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O OURO DE ZEPHYRUS / Heinz G. Konsalik
O OURO DE ZEPHYRUS / Heinz G. Konsalik

 

 

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O OURO DE ZEPHYRUS

 

O morto jazia nas traseiras da loja, debaixo da secretária. Apenas os pés do homenzinho descarnado, mirrado, ultrapassavam a borda da mesa. Tinha-se mostrado muito orgulhoso daquela obra-prima de marcenaria em nogueira da Renascença - na verdade do apogeu da época -, polida pelos séculos. Agora estava morto e o assassino tinha empurrado o corpo para debaixo do móvel que ele preferia. Para o velho Hubert Drexius havia dois sítios onde teria escolhido morrer:

na sua casinha de campo, com um jardim romântico inculto, ou ali, à sua secretária, entre as suas queridas antiguidades.

A loja de Drexius situava-se numa calma rua transversal. Poucas pessoas a frequentavam, excepto os verdadeiros amadores de antiguidades, procuradas com amor. A montra para a rua revelava muito pouco dos tesouros acumulados nos dois pequenos compartimentos. A maior parte das vezes via-se ali um grande jarrão da China em cima da sua peanha de ébano a brilhar atrás do vidro sujo, ou então duas águas-fortes colocadas sobre o velho veludo negro que forrava a montra. Mas, no interior, um mundo de belezas esquecidas oferecia-se ao conhecedor. O brilho das épocas passadas era ali revelado, no meio da poeira, é certo, mas desprendia-se dele uma silenciosa magia. Uniformes dos soldados suecos da Guerra dos Trinta Anos, minúsculas figurinhas japonesas esculpidas em marfim, objectos exumados em Ninive, um adereço de uma marquesa do século XVIII, um peitoral inca ornamentado com o deus do Sol, uma balança em miniatura que tinha estado ao serviço de um boticário da época de Luís Filipe. O coleccionador tinha ali tudo o que podia alimentar a sua paixão. Precisava apenas de se encher de paciência para vaguear entre aquelas maravilhas dispostas desordenadamente. Então, mundos e destinos apagados desde há muito tempo eram-lhe revelados.

Todavia, Hubert Drexius morrera. Alguém que não procurava objectos do tempo dos conquistadores mas sim dinheiro líquido actual tinha esmagado o crânio do velho com a ajuda de um instrumento contundente. Os seus compridos cabelos brancos mal estavam avermelhados de sangue, só se via uma única escoriação, que partia da testa e atravessava o couro cabeludo, mas a caixa craniana tinha estoirado...

Hans Faerber coleccionava objectos antigos. É uma ocupação bastante rara num estudante de Medicina de vinte e seis anos, mas o filho de um fabricante de máquinas electrónicas podia dar-se ao luxo de enfileirar entre os clientes de Drexius. Ele não escolhia os compradores e tratava todos os que o iam procurar não de acordo com as suas posses mas em função da simpatia que lhe inspiravam. Recusava a um cavalheiro respeitável a venda de um galo sagrado esculpido em Samatra, e em seguida entregava-o a um homem que inspeccionava o conteúdo da carteira ao abrigo de uma prateleira, com medo de não ter bastante dinheiro para efectuar a compra.

Porque Drexius tinha sido um extravagante.

Desde há dois anos mantinha relações de amizade particularmente calorosas com Hans Faerber. Este escolhia as suas aquisições com a paixão de um verdadeiro Colecionador e também lhe acontecia aconselhar Drexius sobre as suas pequenas doenças, gripes, reumatismos, e até uma vez sobre um princípio de congestão pulmonar. Drexius testemunhava-lhe um afecto muito vivo. Seria um complexo de paternidade? Nunca se tinha casado e, tendo envelhecido, talvez desejasse secretamente um filho parecido com Hans Faerber.

Nessa manhã, Faerber entrou na loja de antiguidades antes de ir para a conferência de hematologia. Da porta que estava aberta, gritou, enquanto tocava uma sineta já muito usada:

- Sou só eu, senhor Drexius! Então, hoje não está constipado? Que tempo para gripes está lá fora! É bom para os médicos!

O velho Drexius não respondeu. Hans Faerber viu a porta das traseiras da loja aberta e fez um pequeno aceno naquela direcção. ½Com certeza está debruçado sobre os seus velhos alfarrábios amarelecidos e entrega-se ao estudo do espírito dos séculos", pensou; ½neste caso, o presente não existe para ele."

- Vou dar uma vista de olhos aqui à volta, senhor Drexius! - gritou de novo Faerber. - Recebeu alguma coisa nova? Estou à procura, para a minha colecção médica, de um velho aparelho de escarificação, mas se o senhor não o tiver, Drexius, quem é que o poderá ter?

Nada de resposta. Faerber encolheu os ombros e pôs-se a remexer nas prateleiras e nos armários abertos. Examinou os objectos colocados em cima das mesas onde Drexius punha habitualmente as “novidades".

Ao fim de um quarto de hora, Faerber começou a preocupar-se. De facto, Drexius reagia sempre de forma diferente à dos seus semelhantes, mas nunca tinha ficado sentado a consultar os livros quando Faerber aparecia na loja.

- Encontrei uma coisa! - gritou então Faerber para chamar a sua atenção, ao mesmo tempo que tamborilava na porta de um dos armários. - É fantástico! Introdução à Cirurgia, por Christopher Bolte, médico militar, mil setecentos e quarenta e três. Onde diabo desenterrou o senhor isto?

Silêncio pesado, subitamente angustiante.

Faerber deixou cair o velho alfarrábio e correu para

o escritório. O pequeno compartimento sem janela estava vazio, em desordem, como habitualmente, algumas gavetas estavam abertas, mas era normal em Drexius.

"Apesar de tudo, há aqui qualquer coisa de estranho", pensou Faerber, perturbado. "Drexius nunca abandonou a loja. As refeições são-lhe trazidas ao domicílio de um restaurante vizinho. Se fosse obrigado a ausentar-se, teria fechado a loja e corrido os taipais de ferro. Uma loja aberta, abandonada... Impossível, tratando-se de Drexius!"

Faerber teve a sensação que uma garra afiada se estendia na sua direcção e experimentou uma sensação de frio que lhe penetrava insidiosamente sob a pele. Sentimento horrível.

- Senhor Drexius!... - disse mais uma vez, com uma voz que parecia ter ficado enferrujada.

Deu apenas três passos à volta da mesa, depois notou os pés do antiquário, inclinou-se, rastejou sob a mesa sem tocar no corpo e examinou a cara do morto.

Os olhos fixos mostravam ainda a surpresa que se tinha apossado do velho à vista do assassino. Faerber viu que o crânio estava esmagado, a fina calote craniana coberta por uma longa madeixa de cabelos cor da neve. Pelo menos a morte tinha sido rápida.

- Drexius... - repetiu Faerber em voz baixa, e levantou-se. - Meu Deus! Drexius...

Estendeu a mão trémula para o telefone fixado na parede da loja, velho aparelho para a instalação do qual a administração dos Correios tinha concedido uma autorização especial a Drexius.

- Ligue-me à Brigada de Homicídios - disse Faerber com voz enrouquecida. Houve alguns estalidos na linha. - Aqui Faerber, estou na loja do antiquário Drexius, na Salvistrasse, sim, Salvistrasse... Drexius foi assassinado esta manhã. - E a meia voz acrescentou:

- Um crime absolutamente absurdo...

Quase não havia trabalho para o comissário Perthes e para os seus colegas, as impressões a recolher eram quase inexistentes... Algumas gavetas continuavam abertas, a gaveta da caixa estava vazia e tinha contido apenas dinheiro, sem qualquer dúvida. Nada de impressões digitais na secretária, excepto as do próprio Drexius. Inútil fazer pesquisas na loja, onde todos os objectos tinham centenas de impressões deixadas por clientes desconhecidos. Apalpa-se um bibelot antigo antes de o comprarmos, damos-lhe a volta em todos os sentidos, travamos assim relações com ele... é isso o mistério, a magia que acompanha uma tal aquisição.

O comissário Perthes, sentado na borda da secretária Renascença, esperava a chegada do furgão mortuário mandado pelo Instituto Médico-Legal, que ia levar o velho Drexius. Este repousava já num estreito caixão de zinco com tampa abaulada. Quando foi fechado, Faerber estremeceu.

- Conheceu-o muito bem, senhor Faerber? perguntou-lhe Perthes.

- Era o seu principal cliente, o seu conselheiro médico, o seu muro das lamentações ambulante. Até parecia às vezes... - a voz de Faerber ficou um pouco estrangulada -... que ele me considerava seu filho. Adivinhamos isso facilmente através de pequenas coisas... Drexius era um original incrustado neste mundo de objectos antigos que abarca quatro séculos, que ele tinha construído peça a peça, mas era de uma rara bondade. Só tem de olhar à sua volta, senhor comissário, para perceber que ele não precisava de nada deste nosso barulhento universo para ser feliz.

Perthes respondeu com um sinal de cabeça e acrescentou:

- Temo que nunca encontremos o assassino; ou então, será um acaso. É um crime devasso, completamente impessoal, que foi sem dúvida perpetrado por algum adolescente com necessidade de dinheiro para comprar cigarros ou uma boa garrafa de vinho. Nos nossos dias, mata-se por um maço de cigarros ou para gozar a expressão que um homem toma ao morrer. O comissário deixou-se deslizar da borda da secretária e tirou o chapéu do cabide dourado preso à parede: era um objecto antigo, de estilo barroco, originário de um castelo da Alta Francónia.

- Drexius não tinha herdeiros?

- Nunca me falou nisso, era dos que estão sozinhos no mundo. Também há pessoas dessas.

- Mais do que pensa, senhor Faerber. - O comissário Perthes tirou um sobrescrito da pasta: - Encontrámos isto na gaveta da secretária; embora caiba aos homens de lei tomarem dele conhecimento, cometerei uma pequena irregularidade em serviço abrindo esta carta; vejamos o que ela contém:

- "Para Hans Faerber" - leu Faerber a meia voz. - Sou eu...

- Naturalmente. Vejamos o texto... - Perthes abriu o sobrescrito e tirou dele uma daquelas folhinhas de que Drexius se servia habitualmente, arrancada sabe Deus onde, com uma nódoa de gordura e escrita a lápis. Leia, peço-lhe, senhor Faerber!

- "Meu querido filho..., quando eu morrer, deixo-te o tapete de ouro... Drexius."

Faerber entregou a folhinha ao polícia. Os dois homens olharam um para o outro:

- O que é o tapete de ouro? - perguntou Perthes, passado um momento.

- Não sei, senhor comissário.

- Vê aqui alguma coisa que possa estar relacionado com ele? Drexius alguma vez possuiu alguma coisa que se lhe assemelhasse? Que significa um "tapete de Ouro"? Isso não existe. Talvez se trate de uma cor dourada, ou de um tapete debruado a ouro, mas tê-lo-íamos notado. Explorámos sistematicamente a loja. Estará na casa de campo? Então, vamos lá de seguida.

- Não conseguiríamos encontrá-lo na casa de campo. Drexius disse-me uma vez que vivia lá como um jardineiro, evidentemente sem tapetes de ouro debaixo dos pés!

- Temperamento estranho... Antes que o tribunal das sucessões e um notário se ocupem deste assunto:

aceita esta herança?

A estas palavras cheias de sarcasmo, Faerber respondeu com um tom cheio de gravidade:

- Sim. Para o desenrolar das formalidades, irei propor o nosso notário de família. Que acontecerá à loja?

- Vamos selá-la até que sejam encontrados os herdeiros. Se não aparecerem, será tudo vendido em leilão e o lucro que dele resultar reverterá a favor de obras de caridade. Tudo, inclusive o seu tapete de ouro. - O comissário Perthes voltou a meter a carta no sobrescrito.

- Isto vai provocar ainda escrituras e pesquisas infinitas. Os defuntos sem herdeiros são a cruz das autoridades competentes! - Lançou um olhar à sua volta e viu que os subordinados cruzavam os braços. Tinham examinado depressa o modesto espaço vital de Hubert Drexius.

- Vamo-nos embora...

- E a minha herança? - perguntou Faerber com um sorriso constrangido.

- Isso pode esperar. Nada lhe será tirado daqui, onde tudo está, a partir deste momento, submetido ao controlo das autoridades.

Faerber viu afastarem-se os dois carros da Brigada Criminal até ao momento em que viraram a esquina. Atrás de si, os dois selos colocados pela polícia estavam expostos na porta da loja. A cortina de ferro não tinha sido descida, os polícias não tinham conseguido encontrar a manivela que permitia manobrá-la. A Salvistrasse continuava tão calma como antes. Ninguém, parecia, tinha notado a presença dos agentes.

Hans Faerber esperou meia hora e depois esforçou-se por cumprir a primeira e última acção criminosa da sua existência: desprendeu com cautela, e com a ajuda de um canivete, os selos judiciais oficiais. Dois vigorosos empurrões bastaram para fazer ceder a velha fechadura.

Quando voltou a entrar na loja, esta deu-lhe a sensação de uma sepultura assombrada, pertencente a uma época muito antiga. Aferrolhou a porta por dentro e pôs-se imediatamente a inspeccionar mesas e prateleiras. Esquadrinhou os cantos e tirou milhares de velharias dos armários, mas ao fim de uma hora renunciou a prosseguir as suas buscas, sentou-se numa das mesas, acendeu um cigarro enquanto se ia interrogando por que razão lhe teria Drexius destinado um objecto que não existia. No entanto, ele devia gostar daquela herança, porque tinha escrito: "Meu querido filho...", e naquelas palavras havia muita ternura silenciosa nunca expressa...

Um pintor, inspirado sem dúvida pela literatura de aventuras de cordel, tinha pintalgado um árabe sobre a tela. Atrás desta personagem, um camelo cercado de palmeiras projectava a sua silhueta num céu azulado. O árabe estava agachado no solo e fumava um narguilé, mas não se achava sentado mesmo na areia, tratada no estilo mais realista: acocorava-se num tapete de ouro.

- Drexius... não é possível... - disse Faerber a meia voz. - Não é uma brincadeira? Desconhecia em si este humor de sonso?

Retirou o cromo da parede; a moldura, além de pretensiosa, era horrível; abanou a cabeça, chocado; depois, virando-o, quis saber se o artista cometera o desplante de o assinar e dar-lhe um título.

De facto, havia uma etiqueta colada nas costas da moldura e Drexius tinha ali escrito: "Abre aqui, meu rapaz..."

Com dedos trémulos, Faerber arrancou a imagem da moldura, trabalho que revelou que, entre a tela e a moldura, se encontrava um bocado de cartão, o qual, uma vez levantado, deixou cair um pergaminho amarelecido com as extremidades retalhadas.

Era um mapa da península do lucatão, a leste do México. Um mapa muito antigo, traçado à mão, incompleto quanto aos pormenores geográficos mas apesar de tudo muito preciso: o Jucatão.

E no sítio onde a península forma uma língua de terra dirigida para sul nos baixios, entre os bancos de areia de Chinchorro, tinha marcada uma cruz.

Hans Faerber sentiu as palmas das mãos tornarem-se húmidas: tinha encontrado o "tapete de ouro".

 

Peter Damms era, aos vinte seis anos, aquilo a que se chama um homem de ciência. Alto, magro, ar inspirado, o cabelo castanho penteado com cuidado, era o protótipo do intelectual. Sempre tivera a atitude do primeiro da classe, do qual Faerber copiava regularmente os deveres e que sabia sempre encontrar uma solução para todas as dificuldades.

Damms já tinha escrito obras sábias relacionadas com as suas escavações na Turquia, às quais se dedicava durante as férias semestrais. Era estudante de Arqueologia e parecia mais familiarizado com os antepassados da cultura humana que com os seus próprios primos. Em suma, Damms era o complemento rejuvenescido do velho Drexius. Aconselhava o seu amigo Faerber nas suas pesquisas de antiguidades. Uma vez mergulhara no êxtase quando Drexius exibira um pequeno grupo de terracota, de fabrico fenício, que representava um casal de amantes que se entregava a jogos amorosos. Obra pornográfica das mais ousadas, velha de dois mil anos.

Naquela manhã, Peter Damms estava no Instituto de Mineralogia. Faerber sabia-o e mandou-o chamar à recepção. Damms apareceu de bata branca, seco, pálido, com todo o ar de ele próprio ter sido mumificado.

- Onde é que há fogo? – perguntou. – Mais uma cena com a Ellen?

Faerber abanou a cabeça. Ellen Herder passava por ser sua noiva. Era uma rapariga moderna, que estudava História da Arte. Dotada de uma cabeleira castanha com reflexos acobreados, pernas compridas, rotundidades nos sítios onde elas se impõem e com um rosto regular, aberto, era tão pouco complicada que fatalmente a sua maneira de viver tinha de chocar com os hábitos individualistas de Faerber, que vigiava quase sentimentalmente a sua própria independência.

Os pais Faerber e Herder estavam de acordo quanto ao casamento dos filhos, que teria lugar um dia... o mais tardar após os exames de Faerber e a obtenção do seu doutoramento. Tudo estava claro... o velho Herder, arquitecto célebre de enormes complexos industriais, já tinha escolhido o terreno e feito o projecto da casa de campo do novo casal da família Faerber.

- Ela ainda não sabe nada -, dizia nesse momento Faerber ao amigo. - Tu és o primeiro, Peter.

- Obrigado. Mas qual é o assunto?

- O que diz respeito ao homicídio.

Damms olhou para o amigo com ar pasmado:

- Estou sempre pronto a "roubar cavalos" contigo, mas se queres matar um dos teus concidadãos peço-te que dispenses a minha colaboração... Posso, de facto, ensinar-te como certo faraó fez para...

- Pára! - Faerber levantou as duas mãos: - Eu conheço os teus assassínios milenares, Peter. . . Venho da casa de Drexius: foi assassinado...

- Meu Deus! - Damms encostou-se à parede: - Tu?

- Que disparate! Um desconhecido. Mas Drexius deixou-me uma coisa: um tapete de ouro.

- Meu velho, bebeste? - Damms fungou na direcção de Faerber, mas este, opondo-lhe uma expressão das mais graves, tirou da algibeira do casaco um bocado de pergaminho, que desdobrou cautelosamente: - Olha... este pergaminho estava nas costas de um quadro que representa um tapete de ouro: já desconfio o que é..., mas quero ouvi-lo dizer por ti, o arqueólogo. Examina atentamente este esboço, Peter.

Damms pegou no documento com as pontas dos dedos, lançou-lhe um olhar e soprou pelo nariz.

- Vejamos, nada disto é possível... - disse sem convicção. - Hans, convence-te que Jack London e uma quantidade de autores de romances de aventuras esgotaram o assunto... Vejamos, um velho mapa marítimo indicando o local de naufrágio de um galeão esquecido...

- Era exactamente isso que queria ouvir-te dizer!

Faerber sentia acelerar-se o ritmo do seu coração.

- Um galeão! Drexius legou-mo! Enquanto foi vivo, nunca me disse nada acerca disso. Como terá ele entrado de posse deste velho mapa? Quem foi o seu autor? Um dos membros da tripulação? Um pirata? Um pesquisador de tesouros desconhecido? Quem sabe?

- Basta! - Damms tornou a dobrar delicadamente o pergaminho: - Tudo isto pode não passar de vento. De qualquer forma, este mapa é tão inexacto que não serve para nada. O lucatão é muito bonito, mas os baixios de Chinchorro... é uma região abominável quando surgem os furacões. Um navio é mandado ali para o fundo, com o casco aberto, muito naturalmente. Mas terá este lá chegado? - Tirou a bata branca, enrolou-a e meteu-a debaixo do braço esquerdo:

- Segue-me!

- Para onde?

- Para a biblioteca. Quero ver se lá encontro algum relatório de viagens que mencione navios carregados de tesouros naufragados ao largo do lucatão. Hans, nós estamos, contudo, ambos de acordo em considerar que o velho Drexius foi um sonhador..., mas, paz à sua alma, convém pensar com calma no plano científico.

Era uma das frases favoritas expressas por Damms e, até agora, sempre lhe tinha valido o êxito. Fosse o que fosse que empreendesse, era bem sucedido. Pelo menos no domínio da arqueologia.

- E se tudo se revelasse exacto, Peter? Que havíamos de decidir? - perguntou Faerber quando já estavam lá fora, na rua.

- Então saberíamos onde se encontra esse tesouro. Ser-nos-ia permitido sonhar com ele... sem nunca o descobrirmos.

Na biblioteca da universidade, estudaram tudo o que interessava à sua pesquisa relacionado com as flotilhas de galeões que, no passado, transportavam para Espanha o ouro e a prata das minas do Peru e do México. Um mundo cheio de aventuras, de intrigas, de assassínios, de misérias, de avidez foi-lhes revelado. Já fazia escuro quando Peter Damms, com a mão apoiada nos rins doridos, disse finalmente:

- Achei-o, Hans! - ao mesmo tempo que levantava, numa das mãos, uma folha de papel coberta de notas manuscritas traçadas numa letra apertada.

 

- Desde o ano de mil e quinhentos os navios espanhóis fizeram o vaivém entre a mãe pátria e as colónias da América Central e do Sul, transportando nos seus porões o ouro, a prata, a platina, as pérolas, as pedras preciosas, as moedas... durante séculos. Uma pilhagem total das possessões coloniais. Cruzavam-se duas flotilhas constantemente: uma fazia rumo a Porto Rico, Hispaniola e Cuba com destino a Veracruz, a outra aportava nas Antilhas, na Venezuela, na Colômbia, e tinha o seu principal porto de matrícula em Cartagena. Galeões assalariados, carregados de seda, de especiarias, de tecidos recamados de ouro e sobretudo pedras preciosas, vinham do Panamá, da Costa Rica, da Nicarágua. Outros navios transportavam os fantásticos tesouros dos Incas, levados até à costa por índios chicoteados e depois torturados até à morte. Eles rumavam em direcção ao Panamá, onde (à falta do canal do Panamá) a carga era transportada por terra e depois arrumada nos porões dos navios transportadores de tesouros. E cá estamos nós finalmente: uma parte dos navios que se concentravam na Florida, nas Baamas, em Havana (portos designados como as chaves do Novo Mundo), para formarem uma gigantesca armada do ouro, utilizavam a rota que passa pelo lucatão. Mas vamos ao que merece ser fixado: na Primavera de mil quinhentos e trinta e seis foi aberta no México a primeira oficina em que se cunhou moeda. Aí foi transformado em numerário o incomensurável tesouro das colónias. Só no reinado de Filipe Quinto eram cunhados anualmente quarenta milhões de dólares em ouro. Este rio de ouro, acrescentado a jóias que hoje têm um valor inestimável, atravessou os mares escoltado por galeões armados em navios de guerra.

Peter Damms atirou para cima da mesa, onde elas se espalharam, as folhas com as suas notas.

- Na região onde o teu mapa está marcado com uma cruz, nas águas que rodeiam o grande banco de areia de Chinchorro, houve apenas um naufrágio, o do galeão Zephyrus, que transportava a bordo uma carga de quinze milhões de moedas de ouro, além de alguns cofres cheios de pérolas e de esmeraldas.

- É ele! -, disse Faerber com uma voz desmaiada. - Peter, meu velho, é ele, o galeão Zephyrus!

- Naufragou durante um furacão homicida, a catorze de Setembro de mil quinhentos e quarenta. - Damms amarrotou as suas notas numa bola de papel e lançou-as para dentro de um cesto de papéis colocado debaixo de uma das compridas mesas de leitura. - Sabes o que isso significa? Enormes quantidades de lodo e de areia estão a cobri-lo, mas de facto já não há Zephyrus! Seria necessário, então, fazer a prospecção do fundo do mar ao acaso e desembaraçá-lo do lodo por meio de aspiradores gigantescos, o que custaria mais caro que o tesouro que queremos tirar do fundo! - Damms teve um sorriso cansado, tinha manejado velhos livros durante nove horas consecutivas. - O teu Drexius legou-te milhões de que tu nunca tomarás posse! Contenta-te em emoldurar este mapa, pendura-o à cabeceira da tua cama e consola-te em dizer a ti mesmo que ninguém, sem dúvida, dormiu alguma vez sob quinze milhões de moedas de ouro...

 

Durante um mês, Hans Faerber preparou tudo o que era necessário. Quando falou nisso a Ellen Herder, ela disse-lhe apenas:

- Isso é mesmo teu, Hans! Descobrir tesouros no lucatão! Pesquisa antes o vírus da gripe, ficarás rico mais depressa!

Tinha de facto o aspecto de uma verdadeira utopia. Mas o velho Faerber, o pai, parecia também contaminado por uma estranha febre de aventura. Consultou alguns especialistas, discutiu os mínimos pormenores com os seus advogados, encontrou-se com o pai de Ellen, Heinrich Herder, entregou-se a cálculos, hesitou, refez os cálculos e uma tarde telefonou ao filho a pedir-lhe que viesse encontrar-se com ele.

- Posso dar-te cinco mil marcos para esse projecto idiota - disse-lhe sem preâmbulos. - Poderás desenvencilhar-te com isto, Hans?

- Sim, pai. - Hans Faerber desdobrou uma nota que trazia com ele há quinze dias.

- Anotei tudo aquilo de que vamos precisar. Com cinco mil marcos vamos consegui-lo, isto, logicamente no caso de podermos trabalhar com um equipamento de mergulho normal, de outra forma mais vale renunciar a tudo imediatamente.

- E o que diz disso o teu amigo Peter?

- Toma-me por um idiota, mas vai comigo. Já conseguiu uma licença.

- Mas a Ellen ficará cá!

- Diz-lhe tu isso. - Faerber levantou as mãos:

- Conheces a Ellen, pai; ela diz "que disparate!", ao mesmo tempo que vai fazendo as malas.

- E que diz a isso o Heinrich Herder?

- Tudo e nada. Quando Ellen quer qualquer coisa, as palavras não passam de um exercício de linguagem.

- E os perigos em que vos podeis perder?

- Ellen encarrega-se da cozinha e faz de dona de casa. Será mais duro para Peter, que se está a treinar com afinco no clube dos mergulhadores para se tornar um homem-rã experiente.

- Também pensei nisso. - O velho Faerber meteu

a mão na gaveta da secretária e tirou algumas cartas:

- Vocês irão apanhar um avião que descola de Paris,

onde antes se encontrarão com um certo senhor René Chagrin, que contratei para se juntar a vós no vosso empreendimento.

- Quem é esse?

- Chagrin é actualmente o melhor mergulhador da Europa. Consegui apanhá-lo, ele até já teve ocasião de mergulhar no mar das Caraíbas, do qual conhece as perfídias: tubarões, barracudas, raias gigantes e outros bichinhos. Tendo Chagrin convosco, os riscos serão bastante diminuídos. Está bem, meu filho?

- Está bem, pai. Obrigado.

Olharam-se, ambos satisfeitos um com o outro.

O filho, que ia realizar o desejo secreto de uma existência de aventuras repentinamente revelado no pai, e este que estava orgulhoso do filho.

Quem teria então suspeitado que o mar que banhava as costas do lucatão não escondia apenas "tubarões e outros bichinhos"?

 

René Chagrin esperava Faerber, Damms e Ellen Herder no seu hotel em Paris. Era um meridional de estatura média, seco, musculado, com o cabelo negro encaracolado, com trinta e quatro anos, cuja pele luzia, curtida pelo mar e pelo vento. Adivinhavam-no ávido de lucros... Ao mergulhar, devia mostrar-se tão desenvolto como um peixe rapace.

Mas não estava sozinho.

Sentada perto dele, no sofá, estava uma rapariga que, logo que se levantou, fez arregalar os olhos de Faerber e Damms, e crispar, sobre um olhar mortífero, as pálpebras de Ellen. Uma diabinha ruiva, bela como

o pecado, com um rosto que desculpava todas as loucuras e um corpo cuja vista secava a goela dos machos.

- Pascale Dufour, a minha noiva - disse Chagrin. - Ela irá connosco - acrescentou com um sorriso encantador. - A fim de evitar qualquer equívoco, senhores, eu farei face à despesa ocasionada pela presença de Pascale entre nós! Veríeis nisso algum inconveniente?

- Claro que não! - disse Damms em primeiro lugar com um entusiasmo surpreendente. - E tu, Hans?

- Não, evidentemente: duas mulheres a bordo e três homens em contrapartida não será o equilíbrio perfeito?

Trocaram apertos de mão. Mas quando Ellen e Pascale entraram em contacto, o seu aperto de mão teve alguma analogia com o de dois pugilistas no rinque antes do combate.

Mais tarde, Ellen disse a Faerber:

- Parece-me que o lucatão contém mais surpresas do que o ouro espanhol: poderemos mergulhar ali à vontade nas delícias do amor à francesa!

- Ciumenta, Ellen? - perguntou Faerber com uma gargalhada. - Isso seria subir a bordo de uma galera totalmente nova!

- A verdade é que ainda nunca embarcámos em nenhum barco ébrio - respondeu ela. - Experimento um sentimento completamente idiota quando penso no lucatão.

 

Durante quinze dias, o pequeno navio a motor Nuestra señora navegou entre a costa do lucatão e o banco de Chinchorro num mar imóvel que se enchia de vapor debaixo do sol. Faerber e os amigos tinham vivido dias esgotantes. A viagem de Chetumal, última povoação importante até à península de São Pedro, através de regiões incultas, os pântanos, as selvas febris invadidas por todos os lados pela floresta virgem, as negociações com os pescadores do pequeno povoado de Xcalac até conseguirem fretar, durante um mês, o pequeno navio, a seguir a transformação daquele num barco habitável onde as divisórias eram feitas de folhagem entrançada e de mantas, e onde tinham instalado uma cozinha comprada no México - um fogão a gás com duas bocas, algumas panelas, loiça, copos, talheres. Os equipamentos de mergulho contavam antes de tudo com os utensílios destinados à busca dos tesouros, as garrafas dos reservatórios de ar comprimido, os projectores de mergulho, os arpões, as espingardas de ar comprimido, uma gaiola com grades de aço onde se podiam proteger dos ataques dos tubarões, grossas cordas de nylon, um guindaste, uma sonda-radar... o velho Faerber tinha ido até ao fundo das algibeiras e tinha mandado tudo, por via aérea, para o México.

Chagrin exibia o seu equipamento pessoal, que Peter Damms examinava com desconfiança:

- Eu não me aventuraria com estes arreios numa simples piscina, mesmo que ela só tivesse um metro de profundidade - disse ele a Faerber. - Este tipo tem coragem!

Um domingo - Ellen mantinha o calendário em dia -, Faerber, Damms e Chagrin, vestidos com o fato de mergulhador, deixaram-se deslizar por cima da borda, para trás, para o mar, a fim de fazerem a sua primeira exploração submarina. Ellen fez-lhes acenos de amizade, enquanto Pascale lhes enviava beijos, vestida com um biquini carmesim, com a cabeleira rutilante a flutuar na brisa como um estandarte encharcado de sangue. Depois sentou-se à proa, balançou as suas longas e elegantes pernas contra o casco e entregou-se ao bronzeamento.

Com longos movimentos regulares, Faerber, Damms e Chagrin avançavam lado a lado. Estavam a cinco metros de profundidade, a água debaixo deles era ainda transparente, bancos de peixes envolviam-nos, o fundo revelava-se arenoso, semeado de conchas, povoado por colónias de corais sem asperezas. Depois o terreno pareceu cair debaixo deles em queda rápida, quase vertical, introduzindo-os num abismo esverdeado onde reinava uma semiobscuridade. O desconhecido abria-se já para eles, para o combate, para a conquista.

Chagrin acendeu o seu grande projector peitoral e nadou para o fundo. Faerber seguiu-o imediatamente, e depois Peter Damms, que hesitou um segundo e deu uma demonstração do que tinha aprendido.

O precipício em que mergulharam fervilhava de peixes, como se houvesse por ali uma corrente quente benéfica a qualquer ser vivo. Chagrin fez um gesto à direita e depois à esquerda. "Separem-se!", queria ele dizer. "Continuem a nadar para formarem uma frente mais extensa e vão até ao fundo. Estamos neste momento a doze metros. Bela pressão, não é? Mas podemos ir até mais ao fundo. Se o mapa é exacto, os destroços encontram-se a vinte e dois metros de profundidade."

Peter Damms foi o primeiro a renunciar a essa tentativa: prudentemente, deixou-se ir até à superfície. "Tróia não foi desenterrada num dia", dizia ele a si mesmo. "Hans é um desportista, e Chagrin... um desenrascado. Adivinha-se nos seus movimentos. Mas dentro de oito dias já estarei rodado!"

Damms nadou para o barco. De longe, já distinguia o corpo maravilhoso de Pascale no seu biquini vermelho.

Dez minutos mais tarde, Faerber voltava também à superfície:

- Nada! - gritou ele a Ellen, que lançava a escada de corda por cima da borda -, nada a não ser areia e conchas!

Um quarto de hora depois, respirando a sua última lufada de oxigénio, Chagrin voltou à superfície. Com algumas braçadas vigorosas, dirigiu-se para o Nuestra señora e subiu a bordo a resfolegar. Pascale e Damms desataram as correias que lhe fixavam às costas os reservatórios de oxigénio.

- A duzentos e vinte e cinco metros daqui repousam dois barcos na areia! - disse ele. Os seus olhos negros brilhavam - Um daqueles navios deve ser o galeão Zephyrus!

Nesse momento, os membros da tripulação do

Nuestra señora formavam uma grande família.

Beijaram-se com gritos de alegria e dançaram na ponte.

Instante de bela camaradagem! Ultima manifestação de fraternidade a bordo!

O Nuestra señora em breve se tornou um inferno.

Nessa noite ninguém dormiu. Reconheçamos que não existe sentimento comparável ao de conhecer a existência, vinte e dois metros abaixo do nosso colchão, de quinze milhões de moedas de ouro, de algumas caixas reforçadas a ferro e de cofres de pedras preciosas que nos esperam!

Peter Damms sentia-se mal deitado na sua estreita tarimba. Foi para a ponte, sentou-se num rolo de corda e acendeu o cachimbo. Tinha-se habituado a fumar cachimbo durante a sua aprendizagem de mergulhador. Abraçava com o olhar o mar, que, ao luar, parecia uma peça de tecido desbotado e plissado, e pôs-se a fixar o ponto onde, segundo Chagrin, repousavam os destroços.

O presumível tesouro interessava-lhe menos que o próprio navio: 1540, pensava Damms, quarenta e oito anos depois da descoberta da América Central por Cristóvão Colombo! Se o furacão tinha mandado o Zephyrus para o fundo, haviam naufragado corpos e bens. Talvez apenas alguns marinheiros se tivessem conseguido salvar. Cavalgando barricas vazias ou agarrados às caixas, haviam logrado chegar à costa. O homem que desenhara o mapa que Faerber Pessuía devia ter sido um dos raros sobreviventes. Mas o que iriam ver no interior do navio? A pressão da água não era suficientemente forte para o ter esmagado, não havia grandes correntes naquelas paragens. Em contrapartida, os séculos deviam ter esboroado as tábuas, além de que o movimento incessante das águas pode apagar a forma de todas as coisas: se a água consegue polir os calhaus, o que não poderá ela fazer de um navio?

E apesar disso, Damms esperava encontrar no fundo, na areia, a imagem intacta de uma tragédia tão empolgante como os vestígios daquela família de Pompeia petrificada, desenterrados das cinzas vulcânicas. Lá em baixo, jaziam no casco do seu navio duzentos ou trezentos indivíduos mortos pelo mar e atirados para o fundo pelos furacões como ratos.

Peter Damms chupava nervosamente o cachimbo:

"Escreverei um livro: Reencontros a Vinte e Dois Metros de Profundidade... - uma obra exacta, científica."

Estendidos em cima da sua cama de casal, Hans e Ellen só tinham vestidos ligeiros shps e isso apenas porque se podia esperar ver Peter ou Chagrin entrarem no seu compartimento, e porque já era mais que suficiente que eles vissem os bonitos seios de Ellen.

Estavam deitados muito perto um do outro e davam as mãos.

- Tinhas razão - disse Ellen -; quinze milhões! Esmeraldas, safiras, rubis e pérolas... Mas conseguirão vocês trazer tudo isso para a superfície?

- René pensa que é possível: três semanas de desentulho, então talvez possamos mesmo atingir a carga quando chegarmos ao camarote do comandante. - Faerber olhou para Ellen, para o seu bonito rosto enquadrado por cabelos castanhos que se apoiava no ombro dele. Depôs nele um beijo e sentiu-se feliz por a ter junto de si, por poder trocar ideias com ela.

- Trouxe um desenho da época que representa um galeão - disse. - Eram navios altivos. Amanhã mergulharemos com um detector de minas e tentaremos encontrar os canhões de bronze. Então teremos atingido um ponto importante. Conforme o sítio onde se encontrarem as peças de artilharia, devemos poder calcular o grau de assoreamento do navio. Isso poupar-nos-á a decepção de ter cavado num sítio inútil. Ellen, imagina quinze milhões de moedas de ouro! Cada moeda poderá ser actualmente trocada por trezentos dos nossos marcos... o que representará quatro mil e quinhentos milhões de marcos! E além disso as jóias! E inimaginável! Faremos parte dos humanos mais ricos do mundo! Ellen, quatro mil e quinhentos milhões!

- E qual é a situação sob o ponto de vista legal? - Ellen beijou as pálpebras de Hans: - Volta à terra, querido: segundo a lei, a quem pertence o tesouro?

- Como tu és uma rapariga prática! - Faerber voltou-se de barriga para baixo e anichou a cabeça entre os seios de Ellen. - De quem o achar, naturalmente.

- Estás completamente seguro disso? É ouro espanhol.

- Tendo quatro mil e quinhentos milhões de ouro para sustentar a minha coragem, não hesitaria em me meter num processo internacional que abriria um precedente! Será o Estado espanhol o sucessor de direito dos conquistadores sangrentos? Fará ainda valer a sua propriedade sobre o ouro por causa do qual foram chacinados milhares de índios?

- Então, o México: pescas estas riquezas nas suas águas!

 

- São os Mexicanos os donos do velho mapa indicador ou sou eu? Ninguém se lembrou deste galeão... Peter encontrou as notas referentes a ele em velhos relatos de viagens, e mesmo isso sob a forma de notas à margem. Este navio é uma terra-de-ninguém!

- Esperemos que sim, querido. Se se trata na verdade de quatro mil e quinhentos milhões, ninguém deixará de ter Consciência ou respeito pela lei, sobretudo as autoridades oficiais. - Afastou dos seios a cabeça de Faerber e levantou-a até ao seu rosto. Olharam um para o outro. Os olhos de Ellen tinham uma expressão estranha.

- Tenho medo - murmurou ela de repente. - Um medo louco.

- Dos quatro mil milhões e meio?

- Do que nos vai acontecer. Hans, ninguém se consegue apossar de uma quantia assim tão colossal sem atravessar cem vezes o Inferno!

- Quem saberá o que nós transportamos? Um punhado de indivíduos! - Faerber começou a rir. A sua negligência fustigava Ellen com um sofrimento quase físico. - Pretendes transformar o Peter em diabo? Se mais tarde lhe couberem dois mil milhões, não saberá sem dúvida o que fazer deles ou comprará as ruínas de Tróia, talvez também o monte Ararat para ali procurar a Arca de Noé.

- E Chagrin, com aquela terrível mulher?

- Depois de ter embolsado um milhão de moedas de ouro, o que dá trezentos milhões de marcos, que representam a parte dele segundo o nosso contrato, far-se-á amimar durante toda a vida por Pascale ou por outras mulheres diabólicas. Ellen, amarga Cassandra, cessemos de nos atormentar. Quando trouxermos para a luz do dia o primeiro punhado de moedas de ouro, isso significará que somos multimilionários. Vá lá, repete, pois, comigo, calmamente: quero ouvir-te dizer: multimilion'ária.

- Amo-te! - respondeu Ellen -, mesmo que raciocines como uma criança! Quanto aos milhões em questão, ainda estão enterrados na areia e ninguém de entre vós sabe se os dois destroços datam de mil quinhentos e quarenta e qual foi o Zephyrus!

- Amanhã iremos saber! - Faerber prendia nas suas as mãos de Ellen, que o quis afastar. Mas foi o mais forte. Deu a gargalhada jovem que lhe era própria e venceu-a no combate silencioso.

- Se Chagrin ou Pascale entrassem... - disse ainda Ellen.

- Se René não for idiota, tem mais que fazer neste momento que vaguear pelo navio. Quanto a Peter, dorme e sonha com as armaduras que conta encontrar.

Ela riu também, mergulhou os dedos crispados na cabeleira loira e sentiu-se feliz, apesar daquele medo corrosivo no mais íntimo do seu ser.

Chagrin e Pascale tinham o quarto nas traseiras do barco, um abrigo em ripas de madeira coberto por esteiras e mantas. Dormiam em duas camas de campanha desdobráveis, mas infalivelmente, ao cabo de mais ou menos uma hora, estendiam os colchões no chão, onde ficavam estreitamente enlaçados como dois pólipos cujos oito tentáculos de carne nua se elevavam às vezes no ar, tacteando tudo à volta.

 

Chagrin adormecia sempre tarde, mas conseguia aparecer fresco e bem-disposto na manhã seguinte.

O ar do mar fortifica. Chagrin era a prova disso.

No entanto, naquela noite, os dois cúmplices não brincavam ao polvo com oito braços. Estavam muito correctamente sentados ao lado um do outro e fumavam cigarros ao mesmo tempo que discutiam em voz baixa tão murmurante que cada um deles precisava de escutar atentamente as palavras do outro.

- Eu vi o navio - dizia Chagrin -; para atingirmos o tesouro, teremos de trabalhar sem descanso até rebentar, desde a aurora até ao crepúsculo. Todos. Nunca teria êxito sozinho. Mas conto levar, eu sozinho, o tesouro.

- Valerá a pena? - perguntou Pascale. De facto era um bom pedaço de mulher, mas não tinha Outro capital que não fosse a sua beleza. Não que fosse idiota; na verdade, em invenções pérfidas até podia ser considerada genial, mas acontecia que o coração dela batia mais depressa do que o pensamento funcionava. Esta mistura de feminilidade sensual e de puerilidade de espírito tornavam-na tão desejável para os homens que até Chagrin lhe tinha sucumbido. Na verdade, ainda ninguém suspeitara dele, a não ser Pascale, o anjo ruivo, que, de facto, era uma perfeita mulher diabólica.

- Para nós, isto equivalerá a um milhão de francos - mentiu Chagrin. - Seja como for, já têm sido contratados bons caçadores para caça mais desprezível.

- E os Outros?

- Cada um deles dois milhões, o que perfará ao todo cinco milhões. Mesmo durante a cotação mais baixa do franco, sem esquecer a taxa de inflação anual, ser-nos-á possível oferecer a nós mesmos uma bonita casa de campo na Provença e cultivar lá rosas.

- Na Provença! - disse Pascale desdenhosa, como se falasse de um caixote do lixo. - Queres dizer uma casa em Saint-Tropez, querido, com um barco na marina dos iates!

- Porque não? - Chagrin olhava para ela com os olhos meio cerrados. - Mas não com um milhão.

- Contas então matar os Outros, René?

Chagrin meteu um cigarro ao canto da boca e cruzou as mãos na nuca. Ele também sabia contar e obtinha o mesmo total que Faerber, quatro mil e quinhentos milhões! Difícil admitir de repente. Ser rico como Onassis, não, como Getty, como Gulbenkian... Só tinha de mergulhar a vinte e dois metros de profundidade para trazer o tesouro.

- Podíamos actuar por etapas, Pascale - recomeçou Chagrin com ar sonhador.

- Por que razão, querido?

- Pela conquista dos milhões. Ouve: esse Peter Damms, o dicionário de arqueologia feito homem, faz-te olhinhos desde que te viu. Não sou cego, boneca. a primeira fase do nosso projecto, tu deixar-te-ás

seduzir por ele, o que o suprimirá como protector e sombra fiel do seu amigo Faerber... - Chagrin riu suavemente. - Sei como tu sabes ocupar intensamente um homem. Isso deixará o campo livre com vista ao acidente no fundo de que Faerber será vítima... Aconteça o que acontecer lá em baixo... sem testemunha ocular no local, será sempre um acidente. A seguir, levarei Ellen e o seu bem-amado defunto até à costa, lá em baixo, onde, nos pântanos, na floresta virgem, nas selvas inexploradas, duas pessoas se podem facilmente perder.

Tudo o que tinha sido discutido naquela noite foi de imediato compreendido por Pascale. Tratava-se de um plano assente e ela olhou longamente para o rosto de Chagrin antes de responder:

- Depois, onde e quando me matarás tu, René?

- Tu és uma pateta adorável! - disse Chagrin descuidado, atraindo-a para si. O calor do corpo macio era uma sensação sempre nova que perturbava todo o seu ser. Mas aquela resposta não tinha satisfeito nada

Pascale: acontece que as patetas adoráveis também morrem.

Peter Damms levantou um olhar surpreendido quando uma pequena mão pousou no seu ombro. Uma mão leve mas autoritária. Continuava sentado à proa em cima de um rolo de corda, com os olhos cravados no mar leitoso, a sonhar com o navio e com os trezentos homens fechados nos seus flancos.

- Você, Pascale? - perguntou. - A Lua também atraiu a sua atenção?

- Não foi só a Lua, Peter... - Sentou-se encostada a ele, vestida com 'um leve corpete e umas calças muito justas.

Damms distinguia, graças à fraca claridade das estrelas, os seus seios abundantes através da musselina. De repente, sentiu calor e olhou para trás de si.

- O que está o Chagrin a fazer?

- Ressona. É horrível... Você não ressona, Peter, eu sei!

- É possível. - Damms sentiu-se mais inseguro que nunca. - Ignoro o comportamento do meu véu palatino, a Lua é-me mais familiar! - Apontou o grande disco brilhante, uma verdadeira lua de teatro.

- Ainda criança, ficava horas sentado na minha cama ao luar e pensava...

- Assim se tornou um homem notável - disse Pascale num impulso de inspiração. - Veja, Peter, eu tenho um fraquinho por homens de valor. Não posso explicá-lo. René é um touro, mais nada. Mas você, Peter, a sua vocação de desenterrar antiguidades... Como deve ser apaixonante conhecer os reis lendários.

Foi uma noite inesquecível.

Peter Damms falou a Pascale de Nabucodonosor e das escavações no mar Morto. Pascale explicou-lhe

a sua juventude sem alegria no Bairro de Saint-Germam-des-Prés, o pai bêbedo, a mãe a lavar roupa dez horas por dia. Tristes recordações que tinham valido a Pascale alguns brilhantes êxitos.

Ao fim de três horas de confidências de parte a parte, ousaram trocar beijos que arrancaram finalmente Peter Damms do seu rolo de corda. Nunca vivera nada parecido e só tinha tido a premonição daquilo através de certas narrações relacionadas com a rainha do Sabá. Só já de madrugada é que Pascale voltou para a tenda improvisada nas traseiras do barco e acordou Chagrin.

- Então? - perguntou ele, breve.

- Já está! - Pascale espreguiçou-se, deliciada. - Vai em frente, querido.

Na manhã seguinte, às sete horas, Chagrin acordou a tripulação. Tocou o sino de bordo enquanto berrava:

- Ao assalto dos milhões!

