tiana, sem abrir a boca. A um canto, Anamaya, contraída e gelada, continua fitando os espanhóis. Do outro lado do pátio, um pouco afastado dos estrangeiros que formam uma fila ameaçadora, aglomeram-se os Poderosos Senhores que acorreram à cancha real.
- Há três meses, Sapa Inca - prossegue Gonzalo apontando para Manco -, três meses que nos prometeu ouro. E assumiu esse compromisso em sinal de amizade e respeito por nosso Rei, que é também o seu, e para nos provar que os boatos de rebelião eram infundados. Passaram-se dias. Passaram-se semanas. E só recebemos alguns pratos e algumas bugigangas que você roubou de suas servas!
Quando ele se cala, o pátio fica de novo em silêncio.
Um bando de aves passa piando no alto da cancha. Suas sombras, rápidas como flechas, correm entre os espanhóis e os senhores índios. Juan Pizarro procura com insistência o olhar de Anamaya. Mas ela não lhe concede mais atenção que aos demais. Manco finalmente sorri e aponta para o pátio do palácio, as paredes dos prédios, a entrada de seu quarto:
- Está vendo ouro aqui, meu amigo? - pergunta com uma voz estranhamente doce. - Passaram-se dois invernos desde que entraram na Cidade do Puma. Lembra-se? No dia em que chegaram, havia ouro por todas essas paredes, em cada aposento de minha cancha, em meus jardins, em casa dos nobres de minha corte! Havia ouro nos cabelos de minhas concubinas e de minhas esposas! Você brincou há pouco com uma delas. Eu lhe pergunto: viu alguma coisa de ouro nela? Vire-se, irmão de meu amigo o Governador: olhe os nobres Senhores de minha casa. Olhe as orelhas deles. Está vendo algum brinco de ouro ali? Não, só de madeira. Veja os seus peitos, seus braços. Estão nus, nus como braços de camponeses, pois eles já lhes deram tudo! Onde eu poderia lhe arranjar mais ouro, quando o ouro está nas mãos de vocês? Como eu poderia esconde-lo, quando vocês são os senhores deste país?
Gonzalo olha para ele com um sorriso mau.
- Você está mentindo - diz destacando as palavras, dedo em riste. - Sei que ainda há ouro neste país. Muito ouro.
- Você viu, amigo estrangeiro? Diga-me onde e imediatamente mandarei buscar para você!
Gonzalo assobia entre os dentes e aproxima-se de mansinho de Manco. Parece prestes a lhe cuspir na cara, mas ergue os olhos para encarar Anamaya:
- Você sabe a que ouro nos referimos... Onde está a grande estátua de ouro que meu irmão o Governador dom Francisco exigiu? Sua paciência se esgotou e a minha mais ainda. Há meses você nos vem com histórias. Em três dias, quero vê-la em minha casa!
Há um silêncio. Juan aproxima-se por sua vez.
- Isso não e possível - responde Anamaya distintamente.
- Ah? E por que, senhora? - pergunta Gonzalo com o tom mais cortês. - Porque essa estátua não está mais neste mundo. Vive perto dos Poderosos Ancestrais, no país onde o sol não se põe.
Gonzalo observa-a um instante em silêncio. Tem o olhar espantado, sobrancelhas erguidas, como se procurasse compreender o sentido dessas palavras. Levanta a mão como se fosse bater, e um estremecimento percorre as fileiras de nativos. Mas é com uma delicadeza calculada que sua mão pousa no ombro de Manco.
- Meu amigo Inca não e o Filho do Sol? - começa ele. - Não tem poder sobre os vivos e os mortos?
- O senhor não tem o direito de tocar no Único Senhor! - diz secamente Anamaya.
- Ora vamos, meu amigo Inca há de permitir um instante essa intimidade que acompanha a amizade do homem de bem... Entre nós, sabe, isso é um sentimento caloroso expresso com naturalidade, sorrisos, abraços, presentes...
Sem parar de sorrir, Gonzalo larga Manco tão bruscamente quanto o tocou. O Inca tenta encontrar uma pose digna enquanto Gonzalo vira-se para um de seus soldados. Com um gesto de cabeça, ordena que ele se aproxime. O homem tem no ombro um grande alforje de couro. Abre-o e tira uma corrente com ferros e um cadeado de aço grosso. Gonzalo pega uma das pontas e a deposita aos pés de Manco.
- Não sou como você, está vendo? Trouxe-lhe um presente de alto preço.
Manco e Anamaya olham a corrente.
- Imagine, amigo Inca, que essa corrente é a mesma com a qual seu irmão Atahualpa, o finado Inca, foi protegido da afeição dos seus por meu irmão, o Governador dom Francisco Pizarro. Achei que essa peça ficaria bem entre os seus tesouros e encontraria um lugar de destaque ali. Não tive razão?
O silêncio é completo no pátio.
- Espero em troca que me ofereça o modesto presente de que lhe falei.
Nem Manco nem Anamaya estremeceram diante da ameaça. No entanto os Poderosos Senhores e os guardas da cancha se aproximaram bastante dos espanhóis. Lentamente, estes se comprimem, formando uma fila protetora em volta de seus chefes. Juan pousa uma das mãos no punho do irmão e sorri com um ar desolado para os Índios.
- Um instante, meu irmão... Lembra-se que temos outra proposta para fazer ao Sapa Inca?
Ele tira o chapéu curvando-se para Manco com uma reverência que pretende ser respeitosa.
- Sapa Inca - diz Juan com uma expressão conciliadora -, é verdade que estamos decepcionados porque ainda não vimos essa belíssima estátua que todos dizem ser mais bela e mais magnífica que todas as outras. Dizem que preferimos ouro a amizade, e isso é uma injustiça. Pois o que nos entristece não é a posse dessa estátua. É a desconfiança que sua atitude demonstra... Alguns de nós acham que talvez isso seja sinal de que você quer nos fazer guerra! Obviamente, não acreditamos nisso. E é por esse motivo que tenho uma proposta a lhe fazer, uma proposta que, se você aceitar, manifestará de forma gritante para o mundo que somos amigos, amigos para sempre...
Juan fica em silêncio por um momento para que suas palavras calem. Sua voz é tão tranqüila, tão conciliadora, que a tensão se acalma. O próprio Manco relaxa. Balança a cabeça e olha com um certo espanto o chapéu que Juan agita à sua frente.
- Hoje, Sapa Inca, coloquei uma fita de seda em meu chapéu. No país de onde venho, isso significa que quero uma esposa...
Juan vira-se para Anamaya. Examina-a por alguns segundos insistentemente, ergue uma sobrancelha sobre seu olhar inflamado e, com um pequeno movimento do peito, declara alto e bom som:
- Eu a escolhi, bela dama. Disseram-me que você não tinha esposo, mas que em seus costumes a grande estátua de ouro era como seu marido e lhe proibia qualquer outro casamento. Pois você diz que a estátua não está mais neste mundo. Triste notícia, mas boa também! Ei-la então livre para me acompanhar ao altar e compartilhar uma bênção que a protegerá para sempre!
Anamaya empalidece, pasma. Juan dá mais um passo à frente, procurando pegar sua mão que, num reflexo, ela encosta no ventre. Mas Manco já está em pé, o rosto escarlate, as veias do pescoço intumescidas de raiva.
- A Coya Camaquen pertence a meu Pai - exclama. - Ninguém porá a mão nela!
- A outros! - ladra Gonzalo.
Após um olhar de desafio a Manco, acrescenta com uma voz surda:
- Ela e tão virgem quanto uma puta do Panamá. E todo mundo sabe para quem ela abre as pernas...
Manco já se colocou na frente de Anamaya. Afasta Juan com um empurrão tão violento que o espanhol tropeça e tem que colocar um joelho no chão.
Então, em alguns segundos, a confusão inflama o pátio. Gonzalo pula e agarra o braço de Manco, enquanto guerreiros Incas correm para acudir o Único Senhor.
Os capangas se interpõem e a breve luta desvia a atenção de Anamaya. As mulheres agora fogem de um pátio para o outro com gritos estridentes enquanto Juan, por sua vez, tenta agarrar Manco.
De repente, uma sombra negra surge, não se sabe de onde, paralisando o gesto de Juan, que imediatamente solta Manco, enquanto a mão de Gonzalo permanece crispada no braço do Inca.
- Vocês enlouqueceram todos?
Anamaya reconhece Bartolomé, o frade amigo de Gabriel. Ele está branco como cera. Aponta aquela mão estranha com dois dedos colados para o rosto de Gonzalo e grita de novo:
- Ficou louco, dom Gonzalo? De onde lhe vem o direito de agredir esse Senhor índio?
- Do direito que me cabe. Não é da sua conta.
- Largue-o!
Os olhos cinzentos de Bartolomé têm o brilho que se costuma imaginar no olhar dos lobos. Porém o mais impressionante é a força de sua calma.
Um ríctus vibra na boca de Gonzalo. Ele descerra os punhos. Juan lhe segura um braço e o obriga a recuar antes de ele se desvencilhar. - Esse bárbaro zombou de nós - cospe Gonzalo com desprezo. - Viemos pedir essa mulher - diz apontando para Anamaya com o queixo como se ela fosse uma peça de cerâmica - em casamento para meu irmão, e ele afirma que ela e intocável. Intocável!
Bartolomé. olha rapidamente para Anamaya, como se a descobrisse. Vem colocar-se entre Anamaya e Manco.
- O Sapa Inca Manco é o Senhor dos Índios deste país - replica com ma voz que todos podem ouvir. - O Imperador Carlos Quinto colocou-o sob a proteção de seu irmão o Governador! Será que se esqueceu disso?
- Poupe-nos o sermão, frei Bartolomé, ainda não é domingo! - diz Gonzalo rindo. - Meu irmão é governador, estou lembrado, sim. E meu irmão está bem longe daqui, fundando capitais e construindo reinos. Enquanto isso, foi a nós que ele confiou esta cidade...
- E é a ele que lhe prestarão contas dela, assim como do modo como trataram esse homem.
- Nós é que decidimos aqui - esbraveja Gonzalo - quem é homem e quem não é... Acho que meu irmão Francisco não está particularmente bem colocado para vir nos dar lições sobre isso...
- A Espanha está olhando vocês!
- A Espanha? Onde fica isso? - ironiza Gonzalo. - E já chega, seu apóstolo! De onde lhe vem a autoridade para me fazer sermão?
- Gonzalo! - sussurra Juan. - Por favor...
- Não tenho nenhuma autoridade sobre você, dom Gonzalo - replica Bartolomé calmamente.
- Você disse isso - sibila Gonzalo. - Então, agora, vá salvar as almas se puder e poupe-nos das suas sentenças...
Gonzalo lança um olhar de desprezo para o frade e recolhe seu chapéu, que caiu na confusão. Juan tem uma expressão triste. Bartolomé esboça um sorriso olhando para eles.
- Não tenho, efetivamente, nenhuma autoridade sobre vocês, Senhores, mas nosso Deus tem. O julgamento supremo pertence a ele. Ele é Deus de misericórdia para os humildes e Deus de vingança para os orgulhosos.
- Meu irmão... - começa Juan com uma voz miserável. - Cale-se - corta Gonzalo.
O último olhar que Gonzalo lança para Bartolomé ao sair do pátio é um olhar de desafio.
Durante a cena toda, Anamaya não parou de tremer.
Discretamente encostado no muro da cancha, Bartolomé segue com os olhos Anamaya, que está andando de um lado para outro no pátio. Espera que volte a reinar um pouco de paz e ordem para ir ao seu encontro.
Em seu quíchua um pouco falho mas do qual muito se orgulha, diz:
- Sei que é difícil perdoar alguém a pedido de outra pessoa, Coya Camaquen. Mas no entanto lhe peço perdão pelos insultos que você e o Único Senhor Manco acabam de sofrer. Se eu pudesse banir essas violências, elas nunca aconteceriam. Odeio essas atitudes, e me envergonho delas.
Anamaya olha-o um instante e esboça um pequeno gesto:
- Eu sei. E agradeço-lhe pelo que fez.
- Não. Não agradeça... Eu só gostaria que explicasse ao Único Senhor Manco que ele não deve considerar que somos todos como os irmãos do Governador.
Anamaya não responde imediatamente. Seu olhar fica um instante ligado ao de Bartolomé. Depois, balança devagarinho a cabeça:
- Acho que os que são como o senhor não são suficientemente numerosos para que o Único Senhor Manco possa se reconfortar com eles.
Com um sorriso fino e triste nos lábios, Bartolomé balança a cabeça. Com sua mão estranha, puxa uma carta da manga e seu hábito. Estalando a língua, desdobra as folhas de papel pardo escurecidas ainda pelas linhas apertadas de uma letra regular.
- Pelo menos somos dois, acho eu! - murmura. - Dom Gabriel me pediu um favor que é com prazer que lhe quero fazer. Isto é uma carta dele que chegou às minhas mãos ontem. Essa era a verdadeira razão de minha vinda, e não tirá-la das garras dos Pizarro! Mas parece que Deus... e seus "ancestrais" fizeram muitas coisas.
Ele deixa escapar uma risadinha.
Sem dúvida, algo nele se suavizou com a presença de Anamaya. Como se a simples beleza dela bastasse para acalmá-lo e reconfortá-lo. Com o queixo, ele aponta para a sombra de um prédio onde as servas, que voltaram a se ocupar das tarefas do dia, preparam as sopas e a refeição para o Único Senhor.
- Se quiser fazer o favor, vamos nos colocar à vontade para que eu lhe leia esta missiva, Coya Camaquen.
Alguns segundos mais tarde, os olhos brilhando com uma felicidade contagiante como a embriaguez da cerveja sagrada, Anamaya julga ouvir, através da voz e da respiração de Bartolomé, a voz e a respiração de Gabriel. Ouve com todas as forças, olhos fechados, e as palavras se tornam uma presença próxima da carícia.
Cidade dos Reis, 18 de junho de 1535
"Frei Bartolomé, amigo Bartolomé,
"Espero que em breve você tenha sob os olhos estas palavras que escrevo em papel ordinário, úmido demais - mas aqui não há outro.
" É bem possível que esta missiva o surpreenda. Muitas vezes eu disse a mim mesmo que seria bom, para afastar o estado de espírito soturno de minha melancolia, que eu lhe escrevesse. E depois, sempre apareceu algum motivo para estragar esse prazer. O tempo passou não num piscar de olhos, mas com uma lentidão espantosa, tamanha é a falta que eu sinto. Em resumo, já vai fazer 18 meses que não nos vemos. Em minha lembrança, tenho o sentimento de uma despedida um pouco breve, onde não lhe agradeci suficientemente sua amizade e sua ajuda nos momentos difíceis que me valeram o exílio a que ainda me vejo forçado. A desconfiança que a sua pessoa antes despertava em mim hoje me parece algo bem desconhecido, em uma palavra, infantil, e, ao contrário, é para você que muito naturalmente eu me volto.
"Em minhas peregrinações ao lado do Governador, tive muitas vezes a ocasião de pensar em você e sentir falta do calor tranqüilizador de nossas conversas tanto quanto de seu conhecimento das pessoas. O primeiro, devo dizer, me fez uma falta terrível nessa verdadeira solidão a que me forçou dom Francisco para agradar a seus irmãos; o segundo também me fez falta em demasiadas circunstâncias!
"Não tenho muitas novidades para lhe contar que você já não saiba por um boato ou outro: e sabe tão bem como eu que o problema dos boatos não é serem falsos, mas sim serem na maioria das vezes verdadeiros. Meu amigo Soto embarcou para o Panamá depois de se convencer que os irmãos do Governador não o deixarão jamais ser tão importante e rico quanto seu valor e seus feitos poderiam fazer esperar. E uma perda suplementar para mim, pois nos gostávamos, embora tudo tenha sido feito para nos separar, e vou guardar muitas recordações dele.
"Seu bispo, frei Vicente Valverde, também embarcou, só que para a Espanha, com o apoio insistente de dom Francisco, que procura assumir, com a barba cada vez mais encanecida e os olhos mais transparentes, o papel do patriarca sábio. Ele seria capaz disso, acredito. Sempre há nele algo de bom sob a capa dessa loucura que o trouxe para cá e a nós junto com ele. Quanto mais o vejo envelhecendo, nunca frágil, mas de repente preocupado com a paz, engravidando sua esposa, uma das irmãs do falecido Inca Atahualpa (seu modo pessoal de honrar sua promessa de proteger a família!), com uma verdadeira gentileza, mais me digo que há dois homens nele. Odeio o primeiro, capaz de tudo: de violências, mentiras, bajulações tanto quanto de uma coragem ilimitada para alcançar seu objetivo. Esse homem parece um animal. Tem uma força e um poder raros. E, depois, há um outro homem, atencioso, inteligente e político hábil. Um homem que, acredito, só deseja uma coisa, mas extraordinária: fundar um país! O ouro não o interessa muito mais que a mim, na verdade. Só que ele precisa do ouro para estabelecer o seu poder. E creio que ele é capaz de compartilhá-lo com os senhores Incas de Cuzco. Assim espero...
"Nunca sei ao certo qual desses dois homens me chama de "filho"! Não ria, frei Bartolomé. Não me deixo embrulhar pela sedução que ele quer colocar nessas palavras. Mas sinto que nela também há sinceridade. Ele me escolheu, contra seu irmão Hernando, contra o imundo Gonzalo e o mesquinho Juan. Escolheu-me enquanto os outros se impunham a ele e teriam se livrado de mim - você foi testemunha por qualquer meio. E sinto, até nessas injustiças a meu respeito, uma aflição verdadeira que, sim, poderia ser a de um pai. Você conhece a minha história, amigo Bartolomé. Ela nos valeu nosso primeiro encontro nas masmorras de Sevilha. Sabe então o que isso significa para mim... E por que motivo, sem dúvida, ando à sua sombra.
"Enfim, para não pensar demais nesse tempo todo que perco longe daquela que você sabe, todos os dias me dedico a alguma atividade, importante ou não!
"Uma das mais interessantes, como talvez saiba, foi encontrar o sítio para a capital do Peru. Devo confessar que foi para mim um dos momentos mais belos desses longos meses passados longe de Cuzco.
"Desde o outono passado, não se passava um dia sem que dom Francisco procurasse um lugar digno desse grande projeto. Sua opinião, aceita por todos, era que o local ideal deveria ser na costa do Mar do Sul para prolongá-lo com um porto e facilitar as ligações com o Panamá e a Espanha. Depois de ter percorrido centenas de léguas desertas, um dia, no começo de janeiro, no meio da tarde, chegamos a um verdadeiro vale do Éden. Imagine uma terra tão rica, tão abundante que nela se pode cavalgar três horas inteiras sob árvores carregadas de frutos sem que o sol jamais nos faça piscar! Imagine esse pomar salpicado, tão sutilmente quanto uma marchetaria de Toledo, de campos de milho, batata-doce, casas de barro ou de bambu, pequenos jardins magnificamente mantidos, onde as goiabeiras, os abacateiros e os tomateiros vicejam como se fossem flores, tudo isso irrigado com grande inteligência por uma rede de canais que nunca secam.
"No coração desse vale encantado, chegamos à margem de um rio pouco profundo. Perto da aldeia, uma espécie de vasta clareira margeada de moitas floridas, de arbustos de folhagem púrpura ou amarela, só estava ocupada pelo dólmen habitual dos templos indígenas.
"Entramos ali num trote curto, como se receássemos que um sítio tão encantador pudesse desaparecer sob as ventas de nossos cavalos! O Governador olhou-me com essa expressão que você conhece e que ele reserva geralmente aos grandes momentos de empolgação vitoriosa, a seu quadro bento da Santíssima Virgem com o Menino. `Será aqui!', disse ele, tirando o chapéu.
"E como era Dia de Reis, ele acrescentou: "Minha capital se chamará:
La Ciudad de los Reyes!'
"Bastaram alguns dias para que esse desejo se tornasse realidade. A 18 de janeiro deste ano de 1535, foi medida essa clareira, que os habitantes daqui chamam de Lima. Alguns piquetes agora indicam a praça Real, a futura catedral, o futuro mercado e os não menos futuros Palácio do Governador e o da Municipalidade! Um cura recém-chegado do Panamá consagrou esses sítios fantasmas. O pobre homem, ainda pouco afeito aos costumes daqui, tremia todo. Estava convencido de que os nativos que assistiam ao seu ritual não estavam esperando outra coisa senão assá-lo!
"Mesmo assim, devo confessar que o momento me emocionou mais do que eu esperava. Dizer a si mesmo: pronto, chegamos a um país e hoje construímos uma cidade! Imaginar que ali, onde por ora há apenas alguns riscos de cal viva no capim, como nas costas de uma mão, haverá amanhã ruas, barulho de charretes, prédios e lojas, monges e - perdoe-me - salteadores. A vida completa! Sim, há nisso algo que nos dá um aperto nas entranhas, posso lhe garantir, muito mais que quando se sai de uma batalha. Pode-se finalmente esperar que tenhamos vindo a este estranho e maravilhoso país para outra coisa além de ouro, pilhagens e saques. Acreditar enfim que estamos aqui para construir, senão a obra de Deus, pelo menos a de homens dignos!
"Pelo menos foi assim, na emoção do momento, que eu quis ver as coisas.
"Frei Bartolomé, meu amigo, imagino que esteja lendo estas linhas com seu sorriso fino, perguntando a si mesmo de que lhe serve esta descrição em regra.
"Na verdade, é que eu não queria ser apenas soturno. Como deve saber, não há mais diálogo entre o Governador e Diego Almagro. Após centenas de discussões, reconciliações e outras tantas ameaças de guerra, era preciso encontrar um meio de afastar seus apetites, tanto é verdade que dois carneiros de chifre não bebem numa tigela.
"A notícia me chegou anteontem. Como você já deve saber, foi decidido que dom Diego de Almagro iria conquistar o sul do Peru. Dizem ser a região mais rica em ouro do que tudo o que se pôde ver até aqui, com capacidade para saciar a voracidade doentia de Almagro. Parece-me que se deve desconfiar desse boato.
"Dom Francisco pediu-me que fosse ao encontro da coluna de expedição de Dom Diego e, para dizer a coisa como ela é, ser seus olhos.
"Odeio essa tarefa. Odeio o que Talvez mais. E que viagem! Quando sei qual deveria ser meu lugar.
"Meu amigo, permita-me escrever o nome dela: Anamaya.
"Não há amanhecer, não há noite, não há silencio em que eu não pense nela. Não há dia em que eu não feche minha mente como por um ferro em brasa. Tenho medo, meu amigo, desse amor por ela que fervilha em mim e com o qual não sei o que fazer. Tenho medo das mil carícias imaginadas e nunca realizadas. Tenho medo de esquecer um dia sua voz, seus lábios, o almíscar de sua pele!
"Tenho medo e depois digo a mim mesmo que isso terminou. Há muito tempo estamos afastados. E essa nova partida vai nos separar definitivamente, receio.
"Tenho medo do mal que podem fazer a ela, fico furioso por não poder protege-la. Sei muito bem do que são capazes os irmãos do Governador!
"Agora eu sei que tenho motivo para temer!
"Frei Bartolomé, meu amigo, perdoe-me confiar a você, que é um sacerdote, esses sentimentos nos quais nem eu mesmo sei separar o ardor do desejo, a frustração e esse arrebatamento que nos torna humanos. Sim, realmente humanos, pois amamos com toda a alma! Provamos a infinita felicidade de saber que existe um outro ser, tão diferente, tão outro, e de quem no entanto não podemos nos separar sem nos esvaziar de nossa substância!
"Mas só você pode me ajudar no momento. Pode anunciar a Anamaya a minha partida? E lhe dizer o quanto ela é contra a minha vontade? Pode, sobretudo, protege-la um pouco? Considerá-la sua amiga e avisá-la das loucuras de Gonzalo e Juan? Elas não faltarão, a partir do momento que Almagro deixar Cuzco. Eles serão senhores da cidade, mas não de sua demência!
