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O OUTRO LADO DA MOEDA / Patrick O'brian
O OUTRO LADO DA MOEDA / Patrick O'brian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Baseado no famoso julgamento contra Thomas Cochrane pelo calote na Bolsa, O OUTRO LADO DA MOEDA explica em profundidade e com rigor um tema pouco tratado por outros autores de romances náuticos: a situação econômica dos capitães nos tempos de Nelson. O’Brian mostra com enorme poder de convicção como um capitão podia passar do elogio desmedido ao ostracismo, e até que ponto sua carreira estava sujeita aos solavancos do acaso. O aprofundamento nos personagens é nesta ocasião excelente, e a intriga se mantém com uma intensidade própia do romance policial.
Quem leu algum dos numerosos livros escritos sobre o lorde Cochrane ou, como passou a se chamar com a morte de seu pai, o duque de Dundonald, recordará que foi julgado em Guildhall por um tribunal presidido pelo lorde Ellenborough por cometer fraude na bolsa, e que foi declarado culpado.
Tanto lorde Cochrane como seus descendentes sempre sustentaram energicamente que não era culpado e que lorde Ellenborough não havia feito um julgamento justo, e a maioria dos biógrafos, incluído o melhor deles, o professor Christopher Lloyd, estão de acordo com os descendentes. Por sua parte, lorde Ellenborough e seus sucessores mantiveram o contrário, e um deles decidiu escrever um livro para refutar as afirmações do décimo, do décimo primeiro e do décimo segundo duques; contudo, ao compreender que não tinha conhecimentos suficientes com respeito à questões legais, entregou os documentos e encomendou a tarefa ao senhor Attlay, um renomado advogado do escritório Lincoln que se documentou muito bem e escreveu um longo livro com uma lógica argumentação, capaz de comover a todos menos aos mais tenazes defensores de lorde Cochrane.
Com relação a esta história, o livro do senhor Attlay tem valor não porque tenta demostrar a culpabilidade ou a inocência das partes, mas porque mostra como se desenrolou exatamente o julgamento. Usei essa informação sobre o julgamento e, apesar de simplificar os complexos casos legais e eliminar montes de testemunhas, conservei a estrutura deste e sua curiosa ordem; portanto, o leitor pode aceitar como autêntica a seqüência de acontecimentos, que em nossos dias parece incrível.

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CAPÍTULO 1
A esquadra das Antilhas se encontrava em frente a Bridgetown, sob os raios do brilhante sol e protegida dos ventos alísios do nordeste. Havia se reduzido a poucos navios: o velho Irresistível, que levava o estandarte vermelho de sir William Pellew no pau traquete, duas ou três corvetas meio destroçadas com poucos tripulantes, um transporte e um barco aprovisionador. Os outros navios que a formavam, os que podiam navegar sem dificuldade, estavam longe, no Atlântico ou no Caribe, tentando encontrar os barcos de guerra franceses e norte-americanos que possivelmente sulcavam suas águas, além dos inumeráveis barcos corsários bem armados, bem governados e com numerosa tripulação que navegavam por ali buscando laboriosamente suas presas: os mercantes da Inglaterra e de seus aliados.
Apesar dos barcos serem velhos e das inclemências do tempo os terem corroído e estragado, pareciam muito bonitos em meio às águas de cor azul escuro. Estavam em tão bom estado como era possível nas Antilhas; os danos ocasionados pela passagem do tempo se dissimulavam com massa de vidraceiro e pintura, e todos os objetos de metal brilhavam. Alguns haviam perdido muitos tripulantes por causa da epidemia de febre amarela da Jamaica e da zona espanhola do continente americano, pelo que apenas restavam suficientes para recolher âncoras; contudo, ainda havia a bordo bastantes oficiais e marinheiros que conheciam tão bem a fragata que nesse momento se aproximava navegando contra o forte vento como a muitos de seus tripulantes. Era a Surprise, uma fragata de vinte e oito canhões que tinha como missão proteger os baleeiros britânicos que pescalhavam no Pacífico sul de uma fragata norte-americana de similar potência, a Norfolk. Era mais velha que o Irresistível (na realidade, estava a caminho do desmache quando a haviam destinado àquela missão), mas, ao contrário deste, navegava com facilidade, sobre tudo de bolina. Se não fosse porque levava a reboque um barco desaparelhado, haveria se reunido com a esquadra pouco depois do almoço; contudo, nessas circunstâncias era duvidoso que o conseguisse antes do canhonaço da tarde.
O almirante acreditava que ela conseguiria, mas não era objetivo, já que em seu julgamento influía seu enorme desejo de saber se o capitão da Surprise havia cumprido com sua missão e se o barco que rebocava era uma presa capturada nas extensas águas que estavam sob sua proteção ou simplesmente um baleeiro neutro ou britânico desmantelados. No primeiro caso, sir William obteria um doze avos de seu valor, e no segundo, nada, nem sequer alguns marinheiros recrutados à força, pois os baleeiros que pescavam no Pacífico sul estavam protegidos. Também influía seu desejo de celebrar uma noitada musical. Sir William era um velho corpulento de expressão decidida e olhar penetrante. Tinha o aspecto de um simples marinheiro e o uniforme dava ao seu robusto corpo uma aparência estranha. Ele gostava muito de música, e na Armada todos sabiam que nunca se fazia ao mar sem levar pelo menos um clavicórdio e que havia obrigado o seu assistente a assistir aulas de afinar instrumentos em Portsmouth, em Valletta, na Cidade do Cabo e em Madras. Assim como, todos sabiam que era aficionado à companhia de bonitos jovens, mas como satisfazia seu hobby discretamente, sem alterar a ordem nem provocar escândalos, a Armada aceitava esta mania de tão bom grado como aceitava a sua paixão por Händel, não menos ilógica por ser explícita.
Um desses bonitos jovens, o primeiro tenente do navio insígnia, encontrava-se nesse instante junto dele no castelinho. O jovem havia começado sua carreira naval como guarda-marinha e tinha então tantas espinhas na cara que lhe haviam posto o apelido de Dick o Manchado, mas quando a sua pele se recuperou, converteu-se em um Apolo marinheiro; contudo, apesar de ser um Apolo marinheiro, não se dava conta de sua beleza e pensava que havia conseguido o posto unicamente graças a sua diligência e aos méritos acumulados durante o desempenho de sua profissão.
- Poderia ser perfeitamente uma presa - disse o almirante e, depois de olhar pelo telescópio durante um bom momento, falou do capitão da Surprise -: afinal de contas, Jack Aubrey é chamado de o Afortunado. Recordo quando entrou no comprido e apertado porto de Mahón com uma fileira de mercantes apresados atrás de si que parecia o cometa Halley. Naquela época, lorde Keith estava ao comando da esquadra do Mediterrâneo. Aubrey deve ter conseguido uma pequena fortuna cada vez que saía para patrulhar a zona. Tem olho para as presas, ainda que… Mas eu me esquecia… O senhor navegou com ele, né?
- Oh, sim, senhor! - exclamou Apolo. - É verdade! Ensinou tudo o que sei de matemática e nos explicou a todos muito bem os fundamentos da navegação. Nunca existiu um marinheiro melhor; quero dizer, entre os capitães de navio, senhor.
O almirante sorriu ao notar o entusiasmo e a genuína admiração do jovem. Então dirigiu outra vez o telescópio para a Surprise e disse:
- Ademais é um virtuoso do violinista. Tocamos juntos durante uma longa quarentena.
Contudo, nem todos compartiam o entusiasmo do primeiro tenente do navio insígnia. Poucos metros mais abaixo, o capitão do Irresistível explicava à sua esposa em sua cabine que nem Jack Aubrey nem seu barco eram tão bons.
- Essas velhas fragatas de vinte e oito canhões deveriam ter sido levadas para o desmache faz muito tempo. Pertencem a uma época passada e não servem mais que para pôr-nos em ridículo quando uma fragata norte-americana de quarenta e quatro canhões aprisiona alguma. As duas se chamam fragatas e, como os que não são homens do mar não vêem a diferença entre elas, dizem: "Vá, uma fragata norte-americana capturou uma das nossas! A Armada se deteriorou! A Armada já não é o que era!".
- Deve de ser uma dolorosa experiência, querido - afirmou sua esposa.
- Canhões de vinte e quatro libras e gabaritos como os de um navio de linha! - exclamou o capitão Goole, que nunca havia conseguido digerir as vitórias norte-americanas. - Quanto a Aubrey… Chamam-no de Jack o Afortunado, e é inegável que capturou muitas presas no Mediterrâneo. Lorde Keith o beneficiou muito, pois o mandava fazer um cruzeiro atrás de outro, o que molestava a grande número de pessoas. Também ganhou dinheiro no oceano Índico, quando foi tomada a ilha Mauricio, em 1809, ou foi em 1810?, mas desde então não ouvi que tenha ganhado muito. Acho que exagerou e que acabou a sua sorte. Em todos os assuntos dos homens há altibaixos… - concluiu, vacilante.
- Estou segura de que os há, querido - disse sua esposa.
- Harriet, peço que não me interrompa a cada vez que abro a boca. Fez com que eu me esquecesse outra vez do que ia dizer.
- Sinto muito, querido - acrescentou a senhora Goole, fechando os olhos.
Havia vindo da Jamaica para recuperar-se da febre amarela e evitar ser enterrada entre caranguejos, mas às vezes se perguntava se sua decisão havia sido acertada.
- Contudo, ainda que o provérbio diz que a oportunidade é careca, não se deve forçar as coisas. Quando se nota que a sorte deixou de lhe acompanhar, deve descer os mastaréus para a coberta, por rizes nas gáveas e preparar-se para tapar as escotilhas com tábuas e navegar com uma vela de capa se o tempo piora. Mas o que fez Jack Aubrey? Seguiu navegando a toda vela como se a sorte fosse durar para sempre. Além do dinheiro que conseguiu no Mediterrâneo, deve ter obtido uma boa soma na operação Mauricio, mas o investiu em ações fortes a dois e meio por cento de juro? Não, não o fez. Começou a pavonear-se por aí, chegou a ter um estábulo de cavalos de corrida, ofereceu banquetes como se fosse um governador e cobriu a sua esposa de diamantes e vestidos de tafetá.
- Vestidos de tafetá, capitão Goole? - perguntou sua esposa.
- Bem…, vestidos caros. Vestidos de paduasoy{1}, de seda, de musselina da Índia e outros tecidos desse tipo, e também lhe presenteou com uma peliça de pele.
"Quanto eu gostaria de ter diamantes e uma peliça de pele!", disse para si a senhora Goole ao mesmo tempo que melhorava sua opinião sobre o capitão Aubrey.
- Ademais é um jogador - continuou seu esposo. - Eu o vi perder mil guinéus em uma partida no Willis's. Depois tratou de recuperar sua fortuna mediante um disparatado plano para tirar prata da escória de uma mina de chumbo e encarregou a um obscuro projetista que o pusesse em prática enquanto ele navegava. Ouvi que está com a corda no pescoço.
- Pobre capitão Aubrey - murmurou a senhora Goole.
- Mas o verdadeiro problema do capitão Aubrey é que não consegue ficar com os calções postos - disse o capitão, depois de uma comprida pausa durante a qual observou como a distante fragata virava a bombordo e dirigia a proa para o cabo Needham.
Para a senhora Goole lhe parecia que esse era um defeito muito comum na Armada, pois seu esposo lhe havia contado que muitos de seus companheiros pecavam do mesmo, e durante os primeiros dias de seu matrimônio pensou que os barcos eram governados majoritariamente por sátiros. Contudo, nenhum a havia incomodado nem um pouco e, em sua opinião, todos haviam agido como se tivessem colada a roupa interior. Seu esposo notou sua falta de convicção e continuou:
- Quero dizer que vai além dos limites. É um libertino, um licencioso, um puteiro… Quando éramos guardas-marinhas no Resolution, na base naval do Cabo, escondeu uma jovem negra chamada Sally onde se guardavam as amarras da âncora e lhe levava quase toda sua comida. Quando a descobriram e a desceram pelo costado, ele se pôs a berrar como um bezerro. O capitão o rebaixou, quer dizer, rebaixou a sua categoria à de simples marinheiro, ainda que talvez o fez em parte pela lingüiça.
- Pela lingüiça, querido?
- Sim. Mediante um sistema de motores e ganchos roubou quase toda a lingüiça que o capitão tinha numa bandeja. Nosso grupo dispunha de muito poucas provisões e, ademais, a jovem necessitava alimentar-se… Era uma lingüiça estupenda, estupenda. Lembro-me bem. Bem, então como castigo, rebaixaram-no de categoria até o final da missão; por essa razão eu tenho mais antiguidade que ele. Não obstante, isso não serviu de nada. Voltou a aprontar, mas dessa vez no Mediterrâneo. Seduziu a esposa de um capitão de navio quando era só um simples tenente ou, no máximo, um capitão de corveta.
- Talvez a passagem dos anos e assumir maiores responsabilidades o tenham feito ganhar sensatez - sugeriu a senhora Goole. - Acredito que está casado. Conheci uma tal senhora Aubrey na casa de lady Hoods. É uma mulher muito elegante e educada, e tem vários filhos.
- Não mudou nada, nada - disse o capitão Goole. - O último que ouvi dele é que corria por Valletta atrás de uma italiana ruiva. As manchas do leopardo não mudam. Por outro lado, seu pai é esse louco do general Aubrey, um membro do Partido Radical que constantemente ataca o Governo, e ele se parece muito com ele, pois sempre foi impulsivo e imprudente. Agora está a ponto de desaparelhar seu barco. Olhe como navega a toda vela! Provavelmente se chocará com o arrecife do cabo Needham. Não poderá evitar.
Essa parecia a opinião geral no navio insígnia. As vozes cessaram, mas voltaram a ser ouvidas junto com risos e aplausos pouco depois, quando os tripulantes da Surprise, que navegava a toda vela para a destruição, giraram o leme a sotavento e a fizeram mudar de bordo como um cúter puxando um cabo que unia o pescante de bombordo ao reboque.
- Não havia visto essa manobra desde que era um garoto - afirmou o almirante golpeando a borda com satisfação -, Como foi bem feita! Mas tem que se conhecer muito bem o barco e a tripulação para atrever-se a levá-la a cabo. Que homem mais decidido! Agora poderá chegar facilmente com essa bordada. Estou convencido de que traz uma presa. Notou que tinha um cabo no pescante de bombordo? Boa tarde, senhora - dirigia-se à senhora Goole, cujo marido a havia trocado por cem braças de cabo gasto. - Notou que tinha um cabo no pescante de bombordo? Richardson lhe explicará tudo.
Então, coxeiando devido ao reumatismo, desceu a escada que conduzia ao castelo de popa.
- Bem, senhora -, disse Richardson com um tímido, mas triunfante sorriso - isso não é muito diferente de dar um puxão com uma pracha. A inércia do reboque substitue o puxão da âncora de bombordo…
A manobra foi muito admirada pelos marinheiros, que a observaram com os telescópios desde as portalós, e enquanto a Surprise se aproximava dando a última bordada, falaram dela (da extraordinária velocidade que podia alcançar se fosse bem governada, do difícil que seria avançar se fose mal governada) e de seu capitão. Apesar de todos seus defeitos, Jack Aubrey era um dos capitães combativos mais reconhecidos da Armada, e ainda que poucos daqueles marinheiros houvessem navegado em seus barcos, todos tinham amigos que haviam participado em algumas batalhas com ele. O primo de William Harris havia lutado com ele na primeira e talvez a mais espetacular batalha que havia travado. Naquela ocasião estava ao comando de uma pequena corveta de catorze canhões e havia abordado e capturado o navio espanhol Cacafuego, de trinta e dois canhões. Nesse momento Harris contava de novo o relato, mas mais alegremente que o habitual, pois à vista de todos se encontrava o capitão em questão, um homem alto e de cabelo loiro que estava no castelo de popa justo detrás do leme.
- Lá está meu irmão Barret - anunciou Robert Bonden, um ajudante do veleiro que se achava em outra portaló. - É o timoneiro do capitão há muitos anos. Tem uma excelente opinião dele, ainda que diz que é muito duro e que não permite mulheres a bordo.
- Ali está Joe Noakes, com a vareta ao vermelho vivo para fazer as salvas - disse um marinheiro preto como o carvão enquanto pegou o telescópio. - Me deve dois dólares e uma camisa de descer a terra. Uma camisa de Jérsei quase nova e com a letra P bordada.
Apenas se dissipou a fumaça da última salva, a falua do capitão caiu na água e começou a avançar com graciosos movimentos para o navio insígnia. Depois, ao chegar na metade da baía, encontrou-se com uma flotilha de vendedores que levava prostitutas de seis peniques para a Surprise. Essa era uma prática habitual, mas não aceitada por todos. Alguns capitães a aprovavam porque achavam que agradava aos marinheiros e evitava a sodomia; outros, em troca, opunham-se a ela porque pensavam que causava a sífilis e favorecia a introdução clandestina de grande quantidade de bebidas alcoólicas nos barcos, o que supunha uma interminável lista de enfermos, brigas e delitos cometidos por embriaguez. Jack Aubrey se encontrava entre estes últimos. Ainda que geralmente respeitasse a tradição, pensava que a prostituição nos barcos minava a disciplina. Não julgava o assunto do ponto de vista moral, mas lhe desagradava muito que houvesse promiscuidade na coberta inferior de um barco de guerra recém ancorado, que copulassem ali centenas de barulhentos homens e mulheres, alguns em macas mais ou menos ocultos, outros nos cantos, outros atrás dos canhões e a maioria em qualquer lugar. Nesse momento se ouviu seu vozeirão, que o vento arrastava, e os tripulantes do Irresistível sorriram com ironia.
- Disse aos vendedores para irem ao inferno - assinalou Harris.
- Sim, mas isso é muito duro para alguns marinheiros jovens que dia depois de dia não pensam mais que em fazer isso - explicou Bonden, que era luxurioso, ao contrário de seu irmão.
- Não se preocupe com os marinheiros jovens, Bob Bonden - continuou Harris -, porque terão o que procuram quando desçam a terra. Ademais, já sabiam que navegavam com um capitão muito estrito.
- Esse capitão tão estrito vai ter uma surpresa - disse Reuben Wilks, um oficial afeminado, e riu muito alegremente.
- Pelo sacerdote preto? - perguntou Bonden.
- O sacerdote preto o fará dar voltas sobre si mesmo, ah, ah! - afirmou Wilks.
Outro marinheiro, no mesmo tom amável, acrescentou:
- Todos temos contratempos.
- Assim que aquele é o capitão Aubrey - disse a senhora Goole, olhando ao longe por cima do mar. - Não sabia que era tão robusto. Por favor, senhor Richardson, diga-me por que grita e por que ordena para esses barcos retrocederem.
Fazia muito pouco que os pais da dama a haviam casado com o capitão Goole. Haviam dito que ela receberia uma pensão anual de noventa libras se ele fosse morto, mas, além disso, pouco mais sabia sobre a Armada. Por outro lado, havia ido às Antilhas em um mercante e desconhecia aquele costume naval, já que os mercantes não tinham tempo para extravagâncias.
- Bem, senhora… porque estão cheios de… como lhe diria?… de mulheres de vida alegre - respondeu Richardson, ruborizando-se.
- Mas há centenas delas!
- Sim, senhora. Geralmente uma ou duas para cada marinheiro.
- Deus meu! - exclamou a senhora Goole pensativa. - Então o capitão Aubrey não aprova sua presença. É muito severo?
- Bem, pensa que entorpecem a disciplina e não lhe parece bem que se misturem com os guardas-marinhas, sobretudo com os que estão mudando a voz, quer dizer, com os mais jovens.
- Quer dizer que essas… essas criaturas têm permissão de corromper adolescentes? - perguntou a senhora Goole. - A adolescentes cujas famílias puseram sob os cuidados de um capitão?
- Sim, senhora, isso ocorre às vezes.
- Estou segura de que o capitão Goole não permitiria. - Ante as palavras da senhora Goole, Richardson se limitou a responder com uma inclinação de cabeça que não expressava absolutamente nada.
- Assim que esse é o feroz capitão Aubrey - afirmou o senhor Waters, o cirurgião do navio insígnia, que estava de pé no lado de bombordo do castelo de popa com o secretário do almirante. -Alegro-me de tê-lo visto, mas, para dizer a verdade, teria gostado mais de ver o médico que viaja com ele.
- O doutor Maturin?
- Sim, senhor, o doutor Stephen Maturin. Escreveu o livro que ensina sobre as doenças dos marinheiros. Há um caso que me preocupa muito e queria conhecer sua opinião. O senhor o vê no barco?
- Não conheço esse cavalheiro - disse o senhor Stone -, mas sei que ele gosta de estudar a natureza, assim que provavelmente seja aquele que está na popa da falua inclinado sobre a borda e com a cara quase roçando a água. Eu também gostaria muito conhecê-lo.
Os dois dirigiram o telescópio para um homenzinho com um casaca azul simples que estava a certa distância do timoneiro. O capitão lhe chamou a atenção e ele se sentou com a costas erguidas enquanto colocava sua raquítica peruca. Olhou para o navio insígnia antes de pôr os óculos escuros e ambos puderam ver seus estranhos olhos claros. Os dois o olharam com interesse, sobre tudo o cirurgião; tinha um tumor de um lado do abdomem e desejava ansiosamente que algum especialista lhe dissesse que não era malígno. O doutor Maturin era a pessoa mais indicada, já que gozava de uma excelente reputação; contudo, preferia a vida no mar - pelas oportunidades de estudo que oferece aos amantes da natureza - a ter um lucrativo consultório em Londres ou Dublim ou talvez em Barcelona, pois era de origem catalão por parte materna. O senhor Stone queria conhecer o doutor Maturin por motivos pessoais e o observou com atenção. Como secretário do almirante, se ocupava dos assuntos secretos da esquadra e sabia que o doutor Maturin era também um espião, e de grande categoria. O trabalho do senhor Stone consistia principalmente em pôr fim à traição dos habitantes da zona e ao descumprimento da lei que proibia comerciar com o inimigo. Isso lhe permitira conhecer membros de outras organizações secretas, alguns não muito discretos. Por eles sabia que em Whitehall havia estourado uma guerra oculta e silenciosa, e que sir Joseph Blaine, o chefe do serviço secreto da Armada, junto com seus principais seguidores - entre os quais se encontrava Maturin -, logo venceriam ou seriam vencidos por seus oponentes desconhecidos. Gostava da espionagem e tinha muitas esperanças de chegar a pertencer a alguma das numerosas organizações navais, militares e políticas que trabalhavam na sombra e que tentavam manter tudo em segredo apesar da indiscrição e desatada loquacidade de alguns de seus colegas. Por essa razão observava com curiosidade o homem que, conforme a fragmentária informação que tinha, era um dos mais apreciados agentes secretos do Almirantado.
Quando o castelo de popa se encheu dos infantes de marinha que iam levar a cabo a cerimônia, começaram a se escutar os apitos dos ajudantes do contramestre e o primeiro tenente disse:
- Por favor, cavalheiros, aproximem-se. Vamos receber o capitão da Surprise.
- Com sua permissão, senhor, o capitão da Surprise - anunciou o secretário na porta da cabine.
- Aubrey, quanto me alegro de ver-lhe! - exclamou o almirante depois de tocar a última nota; e lhe estendeu a mão. - Sente-se e conte-me como se saiu. Mas antes diga-me que barco é esse que trouxe a reboque.
- Um de nossos baleeiros, senhor. É o William Enderby, de Londres. O recuperamos em frente da Baía depois de ter perdido os mastros ao norte do Equador durante um período de calmaria porque estava muito carregado e o fluxo de ondas era muito forte.
- Se o recuperou, é uma presa de lei. Diz que está muito carregado, né?
- Sim, senhor. Os norte-americanos puseram nele a carga de outros três barcos que queimaram depois e o enviaram sozinho para os Estados Unidos. O oficial de derrota da Surprise, que foi um baleeiro em sua juventude, calcula que o carregamento vale noventa e sete mil coroas. Passamos muitas dificuldades para trazê-lo porque tínhamos muito poucos apetrechos. Nós lhe colocamos mastros provisórios unindo várias peças de mastreação com os cordões de nossos sapatos, mas ele os perdeu no domingo durante uma tormenta.
- Não tem importância - disse o almirante. - Está aqui e isso é o que importa. Noventa e sete mil coroas! Ah, ah! Darei pessoalmente as ordens pertinentes para que tenha todos os apetrechos de que necessita. Agora conte-me algo de sua viagem, pelo menos o mais importante.
- Muito bem, senhor. Não encontrei a Norfolk no Atlântico, como esperava, mas ao sul das ilhas Malvinas recuperei o paquete que seu capitão havia capturado, o Danaë…
- Eu sei. O capitão que viajava com o senhor como voluntário… Como se chama?
- Pullings, senhor. Thomas Pullings.
- Ah, sim! O capitão Pullings o trouxe aqui para carregar madeira e água antes de levá-lo para a Inglaterra. Chegou a Plymouth em menos de um mês, depois de ser perseguido por um barco corsário a toda vela durante três dias e três noites. Fez uma viagem extraordinariamente rápida. Mas, Aubrey, ouvi que a bordo do paquete havia dois cofres cheios de ouro e tão pesados que tinham que levantá-los entre dois homens. Não sei se também os recuperou.
- Oh, não, senhor! Uma hora antes de o apresarmos, os norte-americanos já haviam levado até a última moeda para a Norfolk. Mas logramos recuperar alguns documentos secretos.
Nesse momento se fez o silêncio, um silêncio que ao capitão Aubrey lhe pareceu muito desagradável. Estava ciente de que esses documentos significavam na realidade uma grande quantidade de dinheiro - ainda que não fossem moedas - quando um pequeno cofre de latão que estava escondido havia caído; contudo, ninguém lhe havia comunicado oficialmente: o havia descoberto por casualidade, quer dizer, havia obtido essa informação não como capitão mas como amigo de Stephen Maturin, que era quem custodiava o cofre e a quem seus superiores no serviço secreto lhe haviam dito onde achá-lo e o que fazer com ele. Não haviam explicado a Stephen por que estava ali, mas não precisava ser um iluminado para se imaginar que uma soma tão grande em forma de títulos e documentos negociáveis sem nome seria utilizada para subverter pelo menos a todo um Governo. Evidentemente, o capitão Aubrey não podia falar com franqueza do assunto, salvo no improvável caso de que o almirante estivesse informado disso e lhe pedisse, mas não lhe agradava ocultá-lo, pois considerava um ato mesquinho, hipócrita e desonesto. O silêncio se tornava insuportável e de repente compreendeu que ainda durava porque sir William estava convertendo noventa e sete mil coroas em libras e depois dividia essa quantidade entre doze com um lápis no canto de um relatório.
- Desculpe-me um momento - disse o almirante, afastando a vista do resultado e sorrindo -, tenho que ir ao jardim{2}.
O almirante entrou na galeria. Enquanto o esperava, Jack Aubrey recordou a conversa que havia mantido com Stephen quando a Surprise estava chegando ao porto. Stephen era muito reservado, em parte por seu própio caráter e em parte por seu trabalho, e não falou com Jack daqueles bônus, obrigações e notas até que se deu conta de que o capitão teria que se apresentar no navio insígnia poucas horas mais tarde. Então, na intimidade do mirante de popa, ele lhe havia dito:
- Todo mundo já ouviu os versos: "Em vão lutam os heróis e arengam os patriotas / se o ouro passa secretamente de um pilantra para outro". Contudo, quantos sabem como segue o poema?
- Eu não, por exemplo - respondeu Jack a gargalhadas.
- Quer que lhe diga?
- Sim, por favor.
Stephen pegou um dos documentos para usá-lo como símbolo e, lançando para Jack um olhar significativo, continuou:
Benditos valores! São o último e melhor recurso
para dar asas mais ligeiras à corrupção!
Uma só folha pode varrer um exército
Ou trasladar senados para lugares distantes
Está cheia de milhares e sutilmente até o mais insignificante move
E silenciosamente uma rainha compra ou um rei vende.
- Gostaria que alguém tentasse corromper-me - assinalou Jack. - Quando penso em como estará neste momento a conta que tenho com Hoares, se me ocorre que poderia trasladar qualquer quantidade de senadores para lugares distantes por quinhentas libras e a junta diretiva do Almirantado por outras mil.
- Estou certo de que o faria - afirmou Stephen. - Mas entendeu o que quero dizer, né? Se eu estivesse em seu lugar, falaria muito pouco do desafortunado cofre. Poderia dizer que contém "documentos secretos" de passada, e isso lhe permitiria ter a consciência tranqüila. Irei contigo, se puder, e se o almirante for muito curioso, eu o farei mudar de bordo em redondo e ele ficará boquiaberto.
Jack havia olhado para Stephen com afeto. Ainda que o doutor Maturin podia pronunciar discursos em latim e em grego e falava meia dúzia de línguas modernas, ignorava como usar expressões coloquiais, o inglês da rua, as gírias e, sobretudo, os termos técnicos que se empregavam nos barcos. Na realidade, suspeitava que Stephen ainda não diferenciava estibordo de bombordo.
- Quanto menos se fale de assuntos como este, melhor - acrescentou Stephen. - Queria…
Então parou de repente. Não dissera que desejaria não ter visto esses documentos nem ter tido nenhuma relação com eles, ainda que isso era o que pensava. Nunca aceitara nem um penique de Brummagem{3} por seus serviços e sabia que o dinheiro, ainda que essencial em algumas ocasiões, costumava ser prejudicial para a espionagem, e que uma quantidade tão exorbitante como aquela podia causar muito estrago e pôr em perigo a quem tivessem algo que ver com ela.
- Não sei o que me passa, Aubrey - disse o almirante ao regressar -, mas ultimamente faço xixi a cada meia hora. Talvez seja pela idade e não haja nada o que fazer ou talvez uma dessas novas pílulas possa remediá-lo. Eu gostaria de me consultar com o cirurgião da Surprise enquanto repõem as provisões e apetrechos da fragata. Ovi dizer que é um médico excelente e que o chamaram para atender ao duque de Clarence. Mas larguemos isso de lado. Continue com seu relato.
- Pois bem, senhor, como não achei a Norfolk no Atlântico, segui sua rota até o sul do Pacífico. Não tive sorte ao chegar ao arquipélago Juan Fernández, mas pouco depois me informaram de que atacara nossos baleeiros nas costas do Chile e do Peru e nas ilhas Galápagos. Então parti rumo ao norte e recuperei uma das presas, mas quando cheguei às ilhas ele acabara de partir. Ali voltei a receber informação confiável. Disseram-me que se dirigira para as ilhas Marquesas, onde o capitão ia fundar uma colônia e capturar meia dúzia de baleeiros nossos que pescam nessas águas, assim que me dirigi para oeste. Em fim, que naveguei sem dificuldades durante várias semanas até que vi seus barris de carne flutuando e compreendi que estava logo atrás dela; mas então se desatou uma terrível tormenta. A fragata teve que navegar sem velas nos mastros durante dias e apesar disso sobreviveu à tormenta, mas a Norfolk não. A encontrei encalhada no arrecife de coral de uma ilha que nem sequer aparece nos mapas e que se encontra a considerável distância ao leste das Marquesas. Não lhe cansarei com detalhes, senhor; só lhe direi que fiz prisioneiros aos sobreviventes e me dirigi rapidamente ao cabo de Hornos.
- Muito bem, Aubrey. Muito bem feito. Não obterá dinheiro nem glória pela Norfolk, porque sua destruição foi obra de Deus; contudo, está destruída, e isso é o importante. Mas estou seguro de que receberá dinheiro por cada um dos prisioneiros. Por outro lado, conseguiu essas estupendas presas. Afinal de contas, sua viagem foi muito satisfatória. Parabéns. Eu lhe convido para uma jarra de cerveja.
- Com muito prazer, senhor. Mas devo lhe dizer algo com respeito aos prisioneiros. Desde o princípio o capitão da Norfolk se comportou de uma forma muito rara. Disse que a guerra havia terminado…
- Não me admira em absoluto. É uma estratégia como outra qualquer.
- Sim, mas disse outras coisas e não falou com franqueza. Custou-me compreendê-lo até que percebi que, como é natural, tentava proteger vários tripulantes que navegavam na Hermione e que haviam desertado da Armada Real.
- A Hermione! - exclamou o almirante, empalidecendo ao recordar os incidentes da fragata. Em um trágico motim, os tripulantes mataram ao inumano capitão e à maioria dos oficiais, e depois entregaram a embarcação ao inimigo na zona espanhola do continente americano. - Perdi nela um primo meu muito jovem, o filho de Drogo Montague. Esses condenados criminosos lhe romperam um braço e depois quase o despedaçam. Tinha treze anos e era um promissor guarda-marinha.
- Tivemos problemas com eles, senhor, quando a fragata foi açoitada por uma tormenta, e nos vimos obrigados a matar vários.
- Isso nos poupa o trabalho de enforcar-lhes. Mas ainda restam alguns, né?
- Oh, sim, senhor! Estão no baleeiro, e me faria um favor se os levasse logo. Não dispomos de nenhuma embarcação além de minha falua, e os poucos infantes de marinha que restam estão exaustos por ter tido que vigiá-los dia e noite.
- Serão recolhidos imediatamente - disse o almirante, tocando a campainha. - Será uma satisfação para mim ver esses malditos porcos pendurados nos penóis. Amanhã chegará o capitão da Jason, e com ele e o senhor será suficiente para formar um conselho de guerra.
O coração de Jack se encolheu. Detestava que se formassem conselhos de guerra e ainda mais os enforcamentos. Ademais, desejava zarpar assim que completasse a aguada e carregasse as provisões necessárias para a viagem para a Inglaterra; como havia poucos oficiais com antiguidade em Bridgetown, pensara que poderia fazê-lo ao cabo de dois dias. Mas não lhe serviria de nada protestar. O secretário e o primeiro oficial do navio insígnia chegaram à cabine e imediatamente começaram a receber as ordens. Então o camareiro do capitão entrou com a cerveja.
Tinha muitas bolhas e estava morna, mas tão logo como o almirante terminou de dar as ordens, lhe bebeu a grandes tragos com evidente satisfação. Pouco depois apagou-se de seu muchado rosto a expressão austera e, depois de uma pausa na qual se ouviu o ruído das botas dos infantes de marinha e dos remos das lanchas que zarpavam, disse:
- A última vez que lhe vi, Aubrey, foi quando Dungannon nos convidou para almoçar na Defiance. Na sobremesa tocamos uma composição em ré menor de Gluck. Desde então apenas executei alguma peça, além das que hei tocado sozinho. Os oficiais daqui são muito chatos e ainda que muitos toquem a flauta travessa, nenhum o faz realmente bem. A deles é a harpa. Ademais, todos os guardas-marinhas trocaram a voz faz tempo. Vá, que nenhum sabe distinguir entre uma nota musical e a pata de um touro. Talvez ao senhor tenha ocorrido o mesmo no sul do Pacífico.
- Não, senhor. Tive mais sorte. O cirurgião toca muito bem o violoncelo e temos tocado juntos até a madrugada. Como se fosse pouco, o capelão tem uma grande habilidade para fazer com que os marinheiros cantem, sobretudo obras de Arne e Händel. Faz algum tempo, quando estava no Mediterrâneo ao comando do Worcester, conseguiu que cantassem o Messias de forma louvável.
- Me gostaria tê-lo ouvido - disse o almirante e, depois de encher de novo a jarra de Jack, acrescentou -: Parece que esse cirurgião é uma jóia.
- É meu amigo íntimo, senhor. Temos navegado juntos há mais de dez anos.
O almirante assentiu:
- Ficarei encantado se o trouxer esta noite. Poderíamos jantar juntos e tocar um pouco de música. E de passagem, se não lhe incomodar, poderia fazer-me um reconhecimento médico. Ainda que… Não, talvez isso não seja muito apropriado. Tenho entendido que as relações entre os médicos estão sujeitas a normas estritas.
- Acredito que seu médico teria que dar o consentimento, senhor. Mas talvez já se conheçam, e não será mais que um simples trâmite. Maturin está aqui agora, e se desejar falarei com ele antes de ir apresentar meus respeitos ao capitão Goole.
- Vai apresentar seus respeitos ao capitão Goole? - inquiriu sir William.
- Certamente, senhor! Tem seis meses de antiguidade a mais do que eu.
- Não se esqueça de felicitar-lhe, pois se casou faz pouco. Todos pensávamos que já estava a salvo na sua idade, mas se casou. Sua mulher está a bordo.
- Oh, não sabia nada! - exclamou Jack. - Não deixarei de felicitar-lhe. Então, sua esposa está a bordo?
- Sim. É uma mulherzinha fraca e veio de Kingston para passar umas semanas aqui para repor-se da febre amarela.
Jack tinha na mente tantas lembranças de sua esposa, Sophie, e desejava tão veementemente que estivesse a bordo que não escutou as palavras do almirante até que disse:
- Deve tratar-lhes com muita cortesia quando falar com eles, Aubrey. Já sabe o independentes e arrogantes que são os médicos; é melhor não incomodar-lhes, e menos ainda quando estão a ponto de administrar medicamentos.
- Não, senhor. Serei tão manso como uma pomba.
- Como um cordeiro, Aubrey.
- Sim, senhor. Provavelmente os encontrarei juntos falando de temas médicos.
Efetivamente. Quando Jack entrou na cabine, o senhor Waters estava mostrando ao doutor Maturin alguns desenhos muito bem feitos e coloridos dos casos de lepra e elefantíases mais representativos que havia visto na ilha. Então Jack lhes deu a mensagem, deu uma espiada nos desenhos e se foi imediatamente para falar com o secretário do almirante antes de fazer a obrigatória visita ao capitão Goole.
O senhor Waters pôs o último exemplo de uma perna enferma de um homem de Barbados em uma pasta e com isso terminou as explicações.
- Provavelmente já se deu conta de que a maioria dos médicos são hipocondríacos, doutor Maturin - disse.
Falou com um sorriso tão estereotipado que era óbvio que tinha a frase preparada. Depois continuou:
- Eu não sou uma excessão. Desculpe-me por importunar-lhe, mas tenho um pacote aqui que me preocupa - disse, pondo a mão no lado de seu corpo. - Não pedi a opinião de nenhum dos cirurgiões desta base naval nem de meus ajudantes, mas me agradaria muito que me dissesse de que tipo se trata.
- Capitão Aubrey, em que posso servir-lhe? - o secretário lhe perguntou, sorrindo.
- Ficariaria muito agradecido se me entregasse uma saca com cartas para a Surprise - respondeu Jack. - Faz muito que meus homens e eu não temos notícias da Inglaterra.
- Cartas para a Surprise? - repetiu o senhor Stone. - Acho que não há nenhuma, mas vou perguntar a meus ajudantes. Infelizmente, não - disse quando regressou. - Sinto dizer-lhe que não há nada para a Surprise.
- Bem - disse Jack com um sorriso forçado -, não tem importância. Mas talvez o senhor tenha alguns jornais que me permitam fazer uma idéia de como estão as coisas no mundo, porque suponho que está muito ocupado com o maldito julgamento que o conselho de guerra celebrará para contar-me o que se passou nos últimos meses.
- Que nada, em absoluto. Não tardarei nada em contar-lhe que as coisas foram de mal a pior. Bonaparte não para de construir barcos em todos os estaleiros, enquanto que nossos barcos estão se deteriorando cada vez com mais rapidez porque sempre estão navegando ou fazendo o bloqueio. Tem um serviço secreto muito bom e aviva a discórdia entre os aliados, ainda que não necessita incitar-lhes muito para que desconfiem uns dos outros e se odeiem. É assombroso como toca sempre no ponto onde mais dói. Parece que envia alguém para escutar atrás da porta ou debaixo da mesa do conselho dos ministros. Nosso exército fez alguns avanços na Espanha, mas os espanhóis… Bem, acho que o senhor saiba algumas coisas sobre os espanhóis, senhor. Em fim, que não sabemos se poderemos seguir ajudando-lhes nem se poderemos seguir afrontando os gastos de nossa participação na guerra. Um irmão meu que trabalha na Cidade me disse que as ações nunca haviam baixado tanto, que não há atividade mercantil e que os homens caminham pela seção de Câmbio com as mãos nos bolsos e a expressão triste. Contou-me que não se pode conseguir ouro, que se um vai ao banco para sacar o dinheiro que depositou em forma de guinéus, o único que lhe dão são notas. Também me disse que a maioria dos valores eram impossíveis de vender e que, por exemplo, a renda anual dos negócios do Pacífico não supera as cinqüenta e oito libras e meia. Inclusive as ações dos negócios das Índias Orientais estão assombrosamente baixas, e quanto às letras de câmbio… No início do ano houve muita atividade porque circulou o rumor de que haveria paz e subiram os preços; contudo, quando se soube que o rumor era falso, a Cidade ficou mais deprimida do que nunca. A única coisa que prospera é a agricultura. O trigo se paga a cento e vinte xelins o quarto de libra e não se podem conseguir terras por nenhuma quantidade de dinheiro. Mas na atualidade, senhor, um homem com umas cinco mil libras no bolso pode comprar um pacote de excelentes ações que antes da guerra equivaliam a uma considerável fortuna. Aqui tem alguns jornais e revistas que falam de tudo isto com mais detalhe. Garnato que se desanimará. Que foi, Billings? - perguntou a um de seus ajudantes.
- Ainda que não há cartas para o capitão Aubrey, senhor - disse Billings -, Pedacito dice que um homem de cor perguntou por ele e que talvez tenha uma carta ou pelo menos uma mensagem para lhe dar.
- É um escravo? - inquiriu Jack.
- É um escravo? - gritou Billings, aguçando o ouvido para ouvir a resposta, e logo disse -: Não, senhor.
- Um marinheiro? - perguntou Jack.
Tampouco era um marinheiro. Pedacito se aproximou silenciosamente e acrescentou com sons quase inarticulados que parecia um homem educado e que quando a esquadra chegou a Bridgetown havia perguntado pela Surprise aos marinheiros que haviam descido para terra; e que ao informar-se de que a fragata navegava por aquelas águas, havia perguntado pelo capitão Aubrey.
- Não conheço nenhum preto educado - disse Jack, negando com a cabeça.
Era possível que um advogado das Antilhas tivesse um ajudante preto e que, devido às coisas estarem tão mal na Inglaterra, estivesse procurando-o para executar um mandato judicial contra ele. Mas isso só poderia fazê-lo em terra, assim que Jack tomou de imediato a decisão de permanecer a bordo enquanto estivesse ali. Pegou os jornais, agradeceu ao senhor Stone e aos seus ajudantes e regressou para o castelo de popa, onde encontrou o guarda-marinha que lhe acompanhava; ia muito mal vestido em comparação com os impecáveis guardas-marinhas do navio insígnia que lhe rodeavam, mas lhes contava extraordinários fatos ocorridos no cabo Horn e o sul do Pacífico.
- Senhor Williamson - disse -, apresente meus respeitos ao capitão Goole e pergunte se não lhe incomoda que eu vá visitá-lo dentro de dez minutos.
O senhor Williamson voltou com a resposta de que a visita do capitão Aubrey não seria nenhum incômodo e, por iniciativa própia, acrescentou que o capitão Goole lhe apresentava seus respeitos. Por afeto ao seu capitão, haveria acrescentado outras expressões que indicassem respeito, mas não encontrou o momento oportuno e se reprimiu.
Durante esse tempo Jack permaneceu recostado na grade do castelo de popa de estibordo, nessa cômoda postura que costumam adotar todos os de sua classe, olhando para o convés e de cara para o exterior. Havia dado permissão à tripulação de sua falua para descer a terra, mas um homem havia ficado na embarcação para cuidá-la; e agora, por uma portaló da coberta inferior, falava com alguns amigos que ele não podia ver. Havia alguns marinheiros no corrimão e no convés que estavam de frente para a popa e lhe observavam com o típica olhar de quem foi um antigo companheiro de tripulação e quer ser reconhecido. Uma e outra vez Jack interrompeu sua conversa com os oficiais para cumprimentar: "Como está, Symonds?" " Como vai, Maxwell?" "Vejo que regressou, Himmelfarht!"; os marinheiros em questão inclinavam a cabeça e sorriam ao mesmo tempo que se tocavam na testa com os nós dos dedos ou tiravam o chapéu. Pouco depois, Bonden e o irmão que pertencia à tripulação do Irresistível saíram pela escotilha de proa e Jack se deu conta de que não só lhe olhavam com atenção como também com curiosidade e malícia, mais ou menos da mesma forma que o haviam feito todos os marinheiros do navio insígnia que haviam navegado com ele. Não pôde descobrir o motivo, pois antes que pudesse refletir sobre isso chegou a hora de dirigir-se ao camarote do capitão, que ficava na popa.
Por sua própia vontade, o capitão Goole não receberia o capitão Aubrey. Anos atrás, quando era guarda-marinha, Goole havia tido um comportamento mesquinho e vergonhoso no caso da lingüiça. Participou do roubo, ainda que como um subordinado, comeu tanto como os outros guardas-marinhas e quando o levaram para ver o capitão Douglas não só se converteu em um delator ao revelar-lhe o ocorrido como negou a sua participação. Atua-ra de forma desprezível e por isso nunca esqueceria de Jack Aubrey. Contudo, estava obrigado a receber-lhe, já que o protocolo naval era muito estrito com respeito às visitas oficiais.
- Não o receberia e muito menos lhe apresentaria se as normas da Armada não o exigissem - disse Goole à sua esposa. - Virá dentro de pouco e ficará aqui pelo menos dez minutos. Mas não lhe oferecerei nada de beber para que não crie raizes. Bebe muito, como seu amigo Dundas, outro que não sabe manter os calções postos. Os dois são do mesmo tipo, a escória da sociedade.
Fez uma pausa e acrescentou:
- Ainda que agora ninguém diria que é bonito, faz tempo o consideravam muito atraente, talvez por isso… Silêncio! Já está aqui!
Jack não havia esquecido o episódio da lingüiça do capitão Douglas. As consequências do roubo lhe haviam parecido então desastrosas, mas, na realidade, não podia ter aproveitado melhor o tempo. O meio ano que passou como um simples marinheiro lhe permitira conhecer muito bem os gostos dos marinheiros, quais eram suas crenças e suas opiniões e como transcorria de fato sua vida cotidiana. Tampouco havia esquecido de Goole, ainda que não recordava todos os detalhes com respeito ao seu comportamento. Achava-o um descarado, mas não lhe guardava rancor. Quando entrou em sua cabine sentiu um grande prazer ao ver um companheiro de tripulação tão antigo, felicitou-lhe sinceramente por seu matrimônio, sorriu e lhes dirigiu um olhar tão afetuoso que fez com que a senhora Goole melhorasse a boa opinião que já formara sobre ele. A senhora Goole não se surpreendeu que lhe houvessem considerado bonito, pois mesmo agora que pesava alguns quilos a mais, que sua cara perdera o brilho da juventude e que estava curtida e cheia de cicatrizes, não deixava de ser atraente. Ao contrário de seu esposo (que carecia de personalidade), o capitão Aubrey era muito robusto, muito mais alto e desprendia uma grande vitalidade. Seus olhos azuis, que contrastavam com a cor bronzeada de sua cara, tinham a expressão de quem deseja agradar aos que estão em sua companhia.
- Sou a favor do matrimônio, senhora - disse.
- Ah, sim? - A senhora Goole, pensando que devia dizer algo mais, acrescentou -: Acho que conheci a senhora Aubrey na casa de lady Hood justo antes de sair da Inglaterra.
- Como ela estava? - inquiriu Jack, e um sorriso de satisfação iluminou seu rosto.
- Espero que se trate da mesma dama, senhor - disse a senhora Goole em tom vacilante. - Era alta e loira e tinha um bonito cútis; os olhos cinzas, e usava o cabelo arrumado em um coque. Vestia um traje azul de manga comprida franzido aqui…
- Bem, senhora Goole… -interrompeu-lhe seu esposo.
- Sem dúvida que essa é Sophie - certificou Jack. - Faz um século que não recebo notícias de casa, porque estive no distante cabo Horn. Daria tudo o que tenho para saber algo dela. Por favor, diga-me que aspecto tinha, que disse… Não estava ali nenhuma das crianças?
- Só uma, um menino muito bonito. A senhora Aubrey contou ao almirante Sawyer que as meninas haviam tido varicela fazia algum tempo, mas que já se achavam tão bem que o capitão Dundas as levara para navegar em seu cúter.
- Que Deus as abençoe! - exclamou Jack, sentando-se junto dela.
Então ambos começaram a falar da varicela. Comentaram que se travava de uma doença benigna e que era inevitável ter doenças como essa na infância. Depois falaram da difteria, do sarampo, da brotoeja, das aftas… até que ao soar o sino do navio insígnia Jack recordou que devia voltar para a Surprise para buscar seu violino.
O doutor Maturin e o senhor Waters falavam de doenças muito mais graves quando por fim Stephen se levantou, desdobrou os punhos da casaca e disse:
- Atrevo-me a assegurar-lhe, ainda que com reservas, naturalmente, que não é malígno. Não é um tumor do tipo que o senhor acreditava e muito menos uma metástase, que Deus não o queira, mas um fibroma. Mas se encontra em um lugar muito delicado e teremos que extirpá-lo imediatamente.
- Certamente, estimado colega - afirmou o senhor Waters, sentindo um grande alívio. - Agradeço-lhe muito por sua opinião.
- Não gosto nada de ter que abrir um ventre - disse Stephen, cravando o olhar no ventre em questão como um açougueiro que deve decidir os cortes que vai fazer. - E, certamente, em um caso assim quero um bom ajudante. São competentes os seus?
- Os dois são lerdos, bebem em excesso e só têm conhecimentos práticos. São um par de curandeiros ignorantes. Não gostaria que nenhum deles me pusesse as mãos em cima.
Stephen ficou pensativo por alguns segundos. Sabia que era difícil gostar dos compatriotas ou pelo menos manter com eles uma relação cordial quando está em terra; e muito mais difícil ainda quando se está encerrado com eles no mesmo barco, sem a possibilidade de evitar o trato diário. Evidentemente, o senhor Waters não havia logrado fazer essa proeza naval.
- Pois eu não tenho ajudante porque o condestável enlouqueceu e o matou em frente da costa do Chile, mas o pastor, o senhor Martin, sabe muito de física e de cirurgia e é um eminente naturalista. Juntos havemos feito a dissecação de muitos animais de sangue frio e quente. Se não me recordo mal, ainda não viu abrir o ventre de nenhum ser humano, e estou seguro de que gostará muito. Se o senhor quiser, pedirei a ele que me ajude. Agora tenho que ir para meu barco para buscar o violoncelo.
Stephen subiu várias escalas do Irresistível e se desorientou uma ou duas vezes, mas por fim saiu para a luz, a cegante luz que inundava o castelo de popa. Pestanejou alguns instantes, pôs os óculos escuros e viu que junto ao costado de bombordo do navio insígnia havia muitos vendedores e lanchas que transportavam os marinheiros de licença. O primeiro tenente do navio insígnia estava inclinado sobre a borda mastigando um pedaço de cana de açúcar e discutia o preço de uma cesta de limas, uma de moças e uma enorme pinha. Quando por fim subiram a fruta a bordo, Stephen disse:
- Meu querido William Richardson, poderia me dizer onde está o capitão?
- Bem, doutor, regressou para a fragata justo antes de que soassem as cinco badaladas.
- Cinco badaladas - repetiu Stephen. - Claro! Ele me disse algo sobre as cinco badaladas. Voltará a repreender-me por ser impontual. Que posso fazer?
- Não se preocupe, senhor - disse Richardson. - Eu lhe levarei para ela no bote. Não está a muita distância daqui, e, por outro lado, queria ver outra vez meus antigos companheiros de tripulação. O capitão Pullings me disse que agora Mowett era o primeiro oficial. Meu Deus! Em pensar que Mowett é o primeiro oficial! Mas, senhor, o senhor não foi o único que perguntou pelo capitão Aubrey. Faz pouco voltou a subir a bordo um homem que também o procura. Alí está ele! - exclamou, assinalando com a cabeça o corrimão de bombordo, onde um jovem preto muito alto se destacava entre um grupo de marinheiros.
Stephen se deu conta de que eram marinheiros que haviam navegado em outras missões com ele, a maioria deles irlandeses e todos católicos. Também observou que sorriam e olhavam para o jovem preto com curiosidade enquanto lhe diziam amável e respeitosamente que avançasse para a popa. Mas antes de que tivesse tempo de cumprimentar com um "Olá, companheiros de tripulação!" ou "Como estão, companheiros?", o jovem preto começou a caminhar para o castelo de popa. Usava um simples traje de cor tabaco, pesados sapatos de ponteira quadrada e um chapéu de aba larga. Por seu aspecto parecia um quacre ou um seminarista, mas um seminarista forte e atlético como os que podiam ser encontrados na parte ocidental da Irlanda ou pelas ruas de Salamanca. Antes de dirigir-se a Stephen como um seminarista irlandês, tirou o chapéu.
- O senhor é o doutor Maturin, né?
- Eu mesmo - respondeu Stephen. - O mesmo, para servir-lhe.
Havia falado mecanicamente, pois o jovem que estava sem chapéu e iluminado pelo sol diante dele era a viva imagem de Jack Aubrey, mas de cor ébano e com vinte anos e muitos quilos a menos. Só se diferenciava de Jack por ter cachos negros e não dourados, e em que a ponta de seu nariz não era como a dos romanos. Seus corpos eram idênticos e inclusive moveu a cabeça da mesma forma quando se aproximou de Stephen olhando-lhe respeitosamente.
- Senhor, ponha o chapéu porque tem se proteger do sol - acrescentou Stephen. - Tem que falar de um assunto com o capitão Aubrey, não é verdade?
- Sim, senhor, e me informaram que o senhor podia dizer-me se posso vê-lo ou não. Conforme ouvi, não permite que nenhuma lancha se aproxime de sua fragata, mas tenho que entregar-lhe uma carta da senhora Aubrey.
- É sério? - perguntou Stephen. - Então venha comigo e o acompanharei. Senhor Richardson, não se importaria de levar outro passageiro, não é? Nos revezaremos para remar, já que o peso será maior.
Durante o percurso mal falaram. Richardson atendia os remos; o jovem preto tinha a estranha virtude em um jovem de permanecer em silêncio sem ser descortês; Stephen ficou abstraído ante essa imagem que representava o vivo retrato de seu melhor amigo e de repente disse:
- Espero que a senhora Aubrey esteja bem, senhor.
- Tão bem como seus amigos possam desejar, senhor - respondeu o jovem com esse sorriso tão radiante que só pode ter quem possue os dentes muito brancos e o rosto preto como o carvão.
Stephen se disse: "Espero que tenha razão, amigo". Conhecia muito bem Sophie e gostava muito dela, mas sabia que era inteligente e perspicaz e que o fato de estarem juntos lhe provocaria mais ciúmes do que alegria. Era virtuosa, mas virtuosa por natureza, não por imposição própia, ainda que não por isso puritana.
O jovem era esperado na Surprise, onde todos os membros da tripulação, exceto o capitão, haviam ouvido o rumor de que ele viria. Quando chegou a bordo, o receberam com amabilidade e o olharam com uma grande curiosidade bastante bem dissimulada.
- Quer esperar aqui enquanto vou ver se o capitão está livre? - perguntou Stephen. - Provavelmente o senhor Rowan poderá mostrar-lhe em um momento os distintos cabos que existem.
- Jack! - exclamou ao entrar na cabine. - Escuta-me! Tenho uma curiosa notícia: um jovem preto que parece de confiança estava no navio insígnia perguntando por você e me disse que tinha uma mensagem de Sophie, assim que o trouxe.
- De Sophie? - inquiriu Jack.
Stephen assentiu e, em voz baixa, disse:
- Meu amigo, desculpa-me, mas tenho que lhe dizer que possivelmente se surpreenda com o mensageiro. Mas não se preocupe. Posso fazê-lo entrar?
- Sim, é claro!
- Boa tarde, senhor - disse o jovem com voz grave e trêmula ao mesmo tempo que lhe dava a carta. - Quando estive na Inglaterra, a senhora Aubrey me pediu que lhe entregasse isto ou que a deixasse em boas mãos se eu zarpasse antes de sua fragata chegar.
- Agradeço muito, senhor - disse Jack, apertando-lhe a mão afetuosamente. - Sente-se, por favor. Killick! Killick! Traga uma garrafa de vinho de Madeira e o bolo do domingo. Sinto muito não poder atender-lhe melhor, mas esta noite tenho um compromisso com o almirante. Gostaria de almoçar comigo amanhã?
Naturalmente, Killick estivera escutando atrás da porta, assim que apareceu imediatamente com Tom Burguess. Ambos entraram caminhado majestosamente, como se fossem um mordomo e um criado; mas Tom tinha tanto desejo de ver o visitante que estava sentado de costas para ele, que quando iam servir o vinho chocaram-se um contra o outro. Quando se retiraram (não sem que antes os chamassem de "malditos marinheiros de água doce") e os dois ficaram sozinhos outra vez, Jack olhou atentamente para o jovem e pensou que seu rosto lhe era familiar e que devia de havê-la visto antes.
- Desculpem-me - disse, rompendo o lacre. - Darei uma espiada na carta para ver se há nela algum assunto urgente.
Não havia nenhum. Era a terceira cópia de uma carta enviada a todos os portos onde a Surprise poderia ter feito escala na viagem de regresso para a Inglaterra. Na carta Sophie falava do progresso das plantas e das árvores de Jack, da paralização indefinida dos trâmites de seus assuntos legais e da varicela, que nesse momento estava em sua pior fase. No final da página havia uma posdata na qual dizia que confiava a carta ao senhor (ilegível), que se dirigia às Antilhas e havia tido a amabilidade de visitá-la.
Levantou a vista e apesar de que voltar a sentir um desassossego ao pensar que aquela cara lhe resultava familiar, comentou:
- O senhor é muito amável por ter-me trazido esta carta. Espero que em Ashgrove Cottage todos estejam bem.
- A senhora Aubrey me disse que as crianças tinham a varicela e que estava preocupada com elas, mas um cavalheiro que estava sentado junto dela e cujo nome não entendi assegurou que não corriam nenhum perigo em absoluto.
- Acho que minha esposa tampouco entendeu seu nome, senhor - assinalou Jack. - Não pude decifrá-lo na carta.
- Meu nome é Samuel Panda, senhor, e minha mãe se chama Sally Mputa. Como eu ia com os frades para a Inglaterra, ela me pediu que lhe desse isto - disse, entregando-lhe um pacote. - A razão pela qual fui a Ashgrove Cottage é que esperava encontrá-lo lá.
- Meu Deus! - exclamou Jack e, depois de um momento, começou a abrir o pacote lentamente.
O pacote continha um dente de baleia azul no qual ele mesmo, sendo muito jovem, mais jovem que o homem que tinha diante de si, havia gravado Resolution trabalhosamente quando esse navio levava as gáveas aferradas. Também continha um pequeno conjunto de canetas e de pêlos de elefante atados com um pedaço de pele de leopardo.
- Isso é um amuleto para que o senhor não se afogue-explicou-lhe Samuel Panda.
- Quanta amabilidade! - exclamou Jack.
Os dois, cheios de curiosidade e assombro, lançaram-se um olhar escrutinador. Na parte da fragata que Jack ocupava só havia dois espelhos: um pequeno para barbear-se no lugar onde dormia e outro muito grande na parte interna da tampa do elaborado e engenhoso móvel que Diana havia presenteado a Stephen, seu esposo, e que se usava como atril para as partituras. Jack a abriu e ambos ficaram frente ao espelho muito juntos e silenciosos, comparando-se e procurando a si mesmos no outro.
- Estou assombrado - disse por fim Jack. - Não tinha nem idéia… Não tinha nem a mais mínima idéia…
Então voltou a sentar-se e acrescentou:
- Espero que sua mãe se encontre bem.
- Está muito bem, obrigado, senhor. Prepara remédios africanos no hospital de Lourenço Marques. Alguns pacientes os preferem.
Nenhum dos dois disse mais nada até que Jack, girando o dente de baleia na mão, voltou a exclamar:
- Meu Deus!
Poucas coisas podiam surpreender-lhe no mar e havia passado por situações muito difíceis sem perturbar-se, mas agora a vívida recordação de sua juventude o desconcertava.
- Quer que lhe conte como cheguei até aqui, senhor? - perguntou Samuel com voz grave e melodiosa para romper o silêncio.
- Sim, por favor, conte-me.
- Nós nos mudamos para Lourenço Marques quando nasci. Minha mãe era de Nwandwe, a pouca distância dali. Quando pequeno estive muito enfermo e os frades se encarregaram de mim. Minha mãe estava casada então com o bruxo de uma tribo zulu, um pagão, certamente, assim que os frades me criaram e me educaram.
- Deus os abençoe. Mas Lourenço Marques fica na baía Delagoa e é território português, não? - perguntou Jack.
- É dos portugueses, mas é irlandês, quer dizer, a missão foi fundada por enviados do condado de Roscommon. O padre Power e o padre Birmingham me levaram para a Inglaterra, onde esperava encontrar-lhe, e depois me trouxeram para as Antilhas.
- Bem, Sam, dou-lhe as boas-vindas - disse Jack. - E agora que me encontrou, diga-me o que posso fazer pelo senhor. Se isto houvesse ocorrido antes, como me houvesse gostado, tudo haveria sido mais fácil, mas como já lhe disse, não tinha nem a mais mínima idéia… É muito tarde para que entre na Armada, e de qualquer maneira… Já sei! Já pensou alguma vez em ser o escrevente de um capitão? Teria uma vida agradável e poderia chegar ao posto de contador. Por outro lado, conheci muitos escreventes de capitães que tomaram o comando de uma lancha em ataques surpresa.
Ficou falando com entusiasmo durante um bom momento dos prazeres da vida marinheira, mas de repente lhe pareceu ver no olhar respeitoso e afetuoso de Sam um brilho de alegria, e isso lhe bastou para interromper a conversa.
- O senhor é muito amável, senhor - disse Sam -, mas não vim para pedir-lhe nada além de sua benção.
- Claro que lhe darei: que Deus lhe abençoe, Sam. Contudo, eu gostaria de ajudar-lhe com algo material, algo que lhe ajudasse a viver, ainda que talvez esteja equivocado e o senhor viva em uma magnífica casa. Talvez esses cavalheiros lhe hajam proporcionado trabalho.
- Não, senhor. Eu lhes ajudo porque acho que é meu dever fazê-lo, sobretudo ao padre Power porque é coxo, mas é a missão que me mantém.
- Sam, não me diga que o senhor é papista! - exclamou Jack.
- Sinto decepcionar-lhe, senhor, mas de fato sou - afirmou Sam, sorrindo. - Ademais, espero converter-me em sacerdote algum dia se logro que me confiram essa ordem. Até agora só recebi as ordens menores.
- Bem… - disse Jack, tranqüilizando-se. - Um de meus melhores amigos é católico: o doutor Maturin, a quem acaba de conhecer.
- Estou seguro de que é um dos homens mais instruídos do mundo - disse Sam, fazendo uma inclinação de cabeça.
- Mas, diga-me, Sam - continuou Jack -, o que está fazendo atualmente e que planos tem?
- Pois bem, senhor, tão logo como chegue o barco, os frades partirão para a missão do Brasil e me levarão com eles. Ainda que não tenha recebido a ordem sacerdotal, acreditam que os escravos negros me aceitarão melhor porque falo português e sou preto.
- Acredito que sim. E sem dúvida poderei dizer que um de meus melhores amigos é preto e, ademais, católico. O que foi, Stephen?
- Sinto interromper, mas no navio insígnia apareceu um sinal dirigido a você e Mowett teme que chegue tarde. A falua já está pronta e meu violoncelo dentro dela. Repito que meu violoncelo está dentro da falua.
Jack reprimiu uma frase blasfema, pegou seu violino e disse:
- Venha conosco, Sam. A falua lhe levará para terra e lhe recolherá amanhã se quiser ver a fragata e almoçar comigo e com o doutor Maturin.
CAPÍTULO 2
A caravela Nossa Senhora das Necessidades, uma embarcação de popa quadrada muito antiga, aproveitava a brisa que soprava perto da costa para se aproximar do cabo Needham. Por desgraça, navegava com as velas amuradas para estibordo e, ao cruzar a linha de espuma que separava a brisa da zona dos ventos alísios do nordeste, inclinou para bombordo. O impulso do vento a inclinou até a horizontal e o mar do Caribe entrou pelos embornais.
- Desdobre rápido as velas, malditos marinheiros de água doce! - gritou Jack.
- Sam está puxando um cabo - disse Stephen, que tinha agora o telescópio.
- Esse não é o cabo - assinalou Jack, retorcendo suas enérgicas mãos.
Mas tanto se fosse como se não, a caravela recuperou sua posição enquanto as velas golpeavam com força e imediatamente viram os marinheiros correrem de um lado para o outro abraçando e felicitando seus companheiros e aos frades. Depois a embarcação virou devagar até que teve os ventos alísios pela alheta de bombordo e finalmente desapareceu detrás do cabo.
- Graças a Deus! - exclamou Jack. - Já não terão que içar nenhuma vela nem amurá-las até entrar em Para. Inclusive é possível que todos cheguem ali sãos e salvos. Stephen, nunca havia presenciado semelhante prova de intervenção divina. Para começar, essa horrível carraca não tinha quase nenhuma possibilidade de chegar a Bridgetown e teria afundado com todos seus tripulantes se não fosse pela graça de Deus. Só uma série de milagres pode tê-la mantido flutuando durante os últimos sessenta ou setenta anos. Apesar de tudo, preferiria que viajasse em um barco que não necessitasse recorrer ao anjo da guarda dia e noite.
- É um jovem excelente - comentou Stephen.
- Acha mesmo? - disse Jack. - Espero que o pequeno George também seja. Gostei muito de ouvi-los falarem em latim com tanta fluidez, mas notei que o pastor Martin tinha dificuldade de entender-se com ele.
- Isso é porque o pobre Martin tem um sotaque inglês muito pronunciado.
- E o que tem de ruim no sotaque inglês? - inquiriu Jack, incômodo.
- Nada, de fato, salvo que em nenhum outro país se entende.
- Duvido - replicou Jack e depois acrescentou -: Sabia que pode descer até fá sem se esforçar nem diminuir o volume? Tem voz de órgão.
- Como não ia saber se naquela ocasião fui eu que lhe pedi que cantasse Salve Regina uma oitava mais baixo! Fez tremer a mesa mais de uma vez.
- É verdade! - respondeu Jack com um sorriso. - Mas oxalá não fosse preto.
- Não há nada mau em ser preto, meu amigo. A rainha de Sabá era negra e, sem dúvida, belíssima; Gaspar, um dos Reis Magos, era preto; e são Agustín, arcebispo de Hipona, era africano e, ademais, teve um filho fora do matrimônio, como provavelmente recordará. Por outro lado, quando se acostuma com a pele negra, os que a têm de cor branco amarelado se parecem seres repulsivos que não terminaram de se formar. Pelo menos, isso nos ocorria no Pacífico.
- Também preferiria que não fosse católico. Perdoe-me, Stephen. Não se trata de nada pessoal… nem tem a ver, certamente, com a religião. Está em todo seu direito de encontrar a salvação no catolicismo. Falo devido à atitude hostil que existe contra eles na Inglaterra. Provavelmente recordará dos distúrbios promovidos por Gordon e os rumores de que os jesuítas eram os causadores da loucura do rei Jorge e muitas outras coisas. A propósito, Stephen, esses frades não eram jesuítas, né? Não quis perguntar diretamente.
- Sem dúvida que não, Jack. Faz muito tempo que essa ordem foi abolida. Clemente XIV os excomungou nos anos setenta e fez muito bem. Como era de esperar, hão tentado voltar com um pretexto legal ou outro, e me atrevo a assegurar que muito em breve darão de novo uma triste imagem de si mesmos, pois de suas escolas só sairão ateus. Mas esses cavalheiros não têm absolutamente nada a ver com eles.
- Fico contente. Mas o que quero dizer é que se fosse branco e protestante, poderia chegar a almirante e estar ao comando de um navio insígnia. Um jovem como ele, inteligente, sagaz, alegre, decidido, engenhoso, modesto e amável, está destinado a ser um bom marinheiro. Na menor oportunidade teria se destacado entre todos, e durante uma guerra cruenta ou um período de agitação não deixaria escapar uma ascensão. Poderia terminar como almirante da Armada e levando a bandeira britânica no mastaréu de joanete maior.
- Mas ao ser preto e católico, pode converter-se em outro bispo africano, como são Agustín, e levar uma mitra e um báculo. Talvez possa chegar inclusive a ser nomeado bispo de Roma, Sumo Pontífice, e usar a tiara. Por outro lado, Jack, deve ter em conta que o fato de que seja papista significa que seguiu o exemplo de muitos de seus antepassados ingleses da época em que os missionários irlandeses lhes ensinaram a Sagrada Escritura e a diferença entre o bem e o mal até os tempos gloriosos de Enrique VIII, só umas poucas gerações anteriores à nossa.
Jack não parecia de todo satisfeito e, depois de alguns minutos de silêncio, disse:
- Tenho que ir ao navio do almirante. Esse maldito conselho de guerra vai celebrar o julgamento às dez.
- Eu também tenho que ir - recordou Stephen. - Devo atender a um paciente.
Enquanto caminhavam pelo cais, Jack comentou:
- De toda forma, gostei que dissesse isso de seu santo.
- Também é o seu, sabe? São Agustín é reconhecido inclusive pelas seitas mais modernas. Afinal é um dos pais da Igreja.
- Tanto melhor. Que um santo e ademais pai da Igreja possa manter uma relação proibida representa um consolo para os outros.
- Sim, mas acho que ainda não era santo naquela época.
Jack seguiu andando em silêncio e pouco depois disse:
- Quis perguntar uma coisa a Sam, mas por alguma razão não fui capaz de fazê-lo. Não me atrevi a dizer-lhe: "Sam, quando chegou a Ashgrove Cottage, explicou o motivo pelo qual desejava me ver?".
- Não explicou. Estou tão certo como se houvesse estado ali. Ainda que seja um jovem sincero e aberto, não é um bobo… nem jamais faria algo que pudesse molestar.
- Apesar de tudo, temo que Sophie o haja adivinhado ao ver sua cara, por mais negra que seja. Você adivinhou imediatamente, pois do contrário não me diria para que não me preocupasse.
- Tem que admitir que a semelhança é assombrosa.
- Stephen… - continuou Jack, vacilante. - Acha que seria conveniente falar a Sophie de São Agustín? Ela respeita muito à Igreja e se opõe a esse tipo de comportamento. Sabe? Foi-me quase impossível conseguir que sentisse simpatia por…
Nesse momento os anjos da guarda intervieram outra vez, um deles com uma mordaça - Jack tinha já formado na garganta o nome de Diana, prima de Sophie e esposa de Stephen, que havia tido uma conduta mais que reprovável em muitas ocasiões - e o outro com a inspiração necessária para que Jack continuasse sem fazer pausa:
- … Heneage Dundas, que tem uma tribo de bastardos, até que lhe expliquei que me salvara de morrer afogado quando éramos meninos.
- Bem, também não é para tanto - respondeu Stephen.
Não pôde continuar porque já estavam no cais onde atracavam as lanchas dos barcos de guerra e ali se encontrava Bonden com a falua da fragata, que era nova, pois o almirante havia cumprido sua palavra e a Surprise recebera grande quantidade de apetrechos. Já haviam carregado na fragata a água, o pão, a carne de vaca e quase toda a lenha, e essa mesma tarde encheriam a santa-bárbara com a pólvora que um barco abastecedor traria. Mowett, o primeiro tenente, Adams, o contador, e todos os marinheiros haviam encontrado tempo para embelezar a falua apesar de terem estado muito ocupados. Por outro lado, os tripulantes da falua haviam passado seu tempo livre arrumando-se ou, pelo menos, arrumando sua roupa. Muitos capitães gostavam que os tripulantes de sua fama usassem uniformes, que em alguns casos se desenhavam conforme a encomenda do capitão e em outros guardavam alguma relação com o nome do barco; por exemplo, os da Emerald consistiam em camisas de cor verde brilhante; os da Argo, em camisas pintadas de amarelo; e os da Niger eram todos negros, mas Jack não se interessava por esses detalhes. Contudo, os tripulantes de sua falua haviam combinado de se vestir igual, pois pensavam que assim aumentariam o prestígio de seu barco, como era seu dever, algo difícil de lograr nas Antilhas, onde tudo estava impoluto e inclusive os sepulcros reluziam. Nesta ocasião pensaram que a melhor maneira de conseguir seria usando uma camisa branca como a neve, uma calça branca, também impecável, com a parte superior muito ajustada, de perna larga e com rebordos azuis e vermelhos nas costuras, uma trança recém feita que lhes chegava à cintura - e que aqueles com os quais a natureza havia sido menos generosa completavam com estopa -, um lenço de Barcelona preto atado ao pescoço, um chapéu de palha de aba larga dobrada para trás e uma cinta de três pés de comprimento com o nome Surprise bordado, que rodeava a copa e ficava flutuando no ar. Por último, um par de botinas estreitas e de ponteira alongada em seus enormes pés, alargados de tanto correr descalços pela coberta. Com aquela vestimenta poderiam transportar dignamente ao seu capitão até o Irresistível, onde o conselho de guerra ia celebrar o julgamento, um acontecimento que requeria traje de gala; contudo, não podiam descer para a suja margem sem pôr em perigo o resultado obtido, assim que contrataram quatro garotos de Barbados para que colocassem a prancha{4} e depois afastassem a falua da margem. A prancha era pequena, mas todos os tripulantes da falua haviam navegado durante anos com o doutor Maturin e sabiam que podia cair pelas janelas de popa, das escadas e inclusive dos cais, assim que voltaram a cabeça para olhá-lo e viram que avançava com cautela e passo vacilante. Desta vez não temiam por sua vida, pois havia pouca profundidade, ainda que devido à baixa-mar a água estava muito turva e temiam que lhes salpicasse a roupa se caísse. Ademais, corriam o risco de manchá-la ao ir resgatar-lhe. O doutor não era um companheiro digno do capitão essa manhã. O capitão exibia um resplandecente uniforme azul e dourado, com o sabre que lhe havia presenteado a Associação Patriótica Lloyd ao cinto, a medalha do Nilo pendurada do quarto olhal da casaca e o chelengk, um broche de diamantes turco em forma de penacho, preso em seu melhor chapéu, adornado com uma cinta dourada, que usava com as pontas para a frente e para trás, como Nelson. Havia se lavado e barbeado (como acostumava fazer diariamente, ainda que fizesse muito mau tempo) e também escovara o cabelo cuidadosamente e o usava empoado e arrumado para trás com uma larga cinta negra; o doutor Maturin, em troca, não se barbeara nem provavelmente tampouco sentira a necessidade de se lavar. Ademais usava meias descombinadas, os calções desabotoados nos joelhos e uma velha e horrível casaca que seu servente já havia querido jogar fora duas vezes. Tinha postas todas suas esperanças naquela raquítica peruca que, confiava, lhe outorgaria um aspecto civilizado.
- Talvez o doutor queira regressar para a fragata em um barco abastecedor - aventurou Bonden. - Há um; que está a ponto de zarpar carregado de verdura - acrescentou, assinalando com a cabeça uma embarcação com forma de cesta atracada ao cais destinado aos barcos de guerra e que, por ter o fundo plano, era mais estável e, por isso, um meio de transporte mais apropriado para ele.
- Bobagem! - exclamou Stephen subindo a prancha. - Vou ao Irresistível. Nesta embarcação… nesta falua recebem uma pessoa como a um cachorro em uma partida de boliche - murmurou em tom irritado enquanto avançava com dificuldade.
Uma onda distante sacudiu levemente a prancha e Stephen se cambaleou e deu um grito. Então Jack, que estava detrás, o agarrou pelos cotovelos, o alçou no ar e o passou por cima da borda até o interior da falua, onde fortes marinheiros o levaram até a bancada de popa como se fosse um pacote.
Esses mesmos marinheiros o colocaram na escada do navio insígnia e o advertiram que tivesse cuidado ao subir os degraus e que se segurasse com as duas mãos. Jack havia subido como era devido e foi recebido com a cerimônia de rigor e conduzido para a popa. Por essa razão Stephen não o viu quando chegou ao castelo de popa, mas viu o senhor Butcher, antes cirurgião da Norfolk e agora prisioneiro de guerra.
- Bom dia, senhor Butcher. Eu lhe agradeço que haja tido a amabilidade de vir.
Butcher era um homem de grande experiência e apesar de não ser muito instruído nem versado em outra matéria que não fosse sua profissão, possuía uma habilidade para fazer diagnóstico e prognose que raras vezes Stephen havia visto em outras pessoas.
- Não tem importância. É um prazer corresponder ainda que seja minimamente à amabilidade que o senhor teve com o capitão Palmer.
Nesse momento inspirou um pouco de rapé e acrescentou:
- O senhor Martin já está lá embaixo.
- Talvez devamos nos reunir com ele - propôs Stephen.
- Acho que sim - disse Butcher. - Mas antes de descer, permita-me perguntar por que o senhor operou aqui em vez de trasladar o paciente para o hospital. Na Jamaica, onde há febre amarela e miasmas, eu entenderia, mas num lugar tão saudável como a ilha Barbados…
- Na verdade é que é um homem de caráter difícil e que brigou com quase todos os seus colegas, incluindo os que trabalham no hospital.
- Então entendo sua reserva. Por outro lado, ainda que um hospital seja o lugar mais conveniente para ser operado, sobreviver é algo muito distinto. Eu preferiria estar no mar. Vi como todos os homens que haviam em uma sala de hospital com membros amputados morreram uma semana depois de ter sido operados, enquanto que alguns dos que haviam ficado no barco por falta de espaço sobreviveram. Vários ainda vivem.
O paciente não parecia ter um caráter muito difícil. Agradeceu ao senhor Butcher por sua visita, felicitou-lhe por sua iminente liberação - o barco sueco que levaria os oficiais norte-americanos prisioneiros de volta ao seu país havia ancorado essa manhã - e lhe deu algumas mensagens para seus amigos de Boston. Contudo, imaginou que estiveram falando de suas probabilidades de sobreviver e olhou com atenção para Butcher enquanto este lhe observava para julgar-lhe objetivamente. Achou que sua expressão indicava que ele estava condenado à morte e começou a falar cada vez mais rápido para demostrar que estava enganado, que se encontrava em perfeito estado e que a ferida e a constante febre baixa careciam de importância.
- Um pouco de pus - explicou ao mesmo tempo que lhes lançava um olhar inquisitivo. - É somente um pouco de pus. Vi isso milhares de vezes.
- E aí, senhor? - perguntou Stephen quando regressaram ao castelo de popa.
- Bem, tem uma infecção, como o senhor muito bem sabe - respondeu Butcher. - Quanto à sua evolução… - acrescentou, imitando com as mãos um movimento descompasado. - Tanto uma vitória como uma boa notícia poderiam inclinar a balança, mas tal como estão as coisas, seria conveniente preparar-se para um desenlace fatal. Suponho que o senhor não tentará aplicar remédios heróicos.
- Não. É de constituição débil e está muito amargurado por problemas familiares. Vamos ver o capitão Palmer.
Durante esse tempo o conselho de guerra recusara o pedido de três dos prisioneiros de serem julgados individualmente. Ademais, já se haviam lido as acusações contra eles com a monótona repetição própia dos assuntos legais e se havia posto em marcha a lenta maquinaria que os conduziria imperdoavelmente para a forca.
Havia poucas dúvidas com respeito à sua identidade, pois sua descrição, junto com a de todos os outros que haviam participado do motim da Hermione, havia chegado a todas as bases navais:
George Noris, ajudante do condestável, vinte e oito anos. De constituição delgada, mede cinco pés e oito polegadas e tem a pele azeitonada e o cabelo preto e longo. Perdeu uma falange do índicador direito. Leva tatuada uma estrela debaixo da mama esquerda e uma cinta ao redor da perna direita com a inscrição: O mal estar para quem pensa que o mal. Além disso, tem uma ferida causada por uma bala de mosquete em um braço.
John Pope, armeiro, quarenta anos. Robusto, mede cinco pés e seis polegadas e tem a pele branca, a cara marcada pela varíola e o cabelo cinzento. Leva tatuado um coração no braço direito.
William Strachey, dezessete anos. Robusto, mede cinco pés e três polegadas e tem a pele branca e o cabelo castanho escuro e comprido. Leva tatuado seu nome e a data do 12 de dezembro no braço direito.
Não se podiam refutar provas assim. Alguns alegaram que viajavam sob o nome falso de um contador para evitar ser aprisionados por dívidas ou obrigados a pagar a manutenção de seus filhos ilegítimos, e que uma acusação que utilizasse um pseudônimo ficava invalidada. Contudo, não serviu de nada, já que um conselho de guerra naval não levava em conta as sutilezas aplicáveis no Old Bailey, o principal tribunal civil de Londres, e a maioria dos acusados haviam admitido sua identidade, ainda que não sua culpabilidade. Todos jogavam a culpa nos outros e inclusive alguns não sentiam escrúpulos ao revelar quem eram os verdadeiros instigadores do motim. Nesse momento Aaron Mitchell argumentava com veemência que um jovem de dezesseis anos, como ele então, não podia opor-se a duzentos homens enfurecidos, porque haveria resultado inútil e lhe haveria ocasionado a morte. Também aduzia que estava totalmente contra de que entregassem a fragata aos espanhóis, mas que não pôde fazer nada para evitá-lo.
Jack pensou que ele tinha uma certa razão, pois um jovem teria que ter uma força moral e uma coragem extraordinárias para resistir à determinação de homens mais velhoss que ele, alguns deles ferozes e sanguinários, que haviam sido maltratados de forma intolerável até limites imprevistos. Hugh Pigot, com o poder que lhe outorgava seu título de capitão de um barco de guerra, havia convertido a Hermione em um inferno flutuante. Na noite antes do motim, quando os tripulantes estavam rizando as gáveas, havia dito aos gritos que o último em descer da verga sobremezena seria açoitado, e como seus açoites eram tão temidos, os dois marinheiros que atavam as empunhaduras de barlavento e sotavento - e, portanto, estavam mais afastadas, justamente nos penóis -, saltaram por cima dos que trabalhavam na parte interior para alcançar os brandais ou os amantilhos, por onde deslizariam até a coberta, mas perderam o equilíbrio e caíram sobre o castelo de popa. Quando os marinheiros que lhes recolheram comunicaram a Pigot que estavam mortos, o capitão lhes havia ordenado: joguem esses marinheiros de água doce pela borda".
Mas o argumento que Mitchell utilizava em sua defesa, por desgraça, era muito comum e se debilitava a medida que era repetido. A verdade era que os amotinados não só haviam matado Pigot como também ao primeiro, ao segundo e ao terceiro oficiais, ao contador, ao cirurgião, ao secretário do capitão, ao tenente de Infantaria da Marinha, ao contramestre e a um jovem guarda-marinha, primo de sir William; e como se fosse pouco, haviam entregado a fragata ao inimigo. Não obstante, o carpinteiro e o condestável, que haviam sobrevivido, não declararam em nenhum momento que algum marinheiro houvesse sido insultado nem golpeado, ferido ou assassinado por opor-se aos amotinados. Um depois de outro, os outros marinheiros asseguraram não ter tido nada a ver com o ocorrido, que foram obrigados e que pediam por Deus que pensassem no que haviam sofrido. Mas tudo foi em vão. Alguns, os mais eloqüentes, falaram surpreendentemente bem; outros, os típicos valentões, limitaram-se a usar termos legais e a intimidar às testemunhas recordando-lhes que se encontravam sob juramento e que o perjúrio se castigava com a pena de morte neste mundo e com o inferno no outro; a maioria deles, temerosos do que lhes rodeava e sem forças devido ao longo tempo que haviam estado prisioneiros, limitaram-se a negar tudo mecanicamente uma e outra vez, mas quase todos defendiam a si mesmos, quase todos trataram de salvar suas vidas fazendo uso de toda habilidade e inteligência que possuíam, ainda que provavelmente sabiam que havia muito poucas esperanças de consegui-lo.
Na realidade, nenhuma. Todos os membros do tribunal estavam contra deles e o veredito fora emitido muito antes de que começasse o julgamento. Além do horror que esse motim inspirava, as provas contra os marinheiros eram constrangedoras, e, para se assegurarem de que havia suficientes, haviam conseguido que dois deles se convertessem em traidores e delatassem aos demais em troca de que lhes poupassem a vida. Mas todos se defendiam das acusações e defesas, como se o que eles fizessem pudesse influir no tribunal.
Jack os escutava com grande atenção e uma expressão grave, e sua esperança diminuía à medida que passavam as horas. À sua esquerda estava sentado o capitão Goole, o presidente do tribunal, e à sua direita, um capitão de cabelo grizalho. Do outro lado de Goole se encontrava Berry, capitão da Jason, e ao lado deste um jovem de sobrenome Painter que acabava de ser ascendido a capitão e estava ao comando da corveta Víctor. Todos tinham a mesma expressão séria e estavam sentados formando um sólido tribunal azul e dourado, atrás daquela mesa coberta de papéis. Stone desempenhava a função de assessor legal e, ajudado por seus colaboradores, dirigia o jogo, porque aquilo não era mais que um jogo, jogo odioso; e, como todos, regia-se por uma intrincada rede de regras. Uma delas era que aos acusados se lhes permitia dizer o que quisessem, interrogar às testemunhas e dirigir-se ao tribunal para que o julgamento parecesse justo. Jack achava repugnante participar daquela farsa solene, e uma indecência estar sentado ali julgando esses homens que lutavam inutilmente. Jamais se atreveria a jurar que se tivesse estado no lugar do jovem Mitchell arriscaria a vida pelo infame Pigot; provavelmente vários homens foram eliminados por tentarem ser neutros, mas os delatores haviam jurado que todos os acusados usavam armas. Quanto desejava ter-lhes golpeado com fúria até matá-los! Quanto desejava que o dever não lhe houvesse obrigado a permanecer sentado ali, em meio de toda aquela podridão!
A podridão não ficava somente do lado da mesa onde se encontravam os homens bem vestidos, bem alimentados e a salvo; muitos daqueles marinheiros esquálidos, pálidos por ter estado encarcerados, esfarrapados, sem se barbear e com o cabelo comprido, grotescos diante dos infantes de marinha - com suas impecáveis casacas de cor escarlata - que os vigiavam, haviam começado a mentir descaradamente e a jogar a culpa para o primeiro que aparecesse. Certamente era mais compreensível que a podridão se instalasse naquela parte da sala, mas isso não a fazia menos condenável. Jack já vira em outras ocasiões como se quebrava a lealdade que existia entre os marinheiros. Como muitos dos que tentavam se afastar em lanchas de um barco que afundava empurravam os que se aproximavam nadando e inclusive lhes cortavam os dedos quando se agarravam na borda. Um espetáculo similar ao que presenciava nesse momento.
Quando o tribunal suspendeu a sessão para almoçar, bastante tarde, Jack estava muito desanimado, sobretudo porque era evidente que o julgamento ia durar muito tempo.
Stephen Maturin não estava muito melhor do que ele. O senhor Palmer, o capitão da Norfolk, sofria de melancolia e tinha febre palúdica quartã desde que estava no Pacífico, e, como o estojo de remédios de Butcher havia afundado com a fragata, Stephen lhe administrara outros medicamentos, com muito êxito no início. As febres, com suas inevitáveis seqüelas, haviam remitido com quinina e sassafrás, mas a melancolia havia se aguçado desde que dobraram o cabo Horn.
- Ele cortará suas veias se o deixarem sozinho - sentenciou Butcher quando saiam.
- É isso que eu temo - admitiu Stephen. - Mas parece que o láudano lhe fez muito efeito. Gostaria de ter folhas daquele arbusto peruano chamado de coca: ativariam a sua mente muito mais do que essa mistura de heléboro, água e leite.
Nesse momento foram interrompidos pela chegada da falua, e Stephen regressou para a Surprise. O capitão acabava de subir a bordo sem nenhuma cerimônia, apoiando-se no pescante de bombordo, e pôs a mão para fora da borda para ajudar Stephen.
- Já comeu? - perguntou Jack, pois a hora de almoçar dos oficiais já havia passado.
- Se já comi? - inquiriu Stephen. - Não, não comi.
- Então venha comer algo comigo -convidou Jack. - Ainda que bem sabe Deus que não há nada como tomar parte de um conselho de guerra para tirar o apetite de alguém - acrescentou enquanto conduzia Stephen para a cabine.
- Ainda faltam dezessete minutos para a hora, senhor - informou Killick com uma expressão mal-humorada, como se lhe houvessem pego em falta. - O senhor me disse às quatro porque o conselho de guerra celebrava hoje o julgamento.
- Não tem importância - disse Jack. - Diga ao cozinheiro que se apresse e sirva-nos xerez enquanto isso.
Não tiveram que esperar muito tempo. O cozinheiro de Jack era das Índias Orientais e estava acostumado a receber chicotadas se não terminasse a comida de seu patrão pontualmente, assim que antes de acabarem de beber a segunda taça de xerez, o camarote se inundou com o odor de uma sopa de pescado feita com atum, lagosta, caranguejo, mexilhões, amêijoas e uma ampla variedade de pescados de pequeno tamanho procedentes dos arrecifes de coral.
Era uma sopa magnífica, uma sopa da qual não haveriam deixado nem rastro em circunstâncias normais, mas que nesta ocasião pediram que a levassem quase sem tê-la provado.
- Perguntou ao almirante pelo senhor Barrow e o senhor Wray? - inquiriu Stephen enquanto serviram o pudim de carne e rins.
- Sim - respondeu Jack. - Ele me disse que a situação não havia mudado.
- Obrigado por se lembrar - disse Stephen, enquanto partia a massa branca e branda com a colher. - Prefiro o pudim mais cozido.
Não expressou sua opinião sobre a notícia, mas lhe causara uma grande satisfação. Ainda que o senhor Barrow ainda fosse oficialmente o vice-secretário do Almirantado, quem desempenhava seu trabalho já fazia algum tempo era o senhor Wray, um homem bastante jovem e muito bem relacionado que havia demostrado ser muito competente no Ministério de Fazenda. Stephen e Wray haviam sido apresentados muito antes de que este tivesse algo a ver com a Armada, pois era um conhecido de Jack, mas chegou a conhecê-lo bem em Malta, aonde Wray havia sido enviado para acabar com a corrupção nos estaleiros e resolver um caso muito mais sério, um caso de traição na Administração da ilha, já que, ao que parece, um alto funcionário passava informação confidencial de suma importância para um dos serviços secretos franceses. Mas aquilo não havia contribuído para estreitar sua relação, porque Stephen tinha a impressão de que Wray, um novato em uma atividade tão delicada e perigosa, não gozava de toda a confiança de seu própio chefe, sir Joseph Blaine, o diretor do serviço secreto naval, que, naturalmente, esperava que seus agentes demonstrassem sua habilidade e, sobretudo, sua discrição, antes de confiar-lhes a vida de todos os homens que integravam a rede de espionagem. Essa reserva era usual nas redes de espionagem e contra-espionagem, e ainda que um homem fosse admitido nelas, devia esperar cinco anos antes de saber dos assuntos mais delicados. Por essa razão, apesar de Stephen ter se relacionado com Wray e escutado música e jogado cartas com ele - ainda que Wray tinha muito má sorte e já lhe devia quase uma fortuna -, não considerou apropriado falar-lhe de seu trabalho no Mediterrâneo nem de sua relação com sir Joseph até o último momento, quando não teve escolha. Havia identificado o traidor e seu colega francês por conta própria, mas uma vez conseguida a valiosa informação, teve que abandonar a ilha; contudo, enviou para Wray que estava na Sicília, uma carta urgente na qual lhe contava tudo o que sabia (portanto, havia lhe revelado a sua identidade) para que acabasse com toda a organização. O traidor foi aprisionado, mas, infelizmente, o principal agente secreto francês escapara, talvez devido à inexperiência de Wray. Stephen se informou da notícia em Gibraltar justo antes de partir para o Pacífico, e ainda que não tenha visto Wray, que faria parte da viagem de regresso para a Inglaterra por terra, aceitou sua oferta de levar uma carta sua para lá. Em Malta utilizara uma bonita dama italiana para descobrir os agentes secretos a serviço da França, e como lhes viram juntos amiúde e os dois haviam ido a Gibraltar na Surprise, criou-se a opinião geral de que eram amantes. Aquilo havia chegado aos ouvidos de Diana, uma mulher exageradamente apaixonada e impulsiva, e a carta tinha como objetivo paliar seu possível ressentimento pelo comportamento que mostrara, não porque fosse imoral - para ela o comportamento imoral não lhe parecia censurável -, mas porque o consideraria uma intolerável afronta pública. Por desgraça, devido à natureza daquele caso, na carta não podia expressar-se com toda sinceridade; não podia contar toda a verdade, pelo que pedira a Wray que com suas própias palavras e em um tom de voz convincente lhe explicasse o que não podia escrever. Agora desejava conhecer até o último detalhe da conspiração maltesa e as circunstâncias que haviam rodeado o insólito suicídio do traidor, e era melhor informar-se diretamente, através do própio Wray, que não depois de que a informação fosse filtrada pelo senhor Barrow, com seu interminável e estúpido discurso de autocomplacência, ou por sir Joseph, para quem Stephen havia conseguido numerosos insetos e algumas mariposas, que apesar de ser dez vezes superior a Wray por sua extraordinária sagacidade e sua grande experiência, não se achava em Malta na ocasião. Por outro lado, ainda que Wray não tivesse a estatura de sir Joseph, era perspicaz, astuto e inteligente, talvez inteligente demais. Apesar de gostar muito de viver no luxo e de apostar grandes somas de dinheiro, Stephen não o achava antipático, ainda que no final de sua permanência em Valletta chegara a chatear-se com sua insistência em seguir jogando cartas com ele; foi perdendo cada vez mais dinheiro até que por fim percebeu que não podia pagar e pediu indulgência. Além disso, Stephen simpatizava com ele devido ao seu profundo amor pela música e porque solicitara, ou, pelo menos, recomendara, que concedessem uma ascensão para Tom Pullings, o primeiro tenente de Jack Aubrey, apesar de que ele e Jack haviam tido uma briga vários anos atrás, uma briga cujos pormenores Stephen não conhecia, mas que haveria provocado rancor em uma pessoa com sentimentos piores. Quanto às promessas que Wray havia feito a Stephen para agradecer-lhe por sua indulgência, as promessas de que ajudaria a Jack a conseguir uma potente fragata na base naval da América do Norte e a Pullings, o comando de um barco, Stephen não era tão ingênuo a ponto de pensar que tinham o valor de um contrato, mas acreditava que as cumpriria.
Ainda que não fosse uma de suas qualidades mais sobressalentes, Stephen não carecia de ingenuidade, e por isso nunca suspeitou que Wray fosse um agente secreto a serviço da França. Mas também era verdade que sir Joseph, muito menos ingênuo do que ele, tampouco havia suspeitado, e que os únicos defeitos que encontrava em Wray eram não ser a pessoa adequada para o cargo e carecer de experiência e discrição. Nem Stephen nem sir Joseph podiam imaginar que um serviço secreto francês recrutaria um homem esbanjador, jogador, presunsoso, loquaz e pouco confiável, por mais inteligente e perspicaz que fosse.
Tampouco nenhum deles podia imaginar que Wray e seu amigo Leward, também um fervoroso admirador de Bonaparte, mais inteligente, poderoso e discreto que ele, participavam da conspiração que existia em Whitehall para desacreditar a sir Joseph e aos seus colaboradores e substituir este pelo medíocre Barrow, facilmente manipulável, mesmo que voltasse a ocupar o seu posto. Se a conspiração triunfasse, Wray e Leward lograriam conhecer esse estranho organismo tão seleto e quase fantasmal conhecido simplesmente como "o Comitê", que vigiava todos os serviços secretos da Grã-Bretanha e seus aliados para conhecer suas atividades no mais alto nível.
Para completar, durante o pouco tempo que Stephen se relacionara com Wray não notara que, com efeito, hospedava maus sentimentos e era vingativo. Wray odiava a Jack Aubrey por causa daquela briga e havia influído no Almirantado para prejudicar-lhe tanto como fosse possível. Também odiava a Stephen por ser amigo de Jack e um agente secreto que eliminara muitos de seus colegas franceses; e se surgisse a ocasião, não hesitaria em entregar-lhe ao inimigo.
- Eu gostaria de voltar a vê-lo, sobretudo porque me deve um monte de dinheiro - disse Stephen.
- A quem? - inquiriu Jack, pois entre sua resposta e o comentário de Stephen haviam passado vários minutos, tempo suficiente para comerem uma libra de pudim de rins, e o pudim sob o sol tropical tirava mais agudeza dos sentidos que ao sul do cabo Horn.
- A Wray - respondeu Stephen; e enquanto falava, ouviram alguém na Surprise gritar que se aproximava uma lancha.
Entre a confusão que seguiu, escutaram claramente a palavra carta.
- Killick, corra até o convés para ver se o correio chegou - ordenou Jack.
Ambos se ficaram imóveis esperando-o com o garfo na mão. Stephen estava ansioso para saber que efeito haviam produzido em Diana a primeira carta que escrevera e as que lhe enviara do Brasil e do sul do Atlântico, enquanto que Jack desejava com impaciência saber a opinião de Sophie com respeito à visita de Samuel.
- Não, senhor - disse Killick ao regressar. - Trouxeram somente uma carta, uma carta do capitão Pullings para Mowett. Os suecos se detiveram junto ao barco onde ele viajava como passageiro e, como permaneceram ali por meia hora para passar o tempo, o capitão Pullings escreveu rapidamente essa carta para o senhor Mowett. Dizem que depois de deixarem os norte-americanos farão escala na Inglaterra na viagem de regresso, e que se tivermos cartas para enviar, terão prazer em levá-las.
- Acredita que vale a pena escrever? - perguntou Stephen.
- Acho que não - respondeu Jack, que interrompera bruscamente sua carta-serial para Sophie no dia em que Sam chegara. - Já estamos a pouco mais de mil léguas de nosso país e é provável que cheguemos antes do que eles, já que esse barco sueco não é mais do que uma gata de popa alta, sabe? Não é que esteja precisamente ansioso para chegar - acrescentou em voz mais baixa e depois ordenou -: Killick, pergunte a Mowett se quer tomar café conosco.
O primeiro tenente chegou ao mesmo tempo que a fumegante cafeteira, e seu rosto radiante iluminou o camarote. Inclusive em circunstâncias normais, seu rosto desenhava um franco e agradável sorriso, mas nesse momento irradiava felicidade, e os dois homens sorriram apesar de sua tristeza.
- O que houve, meu querido James Mowett? - perguntou Stephen.
- Vão publicar meus poemas, senhor. Vão reuni-los em um livro - acrescentou e soltou uma alegre gargalhada.
- Parabéns - disse Jack enquanto lhe apertava a mão. - Killick! Killick, traga uma garrafa de conhaque de Nantes.
"Isso é justo o que eu ia fazer", disse Killick para si mesmo. Certamente, ouvira tudo, e ainda que não fosse freqüente que um oficial de marinha publicasse um livro de poesias, sabia como o acontecimento devia ser celebrado.
Mowett explicou que confiara o manuscrito ao seu amigo Tom Pullings, que havia encontrado um excelente editor, um tipo estupendo que amaria publicá-lo e pô-lo a venda em primeiro de junho, no glorioso primeiro de junho. Esse generoso cavalheiro amava a poesia e a Armada e fizera para Mowett, através de Tom, uma magnífica oferta: só teria que pagar o custo da impressão, do papel, da publicidade e uma pequena quantia pela opinião da imprensa, e a metade dos benefícios seria para ele. Também havia dito que Murray, um editorial de muito menos categoria que a sua, vendera cinco edições do livro de Byron em nove meses, e considerando que o livro de Byron não era tão longo. Tom aceitara a oferta na hora, porque a oportunidade é careca. O cavalheiro pensava que o livro ficaria muito bem em cícero e em oitavo e que poderia ser encadernado por meio guinéu. Naturalmente, ele teria que lhe ceder os direitos de autoria desse livro e de todos os seguintes.
- O que é cícero? - perguntou Jack.
- Sabe Deus, senhor - respondeu Mowett, rindo alegremente. - Vou perguntar ao senhor Martin, que sabe tudo sobre livros.
- Vamos pedir que ele celebre conosco este triunfo de nossa fragata e que nos comente os aspectos técnicos da edição - disse Stephen.
Quando Martin era um clérigo sem nenhum benefício eclesiástico, passara alguns anos de penalidades trabalhando duramente como tradutor, compilador e corretor de prova de granel para vários editores. Sabia muito desse negócio e imediatamente apercebeu que o tipo de quem Mowett falava se parecia mais com Barrabás do que a maioria dos editores; contudo, um momento depois de adotar uma expressão grave, juntou-se à celebração e explicou - não sem certa satisfação, pois passara muito mal por causa das malditas jaretas{5} e de outros cabos - que cícero era um tipo de letra com a qual podiam se escrever seis emes em uma polegada e que as dimensões de todos os livros, que podiam ser de tamanho folha, quarto, oitavo, doze avos e outros menores, resultavam de dobrar o impresso original uma vez, duas vezes, três vezes e assim sucessivamente, conforme o caso. Acrescentou que os impressos tinham vários tamanhos e nomes, como impressos alongados, prolongados, oblongos, verticais e muitos outros. Depois falou da dificuldade que representava a distribuição, do impenetrável mistério de que alguns livros se vendessem e outros não e do papel que desempenhavam os críticos, quem, conforme ele, eram uma mistura de cavalheiros, rufiães instruídos, bêbados e tipos fáceis de subornar.
Chegou um momento em que aquilo parecia não acabar nunca, mas como era bem educado, Mowett conseguiu se dominar e começou a pensar que se pusesse na capa "Por um oficial de alta classe" faria com que os críticos o respeitassem mais ou se era melhor pôr "Por J. M., oficial da Armada Real". Por fim disse:
- Naturalmente, senhor, Tom me disse que lhe apresentasse seus respeitos e que transmitisse seu afeto a todos os oficiais. Também me encomendou dizer-lhe que havia feito uma viagem de regresso surpreendente. Foi perseguido a toda velocidade pelo barco corsário mais potente que jamais vira, e ainda que o Danaë navegasse com rapidez, como todos sabemos, ah, ah, ah!, teve que aumentar a velocidade de uma maneira assombrosa. Desdobrou as varredoras, as arrastraderas, em fim, o conjunto de velas apropriado para ganhar velocidade, e, apesar de tudo, o barco corsário haveria apresado o seu se uma rajada de vento não o houvesse rompido o velacho em uma noite.
- Esse deve de ser o Spartan - disse Jack. - O almirante me falou dele. É de uma sociedade formada por franceses e norte-americanos e especializada na captura de mercantes que comerciam com as Antilhas. Os mercantes que vêm para aqui são levados para New Bedford, e os que vão para seus países de origem, geralmente carregados de açúcar, pegam o carregamento e o passa para um chasse-marées{6} diante da costa francesa para poder se esquivar do bloqueio. Costuma patrulhar a barlavento das ilhas dos Açores.
- Efetivamente. Foi ali onde começou a perseguir ao Danaë. Diz Tom que seus homens eram muito astutos, pois pelo velame, a bandeira, os uniformes, os sinais e outras coisas o navio se assemelhava muito com um barco de guerra português, tanto que deixou que se aproximasse até estar quase ao alcance de seus canhões antes de aperceber o engano e se afastar. Assegura que parecia um autêntico barco de guerra.
- Mas, os barcos corsários não são barcos de guerra? - perguntou Stephen.
Jack e Mowett franziram os lábios em sinal de desaprovação, e depois de um momento, Jack disse:
- Bem, em um sentido estrito poderia se dizer que sim são barcos de guerra, barcos de guerra privados, mas ninguém os chama assim.
- Alguns os chamam de barcos com patente de corso - disse Mowett -, e isso soa um pouco melhor.
- Não sei absolutamente nada sobre os barcos corsários - reconheceu o senhor Martin.
- Pois são barcos armados utilizados para apresar embarcações inimigas. Geralmente seus propietários são comerciantes e armadores que não podem continuar suas atividades devido à guerra, e o Almirantado lhes dá um documento autorizando-lhes a fazer o corso e levar represálias contra os inimigos. Podem capturar os barcos das nações inimigas que figurem nesse documento, e se depois os barcos são declarados presas de lei, podem se apropriar deles, como nós fazemos. Ademais, recebem dinheiro pelos homens que capturam, como nós na Armada, que recebemos cinco libras por cada homem que esteja a bordo de um navio inimigo no início da batalha.
- Então formam algo muito semelhante à Armada, com a diferença de que o rei não tem que fornecer-lhes os botes, quer dizer, os barcos.
- Não, não, é muito diferente! - exclamou Jack.
- Não se parece em nada - assegurou Mowett.
- Amiúde ouvi as pessoas se referirem aos corsários com frases reprovatórias, como por exemplo: "porco corsário, vá para outra parte", o que demostra, sem dúvida, desaprovação - disse Stephen.
- Perdoem minha torpeza - assinalou Martin -, mas se tanto os barcos de guerra públicos como os privados obstruem as atividades comerciais do inimigo, apresam seus mercantes e atacam com autorização do Governo, não vejo a diferença entre eles.
- Não se parecem em nada - insistiu Jack.
- Não. São muito diferentes - corroborou Mowett.
- Meu amigo - disse Stephen -, o senhor deve levar em conta que o principal interesse dos corsários são os ganhos, pois vivem dos mercantes capturados, enquanto que os cavalheiros da Armada Real vivem da glória e desdenham os butins.
Jack e Mowett riram, mas não com tanta vontade como Martin e Stephen, que haviam visto aos cavalheiros da Armada perseguir velozes mercantes com os olhos quase fora das órbitas e todos os músculos tensos.
- Bem, senhor - disse Jack -, reconheço que nós nos esforçamos para apresar primeiro os barcos de guerra do inimigo e às vezes o logramos, ainda que seja em troca de receber profundas feridas; contudo, não se pode dizer o mesmo dos corsários, que, como disse o doutor, estão interessados principalmente no metal, quer dizer, nos ganhos. Alguns se preocupam tanto com isso que cruzam a linha que separa fazer o corso da pirataria. Isso é o que lhes deu má reputação, isso e o tipo de homens que levam em seus barcos; sobretudo os que operam perto das costas, que simplesmente querem dispor de um grupo de rufiães decididos a abordar os mercantes e derrotar seus tripulantes.
- Da última vez que estive em Londres ouvi dizer por um cavalheiro especialista em estatística que o número de corsários se eleva a cinqüenta mil - anunciou Stephen.
- O senhor me surpreende- confessou Martin. - É um terço do número de marinheiros e infantes de marinha juntos.
Jack seguia pensando em suas coisas e de repente disse:
- Mas não ache que todos os barcos corsários são iguais. A maioria deles são magníficos navios, construídos para navegar a grande velocidade, e com uma tripulação excelente, normalmente integrada por marinheiros de primeira e oficiais respeitáveis. Muitos tenentes sem emprego tomaram o comando de barcos corsários em vez de deixá-los apodrecendo na praia. Conheço um que fez isso, William Foster, um tipo estupendo. Éramos companheiros no Euryalus. Recorda-se, Mowett, que nos encontramos com ele no canal da Mancha e que nos rogou que não levássemos nenhum de seus homens? Esteve a ponto de fazer uma fortuna quando apresou um mercante de Hamburgo abarrotado de seda e especiarias, mas sempre teve má sorte, e por umas questões legais ou outras o barco não foi declarado presa de lei pelo tribunal competente.
- Meu Deus! - exclamou Mowett. - Peço que me perdoe, senhor, mas a carta de Tom Pullings me trastornou de tal maneira que me esqueci de pedir-lhe que amanhã nos honrasse com sua presença na sala dos oficiais. Vamos oferecer um almoço de despedida para os oficiais norte-americanos, bem… para os que estejam em condições de assistir.
- É muito amável, Mowett - disse Jack -, mas acho que o tribunal não suspenderá a sessão antes das três e não seria muito indicado que seus convidados esperassem até então. Almoçarei algo no navio insígnia e me reunirei convosco para comer a sobremesa. Sinto não poder atender a esses homens como é devido.
O tribunal só encerrou a sessão após as quatro, já que tinha que se ocupar de muitos casos nesse dia. Quando o capitão Aubrey e o doutor Maturin regressavam para a Surprise na falua, perceberam de que o almoço de despedida ainda não havia terminado e que era uma refeição muito alegre, pois ouviram risos e cantoria. Então compreenderam que teriam que mudar a sua expressão grave e triste. O julgamento em si mesmo bastara para entristecer a Jack, sobretudo porque parecia que após dois dias, no sábado, a sentença começaria ser ditada, e só havia um tipo de sentença a ditar. Quando a sessão já havia terminado, Goole disse:
- Adiantamos muito o trabalho hoje, cavalheiros. O almirante espera que terminemos amanhã para que possa confirmar o quanto antes as sentenças que ditemos e fazer que se cumpram no dia seguinte.
- Mas o dia seguinte é domingo! - exclamou o jovem capitão, que sabia muito bem que todos os homens julgados seriam declarados culpados e sentenciados a morte.
- Isso é o importante - respondeu Goole. - Os enforcamentos em domingo são muito pouco freqüentes. Se terminássemos de ditar a sentença na segunda-feira, ocorreriam na terça-feira, e isso é algo muito comum, ainda que neste caso sejam muitos os que vão ser enforcados; e se esperarmos o outro domingo, não teria o mesmo efeito.
Por outro lado, pouco depois de que se levantasse a sessão, o senhor Stone encontrara-se no deserto castelinho com Stephen - que estivera atendendo seus pacientes, primeiro ao almirante e depois ao delirante senhor Waters, durante muito tempo - e lhe dissera:
- Doutor Maturin! Tenho uma notícia muito interessante para o capitão Aubrey. Já sabe que à secretaria chegam notícias muito curiosas. Meu informante, um homem confiável, me disse que o Spartan saiu há cinco dias de New Bedford para patrulhar e que leva provisões para três meses.
Falou no tom apropriado para um assunto confidencial, e era óbvio que desejava que Stephen soubesse que ele também, ele também, estava relacionado com a espionagem e que não se importaria de falar um pouco do tema.
Para repelir o ataque e ter a certeza de que Stone não voltaria a cometer a bobeira de tomar liberdades com ele, Stephen manteve sua impenetrável reserva e fingiu ser estúpido. Era consciente de que em lugares onde em princípio estava a salvo também podia levantar suspeitas a respeito da dupla função e de que quanto mais se propagasse essa informação estaria menos seguro e seria menos útil.
- Ah, o senhor já está aqui, senhor! - gritaram todos quando o capitão da Surprise entrou na sala dos oficiais com uma expressão alegre e inclinando a cabeça para não bater nos vaus, como havia feito durante tantos anos.
- Ah, o senhor já está aqui! - exclamou Mowett. - Bem-vindo!
Jack se sentou em uma cadeira que Mowett colocou na borda da comprida mesa e justo em frente de Butcher, seu convidado de honra, que se achava sentado a sua direita. Era habitual ver a longa sala dos oficiais abarrotada, com quatro comensais muito juntos de ambos os lados da mesa e um em cada extremo e, ademais, a muitos serventes caminhando de um lado para outro ou atrás de suas cadeiras, como Killick, que se encontrava atrás de Jack, e Padeen Colman, atrás de Stephen com as costas encurvada. Também era habitual aquele ambiente, já que na Surprise todos eram sempre muito hospitaleiros. A conversa estava tão animada e havia tanta alegria que nem sequer a chegada de um capitão de navio podia pôr-lhe fim.
- Nós o estávamos esperando para comer a sobremesa, senhor - disse Mowett. - Enquanto isso, o senhor Butcher falou adivinhações, algumas muito engenhosas. A última, que não pudemos adivinhar, foi: O que é o que é que nunca sai de moda?
Jack tentou responder com alguma agudeza, mas não lhe ocorreu nenhuma tão pouco tempo depois de julgar tantos homens que iam perder a vida, assim que negou com a cabeça olhando para os outros com afeto e interesse. De distintos pontos da mesa se fizeram várias sugestões, mas ninguém acertou a resposta.
- Não, cavalheiros - disse Butcher. - Não adivinharão nunca, ainda que seja algo muito própio de homens. O que nunca sai de moda é ter filhos bastardos, ah, ah, ah!
Na fração de segundo que transcorreu antes de que Jack começasse a rir a gargalhadas, gargalhadas mais ruidosas do que requeria a ocasião, notou que todos os oficiais lhe dirigiam o olhar com uma expressão de preocupação e apoio. Todos riram com ele, e suas fortes risadas agradaram a Butcher e surpreenderam ao alto guarda-marinha norte-americano, que ouvira as adivinhações do cirurgião ao longo de dez mil milhas e da primeira vez havia pensado que eram muito ruins. Butcher, animado, perguntou:
- O que disse um tipo que bateu o nariz contra uma porta apesar de ir com os braços estendidos?
Mas a chegada da sobremesa o impediu de continuar. A sobremesa, um cachorro manchado{7} era o favorito de Jack e o primeiro pudim de sebo realmente brilhante e saboroso que comia desde que passara ao norte do trópico de Capricórnio. Não obstante, Jack teria dado cinco libras para poder jogá-lo por um embornal ou metê-lo em um bolso envolto em um lenço. Precisava de uma férrea determinação para tragar toda aquela massa sob o olhar de aprovação de Mowett - que cortara para ele um extremo, uma das partes mais untuosas -, e a do dispenseiro da sala dos oficiais, que havia supervisionado o cozimento.
Por sorte, pouco depois arrumaram a mesa e começaram os brindes. Em um deles cantaram Esposas e namoradas, e ainda que ao redor da mesa se ouviu a conhecida frase "e oxalá que não se encontrem nunca" em tom humorístico, surpreendentemente quase nenhum daqueles homens que estavam na última etapa de sua viagem deixou de se comover. Talvez o vinho pode ter influído, mas não em todos os casos. Jack não havia bebido e, contudo, se emocionou tanto ao se recordar de sua casa depois de um dia horrível e entre as numerosas idéias que ferviam em sua cabeça, que decidiu que só poderia comportar-se devidamente com os oficiais e os convidados se bebesse uma taça com cada um deles; contudo, não considerou a antiguidade mas a ordem no sentido inverso aos ponteiros do relógio.
- Senhor Mowett, bebamos uma taça de vinho à sua saúde e à das musas. Senhor Butcher, bebamos à sua saúde e à das margens do Potomac.
Allen, o veterano oficial de derrota da Surprise, que era um excelente marinheiro, não se sentia a vontade nas reuniões formais e costumava permanecer calado e retraído, pelo que ninguém gostava de se dirigir a ele, mas nessa tarde tinha a cara vermelha de satisfação. Respondeu ao convite de Jack com uma profunda inclinação de cabeça, encheu sua taça até a borda e, depois de dizer em tom afável que recebesse todo seu afeto, bebeu até a última gota. Ao lado de Allen estava sentado Honey, um ajudante de oficial de derrota a quem Jack nomeara tenente provisoriamente, e quando Honey terminou de explicar o que significava ser um lorde inglês ao homem que estava sentado de seu lado, Jack lhe chamou e bebeu com ele. Depois que a garrafa girou ao redor da mesa, Jack disse:
- Senhor Winthrop, brindemos pelas damas de Boston.
Adams, o contador, era o seguinte. Era um homem feliz e nesse momento estava radiante de alegria porque a carne de porco, a bezerra, o pão, as velas, o tabaco, o rum e a roupa dos marinheiros já estavam perfeitamente armazenados a bordo. Quando ia se servir do vinho, Jack o interrompeu:
- Bebamos, senhor. Vejo nessa taça a luz do Todo-poderoso, que descobre a alta traição. Vamos acabar com ela.
O brinde com o senhor Martin poderia ter sido muito semelhante, mas Jack respeitava muito os hábitos como para fazê-lo assim. Depois de esvaziar seu copo, encheu outro e disse:
- Killick, leve isto para o senhor Maitland e diga-lhe que vou beber à sua saúde.
Maitland, outro tenente interino, nesse momento era o encarregado da guarda na coberta. O seguinte era Howard, o tenente de Infantaria da Marinha cuja cara estava tão vermelha como sua casaca e cujo corpo já não admitia nem mais uma gota de vinho, ainda que fosse óbvio que o desejasse. O último de todos estava sentado à esquerda de Jack, e a este disse:
- Doutor Maturin, bebamos uma taça de vinho à sua saúde.
Havia bastante ruído, pois na mesa se ouviam três animadas conversas simultâneas, e Mowett e o senhor Allen tiveram que tirar Stephen de suas meditações, sobre coisas tristes, por desgraça, para que ouvisse o que o capitão lhe propunha.
- Uma taça de vinho? Quer beber uma taça de vinho comigo? Claro! Ao senhor, senhor, para que não ocorra nada de novo e para que tenhamos sorte em nossa viagem.
Era evidente que pensava que necessitariam de sorte, e suas palavras teriam feito tremer a todos se o tenente de Infantaria da Marinha não houvesse escolhido esse momento para escorregar da cadeira e cair debaixo da mesa, onde ficou imóvel e com um sorriso petrificado, como em estado de coma.
Pouco depois começaram as despedidas e os norte-americanos foram transportados para seu baleeiro vazio onde retumbava o eco. Ali arrumariam seus pertences para empreender a viagem de regresso ao seu país no barco sueco com bandeira branca.
No camarote, enquanto Stephen e Jack afinavam seus instrumentos para passar outra noitada com o almirante, Jack disse:
- É uma bobagem afirmar que o vinho muda o estado de ânimo. Eu bebi com todos os que estavam na mesa e me encontro tão melancólico como um gato castrado e tão sóbrio como um juiz.
- É verdade que está sóbrio, Jack?
- Bem, é possível que em algum breve fragmento dê as notas um pouco mais rápido do que o habitual, mas tenho a mente lúcida, e um exemplo disso é que não penso correr o risco de arruinar a minha carreira pelo prazer de dizer a esse velho raposa o que penso das execuções no domingo.
- Como vejo que sua mente não está perturbada, escute-me, Jack: esta tarde o secretário há cometido um ato estúpido e inapropiado ao informar-me de que, ao que parece, o Spartan, o barco corsário que perseguiu Tom Pullings, zarpou de New Bedford há cinco dias. Provavelmente o almirante lhe dirá, mas talvez lhe convenha sabê-lo agora.
- Que há zarpado esse demônio? - perguntou Jack, e a raiva se refletiu em seu semblante. - Então talvez possa matar dois pássaros com um tiro, talvez possa escapar dessas condenadas execuções e tenha a oportunidade de capturar um barco corsário. Killick, Killick! Diga ao senhor Mowett que venha. Mowett, talvez nos façamos ao mar amanhã com a subida da maré em lugar de na semana que vem. A fragata está pronta para zarpar?
- Só faltam chegar um barco abastecedor com rum, dois com açúcar e outro com um pouco de lenha.
- Então, quando tudo estiver a bordo, conceda licença a um número razoável de marinheiros para que desçam a terra e voltem amanhã ao meio-dia; mas deve ter suficientes marinheiros sóbrios para tirar adequadamente a fragata daqui se tivermos que zarpar pela tarde, quando suba a maré. Potanto, a menos que receba outras ordens, tem que estar preparado para recolher âncora enquanto minha falua empreenda o regresso amanhã. Quero pelo menos um grupo de marinheiros sóbrios para desdobrarem as velas e prenderem as âncoras, e não deve ter nem uma só mulher a bordo. Espero que o julgamento termine antes que a maré mude, ainda que eu duvide.
- Seria improcedente que tentasse influir de alguma maneira nas decisões de um conselho de guerra - disse o almirante quando finalizou o primeiro trio, enquanto se passavam as partituras e os pãozinhos de Barbados uns para os outros -, mas confio em que os senhores, cavalheiros, tomem amanhã uma resolução, qualquer que seja. Se o julgamento tiver que continuar até a semana que vem, grande parte de seu efeito se perderia.
- Sim, senhor - afirmou Jack. - Eu também confio nisso. Desejo com toda minha alma que termine logo, porque, com sua permissão, queria zarpar pela tarde com a mudança da maré. O senhor Stone me disse que o Spartan saiu de Bedford há cinco dias e acho que poderia encontrá-lo deste lado das Açores se os ventos forem favoráveis e, por suposto, se não perco nem um segundo.
- Gostaria se pudesse encontrá-lo. Os colonos nos apresentam queixas constantemente ao governador e a mim porque os barcos corsários estão arruinando esta ilha, e o Spartan é o pior. Mas, Stone também lhe disse que leva caronadas de quarenta e duas libras? Tinha a esperança de poder mandar o Harrier e o Diligence para capturá-lo, mas nunca posso prescindir dos dois ao mesmo tempo e nenhum é tão potente para lutar sozinho contra ele. Inclusive o senhor o acharia um poderoso adversário se chegasse a enfrentá-lo num combate. Uma bala de quarenta e duas libras pode ocasionar um enorme brecha nas balizas de um barco como o seu. Me desculpe, doutor, por ficar falando de assuntos que só interessam aos marinheiros e impedir-lhe de desfrutar da música. Peço que me perdoe. Vamos tocar o Dittersdorff.
O Dittersdorff era uma peça esplêndida, e quando Jack e Stephen regressavam para a Surprise por entre suaves ondas à luz da lua, ainda ressoava em seus ouvidos. No dia seguinte pela manhã Jack ainda recordava a melodia enquanto esperava no castelo de popa para subir em sua falua; contudo, esqueceu-a de repente quando viu que se içava uma bandeira rapidamente no mastro do navio insígnia.
- Sabem o que significa isso? - perguntou aos guardas-marinhas, seis garotos que haviam se reunido ali para participar da cerimônia que se realizava quando ele descia pelo costado, seis garotos que ele havia levado a bordo de seu barco quando eram crianças e que ainda não haviam deixado de ser.
- Não, senhor - responderam dois guardas-marinhas que estavam mudando a voz e quatro com voz aguda. - Não, senhor, nunca vimos.
- Os senhores são um corja de marinheiros de água doce muito pouco observadores. Viram-na ontem e anteontem, e essa visão tão desagradável não é fácil de esquecer: a bandeira do Reino Unido no tope desse mastro significa que um conselho de guerra vai administrar justiça. Senhor Boyle, diga ao doutor que se não estiver aqui dentro de cinco segundos não poderá ir na falua. Senhor Mowett, seria conveniente que Jemmy Bungs descesse a terra e arrumasse alguns dos tonéis velhos que já não servem para simular uma carga na coberta e, ademais, umas cinqüenta jardas da aniagem com que se forram os barris de açúcar. Pode gastar dez libras.
Stephen chegou correndo com uma torrada na mão, desceu apressadamente até a falua e subiu nela. Jack lhe seguiu com solenidade entre os apitadas dos apitos e quando a falua zarpou, pensou: "Espero que esta seja a última vez. A sessão vai ser espantosa".
Foi a última vez e a sessão foi espantosa, muito pior do que esperava. Quando se desimpediu a sala, depois de que os prisioneiros fizessem em vão suas últimas declarações - em geral irrelevantes, ainda que algumas realmente penosas -, os cinco membros do tribunal se dispuseram a emitir o veredito. Ao mais jovem, Painter, cabia dar sua opinião primeiro. Nunca havia tomado parte de um conselho de guerra, e lhe perturbava a idéia de que sua sentença pudesse acabar com a vida de um homem. Deu voltas e voltas no assunto, mas Stone e Goole acabaram com seus escrúpulos e de forma pragmática, indicando-lhe que conforme a lei não tinha escolha; quando se realizou a votação formal, disse "culpado" depois de cada nome, ainda que sem convencimento e com desânimo. Stone, o assessor legal, estava inclinado sobre a mesa escrevendo com rapidez: "… acreditam que foi demostrada a veracidade das acusações… sentenciam a todos e cada um deles a morrer enforcados a bordo de um barco de sua majestade, no momento e no lugar…". Depois levantou a vista do documento e, com o rosto impassível e afirmando com a cabeça, entregou-lhe aos membros do conselho para que o assinassem. Era um documento tão horripilante que nenhum deles gostou de assiná-lo, nem mesmo Goole. E gostaram menos ainda da fase seguinte, na qual os acusados voltaram a entrar; depois que os assistentes guardaram silêncio, quando só se ouviam os sons habituais do navio e o distante grito de "Faxineiros, faxineiros, a popa! Me ouviram?", o assessor legal leu o documento com voz serena e forte para que cada um, entre inumeráveis fórmulas legais e repetições, ouvisse claramente a sentença ditada contra ele.
Aquela fase foi espantosa. Jack se despediu a toda pressa de Goole e dos outros e subiu para o convés justo no momento em que o encarregado dos sinais, que estava no castelinho, dobrava a bandeira que havia anunciado o julgamento. Então olhou ao longe, semicerrou os olhos para protegê-los dos deslumbrantes raios do sol que se refletiam no mar, viu que a Surprise já se estava movendo a âncora de barlavento e ouviu o agudo som do pífano que acompanhava os giros do cabrestante.
Stephen Maturin esperava por Jack junto na escada do costado com a mesma expressão solene e triste; enquanto o capitão se aproximava, dizia ao mais velho dos ajudantes do senhor Waters: "Três gotas a cada hora e, se for possível, continue com a quinina amanhã". Depois desceu em silêncio e subiu na falua.
- Pelo bombordo - falou Jack a Bonden.
No momento em que a falua se abordou com a fragata, Jack subiu rapidamente pelo costado, olhou para a proa e a popa para se assegurar de que tudo estava em ordem e disse:
- Senhor Mowett, ice as bandeiras de sinais para enviar ao navio insígnia a mensagem "Permissão para abandonar a esquadra".
CAPÍTULO 3
De não fosse pela possibilidade de encontrar-se com uma corveta ou uma fragata norte-americana ou com um barco corsário, a última etapa de sua viagem teria sido muito triste: era a última viagem da Surprise porque ia ser levada definitivamente para o desmache. Seus oficiais e seus marinheiros, que formavam uma tripulação muito unida, poderiam dizer sem faltar à verdade que era ainda uma das mais rápidas embarcações da Armada de sua classe se fosse bem governada, que suas balizas estavam em excelente estado, que navegava bem de bolina, que era saudável e que nela reinava a harmonia. Não obstante isso, também era verdade que a haviam construído aproximadamente em 1780 e que desde então as fragatas eram construídas muito maiores e tinham canhões muito mais potentes. A Surprise havia se tornado antiquada e não podia lutar contra uma moderna embarcação norte-americana nem contra um barco de linha. Ainda podia combater em igualdade de condições contra alguns barcos franceses, mas estes raras vezes saiam dos portos, e com as únicas embarcações das armadas de outros países com quem podia lutar era com as corvetas. Mas capturar uma corveta não dava prestígio, ainda que não consegui-lo trazia a desonra. Todos na Surprise depositavam suas esperanças em apresar os barcos corsários que prejudicavam o comércio da Grã-Bretanha e inclusive dos países neutros do Velho e do Novo Mundo, sobretudo o tristemente célebre Spartan. Embora, aprisionar um barco corsário, por muito potente que fosse, não significava alcançar a glória, mas era algo digno de elogio, realmente digno de elogio. Se não encontrassem outro oponente melhor, isso serviria para terminar sua missão com dignidade. Por outro lado, nenhum barco de guerra público ou privado podia comparar-se com um abundante mercante, tendo em conta somente a vulgar e tangível ganância, mas o Spartan não era nada desprezível, já que por ser muito veloz e ter sido construído pouco tempo atrás em um excelente estaleiro, o Almirantado poderia comprá-lo para a Armada desde que não tivesse muitos danos. Ademais, para cada tripulante aprisionado davam como recompensa cinco libras, e, conforme diziam, o Spartan levava uma tripulação numerosa.
Eram razões suficientes para procurá-lo com mais empenho do que o de costume, apesar de que muitos pensavam que a sorte havia abandonado a fragata ou, o que dá no mesmo, o seu capitão. Assim achavam principalmente os marinheiros que foram pescadores ou baleeiros, pois muitas vezes viram que de dois capitães com a mesma experiência e a mesma habilidade, que pescavam nas mesmas águas e com os mesmos apetrechos, um regressava ao porto com os porões cheios e o outro não. Conforme eles, tudo dependia da sorte de cada homem, que era uma qualidade - ou seja, uma influência - às vezes constante, tanto para o bem como para o mal, e outras tão variáveis como a maré, uma maré cujas subidas e descidas obedeciam a leis que as pessoas comuns não podiam entender. Alguns homens que haviam tripulado a fragata durante mais tempo, que estavam unidos ao seu capitão por laços mais fortes e que foram marinheiros de barcos de guerra desde o início de sua carreira eram da mesma opinião. Se bem que os tripulantes não pensavam o mesmo da sorte e, em alguns casos, opinavam de forma totalmente contrária, a maioria acreditava que tinha pouco ou nada que ver com a virtude, o vício ou a amabilidade. Para eles a boa sorte não era algo merecido mas um dom, como a beleza de uma mulher jovem, e portanto, independente da classe da pessoa a que enfeitava. Pensavam que do mesmo modo que um cabelo muito encrespado e outras coisas podiam fazer perder a beleza, determinados tipos de ações, como mostrar-se orgulhoso, gabar-se de ter êxito ou desprezar as tradições, podiam trazer má sorte. Outro indício de mau agouro era levar pastores a bordo, e apesar disso ali estava o senhor Martin. O reverendo Martin, um homem bondoso, amável e simples, não considerava humilhante ajudar ao doutor na enfermaria, escrever uma carta formal para qualquer marinheiro ou ensinar a ler aos guardas-marinhas, mas não deixava de ser um pastor, e isso ninguém podia negar. As facas com cabo branco davam muito má sorte, e os gatos também; contudo, a viagem começara com uns e outros a bordo. Mas coisas como essas e inclusive mostrar um profundo desprezo pela tradição naval não podiam se comparar com levar um Jonas a bordo, e em Gibraltar embarcara um Jonas na pessoa do senhor Hollom, um ajudante de oficial de derrota de trinta e cinco anos. Ainda que fosse lógico supor que a morte de Jonas acabaria com a má sorte, isso não havia ocorrido. Sobre a fragata caiu uma maldição quando Horner, o condestável, matou Hollom e a senhora Horner no arquipélago Juan Fernández porque eram amantes, e apareceu enforcado em seu camarote vários dias depois perto da costa do Chile. Alguns pensaram que a maldição desapareceria depois de ter jogado pela borda o cadáver do condestável metido em sua maca, à qual haviam costurado as bordas, junto com duas balas de canhão aos pés, mas outros jamais acreditaram nisso. Quando alguém objetou que a Surprise recuperara muitos barcos, Plaice, o mais velho e respeitado dos marinheiros que proferiam maus augúrios, disse que sim, mas que os barcos recuperados, ainda que fossem bem-vindos, não podiam ser considerados verdadeiras presas. Acrescentou que o último o haviam pegado na jurisdição do almirante Pellew, o que imediatamente reduzira o butim da desafortunada fragata e seu desafortunado capitão em oito mil coroas, oito mil condenadas coroas, uma soma que apenas podia imaginar, e que se isso não era uma maldição que explicassem para ele, Joseph Plaice, o que era. Acrescentou que provavelmente o doutor, que nunca se equivocara ao cortar com um bisturi ou uma serra ou ao usar um trepano - ao dizer isto tocou-se no crânio, onde tinha incrustada uma moeda de três xelins à qual haviam dado forma abobadada com um martelo para cobrir o buraco que Stephen lhe havia feito em alto mar durante uma viagem -, perdera o seu último paciente, o cirurgião do Irresistível, o que não só era um motivo de tristeza para ele como também uma prova irrefutável de uma maldição, e acrescentou que para comprová-lo só tinham que olhar para trás. Depois perguntou que outra coisa que não fosse uma horrível maldição poderia ter levado a desonra do capitão até a mesmíssima Ashgrove Cottage, onde estava a senhora Aubrey e talvez também sua mãe, a senhora Williams. A maioria dos tripulantes falavam da sorte e de que a fragata a havia perdido. Alguns e outros trocavam opiniões na cozinha durante a guarda de prima ou de meia, depois de serem substituídos; nos cestos das gáveas, ou no castelo, enquanto costuravam ou remendavam sua roupa tranqüilamente, mas todos os marinheiros que participavam nessa conversa haviam servido a Jack desde que recebera o comando de um barco pela primeira vez e lhe acompanharam quando ficara em terra em tempo de paz ou quando não dispunha de nenhum barco. Quando Jack e Stephen eram um par de acomodados solteiros, contrataram só marinheiros para que atendessem Melbury Lodge, a casa de ambos, e depois do matrimônio de Jack, Preserved Killick, seu servente, Barret Bonden, seu timoneiro, Joseph Plaice, o primo de Bonden, e dois ou três marinheiros a mais tinham ido viver com ele. Esses homens sabiam exatamente como era Ashgrove Cottage, pois haviam limpado o solo, haviam pintado a madeira e poliram o latão como se de um barco se tratasse; e, ademais, como era lógico, conheciam toda a família, desde a senhora Williams, a sogra do capitão, até George, seu filho mais novo. Contudo, o que Ashgrove Cottage significava agora para eles, e também para Jack, era Sophie Aubrey.