Meia hora mais tarde, mergulhavam. Apenas Chagrin e Faerber. Peter Damms, que sofria de uma enxaqueca, ficava a bordo. Mas se tivessem sido surpreendidos os seus olhares enamorados, ter-se-ia determinado a causa dos seus males.

Na água, Faerber endereçou a Hellen um gesto de adeus e depois, na esteira de Chagrin, mergulhou. A grande aventura, o desenrolar do tapete de ouro, começava.

Chagrin nadava à frente, rápido, elegante, grande peixe negro com grossas barbatanas dorsais de um laranja brilhante, o seu reservatório de oxigénio. Depois de várias braçadas, olhou finalmente para trás, a fim de se certificar de que Faerber o conseguia seguir, depois indicou com a mão a direcção a tomar na penumbra esverdeada.

Tinham ligado os projectores e levavam ao lado os arpões prontos para o lançamento. Uma comprida faca afiada estava metida nos largos cinturões. Chagrin também estava armado com uma pistola de mergulhador que enviava o seu projéctil no meio de ácido carbónico comprimido.

O fundo marinho por cima do qual seguiam estava semeado de troncos de coral, de bancos de conchas, de grandes calhaus, aos quais se sucediam grandes extensões de areia pérfidas como pântanos, atravessadas por ligeiros remoinhos. Bancos de peixes acompanhavam Chagrin e Faerber, pequenas flechas multicolores espalhando-se, rápidas como o relâmpago, que não temiam o homem, que lhes era desconhecido.

Chagrin aclarou a voz. Tinha levado de Paris uma novidade, uma espécie de laringomicrofone, que estava ligado a auscultadores envolvidos em borracha, colocados nos ouvidos. Aparelho simultaneamente receptor e transmissor, com a ajuda do qual os mergulhadores podiam comunicar entre si e fazer-se ouvir lá em cima, a bordo do barco, donde também lhes podiam enviar indicações. Chagrin levantou um braço:

- Está-me a ouvir, Hans? - perguntou

Faerber disse que sim com a cabeça.

- Alô, posto central! Alô! Responda! - disse Chagrin.

A bordo do Nuestra señora, Peter Damms e Pascale estavam instalados na frente do posto emissor e olhavam um para o outro, radiantes, como acontece sempre no mundo dos amorosos que perderam a razão.

- Estamos a ouvi-los! - respondeu Damms.

O que se passa aí em baixo? A recepção é boa.

- Aproximamo-nos da posição calculada do navio. Mandarei um balão de sinalização para marcar o local:

aproximem-se lentamente do ponto onde ele irá flutuar e façam descer um cesto de aço, compreendido?

- Compreendido.

Houve um estalido no circuito de transmissão com

o fundo, indicativo de que a comunicação fora interrompida. Damms beijou Pascale e foi para a cabina de pilotagem. Pós o motor em marcha e esperou a chegada do balão vermelho à superfície.

Ellen Herder subiu a estreita escada que conduzia à cozinha. Levava um fato de banho amarelo-claro e tinha atado os cabelos com reflexos acobreados, no cimo da cabeça.

- És completamente doido? – perguntou.

O olhar de Peter Damms fixava o mar, que ondulava ligeiramente. O seu longo corpo magro, enfiado num fato de banho com o calção escarlate, dava a impressão de um esqueleto coberto com uma pele avermelhada.

- O que é que se passa? - perguntou ele como resposta.

- Acabas de beijar Pascale, vi-o da cozinha.

- Então ocupa-te da cozinha!

O balão vermelho surgiu de repente à superfície das águas e ficou a balançar docemente. Damms dirigiu-se lentamente para ele e pareceu concentrar-se totalmente no cumprimento daquela simples manobra.

- Queres provocar um drama de ciúmes a bordo? - perguntou Ellen. - Se Chagrin te surpreende com Pascale, o diabo ficará à solta entre nós!

- Como? - Damms abanou a cabeça. - Para que é Chagrin para aqui chamado?

- Indecente! Pascale é amante dele! - gritou Ellen de forma grosseira.

- Mentira. Ela é pupila de Chagrin, foi ela mesma quem mo explicou.

- Uma pupila que tem o cuidado de lhe aquecer os lençóis! Não está nada mal! - Ellen pôs-se à janela da cabina de pilotagem ao lado de Damms. - Experimentei de imediato um sentimento desagradável quando vi pela primeira vez aquele diabrete de guedelha rutilante. Mas não teria acreditado que tudo ia acontecer tão depressa... Ela age a um tal ritmo que dá para acreditar que não pode esperar o momento em que tu e Chagrin vão partir a cabeça um ao outro!

- Não será uma questão de cabeças partidas, acredita! - Damms endereçou a Ellen um sorriso cheio de confusão. O barco tinha atingido o balão de sinalização e parou perto dele. Pascale surgiu na ponte entre os aparelhos que aí estavam instalados e procurou um cesto em fio de aço suspenso de uma comprida corda de nylon. No seu reduzido biquini, parecia quase nua, espectáculo que a própria Ellen achava perturbante, conforme reconhecia contrafeita.

- E qual será a continuação deste edificante começo, se nos demorarmos um mês por estas paragens? - perguntou.

- Vocês, as mulheres, têm sempre necessidade de pensar no "mais tarde"! Tudo o que é feito deve ter um amanhã! A inquietação do futuro na mulher, de que fala Nietzsche...

- Peter, pára de dizer asneiras! - Ellen colocou sobre o braço de Damms uma mão peremptória, e Damms, espantado, voltou a cabeça para ela. - Suspende a tua intriga com Pascale até que estejamos em terra firme. Vamos ainda ter muitos problemas a bordo mesmo sem lhes juntarmos esse.

- Tu não gostas de Pascale, eu sei. - Damms parou o motor. O barco balouçava suavemente. Pascale, à proa, fez-lhes um sinal e atirou uma âncora de desvio do rumo por cima da borda.

- É a rapariga mais maravilhosa que eu jamais conheci, Ellen!

- Quantas mulheres conheceste até agora, Peter?

Damms conservou o olhar fixo no horizonte, feliz por poder disfarçar atrás dos grandes óculos-de-sol.

"Quantas?", pensou. "Três pequenas aventuras, mais nada, nada a não ser os estudos, a absorção total nos estudos da Antiguidad- A arqueologia, as escavações como chamariz sexual..." Só a partir daquele dia é que ele sabia que uma mulher como Pascale podia transformar o seu universo.

- Amo-a - disse Damms em voz alta.

- Como um cego que aspira uma flor e não vê que ela é venenosa!

- Se vocês, as mulheres, não conseguem arrancar os olhos umas às outras, o mundo não continua a andar à roda! - Travou o leme e encaminhou-se para a porta: - Naturalmente vais contar ao Hans - disse a meio caminho da ponte. - Mas eu já não tenho medo do Hans e se tu me queres repreender... Porque te trouxe o Hans? Só para descascares batatas?

Ela olhava para Damms com ar sério. Ele aguentou O seu olhar um breve instante e depois voltou-lhe as costas.

- Mudaste muito, Peter - disse ela em voz baixa. - Sim, com uma rapidez assustadora. Que pena, merecias mais que isso, Peter.

Ele fechou atrás de si a porta da cabina e foi juntar-se a Pascale, que tentava içar o cesto de fio de aço.

Damms tirou-lho das mãos e com um longo beijo puxou-a para si, ao mesmo tempo que olhava para Ellen.

Era uma provocação: "Vá! Atreve-te! Faz então rolar a pedra para o abismo, queixa-te ao Hans e vai, condoída, apertar a mão do Chagrin. Não conseguirás mudar nada!"

Uma semente diabólica começava já a crescer.

Lá em baixo, no fundo do mar, Chagrin e Faerber, depois de terem dado algumas voltas de reconhecimento, tinham-se juntado de novo. O sítio que Chagrin julgava ser o local dos salvados era uma grande gruta na rocha, com os bordos recortados, sobressaídos, cheios de conchas, enquanto o solo era de novo arenoso. Parecia não haver qualquer corrente naquele ponto, mas, durante séculos, o verdadeiro fundo marinho tinha sido coberto por aluviões.

Chagrin atravessou a nadar a larga brecha e fez sinal a Faerber. Depois fez um gesto para baixo.

- Se tivéssemos um sonar, tudo isto deixaria de oferecer qualquer dificuldade - disse-lhe através do rádio. - Vê aquela mancha de sombra na areia? Ontem estive no fundo, mas faltou-me o oxigénio nesse momento, acho que é um dos canhões do navio, atirado, quando do naufrágio, para qualquer parte, aqui, no rochedo, e que, a seguir, caiu mais para baixo. Atrás desta gruta, do outro lado, repousa um outro salvado, vi três ralos das bombas de ferro e destroços de aço. Neste sítio há uma corrente ligeira, mas constante, que varre o solo marinho como um aspirador.

Chagrin levantou os olhos para a superfície; a seis metros dali, o cesto transportador descia para as profundezas e embateu no fundo.

- Vem comigo?

- Que pergunta! - respondeu Faerber, enquanto espreitava pela brecha aberta na rocha, ao mesmo tempo que se agarrava a uma das suas asperezas.

- Se o Zephyrus repousa lá em baixo, está completamente esmagado.

- Difícilmente! A gruta mede no fundo pelo menos dezassete metros de largura e nunca nenhuma fragata ou galeão foi assim tão largo. Se estiver lá em baixo, vê-lo-emos intacto. Em contrapartida, o segundo salvado deve ter sido deslocado pela corrente. Se for o Zephyrus, temos de esperar o pior, porque seria necessário empregar enormes bombas de aspiração, capazes de escavar o solo algumas centenas de metros...

Um estalido soou nos auscultadores e a voz de Ellen fez-se ouvir:

- O que é que vocês estão a ver aí em baixo?

- Fantástico, querida! - gritou Faerber, trocista. - Temos sem dúvida, sob os olhos, o famoso tesouro. Temos apenas de o tirar dali... de um profundo precipício!

- É perigoso, Hans?

- Pergunta ao Chagrin!

- Tudo é perigoso - disse Chagrin, com calma -, também atravessar uma rua... Vamos descer mais para o fundo.

Afastou-se do rochedo com um grande impulso e desceu, agitando a água com as barbatanas. Faerber seguiu-o. De ambos os lados, alinhavam-se agora muralhas rochosas, com arestas aguçadas, bancos de conchas e de corais, cujo contacto podia rasgar os fatos de borracha ou o tubo de alimentação de oxigénio, se ficassem presos neles.

No fundo da gruta rochosa, Chagrin estava já a explorar a areia por todos os lados, quando Faerber surgiu junto dele. Arrastava o cesto de aço atrás de si.

Chagrin tinha parado ao lado de uma longa linha de fundo de conchas, depois ajoelhou-se na areia. O solo estava mole, mas não parecia sem fundo, como um pântano; pelo contrário, parecia que sob a camada superior de areia se encontrava uma sedimentação mais dura.

Faerber deixou o cesto e nadou até ficar em frente de Chagrin.

- Talvez seja um canhão - disse Chagrin. - Veja a forma deste montão de conchas. Vamos! Ao trabalho, Hans!

Desamarraram dos seus largos cinturões, ou tiraram dos sacos pendurados em correias as ferramentas necessárias: martelos, formões, pequenas alavancas, grandes alicates e turqueses, perfuradoras que trabalhavam com cartuchos de oxigénio.

Foi uma terrível estopada arrancar as primeiras conchas. Trabalhar debaixo de água é muito diferente de trabalhar ao ar livre. Nas profundezas marinhas, todo o esforço é reduzido, porque a água, parede liquida, absorve primeiro o choque destinado ao objecto antes que o consigamos atingir e a maior parte da energia perde-se.

Chagrin conseguiu arrancar primeiro um grande bocado da colónia de conchas. Faerber introduziu então no buraco uma alavanca, na qual ambos se apoiaram juntos até sentirem uma grande placa desprender-se do banco sob o seu esforço. Lá em baixo apareceu uma massa de ferro que mesmo assim não estava muito enferrujada. As conchas tinham-na protegido da dissolução total.

- Um canhão! - disse Faerber. A sua respiração tomou um ritmo acelerado. Tentou contê-la e aspirar lentamente o oxigénio pelo cano.

"Respiremos calmamente, profundamente", dizia a si mesmo. "O oxigénio contido nos dois reservatórios presos nas minhas costas não é inesgotável."

Chagrin, ainda ajoelhado na areia, atacava de esguelha, com formão e martelo, as oito camadas sobrepostas da colónia de conchas.

 

- Que se passa então lá em baixo? - perguntou de bordo a voz de Damms. - Disseram alguma coisa?

- Encontrámos um canhão! - gritou Faerber.

Chagrin está justamente a desembaraçá-lo da sua camada de conchas. Se tivéssemos pelo menos a sorte de descobrir a data de origem ou um nome!

- Conseguiria- pôr em movimento a vossa descoberta? - disse Damms como resposta. Adivinhava-se um tremor na sua voz. O arqueólogo revelava-se nele.

- Impossível. - Chagrin parou o seu trabalho com o formão: - Sabe melhor que ninguém, Damms, quanto pesa um canhão de bronze!

- Isso seria possível com um guindaste! Vou pôr o barco por cima de vocês, e mando-lhes os cabos de aço! De acordo?

- De acordo. Mas cautela! Não temos lugar para nos afastarmos muito. Nada de âncora, por amor de Deus, nada de âncora! Desancar-nos-ia.

Chagrin e Faerber voltaram a nadar até à protectora muralha rochosa e esperaram. Por cima deles roncou um cabrestante, depois uma sombra alongada deslizou por cima da gruta aberta na rocha e ficou ali pendurada. O motor calou-se e finalmente quatro cabos de grosso fio de aço, lastrados com esferas de chumbo e arpéus com os dentes separados, baloiçaram no interior da gruta e desceram até ao fundo.

- Perfeito! - gritou Faerber. - Um trabalho de precisão, Peter.

Voltaram a nadar na direcção do canhão de bronze, puxando atrás de si os cabos de aço. Lá do alto, um terceiro objecto mergulhou para o fundo. Um terceiro feixe luminoso varreu o chão da gruta.

- Tu devias ficar lá em cima, Peter! - gritou Faerber assustado. - És idiota! Nunca mergulhaste até tão fundo!

Olhou para Chagrin, bateu na testa com o indicador e deixou-se subir até à altura em que Damms evoluia, como um magro e comprido peixe negro.

Damms endereçou a Faerber um radioso sorriso através dos grandes óculos de mergulhador. Os seus olhos de miosótis brilhavam.

- Imaginaste que eu ficaria a assar ao sol enquanto vocês avançavam entre os mistérios dos séculos passados? - perguntou. - Na Anatólia, desenterrei cidades inteiras.

- Aqui, não estamos na Turquia, mas num fundo marinho. Não aguentarás a pressão, Peter. Volta!

- De forma nenhuma! - Damms oscilou em direcção ao fundo, com as barbatanas a pedalarem alegremente. No chão, Chagrin via-os aproximarem-se.

- Sou arqueólogo! Na Anatólia havia areia, aqui também há! Rapazes, onde está essa bombarda?

- Quem está a manobrar o cabrestante lá em cima? - gritou Faerber.

- Ellen e Pascale. . . Dei-lhes explicações sucintas:

alavanca para a frente... para trás...

Acenou alegremente para Faerber e deixou-se descer até junto de Chagrin. Faerber nadou atrás dele:

- Ouviste isto, Ellen? - perguntou através do seu microfone.

Mas a bordo, atarefando-se entre as cordas, encontrava-se Pascale, que respondeu:

- Ouvi, senhor. Peter é um homem que tem cabeça e que eu admiro. Ellen está no guindaste. Terminado.

Damms já se tinha ajoelhado encostado ao canhão, e metia-lhe o primeiro arpéu na boca quando Faerber tocou o fundo perto de Chagrin.

- O seu amigo comporta-se como um caçador apaixonado - notou Chagrin. Não se podia distinguir através do microfone o estranho tom de perfídia que coloria a sua voz: - Quando vê uma bela peça de caça, esquece tudo o que o rodeia.

Hans Faerber respondeu com um aceno de cabeça sem alcançar o duplo sentido da frase.

Mas lá em cima, na ponte, Ellen dizia a Pascale:

- Você é uma galdéria desavergonhada!

As posições de cada adversário estavam nitidamente estabelecidas. A guerra de extermínio podia começar.

Ao fim de duas horas de trabalho bastante rude, o canhão de bronze estava finalmente a bordo do Nuestra señora. A segunda tentativa de subida resultara. Da primeira vez, o canhão tinha saído para fora das garras do arpéu porque, como o peso estava mal repartido, o equilíbrio era defeituoso e Hans Faerber quase fora esmagado. Chagrin reagiu mais depressa que Damms, que levou um segundo a mais. Aquilo podia ter custado a vida a Faerber.

Chagrin agarrou com as duas mãos os reservatórios de oxigénio presos às costas de Faerber e puxou-o para ele quando a pesada peça de artilharia, ao escapar-se dos cabos de aço, se abatia perpendicularmente, enquanto Faerber, de joelhos no fundo, juntava as ferramentas, metia-as no saco que tinha pendurado à cintura e escavava a areia com a ajuda da sua alavanca. O canhão enfiou-se na areia até metade do seu comprimento, embateu em qualquer coisa dura e saltou de ricochete.

- Mas que estranho, Chagrin - quis ele dizer, quando recebeu o choque. Caiu de costas, agitou em vão os braços e as pernas, e com o susto esqueceu-se de respirar. Depois viu o canhão enfiar-se na areia mesmo no Sítio onde ele tinha estado ajoelhado. Voltou-se, nadou uma curta distância e voltou para trás.

O rosto de Damms, ao abrigo das suas duas grandes vigias ovais, estava transtornado de terror. Agitava os dois braços como se ele próprio tivesse sido atingido pelo projéctil, depois balbuciou através do microfone palavras incompreensíveis. Chagrin contornou calmamente o canhão a nadar e dirigiu a Faerber um gesto tranquilizador:

- Obrigado, René! - disse Faerber com voz enrouquecida. - Nunca esquecerei.

Nadaram um para o outro, apertaram as mãos, depois desceram de novo as garras de aço para o canhão. Vinda da ponte do Nuestra señora, soou nos auscultadores a voz alegre de Pascale:

- Tiveram algum problema aí em baixo? O cabo ficou deslastrado.

Nada traía na sua voz o ódio que acabava de explodir entre as duas mulheres. Ellen, no guindaste, fez descer os arpéus, depois esperou o que iria dizer Pascale, que empunhava o microfone.

- A peça de bronze deslizou para fora dos arpéus? - perguntou, quando Pascale apontava para o fundo, com o polegar estendido para baixo.

- Sim.

- Nada mais?

- Nada mais.

- Você lembra uma serpente a devorar um coelhito, e Peter desempenha o papel daquele lastimável animal.

- Tem a intenção de se opor a isso? - perguntou Pascale a rir. O seu riso formava uma cascata de sons, um colar de pérolas musicais com tonalidades frias, cristalinas, e no entanto envolventes. Tinha a particularidade de se atirar para trás enquanto ria. Então os seus belos seios esticavam-se, ameaçando fazer explodir tudo numa girândola crescente de sons perfeitos.

- Sei como sou bonita - recomeçou Pascale. Sei que um homem a quem eu me ligue não passa de um trapo que eu posso modelar à minha vontade.

E sei que não tem qualquer hipótese contra mim, Ellen.

Então?

- Chagrin dar-lhe-á uma sova tão grande que ficará de todas as cores. .

De novo o riso gelado, em cascata:

- René, além de tudo, não passa de um homem... um pão chega para um esfomeado e até para dois...

- Pretende transformar este barco num bordel? - gritou Ellen.

As tenazes de aço tinham de novo chegado ao fundo, a tensão dos cabos era menos forte.

- Todos nós sabemos o que você é!

O riso de Pascale morreu-lhe nos lábios. Os olhos mudaram de expressão. A cintilação triunfante foi substituida por um olhar parado, perigoso. Aproximou-se lentamente do guindaste e parou tão perto de Ellen que os braços delas se tocavam. Uma onda de ódio, uma tensão eléctrica crepitante ligou-as de repente como se dois amantes se entrechocassem.

- Minha bochezinha - disse Pascale lentamente -, tenho as unhas suficientemente afiadas para te dilacerar as trombas!

- E eu tenho bastante força - respondeu Ellen no mesmo tom - para torcer o teu pescoço de galinha!

Olharam uma para a outra enquanto o vento lhes misturava as cabeleiras como se o combate já tivesse começado. Lado a lado, ofereciam, no entanto, o espectáculo de duas criaturas humanas de uma beleza perfeita, cada uma no seu género.

Quem é que disse que o Inferno tem de ser sempre feio?

- O que é que vais fazer? - perguntou Pascale. - Gritar por cima de todos os telhados: Pascale dorme com Peter? Quem é que terá então a culpa de ter feito de nós cinco demónios neste barco?

- Falarei com Peter.

- Que desperdício de energia! - Pascale atirou bruscamente a cabeça para trás, o que afastou a sua cabeleira da de Ellen.

- Quem conseguirá falar à razão de um homem se ele estiver deitado entre as coxas de uma mulher?

Isto passara-se duas horas antes.

Nesse momento, o canhão estava a bordo, colocado em cima de uma mesa, e os três homens tiravam com um formão as conchas de que ele estava revestido.

O sol do meio-dia flamejava impiedosamente num céu azul, sem nuvens, cúpula cheia de ar em ebulição, com vapores vibrantes. Embora estivessem a trabalhar abrigados por um toldo, o suor gotejava de Chagrin e de Faerber, cujo aspecto evocava as esponjas tiradas do mar. Peter Damms examinava à lupa as partes do bronze das quais já tinham arrancado as conchas e procurava vestígios de inscrições. Mal transpirava, o que era espantoso num homem tão seco como um sarmento no Inverno. Pascale estava sentada em cima de uma caixa, com os joelhos levantados, o queixo apoiado em cima deles, envolvida na sua rutilante cabeleira: figura de proa da caravela Sexualidade.

Ellen, de pé atrás de Faerber, deitava incansavelmente água nas superfícies que o formão dele libertava de conchas, depois esfregava o bronze com a ajuda de uma escova de aço, o que tirava os últimos vestígios de calcário.

- Parem! - disse Damms de repente, como um toque de corneta. - Chagrin, pare! Estou a ver qualquer coisa... Dê-me agora o formão, empunhá-lo-ei melhor que vocês, porque me está destinado desprender com o pincel a poeira dos séculos, de tal forma o pergaminho tratado é friável.

Recomeçou o trabalho com o formão com pequenos golpes prudentes, milímetro a milímetro, acreditando que debaixo dos seus dedos não havia bronze mas uma placa de cera do antigo Egipto.

Os outros rodeavam-no, a suar, esgotados pelo mergulho. Sobressaltaram-se quando Damms gritou:

- Cá está ela, meus filhos! Eis a nossa preciosa indicação! E é muito visível!

Esfregou mais uma vez o local da sua descoberta, estreitando o canhão como se o fosse abraçar.

Todavia, mal reconhecíveis, apenas se distinguiam alguns gatafunhos no bronze, não mais precisos que as outras marcas de que o canhão estava coberto. Faerber olhou para o amigo, fascinado pelo entusiasmo de uma qualidade tão rara demonstrado pelo rosto daquele homem.

- É o selo das oficinas de fundição das armas reais de Castela - explicou Damms com solenidade. Os seus dedos acariciaram as rugas do metal. - E vejam a data! Tomem esta lanterna, vejamos, isto mete-se pelos olhos dentro: mil quinhentos e trinta e nove! Não se pode negar...

Faerber arrancou a lanterna das mãos de Damms e

debruçou-se sobre o canhão. Viu algumas marcas no metal e alguns números quase apagados, mas se Damms lia 1539 devia estar certo.

- Sim - disse, enrouquecido pela comoção, - o selo... - Depois estendeu a lupa a Chagrin. Este inclinou-se, olhou através do vidro de aumentar e poisou-o. O seu estreito rosto burilado tremeu imperceptivelmente. - É verdade: mil quinhentos e trinta e nove - disse -, e isso significa.

- Que estamos ancorados precisamente por cima dos salvados do Zephyrus! - exclamou Damms.

- E este afundou-se na gruta e só está coberto por uma fina camada de areia, a vinte e cinco metros de profundidade, mais ou menos... é sem dúvida um salvado em bom estado de conservação. - Chagrin olhou rapidamente na direcção de Pascale, que baixou imperceptivelmente a cabeça, embora ninguém tivesse reparado em nada.

 

- É uma oportunidade única! Meus amigos! - recomeçou Chagrin. - Vamos desenterrar um navio que deve ter conservado o seu aspecto primitivo! Sem dúvida, já não tem nem os mastros nem as enxárcias, que devem ter sido levados pelo furacão, mas sim o casco! Está tombado como uma pedra no fundo da falha rochosa onde as águas são perfeitamente calmas e onde está cheia de areia. - Encostou-se à mesa e olhou para o mar, que brilhava como cobre sob o sol do meio-dia. - Nadaremos através dos camarotes do porão para recolhermos os' milhões... como se juncassem uma rua. Meus amigos, dentro de oito dias estaremos no interior do navio!

Nessa noite também ninguém dormiu a bordo do Nuestra señora. Damms, na sua alegria, tinha achado próprio embriagar-se, o que, com aquele calor, não era muito difícil. Nesse momento, afundado na sua tarimba, recitava, no escuro, a genealogia dos reis de Castela.

à popa do barco, atrás das esteiras de bambu que formavam a tenda de Chagrin, tudo se passava num plano menos académico.

- És um idiota! - dizia Pascale, empurrando Chagrin, que se queria agarrar a ela. - Este canhão, por uma sorte espantosa, cai-lhe em cima da cabeça e tu salva-lo! Nunca mais se apresentará semelhante ocasião: um acidente com testemunhas!

- Não pude impedir-me - disse Chagrin, que, sentado em cima da cama, contemplava o corpo nu de Pascale. - Foi estranho; quando aquela massa de metal balançou de repente, no fundo éramos apenas camaradas. Isso é que tu nunca perceberás; há na vida de um homem momentos de verdadeira fraternidade...

- Que comovente! - Pascale esticou a perna esquerda. A sua atitude era provocante de propósito, e ela contava fustigar os dedos de Chagrin, quando ele a quisesse agarrar.

"Camaradas!", pensava, "mas que cerimónias! Agora que se tratava de milhões! Alguns assassinam o pai e a mãe por muito menos!"

- Seria prematuro - recomeçou Chagrin. Quando todo o tesouro estiver a bordo... então, minha querida!...

- Quando já ninguém mergulhar, quem é que se arriscará então a afogar-se?

Chagrin devorava-a com o olhar. Estendida contra ele, as pernas um pouco afastadas, parecia esperar o seu primeiro gesto... Mas ele conhecia-a muito bem... os olhos da bonita rapariga punham-no em guarda: logo que ele se inclinasse para ela, Pascale empurrá-lo-ia com os pés e com as mãos. Seria a vingança da gata privada do ratinho.

- Sabes disparar? - perguntou bruscamente Chagrin. Pascale levantou a cabeça. A tensão interna de que sofria acalmou-se visivelmente. Os músculos dela distenderam-se. Ele viu-o no seu ventre e na parte de dentro das suas longas coxas.

- Sei arredondar o indicador... isso chega? - respondeu.

- Talvez. Posso liquidar Faerber e Ellen de surpresa, mas depois de dois tiros Damms terá tempo de ripostar com um terceiro: será preciso que abatas Damms, Pascale.

Ela olhou-o com os seus olhos verdes, que, à claridade do pequeno lampião que balouçava por cima da cabeça deles, brilhavam como dois carvões. Depois abanou a cabeça:

- Não dispararei contra Peter - disse. Depois, de repente, a voz dela tomou um tom glacial, que feriu Chagrin como um tiro:

- A Ellen é quem eu quero abater!

Chagrin avançou a cabeça como uma ave de rapina a mergulhar sobre a sua vítima:

- O que se passou aqui a bordo quando estávamos no fundo?

Os dedos de Pascale tamborilavam contra o caixilho da cama:

- Ela chamou-me puta!

- Desde quando é que te sentes ferida por uma tal verdade?

- Não passas de um lixo, de um cão fedorento, de uma merda!

Levantou-se de um salto e atirou-se para cima de Chagrin, tentando arranhá-lo. Ele empurrou-a a rir, pespegou-a na cama, manteve-a ali com o peso do seu corpo e prendeu-lhe as mãos afastadas de si.

- Maldito indecente! - balbuciou ela, rouca de fúria. - Ignóbil nojento...

Chagrin sentia o contacto daquele corpo maravilhoso e isso acalmou-o. Pascale continuou a defender-se, ao mesmo tempo que gritava palavras insensatas que ele já conhecia, como conhecia os seus acessos de raiva e a forma de lhes pôr fim.

- Vou-te deixar Ellen - disse a meia voz num beijo.

Ela quis morder-lhe, mas de repente ficou calma. Quando ele lhe soltou as mãos, não lhe arranhou a cara, mas contentou-se em envolver-lhe o pescoço, num gesto de ternura.

- Quando, querido? - perguntou ela. A sua voz, que tinha reencontrado as entoações quentes, sedutoras, traía uma expectativa alegremente diabólica:

- Quando estivermos sentados em cima das caixas que contiverem os milhões; até lá, tens de te resignar a viver com Ellen.

Ela sorriu, como se fosse a crueldade feita mulher, pensou de repente Chagrin. Seria inevitável: o quarto tiro a bordo abateria Pascale. No fim de contas, um verdadeiro caso de legítima defesa!

Depois Pascale apertou entre as pernas os rins de Chagrin e entregou-se aos seus amores satânicos.

Entretanto, na cabina situada debaixo do posto de pilotagem, Faerber e Ellen estavam ainda sentados na frente de uma mesa desdobrável. Hans desenhava a suposta posição dos salvados, se tivessem naufragado como Chagrin supunha. Desenhou a gruta no rochedo, o fundo arenoso e, por baixo, comprimido mas conservando os contornos precisos, o casco do Zephyrus.

- Se tudo isto estiver certo, Ellen - disse Faerber, satisfeito com as suas interpretações artísticas -, o velho Drexius ter-me-á deixado uma herança fabulosa! O velho Drexius muito enrugado, pobre, que só possuía duas camisas para mudar, tinha a forma de se procurar os milhões pendurada na parede da sua loja, só Deus sabe há quanto tempo! Nunca disse nada a ninguém. Porque tinha talvez medo de morrer por causa disso?

- Eu também tenho medo, Hans! - Ellen tirou-lhe o lápis das mãos e riscou com vários traços o desenho que representava os salvados. - Se a opção ainda fosse permitida, dir-te-ia: larga tudo isso e vamos apanhar o avião para voltar para casa!

- Já não é possível! - Faerber olhava fixamente para o seu desenho rabiscado. Não era supersticioso, mas o seu prazer estava estragado por o ver assim riscado. Não teria conseguido explicar porquê. Qualquer coisa lhe pesava no coração.

- Meu Deus, que podes tu temer?

- Chagrin...

- Salvou-me a vida hoje mesmo...

- Pascale e eu estamos prestes a matarmo-nos uma à outra a qualquer momento!

- Assim são as mulheres! - Faerber deu uma gargalhada, que o libertou da sua opressão. - São brigas clássicas! Pomos juntos uma centena de machos sem que o curso dos dias e das noites seja modificado, mas quando deixamos face a face duas mulheres que não se conseguem manifestar, eis o universo sem direito nem avesso!

- Julgas-te muito astuto, não é? - Ellen atirou o lápis e meteu-se na cama. - Vocês são todos ingénuos como crianças que fazem castelos de areia.

Durante a noite, levantou-se uma brisa, o barco dançou nas amarras. Pela primeira vez, o mar teve verdadeiras ondas, caiu até uma chuva muito forte. Chagrin e Faerber ancoraram uma fateixa, a fateixa flutuante já não bastava.

Na manhã seguinte, a tempestade tinha passado.

O Sol estava de novo suspenso no céu sem nuvens, o calor começou a maltratar depressa, húmido, asfixiante. O mar, todavia, estava mais agitado do que nunca. De facto, não havia grandes ondas, mas estavam habituados a um espelho de água quase liso, e notavam que, em frente, cristas espumosas lambiam o banco de Chinchorró.

Nessa manhã, Chagrin foi sozinho para o fundo:

- Quero ver se a falha rochosa se modificou alguma coisa - disse.

Passados dez minutos, reapareceu à superfície, saltando das profundezas, sem pensar na descompressão. Nadou até à escada, subiu a bordo e deixou-se cair na ponte. Faerber arrancou-lhe a máscara.

- Isto promete-nos um famoso combate! - ofegou Chagrin, estendido como um peixe fora de água. - Na gruta está alojado um polvo enorme!

Chagrin precisou de meia hora para se recompor da sua subida demasiado rápida. Ignorando o perigo, tinha nadado ao seu encontro. Damms e Faerber desceram-no para a cabina, onde, com os lábios roxos e os olhos desorbitados, ficou estendido.

Faerber auscultou os pulmões de René com a ajuda de um estetoscópio, deu-lhe uma injecção a fim de lhe regularizar a circulação e manteve uma máscara de oxigénio diante do seu rosto pálido. Depois esperaram a reacção de Chagrin, mas o delírio temido não se manifestou. Chagrin respirava profundamente e parecia flácido como se tivesse ossos de borracha.

 

- Um polvo não é, em si, nada de perigoso disse mais tarde. Ellen tinha preparado um chá muito forte, estavam sentados debaixo da vela estendida como um toldo, o mar brilhava com o mesmo verde-azul intenso e parecia tão calmo como nos dias anteriores. Apenas as vagas continuavam a desfazer-se em espuma contra o gigantesco banco de areia de Chinchorro.

- Nós já temos vencido a resistência de muitos polvos, mas aquele da falha é um exemplar magnífico. Mede bem oito metros de envergadura, com Os oito tentáculos desdobrados. De repente, estava na minha frente, como uma hidra de cem braços, que agitava, ameaçador. Consegui escapar-lhe por pouco, com uma volta seguida de uma fuga muito rápida. Um dos seus tentáculos aflorou-me, no entanto, os pés, mas fui mais veloz que ele.

Chagrin aproximou-se da amurada e perscrutou as ondas com o olhar, depois cuspiu:

- Badalhoco! Conta com os que cá estão em cima... A ti também te havemos de ter!

- Teremos arpões e pistolas de mergulhador, isto não chega?

- Deseja fazer cócegas ao monstro, Peter? - Chagrin teve um sorriso perverso.

- Para ferir de morte aquele gigante tinha de se aproximar bastante. Mas ele tem oito tentáculos que, se os desdobrar, têm quase metade do comprimento do nosso barco. E se perceber que o perigo se torna sério derramará as suas nuvens de tinta e cegar-nos-á completamente. Sabe com que nos pareceremos então? Com idiotas desorientados, a pedalar entre duas águas escuras, o que lhe permitirá agarrar-se a nós com os tentáculos cobertos de ventosas! Não, não nos devorará, mas reduzir-nos-á a papas de farinha! Só há uma hipótese...

- Fazê-lo sair... - Faerber levantou os olhos do desenho. Tinha conseguido apagar os riscos de lápis de Ellen. - Temos bastantes cargas de plástico para nos abrir um caminho através...

- Não o expulsará com o mérito de um dedal cheio de explosivos, Hans! - Chagrin inclinou-se para o desenho e o dedo dele indicou a parede rochosa, um pouco acima do sítio onde tinham encontrado o canhão: - Ele mora aqui!

- Estivemos a trabalhar com esse papão nas costas! - disse Damms. A sua voz estava insegura. Podia facilmente ter-nos agarrado por trás.

- Faremos explodir a sua toca!

- Nada mais simples, mas quem sabe como os destroços aguentarão o choque? Até agora, a ordem e a paz têm reinado no fundo, como no Paraíso... e, agora, vimos transformar esta paisagem!

- Como pensa poder triunfar desse polvo por outro meio, Chagrin? - Faerber teve um sorriso amargo: - Não posso dar-lhe uma injecção para dormir!

Chagrin olhou de novo para o mar.

- "Lá em baixo repousam milhares de milhões", pensava. Se tivéssemos aqui o material moderno dos descobridores de salvados profissionais, largaríamos uma pequena granada que volatilizaria simplesmente este ignóbil animal e não nos preocuparíamos com uma eventual transformação do fundo. Com possantes aspiradores de areia poríamos o navio a descoberto e avançaríamos, vestidos com fatos de mergulho razoáveis. O que temos nós aqui, no Nuestra señora? Um equipamento de mergulho de amadores, simplesmente. Teriam de cavar o caminho como as toupeiras... Lutaremos - disse com dureza. - Não corpo a corpo com o polvo, o que seria uma loucura, mas com astúcia:

tratar-se-á de provar que temos um cérebro, enquanto ele está desprovido disso!

Ao começo da tarde, tudo estava pronto. Tão silenciosamente quanto possível, Faerber, Damms e Chagrin deixaram-se cair no mar e mergulharam. Lá em cima, Ellen e Pascale, encostadas à amurada, seguiram-nos com os olhos até que as suas sombras se apagaram na noite das profundezas. Então, instalaram-se na frente do aparelho de rádio e esperaram. Quando os seus olhares se encontraram, Pascale disse subitamente:

- Tenho medo por ele, Ellen.

- Então, nade atrás de René. Talvez o polvo vos apanhe no mesmo momento!

- Não, por René, não.... por Peter! E não sei nadar. - Sorria, mas uma tremura à volta da boca traía Os seus esforços para conter as lágrimas: -Ellen, eu talvez seja uma puta, mas uma puta também sabe amar de verdade!

- Não a julgo capaz disso! - Ellen rodou os botões do aparelho e inclinou-se para o microfone:

- Alô! Alô! O que estão a ver no fundo?

- Todavia, você também ama Hans - disse Pascale.

- É outra coisa.

- Logicamente. Você não é uma puta. Mas uma pura menina de família! A Madona no roseiral... Julga que é a única a ter um coração?

Ellen, enervada, premia constantemente o botão. Ninguém lhe respondia do fundo, o altifalante continuava mudo. Do aparelho apenas emanava um ligeiro zumbido monocórdico e corrosivo.

- Cale-se, então!   disse Ellen irritada. - Será preciso brigarmos outra vez?

- Não. - Pascal inclinou-se para a frente. A cabeleira ruiva flutuava em volta dela como o pavilhão esfarrapado de um navio pirata. - Você também tem medo pelo Hans, mas é corajosa, sabe nadar e mergulhar... Por que não mergulha também?

Esta mesma pergunta fazia Ellen a si própria desde que Faerber, armado como se fosse travar um combate submarino, tinha descido pela escada da escotilha para desaparecer nas ondas. As palavras de Pascale provocaram a sua decisão.

- Dispa-se - insistiu Pascale.

- E os aparelhos que é preciso manipular?

- Não sou idiota ao ponto que imagina. René explicou-me a forma de manejar o rádio. Não sairei deste lugar e sei em que botões se tem de mexer.

Ellen hesitava. Aproximou-se de novo da amurada e olhou para o mar, cujas águas claras, azuis-esverdeadas, não tinham mistério, tanto o brilho do sol as penetrava profundamente. Mas, a seguir, começava a escuridão e, para além dela, o perigo. Os bancos de peixes com flancos dourados que nadavam ritmicamente em todos os sentidos, com uma graça incomparável, não alteravam nada ali...

- Dispa-se - dizia Pascale, atrás de Ellen, que se afastava. - Eu preparo os reservatórios de oxigénio...

 

Passados dez minutos, Ellen voltou a subir à ponte. O seu fato de borracha amarelo tinha largas riscas azuis nos lados. Pascale estava já preparada para lhe colocar os reservatórios de oxigénio às costas e afivelou-lhe as correias, depois passou à volta da cintura de Ellen o largo cinto com duas facas, finalmente fixou-lhe o laringofone e os auscultadores.

- Continua a não haver notícias de lá de baixo? perguntou Ellen. Pascale abanou a guedelha rutilante.

- Nada! Tenho medo por Peter, Ellen...

Tinham a mesma obsessão. Ellen pensava em Hans e o medo que sentia por causa dele esmagava-lhe o coração.

Foi para a escada da escotilha, desceu-a e deixou-se cair na água. Com elegância, nadou para o fundo... Os raios de sol agarraram-se a ela, conferiram-lhe o aspecto de um enorme peixe dourado. Depois o seu corpo mergulhou mais profundamente e ocultou-se de repente. Pascale, encostada à amurada, esperou que Ellen desaparecesse. Depois atirou a cabeça para trás e riu com um riso dissimulado, marcado por um tom histérico.

Continuava a não haver nada. Pascale voltou para

o aparelho de rádio e colocou todas as alavancas de comando no zero, cortando assim toda a ligação com o fundo.

Não haveria chamadas de socorro... e, com certeza, elas iriam aparecer... dentro de alguns minutos, primeiro cheias de surpresa, depois de irritação, finalmente de angústia, revelando um pânico crescente, para acabarem em gritos de morte desesperados.

Ellen Herder transportava às costas uma garrafa de oxigénio que só tinha ar respirável para dez minutos de mergulho.

- Vai então, meu orgulhoso arcanjo! - gritou Pascale por cima da superfície do mar, agarrando-se com as duas mãos à amurada. O seu riso demente sacudia todo o seu ser, como se sofresse de convulsões.

- Rebenta! Ouves? Rebenta!

O Sol, inclinando-se de viés, começava a tingir o mar de púrpura. O céu mostrava-se incrustado de traços multicolores.

Ao longe, ponto imperceptível sobre o mar, balouçava um pequeno barco a motor. Dois homens, mestiços índios, vestidos com os seus ponchos de cores vivas, mantendo-se de pé entre os bancos de remador, observavam com a ajuda de binóculos o Nuestra señora.

- Neste momento mergulharam todos - disse um, baixando os binóculos. - A mulher está sozinha na ponte, a ruiva...

- O Seflor Santilla tem razão: deve haver ali um negócio interessante! - O outro homem sentou-se, alinhando as pregas do poncho:

- Iremos ver, Emanuele, hoje à noite!

Chagrin, Faerber e Damms, que iam à caça, aproximavam-se da gruta rochosa pelo lado onde se encontravam os segundos destroços desintegrados e dispersos pela corrente sobre uma extensão de várias centenas de metros. Experimentavam a força da corrente, agora que, braçada a braçada, deslizavam junto do fundo arenoso para se aproximarem do rochedo.

- Deve estar ali! - disse Chagrin com um gesto na direcção da frente. - Prudência, a partir de agora!

Ficou para trás, mas os seus dois companheiros continuaram galhardamente o seu avanço, como se não tivessem ouvido as palavras de Chagrin.

- Fiquem aqui! - gritou-lhes Chagrin. - Hans, Peter... enlouqueceram? Voltem!

Os outros dois continuavam a nadar. Chagrin praguejou, estendeu-se e lançou-se em perseguição deles. Quando os apanhou, fez a Faerber um sinal preciso, batendo na testa com o indicador. Faerber respondeu, apontando para o microfone.

- Que maçada! - disse Chagrin. - Mais esta! tinha percebido que as radiocomunicações estavam avariadas e que não podiam mais entender-se a não ser por gestos. Peter Damms agarrou-se a uma aresta do rochedo e pôs-se a chamar constantemente o posto receptor do barco, como se pudesse consertar a avaria à força de boas palavras.

"Está a desperdiçar muito oxigénio e muita energia!" -, pensou Faerber, e, nadando para Damms, fez-lhe sinal com ambas as mãos. Damms compreendeu e respondeu-lhe com uma inclinação de cabeça. Então voltaram a pôr-se em "formação" e deslizaram em silêncio para o interior da gruta. Por debaixo deles, na muralha rochosa que descia em viés para o fundo, devia estar a caverna do polvo.

Sentaram-se num ressalto do rochedo e puseram-se de acordo ao considerarem a rotura das comunicações como uma séria desvantagem. Cada gesto que anteriormente podia ser discutido teria de ser agora explicado por sinais! Mas, antes de tudo, havia um problema fundamental. Quem ia agora tomar o comando da expedição? Quem teria a melhor inspiração no momento crítico?

Chagrin levantou o polegar da mão direita, o que significava: "Vamos subir! Intervalo... O polvo não se irá embora, pelo contrário. Antes de qualquer outra coisa, é preciso repararmos aquela porcaria do aparelho de rádio. Um dia a mais ou a menos, pouco importa! Estamos sentados em cima dos milhões, meus caros, e ninguém corre atrás de nós! Por que havemos de correr riscos?"

Faerber abanou a cabeça e apontou a rocha. "Ataquemos!"   queria ele dizer: "Quem sabe como estará a situação amanhã? A mais insignificante das tempestades que soprou esta noite... não anunciará ela uma mudança de tempo radical? E então? Quando os relâmpagos, os trovões, o mar encapelado dançarem o seu ballet, se tivermos de voltar para terra nesta região tempestuosa do lucatão onde o paludismo causa estragos, para a floresta de mangais, que nos porá a todos doentes? Não! Agora! Capitular diante de um polvo! Agora que temos na mão pistolas, arpões e cargas explosivas?"

Faerber nadou para se aproximar de Chagrin. Através dos grossos óculos de mergulhar trocaram olhares interrogativos.

- Estás, então, com medo, meu rapaz? - perguntou Faerber a meia voz.

Chagrin pareceu adivinhar o seu pensamento, era de acreditar que o tivesse ouvido. Encolheu os ombros.

- Tu és o patrão! Pagas, vai em frente, herói!

Faerber voltou-se. Tirou da bolsa pendurada à cintura uma pequena placa de plástico e juntou-a a um delgado fio eléctrico destinado à inflamação. Damms, que levava a bateria, aproximou-se a nadar e Introduziu o fio de ferro no contacto.

Chagrin encarregou-se de garantir a segurança... Deixou-se lentamente descer de lado até se encontrar à mesma altura que a caverna do polvo gigante. Fez um gesto vivo para designar o rochedo, como se tivesse visto qualquer coisa, um tentáculo, um movimento, à beira do abismo. . . era difícil certificar-se. Tinham apagado os grandes projectores e trabalhavam com pequenas lanternas presas à testa.

Faerber levantou a mão. Damms enclinou a cabeça várias vezes de seguida.

Pronto! A explosão podia ter lugar.

Rastejaram lentamente alguns metros, até à caverna.

 

Ellen nadou durante um certo tempo por cima do fundo arenoso, ainda fracamente iluminado pelo sol. Havia ali, vegetando em cima de seixos dispersos, colónias de anémonas-do-mar e de estranhas aglomerações de corais. Atravessou os campos de sargaço e uma floresta baixa de bastonetes cor-de-rosa que se balouçavam ao sabor da corrente, dos quais ignorava o nome, mas sabia-os cobertos de pêlos afiados como as urtigas, através dos quais paralisavam tudo aquilo em que tocavam. Os pequenos peixes que fervilhavam nesta floresta ondulante eram engolidos pelos bastonetes, que se debruçam sobre eles num só impulso, como os dentes de uma grade.

O solo era em declive. Ellen seguiu a ladeira e penetrou no domínio da noite. Ali, acendeu o projector amarrado ao peito e lembrou-se do desenho de Hans. A gruta devia estar próximo... de repente, as rochas iriam surgir e a maravilhosa descoberta começaria.