"Se for preciso, não pode faze-la sair de Cuzco? Deixo isso a seu critério...
"Ah, como vê, o papel está acabando, preciso terminar. Confio em você como um afogado se confia à vontade divina.
"Sebastian lhe entregará discretamente esta carta. Pode confiar nele, pedir-lhe favores e até ouro. Ele acaba de dar uma grande tacada em Jauja. Tendo se tornado um jogador experiente, numa noite e num dia, jogando dados, depenou Mancio Sierra de Leguizamon como se fosse uma galinha de quintal. Há dois anos, Sierra havia despojado o grande templo de Cuzco. Eis dom Sebastian, sempre negro de pele, mas livre e rico! Seu Deus às vezes parece capaz de ironia.
"Eu digo seu Deus. Hoje eu gostaria de rezar sinceramente para que ele fosse o meu. Adeus, amigo Bartolomé. Peço-lhe que tome conta dela. Eu a amo mais do que a minha própria vida, e mesmo no inferno aonde vou, não a esquecerei.
O seu Gabriel. O Gabriel dela."
Erguendo os olhos da carta, pela primeira vez, Bartolomé vê a Coya Camaquen chorar. Ela está olhando para cima, como se contemplasse as montanhas soberbas acima dos muros da cancha. Mas suas faces brilham com as lágrimas que ela nem sequer finge enxugar.
Com um certo constrangimento, Bartolomé faz um pequeno gesto fatalista. Diz com doçura:
- Em meu país, sou considerado um homem próximo de Deus, como você aqui é admirada por ser próxima das presenças invisíveis. Isso deveria nos separar, pois Deus não conhece outra presença invisível além dele mesmo. No entanto, cada vez que a vejo, sinto o que nos aproxima.
Anamaya franze o cenho e parece arrancar-se dos pensamentos que a atormentam.
- Sei que é difícil para o senhor nos compreender. Até para ele - diz ela apontando para a carta como se quase tocasse no corpo de Gabriel. - Até para ele é difícil. Mas eu lhe agradeço por tentar.
- Estarei ao seu lado sempre que precisar de mim - responde apenas Bartolomé. - Gabriel tem razão. Você está em perigo aqui. Precisa ser prudente.
- Conheço o sentido da palavra, mas ela não faz parte da minha vida. Faço o que deve ser feito, com ou sem prudência.
Um breve sorriso ilumina seus olhos azuis ainda brilhantes, enquanto ela os mergulha nos de Bartolomé que não consegue deixar de ficar perturbado com a profundidade e a intensidade desse olhar.
- Talvez seja o senhor - diz ela com doçura - que precisa ser prudente.
Tiahuanaku, agosto de 1535
Há duas semanas ele está a caminho procurando a coluna de Almagro. Durante muito tempo, caminhou pela costa do Mar do Sul, depois um índio guiou-o pelos vales e gargantas.
Há dois dias, está de novo sozinho e talvez perdido no meio do nada. Dois dias sem ver nada senão vazio, alimentando-se de vento e poeira mais que dos víveres que ainda enchem as bolsas de suas selas.
Parece-lhe às vezes estar no teto do mundo. Os passos de seu cavalo, absorvidos pelo solo seco e macio, nem afugentam os insetos. A perder de vista, o platô imenso e liso, aqui e ali coberto de ichu, esse capim curto e grosso, constantemente açoitado pelos vendavais e calcinado pelo sol. Nessa hora do crepúsculo, parece que a terra inteira fica vermelha sob o azul escurecido do céu.
Gabriel subiu o lenço azul no rosto para se proteger um pouco da poeira. De tanto ver a mesma coisa, sua visão parece ter-se apagado. De repente, ele ouve um grito. Ou uma vibração no ar. Só depois de um tempo de observação, adivinha, a oeste, na escuridão ascendente, formas rijas plantadas no horizonte plano. Finalmente deve ter chegado a algum lugar!
Após ter molhado o lenço no cantil e refrescado o rosto, com um afago no pescoço, faz o cavalo apertar o passo. Ainda leva quase meia hora para descobrir o mais estranho dos espetáculos.
Enormes, duas ou três vezes mais altas que um homem e como brotando do solo desolado, alinham-se esculturas angulosas. Na pedra escura, adivinham-se rostos, mãos, membros, posturas de bonecos rústicos. Um pouco mais adiante, é a superfície poeirenta do platô que é perturbada por uma confusão caótica de imensas rochas polidas, meio enterradas, como se um monstro, do coração da terra, tivesse tentado devorá-las.
Algumas fazem pensar em portas gigantescas, com suas pinturas e suas vergas entalhadas num único bloco gigantesco. Como é possível? Como se pôde trabalhar assim, esculpir, polir, transportar para cá onde só há céu, vento e poeira, essas obras prodigiosas de mais de nove metros de altura por quatro metros e meio de largura? Com que instrumentos, que ferramentas, que saberes foram entalhados nos blocos que não podiam ser senão ainda mais prodigiosos?
E diante desses blocos imensos, um homem se agita, rodopia como se quisesse dançar com essas massas colossais de pedra. Ele é quase do tamanho de Gabriel, porém mais corpulento. Da testa ao pescoço, uma infinidade de rugas cobre seu rosto largo, de nariz achatado e olhos puxados. Restam-lhe apenas dois tocos pretos de dentes tortos, entre os quais se agita uma língua aparentemente ágil. Esfarrapado, as pernas nuas apesar do vento frio que sopra no platô, ele usa um estranho gorro de tapeçaria de cores vivas. Um chapéu estranho, quadrado, e com uma ponta semelhante a um chifre de cabra em cada canto.
Quando Gabriel se aproxima, o homem lança um olhar insistente para o cavalo. Sem medo nenhum, ao contrário da maioria dos índios que vêem um cavalo pela primeira vez. Ele se cala um instante, não responde à saudação de Gabriel que pergunta se ele viu uma longa coluna rumando para o sul.
- Com estrangeiros vestidos como eu e animais como este aqui - conclui com uma palmada nos flancos do cavalo.
O homem franze os olhos mas fica de boca fechada. Gabriel diz a si mesmo que não conseguiu se fazer entender. Como constatou muitas vezes desde que deixou a costa, há tantos tipos de índios quanto línguas diferentes neste país!
E, de repente, o velho roda os braços como um moinho. E é num quíchua bastante compreensível que exclama!
- Taypikala, Taypikala! Aqui é Taypikala! Você está no centro do universo, estrangeiro. O que vê, são os homens do tempo em que nós ainda não éramos homens! Eles são de pedra, mas o vêem. A mim também vêem! Por isso é que venho saudá-los todos os dias. Cada dia em que o sol está lá em cima. Sim! E você também devia saudá-los, estrangeiro. Faça como eu!
Revirando os olhos, o velho dobra os joelhos e ergue os braços para o céu. Com sua voz aguda, murmura frases incompreensíveis numa língua da 1 Gabriel nada entende.
Achando alguma graça, com as rédeas de seu cavalo negligentemente pousadas no ombro, Gabriel olha o homem levantar os braços para o céu e curvar-se para a frente e para trás produzindo estalos palatais semelhantes ao cacarejo de uma galinha. Mas, vendo que Gabriel permanece ao lado de seu cavalo sem se mexer, o homem se interrompe e olha para ele de alto a baixo, parecendo furioso.
- Por que não saúda os Homens de Pedra? - repreende em seu quichua apenas compreensível. - Eles o vêem e vão se zangar! Saúde-os como eu, ou vai se arrepender!
A bem dizer, há tanta convicção nas palavras loucas do homem, que Gabriel poderia acreditar nele. E também o local é um dos mais extraordinários que já viu.
Corno se tivesse seguido o pensamento de Gabriel, o velho aproxima-se dele. Sem o menor medo do cavalo, ignorando-o até, com seus dedos de unhas longas, negras como garras, agarra sua camisa. Soprando-lhe no nariz a pestilência de quem está de barriga vazia, murmura:
- Há muito tempo, estrangeiro, Viracocha, o criador do Inicio e do Fim, quis pôr humanos na terra. Mas os seres que ele criou primeiro não se sustentavam em pé. Ou então se comportavam como animais. Matavam, grunhiam e se comiam como animais! Copulavam como animais, e seus filhos também! Sem diferença entre os humanos e os bichos, estrangeiro! Então Viracocha os destruiu. Transformou-os em pedra: são eles que você está vendo à sua frente. Ele disse a si mesmo: "Vou criar alguns homens perfeitos, seres humanos fortes, sábios e belos! Vou lhes ciar uma cidade perfeita para viver. E eles próprios educarão os que não são perfeitos, que ainda não são totalmente homens..." Então criou os senhores Incas e a cidade puma de Cuzco! É lá que tudo é perfeito, estrangeiro!
O velho se cala bruscamente. Com uma piscadela, estala a língua e solta finalmente a camisa de Gabriel. Virando-se para as imensas esculturas que o crepúsculo banha de um dourado avermelhado, ergue novamente os braços resmungando:
- Estrangeiro, eis o que Viracocha fez! Depois, criou todas as nações submetidas a Cuzco! Esculpiu o que você vê, modelou em pedras imensas os velhos, os jovens, as mulheres, as crianças. Cada um para uma nação! Deu a cada um uma espécie de gorro, uma cor de tecido e quipus sem nenhum no. Fez-lhes uma cancha para aqui, com portas imensas para que eles aprendessem a viver dentro e fora. Depois, mostrou-lhes uma terra em volta das montanhas sagradas de Cuzco...
De frase em frase, o homem estala cada vez mais a língua. Grita, olhos arregalados, como se receasse que o vento frio abafasse as palavras que pronuncia:
- Ele lhes disse: "Eis onde estão as suas nações, homens! Aqui será a terra dos canchis, aqui a dos kollas, aqui a dos yungas... E os Poderosos Senhores a quem vocês obedecerão em tudo serão os filhos do Sol, os de Cuzco. Eles lhes ensinarão a cultivar, fazer estradas, ser sábios como devem ser os humanos..." Depois, Viracocha mandou chamar guias para cada nação. Ordenou-lhes: "Escondam-se dentro da terra com os homens de pedra e saiam somente no solo das nações que lhes apontei." E assim eles fizeram. Viajaram embaixo da terra, saindo apenas nas nascentes, nas grutas, nos grandes rochedos fendidos. Ali, o guia de Viracocha soprou-lhes em seus grandes corpos de pedra dizendo: "Animem-se, humanos de Taypikala! Animem-se! Tomem a carne de humanos e vão povoar esta terra que está deserta. Multipliquem-se, respeitando a vontade de Viracocha e dos Senhores filhos do Sol!"
O velho louco gritou essas últimas palavras. Ele se cala, esbaforido, os olhos fechados, o rosto levantado para o céu aureolado com os últimos raios de sol. Olhando para ele, grotesco e magnífico, Gabriel não pode deixar de compará-lo a um profeta saído diretamente do Antigo Testamento e que teria ido parar nos confins do mundo.
O vento apertou. Gabriel treme. Pega o gibão sobre a sela do cavalo e o veste. O velho se vira. Como se continuasse ignorando a presença do animal, bate palmas e sorri. Um sorriso que Gabriel lhe devolve, um tanto sem jeito. O homem balança a cabeça, indica um ponto do platô.
- Os que você procura estão lá, estrangeiro - diz com uma voz que voltou ao normal. - São muitos, muitos! Há senhores de Cuzco e outros homens, sim, estrangeiros como você.
- Obrigado! - diz Gabriel com uma voz rouca de tão pouco ter sido usada nos últimos dias.
Uma risada passa entre os tocos de dentes do velho e estoura, rangendo:
- Eles estão lá, estrangeiro! E Viracocha vai ter que recomeçar seu trabalho!
Com um gesto circular, ele parece querer pegar os megalitos na mão e lançá-los longe, do outro lado do platô.
- Taypa a acabou! - exclama. - Olhe em volta de você e verá que tudo está quebrando! Aqueles que você vai encontrar voltaram a ser como animais. Matam, grunhem em e lutam como animais! Roubam mulheres, velhas
ou jovens, sem distinção, para copular como bichos! Voltou a ser como antes, estrangeiro: antes de Viracocha pôr humanos na terra. É um novo pachacuti. Taypikala acabou.
Não é mais o vento que faz Gabriel tremer, mas sim o riso do velho louco atrás dele. Após um último gesto de adeus, ele faz o cavalo trotar. Por mais um instante, escuta os gritos e as risadas vibrando no ar frio:
- Taypikala acabou! Viracocha tem que recomeçar!
Quando Gabriel, depois de acabar de atravessar o platô, chega à coluna conduzida por Almagro, a noite caiu. Ele vê e ouve ao longe a imensa legião que se instala entre as ondulações do platô, salpicada de milhares de tochas. Isso de início lhe lembra a longa coluna formada há dez anos, na partida de Cajamarca. Parece do mesmo tamanho, com o mesmo número de integrantes: talvez haja dez mil índios seguindo Almagro e seus conquistadores.
Com um toque de calcanhar nos flancos do cavalo, Gabriel aperta o passo para atravessar o platô de través e atingir a frente desse interminável rebanho humano, onde costumam estar os espanhóis. Mas os índios são tantos que ele os encontra bem antes. E, de repente, no clarão das tochas, o que ele vê o choca.
Ali, há homens acorrentados, de dez em dez. Ali, ele vê outros 20 em pé no vento da noite, seminus, amarrados uns aos outros pelas canelas e pelos braços com tiras de couro. Ali, são mulheres na mesma postura, jovens ou velhas, o rosto desfeito de dor ao luar. Em parte alguma, vê fogo ou tendas para alimentação e repouso. Em toda parte, evitam seu olhar apavorados e, quando faz perguntas, as bocas permanecem fechadas.
Os gritos do velho louco voltam-lhe à mente: "Não há diferença entre os humanos e os animais, estrangeiro!"
O coração na boca, Gabriel cavalga ainda mais de uma hora em meio a esse sofrimento e esses horrores, mas quando finalmente chega ao acampamento de dom Diego, iluminado por uma cerca de tochas sustentadas por alabardas, gritos e risadas já lhe anunciam o que vai encontrar.
Levantando a cortina que esconde a abertura, de repente ele é agredido pela algazarra, o brilho das lâmpadas e o calor. O recinto é maior do que teria imaginado. O vesgo doentio está sentado na cabeceira de uma mesa comprida coberta com restos de assados, dormitando numa cadeira de braços. Vinte espanhóis embriagados de cerveja berram e riem, rodeados de jovens nativas mal ajambradas, a quem eles não param de atormentar. Algumas já estão nuas ou quase, olhos arregalados, outras embriagadas também e rindo e chorando.
Apesar de seu ar hipócrita, dom Diego Almagro é o primeiro a ver Gabriel transpor a proteção de pano. Seu único olho se arregala, já brilhando de ironia. Ele dá um grito que restabelece o silêncio e todos se viram para Gabriel que, num piscar de olhos, analisa os rostos e não reconhece quase nenhum.
- Dom Gabriel! - exclama Almagro. - Que surpresa!
Ele se levanta da cadeira como um diabo. Bate violentamente com as palmas das mãos na mesa. As mulheres se assustam e os homens riem.
- Senhores, apresento-lhes dom Gabriel Montelucar y Flores! Uma pessoa muito próxima e muito amiga de meu amigo dom Francisco.
O fel da voz de dom Diego bastaria para excitar os olhares ainda afogados pela embriaguez. A alusão ao Governador os faz brilhar de ódio. Gabriel não nota a ironia das palavras.
- Dom Francisco está me enviando para lhe garantir o apoio dele à sua empreitada. Ele me encarregou de lhe dizer que a ajuda que ele lhe oferece não se limitaria ao financiamento... E, se necessário for, basta uma palavra sua e ele lhe será grato por ter aceitado sua colaboração...
Almagro torna a rir.
- Sensibilizamo-nos com essa atenção generosa. Dom Francisco encheu os bolsos de ouro. Neste momento, está dormindo numa cama macia, enquanto nós continuamos percorrendo as estradas para só encontrar poeira. Mas também ele tem dois pares de olhos onde eu só tenho um. E vocês, senhores, estão vendo na sua frente o par sobressalente dele!
- Dom Diego - atalha Gabriel -, guarde suas bobagens para o resto da viagem. Acabo de passar uma hora cavalgando ao longo da sua coluna e o que vi foi o inferno. O senhor trata essa gente como bichos! Quer levantar todo o país contra nós?
O silêncio fica gelado como o vento. Gelado como a voz de Almagro:
- Você estaria pretendendo me dar uma lição, dom Gabriel?
Gabriel não tem tempo de responder. Um homem levantou-se da mesa. Pega uma das mulheres muito jovens que se afastaram um pouco. Rasga sua
túnica de alto a baixo com um estilete.
O busto nu da nativa aparece. Ela olha para seus dedos manchados de sangue com uma espécie de perplexidade nervosa.
- Aqui - berra o homem enquanto a jovem tenta se desvencilhar dele - aqui, a gente faz o que quer. Aqui, nosso governador é dom Diego.
Gabriel está de espada em punho. Mas o ranger de 20 espadas sendo desembainhadas lhe responde. Num piscar de olhos, uma cerca de lâminas se eriça diante dele.
A boca de Almagro é acometida de um tremor maquinal que sacode suas magras faces bexiguentas.
- Veja a generosidade desses homens, dom Gabriel. Esse título que me recusaram, vê com que naturalidade eles me concedem... E não é só: quer ver até onde eles estão dispostos a chegar por mim? Vamos, sei que é corajoso, mas nós somos 500 e você está sozinho. Mesmo para você, acho que isso seria demais... Dom Cristobal de Narvaez acaba de lhe dizer isso. Aqui sou eu quem diz o sim ou o não. E viajo como eu quero. Se não gostar do meu jeito, volte para lustrar as botas de dom Francisco.
Gabriel embainha a espada devagar. O cansaço da viagem torna seus membros pesados e ele tem um gosto amargo na boca.
As palavras do velho louco cantam tristemente em sua cabeça enquanto ele gira nos calcanhares sob as risadas de escárnio.
"Taypikala acabou! Viracocha tem que recomeçar!"
Cuzco, agosto de 1535
- Venha, Senhor!
- Vou furá-lo!
- Ai, caballero!
- Titu! Lloque! Cuidado com esses paus, vocês vão se machucar!
Por um instante, os dois garotos, de apenas cinco ou seis anos, contêm os braços armados com um pedaço de pau transformado em espada pela imaginação. Olham para a mãe. Com as outras servas, ela está ocupada cuidando da grande sala comum, sacudindo as mantas cias camas. Ao ver que depois de repreendê-los ela já virou as costas, os dois meninos estouram na gargalhada. Pulando como cabritos, recomeçam a brincadeira com mais ímpeto. Uma brincadeira magnífica e nova: lutar como os estrangeiros e com armas de estrangeiros!
Parada no escuro, Anamaya vê os meninos brincarem. Há um sorriso em seus lábios, porém um sorriso sério, melancólico, que não ilumina seus olhos.
- Em que está pensando, Coya Camaquen? - murmura ao seu lado uma voz leve.
- Inguill!
Anamaya vira-se com um pequeno gesto de surpresa e vê o rosto terno de sua jovem amiga.
- Não ouvi você chegar! Você continua andando como uma brisa - acrescenta com ternura.
- Mais ou menos! Estou atrás de você há muito pouco tempo. Mas não ousava abordá-la, de tal forma que parecia apaixonada por esses garotos. Eu disse a mim mesma...
Inguill hesita, morde os lábios antes de sussurrar:
- Estava pensando nele olhando os meninos, não?
Anamaya faz que sim balançando a cabeça uma vez, olhando novamente para as crianças. Correndo, perseguindo-se de um lado para outro no pátio, eles brincam até ficar sem ar, misturando aos gritos e às risadas algumas palavras roubadas da língua dos estrangeiros.
- Ele lhe faz falta - diz Inguill sem que isso seja exatamente uma pergunta. - Há tantas luas não o vê! Quase dá para esquecer o rosto dele e até como ele é. Eu não tenho a sua força. Há muito tempo já teria morrido de tanto chorar...
Anamaya reprime seu desejo de mandar a menina se calar. A afeição de Inguill é sincera, mesmo que ela não perceba a crueldade de suas palavras. E, depois, ela tem razão. Há, efetivamente, muito tempo que Anamaya tem que calar seu amor por Gabriel! Tanto tempo que confia seu sofrimento e sua solidão apenas à escuridão da noite e ao silêncio da montanha.
- Isso é assim - diz baixinho. - As vezes, consigo esquecê-lo durante o dia inteiro. As vezes, durmo a noite inteira sem acordar para pensar nele. As vezes, você tem razão, tenho medo de esquecer o rosto dele, a forma da boca, a doçura das mãos... Mas volto a pensar nele, sem saber por quê. Nada é esquecido, nunca. Agora mesmo, eu atravessava esse pátio e vi esses meninos brincando. De repente, era como se o estivesse vendo.
- Mas por que continuar pensando nele, se não sabe se ele voltará? Pior ainda: você sabe que ele nunca poderá ser seu verdadeiro esposo. Você se faz sofrer em vão, Coya Camaquen.
Os olhos brilhantes, piscando para segurar o formigamento que anuncia as lágrimas, Anamaya dá uma risadinha. Segura a mão que Inguill lhe estende com ternura.
- Você certamente tem razão. Mas é assim... O que posso fazer? Penso nele porque ele está no meu coração. Penso nele porque ele está na minha alma daqui e talvez até na alma que me espera no Outro Mundo. Penso nele porque meu corpo espera as caricias dele e não quer outro...
- Deve ser terrível!
- Não, nem sempre...
Elas se calam um instante, pois a mãe dos dois meninos torna a chamá-los. Dessa vez, confisca-lhes os paus espadas, provocando lágrimas.
- Gabriel não está aqui e, no entanto, está tão próximo, tão próximo que há um lugar para ele entre minha respiração e minha pele! - murmura
Anamaya acompanhando a cena com os olhos. - Em alguns dias, isso é tão forte, tão violento, que eu poderia acreditar que ele acaba de deixar Cuzco. Nesses dias, parece que basta eu me virar para poder tocar no rosto dele e ele me abraçar. Mas você tem razão: há muitos outros dias em que sei a verdade. Ele está longe, tão longe que eu poderia ter dúvidas de que ele ainda viva neste mundo.
Uma lágrima solitária saiu das pálpebras de Anamaya. Ela a enxuga furtivamente. Sorridente, quase jocosa, pega o braço de Inguill e a leva para a porta da cancha.
- Vamos - diz com uma voz mais firme. - Vamos parar com essa tagarelice de mulher! Venha comigo até a praça Aucaypata. Hoje de manhã levaram para lá o Corpo Seco dos antigos Senhores do clã de Manco. Quero saudá-los.
Inguill, as faces coradas de emoção, concorda com um gesto de cabeça e segue Anamaya, com o olhar pensativo.
Quando se aproximam do muro que cerca a cancha, ecoa o som breve de uma trompa. Sem que nenhuma ordem seja dada, seis guardas munidos de lanças decoradas com plumas nas cores do Único Senhor Manco acorrem para o lado de Coya Camaquen, para escoltá-la.
Enquanto elas tomam a ladeira íngreme que leva a Aucaypata, Inguill pergunta de repente baixinho:
- Anamaya, me diga: é possível amar um estrangeiro como amamos um homem de nossa raça?
Surpresa, Anamaya quase fica imóvel. Antes de responder, olha para os homens da escolta para se assegurar de que não podem ouvir.
- Gabriel não é um estrangeiro como os outros. Isso seria difícil de lhe explicar: há nele uma força que o torna diferente de todos os homens. Tanto os daqui como os do país de onde ele vem.