Todos a admiravam com devoção e, sobretudo, tinham um respeito quase místico por ela. Sophie era, sem dúvida, respeitável, e também amável e bela, muito bela, mas como eles nunca haviam estado em contato com mulheres amáveis e respeitáveis, a haviam elevado a um nível possivelmente superior ao que lhe correspondia e a consideravam digna de veneração. Ademais acreditavam que se parecia (ainda que fosse improvável) com sua mãe, a senhora Williams, uma mulher gorducha com o cabelo escuro e a cara vermelha, de temperamento violento e polêmica, uma dessas mulheres que faziam a virtude muito pouco atrativa. Quando a senhora Williams suspeitava que lhe roubavam ou considerava que lhe faltavam ao respeito ou quando alguém partia sem permissão, elevava tanto o tom que parecia ter chegado ao limite que a voz feminina alcança, mas não era mais que uma ilusão, porque quando se informava de que um homem ou uma mulher havia cometido uma infidelidade, sua voz superava qualquer limite e seus gritos perduravam como o burburinho de um distante arroio. Sophie, em troca, nunca brigava nem gritava com eles, e tampouco ameaçara a despedir-lhes nem lhes condenara de por toda a vida, mas se parecia com sua mãe em uma coisa, só uma: não tolerava em absoluto as relações ilícitas. Ainda que ter bastardos estivesse na moda, a senhora Aubrey não o aprovaria nunca.
- Sim - disse Bonden -, bem sabe Deus que foi uma desgraça. Ela não pode ter deixado de reparar nesse mascarão, por mais escuro que fosse. Foi uma desgraça. Um acha que pode afastar-se do caminho reto de vez em quando sem que lhe joguem isso na cara vinte anos depois. Foi uma desgraça. Mas isso não significa que tenha caído uma maldição sobre a fragata, mas que o capitão agora não tem sorte.
- Pode dizer o que queira, Barret Bonden - replicou Plaice -, mas sou mais velho que você e digo que sobre a fragata caíu o que chamamos um…
- Calma, Joe - disse Killick. - Os nomes atraem as coisas, sabia?
- Que? - perguntou Joe, que estava meio surdo.
- Que os nomes atraem as coisas, Joe - repetiu Killick, e pôs um dedo sobre os lábios.
- Oh! - exclamou Joe pensativo. - É verdade, companheiro.
Ainda que Plaice e alguns de seus companheiros estivessem certos de que havia razões para ter medo e todos sabiam que o fantasma do condestável seguia a esteira da fragata, a maioria deles não tinha medo nem se sentia triste. Reconciliavam o irreconciliável, talvez com mais facilidade que os homens de terra adentro, e como a fragata parecia destinada ao fracasso, buscavam com empenho a vítima seguinte, o próximo êxito.
Com empenho e também com alegria, pois apesar de que, como dissera Plaice, obteriam oito mil coroas a menos porque teriam que dividir com o almirante o último barco recuperado, receberiam parte dos outros onze doze avos e, além disso, não lhes tirariam o maldito doze avos que obtiveram pelos barcos anteriores. Por isso, mesmo descontando os exorbitantes honorários do procurador e outros gastos derivados dos trâmites legais, calculavam que cada marinheiro simples obteria um butim de cinqüenta e três libras, treze xelins e oito peniques; e cada marinheiro de primeira - quase todos os tripulantes da Surprise eram marinheiros de primeira -, a metade dessa quantidade, uma magnífica soma. Não obstante, isso não lhes impedia de ambicionar mais, muito mais. O desejo da maioria deles era chegar a ter dinheiro suficiente para montar uma taberna, porém, na realidade, não havia quase nenhum que não desejasse conseguir dez coroas a mais jogando sobre o cabrestante para divertir-se em Fayal ou em qualquer outro lugar dos Açores onde fizessem escala.
Mas os Açores estavam muito longe e tudo fazia prever que iam permanecer em calmaria durante muito tempo, já que poucos dias depois da Surprise sair de Bridgetown, o vento amainara. Desde que Jack começou sua carreira naval, essa era a primeira vez que não tentava desafiar a natureza, pois apesar de ter desdobrado enormes pirâmides de velas - das sossobres até as alas inferiores -, não as molhava com a mangueira nem com baldes de água para poder percorrer umas poucas jardas a mais por hora, e tampouco ordenava que jogassem os botes na água para rebocarem a fragata durante os períodos de calmaria. A fragata navegava devagar rumo nordeste ou quase nordeste, conforme o vento permitia, e o capitão caminhava devagar de uma ponta a outra do castelo de popa dando dezessete passos desde a grade de barlavento até o coroamento, de modo que quando dava cem voltas havia percorrido quase uma milha. Ia de uma ponta a outra, passando pela frente dos galinheiros situados detrás do leme e da contemplativa cabra Aspasia, que havia permanecido na coberta suportando um terrível frio e furiosos ventos, mas que agora desfrutava da luz do sol com os olhos fechados e movendo sua barba de cima abaixo. Às vezes percorria mentalmente a distância entre Portsmouth e Ashgrove Cottage e ainda que visse o branco caminho, os campos e os bosques, pensava com angústia muito mais freqüência em seus complicados assuntos, tanto nos legais como nos financeiros, e na previsível atitude de Sophie depois de ter conhecido a Sam. Com relação aos assuntos legais, não tinha sentido que se esforçasse para resolvê-los até que falasse com seus advogados, já que por não ter recebido notícias de sua casa, não contava com mais dados do que no início da viagem. Com respeito aos financeiros, acreditava que se resolviriam graças a Deus, com as dez mil libras que as presas lhe proporcionariam. Talvez não bastassem para saldar todas suas dívidas se as coisas se complicaram, mas abririam um caminho, um largo caminho por onde sair delas. Quanto a Sophie, os dias em que se achava mais otimista pensava que não tinha nenhum motivo para se preocupar, já que naquela época tão distante ainda não a conhecia e, por isso, não lhe havia prometido fidelidade. As reflexões com respeito à reação de Sophie quase sempre apareciam entre as que fazia sobre hipotecas e leis; e às vezes as precediam, não só porque Jack amava muito a sua esposa, mas também porque as mulheres virtuosas lhe infundiam tanto temor como aos seus companheiros de tripulação. Qualquer um poderia calcular quanto temor Sophie lhe infundia pelo número de vezes que pensava "Ela não está ressentida" ou "Talvez sinta simpatia por Sam". Quanto à senhora Williams, pensava que se alguma vez lhe falasse do caso, ela lhe pediria aos gritos, como se se dirigisse a alguém que cometeu uma falta, que não voltasse a mencioná-lo, pois do contrário não haveria paz em sua casa.
Os primeiros dias, dias dourados em que quase o vento não soprava, não os passara angustiado, nem um pouco. Algumas manhãs, quando a fragata, com as velas flácidas e carregadas de orvalho, refletia-se na brilhante superfície do mar calmo, Jack se jogava na água da borda fazendo a imagem em pedaços e se afastava nadando para livrar-se do ruído provocado pelos duzentos marinheiros que corriam para fazer suas tarefas ou para tomar o café da manhã. Flutuava acariciando com as mãos o infinito e diáfano mar e olhava para a abóbada celeste já iluminada. De repente o sol aparecia no horizonte pelo leste e pouco a pouco as velas se inundavam de uma resplandecente cor branca e o colorido do mar adquiria um azul sem nome, o que lhe enchia de satisfação.
Também lhe produziam satisfação muitas outras cisas. O mar dos Sargaço estava esse ano mais ao leste que o habitual, mas a fragata avançou muito devagar por seu extremo ocidental, levemente para o norte do trópico de Câncer; Jack olhava entusiasmado como Stephen e Martin, do bote governado pelo infinitamente paciente Bonden, fuçavam aquela massa de algas em busca de algum exemplar e regressavam a bordo radiantes de alegria com uma inverossímil coleção.
Ademais, Jack estava orgulhoso dos guardas-marinhas. As circunstâncias lhe obrigaram, contra sua vontade, a aceitar somente seis guardas-marinhas, alguns dos quais não eram muito eficientes porque viajavam em um barco pela primeira vez. Mas como era um capitão consciencioso e todos os guardas-marinhas eram filhos de oficiais da marinha, decidiu fazer tudo o que pudesse por eles; não só contratara um mestre, como havia assegurado que o mestre, o pastor, ensinaria-lhes latim e grego. Sofria muito por sua deficiente educação e desejava que aqueles garotos fossem pessoas instruídas, que soubessem diferenciar tão bem o ablativo absoluto do infinitivo como um navio de um bergantim, e por essa razão apoiava os esforços que o senhor Martin fazia dando-lhes ânimos: algumas vezes depois de atar-lhes a um canhão com o traseiro para o ar, mas mais frequentemente convidando-lhes para um magnífico café da manhã em seu camarote ou enviando ao seu camarote um pudim de sebo. Talvez os resultados obtidos não fossem todos os desejados, já que em situações difíceis era prioritário adquirir conhecimentos práticos de náutica, e provavelmente não sairiam do camarote de guardas-marinhas da Surprise para assombro do mundo inteiro nem um Bentley nem um Porson, mas Jack estava convencido de que aqueles guardas-marinhas eram os mais instruídos de uma fragata desde que estava na Armada. Durante a guarda de meia subia amiúde para o convés, chamava a quem estivesse de guarda e lhe pedia que desse um passeio com ele e ao mesmo tempo que declinasse um nome em latim ou conjugasse um verbo em grego.
Jack pensava: "Que jovens mais estupendos! Têm os conhecimentos básicos de náutica e além disso sabem aplicá-los, sobretudo Calamy e Williamson, que são os mais antigos. E com tanto latim e grego… acredito que nem suas própias famílias os reconhecerão". Provavelmente era verdade, porque além do latim e do grego haviam conhecido bem a natureza nas altas latitudes do hemisfério sul: o frio intenso, a falta de provisões e as primeiras etapas do escorbuto. Durante a aprendizagem, Boyle quebrou três costelas; Calamy ficou calvo, mas havia voltado a sair um pouco de penugenzinha, ainda que não tinha um aspecto muito gracioso; Williamson perdeu alguns dedos dos pés e os lóbulos das orelhas porque haviam congelado; Howard deixara de crescer e a falta de dentes fazia parecer mais velho; Blakeney e Webber deram um estirão e mudaram a voz, além de que seus pulsos e tornozelos se alargaram. Também aprenderam o que eram o assassinato, o adultério e o suicídio, ainda que ao que parece nada disso lhes afetava, porque ainda eram alegres e frívolos, estavam dispostos a competir uns com os outros subindo para o alto da exárcia como macacos, levantavam-se tarde pela manhã e descuidavam-se de seu trabalho quando encontravam alguma diversão.
Outro motivo de satisfação para Jack era que a fragata tinha muitas provisões, já que a carregaram até os topes em Bridgetown por ordem expressa do almirante. O contramestre, o carpinteiro e ele tiveram que refletir tanto sobre se usavam ou não umas poucas braças de cabo ou um par de pranchas que agora lhe produzia uma agradável sensação caminhar entre fardos, tonéis, potes de tinta e de breu fedorento, cabos e velas novas e madeira recém cortada. Ademais, havia comprado provisões com seu dinheiro para poder oferecer de novo almoços com certa solenidade para seus oficiais, seguindo a tradição.
Mas a principal causa de satisfação de Jack era, certamente, sua fragata. Considerava que nunca navegara melhor e que os tripulantes nunca trabalharam tão bem juntos nem com tanto afinco. Provavelmente era a última etapa de sua última viagem, mas já sabia há muito tempo que ela estava condenada a morte; essa idéia lhe produzira uma grande tristeza, assim que agora valorizava muito mais suas excelentes qualidades e cada dia que passava abordo.
Como costumava ocorrer no mar, cada dia tinha seus particularidades, mas durante o lento avanço do início da viagem, antes de que a fragata encontrasse o vento do oeste, todos foram iguais. Limpar as cobertas na primeira hora da manhã, bombear água, levar as macas para o convés, chamar os marinheiros para desjejuar, limpar a coberta principal, chamar os marinheiros para os distintos trabalhos matutinos, fazer as medições de meio-dia, chamar os marinheiros para almoçar, repartir o grogue, chamar os oficiais para almoçar com um toque de tambor, chamar os marinheiros para os trabalhos vespertinos, repartir mais grogue, passar revista, disparar os grandes canhões cujas labaredas e rugidos atravessavam a penumbra… essa imemorial seqüência, marcada pelas badaladas, havia se restabelecido muito cedo e se repetia com tanta freqüência que parecia que nada poderia rompê-la. Essa era a forma de navegar à qual todos estavam acostumados, e como o encarregado do aprovisionamento de Bridgetown cumprira com seu dever, também sua dieta era a que estavam acostumados. Já não lhes serviam salsichas de delfim como as que tentavam enganar seus estômagos nem carne de pingüim mal defumada, mas a habitual sucessão de alimentos: carne de porco salgada, ervilhas secas, carne de vaca salgada, mais ervilhas secos, mais carne de porco salgada… Devido a isso, ainda que os dias parecessem iguais, podiam ser distinguidos de imediato pelo odor que saía das panelas da cozinha.
Navegar assim, muito devagar, sob um céu perfeito e para o horizonte, que sempre ficava a cinco milhas de distância, nunca mais perto, fazia conceber a falsa idéia de que o tempo era eterno; contudo, todos os que estavam a bordo, exceto os loucos de Gibraltar e um nativo daquela região que era muito ingênuo, sabiam que ele não era em absoluto. Por isso, já estavam preparando um galhardete, um esplêndido galhardete de seda mais comprido que a fragata, que içariam quando sua missão terminasse e todos os tripulantes recebessem seu pagamento e passassem a ser membros de uma comunidade unida por fortes laços de indivíduos isolados. Além disso, como todos pensavam que tanto se a fragata ficasse em algum porto como se a levassem para o desmache devia ter um aspecto digno, passavam muito tempo embelezando-a. A fragata sofrera muitos danos ao sul do cabo Horn, e tudo o que o senhor Mowett obtivera com grande esforço em Bridgetown, além da folha de ouro da melhor qualidade e dos dois potes de tinta vermelha que Jack comprara com seu própio dinheiro, não bastaria para deixá-la em perfeito estado.
Como a Surprise tinha muita categoria e seu primeiro tenente era muito perfecionista, os trabalhos para o embelezamento e a confecção do galhardete teriam sido longos e difíceis em qualquer circunstância, mas eram muito mais agora porque no convés havia uma carga e um comprido pedaço de aniagem para cobrir os costados. Queriam que a fragata parecesse com um mercante. A carga consistia em tonéis vazios, que no fim poderiam ser rompidos e usados como lenha; e os pedaços de aniagem com portalós desenhadas e atados entre si se colocariam sobre as verdadeiras portalós de forma que se notasse que as pintadas eram falsas, em especial quando se moviam com o vento.
Os tripulantes da Surprise estavam acostumados aos estratagemas do capitão; e gostavam muito desse disfarce porque parecia obra de piratas e guardava relação com a idéia do caçador caçado, ou por caçar. Ainda que esperassem encontrar o Spartan - um barco corsário com canhões de longo alcance -, a várias centenas de milhas de distância, todos trabalhavam dia e noite desenhando as portalós uma e outra vez até que ficassem somente um pouco mais largas e inclinadas, de modo que qualquer predador com a vista aguda se vangloriasse de descobrir o disfarce e se aproximasse da fragata sem duvidar nem um instante. Por outro lado, não protestavam por ter que descer a cada tarde para a bodega a carga do convés quando terminavam de passar revista e faziam preparativos de combate.
Esse momento do dia era o favorito de Jack, quando se sentia mais orgulhoso da tripulação. Sempre deu muita importância à artilharia, e investiu tempo, esforço e pólvora comprada de seu própio dinheiro e havia logrado que os artilheiros disparassem com tanta precisão como era possível com os canhões disponíveis.
A Surprise tivera diferentes armamentos conforme as épocas. Em uma ocasião praticamente só tinha caronadas, canhões curtos e leves que lançavam uma bala muito pesada com uma pequena quantidade de pólvora, e como eram vinte e quatro de trinta e duas libras e oito de dezoito, cada bateria disparava uma descarga de 456 libras, maior que a que uma bateria de um navio de linha disparava. Apesar de que as caronadas, chamadas "as demolidoras", não podiam lançar as balas muito longe nem com muita precisão, eram eficazes quando se lutava penol a penol se não viravam ou provocavam fogo nos costados por seu curto tamanho; contudo, Jack não as considerava apropiadas para combater no meio do oceano. Ademais, nos combates penol a penol preferia abordar a disparar descargas, e em um combate a distância, preferia fazer disparos muito precisos e sucessivos com as baterias. Nesse momento, a fragata levava no convés vinte e dois canhões de doze libras e na bodega dois bonitos canhões longos de nove libras, dois canhões de bronze que lhe presenteara um turco agradecido e que com tempo aprazível se podiam colocar atrás das portalós situadas debaixo do convés - as que se usavam nas perseguições -, ou substituir as duas caronadas do castelo. Também tinha seis caronadas de vinte e quatro libras, mas como inclinavam muito quando havia mar grosso, costumavam ficar guardadas na bodega. Mas eram os canhões, os autênticos canhões, os que realmente agradavam a Jack. Com eles só era possível disparar uma descarga de 141 libras, mas sabia muito bem que se um quintal de ferro caísse em um barco no lugar adequado, podia causar-lhe terríveis danos; e como muitos outros capitães, por exemplo seu amigo Philip Broke, estava convencido de que era verdade o que Collingwood dissera: "Se um barco puder disparar com precisão três descargas em cinco minutos, nenhum inimigo resistirá ao seu ataque".
Mediante duras e compridas horas de custoso treinamento, reduzira essas cifras a três bombardeios em três minutos e dez segundos. O treinamento era custoso por uma razão óbvia: nesse assunto, como em muitos outros, o Almirantado discordava do capitão Aubrey e, de acordo com as normas, só lhe entregava uma insignificante quantidade de pólvora além daquela destinada às batalhas. O restante tinha que ser comprado com seu dinheiro, e ao preço atual: cada bombardeio custava quase um guinéu.
Depois de deixar para trás os últimos sargaços, as práticas de cada tarde com os canhões desapareceram durante algum tempo, pois os tripulantes só os pegavam, simulavam que seguiam os passos para dispará-los e depois os guardavam. Contudo, em uma quinta-feira que Sophie completava anos, seu esposo amaria celebrá-lo fazendo o céu retumbar. Além disso, como as condições atmosféricas eram adequadas porque o vento do sudoeste soprava com força e as ondas eram moderadas, esperava que os tripulantes batessem o recorde.
Esse recorde, como a maioria, era em certa medida artificial. Muito antes de que o tambor chamasse para passar revista, os tripulantes já sabiam que iam disparar de verdade porque haviam ouvido o capitão dizer ao primeiro tenente que preparasse uma balsa com três barris de carne vazios e uma bandeira; como a simulada batalha não lhes pegava de surpresa, não iam agir com espontaneidade, mas se propuseram firmemente a tentar bater o recorde. Os que manejavam os precisos canhões longos de bronze, por exemplo, passaram boa parte de seu tempo livre polindo as balas de nove libras com um martelo; deviam ser completamente redondas e ter a superfície tão lisa como um vidro porque não restava folga nos canhões quando se introduziam neles. Quando terminaram os preparativos, quer dizer, quando o tambor terminou de soar e os tripulantes tiraram o disfarce da fragata, derrubaram os anteparos para que ficasse um grande espaço sem obstáculos de proa a popa, espalharam areia e água no convés, taparam com pedaços de lona molhada as escotilhas por onde se descia para a santa-bárbara e ocuparam seus postos. Os integrantes das brigadas de artilheiros que tinham tranças longas - quase todos, porque na Surprise as tradições eram mantidas - dobraram-nas até que ficassem muito curtas e depois as ataram; outros tiraram a camisa; e outros se cobriram a testa com um lenço para absorver o suor. Cada um se colocou em um lugar bem conhecido e todos permaneceram em silêncio, com o cabo de um moitão, um atacante, um esfregão, um estojo com pólvora, um calço, uma alavanca, uma prancha ou uma bala a mão. Os guardas-marinhas se situaram detrás do grupo de canhões que tinham sob seu cargo; e os tenentes, atrás de suas divisões. Todos observaram que o cúter azul rebocava a balsa pelo mar e, enquanto isso, ouvia-se o burburinho do vento entre a exárcia; a fumaça saía das tigelas com as mechas de combustão lenta e se propagava pelo convés.
Em meio ao silêncio ouviram-se claramente no castelo as palavras que Jack dirigiu ao oficial de derrota:
- Senhor Allen, vire vinte graus para bombordo, por favor.
Depois acrescentou:
- Senhor Calamy, desça correndo à coberta inferior, apresente meus respeitos ao doutor e peça-lhe que me empreste seu relógio.
A Surprise virou para bombordo. Imediatamente reapareceu o cúter e seus homens soltaram o que levavam a reboque. A tensão aumentou e enquanto alguns artilheiros cuspiam nas mãos outros ajustavam as calças. Então chegaram as palavras rituais:
- Silêncio de proa a popa! Destrinquem os canhões! Nivelem os canhões! Tirem os tapa-bocas! Tirem os canhões!
Nesse momento se ouviu por toda parte o estrondo que provocaram dezoito toneladas de metal movendo-se com rapidez.
- Carreguem! Apontem e disparem começando da proa!
O alvo balançava no cintilante mar além do alcance das caronadas. Bonden, o chefe da brigada do canhão número dois (o canhão de bronze de estibordo), inclinou-se sobre ele e olhou por cima do cilindro. A elevação era a adequada, mas para que estivesse apontado corretamente, fez sinais com a cabeça para os artilheiros que estavam de um lado com a manivela e para os que estavam do outro com a alavanca, todos eles de costas para o costado do barco e preparados para mover um pouco aquela tonelada e meia de bronze. O longo canhão, situado atrás da larga portaló da proa, podia girar muito para frente, e Bonden podia ver perfeitamente o alvo pela mira; contudo, como estava tão desejoso como o capitão de bater o recorde, não queria disparar até que não estivesse apontado o canhão de sua direita, o número quatro, que chamavam de Assassinato Premeditado. Durante alguns momentos de tensão a fragata subiu duas vezes com as ondas e depois, junto ao Assassinato Premeditado, ouviu-se o burburinho:
- Quando queira, companheiro.
Bonden estendeu o braço para pegar a brilhante mecha e introduziu o extremo rosado no ouvido enquanto arqueava seu corpo para que o canhão pudesse passar por baixo dele quando retrocedesse para o interior da fragata. Seus companheiros prestaram muito pouca atenção ao ensurdecedor estampido, à língua de fogo, aos pedaços de bucha que voavam pelo ar, à fumaça e ao som vibrante das retrancas, porque já tiveram que segurar firmemente o canhão, limpá-lo, introduzir a carga e atacá-la e colocar a bala e a bucha, e depois, cheios de satisfação, voltaram a sacá-lo com estrépito; prestaram muito pouca atenção ao estalido do canhão número quatro, que foi mais forte, e que foi seguido imediatamente pelo do número seis, chamado de Fortachón, e sucessivamente os dos outros até os últimos, os do número vinte e dois e do número vinte e quatro, chamados Billy o Saltador e Azul Marinho, que se encontravam respectivamente no dormitório de Jack e na grande sala de sua cabine; e prestaram muito pouca atenção à densa fumaça branca que formava redemoinhos por causa do vento. Mas seus movimentos, apesar de serem muito rápidos e precisos, eram quase mecânicos, e por isso a maioria deles tiveram tempo de ver qual era a trajetória da bala disparada por seu canhão e também o penacho de água que formava ao cair justo diante do alvo.
- Por um cabelo, por um cabelo - murmurou Bonden, inclinando-se sobre o canhão novamente carregado e apontado, e introduziu nele rapidamente a resplandecente mecha.
Jack estava de pé no castelo de popa com o relógio de Stephen (um magnífico Breguet com segundeiro) na mão e estirou o pescoço para poder ver por cima da fumaça produzida pela nova descarga da bateria. A primeira havia coberto o alvo de espuma, pois nem uma só bala havia caído muito longe dele; a segunda foi melhor, já que fez saltar para o ar dois barris e quase toda a balsa.
- Muito bom, mais que muito bom! - exclamou, e quase quebrou o relógio ao golpear a borda com ele, mas imediatamente se acalmou e o entregou a Calamy, seu ajudante, dizendo -: veja quando dispara exatamente o número vinte e quatro.
Então saltou da carreta de uma caronada para os amantilhos baixos para ver onde caiam as balas da descarga seguinte. A bateria começou a disparar quando o lado da fragata onde ele se encontrava subiu quase até as cristas das ondas, e terminou antes que houvesse descido meio emborno. Ouviram-se ensurdecedores estampidos e se formou uma massa de fumaça pela qual atravessavam rajadas de luz, e muito além dessa massa puderam ver-se as balas cairem muito próximas, formando um grupo, o melhor grupo que Jack jamais vira antes. Todas foram disparadas com precisão e destruiram por completo o alvo. Jack desceu para o convés de um pulo e olhou para Calamy, que, sorrindo, disse:
- Três minutos e oito segundos, senhor, com sua permissão.
Jack riu satisfeito.
- Conseguimos! - exclamou. - Mas ao que dou mais valor é à precisão. Qualquer tonto pode disparar com rapidez, mas esta descarga foi letal, letal.
Caminhou ao longo da fileira de canhões junto aos quais os alegres e suados artilheiros gritavam. Felicitou efusivamente aos chefes das brigadas do Víbora, do Anthony o Louco, do Buldogue e do Capricho de Nancy por sua rapidez, mas lhes disse que se disparassem mais rápido os canhões, todos disparariam ao mesmo tempo, ou seja, a descarga seria simultânea, e que isso não era conveniente porque as balizas não suportariam e se despedariam. Acrescentou que preferia que as balizas continuassem intactas para o caso de se encontrarem com o Spartan, um potente barco corsário.
Viram o Spartan por três vezes. Três dias depois da excelente prática, pouco antes do amanhecer, o senhor Honey, o oficial de guarda, mandou um serviola ao tope de um mastro como de costume, pois esse era o melhor momento do dia para encontrar a um inimigo, quer fosse poderoso ou débil. Durante a noite se havia formado uma espessa névoa, e ainda restavam alguns fragmentos que se moviam com o vento quando o serviola, dirigindo a voz para o convés, gritou:
- Barco a sotavento!
- Onde? - perguntou Honey, que não podia ver nada do convés.
- Pelo través, senhor - foi a resposta. - Mas já não posso vê-lo. Acho que é um navio e que está aproximadamente a uma milha de distância.
- Estou seguro de que é o Spartan - disse Davies o Lerdo para seu companheiro, enquanto os dois esfregavam a coberta com uma enorme pedra com um forro que chamavam de "o urso". - Pode acreditar no que digo: John Larkin viu o Spartan. John Larkin sempre foi um tipo de sorte.
Honey mandou o guarda-marinha de guarda chamar Mowett. Jack girou em sua maca e pela clarabóia ouviu um velho marinheiro italiano dizer para seu companheiro:
- John Larkin viu o Spartan.
Mowett acabava de descer do cesto da gávea, ainda vestido com a camisa de dormir e inchada pelo vento, quando Jack chegou ao convés. Então, com o rosto radiante, exclamou:
- Senhor, agora mesmo ia mandar pedir-lhe permissão para mudar o rumo e começar a navegar. Há um barco a sotavento e Larkin acha que é o barco corsário.
Vários marinheiros que estavam imóveis com os esfregões na mão começaram a rir.
- Muito bem, senhor Mowett - disse Jack. - Pode trocar o rumo e talvez também possa convencer aos homens de guarda de que façam um esforço e limpem a coberta. O rei não lhes paga por sua cara bonita, e seria lamentável se tivéssemos que enfrentar um barco corsário, se é que ele é, no meio desta sujeira, e que alguns estrangeiros vissem que isto parece com Sodoma e Gomorra.
Era um barco corsário, mas não era o Spartan. Na realidade, não era um barco estrangeiro mas o Prudence, um bergantim de doze canhões procedente de Kingston. Tão logo o calor do sol dissipou a névoa, o barco mudou a orientação do velacho e se pôs em pairo. Depois, quando a Surprise já estava muito próxima, o capitão foi até ela com a documentação do barco.
O capitão subiu pelo costado e cumprimentou aos oficiais que estavam no castelo de popa ao estilo da Armada. Tinha mais ou menos a idade de Jack e vestia uma simples casaca azul. Era evidente que não estava a vontade, e a princípio Jack pensou que a causa era que temia que lhe tirassem tripulantes a força, mas seguiu igual depois de que Jack lhe assegurou que não tinha necessidade de mais marinheiros. Após um tempo, Jack compreendeu que isso se devia a temer ser reconhecido e não ser bem respeitado.
- No início achei que nunca o havia visto - disse Jack a Stephen essa tarde quando ambos afinavam seus instrumentos. - Pensei assim até que me deu uma pista quando disse: "Logo reconheci a Surprise porque tinha o mastro maior de um barco de trinta e seis canhões". Então me dei conta de que era o mesmo Ellis que havia visto meia dúzia de vezes no Cabo e que estava ao comando do Hind, um barco do rei de dezoito canhões. É uma pena que tenha descido de categoria, como os homens que mencionei quando falava ao pastor Martin dos barcos corsários. Mas este caso é diferete, pois acredito que ademais foi julgado por um conselho de guerra por causa de um feio caso, de que pagou algumas faturas com dinheiro da Junta Naval. Mas quando recordei quem era falamos amigavelmente, e me disse muitas coisas sobre o Spartan. Temo que é pouco provável que o encontremos neste lado dos Açores.
- O senhor Allen, o oficial de guarda, mandou lhe dizer que há quatro barcos a trinta e cinco graus pela amura de estibordo.
Era muito difícil entender Howard devido à sua falta de dentes, mas finalmente Jack compreendeu a mensagem e respondeu:
- Sim, são mercantes que fazem o comércio com as Antilhas. O capitão corsário me falou deles. Lancem dois foguetes azuis e façam uma salva para barlavento.
O canhão disparou, e depois se ouviu como o atavam de novo, mas Jack continuou sentado com o violino nas mãos.
- Está desanimado, meu amigo - disse Stephen em tom amável, depois de esperar um bom momento.
- Oh, sim! - exclamou Jack. - Peço que me desculpe. Eu me perguntava se aquele maldito lagopo{8} encontrou com Sam em Ashgrove Cottage, ainda que realmente não tem importância.
- Creio que não - disse Stephen, e então tocou um fragmento.
Jack respondeu com uma variação, e depois ambos seguiram tocando variações, às vezes separados e às vezes juntos, e assim continuaram até que por fim terminaram com uma muito agradável que tocaram em uníssono. Nesse momento chegaram as torradas com queijo.
- Acho que na Inglaterra chamam os grous de garças, e que há muitas outras diferenças de vocabulário - disse Stephen depois de um tempo. - Diga-me, por favor, o que é um lagopo para um inglês.
- Então uma dessas mulheres avinagradas, dominantes e discutidoras que um encontra frequentemente. Lady Bates é uma delas, e a senhora Miller também. Acredito que as chamam assim pela mulher de Mahoma; ao menos isso é o que me disse meu pai quando eu era menino.
Se o general Aubrey tivesse se dedicado a estudar etimologia, ainda que isso seria uma presunção, não teria feito nenhum mal para seu filho. Mas decidira entrar na política como um membro da oposição, representando vários condados miseráveis, e como era um homem pouco razoável mas tinha uma inesgotável energia, com seus constantes e veementes ataques aos ministros conseguiu que inclusive seus amigos conservadores fossem olhados com desconfiança e criticados. Agora estava unido aos membros de pior reputação do Partido Radical, não porque queria que se fizesse uma reforma no Parlamento, mas porque tinha a absurda idéia de que os ministros decidiriam dar-lhe um bom posto, por exemplo, o de governador de uma colônia, para que fechasse a boca. Ademais, pensava que alguns de seus companheiros radicais sabiam muito bem como fazer dinheiro e estava desejoso, ou melhor ávido, por riquezas.
Stephen conhecia o pai de Jack, e o achava um pai realmente daninho; por sua mente passou a idéia de que gostaria que se afogasse com o próximo bocado que comesse. Deu uma torrada para Jack em silêncio e pouco depois ambos tocaram uma endecha que Hempson, o melhor arpista do mundo, havia lhe ensinado na cidade de Cork quando tinha cento e quatro anos.
O segundo Spartan o viram desse lado dos Açores. Estava a barlavento, justo no lugar onde havia começado a perseguir o Danaë quando Pullings o comandava. Tal como Pullings dizia em sua carta, o barco era tão parecido com um navio de guerra português que um marinheiro experiente que o visse de uma milha de distância juraria que ele era. Era igual em tudo: a bandeira, os uniformes dos oficiais e inclusive um crucifixo dourado, que refletia os raios do sol, no castelo de popa. Um marinheiro experiente cairia no truque inclusive se o houvesse visto a meia milha de distância. Por fim o capitão Aubrey e o senhor Allen, que haviam permanecido um tempo de pé com os telescópios dirigidos para o barco que se aproximava e rodeados do agradável odor das mechas de combustão lenta, assim como os marinheiros que estavam preparados para tirar as lonas que cobriam os canhões carregados, lançaram uns para os outros um eloqüente olhar com uma mistura de surpresa, decepção e alívio.
- Graças a Deus que não disparamos - disse o oficial de derrota.
Jack assentiu com a cabeça e gritou:
- Apaguem as mechas, apaguem as mechas! Senhor Mowett, mande içar o galhardete e a bandeira!
Então chegou do barco uma voz que cumprimentava em português com tom mal-humorado.
- Por favor, senhor Allen, responda - disse Jack, pois o senhor Allen falava bem o português. - E peça ao capitão que venha almoçar comigo.
O capitão português não comeu com Jack, mas aceitou cortesmente suas desculpas. Os dois tomaram em sua cabine uma garrafa de excelente vinho do porto branco, e Jack se informou de que no porto de Fayal não estavam nem o Spartan nem nenhum outro barco de tamanho similar. Além disso, o capitão português disse que alguns o haviam visto nessas águas, mas que era provável que houvesse rumado para a costa guineana, ou que estivesse mais ao leste esperando a lua cheia para "encontrar algum dos abundantes mercantes ingleses que faziam o comércio com as Antilhas para capturá-lo". Ao dizer isso riu, pois gostava dos butins tanto como qualquer outro homem.
Não faltava muito tempo para a lua cheia, e à medida que a lua crescia o vento amainava, assim que quando a Surprise viu o terceiro Spartan, ao leste de Terceira, o Atlântico parecia um lugar seguro: havia poucas ondas e o vento era muito suave. O barco apareceu como muitos costumam fazê-lo, atrás de um banco de névoa matutina. Encontrava-se um pouco mais ao norte, navegando com as velas amuradas para bombordo, como a fragata, e do castelo de popa se podia ver o casco pela amura de estibordo. No início os tripulantes não lhe deram importância. Os da guarda de estibordo, que estavam com as pernas vermelhas devido à água com que limpavam o convés estar muito fria, diziam que estavam fartos de ouvir falar do barco corsário, da maldita carga que estava no convés e da condenada aniagem dos costados.
Jack, que olhava para o mar desde o cesto da gávea, tinha a mesma opinião, mas pensava que era conveniente ordenar que não guardassem as macas e que os marinheiros que descansavam cobertas abaixo ficassem ali até nova ordem.
Quando a luz se fez mais intensa, alegrou-se de ter dado essa ordem. Posto que acabava de ver um autêntico navio de guerra português, o disfarce do Spartan (pois esse era realmente o barco corsário) lhe pareceu menos convincente. Por outro lado, o barco que estava ali perto coincidia em tudo com o que Pullings descrevera. Era um barco alto, com vergas e paus muito grossos, indubtavelmente muito rápido e capaz de disparar uma potente descarga, ao menos em um combate penol a penol. Havia virado para bombordo quando seus homens viram a Surprise, o que para Jack pareceu muito significativo, pois isso lhe permitiria situar-se em uma posição vantajosa. Se fosse um verdadeiro navio de guerra português, cuja obrigação fosse fazer uma inspeção, não se daria a esse trabalho, não iniciaria uma manobra que a essa distância e com o vento tão frouxo só poderia se concretizar depois de várias horas de meticuloso trabalho.
Jack ordenou mudar de bordo para tomar um rumo mais conveniente, e enquanto desjejuava no cesto da gávea não deixou de observar o barco com grande atenção. Quando tomava a última xícara de café, já estava convencido de qual era a identidade do barco, e essa convicção passara por si só para os tripulantes. De vez em quando mandava mais tripulantes cobertas abaixo para reduzir o número de marinheiros visíveis e que fosse semelhante ao dos que tripulavam um mercante. Mas lhe era difícil fazê-lo, já que necessitava de bastantes marinheiros para desdobrar as velas e puxar das braças para fazer girar as pesadas vergas tão rápido como o barco corsário, que, como logo notou, tinha excelentes tripulantes.
Os marinheiros da guarda de bombordo, que a princípio ficaram encantados que os da guarda de estibordo trabalhassem no convés, molhando-se com água fria enquanto eles seguiam dei;tados em suas macas, começaram a inquietar-se, e quando viram que já eram muitos os que haviam descido, quase se desesperaram. Na coberta inferior, naturalmente, não havia portalós nem escotilhões, e os marinheiros só podiam se informar pelo que seus alegres companheiros contavam através da escotilha de proa.
Na Armada Real, a disciplina variava muito de um barco para outro. Em alguns, apenas dois homens trocassem umas palavras tranqüilamente, informava-se isso ao sargento de Infantaria da Marinha e os homens eram considerados descontentes, ou inclusive possíveis promotores de um motim. Na Surprise não ocorria nada nem remotamente parecido com o que sucedia nesses desafortunados barcos, mas não se aprovavam as compridas conversações durante as horas de trabalho, sobretudo quando se estavam realizando operações delicadas. Por essa razão, a informação que se recebia pela escotilha era escassa e fragmentária, mas como eram dadas por outros marinheiros, faziam um resumo bastante exato de tudo o que ocorria.
As duas embarcações estavam uma diante da outra, e ainda que nessa zona se alternavam ventos de distintos quadrantes, geralmente soprava o vento do oeste; e havia indícios de que logo, talvez no dia seguinte, seria mais intenso. O objetivo dos dois capitães era situar seu barco em posição vantajosa, quer dizer, ao oeste do outro, onde o vento permitiria navegar mais facilmente e poderiam iniciar o combate no momento e nas condições que estimassem mais convenientes, em vez de ser perseguidos indefinidamente pelo adversário e correr sempre o risco de que as balas de canhão derrubassem os paus ou o vento os desprendesse. Mas os dois queriam que parecesse que a manobra não era premeditada, senão que fazia parte da rotina diária em uma aprazível viagem, pois desse modo seu adversário não suspeitaria que corria perigo e lhe deixaria passar tranqüilamente pelo seu lado.
Isso dava uma nova dimensão à dura corrida, a passo de tartaruga, para barlavento. Tinha que desdobrar todas as velas possíveis para tomar inclusive as mais débeis rajadas de vento, mas a Surprise estava em desvantagem, pois, como tinha que parecer um prudente mercante, não usava mastaréus em cima dos mastaréus, como os barcos de guerra, e seus homens não podiam guindá-los sem levantar suspeitas nem, potanto, desdobrar as sobrejoanetes, as sossobres, as monterillas e as bujarronas volantes, muito úteis quando soprava um vento como aquele, que a certa altura do mar se movia mais rápido do que rente a ele.
Por fim foram colocados os mastaréus e suas vergas com as grossas velas correspondentes, mas entretanto o Spartan, aproveitando que o vento havia rolado para noroeste, aproximou-se meia milha a mais da Surprise.
Isso não agradou em absoluto a Jack, que não desejava que sua fragata e seus homens sofressem feridas ou morressem por causa do ataque de um barco corsário. Tinha a esperança de ficar em bastante vantagem em relação ao Spartan virando para oeste e pensava que depois, quando o barco corsário estivesse a sotavento e ao alcance dos canhões, tiraria o disfarce da fragata, dispararia pela frente da proa do barco e esperaria sua rendição. E se a rendição não se produzisse imediatamente, faria um par de descargas com uma bateria. Mas se o avanço do barco corsário continuasse, se colocaria de tal maneira que a fragata ficaria a sotavento, e isso provocaria uma refrega terrível, já que as caronadas de quarenta e duas libras do Spartan entrariam no jogo e a fragata sofreria estragos, e muitos de seus homens podiam ficar feridos.
Jack olhava atentamente as pequenas ondas que quebravam a lisa superfície do mar e traziam consigo o Spartan, e de repente se inclinou sobre a grade do cesto da gávea para dar algumas ordens. A Surprise virou lentamente para estibordo e avançou em direção ao Spartan até que este ficou ao alcance de suas balas; então pegou o vento que acabava de abandonar o barco e virou perfeitamente. Durante dez ou quinze minutos a Surprise avançou com tanta rapidez que a água borbulhava junto aos seus costados, enquanto o Spartan, com as velas flácidas, apenas podia mudar de bordo.
Quando também a fragata ficou sem vento, restabeleceu-se o equilíbrio. Os marinheiros contaram isso aos companheiros que estavam abaixo, e Doudle o Rápido, um velho e experiente marinheiro, disse que agora poderiam seguir combatendo dando orçadas, e acrescentou que quando a fragata navegava de bolina não tinha rival e que ao final do dia conseguiria ultrapassar qualquer embarcação.
De fato, os barcos seguiram combatendo dando orçadas, e os tripulantes ajustavam as velas com grande cuidado para navegar de modo que a quilha formasse o menor ângulo possível com a direção de qualquer vento que soprasse, e tensavam tanto as bolinas que vibravam produzindo um som agudo. Mas no combate havia muito mais que isso: os dois barcos se afastavam de sua posição, às vezes perigosamente, para buscar alguma das rajadas de vento que cruzavam o mar, com freqüência debaixo grossas nuvens. Ademais, os marinheiros faziam manobras enganosas, como mudar de bordo o leme para sotavento para pegar impulso e logo, quando todos esperavam em seus postos para mudar de bordo em redondo e as velas de proa golpeavam, como se os barcos estivessem a ponto de orçar, arriavam a bujarrona e o contrafoque para que retornassem à sua posição anterior. Sua intenção era que os tripulantes do outro barco perdessem tempo ao fazer a mesma manobra e pararem no momento em que as velas golpeavam, ao compreender seu erro; ou terminassem de mudar de bordo rapidamente e perdessem ainda mais tempo para regressar à posição original.
No final da tarde, uma tarde úmida na qual o calor era sufocante, cada capitão havia formado uma idéia sobre as qualidades de seu oponente. Jack estava convencido de que o outro capitão era sagaz, teimoso, inclinado a perpetrar todo tipo de enganos, e um excelente marinheiro. Ademais, pensava que, pelo menos quando o vento era fraco, o barco podia lutar com a Surprise quase em igualdade de condições. Não exatamente em igualdade de condições, pois a Surprise já avançara um quarto de milha para barlavento quando o sol começava a ocultar-se atrás do horizonte, devorando até os ventos mais fracos, e o mar parecia um vidro. Jack acreditava que o vento voltaria a soprar quando o sol se pusesse e a fragata poderia avançar mais, percorrer a milha que os separava (pois navegaram paralelamente até que o vento deixou de soprar) e situar-se de modo que o Spartan estivesse a sotavento; então pediria ao seu capitão que se rendesse. Mas para que isso ocorresse, o vento tinha que soprar de novo, e ainda que todos os tripulantes da Surprise, começando por seu capitão, assobiaram e arranharam os brandais, não conseguiram nada. Nada quebrava a superfície do mar, nem o salto de uma distante baleia nem o vôo de um peixe voador (ainda que no dia anterior agarraram meia dúzia deles no portaló) nem uma pequena onda formada pelo vento. Ambos os barcos permaneciam imóveis com a proa dirigida para o norte, e a Surprise se encontrava pela alheta de bombordo do Spartan.
- Pergunte ao doutor e ao senhor Martin se querem vir ver a calmaria - disse Jack ao seu timoneiro, que estava no cesto da gávea com ele. - Talvez se eles assobiassem poderiam mudá-la.
Quando Bonden desceu, teve dificuldade para dar a mensagem. Os dois cavalheiros haviam aproveitado a falta de movimento para espalhar pela sala dos oficiais suas importantes coleções de coleópteros de Brasil e da Polinésia. Infelizmente, Bonden pisoteou alguns exemplares e derrubou ao solo outros ao retroceder, e os dois cavalheiros, inclusive o pastor, responderam em tom mal-humorado que assobiariam e inclusive arranhariam os brandais como os adoradores de ídolos pagãos se lhe pedissem porque era indispensável, mas que a menos que o capitão assim o desejasse, rogavam que lhes desculpasse porque preferiam não largar os insetos agora.
- Bem… - disse Jack, sorrindo. - Era só uma…
Nesse instante se interrompeu e se pôs a olhar pelo telescópio.
- Estão usando vergas e estais para descer lanchas para a água - anunciou.
Alguns momentos depois a iole do Spartan caiu na água, e seus tripulantes pegaram um cabo que pendurava da proa e fizeram girar o barco até que uma de suas baterias ficou situada diante da Surprise; depois de uma breve pausa, o barco disparou uma de suas potentes caronadas. Jack viu o capitão apontar o canhão, que tinha a máxima elevação, e colocar do rabicho. A bala roçou a lisa superfície do mar e se aproximou da Surprise dando quiques. A trajetória era muito certeira, mas não chegou muito longe e se afundou no décimo quique, pouco depois do som do disparo chegar até a fragata. Era óbvio que o capitão do barco corsário ainda estava convencido de que a fragata era uma inocente embarcação, e era igualmente claro que amaria acabar com aquele assunto imediatamente, antes de que se afastasse mais por barlavento quando o vento começasse a soprar. Queria intimidar seu capitão não só com essa potente bala, senão também rebocando o barco até que a embarcação ficasse ao alcance de seus canhões; provavelmente depois tentaria abordá-la com os botes, que estavam preparados para descerem à água.
- Acima todos os marinheiros! - foi a ordem que Jack gritou com voz potente, e imediatamente os marinheiros que estavam abaixo abandonaram sua detestável inatividade.
Essa ordem foi seguida de outras em rápida sucessão, e Martin disse para Stephen:
- Como correm lá em cima! Quem são os que formam esses pequenos grupos do outro lado da chaleira?
- São exemplares duplicados para sir Joseph Blaine.
- Já mencionou a sir Joseph antes - disse Martin, olhando com inveja um exemplar de Dinastes imperator, pois ele só tinha dois -, mas me parece que não me disse quem era.
- Ganha a vida em Whitehall - disse Stephen -, mas o que ele gosta é da entomologia, e tem uma vitrina cheia de exemplares raros. No ano passado foi vice-presidente da Sociedade de Entomólogos. Eu lhe apresentarei da próxima vez que estejamos na cidade, pois espero ver-lhe quando cheguarmos ao porto.
Então, pensando naquele maldito cofre de latão com uma valiosíssima carga, cuja recordação lhe perseguia tanto adormecido como acordado, disse para si em tom enfático: "Amém, amém, amém".
- Joguem os tonéis pela borda! - ordenou Jack. - Tirem a aniagem dos costados! Senhor Mowett, quando vai baixar esse cúter?
- Imediatamente, senhor, imediatamente! - respondeu Mowett do corrimão.
Porém, pela primeira vez, os tripulantes da fragata não foram eficientes. Rompeu um parafuso de um moitão e o cabo que passava por ele enganchou e, apesar dos grandes esforços do contramestre, o cúter ficou pendurando de um só anel. Então os tripulantes, sem cerimônia, desceram o segundo cúter para água pela alheta. Enquanto isso, Jack notara com grande desgosto que, a certa distância ao norte, o rápido vento do oeste começava a cachear o mar. Quando o vento alcançou o Spartan, o capitão, agora cheio de desconfiança, ordenou mudar de bordo para o leste para que o barco o recebesse pela alheta de bombordo, e o barco virou rapidamente enquanto os marinheiros giravam as vergas com muito brio.
- Ei, os do cesto da gávea do maior, icem a bandeira e o galhardete pequeno! - gritou Jack. - Condestável, lance uma bala na frente da proa do barco; e se isso não o detiver, lance outra na gávea maior.
Na atual posição, o canhão de proa de estibordo era o único que poderia alcançá-lo, mas, de toda forma, Jack não ia usar a bateria desde o início, pois isso produziria mortos desnecessários e causaria danos ao barco corsário, o que não desejava porque depois teriam que passar dias fazendo nós e atando. Contudo, teria que usá-la se não se pusesse em pairo e se rendesse, e o único que necessitava para fazê-lo era mudar o bordo da fragata em setenta graus, algo muito simples sobre aquela superfície lisa como o cristal.
Era algo muito simples, mas não para Davies o Desajeitado. Havia entrado muita água no cúter azul porque os marinheiros o haviam jogado pela borda com extraordinária força, mas seus tripulantes não se importaram de se sentarem na água e haviam começado a remar furiosamente para avançar e pegar o cabo para rebocar a fragata. Davies, que era o primeiro remador, tinha que pegá-lo, e os outros tripulantes deram várias remadas para que ele conseguisse. Então Davies, com uma expressão feroz, um intenso brilho nos olhos e uma linha branca entre os lábios que contrastava com seu rosto escuro, levantou-se e, desobedecendo as ordens de Howard, pôs o pé na borda para puxar com força o cabo, e imediatamente o cúter se inclinou para um lado, encheu de água e afundou.
Poucos dos tripulantes do cúter sabiam nadar, e a situação se complicou porque outros marinheiros que tampouco sabiam caíram da fragata atrás deles. Quando conseguiram subi-los a bordo, alguns após bastante tempo, e a fragata terminou de mudar de bordo, o Spartan se afastara muito. Seu capitão havia visto o preciso e potente canhão de proa, a longa fila de canhões do costado recém descoberta e a repentina aparição no convés de um enxame de marinheiros, e não quis esperar para ter nenhuma prova a mais. Agora seus homens estavam colocando os botalós das alas de barlavento.
- Disparem alto! - ordenou Jack, que estava no castelo de popa jorrando água (acabava de salvar ao desafortunado Davies e ao jovem Howard pela terceira ou quarta vez desde que lhes conhecia). - Disparem alto e esperem para que a fumaça se dissipe entre uma descarga e outra!
As balas caíram bastante separadas na esteira do Spartan, e não muito perto.
- Guardem os canhões! - ordenou.
Os artilheiros lhe obedeceram olhando com nervosismo. Mas esse não era momento para recriminações, pois o Spartan já navegava a mais de cinco nós (avançava um cabo por minuto) e o vento, que agora era muito forte, avançava cada vez mais para o sul e estava a ponto de alcançar a Surprise. Jack observava com grande atenção em que direção o vento se movia sem prestar atenção em Killick, que estava silencioso pela primeira vez em sua vida e lhe estendia uma toalha, uma camisa seca e uma casaca. Então gritou:
- Soltem os palanquins do traquete!
Refletia sobre o modo de recuperar as milhas perdidas, pois não só o Spartan avançara muito rapidamente como também a Surprise estava a ponto de perder a vantagem que tinha. As primeiras rajadas de vento chegaram às sobrejoanetes e às sossobres da fragata, que virou em redondo, ganhou imediatamente velocidade suficiente para manobrar e começou a avançar quando o sol se ocultou, fazendo que sua esteira ficasse de cor vermelho sangue. Até esse momento navegara com um conjunto de velas quadradas e velas de estai que chegavam quase até o céu e quando teve o vento quase pela alheta, seus homens desdobraram as alas superiores e as inferiores, acrescentando uma manhosa à carangueja e, naturalmente, colocando as varredoras. Também colocaram pequenas velas debaixo das alas e no botaló da carangueja, puxaram da amura do traquete para o pescante de proa para tensá-la, soltaram a amura da maior e levaram o punho de barlavento para a cruz da verga.
Todos os tripulantes, desde o desgraçado Davies até o irreprochável Bonden, sentiam-se culpados, e lhes infundia temor o tom completamente neutro, sem pitada de mau humor, que Jack empregava ao dar as ordens para que aproveitassem até o mínimo impulso do vento, e também a falta de blasfêmias nelas. Caminhavam apressadamente de um lado para o outro em silêncio e com expressão angustiada, e quando Jack lhes ordenou que levassem as bombas de água até a cesto da gávea, para que dali molhassem as velas e estas se inchassem mais facilmente, bombearam com tanta força que os jorros chegaram além das sobrejoanetes, aonde geralmente era necessário levar a água em baldes com um moitão.
Em meio da penumbra dedicou todos seus esforços a conseguir que as velas ficassem perfeitamente orientadas e ajustadas, e pouco depois começaram a ouvir novos sons que acompanhavam a fragata: um contínuo som sibilante emitido por as inumeráveis bolhas que corriam pelos lados, bolhas produzidas pela grande onda que formava o talha-mar da proa, e o sussurro e o assobio que o vento, cada vez mais forte, produzia ao passar entre a exárcia. Logo a lua apareceu diante deles, e na luminosa vereda que formava seu reflexo, Jack viu o Spartan com grande quantidade de velame aberto, parecia um pássaro de grandes asas. Mas a distância que os separava havia se reduzido. Já não tinha tanta vantagem.
Jack deixou de apertar um pouco a grade, bocejou de fome e olhou para proa e para popa. A sotavento viu Stephen e Martin, que lhe sorriram como se quisessem conversar com ele.
- Chegaram tarde para ver a calmaria - observou Jack ao se recordar que lhes mandara buscar há muito tempo. - Agora sopra o vento do oeste com pouca força mas, se a sorte nos acompanhar, se converterá em um vendaval.
- Sentimos muito pela calmaria - disse Stephen -, mas achamos que gostará de ver nossos insetos. Pela primeira vez os colocamos uns junto dos outros, e são dignos de se ver. Cobrem o piso e toda a mesa, mas não permanecerão ali muito tempo porque os oficiais estão impacientes para jantar.
- Será um prazer - respondeu Jack, olhando por baixo da vela maior para a traquete, que estava muito inchada. - E se os oficiais me convidam para comer um pouco de pão com queijo, depois de ver os insetos, desde já, me alegrarei muito. Senhor Mowett, por favor, chame os marinheiros para jantar, mas em dois grupos; e diga a Killick que me traga uma capa de água, uma cadeira com braços e meu telescópio de noite. Já está orvalhando e as bombas d’água podem parar.
Nessa cadeira e envolto na capa passou a comprida noite iluminada pela lua, ainda que cada vez que soava o sino se levantava, ia para o corrimão até o castelo, subia no gurupés e se colocava entre a cevadeira e o velacho para olhar o Spartan pelo telescópio de noite. O barco mantinha sua vantagem, e possivelmente a estava aumentando. Era muito veloz e estava governado por um excelente marinheiro, mas Jack achava que não navegaria com facilidade quando fizesse mau tempo e que a Surprise o alcançaria se o vento do oeste soprasse com a intensidade com que às vezes fazia nessas águas, porque ele conhecia um modo de lograr que suportasse a pressão de uma grande quantidade de velame, sobretudo se o vento chegasse pela alheta. Por isso amarrava guindalezas e outros cabos mais finos aos topes dos mastros para conseguir que se mantivessem verticais, apesar de darem um horrível aspecto à fragata. Em qualquer barco essa pressão do velame arrancaria os mastros com os amantilhos, os estais e os contraestais.
A lua atravessou o céu limpo e as pálidas estrelas a seguiram na deviada seqüência. Na fragata os tripulantes fizeram as tarefas noturnas de rotina na mesma ordem de sempre. Fizeram a medição com a barquilha e à luz da bitácula apontaram na tabuinha os resultados, cinco nós e cinco nós e duas braças. Depois informaram qual era o nível de água na sentina, giraram o relógio de areia e tocaram o sino. Então o timoneiro foi substituído, e de um lado a outro da fragata se ouviu os sentinelas gritarem: "Tudo em ordem!".
Quando soaram as quatro badaladas da guarda de meia, o vento rolou para o norte e Jack conseguiu que a vela maior inflasse, mas, apesar disso, não se produziu nenhum mudança na situação e as duas embarcações continuaram avançando como se estivessem em um sonho interminável.
Pouco antes do amanhecer, quando a lua, já muito baixa, estava na popa e Marte brilhava no leste, e alguns marinheiros lançavam água do castelo com a bomba de proa para que os faxineiros limpassem, o forte odor do café interrompeu as reflexões de Jack. Quando entrou na iluminada cabine, olhou com os olhos semicerrados a coluna de mercúrio do barômetro e notou que não havia baixado, mas tinha a parte superior côncava, não convexa, assim que havia esperanças de que o vento soprasse com força. Killick lhe trouxe a cafeteira e torradas de pão de centeio velho, e depois lhe perguntou em tom suave e respeitoso se desejava algo mais.
- Nada mais no momento - respondeu Jack. - Suponho que o doutor não estará acordado.
- Oh, não, senhor! - exclamou Killick.
Stephen dormia muito mal, mas como não gostava de tomar soníferos por razões médicas e morais, costumava atrasar o momento de tomar qualquer pílula ou poção até as duas da madrugada, e por isso raras vezes se levantava antes das oito ou das nove.
- Quando ele se levantar, diga-lhe que eu gostaria que ele e o senhor Martin comessem comigo, se o tempo e o vento permitirem. E avise ao oficial de guarda que quero vê-lo. Senhor Allen - disse ao oficial -, vou dormir algumas horas, mas quero que mande me chamar enquando ocorra a mínima mudança, tanto no tempo como na perseguição.
Como havia anunciado que dormiria algumas horas, todos evitaram fazer ruído na parte que ficava detrás do mastro de mezena, e os faxineiros limparam o convés só com os silenciosos esfregões. Mas regressou ali na mudança da guarda e avançou a grandes passos para a proa para observar a presa na luminosa manhã. Estava quase igual, e a única diferença era que era iluminada pelo sol em vez da lua. Parecia ter adiantado um pouco, mas não mudara o velame que levava desdobrado, provavelmente porque tinha muito poucas velas que acrescentar, nem se desviara nem sequer cinco graus de seu rumo, que era nordeste quarta ao leste.
Durante a noite a perseguição foi muito parecida a um sonho; durante o dia, foi quase igual, pois ainda que agora os marinheiros sabiam que estavam em uma situação de emergência, em uma situação crítica (as bombas que estavam colocadas nos cestos das gáveas jogavam fortes jorros e os canhões de bronze de nove libras estavam no castelo preparados e apontados para a proa, e tinham ao lado os suportes cheios de balas), tinham muito poucas coisas que fazer. Devido ao vento ter se firmado, navegavam do mesmo modo que avançavam quando estavam sob a ação dos ventos alísios em direção ao o Cabo, sem tocar em nenhuma escota e nenhum cabo durante dias, e inclusive semanas. Mas quando estavam navegando com os ventos alísios, limpavam e pintavam a fragata, lavavam, faziam ou remendavam sua roupa, realizavam muitas práticas de tiro, passavam revista e assistiam aos serviços religiosos, enquanto que agora era mais conveniente que fizessem buchas e tirassem a ferrugem das balas. A Surprise avançava acompanhada do ruído de cinqüenta ou sessenta martelos, tão rápido como era possível graças ao cuidadoso movimento das braças e do leme, e não deixava de perseguir sua presa, que estava sempre na metade do caminho do horizonte.
Jack e seus convidados comeram acompanhados por esse ruído. Jack havia se lavado e barbeado depois de ter dado um cochilo, e se encontrava em excelente estado. A frustração que experimentara no dia anterior já era história passada, e não se sentira tão bem nem tão contente desde os horríveis dias em que o conselho de guerra celebrou o julgamento. Desfrutava da companhia de Stephen e Martin, pois, como nenhum dos dois nem remotamente eram marinheiros nem nada parecido, falavam com toda confiança porque não consideravam um capitão de navio um ser sagrado, o que lhe fazia sentir um grande alívio. Por outro lado, o barômetro estava baixando, o que era um inequívoco sinal de que o vento aumentaria de intensidade; e ademais, o fato de ouvir as marteladas durante a refeição indicava que tudo ia bem no convés. Estava perseguindo uma presa, seu barco estava em perfeita ordem e se aproximava uma tormenta: isso era realmente navegar, e por isso muitos homens se convertiam em marinheiros. Era verdade que a presença do pastor lhe coibia um pouco e que desde a aparição de Sam usava um tom meloso quando falava com ele, mas se sentia vital e deixou sua consciência de um lado para falar com ambos amigavelmente. Disse que estava quase seguro de que o barco corsário se dirigia para Brest, que era um dos portos onde se refugiava, e que esperava alcançá-lo muito antes de chegar a Ushant{9} e ao labirinto de arrecifes que a rodeava, mas que não estava certo de nada. Acrescentou que a presa não dera sinais de ter problemas, pois não havia jogado pela borda os canhões nem as lanchas, nem sequer a água, mas pelo brilho de seus olhos azuis, um intenso brilho própio de predadores, seus interlocutores compreenderam que em sua mente havia menos reserva e menos cautela frente ao destino do que mostrava. Martin disse que supunha que o fato dos marinheiros lançarem fortes jorros de água com as bombas na parte posterior das velas impulsionava a fragata e, potanto, aumentava sua velocidade.
- Não há dúvida disso - explicou Stephen. - Dryden, o príncipe dos poetas, disse: "Quando a virtude se une a um vento favorável / meus sinceros desejos ajudam a inchar as velas." E Deus sabe que nós temos muitas virtudes. Acredito que, ou bem todos deveríamos soprar a vela maior, ou alguém deveria soprá-la enquanto outros amarram um cabo na parte posterior da fragata e puxam ele para frente com tanta força como possam, ah, ah, ah!
Riu de sua própia idéia por alguns momentos, e enquanto ria (algo que não fazia usualmente), engasgou-se com uma migalha de pão. Quando se recuperou, viu que Martin estava falando a Jack da pobreza dos intelectuais. Dizia que Dryden morrera na miséria, que Spenser era ainda mais pobre e que Agrippa terminara seus dias em um asilo para necessitados. Poderia continuar falando durante muito tempo, já que o tema era inesgotável, se Mowett não tisse mandado avisar que avistado um grupo de barcos pesqueiros pela amura de estibordo. Ainda que essas embarcações careciam de importância militar, pois eram simples barcos pesqueiros procedentes de Vizcaya e do norte de Portugal que iam pescar nos bancos de bacalhau de Terra-nova, a aparição de qualquer embarcação no meio do oceano era um acontecimento. Amiúde Jack navegara cinco mil milhas por rotas bastante frequentadas sem ver nenhum outro barco. Quando a refeição terminou, propôs que tomassem o café no castelo para ver o espetáculo.
Killick não podia proibir que se trasladassem e, com uma expressão mal-humorada, serviu o café aos convidados em miseráveis jarras de lata, porque sabia o que eles eram capazes de fazer com as jarras de porcelana. Fez bem, porque quando as jarras regressaram estavam amassadas e, além disso, o encarregado da proa se queixou de que aparecera uma fileira de manchas marrons sobre a imaculada coberta. O vento ainda não aumentara de intensidade, mas durante o almoço haviam chegado até essas águas as ondas que começavam a se formar ao sul, e o violento balanço da Surprise quase sempre lhes pegavam desprevenidos.
Quando chegaram ao castelo, os barcos que iam na vanguarda da desagregada flotilha estavam justo diante do Spartan, e podiam ser vistas ao mesmo tempo uma imagem da paz, caracterizada pela lentidão e desordem, e uma da dura guerra: um desordenado grupo de barcos que se dirigiam lentamente para noroeste enquanto outros dois barcos atuavam com violência um contra o outro navegando tão velozmente como podiam para o leste, e que iam atravessar em grande velocidade aquele grupo.
Mais ou menos uma hora depois, os de Vizcaya desapareceram atrás do horizonte, levando consigo todas as reflexões filosóficas. Stephen e Martin desceram, mas Jack Aubrey ficou no castelo observando a presa, a enorme quantidade de velame que a fragata usava desdobrado e as mudanças do tempo. Estava preocupado com a colocação das velas, pois a fragata tinha a popa bastante afundada e pensava que isso poderia prejudicá-la se caísse uma tormenta.
- Senhor Mowett - disse quando voltou para a popa -, acho que deveríamos colocar aparelhos e descer as caronadas para a bodega, e depois preparar-nos para jogar pela borda a água dos tonéis mais próximos da popa, umas dez toneladas no total. E por favor, peça ao contramestre que tenha preparados vários tipos de cabos de reforço porque o barômetro está baixando e pode desatar uma tormenta. Vou ensinar aos guardas-marinhas como averiguar com um sextante se a vantagem da presa está aumentando ou não, e depois me deitarei um pouco.
Foi um acerto fazê-lo, pois quando a lua saiu começaram a chegar fortes rajadas de vento que se chocavam contra a cara redonda e insossa do mascarão e atravessavam as crescentes ondas. Mowett já ordenara arriar as alas inferiores quando Jack regressou ao convés, e a medida que a noite foi avançando, ordenou arriar mais velas até que a fragata ficou somente com as velas de capa, as maiores com alguns rizes e a gávea maior e o velacho rizados. Não obstante, o guarda-marinha de guarda dava cada vez com mais alegria os resultados obtidos com a barquilha: "Seis nós e meio, senhor, com sua permissão… Seis nós e duas braças…
Quase oito nós… Oito nós e três braças… Nove nós… Dez nós! Oh, senhor, está navegando a dez nós!".
Como as maiores estavam rizadas, Jack podia ver a presa desde o castelo de popa. Ele a via claramente à luz da brilhante lua, pois ainda que o vento soprasse do oeste e rolasse para o sul, havia poucas nuvens no céu e as poucas que havia eram como véus translúcidos. Apesar do mar ainda não estar muito agitado - as ondas eram pequenas, não da magnitude que costumavam ser no Atlântico -, a superfície estava salpicada de branco, e o Spartan parecia completamente preto inclusive quando a lua havia descido muito para o oeste e estava a certa distância de sua popa. Usava quase o mesmo velame que a Surprise e seus homens içaram a joanete de proa em duas ocasiões, mas tiveram que arriá-las nas duas vezes.
Jack pegava o leme a intervalos. A essa velocidade, as diversas vibrações que sentia quando segurava as cavilhas, tanto as produzidas pelo própio leme ao mover-se como as produzidas pela prancha e as cordas que o faziam girar, indicavam muitas coisas a respeito da fragata, como, por exemplo, se suportaria que soltassem um rizes a mais ou se o velame aberto exercia demasiada pressão, ou se era conveniente colocar uma bujarrona na parte central de um estai. Ainda que tenha falado muito pouco com os oficiais que sucessivamente se encarregaram da guarda - Maitland, Honey e o oficial de derrota -, a noite lhe pareceu curta. Quanto amanheceu foi tomar o primeiro café da manhã. O barômetro havia seguido descendo pouco a pouco, e, ainda que o vento não podia ser considerado um vendaval, era muito forte e provavelmente chegaria a ficar ainda mais. Então decidiu que ordenaria amarrar os cabos de reforço aos topes logo, assim que se terminassem de subir as macas e todos os marinheiros estivessem no convés.
- Perdoe, senhor - disse Mowett do umbral da porta -, mas o barco corsário tomou a dianteira e já tem as guindalezas amarradas aos topes.
- Ah, é? - perguntou Jack. - Maldito porco! Venha tomar uma xícara de café comigo para reanimar-nos, Mowett. Depois subiremos para a coberta, onde a virtude, unida ao vento favorável e a nossos sinceros desejos, ajudará a inchar as velas, ah, ah, ah! Isso é de Dryden, sabe?
Ao chegar ao convés, Jack viu que, efetivamente, o capitão do barco lhe antecipara e reforçara os mastros. Agora o barco tinha as gáveas muito inchadas e avançava mais rápido do que a fragata. A Surprise navegava a dez nós, enquanto que o barco navegava a onze ou mais e formava na proa uma grande onda que podia ver-se claramente a três milhas de distância.
- Que venham todos os marinheiros! - ordenou Jack.
Então na coberta inferior se ouviram os gritos: "acima, dorminhocos! Levantem-se e lavem-se! Levantem-se e lavem-se! acima, acima! Levantem-se e arrumem-se!".
Amarrar as guindalezas e outros cabos aos topes era uma operação tão simples que Jack se havia perguntado muitas vezes por que tão poucos capitães recorriam a ela quando fazia mau tempo. Mas como era uma operação que levava muito tempo, antes de que na Surprise estivessem amarrados e esticados os fortes cabos de reforço, o Spartan adiantara uma barbaridade. Seu casco já não era mais visto, salvo quando estava na crista de uma onda, e navegava a grande velocidade e com uma extraordinária quantidade de velame desdobrado. Observando-o pela luneta, de repente Jack pensou: "Se um barco pesqueiro passasse pela frente dele, ele o atravessaria de um lado ao outro".
Mandou os marinheiros desjejuarem em dois grupos e depois ordenou abrir mais velas cautelosamente, uma a uma. A velocidade da fragata aumentou e os inumeráveis sons que acompanhavam seus movimentos sofreram mudanças: subiram dois tons. Jack olhou pelo rabo do olho para o corrimão de barlavento e viu que todos os guardas-marinhas e muitos marinheiros da guarda de bombordo estavam comendo bolachas e riam satisfeitos porque navegavam a uma velocidade vertiginosa.
Também notou algo muito mais importante: que o vento aumentava de intensidade e seguia rolando para o sul. O vento continuou assim durante a guarda da manhã, e quando começou a soprar desde o sudoeste trouxe consigo nuvens baixas que passavam velozmente por cima do mar. O amanhecer fora cinzento e agora uma espessa névoa ameaçava cobrir tudo. No final da guarda, a Surprise recuperara uma das milhas que perdera (das duas embarcações, era a que navegava mais rápido entre o forte fluxo de ondas), mas Jack pensava que se não alcançasse o Spartan antes de que cair a noite, perderia seu rastro na escuridão.
Por outro lado, como o vento havia rolado, agora soprava na mesma direção das ondas, que eram cada vez maiores. Tanto o vento como as ondas açoitavam a fragata pela popa e faziam descer e subir alternativamente a proa e a popa quarenta e um graus quando os oficiais se sentaram à mesa com seus convidados, o capitão Aubrey e o guarda-marinha Howard. Ainda que todos os presentes haviam navegado em piores condições atmosféricas ao sul do cabo Horn, o tempo diminuiu o esplendor do banquete. Os oficiais queriam acolher ao capitão com tartaruga fresca e muitas outras delícias, mas como os fogos da cozinha haviam sido apagados cedo, assim que ferveu a carne de vaca salgada dos marinheiros, os alimentos haviam ficado mornos ou frios; contudo, o almoço incluía cabeça de porco em salmoura, um dos pratos favoritos de Jack, e pudim de melaço, que, conforme ele, era melhor comê-lo não muito quente.
- Ontem o senhor falava da miséria dos intelectuais - disse Stephen para Martin, que estava do outro lado da mesa -, mas nenhum de nós dois se recordou de mencionar ao pobre Adanson. O senhor sabe o que lhe ocorreu, senhor? - perguntou dirigindo-se a Jack. - Michael Adanson, o engenhoso autor de Familles naturelles des plantes, a quem todos devemos tanto, apresentou na Academia das Ciências de Paris vinte e sete longos volumes manuscritos com a classificação de todos os seres e substâncias conhecidos da natureza, mais outros cento e cinqüenta, repito, cento e cinqüenta, onde aparecem quarenta mil espécies ordenadas alfabeticamente e quarenta mil desenhos, mais um volume com um vocabulário de duzentas mil palavras com a correspondente explicação de seu significado, mais o relato de algumas de suas experiências, mais trinta mil exemplares dos três reinos em que se agrupam os seres naturais; e recebeu uma respeitosa ovação. Mas quando esse grande homem, em honra ao qual Linneo chamou ao baobá Adansonia digitata, foi convidado para ser membro do instituto da França, pouco antes de que eu desse uma conferência ali, não tinha nem uma casaca nem uma camisa nem sequer um par de calções decentes para poder assistir a ele. Que Deus lhe tenha na glória!
- Isso foi horrível, sem dúvida - disse Jack.
- E tinha que ter me recordado de Robert Heron - disse Martin -, o autor de The Comforts of Life, que escreveu essa e muitas outras obras eruditas em Newgate. Fui eu quem escreveu a petição de ajuda que fez à Associação Literária, porque ele não tinha forças, e nela declarava que trabalhava entre doze e dezesseis horas diárias. Quando os médicos o examinaram, viram que tinha diminuidas todas suas faculdades pelo que eles chamavam "o imprudente uso da mente em longos e ininterruptos trabalhos literários".
Jack tinha três quartos de sua atenção postos em outra parte, pois as mudanças de movimento do piso sob seus pés e do vinho em sua taça lhe indicaram que o vento estava rolando de novo e com rapidez, e variava bruscamente de intensidade. Por essa razão, não se informou de algumas das calamidades que haviam sofrido os intelectuais, mas voltou a pôr sua atenção ali a tempo para ouvir Stephen dizer:
- Smollet, ao referir-se à possibilidade de que seus amigos lhe houvessem advertido o que lhe esperava ao converter-se em escritor, disse: "Provavelmente, teria me poupado o incrível esforço que fiz e a grande decepção que sofri".
- Pensem em Chatterton - disse Martin.
- Pensem no que disse Ovidio na úmida e fétida margem do frio mar Negro: "Omnia perdidimus, tantummodo vita relicta est / Praebeat ut sensum materiamque mali" (Perdi tudo, somente a vida me resta / que ela me ofereça sensibilidade e matéria do mal.).
- Contudo, cavalheiros - disse Mowett, sorrindo -, é possível que haja alguns escritores afortunados.
Nem Stephen nem Martin pareciam convencidos disso, mas antes que pudessem replicar, ouviram-se no convés gritos triunfantes e ensurdecedores que afogaram os rugidos do vento e do mar. Depois Calamy chegou com a capa de chuva jorrando e informou que a traquete da presa se havia rachado.
Efetivamente, a traquete havia rachado e, ainda que os tripulantes, com a habilidade própia dos bons marinheiros, tiraram todos os rizes do velacho para abri-lo, a Surprise havia adiantado mais de uma milha antes que o barco recuperasse a velocidade que tinha.
Jack e Mowett permaneceram no castelo observando o Spartan.
- Não sei, não sei - murmurou Jack, pensando que se se aproximasse do barco quinhentas ou seiscentas jardas, dispararia um canhão de proa com a esperança de cortar a exárcia ou derrubar um mastro, ou pelo menos fazer um buraco em alguma de suas esticadas velas, e que se conseguisse alguma destas coisas, poderia abordá-lo antes do anoitecer.
A Surprise balançava e cabeceava violentamente, mas como tinha o canhão de barlavento muito elevado e os artilheiros eram excelentes, ainda poderia fazer devastadores disparos durante um tempo. Uma cortina de chuva separou nesse momento as duas embarcações e o Spartan desapareceu.
- Acredito que vai mudar de bordo em redondo - disse Jack. - Ordene tirar os rizes da gávea maior e diga ao condestável que se prepare para fazer um disparo para comprovar seu alcance.
Uma enorme onda cobriu a popa da fragata e Jack se empapou enquanto corria muito inclinado para frente pelo corrimão. O ar estava cheio de espuma, e parecia que o mau tempo ia durar toda a noite. As velas exerciam agora uma grande pressão, pois Jack ordenara mudar sua orientação de acordo com a mudança do vento, e quando os tripulantes tiraram os rizes da gávea maior, a popa da fragata afundou um pouco mais. Potanto, o convés se inclinou outros cinco graus, e Jack se agarrou mecanicamente a um brandal. Jack estava encantado de navegar a tão grande velocidade e de sentir o forte vento e o sabor do mar na boca; contudo, não era o único que estava encantado com isso, pois os quatro marinheiros que levavam o leme e o oficial que governava a fragata tinham uma expressão satisfeita, e o guarda-marinha que fazia as medições com a barquilha, quando um pouco depois de soarem as duas badaladas da guarda do primeiro quartilho, mostrou-se sorridente ao informar-lhe:
- Onze nós e meio, senhor, com sua permissão.
Ainda que a diferença entre dois e três nós fosse irrelevante, a essa velocidade se notava muito inclusive um aumento de meio nó, que, por outro lado, era muito difícil de conseguir. Já haviam soado as duas badaladas, o que significava que faltava pouco para que se extinguisse a luz do dia, e tudo teria que ser feito muito rapidamente, se é que conseguiriam fazer. Nesse momento Jack viu pela luneta que os tripulantes do Spartan estavam jogando a água pela borda em dois grossos jorros que caiam por sotavento, o que supunha várias toneladas de peso a menos.
Quando a fragata se elevava no cabeceio, o condestável disparou o canhão de proa e, quase no mesmo momento, uma violenta rajada de vento rasgou a gávea maior da Surprise.
Os marinheiros correram para pegar as escotas, as adriças, os brioles e os chafaldetes e, quando receberam a ordem, dobraram a vela rasgada e ondulante até que chegou ao cesto da gávea, onde a soltaram da verga para mandá-la abaixo. Depois ficaram no alto da exárcia, que era comparável à represa de um moinho porque não havia ali nem um sopro de vento. Ao mesmo tempo, o contramestre, o veleiro e seus respectivos ajudantes sacavam pela escotilha de proa uma enorme massa de tela difícil de manejar, uma gávea feita de lona do número 2.
Fizeram esta operação com a rapidez e a destreza características dos bons marinheiros, quase sem dizer uma palavra, ao menos sem dizer palavras em tom mal-humorado nem dar gritos, e Jack, ainda que estivesse abatido, percebeu. Contudo, apesar de fizerem a operação o mais rápido possível, tardaram algum tempo, e enquanto isso o Spartan seguiu avançando em meio da tormenta. O sol se poria logo e a lua não sairia até que mudasse a guarda; ademais daria muito pouca luz.
As esperanças de Jack só poderiam se realizar se a fragata navegasse a toda vela. Agora o vento, que soprava com maior intensidade e berrava mais forte, chegava à Surprise justo pela alheta, por onde lhe convinha para navegar melhor, e Jack acreditava que a rajada que havia rasgado a gávea anunciava o final de suas mudanças e estava quase convencido de que se estabilizaria, ainda que seguiria sendo forte.
Talvez estivesse errado e esta idéia fosse produto de seus desejos, mas tanto se fosse assim como se não, era só o que permitiria que suas esperanças se mantivessem. Por outro lado, temia que a fragata encalhasse nos arrecifes de Ushant, pois não se pode determinar sua posição ao meio-dia e já devia de ter percorrido grande parte da distância que a separava da ilha. Mas imediatamente apareceu em sua mente com clareza o resultado das medições do dia anterior e fez uma estimativa, conforme a qual a fragata devia estar perto de terra, ainda que não seria possível avistá-la antes de meia-noite. Enquanto olhava fixamente com a luneta o barco corsário, que cada vez parecia menor, ordenou:
- Larguem a joanete de proa!
Ainda que essa vela era bastante pequena, a fragata se cambaleou e mudou de movimento como um cavalo espantado quando os marinheiros a largaram e caçaram as escotas, pois começou a exercer pressão sobre ela no mesmo momento em que chegava à crista de uma onda. Quando a fragata reiniciou seu rápido movimento, Jack foi até a proa e, depois de apoiar a mão na fiada do traquete, assentiu com a cabeça ao mesmo tempo que dizia:
- Largar a joanete maior com cuidado!
A fragata já navegava com as gáveas com um rizado, e essas duas velas, por estarem tão altas, deram um grande impulso. Obviamente, avançava mais rápido do que o Spartan, mas não o suficiente, pois a essa velocidade o Spartan se refugiaria na escuridão antes que pudessem abordá-lo. Já não lhe era possível disparar, pois navegava a tanta velocidade e o mar estava tão agitado que as verdes ondas chegavam umas atrás das outras até o castelo.
- Coloquem cordas de segurança de proa a popa! - ordenou Jack - O que?
- Venha, senhor! - disse Killick em tom irritado. - Eu lhe chamei cinqüenta vezes! Venha para a cabine!
Sua indignação lhe dava superioridade moral sobre Jack, que o seguiu, trocou a camisa e a casaca empapadas por outras secas e depois pôs uma capa e um chapéu de lona alcatroada. Quando Jack regressou para o convés pegou o megafone de Honey e gritou:
- Preparem-se para desdobrar as velas!
Os marinheiros se prepararam, naturalmente, ainda que pensaram que iam navegar rápido demais e lançaram uns para os outros olhares suficientemente explícitos.
Mas Jack não se sentiu satisfeito com as alas superiores e as inferiores. A Surprise avançava a quase treze nós, tinha o pescante de bombordo muito abaixo da superfície do mar, a coberta inclinada trinta e cinco graus e a borda de sotavento quase oculta pela espuma; formava com a proa grandes ondas que lançavam salpicos a vinte jardas de distância; contudo, Jack mandou abrir a cevadeira. Essa vela, que quase já não era usada, pendurava-se do gurupés e ocultava os canhões de proa, mas como se colocava diagonalmente e a parte de sotavento ficava fora da borda, tinha a vantagem de que a parte de barlavento podia dar o impulso adicional que Jack tanto desejava.
As duas embarcações já tinham os faróis acesos para a batalha na entrecoberta e navegavam velozmente na penumbra em meio da chuva e dos salpicos das ondas. Os tripulantes do Spartan começaram a jogar os canhões pela borda, e no barco se viram brilhantes retângulos de cor laranja cada vez que abriam as portalós, o que fizeram uma e outra vez porque tiveram que arrastar os canhões de sotavento até o costado de barlavento para jogá-los, uma difícil tarefa em uma marejada como aquela. Depois começaram a jogar as lanchas, aliviando ainda mais a carga do barco; contudo, a velocidade da Surprise superava em um nó a de sua presa, e Jack acreditava que seria possível capturá-lo se não o perdesse de vista durante meia hora. Mas as rajadas de chuva eram freqüentes e havia muita névoa mais adiante, o que pressagiava uma noite impenetrável. Mandou os marinheiros de vista mais aguda para o cesto da gávea do traquete e ficou no corrimão de barlavento olhando pela luneta o Spartan, sua branca esteira, a tênue luz do janelão de popa e o preto nimbo baixo que se aproximava pelo sul-sudoeste. Os dois últimos canhões do barco caíram na água. Se a fragata seguisse navegando a essa velocidade ou mais rápido, ao cabo de dez minutos o barco estaria a menos de um quarto de milha de distância, mas também o preto nimbo e as rajadas de chuva. O barco era cada vez menos visível. De repente todas as suas luzes se apagaram e ele desapareceu. Sua esteira pôde ser vista alguns momentos mais, mas depois também desapareceu. A chuva chegou empurrada pelo forte vento.
- Vai orçar! - gritou um serviola desde o cesto da gávea do traquete.
Quando a chuva amainou, apareceu de novo o barco, que havia se desviado de seu rumo cinqüenta graus e estava tão pouco iluminado que parecia um fantasma na escuridão.
- Já o vejo! - exclamou Jack.
Mas a chuva amainou ainda mais nesse momento e muito mais perto apareceu um enorme barco, um navio de três pontes que tinha no cesto da gávea o farol que usavam os almirantes. Atrás dele havia mais barcos. O navio de três pontes lançou uma bala pela frente da proa da Surprise e Jack se deu conta de que estava no meio da esquadra do Canal, e de que o Spartan, oculto pela chuva, passara entre seus barcos para refugiar-se em Brest. A fragata orçou e seus tripulantes rizaram as gáveas e içaram as bandeiras para dar o sinal secreto, o número de identificação e a mensagem: "Inimigo ao este-nordeste".
O navio de três pontes, sem mudar de rumo, respondeu com o sinal "Capitão deve apresentar-se no navio insígnia".
Jack leu o sinal antes que lhe informassem. Olhou para o lugar coberto de névoa cinza onde o Spartan estivera e depois para as turbulentas águas que separavam a fragata do navio insígnia, situado a meia milha de distância. Pensou que teria que percorrer essa distância navegando contra o vento, e nesse momento notou que Mowett lhe olhava ansiosamente. Abriu a boca, mas como observava rigorosamente a disciplina, voltou a fechá-la.
- Quer a falua, senhor? - perguntou Mowett.
- Não - respondeu Jack -, o cúter azul, porque pode navegar e manter-se flutuando mais facilmente.
CAPÍTULO 4
Minha querida - escrevia Jack para sua esposa do Crown -, já se despediram os marinheiros que estavam a bordo da Surprise e, agora, em vez de integrar uma tripulação formam dois ou três grupos e perambulam ociosos por terra. Posso ouvir aos marinheiros do castelo, que eram os mais velhos e sensatos da fragata, armando um grande alvoroço em Duncan's Head, a várias ruas de distância, ainda que a maioria em geral é mais silenciosa. Dizer adeus a tantos velhos companheiros de tripulação foi doloroso, como pode imaginar. Sentir-me-ia muito triste se não fosse porque penso que dentro de poucos dias verei você e as crianças; contudo, não serão tão poucos como queria, porque enquanto esperávamos o sinal para atracar e a mudança da maré com a fragata ancorada com uma só âncora, o paquete de Lisboa, com grande quantidade de velame desdobrado, passou junto dela muito rápido, da forma ostentosa com que os capitães dos paquetes os fazem navegar (fazem qualquer coisa para ganhar velocidade), e não se limitou a roçar a popa, mas se chocou com ela. Todos demos gritos de indignação, naturalmente, e tratamos de afastá-lo com esfregões e tudo o que encontramos a mão, mas causou tantos danos à fragata que desde então estive tratando de repará-la. Mas ainda não tive tempo de contar-lhe como foi minha entrevista com o almirante. Subi a bordo de seu navio depois de fazer a viagem mais desagradável que recordo e, sem me perguntar como estava ou se gostaria de trocar de roupa ou secar-me a cara, disse que eu era um imprudente e um lunático por passar entre os barcos da esquadra a grande velocidade, com as alas superiores e as inferiores desdobradas. Perguntou-me se não havia visto os barcos, se não havia cumprimentado ao navio insígnia porque não o havia visto, apesar de que era um navio de três pontes, ou porque não tinha serviolas, e se na Armada moderna não se mandavam os serviolas aos cestos das gáveas. Então, em um tom aprazível que refletia submissão, respondi: "Havia dois, milorde". De imediato disse que, nesse caso, devia dar em cada um deles duas dúzias de açoites, uma por ele e outra por mim, e acrescentou que eu merecia uma forte reprimenda. Depois acrescentou: "Quanto a esse suposto barco corsário, acredito que era um mercante sem nenhum valor. Os senhores, os jovens, sempre estão perseguindo mercantes. Quando lhes dão o comando de um barco, tratam de pegar mercantes, ou seja, tratam de conseguir butins. Vi isso muitas vezes, e devido a isso a esquadra perde fragatas. Mas já que o senhor está aqui, poderia ser útil ao rei e a sua pátria". Agradou-me que me chamasse de jovem, mas não que considerasse que minha utilidade consistisse em levar a cabo um ataque com um brulote ao porto de Bainville, que conheço muito bem. Nunca gostei dos brulotes e o plano não me parecia bom, porque não dava bastante importância às baterias costeiras nem à forte corrente que há ali, nem oferecia aos tripulantes dos brulotes muitas possibilidades de escapar. Ninguém que esteja em um brulote pode esperar piedade se for pego, pois lhe matam imediatamente ou lhe levam para o paredão sem muitas contemplações. Essa é a razão pela qual são tripulados por voluntários. Estou seguro de que todos os tripulantes da Surprise teriam se oferecido voluntários, mas não me agradava a idéia de que fossem capturados, assim que me alegrei quando no conselho disseram que se me dessem o comando da operação, isso significaria que me davam mais importância que a muitos outros capitães de navio que estavam antes que eu na hierarquia. Várias pessoas falaram disto em tom irritado e, além disso, recordaram que não só lorde Keith mostrara preferência por mim muitas vezes no Mediterrâneo, senão que fazia somente alguns meses me haviam encarregado de uma missão que provavelmente me proporcionara uma fortuna (oxalá houvesse sido assim) e pela qual muitos capitães de navio teriam dado um olho da cara. É verdade que passei menos tempo em terra que a maioria dos capitães, menos afortunados que eu, mas me surpreendeu ver que muitos deles estavam com ciumes. Não sabia que na Armada houvesse tantos homens que fossem meus inimigos ou, pelo menos, me desejassem mal. No final abandonaram o plano e minha utilidade se limitou a levar a irmã do almirante para Falmouth. Seus médicos lhe haviam ordenado que fizesse uma viagem pelo mar porque lhe falhava a respiração mas, como Stephen disse, a viagem poderia ter-lhe curado todas as doenças incluídas no livro Domestic Medicine, de Buchan, pois quase lhe tirou a respiração, já que a pobre ficou enjoada do início até o fim, emagreceu e ficou amarelada.
Stephen se foi para a cidade esta manhã e se deu o luxo de alugar um carro para deixar o senhor Martin, o pastor, longe do caminho principal. Queria poder dar-lhe melhores notícias dele, mas parece angustiado e triste. No princípio pensei que estava preocupado com problemas de dinheiro, mas não é possível, pois nosso agente de negócios fez imediatamente as gestões para que se decidisse se nossas presas eram de lei e assim vendê-las. Ademais, quando me contou que seu padrinho morrera, disse-me que herdara seus bens, e ainda que eu ache que não é muito, sei que Stephen sempre se contentou com pouco dinheiro. Acredito que está triste porque o cavalheiro morreu, e angustiado devido a Diana. Nunca lhe vi tão desassossegado.
Pensou em contar a Sophie que no Mediterrâneo se rumorejava que Stephen havia sido infiel, mas negou com a cabeça e continuou:
Ordenarei a Killick, a Bonden e talvez a Plaice que levem a maior parte de minha bagagem para casa na lenta diligência que sai amanhã, mas eu terei que ficar aqui um pouco mais de tempo para assegurar-me que a fragata ficará nas condições que quero (há esperanças de que a deixem na reserva em vez de levá-la para o desmache) e para responder às perguntas de alguns cavalheiros do Almirantado e da Junta Naval. Apesar disso, talvez possa chegar à cidade ao mesmo tempo que Stephen; ou antes, se seguir soprando o suave vento do sudoeste. Harry Tennant, que está ao comando do Despatch, prometeu-me deixar-me perto dali. O Despatch é um barco com bandeira branca que se utiliza para troca de prisioneiros (se recorda do barco com bandeira branca em que Stephen e eu viemos quando deixamos de ser prisioneiros dos franceses?) e é muito rápido navegando ao largo, ainda que seja lento navegando de bolina. Depois de uma breve escala em Calais, irei no barco até Dover, de onde continuarei a viagem na carruagem de Londres. Tenho que falar com meus advogados antes de ir a Ashgrove, pois pode ter havido uma decisão contra nós em algum dos pleitos pendentes, e seria tonto se chegasse ai e me prendessem por não pagar as dívidas. Por essa razão, e porque nos jornais se há mencionado a chegada da fragata há dias, hospedar-me-ei no Cacho de Uvas e não o abandonarei até o domingo. Se quiser que lhe leve algo, escreva-me para o clube, pois ali estão acostumados a receber cartas e não as perdem.
O Cacho de Uvas era uma hospedaria antiga, pequena e confortável que ficava no condado de Savoy e por isso os hóspedes estavam fora do alcance de seus credores durante toda a semana. Jack passara ali muito tempo desde que conseguiu uma fortuna o bastante grande para ser uma apetetitosa presa para os tubarões de terra, e durante todo o ano Stephen mantinha alugado um quarto que usava como base para suas atividades mesmo depois de se casar com Diana, já que ambos formavam um casal estranho, um casal meio separado.
Mas estou quase seguro de que irei no domingo, tão certo como alguém pode estar das coisas no mar, e não encontro palavras que expressem o desejo que tenho de que chegue esse dia. Depois de tanto tempo teremos muitas, muitas coisas que contar-nos.
Levantou-se e se aproximou da janela que dava para a montanha onde ficava o semáforo{10}, cujas bandeiras estavam em contínuo movimento mandando informação para Londres, de onde respondiam com extraordinária rapidez. Os membros do Almirantado deviam saber que a Surprise havia chegado desde o dia em que mostrou seu número de identificação fora da baía, e talvez já tivessem decidido o que iam fazer com ela. Esperava que em lugar de excluí-la da Armada e vendê-la a deixassem na reserva, e pensava que enquanto não tivesse rupturas havia esperanças.
"A fragata serviria para a troca de prisioneiros, por exemplo - pensou na terça-feira seguinte, sentado sozinho na cabine do Despatch, enquanto o barco navegava velozmente pelo Canal com o vento do oeste-sudeste. - Seria melhor, muito melhor que esta carraca. É muito apropiada para esta tarefa por todas suas qualidades: beleza, graça, rapidez… Ademais, a dez milhas é inconfundível. Quanto desperdício! Que lástima! Mas se continuo pensando nisso morrerei de tristeza ou ficarei louco."
Contudo, continuou pensando nela. Na parte mais objetiva de sua mente surgiu a idéia de que, ainda que a rapidez fosse uma boa qualidade em um barco com bandeira branca que fazia a troca de prisioneiros, o fato de que fosse reconhecido não era importante, ou pelo menos não era naqueles que faziam o percurso entre a França e a Inglaterra. Bonaparte decidira não trocar prisioneiros, e não havia muitas razões que justificassem a existência desses barcos com bandeira branca, que se pareciam pouco com os normais. Não obstante, iam continuamente de uma costa à outra e às vezes transportavam enviados de um lado ou do outro com propostas e contrapropostas; outras, eminentes naturalistas, como sir Humphry Davy ou o doutor Maturin, quando eram convidados para dar uma conferência em alguma das academias de Paris ou no Instituto da França; outras, objetos de interesse científico recolhidos pela Armada Real e enviados para a Royal Society{11}, à qual o Almirantado encarregava sua custódia; outras (com muito menos freqüência), exemplares de alguma espécie da Inglaterra para a França; e, constantemente, jornais dos dois lados e manequins com elegantes vestidos para que em Londres soubessem qual era a moda na França. Algo muito importante nesses barcos era a discrição, e às vezes os passageiros permaneciam em diferentes cabines durante a viagem e desembarcavam separadamente durante a noite. Desta vez o Despatch, depois de se reunir com o barco do prático do porto na baía de Calais, atracou em um cais vazio. Mas às quatro da madrugada, Jack, que estava meio adormecido em um maca pendurado na cabine refeitório de Tennant, ouviu embarcar um grupo de pessoas, ao qual seguiram outros três a intervalos de meia hora. Sabia bastante bem como se faziam as coisas nesses barcos, porque Stephen e ele haviam viajado no predecessor do Despatch uma das raras vezes em que se violara a convenção. Ambos foram feitos prisioneiros na França, e Talleyrand preparou sua fuga para que Stephen, que ele acreditava ser um agente secreto, pudesse levar ao Governo inglês e à corte francesa exilada em Hartwell suas propostas para derrotar Bonaparte. Por isso não lhe surpreendeu que Tennant lhe pedisse que ficasse abaixo enquanto os outros passageiros desembarcavam em um lugar afastado no porto de Dover, um lugar afastado do tráfego do porto, ainda que também afastado da aduana, por onde Jack tinha que passar. Não se importava de passar por ali, pois em sua mala não levava nada que tivesse que declarar, mas temia que as pessoas que estivessem na sua frente reservassem todos os lugares da carruagem de Londres, tanto os interiores como os exteriores, e alugassem todos os carros, que eram muito poucos devido à decadência da cidade.
- Venha almoçar comigo no Ship - disse Jack quando os tripulantes do Despatch amarravam o barco ao cais da aduana e colocavam a prancha sobre ele. - Prodgers faz uma comida muito boa.
- Obrigado, Jack - disse Tennant, mas tenho que zarpar para Harwich antes que a maré mude.
Isso não contrariou Jack. Harry Tennant era uma magnífica pessoa, mas provavelmente teria dito: "À Surprise lhe espera um horrível destino… A vão a converter em lenha… Que desperdício…! Nestes casos, não há esperança de que se retratem… É lamentável desagregar uma tripulação tão boa… Provavelmente, seus oficiais ficarão em terra por bastante tempo… talvez nunca voltem a conseguir outro barco… Meu tio Coleman esteve a ponto de enforcar-se quando levaram a Phoebe para o desmanche, e isso, indubtavelmente, precipitou sua morte".
- Posso levar sua mala, senhor? - disse alguém com voz aguda perto do cotovelo de Jack.
Jack olhou para baixo e viu com assombro que do seu lado não havia um confiado pilantra descalço senão uma nervosa menina com avental, cujo rubor se notava por debaixo da sujeira que cobria seu rosto.
- Muito bem - respondeu. - Tenho que ir ao Ship. Pegue uma alça e eu pegarei a outra. Segure forte.
Ela agarrou uma alça com as duas mãos e ele estirou o braço e dobrou os joelhos. E assim, incômodos, os dois atravessaram a cidade. Ela disse que se chamava Margaret e contou que seu irmão Abel era quem costumava levar as malas dos cavalheiros, mas que um cavalo o pisoteara um pé e que os outros garotos, muito amáveis, haviam permitido que ela ocupasse seu lugar até que melhorasse. Quando chegaram ao Ship, Jack lhe deu um xelim e ela pôs uma expressão de desgosto.
- Isso é um xelim - disse Jack. - Nunca viu um xelim?
Ela negou com a cabeça.
- Tem o valor de doze peniques - disse Jack, olhando seu dinheiro solto. - Já viu as moedas de seis peniques?
- Oh, sim, claro! Todo mundo já viu! - exclamou Margaret em tom depreciativo.
- Pois aí há dois, porque duas vezes seis é doze, sabe?
A menina lhe devolveu o desconhecido xelim e recebeu com uma expressão muito séria as conhecidas moedas de seis peniques. Então sua cara se iluminou como o sol atravessando uma nuvem.
Jack entrou no refeitório. Tinha muita fome porque estava acostumado ao antiquado horário das refeições da Armada.
- Ainda falta meia hora, senhor - disse um garçon. - Quer tomar algo na salinha enquanto espera?
- Seria bom - respondeu Jack. - Queria uma pinta de xerez, mas a tomarei aqui, junto ao fogo. Assim não perderei nem um minuto quando sirvam o almoço. Tenho tanta fome que me comeria um boi. Mas antes queria que me reservasse um lugar na carruagem de Londres, tanto faz se for dentro ou fora.
- Oh, não, senhor! Estão todos reservados já faz uma hora.
- Poderia alugar-me um carro, então?
- Bem, senhor, como os negócios estão tão fracos, já não os alugamos. Mas Jacob - acrescentou, assinalando com a cabeça para o único garçon com barba que Jack havia visto em um país cristão - poderia ir à companhia União, ou à Royal, para ver se lhes restam carrouagens nas cocheiras. Há pouco foi buscar um para outro cavalheiro.
- Peça-lhe que vá - disse Jack -, por favor, e diga-lhe que seu esforço será recompensado com meia coroa.
Depois, enquanto bebia tranqüilamente a primeira taça de xerez, pensou: "Suponho que não é realmente um garçon mas um empregado que atende os cavalos e às vezes ajuda no refeitório, e por isso lhe permitem usar barba".
Por fim chegou a comida, seguida de um grupo de cavalheiros famintos. O primeiro deles, um homem magro de expressão inteligente que vestia uma casaca negra com botões dourados, se sentou junto de Jack. Imediatamente lhe pediu que paçasse o pão e começou a comê-lo com avidez, ainda que mantendo os bons modos, e não voltou a dizer palavra. Era um homem reservado, possivelmente um advogado com numerosa clientela. Do outro lado da mesa estava sentado um comerciante de meia idade com um chapéu de aba larga muito ajustado, que olhou para Jack, primeiro com os óculos postos e depois sem eles, enquanto comia o caldo e o pudim de ervas finas com os quais havia começado a refeição.
- Amigo quacre, o senhor tem um veículo de pele?
- Sinto muito, senhor - respondeu Jack -, mas nem ao menos sei o que é um veículo de pele.
- Bem, a verdade é que pensei que o senhor fosse um quacre, por seu modesto traje.
Efetivamente, Jack estava vestido austeramente, pois sua roupa de paisano havia se estragado muito nos trópicos, e ainda mais entre eles, mas não imaginava que parecesse tão modesta como para chamar a atenção.
- Um veículo de pele - continuou o comerciante -, é o que o profano chama uma máquina puxada por cavalos, quer dizer, uma carruagem.
- Bem, senhor - disse Jack -, ainda não tenho nenhum veículo, mas espero dispor de um logo.
Apenas falou de sua esperança, a perdeu. Enquanto o servente com barba passava uma vasilha de chirivías por entre o homem da casaca negra e Jack, disse ao cavalheiro:
- A carruagem da Royal estará esperando-lhe em nosso pátio, justo aqui detrás, ao final da refeição - e dirigindo-se a Jack -: Sinto muito, senhor, mas esse era o último carro. Não há nenhum outro na cidade.
Quando ainda não havia terminado de falar, o homem que estava sentado ao lado do quacre, um tipo presunçoso e com aspecto de leiloeiro, berrou:
- Isto é um maldito truque, Jacob! Eu lhe pedi primeiro que alugasse um carr da Royal. Esse carro é meu.
- Acho que não, senhor - disse tranqüilamente o homem que estava sentado junto a Jack. - Além disso, já paguei até a primeira posta.
- Bobeiras! - exclamou o tipo presunçoso. - Eu lhe repito que é meu. Eu levarei o senhor, se quiser - disse, voltando-se para o quacre -, amigo antiquado.
Então se pôs de pé e saiu correndo da habitação gritando:
- Jacob! Jacob!
O homem deu realmente uma cena e todos o olharam com assombro, mas, como estavam saciando sua fome porque o hoteleiro continuamente cortava pedaços de carne de vaca, de cordeiro e de porco assado e os mandava servir na mesa, a calma se restabeleceu logo, e com ela voltaram os pensamentos claros e enlaçados logicamente. Poucos homens desfrutavam mais dos ditos engenhosos do que Jack Aubrey, tanto os seus como dos outros, e quando estava misturando as chirivías com a manteiga e dando voltas às palavras na cabeça, com a esperança de que lhe ocorresse algo brilhante, o homem que estava ao seu lado lhe disse:
- Sinto que não tenha conseguido um carro, senhor, mas lhe convido para compartir o meu se quiser. Vou para Londres. Poderia passar-me a manteiga, por favor?
- O senhor é muito amável, senhor - disse Jack. - eu lhe agradeço muito. Precisamente desejava chegar a Londres hoje. Permita-me servir-lhe uma taça de vinho.
Não tardaram em iniciar uma conversa. Foi uma conversa trivial, já que falaram principalmente do tempo que fazia, da possibilidade de que chovesse mais tarde, do apetite que dava a brisa marinha e da diferença entre o linguado de Dover e o do mar do Norte; contudo, foi muito agradável e amistosa. Mesmo assim, incomodou ao homem de óculos, que de vez em quando lhes olhava com indignação e, quando serviram o queijo, levantou-se bruscamente jogando a cadeira no chão e foi se reunir com o tipo presunçoso na porta caminhando muito estirado.
- Acho que incomodamos ao quacre - disse Jack.
- Não acredito que seja um quacre - disse tranqüilamente o homem da casaca negra, depois de uma pausa na qual se foram também alguns dos cavalheiros que estavam sentados no extremo da mesa. - Conheço muitos homens respeitáveis, como por exemplo Gurneys e Harwoods, que são quacres e se comportam como seres razoáveis, não como atores em um teatro de província. Conforme acredito, já não mantêm as peculiaridades de sua linguagem nem de sua vestimenta; deixaram de usá-las faz mais de cinqüenta anos.
- Mas por que quer passar por quacre? - perguntou Jack.
- Por que? Provavelmente para se aproveitar da fama que têm de honestos e confiáveis. Mas a alma dos homens é insondável - acrescentou o homem da casaca negra, sorrindo e pegando um cartapácio de pele que estava apoiado contra sua cadeira. - talvez tenha relações amorosas ilícitas ou trate de escapar de seus credores. Agora, senhor, se me desculpa, vou buscar minha bagagem.
- Mas não o senhor não vai tomar o café? - perguntou Jack, que havia pedido uma cafeteira.
- Infelizmente, não posso - respondeu o homem da casaca negra. - Não me sinto bem. Mas não se apresse, eu lhe peço. Tenho o estômago um pouco revirado e terei que repousar durante mais tempo do que o senhor levará para tomar duas ou três cafeteiras. Nos reuniremos junto ao carro dentro de uns quinze minutos. Estará no pátio deserto que fica atrás da cozinha, onde costumavam guardar as carruagens do Ship.
Catorze minutos depois, Jack chegou ao pátio com sua mala. Antes de dobrar a esquina, ouvira uns estranhos gritos em tom irritado, e quando chegou ao portão viu que o quacre e o tipo presunçoso forcejavam com seu amigo enquanto o cocheiro, que era apenas um garoto, segurava a cabeça dos cavalos e, gritando tão alto como lhe permitia sua voz aguda e débil, levantava-se do solo cada vez que a alçavam. O tipo presunçoso golpeara o homem da casaca negra de modo que seu chapéu descera até cubrir-lhe os olhos, e agora lhe apertava o pescoço. Enquanto, o quacre lhe dava chutes e tentava arrebatar-lhe o cartapácio de pele que segurava com todas suas forças.
Jack era lento para idear uma brincadeira, mas muito rápido para entabular uma luta. Correu do portão a toda velocidade e empurrou pelas costas o tipo presunsoso com o peso de todo seu corpo, duzentas e vinte e cinco libras, fazendo com que golpeasse a cabeça contra o piso. Depois se levantou de um salto para pegar o quacre, mas este, com uma agilidade insólita em uma pessoa de certa idade e muito peso, já se afastava correndo. Quando o homem da casaca negra desencaixou chapéu, pôde ver o braço de Jack e o tipo presunçoso ajoelhado e disse:
- Deixe-o ir, deixe-o ir, por favor. Eu lhe rogo que o deixe ir. E também a esse rufião bêbado. Eu lhe estou muito agradecido, senhor, mas não quero que se arme um escândalo.
As pessoas que estavam na cozinha do Ship estavam se agrupando ali para olhar.
- Não quer que chame a polícia? - perguntou Jack.
- Oh, não, não; eu lhe peço! Não quero que isto se torne público - disse o homem da casaca negra em tom grave. - Por favor, subamos. Não está ferido, né? E já está com a mala. Subamos imediatamente.
O homem da casaca negra ficou sacudindo a roupa, arrumando a gravata e alisando os papéis que do deteriorado cartapácio durante certo tempo, até que saíram de Dover e pegaram o caminho de Londres. Era evidente que haviam lhe ferido muito, ainda que quando Jack lhe perguntou por seu estado, respondeu que só tinha "alguns pequenos arranhões e manchas-roxas" e que isso não era nada comparado com o que teria se tivesse caído de um cavalo. Pouco depois de passar por Buckland, quando os cavalos iam a passo lento e a carruagem avançava movendo-se suavemente, disse:
- Eu lhe estou muito agradecido, senhor, muito agradecido; não só por resgatar a mim e a minhas posses das mãos desses vilãos, mas também por contribuir para que o assunto não se fizesse público. Se houvesse chamado a polícia, teríamos nos atrasado e, o que é pior, haveria se formado um grande escândalo; e por minha posição social, não posso permitir me ver envolvido em nenhum escândalo nem em nenhuma briga em público.
- Indubtavelmente, um escândalo é algo muito desagradável - concordou Jack. - Mas eu gostaria de tê-los metido pelo menos no bebedouro.
Ficaram em silêncio, e depois de um tempo o homem da casaca negra disse:
- Eu lhe devo uma explicação.
- Não, não, senhor - respondeu Jack.
O homem fez uma inclinação de cabeça e continuou:
- Acabo de chegar de uma importante missão no continente, e esses tipos estavam me esperando. Vi o rufião com o lenço ao redor do pescoço no barco e me perguntava por que razão estava ali. Lamento haver tido que deixar meu servente com meu chefe, em Paris; é o filho do guarda de meus imóveis, um jovem robusto e muito valente. A disputa pela carruagem foi uma desculpa para que o ataque tivesse um motivo. Não queriam a carruagem nem minhas posses, um relógio e um pouco de dinheiro. O que queriam era informação, quer dizer, as notícias que trago aqui - acrescentou, pondo a mão sobre o cartapácio de pele. - Estas notícias, em certas mãos, valeriam um monte de dinheiro.
- Espero que sejam boas notícias - disse Jack, olhando pela janela para uma bonita jovem que cavalgava pela borda do caminho seguida de um servente e tinha a cara rosada devido ao exercício.
- Acho que são muito boas, senhor, e que muitas pessoas pensarão igual - disse o homem da casaca negra, sorrindo; e depois de tossir, talvez pensando que havia sido indiscreto, continuou -: Aqui está a chuva da qual falávamos.
Trocaram de cavalos em Canterbury, e quando Jack tentou pagar por eles, ou pelo menos a metade do que custavam, o homem da casaca negra, disse:
- Não, de nenhuma maneira. Não posso permitir que pague com seu dinheiro. O custe haveria sido o mesmo ainda que o senhor não houvesse vindo. Mas vou terminar esta discussão com um argumento contundente: quem paga é o Governo.
Quando reiniciaram a viagem, sugeriu que jantassem em Sittingbourne, se Jack não tivesse nenhuma objeção a fazer.
- Já comi muito bem no Rose em muitas ocasiões - explicou. - E lá têm um vinho Musigny de 1792, um vinho de Chambolle, que é dos melhores que já tomei. Ademais, nos atenderá a filha do hoteleiro, uma jovem a quem eu gosto de contemplar. Não me tome por lascivo, mas penso que ter criaturas bonitas ao redor faz a vida muito mais prazerosa. - Depois de uma pausa acrescentou -: acho absurdo que ainda não haja me apresentado. Sou Ellis Palmer, para servir-lhe.
- Encantado em conhecer-lhe, senhor - disse Jack apertando a mão que lhe estendia. - Meu nome é John Aubrey.
- Aubrey - disse Palmer, pensativo. - Ultimamente ouvi muitas vezes esse nome relacionado com os quelônios. Com sua permissão, queria lhe fazer uma pergunta: o senhor tem algum parentesco com o senhor Aubrey de quem levou o nome a magnífica espécie de tartarugas Testudo aubreii?
- Sim, de certa forma - respondeu Jack, sorrindo tão docemente como o permitia seu rosto bronzeado, curtido pelos elementos e com cicatrizes de feridas recebidas nas batalhas. - Na realidade, puseram esse nome no animal por minha causa, ainda que eu não tomei parte no caso, quer dizer, sua descoberta não é mérito meu.
- Meu Deus! - exclamou Palmer. - Então o senhor deve ser o capitão Aubrey, da Armada Real, e tem que conhecer por força ao doutor Maturin.
- É meu amigo íntimo - disse Jack. - Temos navegado juntos há muitos anos, durante a guerra passada e nesta. O senhor o conhece?
- Não tive o prazer de ser apresentado a ele, mas li todos seus livros, quer dizer, todos os que não tratam de assuntos médicos, pois não sou mais que um estudioso das ciências naturais que só as estuda por hobby, porque me dedico a redigir projetos de lei no Parlamento. Algumas vezes o vi apresentar estudos na Royal Society, quando um de seus membros me convidou, e assisti à conferência que deu no Instituto de Paris.
- Ah, foi? - inquiriu Jack.
Por isto e por outras coisas que Palmer deixou escapar, estava claro que era um dos emissários que iam de uma costa à outra, um dos homens pelos quais os barcos com bandeira branca ainda existiam.
- Sim, assisti a essa conferência. Versava sobre o pássaro solitário, como provavelmente o senhor saberá. Não pude entender tudo o que disse porque a sala era muito grande, mas depois li com satisfação o resumo incluído na ata e tirei muito proveito dele. Que investigação tão profunda! Que comparações mais acertadas! Quanto erudição! Conhecer a um homem assim é um privilégio.
Falaram de Stephen até que chegaram a Sittingbourne e depois durante o admirável jantar.
- Gostaria que ele estivesse aqui conosco - disse Jack, olhando a vela através da taça de vinho tinto. - Aprecia um bom vinho muito mais do que eu, e este é de uma safra realmente excelente.
- Então tem essa virtude, além de todas as outras. Alegro-me em saber. Deve de ser o melhor e o mais feliz de todos os homens. Encanto - disse à rosada filha do hoteleiro -, acho que tomaremos outra garrafa.
Jack podia ter dito que Stephen não tinha senso do tempo nem da disciplina e que era capaz de responder asperamente, mas, em vez disso, explicou:
- Com relação ao que acaba dizer, acrescentarei que em certas ocasiões é muito engenhoso. Disse o melhor que já ouvi em minha vida, de repente, sem ficar pensando nas palavras em sua cabeça. Às vezes não consigo me lembrar bem, porque é algo muito sutil, mas queria dizê-lo bem desta vez, pois quando tenho que explicá-lo, tem menos graça. Em primeiro lugar, tenho que contar-lhe que na Armada temos duas guardas muito curtas, de apenas duas horas cada uma, que chamamos as guardas do primeiro e do segundo quartilho. Pois bem, quando estávamos fazendo o bloqueio de Toulon, havia em nosso barco um civil que não sabia nada do que fazíamos na Armada e um dia, durante o almoço, perguntou: "Por que são guardas de quartilho?". Nós lhe explicamos que os marinheiros tinham distintos turnos de guarda para que um grupo estivesse de guarda uma noite e o outro na seguinte, mas não era isso o que havia perguntado. Então inquiriu: "Por que se chamam guardas de quartilho? Por que as guardas curtas são chamadas de guardas de quartilho?". Nesse instante todos ficamos petrificados, sem saber o que responder, e Maturin disse: "Não compreende por que, senhor? É porque essas guardas estão fracionadas". Nós não o entendemos imediatamente, mas por fim nos demos conta de que quarto é uma fração, compreende?
Palmer o entendeu imediatamente e, ainda que não fosse um homem risonho, soltou uma gargalhada que fez com que viesse a bonita jovem com uma expressão de assombro nos olhos e o saca-rolhas na mão.
Demoraram muito para comer as nozes, e Palmer começou a falar em tom grave uma ou duas vezes, mas imediatamente mudou de opinião. Até que não estiveram outra vez no caminho, vendo como as luzes do carro penetravam na escuridão enquanto a chuva tamborilava sobre o teto, o que lhes fazia sentir-se isolados, Palmer não disse o que pensava.
- Capitão Aubrey, estive pensando… estive pensando como mostrar-lhe minha gratidão.
Jack fez os costumeiros protestos, mas Palmer continuou:
- Penso que apesar de ser inconcebível presentear uma quantia de dinheiro a um cavalheiro de sua posição social, ainda que seja uma enorme soma, é aceitável dar-lhe certa informação que lhe permita obter essa quantia.
- Acho uma boa idéia.
- E, sem dúvida, atrás dela há boa intenção - disse Palmer. - Mas devo lhe dizer que depende de que tenha certa quantidade de dinheiro, ou amigos a quem pedi-la emprestada, ou de que algum banqueiro ou agente de negócios, que são muito parecidos, lhe conceda um crédito. Como se costuma dizer: "O dinheiro chama dinheiro".
- Não posso dizer que esteja rico - disse Jack -, e, no momento, tampouco que esteja pobre.
Buscou mentalmente entre os cavalos de corrida qual era provável que Palmer lhe recomendasse e se ficou atônito quando este, em tom grave, sussurrou-lhe estas palavras:
- Suponho que saberá que se abriram as negociações para pôr fim à guerra faz algum tempo, e precisamente por isso, meu chefe me enviou para Paris. Pois bem, terminaram com êxito. A paz será firmada dentro de poucos dias.
- Meu Deus! - exclamou Jack.
- Sim, isso mesmo - disse Palmer. - E, certamente, disso pode se tirar infinitas conclusões; mas a que me importa agora é que quando a notícia se faça pública, os bônus do Estado e as ações de companhias privadas subirão muitíssimo, algumas delas dobrarão seu valor.
- Meu Deus! - repetiu Jack.
- Alguém que compre agora conseguirá uma grande quantidade de dinheiro antes do próximo dia de fechamento - disse Palmer -, assim que poderia pedir dinheiro emprestado ou solicitar um crédito ou fazer distintas operações na bolsa de valores com toda a confiança.
- Mas o senhor não acha que seria incorreto comprar nessas circunstâncias? - inquiriu Jack.
- Oh, não! - respondeu Palmer, rindo. - É assim que se fazem as fortunas na Cidade. Não é incorreto nem do ponto de vista legal nem do ponto de vista moral. Se o senhor tivesse a certeza de que um cavalo ia ganhar uma corrida, seria mau que apostasse nele porque tiraria dinheiro de outras pessoas; contudo, se os bônus do Estado e as ações sobem e o senhor se beneficia da subida, não tira dinheiro de ninguém, pois o que ocorre é que a riqueza do país e das companhias aumenta, e o senhor se beneficia desse aumento sem causar dano a ninguém. Certamente, isso não pode fazer-se a grande escala, porque poderia alterar o mercado de valores. O senhor conhece o mercado de valores, senhor?
- Não - respondeu Jack.
- Eu o estudei a fundo durante muitos anos, e lhe asseguro que em certas ocasiões é variável e irracional, como uma mulher tonta propensa a ataques de nervosismo. As alterações que sofre duram certo tempo e afetam muito o crédito do país, potanto, em casos como este, o Governo se limita a dar a informação a um pequeno número de pessoas das quais se sabe com certeza que atuarão com discrição e não exagerarão.
- Que quantidade suporia um exagero?
- Investir mais de cinqüenta mil libras em bônus do Estado provavelmente seria visto com desaprovação. Como a inversão em ações de companhias privadas pode ser fragmentada, altera menos o mercado, contudo, não acredito que as grandes inversões nesse setor fossem aprovadas.
- Não há perigo de que eu cometa uma indiscrição - disse Jack, rindo, e depois, em tom grave, acrescentou -: estou-lhe muito agradecido, senhor. Casualmente tenho certa quantidade de dinheiro que obtive de umas presas e, como todo mundo, eu gostaria que aumentasse. Posso contar tudo isto ao doutor Maturin?
- Bem, acho que não seria conveniente, porque a informação é confidencial. Por essa mesma razão, se o senhor decidir comprar não deveria fazê-lo através de uma só pessoa, senão de várias; por exemplo, através de seu agente de negócios, do intermediário financeiro de seu banco e de um par de agentes da bolsa. O mercado de valores é muito sensível às compras massivas em um período de escassa atividade. Mas o senhor poderia convencer ao doutor Maturin e a um ou dois amigos íntimos mais a que comprassem com moderação. Poderia convencer-lhes com afinco, mas sem dizer o que sabe e, naturalmente, sem trair minha confiança. O doutor Maturin entende a bolsa?
- Duvido muito.
- Contudo, uma pessoa analítica como ele poderia observar a Cidade e analisar o conflito entre a avareza e o medo que existe na mente de todos seus habitantes, um conflito simbolizado pelas cotações da bolsa. Talvez ele gostasse de ter uma lista das ações que têm mais probabilidade de aumentar de valor ou, melhor ainda, das que provavelmente aumentarão mais de valor. Queria expressar-lhe meu afeto assim, ainda que seja a distância. A lista é o fruto de muito tempo de estudo, e também poderia ser útil para o senhor.
Jack ainda levava a lista no bolso da casaca quando no dia seguinte entrou no clube, mas agora tinha cruzes e outras marcas por todas as partes e muitas anotações.
- Boa tarde, Tom - disse ao porteiro. - Há alguma carta para mim?
- Boa tarde, senhor - disse Tom, olhando sua caixa postal. - Não, senhor. Sinto muito, mas não há nenhuma.
- Bom, bom - disse Jack. - Suponho que não houve tempo… Tem visto o doutor Maturin?
- Ao doutor Maturin? Oh, não, senhor! Nem sequer sabia que estava na Inglaterra.
Jack subiu a escada. Estava alegre, mas muito, muito cansado; tinha o espírito leve, mas o corpo pesado. Não descansara durante a noite, pois passara a maior parte dela falando na carruagem; ficara esgotado ao caminhar pelas ruas de duras pedras depois de passar tanto tempo no mar; e as emoções da noite e do dia lhe haviam produzido ainda mais cansaço. A primeira visita que fizera foi aos seus advogados, e por eles soube que não se decidira nenhum de seus pleitos e que tudo estava quase igual ao que havia deixado. A única novidade era que consultaram dois eminentes conselheiros sobre o primeiro caso e que nenhum dos dois tinha uma opinião desfavorável à respeito, pelo que talvez se resolviria no trimestre seguinte. Isso significava que podia andar por todas as partes sem medo de ser preso por não pagar as dívidas e encerrado na casa de um oficial de justiça, assim que fora diretamente ver seu agente de negócios, que se ocupava de suas presas. Se passou toda a manhã em seu escritório e se informou de que as presas que capturara no Adriático, das quais quase não recordava os nomes porque passara muito tempo desde então, haviam sido mais produtivas do que esperava.
Depois foi ao banco onde tinha sua conta e recebeu uma singular bajulação. Depois de passar algum tempo falando com o sócio mais jovem, desceram juntos a escada e ele lhe disse que tinha que pedir dinheiro ao caixa porque guardava muito pouco em cima. Então o senhor Hoare passou para o outro lado do balcão e disse ao caixa:
- Este é o senhor Aubrey, capitão da Armada Real... Acho que podemos dar-lhe moedas de ouro.
Há muitos anos quase todo mundo tinha que se contentar em receber notas, mas Jack saiu do banco com vinte e cinco guinéus, cujo peso suportava com agrado pois lhe faziam sentir que sua riqueza era real. Depois de almoçar em uma casa de refeições especializada em carne, fora ver dois agentes da bolsa, um que se ocupava de seus investimentos e o outro que se ocupava dos de seu pai. A este último nunca vira antes, e o achou antipático desde o momento em que o conheceu. O senhor Shape atuava com a falta de precauções e a excessiva confiança própias de um agente da bolsa de terceira classe da Cidade. Não era propriamente um agente da bolsa, pois não era membro dela, senão um intermediário financeiro externo, e mesmo para alguém tão pouco acostumado a fazer negócios como Jack lhe pareceu que fazia seu trabalho com negligência. Contudo, amaria ser amável com Jack, e lhe disse que dias antes vira na cidade o general Aubrey e que o velho cavalheiro tinha tanta energia como sempre. Shape teria gostado de saber por que Jack queria comprar essas ações e o deixou entrever várias vezes; porém, quando Jack tinha que fazer frente a um sem-vergonha podia manter uma atitude impenetrável, e as confianças que Shape se permitia não incluíam as perguntas diretas.
Depois dessa desagradável cena, Jack pegou um carro para regressar a Whitehall. Fez uma inclinação de cabeça ao passar pelo Almirantado, essa fonte de grandes alegrias e grandes tristezas; atravessou o parque Saint James andando e finalmente chegou ao clube. Gostava de Londres e também gostava de caminhar, mas agora estava esgotado. Pediu uma jarra de vinho branco de Champagne e se sentou com ela em uma cômoda poltrona junto a uma janela que, dava para a rua. Pouco a pouco voltou a se sentir bem interiormente, começando pelos calcanhares arroxados e os pés cheios de bolhas, e a alegria ou quase o alvoroço que tinha desde as primeiras horas da manhã aumentou ainda mais quando pensou na grande quantidade de assuntos que havia resolvido nesse dia. Dentro de pouco terminaria de se repor e se levantaria para ir ao Cacho de Uvas, pois possivelmente ali encontraria alguma carta de Sophie e veria Stephen, ou pelo menos saberia algo dele.
Nesse momento sorriu, mas imediatamente o sorriso se apagou de seu rosto, pois viu a Edward Parker, um antigo companheiro de tripulação. Não tinha absolutamente nada contra de Edward Parker, mas não queria que ninguém lhe expressasse sua pena pelo que ocorria à Surprise. Sabia como resolver a situação. Parker era bastante bom marinheiro, valente e afortunado. Pertencia a uma renomada família de marinheiros, sempre tinha emprego e estava convencido de que chegaria a ser almirante. Além do mais, era esbelto, bem parecido e gostava de mulheres. Contudo, se avaliava a si mesmo por dois atributos que, na realidade, não possuía: a capacidade de montar a cavalo como um herói épico e a de beber mais que qualquer homem que se sentasse à mesa com ele.
- Oh, Aubrey! - exclamou aproximando-se. - Quanto sinto o que me contaram da Surprise!
- Não tem importância - disse Jack. - Hoje é o dia do Deus Baco, o patrão dos bebedores, e não se chora. William, traga outra jarra igual para o capitão Parker.
No clube havia jarras de prata muito elegantes, e a que trouxeram, coberta de gotas de água fria em uma brilhante bandeja, tinha uma extraordinária beleza.
- Bebamos heroicamente, de um só gole, pelo Deus Baco. Não desperdicemos nem uma gota.
Parker teve a coragem de fazê-lo, mas pesava cento e vinte e cinco libras - e Jack, em troca, duzentas e vinte e cinco - e além disso, não havia caminhado todo o dia por Londres, assim que na segunda jarra, que ele mesmo propôs tomar, foi sua ruína. Depois de permanecer ali sentado uns minutos com o rosto pálido e um sorriso congelado, deu uma desculpa pouco coerente e saiu apressadamente da sala.
Jack se acomodou na poltrona e passou a contemplar a maré humana que passava pela rua Saint James. No palácio se havia celebrado uma longa audiência e agora podiam ver-se muitos oficiais vestidos com uniformes de gala, vermelhos e dourados, com brilhantes sabres de aço e prata e com chapéus de plumas como o de Agamenon, que caminhavam apressadamente por Picadilly temerosos de que lhes alcançasse o aguaceiro que se aproximava. Os mais ricos tinham serventes que levavam guarda-chuva, e alguns, subindo o sabre, entravam fazendo muito ruído com suas esporas em um ou outro dos diferentes clubes situados na rua. Havia vários clubes ali, e quase enfrente da janela junto à qual Jack estava se encontrava o Button's, ao qual pertencia o general Aubrey. Jack também era membro desse clube, mas quase nunca ia porque não gostava muito de seus frequentadores, que, ou bem eram homens extraordinariamente ricos (havia mais duques ali que em qualquer outra parte), ou bem sem-vergonhas, ainda que alguns deles de boa família.
Quando os oficiais acharam refúgio, os demais cidadãos voltaram a encher a rua, e Jack notou com tristeza que as casacas de cores que se usavam em sua juventude perdiam cada vez mais terreno frente às de cor preta, que apesar de serem apropiadas para certas ocasiões, causavam a impressão de que quem caminhava pela rua estava de luto. De vez em quando se viam casacas de colorido verde garrafa ou granada ou azul intenso, mas a rua não parecia um jardim cheio de flores, como outrora. Ademais, agora entre os jovens estavam na moda as calças.
Viu passar muitos conhecidos, entre eles a Blenkinsop, um funcionário do Ministério de Assuntos Exteriores que se achava superior, e a Waddon, um vizinho de Hampshire que era uma excelente pessoa. Não parecia muito satisfeito, pois ia montado em um cavalo comprado recentemente que avançava de meio lado para a torre jogando espuma pela boca e expulsando ventosidades. Quando o relógio marcou a meia hora, o animal, um cavalo alazão castrado, deu um relincho e entrou correndo no beco que ficava junto ao Lock's. Jack viu imediatamente a Waddon sair dali com uma expressão mal-humorada, e pensou que provavelmente havia abandonado ao animal. Depois observou que Wray, um membro do Almirantado, e outro homem cujo nome não recordava, entravam no Button's seguidos de alguns homens com casaca negra. Então viu uma casaca de cor azul intenso que lhe era familiar, e imediatamente reconheceu ao seu pai, mas não lhe assombrou ver-lhe.
No passado, creio que houve alguém capaz de amar ao general Aubrey, a mãe de Jack, uma doce mulher; contudo, durante os últimos vinte anos nem ao menos seus cachorros haviam sentido afeto por ele. Só o que ocupava a sua mente era a idéia de ganhar dinheiro. Uma vez inclusive, ainda que as árvores não estivessem ainda muito robustas, cortara todas as árvores das terras de ambos, o que apenas lhe representou benefícios e em troca prejudicou muito a Jack, e agora estava associado com alguns tipos raros cujas atividades tinham certa relação com a banca, os seguros e a aquisição de propriedades. Havia deixado Jack sem a possibilidade de herdar suas deterioradas, mas ainda recuperáveis, propriedades porque se casara com a leiteira, a custa de exorbitantes capitulações matrimoniais, e tivera outro filho.
Mas Jack tinha senso do dever filial e lhe escrevera uma nota na qual lhe animava a investir até o último penique que tinha nas ações da lista que Palmer lhe dera, e lhe pedia que não divulgasse suas recomendações porque deviam se manter em segredo. Havia pensado mandá-la, mas agora, ao ver sua ossuda figura agarrar-se à grade da escada para subir, disse: "Maldito seja! afinal de contas, é meu pai. Vou perguntar-lhe como está". Mas de um canto de sua mente ouviu: "Se o fizer, terá que responder a suas perguntas". Então pensou: "Não. Só tenho que lhe dizer que devo guardar silêncio porque dei minha palavra de que o faria e ele me compreenderá". Terminou de beber seu vinho e atravessou a rua.
- Homem, Jack! - exclamou quando reconheceu ao seu filho. - Como está? Estava fora do país?
- Sim, senhor. Estive no Pacífico.
- E já regressou. Estupendo, estupendo - disse o general, que parecia muito satisfeito. - Acredito que Sophie se alegrou de lhe ver - acrescentou, satisfeito de ter se recordado seu nome, tão satisfeito que convidou Jack para tomar algo.
- O senhor é muito amável, senhor, mas já tomei três jarras de vinho branco de Champagne com o estômago quase vazio, e já estou começando a notar seu efeito. Mas poderia tomar café.