Fez mais uma profunda inspiração e mal notou que recebia menos oxigénio do que precisava, mas já a terceira e, mais ainda, a quarta inspiração não passaram de uma tentativa de absorver um fiozinho de ar.

Ellen passou a mão hesitante pelo tubo e pôde respirar o suficiente para encher os pulmões.

De súbito, foi tomada por um medo louco. Em vez de voltar à superfície, elevando-se lentamente - porque a sua reserva de oxigénio ainda lho permitia -, o pânico que se apoderou dela apenas lhe permitiu um único pensamento: descer para encontrar Hans!

Estendeu os braços e lançou-se para a frente. O seu tubo só já lhe fornecia muito pouco oxigénio.

"Socorro!", gritou interiormente. "Hans! Vem, Hans! Salva-me!"

 

Faerber e Damms tinham atingido uma saliência

rochosa por cima da caverna do polvo. Chagrin estava

à espera à sua ilharga, mantendo preparados o arpão e a pistola.

A rocha irregular coberta de conchas oferecia muitas hipóteses de ali introduzir a carga de plástico de forma a ser usada toda a sua potência explosiva. Num espaço fechado, uma explosão é sempre mais eficaz que ao ar livre, mesmo que seja na água.

Prudentemente, Faerber deixou-se deslizar mais para o fundo até que se encontrou quase suspenso por cima da abertura da caverna. Chagrin fez-lhe sinais.

- Aquele camarada ainda não viu nada... está completamente absorvido.

Faerber meteu suavemente a placa de plástico numa fenda profunda e tapou-a em seguida com um grosso cordão de estopa tirado da sua bolsa de ferramentas. Por cima dele, Damms flutuava na água, ligado pelo fino filamento de inflamação. Depois, tudo se precipitou.

Primeiro houve um feixe luminoso ofuscante que surgiu de repente na frente deles, o clarão de um projector que atingiu exactamente a caverna, Chagrin e Faerber.

 

No mesmo instante, o inferno desencadeou-se.

Revolvendo-se com todo o seu peso, o polvo saiu do seu retiro.

Primeiro apareceram quatro tentáculos, majestosos como troncos de árvore, cujas ventosas pareciam grandes olhos desorbitados. Depois veio o corpo, bloco negro em forma de funil, projectando-se às arrecuas através das vagas, enquanto o animal aspirava e expelia a água ritmicamente. Na frente da caverna, os oito tentáculos estenderam-se em liberdade, era mesmo um monstro de pesadelo, com os braços preparados para aprisionar, o monstro descrito por Chagrin: um polvo de oito metros de envergadura.

- Ellen! - gritou Faerber. - é a Ellen! Chagrin, faz qualquer coisa!

Era um grito no vácuo. De facto, por causa da avaria da instalação de rádio ninguém o ouvia, mas era preciso intervir: o polvo estava entre Faerber, Chagrin e Ellen, obstáculo intransponível.

Ellen também olhava fixamente o monstro, que se dirigia para ela sob o clarão do seu projector, não sem uma espécie de elegância, com os braços gigantescos a ameaçá-la.

Tentou fugir deles, então faltou-lhe o ar. Ellen aspirava em vão o conteúdo do seu tubo, mas o pânico da asfixia dominava-a. Cambaleou através das águas, viu os tentáculos com ventosas oculares retrocederem sobre ela e já não teve forças para se voltar de repente.

Faerber afastou-se do rochedo no momento em que Chagrin disparava o seu primeiro arpão. Em vão, a flecha-arpão com farpas invertidas cravou-se na massa gelatinosa. O polvo sobressaltou-se, os tentáculos encolheram-se quase humanamente, depois estenderam-se de novo por todos os lados e ameaçaram o inimigo.

Entretanto, uma tinta negra, espessa, saía do polvo e espalhava-se rapidamente nas águas como um véu escuro.

O monstro ficava envolvido pela noite tal como os seus adversários.

Chagrin disparou de novo, utilizando a sua pistola de gás carbónico comprimido, na esperança de que Faerber se conseguisse juntar a Ellen, porque ele já não o conseguia ver... A tinta do polvo mantinha no seio das águas uma noite total. Mesmo quando acendeu o seu projector, o raio luminoso embateu num muro escuro, impenetrável, mais opaco que o mais espesso nevoeiro, lá em cima, à superfície da terra.

Sozinho, colado ao rochedo, segurando nas mãos a carga de plástico, o cordão e o detonador, Peter Damms ficou para trás e tentou ainda entrar em contacto com o navio.

Nesse momento ultrapassou-se a si mesmo. Nunca teria acreditado anteriormente que aquilo fosse possível e teria chamado sonhador a quem lhe tivesse atribuído um acto de bravura para além do domínio científico. Agora, envolvido em nuvens negras, deixado só frente a um monstro que, se não o podia devorar, tinha meios para o estrangular, Peter Damms passou à acção:

apertou contra o peito a carga de plástico prestes a explodir, afastou-se com um golpe de pés do rochedo onde se encontrava e mergulhou, sem pensar, em pleno caos.

Entretanto, Faerber tinha passado por baixo do polvo, completamente encostado ao fundo, sabendo que o gigantesco animal via os seus inimigos a descerem na direcção dele, depois atirou-se para o Outro lado, para as águas livres. Notou então Ellen, a cambalear desesperadamente. Lutava contra as ondas à sua volta e o seu rosto, atrás dos espessos óculos de mergulhador, estava entorpecido de horror, devastado por um medo mortal.

Agora era uma questão de segundos. Faerber compreendeu imediatamente a sua dificuldade respiratória. Puxando Ellen para si por um braço, encheu ele mesmo os pulmões de oxigénio, arrancou-lhe o tubo de alimentação e substituiu-o pelo dele, que introduziu entre os dentes dela, permitindo-lhe respirar o oxigénio regenerador.

Algumas aspirações deliciosas, profundas. Viver! Viver!

Deixou-a beber o seu oxigénio enquanto ele mesmo pôde conter a respiração. Depois trocaram os tubos dos aparelhos. Faerber agarrou Ellen pela cintura e, sacudindo com força a água das suas barbatanas, subiu com ela.

Enquanto chegavam à superfície, tendo Ellen arrancado o seu tubo e agarrada ao pescoço de Faerber, com a respiração ofegante e a chorar como uma criança, vinte metros mais abaixo Chagrin e Damms lutavam contra o polvo.

Chagrin esvaziara a sua pistola de gás carbónico até ao último cartucho. Tinha acontecido o que ele previra: as balas enterravam-se na enorme massa como num pudim sem ali causar o menor dano.

Uma lenda conta que, outrora, os polvos gigantes atiravam os navios para o fundo dos mares, os peixes-espadas ou espadões conseguiam furar com o seu dardo os cascos dos navios ou desconjuntavam-nos... como Moby Dick, a baleia branca, com um golpe de cauda.

Mas no instante em que Chagrin, sem defesa, era atirado contra o rochedo, tendo na sua frente o monstro com os oito tentáculos a incharem, alto como uma casa, atirando contra ele para o agarrar, do seio das águas revoltosas e negras, os seus braços com horrendas ventosas, ele estava preparado para acreditar em tudo o que lhe fora contado sobre polvos.

Depois, de repente, tudo acabou. Com os olhos esbugalhados pelo terror, Chagrin viu o polvo explodir, simplesmente. O corpo maciço desagregou-se, esguichando, os tentáculos desprenderam-se. A criatura pré-histórica fragmentou-se em pedaços esponjosos, indo à deriva. Apenas os tentáculos continuavam a palpitar como se fossem animados por vida própria. Só então o remoinho causado pela explosão atingiu Chagrin. Foi atirado contra o rochedo, tapou a cara com as mãos e admirou-se alguns segundos mais tarde de ainda estar consciente.

Por cima dele passava o corpo de Peter Damms, que subia lentamente para a superfície, rodeado de bocados dilacerados do polvo. Chagrin deu um impulso para cima com um golpe de calcanhar, agarrou Damms debaixo do queixo e, levando-o consigo, rebocou-o até à superfície.

Primeiro viu Pascale. Fazia sinais com os dois braços, depois ajudou Faerber a subir para bordo e Ellen, meio desmaiada.

Nessa mesma tarde, Faerber examinou o rádio. Um transístor estava partido, um fio parecia desligado

 

- Isto acontece - disse Chagrin quando Faerber lhe mostrou as avarias. - Com a tempestade de ontem... - Passou a mão pelos olhos e deitou a cabeça para trás, encostando-a à parede: - Meu Deus... Tivemos sorte! Como está o Peter?

- Está a dormir. Pascale vigia-o. Substituiu Ellen. Não tem lesões internas. Ao princípio temi uma lesão da pleura, todavia ele sofreu um grande choque! Faerber pôs-se a reparar o rádio.

- Soldar um fio, trocar um transístor, não é nada. Era isso que Pascale tinha pensado, quando provocara a avaria. O princípio das pequenas causas geradoras de grandes efeitos conservava o seu significado, era apesar de tudo um bom "auxiliar de bordo" para usar sem perigo.

- Como conseguiu ele fazer aquilo? - perguntou Faerber.

- Mergulhou no polvo a nado, depois introduziu a carga explosiva no cometo respiratório do monstro, finalmente fê-la deflagrar... Não vejo que outra coisa poderia ter feito... - Chagrin abanou a cabeça: - Uma loucura! Mas conseguiu: o caminho que conduz aos milhões está livre!

Bocejou descontraído, deu uma pancadinha nas costas de Faerber e desceu para as cabinas individuais situadas debaixo da ponte. Ellen estava estendida na cama, completamente esgotada. Na cabina seguinte, Pascale, sentada à cabeceira de Peter Damms, agarrava a mão do dorminhoco.

Embora Faerber lhe tivesse dado um sonífero, o seu corpo descarnado era percorrido por incessantes estremecimentos, como se experimentasse os choques de múltiplas explosões.

- Ah! O anjo-da-guarda? - perguntou Chagrin a meia voz. - Não achas esta comédia idiota?

- Finalmente ele está a dormir - disse Pascale num tom de afectuosa preocupação. O tom doce da sua voz fez espevitar os ouvidos do interlocutor.

- Diz-me lá, tu és maluca? - gritou em voz alta.

- Sai imediatamente daqui!

- Ele pode muito bem dormir sozinho sem que tu tenhas de lhe acariciar a mão; não exageres o teu papel!

- Não é um papel, René. - Olhava-o com os olhos verdes entristecidos e de repente Chagrin sentiu que tudo, à sua volta, tinha mudado, e que estava sozinho no mundo... sozinho com quatro mil e quinhentos milhões debaixo dos pés em moedas sonantes e vacilantes, sozinho face a quatro adversários que tinha de obrigar a desistir.

- Cadela! - disse -, embeiçar-se por este verme ossudo! - Sentou-se à beira da cama, espantado, não podendo acreditar. Hesitou em admiti-lo: - Vejamos, isso não é verdade, Pascale. Querida, queres-me fazer ceder, mas não escolheste um bom momento, estou estafado. Vem, Pascale, preciso de ti!

- Todos os homens são egoístas! - concluiu ela malevolamente.

Ele olhou-a fixamente, levantou-se e ao ir-se embora deu-lhe uma bofetada magistral, depois bateu a porta atrás de si.

Lá em cima, na ponte, Faerber estava ainda a reparar o rádio. Trabalhava com o ferro de soldar.

- O seu amigo é masoquista - disse Chagrin ao passar na frente dele e bateu com o indicador na testa -, ou então é idiota: faz explodir um polvo e põe uma enorme sanguessuga ao pescoço! Boa noite!

- Boa noite, René!

Faerber viu-o afastar-se. Não tinha compreendido o sentido das suas palavras. Mas, naquele dia, os companheiros estavam todos um pouco loucos, não ia investigar as intenções deles.

Pelas vinte e três horas apagou-se a última lúz a bordo do Nuestra señora. Até os faróis de sinalização estavam apagados. Para que serviam aqueles faróis? Quem iria ali, nas águas do tão temido banco de Chinchorro, embater no barco deles? Ali só havia solidão...

Pouco depois da meia-noite, um barco mais pequeno, que avançava a bombordo, igualmente com os faróis apagados, acostou ao Nuestra señora e atirou um gancho de abordagem barulhento contra a escada de madeira fixada ao costado do navio.

Os dois homens, envoltos nos ponchos escuros, que tinham remado os últimos metros ao encontro do barco, esperaram mais um momento, depois baixaram-se, tiraram as espingardas de baixo dos bancos de remador e subiram lentamente para bordo.

Calçados com sandálias entrançadas, deslizaram silenciosamente por todos os cantos do barco, examinaram as instalações, fotografaram com a ajuda de flashes os aparelhos e os equipamentos dispersos na ponte e concederam uma particular atenção ao canhão castelhano que tinha ficado em cima da mesa por baixo do toldo estendido.

Fotografaram a velha peça de artilharia por todos os lados e tiveram a seguir a ousadia de descer até às cabinas, a fim de as inspeccionar. Encontraram ali dois casais profundamente adormecidos... enquanto, numa tenda improvisada, instalada na ponte, à popa do navio, um homem sozinho ressonava ruidosamente.

Os dois cúmplices olharam um para o outro, depois foram, sempre sem o menor ruído, até à escada da escotilha.

Amerigo Santilla não iria querer acreditar nos seus próprios olhos quando visse as fotografias.

Os dois visitantes desapareceram como tinham vindo e o barco deles entranhou-se na noite.

Ninguém o sabia ainda: um polvo mais formidável que aquele que acabara de explodir no fundo envolvia o Nuestra señora com os seus tentáculos.

Esta visita nocturna permaneceu ignorada. Todavia, Faerber admirou-se que a grande gaiola de aço com a porta fechada por uma mola, na qual se podiam refugiar ao abrigo dos tubarões, lhe parecesse encontrar-se num lugar diferente do da véspera. Os desconhecidos tinham-na tirado do montão dos equipamentos para a fotografarem mais facilmente. Mas Faerber não deu qualquer significado a este vestígio. Talvez Peter Damms tivesse querido tê-la preparada para servir, a fim de que Ellen e Pascale a pudessem descer para o fundo ao menor sinal de alarme.

O choque sofrido por Damms revelou-se mais grave do que Faerber tinha suposto. Impossível tentar um mergulho. Hans auscultou o amigo uma vez mais, prescreveu-lhe repouso na cama e deu-lhe uma injecção para melhorar a circulação.

- Façamos uma pausa - dizia também Chagrin. Sentia-se ainda muito mal, de facto, e não tinha qualquer vontade de mergulhar sozinho até aos destroços.

- Os milhões já não nos escaparão, além disso ninguém conseguiria roubá-los: estamos sentados em cima deles como uma galinha em cima dos ovos.

Esta pausa, por outro lado, também convinha a Chagrin, para quem Pascale se tinha tornado um verdadeiro problema. Constatou-o uma vez mais vendo-a de manhã continuar à cabeceira de Damms, que rodeava de cuidados como se fosse o seu próprio filho, testemunhando-lhe uma ternura que nada tinha a ver com o erotismo calculista que lenta, mas seguramente, devia aniquilar Damms.

- Como se pode amar uma tal carcaça! - rosnou na direcção de Pascale quando se encontraram na ponte. - Habituei-me a conhecer em ti certas perverSões, mas isto é quase a violação de uma múmia. E quando percebeu que Pascale se recusava a discutir aquele assunto, agarrou-a com brutalidade pelo braço e puxou-a para si.

- Montas o cavalo errado, querida - disse num tom baixo, ameaçador. - Reflecte. Tocará na metade do tesouro, mas não sobreviverá! Porque todo o pacote que repousa lá em baixo serei eu quem receberá e não me deixarei enganar por ti! Seria idiota ficares Sozinha na minha frente, no fim de contas, para pensares, um pouco tarde, nas asneiras que tens feito!

- Projectas matar-me também - disse ela. - Mas vou antecipar-me!

- Maldita galdéria ruiva! - Chagrin abanou a cabeça: - És bonita de mais para ires servir de alimento aos peixes; se ficares comigo, morrerás na pele de uma milionária!

Era uma frase com duplo sentido. Chagrin não acreditava que Pascale a compreendesse.

"Ela não passa de carne, sem uma onça de cérebro", dizia a si mesmo. "Pensa com o sexo, em relação a isso mereçia receber o quociente duzentos para a inteligência. É necessária, todavia; que seria deste mundo sem mulheres sensuais desta espécie?"

 

Ellen Herder restabeleceu-se mais rapidamente que Damms. Ficou um dia de cama e foi então que disse a Faerber:

- Não percebo como aconteceu esta a varia no rádio, e, além dessa, todas as avarias que tivemos ao mesmo tempo! Por fim, Pascale estava sozinha a bordo!

Faerber percebeu a alusão e usou a pausa que tinham combinado para examinar o caso. O aparelho de rádio tivera uma avaria caracterizada que ele mesmo reparara, mas como tinha sido possível Pascale amarrar às costas de Ellen reservatórios de oxigénio quase vazios? Não conseguia explicar isso a si próprio. Os reservatórios vazios estavam completamente separados dos que ainda não tinham servido. Na proa do navio estavam reunidos os reservatórios cheios, na popa os vazios. Não se podia confundi-los.

- Ah, as mulheres! - disse Chagrin desdenhoso, quando Faerber lhe pôs a questão: - Ellen queria a toda a força juntar-se a si no fundo. A avaria do rádio desorientou as mulheres. Se Pascale correu para os reservatórios vazios em vez de os ir buscar entre os que estão cheios, quem lhe poderá censurar isso? Ela ficou completamente aniquilada com este acidente e faz a si mesma censuras que não são justificadas. Não, Hans, eis-nos outra vez face a um estranho concurso de circunstâncias, a uma sequência de azares que tornam a vida tão amarga e contra os quais somos impotentes.

 

O caso ficou por esclarecer. Faerber, convencido que tinha havido um erro, disse a Ellen, ao almoço, devido aos seus talentos culinários e composto por uma panela de goulash com esparguete:

- A partir de hoje, cada garrafa de oxigénio vazia será marcada com um grande traço vermelho. Então, já não haverá confusão possível. Meu Deus, Ellen, tentem suportar-se! Dependemos todos uns dos outros neste barco, se começarmos a devorar-nos, voltaremos aos tempos primitivos da humanidade!

- Diz isso a Pascale - respondeu Ellen, que permanecia nas suas posições. - Quanto a mim, repito, não foi um acidente!

Durante aqueles dias desocupados - quatro dias ardentes, fastidiosos, viscosos, cheios de crises secretas para cada um deles -, Faerber e Chagrin estabeleceram o plano do desencalhe do Zephyrus. Para chegarem aos destroços tinham de furar uma camada de areia de um metro e cinquenta - então estariam na ponte do navio... Após quatrocentos e trinta e dois anos seres humanos iriam pisar de novo as tábuas alcatroadas do navio naufragado. Deviam estar tão apodrecidas que seriam fáceis de atravessar. O espectáculo

 que se iria então oferecer aos seus olhos... Faerber e Chagrin já evitavam falar nisso.

- Uma pequena máquina que aspirasse a areia - dizia Chagrin -, uma pequena máquina, apenas, e passadas duas horas estaríamos sentados nas barricas cheias de ouro... mas cavar à mão mais de um metro de areia acumulada, a vinte metros de profundidade, isso é uma vida de cão!

- Vejamos, Chagrin, calcule o seu salário à hora e verá que nem Getty, Onassis, Gulbenkian e Ford juntos ganham tanto num mês! - disse Faerber sarcástico.   E se tivéssemos de tirar a areia às mãos-cheias, apenas, durante seis meses, mesmo assim seríamos os operários mais bem pagos de todos os tempos!

- Se os milhões estiverem de facto naquele barco disse Chagrin, amargo.

Faerber olhou para ele como se não acreditasse no que ouvia.

- O desenho que eu tenho...

- Se calhar não vale mais que um peido! Quem é que lhe garante que o Zephyrus tem tantos lingotes a bordo?

- As informações detalhadas contidas nos arquivos. Os Espanhóis eram espantosos burocratas. Mantiveram uma contabilidade rigorosa dos lucros e das perdas. Uma delícia para os peritos financeiros dos nossos dias.

- E se os outros já nos precederam no fundo?

- É impossível!

- Tem a certeza?

- Sabê-lo-íamos.

- Irão saber o que nós ali fizermos?

Era um argumento irrefutável. Faerber sondava o mar com a vista. Pensava nos relatos que diziam respeito aos túmulos vazios dos faraós desenterrados depois de milhares de anos e que não estavam rodeados senão por algumas ânforas sem valor.

Poderia semelhante decepção repetir-se no fundo do mar?

- Começaremos amanhã, Chagrin! - disse Faerber. - Peter ficará a bordo. Se ousar infringir a minha proibição de nos seguir, desancá-lo-ei até que saia da água. Confie em mim.

Na manhã do quinto dia depois do combate com o polvo, Faerber e Chagrin deslizavam de novo através das águas. Anteriormente tinham examinado tudo para evitar novas avarias. A ligação rádio era excelente, os reservatórios estavam cheios de oxigénio, a grande gaiola com grades de aço foi descida para o fundo, depois algumas cordas nas quais estavam pendurados grandes sacos de ferramentas.

Peter Damms rectificou mais uma vez a posição do navio: ancorou o Nuestra señora mesmo por cima da fenda rochosa. Faerber desceu a âncora de aço nas cavidades de uma colónia de corais.

- Está tudo aparelhado! - gritou para a superfície. Lá em cima, Damms estava sentado na frente do posto de rádio. Ellen manobrava os três guindastes, desenrolando as cordas dos sacos de ferramentas, e estava também ligada ao fundo através de um aparelho de rádio.

Desta vez, Pascale, encarregada da cozinha, descascava batatas. A seguir abriu uma grande lata de feijão e esmigalhou uma grande placa de caldo de carne depois de a ter feito rapidamente derreter sob os raios do Sol. Tinham levado dois quartos de vaca congelada que estavam pendurados numa pequena câmara frigorífica alimentada por um gerador.

Depois de ter preparado a refeição, Pascale levou até à amurada as cascas das batatas e alguns bocados de gordura tirados dos nacos de carne que tinha cortado e atirou tudo por cima da borda, para o mar, através da vigia oval.

"Agora, não tardarão", pensou, "se for exacto aquilo que Chagrin gosta de contar... Se os tubarões conseguirem cheirar a carne fresca. .

Por cima dela, o pequeno guindaste chiava, içavam qualquer coisa do fundo, Peter Damms falava em voz alta ao microfone, mas ela não conseguia perceber as suas palavras.

Ao mesmo tempo que o saco subia, Faerber apareceu também à superfície e subiu a escada que levava a bordo. Chagrin tinha ficado no fundo.

- Encontrámos um capacete debaixo de vinte centímetros de areia! - gritou Faerber quando ainda não estava na ponte. - Peter! é a tua vez, investigador dos séculos! De que época? Estaremos mesmo ancorados por cima do Zephyrus?

O guindaste chiou, o cesto transportador apareceu à superfície e um objecto amolgado, enferrujado, coberto de concreções, disforme, abateu-se sobre a ponte.

- Século dezasseis! - gritou Damms como se soprasse um clarim. - Vi-o imediatamente! É a época calculada. Onde está a cabeça que transportava este capacete?

Era uma brincadeira, mas Faerber pôs-se de repente muito sério e sentou-se numa caixa. Tomou o capacete entre as duas mãos e examinou-o longamente.

- Chagrin continua a desentulhar a areia e eu vou voltar a descer imediatamente: podemos trazer-te cem crânios, se quiseres.

Pascale, à espera na frente da janela da despensa de bordo, apoiava os punhos na boca: Chagrin estava sozinho no fundo, naquele momento... Quando se decidiriam, pois, os tubarões a aparecer? Que diabo! Levavam tempo!

E, de facto, os tubarões apareceram.

 

Primeiro, um isolado, vindo como explorador, de qualquer maneira. Contornou o barco, aspirou o cheiro da carne, agarrou um bocado que flutuava e desapareceu. Depois, as barbatanas dorsais triangulares, tão temidas, emergiram umas após outras, numa ordem quase militar, em formação de assalto, quer dizer, de "enfiada". Separaram-se para formar uma frente de ataque muito extensa, depois as barbatanas desapareceram, enquanto os corpos, como torpedos, mergulhavam para o fundo.

Peter Damms foi o primeiro a notar as barbatanas agudas, e um arrepio percorreu-lhe a espinha, depois gritou pelo microfone:

- Chagrin! Tubarões! Tubarões! Um bando! Depressa, para a gaiola! Depressa! Já não tem tempo de subir! Está a ouvir-me?

- Oiço! - No fundo, a voz enrouquecida de Chagrin traía a sua emoção. - Já vejo um aqui, anda à minha volta, a gaiola está a três metros de mim, não se preocupe, vou chegar lá!

Mas não disse nem uma palavra acerca do que o tubarão - um peixe jovem de pequeno porte - arrastava, metendo na goela e depois rejeitando, agarrando de novo, como se fosse um jogo, mas que finalmente deixou subir para a superfície: uma grande casca de batata.

Chagrin pareceu, de facto, ter lá chegado. Quando Pascale subiu à ponte para perguntar inocentemente o que se tinha passado, o grande guindaste pôs-se a chiar e nele estava pendurada a gaiola-refúgio.

- Parabéns, René! - ouviu Damms gritar. - Quantos estão aí?

- Seis, dos quais dois são exemplares enormes. Chagrin, sentado na gaiola, era lentamente içado para a superfície. Os tubarões rodeavam-no, atacavam em formação, embatiam com o focinho nas grades metálicas, as goelas interiormente guarnecidas de dentes, grandes, abertas. Os olhos frios, impiedosos, fixavam o homem agachado e trémulo.

Chagrin segurava na mão direita a sua comprida faca com duplo gume. Ter-lhe-ia sido fácil atacar por entre as grades e mergulhar a lâmina nas cabeças assassinas que o assaltavam continuamente. Isso teria sido, para cada um dos esqualos, uma morte terrível, que teria transformado o mar num caldeirão de bruxas onde borbulharia um sangue espesso, chamariz irresistível para muitos Outros tubarões. Mas era precisamente isso que Chagrin queria evitar. Deixou, pois, os tubarões rodearem-no nas suas evoluções rápidas e baterem com as caudas no seu refúgio. Pancadas formidáveis, que o abalavam até ao mais fundo do seu ser. Esperava apenas que o fecho de segurança da porta lhes resistisse.

- Mais depressa! - gritou pelo microfone. - Mais depressa! Estes brutos estão doidos!

Depois a gaiola de metal apareceu finalmente, acompanhada pelos focinhos em flecha dos tubarões. Chagrin planou no ar e em seguida foi depositado na ponte.

- Agora a imundície acabou! - disse ao sair da gaiola. - Vamos precisar de muitos dias antes de nos vermos livres deles!

Chagrin atirou o equipamento para o chão e com um passo pesado desceu para a entreponte. Aí encontrou Pascale, que estava na passagem, pálida de terror, encostada à parede da despensa de bordo. Deitou-lhe um olhar rápido, agarrou na comprida cabeleira ruiva, arrastou-a atrás de si e fechou, ao passar, a porta da cabina de Damms.

- Cá estou eu outra vez! - sussurrou. - Atirar restos da cozinha por cima da borda... atrair os tubarões... querias acabar comigo? Ou quê? Badalhoca! Infame, galdéria! Mas um tubarão não chega para aniquilar Chagrin! Canalha!

Bateu-lhe. Ela levantou os braços para proteger a cara mas ele não teve piedade, tal como ela anteriormente, e bateu-lhe com os dois punhos até ela cair e rolar pelo chão.

Só então a deixou; ainda lhe deu um pontapé e subiu para a ponte.

- Ellen - disse com uma calma perfeita -, peço-lhe que volte a encarregar-se da cozinha. Pascale acaba de ter uma crise cardíaca!

Não se opôs à passagem de Damms quando este o ultrapassou a correr para ir para a entreponte. Fez apenas uma careta furtiva.

Quase logo a seguir Damms reapareceu na ponte. O seu rosto cavalar, ornamentado com óculos sem aros de intelectual, tinha uma expressão fechada. Caminhou calmamente na direcção de Chagrin, que acabava de se desembaraçar do seu fato de mergulhador e se estava a esfregar. Ellen tinha acabado de pegar no fato. Faerber marcava com um grande risco vermelho o reservatório que tinha vindo do fundo.

- Preciso de falar consigo, Chagrin - disse Damms com voz velada.

- De que se trata, se faz favor? - Os olhos de Chagrin faiscavam.

- É um porco ignóbil!

- E você, o mais perfeito idiota sobre a Terra!

- Se assim é, o meu gesto explica-se facilmente!

Antes que Chagrin o pudesse evitar, com uma rápida fugidela, Damms bateu-lhe. Foi um soco controlado, sem força suficiente para abater Chagrin, mas no entanto aquele vacilou, recuou, sacudiu-se como um cão molhado e bramiu perigosamente. Depois saltou para liquidar Damms com uma bofetada bem dirigida. Os seus músculos já estavam tensos...

Mas em pleno impulso, Chagrin recuou. Damms tinha na mão uma grande faca e olhava para ele com um sangue-frio absoluto.

- Aproxima-te - disse a meia voz. - Vem cá então, porco, que te atreveste a bater numa mulher!

Quase ao mesmo tempo, Ellen e Faerber deram um grito. Ellen deixou cair o fato de borracha, Faerber pôs de lado as garrafas de oxigénio.

- Peter!

Com dois saltos, Faerber chegou junto dele. Chagrin e Damms andavam à volta um do outro como dois lutadores. Chagrin afastava os dedos, olhava Damms no fundo dos olhos e não se preocupava com o que ele fazia com a faca. Um ataque é anunciado primeiro pelos olhos... é um velho princípio conhecido dos boxeurs, dos lutadores e de Outros combatentes corpo a corpo. Antes de se praticar o gesto, o olho já o realizou.

Olho no olho do adversário, olho no olho da morte... não é apenas uma forma de falar. Primeiro matam os pensamentos, depois as mãos.

- Estás louco? - gritou Faerber. Quis segurar Damms, mas ele repeliu-o com o cotovelo e a expressão da sua recusa traía um vigor que Faerber jamais tinha adivinhado no seu pacífico amigo, tão ponderado até àquele dia.

- Desce à minha cabina - disse Damms enrouquecido pela fúria - e vê em que estado ela está! Ele moeu-a de pancada, para a estropiar! Cuida dela, ....... Pascale precisa de um médico. Quanto ao resto, deixa comigo!

- É verdade? - Faerber olhou para Chagrin. - Bateu na Pascale?...

- Sim, é-me permitido fazer-lhe saber a minha opinião!

Chagrin, inesperadamente, saltou para trás. Damms já tinha atirado a faca, mas ela bateu no vazio. Chagrin agachou-se como um animal predador.

- Trave o seu amigo, Hans! É o mais importante! Pascale voltará a pôr-se nos seus belos pezinhos mesmo sem ajuda. As feras são animais duros, mas o seu amigo estará desgraçado se for mandado para os tubarões por cima da amurada. E depois, mesmo que tenha duas facas, um sabre no rabo e um canhão entre as pernas... não terá qualquer hipótese de os usar contra mim. Faça-lhe ver isso!

- Vai para a entreponte, Peter! - disse Faerber, colocando-se entre Chagrin e Peter Damms.

- Vai-te embora! - Damms respirava com dificuldade. Os olhos dele, atrás das lentes, estavam estranhamente enrugados. - Não sabes que aspecto tem a Pascale, o que este animal fez dela! Não se pode apagar isto com bonitas palavras! Estamos aqui sozinhos, Hans, cinco humanos numa casca de noz a vogar num mar infestado de tubarões, entre um banco de areia e uma floresta pantanosa impenetrável. O que aqui se passa só nos diz respeito a nós e ficará entre nós! E aqui é que está o nó do problema: cinco indivíduos é de mais para este barco... Só são precisos quatro, e eu vou remediar este erro: vai-te embora, Hans!

Faerber voltou-se, rápido:

- Chagrin! - exclamou -, seja pelo menos o mais razoável, uma vez que o meu amigo dá sinais de loucura: vá para a sua tenda, na popa!

- Dava-lhe jeito! - Chagrin deu uma gargalhada rouca: - Terei de ficar de vela dia e noite à espera que este idiota me venha matar? Ele tem pelo menos razão nisto: não nos podemos ir embora! Estamos os cinco acorrentados uns aos outros para o melhor e para o pior. Nenhum de nós se pode afastar do grupo, porque cada um sabe que um outro voltará de novo para procurar só para si os milhões que repousam no fundo... Voltaremos a ser seres humanos quando tivermos o ouro amontoado em cima da mesa. Acautele-se, Hans, o seu amigo também o pode apunhalar pelas costas. Amor e loucura são irmão e irmã! Se ele acha que um de nós está a mais aqui, vamos esvaziar esta questão!

- Dou-lhe a minha palavra de honra que Peter não lhe tocará, Chagrin! Peço-lhe, vá para a zona da popa!

- Então, prenda este louco!

- Não é preciso. É um homem inteligente!

- São os piores quando mudam radicalmente de feitio!

- Peço-lhe, acredite em mim...

Chagrin encolheu os ombros e afastou-se lentamente, a recuar, de Damms e de Faerber.

- Quem me seguir - disse, afastando-se deles - arriscar-se-á mais do que é razoável... Ah! Cá está

o primeiro que se aproxima... - Ellen subia a escada.

Tinha um ar perturbado, mas notoriamente decidido

à acção.

- Como vai a bruxa ruiva?

- Tens de vir, Hans - disse Ellen, lentamente. O aspecto dela é medonho!

Damms deu um grito abafado, quase desumano e arremeteu. Chagrin afastou-se. Damms desceu a escada a correr. Ouviram-no dizer lá em baixo com uma voz estrangulada:

- Pascale! Pascale! Minha querida...

- Vamos abandonar este empreendimento, Hans! - disse Ellen com dureza. - Esse maldito ouro, ali, no fundo, vai-nos destruir a todos!

- A ideia é boa - disse Chagrin -, mas irrealizável. Pela minha parte, só voltarei a terra para fretar um navio destinado ao meu próprio uso e para voltar com fortuna feita!

- Fique com o ouro, Chagrin, eu desisto dele disse Ellen em voz alta. - Posso viver sem estes milhões.

- Muito bem dito, minha filha! - Chagrin apontou para Faerber: - Nesse caso, pergunte-lhe o que ele pensa!

Faerber hesitava. Olhou para Ellen, depois voltou-se para a escada:

- É impossível - disse em voz baixa -, temos de ficar juntos!

- Não por amor, com certeza! - gritou Chagrin. Riu estridentemente, voltou-se e correu para o seu refúgio improvisado. Apenas quando a porta se fechou atrás dele, o seu riso incómodo não o voltou a assaltar.

Faerber baixou a cabeça. O olhar de Ellen queimava-lhe a nuca e tinha vergonha. Sabia que ele próprio mudara. Isso começara quando Chagrin tinha vindo à superfície para gritar:

- Descobri os destroços!.

Desde aquele momento só pensava em números dourados.

Quem deixaria de o compreender? Quatro mil e quinhentos milhões de marcos! A maior parte das pessoas ignora até quantos zeros tem este número! Quatro mil e quinhentos milhões! Quem é que não mudava com tal contacto?

- Tu não compreendes então de verdade os meus sentimentos - disse Faerber puxando Ellen contra si.

Ela abanou a cabeça:

- Não.

- Então não és humana, Ellen!

- Amo-te, Hans! - disse ela baixinho. - Isso conta mais para mim que todas as riquezas do mundo...

à primeira vista, Pascale metia medo. Mas depois de Faerber lhe ter lavado a cara, brilhante de sangue, e ter posto agrafos para fechar a ferida do couro cabeludo, depois de a ter polvilhádo com penicilina, depois de ter também pincelado as outras lesões da pele com tintura de iodo, o rosto tornou-se-lhe de novo humano, embora conservasse o aspecto de uma pessoa que foi empurrada para debaixo de um martelo-pilão. Damms, durante todo esse tempo, segurava nas mãos de Pascale, dava-lhe beijos nas pálpebras, dizia centenas de parvoíces amorosas e comportava-se realmente como um louco. Faerber foi obrigado a pô-lo calmamente à porta da cabina, a fim de ali deixar sozinhas Ellen e Pascale. Tinha obrigado Pascale a tomar um medicamento que ia aliviar-lhe as dores.

Depois, na ponte, no posto de pilotagem, disse a Damms:

- Apesar de todas as declarações inflamadas que tu lhe diriges, o facto é que ela atirou de propósito os restos da cozinha para atrair os tubarões!

- Ela fez isso por leviandade! - disse Damms. Também queres ofender Pascale?

- Sim! Apesar da tua cegueira a seu respeito, apesar das tuas hormonas em efervescência, é preciso reconhecer isto: ela agiu em plena consciência do seu acto. Pascale navega desde há quatro anos com Chagrin em todos os mares, é considerada como a pupila, admitamos que isto seja exacto, de Chagrin, vive entre os mergulhadores, só conhece este ofício, e ignorava que não se deve atirar nada por cima da borda se não se quiser atrair os tubarões?

Damms, através da vigia, fixava o mar. Com uma grande paciência, os tubarões continuavam às voltas em torno do navio. Segundo Chagrin, O sinistro ballet iria durar vários dias.

- Podes dizer o que quiseres - murmurou Damms - que não te acreditarei! Nunca! - olhou de soslaio. - Não vais acusar também a Pascale de ter provocado a aventura acontecida a Ellen!

- Neste momento, já tenho quase a certeza que ela entregou a Ellen voluntariamente um reservatório de oxigénio com três quartos gastos.

- Obrigado! - A voz de Damms era gelada. - Basta! Já não somos amigos, Hans! Acabou-se!

- Tomo nota! - Faerber saiu para a ponte. - Esta fêmea enfeitiçou-te completamente!

- Por que não? Pela primeira vez na minha vida, sou feliz!

- E quando é que a vais ajudar a destruir-nos sistematicamente?

- A partir de amanhã, talvez! Porque matarei quem fizer mal a Pascale! Está claro?

Olharam-se, sabendo ambos que uma amizade de vinte anos chegara ao fim.

Chagrin tinha-se barricado no seu refúgio ocasional na zona da popa do navio. Havia amontoado todas as caixas vazias na frente da entrada, rodeado a cama de campanha de caixas e colocado à cabeceira, à altura do crânio, sacos de açúcar e de farinha.

- à maneira de sacos de areia protectores! - explicara através da porta quando Faerber tinha ido ali bater. - Eu sei, a Ellen reclama a farinha. Os sacos estão postos à volta da minha cabeça, se quiserem qualquer coisa, eu mando-a para fora, aos poucos, mas mantenham-se afastados cinco passos da minha porta! Estou armado, como vocês sabem!

- Decidiu viver a partir de agora nesse refúgio, René? - perguntou Faerber.

- Sim. Para mim, o vosso aval não conta. Os amantes loucos não são seguros pela Lioyds, contudo podemos fazer seguros nesta companhia até contra uma eventual mudança de sexo!

- E quando mergulharmos?

- Momentaneamente não está posto em causa. A galdéria ruiva alertou os tubarões com carne fresca, também me senti no direito de a pôr em carne viva! Explique isto ao seu amigo!

- Já não tenho amigo, Chagrin. Agora só há grupos inimigos neste navio. É o inferno!

- Errado, Faerber! - Chagrin deu uma gargalhada fustigante. - No inferno, cada um sabe o que se passa, ora nós ainda estamos numa ignorância total.

Nessa mesma noite, um pequeno avião monomotor levantou da costa e passou por cima do Nuestra señora. Tinha asas pintadas de amarelo, o focinho pintalgado de vermelhão e em cada um dos flancos uma cabeça de jaguar.

Por alturas do navio, desceu e sobrevoou várias vezes a ponte, de tal forma perto que Faerber julgou poder agarrar as rodas do trem de aterragem. Dois homens vestidos de couro iam sentados nos lugares, protegidos por um simples pára-brisas. Não reagiram às saudações que Faerber lhes enviou. Chagrin saiu da sua fortaleza feita de caixas vazias e sem aviso disparou sobre o avião com a sua 38 mm. O aparelho deu rapidamente meia volta e picou na direcção da costa do lucatão.

- Você enlouqueceu, sem dúvida! - gritou Faerber. - Que lhe fizeram estes homens?

- Nada. Por enquanto, nada, mas espere um pouco! - Chagrin mergulhou a mão na algibeira das calças e voltou a carregar o revólver: - Acordaram, ali, na frente! Pense, Faerber: um barco imobilizado desde há quinze dias entre a costa e o banco de Chinchorro? Se não somos idiotas, temos de ter aqui algum negócio! É precisamente o que pensam os cidadãos ali da frente!

Chagrin meteu o revólver no cinto:

- Querido amigo-inimigo, vamos ter certamente que defender com dureza os nossos milhões...

 

Amerigo Santilla e Pedro Dalingués voltaram para a costa no avião.

O tiro de Chagrin tinha atingido a asa esquerda sem causar grande prejuízo. A bala só fizera um buraco redondo. Mas o importante era saber-se que os desconhecidos não eram bem acolhidos pela tripulação do navio, o que confirmava o que as fotografias tiradas por Emanuele e Domingo no Nuestra señora provavam claramente: em qualquer parte do fundo, por baixo daquele barco recém-chegado, encontravam-se destroços que alguns estrangeiros se preparavam para trazer à superfície.

Santilla, que pilotava o pequeno avião, tinha vindo propositadamente do México a Chetumal, no lucatão, a fim de comprovar pessoálmente a veracidade da informação. Tinha em Chetumal uma delegação da sua casa comercial. Quando se sabia o que ele exportava, ficava-se admirado com a sua opúlência: Santilla reproduzia em pedra, terracota, madeira, bronze, antigas obras da arte maia, do deus da chuva com o disco solar, da serpente sagrada na reprodução do sacrifício de uma virgem de Chichen Itza.

O negócio ia bem, mas quem teria podido, apenas com aquela firma comercial, fazer face às despesas necessárias a um palácio na Cidade do México, uma quinta na costa, três residências de Verão espalhadas por todo o país, um avião a jacto, dois aviões de desporto, sem falar nos automóveis, questão negligenciável, e a um Bentley que fazia parte dos carros afectos às saídas diárias?

Era preciso que tivesse outras fontes de rendimentos à sua disposição e era aí que residia o segredo do êxito de Santilla.

Era, para falar abertamente, o último grande pirata das duas costas do México. Para ele, catorze iates a motor, rápidos, armados com canhões, vasculhavam as águas costeiras e capturavam tudo o que acarretasse dinheiro. A Polícia Marítima chegava sempre demasiado tarde para reprimir estes actos; primeiro, os navios de guerra privados de Santilla eram mais rápidos e as vedetas da marinha não apareciam nunca onde os corsários de Santilla emergiam de repente. Estes tinham tempo de embarcar rapidamente, antes que elas aparecessem, o saque, que depressa atingiria num camião as diferentes "filiais" do esperto Santilla.

Todos os polícias da costa conheciam as suas actividades, mas ninguém falava nisso. Muitas pessoas colaboravam nelas, desde o modesto funcionário dos portos ao banqueiro influente e considerado. Dizia-se até que altos funcionários da polícia ficavam cegos logo que surgia a flotilha de Santilla.

Um repórter americano tinha querido saber até que ponto era perigoso incomodar os negócios de Santilla. Quis ter a prova certa daquilo que se murmurava nas costas da América Central e começou o seu inquérito a respeito dos flibusteiros modernos.

O repórter desapareceu sem deixar rasto. Ninguém o procurou... teria sido uma perda de tempo.

Os navios rápidos de Santilla cruzavam pois ao largo das costas, saqueavam, ou reclamavam um tributo para assegurarem a protecção dos barcos que o pagavam.

Já, algumas semanas antes, quando, no lucatão, Faerber tinha fretado e mandado transformar, para seu uso pessoal, o Nuestra señora, quando, nessa ocasião, os calafates e os pescadores da costa de Quintana Roo tinham feito "o negócio da sua vida" ao entregarem o barco completamente equipado, Santilla tinha recebido na Cidade do México um sinal de alerta do seu representante no lucatão, o arquibandido Pedro Daímgués.

Este alerta fora precedido de uma longa deliberação da "Secção do lucatão", da qual, naturalmente, Santilla nada sabia.

Durante aquela sessão tinham concordado todos:

o peixe que evoluia lá em baixo, ao longo do banco de Chinchorro, era demasiado grande para que eles pudessem sozinhos e sem a bênção de Santilla rebocá-lo para a costa. Por outro lado, os seus barcos rápidos não andavam ao longo das insalubres costas do lucatão porque ali nada havia a capturar que valesse a pena, naquelas paragens havia apenas pescadores pobres, mergulhadores que apanhavam esponjas no fundo, pescadores de pérolas que trabalhavam por conta deles, mas sem muito êxito. Estavam, de facto, na região menos generosa da América Central, onde era preciso agir com meios obsoletos, tal como faziam um século antes os famosos colegas que arvoravam o pavilhão negro.

Finalmente, o grande Santilla tinha vindo em pessoa inspeccionar o Nuestra señora e dito, em conclusão, a Dalingués, depois de terem aterrado no pequeno campo de aviação de Chemutal:

- Confio-te este negócio, Pedro, e, neste caso, dou-te excepcionalmente dez por cento do lucro. Pede para o teu trabalho o que for necessário. Mas evitaremos toda a "publicidade" a este respeito. Ninguém sabe o que estes estrangeiros projectam fazer. Mas vou-me informar.

Dez por cento de participação... Santilla não duvidava nada de que esta promessa podia fazer de Dalimgués um milionário.

Santilla telefonou durante todo o dia, usou da sua influência até nos gabinetes dos ministros e... não soube nada. Só se podia deduzir isto: tratava-se de alemães. Três homens e duas mulheres. Santilla deu uma gargalhada de satisfação.

- Passarei a minha luva sobre aqueles cinco dedos! - Estava de bom humor. - Mas o que poderão procurar aqueles estrangeiros nestas águas apodrecidas? Velhos canhões, caldeirões para fazer sopa... Pedro, ofereço-te todo o equipamento que necessitares para os apanhares! Nunca saberias tirar proveito deles!

Quanto se pode enganar um homem tão esperto como Santilla! Nessa noite, subiu para o seu jacto e voltou para a Cidade do México. Os seus "negócios costeiros" atraíam-no mais. No entanto, precisamente diante da sua porta repousava o tesouro mais fantástico jamais extraído das entranhas de um salvado.

Pedro Dalingués reuniu a sua pequena tripulação:

Emanuele, Domingo, o mestiço asteca Paulus e o mestiço maia Jesus Maria. Todos baptizados que beijavam devotamente a mão do "Padre", cantavam no coro da igreja de Xcalac e levavam o Santíssimo Sacramento nas procissões.

- Amigos - disse-lhes Pedro com solenidade -, fizemos um contrato com a sorte. Santilla não se interessa pela estranha questão, lá em baixo, na frente de Chinchorro... mas eu creio que uma surpresa nos espera!

O pequeno grupo começou os preparativos. Equipou três barcos e esperou para ver o que se ia passar lá em baixo, ao largo. Um barquinho estava constantemente no mar para vigiar o Nuestra señora, que nunca perdia de vista.

- Temos tempo, amigos - dizia Dalingués -; o nosso grande dia virá, quando aqueles que estão ancorados lá em baixo tirarem do mar a riqueza com que eu sonho. Então só teremos de a agarrar!