Inguill balança a cabeça com um sorriso travesso e ao mesmo tempo embaraçado. Pergunta ainda num sussurro quase inaudível:
- Eu queria dizer: eles fazem amor como os homens daqui? Ouvi algumas mulheres dizerem que os estrangeiros dão mais importância a isso do que os homens daqui! Que gostam mais de fazer e que para nós mulheres, bem...
Inguill não ousa terminar a frase. Anamaya dessa vez pára mesmo. De onde elas estão, avista-se a praça principal das cerimônias, as múmias alinhadas do lado esquerdo, cada qual tendo à sua frente um braseiro mantido por um sacerdote.
- Por que me pergunta isso, Inguill?
- Eu queria ajudar Manco. Acho que posso, se você me ajudar, Anamaya. Sei que os Senhores estrangeiros voltaram ontem a atormentar Manco para que ele lhes dê o seu esposo, o Irmão Duplo de ouro. Eles gritaram e ameaçaram tanto! Não consegui dormir a noite inteira pensando no que pediram a ele...
Anamaya sabe muito bem em que Inguill está pensando. As ameaças dos dois irmãos do Governador Pizarro, Juan e Gonzalo, ainda ecoam dentro dela. Esses dois demônios que são a causa do afastamento de Gabriel!
Mais uma vez, Manco recusou corajosamente lhes ceder a estátua de ouro. Mais uma vez, eles o insultaram, a ele, o Inca, o Filho do Sol, como se ele fosse um cão vadio! Antes de lhe propor uma troca ignóbil: que a Coya, a própria esposa dele, o Rei, deixasse seu leito para entrar no de Juan!
- Não deixarei que isso seja feito! - murmura Anamaya tremendo de fúria.
Os homens da escolta começam a observá-las. Ela segue seu caminho, leva Inguill para a praça. Em voz mais baixa mas igualmente violenta, diz:
- Manco não deve mais aceitar que o tratem com tanto desprezo! Ele não pode ceder a Coya, assim como não aceitou que eu fosse entregue a eles. Curi Ocllo é a Rainha. O Sol e a Lua abençoaram o ventre dela para que o Único Senhor gerasse ali sua descendência. Ela é ainda mais sagrada que eu. Que vergonha seria se esse estrangeiro a tomasse para si! Nenhum dos Poderosos Senhores acreditaria mais em Manco. Ele não teria mais nenhuma autoridade!
- Anamaya, ele não tem mais escolha - protesta Inguill, o semblante de repente transtornado. - Manco não pode recusar de novo! Os estrangeiros vão acorrentá-lo. Vão, sim... Ó, que Viracocha nos ajude!
O rosto endurecido, com um gesto breve, Anamaya faz sinal à escolta para se afastar pois elas chegaram aos últimos degraus calçados que dão na praça. Não há muita gente, somente alguns Senhores Incas, sacerdotes e rapazes em volta das múmias. Alguns espanhóis, afastados, observam-nos com uma curiosidade um tanto cansada. Vai longe o tempo em que essa cerimônia os fascinava.
- Não, Inguill - retoma Anamaya com clareza de frente para a menina. - Não se deixe invadir pelo medo. Ele é sempre mau conselheiro. Devemos sair de Cuzco. É melhor. Não é mais possível dividir esta cidade com os estrangeiros.
- Anamaya! Isso é loucura. Só vai trazer guerra!
- É um risco a correr - replica Anamaya com calma. - Você viu os meninos ainda há pouco? Eles brincavam de estrangeiro, usavam palavras estrangeiras. Seus paus não representavam nem os tacapes dos guerreiros fincas, nem lanças ou arcos, mas sim as armas dos estrangeiros! O que serão quando crescer se não fizermos nada? Vão parar de amar a Inti e Mama Quilla. Vão parar de ser os filhos dos humanos a quem Viracocha concedeu o Império das Quatro Direções. Serão escravos dos estrangeiros que desprezam nossos anciãos do Outro Mundo e chamam nosso país de "Peru". Você sabe, Inguill: fiz tudo para manter a paz quando Chalkuchimac queria a guerra. Era preciso isso para que Manco pudesse se tornar nosso Único Senhor. Mas hoje, o Único Senhor Manco deve saber fazer a guerra.
- Ele não pode! - reage Inguill. - Perdoe-me por me meter em coisas que uma menina como eu ignora, Coya Camaquen. No entanto, dizem por toda parte e até no adllahuasi que não temos forças suficientes, nem sequer guerreiros para fazer guerra aos estrangeiros.
- Em algumas luas, será diferente.
- Em algumas luas, Manco estará com os pés e o pescoço acorrentados como o Único Senhor Atahualpa! - exclama Inguill. - Em três dias os estrangeiros vêm buscar a Coya!
Anamaya vira as costas com um muxoxo de despeito. Por um instante, para acalmar as batidas de seu coração e evitar dirigir a Inguill palavras demasiado duras, ela olha os sacerdotes com longas túnicas franjadas fazerem oferendas. Em gestos precisos, eles jogam pedaços de carne e grãos de milho nos braseiros. Em seguida, erguem vasos de chicha diante dos Corpos Secos, como se os convidassem a beber.
Sem olhar para Inguill, sem poder esconder a ironia, pergunta:
- Muito bem, já que parece ter pensado sobre tudo isso, talvez tenha uma solução melhor...
- Sim! Não fique zangada comigo, Anamaya. Só quero ajudá-la, a você e a Manco.
- E como pretende conseguir isso?
A jovem se crispa antes de dizer de um fôlego só: - Os estrangeiros podem escolher a mim.
- A você? Inguill! Não diga bobagens. Você não é a Coya, que eu saiba! - Não, mas eles não sabem! E todo mundo diz que pareço muito com Guri Ocllo...
Pasma, Anamaya observa por alguns segundos o rosto doce e inocente
de Inguill, suas maçãs salientes, sua boca pequena mas delicadamente delineada, seu nariz um pouco adunco... É verdade que ela se parece com a esposa de Manco. Todavia, Anamaya recusa com um gesto de cabeça, comovida: - Não, Inguill, é loucura. Você não sabe o que diz. - Anamaya, me escute! Você sabe que amo Manco mais do que tudo.
Tanto quanto você ama o seu estrangeiro. Eu devo tudo a ele, a começar pela vida, lembra-se! E hoje, embora ele não tenha me querido na cama dele, vou lhe mostrar meu amor...
- Tornando-se a esposa de um estrangeiro?
- Evitando que ele faça uma guerra que não pode ganhar. Abalada, Anamaya olha perplexa para sua amiga. - Mas você compreende o que isso significa para você?
- Pensei bem sobre isso - garante Inguill com um sorriso pálido. -
Por isso lhe perguntava há pouco como os estrangeiros amavam. Serei a mulher do mais velho, o que se chama Juan. Observei-o bem: acho que ele não tem a crueldade do irmão.
Anamaya balança a cabeça incrédula. Lágrimas nos olhos, Inguill ri e
acrescenta:
- E depois, assim serei rainha por um momento! Ajude-me, Coya Camaquen! Leve-me até Manco para que eu lhe explique meu plano.
Escondida atrás da manta baixada diante do postigo, Anamaya contempla a animação festiva que reina no pátio. Manco trabalhou bem. Os estrangeiros, por uma vez, apresentam um semblante alegre.
Espanhóis ou Incas, no pátio da cancha real não há mais de dez guardas e soldados, enquanto uma multidão de moças lindas passeia de um lado para outro. Todas vestiram túnicas de cerimônia de cores vivas. Há guirlandas de cantatas vermelhas presas em suas toucas. Num balé hábil, elas fazem rodopiar diante do Único Senhor e seus convidados bandejas abarrotadas de comidas cheirosas, vicunha assada e recheada com ameixas, rolas e perdizes empanadas com batatinhas minúsculas, purê de quinoa com amendoim...
Juan Pizarro está usando uma roupa aparentemente nova, de mangas largas e gola fechada por uma renda da largura da mão, escondendo seu sinal de nascença. Segura as luvas numa das mãos e, na outra, uma catléia branca que ele leva às narinas, aspirando o forte perfume da flor e batendo as pestanas. A seu lado, Gonzalo aceita com tanta amabilidade as frutas e as bolachas de milho impregnadas de mel que ninguém poderia acreditar, naquele instante, no negrume de sua alma. Diante de Manco, sentado em seu tripé real, ambos se instalaram num banco que foi forrado de cobertores de fina lã para ficar mais confortável.
- Está tudo bem - anuncia baixinho Anamaya. - Os estrangeiros estão satisfeitos. Manco age como se se orgulhasse muito de agrada-los. Eles não vão demorar a pedir a Coya...
Atrás dela, agachada na escuridão onde apenas sua touca de ouro reluz, Inguill concorda com um murmúrio.
Como Anamaya adivinhou, enquanto criadas de cabeça inclinada e olhos baixos trazem jarros de chicha, Juan Pizarro declara:
- Sapa Inca, sua refeição está boa e sua hospitalidade agradável, mas eu não gostaria que se esquecesse do motivo de nossa vinda.
Manco, sem responder, faz um gesto com a mão direita. Imediatamente as servas cessam sua azáfama para formar uma fila dupla até a porta do segundo pátio.
Lentamente, com muita graça, precedida por duas moças muito jovens de túnica branca, aparece a primeira das concubinas de Manco. Enquanto ela se aproxima devagarinho entre as alas de servas, os dois espanhóis perscrutam seu rosto largo, sua baixa estatura, seus lábios bem desenhados. Há nela mais robusteza que beleza, mas também uma evidente sensualidade. Ela vai postar-se diante do Único Senhor e se prosterna, sem um olhar para os estrangeiros.
Antes mesmo que Manco a mande se levantar, a boca de Gonzalo se infla de desdém.
- Sapa Inca! - diz. - Você estaria querendo nos fazer acreditar que essa mulher é sua esposa?
- Ela e! - assegura Manco sorrindo.
- Não. Ele está nos enganando! Ela não se parece nada com a Coya! - exclama Juan com despeito. - Olhe, Gonzalo, ela é mais velha que eu!
- Sapa Inca - suspira Gonzalo levantando-se. - Vamos nos zangar de novo. Para meu irmão, é preciso a mais bela de suas mulheres. Sua esposa preferida, não e?
Anamaya vê o sorriso do espanhol, mas reconhece em sua voz uma vibração de fúria contida. Manco também deve ter percebido isso, pois ri baixinho:
- Parabéns! Você tem razão, irmão do Governador, você está certo. Essa mulher é realmente minha, é ela que, há muito tempo, me ensinou como um homem devia se comportar entre as pernas de uma esposa.
Os dois espanhóis dão gargalhadas enquanto Manco já prossegue:
- Não me agradaria dar minha mulher mais bela a um homem que não fosse capaz de reconhecer sua beleza. Folgo em saber que seu gosto é tão exigente quanto o meu.
Ele bate palmas. Da vasta sala contígua a seu quarto saem 20 moças. Os espanhóis se viram boquiabertos, olhos arregalados.
- Amigos - anuncia amavelmente Manco -, eis minhas mais belas mulheres. Não posso fazer melhor do que deixá-los escolher!
De seu refúgio na penumbra, Anamaya vê a perplexidade dos estrangeiros, enquanto as jovens, o semblante assustado e submisso, adiantam-se até eles. Estão todas vestidas com o mesmo añaco azul claro, uma capa branca realçada apenas por uma barra colorida.
- Pronto - murmura Anamaya -, as concubinas estão aí.
Nervosa, tensa, Inguill aproximou-se tanto que Anamaya aspira o pesado perfume de almíscar oleoso com o qual ela se untou.
- Olhe...
Imperceptivelmente, Anamaya afasta um pouco mais a manta para que a jovem também possa ver a cena.
Sob o sol que inunda o pátio, os irmãos do governador passam em revista as concubinas. Erguem um queixo, uma mão, alisam um ombro, fazem virar esta, depois aquela. Os gestos e as risadas de Gonzalo tornam-se mais insistentes. Ele apalpa um seio, uma barriga, esboça carícias lascivas que fazem Anamaya estremecer de repulsa.
- Inguill, você tem certeza...
- Sim, sim! - atalha Inguill. - Só temo que eles escolham uma concubina antes mesmo de me ver!
Mas não. Tudo acontece como ela previu. Franzindo o cenho, Gonzalo segura seu irmão que parece encantado e não pára de fazer saudações com o chapéu. Por um instante, eles confabulam em voz baixa. Depois, Gonzalo torna a se voltar para Manco. Agora, seus olhos brilham de raiva quando ele para junto do Único Senhor.
- Sapa Inca, pelo sangue de Cristo! Quando vai entender que não pode mais nos mentir?
Ele berra de repente e seu grito ecoa no pátio, deixando imóveis as concubinas e as servas:
- Nunca mais!
Inguill instintivamente aperta o braço de Anamaya como se estivesse arriscada a quebrar sob a fúria do espanhol.
No entanto, Manco reage com uma placidez desarmadora. Ignorando os gritos de Gonzalo, ele pede a Juan num tom uniforme:
- Irmão do Governador, nenhuma dessas mulheres lhe agrada?
- Não é que não sejam bonitas, Sapa Inca - reconhece Juan embaraçado. - Elas são agradáveis de olhar, viçosas e bem-feitas, é preciso reconhecer. - Mas nenhuma delas é a Coya! - atalha Gonzalo com um tom de censura. - E você sabe disso...
- Ah, amigos! - suspira Manco. - Como vocês são difíceis!
- Não discuta mais. Não estou mais com vontade de me divertir com seus jogos. Queremos ver a rainha imediatamente.
A expressão de Manco se entristece de repente. Seu olhar fica parado como se seu coração se dilacerasse. Anamaya estremece com isso, abraçada com Inguill.
- Ele vai chamá-la - sussurra. - Cuide-se, minha amiga.
Vê nas faces de Inguill o brilho das lágrimas. Contra todas as evidências, a jovem murmura, beijando-lhe as mãos:
- Eu não estou com medo! Não estou com medo!
Anamaya cola seu rosto no dela. Juntas, elas escutam Manco chamar. - Curi Ocllo! Que venha aqui a Coya Curi Ocllo.
- Não esqueça que amo você! - sussurra Anamaya. - E prometa
fugir se ele quiser lhe fazer mal...
Mas as criadas já afastaram a manta e se prosternam no limiar do aposento. Enquanto Anamaya se retira um pouco mais na penumbra, Inguill adianta-se para a claridade.
Imediatamente, a satisfação relaxa os olhares dos espanhóis. Nunca Inguill esteve tão linda, e sua beleza parece refletir-se nos rostos dos estrangeiros. Verde água, de um tecido tão fino que dá para se ver os pontos, o añaco que a envolve realça seu corpo gracioso. A lliclla violeta, combinando com os motivos engenhosos de seu cinto, flutua sobre seus ombros e cai até o chão fluida como fumaça. Sob o penteado salpicado de conchinhas douradas, seu rosto é perfeito, os cílios curvos como uma pincelada. Suas pálpebras e seus lábios trêmulos, à beira das lágrimas, apenas realçam sua beleza.
- Ah! - exclama Gonzalo. - Meu irmão, ei-la finalmente! Aí está a Coya, eu a reconheço.
Juan parece ter dificuldade em sustentar essa visão. Anamaya sente nele uma perturbação mais sincera do que teria imaginado. Ele se aproxima com um passo hesitante, o olhar fixo e emocionado, saúda Inguill cortesmente, com uma mesura, e, quando se endireita, ainda pasmo de admiração, sente-se um pouco de verdadeiro respeito em sua felicidade.
- Essa sim! - balbucia dirigindo-se a Manco. - Essa sim, Sapa Inca, eu reconheço, é a Coya! E preciso dela imediatamente...
Enquanto estende a mão para pegar a de Inguill, esta, como está previsto, põe-se a gritar. Vira as costas, geme, escondendo o rosto com as mãos, treme e recua de mansinho, grita afinal que não quer deixar seu Único Senhor, que essa gente lhe dá medo! Seu medo e sua dor se disseminam por todos os rostos das concubinas e das servas ainda presentes. A atmosfera fica tensa, de maneira que brotam lágrimas e irrompem murmúrios.
- Alto! - ri Gonzalo. - Calma, senhora Coya! Essa é uma acolhida e tanto para seu novo esposo!
No entanto, sob o olhar consternado de Juan, Inguill, amarrotando seu belo traje, deixa-se cair aos pés de Manco. Assim, parece-se com uma flor suntuosa e opulenta que, de repente, desabrocharia toda. Mas ela geme:
- Único Senhor, eu lhe suplico, não me abandone! Único Senhor, só amo você! Único Senhor, meu coração só bate por você e os Ancestrais do Outro Mundo! Único Senhor, abra meu peito e tome meu coração, mas não o de aos estrangeiros.
Anamaya sabe que estas são frases que ela e Inguill combinaram, mas não pode deixar de estremecer, tamanha é a sinceridade que transmitem. E todos, ela vê, até os estrangeiros de repente desconcertados, ficam abalados com elas.
- Levante-se, mulher - responde Manco num tom sombrio. - Vá com esse Senhor que é meu amigo. Não se preocupe por ele ser estrangeiro. Você me servirá tornando-se sua fiel esposa. Assim eu decidi.
- Ó, Único Senhor! Tenha piedade de mim! Mate-me, porque não tenho mais razão de viver se me deixa nas mãos de outro homem...
Anamaya torna a sobressaltar-se. As palavras de Inguill são como flechas. Mas, contra todas as expectativas, quando está previsto que o Único Senhor deve apenas ignorar suas lágrimas, Manco inclina-se para Inguill. Pega-lhe o braço e a levanta. Puxa-a bruscamente para si e beija-a na boca.
O beijo talvez não seja longo, mas o silêncio que paralisa o pátio parece prolonga-lo infinitamente.
Quando Manco afasta Inguill, Anamaya encontra fugazmente o olhar da jovem. Um estranho sorriso o ilumina e se mantém mesmo quando as mãos de Juan a seguram com força e quando, já cercada pela escolta dos soldados espanhóis, ela é mais empurrada que conduzida para a porta do pátio.
Em menos tempo que o necessário para dizer isso, os irmãos do Governador desaparecem com suas respectivas presas. Anamaya sai para a entrada da sala, o estômago e a garganta apertados de vergonha, raiva e pena. O pátio parece mais povoado de máscaras que de rostos, todas com os mesmos sinais de dor.
Manco levanta-se e a segue. Afasta as concubinas e os servos que acorrem. Seu andar é o andar de um homem pesado, talvez embriagado. Em seu rosto há uma expressão que ele tentou fazer parecer um sorriso, mas que é apenas uma espécie de ríctus crispado e sem alegria.
No azul profundo do céu, erguendo os olhos, Anamaya vê as muralhas da fortaleza de Sacsayhuaman, suas três torres poderosas que parecem indestrutíveis.
- Conseguimos - diz Manco soturnamente.
Anamaya olha para ele balançando a cabeça. Sente tristeza e amargura até o fundo da alma.
- E o que resta de seu poder - diz Anamaya mostrando as muralhas no alto. - A aparência do poder sob o Sol, a lembrança do poder... - Coya Camaquen, por favor.
- ... um poder que nos reduz a aceitar o sacrifício de uma jovem para alimentar a ganância desses monstros...
O rosto de Manco ficou cinzento e ele cerra os punhos.
- Não pense que eu não sei - diz com uma raiva sombria -, não pense que o sofrimento não me dilacera como as garras de um puma em meu ventre...
Anamaya se cala. A palavra "puma" a sobressalta. Puma tão forte, mas tão distante...
"Venha", murmura ela entre dentes, "por favor, venha me acudir."
Cuzco, setembro de 1535
O barulho da chuva é suave. Anamaya ouve-o tamborilar por toda parte no telhado. A própria chuva é suave. Escorre sem violência em seus cabelos e sua testa, molha seu añaco.
Anamaya ouve-a agora caindo na lama do pátio e nas poças que se formaram ali. Tem vontade de sair da cama e ir ver essa chuva suave que cai na noite. Vê a si mesma interrompendo o sono e se levantando. Mas, na mesma hora, compreende que há algo errado.
Por que chove em sua testa e seus cabelos se ela está debaixo de um teto? O pátio da cancha é calçado e a chuva não pode transforma-lo em lama!
Então ela se levanta de fato e vai até a porta. Sim, ela se enganou! Não está na cancha, mas sim na choça da aldeia da floresta, a aldeia de sua infância, sua aldeia natal. Chove mais forte agora, como chovia naquela noite, antes de tudo começar.
Antes que ela se tornasse a Coya Camaquen.
Fugazmente, Anamaya diz a si mesma que está dormindo, que está sonhando. Talvez devesse despertar para repelir esse sonho. No entanto, não pode deixar de olhar fascinada para o terreiro da aldeia, com quatro grandes choças. Tudo está exatamente como antes, só que as choupanas estão vazias. No entanto, ela se sente em perigo e tem medo do ataque dos guerreiros do Único Senhor Manco.
Sim, tem medo e sabe que deveria despertar.
Mas o brilho da chuva caindo na noite e sua música suave são tão lancinantes que ela não consegue desligar-se dessas coisas. E tão extraordinário tornar a ver essa aldeia onde ela viveu em menina! Se tiver coragem, talvez veja o rosto da mãe.
É grata a seu esposo o Irmão Duplo por lhe permitir esse sonho. Deverá, quando acordar, pensar em lhe agradecer. Sente-se assustada e ao mesmo tempo despreocupada.
Sobressalta-se, pois ouve um barulho. Um trote. Como o de um bicho. Depois outro. Julga ver o vulto de um animal de pêlo claro pular com um grunhido para a paliçada.
Mas não. Ela se enganou. O que ouve é um barulho de passos no chão molhado. E até um barulho muito específico que reconhece: um barulho de botas! Os passos de um estrangeiro. "
Seu coração se inflama na hora em que ele aparece entre as choças. É ele, com certeza. E ele, Gabriel. Tirou o chapéu e seu rosto na noite e tão luminoso quanto no dia claro. A chuva não o molha. Seus belos cabelos de ouro estão secos. Ele sorri. Estende os braços para ela cujo ventre e peito tremem de felicidade. Há tanto tempo esperava por ele. Afinal, afinal, ele está de volta, vivo e belo como no dia em que se viram pela primeira vez!
Uma felicidade louca inunda Anamaya quando ele a abraça. Ela sente através da camisa molhada seu calor e sua respiração acelerada quando ele começa a levantar seu añaco. Ela ri de sua pressa! Ele a levanta como uma pluma e a leva para a cama. Ela quer ver seu rosto tanto quanto seus olhos. Há tanto tempo sente falta de seu rosto, seus lábios doces, seu nariz reto e fino, suas faces claras. Mas ele está tão impaciente que fica bruto. Ela o empurra e percebe que uma barba lhe cobre o queixo e a boca. Que ele mudou de rosto.
E então que ela grita.
Tem os olhos arregalados. O homem que se espojou nela no escuro não é Gabriel. Seus dedos lhe apalpam o peito e, com uma violência insuportável, tentam despi-la. Ela torna a gritar, compreendendo que está sendo violentada.
Seu agressor agora recua, os olhos cheios de ódio. Com imprecações em espanhol, ele lhe tapa a boca com uma das mãos, enquanto procura sua garganta com a outra.
- Deixe-me fazer o que quero, vagabunda!
Ela mal compreende as palavras que escumam nos cantos da boca retorcida de desejo e ódio, mas reconhece a voz do irmão do Governador.
O medo de Anamaya dá lugar à fúria. Ela tenta rolar de lado, mas o homem a segura. Ela se debate, sacode a cabeça. A mão do espanhol passa por sua boca, o suficiente para que ela possa cravar-lhe os dentes. O gosto de sangue chega à sua língua na hora em que o homem grita de dor.
- Abra as pernas, sua puta índia!