- Bobeira! - exclamou seu pai. - Não seja molenga. O bom vinho nunca fez mal a ninguém. Seguiremos com o vinho branco.
Quando bebiam a primeira taça, Jack perguntou cortesmente por sua madrastra e seu meio irmão.
- São um par de tontos sem-vergonhas, e passam a vida se lamentando - disse o general e, depois de fazer uma pausa e servir mais vinho, repetiu -: Acredito que Sophie se alegrou de lhe ver.
- Espero que se alegre, senhor - disse Jack -, mas ainda não fui para minha casa. O vinho é excelente, senhor. Além mais afrutado que o nosso. Como lhe dizia, ainda não fui para minha casa. O barco com bandeira branca me deixou em Dover e pensei que seria melhor vir a Londres primeiro.
- Recordo que aquele tenente mulherengo que estava sob seu comando era o capitão do barco com bandeira branca faz algum tempo. Como se chama?
- Babbington, senhor. Mas agora o é Harry Tennant.
- O filho de Harbrook? Verdade que Harry Tennant é o capitão do barco com bandeira branca?
- Sim, senhor - respondeu Jack, e se arrependeu de ter mencionado a maldita carraca, porque se recordou que quando seu pai recebia a mais mínima informação, ainda que fosse irrelevante, ele gostava de repeti-la até a saciedade. - Poderíamos sentar-nos em um tranqüilo canto da sala sul? Tenho algo muito importante que dizer-lhe sobre a compra de ações.
- Ah, é? - perguntou o general, olhando-lhe afetuosamente. - Vamos, então, e traga seu vinho. Mas deve falar rápido, porque espero umas pessoas que virão para ver-me. Onde comprou essa horrível casaca? - perguntou enquanto caminhava diante dele. - Espero que não tenha roubado de um espantalho.
Ao chegar à sala sul Jack se disse: "É melhor que não fale muito". Sentou-se em uma escrivaninha e rapidamente copiou a parte fundamental da nota.
- Aqui está - disse, entregando a lista ao seu pai. - Eu lhe recomendo sinceramente que invista até o último penique que possa nestas ações.
Depois lhe disse o mais claramente possível que a informação era estritamente confidencial e que procedia de um informante anônimo. Acrescentou que não podia responder a nenhuma pergunta e insistiu que havia dado sua palavra de não comunicá-la a mais de dois de seus amigos íntimos e que, potanto, sua honra estava em jogo.
O general o olhou entre malicioso e intrigado até que terminou de falar, e depois abriu a boca para dizer algo, mas antes que pudesse dizer palavra, um servente entrou apressadamente para dizer-lhe que seus convidados haviam chegado.
- Fique aqui, Jack - disse o general, pondo de um lado a sua taça vazia.
Pouco depois regressou à sala com três homens. O mundo de Jack caiu aos pés quando viu que um deles era o agente da bolsa de seu pai e os outros dois eram tipos vestidos ostentosamente, como os que via com freqüência quando ia à casa onde passara sua infância. Recordou-se que quando seu pai queria impressionar seus sócios lhes levava ali para mostrar-lhes a um ou dois duques.
- Este é meu filho - disse o general -, ainda que ninguém pensaria que é, pela idade que tem. Eu me casei muito jovem, muito jovem. É capitão de navio da Armada Real e acaba de desembarcar. Chegou a Dover no barco com bandeira branca justo ontem e já está aconselhando ao seu ancião pai sobre investimentos, ah, ah, ah! James, traga uma garrafa de um litro e meio deste mesmo vinho.
- O capitão e eu somos velhos amigos - disse o agente da bolsa, dando palmadas no ombro de Jack. - E lhe asseguro, general, que sabe muito de investimentos.
- Então o senhor veio no barco com bandeira branca, senhor - disse um dos outros dois homens. - Talvez possa dar-nos as últimas notícias de Paris. Imaginem se Napoleão estivesse realmente morrido e que a guerra estivesse a ponto de acabar. Imaginem!
- O barco com bandeira branca? - perguntou o agente da bolsa, que não o ouvira mencionar a princípio.
- Que sabe de investimentos? - inquiriu o general, e ambos olharam para Jack.
Jack permaneceu sentado ali bebendo uma taça de vinho depois da outra e evadindo as perguntas. Quando lhe perguntaram sua opinião sobre o desenrolar da guerra e sua provável duração, respondeu com uma série de tópicos, e com satisfação ouviu a si mesmo dizê-los a certa distância. Mas quando seu pai sugeriu que fossem ao Vauxhall, negou-se. Pensava que o dever filial tinha limites e que já os havia traspassado e, além disso, tinha uma boa desculpa.
- Não estou vestido de forma adequada para andar pela cidade - disse -, e muito menos para ir ao Vauxhall com tão distinta companhia.
- Talvez não - disse o mais estúpido e mais ébrio dos convidados vestidos ostentosamente -, mas todos desculpam nossos honoráveis marinheiros. Venha, por favor. Eu lhes convido. Nós nos divertiremos muito. Imaginem!
- Obrigado pelo vinho, senhor - disse Jack ao seu pai. - Boa noite, cavalheiros.
Fez uma reverência e, com os olhos fixos na porta aberta, avançou para ela muito rígido e quase sem respirar, e não se desviou nem uma polegada de seu caminho.
CAPÍTULO 5
Stephen Maturin foi do Strand até o condado de Savoy. Conhecia bem o caminho, tão bem que seus pés evitavam por si mesmos os piores buracos do pavimento, as grades de ferro que outras vezes haviam cedido sob seu leve peso, fazendo-lhe cair em depósitos de carvão, e as asquerosas sarjetas. Isso era muito conveniente para ele porque tinha a mente muito longe. Como dissera Jack, estava muito angustiado por causa de Diana, tão angustiado que ia ao Cacho de Uvas não só para trocar-se e barbear-se antes de ir para a rua Half Moon, senão também para saber algo dela, pois provavelmente haveria passado por ali porque a dona, a senhora Broad, era muito amiga sua e as duas se preocupavam muito com sua roupa.
Como tinha a mente em outra parte, teve uma grande surpresa quando, ao dobrar a esquina da rua onde ficava a hospedaria, levantou os olhos e viu uma enegrecida armação separada da rua por uma barreira, com a bodega coberta pela brilhante água de chuva, alguns balcões chamuscados onde haviam estado os pisos e samambaia e capim dentro dos nichos que antes eram armários embutidos. As casas que se achavam de ambos os lados estavam intactas, assim como as lojas da parte da rua que pertencia a Westminster. A rua estava cheia de gente que ia de um lado para outro como se o horrível espetáculo fosse algo normal. cruzou para comprovar sua posição e assegurar-se de que aquelas eram as ruínas do Cacho de Uvas e não uma ilusão de óptica, e quando estava de pé em frente delas, sentiu uma suave pressão na parte de trás da perna. Então se voltou, fazendo com os lábios uma careta que podia expressar satisfação ou raiva, e viu um cachorro grande e feio movendo a cabeça e a calda. Imediatamente reconheceu o cachorro mestiço do açougueiro, a quem lhe unia um grande afeto, pois, apesar de não ser rueiro e de ficar quase sempre com seu dono, muitas vezes passara o dia com ele.
- Mas se não é o doutor! - exclamou o açougueiro. - Pensei que o senhor tinha que estar por aqui quando vi que o cachorro começou a cabecear e a protestar. Estava observando o pobre Cacho de Uvas, né?
O incêndio teve lugar quando a Surprise saiu de Gibraltar e não houve vítimas. A companhia de seguros disputava com a senhora Broad pela reclamação e ela não podia custear a reconstrução até que recebesse o dinheiro. Até então se hospedaria na casa de alguns amigos em Essex, e todos no bairro sentiam sua falta.
- Cada vez que olho para o outro lado da rua me parece que o condado tem uma ferida - disse o açougueiro, assinalando o lugar com a faca.
Enquanto Stephen caminhava para o norte pensou que também havia sofrido uma ferida, uma inesperada ferida. Ignorava quanto significava para ele aquele tranqüilo refúgio onde havia deixado várias coleções bastante importantes, sobretudo a de peles de aves, muitos livros… Depois recebeu outra ferida muito mais profunda na rua Half Moon quando lhe disseram: "A senhora Maturin já não vive aqui", mas essas palavras lhe surpreenderam menos e não o fizeram se estremecer.
Seguiu andando pela rua Saint James enquanto se dizia: "Não devo sentir nada até que tenha a confirmação. Há mil explicações possíveis".
O clube de Jack não era o tipo de associação da qual Stephen se haveria feito membro por sua própia vontade, mas para Diana achava importante que ele fosse e pedira a seus amigos e a Jack que apoiassem a sua candidatura, pelo que há algum tempo pertencia a ele.
- Bom dia, senhor - cumprimentou-lhe o porteiro, que estava no saguão. - Tenho várias cartas e uma caixa com um uniforme para o senhor.
- Obrigado - respondeu Stephen, pegando as cartas.
A única que era importante era a primeira, e rompeu o selo enquanto subia a escada. Começava assim:
Por que absurdas promessas que no casamento fizemos, faz tanto tempo, nos obrigam a seguir juntos agora quando a paixão acabou?
Entre estas palavras e o último parágrafo havia uma parte com as linhas muito juntas e com muitas palavras sublinhadas que quase não podia ser lida com aquela luz. O último parágrafo, que tinha as linhas mais espaçadas e escritas com mais cuidado e com uma caneta diferente, dizia:
Seu novo uniforme chegou justo depois de partir, e em vez de deixá-lo no Cacho de Uvas, onde há tantos ratos e traças apesar de tudo o que faz a senhora Broad, mandarei-o ao clube. Ah, Stephen! lhe rogo que se lembre de usar camiseta e cuecas de flanela enquanto estiver na Inglaterra. Encontrará algumas em cima e abaixo do uniforme.
Leu essas palavras antes de chegar ao alto da escada. Depois meteu a carta no bolso, entrou na biblioteca deserta e deu uma espiada nos outros envelopes. Em um havia um pedido de um empréstimo ao qual devia dar imediata resposta mediante um mensageiro; em outros dois, convites para almoços que já foram digeridos há tempos; em outro, dois estudos sobre a pardela da espécie Manx, que leu com grande atenção. Depois voltou a ler a carta de Diana. Diana dizia que ele devia saber que ela consideraria uma ofensa que, sem uma pitada de discrição, passeasse com essa dama ruiva pelo Mediterrâneo, e que não julgava isso do ponto de vista moral, porque era melhor deixar isso para outros e esse não era seu estilo, mas que tinha que lhe confessar que não esperava uma grosseria como essa nem que, depois disso, talvez em um arrebatamento, não se houvesse justificado pelo menos com uma história que ela pudesse fingir crer sem perder a dignidade. Nesse momento Stephen procurou a data da carta, mas não a encontrou. Além do mais, Diana dizia que qualquer mulher de caráter consideraria isso uma ofensa, e que inclusive lady Nelson, que era muito mais dócil que ela, sentir-se-ia ofendida, apesar da intervenção de sir William. Ela confessava que apesar de todos os defeitos que ele tinha, jamais esperara que se comportasse como um sem-vergonha. Assegurava que sabia muito bem que os homens normais faziam essas coisas quando "a paixão se extinguia", mas que ele nunca lhe parecera um homem comum. Também dizia que nunca esqueceria o amável que fora com ela e que seu ressentimento nunca acabaria com sua amizade, mas que se alegrava de não ter-se casado em uma igreja católica nem em nenhuma outra igreja cristã. Logo, obviamente depois de uma pausa e com a segunda caneta, escrevera que não devia julgá-la mal, e um pouco mais abaixo a posdata em que falava da roupa.
Stephen não a haveria julgado pior que a um falcão que se houvesse passado a voar acreditando estar ferido. Havia visto muitos falcões orgulhosos e temperamentais amarem com veemência e terem violentas irritações… Mas sentia muita tristeza, tinha o coração partido. No início sentiu pena pela terrível perda, tanta que agarrou fortemente os braços da cadeira de balanço e começou a se balançar; contudo, depois se compadeceu dela. A conhecia há muito tempo, mas de todos os passos que dera precipitadamente, de todos os coups de tête que fizera, esse era o mais disparatado. Fugira com Jagiello, um lituano que era oficial do Exército sueco e que mostrava ostensivelmente sua admiração por ela há muito tempo. Mas Jagiello era um homem estúpido; alto, bonito e com o cabelo dourado, mas estúpido. As jovens o adoravam e os homens simpatizavam com ele porque era simples, franco e alegre, mas era superficial e estúpido e era incapaz de resistir a qualquer tentação que se apresentava amiúde pelo fato de ser rico e muito atraente. Era muito mais jovem que Diana, e a constância não era uma de suas virtudes. Não era possível que ele e Diana se casassem, pois, pensasse ela o que pensasse, posto que a cerimônia de seu matrimônio se celebrara a bordo do Oedipus, um navio de sua majestade, o matrimônio era legal. Diana necessitava da vida da sociedade tanto como da carne e das bebidas, e ele não tinha motivos para supor que a sociedade sueca seria amável com uma estrangeira que não estivesse casada e cujo único protetor era um hussardo jovem e estúpido. Pensou aonde a levaria seu destino dentro de cinco anos ou inclusive menos, e seu mundo caiu aos pés. O único que deu um pouco de luz àquela escuridão foi a idéia de que pelo menos ela era livre, que não dependia da generosidade de nenhum homem. Mas nem sequer estava seguro disso. Em outro tempo ela tivera grande quantidade de dinheiro, mas ele não sabia se investira o bastante para proporcionar-lhe uma renda razoável durante o resto de sua vida. Contudo, era provável, porque seu assessor financeiro, um banqueiro amigo seu chamado Nathan, com quem ele simpatizava, era competente. "Perguntarei a Nathan", pensou. Então se moveu na cadeira de balanço e sentiu que se encaixava no quadril a borda do maldito cofre de latão que tinha atado a um lado com uma venda (o havia feito porque uma vez havia deixado documentos secretos em um carro), e se recordou que tinha que entregá-lo o quanto antes.
Refletiu alguns momentos. Sentiu um grande alívio ao poder pensar friamente depois de ter estado perturbado por tão profundos sentimentos, de soltar interiormente tantas exclamações, de fazer incoerentes protestos por aquela injustiça e de repetir muitas vezes o nome de Diana. Levantou-se, foi até uma escrivaninha e escreveu: "O doutor Maturin apresenta seus respeitos ao sir Joseph Blaine e lhe comunica que ficará encantado de visitar-lhe quando o estime conveniente". Surpreendeu-se ao notar que sua mão tremia tanto que as palavras apenas podiam ser lidas, e então escreveu de novo a mensagem com muito cuidado e desceu para pedir que a entregassem na casa de sir Joseph, perto do mercado Shepherd, em vez de no Almirantado.
- Ah, Stephen, está aqui! - exclamou Jack, que entrava nesse momento. - Quanto me alegra de lhe ver! Não acha horrível o que ocorreu ao Cacho de Uvas? Mas pelo menos ninguém saiu ferido. Venha, suba, tenho algo muito importante para dizer-te.
- Algum dos casos se resolveu? - perguntou Stephen.
- Não, não; não é isso. Não há passado nada em meus assuntos legais. Isto é muito diferente. Você se assombrará.
A biblioteca ainda estava vazia. Stephen se sentou de costas para a janela e viu como Jack, que tinha a cara totalmente iluminada, pôs uma expressão satisfeita porque pensava que podia lhe ajudar a conseguir uma fortuna.
- O importante é que há que fazer as inversões nos próximos dias - concluiu Jack. - Por isso me alegrei tanto de encontrar-te agora. Ia para a rua Half Moon para levar-te esta lista para o caso de estar ali.
Trouxeram uma mensagem para o doutor Maturin em uma bandeja.
- Desculpe-me, Jack - disse Stephen.
Então se voltou para a janela e leu a mensagem, que dizia que sir Joseph ficaria encantado de recebê-lo a qualquer hora depois das seis da tarde. Depois se voltou de novo para o interior da habitação e notou que Jack o olhava com uma expressão preocupada.
- Sente-se mal, Stephen? - inquiriu. - Sente-se. Eu lhe trarei uma taça de conhaque.
- Escute-me, Jack - disse Stephen -: Diana foi viver na Suécia. - Houve um embaraçoso silêncio. Jack compreendeu imediatamente que Jagiello tinha algo a ver com o caso, mas não lhe parecia adequado dar a entender e não era possível que ele fizesse nenhum comentário a respeito. Stephen continuou -: Achou que Laura Fielding era minha amante e considerou uma deliberada e grave ofensa que passeasse com ela pelo Mediterrâneo. Diga-me, realmente parecia isso? Parecia que eu era amante de Laura?
- Acho que as pessoas, em geral, pensavam… Parecia que…
- Mas lhe expliquei o melhor que pude - disse Stephen como se falasse consigo mesmo.
Olhou o relógio mas, ainda que os ponteiros podiam ser vistos claramente, não pôde saber a hora porque tinha a mente em outro lugar: "Partiu antes ou depois de Wray lhe entregar minha carta? Tenho que averiguar esse detalhe". Depois perguntou:
- Que horas são?
- Cinco e meia - respondeu Jack.
Então Stephen pensou: "Já não poderei encontrar-lhe no Almirantado. Devo ir ver-lhe em sua casa, e como fica perto da de Nathan, terei tempo para visitar os dois se me apressar".
- Jack - disse -, agradeço muito as recomendações sobre as ações e outros valores. Hás sido muito amável. porém, diga-me, você se comprometeu a não dizer nada mais?
Jack assentiu com a cabeça.
- Então é inútil tentar que me repita as perguntas que fizeste ao seu informante.
- É uma boa pessoa - disse Jack. - Ele lhe conhece, e também a história da Testudo aubreii.
- Ah, é?
Stephen refletiu durante alguns momentos. Pensou que o informante não podia ganhar nada enganando Jack e que, apesar de que estivesse equivocado, Jack pelo menos teria os valores e só perderia a comissão paga aos intermediários financeiros.
- Tenho que deixar-te. Devo fazer algumas visitas.
- Naturalmente, virá a Ashgrove - disse Jack. - Sophie se alegrará de ver-te. Pensava em ir no domingo pelo temor aos alguazis, mas agora poderia ir qualquer dia, inclusive amanhã, se quiser.
- Não acredito que esteja livre até a terça-feira - respondeu Stephen.
- Não me importaria ficar aqui um pouco mais de tempo - disse Jack. - Então, iremos juntos na terça-feira.
Stephen não teve êxito na primeira visita. Alguns minutos depois de ter entregado seu cartão de visita, disseram que Wray não estava em casa. Depois, enquanto caminhava debaixo de um chuvisco, pensou: "Havia esquecido que me deve grande quantidade de dinheiro, e possivelmente por isso minha chegada foi inoportuna".
Na segunda não teve mais sorte. Na realidade, não chegou a fazê-la. Muito antes de chegar à porta da casa pensou que Nathan, assim como todos seus conhecidos em Londres, devia estar ciente da separação, e que, por ser o assessor financeiro de Diana, consideraria inapropiado falar de seus negócios. Não obstante, tocou a campainha, mas imediatamente, com certa satisfação, informou-se de que o senhor Nathan não estava em casa. Mas Meyer, o irmão menor do senhor Nathan, estava ali, justamente no saguão, e quando ele se negou a chamar um carro para ir-se, ele lhe entregou um pesado guarda-chuva de guingão e ossos de baleia. Stephen, protegido pelo guarda-chuva e caminhando entre a multidão que avançava a empurrões, foi até o guarda-volumes da estação de carruagens, pois em um deles havia feito a última parte de sua viagem. Na rua onde estava situada havia muita lama, excrementos de cavalo e muita sujeira, e viu ao gari diante dele abrindo um caminho com sua vassoura. Quando o garoto se deteve no lado contrário da rua, disse:
- Não esqueça do gari, sua senhoria.
Stephen meteu a mão em um bolso da casaca e depois no outro e replicou:
- Sinto muito garoto, mas esses porcos não me deixaram nem um penique nem o lenço. Não tenho dinheiro.
- Sua mãe não lhe disse que guardasse as moedas e o lenço dentro dos calções? - perguntou o garoto, franzindo o cenho e, depois de pensar alguns momentos, quando já estavam a certa distância, gritou -: Besta! Bastardo! Cornudo!
No guarda-volumes da estação de carruagens, Stephen pegou um pacote que estava em seu baú, deu instruções para o envio do restante da bagagem, e foi até o mercado Shepherd avançando com dificuldade, pois o vento era muito forte e tinha que sustentar simultaneamente o pacote e o pesado guarda-chuva. O guarda-chuva era uma prova da compreensão do mais jovem dos Nathan. Stephen havia notado que lhe falara em um desacostumado tom grave e lhe olhara com afeto, mas, como estava muito aflito, considerava que essas coisas eram mostras de sua compaixão e pensava que eram inúteis, embaraçosas e constrangedoras e, além do mais, causavam-lhe dor.
"Espero que sir Joseph não se sinta obrigado a expressar-me sua condolência - pensou quando se aproximava da porta de sua casa. - Não acredito que pudesse suportar. Sem dúvida, conforme as normas sociais, deveria mostrar-me de algum modo sua preocupação, mas agora não, meu Deus, agora não."
Não tinha que temer o encontro com sir Joseph, que lhe deu uma calorosa boas-vindas e até depois de um comprido tempo não deixou entrever que conhecia sua lamentável situação nem que se compadecia dele. Até que não terminaram de falar da viagem, que, obviamente, era do que deviam tratar primeiro, e não se contaram o que sabiam sobre outros naturalistas e sobre as atividades da Royal Society, Stephen não perguntou a sir Joseph por sua saúde. O motivo de que fizesse essa pergunta a Blaine era que lhe examinara e lhe receitara um remédio porque sua potência sexual fraquejava, o que tinha muita importância para ele devido a que pensava em se casar, e agora gostaria de saber se o remédio fizera efeito.
- Fez efeito e melhorei extraordinariamente - respondeu sir Joseph. - Inclusive Príapo teria se ruborizado ao ver-me. Mas deixei de tomá-lo porque refleti sobre o matrimônio e me dei conta de que se bem, em teoria, tem muitas coisas boas, na prática, como pude comprovar observando muitos de meus amigos, não proporciona muita felicidade. Quase não pude encontrar nenhum casal cujos membros, pelo menos em aparência, tivessem as qualidades necessárias para satisfazer um ao outro por mais de alguns meses; depois de aproximadamente um ano as discrepâncias, a luta para ter vantagem sobre o companheiro, os problemas pelas diferenças de caráter, de educação, de gostos e de apetite e cem coisas mais lhes levaram a discutir, a mostrar-se incômodos ou indiferentes, ou inclusive a parecer desagradáveis ou algo pior um ao outro. Pode-se dizer que poucos amigos meus são felizes em seu matrimônio, e em alguns casos…
Nesse momento interrompeu-se e era óbvio que lamentava ter dito essas palavras. Então passou a observar outra vez os insetos que Stephen lhe trouxera do Brasil e do Pacífico. Depois de falar um pouco sobre os insetos, acrescentou:
- Ademais, entre nós, confessarei que ouvi que a dama se referia a mim como seu "velho galã", e posso suportar que me chamem de velho, mas a palavra galã me parece provinciana e me produz desassossego e arrepios. Por outro lado, o matrimônio e a espionagem não são bons companheiros, ainda que já não tenho nada a ver com a espionagem.
- Ah, não? - inquiriu Stephen, olhando-lhe nos olhos.
- Não - respondeu Blaine. - Não mais. Provavelmente recordará que quando o senhor estava em Gibraltar lhe mandei uma mensagem, quase um criptograma, em que contava que no departamento havia uma tempestade, águas turbulentas e fortes correntes. Pois bem, quase tudo o que profetizei ocorreu. Permita-me falar um momento com a senhora Barlow de nossa janta, e quando terminarmos de comer lhe contarei todos os detalhes.
- Primeiro quisesse que me emprestasse um lenço. Roubaram-me quando ia a White Horse.
- Oxalá que não haja perdido muito.
- Só quatro peniques, um lenço de bolinhas e uma grande dose de amor própio. Achava que podia defender-me de um ladrão comum. É verdade que nesse momento tinha que esforçar-me para sustentar um enorme guarda-chuva, mas essa não é uma desculpa válida. Roubaram-me facilmente, como a um tosco. Que vergonha!
Jantaram uma lagosta de considerável tamanho, um bolo de capão e arroz com leite, uma sobremesa que ambos gostavam muito. Mas sir Joseph se limitou a dar voltas na sobremesa, e quando passaram para a biblioteca com as taças de vinho, disse:
- O fato de lhe terem roubado como se o senhor fosse um pastrano me recordou tanto a minha desgraça que me tirou o apetite. Sou mais velho que o senhor, Maturin, e tenho mais experiência; contudo, alguém me derrotou. E o que me dá raiva é que sei tanto da pessoa que me prejudicou como o senhor da que lhe roubou.
Então contou a Stephen as mudanças que o serviço secreto naval sofrera. Conservava um título pomposo, mas, durante uma das silenciosas batalhas sustentadas em Whitehall que deixavam os ministérios de revés, despojaram-no de quase todo seu poder real. Ainda seguia representando o Almirantado nas reuniões do Comitê, mas não intervinha no trabalho cotidiano do departamento. No janeiro passado caíra com seu cavalo quando cavalgava por um caminho gelado no campo, e ainda que só passara duas semanas de cama, esse período de catorze dias foi muito longo; nesse intervalo se realizaram três reuniões em que seus oponentes arrasaram com tudo, e quando regressou encontrara todo o departamento reorganizado. Haviam mandado quase todos seus amigos para postos irrelevantes em outros lugares, e os que restavam não tinham esperança de que serem apoiados nem promovidos. Tiraram seus ajudantes, haviam dado seus despachos para outros, puseram-lhes em covachos e cantos para lhes induzir a renunciar e, ademais, utilizavam qualquer deslize de um agente secreto em um lugar remoto para desacreditar-lhes. O mesmo havia ocorrido a outros homens que colaboravam de fora do departamento.
- Muitos colegas foram tratados sem respeito e partiram ofendidos. Quando for ao Almirantado não se assombre se lhe pedirem para devolver a chave da porta secreta. O pretexto que lhe darão será, sem dúvida, que vão trocar a fechadura.
Confessou que teria renunciado há meses se aquele não fosse um departamento pouco comum e se não tivesse esperanças de que poderia mudar a situação.
- Maturin, não encontro palavras para expressar com quanta veemência desejo que as coisas sejam de novo como devem ser. Seguirei ali, apesar de todas as afrontas, até consegui-lo.
- Sabe quem são esses oponentes que mencionou? - perguntou Stephen.
- Não, e isso é o que mais me incomoda. Barrow voltou a ocupar o posto de vice-secretário, como provavelmente o senhor saberá, e nunca nos simpatizamos. Além disso, depois do caso de Wilson, mantivemos distância em todo momento. É um homem muito trabalhador e diligente, dá muita importância à aparência e aos detalhes e respeita às pessoas de classe superior até o ponto de chegar ao servilismo. É um ignorante e não é capaz de ter uma visão global de nenhuma situação, mas como chegou mediante seus própios esforços a um alto cargo desde sua humilde origem, tem um grande conceito de suas habilidades; assim que a princípio pensei que a reorganização era simplesmente uma tentativa sua para aumentar seu poder, sobretudo porque deixou que Wray, um jovem ambicioso, siga sendo seu principal conselheiro. Mas essa não é a explicação. É um pobre homem, e sua idéia de uma grande vitória é ter seis ajudantes a mais e um tapete turco. É verdade que Wray, ainda que seja um pederasta frívolo e corrupto, é muito mais inteligente que ele, mas depois de ver como tratam de resolver os casos e a influência que se exerce sobre eles, especialmente a do Ministério da Fazenda, acredito que tudo é obra de alguém que está muito acima deles. Acho que há algum Maquiavel no Ministério da Fazenda ou o Conselho dos Ministros que lhes manipula, mas não sei quem é nem qual é seu objetivo. Às vezes penso que tudo isso é motivado por coisas comuns, como a insaciável ambição de poder e o afã de ter autoridade para dar nomeações e de fazer o que se queira; contudo, às vezes suspeito que os motivos são mais sinistros. Mas não lhe vou falar mais do assunto até que não tenha sólidas provas, porque um homem indignado e decepcionado é propenso a exagerar a maldade de seus oponentes. Eles não devem pensar que, impedindo-me de ter acesso aos informes C e F e ter contato com os agentes dessa área vão se livrar de mim, porque um homem de minha posição tem muitos velhos amigos em outros serviços secretos em quem pode confiar, e espero que com sua ajuda possa chegar ao fundo da questão.
- Estou muito preocupado com o que me contou - disse Stephen. - Estou realmente preocupado. Escute-me bem, Blaine. Antes de sair de Gibraltar o secretário do almirante me mandou buscar para dizer-me que devia me comunicar que o Governo havia mandado o senhor Cunningham, com uma grande quantidade de dinheiro em moedas de ouro, para as colônias espanholas da América do Sul no paquete Danaë. Temia-se que o paquete fosse capturado pela fragata norte-americana que nós devíamos destruir, e me ordenou que, caso nos encontrassemos com ele no Atlântico, tinha que deixar Cunningham com as moedas de ouro, mas devia pegar uma quantidade de dinheiro muito maior que haviam escondido em sua cabine sem que ele soubesse. A fragata norte-americana capturou o Danaë, mas nós o recuperamos deste lado do cabo de Horn e pensei que, de acordo com as instruções recebidas, meu dever era encontrar essa enorme soma, e a encontrei dentro de um pequeno cofre de latão que agora tenho atado a meu corpo. Jack Aubrey enviou o Danaë para a Inglaterra sob o comando do capitão Pullings, porém, como era provável que fosse apresado outra vez, pensei que era melhor deixar o cofre em um barco de guerra, que tinha menos possibilidade de ser capturado. Contudo, vários aspectos desse assunto me preocupavam, como, por exemplo, que entre as possíveis situações previstas pelas que recebi instruções não estava incluída a recuperação do Danaë e o que eu havia feito podia ser interpretado como um abuso de poder, que o selo do cofre se rompeu quando caiu do lugar onde estava escondido e que a soma que recolhemos do solo Jack e eu, pois ele me ajudou a seguir as indicações náuticas para encontrá-la, é tão, tão grande que eu não gostaria de ter me responsabilizado por ela, nem sequer estar relacionado com ela. Além disso, tinha a carta que o senhor me enviou contando que em Whitehall havia uma atmosfera fria. Nós pusemos outra vez essa soma no cofre e o lacramos usando minha chave. Aqui está - acrescentou, tocando-se em um lado.
- Encontrou-se com Barrow ou Wray?
- Não. Fui ver Wray em sua casa, mas não estava. Além disso, ia lhe falar de algo muito diferente.
No rosto de Stephen, geralmente impassível, refletiu-se uma profunda tristeza, e baixou a cabeça um instante.
- Desde o início pensei que não iria ao Almirantado até depois de falar extra-oficialmente com o senhor e pedir-lhe conselho. Agora me alegro muito de tê-lo feito.
- É realmente uma grande soma?
- Já verá - respondeu Stephen.
Levantou-se, tirou a casaca e o colete, levantou a camisa e tirou a venda. Outra vez o cofre caiu ao solo e outra vez a soma assombrou aos que a recolheram.
- Não, isto não tem nada a ver conosco, com o serviço secreto naval. Esta quantidade excede o orçamento do departamento e poderia servir para uma operação de grandes dimensões, como a subversão de um reino.
- Não lembrava que a quantia era tão grande - disse Stephen. - Acho que não fiz a soma então porque tinha uma grande preocupação com meus pacientes.
Então, sacodindo um feixe de notas, disse:
- "Em vão lutam os heróis e arengam os patriotas / se o ouro passa secretamente de um pilantra para outro." Pelo menos, se passar uma quantidade como esta.
- Santo Céu! - exclamou sir Joseph, ainda caminhando de gatinhas pelo solo. - Se eu me desse tão bem com as matemáticas como o seu amigo Aubrey, a quem ouvi apresentar na Royal Society um novo método de calcular a ocultação dos astros que me deu dor de cabeça, poderia calcular o número de homens que seriam necessários para transportar esta soma em moedas de ouro. E pensar que cabe tudo em um pequeno cofre de latão! Isto demostra a conveniência das notas e dos títulos ao portador que podem ser creditados com discrição em qualquer banco. Recorda-se dos versos que seguem ao verso que recitou? - perguntou enquanto se levantava com um ranger de joelhos.
- Recorde-me por favor - disse Stephen, que sentia um grande afeto por Blaine.
- Benditos valores! - exclamou sir Joseph, fazendo ênfase na palavra "valores" e alçando um dedo no ar e depois continuou -:
Benditos valores! São o recurso último e melhor
para dar asas mais ligeiras à corrupção!
Uma só folha pode varrer um exército
ou trasladar senados para lugares distantes.
Está cheio de zeros e, sutilmente, até o mais
insignificante move,
e silenciosamente uma rainha compra ou um rei vende.
- Efetivamente, cada uma está cheia de zeros - disse Stephen. - A questão é o que devo fazer com estas folhas cheias.
- Acho que o primeiro que deve fazer é um inventário - disse sir Joseph. - Ordenemo-as e depois, se o senhor lê os nomes e cifras que aparecem nelas, eu as anotarei.
O inventário levava tempo, e cada vez que chegavam ao final de uma página, faziam uma pausa para beber uma taça de vinho do porto. Durante uma dessas pausas sir Joseph disse:
- No início Barrow me tratava com deferência, mas quando soube que eu também era filho de um trabalhador, começou a tratar-me com desprezo. Por outro lado, acredito que atribui muito valor a Wray porque tem muitas relações e é muito inteligente.
- Devo lacrá-lo de novo? - perguntou Stephen quando terminaram a lista e o cofre se encheu.
- É melhor - respondeu sir Joseph. - Não tenho em casa nenhum pedaço de corda. Quis amarrar um pacote há pouco e não pude.
- Acha que devo dá-lo a Barrow ou a Wray? E devo pedir-lhes que me dêem um recibo? - perguntou Stephen, que agora tinha esgotamento mental e espiritual e desejava que lhe dissessem o que devia fazer.
- Deve dizer que quer ver-me, e quando lhe digam que não estou, dizer que quer falar com Wray, pois ele foi a última pessoa com quem o senhor esteve em contato. Quanto ao recibo… Acho que é melhor fazer as coisas de forma simples, é melhor entregar esta enorme fortuna sem pedir nenhum recibo nem nenhum outro documento onde se faça constar formalmente a entrega. Além disso, um recibo não serve de nada, porque se algum deles tiver má fé, sempre poderá dizer que havia mais dinheiro no cofre antes do selo ser rompido. Tampouco serve de nada um inventário, pois não tem valor legal. Mas não acredito que seja necessário recordar-lhe, Maturin, que no serviço secreto nem sempre julgamos as coisas seguindo as leis ao pé da letra. - Entregou o lacre para Stephen e sustentou a vela enquanto ele selava o cofre, depois prosseguiu -: Durante esta guerra tem havido um grande gasto de fundos públicos, e a malversação também alcançou grandes proporções. No Almirantado, uma grande quantidade de dinheiro passa por várias mãos, e algumas delas têm facilidade para reter as coisas. Quando o senhor Croker assumiu o cargo de secretário, acredito que em um período em que o senhor estava no estrangeiro, revisou os casos de que se ocupara Roger Horebound, a quem chamávamos Roger o Gracioso, e descobriu que se apropriara de nada menos que duzentas mil libras. Isso não tinha nenhuma relação com nosso departamento, pois, como o senhor bem sabe, o secretário não tem nada a ver com o serviço secreto, e até há pouco era eu quem o dirigia. Roger o Gracioso foi pego, mas há gente mais inteligente e mais prudente que ele. Às vezes me parece que o motivo, ou um dos motivos, para outros tenham procurado assumir o nosso departamento seja a avareza, pois nele não se pode controlar todos os gastos e grandes somas passam de umas mãos para outras. Se isso é assim, e cada vez estou mais convencido disso, as pessoas relacionadas com este caso, indubtavelmente, ficarão com parte desta grande quantia de dinheiro - disse, assinalando com a cabeça o cofre de latão. - Barrow não o fará, pois, apesar de que me parece detestável e tonto, estou completamente seguro de que é honesto. Como disse, as pessoas relacionadas com este caso… Mas casualmente tenho muito boas relações com os Nathan e seus primos, que nos apoiaram muito nesta guerra, e tão logo alguém negocie algum destes valores eu me informarei e, o que é mais importante, descobrirei quem são meus inimigos.
Então fez alguns comentários sobre o mercado de valores a os quais Stephen prestou pouca atenção e depois riu e acrescentou:
- Que estupenda armadilha! Se não houvesse existido, teria que tê-la inventado. Porém, teria me ocorrido uma idéia tão boa como esta? Duvido. Diga-me, estimado Maturin, alguém sabe que o senhor vinha me ver?
- Ninguém, ainda que seja possível que porteiro de meu clube, a quem encarreguei de lhe enviar a nota, suspeitasse.
- Qual é seu clube?
- O Black's.
- Esse também é o meu. Não sabia que o senhor era membro.
- Quase nunca vou.
- Será mais prudente que nos vejamos lá. E também será prudente que o senhor vá armado, Maturin. Pode ser que esteja equivocado com respeito à má fé desses homens, como acabo de dizer, mas não lhe fará mal supor que tenho razão. O senhor se encontra em uma posição vulnerável. Sugiro que faça os outros verem que é capaz de se defender, que tem aliados e que não podem lhe tratar como a um homem insignificante, que não podem lhe humilhar nem lhe culpar de nada, nem lhe destruir. Não vai ao aniversário do regente? Ali estarão muitos de seus amigos mais importantes e o duque de Clarence.
- É possível - disse Stephen, sem convicção.
Levantou-se para se despedir e meteu o cofre no bolso. Tinha a mente embotada pelo cansaço.
- Por último quero lhe sugerir… - começou a dizer muito baixo e em tom vacilante. - Quero lhe sugerir que se lhe propuserem uma missão do outro lado do Canal, não a aceite.
Stephen, com a mente limpa outra vez, levantou os olhos.
- Não, não quero dizer isso - disse sir Joseph ao ler em seu rosto assombrado uma pergunta. - O que quero dizer é que não têm discrição e são ineficientes, mas acho que seria muito raro que chegassem a ser sinistros. Contudo, em seu caso acredito que o senhor deveria extremar as precauções. Venha, farei que lhe acompanhem até seu clube; as ruas não são seguras pela noite. Ainda que lhe poupariam muitos problemas, se lhe roubassem outra vez.
Pela manhã, uma radiante manhã na qual, contudo, qualquer marinheiro poderia notar que estava se formando uma tormenta ao este-nordeste, Jack e Stephen atravessaram o parque e foram até o Almirantado. O capitão Aubrey, que ia fazer uma visita oficial, usava seu uniforme; o doutor Maturin, em troca, ia ali como um conselheiro civil e usava uma decente casaca de cor parda com botões forrados. Fizeram que entrassem em uma sala de espera na qual Jack passara muitas horas de sua vida, e nela encontraram sentados uma dúzia de oficiais. A maioria deles eram tenentes e capitães de corveta, naturalmente, pois constituíam a classe mais; numerosa, e eram tantos os que não haviam obtido uma ascensão que Jack viu vários de seus contemporâneos. Um deles era um tenente que era o segundo a bordo do Resolution quando ele viajava nesse barco como guarda-marinha, e ambos estavam falando de sua bodega de popa quando chegou um zelador e anunciou a Jack que o primeiro lorde estava livre.
Mesmo que o primeiro lorde fosse frio e pouco expressivo, disse que era um prazer dar as boas-vindas à Inglaterra ao capitão Aubrey e comunicar-lhe que a Junta se alegrara muito que a expedição do Pacífico terminasse satisfatoriamente e que a Surprise houvesse regressado em boas condições. Acrescentou que lamentava não ter disponível nenhum barco adequado para ele cujo comando pudesse lhe dar e que, como sabia que os marinheiros chegavam a apegar-se muito com seus barcos, lamentava ainda mais ter que comunicar-lhe que a Junta decidira vender a Surprise.
- Sim, milorde, todos a queríamos muito - disse Jack. - Conheço a Surprise desde que era um garoto, há vinte anos, e sei que nunca houve nenhuma embarcação como ela. Mas confio em que poderei comprá-la, pois não acredito que valha muito dinheiro.
- Esperemos que pelo menos obtenhamos uma moderada soma por ela para aumentar os recursos da Armada - disse Melville, olhando fixamente para Jack Aubrey.
A maioria dos oficiais da marinha se preparavam para uma entrevista no Almirantado bebendo conhaque, rum ou genebra, mas não Jack Aubrey. A razão pela qual não havia protestado ao ouvir aquela notícia - uma notícia que lhe afetava pouco, pois sabia que a paz estava próxima e a fragata deixaria de ser útil - era que estava alegre porque pensava que voltaria a ser rico, que veria Sophie e as crianças dentro de poucos dias e que suas preocupações terminariam.
- Por último, milorde - disse, pondo-se de pé quando a conversa chegou ao seu fim -, queria lhe recomendar a Tom Pullings, um capitão de corveta que é um excelente marinheiro e que atualmente está desempregado. Trouxe o Danaë para a Inglaterra como voluntário.
- Levarei isso em conta - respondeu Melville -, mas, como o senhor sabe, Whitehall está cheio de capitães de corveta que são excelentes marinheiros e desejariam ter uma corveta sob seu comando.
Jack se dirigiu até a porta e justo antes de abri-la disse:
- Agora que nossa entrevista oficial terminou, queria lhe perguntar como está Heneage.
Heneage Dundas era o irmão mais novo de Melville, e quando este ouviu mencionar seu nome pôs uma expressão de desgosto.
- Heneage está em Portsmouth, supervisando o aprovisionamento da Eurydice para levá-la à base naval da América do Norte. Deve zarpar dentro de um mês no máximo, e quanto antes melhor. Aubrey, queria que, como amigo, fizesse compreendesse que todos desaprovam os atos indevidos que comete. No sábado largaram em frente a sua porta outro bastardo e isso é uma vergonha para ele, sua família e inclusive para seus amigos.
Em outra parte do edifício, Stephen ainda estava esperando. Havia perguntado por sir Joseph e lhe haviam levado para uma zona escura situada na parte traseira. Depois lhe disseram que sir Joseph não podia lhe atender.
- Nesse caso, queria falar com o senhor Wray - solicitou.
Então o fizeram entrar para uma pequena sala escura e quase vazia. Para poder dormir na noite anterior, havia tomado o láudano, a tintura de ópio, e o relaxamento que lhe produziu, pelo menos o relaxamento físico, ainda durava. Por outro lado, já não dava importância ao caso do cofre de latão, e só desejava poder desfazer-se dele. O que realmente lhe interessava nessa entrevista era averiguar quando Wray havia entregado a carta a Diana.
Potanto, ficou esperando sem fazer nenhum movimento, absorto em suas meditações. Mas inclusive ele tinha um limite, e quando o ruído do relógio interrompeu seus pensamentos ao dar a hora, percebeu que lhe estavam tratando desrespeitosamente. Esperou para que o relógio marcasse o quarto de hora e então saiu da sala, atravessou um grande escritório cheio de assombrados empregados, percorreu dois corredores e entrou na sala de espera principal, onde Jack lhe esperava. Ali deixou uma nota na qual informava assunto que desejava tratar com sir Joseph ou com o senhor Wray, o paquete Danaë, e que regressaria no dia seguinte às onze da manhã.
- Vamos - disse a Jack. - Busquemos algum restaurante respeitável onde possamos almoçar. Conhece algum que abra cedo?
- Fladong's - respondeu Jack. - Costuma ter um horário similar ao dos marinheiros. Quando era jovem e dispunha de algum dinheiro, comia ali às duas.
Fladong's ainda tinha um horário como o que habitualmente tinham os marinheiros, e ainda que não comessem às duas, comeram em uma hora cedo em Londres. Quando terminaram, Stephen explicou:
- Venha comigo até a rua Upper Grosvenor, Jack. Quero ver Wray, que provavelmente irá agora a sua casa para almoçar. Só vou para marcar um encontro com ele.
- Se quer ver Wray, tem muita probabilidade de encontrar-lhe em sua casa - disse Jack alguns minutos depois, assinalando com a cabeça a parte do parque onde desembocava naquela rua.
- Que vista tem, meu amigo! - exclamou Stephen. - Não haveria podido distinguir-lhe daqui sem um luneta. Agora escute-me: se não quiser me acompanhar, dê um par de voltas pela praça até que me reúna contigo.
- Muito bem - disse Jack -, mas depois irei trocar o uniforme por uma roupa de paisano, pois não gosto de andar por aí como um maldito soldado.
Separaram-se. Stephen foi até a casa, tocou a campainha e entregou seu cartão de visita. Comunicaram-lhe que o senhor Wray não estava em casa e regressou à praça.
- Ele estava em casa? - perguntou Jack.
Stephen poderia ter respondido que lhe encontrara fora, mas não tinha coragem para mentir e se limitou a dizer:
- O pobre homem me deve uma grande quantidade de dinheiro que perdeu jogando cartas, e acha que tenciono reclamá-la; contudo, só o que quero é que me diga uma data relacionada com outro assunto. Contudo, isso não significa que não receberia o dinheiro de bom grado. Arrisquei o meu e teria pago se houvesse perdido.
Quando Jack, vestido com sua casaca de espantalhos e suas calças de cor parda, desceu a escada para ir com seu amigo a um concerto de música antiga, Stephen disse:
- Perdoe-me, meu amigo, mas não posso cumprir o acordado para a terça-feira. Tenho que ir ao aniversário do regente.
Poderia ter acrescentado "porque tampouco vou ver Wray no Almirantado amanhã", se esse comentário não houvesse sido impróprio de sua reserva, em parte inata e em parte adquirida.
Não viu Wray no outro dia, e quase se alegrou disso. Não estava em boas condições, e quando pensava que teria que ver sua expressão compassiva e sua alegria bem dissimulada, ainda que não totalmente oculta, por ter triunfado, acometia-lhe uma imensa raiva. Quando se dirigia a Whitehall para comparecer ao seu encontro, foi empurrado várias vezes e devolveu os empurrões com força, o que raramente fazia, já que costumava evitar o contato físico com outras pessoas e dominava suas emoções. Ao chegar lhe fizeram entrar em um quarto que poderia ter sido o escritório de Wray, um amplo quarto com um grande fogo na lareira e um tapete de considerável tamanho, mas detrás da espaçosa mesa, em cima da qual se encontrava um tinteiro de prata, estava sentado um homem de meia estatura e feições comuns que vestia um brilhante traje preto e uma gravata-borboleta branca excessivamente engomada, tinha uma extraordinária quantidade de pó no cabelo, e por tudo isso tinha aspecto de funcionário de alto categoria. Seu gesto mostrava seu autoritarismo e sua propensão ao enfado e, além disso, o nervosismo que sentia nesse momento. Apresentou-se como o senhor Lewis, disse que representava o chefe do departamento e, para mostrar sua autoridade desde o primeiro momento, acrescentou que o doutor Maturin havia chegado com dez minutos de atraso, pois já eram onze e dez.
- É possível - disse Stephen -, porém, sabia o senhor que ontem me fizeram esperar mais de uma hora e não me deram nenhuma explicação nem se desculparam?
- Lamento que lhe fizessem esperar, mas o senhor não acha que o vice-secretário interino, o homem que substitui o vice-secretário do Almirantado, pode receber todas as pessoas no momento em que estimam conveniente vir.
- Todas as pessoas - disse Stephen, pondo-se de pé e aproximando-se do fogo. - Todas as pessoas - repetiu, metendo o atiçador no fogo para fazer que entrasse mais ar no centro.
Lewis o olhou com profundo desagrado, mas como havia lido as notas que tinha sobre a escrivaninha, esforçou-se para ser cortês.
- Talvez a expressão "todas as pessoas" não seja a mais adequada, pois, conforme entendi, o senhor possue uma chave da porta secreta. Tenho ordem de pedir a todos os que possuem uma que me a entreguem, já que vão trocar a fechadura. O senhor está com a sua?
- Não.
- Então, por favor, tenha a amabilidade de trazê-la ou enviá-la hoje pela tarde. Bem, senhor, gostaria que o senhor me falasse do Danaë, não é assim?
- O senhor sabia que recebi a ordem de sacar alguns documentos desse barco se me encontrasse com ele no Atlântico?
- Tenho todos os detalhes aqui - disse Lewis em um irritante tom insolente como se tratasse de demostrar sua autoridade, ao mesmo tempo que tocava um cartapácio atado com uma cinta vermelha.
Stephen compreendeu imediatamente que o homem mentia, que não sabia nada do serviço secreto e quase nada desse assunto, pois o cartapácio era extraordinariamente fino. Estava claro que era um administrativo que haviam enviado ali para escutar o que o doutor Maturin tinha a dizer. Contudo, continuou:
- Encontrei-me com o paquete e peguei os documentos. Dadas as circunstâncias, não me pareceu conveniente mandá-los para a Inglaterra no própio paquete depois de recuperá-lo.
Voltou a sentar-se.
- Não notificou imediatamente às autoridades competentes?
- Não.
- Desembarcou o senhor na Inglaterra no dia 17. Por que não notificou então?
- Para ver se nos entendemos, senhor Lewis. Sua pergunta não é realmente uma pergunta más uma censura, e eu não vim aqui para que me recriminem.
- Se veio aqui com a idéia de obter uma comissão adicional, permita-me dizer que seus superiores…
- Meu Deus! O senhor é um sem-vergonha repugnante, ignorante e incompetente - soltou Stephen em voz muito baixa e em tom raivoso enquanto se jogava para frente. - Acha que sou um espião a soldo ou um informante? Acredita que tenho dono, que me compraram? Por Deus!
A tristeza que sentia era agora mais profunda, porque via que um eficiente serviço secreto estava na beira da ruína e sua forma de lutar hábil e tenaz havia desaparecido. Então gritou:
- Estúpido homenzinho!
Lewis se jogou para trás na cadeira e lhe olhou com um gesto estúpido e assombrado. A expressão de Stephen lhe intimidava e imediatamente disse:
- Acalme-se, estimado senhor, acalme-se.
Mas Stephen estendeu o braço até o outro lado da escrivaninha, agarrou o nariz de Lewis, sacudiu furiosamente de um lado para outro fazendo cair o pós que tinha no cabelo, e depois o retorceu para a direita e para a esquerda e outra vez para a direita e para a esquerda. Depois lançou o tinteiro no fogo, e limpou a mão manchada de sangue na gravata de Lewis.
- Se quiser me encontrar, estarei no Black's - disse, e depois saiu da habitação.
Quando chegou ao Black's viu sir Joseph subindo lentamente a escada.
- Quanto me alegro em ver-lhe, Blaine! - exclamou. - Que acha se tomarmos chá na sala de escritura?
- Uma xícara de chá me virá bem - respondeu sir Joseph -, bastante bem.
A essa hora do dia não havia ninguém na sala de escritura, e fechou todas as janelas imediatamente porque detestava as correntes. Depois, deixando-se cair em uma poltrona, perguntou:
- Viu como as ações estão subindo?
- Não - respondeu Stephen. - Diga-me, conhece a uma besta que se chama Lewis no Almirantado?
- Oh, sim! Ele foi trasladado do Ministério de Fazenda depois da morte do senhor Smith, que estava reorganizando a contabilidade. É muito correto e cumpre estritamente as leis. É muito chato nos banquetes.
- Acredita que é um homem capaz de bater-se? Não pude evitar torcer-lhe o nariz faz um momento, e lhe disse onde poderia encontrar-me se quiser que lhe dê uma satisfação.
- Não, não. É mais provável que mandasse lhe aprisionar e lhe obrigasse a fazer as pazes, mas neste caso não lhe permitirão. Não, não. Oh, não! Mas me alegro em saber que lhe retorceu o nariz.
- E eu me alegro que tenha me dado a sua opinião. Se ele gostasse de dular, teria que pedir ao meu amigo que ficasse, e isso seria uma lástima porque deseja ir ver a sua esposa.
No final do dia disse para Jack:
- Eu lhe rogo, meu amigo, que vá a Ashgrove na diligência que sai esta noite. Amanhã tenho que assistir a uma reunião de entomólogos e na outra de cirurgiões, assim que não poderemos nos ver, e, ademais, tenho que deitar-me antes das dez para poder estar em boas condições para ir à festa.
- Bem, se insiste - disse Jack. - Mas deve me dar sua palavra de que irá assim que termine.
- Tão cedo como possa.
- Sophie ficará muito contente - disse Jack e depois, sem poder reprimir um sorriso, perguntou -: Leu os jornais?
- Eu os lerei antes dormir - disse Stephen, dirigindo-se ao seu quarto.
- Você se assombrará - disse Jack, voltando-se para o alto da escada. - E isto é só o começo, ah, ah, ah!
A festa de aniversário do regente estava muito concorrida. O senhor Harrington beijava mãos na qualidade de governador das Bermudas e sir John Hollis na qualidade de secretário, e muitos cavalheiros assistiam para dar a conhecer seu triunfo e contemplar as caras decepcionadas de seus rivais. Além deles, também estava ali todo o espectro de oficiais, entre os quais se destacavam os escoceses, admirados por seu uniforme multicolor. Além disso, havia funcionários de vários ministérios, com trajes de gala escuros, e muitos civis. A festa era um lugar ideal para fazer discretos contatos, para obter informação e para saber se as influências e os favores haviam falhado ou haviam sido pouco efetivos. Stephen e sir Joseph se cumprimentaram inclinando a cabeça a certa distância, mas não se falaram. Depois Stephen viu sir Joseph fazer uma inclinação de cabeça para Wray, que se encontrava junto a um homem baixo com cara de mastro que, obviamente, não estava acostumado a usar espada. Stephen pensou: "Ele a fará cair antes de que termine o dia. Suponho que esse é o senhor Barrow". Em resposta ao cumprimento de sir Joseph, o homem fez um brusco movimento com desânimo que contribuiu para reforçar esta idéia, e Stephen se ficou pensando um pouco em qual era o grau tolerável de descortesia com que um homem bem educado podia deliberadamente tratar a outro. Veio para sua mente um exemplo, a insolência perfeitamente dosada de Talleyrand, mas antes de poder recordar mais de meia dúzia de exemplos, um movimento geral no extremo de sala interrompeu seus pensamentos. Já haviam terminado as diversas cerimônias; o novo secretário do Tribunal Superior de Justiça havia recebido o bastão de comando; o secretário do departamento onde se punha o selo oficial de concessões e outros documentos havia recebido seus honorários. Todos os presentes faziam parte do círculo de amigos do regente, que nesse momento, seguido por alguns de seus irmãos, começou a avançar pela sala. O regente não tinha graça nem elegância, nem uma conduta irrepreensível, mas ninguém podia negar que tinha o dom de recordar nomes. Reconheceu quase todas as caras e falou frases amáveis e algum comentário apropriado. Não falou com Stephen, mas seu irmão, o duque de Clarence, fez isso por ele.
- Ah, aqui está o senhor, Maturin! - exclamou com o vozeirão com que costumava gritar desde o castelo de popa. - Já está de volta?
- Muito bom, muito bom. Temos que falar quando isto haja acabado, de acordo?
Vestia o uniforme de almirante e tinha muito mais direito de usá-lo que a maioria dos membros da família real. Era especialmente amável com os oficiais da marinha que estavam presentes, e Stephen o ouviu cumprimentar Heneage Dundas com voz estrondosa ao chegar ao seu lado quando passava ao longo da fila. A casa Hanover não era a família favorita de Stephen, e não lhe agradava quase nada do que sabia do duque, mas não podia evitar admirar várias de suas características, como a simplicidade, a franqueza e a generosidade que mostrava em ocasiões e que, sem dúvida, havia adquirido na Armada. Para Stephen lhe haviam chamado quando o duque estava gravemente enfermo e seu paciente pensava que se havia curado graças ao tratamento que ele lhe havia recomendado - achava que um médico da Armada tinha que conhecer melhor as doenças dos oficiais da marinha que um médico normal - e lhe estava profundamente agradecido. Viram-se com freqüência durante sua convalescência e se davam muito bem, como Stephen estava acostumado a lidar com pacientes difíceis, obstinados, berrões e dominantes, e era um naturalista, além de médico.
Quando aquilo terminou e as pessoas começaram a ir de um lado para o outro para cumprimentarem seus amigos e verem quem tratava com cortesia a quem, veio até onde estava Stephen, pegou-lhe pelo cotovelo e lhe perguntou:
- Como vai? Como está Aubrey? Lamento muito o que vão fazer com a Surprise. Navega tão bem de bolina e está em tão boas condições! Mas é velha, Maturin, velha. Seu problema são os anos, como o de todos nós. Sabe que já tenho quase cinqüenta? Não é assombroso? Quanta gente! Isto parece uma rua do porto num sábado pela a noite. A metade dos membros do Almirantado devem estar aqui. Aí está Croker, o novo secretário. Os senhores se conhecem?
- Nos conhecemos na Irlanda faz muito tempo, senhor. Ele frequentava o Trinity College.
- Oh! Então não o chamarei. A verdade é que não é meu amigo - disse em voz muito baixa. - E ali está o vice-secretário. Provavelmente também o conheça. Não, talvez não, porque não é irlandês e o senhor não conhece bem aos membros do Comitê de Ajuda aos Enfermos e Feridos.
Fez sinais e Barrow se aproximou apressadamente dele com uma expressão servil.
- Assim que está de novo entre nós, Barrow - disse o duque com um tom de voz apropriado para que o ouvisse um homem que estivera enfermo e tinha a capacidade auditiva diminuida. - Esteve enfermo durante muito tempo - acrescentou, voltando-se para Stephen, e depois olhou de novo para Barrow e disse -: este é o doutor Maturin. Poderia curar-lhe em um abrir e fechar de olhos. Eu lhe recomendo que da próxima vez que tenha essas febres lhe peça conselho.
Barrow disse que sem dúvida alguma o faria, se o doutor Maturin lhe permitisse, e que seria um honra. Depois acrescentou que nunca esqueceria a amabilidade de sua alteza. Seguiria falando assim durante um tempo se o duque não tivesse perguntado:
- Que demônio de uniforme é esse que tem uma casaca, isto é, uma casaca curta, de cor verde garrafa? Vá perguntar-lhe, Barrow.
Pouco depois o duque viu um almirante passar, e largou Stephen sozinho após apertar-lhe a mão amistosamente. Então se aproximou de Stephen Heneage Dundas, que, por ser um pai putativo, parecia bastante satisfeito, ainda que maldice sua sorte por não poder ver Jack Aubrey. Imediatamente trocaram fofocas e notícias, e depois Heneage disse que tinha que ir imediatamente em uma carruagem postal para Portsmouth e que só tinha vindo para ver alguém, uma jovem, e tinha que regressar ao seu barco. Acrescentou que se quisesse enviar algo para a América do Norte só tinha que escrever para a Eurydice e ele lhe serviria.
"Escrever para Eurídice", pensou Stephen sentindo uma profunda tristeza.
- Primo Stephen! - exclamou alguém junto a ele quando Dundas se afastou.
Era Thaddeus, que usava uma elegante casaca vermelha. De acordo com a tradição irlandesa, os primos Fitzgerald de Stephen nunca haviam dado importância a que fosse um bastardo, e nesse momento Thaddeus o levou até onde se encontravam outros três. Os três eram soldados: um servia no exército inglês, outro no austríaco, e outro - como seu pai - no espanhol. Eles lhe deram notícias de Pamela, a viúva de lorde Edward, e sua amabilidade e suas vozes familiares o alegraram. Quando eles se afastaram, foi falar com alguns conhecidos e se informou de outras fofocas interessantes e surpreendentes. Depois se situou em um lugar próximo da porta, de onde podia ver toda a sala, para se assegurar de que o principal motivo de sua presença ali não escapasse. Percebera que tanto Wray como Barrow o estiveram observando a maior parte do tempo, e agora ele lhes observava. Pouco depois Wray notou que tinha os olhos fixos nele, separou-se de seus amigos e, com uma expressão surpresa e alegre, aproximou-se dele estendendo-lhe a mão.
- Meu querido Maturin! - exclamou. - Devo-lhe dez mil desculpas.
Depois, em voz muito baixa, contou a Stephen que já não tinha nada a ver com a rede norte-americana do serviço secreto, pois agora se encontrava em outras mãos. Acrescentou que estavam reorganizando o departamento e que as causas de sua longa espera haviam sido a ineficiência e uma confusão de mensagens, não a falta de cortesia. Perguntou-lhe se podia jantar com ele na sexta-feira e lhe disse que tinha vários convidados muito interessantes e que Fanny se alegraria de vê-lo. Stephen o observou enquanto falava e notou que havia roído as unhas até a base, que tinha um eczema no dorso das mãos e na testa, que estava coberta de pó. Ainda que não se notasse na voz, era evidente que Wray tinha uma grande tensão nervosa, e Stephen recordou a fofoca que acabava de ouvir: que a grande fortuna pela qual Wray se casara com Fanny, a filha do almirante Harte, só podia herdá-la ela e seu filho, que ninguém compreendia como as rendas de Wray lhe permitiam manter seu atual estilo de vida e perder quase a cada noite no Button's, e que no dia anterior lhe levaram para sua casa bêbado.
- O senhor é muito amável - disse Stephen -, mas tenho um compromisso no sábado. Contudo, há alguns assuntos dos quais eu gostaria de falar com o senhor, ainda que não aqui. Vamos para sua casa, por favor.
- Muito bem - disse Wray com um sorriso forçado, e ambos abriram passagem entre a multidão.
Enquanto atravessavam Green Park, Wray contava a Stephen com bastantes detalhes o que havia ocorrido em Malta, e Stephen o escutava com atenção, ainda que nem sequer a décima parte, isto é, a centésima parte da atenção com que o houvesse feito poucos dias antes. Wray culpou a si mesmo pela fuga de Lesueur, o principal agente francês na ilha, mas disse que pelo menos a organização havia sido destruída e desde então nenhuma informação passara de Valletta para Paris.
- O problema era que não me encontrava em boas condições - confessou Wray. - E ainda não estou. Eu gostaria que me receitasse algo para dor de barriga - acrescentou, sorrindo, e depois abriu a porta de sua casa. - Entre, por favor.
"Se lhe receitasse algo - pensou Stephen -, deveria receitá-lo para a mente, meu amigo, porque essa é a parte que lhe causa problemas. Mas se lhe prescrevo láudano, o medicamento mais adequado para seu caso, converter-se-ia em um viciado nele, em um tragaopio, em um mês, além de já ser um viciado em álcool."
Subiram para a biblioteca de Wray, e depois que Stephen recusou vinho, doces, sorvete, bolos e chá, Wray disse que tinha a esperança de que não achasse que tentava se esquivar ou deixar de saldar a dívida que tinha com ele. Acrescentou que se recordava bem da dívida, que lhe agradecia que houvesse tido paciência durante um período tão longo, mas que lhe dava vergonha dizer que devia rogar-lhe que a tivesse durante um pouco mais de tempo. Assegurou que ao final de mês teria dinheiro e poderia pagar-lhe por fim e, ademais, que lhe daria uma promissória. Finalmente, disse que esperava que o atraso não lhe causasse inconvenientes.
Depois de uma breve e desagradável pausa, Stephen aceitou a proposta. Aproveitando que estava em uma posição vantajosa, fixou seus olhos claros em Wray, como desafiando-lhe a que desse algum sinal de que conhecia sua situação e explicou:
- Quando nos vimos pela última vez, em Gibraltar, o senhor teve a amabilidade de oferecer-se para trazer uma carta para minha esposa, já que ia fazer parte da viagem por terra. Por favor, quando ela a recebeu?
- Sinto lhe dizer que não posso dizer - respondeu Wray, baixando os olhos. - Quando cheguei a Londres fui imediatamente para a rua Half Moon, mas um servente me disse que sua esposa havia ido para o estrangeiro e acrescentou que tinha ordens de mandar-lhe as cartas que recebesse, assim que lhe entreguei.
- Eu lhe estou muito agradecido, senhor - disse Stephen e se despediu.
Se houvesse visto que Wray o observava rindo detrás das cortinas de renda, saltando sobre um só pé e fazendo com os dedos um sinal indicando que era um cornudo, provavelmente teria regressado e o teria matado com sua adaga, porque isso era uma crueldade. Era óbvio que Diana não esperou para receber uma explicação, ainda que não fosse satisfatória, senão que lhe condenara sem lhe escutar. Isso demonstrava que agora Diana era uma mulher mais dura e menos afetuosa que a Diana que ele conhecia, ou achava conhecer, um ser mítico inventado por ele, indubtavelmente. Na carta de Diana notava-se claramente que era isso o que havia ocorrido, pois nela não fazia referência à sua, mas ele não quis admitir o que estava tão claro, e agora que se via obrigado a fazê-lo voltava a sentir nos olhos uma queimação e um formigamento. Ademais, sentia-se muito sozinho porque lhe haviam arrebatado seu mito.
- Oh, senhor! - exclamou o porteiro quando Stephen entrou no Black's depois de um passeio que durou toda a tarde, um passeio em que havia atravessado o parque, havia ido além de Kensington e depois descera até o rio quando a maré estava baixa. - Um mensageiro especial trouxe isto para o senhor e me encarregou que não deixasse de dá-lo quando chegasse.
- Obrigado, Charles - disse Stephen. Notou que a carta tinha o selo preto do Almirantado, meteu-a no bolso e subiu a escada. Como esperava, na biblioteca encontrou sir Joseph, que estava lendo a Buffon.
- Isto é penoso, Maturin, realmente penoso - disse, aproveitando que estavam sozinhos outra vez. - Não há nenhum francês que entenda de ossos, além de Cuvier.
Voltou a colocar o livro na estante com um gesto de desaprovação e continuou:
- Alegro-me de ter-lhe visto na festa e também de que o duque de Clarence fosse tão amável. Barrow ficou muito impressionado. Adora esse príncipe, ainda que saiba, como tudo mundo, e talvez melhor que a maioria, que não é bem considerado no Almirantado; mas parece incapaz de compreender que alguns membros da família real estão unidos a ela por vínculos mais fortes que outros, ainda que pareça uma incongruência. Por consequência disso, se o senhor voltar ao Almirantado, não lhe tratarão grosseiramente. Irá amanhã?
- Tenho que ir, a menos que envie o maldito cofre por um mensageiro. Provavelmente isto seja um convite - disse, sustentando a carta no ar, e depois a abriu e acrescentou -: Sim, é. O senhor Barrow diz que lamenta infinitamente…, sente muito que tenha havido um mal-entendido…, gostaria muito…, toma a liberdade de sugerir que…, mas a qualquer outra hora que lhe convenha.
- Sim, é inevitável que vá - disse sir Joseph e depois de uma pausa continuou -: A propósito! Tenho notícias sobre o cofre de latão. Naturalmente, era responsabilidade do Conselho de Ministros, quer dizer, de Fitz Maurice e seus amigos, e a Armada era somente a portadora e desconhecia seu conteúdo. O comentário de que continha "uma enorme soma" foi uma suposição de Pocock ou uma indiscrição do Ministério de Assuntos Exteriores, e nunca devia ter ocorrido. Estou seguro de que a maioria das pessoas bem informadas já ouviram falar disto, pelo menos pelo alto. Peço a Deus que nos envie alguns funcionários que saibam o que é a discrição. E diga-me, Maturin, vai à Royal Society esta noite?
- Não. Caminhei muito depois de fazer uma desagradável visita e não pude almoçar. Estou esgotado.
- Sem dúvida, o senhor parece exausto. Não acha que lhe reanimaria uma janta leve? Por exemplo, um frango cozido com molho de ostras. Eu gostaria que conhecesse um oficial da cavalaria amigo meu, um engenheiro sumamente inteligente. Falei extra-oficialmente com ele e com outros amigos, como lhe disse que pensava fazer, e todos estão de acordo em que o camundongo que encontrei está começando a se converter em um rato.
- Sir Joseph - disse Stephen -, desculpe-me, mas esta noite não me importaria nem que se convertesse em um rinoceronte com dois cornos. Pelo que me diz respeito, não me incomodaria se Bonaparte viesse com seus barcos de fundo plano e fosse bem recebido.
- Jantar comigo lhe conviria- disse Blaine. - Comeríamos um frango cozido com molho de ostras e tomaríamos uma garrafa de um bom clarete. Maturin, o nome Ovart lhe é familiar?
- Ovart? Acho que nunca o ouvi - respondeu Stephen, bocejando de fome e de cansaço, e depois deu boa noite e se foi para seu quarto caminhando lentamente.
Tampouco estava mais animado na manhã seguinte, ainda que um melro de Green Park pousara no parapeito de sua janela e esteve cantado com absoluta perfeição. Durante o café da manhã, um antigo membro do clube lhe disse que fazia uma bonita manhã e que ouvira uma notícia alentadora: aparentemente, havia possibilidades de que muito logo se firmasse a paz.
- Tanto melhor - disse Stephen. - Com a gente que governa o país agora, não podemos continuar esta guerra por muito mais tempo.
- Tem razão - disse o cavalheiro, movendo a cabeça de um lado para o outro.
Perguntou a Stephen se iria à Newgate para ver as execuções. Stephen respondeu que não, que ia ao Almirantado. O cavalheiro inquiriu se também enforcavam as pessoas ali, e quando Stephen lhe respondeu que não, voltou a mover a cabeça de um lado para o outro e disse que nunca perdia um enforcamento e que hoje, entre a gente comum, iam enforcar dois destacados banqueiros que haviam sido declarados culpados de falsificação. Acrescentou que o mercado de valores não perdoava seu pai, nem sua mãe, nem sua esposa, nem seu filho se faziam algo assim, e depois perguntou a Stephen se recordava do pastor Dodd. Repetiu que nunca perdia um enforcamento e contou que quando era menino costumava ir com suas tias a Tyburn, ao que chamavam o Pasto da Morte, e que iam a pé seguindo o carro até Tyburn passando pela igreja de Saint Sepulchre.
No Almirantado havia um funcionário esperando ao doutor Maturin na escada que lhe conduziu ao escritório do senhor Barrow. Stephen se surpreendeu ao ver que Wray estava ali, mas não se importou, pois se contentava em poder deixar o maldito cofre em mãos de alguém responsável.
O senhor Barrow lhe agradeceu encarecidamente sua presença. Depois repetiu que não achava palavras para expressar adequadamente quanto lamentava o recente mal-entendido, e lhe explicou como foi possível que Lewis não se informasse de que ele prestava um inestimável serviço voluntário e gratuitamente.
- Acredito que o ofendeu gravemente, senhor.
- Ele me ofendeu, senhor - disse Stephen -, e lhe fiz saber.
- Ainda não regressou ao escritório, mas quando melhar, irá vê-lo para apresentar suas desculpas.
- Não, de maneira nenhuma. Não exijo que ele faça isso. Na realidade, atuei precipitadamente e ele falou por ignorância.
- Ignorava que tipo de pessoa o senhor era e a natureza dos documentos em questão. Com relação a eles, não poderia ter-lhe dito de que tipo eram porque oficialmente nem ao menos eu sei. Porém, em confiança, doutor, direi que ouvimos dizer que estavam em um cofre de latão e que o Ministério de Assuntos Exteriores e o de Fazenda estavam muito preocupados porque tinham que "cancelá-los", como dizem os comerciantes.
- Isto porá fim a sua ignorância - disse Stephen, pegando o cofre de um bolso interior da casaca e pondo-o sobre a escrivaninha.
- Que selo mais curioso! - exclamou Barrow em meio do tenso silêncio.
- Eu o fiz com minha chave - disse Stephen. - O selo original se rompeu quando o cofre abriu ao cair. Eu o selei outra vez para que se mantivesse fechado. Como vê - acrescentou, rompendo o lacre -, o fecho abre muito facilmente.
Barrow era curioso por natureza e deu uma espiada nos papéis que havia em cima. Sua expressão mudou, passou do assombro e para a indignação. Afastou o cofre como se fosse um objeto perigoso e começou a dizer algo em tom irritado, mas imediatamente tossiu e disse outras palavras:
- É uma enorme quantia.
- Isso era o que ouvira - disse Wray, dando uma espiada nos feixes restantes. - Não se preocupe com nada. Leward e eu nos ocuparemos disto.
- Quanto antes nos livremos dele, melhor - disse Barrow. - Que grande responsabilidade! Que grande responsabilidade! Por favor, guarde-o sob chave imediatamente.
Depois de alguns momentos se tranqüilizou o suficiente para dizer a Stephen:
- Suponho que era uma pesada carga para o senhor e que não podia compartir com ninguém sua angústia. Também suponho que ninguém viu estes… estes documentos exceto o senhor.
- Nem uma alma - disse Stephen. - O senhor Acredita que segredos como este devem ser compartilhados?
Wray regressou, e houve um comprido silêncio, interrompido às vezes por exclamações, até que Barrow disse com grande nervosismo:
- Acho que não deveríamos informar "oficialmente" sobre este caso. E agora podemos passar para a segunda parte de nossa entrevista. O que ocorre, senhor, é que nos sugeriram que lhe convencêssemos para… Senhor Wray, por favor, diga ao doutor Maturin o que nos sugeriram.
- Nossa agente de Lorient, Madame Feuillade, que o senhor conhece - começou Wray -, foi presa; e como não só nos enviava informação desse lugar como também a que lhe mandava sua irmã desde Brest, sua ausência é muito lamentável. Contudo, não a prenderam por cooperar conosco más por evasão de impostos. Está encarcerada em Nantes, e Hérold, que trouxe a notícia, assegura que com os meios adequados, pode-se persuadir o juiz que investiga o caso de que o denegue. Dada a posição de madame Feuillade, é óbvio que o caso requer muito tato e habilidade, e uma grande quantidade de dinheiro. Todos esperam que o doutor Maturin possa contribuir com as duas primeiras coisas e o departamento com a última. Há alguns barcos que transportam conhaque e vinho de Nantes para a Inglaterra com permissão do almirante ao comando da esquadra do Canal, e nós usamos regularmente quatro deles em que se pode confiar plenamente; assim que as datas para a viagem de ida e de volta poderiam ser estabelecidas facilmente, conforme sua conveniência.
- Compreendo, compreendo - disse Stephen, olhando-os com atenção e se perguntando o que via realmente neles e o que era simplesmente fruto de sua imaginação.
Então, cheio de assombro, voltou a sentir o mesmo entusiasmo de antes, ainda que nessa manhã havia pensado que já era indiferente ao serviço secreto.
- Acho que o caso requer fazer algumas reflexões. Me vou ao campo amanhã, e ali terei paz e tranqüilidade para meditar sobre ele. Pelo o que sei de madame Feuillade, estou seguro de que o interrogatório que lhe farão por uma acusação como essa não será muito duro e que o encarceramento não lhe será penoso.
CAPÍTULO 6
Os componentes da diligência noturna de Portsmouth tinham uma estreita relação com a Armada, salvo os cavalos e uma passageira que ia dentro, uma senhora velha. O cocheiro havia servido às ordens de lorde Rodney, o guarda era um antigo infante da marinha e demais passageiros ocupavam algum posto na Armada.
Quando as estrelas começaram a empalidecer para o leste, a diligência passou rapidamente pela frente de um grupo de casas escuras e de uma igreja que ficavam à direita do caminho, e a senhora mais velha disse:
- Chegaremos a Petersfield dentro de alguns minutos. Espero não ter esquecido nada - disse, contando outra vez seus pacotes, e depois, voltando-se para Stephen, acrescentou -: Assim que não devo comprar, senhor. É essa definitivamente sua opinião?
- Senhora - respondeu Stephen -, repito que não sei nada da bolsa, que nela sou como uma pessoa que não pode distinguir facilmente um touro de um urso. Só o que digo é que se seus amigos lhe deram esse conselho somente porque estão convencidos de que se firmará a paz dentro de poucos dias, a senhora pode pensar que talvez estejam equivocados.
- Contudo, são cavalheiros muito bem informados. Ademais, senhor, o senhor também poderia estar equivocado, não é assim?
- De fato, senhora! Posso equivocar-me como qualquer outra pessoa, ou inclusive mais.
O guarda deu um forte apito, que imitaram a maioria dos jovens passageiros que iam fora, para os quais passar uma noite de primavera inglesa no teto de uma carruagem não era nada em comparação com passar uma noite entre as grandes ondas em frente a Brest.
- Então, está decidido - disse a senhora. - Não comprarei. Alegro-me de ter pedido sua opinião. Obrigada, senhor.
A diligência entrou no pátio do Crown para trocar os cavalos. Os passageiros estiraram as pernas durante a troca e depois voltaram a subir nela. Então Stephen se aproximou do cocheiro e disse:
- Provavelmente o senhor não se esquecerá de me deixar em Buriton, mas se me deixasse na taberna em vez de no cruzamento me pouparia uma fatigosa caminhada. Aqui tem uma moeda de três xelins.
- Obrigado, milorde - disse o cocheiro. - Eu lhe deixarei na taberna.
- Estou convencido de que fez bem aconselhando à senhora que não comprasse - disse um dos passageiros que iam dentro, um contador do estaleiro, quando deixaram para trás Petersfield. - Acho que atualmente não há possibilidades de que se firme a paz.
- Acho que não - disse um deselegante guarda-marinha que passara grande parte da noite dando chutes nos outros passageiros, ainda que não por maldade nem por falta de consideração mas porque cada vez que ficava adormecido contraía e distendia involuntariamente suas compridas pernas repetidas vezes. - Acredito que não. Faz apenas uma semana que fui aprovado no exame de tenente, e seria uma injustiça que se firmasse a paz agora. Isso significaria…
Nesse momento percebeu que estava falando a pessoas mais velhas, algo que na Armada se considerava inapropiado, e ficou em silêncio e fingiu que prestava atenção nos primeiros frisos vermelhos do amanhecer que se viam ao longe.
- Há dois anos, sim - disse o contador, sem fazer-lhe caso -; mas não agora, porque os aliados do continente estão desmoronando e temos gastado muito tempo e dinheiro na guerra contra a América do Norte. Acho que o rumor que hão ouvido os amigos dessa dama é um truque que idearam alguns homens de má vontade que desejam se beneficiar da subida.
Depois explicou por que pensava que Napoleão não quereria negociar a paz nesse momento. Ainda estava falando quando a diligência se deteve e o guarda gritou:
- Todos os que queiram ir à taberna Jericó, cavalheiros, por favor! Boa comida para os homens e os animais. Excelente conhaque contrabandeado diretamente de Nantes e excelente água de poço, que nunca se misturam, salvo por acidente. Ah, ah, ah!
Poucos minutos mais tarde, Stephen estava de um lado do caminho com sua bagagem e a diligência se afastava envolta em uma nuvem de poeira que ela mesma criava. Então uma revoada de gralhos passou por cima de sua cabeça, e pouco depois a porta da taberna se abriu e apareceu uma mulher bagunçada, que tinha o cabelo encaracolado como o de uma hotentote{12} e fechava a bata segurando-a com uma mão à altura do pescoço.
- Bom dia, senhora Comfort - disse Stephen. - Por favor, quando possa, diga ao moço que guarde estas coisas atrás do balcão até que mande alguém para buscá-las. Quero ir a Ashgrove caminhando pelo campo.
- Encontrará ali ao capitão, a alguns marinheiros impertinentes e ao terrível Killick. Mas não quer entrar e tomar algo, senhor? Passou a noite na diligência e ainda tem que percorrer um longo caminho.
Stephen sabia que no Jericó só poderiam lhe dar chá ou cerveja com um baixo teor de álcool, e as duas coisas lhe pareciam repugnantes pela manhã. Agradeceu à mulher e lhe disse que preferia esperar que seu apetite abrisse com a caminhada, e quando ela perguntou se era Killick que viria no carro para recolher suas malas, Stephen respondeu que pediria ao capitão que enviasse ele.
Percorreu a primeira milha do trajeto por um caminho flanqueado por altos muros e cercas, que tinha bosques à esquerda e campos cheios de trigo e feno à direita. Os muros eram salpicados de prímulas e nas cercas havia montes de passarinhos madrugadores que cantavam, principalmente pintassilgos-europeus com a plumagem muito brilhante. Um pouco além de onde terminava o tramo de terreno plano e começava outro com altibaixos, o caminho se dividia em dois ramais, um que beirava um imenso pasto de uns cinqüenta ou sessenta acres onde havia vários potros e outro que passava por entre as árvores e do qual se via uma minúscula parte. Stephen tomou o segundo, que era empinado e tinha muitos espinheiros e samambaias mortas na margem próxima ao bosque. Um pouco mais adiante havia galhos caídos e duas ou três árvores mortas, e no final ficava a cabana de um guarda-florestal, situada em um pedaço de terreno plano coberto de capim que os coelhos - que fugiram quando ele se aproximou - mantinham curto. A cabana perdera o teto já fazia tempo e estava cheia de lilases, ainda que ainda não haviam florescido, e a casinha que ficava detrás estava cheia de urtigas e sabugueiros. Ainda havia um banco de pedra junto à porta, e Stephen se sentou nele e se recostou contra a parede. No vale a noite ainda não desaparecera e se via uma luz de cor verde escuro. As árvores do bosque eram muito antigas, do período primário, pois a ladeira era muito empinada e o terreno muito acidentado para que alguém fosse cortá-las e inclusive para cuidá-los. Eram enormes carvalhos sem forma definida e geralmente ocos, cuja madeira não era aproveitável, e se estendiam quase até a metade da clareira seus galhos com novas folhas de cor verde brilhante, que nem sequer tinham um leve movimento porque ali o ar ficava tão quieto que nem as teias de aranha se moviam. O ar estava quieto e reinava a calma, uma calma cheia de vida, apesar de se ouvir o canto dos melros na distante margem do bosque e o burburinho do arroio que descia até o vale. Em uma das margens do arroio ficava a toca de um texugo. Vários anos atrás Stephen havia visto um grupo de filhotes de raposa brincando ali, mas agora achava que os texugos haviam regressado, pois desde o banco via montes de terra recém tirados dela e inclusive distinguia um caminho muito transitado. "Talvez possa ver um", disse, e após um tempo seguiu mentalmente a melodia de um glória que ele e Jack haviam escutado em Londres, uma glória muito elaborada composta por Frescobaldi. "Mas talvez seja muito tarde", pensou depois, quando a glória terminou e a luz já era mais intensa e de um colorido verde mais brilhante, quase como o da alvorada. Contudo, apenas essas palavras se formaram em sua mente, ouviu alguns rangidos e golpes e viu aparecer do outro lado do arroio um texugo com uma bonita calda rajada que caminhava para trás com um monte de palha debaixo do queixo. Era um texugo velho e gordo que não parava de resmungar e maldizer. Teve muita dificuldade de percorrer o último vão do caminho, porque era empinado e a carga se enganchava nas aveleiras e nos arbustos das margens, largando fibras neles. Levantou a cabeça quando estava justo em frente da entrada da toca e olhou ao redor como se quisesse dizer: "Isto é horrível". Então inspirou, voltou a pegar a carga e depois de maldizer pela última vez entrou de costas na toca.
"Por que sinto tanto regozijo e tanta satisfação?", Stephen se perguntou. Ficou buscando uma resposta convincente durante um momento, mas não encontrou nenhuma, e então se disse: "A verdade é que as sinto". Seguiu sentado ali enquanto os raios do sol penetravam por entre as árvores e desciam cada vez mais. Os que desceram mais alcançaram um galho que estava justo acima dele e iluminaram uma gota de orvalho que havia sobre uma folha. Imediatamente a gota se pôs de cor carmesim, e quando Stephen moveu ligeiramente a cabeça, pôde ver claramente nela todos as cores do espectro, desde um vermelho tão escuro que era difícil de distinguir até o último tom do violeta, e depois todos na ordem contrária. Alguns minutos depois, o grito agudo de um faisão rompeu o silêncio e o encanto e Stephen se lenvantou.
Na margem do bosque ouvia-se muito mais forte o canto dos melros, a quem acompanhavam agora os rouxinóis, os tordos, as calandras, as pombas e muitos outros pássaros que nunca deviam ter cantado. O caminho atravessava agora uma série de campos sem cultivar até chegar ao bosque de Jack, onde os falcões apicultores haviam se alojado tempos atrás. Mas esses campos tinham um excelente aspecto, pois os raios do sol ainda em ascensão, que não eram deslumbrantes porque passavam através de uma espécie de véu, faziam as cores mais intensas do que Stephen jamais vira, e tanto o verde da vegetação como o azul claro do céu pareciam recém criados. O dia esquentava pouco a pouco, e centenas de aromas flutuavam no ar.
"Agradecer algo usando muitas palavras é quase impossível -disse, sentando-se em uma escada para passar por cima de uma cerca e observando duas lebres que brincavam. As lebres punham as duas patas uma na frente da outra; depois saltavam e corriam e voltavam a saltar. - Que poucos podem dizer pelo menos cinco frases que façam efeito! E a maioria das dedicatórias são insuportáveis, inclusive as melhores - pensou. Depois, recordando ainda a melodia do glória, disse para si -: talvez a repetição de elogios de uma maneira formal seja uma tentativa de resolver isto, uma tentativa de expressar gratidão por outros meios. Vou contar esta idéia para Jack." As lebres se afastaram correndo até que se perderam de vista e ele reiniciou a marcha cantando com voz grave: «Quoniam tu solus sanctus, tu solus Dominus, tu solus altissimus»{13} até que ouviu a sua esquerda como um cuco cantava muito alto e claro. Logo ouviu um agudo grasnido e depois, muito longe a sua direita, a resposta muito mais baixa.
De repente perdeu a alegria e continuou andando com a cabeça baixa e as mãos agarradas atrás das costas. Já se encontrava perto das terras de Jack. Só teve que atravessar um campo mais e depois uma vereda, para chegar à parte de Ashgrove onde a terra era muito ruim e ficavam as malditas minas de chumbo com montes de escória dentro. Depois passou pelos terrenos cultivados de Jack, onde as plantas ainda eram raquíticas e estavam roídas pelos coelhos, as lebres, os veados e uma grande variedade de lagartas, e por fim pôde ver a casa. Já era de dia e haviam começado as tarefas da vida cotidiana. O silêncio se quebrara fazia tempo, e não foi necessário que ouvisse o grito dos cucos, que muitos usavam para zombar os cornudos, para que deixasse de ter a impressão de que era iminente um milagre. O dia era simplesmente um dia de verão na primavera.
Aproximou-se da casa pela parte traseira e não achou que tivesse melhor aspecto. Jack a comprara quando era pobre e a ampliara quando era rico, e o resultado era uma massa sem harmonia que tinha poucas das vantagens das casas da cidade e nenhuma das que uma casa de campo poderia oferecer. Contudo, pelo menos tinha magníficos estábulos. Jack Aubrey gostava da caça à raposa e, ademais, estava convencido de que entendia de cavalos tanto como qualquer dos homens que apareciam no Boletim Oficial da Armada, e quando regressou da operação Mauricio carregado com um abundante butim, construiu um amplo pátio com uma cocheira para duas carruagens e de um lado uma edificação para o alojamento dos cavalos e dos caçadores, do outro uma fileira de compartimentos onde pensava guardar os cavalos de corridas da quadra que queria começar a formar, e nos cantos alpendres para amarrar os cavalos. Tudo isso formava um bonito retângulo de tijolos rosados e pedras de Portland coroado por uma torre com um relógio com o mostrador azul.
Stephen não se surpreendeu em ver a maior parte daquela construção fechada, pois os caçadores e os cavalos de corridas haviam desaparecido assim que começaram as desgraças de Jack; mas não explicava por que não havia ali nenhuma outra criatura, nem o carroça, nem a pequena carruagem que Sophie usava para ir a outros lugares. Tampouco se explicava por que a casa estava tão silenciosa, aonde chegou atravessando o jardim que havia atrás da cozinha. Jack tinha três filhos e uma sogra, e não era normal que em sua casa houvesse silêncio; contudo, não saía nenhum som pelas portas nem pelas janelas. Stephen ficou muito nervoso, e seu nervosismo aumentou ao notar que todas as portas e janelas estavam abertas e, ademais, meio quebadas, o que dava à casa um aspecto lamentável e desolador. Por outro lado, havia um forte odor de terebintina, que poderia ter sido usada como desinfetante. Havia visto que em algumas epidemias famílias inteiras haviam sido afetadas da noite para a manhã, por exemplo, na do cólera morbo.
- Deus nos proteja! - sussurrou.
Um distante grito de alegria fez seus pensamentos mudarem, e alguns momentos depois se ouviu o peculiar som inglês de um bastão golpeando uma bola seguido de outros gritos. Atravessou rapidamente o que Jack chamava de roseiral (lucus a non lucendo{14}), depois um terreno coberto de arbustos e por fim chegou na borda do cume da colina e mais abaixo viu em um amplo pasto alguns homens jogando críquete. Todos os jogadores da equipe que não rebatiam estavam em seus postos olhando com atenção os movimentos do lançador. Imediatamente se ouviu o golpe outra vez, e os jogadores que rebatiam correram entre as metas e os que estavam ao redor do campo correram para pegar a bola e a lançaram para o interior deste. Então todos voltaram a ocupar seus postos como se executassem uma dança solene, com suas camisas brancas destacando-se sobre a verde grama.
Stephen desceu pela ladeira, e quando já estava perto do campo reconheceu os jogadores, pelo menos todos os da equipe que rebatia e alguns de seus oponentes. Plaice e Bonden estavam dentro do campo e o capitão Babbington, que havia servido como guarda-marinha às ordens de Jack, depois havia sido um de seus tenentes e agora estava ao comando da Tartarus (uma corveta de dezoito canhões), lançava a bola para seus antigos companheiros de tripulação como se quisesse arrancar-lhes as pernas ao mesmo tempo que derrubar as estacas das metas. Plaice só rebatia todas as bolas que tinham uma trajetória reta e deixava as demais, mas Bonden, que olhava as bolas com muita atenção, rebatia todas com a mesma fúria e havia feito catorze corridas durante essa fase do jogo. Nesse momento lhe lançaram a última bola, que tinha pouco impulso e ia passar fora da meta, e ele lhe bateu com toda sua força, mas não havia calculado bem a elevação do bastão e a bola não passou roçando as cabeças dos jogadores que estavam ao redor do campo, senão que subiu de maneira assombrosa, como um morteiro ou um foguete, e quase chegou a desaparecer.
Três dos jogadores que estavam ao redor do campo correram na direção em que Stephen caminhava, todos eles com os braços estendidos e olhando para cima, e outros gritavam: "Cuidado com as cabeças!" ou "Afastem-se!" Stephen tinha o pensamento longe dali e não ouvira o golpe nem havia visto a bola, mas uma das poucas coisas que havia aprendido na Armada, dolorosamente, era que o grito "Afastem-se!" geralmente precedia só um instante à queda de um jorro de breu fervendo, de um pesado moitão ou de um pontiagudo passador, assim que, muito angustiado, se fastou correndo de seu caminho inclinando-se para a frente e protegendo a cabeça com as mãos, mas, devido a esse desafortunado movimento, chocou-se com um dos jogadores que estavam ao redor do campo e que corria para trás e depois com outro que se colocara onde a bola ia cair. Os três caíram amontoados, e outros jogadores lhe tiraram dali dando gritos. Alguns gritaram "Mas é o doutor!"; outros, "Se feriu, senhor?"; outro, olhando para o suboficial da Tartarus, que havia mantido segura a bola apesar de tudo e havia saído daquela confusão de braços e pernas com ela na mão e com uma expressão triunfante, gritou: " Por que não olhas para onde vai, lerdo besta?".
- Bem, Stephen - disse Jack conduzindo-o até o carro onde estavam as bebidas, depois de arrumar-lhe a roupa e sacudi-la -, então você veio na diligência noturna. Alegro-me de que tenha encontrado lugar. Como não lhe esperava até amanhã, não lhe deixei nenhuma nota. Deve ter se assombrado muito ao ver a casa vazia. Quer uma cerveja de lata ou prefere um copo de ponche frio?
- Não tem café? Ainda não desjejuei.
- Não desjejuou? Meu Deus! Isso é incrível. Vamos fazer um pouco. Ainda há que derrubar cinco travessões e Plaice e Killick ficarão alí colados como lapas. Temos muito tempo.
- Onde está Sophie? - perguntou Stephen.
- Não está aqui - respondeu Jack. - Foi para a Irlanda com as crianças e sua mãe porque Frances ia ter um filho. Não acha surpreendente? Eu lhe asseguro que fiquei perplexo quando cheguei em casa e não encontrei ninguém de minha família nem o velho Bray, que estava na taberna. Ela nem sequer sabia que estávamos neste hemisfério, mas deixará ali as crianças e virá imediatamente. Com um pouco de sorte, poderemos vê-la na terça-feira, ou talvez na segunda-feira.
- Espero que assim seja.
- Oh, Stephen, desejo ansiosamente que chegue! - exclamou Jack e se riu ao pensar na futura chegada. Enquanto caminhavam acrescentou -: enquanto isso estivemos aqui sozinhos, como um chateado grupo de solteiros. Por sorte, a chegada da Tartarus nos animou, e como há muitos antigos tripulantes da Surprise aqui e em Pompey{15}, entre eles os guardas-marinhas e Padeen, seu servente, pudemos formar uma equipe para jogar contra seus homens, ainda que Mowett e Pullings foram para a cidade para ver o editor. Não os viu por muito pouco, o que lamento porque nunca vi dois homens mais nervosos em minha vida e provavelmente lhes haveria beneficiado alguma de suas poções de limo. De qualquer maneira, temos uma equipe, e nos trarão o almoço para o campo de Goat and Compasses. Não imagina como cozinham ali o veado. Fica tão tenro como a bezerra. Olhe, Stephen, vê esse extremo do bosque onde há tantos arbustos? Quero cortar o terreno ali de maneira que a nova ala tenha um terraço e uma ampla faixa de capim, isto é, de grama. Sempre quis ter um terreno com grama e talvez tenha mais sorte com ele que com as plantas.
- Então que vai construir uma nova ala.
- Oh, sim! Vivemos muito apertados, sabe? Com três crianças e uma sogra que vem amiúde passar temporadas, parece que vivemos em um cúter, cotovelo com cotovelo, como se cada um só tivesse catorze polegadas para pendurar sua maca. E Sophie diz que não pode seguir vivendo sem mais armários. Aí está Dray, entrando no pátio. Ei, a carroça! Eu lhe mandei a Portsmouth para buscar os jornais.
A carroça virou para a vereda de cascalho e o marinheiro que a conduzia perguntou:
- Como vamos, senhor?
Logo entregou o exemplar de The Times e cumprimentou a Stephen pondo a outra mão na testa.
- Quarenta e oito a cinco - respondeu Jack. - Com um pouco de sorte derrotaremos os homens da Tartarus. Vá lá abaixo. Eu guardarei a carroça.
Dray amarrou sua perna de madeira, que havia tirado para conduzir, e desceu tão rápido como pôde pela ladeira, pois ainda que já não podia jogar, era um crítico apaixonado. Era necessário fazer muito pouco esforço para guardar a carroça, já que estava enganchada a um manso cavalo surdo, curto de vista e de pernas curtas, cuja idade ninguém sabia com exatidão. Sophie o escolhera, que não gostava e temia os cavalos (o que era lógico porque havia tido que montar em um que mordia ainda que estivesse com o freio sendo muito jovem, vira vários caçadores romper as costelas e a clavícula de seu esposo e tinha a certeza de que os dotes de suas filhas teriam sido gastados em cavalos de corridas se não estivessem assegurados legalmente). O cavalo, que se chamava Moisés, começou a caminhar devagar pelo pátio, fixando seus maltratados olhos em Jack, que passava as páginas do exemplar de The Times para encontrar a de informação financeira. Jack, ainda lendo, abriu a portinhola de um dos magníficos compartimentos, e enquanto Stephen desprendeu a carroça, Moisés entrou, deitou no solo, deu um suspiro e fechou os olhos.
- Está melhor do que pensava - disse Jack com o rosto radiante, o que lhe fazia parecer dez anos mais jovem. - Espero que haja tirado proveito do que lhe disse.
- Certamente que sim - disse Stephen sem ênfase. - Segui seu conselho.
Então Jack compreendeu que ele não ia contar mais nada.
- Teremos um terraço muito espaçoso e possivelmente com fontes - disse Jack. - Também seria muito conveniente ter uma sala de bilhar para os dias em que chove muito.
Conduziu seu amigo para a cozinha, abriu a porta do pequeno fogão e jogou ar dentro com o fole até que o carvão ficou quase branco.
- Desculpe o odor de tinta - disse, pegando o moedor de café. - Demos a primeira demão ontem… - acrescentou, e o ruído do moedor afogou o restante de suas palavras.
Beberam a reconfortante infusão fora, caminhando de um lado para outro rodeados da suave brisa, e Stephen, um homem sóbrio na refeição, comeu duas pequenas bolachas. Quando terminaram de beber a cafeteira, Jack aguçou o ouvido e pôde escutar alguns gritos no campo de críquete.
- Talvez seja melhor que regressemos lá para baixo - disse.
Quando se dirigiam ali pela estreita vereda, olhou um momento para trás e, com um doce sorriso, perguntou:
- Eu lhe disse que adoraria comprar a Surprise? Posso atracá-la em um porto privado em Porchester.
- Céus! Não acha que é algo muito caro, Jack? Se não me engano, o Governo deu vinte mil libras pelo Chesapeake.
- Sim, mas o fez para animar a outros marinheiros a que fizessem o mesmo. A venda de um barco da Armada é outra coisa Duvido que a Surprise alcance esse preço.
- Como se pode comprar um barco?
- A pessoa tem que estar ali e com dinheiro vivo na mão… Bom golpe, bom golpe!
Honey, que era um perigoso rebatedor porque dava tacadas com muita força, golpeara a bola de maneira que esta descreveu uma trajetória curva em direção ao carro do Goat and Compasses, um carro puxado por duas vacas que trazia a comida dos jogadores de críquete.
Honey acertou a bola seguinte de forma muito parecida, mas o cabo da Tartarus, um homem muito astuto, havia feito um movimento defensivo e ficou em um lugar onde pôde pegar a bola. Honey estava fora do jogo e já não havia mais entradas. Os homens estavam tão contentes que desprenderam as vacas e levaram o carro a toda velocidade para seus respectivos capitães.
- Padeen, fez alguma corrida? - perguntou Stephen em irlandês para seu servente, um homem de Munster robusto, gago e não muito inteligente.
- Acho que sim, senhor, mas depois corri para trás. Quem poderia me dizer se eu digo isso?
- Quem? - perguntou Stephen, que havia jogado o jogo nas ilhas Molucas uma só vez e nunca havia chegado a entender os detalhes, nem ao menos as regras básicas.
- Sua senhoria poderia explicar-me este jogo saxão?
- Poderia - respondeu Stephen. - Quando termine o bolo de veado, que parece ser o melhor bolo de veado do mundo, pedirei ao pequeno capitão que me explique todas as regras, pois jogou na equipe dos Gentlemen de Hampshire. Deve saber que Thomond é para o hurling{16} o que Hampshire é para o críquete.
O pequeno capitão era Babbington, e certamente sabia muito do jogo; contudo, nenhum de seus companheiros de tripulação antigos ou atuais, nem o oficial de maior categoria que a sua nem os subordinados deste, deixaram-no terminar nenhuma frase quando o estava explicando. Era de esperar que os dez bolos de veado, os dez bolos de maçã, a interminável quantidade de pão e queijo e os quatro barris de cerveja tivessem um efeito letal, mas não foi assim. Todos os homens que estavam ali, incluídos alguns dos guardas-marinhas da Academia Naval, tinham diferentes opiniões sobre a origem do críquete, o que era um bom lançamento, qual era o melhor modo de usar um bastão e que quantidade de estacas se usavam no tempo de seus avós, e inclusive um dos guardas-marinhas de Babbington lhe contradisse quando deu a definição do lançamento em que a bola passava por fora da meta e permitia anotar uma corrida. Ninguém contradisse ao capitão Aubrey, que adormecera recostado à roda do carro com o chapéu sobre a cara, mas todos chegaram a discutir tão acaloradamente que Babbington convidou Stephen para caminhar pelo campo para ensinar-lhe os lugares onde deviam ficar os jogadores à esquerda ou à direita dos rebatedores ou diante da meta.
Pouco depois deixou de falar das posições no campo, disse que esperava que no dia seguinte pudesse mostrar-lhe a diferença entre um lançamento lento que derrubava a meta e outro que podia fazer regressar a bola.
- Meu Deus! Não me diga que os senhores vão jogar toda a tarde e também amanhã o dia todo! - exclamou Stephen surpreendido em tom descortês, pensando que ia ter uma insuportável chateação durante um longo tempo.
- Oh, sim! Íamos jogar por três dias seguidos, mas como a senhora Aubrey vem, há que arrumar a casa, retocar a pintura e lavar e secar bem o piso. Contudo, como as tardes são compridas, acho que as duas equipes terão tempo para jogar duas entradas.
Depois de uma pausa, em um tom diferente, acrescentou:
- Senhor, uma das razões pelas quais me alegrei quando o capitão disse que o senhor viria é que queria pedir um conselho.
- Ah! - exclamou Stephen.
Em outro tempo isso significaria que queria perguntar-lhe algo relacionado com a medicina (quando Babbington era muito jovem, uma vez que tinha prisão de ventre seus companheiros lhe convenceram de que ia ter um filho) ou que gostaria de pedir-lhe emprestada uma soma que variava entre seis peniques e meio guinéu. Mas isso ocorrera há muito tempo, e agora Babbington possuía muitos bens, entre eles um insignificante município com representação parlamentária, e, por outro lado, era improvável que acreditasse que estava grávido.
- Bem, senhor, a questão é… - disse Babbington. - Bem, não quero me estender, quer dizer, acho que é melhor que vá direto ao ponto. Acho que o senhor se recordará que o almirante Harte ficou furioso quando me surpreendeu…, bem, beijando a sua filha.
- Lembro que soltou algumas expressões grosseiras.
- Fez algo pior que isso. Prendeu e bateu em Fanny quando descobriu que nos escrevíamos. Depois lhe disse que tinha que aceitar se casar com Andrew Wray ou não lhe permitiria ir a nenhum baile nem a nenhuma obra de teatro e, além do mais, que era público e notório que eu cortejava a filha do governador de Antígua. Porém, para não me estender, só lhe direi que quando trrouxe a Dryad para a Inglaterra… Se recorda da Dryad, senhor? Que navegava bem de bolina! Pois nos encontramos em um baile e percebemos que nos queríamos como antes, ou mais se isso é possível.
- Escute, meu querido William - disse Stephen -, se quer que lhe aconselhe que cometa adultério…
- Não, não, senhor - disse Babbington, sorrindo. - Não necessito de conselhos sobre adultério. O que quero é… Mas talvez deveria lhe explicar a situação. Como o senhor provavelmente saberá, o almirante Harte era muito rico, e todos diziam que Fanny herdaria uma grande fortuna e que formava um belo casal com Wray; contudo, poucos sabiam que ele não poderia tocar em nem um penique sem o consentimento dela. E eles não entram em acordo nem nunca estiveram de acordo. Como seria possível que estivessem? Eles se parecem como um ovo a uma castanha. Ele é um maldito sem-vergonha que, além de bater nela, bebe muito, e o álcool lhe sobe à cabeça. E lhe disse claramente que só se casou com ela por seu dinheiro. Parece que está endividado até as sobrancelhas e que os alguazis vão amiúde à sua casa e são tirados dali por um meio ou outro.
"Minha visita deve de ter sido muito inoportuna", pensou Stephen.
- Mas não quero seguir falando mal deste homem - disse Babbington. - O que quero é que me diga a melhor forma de agirmos, pois o senhor conviveu com ele em Malta durante muito tempo e, ademais, pode ver mais através de uma parede de tijolo que a maioria das pessoas. Por um lado, pensamos dar-lhe uma parte da fortuna de Fanny sob a condição de que aparente que o matrimônio continua, ainda que, na realidade, cada um terá sua própia vida; contudo, disseram-me que não poderíamos lhe obrigar a fazê-lo mediante nenhum contrato e que teríamos que confiar nele. Por outro lado, pensamos em fugir juntos e deixar que me processe por incitação a delinqüir, ou seja, que me peça danos e prejuízos por isso.
- Senhor, senhor! - gritou um guarda-marinha, correndo atrás deles. - O capitão despertou e quer saber se deseja que sua equipe comece suas entradas agora, pois há muito o que fazer no sábado.
- Jé irei - disse Babbington, e se voltou para Stephen e, em voz baixa, perguntou -: Pensará nisso e me dirá sua opinião, senhor?
Ainda que Stephen sabia que, em um caso como esse, qualquer conselho que não satisfizesse os desejos das pessoas a quem concernia eram inúteis e às vezes ofensivos, pensou nele durante aquela interminável tarde, enquanto os tripulantes da Tartarus anotavam corridas, tanto as feitas quando o rebatedor golpeava a bola como quando não a golpeava. O marinheiro encarregado do castelo bateu primeiro. Era um homem robusto e de meia idade que em sua juventude estivera em Gibraltar quando havia sido sitiado e nunca havia esquecido o valor da tenaz resistência. Nem ele nem o carpinteiro jogavam por diversão. Ambos conseguiram que lhes caísse aos pés a alma dos lançadores, que lançaram inutilmente as bolas com rapidez, umas descrevendo uma reta, outras, uma curva por fora da meta, outras, uma curva fechada, até que o marinheiro que estivera em Gibraltar se deslumbrou com o sol poente e, em consequência, deixou de pegar uma bola lançada desesperadamente contra a estaca do centro da meta.
No dia seguinte o jogo foi um pouco menos sério. Os tripulantes da Tartarus deixaram que os jogadores da equipe; de Jack fizessem duzentos e cinqüenta e cinco pontos na primeira entrada, e os tripulantes da Surprise rebateram de um lado para outro do campo com a agilidade dos bons marinheiros. Mas já era muito tarde, e para Stephen o críquete ficou marcado para sempre como um passatempo realmente insípido que servia de entretenimento talvez por meia hora, mas que não era comparável ao hurling, se a comparação se basesse na rapidez, na habilidade, na graça de movimentos e na emoção.
Contudo, o segundo dia foi mais animado porque chegou Martin, muito magro e empoeirado depois de andar de Fareham a Portsmouth e de Portsmouth a Ashgrove. Quando saiu da Surprise, fora ao povoado onde vivia a jovem com quem queria se casar, e esqueceu que necessitava de um certificado de boa conduta e moralidade expedido pelo capitão Aubrey para poder receber seu pagamento, e o capitão Aubrey, que raras vezes levava pastores a bordo de seus barcos, havia se esquecido de dá-lo. Mas Martin necessitava do dinheiro urgentemente.
- O senhor não pode imaginar, meu querido Maturin… - disse Martin reclinando-se em uma cadeira de lona que estava na borda do campo, com um copo de conhaque com refresco de gengibre na mão e o certificado no colo. - Ainda que talvez possa, mas eu não, porque sempre vivi em um quarto alugado em casa de outras pessoas. Não pode imaginar o custo de uma casa. Vamos viver em uma pequena casa de campo que fica muito perto da reitoria de seu pai, pois assim ela não ficará sozinha quando eu estiver navegando, e também muito perto de um dos lugares mais benéficos para os maçaricos que possa imaginar; contudo, equipá-la com as coisas mais necessárias… Por Deus! Como custam caro as panelas, os suportes para lenha, os objetos de cerâmica de Delft vendidos nos mercados e as facas de cabo verde comuns; isso basta para fazer empalidecer qualquer homem. E não falemos do que custam as vassouras, os baldes e as bacias. Acho que é uma grande responsabilidade.
Depois de dar as boas-vindas a Martin, Stephen o levou para a casa para que comesse e bebesse vinho, e o felicitou por seu próximo matrimônio. Agora, depois de ouvir-lhe falar durante um tempo do exorbitado preço das caçarolas de cobre, dos raladores de queijo e outros muitos objetos domésticos, perguntou-lhe:
- Gostaria de ver um rouxinól em seu ninho? Está a menos de meia milha daqui.
- A verdade, Maturin, em um extraordinário dia primaveral como este, nada me produz mais satisfação que ficar sentado embaixo do sol em uma cômoda cadeira, com um grande terreno coberto de grama diante de mim, ouvindo o som do bastão ao golpear a bola e olhando os jogadores de críquete, sobretudo jogadores como estes. Percebeu de como Maitland viu de longe por onde iria a bola? Que rebatida! Não acha que ver uma boa partida de críquete produz bem-estar, entretém e é um bálsamo para a ansiedade?
- Não. Acho que, exceto por sua presença, é terrivelmente chata.
- Talvez não tenha notado alguns dos detalhes mais sutis. Boa jogada, senhor! Muito boa jogada! Nunca vira uma rebatida no último momento tão boa como esta. Como correm! Ah, ah! Por pouco esse homem sai fora. Olhe como voam os travessões! Por pouco não saem de seu terreno. Fazia anos que não via um jogo de críquete tão sério.
- É tão sério que parece um funeral.
- O senhor conhece a sir Joseph Banks, não é?
- Ao rei da botânica? Como não ia conhecê-lo se é o presidente da Royal Society?
- Foi ao mesmo colégio que eu, mas é de uma geração anterior. Amiúde ia nos visitar, e uma vez me disse que no céu jogavam críquete, e isso, dito por alguém com seus conhecimentos, é uma recomendação.
- Terei que pôr-me o mais cômodo possível no limbo.
- Desastrado! - gritou Martin quando o jogador que estava diante da meta deixou cair a bola que havia agarrado e se virou para trás para procurá-la às apalpadelas.
O rebatedor fez gesto de correr, mas o jogador que estava diante da meta se virou para ele e lançou a bola com rapidez e força diabólica e derrubou a meta.
- Que porco! - gritou Martin. - Que raposa! - acrescentou e quando cessaram os vivas, os apitos e os gritos, continuou -: Lamento não ter podido ver Mowett. Esse editor quer vender seu livro à prévia subscrição, e eu queria lhe dizer quais são as desvantagens desse método. Não há nada pior que ter que ir por aí com uma lista de subscrição pedindo aos conhecidos de um que façam um depósito de meio guinéu. Também queria advertir-lhe que tivesse cuidado com ele, porque, conforme me disseram, tem má fama na rua Grub. Parece que os marinheiros não são tão cautelosos como deveriam quando estão em terra, e que não têm em conta que alguns homens de terra adentro são hipócritas e predadores.
Martin fez alguns comentários mais desse tipo e depois se dedicou à tarefa de mostrar a Stephen os detalhes mais sutis do críquete, mas quando Stephen, depois de ter suportado dez fases mais com outros tantos rebatedores, percebeu que ainda faltavam outras cinco para jogar, e provavelmente para serem eliminados, disse que vira um torcicolo no extremo do pasto e que estava seguro de que ainda continuava ali. Contudo, nem mesmo isso conseguiu fazer que Martin se movesse.
- Um torcicolo? - perguntou Martin. - Ah, sim! nesta região lhe chamam o companheiro do cuco, e aqui há muitos cucos. Há três pelo menos. Escute como cantam. É um canto desesperador e desagrada aos homens casados. Meu Deus! E pensar que dentro de duas semanas me converterei em esposo! Lance-a alta, homem, lance-a alta ou nunca o eliminará! Os rebotes não são bons!
A tarde foi inclusive melhor que a manhã, e Stephen passou a maior parte dela passeando pelo bosque e os pastos. Foi visitar os rouxinóis e viu muitas outras aves de olhos brilhantes; entre elas uma faisã que estava incubando e um açor com uma campainha de prata em uma pata que estava pousado em um ramo e lhe olhou com desconfiança quando passou por seu lado. Teve muito tempo para refletir sobre a situação de Babbington e o fez, mas não achou nenhuma solução. Ao anoitecer, quando a partida, como Martin havia previsto, acabou em empate, disse para Babbington:
- William, sinto dizer que não posso lhe dar nenhuma solução nem sugerir nada medianamente inteligente. Espero que tenha considerado que um esposo que ocupa um posto no Almirantado é capaz de arruinar a carreira do oficial de marinha que lhe feriu.
- Sim. Eu considerei isso, mas não me importa porque meus primos e eu podemos contar com cinco ou provavelmente sete votos na Câmara dos Comuns, e aí é onde realmente está hoje em dia o apoio ao Governo, não na Câmara dos Lores.
- Sem dúvida, sabe mais destas coisas que eu. A outra coisa que queria dizer é que não é sensato para uma pessoa confiar em um homem a quem não se conhece bem, sobretudo se esse homem lhe detesta. Não digo isto por Wray, mas em geral. Tenho que confessar que esta é uma referência à generalidade dos homens que fez A Pallice.
- Eu sabia que o senhor seria favorável à nossa fuga - disse Babbington, apertando-lhe a mão.
- Não estou a favor disso - disse Stephen.
- Sabia que era a pessoa mais sensata de toda a Armada, e vou dizer a Fanny quando eu levar a Tartarus para Londres.
- Se não recordo mal, está fazendo o bloqueio a Brest.
- Sim. Infelizmente, zarparemos na segunda-feira, a menos que algo o impeça.
- Não poderá ver Sophie.
- Temo que não, e é uma lástima, mas pelo menos ajudarei para que a casa esteja arrumada quando chegue.
Stephen havia visto ao capitão Aubrey, seus oficiais e seus marinheiros arrumarem um barco como era devido para passar pela inspeção de um almirante, mas nunca havia visto Jack arrumar sua casa para quando regressasse sua queridíssima e largamente esperada esposa, e lhe surpreendeu ver o que fazia. Parecia nervoso, assustado e aflito, provavelmente porque cada vez lhe parecia mais provável que Sophie pensasse que ele a havia ofendido.
Na Armada os marinheiros pintavam os barcos quase constantemente, desde que o tempo permitisse, e alguns abriam um grande espaço de proa a popa quando eram chamados para seus postos de combate. Isso ocorria em todos os barcos que Jack governava, e para suas brigadas de carpinteiros e para seus ebanistas achavam algo normal derrubar todos os anteparos e as paredes interiores e tirar as portas perfeitamente ajustadas e as armários e, mais ou menos uma hora depois, voltar a colocar tudo. Potanto, Jack dispunha de trabalhadores muito hábeis que haviam estado sob suas ordens e além dos melhores da Tartarus e de dois especialistas ebanistas que haviam vindo de Portsmouth. Na quarta-feira todos haviam começado a trabalhar na casa. Haviam tirado todas as portas, as janelas e as basculante e as haviam raspado e lavado, e haviam lhes dado a primeira mão de tinta.
Esse dia iam dar-lhe a segunda mão com uma tinta para barcos que se secava rápido. Depois começariam a limpar a fundo tudo o que ficava à vista de modo que no domingo pudessem voltar a colocar as coisas nas habitações principais, para que pudessem ser usadas. Enquanto isso, tinham redes penduradas nos compartimentos do estábulo e os móveis metidos na cocheira.
- Espero que não se importe de levantar cedo amanhã, Stephen - disse Jack essa noite. - Se tivermos um pouco mais de tempo, poderemos tirar as lajotas do saguão, da cozinha, da dispensa, e do refeitório e limpá-las com pedra arenito até que voltem a ficar brancas. Ademais, poderemos enquadrar as quinas e polir a superfície. A idéia foi de Babbington, e o encarregado da bodega de seu barco, que é especialista em fazer lajotas, diz que a única coisa de que necessita é uma grande pedra arenito, um andaime e meio celemine (4,6lt) de grés de Purbeck.
Stephen estava acostumado a sofrer incômodos no mar, ou em qualquer outro lugar em que os membros da Armada faziam limpeza conforme um ritual que parecia hebraico, mas nunca havia visto nenhum lugar que houvesse ficado devastado como Ashgrove Cottage pouco depois que a alvorada entrassem ali com vários grupos de homens a limpar. Todas as portas e janelas estavam fora, no estábulo, seguras com cavilhas a uma série de cordas estendidas que formavam um engenhoso sistema que permitia que os dois lados recebessem tanto ar e tanta luz do sol como fosse possível. Por toda a casa se ouvia a água correndo, as escovas esfregando com força, violentos golpes e os gritos que habitualmente os marinheiros davam, pelo que parecia que havia sido assaltada de surpresa. Apesar de fazer um tempo celestial, a casa parecia uma mistura de fábrica, cisterna e correcional onde os presos faziam trabalhos forçados. Stephen se alegrou de sair dali por ter que levar Martin na carroça para Portsmouth, onde pegaria a diligência de Salisbury.
Como Martin já não estava atendendo ao jogo de críquete, voltou a ser um agradável companheiro, e ambos desfrutaram contemplando em Ports Down os tordos, os chascos e um pássaro carpinteiro com algumas manchas que comia formigas e que nenhum deles havia visto antes. Mas quando entraram na cidade, comportou-se como um típico futuro esposo. Pegou uma lista do bolso e disse:
- Uma peneira cônica para fazer molho, um garrafeiro, um sifão, três colheres de ferro, uma bolsa de espremer a fruta para fazer geléia mais bem grande. Maturin, espero que não se importe de irmos a uma serralheria. Agora que estou seguro de que receberei meu pagamento, acho que posso comprar-me uma peneira de cobre e um garrafeiro de latão, mas como esta compra é tão importante, agradeceria se o senhor me aconselhasse. Os conselhos que Stephen podia dar-lhe sobre os garrafeiros não eram muito valiosos, mas lhe deu durante meia hora cheia de vacilações e indecisão, porque apreciava sinceramente a Martin. Contudo, por maior que fosse seu afeto, não podia falar dos méritos das panelas de lata com o fundo de cobre durante muito tempo, assim que deixou Martin com a amável e infinitamente paciente esposa do serralheiro, cruzou a rua e entrou em uma prataria onde comprou, como presente de casamento, uma chaleira, uma jarra para leite e um açucareiro.
Quando regressou com o pacote, encontrou Martin indeciso entre comprar um ou outro de dois potes para congelar, que não se diferenciavam nem em tamanho nem em qualidade e lhe disse:
- Eu lhe rogo que o senhor e sua esposa aceitem isto que lhes ofereço com carinho.
- Oh! - exclamou Martin com assombro. - Muito obrigado. Posso vê-lo?
- Mas não poderá embrulhá-lo bem outra vez.
- Eu embrulharei para o cavalheiro - a esposa do serralheiro se ofereceu amavelmente.
- Oh, Maturin! - exclamou Martin, levantando a chaleira. - O senhor é muito amável. Eu lhe agradeço muito, muito. Polly ficará encantada. Deus lhe abençoe.
- Ouça, senhor, o que o senhor pensou? - perguntou o ourives em tom mal-humorado ao entrar de repente na serralheria. - Se Bob não lhe visse entrar na loja da senhora Westby, em que situação eu teria ficado? Seria feito de bobo, claro. Agora conte comigo - acrescentou em tom enfático e pôs um a um as notas e as moedas que trazia em um lugar. - E cinco, dezessete, o que faz um total de dezessete libras e quarenta e três peniques, senhor… com sua permissão.
Terminou de falar bruscamente e lançou um significativo olhar para a senhora Westby, que franziu os lábios e moveu a cabeça de um lado para o outro.
Stephen pôs a melhor expressão que pôde, mas esse não era seu dia. Voltar a envolver o pacote e empacotar os objetos da serralheria levou tanto tempo que ambos tiveram que correr furiosamente para alcançar a diligência de Salisbury, e inclusive gritar para que se detivesse. Martin pôde subir, mas quando a diligência começou a se afastar a toda velocidade, porque já levava um pouco de atraso, Stephen notou que na mão que agitava no ar estava a bolsa de espremer fruta de tamanho médio.
Lentamente, ele e Moisés regressaram para Ashgrove Cottage, e à luz do entardecer pôde ver que a devastação era maior agora, porque haviam tirado o piso do saguão, da cozinha e de todas as habitações da planta baixa. Viu com assombro que onde antes havia lajotas agora havia terra úmida e fedorenta, como a de um campo de batalha, com charcos de água atravessados por pranchas. Os marinheiros, colocados no andaime, poliam as lajotas de seis em seis. Quatro deles, todos muito fortes, moviam a pesada pedra arenito enquanto outro, subido em cima dela e rindo, polvilhava o gres de Purbeck e trocava a direção do jorro de água, e ao mesmo tempo uma pátina de duzentos anos saía por um canal que chegava até o terreno onde Jack havia semeado espargos. O jardim estava atravessado em todas direções por pranchas colocadas sobre lona molhada, e em cima delas podiam se ver grandes objetos que na penumbra pareciam amorfos.
- Oh, Stephen, não sabe como estou satisfeito com as lajotas! - exclamou ao ver a expressão desconsolada de seu amigo. -Demoram em limpá-las um pouco mais do que pensava, e ainda que eu ache que não poderão terminar esta noite, já voltamos a colocar as da parte traseira da dispensa. Venha vê-las. Não acha que estão preciosas?
- São tão bonitas que parecem os quadros de um tabuleiro de xadrez - disse Stephen, erguendo a voz para que pudesse ser ouvido entre alguns golpes que se ouviam acima, os golpes que os marinheiros davam com os esfregões no solo para secá-lo.
- Sophie se surpreenderá - disse Jack. - Venha ver como as polem.
Mas os homens que poliam as lajotas haviam interrompido seu trabalho. Os quatro que moviam a pedra haviam soltado as cordas e o outro estava em uma posição como se estivesse a ponto de saltar, deixando cair a água tranqüilamente e olhando com a boca aberta, como seus companheiros, para uma carruagem. Jack voltou a vista com impaciência para onde eles olhavam e viu a cara de Sophie. Sua gesto incrédulo e desconsolado se transformou imediatamente em uma expressão alegre.
Jack a ajudou a descer e a beijou apaixonadamente. Depois lhe explicou o que estavam fazendo e disse que no dia seguinte tudo estaria como devia: a tinta seca, as lajotas colocadas… Acrescentou que haviam encontrado um poço em desuso no saguão e perguntou como estavam as crianças. Por sua vez, ela, com as palavras saindo aos borbotões de sua boca, contou que a viagem pelo mar havia sido tão boa que havia dormido todo o tempo, que nas pousadas a haviam atendido com cortesia e gentileza e que todos os cocheiros eram muito amáveis. Disse que sua mãe e as crianças estavam bem, assim como Frances e seu bebê, que era um homem, e que o senhor Clotworthy estava muito satisfeito, e acrescentou que lhe encantava estar em casa de novo. Então recuperou a sensatez, afastou a vista da casa bagunçada e apertou a mão de Babbington, abraçou tenramente Stephen e cumprimentou a todos os oficiais, guardas-marinhas e marinheiros que conhecia. Disse que não os incomodaria porque levaria parte de sua bagagem para um compartimento e descansaria ali, e acrescentou que não havia melhor lugar que um compartimento realmente cômodo para descansar.
Foi em um compartimento, em um onde estivera Jezebel, o candidato ao prêmio de Oaks que Jack havia apresentado, onde jantaram iluminados por uma lanterna do estábulo. Tinham muitas coisas para se falar, ainda que não haviam estado separados muito tempo, e raras vezes ficavam silenciosos. Uma das dificuldades que tinham era averiguar o que ambos sabiam pelas cartas e quais eram as que haviam chegado e as que haviam se perdido.
- Sua última carta… - começou a dizer Jack, e percebeu de que começava a pisar terreno pantanoso, mas compreendeu que não podia evitar e, olhando para seu prato, continuou falando em tom grave - eu a recebi em Barbados. Era uma cópia de uma que também mandas-te para Jamaica.
- Ah, sim! - exclamou Sophie. - Aquele amável jovem se ofereceu para levar. Assim que lhe encontrou, hem? Alegro-me muito, querido.
Então lhe olhou fixamente, vacilou alguns momentos e depois, ruborizando-se, continuou:
- Achei que era tão afável em seu trato como alguém desejaria que um jovem fosse. Espero que venha fazer-nos uma longa visita tão logo como lhe permitam suas obrigações. Me gostaria muito que as crianças o conhecessem.
Às onze da manhã da segunda-feira, os últimos fragmentos do desfeito desenho foram colocados em seu lugar. Ashgrove Cottage, recém pintada, com o piso recém colocado e com os vidros, os atiradores e as maçanetas de latão e todos os objetos de metal brilhantes, tão brilhantes como podiam deixá-los os marinheiros com sua característica forma agressiva de limpar, estava agora como Jack queria que Sophie a tivesse visto quando chegasse.
Ao meio-dia os homens de Babbington foram presenteados com rosbife e pudim de passas e depois, ainda relativamente sóbrios, foram metidos em dois carros para ir até onde se encontrava a Tartarus, que devia zarpar essa noite com a mudança da maré. Então Jack conduziu Sophie para o bosque até chegar além da parte coberta de arbustos, e lhe explicou as melhorias que pensava fazer.
- Esta é a vereda que Stephen chama de trocha - explicou Jack. - O pobrezinho usa algumas palavras muito raras. Como às vezes é muito sensível, espero não ter-lhe ofendido por ter-me fixado na forma com que pronuncia Cartilha.
No domingo Stephen fora a Portsmouth para assistir a missa em uma igreja católica que havia ali e ainda não voltara, mas mandara Padeen com o recado de que tinha que ir a Londres e que se desculpava por isso.
- Estou segura de que não, querido - disse Sophie.
Também estava segura de que suas amostras de afeto por Stephen lhe haviam resultado mais dolorosas que as de qualquer outra pessoa. Quando se perguntava se era possível expressar isso com palavras e quais usaria em caso de que o fosse, ambos viram a Killick sair da casa e correr para eles.
Killick estava acostumado a que os alguazis perseguissem ao capitão por suas dívidas e a desfazer-se deles, e agora tinha uma expressão preocupada e uma significativo olhar que lhes fez recordar alguns dos episódios relacionados com esses homens.
- Chegaram os alguazis? - inquiriu Jack.
- Chegou um tipo estranho, senhor - respondeu Killick. - Parece um cavalheiro - acrescentou e depois, falando com a boca meio oculta atrás da mão e em tom angustiado, continuou -: Não é conveniente erquivar-se porque de cada lado do caminho há um grupo de tipos musculosos que se parecem muito com os contrabandistas da rua Bow.
- Falarei com ele - disse Jack, sorrindo e regressou para casa. Ali encontrou um homem muito sereno que tinha um papel dobrado na mão.
- Bom dia, senhor. Sou o capitão Aubrey. Em que posso servir-lhe?
- Bom dia, senhor - disse o homem. - Poderíamos entrar para uma habitação para falar em particular? Fui enviado de Londres para lhe informar de um assunto que lhe afeta consideravelmente.
- Muito bem - disse Jack, abrindo uma porta. - Por favor, tenha cuidado com a pintura. Diga-me, senhor, de que se trata?
- Sinto dizer-lhe que tenho ordem de prender-lhe.
- Diabos! Por qual demanda?
- Não é por dívidas, senhor. É uma ordem de prisão ordinária.
- De que me acusam? - perguntou Jack com assombro.
- De conspiração para fraudar a bolsa.
- Ah, isso! - exclamou Jack, sentindo-se aliviado. - Meu Deus! Posso explicar facilmente as operações que fiz nela.
- Estou seguro de que sim, senhor, mas tenho que pedir-lhe que me acompanhe. Confio que o senhor não fará minha tarefa ainda mais desagradável, quer dizer, confio em que não me obrigará a algemar a um cavalheiro de sua categoria. Se me dá sua palavra de não tentar escapar, atrasarei a execução desta ordem meia hora para dar-lhe tempo para que deixe seus assuntos em ordem. Imediatamente depois partiremos para Londres. Tenho uma carruagem esperando na porta.
CAPÍTULO 7
- Eu gostaria de ter melhores notícias para lhe dar ao seu regresso - disse sir Joseph -, porém, lamentavelmente, às vezes os amigos de um não fazem o que um espera.
- Em troca, outras vezes fazem as coisas tão bem como nem sequer a pessoa mais otimista poderia imaginar - disse Stephen.
- Isso não é nada, não é nada - disse sir Joseph, sorrindo e agitando a mão. - A verdade é que Holroyd não defenderá o capitão Aubrey, e sinto muito, porque é um dos poucos advogados defensores que se dá bem com lorde Quinborough, que presidirá o tribunal. Quinborough não lhe molestaria, como faria com outros advogados, e inclusive trataria ao seu cliente decentemente. Ademais, conforme dizem, Holroyd influe muito no jurado, e todos pensam que é a pessoa mais indicada para ocupar-se do caso. Tenho que admitir que me incomoda sua negativa, porque nunca pensei que recusasse uma petição que eu lhe fizesse diretamente, já que me deve alguns favores. Na realidade, se há comportado como uma pessoa desprezível, pois há dado numerosas desculpas falsas, como por exemplo, que não dispõe do tempo necessário porque o julgamento se celebrará muito cedo e tem muitos compromissos e que, potanto, não porá defender ao seu cliente como deveria.
- Vejo que não lhe convenceram.
- Não, e não soube o porquê até esta noite, quando estava jantando em Colebrook's. Ali me informei de que um juiz morreu de repente e que ainda não se havia decidido quem seria seu sucessor, mas que Holroyd estava entre os candidatos com mais possibilidades. Como o Conselho de Ministros, com uma rapidez e um zelo inusuais, apresentou esta demanda com o único propósito de prejudicar ao Partido Radical, isto é, de destruir ao general Aubrey e seus amigos, Holroyd não quer molestar ao presidente do Tribunal Supremo atuando como defensor do filho do general neste momento, que é um momento decisivo. Tampouco quer molestar ao lorde Quinborough, que é um oponente dos radicais tão enérgico como o presidente do Tribunal Supremo e, ademais, membro do Conselho de Ministros. É raro que um juiz também pertença ao Conselho de Ministros…
- Jack Aubrey está tão longe de ser um radical que não suporta nem sequer ouvir o ome whig - disse Stephen, para quem não lhe importava nem um pouco a composição do Conselho de Ministros. - Quando pensa na política, o que faz duas vezes por ano, declara-se um conservador ultraconservador.
- Mas todos sabem que é filho de um radical tagarela e que constantemente acossa aos ministros no Parlamento. E neste caso, além de ser filho de um radical, está associado com eles, pelo que não tem importância o que diga duas vezes por ano.
- Há notícias do general?
- Dizem que se escondeu na Escócia, ainda que ninguém saiba com certeza. Alguns contam que se barbeou e se escondeu entre as madalenas arrependidas de Clapham.
- Não tem imunidade parlamentária?
- A imunidade parlamentária não é válida somente nos casos de traição e de delitos graves, e não acho que fazer operações fraudulentas na bolsa esteja incluído em nenhuma dessas categorias; mas acho que seu propósito é passar desapercebido, não correr nenhum risco e deixar que seu filho e seus amigos carreguem a culpa. É um velho terrível, sabe?
- Conheço o general Aubrey.
- Voltando a Holroyd, direi que pelo menos me deu um conselho. Como a estratégia da defesa se baseia na identificação do homem do carruagem, o que deu começo ao engano, Holroyd me aconselhou que procurássemos a um investigador independente e me deu o nome de um que, segundo ele, é o melhor de Londres, que lhe ajudou em muitos casos e foi contratado por muitas companhias de seguros. Como o tempo urge, tomei a liberdade de ordenar ao homem que se pusesse a trabalhar imediatamente, ainda que seus honorários sejam de um guinéu diário e há que pagar-lhe o aluguel de um carro. Neste momento o homem está na cozinha. Tem algum inconveniente em falar com ele?