- Eles estão armados - disse Jesus Maria.

- E então nós? Por agora somos apenas as sentinelas de um posto de vigia, mas quando atacarmos seremos vinte, trinta, cinquenta homens! Quem, então, nesta costa, recusaria matar um homem por mil pesos?

Emanuele, que tinha andado na escola num convento e que sabia contar, olhou longamente para Pedro e depois disse:

- Mil pesos para cinquenta homens, isso dá cinquenta mil pesos! Enlouqueceste, Pedro.

- Precisamos de a apanhar com todas as nossas forças se os meus cálculos forem exactos. Então encheremos os nossos colchões de pesos!

Os outros bravos companheiros olhavam para Pedro, espantados por ele não cheirar a xtabentum, o licor de mel do lucatão, embora estivesse evidentemente muito bêbedo, e concordaram em esperar um pouco.

 

Assim começou a quarta semana.

Os tubarões tinham-se ido embora. No fim de um cerco de oito dias, o seu instinto reconheceu que não havia nada a esperar dali, a frente dispersou-se.. Quando, passados sete dias, Chagrin atirou um bocado de madeira ao mar, não houve qualquer barbatana triangular a mergulhar à superfície das águas, seguida do aparecimento de uma goela aberta, cheia de dentes em bisel, ávida de agarrar o objecto provocador.

- Neste momento podemos para lá voltar - disse Chagrin a Faerber -, mas todos ao mesmo tempo, até o meu inimigo mortal Peter Damms! Mesmo que ele se contente em ficar sentado numa ponta rochosa como a vossa Lorelei... tê-lo-ei perto de mim debaixo de água onde vos domino a todos... como se me multiplicasse por cinco!

- Eu percebo-o, Chagrin! - Faerber puxou o fecho de correr do seu fato de mergulhador. - Assim, todos... Eu, aliás, não achei melhor solução, e Ellen trabalhará com o rádio.

- E enquanto estivermos no fundo, convirá atar Pascale de pés e mãos, depois de ser fechada - disse Chagrin raivoso. - Eu sei, Ellen daria conta da Pascale fisicamente, mas aquela gata selvagem é tão manhosa que é perigosa mesmo em baixo de forma!

- Teremos Peter connosco: é a melhor protecção contra os actos de Pascale.

- E como é que se protegerão de mim? - perguntou Chagrin agressivo.

- Graças ao tesouro, às vagas de milhões... Sozinho, nunca conseguirá "tê-lo", René!

- De acordo. Mas depois...

- Depois, a riqueza pacificar-nos-á a todos.

- Seria verdadeiramente perverso! - Chagrin deu uma gargalhada amarga: - Acredita que isso basta para todos?

- Com certeza, acontecerá como com a bomba atómica, que fez tremer o mundo inteiro, quando apenas uma nação a possuía. Mas neste momento, em que vários povos podem dispor dela, é uma garantia de paz. Cada um sabe o que o espera se pensar em fazê-la explodir. Nós também saberemos o que nos vai acontecer depois de termos conquistado este salvado!

- Vamos então! - e Chagrin desceu a escada. Na ponte apareceu Damms com o fato de mergulhar, seguido de Pascale, cujo rosto já não estava inchado, mas que conservava ainda o penso que lhe escondia a testa. Chagrin esperou que Damms prendesse às costas os reservatórios de oxigénio e foi colocar-se junto de Faerber, pronto para mergulhar. Depois mergulhou ele próprio.

Damms seguiu-o. Faerber deixou-se cair na água em último lugar. Ellen descia, no guindaste, a grande gaiola protectora. Fez um sinal a Faerber, mas não era um gesto alegre.

No barco que se destacava, como um ponto escuro colocado diante da costa, Paulus, que naquele dia estava de guarda, levou até à boca o walkie-talkie:

- Estão a mergulhar outra vez, Pedro! - gritou na direcção da costa, onde, numa cabana miserável, se amontoavam Dalingués e os seus homens, que jogavam às cartas. - Que devo fazer?

- Mete-os debaixo de olho! - disse Pedro calmamente. - Vê bem se eles sobem alguma coisa! Consegues ver claramente tudo o que eles fazem?

- Muito bem. A rapariga ruiva vagueia na ponte, a morena está na frente do rádio.

Era uma sexta-feira.

Pode não se ser supersticioso, mas mesmo nas águas do lucatão uma sexta-feira tem um significado particular.

Depois do terceiro mergulho, após terem trocado os reservatórios de oxigénio, Damms e Faerber chocaram, depois de terem feito uma abertura de cinquenta centímetros na areia com blocos de madeira.

A ponte do Zephyrus ou apenas uma comprida tábua solta do navio?

Chagrin aproximou-se a nado. Estava a escavar noutro sítio e trazia uma comprida alavanca, que meteu na madeira. Ao fim de cinco marteladas, aquela cedeu, afundou-se entre as lascas de madeira apodrecida, a seguir sentiram o vazio, um espaço negro, misterioso, ameaçador...

- O projector! - disse Faerber a tremer de emoção. - Peter, o projector!

Em silêncio, Damms estendeu a grande lanterna eléctrica. Chagrin alargou a brecha com alguns golpes vigorosos até ela ter a circunferência de um prato.

Faerber iluminou a entrada do buraco com a lanterna. Chagrin encostava-se todo a ele para ver melhor.

O poderoso raio luminoso parecia espectral, no seio daquela noite de breu. Ali, desde há quatrocentos e trinta e dois anos, nenhuma luz brilhava, depois entrou no interior do navio...

Passado um momento, Chagrin deu um forte golpe de calcanhar e voltou-se para Faerber e Damms. Atrás dos seus grossos óculos ovais, os olhos estavam desmedidamente abertos, o rosto parecia pálido. Quando falou, parecia que tinha grasnado.

- Estamos mesmo cá dentro! - disse com a respiração presa. - Cá dentro! No refeitório da tripulação. Vi uma montanha de esqueletos! Estão deitados uns em cima dos outros... como se se tivessem estrangulado mutuamente!

Os mergulhadores descansaram um momento em silêncio, sentados numa ponta do rochedo. Não tinham esperado chegar tão depressa à meta. Ali, no fundo, repousava, em perfeito estado de conservação, um navio cujo naufrágio remontava a mais de quatrocentos anos. Devia a sua conservação à areia que o cobria e a uma imobilidade quase sobrenatural das águas, e talvez também à preparação especial proporcionada à madeira do arcaboiço. Não têm sido encontrados grandes barcos vikings nos quais nem o bolor nem as puas atacaram as tábuas? Aquele barco estava ali à mão com o seu velho tesouro, e o pensamento do seu valor actual provocava-lhes vertigens. Só tinham tido de escavar uma espessura de areia com cinquenta centímetros para pôr à vista um século do passado.

Era realmente fantástico e, nesse mesmo momento, tão incrível que Chagrin e Faerber fizeram uma pausa para retomar fôlego e para se sentirem à altura da situação.

Peter Damms foi o primeiro a reagir. Como arqueólogo, tinha experiência daquelas exumações.

Tinha feito escavações na Anatólia, em Nínive e na Renânia, ao norte de Xanten, onde tinha desenterrado um túmulo germânico. Para ele, reencontrar mortos tinha-se tornado uma espécie de paixão... tinha o dom de se transportar para trás, ao passado, como se soubesse fazer caminhar às arrecuas os ponteiros do relógio.

- Manda os cestos transportadores, Ellen - disse para a superfície. - Acciona os dois cabrestantes de bombordo e manda para o fundo dois machados e a serra eléctrica pequena!

- Dir-se-ia que é um caçador com a caça na armadilha! - notou Chagrin. - Faerber, daria tudo para fumar debaixo de água! Um cigarro, neste momento, pagá-lo-ia com um milhão!

- Não comece já a atirar dinheiro pela janela fora, René! - Mas Faerber sentia-se com a mesma disposição e, mais do que um cigarro, teria preferido um bom copo de conhaque. - Quantos mortos estarão aí?

- Uma montanha! - A voz de Chagrin tornou-se mais forte. - Quantos homens tinha a tripulação de um galeão como este?

- É o domínio de Peter!

- Dependia dos casos... - Damms olhava para cima. O primeiro cesto transportador descia lentamente para o fundo, ao mesmo tempo que a gaiola de segurança. - Se se tratava de um simples navio de transporte, só havia a bordo uma escolta militar por causa dos piratas. Se era um barco de guerra, então podia ali haver até trezentos homens de tripulação. O Zephyrus era um e outro... barco mercante e navio de guerra, um verdadeiro galeão, vindo do Eldorado, das regiões conquistadas. Verificá-lo-emos nós próprios!

- Onde ficavam os caixotes com os tesouros? - perguntou Chagrin.

- Na maior parte das vezes, junto do camarote do comandante. Não à proa, era muito arriscado. Nesse tempo, os combates navais comportavam a táctica dos esporões, o que exigia a proa blindada de ferro. Havia barcos munidos à proa de um esporão maciço com um comprimento impressionante, lanças gigantescas que se iam cravar no casco do adversário.

- O que significa: se entrarmos no barco por este buraco, teremos de o atravessar a todo o comprimento para chegarmos à popa! - Chagrin percorreu com o olhar o fundo arenoso. - Se soubéssemos exactamente onde se encontra a proa e a popa do Zephyrus!

- Vou à frente como batedor. - Peter Damms puxou para ele o primeiro cesto de transbordo pendurado num cabo de nylon. Chagrin tinha razão: ali no fundo já não havia hostilidade, inimigos mortais, mas apenas a aventura vivida em comum, a magia de se encontrarem de repente a escavar lado a lado um tapete de ouro.

- Está bem - disse Chagrin. - Nade à nossa frente, mas vamos atá-lo com uma corda à volta da cintura para que fique sempre perto de nós. De facto, nunca visitei o interior de um navio afundado, mas sei, por outros mergulhadores, que às vezes ficaram de repente presos, retidos em qualquer parte do interior, e que só salvaram a vida com as maiores dificuldades e graças à ajuda dos camaradas. Imagine que uma parte do navio se afunda atrás de si, cortando-lhe o caminho de regresso!

- É possível! - A voz de Damms exprimia quase indiferença: - Podemos abrir uma porta lá em baixo e tudo se desmoronar. - Olhava Chagrin com um ar interrogativo através dos grossos óculos de mergulhador: - Teme subitamente o risco, Chagrin?

- Nunca fui cobarde! Mas se posso escolher entre a prudência e o descuido, escolho a solução menos heróica!

Da superfície chegou a voz de Ellen, que soou nos auscultadores:

- O cesto número dois com a serra eléctrica vai a caminho. Ouvi a vossa conversa: se o perigo é tão grande, pensem bem, peço-lhes, antes de agir! Pascale está no cabrestante, vêem o cesto?

Da superfície desceu o segundo cesto de aço. Chagrin afastou-se do rochedo:

- Esperemos que ela não tenha introduzido nenhum explosivo na serra! - disse irritado. Estas foram as primeiras palavras que lembravam os incidentes quase esquecidos que tinham ocorrido a bordo. O choque sagrado da descoberta tinha-se dissipado. As "frentes" reorganizavam-se

- Encarrego-me do trabalho ajudado pela serra eléctrica - disse Damms. - Se eu for pelos ares, é inútil borrar-se nos calções, Chagrin.

- É justo; esqueci-me que Pascale sabia a quem era destinada a serra: a nossa segurança está garantida.

Voltaram a nado para a parte descoberta da ponte. Faerber acendeu de novo o grande projector e Damms tirou a serra eléctrica do cesto de trasbordo. Alargou a abertura até se poder entrar facilmente por lá. A madeira desfazia-se como manteiga, mas não se tinha deformado até àquele momento em que a técnica moderna se encarregava de a destruir.

Damms passou a serra a Chagrin e apontou o abismo negro:

- Vou ali!

- Primeiro a sua corda de segurança, Damms. - Chagrin contornou-o a nado, atou-lhe uma corda de nylon azulado à volta do corpo e controlou a seguir o conteúdo dos reservatórios de oxigénio: - Ar para mais vinte minutos! Não se entregue a nenhuma fantasia, Damms! Se o tivermos de safar de um mau passo, pode acontecer que o tempo nos seja diabolicamente limitado!

- Ficaremos um perto do outro - disse Faerber.

- Não sou dessa opinião. Um dos dois deveria ficar em segurança, a uma certa distância do outro, a fim de intervir se fosse preciso. Para que nos serve estarmos todos sentados em boa companhia no meio da merda?

- De acordo! Quem fica cá fora? - perguntou Damms.

- Chagrin! - replicou Faerber sem hesitar.

- Agradeço-lhes a vossa confiança. Não têm medo que eu largue a corda de controlo e faça explodir o barco? Então ver-me-ia livre de vocês!

- E dos milhões, também, René! - Faerber sorriu atrás dos óculos: - Você não seria idiota até esse ponto!

Faerber agarrou no grande projector e esperou que Damms tivesse deslizado para o interior do buraco, depois seguiu-o, levantando involuntariamente os ombros.

 

Chagrin não tinha exagerado. Na grande sala da tripulação encontravam-se numerosos esqueletos, alguns dedos descarnados estavam ainda estendidos para os pescoços dos outros esqueletos, fazendo crer que no momento em que o navio se afundava tinha havido um combate desesperado para sobreviverem. A razão, compreenderam-na depressa... havia uma montanha de ossadas acumuladas diante de uma porta feita de grossos madeiros. Era a única saída da sala tornada um terrível túmulo... uma porta que se abria para o interior e que não tinha podido ser aberta porque uma multidão de homens tomados por um pânico louco se atirara contra ela. Cada um empurrara o vizinho, tentara subir à superfície, quisera viver... tinham-se espezinhado, estrangulado, mordido, dado socos mutuamente, perdendo assim os últimos minutos...

Depois, a torrente das águas enfurecidas penetrara pelas escotilhas dos canhões e uma onda de fundo formidável tinha-os afogado a todos. Peter Damms nadou lentamente para os montões de ossadas e ajoelhou-se junto deles. Capacetes, espadas, grandes facas, fivelas de cintos, couraças jaziam entre os esqueletos. Uma mão crispada segurava ainda uma adaga cuja lâmina ficara enterrada profundamente nas costas do morto mais próximo.

Combates de homem a homem por causa daqueles poucos passos até à porta...

- Tudo muda neste mundo - disse Damms, com voz enrouquecida -, excepto o milésimo. - Apontou a porta maciça: - Temos de a atravessar, Hans; só então saberemos onde é a proa e a popa do navio!

- Então, uma coisa me intriga! - Faerber nadou para o montão de ossadas: - O castelo da popa, onde se encontravam os aposentos do comandante, era a parte mais elevada do navio, a mais magnífica também - disse. - Esteja onde estiver neste momento, deveria elevar-se acima da água, se nós, aqui, estamos no meio do navio!

- O Zephyrus deve ter-se deslocado. O castelo da popa deve ter mergulhado mais profundamente. O solo aqui não é plano... ali, onde repousa o castelo da popa, o fundo marinho deve ser em declive, é a única explicação, se recusarmos supor outra coisa.

- O quê, por exemplo?

- Que toda a popa do navio tenha sido arrancada e levada para longe.

Faerber olhou para Damms:

- E com ela os milhões...

- Sim. - Damms deu uma gargalhada cacarejante: - Que festa se levássemos para terra apenas esqueletos com a idade de quatrocentos e trinta e dois anos!

- Tem algum problema? - disse a voz de Chagrin à entrada do buraco. Faerber apontou a lanterna eléctrica para cima. A cabeça de Chagrin apareceu na abertura.

- É possível, René - disse Faerber -, que não nos tornemos milionários, mas simples coveiros.

- Poupem-me às vossas brincadeiras idiotas, Hans - disse Chagrin com rudeza.

- Se o castelo da popa tiver sido levado pelo mar em fúria, não nos restará senão juntar as ossadas e a Espanha conceder-nos-á a medalha de Mérito: é sempre assim!

- O seu humor é lixo, Hans! Esperem, eu vou aí!

 

Chagrin mergulhou para baixo, esforçando-se por ficar por cima do soalho da sala da tripulação onde jaziam os mortos. Nadou a toda a volta e observou Damms. Este, com a regularidade que teria empregue a revolver o solo do jardim, tirava com ambas as mãos os esqueletos acumulados diante da porta intransponível. Os ossos vogavam através das águas, tibias, perónios, costelas, antebraços, maxilares, crânios com dentes enormes... visão tão infernal como a sua dança aquática.

Chagrin agarrou Faerber pelo cotovelo:

- Ignorava que Peter tivesse um gosto tão absurdo pelos jogos inúteis! - disse com voz rouca. - Atirar assim os esqueletos à sua volta... se esta mania é adoptada pela alta sociedade, nunca mais haverá problemas de enterros!

- Temos de atravessar aquela porta, Chagrin. O que se encontra atrás dela resolverá tudo! Venha! Ajude-me!

Atiraram OS ossos para dentro da vasta sala e depressa desimpediram a porta. Ela não se abriu, a grande fechadura martelada à mão estava enferrujada e não funcionava e o mesmo acontecia com os gonzos, donde partiam as grandes cintas de ferro colocadas sobre a madeira.

- Um machado? - perguntou Chagrin.

- Muito perigoso; a serra!

Chagrin desapareceu pelo buraco do tecto e reapareceu pouco depois, trazendo a serra eléctrica. Desta vez, Faerber encarregou-se do trabalho. Apoiou o aparelho contra a madeira e cortou-a. Os grossos madeiros eram mais resistentes que as tábuas da ponte, mas, também ali, a serra abriu facilmente caminho. Passados dez minutos, Chagrin empurrou com o cabo do machado a fechadura, que caiu. Mas a porta continuou inamovível.

- Impossível! - disse Damms. - Meu Deus! É inadmissível! - Passou a mão pela abertura serrada e apalpou ao acaso do outro lado da porta. Depois tirou a mão e encostou-se à parede. O seu olhar deslizou sobre os esqueletos. Alguns ossos atirados para a sala ainda ali flutuavam, como privados de peso. Uma omoplata no limite do halo luminoso lembrava um manto religioso disforme. - Estão a ver ali uma multidão humana assassinada - disse Damms com uma voz quase irreconhecível. - Quando

o barco começou a afundar-se, os marinheiros da ponte aferrolharam a porta pelo lado de fora. Os ferrolhos ainda estão corridos... - Fez um grande gesto com a mão: - Estes foram todos assassinados!

- Que encontro significativo me reservou o destino - disse Chagrin, azedo. - Camaradas, saúdo-vos!

- Poupe-nos as suas chalaças! - insurgiu-se Faerber. - Somos, então, obrigados a arrombar a porta, com o perigo de vermos afundar-se toda a parede!

Chagrin consultou o manómetro do reservatório de oxigénio que Damms levava.

- Há ainda aqui para dez minutos de ar respirável!

- Basta! - Damms tirou-lhe o machado das mãos. - Aguente-se encostado à saída, Chagrin!

- Percebido! - Chagrin nadou para cima e colocou-se de forma a ter a cabeça logo por baixo do buraco. Damms agarrou no machado com as duas mãos e bateu. A porta vibrou mas aguentou-se; o segundo e o terceiro golpe arrancaram um grande bocado de madeira... o silêncio absoluto a acompanhar estes trabalhos, os gestos deslizantes, espectrais, dos mergulhadores constrangeram de angústia o coração de Faerber.

Ao quinto embate, a porta foi destruída. O tecto tinha aguentado - nada se afundou. O Zephyrus fora um barco sólido.

 

Damms e Faerber atravessaram juntos, a nado, a porta aberta. O projector iluminou uma vasta antecâmara onde uma escada afundada dava acesso para cima a um alçapão e para baixo às profundezas dos porões. Em frente, uma grande escada para a balaustrada trabalhada desembocava na areia. Damms passou diante dela a nadar e voltou rapidamente.

- É perfeitamente claro - disse. - Os mortos ficaram presos na entreponte. Aqui, desce-se para os porões. A bela escada que vêem na vossa frente conduz ao castelo da popa. Este desprendeu-se e repousa mais no fundo, debaixo da areia. O trabalho apenas começou...

Voltou para trás a nadar, para a sala dos esqueletos, e viu Chagrin, a pairar muito perto do tecto. Agarrava com ambas as mãos fortemente a corda à qual Damms estava atado.

- Eu percebi - disse Chagrin. - Teremos de trabalhar de novo sem descanso, se não houver nenhuma passagem dos porões para cima. Depois, poderemos chegar ao castelo da popa arrancado do navio durante o naufrágio.

- É a grande oportunidade que eu nos desejo. - Damms desatou a corda da cintura: - Vou fazer um desenho preciso, porque tenho lá em cima o plano de construção de um galeão. Basta por hoje.

- Ainda bem, porque só temos oxigénio para quatro minutos! É curto... Vamos, voltemos!

Foi o primeiro a emergir para fora do buraco aberto na ponte. Mas antes que Faerber e Damms tivessem tempo de o seguir, atirou-se de novo para dentro da sala dos mortos a agitar os braços no cúmulo da excitação:

- Tubarões! - arquejou. - Não nos podemos ir embora, eles cercam a gaiola de aço!

- E só temos quatro minutos de ar respirável! - constatou Faerber com voz surda -, e nenhum arpão

nem pistola... apenas as nossas ridículas facas...

Chagrin nadou de novo até ao buraco na ponte e meteu a cabeça nas águas livres.

- Veja isto, Hans - disse. - Dançam à volta da nossa gaiola protectora! Dois tubarões formidáveis. Não me diga: o quê, só dois? E nós somos três! Um de nós, pelo menos, deixará aqui a pele se eles não tiverem traçado antecipadamente um plano de trabalho mais eficaz... Além disso, só há lugar para dois homens na gaiola!

- Mais o tempo de considerar a questão. - Faerber passou a cabeça pelo buraco, encostada à de Chagrin: - Só temos três minutos de oxigénio, é preciso passar, de outra forma podemos ir imediatamente estender-nos entre os esqueletos!

Chagrin deixou-se deslizar de novo para dentro da sala dos defuntos. Damms estava ali, agachado no chão entre as ossadas, retinha a respiração, exercício ao qual se entregava desde há alguns minutos: aspiração

-paragem-aspiração-paragem, até o sangue lhe começar a latejar nas têmporas, enquanto os pulmões davam a impressão de se encher até à altura da garganta. Mas assim ele ganhava tempo.... segundos que talvez somassem minutos. Mas era preciso ânimo para tentar este exercício.

- Um conselho - disse Chagrin: - só um de entre nós tentará entrar na gaiola; depois de subir a uma velocidade louca, deve apanhar ali um delírio de primeira grandeza..., depois descerá depressa com novos reservatórios! Deverá tentar o golpe, deixando aos outros dois o seu aparelho respiratório. Neste caso, o que sobrar poderá ser suficiente para aguardar o seu regresso. - Voltou-se. Atrás das lentes grossas dos óculos de mergulhador, rostos pálidos fixavam-no... pálidos de medo como o seu. - Depressa, não discutamos. Quem se atreve?

- Fique com Peter, Chagrin - disse Faerber. A sua voz estava espantosamente clara e firme. - Você tem mais experiência e os nervos mais sólidos.

- Mas desta vez Pascale não atirou restos pela borda fora - fez notar Damms.

- Vá para o diabo! Cale a boca! - exclamou Chagrin. - Contenha mais o fôlego. Bem, Hans, tente o golpe, a porta da gaiola está aberta. Pelo menos, esta segurança nos resta.. . Boa sorte!

- Obrigado!

Faerber desprendeu os reservatórios das costas. Inspirou uma última vez uma grande quantidade de oxigénio, arrancou o tubo respiratório da boca e estendeu-se para cima, através do buraco da ponte. Levava a serra com motor, que pôs a trabalhar logo que saiu do barco. Aquele sussurro agudo era uma novidade para os tubarões... Ficariam assustados ou seriam incitados a um ataque mais vivo?

Faerber sentia as pulsações do coração até na garganta. Pela primeira vez via-se na frente daqueles animais ávidos de morte. Nadavam, de facto, à volta da gaiola, mas pareciam não ter descoberto ainda o homem que se aproximava. Apenas quando Hans estava a uma distância de três metros, quando os tubarões receberam as ondas sonoras vindas da serra eléctrica, que pareciam bater neles como socos, só então fizeram uma elegante reviravolta para olharem para Faerber com os pequenos olhos frios e maus.

Faerber esticou-se, mantendo sempre a serra sussurrante na sua frente como uma espada, nadou directamente para os tubarões, o que os confundiu. Afastaram-se, libertando a passagem até à porta da gaiola, depois, com leves batimentos de cauda, imobilizaram-se na água.

Faerber chegou à gaiola, meteu-se lá dentro e correu o fecho precipitadamente. Sabia que Chagrin olhava para ele através do buraco da ponte e que dava nesse momento ordem à ponte do Nuestra señora:

- Subam-no! A toda a velocidade!

A gaiola foi elevada, subiu. Faerber tinha a cabeça encostada às grades: "Não vou lá chegar", pensou, "não conseguirei reter a respiração tanto tempo! Isto sobe muito lentamente... por milímetros... Mais depressa, meu Deus! Mais depressa... é preciso... respirar. .

Apertava as mãos à volta da boca e do nariz, enrolava-se e julgava explodir de um momento para o outro.

Quanto tempo se pode um homem impedir de respirar? Na índia, há ioguis que se fazem enterrar e ficam duas horas debaixo da terra. Mas deve ali haver um truque que permita aquela comédia, porque, fisicamente, é impossível.

- Ar! Ar! Não aguento mais! Tenho de respirar, não posso mais.

 

Depois a gaiola de aço emergiu de repente em pleno sol. Faerber abriu a boca, aspirou o ar e desde a primeira inspiração deu um grito e deixou-se cair contra as grades de aço. Ainda viu os olhos aterrorizados de Ellen e a cabeleira em auriflama' de Pascale, depois caiu na ponte quando a porta foi aberta e ficou ali estendido, desmaiado.

Lá em baixo, a vinte e cinco metros de profundidade, Chagrin e Damms esperavam novos reservatórios de oxigénio.

A ligação com a ponte estava interrompida. Chagrin chamou ainda duas vezes:

- Alô! Alô! - depois desistiu, a fim de economizar oxigénio.

- O Hans conseguiu - disse a Damms, que, acocorado entre os esqueletos, respirava o menos possível. - A ideia da serra eléctrica para assustar os tubarões é genial! Se economizarmos o nosso oxigénio, restam-nos quinze minutos de ar respirável. Isto deve chegar. Mas chega de falar... Contudo, uma última pergunta: Peter, sabe que o posso matar neste momento? Só tenho de o deixar sozinho, e você não terá mais que para um minuto. É tão simples como isto!

- Vá-se embora! - respondeu Damms calmamente -, isso só fará abreviar o "processo" em curso.

- Cão cego e teimoso! - Chagrin sentou-se perto de Damms, metendo debaixo do assento um osso ilíaco, como se tivesse feito um banco para ordenhar as vacas:

- Vai-se aperceber depressa de que Pascale não é digna de um amor elevado. Ela combina mal consigo e está no lugar dela junto de mim. Eu sou como ela, um fora-da-lei. Agora, vamos conter a nossa respiração.

Esperaram dez minutos. Aspiraram cada um por sua vez oxigénio dos reservatórios deixados por Faerber e com os olhos levantados vigiaram a abertura feita na ponte.

Não ouviram o choque ligeiro da gaiola de aço a tocar o fundo, mas o buraco escureceu de repente, um corpo meteu-se por ali, arrastando atrás de si aparelhos respiratórios. Chagrin arrancou o tubo que tinha na boca, deu-o a Damms, depois atirou-se ao encontro de Faerber. Foi só quando já estava junto dele que reconheceu atrás das lentes dos óculos ovais o rosto de Ellen Herder.

Puxou para ele o novo tubo de respiração, mergulhou para o fundo, introduziu entre os dentes de Damms, que respirava os últimos goles de ar, a extremidade do tubo novo, depois afivelou-lhe os reservatórios nas costas. Durante esse tempo, Ellen afivelava os reservatórios de Chagrin. Quando tudo terminou, Chagrin fez uma profunda aspiração.

- Mulher insuportável, enlouqueceu? - exclamou. - Quando estivermos a bordo, proponho-me dar-lhe açoites! Perdeu completamente a cabeça?

- Tinha então vontade de morrer asfixiado? - Ellen voltou-se; a montanha de esqueletos fê-la estremecer, mas só um momento.

- O que é que você tem de berrar contra a sorte? Até hoje, acreditei que cada francês era um homem galante: é um erro, porque você nem sequer agradece quando lhe salvam a vida.

- Onde está Hans?

- Pascale está a tratar dele; ainda estava estendido, desmaiado na ponte, quando mergulhei.

- E os tubarões, minha filha, onde estão os tubarões?

 

- Diante da porta! - Ellen apontou com o polegar o buraco aberto na ponte: - Têm o maior respeito pela serra eléctrica, deixei-a na gaiola com dois arpões, mas não podia trazer tudo atrás de mim...

Chagrin nadou para ela e envolveu-a com um braço:

- Ellen, você é uma rapariga admirável, Faerber é um tipo amado pelos deuses... um tal tesouro no fundo dos mares e uma mulher como você! - Voltou-se: - Peter, já não tem de fazer figura de mudo, teremos de mostrar uma coragem exemplar se não quisermos que Ellen nos faça envergonhar! Aqui estamos de novo três: a gaiola só leva duas pessoas... Faremos, portanto, assim: Ellen subirá primeiro, depois iremos nós, na segunda carga. E se possível, nada de colisões com os tubarões. Agora temos arpões...

- Estão a três metros de nós...

- Se você conseguiu passar debaixo do nariz deles, eu também conseguirei, mesmo que o diabo se meta nisso! Mas evitaremos o derramamento de sangue..., de outra forma todo o bando virá para cima de nós.

O que os dois tubarões que nós enganámos querem neste momento é misterioso. Se quisessem mesmo matar-nos, a serra não os teria assustado, sobretudo quando você passou, Ellen. - Chagrin pôs-se muito sério: - Quando o Hans subiu, tratava-se ainda do efeito de surpresa, devido aos ruídos estridentes na água. Já estavam habituados a eles no momento em que saiu da gaiola. Ellen, você roçou a morte...

Ela respondeu a meia voz:

- Também nunca tive tanto medo... nem naquele dia...

"Aquele dia", Ellen fazia alusão ao incidente dos reservatórios de oxigénio vazios. Chagrin não insistiu, tanto mais que Pascale chamava da ponte:

- Alô! Alô! Respondam!

- Somos todos ouvidos, maldita sodomita! disse Chagrin, antes que Damms pudesse responder-lhe.

- Hans está outra vez de pé, mas ainda vacilante; vou passar-lhe o microfone.

Depois chegou até eles a voz de Faerber, mal perceptível de tanto tremer.

- Ellen, Ellen...

- Sim, querido - respondeu ela.

- Corre tudo bem?

- Tudo. Não te preocupes. Como te sentes?

- Eu é que lhes faço essa pergunta: é mais importante. Quanto a mim, respiro... nada neste mundo é tão delicioso.

- Vamos subir imediatamente, Hans - disse Chagrin. - Primeiro Ellen... avance, pois, três metros para a frente e faça descer lentamente a gaiola... Coloque-a tão perto quanto possível do buraco da ponte...

- Vou começar a andar, René.

A ligação de rádio foi interrompida. Faerber manobrou o barco, a grande gaiola de aço foi primeiro arrastada pelo fundo e parou a cinquenta centímetros da abertura. Chagrin, que emergiu dela, exprimiu a sua satisfação.

- Bravo! - gritou na direcção da ponte do Nuestra señora. - Neste momento, vamos subir para aí como num elevador. Isto é que é trabalhar, Hans!

 

Os tubarões ficaram na sombra, intrigados, à espera, na expectativa. Na gaiola, a serra eléctrica assobiava, crepitava. Chagrin puxou-a um pouco mais para perto do buraco e voltou à frente para ajudar Ellen a entrar nela, depois tirou os dois arpões, arrumou os reservatórios de oxigénio vazios e fez a Faerber o sinal da subida.

Meia hora mais tarde estavam todos sentados debaixo do toldo, em vias de beber sumos de frutos gelados no seio de uma fornalha mortífera. O mar fumegava.

No bote ancorado perto da costa, encontrava-se o mestiço Paulus, que anunciava a Pedro Dalingués, através do seu walkie-talkie:

- Não tiraram mais nada do mar senão eles mesmos. Neste momento estão a preguiçar em cima da ponte. O que é que eu faço?

- Reza dez rosários, imbecil! - berrou Pedro. Não tinha a menor ideia do que aqueles estrangeiros, lá em baixo, faziam na realidade: talvez Santilla tivesse, apesar de tudo, razão, não tinha mais nada para roubar senão alguns equipamentos de mergulho. Maldita ocupação! Tão abandonada pelo destino como toda a região pantanosa de Quintana Roo.

- Provámos hoje que dependemos todos uns dos outros - dizia Chagrin -, mesmo de ti, Pascale. Nenhum de nós estaria ainda vivo se não tivesse tido um dos seus companheiros para o salvar. Não o devemos esquecer nunca, enquanto estivermos juntos.

Palavras pronunciadas por um homem que só tinha na cabeça a vontade de cometer um crime. Esperava apenas que chegasse a sua hora.

Os tubarões ficaram.

Consideravam-se convidados, iam caçar a alguma distância, depois voltavam como fiéis cães de caça. Cercavam o Nuestra señora, seguiam com os pequenos olhos ameaçadores o mais pequeno movimento na água e complicavam a situação.

Faerber interrompeu os mergulhos durante vários dias, até Damms terminar o seu esboço. Resultou daquele trabalho um encantador desenho que representava um galeão naufragado, partido em dois e coberto de areia, tendo proporções exactas e alguns círculos traçados a lápis vermelho na popa. Cada um sabia o que significavam aquelas redondelas brilhantes.

Quatro mil e quinhentos milhões de marcos!

Chagrin debruçou-se sobre o esboço e examinou-o longamente, depois disse:

- Segundo esta reconstituição, haveria uma passagem dos porões para a popa e para os aposentos do comandante. - Passou o indicador por cima do desenho: - Aqui encontrava-se o camarote do comandante, por baixo do refeitório dos oficiais e dos seus camarotes. Os aposentos de honra destinados aos passageiros de qualidade eram perto dos aposentos do comandante. Se ninguém os ocupava, eram ali colocados os caixotes de objectos preciosos. Se, portanto, conseguirmos atravessar os porões para subir para a ponte (ou no caso de o castelo da popa estar separado do resto do navio e repousar mais fundo no solo submarino), se continuarmos o nosso avanço, descendo mais para baixo, temos forçosamente de atingir o tesouro.

- E o tesouro está lá -, disse Damms com a calma imperturbável do sábio que faz uma conferência: - Não teve qualquer hipótese de ir à deriva; ficou na popa do navio, afundado nas águas absolutamente adormecidas, onde se encheu de areia. O mar conservou os milhões enciumadamente!

- Então, para a frente! - gritou Chagrin alegremente. - Abramos o frasco e comamos as uvas de ouro!

- O castelo da popa repousa num precipício perigoso - disse Damms - e está submetido a uma pressão anormal. Se toda a construção de madeira resistiu, deve-o às águas imóveis naquele sítio. Nenhuma corrente nem remoinhos, nada. Apenas uma lenta sedimentação... de leves depósitos, os séculos recobriram-na com um edredão de penas.

- Céus! Vazemos esse edredão poético!

- Não falharemos. - A voz de Damms continuava igual e serena. - No entanto, chamo a vossa atenção para isto: quando lá em baixo o tecto se afundar, algumas toneladas de areia serão derramadas... nesse caso, uma corda atada à volta do corpo não servirá de nada. Percebem?

- Percebemos! Já sabíamos que os conquistadores espanhóis não nos reservavam uma mesa completamente servida! - Chagrin empurrou o esboço para Faerber: - Mas mesmo assim é de arriscar!

- É mais difícil pôr o pé na Lua!

Damms enrolou a folha de papel que tinha o desenho como se enrolavam os mapas em 1540, ano do reinado de Carlos V, orgulhoso rei de Espanha.

- O Sol nunca se punha no seu reino... E os tubarões? - perguntou ele.

- Vamos trabalhar à saída da gaiola - disse Faerber. - Pode ficar colocada completamente encostada ao lugar das nossas actividades e está-lo-á permanentemente: da gaiola ao interior do navio e volta... será um caminho seguro.

- Trabalho atrás das grades! - Chagrin deu uma grande gargalhada: - Meus filhos, não se tornem supersticiosos!

Na manhã seguinte começou a nova fase do salvamento. Primeiro Faerber desceu com o cesto. Depois seguiram três aparelhos respiratórios de recarga, ferramentas, armas, cordas, redes de trasbordo em malhas de aço e quatro arpéus que foram descidos para o fundo através dos pequenos guindastes e acolhidos por Faerber, que os prendeu perto da entrada, no interior dos destroços. Quando todo o material estava no fundo e Chagrin verificou que não se tinham esquecido de nada, estando assim assegurado que teriam o necessário em todas as situações imagináveis, Damms e ele próprio fizeram-se descer através dos guindastes para as profundezas. Ellen e Pascale cuidavam dos cabrestantes a motor e do rádio... Nada permitia adivinhar que o ódio deles fervilhava ainda por baixo da superfície, que apenas tinham feito uma trégua. Esta mentira valia, de facto, quatro mil e quinhentos milhões. Era tudo.

Depuseram os aparelhos na sala dos mortos.

- Nenhum desses roubará mais o que quer que seja - disse Chagrin. Estava de bom humor. Nesse momento, tudo se desenrolava como o previsto. Até os tubarões se mantinham estáticos. Faerber tomara o comando; assim que decidira avançar, tinha ido a nado através da antecâmara que precedia a sala dos homens da tripulação, a fim de chegar à escada que descia para os porões. Segurava nas mãos o grande projector redondo e iluminava um mundo afundado há quatrocentos e trinta e dois anos.

As portas situadas mais em baixo estavam arrombadas. Ali, alguns esqueletos estavam espalhados e conservavam a atitude da fuga, a maior parte não tinha conseguido chegar ao cimo da escada. A carga, representada por numerosas pipas, tinha apodrecido lentamente. Já não se viam senão alguns aros de ferragens que revelavam o antigo depósito. Num canto, Damms encontrou um bocado de madeira apodrecida, de carvalho espanhol. Ignorava o que aquelas pipas tinham contido:

- Talvez especiarias - disse -, ou sementes, ou álcool de cana-de-açúcar. Em todo o caso, uma mercadoria que não resistiu ao rilhar dos séculos.

Nadaram em todos os sentidos dentro dos vastos porões, encontrando-se com estranhos peixes incolores parecidos com larvas gigantes. Habitantes da escuridão eterna. Não procuraram saber donde eles vinham. Devia haver em qualquer parte uma entrada através da qual eles se introduziam no navio. Talvez pelos embornais ou pelas aberturas dos canhões arrancados dos suportes aquando do naufrágio.

Depois, tendo nadado através de três vastos átrios, chegaram ao ponto indicado por Damms no desenho.

Mais longe encontrava-se a popa partida, jazendo no fundo marinho em declive. Faerber parou e iluminou o solo que descia na escuridão. O feixe luminoso revelou... uma larga passagem que conduzia aos camarotes de luxo do Zephyrus.

- Parabéns, Peter! - reconheceu Chagrin honestamente. - O seu esboço é quase cartograficamente exacto! Como sábio, é uma águia. Pena que na sua vida quotidiana prefira fazer de idiota.

- Chagrin! - disse Faerber num tom de alerta.

- Eu sei, eu sei... vou calar a boca!   Chagrin fez um gesto: - Pensava fazer um cumprimento. Metamo-nos por esta passagem - sugeriu.

- Sim! - Damms nadou até à porta arqueada de grossa madeira. - E evidente: por cima de nós repousam talvez alguns metros de areia que só por acaso não fizeram ruir o tecto! Basta chocar com a parede do lado da passagem para que tudo se desmorone. Pensem nisto. A água está completamente parada. Talvez baste o gesto de um de nós para que se repercuta nesta madeira como o choque de uma vaga de fundo gigantesca!

- Não nos vai estragar o caminho que conduz ao tesouro! - disse Chagrin. - Tanto mais agora, Peter! Você parece um caçador que convida para uma espera de caça na floresta e quando aparece um veado formidável dá um traque enorme para afugentar o animal!

- Pensem que teremos de transportar todos os caixotes do tesouro através desta passagem!

- Com mil diabos! Se nós o tivéssemos pelo menos à vista! Se fosse preciso, punha o ouro em segurança às mãos-cheias. O que acha, Hans?

Faerber tinha metido o projector pela passagem. Naturalmente, Damms tinha razão. Um choque contra um tabique da passagem podia provocar o afundamento do castelo da popa. De facto, a passagem media três metros de largo, mas podia-se, por uma coisa de nada, chocar num dos tabiques com um golpe de barbatanas. Então seriam irremediavelmente sepultados no solo marinho.

- Vou à frente - disse Faerber. - Seguido por Damms; você fechará a marcha, Chagrin.

- Agarre-se a mim! - ordenou Chagrin.

 

- Porquê? - Damms abanou a cabeça: - Homens esmagados debaixo de uma torrente de areia não saberiam puxar ninguém atrás de si!

Faerber atirou-se para a frente com cuidado. Nadava muito lentamente, com ligeiros batimentos das barbatanas, agitando a água o menos possível enquanto avançava na passagem. O seu potente projector iluminava longe à sua frente. Se estavam ali caixotes com ouro, deviam estar empilhados por cima da cabeça deles. Se tudo se afundasse, seriam, pois, mortos pelos milhões que cobiçavam.

- Que sórdida impressão - reconheceu Faerber a meia voz. - Peter, o que é que sentes?

- Não estou a pensar em nada. - A voz dele traía alguma emoção.

- Qualquer pensamento neste momento é inútil: o que arriscamos situa-se para além de toda a razão.

Faerber parou. Até então tinham nadado a descer

precisamente na direcção do desnível no solo no qual

a popa do navio havia soçobrado. Naquele momento

chocavam com uma grande escada que subia para os

camarotes de luxo, para os camarotes dos oficiais, para

o camarote do comandante, para o tesouro.

- Subamos! - disse Damms com voz rouca. O castelo tem três andares, cada um com dois metros de altura. O mais elevado tinha os aposentos do comandante. Dali, uma larga escada descia para a ponte, enquanto uma outra desembocava, no telhado do castelo da popa, numa galeria.

- Então deixe-nos subir esses degraus - gemeu Chagrin. - Subirei ainda mais três andares sem perder o fôlego!

Ninguém riu. O humor chistoso de Chagrin parecia deslocado perante a morte; naquele momento só tinham de ir em frente, quanto a saberem se regressavam, nada era mais incerto.

Muito lentamente, Faerber deixou-se subir apenas com a pressão da água. Mal agitava as barbatanas. Damms seguia-o de perto. Tinha acendido o segundo projector.

A escada que atravessava o castelo da popa terminava numa galeria para a qual davam algumas portas. Algumas estavam abertas, muitas outras continuavam fechadas.

- Não percebo isto - disse Damms a meia voz, como se estivesse numa igreja. - Deviam ter-se aberto todas com a pressão da água.

- Para onde vamos? - perguntou Faerber com a voz enrouquecida pela emoção.

- Para cima, para o camarote do comandante!

- às suas ordens, comandante! - respondeu Chagrin, cuja frase também traiu uma violenta angústia interior. - Sabe como se chamava o comandante?

- Ricardo da Moya. - Damms fez um gesto para cima onde a escada se tinha afundado, apodrecida... Sob a luz dos projectores apareceu a balaustrada, meio suspensa na água. - Era vice-almirante de Sua Majestade Católica Carlos Quinto, isto basta-lhe?

- Perfeitamente!

Com muitas cautelas, colocados no meio da escada larga e pomposa, deixaram-se subir e chegaram à galeria superior. O grande salão do comandante estava aberto. Quase ao mesmo tempo, Faerber e Damms enviaram os raios dos seus projectores à volta da sala. De repente ficou toda iluminada: quatrocentos e trinta e dois anos eclipsavam-se.

 

Havia ainda um banco de madeira no qual estava sentado um esqueleto solitário. Quando o Zephyrus tinha naufragado, devia-se ter agarrado aos apoios daquele banco... o seu crânio repousava a alguma distância, enquanto o esqueleto, até aos ossos ilíacos, estava estendido no banco, as tíbias jaziam no chão. Estivera sentado ali, impotente, face ao furacão destruidor. Tinha encostado a cabeça para trás e, entregando-se assim humildemente ao seu destino, fora engolido pelo mar. Entre as costelas luzia uma grossa corrente de ouro e uma grande medalha representando o rei Carlos V. Nas falanges cintilavam anéis, rubis, esmeraldas, pérolas. manificências de um senhor espanhol.

- Almirante Moya... - disse Damms respeitosamente, depois aproximou-se a nado do esqueleto e inclinou-se ligeiramente: - Eu vos saúdo.

Foi um minuto de tal forma solene que Chagrin não encontrou uma única palavra para dizer, e ficou mudo, com a garganta apertada pela comoção.

De repente, Damms estremeceu, o projector escapou-se-lhe das mãos, iluminando na queda um peixe prateado com o corpo em forma de lança que desapareceu como um relâmpago na escuridão.

- Picou-me! - disse Damms com voz alarmada. - Aquele peixe picou-me! Através da borracha do meu fato! Como uma agulha...

- Vamos embora! - gritou Chagrin. - Vamos embora imediatamente! Peter, não se demore! É uma picada venenosa!

Peter Damms deitou ainda um olhar aos restos do almirante Moya. Sentia uma fraqueza geral que, lentamente, se apossava de todo o seu ser e pensava angustiado: "O veneno não pode, apesar de tudo, agir tão depressa! Além disso, não passou de uma picada ligeira, fulgurante, que não me pode ter deixado muito veneno no corpo!"

Com uma sacudidela, afastou-se de Faerber, que queria empurrá-lo para o caminho de regresso, nadou até ao esqueleto sentado e tirou-lhe o medalhão de ouro suspenso da pesada corrente que brilhava entre as costelas. Prendeu-o em seguida à cintura e fez um sinal de cabeça a Faerber. De repente, sentia-se incapaz de falar; como se a língua enchesse de súbito toda a cavidade bucal. Ao mesmo tempo experimentava a sensação de ter ficado surdo e em qualquer sítio que tocasse com a língua não sentia nada. Tinha-se tornado um farrapo insensível.

De cima chegou-lhes a voz inquieta de Ellen.

- Que se passa? Percebemos que Peter foi picado. Vai subir? - E a voz trémula, em tom precipitado, de

Pascale:

- Querido, o que é que te aconteceu? Estás mal? Diz-me qualquer coisa... Peter querido...

Damms abanava a cabeça e apontava para a boca com o dedo. Faerber e Chagrin perceberam-no e trocaram olhares horrorizados.

- O teu querido vai subir já! - disse Chagrin trocista. - Aquece-lhe a cama, cadela ruiva!

- Prepara a caixa dos soros, Ellen! - gritou Faerber -, e ferve um escalpelo, façam subir a gaiola o mais depressa possível! Eu vou com ele!

 

Agarrou Damms debaixo das axilas, Chagrin amparava-o do outro lado. Damms começou a vacilar, os olhos velaram-se, tornaram-se ternos atrás das grossas lentes ovais. Mudavam de minuto a minuto e pareciam afundar-se nas órbitas.