Ela aproveita a surpresa dele para se encolher, encostando os joelhos no peito. Gonzalo arqueja. Com a mão ferida, ele não tem firmeza. Torna a cair em cima dela, para imobilizá-la. Mas Anamaya conseguiu chegar-lhe com o pé na barriga e o empurra com toda a força. Ele cai para trás, até a parede, arrancando o añaco e lhe arranhando um seio.
De um salto, Anamaya consegue se levantar. Mal se põe de pé, grita para chamar as servas. Percebe que está chovendo realmente, e que Gonzalo tem os calções encharcados. Até a camisa, por baixo do gibão aberto, está molhada de chuva. Seus cabelos estão colados em seu rosto alucinado. Ele faz caretas e ri como se se tratasse de uma brincadeira. Tateando, encontra a bainha da espada que havia largado perto da cama. Pega-a e se levanta.
- Cale a boca, puta!
Mas, antes que ele desembainhe a lâmina, movida por uma violência até então desconhecida para ela, Anamaya chuta. Com uma torção do tronco, Gonzalo tenta evitar o golpe, mas é tudo muito rápido. E o corpo todo de Anamaya que deseja matar. Ela sente seu calcanhar bater na cara do estrangeiro, deslizar pela maçã do rosto e se encaixar na cavidade ocular. Com todo o peso, ela se deixa cair de novo na cama. A cabeça de Gonzalo quica como uma bola de trapo e bate na parede de pedra.
- Coya Camaquen! Coya Camaquen!
Os gritos chorosos das servas cercam-na quando ela se levanta. Guardas já acorrem com tochas, maças e lanças. Todos os olhares estão grudados nela, em seu rosto arranhado e sua túnica rasgada maculada por um pouco de sangue. Ouvem-se gemidos que ela quer interromper com um gesto. Faz o possível para recobrar o fôlego:
- Estou bem - assegura como se falasse consigo mesma. - Estou bem. Ele não me fez nada...
A seus pés, o irmão do Governador não se levantou. O sangue lhe escorre da têmpora ziguezagueando num fio fino pelo pescoço para se insinuar dentro da camisa.
Cobrindo os ombros com uma capa oferecida por uma serva, Anamaya pergunta:
- Ele está vivo?
Um guarda se debruça sobre o espanhol, pousa a mão em seu peito e põe o rosto perto de sua boca. Sorri e balança a cabeça:
- Só está derrubado, Coya Camaquen! Mas posso matá-lo, se quiser.
Ela fecha os olhos e respira fundo para lutar contra a vontade de lhe dar ordem para isso:
- Não... - sussurra. - Não! Mande apenas chamar o Único Senhor.
Quando Gonzalo, sempre encostado na parede do quarto, recobra a consciência, seu olho direito está inchado, roxo. Após tê-lo apalpado resmungando, ele empurra as servas que procuram colocar um emplastro em sua têmpora. Pasmo, vê então as 20 lanças apontadas para ele.
Os guerreiros do Único Senhor se colocaram de cada lado de Manco e Anamaya. Alguns Poderosos da corte também estão presentes. A luz bruxuleante das tochas ilumina seus rostos impassíveis, tornando-os ainda mais severos.
O irmão do Governador tenta rir, mas a dor o faz crispar o rosto. Sua cara não tem mais nada de anjo, mas somente de um animal cruel e ferido. Seu olho são encara Anamaya com uma ferocidade que a faz estremecer.
- O que lhe prometi é suave ao lado do que farei com você - murmura.
Ele consegue esboçar um sorriso ignóbil, e Anamaya sente o medo invadir seu coração e seus membros como um veneno.
Gonzalo se levanta, mas logo vacila. Num esforço cheio de orgulho, a boca torcida de dor, consegue pôr-se de pé agarrando-se às pedras da parede. Então Manco anuncia num tom impassível:
- Irmão do Governador, eu deveria matá-lo pelo que fez. Já lhe disse: ninguém tem o direito de tocar na Coya Camaquen!
Gonzalo olha para ele, primeiro com um certo espanto, depois, uma risada entrecortada acaba de deformar sua expressão.
- Entre nós - diz ainda Manco -, um homem que violenta uma mulher é pendurado pelos cabelos até os bichos só deixarem seus ossos no chão.
- Muito bem, então tente. Mate-me!
Gonzalo dá dois passos incertos. As pontas das lanças logo se fecham em seu peito e o imobilizam. Ele olha Anamaya e Manco de alto a baixo e de repente ruge, recobrando a arrogância:
- Acha que me mete medo! Você não passa de um covarde, Sapa Inca! Não é homem, não tem o que é preciso para me matar aqui, agora. Mesmo com dez guerreiros para fazerem isso por você. E vou lhe dizer por quê...
Ele cospe, pigarreia. O sorriso perverso está em seu rosto.
- Porque sabe que minha morte significa a sua e que você é mais apegado à vida do que a qualquer outra coisa. Mais que a seu ouro, mais que a suas mulheres... mais que à sua honra.
Ele fita Manco com raiva, com um ódio dissimulado e total, e cospe insultos como se fossem estocadas:
- E isso que fizemos de você, ó Filho do Sol, divino Sapa Inca: um fantoche que grita e gesticula. Os sons que saem de sua boca não têm mais sentido que o choro de um recém-nascido...
Continua falando enquanto os guerreiros empurram suas lanças. As pontas de bronze pressionam sua camisa suja. Com um gesto violento, ele afasta algumas. Mas esse esforço o deixa tonto. Ele recua cambaleando para apoiar-se na parede e grita como um bêbado:
-- Ó grande Rei dos Reis! Achava que me enganava? A mim...
Ri mais e cospe uma saliva misturada com sangue nas pedras do chão.
- Sua Coya era uma serva. O pobre Juan que achava que estava comendo a sua rainha só tem uma macaca na cama! E você achava que não perceberíamos, hem?
Manco faz um sinal para que os guerreiros se afastem dele. Segura a espada de Gonzalo, erguida na altura do ventre do espanhol. Está tão perto dele que entre ambos só há a distância da espada nua. Por um instante, o medo obscurece o olho são do espanhol.
Anamaya também dá um passo. Sua mão esboça um gesto para segurar Manco. Mas, com um movimento tão violento que seus guerreiros se sobressaltam, o Único Senhor ergue a espada e o joelho ao mesmo tempo. Abaixa a lâmina e parte-a em dois com um tinido agudo.
- Nós é que dizemos quem deve viver e morrer! - arrota Gonzalo. - Nós é que escolhemos os vivos e os mortos!
Manco, os olhos arregalados de fúria, pega um tacape das mãos de um soldado e já o levanta.
- Não! - grita Anamaya. - Não, Único Senhor! Não faça isso, ainda não!
Há um instante de flutuação. Todos olham para a mão de Manco, para seus olhos que parecem estar vermelhos como os de Atahualpa antigamente.
O silêncio é tão grande que todos escutam a respiração rouca e chiante do espanhol.
- Deixe-o ir embora, Único Senhor - prossegue suavemente Anamaya. - Há um pouco de verdade na mentira dele. Ele lhe fará mais mal morto do que vivo.
Manco deixa os braços caírem e lança o tacape aos pés de Gonzalo. - Saia de meu palácio, estrangeiro - grita. - Deixe essa cancha... Gonzalo sorri. Desvencilha-se dos braços dos guerreiros e passa a mão
no rosto que está sangrando de novo.
- Ouça, sua puta intocável que em breve vou tocar! É melhor para você que eu continue vivo.
As servas e os guardas se afastam, e o deixam aproximar-se da entrada do aposento. Ele se vira e cospe novamente no chão, apontando um dedo vermelho de sangue para Manco:
- Pode ir deixando esses seus ares de importância, Sapa Inca. Você não é mais nada aqui, só uma bosta de burro! De hoje em diante, o rei de Cuzco sou eu. Olhando-o sair entre os soldados índios, que a contragosto afastam suas lanças e deixam cair seus tacapes, Anamaya pensa em suas últimas palavras. São desprezíveis e grotescas.
São verdadeiras.
- É preciso partir esta noite, Único Senhor - diz Anamaya tão logo os guardas e as servas se retiram. - É preciso ir para longe de Cuzco.
- Você não deveria ter-me impedido de matá-lo há pouco - reclama Manco sem ouvi-la.
- Amanhã, o irmão dele viria matá-lo também. Você deve manter seu ódio na coleira, como uma fera, e não deixá-lo explodir...
Como se não conseguisse extravasar toda a violência contida, Manco dá um grito e, com os punhos cerrados, golpeia a noite onde finalmente já não chove mais.
- Você devia ter-me deixado matá-lo! Ele a desonrou e você o poupa? Onde está seu orgulho, Coya Camaquen?
Anamaya o enfrenta, o olhar seco e frio:
- Matá-lo significa guerra. A partir de amanhã! Você não está em estado de fazer guerra aos estrangeiros, Único Senhor. Para isso é preciso primeiro sair de Cuzco, depois reunir nossas forças. Sabe que não temos ainda guerreiros suficientes! Os estrangeiros continuam sendo mais fortes que nós...
Manco perscruta seu rosto com atenção.
- Acha que chegou a hora da guerra?
- A hora de prepará-la chegou. Temos que partir esta noite. Você não pode continuar neste palácio.
Por um instante, Manco a observa, como se de repente considerasse todo o sentido das palavras de Anamaya.
- Preparar a guerra... Mas como? Villa Orna e meu irmão Paullu estão a caminho para a província do Sul com Almagro. Dividimos nossas forças para obrigar os estrangeiros a se dividirem também, já que não são mais amigos. Hoje, Villa Oma e Paullu devem estar no mínimo a duas luas de Cuzco. Não me restam cinco mil soldados nas montanhas do vale sagrado. Se fujo de Cuzco sem poder tomar a frente de um exército de verdade, o Império das Quatro Direções não terá mais esperança. Quem acreditará suficientemente em minha força para querer se unir a mim?
- Se você for acorrentado, se for feito prisioneiro dos estrangeiros, correrão lágrimas em seu reino, mas não haverá revolta, Único Senhor. Ficaremos sozinhos e sem mãos para nos conduzir. Se você for para nossas montanhas, seus ancestrais vão ajudá-lo. A maioria dos chaskis continua fiel a você. A uma palavra sua, eles mobilizarão todas as províncias. Formaremos ali o exército de que precisa. Villa Orna e Paullu aguardam seu chamado e voltarão com milhares de homens. Todos hão de ajudá-lo, pois se orgulharão de você.
- Foi meu pai quem lhe disse isso?
Há uma ponta de ironia na voz de Manco que faz Anamaya estremecer. Mas ela não desvia o olhar.
- Manco - sussurra -, você sabe que há muito tempo seu pai Huayna Capac não me chama mais para junto dele. Sou como você: não há dia ou noite em que eu não deseje ouvir sua voz. Esta noite, tive um sonho e achei... achei que ele ia me chamar.
Ela se interrompe um instante, as lágrimas turvando seus olhos. As imagens da violência de Gonzalo passam em sua mente, sujando seu corpo enquanto ali se mistura a lembrança de Gabriel.
Ela sente o peso da atenção de Manco e prossegue com ênfase:
- Confie em mim, Manco. Conheço o espírito dos estrangeiros. O que acaba de acontecer mostra que nada mais vai detê-los agora. O irmão do Governador lhe disse: ele fará tudo para humilhá-lo. É preciso fugir agora. Esta noite, sem perder tempo. Antes que seja tarde demais para que possa reunir em volta de você o povo dos Filhos do Sol. Por favor, Manco, ouça-me! Eu sinto, a aurora que vem está cheia de ameaças.
Manco hesita ainda. Com as pontas dos dedos, toca no añaco rasgado que Anamaya conserva por baixo da capa, toca seu rosto marcado pelas unhas do espanhol. Finalmente, balança a cabeça resignado:
- Sim, confio em você, Coya Camaquen. Mande avisar quem deve ser avisado. Deixaremos Cuzco pela escada secreta da Torre do Sol...
No alto das montanhas do leste, a aurora já clareou o céu quando eles saem afinal do interminável labirinto secreto que liga os terraços de Colcampata à alta Torre do Sol de Sacsayhuaman. No escuro, as enormes muralhas da fortaleza que domina Cuzco desenham a cabeça de um monstro adormecido.
Eles são apenas 30. Manco só quis algumas esposas e alguns servos, cinco ou seis dos Poderosos Senhores de sua corte. Todos os outros têm ordem de permanecer na cancha real e de se ocupar normalmente com as tarefas para que os estrangeiros só percebam a fuga deles o mais tarde possível.
Com a respiração ruidosa e o peito dolorido pelo esforço da subida, os fugitivos espalham-se pelo terraço na base da Torre. A testa molhada do esforço, as coxas contraídas pela subida rápida da escadaria, Anamaya vê o Anão saltar com uma agilidade surpreendente nas muretas que levam a um terraço de vigilância. Seu pequeno vulto pára um instante, como engolido pela escuridão.
Quando ele volta, ela ouve o barulho das liteiras que os carregadores depõem.
- Está tudo bem - anuncia o Anão com uma risadinha. - Nenhum
barulho! Os estrangeiros sonham com ouro. Sobretudo, não vamos acordá-los. Sua risada se interrompe ao ver o rosto de Anamaya. - Alguma coisa errada? - pergunta segurando-lhe a mão. - Sim... a subida deixou-me sem fôlego...
Na verdade, de quando em quando lhe vêm as imagens de seu sonho com Gabriel e a horrível visão de Gonzalo rasgando suas roupas, excitando-se em cima dela como se ela fosse um bicho. Ela já vomitou duas vezes, e sua fraqueza só fez aumentar na subida até Sacsayhuaman.
- Venha - diz o Anão levando-a para as liteiras. - Pelo menos, você vai descansar um pouco. E precisa comer alguma coisa. Peguei isso para você antes de partir.
Quando ela se instala em sua liteira, o Anão tira da pequena bolsa de tapeçaria que carrega a tiracolo uma espiga de milho novo assado no fogo e uma goiaba.
Anamaya sorri, comovida. Pega a fruta e o milho acariciando as mãos do Anão, mas deixa os alimentos de lado.
- Não poderei comer nada agora! Mas daqui a pouco...
A alguns passos deles, a voz clara de Manco se faz ouvir e os surpreende: - Coma - insiste Manco. - O Anão tem razão: você tem que comer e recuperar as forças. O dia será longo e precisarei de você.
Ela faz um esforço para sorrir, mas sente-se exausta e enjoada. Está ali para dar apoio - como sempre - quando Manco precisa dela. Mas quem lhe dá apoio quando ela precisa?
A solidão, a antiga e terrível solidão, a invade como uma sombra fria.
Quase sem ruído, eles contornam pelo leste a cidade adormecida. Com o passo rápido, mas sem correr, seu cortejo passa ao longo dos muros de algumas canchas de Senhores antes de entrar nas ruelas do bairro dos ourives. Alguns fornos ainda ardem nos pátios diante das casas de barro. Depois, eles atravessam na parte da cidade próxima à planície e onde se alojam os que não são naturais de Cuzco. As casas são mais espaçadas, cercadas de jardins cuidados, mas sem muros para protegê-los. As vezes, aparece uma mulher ou um homem, braços carregados de lenha. Eles param, olham com espanto a estranha coluna se afastar na escuridão do fim da noite.
Depois de passar pelos grandes armazéns da cidade, encontram o caminho real bem calçado que vai para o sul. Durante quase uma hora, até o céu tornar-se leitoso acima deles, não se ouve uma palavra, somente o arrastar das sandálias nas lajes e a algazarra dos pássaros despertando.
Anamaya fez um lugar a seu lado para o Anão a fim de que ele não se esgotasse correndo. Ela, que passou meses praticamente sem sair da cancha, fica surpresa de encontrar os campos tão ricos e as montanhas tão lindas. A chuva da noite realça os verdes dos campos no dia que está nascendo. Trabalhadas em terraços que se superpõem numa exposição cintilante, parece que as encostas das montanhas estão cobertas por uma espécie de unku gigantesco com motivos tão bem combinados quanto um tecido cerimonial. Em direção aos cumes e nas reentrâncias dos vales, deslizam e se misturam bancos de névoa, leves e cambiantes. Sentir à sua volta essa beleza da Terra mãe alivia-a um pouco do peso que lhe oprime o peito. Ela fica esperando que este seja o sinal que os Ancestrais lhes enviam, felizes de vê-los afastar-se da cidade desonrada pelos estrangeiros como ela mesma quase foi.
Sua esperança dura pouco. Quando o primeiro raio de sol bate nos cumes, um soldado sobe o cortejo correndo até a altura das liteiras, revirando os olhos apavorados: - Único Senhor! Único Senhor!
Manco afasta a cortina e ordena que o rapaz fale.
- Único Senhor, um chaski acaba de nos alcançar. Os estrangeiros já
viram que seu palácio está vazio. Sabem que você não está mais em sua cancha. Eles destruíram tudo ali...
- Então já estão no nosso encalço! - conclui o Anão com um olhar para Anamaya.
- Com aqueles cavalos, eles vão nos alcançar! - geme um velho Senhor apalpando seus brincos de madeira dourada como se já sentisse alguém os arrancando. - Que Viracocha nos ajude!
- Não é hora de gemer! - corta Manco.
Em poucas palavras, ele dá ordem aos Senhores, às mulheres e aos servos de prosseguir na estrada real em direção ao sul.
- É inútil se apressarem. Se eles os alcançarem, digam que eu lhes pedi para encontrarem meu irmão Paullu e seu amigo Almagro... Vou desaparecer nos vales do leste. A Coya Camaquen vem comigo.
- Eu também, por favor, Único Senhor! - exclama o Anão prosternando-se.
- Deixe-o vir - insiste Anamaya vendo Manco contrair o rosto. - Sabe que ele morrerá por você se for preciso.
- E, melhor ainda - murmura o Anão -, vou teimar em ficar vivo para que você possa viver livre!
Encolhendo os ombros, Manco concorda, de. Dois dá ordem aos carregadores de tornar a partir. Com uma resistência impressionante, eles correm, apesar da carga. Quando saem da estrada real, os caminhos de terra são cheios de poças e escorregadios, mas seus pés parecem ter garras. Levam pouco tempo para chegar aos limites do vale na aurora cada vê mais luminosa. De repente, um dos carregadores grita e estica um braço. O Anão, que há algum tempo perscruta o horizonte, exclama na mesma hora:
- Ei-los!
Por cima do cinza esverdeado dos campos de quinoa, Anamaya e Manco avistam a tropa dos estrangeiros. Parecem insetos gigantes cujas carcaças negras deslizam com uma velocidade sobrenatural rente à vegetação. Graças a seus cavalos, eles não vão apenas depressa: vêem longe na planície.
- Estão na estrada real - observa Manco com esperança. - Estão correndo atrás das mulheres, não vão nos ver.
Anamaya balança a cabeça:
- Acho que vão. As liteiras são muito visíveis nos campos.
- Ela tem razão, Único Senhor - concorda o Anão sem se constranger com a etiqueta. - Se os vemos, isso significa que eles podem nos ver!
Por um instante, crispados com a própria impotência, eles vêem o bando de espanhóis galopar. Berros ecoam pela planície como ganidos de animais na caçada. Mas, de repente, o Anão bate palmas e pula no chão.
- Único Senhor, há pântanos ali - exclama indicando uma pequena mata no limite da planície e dos terraços. - Os estrangeiros têm medo desses lugares, pois não são bons para os cavalos deles. Que os carregadores prossigam pela picada da montanha, enquanto nós nos escondemos!
Manco aquiesce.
O Anão estava certo. A alguns passos dos primeiros terraços que esculpem a montanha, a mata delimita um pântano ao comprido, coberto de juncos.
Com uma rapidez impressionante, o Anão quebrou os juncos, misturando-os a outros, secos ou podres. Ali há paus secos e lama para fazer um grande murundu que parecia lá estar há várias estações. Mas, quando convidou Manco a se esconder dentro daquilo, este assobiou entre os dentes com desprezo.
- Acha que sou um porquinho-da-índia?
- Único Senhor...
- Não! - gritou Manco com raiva. - Não há hipótese de o Filho do Sol se esconder embaixo desse monte de galhos podres! O que meu pai diria de mim?
- Manco, é só para escapar dos estrangeiros por algum tempo! - tentou convence-lo Anamaya com doçura.
Manco encarou-a furioso:
- Coya Camaquen! Quer que eu comece minha guerra contra os estrangeiros escondendo-me como um covarde? Quer que Illapa e Inti me vejam encolhido como uma criança embaixo desse monte malcheiroso? Quer que o irmão do Governador tenha razão quando me chamou de covarde?
- Quero que não o peguem - respondeu Anamaya.
Em vão. Manco virou-se, declarando com orgulho:
- Meu pai e Viracocha é que decidirão, e eu ficarei em pé enquanto eles não tiverem tomado a decisão!
E foi se esconder mais ou menos no meio das canas de junco, os pés dentro d'água.
Anamaya não encontra as palavras para lhe explicar que não é a Gonzalo que ele se dirige então, que sua vergonha pode ser resgatada pela astúcia e não por palavras de arrogância inútil.
Já estão há um bom tempo assim, Anamaya e o Anão juntinhos embaixo do monte de galhos, e Manco esperando no meio dos juncos que não o escondem bem. Mas a umidade fria os deixou gelados. Anamaya precisa cerrar os punhos para não tremer.
Então ela diz a si mesma que, enfim, eles conseguiram. Os gritos e os chamados dos estrangeiros estão longe e quase já não se ouvem. Depois, de repente, os dedos curtos do Anão apertam seu ombro.
O que ela percebe primeiro é o barulho dos cascos batendo na terra. Depois, ouvem-se chamados. Suficientemente próximos para que ela consiga entender o sentido:
- Lá, Beltran! Vá dar uma espiada no mato... - Eles estão vindo para cá.
O Anão só, responde com outro aperto em seu ombro.
Através do emaranhado de galhos, ela vê dois cavaleiros surgirem lado a lado. Eles fazem seus animais andarem mais devagar, olham para todos os lados. A passo, avançam em direção ao monte de paus. Um deles abaixa-se no cavalo para melhor explorar o murundu. Anamaya fecha os olhos. Mas ouve as batidas dos cascos afastando-se de seu esconderijo. Os estrangeiros não viram nada e prosseguem pelo pântano.
Então, se ouvem gritos mais ao longe, na direção da montanha.
- Ah! Pelos pêlos negros do grande lhama! - exclama o Anão. - Eles alcançaram os carregadores... Vão encontrar as liteiras vazias!
Novamente, ecoam gritos. Olhos grudados nos juncos onde Manco se esconde, eles ouvem os cavalos patearem dentro d'água enquanto um espanhol grita:
- Ah! Dom Pedro! Grego! Vocês o encontraram?
Como não há resposta, eles retornam, passando junto do murundu outra vez. É então que um estrangeiro enorme surge do outro lado do pântano.
Espumando, seu cavalo espalha água para todos os lados.
- Achamos as liteiras - anuncia. - Ele não deve estar muito longe. Na hora que Anamaya reconhece-o como um dos raros amigos de Gabriel, o homem puxa a rédea de seu cavalo que empina.
- Ei! Aqui! Ele está aqui, meus amigos!
- Não! - murmura Anamaya - Não!
- Shh... Não fale nada! - sussurra o Anão.
Os cavalos pisoteiam a lama, os juncos se envergam e quebram. Manco, digno e empertigado, aparece com as panturrilhas pretas de lama como se estivesse usando botas à espanhola.
- Não se mexa - implora ainda o Anão agarrado ao braço de Anamaya, que ouve o estrangeiro alto dar suas ordens.
- Beltran! Vá avisar a dom Gonzalo que o encontramos. E mande trazer aqui a liteira do Sapa Inca.
Por alguns instantes, Anamaya julga ver através dos galhos o olhar de Manco procurando o seu. Não consegue mais respirar e, não fora a presença
do Anão, já teria se levantado.