- A verdade é que hei tido trato com carrascos para conseguir algum que outro cadáver interessante - disse Stephen -, assim que não me amedronta falar com um caçador de ladrões.
O investigador, cujo nome era Pratt, tinha um aspecto comum e parecia um discreto comerciante ou o ajudante de um advogado. Sabia que sua profissão geralmente inspirava desprezo porque era muito parecida à de informante da polícia, e permaneceu ali de pé em atitude submissa até que lhe pediram que se sentasse. Então sir Joseph explicou a Pratt que esse cavalheiro era um amigo íntimo do capitão Aubrey, o doutor Maturin, que havia tido que atender a um paciente no campo, e que podia falar com toda franqueza em sua presença.
- Bem, senhor - disse Pratt -, queria ter melhores notícias para dar. Estou seguro de quem tem a razão neste caso, mas até agora não encontrei nenhuma prova que possa ser aceitada por um tribunal. Naturalmente, isto é um montagem, como nós dizemos, e me dei conta disso desde que falei com o capitão, mas apesar de tudo fiz as comprovações necessárias. Descobri que não há nenhuma pessoa com o nome de Ellis Palmer ou com um nome similar que seja redator de leis no Parlamento, e que entre os membros das sociedades culturais ou científicas só havia alguém de nome parecido, o senhor Elliot Palmer, que tem quase oitenta anos e está enclausurado em sua casa devido à gota. Estive também em Dover. No Ship recordavam-se do quacre, do tipo presunçoso e da briga pela carruagem, mas ninguém se fixou muito no senhor Palmer. Disseram-me que não o haviam visto antes e que não podiam dar-me uma descrição dele que fosse confiável. Contudo, tive mais sorte em Sittingbourne. A filha do hoteleiro recordou-se que ele escolhera com cuidado o vinho e disse que achou extranho que, apesar de ter estado ali somente uma vez, falasse e se comportasse como alguém que houvesse frequentado o lugar durante anos. A descrição que fez concordava com a do capitão, por sorte, já que é importante ter pelo menos duas versões, e regressei a Londres com uma idéia clara do tipo de homem que devia buscar e o tipo de lugares onde poderia encontrá-lo. É um tipo, quer dizer, um homem instruído, e possivelmente tenha alguma relação com a advogacia ou a Igreja. Talvez seja um clérigo degradado, e é provável que freqüente salas de jogo. Regressei em uma carruagem conduzida pelo mesmo jovem que trouxe o capitão e o senhor Palmer, e o jovem disse que deixou o capitão em seu clube e o senhor Palmer na rua Butcher. Que fica logo depois da rua Hollywell, senhor, perto da Cidade - disse, voltando a olhar para Stephen.
Stephen pensou: "Minha roupa e minhas botinas são feitas em Londres, não disse nem quatro palavras e mantenho o rosto impassível com facilidade, e, contudo, este homem descobriu que não sou daqui. Ou eu fui um presunsoso durante todos estes anos ou ele é extraordinariamente perspicaz".
- Então, senhor - prosseguiu Pratt, olhando para sir Joseph -, quando o cocheiro viu que o passageiro se dirigia para o norte até a rua Bell Yard, desceu na carruagem pela rua onde se encontra o Temple, o colégio de advogados, até a praça onde fica a fonte. Ali pediu a um garoto que desse de beber aos cavalos, desceu da carruagem e foi para a loja onde vendem bolos de cordeiro que fica situada em uma esquina próxima ao Temple, justo onde se colocam os carros de aluguel, e que fica aberta toda a noite. Enquanto comia o segundo bolo e falava com alguns cocheiros que conhecia, viu aparecer pela outra rua o senhor Palmer, que caminhava trabalhosamente com sua mala e seu portafólio. Depois viu o senhor Palmer atravessar a rua onde fica a Fleet, a prisão para devedores, de norte a sul, compreende, senhor?, e chamar ao primeiro coche, mas não viu em que direção foi. No dia seguinte encontrei o cocheiro, que me disse que havia levado um cavalheiro do Temple até o antigo colégio Major Lyon's.
Pratt olhou fixamente para Stephen por alguns momentos, mas Stephen conhecia aquela isolada e escura série de pátios onde outrora viviam os atuais advogados da Chancelaria e disse:
- Acho que o senhor Pratt começou dizendo que ainda não temos nenhuma prova legal e que não estamos nos aproximando de um momento crítico, senão analisando a situação atual, assim que acho que posso me ausentar um momento.
Então olhou para sir Joseph fazendo um gesto de desculpa e sorrindo.
- Viajei durante a noite toda- acrescentou.
- Certamente! - exclamou Blaine. - Já conhece o caminho.
Stephen conhecia o caminho e sabia que no gabinete de sir Joseph, um lugar escuro e forrado de livros, sempre ficava ardendo a chama de uma lâmpada. Pegou um charuto de sua charuteira, o partiu em dois, acendeu uma parte com a chama da lâmpada (era muito desajeitado usando o isqueiro de pederneira) e ficou ali sentado um pouco aspirando profundamente a fumaça. Nesse momento ouviu a certa distância por debaixo dele o ruído do moedor de café, que, a julgar pelas vibrações que chegavam até ali, ficava fixo na parede, e sorriu, pois fumar um charuto e pensar que logo tomaria café acalmaram uma parte de seu ser, a parte que tinha intranqüilidade por causa da desagradável viagem que havia feito durante a noite, rodeado de passageiros bêbados e em um coche que dava solavancos. A outra parte não podia se acalmar facilmente, pois estava cheia de angústia por várias razões. Em primeiro lugar, ainda que ele desconhecesse as leis inglesas, sabia que Jack Aubrey estava condenado à ruína; em segundo lugar, estava muito preocupado por seu amigo Martin, a quem havia operado talvez tarde demais de uma hérnia estrangulada e havia deixado relativamente acalmado, mas em estado grave; em último lugar, passara um tempo muito desagradável com Sophie quando a visitou em Ashgrove Cottage. Ainda que sentisse um grande afeto por Sophie, assim com ela por ele, suas lágrimas, sua tristeza expressada abertamente e sua necessidade de apoio lhe haviam causado uma grande decepção. Era óbvio que o esgotamento provocado por uma viagem muito comprida e o desconsolo por ter visto sua felicidade truncada haviam influído muito nela, mas ele pensava que Diana ou, pelo menos, a Diana que ele idealizara, haveria tido mais coragem, mais integridade e mais ânimo. Provavelmente Diana blasfemaria, mas nunca diria nada que lembrasse à senhora Williams e, sem dúvida, se não houvesse conseguido enganar ou subornar aos homens que foram prender seu marido, em vez de retorcer as mãos, seguiria-o com um par de meias e um par de camisas limpas apesar dele ter lhe ordenado que não o fizesse. Durante um tempo Stephen seguiu aprofundando na ferida e seguiu comparando Diana com uma tigresa e logo, depois de aspirar a fumaça pela última vez até sentir que a cabeça girava, jogou o cabo, que fez um som sibilante, e desceu a escada.
- Senhor Pratt - disse quando se sentou para tomar café -, o senhor disse que quando falou com o capitão Aubrey se convenceu de que tudo era uma montagem. O senhor se importaria em me dizer o que foi que lhe fez chegar a essa conclusão? Por acaso ele lhe mostrou provas irrefutáveis que desconheço?
- Não, senhor. Não foi tanto o que disse mas a forma com que disse. Confessou que lhe parecia absurda a idéia de que alguém achasse que era capaz de inventar essa série de disparates, pois ele não ouvira falar de coisas como a oferta de aquisição ou a venda imediata até que Palmer lhe explicou. Disse que estava seguro de que Palmer se apresentaria às autoridades e acrescentou que era um bom homem e um especialista em vinhos. Depois acrescentou que ambos iam rir muito quando tudo terminasse. Durante o exercício de minha profissão já ouvi negar os fatos e dar explicações de forma muito diversa, mas nunca ouvira nada igual. Isso não servirá de nada quando o jurado tenha que tomar uma decisão, ao final de um comprido julgamento, e ele esteja desconcertado por encontrar-se em um tribunal e por receber os ataques do promotor e talvez também do juiz, o que é provável neste caso; contudo, se dissesse isso pessoalmente a um par de oficiais na prisão Marshalsea, como dizem os romanos, dar-lhe-iam a sagrada comunhão sem que se houvesse confessado. Em minha profissão um chega a ter intuição para estas coisas, e ainda não estava escutando-lhe há cinco minutos, isto é, dois minutos, quando compreendi que era tão inocente como um nonato. Porém, estimados cavalheiros, não quisesse que levassem um cordeiro ao matadouro. Raras vezes vi um caso similar.
- Provavelmente o senhor tem muita experiência, senhor Pratt.
- Bem… Sim, senhor, acredito que tenho tanta ou mais que a maioria. Nasci em Newgate, sabe? Meu pai era carcereiro ali, assim que me criei entre ladrões. Cheguei a conhecer muito bem aos ladrões e seus filhos foram meus companheiros de jogo. Alguns deles, especialmente os confidentes, eram desprezíveis, mas muitos não eram. Posteriormente trasladaram meu pai para a prisão Clink e depois para a King's Bench; assim que fiz muito mais amigos entre os ladrões e conheci muitos prisioneiros, advogados de baixa categoria e policiais ao sul do rio, o que depois de passar uma temporada entre os contrabandistas da rua Bow me foi muito útil quando comecei meu própio negócio.
- Sim, não tenho nenhuma dúvida disso.
- Agora, senhor - disse Pratt pondo de um lado sua xícara -, acho que deveria seguir falando do antigo colégio Major Lyon's. Devo admitir que pensei que encontrara o homem que buscava, pois ainda que atualmente vivam ali muitas pessoas, sobretudo no edifício do último pátio, que parece uma toca, poucas teriam os traços correspondentes à descrição que tenho. O homem é magro, mede aproximadamente cinco pés e sete polegadas de estatura e, ou bem usa uma peruca curta ou tem seu própio cabelo empoado. Ademais, tem uns cinqüenta anos e, naturalmente, é um lagarto.
- Que quer dizer lagarto?
- Sinto ter usado uma gíria de quadrilha. Essa palavra é usada para se referir a uma pessoa desonesta. Os de quadrilha lhe chamam de palerma se não aproveita todas as oportunidades que se apresentam e acreditam que o mundo está dividido em palermas e lagartos. Indubtavelmente, o senhor Palmer é um lagarto, pois só; um lagarto haveria tratado de despistar seus seguidores como ele. Ademais é um nobre, um cavalheiro de nascimento, pois se fosse um delinqüente comum vestido para a ocasião não poderia ter jantado com o capitão Aubrey nem ter falado dessa forma durante toda a noite sem que o capitão, apesar de cândido… quer dizer, sem que o capitão notasse. Assim que pensei que encontrara ao homem que procurava, mas me equivoquei, porque não vive ali. Ou bem tratava de despistar outra vez ou bem fora ali para visitar alguém para descansar um pouco ou para deixar alguma mensagem. Tive uma grande decepção, mas continuo a investigação. Estou fazendo perguntas a criadas, garotos da rua, transportadores, lixeiros e outras pessoas, assim como a muitas de minhas relações. Sigo investigando na hospedaria para averiguar a quem visitou e chegar até ele através dessa pessoa, mas também estou investigando em outro lugar, entre os nobres que meus amigos conhecem e que poderiam ter interesse em comportar-se assim. Porém, cavalheiros - disse Pratt, olhando alternativamente de um para o outro -, em vista de que não tive tanta sorte como pensava e de que não pude pegar-lhe na primeira tentativa, não me atrevo a fazer-lhes muitas promessas. Esse tipo não é de categoria baixa nem alta, mas de uma que poderia chamar-se suprema. Um trabalho deste tipo, de escala similar a uma fraude que vi na bolsa e a alguns que vi em companhias de seguros e tão custoso e bem preparado como eles, sempre é realizado por um cavalheiro que só falou com um agente secreto, como poderia se chamar, que é quem contrata os participantes, que costumam ser dois ou três, e se ocupa de todos os detalhes. Geralmente, os participantes são dois ou três. Se aprisionasse o quacre ou o tipo presunçoso, que indubtavelmente pertencem ao bando, não nos serviriam de nada, já que não conhecem aos homens que estão detrás do tipo que lhes contratou. O agente secreto é o único que pode delatar seus superiores, e eles se asseguram de que não o faça ameaçando-lhe com revelar um delito que há cometido ou de uma forma mais segura, se as coisas saem mal.
Stephen e sir Joseph se olharam de soslaio e pensaram que isso não era estranho no serviço secreto.
- É um tipo que se cuida muito em qualquer circunstância - prosseguiu Pratt. - Seguirei buscando o senhor Palmer, é claro, mas ainda que consiga achar-lhe, duvido que nos revele algo com respeito aos principais responsáveis deste caso.
- Em nossa opinião, encontrar Palmer é fundamental - disse Stephen. - E como o julgamento se celebrará muito logo, é necessário encontrar-lhe rápido. Diga-me, senhor Pratt, tem algum colega confiável com quem possa trabalhar para ganhar tempo? Eu pagaria a ele o que o senhor estimasse conveniente e duplicaria o que pago ao senhor contanto que possa falar com o senhor Palmer antes do julgamento.
- Bem, senhor, com relação aos meus colegas… - disse Pratt em tom vacilante enquanto esfregava o queixo. - Indubtavelmente, ganharíamos tempo se Bill trabalhasse ao sul do rio - murmurou e depois, subindo a voz, acrescentou -: Só poderia trabalhar a vontade com Bill Hemmings e seu irmão. Os dois estiveram comigo na rua Bow. Falarei com eles e lhe comunicarei sua resposta.
- Sim, senhor Pratt, por favor, e lhe rogo que não perca um minuto. Não há nem um momento a perder. Lembre que pode se comprometer em meu nome a dar uma considerável gratificação. Não permita que uns poucos guinéus sejam um obstáculo.
- Meu querido Maturin - disse sir Joseph quando Pratt se foi -, permita-me dizer que se o senhor faz ofertas como essa nunca será um homem rico. Praticamente pediu a Bill Hemmings que lhe arruíne.
- Sem dúvida, falei sem pensar - disse Stephen e depois, sorrindo, continuou -: quanto a ser um homem rico, estimado Blaine, quero que saiba que já sou. Meu padrinho, que descanse em paz, nomeou-me seu herdeiro. Não podia imaginar que houvesse tanto dinheiro no mundo, quer dizer, tanto nas mãos de uma só pessoa. Mas eu gostaria que isto ficasse entre nós, porque não desejo que chegue a ser do domínio público.
- Quando fala de seu padrinho se refere ao Dom Ramón, né?
- Sim, a Dom Ramón, que Deus bendiga - respondeu Stephen. - Mas não espalhe este assunto, por favor.
- Certamente que não. De qualquer ponto de vista, é muito mais conveniente e prudente ter uma aparência medíocre, ainda que decente. Mas como esta é uma reunião privada, permita-me felicitar-lhe por ter essa fortuna.
Ambos se deram a mão e sir Joseph prosseguiu:
- Se não me equivoco, Dom Ramón era um dos homens mais ricos da Espanha. Talvez o senhor pudesse fundar uma cátedra de osteologia comparada.
- Talvez - disse Stephen. - Tenho pensado nisso às vezes, quando tive tempo para pensar.
- Falando de riqueza - disse sir Joseph -, quero que venha ao meu estúdio para que veja o que Banks me mandou.
Ele foi na frente e abriu a porta com precaução, pois a habitação estava cheia de caixas com exemplares de plantas, insetos e minerais formando torres cambaleantes.
- Meu Deus, que beleza! - exclamou Stephen, pegando a pele de um sapo do Suriname.
- E os insetos são extraordinários - disse sir Joseph. -Passei uma manhã muito alegre observando-os.
- De onde procedem estas coisas maravilhosas?
- É uma coleção feita para o Jardin des Plantes por numerosos agentes secretos, e enquanto chegaram ao Canal, a Swiftsure se apoderou dela. O Almirantado a entregou à Royal Society e Banks enviará a Cuvier no próximo barco com bandeira branca que zarpe, como faz sempre nestes casos. Não obstante, me deixou vê-la antes de empacotá-la.
- Se os cavalheiros desejam almoçar a refeição ainda quente, podem sentar-se à mesa agora - disse a governanta de sir Joseph em tom comedido.
- Oh, senhora Barlow, acho que nos atrasamos! - exclamou sir Joseph, olhando para o relógio que estava atrás de um monte de serpentes conservadas em álcool.
- Não podemos comer de pé, como se fosse um sanduíche? - perguntou Stephen.
- Não, senhor, não podem - respondeu a senhora Barlow. - Um suflê não é um sanduíche, mas parecerá uma torta se não vierem imediatamente.
- As pessoas dizem coisas desagradáveis sobre lorde Sandwich - disse Stephen quando se sentaram -, mas acho que a humanidade lhe deve muito por sua genial invenção. Ademais, era muito bom amigo de Banks.
- As pessoas também dizem coisas desagradáveis de Banks, como, por exemplo, que se comporta como um tirano na presidência da Royal Society, que não concede a importância que deveria para as matemáticas e que faz qualquer coisa pela botânica e seria capaz de falar dela até na tumba de sua mãe. Vários desses comentários talvez se devam a que alguns lhe invejavam por sua riqueza. A verdade é que faz expedições que poucas pessoas mais podem pagar e contrata excelentes artistas para que desenhem ou reproduzam em gravuras o que ele descobre.
- É realmente muito rico?
- Oh, sim! Quando herdou Revesby e os outros imóveis obteve deles seis mil em por ano. O trigo estava a menos de um guinéu a libra naqueles tempos, e agora está quase a seis libras; assim que, descontando os impostos, acho que obtém trinta mil por ano.
- Nada mais? Bem, bem. Mas me parece que um homem que ganhe trinta mil por ano pode ter dificuldades.
- Pode o senhor dizer o que queira, senhor Creso, mas inclusive essa pequenez lhe dá uma categoria e uma autoridade que a alguns lhes desagradam.
Sir Joseph voltou a encher a taça de Stephen, comeu um pedaço de pudim e, com uma expressão afetuosa, disse:
- Diga-me, Maturin, acha que a riqueza influe no senhor?
- Quando me recordo dela, sim, e acredito que a influência é quase totalmente negativa. Acho que me sinto melhor que os outros homens e, além disso, que sou superior a eles e mais rico em tudo menos em beleza, claro, mais rico em prudência, virtudes, méritos, conhecimentos, inteligência, compreensão e senso comum. Quando me dá um ataque como esse, não teria dificuldade em tratar com desprezo a sir Joseph Banks, e mesmo a Newton se o encontrasse. Porém, afortunadamente, não me recordo dela sempre, e quando o faço, raras vezes acredito que é real, pois os hábitos adquiridos na penúria são difíceis de apagar. Acho que nunca me comportarei como os homens de família acomodada, que presumem de sua riqueza e acreditam que têm muitos méritos.
- Permita-me servir-lhe um pouco mais de pudim.
- Com muito gosto - disse Stephen, aproximando-lhe seu prato. - Quanto eu gostaria que Jack Aubrey estivesse aqui! Ele se deleita comendo pudim, sobretudo deste tipo, ainda que sem cair no pecado. Acharia uma descortesia se eu pedisse que deixasse levar meu pudim para o seu estúdio? Tenho que estar em Marshalsea antes das seis, e lamentaria não poder observar os tesouros de Cuvier um pouco mais de tempo antes de que os empacotem. A propósito, o senhor sabe onde fica Marshalsea?
- Oh, sim! fica ao sul do rio, no lado de Surrey. O modo mais fácil de ir é cruzar a ponte de Londres, seguir direto para Borough até a rua Blackman e continuar até a rua Dirty, que é a quarta rua depois de dobrar para a direita. Não tem erro.
Repetiu as instruções e seu comentário quando se despediram, mas se equivocou ao julgar o seu amigo. Como Stephen dissera, os hábitos adquiridos na penúria são difíceis de apagar, e por isso em vez de alugar um coche decidiu ir andando. Quando chegou ao lado de Surrey lhe ocorreu a desafortunada idéia de perguntar como se ia até a rua Dirty, em vez de como se ia a Marshalsea. Um amável habitante do lugar lhe disse, e inclusive lhe indicou o caminho assegurando-lhe que chegaria à rua Dirty depois de avançar exatamente dois minutos, não mais, somente dois minutos. Isso foi o que Stephen fez, mas havia pelo menos duas ruas Dirty em Southwark, e aquela era a rua Dirty equivocada. Dali percorreu rapidamente várias ruas vazias, onde habitavam pessoas estranhas. Avançou ao trote, ofegando e olhando amiúde seu relógio até chegar ao passeio Melancholy, onde outro habitante do lugar, ainda mais amável, em um dialeto do qual Stephen entendia somente uma palavra de cada três, disse que estava se afastando de Marshalsea e que se seguisse avançando nessa direção chegaria a Lambeth e depois a Americay. O homem também disse que provavelmente estivera tomando fresco em Liberties, onde se ficava a planície de Saint George, e assinalou uma faixa de terreno insalubre salpicado de ervas daninhas, e acrescentou que isso lhe havia trastornado. Acrescentou que o que devia fazer era pegar o caminho correto antes que anoitecesse e que seria melhor que lhe indicasse o mais rápido para que não tivesse que andar pelas ruas na escuridão, já que por ali havia muitos ladrões astutos.
- É possível que a um cavalheiro que ande sozinho ninguém voltasse a ver - disse -, já que os bolos de porco se vendem muito bem em Marshalsea e King's Bench, que não se encontram muito longe, e o custo é insignificante porque os cais onde se descarrega a farinha estão muito próximos.
Stephen chegou só alguns minutos tarde, e graças ao pagamento de várias pequenas quantidades de dinheiro que não somavam mais que o triplo do aluguel de um coche, pôde entrar para a parte onde se achavam os devedores até o que podia se considerar o coração da prisão, o edifício onde estavam enclausurados os marinheiros. Marshalsea sempre havia sido a prisão em que encerravam os membros da Armada, e nela cumpriam sentença os que se salvavam de morrer enforcados por terem batido em seus superiores, os que haviam apresentado informes incompletos e confusos, os que haviam sido surpreendidos pegando coisas das presas antes de que fossem declaradas de lei, os que haviam sido multados por cometer faltas e não podiam pagar as multas, aqueles cujos barcos haviam encalhado por sua negligência, alguns que se tornaram loucos e alguns que cometeram desacato a um tribunal presidido por um almirante ou um vice-almirante, ou ao lorde que presidia a Junta da mesa verde, ou a seus subalternos ou ao representante da Coroa que investigava as mortes violentas no Verge, a zona que rodeava o Palácio Real.
Potanto, o capitão Aubrey estava rodeado de homens do mar, ainda que talvez não fossem os que ele escolheria para que lhe fizessem companhia. Agora se ouviam os vozeirões característicos dos marinheiros, procedentes do apertado pátio interior, onde um grupo de oficiais jogavam boliche animados e observados atentamente por Killick de uma janela quadrada apenas o bastante grande para que pudesse assomar a cabeça. Jack teve que alçar muito a voz para que ele ouvisse o que dizia:
- Killick! Killick! Venha ajudar-me! Venha ajudar-me! Alguém está chamando na porta!
Como o capitão Aubrey dispunha de muito dinheiro nesse momento, havia alugado dois quartos, e por essa razão o carcereiro havia batido na porta em vez de entrar sem chamar.
- Mas é o doutor! - exclamou Killick, e a expressão austera e desconfiada que punha quando tratava com representantes da justiça se transformou em um gesto alegre. - Temos uma surpresa para o senhor, senhor.
A surpresa era a senhora Aubrey, que saiu do quarto interior correndo e sacudindo a farinha das mãos. Seu aspecto era mais parecido ao de uma menina que ao de uma mulher mãe de três filhos. Baixou um pouco a cabeça e, ruborizando-se, beijou Stephen em ambas bochechas e depois, por meio de um olhar significativo e um aperto de mãos, comunicou-lhe que estava envergonhada de ter sido tão fraca, que nunca voltaria a se comportar assim e que ele não devia ter uma má opinião dela.
- Passa, passa, Stephen - disse Jack, assomando-se na porta. - Alegro-me em ver-lhe. Pensava que talvez lhe haviam perdido. Perdoe-me por não me levantar, mas não posso confiar isto a ninguém - acrescentou, torrando sobre um fornilho de carvão umas salsichas que sustentava com um garfo feito com um arame retorcido. - Espero que estejamos em melhores condições na segunda-feira, mas agora temos que fazer as coisas primitivamente.
Para Stephen parecia que já estavam em boas condições. Já haviam limpado os dois quartos com pedra arenito e haviam colocado neles vários armários que, obviamente, poupavam espaço. Ademais, em um canto havia uma rede de cabos brancos que indicava que estavam fazendo uma cadeira pingente, um dos lugares mais cômodos que existem, e um conjunto de espreguiçadeiras atadas com sete nós que o dividiam em partes exatamente iguais e coberto por um tapete formava um elegante sofá. Jack Aubrey passara a maior parte de sua vida como marinheiro encerrado em lugares tão pequenos como aquele, e conhecia bem as cárceres norte-americanas e franceses e as casas dos alguazis que serviam de prisão na Inglaterra, assim que era necessário que sua vida no cárcere fosse realmente dura para que lhe fosse difícil suportará-la.
- Estas são feitas por um homem da vizinhança e são famosas - disse Jack, girando o garfo com as salsichas. - Também são famosos seus bolos de porco. Quer um pedaço? Já está cortado.
- Não, obrigado - respondeu Stephen, olhando atentamente o conteúdo do bolo. - Comi com um amigo faz pouco.
- Diga-me, Stephen, como deixaste o pobre Martin? - disse Jack em um tom mais grave.
- Eu o deixei acalmado e em boas mãos, atendido por sua futura esposa, que é uma excelente enfermeira, e por um boticário inteligente. Mas tenho muita vontade de receber notícias suas. Ambos me prometeram que me mandariam um expresso diariamente.
Falaram de Martin e das viagens que fizeram juntos, enquanto Sophie continuava preparando a torta de maçã. Sophie não era uma grande cozinheira, mas a torta de maçã era um dos pratos que geralmente que fazia bem, e como Stephen ia jantar com eles, a decorou com folhas de trevo feitas com a massa.
- Desculpe, senhor - disse Killick, interrompendo a conversa -, mas lhe espera o jovem ajudante dos advogados.
Jack foi ao outro quarto e regressou vários minutos mais tarde.
- Veio comunicar-me que hão contratado a um tal senhor Lawrence - disse. - O jovem anunciou essa notícia dizendo que era ótima, e parecia assombrado de que eu não houvesse dado um grito de alegria ao ouvi-la. Aparentemente, o senhor Lawrence é um advogado defensor inteligente e suponho que deveria alegrar-me disso, mas a verdade é que não vejo a necessidade de que eu tenha um advogado defensor. Nós nos arrumamos sozinhos, sem nenhum advogado, diante de um conselho de guerra. Por outro lado, quando se chama ao castelo de popa os marinheiros que cometeram faltas e se prepara um gradeado, não há nenhum advogado presente e, contudo, acredito que se faz justiça. Este caso não se parece em nada a esses horríveis pleitos relacionados com as minas de chumbo de Ashgrove, nos quais há numerosos pontos obscuros que devem ser interpretados por especialistas, sobretudo os que têm que ver com as condições e responsabilidades que aparecem no contrato em litígio. A verdade é que se parece mais a um caso naval, e o único que quisesse é ter a oportunidade de falar dele, como um marinheiro quando seu capitão lhe interroga, e de contar ao juiz e aos jurados exatamente o que ocorreu. Todo mundo está de acordo em que não há nada mais justo que o sistema judicial inglês, e se lhes digo a pura verdade, estou certo de que todos acreditarão em mim. Eu lhes direi que nunca conspirei com ninguém, que segui as sugestões de Palmer de boa fé, como qualquer um poderia ter feito, mas que se cometi um erro, estou disposto a cancelar todas minhas ofertas de aquisição. Sempre acreditei que a má intenção é a parte decisiva de um delito. E se me obrigam a ter uma acareação com um homem que nega que digo a verdade, então o tribunal terá que decidir em qual dos dois vai acreditar, ou seja, qual dos dois é mais digno de confiança, e quanto a isso não tenho muito medo. Tenho confiança no sistema judicial de meu país - acrescentou Jack, e sorriu ao ouvir suas pomposas palavras.
- Já assistiu a um julgamento alguma vez?
- Assisti a muitos celebrados por conselhos de guerra, mas a nenhum celebrado por um tribunal civil. Todos os relacionados com meus pleitos ocorreram quando eu estava navegando.
- Infelizmente, assisti a alguns - disse Stephen. - E posso assegurar, meu amigo, que são infinitamente mais complexos que os que têm lugar sob a jurisdição naval, no que se refere às regras do jogo, ao que constitue uma prova, às entradas e saídas, a quem se autoriza falar, quando se lhe autoriza e quanto se lhe permite dizer. São partes de um jogo que se joga há centenas e centenas de anos e que se tornou mais tortuoso de geração em geração. As regras se multiplicaram, os precedentes se acumularam, a justiça teve interferências, os decretos aumentaram e agora o jogo é tão confuso e complicado que os profanos não podem entendê-lo. Eu lhe rogo que preste atenção a esse destacado conselheiro e sigas suas recomendações.
- Querido, por favor, faça o que Stephen diz - disse Sophie.
- Muito bem - disse Jack. - Talvez neste caso necessite de um, assim como um barco necessita às vezes de um piloto em um porto para o qual parece muito fácil navegar.
O senhor Lawrence tinha precisamente essa opinião. Era um homem alto e moreno que tinha bom aspecto, falava muito bem diante os tribunais e tinha fama de ser um defensor de seus clientes tão enérgico e tenaz que podia se comparar aos médicos que lutam com todas suas forças para salvar a um enfermo; que considerava seus casos algo pessoal. Como não alardeava de ter uma alta categoria nem gosta de formalidades, depois da primeira entrevista em seu escritório com os advogados que preparavam o caso de Jack, reuniu-se informalmente com Stephen com freqüência, sobretudo porque ambos simpatizaram-se imediatamente. Os dois haviam assistido ao Trinity College de Dublim e, ainda que apenas se conheciam, tinham muitos amigos comuns. Tanto um como o outro eram acérrimos defensores da emancipação dos católicos e detestavam ao lorde Liverpool e aos seus colegas do Conselho de Ministros.
- Não acredito que o caso haja sido ideado pelo Conselho de Ministros - disse Lawrence. - Isso seria tão grave como os atos cometidos pelos sequazes de Sidmouth. Contudo, estou seguro de que eles desejam se beneficiar o mais possível da situação existente, e quero que saiba que se esse Palmer não aparecer, quer dizer, se não aparecer fisicamente nem for identificado como o homem que ia na carrouagem, tanto se negue todo o ocorrido como se não, temo por seu amigo.
- Como lhe contei, Pratt está procurando-o já faz algum tempo, e agora várias pessoas a mais o procuram - contou Stephen. - Na segunda-feira pela manhã, um homem que havia perdido jogando cartas comigo há muito tempo e me devia dinheiro me mandou uma promissória respaldada por seu banco, o que me alegrou muito. Justamente na segunda-feira pela tarde recebi um expresso do interior do país em que me contavam que um amigo, um queridíssimo amigo a quem operei, recuperou-se e está fora de perigo, para agradecê-lo ofereci a essas pessoas a inesperada soma como recompensa para encontrar o homem que ia na carruagem.
- Deve de ser uma considerável soma, pois o senhor se referiu a vários homens.
- Eu me envergonho em dizer-lhe a quanto ascende. Jogamos em Malta todos os dias, e nesse período a regra de probabilidades deixou de cumprir-se e o jogo sempre estava a meu favor. Geralmente, se ele tinha quinta, eu tinha sexta, e isso se repetiu durante Deus sabe quantas tediosas sessões. O pobre homem não podia ganhar. Mas não tive escrúpulos em aceitar sua promissória, que, em minha opinião, permitirá a essas pessoas se concentrarem mais na busca. Vou ver Pratt esta tarde.
- Espero que tenha boas notícias. O afã com que a promotoria leva o caso, sua constante negativa a admitir uma fiança e seu desejo de celebrar o julgamento logo para que seja um furioso conservador (que além disso pertence ao Conselho de Ministros), que presida o tribunal, é algo que raras vezes vi em meus anos de experiência. A menos que tenhamos uma prova contundente, é difícil encontrar uma estratégia de defesa que possa resistir aos seus ataques.
Stephen estava em Fladong's bebendo o café que costumava tomar depois do almoço quando viu Pratt entrar. O homem estava pálido e parecia cansado e desanimado.
- Aqui tem uma cadeira, senhor Pratt - disse Stephen. - Que deseja tomar?
- Gostaria de tomar um copo de genebra com água fria. Acho que encontramos o homem que buscamos.
Mas nem seu tom nem sua expressão eram alegres nem seu olhar era triunfal. Stephen pediu a genebra e perguntou:
- Importa-se de continuar agora, senhor Pratt?
- Qem o encontrou foi Josiah, o amigo de Bill Hemmings. Quando estava examinando vários cadáveres com o ajudante do funcionário que investiga as mortes violentas em Southwark, viu um com muitas características que correspondiam à descrição que temos: a idade, a altura, a constituição, o cabelo e a roupa elegante. Ademais, o cadáver estava na água há menos de doze marés. Mas o que chamou a atenção de Josiah foi que o ajudante desse funcionário, cujo nome é William Body e cuja esposa trabalha em Guy's, tinha um pequeno papel escrito a mão, que havia circulado pelos hospitais e estações de polícia, no qual se pedia informação sobre um cavalheiro com essa descrição chamado Paul Ogle que poderia achar-se enfermo. Nele também se rogava a quem conhecesse seu paradeiro que o comunicasse a N. Bartlet, que vivia no apartamento número 3 do último pátio do antigo colégio Major Lyon's, e oferecia uma recompensa pelos incômodos. No Lyon's, senhor.
- Isso mesmo, senhor Pratt.
- Fui correndo ao apartamento número 3 e voltei a fracassar. N. Bartlet havia partido e ninguém sabia aonde. Era uma prostituta, senhor, e trabalhava muito. Era uma mulher comum que já havia deixado para trás sua juventude. Estava pouco tempo vivendo ali, mas como era simples e reservada, todos simpatizavam com ela. Aparentemente, o senhor Ogle era seu noivo e ela estava muito preocupada com ele.
- Quais as possibilidades de achá-la?
Pratt negou com a cabeça e respondeu:
- Ainda que a encontremos, negaria tudo e não concordaria a falar, porque sabe que se o fizer, a eliminarão, como a Ogle.
- Isso é verdade - afirmou Stephen. - Nunca admitiria que o conhece ante um tribunal. Mas não ocorreará o mesmo com os cocheiros nem com o pessoal da hospedaria de Sittingbourne. A jovem que trabalha ali viu muito bem a cara desse homem e poderia identificá-lo, o que pelo menos serviria de algo. Acho que o senhor comentou que ele não esteve muito tempo na água.
- Não ficou por mais de doze marés - disse Pratt. - Mas não tem rosto.
- Compreendo - disse Stephen. - Mas o senhor está seguro de sua identidade, né?
- Sim, senhor - respondeu Pratt. - Fui lá imediatamente e sem que me dissessem qual era o cadáver, o escolhi entre três dúzias deles. Um adquire habilidade para este tipo de coisa com a prática. Mas a jovem do hospedaria não poderia fazer o mesmo, e sua declaração não seria válida ante um tribunal.
- Bem, irei ver o cadáver - disse Stephen. - Sou médico e talvez possa encontrar algumas características físicas peculiares que sejam de utilidade.
- Ainda que seja médico - confessou Stephen para Lawrence -, poucas vezes vi algo mais horrível que o porão onde guardam os mortos que aparecem no rio. Dizem que às vezes encontram vinte por semana, e como agora o funcionário que investiga as mortes violentas está ausente … O encarregado do lugar foi muito amável e pude examinar o cadáver, mas até virá-lo não vi nenhum sinal pelo qual um homem pudesse ser reconhecido. Contudo, nas costas tinha marcas que indicavam que se flagelava habitualmente, e me parecem provas convincentes.
- Indubtavelmente - disse Lawrence. - Isso, sem dúvida, corrobora nossa convicção, mas temo que se o apresentarmos como prova, no caso de ser admitida como tal, pode ser inútil ou mesmo prejudicial. Se houvéssemos podido encontrar ao homem vivo e conhecer seus antecedentes, teríamos uma valiosa testemunha, ainda que fosse hostil; contudo, um cadáver sem cara identificado por alguém que só lhe conhece por ouvir dizer, não serve de nada. Terei que pensar em outras estratégias de defesa. Como o senhor tem muita influência sobre ele, Maturin, não poderia convencê-lo de que incriminasse ao general, ainda que fosse em uma pequena parte do caso?
- Não.
- Eu temia que respondesse isso. Quando lhe falei da questão em Marshalsea, ele não gostou. Acho que não sou um covarde, mas me senti muito mal quando o vi de pé diante de mim, com seus quase sete pés de altura, cheio de raiva. E contudo, é quase certo que aquele velho avaro e aquels especuladores amigos seus, que compraram e compraram sem medida e difundiram o rumor de que se firmara a paz, foram quem esgotaram os melhores valores do mercado, não o capitão Aubrey, que realizou operações insignificantes comparadas com as suas. Provavelmente a maioria das transações as fizeram através de intermediários que não estão sob o controle do Comitê da Bolsa e não há nem rastro delas, mas alguns homens inteligentes que trabalham na Cidade me disseram que provavelmente gastram mais de um milhão só em bônus do Estado. O capitão Aubrey, em troca, fez a maioria das operações através de intermediários autorizados pelo comitê e este conhece todos os detalhes.
- Em casos como este, ele não gosta de ser guiado - disse Stephen. - Além disso, tem uma excelente opinião do sistema judicial inglês e está convencido de que se diz simples e claramente a verdade, o jure o absolverá. Venera aos juízes porque formam parte do sistema judicial estabelecido, ao qual dá tanto valor como à Armada Real, à Guarda Real e à Igreja anglicana.
- Mas provavelmente já teve contato com a justiça.
- Só nos intermináveis casos tramitados ante a Chancelaria que o senhor conhece, e para ele não são representativos da justiça real, senão simples batalhas técnicas entre advogados insignificantes. Para ele a justiça é algo mais simples e mais direto, e está representada por um juiz sensato e imparcial, um grupo de homens sensatos e decentes e talvez alguns advogados que falam pelos que não podem se expressar bem e fazem perguntas com o fim de que se conheça toda a verdade, perguntas às quais ele responderia com muito gosto.
- Sim, isso é o que havia entendido. Mas ele deve saber que não lhe permitirão falar. Seus advogados devem de ter lhe contado como são os julgamentos em Guidhall.
- Acredita que dá no mesmo, porque assim como um oficial pode falar em nome de um marinheiro que apenas sabe se expressar, um advogado pode fazê-lo em nome seu. Além disso, diz que como estará ali, o juiz e o jure poderão vê-lo, e que se o advogado se desviar do tema, poderá fazê-lo voltar a ele. Afirma que confia no sistema judicial deste país.
- Seria uma boa ação lograr que tivesse uma visão mais prática e mundana das coisas, Maturin, pois confesso que temo realmente pelo capitão Aubrey, porque não temos Palmer.
- Não tenho mais experiência que Jack Aubrey em assuntos desta natureza e queria que me dissesse qual é a melhor maneira de desprestigiar o sistema judicial.
- Francamente, o senhor não pode desprestigiar o sistema judicial, que é o melhor de todos os que as nações já tiveram - assegurou o senhor Lawrence -, mas poderia assinalar que quem administra a justiça são seres humanos, e que alguns deles apenas têm qualidades para ocupar uma posição tão alta. Ademais, poderia recordar-lhe quantos chanceleres foram afastados de seu cargo por suborno e corrupção; poderia falar de conhecidos juízes cruéis e tirânicos que têm interesses políticos como, por exemplo, Jeffries, Page e, desafortunadamente, lorde Quinborough; poderia dizer que apesar dos advogados ingleses serem excelentes em comparação com outros, alguns deles não têm escrúpulos, ou seja, que ainda que sejam competentes não são escrupulosos. Pearce, o promotor do caso, é assim. Alcançou fama como um temível promotor ao serviço do Ministério da Fazenda, e agora tem uma clientela invejável. É um homem muito astuto e sempre está disposto a tirar vantagem de qualquer vantagem que se produza em um caso. Quando me imagino enfrentando-me com ele diante de Quinborough, sou menos otimista do que desejaria. E se é verdade o rumor de que vai apresentar como testemunha um dos amigos especuladores do general Aubrey, não sou otimista em absoluto.
- Isso me preocupa. Poderia me dizer qual é a melhor estratégia de defesa?
- Se não pudermos convencer o capitão Aubrey a incriminar o general, então me limitarei a atacar Pearce, desprestigiando as testemunhas que apresente, e a apelar para os sentimentos do jurado. Certamente, falarei demoradamente; da excelente carreira militar de Aubrey. A propósito, ele foi ferido, né?
- Eu mesmo o curei… deixe-me ver… só Deus sabe quantos golpes, feridas de bala ou causadas pela queda de pedaços de madeira pontiagudas e de moitões. Uma vez estive a ponto de cortar-lhe um braço.
- Isso poderia ser útil. E sem dúvida, a senhora Aubrey assistirá ao julgamento e terá um bonito aspecto. O problema é que nos julgamentos celebrados em Guildhall o jure é formado por homens que trabalham na Cidade e, em geral, o dinheiro lhes importa mais que os sentimentos e, naturalmente, que o patriotismo. Por outro lado, se eu apresentar alguma testemunha (pois, ainda que tratarei de evitá-lo, talvez alguém queira declarar), Pearce terá o direito de réplica e será o último a falar com o jurado. Mas tanto se isso ocorra como se não, ao final lorde Quinborough, como é lógico, fará um resumo do caso, provavelmente longo e em tom veemente, e os homens de negócios ficarão impressionados com suas palavras, não com as minhas. Por favor, explique isto claramente ao capitão Aubrey. Ele lhe escutará porque lhe respeita muito e o senhor é seu amigo. Por favor, advirta-o que Pearce usará qualquer coisa que possa prejudicá-lo, qualquer coisa que possa rebaixar a ele, aos seus amigos e aos seus conhecidos e que o Conselho de Ministros proporcionou à promotoria todos os meios para fazê-lo. O nome de Aubrey será arrastado para a lama. E por desgraça, o homem a quem acusaram junto com ele, o único suposto conspirador importante que não desapareceu nem escondeu os negócios que fez atrás de um monte de laranjas, o senhor Cummings…
- Um dos convidados do general que estavam no Button's naquela desafortunada tarde né?
- Sim, o palhaço Cummings. Seu passado está cheio de duvidosas compras de grupos de empresas, declarações de bancarrota fraudulentas e muitas outras coisas; e, certamente, tudo isso sairá à luz e salpicará em seus sócios. O capitão Aubrey se encontra em um aperto e sua confiança está fora de lugar.
- Se o pior acontecer, o que é provável que lhe ocorra?
- Creio que o porão uma enorme multa e talvez lhe ponham na picota ou o encarcerem, ou ambas as coisas.
- Na picota? É verdade? É possível que ponham na picota um oficial de marinha?
- Sim, senhor. Esse é um castigo que usualmente se impõe na Cidade à quem faz operações fraudulentas e outras coisas. E, certamente, ele será expulso da Armada.
- Que Deus nos proteja! - exclamou Stephen, que havia perdido sua habitual tranqüilidade e não recuperou nem uma mínima parte dela até que começou a subir a escada de seu clube.
- Sinto ter chegado tarde, Blaine - disse -, mas a entrevista com Lawrence foi mais comprida e muito menos alentadora do que eu esperava. Como não é possível levar Palmer ao julgamento, Lawrence não tem esperanças. Não me disse diretamente, mas não fez falta. Ele não tem nenhuma esperança.
- Não é lógico que as tenha - disse sir Joseph -, pois as aparências estão contra o pobre Aubrey. Se seu pior inimigo tivesse ideado este plano, poderia ter-lhe feito mais estrago do que com qualquer outra coisa.
- O senhor também acredita que ele será declarado culpado?
- Não me atreveria a dizer isso, mas este é um julgamento político, e inflama as paixões. Se prepararam para atacar ao general Aubrey e aos seus amigos radicais, e contanto que saiam prejudicados, não se dá importância às outras coisas. Em casos assim, o fim justifica os meios. Quanto Sidmouth e seus sequazes teriam gostado de ter uma oportunidade como esta! Às vezes me assombro que algum de seus mais fiéis seguidores não tenha tramado algo parecido, antecipando-se aos seus desejos e ao mesmo tempo enriquecendo-se. Essa é uma teoria aparentemente boa, mas não estou de acordo com ela.
Ficaram em silêncio durante um tempo, e enquanto isso Stephen olhava para o carpete e sir Joseph observava ao seu amigo, a quem nunca vira tão perturbado.
- Quando vinha para aqui - disse Stephen por fim -, pensei no que aconteceria se o declarassem culpado. Se Jack Aubrey for expulso da Armada, ficará louco, em terra; e por outro lado, eu não terei muito desejo de ficar na Inglaterra. Tenho pensado em comprar a Surprise, porque ele não terá recursos para fazê-lo, depois equipá-la como um barco corsário, solicitar uma patente de corso e finalmente dar a ele o comando. Por favor, pense nisto e me dê sua valiosa opinião amanhã.
- Certamente que o farei! A primeira vista parece um excelente plano. Vários oficiais da marinha desempregados se transformaram em corsários e continuam fazendo a guerra, ainda que independentemente, e em certas ocasiões causam sérios prejuízos ao comércio do inimigo, ao mesmo tempo que obtêm grandes benefícios. Já vai?
- Tenho que ir a Marshalsea. Estou atrasado.
- Deve ir em um coche - disse Blaine, olhando para o relógio que ficava atrás de Stephen. - Sem dúvida, deve ir em um carro, e ainda assim, poderá passar pouco tempo ali antes que fechem a porta.
- Dá no mesmo, porque há camas no café que fica na parte onde se encontram os devedores. Que Deus lhe bendiga.
- Ordenarei a Charles que chame um coche - disse sir Joseph quando ele subia correndo a escada para ir ao seu quarto.
O coche, que era um veículo exageradamente rápido, o conduziu ali pelo caminho mais curto, pela ponte de Westminster. Quando o cocheiro o deixou na porta da prisão, disse:
- Faltam só cinco minutos para fechar. Quer que lhe espere, senhor?
- Obrigado - respondeu Stephen -, mas penso em passar a noite aqui.
Então disse para si: "Meu Deus! Estou muito atrasado! Jack vai me repreender!".
Mas Jack estava no pátio jogando uma primitiva versão do handebol com tanto entusiasmo que havia perdido a noção do tempo. Depois do último ponto virou para Stephen sua cara vermelha, sudorosa e com uma expressão alegre, e não lhe recriminou, senão que com voz ofegante exclamou:
- Quanto me alegro de ver-te, Stephen! Oh, meu Deus, não estou em forma!
- Sempre foi obeso - disse Stephen. - Se caminhasse dez milhas diárias, se comesse a metade do que devora e se não comesse carne nem tomasse licores, poderia jogar handebol como um cristão em vez de como um peixe-boi ou um dugongo eletrizados. Senhor Goodridge, como está o senhor? Espero que se encontre bem.
Isto último o disse dirigindo-se ao adversário de Jack, um antigo companheiro de tripulação de ambos que era oficial de derrota no Polychrest. O homem era um excelente marinheiro, mas havia feito alguns cálculos pelos quais se convencera de que um cometa e um fênix eram o mesmo, e pensava que a aparição de um fênix relatada nas crônicas era na verdade o retorno de algum dos cometas cujos períodos eram conhecidos ou intuídos. Não gostava que dissem o contrário, e ainda que fosse uma pessoa de trato amável quando falava de assuntos triviais, estava preso ali por maltrato a um vice-almirante da esquadra azul, a sir James, a quem realmente não havia batido mas mordido o dedo que ele elevara para protestar.
No andar de cima, quando Jack mudou de camisa e se sentou com Stephen junto ao fogo, este perguntou:
- Eu lhe falei de lorde Sheffield, Jack?
- Acho que o mencionou alguma vez. Tinha alguma relação com Gibbon, se não me equivoco.
- Exatamente. Era amigo íntimo de Gibbon. Herdou muitos de seus manuscritos e me deu um muito curioso em que expressa sua opinião sobre os advogados. Parece que ia tomar parte do livro Decline and Fall, mas foi excluído quando se revisavam as prova de granel, por medo que ofendesse seus amigos advogados e juízes. Quere que eu o leia?
- Sim, por favor - respondeu Jack, e Sophie juntou as mãos em seu colo e olhou para Stephen atentamente.
Stephen pegou um papel do peito e o desdobrou. Pôs um gesto apropriado para ler o solene documento formado por parágrafos perfeitamente encadeados, e imediatamente o trocou por outro mais comum e humano, por um que indicava grande irritação.
- Eu trouxe um manuscrito de Huber sobre as abelhas - disse. - Com a pressa, peguei um documento escrito por Huber. Contudo, juraria que o manuscrito que estava à direita dos panfletos era o de Gibbon. Se eu joguei o documento de Gibbon, que é um exemplar raro no mundo e uma jóia por sua elegante prosa, porque o confundi com um sem importância sobre a infusão do breu, vou lamentar muito. Nem ao menos confiei à memória uma parte considerável. Mas não importa, o essencial era que o declive do império…
- O sino! - gritou Sophie quando ouviram umas distantes e insistentes badaladas. - Killick! Killick! Temos que ir. Desculpe-me, querido Stephen.
Sophie deu em ambos um afetuoso beijo e saiu do quarto correndo e gritando:
- Killick! Killick!
- Ela e Killick vão para Ashgrove na diligência noturna, por isso não podem ficar aqui dentro quando fecharem a porta - explicou Jack. - Ela quer trazer algumas coisas de lá.
- Voltando a Gibbon - disse Stephen quando voltaram a se acomodar junto ao fogo -, lembro das primeiras linhas do manuscrito e dizem assim: "É perigoso confiar o Governo de uma nação a homens que, por sua profissão, aprenderam a considerar a razão um instrumento para a disputa e a interpretar as leis de acordo com seus próprios interesses. O estrago se nota inclusive nos países onde a advogacia é considerada uma profissão liberal". Ele, que era um homem extraordinariamente inteligente e instruído, pensava que a queda do império se deveu, pelo menos em parte, ao predomínio dos advogados. Os homens que com os anos hão chegado a acreditar que tudo aquilo que é conforme a lei é correto ou, pelo menos permissível, não são membros da sociedade úteis, e quando chegam a ocupar altos cargos da administração são nocivos. São pessoas para quem a ética pode se resumir em um conjunto de estatutos. Por exemplo, Tullio achava que era um bom homem apesar de que se gabava de ter enganado ao jure no caso de Cluencio e estava a princípio tão desejoso de defender Catilina, como de atacar-lhe depois. Em todas as partes os há iguais: são homens que não escutam a sua consciência, se deixam guiar por outros ou, simplesmente, não fazem caso nunca. Se se lhes fizesse a pergunta: "O que sente quando um homem que o senhor sabe que é culpado lhe pede que o defenda?", muitos responderiam: "Não sei que um homem é culpado até que o juiz, depois de ouvir ambas as partes, o declare culpado". Este ridículo sofisma, que não leva em conta a epistemologia nem a percepção intuitiva em que se baseiam todas as relações estabelecidas cotidianamente, em certas ocasiões se considera uma simples fórmula, mas conheci alguns homens que prostituiram sua inteligência até tal extremo que acreditam que é verdadeiro.
- Vamos, Stephen! Afirmar que todos os advogados são maus é algo quase tão insensato como afirmar que todos os marinheiros são bons.
- Não digo que todos os advogados sejam maus, mas afirmo que em geral o são. Estar diante de um tribunal representando qualquer uma das duas partes que lhe paga, fingindo que se tem a convicção de algo e fazendo todo o possível para ganhar o caso, seja qual for a sua opinião, faz perder o sentido de honra muito cedo. Os mercenários são pessoas sem valor, mas pelo menos arriscam sua vida, enquanto que esses homens só arriscam seus futuros honorários.
- Indubtavelmente, há advogados desprezíveis que difam;am a justiça, mas conheci vários honoráveis e muito agradáveis, e, ademais, há alguns membros de nosso clube que exercem a advogacia. Não sei como são os advogados da Irlanda nem os da Europa continental, mas acredito que, em geral, os ingleses são honoráveis. Afinal de contas, todos estão de acordo que o sistema judicial inglês é o melhor do mundo.
- Em todos os países têm a mesma tentação. Frequentemente os advogados têm o interesse de fazer parecer correto algo que não o é, e quanto mais habilidosos são, mais amiúde o conseguem. Mas os juízes estão expostos a mais tentações, ainda que sejam de classe distinta, porque presidem um tribunal todos os dias. Têm um poder enorme, atuam quase sem controle e, se o desejam, podem ser cruéis, tirânicos, obstinados e perversos. Podem interromper aos demais, expressar suas idéias políticas e alterar o curso de um processo. Recordo que na Índia, no jantar com que nos agasalhou a Companhia, conheci um juiz, e o cavalheiro que me apresentou a ele me disse ao ouvido que era conhecido como "o juiz justo". É uma vergonha para a justiça que um juiz, um só juiz, se distinga por isso entre tantos.
- Os juízes são considerados grandes homens.
- Por quem não os conhecem. Mas nem todos são considerados assim. Lembre de Coke, que atacou covardemente ao indefenso Raleigh durante o julgamento e foi exonerado do cargo quando era presidente do Supremo Tribunal. Lembre de todos os lordes chanceleres que oram expulsos de seu posto por corrupção. Lembre do infame juiz Jeffries.
- Meu Deus! Que duro é com os homens das leis, Stephen! Tem que ter alguns bons.
- Suponho que sim. Provavelmente haverá homens que sejam imunes à corrupção, assim como há homens que podem caminhar entre os que têm a peste ou a gripe sem se contagiar, mas eles não me interessam. O que me interessa é minar sua confiança em que se administra justiça imparcialmente nos tribunais ingleses, e dizer que o juiz e o promotor encarregados de seu caso são desse tipo. Lorde Quinborough tem fama de ser violento, autoritário, grosseiro e mal-humorado. Além do mais, é membro do Conselho de Ministros, ao qual seu pai e seus amigos se opõe mais violentamente que os outros membros da oposição. O senhor Pearce, que se encarrega da acusação, é inteligente e astuto, destaca-se pelo modo como faz os interrogatórios para comprovar o declarado, tem tendência de insultar as testemunhas para que percam as estribeiras, está familiarizado com todos os subterfúgios legais e é um sem-vergonha incorrrigível. Digo tudo isto para que não esteja tão seguro de que a verdade prevalecerá e de que a inocência é um escudo perfeito, para que siga o conselho de Lawrence e permita que pelo menos sugerisse que seu pai não foi discreto.
- Fala como um amigo e lhe agradeço - disse Jack em tom enfático -, mas se esquece de uma coisa: o jure. Não sei como é a justiça na Irlanda nem em outros países, mas na Inglaterra temos um jure, e isso faz que nosso sistema judicial seja o melhor do mundo. É possível que os homens de leis sejam tão maus como diz, mas acho que se doze homens comuns ouvirem um relato verdadeiro, eles acreditarão. E se por alguma razão cairem em cima mim, espero poder suportá-lo. Diga-me, você se lembrou das cordas de violino?
- Oh, meu Deus! - exclamou Stephen, revistando o bolso. - Acho que me esqueci por completo delas.
CAPÍTULO 8
Stephen Maturin escreveu um diário durante muitos anos, ainda que não fosse conveniente que um espião tivesse o hábito de escrever um. Apesar de nunca se ter descoberto o código que usava, o diário lhe causara dificuldades quando os norte-americanos lhe capturaram. Mas assim como que sentiu a necessidade de voltar ao ópio quando Diana desapareceu de sua vida, sentiu a de escrever sobre seu regresso, deixá-lo por escrito, e depois de vencer seus escrúpulos, comprou um livro de bolso com capas verdes com folhas em branco, que ficavam completamente planas quando se abria. Nesse livro escreveu muitas coisas sobre medicina, história natural e assuntos pessoais, pois, se por casualidade caísse nas mãos do inimigo, não comprometeria nenhum outro agente secreto nem a nenhuma rede de espionagem e faria supor que seu autor não estava relacionado com atividades desse tipo. Apesar disso, o que punha nele era totalmente verdade, porque o fazia com a intenção de somente ele mesmo ler. Escrevia em catalão, uma língua que aprendera em sua juventude e que conhecia tão bem como o inglês e melhor que o irlandês que aprendera em sua infância. Agora ia começar uma nova página e nela escreveu:
Cometi dois erros graves e de perigosas consequências durante estes dias. Deus queira que não cometa o terceiro no caso da fragata. O primeiro foi oferecer muito dinheiro como recompensa pela captura de Palmer. Ante a possibilidade de ganhar essa soma, todos os investigadores, alguazis e policiais de Londres o procuraram por todas as partes dia e noite, e, naturalmente, isso chegou aos ouvidos dos chefes da operação, que imediatamente eliminaram Palmer para que ficassem assim fora de perigo, e simultaneamente deixaram Jack sem cabo ao qual agarrar-se. O segundo foi minha agressiva tentativa de manipular Jack. Sempre hão existido entre nós diferenças devidas a nossas diferentes nacionalidades, mas nunca vieram a tona, e temo que as fiz aprecer com meus absurdos e reiterados comentários sobre a justiça inglesa. Jack não tolera que um estrangeiro critique o seu país, nem mesmo se for justificado, e afinal de contas, eu sou um estrangeiro. Devia ter percebido que não gostava da mensagem que encerravam minhas palavras porque tamborilava com os dedos e tinha uma expressão incômoda, mas continuei e só o que consegui foi que agora se mostre mais firme que antes em sua convicção. Não só não lhe fiz nenhum bem como lhe causei muito estrago, e temo que possa fazer o mesmo ou ainda mais comprando a Surprise; ainda que neste caso, pelo menos, tenho a vantagem de poder consultar a um homem de boa vontade que é inteligente e conhece bem este assunto e as circunstâncias que o rodeiam.
Fechou o livro, olhou seu relógio e, assentindo, pensou que lhe restavam cinco minutos. Olhou a garrafa de láudano que estava sobre a prateleira da chaminé, uma garrafa de uma pinta com o fundo quadrado que antes continha licor, e negou com a cabeça. "Não até esta noite", disse. Mas para ele escrever no diário - o que geralmente fazia pela noite - estava tão estreitamente relacionado com tomar tintura de ópio que quando chegou à porta voltou para trás com passos rápidos, pegou uma taça de seu criado mudo, encheu-a até a metade com o líquido ambarino de agradável odor e lhe tomou em três pequenos tragos. Depois desceu as escadas e viu a sir Joseph entrando no saguão.
A essa hora da tarde havia poucas pessoas no clube, e ambos podiam ocupar quase qualquer lugar na comprida sala frontal que dava para a rua Saint James.
- Sentemo-nos junto à janela do centro para observar à humanidade como um par de deuses do Olimpo - disse Blaine.
Quando já estavam sentados e olhavam atentamente a rua por através do cinzento chuvisco, Blaine continuou:
- Hei pensado em seu projeto, estimado Maturin, e depois de meditar muito cheguei à conclusão de que é bom. Mas fiz três suposições. A primeira é que o senhor quer comprar a fragata seja qual for o resultado do julgamento; quer dizer, tanto se a necessita para lograr o que se há proposto como se não.
- Sim, isso mesmo, pois se Jack Aubrey for absolvido, provavelmente me a comprará; e se não, que Deus não o queira, pelo menos lhe servirá de refúgio. Ademais, também a compraria em parte por egoísmo, porque poderia me oferecer as grandes vantagens que o senhor mencionou quando me falou de sir Joseph Banks. Eu também desfrutaria infinitamente viajando em um barco de guerra para estudar as plantas, sobretudo em um barco de guerra que pudesse deter em ocasiões importantes.
- Digo isto porque a venda será no dia antes do início do julgamento e, certamente, o senhor tem que tomar uma decisão antes de conhecer o veredito. A segunda suposição é que o senhor não pensa em realizar nenhuma missão que o serviço secreto da Armada lhe encomende, devido às condições em que se encontra atualmente.
- Nenhuma em absoluto. Nenhuma até que voltem a confiar plenamente no senhor.
- A última é que o senhor tem os fundos necessários na Inglaterra, pois é preciso ter dinheiro em efetivo para fazer transações desse tipo. Se não…
- Suponho que sim. Não sei quanto custa comprar e armar um barco de guerra, mas tenho três promissórias como esta para receber no Banco do Espírito Santo e no comércio da rua Treadneedle - acrescentou, entregando-lhe uma. - E se não são suficientes, terei que conseguir mais.
- Meu Deus! - exclamou sir Joseph. - Maturin, só com esta poderia comprar, armar e dotar de uma tripulação uma fragata de setenta e quatro canhões, assim que não há dúvida de que poderá adquirir uma antiquada e de terceira mão que faz tempo completou a maioridade.
- A Surprise navega a grande velocidade de… quero dizer, quando se colocam de uma maneira especial as bolinas. Por outro lado, um chega a sentir carinho pela falta de espaço, os tetos baixos, a aglomeração de homens e seu cheiro debaixo do convés.
- Seria um excelente barco corsário. Há poucos mercantes que possam navegar mais rápido ou tenham canhões mais potentes. Mas o senhor deve obter patentes de corso, sabe?, porque se não seria simplesmente um pirata. E cada patente deveria autorizar-lhe a fazer corso contra um dos estados com os quais estamos em guerra. Tenho um amigo que no início da guerra capturou um barco holandês, ainda que só tivesse uma patente para fazer corso contra a França. Pouco depois se encontrou com um barco do rei e o capitão, depois de examinar seus documentos, tirou-lhe a presa e, para completar, recrutou forçosamente à metade de sua tripulação. Como ainda exerço influência em uma parte remota do Almirantado, esta mesma tarde o senhor terá patentes para fazer corso contra todas as nações sob o sol. Como lhe dizia, a venda será no dia antes do começo do julgamento, assim que não sei como isso lhe afetará.
- O capitão Pullings me disse isso esta manhã, e depois de refletir, acho que é melhor que vá para lá. Lawrence me disse que espera que o julgamento dure três dias e, se viajo em uma carruagem postal, estarei de regresso no terceiro dia à primeira hora. De momento não pensa me chamar como testemunha, pois tudo o que eu posso dizer sobre as feridas de Jack Aubrey está explicado nos informes oficiais que fiz ao Comitê de Ajuda aos Enfermos e Feridos e nos livros onde anotava os casos que tratava na enfermaria, mas caso necessitasse, seria no terceiro dia. Ademais, não gostaria de ver como atormentarão Jack no julgamento, e muito menos como o humilharão. Acho que, em casos como este, os amigos só deveriam estar presentes quando o triunfo fosse quase certo. Voltando ao capitão Pullings…
- Thomas Pullings, o antigo primeiro tenente do capitão Aubrey que recentemente foi ascendido a capitão?
- O mesmo. O senhor acredita que tem razão ao pensar que atualmente tem poucas possibilidades de conseguir um barco e que terá muitas menos se condenam ao capitão Aubrey?
- Temo que sim. Um capitão que não tenha conexões e que esteja relacionado com um capitão de navio desacreditado, ainda que seja injustamente, é provável que passe toda sua vida em terra, sejam quais sejam seus méritos.
- Então não devo ter receios em aceitar sua oferta de acompanhar-me e supervisionar o traslado da fragata.
- Não, não deve. Que boa ação! Pensava propor-lhe a ajuda de outro homem, porque o senhor deve deixar um bom marinheiro na embarcação ou do contrário os tripulantes lhe enganarão, saquearão a fragata, levarão as placas de cobre que recobrem o casco e provavelmente a trocarão por uma chalana. Mas Pullings é melhor, muito melhor.
- Outra coisa que me preocupa é dotá-la de uma tripulação. Conheço muitos capitães que se hão feito ao mar com uma tripulação reduzida apesar de ter conseguido muitos homens graças aos barcos, às brigadas recrutadoras e a quadrilhas que por ordem sua recrutavam homens forçosamente tanto em terra como no mar. Como é possível encontrar um adequado número de marinheiros eficientes?
- Como? É um mistério para mim e para os que são mais versados que eu nessa matéria, mas os barcos corsários têm uma tripulação numerosa e, além disso, muito boa. Por algum obscuro canal de comunicação, ou talvez por instinto, muitos marinheiros se informam dos movimentos que fazem os que querem recrutar-lhes à força e vão secretamente para portos pequenos, onde passam a integrar a tripulação de barcos de guerra privados. Há entre cinqüenta e sessenta mil marinheiros a bordo deles, provavelmente os mais astutos desse grupo de seres anfíbios, e não duvido que o capitão Aubrey encontraria muitos tripulantes em uma enseada retirada em caso de que os necessitasse. E é interessante ver como o grau de civismo de um homem varia em função da distância em que se encontre de sua terra; por exemplo, os amáveis pescadores de Dover, que sempre estão dispostos a ajudar os mercantes com problemas, transformam-se em pouco mais que em piratas no Caribe, algo que sabem perfeitamente quando sobem a bordo de um barco corsário.
Nesse momento chegaram dois membros do clube e se sentaram junto à janela e sir Joseph acrescentou:
- Mas provavelmente haverá pensado nisto dúzias de vezes. Queria lhe dizer algo mais, algo muito mais interessante, e como a chuva parou, poderíamos dar um passeio pela Green Park. Está com sapatos resistentes? Charles nos emprestará um guarda-chuva para o caso de voltar a chover.
Voltou a chover, e quando ambos estavam protegidos por aquela espécie de cúpula sobre a qual tamborilava a chuva, sir Joseph continuou falando.
- Queria lhe dizer algo, mas não de um modo muito explícito, pois não quero lhe causar mais preocupações que as tem atualmente, assim que só farei um par de comentários. Em primeiro lugar, quero recordar-lhe que quando veio visitar-me, depois de chegar do Pacífico, eu lhe disse que achava que atrás das mudanças do departamento havia motivos comuns ou talvez sinistros; mas eram sinistros, Maturin. O que parecia uma luta normal e sem escrúpulos pelo poder, influência, capacidade de fazer favores políticos e o controle do dinheiro do serviço secreto, agora parece, para mim e para alguns de meus amigos, uma traição, ainda que isso não signifique que seja acompanhada de fraude. Faz pouco alguém tentou de negociar em Estocolmo uma das obrigações que o senhor recuperou no Danaë, mas finalmente desistiu. Não vou contar-lhe os detalhes, mas quero que saiba que isso serviu para confirmar minhas suposições. Além do mais, essa pessoa tentou realizar a transação de maneira que eliminasse o senhor como suspeito.
- Alegro-me muito.
- Eu também me alegro, porque até que isso não se soubesse com certeza meus amigos não podiam dar o passo seguinte. Quando falo de meus amigos me refiro a esses cavalheiros relacionados com outros serviços secretos que mencionei em outra ocasião. Poderia me dizer o que acha da independência do Chile e do Peru?
- Sou partidário de ambas. Como o senhor sabe, sempre considerei que a forma com que os castelhanos governam a Catalunha é uma tirania tão odiosa como a de Bonaparte, e acredito que na América do Sul atuam ainda pior, pois exploram e tratam com crueldade às pessoas do lugar e se aproveitam de suas terras e, ademais, têm implantada uma das piores formas de escravidão. Quanto antes rompam a corrente que os une, melhor.
- Supunha que diria isso. Também opinam assim vários cavalheiros da América do Sul, nós os chamados de abolicionistas, alguns dos quais têm mistura de sangue índia e espanhola. Encontram-se agora em Londres e pediram apoio ao nosso governo.
Ambos se separaram para esquivar um charco do caminho, e quando voltaram a se unir sir Joseph continuou:
- Provavelmente não lhe assombrará saber que à Administração não lhe desgostaria que nessa parte do mundo houvesse vários países independentes em vez de um império potencialmente perigoso. Mas é óbvio que não pode fazer nada abertamente, como, por exemplo, enviar um barco de guerra para ajudar os insurgentes; mas poderia ajudá-los discretamente dando apoio a uma expedição não oficial. Ainda que talvez não seja este o melhor momento, é possível que me peçam que proponha ao senhor ocupar-se do assunto. Sei muito bem que isto não pode despertar no senhor os mesmos sentimentos que a independência da Catalunha, mas quando a proposta ficou flutuando no ar pensei nas grandes oportunidades que ofereceria a alguém como o senhor, um naturalista e um liberador por natureza.
- O senhor é muito amável, e ainda que isso me ofereceria realmente grandes oportunidades, muitas mais das que teve Humboldt, e em outro momento ao pensar nelas meu coração teria pulado dentro do peito, mas agora…
- Certamente! Certamente! Só quereria falar-lhe em linhas gerais do caso para saber se o senhor se opunha a ele ou se acreditava possível ocupar-se de ambos casos simultâneamente. Agora está chovendo mais forte. Não acha que deveríamos regressar? Temos que estar arrumados dentro de meia hora e é muito desagradável, e inclusive perigoso, pôr meias de seda com os pés úmidos. Ademais, é melhor dar-lhes tempo para que se sequem naturalmente que secá-los esfregando-os com uma toalha.
- Mas, por que tenho que me arrumar?
- Porque vamos almoçar em Soho Square com sir Joseph Banks e uma dúzia de cavalheiros mais. Donovan estará lá.
- Ficarei muito alegre de ver ao senhor Donovan - disse Stephen, passando a mão pela testa, e antes de separar-se de seu amigo perguntou -: permite-me que lhe faça uma pergunta indiscreta? A pessoa que tentou negociar essa obrigação não procedia da parte do Almirantado implicada na questão, né?
- Não, não, claro que não. Deveria haver-se dito. Natham não há podido seguir todos os passos da proposta, que não chegou a ser mais que isso, porque o documento não saiu da Inglaterra e a pessoa a retirou, talvez porque pensou que corria um grande risco. Mas um dos mensageiros do rei estava envolvido no caso, e é óbvio que a iniciativa partiu de alguém que ocupa um cargo mais alto e pertence a outro ministério. Temo que será muito difícil sacar o homem à luz.
Antes de empreender a viagem, Stephen Maturin visitou pela última vez a Lawrence, que parecia cansado, descontente e mais velho.
- Maturin - disse -, é verdadeiramente difícil ajudar ao seu amigo. Quando lhe sugeri que permanecesse fora da sala porque algumas das provas serão desagradáveis de ouvir, imediatamente me olhou com desconfiança, como se pensasse que eu não era capaz de defender os interesses de meus clientes, e afirmou que preferia "ver o que passava". Fiz tudo o que pude para não contestar-lhe, e se nos despedimos amistosamente foi porque sua amável esposa estava ali, uma pessoa muito mais amável e inteligente do que ele merece.
- O senhor deve levar em conta que passei uma considerável quantidade de tempo minando sua confiança não propriamente na lei mas sim nos tribunais e nos advogados.
- Mas, por Deus, não deveria desconfiar de seu própio advogado! Isso é uma exagero imperdoável.
Lawrence se virou para um lado e reprimiu um espirro.
- Desculpe-me- rogou. - Não fica irritado às vezes pela manhã?
- Quase sempre estou irritado pela manhã, e ainda mais se tenho um resfriado comum, e muito mais se estou enfermo de gripe, que Deus não o queira. Quer que lhe tome o pulso?
- Não, obrigado. Estive faz um momento no consultório de Paddy Quinn. Ele me disse que não tinha nada grave e me deu um frasco de remédio. Passei uma noite ruim, isso é tudo.
Stephen não tinha boa opinião daquele charlatão e ladrão de gado mas, como pensava que os médicos deviam se respeitar uns aos outros, não disse nada.
Depois de assoar duas vezes o nariz e rebuscar alguns papéis entre o monte que havia sobre sua mesa, Lawrence perguntou:
- Quem é esse tal Grant da Armada que querem apresentar como testemunha?
- É um tenente de muita antiguidade que, conforme acredito, já está aposentado. Como conhecia muito bem a rota para Nova Holanda ou, se o prefere, Austrália, tomou parte da tripulação do Leopard quando Jack Aubrey recebeu a ordem de levá-lo ali. Mas durante a viagem, na zona de altas latitudes sul, o Leopard chocou-se com um iceberg, e, como o senhor Grant pensou que se ia afundar, partiu em uma lancha com vários homens que pensavam o mesmo. Aubrey ficou no barco, levou-o para uma ilha remota e, além disso, encantadora, reparou-o e o levou ao seu destino, um lugar ao qual nosso admirado Banks pôs nome: Botany Bay. Grant sobreviveu, mas nunca foi ascendido, e isso ele atribui à má vontade de Jack. Escreveu algumas cartas ofensivas com relação ao assunto e inclusive panfletos em que acusa Jack de todo tipo de traição. Está louco, o pobre.
- Compreendo - disse Lawrence.
- O senhor parece preocupado.
- E estou. As declarações que os inimigos de uma pessoa fazem com respeito à ela sempre têm mais força que as dos amigos, e Deus sabe que a promotoria há logrado reunir a muitos e há tratado de manipular a todos os que o conhecem. Provavelmente é mentira que ele é o pai de um sacerdote católico.
- O jovem não é um sacerdote porque só recebeu as ordens menores. Ademais, um bastardo não pode ser sacerdote, a não ser que tenha uma dispensa.
- Dá no mesmo que seja um exorcista, um sectário ou um sacerdote se for papista. Imagine o efeito que isso produzirá em um juiz ultrapuritano que, ademais, se opõe à emancipação dos católicos e possue escravos nas Antilhas. Quinborough é um homem loquaz e nos julgamentos sempre expressa sua opinião sobre casos deste tipo. Precisamente essa é uma das coisas que gostaria de evitar que Aubrey ouvisse, e por isso lhe sugeri que ficasse do lado de fora.
- Acho que julgou mal ao seu cliente. Por sua aparência de pessoa bem alimentada e satisfeita não poderia imaginar que é um estóico. Aprecia a fortaleza mais que qualquer outra virtude e pensa que se um é condenado à fogueira deve suportar o castigo com integridade. Porém, diga-me, Jack pode ausentar-se da sala quando queira, sem pedir permissão?
- Certamente! O julgamento se celebra em Guildhall.
- Então o prisioneiro pode ser representado por alguém que tenha sua procuração.
- Provavelmente os advogados que prepararam o caso de Aubrey lhe haverão explicado isso de forma que mesmo os menos inteligentes entendam. Este é um dos delitos pelos quais enviam os culpados para a prisão King's Bench, e, potanto, o julgamento tem certa semelhança com os civis, assim que os acusados podem assistir pessoalmente ou serem representados por seus advogados. Só têm que assistir pessoalmente alguns dias depois de que se chegue ao veredito para escutar a sentença.
- Acho muito lógico. Por favor, não se esqueça de proporcionar-me um informe baseado nas atas.
- Já falei com Tolland. O que foi? - perguntou em tom irritado para um ajudante.
- Desculpe, senhor - respondeu o ajudante com um frasco e uma colher nas mãos -, mas o doutor Quinn disse exatamente a cada hora.
- Bom apetite - disse Stephen, levantando-se. - Também seria bom deitar-se. O senhor parece exausto.
- Se não tivesse que defender a um desafortunado jovem esta tarde, eu me deitaria. O garoto roubou um relógio de cinco guinéus e o pegaram com as mãos na massa. A menos que eu demostre aos jurados que valia menos de doze peniques, será sentenciado a morte. Isto só é o efeito da má noite; amanhã terá passado. Ademais, tenho o remédio que Quinn me deu.
Quando Stephen ia no coche, que abria passagem pelo intenso tráfego do passeio Strand, pensou: "Maldito Quinn e maldita a medicina. Se houvesse podido dar-lhe uma boa dose de pulvis Doveri, deixaria de sentir ansiedade. Uns dez ou quinze grãos teriam bastado. Thomas Dover também foi um corsário e, se não me equivoco, saqueou Guayaquil, o que foi um comportamento impróprio de um médico; contudo, salvou a mais de duzentos de seus homens que tinham a peste".
Enquanto na parte mais superficial de sua mente fazia reflexões sobre aquele médico corsário empreendedor, pela profunda passavam uma e outra vez idéias sobre o julgamento de Jack, que lhe provocavam grande ansiedade.
De uma bodega da rua James enviou uma dúzia de garrafas de vinho Hermitage para Marshalsea e de uma loja de comestíveis de Picadilly enviou um enorme bolo, um queijo de Stilton e vários frascos de anchovas em conserva. Depois pegou Pullings em Fladong's e ambos foram em um coche até Cross Key, onde lhes esperava uma carruagem.
- Isto é viajar com elegância - disse Pullings, olhando pela janela para o conhecido caminho de Portsmouth. - Somente uma vez viajei em uma carruagem de quatro cavalos, quando o capitão levava alguns despachos. Cavalgamos como se fôssemos em busca da glória, a uma velocidade de quase dez milhas por hora durante toda a viagem, e não paramos para comer, comemos um pão com queijo na mão. O capitão esteve quase todo o caminho assomado à janela animando os cocheiros.
- Essa é a única forma que conheço de poupar tempo - disse Stephen. - Tampouco nós pararemos para comer.
Só pararemos em Portsmouth para ver o capitão Dundas, pois devo dar-lhe um recado, e depois visitar o senhor Martin se ainda for de dia. Também pensei passar por Ashgrove para pegar Bonden e Padeen, mas não sei se vale a pena levar mais peso e, potanto, avançar a menos velocidade, para que ajudem a trasladar a fragata. O que acha?
- Sua ajuda será muito valiosa, senhor, pois provavelmente ali só encontraremos alguns marinheiros que estão muito tempo em terra e são muito lentos. Para levar a fragata até Shelmerston em pouco tempo deveríamos ter alguns suboficiais diligentes, mas estou certo de que o capitão Dundas nos proporcionará um ou dois e eles poderão ir em uma carruagem com Bonden. Não necessitaremos deles no primeiro dia. É melhor chegar rápido e fazer o negócio primeiro. Eles poderiam ir no dia seguinte, compreende?
- Sem dúvida isso é o melhor. Muito bem, Thomas Pullings. Mas, diga-me, os corsários são realmente desprezados pelas pessoas? Acha que é ofensivo chamar alguém de corsário?
- É ofensivo, senhor, mas como esse tipo de quem Mowett sempre está falando, o neto do almirante…
- Byron.
- Sim, Byron. Como escreveu esse livro, alguns jovens não acham ofensivo serem chamados de corsários, mas talvez o capitão sim. Quanto a serem desprezados, parece que a palavra inspira tanto desprezo como sodomita, mas recordo algo que o senhor me contou: que o oficial de derrota do Defender dizia que havia que queimá-los a todos em vez de enforcá-los, e que o senhor lhe disse que havia muitos bons, valentes e inteligentes. Algo similar ocorre com os corsários: alguns mantêm seus barcos de uma forma tão parecida às da Armada Real que não se notaria a diferença entre eles, a não ser porque não têm o galhardete própio dos barcos de guerra e seus homens não usam uniformes.
- Mas, em geral, a palavra corsário produz aversão na Armada, não é verdade? E acho que por isso o capitão Aubrey não gostará de ficar ao comando de um barco corsário em caso de que lhe expulsem dela?
- Quando navegasse por nossas águas teria dificuldades com os membros que não simpatizam com ele, especialmente os numerosos oficiais estúpidos a quem ofendeu de uma maneira ou outra. Qualquer tenente arrogante ao comando de um cúter poderia ordenar que se apresentasse diante dele para que lhe mostrasse seus papéis e poderia deixar-lhe esperando no convés; qualquer oficial da Armada Real poderia recrutar a força seus homens, o que desafortunadamente arruinaria sua viagem; qualquer sem-vergonha que sirva na Armada poderia repreender-lhe e, contudo, ele não poderia replicar. Mas se navegasse por águas de outros territórios como, por exemplo, Madagascar ou nas colônias espanholas do continente americano e no Caribe, estaria entre amigos e, além disso, poderia se manter a distância de qualquer capitão desagradável que estivesse na base naval mais próxima, porque não há nenhuma fragata da classe da Surprise que possa alcançá-la quando ele a governa. De toda forma, inclusive navegar por nossas águas seria melhor para ele do que se consumir de tristeza em terra.
Os dois se ficaram olhando o tráfego durante um tempo e depois Pullings, em voz muito baixa, quase em tom confidencial, perguntou:
- Doutor, qual a possibilidade de que ele… não sei como dizer… saia prejudicado?
- Minha opinião não vale nada, porque desconheço as leis, mas recordo que na Bíblia se compara a justiça com os panos sujos de uma mulher, como pano menstruado, e tenho muito pouca confiança em que a verdade seja a salvaguarda de uma pessoa neste mundo.
- O que temo é que o condenem por ter dados falsos na lista.
- Dados falsos na lista?
- Por exemplo, inscrever na lista o filho de um amigo quando na realidade ainda está em sua casa, usa calças curtas e vai para a escola para que possa dizer que navegou durante esse tempo. Desse modo, quando faz o exame de tenente, pode apresentar um certificado que demostra que navegou durante seis anos. Todos os capitães fazem isso, e poderia nomear meia dúzia deles agora mesmo; mas se algum marinheiro mal-intencionado jura que o garoto nunca aparecia quando passavam revista, então o capitão em questão é expulso da Armada como se houvesse tido realmente uma lista falsa, quer dizer, com nomes de pessoas que não existem, com o propósito de ficar com seus pagamentos e seus víveres.
- Sem dúvida, esse é um delito contemplado no Código Naval, e como este julgamento se celebra conforme o Código Civil, não tem importância: um rol falso não afeta a bolsa.
- Não sei… O capitão Dundas nos dirá.
Mas Stephen não pôde ver o capitão Dundas na abarrotada coberta da Eurydice quando subiu a bordo e o oficial de guarda disse que duvidava que estivesse livre.
- Por favor, tenha a amabilidade de lhe dizer meu nome: Maturin, doutor Maturin.
- Muito bem - disse o tenente com frieza e, depois de chamar um guarda-marinha, saiu e deixou o doutor Maturin sozinho.
Para os membros da Armada lhes agradava que os visitantes se apresentassem limpos, arrumados e bastante bem vestidos, mas Stephen não se barbeava há algum tempo, usara sua casaca como travesseiro durante a última parte da viagem e agora tinha a roupa empoeirada e cheia de enrugas e os calções desabotoados no joelho. Nada disso, contudo, influiu nas boas-vindas do capitão Dundas, que, vestido de paisano, saiu a toda pressa de sua cabine e foi ver-lhe.
- Querido Maturin, quanto me alegro de haver-me atrasado! - exclamou. - Cinco minutos mais e não lhe teria visto, pois estou a ponto de ir a Londres.
Então lhe levou para a cabine e perguntou com ansiedade por Jack Aubrey. Disse que a questão da falsa lista era irrelevante e perguntou qual era sua opinião do caso e se achava que, do ponto de vista do Código Civil, Jack estava em perigo.
- Se o caso for considerado objetivamente, acho que não; mas a julgar pela expressão de seu advogado defensor e, se considerarmos o que se passou em outros julgamentos com um matiz político, temo o pior. Por essa razão vou comprar a Surprise.
- Ah, é? - perguntou Dundas, que imediatamente compreendeu seu propósito. - Mas… - disse em tom vacilante. - Sabe uma coisa? Será um barco de guerra caro, muito caro.
- Isso me disse um alto cargo do Almirantado. Apesar de tudo, acredito que poderei comprá-la. Poderia emprestar-me um ou dois marinheiros de primeira para me ajudar a trasladá-la para Shelmerston? Contariam com a ajuda de Bonden e de meu servente, enquanto que Pullings e eu iríamos no coche para fechar o negócio.
- Imediatamente disporá, o senhor, de uma brigada. A venda é amanhã, né? Assim que não tem tempo a perder. Se quer estar ali antes de que caia a noite, deve partir imediatamente. Eu lhe levarei para terra em minha falua, que está abordada com a fragata. Zarparemos assim que dê as ordens aos homens que irão com o senhor. Não deve chegar tarde ao leilão por nenhum motivo. Me alegro muito de que Tom Pullings vá com o senhor. Se estivesse sozinho, eu lhe acompanharia para lhe proteger dos tubarões. Para comprar um barco faz falta grande experiência, igual que para cortar uma perna ou um par de pernas. Tenho um encontro em Londres com a jovem de quem lhe falei. Vou me hospedar no Durrant's.
- Não ficará na casa de seu irmão?
- Não. Melville e eu não nos falamos. Quem insulta aos filhos de outro homem ou à mãe destes deve supor que ele se porá em contra sua. Ficarei ali até que o senhor regresse, e lhe agradeceria que me informasse de como foram as coisas. O senhor não pensa em assistir ao julgamento, né?
- Não, a menos que me chamem como testemunha no terceiro dia.
- Sem dúvida haverá muitos ataques - disse Dundas, movendo a cabeça. - talvez presencie alguma parte meio oculto e vá dar gritos de alegria no final. Por favor, recorde-se de cumprimentar a Tom Pullings de minha parte.
Nesse assunto Stephen não podia ter um aliado melhor do que Tom Pullings. Ambos chegaram à hospedaria quando o céu abrira, depois de uma noite chuvosa, e foram caminhando pelas brilhantes pedras até o cais. De vez em quando Tom Pullings respondia quando lhe diziam "Bom dia, capitão Pullings" ou alguma outra saldação. Ele era muito conhecido na cidade e era óbvio que lhe respeitavam muito. Stephen percebeu que, a medida que se aproximavam do mar, Tom Pullings parecia mais velho. Contudo, quando dobraram uma esquina e viram a Surprise em um extremo do comprido porto, iluminada pela luz que se refletia no mar e sob um céu manchado de branco que parecia o marco apropriado para pintá-la, voltou a ser durante breves instantes o jovem que Stephen conhecera tempos atrás.
- Aí está! - exclamou. - Aí está! Não é a visão mais bonita que já viu?
- Sim - respondeu Stephen, pois apesar de sua ignorância notava que a fragata se distinguia entre os outros barcos como um puro sangue entre um grupo de cavalos de carga.
Apesar desse grito de entusiasmo, o Pullings que guiou Stephen até a escada do cais era um oficial sério, competente e com dotes de comando. Quando ambos se sentaram na lancha que os levariam ao extremo do porto, sua desconfiança havia desaparecido. Stephen percebeu que Tom podia estar ao comando de qualquer atividade na Armada, quer fosse tratar com intermediários financeiros que compravam barcos, com homens que se dedicavam ao seu desmache ou com leiloeiros.
Vista do mar, a fragata não havia mudado. Mesmo o doutor Maturin reconhecera seu grande mastro com algumas rupturas, suas suaves curvas e sua graciosa proa de mais de uma milha de distância. Mas quando subiram a bordo a viram muito diferente, pois as cobertas, a sala dos oficiais e a grande cabine estavam cheias de comerciantes, que, posto que se dispunham a assistir ao leilão de um baleeiro norte-americano capturado, estavam vestidos com roupa velha e manchada de gordura. Por essa razão os movimentos que faziam para avaliar a embarcação e satisfazer sua curiosidade pareciam mais ofensivos para os observadores com escrúpulos. Alguns grupos se aproximaram de Pullings para chegar a um acordo sobre a compra de várias partes da fragata; conforme eles, com o fim de que não houvesse desnecessária competição e de que todos os interessados obtivessem vantagens. Enquanto Pullings falava com eles em tom amável, Stephen estava absorto em suas meditações, com a mão posta por cima de seu reduzido estômago, como Napoleão.
Debaixo de sua mão, de seu colete de camurça e de sua camisa havia um feixe de rangentes notas do Banco da Inglaterra, o equivalente a um barco de guerra sacado diretamente da rua Threadneedle, e o pressionou com os dedos durante um tempo porque gostava de ouvir o ruído que faziam. Esteve pensando quase todo o tempo em Diana. Lembrou-se quanto gostava de ir a as leilões, sua emoção, seu rubor, o brilho de seus olhos e sua incapacidade de ficar quieto e calado. Também lembrou que em uma ocasião comprou um conjunto de livros de teologia calvinistas por erro e outra, catorze relógios de caixa. Ainda que tenha prestado atenção às preliminares e às primeiras ofertas de Pullings, logo voltou a abstrair-se e viu com nitidez a imagem de Diana de pé no interior de Christie's, muito perto da porta, com a cabeça alta e um gesto triunfante na boca, uma imagem que não desapareceu até que o maço do leiloeiro bateu a mesa com estrépito e Pullings lhe felicitou pela compra.
- Meu Deus! - exclamou quando se terminaram as formalidades e subiram para o convés outra vez. - Em pensar que o senhor é o dono da Surprise, doutor!
- É um título pomposo - disse Stephen. - Mas espero não ser o dono durante muito tempo. Tenho a esperança de encontrar ao senhor Aubrey contente e disposto a comprá-la de minhas mãos, ainda que goste muito dela porque é para mim uma casa flutuante, uma arca que me serviu de refúgio.
- Ouça, senhor, largue esses cabos! - gritou Pullings, pondo a mão em uma cavilha.
- Só estava olhando - disse o marinheiro.
- Desça pela prancha assim que possa - disse Pullings, e depois de se aproximar de um lado olhou para uma lancha e disse -: Jospin, tenha a amabilidade de chamar o seu irmão. Temos que rebocar a fragata até onde queremos ancorá-la antes que perca a exárcia e os mastros.
Depois olhou para Stephen e exclamou:
- Meu Deus, quanto eu gostaria que Bonden e sua brigada já estivessem aqui! Ainda que esteja ancorada em um lugar isolado, só tenho dois olhos para vigiá-la.
Pegou um balde de água e, com grande habilidade, jogou água em vários garotos que estavam em uma balsa feita de pranchas roubadas e que tentavam arrancar algumas placas de cobre do casco da fragata.
- Malditos pilantras! - gritou. - Bastardos! Filhos de puta! Da próxima vez que os veja, farei que os enforquem! Senhor, agora que os leiloeiros se foram, todos nos consideram uma presa fácil. Quanto antes a traslademos, melhor, e mesmo assim…
- Pelo que vejo, o que quer é separá-la da costa e, potanto, do cais.
- Exatamente, senhor. Quero ancorá-la no centro do porto.
- Então descerei para terra pela prancha, pois quando estivermos no centro do porto terei que descer até uma lancha. O que nem sempre faço bem, como terá notado.
- Não diga isso, senhor - replicou Pullings - Qualquer um pode escorregar.
- Ademais, devo partir imediatamente, pois talvez o senhor Lawrence me chame como testemunha no terceiro dia. Não tenho nem um momento a perder.
A carruagem não perdeu nem um momento. O tempo foi bom em todo momento e o elegante veículo preto e amarelo avançou para o norte durante o resto daquele dia e toda a noite, e em nenhuma posta faltaram cavalos nem cocheiros diligentes. Stephen chegou à rua Saint James a tempo para desjejuar e chamou a um barbeiro para que lhe barbeasse e empoasse sua peruca. Depois pôs um traje preto e outra gravata e, muito tranqüilo, subiu no coche que lhe levou até a Cidade.
Tinha tempo de sobra, e, ainda que houve um momento em que o coche se deteve em uma parte de Saint Clement devido ao intenso tráfego, não se impacientou. Quando por fim chegou a Guildhall, não lhe molestou ver o saguão cheio de advogados falando sobre um caso que não compreendeu mas que não tinha nada a ver com Jack Aubrey nem com a bolsa. Sempre ouvira falar do atraso dos advogados, e durante um tempo pensou que haviam adiado o julgamento de Jack por algum motivo e que talvez se celebraria pela tarde. Ficou sentado ali, contemplando o juiz, lorde Quinborough, um homem corpulento com a cara gorda, uma verruga na bochecha esquerda e uma expressão triste e insatisfeita. Tinha a voz grave e às vezes a levantava para interromper a algum advogado. Raras vezes Stephen vira tanta satisfação em si mesmo, tanta dureza e tão pouco senso comum reunidos debaixo de uma mesma peruca. Tentava se informar do que discutiam ao mesmo tempo que estava alerta para ver aos advogados de Jack ou aos seus ajudantes quando chegassem, mas a medida que o tempo passava, ficava mais nervoso, e, quando compreendeu que aquele caso ainda ia durar muito tempo, foi silenciosamente até a porta e perguntou a um zelador:
- Onde se vai celebrar o julgamento de Jack Aubrey?
- O da fraude na bolsa? Já terminou… terminou ontem. Ditarão a sentença no início da próxima semana. Acredito que as pagará todas juntas.
Stephen não conhecia bem a Cidade, mas, como não pôde conseguir nenhum coche, começou a caminhar com rapidez entre a multidão na direção que, conforme acreditava, era a do Temple. Achou que passava pela frente da mesma igreja uma e outra vez e chegou à porta de Bedlam duas vezes. Seu apressado caminhar já lhe parecia um pesadelo e na quarta vez que chegou na rua Love, a rua que sempre lhe enganava, encontrou-se com um transportador do porto desempregado que lhe conduziu até o rio. Ali tomou um bote a remos e, como o barqueiro remou a favor da corrente, pôde levar-lhe ao Temple em menos tempo do que ele havia tardado em ir de Guidhall a Bedlam.
Quando chegou ao escritório de Lawrence, comunicaram que ele estava enfermo, mas que havia deixado um recado para o doutor Maturin: que o relatório baseado nas atas do julgamento estaria pronto no dia seguinte e que se o doutor Maturin não temia se contagiar, o senhor Lawrence lhe receberia com muito gosto em uma ala da prisão King's Bench.
Talvez "lhe receberia fazendo um esforço" tivesse sido uma frase mais exata, pois quando Lawrence se sentou no leito e tirou o gorro de dormir, parecia estar muito mal, seus olhos lacrimejavam, seu nariz corizava e era óbvio que lhe doiam a cabeça e a garganta. A alta febre tinha muito a ver com isso, mas também o fato de estar decepcionado como homem e como advogado.
- Provavelmente já está ciente do resultado - disse. - Aubrey e todos os acusados foram declarados culpados. Terá o relatório completo amanhã, assim que agora só lhe contarei alguns detalhes.
Nesse momento teve um acesso de tosse.
- Farei o melhor que possa - continuou, e então começou a espirrar e a ofegar outra vez. - Perdoe-me, Maturin. Estou em muito mau estado e a mente me falha. Por favor, alcance-me esse frasco que está na prateleira. - Depois de beber um pouco, prosseguiu -: Recorda que lhe pedi que tentasse que Aubrey tivesse uma idéia mais realista das leis, isto é, da administração da justiça? Pois bem, ainda que o senhor houvesse falado com todas as línguas dos homens e inclusive a dos anjos, não poderia tê-lo feito melhor que Quinborough e Pearce. O julgamento foi uma matança, Maturin, uma calculada e fria matança. Já vi alguns julgamentos desagradáveis de caráter político, mas nenhum como este. Não sabia que o Governo pensasse que o general Aubrey e seus amigos radicais eram tão importantes, nem imaginava que pudesse chegar a estes extremos para atacá-los e lograr que os declarassem culpados.
Lawrence teve outro acesso de tosse, bebeu um pouco mais do remédio e depois, segurando a cabeça com as mãos, pediu a Stephen que lhe perdoasse.
- Temo que meu relato não será bom. Como lhe dizia, Pearce queria conseguir um veredito de culpabilidade. É um jovem charmoso e devo admitir que seu discurso foi muito bom. Constantemente sorria para o juiz e tentava desprestigiar a todos os acusados. Foi fácil conseguir que os especuladores da bolsa parecessem um grupo de pilantras e os destruiu. Bem, isso poderá lê-lo no relatório. Quem nos interessa é Aubrey. Pearce lhe atacou de uma maneira que não esperava e que devia ter previsto se naquele dia eu não estivesse com a mente embotada e se tivesse olhado o jure mais atentamente. Todos tinham relação com o comércio: alguns eram comerciantes e outros homens de negócios. Pearce se dirigiu apenas para o jure porque não tinha que fazer nenhum esforço para convencer o juiz. Disse que era tão patriota como qualquer homem e que ninguém admirava tanto a Armada como ele. Também disse que o capitão Aubrey era um prestigioso marinheiro e que não tinha intenção de negá-lo. Acrescentou que sentia muito que seu dever lhe obrigasse a processar a um homem como ele e que gostaria mais de vê-lo no castelinho de uma fragata que nessa penosa situação, mas que, apesar de que sua folha de serviço fosse excelente, nem sempre havia sido assim, pois havia perdido nada menos que três barcos de um valor considerável, de vários milhares de coroas, e que fora julgado por vários conselhos de guerra. Acrescentou que não queria diminuir o mérito que havia conseguido o capitão por seus serviços, mas queria aclarar que não os havia prestado voluntariamente senão que lhe haviam pago por eles com grandes somas, haviam lhe proporcionado alojamento e serventes gratuitamente e lhe haviam premiado com medalhas, condecorações e fitas. Oh, meu Deus, meu Deus! Por favor, alcance-me esses lenços. - Ficou ofegando durante alguns momentos enquanto limpava o nariz com um lenço de cambraia seco e, quando pôde respirar melhor e se reanimou, continuou -: O que vou lhe contar agora não segue a ordem real, mas permitirá que faça uma idéia da mensagem que transmitiu aos jurados mediante afirmações, provas e o interrogatório das testemunhas. Protestei ao ouvir muitas de suas afirmações e também quando apresentou muitas das provas, que me pareciam inadimissíveis. Quinborough teve que dar-me a razão algumas vezes, porém, naturalmente, o estrago já estava feito, o jure já havia formado sua opnião, tanto se as afirmações tinham fundamento como se eram deduções errôneas, e era inútil dizer para que as descartassem. Em resumo, Pearce disse que não tinha que recordar aos cavalheiros do jure que a coragem era uma das mais admiráveis virtudes dos britânicos e uma das que os distinguiam dos homens de outras nações, mas que não necessariamente estava associada a outras virtudes. Ademais, disse que provavelmente os cavalheiros do jure pensariam que a um capitão lhe faltava integridade ou pelo menos delicadeza se recebia a um preto como hóspede de honra em um barco de sua majestade, sobretudo se esse preto era não só o fruto da relação ilícita entre ele e uma mulher negra, senão também um clérigo papista e, potanto, um oponente à supremacia de sua majestade. Insistiu em que o capitão Aubrey compartia as idéias dos radicais sobre o papado e que também estava a favor da emancipação dos católicos. Depois falou da desagradável questão de navegar com bandeira falsa e afirmou que o capitão o havia feito repetidas vezes, e que seus própios diários de navegação e outras provas o demonstravam, assim que era inútil que a defesa tentasse provar o contrário. Disse que não tinha nada contra navegar com bandeira falsa na guerra, ainda que para as pessoas simples e para os honestos comerciantes isso podia ser estranho, pois mesmo o imortal Nelson havia atacado ao inimigo em Trafalgar com uma bandeira falsa; mas acrescentou que se perguntava se o capitão, que ordenara usá-la centenas de vezes, fazia igual em terra, e que essa era a única razão pela qual mencionava o assunto. Perguntou se o imaginário senhor Palmer não era uma prova de que o capitão usava essa estratagema e assegurou que havia acumulado uma considerável fortuna usando o dinheiro dos butins e empregando artimanhas desse tipo. Acrescentou que o capitão havia feito algumas especulações errôneas, que junto com os pleitos que tinha pendentes, podiam acabar com essa fortuna e deixar-lhe sem tudo o que possuía, assim que necessitava de grande quantidade de dinheiro urgentemente. Conforme ele, o fato do capitão compartilhar um coche com um cavalheiro desconhecido depois de chegar a Dover no barco de bandeira branca, havia lhe dado a oportunidade de içar de novo uma bandeira falsa, e ainda que acusasse ao imaginário senhor Palmer de ter lhe enganado e fizesse recair sobre ele a culpa de todo o ocorrido, isso não lhe serviria de nada porque a culpa não podia recair no inexistente senhor Palmer, a quem chamava assim porque, em direito, de non aparentibus et non existeniibus eadem est ratio. Assegurou que os conspiradores haviam inventado tudo isso sobre o inocente cavalheiro desconhecido que havia oferecido um lugar em seu coche ao capitão Aubrey. Por último, disse que esse inocente cavalheiro existia e que seus ajudantes podiam apresentar meia dúzia de moços de estábulo e criadas que podiam prová-lo, mas que não havia nenhuma prova que demonstrasse sua relação com o imaginário Palmer nem com aquela horrível conspiração.
- Como Jack Aubrey reagiu a isso?
- A princípio escutou com atenção e me passou algumas notas sobre o uso de uma bandeira falsa no mar, mas depois pareceu isolar-se. Seguiu ali sentado com uma expressão grave, mas parecia estar em outra parte. Em um momento em que Pearce falava muito rapidamente, Aubrey lhe lançou um olhar cheio de raiva e desprezo e Pearce lhe viu, porque se voltou para ele para dizer que os guerreiros não eram necessariamente bons cidadãos nem comerciantes e se interrompeu. Então um marinheiro que estava no fundo da sala gritou: "Maldito marinheiro de água doce!" e o tiraram dali. Não sei se algum dos ajudantes de Pearce lhe pôs ali para demostrar que os marinheiros são maus e perigosos, mas isso influiu muito no jure e permitiu a Pearce sair de um terreno escabroso e voltar aos tópicos como, por exemplo, que os objetivos e as conexões dos radicais podem provocar a anarquia e ameaçam à Igreja. Depois descreveu com todo detalhe as atividades dos conspiradores na bolsa no dia seguinte que Aubrey chegou a Londres. Jack Aubrey mostrou seus sentimentos só uma vez mais, quando o assessor financeiro de seu pai, que era uma testemunha da promotoria, jurou que ele lhe havia dado a entender que se havia firmado a paz, ainda que sem ser muito explícito. Nessa ocasião parecia perigoso, e quando eu interroguei a testemunha, vi que seus olhos brilhavam; contudo, enquanto os outros advogados pronunciaram seus compridos discursos, que o juiz interrompeu constantemente, parecia tão distante como se estivesse no mar. Não o olhei muitas vezes porque a maldita gripe me obrigava a concentrar todas minhas forças nas perguntas que fazia. O resplendor das lanternas, que estavam acesas há horas, era tão forte que apenas podia ler minhas notas, e seu odor me causava tanto atordoamento que estava a ponto de desmaiar. Mas as testemunhas da promotoria seguiam passando e eu seguia interrogando-as, ainda que soubesse que não o fazia bem e que omitia falar de seus argumentos inconsistentes, confundia as cifras e desperdiçava as oportunidades que se apresentavam. Em casos como este há que aproveitar as ocasiões, sabe? A participação dos outros advogados defensores foi um pouco melhor, mas Pearce estava mais descansado que uma alface e falava alegremente com presunção e com um sorriso estúpido, e fazia breves disquisições. Tudo ia bem e isso o estimulava.
- Quer tomar um pouco de xarope? O senhor está muito rouco.
- Sim, por favor. Estava mais rouco então. - O pobre homem ficou ofegando como um cachorro por alguns momentos e depois continuou -: Mas ao final Pearce ficou sem testemunhas e fechou o caso. Então nós começamos a arrumar nossos papéis e demos graças a Deus, pois, como estávamos ali desde as nove da manhã e já eram dez da noite, pensávamos que se adiaria nossa intervenção; contudo, enquanto espirrava várias vezes seguidas ouvi que aquele demônio dizia que devíamos continuar. Disse: "Queria escutar seu enfoque do caso e, se é possível, as alegações dos acusados. Vários cavalheiros que hão assistido como testemunhas têm muitos inconvenientes para vir amanhã". Isso nos pareceu absurdo e protestamos. O sargento Maule, em nome de Cummings, disse que não lhe parecia bem apresentar as alegações dos acusados tão tarde, pois desse modo Pearce replicaria no início do dia seguinte e, como nós teríamos que chamar outras testemunhas, ele, desafortunadamente, poderia falar outra vez e seria o último em fazê-lo antes das conclusões.
- Pelo que vejo, estes casos se regem por regras estritas.
- Também havia regras estritas na praça onde lutavam os gladiadores: cada um tinha que ter uma espada, mas se devia lutar contra Calígula, a espada devia ser de chumbo. Como um juiz é um imperador em seu própio tribunal, tivemos que continuar. Recordo que escutei atentamente a Maule, que falou muito bem no início, mas logo começou a divagar, a se repetir e a confundir as cifras, e eu me perguntava que poderia dizer a um jure em que todos os membros estavam desgostosos pelo caso e dois terços estavam adormecidos. A Maule seguiu Petty, que defendia outros dois acusados e falou ainda pior, ainda que muito mais, e Quinborough cochilou durante quase todo o discurso. Quando por fim me pus em pé… Mas não vou contá-lo, porque é muito doloroso. Apelei para a razão, mas não serviu de nada; apelei para as emoções e falei das vitórias do capitão, de suas feridas e sua reputação, mas tampouco serviu de nada. De todas formas, minha voz apenas podia ouvir-se e eu quase não podia organizar meus pensamentos em uma seqüência lógica. Mencionei o ponto que, em minha opinião, era o mais importante, que Aubrey não havia vendido suas ações quando estavam mais altas, como os demais, e terminei dizendo: "Seria muito doloroso para mim ver que a coroa de louro que hoje leva como prêmio por sua honra e sua arriscada vida caia pelo peso de seu veredito". Mas tampouco isso serviu de nada, e os poucos membros do jure que estavam acordados ficaram me olhando atônitos. Quando me sentei, com a convicção de que havia perdido o caso, eram três da madrugada. Estávamos sentados por dezoito horas, e finalmente Quinborough adiou o julgamento sem ter ouvido nossas testemunhas.
- Dezoito horas! Jesus, María e José!
- Sim. E regressamos no dia seguinte às dez da manhã. Tinha tão pouco entusiasmo que quase não podia me mover nem falar. A apresentação das testemunhas da defesa levou pouco tempo. As minhas não puderam provar nada mais além de que Aubrey tinha um esplêndida carreira, o que não vinha ao caso; e ainda que lorde Melville falou muito bem, suas palavras pouco influíram no jure, no qual poucos membros sabiam que havia uma pessoa com o cargo de primeiro lorde. Não devemos chamar-lhes, porque quando acabaram de declarar, Pearce começou a réplica, à qual não podíamos responder. Foi uma boa réplica. Conhecia bem ao jure, que agora estava acordado e captava facilmente os argumentos simples e repetidos. Jogou por terra nossos discursos, o que, em minha opinião, não foi difícil, e depois repetiu insistentemente seus argumentos: Aubrey necessitava de dinheiro, uma grande oportunidade se apresentou, quando chegou a Londres fez operações que gerariam milhões e que acordou com todos os implicados. Ademais, disse que os acusados que haviam fugido demonstraram sua culpa com sua fuga. Lorde Quinborough fez a conclusão, que levou três horas.
- É por acaso um juiz com uma verruga na bochecha que vi esta manhã em Guildhall?
- Sim.
- É um homem inteligente?
- Era um homem inteligente. Raras vezes chega-se a juiz um homem que não seja bastante inteligente. Porém, como muitos outros, tornou-se estúpido no tribunal e, além disso, orgulhoso, autoritário e mal-humorado. Desta vez fez um extraordinário esforço para fazer proveito de suas faculdades, pois é um feroz conservador, como o senhor sabe muito bem, e saboreou como se fosse mel esta oportunidade de destruir aos radicais. Ainda que tenha sido muito prosaico e repetitivo, fez tudo o que queria fazer.
Nesse momento Lawrence teve outro acesso de tosse, voltou a espirrar e se sentiu pior. Quando tudo passou e Stephen o acomodou sobre os travesseiros, sussurrou:
- Não lhe contarei os detalhes, pois poderá lê-los no relatório. Com respeito ao caso de Aubrey, a conclusão foi a mais infame que já ouvi. Quando Quinborough declarou que todos os acusados eram culpados, acrescentou Aubrey ao grupo e revisou superficialmente e com cepticismo as provas em favor dele, ou não as levou em consideração e, por outro lado, fez ênfase em todas as que lhe eram contrárias. Praticamente aconselhou ao jure que o declarasse culpado, e quando este se retirou, escrevi uma nota para Aubrey em que lhe dizia que se preparasse para o pior. Aubrey assentiu com a cabeça. Estava muito tranqüilo e muito sério, mas não desanimado, e ainda seguia impassível quando o jure regressou, aproximadamente uma hora depois, e pronunciou o veredito de culpabilidade. Então me apertou a mão e me agradeceu pelo esforço que havia feito, mas eu apenas pude responder-lhe. Voltarei a ver-lhe no dia 20, quando for escutar a sentença.
- Qual a sentença que o senhor acredita que será?
- Espero… espero que só seja o pagamento de uma multa.
CAPÍTULO 9
O chuvisco matutino apenas estava iluminado pelo leste, mas a fábrica de velas já havia começado a desprender seu nauseabundo odor e um grupo de esposas, filhos, amigos e serventes empapados estavam reunidos diante da porta de Marshalsea.
Poucos minutos antes de que abrissem, Sophie Aubrey chegou caminhando pelo barro com tamancos.
- Oh, Stephen, por fim hás chegado! - exclamou. - Quanto me alegro de vê-lo! Como veio cedo! Mas está empapado - acrescentou, olhando-lhe atentamente. - Ponha o chapéu imediatamente, por Deus. Não deve molhar a cabeça. Venha para baixo de minha sombrinha e agarre meu braço.
- Tinha muito interesse em falar contigo antes que entrasse para ver Jack - disse Stephen. - Mas com a pressa me equivoquei de hora. Nunca consegui ser pontual.
As portas se abriram por dentro com seu habitual chiado e as pessoas entraram e tomaram seu caminho habitual. Como todas as seções abriam meia hora depois que a dos devedores, Stephen conduziu Sophie até a cafeteria e ambos se sentaram em um solitário canto.
- Além de estar empapado - disse -, parece cansado. Passe-me seu abrigo - acrescentou, e o pôs para secar sobre o respaldo da cadeira. - Suponho que não ouviu nenhuma boa notícia.
Então, sem esperar a resposta, pediu à senhora Goadby:
- Café forte e quente, alguns bolos e dois ovos passados na água para o senhor, por favor.
- Viajei quase sem parar e esperava que depois de fazer duros esforços ouviria algo alentador, e precisamente um grande homem me disse que talvez não o condenarão à prisão; contudo, todo o resto é mau. Lawrence me explicou que não se pode celebrar um novo julgamento, pois, devido a que a promotoria apresentou um processo contra todos os supostos conspiradores e como foram declarados culpados, todos devem estar presentes para interpor uma apelação, quer dizer, ou a interpõem todos ou não é válida. É uma nova norma dos tribunais.
- Quanto detesto aos advogados! - exclamou Sophie e seus olhos se enturvaram.
- Isso é o que sei com relação à apelação. Quanto à sentença, vários homens e mulheres a quem procurei me disseram que eles "não podem mudar o curso da justiça".
- Maldita justiça! - exclamou Sophie no mesmo tom que sua prima Diana teria empregado.
- Ainda que era isso precisamente o que queria que eles fizessem, o que me interessa mais é a mudança do costume, quer dizer, que não apaguem o nome de Jack da lista de oficiais. Se é culpado, isto é, se o "declaram" culpado de ter cometido um horrível delito, automaticamente apagarão seu nome dela; não porque a lei mande mas por costume, um costume tão arraigado que o príncipe William me assegurou com lágrimas nos olhos que nem ele nem o primeiro lorde poderiam mudá-lo. Somente o rei ou, neste caso, o regente têm autoridade para fazê-lo. Mas o regente se encontra na Escócia e, além do mais, só me conhece por ser amigo de seu irmão, com quem não se dá muito bem neste momento, assim que fui até Brighton para visitar a sua esposa.
- A sua esposa?
- Sim, ainda que todos a conhecem como a senhora Fitzherbert.
- Mas, estão casados? Pensei que ela era católica.
- Certamente que estão casados! O própio Papa lhe escreveu para lhe dizer que a cerimônia era válida e que era sua esposa conforme os cânones. Charles Weld, um primo de seu primeiro esposo que exerceu como sacerdote na Espanha durante um tempo e a quem eu conhecia bem, me mostrou o documento. Ainda que tenha me recebido amavelmente, disse, negando com a cabeça, que quase não tinha influência em nada e que, mesmo no caso de que tivesse, duvidava que pudesse fazer algo; contudo, aconselhou-me que fosse ver lady Hertford e isso é o que vou fazer. Mas o pedido de ajuda ao regente não pode ser feito com rapidez, Sophie, se é que realmente se pode. Entretanto, Jack disporá da Surprise, que acabo de comprar para usá-la como barco de guerra privado. Se encontra ancorada em Shelmerston, e Tom Pullings, que está a cargo dela, mandou dizer que montes de marinheiros de primeira, entre os quais há muitos de nossos antigos companheiros de tripulação, hão dito que embarcariam nela se estivesse sob o comando de Jack. Se ele aceitar o comando, poderemos sair daqui assim que tudo termine, se ele não for condenado à prisão. Tem que convencê-lo, minha amiga.
- Mas, por que não lhe perguntou, Stephen? Por que não lhe falou disto?
- Bem… - disse, olhando seu prato. - Em primeiro lugar, porque não tive tempo, já que estava de viagem, mas, além disso, porque não achava fácil, sabe? Não gosto em absoluto de fazer o papel de deus ex machina, e você pode fazê-lo melhor que eu. Em caso de que falasse de agradecimento, diga-lhe que não tem nada que agradecer, pois um põe o capital e o outro põe sua habilidade. Eu não seria capaz de governar uma embarcação ainda que estivesse em um bebedouro nem de atacar sequer a um bote de remos, e, por outro lado, nunca navegaria com outro capitão. Por favor, diga-lhe que espero que responda afirmativamente quando venha para visitar-lhe esta tarde. Tenho que ir. Que Deus te bendiga! Recorde-se que não deve dizer barco "corsário" mas barco de guerra "privado" ou "com patente de corso".
Quando Stephen estava perto da porta da casa de sir Joseph, no mercado Shepherd, viu o coronel Warren sair, montar em um coche que cedeu sob seu peso e começar a se afastar nele. Sabia que Warren era o novo representante do corpo de cavalaria no comitê e que era um homem muito inteligente e ativo, mas não desejava encontrá-lo, assim que seguiu andando durante alguns minutos mais. Quando por fim visitou ao seu amigo, encontrou-lhe muito preocupado.
- Ao passo que vamos - disse sir Joseph -, chegarei a suspeitar que lorde Liverpool e a metade do Conselho de Ministros hão cometido alta traição. Há algumas contradições inexplicáveis… talvez o própio Cerberus se haja tornado louco. Quanto eu gostaria que resolver este caso fosse a metade da facilidade que solucionar o seu!
Então abriu uma gaveta e continuou:
- Aqui tem as patentes que lhe autorizam a fazer corso contra a França, a Holanda, as repúblicas italiana e lígure, Estados Unidos da América, os barcos que naveguem com bandeira de Pappenburgh e de meia dúzia de países mais. Eu as tinha prontas desde a quarta-feira.
- Que Deus lhe bendiga, Blaine! - exclamou Stephen. - Eu lhe estou muito agradecido. Deveria ter vindo na quarta-feira, e o teria feito se não houvesse passado por Londres às duas da madrugada quando me dirigia para uma cidade chamada Bury. Fui ver todos os homens e mulheres importantes do reino que me têm simpatia.
- Se viajou para ajudar a Aubrey, do que estou convencido, poderia ter poupado o dinheiro do aluguel dos carros. Neste país já não se podem subornar juízes e tampouco conseguir que outros os subornem ou os persuadam, e muito menos que lhes dêem ordens. Mas há uma única excessão, da qual podia ter-lhe falado antes de que o senhor partisse: quando o juiz também é membro do Governo, como é o caso de lorde Quinborough, e, por definição, tem a responsabilidade de cumprir os desejos de seus companheiros relacionados com os assuntos políticos. Deve saber que escolhemos ao senhor para estabelecer extra-oficialmente contato com o Chile e o Peru, algo que a Administração considera muito importante. Pensamos que é a pessoa ideal porque o senhor fala espanhol e é um agente secreto experiente, que tem o barco adequado para navegar por essas águas e a desculpa idônea para explicar sua presença ali. Ademais, como o senhor é católico, poderá tratar melhor com outros católicos, muitos dos quais são irlandeses ou meio irlandeses, como, por exemplo, o jovem O'Higgins. Todos esses atributos acrescentados ao fato de que o senhor possue uma considerável fortuna foram decisivos. Os membros do pequeno grupo que se reuniu para a eleição se esfregaram as mãos para expressar sua satisfação, mas um cavalheiro disse que apesar do senhor ter todas essas virtudes, não navegaria em um barco que não estivesse ao comando de Aubrey. Como este assunto insta, acho que não deve se preocupar com o encarceramento de seu amigo.
Sir Joseph olhou o relógio e prosseguiu:
- Se quer vê-lo quando compareça no julgamento, deve se apressar.
- Não quero - disse Stephen. - Em minha opinião, ali os abelhudos estão fora de lugar. Tomei a liberdade de dizer que me enviassem uma mensagem aqui.
- Muito bem - disse sir Joseph. - Eu temo que a sentença lhe surpreenderá. Quinborough não o condenará à prisão, mas lhe inoculará seu veneno de outra maneira. Neste caso havia muita maldade, sabe?, pois se pretendia que os outros acusados saíssem em liberdade sob fiança quando lhes declarassem culpados e só Aubrey fosse encarcerado. Indubtavelmente o julgamento ocultava um objetivo político, a destruição dos radicais, e é compreensível que alguns políticos que se deixam levar pelas paixões o tivessem, mas também havia má intenção. A insistência com que atacaram ao seu amigo…
- Perdoe, senhor - disse a senhora Barlow. - Uma mensagem para o doutor Maturin.
- Abra-a, por favor - rogou sir Joseph.
- A picota - disse Stephen em tom grave. - Uma multa e a picota. "Pagará ao rei uma multa de duas mil e quinhentas libras e será exposto na picota que se encontra diante do edifício da bolsa na Cidade de Londres durante uma hora, entre as doze do meio-dia e as duas da tarde."
- Me o temia - disse Blaine depois de uma comprida pausa e acrescentou -: Diga-me, Maturin, há visto na Inglaterra a algum homem exposto na picota?
- Não.
- Em certas ocasiões pode dar lugar a um espetáculo sangrento. Oates esteve a ponto de morrer e muitos homens resultam mutilados. Uma vez vi que a um lhe sacaram os dois olhos atirando-lhe pedras. Como é evidente que neste caso há interesse em fazer estrago a uma pessoa, seria conveniente que o senhor contratasse um grupo de tipos musculosos para que o protejam. O investigador saberá onde achá-los e os contratará em seu nome.
- Mandarei buscar-lhe imediatamente. Obrigado pela advertência, Blaine. Agora, diga-me, o que o senhor pensa de lady Hertford?
- Do ponto de vista físico, moral ou social?
- Como meio de evitar que apaguem o nome de Aubrey da lista de oficiais. A senhora Fitzherbert me aconselhou que procurasse ela.
- Há que apagar-lhe forçosamente da lista, porque essa é a regra. O importante é sua inclusão de novo na lista. Outras vezes foi feito, respeitando inclusive a antiguidade dos oficiais nos casos em que haviam sido expulsos da Armada por bater-se ou por coisas similares, e em ocasiões por ter listas falsas que não haviam causado nenhum problema; contudo, geralmente demora muito tempo e requer muita influência. Em um caso como este… O senhor conhece a senhora Fitzherbert?
- Só lhe fiz alguma ou outra inclinação de cabeça. Mas acho que atualmente goza de muita influência sobre o regente e, conforme me disseram, ela se dá muito bem com Andrew Wray. Pensei que com uma apresentação e um presente adequados poderia convencê-la de que, pelo menos, comece a falar do assunto com o regente.
- É possível que isso dê resultado, mas o regente está na Escócia e passeia por ali sua volumosa figura enfeitado com um kilt que lhe chega aos joelhos, meias multicolores, uma capa de lã e uma boina típica dos escoceses. Suspeito que lady Hertford está com ele, e se quiser averiguo se é assim e lhe digo.
- O senhor é muito amável. De toda forma, vou parar na rua Grosvenor quando vá a Marshalsea.
- Provavelmente saberá que entre uma mulher odiosa e um tipo pretencioso e astuto como Wray é provável que perca o presente e o dinheiro.
- Certamente! Que o senhor passe um muito bom dia, meu estimado Blaine.
Quando o doutor Maturin parou na rua Grosvenor para visitar ao senhor Wray, este não se encontrava em sua casa, mas sim a senhora Wray. Ela ouviu que o doutor deu seu nome ao abrir a porta, desceu correndo a escada e lhe pegou as mãos. Era uma jovem gorda, de pele morena e feições ordinárias, mas agora tinha um aspecto quase bonito, pois a indignação havia ruborizado sua cara e fazia brilhar seus olhos. Já sabia a notícia e exclamou:
- Que injustiça! Quanta maldade! Pôr na picota a um oficial de marinha! Isto é incrível! É um homem tão valente, tão distinto, tão charmoso, tão alto! Entre para minha salinha.
Levou Stephen a uma salinha adjunta ao seu quarto. Nas paredes havia muitos quadros com barcos pintados, dos quais alguns foram governados por seu pai e muitos mais pelo capitão Aubrey nos tempos em que Babbington estava sob seu comando.
- Ele me tratava muito amavelmente quando eu não era mais que uma menina gorducha, apesar de que meu pai era às vezes muito duro com ele. Charles, quero dizer, o capitão Babbigton tem uma excelente opinião dele e quase lhe venera. Doutor Maturin - acrescentou com outro tom de voz e com um olhar penetrante -, Charles aprecia muito seus conselhos e me alegro disso. Ontem à noite partiu para os downs.
Depois, a modo de resumo, exclamou:
- E pensar que sua pobre esposa verá como o apedrejam sem poder fazer nada! Isto é monstruoso, monstruoso. Zombarão dele e o insultarão. Provavelmente morrerá de vergonha.
- Com respeito a isso, senhora, esquece a senhora que ele é inocente e não tem nada de que se envergonhar.
- Certamente que é inocente! E isso faz uma grande diferença. Para mim não importaria que houvesse cometido dez vezes mais operações fraudulentas na bolsa, porque todo mundo as faz. Sei que o senhor Wray ganhou uma grande soma ao mesmo período. Porém, por favor, sente-se, doutor Maturin. Em que estava pensando? O que Charles pensaria de mim? Por favor, tome uma taça de madeira.
- Obrigado, senhora, mas tenho que ir embora. Devo ir a Marshalsea.
- Então, por favor, diga ao capitão que lhe envio um respeitoso, isto é, um afetuoso cumprimento e à senhora Aubrey toda minha estima. E se posso ajudá-la em algo, como cuidar das crianças, dos gatos…
No momento em que ambos saiam da salinha a porta da rua se abriu e do alto da escada puderam ver Wray sustentado por dois cocheiros. Imediatamente dois criados o seguraram com destreza e quando atravessavam o saguão ele se voltou para Stephen e disse:
Uma esposa maltratada e um cornudo quebraram a corrente do matrimônio juntos.
Em Marshalsea foi difícil para Stephen atravessar a ala onde ficavam os oficiais da marinha porque havia muitos ali reunidos, a maioria deles falando ao mesmo tempo e todos muito indignados. Inclusive os menos inteligentes e os que estavam quase loucos admiravam muito a Armada e pensavam que expor a um oficial na picota era um intolerável ultraje a ela. Stephen teve que escutar a leitura de uma petição e firmá-la antes de poder seguir avançando. Os prisioneiros haviam deixado vazio o terreno onde jogavam boliche, situado na parte baixa do edifício onde Jack ficava, por respeito a seus sentimentos, algo que não haveriam feito se lhe houvessem condenado a morrer enforcado. Killick estava sentado no degrau mais baixo e tinha uma expressão de espanto como se tivesse visto sua casa em chamas.
Quando Stephen subia a escada, ouviu Jack tocando no violino uma triste fuga com paixão e austeridade, e esperou que terminasse para bater na porta. Depois entrou e foi recebido com um olhar grave e penetrante.
- Desculpe, Jack - disse -, mas pensei que haviam dito "entre".
- Oh! - exclamou Jack e relaxou a cara. - Eu lhe confundi com… Quanto me alegro de lhe ver, Stephen! Sente-se. Sophie acaba de sair para comprar umas costeletas.
Nesse momento pôs de um lado o violino e o arco, voltou sua opulenta figura para Stephen e em tom solene disse:
- Me contou tudo sobre a Surprise. Eu lhe agradeço muito a oferta que me fez e será um prazer para mim governá-la agora que se há convertido em um barco de guerra privado. Mas o que não entendo, Stephen, é se realmente poderei armá-la além de comprá-la. Quando pague a multa…
- Uma multa injusta.
- Sim, mas se lamentar não serve de nada. Quando pagar a multa e somar todas as perdas que tive na bolsa, não terei nada, e armar um barco, ainda que seja para uma viagem curta, custa muito mais do que você imagina.
- Meu amigo, já lhe disse que recebi uma herança de meu padrinho.
- Sim. Lembro que você disse quando regressamos para a Inglaterra, mas pensei que consistia, e perdoe-me por me meter em seus assuntos, em uma pequena quantidade de dinheiro para livros, um anel de luto e alguns lembranças, ou seja, as coisas que habitualmente se herdam dos padrinhos e que também têm grande valor.
- É muito mais que isso, muito mais, tanto que não temos que contar cada penique antes de gastá-lo. Poderemos fazer a guerra por nossa conta sem nos privar de nada.
Stephen se levantou, assomou-se pela janela e olhou para o céu cinzento. Depois voltou a olhar para o interior do quarto e viu Jack iluminado pela luz que entrava pela parte norte e sentado em uma postura apropiada para se fazer um retrato. Parecia mais; robusto e mais pesado que antes, estava muito sério e tinha um gesto leonino; contudo, por baixo de sua seriedade Stephen percebeu uma ferida na qual a notícia da Surprise apenas havia produzido efeito e, com a esperança de aliviá-la um pouco, acrescentou:
- Meu amigo, eu lhe direi um segredo: nossa guerra não será totalmente privada. Já sabe que tipo de atividades realizo e, entre uma tentativa de aniquilar o comércio do inimigo e outra, tenho que fazer alguns trabalhos relacionados com elas.
Jack compreendeu imediatamente e expressou sua satisfação sorrindo e fazendo uma inclinação de cabeça, mas sua dor não diminuiu. Então Stephen prosseguiu:
- A maldita picota não deve ter importância para um homem inocente, meu amigo, mas é tão desagradável como uma dor de dente. Muitas vezes lhe mediquei para dor de dente, e com o que lhe trouxe agora ser exposto na picota lhe parecerá um sonho - disse, pegando um pequeno frasco do bolso -, um sonho distante e só um pouco desagradável. Eu mesmo o tomei várias vezes e me fez muito efeito.
- Obrigado, Stephen - disse Jack, pondo o frasco na prateleira.
Stephen compreendeu que não tinha intenção de tomá-lo e que a dor não havia diminuído. O fato de ter deixado de pertencer à Armada causara a Jack mais tristeza do que se o tivessem condenado a milhares de picotas e mais que a perda de sua fortuna, sua patente e seu futuro. De certa forma isso era como a perda de sua identidade, e quem lhe conhecia bem notava que havia conferido à sua cara e aos seus olhos uma expressão estranha.
Ainda tinha aquela expressão melancólica e absorta na quarta-feira seguinte, quando estava em um quarto sujo e vazio da ala sul de Cornhill esperando para que o levassem para a picota. Os policiais encarregados de sua custódia se achavam agrupados junto à janela, e como estavam muito nervosos falavam sem parar.
- Tínhamos que tê-lo feito há dias, justo depois de que se ditasse sentença. A notícia teve tempo de chegar até Land's End e John o'Groats.
- E a todos os malditos portos do reino: Chatham, Sheerness, Portsmouth, Plymouth…
- Sweeting's Alley está bloqueado.
- Castle Alley também, e acredito que lhes seguirão outros. Deveriam ter mandado buscar os soldados faz tempo.
- Somos quatro tenentes, quatro cabos e um oficial de justiça. Que podemos fazer frente a uma multidão?
- Se saírmos desta com vida, levarei minha mulher e meus filhos para viver do outro lado de Epping.
- Seguem chegando do rio. Aí estão os tipos das brigadas recrutadoras com seus sangrentos sabres e cassetetes. Que Deus tenha misericórdia!
- Estão bloqueando os dois lados da rua da bolsa com carroças. Que Deus nos proteja!
- Por que não dá a ordem? Por que o senhor Essex não dá a ordem? Estão ficando furiosos lá embaixo. Vão nos matar a bordoadas.
Em Saint Paul e nas igrejas da Cidade os sinos haviam tocado já fazia cinco ou dez minutos e a multidão amontoada em frente a Cornhill se impacientava.
- Oito badaladas! - gritaram alguns. - Toquem oito badaladas! Virem o relógio de areia e toquem o sino!
- Tragam-no! - gritou o líder de um grupo que, assim como os outros, tinha uma bolsa de pedras e havia sido contratado por alguns acionistas decepcionados. - Tragam-no e deixem-nos vê-lo!
Bonden se voltou para ele e perguntou:
- Que faz aqui, companheiro?
- Vim para ver o espetáculo.
- Então va ver o espetáculo de Hockley em Hole, amigo. Este é só para marinheiros, sabe? Só para marinheiros, não para homens de terra adentro!
O homem olhou para Bonden e para os homens com cara séria e expressão ameaçadora que estavam detrás, homens bronzeados e fortes com brincos e compridas tranças; depois olhou para os de seu grupo, esquálidos e pálidos, e quase sem pausa replicou:
- Bem, não me importa. Que o passe bem, marinheiro!
Davis, um homem muito robusto, feio e perigoso que havia acompanhado Jack em muitas missões, despachou ainda mais facilmente a um grupo de tipos forçudos contratados por Wray. O grupo, cujos membros usavam roupa de cores brilhantes e chapéus de copa baixa, destacava-se entre a massa formada quase integralmente por marinheiros. A maioria das pessoas, incluídos os aprendizes e os meninos de rua, que tinham baldes cheios de lixo, haviam ficado do outro lado dessa barreira ou haviam ido para edifícios próximos. Davis, acompanhado de seus quatro irmãos, que eram mais feios que ele, e um ajudante de oficial de derrota preto e mudo, aproximou-se do grupo gritando furiosamente:
- Que se vão os sacanas!
Depois de ver como se afastavam, abriu passagem entre seus companheiros a cotoveladas e chegou até os degraus da picota, onde Stephen estava com alguns lutadores que o investigador havia logrado contratar e que também se destacavam entre os outros. Então lhes disse:
- E os senhores também têm que sair daqui. Não queremos lhes ferir, cavalheiros, mas têm que sair daqui.
Stephen os olhou, assentindo com a cabeça, e eles se moveram para um lado em direção a Saint Michael. Quando chegaram à igreja, o relógio desta marcou um quarto para a hora e o senhor Essex finalmente deu a ordem.
Jack saiu da escura habitação para a intensa luz, e quando os policiais lhe fizeram subir os degraus não podia ver nada devido ao resplendor.
- Por favor, senhor, ponha a cabeça aqui e as mãos aqui - disse um policial muito nervoso em voz baixa e tom amável.