Os três mergulhadores voltaram a nado para a entrada da passagem que ligava as duas partes do navio. Ali, Chagrin separou-se de Damms e ficou parado encostado à bela escada danificada.

- Consegue levá-lo sozinho? - perguntou. - Porque, além de tudo, só cabem dois homens na gaiola.

- E você, René?

- Eu fico aqui e vou examinar os arredores enquanto sonho com o nosso tesouro!

- E se for picado por sua vez? Quem é que o ajudará?

- Se por um tal pecúlio não nos atrevêssemos a aceitar um pequeno risco, faríamos melhor em nos tornarmos eremitas no Sara, onde, aliás, abundam as serpentes e os escorpiões! Hans, ponha-se ao fresco, se não o seu amigo entra em coma...

Com muita dificuldade, Faerber conseguiu guiar Damms pelo meio do barco. A passagem do corredor foi uma progressão por milímetros. Tinham de nadar lado a lado. Damms vacilava como um homem bêbedo. E cada choque contra os tabiques podia provocar o afundamento! Nesse caso, Chagrin estaria perdido e só teria de se ir sentar junto do almirante Moya para esperar a morte cruel que lhe tinha sido infligida.

Chegaram à larga escada que conduzia à antecâmara, entraram pela porta derrubada na sala dos esqueletos e saíram por fim para as águas livres pelo buraco feito na ponte. A porta da gaiola de aço estava aberta, os dois tubarões à espreita nadavam com elegância nos arredores em círculos cada vez mais apertados.

Faerber atirou Damms para dentro do refúgio, meteu-se lá em seguida, e correu o ferrolho.

- Puxem! - gritou na direcção da ponte. - A todo o gás!

A corda esticou-se, a gaiola balançou rudemente por cima do fundo marinho, depois elevou-se a toda a velocidade, acompanhada pelos tubarões, que pareciam brincar com ela. Faerber mantinha Damms nos seus braços, a cabeça do ferido saltava contra o seu peito.

- Estás a ouvir-me ? - perguntou Faerber. - Peter, ainda estás consciente?

Um imperceptível sinal de cabeça foi a resposta. Faerber constatava, ao ver o volume muito reduzido das bolhas de ar que saíam do aparelho respiratório de Damms, que ele mal respirava.

- Mais depressa, Ellen! - disse através do microfone. - É o máximo que consegues dar?

- Não posso acelerar mais, Hans, mas vocês estão a chegar. Tenho tudo preparado.

Subitamente, o dia claro envolveu-os de novo, a gaiola pousou na ponte. Pascale quase arrancou a porta e atirou Damms para o chão, depois tirou-lhe o tubo de entre os dentes e beijou-o:

- Querido! Meu querido! Olha para mim! Não precisas de morrer... tu não!

 

Ninguém se apercebeu destas últimas palavras... na emoção geral, não houve tempo para se deterem nestes pormenores. Faerber, Ellen e Pascale levaram Damms para a entreponte, despiram-no e procuraram-lhe no corpo a marca da picada. Faerber injectou imediatamente um potente estimulante cardíaco, depois examinou, indeciso, o conteúdo do seu estojo de soros. Tinham pensado em todas as serpentes venenosas, desde a mamba à víbora-cornuda, sem esquecer a áspide, a cascavel, a cobra-capelo, mas quem teria pensado em se prevenir contra o veneno de um peixe desconhecido?

- Encontrei o sítio da picada! - gritou Ellen -, ei-lo! Na anca esquerda! Um ponto vermelho minúsculo!

Deitou Damms de lado. Já só respirava com dificuldade. Nesse momento, tinha os olhos abertos e o seu olhar fixo parecia nada ver. Quis falar, a maçã-de-adão estremeceu, mas não saiu nem um som da boca crispada.

Faerber desinfectou o orifício da picada e fez uma larga e profunda incisão à volta. O sangue correu às golfadas da anca de Damms para o chão. Faerber fez uma incisão tão profunda na carne do músculo e abriu a ferida tão generosamente que o pouco veneno contido no aguilhão devia ter sido varrido pela golfada de sangue.

Mas era uma parada sem convicção, tal como Faerber confessava a si mesmo interiormente ao constatar o estado alarmante do amigo. O veneno tinha-se há muito espalhado por todo o corpo e começava a paralisar os pulmões.

- Coramina! - disse Faerber com voz estrangulada -, a seguir adrenalina e depois soro contra o veneno da mamba com glicose! Depressa Ellen! Depressa! E você, Pascale, suba à ponte: Chagrin não pode estar sem contacto connosco!

- Que me importa Chagrin? - Pascale acariciava o rosto de Damms, que empalidecia cada vez mais. - Peter não pode morrer... não pode morrer...

- Suba para a ponte! - gritou Faerber desesperado. - Se René precisasse de ajuda...

- Que rebente! - sibilou Pascale. Os seus olhos verdes brilhavam de ódio. - Que rebente cem vezes!

Faerber injectou a coramina, depois a adrenalina. Se Damms até então tinha conservado os sentidos, embora não se pudesse exprimir, mudou de novo e caiu numa espécie de coma que o aniquilou sobre a cama, com a boca aberta como se estivesse morto.

- Querido! - gritava Pascale. - Vive! Continua a viver!

- Leva-a - disse Faerber com rudeza. - Ellen, arrasta-a para a ponte! Nunca ninguém foi curado com gritos!

- Vem! - disse Ellen, agarrando Pascale pelo braço, mas esta saltou para trás, com os punhos cerrados.

- Larga-me, puta boche! - berrou ela. - Não me toques! Eu fico com Peter...

Inútil tentá-la fazer compreender que o repouso naquele momento era preferível às manifestações amorosas. Pascale parecia ter perdido a razão e não tinham outra solução senão a de a tratarem como uma louca.

Ellen protegeu-se dos punhos atirados contra si, apertou-os contra o corpo de Pascale e empurrou-a para fora do abrigo. Pascale levantou-se como um gato, mas Ellen, que era a mais forte, puxou a uivadora e vociferante jovem até ao cimo da estreita escada e atirou-a para as tábuas da ponte, após o que fechou com duas voltas a porta que se tinha fechado atrás de si.

 

Pascale levantou-se de um salto. A sua cabeleira ruiva flutuava ao vento. Afastou os dedos como garras, com o corpo todo a tremer.

- Vou matar-te, boche indecente! - vociferou ela. Depois a voz quebrou-se: - Juro por tudo o que me é sagrado: hei-de ter a tua pele!

- Vai pôr o guindaste a trabalhar - respondeu Ellen com voz calma. - Eu tenho de ir para o posto de rádio, e se tu tentares correr para a escada atiro-te por cima da borda. Percebeste?

Voltou-se, correu para o posto de rádio e restabeleceu a ligação com o fundo. Pascale estava sozinha na ponte. Durante o combate com Ellen, o soutien tinha deslizado e os belos seios tinham ficado nus... ela deixou-os livres, foi para o guindaste e perscrutou com o olhar as profundezas de um azul-esverdeado, quase imóveis, do mar.

As silhuetas esguias dos tubarões fundiam-se contra o casco do barco num vaivém incessante. Pareciam gostar daquelas paragens, que honravam com uma preferência assassina.

- Finalmente! - disse a voz de Chagrin do fundo do mar. - Ia chorar a minha solidão! Como está o Peter?

- Mal. Hans está a tentar tudo o que é possível. A subida fez-nos perder preciosos minutos...

- Ele irá aguentar?

- Vai-me achar antiquada, Chagrin, mas... estou a rezar... Quer subir?

- Ainda não. Atei às costas o segundo aparelho e sinto-me muito bem. Vou visitar neste momento os camarotes de luxo. Aliás, a merda do peixe quis atacar-me também. Mas teve medo da luz. Sem dúvida, sempre tem vivido numa eterna escuridão. Levo dois projectores à cintura, um à frente, outro atrás... Pascale está mais calma?

- Tive de a arrastar à força para a ponte. Neste momento, está no guindaste e transpira ódio!

- Tome conta, Ellen, nunca se aproxime muito da amurada na presença dela: é rápida como um gato e se a empurrasse por cima da borda você iria cair exactamente na goela dos tubarões. Céus! Formamos uma rica tripulação. - Chagrin deu uma gargalhada que, no microfone, parecia um cacarejo: - Neste momento, faço-me convidado do almirante Moya, Ellen. Até logo, mande-me a gaiola!

- É para já, Chagrin.

Fez sinal a Pascale, apontando-lhe a gaiola-refúgio. pascale não se mexeu, o olhar cravado no mar, O rosto crispado. De repente, mergulhou a mão num rolo de cabos e tirou dele um revólver. Ellen, que se ia aproximar dela, parou bruscamente:

- És mesmo doida, Pascale; que significa isso?

- Vai para a entreponte! - disse Pascale com voz dura. - É tudo

- Chagrin precisa da gaiola.

- Já não precisa.

Ellen percebeu e um arrepio percorreu-lhe as costas. Aquela mulher estava possuída por um ódio louco. Chagrin tinha razão.

- Sem gaiola, René não poderá subir! Os tubarões, lá em baixo! É um crime, Pascale, um crime cobarde!

 

- Chagrin está completamente à altura de o perceber! - Riu, e o seu riso impiedoso era assustador. - Ninguém voltará a mexer nos guindastes até que René rebente, finalmente... Vá, pois, dizer-lhe: explique-lhe que ficará no fundo. Daqui a uma hora tudo estará acabado. Terá tempo de expiar cada bofetada, cada pontapé que me deu! Vá para o rádio.

Ellen voltou a colocar os auscultadores nos ouvidos e o micro diante da boca, depois restabeleceu a ligação.

- Chagrin - disse calmamente, como se se tratasse de uma alegre aventura, num belo domingo. - Nada de novo?

- Ainda não... e aí?

- Nada. A gaiola chegará aí em breve. Neste momento, ocupamo-nos todos de Peter. Para quanto tempo ainda lhe chegam os reservatórios?

- Para vinte e cinco minutos.

- A gaiola estará aí em baixo antes do limite. Boa sorte, René!

Cortou o contacto e tirou os auscultadores. Pascale, que não tinha percebido uma só palavra da conversa, estava ainda no guindaste, com o revólver apontado para Ellen.

- Então, o que disse ele? - perguntou. - Como se porta um tipo que sabe que vai rebentar lentamente?

- Mandou-te cumprimentos. - Ellen abriu a porta e desceu para as cabinas. Ellen ainda ouviu Pascale praguejar e viu-a meter o revólver no cinto de borracha do biquini.

Peter Damms respirava mais forte. Faerber tinha-lhe administrado através de injecção intravenosa o soro antivenoso diluído com glicose e dava-lhe agora sangue refrigerado, gota a gota. Pouco a pouco, o sangue penetrava na veia. Quando Ellen entrou, Faerber estava ocupado a suturar o profundo golpe que tivera de fazer à volta da picada venenosa.

- Como é que ele vai? - perguntou Ellen.

O rosto pálido de Damms tinha ganho um pouco de cor. Os medicamentos começavam a actuar contra o pérfido veneno.

- Temos de esperar. - Faerber pousou a seringa e pegou numa nova agulha atravessada por um fio de aço.

- Tem um coração extraordinariamente bom e reagiu aos medicamentos tão depressa como cedeu ao veneno. Se o salvarmos, será, apesar de tudo, um semi-êxito...

Ellen sentou-se muito perto da cabeça de Damms.

- Falas como se subentendesses qualquer coisa, Hans...

- Este veneno paralisa o cérebro. - Faerber deu um nó no último ponto de sutura. A ferida estava fechada

Aterrada, Ellen olhou para o doente.

- Percebo - disse ela em voz baixa. -Ele... talvez não volte a ser um ser pensante... mas apenas uma coisa... com um cérebro morto. Meu Deus, Hans...

Calou-se, debruçou-se para Damms e beijou-o na testa.

- O que está Chagrin a fazer? - perguntou Faerber depois de ter ligado a ferida.

- Tem todas as hipóteses de estar, lá em baixo, no fundo, exposto à loucura daqui a pouco. Pascale recusa-se a fazer descer a gaiola. Está sentada na frente do guindaste e mantém um revólver na mão. Acha que encontrou a melhor ocasião para se vingar de Chagrin.

Faerber tapou Damms, aproximou-se da pequena janela e olhou para a ponte. Na proa, entre os guindastes, perto da gaiola com grades de aço, Pascale tinha-se instalado para tomar um banho de sol. Encostada à gaiola, conservava a mão direita na coronha do revólver e saboreava a doçura da brisa do mar que soprava para a costa.

 

- Ela disparará contra ti - disse Ellen, que adivinhava os pensamentos dele. - Não a conseguirás nem convencer nem surpreender: disparará logo! Teima em vingar-se!

- Não disparará. - Faerber voltou a vestir a camisa: até então tinha estado a trabalhar em tronco nu. - Vai-me até ajudar a subir Chagrin.

- Nunca!

Pascale saltou e arrancou a arma do cinto do biquini quando Faerber apareceu na ponte.

- Pare, Hans! gritou. - Juro-lhe que dispararei também contra si! Meu Deus, não avance!

- Então, matará três homens ao mesmo tempo, Pascale. Já percebeu? - Faerber avançou lentamente.

O revólver estava apontado para ele, com o cano dirigido precisamente para o seu peito. Ela só tinha de curvar ligeiramente o dedo. Alguns milímetros; depois a morte.

- Três?

- Sim. Conte: Chagrin, eu e Peter.

- Porquê Peter? - A voz dela perdia a segurança

- Porque, uma vez nós mortos, ninguém o tratará. Até que você consiga levar o barco até à costa, ele terá morrido há muito tempo. Porque Ellen não a ajudará... terá também de a abater! Então, o que terá ganho? Quatro mortos, nenhum dinheiro, e sozinha no mundo. Compreende esta absoluta estupidez, Pascale?

- Fique onde está! - gritou Pascale.

Levantou-se rapidamente, enquanto os seios nus balançavam a cada um dos seus gestos: estava espantosamente bela.

- Como vai Peter?

- Mal. Se sobreviver, isso dever-se-á apenas ao facto de eu poder tratá-lo, Pascale. - Faerber parou. - Vou neste momento para o posto de rádio e vou falar com o René. Quanto a si, desça a gaiola, percebeu?...

Voltou-se, foi para debaixo do toldo e inclinou-se para o rádio:

- Chagrin? - chamou -, está a ouvir-me, Chagrin? Onde está?

- Para o diabo! - A voz de Chagrin pareceu-lhe ofegante, devia estar extremamente excitado: - O que está então a fazer? Desça-me a gaiola e suba o cesto de trasbordo! Eu vou rebentar, Hans, vou rebentar!

- Meu Deus, falta-lhe o ar?

Na frente de Faerber, a gaiola mergulhou brutalmente na água. Pascale mandava-a para o fundo sem travar.

- Ainda tenho bastante ar - disse Chagrin -, mas queria abraçar o sol junto ao meu coração e o mundo inteiro, o céu, as nuvens e vocês todos, monte de idiotas! Se me pudessem perceber, beijaria até os tubarões! Faerber, suba-me! Danço aqui entre os esqueletos como um gigolo...

- A gaiola está a chegar. Terminado! - Faerber cortou o contacto.

"Tem o delírio das profundezas por ter estado muito tempo no fundo", pensou. "Só nos faltava mais esta! Mas não tem importância, temos de interromper as buscas, voltar para terra. Peter tem de ser hospitalizado."

O almirante Moya morto tinha sido mais forte do que os vivos.

 

Surgiram no mar quase ao mesmo tempo... Chagrin na gaiola e o cesto içado pelo cabo de aço. Mal Chagrin se encontrou ao ar livre, arrancou o tubo de entre os dentes e executou muito contente uma dança louca enquanto estava ainda na gaiola, ao mesmo tempo que apontava sem parar o cesto de trasbordo que o tinha acompanhado.

- Eis as guardas avançadas da fortuna - rugiu ele ao saltar para a ponte. - Hans, exceptuando o azar de que Peter foi vítima... é o mais belo dia que um homem jamais pode viver!

- Acalme-se, Chagrin! - disse Faerber com voz dura. - O Peter está muito mal.

- Vá lá, ele vai restabelecer-se! Não posso conter a minha alegria! Abra já essa caixa! Depressa! Depressa! Pascale, maldita molengona, leva já esta caixa!

O pequeno suporte do cabo virou-se para depositar ruidosamente na ponte a caixa de trasbordo. Chagrin atirou-se para cima dela, empurrou o ferrolho e quase arrancou a tampa ao levantá-la.

Continha outra caixa de ferro, mais pequena, toda viscosa por causa do sargaço descorado que a cobria. Chagrin tirou-a rapidamente, introduziu a lâmina da sua faca debaixo da tampa e forçou assim a fechadura.

A seguir foi como se um sol novo se elevasse por cima do Nuestra señora, como se uma grande gota desse sol tivesse caído sobre a ponte e, ofuscante, brilhasse ali naquele momento. Era de crer que realmente se encontravam a bordo do Zephyrus, depois de terem percorrido centenas de sítios levados de liteira pelos escravos índios que avançavam debaixo das chicotadas, que serpenteavam nas suas costas, infligidas pelos conquistadores espanhóis:

após aquela caminhada infinita através de altas montanhas, de pântanos, de florestas virgens, de estepes, viam finalmente, cuidadosamente empilhadas diante deles, aquelas incontáveis placas de ouro puro.

Hans Faerber engoliu com dificuldade a saliva. Aquela visão esmagava-o. Crispou as pálpebras e teve de desviar o olhar, de tal forma aquele ouro faiscante brilhava ao sol.

- Diga qualquer coisa! - gritou Chagrin triunfante. Fora de si, agarrou com ambas as mãos algumas placas de ouro que levantou no ar: - É o ouro derretido dos Maias, Faerber!... Ouro puro! Ouro! Estamos finalmente a pisar o seu tapete de ouro!...

- Onde é que o encontrou? - perguntou Faerber com a respiração presa. Inclinou-se, agarrou numa das placas de ouro e manteve-a na sua frente com as pontas dos dedos como se o queimasse. - Onde encontrou isto, Chagrin?

- Atrás de Sua Excelência o almirante... há uma sala cujo chão está coberto por caixas destas colocadas umas encostadas às outras e, no andar de baixo, estão caixas cheias de dobrões de ouro espanhóis e pipas... Faerber; imagine: pipas! Cheias de pedras preciosas. Eles transportavam safiras e esmeraldas como se fossem aguardente... nas pipas! Deitadas simplesmente lá para dentro, talvez até à pá! E também, por que não?... O que jaz lá em baixo, desde há quatrocentos e trinta e dois anos, escapa a qualquer avaliação, e é nosso!

Deu uma volta sobre si mesmo e viu Pascale. Continuava na frente do guindaste, com os olhos de esmeralda muito abertos, brilhantes.

 

Só então Chagrin notou que ela tinha um revólver metido no cinto do biquini. O revólver dele.

O peito de Pascale tinha ficado nu, visão radiosa e animal ao mesmo tempo.

- Vê lá se disparas através dos seios contra ti! - disse Chagrin trocista. A sua grosseria fazia ceder um pouco de terreno ao sentimento de alegria que o empolgava.

- É por causa dos tubarões - respondeu Pascale. - Vinham todos contra o barco.

- Como as mulheres são idiotas! Nunca vi um tubarão saltar por cima da amurada!

Deu um pontapé na tampa da caixa e pôs-se a tirar o fato de borracha. O brilho do ouro tinha-se apagado, a razão tinha retomado a supremacia.

- Foi preciso habilidade, meu caro - disse Chagrin, dirigindo-se a Faerber. - Tente nadar com uma caixa como esta a subir e descer volta a volta, sem chocar com o que quer que seja! Quando estava na companhia dos nossos camaradas esqueletos, suei ao mesmo tempo sangue e água! Julgo que se tivesse tido o mínimo choque no caminho de regresso teria cagado de medo no fato! Se pensarmos que o mais ligeiro choque enterrará para sempre o nosso sonho!

Saiu do fato de borracha, espreguiçou-se e passou várias vezes as mãos pela cara.

- Uma hora de repouso, Faerber, depois um café forte à maneira de Ellen, um cigarro, e voltamos a descer! Vem comigo? Pascale poderá vigiar Peter, saberá reanimá-lo bem, é uma especialista nesse assunto!

- O Peter está vivo... - disse Faerber lentamente...

- mas quem sabe por quanto tempo? E se sobreviver pode sofrer uma irreparável destruição das células do cérebro. Temos de transportá-lo para um hospital por via aérea. A clínica aceitável mais próxima é em Mérida, a noroeste do lucatão. Chagrin, nós aproamos à costa em dez minutos: em duas horas poderemos fundear na borda e desembarcar Peter.

O silêncio reinou durante um momento. Dir-se-ia que todos tinham deixado de respirar, até o mar e o vento, depois Chagrin disse com uma lentidão intencional:

- Ficaremos aqui, Faerber!

- Aqui, Peter não tem qualquer hipótese de sobreviver, compreenda-o!

- Compreendo perfeitamente que teríamos de abandonar tudo, sem sabermos quando cá poderíamos voltar!

- Não podemos fazer de outra forma.

- Ah! Então é isso, meu pateta! Quer abandonar esta fabulosa fortuna?

- Trata-se de uma vida humana, Chagrin!

- Estou-me cagando! Quatro mil e quinhentos milhões de ouro têm mais peso que uma miserável vida humana!

- Para mim, não!

O rosto de Chagrin pareceu petrificar-se:

- Eu fico aqui!

- Quer então mergulhar a partir de agora de uma jangada?

- Não, vou mergulhar deste bonito navio e você também: você ficará aqui.

 

Com um gesto rápido, brutal, Chagrin agarrou a cabeleira de Pascale, puxou-a para si, tirou-lhe o revólver do cinto do biquini, depois empurrou-a com toda a força. Ela caiu em cima das tábuas e deslizou ali alguns metros. Um rolo de cabos travou-lhe a queda, bateu com a testa nas cordas e ficou estendida, como morta.

- Você vai ficar aqui, Faerber! - repetiu Chagrin friamente, com o cano do revólver apontado para o estômago de Faerber.

"Um tiro na barriga é uma ferida terrível", pensou Faerber. "Se ele apontar bem, as minhas entranhas serão desfeitas, tudo se desmoronará na cavidade abdominal, apodrecerá ali, formar-se-á pus, a inflamação alastrará, é uma morte horrível. E ele deixar-me-á aqui estendido, como pretende abandonar Peter à sua sorte... E mergulhará em busca dos milhões...

- Está finalmente convencido, Faerber? - perguntou Chagrin com secura.

Faerber fez um ligeiro sinal de cabeça:

- Se disparasse, tornar-se-ia um assassino, não o ignora!

- Admiti essa hipótese desde o princípio. Pascale não lhes contou então nada? Não? - Deitou um olhar para ela. Pascale continuava estendida na ponte, os olhos cheios de ódio fixavam-no.

- Eis uma verdadeira surpresa, Faerber. Talvez esta deliciosa bruxa ruiva quisesse conservar uma porta de saída para o caso de eu ser o mais forte! Ora, eu de facto sou! Tomo o comando a bordo!

- E como projecta fazer em seguida?

- Continuaremos os nossos mergulhos e recolheremos os milhões que estão no fundo!

- Chagrin, incorrigível sonhador, você não acredita, apesar de tudo, que me vai obrigar a mergulhar sob a ameaça do seu revólver?

- Acredito! - Chagrin sorriu com maldade, depois recuou lentamente com o cano do revólver sempre apontado para o estômago de Faerber. Quando estava à altura de Pascale, aquela cometeu um grande erro. Saltou como uma pantera e tentou atirar-se para cima da mão que agarrava o revólver.

Chagrin estava atento, deu um passo de lado com a leveza de um dançarino, ainda agarrou Pascale pelos longos cabelos ruivos e atirou-a para o chão. Ela gritou aterradoramente, escoucinhou, mas Chagrin não era homem para se deixar influenciar por gritos de mulher. Arrastou Pascale pelos cabelos e atirou-a contra a cabina de pilotagem, depois, como ela se estava a levantar, cambaleante, agarrou-a pelos braços e desapareceu com ela na escada que levava às cabinas.

Mal Chagrin se tinha afastado, Hans Faerber correu para os aparelhos de mergulho. Não tinha arma de fogo, o revólver e as três espingardas de caça que possuía estavam em baixo, na cabina. Mas ali, junto dos reservatórios de oxigénio, havia arpões, armas terríveis se dirigidas contra um homem, a sua ponta de ferro em flecha com numerosas farpas que penetravam a carne e que não se conseguiam tirar senão através de uma operação cirúrgica. Impossível libertarem-se delas sem se ferirem.

 

Chagrin pareceu sabê-lo também. Surgiu de novo na escada, prudentemente, ficando a coberto. Faerber tinha-se precipitado para um dos arpões prontos para servir, depois agachou-se atrás dos reservatórios de oxigénio. Chagrin deu uma grande gargalhada, a gargalhada do crime:

- Não lhe falta imaginação, Faerber. Mas um arpão não lhe servirá para nada!

- Vamos ver quando você sair do seu refúgio!

- Sair para quê? Sempre desprezei o heroismo gratuito. Podemos chegar a um acordo e vamos lá chegar! Sabendo isto, não vou oferecer um alvo aos seus arpões, o que seria muito estúpido. Oiça-me bem, Faerber: neste momento, Pascale, a sua corajosa Ellen, o seu amigo e o conta-gotas foram fechados por mim juntos na cabina! Não podem sair dali, porque só há uma saída. Ficarão lá até que você tenha decidido mergulhar de novo!

- Você é um paranóico, Chagrin!

- Nada disso. Pense no que vai acontecer: as mulheres não podem sair, não têm qualquer alimento, nada para beber; quanto a mim, tenho tudo à minha disposição... encostada a mim está a cozinha, poderei manter esta situação dois, três, cinco dias. Durante esse tempo, o que julga você que se irá passar nesta famosa cabina? Elas esvaziarão as garrafas de soro, tanto a sede as atormentará, arranharão a madeira dos rodapés, tanta fome vão ter, e serão obrigadas a fazer as necessidades num canto da cabina estreita, ficarão loucas com o cheiro que as vai envolver. E depois, passados oito dias, berrarão em coro, porque nessa altura Peter Damms já se estará a decompor e as raparigas estarão sentadas lado a lado na companhia de um cadáver a desfazer-se. Você é médico, Faerber, tenho de lhe dizer qual o aspecto que um morto tem ao fim de três dias com esta temperatura? E ao fim de cinco? E você continuará impotente, não me atingirá com os seus arpões idiotas, porque para me atingir precisa de um grande alvo. Quanto a mim, basta-me um pouco de si, tão grande como um selo! Pense Faerber: se nos cercarmos um ao outro serão as mulheres quem suportarão os custos.

- E como pensa que poderão ser os mergulhos durante este tempo? - perguntou Faerber com voz fatigada. Chagrin era irredutível e mantinha a melhor posição.

- Se concordar, não haverá problema. Trabalhará nos guindastes e na instalação de rádio com Pascale, enquanto eu mergulharei.

- Você está demente, Chagrin!

- Tenho ar disso? - Riu às gargalhadas. A sua bazófia era imunda. - Naturalmente, não vou mergulhar sozinho. Em cada um dos meus mergulhos levarei Ellen para o fundo.

- Canalha! - disse Faerber do mais profundo do seu ser. - Isso nunca acontecerá!

- Ellen é boa nadadora e boa mergulhadora, já o provou. Ellen tem força e cabeça. A minha proposta:

você com Pascale cá em cima, eu com Ellen lá em baixo nos destroços... de outra forma, aqui, no navio, cumprirei um impiedoso programa de destruição!

Chagrin encostou-se à parede, via Faerber agachado com os arpões atrás dos reservatórios cheios de oxigénio.

- Sei o que está a pensar, Faerber: sem mim ele não pode subir o ouro... os tubarões... ele precisa da gaiola de protecção... precisa que alguém manipule os guindastes. Tudo bem, a rendição é a saída mais prudente!

- E se eu recusar?

- Faerber, por que quer sacrificar a sua admirável Ellen? Conseguirá na verdade colocar o seu orgulho obstinado acima do seu amor por aquela bonita mulher? Para um francês, isso seria inadmissível!

- E Pascale? - gritou Faerber. O cinismo de Chagrin era odioso.

- Pascale não é uma mulher... é um pequeno animal lúbrico e mau, perfeitamente inútil, que devíamos poder meter dentro de um saco e afogar como um gatinho. O que é que quer resolver, Faerber?

- Não deixarei Ellen mergulhar consigo! - disse Faerber. Considerou tão rápido como um relâmpago o rosto queimado de Chagrin e atirou. A flecha-arpão cravou-se no tabique da cabina de pilotagem e ficou ali, a vibrar.

- Então quer a guerra! - disse Chagrin. A sua gargalhada soava endurecida. O tempo das negociações tinha acabado.

- Tenho tempo, Faerber, você vai ter de passar na minha frente, não há outro caminho, venha então...

Lá ao fundo, no mar, não maior que um ponto na linha costeira, o mestiço Jesus Maria, sentado nos calcanhares, estava a conversar, com a ajuda do seu walkie-talkie, com a cabana da floresta.

- Pedro - dizia -, eles tiraram qualquer coisa do mar. Não é grande, mas portaram-se, naquele momento, como no Carnaval!

E Pedro Dalingués respondeu:

- Até que enfim, meus amigos, esta noite iremos ver o que eles pescaram...

Quem podia agora duvidar de que nessa noite ninguém iria dormir a bordo do Nuestra señora?

Ficaram uma hora, frente a frente, debaixo do sol incandescente, com os vapores a elevarem-se do mar. Hans Faerber continuou protegido atrás dos montões de material; Chagrin, sentado na escada que levava às cabinas. Cada um deles espreitava uma oportunidade e nem um nem outro sabia como continuar a aventura se um deles fosse morto.

Passada uma hora, mãos fechadas martelaram a porta e as paredes da cabina de Faerber. Ellen gritou qualquer coisa que Faerber não conseguiu perceber, mas Chagrin transmitiu imediatamente a mensagem.

- Oiça, Hans! - disse ele. - Ellen já não sabe o que fazer. A circulação do seu amigo é alarmante. É preciso dar-lhe uma injecção. Ellen encarregar-se-ia disso, mas ainda nunca deu uma injecção intravenosa. Se não chegarmos a um acordo, Peter não aguentará! Você é quem tem de decidir. Aceita a minha proposta?

- Não autorizarei Ellen a mergulhar sozinha consigo! - respondeu Faerber.

- Meu Deus, não a vou violar debaixo de água, embora essa fosse uma variante nunca experimentada! - Chagrin riu às gargalhadas, mas não sem um tom de angústia. Ellen batia de novo com os dois punhos contra a porta da cabina. Nesse momento ouviram também Pascale gemer como um cachorrinho deitado fora.

- Temos de levar Peter para a costa! - rugiu Faerber a tremer com todo o corpo. - Vai morrer nas nossas mãos!

- Se você continuar a teimar, com certeza! Ainda tem uma hipótese de o salvar, talvez...

- Impossível, com esse veneno desconhecido, Chagrin!

- O facto de estar ainda vivo prova que resiste ao veneno! Hans, lá em baixo, muitos milhões estão à nossa espera!

- Um ser humano conta mais para mim!

- Para mim, não! - Chagrin fez um gesto de apaziguamento com o revólver: - Hans, a si é-lhe fácil desdenhar o dinheiro; para si, filho de industrial, ele nunca foi uma mercadoria rara. Mas para mim! Sabe onde eu nasci? Numa cave. A minha mãe era uma puta e nunca conheci o meu pai. Aos cinco anos, servia de batedor à minha mãe e levava-lhe os clientes! Aos cinco anos... e isto durou até à tropa, onde me mandaram para uma escola de homens-rãs. Saí de lá com uma situação e criei fama como mergulhador. Mas dinheiro, muito dinheiro, nunca tive. Contentei-me a sonhar com ele... e agora que me é permitido ir buscá-lo ao fundo, como calhaus, vou renunciar à fortuna? Seria idiota de mais, Faerber! Conceda pelo menos ao seu amigo a oportunidade de sobreviver a bordo! A oportunidade, nada mais; e Ellen continuará comigo os mergulhos. É a minha última palavra... ou prefere que Peter morra?

Faerber voltou-se lentamente e, abandonando o abrigo, atirou os arpões e levantou os braços:

- Ganhou, Chagrin - disse com voz cansada -, mas juro-lhe que se o Peter morrer você irá gastar uma grande parte da sua nova fortuna para provar que não é um assassino.

- Nenhum advogado poderá ser demasiado caro! - Chagrin meteu a arma no cinto. - Venha, então, Hans, e mostre o que aprendeu em medicina. Pode não ser uma grande ajuda nesse caso.

Faerber desceu a escada, Chagrin voltou a abrir a porta, Ellen e Pascale caíram em cima dele.

- Ele está a morrer! - gritou Pascale. - Já não consegue respirar.

Faerber passou ao lado das duas mulheres e correu para a tarimba de Damms. As duas ampolas de plasma sanguíneo e a que continha a solução de glicose pareciam quase vazias. A respiração de Peter estava a enfraquecer e o corpo era constantemente percorrido por arrepios. Apesar de tudo, o seu estado melhorara, tinha retomado a consciência e os seus olhos desorbitados fixaram em Hans um olhar estranhamente brilhante.

- Meu pobre velho - disse-lhe Hans com voz abafada -, pregas-nos cada susto! - Sentou-se à beira da cama, agarrou numa seringa, partiu uma ampola e aspirou um líquido cristalino para dentro da seringa. Depois adaptou-lhe uma comprida e fina agulha e apoiou o seu dedo médio num certo ponto entre as costelas, à esquerda.

Peter Damms tentou sorrir. Com uma voz mal perceptível, disse a Faerber:

- Fui na verdade idiota, Hans, fazer-te uma cena por causa de uma história de mulheres... Perdoa-me.

- Vá lá, deixa isso, Peter, e cala-te. - Faerber tinha encontrado o ponto exacto. - Neste momento, vou-te injectar coramina directamente no coração, Peter. Picar-te-ei portanto no coração, mas não deves ter medo!

- Não tenho medo de nada contigo, Hans, continua. Vai em frente!

- Quer mesmo dar-lhe uma injecção no coração? - perguntou Chagrin com a respiração cortada.

- Sim, chama-se a isto uma injecção intracardial. É frequentemente uma tentativa última, desesperada.

Faerber mergulhou a comprida agulha, que deslizou entre as costelas e até ao coração. Pascale gritou debilmente, voltou-se e apertou o rosto contra o peito de Ellen. Chagrin, que assistia àquele espectáculo pela primeira vez, reteve a respiração. Quando Faerber tirou a agulha do peito de Damms, ele respirou ruidosamente pelo nariz.

A injecção pareceu agir rapidamente. A respiração do doente retomou um ritmo mais enérgico, o pulso tornou-se mais preciso. Faerber renovou a garrafa de glicose e deu-lhe uma nova injecção de soro antivenoso.

- É tudo o que posso fazer, Chagrin - disse.

- Parece-me bastante - disse Chagrin, que consultou o grande relógio de mergulho que tinha no pulso. - Já é muito tarde, mas amanhã voltaremos para o fundo. Ellen, você irá comigo!

- Eu? - Olhava para ele sem perceber.

- Sim. Você é a minha salvaguarda, uma vez que neste navio cada um só pensa na morte do próximo; seremos, pois, os dois no fundo do mar, os indivíduos em maior segurança. Hans velará por isso! - Deitou uma olhadela a Damms, que respirava mais calmamente. Pascale, sentada à cabeceira, acariciava-lhe a testa, o rosto, o peito, com gestos tão cheios de ternura que Chagrin sentiu uma indisposição provocada pelo ciúme, pela fúria.

- As mulheres lá para fora! - disse com voz dura. - Vão para a popa, para a minha tenda! Nós, os homens, ficaremos aqui sozinhos. Vão, nada de discussões! Ellen, cozinhe-nos qualquer coisa e não se esqueça disto: tenho comigo o Peter e o Hans, retirei a patilha de segurança da minha arma e ninguém dispara mais depressa do que eu, queridas amigas...

Ao entardecer, quando o mar estava ensanguentado pelo pôr do Sol e o céu ardia como um vulcão em erupção, Faerber e Chagrin, sentados junto da cama de Damms, jogavam ao póquer. As duas mulheres estavam na ponte... Pascale à proa, Ellen à popa, cada uma ignorando a outra. Não tinham nada para dizer uma à outra, e se se tivessem dirigido a palavra só teriam trocado invectivas.

Damms continuava consciente. Seguia o jogo de póquer e parecia melhorar lentamente, mas a sério. No entanto, Faerber desconfiava daquelas melhoras. De súbito, depois daquela breve fase de bem-estar, podia sobrevir a derrocada final. O tratamento médico de que Damms beneficiava era mais que insuficiente, era primitivo.

De repente - Faerber tinha precisamente um magnífico full na mão -, Peter articulou muito nitidamente:

- É a vingança do almirante Moya...

- Não digas tais disparates, Peter! - respondeu Faerber. - Sabes que não passa de uma lamentável superstição...

- Pensa na exumação do faraó egípcio Tutankhamon! Todos os que entraram na câmara funerária morreram em seguida em condições misteriosas. A maldição do faraó, dizem os Egípcios. Aqui, é a maldição do almirante: tirei-lhe o medalhão de ouro, o seu talismã...

Chagrin pousou as cartas:

- Onde está esse estúpido objecto - exclamou. - Meu Deus, essa superstição, vou travar um duelo com ela! Onde está ele?

Voltou-se, descobriu a corrente de ouro com o medalhão pendurada num prego da parede, agarrou nela e pô-la ao pescoço. A grande medalha esculpida com a efígie de Carlos V repousava no seu peito nu. Peter Damms olhou fixamente Chagrin, depois disse, elevando a voz tanto quanto podia:

- A partir de agora é um homem morto, Chagrin! Lembre-se da minha profecia!

Chagrin deu uma gargalhada sonora, mas no mais fundo de si mesmo um sentimento estranho atormentava-o. "Tenho, então, medo", pensou. "Vejamos, não admito isso!" Pousou a mão direita no medalhão, agarrou com a esquerda as cartas e olhou para Faerber com um sorriso trocista:

- Continuemos o jogo - disse com uma alegria convulsiva. - O terceiro homem joga connosco! Almirante! Que carta? Quantas? Faerber, o almirante quer três cartas - disse...

De facto, Chagrin jogou por ele e pelo almirante Moya, cujo fantasma parecia sentado entre eles.

E o almirante ganhou dez jogos de seguida até ao momento em que Chagrin, com um murro, espalhou as cartas à volta da mesa, dizendo:

- Acabou-se! Estou cansado!

Num tom de capitulação.

 

Durante a noite, três botes abordaram o Nuestra señora. Pedro Dalingués comandava pessoalmente a expedição. Tinha levado da costa mais seis homens de mão, o que perfazia doze homens ao todo, igualmente convencidos de terem em breve a situação dominada.

O seu azar quis que Chagrin não conseguisse precisamente achar o sono, porque lutava contra o desejo de voltar a pendurar o medalhão do almirante no prego, na cabina. Mas dizia a si mesmo que Faerber não lhe iria poupar sarcasmos e até que o moribundo Damms tiraria dali grande prazer.

Cerrou os dentes, levantou o medalhão na frente dos olhos e disse em voz alta:

- Almirante, comigo, terás a tua vez! A partir de amanhã, recuperaremos os tesouros, em seguida ocupar-me-ei de ti, prometo-o! Voltarás num caixão dourado, acompanhado por todas as honras, para a tua querida Espanha, onde serás finalmente enterrado! Agrada-te? Mas agora, pára de nos atormentar!

Voltou para a cabina de Faerber, constatou que Hans e Damms dormiam e decidiu ir ver o que faziam as mulheres na zona da popa.

No preciso momento em que subia os últimos degraus da escada, a cabeça de Jesus Maria e de um Outro bandido mexicano surgiram ao nível da ponte. Os botes deles abordavam suavemente o casco do Nuestra señora.

 

Chagrin não hesitou, não chamou, não perguntou nada; nunca se deixava embaraçar por considerações inúteis. Com um gesto, apontou a pistola para as duas cabeças, que, ao luar, eram tão visíveis como alvos de carreira de tiro. Premiu duas vezes o detonador. As cabeças vacilaram e desapareceram silenciosamente, porque os intrusos não tiveram tempo nem de dar um grito. A seguir Chagrin ouviu um choque contra a madeira. Só então gritos selvagens e blasfémias responderam aos tiros dele.

- Tentem subir! - rugiu Chagrin em espanhol. - Disparo muito mais depressa do que vocês conseguem subir!

Faerber saltou para fora da cabina e atirou-se para junto de Chagrin no último degrau da escada.

- Que se passa? - perguntou, ofegante.

- Tentam a abordagem! - Chagrin esperava que aparecesse outra cabeça: - Alguém nos quer assaltar!

- Quem, então?

- Se eu soubesse! Que diabo, já nos devem estar a observar há muito tempo! Bem sabe que ainda há piratas na costa da América Central.

- Li relatos...

- Neste momento está a vivê-los! Hans, um compromisso. Estamos os dois na merda: trégua de armas entre nós! Um momento... - Disparou outro tiro por cima da borda à maneira de aviso: - Bem, neste momento, sabem com que contar. Já encaixaram dois tiros em cheio na cabeça!

- Abateu dois homens, Chagrin? - perguntou Faerber com voz fraca.

- Claro que sim! Quem trepa a bordo de noite e em segredo não tem com certeza a intenção de conversar connosco acerca da chuva e do bom tempo. Hans, vou dar-lhe uma arma se me der a sua palavra de honra que não se servirá dela contra mim.

- Tem-na, Chagrin.

Chagrin mergulhou uma das mãos na algibeira e tirou dela uma chave:

- Ei-la. Na maleta de zinco, debaixo da minha cama; corra para junto das raparigas, à popa. Depressa! Eu asseguro-lhe o fogo de cobertura.

Faerber correu e alcançou sem incidentes a tenda da ponte à popa. Encontrou ali Ellen e Pascale, que tinham na mão longas facas. Estavam à direita e à esquerda da porta e puxaram bruscamente Faerber para dentro da cabana consolidada com bambus.

- Há três barcos com uma quantidade de homens

- disse Ellen num sopro. - Julgo que Chagrin atingiu dois deles.

- Na cabeça. Estão mortos. - Faerber tirou a maleta de zinco de debaixo da cama de campanha, abriu-a e distribuiu por Ellen e Pascale as pistolas e espingardas. Agarrou ele mesmo na arma de tiro rápido que também tinham comprado no México.

- Nada de asneiras, Pascale -, disse no tom de Chagrin, quando ele próprio lhe tinha feito a mesma recomendação. - Agora, temos de formar de novo uma só família! René julga que os piratas querem capturar-nos. O que isso significa, você sabe-o.

Saiu a correr, escondeu-se atrás da cabina de pilotagem e esperou.

Mas não aconteceu mais nada. Ouviram apenas três motores arrancar com muito barulho, depois viram ao luar pálido os três botes a afastar-se no mar a toda a pressa, levantando vagas enormes.

Chagrin ainda lhes disparou dois tiros. E se não os atingiu, a declaração de guerra foi para Pedro Dalimgués suficientemente clara. Ele levava dois mortos estendidos atrás de si e sabia finalmente que havia duas questões a resolver entre a costa do lucatão e os bancos de Chinchorro: um tesouro importante, cujo valor era ainda misterioso, e a vingança devida aos dois amigos.

O combate iria ser impiedoso.

A noite estava estragada. Ninguém dormiu. Até Peter Damms ficou acordado e pediu para lhe contarem os incidentes da abordagem. De madrugada, Chagrin descobriu quatro barcos ancorados à volta do Nuestra señora, que pareciam estar de guarda. Depois, da costa, vieram mais seis barcos, que formaram com os já ancorados um círculo à volta deles, mas este era suficientemente largo para que não os pudessem atingir, mesmo com armas de longo alcance. Aliás, era inútil nesse momento tentarem forçar aquele bloqueio "em catástrofe", com a máquina do navio mantida a um regime de ponta.

-Garanto-lhes que estão armados até aos dentes - disse Chagrin -, até têm metralhadoras. E se não voltam a atacar é para evitar novas baixas. Eles têm tempo, esperam com paciência.

- Nós também! - Faerber examinava os barcos à vista com o auxílio do óculo de grande alcance.

Pelo menos cinquenta homens estavam agora a vigiá-los. Pedro Dalingués tinha mobilizado numerosos pescadores, prometendo-lhes mais pesos do que eles podiam ganhar em seis meses de pesca à rede. Aliciado por um tal salário, ninguém faz perguntas quando o patrão diz: "Além há estrangeiros aos quais temos de confiscar o barco, mas sem violência, se possível! Conservemos apenas o barco no mesmo lugar... o resto virá sozinho."

Os pensamentos de Chagrin estavam quase perto da mesma ordem. Olhou para Faerber com ar incrédulo quando ele lhe disse:

- Nós também temos tempo!

- Acredita? - perguntou aliviado. - Se exceptuarmos que o transporte de Peter até à costa se tornou completamente ilusório e que já não me podem atribuir a sua morte natural... para quanto tempo temos víveres a bordo?

- Para quatro meses - disse Ellen.

- E água potável?

- Para dois meses.

- É sublime, mas sabem como oito semanas passam depressa? A seguir começará o inferno!

- Em oito semanas, muitas coisas podem acontecer, René - disse Faerber, observando de novo com o óculo os navios que se perfilavam no horizonte. Constatou a presença de quatro metralhadoras nos suportes: - Dispõem de modelos recentes!

Chagrin bateu com os punhos um contra o outro:

- Ataque-os pelo meio, Faerber! Mas faça isso a "todo o gás", se não não consegue. Eles furarão o seu casco sob a linha de flutuação, e em seguida terá de se haver com os tubarões.

- Vou pedir socorro através das ondas curtas!

- Era espantoso se conseguisse algum resultado nestas latitudes!

- Então, faremos uma fumarada, para alertarmos os habitantes da costa em frente.

- Só seremos vistos por miseráveis pescadores da costa! Ora, estes estão a vigiar-nos agora: algum pirata já lhes deve ter feito brilhar alguns pesos debaixo do nariz e a esta hora todo o bando de pobres diabos deseja a nossa pele. Não, Hans, tudo aquilo é miséria!

- Mas temos de fazer alguma coisa, Chagrin!

- Também o creio. Continuaremos a mergulhar e a içar os milhões para bordo.

- Para os outros, para quê?

- Também. Com tanto ouro, podemo-nos entender. Entre os bandidos, passa-se tudo como no grande mundo dos negócios: quanto mais rico se é, mais a camaradagem funciona sem dificuldade... e se não conseguirmos nada... quero pelo menos, antes de esticar o pernil, banhar-me num montão de ouro. Sim, banhar-me, Hans, todo nu numa onda de moedas de ouro. Concedo-me esta perversão!

Fez sinal a Ellen e a Pascale para se aproximarem e, com o braço estendido, apontou para o mar:

- O que repousa no fundo triunfará de nós façamos o que fizermos! Peter tem razão quanto a isso, a maldição do almirante Moya atingiu-nos em cheio, no flanco. Mas nós saberemos viver com esta maldição enquanto for possível!