Mas Manco vira para o outro lado, a expressão tão indiferente como se estivesse saindo do banho. Os carregadores chegam correndo; o Grego, com um sorriso e sinais de respeito, convida-o a subir. Manco, afastando sua capa, instala-se ali.
- Tenho que ir com ele - sussurra Anamaya. - Está maluca?
- Não podemos deixá-lo sozinho!
- E o que vai poder fazer quando os estrangeiros tiverem você com eles? - Tenho que ir...
A mãozinha do Anão tapa sua boca:
- Cale a boca, eu lhe imploro! Esqueceu o que aconteceu esta noite?
O que acha que o espanhol vai fazer com você, agora?
Na mesma hora, como se o pensamento do Anão o tivesse feito surgir de um pesadelo, Gonzalo aparece perto do pântano, ao lado de três cavaleiros galopando alucinadamente como ele. Vai até bem perto da liteira, tão perto que um dos cascos de seu cavalo bate na coxa de um carregador que cai gemendo.
Puxando secamente as rédeas de sua montaria, o irmão do Governador o faz dar uma volta na água estagnada, inundando tudo à sua volta. Uma faixa púrpura lhe cinge a cabeça, escondendo o olho ferido.
- Prazer em vê-lo, meu grande Rei, meu único Sapa Inca molhado.
Sua voz está calma e sibila com uma ironia má. Voltando para junto da liteira, abaixando-se bruscamente na sela, ele pega Manco pelos cabelos, puxando-o do assento.
- Manco - sussurra Anamaya.
- Cale a boca! Cale a boca e não olhe - repreende o Anão.
- Dom Gonzalo - insurge-se Candia -, não pode tratá-lo assim... Sem lhe dar a menor atenção, obrigando seu cavalo a andar de lado,
Gonzalo arrasta Manco para fora da liteira.
- Dom Gonzalo!
- Grego, vá ver se a sua mãe não está precisando que você lhe limpe o rabo! - berra Gonzalo, largando Manco, que cai de joelhos. - Mandem trazer as correntes para botar a ferros esse rei dos macacos!
Anamaya não olha mais. Não consegue mais olhar e se espanta que seu coração ainda esteja batendo. Ouve o tinido das correntes, os gritos e os insultos, e tudo nela adquire peso de pedra. Aconchegado a ela, o Anão arfa como se fosse sufocar.
- O Poderosos do Outro Mundo, ó Viracocha! Por que nos abandonam? Por quê?
- Cale a boca - sussurra o Anão -, cale a boca, por favor. Enquanto os espanhóis se afastam com Manco prisioneiro, eles deixam o silêncio cair novamente.
Quando não há mais nenhum ruído além da brisa e o marulho da água, o Anão abraça-a com uma força insuspeitada.
- Agora, só tem você, princesa. Então, não se deixe pegar por eles, está entendendo? Nunca.
Tupiza Grande Salar, novembro, dezembro de 1535
São centenas, acorrentados em fieiras de dez ou 20, velhos ou jovens.
Todos têm o mesmo aro de ferro sujo e quentíssimo em volta do pescoço. Todos têm os ombros esfolados e machucados pelo atrito da corrente que os prende uns aos outros. Todos têm o mesmo olhar que já não sabe diferenciar o brilho do sol da opacidade da noite.
Caminham juntos há dias. Transpondo passos ou atravessando planícies nuns, contraem os músculos descarnados para carregar cestos que têm o seu peso, cheios de roupas, comida, pratos e copos de estanho, todo um arsenal de cozinha.
É por volta de meio-dia, sob o sol a pino que um deles cambaleia. Logo torna a se endireitar. Depois, seus joelhos dobram de novo, como se ele adormecesse. A correia de um chicote estala no ar, mas não o acorda. A corrente entre os homens estica. Entra na carne de seus pescoços quase estrangulando-os durante alguns passos. Nenhum deles protesta contra essa dor adicional. Cada qual sabe o que significa.
Estranhamente, o cesto cheio de copos e tigelas continua sobre os ombros do homem. Mas quem o carrega já está morto. Tetanizados, seus braços parecem colados ao fardo enquanto o resto de seu corpo já cedeu.
O cesto acaba virando, e seu conteúdo vai ao chão tinindo ruidosamente. Os homens da corrente param. Um zunzunzum vibra nas bocas em volta. O morto é apenas um corpo suspenso na tenaz de ferro que, curiosamente, segura sua cabeça reta.
Gabriel, que cavalga a 50 passos dali, vira-se completamente na sela ao ouvir o barulho de metal. O que ele vê congela-o sob o sol, como se seu próprio corpo fosse apenas uma gaiola de ossos.
Um cavaleiro de chapelão já chegou diante da corrente onde o morto está pendurado entre dois índios. Ele passa o chicote para a mão esquerda, e, com a direita, desembainha a espada com um gesto benevolente. Gabriel só compreende quando a lâmina faísca no sol.
Secamente, faz o cavalo dar meia volta e toca-o com um golpe violento de calcanhar, gritando:
- Não! Não!
No entanto, a lâmina de reflexos foscos já ganhou impulso. Inclinando o tronco e alongando o braço como se lançasse a foice, o cavaleiro ceifa de um golpe só a cabeça do morto. Ela rola entre os tufos de ichu enquanto seu corpo desaba, os ombros com um buraco no meio, sob os olhares alucinados dos companheiros.
Galopando, Gabriel mal vê o cadáver dobrar-se em dois. Um grito irrompe da massa de carregadores quando ele saca a espada. O outro se vira, o olhar pasmo à sombra de seu chapéu. Não tem tempo de nada. Nem de gritar nem de chamar a atenção. Apertando o punho da espada, como um bólido levado por toda a força do galope de seu cavalo, Gabriel atinge-o no peito com uma força inaudita.
Com um estalo de madeira seca, o homem descola da sela, as costelas quebradas.
Rola de ponta-cabeça na garupa do cavalo, desaba no chão com um lamento agudo. Quando tenta se levantar, os olhos arregalados de perplexidade, um pouco de sangue lhe tinge a saliva. O que vê à sua frente são as duas botas de Gabriel e o olhar de um louco pronto a arrasar o mundo. A lâmina de Gabriel já pressiona tanto sua glote que ele nem consegue respirar, e mal ouve o grito:
- Vou cortar essa sua cabeça de porco!
O homem sente o aço alojar-se em' sua carne. Com as duas mãos, agarra a espada de Gabriel para empurrá-la quando uma outra voz ecoa no ar petrificado:
- Em seu lugar, eu não faria nada, dom Gabriel. Mais um movimento, e você não tem mais miolos!
Basta Gabriel virar um pouco o rosto para ver, a cinco passos, a flecha de uma besta apontada para seu peito.
Por uma fração de segundo, o desejo imenso de completar seu gesto o percorre. Ouvir afinal o estalo seco da corda que acabará com a vergonha que o corrói há muito tempo!
- Recue, ou mando abrir fogo! - berra ainda Almagro ao sentir sua hesitação.
A cavalo, atrás do besteiro, dom Diego aponta para ele. Seu rosto, em geral ultrajantemente feio, está rubro de fúria. Seus lábios estão roxos e suas faces, rachadas há anos pelos ataques de sífilis, parecem prestes a explodir. Seu corpo é de uma magreza extrema que os inchaços e as fissuras afundam como uma cratera.
Aos pés de Gabriel, o homem se arrasta grunhindo. Gabriel o deixa. A coluna ao lado deles pára, e centenas de índios os observam, assustados e distantes. Nenhum deles tem um gesto para o cadáver do morto que se esvai lentamente em sangue bem escuro.
Estalando as rédeas, Almagro impele seu cavalo até Gabriel:
- Caramba! - censura. - O que deu em você?
- Você é um demente, Almagro. Olhe à sua volta. Não há um único homem que não esteja acorrentado ou amarrado! Eles morrem de fome e de sede, mas você não os alivia do fardo que carregam nem uma hora por dia. Eles chegam até a carregar seus cavalos em padiolas. Debaixo de chuva ou geada, a noite vocês os peiam como bichos, sem nada para os proteger. Pelo menos as crianças morrem em uma semana sob esse regime, as bem-aventuradas! Quanto às mulheres, elas são violentadas por dezenas até terem as entre pernas em sangue! Vocês queimam as aldeias quando os habitantes querem fugir ou arrancam os telhados das casas deles para cozinhar sua sopa. E eis que agora os seus soldados estão decapitando cadáveres para se pouparem o trabalho de abrir os cadeados das correntes! Almagro, eu lhe digo, você é a podridão deste mundo. Isso já se vê na sua cara. Agora você deixa o rastro fétido dessa podridão a cada passo que dá!
Gabriel se interrompe trêmulo de raiva. A cada frase que pronuncia, a risada de Almagro só faz crescer, sacudindo seu corpo seco. Vinte espanhóis, peões ou cavaleiros, agora estão reunidos em volta deles e riem também.
- Pobre alma! Pobre pintainho! - diz Almagro rindo mais ainda. - Ouçam, senhores, como esse janota quer nos dar lição de moral. Ora essa! É preciso compreendê-lo. De tanto lamber a bunda de dom Francisco, o senhor Gabriel se acostumou com perfume de rosa!
Com um passo à frente, o braço esticado, Gabriel aponta a espada para a silhueta magra de Almagro. O silêncio cai instantaneamente. Na legião de índios que até agora assistia à discussão com enfado, alguns olhares ficam mais aguçados. Alguns cavaleiros, já empunhando estiletes, impelem seus cavalos para cercar Gabriel. Com um sorriso de desprezo, Almagro os detém levantando a mão.
- Nunca o Governador se permitiu semelhantes violências para com o povo do Peru! Almagro! - grita Gabriel dirigindo-se a todos. - Almagro! Desde sua chegada a Cajamarca, você não parou de semear vergonha e desolação por onde passou. Roubou e mentiu para conseguir a morte de Atahualpa. Você é uma nódoa! Rezo para que exista um inferno no céu. Um inferno igual àquele que você faz reinar aqui! E se Deus estiver vivo, vai recebe-lo ali...
Fora de si, Gabriel está prestes a enfiar a lâmina, mas seus gritos parecem ter dado vazão à náusea que o acometeu há pouco. Sente uma vertigem. Um suor gelado o cobre e o obriga a apoiar um joelho no chão. Ele se apoia na espada como se fosse uma bengala. Sem forças, com um soluço que lhe turva os olhos de lágrimas, dobra-se em dois e vomita as tripas.
As risadas redobram acima dele.
Com uma leve esporeada, dom Diego faz avançar um pouco sua montaria e vem pousar o salto de sua bota em sua nuca:
- Gabrielito!- arrulha. - Acho que essa viagem não está sendo boa para sua saúde. Seu coraçãozinho é frágil, sua alminha também. Desse jeito, receio que este seja seu último passeio. Ouça meu conselho: deixe a gente caminhar no nosso inferno e vá respirar os perfumes do paraíso...
Gabriel se cala em meio às risadas e às vaias. Uma sensação nova o enche como uma bebida amarga que, no entanto, é preciso beber até a última gota.
É preciso ouvir cada uma dessas risadas, nutrir-se de cada escárnio, sorrir para esses rostos de humanos devorados pelos instintos mais ignóbeis.
É preciso se levantar e beber a bílis que ficou no fundo da garganta, engoli-la como se fosse um néctar.
A humilhação é a mãe de sua força.
De um galope só, a boca ainda amarga, Gabriel sobe a coluna até as liteiras dos grandes Senhores Incas. Sob a autoridade do sábio Villa Orna e de Paullu, o irmão preferido do Sapa Inca Manco, eles acompanham a coluna e, supostamente, até podem conduzi-la.
Ali, não há mais correntes nem caras moribundas. Alguns guardas, com túnicas tão impecáveis como se estivessem na praça de Cuzco, tentam lhe barrar a passagem com suas lanças. Ouve-se uma ordem. Os guardas se transformam em escolta até a liteira de Villa Oma. A cortina é afastada, como a da liteira vizinha. Gabriel reconhece ali a cara fina e matreira de Paullu.
Os dois senhores Incas o observam com um espanto comedido. Acalmando o impulso e dominando a voz, Gabriel tem o cuidado de saudá-los antes de dizer:
- Sábio Villa Oma, em nome do Governador dom Francisco Pizarro, venho lhe pedir que ponha fim aos sofrimentos impostos à gente de seu povo nessa coluna! É impossível continuar assim até o Sul. Esses homens de seu povo morrerão antes de chegar! Posso lhes garantir que dom Francisco, se estivesse aqui, jamais autorizaria tamanho horror! Tudo isso acontece contra a vontade e as ordens dele.
O olhar do jovem Paullu brilha fugazmente e desvia-se. O do Sábio fica parado. Ele somente passa a bola de coca para o outro lado da boca. Mas não dá nenhuma resposta.
- Vocês sabem do que estou falando - insiste Gabriel. - Devem intervir junto a dom Diego! Exijam que os carregadores não sejam mais acorrentados. Peçam que as mulheres e as crianças possam deixar a coluna! Em nome do Único Senhor Manco...
As pupilas escuras do sábio pesam tanto sobre ele que Gabriel se cala. A sua volta, só há silêncio.
Aflito, batendo os cascos, o cavalo bufa. Gabriel é obrigado a faze-lo
girar sobre si mesmo antes de recomeçar com um tremor na voz:
- Sábio Villa Oma! Sei quem você é e você me conhece. Eu estava em Cuzco quando o Único Senhor Manco pôs a mascapaicha na testa. Sei que ele o escolheu como o segundo Poderoso do Império das Quatro Direções! E eu...
Eu sou amigo da Coya Camaquen. Peço que me ouça: não é desejo do Governador Pizarro que o seu povo seja tão maltratado! E vocês... Ah! Senhor Paullu, sábio Villa Oma, como podem aceitar isso?
Apesar da raiva e da frustração, Gabriel sente que o silêncio cala fundo sob suas palavras. Todas as caras estão viradas para ele, indecifráveis. Os olhos atentos dos nobres, dos carregadores e dos guardas brilham. Mas a resposta é só silêncio.
Depois, de repente, enquanto o silêncio ainda continua, o Sábio cospe um sumo de coca, verde e espesso, entre os cascos do cavalo. Estalando a língua, dá ordem de prosseguir aos carregadores e abaixa a cortina da liteira.
A noite é longa e fria. Sem sono.
A apenas um quarto de légua da imensa coluna, ele se encostou numa grande pedra ao pé de um talude que o protege um pouco do vento. Passa horas com os olhos pousados nas tochas que lançam clarões avermelhados no acampamento de Almagro e seus homens. Do lado oposto, há tochas acesas também diante das tendas dos Senhores Incas. No meio, a noite e só escuridão. Como se ela mesma procurasse velar ali o sofrimento e a vergonha.
No auge da escuridão, quando a lua desaparece, deixando entre a loucura das estrelas do sul um céu tão opaco quanto o nada, Gabriel acaba se deixando levar pela raiva e a impotência. Enfiando a bainha da espada na boca para abafar seus gritos, amaldiçoa Deus e os homens. Amaldiçoa essa terra e a própria vida.
Depois, o pensamento, o rosto e até o nome de Anamaya vêm a ele, como se ele respirasse um ar subitamente purificado. Começa a tremer de outra coisa que não a raiva de ser humano ali naquele dia. Por um instante, todo o seu corpo se alivia como um sorriso de paz. Por um instante, imagina estender o braço e encontrar sob sua mão o corpo quente e confiante de sua bem-amada.
Agora chega a aurora. Como uma onda lívida, vem rolando sobre os enormes picos do leste. Ele continua com os olhos bem abertos. Estremece de quando em quando sob uma coberta que a umidade torna mais pesada. O fogo que conseguiu acender na véspera é só cinzas. Na friagem crescente do dia, ele terá de decidir. Terá de escolher entre dois males. Pode perseguir esse caminho do inferno enfrentando piadas e reveses. Pode voltar a Lima, "respirar os perfumes do Paraíso" junto de dom Francisco, como tão bem disse o fétido Almagro. Em ambos os casos, terá que arcar com a vergonha!
A alguns passos dele, o cavalo, desselado, está dormitando. De quando em quando, as orelhas inquietas, levanta uma pálpebra e sacode a crina, as ventas vibrando. O olho brilhante oferece seu chanfro leitoso com a ternura de uma carícia.
De repente, o animal se retesa, o lombo eriçado e a pupila dilatada. Bufa girando sobre si mesmo no momento em que Gabriel ouve um rangido nos cascalhes. Um passo leve, que não quer ser ouvido, mal toca nas pedras. Debaixo da coberta, Gabriel já pegou o punhal. Mas a forma surge à sua esquerda, quando ele a esperava do outro lado. O sussurro surpreende-o mais ainda.
- Não tenha medo, Senhor! Não tenha medo!
Todavia, Gabriel já está de pé, a arma em punho.
Debaixo da manta de um vermelho escuro quase marrom, aparece uma velha mão de dedos deformados que puxa a capa e revela um rosto com tantas rugas, um rosto tão deformado pela idade que, no primeiro momento, Gabriel não sabe se se trata de um homem ou de uma mulher. O rosto sorri. A boca é toda desdentada, mas os olhos, agora cinzentos como uma neve de fim de inverno, brilham:
- Não tenha medo, Senhor!
A capa se abre e a outra mão estende um pano amarrado nas quatro pontas.
- É um pouco de comida que guardei para você.
Deslumbrado, Gabriel pega o presente, desamarra o pano. Dentro há um punhado de grãos de milho, algumas batatas, mirradas e pretas como carvão por terem ficado muito tempo geladas antes de ser cozidas.
- Obrigado - murmura ele. - Mas por quê?
Uma risada esperta irrompe do velho rosto e Gabriel diz a si mesmo que se trata de uma velha.
- Porque ontem você foi bom e corajoso, estrangeiro. Nós vimos o seu fogo durante a noite, longe dos outros. E queremos lhe agradecer.
- Nós?
A velha estende a mão deformada para a coluna.
- Nós todos... Todo mundo sabe. Todo mundo contou à noite como você se enfureceu. Como pediu que tirassem as correntes. E como foi propor ao sábio que se opusesse aos seus.
- Então talvez você possa me explicar por que o sábio Villa Orna nem sequer me respondeu?
A velha hesita um instante. Seu olhar perscruta o de Gabriel com uma intensidade que o deixa sem jeito.
- Porque ele já tinha decidido. Partiu esta noite para libertar nosso Único Senhor Manco e fazer guerra aos estrangeiros de Cuzco.
Um arrepio levanta os pêlos de Gabriel sob o gibão. - O que está dizendo?
- O Único Senhor Manco está preso em Cuzco. O chaski anunciou isso há dois dias. Os estrangeiros lá são como esses daqui. Botaram a corrente em volta do pescoço do Único Senhor.
- Ah, meu doce Jesus!
Gabriel não ousa fazer a pergunta seguinte. Seu olhar vacila sobre o rosto enrugado.
- E a Coya Camaquen? - pergunta afinal. - Sabe se a Coya Camaquen também está presa?
A velha apenas sacode a cabeça. Sua boca se contrai. - Quem é a Coya Camaquen?
Gabriel não responde. Num piscar de olhos, vê Gonzalo e Juan molestando Anamaya. Vê Anamaya com a corrente no pescoço. Anamaya que foi...
Não, ele não deve deixar a imaginação à solta. A viagem é longa demais. Ficará louco antes de chegar!
Já vai dobrando sua coberta e levantando a sela. O cavalo imediatamente se sacode e se aproxima rebolando como se só estivesse aguardando esse gesto.
- Em que direção o sábio partiu? - pergunta Gabriel jogando a manta da sela no lombo do animal.
O velho rosto ri.
- Ele pegou um desvio, mas se você voltar por esse mesmo caminho que nos trouxe aqui, vai alcançá-lo facilmente. Então você deve levar água e mais comida. Vou ajudá-lo a arranjar...
Ajustando a barrigueira, Gabriel se vira, franzindo o cenho: - Por que faz tanta questão de me ajudar?
- Porque você me agrada.
- Você também me agrada, vovó. É verdade, você é muito bonitinha. - Bonitinha, ah!
A velha dá uma risada de menina.
Sua risada a acompanha enquanto ela se afasta e ele acaba de selar a montaria.
Pela primeira vez em muitos dias, sua alma está em paz. A vida se abriu no meio das muralhas do mal.
Finalmente, só há uma coisa a fazer.
Mesmo que seja a última das loucuras.
Huchuy Qosgo, dezembro de 1535
A noite se aproxima, e faz frio. Anamaya estende as mãos para o fogo que o Anão acendeu. No pote de barro, a sopa aquece lentamente. O perfume acre das cebolas silvestres e dos tomates mistura-se ao ar úmido.
Furtivamente, Anamaya olha para seu fiel amigo. Quando ele chegou à cidade ainda há pouco, enregelado depois de dois dias caminhando debaixo de chuva, ela quase não o reconheceu. Seu rosto ainda continua deformado por uma dor que parece lhe devastar as entranhas.
No alto, no crepúsculo, os muros vermelhos das canchas de Huchuy Qosgo parecem se iluminar nos verdes ardentes dos campos de milho e batata que cobrem o platô até sua caída vertiginosa para o vale. Em época normal, Anamaya gosta da regularidade tranqüila dessa cidade suspensa entre o céu e a terra. Mas, desde de manhã, parece que Pacha Mama, a Terra mãe bemamada, sofre do mesmo mal que o Anão.
Ao amanhecer, uma tempestade terrível fez estremecer todo o Vale das Cidades Reais.
Enquanto havia apenas uma bruma encobrindo o céu, volutas negras e cinzentas se concentraram no limite do platô, até as bordas dos campos. Em pouco tempo, o vale inteiro transformou-se num caldeirão, deixando escapar um vapor vindo do Mundo de Baixo. Os terraços de milho e quinoa, superpostos como asas de borboletas nas margens do Willkamayo, desapareceram, depois as encostas mais íngremes e, finalmente, o caminho quase a prumo para Huchuy Qosgo.
E, de repente, uma onda de prata líquida espalha-se pela nuvem baça. Todos ouviram o rugido de Illapa, embora o ronco da trovoada viesse do coração do vale e não do céu, como de hábito.
Houve murmúrios entre os camponeses. As mulheres mandaram as crianças voltarem para dentro de casa. Os Poderosos e os sacerdotes de Huchuy Qosgo aproximaram-se dos muros que margeiam o limite extremo do platô. Todos pensaram a mesma coisa: de repente, viam o mundo pelo avesso!
A luz de Inti, filtrada pela bruma, banhava os campos e ruelas de Huchuy Qosgo. Do outro lado do Vale das Cidades Reais, iluminava as grandes montanhas do leste. Mas, entre as duas, essa mãe das nuvens, nascida de modo tão prodigioso, não parava de ferver, atravessada de um lado ao outro por ondas de luz prateada.
Depois, isso parou. As nuvens levantaram-se molemente, enrolando-se umas nas outras em volutas que logo se rasgavam. Uma bruma morna invadiu os campos. Misturado à garoa, o nevoeiro laqueou os muros de barro das canchas. O céu escureceu. Choveu sem cessar até o meio da tarde.
Foi então que chegou o Anão, imundo e esgotado depois de um dia inteiro de caminhada pelas estradas ruins da montanha.
Agora não há uma nuvem no céu. Só o rosto do Anão está atormentado. A própria Anamaya pega a tigela de terracota e a enche de sopa fumegante.
- Coma - ordena com doçura. - Coma, você está tremendo de frio e de fome. Depois me contará.
Maquinalmente, o Anão estende as mãos com dedos de criança para segurar a tigela. Por um breve instante, olha para a sopa avermelhada e cheirosa. Depois, balança a cabeça e levanta as pálpebras grossas.
- Não - diz. - Não posso comer. Primeiro preciso lhe contar...