O policial pôs lentamente o parafuso, depois o fixou com a porca e se moveram as dobradiças. Jack ficou imóvel com as mãos apoiadas na parte inferior dos orifícios e imediatamente sua vista se aclarou. Então viu que a larga rua estava cheia de homens silenciosos e atentos, e ainda que alguns usavam longas capas, outros a roupa de descer a terra e outros malhas, percebeu que eram todos marinheiros. Também havia dúzias, montes de oficiais e guardas-marinhas. Babbington estava ali, justo diante da picota, com a cabeça descoberta e olhando-lhe fixamente. Também estava Pullings e, naturalmente, Stephen, e Mowett, Dundas… lhes fez uma inclinação de cabeça, ainda que sem mudar sua expressão impassível. Depois viu Parker, Rowan, Williamson, Hervey e outros homens que fazia muito tempo que não via e cujos nomes apenas podia recordar: capitães, tenentes e suboficiais que punham em perigo sua ascensão e guardas-marinhas e ajudantes de oficiais de derrota que punham em perigo seus postos.
- Por favor, senhor, passe a cabeça um pouco para frente - murmurou o policial.
Depois a parte superior da armação de madeira imobilizou a cara de Jack e ele ouviu o som metálico do parafuso. Então, em meio do silêncio, ouviu-se uma potente voz gritar:
- Tirem o chapéu!
Ao mesmo tempo centenas de marinheiros lançaram ao ar seus chapéus de aba larga e começaram a dar vivas a plena voz, como os que Jack ouvira amiúde nas batalhas.
CAPÍTULO 10
- Deve ficar claro que o senhor não entrará em nenhum combate - disse o senhor Lowndes, um funcionário do Ministério de Assuntos Exteriores -, a menos que as circunstâncias sejam extraordinariamente favoráveis para isso. O senhor se limitará a estabelecer contatos em Valparaíso e Santiago. E com respeito às presas capturadas, seu valor menos os dez por cento será deduzido da subvenção diária acordada e não haverá reclamação de nenhum outro pagamento ao Governo de Sua Majestade.
- Também peço a metade dos gastos de manutenção - disse Stephen. - Calcula-se que a manutenção de um barco de tanto valor como esse, quando navega por águas exageradamente agitadas, custa cento e setenta libras por mês: cento e setenta libras a cada mês lunar. Insisto neste ponto e quero que conste por escrito.
- Muito bem - admitiu o senhor Lowndes mal-humorado, e fez uma nota. - Aqui tem uma lista dos militares e pessoas notáveis recomendadas pela Organização Para a Libertação do Chile e por nossas própias fontes de informação; aqui tem uma das munições e do dinheiro que pode proporcionar-lhe a organização. Deve ficar claro que o material e o dinheiro sempre serão fornecidos pela organização, não pelo Governo. Acho que é desnecessário repetir que se tiver algum conflito com as autoridades locais, terá que abandonar o plano e deixará de ter apoio oficial. Isto é tudo, se o coronel Warren e sir Joseph não tiverem nada a acrescentar.
- Por minha parte só quero dar ao doutor Maturin os nomes e os códigos das pessoas mais importantes com que pode se pôr em contato - disse o coronel Warren, que não falava como militar mas como membro do comitê, ao qual os três pertenciam. - Provavelmente o senhor quererá revisá-la, senhor - acrescentou, entregando-lhe um feixe de papéis para Stephen.
- Com relação às questões navais, aqui tem estes dois documentos - disse sir Joseph, dando-lhes golpezinhos com os óculos. - Um é uma dispensa que impedirá o recrutamento forçoso dos homens do doutor Maturin; o outro lhe permitirá reabastecer e obter apetrechos dos estaleiros de sua majestade a preço de custo e pagar em Londres a noventa dias.
- Então só me resta desejar êxito ao doutor Maturin - disse o senhor Lowndes, pondo-se de pé.
- E um feliz regresso - disse o enorme coronel com sua voz aguda, apertando a mão de Stephen e olhando-lhe com afeto.
Sir Joseph os acompanhou até a porta da rua e quando ela se fechou aproximou-se da escada da parte traseira e, projetando a voz para abaixo, gritou:
- Senhora Barlow, pode servir a janta quando queira! - Depois voltou para o quarto e disse -: sinto muito, Maturin. Foi inumano que Lowndes se estendesse tanto. Parecia que tentava firmar um tratado com uma potência hostil em vez de… espero que não lhe haja tirado o apetite. Como sei que as pessoas que professam a antiga fé têm que mortificar seu corpo hoje, fui cedo ao mercado e consegui algumas ostras e duas lagostas realmente frescas. Ademais encontrei um excelente robalo, e se ele cozinhou muito não perdoarei o Ministério de Assuntos Exteriores enquanto viva - acrescentou enquanto servia duas taças de xerez. - Mas devo confessar que admiro sua tenacidade ao discutir a parte financeira.
- Isso é produto da riqueza - assegurou Stephen - Desde que disponho de dinheiro me desgosta muito desprender-me dele, sobretudo se tratam de forçar-me. Antes cedia docilmente quando alguém tentava que o entregasse usando ardis ou a força, mas agora contra-ataco com uma segurança e uma aspereza que me surpreendem e quase sempre me fazem ganhar.
Então levantou sua taça e disse:
- Brindo por seu êxito.
- Obrigado - disse Blaine. - Warren e eu acreditamos que já estamos muito perto do raposa. Indubtavelmente, trata-se de um caso de alta traição, e só vinte homens poderiam cometê-la, quer dizer, estão em posição de cometê-la. O homem em questão é muito astuto e prudente, mas acho que Warren, com todos os recursos de que dispõe, o encontrará. Warren é muito mais inteligente do que um poderia imaginar vendo sua cara de militar e sua figura. O senhor sabia que ele é um eunuco, um homem sem…?
- Quando queira, senhor - disse a senhora Barlow em tom grave da porta.
Sir Joseph, ruborizado, conduziu Stephen à sala de jantar e quando estivam sentados, perguntou:
- Que sabe do pobre Aubrey?
- Tem todos os marinheiros que quer. Recusou muitos e aceitou somente os que gostava. Pensa fazer uma pequena viagem pelo golfo de Vizcaya durante um mês para ver se se comportam satisfatoriamente. Pegarei a diligência que parte amanhã cedo para reunir-me com ele no sábado.
- Alegro-me de que tenha sorte com a tripulação. É lógico que os homens mais astutos compareçam em tropel para alistar-se no barco de um capitão tão bom e que captura tantas presas. Como isso é diferente quando há dependência dos barcos recrutadores! Merece um pouco de sorte depois de passar tantas desgraças. Apesar de tudo, esse horrível assunto não fez bem ao Conselho de Ministros, e provavelmente Quinborough seja o homem mais impopular do país. As pessoas o insultam pela rua e está tão incômodo pela sentença e a forma em que se celebrou o julgamento que não se recorda dos radicais. Em toda a cidade elogiam os oficiais e os marinheiros que deram vivas diante da bolsa. É óbvio que o Governo não compreendeu bem quais eram os sentimentos da nação. As pessoas gostam de ver na picota a um padeiro que engana no peso dos produtos e a intermediários financeiros que fazem operações fraudulentas, mas não pode suportar ver nela a um oficial da marinha.
- Os marinheiros eram dignos de se ver. Estava encantado e assombrado de ver tantos.
- O Governo não poderia ter feito as coisas pior. Atrasou a execução da sentença até que toda a ilha foi um clamor de indignação e até que chegou uma grande esquadra dos downs, ancoraram vários barcos em Nore e atracaram em Medway e nos embarcadouros da parte norte do Támesis mais embarcações do que as habituais. Havia grande quantidade de marinheiros nesses barcos e muitos outros desocupados em terra e, ademais, a essa hora do dia a maré e o vento eram favoráveis para vir navegando rio acima e regressar navegando rio abaixo. Naturalmente, também vieram numerosos oficiais e muitos grupos de tripulantes de licença. Me contaram que inclusive vieram algumas brigadas recrutadoras com a desculpa de buscar desertores. A Quinborough e seus amigos não restou outro remédio do que mandar escrever alguns panfletos para justificar seu comportamento.
Chegou o excelente robalo junto com uma garrafa de vinho de Montrachet e, depois de uma pausa na qual estiveram muito ocupados, Stephen disse:
- Acho que pode perdoar ao senhor Lowndes, apesar de tudo.
- É um animal tagarela - disse sir Joseph sem má intenção. - Falando de escritos, o que pensa do de seu amigo, o senhor Martin?
- A verdade é que não o li - respondeu Stephen. - Recebi um pacote do remoto lugar onde vive o pobrezinho justo antes de partir para Bury. Pela nota adjunta soube que seu estado era bom, que nenhum ponto havia se soltado e que a ferida havia fechado bem, assim que decidi lê-lo mais tarde. Imagino que é um ensaio sobre os autênticos gorgulhos que pensava escrever há tempos.
- Oh, não! o título é: Informe sobre certas práticas imorais que prevalecem na Armada Real e alguns comentários sobre os açoites e o recrutamento forçoso.
Stephen soltou o garfo e um pedaço de pão que tinha na mão.
- É muito duro? - perguntou.
- Tem escorpiões dentro. Exclue a fragata S…, governada pelo capitão A…, de honorável conduta, das embarcações em que se praticam a prostituição e a sodomia, aplicam-se castigos cruéis e se tiraniza aos homens, às quais ataca com a força de mil tijolos. Também ataca o sistema de recrutamento forçoso. Afortunadamente, ele pode permitir-se o luxo de fazê-lo, pois, conforme entendi, está casado e conta com recursos econômicos para viver no campo.
- Não conta com recursos econômicos para viver no campo e em nenhuma outra parte. Pensa seguir viajando com Aubrey e comigo como capelão.
- Lamento muito, porque é um excelente entomólogo e seu amigo, mas depois de ter feito este ataque, ainda que com razão e em defesa da moral, não voltará a encontrar um barco. Teria sido mais conveniente que falasse dos autênticos gorgulhos ou, melhor ainda, dos cicindélidos do Novo Mundo. Espero que sua esposa possa proporcionar-lhe uma moderada fortuna para que possa seguir dando-se o luxo de falar das faltas dos outros. Ah, os cicindélidos, esses bonitos insetos! Somente pude ordenar e classificar pouco mais da metade dos insetos que o senhor teve a amabilidade de trazer-me, apesar de que às vezes o faço até a uma da madrugada. Maturin, quero confessar-lhe algo com respeito a um exemplar muito raro, ainda que me dá muita vergonha: o duodecimpunctatus caiu no chão ao fazer um movimento desajeitado, e ao tratar de salvá-lo me movi ainda com mais torpeza e o pisei. Se por casualidade passar pela margem do Orinoco, eu lhe agradeceria…
Falaram dos insetos, da Associação de Entomólogos e da Royal Society até que chegou o queijo, e quando a senhora Barlow trouxe o café, disse:
- Sir Joseph, pus os ossos do cavalheiro debaixo de seu chapéu, que está na poltrona do saguão.
- Ah, sim! - exclamou Blaine. - Cuvier enviou por Banks um pacote de ossos para que entregasse ao senhor, e Banks me os deu porque sabia que o senhor viria hoje.
- Provavelmente serão os de um pássaro solitário - disse Stephen, apalpando o pacote quando se levantou para despedir-se. - Cuvier foi muito amável.
Foi rapidamente até Black's e subiu com pressa para seu quarto, onde estavam espalhadas todas suas posses a espera de que as metesse no baú. Imediatamente abriu o pacote e viu que não eram os ossos de um pássaro solitário nem muito menos os de um dodo, senão uma mistura de ossos de cegonhas e grous comuns e possivelmente de um pelicano pardo. Os ossos estavam envoltos em uma pele de alcatraz e haviam se conservado bastante bem, ainda que não perfeitamente. Podiam ser encontrados em qualquer das lojas naturalistas próximas ao Jardín des Plantes, mas Stephen achava improvável que alguém fizesse uma brincadeira de tão mau gosto como essa e examinou os ossos um a um. Não encontrou neles nada de particular, mas viu escrito uma mensagem na parte interior da pele. Parecia a nota de um taxidermista; dizia: "Si la personne qui s'intéresse au pavillon de partance voudrait bien donner rendez-vous en laissant un mot chez Jules, traiteur à Frith Street, elle en aurait des nouvelles".
- "Pavillon de partance" - murmurou Maturin, franzindo o cenho.
Fez muitas outras combinações, mas a única que tinha sentido era pavillon de partance, e quanto mais a repetia mais seguro ficava de que ouvira a frase, fazia muito tempo, na França.
desceu a escada, ainda murmurando, para ir à biblioteca, mas ao chegar embaixo se encontrou com o afável almirante Smyth.
- Boa noite, senhor - disse. - Ia consultar uma enciclopédia na biblioteca, mas acho que vou poupar-me a viagem. Por favor, o que significa pavillon de partance?
- Provavelmente o senhor a viu com freqüência, doutor - respondeu o almirante em tom amável. - É a bandeira azul com um quadrado branco no centro que içamos no tope do traquete para indicar que vamos zarpar imediatamente. Em geral é chamada de bandeira de saída.
- A bandeira de saída! Certamente! Obrigado, almirante, muito obrigado.
- De nada - replicou o almirante, rindo, e seguiu avançando pelo corredor.
Stephen subiu de novo a escada e regressou para seu quarto. Então jogou no chão as três camisas que estavam sobre a cadeira de braços e se sentou nela. Sentia em seu peito o tumulto de muitas emoções, e algumas lhe causavam uma dor aguda. A bandeira e a mensagem, que havia compreendido quando o almirante Smyth lhe deu aquela explicação, haviam feito com que recordasse com detalhes uma série de incidentes, e agora, olhando fixamente pela janela, reviveu a história relacionada com eles. A cor da bandeira era igual ao de um grande diamante em forma de coração que Diana possuía quando estava em Paris, no início da guerra, e era um objeto que lhe encantava e pelo qual sentia afeto. Diana podia viver então ali, já que antes de se casar com Stephen e se converter em uma súdita britânica era cidadã norte-americana, e ali se achava quando a corveta Ariel, ao comando de Jack Aubrey, naufragara diante da costa de Bretanha. As autoridades suspeitavam que Stephen era um espião e lhe levaram a Paris e lhe prenderam no Temple, uma prisão francesa, junto com Jack e Jagiello, um oficial do Exército sueco. Era provável que matassem Stephen, e Diana tentou salvar-lhe subornando a mulher de um ministro com o diamante, um ato que esteve a ponto de causar-lhe uma desgraça porque parecia demostrar que era um importante agente secreto. Os três foram deixados em liberdade, mas por uma causa muito diferente: um grupo de homens influentes em Paris, dirigidos por Talleyrand, estavam convencidos de que nesse momento poderiam depor Bonaparte e pôr fim à guerra se a Inglaterra quisesse negociar a paz, e necessitavam de um mensageiro que tivesse excepcionais dotes e bons contatos para que apresentasse suas propostas. O agente que lhes representava era Duhamel, um membro de um dos serviços secretos franceses de mais antiguidade, e disse para Stephen que ele era a pessoa apropiada. Stephen, depois de resistir durante um tempo, acedeu a colaborar com a condição de que deixassem em liberdade seus companheiros e Diana e devolvessem o diamante. Ainda que por razões políticas não lhes fosse possível devolvê-lo imediatamente, prometeram fazê-lo. Isso havia ocorrido há anos, e desde então ele não havia voltado a saber nada do diamante azul. Haviam passado tantas coisas desde então que apenas recordava o brilho da grande pedra preciosa.
"É uma proposta rara e não isenta de perigos -disse, olhando a pele de alcatraz. Durante um momento refletiu sobre seus possíveis riscos, como o sequestro, o assassinato e outras coisas, mas finalmente pensou -: Vale a pena tentar. Ainda que pegue a diligência lenta que sai ao meio-dia poderei chegar quando mude a maré, a sagrada maré que Jack não pode desperdiçar." Escreveu uma nota em que dizia que o doutor Maturin gostaria de se encontrar com o amável cavalheiro que lhe enviara os ossos, marcava um encontro para as oito e meia da manhã no pasto situado no final do caminho no parque Regent's, e lhe rogava que fosse sozinho e com um livro na mão. Deu a nota ao porteiro, pediu que mandasse imediatamente um garoto levá-la à rua Frith e depois seguiu fazendo sua bagagem. Arrumava lentamente e com torpeza, e ainda que no clube houvesse muitos serventes que podiam tê-la feito habilmente, estava tão acostumado a levar todos seus assuntos em segredo que já era algo quase instintivo, e não gostava que nenhum estranho visse sequer suas camisas desdobradas. Sobretudo lhe era difícil fazer o baú, que tinha duas gavetas e um pequeno cofre interno, pois algumas vezes, quando o enchia completamente e forçava a tampa para fechá-lo, percebia que uma dessas três coisas estava na cama ou atrás da porta. Por volta da meia-noite já tinha a bagagem arrumada e bem fechada, e então percebeu que as duas pistolas que pensava usar estavam no compartimento mais baixo do baú.
- A vida não vale a pena - disse e se deitou na cama com o informe de Martin.
Era um informe detalhado e bem fundamentado dos abusos que se cometiam na Armada, e até agora talvez o mais imprudente que havia escrito um pastor que exercia suas funções em um barco. Martin não tinha nenhum benefício eclesiástico nem possibilidades de tê-lo e sua esposa não lhe proporcionara uma fortuna, assim que havia posto todas suas esperanças na proteção de Jack Aubrey e em sua permanência na Armada.
Uma das razões pelas quais se faziam muitas viagens da França para Inglaterra era a presença do conde de Lille, o jure de Luis XVIII, em Hartwell, Buckinghamshire. Seus conselheiros tinham contatos freqüentes com os grupos realistas, especialmente os de Paris, e como alguns dos ministros de Bonaparte pensavam que era conveniente se proteger do acaso, não só consentiam que se fizessem senão que mandavam seus própios emissários com mensagens que geralmente não continham nada de concreto senão pouco mais que expressões respeitosas e de boa vontade. O número de mensageiros aumentava ou diminuía em função das vitórias de Bonaparte (ultimamente conseguira muito poucas) e permitia aos serviços secretos britânicos ter uma idéia bastante exata da opinião dos setores mais influentes de Paris.
"Provavelmente será um deles", pensou Stephen quando o coche lhe transportava com rapidez para o parque Regent's. Mas depois pensou que, desde o início, os serviços secretos franceses haviam infiltrado entre os mensageiros seus própios agentes e, em alguns casos, a tipos desagradáveis que eram espiões duplos ou triplos, pelo que era possível que quem lhe mandara os ossos fosse um deles. Obviamente, esse homem sabia que Stephen havia sido convidado para ir a Paris dar uma conferência sobre o pássaro solitário no Instituto da França, que pertencia à Royal Society e que Cuvier e Banks faziam intercâmbios, mas isso não permitia identificá-lo. Era possível que qualquer indesejável soubesse essas coisas. Então disse para si: "Alegro-me de ter pego as pistolas, mas não sei como vou enfrentar-me de novo a esse baú".
- Já chegamos, senhor - disse o cocheiro. - E fizemos uma viagem muito rápida.
- De fato.
Apesar da viagem ter sido rápida, Stephen não foi o primeiro a chegar ao encontro. Apoiou-se na cerca branca que ficava no final do caminho, olhou ao longe por cima do terreno coberto de grama que se estendia para o norte e viu uma figura solitária, movendo-se de um lado para o outro com um livro na mão.
Não havia sol, mas do alto e claro céu chegava uma tênue luz que permitiu a Stephen reconhecer ao homem quase imediatamente. Sorriu, passou por debaixo da cerca e avançou pelo pasto em direção à distante figura. A certa distância ao oeste viu um rebanho de ovelhas que pastava e que parecia uma mancha branca sobre o verde brilhante; passou tão perto de uma lebre que estava em sua toca com as orelhas baixas e que parecia convencida de que era invisível, que quase pôde tocá-la; e quando estava a pouca distância do homem tirou o chapéu e exclamou:
- Duhamel, quanto me alegro de ver-lhe outra vez!
Duhamel parecia muito mais velho, pálido e pior do que a última vez que se viram, mas lhe cumprimentou com a mesma alegria e disse que também ele se alegrava de ver-lhe e que esperava que estivesse bem.
- Sinto muito ter lhe trazido para este lugar afastado - disse Stephen -, mas como não sabia quem era o senhor, achei que era melhor para os dois ver-nos em um lugar discreto. Pelo visto, foi fácil encontrá-lo.
- Eu o conheço muito bem - disse Duhamel. - No ano passado estive caçando aqui com meu enlace na Inglaterra. Lamentavelmente, só tínhamos armas emprestadas e alguns cachorros muito maus, mas eu logrei caçar quatro lebres e ele duas e um faisão, ainda que vimos trinta ou quarenta. Refiro-me às lebres, não aos faisões.
- Gosta de caçar, Duhamel?
- Sim, mas prefiro pescar. Para mim a felicidade é ficar sentado na beira de um tranqüilo riacho observando a cortiça.
Fez uma pausa e pouco depois continuou:
- Peço desculpas por ter-me comunicado com o senhor de uma forma tão inapropiada, mas da última vez que estive em Londres vi que a hospedaria onde costumava hospedar-se estava destruída e não tinha nenhum outro endereço. Por outro lado, não queria levar isto ao Almirantado por medo de lhe comprometer.
Pegou do bolso uma pequena bolsa de algodão como as que os joalheiros costumam usar, abriu-a e, em meio da intensa luz, viu o resplandecente diamante, cujo brilho já não era uma recordação mas uma realidade. Teve a impressão de que aquele extraordinário objeto brilhava mais e era de um colorido azul mais forte que o da imagem que tinha em sua mente, e notou em sua mão sua frieza e seu peso.
- Obrigado - disse, jogando-o no bolso de seus calções depois de observá-lo silenciosamente por alguns momentos. - Eu lhe agradeço muito, Duhamel.
- Esse era o acordo - disse Duhamel. - A única pessoa que merece seu agradecimento, caso tivesse que dá-lo, é d'Anglars. Ainda que seja um pederasta, é o único homem de palavra entre todos esses políticos egoístas e corruptos. Ele insistiu em que lhe devolvesse.
- Espero poder demostrar-lhe meu agradecimento alguma vez, e estou seguro de que a dama dirá o mesmo. Gostaria de regressar andando para a cidade?
Havia notado a amargura de Duhamel, mas não percebeu de qual era sua magnitude até que percorreram um longo vão em silêncio, e disse:
- Em geral, em nossa profissão as conversações estão fora de lugar, mas queria saber se o senhor estaria seguro tomando uma xícara de café comigo. Em Marylebone há uma pastelaria francesa onde sabem fazer um bom café, algo raro nesta ilha.
- Estaria muito seguro, obrigado. Monsieur de Lille me há acreditado como representante seu e em Londres me conhecem só três homens, isto é, agora só dois. Mas tenho que recusar seu convite, pois do outro lado dessa fila de carros de construtores está me esperando um coche que me levará para Hartwell.
"Então terei tempo para encher de novo o baú e pegar a diligência lenta do meio-dia", pensou. Mas Duhamel, sem mudar o tom, prosseguiu:
- Nossa profissão… Maturin, não sei se o senhor também está cansado da duplicidade, das constantes mentiras e do ódio que temos não só por nossos inimigos senão também pelos membros de nosso grupo e de outras organizações.
Agora tinha a cara muito mais pálida e seu gesto transluzia sua emoção.
- A luta pelo poder e para ter vantagem na carreira política - acrescentou -, a falsidade e a traição a direita e a esquerda, a troca de aliados, a falta de fé e de lealdade… Sei que têm um plano para sacrificar-me. O meu enlace em Londres, o homem com quem estive caçando, foi sacrificado, ainda que tenha sido por dinheiro e em meu caso será para que meu chefe demostre sua lealdade ao imperador. Iam eliminar o senhor em Bretanha e eu não teria podido lhe salvar, porque foram os homens de Lucan que prepararam o caso de madame da Feuillade. Mas suponho que o senhor sabia de algo, já que não foi.
Como se tivessem se posto de acordo, ambos deram a volta e voltaram a percorrer o terreno coberto de grama.
- Estou farto de tudo - continuou Duhamel. - Essa é uma das razões pelas quais me alegro de ter terminado esta missão como devia. Por fim fiz algo limpo e digno! Escute-me bem, Maturin: quero abandonar tudo - acrescentou, estendendo os braços e fazendo uma careta de desgosto. - Quero ir para o Canadá, concretamente para Quebeque. Se o senhor pode me facilitar o meio de consegui-lo, darei em troca algo que vale dez vezes mais; sim, dez vezes mais. Sei de algumas coisas relacionadas com seus assuntos e lhe dou minha palavra de que o que vou lhe contar afeta muito à sua organização e ao capitão Aubrey.
Stephen fixou nele seus claros olhos e depois de olhar-lhe com atenção alguns momentos, disse:
- Farei um esforço para consegui-lo. Eu lhe darei a resposta amanhã. Onde podemos nos encontrar?
- Em qualquer parte. Como lhe disse, em Londres só dois homens me conhecem.
- Poderia vir ao clube Black's, na rua Saint James?
- Em frente ao Button's? - perguntou Duhamel em tom estranho e com um gesto de desconfiança que apenas durou um instante. - Sim, certamente. Acha bom às seis?
- Sim - respondeu Stephen. - Então, até amanhã às seis.
Eles se separaram ao chegar ao caminho e Duhamel seguiu andando em direção oeste para regressar ao coche e Stephen, em direção sul, olhando ao seu redor atentamente para ver se passava algum carro de aluguel. Por fim, em frente de um edifício em construção, achou um quase oculto pelas carroças com tijolos e o pó que formavam e foi nele até o hotel Durrant's.
Ao chegar ali perguntou pelo capitão Dundas e não se surpreendeu quando lhe disseram que havia saído.
- Eu o esperarei - disse.
Sentou-se pensando que talvez teria que esperar várias horas, pois às vezes não chegavam as notas ou as pessoas esqueciam as mensagens, e, ainda que não fosse assim, raras vezes quem as recebia percebia a urgência de quem as enviava. E de fato, teve que esperar várias horas, ainda que não as achou muito longas porque alguns dos numerosos oficiais da marinha que, como era habitual, hospedavam-se no hotel, haviam se sentado ao seu lado um tempo para mostrar sua simpatia por Jack Aubrey. O último deles, um capitão de navio gordo e com óculos que se chamava Hervey, contava que achava revoltante que houvessem privado a Armada de um marinheiro tão bom como ele justo quando as fragatas norte-americanas conseguiam tantas vitórias, e de repente parou e disse:
- Aí está o capitão Dundas, que está ainda mais indignado do que eu.
- Venham almoçar cordeiro comigo - convidou Dundas, aproximando-se deles.
- Lamento, mas não posso, tenho um compromisso - respondeu Hervey e olhou atentamente o relógio e se levantou de um salto dizendo -: Estou atrasado! Estou atrasado!
- Seria um prazer - afirmou Stephen, e dizia a verdade, pois simpatizava com Dundas, não pudera desjejuar por culpa do maldito baú e, apesar de estar ansioso, tinha muita fome.
- Vai zarpar logo rumo à base naval da América do Norte, né? - perguntou quando lhes trouxeram o bolo de maçã.
- Na segunda-feira, se o vento e o tempo permitirem - respondeu Dundas. - Amanhã vou me despedir de todos.
- O senhor se importaria que passássemos para a sala de fumar? - inquiriu Stephen.
Quando entraram nela Stephen percebeu que havia demasiada gente e disse:
- A verdade é que queria lhe falar em particular. Podemos ir subir?
Dundas o conduziu ao seu quarto, ofereceu-lhe uma cadeira e assegurou:
- Sabia que tinha algo acontecendo.
- Acho que podemos fazer um grande favor a Aubrey - disse Stephen. - Estive falando com um homem em quem tenho muita confiança que deseja ir para o Canadá. Em troca de que lhe levem ali, ele me dará certa informação que tem muito valor para Jack.
Em resposta à desconfiança que se refletia no rosto de Dundas, Stephen disse:
- Já sei que com tão simples palavras isto parece uma ingenuidade ou inclusive uma estupidez, mas não posso revelar coisas que são confidenciais; não posso dar detalhes que lhe convenceriam. Contudo, pelo menos posso mostrar-lhe isto.
Pegou o diamante azul do bolso, o desenbrulhou e lhe mostrou à luz do sol.
- Que gema! - exclamou Dundas. - É uma safira?
- É o diamante azul de Diana - respondeu Stephen. - Como recordará, ela estava em Paris quando Jack e eu fomos presos, e o fato de ter deixado para atrás o diamante tem muito a ver com nossa fuga. Mas haviam prometido devolvê-lo, e o homem de que lhe falo me entregou ele antes de ir para Hartwell. Eu lhe conto isto para que compreenda pelo menos uma das razões pelas quais confio em sua palavra e para que veja que levo a sério o que diz. Nada podia ter impedido que ficasse com a jóia, e, contudo, ele me a entregou sem pôr condições.
- É um diamante extraordinário - disse Dundas. - Acho que nunca vi nenhum melhor fora da Torre. Deve valer uma fortuna.
- Mas o mais assombroso é que um homem que tem a intenção de partir para o Novo Mundo para começar uma nova vida entregue a outro uma fortuna semelhante. Um homem assim não fala por falar.
- Sabe por que quer ir para o Canadá?
- Não pediria ao senhor que o levasse se fosse um fugitivo da justiça. O que lhe passa é que está farto da má fé de seus colegas, suas discórdias e sua hipocrisia, e deseja começar do zero.
- Como vai a Hartwell, suponho que é francês.
- Não estou certo. Talvez seja de algumas das províncias do vale do Reno. Mas lhe asseguro que não é partidário de Bonaparte.
- Acha que devemos lhe dizer que o levarei sob a condição de que a informação seja útil para Jack?
- Não.
- Imaginei. Mas faríamos papel de tontos se…
Dundas caminhou de um extremo a outro refletindo durante um tempo e por fim disse:
- Bem, acho que terei que levá-lo. Escreverei uma nota para Butcher para que o receba como a um convidado meu. Afortunadamente temos um lugar livre porque o oficial de derrota subirá a bordo quando chegarmos a Halifax. Ele fala inglês?
- Muito bem, quer dizer, com soltura. Aprendeu com sua babá, que era escocesa, e depois com um tutor escocês. Fala com o sotaque do norte do país, que não é desagradável nem incompreensível, e usa palavras arcaicas que dão certo encanto a suas frases. Só alguém com muito bom ouvido poderia dizer por seu sotaque que é estrangeiro. É tranqüilo e inofensivo e provavelmente passará toda a viagem em sua maca, porque não está acostumado a navegar.
- Tanto melhor, porque é contrário às normas levar estrangeiros a bordo.
- Também é contrário às normas levar mocinhas, tanto do país como estrangeiras, e acho que já vi a alguns fazê-lo.
- Bem, desçamos para buscar uma caneta e tinta - disse Dundas.
O doutor Maturin teve todo o dia seguinte para refletir sobre o que havia feito e o que estava fazendo. Ambas as coisas eram uma imprudência do ponto de vista profissional e também do pessoal, já que ia se comprometer e se expor a que lhe fizessem graves acusações. Seus atos poderiam ser considerados delitos, talvez delitos graves. Guiava-se por seu instinto, mas seu instinto não era infalível, pois algumas vezes havia falhado e outras estivera condicionado a seus desejos. Para se tranqüilizar olhava de vez em quando o esplêndido diamante que levava no bolso, como se fosse um talismã, e passou a tarde no mais quente dos banhos turcos de Covent Carden, com seu magro corpo suando tanto como era possível.
"Duhamel será pontual? Dará importância ao tempo?", Stephen se perguntou quando estava sentado no saguão do Black's, em um lugar de onde via a porta e a escrivaninha do porteiro. Não teve resposta até que o relógio terminou de dar as seis e Duhamel apareceu na escada com um pacote. Aproximou-se dele antes que pudesse perguntar por ele ao porteiro e o conduziu para a grande sala do piso superior que dava para a rua Saint James. Duhamel estava ainda mais pálido, mas tinha o rosto impassível, como sempre, e parecia tranqüilo.
- Consegui que a Eurydice lhe leve para Halifax - disse Stephen. - Terá que subir a bordo antes da segunda-feira e viajará como convidado do capitão. Hei dado a entender que o senhor estava ou está relacionado com Hartwell de alguma maneira, mas lhe rogo que fale pouco e que permaneça em sua cabine alegando que está enjoado. Aqui tem uma nota que lhe permitirá subir ao barco, e, como poderá ver, conservei o nome Duhamel.
- A verdade é que o prefiro, porque assim terei uma complicação a menos - confessou Duhamel e pegou a nota. - Eu lhe estou muito agradecido, Maturin. Acho que lamentará isto.
Olhou ao seu redor e viu em um canto um homem muito velho lendo os debates parlamentários com uma lupa.
- Pode falar abertamente - disse Stephen. - Esse cavalheiro é um bispo anglicano e, ademais, é surdo.
- Ah, um bispo anglicano! - exclamou Duhamel. - Muito bem. Me alegro de estar nesta sala - acrescentou, olhando para a rua pela janela, mas imediatamente voltou a atender a Stephen e perguntou -: Como poderia começar meu relato? Nomes…, nomes… Essa é uma das dificuldades: não estou certo de como se chamam os três homens dos quais quero lhe falar. Meu enlace em Londres usava o nome de Palmer, mas esse não era seu verdadeiro nome, e ainda que fosse um excelente agente por muitas razões, falhava nisso porque nem sempre respondia imediatamente nem com naturalidade quando lhe chamavam por seu nom de guerre. O nome do segundo homem lhe é familiar: Andrew Wray. Mas durante um período bastante longo se fez chamar senhor Grey. Não é um bom agente, e depois de um tempo começou a atraiçoar a si mesmo porque se embebedava. Não é um bom agente em absoluto e, sinceramente, Maturin, me admira que não o tenha descoberto em Malta.
Stephen baixou a cabeça quando a luz começou a entrar na sala e fez ressaltar sua humilhação.
- Nunca imaginei que pudesse contratar a um tipo tão presunçoso e tão pouco confiável - murmurou.
- Tem algumas boas qualidades - disse Duhamel -, mas é verdade que é emotivo e covarde. Não tem princípios, e não só falaria no primeiro interrogatório sério como poderia delatar a si mesmo em qualquer tipo de interrogatório. Não haveríamos trabalhado tanto tempo com ele se não houvesse sido por seu amigo, o terceiro homem, a quem conheço como o senhor Smith. É um homem que ocupa um posto muito alto, e na rua Villars lhe tinham quase devoção pelos informes que fazia.
- Tem um posto mais alto que Wray?
- Oh, sim! E é muito mais inteligente. Quando estão juntos parecem um mestre e seu aluno. Também é um homem duro. - Duhamel olhou seu relógio e continuou -: Tenho que ser breve. Apesar de Smith ser mais hábil que Wray e de Wray está bem respeitado, os dois são medíocres, gastadores e jogadores. Ambos são nominalmente agentes voluntários, mas sempre estão pedindo dinheiro. Depois da reorganização da rua Villars, diminuiram os fundos disponíveis, e eles mandaram uma depois de outra muitos pedidos de dinheiro, cada vez mais urgentes, mas lhes disseram que ultimamente haviam nos fornecido pouca informação e de escassa importância, o que é verdade. Responderam que dentro de algumas semanas lograriam desfazer-se de sir Joseph Blaine por fim e teriam acesso direto ao comitê, pelo que sua informação ia ser sumamente importante. - Duhamel voltou a olhar seu relógio e o aproximou do ouvido. - E enquanto esperavam maquinaram o caso das operações fraudulentas na bolsa.
Ainda que Stephen notava que Duhamel lhe estava escrutinando, não podia ocultar de todo sua emoção. O coração lhe pulsava tão forte que sentia as pulsadas na garganta, e uma vez mais se assombrou de sua própia estupidez. Agora tudo aquilo estava evidente.
- Parece que lhe preocupa o tempo - disse.
- Sim - afirmou Duhamel, aproximando a cadeira da janela. - Naturalmente, lamento muito que seu amigo tenha passado tão mal momento, mas à parte disso, qualquer um que analise o plano com objetividade tem que reconhecer que estava muito bem traçado. O senhor poderia dizer que, conhecendo todos os movimentos do capitão Aubrey e as conexões de seu pai e dispondo de um agente competente como Palmer, era fácil fazê-lo, mas essa seria uma análise simplista… Maturin, o senhor se incomodaria se me ausentasse por alguns minutos e regressasse mais tarde?
- Não, em absoluto - respondeu Stephen.
- Houve um momento em que achou que o plano era todo um êxito, e ainda que eles não podiam ganhar muito dinheiro sem atraiçoar a si mesmos, obtiveram o suficiente para saldar as dívidas mais importantes.
"Então foi quando Wray me pagou o que me devia", pensou Stephen, e voltou a sentir vergonha.
- Mas isso não lhes bastou e nos fizeram duas propostas - disse Duhamel. - A primeira era negociar umas letras de extraordinário valor nos mercados do norte da Europa; a segunda, que entregariam o senhor em Lorient. Com relação à proposta das letras, não estou seguro de se foi recusada ou retirada, e quanto ao senhor não lhe entregaram; assim que Lucan, que havia comparecido em Bretanha, ficou furioso e lhes tirou até a remuneração mensal. Agora os dois estão em más condições e prepararam um informe que asseguram que é de extraordinária importância.
Duhamel olhou seu relógio uma vez mais e continuou:
- Palmer me contou detalhadamente o caso da bolsa quando estávamos pescando em um riacho não longe de Hartwell. Estou seguro de que o senhor simpatizaria com ele. Podia conseguir que um martim pescador se pousasse em sua mão e tinha muitas boas qualidades. Essa foi a última vez que o vi. Quando ofereceram uma grande recompensa por sua captura, iniciou-se uma feroz perseguição, e o mataram para evitar que fosse descoberto e pudesse lhes delatar. Não o enviaram para o estrangeiro, mataram-no ou mandaram matá-lo. Não posso perdoar-lhes por terem cometido esse crime.
- Duhamel - disse Stephen, aproximando tanto sua cadeira que quase tocava o vidro da janela -, pode dar-me algo tangível, alguma prova concreta?
- Não - respondeu Duhamel -, agora não, mas espero poder dá-la dentro de cinco minutos.
Continuou falando de Palmer, um homem por quem era evidente que sentia afeto, mas de repente começou a dizer frases desconexas e pouco depois se interrompeu no meio da frase. Então pegou o pacote e depois de dizer "Me desculpe, Maturin. Olhe pela janela", saiu precipitadamente da sala.
Stephen o viu reaparecer na rua e caminhar com rapidez para a esquerda, em direção a Picadilly. Depois o viu atravessar perigosamente entre as carruagens, avançar em direção ao parque Saint James pelo outro lado da rua e deter-se quase em frente da janela atrás da qual ele estava, à altura do clube Button's. Duhamel voltou a olhar seu relógio, como se esperasse por alguém. Stephen olhou para o final da rua e, entre as pessoas que vinha do parque e de Whitehall, distinguiu a Wray e ao seu amigo Ledward, mais alto e mais velho que ele, que caminhavam de braços dados. Ambos se separaram para tirarem o chapéu e cumprimentar a Duhamel, que se aproximava deles. Os três falaram por alguns momentos; depois Ledward entregou um envelope a Duhamel em troca do pacote e se separaram. Duhamel, depois de lançar uma olhada para a janela atrás da qual Stephen estava, avançou de novo em direção a Picadilly.
Stephen desceu a escada correndo, pegou papel e caneta da escrivaninha do porteiro, escreveu apressadamente uma nota e disse:
- Charles, Charles, por favor, chame um mensageiro e diga-lhe que leve urgentemente esta nota para a casa de sir Joseph Blaine, no mercado Shepherd! Não há nem um momento a perder!
- Mas, senhor, não acho que seja necessário mandá-la urgentemente - disse Charles, sorrindo -, porque aí está sir Joseph, subindo a escada apoiado no braço do coronel Warren.
{1} Paduasoy: Seda grossa que se usava para a roupa dos homens e das mulheres no século XVIII.
{2} Jardim: Nome que se dá à latrina nos barcos.
{3} Assim era chamado vulgarmente Birmingham. Outrora se citavam as moedas feitas nessa cidade como exemplos de moedas falsas, pois várias foram cunhadas ali no século xvii.
{4} Prancha: Prancha com travessões cravados em intervalos que se emprega como ponte provisória entre um barco e a margem, ou entre dois barcos.
{5} Jareta: Mar. Rede de cabos ou gradeado de madeira, que cobria horizontalmente o castelo de popa para deter os moitões e pedaços de cabo ou de madeira que pudessem desprender-se da mastreação durante uma batalha, ou se colocava verticalmente por cima das bordas, para dificultar a entrada dos inimigos nas abordagens; Cabo que se amarra e tesa de brandal a brandal de um lado a outro para segurá-los, e assegurar os paus quando os amantilhos se afrouxam em um temporal; Cabo que com outros iguais segura o pé das arraigadas e os amantilhos, indo de um lado a outro por baixo do cesto da gávea.
{6} Chasse-mareé: Barco francês de três paus empregado para a navegação costeira. No tempo de Napoleão era usado com a exárcia dos lugres para o contrabando e para fazer o corso.
{7} Cachorro manchado: Pudim de sebo com passas (manchas).
{8} Lagopo: Nome vulgar das aves do género Lagopus, que são aves galináceas com penas nas patas.
{9} Ushant: Nome que os britânicos davam à ilha d’Ouessant.
{10} Semáforo: Aparato instalado nas costas para se comunicar com os barcos por meio de sinais feitas com bandeiras, conforme um código internacional.
{11} Royal Society: Organização criada por Carlos II da Inglaterra em 1662 para fomentar o desenvolvimento das ciências naturais.
{12} Hotentote: Individuo de uma nação negra que habita perto do cabo de Boa Esperança.
{13} "Por que só tu és santo, só tu és o Senhor, só tu és o Altíssimo"
{14} lucus a non lucendo: Latim. Bosque por não reluzir
{15} Pompey: era como antiguamente os marinheiros chamavam Portsmouth.
{16} Hurling: jogo tradicional irlandês.
Baseado no famoso julgamento contra Thomas Cochrane pelo calote na Bolsa, O OUTRO LADO DA MOEDA explica em profundidade e com rigor um tema pouco tratado por outros autores de romances náuticos: a situação econômica dos capitães nos tempos de Nelson. O’Brian mostra com enorme poder de convicção como um capitão podia passar do elogio desmedido ao ostracismo, e até que ponto sua carreira estava sujeita aos solavancos do acaso. O aprofundamento nos personagens é nesta ocasião excelente, e a intriga se mantém com uma intensidade própia do romance policial.
Quem leu algum dos numerosos livros escritos sobre o lorde Cochrane ou, como passou a se chamar com a morte de seu pai, o duque de Dundonald, recordará que foi julgado em Guildhall por um tribunal presidido pelo lorde Ellenborough por cometer fraude na bolsa, e que foi declarado culpado.
Tanto lorde Cochrane como seus descendentes sempre sustentaram energicamente que não era culpado e que lorde Ellenborough não havia feito um julgamento justo, e a maioria dos biógrafos, incluído o melhor deles, o professor Christopher Lloyd, estão de acordo com os descendentes. Por sua parte, lorde Ellenborough e seus sucessores mantiveram o contrário, e um deles decidiu escrever um livro para refutar as afirmações do décimo, do décimo primeiro e do décimo segundo duques; contudo, ao compreender que não tinha conhecimentos suficientes com respeito à questões legais, entregou os documentos e encomendou a tarefa ao senhor Attlay, um renomado advogado do escritório Lincoln que se documentou muito bem e escreveu um longo livro com uma lógica argumentação, capaz de comover a todos menos aos mais tenazes defensores de lorde Cochrane.
Com relação a esta história, o livro do senhor Attlay tem valor não porque tenta demostrar a culpabilidade ou a inocência das partes, mas porque mostra como se desenrolou exatamente o julgamento. Usei essa informação sobre o julgamento e, apesar de simplificar os complexos casos legais e eliminar montes de testemunhas, conservei a estrutura deste e sua curiosa ordem; portanto, o leitor pode aceitar como autêntica a seqüência de acontecimentos, que em nossos dias parece incrível.
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CAPÍTULO 1
A esquadra das Antilhas se encontrava em frente a Bridgetown, sob os raios do brilhante sol e protegida dos ventos alísios do nordeste. Havia se reduzido a poucos navios: o velho Irresistível, que levava o estandarte vermelho de sir William Pellew no pau traquete, duas ou três corvetas meio destroçadas com poucos tripulantes, um transporte e um barco aprovisionador. Os outros navios que a formavam, os que podiam navegar sem dificuldade, estavam longe, no Atlântico ou no Caribe, tentando encontrar os barcos de guerra franceses e norte-americanos que possivelmente sulcavam suas águas, além dos inumeráveis barcos corsários bem armados, bem governados e com numerosa tripulação que navegavam por ali buscando laboriosamente suas presas: os mercantes da Inglaterra e de seus aliados.
Apesar dos barcos serem velhos e das inclemências do tempo os terem corroído e estragado, pareciam muito bonitos em meio às águas de cor azul escuro. Estavam em tão bom estado como era possível nas Antilhas; os danos ocasionados pela passagem do tempo se dissimulavam com massa de vidraceiro e pintura, e todos os objetos de metal brilhavam. Alguns haviam perdido muitos tripulantes por causa da epidemia de febre amarela da Jamaica e da zona espanhola do continente americano, pelo que apenas restavam suficientes para recolher âncoras; contudo, ainda havia a bordo bastantes oficiais e marinheiros que conheciam tão bem a fragata que nesse momento se aproximava navegando contra o forte vento como a muitos de seus tripulantes. Era a Surprise, uma fragata de vinte e oito canhões que tinha como missão proteger os baleeiros britânicos que pescalhavam no Pacífico sul de uma fragata norte-americana de similar potência, a Norfolk. Era mais velha que o Irresistível (na realidade, estava a caminho do desmache quando a haviam destinado àquela missão), mas, ao contrário deste, navegava com facilidade, sobre tudo de bolina. Se não fosse porque levava a reboque um barco desaparelhado, haveria se reunido com a esquadra pouco depois do almoço; contudo, nessas circunstâncias era duvidoso que o conseguisse antes do canhonaço da tarde.
O almirante acreditava que ela conseguiria, mas não era objetivo, já que em seu julgamento influía seu enorme desejo de saber se o capitão da Surprise havia cumprido com sua missão e se o barco que rebocava era uma presa capturada nas extensas águas que estavam sob sua proteção ou simplesmente um baleeiro neutro ou britânico desmantelados. No primeiro caso, sir William obteria um doze avos de seu valor, e no segundo, nada, nem sequer alguns marinheiros recrutados à força, pois os baleeiros que pescavam no Pacífico sul estavam protegidos. Também influía seu desejo de celebrar uma noitada musical. Sir William era um velho corpulento de expressão decidida e olhar penetrante. Tinha o aspecto de um simples marinheiro e o uniforme dava ao seu robusto corpo uma aparência estranha. Ele gostava muito de música, e na Armada todos sabiam que nunca se fazia ao mar sem levar pelo menos um clavicórdio e que havia obrigado o seu assistente a assistir aulas de afinar instrumentos em Portsmouth, em Valletta, na Cidade do Cabo e em Madras. Assim como, todos sabiam que era aficionado à companhia de bonitos jovens, mas como satisfazia seu hobby discretamente, sem alterar a ordem nem provocar escândalos, a Armada aceitava esta mania de tão bom grado como aceitava a sua paixão por Händel, não menos ilógica por ser explícita.
Um desses bonitos jovens, o primeiro tenente do navio insígnia, encontrava-se nesse instante junto dele no castelinho. O jovem havia começado sua carreira naval como guarda-marinha e tinha então tantas espinhas na cara que lhe haviam posto o apelido de Dick o Manchado, mas quando a sua pele se recuperou, converteu-se em um Apolo marinheiro; contudo, apesar de ser um Apolo marinheiro, não se dava conta de sua beleza e pensava que havia conseguido o posto unicamente graças a sua diligência e aos méritos acumulados durante o desempenho de sua profissão.
- Poderia ser perfeitamente uma presa - disse o almirante e, depois de olhar pelo telescópio durante um bom momento, falou do capitão da Surprise -: afinal de contas, Jack Aubrey é chamado de o Afortunado. Recordo quando entrou no comprido e apertado porto de Mahón com uma fileira de mercantes apresados atrás de si que parecia o cometa Halley. Naquela época, lorde Keith estava ao comando da esquadra do Mediterrâneo. Aubrey deve ter conseguido uma pequena fortuna cada vez que saía para patrulhar a zona. Tem olho para as presas, ainda que… Mas eu me esquecia… O senhor navegou com ele, né?
- Oh, sim, senhor! - exclamou Apolo. - É verdade! Ensinou tudo o que sei de matemática e nos explicou a todos muito bem os fundamentos da navegação. Nunca existiu um marinheiro melhor; quero dizer, entre os capitães de navio, senhor.
O almirante sorriu ao notar o entusiasmo e a genuína admiração do jovem. Então dirigiu outra vez o telescópio para a Surprise e disse:
- Ademais é um virtuoso do violinista. Tocamos juntos durante uma longa quarentena.
Contudo, nem todos compartiam o entusiasmo do primeiro tenente do navio insígnia. Poucos metros mais abaixo, o capitão do Irresistível explicava à sua esposa em sua cabine que nem Jack Aubrey nem seu barco eram tão bons.
- Essas velhas fragatas de vinte e oito canhões deveriam ter sido levadas para o desmache faz muito tempo. Pertencem a uma época passada e não servem mais que para pôr-nos em ridículo quando uma fragata norte-americana de quarenta e quatro canhões aprisiona alguma. As duas se chamam fragatas e, como os que não são homens do mar não vêem a diferença entre elas, dizem: "Vá, uma fragata norte-americana capturou uma das nossas! A Armada se deteriorou! A Armada já não é o que era!".
- Deve de ser uma dolorosa experiência, querido - afirmou sua esposa.
- Canhões de vinte e quatro libras e gabaritos como os de um navio de linha! - exclamou o capitão Goole, que nunca havia conseguido digerir as vitórias norte-americanas. - Quanto a Aubrey… Chamam-no de Jack o Afortunado, e é inegável que capturou muitas presas no Mediterrâneo. Lorde Keith o beneficiou muito, pois o mandava fazer um cruzeiro atrás de outro, o que molestava a grande número de pessoas. Também ganhou dinheiro no oceano Índico, quando foi tomada a ilha Mauricio, em 1809, ou foi em 1810?, mas desde então não ouvi que tenha ganhado muito. Acho que exagerou e que acabou a sua sorte. Em todos os assuntos dos homens há altibaixos… - concluiu, vacilante.
- Estou segura de que os há, querido - disse sua esposa.
- Harriet, peço que não me interrompa a cada vez que abro a boca. Fez com que eu me esquecesse outra vez do que ia dizer.
- Sinto muito, querido - acrescentou a senhora Goole, fechando os olhos.
Havia vindo da Jamaica para recuperar-se da febre amarela e evitar ser enterrada entre caranguejos, mas às vezes se perguntava se sua decisão havia sido acertada.
- Contudo, ainda que o provérbio diz que a oportunidade é careca, não se deve forçar as coisas. Quando se nota que a sorte deixou de lhe acompanhar, deve descer os mastaréus para a coberta, por rizes nas gáveas e preparar-se para tapar as escotilhas com tábuas e navegar com uma vela de capa se o tempo piora. Mas o que fez Jack Aubrey? Seguiu navegando a toda vela como se a sorte fosse durar para sempre. Além do dinheiro que conseguiu no Mediterrâneo, deve ter obtido uma boa soma na operação Mauricio, mas o investiu em ações fortes a dois e meio por cento de juro? Não, não o fez. Começou a pavonear-se por aí, chegou a ter um estábulo de cavalos de corrida, ofereceu banquetes como se fosse um governador e cobriu a sua esposa de diamantes e vestidos de tafetá.
- Vestidos de tafetá, capitão Goole? - perguntou sua esposa.
- Bem…, vestidos caros. Vestidos de paduasoy{1}, de seda, de musselina da Índia e outros tecidos desse tipo, e também lhe presenteou com uma peliça de pele.
"Quanto eu gostaria de ter diamantes e uma peliça de pele!", disse para si a senhora Goole ao mesmo tempo que melhorava sua opinião sobre o capitão Aubrey.
- Ademais é um jogador - continuou seu esposo. - Eu o vi perder mil guinéus em uma partida no Willis's. Depois tratou de recuperar sua fortuna mediante um disparatado plano para tirar prata da escória de uma mina de chumbo e encarregou a um obscuro projetista que o pusesse em prática enquanto ele navegava. Ouvi que está com a corda no pescoço.
- Pobre capitão Aubrey - murmurou a senhora Goole.
- Mas o verdadeiro problema do capitão Aubrey é que não consegue ficar com os calções postos - disse o capitão, depois de uma comprida pausa durante a qual observou como a distante fragata virava a bombordo e dirigia a proa para o cabo Needham.
Para a senhora Goole lhe parecia que esse era um defeito muito comum na Armada, pois seu esposo lhe havia contado que muitos de seus companheiros pecavam do mesmo, e durante os primeiros dias de seu matrimônio pensou que os barcos eram governados majoritariamente por sátiros. Contudo, nenhum a havia incomodado nem um pouco e, em sua opinião, todos haviam agido como se tivessem colada a roupa interior. Seu esposo notou sua falta de convicção e continuou:
- Quero dizer que vai além dos limites. É um libertino, um licencioso, um puteiro… Quando éramos guardas-marinhas no Resolution, na base naval do Cabo, escondeu uma jovem negra chamada Sally onde se guardavam as amarras da âncora e lhe levava quase toda sua comida. Quando a descobriram e a desceram pelo costado, ele se pôs a berrar como um bezerro. O capitão o rebaixou, quer dizer, rebaixou a sua categoria à de simples marinheiro, ainda que talvez o fez em parte pela lingüiça.
- Pela lingüiça, querido?
- Sim. Mediante um sistema de motores e ganchos roubou quase toda a lingüiça que o capitão tinha numa bandeja. Nosso grupo dispunha de muito poucas provisões e, ademais, a jovem necessitava alimentar-se… Era uma lingüiça estupenda, estupenda. Lembro-me bem. Bem, então como castigo, rebaixaram-no de categoria até o final da missão; por essa razão eu tenho mais antiguidade que ele. Não obstante, isso não serviu de nada. Voltou a aprontar, mas dessa vez no Mediterrâneo. Seduziu a esposa de um capitão de navio quando era só um simples tenente ou, no máximo, um capitão de corveta.
- Talvez a passagem dos anos e assumir maiores responsabilidades o tenham feito ganhar sensatez - sugeriu a senhora Goole. - Acredito que está casado. Conheci uma tal senhora Aubrey na casa de lady Hoods. É uma mulher muito elegante e educada, e tem vários filhos.
- Não mudou nada, nada - disse o capitão Goole. - O último que ouvi dele é que corria por Valletta atrás de uma italiana ruiva. As manchas do leopardo não mudam. Por outro lado, seu pai é esse louco do general Aubrey, um membro do Partido Radical que constantemente ataca o Governo, e ele se parece muito com ele, pois sempre foi impulsivo e imprudente. Agora está a ponto de desaparelhar seu barco. Olhe como navega a toda vela! Provavelmente se chocará com o arrecife do cabo Needham. Não poderá evitar.
Essa parecia a opinião geral no navio insígnia. As vozes cessaram, mas voltaram a ser ouvidas junto com risos e aplausos pouco depois, quando os tripulantes da Surprise, que navegava a toda vela para a destruição, giraram o leme a sotavento e a fizeram mudar de bordo como um cúter puxando um cabo que unia o pescante de bombordo ao reboque.
- Não havia visto essa manobra desde que era um garoto - afirmou o almirante golpeando a borda com satisfação -, Como foi bem feita! Mas tem que se conhecer muito bem o barco e a tripulação para atrever-se a levá-la a cabo. Que homem mais decidido! Agora poderá chegar facilmente com essa bordada. Estou convencido de que traz uma presa. Notou que tinha um cabo no pescante de bombordo? Boa tarde, senhora - dirigia-se à senhora Goole, cujo marido a havia trocado por cem braças de cabo gasto. - Notou que tinha um cabo no pescante de bombordo? Richardson lhe explicará tudo.
Então, coxeiando devido ao reumatismo, desceu a escada que conduzia ao castelo de popa.
- Bem, senhora -, disse Richardson com um tímido, mas triunfante sorriso - isso não é muito diferente de dar um puxão com uma pracha. A inércia do reboque substitue o puxão da âncora de bombordo…
A manobra foi muito admirada pelos marinheiros, que a observaram com os telescópios desde as portalós, e enquanto a Surprise se aproximava dando a última bordada, falaram dela (da extraordinária velocidade que podia alcançar se fosse bem governada, do difícil que seria avançar se fose mal governada) e de seu capitão. Apesar de todos seus defeitos, Jack Aubrey era um dos capitães combativos mais reconhecidos da Armada, e ainda que poucos daqueles marinheiros houvessem navegado em seus barcos, todos tinham amigos que haviam participado em algumas batalhas com ele. O primo de William Harris havia lutado com ele na primeira e talvez a mais espetacular batalha que havia travado. Naquela ocasião estava ao comando de uma pequena corveta de catorze canhões e havia abordado e capturado o navio espanhol Cacafuego, de trinta e dois canhões. Nesse momento Harris contava de novo o relato, mas mais alegremente que o habitual, pois à vista de todos se encontrava o capitão em questão, um homem alto e de cabelo loiro que estava no castelo de popa justo detrás do leme.
- Lá está meu irmão Barret - anunciou Robert Bonden, um ajudante do veleiro que se achava em outra portaló. - É o timoneiro do capitão há muitos anos. Tem uma excelente opinião dele, ainda que diz que é muito duro e que não permite mulheres a bordo.
- Ali está Joe Noakes, com a vareta ao vermelho vivo para fazer as salvas - disse um marinheiro preto como o carvão enquanto pegou o telescópio. - Me deve dois dólares e uma camisa de descer a terra. Uma camisa de Jérsei quase nova e com a letra P bordada.
Apenas se dissipou a fumaça da última salva, a falua do capitão caiu na água e começou a avançar com graciosos movimentos para o navio insígnia. Depois, ao chegar na metade da baía, encontrou-se com uma flotilha de vendedores que levava prostitutas de seis peniques para a Surprise. Essa era uma prática habitual, mas não aceitada por todos. Alguns capitães a aprovavam porque achavam que agradava aos marinheiros e evitava a sodomia; outros, em troca, opunham-se a ela porque pensavam que causava a sífilis e favorecia a introdução clandestina de grande quantidade de bebidas alcoólicas nos barcos, o que supunha uma interminável lista de enfermos, brigas e delitos cometidos por embriaguez. Jack Aubrey se encontrava entre estes últimos. Ainda que geralmente respeitasse a tradição, pensava que a prostituição nos barcos minava a disciplina. Não julgava o assunto do ponto de vista moral, mas lhe desagradava muito que houvesse promiscuidade na coberta inferior de um barco de guerra recém ancorado, que copulassem ali centenas de barulhentos homens e mulheres, alguns em macas mais ou menos ocultos, outros nos cantos, outros atrás dos canhões e a maioria em qualquer lugar. Nesse momento se ouviu seu vozeirão, que o vento arrastava, e os tripulantes do Irresistível sorriram com ironia.
- Disse aos vendedores para irem ao inferno - assinalou Harris.
- Sim, mas isso é muito duro para alguns marinheiros jovens que dia depois de dia não pensam mais que em fazer isso - explicou Bonden, que era luxurioso, ao contrário de seu irmão.
- Não se preocupe com os marinheiros jovens, Bob Bonden - continuou Harris -, porque terão o que procuram quando desçam a terra. Ademais, já sabiam que navegavam com um capitão muito estrito.
- Esse capitão tão estrito vai ter uma surpresa - disse Reuben Wilks, um oficial afeminado, e riu muito alegremente.
- Pelo sacerdote preto? - perguntou Bonden.
- O sacerdote preto o fará dar voltas sobre si mesmo, ah, ah! - afirmou Wilks.
Outro marinheiro, no mesmo tom amável, acrescentou:
- Todos temos contratempos.
- Assim que aquele é o capitão Aubrey - disse a senhora Goole, olhando ao longe por cima do mar. - Não sabia que era tão robusto. Por favor, senhor Richardson, diga-me por que grita e por que ordena para esses barcos retrocederem.
Fazia muito pouco que os pais da dama a haviam casado com o capitão Goole. Haviam dito que ela receberia uma pensão anual de noventa libras se ele fosse morto, mas, além disso, pouco mais sabia sobre a Armada. Por outro lado, havia ido às Antilhas em um mercante e desconhecia aquele costume naval, já que os mercantes não tinham tempo para extravagâncias.
- Bem, senhora… porque estão cheios de… como lhe diria?… de mulheres de vida alegre - respondeu Richardson, ruborizando-se.
- Mas há centenas delas!
- Sim, senhora. Geralmente uma ou duas para cada marinheiro.
- Deus meu! - exclamou a senhora Goole pensativa. - Então o capitão Aubrey não aprova sua presença. É muito severo?
- Bem, pensa que entorpecem a disciplina e não lhe parece bem que se misturem com os guardas-marinhas, sobretudo com os que estão mudando a voz, quer dizer, com os mais jovens.
- Quer dizer que essas… essas criaturas têm permissão de corromper adolescentes? - perguntou a senhora Goole. - A adolescentes cujas famílias puseram sob os cuidados de um capitão?
- Sim, senhora, isso ocorre às vezes.
- Estou segura de que o capitão Goole não permitiria. - Ante as palavras da senhora Goole, Richardson se limitou a responder com uma inclinação de cabeça que não expressava absolutamente nada.
- Assim que esse é o feroz capitão Aubrey - afirmou o senhor Waters, o cirurgião do navio insígnia, que estava de pé no lado de bombordo do castelo de popa com o secretário do almirante. -Alegro-me de tê-lo visto, mas, para dizer a verdade, teria gostado mais de ver o médico que viaja com ele.
- O doutor Maturin?
- Sim, senhor, o doutor Stephen Maturin. Escreveu o livro que ensina sobre as doenças dos marinheiros. Há um caso que me preocupa muito e queria conhecer sua opinião. O senhor o vê no barco?
- Não conheço esse cavalheiro - disse o senhor Stone -, mas sei que ele gosta de estudar a natureza, assim que provavelmente seja aquele que está na popa da falua inclinado sobre a borda e com a cara quase roçando a água. Eu também gostaria muito conhecê-lo.
Os dois dirigiram o telescópio para um homenzinho com um casaca azul simples que estava a certa distância do timoneiro. O capitão lhe chamou a atenção e ele se sentou com a costas erguidas enquanto colocava sua raquítica peruca. Olhou para o navio insígnia antes de pôr os óculos escuros e ambos puderam ver seus estranhos olhos claros. Os dois o olharam com interesse, sobre tudo o cirurgião; tinha um tumor de um lado do abdomem e desejava ansiosamente que algum especialista lhe dissesse que não era malígno. O doutor Maturin era a pessoa mais indicada, já que gozava de uma excelente reputação; contudo, preferia a vida no mar - pelas oportunidades de estudo que oferece aos amantes da natureza - a ter um lucrativo consultório em Londres ou Dublim ou talvez em Barcelona, pois era de origem catalão por parte materna. O senhor Stone queria conhecer o doutor Maturin por motivos pessoais e o observou com atenção. Como secretário do almirante, se ocupava dos assuntos secretos da esquadra e sabia que o doutor Maturin era também um espião, e de grande categoria. O trabalho do senhor Stone consistia principalmente em pôr fim à traição dos habitantes da zona e ao descumprimento da lei que proibia comerciar com o inimigo. Isso lhe permitira conhecer membros de outras organizações secretas, alguns não muito discretos. Por eles sabia que em Whitehall havia estourado uma guerra oculta e silenciosa, e que sir Joseph Blaine, o chefe do serviço secreto da Armada, junto com seus principais seguidores - entre os quais se encontrava Maturin -, logo venceriam ou seriam vencidos por seus oponentes desconhecidos. Gostava da espionagem e tinha muitas esperanças de chegar a pertencer a alguma das numerosas organizações navais, militares e políticas que trabalhavam na sombra e que tentavam manter tudo em segredo apesar da indiscrição e desatada loquacidade de alguns de seus colegas. Por essa razão observava com curiosidade o homem que, conforme a fragmentária informação que tinha, era um dos mais apreciados agentes secretos do Almirantado.
Quando o castelo de popa se encheu dos infantes de marinha que iam levar a cabo a cerimônia, começaram a se escutar os apitos dos ajudantes do contramestre e o primeiro tenente disse:
- Por favor, cavalheiros, aproximem-se. Vamos receber o capitão da Surprise.
- Com sua permissão, senhor, o capitão da Surprise - anunciou o secretário na porta da cabine.
- Aubrey, quanto me alegro de ver-lhe! - exclamou o almirante depois de tocar a última nota; e lhe estendeu a mão. - Sente-se e conte-me como se saiu. Mas antes diga-me que barco é esse que trouxe a reboque.
- Um de nossos baleeiros, senhor. É o William Enderby, de Londres. O recuperamos em frente da Baía depois de ter perdido os mastros ao norte do Equador durante um período de calmaria porque estava muito carregado e o fluxo de ondas era muito forte.
- Se o recuperou, é uma presa de lei. Diz que está muito carregado, né?
- Sim, senhor. Os norte-americanos puseram nele a carga de outros três barcos que queimaram depois e o enviaram sozinho para os Estados Unidos. O oficial de derrota da Surprise, que foi um baleeiro em sua juventude, calcula que o carregamento vale noventa e sete mil coroas. Passamos muitas dificuldades para trazê-lo porque tínhamos muito poucos apetrechos. Nós lhe colocamos mastros provisórios unindo várias peças de mastreação com os cordões de nossos sapatos, mas ele os perdeu no domingo durante uma tormenta.
- Não tem importância - disse o almirante. - Está aqui e isso é o que importa. Noventa e sete mil coroas! Ah, ah! Darei pessoalmente as ordens pertinentes para que tenha todos os apetrechos de que necessita. Agora conte-me algo de sua viagem, pelo menos o mais importante.
- Muito bem, senhor. Não encontrei a Norfolk no Atlântico, como esperava, mas ao sul das ilhas Malvinas recuperei o paquete que seu capitão havia capturado, o Danaë…
- Eu sei. O capitão que viajava com o senhor como voluntário… Como se chama?
- Pullings, senhor. Thomas Pullings.
- Ah, sim! O capitão Pullings o trouxe aqui para carregar madeira e água antes de levá-lo para a Inglaterra. Chegou a Plymouth em menos de um mês, depois de ser perseguido por um barco corsário a toda vela durante três dias e três noites. Fez uma viagem extraordinariamente rápida. Mas, Aubrey, ouvi que a bordo do paquete havia dois cofres cheios de ouro e tão pesados que tinham que levantá-los entre dois homens. Não sei se também os recuperou.
- Oh, não, senhor! Uma hora antes de o apresarmos, os norte-americanos já haviam levado até a última moeda para a Norfolk. Mas logramos recuperar alguns documentos secretos.
Nesse momento se fez o silêncio, um silêncio que ao capitão Aubrey lhe pareceu muito desagradável. Estava ciente de que esses documentos significavam na realidade uma grande quantidade de dinheiro - ainda que não fossem moedas - quando um pequeno cofre de latão que estava escondido havia caído; contudo, ninguém lhe havia comunicado oficialmente: o havia descoberto por casualidade, quer dizer, havia obtido essa informação não como capitão mas como amigo de Stephen Maturin, que era quem custodiava o cofre e a quem seus superiores no serviço secreto lhe haviam dito onde achá-lo e o que fazer com ele. Não haviam explicado a Stephen por que estava ali, mas não precisava ser um iluminado para se imaginar que uma soma tão grande em forma de títulos e documentos negociáveis sem nome seria utilizada para subverter pelo menos a todo um Governo. Evidentemente, o capitão Aubrey não podia falar com franqueza do assunto, salvo no improvável caso de que o almirante estivesse informado disso e lhe pedisse, mas não lhe agradava ocultá-lo, pois considerava um ato mesquinho, hipócrita e desonesto. O silêncio se tornava insuportável e de repente compreendeu que ainda durava porque sir William estava convertendo noventa e sete mil coroas em libras e depois dividia essa quantidade entre doze com um lápis no canto de um relatório.
- Desculpe-me um momento - disse o almirante, afastando a vista do resultado e sorrindo -, tenho que ir ao jardim{2}.
O almirante entrou na galeria. Enquanto o esperava, Jack Aubrey recordou a conversa que havia mantido com Stephen quando a Surprise estava chegando ao porto. Stephen era muito reservado, em parte por seu própio caráter e em parte por seu trabalho, e não falou com Jack daqueles bônus, obrigações e notas até que se deu conta de que o capitão teria que se apresentar no navio insígnia poucas horas mais tarde. Então, na intimidade do mirante de popa, ele lhe havia dito:
- Todo mundo já ouviu os versos: "Em vão lutam os heróis e arengam os patriotas / se o ouro passa secretamente de um pilantra para outro". Contudo, quantos sabem como segue o poema?
- Eu não, por exemplo - respondeu Jack a gargalhadas.
- Quer que lhe diga?
- Sim, por favor.
Stephen pegou um dos documentos para usá-lo como símbolo e, lançando para Jack um olhar significativo, continuou:
Benditos valores! São o último e melhor recurso
para dar asas mais ligeiras à corrupção!
Uma só folha pode varrer um exército
Ou trasladar senados para lugares distantes
Está cheia de milhares e sutilmente até o mais insignificante move
E silenciosamente uma rainha compra ou um rei vende.
- Gostaria que alguém tentasse corromper-me - assinalou Jack. - Quando penso em como estará neste momento a conta que tenho com Hoares, se me ocorre que poderia trasladar qualquer quantidade de senadores para lugares distantes por quinhentas libras e a junta diretiva do Almirantado por outras mil.
- Estou certo de que o faria - afirmou Stephen. - Mas entendeu o que quero dizer, né? Se eu estivesse em seu lugar, falaria muito pouco do desafortunado cofre. Poderia dizer que contém "documentos secretos" de passada, e isso lhe permitiria ter a consciência tranqüila. Irei contigo, se puder, e se o almirante for muito curioso, eu o farei mudar de bordo em redondo e ele ficará boquiaberto.
Jack havia olhado para Stephen com afeto. Ainda que o doutor Maturin podia pronunciar discursos em latim e em grego e falava meia dúzia de línguas modernas, ignorava como usar expressões coloquiais, o inglês da rua, as gírias e, sobretudo, os termos técnicos que se empregavam nos barcos. Na realidade, suspeitava que Stephen ainda não diferenciava estibordo de bombordo.
- Quanto menos se fale de assuntos como este, melhor - acrescentou Stephen. - Queria…
Então parou de repente. Não dissera que desejaria não ter visto esses documentos nem ter tido nenhuma relação com eles, ainda que isso era o que pensava. Nunca aceitara nem um penique de Brummagem{3} por seus serviços e sabia que o dinheiro, ainda que essencial em algumas ocasiões, costumava ser prejudicial para a espionagem, e que uma quantidade tão exorbitante como aquela podia causar muito estrago e pôr em perigo a quem tivessem algo que ver com ela.
- Não sei o que me passa, Aubrey - disse o almirante ao regressar -, mas ultimamente faço xixi a cada meia hora. Talvez seja pela idade e não haja nada o que fazer ou talvez uma dessas novas pílulas possa remediá-lo. Eu gostaria de me consultar com o cirurgião da Surprise enquanto repõem as provisões e apetrechos da fragata. Ovi dizer que é um médico excelente e que o chamaram para atender ao duque de Clarence. Mas larguemos isso de lado. Continue com seu relato.
- Pois bem, senhor, como não achei a Norfolk no Atlântico, segui sua rota até o sul do Pacífico. Não tive sorte ao chegar ao arquipélago Juan Fernández, mas pouco depois me informaram de que atacara nossos baleeiros nas costas do Chile e do Peru e nas ilhas Galápagos. Então parti rumo ao norte e recuperei uma das presas, mas quando cheguei às ilhas ele acabara de partir. Ali voltei a receber informação confiável. Disseram-me que se dirigira para as ilhas Marquesas, onde o capitão ia fundar uma colônia e capturar meia dúzia de baleeiros nossos que pescam nessas águas, assim que me dirigi para oeste. Em fim, que naveguei sem dificuldades durante várias semanas até que vi seus barris de carne flutuando e compreendi que estava logo atrás dela; mas então se desatou uma terrível tormenta. A fragata teve que navegar sem velas nos mastros durante dias e apesar disso sobreviveu à tormenta, mas a Norfolk não. A encontrei encalhada no arrecife de coral de uma ilha que nem sequer aparece nos mapas e que se encontra a considerável distância ao leste das Marquesas. Não lhe cansarei com detalhes, senhor; só lhe direi que fiz prisioneiros aos sobreviventes e me dirigi rapidamente ao cabo de Hornos.
- Muito bem, Aubrey. Muito bem feito. Não obterá dinheiro nem glória pela Norfolk, porque sua destruição foi obra de Deus; contudo, está destruída, e isso é o importante. Mas estou seguro de que receberá dinheiro por cada um dos prisioneiros. Por outro lado, conseguiu essas estupendas presas. Afinal de contas, sua viagem foi muito satisfatória. Parabéns. Eu lhe convido para uma jarra de cerveja.
- Com muito prazer, senhor. Mas devo lhe dizer algo com respeito aos prisioneiros. Desde o princípio o capitão da Norfolk se comportou de uma forma muito rara. Disse que a guerra havia terminado…
- Não me admira em absoluto. É uma estratégia como outra qualquer.
- Sim, mas disse outras coisas e não falou com franqueza. Custou-me compreendê-lo até que percebi que, como é natural, tentava proteger vários tripulantes que navegavam na Hermione e que haviam desertado da Armada Real.
- A Hermione! - exclamou o almirante, empalidecendo ao recordar os incidentes da fragata. Em um trágico motim, os tripulantes mataram ao inumano capitão e à maioria dos oficiais, e depois entregaram a embarcação ao inimigo na zona espanhola do continente americano. - Perdi nela um primo meu muito jovem, o filho de Drogo Montague. Esses condenados criminosos lhe romperam um braço e depois quase o despedaçam. Tinha treze anos e era um promissor guarda-marinha.
- Tivemos problemas com eles, senhor, quando a fragata foi açoitada por uma tormenta, e nos vimos obrigados a matar vários.
- Isso nos poupa o trabalho de enforcar-lhes. Mas ainda restam alguns, né?
- Oh, sim, senhor! Estão no baleeiro, e me faria um favor se os levasse logo. Não dispomos de nenhuma embarcação além de minha falua, e os poucos infantes de marinha que restam estão exaustos por ter tido que vigiá-los dia e noite.
- Serão recolhidos imediatamente - disse o almirante, tocando a campainha. - Será uma satisfação para mim ver esses malditos porcos pendurados nos penóis. Amanhã chegará o capitão da Jason, e com ele e o senhor será suficiente para formar um conselho de guerra.
O coração de Jack se encolheu. Detestava que se formassem conselhos de guerra e ainda mais os enforcamentos. Ademais, desejava zarpar assim que completasse a aguada e carregasse as provisões necessárias para a viagem para a Inglaterra; como havia poucos oficiais com antiguidade em Bridgetown, pensara que poderia fazê-lo ao cabo de dois dias. Mas não lhe serviria de nada protestar. O secretário e o primeiro oficial do navio insígnia chegaram à cabine e imediatamente começaram a receber as ordens. Então o camareiro do capitão entrou com a cerveja.
Tinha muitas bolhas e estava morna, mas tão logo como o almirante terminou de dar as ordens, lhe bebeu a grandes tragos com evidente satisfação. Pouco depois apagou-se de seu muchado rosto a expressão austera e, depois de uma pausa na qual se ouviu o ruído das botas dos infantes de marinha e dos remos das lanchas que zarpavam, disse:
- A última vez que lhe vi, Aubrey, foi quando Dungannon nos convidou para almoçar na Defiance. Na sobremesa tocamos uma composição em ré menor de Gluck. Desde então apenas executei alguma peça, além das que hei tocado sozinho. Os oficiais daqui são muito chatos e ainda que muitos toquem a flauta travessa, nenhum o faz realmente bem. A deles é a harpa. Ademais, todos os guardas-marinhas trocaram a voz faz tempo. Vá, que nenhum sabe distinguir entre uma nota musical e a pata de um touro. Talvez ao senhor tenha ocorrido o mesmo no sul do Pacífico.
- Não, senhor. Tive mais sorte. O cirurgião toca muito bem o violoncelo e temos tocado juntos até a madrugada. Como se fosse pouco, o capelão tem uma grande habilidade para fazer com que os marinheiros cantem, sobretudo obras de Arne e Händel. Faz algum tempo, quando estava no Mediterrâneo ao comando do Worcester, conseguiu que cantassem o Messias de forma louvável.
- Me gostaria tê-lo ouvido - disse o almirante e, depois de encher de novo a jarra de Jack, acrescentou -: Parece que esse cirurgião é uma jóia.
- É meu amigo íntimo, senhor. Temos navegado juntos há mais de dez anos.
O almirante assentiu:
- Ficarei encantado se o trouxer esta noite. Poderíamos jantar juntos e tocar um pouco de música. E de passagem, se não lhe incomodar, poderia fazer-me um reconhecimento médico. Ainda que… Não, talvez isso não seja muito apropriado. Tenho entendido que as relações entre os médicos estão sujeitas a normas estritas.
- Acredito que seu médico teria que dar o consentimento, senhor. Mas talvez já se conheçam, e não será mais que um simples trâmite. Maturin está aqui agora, e se desejar falarei com ele antes de ir apresentar meus respeitos ao capitão Goole.
- Vai apresentar seus respeitos ao capitão Goole? - inquiriu sir William.
- Certamente, senhor! Tem seis meses de antiguidade a mais do que eu.
- Não se esqueça de felicitar-lhe, pois se casou faz pouco. Todos pensávamos que já estava a salvo na sua idade, mas se casou. Sua mulher está a bordo.
- Oh, não sabia nada! - exclamou Jack. - Não deixarei de felicitar-lhe. Então, sua esposa está a bordo?
- Sim. É uma mulherzinha fraca e veio de Kingston para passar umas semanas aqui para repor-se da febre amarela.
Jack tinha na mente tantas lembranças de sua esposa, Sophie, e desejava tão veementemente que estivesse a bordo que não escutou as palavras do almirante até que disse:
- Deve tratar-lhes com muita cortesia quando falar com eles, Aubrey. Já sabe o independentes e arrogantes que são os médicos; é melhor não incomodar-lhes, e menos ainda quando estão a ponto de administrar medicamentos.
- Não, senhor. Serei tão manso como uma pomba.
- Como um cordeiro, Aubrey.
- Sim, senhor. Provavelmente os encontrarei juntos falando de temas médicos.
Efetivamente. Quando Jack entrou na cabine, o senhor Waters estava mostrando ao doutor Maturin alguns desenhos muito bem feitos e coloridos dos casos de lepra e elefantíases mais representativos que havia visto na ilha. Então Jack lhes deu a mensagem, deu uma espiada nos desenhos e se foi imediatamente para falar com o secretário do almirante antes de fazer a obrigatória visita ao capitão Goole.
O senhor Waters pôs o último exemplo de uma perna enferma de um homem de Barbados em uma pasta e com isso terminou as explicações.
- Provavelmente já se deu conta de que a maioria dos médicos são hipocondríacos, doutor Maturin - disse.
Falou com um sorriso tão estereotipado que era óbvio que tinha a frase preparada. Depois continuou:
- Eu não sou uma excessão. Desculpe-me por importunar-lhe, mas tenho um pacote aqui que me preocupa - disse, pondo a mão no lado de seu corpo. - Não pedi a opinião de nenhum dos cirurgiões desta base naval nem de meus ajudantes, mas me agradaria muito que me dissesse de que tipo se trata.
- Capitão Aubrey, em que posso servir-lhe? - o secretário lhe perguntou, sorrindo.
- Ficariaria muito agradecido se me entregasse uma saca com cartas para a Surprise - respondeu Jack. - Faz muito que meus homens e eu não temos notícias da Inglaterra.
- Cartas para a Surprise? - repetiu o senhor Stone. - Acho que não há nenhuma, mas vou perguntar a meus ajudantes. Infelizmente, não - disse quando regressou. - Sinto dizer-lhe que não há nada para a Surprise.
- Bem - disse Jack com um sorriso forçado -, não tem importância. Mas talvez o senhor tenha alguns jornais que me permitam fazer uma idéia de como estão as coisas no mundo, porque suponho que está muito ocupado com o maldito julgamento que o conselho de guerra celebrará para contar-me o que se passou nos últimos meses.
- Que nada, em absoluto. Não tardarei nada em contar-lhe que as coisas foram de mal a pior. Bonaparte não para de construir barcos em todos os estaleiros, enquanto que nossos barcos estão se deteriorando cada vez com mais rapidez porque sempre estão navegando ou fazendo o bloqueio. Tem um serviço secreto muito bom e aviva a discórdia entre os aliados, ainda que não necessita incitar-lhes muito para que desconfiem uns dos outros e se odeiem. É assombroso como toca sempre no ponto onde mais dói. Parece que envia alguém para escutar atrás da porta ou debaixo da mesa do conselho dos ministros. Nosso exército fez alguns avanços na Espanha, mas os espanhóis… Bem, acho que o senhor saiba algumas coisas sobre os espanhóis, senhor. Em fim, que não sabemos se poderemos seguir ajudando-lhes nem se poderemos seguir afrontando os gastos de nossa participação na guerra. Um irmão meu que trabalha na Cidade me disse que as ações nunca haviam baixado tanto, que não há atividade mercantil e que os homens caminham pela seção de Câmbio com as mãos nos bolsos e a expressão triste. Contou-me que não se pode conseguir ouro, que se um vai ao banco para sacar o dinheiro que depositou em forma de guinéus, o único que lhe dão são notas. Também me disse que a maioria dos valores eram impossíveis de vender e que, por exemplo, a renda anual dos negócios do Pacífico não supera as cinqüenta e oito libras e meia. Inclusive as ações dos negócios das Índias Orientais estão assombrosamente baixas, e quanto às letras de câmbio… No início do ano houve muita atividade porque circulou o rumor de que haveria paz e subiram os preços; contudo, quando se soube que o rumor era falso, a Cidade ficou mais deprimida do que nunca. A única coisa que prospera é a agricultura. O trigo se paga a cento e vinte xelins o quarto de libra e não se podem conseguir terras por nenhuma quantidade de dinheiro. Mas na atualidade, senhor, um homem com umas cinco mil libras no bolso pode comprar um pacote de excelentes ações que antes da guerra equivaliam a uma considerável fortuna. Aqui tem alguns jornais e revistas que falam de tudo isto com mais detalhe. Garnato que se desanimará. Que foi, Billings? - perguntou a um de seus ajudantes.
- Ainda que não há cartas para o capitão Aubrey, senhor - disse Billings -, Pedacito dice que um homem de cor perguntou por ele e que talvez tenha uma carta ou pelo menos uma mensagem para lhe dar.
- É um escravo? - inquiriu Jack.
- É um escravo? - gritou Billings, aguçando o ouvido para ouvir a resposta, e logo disse -: Não, senhor.
- Um marinheiro? - perguntou Jack.
Tampouco era um marinheiro. Pedacito se aproximou silenciosamente e acrescentou com sons quase inarticulados que parecia um homem educado e que quando a esquadra chegou a Bridgetown havia perguntado pela Surprise aos marinheiros que haviam descido para terra; e que ao informar-se de que a fragata navegava por aquelas águas, havia perguntado pelo capitão Aubrey.
- Não conheço nenhum preto educado - disse Jack, negando com a cabeça.
Era possível que um advogado das Antilhas tivesse um ajudante preto e que, devido às coisas estarem tão mal na Inglaterra, estivesse procurando-o para executar um mandato judicial contra ele. Mas isso só poderia fazê-lo em terra, assim que Jack tomou de imediato a decisão de permanecer a bordo enquanto estivesse ali. Pegou os jornais, agradeceu ao senhor Stone e aos seus ajudantes e regressou para o castelo de popa, onde encontrou o guarda-marinha que lhe acompanhava; ia muito mal vestido em comparação com os impecáveis guardas-marinhas do navio insígnia que lhe rodeavam, mas lhes contava extraordinários fatos ocorridos no cabo Horn e o sul do Pacífico.
- Senhor Williamson - disse -, apresente meus respeitos ao capitão Goole e pergunte se não lhe incomoda que eu vá visitá-lo dentro de dez minutos.
O senhor Williamson voltou com a resposta de que a visita do capitão Aubrey não seria nenhum incômodo e, por iniciativa própia, acrescentou que o capitão Goole lhe apresentava seus respeitos. Por afeto ao seu capitão, haveria acrescentado outras expressões que indicassem respeito, mas não encontrou o momento oportuno e se reprimiu.
Durante esse tempo Jack permaneceu recostado na grade do castelo de popa de estibordo, nessa cômoda postura que costumam adotar todos os de sua classe, olhando para o convés e de cara para o exterior. Havia dado permissão à tripulação de sua falua para descer a terra, mas um homem havia ficado na embarcação para cuidá-la; e agora, por uma portaló da coberta inferior, falava com alguns amigos que ele não podia ver. Havia alguns marinheiros no corrimão e no convés que estavam de frente para a popa e lhe observavam com o típica olhar de quem foi um antigo companheiro de tripulação e quer ser reconhecido. Uma e outra vez Jack interrompeu sua conversa com os oficiais para cumprimentar: "Como está, Symonds?" " Como vai, Maxwell?" "Vejo que regressou, Himmelfarht!"; os marinheiros em questão inclinavam a cabeça e sorriam ao mesmo tempo que se tocavam na testa com os nós dos dedos ou tiravam o chapéu. Pouco depois, Bonden e o irmão que pertencia à tripulação do Irresistível saíram pela escotilha de proa e Jack se deu conta de que não só lhe olhavam com atenção como também com curiosidade e malícia, mais ou menos da mesma forma que o haviam feito todos os marinheiros do navio insígnia que haviam navegado com ele. Não pôde descobrir o motivo, pois antes que pudesse refletir sobre isso chegou a hora de dirigir-se ao camarote do capitão, que ficava na popa.
Por sua própia vontade, o capitão Goole não receberia o capitão Aubrey. Anos atrás, quando era guarda-marinha, Goole havia tido um comportamento mesquinho e vergonhoso no caso da lingüiça. Participou do roubo, ainda que como um subordinado, comeu tanto como os outros guardas-marinhas e quando o levaram para ver o capitão Douglas não só se converteu em um delator ao revelar-lhe o ocorrido como negou a sua participação. Atua-ra de forma desprezível e por isso nunca esqueceria de Jack Aubrey. Contudo, estava obrigado a receber-lhe, já que o protocolo naval era muito estrito com respeito às visitas oficiais.
- Não o receberia e muito menos lhe apresentaria se as normas da Armada não o exigissem - disse Goole à sua esposa. - Virá dentro de pouco e ficará aqui pelo menos dez minutos. Mas não lhe oferecerei nada de beber para que não crie raizes. Bebe muito, como seu amigo Dundas, outro que não sabe manter os calções postos. Os dois são do mesmo tipo, a escória da sociedade.
Fez uma pausa e acrescentou:
- Ainda que agora ninguém diria que é bonito, faz tempo o consideravam muito atraente, talvez por isso… Silêncio! Já está aqui!
Jack não havia esquecido o episódio da lingüiça do capitão Douglas. As consequências do roubo lhe haviam parecido então desastrosas, mas, na realidade, não podia ter aproveitado melhor o tempo. O meio ano que passou como um simples marinheiro lhe permitira conhecer muito bem os gostos dos marinheiros, quais eram suas crenças e suas opiniões e como transcorria de fato sua vida cotidiana. Tampouco havia esquecido de Goole, ainda que não recordava todos os detalhes com respeito ao seu comportamento. Achava-o um descarado, mas não lhe guardava rancor. Quando entrou em sua cabine sentiu um grande prazer ao ver um companheiro de tripulação tão antigo, felicitou-lhe sinceramente por seu matrimônio, sorriu e lhes dirigiu um olhar tão afetuoso que fez com que a senhora Goole melhorasse a boa opinião que já formara sobre ele. A senhora Goole não se surpreendeu que lhe houvessem considerado bonito, pois mesmo agora que pesava alguns quilos a mais, que sua cara perdera o brilho da juventude e que estava curtida e cheia de cicatrizes, não deixava de ser atraente. Ao contrário de seu esposo (que carecia de personalidade), o capitão Aubrey era muito robusto, muito mais alto e desprendia uma grande vitalidade. Seus olhos azuis, que contrastavam com a cor bronzeada de sua cara, tinham a expressão de quem deseja agradar aos que estão em sua companhia.
- Sou a favor do matrimônio, senhora - disse.
- Ah, sim? - A senhora Goole, pensando que devia dizer algo mais, acrescentou -: Acho que conheci a senhora Aubrey na casa de lady Hood justo antes de sair da Inglaterra.
- Como ela estava? - inquiriu Jack, e um sorriso de satisfação iluminou seu rosto.
- Espero que se trate da mesma dama, senhor - disse a senhora Goole em tom vacilante. - Era alta e loira e tinha um bonito cútis; os olhos cinzas, e usava o cabelo arrumado em um coque. Vestia um traje azul de manga comprida franzido aqui…
- Bem, senhora Goole… -interrompeu-lhe seu esposo.
- Sem dúvida que essa é Sophie - certificou Jack. - Faz um século que não recebo notícias de casa, porque estive no distante cabo Horn. Daria tudo o que tenho para saber algo dela. Por favor, diga-me que aspecto tinha, que disse… Não estava ali nenhuma das crianças?
- Só uma, um menino muito bonito. A senhora Aubrey contou ao almirante Sawyer que as meninas haviam tido varicela fazia algum tempo, mas que já se achavam tão bem que o capitão Dundas as levara para navegar em seu cúter.
- Que Deus as abençoe! - exclamou Jack, sentando-se junto dela.
Então ambos começaram a falar da varicela. Comentaram que se travava de uma doença benigna e que era inevitável ter doenças como essa na infância. Depois falaram da difteria, do sarampo, da brotoeja, das aftas… até que ao soar o sino do navio insígnia Jack recordou que devia voltar para a Surprise para buscar seu violino.
O doutor Maturin e o senhor Waters falavam de doenças muito mais graves quando por fim Stephen se levantou, desdobrou os punhos da casaca e disse:
- Atrevo-me a assegurar-lhe, ainda que com reservas, naturalmente, que não é malígno. Não é um tumor do tipo que o senhor acreditava e muito menos uma metástase, que Deus não o queira, mas um fibroma. Mas se encontra em um lugar muito delicado e teremos que extirpá-lo imediatamente.
- Certamente, estimado colega - afirmou o senhor Waters, sentindo um grande alívio. - Agradeço-lhe muito por sua opinião.
- Não gosto nada de ter que abrir um ventre - disse Stephen, cravando o olhar no ventre em questão como um açougueiro que deve decidir os cortes que vai fazer. - E, certamente, em um caso assim quero um bom ajudante. São competentes os seus?
- Os dois são lerdos, bebem em excesso e só têm conhecimentos práticos. São um par de curandeiros ignorantes. Não gostaria que nenhum deles me pusesse as mãos em cima.
Stephen ficou pensativo por alguns segundos. Sabia que era difícil gostar dos compatriotas ou pelo menos manter com eles uma relação cordial quando está em terra; e muito mais difícil ainda quando se está encerrado com eles no mesmo barco, sem a possibilidade de evitar o trato diário. Evidentemente, o senhor Waters não havia logrado fazer essa proeza naval.
- Pois eu não tenho ajudante porque o condestável enlouqueceu e o matou em frente da costa do Chile, mas o pastor, o senhor Martin, sabe muito de física e de cirurgia e é um eminente naturalista. Juntos havemos feito a dissecação de muitos animais de sangue frio e quente. Se não me recordo mal, ainda não viu abrir o ventre de nenhum ser humano, e estou seguro de que gostará muito. Se o senhor quiser, pedirei a ele que me ajude. Agora tenho que ir para meu barco para buscar o violoncelo.
Stephen subiu várias escalas do Irresistível e se desorientou uma ou duas vezes, mas por fim saiu para a luz, a cegante luz que inundava o castelo de popa. Pestanejou alguns instantes, pôs os óculos escuros e viu que junto ao costado de bombordo do navio insígnia havia muitos vendedores e lanchas que transportavam os marinheiros de licença. O primeiro tenente do navio insígnia estava inclinado sobre a borda mastigando um pedaço de cana de açúcar e discutia o preço de uma cesta de limas, uma de moças e uma enorme pinha. Quando por fim subiram a fruta a bordo, Stephen disse:
- Meu querido William Richardson, poderia me dizer onde está o capitão?
- Bem, doutor, regressou para a fragata justo antes de que soassem as cinco badaladas.
- Cinco badaladas - repetiu Stephen. - Claro! Ele me disse algo sobre as cinco badaladas. Voltará a repreender-me por ser impontual. Que posso fazer?
- Não se preocupe, senhor - disse Richardson. - Eu lhe levarei para ela no bote. Não está a muita distância daqui, e, por outro lado, queria ver outra vez meus antigos companheiros de tripulação. O capitão Pullings me disse que agora Mowett era o primeiro oficial. Meu Deus! Em pensar que Mowett é o primeiro oficial! Mas, senhor, o senhor não foi o único que perguntou pelo capitão Aubrey. Faz pouco voltou a subir a bordo um homem que também o procura. Alí está ele! - exclamou, assinalando com a cabeça o corrimão de bombordo, onde um jovem preto muito alto se destacava entre um grupo de marinheiros.
Stephen se deu conta de que eram marinheiros que haviam navegado em outras missões com ele, a maioria deles irlandeses e todos católicos. Também observou que sorriam e olhavam para o jovem preto com curiosidade enquanto lhe diziam amável e respeitosamente que avançasse para a popa. Mas antes de que tivesse tempo de cumprimentar com um "Olá, companheiros de tripulação!" ou "Como estão, companheiros?", o jovem preto começou a caminhar para o castelo de popa. Usava um simples traje de cor tabaco, pesados sapatos de ponteira quadrada e um chapéu de aba larga. Por seu aspecto parecia um quacre ou um seminarista, mas um seminarista forte e atlético como os que podiam ser encontrados na parte ocidental da Irlanda ou pelas ruas de Salamanca. Antes de dirigir-se a Stephen como um seminarista irlandês, tirou o chapéu.
- O senhor é o doutor Maturin, né?
- Eu mesmo - respondeu Stephen. - O mesmo, para servir-lhe.
Havia falado mecanicamente, pois o jovem que estava sem chapéu e iluminado pelo sol diante dele era a viva imagem de Jack Aubrey, mas de cor ébano e com vinte anos e muitos quilos a menos. Só se diferenciava de Jack por ter cachos negros e não dourados, e em que a ponta de seu nariz não era como a dos romanos. Seus corpos eram idênticos e inclusive moveu a cabeça da mesma forma quando se aproximou de Stephen olhando-lhe respeitosamente.
- Senhor, ponha o chapéu porque tem se proteger do sol - acrescentou Stephen. - Tem que falar de um assunto com o capitão Aubrey, não é verdade?
- Sim, senhor, e me informaram que o senhor podia dizer-me se posso vê-lo ou não. Conforme ouvi, não permite que nenhuma lancha se aproxime de sua fragata, mas tenho que entregar-lhe uma carta da senhora Aubrey.
- É sério? - perguntou Stephen. - Então venha comigo e o acompanharei. Senhor Richardson, não se importaria de levar outro passageiro, não é? Nos revezaremos para remar, já que o peso será maior.
Durante o percurso mal falaram. Richardson atendia os remos; o jovem preto tinha a estranha virtude em um jovem de permanecer em silêncio sem ser descortês; Stephen ficou abstraído ante essa imagem que representava o vivo retrato de seu melhor amigo e de repente disse:
- Espero que a senhora Aubrey esteja bem, senhor.
- Tão bem como seus amigos possam desejar, senhor - respondeu o jovem com esse sorriso tão radiante que só pode ter quem possue os dentes muito brancos e o rosto preto como o carvão.
Stephen se disse: "Espero que tenha razão, amigo". Conhecia muito bem Sophie e gostava muito dela, mas sabia que era inteligente e perspicaz e que o fato de estarem juntos lhe provocaria mais ciúmes do que alegria. Era virtuosa, mas virtuosa por natureza, não por imposição própia, ainda que não por isso puritana.
O jovem era esperado na Surprise, onde todos os membros da tripulação, exceto o capitão, haviam ouvido o rumor de que ele viria. Quando chegou a bordo, o receberam com amabilidade e o olharam com uma grande curiosidade bastante bem dissimulada.
- Quer esperar aqui enquanto vou ver se o capitão está livre? - perguntou Stephen. - Provavelmente o senhor Rowan poderá mostrar-lhe em um momento os distintos cabos que existem.
- Jack! - exclamou ao entrar na cabine. - Escuta-me! Tenho uma curiosa notícia: um jovem preto que parece de confiança estava no navio insígnia perguntando por você e me disse que tinha uma mensagem de Sophie, assim que o trouxe.
- De Sophie? - inquiriu Jack.
Stephen assentiu e, em voz baixa, disse:
- Meu amigo, desculpa-me, mas tenho que lhe dizer que possivelmente se surpreenda com o mensageiro. Mas não se preocupe. Posso fazê-lo entrar?
- Sim, é claro!
- Boa tarde, senhor - disse o jovem com voz grave e trêmula ao mesmo tempo que lhe dava a carta. - Quando estive na Inglaterra, a senhora Aubrey me pediu que lhe entregasse isto ou que a deixasse em boas mãos se eu zarpasse antes de sua fragata chegar.
- Agradeço muito, senhor - disse Jack, apertando-lhe a mão afetuosamente. - Sente-se, por favor. Killick! Killick! Traga uma garrafa de vinho de Madeira e o bolo do domingo. Sinto muito não poder atender-lhe melhor, mas esta noite tenho um compromisso com o almirante. Gostaria de almoçar comigo amanhã?
Naturalmente, Killick estivera escutando atrás da porta, assim que apareceu imediatamente com Tom Burguess. Ambos entraram caminhado majestosamente, como se fossem um mordomo e um criado; mas Tom tinha tanto desejo de ver o visitante que estava sentado de costas para ele, que quando iam servir o vinho chocaram-se um contra o outro. Quando se retiraram (não sem que antes os chamassem de "malditos marinheiros de água doce") e os dois ficaram sozinhos outra vez, Jack olhou atentamente para o jovem e pensou que seu rosto lhe era familiar e que devia de havê-la visto antes.
- Desculpem-me - disse, rompendo o lacre. - Darei uma espiada na carta para ver se há nela algum assunto urgente.
Não havia nenhum. Era a terceira cópia de uma carta enviada a todos os portos onde a Surprise poderia ter feito escala na viagem de regresso para a Inglaterra. Na carta Sophie falava do progresso das plantas e das árvores de Jack, da paralização indefinida dos trâmites de seus assuntos legais e da varicela, que nesse momento estava em sua pior fase. No final da página havia uma posdata na qual dizia que confiava a carta ao senhor (ilegível), que se dirigia às Antilhas e havia tido a amabilidade de visitá-la.
Levantou a vista e apesar de que voltar a sentir um desassossego ao pensar que aquela cara lhe resultava familiar, comentou:
- O senhor é muito amável por ter-me trazido esta carta. Espero que em Ashgrove Cottage todos estejam bem.
- A senhora Aubrey me disse que as crianças tinham a varicela e que estava preocupada com elas, mas um cavalheiro que estava sentado junto dela e cujo nome não entendi assegurou que não corriam nenhum perigo em absoluto.
- Acho que minha esposa tampouco entendeu seu nome, senhor - assinalou Jack. - Não pude decifrá-lo na carta.
- Meu nome é Samuel Panda, senhor, e minha mãe se chama Sally Mputa. Como eu ia com os frades para a Inglaterra, ela me pediu que lhe desse isto - disse, entregando-lhe um pacote. - A razão pela qual fui a Ashgrove Cottage é que esperava encontrá-lo lá.
- Meu Deus! - exclamou Jack e, depois de um momento, começou a abrir o pacote lentamente.
O pacote continha um dente de baleia azul no qual ele mesmo, sendo muito jovem, mais jovem que o homem que tinha diante de si, havia gravado Resolution trabalhosamente quando esse navio levava as gáveas aferradas. Também continha um pequeno conjunto de canetas e de pêlos de elefante atados com um pedaço de pele de leopardo.
- Isso é um amuleto para que o senhor não se afogue-explicou-lhe Samuel Panda.
- Quanta amabilidade! - exclamou Jack.
Os dois, cheios de curiosidade e assombro, lançaram-se um olhar escrutinador. Na parte da fragata que Jack ocupava só havia dois espelhos: um pequeno para barbear-se no lugar onde dormia e outro muito grande na parte interna da tampa do elaborado e engenhoso móvel que Diana havia presenteado a Stephen, seu esposo, e que se usava como atril para as partituras. Jack a abriu e ambos ficaram frente ao espelho muito juntos e silenciosos, comparando-se e procurando a si mesmos no outro.
- Estou assombrado - disse por fim Jack. - Não tinha nem idéia… Não tinha nem a mais mínima idéia…
Então voltou a sentar-se e acrescentou:
- Espero que sua mãe se encontre bem.
- Está muito bem, obrigado, senhor. Prepara remédios africanos no hospital de Lourenço Marques. Alguns pacientes os preferem.
Nenhum dos dois disse mais nada até que Jack, girando o dente de baleia na mão, voltou a exclamar:
- Meu Deus!
Poucas coisas podiam surpreender-lhe no mar e havia passado por situações muito difíceis sem perturbar-se, mas agora a vívida recordação de sua juventude o desconcertava.
- Quer que lhe conte como cheguei até aqui, senhor? - perguntou Samuel com voz grave e melodiosa para romper o silêncio.
- Sim, por favor, conte-me.
- Nós nos mudamos para Lourenço Marques quando nasci. Minha mãe era de Nwandwe, a pouca distância dali. Quando pequeno estive muito enfermo e os frades se encarregaram de mim. Minha mãe estava casada então com o bruxo de uma tribo zulu, um pagão, certamente, assim que os frades me criaram e me educaram.
- Deus os abençoe. Mas Lourenço Marques fica na baía Delagoa e é território português, não? - perguntou Jack.
- É dos portugueses, mas é irlandês, quer dizer, a missão foi fundada por enviados do condado de Roscommon. O padre Power e o padre Birmingham me levaram para a Inglaterra, onde esperava encontrar-lhe, e depois me trouxeram para as Antilhas.
- Bem, Sam, dou-lhe as boas-vindas - disse Jack. - E agora que me encontrou, diga-me o que posso fazer pelo senhor. Se isto houvesse ocorrido antes, como me houvesse gostado, tudo haveria sido mais fácil, mas como já lhe disse, não tinha nem a mais mínima idéia… É muito tarde para que entre na Armada, e de qualquer maneira… Já sei! Já pensou alguma vez em ser o escrevente de um capitão? Teria uma vida agradável e poderia chegar ao posto de contador. Por outro lado, conheci muitos escreventes de capitães que tomaram o comando de uma lancha em ataques surpresa.
Ficou falando com entusiasmo durante um bom momento dos prazeres da vida marinheira, mas de repente lhe pareceu ver no olhar respeitoso e afetuoso de Sam um brilho de alegria, e isso lhe bastou para interromper a conversa.
- O senhor é muito amável, senhor - disse Sam -, mas não vim para pedir-lhe nada além de sua benção.
- Claro que lhe darei: que Deus lhe abençoe, Sam. Contudo, eu gostaria de ajudar-lhe com algo material, algo que lhe ajudasse a viver, ainda que talvez esteja equivocado e o senhor viva em uma magnífica casa. Talvez esses cavalheiros lhe hajam proporcionado trabalho.
- Não, senhor. Eu lhes ajudo porque acho que é meu dever fazê-lo, sobretudo ao padre Power porque é coxo, mas é a missão que me mantém.
- Sam, não me diga que o senhor é papista! - exclamou Jack.
- Sinto decepcionar-lhe, senhor, mas de fato sou - afirmou Sam, sorrindo. - Ademais, espero converter-me em sacerdote algum dia se logro que me confiram essa ordem. Até agora só recebi as ordens menores.
- Bem… - disse Jack, tranqüilizando-se. - Um de meus melhores amigos é católico: o doutor Maturin, a quem acaba de conhecer.
- Estou seguro de que é um dos homens mais instruídos do mundo - disse Sam, fazendo uma inclinação de cabeça.
- Mas, diga-me, Sam - continuou Jack -, o que está fazendo atualmente e que planos tem?
- Pois bem, senhor, tão logo como chegue o barco, os frades partirão para a missão do Brasil e me levarão com eles. Ainda que não tenha recebido a ordem sacerdotal, acreditam que os escravos negros me aceitarão melhor porque falo português e sou preto.
- Acredito que sim. E sem dúvida poderei dizer que um de meus melhores amigos é preto e, ademais, católico. O que foi, Stephen?
- Sinto interromper, mas no navio insígnia apareceu um sinal dirigido a você e Mowett teme que chegue tarde. A falua já está pronta e meu violoncelo dentro dela. Repito que meu violoncelo está dentro da falua.
Jack reprimiu uma frase blasfema, pegou seu violino e disse:
- Venha conosco, Sam. A falua lhe levará para terra e lhe recolherá amanhã se quiser ver a fragata e almoçar comigo e com o doutor Maturin.
CAPÍTULO 2
A caravela Nossa Senhora das Necessidades, uma embarcação de popa quadrada muito antiga, aproveitava a brisa que soprava perto da costa para se aproximar do cabo Needham. Por desgraça, navegava com as velas amuradas para estibordo e, ao cruzar a linha de espuma que separava a brisa da zona dos ventos alísios do nordeste, inclinou para bombordo. O impulso do vento a inclinou até a horizontal e o mar do Caribe entrou pelos embornais.
- Desdobre rápido as velas, malditos marinheiros de água doce! - gritou Jack.
- Sam está puxando um cabo - disse Stephen, que tinha agora o telescópio.
- Esse não é o cabo - assinalou Jack, retorcendo suas enérgicas mãos.
Mas tanto se fosse como se não, a caravela recuperou sua posição enquanto as velas golpeavam com força e imediatamente viram os marinheiros correrem de um lado para o outro abraçando e felicitando seus companheiros e aos frades. Depois a embarcação virou devagar até que teve os ventos alísios pela alheta de bombordo e finalmente desapareceu detrás do cabo.
- Graças a Deus! - exclamou Jack. - Já não terão que içar nenhuma vela nem amurá-las até entrar em Para. Inclusive é possível que todos cheguem ali sãos e salvos. Stephen, nunca havia presenciado semelhante prova de intervenção divina. Para começar, essa horrível carraca não tinha quase nenhuma possibilidade de chegar a Bridgetown e teria afundado com todos seus tripulantes se não fosse pela graça de Deus. Só uma série de milagres pode tê-la mantido flutuando durante os últimos sessenta ou setenta anos. Apesar de tudo, preferiria que viajasse em um barco que não necessitasse recorrer ao anjo da guarda dia e noite.
- É um jovem excelente - comentou Stephen.
- Acha mesmo? - disse Jack. - Espero que o pequeno George também seja. Gostei muito de ouvi-los falarem em latim com tanta fluidez, mas notei que o pastor Martin tinha dificuldade de entender-se com ele.
- Isso é porque o pobre Martin tem um sotaque inglês muito pronunciado.
- E o que tem de ruim no sotaque inglês? - inquiriu Jack, incômodo.
- Nada, de fato, salvo que em nenhum outro país se entende.
- Duvido - replicou Jack e depois acrescentou -: Sabia que pode descer até fá sem se esforçar nem diminuir o volume? Tem voz de órgão.
- Como não ia saber se naquela ocasião fui eu que lhe pedi que cantasse Salve Regina uma oitava mais baixo! Fez tremer a mesa mais de uma vez.
- É verdade! - respondeu Jack com um sorriso. - Mas oxalá não fosse preto.
- Não há nada mau em ser preto, meu amigo. A rainha de Sabá era negra e, sem dúvida, belíssima; Gaspar, um dos Reis Magos, era preto; e são Agustín, arcebispo de Hipona, era africano e, ademais, teve um filho fora do matrimônio, como provavelmente recordará. Por outro lado, quando se acostuma com a pele negra, os que a têm de cor branco amarelado se parecem seres repulsivos que não terminaram de se formar. Pelo menos, isso nos ocorria no Pacífico.
- Também preferiria que não fosse católico. Perdoe-me, Stephen. Não se trata de nada pessoal… nem tem a ver, certamente, com a religião. Está em todo seu direito de encontrar a salvação no catolicismo. Falo devido à atitude hostil que existe contra eles na Inglaterra. Provavelmente recordará dos distúrbios promovidos por Gordon e os rumores de que os jesuítas eram os causadores da loucura do rei Jorge e muitas outras coisas. A propósito, Stephen, esses frades não eram jesuítas, né? Não quis perguntar diretamente.
- Sem dúvida que não, Jack. Faz muito tempo que essa ordem foi abolida. Clemente XIV os excomungou nos anos setenta e fez muito bem. Como era de esperar, hão tentado voltar com um pretexto legal ou outro, e me atrevo a assegurar que muito em breve darão de novo uma triste imagem de si mesmos, pois de suas escolas só sairão ateus. Mas esses cavalheiros não têm absolutamente nada a ver com eles.
- Fico contente. Mas o que quero dizer é que se fosse branco e protestante, poderia chegar a almirante e estar ao comando de um navio insígnia. Um jovem como ele, inteligente, sagaz, alegre, decidido, engenhoso, modesto e amável, está destinado a ser um bom marinheiro. Na menor oportunidade teria se destacado entre todos, e durante uma guerra cruenta ou um período de agitação não deixaria escapar uma ascensão. Poderia terminar como almirante da Armada e levando a bandeira britânica no mastaréu de joanete maior.
- Mas ao ser preto e católico, pode converter-se em outro bispo africano, como são Agustín, e levar uma mitra e um báculo. Talvez possa chegar inclusive a ser nomeado bispo de Roma, Sumo Pontífice, e usar a tiara. Por outro lado, Jack, deve ter em conta que o fato de que seja papista significa que seguiu o exemplo de muitos de seus antepassados ingleses da época em que os missionários irlandeses lhes ensinaram a Sagrada Escritura e a diferença entre o bem e o mal até os tempos gloriosos de Enrique VIII, só umas poucas gerações anteriores à nossa.
Jack não parecia de todo satisfeito e, depois de alguns minutos de silêncio, disse:
- Tenho que ir ao navio do almirante. Esse maldito conselho de guerra vai celebrar o julgamento às dez.
- Eu também tenho que ir - recordou Stephen. - Devo atender a um paciente.
Enquanto caminhavam pelo cais, Jack comentou:
- De toda forma, gostei que dissesse isso de seu santo.
- Também é o seu, sabe? São Agustín é reconhecido inclusive pelas seitas mais modernas. Afinal é um dos pais da Igreja.
- Tanto melhor. Que um santo e ademais pai da Igreja possa manter uma relação proibida representa um consolo para os outros.
- Sim, mas acho que ainda não era santo naquela época.
Jack seguiu andando em silêncio e pouco depois disse:
- Quis perguntar uma coisa a Sam, mas por alguma razão não fui capaz de fazê-lo. Não me atrevi a dizer-lhe: "Sam, quando chegou a Ashgrove Cottage, explicou o motivo pelo qual desejava me ver?".
- Não explicou. Estou tão certo como se houvesse estado ali. Ainda que seja um jovem sincero e aberto, não é um bobo… nem jamais faria algo que pudesse molestar.
- Apesar de tudo, temo que Sophie o haja adivinhado ao ver sua cara, por mais negra que seja. Você adivinhou imediatamente, pois do contrário não me diria para que não me preocupasse.
- Tem que admitir que a semelhança é assombrosa.
- Stephen… - continuou Jack, vacilante. - Acha que seria conveniente falar a Sophie de São Agustín? Ela respeita muito à Igreja e se opõe a esse tipo de comportamento. Sabe? Foi-me quase impossível conseguir que sentisse simpatia por…
Nesse momento os anjos da guarda intervieram outra vez, um deles com uma mordaça - Jack tinha já formado na garganta o nome de Diana, prima de Sophie e esposa de Stephen, que havia tido uma conduta mais que reprovável em muitas ocasiões - e o outro com a inspiração necessária para que Jack continuasse sem fazer pausa:
- … Heneage Dundas, que tem uma tribo de bastardos, até que lhe expliquei que me salvara de morrer afogado quando éramos meninos.
- Bem, também não é para tanto - respondeu Stephen.
Não pôde continuar porque já estavam no cais onde atracavam as lanchas dos barcos de guerra e ali se encontrava Bonden com a falua da fragata, que era nova, pois o almirante havia cumprido sua palavra e a Surprise recebera grande quantidade de apetrechos. Já haviam carregado na fragata a água, o pão, a carne de vaca e quase toda a lenha, e essa mesma tarde encheriam a santa-bárbara com a pólvora que um barco abastecedor traria. Mowett, o primeiro tenente, Adams, o contador, e todos os marinheiros haviam encontrado tempo para embelezar a falua apesar de terem estado muito ocupados. Por outro lado, os tripulantes da falua haviam passado seu tempo livre arrumando-se ou, pelo menos, arrumando sua roupa. Muitos capitães gostavam que os tripulantes de sua fama usassem uniformes, que em alguns casos se desenhavam conforme a encomenda do capitão e em outros guardavam alguma relação com o nome do barco; por exemplo, os da Emerald consistiam em camisas de cor verde brilhante; os da Argo, em camisas pintadas de amarelo; e os da Niger eram todos negros, mas Jack não se interessava por esses detalhes. Contudo, os tripulantes de sua falua haviam combinado de se vestir igual, pois pensavam que assim aumentariam o prestígio de seu barco, como era seu dever, algo difícil de lograr nas Antilhas, onde tudo estava impoluto e inclusive os sepulcros reluziam. Nesta ocasião pensaram que a melhor maneira de conseguir seria usando uma camisa branca como a neve, uma calça branca, também impecável, com a parte superior muito ajustada, de perna larga e com rebordos azuis e vermelhos nas costuras, uma trança recém feita que lhes chegava à cintura - e que aqueles com os quais a natureza havia sido menos generosa completavam com estopa -, um lenço de Barcelona preto atado ao pescoço, um chapéu de palha de aba larga dobrada para trás e uma cinta de três pés de comprimento com o nome Surprise bordado, que rodeava a copa e ficava flutuando no ar. Por último, um par de botinas estreitas e de ponteira alongada em seus enormes pés, alargados de tanto correr descalços pela coberta. Com aquela vestimenta poderiam transportar dignamente ao seu capitão até o Irresistível, onde o conselho de guerra ia celebrar o julgamento, um acontecimento que requeria traje de gala; contudo, não podiam descer para a suja margem sem pôr em perigo o resultado obtido, assim que contrataram quatro garotos de Barbados para que colocassem a prancha{4} e depois afastassem a falua da margem. A prancha era pequena, mas todos os tripulantes da falua haviam navegado durante anos com o doutor Maturin e sabiam que podia cair pelas janelas de popa, das escadas e inclusive dos cais, assim que voltaram a cabeça para olhá-lo e viram que avançava com cautela e passo vacilante. Desta vez não temiam por sua vida, pois havia pouca profundidade, ainda que devido à baixa-mar a água estava muito turva e temiam que lhes salpicasse a roupa se caísse. Ademais, corriam o risco de manchá-la ao ir resgatar-lhe. O doutor não era um companheiro digno do capitão essa manhã. O capitão exibia um resplandecente uniforme azul e dourado, com o sabre que lhe havia presenteado a Associação Patriótica Lloyd ao cinto, a medalha do Nilo pendurada do quarto olhal da casaca e o chelengk, um broche de diamantes turco em forma de penacho, preso em seu melhor chapéu, adornado com uma cinta dourada, que usava com as pontas para a frente e para trás, como Nelson. Havia se lavado e barbeado (como acostumava fazer diariamente, ainda que fizesse muito mau tempo) e também escovara o cabelo cuidadosamente e o usava empoado e arrumado para trás com uma larga cinta negra; o doutor Maturin, em troca, não se barbeara nem provavelmente tampouco sentira a necessidade de se lavar. Ademais usava meias descombinadas, os calções desabotoados nos joelhos e uma velha e horrível casaca que seu servente já havia querido jogar fora duas vezes. Tinha postas todas suas esperanças naquela raquítica peruca que, confiava, lhe outorgaria um aspecto civilizado.
- Talvez o doutor queira regressar para a fragata em um barco abastecedor - aventurou Bonden. - Há um; que está a ponto de zarpar carregado de verdura - acrescentou, assinalando com a cabeça uma embarcação com forma de cesta atracada ao cais destinado aos barcos de guerra e que, por ter o fundo plano, era mais estável e, por isso, um meio de transporte mais apropriado para ele.
- Bobagem! - exclamou Stephen subindo a prancha. - Vou ao Irresistível. Nesta embarcação… nesta falua recebem uma pessoa como a um cachorro em uma partida de boliche - murmurou em tom irritado enquanto avançava com dificuldade.
Uma onda distante sacudiu levemente a prancha e Stephen se cambaleou e deu um grito. Então Jack, que estava detrás, o agarrou pelos cotovelos, o alçou no ar e o passou por cima da borda até o interior da falua, onde fortes marinheiros o levaram até a bancada de popa como se fosse um pacote.
Esses mesmos marinheiros o colocaram na escada do navio insígnia e o advertiram que tivesse cuidado ao subir os degraus e que se segurasse com as duas mãos. Jack havia subido como era devido e foi recebido com a cerimônia de rigor e conduzido para a popa. Por essa razão Stephen não o viu quando chegou ao castelo de popa, mas viu o senhor Butcher, antes cirurgião da Norfolk e agora prisioneiro de guerra.
- Bom dia, senhor Butcher. Eu lhe agradeço que haja tido a amabilidade de vir.
Butcher era um homem de grande experiência e apesar de não ser muito instruído nem versado em outra matéria que não fosse sua profissão, possuía uma habilidade para fazer diagnóstico e prognose que raras vezes Stephen havia visto em outras pessoas.
- Não tem importância. É um prazer corresponder ainda que seja minimamente à amabilidade que o senhor teve com o capitão Palmer.
Nesse momento inspirou um pouco de rapé e acrescentou:
- O senhor Martin já está lá embaixo.
- Talvez devamos nos reunir com ele - propôs Stephen.
- Acho que sim - disse Butcher. - Mas antes de descer, permita-me perguntar por que o senhor operou aqui em vez de trasladar o paciente para o hospital. Na Jamaica, onde há febre amarela e miasmas, eu entenderia, mas num lugar tão saudável como a ilha Barbados…
- Na verdade é que é um homem de caráter difícil e que brigou com quase todos os seus colegas, incluindo os que trabalham no hospital.
- Então entendo sua reserva. Por outro lado, ainda que um hospital seja o lugar mais conveniente para ser operado, sobreviver é algo muito distinto. Eu preferiria estar no mar. Vi como todos os homens que haviam em uma sala de hospital com membros amputados morreram uma semana depois de ter sido operados, enquanto que alguns dos que haviam ficado no barco por falta de espaço sobreviveram. Vários ainda vivem.
O paciente não parecia ter um caráter muito difícil. Agradeceu ao senhor Butcher por sua visita, felicitou-lhe por sua iminente liberação - o barco sueco que levaria os oficiais norte-americanos prisioneiros de volta ao seu país havia ancorado essa manhã - e lhe deu algumas mensagens para seus amigos de Boston. Contudo, imaginou que estiveram falando de suas probabilidades de sobreviver e olhou com atenção para Butcher enquanto este lhe observava para julgar-lhe objetivamente. Achou que sua expressão indicava que ele estava condenado à morte e começou a falar cada vez mais rápido para demostrar que estava enganado, que se encontrava em perfeito estado e que a ferida e a constante febre baixa careciam de importância.
- Um pouco de pus - explicou ao mesmo tempo que lhes lançava um olhar inquisitivo. - É somente um pouco de pus. Vi isso milhares de vezes.
- E aí, senhor? - perguntou Stephen quando regressaram ao castelo de popa.
- Bem, tem uma infecção, como o senhor muito bem sabe - respondeu Butcher. - Quanto à sua evolução… - acrescentou, imitando com as mãos um movimento descompasado. - Tanto uma vitória como uma boa notícia poderiam inclinar a balança, mas tal como estão as coisas, seria conveniente preparar-se para um desenlace fatal. Suponho que o senhor não tentará aplicar remédios heróicos.
- Não. É de constituição débil e está muito amargurado por problemas familiares. Vamos ver o capitão Palmer.
Durante esse tempo o conselho de guerra recusara o pedido de três dos prisioneiros de serem julgados individualmente. Ademais, já se haviam lido as acusações contra eles com a monótona repetição própia dos assuntos legais e se havia posto em marcha a lenta maquinaria que os conduziria imperdoavelmente para a forca.
Havia poucas dúvidas com respeito à sua identidade, pois sua descrição, junto com a de todos os outros que haviam participado do motim da Hermione, havia chegado a todas as bases navais:
George Noris, ajudante do condestável, vinte e oito anos. De constituição delgada, mede cinco pés e oito polegadas e tem a pele azeitonada e o cabelo preto e longo. Perdeu uma falange do índicador direito. Leva tatuada uma estrela debaixo da mama esquerda e uma cinta ao redor da perna direita com a inscrição: O mal estar para quem pensa que o mal. Além disso, tem uma ferida causada por uma bala de mosquete em um braço.
John Pope, armeiro, quarenta anos. Robusto, mede cinco pés e seis polegadas e tem a pele branca, a cara marcada pela varíola e o cabelo cinzento. Leva tatuado um coração no braço direito.
William Strachey, dezessete anos. Robusto, mede cinco pés e três polegadas e tem a pele branca e o cabelo castanho escuro e comprido. Leva tatuado seu nome e a data do 12 de dezembro no braço direito.
Não se podiam refutar provas assim. Alguns alegaram que viajavam sob o nome falso de um contador para evitar ser aprisionados por dívidas ou obrigados a pagar a manutenção de seus filhos ilegítimos, e que uma acusação que utilizasse um pseudônimo ficava invalidada. Contudo, não serviu de nada, já que um conselho de guerra naval não levava em conta as sutilezas aplicáveis no Old Bailey, o principal tribunal civil de Londres, e a maioria dos acusados haviam admitido sua identidade, ainda que não sua culpabilidade. Todos jogavam a culpa nos outros e inclusive alguns não sentiam escrúpulos ao revelar quem eram os verdadeiros instigadores do motim. Nesse momento Aaron Mitchell argumentava com veemência que um jovem de dezesseis anos, como ele então, não podia opor-se a duzentos homens enfurecidos, porque haveria resultado inútil e lhe haveria ocasionado a morte. Também aduzia que estava totalmente contra de que entregassem a fragata aos espanhóis, mas que não pôde fazer nada para evitá-lo.
Jack pensou que ele tinha uma certa razão, pois um jovem teria que ter uma força moral e uma coragem extraordinárias para resistir à determinação de homens mais velhoss que ele, alguns deles ferozes e sanguinários, que haviam sido maltratados de forma intolerável até limites imprevistos. Hugh Pigot, com o poder que lhe outorgava seu título de capitão de um barco de guerra, havia convertido a Hermione em um inferno flutuante. Na noite antes do motim, quando os tripulantes estavam rizando as gáveas, havia dito aos gritos que o último em descer da verga sobremezena seria açoitado, e como seus açoites eram tão temidos, os dois marinheiros que atavam as empunhaduras de barlavento e sotavento - e, portanto, estavam mais afastadas, justamente nos penóis -, saltaram por cima dos que trabalhavam na parte interior para alcançar os brandais ou os amantilhos, por onde deslizariam até a coberta, mas perderam o equilíbrio e caíram sobre o castelo de popa. Quando os marinheiros que lhes recolheram comunicaram a Pigot que estavam mortos, o capitão lhes havia ordenado: joguem esses marinheiros de água doce pela borda".
Mas o argumento que Mitchell utilizava em sua defesa, por desgraça, era muito comum e se debilitava a medida que era repetido. A verdade era que os amotinados não só haviam matado Pigot como também ao primeiro, ao segundo e ao terceiro oficiais, ao contador, ao cirurgião, ao secretário do capitão, ao tenente de Infantaria da Marinha, ao contramestre e a um jovem guarda-marinha, primo de sir William; e como se fosse pouco, haviam entregado a fragata ao inimigo. Não obstante, o carpinteiro e o condestável, que haviam sobrevivido, não declararam em nenhum momento que algum marinheiro houvesse sido insultado nem golpeado, ferido ou assassinado por opor-se aos amotinados. Um depois de outro, os outros marinheiros asseguraram não ter tido nada a ver com o ocorrido, que foram obrigados e que pediam por Deus que pensassem no que haviam sofrido. Mas tudo foi em vão. Alguns, os mais eloqüentes, falaram surpreendentemente bem; outros, os típicos valentões, limitaram-se a usar termos legais e a intimidar às testemunhas recordando-lhes que se encontravam sob juramento e que o perjúrio se castigava com a pena de morte neste mundo e com o inferno no outro; a maioria deles, temerosos do que lhes rodeava e sem forças devido ao longo tempo que haviam estado prisioneiros, limitaram-se a negar tudo mecanicamente uma e outra vez, mas quase todos defendiam a si mesmos, quase todos trataram de salvar suas vidas fazendo uso de toda habilidade e inteligência que possuíam, ainda que provavelmente sabiam que havia muito poucas esperanças de consegui-lo.
Na realidade, nenhuma. Todos os membros do tribunal estavam contra deles e o veredito fora emitido muito antes de que começasse o julgamento. Além do horror que esse motim inspirava, as provas contra os marinheiros eram constrangedoras, e, para se assegurarem de que havia suficientes, haviam conseguido que dois deles se convertessem em traidores e delatassem aos demais em troca de que lhes poupassem a vida. Mas todos se defendiam das acusações e defesas, como se o que eles fizessem pudesse influir no tribunal.
Jack os escutava com grande atenção e uma expressão grave, e sua esperança diminuía à medida que passavam as horas. À sua esquerda estava sentado o capitão Goole, o presidente do tribunal, e à sua direita, um capitão de cabelo grizalho. Do outro lado de Goole se encontrava Berry, capitão da Jason, e ao lado deste um jovem de sobrenome Painter que acabava de ser ascendido a capitão e estava ao comando da corveta Víctor. Todos tinham a mesma expressão séria e estavam sentados formando um sólido tribunal azul e dourado, atrás daquela mesa coberta de papéis. Stone desempenhava a função de assessor legal e, ajudado por seus colaboradores, dirigia o jogo, porque aquilo não era mais que um jogo, jogo odioso; e, como todos, regia-se por uma intrincada rede de regras. Uma delas era que aos acusados se lhes permitia dizer o que quisessem, interrogar às testemunhas e dirigir-se ao tribunal para que o julgamento parecesse justo. Jack achava repugnante participar daquela farsa solene, e uma indecência estar sentado ali julgando esses homens que lutavam inutilmente. Jamais se atreveria a jurar que se tivesse estado no lugar do jovem Mitchell arriscaria a vida pelo infame Pigot; provavelmente vários homens foram eliminados por tentarem ser neutros, mas os delatores haviam jurado que todos os acusados usavam armas. Quanto desejava ter-lhes golpeado com fúria até matá-los! Quanto desejava que o dever não lhe houvesse obrigado a permanecer sentado ali, em meio de toda aquela podridão!
A podridão não ficava somente do lado da mesa onde se encontravam os homens bem vestidos, bem alimentados e a salvo; muitos daqueles marinheiros esquálidos, pálidos por ter estado encarcerados, esfarrapados, sem se barbear e com o cabelo comprido, grotescos diante dos infantes de marinha - com suas impecáveis casacas de cor escarlata - que os vigiavam, haviam começado a mentir descaradamente e a jogar a culpa para o primeiro que aparecesse. Certamente era mais compreensível que a podridão se instalasse naquela parte da sala, mas isso não a fazia menos condenável. Jack já vira em outras ocasiões como se quebrava a lealdade que existia entre os marinheiros. Como muitos dos que tentavam se afastar em lanchas de um barco que afundava empurravam os que se aproximavam nadando e inclusive lhes cortavam os dedos quando se agarravam na borda. Um espetáculo similar ao que presenciava nesse momento.
Quando o tribunal suspendeu a sessão para almoçar, bastante tarde, Jack estava muito desanimado, sobretudo porque era evidente que o julgamento ia durar muito tempo.
Stephen Maturin não estava muito melhor do que ele. O senhor Palmer, o capitão da Norfolk, sofria de melancolia e tinha febre palúdica quartã desde que estava no Pacífico, e, como o estojo de remédios de Butcher havia afundado com a fragata, Stephen lhe administrara outros medicamentos, com muito êxito no início. As febres, com suas inevitáveis seqüelas, haviam remitido com quinina e sassafrás, mas a melancolia havia se aguçado desde que dobraram o cabo Horn.
- Ele cortará suas veias se o deixarem sozinho - sentenciou Butcher quando saiam.
- É isso que eu temo - admitiu Stephen. - Mas parece que o láudano lhe fez muito efeito. Gostaria de ter folhas daquele arbusto peruano chamado de coca: ativariam a sua mente muito mais do que essa mistura de heléboro, água e leite.
Nesse momento foram interrompidos pela chegada da falua, e Stephen regressou para a Surprise. O capitão acabava de subir a bordo sem nenhuma cerimônia, apoiando-se no pescante de bombordo, e pôs a mão para fora da borda para ajudar Stephen.
- Já comeu? - perguntou Jack, pois a hora de almoçar dos oficiais já havia passado.
- Se já comi? - inquiriu Stephen. - Não, não comi.
- Então venha comer algo comigo -convidou Jack. - Ainda que bem sabe Deus que não há nada como tomar parte de um conselho de guerra para tirar o apetite de alguém - acrescentou enquanto conduzia Stephen para a cabine.
- Ainda faltam dezessete minutos para a hora, senhor - informou Killick com uma expressão mal-humorada, como se lhe houvessem pego em falta. - O senhor me disse às quatro porque o conselho de guerra celebrava hoje o julgamento.
- Não tem importância - disse Jack. - Diga ao cozinheiro que se apresse e sirva-nos xerez enquanto isso.
Não tiveram que esperar muito tempo. O cozinheiro de Jack era das Índias Orientais e estava acostumado a receber chicotadas se não terminasse a comida de seu patrão pontualmente, assim que antes de acabarem de beber a segunda taça de xerez, o camarote se inundou com o odor de uma sopa de pescado feita com atum, lagosta, caranguejo, mexilhões, amêijoas e uma ampla variedade de pescados de pequeno tamanho procedentes dos arrecifes de coral.
Era uma sopa magnífica, uma sopa da qual não haveriam deixado nem rastro em circunstâncias normais, mas que nesta ocasião pediram que a levassem quase sem tê-la provado.
- Perguntou ao almirante pelo senhor Barrow e o senhor Wray? - inquiriu Stephen enquanto serviram o pudim de carne e rins.
- Sim - respondeu Jack. - Ele me disse que a situação não havia mudado.
- Obrigado por se lembrar - disse Stephen, enquanto partia a massa branca e branda com a colher. - Prefiro o pudim mais cozido.