Nessa mesma hora matinal, Pedro Dalingués tinha tomado uma grande resolução. Depois da morte rápida do alegre Jesus Maria e do pescador Miguel, tinha regressado em todos os sentidos à ideia de meter o grande patrão Amerigo Santilla no golpe, porque ele tinha barcos rápidos e saberia acalmar a insolência dos estrangeiros.

Depois, Pedro pensou no seu próprio lucro, que teria de partilhar com Santilla, e disse a si mesmo: "Mais vale avançar lentamente e ficar com tudo para mim, que uma rápida solução que só me deixaria metade do pé-de-meia!"

- Eles terão de vir à costa num destes dias - dizia ele aos amigos. - Quer seja dentro de um mês ou de quatro! Vão precisar de água! Aliás, uma situação de cerco que se prolonga desgasta os nervos, sem contar que eles têm duas mulheres a bordo, quer dizer, duas fúrias! Quem suportará tal prova durante muito tempo? Capitularão um dia!

E se forçarem o bloqueio? - perguntou o prudente mestiço Paulus.

- Com as nossas quatro metralhadoras?

- E se pedirem socorro através do rádio?

- Impossível. - Pedro deu uma gargalhada trocista. - Domingo está sentado na frente da nossa instalação, à escuta. Logo que começarem a transmitir, encherá a emissão de ruídos e só se ouvirão murmúrios e apitos. Meus amigos, Pedro Dalingués não é idiota!

Deste modo, o drama que se desenrolava ao largo das costas do lucatão continuou ignorado pelo público.

às dez horas da manhã, Chagrin e Ellen fizeram-se descer para o fundo na gaiola-refúgio. Faerber manobrava os cabrestantes, Pascale mantinha-se junto ao posto de rádio. Os fiéis tubarões tinham voltado e dançavam à volta da gaiola de aço, como dois cães que festejassem o dono após longa ausência. Chocavam contra a gaiola, davam-lhe pancadas com a cauda e feriam a boca nas grades metálicas.

 

- Estes brutos manifestam de verdade a sua alegria

- notou Chagrin, irritado -, devíamos tomá-los como modelo de perseverança. Compreende-me, Hans?

- Compreendo, mas os tubarões não precisam de água doce. A gaiola desceu para o lugar desejado, Chagrin?

- Com uma precisão exemplar, mesmo contra o buraco da entrada.

- Vai deixar a Ellen na gaiola, não é?

- Não, levo-a comigo para dentro dos destroços.

- Malandro! - gritou Faerber. O cesto balouçava exactamente por cima do buraco feito na ponte do Zephyrus. - Vou puxá-los para cima!

- Pense bem antes, Hans! - respondeu Chagrin friamente. - Nada me impede de abrir a porta e de empurrar a Ellen lá para fora!

- Nesse caso, deixá-lo-ia no fundo, javardo!

- Não faça isso! Mas eu tenho algumas hipóteses de subir sem dificuldade! Os tubarões estarão muito ocupados com Ellen e ignorar-me-ão. Hans, não faça asneiras. Desça-nos mais um metro, então estaremos prontos para o trabalho! Ellen é uma rapariga corajosa!

A gaiola pousou no fundo. Chagrin abriu a porta, saiu, puxou a gaiola e colocou-a por cima da abertura feita na ponte, depois fez sinal a Ellen.

Esta deixou-se deslizar para baixo e teve um arrepio. Na forte claridade dos projectores amarrados ao peito deles, ela via pela primeira vez a sala cheia de esqueletos. Nadou, atravessou a porta derrubada, parou na antecâmara e esperou. Chagrin seguiu-a rapidamente.

- Você porta-se já como se estivesse em casa! - disse-lhe. - Agora, temos de descer aquela escada e encontraremos a passagem. Ali parará para esperar por mim. Eu procurarei os cofres à popa e passá-los-ei para si. Isto é, tiraremos as moedas e os lingotes para os metermos nos sacos e mandá-los para cima. Os cofres são muito pesados para nós. Será este, com certeza, o transporte de metal precioso mais inverosímil... uma cadeia infinita de milhões...

- Eu vou consigo -, disse Ellen, que se pôs a descer a larga escada a nado.

Chagrin agarrou-a e prendeu-a pelo aparelho de respiração:

- Proibo-a! Um choque contra os tabiques e morreremos! - gritou.

- Se você não comete qualquer imprudência, por que hei-de ser mais desajeitada? Não é lógico!

- Mas temos de trabalhar quase a um milímetro, Ellen, você representa a minha segurança na vida e não o risco que eu posso correr!

- Quero ver o almirante Moya!

- Um esqueleto como os outros que acaba de ver, nada mais!

- Mesmo assim! - Continuava parada no limiar da escura passagem: - Entre sozinho, Chagrin... se eu

o seguir a alguma distância, não terá qualquer possibilidade de me fazer voltar para trás, estes tabiques apodrecidos...   - É doida! - Chagrin iluminou o interior da passagem no fim da qual se via, como que esfumada, a maravilhosa caixa da escada Renascença: a subida para os milhões.

- Venha - disse Chagrin com voz rouca -, mas se o peixe venenoso a picar também... não o poderei impedir, porque ele também me atacou. É o cão de guarda do almirante.

Avançou a nadar pelo estreito corredor, Ellen seguia-o... elegante peixe vestido de borracha amarela, marcado nos flancos por listas azuis.

Dez minutos mais tarde paravam na frente do esqueleto do almirante Moya. O projector de Ellen envolvia-o numa onda de claridade ofuscante. Atrás dela, Chagrin dava voltas constantemente sobre si mesmo a fim de afastar o peixe venenoso, que felizmente era sensível à luz.

Lentamente, Ellen nadou para o esqueleto sentado e inclinou-se para lhe examinar o crânio. As órbitas estavam voltadas para cima, segundo a posição da cabeça quando o navio tinha naufragado, isto é, apoiada ao encosto da banqueta.

- René! - disse Ellen, angustiada.

Chagrin mantinha o peixe, com velocidade de meteoro, no feixe luminoso do seu projector. O seu corpo pálido em ponta de lança estendia-se num vaivém constante, à procura da sombra protectora. Mas Chagrin não lhe dava a oportunidade de se escapar.

- Cale a boca, Ellen! - murmurou Chagrin com voz trémula. - Apanhei-o! Apanhei o maldito bicho! Não voltará a fugir-me! - Tirou da bainha uma comprida faca com dois gumes e nadou com cautela para O peixe branco. Os dois projectores, um amarrado à testa e o outro ao peito, afogavam o peixe, que se mexia sem parar, numa claridade ofuscante. Chagrin empurrou-o para um canto do camarote:

- Anda! - disse-lhe -, estás tramado! Olha bem para o que te vou fazer!   e, tal como um relâmpago, atacou-o, mas também muito rapidamente o peixe fugiu. Chagrin deixou-se ficar e quando o peixe voltou sobre ele e ia picá-lo abriu-lhe a barriga com a ponta afiada da faca de mergulhador. Não saiu sangue, mas um líquido turvo, leitoso, e bocados de vísceras. O peixe venenoso deu alguns esticões, mandou-lhe grandes golpes de cauda e tentou um ataque desesperado. Mas Chagrin enfiou-lhe a faca na cabeça. Foi o fim. O peixe afundou-se e morreu.

- Viva! - rugiu Chagrin, levantando os braços. Hans, está a ouvir-me? Agarrei-o! Aquele maldito peixe! O cão de guarda do almirante! Está morto a meus pés!

- Mande-mo, René - disse Faerber da ponte -, gostaria de o dissecar.

- Entendido.

Chagrin voltou-se para Ellen. Sentada junto do almirante no banco, tinha assistido ao duelo. Chagrin encolheu os ombros; era, mesmo para um homem da sua têmpera, um espectáculo aterrador.

- Isto seria uma foto a não perder, Ellen - disse com voz rude. - Poderíamos intitulá-la "Quatrocentos e trinta e dois anos de diferença de idade"... Agora, vamos buscar O ouro!

- Vamos levar o almirante - disse Ellen. - Despeje apenas um cofre... levá-lo-ei eu mesma para cima!

Trabalharam durante uma hora, andaram numa roda-viva a nadar e carregaram as caixas de trasbordo, que tinham descido para o fundo, de moedas de ouro espanholas e de jóias maias. Depois puseram o esqueleto do almirante num cofre vazio e voltaram a nadar, com ele, para a gaiola protectora.

- Icem tudo! - ordenou Chagrin a Faerber. A Pascale que ice a bandeira! Sua Excelência o almirante Moya vai subir a bordo!

- Estão malucos? - perguntou Faerber.

- Eu não, a sua Ellen! Agora, para a frente os cabrestantes!

A gaiola arrancou do fundo. Junto dela subiam as caixas de trasbordo. Aos pés de Chagrin e de Ellen estava o cofre despejado do ouro que continha os restos do almirante. Entre as ossadas tinham deitado o peixe com a barriga aberta... o seu fiel cão de guarda.

- Não devíamos trazer nunca mulheres para estas

expedições - rosnou Chagrin quando se encontraram

à superfície. - As suas emoções sentimentais, Ellen,

quase nos iam custando a vida. Porquê este almirante

a bordo? Eu tê-lo-ia trazido em último lugar.

- Nenhum de nós é supersticioso - disse Ellen. Acabaram de chegar à superfície, tiraram os tubos da boca. Algumas profundas inspirações, ar puro, delicado, o sentimento maravilhoso de estarem de novo debaixo do sol.

- Mas julgo que nos sentimos mais tranquilos pelo facto de, após quatrocentos e trinta e dois anos, o almirante Moya se encontrar entre os humanos...

- Você é uma mulher maravilhosa - respondeu Chagrin, tirando a máscara de mergulhador. - É não sei o quê que nos obriga a admirá-la!

Pensava isso de facto.

Lentamente, a gaiola subiu para bordo, a balançar suavemente. O almirante tinha de novo um navio.

Pela primeira vez na sua vida viam tanto ouro acumulado em monte diante deles. Chagrin tinha junto num só montão deslumbrante tudo o que haviam tirado até então dos destroços do Zephyrus... Moedas, lingotes, jóias, pedras preciosas... uma pequena montanha rutilante, que refractava ao sol todas as cores do arco-iris.

Chagrin tinha-se sentado na frente, com as pernas abertas, parecia querer abarcar entre elas aqueles milhões tão desejados e já amontoados na ponte! Com os olhos brilhantes, mergulhava as mãos naquele ouro. Via-se que experimentava prazer físico com aquele contacto.

- Acorde, Chagrin - disse Faerber. - Retomará mais tarde os seus prazeres perversos, mas agora vamos examinar o peixe venenoso e talvez encontremos o meio de salvar Peter.

- Mas eu acho que ele se vai curar! - disse Chagrin, continuando a meter ambas as mãos no monte de ouro.

- Está melhor. Mas estas melhoras bruscas podem ser um sinal de alarme. Desde há dez minutos, há outra vez momentos em que os pulmões estão paralisados. Temos agora a prova de que este peixe possui um veneno neurotóxico.

- Uma vez que já o sabe, porque não faz qualquer coisa? - disse Chagrin, indiferente.

- Sabe que eu não tenho nada do que ele precisa para se salvar na farmácia de bordo?

- Sou eu o médico ou é você? Quem é que tinha

o dever de se munir do necessário antes de uma viagem, a fim de evitar as catástrofes possíveis? Se, sendo

padeiro, eu comprasse cimento em vez de farinha, a culpa não seria dos outros!

Faerber encolheu os ombros, resignado, e fez sinal a Ellen, que, livre do seu fato de mergulho, se tinha deitado, esgotada, numa cadeira ao abrigo do toldo. Com a cabeça deitada para trás, fazia profundas inspirações.

Pascale estava outra vez na entreponte e continuava sentada perto de Peter Damms, cujo rosto empalidecia de novo. Respirava bruscamente, mas estava perfeitamente consciente e parecia conhecer o seu destino. Os olhos dele, fixos em Pascale, demonstravam a sua vontade de a tranquilizar. Pensava com absoluta clareza, o que era terrível no seu estado: "Quando 'isto começar", pensava "quando chegarem as crises de paralisia prolongadas e eu me puser a lutar para respirar, enquanto todo o meu corpo vai ser agitado por câimbras convulsivas, então será preciso afastar Pascale. Não quero que ela assista a esta triste morte. Hans será tão piedoso que suavize os meus últimos momentos? Tem bastante morfina para isso, eu sei. Não me deixará, apesar de tudo, sufocar nas agonias..."

Tentou sorrir. Pascale agarrou nas suas mãos pálidas e flácidas, beijou-as e escondeu nelas a cara.

- Tudo se vai arranjar, querido - disse em voz baixa -, uma vez que o pior já passou...

Ele quis responder com um aceno de cabeça, mas estava paralisado até à nuca. Respondeu-lhe, pois, com um olhar. "Ela acredita-o na verdade", pensou, satisfeito. "Pequena diabinha ruiva... Pascale... quem teria acreditado que tu tinhas um coração tão terno? Amo-te mesmo contra toda a razão... mas alguma vez o amor se importou com a razão?"

Faerber e Ellen tiraram o peixe venenoso de entre as ossadas do almirante Moya. Usaram para tal duas pinças e colocaram o corpo numa taça de vidro. Agora, à luz do dia, ao sol, o peixe parecia desagregar-se numa espécie de pasta repugnante, fazendo crer que a luz era para ele como que um ácido destruidor. A noite eterna tinha sido o seu domínio. O seu aguilhão, extremamente fino, e a bolsa de veneno eram facilmente detectáveis. Faerber destacou-os com uma pinça do peixe em decomposição e colocou-os num frasco de boca larga. Chagrin veio ter com eles. Tinha rodeado o busto nu com uma grossa corrente com enormes cachos de esmeraldas: o colar real dos Maias.

- Então? - perguntou. - Tem um laboratório à mão para o analisar?

- Não, mas temos de ir imediatamente para terra, a fim de mandar examinar este veneno.

- Como? - Chagrin apontou para o mar: - Os nossos cães de guarda estão à espreita. Dez barcos. A nossa única hipótese reside na possibilidade de sermos vistos por aviões ou por outros navios ou então a de cavarmos para o largo, contornando os bancos de Chinchorro. Os bandidos não pensam, sem dúvida, nessa eventualidade, contentam-se em aferrolhar os acessos da costa, mas antes que desandemos a toda a velocidade trarei ainda alguns milhões do fundo! Isso vale a pena...

 

- Existe uma outra possibilidade, Chagrin. - Faerber colocou a tampa no frasco de boca larga que continha o aguilhão mortal. - Pascale, Peter e eu próprio discutimos isso e Ellen está de acordo: renunciamos todos à nossa parte da riqueza, oferecemo-la aos bandidos, que ali estão, se nos deixarem atingir a costa a fim de salvarmos Peter!

Chagrin deu uma gargalhada feroz. Brincava com a corrente de esmeraldas de pernas afastadas, muito provocador, solidamente plantado na frente de Faerber.

"Um montão de energia vulgar", pensou Faerber. "Sei antecipadamente o que ele vai dizer."

- Não desisto da minha parte! - disse Chagrin com voz trovejante. - Em caso algum. Lutarei por este tesouro com todas as manhas imagináveis... e trá-lo-ei para cima, posso prometer-vos! Já é demasiado tarde para Peter... Faerber, não aja como um sonhador, reconheça que eu tenho razão! Como um médico se pode mostrar tão pouco realista! Todas as grandes obras exigem as suas vítimas... Foi o destino de Peter Damms pertencer ao número dos que sucumbem no combate. Depois mandarei erguer-lhe uma capela dourada e terá também o seu caixão de ouro! Temos dinheiro suficiente para isso, mas seria idiota estragar tudo, dar tudo para levar um morto para terra!

- Peter ainda está vivo! - exclamou Faerber com os punhos cerrados.

- Para mim já morreu! - disse Chagrin, nada comovido. - As próximas horas demonstrar-nos-ão quem, de nós dois, soube pensar sensatamente.

As horas seguintes não passaram de cruéis tormentos.

Faerber tentou tudo, uma última vez, para impedir o declínio de Peter. Injectou-lhe ainda 40 mililitros de soro antivenoso, estabeleceu uma nova perfusão, procurando desesperadamente salvar o amigo.

Peter Damms olhava-o reconhecido e viam-no mexer os lábios, mas já não podia falar. Assistia, completamente lúcido, à luta travada na esperança de o salvarem, mas reconhecia a impotência dos meios usados contra um mal desconhecido, o veneno que lentamente o separava da vida. Nesse momento, exprimia-se através dos olhares e Faerber compreendia-o: "Manda sair a Pascale, peço-te", diziam os olhos dele; "fica sozinho comigo... esta morte é um assunto entre amigos. Fá-lo compreender à Pascale... Peço-te..."

Faerber controlou o funcionamento do conta-gotas, depois rodeou com um braço os ombros de Pascale e empurrou-a suavemente para fora da cabina. Ela resistiu primeiro, firmou-se no chão, depois, de repente, desistiu e deixou-se levar para a ponte. Lá fora, a cabeça tombou para o peito de Faerber e chorou sem constrangimento. Ele teve de a agarrar para ela não lhe cair dos braços.

- Quanto tempo ainda? - perguntou um pouco mais calma.

- Não sei, Pascale, uma hora ou duas... cinco horas... um dia.

- Tão depressa? - Ela olhava para ele, com as mãos metidas na longa cabeleira ruiva como se se agarrasse a ela.

- O momento propício passou...

-Ontem...

- Talvez uma hipótese ínfima, mas apenas uma hipótese, nada mais. Peter teria sem dúvida resistido até ao primeiro hospital... mas o veneno circula no seu corpo e paralisa-lhe os centros nervosos.

- Contudo, ontem... - Pascale olhava Faerber fixamente, as pálpebras agitadas por um tremor...

- Se, ontem, tivéssemos...

- Talvez.

- Então, Chagrin matou-o, não foi?

- Sim! - Faerber abanou a cabeça lentamente. - Chagrin ficará com a morte de Peter na consciência, mas, de facto, ele não tem consciência.

Peter Damms resistiu até à noite. Não perdeu o conhecimento, mas a respiração tornou-se cada vez mais difícil. Os olhos ficaram desorbitados... ele asfixiava, vivia, lúcido, cada minuto daquela morte atroz.

Na ponte, Pascale tinha caído sobre Chagrin inesperadamente, como uma pantera. Enterrou as unhas na carne do pescoço dele. Enquanto Chagrin caía no chão, Pascale mordia-lhe a cara, ébria de vingança. Só o deixou quando lhe deu alguns socos que a afastaram dele.

- Maldita galdéria! - disse ofegante. - É preciso mais do que isto para teres a minha pele, lembra-te! - Arrastou-a, através da ponte, pelos cabelos e atirou-a para cima do monte de ouro, depois, com ambas as mãos, enterrou nas moedas de ouro e nos lingotes o seu corpo palpitante. Quando já só a cabeça ultrapassava o montão ofuscante, afastou-se um passo e a sua gargalhada cruel fez-se ouvir: - Então, como te sentes, assim deitada nos milhões? Que sensação? E queres trocar isto por um homem?

- Ele endoideceu completamente - disse Faerber, que tinha visto tudo da janela da cabina. Mas não podia ir em auxílio de Pascale. Peter Damms ainda tinha bastante falta dele. Ellen, sentada à cabeceira, limpava os suores frios que lhe inundavam a testa.

- O ouro desumanizou Chagrin... Meu Deus, como tudo se repete! Já foi assim, há quatrocentos e cinquenta anos, quando os conquistadores espanhóis destruíram os remos dos Astecas, dos Maias, dos Incas e milhares de indivíduos morreram por causa do ouro deles. Voltou-se e olhou longamente para Ellen: - É de crer que o velho Drexius tenha tido dúvidas - disse. Quantos anos terá ele guardado o famoso "desenho" do naufrágio atrás daquela imagem! E se ele mo deixou, por fim, o seu pensamento deve ter sido este:

"Faerber é um homem moderno, o ouro não o possuirá, não será um escravo dos milhões." Ellen... em que nos tornámos nós? Dá vontade de vomitar...

Chagrin desceu da ponte, com o pescoço ensanguentado pelas unhas de Pascale, que o tinham penetrado bem fundo. Tinha também grandes dentadas na cara.

- Pincele-me com tintura de iodo, Hans - disse calmamente. - O melhor será uma injecção antitetânica. Esta badalhoca ruiva tem os dentes envenenados como um gato vadio! - deitou uma olhadela a Damms e a Ellen: - Estúpidos charlatães! - disse brutalmente.

- Para quê estas perfusões, estas injecções, estas picadelas... e não sei que mais, quando tudo está perdido! Para quê continuarem a atormentar Peter! Tirem o necessário da vossa reserva de morfina e acabou-se!

- Saia, Chagrin - disse Faerber em voz baixa. - Em nome de Deus, desapareça ou a nossa combinação de não nos continuarmos a devorar entre nós também está perdida! Tenho a minha espingarda debaixo da mão...

 

Chagrin ficou admirado, lançou a Faerber um breve olhar, percebeu que falar mais era inútil e voltou pesadamente para a ponte. Chegou no melhor momento. Do círculo dos dez barcos à volta do Nuestra señora, tinha-se destacado um bote a motor que avançava na direcção dele, produzindo estampidos. Chagrin distinguia nitidamente a metralhadora instalada à proa. Um mestiço - era Paulus -, deitado atrás dela, estava pronto para disparar. De pé, perto dele, Pedro Dalingués agitava um lenço branco. A curta distância, o bote imobilizou-se e Pedro colocou as mãos em porta-voz:

- Está a ouvir-me? - disse em espanhol.

- Sim! - respondeu Chagrin. - Mas não falo espanhol, fala francês?

- Um pouco.

- Basta! - Chagrin deu uma gargalhada rouca:

- Então, as vossas propostas?

- Um salvo-conduto contra cinquenta por cento de participação!

- Nem um peso, canalhas!

- Nós temos tempo, senhor: podemos esperar muito tempo, enquanto vocês definharão no mar!

- Vocês serão os vencidos neste pequeno jogo, eu apostarei de boa vontade contra vocês!

- Apostemos! - Pedro levantou o punho: - Isto é o que vos espera!

Fez sinal a Paulus. A metralhadora entrou em acção, crepitante. Chagrin atirou-se de barriga para baixo, a salva passou por cima dele e partiu o cimo da cabina de pilotagem, depois o bote deu meia volta, rápido, e foi juntar-se aos outros barcos. Dez cães de guarda que não hesitariam em morder, se o Nuestra señora se mexesse mesmo que fosse pouco.

Chagrin rastejou sobre o ventre até à escada e aí deixou-se rolar até abaixo.

- Já perceberam qual é a nossa situação? - berrou na direcção de Faerber quando entrou a vacilar na cabina. - Eles dizem cinquenta por cento e pensam cem! Prometem um salvo-conduto e vão afundar-nos na costa e vocês ainda julgam que lhes podiam ter comprado a vida do vosso amigo? - Sentou-se com as pernas estendidas: - Uma só coisa me tranquiliza neste cesto de caranguejos: vocês já não podem culpar-me da morte de Peter!

- Falaremos nisso mais tarde, Chagrin - disse Faerber com voz estrangulada.

- Se houver alguma vez um mais tarde. Que diabo, precisamos de encontrar um meio de sair daqui. Não dou de presente todos estes milhões! Você fá-lo-ia, não é, Hans?

- Sim.

- Não podemos permitir isso. - Chagrin encolheu os ombros. - Todo o ser humano é louco à sua maneira. Precisamos apenas de nos entender para montarmos guarda noite e dia. Eu não acredito na patranha deles de uma longa espera...

A noite chegou, queimaram pela primeira vez madeira húmida, que desprendia uma coluna de fumo espesso que subia no céu. Viam-na certamente de longe... se por acaso, naquelas paragens, houvesse alguma vez navios que se interessassem pelo que vogava no mar à sua volta.

Peter Damms morreu durante a noite.

Hans Faerber tinha, mais uma vez, tentado tudo para o salvar com os medicamentos de que dispunha. Sabia que travava uma luta sem esperança, mas não queria renunciar a Peter sem combater. Contra toda a lógica, tentou retardar a paralisia dos pulmões. Foi mesmo ao ponto de introduzir entre os dentes do amigo o tubo do reservatório de oxigénio de um aparelho de mergulho, ao mesmo tempo que fazia a Damms a respiração artificial, a fim de lhe fazer penetrar aquele ar nos pulmões. Uma vez mais lhe ministrou uma série de injecções, depois ficou sentado, sozinho, à cabeceira dele, com a mão de Peter na sua, o olhar mergulhado nos olhos muito abertos.

Damms estava totalmente lúcido. Ouvia tudo, mas a sua paralisia era tal que nem se podia mexer nem articular um único som. Na cabina ao lado, Pascale continuava estendida na cama, com o rosto enfiado nas mantas, a chorar como um cachorrinho. Ellen, sentada ao lado dela, prendia-a continuamente à cama de cada vez que ela ameaçava correr para o lado, para junto de Damms. Chagrin estava de sentinela, sentado debaixo do telhado do posto de pilotagem. Observava os dez barcos a balançarem no mar como minúsculos pirilampos.

- Peter - disse Faerber com uma voz contida. Tinha dificuldade em falar, como se ele mesmo estivesse paralisado. - Peter, ouves-me?

Damms mexeu as pálpebras.

- Sim - disse -, fala, Hans, eu sei o que tu me queres dizer. Tira então estes aparelhos de perfusão e os tubos de borracha, põe finalmente as seringas de lado... eu sempre tive medo da morte. Agora que a vejo com os olhos abertos, tudo é tão simples, tão perfeitamente natural.

- Não posso fazer mais nada por ti - disse Faerber lentamente. - Tenho de to dizer, Peter, mas prometo-te que a tua mãe e a tua irmãzinha receberão a tua parte do tesouro. Peter...

Inclinou-se para o amigo e acariciou a sua face pálida. De repente, começou a soluçar e não fez qualquer esforço para conter as lágrimas:

- Nós tivemos uma boa amizade...

Peter Damms fechou os olhos. Era o adeus. Nesse momento, estava a habituar-se à escuridão. A falta de ar tinha-se tornado horrível, mas não podia gritar, porque já não passava de um invólucro insensível dentro do qual um coração batia ainda irregularmente, enquanto uma consciência reflectia com uma acuidade terrível.

Faerber tirou as perfusões das veias do moribundo, encheu uma seringa de morfina e com uma mão calma cumpriu o último grande dever para com o amigo.

Depois retornou as mãos de Peter nas suas e esperou até Peter começar a sair pouco a pouco deste mundo. De repente, o coração dele deixou de bater, o rosto denunciou-se ainda, os olhos afundaram-se nas órbitas, o martírio da asfixia tinha passado.

Faerber puxou a manta para cima do rosto de Damms e foi para a outra cabina. Ellen, sem uma palavra, olhou para ele. Fez-lhe um sinal de cabeça e sentou-se perto de Pascale.

Ela voltou-se bruscamente e agarrou-se aos ombros de Faerber. A sua aparição súbita evitava qualquer pergunta:

- Posso... posso vê-lo? - perguntou; toda a sua face tremia.

- Ele morreu, apesar de tudo, calmamente - disse Faerber. - Entra, então...

Reteve Ellen, que queria acompanhar Pascale, e esperou que a porta fosse fechada.

- Agora, Ellen, precisamente neste instante, temos de pensar em nós mesmos e não em Peter. Ellen, a morte de Peter muda totalmente a situação neste navio. A deserção de Pascale relativamente a Chagrin ficou sem objectivo. Ao primeiro momento de luto sucederá a reflexão. Para além de tudo, estão em jogo algumas dezenas de milhões! Chagrin não deixará de explicar claramente a Pascale de que lado lhe convém ficar. A partir de agora, uma ameaça de morte pesa sobre nós, percebes?

- Temos de voltar para a costa, Hans, tão rapidamente quanto possível!

- Isso não é possível, a não ser que desistamos de tudo!

- Odeio aquele ouro, ali, no fundo do mar!

- Para atingirmos a costa, teremos de tornar Chagrin e Pascale inofensivos. - Faerber aguçou o ouvido para o exterior. Através do tabique de tábuas, ouviu os choros estridentes de Pascale.

- Talvez o plano de Chagrin consista em cavar para o alto mar, o que seria o melhor meio de salvar, apesar de tudo, qualquer coisa!

Ellen olhou-o com um olhar penetrante:

- Tu também já não te consegues separar do tesouro - disse por fim, muito baixo. - Meu Deus! Hans, este ouro transformou-te completamente...

- Talvez. - Faerber levantou-se rapidamente. - Já to disse, a morte de Peter cria uma situação totalmente nova...

Saiu apressadamente da ponte. Horrorizada, Ellen seguiu-o com o olhar.

Lá em cima, Chagrin continuava sentado no posto de pilotagem. De tempos a tempos, varria o mar com o seu potente projector e iluminava a cadeia de barcos dos bandidos mexicanos. Quando o feixe luminoso tirava da escuridão um dos barcos dos piratas, os homens da tripulação levantavam-se e faziam com os dois braços sinais ao Nuestra señora.

- Trabalham em três equipas - explicou Chagrin

sarcástico. - Alguns destes barcos estão constantemente

a caminho, transportando víveres e a "rendição" das tripulações. Táctica inteligente. Evitam perdas, deixando

o inimigo morrer de calor. - Inspirou uma baforada

de fumo do cigarro e apagou o projector. - Como está

o Peter?

- Acaba de falecer.

Chagrin baixou levemente a cabeça e atirou o cigarro por cima da amurada.

- Você concorda que não podemos conservar Peter a bordo para o enterrar mais tarde, com todas as honras, além, na costa? Embora ele nunca tenha amado o mar, temos de o sepultar no seu seio.

- É por causa disso que eu tenho de falar consigo, Chagrin.

Faerber sentou-se perto dele em cima do posto de pilotagem, o pau despojado da bandeira erguia-se entre eles no céu nocturno. Faerber escorou as pernas contra o camarote dos projectores e apoiou a cabeça contra o pau da bandeira. Agora, depois de ter sofrido a morte terrível de Peter, sentia-se assaltado por um grande cansaço.

- Dê-me um cigarro, René - disse.

Chagrin acendeu-lhe um e meteu-o entre os lábios de Faerber.

- Também tive um amigo - disse. - Mergulhámos no mar Vermelho por conta de uma firma francesa. Éramos dois camaradas ideais... Chamava-se Julien. A dois metros de mim foi despedaçado por um tubarão e eu não pude ir socorrê-lo. Sabe o que se sente num caso destes? Quando vemos, impotentes, arrancar grandes bocados de carne do corpo do nosso melhor amigo? Durante seis meses não voltei a mergulhar, tão acabado estava... mas ultrapassamos isso, Hans...

- Colocaremos o corpo de Peter nos destroços - disse Faerber a meia voz. - É inútil discutirmos: nos destroços, no mesmo banco do almirante Moya.

- É então isso o romantismo alemão? Mas será feito como você quer. Quando é que vamos descer o Peter para o fundo?

- Em breve, amanhã de manhã.

- Podemos fazer isso sozinhos, você e eu.

- Evidentemente.

- É precisamente o que eu queria evitar: nós dois debaixo de água, Ellen e Pascale na ponte!

- Tem medo, Chagrin? - perguntou Hans trocista.

- Diabos, sim! Pascale é uma louca. Você teve hoje

a prova disso: assaltou-me traiçoeiramente pelas costas!

Se ela for mais matreira que Ellen, enquanto estivermos

a sepultar Peter, conforme as exigências do romantismo

alemão, ficaremos entregues ao inimigo!

- Que lucro tiraria Pascale disso? Pense então com lógica, Chagrin!

- Com lógica? Quando uma mulher se consome no desejo de se vingar, onde se refugia a lógica? - Chagrin voltou a acender o projector e passeou o seu halo luminoso sobre o mar, onde iluminou um após outro os dez barcos de vigia. - E aqueles? Verão no próprio momento a nossa descida para o fundo. Não conseguiremos subir tão depressa como eles poderão abordar isto aqui! Que merda, Hans! É preciso um homem na ponte, isso basta para estes moinantes. Mas duas mulheres sozinhas...

- Já corremos tantos riscos que vamos tentar mais esta aventura! - disse Faerber em tom firme. Olhava Chagrin às escondidas. O francês, com o rosto anguloso, olhava para longe, na noite. O seu perfil de ave de rapina recortava-se contra o céu estrelado.

- Chagrin, você está a enfraquecer - disse Faerber, provocante -, a sua coragem diminui, ao mesmo tempo que cresce a fortuna que retiramos do mar. Quando tivermos içado todos os milhões, você não passará de um papa-açorda...

Chagrin deu uma gargalhada alegre. Apagou de novo os projectores e esticou os braços:

- Poupe-me a essas picadelas de alfinete, Hans disse. - Logicamente, tornamo-nos mais prudentes quando temos alguma coisa a perder. Mas nunca um Chagrin se revelou cobarde. Bem, desceremos Peter para os destroços. Quando?

- Ao amanhecer.

- A hora das execuções capitais.

- Cale a boca! - Faerber deixou-se cair do posto de pilotagem: - Eu fico agora de guarda. Durma, pois, Chagrin. Amanhã, o dia será duro.

Chagrin deslizou pelo outro lado do telhado e foi a gingar até ao seu refúgio com tabiques de bambu. Faerber foi para a proa, sentou-se no guindaste da âncora e meteu o rosto nas mãos.

Estava desesperado. Sem cessar, punha a si mesmo a pergunta: "Poderíamos ter arrancado Peter à morte? Terei feito o que era possível para o salvar? Teríamos podido salvá-lo se tivéssemos voltado para terra? Neste caso, teria sido preciso matar Chagrin... não havia hipótese de agir de outra forma." Quem poderá dizer se temos o direito de matar um homem para salvar outro?

A noite estava calma. O mar batia preguiçosamente no casco do navio. Faerber, inclinado para a frente, chorou de novo.

Mais tarde, Ellen apareceu. Beijou-o, encostou-lhe a cabeça ao peito e acariciou-lhe o rosto.

- A pergunta que fazes a ti mesmo é absurda, Hans - disse. - Vai agora para baixo repousar, eu encarrego-me da vigilância.

 

Desde a aurora, estavam todos na ponte. O Sol estava ainda abaixo do horizonte, mas os seus raios acobreados percorriam já os céus, formando ali uma coroa mágica. Chagrin e Ellen tinham estendido mantas e um pano de tenda e preparado cordas. Pascale estava sentada pela última vez junto de Peter Damms e deixou-se conduzir como uma boneca mecânica quando Chagrin apareceu e Faerber lhe fez um sinal com a cabeça. Então, levaram Peter para a ponte, puseram-no em cima da manta e começaram a enrolá-lo dentro dela e a atá-lo. Pascale não os ajudou. Ficou sentada num rolo de cabos, envolta nos seus longos cabelos flamejantes, como uma estátua brilhante de sangue. Apenas quando o terrível embrulho acabou de ser atado e Ellen aproximou a grande gaiola de protecção a balançar no extremo do cabo Pascale se atirou contra o morto, na ponte, e beijou o pano de tenda como se beijasse Peter vivo. Chagrin olhou para Faerber. O olhar dele exprimia o seu pensamento: que comédia! Para ele, as manifestações sentimentais não passavam de uma variante sexual. Que uma mulher como Pascale pudesse amar de outra forma parecia-lhe simplesmente impossível.

- Podemos? - perguntou num tom rude.

- Sim!

Faerber pôs o capacete de borracha. Chagrin pediu

a Ellen que lhe amarrasse os reservatórios de oxigénio.

A fim de enganarem os bandidos mexicanos, Ellen vestia um fato de Faerber, tinha levantado os cabelos para o alto da cabeça e usava um grande chapéu de palha entrançada. Uma larga camisola disfarçava as suas formas femininas; de longe, mesmo com bons binóculos, não se conseguia perceber se o indivíduo a trabalhar na ponte do navio suspeito era um homem ou uma mulher.

Pedro Dalingués também caiu na esparrela, porque, depois de ter examinado pessoalmente todos os passageiros do Nuestra señora, declarou:

- O terceiro homem está outra vez a trabalhar com eles; se ao menos eu pudesse saber o que eles querem levar para o fundo! Um novo aparelho? C'os diabos!

 

Pouco antes das sete horas da manhã, a gaiola de protecção mergulhou no mar. Perto de Chagrin e de Faerber, o cadáver de Peter, colocado ao alto, estava apoiado às grades de aço. Pascale ficou debruçada por cima da amurada até deixar de ver debaixo de água a gaiola, engolida pelas profundezas crepusculares. Então, dirigiu-se para o aparelho de rádio e colocou os auscultadores na cabeça.

O chiar do guindaste parecia diferente hoje... pareciam ouvir entrechocar-se sinos a dobrar.

Diante do buraco aberto na ponte do salvado, Chagrin foi o primeiro a saltar para fora da gaiola, que em seguida puxou para perto da entrada e ancorou ao solo. Os dois fiéis tubarões nadavam à volta a alguma distância, preguiçosos, ensonados, ainda pouco dispostos a caçar.

Cautelosamente, Faerber fez sair o fúnebre embrulho da gaiola para a abertura da ponte onde Chagrin o acolheu e esperou que Faerber também tivesse entrado nos destroços. Avançaram muito depressa através da grande sala dos esqueletos, da porta derrubada e da grande antecâmara até à escadaria ao fundo. Mas encontraram-se então diante da estreita passagem que levava ao castelo da popa e compreenderam que não podiam transportar os restos mortais de Damms entre eles sem bater nas paredes.

- Nadarei à frente - disse Faerber. - De acordo?

- É evidente que será obrigado a fazer todo o caminho em marcha atrás, porque tem de segurar Peter.

- Naturalmente!

- E você acredita que eu vou tomar parte nesta louca temeridade? - Chagrin abanou a cabeça: - É uma questão de milímetros! Nadarei, então, à frente. Você poderá corrigir a minha direcção se eu me tiver desviado de mais para um lado! Vamos lá, não discutamos! - Tomou a dianteira a nadar, depois voltou-se, agarrou o fúnebre embrulho pelo sítio onde devia estar a cabeça de Peter e começou a nadar às arrecuas na passagem, com ligeiros batimentos das barbatanas. Faerber agarrou na outra extremidade do morto e seguiu-o, empurrando e levantando o fardo. Nadaram assim, lentamente, formando como que um comboio, metro por metro, levando o morto entre eles e conscientes de serem eles também presas oferecidas à morte.

Chagrin nadava com uma perfeita exactidão de gestos e quase ao milímetro. Faerber só teve de o corrigir duas vezes. Depois alcançaram finalmente a caixa da escada e subiram na direcção do camarote do almirante.

- Juro-lhe, Hans - disse Chagrin com voz rouca, quando estavam diante dos degraus trabalhados da antiga escada -, não recomeçaria uma tal prova: custa-nos bem dez anos da nossa existência! Vamos, apesar de tudo, a fim de satisfazermos o seu maldito sentimentalismo!

Depuseram o saco que continha o cadáver de Peter no sítio onde o almirante Moya tinha estado sentado. Depois, de pé, imobilizaram-se. Iluminando o morto com a luz ofuscante dos projectores colocados nos peitos deles, fizeram-lhe as suas despedidas:

- Entre nós, há o toque de clarim aos mortos, entre vocês canta-se "Eu tinha um camarada"... Com que fórmula estaremos de acordo? - perguntou Chagrin.

- Eu queria era dar-lhe um pontapé no cu! - respondeu Faerber ofegante.

- O que estaria, aliás, no espírito do defunto! - Chagrin levou a mão à testa para uma última saudação e voltou-se para se afastar a nado.

- Quando tiver acabado, Hans... espero-o junto às caixas dos lingotes. Subiremos dois imediatamente!

Depois Faerber ficou sozinho. Colocou uma vez mais a mão no sítio do saco onde devia estar a cabeça de Peter e disse lentamente:

- Pascale, estás a ouvir-me?

- Sim, Hans... - foi a resposta que veio da ponte, lá em cima.

- Ainda consegues rezar?

- Sim.

- Então, aproveita. - Sempre com a mão na cabeça de Peter, fez uma curta oração e depois voltou-se. No raio do seu projector, um comprido peixe pálido, em ponta de lança, correu, rápido, para a escuridão protectora.

Faerber mergulhou depressa para baixo, onde Chagrin o esperava ao lado de um cofre:

- Peter já tem o seu cão de guarda pessoal - disse Faerber com voz rouca. - A partir de agora, está guardado por um peixe venenoso! Chagrin, mesmo que me julgue louco, há ali com que nos tornarmos supersticiosos.

Naquele dia, tendo mergulhado mais cinco vezes, trouxeram dos destroços do Zephyrus ouro, moedas e pedras preciosas que representavam enormes somas. Poder-se-ia dizer que Chagrin era infatigável, inacessível ao cansaço, sem coração nem pulmões para cuidar. A influência do ouro na sua alma despertava em si forças insuspeitadas. Como Chagrin pretendesse descer para o fundo pela sexta vez, Faerber capitulou.

- Sem mim! - disse ele. Tinha-se deitado na ponte como um peixe atirado para a margem. - Você é louco, Chagrin!

- É verdade! Face a tantos milhões, tenho esse direito! Sabe quanto tempo ainda poderemos mergulhar? Quando formos obrigados a racionar os víveres, quando a água potável for distribuída às goladas, as nossas forças estarão no fim! Mas enquanto os nossos músculos forem capazes de trabalhar, você irá buscar o ouro ao fundo. Sobrar-nos-á muito tempo para chorarmos os milhões que vamos ser obrigados a abandonar.

- O que temos a bordo já nos chega para vivermos sem preocupações até ao fim dos nossos dias... O que é que quer mais, Chagrin?

- A riqueza ideal, Hans! Cem milhões por mergulho... seríamos loucos se não continuássemos até que o fôlego nos falte! E se você não for capaz, continuarei sozinho com a Ellen...

- Vai recomeçar as suas idiotices?

- Só como medida de protecção pessoal. Ela pode esperar na frente da entrada dos destroços, basta que esteja comigo no fundo. Hans, não confio em si.

Chagrin estava sentado debaixo do toldo estendido; ainda vestido com o fato de borracha, bebia um copo de sumo de fruta:

- Há alguns dias, você ainda era o rapaz ideal, que se podia atirar ao chão por meio de alguns estratagemas, mas sofreu uma metamorfose rápida, maldita; sem me gabar, você alinhou acima de mim, e Ellen é a rapariga mais dura que conheço. Pascale odeia-me tanto como a borboleta odeia a aranha. Estou completamente só! Acha que esta é uma sensação agradável?

- Não me chamo Chagrin, meu caro! - disse Faerber -, nunca projectei atentar contra a sua vida!

- Eu, em contrapartida, quis assassiná-lo?

- Sim.

Chagrin avaliou Faerber com o olhar. O que lhe tinha revelado Pascale? Fosse o que fosse, a situação tinha mudado, inútil preocupar-se com o que já fazia parte do passado.

- Quem é que lhe contou essa anedota? - perguntou Chagrin, tentando fazer explodir a sua grande gargalhada provocante e trocista. - talvez esse diabinho ruivo da Pascale?

- Nada disso, mas eu não sou cego, René.

- Talvez entorte um pouco os olhos inconscientemente?

- Nunca de mais. É inútil repisar este facto ridículo. O aparecimento dos piratas mexicanos destruiu os seus planos, Chagrin. A oportunidade maravilhosa de ser o único herdeiro da fortuna passou. Aliás, sozinho, você não tem qualquer valor: nós não chegaremos a jogar de fora o jogo que nos une, a si e a mim! Para isso, teremos de abandonar uma parte da nossa riqueza aos mexicanos, que são, se considerarmos a situação, os nossos salvadores!

- Repito-o: você sofreu uma transformação assustadora, Hans. - Chagrin bebeu o resto do sumo de fruta. - Quanto tempo poderemos ainda mergulhar?

- Como?

- Como está a nossa reserva de combustível? É preciso corrente eléctrica para alimentar os guindastes e esta força é-nos fornecida pelo nosso grupo electrogéneo. Mas precisaremos também de bastante carburante para fugirmos para o alto mar e alcançarmos as costas da Guatemala. Ali estaremos em segurança. Assim, não só a água e os alimentos nos fazem falta, mas também a falta de combustível nos obriga a ganhar tempo.

- Vou ver como está - disse Faerber. Levantou-se e desceu à sala das máquinas. Passados dez minutos, reapareceu e, antes mesmo de ter falado, Chagrin disse:

- carampa! Eu desconfiava! A sua cara estúpida diz tudo!

- Se queremos cavar para o alto mar, temos de partir amanhã! Para chegarmos à costa, uma corrida de dez quilómetros, temos ainda o que precisamos se ficarmos quinze dias nesta zona a trazer para cima o ouro.

- Opta por que solução, Hans?

- Tentaremos alcançar o mar alto.

- Mais quatro dias, quer? É possível? Isso renderia talvez mil milhões! Nós podemos, apesar de tudo, aguentar até lá! Se consumirmos pouca corrente, se nos privarmos de luz, se comermos tudo cru... Quatro dias, Hans!

Chagrin bateu com os punhos um contra o outro e pôs-se a correr em todos os sentidos na ponte. Parou na frente do amontoado de tesouros, ajoelhou-se, mergulhou as mãos nas moedas de ouro, depois, encostado

à amurada, olhou fixamente para o mar, mantendo a

cabeça entre ambas as mãos como se ela fosse rebentar.

- Ele está a perder decididamente a razão - disse Faerber a Ellen, que saía da cozinha. - Ando a observá-lo já há dias. Com a primeira caixa de ouro trazida para bordo, qualquer coisa se desarranjou no cérebro dele. Chagrin é o objectivo de uma corrida terrível estabelecida entre a sua força física e o aniquilamento da sua razão. Se não actuarmos, a loucura levá-lo-á de vencida, o que terá consequências terríveis. Que faz a Pascale?

- Respira, é tudo. Continua deitada na cama de Peter e nunca mais reagiu a nada.

Chagrin voltava de uma visita aos cofres cheios de tesouros. O seu olhar, estranhamente fixo, passou através de Faerber como se ele fosse de vidro:

- Tomei uma resolução - disse -: vamos mergulhar por mais quatro dias.

- Que grande novidade, Chagrin! - Faerber apontou para o pequeno bote de bordo na popa do navio: - Ponha no mar aquela casca de noz, passar-lhe-emos o equipamento e bastantes víveres e você poderá continuar alegremente os seus mergulhos.

Chagrin, aterrado, olhou para Faerber:

- Você enlouqueceu ou julga-me idiota?

- Sim.

- Obrigado. - Chagrin deu uma gargalhada raivosa: - Por que é preciso voltarmos sempre, você e eu, a um combate para ficarmos sozinhos com o poder?

- Talvez seja natural no homem revoltar-se contra a estupidez! Não compreendeu, então, Chagrin: você está sozinho aqui! Nós queremos todos ir embora, tão rapidamente quanto possível.

O rosto de Chagrin crispou-se, teve movimentos convulsivos e os olhos começaram a relampejar. Tinha na verdade o aspecto de um louco que, de um momento para o outro, fosse ter uma crise terrível.

- Apenas um dia, Hans - disse de súbito. A voz tinha tomado um tom choroso, contrastando com a expressão resoluta do rosto.