Mas ele se interrompe. Seus olhos brilhantes de febre procuram Anamaya. Ela estende a mão. Com as pontas leves dos dedos, ela toca na têmpora do Anão. Ele pousa a tigela numa pedra ao lado do fogo e pega a mão dela, encostando-a na testa como se pudesse encontrar ali a força que lhe falta.
- Primeiro - murmura -, arrastaram-no através de toda a cidade baixa. Ele, o Único Senhor Manco, foi obrigado a passar diante do Coricancha com correntes no pescoço. Depois, durante três dias, ficou no alto da praça de Colcampata, o ferro dos estrangeiros em volta do pescoço e dos tornozelos...
O Anão já se cala, como se as palavras que lhe saíssem da boca o envenenassem um pouco mais a cada frase. Empurra a mão de Anamaya e se encolhe:
- Ali... Sim, eles deixaram nosso Único Senhor ali. Acorrentado, o unku sujo e rasgado. Ó, Anamaya, ele passou três dias com a mesma túnica!
Ele, o filho de Inti, se apresentou assim diante dos Corpos Secos de nossos ancestrais, diante dos olhos dos habitantes de Cuzco! De manhã à noite, os estrangeiros vinham rir dele.
De novo, o Anão se cala. Anamaya não ousa mais olhar para ele. Fixa os olhos nas montanhas distantes. Os picos de neve se elevam na escuridão da noite, ela julga sentir seu gelo por todo o corpo.
- Quando o tiraram de Colcampata, toda a cidade do Puma gemeu - prossegue o Anão. - Ele foi levado para a casa do demônio estrangeiro que quis violentá-la. As servas gritaram de espanto vendo como o tratavam. Algumas fugiram, outras usaram as armas dos estrangeiros para se degolar ou se abrir o peito. As concubinas vieram implorar que tratassem melhor o Único Senhor. Em resposta, os estrangeiros tornaram a rir. Prenderam as concubinas num pátio, levaram para lá Manco todo acorrentado e, na frente dele, despiram as mulheres. Na frente do Único Senhor, durante toda a noite, forçaram e violentaram as mulheres. No dia seguinte, muitas estavam mortas: o coração delas se esvaía por entre as pernas.
O Anão está ofegante. Treme tanto que precisa se apoiar na esteira para não perder o equilíbrio. Não ousa olhar para Anamaya. Ela está tão imóvel que parece que vai quebrar ao primeiro movimento.
De repente, com um grito igual a um soluço, o punho do Anão derruba a tigela de sopa que se quebra. Com um chiado, o fogo apaga.
- Meteram-no dentro de um buraco e, em 12, foram urinar em cima dele! - sussurra o Anão.
- Chega! - ordena Anamaya já de pé.
Parece que seu rosto acaba de ser talhado num bloco de calcário.
Até aquele momento, a guerra foi como um estrondo distante, o espetáculo sempre estrangeiro de milhares de guerreiros se enfrentando.
Agora, a guerra está dentro dela.
Cercado de tochas, o ouro do Irmão Duplo reluz na noite.
Dentro de um pequeno templo, a estátua tão cobiçada pelos estrangeiros repousa sobre uma almofada de tapeçaria recheada de algodão cobrindo uma grande pedra polida. A seus pés, folhas de coca se consomem nas brasas de um defumados e espalham seu perfume inebriante pela sala.
Quando Anamaya entra, duas jovens espalham pétalas de cantutas no chão após ter depositado a comida ao lado do Irmão Duplo. Com um gesto, Anamaya manda que elas se retirem.
Seu olhar é vago, seu rosto sem expressão. Duas fivelas de prata seguram uma longa capa de lã em volta de seus ombros, mas, de vez em quando, um arrepio percorre-a com tanta violência que ela bate queixo.
Ergue a jarra de chicha, enche o copo de cerimônia em madeira pintada. Sem uma palavra, ergue-o acima da cabeça. Mergulha seu olhar no rosto de ouro do Irmão Duplo. Este está tão impassível, tão fechado quanto o seu.
No momento em que ela deve proferir a saudação para seu esposo do Outro Mundo, seu braço cai. Ela não derrama a chicha no chão, não a oferece. Aperta o copo contra o peito e suas pálpebras velam seu olhar azul. Em sua boca apenas entreaberta, as palavras tornam-se reprimendas.
- Por que lhe oferecer bebida e comida dia após dia, ó Poderoso Irmão meu esposo? Por que chamá-lo e murmurar meu sofrimento que você não ouve, Único Senhor Huayna Capac? O que tem contra nós para nos infligir um silêncio tão longo? O que tem contra nós para nos permitir a vergonha que cobre a nós todos aqui?
Ela se cala um instante. Vacila, talvez sem perceber.
Sua testa se franze e seus lábios se contraem. Um riso rouco irrompe no aposento com tamanha violência que parece de repente que as chamas das velas quase se apagam.
- Por que nos abandona?
Anamaya dá um passo à frente, sem abrir os olhos, e estende as mãos. O copo de chicha vira em cima da estátua de ouro que ela agarra com um soluço.
- Ó Poderosos do Outro Mundo, vocês estão aí? Não escutam nosso amor e nossas queixas? Não vêem nosso sofrimento? Ó Poderosos do Outro Mundo: não há dia sem que em toda parte todos lhes obedeçamos. Pensamos em vocês quando nos levantamos e quando nos deitamos. Observamos o vôo dos pássaros e o trajeto das nuvens para conhecer seu estado de espírito. Cultivamos para vocês os melhores pés de milho, oferecemos a vocês o sangue dos mais belos lhamas para que sejam felizes e se orgulhem de nós. Para honrá-los neste mundo como no outro, tecemos cobertores para vocês de cores tão lindas como um dia de paz. Em tudo seguimos suas leis e suas vontades. No entanto, em troca, só recebemos silêncio! Vocês têm medo dos Poderosos que governam os estrangeiros? Ficaram fracos como nós?
As lágrimas não molham o rosto de Anamaya, mas a dor e a fúria esticam seus músculos como se eles fossem se rasgar. Sem conseguir mais se conter, ela sacode a estátua de ouro do Irmão Duplo em cima da almofada. Grita:
- Estão aí? Ouviram o que o Anão disse? Viram seu filho Manco fechar as pálpebras embaixo da urina de nossos inimigos?
As palavras ecoam fora do templo, irrompem na noite paralisada e imóvel.
- Ó Único Senhor Huayna Capac! - suplica ainda. - Você, que pegou minha mão de criança antes de ir ao encontro de Inti, não me abandone! Não me vire as costas! Não me deixe acreditar que estamos sozinhos como crianças perdidas numa montanha grande demais. Vai deixar que nos aniquilemos na guerra como nos aniquilou na paz? Não deixe nosso povo sozinho diante da força dos estrangeiros. Se errei, eu, a Coya Camaquen, quero virar cinza!
Até o murmúrio se atenua no silêncio.
Fora do pequeno templo, os habitantes de Huchuy Qosgo se aglomeraram ouvindo os gritos da Coya Camaquen. Agora, como ela, eles tremem e mordem os lábios. Como ela, esperam que o silêncio se torne outra coisa.
Mas só há o barulho constante da água pingando dos telhados de ichu nas lajes.
A aurora já não está muito longe quando ela decide sair do templo. As tochas se apagaram ali, mas ninguém ousou vir tornar a acende-las.
A noite continua fechada e opaca; no entanto, na hora de sair, Anamaya precisa piscar bruscamente para não se ofuscar com a luz.
Isso se passa muito rapidamente.
Parece que o platô, o Vale das Cidades Reais e as montanhas do leste, de repente foram inundados por um sol inclemente. Que tudo fica liso e poeirento como uma infinita planície de sal branco. Parece que o universo inteiro, de repente, virou um deserto! Que a terra é apenas uma pele morta e gretada. Não há mais sombra, nem planta nem árvore, não há mais sopro de vida. Não há sequer um inseto.
Anamaya sente apenas seus joelhos se dobrarem. Percebe a mão pequena mas sólida do anão que vem acudi-la. Não ouve os murmúrios quando desaba. Só vê como será o mundo dos humanos quando estiver morto para sempre.
E é então que vê Gabriel.
Ela o vê, moreno de pele e com as roupas esfarrapadas. Ele está longe, na planície infinita, depois pretíssimo, tão perto que ela sente sua respiração rouca e vê suas faces rachadas como um couro velho, seus lábios inchados e gretados. Vê suas pupilas comidas pela brancura do mundo morto. O suor escorreu em seus cílios, o sol transformou-o em minúsculos cristais de sal. Ela vê suas mãos com os dedos cheios de sangue coagulado. E ele arfa como um homem nos estertores. Como um homem que já não leva a sombra junto de si. Tem o olhar perdido da inconsciência. µ
No imenso deserto em que se transformou o mundo, cada um de seus passos levanta uma poeira minúscula que apaga seu rastro. E depois, de repente, ele vacila e cai.
Ela grita.
Compreende ao mesmo tempo que Gabriel está morrendo e que os poderosos do Outro Mundo a ouviram.
Deserto do Grande Salar, dezembro de 1535
Até onde sua vista pode alcançar, tudo é branco.
Eles acabam de passar a primeira garganta. A seus pés, a encosta é íngreme. O caminho encontra esse vale incrível serpeando em 15 curvas fechadas. Depois, à esquerda, alongando-se e alargando-se cada vez mais entre as encostas abruptas, o mar de sal continua, a perder de vista. Branco, duro, ameaçador como uma porta do nada aberta em face do céu.
- Lloc! É tempo de não ir lá!
O homem de voz rouca que acaba de dizer essas palavras de forma quase ininteligível e feito à imagem de tudo que cerca Gabriel há dias. É pequeno, muito sujo, escuro de pele de tão queimado de sol. Usa um gorro de cores desbotadas de onde caem longos cabelos presos em tranças que a sujeira deixa espetadas. Como roupa, tem apenas uma túnica antiga manchada, com uma comprida tira de couro de lhama amarrada na cintura. Os músculos de suas coxas e de suas panturrilhas desenham-se sob sua pele como se estivessem em carne viva. Porém, o mais extraordinário são seus pés. Pés que tomaram a forma de todas as pedras, de todos os caminhos percorridos. Na verdade, mais parecem patas de animal que pés de homem. Já não se distinguem os artelhos, as unhas engolidas ou arrancadas por uma pele tão grossa que nem sangra ao rachar.
Gabriel encontrou-o na véspera. Após uma semana de viagem atrás do sábio Villa Oma, teve que reconhecer que estava perdido.
Desde o primeiro dia de sua partida de Tupiza, incompreensivelmente, a pequena dianteira que o Sábio e sua escolta tinham não parou de aumentar.
No entanto, Gabriel só deixava o cavalo descansar o estritamente necessário. Numa das aldeias onde encontrou um pouco de comida, explicaram-lhe que o sábio arregimentava homens aonde quer que passasse. A todos, ordenava que fossem para o norte. Assim, tendo carregadores suficientes, viajava dia e noite, não saindo mais da liteira, onde dormia e comia.
O primeiro pensamento que ocorreu a Gabriel foi que essa precipitação mostrava toda a gravidade do que estava acontecendo em Cuzco. E que essa mobilização a que o Sábio se dedicava significava guerra.
O segundo pensamento foi o do desespero. Ele não podia mais esperar encontrar Villa Orna e atravessar com ele o Império sem riscos excessivos. Em outras palavras, não podia mais esperar chegar suficientemente rápido ao lado de Anamaya! Ao contrário: ia se arrastar e remanchear como uma minhoca enquanto os irmãos Pizarro naturalmente lhe faziam sofrer as piores atrocidades. Não tinha dúvidas quanto a isso! A experiência que acabava de ter convivendo com os soldados de Almagro não podia lhe deixar nenhuma esperança. Não se passava hora nem dia sem que imagens terríveis o assaltassem.
Recriminava-se por sua inconsciência e sua grande submissão a dom Francisco, que o haviam arrastado para longe demais da única força de sua vida: seu amor por ela!
Sonhou como finalmente iria purificar o universo de Gonzalo. Sonhou em virar pássaro e deixar essa lentidão de homem que o prendia na impotência. Sonhou que a encontrava, ali, naquela hora, que encontrava seus braços e a maciez de seus seios, linda e intacta como no dia em que se despediram.
Então, insensatamente, pôs seu bravo cavalo para trotar mais do que deveria, obrigando-o a caminhar durante parte da noite. E foi assim que se perdeu!
Até esse homem sem idade, como um demônio saindo de sua cova, surgir à sua frente enquanto ele transpunha um monte de pedras.
Esse homem que agora olha para ele com olhos negros como a noite e o põe em alerta de novo, usando o quíchua com uma pronúncia enrolada que torna a língua apenas compreensível.
- Lloc! Se for, você pode chegar depressa ou morrer depressa.
Na verdade, basta ver a imensidão branca do mar de sal para desconfiar disso. O sol do amanhecer alonga desmesuradamente as sombras das montanhas. Lá embaixo, ao norte, o horizonte lívido que se confunde com a bruma matinal é curvo como o de um oceano.
- Você diz que são necessários três dias?- pergunta Gabriel pela segunda vez.
- Três dias se você chegar. Se o sol não o tiver devorado antes. - Poderíamos caminhar à noite, em vez de dia.
- A noite, você se perde! Com as nuvens, você não vê o pico dos Apus que guiam o seu caminho. Você morre. E se durante o dia as nuvens se forem por muito tempo, você também morre. Inti come você.
Com uma palmada, Gabriel responde ao cavalo, que estremece como se compreendesse as palavras do índio.
- Três dias - prossegue Gabriel. - Se eu passar a montanha, você diz que precisarei de seis ou sete...
- Lloc! Sim, sete ou mais, pois é a estação das chuvas e os caminhos viram rios. Sete ou mais, mas você está vivo.
- O que vai adiantar eu estar vivo se ela não estiver? Vamos, não vamos mais perder tempo com conversa fiada. Você me guia?
Ele fez a pergunta sem esperança.
Para sua surpresa, o homem faz que sim com a cabeça. - Você é mais louco que eu - diz. E avança para o deserto de sal.
Na entrada do Grande Salar, o espetáculo é assombroso. Onde ele pensava só estar vendo sal, só há água. O sol já está alto e velado por uma leve bruma, que apaga a linha do horizonte. O céu e a água se confundem numa aquarela só. Gabriel tem a sensação de que vai entrar na tela branca de um quadro ainda virgem. Como num ritual para enfrentar os espíritos maléficos de um mundo à parte, eles escondem os olhos.
O índio dá o exemplo. Molha seu gorro com a água de uma das quatro bilhas firmemente presas à sela do cavalo baio e depois o enfia na cabeça até cobrir os olhos.
- Faça a mesma coisa com você e com o seu animal - ordena com sua voz rouca. - Senão a luz do sal fura seus olhos e sua cabeça vira fogo.
Gabriel puxa sua única camisa da bolsa de sela e a rasga em trapos, os quais molha também. O cavalo não bufa muito, os olhos já doloridos por causa da reverberação. No entanto, fica tão engraçado com aquela atadura improvisada que Gabriel ri. Ele também envolve a própria cabeça, deixando apenas uma fenda para ver onde põe os pés.
Em seguida, sem mais uma palavra, as rédeas do cavalo passadas no ombro, segue o índio que já entrou no branco e o espera. Imóvel, seu vulto parece boiar no vazio.
Uma hora depois, a água desapareceu. Deu lugar a um mar tão parado como se o mundo não fizesse um único movimento. É seco e range, rachado em milhares de blocos duros como pedra que se estendem a perder de vista.
A bruma também evaporou, substituída por um céu cujo azul profundo reaviva a preocupação de Gabriel. E seus passos escandem as sílabas bem amadas ao ritmo dos cascos do cavalo.
As sombras das montanhas retiraram-se há muito. O ar está parado. O índio se desloca sem olhar para os lados. Durante muito tempo, eles passam por uma ilha rochosa, à esquerda, eriçada de cactos tão gigantescos que por um instante Gabriel julga ver neles uma tropa de guerreiros vindos do outro mundo. Depois, de um lado e do outro do mar branco, as encostas das montanhas se afastam. Fogem e flutuam no horizonte, trêmulas e diluídas pela névoa de calor.
Antes de chegar ao zênite, o sol virou uma lâmina incandescente. No queixo, nas faces, embaixo da barba que ele não raspa há dias, em toda parte onde a pele não está protegida pela atadura, Gabriel sente a queimadura da reverberação que fica violenta como queimadura de fogo. A tentação de pegar um pouco d'água numa das bilhas é grande. Mas ele consegue afastá-la todas as vezes.
E, de repente, sem avisar, o índio estaca. Tão de repente que Gabriel tem que desviar para o cavalo não bater nele.
Sem uma palavra, o homem gira sobre si mesmo, lentamente, como se verificasse todos os pontos do horizonte. Afinal, olha para Gabriel. Levanta um pouco o gorro e balança a cabeça.
- O que há? - pergunta Gabriel, a boca pastosa. - Não estamos na direção certa?
O homem aponta para o céu:
- Lloc! Sol demais.
- Como assim, sol demais? - exclama Gabriel, aumentando a fenda da atadura.
- Não tem nuvens suficientes. O sol vai nos comer.
Gabriel ainda não parece compreender, enquanto as mãos negras d homem mostram toda a extensão do deserto e depois o céu de um azul impecável.
- Hoje e amanhã e amanhã ainda - diz -, haverá sol demais. Na vamos atravessar o deserto. O sol vai nos comer. Ainda podemos voltar par a montanha antes que anoiteça.
- Não! - resmunga Gabriel. - De jeito nenhum! Não posso voltar
O índio dá dois passos para trás e ergue os ombros.
- Seu animal também vai morrer - diz baixinho. - Se não houve nuvens, ninguém pode atravessar o mar de sal.
- Você tem medo, só isso! Eu vou atravessar.
O homem observa-o um instante.
- As vezes, é preciso ter medo - murmura.
Abaixa o gorro sobre os olhos e acrescenta:
- Amanhã, se Inti quiser, ele lhe mostrará uma montanha como duas mãos unidas pelos dedos. Ela se chama Apu Thunupa. Antigamente, antes d ser montanha, era um homem humano, feito como os Poderosos Senhores de Cuzco. É ele que indica o fim do mar de sal. Mas é preciso ainda ter olho para ver a montanha.
Tão de repente quanto parou, sem uma saudação, ele prossegue. Dessa vez, dirige-se para as montanhas do leste, mais próximas.
Gabriel hesita. Sabe que o índio tem razão. Sabe que, sozinho, será ainda mais difícil para ele atravessar o mar de sal. Mas repete para si mesmo sua única verdade: para que estar vivo se ela não estiver mais?
A sombra do homem que parte é muito curta. Gabriel se pergunta com ele pode caminhar assim descalço nessa crosta de sal quando seus próprios pé já parecem ferver dentro das botas.
Depois que o índio caminhou l00 passos sem se virar, Gabriel afagou suavemente o pescoço do cavalo e murmura:
- Venha, meu lindo, venha. Sairemos desta sozinhos!
Mas não se dá tempo de perguntar a si mesmo se acredita nisso.
Antes da aurora, eles recomeçam a caminhada no branco que cintila só a noite. As miríades de estrelas em festa no céu reconfortam. Durante alguns mas horas, faz até bastante frio para que Gabriel ouse ir montado no cavalo que ele guia orientando-se pelo Cruzeiro do Sul. Depois, vem a bruma. Gabriel acha que o índio estava errado, o sol não vai come-los. Quando este aparece nas nuvens, é apenas um disco branco em cima do mar branco.
Então tudo vai bem. O calor não é mais tão penoso e a reverberação é menos mortal. Gabriel apeia e caminha na frente do cavalo. Eles avançam rapidamente durante quase a metade do dia.
O cansaço só vem subindo devagar pelas pernas de Gabriel quando o disco branco do sol cai novamente no oeste. A princípio, é apenas uma dor difusa e leve. Em pouco tempo, porém, milhares de agulhas espetam seus músculos, fazendo-o gemer. Uma primeira vez, ele precisa parar e até se deitar um instante antes de partir novamente, sob o olhar preocupado do cavalo baio.
Depois, outra vez, após menos de uma légua, ele pára. Essa dor é incompreensível. É como se os músculos de suas coxas estivessem presos com um nó sem poder mais relaxar.
Logo é obrigado a parar tantas vezes que o cavalo chega a pousar sua cabeça grande nas costas do amo para empurrá-lo.
E é assim que ele ouve de repente o estalo, abafado pelo relincho do animal, que bate violentamente com a cabeça em suas costas, empurrando-o com força enquanto desaba, relinchando de novo.
Bestificado, de joelhos, Gabriel não encontra forças para se levantar. O que ele vê é o pior dos pesadelos.
Cego, o cavalo enfiou a pata direita, anterior, até o tendão num buraco de um palmo de largura na espessa crosta de sal, metendo-a numa greta escura onde flutuam cristais. E fraturou-a.
- Cavalo! - murmura Gabriel retirando a atadura. - Cavalo!
Os beiços arregaçados sobre os dentes amarelados, o cavalo estica o pescoço com um grunhido de dor que faz suas ventas tremerem. Num derradeiro esforço, tenta se levantar. Mas suas patas não tem firmeza e seus olhos redondos se assustam, entrevendo a morte. Ele cai pesadamente de lado, com um gemido.
Saindo finalmente daquele estupor, Gabriel rasteja até o animal. Agarra sua cabeça na hora em que um estremecimento terrível percorre seu velho companheiro. O cavalo agora está ofegante. Um rugido rouco faz seu enorme peito vibrar. O sangue vem tingir o sal embaixo de seu peitoral e cintila no pó baço.
Só então Gabriel compreende que o cavalo caiu em cima das bilhas de água salobra, quebrando-as com seu peso. Um caco de cerâmica, cortante como um estilete, alojou-se entre suas costelas, perfurando-lhe um pulmão. O sangue já chega em sua boca.
- Cavalo! - sussurra Gabriel, puxando mais para si a cabeça do animal. - Cavalo! Você não tinha nome, meu cavalo, e agora não adianta nada eu lhe dar um...
A pálpebra bate sobre o olho doce e já vidrado de resignação.
Numa última e vã agitação, Gabriel esquece a dor das coxas para tirar barbela e o freio, aliviando o animal de seus arreios. Mas o olho do bicho s parece pedir carinho. Um novo arrepio de febre e de dor o faz estremecer todo.
Gabriel deita a cabeça dele sobre as coxas doloridas. Sua mão fica u bom tempo passeando em seu rosto, entre suas orelhas, em seu chanfro.
Ele sabe o que tem que fazer, mas não consegue se decidir.
Puxa o punhal da cinta e deixa-o ao seu lado.
Diz a si mesmo que ainda tem algum tempo, embora sinta a dor d sufocação aumentar na respiração do bicho.
Chora lágrimas de sal. Seu peito soluça de recusa, de cansaço e de medo.
Depois, faz aquilo sem pensar. Sua mão agarra o punhal, crava-o n macio da garganta.
No momento de sua libertação final, o cavalo empurra com tanta for a cabeça contra o peito de Gabriel que este cai para trás, inundado pelo sangue do companheiro.
Mais uma noite passou. Agora, ele já não sabe há quanto tempo es caminhando.
O sangue do cavalo o cobre todo, coagulado como uma crosta que preserva do sol. Pois o sol está de volta, e quer devorá-lo. Gabriel sabe q chegou a hora.
Seus lábios estão tão secos e tão inchados que ele nem sempre consegue respirar. Pensa que se Anamaya o encontrasse agora desviaria a vista para não vê-lo.
Mas ele caminha, e não tem mais dor nas pernas. Caminha como se seu corpo tivesse apenas essa função. Suas mãos pendem, inchadas como balões ardendo como se ele as tivesse posto num forno.