Não expressou sua opinião sobre a notícia, mas lhe causara uma grande satisfação. Ainda que o senhor Barrow ainda fosse oficialmente o vice-secretário do Almirantado, quem desempenhava seu trabalho já fazia algum tempo era o senhor Wray, um homem bastante jovem e muito bem relacionado que havia demostrado ser muito competente no Ministério de Fazenda. Stephen e Wray haviam sido apresentados muito antes de que este tivesse algo a ver com a Armada, pois era um conhecido de Jack, mas chegou a conhecê-lo bem em Malta, aonde Wray havia sido enviado para acabar com a corrupção nos estaleiros e resolver um caso muito mais sério, um caso de traição na Administração da ilha, já que, ao que parece, um alto funcionário passava informação confidencial de suma importância para um dos serviços secretos franceses. Mas aquilo não havia contribuído para estreitar sua relação, porque Stephen tinha a impressão de que Wray, um novato em uma atividade tão delicada e perigosa, não gozava de toda a confiança de seu própio chefe, sir Joseph Blaine, o diretor do serviço secreto naval, que, naturalmente, esperava que seus agentes demonstrassem sua habilidade e, sobretudo, sua discrição, antes de confiar-lhes a vida de todos os homens que integravam a rede de espionagem. Essa reserva era usual nas redes de espionagem e contra-espionagem, e ainda que um homem fosse admitido nelas, devia esperar cinco anos antes de saber dos assuntos mais delicados. Por essa razão, apesar de Stephen ter se relacionado com Wray e escutado música e jogado cartas com ele - ainda que Wray tinha muito má sorte e já lhe devia quase uma fortuna -, não considerou apropriado falar-lhe de seu trabalho no Mediterrâneo nem de sua relação com sir Joseph até o último momento, quando não teve escolha. Havia identificado o traidor e seu colega francês por conta própria, mas uma vez conseguida a valiosa informação, teve que abandonar a ilha; contudo, enviou para Wray que estava na Sicília, uma carta urgente na qual lhe contava tudo o que sabia (portanto, havia lhe revelado a sua identidade) para que acabasse com toda a organização. O traidor foi aprisionado, mas, infelizmente, o principal agente secreto francês escapara, talvez devido à inexperiência de Wray. Stephen se informou da notícia em Gibraltar justo antes de partir para o Pacífico, e ainda que não tenha visto Wray, que faria parte da viagem de regresso para a Inglaterra por terra, aceitou sua oferta de levar uma carta sua para lá. Em Malta utilizara uma bonita dama italiana para descobrir os agentes secretos a serviço da França, e como lhes viram juntos amiúde e os dois haviam ido a Gibraltar na Surprise, criou-se a opinião geral de que eram amantes. Aquilo havia chegado aos ouvidos de Diana, uma mulher exageradamente apaixonada e impulsiva, e a carta tinha como objetivo paliar seu possível ressentimento pelo comportamento que mostrara, não porque fosse imoral - para ela o comportamento imoral não lhe parecia censurável -, mas porque o consideraria uma intolerável afronta pública. Por desgraça, devido à natureza daquele caso, na carta não podia expressar-se com toda sinceridade; não podia contar toda a verdade, pelo que pedira a Wray que com suas própias palavras e em um tom de voz convincente lhe explicasse o que não podia escrever. Agora desejava conhecer até o último detalhe da conspiração maltesa e as circunstâncias que haviam rodeado o insólito suicídio do traidor, e era melhor informar-se diretamente, através do própio Wray, que não depois de que a informação fosse filtrada pelo senhor Barrow, com seu interminável e estúpido discurso de autocomplacência, ou por sir Joseph, para quem Stephen havia conseguido numerosos insetos e algumas mariposas, que apesar de ser dez vezes superior a Wray por sua extraordinária sagacidade e sua grande experiência, não se achava em Malta na ocasião. Por outro lado, ainda que Wray não tivesse a estatura de sir Joseph, era perspicaz, astuto e inteligente, talvez inteligente demais. Apesar de gostar muito de viver no luxo e de apostar grandes somas de dinheiro, Stephen não o achava antipático, ainda que no final de sua permanência em Valletta chegara a chatear-se com sua insistência em seguir jogando cartas com ele; foi perdendo cada vez mais dinheiro até que por fim percebeu que não podia pagar e pediu indulgência. Além disso, Stephen simpatizava com ele devido ao seu profundo amor pela música e porque solicitara, ou, pelo menos, recomendara, que concedessem uma ascensão para Tom Pullings, o primeiro tenente de Jack Aubrey, apesar de que ele e Jack haviam tido uma briga vários anos atrás, uma briga cujos pormenores Stephen não conhecia, mas que haveria provocado rancor em uma pessoa com sentimentos piores. Quanto às promessas que Wray havia feito a Stephen para agradecer-lhe por sua indulgência, as promessas de que ajudaria a Jack a conseguir uma potente fragata na base naval da América do Norte e a Pullings, o comando de um barco, Stephen não era tão ingênuo a ponto de pensar que tinham o valor de um contrato, mas acreditava que as cumpriria.
Ainda que não fosse uma de suas qualidades mais sobressalentes, Stephen não carecia de ingenuidade, e por isso nunca suspeitou que Wray fosse um agente secreto a serviço da França. Mas também era verdade que sir Joseph, muito menos ingênuo do que ele, tampouco havia suspeitado, e que os únicos defeitos que encontrava em Wray eram não ser a pessoa adequada para o cargo e carecer de experiência e discrição. Nem Stephen nem sir Joseph podiam imaginar que um serviço secreto francês recrutaria um homem esbanjador, jogador, presunsoso, loquaz e pouco confiável, por mais inteligente e perspicaz que fosse.
Tampouco nenhum deles podia imaginar que Wray e seu amigo Leward, também um fervoroso admirador de Bonaparte, mais inteligente, poderoso e discreto que ele, participavam da conspiração que existia em Whitehall para desacreditar a sir Joseph e aos seus colaboradores e substituir este pelo medíocre Barrow, facilmente manipulável, mesmo que voltasse a ocupar o seu posto. Se a conspiração triunfasse, Wray e Leward lograriam conhecer esse estranho organismo tão seleto e quase fantasmal conhecido simplesmente como "o Comitê", que vigiava todos os serviços secretos da Grã-Bretanha e seus aliados para conhecer suas atividades no mais alto nível.
Para completar, durante o pouco tempo que Stephen se relacionara com Wray não notara que, com efeito, hospedava maus sentimentos e era vingativo. Wray odiava a Jack Aubrey por causa daquela briga e havia influído no Almirantado para prejudicar-lhe tanto como fosse possível. Também odiava a Stephen por ser amigo de Jack e um agente secreto que eliminara muitos de seus colegas franceses; e se surgisse a ocasião, não hesitaria em entregar-lhe ao inimigo.
- Eu gostaria de voltar a vê-lo, sobretudo porque me deve um monte de dinheiro - disse Stephen.
- A quem? - inquiriu Jack, pois entre sua resposta e o comentário de Stephen haviam passado vários minutos, tempo suficiente para comerem uma libra de pudim de rins, e o pudim sob o sol tropical tirava mais agudeza dos sentidos que ao sul do cabo Horn.
- A Wray - respondeu Stephen; e enquanto falava, ouviram alguém na Surprise gritar que se aproximava uma lancha.
Entre a confusão que seguiu, escutaram claramente a palavra carta.
- Killick, corra até o convés para ver se o correio chegou - ordenou Jack.
Ambos se ficaram imóveis esperando-o com o garfo na mão. Stephen estava ansioso para saber que efeito haviam produzido em Diana a primeira carta que escrevera e as que lhe enviara do Brasil e do sul do Atlântico, enquanto que Jack desejava com impaciência saber a opinião de Sophie com respeito à visita de Samuel.
- Não, senhor - disse Killick ao regressar. - Trouxeram somente uma carta, uma carta do capitão Pullings para Mowett. Os suecos se detiveram junto ao barco onde ele viajava como passageiro e, como permaneceram ali por meia hora para passar o tempo, o capitão Pullings escreveu rapidamente essa carta para o senhor Mowett. Dizem que depois de deixarem os norte-americanos farão escala na Inglaterra na viagem de regresso, e que se tivermos cartas para enviar, terão prazer em levá-las.
- Acredita que vale a pena escrever? - perguntou Stephen.
- Acho que não - respondeu Jack, que interrompera bruscamente sua carta-serial para Sophie no dia em que Sam chegara. - Já estamos a pouco mais de mil léguas de nosso país e é provável que cheguemos antes do que eles, já que esse barco sueco não é mais do que uma gata de popa alta, sabe? Não é que esteja precisamente ansioso para chegar - acrescentou em voz mais baixa e depois ordenou -: Killick, pergunte a Mowett se quer tomar café conosco.
O primeiro tenente chegou ao mesmo tempo que a fumegante cafeteira, e seu rosto radiante iluminou o camarote. Inclusive em circunstâncias normais, seu rosto desenhava um franco e agradável sorriso, mas nesse momento irradiava felicidade, e os dois homens sorriram apesar de sua tristeza.
- O que houve, meu querido James Mowett? - perguntou Stephen.
- Vão publicar meus poemas, senhor. Vão reuni-los em um livro - acrescentou e soltou uma alegre gargalhada.
- Parabéns - disse Jack enquanto lhe apertava a mão. - Killick! Killick, traga uma garrafa de conhaque de Nantes.
"Isso é justo o que eu ia fazer", disse Killick para si mesmo. Certamente, ouvira tudo, e ainda que não fosse freqüente que um oficial de marinha publicasse um livro de poesias, sabia como o acontecimento devia ser celebrado.
Mowett explicou que confiara o manuscrito ao seu amigo Tom Pullings, que havia encontrado um excelente editor, um tipo estupendo que amaria publicá-lo e pô-lo a venda em primeiro de junho, no glorioso primeiro de junho. Esse generoso cavalheiro amava a poesia e a Armada e fizera para Mowett, através de Tom, uma magnífica oferta: só teria que pagar o custo da impressão, do papel, da publicidade e uma pequena quantia pela opinião da imprensa, e a metade dos benefícios seria para ele. Também havia dito que Murray, um editorial de muito menos categoria que a sua, vendera cinco edições do livro de Byron em nove meses, e considerando que o livro de Byron não era tão longo. Tom aceitara a oferta na hora, porque a oportunidade é careca. O cavalheiro pensava que o livro ficaria muito bem em cícero e em oitavo e que poderia ser encadernado por meio guinéu. Naturalmente, ele teria que lhe ceder os direitos de autoria desse livro e de todos os seguintes.
- O que é cícero? - perguntou Jack.
- Sabe Deus, senhor - respondeu Mowett, rindo alegremente. - Vou perguntar ao senhor Martin, que sabe tudo sobre livros.
- Vamos pedir que ele celebre conosco este triunfo de nossa fragata e que nos comente os aspectos técnicos da edição - disse Stephen.
Quando Martin era um clérigo sem nenhum benefício eclesiástico, passara alguns anos de penalidades trabalhando duramente como tradutor, compilador e corretor de prova de granel para vários editores. Sabia muito desse negócio e imediatamente apercebeu que o tipo de quem Mowett falava se parecia mais com Barrabás do que a maioria dos editores; contudo, um momento depois de adotar uma expressão grave, juntou-se à celebração e explicou - não sem certa satisfação, pois passara muito mal por causa das malditas jaretas{5} e de outros cabos - que cícero era um tipo de letra com a qual podiam se escrever seis emes em uma polegada e que as dimensões de todos os livros, que podiam ser de tamanho folha, quarto, oitavo, doze avos e outros menores, resultavam de dobrar o impresso original uma vez, duas vezes, três vezes e assim sucessivamente, conforme o caso. Acrescentou que os impressos tinham vários tamanhos e nomes, como impressos alongados, prolongados, oblongos, verticais e muitos outros. Depois falou da dificuldade que representava a distribuição, do impenetrável mistério de que alguns livros se vendessem e outros não e do papel que desempenhavam os críticos, quem, conforme ele, eram uma mistura de cavalheiros, rufiães instruídos, bêbados e tipos fáceis de subornar.
Chegou um momento em que aquilo parecia não acabar nunca, mas como era bem educado, Mowett conseguiu se dominar e começou a pensar que se pusesse na capa "Por um oficial de alta classe" faria com que os críticos o respeitassem mais ou se era melhor pôr "Por J. M., oficial da Armada Real". Por fim disse:
- Naturalmente, senhor, Tom me disse que lhe apresentasse seus respeitos e que transmitisse seu afeto a todos os oficiais. Também me encomendou dizer-lhe que havia feito uma viagem de regresso surpreendente. Foi perseguido a toda velocidade pelo barco corsário mais potente que jamais vira, e ainda que o Danaë navegasse com rapidez, como todos sabemos, ah, ah, ah!, teve que aumentar a velocidade de uma maneira assombrosa. Desdobrou as varredoras, as arrastraderas, em fim, o conjunto de velas apropriado para ganhar velocidade, e, apesar de tudo, o barco corsário haveria apresado o seu se uma rajada de vento não o houvesse rompido o velacho em uma noite.
- Esse deve de ser o Spartan - disse Jack. - O almirante me falou dele. É de uma sociedade formada por franceses e norte-americanos e especializada na captura de mercantes que comerciam com as Antilhas. Os mercantes que vêm para aqui são levados para New Bedford, e os que vão para seus países de origem, geralmente carregados de açúcar, pegam o carregamento e o passa para um chasse-marées{6} diante da costa francesa para poder se esquivar do bloqueio. Costuma patrulhar a barlavento das ilhas dos Açores.
- Efetivamente. Foi ali onde começou a perseguir ao Danaë. Diz Tom que seus homens eram muito astutos, pois pelo velame, a bandeira, os uniformes, os sinais e outras coisas o navio se assemelhava muito com um barco de guerra português, tanto que deixou que se aproximasse até estar quase ao alcance de seus canhões antes de aperceber o engano e se afastar. Assegura que parecia um autêntico barco de guerra.
- Mas, os barcos corsários não são barcos de guerra? - perguntou Stephen.
Jack e Mowett franziram os lábios em sinal de desaprovação, e depois de um momento, Jack disse:
- Bem, em um sentido estrito poderia se dizer que sim são barcos de guerra, barcos de guerra privados, mas ninguém os chama assim.
- Alguns os chamam de barcos com patente de corso - disse Mowett -, e isso soa um pouco melhor.
- Não sei absolutamente nada sobre os barcos corsários - reconheceu o senhor Martin.
- Pois são barcos armados utilizados para apresar embarcações inimigas. Geralmente seus propietários são comerciantes e armadores que não podem continuar suas atividades devido à guerra, e o Almirantado lhes dá um documento autorizando-lhes a fazer o corso e levar represálias contra os inimigos. Podem capturar os barcos das nações inimigas que figurem nesse documento, e se depois os barcos são declarados presas de lei, podem se apropriar deles, como nós fazemos. Ademais, recebem dinheiro pelos homens que capturam, como nós na Armada, que recebemos cinco libras por cada homem que esteja a bordo de um navio inimigo no início da batalha.
- Então formam algo muito semelhante à Armada, com a diferença de que o rei não tem que fornecer-lhes os botes, quer dizer, os barcos.
- Não, não, é muito diferente! - exclamou Jack.
- Não se parece em nada - assegurou Mowett.
- Amiúde ouvi as pessoas se referirem aos corsários com frases reprovatórias, como por exemplo: "porco corsário, vá para outra parte", o que demostra, sem dúvida, desaprovação - disse Stephen.
- Perdoem minha torpeza - assinalou Martin -, mas se tanto os barcos de guerra públicos como os privados obstruem as atividades comerciais do inimigo, apresam seus mercantes e atacam com autorização do Governo, não vejo a diferença entre eles.
- Não se parecem em nada - insistiu Jack.
- Não. São muito diferentes - corroborou Mowett.
- Meu amigo - disse Stephen -, o senhor deve levar em conta que o principal interesse dos corsários são os ganhos, pois vivem dos mercantes capturados, enquanto que os cavalheiros da Armada Real vivem da glória e desdenham os butins.
Jack e Mowett riram, mas não com tanta vontade como Martin e Stephen, que haviam visto aos cavalheiros da Armada perseguir velozes mercantes com os olhos quase fora das órbitas e todos os músculos tensos.
- Bem, senhor - disse Jack -, reconheço que nós nos esforçamos para apresar primeiro os barcos de guerra do inimigo e às vezes o logramos, ainda que seja em troca de receber profundas feridas; contudo, não se pode dizer o mesmo dos corsários, que, como disse o doutor, estão interessados principalmente no metal, quer dizer, nos ganhos. Alguns se preocupam tanto com isso que cruzam a linha que separa fazer o corso da pirataria. Isso é o que lhes deu má reputação, isso e o tipo de homens que levam em seus barcos; sobretudo os que operam perto das costas, que simplesmente querem dispor de um grupo de rufiães decididos a abordar os mercantes e derrotar seus tripulantes.
- Da última vez que estive em Londres ouvi dizer por um cavalheiro especialista em estatística que o número de corsários se eleva a cinqüenta mil - anunciou Stephen.
- O senhor me surpreende- confessou Martin. - É um terço do número de marinheiros e infantes de marinha juntos.
Jack seguia pensando em suas coisas e de repente disse:
- Mas não ache que todos os barcos corsários são iguais. A maioria deles são magníficos navios, construídos para navegar a grande velocidade, e com uma tripulação excelente, normalmente integrada por marinheiros de primeira e oficiais respeitáveis. Muitos tenentes sem emprego tomaram o comando de barcos corsários em vez de deixá-los apodrecendo na praia. Conheço um que fez isso, William Foster, um tipo estupendo. Éramos companheiros no Euryalus. Recorda-se, Mowett, que nos encontramos com ele no canal da Mancha e que nos rogou que não levássemos nenhum de seus homens? Esteve a ponto de fazer uma fortuna quando apresou um mercante de Hamburgo abarrotado de seda e especiarias, mas sempre teve má sorte, e por umas questões legais ou outras o barco não foi declarado presa de lei pelo tribunal competente.
- Meu Deus! - exclamou Mowett. - Peço que me perdoe, senhor, mas a carta de Tom Pullings me trastornou de tal maneira que me esqueci de pedir-lhe que amanhã nos honrasse com sua presença na sala dos oficiais. Vamos oferecer um almoço de despedida para os oficiais norte-americanos, bem… para os que estejam em condições de assistir.
- É muito amável, Mowett - disse Jack -, mas acho que o tribunal não suspenderá a sessão antes das três e não seria muito indicado que seus convidados esperassem até então. Almoçarei algo no navio insígnia e me reunirei convosco para comer a sobremesa. Sinto não poder atender a esses homens como é devido.
O tribunal só encerrou a sessão após as quatro, já que tinha que se ocupar de muitos casos nesse dia. Quando o capitão Aubrey e o doutor Maturin regressavam para a Surprise na falua, perceberam de que o almoço de despedida ainda não havia terminado e que era uma refeição muito alegre, pois ouviram risos e cantoria. Então compreenderam que teriam que mudar a sua expressão grave e triste. O julgamento em si mesmo bastara para entristecer a Jack, sobretudo porque parecia que após dois dias, no sábado, a sentença começaria ser ditada, e só havia um tipo de sentença a ditar. Quando a sessão já havia terminado, Goole disse:
- Adiantamos muito o trabalho hoje, cavalheiros. O almirante espera que terminemos amanhã para que possa confirmar o quanto antes as sentenças que ditemos e fazer que se cumpram no dia seguinte.
- Mas o dia seguinte é domingo! - exclamou o jovem capitão, que sabia muito bem que todos os homens julgados seriam declarados culpados e sentenciados a morte.
- Isso é o importante - respondeu Goole. - Os enforcamentos em domingo são muito pouco freqüentes. Se terminássemos de ditar a sentença na segunda-feira, ocorreriam na terça-feira, e isso é algo muito comum, ainda que neste caso sejam muitos os que vão ser enforcados; e se esperarmos o outro domingo, não teria o mesmo efeito.
Por outro lado, pouco depois de que se levantasse a sessão, o senhor Stone encontrara-se no deserto castelinho com Stephen - que estivera atendendo seus pacientes, primeiro ao almirante e depois ao delirante senhor Waters, durante muito tempo - e lhe dissera:
- Doutor Maturin! Tenho uma notícia muito interessante para o capitão Aubrey. Já sabe que à secretaria chegam notícias muito curiosas. Meu informante, um homem confiável, me disse que o Spartan saiu há cinco dias de New Bedford para patrulhar e que leva provisões para três meses.
Falou no tom apropriado para um assunto confidencial, e era óbvio que desejava que Stephen soubesse que ele também, ele também, estava relacionado com a espionagem e que não se importaria de falar um pouco do tema.
Para repelir o ataque e ter a certeza de que Stone não voltaria a cometer a bobeira de tomar liberdades com ele, Stephen manteve sua impenetrável reserva e fingiu ser estúpido. Era consciente de que em lugares onde em princípio estava a salvo também podia levantar suspeitas a respeito da dupla função e de que quanto mais se propagasse essa informação estaria menos seguro e seria menos útil.
- Ah, o senhor já está aqui, senhor! - gritaram todos quando o capitão da Surprise entrou na sala dos oficiais com uma expressão alegre e inclinando a cabeça para não bater nos vaus, como havia feito durante tantos anos.
- Ah, o senhor já está aqui! - exclamou Mowett. - Bem-vindo!
Jack se sentou em uma cadeira que Mowett colocou na borda da comprida mesa e justo em frente de Butcher, seu convidado de honra, que se achava sentado a sua direita. Era habitual ver a longa sala dos oficiais abarrotada, com quatro comensais muito juntos de ambos os lados da mesa e um em cada extremo e, ademais, a muitos serventes caminhando de um lado para outro ou atrás de suas cadeiras, como Killick, que se encontrava atrás de Jack, e Padeen Colman, atrás de Stephen com as costas encurvada. Também era habitual aquele ambiente, já que na Surprise todos eram sempre muito hospitaleiros. A conversa estava tão animada e havia tanta alegria que nem sequer a chegada de um capitão de navio podia pôr-lhe fim.
- Nós o estávamos esperando para comer a sobremesa, senhor - disse Mowett. - Enquanto isso, o senhor Butcher falou adivinhações, algumas muito engenhosas. A última, que não pudemos adivinhar, foi: O que é o que é que nunca sai de moda?
Jack tentou responder com alguma agudeza, mas não lhe ocorreu nenhuma tão pouco tempo depois de julgar tantos homens que iam perder a vida, assim que negou com a cabeça olhando para os outros com afeto e interesse. De distintos pontos da mesa se fizeram várias sugestões, mas ninguém acertou a resposta.
- Não, cavalheiros - disse Butcher. - Não adivinharão nunca, ainda que seja algo muito própio de homens. O que nunca sai de moda é ter filhos bastardos, ah, ah, ah!
Na fração de segundo que transcorreu antes de que Jack começasse a rir a gargalhadas, gargalhadas mais ruidosas do que requeria a ocasião, notou que todos os oficiais lhe dirigiam o olhar com uma expressão de preocupação e apoio. Todos riram com ele, e suas fortes risadas agradaram a Butcher e surpreenderam ao alto guarda-marinha norte-americano, que ouvira as adivinhações do cirurgião ao longo de dez mil milhas e da primeira vez havia pensado que eram muito ruins. Butcher, animado, perguntou:
- O que disse um tipo que bateu o nariz contra uma porta apesar de ir com os braços estendidos?
Mas a chegada da sobremesa o impediu de continuar. A sobremesa, um cachorro manchado{7} era o favorito de Jack e o primeiro pudim de sebo realmente brilhante e saboroso que comia desde que passara ao norte do trópico de Capricórnio. Não obstante, Jack teria dado cinco libras para poder jogá-lo por um embornal ou metê-lo em um bolso envolto em um lenço. Precisava de uma férrea determinação para tragar toda aquela massa sob o olhar de aprovação de Mowett - que cortara para ele um extremo, uma das partes mais untuosas -, e a do dispenseiro da sala dos oficiais, que havia supervisionado o cozimento.
Por sorte, pouco depois arrumaram a mesa e começaram os brindes. Em um deles cantaram Esposas e namoradas, e ainda que ao redor da mesa se ouviu a conhecida frase "e oxalá que não se encontrem nunca" em tom humorístico, surpreendentemente quase nenhum daqueles homens que estavam na última etapa de sua viagem deixou de se comover. Talvez o vinho pode ter influído, mas não em todos os casos. Jack não havia bebido e, contudo, se emocionou tanto ao se recordar de sua casa depois de um dia horrível e entre as numerosas idéias que ferviam em sua cabeça, que decidiu que só poderia comportar-se devidamente com os oficiais e os convidados se bebesse uma taça com cada um deles; contudo, não considerou a antiguidade mas a ordem no sentido inverso aos ponteiros do relógio.
- Senhor Mowett, bebamos uma taça de vinho à sua saúde e à das musas. Senhor Butcher, bebamos à sua saúde e à das margens do Potomac.
Allen, o veterano oficial de derrota da Surprise, que era um excelente marinheiro, não se sentia a vontade nas reuniões formais e costumava permanecer calado e retraído, pelo que ninguém gostava de se dirigir a ele, mas nessa tarde tinha a cara vermelha de satisfação. Respondeu ao convite de Jack com uma profunda inclinação de cabeça, encheu sua taça até a borda e, depois de dizer em tom afável que recebesse todo seu afeto, bebeu até a última gota. Ao lado de Allen estava sentado Honey, um ajudante de oficial de derrota a quem Jack nomeara tenente provisoriamente, e quando Honey terminou de explicar o que significava ser um lorde inglês ao homem que estava sentado de seu lado, Jack lhe chamou e bebeu com ele. Depois que a garrafa girou ao redor da mesa, Jack disse:
- Senhor Winthrop, brindemos pelas damas de Boston.
Adams, o contador, era o seguinte. Era um homem feliz e nesse momento estava radiante de alegria porque a carne de porco, a bezerra, o pão, as velas, o tabaco, o rum e a roupa dos marinheiros já estavam perfeitamente armazenados a bordo. Quando ia se servir do vinho, Jack o interrompeu:
- Bebamos, senhor. Vejo nessa taça a luz do Todo-poderoso, que descobre a alta traição. Vamos acabar com ela.
O brinde com o senhor Martin poderia ter sido muito semelhante, mas Jack respeitava muito os hábitos como para fazê-lo assim. Depois de esvaziar seu copo, encheu outro e disse:
- Killick, leve isto para o senhor Maitland e diga-lhe que vou beber à sua saúde.
Maitland, outro tenente interino, nesse momento era o encarregado da guarda na coberta. O seguinte era Howard, o tenente de Infantaria da Marinha cuja cara estava tão vermelha como sua casaca e cujo corpo já não admitia nem mais uma gota de vinho, ainda que fosse óbvio que o desejasse. O último de todos estava sentado à esquerda de Jack, e a este disse:
- Doutor Maturin, bebamos uma taça de vinho à sua saúde.
Havia bastante ruído, pois na mesa se ouviam três animadas conversas simultâneas, e Mowett e o senhor Allen tiveram que tirar Stephen de suas meditações, sobre coisas tristes, por desgraça, para que ouvisse o que o capitão lhe propunha.
- Uma taça de vinho? Quer beber uma taça de vinho comigo? Claro! Ao senhor, senhor, para que não ocorra nada de novo e para que tenhamos sorte em nossa viagem.
Era evidente que pensava que necessitariam de sorte, e suas palavras teriam feito tremer a todos se o tenente de Infantaria da Marinha não houvesse escolhido esse momento para escorregar da cadeira e cair debaixo da mesa, onde ficou imóvel e com um sorriso petrificado, como em estado de coma.
Pouco depois começaram as despedidas e os norte-americanos foram transportados para seu baleeiro vazio onde retumbava o eco. Ali arrumariam seus pertences para empreender a viagem de regresso ao seu país no barco sueco com bandeira branca.
No camarote, enquanto Stephen e Jack afinavam seus instrumentos para passar outra noitada com o almirante, Jack disse:
- É uma bobagem afirmar que o vinho muda o estado de ânimo. Eu bebi com todos os que estavam na mesa e me encontro tão melancólico como um gato castrado e tão sóbrio como um juiz.
- É verdade que está sóbrio, Jack?
- Bem, é possível que em algum breve fragmento dê as notas um pouco mais rápido do que o habitual, mas tenho a mente lúcida, e um exemplo disso é que não penso correr o risco de arruinar a minha carreira pelo prazer de dizer a esse velho raposa o que penso das execuções no domingo.
- Como vejo que sua mente não está perturbada, escute-me, Jack: esta tarde o secretário há cometido um ato estúpido e inapropiado ao informar-me de que, ao que parece, o Spartan, o barco corsário que perseguiu Tom Pullings, zarpou de New Bedford há cinco dias. Provavelmente o almirante lhe dirá, mas talvez lhe convenha sabê-lo agora.
- Que há zarpado esse demônio? - perguntou Jack, e a raiva se refletiu em seu semblante. - Então talvez possa matar dois pássaros com um tiro, talvez possa escapar dessas condenadas execuções e tenha a oportunidade de capturar um barco corsário. Killick, Killick! Diga ao senhor Mowett que venha. Mowett, talvez nos façamos ao mar amanhã com a subida da maré em lugar de na semana que vem. A fragata está pronta para zarpar?
- Só faltam chegar um barco abastecedor com rum, dois com açúcar e outro com um pouco de lenha.
- Então, quando tudo estiver a bordo, conceda licença a um número razoável de marinheiros para que desçam a terra e voltem amanhã ao meio-dia; mas deve ter suficientes marinheiros sóbrios para tirar adequadamente a fragata daqui se tivermos que zarpar pela tarde, quando suba a maré. Potanto, a menos que receba outras ordens, tem que estar preparado para recolher âncora enquanto minha falua empreenda o regresso amanhã. Quero pelo menos um grupo de marinheiros sóbrios para desdobrarem as velas e prenderem as âncoras, e não deve ter nem uma só mulher a bordo. Espero que o julgamento termine antes que a maré mude, ainda que eu duvide.
- Seria improcedente que tentasse influir de alguma maneira nas decisões de um conselho de guerra - disse o almirante quando finalizou o primeiro trio, enquanto se passavam as partituras e os pãozinhos de Barbados uns para os outros -, mas confio em que os senhores, cavalheiros, tomem amanhã uma resolução, qualquer que seja. Se o julgamento tiver que continuar até a semana que vem, grande parte de seu efeito se perderia.
- Sim, senhor - afirmou Jack. - Eu também confio nisso. Desejo com toda minha alma que termine logo, porque, com sua permissão, queria zarpar pela tarde com a mudança da maré. O senhor Stone me disse que o Spartan saiu de Bedford há cinco dias e acho que poderia encontrá-lo deste lado das Açores se os ventos forem favoráveis e, por suposto, se não perco nem um segundo.
- Gostaria se pudesse encontrá-lo. Os colonos nos apresentam queixas constantemente ao governador e a mim porque os barcos corsários estão arruinando esta ilha, e o Spartan é o pior. Mas, Stone também lhe disse que leva caronadas de quarenta e duas libras? Tinha a esperança de poder mandar o Harrier e o Diligence para capturá-lo, mas nunca posso prescindir dos dois ao mesmo tempo e nenhum é tão potente para lutar sozinho contra ele. Inclusive o senhor o acharia um poderoso adversário se chegasse a enfrentá-lo num combate. Uma bala de quarenta e duas libras pode ocasionar um enorme brecha nas balizas de um barco como o seu. Me desculpe, doutor, por ficar falando de assuntos que só interessam aos marinheiros e impedir-lhe de desfrutar da música. Peço que me perdoe. Vamos tocar o Dittersdorff.
O Dittersdorff era uma peça esplêndida, e quando Jack e Stephen regressavam para a Surprise por entre suaves ondas à luz da lua, ainda ressoava em seus ouvidos. No dia seguinte pela manhã Jack ainda recordava a melodia enquanto esperava no castelo de popa para subir em sua falua; contudo, esqueceu-a de repente quando viu que se içava uma bandeira rapidamente no mastro do navio insígnia.
- Sabem o que significa isso? - perguntou aos guardas-marinhas, seis garotos que haviam se reunido ali para participar da cerimônia que se realizava quando ele descia pelo costado, seis garotos que ele havia levado a bordo de seu barco quando eram crianças e que ainda não haviam deixado de ser.
- Não, senhor - responderam dois guardas-marinhas que estavam mudando a voz e quatro com voz aguda. - Não, senhor, nunca vimos.
- Os senhores são um corja de marinheiros de água doce muito pouco observadores. Viram-na ontem e anteontem, e essa visão tão desagradável não é fácil de esquecer: a bandeira do Reino Unido no tope desse mastro significa que um conselho de guerra vai administrar justiça. Senhor Boyle, diga ao doutor que se não estiver aqui dentro de cinco segundos não poderá ir na falua. Senhor Mowett, seria conveniente que Jemmy Bungs descesse a terra e arrumasse alguns dos tonéis velhos que já não servem para simular uma carga na coberta e, ademais, umas cinqüenta jardas da aniagem com que se forram os barris de açúcar. Pode gastar dez libras.
Stephen chegou correndo com uma torrada na mão, desceu apressadamente até a falua e subiu nela. Jack lhe seguiu com solenidade entre os apitadas dos apitos e quando a falua zarpou, pensou: "Espero que esta seja a última vez. A sessão vai ser espantosa".
Foi a última vez e a sessão foi espantosa, muito pior do que esperava. Quando se desimpediu a sala, depois de que os prisioneiros fizessem em vão suas últimas declarações - em geral irrelevantes, ainda que algumas realmente penosas -, os cinco membros do tribunal se dispuseram a emitir o veredito. Ao mais jovem, Painter, cabia dar sua opinião primeiro. Nunca havia tomado parte de um conselho de guerra, e lhe perturbava a idéia de que sua sentença pudesse acabar com a vida de um homem. Deu voltas e voltas no assunto, mas Stone e Goole acabaram com seus escrúpulos e de forma pragmática, indicando-lhe que conforme a lei não tinha escolha; quando se realizou a votação formal, disse "culpado" depois de cada nome, ainda que sem convencimento e com desânimo. Stone, o assessor legal, estava inclinado sobre a mesa escrevendo com rapidez: "… acreditam que foi demostrada a veracidade das acusações… sentenciam a todos e cada um deles a morrer enforcados a bordo de um barco de sua majestade, no momento e no lugar…". Depois levantou a vista do documento e, com o rosto impassível e afirmando com a cabeça, entregou-lhe aos membros do conselho para que o assinassem. Era um documento tão horripilante que nenhum deles gostou de assiná-lo, nem mesmo Goole. E gostaram menos ainda da fase seguinte, na qual os acusados voltaram a entrar; depois que os assistentes guardaram silêncio, quando só se ouviam os sons habituais do navio e o distante grito de "Faxineiros, faxineiros, a popa! Me ouviram?", o assessor legal leu o documento com voz serena e forte para que cada um, entre inumeráveis fórmulas legais e repetições, ouvisse claramente a sentença ditada contra ele.
Aquela fase foi espantosa. Jack se despediu a toda pressa de Goole e dos outros e subiu para o convés justo no momento em que o encarregado dos sinais, que estava no castelinho, dobrava a bandeira que havia anunciado o julgamento. Então olhou ao longe, semicerrou os olhos para protegê-los dos deslumbrantes raios do sol que se refletiam no mar, viu que a Surprise já se estava movendo a âncora de barlavento e ouviu o agudo som do pífano que acompanhava os giros do cabrestante.
Stephen Maturin esperava por Jack junto na escada do costado com a mesma expressão solene e triste; enquanto o capitão se aproximava, dizia ao mais velho dos ajudantes do senhor Waters: "Três gotas a cada hora e, se for possível, continue com a quinina amanhã". Depois desceu em silêncio e subiu na falua.
- Pelo bombordo - falou Jack a Bonden.
No momento em que a falua se abordou com a fragata, Jack subiu rapidamente pelo costado, olhou para a proa e a popa para se assegurar de que tudo estava em ordem e disse:
- Senhor Mowett, ice as bandeiras de sinais para enviar ao navio insígnia a mensagem "Permissão para abandonar a esquadra".
CAPÍTULO 3
De não fosse pela possibilidade de encontrar-se com uma corveta ou uma fragata norte-americana ou com um barco corsário, a última etapa de sua viagem teria sido muito triste: era a última viagem da Surprise porque ia ser levada definitivamente para o desmache. Seus oficiais e seus marinheiros, que formavam uma tripulação muito unida, poderiam dizer sem faltar à verdade que era ainda uma das mais rápidas embarcações da Armada de sua classe se fosse bem governada, que suas balizas estavam em excelente estado, que navegava bem de bolina, que era saudável e que nela reinava a harmonia. Não obstante isso, também era verdade que a haviam construído aproximadamente em 1780 e que desde então as fragatas eram construídas muito maiores e tinham canhões muito mais potentes. A Surprise havia se tornado antiquada e não podia lutar contra uma moderna embarcação norte-americana nem contra um barco de linha. Ainda podia combater em igualdade de condições contra alguns barcos franceses, mas estes raras vezes saiam dos portos, e com as únicas embarcações das armadas de outros países com quem podia lutar era com as corvetas. Mas capturar uma corveta não dava prestígio, ainda que não consegui-lo trazia a desonra. Todos na Surprise depositavam suas esperanças em apresar os barcos corsários que prejudicavam o comércio da Grã-Bretanha e inclusive dos países neutros do Velho e do Novo Mundo, sobretudo o tristemente célebre Spartan. Embora, aprisionar um barco corsário, por muito potente que fosse, não significava alcançar a glória, mas era algo digno de elogio, realmente digno de elogio. Se não encontrassem outro oponente melhor, isso serviria para terminar sua missão com dignidade. Por outro lado, nenhum barco de guerra público ou privado podia comparar-se com um abundante mercante, tendo em conta somente a vulgar e tangível ganância, mas o Spartan não era nada desprezível, já que por ser muito veloz e ter sido construído pouco tempo atrás em um excelente estaleiro, o Almirantado poderia comprá-lo para a Armada desde que não tivesse muitos danos. Ademais, para cada tripulante aprisionado davam como recompensa cinco libras, e, conforme diziam, o Spartan levava uma tripulação numerosa.
Eram razões suficientes para procurá-lo com mais empenho do que o de costume, apesar de que muitos pensavam que a sorte havia abandonado a fragata ou, o que dá no mesmo, o seu capitão. Assim achavam principalmente os marinheiros que foram pescadores ou baleeiros, pois muitas vezes viram que de dois capitães com a mesma experiência e a mesma habilidade, que pescavam nas mesmas águas e com os mesmos apetrechos, um regressava ao porto com os porões cheios e o outro não. Conforme eles, tudo dependia da sorte de cada homem, que era uma qualidade - ou seja, uma influência - às vezes constante, tanto para o bem como para o mal, e outras tão variáveis como a maré, uma maré cujas subidas e descidas obedeciam a leis que as pessoas comuns não podiam entender. Alguns homens que haviam tripulado a fragata durante mais tempo, que estavam unidos ao seu capitão por laços mais fortes e que foram marinheiros de barcos de guerra desde o início de sua carreira eram da mesma opinião. Se bem que os tripulantes não pensavam o mesmo da sorte e, em alguns casos, opinavam de forma totalmente contrária, a maioria acreditava que tinha pouco ou nada que ver com a virtude, o vício ou a amabilidade. Para eles a boa sorte não era algo merecido mas um dom, como a beleza de uma mulher jovem, e portanto, independente da classe da pessoa a que enfeitava. Pensavam que do mesmo modo que um cabelo muito encrespado e outras coisas podiam fazer perder a beleza, determinados tipos de ações, como mostrar-se orgulhoso, gabar-se de ter êxito ou desprezar as tradições, podiam trazer má sorte. Outro indício de mau agouro era levar pastores a bordo, e apesar disso ali estava o senhor Martin. O reverendo Martin, um homem bondoso, amável e simples, não considerava humilhante ajudar ao doutor na enfermaria, escrever uma carta formal para qualquer marinheiro ou ensinar a ler aos guardas-marinhas, mas não deixava de ser um pastor, e isso ninguém podia negar. As facas com cabo branco davam muito má sorte, e os gatos também; contudo, a viagem começara com uns e outros a bordo. Mas coisas como essas e inclusive mostrar um profundo desprezo pela tradição naval não podiam se comparar com levar um Jonas a bordo, e em Gibraltar embarcara um Jonas na pessoa do senhor Hollom, um ajudante de oficial de derrota de trinta e cinco anos. Ainda que fosse lógico supor que a morte de Jonas acabaria com a má sorte, isso não havia ocorrido. Sobre a fragata caiu uma maldição quando Horner, o condestável, matou Hollom e a senhora Horner no arquipélago Juan Fernández porque eram amantes, e apareceu enforcado em seu camarote vários dias depois perto da costa do Chile. Alguns pensaram que a maldição desapareceria depois de ter jogado pela borda o cadáver do condestável metido em sua maca, à qual haviam costurado as bordas, junto com duas balas de canhão aos pés, mas outros jamais acreditaram nisso. Quando alguém objetou que a Surprise recuperara muitos barcos, Plaice, o mais velho e respeitado dos marinheiros que proferiam maus augúrios, disse que sim, mas que os barcos recuperados, ainda que fossem bem-vindos, não podiam ser considerados verdadeiras presas. Acrescentou que o último o haviam pegado na jurisdição do almirante Pellew, o que imediatamente reduzira o butim da desafortunada fragata e seu desafortunado capitão em oito mil coroas, oito mil condenadas coroas, uma soma que apenas podia imaginar, e que se isso não era uma maldição que explicassem para ele, Joseph Plaice, o que era. Acrescentou que provavelmente o doutor, que nunca se equivocara ao cortar com um bisturi ou uma serra ou ao usar um trepano - ao dizer isto tocou-se no crânio, onde tinha incrustada uma moeda de três xelins à qual haviam dado forma abobadada com um martelo para cobrir o buraco que Stephen lhe havia feito em alto mar durante uma viagem -, perdera o seu último paciente, o cirurgião do Irresistível, o que não só era um motivo de tristeza para ele como também uma prova irrefutável de uma maldição, e acrescentou que para comprová-lo só tinham que olhar para trás. Depois perguntou que outra coisa que não fosse uma horrível maldição poderia ter levado a desonra do capitão até a mesmíssima Ashgrove Cottage, onde estava a senhora Aubrey e talvez também sua mãe, a senhora Williams. A maioria dos tripulantes falavam da sorte e de que a fragata a havia perdido. Alguns e outros trocavam opiniões na cozinha durante a guarda de prima ou de meia, depois de serem substituídos; nos cestos das gáveas, ou no castelo, enquanto costuravam ou remendavam sua roupa tranqüilamente, mas todos os marinheiros que participavam nessa conversa haviam servido a Jack desde que recebera o comando de um barco pela primeira vez e lhe acompanharam quando ficara em terra em tempo de paz ou quando não dispunha de nenhum barco. Quando Jack e Stephen eram um par de acomodados solteiros, contrataram só marinheiros para que atendessem Melbury Lodge, a casa de ambos, e depois do matrimônio de Jack, Preserved Killick, seu servente, Barret Bonden, seu timoneiro, Joseph Plaice, o primo de Bonden, e dois ou três marinheiros a mais tinham ido viver com ele. Esses homens sabiam exatamente como era Ashgrove Cottage, pois haviam limpado o solo, haviam pintado a madeira e poliram o latão como se de um barco se tratasse; e, ademais, como era lógico, conheciam toda a família, desde a senhora Williams, a sogra do capitão, até George, seu filho mais novo. Contudo, o que Ashgrove Cottage significava agora para eles, e também para Jack, era Sophie Aubrey.
Todos a admiravam com devoção e, sobretudo, tinham um respeito quase místico por ela. Sophie era, sem dúvida, respeitável, e também amável e bela, muito bela, mas como eles nunca haviam estado em contato com mulheres amáveis e respeitáveis, a haviam elevado a um nível possivelmente superior ao que lhe correspondia e a consideravam digna de veneração. Ademais acreditavam que se parecia (ainda que fosse improvável) com sua mãe, a senhora Williams, uma mulher gorducha com o cabelo escuro e a cara vermelha, de temperamento violento e polêmica, uma dessas mulheres que faziam a virtude muito pouco atrativa. Quando a senhora Williams suspeitava que lhe roubavam ou considerava que lhe faltavam ao respeito ou quando alguém partia sem permissão, elevava tanto o tom que parecia ter chegado ao limite que a voz feminina alcança, mas não era mais que uma ilusão, porque quando se informava de que um homem ou uma mulher havia cometido uma infidelidade, sua voz superava qualquer limite e seus gritos perduravam como o burburinho de um distante arroio. Sophie, em troca, nunca brigava nem gritava com eles, e tampouco ameaçara a despedir-lhes nem lhes condenara de por toda a vida, mas se parecia com sua mãe em uma coisa, só uma: não tolerava em absoluto as relações ilícitas. Ainda que ter bastardos estivesse na moda, a senhora Aubrey não o aprovaria nunca.
- Sim - disse Bonden -, bem sabe Deus que foi uma desgraça. Ela não pode ter deixado de reparar nesse mascarão, por mais escuro que fosse. Foi uma desgraça. Um acha que pode afastar-se do caminho reto de vez em quando sem que lhe joguem isso na cara vinte anos depois. Foi uma desgraça. Mas isso não significa que tenha caído uma maldição sobre a fragata, mas que o capitão agora não tem sorte.
- Pode dizer o que queira, Barret Bonden - replicou Plaice -, mas sou mais velho que você e digo que sobre a fragata caíu o que chamamos um…
- Calma, Joe - disse Killick. - Os nomes atraem as coisas, sabia?
- Que? - perguntou Joe, que estava meio surdo.
- Que os nomes atraem as coisas, Joe - repetiu Killick, e pôs um dedo sobre os lábios.
- Oh! - exclamou Joe pensativo. - É verdade, companheiro.
Ainda que Plaice e alguns de seus companheiros estivessem certos de que havia razões para ter medo e todos sabiam que o fantasma do condestável seguia a esteira da fragata, a maioria deles não tinha medo nem se sentia triste. Reconciliavam o irreconciliável, talvez com mais facilidade que os homens de terra adentro, e como a fragata parecia destinada ao fracasso, buscavam com empenho a vítima seguinte, o próximo êxito.
Com empenho e também com alegria, pois apesar de que, como dissera Plaice, obteriam oito mil coroas a menos porque teriam que dividir com o almirante o último barco recuperado, receberiam parte dos outros onze doze avos e, além disso, não lhes tirariam o maldito doze avos que obtiveram pelos barcos anteriores. Por isso, mesmo descontando os exorbitantes honorários do procurador e outros gastos derivados dos trâmites legais, calculavam que cada marinheiro simples obteria um butim de cinqüenta e três libras, treze xelins e oito peniques; e cada marinheiro de primeira - quase todos os tripulantes da Surprise eram marinheiros de primeira -, a metade dessa quantidade, uma magnífica soma. Não obstante, isso não lhes impedia de ambicionar mais, muito mais. O desejo da maioria deles era chegar a ter dinheiro suficiente para montar uma taberna, porém, na realidade, não havia quase nenhum que não desejasse conseguir dez coroas a mais jogando sobre o cabrestante para divertir-se em Fayal ou em qualquer outro lugar dos Açores onde fizessem escala.
Mas os Açores estavam muito longe e tudo fazia prever que iam permanecer em calmaria durante muito tempo, já que poucos dias depois da Surprise sair de Bridgetown, o vento amainara. Desde que Jack começou sua carreira naval, essa era a primeira vez que não tentava desafiar a natureza, pois apesar de ter desdobrado enormes pirâmides de velas - das sossobres até as alas inferiores -, não as molhava com a mangueira nem com baldes de água para poder percorrer umas poucas jardas a mais por hora, e tampouco ordenava que jogassem os botes na água para rebocarem a fragata durante os períodos de calmaria. A fragata navegava devagar rumo nordeste ou quase nordeste, conforme o vento permitia, e o capitão caminhava devagar de uma ponta a outra do castelo de popa dando dezessete passos desde a grade de barlavento até o coroamento, de modo que quando dava cem voltas havia percorrido quase uma milha. Ia de uma ponta a outra, passando pela frente dos galinheiros situados detrás do leme e da contemplativa cabra Aspasia, que havia permanecido na coberta suportando um terrível frio e furiosos ventos, mas que agora desfrutava da luz do sol com os olhos fechados e movendo sua barba de cima abaixo. Às vezes percorria mentalmente a distância entre Portsmouth e Ashgrove Cottage e ainda que visse o branco caminho, os campos e os bosques, pensava com angústia muito mais freqüência em seus complicados assuntos, tanto nos legais como nos financeiros, e na previsível atitude de Sophie depois de ter conhecido a Sam. Com relação aos assuntos legais, não tinha sentido que se esforçasse para resolvê-los até que falasse com seus advogados, já que por não ter recebido notícias de sua casa, não contava com mais dados do que no início da viagem. Com respeito aos financeiros, acreditava que se resolviriam graças a Deus, com as dez mil libras que as presas lhe proporcionariam. Talvez não bastassem para saldar todas suas dívidas se as coisas se complicaram, mas abririam um caminho, um largo caminho por onde sair delas. Quanto a Sophie, os dias em que se achava mais otimista pensava que não tinha nenhum motivo para se preocupar, já que naquela época tão distante ainda não a conhecia e, por isso, não lhe havia prometido fidelidade. As reflexões com respeito à reação de Sophie quase sempre apareciam entre as que fazia sobre hipotecas e leis; e às vezes as precediam, não só porque Jack amava muito a sua esposa, mas também porque as mulheres virtuosas lhe infundiam tanto temor como aos seus companheiros de tripulação. Qualquer um poderia calcular quanto temor Sophie lhe infundia pelo número de vezes que pensava "Ela não está ressentida" ou "Talvez sinta simpatia por Sam". Quanto à senhora Williams, pensava que se alguma vez lhe falasse do caso, ela lhe pediria aos gritos, como se se dirigisse a alguém que cometeu uma falta, que não voltasse a mencioná-lo, pois do contrário não haveria paz em sua casa.
Os primeiros dias, dias dourados em que quase o vento não soprava, não os passara angustiado, nem um pouco. Algumas manhãs, quando a fragata, com as velas flácidas e carregadas de orvalho, refletia-se na brilhante superfície do mar calmo, Jack se jogava na água da borda fazendo a imagem em pedaços e se afastava nadando para livrar-se do ruído provocado pelos duzentos marinheiros que corriam para fazer suas tarefas ou para tomar o café da manhã. Flutuava acariciando com as mãos o infinito e diáfano mar e olhava para a abóbada celeste já iluminada. De repente o sol aparecia no horizonte pelo leste e pouco a pouco as velas se inundavam de uma resplandecente cor branca e o colorido do mar adquiria um azul sem nome, o que lhe enchia de satisfação.
Também lhe produziam satisfação muitas outras cisas. O mar dos Sargaço estava esse ano mais ao leste que o habitual, mas a fragata avançou muito devagar por seu extremo ocidental, levemente para o norte do trópico de Câncer; Jack olhava entusiasmado como Stephen e Martin, do bote governado pelo infinitamente paciente Bonden, fuçavam aquela massa de algas em busca de algum exemplar e regressavam a bordo radiantes de alegria com uma inverossímil coleção.
Ademais, Jack estava orgulhoso dos guardas-marinhas. As circunstâncias lhe obrigaram, contra sua vontade, a aceitar somente seis guardas-marinhas, alguns dos quais não eram muito eficientes porque viajavam em um barco pela primeira vez. Mas como era um capitão consciencioso e todos os guardas-marinhas eram filhos de oficiais da marinha, decidiu fazer tudo o que pudesse por eles; não só contratara um mestre, como havia assegurado que o mestre, o pastor, ensinaria-lhes latim e grego. Sofria muito por sua deficiente educação e desejava que aqueles garotos fossem pessoas instruídas, que soubessem diferenciar tão bem o ablativo absoluto do infinitivo como um navio de um bergantim, e por essa razão apoiava os esforços que o senhor Martin fazia dando-lhes ânimos: algumas vezes depois de atar-lhes a um canhão com o traseiro para o ar, mas mais frequentemente convidando-lhes para um magnífico café da manhã em seu camarote ou enviando ao seu camarote um pudim de sebo. Talvez os resultados obtidos não fossem todos os desejados, já que em situações difíceis era prioritário adquirir conhecimentos práticos de náutica, e provavelmente não sairiam do camarote de guardas-marinhas da Surprise para assombro do mundo inteiro nem um Bentley nem um Porson, mas Jack estava convencido de que aqueles guardas-marinhas eram os mais instruídos de uma fragata desde que estava na Armada. Durante a guarda de meia subia amiúde para o convés, chamava a quem estivesse de guarda e lhe pedia que desse um passeio com ele e ao mesmo tempo que declinasse um nome em latim ou conjugasse um verbo em grego.
Jack pensava: "Que jovens mais estupendos! Têm os conhecimentos básicos de náutica e além disso sabem aplicá-los, sobretudo Calamy e Williamson, que são os mais antigos. E com tanto latim e grego… acredito que nem suas própias famílias os reconhecerão". Provavelmente era verdade, porque além do latim e do grego haviam conhecido bem a natureza nas altas latitudes do hemisfério sul: o frio intenso, a falta de provisões e as primeiras etapas do escorbuto. Durante a aprendizagem, Boyle quebrou três costelas; Calamy ficou calvo, mas havia voltado a sair um pouco de penugenzinha, ainda que não tinha um aspecto muito gracioso; Williamson perdeu alguns dedos dos pés e os lóbulos das orelhas porque haviam congelado; Howard deixara de crescer e a falta de dentes fazia parecer mais velho; Blakeney e Webber deram um estirão e mudaram a voz, além de que seus pulsos e tornozelos se alargaram. Também aprenderam o que eram o assassinato, o adultério e o suicídio, ainda que ao que parece nada disso lhes afetava, porque ainda eram alegres e frívolos, estavam dispostos a competir uns com os outros subindo para o alto da exárcia como macacos, levantavam-se tarde pela manhã e descuidavam-se de seu trabalho quando encontravam alguma diversão.
Outro motivo de satisfação para Jack era que a fragata tinha muitas provisões, já que a carregaram até os topes em Bridgetown por ordem expressa do almirante. O contramestre, o carpinteiro e ele tiveram que refletir tanto sobre se usavam ou não umas poucas braças de cabo ou um par de pranchas que agora lhe produzia uma agradável sensação caminhar entre fardos, tonéis, potes de tinta e de breu fedorento, cabos e velas novas e madeira recém cortada. Ademais, havia comprado provisões com seu dinheiro para poder oferecer de novo almoços com certa solenidade para seus oficiais, seguindo a tradição.
Mas a principal causa de satisfação de Jack era, certamente, sua fragata. Considerava que nunca navegara melhor e que os tripulantes nunca trabalharam tão bem juntos nem com tanto afinco. Provavelmente era a última etapa de sua última viagem, mas já sabia há muito tempo que ela estava condenada a morte; essa idéia lhe produzira uma grande tristeza, assim que agora valorizava muito mais suas excelentes qualidades e cada dia que passava abordo.
Como costumava ocorrer no mar, cada dia tinha seus particularidades, mas durante o lento avanço do início da viagem, antes de que a fragata encontrasse o vento do oeste, todos foram iguais. Limpar as cobertas na primeira hora da manhã, bombear água, levar as macas para o convés, chamar os marinheiros para desjejuar, limpar a coberta principal, chamar os marinheiros para os distintos trabalhos matutinos, fazer as medições de meio-dia, chamar os marinheiros para almoçar, repartir o grogue, chamar os oficiais para almoçar com um toque de tambor, chamar os marinheiros para os trabalhos vespertinos, repartir mais grogue, passar revista, disparar os grandes canhões cujas labaredas e rugidos atravessavam a penumbra… essa imemorial seqüência, marcada pelas badaladas, havia se restabelecido muito cedo e se repetia com tanta freqüência que parecia que nada poderia rompê-la. Essa era a forma de navegar à qual todos estavam acostumados, e como o encarregado do aprovisionamento de Bridgetown cumprira com seu dever, também sua dieta era a que estavam acostumados. Já não lhes serviam salsichas de delfim como as que tentavam enganar seus estômagos nem carne de pingüim mal defumada, mas a habitual sucessão de alimentos: carne de porco salgada, ervilhas secas, carne de vaca salgada, mais ervilhas secos, mais carne de porco salgada… Devido a isso, ainda que os dias parecessem iguais, podiam ser distinguidos de imediato pelo odor que saía das panelas da cozinha.
Navegar assim, muito devagar, sob um céu perfeito e para o horizonte, que sempre ficava a cinco milhas de distância, nunca mais perto, fazia conceber a falsa idéia de que o tempo era eterno; contudo, todos os que estavam a bordo, exceto os loucos de Gibraltar e um nativo daquela região que era muito ingênuo, sabiam que ele não era em absoluto. Por isso, já estavam preparando um galhardete, um esplêndido galhardete de seda mais comprido que a fragata, que içariam quando sua missão terminasse e todos os tripulantes recebessem seu pagamento e passassem a ser membros de uma comunidade unida por fortes laços de indivíduos isolados. Além disso, como todos pensavam que tanto se a fragata ficasse em algum porto como se a levassem para o desmache devia ter um aspecto digno, passavam muito tempo embelezando-a. A fragata sofrera muitos danos ao sul do cabo Horn, e tudo o que o senhor Mowett obtivera com grande esforço em Bridgetown, além da folha de ouro da melhor qualidade e dos dois potes de tinta vermelha que Jack comprara com seu própio dinheiro, não bastaria para deixá-la em perfeito estado.
Como a Surprise tinha muita categoria e seu primeiro tenente era muito perfecionista, os trabalhos para o embelezamento e a confecção do galhardete teriam sido longos e difíceis em qualquer circunstância, mas eram muito mais agora porque no convés havia uma carga e um comprido pedaço de aniagem para cobrir os costados. Queriam que a fragata parecesse com um mercante. A carga consistia em tonéis vazios, que no fim poderiam ser rompidos e usados como lenha; e os pedaços de aniagem com portalós desenhadas e atados entre si se colocariam sobre as verdadeiras portalós de forma que se notasse que as pintadas eram falsas, em especial quando se moviam com o vento.
Os tripulantes da Surprise estavam acostumados aos estratagemas do capitão; e gostavam muito desse disfarce porque parecia obra de piratas e guardava relação com a idéia do caçador caçado, ou por caçar. Ainda que esperassem encontrar o Spartan - um barco corsário com canhões de longo alcance -, a várias centenas de milhas de distância, todos trabalhavam dia e noite desenhando as portalós uma e outra vez até que ficassem somente um pouco mais largas e inclinadas, de modo que qualquer predador com a vista aguda se vangloriasse de descobrir o disfarce e se aproximasse da fragata sem duvidar nem um instante. Por outro lado, não protestavam por ter que descer a cada tarde para a bodega a carga do convés quando terminavam de passar revista e faziam preparativos de combate.
Esse momento do dia era o favorito de Jack, quando se sentia mais orgulhoso da tripulação. Sempre deu muita importância à artilharia, e investiu tempo, esforço e pólvora comprada de seu própio dinheiro e havia logrado que os artilheiros disparassem com tanta precisão como era possível com os canhões disponíveis.
A Surprise tivera diferentes armamentos conforme as épocas. Em uma ocasião praticamente só tinha caronadas, canhões curtos e leves que lançavam uma bala muito pesada com uma pequena quantidade de pólvora, e como eram vinte e quatro de trinta e duas libras e oito de dezoito, cada bateria disparava uma descarga de 456 libras, maior que a que uma bateria de um navio de linha disparava. Apesar de que as caronadas, chamadas "as demolidoras", não podiam lançar as balas muito longe nem com muita precisão, eram eficazes quando se lutava penol a penol se não viravam ou provocavam fogo nos costados por seu curto tamanho; contudo, Jack não as considerava apropiadas para combater no meio do oceano. Ademais, nos combates penol a penol preferia abordar a disparar descargas, e em um combate a distância, preferia fazer disparos muito precisos e sucessivos com as baterias. Nesse momento, a fragata levava no convés vinte e dois canhões de doze libras e na bodega dois bonitos canhões longos de nove libras, dois canhões de bronze que lhe presenteara um turco agradecido e que com tempo aprazível se podiam colocar atrás das portalós situadas debaixo do convés - as que se usavam nas perseguições -, ou substituir as duas caronadas do castelo. Também tinha seis caronadas de vinte e quatro libras, mas como inclinavam muito quando havia mar grosso, costumavam ficar guardadas na bodega. Mas eram os canhões, os autênticos canhões, os que realmente agradavam a Jack. Com eles só era possível disparar uma descarga de 141 libras, mas sabia muito bem que se um quintal de ferro caísse em um barco no lugar adequado, podia causar-lhe terríveis danos; e como muitos outros capitães, por exemplo seu amigo Philip Broke, estava convencido de que era verdade o que Collingwood dissera: "Se um barco puder disparar com precisão três descargas em cinco minutos, nenhum inimigo resistirá ao seu ataque".
Mediante duras e compridas horas de custoso treinamento, reduzira essas cifras a três bombardeios em três minutos e dez segundos. O treinamento era custoso por uma razão óbvia: nesse assunto, como em muitos outros, o Almirantado discordava do capitão Aubrey e, de acordo com as normas, só lhe entregava uma insignificante quantidade de pólvora além daquela destinada às batalhas. O restante tinha que ser comprado com seu dinheiro, e ao preço atual: cada bombardeio custava quase um guinéu.
Depois de deixar para trás os últimos sargaços, as práticas de cada tarde com os canhões desapareceram durante algum tempo, pois os tripulantes só os pegavam, simulavam que seguiam os passos para dispará-los e depois os guardavam. Contudo, em uma quinta-feira que Sophie completava anos, seu esposo amaria celebrá-lo fazendo o céu retumbar. Além disso, como as condições atmosféricas eram adequadas porque o vento do sudoeste soprava com força e as ondas eram moderadas, esperava que os tripulantes batessem o recorde.
Esse recorde, como a maioria, era em certa medida artificial. Muito antes de que o tambor chamasse para passar revista, os tripulantes já sabiam que iam disparar de verdade porque haviam ouvido o capitão dizer ao primeiro tenente que preparasse uma balsa com três barris de carne vazios e uma bandeira; como a simulada batalha não lhes pegava de surpresa, não iam agir com espontaneidade, mas se propuseram firmemente a tentar bater o recorde. Os que manejavam os precisos canhões longos de bronze, por exemplo, passaram boa parte de seu tempo livre polindo as balas de nove libras com um martelo; deviam ser completamente redondas e ter a superfície tão lisa como um vidro porque não restava folga nos canhões quando se introduziam neles. Quando terminaram os preparativos, quer dizer, quando o tambor terminou de soar e os tripulantes tiraram o disfarce da fragata, derrubaram os anteparos para que ficasse um grande espaço sem obstáculos de proa a popa, espalharam areia e água no convés, taparam com pedaços de lona molhada as escotilhas por onde se descia para a santa-bárbara e ocuparam seus postos. Os integrantes das brigadas de artilheiros que tinham tranças longas - quase todos, porque na Surprise as tradições eram mantidas - dobraram-nas até que ficassem muito curtas e depois as ataram; outros tiraram a camisa; e outros se cobriram a testa com um lenço para absorver o suor. Cada um se colocou em um lugar bem conhecido e todos permaneceram em silêncio, com o cabo de um moitão, um atacante, um esfregão, um estojo com pólvora, um calço, uma alavanca, uma prancha ou uma bala a mão. Os guardas-marinhas se situaram detrás do grupo de canhões que tinham sob seu cargo; e os tenentes, atrás de suas divisões. Todos observaram que o cúter azul rebocava a balsa pelo mar e, enquanto isso, ouvia-se o burburinho do vento entre a exárcia; a fumaça saía das tigelas com as mechas de combustão lenta e se propagava pelo convés.
Em meio ao silêncio ouviram-se claramente no castelo as palavras que Jack dirigiu ao oficial de derrota:
- Senhor Allen, vire vinte graus para bombordo, por favor.
Depois acrescentou:
- Senhor Calamy, desça correndo à coberta inferior, apresente meus respeitos ao doutor e peça-lhe que me empreste seu relógio.
A Surprise virou para bombordo. Imediatamente reapareceu o cúter e seus homens soltaram o que levavam a reboque. A tensão aumentou e enquanto alguns artilheiros cuspiam nas mãos outros ajustavam as calças. Então chegaram as palavras rituais:
- Silêncio de proa a popa! Destrinquem os canhões! Nivelem os canhões! Tirem os tapa-bocas! Tirem os canhões!
Nesse momento se ouviu por toda parte o estrondo que provocaram dezoito toneladas de metal movendo-se com rapidez.
- Carreguem! Apontem e disparem começando da proa!
O alvo balançava no cintilante mar além do alcance das caronadas. Bonden, o chefe da brigada do canhão número dois (o canhão de bronze de estibordo), inclinou-se sobre ele e olhou por cima do cilindro. A elevação era a adequada, mas para que estivesse apontado corretamente, fez sinais com a cabeça para os artilheiros que estavam de um lado com a manivela e para os que estavam do outro com a alavanca, todos eles de costas para o costado do barco e preparados para mover um pouco aquela tonelada e meia de bronze. O longo canhão, situado atrás da larga portaló da proa, podia girar muito para frente, e Bonden podia ver perfeitamente o alvo pela mira; contudo, como estava tão desejoso como o capitão de bater o recorde, não queria disparar até que não estivesse apontado o canhão de sua direita, o número quatro, que chamavam de Assassinato Premeditado. Durante alguns momentos de tensão a fragata subiu duas vezes com as ondas e depois, junto ao Assassinato Premeditado, ouviu-se o burburinho:
- Quando queira, companheiro.
Bonden estendeu o braço para pegar a brilhante mecha e introduziu o extremo rosado no ouvido enquanto arqueava seu corpo para que o canhão pudesse passar por baixo dele quando retrocedesse para o interior da fragata. Seus companheiros prestaram muito pouca atenção ao ensurdecedor estampido, à língua de fogo, aos pedaços de bucha que voavam pelo ar, à fumaça e ao som vibrante das retrancas, porque já tiveram que segurar firmemente o canhão, limpá-lo, introduzir a carga e atacá-la e colocar a bala e a bucha, e depois, cheios de satisfação, voltaram a sacá-lo com estrépito; prestaram muito pouca atenção ao estalido do canhão número quatro, que foi mais forte, e que foi seguido imediatamente pelo do número seis, chamado de Fortachón, e sucessivamente os dos outros até os últimos, os do número vinte e dois e do número vinte e quatro, chamados Billy o Saltador e Azul Marinho, que se encontravam respectivamente no dormitório de Jack e na grande sala de sua cabine; e prestaram muito pouca atenção à densa fumaça branca que formava redemoinhos por causa do vento. Mas seus movimentos, apesar de serem muito rápidos e precisos, eram quase mecânicos, e por isso a maioria deles tiveram tempo de ver qual era a trajetória da bala disparada por seu canhão e também o penacho de água que formava ao cair justo diante do alvo.
- Por um cabelo, por um cabelo - murmurou Bonden, inclinando-se sobre o canhão novamente carregado e apontado, e introduziu nele rapidamente a resplandecente mecha.
Jack estava de pé no castelo de popa com o relógio de Stephen (um magnífico Breguet com segundeiro) na mão e estirou o pescoço para poder ver por cima da fumaça produzida pela nova descarga da bateria. A primeira havia coberto o alvo de espuma, pois nem uma só bala havia caído muito longe dele; a segunda foi melhor, já que fez saltar para o ar dois barris e quase toda a balsa.
- Muito bom, mais que muito bom! - exclamou, e quase quebrou o relógio ao golpear a borda com ele, mas imediatamente se acalmou e o entregou a Calamy, seu ajudante, dizendo -: veja quando dispara exatamente o número vinte e quatro.
Então saltou da carreta de uma caronada para os amantilhos baixos para ver onde caiam as balas da descarga seguinte. A bateria começou a disparar quando o lado da fragata onde ele se encontrava subiu quase até as cristas das ondas, e terminou antes que houvesse descido meio emborno. Ouviram-se ensurdecedores estampidos e se formou uma massa de fumaça pela qual atravessavam rajadas de luz, e muito além dessa massa puderam ver-se as balas cairem muito próximas, formando um grupo, o melhor grupo que Jack jamais vira antes. Todas foram disparadas com precisão e destruiram por completo o alvo. Jack desceu para o convés de um pulo e olhou para Calamy, que, sorrindo, disse:
- Três minutos e oito segundos, senhor, com sua permissão.
Jack riu satisfeito.
- Conseguimos! - exclamou. - Mas ao que dou mais valor é à precisão. Qualquer tonto pode disparar com rapidez, mas esta descarga foi letal, letal.
Caminhou ao longo da fileira de canhões junto aos quais os alegres e suados artilheiros gritavam. Felicitou efusivamente aos chefes das brigadas do Víbora, do Anthony o Louco, do Buldogue e do Capricho de Nancy por sua rapidez, mas lhes disse que se disparassem mais rápido os canhões, todos disparariam ao mesmo tempo, ou seja, a descarga seria simultânea, e que isso não era conveniente porque as balizas não suportariam e se despedariam. Acrescentou que preferia que as balizas continuassem intactas para o caso de se encontrarem com o Spartan, um potente barco corsário.
Viram o Spartan por três vezes. Três dias depois da excelente prática, pouco antes do amanhecer, o senhor Honey, o oficial de guarda, mandou um serviola ao tope de um mastro como de costume, pois esse era o melhor momento do dia para encontrar a um inimigo, quer fosse poderoso ou débil. Durante a noite se havia formado uma espessa névoa, e ainda restavam alguns fragmentos que se moviam com o vento quando o serviola, dirigindo a voz para o convés, gritou:
- Barco a sotavento!
- Onde? - perguntou Honey, que não podia ver nada do convés.
- Pelo través, senhor - foi a resposta. - Mas já não posso vê-lo. Acho que é um navio e que está aproximadamente a uma milha de distância.
- Estou seguro de que é o Spartan - disse Davies o Lerdo para seu companheiro, enquanto os dois esfregavam a coberta com uma enorme pedra com um forro que chamavam de "o urso". - Pode acreditar no que digo: John Larkin viu o Spartan. John Larkin sempre foi um tipo de sorte.
Honey mandou o guarda-marinha de guarda chamar Mowett. Jack girou em sua maca e pela clarabóia ouviu um velho marinheiro italiano dizer para seu companheiro:
- John Larkin viu o Spartan.
Mowett acabava de descer do cesto da gávea, ainda vestido com a camisa de dormir e inchada pelo vento, quando Jack chegou ao convés. Então, com o rosto radiante, exclamou:
- Senhor, agora mesmo ia mandar pedir-lhe permissão para mudar o rumo e começar a navegar. Há um barco a sotavento e Larkin acha que é o barco corsário.
Vários marinheiros que estavam imóveis com os esfregões na mão começaram a rir.
- Muito bem, senhor Mowett - disse Jack. - Pode trocar o rumo e talvez também possa convencer aos homens de guarda de que façam um esforço e limpem a coberta. O rei não lhes paga por sua cara bonita, e seria lamentável se tivéssemos que enfrentar um barco corsário, se é que ele é, no meio desta sujeira, e que alguns estrangeiros vissem que isto parece com Sodoma e Gomorra.
Era um barco corsário, mas não era o Spartan. Na realidade, não era um barco estrangeiro mas o Prudence, um bergantim de doze canhões procedente de Kingston. Tão logo o calor do sol dissipou a névoa, o barco mudou a orientação do velacho e se pôs em pairo. Depois, quando a Surprise já estava muito próxima, o capitão foi até ela com a documentação do barco.
O capitão subiu pelo costado e cumprimentou aos oficiais que estavam no castelo de popa ao estilo da Armada. Tinha mais ou menos a idade de Jack e vestia uma simples casaca azul. Era evidente que não estava a vontade, e a princípio Jack pensou que a causa era que temia que lhe tirassem tripulantes a força, mas seguiu igual depois de que Jack lhe assegurou que não tinha necessidade de mais marinheiros. Após um tempo, Jack compreendeu que isso se devia a temer ser reconhecido e não ser bem respeitado.
- No início achei que nunca o havia visto - disse Jack a Stephen essa tarde quando ambos afinavam seus instrumentos. - Pensei assim até que me deu uma pista quando disse: "Logo reconheci a Surprise porque tinha o mastro maior de um barco de trinta e seis canhões". Então me dei conta de que era o mesmo Ellis que havia visto meia dúzia de vezes no Cabo e que estava ao comando do Hind, um barco do rei de dezoito canhões. É uma pena que tenha descido de categoria, como os homens que mencionei quando falava ao pastor Martin dos barcos corsários. Mas este caso é diferete, pois acredito que ademais foi julgado por um conselho de guerra por causa de um feio caso, de que pagou algumas faturas com dinheiro da Junta Naval. Mas quando recordei quem era falamos amigavelmente, e me disse muitas coisas sobre o Spartan. Temo que é pouco provável que o encontremos neste lado dos Açores.
- O senhor Allen, o oficial de guarda, mandou lhe dizer que há quatro barcos a trinta e cinco graus pela amura de estibordo.
Era muito difícil entender Howard devido à sua falta de dentes, mas finalmente Jack compreendeu a mensagem e respondeu:
- Sim, são mercantes que fazem o comércio com as Antilhas. O capitão corsário me falou deles. Lancem dois foguetes azuis e façam uma salva para barlavento.
O canhão disparou, e depois se ouviu como o atavam de novo, mas Jack continuou sentado com o violino nas mãos.
- Está desanimado, meu amigo - disse Stephen em tom amável, depois de esperar um bom momento.
- Oh, sim! - exclamou Jack. - Peço que me desculpe. Eu me perguntava se aquele maldito lagopo{8} encontrou com Sam em Ashgrove Cottage, ainda que realmente não tem importância.
- Creio que não - disse Stephen, e então tocou um fragmento.
Jack respondeu com uma variação, e depois ambos seguiram tocando variações, às vezes separados e às vezes juntos, e assim continuaram até que por fim terminaram com uma muito agradável que tocaram em uníssono. Nesse momento chegaram as torradas com queijo.
- Acho que na Inglaterra chamam os grous de garças, e que há muitas outras diferenças de vocabulário - disse Stephen depois de um tempo. - Diga-me, por favor, o que é um lagopo para um inglês.
- Então uma dessas mulheres avinagradas, dominantes e discutidoras que um encontra frequentemente. Lady Bates é uma delas, e a senhora Miller também. Acredito que as chamam assim pela mulher de Mahoma; ao menos isso é o que me disse meu pai quando eu era menino.
Se o general Aubrey tivesse se dedicado a estudar etimologia, ainda que isso seria uma presunção, não teria feito nenhum mal para seu filho. Mas decidira entrar na política como um membro da oposição, representando vários condados miseráveis, e como era um homem pouco razoável mas tinha uma inesgotável energia, com seus constantes e veementes ataques aos ministros conseguiu que inclusive seus amigos conservadores fossem olhados com desconfiança e criticados. Agora estava unido aos membros de pior reputação do Partido Radical, não porque queria que se fizesse uma reforma no Parlamento, mas porque tinha a absurda idéia de que os ministros decidiriam dar-lhe um bom posto, por exemplo, o de governador de uma colônia, para que fechasse a boca. Ademais, pensava que alguns de seus companheiros radicais sabiam muito bem como fazer dinheiro e estava desejoso, ou melhor ávido, por riquezas.
Stephen conhecia o pai de Jack, e o achava um pai realmente daninho; por sua mente passou a idéia de que gostaria que se afogasse com o próximo bocado que comesse. Deu uma torrada para Jack em silêncio e pouco depois ambos tocaram uma endecha que Hempson, o melhor arpista do mundo, havia lhe ensinado na cidade de Cork quando tinha cento e quatro anos.
O segundo Spartan o viram desse lado dos Açores. Estava a barlavento, justo no lugar onde havia começado a perseguir o Danaë quando Pullings o comandava. Tal como Pullings dizia em sua carta, o barco era tão parecido com um navio de guerra português que um marinheiro experiente que o visse de uma milha de distância juraria que ele era. Era igual em tudo: a bandeira, os uniformes dos oficiais e inclusive um crucifixo dourado, que refletia os raios do sol, no castelo de popa. Um marinheiro experiente cairia no truque inclusive se o houvesse visto a meia milha de distância. Por fim o capitão Aubrey e o senhor Allen, que haviam permanecido um tempo de pé com os telescópios dirigidos para o barco que se aproximava e rodeados do agradável odor das mechas de combustão lenta, assim como os marinheiros que estavam preparados para tirar as lonas que cobriam os canhões carregados, lançaram uns para os outros um eloqüente olhar com uma mistura de surpresa, decepção e alívio.
- Graças a Deus que não disparamos - disse o oficial de derrota.
Jack assentiu com a cabeça e gritou:
- Apaguem as mechas, apaguem as mechas! Senhor Mowett, mande içar o galhardete e a bandeira!
Então chegou do barco uma voz que cumprimentava em português com tom mal-humorado.
- Por favor, senhor Allen, responda - disse Jack, pois o senhor Allen falava bem o português. - E peça ao capitão que venha almoçar comigo.
O capitão português não comeu com Jack, mas aceitou cortesmente suas desculpas. Os dois tomaram em sua cabine uma garrafa de excelente vinho do porto branco, e Jack se informou de que no porto de Fayal não estavam nem o Spartan nem nenhum outro barco de tamanho similar. Além disso, o capitão português disse que alguns o haviam visto nessas águas, mas que era provável que houvesse rumado para a costa guineana, ou que estivesse mais ao leste esperando a lua cheia para "encontrar algum dos abundantes mercantes ingleses que faziam o comércio com as Antilhas para capturá-lo". Ao dizer isso riu, pois gostava dos butins tanto como qualquer outro homem.
Não faltava muito tempo para a lua cheia, e à medida que a lua crescia o vento amainava, assim que quando a Surprise viu o terceiro Spartan, ao leste de Terceira, o Atlântico parecia um lugar seguro: havia poucas ondas e o vento era muito suave. O barco apareceu como muitos costumam fazê-lo, atrás de um banco de névoa matutina. Encontrava-se um pouco mais ao norte, navegando com as velas amuradas para bombordo, como a fragata, e do castelo de popa se podia ver o casco pela amura de estibordo. No início os tripulantes não lhe deram importância. Os da guarda de estibordo, que estavam com as pernas vermelhas devido à água com que limpavam o convés estar muito fria, diziam que estavam fartos de ouvir falar do barco corsário, da maldita carga que estava no convés e da condenada aniagem dos costados.
Jack, que olhava para o mar desde o cesto da gávea, tinha a mesma opinião, mas pensava que era conveniente ordenar que não guardassem as macas e que os marinheiros que descansavam cobertas abaixo ficassem ali até nova ordem.
Quando a luz se fez mais intensa, alegrou-se de ter dado essa ordem. Posto que acabava de ver um autêntico navio de guerra português, o disfarce do Spartan (pois esse era realmente o barco corsário) lhe pareceu menos convincente. Por outro lado, o barco que estava ali perto coincidia em tudo com o que Pullings descrevera. Era um barco alto, com vergas e paus muito grossos, indubtavelmente muito rápido e capaz de disparar uma potente descarga, ao menos em um combate penol a penol. Havia virado para bombordo quando seus homens viram a Surprise, o que para Jack pareceu muito significativo, pois isso lhe permitiria situar-se em uma posição vantajosa. Se fosse um verdadeiro navio de guerra português, cuja obrigação fosse fazer uma inspeção, não se daria a esse trabalho, não iniciaria uma manobra que a essa distância e com o vento tão frouxo só poderia se concretizar depois de várias horas de meticuloso trabalho.
Jack ordenou mudar de bordo para tomar um rumo mais conveniente, e enquanto desjejuava no cesto da gávea não deixou de observar o barco com grande atenção. Quando tomava a última xícara de café, já estava convencido de qual era a identidade do barco, e essa convicção passara por si só para os tripulantes. De vez em quando mandava mais tripulantes cobertas abaixo para reduzir o número de marinheiros visíveis e que fosse semelhante ao dos que tripulavam um mercante. Mas lhe era difícil fazê-lo, já que necessitava de bastantes marinheiros para desdobrar as velas e puxar das braças para fazer girar as pesadas vergas tão rápido como o barco corsário, que, como logo notou, tinha excelentes tripulantes.
Os marinheiros da guarda de bombordo, que a princípio ficaram encantados que os da guarda de estibordo trabalhassem no convés, molhando-se com água fria enquanto eles seguiam dei;tados em suas macas, começaram a inquietar-se, e quando viram que já eram muitos os que haviam descido, quase se desesperaram. Na coberta inferior, naturalmente, não havia portalós nem escotilhões, e os marinheiros só podiam se informar pelo que seus alegres companheiros contavam através da escotilha de proa.
Na Armada Real, a disciplina variava muito de um barco para outro. Em alguns, apenas dois homens trocassem umas palavras tranqüilamente, informava-se isso ao sargento de Infantaria da Marinha e os homens eram considerados descontentes, ou inclusive possíveis promotores de um motim. Na Surprise não ocorria nada nem remotamente parecido com o que sucedia nesses desafortunados barcos, mas não se aprovavam as compridas conversações durante as horas de trabalho, sobretudo quando se estavam realizando operações delicadas. Por essa razão, a informação que se recebia pela escotilha era escassa e fragmentária, mas como eram dadas por outros marinheiros, faziam um resumo bastante exato de tudo o que ocorria.
As duas embarcações estavam uma diante da outra, e ainda que nessa zona se alternavam ventos de distintos quadrantes, geralmente soprava o vento do oeste; e havia indícios de que logo, talvez no dia seguinte, seria mais intenso. O objetivo dos dois capitães era situar seu barco em posição vantajosa, quer dizer, ao oeste do outro, onde o vento permitiria navegar mais facilmente e poderiam iniciar o combate no momento e nas condições que estimassem mais convenientes, em vez de ser perseguidos indefinidamente pelo adversário e correr sempre o risco de que as balas de canhão derrubassem os paus ou o vento os desprendesse. Mas os dois queriam que parecesse que a manobra não era premeditada, senão que fazia parte da rotina diária em uma aprazível viagem, pois desse modo seu adversário não suspeitaria que corria perigo e lhe deixaria passar tranqüilamente pelo seu lado.
Isso dava uma nova dimensão à dura corrida, a passo de tartaruga, para barlavento. Tinha que desdobrar todas as velas possíveis para tomar inclusive as mais débeis rajadas de vento, mas a Surprise estava em desvantagem, pois, como tinha que parecer um prudente mercante, não usava mastaréus em cima dos mastaréus, como os barcos de guerra, e seus homens não podiam guindá-los sem levantar suspeitas nem, potanto, desdobrar as sobrejoanetes, as sossobres, as monterillas e as bujarronas volantes, muito úteis quando soprava um vento como aquele, que a certa altura do mar se movia mais rápido do que rente a ele.
Por fim foram colocados os mastaréus e suas vergas com as grossas velas correspondentes, mas entretanto o Spartan, aproveitando que o vento havia rolado para noroeste, aproximou-se meia milha a mais da Surprise.
Isso não agradou em absoluto a Jack, que não desejava que sua fragata e seus homens sofressem feridas ou morressem por causa do ataque de um barco corsário. Tinha a esperança de ficar em bastante vantagem em relação ao Spartan virando para oeste e pensava que depois, quando o barco corsário estivesse a sotavento e ao alcance dos canhões, tiraria o disfarce da fragata, dispararia pela frente da proa do barco e esperaria sua rendição. E se a rendição não se produzisse imediatamente, faria um par de descargas com uma bateria. Mas se o avanço do barco corsário continuasse, se colocaria de tal maneira que a fragata ficaria a sotavento, e isso provocaria uma refrega terrível, já que as caronadas de quarenta e duas libras do Spartan entrariam no jogo e a fragata sofreria estragos, e muitos de seus homens podiam ficar feridos.
Jack olhava atentamente as pequenas ondas que quebravam a lisa superfície do mar e traziam consigo o Spartan, e de repente se inclinou sobre a grade do cesto da gávea para dar algumas ordens. A Surprise virou lentamente para estibordo e avançou em direção ao Spartan até que este ficou ao alcance de suas balas; então pegou o vento que acabava de abandonar o barco e virou perfeitamente. Durante dez ou quinze minutos a Surprise avançou com tanta rapidez que a água borbulhava junto aos seus costados, enquanto o Spartan, com as velas flácidas, apenas podia mudar de bordo.
Quando também a fragata ficou sem vento, restabeleceu-se o equilíbrio. Os marinheiros contaram isso aos companheiros que estavam abaixo, e Doudle o Rápido, um velho e experiente marinheiro, disse que agora poderiam seguir combatendo dando orçadas, e acrescentou que quando a fragata navegava de bolina não tinha rival e que ao final do dia conseguiria ultrapassar qualquer embarcação.
De fato, os barcos seguiram combatendo dando orçadas, e os tripulantes ajustavam as velas com grande cuidado para navegar de modo que a quilha formasse o menor ângulo possível com a direção de qualquer vento que soprasse, e tensavam tanto as bolinas que vibravam produzindo um som agudo. Mas no combate havia muito mais que isso: os dois barcos se afastavam de sua posição, às vezes perigosamente, para buscar alguma das rajadas de vento que cruzavam o mar, com freqüência debaixo grossas nuvens. Ademais, os marinheiros faziam manobras enganosas, como mudar de bordo o leme para sotavento para pegar impulso e logo, quando todos esperavam em seus postos para mudar de bordo em redondo e as velas de proa golpeavam, como se os barcos estivessem a ponto de orçar, arriavam a bujarrona e o contrafoque para que retornassem à sua posição anterior. Sua intenção era que os tripulantes do outro barco perdessem tempo ao fazer a mesma manobra e pararem no momento em que as velas golpeavam, ao compreender seu erro; ou terminassem de mudar de bordo rapidamente e perdessem ainda mais tempo para regressar à posição original.
No final da tarde, uma tarde úmida na qual o calor era sufocante, cada capitão havia formado uma idéia sobre as qualidades de seu oponente. Jack estava convencido de que o outro capitão era sagaz, teimoso, inclinado a perpetrar todo tipo de enganos, e um excelente marinheiro. Ademais, pensava que, pelo menos quando o vento era fraco, o barco podia lutar com a Surprise quase em igualdade de condições. Não exatamente em igualdade de condições, pois a Surprise já avançara um quarto de milha para barlavento quando o sol começava a ocultar-se atrás do horizonte, devorando até os ventos mais fracos, e o mar parecia um vidro. Jack acreditava que o vento voltaria a soprar quando o sol se pusesse e a fragata poderia avançar mais, percorrer a milha que os separava (pois navegaram paralelamente até que o vento deixou de soprar) e situar-se de modo que o Spartan estivesse a sotavento; então pediria ao seu capitão que se rendesse. Mas para que isso ocorresse, o vento tinha que soprar de novo, e ainda que todos os tripulantes da Surprise, começando por seu capitão, assobiaram e arranharam os brandais, não conseguiram nada. Nada quebrava a superfície do mar, nem o salto de uma distante baleia nem o vôo de um peixe voador (ainda que no dia anterior agarraram meia dúzia deles no portaló) nem uma pequena onda formada pelo vento. Ambos os barcos permaneciam imóveis com a proa dirigida para o norte, e a Surprise se encontrava pela alheta de bombordo do Spartan.
- Pergunte ao doutor e ao senhor Martin se querem vir ver a calmaria - disse Jack ao seu timoneiro, que estava no cesto da gávea com ele. - Talvez se eles assobiassem poderiam mudá-la.
Quando Bonden desceu, teve dificuldade para dar a mensagem. Os dois cavalheiros haviam aproveitado a falta de movimento para espalhar pela sala dos oficiais suas importantes coleções de coleópteros de Brasil e da Polinésia. Infelizmente, Bonden pisoteou alguns exemplares e derrubou ao solo outros ao retroceder, e os dois cavalheiros, inclusive o pastor, responderam em tom mal-humorado que assobiariam e inclusive arranhariam os brandais como os adoradores de ídolos pagãos se lhe pedissem porque era indispensável, mas que a menos que o capitão assim o desejasse, rogavam que lhes desculpasse porque preferiam não largar os insetos agora.
- Bem… - disse Jack, sorrindo. - Era só uma…
Nesse instante se interrompeu e se pôs a olhar pelo telescópio.
- Estão usando vergas e estais para descer lanchas para a água - anunciou.
Alguns momentos depois a iole do Spartan caiu na água, e seus tripulantes pegaram um cabo que pendurava da proa e fizeram girar o barco até que uma de suas baterias ficou situada diante da Surprise; depois de uma breve pausa, o barco disparou uma de suas potentes caronadas. Jack viu o capitão apontar o canhão, que tinha a máxima elevação, e colocar do rabicho. A bala roçou a lisa superfície do mar e se aproximou da Surprise dando quiques. A trajetória era muito certeira, mas não chegou muito longe e se afundou no décimo quique, pouco depois do som do disparo chegar até a fragata. Era óbvio que o capitão do barco corsário ainda estava convencido de que a fragata era uma inocente embarcação, e era igualmente claro que amaria acabar com aquele assunto imediatamente, antes de que se afastasse mais por barlavento quando o vento começasse a soprar. Queria intimidar seu capitão não só com essa potente bala, senão também rebocando o barco até que a embarcação ficasse ao alcance de seus canhões; provavelmente depois tentaria abordá-la com os botes, que estavam preparados para descerem à água.
- Acima todos os marinheiros! - foi a ordem que Jack gritou com voz potente, e imediatamente os marinheiros que estavam abaixo abandonaram sua detestável inatividade.
Essa ordem foi seguida de outras em rápida sucessão, e Martin disse para Stephen:
- Como correm lá em cima! Quem são os que formam esses pequenos grupos do outro lado da chaleira?
- São exemplares duplicados para sir Joseph Blaine.
- Já mencionou a sir Joseph antes - disse Martin, olhando com inveja um exemplar de Dinastes imperator, pois ele só tinha dois -, mas me parece que não me disse quem era.
- Ganha a vida em Whitehall - disse Stephen -, mas o que ele gosta é da entomologia, e tem uma vitrina cheia de exemplares raros. No ano passado foi vice-presidente da Sociedade de Entomólogos. Eu lhe apresentarei da próxima vez que estejamos na cidade, pois espero ver-lhe quando cheguarmos ao porto.
Então, pensando naquele maldito cofre de latão com uma valiosíssima carga, cuja recordação lhe perseguia tanto adormecido como acordado, disse para si em tom enfático: "Amém, amém, amém".
- Joguem os tonéis pela borda! - ordenou Jack. - Tirem a aniagem dos costados! Senhor Mowett, quando vai baixar esse cúter?
- Imediatamente, senhor, imediatamente! - respondeu Mowett do corrimão.
Porém, pela primeira vez, os tripulantes da fragata não foram eficientes. Rompeu um parafuso de um moitão e o cabo que passava por ele enganchou e, apesar dos grandes esforços do contramestre, o cúter ficou pendurando de um só anel. Então os tripulantes, sem cerimônia, desceram o segundo cúter para água pela alheta. Enquanto isso, Jack notara com grande desgosto que, a certa distância ao norte, o rápido vento do oeste começava a cachear o mar. Quando o vento alcançou o Spartan, o capitão, agora cheio de desconfiança, ordenou mudar de bordo para o leste para que o barco o recebesse pela alheta de bombordo, e o barco virou rapidamente enquanto os marinheiros giravam as vergas com muito brio.
- Ei, os do cesto da gávea do maior, icem a bandeira e o galhardete pequeno! - gritou Jack. - Condestável, lance uma bala na frente da proa do barco; e se isso não o detiver, lance outra na gávea maior.
Na atual posição, o canhão de proa de estibordo era o único que poderia alcançá-lo, mas, de toda forma, Jack não ia usar a bateria desde o início, pois isso produziria mortos desnecessários e causaria danos ao barco corsário, o que não desejava porque depois teriam que passar dias fazendo nós e atando. Contudo, teria que usá-la se não se pusesse em pairo e se rendesse, e o único que necessitava para fazê-lo era mudar o bordo da fragata em setenta graus, algo muito simples sobre aquela superfície lisa como o cristal.
Era algo muito simples, mas não para Davies o Desajeitado. Havia entrado muita água no cúter azul porque os marinheiros o haviam jogado pela borda com extraordinária força, mas seus tripulantes não se importaram de se sentarem na água e haviam começado a remar furiosamente para avançar e pegar o cabo para rebocar a fragata. Davies, que era o primeiro remador, tinha que pegá-lo, e os outros tripulantes deram várias remadas para que ele conseguisse. Então Davies, com uma expressão feroz, um intenso brilho nos olhos e uma linha branca entre os lábios que contrastava com seu rosto escuro, levantou-se e, desobedecendo as ordens de Howard, pôs o pé na borda para puxar com força o cabo, e imediatamente o cúter se inclinou para um lado, encheu de água e afundou.
Poucos dos tripulantes do cúter sabiam nadar, e a situação se complicou porque outros marinheiros que tampouco sabiam caíram da fragata atrás deles. Quando conseguiram subi-los a bordo, alguns após bastante tempo, e a fragata terminou de mudar de bordo, o Spartan se afastara muito. Seu capitão havia visto o preciso e potente canhão de proa, a longa fila de canhões do costado recém descoberta e a repentina aparição no convés de um enxame de marinheiros, e não quis esperar para ter nenhuma prova a mais. Agora seus homens estavam colocando os botalós das alas de barlavento.
- Disparem alto! - ordenou Jack, que estava no castelo de popa jorrando água (acabava de salvar ao desafortunado Davies e ao jovem Howard pela terceira ou quarta vez desde que lhes conhecia). - Disparem alto e esperem para que a fumaça se dissipe entre uma descarga e outra!
As balas caíram bastante separadas na esteira do Spartan, e não muito perto.
- Guardem os canhões! - ordenou.
Os artilheiros lhe obedeceram olhando com nervosismo. Mas esse não era momento para recriminações, pois o Spartan já navegava a mais de cinco nós (avançava um cabo por minuto) e o vento, que agora era muito forte, avançava cada vez mais para o sul e estava a ponto de alcançar a Surprise. Jack observava com grande atenção em que direção o vento se movia sem prestar atenção em Killick, que estava silencioso pela primeira vez em sua vida e lhe estendia uma toalha, uma camisa seca e uma casaca. Então gritou:
- Soltem os palanquins do traquete!
Refletia sobre o modo de recuperar as milhas perdidas, pois não só o Spartan avançara muito rapidamente como também a Surprise estava a ponto de perder a vantagem que tinha. As primeiras rajadas de vento chegaram às sobrejoanetes e às sossobres da fragata, que virou em redondo, ganhou imediatamente velocidade suficiente para manobrar e começou a avançar quando o sol se ocultou, fazendo que sua esteira ficasse de cor vermelho sangue. Até esse momento navegara com um conjunto de velas quadradas e velas de estai que chegavam quase até o céu e quando teve o vento quase pela alheta, seus homens desdobraram as alas superiores e as inferiores, acrescentando uma manhosa à carangueja e, naturalmente, colocando as varredoras. Também colocaram pequenas velas debaixo das alas e no botaló da carangueja, puxaram da amura do traquete para o pescante de proa para tensá-la, soltaram a amura da maior e levaram o punho de barlavento para a cruz da verga.
Todos os tripulantes, desde o desgraçado Davies até o irreprochável Bonden, sentiam-se culpados, e lhes infundia temor o tom completamente neutro, sem pitada de mau humor, que Jack empregava ao dar as ordens para que aproveitassem até o mínimo impulso do vento, e também a falta de blasfêmias nelas. Caminhavam apressadamente de um lado para o outro em silêncio e com expressão angustiada, e quando Jack lhes ordenou que levassem as bombas de água até a cesto da gávea, para que dali molhassem as velas e estas se inchassem mais facilmente, bombearam com tanta força que os jorros chegaram além das sobrejoanetes, aonde geralmente era necessário levar a água em baldes com um moitão.
Em meio da penumbra dedicou todos seus esforços a conseguir que as velas ficassem perfeitamente orientadas e ajustadas, e pouco depois começaram a ouvir novos sons que acompanhavam a fragata: um contínuo som sibilante emitido por as inumeráveis bolhas que corriam pelos lados, bolhas produzidas pela grande onda que formava o talha-mar da proa, e o sussurro e o assobio que o vento, cada vez mais forte, produzia ao passar entre a exárcia. Logo a lua apareceu diante deles, e na luminosa vereda que formava seu reflexo, Jack viu o Spartan com grande quantidade de velame aberto, parecia um pássaro de grandes asas. Mas a distância que os separava havia se reduzido. Já não tinha tanta vantagem.
Jack deixou de apertar um pouco a grade, bocejou de fome e olhou para proa e para popa. A sotavento viu Stephen e Martin, que lhe sorriram como se quisessem conversar com ele.
- Chegaram tarde para ver a calmaria - observou Jack ao se recordar que lhes mandara buscar há muito tempo. - Agora sopra o vento do oeste com pouca força mas, se a sorte nos acompanhar, se converterá em um vendaval.
- Sentimos muito pela calmaria - disse Stephen -, mas achamos que gostará de ver nossos insetos. Pela primeira vez os colocamos uns junto dos outros, e são dignos de se ver. Cobrem o piso e toda a mesa, mas não permanecerão ali muito tempo porque os oficiais estão impacientes para jantar.
- Será um prazer - respondeu Jack, olhando por baixo da vela maior para a traquete, que estava muito inchada. - E se os oficiais me convidam para comer um pouco de pão com queijo, depois de ver os insetos, desde já, me alegrarei muito. Senhor Mowett, por favor, chame os marinheiros para jantar, mas em dois grupos; e diga a Killick que me traga uma capa de água, uma cadeira com braços e meu telescópio de noite. Já está orvalhando e as bombas d’água podem parar.
Nessa cadeira e envolto na capa passou a comprida noite iluminada pela lua, ainda que cada vez que soava o sino se levantava, ia para o corrimão até o castelo, subia no gurupés e se colocava entre a cevadeira e o velacho para olhar o Spartan pelo telescópio de noite. O barco mantinha sua vantagem, e possivelmente a estava aumentando. Era muito veloz e estava governado por um excelente marinheiro, mas Jack achava que não navegaria com facilidade quando fizesse mau tempo e que a Surprise o alcançaria se o vento do oeste soprasse com a intensidade com que às vezes fazia nessas águas, porque ele conhecia um modo de lograr que suportasse a pressão de uma grande quantidade de velame, sobretudo se o vento chegasse pela alheta. Por isso amarrava guindalezas e outros cabos mais finos aos topes dos mastros para conseguir que se mantivessem verticais, apesar de darem um horrível aspecto à fragata. Em qualquer barco essa pressão do velame arrancaria os mastros com os amantilhos, os estais e os contraestais.
A lua atravessou o céu limpo e as pálidas estrelas a seguiram na deviada seqüência. Na fragata os tripulantes fizeram as tarefas noturnas de rotina na mesma ordem de sempre. Fizeram a medição com a barquilha e à luz da bitácula apontaram na tabuinha os resultados, cinco nós e cinco nós e duas braças. Depois informaram qual era o nível de água na sentina, giraram o relógio de areia e tocaram o sino. Então o timoneiro foi substituído, e de um lado a outro da fragata se ouviu os sentinelas gritarem: "Tudo em ordem!".
Quando soaram as quatro badaladas da guarda de meia, o vento rolou para o norte e Jack conseguiu que a vela maior inflasse, mas, apesar disso, não se produziu nenhum mudança na situação e as duas embarcações continuaram avançando como se estivessem em um sonho interminável.
Pouco antes do amanhecer, quando a lua, já muito baixa, estava na popa e Marte brilhava no leste, e alguns marinheiros lançavam água do castelo com a bomba de proa para que os faxineiros limpassem, o forte odor do café interrompeu as reflexões de Jack. Quando entrou na iluminada cabine, olhou com os olhos semicerrados a coluna de mercúrio do barômetro e notou que não havia baixado, mas tinha a parte superior côncava, não convexa, assim que havia esperanças de que o vento soprasse com força. Killick lhe trouxe a cafeteira e torradas de pão de centeio velho, e depois lhe perguntou em tom suave e respeitoso se desejava algo mais.
- Nada mais no momento - respondeu Jack. - Suponho que o doutor não estará acordado.
- Oh, não, senhor! - exclamou Killick.
Stephen dormia muito mal, mas como não gostava de tomar soníferos por razões médicas e morais, costumava atrasar o momento de tomar qualquer pílula ou poção até as duas da madrugada, e por isso raras vezes se levantava antes das oito ou das nove.
- Quando ele se levantar, diga-lhe que eu gostaria que ele e o senhor Martin comessem comigo, se o tempo e o vento permitirem. E avise ao oficial de guarda que quero vê-lo. Senhor Allen - disse ao oficial -, vou dormir algumas horas, mas quero que mande me chamar enquando ocorra a mínima mudança, tanto no tempo como na perseguição.
Como havia anunciado que dormiria algumas horas, todos evitaram fazer ruído na parte que ficava detrás do mastro de mezena, e os faxineiros limparam o convés só com os silenciosos esfregões. Mas regressou ali na mudança da guarda e avançou a grandes passos para a proa para observar a presa na luminosa manhã. Estava quase igual, e a única diferença era que era iluminada pelo sol em vez da lua. Parecia ter adiantado um pouco, mas não mudara o velame que levava desdobrado, provavelmente porque tinha muito poucas velas que acrescentar, nem se desviara nem sequer cinco graus de seu rumo, que era nordeste quarta ao leste.
Durante a noite a perseguição foi muito parecida a um sonho; durante o dia, foi quase igual, pois ainda que agora os marinheiros sabiam que estavam em uma situação de emergência, em uma situação crítica (as bombas que estavam colocadas nos cestos das gáveas jogavam fortes jorros e os canhões de bronze de nove libras estavam no castelo preparados e apontados para a proa, e tinham ao lado os suportes cheios de balas), tinham muito poucas coisas que fazer. Devido ao vento ter se firmado, navegavam do mesmo modo que avançavam quando estavam sob a ação dos ventos alísios em direção ao o Cabo, sem tocar em nenhuma escota e nenhum cabo durante dias, e inclusive semanas. Mas quando estavam navegando com os ventos alísios, limpavam e pintavam a fragata, lavavam, faziam ou remendavam sua roupa, realizavam muitas práticas de tiro, passavam revista e assistiam aos serviços religiosos, enquanto que agora era mais conveniente que fizessem buchas e tirassem a ferrugem das balas. A Surprise avançava acompanhada do ruído de cinqüenta ou sessenta martelos, tão rápido como era possível graças ao cuidadoso movimento das braças e do leme, e não deixava de perseguir sua presa, que estava sempre na metade do caminho do horizonte.
Jack e seus convidados comeram acompanhados por esse ruído. Jack havia se lavado e barbeado depois de ter dado um cochilo, e se encontrava em excelente estado. A frustração que experimentara no dia anterior já era história passada, e não se sentira tão bem nem tão contente desde os horríveis dias em que o conselho de guerra celebrou o julgamento. Desfrutava da companhia de Stephen e Martin, pois, como nenhum dos dois nem remotamente eram marinheiros nem nada parecido, falavam com toda confiança porque não consideravam um capitão de navio um ser sagrado, o que lhe fazia sentir um grande alívio. Por outro lado, o barômetro estava baixando, o que era um inequívoco sinal de que o vento aumentaria de intensidade; e ademais, o fato de ouvir as marteladas durante a refeição indicava que tudo ia bem no convés. Estava perseguindo uma presa, seu barco estava em perfeita ordem e se aproximava uma tormenta: isso era realmente navegar, e por isso muitos homens se convertiam em marinheiros. Era verdade que a presença do pastor lhe coibia um pouco e que desde a aparição de Sam usava um tom meloso quando falava com ele, mas se sentia vital e deixou sua consciência de um lado para falar com ambos amigavelmente. Disse que estava quase seguro de que o barco corsário se dirigia para Brest, que era um dos portos onde se refugiava, e que esperava alcançá-lo muito antes de chegar a Ushant{9} e ao labirinto de arrecifes que a rodeava, mas que não estava certo de nada. Acrescentou que a presa não dera sinais de ter problemas, pois não havia jogado pela borda os canhões nem as lanchas, nem sequer a água, mas pelo brilho de seus olhos azuis, um intenso brilho própio de predadores, seus interlocutores compreenderam que em sua mente havia menos reserva e menos cautela frente ao destino do que mostrava. Martin disse que supunha que o fato dos marinheiros lançarem fortes jorros de água com as bombas na parte posterior das velas impulsionava a fragata e, potanto, aumentava sua velocidade.
- Não há dúvida disso - explicou Stephen. - Dryden, o príncipe dos poetas, disse: "Quando a virtude se une a um vento favorável / meus sinceros desejos ajudam a inchar as velas." E Deus sabe que nós temos muitas virtudes. Acredito que, ou bem todos deveríamos soprar a vela maior, ou alguém deveria soprá-la enquanto outros amarram um cabo na parte posterior da fragata e puxam ele para frente com tanta força como possam, ah, ah, ah!
Riu de sua própia idéia por alguns momentos, e enquanto ria (algo que não fazia usualmente), engasgou-se com uma migalha de pão. Quando se recuperou, viu que Martin estava falando a Jack da pobreza dos intelectuais. Dizia que Dryden morrera na miséria, que Spenser era ainda mais pobre e que Agrippa terminara seus dias em um asilo para necessitados. Poderia continuar falando durante muito tempo, já que o tema era inesgotável, se Mowett não tisse mandado avisar que avistado um grupo de barcos pesqueiros pela amura de estibordo. Ainda que essas embarcações careciam de importância militar, pois eram simples barcos pesqueiros procedentes de Vizcaya e do norte de Portugal que iam pescar nos bancos de bacalhau de Terra-nova, a aparição de qualquer embarcação no meio do oceano era um acontecimento. Amiúde Jack navegara cinco mil milhas por rotas bastante frequentadas sem ver nenhum outro barco. Quando a refeição terminou, propôs que tomassem o café no castelo para ver o espetáculo.
Killick não podia proibir que se trasladassem e, com uma expressão mal-humorada, serviu o café aos convidados em miseráveis jarras de lata, porque sabia o que eles eram capazes de fazer com as jarras de porcelana. Fez bem, porque quando as jarras regressaram estavam amassadas e, além disso, o encarregado da proa se queixou de que aparecera uma fileira de manchas marrons sobre a imaculada coberta. O vento ainda não aumentara de intensidade, mas durante o almoço haviam chegado até essas águas as ondas que começavam a se formar ao sul, e o violento balanço da Surprise quase sempre lhes pegavam desprevenidos.
Quando chegaram ao castelo, os barcos que iam na vanguarda da desagregada flotilha estavam justo diante do Spartan, e podiam ser vistas ao mesmo tempo uma imagem da paz, caracterizada pela lentidão e desordem, e uma da dura guerra: um desordenado grupo de barcos que se dirigiam lentamente para noroeste enquanto outros dois barcos atuavam com violência um contra o outro navegando tão velozmente como podiam para o leste, e que iam atravessar em grande velocidade aquele grupo.
Mais ou menos uma hora depois, os de Vizcaya desapareceram atrás do horizonte, levando consigo todas as reflexões filosóficas. Stephen e Martin desceram, mas Jack Aubrey ficou no castelo observando a presa, a enorme quantidade de velame que a fragata usava desdobrado e as mudanças do tempo. Estava preocupado com a colocação das velas, pois a fragata tinha a popa bastante afundada e pensava que isso poderia prejudicá-la se caísse uma tormenta.
- Senhor Mowett - disse quando voltou para a popa -, acho que deveríamos colocar aparelhos e descer as caronadas para a bodega, e depois preparar-nos para jogar pela borda a água dos tonéis mais próximos da popa, umas dez toneladas no total. E por favor, peça ao contramestre que tenha preparados vários tipos de cabos de reforço porque o barômetro está baixando e pode desatar uma tormenta. Vou ensinar aos guardas-marinhas como averiguar com um sextante se a vantagem da presa está aumentando ou não, e depois me deitarei um pouco.
Foi um acerto fazê-lo, pois quando a lua saiu começaram a chegar fortes rajadas de vento que se chocavam contra a cara redonda e insossa do mascarão e atravessavam as crescentes ondas. Mowett já ordenara arriar as alas inferiores quando Jack regressou ao convés, e a medida que a noite foi avançando, ordenou arriar mais velas até que a fragata ficou somente com as velas de capa, as maiores com alguns rizes e a gávea maior e o velacho rizados. Não obstante, o guarda-marinha de guarda dava cada vez com mais alegria os resultados obtidos com a barquilha: "Seis nós e meio, senhor, com sua permissão… Seis nós e duas braças…
Quase oito nós… Oito nós e três braças… Nove nós… Dez nós! Oh, senhor, está navegando a dez nós!".
Como as maiores estavam rizadas, Jack podia ver a presa desde o castelo de popa. Ele a via claramente à luz da brilhante lua, pois ainda que o vento soprasse do oeste e rolasse para o sul, havia poucas nuvens no céu e as poucas que havia eram como véus translúcidos. Apesar do mar ainda não estar muito agitado - as ondas eram pequenas, não da magnitude que costumavam ser no Atlântico -, a superfície estava salpicada de branco, e o Spartan parecia completamente preto inclusive quando a lua havia descido muito para o oeste e estava a certa distância de sua popa. Usava quase o mesmo velame que a Surprise e seus homens içaram a joanete de proa em duas ocasiões, mas tiveram que arriá-las nas duas vezes.
Jack pegava o leme a intervalos. A essa velocidade, as diversas vibrações que sentia quando segurava as cavilhas, tanto as produzidas pelo própio leme ao mover-se como as produzidas pela prancha e as cordas que o faziam girar, indicavam muitas coisas a respeito da fragata, como, por exemplo, se suportaria que soltassem um rizes a mais ou se o velame aberto exercia demasiada pressão, ou se era conveniente colocar uma bujarrona na parte central de um estai. Ainda que tenha falado muito pouco com os oficiais que sucessivamente se encarregaram da guarda - Maitland, Honey e o oficial de derrota -, a noite lhe pareceu curta. Quanto amanheceu foi tomar o primeiro café da manhã. O barômetro havia seguido descendo pouco a pouco, e, ainda que o vento não podia ser considerado um vendaval, era muito forte e provavelmente chegaria a ficar ainda mais. Então decidiu que ordenaria amarrar os cabos de reforço aos topes logo, assim que se terminassem de subir as macas e todos os marinheiros estivessem no convés.
- Perdoe, senhor - disse Mowett do umbral da porta -, mas o barco corsário tomou a dianteira e já tem as guindalezas amarradas aos topes.
- Ah, é? - perguntou Jack. - Maldito porco! Venha tomar uma xícara de café comigo para reanimar-nos, Mowett. Depois subiremos para a coberta, onde a virtude, unida ao vento favorável e a nossos sinceros desejos, ajudará a inchar as velas, ah, ah, ah! Isso é de Dryden, sabe?
Ao chegar ao convés, Jack viu que, efetivamente, o capitão do barco lhe antecipara e reforçara os mastros. Agora o barco tinha as gáveas muito inchadas e avançava mais rápido do que a fragata. A Surprise navegava a dez nós, enquanto que o barco navegava a onze ou mais e formava na proa uma grande onda que podia ver-se claramente a três milhas de distância.
- Que venham todos os marinheiros! - ordenou Jack.
Então na coberta inferior se ouviram os gritos: "acima, dorminhocos! Levantem-se e lavem-se! Levantem-se e lavem-se! acima, acima! Levantem-se e arrumem-se!".
Amarrar as guindalezas e outros cabos aos topes era uma operação tão simples que Jack se havia perguntado muitas vezes por que tão poucos capitães recorriam a ela quando fazia mau tempo. Mas como era uma operação que levava muito tempo, antes de que na Surprise estivessem amarrados e esticados os fortes cabos de reforço, o Spartan adiantara uma barbaridade. Seu casco já não era mais visto, salvo quando estava na crista de uma onda, e navegava a grande velocidade e com uma extraordinária quantidade de velame desdobrado. Observando-o pela luneta, de repente Jack pensou: "Se um barco pesqueiro passasse pela frente dele, ele o atravessaria de um lado ao outro".
Mandou os marinheiros desjejuarem em dois grupos e depois ordenou abrir mais velas cautelosamente, uma a uma. A velocidade da fragata aumentou e os inumeráveis sons que acompanhavam seus movimentos sofreram mudanças: subiram dois tons. Jack olhou pelo rabo do olho para o corrimão de barlavento e viu que todos os guardas-marinhas e muitos marinheiros da guarda de bombordo estavam comendo bolachas e riam satisfeitos porque navegavam a uma velocidade vertiginosa.
Também notou algo muito mais importante: que o vento aumentava de intensidade e seguia rolando para o sul. O vento continuou assim durante a guarda da manhã, e quando começou a soprar desde o sudoeste trouxe consigo nuvens baixas que passavam velozmente por cima do mar. O amanhecer fora cinzento e agora uma espessa névoa ameaçava cobrir tudo. No final da guarda, a Surprise recuperara uma das milhas que perdera (das duas embarcações, era a que navegava mais rápido entre o forte fluxo de ondas), mas Jack pensava que se não alcançasse o Spartan antes de que cair a noite, perderia seu rastro na escuridão.
Por outro lado, como o vento havia rolado, agora soprava na mesma direção das ondas, que eram cada vez maiores. Tanto o vento como as ondas açoitavam a fragata pela popa e faziam descer e subir alternativamente a proa e a popa quarenta e um graus quando os oficiais se sentaram à mesa com seus convidados, o capitão Aubrey e o guarda-marinha Howard. Ainda que todos os presentes haviam navegado em piores condições atmosféricas ao sul do cabo Horn, o tempo diminuiu o esplendor do banquete. Os oficiais queriam acolher ao capitão com tartaruga fresca e muitas outras delícias, mas como os fogos da cozinha haviam sido apagados cedo, assim que ferveu a carne de vaca salgada dos marinheiros, os alimentos haviam ficado mornos ou frios; contudo, o almoço incluía cabeça de porco em salmoura, um dos pratos favoritos de Jack, e pudim de melaço, que, conforme ele, era melhor comê-lo não muito quente.
- Ontem o senhor falava da miséria dos intelectuais - disse Stephen para Martin, que estava do outro lado da mesa -, mas nenhum de nós dois se recordou de mencionar ao pobre Adanson. O senhor sabe o que lhe ocorreu, senhor? - perguntou dirigindo-se a Jack. - Michael Adanson, o engenhoso autor de Familles naturelles des plantes, a quem todos devemos tanto, apresentou na Academia das Ciências de Paris vinte e sete longos volumes manuscritos com a classificação de todos os seres e substâncias conhecidos da natureza, mais outros cento e cinqüenta, repito, cento e cinqüenta, onde aparecem quarenta mil espécies ordenadas alfabeticamente e quarenta mil desenhos, mais um volume com um vocabulário de duzentas mil palavras com a correspondente explicação de seu significado, mais o relato de algumas de suas experiências, mais trinta mil exemplares dos três reinos em que se agrupam os seres naturais; e recebeu uma respeitosa ovação. Mas quando esse grande homem, em honra ao qual Linneo chamou ao baobá Adansonia digitata, foi convidado para ser membro do instituto da França, pouco antes de que eu desse uma conferência ali, não tinha nem uma casaca nem uma camisa nem sequer um par de calções decentes para poder assistir a ele. Que Deus lhe tenha na glória!
- Isso foi horrível, sem dúvida - disse Jack.
- E tinha que ter me recordado de Robert Heron - disse Martin -, o autor de The Comforts of Life, que escreveu essa e muitas outras obras eruditas em Newgate. Fui eu quem escreveu a petição de ajuda que fez à Associação Literária, porque ele não tinha forças, e nela declarava que trabalhava entre doze e dezesseis horas diárias. Quando os médicos o examinaram, viram que tinha diminuidas todas suas faculdades pelo que eles chamavam "o imprudente uso da mente em longos e ininterruptos trabalhos literários".
Jack tinha três quartos de sua atenção postos em outra parte, pois as mudanças de movimento do piso sob seus pés e do vinho em sua taça lhe indicaram que o vento estava rolando de novo e com rapidez, e variava bruscamente de intensidade. Por essa razão, não se informou de algumas das calamidades que haviam sofrido os intelectuais, mas voltou a pôr sua atenção ali a tempo para ouvir Stephen dizer:
- Smollet, ao referir-se à possibilidade de que seus amigos lhe houvessem advertido o que lhe esperava ao converter-se em escritor, disse: "Provavelmente, teria me poupado o incrível esforço que fiz e a grande decepção que sofri".
- Pensem em Chatterton - disse Martin.
- Pensem no que disse Ovidio na úmida e fétida margem do frio mar Negro: "Omnia perdidimus, tantummodo vita relicta est / Praebeat ut sensum materiamque mali" (Perdi tudo, somente a vida me resta / que ela me ofereça sensibilidade e matéria do mal.).
- Contudo, cavalheiros - disse Mowett, sorrindo -, é possível que haja alguns escritores afortunados.
Nem Stephen nem Martin pareciam convencidos disso, mas antes que pudessem replicar, ouviram-se no convés gritos triunfantes e ensurdecedores que afogaram os rugidos do vento e do mar. Depois Calamy chegou com a capa de chuva jorrando e informou que a traquete da presa se havia rachado.
Efetivamente, a traquete havia rachado e, ainda que os tripulantes, com a habilidade própia dos bons marinheiros, tiraram todos os rizes do velacho para abri-lo, a Surprise havia adiantado mais de uma milha antes que o barco recuperasse a velocidade que tinha.
Jack e Mowett permaneceram no castelo observando o Spartan.
- Não sei, não sei - murmurou Jack, pensando que se se aproximasse do barco quinhentas ou seiscentas jardas, dispararia um canhão de proa com a esperança de cortar a exárcia ou derrubar um mastro, ou pelo menos fazer um buraco em alguma de suas esticadas velas, e que se conseguisse alguma destas coisas, poderia abordá-lo antes do anoitecer.
A Surprise balançava e cabeceava violentamente, mas como tinha o canhão de barlavento muito elevado e os artilheiros eram excelentes, ainda poderia fazer devastadores disparos durante um tempo. Uma cortina de chuva separou nesse momento as duas embarcações e o Spartan desapareceu.
- Acredito que vai mudar de bordo em redondo - disse Jack. - Ordene tirar os rizes da gávea maior e diga ao condestável que se prepare para fazer um disparo para comprovar seu alcance.
Uma enorme onda cobriu a popa da fragata e Jack se empapou enquanto corria muito inclinado para frente pelo corrimão. O ar estava cheio de espuma, e parecia que o mau tempo ia durar toda a noite. As velas exerciam agora uma grande pressão, pois Jack ordenara mudar sua orientação de acordo com a mudança do vento, e quando os tripulantes tiraram os rizes da gávea maior, a popa da fragata afundou um pouco mais. Potanto, o convés se inclinou outros cinco graus, e Jack se agarrou mecanicamente a um brandal. Jack estava encantado de navegar a tão grande velocidade e de sentir o forte vento e o sabor do mar na boca; contudo, não era o único que estava encantado com isso, pois os quatro marinheiros que levavam o leme e o oficial que governava a fragata tinham uma expressão satisfeita, e o guarda-marinha que fazia as medições com a barquilha, quando um pouco depois de soarem as duas badaladas da guarda do primeiro quartilho, mostrou-se sorridente ao informar-lhe:
- Onze nós e meio, senhor, com sua permissão.
Ainda que a diferença entre dois e três nós fosse irrelevante, a essa velocidade se notava muito inclusive um aumento de meio nó, que, por outro lado, era muito difícil de conseguir. Já haviam soado as duas badaladas, o que significava que faltava pouco para que se extinguisse a luz do dia, e tudo teria que ser feito muito rapidamente, se é que conseguiriam fazer. Nesse momento Jack viu pela luneta que os tripulantes do Spartan estavam jogando a água pela borda em dois grossos jorros que caiam por sotavento, o que supunha várias toneladas de peso a menos.
Quando a fragata se elevava no cabeceio, o condestável disparou o canhão de proa e, quase no mesmo momento, uma violenta rajada de vento rasgou a gávea maior da Surprise.
Os marinheiros correram para pegar as escotas, as adriças, os brioles e os chafaldetes e, quando receberam a ordem, dobraram a vela rasgada e ondulante até que chegou ao cesto da gávea, onde a soltaram da verga para mandá-la abaixo. Depois ficaram no alto da exárcia, que era comparável à represa de um moinho porque não havia ali nem um sopro de vento. Ao mesmo tempo, o contramestre, o veleiro e seus respectivos ajudantes sacavam pela escotilha de proa uma enorme massa de tela difícil de manejar, uma gávea feita de lona do número 2.
Fizeram esta operação com a rapidez e a destreza características dos bons marinheiros, quase sem dizer uma palavra, ao menos sem dizer palavras em tom mal-humorado nem dar gritos, e Jack, ainda que estivesse abatido, percebeu. Contudo, apesar de fizerem a operação o mais rápido possível, tardaram algum tempo, e enquanto isso o Spartan seguiu avançando em meio da tormenta. O sol se poria logo e a lua não sairia até que mudasse a guarda; ademais daria muito pouca luz.
As esperanças de Jack só poderiam se realizar se a fragata navegasse a toda vela. Agora o vento, que soprava com maior intensidade e berrava mais forte, chegava à Surprise justo pela alheta, por onde lhe convinha para navegar melhor, e Jack acreditava que a rajada que havia rasgado a gávea anunciava o final de suas mudanças e estava quase convencido de que se estabilizaria, ainda que seguiria sendo forte.
Talvez estivesse errado e esta idéia fosse produto de seus desejos, mas tanto se fosse assim como se não, era só o que permitiria que suas esperanças se mantivessem. Por outro lado, temia que a fragata encalhasse nos arrecifes de Ushant, pois não se pode determinar sua posição ao meio-dia e já devia de ter percorrido grande parte da distância que a separava da ilha. Mas imediatamente apareceu em sua mente com clareza o resultado das medições do dia anterior e fez uma estimativa, conforme a qual a fragata devia estar perto de terra, ainda que não seria possível avistá-la antes de meia-noite. Enquanto olhava fixamente com a luneta o barco corsário, que cada vez parecia menor, ordenou:
- Larguem a joanete de proa!
Ainda que essa vela era bastante pequena, a fragata se cambaleou e mudou de movimento como um cavalo espantado quando os marinheiros a largaram e caçaram as escotas, pois começou a exercer pressão sobre ela no mesmo momento em que chegava à crista de uma onda. Quando a fragata reiniciou seu rápido movimento, Jack foi até a proa e, depois de apoiar a mão na fiada do traquete, assentiu com a cabeça ao mesmo tempo que dizia:
- Largar a joanete maior com cuidado!
A fragata já navegava com as gáveas com um rizado, e essas duas velas, por estarem tão altas, deram um grande impulso. Obviamente, avançava mais rápido do que o Spartan, mas não o suficiente, pois a essa velocidade o Spartan se refugiaria na escuridão antes que pudessem abordá-lo. Já não lhe era possível disparar, pois navegava a tanta velocidade e o mar estava tão agitado que as verdes ondas chegavam umas atrás das outras até o castelo.
- Coloquem cordas de segurança de proa a popa! - ordenou Jack - O que?
- Venha, senhor! - disse Killick em tom irritado. - Eu lhe chamei cinqüenta vezes! Venha para a cabine!
Sua indignação lhe dava superioridade moral sobre Jack, que o seguiu, trocou a camisa e a casaca empapadas por outras secas e depois pôs uma capa e um chapéu de lona alcatroada. Quando Jack regressou para o convés pegou o megafone de Honey e gritou:
- Preparem-se para desdobrar as velas!
Os marinheiros se prepararam, naturalmente, ainda que pensaram que iam navegar rápido demais e lançaram uns para os outros olhares suficientemente explícitos.
Mas Jack não se sentiu satisfeito com as alas superiores e as inferiores. A Surprise avançava a quase treze nós, tinha o pescante de bombordo muito abaixo da superfície do mar, a coberta inclinada trinta e cinco graus e a borda de sotavento quase oculta pela espuma; formava com a proa grandes ondas que lançavam salpicos a vinte jardas de distância; contudo, Jack mandou abrir a cevadeira. Essa vela, que quase já não era usada, pendurava-se do gurupés e ocultava os canhões de proa, mas como se colocava diagonalmente e a parte de sotavento ficava fora da borda, tinha a vantagem de que a parte de barlavento podia dar o impulso adicional que Jack tanto desejava.
As duas embarcações já tinham os faróis acesos para a batalha na entrecoberta e navegavam velozmente na penumbra em meio da chuva e dos salpicos das ondas. Os tripulantes do Spartan começaram a jogar os canhões pela borda, e no barco se viram brilhantes retângulos de cor laranja cada vez que abriam as portalós, o que fizeram uma e outra vez porque tiveram que arrastar os canhões de sotavento até o costado de barlavento para jogá-los, uma difícil tarefa em uma marejada como aquela. Depois começaram a jogar as lanchas, aliviando ainda mais a carga do barco; contudo, a velocidade da Surprise superava em um nó a de sua presa, e Jack acreditava que seria possível capturá-lo se não o perdesse de vista durante meia hora. Mas as rajadas de chuva eram freqüentes e havia muita névoa mais adiante, o que pressagiava uma noite impenetrável. Mandou os marinheiros de vista mais aguda para o cesto da gávea do traquete e ficou no corrimão de barlavento olhando pela luneta o Spartan, sua branca esteira, a tênue luz do janelão de popa e o preto nimbo baixo que se aproximava pelo sul-sudoeste. Os dois últimos canhões do barco caíram na água. Se a fragata seguisse navegando a essa velocidade ou mais rápido, ao cabo de dez minutos o barco estaria a menos de um quarto de milha de distância, mas também o preto nimbo e as rajadas de chuva. O barco era cada vez menos visível. De repente todas as suas luzes se apagaram e ele desapareceu. Sua esteira pôde ser vista alguns momentos mais, mas depois também desapareceu. A chuva chegou empurrada pelo forte vento.
- Vai orçar! - gritou um serviola desde o cesto da gávea do traquete.
Quando a chuva amainou, apareceu de novo o barco, que havia se desviado de seu rumo cinqüenta graus e estava tão pouco iluminado que parecia um fantasma na escuridão.
- Já o vejo! - exclamou Jack.
Mas a chuva amainou ainda mais nesse momento e muito mais perto apareceu um enorme barco, um navio de três pontes que tinha no cesto da gávea o farol que usavam os almirantes. Atrás dele havia mais barcos. O navio de três pontes lançou uma bala pela frente da proa da Surprise e Jack se deu conta de que estava no meio da esquadra do Canal, e de que o Spartan, oculto pela chuva, passara entre seus barcos para refugiar-se em Brest. A fragata orçou e seus tripulantes rizaram as gáveas e içaram as bandeiras para dar o sinal secreto, o número de identificação e a mensagem: "Inimigo ao este-nordeste".
O navio de três pontes, sem mudar de rumo, respondeu com o sinal "Capitão deve apresentar-se no navio insígnia".
Jack leu o sinal antes que lhe informassem. Olhou para o lugar coberto de névoa cinza onde o Spartan estivera e depois para as turbulentas águas que separavam a fragata do navio insígnia, situado a meia milha de distância. Pensou que teria que percorrer essa distância navegando contra o vento, e nesse momento notou que Mowett lhe olhava ansiosamente. Abriu a boca, mas como observava rigorosamente a disciplina, voltou a fechá-la.
- Quer a falua, senhor? - perguntou Mowett.
- Não - respondeu Jack -, o cúter azul, porque pode navegar e manter-se flutuando mais facilmente.
CAPÍTULO 4
Minha querida - escrevia Jack para sua esposa do Crown -, já se despediram os marinheiros que estavam a bordo da Surprise e, agora, em vez de integrar uma tripulação formam dois ou três grupos e perambulam ociosos por terra. Posso ouvir aos marinheiros do castelo, que eram os mais velhos e sensatos da fragata, armando um grande alvoroço em Duncan's Head, a várias ruas de distância, ainda que a maioria em geral é mais silenciosa. Dizer adeus a tantos velhos companheiros de tripulação foi doloroso, como pode imaginar. Sentir-me-ia muito triste se não fosse porque penso que dentro de poucos dias verei você e as crianças; contudo, não serão tão poucos como queria, porque enquanto esperávamos o sinal para atracar e a mudança da maré com a fragata ancorada com uma só âncora, o paquete de Lisboa, com grande quantidade de velame desdobrado, passou junto dela muito rápido, da forma ostentosa com que os capitães dos paquetes os fazem navegar (fazem qualquer coisa para ganhar velocidade), e não se limitou a roçar a popa, mas se chocou com ela. Todos demos gritos de indignação, naturalmente, e tratamos de afastá-lo com esfregões e tudo o que encontramos a mão, mas causou tantos danos à fragata que desde então estive tratando de repará-la. Mas ainda não tive tempo de contar-lhe como foi minha entrevista com o almirante. Subi a bordo de seu navio depois de fazer a viagem mais desagradável que recordo e, sem me perguntar como estava ou se gostaria de trocar de roupa ou secar-me a cara, disse que eu era um imprudente e um lunático por passar entre os barcos da esquadra a grande velocidade, com as alas superiores e as inferiores desdobradas. Perguntou-me se não havia visto os barcos, se não havia cumprimentado ao navio insígnia porque não o havia visto, apesar de que era um navio de três pontes, ou porque não tinha serviolas, e se na Armada moderna não se mandavam os serviolas aos cestos das gáveas. Então, em um tom aprazível que refletia submissão, respondi: "Havia dois, milorde". De imediato disse que, nesse caso, devia dar em cada um deles duas dúzias de açoites, uma por ele e outra por mim, e acrescentou que eu merecia uma forte reprimenda. Depois acrescentou: "Quanto a esse suposto barco corsário, acredito que era um mercante sem nenhum valor. Os senhores, os jovens, sempre estão perseguindo mercantes. Quando lhes dão o comando de um barco, tratam de pegar mercantes, ou seja, tratam de conseguir butins. Vi isso muitas vezes, e devido a isso a esquadra perde fragatas. Mas já que o senhor está aqui, poderia ser útil ao rei e a sua pátria". Agradou-me que me chamasse de jovem, mas não que considerasse que minha utilidade consistisse em levar a cabo um ataque com um brulote ao porto de Bainville, que conheço muito bem. Nunca gostei dos brulotes e o plano não me parecia bom, porque não dava bastante importância às baterias costeiras nem à forte corrente que há ali, nem oferecia aos tripulantes dos brulotes muitas possibilidades de escapar. Ninguém que esteja em um brulote pode esperar piedade se for pego, pois lhe matam imediatamente ou lhe levam para o paredão sem muitas contemplações. Essa é a razão pela qual são tripulados por voluntários. Estou seguro de que todos os tripulantes da Surprise teriam se oferecido voluntários, mas não me agradava a idéia de que fossem capturados, assim que me alegrei quando no conselho disseram que se me dessem o comando da operação, isso significaria que me davam mais importância que a muitos outros capitães de navio que estavam antes que eu na hierarquia. Várias pessoas falaram disto em tom irritado e, além disso, recordaram que não só lorde Keith mostrara preferência por mim muitas vezes no Mediterrâneo, senão que fazia somente alguns meses me haviam encarregado de uma missão que provavelmente me proporcionara uma fortuna (oxalá houvesse sido assim) e pela qual muitos capitães de navio teriam dado um olho da cara. É verdade que passei menos tempo em terra que a maioria dos capitães, menos afortunados que eu, mas me surpreendeu ver que muitos deles estavam com ciumes. Não sabia que na Armada houvesse tantos homens que fossem meus inimigos ou, pelo menos, me desejassem mal. No final abandonaram o plano e minha utilidade se limitou a levar a irmã do almirante para Falmouth. Seus médicos lhe haviam ordenado que fizesse uma viagem pelo mar porque lhe falhava a respiração mas, como Stephen disse, a viagem poderia ter-lhe curado todas as doenças incluídas no livro Domestic Medicine, de Buchan, pois quase lhe tirou a respiração, já que a pobre ficou enjoada do início até o fim, emagreceu e ficou amarelada.