-Apenas um dia! Mergulharemos desde o amanhecer até à noite e recuperaremos o máximo que pudermos levar... Seiscentos, setecentos milhões... Hans, vai abandonar tudo isto? Temos ainda pelo menos mais um dia de prazo! Carregaremos os cestos de trasbordo até ao limite da sua capacidade, fazendo trabalhar o motor o menos possível. Setecentos milhões por alguns litros de carburante... Isto não devia ser matéria para discussão!

- E se esses alguns litros nos fizerem falta a seguir para chegarmos à costa? Você mesmo não seria capaz de alimentar os motores com barras de ouro!

- O carburante não nos faltará! - exclamou Chagrin -, todo o cálculo prevê uma margem de segurança...

- Não no que nos diz respeito; se tivermos, dando todo o gás, de escapar aos mexicanos e de manter a velocidade durante horas, pararemos forçosamente no alto mar e depois ficaremos à deriva...

- Pense bem! - A gargalhada de Chagrin soou sinistra, bestial: - Seja como for, é o destino que nos espera mais cedo ou mais tarde; então, puxemos os cordelinhos mais um dia! Vamos mergulhar amanhã! Percebido?

Voltou-se, dirigiu-se para as caixas do ouro, sentou-se entre os tesouros brilhantes e mergulhou as mãos nas moedas de ouro, parecendo que se ia fundir com o montão de metal que o fascinava. Faerber não lhe voltou a dirigir a palavra.

Todavia, quando Hans se introduziu, durante a noite, no posto de pilotagem com a intenção de ligar o motor às escondidas, encontrou Chagrin instalado na frente do quadro dos aparelhos de comando e este dirigiu-lhe o mais venenoso sorriso.

- Já cá estou, dizia o sapo à lebre num velho conto do seu país... Você tinha, pois, a intenção de dar às de vila-diogo em segredo? Mas não com o Chagrin, meu querido Hans! Habitue-se a pensar que eu farejo os "golpes sujos" nas calmas, antes que o meu adversário os consiga pôr em execução. - Levantou a mão fechada e agitou-a debaixo do nariz de Faerber. - Tenho aqui a chave de ignição, meu querido loirinho heróico! E tenho a intenção de a pendurar no colar do almirante como um segundo medalhão! Seria preciso que tivessem conseguido matar-me para poderem pôr a máquina em andamento contra a minha vontade! Vá lá! Tente apoderar-se desta chave!

Continuava a estender a mão fechada, com o corpo um pouco curvado, pronto a saltar como um animal selvagem. Faerber avaliou Chagrin com o olhar, sem uma palavra.

"Sou talvez mais forte do que ele", pensou, "mas ele deve ter os reflexos mais rápidos do que os meus e conhece todas as sujas estocadas simultâneas, todas as manobras sujas... Não será desta forma que poderei ganhar: não num combate às claras; tenho de o ultrapassar em astúcia, como a um animal que não podemos matar, mas sim apanhar na armadilha."

- Há-de chegar o momento em que você me suplicará que aceite essa chave - disse Faerber.

- Certamente! - Chagrin olhava para a mão fechada num gesto de desafio.

- Então será demasiado tarde, Chagrin. - Faerber saiu do posto de pilotagem, mas, no limiar da porta, voltou-se uma última vez. Chagrin rodava a chave de ignição à volta do dedo.

- Não tenho nada a perder, em contrapartida você perderá tudo! Este ouro mete-me nojo!

- Eu amo-o e podia dormir com ele como com uma amante. Assim diferem os nossos gostos, Hans! - Chagrin parou a sarabanda da chave: - Não passam de mais alguns dias, depois encontrará em mim o mais submisso subordinado...

- Daqui a alguns dias, estará totalmente louco, Chagrin. Este metal amarelo possuí-lo-á! É, aliás, a minha oportunidade...

- Falemos dela! Uma película de gelo terrivelmente delgada! - Chagrin deu uma gargalhada silenciosa, mas aquela gargalhada já não era normal e foi seguida por uma coisa que arrepiou os cabelos da cabeça de Faerber: uma ressonância da voz que nada tinha de humano.

- Amanhã, às cinco horas da manhã, metemo-nos ao trabalho, a Ellen e eu! Desça e durma! Saberei muito bem velar por todos nós. Sabe bem, como médico, que os loucos são capazes de uma incrível energia!

De novo a sua gargalhada explodiu, assustadora, soando a oco, quebrando-se nitidamente, de repente. Faerber bateu com a porta e desceu para as cabinas.

- Ele tem a chave de ignição - disse a Pascale e a Ellen, que o esperavam. Como o motor não fora accionado calculavam que Chagrin andava às voltas na ponte. - Ainda é o mais forte.

- Temos de o matar - disse Pascale resoluta. - Não temos outra solução. Deixem-no comigo. Tenho o direito de o suprimir! Ellen... Hans... compro-vos a pele dele e troco a minha parte da riqueza pela sua vida!

levantou as mãos num gesto de súplica. O seu rosto, emoldurado pela cabeleira ruiva, tinha-se desgastado nos últimos dias; as feições marcadas, endurecidas, tinham perdido o encanto exótico... Não passava de uma máscara entorpecida, de aspecto ainda jovem, mas onde a idade gravava como um ácido estigmas impressionantes.

- Não se metam nisto - disse enquanto mergulhava as mãos na longa cabeleira -; eu vou matá-lo!

Mas parecia impossível matar Chagrin.

Ele tinha organizado um sistema de protecção pessoal que Faerber nunca quebrou, porque detestava a violência, e que Pascale não conseguiu contornar porque não tinha de qualquer maneira a inteligência infernal de Chagrin.

Em primeiro lugar, Chagrin, com o revólver em punho, obrigava Pascale a provar antes todos os pratos postos na mesa por Ellen.

- Julga que eu estou a pensar envenená-lo? - perguntou ela, ao verificar na manhã seguinte que Pascale tinha de provar os flocos de aveia diluídos no leite em pó e o chá que ela lhe destinara.

- Sim! - respondeu Chagrin. - O veneno é a arma das mulheres; se não usam os meios consagrados pela tradição, seriam, no entanto, muito capazes de me matar salpicando os flocos de aveia com arsénico à guisa de açúcar!

- Você não tardaria a perceber! - disse Faerber em tom seco.

- Sim, quando o meu estômago já estivesse em fogo! - Chagrin sorria com dolorosa ironia: - Não, não lhes darei esse prazer! - Comeu a sua fatia de bolo, só depois de Pascale ter metido um canto na boca; o facto de ela ter cuspido, de raiva, no bocado que ele próprio comeu em seguida não o aborreceu nada e até despertou a sua hilaridade.

- Verifiquei as nossas reservas de combustível e as tinas de óleo para os diesel - disse a seguir, no momento em que vestia o fato de mergulhar. - Ficaremos aqui mais três dias!

- Em minha opinião, esperemos para oferecer o nosso lugar mais trinta dias em vez de três! - Faerber apontou com um gesto os barcos que ao longe mantinham pacientemente o cerco. - Aqueles só têm com que se regozijar: encontraram um idiota que vai pescar os tesouros ao fundo do mar! Acreditem em mim, os mexicanos vão aquecer o café e esfregar as mãos com a maior satisfação! Chagrin... eles estão a observar-nos atentamente, também se entregam a cálculos e, cada dia que passa, estão mais certos de que uma fuga para o mar largo nos é impossível. Pelo menos, um dos seus barcos tem, além de uma metralhadora, uma reserva suficiente de combustível a bordo para nos apanhar muito rapidamente ou cortar-nos a retirada. Por que recusa admiti-lo? Essa cegueira voluntária é demência! Ou espera um milagre?

- Não! - disse Chagrin, puxando o fecho de correr do seu fato. Olhava para Ellen, que se preparava igualmente para mergulhar. A fim de enganar os observadores afastados, estava de novo com a cabeça coberta pelo chapéu de Peter Damms, que trocou pelo capacete de mergulho dentro do posto de pilotagem, a fim de que nenhum olhar pudesse ver os cabelos atados em carrapito no alto da cabeça. - Só confio em mim! - acrescentou ele.

Era uma resposta bastante orgulhosa. Faerber abanou a cabeça:

- Perca esse hábito, Chagrin, se não, na sua loucura, não tardará a destruir-se a si mesmo!

- Você não consegue provocar-me, Hans, não vale a pena! - Deu uma gargalhada cortante: - Alcançaremos sempre a zona costeira, distante três milhas, ao longo do litoral da Guatemala... Isso bastará!

- Como se os piratas mexicanos se preocupassem com as águas territoriais de um país! Atacarão logo que ancorarmos!

- Eles querem evitar baixas, isso mete-se pelos olhos!

- Enquanto for possível! Mas você preocupar-se-ia com algumas vidas humanas se tivesse milhões em perspectiva? Você, sobretudo? Por que haviam estes bandidos de ser mais generosos que você?

Chagrin, excitado, teve um gesto de recusa. O tempo em que podiam ainda discutir logicamente com ele tinha passado há muito.

- Verá, Hans, chegaremos lá! Tem medo de borrar os calções? - perguntou.

- Só a sua loucura é que me mete medo, Chagrin!

- Esse medo não lhe assenta muito mal! - disse Chagrin a rir de novo, enquanto martelava o peito com o punho.

Faerber voltou-se. Sabia que Chagrin trazia, pendurada ao pescoço, a chave de ignição do motor central. Para que servia continuar a discutir? Cada palavra representava um desperdício de tempo.

Foi para junto dos guindastes, accionou os motores eléctricos e viu, com uma satisfação quase maldosa, que a reserva de combustível para os geradores de electricidade só chegaria para mais seis horas. Então teriam de lhes fornecer um novo barril... e no dia seguinte outro, e depois de amanhã... até se esgotarem as reservas, enquanto o ponto último da demência de Chagrin seria atingido quando ele reconhecesse finalmente a sua situação sem saída.

- Vamos lá! - disse Faerber. A grande gaiola protectora balouçou por cima da ponte. Ellen entrou lá para dentro.

Lá ao longe, no mar, Pedro Dalingués pousou o binóculo. Estava francamente espantado.

- Continuam a mergulhar - disse. - Parece que não passamos para eles de madeira podre à deriva! É incompreensível! Eles não pensam desistir! Meus amigos, estamos a tornar-nos ridículos! Vamos servir-lhes ao pequeno-almoço um fogo bem nutritivo?

Com a ajuda do walkie-talkie, deu ordem ao seu posto costeiro para lhe procurarem munições especiais, depois juntou os homens que iam tomar parte no grupo de assalto.

 

Ao meio-dia, a vedeta rápida acostou ao barco de Pedro. Emanuele trazia, além de tudo, uma coisa que agradou muito a Dalingués: quatro coletes à prova de bala, do tipo americano, e dois grandes escudos de aço flexível. Faziam parte do equipamento com que o grande Amerigo Santilla tinha dotado os seus piratas parasitas do litoral e que lhes assegurava uma grande superioridade relativamente aos barcos do serviço das alfândegas.

Durante esse tempo, Chagrin, tendo mergulhado já três vezes de seguida, tinha içado para bordo, ajudado por Ellen, sete barris de ouro.

- Ele trabalha como uma máquina - reconheceu Ellen, esgotada, após o terceiro mergulho. - Este vaivém, a nado, através da passagem, o transporte das moedas e das pedras preciosas nos sacos de couro... nada mais para olhar senão isto, é de enlouquecer! É preciso que ele tenha renunciado a qualquer pensamento e sem dúvida já só trabalha de uma forma mecânica! É angustiante...

- Se isto continuar a este ritmo, Hans - reconheceu Chagrin, esgotado, também ele, quando trepou a bordo para se deixar cair nas tábuas da ponte -, só teremos de mergulhar mais dois dias para fazermos parte da classe das personalidades mais opulentas do Mundo! Então, devia-me apertar nos seus braços e evitar dar-me pontapés, Faerber! - levantou a cabeça. Por cima da extensão pacífica do mar aproximava-se grande ruído de motor: - O que é isso?

De ambos os lados, destacando-se do círculo dos barcos de vigilância, duas vedetas carregavam sobre eles. Enquanto uma das vedetas parava a uma distância prudente, a outra continuava a avançar e penetrava no campo de tiro do Nuestra señora.

- As armas! - gritou Chagrin, levantando-se de um salto. - Hans, pare de olhar para esses individuos sem se mexer! Não se trata de uma proposta de armistício, mas de um ataque! Veja aqueles escudos de aço colocados à proa das vedetas! Vá! As armas automáticas, depressa! Depressa!

Correram para o posto de pilotagem, arrancaram as armas dos armeiros e atiraram-se, de barriga para baixo, para o chão da ponte, ao abrigo das superstruturas.

- Abriga-te - rugiu Faerber na direcção de Ellen. - Vai para a entreponte!

Ela rastejou pelas tábuas, desceu a escada a rolar de degrau em degrau, mas depressa reapareceu armada com uma espingarda. Pascale surgiu atrás dela, com dois revólveres.

- Fica lá em baixo, Ellen! - gritou de novo Faerber.

- Você dá ordens em vão, porque a sua Ellen vai disparar como um homem! Mas aqueles revólveres nas mãos de Pascale não me agradam nada! - Chagrin rastejou para mais longe, para a proa, para se pôr fora do campo de tiro de Pascale.

- Se ela dispara e me atinge, a mim, quem a censurará? Hans, não me vá chamar assassino se eu me vir forçado a tornar Pascale inofensiva!

- Quer abatê-la? - Faerber estava estendido ao lado de Chagrin atrás do posto de pilotagem. - Não se esqueça que eu estou ao pé de si!

- Você nunca me mataria, Hans! Nunca assim, pelas costas, ou ao seu lado! Apenas, de frente, e em legítima defesa! A sua consciência e a sua desvantagem. Nunca se devia ter metido nesta aventura e teria feito melhor em passar os seus exames de Medicina. Não tem nada de herói dos mares ou da terra!

- Isto nunca foi a minha ambição, quis apenas entrar na posse da herança que o velho Drexius me tinha destinado.

- Isto é, retirar do mar milhões como se se tratasse de uma colecção de conchas... Você imaginou as coisas dessa maneira?

- Não! Mas também nunca previ a eventualidade de um Chagrin enlouquecido para fazer de um empreendimento razoável um comando para alcançar o Paraíso!

Sobressaltaram-se. Ellen, que estava estendida na escada, disparou primeiro. A sua bala foi embater no escudo protector atrás do qual Pedro estava agachado e perdeu-se, sibilante, no espaço superaquecido.

- A sua Ellen! - disse Chagrin num tom de admiração - não tagarela, mas actua! Agradeça a Deus de noite e de dia por poder fazer dela sua mulher! Não é indelicado para consigo o que eu disse, Hans. Você é um homem prudente e tornar-se-á um bom médico. Apercebi-me disso quando tentou tudo para salvar o Peter. E além disso não lhe faltou a coragem à cabeceira do doente, foi ali que mostrou a sua verdadeira dimensão. Mas o que aqui se passa ultrapassa-o algumas medidas! Bom! Neste momento, estamos a disparar muito calmamente para cima daquela vedeta e não sobre a sua tripulação; cada tiro, nesse caso, podia custar-nos caro...

Chagrin atingiu duas vezes a quilha do barco mesmo por baixo da linha de água. Impossível disparar para o lado... Visavam, como um alvo, a vedeta que avançava sobre eles a toda a velocidade, deixando atrás de si um rasto de espuma.

Nesse momento, Faerber disparava por seu turno contra a quilha de madeira. Todos os tiros deviam ter ido bater precisamente ali, porque a vedeta parou de repente e o motor dela lançou um uivo.

- Vocês são mais corruptos do que eu julgava! - berrou Pedro, enquanto pelos cinco buracos no casco a água inundava a vedeta: - Domingo, tapa esses buracos! Emanuele... está tudo pronto?

- Pronto!

- Então, eles vão arrepender-se! - Dalingués atirou-se para trás da metralhadora, cuja culatra apoiou contra o ombro, apontando o cano para a ponte do Nuestra señora. Ali, encostados à tenda de Chagrin, encontravam-se os barris cheios de combustível presos por grossas cordas: a última reserva! Ao dirigir-se da costa para os barcos de vigilância ancorados em círculo, Emanuele tinha enchido completamente as fitas de balas das armas automáticas com cartuchos de balas incendiárias, que continham uma mistura explosiva de fósforo.

A primeira girândola daquelas balas provou que Pedro tinha visto bem. Os cartuchos com fósforo atingiram os barris de combustível e explodiram, incendiando imediatamente a mistura de gases de combustível acumulados no interior dos contentores por causa do calor exterior.

Com um estrondo ensurdecedor, o primeiro barril voou em estilhaços. Uma chama subiu bem alto, depois um rio de fogo derramou-se sobre a ponte e escoou-se por cima da amurada, para o mar.

- Eles estão a incendiar-nos! - berrou Faerber. - Daqui a alguns minutos o barco estará a arder todo! chagrin, vamos desistir...

Queria saltar, mas Chagrin assentou-lhe a mão fechada no ombro. Os seus olhos escuros brilhavam:

 

- Dispare! - disse calmamente. - Dispare, então! Nenhum barco arde assim tão rapidamente! Eles não nos vão mandar para o fundo: é o nosso ouro que eles querem! Então...

Ellen saiu pela porta da escada. Tinha vestido um biquini, os cabelos desatados flutuavam atrás dela. Pascale devia estar em baixo a pôr as bombas a funcionar, porque um jacto de água assobiou de repente sobre a ponte e fustigou o rio de fogo. Com um ruído infernal, o segundo barril de combustível explodiu, mandando o seu conteúdo inflamado contra a cabana de bambu, que pegou fogo imediatamente e ardeu como uma fogueira.

- Lá dentro estão quatro camisas, três pares de calças, dez lenços - recapitulou Chagrin serenamente. - E também uma máquina fotográfica e dois revólveres.

- Para a popa, Ellen! - gritou Faerber -, as explosões vão recomeçar! Volta! É inútil!

Ela não parecia ouvi-lo, arrastava atrás de si a mangueira e dirigia o jacto sibilante num mar de chamas que, nesse momento, alastrava para a zona da popa do navio. Então, Pascale apareceu, arrastando uma segunda mangueira, que apontou para as tábuas da ponte. Depois tirou tudo o que tinha no corpo, inclinou-se, agarrou na mangueira e pôs-se, nua, ao lado de Ellen. Sobre o fundo de chamas, o seu corpo encantador, envolto na longa cabeleira ruiva erguida pelo vento, era uma visão para sempre inesquecível.

Dalingués também pareceu ter esta opinião. Cuspiu um palavrão e baixou o cano da arma automática.

- Oh, Madre! - disse -, como hei-de continuar a disparar?

- Eu tinha-os prevenido bastante!

Emanuele passou a língua pelos grossos lábios:

- Eis uma verdadeira mulher diabólica!

O terceiro barril de combustível explodiu. A força da deflagração atirou Pascale e Ellen para o chão, mas elas levantaram-se imediatamente e dirigiram o potente jacto das suas mangueiras para o novo foco de incêndio. Recuaram lentamente quando o calor era demasiado ardente e a sua pele começava a queimar-se.

Chagrin e Faerber, empoleirados no telhado do posto de pilotagem, dispararam ainda alguns tiros contra a vedeta inimiga. Os mexicanos não voltaram a reagir, deram meia volta e encaminharam-se para o círculo dos barcos sitiantes. Uma vez fora do alcance das balas, Pedro Dalingués empertigou-se e agitou os braços.

- Eles acabarão por nos apanhar - disse Faerber, deixando-se deslizar do seu posto elevado. - Agora Chagrin, já não nos é possível dar às de vila-diogo como estava previsto. A nossa reserva de combustível está no zero. Tal como eu lhe tinha dito, você é vítima da sua avidez!

Tiveram de lutar até à noite para extinguir o incêndio. Com a ajuda de extintores de neve carbónica e muita, muita água, conseguiram-no, mas a cabana de bambu estava carbonizada e as tábuas da zona da popa pareciam placas de carvão, enquanto dos catorze barris de combustível restavam apenas cinco.

- Estamos perdidos, Chagrin - disse Faerber, após ter passado tudo em revista. - Assim que vier a mais modesta tempestade, as primeiras ondas um pouco fortes partirão toda a nossa ponte da popa carbonizada. Nesse caso afogar-nos-emos tão rapidamente como o Zephyrus e poderemos estender-nos junto dos esqueletos, ali em baixo, Chagrin. Não há outra solução: temos de voltar para terra!

- Não!

- Deseja, então, ser devorado pelos tubarões, idiota?

- Absolutamente nada! Esperemos.

- O quê? Serão os anjos do Paraíso que nos levarão nas suas asas? Para isso, seria necessário que tivéssemos, você e eu, boas relações com o Céu!

- Não abandonarei os meus milhões enquanto puder respirar e pensar!

- Quanto a pensar, vai cessar essa actividade tanto mais facilmente quanto já começou...

Chagrin tinha-se sentado de novo entre os seus tesouros; com as mãos mergulhadas nas moedas de ouro, olhava fixamente um ponto acima da superfície do mar. Dir-se-ia que o sol derramava sangue nas águas, enquanto o céu se tornava uma imensidade de veludo violeta. Nos dez barcos de sentinela acendiam-se luzes... os cães de guarda instalavam-se para a noite.

- Quando eu era criança - começou Chagrin em voz baixa, brincando com as moedas de ouro -, sonhei muitas vezes possuir dez moedas de um franco. Isso representava para mim a felicidade sobre a Terra. Dez moedas de um franco ao mesmo tempo, na concha da mão, faziam-me acreditar que poderia comprar o mundo inteiro. Imagine a minha situação: sem pai, uma mãe puta, para a qual eu aliciava os clientes na rua... Era como um avarento que sonha com uma prisão dourada. Nunca esqueci aquele sonho... que se tornou realidade! E tenho de renunciar a ele? Hans, no meu lugar, ser-lhe-ia também impossível. Você também, transformado num avarento podre de rico, defenderia a sua fortuna com unhas e dentes!

- Mas você não ficará bem servido, Chagrin. Porque eles esmagarão o avarento cheio de ouro... - Faerber sentou-se perto de Chagrin. De repente, ele metia-lhe dó. Apesar de tudo o que se tinha passado antes, dizia a si mesmo que não se pode censurar a um doente a sua doença. Chagrin era um doente ao qual uma incrível riqueza tinha envenenado a razão:

- Voltaremos mais pobres do que partimos...

- Você nunca foi pobre!

- Se continuarmos vivos, devemos ser os humanos mais felizes do Universo! Não nos resta senão a vida, Chagrin!

- A partir deste momento, temos de pôr os pontos nos is: um de nós tem de ir buscar socorro! - Chagrin tirou as mãos do monte de ouro e jóias e abriu as palmas: no incêndio do pôr do Sol duas pequenas pedras cintilaram. Na esquerda um rubi, na direita uma esmeralda.

- Verde é a cor da esperança - disse Chagrin com um humor sinistro. - O que tirar a esmeralda terá autorização para nadar até à costa. - Voltou a fechar as mãos e as pedras desapareceram. - São doze quilómetros até à costa. Julga-se à altura de tentar essa aventura? Para mim, não é problema.

- Sou um bom nadador... - Faerber baixou as duas mãos fechadas, que Chagrin tinha levantado à altura dos seus olhos: - Mas as correntes... os tubarões...

- Que pequeno risco em comparação com os milhões que já temos a bordo. Vá, escolha, Hans! - Chagrin escondeu as mãos fechadas atrás das costas, trocou várias vezes as pedras, depois voltou a estender as mãos a Faerber: - Diga-me onde está a esmeralda? Ou tem medo?

Faerber observou fixamente as mãos fechadas do companheiro. Um estranho formigueiro manifestava-se debaixo da pele da sua cabeça. Pensava em Ellen e no destino que a esperava se ele tirasse a esmeralda e fosse obrigado a nadar para terra. E se conseguisse mesmo lá pôr o pé, o que é que o esperaria? Quanto tempo levaria a conseguir ajuda?

- Se eu tirar o rubi... - disse com um brusco sentimento de esperança.

- Nesse caso ir-me-ei embora a nado...

- E não há nenhum truque, Chagrin?

- Dou-lhe a minha palavra de honra, Hans. É uma questão a resolver entre homens e, já que estamos nessa, não há truque possível. Assim, em que mão?

Faerber hesitava. De repente, sentiu-se inundado pelo suor. Caía-lhe da testa para os olhos. O olhar ia, rápido, de uma mão fechada para a outra. Depois escolheu a mão direita de Chagrin e abriu-a.

- A esmeralda - disse Chagrin com voz calma. Hans, amanhã, quando a noite descer, vai para terra a nado. Sei o que sente. Vá para a entreponte e despeje uma garrafa de conhaque, ainda temos bastante. As nossas vidas dependem do seu êxito. Que diabo! É preciso ter êxito! Pense, em cada braçada que der, em Ellen, em cada metro percorrido, em Ellen... se eu tivesse dentro de mim um tal encorajamento, conseguiria!

Durante todo o dia seguinte, Chagrin mergulhou sozinho. Teimoso, vítima do delírio do ouro, fascinado pelas pedras preciosas acumuladas debaixo dos seus olhos nos cofres com cintas de ferro repartidos pelos cinco porões. O que Chagrin conseguiu nesse dia exigia, na verdade, a energia própria dos loucos. Arrastou cofre após cofre através da estreita passagem que ligava a proa à popa do navio naufragado, depois, através da sala dos esqueletos até à caixa de trasbordo. A cada vaivém a nado, enfrentava a morte, porque, de cada vez, o peso das caixas do tesouro fazia-o desviar-se do caminho que ele tinha de seguir com precisão. às vezes tocava nos tabiques de madeira friáveis da passagem, que não perdia de vista enquanto avançava, com o olhar fixo e os lábios cerrados. Um só choque contra um dos tabiques, e tudo se desmoronaria sobre ele. Mas conseguia sempre encontrar-se no meio da passagem a empurrar o fardo à sua frente, até ao centro do navio, onde terminava o perigo.

- Você é verdadeiramente doido! - disse Faerber quando Chagrin, pálido, a tremer, com os olhos cavados, veio à superfície à hora do almoço e se atirou para a ponte a todo o comprimento. Faerber massajou-lhe o peito, obrigou-o a beber um gole de conhaque: - Você não vai aguentar, René!

- Este risco não valerá, pois, o seu preço? Conte, então, o número de milhões que eu já icei hoje dos destroços! O benefício também é seu, Hans! - Bebeu mais um gole de conhaque e pôs o antebraço na frente dos olhos. O sol cruel do meio-dia ofuscava-o. - Por que diabo é que não me calam o bico? É tão simples! Içar a gaiola enquanto eu estou nos destroços... Nem tinham de fazer mais nada. Ainda me restaria a hipótese de escapar aos tubarões, mas seria muito fraca! Todo o tesouro estaria nas vossas mãos!

- Acha-me capaz disso?

- Eu acredito que toda a gente é capaz daquilo de que eu próprio me sinto capaz! - Chagrin estendeu-se. A fadiga penetrava-o até aos ossos. - Eu não teria qualquer escrúpulo.

- Não sou um assassino, Chagrin. Você também não.

- Eu sabia que você é um incurável idiota, Faerber. Um perigoso idealista! Naturalmente que eu poderia muito bem matá-lo por causa destes milhões!

- Por que não O fez? Teve mais oportunidades do que eu, no que lhe diz respeito.

- Primeiro, tenho falta de si, depois Pascale, a mulher de armas desavergonhada, deu-me um pontapé no cu e traiu-me, a seguir os mexicanos apareceram, e, agora, já não tenho qualquer hipótese de salvar os milhões sem a sua ajuda. Preciso de si, porque vai nadar para terra. Acabei por ver a situação em toda a sua realidade. As nossas reservas de combustível chegam apenas para fazer mexer os guindastes durante três dias, depois ficaremos à deriva, abandonados às ondas. Quanto é que já amontoámos a bordo? Cinquenta ou sessenta mil milhões? Faerber, não é uma loucura? Eis-nos rodeados por sessenta mil milhões de ouro e pedras preciosas e não nos podemos arrancar a este mar maldito! Você só ainda está vivo por esta razão... saiba-o, porque dependemos um do outro, tanto na sorte como no azar!

- Você é brutalmente franco, Chagrin - disse Faerber com voz rouca.

- Não estamos a viver uma "hora da verdade" excepcional? - Piscou o olho entre os antebraços, na direcção de Faerber, debruçado para ele: - Ou tem outra ideia relacionada com esta questão? Não se irá embora a nado esta noite?

- Eu manterei a minha palavra, Chagrin.

- Ellen já sabe?

- Não! Não lhe diga a verdade senão quando amanhecer, quando eu já tiver alcançado a costa... ou desaparecido..

- Ela vai querer matar-me! Ellen é uma mulher como todo o homem deseja ter uma! Se se trata de mostrar coragem, ignora o medo! Não invejo os seus milhões, estamos em igualdade, mas poderia lutar consigo por esta mulher!

No alto da escada que levava às cabinas apareceu o carrapito castanho-escuro de Ellen:

- A comida está pronta! - gritou.

Chagrin levantou-se a gemer, ainda tremia visivelmente, como se cãibras lhe atacassem os músculos.

- Quanto tempo vai continuar esse combate imbecil? - perguntou Faerber enquanto ajudava Chagrin a levantar-se.

- Até à última gota de carburante. - Chagrin abriu os braços e inspirou o ar fresco do largo, que lhe dava mais forças que o oxigénio contido nos reservatórios de mergulho. - Se pensássemos bem,, cada litro de combustível significa um milhão a mais! E a "essência", a mais preciosa de todos os tempos! Depois do almoço, vou mergulhar de novo!

- Você deve saber, René, que está a destruir o organismo. Estar sentado em cima de milhões depois de ter ficado doente não é uma perspectiva tentadora. Já temos bastante a bordo!

- Nunca teremos bastante, enquanto lá em baixo continuarem a jazer milhões. Hans, você não viu as filas de cofres! Só entrou no interior de um porão, e depois ocupou-se do imbecil do almirante Moya. Quatro porões cheios de cofres a regurgitar de ouro! Caixas cheias de esmeraldas e rubis! Mesmo que eu as tivesse de ir buscar a rastejar a quatro patas... enquanto eu pudesse trazê-las, nem que fosse na boca, mergulharia para dentro dos destroços. Está bem, estou louco! Isso não é novidade! Altos feitos foram muitas vezes obra de loucos, como foram qualificados em seguida. Vamos! Não façamos esperar a sua sedutora Ellen, que, diga-se de passagem, cozinha maravilhosamente... mais isso, felizardo!

Logo a seguir ao almoço, Chagrin continuou o seu labor quase suicida. Seis vezes pediu ao navio que içasse a caixa, que, suspensa nos cabos no extremo do mastro de carga, pousou na ponte. Seis vezes de seguida, Pascale e Ellen arrastaram tesouros recém-recolhidos para o amontoado de cofres já arrumados. As duas últimas caixas de trasbordo continham quatro cofres de jóias. Faerber, que fez saltar as fechaduras enferrujadas e observou o conteúdo, teve de desculpar, embora contrariado, a paixão de Chagrin. O que ali cintilava, em pleno dia, com todas as tonalidades do espectro, era de facto tão fantástico que podia ser a razão da própria razão.

- Esta terra devia ser incomensuravelmente rica!...

- disse a Ellen a meia voz, fazendo deslizar as pedras preciosas entre os dedos.

- E muito sangue deve ter corrido por causa dessas riquezas!

Faerber voltou a fechar as caixas e levou-as para junto dos cofres:

- Por causa destes cintilantes esplendores foram destruidos povos inteiros.

- Não vamos pensar nisso agora, Hans - disse pascale. - Não é razão para nos exterminarmos mutuamente.

- Estás assim tão segura? - Faerber voltou para o guindaste grande. O posto de rádio fazia ruídos. Chagrin pedia de novo a caixa de trasbordo. Pascale seguiu-o com um olhar gelado. Os seus olhos verdes estavam pensativos.

Quantas coisas Faerber não sabia a respeito de Chagrin! Havia ainda uma dívida que Chagrin teria de pagar: a morte de Peter Damms, e Pascale estava pronta para lha lembrar logo que possível, quando a aventura suicida que ali se desenrolava estivesse perto do fim. Então, centenas de ocasiões de o matar se apresentariam... os seus milhões não constituiriam um muro protector, pelo contrário.

De novo a caixa foi para o fundo, mergulhando através da superfície das ondas, mais uma vez Chagrin nadou, ofegante, com os membros entorpecidos, através da estreita passagem, para o castelo da popa, e voltou a arrastar um fardo de pedras preciosas.

Os dois tubarões rodeavam com as suas elegantes evoluções a caixa de aço e fixavam os olhinhos frios na cabeça humana que emergia do buraco da ponte dos destroços, com as mãos crispadas a transportar os milhões trazidos do esquecimento para a luz do dia. Depois Chagrin deixou-se finalmente cair no interior da caixa protectora da qual fechou a porta, agachando-se a um canto.

 

- Acabou-se, Hans! - disse pelo telefone que o ligava ao navio. A sua voz mal se percebia -: Já não posso mais, além disso já só tenho oxigénio para mais dois minutos...

Durante a noite, Chagrin e Faerber encontraram-se na ponte. Chagrin tinha tudo preparado: o fato de borracha negra, um novo aparelho de oxigénio, um arpão e quatro flechas, uma pistola de ar comprimido, uma grande faca de dois gumes, a que juntou um comprido punhal. Tinha Posto, numa bolsa impermeável, alguns víveres de emergência: biscoitos, duas caixas de carne de conserva, um cantil com água e um frasco de plástico cheio de conhaque.

Faerber levou uma outra cheia de pensos e de medicamentos. Tinha-se despedido de Ellen, que dormia, tal como Pascale. Tinha-a beijado com ternura, acariciando a sua cabeleira húmida de suor.

- Vou voltar, minha querida - tinha dito muito baixo. - Amanhã de manhã, isto será horrível para ti... mas reconhecerás que é a única oportunidade de nos safarmos. E se eu não voltar... cada coisa tem o seu preço: terei tido de o pagar. Coragem, Ellen.

A noite estava tépida e luminosa. Os pequenos faróis dos barcos que os vigiavam piscavam debilmente.

Há dez dias e dez noites que se mantinham à espreita, caçadores impiedosos, que sabiam quão preciosa era aquela presa. Mas não ignoravam que o tempo era seu aliado.

- Tudo pronto? - perguntou Chagrin. Faerber respondeu com um sinal de cabeça. Usava apenas um calção de banho. Para o caso de chegar mesmo a terra, tinha ainda no saco umas calças, uma camisa de algodão e uns sapatos leves. Além, no continente, esperava-o a infernal selva: pântanos cheios de mosquitos, serpentes, aranhas venenosas. Quando acabasse de vencer a prova de mar, teria de lutar contra aquela terra da qual subiam vapores quentes, furando o dossel das florestas impenetráveis, mortificadas pela chuva, com o chão esponjoso.

Sobrar-lhe-ia então bastante tempo, bastantes forças? Tinha estudado cuidadosamente o mapa. Mas sabia ele onde ia dar à costa, para onde o empurrariam as correntes? Encontraria indígenas que fossem em sua ajuda, rapidamente... porque cada dia que passasse tornaria a situação mais crítica a bordo do Nuestra señora.

- Pronto! - respondeu Faerber com voz rouca. Estendeu os braços e meteu-se no fato de mergulhar que Chagrin lhe estendia.

- Medo? - perguntou Chagrin, puxando o anel do comprido fecho de correr.

- Você não teria medo, René?

- Teria o olho do cu a tremer...

- Sinto-me pouco à vontade com esse humor!

Faerber pôs o capacete de borracha e Chagrin entregou-lhe o largo cinturão de mergulhar equipado com vários ganchos, destinados a suportar o equipamento.

- O que é que a Ellen está a fazer? - perguntou ao mesmo tempo.

- Está a dormir. Deitei-lhe um sonífero no chá e ela não se apercebeu. A Pascale também. Dormirão, amanhã de manhã, até tarde... Nesse momento, devo estar na costa ou muito perto... ou então no estômago de algum tubarão!

- Não pense nisso, só servirá para lhe tirar a confiança, Hans. Logo que esteja na água, não tenha senão um pensamento: "Passarei, apesar de tudo! Passarei!" Unicamente. O resto não existirá até ao momento preciso em que o perigo o ameaçar de imediato... então, combaterá... não apenas pela sua vida, mas pelas nossas vidas, que dependem de si!

- É inútil dizer-mo! - Faerber afivelou o cinturão à volta da cintura, Chagrin levantou os reservatórios de oxigénio e amarrou-os às costas de Faerber. Depois engancharam as facas e os sacos impermeáveis à cintura. Chagrin prendeu as barbatanas aos pés de Faerber e meteu-lhe também os arpões na mão. Levava à bandoleira, no peito, flechas de reserva e uma lança desdobrável, a fim de as poder ter imediatamente à mão em caso de necessidade. Chagrin, que andava à volta dele, examinou de novo todo o equipamento.

- Vai conseguir, Hans! - disse por fim e, espontaneamente, estendeu-lhe a mão, que Faerber apertou na sua. - Não sou crente, meu velho - a voz de Chagrin vacilou um pouco -, mas digo-lhe na mesma: Que Deus o acompanhe! Esperemos que Ele me ouça... aconteça o que acontecer, Hans, ataque!

Faerber respondeu com um sinal, depois desceu lentamente a escada de madeira colocada contra o casco e deixou-se deslizar para o mar. A partir de agora, começava a fase crítica: iriam os dois fiéis tubarões aparecer?

Chagrin debruçou-se por cima da amurada e saudou-o com a mão. Faerber respondeu-lhe com um gesto breve, depois deu um impulso de calcanhar no casco e mergulhou através das ondas como um peixe negro.

Passados alguns metros, a noite engoliu-o.

Chagrin continuou a olhar fixamente, durante alguns minutos, na direcção que Faerber tinha tomado, mas não ouviu nenhum som anormal. Os tubarões pareciam saborear o repouso nocturno ou eram demasiado preguiçosos para atacar. Se Faerber conseguisse afastar-se deles algumas centenas de metros, ficaria livre daqueles dois assassinos, que, à semelhança dos animais domésticos, não se afastavam do Nuestra señora.

Chagrin endireitou-se. à sua volta reinava ainda a escuridão. Já não ouvia marulhar. Faerber parecia nadar com uma braçada enérgica. Mas tinha dez quilómetros na sua frente. . . dez mil metros de mar, e arriscava-se dez mil vezes à morte.

Depois de ter percorrido os primeiros metros, Faerber respirou, aliviado. Avançava a grandes impulsos de barbatanas através do mar ligeiramente encapelado. Não mergulhara e mantinha debaixo do queixo a extremidade do tubo. Não mergulharia senão quando estivesse à vista dos barcos piratas. Estes representavam, depois dos tubarões domésticos, a segunda situação crítica a levar em conta. Logo que os barcos estivessem atrás dele, mergulharia a direito na aventura.

A Lua, disco enorme no céu, oscilava docemente. Ligeiras nuvens esfarrapadas vogavam à sua volta. Faerber nadava num estilo outrora aprendido com um instrutor americano: impulso de pés vigoroso, seguido de um impulso do tronco por cima da água e de um forte empurrão das ondas com os braços. Dir-se-ia que era um golfinho a correr através das águas, deixando atrás de si uma esteira cada vez mais longa.

"A água é dura", repetia o treinador, "vocês podem empurrá-la com os pés como se fosse uma parede! Rapazes, aprendam a nadar por cima da água!"

Desta forma, Faerber conseguiu afastar-se em pouco tempo do domínio dos tubarões fiéis ao Nuestra señora. Mas não estaria ele a penetrar numa outra região do mar infestado de esqualos? Todavia, coisa estranha, a noite tranquilizava-o, tal como a ideia perfeitamente injustificada: de noite os peixes também dormem...

Sabia que não era nada assim, mas experimentava um real conforto a repeti-lo a si mesmo no seio daquela prova.

As primeiras luzes dos navios que formavam a armada dos cérberos piscaram por cima das águas. Faerber ouvia o ligeiro marulhar das vagas mansas a bater nos costados. Meteu entre os dentes a ponta do tubo, pôs os óculos de mergulhador e mergulhou para as profundezas. Lentamente, deixou-se correr para o fundo, até o ponteiro que indicava os números luminosos do seu medidor de mergulho ter parado nos dez metros de profundidade. Então, continuou calmamente a nadar. Envolvia-o uma escuridão total. Experimentava um sentimento angustiante de expatriação enquanto nadava naquele nada, onde já não havia nem direcção, nem forma, nem movimento, mas apenas uma noite infinita, o seu coração angustiado, um medo-pânico e o sentimento terrível de estar completamente absorvido por aquela escuridão.

Nadou perto de vinte minutos a uma profundidade de dez metros no elemento líquido, alegrando-se apenas com a vista da fraca fonte luminosa fosfórica dos números do seu medidor de mergulho. Centelha de vida, símbolo consolador de um mundo familiar, que lhe lembrava que aquela escuridão era passageira.

Quando julgou ter ultrapassado os barcos ancorados e estar suficientemente longe deles, acendeu o pequeno projector frontal e agradou-lhe ver passar, no seu estreito raio, alguns peixes que nadavam ao seu encontro, paravam a dois dedos da sua cabeça e, dando meia volta, se afastavam como faíscas sopradas pelo vento.

A vida! Maravilhosa vida! O mundo existia ainda e não tinha soçobrado na escuridão de uma noite eterna! Lentamente, Faerber voltou à superfície, apagou o projector frontal e sulcou de novo o extenso mar.

Os navios piratas estavam longe atrás dele, com os faróis a balançarem preguiçosamente à superfície das ondas. Mas ele tinha perdido o rumo e nadava paralelamente à costa. Também devia ter andado à roda. Se tinha os navios nas costas, a terra estava então à sua frente. Era a orientação mais simples que podia adoptar. Quando voltou de novo a cabeça, notou também os faróis de sinalização do Nuestra señora. Depois, de repente, jorrou um feixe de raios luminosos, que iluminou vivamente o outro alinhamento de barcos... manobra da parte de Chagrin que tinha por fim distrair os vigias postados nos barcos-cérberos.

Faerber avançava com braçadas potentes, a cada metro, dizia a si mesmo: é um jogo de crianças! Os perigos tomam proporções fantásticas na imaginação! O que é que tem de extraordinário um bom nadador conseguir percorrer uma distância de dez quilómetros num mar calmo? De facto, é um acontecimento desportivo, mas nada tem de heróico. Fala-se de mais nos perigos e acabamos por paralisar a nossa vontade. Nadar neste mar é um prazer, ele empurra-nos com mil mãos

bem-intencionadas...

Lentamente, o dia escalava os céus. Faerber descansou enquanto nadava de forma a despender forças com economia, segundo a expressão do seu treinador ianque. Deixou-se ir à deriva, deitado de costas, e notou que uma corrente o empurrava para a costa. O Sol levantou-se do mar, a sangrar, o céu tornou-se uma cúpula de fogo, que devorou a pálida Lua. Foi um espectáculo maravilhoso assistir àquele engolir da noite, até o Sol ter ultrapassado a linha do horizonte, restabelecendo então a integridade do Universo.

Mas com o dia apareceu também a morte.

Faerber viu-a avançar à esquerda, como um dardo atirado sobre si... uma barbatana dorsal onde se via o brilho dourado da manhã jovem...

 

Ellen acordou mais cedo do que Faerber tinha previsto e Chagrin ficou admirado quando ela apareceu de repente na ponte:

- Onde está o Hans?

Chagrin, que estava de novo agachado entre os barris de ouro e tinha as mãos mergulhadas num monte de moedas, levantou os olhos e fez um sinal, de cabeça, que designava o mar.

- Já deve ter coberto metade da distância a percorrer. Dentro de quatro horas, se se desembaraçar, deverá chegar à margem...

- Meu Deus! - Ellen encostou-se à parede do posto de pilotagem. Um mal-estar indefinível apossava-se dela. O coração começou a falhar-lhe, tentou retomar o fôlego, o céu e a terra começaram a andar à sua volta:

- Monstro! Assassino! Traidor! Empurrou Hans para a morte!

Chagrin, arrancando-se ao seu ouro, levantou-se. Só tinha vestido um calção de banho e o corpo musculado brilhava ao sol matinal. O mar ainda não deitava fumo... a claridade do novo dia denunciava todos os contornos.

Estava pronto a fazer uma nova série de mergulhos, enquanto Ellen tomaria o lugar de Faerber. Não podia dar nenhuma confiança a Pascale, a morte de Peter Damms tinha-a tornado, aos seus olhos, capaz de tudo.

-Ellen... - disse Chagrin num tom conciliador.

- Não se mexa, monstro! - E, de repente, tinha uma pistola na mão... Devia ter dormido com a arma entalada no cinto da saia. - Não tenho escrúpulos a seu respeito, vou disparar...

- Ellen, oiça-me! - Chagrin levantou as mãos, a fim de demonstrar que não alimentava qualquer intenção hostil - Tirámos à sorte honestamente: Hans ou eu. Hans perdeu e é homem para cumprir a sua palavra. Sem socorro exterior, estamos entregues aos piratas mexicanos, brutos, impiedosos... Ainda não desconfiam do que trouxemos para bordo, mas cercam este navio, é evidente que não conseguiríamos sobreviver com estes tesouros na nossa posse. Nós percebemo-lo, Hans e eu, e ontem à noite a sorte escolheu o que devia partir... Também podia ter-me indicado. Ellen, pense: Hans está a caminho para nos salvar a todos, sem ele já estamos mortos, a nossa vida não passa de uma agonia. Acredita que eu me sinto à vontade na minha pele?

- E se ele não conseguir? O que acontece então? - Ellen inspirou profundamente. De repente, a pistola tremeu-lhe na mão, enfiou-a de novo no cinto e agarrou-se a uma das barras de aço do posto de pilotagem.

- Não vamos pensar nisso, Ellen - disse Chagrin sombriamente. - Não agora, hoje ou amanhã... teremos então todo o tempo, julgo... Tempo de mais...

- E se atirássemos tudo ao mar? Por que haviam os piratas de nos matar se já não tínhamos nada?

Chagrin olhou para Ellen, julgando que um fantasma se lhe dirigia:

- Atirar tudo ao mar? Setenta milhões? Como pode pensar nisso?

- Se esse for o preço para continuarmos a viver...

- Não! Não! - Chagrin abanou a cabeça violentamente. - Recuso-me a pensar nisso! Acredito que o Hans vai conseguir! Tudo o resto é desgaste de energia! Hans está a caminho com o melhor equipamento de que um nadador pode dispor. Vai atingir a costa...

- E os tubarões? As barracudas? - Ellen pôs as mãos na cara. - Você pegou-lhe a sua loucura, Chagrin! - exclamou entre os dedos a tremer. - Primeiro matou Peter! Agora, Hans! Juro-lhe que também não sobreviverá, porque tudo o que possa acontecer a partir de agora me é totalmente indiferente!

Chagrin respondeu com uma inclinação de cabeça. "Isto é a Ellen Herder", dizia a si mesmo, "uma mulher que atravessaria as portas do Inferno para salvar o amado!"

- Viveremos, Ellen! - disse com uma voz insinuante. - Fortalecido pelo seu amor, o Hans nada agora para a costa, além... Não o traia renunciando a ele!

Estas foram as primeiras palavras com as quais Ellen ficou grata a Chagrin.