De quando em quando, ergue uma pálpebra e afasta a faixa com o punho. Então, julga ver o pico recortado do Thunupa, a montanha que foi um homem humano! Mas sabe que não vai atingi-la. O couro de suas botas se abriu contra as lâminas de sal e seus pés vão ficando como os do índio que soube não acompanhá-lo na estrada para a morte.
"Você é mais louco que eu", repete ele de vez em quando, já sem saber do que fala.
Então, coloca o rosto e o corpo de Anamaya à sua frente e caminha.
Olha para ela sorrindo e ela sorri também para ele. Ele lhe diz:
- Não posso encontrá-la agora, mas vou esperá-la o tempo que for necessário. Nunca se esqueça que a amo.
Ela balança a cabeça e lhe responde que vai bem, que ele não precisa se preocupar. Diz:
- Não se esqueça que você é o Puma!
Ele ri, e de repente a vê na relva bem verde do monte Thunupa. Agora ela está longe, e ele não vê direito seus olhos enquanto ela lhe estende os braços na frente de uma pequena casa de barro ocre. Ela ainda grita para ele:
- Não se esqueça que você é o Puma e que pode sempre se libertar!
Ele diz a si mesmo que está louco e que deveria fazer uma oração para que Deus os salve, a ela como a ele. Que ainda tem tempo para fazer uma prece e não deixar Deus zangado!
Mas torna a ouvir o grito de Anamaya chamando-o, agora muito mais perto, como se ela só estivesse a 50 passos dele. Não quer acreditar nisso, mas acredita.
Seu coração começa a bater devagar, como se ele estivesse em paz. Então, cessa enfim sua marcha tão longa e tão inútil. Com suas mãos de monstro, ele levanta a faixa dos olhos.
Como pressentia, não está num campo nas encostas do Thunupa, mas no Mundo branco e infinito. Com espanto, avista todavia, ao longe, no calor fluido, um longo cortejo de vultos negros que parece vir ao seu encontro. Vultos que dançam, cantam e rodopiam.
Ele sorri e compreende. São anjos.
Sente enfim em seu rosto o sopro do beijo de Anamaya e, quando cai, sabe que ela estará no paraíso para onde ele vai.
Huchuy Qosgo, fevereiro de 1536
Desde o amanhecer, às centenas, eles transpõem a garganta que domina Huchuy Qosgo. Escudo no ombro, segurando com firmeza o tacape estrela do, eles descem entre os terraços de batatas em flor e atingem os muros vê coelhos das canchas. O arrastar das sandálias de couro de lhama nas lajes d ruelas ecoa como um sussurro vindo do coração da terra. Senhores e serva crianças e velhos, todos vêm admirar suas túnicas do Norte, do Sul e d longínquas planícies de areia da beira do oceano.
Em fila, uns atrás dos outros, eles vão se reunir no grande terraço d cerimônias que domina o vale. Muitos têm o rosto severo, mas alguns sorriem de felicidade. Uns já possuem as insígnias e as lanças dos generais, os outros são apenas jovens oficiais. Na maioria, são oficiais que já combatera sob as ordens dos grandes generais de Atahualpa ou de Huascar. Nesse grande dia tão esperado, todos esquecem as antigas querelas.
O próprio Inti está feliz de vê-los. Já não chove, a temperatura es agradável e o céu está tão leve como um tapete de plumas. A fumaça d braseiros onde se consome a coca sobe ao céu ao mesmo tempo que o Sol, P amado do Único Senhor, ergue-se acima das montanhas.
Aos recém-chegados, jovens virgens levam jarras de água fresca e lei de lhama fermentado, frutas e bolachas de milho. Nos quatro cantos terraço, depois em volta da Pedra Sagrada onde Inti se arruma todos dias, os sacerdotes oferecem a cerveja sagrada à terra escura. Finalmente rufam tambores quando o Sábio Villa Oma e a Coya Camaquen se adiantam no terraço.
Envergando a pesada lança de ouro do chefe de guerra supremo, o sábio vestiu seu unku púrpura e verde estampado com um único motivo geométrico. Seu capacete de couro coberto de ouro, com a aplicação de um semicírculo de plumas azuis e amarelas, brilha como um segundo sol, lançando seus raios nas quatro direções do Império.
Alguns jovens guerreiros murmuram de orgulho ao vê-lo adiantar-se até a pedra do ushnu. Os brincos de ouro que atravessam os lobos das orelhas de Villa Orna são tão grandes e tão magníficos que há anos eles não viam nada igual.
A Coya Camaquen, que caminha ao lado do sábio, também possui jóias consideradas há muito desaparecidas no roubo perpétuo dos estrangeiros. Sobre sua túnica branca e seu cinto finamente tecido pende o disco de ouro de Inti. Em seus cabelos, cintilam os cordões de ouro da Serpente Amaru que, como ela, sabe transitar entre o visível e o invisível.
Quando Anamaya e Villa Orna param diante das centenas de homens armados, um búzio soa demoradamente. Sua vibração grave ecoa na montanha. Tão alto que os chamados se propagam na distância, atravessando o Vale das Cidades Reais com o vigor de um falcão enquanto os guerreiros abaixam a cabeça diante dos dois mais Poderosos do Império das Quatro Direções.
Anamaya adianta-se para os guerreiros curvados e pega o disco de ouro que lhe pesa sobre o peito. Levanta-o bem alto e, com uma voz forte, declama:
O Viracocha, O Inti,
Pais poderosos do Universo,
Pais amados do devir,
Ouvi nosso apelo!
Ó Viracocha,
No céu abaixo, podes estar!
Ó Inti,
No céu acima, podes estar!
Ó Viracocha, Ó Inti,
Pais amados da Origem,
Senhores de todos os Poderosos,
Baixai os olhos para nós!
Concedei-nos vossa força!
Ó Viracocha, O Inti,
Não temos outro desejo
Senão sentir vossa presença
No dia que segue a noite.
Há um breve silêncio, depois os guerreiros se endireitam. Seus olho inflamados perscrutam os olhos claros de Anamaya que diz com firmeza:
- Poderosos Capitães dos exércitos de Tahuantinsuyu! Estou feliz que tenham respondido ao meu chamado. Quis que ouvissem de minha boca esta notícia: em breve, o Único Senhor Manco estará livre. As correntes que o estrangeiros puseram em volta de seu pescoço e seus tornozelos já caíram logo seus sofrimentos se aplacarão. Mais duas luas e Inti seu Pai traçara sombra de seu corpo no Vale Sagrado onde ele irá nos encontrar...
O murmúrio contido no peito de cada um enquanto ela falava explode. Um grito rouco e violento ecoa no ar da manhã como o estalo de mil correi de funda.
Villa Orna esboça um sorriso amargo que deixa entrever seus dentes verdes. Antes que a gritaria se acalme, ele se aproxima de Anamaya. Com u gesto breve, faz sinal para quatro soldados postados à beira do terraço. O homens acorrem trazendo um grande cesto. Eles o abrem e o viram diante dos guerreiros.
Um gibão rasgado, preto de sangue coagulado, um par de botas, um espada quebrada rolam na relva rente. Depois, outra coisa. Uma estranha mas clara e escura, mole e ao mesmo tempo dura. Villa Orna crava ali sua lança.
Lentamente, o semblante impassível, ergue o pacote de carne. Tod vêem a pele de um estrangeiro branco, esfolado vivo.
Os mais velhos e os mais experientes dos oficiais não pestanejam, a passo que uma expressão de susto passa nos rostos dos mais jovens. Anama desvia os olhos. Da melhor maneira possível, disfarça a náusea que a invade quando a voz de Villa Orna troveja:
- O homem que usava essa pele dava nossas crianças para seus ca devorarem. Entre os estrangeiros, ele foi o primeiro que desonrou o Coricancha: seu nome era Moguer! Seus gritos foram doces aos meus ouvidos, Po cobriam as risadas dos que ousaram humilhar o Único Senhor Manco. Esta a primeira resposta que lhes damos!
O rosto duro como o bronze de um machado, Villa Orna passa diante dos guerreiros, obrigando todos a fitar o horrível troféu. Com a mesma voz, prossegue:
- Durante minha ausência, a Coya Camaquen obteve o apoio dos Poderosos do Outro Mundo. O Irmão Duplo de nosso amado Huayna Capac se propôs libertar seu filho, o Único Senhor Manco! Embora seja mulher, ela se porta como um guerreiro. Mas amanhã, quando o Único Senhor nos encontrar neste vale, novamente livre na luz de Inti, deveremos lhe oferecer a força que lhe permitirá castigar para sempre os impudentes que o desonraram!
Com um movimento do punho, Villa Orna faz girar sua lança. Os despojos vão cair na frente dos oficiais.
- Eu, Villa Oma, Segundo Poderoso do Império do Tahuantinsuyu, declaro que, antes do mês de Aucaycusqui, recuperaremos a Cidade do Puma dos estrangeiros e ali celebraremos a Grande Festa do Sol! Vamos purificar Cuzco com uma grande batalha para que nosso Único Senhor possa voltar a sentar-se em sua cancha e que os Corpos Secos de nossos Ancestrais encontrem novamente a paz no grande templo de Coricancha. De hoje em diante, cada um de vocês deve reunir os homens e as armas de que precisaremos. Quero que haja um exército suficiente para cobrir todos os cumes das colinas ao redor de Cuzco. Quero que, quando chegar o dia, os guerreiros do Único Senhor Manco formem em volta da cidade um cinturão tão sólido como uma correia de couro de lhama. Então, estrangularemos os estrangeiros e não restará mais nenhum vivo!
Com as mãos, Villa Orna imita o estrangulamento de um inimigo. No entanto, o estremecimento que percorre os guerreiros não vem do gesto dele.
Há alguns instantes, um aguaceiro havia atravessado de uma montanha a outra do outro lado do vale. Quando o sábio se cala, o Arco de sete cores de Cuychu está cintilando. Retesa-se de repente, vai se curvar no alto do céu antes de mergulhar na encosta abrupta que prolonga o platô de Huchuy Qosgo. Por um bom tempo, permanece ali, esplêndido e bem visível.
Então, todos juntos, Anamaya e Villa Orna, os habitantes de Huchuy Qosco e os guerreiros reunidos, todos ficam imóveis com as mãos espalmadas diante do peito e murmuram com respeito, admirando o arco-íris mensageiro dos Poderosos da Guerra:
- Nós o vemos, Cuychu, nós o vemos! Seja bem-vindo aqui, você que nos dá a força e a alegria do combate!
Na doce penumbra do pequeno templo, os reflexos da luz viva do exterior desenham um sorriso no rosto do Irmão Duplo. Depois de contemplá-lo demoradamente, Villa Oma olha rápido para Anamaya, que organiza as oferendas.
- Coya Camaquen, estou feliz de estarmos novamente reunidos neste grande momento - murmura. - Estou muito orgulhoso de você. O que faz por Manco é inestimável.
Anamaya balança a cabeça com uma expressão desenvolta:
- Este é só o começo de um longo estratagema que estou custando a ver funcionar. O irmão mais velho do Governador voltou da terra dele. Agora, é ele quem comanda os estrangeiros de Cuzco. Ele é orgulhoso e não ouve ninguém! Trata bem o Único Senhor, pois quer conseguir ouro. Fizemos chegar às mãos de Manco vasos e baixelas: quando recebeu isso, o irmão mais velho do Governador mandou desacorrentar Manco. Então enviamos uma estátua de Viracocha que os sacerdotes aceitaram doar. É do tamanho de meu esposo o Irmão Duplo, mas é oca. Manco a ofereceu aos estrangeiros, e eles ficaram tão felizes que o Único Senhor agora está livre para circular pela cidade. Logo ele vai propor ao irmão do Governador ir buscar o Irmão Duplo, pois todos os estrangeiros sabem que ele é pesado e de ouro maciço. Manco deixará Cuzco, mas só voltará para lá com nossos exércitos...
Seu sorriso é quase alegre.
- Há muito tempo que apenas aplico o que você me ensinou, Villa Oma - acrescenta.
A risada do sábio parece areia rangendo. Seus dedos nervosos esboçam uma carícia na mão de Anamaya.
- Ensinei alguns rudimentos do meu saber a uma criança estranha que se chamava Anamaya. Há muito tempo que a Coya Camaquen não é mar essa criança!
Anamaya pisca e abaixa os olhos como se o elogio de Villa Oma a deixasse confusa.
- Posso lhe fazer uma pergunta, sábio?
As pálpebras de Villa Orna se franzem um pouco e ela se sente corar sob o olhar penetrante que a perscruta.
- Pergunte, Coya Camaquen. Não há nada que eu saiba que você não possa saber também.
Ela está a ponto de se calar, mas a necessidade de saber é forte demais A preocupação que vinha corroendo suas noites há quase uma lua é insuportável demais.
- Você o viu? - sussurra ela.
O rosto e o corpo de Villa Oma se retesam como a corda de um arco. Sua boca é apenas uma lâmina e seus olhos são fendas faiscantes de fúria. - De quem me fala, Coya Camaquen?
- Você sabe. Estavam juntos na estrada do Sul e... - Como ousa?
- Villa Oma!
- Como ousa? Você? No dia em que acabamos de decidir a guerra contra os estrangeiros!
- Villa Oma, Gabriel não é um estrangeiro como os outros. Ele é o Puma!
- Cale-se! Não pronuncie o nome dele aqui. Não desonre este templo! Todos os estrangeiros são iguais, Coya Camaquen, você não sabia? Todos, sem exceção! Eu os vi durante dias e dias, destruindo ao passar tudo que vive. Homens, mulheres, crianças, casai e animais, pedras e templos! Dia e noite. São demônios, Coya Camaquen! Ele, como os outros!
- Não. Ele não é! Foi ele que o Único Senhor Huayna Capac me indicou!
- Você se enganou!
- Então, sábio Villa Oma, eu também me enganei ao ver o cometa que indicava o Único Senhor Atahualpa. Me enganei quando o Irmão Duplo me permitiu escolher Manco como nosso Inca. Villa Oma, se eu me enganar em relação a Gabriel, se ele não for o Puma que deve me conduzir, então é que me enganei desde a primeira noite em que o Único Senhor Huayna Capac segurou minha mão.
De um jato só, o sábio cospe o sumo verde de coca na entrada do templo.
- Coya Camaquen, pense o que lhe convier! Mas eu, o chefe supremo dos exércitos do Único Senhor, lhe aviso: você não vai preservar esse estrangeiro da punição que o espera. Eu cuidarei para que ele seja um dos primeiros a morrer! Pense nisso também se ainda conseguir. Se enganar seu esposo o Irmão Duplo com ele, é a nós todos que vai pôr em perigo. Agindo como uma rapariga adúltera que chora por carícias, é Manco e o Império inteiro que vai destruir, menina Anamaya! Se isso tiver que acontecer, eu, Villa Oma, hei de destruí-la antes que não haja mais um Filho do Sol neste mundo aqui!
Anamaya o vê afastar-se sem olhar para ela, empertigado com toda a certeza que o anima.
Confie no puma.
Pela primeira vez, ela se pergunta se não se enganou.
Lago Titicaca, fevereiro de 1536
Ele escuta barulhos de vidro quebrado, cristais tinindo, gritos, risadas. Depois, seu corpo fica preso no gelo. Tudo fica vermelho. A dor é violenta, como se ele se achasse preso no torno de uma bancada. Ele quer protestar, mas sua voz não produz som nenhum.
A noite volta e, com ela, a paz.
Mais uma vez, há vermelho por toda parte, como se ele nadasse em seu próprio sangue. Talvez esteja nascendo, pois um líquido o leva, o envolve e o protege. O vermelho fica mais intenso. Ele ouve as risadas e os cristais. O frio lhe aperta brutalmente as têmporas e é então que ele abre os olhos.
Está batendo queixo e acha que não vai conseguir respirar. No entanto, após um primeiro longo sorvo de ar, a angústia acalma. Seus olhos enxergam de verdade. O que ele vê é maravilhoso. Espantoso demais para ser verdade.
Tudo é azul à sua volta. O que ele julgava serem cristais é uma água límpida. Está mergulhado num mar gelado e imenso, inserido entre montanhas tão altas que ele nem chega a ver o pico.
Gabriel respira de novo, tremendo, e vê 20 rostos a perscrutá-lo, crianças e mulheres, divertidos e encantados. Uns estão mergulhados na água com ele, outros estão em pé sobre a água. Caminham, vão de um lado para outro debruçam-se e lhe estendem a mão. Ele julga ter chegado a um mundo sobre natural e quer se levantar para fugir.
No fundo da água gelada, seus pés topam com pedras e areia, ele consegue se levantar, cambaleando. As crianças desatam a rir alegremente, nu crescendo. Gabriel se vira. Vê a curva harmoniosa de uma praia de areia, uma enseada dominada por algumas casas. Há algumas árvores parecidas com pinheiros e até com oliveiras. Por um instante, julga estar sonhando, de volta à sua Espanha natal. Seu coração bate alegremente. Quer correr para a praia, mas seus músculos estão fracos demais. Dá três passos e cai, espalhando muita água e provocando acessos de riso.
Reunindo todas as forças, fica de quatro, arrastando a barba na marola que se formou. Mas algumas mãos o acodem e o amparam. São jovens mulheres de cabelos longos untados de óleo e perfumados. São muito reais e muito lindas, e ele percebe que está nu em pêlo. Debate-se, quer cobrir o sexo e provoca novas gargalhadas enquanto é levado para a praia de areia fina.
Ali, um homenzinho forte o observa. Seu olhar é pacífico e amigável. Seus cabelos longos ondulam em seus ombros. Suas mãos são estranhamente grandes e fortes. Ele faz um pequeno gesto de saudação com a cabeça quando as mulheres deitam Gabriel na areia. Gabriel finalmente o reconhece.
- Katari! - exclama com uma voz que ele próprio não reconhece.
- Bom dia, amigo da Coya Camaquen - responde Katari com doçura.
- Por favor, me diga em que mundo estamos.
Katari, sem responder, abre a mão direita, revelando uma pedra negra. Com um pequeno movimento do punho, joga a pedra na vertical. Durante alguns segundos, a pedra parece ficar suspensa no ar, sem querer cair. No entanto, volta para sua mão.
Gabriel olha para ele e abraça a paisagem com os olhos.
É um lugar daqui e de fora, um tempo de agora e de então. Katari sorri para ele:
- Bem-vindo ao mundo - diz com doçura.
Gabriel está deitado sobre diversas mantas finamente tecidas que lhe fazem uma cama macia. Uma mulher unta pacientemente seu corpo com um ungüento que umedece sua carne e aquece seus músculos que derreteram como neve ao sol.
Eles estão instalados ao ar livre, pouco acima da praia onde ele voltou a si. O que vê provoca nele uma emoção profunda. Uma baía que seria parecida com uma pequena enseada mediterrânea se dezenas de terraços de muros perfeitos não estivessem encaixados nas encostas e reentrâncias.
Estranhas barcas estão agora protegidas do vento. Algumas são pequenas e outras, grandes o bastante para levar 20 pessoas de uma vez, concebidas como jangadas. Pescadores andam de um lado para outro ali em cima, como se andassem em cima d'água, o que, em sua semiconsciência, Gabriel acho que acontecia. Porém o mais estranho são os cascos e as velas. Não são nem de madeira nem de lona, mas de feixes de junco amarelo engenhosamente amarrados.
O que Gabriel julgou ser o mar, na verdade é um lago. Mas um lago tão imenso que, em alguns pontos, as praias se perdem de vista. Ao norte, apagando-se numa brancura de bruma, o horizonte esboça uma curva como u oceano. A leste, as encostas vivas das montanhas mais altas que Gabriel jamais viu traçam um limite árido enquanto os picos de neves eternas refletem-se tranqüilamente em sua superfície. A oeste e ao sul, até onde a vista pode alcançar, as encostas estão cobertas de milhares de terraços de cultura.
Até os cumes mais altos, sem interrupção nenhuma, formam uma fabulosa tapeçaria de verdes cujas pregas, sedosas e fluidas, mergulham suavemente no abismo azul do lago. Na verdade, parece que esses montes não nascera de uma vontade divina, mas que, terraço após terraço, muro após muro, u formigueiro de homens os ergueu no céu.
Essa grandeza e essa beleza são tão assombrosas que Gabriel, alheio à carícias da massagem que reanimam seu corpo, contempla-as fascinado, ainda sem ter certeza de estar completamente desperto.
- Esse lago se chama Titicaca- explica Katari agachado a alguns passos dele. - Foi aqui que o mundo desejado por Viracocha nasceu. Essa montanhas que você vê, as mais fortes, as mais altas, Apu Ancohuma, Ap Illampu, são os primeiros entes vivos a nascer aqui. Hoje, os Senhores Montanhas assistiram à sua volta à vida. Estão felizes com isso.
Gabriel observa Katari um instante para certificar-se de que este não está zombando dele. Mas o Mestre das Pedras dos Incas contempla os pico nevados com a maior seriedade. Maquinalmente, seus dedos brincam com pedra negra que ele continua segurando.
- Aqui - prossegue ele -, você está numa ilha. A mesma em que Inti, no dia em que nasceu, saiu do Rochedo Sagrado antes de pular para céu. Há uma outra ilha, ali atrás da colina. Uma ilha menor: a Mãe Lu descansou também no dia em que nasceu. Como você agora!
Pela primeira vez, Gabriel sente um pouco de ironia no tom e no olho de Katari. A jovem que cuida dele, sem se embaraçar com pudores supérfluos, massageia suas nádegas com tanta firmeza que ele se sente um bebê sendo preparado para as fraldas.
- Ela tem mesmo que me apalpar assim? - pergunta.
- É melhor - diverte-se Katari. - Você passou luas sem andar, sem mover um membro. Se quiser poder ficar de pé logo sem sentir muita dor, primeiro precisa ser massageando. Mas não fique com pudores, essa serva o vê nu há muito tempo...
Gabriel repele o sorriso e a mão da serva que quer confirmar o que acaba de ser dito:
- Katari, preciso partir o quanto antes para Cuzco! O Mestre das Pedras dá uma risadinha:
- Você não poderá antes de uma lua, no mínimo. Não tem mais o seu cavalo para levá-lo. Terá que andar. Precisará de todas as suas forças. - Não é possível, eu teria que partir antes...
- Se está preocupado com a Coya Camaquen - diz docemente Katari -, fique tranqüilo. Ela está bem. Vive numa cidade da montanha que os estrangeiros de Cuzco não conhecem.
Gabriel ergue-se para vê-lo melhor. A jovem pára um instante de massagear.
- Você diz "os estrangeiros de Cuzco", Katari... Será para me poupar e não ferir meu orgulho? Ninguém mais do que eu sabe a que ponto essa gente é má. Os que foram trazidos até aqui pelo Governador Pizarro agora estão loucos. Ouro e sangue tornaram-se o único desejo, o único pensamento, a única razão de viver deles! Eles já não sabem mais o que é bem e mal. Não sabem o que é humano ou bestial. É uma loucura que me apavora e, garanto a você, não é a minha.
- Eu os observei - diz sobriamente Katari. - Eles são piores que os animais, pois os animais não sabem o que é a crueldade inútil, os animais desconhecem a escravidão e só matam para se alimentar... Mas é verdade, você não é como eles. Se fosse, não seria o que é para a Coya Camaquen!
- Obrigado.
- Sei o que é bom ou mau para o Mundo daqui que é o meu. - Vai haver guerra, não?
- Sem dúvida.
- Anamaya deve se afastar de Cuzco - murmura Gabriel. Katari balança a cabeça.
- Não! A Coya Camaquen não pode se afastar do Único Senhor Manco. Ela vai libertá-lo. Depois, vai ajudá-lo a guerrear. Hoje, Anamaya é a única referência neste mundo para o Filho do Sol. Só ela sabe ouvir a vontade dos Poderosos Ancestrais. Villa Oma, que você perseguia, agora não e mais um sábio: é apenas um guerreiro sedento de vingança.