Stephen se foi para a cidade esta manhã e se deu o luxo de alugar um carro para deixar o senhor Martin, o pastor, longe do caminho principal. Queria poder dar-lhe melhores notícias dele, mas parece angustiado e triste. No princípio pensei que estava preocupado com problemas de dinheiro, mas não é possível, pois nosso agente de negócios fez imediatamente as gestões para que se decidisse se nossas presas eram de lei e assim vendê-las. Ademais, quando me contou que seu padrinho morrera, disse-me que herdara seus bens, e ainda que eu ache que não é muito, sei que Stephen sempre se contentou com pouco dinheiro. Acredito que está triste porque o cavalheiro morreu, e angustiado devido a Diana. Nunca lhe vi tão desassossegado.
Pensou em contar a Sophie que no Mediterrâneo se rumorejava que Stephen havia sido infiel, mas negou com a cabeça e continuou:
Ordenarei a Killick, a Bonden e talvez a Plaice que levem a maior parte de minha bagagem para casa na lenta diligência que sai amanhã, mas eu terei que ficar aqui um pouco mais de tempo para assegurar-me que a fragata ficará nas condições que quero (há esperanças de que a deixem na reserva em vez de levá-la para o desmache) e para responder às perguntas de alguns cavalheiros do Almirantado e da Junta Naval. Apesar disso, talvez possa chegar à cidade ao mesmo tempo que Stephen; ou antes, se seguir soprando o suave vento do sudoeste. Harry Tennant, que está ao comando do Despatch, prometeu-me deixar-me perto dali. O Despatch é um barco com bandeira branca que se utiliza para troca de prisioneiros (se recorda do barco com bandeira branca em que Stephen e eu viemos quando deixamos de ser prisioneiros dos franceses?) e é muito rápido navegando ao largo, ainda que seja lento navegando de bolina. Depois de uma breve escala em Calais, irei no barco até Dover, de onde continuarei a viagem na carruagem de Londres. Tenho que falar com meus advogados antes de ir a Ashgrove, pois pode ter havido uma decisão contra nós em algum dos pleitos pendentes, e seria tonto se chegasse ai e me prendessem por não pagar as dívidas. Por essa razão, e porque nos jornais se há mencionado a chegada da fragata há dias, hospedar-me-ei no Cacho de Uvas e não o abandonarei até o domingo. Se quiser que lhe leve algo, escreva-me para o clube, pois ali estão acostumados a receber cartas e não as perdem.
O Cacho de Uvas era uma hospedaria antiga, pequena e confortável que ficava no condado de Savoy e por isso os hóspedes estavam fora do alcance de seus credores durante toda a semana. Jack passara ali muito tempo desde que conseguiu uma fortuna o bastante grande para ser uma apetetitosa presa para os tubarões de terra, e durante todo o ano Stephen mantinha alugado um quarto que usava como base para suas atividades mesmo depois de se casar com Diana, já que ambos formavam um casal estranho, um casal meio separado.
Mas estou quase seguro de que irei no domingo, tão certo como alguém pode estar das coisas no mar, e não encontro palavras que expressem o desejo que tenho de que chegue esse dia. Depois de tanto tempo teremos muitas, muitas coisas que contar-nos.
Levantou-se e se aproximou da janela que dava para a montanha onde ficava o semáforo{10}, cujas bandeiras estavam em contínuo movimento mandando informação para Londres, de onde respondiam com extraordinária rapidez. Os membros do Almirantado deviam saber que a Surprise havia chegado desde o dia em que mostrou seu número de identificação fora da baía, e talvez já tivessem decidido o que iam fazer com ela. Esperava que em lugar de excluí-la da Armada e vendê-la a deixassem na reserva, e pensava que enquanto não tivesse rupturas havia esperanças.
"A fragata serviria para a troca de prisioneiros, por exemplo - pensou na terça-feira seguinte, sentado sozinho na cabine do Despatch, enquanto o barco navegava velozmente pelo Canal com o vento do oeste-sudeste. - Seria melhor, muito melhor que esta carraca. É muito apropiada para esta tarefa por todas suas qualidades: beleza, graça, rapidez… Ademais, a dez milhas é inconfundível. Quanto desperdício! Que lástima! Mas se continuo pensando nisso morrerei de tristeza ou ficarei louco."
Contudo, continuou pensando nela. Na parte mais objetiva de sua mente surgiu a idéia de que, ainda que a rapidez fosse uma boa qualidade em um barco com bandeira branca que fazia a troca de prisioneiros, o fato de que fosse reconhecido não era importante, ou pelo menos não era naqueles que faziam o percurso entre a França e a Inglaterra. Bonaparte decidira não trocar prisioneiros, e não havia muitas razões que justificassem a existência desses barcos com bandeira branca, que se pareciam pouco com os normais. Não obstante, iam continuamente de uma costa à outra e às vezes transportavam enviados de um lado ou do outro com propostas e contrapropostas; outras, eminentes naturalistas, como sir Humphry Davy ou o doutor Maturin, quando eram convidados para dar uma conferência em alguma das academias de Paris ou no Instituto da França; outras, objetos de interesse científico recolhidos pela Armada Real e enviados para a Royal Society{11}, à qual o Almirantado encarregava sua custódia; outras (com muito menos freqüência), exemplares de alguma espécie da Inglaterra para a França; e, constantemente, jornais dos dois lados e manequins com elegantes vestidos para que em Londres soubessem qual era a moda na França. Algo muito importante nesses barcos era a discrição, e às vezes os passageiros permaneciam em diferentes cabines durante a viagem e desembarcavam separadamente durante a noite. Desta vez o Despatch, depois de se reunir com o barco do prático do porto na baía de Calais, atracou em um cais vazio. Mas às quatro da madrugada, Jack, que estava meio adormecido em um maca pendurado na cabine refeitório de Tennant, ouviu embarcar um grupo de pessoas, ao qual seguiram outros três a intervalos de meia hora. Sabia bastante bem como se faziam as coisas nesses barcos, porque Stephen e ele haviam viajado no predecessor do Despatch uma das raras vezes em que se violara a convenção. Ambos foram feitos prisioneiros na França, e Talleyrand preparou sua fuga para que Stephen, que ele acreditava ser um agente secreto, pudesse levar ao Governo inglês e à corte francesa exilada em Hartwell suas propostas para derrotar Bonaparte. Por isso não lhe surpreendeu que Tennant lhe pedisse que ficasse abaixo enquanto os outros passageiros desembarcavam em um lugar afastado no porto de Dover, um lugar afastado do tráfego do porto, ainda que também afastado da aduana, por onde Jack tinha que passar. Não se importava de passar por ali, pois em sua mala não levava nada que tivesse que declarar, mas temia que as pessoas que estivessem na sua frente reservassem todos os lugares da carruagem de Londres, tanto os interiores como os exteriores, e alugassem todos os carros, que eram muito poucos devido à decadência da cidade.
- Venha almoçar comigo no Ship - disse Jack quando os tripulantes do Despatch amarravam o barco ao cais da aduana e colocavam a prancha sobre ele. - Prodgers faz uma comida muito boa.
- Obrigado, Jack - disse Tennant, mas tenho que zarpar para Harwich antes que a maré mude.
Isso não contrariou Jack. Harry Tennant era uma magnífica pessoa, mas provavelmente teria dito: "À Surprise lhe espera um horrível destino… A vão a converter em lenha… Que desperdício…! Nestes casos, não há esperança de que se retratem… É lamentável desagregar uma tripulação tão boa… Provavelmente, seus oficiais ficarão em terra por bastante tempo… talvez nunca voltem a conseguir outro barco… Meu tio Coleman esteve a ponto de enforcar-se quando levaram a Phoebe para o desmanche, e isso, indubtavelmente, precipitou sua morte".
- Posso levar sua mala, senhor? - disse alguém com voz aguda perto do cotovelo de Jack.
Jack olhou para baixo e viu com assombro que do seu lado não havia um confiado pilantra descalço senão uma nervosa menina com avental, cujo rubor se notava por debaixo da sujeira que cobria seu rosto.
- Muito bem - respondeu. - Tenho que ir ao Ship. Pegue uma alça e eu pegarei a outra. Segure forte.
Ela agarrou uma alça com as duas mãos e ele estirou o braço e dobrou os joelhos. E assim, incômodos, os dois atravessaram a cidade. Ela disse que se chamava Margaret e contou que seu irmão Abel era quem costumava levar as malas dos cavalheiros, mas que um cavalo o pisoteara um pé e que os outros garotos, muito amáveis, haviam permitido que ela ocupasse seu lugar até que melhorasse. Quando chegaram ao Ship, Jack lhe deu um xelim e ela pôs uma expressão de desgosto.
- Isso é um xelim - disse Jack. - Nunca viu um xelim?
Ela negou com a cabeça.
- Tem o valor de doze peniques - disse Jack, olhando seu dinheiro solto. - Já viu as moedas de seis peniques?
- Oh, sim, claro! Todo mundo já viu! - exclamou Margaret em tom depreciativo.
- Pois aí há dois, porque duas vezes seis é doze, sabe?
A menina lhe devolveu o desconhecido xelim e recebeu com uma expressão muito séria as conhecidas moedas de seis peniques. Então sua cara se iluminou como o sol atravessando uma nuvem.
Jack entrou no refeitório. Tinha muita fome porque estava acostumado ao antiquado horário das refeições da Armada.
- Ainda falta meia hora, senhor - disse um garçon. - Quer tomar algo na salinha enquanto espera?
- Seria bom - respondeu Jack. - Queria uma pinta de xerez, mas a tomarei aqui, junto ao fogo. Assim não perderei nem um minuto quando sirvam o almoço. Tenho tanta fome que me comeria um boi. Mas antes queria que me reservasse um lugar na carruagem de Londres, tanto faz se for dentro ou fora.
- Oh, não, senhor! Estão todos reservados já faz uma hora.
- Poderia alugar-me um carro, então?
- Bem, senhor, como os negócios estão tão fracos, já não os alugamos. Mas Jacob - acrescentou, assinalando com a cabeça para o único garçon com barba que Jack havia visto em um país cristão - poderia ir à companhia União, ou à Royal, para ver se lhes restam carrouagens nas cocheiras. Há pouco foi buscar um para outro cavalheiro.
- Peça-lhe que vá - disse Jack -, por favor, e diga-lhe que seu esforço será recompensado com meia coroa.
Depois, enquanto bebia tranqüilamente a primeira taça de xerez, pensou: "Suponho que não é realmente um garçon mas um empregado que atende os cavalos e às vezes ajuda no refeitório, e por isso lhe permitem usar barba".
Por fim chegou a comida, seguida de um grupo de cavalheiros famintos. O primeiro deles, um homem magro de expressão inteligente que vestia uma casaca negra com botões dourados, se sentou junto de Jack. Imediatamente lhe pediu que paçasse o pão e começou a comê-lo com avidez, ainda que mantendo os bons modos, e não voltou a dizer palavra. Era um homem reservado, possivelmente um advogado com numerosa clientela. Do outro lado da mesa estava sentado um comerciante de meia idade com um chapéu de aba larga muito ajustado, que olhou para Jack, primeiro com os óculos postos e depois sem eles, enquanto comia o caldo e o pudim de ervas finas com os quais havia começado a refeição.
- Amigo quacre, o senhor tem um veículo de pele?
- Sinto muito, senhor - respondeu Jack -, mas nem ao menos sei o que é um veículo de pele.
- Bem, a verdade é que pensei que o senhor fosse um quacre, por seu modesto traje.
Efetivamente, Jack estava vestido austeramente, pois sua roupa de paisano havia se estragado muito nos trópicos, e ainda mais entre eles, mas não imaginava que parecesse tão modesta como para chamar a atenção.
- Um veículo de pele - continuou o comerciante -, é o que o profano chama uma máquina puxada por cavalos, quer dizer, uma carruagem.
- Bem, senhor - disse Jack -, ainda não tenho nenhum veículo, mas espero dispor de um logo.
Apenas falou de sua esperança, a perdeu. Enquanto o servente com barba passava uma vasilha de chirivías por entre o homem da casaca negra e Jack, disse ao cavalheiro:
- A carruagem da Royal estará esperando-lhe em nosso pátio, justo aqui detrás, ao final da refeição - e dirigindo-se a Jack -: Sinto muito, senhor, mas esse era o último carro. Não há nenhum outro na cidade.
Quando ainda não havia terminado de falar, o homem que estava sentado ao lado do quacre, um tipo presunçoso e com aspecto de leiloeiro, berrou:
- Isto é um maldito truque, Jacob! Eu lhe pedi primeiro que alugasse um carr da Royal. Esse carro é meu.
- Acho que não, senhor - disse tranqüilamente o homem que estava sentado junto a Jack. - Além disso, já paguei até a primeira posta.
- Bobeiras! - exclamou o tipo presunçoso. - Eu lhe repito que é meu. Eu levarei o senhor, se quiser - disse, voltando-se para o quacre -, amigo antiquado.
Então se pôs de pé e saiu correndo da habitação gritando:
- Jacob! Jacob!
O homem deu realmente uma cena e todos o olharam com assombro, mas, como estavam saciando sua fome porque o hoteleiro continuamente cortava pedaços de carne de vaca, de cordeiro e de porco assado e os mandava servir na mesa, a calma se restabeleceu logo, e com ela voltaram os pensamentos claros e enlaçados logicamente. Poucos homens desfrutavam mais dos ditos engenhosos do que Jack Aubrey, tanto os seus como dos outros, e quando estava misturando as chirivías com a manteiga e dando voltas às palavras na cabeça, com a esperança de que lhe ocorresse algo brilhante, o homem que estava ao seu lado lhe disse:
- Sinto que não tenha conseguido um carro, senhor, mas lhe convido para compartir o meu se quiser. Vou para Londres. Poderia passar-me a manteiga, por favor?
- O senhor é muito amável, senhor - disse Jack. - eu lhe agradeço muito. Precisamente desejava chegar a Londres hoje. Permita-me servir-lhe uma taça de vinho.
Não tardaram em iniciar uma conversa. Foi uma conversa trivial, já que falaram principalmente do tempo que fazia, da possibilidade de que chovesse mais tarde, do apetite que dava a brisa marinha e da diferença entre o linguado de Dover e o do mar do Norte; contudo, foi muito agradável e amistosa. Mesmo assim, incomodou ao homem de óculos, que de vez em quando lhes olhava com indignação e, quando serviram o queijo, levantou-se bruscamente jogando a cadeira no chão e foi se reunir com o tipo presunçoso na porta caminhando muito estirado.
- Acho que incomodamos ao quacre - disse Jack.
- Não acredito que seja um quacre - disse tranqüilamente o homem da casaca negra, depois de uma pausa na qual se foram também alguns dos cavalheiros que estavam sentados no extremo da mesa. - Conheço muitos homens respeitáveis, como por exemplo Gurneys e Harwoods, que são quacres e se comportam como seres razoáveis, não como atores em um teatro de província. Conforme acredito, já não mantêm as peculiaridades de sua linguagem nem de sua vestimenta; deixaram de usá-las faz mais de cinqüenta anos.
- Mas por que quer passar por quacre? - perguntou Jack.
- Por que? Provavelmente para se aproveitar da fama que têm de honestos e confiáveis. Mas a alma dos homens é insondável - acrescentou o homem da casaca negra, sorrindo e pegando um cartapácio de pele que estava apoiado contra sua cadeira. - talvez tenha relações amorosas ilícitas ou trate de escapar de seus credores. Agora, senhor, se me desculpa, vou buscar minha bagagem.
- Mas não o senhor não vai tomar o café? - perguntou Jack, que havia pedido uma cafeteira.
- Infelizmente, não posso - respondeu o homem da casaca negra. - Não me sinto bem. Mas não se apresse, eu lhe peço. Tenho o estômago um pouco revirado e terei que repousar durante mais tempo do que o senhor levará para tomar duas ou três cafeteiras. Nos reuniremos junto ao carro dentro de uns quinze minutos. Estará no pátio deserto que fica atrás da cozinha, onde costumavam guardar as carruagens do Ship.
Catorze minutos depois, Jack chegou ao pátio com sua mala. Antes de dobrar a esquina, ouvira uns estranhos gritos em tom irritado, e quando chegou ao portão viu que o quacre e o tipo presunçoso forcejavam com seu amigo enquanto o cocheiro, que era apenas um garoto, segurava a cabeça dos cavalos e, gritando tão alto como lhe permitia sua voz aguda e débil, levantava-se do solo cada vez que a alçavam. O tipo presunçoso golpeara o homem da casaca negra de modo que seu chapéu descera até cubrir-lhe os olhos, e agora lhe apertava o pescoço. Enquanto, o quacre lhe dava chutes e tentava arrebatar-lhe o cartapácio de pele que segurava com todas suas forças.
Jack era lento para idear uma brincadeira, mas muito rápido para entabular uma luta. Correu do portão a toda velocidade e empurrou pelas costas o tipo presunsoso com o peso de todo seu corpo, duzentas e vinte e cinco libras, fazendo com que golpeasse a cabeça contra o piso. Depois se levantou de um salto para pegar o quacre, mas este, com uma agilidade insólita em uma pessoa de certa idade e muito peso, já se afastava correndo. Quando o homem da casaca negra desencaixou chapéu, pôde ver o braço de Jack e o tipo presunçoso ajoelhado e disse:
- Deixe-o ir, deixe-o ir, por favor. Eu lhe rogo que o deixe ir. E também a esse rufião bêbado. Eu lhe estou muito agradecido, senhor, mas não quero que se arme um escândalo.
As pessoas que estavam na cozinha do Ship estavam se agrupando ali para olhar.
- Não quer que chame a polícia? - perguntou Jack.
- Oh, não, não; eu lhe peço! Não quero que isto se torne público - disse o homem da casaca negra em tom grave. - Por favor, subamos. Não está ferido, né? E já está com a mala. Subamos imediatamente.
O homem da casaca negra ficou sacudindo a roupa, arrumando a gravata e alisando os papéis que do deteriorado cartapácio durante certo tempo, até que saíram de Dover e pegaram o caminho de Londres. Era evidente que haviam lhe ferido muito, ainda que quando Jack lhe perguntou por seu estado, respondeu que só tinha "alguns pequenos arranhões e manchas-roxas" e que isso não era nada comparado com o que teria se tivesse caído de um cavalo. Pouco depois de passar por Buckland, quando os cavalos iam a passo lento e a carruagem avançava movendo-se suavemente, disse:
- Eu lhe estou muito agradecido, senhor, muito agradecido; não só por resgatar a mim e a minhas posses das mãos desses vilãos, mas também por contribuir para que o assunto não se fizesse público. Se houvesse chamado a polícia, teríamos nos atrasado e, o que é pior, haveria se formado um grande escândalo; e por minha posição social, não posso permitir me ver envolvido em nenhum escândalo nem em nenhuma briga em público.
- Indubtavelmente, um escândalo é algo muito desagradável - concordou Jack. - Mas eu gostaria de tê-los metido pelo menos no bebedouro.
Ficaram em silêncio, e depois de um tempo o homem da casaca negra disse:
- Eu lhe devo uma explicação.
- Não, não, senhor - respondeu Jack.
O homem fez uma inclinação de cabeça e continuou:
- Acabo de chegar de uma importante missão no continente, e esses tipos estavam me esperando. Vi o rufião com o lenço ao redor do pescoço no barco e me perguntava por que razão estava ali. Lamento haver tido que deixar meu servente com meu chefe, em Paris; é o filho do guarda de meus imóveis, um jovem robusto e muito valente. A disputa pela carruagem foi uma desculpa para que o ataque tivesse um motivo. Não queriam a carruagem nem minhas posses, um relógio e um pouco de dinheiro. O que queriam era informação, quer dizer, as notícias que trago aqui - acrescentou, pondo a mão sobre o cartapácio de pele. - Estas notícias, em certas mãos, valeriam um monte de dinheiro.
- Espero que sejam boas notícias - disse Jack, olhando pela janela para uma bonita jovem que cavalgava pela borda do caminho seguida de um servente e tinha a cara rosada devido ao exercício.
- Acho que são muito boas, senhor, e que muitas pessoas pensarão igual - disse o homem da casaca negra, sorrindo; e depois de tossir, talvez pensando que havia sido indiscreto, continuou -: Aqui está a chuva da qual falávamos.
Trocaram de cavalos em Canterbury, e quando Jack tentou pagar por eles, ou pelo menos a metade do que custavam, o homem da casaca negra, disse:
- Não, de nenhuma maneira. Não posso permitir que pague com seu dinheiro. O custe haveria sido o mesmo ainda que o senhor não houvesse vindo. Mas vou terminar esta discussão com um argumento contundente: quem paga é o Governo.
Quando reiniciaram a viagem, sugeriu que jantassem em Sittingbourne, se Jack não tivesse nenhuma objeção a fazer.
- Já comi muito bem no Rose em muitas ocasiões - explicou. - E lá têm um vinho Musigny de 1792, um vinho de Chambolle, que é dos melhores que já tomei. Ademais, nos atenderá a filha do hoteleiro, uma jovem a quem eu gosto de contemplar. Não me tome por lascivo, mas penso que ter criaturas bonitas ao redor faz a vida muito mais prazerosa. - Depois de uma pausa acrescentou -: acho absurdo que ainda não haja me apresentado. Sou Ellis Palmer, para servir-lhe.
- Encantado em conhecer-lhe, senhor - disse Jack apertando a mão que lhe estendia. - Meu nome é John Aubrey.
- Aubrey - disse Palmer, pensativo. - Ultimamente ouvi muitas vezes esse nome relacionado com os quelônios. Com sua permissão, queria lhe fazer uma pergunta: o senhor tem algum parentesco com o senhor Aubrey de quem levou o nome a magnífica espécie de tartarugas Testudo aubreii?
- Sim, de certa forma - respondeu Jack, sorrindo tão docemente como o permitia seu rosto bronzeado, curtido pelos elementos e com cicatrizes de feridas recebidas nas batalhas. - Na realidade, puseram esse nome no animal por minha causa, ainda que eu não tomei parte no caso, quer dizer, sua descoberta não é mérito meu.
- Meu Deus! - exclamou Palmer. - Então o senhor deve ser o capitão Aubrey, da Armada Real, e tem que conhecer por força ao doutor Maturin.
- É meu amigo íntimo - disse Jack. - Temos navegado juntos há muitos anos, durante a guerra passada e nesta. O senhor o conhece?
- Não tive o prazer de ser apresentado a ele, mas li todos seus livros, quer dizer, todos os que não tratam de assuntos médicos, pois não sou mais que um estudioso das ciências naturais que só as estuda por hobby, porque me dedico a redigir projetos de lei no Parlamento. Algumas vezes o vi apresentar estudos na Royal Society, quando um de seus membros me convidou, e assisti à conferência que deu no Instituto de Paris.
- Ah, foi? - inquiriu Jack.
Por isto e por outras coisas que Palmer deixou escapar, estava claro que era um dos emissários que iam de uma costa à outra, um dos homens pelos quais os barcos com bandeira branca ainda existiam.
- Sim, assisti a essa conferência. Versava sobre o pássaro solitário, como provavelmente o senhor saberá. Não pude entender tudo o que disse porque a sala era muito grande, mas depois li com satisfação o resumo incluído na ata e tirei muito proveito dele. Que investigação tão profunda! Que comparações mais acertadas! Quanto erudição! Conhecer a um homem assim é um privilégio.
Falaram de Stephen até que chegaram a Sittingbourne e depois durante o admirável jantar.
- Gostaria que ele estivesse aqui conosco - disse Jack, olhando a vela através da taça de vinho tinto. - Aprecia um bom vinho muito mais do que eu, e este é de uma safra realmente excelente.
- Então tem essa virtude, além de todas as outras. Alegro-me em saber. Deve de ser o melhor e o mais feliz de todos os homens. Encanto - disse à rosada filha do hoteleiro -, acho que tomaremos outra garrafa.
Jack podia ter dito que Stephen não tinha senso do tempo nem da disciplina e que era capaz de responder asperamente, mas, em vez disso, explicou:
- Com relação ao que acaba dizer, acrescentarei que em certas ocasiões é muito engenhoso. Disse o melhor que já ouvi em minha vida, de repente, sem ficar pensando nas palavras em sua cabeça. Às vezes não consigo me lembrar bem, porque é algo muito sutil, mas queria dizê-lo bem desta vez, pois quando tenho que explicá-lo, tem menos graça. Em primeiro lugar, tenho que contar-lhe que na Armada temos duas guardas muito curtas, de apenas duas horas cada uma, que chamamos as guardas do primeiro e do segundo quartilho. Pois bem, quando estávamos fazendo o bloqueio de Toulon, havia em nosso barco um civil que não sabia nada do que fazíamos na Armada e um dia, durante o almoço, perguntou: "Por que são guardas de quartilho?". Nós lhe explicamos que os marinheiros tinham distintos turnos de guarda para que um grupo estivesse de guarda uma noite e o outro na seguinte, mas não era isso o que havia perguntado. Então inquiriu: "Por que se chamam guardas de quartilho? Por que as guardas curtas são chamadas de guardas de quartilho?". Nesse instante todos ficamos petrificados, sem saber o que responder, e Maturin disse: "Não compreende por que, senhor? É porque essas guardas estão fracionadas". Nós não o entendemos imediatamente, mas por fim nos demos conta de que quarto é uma fração, compreende?
Palmer o entendeu imediatamente e, ainda que não fosse um homem risonho, soltou uma gargalhada que fez com que viesse a bonita jovem com uma expressão de assombro nos olhos e o saca-rolhas na mão.
Demoraram muito para comer as nozes, e Palmer começou a falar em tom grave uma ou duas vezes, mas imediatamente mudou de opinião. Até que não estiveram outra vez no caminho, vendo como as luzes do carro penetravam na escuridão enquanto a chuva tamborilava sobre o teto, o que lhes fazia sentir-se isolados, Palmer não disse o que pensava.
- Capitão Aubrey, estive pensando… estive pensando como mostrar-lhe minha gratidão.
Jack fez os costumeiros protestos, mas Palmer continuou:
- Penso que apesar de ser inconcebível presentear uma quantia de dinheiro a um cavalheiro de sua posição social, ainda que seja uma enorme soma, é aceitável dar-lhe certa informação que lhe permita obter essa quantia.
- Acho uma boa idéia.
- E, sem dúvida, atrás dela há boa intenção - disse Palmer. - Mas devo lhe dizer que depende de que tenha certa quantidade de dinheiro, ou amigos a quem pedi-la emprestada, ou de que algum banqueiro ou agente de negócios, que são muito parecidos, lhe conceda um crédito. Como se costuma dizer: "O dinheiro chama dinheiro".
- Não posso dizer que esteja rico - disse Jack -, e, no momento, tampouco que esteja pobre.
Buscou mentalmente entre os cavalos de corrida qual era provável que Palmer lhe recomendasse e se ficou atônito quando este, em tom grave, sussurrou-lhe estas palavras:
- Suponho que saberá que se abriram as negociações para pôr fim à guerra faz algum tempo, e precisamente por isso, meu chefe me enviou para Paris. Pois bem, terminaram com êxito. A paz será firmada dentro de poucos dias.
- Meu Deus! - exclamou Jack.
- Sim, isso mesmo - disse Palmer. - E, certamente, disso pode se tirar infinitas conclusões; mas a que me importa agora é que quando a notícia se faça pública, os bônus do Estado e as ações de companhias privadas subirão muitíssimo, algumas delas dobrarão seu valor.
- Meu Deus! - repetiu Jack.
- Alguém que compre agora conseguirá uma grande quantidade de dinheiro antes do próximo dia de fechamento - disse Palmer -, assim que poderia pedir dinheiro emprestado ou solicitar um crédito ou fazer distintas operações na bolsa de valores com toda a confiança.
- Mas o senhor não acha que seria incorreto comprar nessas circunstâncias? - inquiriu Jack.
- Oh, não! - respondeu Palmer, rindo. - É assim que se fazem as fortunas na Cidade. Não é incorreto nem do ponto de vista legal nem do ponto de vista moral. Se o senhor tivesse a certeza de que um cavalo ia ganhar uma corrida, seria mau que apostasse nele porque tiraria dinheiro de outras pessoas; contudo, se os bônus do Estado e as ações sobem e o senhor se beneficia da subida, não tira dinheiro de ninguém, pois o que ocorre é que a riqueza do país e das companhias aumenta, e o senhor se beneficia desse aumento sem causar dano a ninguém. Certamente, isso não pode fazer-se a grande escala, porque poderia alterar o mercado de valores. O senhor conhece o mercado de valores, senhor?
- Não - respondeu Jack.
- Eu o estudei a fundo durante muitos anos, e lhe asseguro que em certas ocasiões é variável e irracional, como uma mulher tonta propensa a ataques de nervosismo. As alterações que sofre duram certo tempo e afetam muito o crédito do país, potanto, em casos como este, o Governo se limita a dar a informação a um pequeno número de pessoas das quais se sabe com certeza que atuarão com discrição e não exagerarão.
- Que quantidade suporia um exagero?
- Investir mais de cinqüenta mil libras em bônus do Estado provavelmente seria visto com desaprovação. Como a inversão em ações de companhias privadas pode ser fragmentada, altera menos o mercado, contudo, não acredito que as grandes inversões nesse setor fossem aprovadas.
- Não há perigo de que eu cometa uma indiscrição - disse Jack, rindo, e depois, em tom grave, acrescentou -: estou-lhe muito agradecido, senhor. Casualmente tenho certa quantidade de dinheiro que obtive de umas presas e, como todo mundo, eu gostaria que aumentasse. Posso contar tudo isto ao doutor Maturin?
- Bem, acho que não seria conveniente, porque a informação é confidencial. Por essa mesma razão, se o senhor decidir comprar não deveria fazê-lo através de uma só pessoa, senão de várias; por exemplo, através de seu agente de negócios, do intermediário financeiro de seu banco e de um par de agentes da bolsa. O mercado de valores é muito sensível às compras massivas em um período de escassa atividade. Mas o senhor poderia convencer ao doutor Maturin e a um ou dois amigos íntimos mais a que comprassem com moderação. Poderia convencer-lhes com afinco, mas sem dizer o que sabe e, naturalmente, sem trair minha confiança. O doutor Maturin entende a bolsa?
- Duvido muito.
- Contudo, uma pessoa analítica como ele poderia observar a Cidade e analisar o conflito entre a avareza e o medo que existe na mente de todos seus habitantes, um conflito simbolizado pelas cotações da bolsa. Talvez ele gostasse de ter uma lista das ações que têm mais probabilidade de aumentar de valor ou, melhor ainda, das que provavelmente aumentarão mais de valor. Queria expressar-lhe meu afeto assim, ainda que seja a distância. A lista é o fruto de muito tempo de estudo, e também poderia ser útil para o senhor.
Jack ainda levava a lista no bolso da casaca quando no dia seguinte entrou no clube, mas agora tinha cruzes e outras marcas por todas as partes e muitas anotações.
- Boa tarde, Tom - disse ao porteiro. - Há alguma carta para mim?
- Boa tarde, senhor - disse Tom, olhando sua caixa postal. - Não, senhor. Sinto muito, mas não há nenhuma.
- Bom, bom - disse Jack. - Suponho que não houve tempo… Tem visto o doutor Maturin?
- Ao doutor Maturin? Oh, não, senhor! Nem sequer sabia que estava na Inglaterra.
Jack subiu a escada. Estava alegre, mas muito, muito cansado; tinha o espírito leve, mas o corpo pesado. Não descansara durante a noite, pois passara a maior parte dela falando na carruagem; ficara esgotado ao caminhar pelas ruas de duras pedras depois de passar tanto tempo no mar; e as emoções da noite e do dia lhe haviam produzido ainda mais cansaço. A primeira visita que fizera foi aos seus advogados, e por eles soube que não se decidira nenhum de seus pleitos e que tudo estava quase igual ao que havia deixado. A única novidade era que consultaram dois eminentes conselheiros sobre o primeiro caso e que nenhum dos dois tinha uma opinião desfavorável à respeito, pelo que talvez se resolviria no trimestre seguinte. Isso significava que podia andar por todas as partes sem medo de ser preso por não pagar as dívidas e encerrado na casa de um oficial de justiça, assim que fora diretamente ver seu agente de negócios, que se ocupava de suas presas. Se passou toda a manhã em seu escritório e se informou de que as presas que capturara no Adriático, das quais quase não recordava os nomes porque passara muito tempo desde então, haviam sido mais produtivas do que esperava.
Depois foi ao banco onde tinha sua conta e recebeu uma singular bajulação. Depois de passar algum tempo falando com o sócio mais jovem, desceram juntos a escada e ele lhe disse que tinha que pedir dinheiro ao caixa porque guardava muito pouco em cima. Então o senhor Hoare passou para o outro lado do balcão e disse ao caixa:
- Este é o senhor Aubrey, capitão da Armada Real... Acho que podemos dar-lhe moedas de ouro.
Há muitos anos quase todo mundo tinha que se contentar em receber notas, mas Jack saiu do banco com vinte e cinco guinéus, cujo peso suportava com agrado pois lhe faziam sentir que sua riqueza era real. Depois de almoçar em uma casa de refeições especializada em carne, fora ver dois agentes da bolsa, um que se ocupava de seus investimentos e o outro que se ocupava dos de seu pai. A este último nunca vira antes, e o achou antipático desde o momento em que o conheceu. O senhor Shape atuava com a falta de precauções e a excessiva confiança própias de um agente da bolsa de terceira classe da Cidade. Não era propriamente um agente da bolsa, pois não era membro dela, senão um intermediário financeiro externo, e mesmo para alguém tão pouco acostumado a fazer negócios como Jack lhe pareceu que fazia seu trabalho com negligência. Contudo, amaria ser amável com Jack, e lhe disse que dias antes vira na cidade o general Aubrey e que o velho cavalheiro tinha tanta energia como sempre. Shape teria gostado de saber por que Jack queria comprar essas ações e o deixou entrever várias vezes; porém, quando Jack tinha que fazer frente a um sem-vergonha podia manter uma atitude impenetrável, e as confianças que Shape se permitia não incluíam as perguntas diretas.
Depois dessa desagradável cena, Jack pegou um carro para regressar a Whitehall. Fez uma inclinação de cabeça ao passar pelo Almirantado, essa fonte de grandes alegrias e grandes tristezas; atravessou o parque Saint James andando e finalmente chegou ao clube. Gostava de Londres e também gostava de caminhar, mas agora estava esgotado. Pediu uma jarra de vinho branco de Champagne e se sentou com ela em uma cômoda poltrona junto a uma janela que, dava para a rua. Pouco a pouco voltou a se sentir bem interiormente, começando pelos calcanhares arroxados e os pés cheios de bolhas, e a alegria ou quase o alvoroço que tinha desde as primeiras horas da manhã aumentou ainda mais quando pensou na grande quantidade de assuntos que havia resolvido nesse dia. Dentro de pouco terminaria de se repor e se levantaria para ir ao Cacho de Uvas, pois possivelmente ali encontraria alguma carta de Sophie e veria Stephen, ou pelo menos saberia algo dele.
Nesse momento sorriu, mas imediatamente o sorriso se apagou de seu rosto, pois viu a Edward Parker, um antigo companheiro de tripulação. Não tinha absolutamente nada contra de Edward Parker, mas não queria que ninguém lhe expressasse sua pena pelo que ocorria à Surprise. Sabia como resolver a situação. Parker era bastante bom marinheiro, valente e afortunado. Pertencia a uma renomada família de marinheiros, sempre tinha emprego e estava convencido de que chegaria a ser almirante. Além do mais, era esbelto, bem parecido e gostava de mulheres. Contudo, se avaliava a si mesmo por dois atributos que, na realidade, não possuía: a capacidade de montar a cavalo como um herói épico e a de beber mais que qualquer homem que se sentasse à mesa com ele.
- Oh, Aubrey! - exclamou aproximando-se. - Quanto sinto o que me contaram da Surprise!
- Não tem importância - disse Jack. - Hoje é o dia do Deus Baco, o patrão dos bebedores, e não se chora. William, traga outra jarra igual para o capitão Parker.
No clube havia jarras de prata muito elegantes, e a que trouxeram, coberta de gotas de água fria em uma brilhante bandeja, tinha uma extraordinária beleza.
- Bebamos heroicamente, de um só gole, pelo Deus Baco. Não desperdicemos nem uma gota.
Parker teve a coragem de fazê-lo, mas pesava cento e vinte e cinco libras - e Jack, em troca, duzentas e vinte e cinco - e além disso, não havia caminhado todo o dia por Londres, assim que na segunda jarra, que ele mesmo propôs tomar, foi sua ruína. Depois de permanecer ali sentado uns minutos com o rosto pálido e um sorriso congelado, deu uma desculpa pouco coerente e saiu apressadamente da sala.
Jack se acomodou na poltrona e passou a contemplar a maré humana que passava pela rua Saint James. No palácio se havia celebrado uma longa audiência e agora podiam ver-se muitos oficiais vestidos com uniformes de gala, vermelhos e dourados, com brilhantes sabres de aço e prata e com chapéus de plumas como o de Agamenon, que caminhavam apressadamente por Picadilly temerosos de que lhes alcançasse o aguaceiro que se aproximava. Os mais ricos tinham serventes que levavam guarda-chuva, e alguns, subindo o sabre, entravam fazendo muito ruído com suas esporas em um ou outro dos diferentes clubes situados na rua. Havia vários clubes ali, e quase enfrente da janela junto à qual Jack estava se encontrava o Button's, ao qual pertencia o general Aubrey. Jack também era membro desse clube, mas quase nunca ia porque não gostava muito de seus frequentadores, que, ou bem eram homens extraordinariamente ricos (havia mais duques ali que em qualquer outra parte), ou bem sem-vergonhas, ainda que alguns deles de boa família.
Quando os oficiais acharam refúgio, os demais cidadãos voltaram a encher a rua, e Jack notou com tristeza que as casacas de cores que se usavam em sua juventude perdiam cada vez mais terreno frente às de cor preta, que apesar de serem apropiadas para certas ocasiões, causavam a impressão de que quem caminhava pela rua estava de luto. De vez em quando se viam casacas de colorido verde garrafa ou granada ou azul intenso, mas a rua não parecia um jardim cheio de flores, como outrora. Ademais, agora entre os jovens estavam na moda as calças.
Viu passar muitos conhecidos, entre eles a Blenkinsop, um funcionário do Ministério de Assuntos Exteriores que se achava superior, e a Waddon, um vizinho de Hampshire que era uma excelente pessoa. Não parecia muito satisfeito, pois ia montado em um cavalo comprado recentemente que avançava de meio lado para a torre jogando espuma pela boca e expulsando ventosidades. Quando o relógio marcou a meia hora, o animal, um cavalo alazão castrado, deu um relincho e entrou correndo no beco que ficava junto ao Lock's. Jack viu imediatamente a Waddon sair dali com uma expressão mal-humorada, e pensou que provavelmente havia abandonado ao animal. Depois observou que Wray, um membro do Almirantado, e outro homem cujo nome não recordava, entravam no Button's seguidos de alguns homens com casaca negra. Então viu uma casaca de cor azul intenso que lhe era familiar, e imediatamente reconheceu ao seu pai, mas não lhe assombrou ver-lhe.
No passado, creio que houve alguém capaz de amar ao general Aubrey, a mãe de Jack, uma doce mulher; contudo, durante os últimos vinte anos nem ao menos seus cachorros haviam sentido afeto por ele. Só o que ocupava a sua mente era a idéia de ganhar dinheiro. Uma vez inclusive, ainda que as árvores não estivessem ainda muito robustas, cortara todas as árvores das terras de ambos, o que apenas lhe representou benefícios e em troca prejudicou muito a Jack, e agora estava associado com alguns tipos raros cujas atividades tinham certa relação com a banca, os seguros e a aquisição de propriedades. Havia deixado Jack sem a possibilidade de herdar suas deterioradas, mas ainda recuperáveis, propriedades porque se casara com a leiteira, a custa de exorbitantes capitulações matrimoniais, e tivera outro filho.
Mas Jack tinha senso do dever filial e lhe escrevera uma nota na qual lhe animava a investir até o último penique que tinha nas ações da lista que Palmer lhe dera, e lhe pedia que não divulgasse suas recomendações porque deviam se manter em segredo. Havia pensado mandá-la, mas agora, ao ver sua ossuda figura agarrar-se à grade da escada para subir, disse: "Maldito seja! afinal de contas, é meu pai. Vou perguntar-lhe como está". Mas de um canto de sua mente ouviu: "Se o fizer, terá que responder a suas perguntas". Então pensou: "Não. Só tenho que lhe dizer que devo guardar silêncio porque dei minha palavra de que o faria e ele me compreenderá". Terminou de beber seu vinho e atravessou a rua.
- Homem, Jack! - exclamou quando reconheceu ao seu filho. - Como está? Estava fora do país?
- Sim, senhor. Estive no Pacífico.
- E já regressou. Estupendo, estupendo - disse o general, que parecia muito satisfeito. - Acredito que Sophie se alegrou de lhe ver - acrescentou, satisfeito de ter se recordado seu nome, tão satisfeito que convidou Jack para tomar algo.
- O senhor é muito amável, senhor, mas já tomei três jarras de vinho branco de Champagne com o estômago quase vazio, e já estou começando a notar seu efeito. Mas poderia tomar café.
- Bobeira! - exclamou seu pai. - Não seja molenga. O bom vinho nunca fez mal a ninguém. Seguiremos com o vinho branco.
Quando bebiam a primeira taça, Jack perguntou cortesmente por sua madrastra e seu meio irmão.
- São um par de tontos sem-vergonhas, e passam a vida se lamentando - disse o general e, depois de fazer uma pausa e servir mais vinho, repetiu -: Acredito que Sophie se alegrou de lhe ver.
- Espero que se alegre, senhor - disse Jack -, mas ainda não fui para minha casa. O vinho é excelente, senhor. Além mais afrutado que o nosso. Como lhe dizia, ainda não fui para minha casa. O barco com bandeira branca me deixou em Dover e pensei que seria melhor vir a Londres primeiro.
- Recordo que aquele tenente mulherengo que estava sob seu comando era o capitão do barco com bandeira branca faz algum tempo. Como se chama?
- Babbington, senhor. Mas agora o é Harry Tennant.
- O filho de Harbrook? Verdade que Harry Tennant é o capitão do barco com bandeira branca?
- Sim, senhor - respondeu Jack, e se arrependeu de ter mencionado a maldita carraca, porque se recordou que quando seu pai recebia a mais mínima informação, ainda que fosse irrelevante, ele gostava de repeti-la até a saciedade. - Poderíamos sentar-nos em um tranqüilo canto da sala sul? Tenho algo muito importante que dizer-lhe sobre a compra de ações.
- Ah, é? - perguntou o general, olhando-lhe afetuosamente. - Vamos, então, e traga seu vinho. Mas deve falar rápido, porque espero umas pessoas que virão para ver-me. Onde comprou essa horrível casaca? - perguntou enquanto caminhava diante dele. - Espero que não tenha roubado de um espantalho.
Ao chegar à sala sul Jack se disse: "É melhor que não fale muito". Sentou-se em uma escrivaninha e rapidamente copiou a parte fundamental da nota.
- Aqui está - disse, entregando a lista ao seu pai. - Eu lhe recomendo sinceramente que invista até o último penique que possa nestas ações.
Depois lhe disse o mais claramente possível que a informação era estritamente confidencial e que procedia de um informante anônimo. Acrescentou que não podia responder a nenhuma pergunta e insistiu que havia dado sua palavra de não comunicá-la a mais de dois de seus amigos íntimos e que, potanto, sua honra estava em jogo.
O general o olhou entre malicioso e intrigado até que terminou de falar, e depois abriu a boca para dizer algo, mas antes que pudesse dizer palavra, um servente entrou apressadamente para dizer-lhe que seus convidados haviam chegado.
- Fique aqui, Jack - disse o general, pondo de um lado a sua taça vazia.
Pouco depois regressou à sala com três homens. O mundo de Jack caiu aos pés quando viu que um deles era o agente da bolsa de seu pai e os outros dois eram tipos vestidos ostentosamente, como os que via com freqüência quando ia à casa onde passara sua infância. Recordou-se que quando seu pai queria impressionar seus sócios lhes levava ali para mostrar-lhes a um ou dois duques.
- Este é meu filho - disse o general -, ainda que ninguém pensaria que é, pela idade que tem. Eu me casei muito jovem, muito jovem. É capitão de navio da Armada Real e acaba de desembarcar. Chegou a Dover no barco com bandeira branca justo ontem e já está aconselhando ao seu ancião pai sobre investimentos, ah, ah, ah! James, traga uma garrafa de um litro e meio deste mesmo vinho.
- O capitão e eu somos velhos amigos - disse o agente da bolsa, dando palmadas no ombro de Jack. - E lhe asseguro, general, que sabe muito de investimentos.
- Então o senhor veio no barco com bandeira branca, senhor - disse um dos outros dois homens. - Talvez possa dar-nos as últimas notícias de Paris. Imaginem se Napoleão estivesse realmente morrido e que a guerra estivesse a ponto de acabar. Imaginem!
- O barco com bandeira branca? - perguntou o agente da bolsa, que não o ouvira mencionar a princípio.
- Que sabe de investimentos? - inquiriu o general, e ambos olharam para Jack.
Jack permaneceu sentado ali bebendo uma taça de vinho depois da outra e evadindo as perguntas. Quando lhe perguntaram sua opinião sobre o desenrolar da guerra e sua provável duração, respondeu com uma série de tópicos, e com satisfação ouviu a si mesmo dizê-los a certa distância. Mas quando seu pai sugeriu que fossem ao Vauxhall, negou-se. Pensava que o dever filial tinha limites e que já os havia traspassado e, além disso, tinha uma boa desculpa.
- Não estou vestido de forma adequada para andar pela cidade - disse -, e muito menos para ir ao Vauxhall com tão distinta companhia.
- Talvez não - disse o mais estúpido e mais ébrio dos convidados vestidos ostentosamente -, mas todos desculpam nossos honoráveis marinheiros. Venha, por favor. Eu lhes convido. Nós nos divertiremos muito. Imaginem!
- Obrigado pelo vinho, senhor - disse Jack ao seu pai. - Boa noite, cavalheiros.
Fez uma reverência e, com os olhos fixos na porta aberta, avançou para ela muito rígido e quase sem respirar, e não se desviou nem uma polegada de seu caminho.
CAPÍTULO 5
Stephen Maturin foi do Strand até o condado de Savoy. Conhecia bem o caminho, tão bem que seus pés evitavam por si mesmos os piores buracos do pavimento, as grades de ferro que outras vezes haviam cedido sob seu leve peso, fazendo-lhe cair em depósitos de carvão, e as asquerosas sarjetas. Isso era muito conveniente para ele porque tinha a mente muito longe. Como dissera Jack, estava muito angustiado por causa de Diana, tão angustiado que ia ao Cacho de Uvas não só para trocar-se e barbear-se antes de ir para a rua Half Moon, senão também para saber algo dela, pois provavelmente haveria passado por ali porque a dona, a senhora Broad, era muito amiga sua e as duas se preocupavam muito com sua roupa.
Como tinha a mente em outra parte, teve uma grande surpresa quando, ao dobrar a esquina da rua onde ficava a hospedaria, levantou os olhos e viu uma enegrecida armação separada da rua por uma barreira, com a bodega coberta pela brilhante água de chuva, alguns balcões chamuscados onde haviam estado os pisos e samambaia e capim dentro dos nichos que antes eram armários embutidos. As casas que se achavam de ambos os lados estavam intactas, assim como as lojas da parte da rua que pertencia a Westminster. A rua estava cheia de gente que ia de um lado para outro como se o horrível espetáculo fosse algo normal. cruzou para comprovar sua posição e assegurar-se de que aquelas eram as ruínas do Cacho de Uvas e não uma ilusão de óptica, e quando estava de pé em frente delas, sentiu uma suave pressão na parte de trás da perna. Então se voltou, fazendo com os lábios uma careta que podia expressar satisfação ou raiva, e viu um cachorro grande e feio movendo a cabeça e a calda. Imediatamente reconheceu o cachorro mestiço do açougueiro, a quem lhe unia um grande afeto, pois, apesar de não ser rueiro e de ficar quase sempre com seu dono, muitas vezes passara o dia com ele.
- Mas se não é o doutor! - exclamou o açougueiro. - Pensei que o senhor tinha que estar por aqui quando vi que o cachorro começou a cabecear e a protestar. Estava observando o pobre Cacho de Uvas, né?
O incêndio teve lugar quando a Surprise saiu de Gibraltar e não houve vítimas. A companhia de seguros disputava com a senhora Broad pela reclamação e ela não podia custear a reconstrução até que recebesse o dinheiro. Até então se hospedaria na casa de alguns amigos em Essex, e todos no bairro sentiam sua falta.
- Cada vez que olho para o outro lado da rua me parece que o condado tem uma ferida - disse o açougueiro, assinalando o lugar com a faca.
Enquanto Stephen caminhava para o norte pensou que também havia sofrido uma ferida, uma inesperada ferida. Ignorava quanto significava para ele aquele tranqüilo refúgio onde havia deixado várias coleções bastante importantes, sobretudo a de peles de aves, muitos livros… Depois recebeu outra ferida muito mais profunda na rua Half Moon quando lhe disseram: "A senhora Maturin já não vive aqui", mas essas palavras lhe surpreenderam menos e não o fizeram se estremecer.
Seguiu andando pela rua Saint James enquanto se dizia: "Não devo sentir nada até que tenha a confirmação. Há mil explicações possíveis".
O clube de Jack não era o tipo de associação da qual Stephen se haveria feito membro por sua própia vontade, mas para Diana achava importante que ele fosse e pedira a seus amigos e a Jack que apoiassem a sua candidatura, pelo que há algum tempo pertencia a ele.
- Bom dia, senhor - cumprimentou-lhe o porteiro, que estava no saguão. - Tenho várias cartas e uma caixa com um uniforme para o senhor.
- Obrigado - respondeu Stephen, pegando as cartas.
A única que era importante era a primeira, e rompeu o selo enquanto subia a escada. Começava assim:
Por que absurdas promessas que no casamento fizemos, faz tanto tempo, nos obrigam a seguir juntos agora quando a paixão acabou?
Entre estas palavras e o último parágrafo havia uma parte com as linhas muito juntas e com muitas palavras sublinhadas que quase não podia ser lida com aquela luz. O último parágrafo, que tinha as linhas mais espaçadas e escritas com mais cuidado e com uma caneta diferente, dizia:
Seu novo uniforme chegou justo depois de partir, e em vez de deixá-lo no Cacho de Uvas, onde há tantos ratos e traças apesar de tudo o que faz a senhora Broad, mandarei-o ao clube. Ah, Stephen! lhe rogo que se lembre de usar camiseta e cuecas de flanela enquanto estiver na Inglaterra. Encontrará algumas em cima e abaixo do uniforme.
Leu essas palavras antes de chegar ao alto da escada. Depois meteu a carta no bolso, entrou na biblioteca deserta e deu uma espiada nos outros envelopes. Em um havia um pedido de um empréstimo ao qual devia dar imediata resposta mediante um mensageiro; em outros dois, convites para almoços que já foram digeridos há tempos; em outro, dois estudos sobre a pardela da espécie Manx, que leu com grande atenção. Depois voltou a ler a carta de Diana. Diana dizia que ele devia saber que ela consideraria uma ofensa que, sem uma pitada de discrição, passeasse com essa dama ruiva pelo Mediterrâneo, e que não julgava isso do ponto de vista moral, porque era melhor deixar isso para outros e esse não era seu estilo, mas que tinha que lhe confessar que não esperava uma grosseria como essa nem que, depois disso, talvez em um arrebatamento, não se houvesse justificado pelo menos com uma história que ela pudesse fingir crer sem perder a dignidade. Nesse momento Stephen procurou a data da carta, mas não a encontrou. Além do mais, Diana dizia que qualquer mulher de caráter consideraria isso uma ofensa, e que inclusive lady Nelson, que era muito mais dócil que ela, sentir-se-ia ofendida, apesar da intervenção de sir William. Ela confessava que apesar de todos os defeitos que ele tinha, jamais esperara que se comportasse como um sem-vergonha. Assegurava que sabia muito bem que os homens normais faziam essas coisas quando "a paixão se extinguia", mas que ele nunca lhe parecera um homem comum. Também dizia que nunca esqueceria o amável que fora com ela e que seu ressentimento nunca acabaria com sua amizade, mas que se alegrava de não ter-se casado em uma igreja católica nem em nenhuma outra igreja cristã. Logo, obviamente depois de uma pausa e com a segunda caneta, escrevera que não devia julgá-la mal, e um pouco mais abaixo a posdata em que falava da roupa.
Stephen não a haveria julgado pior que a um falcão que se houvesse passado a voar acreditando estar ferido. Havia visto muitos falcões orgulhosos e temperamentais amarem com veemência e terem violentas irritações… Mas sentia muita tristeza, tinha o coração partido. No início sentiu pena pela terrível perda, tanta que agarrou fortemente os braços da cadeira de balanço e começou a se balançar; contudo, depois se compadeceu dela. A conhecia há muito tempo, mas de todos os passos que dera precipitadamente, de todos os coups de tête que fizera, esse era o mais disparatado. Fugira com Jagiello, um lituano que era oficial do Exército sueco e que mostrava ostensivelmente sua admiração por ela há muito tempo. Mas Jagiello era um homem estúpido; alto, bonito e com o cabelo dourado, mas estúpido. As jovens o adoravam e os homens simpatizavam com ele porque era simples, franco e alegre, mas era superficial e estúpido e era incapaz de resistir a qualquer tentação que se apresentava amiúde pelo fato de ser rico e muito atraente. Era muito mais jovem que Diana, e a constância não era uma de suas virtudes. Não era possível que ele e Diana se casassem, pois, pensasse ela o que pensasse, posto que a cerimônia de seu matrimônio se celebrara a bordo do Oedipus, um navio de sua majestade, o matrimônio era legal. Diana necessitava da vida da sociedade tanto como da carne e das bebidas, e ele não tinha motivos para supor que a sociedade sueca seria amável com uma estrangeira que não estivesse casada e cujo único protetor era um hussardo jovem e estúpido. Pensou aonde a levaria seu destino dentro de cinco anos ou inclusive menos, e seu mundo caiu aos pés. O único que deu um pouco de luz àquela escuridão foi a idéia de que pelo menos ela era livre, que não dependia da generosidade de nenhum homem. Mas nem sequer estava seguro disso. Em outro tempo ela tivera grande quantidade de dinheiro, mas ele não sabia se investira o bastante para proporcionar-lhe uma renda razoável durante o resto de sua vida. Contudo, era provável, porque seu assessor financeiro, um banqueiro amigo seu chamado Nathan, com quem ele simpatizava, era competente. "Perguntarei a Nathan", pensou. Então se moveu na cadeira de balanço e sentiu que se encaixava no quadril a borda do maldito cofre de latão que tinha atado a um lado com uma venda (o havia feito porque uma vez havia deixado documentos secretos em um carro), e se recordou que tinha que entregá-lo o quanto antes.
Refletiu alguns momentos. Sentiu um grande alívio ao poder pensar friamente depois de ter estado perturbado por tão profundos sentimentos, de soltar interiormente tantas exclamações, de fazer incoerentes protestos por aquela injustiça e de repetir muitas vezes o nome de Diana. Levantou-se, foi até uma escrivaninha e escreveu: "O doutor Maturin apresenta seus respeitos ao sir Joseph Blaine e lhe comunica que ficará encantado de visitar-lhe quando o estime conveniente". Surpreendeu-se ao notar que sua mão tremia tanto que as palavras apenas podiam ser lidas, e então escreveu de novo a mensagem com muito cuidado e desceu para pedir que a entregassem na casa de sir Joseph, perto do mercado Shepherd, em vez de no Almirantado.
- Ah, Stephen, está aqui! - exclamou Jack, que entrava nesse momento. - Quanto me alegra de lhe ver! Não acha horrível o que ocorreu ao Cacho de Uvas? Mas pelo menos ninguém saiu ferido. Venha, suba, tenho algo muito importante para dizer-te.
- Algum dos casos se resolveu? - perguntou Stephen.
- Não, não; não é isso. Não há passado nada em meus assuntos legais. Isto é muito diferente. Você se assombrará.
A biblioteca ainda estava vazia. Stephen se sentou de costas para a janela e viu como Jack, que tinha a cara totalmente iluminada, pôs uma expressão satisfeita porque pensava que podia lhe ajudar a conseguir uma fortuna.
- O importante é que há que fazer as inversões nos próximos dias - concluiu Jack. - Por isso me alegrei tanto de encontrar-te agora. Ia para a rua Half Moon para levar-te esta lista para o caso de estar ali.
Trouxeram uma mensagem para o doutor Maturin em uma bandeja.
- Desculpe-me, Jack - disse Stephen.
Então se voltou para a janela e leu a mensagem, que dizia que sir Joseph ficaria encantado de recebê-lo a qualquer hora depois das seis da tarde. Depois se voltou de novo para o interior da habitação e notou que Jack o olhava com uma expressão preocupada.
- Sente-se mal, Stephen? - inquiriu. - Sente-se. Eu lhe trarei uma taça de conhaque.
- Escute-me, Jack - disse Stephen -: Diana foi viver na Suécia. - Houve um embaraçoso silêncio. Jack compreendeu imediatamente que Jagiello tinha algo a ver com o caso, mas não lhe parecia adequado dar a entender e não era possível que ele fizesse nenhum comentário a respeito. Stephen continuou -: Achou que Laura Fielding era minha amante e considerou uma deliberada e grave ofensa que passeasse com ela pelo Mediterrâneo. Diga-me, realmente parecia isso? Parecia que eu era amante de Laura?
- Acho que as pessoas, em geral, pensavam… Parecia que…
- Mas lhe expliquei o melhor que pude - disse Stephen como se falasse consigo mesmo.
Olhou o relógio mas, ainda que os ponteiros podiam ser vistos claramente, não pôde saber a hora porque tinha a mente em outro lugar: "Partiu antes ou depois de Wray lhe entregar minha carta? Tenho que averiguar esse detalhe". Depois perguntou:
- Que horas são?
- Cinco e meia - respondeu Jack.
Então Stephen pensou: "Já não poderei encontrar-lhe no Almirantado. Devo ir ver-lhe em sua casa, e como fica perto da de Nathan, terei tempo para visitar os dois se me apressar".
- Jack - disse -, agradeço muito as recomendações sobre as ações e outros valores. Hás sido muito amável. porém, diga-me, você se comprometeu a não dizer nada mais?
Jack assentiu com a cabeça.
- Então é inútil tentar que me repita as perguntas que fizeste ao seu informante.
- É uma boa pessoa - disse Jack. - Ele lhe conhece, e também a história da Testudo aubreii.
- Ah, é?
Stephen refletiu durante alguns momentos. Pensou que o informante não podia ganhar nada enganando Jack e que, apesar de que estivesse equivocado, Jack pelo menos teria os valores e só perderia a comissão paga aos intermediários financeiros.
- Tenho que deixar-te. Devo fazer algumas visitas.
- Naturalmente, virá a Ashgrove - disse Jack. - Sophie se alegrará de ver-te. Pensava em ir no domingo pelo temor aos alguazis, mas agora poderia ir qualquer dia, inclusive amanhã, se quiser.
- Não acredito que esteja livre até a terça-feira - respondeu Stephen.
- Não me importaria ficar aqui um pouco mais de tempo - disse Jack. - Então, iremos juntos na terça-feira.
Stephen não teve êxito na primeira visita. Alguns minutos depois de ter entregado seu cartão de visita, disseram que Wray não estava em casa. Depois, enquanto caminhava debaixo de um chuvisco, pensou: "Havia esquecido que me deve grande quantidade de dinheiro, e possivelmente por isso minha chegada foi inoportuna".
Na segunda não teve mais sorte. Na realidade, não chegou a fazê-la. Muito antes de chegar à porta da casa pensou que Nathan, assim como todos seus conhecidos em Londres, devia estar ciente da separação, e que, por ser o assessor financeiro de Diana, consideraria inapropiado falar de seus negócios. Não obstante, tocou a campainha, mas imediatamente, com certa satisfação, informou-se de que o senhor Nathan não estava em casa. Mas Meyer, o irmão menor do senhor Nathan, estava ali, justamente no saguão, e quando ele se negou a chamar um carro para ir-se, ele lhe entregou um pesado guarda-chuva de guingão e ossos de baleia. Stephen, protegido pelo guarda-chuva e caminhando entre a multidão que avançava a empurrões, foi até o guarda-volumes da estação de carruagens, pois em um deles havia feito a última parte de sua viagem. Na rua onde estava situada havia muita lama, excrementos de cavalo e muita sujeira, e viu ao gari diante dele abrindo um caminho com sua vassoura. Quando o garoto se deteve no lado contrário da rua, disse:
- Não esqueça do gari, sua senhoria.
Stephen meteu a mão em um bolso da casaca e depois no outro e replicou:
- Sinto muito garoto, mas esses porcos não me deixaram nem um penique nem o lenço. Não tenho dinheiro.
- Sua mãe não lhe disse que guardasse as moedas e o lenço dentro dos calções? - perguntou o garoto, franzindo o cenho e, depois de pensar alguns momentos, quando já estavam a certa distância, gritou -: Besta! Bastardo! Cornudo!
No guarda-volumes da estação de carruagens, Stephen pegou um pacote que estava em seu baú, deu instruções para o envio do restante da bagagem, e foi até o mercado Shepherd avançando com dificuldade, pois o vento era muito forte e tinha que sustentar simultaneamente o pacote e o pesado guarda-chuva. O guarda-chuva era uma prova da compreensão do mais jovem dos Nathan. Stephen havia notado que lhe falara em um desacostumado tom grave e lhe olhara com afeto, mas, como estava muito aflito, considerava que essas coisas eram mostras de sua compaixão e pensava que eram inúteis, embaraçosas e constrangedoras e, além do mais, causavam-lhe dor.
"Espero que sir Joseph não se sinta obrigado a expressar-me sua condolência - pensou quando se aproximava da porta de sua casa. - Não acredito que pudesse suportar. Sem dúvida, conforme as normas sociais, deveria mostrar-me de algum modo sua preocupação, mas agora não, meu Deus, agora não."
Não tinha que temer o encontro com sir Joseph, que lhe deu uma calorosa boas-vindas e até depois de um comprido tempo não deixou entrever que conhecia sua lamentável situação nem que se compadecia dele. Até que não terminaram de falar da viagem, que, obviamente, era do que deviam tratar primeiro, e não se contaram o que sabiam sobre outros naturalistas e sobre as atividades da Royal Society, Stephen não perguntou a sir Joseph por sua saúde. O motivo de que fizesse essa pergunta a Blaine era que lhe examinara e lhe receitara um remédio porque sua potência sexual fraquejava, o que tinha muita importância para ele devido a que pensava em se casar, e agora gostaria de saber se o remédio fizera efeito.
- Fez efeito e melhorei extraordinariamente - respondeu sir Joseph. - Inclusive Príapo teria se ruborizado ao ver-me. Mas deixei de tomá-lo porque refleti sobre o matrimônio e me dei conta de que se bem, em teoria, tem muitas coisas boas, na prática, como pude comprovar observando muitos de meus amigos, não proporciona muita felicidade. Quase não pude encontrar nenhum casal cujos membros, pelo menos em aparência, tivessem as qualidades necessárias para satisfazer um ao outro por mais de alguns meses; depois de aproximadamente um ano as discrepâncias, a luta para ter vantagem sobre o companheiro, os problemas pelas diferenças de caráter, de educação, de gostos e de apetite e cem coisas mais lhes levaram a discutir, a mostrar-se incômodos ou indiferentes, ou inclusive a parecer desagradáveis ou algo pior um ao outro. Pode-se dizer que poucos amigos meus são felizes em seu matrimônio, e em alguns casos…
Nesse momento interrompeu-se e era óbvio que lamentava ter dito essas palavras. Então passou a observar outra vez os insetos que Stephen lhe trouxera do Brasil e do Pacífico. Depois de falar um pouco sobre os insetos, acrescentou:
- Ademais, entre nós, confessarei que ouvi que a dama se referia a mim como seu "velho galã", e posso suportar que me chamem de velho, mas a palavra galã me parece provinciana e me produz desassossego e arrepios. Por outro lado, o matrimônio e a espionagem não são bons companheiros, ainda que já não tenho nada a ver com a espionagem.
- Ah, não? - inquiriu Stephen, olhando-lhe nos olhos.
- Não - respondeu Blaine. - Não mais. Provavelmente recordará que quando o senhor estava em Gibraltar lhe mandei uma mensagem, quase um criptograma, em que contava que no departamento havia uma tempestade, águas turbulentas e fortes correntes. Pois bem, quase tudo o que profetizei ocorreu. Permita-me falar um momento com a senhora Barlow de nossa janta, e quando terminarmos de comer lhe contarei todos os detalhes.
- Primeiro quisesse que me emprestasse um lenço. Roubaram-me quando ia a White Horse.
- Oxalá que não haja perdido muito.
- Só quatro peniques, um lenço de bolinhas e uma grande dose de amor própio. Achava que podia defender-me de um ladrão comum. É verdade que nesse momento tinha que esforçar-me para sustentar um enorme guarda-chuva, mas essa não é uma desculpa válida. Roubaram-me facilmente, como a um tosco. Que vergonha!
Jantaram uma lagosta de considerável tamanho, um bolo de capão e arroz com leite, uma sobremesa que ambos gostavam muito. Mas sir Joseph se limitou a dar voltas na sobremesa, e quando passaram para a biblioteca com as taças de vinho, disse:
- O fato de lhe terem roubado como se o senhor fosse um pastrano me recordou tanto a minha desgraça que me tirou o apetite. Sou mais velho que o senhor, Maturin, e tenho mais experiência; contudo, alguém me derrotou. E o que me dá raiva é que sei tanto da pessoa que me prejudicou como o senhor da que lhe roubou.
Então contou a Stephen as mudanças que o serviço secreto naval sofrera. Conservava um título pomposo, mas, durante uma das silenciosas batalhas sustentadas em Whitehall que deixavam os ministérios de revés, despojaram-no de quase todo seu poder real. Ainda seguia representando o Almirantado nas reuniões do Comitê, mas não intervinha no trabalho cotidiano do departamento. No janeiro passado caíra com seu cavalo quando cavalgava por um caminho gelado no campo, e ainda que só passara duas semanas de cama, esse período de catorze dias foi muito longo; nesse intervalo se realizaram três reuniões em que seus oponentes arrasaram com tudo, e quando regressou encontrara todo o departamento reorganizado. Haviam mandado quase todos seus amigos para postos irrelevantes em outros lugares, e os que restavam não tinham esperança de que serem apoiados nem promovidos. Tiraram seus ajudantes, haviam dado seus despachos para outros, puseram-lhes em covachos e cantos para lhes induzir a renunciar e, ademais, utilizavam qualquer deslize de um agente secreto em um lugar remoto para desacreditar-lhes. O mesmo havia ocorrido a outros homens que colaboravam de fora do departamento.
- Muitos colegas foram tratados sem respeito e partiram ofendidos. Quando for ao Almirantado não se assombre se lhe pedirem para devolver a chave da porta secreta. O pretexto que lhe darão será, sem dúvida, que vão trocar a fechadura.
Confessou que teria renunciado há meses se aquele não fosse um departamento pouco comum e se não tivesse esperanças de que poderia mudar a situação.
- Maturin, não encontro palavras para expressar com quanta veemência desejo que as coisas sejam de novo como devem ser. Seguirei ali, apesar de todas as afrontas, até consegui-lo.
- Sabe quem são esses oponentes que mencionou? - perguntou Stephen.
- Não, e isso é o que mais me incomoda. Barrow voltou a ocupar o posto de vice-secretário, como provavelmente o senhor saberá, e nunca nos simpatizamos. Além disso, depois do caso de Wilson, mantivemos distância em todo momento. É um homem muito trabalhador e diligente, dá muita importância à aparência e aos detalhes e respeita às pessoas de classe superior até o ponto de chegar ao servilismo. É um ignorante e não é capaz de ter uma visão global de nenhuma situação, mas como chegou mediante seus própios esforços a um alto cargo desde sua humilde origem, tem um grande conceito de suas habilidades; assim que a princípio pensei que a reorganização era simplesmente uma tentativa sua para aumentar seu poder, sobretudo porque deixou que Wray, um jovem ambicioso, siga sendo seu principal conselheiro. Mas essa não é a explicação. É um pobre homem, e sua idéia de uma grande vitória é ter seis ajudantes a mais e um tapete turco. É verdade que Wray, ainda que seja um pederasta frívolo e corrupto, é muito mais inteligente que ele, mas depois de ver como tratam de resolver os casos e a influência que se exerce sobre eles, especialmente a do Ministério da Fazenda, acredito que tudo é obra de alguém que está muito acima deles. Acho que há algum Maquiavel no Ministério da Fazenda ou o Conselho dos Ministros que lhes manipula, mas não sei quem é nem qual é seu objetivo. Às vezes penso que tudo isso é motivado por coisas comuns, como a insaciável ambição de poder e o afã de ter autoridade para dar nomeações e de fazer o que se queira; contudo, às vezes suspeito que os motivos são mais sinistros. Mas não lhe vou falar mais do assunto até que não tenha sólidas provas, porque um homem indignado e decepcionado é propenso a exagerar a maldade de seus oponentes. Eles não devem pensar que, impedindo-me de ter acesso aos informes C e F e ter contato com os agentes dessa área vão se livrar de mim, porque um homem de minha posição tem muitos velhos amigos em outros serviços secretos em quem pode confiar, e espero que com sua ajuda possa chegar ao fundo da questão.
- Estou muito preocupado com o que me contou - disse Stephen. - Estou realmente preocupado. Escute-me bem, Blaine. Antes de sair de Gibraltar o secretário do almirante me mandou buscar para dizer-me que devia me comunicar que o Governo havia mandado o senhor Cunningham, com uma grande quantidade de dinheiro em moedas de ouro, para as colônias espanholas da América do Sul no paquete Danaë. Temia-se que o paquete fosse capturado pela fragata norte-americana que nós devíamos destruir, e me ordenou que, caso nos encontrassemos com ele no Atlântico, tinha que deixar Cunningham com as moedas de ouro, mas devia pegar uma quantidade de dinheiro muito maior que haviam escondido em sua cabine sem que ele soubesse. A fragata norte-americana capturou o Danaë, mas nós o recuperamos deste lado do cabo de Horn e pensei que, de acordo com as instruções recebidas, meu dever era encontrar essa enorme soma, e a encontrei dentro de um pequeno cofre de latão que agora tenho atado a meu corpo. Jack Aubrey enviou o Danaë para a Inglaterra sob o comando do capitão Pullings, porém, como era provável que fosse apresado outra vez, pensei que era melhor deixar o cofre em um barco de guerra, que tinha menos possibilidade de ser capturado. Contudo, vários aspectos desse assunto me preocupavam, como, por exemplo, que entre as possíveis situações previstas pelas que recebi instruções não estava incluída a recuperação do Danaë e o que eu havia feito podia ser interpretado como um abuso de poder, que o selo do cofre se rompeu quando caiu do lugar onde estava escondido e que a soma que recolhemos do solo Jack e eu, pois ele me ajudou a seguir as indicações náuticas para encontrá-la, é tão, tão grande que eu não gostaria de ter me responsabilizado por ela, nem sequer estar relacionado com ela. Além disso, tinha a carta que o senhor me enviou contando que em Whitehall havia uma atmosfera fria. Nós pusemos outra vez essa soma no cofre e o lacramos usando minha chave. Aqui está - acrescentou, tocando-se em um lado.
- Encontrou-se com Barrow ou Wray?
- Não. Fui ver Wray em sua casa, mas não estava. Além disso, ia lhe falar de algo muito diferente.
No rosto de Stephen, geralmente impassível, refletiu-se uma profunda tristeza, e baixou a cabeça um instante.
- Desde o início pensei que não iria ao Almirantado até depois de falar extra-oficialmente com o senhor e pedir-lhe conselho. Agora me alegro muito de tê-lo feito.
- É realmente uma grande soma?
- Já verá - respondeu Stephen.
Levantou-se, tirou a casaca e o colete, levantou a camisa e tirou a venda. Outra vez o cofre caiu ao solo e outra vez a soma assombrou aos que a recolheram.
- Não, isto não tem nada a ver conosco, com o serviço secreto naval. Esta quantidade excede o orçamento do departamento e poderia servir para uma operação de grandes dimensões, como a subversão de um reino.
- Não lembrava que a quantia era tão grande - disse Stephen. - Acho que não fiz a soma então porque tinha uma grande preocupação com meus pacientes.
Então, sacodindo um feixe de notas, disse:
- "Em vão lutam os heróis e arengam os patriotas / se o ouro passa secretamente de um pilantra para outro." Pelo menos, se passar uma quantidade como esta.
- Santo Céu! - exclamou sir Joseph, ainda caminhando de gatinhas pelo solo. - Se eu me desse tão bem com as matemáticas como o seu amigo Aubrey, a quem ouvi apresentar na Royal Society um novo método de calcular a ocultação dos astros que me deu dor de cabeça, poderia calcular o número de homens que seriam necessários para transportar esta soma em moedas de ouro. E pensar que cabe tudo em um pequeno cofre de latão! Isto demostra a conveniência das notas e dos títulos ao portador que podem ser creditados com discrição em qualquer banco. Recorda-se dos versos que seguem ao verso que recitou? - perguntou enquanto se levantava com um ranger de joelhos.
- Recorde-me por favor - disse Stephen, que sentia um grande afeto por Blaine.
- Benditos valores! - exclamou sir Joseph, fazendo ênfase na palavra "valores" e alçando um dedo no ar e depois continuou -:
Benditos valores! São o recurso último e melhor
para dar asas mais ligeiras à corrupção!
Uma só folha pode varrer um exército
ou trasladar senados para lugares distantes.
Está cheio de zeros e, sutilmente, até o mais
insignificante move,
e silenciosamente uma rainha compra ou um rei vende.
- Efetivamente, cada uma está cheia de zeros - disse Stephen. - A questão é o que devo fazer com estas folhas cheias.
- Acho que o primeiro que deve fazer é um inventário - disse sir Joseph. - Ordenemo-as e depois, se o senhor lê os nomes e cifras que aparecem nelas, eu as anotarei.
O inventário levava tempo, e cada vez que chegavam ao final de uma página, faziam uma pausa para beber uma taça de vinho do porto. Durante uma dessas pausas sir Joseph disse:
- No início Barrow me tratava com deferência, mas quando soube que eu também era filho de um trabalhador, começou a tratar-me com desprezo. Por outro lado, acredito que atribui muito valor a Wray porque tem muitas relações e é muito inteligente.
- Devo lacrá-lo de novo? - perguntou Stephen quando terminaram a lista e o cofre se encheu.
- É melhor - respondeu sir Joseph. - Não tenho em casa nenhum pedaço de corda. Quis amarrar um pacote há pouco e não pude.
- Acha que devo dá-lo a Barrow ou a Wray? E devo pedir-lhes que me dêem um recibo? - perguntou Stephen, que agora tinha esgotamento mental e espiritual e desejava que lhe dissessem o que devia fazer.
- Deve dizer que quer ver-me, e quando lhe digam que não estou, dizer que quer falar com Wray, pois ele foi a última pessoa com quem o senhor esteve em contato. Quanto ao recibo… Acho que é melhor fazer as coisas de forma simples, é melhor entregar esta enorme fortuna sem pedir nenhum recibo nem nenhum outro documento onde se faça constar formalmente a entrega. Além disso, um recibo não serve de nada, porque se algum deles tiver má fé, sempre poderá dizer que havia mais dinheiro no cofre antes do selo ser rompido. Tampouco serve de nada um inventário, pois não tem valor legal. Mas não acredito que seja necessário recordar-lhe, Maturin, que no serviço secreto nem sempre julgamos as coisas seguindo as leis ao pé da letra. - Entregou o lacre para Stephen e sustentou a vela enquanto ele selava o cofre, depois prosseguiu -: Durante esta guerra tem havido um grande gasto de fundos públicos, e a malversação também alcançou grandes proporções. No Almirantado, uma grande quantidade de dinheiro passa por várias mãos, e algumas delas têm facilidade para reter as coisas. Quando o senhor Croker assumiu o cargo de secretário, acredito que em um período em que o senhor estava no estrangeiro, revisou os casos de que se ocupara Roger Horebound, a quem chamávamos Roger o Gracioso, e descobriu que se apropriara de nada menos que duzentas mil libras. Isso não tinha nenhuma relação com nosso departamento, pois, como o senhor bem sabe, o secretário não tem nada a ver com o serviço secreto, e até há pouco era eu quem o dirigia. Roger o Gracioso foi pego, mas há gente mais inteligente e mais prudente que ele. Às vezes me parece que o motivo, ou um dos motivos, para outros tenham procurado assumir o nosso departamento seja a avareza, pois nele não se pode controlar todos os gastos e grandes somas passam de umas mãos para outras. Se isso é assim, e cada vez estou mais convencido disso, as pessoas relacionadas com este caso, indubtavelmente, ficarão com parte desta grande quantia de dinheiro - disse, assinalando com a cabeça o cofre de latão. - Barrow não o fará, pois, apesar de que me parece detestável e tonto, estou completamente seguro de que é honesto. Como disse, as pessoas relacionadas com este caso… Mas casualmente tenho muito boas relações com os Nathan e seus primos, que nos apoiaram muito nesta guerra, e tão logo alguém negocie algum destes valores eu me informarei e, o que é mais importante, descobrirei quem são meus inimigos.
Então fez alguns comentários sobre o mercado de valores a os quais Stephen prestou pouca atenção e depois riu e acrescentou:
- Que estupenda armadilha! Se não houvesse existido, teria que tê-la inventado. Porém, teria me ocorrido uma idéia tão boa como esta? Duvido. Diga-me, estimado Maturin, alguém sabe que o senhor vinha me ver?
- Ninguém, ainda que seja possível que porteiro de meu clube, a quem encarreguei de lhe enviar a nota, suspeitasse.
- Qual é seu clube?
- O Black's.
- Esse também é o meu. Não sabia que o senhor era membro.
- Quase nunca vou.
- Será mais prudente que nos vejamos lá. E também será prudente que o senhor vá armado, Maturin. Pode ser que esteja equivocado com respeito à má fé desses homens, como acabo de dizer, mas não lhe fará mal supor que tenho razão. O senhor se encontra em uma posição vulnerável. Sugiro que faça os outros verem que é capaz de se defender, que tem aliados e que não podem lhe tratar como a um homem insignificante, que não podem lhe humilhar nem lhe culpar de nada, nem lhe destruir. Não vai ao aniversário do regente? Ali estarão muitos de seus amigos mais importantes e o duque de Clarence.
- É possível - disse Stephen, sem convicção.
Levantou-se para se despedir e meteu o cofre no bolso. Tinha a mente embotada pelo cansaço.
- Por último quero lhe sugerir… - começou a dizer muito baixo e em tom vacilante. - Quero lhe sugerir que se lhe propuserem uma missão do outro lado do Canal, não a aceite.
Stephen, com a mente limpa outra vez, levantou os olhos.
- Não, não quero dizer isso - disse sir Joseph ao ler em seu rosto assombrado uma pergunta. - O que quero dizer é que não têm discrição e são ineficientes, mas acho que seria muito raro que chegassem a ser sinistros. Contudo, em seu caso acredito que o senhor deveria extremar as precauções. Venha, farei que lhe acompanhem até seu clube; as ruas não são seguras pela noite. Ainda que lhe poupariam muitos problemas, se lhe roubassem outra vez.
Pela manhã, uma radiante manhã na qual, contudo, qualquer marinheiro poderia notar que estava se formando uma tormenta ao este-nordeste, Jack e Stephen atravessaram o parque e foram até o Almirantado. O capitão Aubrey, que ia fazer uma visita oficial, usava seu uniforme; o doutor Maturin, em troca, ia ali como um conselheiro civil e usava uma decente casaca de cor parda com botões forrados. Fizeram que entrassem em uma sala de espera na qual Jack passara muitas horas de sua vida, e nela encontraram sentados uma dúzia de oficiais. A maioria deles eram tenentes e capitães de corveta, naturalmente, pois constituíam a classe mais; numerosa, e eram tantos os que não haviam obtido uma ascensão que Jack viu vários de seus contemporâneos. Um deles era um tenente que era o segundo a bordo do Resolution quando ele viajava nesse barco como guarda-marinha, e ambos estavam falando de sua bodega de popa quando chegou um zelador e anunciou a Jack que o primeiro lorde estava livre.
Mesmo que o primeiro lorde fosse frio e pouco expressivo, disse que era um prazer dar as boas-vindas à Inglaterra ao capitão Aubrey e comunicar-lhe que a Junta se alegrara muito que a expedição do Pacífico terminasse satisfatoriamente e que a Surprise houvesse regressado em boas condições. Acrescentou que lamentava não ter disponível nenhum barco adequado para ele cujo comando pudesse lhe dar e que, como sabia que os marinheiros chegavam a apegar-se muito com seus barcos, lamentava ainda mais ter que comunicar-lhe que a Junta decidira vender a Surprise.
- Sim, milorde, todos a queríamos muito - disse Jack. - Conheço a Surprise desde que era um garoto, há vinte anos, e sei que nunca houve nenhuma embarcação como ela. Mas confio em que poderei comprá-la, pois não acredito que valha muito dinheiro.
- Esperemos que pelo menos obtenhamos uma moderada soma por ela para aumentar os recursos da Armada - disse Melville, olhando fixamente para Jack Aubrey.
A maioria dos oficiais da marinha se preparavam para uma entrevista no Almirantado bebendo conhaque, rum ou genebra, mas não Jack Aubrey. A razão pela qual não havia protestado ao ouvir aquela notícia - uma notícia que lhe afetava pouco, pois sabia que a paz estava próxima e a fragata deixaria de ser útil - era que estava alegre porque pensava que voltaria a ser rico, que veria Sophie e as crianças dentro de poucos dias e que suas preocupações terminariam.
- Por último, milorde - disse, pondo-se de pé quando a conversa chegou ao seu fim -, queria lhe recomendar a Tom Pullings, um capitão de corveta que é um excelente marinheiro e que atualmente está desempregado. Trouxe o Danaë para a Inglaterra como voluntário.
- Levarei isso em conta - respondeu Melville -, mas, como o senhor sabe, Whitehall está cheio de capitães de corveta que são excelentes marinheiros e desejariam ter uma corveta sob seu comando.
Jack se dirigiu até a porta e justo antes de abri-la disse:
- Agora que nossa entrevista oficial terminou, queria lhe perguntar como está Heneage.
Heneage Dundas era o irmão mais novo de Melville, e quando este ouviu mencionar seu nome pôs uma expressão de desgosto.
- Heneage está em Portsmouth, supervisando o aprovisionamento da Eurydice para levá-la à base naval da América do Norte. Deve zarpar dentro de um mês no máximo, e quanto antes melhor. Aubrey, queria que, como amigo, fizesse compreendesse que todos desaprovam os atos indevidos que comete. No sábado largaram em frente a sua porta outro bastardo e isso é uma vergonha para ele, sua família e inclusive para seus amigos.
Em outra parte do edifício, Stephen ainda estava esperando. Havia perguntado por sir Joseph e lhe haviam levado para uma zona escura situada na parte traseira. Depois lhe disseram que sir Joseph não podia lhe atender.
- Nesse caso, queria falar com o senhor Wray - solicitou.
Então o fizeram entrar para uma pequena sala escura e quase vazia. Para poder dormir na noite anterior, havia tomado o láudano, a tintura de ópio, e o relaxamento que lhe produziu, pelo menos o relaxamento físico, ainda durava. Por outro lado, já não dava importância ao caso do cofre de latão, e só desejava poder desfazer-se dele. O que realmente lhe interessava nessa entrevista era averiguar quando Wray havia entregado a carta a Diana.
Potanto, ficou esperando sem fazer nenhum movimento, absorto em suas meditações. Mas inclusive ele tinha um limite, e quando o ruído do relógio interrompeu seus pensamentos ao dar a hora, percebeu que lhe estavam tratando desrespeitosamente. Esperou para que o relógio marcasse o quarto de hora e então saiu da sala, atravessou um grande escritório cheio de assombrados empregados, percorreu dois corredores e entrou na sala de espera principal, onde Jack lhe esperava. Ali deixou uma nota na qual informava assunto que desejava tratar com sir Joseph ou com o senhor Wray, o paquete Danaë, e que regressaria no dia seguinte às onze da manhã.
- Vamos - disse a Jack. - Busquemos algum restaurante respeitável onde possamos almoçar. Conhece algum que abra cedo?
- Fladong's - respondeu Jack. - Costuma ter um horário similar ao dos marinheiros. Quando era jovem e dispunha de algum dinheiro, comia ali às duas.
Fladong's ainda tinha um horário como o que habitualmente tinham os marinheiros, e ainda que não comessem às duas, comeram em uma hora cedo em Londres. Quando terminaram, Stephen explicou:
- Venha comigo até a rua Upper Grosvenor, Jack. Quero ver Wray, que provavelmente irá agora a sua casa para almoçar. Só vou para marcar um encontro com ele.
- Se quer ver Wray, tem muita probabilidade de encontrar-lhe em sua casa - disse Jack alguns minutos depois, assinalando com a cabeça a parte do parque onde desembocava naquela rua.
- Que vista tem, meu amigo! - exclamou Stephen. - Não haveria podido distinguir-lhe daqui sem um luneta. Agora escute-me: se não quiser me acompanhar, dê um par de voltas pela praça até que me reúna contigo.
- Muito bem - disse Jack -, mas depois irei trocar o uniforme por uma roupa de paisano, pois não gosto de andar por aí como um maldito soldado.
Separaram-se. Stephen foi até a casa, tocou a campainha e entregou seu cartão de visita. Comunicaram-lhe que o senhor Wray não estava em casa e regressou à praça.
- Ele estava em casa? - perguntou Jack.
Stephen poderia ter respondido que lhe encontrara fora, mas não tinha coragem para mentir e se limitou a dizer:
- O pobre homem me deve uma grande quantidade de dinheiro que perdeu jogando cartas, e acha que tenciono reclamá-la; contudo, só o que quero é que me diga uma data relacionada com outro assunto. Contudo, isso não significa que não receberia o dinheiro de bom grado. Arrisquei o meu e teria pago se houvesse perdido.
Quando Jack, vestido com sua casaca de espantalhos e suas calças de cor parda, desceu a escada para ir com seu amigo a um concerto de música antiga, Stephen disse:
- Perdoe-me, meu amigo, mas não posso cumprir o acordado para a terça-feira. Tenho que ir ao aniversário do regente.
Poderia ter acrescentado "porque tampouco vou ver Wray no Almirantado amanhã", se esse comentário não houvesse sido impróprio de sua reserva, em parte inata e em parte adquirida.
Não viu Wray no outro dia, e quase se alegrou disso. Não estava em boas condições, e quando pensava que teria que ver sua expressão compassiva e sua alegria bem dissimulada, ainda que não totalmente oculta, por ter triunfado, acometia-lhe uma imensa raiva. Quando se dirigia a Whitehall para comparecer ao seu encontro, foi empurrado várias vezes e devolveu os empurrões com força, o que raramente fazia, já que costumava evitar o contato físico com outras pessoas e dominava suas emoções. Ao chegar lhe fizeram entrar em um quarto que poderia ter sido o escritório de Wray, um amplo quarto com um grande fogo na lareira e um tapete de considerável tamanho, mas detrás da espaçosa mesa, em cima da qual se encontrava um tinteiro de prata, estava sentado um homem de meia estatura e feições comuns que vestia um brilhante traje preto e uma gravata-borboleta branca excessivamente engomada, tinha uma extraordinária quantidade de pó no cabelo, e por tudo isso tinha aspecto de funcionário de alto categoria. Seu gesto mostrava seu autoritarismo e sua propensão ao enfado e, além disso, o nervosismo que sentia nesse momento. Apresentou-se como o senhor Lewis, disse que representava o chefe do departamento e, para mostrar sua autoridade desde o primeiro momento, acrescentou que o doutor Maturin havia chegado com dez minutos de atraso, pois já eram onze e dez.
- É possível - disse Stephen -, porém, sabia o senhor que ontem me fizeram esperar mais de uma hora e não me deram nenhuma explicação nem se desculparam?
- Lamento que lhe fizessem esperar, mas o senhor não acha que o vice-secretário interino, o homem que substitui o vice-secretário do Almirantado, pode receber todas as pessoas no momento em que estimam conveniente vir.
- Todas as pessoas - disse Stephen, pondo-se de pé e aproximando-se do fogo. - Todas as pessoas - repetiu, metendo o atiçador no fogo para fazer que entrasse mais ar no centro.
Lewis o olhou com profundo desagrado, mas como havia lido as notas que tinha sobre a escrivaninha, esforçou-se para ser cortês.
- Talvez a expressão "todas as pessoas" não seja a mais adequada, pois, conforme entendi, o senhor possue uma chave da porta secreta. Tenho ordem de pedir a todos os que possuem uma que me a entreguem, já que vão trocar a fechadura. O senhor está com a sua?
- Não.
- Então, por favor, tenha a amabilidade de trazê-la ou enviá-la hoje pela tarde. Bem, senhor, gostaria que o senhor me falasse do Danaë, não é assim?
- O senhor sabia que recebi a ordem de sacar alguns documentos desse barco se me encontrasse com ele no Atlântico?
- Tenho todos os detalhes aqui - disse Lewis em um irritante tom insolente como se tratasse de demostrar sua autoridade, ao mesmo tempo que tocava um cartapácio atado com uma cinta vermelha.
Stephen compreendeu imediatamente que o homem mentia, que não sabia nada do serviço secreto e quase nada desse assunto, pois o cartapácio era extraordinariamente fino. Estava claro que era um administrativo que haviam enviado ali para escutar o que o doutor Maturin tinha a dizer. Contudo, continuou:
- Encontrei-me com o paquete e peguei os documentos. Dadas as circunstâncias, não me pareceu conveniente mandá-los para a Inglaterra no própio paquete depois de recuperá-lo.
Voltou a sentar-se.
- Não notificou imediatamente às autoridades competentes?
- Não.
- Desembarcou o senhor na Inglaterra no dia 17. Por que não notificou então?
- Para ver se nos entendemos, senhor Lewis. Sua pergunta não é realmente uma pergunta más uma censura, e eu não vim aqui para que me recriminem.
- Se veio aqui com a idéia de obter uma comissão adicional, permita-me dizer que seus superiores…
- Meu Deus! O senhor é um sem-vergonha repugnante, ignorante e incompetente - soltou Stephen em voz muito baixa e em tom raivoso enquanto se jogava para frente. - Acha que sou um espião a soldo ou um informante? Acredita que tenho dono, que me compraram? Por Deus!
A tristeza que sentia era agora mais profunda, porque via que um eficiente serviço secreto estava na beira da ruína e sua forma de lutar hábil e tenaz havia desaparecido. Então gritou:
- Estúpido homenzinho!
Lewis se jogou para trás na cadeira e lhe olhou com um gesto estúpido e assombrado. A expressão de Stephen lhe intimidava e imediatamente disse:
- Acalme-se, estimado senhor, acalme-se.
Mas Stephen estendeu o braço até o outro lado da escrivaninha, agarrou o nariz de Lewis, sacudiu furiosamente de um lado para outro fazendo cair o pós que tinha no cabelo, e depois o retorceu para a direita e para a esquerda e outra vez para a direita e para a esquerda. Depois lançou o tinteiro no fogo, e limpou a mão manchada de sangue na gravata de Lewis.
- Se quiser me encontrar, estarei no Black's - disse, e depois saiu da habitação.
Quando chegou ao Black's viu sir Joseph subindo lentamente a escada.
- Quanto me alegro em ver-lhe, Blaine! - exclamou. - Que acha se tomarmos chá na sala de escritura?
- Uma xícara de chá me virá bem - respondeu sir Joseph -, bastante bem.
A essa hora do dia não havia ninguém na sala de escritura, e fechou todas as janelas imediatamente porque detestava as correntes. Depois, deixando-se cair em uma poltrona, perguntou:
- Viu como as ações estão subindo?
- Não - respondeu Stephen. - Diga-me, conhece a uma besta que se chama Lewis no Almirantado?
- Oh, sim! Ele foi trasladado do Ministério de Fazenda depois da morte do senhor Smith, que estava reorganizando a contabilidade. É muito correto e cumpre estritamente as leis. É muito chato nos banquetes.
- Acredita que é um homem capaz de bater-se? Não pude evitar torcer-lhe o nariz faz um momento, e lhe disse onde poderia encontrar-me se quiser que lhe dê uma satisfação.
- Não, não. É mais provável que mandasse lhe aprisionar e lhe obrigasse a fazer as pazes, mas neste caso não lhe permitirão. Não, não. Oh, não! Mas me alegro em saber que lhe retorceu o nariz.
- E eu me alegro que tenha me dado a sua opinião. Se ele gostasse de dular, teria que pedir ao meu amigo que ficasse, e isso seria uma lástima porque deseja ir ver a sua esposa.
No final do dia disse para Jack:
- Eu lhe rogo, meu amigo, que vá a Ashgrove na diligência que sai esta noite. Amanhã tenho que assistir a uma reunião de entomólogos e na outra de cirurgiões, assim que não poderemos nos ver, e, ademais, tenho que deitar-me antes das dez para poder estar em boas condições para ir à festa.
- Bem, se insiste - disse Jack. - Mas deve me dar sua palavra de que irá assim que termine.
- Tão cedo como possa.
- Sophie ficará muito contente - disse Jack e depois, sem poder reprimir um sorriso, perguntou -: Leu os jornais?
- Eu os lerei antes dormir - disse Stephen, dirigindo-se ao seu quarto.
- Você se assombrará - disse Jack, voltando-se para o alto da escada. - E isto é só o começo, ah, ah, ah!
A festa de aniversário do regente estava muito concorrida. O senhor Harrington beijava mãos na qualidade de governador das Bermudas e sir John Hollis na qualidade de secretário, e muitos cavalheiros assistiam para dar a conhecer seu triunfo e contemplar as caras decepcionadas de seus rivais. Além deles, também estava ali todo o espectro de oficiais, entre os quais se destacavam os escoceses, admirados por seu uniforme multicolor. Além disso, havia funcionários de vários ministérios, com trajes de gala escuros, e muitos civis. A festa era um lugar ideal para fazer discretos contatos, para obter informação e para saber se as influências e os favores haviam falhado ou haviam sido pouco efetivos. Stephen e sir Joseph se cumprimentaram inclinando a cabeça a certa distância, mas não se falaram. Depois Stephen viu sir Joseph fazer uma inclinação de cabeça para Wray, que se encontrava junto a um homem baixo com cara de mastro que, obviamente, não estava acostumado a usar espada. Stephen pensou: "Ele a fará cair antes de que termine o dia. Suponho que esse é o senhor Barrow". Em resposta ao cumprimento de sir Joseph, o homem fez um brusco movimento com desânimo que contribuiu para reforçar esta idéia, e Stephen se ficou pensando um pouco em qual era o grau tolerável de descortesia com que um homem bem educado podia deliberadamente tratar a outro. Veio para sua mente um exemplo, a insolência perfeitamente dosada de Talleyrand, mas antes de poder recordar mais de meia dúzia de exemplos, um movimento geral no extremo de sala interrompeu seus pensamentos. Já haviam terminado as diversas cerimônias; o novo secretário do Tribunal Superior de Justiça havia recebido o bastão de comando; o secretário do departamento onde se punha o selo oficial de concessões e outros documentos havia recebido seus honorários. Todos os presentes faziam parte do círculo de amigos do regente, que nesse momento, seguido por alguns de seus irmãos, começou a avançar pela sala. O regente não tinha graça nem elegância, nem uma conduta irrepreensível, mas ninguém podia negar que tinha o dom de recordar nomes. Reconheceu quase todas as caras e falou frases amáveis e algum comentário apropriado. Não falou com Stephen, mas seu irmão, o duque de Clarence, fez isso por ele.
- Ah, aqui está o senhor, Maturin! - exclamou com o vozeirão com que costumava gritar desde o castelo de popa. - Já está de volta?
- Muito bom, muito bom. Temos que falar quando isto haja acabado, de acordo?
Vestia o uniforme de almirante e tinha muito mais direito de usá-lo que a maioria dos membros da família real. Era especialmente amável com os oficiais da marinha que estavam presentes, e Stephen o ouviu cumprimentar Heneage Dundas com voz estrondosa ao chegar ao seu lado quando passava ao longo da fila. A casa Hanover não era a família favorita de Stephen, e não lhe agradava quase nada do que sabia do duque, mas não podia evitar admirar várias de suas características, como a simplicidade, a franqueza e a generosidade que mostrava em ocasiões e que, sem dúvida, havia adquirido na Armada. Para Stephen lhe haviam chamado quando o duque estava gravemente enfermo e seu paciente pensava que se havia curado graças ao tratamento que ele lhe havia recomendado - achava que um médico da Armada tinha que conhecer melhor as doenças dos oficiais da marinha que um médico normal - e lhe estava profundamente agradecido. Viram-se com freqüência durante sua convalescência e se davam muito bem, como Stephen estava acostumado a lidar com pacientes difíceis, obstinados, berrões e dominantes, e era um naturalista, além de médico.
Quando aquilo terminou e as pessoas começaram a ir de um lado para o outro para cumprimentarem seus amigos e verem quem tratava com cortesia a quem, veio até onde estava Stephen, pegou-lhe pelo cotovelo e lhe perguntou:
- Como vai? Como está Aubrey? Lamento muito o que vão fazer com a Surprise. Navega tão bem de bolina e está em tão boas condições! Mas é velha, Maturin, velha. Seu problema são os anos, como o de todos nós. Sabe que já tenho quase cinqüenta? Não é assombroso? Quanta gente! Isto parece uma rua do porto num sábado pela a noite. A metade dos membros do Almirantado devem estar aqui. Aí está Croker, o novo secretário. Os senhores se conhecem?
- Nos conhecemos na Irlanda faz muito tempo, senhor. Ele frequentava o Trinity College.
- Oh! Então não o chamarei. A verdade é que não é meu amigo - disse em voz muito baixa. - E ali está o vice-secretário. Provavelmente também o conheça. Não, talvez não, porque não é irlandês e o senhor não conhece bem aos membros do Comitê de Ajuda aos Enfermos e Feridos.
Fez sinais e Barrow se aproximou apressadamente dele com uma expressão servil.
- Assim que está de novo entre nós, Barrow - disse o duque com um tom de voz apropriado para que o ouvisse um homem que estivera enfermo e tinha a capacidade auditiva diminuida. - Esteve enfermo durante muito tempo - acrescentou, voltando-se para Stephen, e depois olhou de novo para Barrow e disse -: este é o doutor Maturin. Poderia curar-lhe em um abrir e fechar de olhos. Eu lhe recomendo que da próxima vez que tenha essas febres lhe peça conselho.
Barrow disse que sem dúvida alguma o faria, se o doutor Maturin lhe permitisse, e que seria um honra. Depois acrescentou que nunca esqueceria a amabilidade de sua alteza. Seguiria falando assim durante um tempo se o duque não tivesse perguntado:
- Que demônio de uniforme é esse que tem uma casaca, isto é, uma casaca curta, de cor verde garrafa? Vá perguntar-lhe, Barrow.
Pouco depois o duque viu um almirante passar, e largou Stephen sozinho após apertar-lhe a mão amistosamente. Então se aproximou de Stephen Heneage Dundas, que, por ser um pai putativo, parecia bastante satisfeito, ainda que maldice sua sorte por não poder ver Jack Aubrey. Imediatamente trocaram fofocas e notícias, e depois Heneage disse que tinha que ir imediatamente em uma carruagem postal para Portsmouth e que só tinha vindo para ver alguém, uma jovem, e tinha que regressar ao seu barco. Acrescentou que se quisesse enviar algo para a América do Norte só tinha que escrever para a Eurydice e ele lhe serviria.
"Escrever para Eurídice", pensou Stephen sentindo uma profunda tristeza.
- Primo Stephen! - exclamou alguém junto a ele quando Dundas se afastou.
Era Thaddeus, que usava uma elegante casaca vermelha. De acordo com a tradição irlandesa, os primos Fitzgerald de Stephen nunca haviam dado importância a que fosse um bastardo, e nesse momento Thaddeus o levou até onde se encontravam outros três. Os três eram soldados: um servia no exército inglês, outro no austríaco, e outro - como seu pai - no espanhol. Eles lhe deram notícias de Pamela, a viúva de lorde Edward, e sua amabilidade e suas vozes familiares o alegraram. Quando eles se afastaram, foi falar com alguns conhecidos e se informou de outras fofocas interessantes e surpreendentes. Depois se situou em um lugar próximo da porta, de onde podia ver toda a sala, para se assegurar de que o principal motivo de sua presença ali não escapasse. Percebera que tanto Wray como Barrow o estiveram observando a maior parte do tempo, e agora ele lhes observava. Pouco depois Wray notou que tinha os olhos fixos nele, separou-se de seus amigos e, com uma expressão surpresa e alegre, aproximou-se dele estendendo-lhe a mão.
- Meu querido Maturin! - exclamou. - Devo-lhe dez mil desculpas.
Depois, em voz muito baixa, contou a Stephen que já não tinha nada a ver com a rede norte-americana do serviço secreto, pois agora se encontrava em outras mãos. Acrescentou que estavam reorganizando o departamento e que as causas de sua longa espera haviam sido a ineficiência e uma confusão de mensagens, não a falta de cortesia. Perguntou-lhe se podia jantar com ele na sexta-feira e lhe disse que tinha vários convidados muito interessantes e que Fanny se alegraria de vê-lo. Stephen o observou enquanto falava e notou que havia roído as unhas até a base, que tinha um eczema no dorso das mãos e na testa, que estava coberta de pó. Ainda que não se notasse na voz, era evidente que Wray tinha uma grande tensão nervosa, e Stephen recordou a fofoca que acabava de ouvir: que a grande fortuna pela qual Wray se casara com Fanny, a filha do almirante Harte, só podia herdá-la ela e seu filho, que ninguém compreendia como as rendas de Wray lhe permitiam manter seu atual estilo de vida e perder quase a cada noite no Button's, e que no dia anterior lhe levaram para sua casa bêbado.
- O senhor é muito amável - disse Stephen -, mas tenho um compromisso no sábado. Contudo, há alguns assuntos dos quais eu gostaria de falar com o senhor, ainda que não aqui. Vamos para sua casa, por favor.
- Muito bem - disse Wray com um sorriso forçado, e ambos abriram passagem entre a multidão.
Enquanto atravessavam Green Park, Wray contava a Stephen com bastantes detalhes o que havia ocorrido em Malta, e Stephen o escutava com atenção, ainda que nem sequer a décima parte, isto é, a centésima parte da atenção com que o houvesse feito poucos dias antes. Wray culpou a si mesmo pela fuga de Lesueur, o principal agente francês na ilha, mas disse que pelo menos a organização havia sido destruída e desde então nenhuma informação passara de Valletta para Paris.
- O problema era que não me encontrava em boas condições - confessou Wray. - E ainda não estou. Eu gostaria que me receitasse algo para dor de barriga - acrescentou, sorrindo, e depois abriu a porta de sua casa. - Entre, por favor.
"Se lhe receitasse algo - pensou Stephen -, deveria receitá-lo para a mente, meu amigo, porque essa é a parte que lhe causa problemas. Mas se lhe prescrevo láudano, o medicamento mais adequado para seu caso, converter-se-ia em um viciado nele, em um tragaopio, em um mês, além de já ser um viciado em álcool."
Subiram para a biblioteca de Wray, e depois que Stephen recusou vinho, doces, sorvete, bolos e chá, Wray disse que tinha a esperança de que não achasse que tentava se esquivar ou deixar de saldar a dívida que tinha com ele. Acrescentou que se recordava bem da dívida, que lhe agradecia que houvesse tido paciência durante um período tão longo, mas que lhe dava vergonha dizer que devia rogar-lhe que a tivesse durante um pouco mais de tempo. Assegurou que ao final de mês teria dinheiro e poderia pagar-lhe por fim e, ademais, que lhe daria uma promissória. Finalmente, disse que esperava que o atraso não lhe causasse inconvenientes.
Depois de uma breve e desagradável pausa, Stephen aceitou a proposta. Aproveitando que estava em uma posição vantajosa, fixou seus olhos claros em Wray, como desafiando-lhe a que desse algum sinal de que conhecia sua situação e explicou:
- Quando nos vimos pela última vez, em Gibraltar, o senhor teve a amabilidade de oferecer-se para trazer uma carta para minha esposa, já que ia fazer parte da viagem por terra. Por favor, quando ela a recebeu?
- Sinto lhe dizer que não posso dizer - respondeu Wray, baixando os olhos. - Quando cheguei a Londres fui imediatamente para a rua Half Moon, mas um servente me disse que sua esposa havia ido para o estrangeiro e acrescentou que tinha ordens de mandar-lhe as cartas que recebesse, assim que lhe entreguei.
- Eu lhe estou muito agradecido, senhor - disse Stephen e se despediu.
Se houvesse visto que Wray o observava rindo detrás das cortinas de renda, saltando sobre um só pé e fazendo com os dedos um sinal indicando que era um cornudo, provavelmente teria regressado e o teria matado com sua adaga, porque isso era uma crueldade. Era óbvio que Diana não esperou para receber uma explicação, ainda que não fosse satisfatória, senão que lhe condenara sem lhe escutar. Isso demonstrava que agora Diana era uma mulher mais dura e menos afetuosa que a Diana que ele conhecia, ou achava conhecer, um ser mítico inventado por ele, indubtavelmente. Na carta de Diana notava-se claramente que era isso o que havia ocorrido, pois nela não fazia referência à sua, mas ele não quis admitir o que estava tão claro, e agora que se via obrigado a fazê-lo voltava a sentir nos olhos uma queimação e um formigamento. Ademais, sentia-se muito sozinho porque lhe haviam arrebatado seu mito.
- Oh, senhor! - exclamou o porteiro quando Stephen entrou no Black's depois de um passeio que durou toda a tarde, um passeio em que havia atravessado o parque, havia ido além de Kensington e depois descera até o rio quando a maré estava baixa. - Um mensageiro especial trouxe isto para o senhor e me encarregou que não deixasse de dá-lo quando chegasse.
- Obrigado, Charles - disse Stephen. Notou que a carta tinha o selo preto do Almirantado, meteu-a no bolso e subiu a escada. Como esperava, na biblioteca encontrou sir Joseph, que estava lendo a Buffon.
- Isto é penoso, Maturin, realmente penoso - disse, aproveitando que estavam sozinhos outra vez. - Não há nenhum francês que entenda de ossos, além de Cuvier.
Voltou a colocar o livro na estante com um gesto de desaprovação e continuou:
- Alegro-me de ter-lhe visto na festa e também de que o duque de Clarence fosse tão amável. Barrow ficou muito impressionado. Adora esse príncipe, ainda que saiba, como tudo mundo, e talvez melhor que a maioria, que não é bem considerado no Almirantado; mas parece incapaz de compreender que alguns membros da família real estão unidos a ela por vínculos mais fortes que outros, ainda que pareça uma incongruência. Por consequência disso, se o senhor voltar ao Almirantado, não lhe tratarão grosseiramente. Irá amanhã?
- Tenho que ir, a menos que envie o maldito cofre por um mensageiro. Provavelmente isto seja um convite - disse, sustentando a carta no ar, e depois a abriu e acrescentou -: Sim, é. O senhor Barrow diz que lamenta infinitamente…, sente muito que tenha havido um mal-entendido…, gostaria muito…, toma a liberdade de sugerir que…, mas a qualquer outra hora que lhe convenha.
- Sim, é inevitável que vá - disse sir Joseph e depois de uma pausa continuou -: A propósito! Tenho notícias sobre o cofre de latão. Naturalmente, era responsabilidade do Conselho de Ministros, quer dizer, de Fitz Maurice e seus amigos, e a Armada era somente a portadora e desconhecia seu conteúdo. O comentário de que continha "uma enorme soma" foi uma suposição de Pocock ou uma indiscrição do Ministério de Assuntos Exteriores, e nunca devia ter ocorrido. Estou seguro de que a maioria das pessoas bem informadas já ouviram falar disto, pelo menos pelo alto. Peço a Deus que nos envie alguns funcionários que saibam o que é a discrição. E diga-me, Maturin, vai à Royal Society esta noite?
- Não. Caminhei muito depois de fazer uma desagradável visita e não pude almoçar. Estou esgotado.
- Sem dúvida, o senhor parece exausto. Não acha que lhe reanimaria uma janta leve? Por exemplo, um frango cozido com molho de ostras. Eu gostaria que conhecesse um oficial da cavalaria amigo meu, um engenheiro sumamente inteligente. Falei extra-oficialmente com ele e com outros amigos, como lhe disse que pensava fazer, e todos estão de acordo em que o camundongo que encontrei está começando a se converter em um rato.
- Sir Joseph - disse Stephen -, desculpe-me, mas esta noite não me importaria nem que se convertesse em um rinoceronte com dois cornos. Pelo que me diz respeito, não me incomodaria se Bonaparte viesse com seus barcos de fundo plano e fosse bem recebido.
- Jantar comigo lhe conviria- disse Blaine. - Comeríamos um frango cozido com molho de ostras e tomaríamos uma garrafa de um bom clarete. Maturin, o nome Ovart lhe é familiar?
- Ovart? Acho que nunca o ouvi - respondeu Stephen, bocejando de fome e de cansaço, e depois deu boa noite e se foi para seu quarto caminhando lentamente.
Tampouco estava mais animado na manhã seguinte, ainda que um melro de Green Park pousara no parapeito de sua janela e esteve cantado com absoluta perfeição. Durante o café da manhã, um antigo membro do clube lhe disse que fazia uma bonita manhã e que ouvira uma notícia alentadora: aparentemente, havia possibilidades de que muito logo se firmasse a paz.
- Tanto melhor - disse Stephen. - Com a gente que governa o país agora, não podemos continuar esta guerra por muito mais tempo.
- Tem razão - disse o cavalheiro, movendo a cabeça de um lado para o outro.
Perguntou a Stephen se iria à Newgate para ver as execuções. Stephen respondeu que não, que ia ao Almirantado. O cavalheiro inquiriu se também enforcavam as pessoas ali, e quando Stephen lhe respondeu que não, voltou a mover a cabeça de um lado para o outro e disse que nunca perdia um enforcamento e que hoje, entre a gente comum, iam enforcar dois destacados banqueiros que haviam sido declarados culpados de falsificação. Acrescentou que o mercado de valores não perdoava seu pai, nem sua mãe, nem sua esposa, nem seu filho se faziam algo assim, e depois perguntou a Stephen se recordava do pastor Dodd. Repetiu que nunca perdia um enforcamento e contou que quando era menino costumava ir com suas tias a Tyburn, ao que chamavam o Pasto da Morte, e que iam a pé seguindo o carro até Tyburn passando pela igreja de Saint Sepulchre.
No Almirantado havia um funcionário esperando ao doutor Maturin na escada que lhe conduziu ao escritório do senhor Barrow. Stephen se surpreendeu ao ver que Wray estava ali, mas não se importou, pois se contentava em poder deixar o maldito cofre em mãos de alguém responsável.
O senhor Barrow lhe agradeceu encarecidamente sua presença. Depois repetiu que não achava palavras para expressar adequadamente quanto lamentava o recente mal-entendido, e lhe explicou como foi possível que Lewis não se informasse de que ele prestava um inestimável serviço voluntário e gratuitamente.
- Acredito que o ofendeu gravemente, senhor.
- Ele me ofendeu, senhor - disse Stephen -, e lhe fiz saber.
- Ainda não regressou ao escritório, mas quando melhar, irá vê-lo para apresentar suas desculpas.
- Não, de maneira nenhuma. Não exijo que ele faça isso. Na realidade, atuei precipitadamente e ele falou por ignorância.
- Ignorava que tipo de pessoa o senhor era e a natureza dos documentos em questão. Com relação a eles, não poderia ter-lhe dito de que tipo eram porque oficialmente nem ao menos eu sei. Porém, em confiança, doutor, direi que ouvimos dizer que estavam em um cofre de latão e que o Ministério de Assuntos Exteriores e o de Fazenda estavam muito preocupados porque tinham que "cancelá-los", como dizem os comerciantes.
- Isto porá fim a sua ignorância - disse Stephen, pegando o cofre de um bolso interior da casaca e pondo-o sobre a escrivaninha.
- Que selo mais curioso! - exclamou Barrow em meio do tenso silêncio.
- Eu o fiz com minha chave - disse Stephen. - O selo original se rompeu quando o cofre abriu ao cair. Eu o selei outra vez para que se mantivesse fechado. Como vê - acrescentou, rompendo o lacre -, o fecho abre muito facilmente.
Barrow era curioso por natureza e deu uma espiada nos papéis que havia em cima. Sua expressão mudou, passou do assombro e para a indignação. Afastou o cofre como se fosse um objeto perigoso e começou a dizer algo em tom irritado, mas imediatamente tossiu e disse outras palavras:
- É uma enorme quantia.
- Isso era o que ouvira - disse Wray, dando uma espiada nos feixes restantes. - Não se preocupe com nada. Leward e eu nos ocuparemos disto.
- Quanto antes nos livremos dele, melhor - disse Barrow. - Que grande responsabilidade! Que grande responsabilidade! Por favor, guarde-o sob chave imediatamente.
Depois de alguns momentos se tranqüilizou o suficiente para dizer a Stephen:
- Suponho que era uma pesada carga para o senhor e que não podia compartir com ninguém sua angústia. Também suponho que ninguém viu estes… estes documentos exceto o senhor.
- Nem uma alma - disse Stephen. - O senhor Acredita que segredos como este devem ser compartilhados?
Wray regressou, e houve um comprido silêncio, interrompido às vezes por exclamações, até que Barrow disse com grande nervosismo:
- Acho que não deveríamos informar "oficialmente" sobre este caso. E agora podemos passar para a segunda parte de nossa entrevista. O que ocorre, senhor, é que nos sugeriram que lhe convencêssemos para… Senhor Wray, por favor, diga ao doutor Maturin o que nos sugeriram.
- Nossa agente de Lorient, Madame Feuillade, que o senhor conhece - começou Wray -, foi presa; e como não só nos enviava informação desse lugar como também a que lhe mandava sua irmã desde Brest, sua ausência é muito lamentável. Contudo, não a prenderam por cooperar conosco más por evasão de impostos. Está encarcerada em Nantes, e Hérold, que trouxe a notícia, assegura que com os meios adequados, pode-se persuadir o juiz que investiga o caso de que o denegue. Dada a posição de madame Feuillade, é óbvio que o caso requer muito tato e habilidade, e uma grande quantidade de dinheiro. Todos esperam que o doutor Maturin possa contribuir com as duas primeiras coisas e o departamento com a última. Há alguns barcos que transportam conhaque e vinho de Nantes para a Inglaterra com permissão do almirante ao comando da esquadra do Canal, e nós usamos regularmente quatro deles em que se pode confiar plenamente; assim que as datas para a viagem de ida e de volta poderiam ser estabelecidas facilmente, conforme sua conveniência.
- Compreendo, compreendo - disse Stephen, olhando-os com atenção e se perguntando o que via realmente neles e o que era simplesmente fruto de sua imaginação.
Então, cheio de assombro, voltou a sentir o mesmo entusiasmo de antes, ainda que nessa manhã havia pensado que já era indiferente ao serviço secreto.
- Acho que o caso requer fazer algumas reflexões. Me vou ao campo amanhã, e ali terei paz e tranqüilidade para meditar sobre ele. Pelo o que sei de madame Feuillade, estou seguro de que o interrogatório que lhe farão por uma acusação como essa não será muito duro e que o encarceramento não lhe será penoso.
CAPÍTULO 6
Os componentes da diligência noturna de Portsmouth tinham uma estreita relação com a Armada, salvo os cavalos e uma passageira que ia dentro, uma senhora velha. O cocheiro havia servido às ordens de lorde Rodney, o guarda era um antigo infante da marinha e demais passageiros ocupavam algum posto na Armada.
Quando as estrelas começaram a empalidecer para o leste, a diligência passou rapidamente pela frente de um grupo de casas escuras e de uma igreja que ficavam à direita do caminho, e a senhora mais velha disse:
- Chegaremos a Petersfield dentro de alguns minutos. Espero não ter esquecido nada - disse, contando outra vez seus pacotes, e depois, voltando-se para Stephen, acrescentou -: Assim que não devo comprar, senhor. É essa definitivamente sua opinião?
- Senhora - respondeu Stephen -, repito que não sei nada da bolsa, que nela sou como uma pessoa que não pode distinguir facilmente um touro de um urso. Só o que digo é que se seus amigos lhe deram esse conselho somente porque estão convencidos de que se firmará a paz dentro de poucos dias, a senhora pode pensar que talvez estejam equivocados.
- Contudo, são cavalheiros muito bem informados. Ademais, senhor, o senhor também poderia estar equivocado, não é assim?
- De fato, senhora! Posso equivocar-me como qualquer outra pessoa, ou inclusive mais.
O guarda deu um forte apito, que imitaram a maioria dos jovens passageiros que iam fora, para os quais passar uma noite de primavera inglesa no teto de uma carruagem não era nada em comparação com passar uma noite entre as grandes ondas em frente a Brest.
- Então, está decidido - disse a senhora. - Não comprarei. Alegro-me de ter pedido sua opinião. Obrigada, senhor.
A diligência entrou no pátio do Crown para trocar os cavalos. Os passageiros estiraram as pernas durante a troca e depois voltaram a subir nela. Então Stephen se aproximou do cocheiro e disse:
- Provavelmente o senhor não se esquecerá de me deixar em Buriton, mas se me deixasse na taberna em vez de no cruzamento me pouparia uma fatigosa caminhada. Aqui tem uma moeda de três xelins.
- Obrigado, milorde - disse o cocheiro. - Eu lhe deixarei na taberna.
- Estou convencido de que fez bem aconselhando à senhora que não comprasse - disse um dos passageiros que iam dentro, um contador do estaleiro, quando deixaram para trás Petersfield. - Acho que atualmente não há possibilidades de que se firme a paz.
- Acho que não - disse um deselegante guarda-marinha que passara grande parte da noite dando chutes nos outros passageiros, ainda que não por maldade nem por falta de consideração mas porque cada vez que ficava adormecido contraía e distendia involuntariamente suas compridas pernas repetidas vezes. - Acredito que não. Faz apenas uma semana que fui aprovado no exame de tenente, e seria uma injustiça que se firmasse a paz agora. Isso significaria…
Nesse momento percebeu que estava falando a pessoas mais velhas, algo que na Armada se considerava inapropiado, e ficou em silêncio e fingiu que prestava atenção nos primeiros frisos vermelhos do amanhecer que se viam ao longe.
- Há dois anos, sim - disse o contador, sem fazer-lhe caso -; mas não agora, porque os aliados do continente estão desmoronando e temos gastado muito tempo e dinheiro na guerra contra a América do Norte. Acho que o rumor que hão ouvido os amigos dessa dama é um truque que idearam alguns homens de má vontade que desejam se beneficiar da subida.
Depois explicou por que pensava que Napoleão não quereria negociar a paz nesse momento. Ainda estava falando quando a diligência se deteve e o guarda gritou:
- Todos os que queiram ir à taberna Jericó, cavalheiros, por favor! Boa comida para os homens e os animais. Excelente conhaque contrabandeado diretamente de Nantes e excelente água de poço, que nunca se misturam, salvo por acidente. Ah, ah, ah!
Poucos minutos mais tarde, Stephen estava de um lado do caminho com sua bagagem e a diligência se afastava envolta em uma nuvem de poeira que ela mesma criava. Então uma revoada de gralhos passou por cima de sua cabeça, e pouco depois a porta da taberna se abriu e apareceu uma mulher bagunçada, que tinha o cabelo encaracolado como o de uma hotentote{12} e fechava a bata segurando-a com uma mão à altura do pescoço.
- Bom dia, senhora Comfort - disse Stephen. - Por favor, quando possa, diga ao moço que guarde estas coisas atrás do balcão até que mande alguém para buscá-las. Quero ir a Ashgrove caminhando pelo campo.
- Encontrará ali ao capitão, a alguns marinheiros impertinentes e ao terrível Killick. Mas não quer entrar e tomar algo, senhor? Passou a noite na diligência e ainda tem que percorrer um longo caminho.
Stephen sabia que no Jericó só poderiam lhe dar chá ou cerveja com um baixo teor de álcool, e as duas coisas lhe pareciam repugnantes pela manhã. Agradeceu à mulher e lhe disse que preferia esperar que seu apetite abrisse com a caminhada, e quando ela perguntou se era Killick que viria no carro para recolher suas malas, Stephen respondeu que pediria ao capitão que enviasse ele.
Percorreu a primeira milha do trajeto por um caminho flanqueado por altos muros e cercas, que tinha bosques à esquerda e campos cheios de trigo e feno à direita. Os muros eram salpicados de prímulas e nas cercas havia montes de passarinhos madrugadores que cantavam, principalmente pintassilgos-europeus com a plumagem muito brilhante. Um pouco além de onde terminava o tramo de terreno plano e começava outro com altibaixos, o caminho se dividia em dois ramais, um que beirava um imenso pasto de uns cinqüenta ou sessenta acres onde havia vários potros e outro que passava por entre as árvores e do qual se via uma minúscula parte. Stephen tomou o segundo, que era empinado e tinha muitos espinheiros e samambaias mortas na margem próxima ao bosque. Um pouco mais adiante havia galhos caídos e duas ou três árvores mortas, e no final ficava a cabana de um guarda-florestal, situada em um pedaço de terreno plano coberto de capim que os coelhos - que fugiram quando ele se aproximou - mantinham curto. A cabana perdera o teto já fazia tempo e estava cheia de lilases, ainda que ainda não haviam florescido, e a casinha que ficava detrás estava cheia de urtigas e sabugueiros. Ainda havia um banco de pedra junto à porta, e Stephen se sentou nele e se recostou contra a parede. No vale a noite ainda não desaparecera e se via uma luz de cor verde escuro. As árvores do bosque eram muito antigas, do período primário, pois a ladeira era muito empinada e o terreno muito acidentado para que alguém fosse cortá-las e inclusive para cuidá-los. Eram enormes carvalhos sem forma definida e geralmente ocos, cuja madeira não era aproveitável, e se estendiam quase até a metade da clareira seus galhos com novas folhas de cor verde brilhante, que nem sequer tinham um leve movimento porque ali o ar ficava tão quieto que nem as teias de aranha se moviam. O ar estava quieto e reinava a calma, uma calma cheia de vida, apesar de se ouvir o canto dos melros na distante margem do bosque e o burburinho do arroio que descia até o vale. Em uma das margens do arroio ficava a toca de um texugo. Vários anos atrás Stephen havia visto um grupo de filhotes de raposa brincando ali, mas agora achava que os texugos haviam regressado, pois desde o banco via montes de terra recém tirados dela e inclusive distinguia um caminho muito transitado. "Talvez possa ver um", disse, e após um tempo seguiu mentalmente a melodia de um glória que ele e Jack haviam escutado em Londres, uma glória muito elaborada composta por Frescobaldi. "Mas talvez seja muito tarde", pensou depois, quando a glória terminou e a luz já era mais intensa e de um colorido verde mais brilhante, quase como o da alvorada. Contudo, apenas essas palavras se formaram em sua mente, ouviu alguns rangidos e golpes e viu aparecer do outro lado do arroio um texugo com uma bonita calda rajada que caminhava para trás com um monte de palha debaixo do queixo. Era um texugo velho e gordo que não parava de resmungar e maldizer. Teve muita dificuldade de percorrer o último vão do caminho, porque era empinado e a carga se enganchava nas aveleiras e nos arbustos das margens, largando fibras neles. Levantou a cabeça quando estava justo em frente da entrada da toca e olhou ao redor como se quisesse dizer: "Isto é horrível". Então inspirou, voltou a pegar a carga e depois de maldizer pela última vez entrou de costas na toca.
"Por que sinto tanto regozijo e tanta satisfação?", Stephen se perguntou. Ficou buscando uma resposta convincente durante um momento, mas não encontrou nenhuma, e então se disse: "A verdade é que as sinto". Seguiu sentado ali enquanto os raios do sol penetravam por entre as árvores e desciam cada vez mais. Os que desceram mais alcançaram um galho que estava justo acima dele e iluminaram uma gota de orvalho que havia sobre uma folha. Imediatamente a gota se pôs de cor carmesim, e quando Stephen moveu ligeiramente a cabeça, pôde ver claramente nela todos as cores do espectro, desde um vermelho tão escuro que era difícil de distinguir até o último tom do violeta, e depois todos na ordem contrária. Alguns minutos depois, o grito agudo de um faisão rompeu o silêncio e o encanto e Stephen se lenvantou.
Na margem do bosque ouvia-se muito mais forte o canto dos melros, a quem acompanhavam agora os rouxinóis, os tordos, as calandras, as pombas e muitos outros pássaros que nunca deviam ter cantado. O caminho atravessava agora uma série de campos sem cultivar até chegar ao bosque de Jack, onde os falcões apicultores haviam se alojado tempos atrás. Mas esses campos tinham um excelente aspecto, pois os raios do sol ainda em ascensão, que não eram deslumbrantes porque passavam através de uma espécie de véu, faziam as cores mais intensas do que Stephen jamais vira, e tanto o verde da vegetação como o azul claro do céu pareciam recém criados. O dia esquentava pouco a pouco, e centenas de aromas flutuavam no ar.
"Agradecer algo usando muitas palavras é quase impossível -disse, sentando-se em uma escada para passar por cima de uma cerca e observando duas lebres que brincavam. As lebres punham as duas patas uma na frente da outra; depois saltavam e corriam e voltavam a saltar. - Que poucos podem dizer pelo menos cinco frases que façam efeito! E a maioria das dedicatórias são insuportáveis, inclusive as melhores - pensou. Depois, recordando ainda a melodia do glória, disse para si -: talvez a repetição de elogios de uma maneira formal seja uma tentativa de resolver isto, uma tentativa de expressar gratidão por outros meios. Vou contar esta idéia para Jack." As lebres se afastaram correndo até que se perderam de vista e ele reiniciou a marcha cantando com voz grave: «Quoniam tu solus sanctus, tu solus Dominus, tu solus altissimus»{13} até que ouviu a sua esquerda como um cuco cantava muito alto e claro. Logo ouviu um agudo grasnido e depois, muito longe a sua direita, a resposta muito mais baixa.
De repente perdeu a alegria e continuou andando com a cabeça baixa e as mãos agarradas atrás das costas. Já se encontrava perto das terras de Jack. Só teve que atravessar um campo mais e depois uma vereda, para chegar à parte de Ashgrove onde a terra era muito ruim e ficavam as malditas minas de chumbo com montes de escória dentro. Depois passou pelos terrenos cultivados de Jack, onde as plantas ainda eram raquíticas e estavam roídas pelos coelhos, as lebres, os veados e uma grande variedade de lagartas, e por fim pôde ver a casa. Já era de dia e haviam começado as tarefas da vida cotidiana. O silêncio se quebrara fazia tempo, e não foi necessário que ouvisse o grito dos cucos, que muitos usavam para zombar os cornudos, para que deixasse de ter a impressão de que era iminente um milagre. O dia era simplesmente um dia de verão na primavera.
Aproximou-se da casa pela parte traseira e não achou que tivesse melhor aspecto. Jack a comprara quando era pobre e a ampliara quando era rico, e o resultado era uma massa sem harmonia que tinha poucas das vantagens das casas da cidade e nenhuma das que uma casa de campo poderia oferecer. Contudo, pelo menos tinha magníficos estábulos. Jack Aubrey gostava da caça à raposa e, ademais, estava convencido de que entendia de cavalos tanto como qualquer dos homens que apareciam no Boletim Oficial da Armada, e quando regressou da operação Mauricio carregado com um abundante butim, construiu um amplo pátio com uma cocheira para duas carruagens e de um lado uma edificação para o alojamento dos cavalos e dos caçadores, do outro uma fileira de compartimentos onde pensava guardar os cavalos de corridas da quadra que queria começar a formar, e nos cantos alpendres para amarrar os cavalos. Tudo isso formava um bonito retângulo de tijolos rosados e pedras de Portland coroado por uma torre com um relógio com o mostrador azul.
Stephen não se surpreendeu em ver a maior parte daquela construção fechada, pois os caçadores e os cavalos de corridas haviam desaparecido assim que começaram as desgraças de Jack; mas não explicava por que não havia ali nenhuma outra criatura, nem o carroça, nem a pequena carruagem que Sophie usava para ir a outros lugares. Tampouco se explicava por que a casa estava tão silenciosa, aonde chegou atravessando o jardim que havia atrás da cozinha. Jack tinha três filhos e uma sogra, e não era normal que em sua casa houvesse silêncio; contudo, não saía nenhum som pelas portas nem pelas janelas. Stephen ficou muito nervoso, e seu nervosismo aumentou ao notar que todas as portas e janelas estavam abertas e, ademais, meio quebadas, o que dava à casa um aspecto lamentável e desolador. Por outro lado, havia um forte odor de terebintina, que poderia ter sido usada como desinfetante. Havia visto que em algumas epidemias famílias inteiras haviam sido afetadas da noite para a manhã, por exemplo, na do cólera morbo.
- Deus nos proteja! - sussurrou.
Um distante grito de alegria fez seus pensamentos mudarem, e alguns momentos depois se ouviu o peculiar som inglês de um bastão golpeando uma bola seguido de outros gritos. Atravessou rapidamente o que Jack chamava de roseiral (lucus a non lucendo{14}), depois um terreno coberto de arbustos e por fim chegou na borda do cume da colina e mais abaixo viu em um amplo pasto alguns homens jogando críquete. Todos os jogadores da equipe que não rebatiam estavam em seus postos olhando com atenção os movimentos do lançador. Imediatamente se ouviu o golpe outra vez, e os jogadores que rebatiam correram entre as metas e os que estavam ao redor do campo correram para pegar a bola e a lançaram para o interior deste. Então todos voltaram a ocupar seus postos como se executassem uma dança solene, com suas camisas brancas destacando-se sobre a verde grama.
Stephen desceu pela ladeira, e quando já estava perto do campo reconheceu os jogadores, pelo menos todos os da equipe que rebatia e alguns de seus oponentes. Plaice e Bonden estavam dentro do campo e o capitão Babbington, que havia servido como guarda-marinha às ordens de Jack, depois havia sido um de seus tenentes e agora estava ao comando da Tartarus (uma corveta de dezoito canhões), lançava a bola para seus antigos companheiros de tripulação como se quisesse arrancar-lhes as pernas ao mesmo tempo que derrubar as estacas das metas. Plaice só rebatia todas as bolas que tinham uma trajetória reta e deixava as demais, mas Bonden, que olhava as bolas com muita atenção, rebatia todas com a mesma fúria e havia feito catorze corridas durante essa fase do jogo. Nesse momento lhe lançaram a última bola, que tinha pouco impulso e ia passar fora da meta, e ele lhe bateu com toda sua força, mas não havia calculado bem a elevação do bastão e a bola não passou roçando as cabeças dos jogadores que estavam ao redor do campo, senão que subiu de maneira assombrosa, como um morteiro ou um foguete, e quase chegou a desaparecer.