Uma hora mais tarde, Chagrin mergulhava de novo para os destroços. Ellen manobrava o guindaste, Pascale estava no posto de rádio. As duas jovens mulheres usavam fatos masculinos e os cabelos apanhados no alto da cabeça debaixo dos chapéus de abas largas. Tinha sido uma ideia de Chagrin, que não se podia considerar má.

Pedro Dalingués e Paulus, o mestiço, estavam sentados no navio mais próximo e examinavam com os binóculos o Nuestra señora.

- Os três rapazes estão de serviço! - disse Pedro. - Têm o ar de touros bem alimentados! No entanto, que diabo!, as reservas deles devem estar no fim e o combustível também. Mas fazem de conta que ainda aguentam mais cem anos!

- Isto vai ser duro! - disse Paulus, baixando o binóculo. - É a primeira vez que vamos enfrentar europeus, Pedro...

- Apesar de tudo, não passam de homens, idiota!

- Mas duros como pele de búfalo!

Pedro calou-se. O mestiço tinha razão. "Aqueles", pensava, "mostram uma tranquilidade esgotante."

 

A barbatana dorsal triangular cintilava debaixo do sol, fez uma brusca viragem e desapareceu debaixo de água. Hans Faerber, que conhecia a táctica dos tubarões, mergulhou imediatamente e deixou-se ir para o fundo com rapidez, ao mesmo tempo que preparava o arpão, que estava pronto para ser atirado. Depois procurou, às apalpadelas, o comprido punhal e constatou, com satisfação, que o seu cabo estava tão inteligentemente preso ao cinto que podia empunhá-lo com a velocidade de um relâmpago.

O tubarão, um exemplar de grande envergadura, com uma goela enorme, observava com os seus olhinhos maus o adversário desconhecido. Era mais comprido e mais forte que Faerber, mais rápido, mais ligeiro, o mar era o seu elemento, podia tentar todas as manobras imagináveis... Em oposição a ele, o homem não passava de um pacote atraente e chafurdante, que dependia das suas armas mecânicas. Ele, o rei dos mares, só tinha a sua goela, e isso bastava.

Durante alguns minutos intermináveis mediram-se com o olhar, face a face, agitando a onda com ligeiros batimentos de barbatanas... Depois, com as armas preparadas, atiraram-se um ao outro.

Faerber disparou. A flecha do arpão enterrou-se na carne lisa e cintilante do peixe. Tinha atingido o esqualo por cima da goela aberta, armada de dentes terríveis.

O tiro não tinha sido mortal, Faerber só ferira o monstro. A flecha com as pontas reviradas ficou presa no tubarão.

Atirou-se de novo para cima de Faerber, bateu-lhe com a cauda, deu meia volta. A mandíbula escancarada, porta da morte, cresceu aos olhos de Faerber com as suas filas de dentes de serra plantados em arco de circunferência, cortantes como facas afiadas, capazes de cortar claramente um corpo humano.

Faerber, apontando para o meio daquele abismo, disparou a segunda flecha de ar comprimido. Depois, arrancou da bainha o comprido punhal e empurrou-o para cima, com todas as forças.

O tubarão gigante voltou-se, empinou-se, o seu ventre branco brilhava, ofuscante de claridade... se tivesse podido gritar, teria rugido até fazer tremer o oceano. Mas só lhe jorrou uma catarata de sangue da goela, e no seu flanco ficou uma chaga aberta pelo punhal de Faerber.

Mas tinha uma vontade de viver frenética, uma força de ódio infernal! Com duas flechas de arpão no ventre, a barriga ferida donde escorria o sangue e as vísceras, deu mais uma vez meia volta e voltou para trás. Fraquejava, mas atingiu o adversário na testa com um formidável golpe da barbatana da cauda. O mar explodiu no cérebro de Faerber, caiu de lado, com os braços desesperadamente levantados, deu alguns impulsos com os calcanhares e mergulhou num turbilhão sangrento.

"É o fim", pensou com uma lucidez desesperada; "acaba depressa comigo... tubarão!"

Depois o sangue em ebulição agarrou-se aos óculos de mergulhar, sentiu outros golpes por todo o corpo e esperou o contacto dos dentes afiados que o iam dilacerar.

Despertou, espantado por estar vivo, a flutuar à superfície, deitado de costas, num mar um pouco encapelado. O vento passava por cima dele e, através do espesso fato de borracha, sentia o frio da água. Pela posição do Sol, devia ter andado à deriva, desmaiado, durante uma hora, pelo menos. O seu corpo estava gelado por ter estado muito tempo imóvel.

Voltou-se a gemer, tentou nadar e notou que os músculos tinham endurecido, que estavam gelados e sem forças. A corrente tinha-o aproximado da costa.

Via esta nitidamente, traço de verdura ao longe, quando a fraca ondulação o levantava um pouco, e calculou que estava a três milhas de terra, distância insignificante para um bom nadador como ele, mas viagem para a Lua se se tratava de a percorrer com os músculos endurecidos e gelados.

As vagas lavavam o sangue do tubarão que o enviscava. Aquele devia ser um solitário, porque a sua morte não tinha atraído os congéneres. Tinha morrido sozinho, depois de ter usado as suas últimas forças para destruir o miserável mas vitorioso inimigo. Faerber voltou-se várias vezes, mas não viu nenhum peixe à deriva com o ventre prateado voltado para o céu. Esforçou-se, então, por nadar com grandes impulsos de barbatanas, apesar da paralisia e do frio que o entonteciam. Dando suspiros na água quando os seus músculos se imobilizavam, pendendo os braços e as pernas do corpo. "É como pesos enormes", pensava: "Três mil metros! É idiota!" Esquecendo os tubarões e os cardumes de barracudas que o podiam atacar e devorar vivo, só pensava na corrente, perto das margens, que o podia levar para tão longe que ele se perdesse nos perigosos turbilhões próximos dos bancos de areia, aos quais não teria qualquer hipótese de escapar. Porque as correntes do fundo levá-lo-iam de novo para o largo, ou então alguns dos abismos aspirá-lo-iam para os seus fundos arenosos, onde seria destruído pelos remoinhos em espiral.

"Mais três mil metros.  ", pensava; "então terei conseguido e Ellen estará salva!"

Ellen!

Apenas este pensamento agia sobre ele como uma onda quente que derretia o gelo dos seus músculos... Tentou de novo nadar. Empurrando as vagas com os pés, arqueando-se contra as altas ondas, cortava o mar com os braços. Cada braçada melhorava o seu estado, sentia o sangue formigar-lhe nas veias e gritava de alegria, entre as ondas.

- Vou conseguir, Ellen, vou conseguir!

Mas o mar não pensava deixá-lo triunfar. Ao fim de meia hora, durante a qual Faerber lutou contra correntes cada vez mais fortes, o vento refrescou, tornou-se uma rude brisa e fustigou as ondas, cujas vagas atacaram Faerber e o atiraram para as suas cristas como uma bola.

No céu, amontoavam-se nuvens cinzentas. O Sol tinha-se escondido atrás daquela cortina em movimento, que engrossou até ao momento em que o céu pareceu mergulhar no mar, enquanto grandes gotas de chuva caíam na superfície.

Faerber desistiu ao fim de uma hora de luta contra os elementos. Deixou-se levar, mergulhou e elevou-se nos maciços infinitos das vagas e apenas manteve o olhar cravado na costa, que se balançava perto dele.

"Vou à deriva para o sul", pensava, "para a península de Xcalac, e é bom, porque Xcalac é uma pequena vila que nós conhecemos, onde fretámos o Nuestra señora e onde o transformámos. Há ali vedetas da Polícia Marítima... mas também há recifes, uma espécie de barreira que defende o acesso à costa. Podemos vê-los na maré baixa, mas são perigosos quando o mar sobe e não sabemos onde os seus cumes cortantes se elevam debaixo de água.

"Xcalac... Meu Deus, se eu conseguisse chegar a Xcalac! Seria um daqueles milagres que ainda acontecem nos nossos dias e de que ninguém fala..."

O mar pôs-se a rugir. A corrente levava Faerber em direcção à costa, mas, quanto mais esta se aproximava, mais altas eram as vagas. Depois viu de repente, na sua frente, à mão, segundo parecia, uma longa linha de cristas de espuma e compreendeu que tinha sido empurrado para um dos bancos de areia que os remoinhos costeiros transformavam em lugares mortais. Aqueles bancos de areia que, desde há séculos, aniquilavam os navios quando as tempestades os atiravam para as suas costas, bossas impertinentes do solo marinho, contra as quais os galeões dos Espanhóis se tinham também despedaçado, como o Zephyrus do almirante Moya, em 1540.

Era inútil tentar escapar àquelas cristas de espuma em turbilhão. A força de um homem não bastava para se opor às vagas com vários metros de altura, que se dirigiam para um fim preciso.

Com uma violência indescritível, o mar precipitou Hans contra os bancos de areia, tornou a arremessá-lo com a ressaca, como uma bola, no mar agitado, abandonou-o contra as bossas de areia endurecida e fê-lo rolar, como um casco de navio a flutuar, na espuma sibilante. Já não era possível defender-se. Faerber entregou-se ao mar em fúria. Várias vezes gritou ao embater na areia compacta e o que o tubarão não tinha conseguido fazer conseguiu-o o mar com um júbilo atroador. Aniquilou aquele ser humano suficientemente corajoso para lutar contra si, quebrando as suas últimas miseráveis forças.

Quando a noite chegou, o pescador Manuel Torqilés encontrou um homem ensanguentado- desmaiado, envolvido em sargaços, estendido na areia da margem, trezentos metros ao sul da sua cabana. O homem ainda respirava, usava o fato de borracha dos mergulhadores, mas os reservatórios de oxigênio tinham-lhe sido arrancados das costas. Em contrapartida, um largo cinto, onde estava um punhal, cingia-lhe a cintura. Restava-lhe uma barbatana de borracha no pé esquerdo.

Estava deitado de lado, encolhido sobre si mesmo, e, quando Manuel Torqués o voltou de costas, O homem gemeu, apesar do seu estado de inconsciência, e O seu rosto raiado de sangue crispou-se.

Torqués não viu outro meio de o deslocar senão envolvê-lo na rede que levava ao ombro. Levantar O desconhecido era-lhe impossível. Torqués só media um metro e sessenta, pesava menos de cinquenta quilos, estava doente, descarnado pela fome, e ter-se-ia afundado sob aquele fardo. Mas o seu sistema resultava:

arrastou o homem atrás dele através da areia fina como o peixe gigantesco que, durante toda a vida, Manuel Torqués tinha esperado tirar um dia do mar.

Na cabana, a mulher, Anna Maria, deu altos gritos quando Manuel lhe disse do exterior:

- pesquei um moribundo! - Benzeu-se três vezes antes de o ajudar a puxar o desconhecido para dentro do lar. Ali, estenderam-no na frente da lareira, abriram O fecho de correr do fato de mergulhador e Manuel tomou uma decisão de que ignorava o alto valor benéfico, sobretudo no caso presente: esbofeteou o homem à hora da morte, deu-lhe socos no estômago até o desconhecido acabar por vomitar uma onda de mar fétida que o seu estômago continha. Manuel salvou-lhe assim a vida.

Anna Maria lavou-lhe a seguir o rosto e o corpo contundido, depois, como era pesado de mais para ser deslocado pelo casal, porque sessenta anos de privações deixam marcas, deixaram-no deitado na frente da lareira, mesmo no chão, coberto por um poncho, e esperaram que despertasse ou morresse.

Hans Faerber não morreu.

Durante a noite mexeu-se, sentiu todo o corpo a arder com as múltiplas contusões, prova de que estava bem vivo, e ouviu uma voz dizer-lhe em espanhol:

- Señor, acorde... acorde... Está a ouvir-me?

Uma voz feminina acrescentou:

- Tem de comer a sopa, señor, vai fazer-lhe bem.

Hans Faerber sentiu em seguida que lhe levavam uma tigela aos lábios, abriu a boca e engoliu.

A sopa, muito apimentada, correu-lhe pela garganta como um rio de fogo que o regenerou: "Estou salvo", pensou. "O milagre deu-se. Vivo!"

- Tenho de ir imediatamente para Xcalac - disse com dificuldade; ignorava se a sua voz se ouvia, se percebiam as suas palavras ou se só ele a ouvia, como um eco no cérebro.

- Levem-me a Xcalac... imediatamente, quero ir à polícia... já! Como hei-de fazer?

- Vamos lá a pé ou num macho. - Manuel Torqués olhou para a mulher e abanou a cabeça: - Mas o senhor não, señor...

- Então, atem-me ao macho: tenho de ir a Xcalac, dar-vos-ei um milhão de pesos se me levarem imediatamente a Xcalac!

Manuel Torqués pousou a tigela no chão e estendeu o poncho por cima da cabeça de Faerber.

- O mar enfraqueceu-lhe a cabeça... um milhão de pesos... pobre cabaliero.

Anna Maria achou que tinha chegado O momento de começar a rezar.

- Dois milhões - disse Faerber debaixo do poncho, depois repeliu-o, pondo todas as suas forças nesse gesto.

- Farei de vocês mexicanos ricos! Levem-me já para a cidade!

Manuel Torqués, que tinha bebido o resto da tigela de sopa, limpou a boca com as costas da mão.

- Pobre cabaliero! -, disse tristemente. - Fique calmo, não se mexa... É mau ser louco... fechem-no... o mar possuiu-te, estás acabado, já não mudará nada...

- Cinco milhões de pesos! - exclamou Faerber. A seguir Manuel Torqués, tendo suspirado do fundo da alma, deu-lhe dois socos no queixo, gesto que mergulhou Faerber num novo estado de inconsciência.

- Assim é melhor - disse Manuel a Anna Maria.

- Um homem no estado dele só é feliz enquanto dorme.

Manuel Torqués teve uma noite agitada. Cinco vezes de seguida teve de acalmar o estrangeiro branco com um directo no queixo. De cada vez, cumpriu este acto de profilaxia primitiva com um profundo suspiro e uma verdadeira tristeza, enquanto dizia:

- Señor, eu não sou médico, e só tenho este meio para poder conservar um louco debaixo do meu tecto!

A seguir, deixava Faerber desmaiado, afundado de novo na frente da lareira.

Depois do quinto soco, Anna Maria começou a ficar preocupada.

- Talvez devêssemos escutá-lo, apesar de tudo disse. - Meu pobre Manuel, não podemos apanhar tudo com a rede, e tu não sabes fazer mais nada!

E foi assim que, no cinzento matinal, Hans Faerber conseguiu explicar-se finalmente, depois do que Manuel Torqués o fez beber um sumo de cacto adocicado mas gelado e lhe lavou as feridas da cabeça, que sangravam de novo.

- Tens um macho? - perguntou finalmente, quando se sentiu bastante forte para repelir um ataque eventual.

- Só tenho um velho burro meio cego. - Manuel encolheu os ombros. - E muito frugal... mas ainda consegue puxar as redes.

- Conseguirá ele levar-me a Xcalac?

- Ei-lo que recomeça! - berrou Torqués. Anna, dá-me o meu cacete!

Foi precisa uma hora para permitir a Faerber explicar por que lhe tinha sido dificultada a marcha para a costa. Depois Torqués continuou agachado, silencioso, diante do fogo, com os olhos cravados no homem branco. Passado um longo momento, perguntou-lhe:

- Tu disseste dos bancos de Chinchorro para a costa? Entre os tubarões? E a tempestade? E estás vivo? Santa Mãe, aqui está um milagre que entrou na minha cabana! Estou abençoado para sempre!

- Serás milionário se me emprestares o teu macho.

- Anna Maria, dá-me, então, o cacete - gemeu Torqués. - Não acredito numa palavra do que ele diz! Mente tanto quanto eu sou pobre!

Uma hora mais tarde puseram-se a caminho. O velho macho, realmente decrépito, mas útil, porque ainda tinha forças, levava os dois homens em cima do dorso em pêlo, Torqués na cernelha, Faerber no lombo, e levava-os à velocidade comedida do seu trote. Tinha na boca um freio feito de um bocado de arame mantido por rédeas de cânhamo entrançado.

- Anda! - gritava-lhe Torqués. - Vamos à vila! Há quanto tempo é que lá não vamos? Sete anos? Ou dez? Que querias tu que lá fosse fazer, eu, um pobre pescador?

- Estaremos lá daqui a pouco tempo? - perguntou Faerber, que oscilava atrás de Torqués e se agarrava às suas ancas.

Ao lado deles, à beira do caminho que bordejava um curso de água, a selva fumegava. Uma baforada de ar quente húmida, diabólica, acabrunhava-os. Respirar era um tormento, o suor corria por todos Os poros, O coração batia quase até rebentar, um cheiro a podre elevava-se dos pântanos, onde uma vegetação grandiosa, luxuriante, desabrochava, com as raízes a apodrecer. Núpcias da vida e da morte.

- Mais cinco horas, señor! - Manuel voltou a cabeça. Faerber, esgotado, tinha fechado os olhos e apoiava a cabeça ao ombro do companheiro de viagem. - Quanto é que eu vou receber, quanto é que disse?

- Um milhão de pesos - respondeu Faerber, maquinalmente.

- Dou-lhe um pontapé no cu um milhão de vezes se não for verdade! - disse Torqués, ameaçador.

- Terá esse direito.

- E Pepito, O macho, dar-lhe-á coices!

- De acordo! - disse Faerber com um fraco sorriso. - Pode construir-lhe uma bela estrebaria!

 

Chagrin mergulhou uma vez mais a seguir à tempestade, embora soubesse que era arriscado... Ellen fez descer a gaiola, pascale estava na frente do rádio, mas logo ao fim de dez minutos chegou-lhes o sinal de subida do fundo.

Chagrin saiu da gaiola protectora- atirou O aparelho respiratório para cima da ponte e sentou-se, com expressão sombria, num rolo de cabos. Ellen adivinhou o que se tinha passado lá em baixo.

- Esta maldita tempestade! - exclamou subitamente Chagrin. Era como um grito selvagem, arrancado às suas entranhas. - Afundou-se tudo.. o centro da ponte, a entrada do salão, a popa! Mais do que areia, esta maldita areia! O Zephyrus está tão completamente destruído que um novo desnível do solo ficou cavado ali onde ele estava! - Chagrin bateu com as duas mãos nas tábuas da ponte, estava fora de si.

- Não há mais nada para trazer do fundo! Nunca mais conseguiremos chegar aos barris e aos cofres que ainda restam! Há duzentos e cinquenta milhões de marcos definitivamente inacessíveis!

- E Peter Damms encontrou finalmente uma sepultura - disse Ellen a meia voz.

- Descansa em paz...

Pascale voltou-se bruscamente e correu para as cabinas. Chagrin, espantado, seguiu-a com o olhar.

- Julgaria ela que o íamos voltar a içar? - perguntou.

- Não, Chagrin, você talvez tenha tido centenas de mulheres, mas não percebe nada do coração de uma mulher: neste momento, Peter está definitivamente morto para Pascale.

- Mas, no entanto, ele estava... - balbuciou Chagrin sem argumentos.

Ellen fez um pequeno sinal de cabeça:

- De facto, Peter estava morto... mas, agora, Pascale perdeu-o, é completamente diferente.

Chagrin levantou-se e encolheu os ombros:

- Tem razão, Ellen, eu percebo mal quando começam com esta espécie de pieguices. . . gosto mais de um tubarão do que de complicações sentimentais: ele, pelo menos, consegue mostrar-nos o que pensa e o que quer! - Olhou para longe, na direcção dos barcos piratas, que pareciam ter suportado bastante bem a tempestade, porque se tinham aproximado e fechavam a tenaz à volta do Nuestra señora.

- Traga todas as armas para a ponte, Ellen, e as munições também. E faça-se à ideia de que vai ter de disparar sobre Os homens de um momento para O outro! Os nossos cães de guarda estão a ficar impacientes.

Estendeu-se. Pascale saiu do corredor das cabinas. No seu fato de homem parecia-se com um rapaz muito bonito, bronzeado à medida dos seus desejos.

- Organizêmo-nos para a defesa, Ellen! Se o Hans chegou à costa, os socorros podem chegar dentro de quarenta e oito horas. Aguentemo-nos até lá!

Ellen pousou em Chagrin um olhar vazio. Desde que Faerber tinha querido enfrentar o destino apesar dos elementos, dos tubarões, da tempestade e da distância, tinha aquela expressão de indiferença, misturada de esperança secreta que O próprio Chagrin não podia aguentar durante muito tempo; tinha sempre de desviar o olhar.

- Ainda espera que O Hans tenha conseguido? - perguntou ela com voz vacilante.

- Se já não tivesse esperança, içava a bandeira branca! Pelo contrário, quero ser O primeiro a disparar se OS irmãos piratas aparecerem. Ellen, acredito com muita força que o Hans tenha chegado à costa!

- Depois desta tempestade?

- A tempestade é menos perigosa que os tubarões! E à chegada à costa, há cardumes de barracudas...

- Você sabia tudo isso, malandro, e deixou-O partir? - exclamou Ellen, com Os punhos cerrados: - Confesse que o seu tirar à sorte não passava de uma intrujice: você não tinha um rubi e uma esmeralda nas mãos, mas sim duas esmeraldas! Hans não tinha qualquer hipótese de ganhar! Você enganou-O e mandou-O para a morte da forma mais vil: agarrando-se ao seu sentimento de honra! Canalha! Confesse então!

Chagrin olhou para Ellen durante um momento, sem uma palavra, depois abanou a cabeça lentamente:

- Lamento, Ellen, não lhe posso dar esse prazer. Nem eu teria sido capaz desse pensamento, não nesta maldita situação! Acredite o que quiser, mas eu também quero viver, e isso depende actualmente apenas de Hans, da sua força, da sua sorte!

Desceu para a entreponte e acariciou de passagem o rosto de Pascale, que o repeliu com a mão e cuspiu na direcção dele.

Passados dez minutos, Chagrin estava de novo na ponte, esfregava as mãos e dava a sensação de ter encontrado o processo de içar, apesar de tudo, os duzentos e cinquenta milhões definitivamente enterrados para bordo do Nuestra señora.

- Ainda nos restam duzentos e cinquenta litros de carburante no reservatório! É demasiado pouco para cobrir a distância que precisaríamos de percorrer, mas chegar-nos-á para fazer um pedaço de caminho ao encontro do Hans, e antes de tudo para desconcertarmos os nossos guardas! - Deitou um olhar por cima do mar agitado, que fustigava os cascos do navio com as compridas ondas cheias de espuma. - Primeiro, a direito para os bancos de Chinchorro, apontando a proa para o sul, até tão longe quanto pudermos ir. Minhas filhas, isto vai dar um destes tiroteios! Portem-se como homens!

- É inútil fazer-nos essa recomendação! - respondeu Ellen.

- Não é para si, Ellen! Eu sei: você vale bem três homens!

- É então a mim que diriges esse conselho? - disse Pascale, encostada ao posto de pilotagem. Tinha na mão uma arma automática de tiro rápido e duas pistolas metidas no cinto.

- Treinei-me no tiro dias inteiros. .. com o teu corpo como alvo. Adquiri uma mão que actua sem hesitar!

Chagrin fez uma careta e sentou-se no lugar em frente dos comandos. Accionou algumas alavancas. Dentro do navio propagaram-se trepidações, roncos, sons muito tempo esperados em vão: os motores estavam em funcionamento.

- Ice as âncoras, Ellen! - disse Chagrin pela janela aberta do posto -, e quando os barcos piratas estiverem suficientemente ao alcance do tiro, disparem! Empenhamos nisso a vida!

Ellen respondeu com um sinal, depois o cabrestante que manobrava a âncora funcionou e a pesada fateixa de ferro apareceu à superfície. Pascale, sentada no telhado do posto de pilotagem, observava os barcos piratas:

- Missão cumprida! - gritou Ellen.

Chagrin puxou uma alavanca.

- Boa sorte para os milhões! - berrou.

- Adeus, Peter! - disse Ellen muito baixo a olhar para o mar, onde, lá muito no fundo, sob um monte de areia, repousava o cadáver de Peter Damms, dentro de um galeão afundado.

O Nuestra señora saltou para a frente, descreveu uma curva fechada e apontou para Os bancos de Chinchorro.

No barco número 4, Pedro saltou do lugar e levantou os braços no ar vibrante de calor. Junto dele, Paulus começou a berrar no walkie-talkie:

- Todas as vedetas atrás deles!

- Passaram-nos a perna! - berrou Pedro, que arrancava os próprios cabelos -, passaram-nos a perna a toda a velocidade! Desgraçados!

Depois agarrou-se à primeira coisa que lhe caiu debaixo da mão, porque o seu barco deu um salto para a frente como se não fosse dotado de uma hélice, mas sim de asas que O levassem.

Começava a corrida "de vida ou de morte".

Manuel Torqués e o "cliente" que transportava chegaram à pequena vila de Xcalac ao começo da tarde. Pepito, o velho macho, não tinha podido fazer todo aquele caminho sem observar três paragens necessárias. à terceira tinha-se mesmo deitado sobre o flanco e revirado os olhos, fazendo crer que em breve iria morrer.

- Eu sei o que isto é - disse Torqués, numa voz que traía uma espécie de consideração. -Este tipo velho quer emborcar um pouco de aguardente! Vai ver que me arruina à força de se embebedar! Mas preciso dele!

Tirou um cantil do bolso, tirou-lhe a rolha e levou- aos grossos beiços do macho, que bebeu um grande gole de álcool de cacto. Levantou-se, fincou-se nos cascos, deu uma espécie de relincho áspero, levantou a cauda e deu um traque.

- Bom - disse Torqués -, já podemos continuar! Pepito sente-se à vontade, señor, o mundo está cheio de prodígios!

Depois de terem vagueado pela vila, encontraram finalmente o posto da Polícia Marítima, mesmo na extremidade do pequeno porto. Encostadas à ponte de atracação balançavam-se duas vedetas rápidas, todas brancas, armadas com pequenos canhões.

à vista disto, Faerber deixou-se cair de joelhos. Beijou o velho Torqués nas duas faces, abraçou contra o coração a cabeça de Pepito e correu a cambalear até à porta do comprido edifício com o telhado em terraço.

Duas vedetas rápidas armadas com canhões! Era a vida! A vida!

Nunca Hans Faerber, o antimilitarista, tinha acreditado antes ser capaz de saudar com tanto entusiasmo um símbolo da força armada.

Mas já se metia pelo posto da polícia, abanava a sentinela que lhe queria barrar o caminho e gritava no vestíbulo:

- Onde está o comandante? Onde está...

Depois, seis mãos enérgicas apoderaram-se da sua pessoa e arrastaram-no atrás delas...

O comandante das vedetas rápidas, um capitão de polícia com um bigodinho conquistador, vestindo um uniforme de uma brancura ofuscante, mandou primeiro revistar Faerber, a fim de se certificar que não escondia nele nem bomba nem armas. Quando ficou provado que o estrangeiro não passava sem dúvida de um louco inofensivo, que não suportava o clima infernal das florestas virgens do lucatão, o oficial mandou sentá-lo, quer quisesse quer não, pôs-lhe debaixo do nariz uma caixa de lata cheia de delgadas e compridas cigarrilhas e mandou dar-lhe um copo de água gelada, que Faerber bebeu avidamente, enquanto, nesse mesmo instante, sentia o suor saltar-lhe de todos os poros.

Durante esse tempo, tinham recolhido o depoimento de Manuel Torqués numa sala vizinha.

- Um louco! - afirmou Manuel -, alugou o Pepito por um milhão de pesos... chegou a propor-me três. . . depois cinco.

- Milhões de pesos... - acabou o tenente da polícia, espantado. - Pelo teu burro meio cego?

- Guardem-no à vista e esperem! - disse aos seus subordinados, apontando para Manuel, e depois correu para fora da sala.

Entretanto, na companhia do capitão, Faerber já tinha bebido mais dois pequenos copos de aguardente e brilhava cada vez mais de suor. O tenente da polícia entrou, inclinou-se na frente do capitão e murmurou-lhe ao ouvido:

- Um louco! Ofereceu cinco milhões de pesos por um macho! Veio até à costa de fato de mergulhador. Tudo o que possuía, tinha com ele num saco de plástico! É um caso muito simples, meu capitão.

O oficial respondeu com um sinal de cabeça e mandou sair o tenente, depois observou de novo Faerber com O olhar, desta vez com um ar extremamente interessado:

- O senhor chamou-me ainda agora ao atravessar a soleira do comissariado marítimo, señor - disse com a delicadeza de um grande senhor mexicano. - Posso saber, señor, o que espera de mim?

- Preciso das suas vedetas rápidas imediatamente - disse Faerber, ofegante.

O oficial respondeu-lhe primeiro com um aceno e acrescentou:

- Porquê apenas as vedetas? Será necessário pôr toda a marinha mexicana à sua disposição? Onde está o inimigo, por favor?

- Julga-me louco, sem dúvida? - perguntou Faerber, inclinando-se por cima da mesa colocada entre ele e o capitão: - Peço-lhe, ajude-me! É uma questão de minutos! Ao largo, entre a costa e o banco de Chinchorro, está ancorado o nosso barco, o Nuestra señora, cercado pelos piratas. Já não temos carburante, é impossível levantar ferro, e recolhemos a bordo vinte mil milhões de ouro e pedras preciosas... Compreenda-me, descobrimos no fundo um galeão espanhol e conseguimos recuperar uma parte do ouro... mas é impossível que o meu amigo - nomeou Chagrin, nesse momento, verdadeiramente seu amigo - e as duas jovens mulheres que estão a bordo consigam defender-se muito tempo contra os piratas! Peço-lhe...

O capitão ouvia Faerber, com o olhar parado, a boca aberta, depois, quando lhe pareceu evidente que não estava a tratar com um louco, e que, com tanto dinheiro a bordo, bem podia oferecer cinco milhões por um macho, saltou, abriu a porta e rugiu no corredor:

- Alerta! Todas as vedetas prontas para sair. Primeiro escalão!

Uma campainha de alarme soou, com uma nota aguda, através de todo o edifício. Os ruidos das sirenas responderam no porto. O tenente apareceu a correr, visivelmente fora de si. Porque o primeiro escalão significava quase um raid de guerra.

- Quem está a atacar? - perguntou.

- Amerigo Santilla...

Esse nome bastou, mesmo que se tratasse de um erro e que, no seu lugar, se fizesse a honra ao miserável duplo, Pedro Dalingués, de ser perseguido no dia em que O desajeitado queria voar com as suas próprias asas. Vinte minutos mais tarde, as duas vedetas rápidas levantavam ferro, e, com a ostentação da espuma levantada pelas suas proas, saíam do porto militar rigorosamente guardado de Xcalac. As peças de artilharia estavam em posição de tiro, os seus serventes usavam capacetes de aço, Os atiradores também já iam sentados atrás das metralhadoras.

O capitão, Errico Cabaílos, estava, ao mesmo tempo, em ligação através do rádio com o porto de guerra de Chetumal e com O almirante, comandante da frota do lucatão, Miguel de Barra. Deste ponto, a grande notícia foi transmitida por rádio para O México, onde, em breve, O Ministério das Finanças - como se poderia ter pensado outra coisa? - se ocupava da questão e se mostrava dos mais eficazes.

Solitários, esquecidos, ultrapassados por esta parada militar, Manuel Torqués e O seu velho macho Pepito ficaram no cais. Manuel sentou-se numa viga de ferro, enrolou um grosso cigarro feito de alguns grãos de tabaco num bocado de papel de jornal e olhou tristemente as vedetas, que se afastavam a toda a velocidade.

- Onde está o nosso milhão? - perguntou enquanto acariciava as narinas de Pepito, palpitantes e aveludadas. O velho macho soprou e deitou as orelhas para trás. - Sim, assim vai o mundo, tens razão.

Manuel enxugou os olhos.

- Para nós, pobres, nada muda: eles enganaram-nos, Pepito, isto nunca mudará!

O pescador Manuel não sabia ainda, nesse momento, que se iria tornar verdadeiramente milionário.

A corrida de velocidade travada entre os barcos piratas e o Nuestra señora não durou muito tempo. Como era previsível, Pedro ganhou-a.

Precisamente durante uma hora, o barco singrou através do oceano. O velho motor devorava o combustível como uma pipa sem fundo. O andamento "a todo o gás" tinha um efeito destruidor sobre toda a maquinaria. Passada meia hora, tudo fazia ruídos e chiava na sala das máquinas e Chagrin gritou, num tom sarcástico, para Ellen e Pascale, que se tinham abrigado, nos seus fatos masculinos, e observavam os barcos que os perseguiam:

- Rezem para que não haja uma explosão, porque estamos num verdadeiro caldeirão de bruxas!

Ao fim de uma hora, o depósito de carburante estava vazio. O motor soluçou, como um bêbedo antes de rolar para baixo da mesa, depois começou a arquejar e cessou toda a actividade.

Chagrin amarrou solidamente o leme, pôs a alavanca do combustível no zero e saiu do posto de pilotagem. Meteu debaixo do braço a arma automática de tiro rápido e foi encontrar-se com Ellen, que estava deitada atrás de um grosso rolo de cabos.

Em formação dispersa por uma vasta frente, os pequenos barcos a motor de Pedro avançavam para eles. Dez vespas rápidas que iam assaltar a sua vítima.

Chagrin deitou-se no chão da ponte, junto de Ellen.

- O que escolhe - perguntou cada vez mais sarcástico -: uma bala na sua bonita cabeça, rezar ou esperar?

- Esperar! Poderemos sempre rezar ou matarmo-nos em seguida.

Os barcos de Pedro desdobraram-se em leque e cercaram de novo o Nuestra señora.

- Quanto tempo teremos?

- Isso depende da coragem de que for capaz o poltrão ali da frente, que terá talvez de sacrificar alguns dos seus camaradas, a menos que prefira matar-nos à fome antes. Se ele escolher esta última solução, então reze para que Hans tenha conseguido atravessar o mar

e nos venha tirar daqui! Penso que é a única entre nós capaz de rezar de verdade!

- Se acredita que isso nos pode ajudar!?

Ellen deitou uma olhadela de lado para Chagrin, cujo rosto, com OS traços marcados, queimado pelas intempéries, estava muito sério.

- E se eles atacam?

- Nem pensemos nisso, Ellen!

- Abata-me antes, René, eu sei O que POSSO esperar dos piratas...

- Nem deve falar nisso! - grunhiu Chagrin -, eu quase aposto que Hans conseguiu!

- E se não tiver conseguido?

- Os seus gritos de águia-marinha terão O poder de quebrar os nervos mais fracos que os meus.

- Quero uma certeza, René!

O ronco dos pequenos barcos a motor calou-se. A força combatente, comandada por Pedro, esperava o sinal de ataque.

- Gosto de saber com o que contar em todas as situações - recomeçou Ellen. - Sei que sou incapaz de me matar a mim mesma, mas você, René, não deve entregar-me aos piratas. Mate-me antes. Por que hesita em dizer-me que Sim? Durante semanas não tinha mais nada na cabeça senão suprimir-nos a todos, por causa do ouro. Neste momento, isso é-lhe permitido, peço-lhe até...

- você é uma mulher fantástica!

Chagrin olhou para o barco, que avançava lentamente para O Nuestra señora. Pedro estava sentado atrás da metralhadora e tinha um megafone na mão. Preparava-se para negociar. O risco de ser abatido durante uma escaramuça era demasiado grande para ele.

- prometo-lhe Ellen bater-me-ei por si e por Pascale até já não haver razão para continuar. Depois, veremos.

- Obrigado, René.

Ellen sorriu palidamente e dirigiu um pequeno sinal de confiança a Chagrin, depois olhou por cima do cano da arma para Pedro, que avançava com prudência.

- Você reparou muitas coisas com essas palavras...

- Não sei. Não me idealize, Ellen, sou e continuarei a ser um monstro...

Destravou a patilha de segurança e apoiou a coronha da arma ao vão do ombro.

- Bem, agora, fogo! Disparem sobre os barcos por baixo da linha de flutuação!

A primeira salva crepitou. Pascale, perfeitamente colocada, disparava do telhado do posto de pilotagem. Mas alvejava um homem, o mexicano Domingo.

Pedro deu um salto quando as balas bateram no barco. Pôs-se ao abrigo da metralhadora e rugiu os mais ignóbeis palavrões espanhóis. Atrás dele, Domingo deu um grito e levou a mão ao antebraço direito, caiu desmaiado. Nos outros barcos, manifestou-se um certo nervosismo. Apareceram espingardas e revólveres.

- Para trás - berrou Pedro. A sua hipótese de sobrevivência era escassa. Além disso, todo aquele caso era diabolicamente complicado, porque se eles mandassem o navio para o fundo todo o ouro estaria de novo perdido...

O barco dele teve um sobressalto, o motor rugiu e, debaixo da segunda rajada disparada por Chagrin e Ellen, afastou-se a uma velocidade louca do Nuestra Señora.

Satisfeito, Chagrin notou que dois homens se ocupavam febrilmente a tapar os buracos abertos no casco pelas balas deles.

- Era a nossa salva de boas-vindas - disse a rir, mas Ellen sabia que era um riso angustiado. - Eles perceberam. Agora, vão recompor-se e esperar a chegada da noite. Temos um pequeno descanso. - Chagrin levantou-Se do canto onde se mantinha emboscado. - Ellen, o momento chegou: reze para que Hans tenha atingido a costa!

Foi quase ao mesmo tempo que as duas vedetas rápidas deixaram o porto de Xcalac, enquanto Manuel cantava ao seu macho Pepito a ladainha da miséria dos fracos.

O sol tingia-Se de sangue e cobria o mar de traços de ouro rosado numa noite para fazer sonhar com OS olhos muito abertos, quando, no horizonte, apareceram as duas vedetas brancas. No ecrã do radar, já há muito que tinham localizado o Nuestra señora, mas num ponto muito diferente do indicado por Faerber. Se o objecto aparecido no ecrã do radar fosse o navio de mergulho, encontrava-Se muito mais para sul do que eles julgavam.

- Tentaram fugir com as últimas reservas de carburante - constatou Faerber.

Mantinha-Se na ponte, junto do capitão Cabaílos, e inspeccionava o mar com a ajuda de um dos potentes binóculos. O marinheiro que tinha subido para junto do mastro do radar anunciou que um navio chato, largo, com superstruturas com arcos de volta abatida, estava à vista.

- São eles! - gritou Faerber, radiante. - Escaparam pelos seus próprios meios. Nunca esquecerei O que Chagrin tentou desta vez!

Cabaílos deu uma rápida olhadela de lado, depois carregou num botão do painel de bordo. Em todo o barco, soou uma campainha com um toque agressivo. Na ponte de atracação, um marinheiro enviava sinais de bandeiras à vedeta mais próxima.

Toque para combate, aos vossos postos!

- No ecrã do radar, há mais dez pontinhos cintilantes - disse Cabaílos calmamente. - Señor, vá à entreponte e peça ao enfermeiro algodão para tapar os ouvidos, os canhões vão começar a seguir a fazer fogo... o senhor ainda não sabe como isto é...

- Julga? Servi dois anos nos carros de combate e sou artilheiro.

- Médico, mergulhador, nadador de fundo, artilheiro... o que é mais, señor?

- Estou cansado, meu capitão, diabolicamente derreado, poderia deitar-me e dormir...

- Nada o impede, mereceu-O!

- Quando estiver no meu barco!

- E nos braços da sua noiva... - Cabaílos sorriu um grande sorriso. - Um cavalheiro mexicano terá sempre para com esses sentimentos a mais delicada das compreensões.

- Com certeza! - Faerber respondeu com um sorriso. - Acredite que vou dormir quarenta e Oito horas!

Antes mesmo que os barcos do pequeno poltrão Pedro, que eles julgavam ser o grande Santilla, tivessem dado conta das vedetas da marinha de guerra, a primeira salva das peças de artilharia ouvia-se no céu dourado do anoitecer. Os projécteis bateram na superfície do mar, entre os barcos, não atingiram nenhum, mas elevaram-se gêisers enormes entre eles. Chagrin, louco de alegria, dançava na ponte, depois abraçou Ellen, beijou-a nas duas faces e puxou também Pascale por um tornozelo para fora do posto de pilotagem e teve para com ela o mesmo gesto. Desta vez, ela aguentou aquela manifestação da parte dele, mas não lhe devolveu o beijo.

Para Pascale, nada a traria de volta a Chagrin. Talvez lhe perdoasse, sem nunca esquecer.

Pedro e os piratas foram tomados pelo pânico. Como tinham feito muitas vezes aquela manobra, os barcos deles dispersaram-se rapidamente em todas as direcções. Aquela táctica tinha por fim despistar o atacante, que já não sabia quem perseguir.

Pedro e Domingo, tal como dois homens de mão

recém-contratados, gritavam até secar a garganta, faziam sinais, disparavam para o ar, berrando finalmente de raiva. O barco deles, maltratado por Chagrin, Ellen e Pascale, a ponto de já não poder arriscar-se a uma velocidade rápida, ia à deriva, com O motor a falhar. Foi abandonado pelos outros.

- Aqueles cães! - rugiu Pedro a sacudir os punhos na direcção dos barcos que fugiam. - Aqueles miseráveis cães! Virgem Maria, castiga-Os, inflige-lhes a sífilis e a lepra! Domingo, a toda a velocidade! A toda a velocidade!

Em vão. Ao fim de alguns metros, a água tinha penetrado pelos buracos calafetados à pressa e o barco começou a ficar pesado. Conformado, Pedro fez um sinal. O motor foi desligado. Então, Pedro ajoelhou-se atrás da metralhadora, juntou as mãos e começou a rezar pela salvação da sua alma. Os seus acólitos, seguindo-lhe o exemplo, fizeram O mesmo. Foi assim que o capitão Cabaílos mandou parar todos os seus motores junto do barco, que balançava nas ondas, para se debruçar sobre uma tripulação que rezava.

A incredulidade dos piratas é uma lenda, sobretudo quando se trata de piratas mexicanos. Disparando com todos os canhões, a segunda vedeta de guerra foi atrás dos barcos em fuga e cortou-lhes a retirada para a costa. Dir-se-ia uma batida às lebres... a caça corria a descrever ziguezagues, enquanto o caçador alvejava e disparava, voltava-se, alvejava e disparava outra vez. Cada tiro batia no alvo.

Depois Os marinheiros só tiveram de recolher a bordo os piratas que nadavam no mar, a gritar, antes que Os tubarões surgissem...

Sobre uma ponte vacilante, que tinha sido lançada de uma borda para a outra, Faerber passou para o seu barco. Ellen correu para ele e, de repente, começou a chorar, pendurada ao seu pescoço, como uma criança. Toda a coragem, toda a determinação a abandonava e só restava O sentimento da felicidade de viver... viver.. . viver...

Pascale também se agarrou a Faerber a chorar e depois voltou-se e foi a soluçar para a sua cabina, onde se sentou na frente da fotografia de Peter Damms. Com o rosto enfiado nas mãos, chorou longamente.

Um pouco à parte, de pé, encostado aos barris cheios de ouro, estava René Chagrin, com a arma automática ainda à mão. Encostou-a à sua coxa esquerda quando Faerber, desprendendo-se do abraço de Ellen, avançou para ele. Nesse momento, o capitão Cabaílos e dois oficiais subiam a bordo. Cumprimentaram Ellen militarmente, mas com uma elegância muito latina.

- Você conseguiu, Hans - disse Chagrin calmamente. - Felicito-o. Gozei antecipadamente o seu êxito. Eis-me à sua disposição.

- Que quer dizer, René?

Faerber parou encostado a Chagrin.

- Entregue-me à polícia civil!

- Porquê?

- Nada de perguntas estúpidas! Sabe muito bem que eu tinha desde há muito tempo traçado uma cruz sobre cada um de vocês! De acordo com o direito mexicano, sou um homem morto!

- Pensa mesmo isso, Chagrin? Pense um pouco:

um mergulhador morto não recebe ouro. Ora, você está agarrado ao ouro antes de tudo. Vamos, Chagrin, poupe-me esse último número de heroismo; além disso, salvou Ellen, o ouro, Pascale e a si mesmo, naturalmente.

- Você, Hans, não eu!

- Nós dois, Chagrin. Na prova, você conduziu-se de tal forma que O esquecimento se torna fácil. - Faerber sorriu, piscando maliciosamente o olho na direcção de Chagrin. - Portanto, ignoro absolutamente aquilo de que fala, René! Nós formamos uma família... - Rodeou Chagrin com os braços e deu-lhe um abraço.

- Obrigado - disse Chagrin, com voz rouca, atirando a arma automática para cima de um monte de cabos. - Além da vocação de médico, teria podido ter também a de missionário! É aborrecido!

Voltou-se com um movimento brusco e dirigiu-se depressa para a popa.

Admirado, Cabaílos seguiu-O com o olhar:

- O que é que ele tem?

- Está feliz - respondeu Faerber -, à sua maneira, inexplicavelmente feliz!

 

Que aconteceu em seguida?

Diz-se depressa!

O ouro tirado do mar, que depois da contagem rigorosa de todas as moedas, lingotes e jóias, rendeu um total de quatrocentos e vinte milhões de francos, foi reivindicado pelo México, porque tinha sido retirado das águas mexicanas. Os Espanhóis tinham perdido os seus direitos sobre ele, primeiro, porque, depois de quatrocentos e trinta e dois anos, aqueles haviam caducado, depois, porque os tesouros tinham sido roubados ao México, por meio da chacina e do fogo.

Durante seis meses, Os advogados tiveram muito que fazer, depois chegaram todos a acordo: Hans Faerber recebeu cinquenta por cento do tesouro, porque, sem ele, tal como o seu advogado Ponharés, no México, o fez admitir logicamente, o Estado nunca teria entrado na posse dos outros cinquenta por cento. Era tudo lucro.

Agora, o doutor Hans Faerber e sua mulher, Ellen, vivem numa grande cidade do Sul da Alemanha Federal e pensam abrir uma clínica privada, porque não fazer nada e viver do dinheiro amontoado não é o seu género.

Chagrin volatilizou-se, com a sua parte dos milhões, para qualquer lugar do Mundo. Correm alguns boatos a seu respeito nalguns meios parisienses especiais; parecem estar perto da verdade: Chagrin teria fixado domicílio numa ilha dos mares do Sul, onde vive como um reizinho, rodeado de um enxame de bonitas raparigas fáceis: liberdade absoluta e banho diário num barril cheio de moedas de ouro.

E Pascale? Se formos passear para uma das mais elegantes artérias de Paris, a Rua de Faubourg-Saint-Honoré, saberemos que uma nova boutique abriu as suas portas. Há ali vestidos dos mais caros e extravagantes da capital francesa. Toda a gente que tem um nome ou se encontra colocada num lugar privilegiado da escala social pode mesmo esperar vir a ser vestida pela própria Mademoiselle Pascale.

Mas o grande vencedor da aventura foi, sem dúvida, o fisco alemão. Embolsou cinquenta e cinco por cento de impostos sobre a receita, onze por cento de taxas sobre os lucros. . . isto sem mergulhar, sem lutar contra tubarões ou polvos, sem ter de se defender contra os piratas ou nadar até a uma costa quase inacessível através de cardumes de tubarões, ou ainda de enfrentar os pântanos... Não fez nada... e embolsou a maior parte.

Os piratas mexicanos não são de facto os piores...

É também o que Faerber gosta de repetir.

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik  

 

                      

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