Por um instante, Gabriel fica calado, procurando compreender todo o sentido das palavras do Mestre das Pedras. Uma coisa pelo menos o acalma: Anamaya está viva e longe dos irmãos do Governador!
- Como você me salvou? - espanta-se de repente. - Como fez para me achar nesse inferno de sal?
A risada de Katari é quase terna.
- Isso, você poderá agradecer a ela! Foi ela quem viu onde você estava e que o sal ia fazer você morrer. Um chaski me avisou e fui ao seu encontro. Quando o achei, o seu sono o conduzia ao Outro Mundo. Foi preciso segurá-lo aqui durante várias luas para que sua alma não o deixasse.
- Dormi durante luas? - murmura Gabriel, incrédulo. - Tenho a impressão de só ter fechado os olhos desde ontem. Lembro-me do momento em que caí. Lembro-me da morte do meu cavalo e da minha sombra que não queria mais avançar! Lembro-me também da sede e depois das queimaduras, mas...
Ele olha para as mãos, os braços. Sente os ombros que a jovem continua massageando, deixando-os lustrosos ao sol. E não acredita no que vê!
- Minha pele está intacta - ri um tanto nervosamente. - Estou intacto. Parece que tudo foi um sonho e não atravessei esse monstruoso deserto de sal!
As pupilas escuras de Katari brilham, achando graça. Mais uma vez, ele abre a mão e lança a pedra negra no ar. Mais uma vez, Gabriel julga vê-la ficar suspensa antes de cair na mão do Mestre das Pedras.
- Você dormiu muitas luas - confirma. - Isso foi necessário para o seu tratamento, pois o sal tinha começado a secar seu corpo de dentro para fora, e o transformava em Corpo Seco. Se você tivesse acordado, a dor teria ficado tão insuportável que você teria morrido como se seu coração explodisse. Então, o fiz beber algumas ervas que fazem dormir. Lentamente, lentamente, o reidratamos. Até hoje, quando foi você que saiu da água!...
A risada de Katari é a de um homem orgulhoso de ter salvado uma vida. Ele faz um gesto e a serva pára finalmente de massagear. Ela estende um unku amarelo para Gabriel. Ele veste a túnica. Sua barba passando com dificuldade na abertura do pescoço, a jovem o ajuda com algumas carícias eficazes.
- Vou ter que me barbear - resmunga Gabriel, constrangido. Detesto usar barba.
- Então, todas as mulheres da ilha vão chorar - brinca Katari. - Elas gostam muito de seu rosto coberto de fios de ouro. Imaginam que você é um dom das Montanhas e que todos os homens delas logo serão como você. Se você perder os seus pêlos, vou ter que tratá-las de um mal muito mais grave que o seu!
Gabriel sorri afinal. Estende a mão para o Mestre das Pedras.
- Eu lhe devo muito, amigo Katari. Não sei se poderei retribuir... Katari segura firmemente sua mão.
- Não há nada a retribuir neste Mundo aqui, nem no Outro. É só dar, meu amigo, dar sem parar.
Katari tem razão em tudo.
Quando Gabriel raspa a barba, durante mais de uma semana, as mulheres da ilha se debulham em lágrimas e escondem o rosto nas mãos ao cruzar com ele. Quanto a andar, primeiro ele precisa se contentar com dez passos, depois com 20 ou 50. Então fica moído e esgotado como se tivesse transposto uma garganta.
Em apenas dez dias, consegue caminhar uma hora à beira do lago sem dores excessivas. Logo, seus passeios o levam aos sítios maravilhosos da ilha. Ele descobre a vasta esplanada que domina a praia de seu renascimento. As árvores suavizam seu recorte, manadas de lhamas vêm pastar ali numa paz grandiosa.
Lentamente, ele começa a perceber também a estranha força das altas montanhas do leste. Suas reentrâncias e seus picos gigantescos surgidos da imobilidade do lago parecem em repouso. Mas parecem também à espera de um movimento prodigioso que poderia levar a Terra inteira na noite do universo.
Após duas semanas, Gabriel atinge finalmente a garganta que domina a ilha e avista com assombro a paisagem do oeste. Aqui, não há mais nenhum lhama, nenhum terraço de milho ou de batatas. A vegetação é triste e rara. Em toda parte, o vento abrasa as moitas, o capim, e até as pedras que ele lixa e lustra incansavelmente.
De quando em quando, sem jamais se aproximar para não despertar muita curiosidade, ele entrevê, na outra parte da ilha, o grande Rochedo Sagrado e o Templo de Inti, para onde afluem nos dias de festa os habitantes das margens do lago.
Dia após dia, seus passeios aumentam, o pensamento de Anamaya ocupa-o totalmente. Sua necessidade de encontrá-la de novo torna-se insaciável. Olhos fixos no horizonte do lago, ele tenta reconstituir cada parte de seu corpo, depois cada instante que já viveram. No vento vindo do oeste, ele quer respirar seu perfume, encontrar as inflexões de sua voz. Não olha mais para nenhuma das mulheres da ilha a fim de só viver com a imagem dela que ele reconstituiu.
A noite, em seus sonhos, ela vem a ele com uma presença cuja falta é dolorosa e brutal quando ele acorda sobressaltado, os braços agarrando a noite fria.
Estranhamente, a própria ilha parece incapaz de proteger esse amor por ela que as vezes o paralisa. Tira-lhe mais as pernas do que o cansaço. Então, ele se vê ali, naquela paz, vivendo cada um dos dias de sua existência com Anamaya, numa das casas da praia, realizando finalmente o que um homem e uma mulher devem realizar quando o amor os une.
E isso se torna como um ritual. A cada crepúsculo, ele vai se sentar numa pedra diante da imensidão do Titicaca e imagina o que poderia ser a vida deles no esplendor desse lugar.
Uma noite, ele vê de repente o céu se riscar de um verde vivo. Um estremecimento de preocupação o deixa tenso. Mas ele vê o que vê! O sol acaba de desaparecer atrás da serra do oeste, uma nuvem púrpura envolve as montanhas, porém, no mais alto do céu, longos laivos verdes avançam no céu escurecido. Ele se levanta como se outro sinal de uma mudança do mundo fosse surgir. E sobressalta-se de medo ao ouvir a voz atrás dele recitando docemente:
O Sol,
A Lua,
O dia e a noite,
A primavera e o inverno,
Apedra e as montanhas,
O milho e a cantuta.
Nada existe em vão, ó Viracocha.
Cada qual vai, das margens do Titicaca,
Tomar o lugar que designaste para ele.
O Universo é teu desejo, Viracocha,
E teu desejo se realizou nas margens do Titicaca.
Aqui, ó Viracocha, seguraste o bastão da origem, Aqui, no Titicaca, estou com minha alma dupla,
A do embaixo e a do em cima,
Ó Viracocha, é tua vontade,
Aquele que se afasta do Titicaca
Já está no caminho da volta.
Quem pronunciou essas palavras não é outra senão a serva que tão bem cuidou dele durante essas últimas semanas. Ela lhe sorri, mas seu olhar e triste. Aponta para o céu de onde os raios verdes já se retiram.
- Quando o céu fica verde - diz -, é que Viracocha faz o dom da Paz aos seres humanos. Viracocha ama você e lhe diz isso.
Ela segura a mão de Gabriel e a aperta ternamente.
- Está na hora de você partir, estrangeiro. O lago começou a lhe ensinar o que seus olhos ainda não conseguem ver. Um dia, você terá o desejo de voltar, pois, embora sua pele seja branca e seus cabelos sejam dourados, Viracocha reconheceu-o. Você sai do Bastão de origem dele e uma alma de baixo o aguarda aqui.
Após essas palavras estranhas, apertando a mão do perplexo Gabriel na sua, ela ainda recita:
O Sol,
A Lua,
O dia e a noite,
A primavera e o inverno,
A pedra e as montanhas,
O milho e a cantuta.
O Viracocha, e tua vontade,
Aquele que se afasta do Titicaca
Já está no caminho de volta.
Calca, abril de 1536
Há dois dias, nos templos de Calca, os sacerdotes e os adivinhos multiplicam perguntas aos augúrios. A coca é queimada muitas vezes. Corações de lhamas brancos e pretos são consultados de manhã e à noite. Na torre de pedra que cerca a huaca, fora da cidade, os que contam o tempo refazem seus cálculos sem se cansar. Nos armazéns, os amarradores de quipus manipulam seus feixes de cordões, enquanto os generais designados por Villa Oma contabilizam os batalhões recrutados, as quantidades de armas e víveres reunidos nos tambos secretos.
Há dois dias, a cancha real é uma colmeia em polvorosa. As servas preparam 100 pratos diferentes, as virgens arrumam pilhas de túnicas suntuosas nas reservas, as esposas e as concubinas cuidam da beleza, conferindo-a até a curvatura dos cílios.
Há dois dias, em Calca, homens, mulheres e crianças, seja de que condição forem, já não comem e contentam-se em beber água.
Pois, há dois dias, o Único Senhor Manco está livre.
E essa manhã, no dia que clareia, tocam trompas no vale. Das encostas que circundam Calca, cada qual pode ver o cortejo que se forma em volta da liteira do Único Senhor, as 100 virgens que varrem a poeira de seu caminho, as 100 outras que cantam, os tambores que rufam e os mil guerreiros em trajes impecáveis, arco ou tacape em punho, a segui-lo.
Então, na cancha real, Anamaya dá ordem de colocar o Irmão Duplo no centro do pátio. As oferendas são distribuídas em volta dele, a coca, a comida e a chicha.
Em seguida, os Poderosos Senhores de Cuzco e das províncias vêm saudar o rosto de ouro do Irmão Duplo antes de se instalarem nas laterais do pátio, cada qual atrás de uma pesada pedra retangular. Depois ainda, as esposas e as concubinas se colocam em fila, atrás do tripé real colocado sobre um comprido cumbi com a padronagem tecida em pêlo de morcego.
Quando cada qual está no lugar que lhe cabe, os semblantes estão cheios de orgulho. Jamais, desde que Manco recebeu a mascapaicha, foram ostentados tantos faustos. Para todos, nesse instante, parece que o esplendor do Império das Quatro Direções foi restaurado, tão intacto quanto se os estrangeiros jamais tivessem posto os pés na terra criada por Viracocha.
O rosto de Anamaya está cheio de luz e cada um de seus gestos, marcado por uma nobreza que dá força e orgulho aos combatentes.
Mas seu coração é um lago de espera e de melancolia que ela precisa disfarçar para todos.
Antes que o sol chegue ao zênite, as trompas e os tambores ecoam entre os muros de Calca. No pátio real, as esposas e as concubinas se prosternam, imóveis. Depois, e a vez de os Poderosos Senhores e os generais pegarem as pesadas pedras depositadas a seus pés. Eles a colocam nos ombros e, assim curvados, aguardam a entrada do Único Senhor Manco. Anamaya por sua vez se ajoelha e coloca as mãos no chão, a cabeça inclinada.
Os cantos das virgens cessam. Uma última vez, tocam trompas e rufam tambores.
Um imenso silêncio cai sobre a cidade, e cada qual prende a respiração.
Um silêncio tão grande que todos, no pátio, ouvem o farfalhar do finíssimo cumbi de Manco quando ele desce da liteira, depois a vibração das plumas que as virgens agitam nas lajes diante dos passos do Único Senhor.
E todos ouvem suas palavras quando ele toca o ombro de Anamaya:
- Levante-se, Coya Camaquen. Levante-se e olhe para mim.
Anamaya se levanta. Contém as lágrimas quando vê Manco vivo e finalmente livre. A princípio, ele parece tão luminoso quanto o próprio sol, e o ouro de seu capacete e de sua túnica é tão esplêndido quanto o do Irmão Duplo.
- Estou feliz de vê-lo, Único Senhor! - exclama. - Senti sua falta. Todos sentimos sua falta.
Manco esboça um sorriso e vira-se para contemplar os Poderosos curvados sob seus fardos de pedra. Então Anamaya fica impressionada com seu rosto.
De repente, parece-lhe sombrio como uma noite. Ele emagreceu. Seu rosto ficou encovado e seus lábios murcharam. Finas rugas se espalham em volta de suas pálpebras. Seus olhos são os olhos de um homem cujo coração se retirou para tão longe que a vida mal chega em suas pupilas.
Nesse rosto, apagou-se tudo do que havia sido o jovem, vivo e fogoso Manco que um dia ganhou a grande corrida do huarachiku!
Nesse rosto, os estrangeiros deixaram a marca terrível das humilhações e o sopro gelado do ódio.
Ele ergue a mão e seus dedos pousam no rosto de Anamaya. Ela estremece com esse contato e precisa reprimir um movimento de recuo.
- Eu também estou feliz de vê-la novamente, irmã Anamaya. Sei que lhe devo muita coisa.
As palavras são calorosas, mas o tom permanece frio e distante. Atrás de Manco, Anamaya sente o olhar atento de Villa Oma.
Manco abandona sua carícia e sussurra:
- Acha que estou mudado, não?
- Não - responde Anamaya com hesitação. - Você só precisa de descanso, Único Senhor, boa comida e um pouco de paz.
O ríctus de Manco é cruel:
- Você se engana, Coya Camaquen - diz ele. - Eu mudei e só preciso guerrear.
- A guerra só estava esperando por você, Único Senhor.
Ela sorri para ele. Sente-se mais só que nunca.
- Anamaya!
A primeira vez que ele chama, Anamaya não ouve o sussurro do Anão.
A lua está há muito tempo no meio do céu. Os barulhos festivos ecoam na cancha real. Os Senhores bebem muito para prometerem a si mesmos fidelidade e força no combate. Bebem outro tanto para zombar do inimigo. Gritam mais do que falam, sobretudo quando contam as antigas batalhas e as grandes vitórias dos Ancestrais.
Retirada num canto do pátio, Anamaya só os vê de longe mas, na claridade das tochas, seus rostos ora são infantis, ora, terríveis.
- Anamaya!
Ela se vira enfim e vê o pequeno vulto na esquina do prédio. Com a mão, o Anão faz sinal para que ela se aproxime.
- Por que se esconde? - pergunta ela.
- Não vale a pena que me vejam - murmura o Anão segurando a borda de sua capa. - Abaixe-se para me ouvir.
- Por que tanto mistério?
- Abaixe-se!
Ela obedece com um suspiro meio cansado. Quando seu rosto chega à altura do Anão, ele sussurra:
- Ele está aí.
Anamaya estremece. Fica com raiva de si mesma por causa da idéia que lhe passou pela cabeça. As têmporas pulsando, obriga-se a franzir o cenho para perguntar:
- De quem está falando?
- Dele. Ele está aí.
O Anão ri com malícia, mas como ela teima em não querer entender, diz: - Não se faça de boba! Ele está aí: o Puma.
Ela aperta a mão do Anão como se suas pernas não fossem mais sustentá-la. Fecha os olhos para perguntar mais, num suspiro: - Onde?
- Botei-o num armazém de lã. É o lugar mais seguro. Levo você lá. O Anão se vira para uma espécie de cesto colocado no pé do muro.
- Trouxe-lhe uma capa preta. Vão vê-la menos quando sair da cancha. Anamaya segura-o pelo braço.
- Chimbu...
- Princesa, deve ser grave para você me chamar por esse nome!
- Estou com medo.
Por um instante, ela duvida que se trate dele.
Ele está vestido com uma túnica amarela, uma calça de camponês. Um gorro de quatro pontas do Titicaca cobre os cabelos louros que ele cortou curto.
Quando ainda se encontra a alguma distância dela, tira o gorro e ri nervosamente.
- O traje é estranho - murmura -, mas me permitiu chegar aqui sem muitos obstáculos. O mais difícil foi chamar a atenção do Anão...
Anamaya não escuta essas palavras, pois a risada de Gabriel já lhe sobe no ventre com uma chama de felicidade. Em alguns passos, ela sai daquela rigidez da Coya Camaquen com a qual se tolheu durante o dia.
Ele ri ainda quando ela o envolve nos braços. Com a boca, ela apaga seu riso e se funde em seu calor.
Quase com brutalidade, deixa os braços dele, afasta-se e o encara na luz fraca de uma lâmpada de azeite. Por sua vez, começa a rir loucamente, fazendo-lhe carinhos, rodeando-o, a repetir:
- Você está vivo! Você está vivo!
Agora, é ele quem a agarra, desliza os lábios de sua boca para o seu pescoço e seu peito como se quisesse se alimentar de sua pele e seu perfume pelos séculos vindouros. Entre os beijos, ele sussurra:
- Sim, estou vivo, mas foi você quem me deu a vida! Eu já estava morto!
Eles passam a mão no rosto um do outro, como se essa longa separação os tivesse deixado cegos. Mas o desejo por muito tempo contido e imaginado incendeia seus rins e apressa suas carícias. Anamaya tira a túnica de Gabriel, seus dedos vão passear pela marca de seu ombro. Ela geme:
- Puma, puma!
Então ele a levanta e a leva para a pilha de lã bruta. Não se cansa de redescobrir seu corpo, poro a poro. Eles não se cansam de se unir e se entrelaçar, carne com carne, ventre com ventre, respiração com respiração.
Para eles, ao longe, num lago rodeado de montanhas, Katari lança mais uma vez sua pedra negra no céu escuro e ela permanece assim, suspensa no ar, parando o tempo para que o amor deles encontre um abrigo impossível.
Mais tarde, eles encontram uma timidez juvenil e se confortam entre as carícias com palavras, cada qual contando os meses passados e os sofrimentos enfrentados. A gravidade lhes pesa no peito, mas cada qual ainda deseja conservar a leveza de sua felicidade.
Finalmente, é Gabriel que declara:
- O Anão me contou tudo que se passou em Cuzco. Por Manco e por você...
Ela não responde e fecha os olhos, entrelaçando os dedos nos dele para acompanhar e se dar melhor às carícias em seus seios oferecidos, sua barriga e suas coxas.
Gabriel deixa-a fazer isso um instante. De repente, fecha a mão segurando a mão de Anamaya:
- Sei de Gonzalo - sussurra. - Sei o que ele ousou fazer. Prometo-lhe que vou matá-lo.
- Isso está apagado até em meu espírito - responde ela. - Está esquecido. Nunca existiu.
Mas lágrimas se formam sob suas pálpebras. Gabriel as bebe com pequenos beijos.
- Acho que sei quem é o puma - diz ele, a emoção atravessada no peito. - Eu o vi...
Anamaya se cala.
- Eu o vi nas sombras e no sol, na noite e em cima das pedras. Eu o vi nesse lago onde nasceram as lendas e as histórias do seu povo e onde conheci meu segundo nascimento. Caminhando para você, compreendi que o puma estava em mim, que eu era o puma... Parei de ter medo.
Anamaya prolonga o silêncio. Nada do que poderia dizer pode contribuir para o universo. No entanto, nada do que ele diz acalma verdadeiramente essa solidão que agora está dentro dela, como desde sempre.
- Vamos partir - garante ele, os olhos brilhantes. - Voltei para levá-la comigo e fugir desse caos. Vamos nos instalar na ilha do Titicaca, ali encontraremos a paz e ninguém vai destruir nossa felicidade, nem Pizarro, nem Manco...
Ela se retesa, desvia brevemente os olhos para o escuro. Depois, uma risada esquisita faz vibrar sua garganta, como um soluço. Sem uma palavra, segura o rosto de Gabriel, beija-o demoradamente até o desejo voltar. Oferece-se a ele dessa vez com mais lentidão, como se pudesse abolir todas as realidades do mundo visível e tornar-se um lago de promessas.
A noite se arrasta, mas depois da noite virá a aurora no topo das colinas. A noite não acabará, mas a noite terminará logo. Eles estão deitados lado a lado, rostos colados, nus e perfeitos. - Tenho que ficar ao lado de Manco - diz finalmente Anamaya.
- Não!
O grito irrompe de sua boca e ela o abafa com sua mão macia.
- Gabriel, vamos fazer a guerra. Devemos faze-la, senão logo não sobrará nada dos Filhos do Sol.
Gabriel não olha para ela. Ela diz ainda:
- Você não pode ficar aqui perto de mim, pois Villa Oma vai querer matá-lo.
Gabriel balança a cabeça, com uma ironia cruel que faz brotarem lágrimas em seus olhos.
- Venho para você cheio de amor e você me expulsa! Fiz todo esse caminho, esse caminho longuíssimo, e você me expulsa! Digo-lhe essas palavras que são o que há de mais profundo em mim e elas nada significam para você. Você fala da sua guerra e você responde à loucura dos meus com a loucura dos seus...
Ela hesita. Puxa a capa preta e cobre com ela os ombros dele.
- Você é o puma, você é o único homem que pode me tocar neste Mundo, como no Outro.
- Mas você me amará mais se eu partir para o Outro!
- Eu lhe imploro, pare!
Gabriel é acometido de um tremor incontrolável, seus movimentos são os movimentos de uma criança inconsolável. Ela quer abraçá-lo, mas ele a repele com raiva. Quando ela o deixa, ele pega seu pescoço e o arranha, o aperta, o acaricia... Depois, empurra-a com brutalidade, como se tivesse necessidade dessa violência para se desfazer das palavras que lhe queimam o peito.
- Vocês não podem ganhar essa guerra! São fracos e o mundo de vocês está se acabando. Nossa conquista é injusta, eu sei. Ela vem acompanhada de horrores que me envergonham, eu sei também. Mas vocês vão perder, como perderam em Cajamarca e em outros lugares... Não entende isso?
- Devemos travar essa guerra, pois as Montanhas e nossos Ancestrais precisam de nós para não serem levados pelo nada. E eu devo estar ao lado de Manco quando ele combater, pois é o meu lugar.
Gabriel se levanta com um rugido de raiva. Vai empurrar a cortina pendurada na abertura do armazém. O frio o faz tremer.
- Então, vamos ter que lutar um contra o outro.
- Você não é obrigado a isso - murmura ela.
- Se seu lugar for ao lado de Manco e não ao meu lado - responde Gabriel com uma doçura súbita -, é que sou um "estrangeiro" como os outros. Então, meu lugar é entre os estrangeiros.
Eles se observam por um bom tempo, imóveis, cada qual espreitando a esperança no olhar do outro.
- Tenho que fazer essa guerra - murmura afinal Anamaya, a voz endurecida. - Tenho, sim! Senão, não valeria a pena o Único Senhor Huayna Capac me dar a mão.
Uma calma invade Gabriel, toda a raiva sai dele como o mar em sua hora.
- Eu entendo - diz ele com extrema doçura. - Não sei o que isso quer dizer, mas compreendo profundamente e aceito.
Essa doçura abala Anamaya mais que os gritos, mais que as palavras de revolta. Nesse instante, ele é mesmo o puma, aquele que ela esperava. Nesse instante em que se separam, eles estão tão próximos quanto dois seres que eram um só no lago das origens e tornam a se encontrar depois de ter atravessado os mares de vagas e estrelas.
- Espero - diz ele -, espero contra a razão e contra essa guerra... Só que é difícil, tão difícil...
Sua voz foge e ele precisa pigarrear para recomeçar:
- ... tão difícil me separar de você depois de ter percorrido todo esse caminho para encontrá-la...
- Amo você.
Gabriel balança a cabeça, o olhar turvado pelas lágrimas. Aproxima-se dela, e é ele que agora segura seu rosto para beijar-lhe a boca demoradamente.
Mais tarde, nas horas sombrias, no fragor das batalhas, com pedras e flechas zunindo em volta, quando tiver perdido até o sentido da vida, ele guardará para combater a solidão e o desespero a doçura de seus lábios ao dizer essas palavras - a certeza sem lógica de que atrás do fim, mais uma vez, havia outro nascimento.
Antoine B. Daniel
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