Três dos jogadores que estavam ao redor do campo correram na direção em que Stephen caminhava, todos eles com os braços estendidos e olhando para cima, e outros gritavam: "Cuidado com as cabeças!" ou "Afastem-se!" Stephen tinha o pensamento longe dali e não ouvira o golpe nem havia visto a bola, mas uma das poucas coisas que havia aprendido na Armada, dolorosamente, era que o grito "Afastem-se!" geralmente precedia só um instante à queda de um jorro de breu fervendo, de um pesado moitão ou de um pontiagudo passador, assim que, muito angustiado, se fastou correndo de seu caminho inclinando-se para a frente e protegendo a cabeça com as mãos, mas, devido a esse desafortunado movimento, chocou-se com um dos jogadores que estavam ao redor do campo e que corria para trás e depois com outro que se colocara onde a bola ia cair. Os três caíram amontoados, e outros jogadores lhe tiraram dali dando gritos. Alguns gritaram "Mas é o doutor!"; outros, "Se feriu, senhor?"; outro, olhando para o suboficial da Tartarus, que havia mantido segura a bola apesar de tudo e havia saído daquela confusão de braços e pernas com ela na mão e com uma expressão triunfante, gritou: " Por que não olhas para onde vai, lerdo besta?".
- Bem, Stephen - disse Jack conduzindo-o até o carro onde estavam as bebidas, depois de arrumar-lhe a roupa e sacudi-la -, então você veio na diligência noturna. Alegro-me de que tenha encontrado lugar. Como não lhe esperava até amanhã, não lhe deixei nenhuma nota. Deve ter se assombrado muito ao ver a casa vazia. Quer uma cerveja de lata ou prefere um copo de ponche frio?
- Não tem café? Ainda não desjejuei.
- Não desjejuou? Meu Deus! Isso é incrível. Vamos fazer um pouco. Ainda há que derrubar cinco travessões e Plaice e Killick ficarão alí colados como lapas. Temos muito tempo.
- Onde está Sophie? - perguntou Stephen.
- Não está aqui - respondeu Jack. - Foi para a Irlanda com as crianças e sua mãe porque Frances ia ter um filho. Não acha surpreendente? Eu lhe asseguro que fiquei perplexo quando cheguei em casa e não encontrei ninguém de minha família nem o velho Bray, que estava na taberna. Ela nem sequer sabia que estávamos neste hemisfério, mas deixará ali as crianças e virá imediatamente. Com um pouco de sorte, poderemos vê-la na terça-feira, ou talvez na segunda-feira.
- Espero que assim seja.
- Oh, Stephen, desejo ansiosamente que chegue! - exclamou Jack e se riu ao pensar na futura chegada. Enquanto caminhavam acrescentou -: enquanto isso estivemos aqui sozinhos, como um chateado grupo de solteiros. Por sorte, a chegada da Tartarus nos animou, e como há muitos antigos tripulantes da Surprise aqui e em Pompey{15}, entre eles os guardas-marinhas e Padeen, seu servente, pudemos formar uma equipe para jogar contra seus homens, ainda que Mowett e Pullings foram para a cidade para ver o editor. Não os viu por muito pouco, o que lamento porque nunca vi dois homens mais nervosos em minha vida e provavelmente lhes haveria beneficiado alguma de suas poções de limo. De qualquer maneira, temos uma equipe, e nos trarão o almoço para o campo de Goat and Compasses. Não imagina como cozinham ali o veado. Fica tão tenro como a bezerra. Olhe, Stephen, vê esse extremo do bosque onde há tantos arbustos? Quero cortar o terreno ali de maneira que a nova ala tenha um terraço e uma ampla faixa de capim, isto é, de grama. Sempre quis ter um terreno com grama e talvez tenha mais sorte com ele que com as plantas.
- Então que vai construir uma nova ala.
- Oh, sim! Vivemos muito apertados, sabe? Com três crianças e uma sogra que vem amiúde passar temporadas, parece que vivemos em um cúter, cotovelo com cotovelo, como se cada um só tivesse catorze polegadas para pendurar sua maca. E Sophie diz que não pode seguir vivendo sem mais armários. Aí está Dray, entrando no pátio. Ei, a carroça! Eu lhe mandei a Portsmouth para buscar os jornais.
A carroça virou para a vereda de cascalho e o marinheiro que a conduzia perguntou:
- Como vamos, senhor?
Logo entregou o exemplar de The Times e cumprimentou a Stephen pondo a outra mão na testa.
- Quarenta e oito a cinco - respondeu Jack. - Com um pouco de sorte derrotaremos os homens da Tartarus. Vá lá abaixo. Eu guardarei a carroça.
Dray amarrou sua perna de madeira, que havia tirado para conduzir, e desceu tão rápido como pôde pela ladeira, pois ainda que já não podia jogar, era um crítico apaixonado. Era necessário fazer muito pouco esforço para guardar a carroça, já que estava enganchada a um manso cavalo surdo, curto de vista e de pernas curtas, cuja idade ninguém sabia com exatidão. Sophie o escolhera, que não gostava e temia os cavalos (o que era lógico porque havia tido que montar em um que mordia ainda que estivesse com o freio sendo muito jovem, vira vários caçadores romper as costelas e a clavícula de seu esposo e tinha a certeza de que os dotes de suas filhas teriam sido gastados em cavalos de corridas se não estivessem assegurados legalmente). O cavalo, que se chamava Moisés, começou a caminhar devagar pelo pátio, fixando seus maltratados olhos em Jack, que passava as páginas do exemplar de The Times para encontrar a de informação financeira. Jack, ainda lendo, abriu a portinhola de um dos magníficos compartimentos, e enquanto Stephen desprendeu a carroça, Moisés entrou, deitou no solo, deu um suspiro e fechou os olhos.
- Está melhor do que pensava - disse Jack com o rosto radiante, o que lhe fazia parecer dez anos mais jovem. - Espero que haja tirado proveito do que lhe disse.
- Certamente que sim - disse Stephen sem ênfase. - Segui seu conselho.
Então Jack compreendeu que ele não ia contar mais nada.
- Teremos um terraço muito espaçoso e possivelmente com fontes - disse Jack. - Também seria muito conveniente ter uma sala de bilhar para os dias em que chove muito.
Conduziu seu amigo para a cozinha, abriu a porta do pequeno fogão e jogou ar dentro com o fole até que o carvão ficou quase branco.
- Desculpe o odor de tinta - disse, pegando o moedor de café. - Demos a primeira demão ontem… - acrescentou, e o ruído do moedor afogou o restante de suas palavras.
Beberam a reconfortante infusão fora, caminhando de um lado para outro rodeados da suave brisa, e Stephen, um homem sóbrio na refeição, comeu duas pequenas bolachas. Quando terminaram de beber a cafeteira, Jack aguçou o ouvido e pôde escutar alguns gritos no campo de críquete.
- Talvez seja melhor que regressemos lá para baixo - disse.
Quando se dirigiam ali pela estreita vereda, olhou um momento para trás e, com um doce sorriso, perguntou:
- Eu lhe disse que adoraria comprar a Surprise? Posso atracá-la em um porto privado em Porchester.
- Céus! Não acha que é algo muito caro, Jack? Se não me engano, o Governo deu vinte mil libras pelo Chesapeake.
- Sim, mas o fez para animar a outros marinheiros a que fizessem o mesmo. A venda de um barco da Armada é outra coisa Duvido que a Surprise alcance esse preço.
- Como se pode comprar um barco?
- A pessoa tem que estar ali e com dinheiro vivo na mão… Bom golpe, bom golpe!
Honey, que era um perigoso rebatedor porque dava tacadas com muita força, golpeara a bola de maneira que esta descreveu uma trajetória curva em direção ao carro do Goat and Compasses, um carro puxado por duas vacas que trazia a comida dos jogadores de críquete.
Honey acertou a bola seguinte de forma muito parecida, mas o cabo da Tartarus, um homem muito astuto, havia feito um movimento defensivo e ficou em um lugar onde pôde pegar a bola. Honey estava fora do jogo e já não havia mais entradas. Os homens estavam tão contentes que desprenderam as vacas e levaram o carro a toda velocidade para seus respectivos capitães.
- Padeen, fez alguma corrida? - perguntou Stephen em irlandês para seu servente, um homem de Munster robusto, gago e não muito inteligente.
- Acho que sim, senhor, mas depois corri para trás. Quem poderia me dizer se eu digo isso?
- Quem? - perguntou Stephen, que havia jogado o jogo nas ilhas Molucas uma só vez e nunca havia chegado a entender os detalhes, nem ao menos as regras básicas.
- Sua senhoria poderia explicar-me este jogo saxão?
- Poderia - respondeu Stephen. - Quando termine o bolo de veado, que parece ser o melhor bolo de veado do mundo, pedirei ao pequeno capitão que me explique todas as regras, pois jogou na equipe dos Gentlemen de Hampshire. Deve saber que Thomond é para o hurling{16} o que Hampshire é para o críquete.
O pequeno capitão era Babbington, e certamente sabia muito do jogo; contudo, nenhum de seus companheiros de tripulação antigos ou atuais, nem o oficial de maior categoria que a sua nem os subordinados deste, deixaram-no terminar nenhuma frase quando o estava explicando. Era de esperar que os dez bolos de veado, os dez bolos de maçã, a interminável quantidade de pão e queijo e os quatro barris de cerveja tivessem um efeito letal, mas não foi assim. Todos os homens que estavam ali, incluídos alguns dos guardas-marinhas da Academia Naval, tinham diferentes opiniões sobre a origem do críquete, o que era um bom lançamento, qual era o melhor modo de usar um bastão e que quantidade de estacas se usavam no tempo de seus avós, e inclusive um dos guardas-marinhas de Babbington lhe contradisse quando deu a definição do lançamento em que a bola passava por fora da meta e permitia anotar uma corrida. Ninguém contradisse ao capitão Aubrey, que adormecera recostado à roda do carro com o chapéu sobre a cara, mas todos chegaram a discutir tão acaloradamente que Babbington convidou Stephen para caminhar pelo campo para ensinar-lhe os lugares onde deviam ficar os jogadores à esquerda ou à direita dos rebatedores ou diante da meta.
Pouco depois deixou de falar das posições no campo, disse que esperava que no dia seguinte pudesse mostrar-lhe a diferença entre um lançamento lento que derrubava a meta e outro que podia fazer regressar a bola.
- Meu Deus! Não me diga que os senhores vão jogar toda a tarde e também amanhã o dia todo! - exclamou Stephen surpreendido em tom descortês, pensando que ia ter uma insuportável chateação durante um longo tempo.
- Oh, sim! Íamos jogar por três dias seguidos, mas como a senhora Aubrey vem, há que arrumar a casa, retocar a pintura e lavar e secar bem o piso. Contudo, como as tardes são compridas, acho que as duas equipes terão tempo para jogar duas entradas.
Depois de uma pausa, em um tom diferente, acrescentou:
- Senhor, uma das razões pelas quais me alegrei quando o capitão disse que o senhor viria é que queria pedir um conselho.
- Ah! - exclamou Stephen.
Em outro tempo isso significaria que queria perguntar-lhe algo relacionado com a medicina (quando Babbington era muito jovem, uma vez que tinha prisão de ventre seus companheiros lhe convenceram de que ia ter um filho) ou que gostaria de pedir-lhe emprestada uma soma que variava entre seis peniques e meio guinéu. Mas isso ocorrera há muito tempo, e agora Babbington possuía muitos bens, entre eles um insignificante município com representação parlamentária, e, por outro lado, era improvável que acreditasse que estava grávido.
- Bem, senhor, a questão é… - disse Babbington. - Bem, não quero me estender, quer dizer, acho que é melhor que vá direto ao ponto. Acho que o senhor se recordará que o almirante Harte ficou furioso quando me surpreendeu…, bem, beijando a sua filha.
- Lembro que soltou algumas expressões grosseiras.
- Fez algo pior que isso. Prendeu e bateu em Fanny quando descobriu que nos escrevíamos. Depois lhe disse que tinha que aceitar se casar com Andrew Wray ou não lhe permitiria ir a nenhum baile nem a nenhuma obra de teatro e, além do mais, que era público e notório que eu cortejava a filha do governador de Antígua. Porém, para não me estender, só lhe direi que quando trrouxe a Dryad para a Inglaterra… Se recorda da Dryad, senhor? Que navegava bem de bolina! Pois nos encontramos em um baile e percebemos que nos queríamos como antes, ou mais se isso é possível.
- Escute, meu querido William - disse Stephen -, se quer que lhe aconselhe que cometa adultério…
- Não, não, senhor - disse Babbington, sorrindo. - Não necessito de conselhos sobre adultério. O que quero é… Mas talvez deveria lhe explicar a situação. Como o senhor provavelmente saberá, o almirante Harte era muito rico, e todos diziam que Fanny herdaria uma grande fortuna e que formava um belo casal com Wray; contudo, poucos sabiam que ele não poderia tocar em nem um penique sem o consentimento dela. E eles não entram em acordo nem nunca estiveram de acordo. Como seria possível que estivessem? Eles se parecem como um ovo a uma castanha. Ele é um maldito sem-vergonha que, além de bater nela, bebe muito, e o álcool lhe sobe à cabeça. E lhe disse claramente que só se casou com ela por seu dinheiro. Parece que está endividado até as sobrancelhas e que os alguazis vão amiúde à sua casa e são tirados dali por um meio ou outro.
"Minha visita deve de ter sido muito inoportuna", pensou Stephen.
- Mas não quero seguir falando mal deste homem - disse Babbington. - O que quero é que me diga a melhor forma de agirmos, pois o senhor conviveu com ele em Malta durante muito tempo e, ademais, pode ver mais através de uma parede de tijolo que a maioria das pessoas. Por um lado, pensamos dar-lhe uma parte da fortuna de Fanny sob a condição de que aparente que o matrimônio continua, ainda que, na realidade, cada um terá sua própia vida; contudo, disseram-me que não poderíamos lhe obrigar a fazê-lo mediante nenhum contrato e que teríamos que confiar nele. Por outro lado, pensamos em fugir juntos e deixar que me processe por incitação a delinqüir, ou seja, que me peça danos e prejuízos por isso.
- Senhor, senhor! - gritou um guarda-marinha, correndo atrás deles. - O capitão despertou e quer saber se deseja que sua equipe comece suas entradas agora, pois há muito o que fazer no sábado.
- Jé irei - disse Babbington, e se voltou para Stephen e, em voz baixa, perguntou -: Pensará nisso e me dirá sua opinião, senhor?
Ainda que Stephen sabia que, em um caso como esse, qualquer conselho que não satisfizesse os desejos das pessoas a quem concernia eram inúteis e às vezes ofensivos, pensou nele durante aquela interminável tarde, enquanto os tripulantes da Tartarus anotavam corridas, tanto as feitas quando o rebatedor golpeava a bola como quando não a golpeava. O marinheiro encarregado do castelo bateu primeiro. Era um homem robusto e de meia idade que em sua juventude estivera em Gibraltar quando havia sido sitiado e nunca havia esquecido o valor da tenaz resistência. Nem ele nem o carpinteiro jogavam por diversão. Ambos conseguiram que lhes caísse aos pés a alma dos lançadores, que lançaram inutilmente as bolas com rapidez, umas descrevendo uma reta, outras, uma curva por fora da meta, outras, uma curva fechada, até que o marinheiro que estivera em Gibraltar se deslumbrou com o sol poente e, em consequência, deixou de pegar uma bola lançada desesperadamente contra a estaca do centro da meta.
No dia seguinte o jogo foi um pouco menos sério. Os tripulantes da Tartarus deixaram que os jogadores da equipe; de Jack fizessem duzentos e cinqüenta e cinco pontos na primeira entrada, e os tripulantes da Surprise rebateram de um lado para outro do campo com a agilidade dos bons marinheiros. Mas já era muito tarde, e para Stephen o críquete ficou marcado para sempre como um passatempo realmente insípido que servia de entretenimento talvez por meia hora, mas que não era comparável ao hurling, se a comparação se basesse na rapidez, na habilidade, na graça de movimentos e na emoção.
Contudo, o segundo dia foi mais animado porque chegou Martin, muito magro e empoeirado depois de andar de Fareham a Portsmouth e de Portsmouth a Ashgrove. Quando saiu da Surprise, fora ao povoado onde vivia a jovem com quem queria se casar, e esqueceu que necessitava de um certificado de boa conduta e moralidade expedido pelo capitão Aubrey para poder receber seu pagamento, e o capitão Aubrey, que raras vezes levava pastores a bordo de seus barcos, havia se esquecido de dá-lo. Mas Martin necessitava do dinheiro urgentemente.
- O senhor não pode imaginar, meu querido Maturin… - disse Martin reclinando-se em uma cadeira de lona que estava na borda do campo, com um copo de conhaque com refresco de gengibre na mão e o certificado no colo. - Ainda que talvez possa, mas eu não, porque sempre vivi em um quarto alugado em casa de outras pessoas. Não pode imaginar o custo de uma casa. Vamos viver em uma pequena casa de campo que fica muito perto da reitoria de seu pai, pois assim ela não ficará sozinha quando eu estiver navegando, e também muito perto de um dos lugares mais benéficos para os maçaricos que possa imaginar; contudo, equipá-la com as coisas mais necessárias… Por Deus! Como custam caro as panelas, os suportes para lenha, os objetos de cerâmica de Delft vendidos nos mercados e as facas de cabo verde comuns; isso basta para fazer empalidecer qualquer homem. E não falemos do que custam as vassouras, os baldes e as bacias. Acho que é uma grande responsabilidade.
Depois de dar as boas-vindas a Martin, Stephen o levou para a casa para que comesse e bebesse vinho, e o felicitou por seu próximo matrimônio. Agora, depois de ouvir-lhe falar durante um tempo do exorbitado preço das caçarolas de cobre, dos raladores de queijo e outros muitos objetos domésticos, perguntou-lhe:
- Gostaria de ver um rouxinól em seu ninho? Está a menos de meia milha daqui.
- A verdade, Maturin, em um extraordinário dia primaveral como este, nada me produz mais satisfação que ficar sentado embaixo do sol em uma cômoda cadeira, com um grande terreno coberto de grama diante de mim, ouvindo o som do bastão ao golpear a bola e olhando os jogadores de críquete, sobretudo jogadores como estes. Percebeu de como Maitland viu de longe por onde iria a bola? Que rebatida! Não acha que ver uma boa partida de críquete produz bem-estar, entretém e é um bálsamo para a ansiedade?
- Não. Acho que, exceto por sua presença, é terrivelmente chata.
- Talvez não tenha notado alguns dos detalhes mais sutis. Boa jogada, senhor! Muito boa jogada! Nunca vira uma rebatida no último momento tão boa como esta. Como correm! Ah, ah! Por pouco esse homem sai fora. Olhe como voam os travessões! Por pouco não saem de seu terreno. Fazia anos que não via um jogo de críquete tão sério.
- É tão sério que parece um funeral.
- O senhor conhece a sir Joseph Banks, não é?
- Ao rei da botânica? Como não ia conhecê-lo se é o presidente da Royal Society?
- Foi ao mesmo colégio que eu, mas é de uma geração anterior. Amiúde ia nos visitar, e uma vez me disse que no céu jogavam críquete, e isso, dito por alguém com seus conhecimentos, é uma recomendação.
- Terei que pôr-me o mais cômodo possível no limbo.
- Desastrado! - gritou Martin quando o jogador que estava diante da meta deixou cair a bola que havia agarrado e se virou para trás para procurá-la às apalpadelas.
O rebatedor fez gesto de correr, mas o jogador que estava diante da meta se virou para ele e lançou a bola com rapidez e força diabólica e derrubou a meta.
- Que porco! - gritou Martin. - Que raposa! - acrescentou e quando cessaram os vivas, os apitos e os gritos, continuou -: Lamento não ter podido ver Mowett. Esse editor quer vender seu livro à prévia subscrição, e eu queria lhe dizer quais são as desvantagens desse método. Não há nada pior que ter que ir por aí com uma lista de subscrição pedindo aos conhecidos de um que façam um depósito de meio guinéu. Também queria advertir-lhe que tivesse cuidado com ele, porque, conforme me disseram, tem má fama na rua Grub. Parece que os marinheiros não são tão cautelosos como deveriam quando estão em terra, e que não têm em conta que alguns homens de terra adentro são hipócritas e predadores.
Martin fez alguns comentários mais desse tipo e depois se dedicou à tarefa de mostrar a Stephen os detalhes mais sutis do críquete, mas quando Stephen, depois de ter suportado dez fases mais com outros tantos rebatedores, percebeu que ainda faltavam outras cinco para jogar, e provavelmente para serem eliminados, disse que vira um torcicolo no extremo do pasto e que estava seguro de que ainda continuava ali. Contudo, nem mesmo isso conseguiu fazer que Martin se movesse.
- Um torcicolo? - perguntou Martin. - Ah, sim! nesta região lhe chamam o companheiro do cuco, e aqui há muitos cucos. Há três pelo menos. Escute como cantam. É um canto desesperador e desagrada aos homens casados. Meu Deus! E pensar que dentro de duas semanas me converterei em esposo! Lance-a alta, homem, lance-a alta ou nunca o eliminará! Os rebotes não são bons!
A tarde foi inclusive melhor que a manhã, e Stephen passou a maior parte dela passeando pelo bosque e os pastos. Foi visitar os rouxinóis e viu muitas outras aves de olhos brilhantes; entre elas uma faisã que estava incubando e um açor com uma campainha de prata em uma pata que estava pousado em um ramo e lhe olhou com desconfiança quando passou por seu lado. Teve muito tempo para refletir sobre a situação de Babbington e o fez, mas não achou nenhuma solução. Ao anoitecer, quando a partida, como Martin havia previsto, acabou em empate, disse para Babbington:
- William, sinto dizer que não posso lhe dar nenhuma solução nem sugerir nada medianamente inteligente. Espero que tenha considerado que um esposo que ocupa um posto no Almirantado é capaz de arruinar a carreira do oficial de marinha que lhe feriu.
- Sim. Eu considerei isso, mas não me importa porque meus primos e eu podemos contar com cinco ou provavelmente sete votos na Câmara dos Comuns, e aí é onde realmente está hoje em dia o apoio ao Governo, não na Câmara dos Lores.
- Sem dúvida, sabe mais destas coisas que eu. A outra coisa que queria dizer é que não é sensato para uma pessoa confiar em um homem a quem não se conhece bem, sobretudo se esse homem lhe detesta. Não digo isto por Wray, mas em geral. Tenho que confessar que esta é uma referência à generalidade dos homens que fez A Pallice.
- Eu sabia que o senhor seria favorável à nossa fuga - disse Babbington, apertando-lhe a mão.
- Não estou a favor disso - disse Stephen.
- Sabia que era a pessoa mais sensata de toda a Armada, e vou dizer a Fanny quando eu levar a Tartarus para Londres.
- Se não recordo mal, está fazendo o bloqueio a Brest.
- Sim. Infelizmente, zarparemos na segunda-feira, a menos que algo o impeça.
- Não poderá ver Sophie.
- Temo que não, e é uma lástima, mas pelo menos ajudarei para que a casa esteja arrumada quando chegue.
Stephen havia visto ao capitão Aubrey, seus oficiais e seus marinheiros arrumarem um barco como era devido para passar pela inspeção de um almirante, mas nunca havia visto Jack arrumar sua casa para quando regressasse sua queridíssima e largamente esperada esposa, e lhe surpreendeu ver o que fazia. Parecia nervoso, assustado e aflito, provavelmente porque cada vez lhe parecia mais provável que Sophie pensasse que ele a havia ofendido.
Na Armada os marinheiros pintavam os barcos quase constantemente, desde que o tempo permitisse, e alguns abriam um grande espaço de proa a popa quando eram chamados para seus postos de combate. Isso ocorria em todos os barcos que Jack governava, e para suas brigadas de carpinteiros e para seus ebanistas achavam algo normal derrubar todos os anteparos e as paredes interiores e tirar as portas perfeitamente ajustadas e as armários e, mais ou menos uma hora depois, voltar a colocar tudo. Potanto, Jack dispunha de trabalhadores muito hábeis que haviam estado sob suas ordens e além dos melhores da Tartarus e de dois especialistas ebanistas que haviam vindo de Portsmouth. Na quarta-feira todos haviam começado a trabalhar na casa. Haviam tirado todas as portas, as janelas e as basculante e as haviam raspado e lavado, e haviam lhes dado a primeira mão de tinta.
Esse dia iam dar-lhe a segunda mão com uma tinta para barcos que se secava rápido. Depois começariam a limpar a fundo tudo o que ficava à vista de modo que no domingo pudessem voltar a colocar as coisas nas habitações principais, para que pudessem ser usadas. Enquanto isso, tinham redes penduradas nos compartimentos do estábulo e os móveis metidos na cocheira.
- Espero que não se importe de levantar cedo amanhã, Stephen - disse Jack essa noite. - Se tivermos um pouco mais de tempo, poderemos tirar as lajotas do saguão, da cozinha, da dispensa, e do refeitório e limpá-las com pedra arenito até que voltem a ficar brancas. Ademais, poderemos enquadrar as quinas e polir a superfície. A idéia foi de Babbington, e o encarregado da bodega de seu barco, que é especialista em fazer lajotas, diz que a única coisa de que necessita é uma grande pedra arenito, um andaime e meio celemine (4,6lt) de grés de Purbeck.
Stephen estava acostumado a sofrer incômodos no mar, ou em qualquer outro lugar em que os membros da Armada faziam limpeza conforme um ritual que parecia hebraico, mas nunca havia visto nenhum lugar que houvesse ficado devastado como Ashgrove Cottage pouco depois que a alvorada entrassem ali com vários grupos de homens a limpar. Todas as portas e janelas estavam fora, no estábulo, seguras com cavilhas a uma série de cordas estendidas que formavam um engenhoso sistema que permitia que os dois lados recebessem tanto ar e tanta luz do sol como fosse possível. Por toda a casa se ouvia a água correndo, as escovas esfregando com força, violentos golpes e os gritos que habitualmente os marinheiros davam, pelo que parecia que havia sido assaltada de surpresa. Apesar de fazer um tempo celestial, a casa parecia uma mistura de fábrica, cisterna e correcional onde os presos faziam trabalhos forçados. Stephen se alegrou de sair dali por ter que levar Martin na carroça para Portsmouth, onde pegaria a diligência de Salisbury.
Como Martin já não estava atendendo ao jogo de críquete, voltou a ser um agradável companheiro, e ambos desfrutaram contemplando em Ports Down os tordos, os chascos e um pássaro carpinteiro com algumas manchas que comia formigas e que nenhum deles havia visto antes. Mas quando entraram na cidade, comportou-se como um típico futuro esposo. Pegou uma lista do bolso e disse:
- Uma peneira cônica para fazer molho, um garrafeiro, um sifão, três colheres de ferro, uma bolsa de espremer a fruta para fazer geléia mais bem grande. Maturin, espero que não se importe de irmos a uma serralheria. Agora que estou seguro de que receberei meu pagamento, acho que posso comprar-me uma peneira de cobre e um garrafeiro de latão, mas como esta compra é tão importante, agradeceria se o senhor me aconselhasse. Os conselhos que Stephen podia dar-lhe sobre os garrafeiros não eram muito valiosos, mas lhe deu durante meia hora cheia de vacilações e indecisão, porque apreciava sinceramente a Martin. Contudo, por maior que fosse seu afeto, não podia falar dos méritos das panelas de lata com o fundo de cobre durante muito tempo, assim que deixou Martin com a amável e infinitamente paciente esposa do serralheiro, cruzou a rua e entrou em uma prataria onde comprou, como presente de casamento, uma chaleira, uma jarra para leite e um açucareiro.
Quando regressou com o pacote, encontrou Martin indeciso entre comprar um ou outro de dois potes para congelar, que não se diferenciavam nem em tamanho nem em qualidade e lhe disse:
- Eu lhe rogo que o senhor e sua esposa aceitem isto que lhes ofereço com carinho.
- Oh! - exclamou Martin com assombro. - Muito obrigado. Posso vê-lo?
- Mas não poderá embrulhá-lo bem outra vez.
- Eu embrulharei para o cavalheiro - a esposa do serralheiro se ofereceu amavelmente.
- Oh, Maturin! - exclamou Martin, levantando a chaleira. - O senhor é muito amável. Eu lhe agradeço muito, muito. Polly ficará encantada. Deus lhe abençoe.
- Ouça, senhor, o que o senhor pensou? - perguntou o ourives em tom mal-humorado ao entrar de repente na serralheria. - Se Bob não lhe visse entrar na loja da senhora Westby, em que situação eu teria ficado? Seria feito de bobo, claro. Agora conte comigo - acrescentou em tom enfático e pôs um a um as notas e as moedas que trazia em um lugar. - E cinco, dezessete, o que faz um total de dezessete libras e quarenta e três peniques, senhor… com sua permissão.
Terminou de falar bruscamente e lançou um significativo olhar para a senhora Westby, que franziu os lábios e moveu a cabeça de um lado para o outro.
Stephen pôs a melhor expressão que pôde, mas esse não era seu dia. Voltar a envolver o pacote e empacotar os objetos da serralheria levou tanto tempo que ambos tiveram que correr furiosamente para alcançar a diligência de Salisbury, e inclusive gritar para que se detivesse. Martin pôde subir, mas quando a diligência começou a se afastar a toda velocidade, porque já levava um pouco de atraso, Stephen notou que na mão que agitava no ar estava a bolsa de espremer fruta de tamanho médio.
Lentamente, ele e Moisés regressaram para Ashgrove Cottage, e à luz do entardecer pôde ver que a devastação era maior agora, porque haviam tirado o piso do saguão, da cozinha e de todas as habitações da planta baixa. Viu com assombro que onde antes havia lajotas agora havia terra úmida e fedorenta, como a de um campo de batalha, com charcos de água atravessados por pranchas. Os marinheiros, colocados no andaime, poliam as lajotas de seis em seis. Quatro deles, todos muito fortes, moviam a pesada pedra arenito enquanto outro, subido em cima dela e rindo, polvilhava o gres de Purbeck e trocava a direção do jorro de água, e ao mesmo tempo uma pátina de duzentos anos saía por um canal que chegava até o terreno onde Jack havia semeado espargos. O jardim estava atravessado em todas direções por pranchas colocadas sobre lona molhada, e em cima delas podiam se ver grandes objetos que na penumbra pareciam amorfos.
- Oh, Stephen, não sabe como estou satisfeito com as lajotas! - exclamou ao ver a expressão desconsolada de seu amigo. -Demoram em limpá-las um pouco mais do que pensava, e ainda que eu ache que não poderão terminar esta noite, já voltamos a colocar as da parte traseira da dispensa. Venha vê-las. Não acha que estão preciosas?
- São tão bonitas que parecem os quadros de um tabuleiro de xadrez - disse Stephen, erguendo a voz para que pudesse ser ouvido entre alguns golpes que se ouviam acima, os golpes que os marinheiros davam com os esfregões no solo para secá-lo.
- Sophie se surpreenderá - disse Jack. - Venha ver como as polem.
Mas os homens que poliam as lajotas haviam interrompido seu trabalho. Os quatro que moviam a pedra haviam soltado as cordas e o outro estava em uma posição como se estivesse a ponto de saltar, deixando cair a água tranqüilamente e olhando com a boca aberta, como seus companheiros, para uma carruagem. Jack voltou a vista com impaciência para onde eles olhavam e viu a cara de Sophie. Sua gesto incrédulo e desconsolado se transformou imediatamente em uma expressão alegre.
Jack a ajudou a descer e a beijou apaixonadamente. Depois lhe explicou o que estavam fazendo e disse que no dia seguinte tudo estaria como devia: a tinta seca, as lajotas colocadas… Acrescentou que haviam encontrado um poço em desuso no saguão e perguntou como estavam as crianças. Por sua vez, ela, com as palavras saindo aos borbotões de sua boca, contou que a viagem pelo mar havia sido tão boa que havia dormido todo o tempo, que nas pousadas a haviam atendido com cortesia e gentileza e que todos os cocheiros eram muito amáveis. Disse que sua mãe e as crianças estavam bem, assim como Frances e seu bebê, que era um homem, e que o senhor Clotworthy estava muito satisfeito, e acrescentou que lhe encantava estar em casa de novo. Então recuperou a sensatez, afastou a vista da casa bagunçada e apertou a mão de Babbington, abraçou tenramente Stephen e cumprimentou a todos os oficiais, guardas-marinhas e marinheiros que conhecia. Disse que não os incomodaria porque levaria parte de sua bagagem para um compartimento e descansaria ali, e acrescentou que não havia melhor lugar que um compartimento realmente cômodo para descansar.
Foi em um compartimento, em um onde estivera Jezebel, o candidato ao prêmio de Oaks que Jack havia apresentado, onde jantaram iluminados por uma lanterna do estábulo. Tinham muitas coisas para se falar, ainda que não haviam estado separados muito tempo, e raras vezes ficavam silenciosos. Uma das dificuldades que tinham era averiguar o que ambos sabiam pelas cartas e quais eram as que haviam chegado e as que haviam se perdido.
- Sua última carta… - começou a dizer Jack, e percebeu de que começava a pisar terreno pantanoso, mas compreendeu que não podia evitar e, olhando para seu prato, continuou falando em tom grave - eu a recebi em Barbados. Era uma cópia de uma que também mandas-te para Jamaica.
- Ah, sim! - exclamou Sophie. - Aquele amável jovem se ofereceu para levar. Assim que lhe encontrou, hem? Alegro-me muito, querido.
Então lhe olhou fixamente, vacilou alguns momentos e depois, ruborizando-se, continuou:
- Achei que era tão afável em seu trato como alguém desejaria que um jovem fosse. Espero que venha fazer-nos uma longa visita tão logo como lhe permitam suas obrigações. Me gostaria muito que as crianças o conhecessem.
Às onze da manhã da segunda-feira, os últimos fragmentos do desfeito desenho foram colocados em seu lugar. Ashgrove Cottage, recém pintada, com o piso recém colocado e com os vidros, os atiradores e as maçanetas de latão e todos os objetos de metal brilhantes, tão brilhantes como podiam deixá-los os marinheiros com sua característica forma agressiva de limpar, estava agora como Jack queria que Sophie a tivesse visto quando chegasse.
Ao meio-dia os homens de Babbington foram presenteados com rosbife e pudim de passas e depois, ainda relativamente sóbrios, foram metidos em dois carros para ir até onde se encontrava a Tartarus, que devia zarpar essa noite com a mudança da maré. Então Jack conduziu Sophie para o bosque até chegar além da parte coberta de arbustos, e lhe explicou as melhorias que pensava fazer.
- Esta é a vereda que Stephen chama de trocha - explicou Jack. - O pobrezinho usa algumas palavras muito raras. Como às vezes é muito sensível, espero não ter-lhe ofendido por ter-me fixado na forma com que pronuncia Cartilha.
No domingo Stephen fora a Portsmouth para assistir a missa em uma igreja católica que havia ali e ainda não voltara, mas mandara Padeen com o recado de que tinha que ir a Londres e que se desculpava por isso.
- Estou segura de que não, querido - disse Sophie.
Também estava segura de que suas amostras de afeto por Stephen lhe haviam resultado mais dolorosas que as de qualquer outra pessoa. Quando se perguntava se era possível expressar isso com palavras e quais usaria em caso de que o fosse, ambos viram a Killick sair da casa e correr para eles.
Killick estava acostumado a que os alguazis perseguissem ao capitão por suas dívidas e a desfazer-se deles, e agora tinha uma expressão preocupada e uma significativo olhar que lhes fez recordar alguns dos episódios relacionados com esses homens.
- Chegaram os alguazis? - inquiriu Jack.
- Chegou um tipo estranho, senhor - respondeu Killick. - Parece um cavalheiro - acrescentou e depois, falando com a boca meio oculta atrás da mão e em tom angustiado, continuou -: Não é conveniente erquivar-se porque de cada lado do caminho há um grupo de tipos musculosos que se parecem muito com os contrabandistas da rua Bow.
- Falarei com ele - disse Jack, sorrindo e regressou para casa. Ali encontrou um homem muito sereno que tinha um papel dobrado na mão.
- Bom dia, senhor. Sou o capitão Aubrey. Em que posso servir-lhe?
- Bom dia, senhor - disse o homem. - Poderíamos entrar para uma habitação para falar em particular? Fui enviado de Londres para lhe informar de um assunto que lhe afeta consideravelmente.
- Muito bem - disse Jack, abrindo uma porta. - Por favor, tenha cuidado com a pintura. Diga-me, senhor, de que se trata?
- Sinto dizer-lhe que tenho ordem de prender-lhe.
- Diabos! Por qual demanda?
- Não é por dívidas, senhor. É uma ordem de prisão ordinária.
- De que me acusam? - perguntou Jack com assombro.
- De conspiração para fraudar a bolsa.
- Ah, isso! - exclamou Jack, sentindo-se aliviado. - Meu Deus! Posso explicar facilmente as operações que fiz nela.
- Estou seguro de que sim, senhor, mas tenho que pedir-lhe que me acompanhe. Confio que o senhor não fará minha tarefa ainda mais desagradável, quer dizer, confio em que não me obrigará a algemar a um cavalheiro de sua categoria. Se me dá sua palavra de não tentar escapar, atrasarei a execução desta ordem meia hora para dar-lhe tempo para que deixe seus assuntos em ordem. Imediatamente depois partiremos para Londres. Tenho uma carruagem esperando na porta.
CAPÍTULO 7
- Eu gostaria de ter melhores notícias para lhe dar ao seu regresso - disse sir Joseph -, porém, lamentavelmente, às vezes os amigos de um não fazem o que um espera.
- Em troca, outras vezes fazem as coisas tão bem como nem sequer a pessoa mais otimista poderia imaginar - disse Stephen.
- Isso não é nada, não é nada - disse sir Joseph, sorrindo e agitando a mão. - A verdade é que Holroyd não defenderá o capitão Aubrey, e sinto muito, porque é um dos poucos advogados defensores que se dá bem com lorde Quinborough, que presidirá o tribunal. Quinborough não lhe molestaria, como faria com outros advogados, e inclusive trataria ao seu cliente decentemente. Ademais, conforme dizem, Holroyd influe muito no jurado, e todos pensam que é a pessoa mais indicada para ocupar-se do caso. Tenho que admitir que me incomoda sua negativa, porque nunca pensei que recusasse uma petição que eu lhe fizesse diretamente, já que me deve alguns favores. Na realidade, se há comportado como uma pessoa desprezível, pois há dado numerosas desculpas falsas, como por exemplo, que não dispõe do tempo necessário porque o julgamento se celebrará muito cedo e tem muitos compromissos e que, potanto, não porá defender ao seu cliente como deveria.
- Vejo que não lhe convenceram.
- Não, e não soube o porquê até esta noite, quando estava jantando em Colebrook's. Ali me informei de que um juiz morreu de repente e que ainda não se havia decidido quem seria seu sucessor, mas que Holroyd estava entre os candidatos com mais possibilidades. Como o Conselho de Ministros, com uma rapidez e um zelo inusuais, apresentou esta demanda com o único propósito de prejudicar ao Partido Radical, isto é, de destruir ao general Aubrey e seus amigos, Holroyd não quer molestar ao presidente do Tribunal Supremo atuando como defensor do filho do general neste momento, que é um momento decisivo. Tampouco quer molestar ao lorde Quinborough, que é um oponente dos radicais tão enérgico como o presidente do Tribunal Supremo e, ademais, membro do Conselho de Ministros. É raro que um juiz também pertença ao Conselho de Ministros…
- Jack Aubrey está tão longe de ser um radical que não suporta nem sequer ouvir o ome whig - disse Stephen, para quem não lhe importava nem um pouco a composição do Conselho de Ministros. - Quando pensa na política, o que faz duas vezes por ano, declara-se um conservador ultraconservador.
- Mas todos sabem que é filho de um radical tagarela e que constantemente acossa aos ministros no Parlamento. E neste caso, além de ser filho de um radical, está associado com eles, pelo que não tem importância o que diga duas vezes por ano.
- Há notícias do general?
- Dizem que se escondeu na Escócia, ainda que ninguém saiba com certeza. Alguns contam que se barbeou e se escondeu entre as madalenas arrependidas de Clapham.
- Não tem imunidade parlamentária?
- A imunidade parlamentária não é válida somente nos casos de traição e de delitos graves, e não acho que fazer operações fraudulentas na bolsa esteja incluído em nenhuma dessas categorias; mas acho que seu propósito é passar desapercebido, não correr nenhum risco e deixar que seu filho e seus amigos carreguem a culpa. É um velho terrível, sabe?
- Conheço o general Aubrey.
- Voltando a Holroyd, direi que pelo menos me deu um conselho. Como a estratégia da defesa se baseia na identificação do homem do carruagem, o que deu começo ao engano, Holroyd me aconselhou que procurássemos a um investigador independente e me deu o nome de um que, segundo ele, é o melhor de Londres, que lhe ajudou em muitos casos e foi contratado por muitas companhias de seguros. Como o tempo urge, tomei a liberdade de ordenar ao homem que se pusesse a trabalhar imediatamente, ainda que seus honorários sejam de um guinéu diário e há que pagar-lhe o aluguel de um carro. Neste momento o homem está na cozinha. Tem algum inconveniente em falar com ele?
- A verdade é que hei tido trato com carrascos para conseguir algum que outro cadáver interessante - disse Stephen -, assim que não me amedronta falar com um caçador de ladrões.
O investigador, cujo nome era Pratt, tinha um aspecto comum e parecia um discreto comerciante ou o ajudante de um advogado. Sabia que sua profissão geralmente inspirava desprezo porque era muito parecida à de informante da polícia, e permaneceu ali de pé em atitude submissa até que lhe pediram que se sentasse. Então sir Joseph explicou a Pratt que esse cavalheiro era um amigo íntimo do capitão Aubrey, o doutor Maturin, que havia tido que atender a um paciente no campo, e que podia falar com toda franqueza em sua presença.
- Bem, senhor - disse Pratt -, queria ter melhores notícias para dar. Estou seguro de quem tem a razão neste caso, mas até agora não encontrei nenhuma prova que possa ser aceitada por um tribunal. Naturalmente, isto é um montagem, como nós dizemos, e me dei conta disso desde que falei com o capitão, mas apesar de tudo fiz as comprovações necessárias. Descobri que não há nenhuma pessoa com o nome de Ellis Palmer ou com um nome similar que seja redator de leis no Parlamento, e que entre os membros das sociedades culturais ou científicas só havia alguém de nome parecido, o senhor Elliot Palmer, que tem quase oitenta anos e está enclausurado em sua casa devido à gota. Estive também em Dover. No Ship recordavam-se do quacre, do tipo presunçoso e da briga pela carruagem, mas ninguém se fixou muito no senhor Palmer. Disseram-me que não o haviam visto antes e que não podiam dar-me uma descrição dele que fosse confiável. Contudo, tive mais sorte em Sittingbourne. A filha do hoteleiro recordou-se que ele escolhera com cuidado o vinho e disse que achou extranho que, apesar de ter estado ali somente uma vez, falasse e se comportasse como alguém que houvesse frequentado o lugar durante anos. A descrição que fez concordava com a do capitão, por sorte, já que é importante ter pelo menos duas versões, e regressei a Londres com uma idéia clara do tipo de homem que devia buscar e o tipo de lugares onde poderia encontrá-lo. É um tipo, quer dizer, um homem instruído, e possivelmente tenha alguma relação com a advogacia ou a Igreja. Talvez seja um clérigo degradado, e é provável que freqüente salas de jogo. Regressei em uma carruagem conduzida pelo mesmo jovem que trouxe o capitão e o senhor Palmer, e o jovem disse que deixou o capitão em seu clube e o senhor Palmer na rua Butcher. Que fica logo depois da rua Hollywell, senhor, perto da Cidade - disse, voltando a olhar para Stephen.
Stephen pensou: "Minha roupa e minhas botinas são feitas em Londres, não disse nem quatro palavras e mantenho o rosto impassível com facilidade, e, contudo, este homem descobriu que não sou daqui. Ou eu fui um presunsoso durante todos estes anos ou ele é extraordinariamente perspicaz".
- Então, senhor - prosseguiu Pratt, olhando para sir Joseph -, quando o cocheiro viu que o passageiro se dirigia para o norte até a rua Bell Yard, desceu na carruagem pela rua onde se encontra o Temple, o colégio de advogados, até a praça onde fica a fonte. Ali pediu a um garoto que desse de beber aos cavalos, desceu da carruagem e foi para a loja onde vendem bolos de cordeiro que fica situada em uma esquina próxima ao Temple, justo onde se colocam os carros de aluguel, e que fica aberta toda a noite. Enquanto comia o segundo bolo e falava com alguns cocheiros que conhecia, viu aparecer pela outra rua o senhor Palmer, que caminhava trabalhosamente com sua mala e seu portafólio. Depois viu o senhor Palmer atravessar a rua onde fica a Fleet, a prisão para devedores, de norte a sul, compreende, senhor?, e chamar ao primeiro coche, mas não viu em que direção foi. No dia seguinte encontrei o cocheiro, que me disse que havia levado um cavalheiro do Temple até o antigo colégio Major Lyon's.
Pratt olhou fixamente para Stephen por alguns momentos, mas Stephen conhecia aquela isolada e escura série de pátios onde outrora viviam os atuais advogados da Chancelaria e disse:
- Acho que o senhor Pratt começou dizendo que ainda não temos nenhuma prova legal e que não estamos nos aproximando de um momento crítico, senão analisando a situação atual, assim que acho que posso me ausentar um momento.
Então olhou para sir Joseph fazendo um gesto de desculpa e sorrindo.
- Viajei durante a noite toda- acrescentou.
- Certamente! - exclamou Blaine. - Já conhece o caminho.
Stephen conhecia o caminho e sabia que no gabinete de sir Joseph, um lugar escuro e forrado de livros, sempre ficava ardendo a chama de uma lâmpada. Pegou um charuto de sua charuteira, o partiu em dois, acendeu uma parte com a chama da lâmpada (era muito desajeitado usando o isqueiro de pederneira) e ficou ali sentado um pouco aspirando profundamente a fumaça. Nesse momento ouviu a certa distância por debaixo dele o ruído do moedor de café, que, a julgar pelas vibrações que chegavam até ali, ficava fixo na parede, e sorriu, pois fumar um charuto e pensar que logo tomaria café acalmaram uma parte de seu ser, a parte que tinha intranqüilidade por causa da desagradável viagem que havia feito durante a noite, rodeado de passageiros bêbados e em um coche que dava solavancos. A outra parte não podia se acalmar facilmente, pois estava cheia de angústia por várias razões. Em primeiro lugar, ainda que ele desconhecesse as leis inglesas, sabia que Jack Aubrey estava condenado à ruína; em segundo lugar, estava muito preocupado por seu amigo Martin, a quem havia operado talvez tarde demais de uma hérnia estrangulada e havia deixado relativamente acalmado, mas em estado grave; em último lugar, passara um tempo muito desagradável com Sophie quando a visitou em Ashgrove Cottage. Ainda que sentisse um grande afeto por Sophie, assim com ela por ele, suas lágrimas, sua tristeza expressada abertamente e sua necessidade de apoio lhe haviam causado uma grande decepção. Era óbvio que o esgotamento provocado por uma viagem muito comprida e o desconsolo por ter visto sua felicidade truncada haviam influído muito nela, mas ele pensava que Diana ou, pelo menos, a Diana que ele idealizara, haveria tido mais coragem, mais integridade e mais ânimo. Provavelmente Diana blasfemaria, mas nunca diria nada que lembrasse à senhora Williams e, sem dúvida, se não houvesse conseguido enganar ou subornar aos homens que foram prender seu marido, em vez de retorcer as mãos, seguiria-o com um par de meias e um par de camisas limpas apesar dele ter lhe ordenado que não o fizesse. Durante um tempo Stephen seguiu aprofundando na ferida e seguiu comparando Diana com uma tigresa e logo, depois de aspirar a fumaça pela última vez até sentir que a cabeça girava, jogou o cabo, que fez um som sibilante, e desceu a escada.
- Senhor Pratt - disse quando se sentou para tomar café -, o senhor disse que quando falou com o capitão Aubrey se convenceu de que tudo era uma montagem. O senhor se importaria em me dizer o que foi que lhe fez chegar a essa conclusão? Por acaso ele lhe mostrou provas irrefutáveis que desconheço?
- Não, senhor. Não foi tanto o que disse mas a forma com que disse. Confessou que lhe parecia absurda a idéia de que alguém achasse que era capaz de inventar essa série de disparates, pois ele não ouvira falar de coisas como a oferta de aquisição ou a venda imediata até que Palmer lhe explicou. Disse que estava seguro de que Palmer se apresentaria às autoridades e acrescentou que era um bom homem e um especialista em vinhos. Depois acrescentou que ambos iam rir muito quando tudo terminasse. Durante o exercício de minha profissão já ouvi negar os fatos e dar explicações de forma muito diversa, mas nunca ouvira nada igual. Isso não servirá de nada quando o jurado tenha que tomar uma decisão, ao final de um comprido julgamento, e ele esteja desconcertado por encontrar-se em um tribunal e por receber os ataques do promotor e talvez também do juiz, o que é provável neste caso; contudo, se dissesse isso pessoalmente a um par de oficiais na prisão Marshalsea, como dizem os romanos, dar-lhe-iam a sagrada comunhão sem que se houvesse confessado. Em minha profissão um chega a ter intuição para estas coisas, e ainda não estava escutando-lhe há cinco minutos, isto é, dois minutos, quando compreendi que era tão inocente como um nonato. Porém, estimados cavalheiros, não quisesse que levassem um cordeiro ao matadouro. Raras vezes vi um caso similar.
- Provavelmente o senhor tem muita experiência, senhor Pratt.
- Bem… Sim, senhor, acredito que tenho tanta ou mais que a maioria. Nasci em Newgate, sabe? Meu pai era carcereiro ali, assim que me criei entre ladrões. Cheguei a conhecer muito bem aos ladrões e seus filhos foram meus companheiros de jogo. Alguns deles, especialmente os confidentes, eram desprezíveis, mas muitos não eram. Posteriormente trasladaram meu pai para a prisão Clink e depois para a King's Bench; assim que fiz muito mais amigos entre os ladrões e conheci muitos prisioneiros, advogados de baixa categoria e policiais ao sul do rio, o que depois de passar uma temporada entre os contrabandistas da rua Bow me foi muito útil quando comecei meu própio negócio.
- Sim, não tenho nenhuma dúvida disso.
- Agora, senhor - disse Pratt pondo de um lado sua xícara -, acho que deveria seguir falando do antigo colégio Major Lyon's. Devo admitir que pensei que encontrara o homem que buscava, pois ainda que atualmente vivam ali muitas pessoas, sobretudo no edifício do último pátio, que parece uma toca, poucas teriam os traços correspondentes à descrição que tenho. O homem é magro, mede aproximadamente cinco pés e sete polegadas de estatura e, ou bem usa uma peruca curta ou tem seu própio cabelo empoado. Ademais, tem uns cinqüenta anos e, naturalmente, é um lagarto.
- Que quer dizer lagarto?
- Sinto ter usado uma gíria de quadrilha. Essa palavra é usada para se referir a uma pessoa desonesta. Os de quadrilha lhe chamam de palerma se não aproveita todas as oportunidades que se apresentam e acreditam que o mundo está dividido em palermas e lagartos. Indubtavelmente, o senhor Palmer é um lagarto, pois só; um lagarto haveria tratado de despistar seus seguidores como ele. Ademais é um nobre, um cavalheiro de nascimento, pois se fosse um delinqüente comum vestido para a ocasião não poderia ter jantado com o capitão Aubrey nem ter falado dessa forma durante toda a noite sem que o capitão, apesar de cândido… quer dizer, sem que o capitão notasse. Assim que pensei que encontrara ao homem que procurava, mas me equivoquei, porque não vive ali. Ou bem tratava de despistar outra vez ou bem fora ali para visitar alguém para descansar um pouco ou para deixar alguma mensagem. Tive uma grande decepção, mas continuo a investigação. Estou fazendo perguntas a criadas, garotos da rua, transportadores, lixeiros e outras pessoas, assim como a muitas de minhas relações. Sigo investigando na hospedaria para averiguar a quem visitou e chegar até ele através dessa pessoa, mas também estou investigando em outro lugar, entre os nobres que meus amigos conhecem e que poderiam ter interesse em comportar-se assim. Porém, cavalheiros - disse Pratt, olhando alternativamente de um para o outro -, em vista de que não tive tanta sorte como pensava e de que não pude pegar-lhe na primeira tentativa, não me atrevo a fazer-lhes muitas promessas. Esse tipo não é de categoria baixa nem alta, mas de uma que poderia chamar-se suprema. Um trabalho deste tipo, de escala similar a uma fraude que vi na bolsa e a alguns que vi em companhias de seguros e tão custoso e bem preparado como eles, sempre é realizado por um cavalheiro que só falou com um agente secreto, como poderia se chamar, que é quem contrata os participantes, que costumam ser dois ou três, e se ocupa de todos os detalhes. Geralmente, os participantes são dois ou três. Se aprisionasse o quacre ou o tipo presunçoso, que indubtavelmente pertencem ao bando, não nos serviriam de nada, já que não conhecem aos homens que estão detrás do tipo que lhes contratou. O agente secreto é o único que pode delatar seus superiores, e eles se asseguram de que não o faça ameaçando-lhe com revelar um delito que há cometido ou de uma forma mais segura, se as coisas saem mal.
Stephen e sir Joseph se olharam de soslaio e pensaram que isso não era estranho no serviço secreto.
- É um tipo que se cuida muito em qualquer circunstância - prosseguiu Pratt. - Seguirei buscando o senhor Palmer, é claro, mas ainda que consiga achar-lhe, duvido que nos revele algo com respeito aos principais responsáveis deste caso.
- Em nossa opinião, encontrar Palmer é fundamental - disse Stephen. - E como o julgamento se celebrará muito logo, é necessário encontrar-lhe rápido. Diga-me, senhor Pratt, tem algum colega confiável com quem possa trabalhar para ganhar tempo? Eu pagaria a ele o que o senhor estimasse conveniente e duplicaria o que pago ao senhor contanto que possa falar com o senhor Palmer antes do julgamento.
- Bem, senhor, com relação aos meus colegas… - disse Pratt em tom vacilante enquanto esfregava o queixo. - Indubtavelmente, ganharíamos tempo se Bill trabalhasse ao sul do rio - murmurou e depois, subindo a voz, acrescentou -: Só poderia trabalhar a vontade com Bill Hemmings e seu irmão. Os dois estiveram comigo na rua Bow. Falarei com eles e lhe comunicarei sua resposta.
- Sim, senhor Pratt, por favor, e lhe rogo que não perca um minuto. Não há nem um momento a perder. Lembre que pode se comprometer em meu nome a dar uma considerável gratificação. Não permita que uns poucos guinéus sejam um obstáculo.
- Meu querido Maturin - disse sir Joseph quando Pratt se foi -, permita-me dizer que se o senhor faz ofertas como essa nunca será um homem rico. Praticamente pediu a Bill Hemmings que lhe arruíne.
- Sem dúvida, falei sem pensar - disse Stephen e depois, sorrindo, continuou -: quanto a ser um homem rico, estimado Blaine, quero que saiba que já sou. Meu padrinho, que descanse em paz, nomeou-me seu herdeiro. Não podia imaginar que houvesse tanto dinheiro no mundo, quer dizer, tanto nas mãos de uma só pessoa. Mas eu gostaria que isto ficasse entre nós, porque não desejo que chegue a ser do domínio público.
- Quando fala de seu padrinho se refere ao Dom Ramón, né?
- Sim, a Dom Ramón, que Deus bendiga - respondeu Stephen. - Mas não espalhe este assunto, por favor.
- Certamente que não. De qualquer ponto de vista, é muito mais conveniente e prudente ter uma aparência medíocre, ainda que decente. Mas como esta é uma reunião privada, permita-me felicitar-lhe por ter essa fortuna.
Ambos se deram a mão e sir Joseph prosseguiu:
- Se não me equivoco, Dom Ramón era um dos homens mais ricos da Espanha. Talvez o senhor pudesse fundar uma cátedra de osteologia comparada.
- Talvez - disse Stephen. - Tenho pensado nisso às vezes, quando tive tempo para pensar.
- Falando de riqueza - disse sir Joseph -, quero que venha ao meu estúdio para que veja o que Banks me mandou.
Ele foi na frente e abriu a porta com precaução, pois a habitação estava cheia de caixas com exemplares de plantas, insetos e minerais formando torres cambaleantes.
- Meu Deus, que beleza! - exclamou Stephen, pegando a pele de um sapo do Suriname.
- E os insetos são extraordinários - disse sir Joseph. -Passei uma manhã muito alegre observando-os.
- De onde procedem estas coisas maravilhosas?
- É uma coleção feita para o Jardin des Plantes por numerosos agentes secretos, e enquanto chegaram ao Canal, a Swiftsure se apoderou dela. O Almirantado a entregou à Royal Society e Banks enviará a Cuvier no próximo barco com bandeira branca que zarpe, como faz sempre nestes casos. Não obstante, me deixou vê-la antes de empacotá-la.
- Se os cavalheiros desejam almoçar a refeição ainda quente, podem sentar-se à mesa agora - disse a governanta de sir Joseph em tom comedido.
- Oh, senhora Barlow, acho que nos atrasamos! - exclamou sir Joseph, olhando para o relógio que estava atrás de um monte de serpentes conservadas em álcool.
- Não podemos comer de pé, como se fosse um sanduíche? - perguntou Stephen.
- Não, senhor, não podem - respondeu a senhora Barlow. - Um suflê não é um sanduíche, mas parecerá uma torta se não vierem imediatamente.
- As pessoas dizem coisas desagradáveis sobre lorde Sandwich - disse Stephen quando se sentaram -, mas acho que a humanidade lhe deve muito por sua genial invenção. Ademais, era muito bom amigo de Banks.
- As pessoas também dizem coisas desagradáveis de Banks, como, por exemplo, que se comporta como um tirano na presidência da Royal Society, que não concede a importância que deveria para as matemáticas e que faz qualquer coisa pela botânica e seria capaz de falar dela até na tumba de sua mãe. Vários desses comentários talvez se devam a que alguns lhe invejavam por sua riqueza. A verdade é que faz expedições que poucas pessoas mais podem pagar e contrata excelentes artistas para que desenhem ou reproduzam em gravuras o que ele descobre.
- É realmente muito rico?
- Oh, sim! Quando herdou Revesby e os outros imóveis obteve deles seis mil em por ano. O trigo estava a menos de um guinéu a libra naqueles tempos, e agora está quase a seis libras; assim que, descontando os impostos, acho que obtém trinta mil por ano.
- Nada mais? Bem, bem. Mas me parece que um homem que ganhe trinta mil por ano pode ter dificuldades.
- Pode o senhor dizer o que queira, senhor Creso, mas inclusive essa pequenez lhe dá uma categoria e uma autoridade que a alguns lhes desagradam.
Sir Joseph voltou a encher a taça de Stephen, comeu um pedaço de pudim e, com uma expressão afetuosa, disse:
- Diga-me, Maturin, acha que a riqueza influe no senhor?
- Quando me recordo dela, sim, e acredito que a influência é quase totalmente negativa. Acho que me sinto melhor que os outros homens e, além disso, que sou superior a eles e mais rico em tudo menos em beleza, claro, mais rico em prudência, virtudes, méritos, conhecimentos, inteligência, compreensão e senso comum. Quando me dá um ataque como esse, não teria dificuldade em tratar com desprezo a sir Joseph Banks, e mesmo a Newton se o encontrasse. Porém, afortunadamente, não me recordo dela sempre, e quando o faço, raras vezes acredito que é real, pois os hábitos adquiridos na penúria são difíceis de apagar. Acho que nunca me comportarei como os homens de família acomodada, que presumem de sua riqueza e acreditam que têm muitos méritos.
- Permita-me servir-lhe um pouco mais de pudim.
- Com muito gosto - disse Stephen, aproximando-lhe seu prato. - Quanto eu gostaria que Jack Aubrey estivesse aqui! Ele se deleita comendo pudim, sobretudo deste tipo, ainda que sem cair no pecado. Acharia uma descortesia se eu pedisse que deixasse levar meu pudim para o seu estúdio? Tenho que estar em Marshalsea antes das seis, e lamentaria não poder observar os tesouros de Cuvier um pouco mais de tempo antes de que os empacotem. A propósito, o senhor sabe onde fica Marshalsea?
- Oh, sim! fica ao sul do rio, no lado de Surrey. O modo mais fácil de ir é cruzar a ponte de Londres, seguir direto para Borough até a rua Blackman e continuar até a rua Dirty, que é a quarta rua depois de dobrar para a direita. Não tem erro.
Repetiu as instruções e seu comentário quando se despediram, mas se equivocou ao julgar o seu amigo. Como Stephen dissera, os hábitos adquiridos na penúria são difíceis de apagar, e por isso em vez de alugar um coche decidiu ir andando. Quando chegou ao lado de Surrey lhe ocorreu a desafortunada idéia de perguntar como se ia até a rua Dirty, em vez de como se ia a Marshalsea. Um amável habitante do lugar lhe disse, e inclusive lhe indicou o caminho assegurando-lhe que chegaria à rua Dirty depois de avançar exatamente dois minutos, não mais, somente dois minutos. Isso foi o que Stephen fez, mas havia pelo menos duas ruas Dirty em Southwark, e aquela era a rua Dirty equivocada. Dali percorreu rapidamente várias ruas vazias, onde habitavam pessoas estranhas. Avançou ao trote, ofegando e olhando amiúde seu relógio até chegar ao passeio Melancholy, onde outro habitante do lugar, ainda mais amável, em um dialeto do qual Stephen entendia somente uma palavra de cada três, disse que estava se afastando de Marshalsea e que se seguisse avançando nessa direção chegaria a Lambeth e depois a Americay. O homem também disse que provavelmente estivera tomando fresco em Liberties, onde se ficava a planície de Saint George, e assinalou uma faixa de terreno insalubre salpicado de ervas daninhas, e acrescentou que isso lhe havia trastornado. Acrescentou que o que devia fazer era pegar o caminho correto antes que anoitecesse e que seria melhor que lhe indicasse o mais rápido para que não tivesse que andar pelas ruas na escuridão, já que por ali havia muitos ladrões astutos.
- É possível que a um cavalheiro que ande sozinho ninguém voltasse a ver - disse -, já que os bolos de porco se vendem muito bem em Marshalsea e King's Bench, que não se encontram muito longe, e o custo é insignificante porque os cais onde se descarrega a farinha estão muito próximos.
Stephen chegou só alguns minutos tarde, e graças ao pagamento de várias pequenas quantidades de dinheiro que não somavam mais que o triplo do aluguel de um coche, pôde entrar para a parte onde se achavam os devedores até o que podia se considerar o coração da prisão, o edifício onde estavam enclausurados os marinheiros. Marshalsea sempre havia sido a prisão em que encerravam os membros da Armada, e nela cumpriam sentença os que se salvavam de morrer enforcados por terem batido em seus superiores, os que haviam apresentado informes incompletos e confusos, os que haviam sido surpreendidos pegando coisas das presas antes de que fossem declaradas de lei, os que haviam sido multados por cometer faltas e não podiam pagar as multas, aqueles cujos barcos haviam encalhado por sua negligência, alguns que se tornaram loucos e alguns que cometeram desacato a um tribunal presidido por um almirante ou um vice-almirante, ou ao lorde que presidia a Junta da mesa verde, ou a seus subalternos ou ao representante da Coroa que investigava as mortes violentas no Verge, a zona que rodeava o Palácio Real.
Potanto, o capitão Aubrey estava rodeado de homens do mar, ainda que talvez não fossem os que ele escolheria para que lhe fizessem companhia. Agora se ouviam os vozeirões característicos dos marinheiros, procedentes do apertado pátio interior, onde um grupo de oficiais jogavam boliche animados e observados atentamente por Killick de uma janela quadrada apenas o bastante grande para que pudesse assomar a cabeça. Jack teve que alçar muito a voz para que ele ouvisse o que dizia:
- Killick! Killick! Venha ajudar-me! Venha ajudar-me! Alguém está chamando na porta!
Como o capitão Aubrey dispunha de muito dinheiro nesse momento, havia alugado dois quartos, e por essa razão o carcereiro havia batido na porta em vez de entrar sem chamar.
- Mas é o doutor! - exclamou Killick, e a expressão austera e desconfiada que punha quando tratava com representantes da justiça se transformou em um gesto alegre. - Temos uma surpresa para o senhor, senhor.
A surpresa era a senhora Aubrey, que saiu do quarto interior correndo e sacudindo a farinha das mãos. Seu aspecto era mais parecido ao de uma menina que ao de uma mulher mãe de três filhos. Baixou um pouco a cabeça e, ruborizando-se, beijou Stephen em ambas bochechas e depois, por meio de um olhar significativo e um aperto de mãos, comunicou-lhe que estava envergonhada de ter sido tão fraca, que nunca voltaria a se comportar assim e que ele não devia ter uma má opinião dela.
- Passa, passa, Stephen - disse Jack, assomando-se na porta. - Alegro-me em ver-lhe. Pensava que talvez lhe haviam perdido. Perdoe-me por não me levantar, mas não posso confiar isto a ninguém - acrescentou, torrando sobre um fornilho de carvão umas salsichas que sustentava com um garfo feito com um arame retorcido. - Espero que estejamos em melhores condições na segunda-feira, mas agora temos que fazer as coisas primitivamente.
Para Stephen parecia que já estavam em boas condições. Já haviam limpado os dois quartos com pedra arenito e haviam colocado neles vários armários que, obviamente, poupavam espaço. Ademais, em um canto havia uma rede de cabos brancos que indicava que estavam fazendo uma cadeira pingente, um dos lugares mais cômodos que existem, e um conjunto de espreguiçadeiras atadas com sete nós que o dividiam em partes exatamente iguais e coberto por um tapete formava um elegante sofá. Jack Aubrey passara a maior parte de sua vida como marinheiro encerrado em lugares tão pequenos como aquele, e conhecia bem as cárceres norte-americanas e franceses e as casas dos alguazis que serviam de prisão na Inglaterra, assim que era necessário que sua vida no cárcere fosse realmente dura para que lhe fosse difícil suportará-la.
- Estas são feitas por um homem da vizinhança e são famosas - disse Jack, girando o garfo com as salsichas. - Também são famosos seus bolos de porco. Quer um pedaço? Já está cortado.
- Não, obrigado - respondeu Stephen, olhando atentamente o conteúdo do bolo. - Comi com um amigo faz pouco.
- Diga-me, Stephen, como deixaste o pobre Martin? - disse Jack em um tom mais grave.
- Eu o deixei acalmado e em boas mãos, atendido por sua futura esposa, que é uma excelente enfermeira, e por um boticário inteligente. Mas tenho muita vontade de receber notícias suas. Ambos me prometeram que me mandariam um expresso diariamente.
Falaram de Martin e das viagens que fizeram juntos, enquanto Sophie continuava preparando a torta de maçã. Sophie não era uma grande cozinheira, mas a torta de maçã era um dos pratos que geralmente que fazia bem, e como Stephen ia jantar com eles, a decorou com folhas de trevo feitas com a massa.
- Desculpe, senhor - disse Killick, interrompendo a conversa -, mas lhe espera o jovem ajudante dos advogados.
Jack foi ao outro quarto e regressou vários minutos mais tarde.
- Veio comunicar-me que hão contratado a um tal senhor Lawrence - disse. - O jovem anunciou essa notícia dizendo que era ótima, e parecia assombrado de que eu não houvesse dado um grito de alegria ao ouvi-la. Aparentemente, o senhor Lawrence é um advogado defensor inteligente e suponho que deveria alegrar-me disso, mas a verdade é que não vejo a necessidade de que eu tenha um advogado defensor. Nós nos arrumamos sozinhos, sem nenhum advogado, diante de um conselho de guerra. Por outro lado, quando se chama ao castelo de popa os marinheiros que cometeram faltas e se prepara um gradeado, não há nenhum advogado presente e, contudo, acredito que se faz justiça. Este caso não se parece em nada a esses horríveis pleitos relacionados com as minas de chumbo de Ashgrove, nos quais há numerosos pontos obscuros que devem ser interpretados por especialistas, sobretudo os que têm que ver com as condições e responsabilidades que aparecem no contrato em litígio. A verdade é que se parece mais a um caso naval, e o único que quisesse é ter a oportunidade de falar dele, como um marinheiro quando seu capitão lhe interroga, e de contar ao juiz e aos jurados exatamente o que ocorreu. Todo mundo está de acordo em que não há nada mais justo que o sistema judicial inglês, e se lhes digo a pura verdade, estou certo de que todos acreditarão em mim. Eu lhes direi que nunca conspirei com ninguém, que segui as sugestões de Palmer de boa fé, como qualquer um poderia ter feito, mas que se cometi um erro, estou disposto a cancelar todas minhas ofertas de aquisição. Sempre acreditei que a má intenção é a parte decisiva de um delito. E se me obrigam a ter uma acareação com um homem que nega que digo a verdade, então o tribunal terá que decidir em qual dos dois vai acreditar, ou seja, qual dos dois é mais digno de confiança, e quanto a isso não tenho muito medo. Tenho confiança no sistema judicial de meu país - acrescentou Jack, e sorriu ao ouvir suas pomposas palavras.
- Já assistiu a um julgamento alguma vez?
- Assisti a muitos celebrados por conselhos de guerra, mas a nenhum celebrado por um tribunal civil. Todos os relacionados com meus pleitos ocorreram quando eu estava navegando.
- Infelizmente, assisti a alguns - disse Stephen. - E posso assegurar, meu amigo, que são infinitamente mais complexos que os que têm lugar sob a jurisdição naval, no que se refere às regras do jogo, ao que constitue uma prova, às entradas e saídas, a quem se autoriza falar, quando se lhe autoriza e quanto se lhe permite dizer. São partes de um jogo que se joga há centenas e centenas de anos e que se tornou mais tortuoso de geração em geração. As regras se multiplicaram, os precedentes se acumularam, a justiça teve interferências, os decretos aumentaram e agora o jogo é tão confuso e complicado que os profanos não podem entendê-lo. Eu lhe rogo que preste atenção a esse destacado conselheiro e sigas suas recomendações.
- Querido, por favor, faça o que Stephen diz - disse Sophie.
- Muito bem - disse Jack. - Talvez neste caso necessite de um, assim como um barco necessita às vezes de um piloto em um porto para o qual parece muito fácil navegar.
O senhor Lawrence tinha precisamente essa opinião. Era um homem alto e moreno que tinha bom aspecto, falava muito bem diante os tribunais e tinha fama de ser um defensor de seus clientes tão enérgico e tenaz que podia se comparar aos médicos que lutam com todas suas forças para salvar a um enfermo; que considerava seus casos algo pessoal. Como não alardeava de ter uma alta categoria nem gosta de formalidades, depois da primeira entrevista em seu escritório com os advogados que preparavam o caso de Jack, reuniu-se informalmente com Stephen com freqüência, sobretudo porque ambos simpatizaram-se imediatamente. Os dois haviam assistido ao Trinity College de Dublim e, ainda que apenas se conheciam, tinham muitos amigos comuns. Tanto um como o outro eram acérrimos defensores da emancipação dos católicos e detestavam ao lorde Liverpool e aos seus colegas do Conselho de Ministros.
- Não acredito que o caso haja sido ideado pelo Conselho de Ministros - disse Lawrence. - Isso seria tão grave como os atos cometidos pelos sequazes de Sidmouth. Contudo, estou seguro de que eles desejam se beneficiar o mais possível da situação existente, e quero que saiba que se esse Palmer não aparecer, quer dizer, se não aparecer fisicamente nem for identificado como o homem que ia na carrouagem, tanto se negue todo o ocorrido como se não, temo por seu amigo.
- Como lhe contei, Pratt está procurando-o já faz algum tempo, e agora várias pessoas a mais o procuram - contou Stephen. - Na segunda-feira pela manhã, um homem que havia perdido jogando cartas comigo há muito tempo e me devia dinheiro me mandou uma promissória respaldada por seu banco, o que me alegrou muito. Justamente na segunda-feira pela tarde recebi um expresso do interior do país em que me contavam que um amigo, um queridíssimo amigo a quem operei, recuperou-se e está fora de perigo, para agradecê-lo ofereci a essas pessoas a inesperada soma como recompensa para encontrar o homem que ia na carruagem.
- Deve de ser uma considerável soma, pois o senhor se referiu a vários homens.
- Eu me envergonho em dizer-lhe a quanto ascende. Jogamos em Malta todos os dias, e nesse período a regra de probabilidades deixou de cumprir-se e o jogo sempre estava a meu favor. Geralmente, se ele tinha quinta, eu tinha sexta, e isso se repetiu durante Deus sabe quantas tediosas sessões. O pobre homem não podia ganhar. Mas não tive escrúpulos em aceitar sua promissória, que, em minha opinião, permitirá a essas pessoas se concentrarem mais na busca. Vou ver Pratt esta tarde.
- Espero que tenha boas notícias. O afã com que a promotoria leva o caso, sua constante negativa a admitir uma fiança e seu desejo de celebrar o julgamento logo para que seja um furioso conservador (que além disso pertence ao Conselho de Ministros), que presida o tribunal, é algo que raras vezes vi em meus anos de experiência. A menos que tenhamos uma prova contundente, é difícil encontrar uma estratégia de defesa que possa resistir aos seus ataques.
Stephen estava em Fladong's bebendo o café que costumava tomar depois do almoço quando viu Pratt entrar. O homem estava pálido e parecia cansado e desanimado.
- Aqui tem uma cadeira, senhor Pratt - disse Stephen. - Que deseja tomar?
- Gostaria de tomar um copo de genebra com água fria. Acho que encontramos o homem que buscamos.
Mas nem seu tom nem sua expressão eram alegres nem seu olhar era triunfal. Stephen pediu a genebra e perguntou:
- Importa-se de continuar agora, senhor Pratt?
- Qem o encontrou foi Josiah, o amigo de Bill Hemmings. Quando estava examinando vários cadáveres com o ajudante do funcionário que investiga as mortes violentas em Southwark, viu um com muitas características que correspondiam à descrição que temos: a idade, a altura, a constituição, o cabelo e a roupa elegante. Ademais, o cadáver estava na água há menos de doze marés. Mas o que chamou a atenção de Josiah foi que o ajudante desse funcionário, cujo nome é William Body e cuja esposa trabalha em Guy's, tinha um pequeno papel escrito a mão, que havia circulado pelos hospitais e estações de polícia, no qual se pedia informação sobre um cavalheiro com essa descrição chamado Paul Ogle que poderia achar-se enfermo. Nele também se rogava a quem conhecesse seu paradeiro que o comunicasse a N. Bartlet, que vivia no apartamento número 3 do último pátio do antigo colégio Major Lyon's, e oferecia uma recompensa pelos incômodos. No Lyon's, senhor.
- Isso mesmo, senhor Pratt.
- Fui correndo ao apartamento número 3 e voltei a fracassar. N. Bartlet havia partido e ninguém sabia aonde. Era uma prostituta, senhor, e trabalhava muito. Era uma mulher comum que já havia deixado para trás sua juventude. Estava pouco tempo vivendo ali, mas como era simples e reservada, todos simpatizavam com ela. Aparentemente, o senhor Ogle era seu noivo e ela estava muito preocupada com ele.
- Quais as possibilidades de achá-la?
Pratt negou com a cabeça e respondeu:
- Ainda que a encontremos, negaria tudo e não concordaria a falar, porque sabe que se o fizer, a eliminarão, como a Ogle.
- Isso é verdade - afirmou Stephen. - Nunca admitiria que o conhece ante um tribunal. Mas não ocorreará o mesmo com os cocheiros nem com o pessoal da hospedaria de Sittingbourne. A jovem que trabalha ali viu muito bem a cara desse homem e poderia identificá-lo, o que pelo menos serviria de algo. Acho que o senhor comentou que ele não esteve muito tempo na água.
- Não ficou por mais de doze marés - disse Pratt. - Mas não tem rosto.
- Compreendo - disse Stephen. - Mas o senhor está seguro de sua identidade, né?
- Sim, senhor - respondeu Pratt. - Fui lá imediatamente e sem que me dissessem qual era o cadáver, o escolhi entre três dúzias deles. Um adquire habilidade para este tipo de coisa com a prática. Mas a jovem do hospedaria não poderia fazer o mesmo, e sua declaração não seria válida ante um tribunal.
- Bem, irei ver o cadáver - disse Stephen. - Sou médico e talvez possa encontrar algumas características físicas peculiares que sejam de utilidade.
- Ainda que seja médico - confessou Stephen para Lawrence -, poucas vezes vi algo mais horrível que o porão onde guardam os mortos que aparecem no rio. Dizem que às vezes encontram vinte por semana, e como agora o funcionário que investiga as mortes violentas está ausente … O encarregado do lugar foi muito amável e pude examinar o cadáver, mas até virá-lo não vi nenhum sinal pelo qual um homem pudesse ser reconhecido. Contudo, nas costas tinha marcas que indicavam que se flagelava habitualmente, e me parecem provas convincentes.
- Indubtavelmente - disse Lawrence. - Isso, sem dúvida, corrobora nossa convicção, mas temo que se o apresentarmos como prova, no caso de ser admitida como tal, pode ser inútil ou mesmo prejudicial. Se houvéssemos podido encontrar ao homem vivo e conhecer seus antecedentes, teríamos uma valiosa testemunha, ainda que fosse hostil; contudo, um cadáver sem cara identificado por alguém que só lhe conhece por ouvir dizer, não serve de nada. Terei que pensar em outras estratégias de defesa. Como o senhor tem muita influência sobre ele, Maturin, não poderia convencê-lo de que incriminasse ao general, ainda que fosse em uma pequena parte do caso?
- Não.
- Eu temia que respondesse isso. Quando lhe falei da questão em Marshalsea, ele não gostou. Acho que não sou um covarde, mas me senti muito mal quando o vi de pé diante de mim, com seus quase sete pés de altura, cheio de raiva. E contudo, é quase certo que aquele velho avaro e aquels especuladores amigos seus, que compraram e compraram sem medida e difundiram o rumor de que se firmara a paz, foram quem esgotaram os melhores valores do mercado, não o capitão Aubrey, que realizou operações insignificantes comparadas com as suas. Provavelmente a maioria das transações as fizeram através de intermediários que não estão sob o controle do Comitê da Bolsa e não há nem rastro delas, mas alguns homens inteligentes que trabalham na Cidade me disseram que provavelmente gastram mais de um milhão só em bônus do Estado. O capitão Aubrey, em troca, fez a maioria das operações através de intermediários autorizados pelo comitê e este conhece todos os detalhes.
- Em casos como este, ele não gosta de ser guiado - disse Stephen. - Além disso, tem uma excelente opinião do sistema judicial inglês e está convencido de que se diz simples e claramente a verdade, o jure o absolverá. Venera aos juízes porque formam parte do sistema judicial estabelecido, ao qual dá tanto valor como à Armada Real, à Guarda Real e à Igreja anglicana.
- Mas provavelmente já teve contato com a justiça.
- Só nos intermináveis casos tramitados ante a Chancelaria que o senhor conhece, e para ele não são representativos da justiça real, senão simples batalhas técnicas entre advogados insignificantes. Para ele a justiça é algo mais simples e mais direto, e está representada por um juiz sensato e imparcial, um grupo de homens sensatos e decentes e talvez alguns advogados que falam pelos que não podem se expressar bem e fazem perguntas com o fim de que se conheça toda a verdade, perguntas às quais ele responderia com muito gosto.
- Sim, isso é o que havia entendido. Mas ele deve saber que não lhe permitirão falar. Seus advogados devem de ter lhe contado como são os julgamentos em Guidhall.
- Acredita que dá no mesmo, porque assim como um oficial pode falar em nome de um marinheiro que apenas sabe se expressar, um advogado pode fazê-lo em nome seu. Além disso, diz que como estará ali, o juiz e o jure poderão vê-lo, e que se o advogado se desviar do tema, poderá fazê-lo voltar a ele. Afirma que confia no sistema judicial deste país.
- Seria uma boa ação lograr que tivesse uma visão mais prática e mundana das coisas, Maturin, pois confesso que temo realmente pelo capitão Aubrey, porque não temos Palmer.
- Não tenho mais experiência que Jack Aubrey em assuntos desta natureza e queria que me dissesse qual é a melhor maneira de desprestigiar o sistema judicial.
- Francamente, o senhor não pode desprestigiar o sistema judicial, que é o melhor de todos os que as nações já tiveram - assegurou o senhor Lawrence -, mas poderia assinalar que quem administra a justiça são seres humanos, e que alguns deles apenas têm qualidades para ocupar uma posição tão alta. Ademais, poderia recordar-lhe quantos chanceleres foram afastados de seu cargo por suborno e corrupção; poderia falar de conhecidos juízes cruéis e tirânicos que têm interesses políticos como, por exemplo, Jeffries, Page e, desafortunadamente, lorde Quinborough; poderia dizer que apesar dos advogados ingleses serem excelentes em comparação com outros, alguns deles não têm escrúpulos, ou seja, que ainda que sejam competentes não são escrupulosos. Pearce, o promotor do caso, é assim. Alcançou fama como um temível promotor ao serviço do Ministério da Fazenda, e agora tem uma clientela invejável. É um homem muito astuto e sempre está disposto a tirar vantagem de qualquer vantagem que se produza em um caso. Quando me imagino enfrentando-me com ele diante de Quinborough, sou menos otimista do que desejaria. E se é verdade o rumor de que vai apresentar como testemunha um dos amigos especuladores do general Aubrey, não sou otimista em absoluto.
- Isso me preocupa. Poderia me dizer qual é a melhor estratégia de defesa?
- Se não pudermos convencer o capitão Aubrey a incriminar o general, então me limitarei a atacar Pearce, desprestigiando as testemunhas que apresente, e a apelar para os sentimentos do jurado. Certamente, falarei demoradamente; da excelente carreira militar de Aubrey. A propósito, ele foi ferido, né?
- Eu mesmo o curei… deixe-me ver… só Deus sabe quantos golpes, feridas de bala ou causadas pela queda de pedaços de madeira pontiagudas e de moitões. Uma vez estive a ponto de cortar-lhe um braço.
- Isso poderia ser útil. E sem dúvida, a senhora Aubrey assistirá ao julgamento e terá um bonito aspecto. O problema é que nos julgamentos celebrados em Guildhall o jure é formado por homens que trabalham na Cidade e, em geral, o dinheiro lhes importa mais que os sentimentos e, naturalmente, que o patriotismo. Por outro lado, se eu apresentar alguma testemunha (pois, ainda que tratarei de evitá-lo, talvez alguém queira declarar), Pearce terá o direito de réplica e será o último a falar com o jurado. Mas tanto se isso ocorra como se não, ao final lorde Quinborough, como é lógico, fará um resumo do caso, provavelmente longo e em tom veemente, e os homens de negócios ficarão impressionados com suas palavras, não com as minhas. Por favor, explique isto claramente ao capitão Aubrey. Ele lhe escutará porque lhe respeita muito e o senhor é seu amigo. Por favor, advirta-o que Pearce usará qualquer coisa que possa prejudicá-lo, qualquer coisa que possa rebaixar a ele, aos seus amigos e aos seus conhecidos e que o Conselho de Ministros proporcionou à promotoria todos os meios para fazê-lo. O nome de Aubrey será arrastado para a lama. E por desgraça, o homem a quem acusaram junto com ele, o único suposto conspirador importante que não desapareceu nem escondeu os negócios que fez atrás de um monte de laranjas, o senhor Cummings…
- Um dos convidados do general que estavam no Button's naquela desafortunada tarde né?
- Sim, o palhaço Cummings. Seu passado está cheio de duvidosas compras de grupos de empresas, declarações de bancarrota fraudulentas e muitas outras coisas; e, certamente, tudo isso sairá à luz e salpicará em seus sócios. O capitão Aubrey se encontra em um aperto e sua confiança está fora de lugar.
- Se o pior acontecer, o que é provável que lhe ocorra?
- Creio que o porão uma enorme multa e talvez lhe ponham na picota ou o encarcerem, ou ambas as coisas.
- Na picota? É verdade? É possível que ponham na picota um oficial de marinha?
- Sim, senhor. Esse é um castigo que usualmente se impõe na Cidade à quem faz operações fraudulentas e outras coisas. E, certamente, ele será expulso da Armada.
- Que Deus nos proteja! - exclamou Stephen, que havia perdido sua habitual tranqüilidade e não recuperou nem uma mínima parte dela até que começou a subir a escada de seu clube.
- Sinto ter chegado tarde, Blaine - disse -, mas a entrevista com Lawrence foi mais comprida e muito menos alentadora do que eu esperava. Como não é possível levar Palmer ao julgamento, Lawrence não tem esperanças. Não me disse diretamente, mas não fez falta. Ele não tem nenhuma esperança.
- Não é lógico que as tenha - disse sir Joseph -, pois as aparências estão contra o pobre Aubrey. Se seu pior inimigo tivesse ideado este plano, poderia ter-lhe feito mais estrago do que com qualquer outra coisa.
- O senhor também acredita que ele será declarado culpado?
- Não me atreveria a dizer isso, mas este é um julgamento político, e inflama as paixões. Se prepararam para atacar ao general Aubrey e aos seus amigos radicais, e contanto que saiam prejudicados, não se dá importância às outras coisas. Em casos assim, o fim justifica os meios. Quanto Sidmouth e seus sequazes teriam gostado de ter uma oportunidade como esta! Às vezes me assombro que algum de seus mais fiéis seguidores não tenha tramado algo parecido, antecipando-se aos seus desejos e ao mesmo tempo enriquecendo-se. Essa é uma teoria aparentemente boa, mas não estou de acordo com ela.
Ficaram em silêncio durante um tempo, e enquanto isso Stephen olhava para o carpete e sir Joseph observava ao seu amigo, a quem nunca vira tão perturbado.
- Quando vinha para aqui - disse Stephen por fim -, pensei no que aconteceria se o declarassem culpado. Se Jack Aubrey for expulso da Armada, ficará louco, em terra; e por outro lado, eu não terei muito desejo de ficar na Inglaterra. Tenho pensado em comprar a Surprise, porque ele não terá recursos para fazê-lo, depois equipá-la como um barco corsário, solicitar uma patente de corso e finalmente dar a ele o comando. Por favor, pense nisto e me dê sua valiosa opinião amanhã.
- Certamente que o farei! A primeira vista parece um excelente plano. Vários oficiais da marinha desempregados se transformaram em corsários e continuam fazendo a guerra, ainda que independentemente, e em certas ocasiões causam sérios prejuízos ao comércio do inimigo, ao mesmo tempo que obtêm grandes benefícios. Já vai?
- Tenho que ir a Marshalsea. Estou atrasado.
- Deve ir em um coche - disse Blaine, olhando para o relógio que ficava atrás de Stephen. - Sem dúvida, deve ir em um carro, e ainda assim, poderá passar pouco tempo ali antes que fechem a porta.
- Dá no mesmo, porque há camas no café que fica na parte onde se encontram os devedores. Que Deus lhe bendiga.
- Ordenarei a Charles que chame um coche - disse sir Joseph quando ele subia correndo a escada para ir ao seu quarto.
O coche, que era um veículo exageradamente rápido, o conduziu ali pelo caminho mais curto, pela ponte de Westminster. Quando o cocheiro o deixou na porta da prisão, disse:
- Faltam só cinco minutos para fechar. Quer que lhe espere, senhor?
- Obrigado - respondeu Stephen -, mas penso em passar a noite aqui.
Então disse para si: "Meu Deus! Estou muito atrasado! Jack vai me repreender!".
Mas Jack estava no pátio jogando uma primitiva versão do handebol com tanto entusiasmo que havia perdido a noção do tempo. Depois do último ponto virou para Stephen sua cara vermelha, sudorosa e com uma expressão alegre, e não lhe recriminou, senão que com voz ofegante exclamou:
- Quanto me alegro de ver-te, Stephen! Oh, meu Deus, não estou em forma!
- Sempre foi obeso - disse Stephen. - Se caminhasse dez milhas diárias, se comesse a metade do que devora e se não comesse carne nem tomasse licores, poderia jogar handebol como um cristão em vez de como um peixe-boi ou um dugongo eletrizados. Senhor Goodridge, como está o senhor? Espero que se encontre bem.
Isto último o disse dirigindo-se ao adversário de Jack, um antigo companheiro de tripulação de ambos que era oficial de derrota no Polychrest. O homem era um excelente marinheiro, mas havia feito alguns cálculos pelos quais se convencera de que um cometa e um fênix eram o mesmo, e pensava que a aparição de um fênix relatada nas crônicas era na verdade o retorno de algum dos cometas cujos períodos eram conhecidos ou intuídos. Não gostava que dissem o contrário, e ainda que fosse uma pessoa de trato amável quando falava de assuntos triviais, estava preso ali por maltrato a um vice-almirante da esquadra azul, a sir James, a quem realmente não havia batido mas mordido o dedo que ele elevara para protestar.
No andar de cima, quando Jack mudou de camisa e se sentou com Stephen junto ao fogo, este perguntou:
- Eu lhe falei de lorde Sheffield, Jack?
- Acho que o mencionou alguma vez. Tinha alguma relação com Gibbon, se não me equivoco.
- Exatamente. Era amigo íntimo de Gibbon. Herdou muitos de seus manuscritos e me deu um muito curioso em que expressa sua opinião sobre os advogados. Parece que ia tomar parte do livro Decline and Fall, mas foi excluído quando se revisavam as prova de granel, por medo que ofendesse seus amigos advogados e juízes. Quere que eu o leia?
- Sim, por favor - respondeu Jack, e Sophie juntou as mãos em seu colo e olhou para Stephen atentamente.
Stephen pegou um papel do peito e o desdobrou. Pôs um gesto apropriado para ler o solene documento formado por parágrafos perfeitamente encadeados, e imediatamente o trocou por outro mais comum e humano, por um que indicava grande irritação.
- Eu trouxe um manuscrito de Huber sobre as abelhas - disse. - Com a pressa, peguei um documento escrito por Huber. Contudo, juraria que o manuscrito que estava à direita dos panfletos era o de Gibbon. Se eu joguei o documento de Gibbon, que é um exemplar raro no mundo e uma jóia por sua elegante prosa, porque o confundi com um sem importância sobre a infusão do breu, vou lamentar muito. Nem ao menos confiei à memória uma parte considerável. Mas não importa, o essencial era que o declive do império…
- O sino! - gritou Sophie quando ouviram umas distantes e insistentes badaladas. - Killick! Killick! Temos que ir. Desculpe-me, querido Stephen.
Sophie deu em ambos um afetuoso beijo e saiu do quarto correndo e gritando:
- Killick! Killick!
- Ela e Killick vão para Ashgrove na diligência noturna, por isso não podem ficar aqui dentro quando fecharem a porta - explicou Jack. - Ela quer trazer algumas coisas de lá.
- Voltando a Gibbon - disse Stephen quando voltaram a se acomodar junto ao fogo -, lembro das primeiras linhas do manuscrito e dizem assim: "É perigoso confiar o Governo de uma nação a homens que, por sua profissão, aprenderam a considerar a razão um instrumento para a disputa e a interpretar as leis de acordo com seus próprios interesses. O estrago se nota inclusive nos países onde a advogacia é considerada uma profissão liberal". Ele, que era um homem extraordinariamente inteligente e instruído, pensava que a queda do império se deveu, pelo menos em parte, ao predomínio dos advogados. Os homens que com os anos hão chegado a acreditar que tudo aquilo que é conforme a lei é correto ou, pelo menos permissível, não são membros da sociedade úteis, e quando chegam a ocupar altos cargos da administração são nocivos. São pessoas para quem a ética pode se resumir em um conjunto de estatutos. Por exemplo, Tullio achava que era um bom homem apesar de que se gabava de ter enganado ao jure no caso de Cluencio e estava a princípio tão desejoso de defender Catilina, como de atacar-lhe depois. Em todas as partes os há iguais: são homens que não escutam a sua consciência, se deixam guiar por outros ou, simplesmente, não fazem caso nunca. Se se lhes fizesse a pergunta: "O que sente quando um homem que o senhor sabe que é culpado lhe pede que o defenda?", muitos responderiam: "Não sei que um homem é culpado até que o juiz, depois de ouvir ambas as partes, o declare culpado". Este ridículo sofisma, que não leva em conta a epistemologia nem a percepção intuitiva em que se baseiam todas as relações estabelecidas cotidianamente, em certas ocasiões se considera uma simples fórmula, mas conheci alguns homens que prostituiram sua inteligência até tal extremo que acreditam que é verdadeiro.
- Vamos, Stephen! Afirmar que todos os advogados são maus é algo quase tão insensato como afirmar que todos os marinheiros são bons.
- Não digo que todos os advogados sejam maus, mas afirmo que em geral o são. Estar diante de um tribunal representando qualquer uma das duas partes que lhe paga, fingindo que se tem a convicção de algo e fazendo todo o possível para ganhar o caso, seja qual for a sua opinião, faz perder o sentido de honra muito cedo. Os mercenários são pessoas sem valor, mas pelo menos arriscam sua vida, enquanto que esses homens só arriscam seus futuros honorários.
- Indubtavelmente, há advogados desprezíveis que difam;am a justiça, mas conheci vários honoráveis e muito agradáveis, e, ademais, há alguns membros de nosso clube que exercem a advogacia. Não sei como são os advogados da Irlanda nem os da Europa continental, mas acredito que, em geral, os ingleses são honoráveis. Afinal de contas, todos estão de acordo que o sistema judicial inglês é o melhor do mundo.
- Em todos os países têm a mesma tentação. Frequentemente os advogados têm o interesse de fazer parecer correto algo que não o é, e quanto mais habilidosos são, mais amiúde o conseguem. Mas os juízes estão expostos a mais tentações, ainda que sejam de classe distinta, porque presidem um tribunal todos os dias. Têm um poder enorme, atuam quase sem controle e, se o desejam, podem ser cruéis, tirânicos, obstinados e perversos. Podem interromper aos demais, expressar suas idéias políticas e alterar o curso de um processo. Recordo que na Índia, no jantar com que nos agasalhou a Companhia, conheci um juiz, e o cavalheiro que me apresentou a ele me disse ao ouvido que era conhecido como "o juiz justo". É uma vergonha para a justiça que um juiz, um só juiz, se distinga por isso entre tantos.
- Os juízes são considerados grandes homens.
- Por quem não os conhecem. Mas nem todos são considerados assim. Lembre de Coke, que atacou covardemente ao indefenso Raleigh durante o julgamento e foi exonerado do cargo quando era presidente do Supremo Tribunal. Lembre de todos os lordes chanceleres que oram expulsos de seu posto por corrupção. Lembre do infame juiz Jeffries.
- Meu Deus! Que duro é com os homens das leis, Stephen! Tem que ter alguns bons.
- Suponho que sim. Provavelmente haverá homens que sejam imunes à corrupção, assim como há homens que podem caminhar entre os que têm a peste ou a gripe sem se contagiar, mas eles não me interessam. O que me interessa é minar sua confiança em que se administra justiça imparcialmente nos tribunais ingleses, e dizer que o juiz e o promotor encarregados de seu caso são desse tipo. Lorde Quinborough tem fama de ser violento, autoritário, grosseiro e mal-humorado. Além do mais, é membro do Conselho de Ministros, ao qual seu pai e seus amigos se opõe mais violentamente que os outros membros da oposição. O senhor Pearce, que se encarrega da acusação, é inteligente e astuto, destaca-se pelo modo como faz os interrogatórios para comprovar o declarado, tem tendência de insultar as testemunhas para que percam as estribeiras, está familiarizado com todos os subterfúgios legais e é um sem-vergonha incorrrigível. Digo tudo isto para que não esteja tão seguro de que a verdade prevalecerá e de que a inocência é um escudo perfeito, para que siga o conselho de Lawrence e permita que pelo menos sugerisse que seu pai não foi discreto.
- Fala como um amigo e lhe agradeço - disse Jack em tom enfático -, mas se esquece de uma coisa: o jure. Não sei como é a justiça na Irlanda nem em outros países, mas na Inglaterra temos um jure, e isso faz que nosso sistema judicial seja o melhor do mundo. É possível que os homens de leis sejam tão maus como diz, mas acho que se doze homens comuns ouvirem um relato verdadeiro, eles acreditarão. E se por alguma razão cairem em cima mim, espero poder suportá-lo. Diga-me, você se lembrou das cordas de violino?
- Oh, meu Deus! - exclamou Stephen, revistando o bolso. - Acho que me esqueci por completo delas.
CAPÍTULO 8
Stephen Maturin escreveu um diário durante muitos anos, ainda que não fosse conveniente que um espião tivesse o hábito de escrever um. Apesar de nunca se ter descoberto o código que usava, o diário lhe causara dificuldades quando os norte-americanos lhe capturaram. Mas assim como que sentiu a necessidade de voltar ao ópio quando Diana desapareceu de sua vida, sentiu a de escrever sobre seu regresso, deixá-lo por escrito, e depois de vencer seus escrúpulos, comprou um livro de bolso com capas verdes com folhas em branco, que ficavam completamente planas quando se abria. Nesse livro escreveu muitas coisas sobre medicina, história natural e assuntos pessoais, pois, se por casualidade caísse nas mãos do inimigo, não comprometeria nenhum outro agente secreto nem a nenhuma rede de espionagem e faria supor que seu autor não estava relacionado com atividades desse tipo. Apesar disso, o que punha nele era totalmente verdade, porque o fazia com a intenção de somente ele mesmo ler. Escrevia em catalão, uma língua que aprendera em sua juventude e que conhecia tão bem como o inglês e melhor que o irlandês que aprendera em sua infância. Agora ia começar uma nova página e nela escreveu:
Cometi dois erros graves e de perigosas consequências durante estes dias. Deus queira que não cometa o terceiro no caso da fragata. O primeiro foi oferecer muito dinheiro como recompensa pela captura de Palmer. Ante a possibilidade de ganhar essa soma, todos os investigadores, alguazis e policiais de Londres o procuraram por todas as partes dia e noite, e, naturalmente, isso chegou aos ouvidos dos chefes da operação, que imediatamente eliminaram Palmer para que ficassem assim fora de perigo, e simultaneamente deixaram Jack sem cabo ao qual agarrar-se. O segundo foi minha agressiva tentativa de manipular Jack. Sempre hão existido entre nós diferenças devidas a nossas diferentes nacionalidades, mas nunca vieram a tona, e temo que as fiz aprecer com meus absurdos e reiterados comentários sobre a justiça inglesa. Jack não tolera que um estrangeiro critique o seu país, nem mesmo se for justificado, e afinal de contas, eu sou um estrangeiro. Devia ter percebido que não gostava da mensagem que encerravam minhas palavras porque tamborilava com os dedos e tinha uma expressão incômoda, mas continuei e só o que consegui foi que agora se mostre mais firme que antes em sua convicção. Não só não lhe fiz nenhum bem como lhe causei muito estrago, e temo que possa fazer o mesmo ou ainda mais comprando a Surprise; ainda que neste caso, pelo menos, tenho a vantagem de poder consultar a um homem de boa vontade que é inteligente e conhece bem este assunto e as circunstâncias que o rodeiam.
Fechou o livro, olhou seu relógio e, assentindo, pensou que lhe restavam cinco minutos. Olhou a garrafa de láudano que estava sobre a prateleira da chaminé, uma garrafa de uma pinta com o fundo quadrado que antes continha licor, e negou com a cabeça. "Não até esta noite", disse. Mas para ele escrever no diário - o que geralmente fazia pela noite - estava tão estreitamente relacionado com tomar tintura de ópio que quando chegou à porta voltou para trás com passos rápidos, pegou uma taça de seu criado mudo, encheu-a até a metade com o líquido ambarino de agradável odor e lhe tomou em três pequenos tragos. Depois desceu as escadas e viu a sir Joseph entrando no saguão.
A essa hora da tarde havia poucas pessoas no clube, e ambos podiam ocupar quase qualquer lugar na comprida sala frontal que dava para a rua Saint James.
- Sentemo-nos junto à janela do centro para observar à humanidade como um par de deuses do Olimpo - disse Blaine.
Quando já estavam sentados e olhavam atentamente a rua por através do cinzento chuvisco, Blaine continuou:
- Hei pensado em seu projeto, estimado Maturin, e depois de meditar muito cheguei à conclusão de que é bom. Mas fiz três suposições. A primeira é que o senhor quer comprar a fragata seja qual for o resultado do julgamento; quer dizer, tanto se a necessita para lograr o que se há proposto como se não.
- Sim, isso mesmo, pois se Jack Aubrey for absolvido, provavelmente me a comprará; e se não, que Deus não o queira, pelo menos lhe servirá de refúgio. Ademais, também a compraria em parte por egoísmo, porque poderia me oferecer as grandes vantagens que o senhor mencionou quando me falou de sir Joseph Banks. Eu também desfrutaria infinitamente viajando em um barco de guerra para estudar as plantas, sobretudo em um barco de guerra que pudesse deter em ocasiões importantes.
- Digo isto porque a venda será no dia antes do início do julgamento e, certamente, o senhor tem que tomar uma decisão antes de conhecer o veredito. A segunda suposição é que o senhor não pensa em realizar nenhuma missão que o serviço secreto da Armada lhe encomende, devido às condições em que se encontra atualmente.
- Nenhuma em absoluto. Nenhuma até que voltem a confiar plenamente no senhor.
- A última é que o senhor tem os fundos necessários na Inglaterra, pois é preciso ter dinheiro em efetivo para fazer transações desse tipo. Se não…
- Suponho que sim. Não sei quanto custa comprar e armar um barco de guerra, mas tenho três promissórias como esta para receber no Banco do Espírito Santo e no comércio da rua Treadneedle - acrescentou, entregando-lhe uma. - E se não são suficientes, terei que conseguir mais.
- Meu Deus! - exclamou sir Joseph. - Maturin, só com esta poderia comprar, armar e dotar de uma tripulação uma fragata de setenta e quatro canhões, assim que não há dúvida de que poderá adquirir uma antiquada e de terceira mão que faz tempo completou a maioridade.
- A Surprise navega a grande velocidade de… quero dizer, quando se colocam de uma maneira especial as bolinas. Por outro lado, um chega a sentir carinho pela falta de espaço, os tetos baixos, a aglomeração de homens e seu cheiro debaixo do convés.
- Seria um excelente barco corsário. Há poucos mercantes que possam navegar mais rápido ou tenham canhões mais potentes. Mas o senhor deve obter patentes de corso, sabe?, porque se não seria simplesmente um pirata. E cada patente deveria autorizar-lhe a fazer corso contra um dos estados com os quais estamos em guerra. Tenho um amigo que no início da guerra capturou um barco holandês, ainda que só tivesse uma patente para fazer corso contra a França. Pouco depois se encontrou com um barco do rei e o capitão, depois de examinar seus documentos, tirou-lhe a presa e, para completar, recrutou forçosamente à metade de sua tripulação. Como ainda exerço influência em uma parte remota do Almirantado, esta mesma tarde o senhor terá patentes para fazer corso contra todas as nações sob o sol. Como lhe dizia, a venda será no dia antes do começo do julgamento, assim que não sei como isso lhe afetará.
- O capitão Pullings me disse isso esta manhã, e depois de refletir, acho que é melhor que vá para lá. Lawrence me disse que espera que o julgamento dure três dias e, se viajo em uma carruagem postal, estarei de regresso no terceiro dia à primeira hora. De momento não pensa me chamar como testemunha, pois tudo o que eu posso dizer sobre as feridas de Jack Aubrey está explicado nos informes oficiais que fiz ao Comitê de Ajuda aos Enfermos e Feridos e nos livros onde anotava os casos que tratava na enfermaria, mas caso necessitasse, seria no terceiro dia. Ademais, não gostaria de ver como atormentarão Jack no julgamento, e muito menos como o humilharão. Acho que, em casos como este, os amigos só deveriam estar presentes quando o triunfo fosse quase certo. Voltando ao capitão Pullings…
- Thomas Pullings, o antigo primeiro tenente do capitão Aubrey que recentemente foi ascendido a capitão?
- O mesmo. O senhor acredita que tem razão ao pensar que atualmente tem poucas possibilidades de conseguir um barco e que terá muitas menos se condenam ao capitão Aubrey?
- Temo que sim. Um capitão que não tenha conexões e que esteja relacionado com um capitão de navio desacreditado, ainda que seja injustamente, é provável que passe toda sua vida em terra, sejam quais sejam seus méritos.
- Então não devo ter receios em aceitar sua oferta de acompanhar-me e supervisionar o traslado da fragata.
- Não, não deve. Que boa ação! Pensava propor-lhe a ajuda de outro homem, porque o senhor deve deixar um bom marinheiro na embarcação ou do contrário os tripulantes lhe enganarão, saquearão a fragata, levarão as placas de cobre que recobrem o casco e provavelmente a trocarão por uma chalana. Mas Pullings é melhor, muito melhor.
- Outra coisa que me preocupa é dotá-la de uma tripulação. Conheço muitos capitães que se hão feito ao mar com uma tripulação reduzida apesar de ter conseguido muitos homens graças aos barcos, às brigadas recrutadoras e a quadrilhas que por ordem sua recrutavam homens forçosamente tanto em terra como no mar. Como é possível encontrar um adequado número de marinheiros eficientes?
- Como? É um mistério para mim e para os que são mais versados que eu nessa matéria, mas os barcos corsários têm uma tripulação numerosa e, além disso, muito boa. Por algum obscuro canal de comunicação, ou talvez por instinto, muitos marinheiros se informam dos movimentos que fazem os que querem recrutar-lhes à força e vão secretamente para portos pequenos, onde passam a integrar a tripulação de barcos de guerra privados. Há entre cinqüenta e sessenta mil marinheiros a bordo deles, provavelmente os mais astutos desse grupo de seres anfíbios, e não duvido que o capitão Aubrey encontraria muitos tripulantes em uma enseada retirada em caso de que os necessitasse. E é interessante ver como o grau de civismo de um homem varia em função da distância em que se encontre de sua terra; por exemplo, os amáveis pescadores de Dover, que sempre estão dispostos a ajudar os mercantes com problemas, transformam-se em pouco mais que em piratas no Caribe, algo que sabem perfeitamente quando sobem a bordo de um barco corsário.
Nesse momento chegaram dois membros do clube e se sentaram junto à janela e sir Joseph acrescentou:
- Mas provavelmente haverá pensado nisto dúzias de vezes. Queria lhe dizer algo mais, algo muito mais interessante, e como a chuva parou, poderíamos dar um passeio pela Green Park. Está com sapatos resistentes? Charles nos emprestará um guarda-chuva para o caso de voltar a chover.
Voltou a chover, e quando ambos estavam protegidos por aquela espécie de cúpula sobre a qual tamborilava a chuva, sir Joseph continuou falando.
- Queria lhe dizer algo, mas não de um modo muito explícito, pois não quero lhe causar mais preocupações que as tem atualmente, assim que só farei um par de comentários. Em primeiro lugar, quero recordar-lhe que quando veio visitar-me, depois de chegar do Pacífico, eu lhe disse que achava que atrás das mudanças do departamento havia motivos comuns ou talvez sinistros; mas eram sinistros, Maturin. O que parecia uma luta normal e sem escrúpulos pelo poder, influência, capacidade de fazer favores políticos e o controle do dinheiro do serviço secreto, agora parece, para mim e para alguns de meus amigos, uma traição, ainda que isso não signifique que seja acompanhada de fraude. Faz pouco alguém tentou de negociar em Estocolmo uma das obrigações que o senhor recuperou no Danaë, mas finalmente desistiu. Não vou contar-lhe os detalhes, mas quero que saiba que isso serviu para confirmar minhas suposições. Além do mais, essa pessoa tentou realizar a transação de maneira que eliminasse o senhor como suspeito.
- Alegro-me muito.
- Eu também me alegro, porque até que isso não se soubesse com certeza meus amigos não podiam dar o passo seguinte. Quando falo de meus amigos me refiro a esses cavalheiros relacionados com outros serviços secretos que mencionei em outra ocasião. Poderia me dizer o que acha da independência do Chile e do Peru?
- Sou partidário de ambas. Como o senhor sabe, sempre considerei que a forma com que os castelhanos governam a Catalunha é uma tirania tão odiosa como a de Bonaparte, e acredito que na América do Sul atuam ainda pior, pois exploram e tratam com crueldade às pessoas do lugar e se aproveitam de suas terras e, ademais, têm implantada uma das piores formas de escravidão. Quanto antes rompam a corrente que os une, melhor.
- Supunha que diria isso. Também opinam assim vários cavalheiros da América do Sul, nós os chamados de abolicionistas, alguns dos quais têm mistura de sangue índia e espanhola. Encontram-se agora em Londres e pediram apoio ao nosso governo.
Ambos se separaram para esquivar um charco do caminho, e quando voltaram a se unir sir Joseph continuou:
- Provavelmente não lhe assombrará saber que à Administração não lhe desgostaria que nessa parte do mundo houvesse vários países independentes em vez de um império potencialmente perigoso. Mas é óbvio que não pode fazer nada abertamente, como, por exemplo, enviar um barco de guerra para ajudar os insurgentes; mas poderia ajudá-los discretamente dando apoio a uma expedição não oficial. Ainda que talvez não seja este o melhor momento, é possível que me peçam que proponha ao senhor ocupar-se do assunto. Sei muito bem que isto não pode despertar no senhor os mesmos sentimentos que a independência da Catalunha, mas quando a proposta ficou flutuando no ar pensei nas grandes oportunidades que ofereceria a alguém como o senhor, um naturalista e um liberador por natureza.
- O senhor é muito amável, e ainda que isso me ofereceria realmente grandes oportunidades, muitas mais das que teve Humboldt, e em outro momento ao pensar nelas meu coração teria pulado dentro do peito, mas agora…
- Certamente! Certamente! Só quereria falar-lhe em linhas gerais do caso para saber se o senhor se opunha a ele ou se acreditava possível ocupar-se de ambos casos simultâneamente. Agora está chovendo mais forte. Não acha que deveríamos regressar? Temos que estar arrumados dentro de meia hora e é muito desagradável, e inclusive perigoso, pôr meias de seda com os pés úmidos. Ademais, é melhor dar-lhes tempo para que se sequem naturalmente que secá-los esfregando-os com uma toalha.
- Mas, por que tenho que me arrumar?
- Porque vamos almoçar em Soho Square com sir Joseph Banks e uma dúzia de cavalheiros mais. Donovan estará lá.
- Ficarei muito alegre de ver ao senhor Donovan - disse Stephen, passando a mão pela testa, e antes de separar-se de seu amigo perguntou -: permite-me que lhe faça uma pergunta indiscreta? A pessoa que tentou negociar essa obrigação não procedia da parte do Almirantado implicada na questão, né?
- Não, não, claro que não. Deveria haver-se dito. Natham não há podido seguir todos os passos da proposta, que não chegou a ser mais que isso, porque o documento não saiu da Inglaterra e a pessoa a retirou, talvez porque pensou que corria um grande risco. Mas um dos mensageiros do rei estava envolvido no caso, e é óbvio que a iniciativa partiu de alguém que ocupa um cargo mais alto e pertence a outro ministério. Temo que será muito difícil sacar o homem à luz.
Antes de empreender a viagem, Stephen Maturin visitou pela última vez a Lawrence, que parecia cansado, descontente e mais velho.
- Maturin - disse -, é verdadeiramente difícil ajudar ao seu amigo. Quando lhe sugeri que permanecesse fora da sala porque algumas das provas serão desagradáveis de ouvir, imediatamente me olhou com desconfiança, como se pensasse que eu não era capaz de defender os interesses de meus clientes, e afirmou que preferia "ver o que passava". Fiz tudo o que pude para não contestar-lhe, e se nos despedimos amistosamente foi porque sua amável esposa estava ali, uma pessoa muito mais amável e inteligente do que ele merece.
- O senhor deve levar em conta que passei uma considerável quantidade de tempo minando sua confiança não propriamente na lei mas sim nos tribunais e nos advogados.
- Mas, por Deus, não deveria desconfiar de seu própio advogado! Isso é uma exagero imperdoável.
Lawrence se virou para um lado e reprimiu um espirro.
- Desculpe-me- rogou. - Não fica irritado às vezes pela manhã?
- Quase sempre estou irritado pela manhã, e ainda mais se tenho um resfriado comum, e muito mais se estou enfermo de gripe, que Deus não o queira. Quer que lhe tome o pulso?
- Não, obrigado. Estive faz um momento no consultório de Paddy Quinn. Ele me disse que não tinha nada grave e me deu um frasco de remédio. Passei uma noite ruim, isso é tudo.
Stephen não tinha boa opinião daquele charlatão e ladrão de gado mas, como pensava que os médicos deviam se respeitar uns aos outros, não disse nada.
Depois de assoar duas vezes o nariz e rebuscar alguns papéis entre o monte que havia sobre sua mesa, Lawrence perguntou:
- Quem é esse tal Grant da Armada que querem apresentar como testemunha?
- É um tenente de muita antiguidade que, conforme acredito, já está aposentado. Como conhecia muito bem a rota para Nova Holanda ou, se o prefere, Austrália, tomou parte da tripulação do Leopard quando Jack Aubrey recebeu a ordem de levá-lo ali. Mas durante a viagem, na zona de altas latitudes sul, o Leopard chocou-se com um iceberg, e, como o senhor Grant pensou que se ia afundar, partiu em uma lancha com vários homens que pensavam o mesmo. Aubrey ficou no barco, levou-o para uma ilha remota e, além disso, encantadora, reparou-o e o levou ao seu destino, um lugar ao qual nosso admirado Banks pôs nome: Botany Bay. Grant sobreviveu, mas nunca foi ascendido, e isso ele atribui à má vontade de Jack. Escreveu algumas cartas ofensivas com relação ao assunto e inclusive panfletos em que acusa Jack de todo tipo de traição. Está louco, o pobre.
- Compreendo - disse Lawrence.
- O senhor parece preocupado.
- E estou. As declarações que os inimigos de uma pessoa fazem com respeito à ela sempre têm mais força que as dos amigos, e Deus sabe que a promotoria há logrado reunir a muitos e há tratado de manipular a todos os que o conhecem. Provavelmente é mentira que ele é o pai de um sacerdote católico.
- O jovem não é um sacerdote porque só recebeu as ordens menores. Ademais, um bastardo não pode ser sacerdote, a não ser que tenha uma dispensa.
- Dá no mesmo que seja um exorcista, um sectário ou um sacerdote se for papista. Imagine o efeito que isso produzirá em um juiz ultrapuritano que, ademais, se opõe à emancipação dos católicos e possue escravos nas Antilhas. Quinborough é um homem loquaz e nos julgamentos sempre expressa sua opinião sobre casos deste tipo. Precisamente essa é uma das coisas que gostaria de evitar que Aubrey ouvisse, e por isso lhe sugeri que ficasse do lado de fora.
- Acho que julgou mal ao seu cliente. Por sua aparência de pessoa bem alimentada e satisfeita não poderia imaginar que é um estóico. Aprecia a fortaleza mais que qualquer outra virtude e pensa que se um é condenado à fogueira deve suportar o castigo com integridade. Porém, diga-me, Jack pode ausentar-se da sala quando queira, sem pedir permissão?
- Certamente! O julgamento se celebra em Guildhall.
- Então o prisioneiro pode ser representado por alguém que tenha sua procuração.
- Provavelmente os advogados que prepararam o caso de Aubrey lhe haverão explicado isso de forma que mesmo os menos inteligentes entendam. Este é um dos delitos pelos quais enviam os culpados para a prisão King's Bench, e, potanto, o julgamento tem certa semelhança com os civis, assim que os acusados podem assistir pessoalmente ou serem representados por seus advogados. Só têm que assistir pessoalmente alguns dias depois de que se chegue ao veredito para escutar a sentença.
- Acho muito lógico. Por favor, não se esqueça de proporcionar-me um informe baseado nas atas.
- Já falei com Tolland. O que foi? - perguntou em tom irritado para um ajudante.
- Desculpe, senhor - respondeu o ajudante com um frasco e uma colher nas mãos -, mas o doutor Quinn disse exatamente a cada hora.
- Bom apetite - disse Stephen, levantando-se. - Também seria bom deitar-se. O senhor parece exausto.
- Se não tivesse que defender a um desafortunado jovem esta tarde, eu me deitaria. O garoto roubou um relógio de cinco guinéus e o pegaram com as mãos na massa. A menos que eu demostre aos jurados que valia menos de doze peniques, será sentenciado a morte. Isto só é o efeito da má noite; amanhã terá passado. Ademais, tenho o remédio que Quinn me deu.
Quando Stephen ia no coche, que abria passagem pelo intenso tráfego do passeio Strand, pensou: "Maldito Quinn e maldita a medicina. Se houvesse podido dar-lhe uma boa dose de pulvis Doveri, deixaria de sentir ansiedade. Uns dez ou quinze grãos teriam bastado. Thomas Dover também foi um corsário e, se não me equivoco, saqueou Guayaquil, o que foi um comportamento impróprio de um médico; contudo, salvou a mais de duzentos de seus homens que tinham a peste".
Enquanto na parte mais superficial de sua mente fazia reflexões sobre aquele médico corsário empreendedor, pela profunda passavam uma e outra vez idéias sobre o julgamento de Jack, que lhe provocavam grande ansiedade.
De uma bodega da rua James enviou uma dúzia de garrafas de vinho Hermitage para Marshalsea e de uma loja de comestíveis de Picadilly enviou um enorme bolo, um queijo de Stilton e vários frascos de anchovas em conserva. Depois pegou Pullings em Fladong's e ambos foram em um coche até Cross Key, onde lhes esperava uma carruagem.
- Isto é viajar com elegância - disse Pullings, olhando pela janela para o conhecido caminho de Portsmouth. - Somente uma vez viajei em uma carruagem de quatro cavalos, quando o capitão levava alguns despachos. Cavalgamos como se fôssemos em busca da glória, a uma velocidade de quase dez milhas por hora durante toda a viagem, e não paramos para comer, comemos um pão com queijo na mão. O capitão esteve quase todo o caminho assomado à janela animando os cocheiros.
- Essa é a única forma que conheço de poupar tempo - disse Stephen. - Tampouco nós pararemos para comer.
Só pararemos em Portsmouth para ver o capitão Dundas, pois devo dar-lhe um recado, e depois visitar o senhor Martin se ainda for de dia. Também pensei passar por Ashgrove para pegar Bonden e Padeen, mas não sei se vale a pena levar mais peso e, potanto, avançar a menos velocidade, para que ajudem a trasladar a fragata. O que acha?
- Sua ajuda será muito valiosa, senhor, pois provavelmente ali só encontraremos alguns marinheiros que estão muito tempo em terra e são muito lentos. Para levar a fragata até Shelmerston em pouco tempo deveríamos ter alguns suboficiais diligentes, mas estou certo de que o capitão Dundas nos proporcionará um ou dois e eles poderão ir em uma carruagem com Bonden. Não necessitaremos deles no primeiro dia. É melhor chegar rápido e fazer o negócio primeiro. Eles poderiam ir no dia seguinte, compreende?
- Sem dúvida isso é o melhor. Muito bem, Thomas Pullings. Mas, diga-me, os corsários são realmente desprezados pelas pessoas? Acha que é ofensivo chamar alguém de corsário?
- É ofensivo, senhor, mas como esse tipo de quem Mowett sempre está falando, o neto do almirante…
- Byron.
- Sim, Byron. Como escreveu esse livro, alguns jovens não acham ofensivo serem chamados de corsários, mas talvez o capitão sim. Quanto a serem desprezados, parece que a palavra inspira tanto desprezo como sodomita, mas recordo algo que o senhor me contou: que o oficial de derrota do Defender dizia que havia que queimá-los a todos em vez de enforcá-los, e que o senhor lhe disse que havia muitos bons, valentes e inteligentes. Algo similar ocorre com os corsários: alguns mantêm seus barcos de uma forma tão parecida às da Armada Real que não se notaria a diferença entre eles, a não ser porque não têm o galhardete própio dos barcos de guerra e seus homens não usam uniformes.
- Mas, em geral, a palavra corsário produz aversão na Armada, não é verdade? E acho que por isso o capitão Aubrey não gostará de ficar ao comando de um barco corsário em caso de que lhe expulsem dela?
- Quando navegasse por nossas águas teria dificuldades com os membros que não simpatizam com ele, especialmente os numerosos oficiais estúpidos a quem ofendeu de uma maneira ou outra. Qualquer tenente arrogante ao comando de um cúter poderia ordenar que se apresentasse diante dele para que lhe mostrasse seus papéis e poderia deixar-lhe esperando no convés; qualquer oficial da Armada Real poderia recrutar a força seus homens, o que desafortunadamente arruinaria sua viagem; qualquer sem-vergonha que sirva na Armada poderia repreender-lhe e, contudo, ele não poderia replicar. Mas se navegasse por águas de outros territórios como, por exemplo, Madagascar ou nas colônias espanholas do continente americano e no Caribe, estaria entre amigos e, além disso, poderia se manter a distância de qualquer capitão desagradável que estivesse na base naval mais próxima, porque não há nenhuma fragata da classe da Surprise que possa alcançá-la quando ele a governa. De toda forma, inclusive navegar por nossas águas seria melhor para ele do que se consumir de tristeza em terra.
Os dois se ficaram olhando o tráfego durante um tempo e depois Pullings, em voz muito baixa, quase em tom confidencial, perguntou:
- Doutor, qual a possibilidade de que ele… não sei como dizer… saia prejudicado?
- Minha opinião não vale nada, porque desconheço as leis, mas recordo que na Bíblia se compara a justiça com os panos sujos de uma mulher, como pano menstruado, e tenho muito pouca confiança em que a verdade seja a salvaguarda de uma pessoa neste mundo.
- O que temo é que o condenem por ter dados falsos na lista.
- Dados falsos na lista?
- Por exemplo, inscrever na lista o filho de um amigo quando na realidade ainda está em sua casa, usa calças curtas e vai para a escola para que possa dizer que navegou durante esse tempo. Desse modo, quando faz o exame de tenente, pode apresentar um certificado que demostra que navegou durante seis anos. Todos os capitães fazem isso, e poderia nomear meia dúzia deles agora mesmo; mas se algum marinheiro mal-intencionado jura que o garoto nunca aparecia quando passavam revista, então o capitão em questão é expulso da Armada como se houvesse tido realmente uma lista falsa, quer dizer, com nomes de pessoas que não existem, com o propósito de ficar com seus pagamentos e seus víveres.
- Sem dúvida, esse é um delito contemplado no Código Naval, e como este julgamento se celebra conforme o Código Civil, não tem importância: um rol falso não afeta a bolsa.
- Não sei… O capitão Dundas nos dirá.
Mas Stephen não pôde ver o capitão Dundas na abarrotada coberta da Eurydice quando subiu a bordo e o oficial de guarda disse que duvidava que estivesse livre.
- Por favor, tenha a amabilidade de lhe dizer meu nome: Maturin, doutor Maturin.
- Muito bem - disse o tenente com frieza e, depois de chamar um guarda-marinha, saiu e deixou o doutor Maturin sozinho.
Para os membros da Armada lhes agradava que os visitantes se apresentassem limpos, arrumados e bastante bem vestidos, mas Stephen não se barbeava há algum tempo, usara sua casaca como travesseiro durante a última parte da viagem e agora tinha a roupa empoeirada e cheia de enrugas e os calções desabotoados no joelho. Nada disso, contudo, influiu nas boas-vindas do capitão Dundas, que, vestido de paisano, saiu a toda pressa de sua cabine e foi ver-lhe.
- Querido Maturin, quanto me alegro de haver-me atrasado! - exclamou. - Cinco minutos mais e não lhe teria visto, pois estou a ponto de ir a Londres.
Então lhe levou para a cabine e perguntou com ansiedade por Jack Aubrey. Disse que a questão da falsa lista era irrelevante e perguntou qual era sua opinião do caso e se achava que, do ponto de vista do Código Civil, Jack estava em perigo.
- Se o caso for considerado objetivamente, acho que não; mas a julgar pela expressão de seu advogado defensor e, se considerarmos o que se passou em outros julgamentos com um matiz político, temo o pior. Por essa razão vou comprar a Surprise.
- Ah, é? - perguntou Dundas, que imediatamente compreendeu seu propósito. - Mas… - disse em tom vacilante. - Sabe uma coisa? Será um barco de guerra caro, muito caro.
- Isso me disse um alto cargo do Almirantado. Apesar de tudo, acredito que poderei comprá-la. Poderia emprestar-me um ou dois marinheiros de primeira para me ajudar a trasladá-la para Shelmerston? Contariam com a ajuda de Bonden e de meu servente, enquanto que Pullings e eu iríamos no coche para fechar o negócio.
- Imediatamente disporá, o senhor, de uma brigada. A venda é amanhã, né? Assim que não tem tempo a perder. Se quer estar ali antes de que caia a noite, deve partir imediatamente. Eu lhe levarei para terra em minha falua, que está abordada com a fragata. Zarparemos assim que dê as ordens aos homens que irão com o senhor. Não deve chegar tarde ao leilão por nenhum motivo. Me alegro muito de que Tom Pullings vá com o senhor. Se estivesse sozinho, eu lhe acompanharia para lhe proteger dos tubarões. Para comprar um barco faz falta grande experiência, igual que para cortar uma perna ou um par de pernas. Tenho um encontro em Londres com a jovem de quem lhe falei. Vou me hospedar no Durrant's.
- Não ficará na casa de seu irmão?
- Não. Melville e eu não nos falamos. Quem insulta aos filhos de outro homem ou à mãe destes deve supor que ele se porá em contra sua. Ficarei ali até que o senhor regresse, e lhe agradeceria que me informasse de como foram as coisas. O senhor não pensa em assistir ao julgamento, né?
- Não, a menos que me chamem como testemunha no terceiro dia.
- Sem dúvida haverá muitos ataques - disse Dundas, movendo a cabeça. - talvez presencie alguma parte meio oculto e vá dar gritos de alegria no final. Por favor, recorde-se de cumprimentar a Tom Pullings de minha parte.
Nesse assunto Stephen não podia ter um aliado melhor do que Tom Pullings. Ambos chegaram à hospedaria quando o céu abrira, depois de uma noite chuvosa, e foram caminhando pelas brilhantes pedras até o cais. De vez em quando Tom Pullings respondia quando lhe diziam "Bom dia, capitão Pullings" ou alguma outra saldação. Ele era muito conhecido na cidade e era óbvio que lhe respeitavam muito. Stephen percebeu que, a medida que se aproximavam do mar, Tom Pullings parecia mais velho. Contudo, quando dobraram uma esquina e viram a Surprise em um extremo do comprido porto, iluminada pela luz que se refletia no mar e sob um céu manchado de branco que parecia o marco apropriado para pintá-la, voltou a ser durante breves instantes o jovem que Stephen conhecera tempos atrás.
- Aí está! - exclamou. - Aí está! Não é a visão mais bonita que já viu?
- Sim - respondeu Stephen, pois apesar de sua ignorância notava que a fragata se distinguia entre os outros barcos como um puro sangue entre um grupo de cavalos de carga.
Apesar desse grito de entusiasmo, o Pullings que guiou Stephen até a escada do cais era um oficial sério, competente e com dotes de comando. Quando ambos se sentaram na lancha que os levariam ao extremo do porto, sua desconfiança havia desaparecido. Stephen percebeu que Tom podia estar ao comando de qualquer atividade na Armada, quer fosse tratar com intermediários financeiros que compravam barcos, com homens que se dedicavam ao seu desmache ou com leiloeiros.
Vista do mar, a fragata não havia mudado. Mesmo o doutor Maturin reconhecera seu grande mastro com algumas rupturas, suas suaves curvas e sua graciosa proa de mais de uma milha de distância. Mas quando subiram a bordo a viram muito diferente, pois as cobertas, a sala dos oficiais e a grande cabine estavam cheias de comerciantes, que, posto que se dispunham a assistir ao leilão de um baleeiro norte-americano capturado, estavam vestidos com roupa velha e manchada de gordura. Por essa razão os movimentos que faziam para avaliar a embarcação e satisfazer sua curiosidade pareciam mais ofensivos para os observadores com escrúpulos. Alguns grupos se aproximaram de Pullings para chegar a um acordo sobre a compra de várias partes da fragata; conforme eles, com o fim de que não houvesse desnecessária competição e de que todos os interessados obtivessem vantagens. Enquanto Pullings falava com eles em tom amável, Stephen estava absorto em suas meditações, com a mão posta por cima de seu reduzido estômago, como Napoleão.
Debaixo de sua mão, de seu colete de camurça e de sua camisa havia um feixe de rangentes notas do Banco da Inglaterra, o equivalente a um barco de guerra sacado diretamente da rua Threadneedle, e o pressionou com os dedos durante um tempo porque gostava de ouvir o ruído que faziam. Esteve pensando quase todo o tempo em Diana. Lembrou-se quanto gostava de ir a as leilões, sua emoção, seu rubor, o brilho de seus olhos e sua incapacidade de ficar quieto e calado. Também lembrou que em uma ocasião comprou um conjunto de livros de teologia calvinistas por erro e outra, catorze relógios de caixa. Ainda que tenha prestado atenção às preliminares e às primeiras ofertas de Pullings, logo voltou a abstrair-se e viu com nitidez a imagem de Diana de pé no interior de Christie's, muito perto da porta, com a cabeça alta e um gesto triunfante na boca, uma imagem que não desapareceu até que o maço do leiloeiro bateu a mesa com estrépito e Pullings lhe felicitou pela compra.
- Meu Deus! - exclamou quando se terminaram as formalidades e subiram para o convés outra vez. - Em pensar que o senhor é o dono da Surprise, doutor!
- É um título pomposo - disse Stephen. - Mas espero não ser o dono durante muito tempo. Tenho a esperança de encontrar ao senhor Aubrey contente e disposto a comprá-la de minhas mãos, ainda que goste muito dela porque é para mim uma casa flutuante, uma arca que me serviu de refúgio.
- Ouça, senhor, largue esses cabos! - gritou Pullings, pondo a mão em uma cavilha.
- Só estava olhando - disse o marinheiro.
- Desça pela prancha assim que possa - disse Pullings, e depois de se aproximar de um lado olhou para uma lancha e disse -: Jospin, tenha a amabilidade de chamar o seu irmão. Temos que rebocar a fragata até onde queremos ancorá-la antes que perca a exárcia e os mastros.
Depois olhou para Stephen e exclamou:
- Meu Deus, quanto eu gostaria que Bonden e sua brigada já estivessem aqui! Ainda que esteja ancorada em um lugar isolado, só tenho dois olhos para vigiá-la.
Pegou um balde de água e, com grande habilidade, jogou água em vários garotos que estavam em uma balsa feita de pranchas roubadas e que tentavam arrancar algumas placas de cobre do casco da fragata.
- Malditos pilantras! - gritou. - Bastardos! Filhos de puta! Da próxima vez que os veja, farei que os enforquem! Senhor, agora que os leiloeiros se foram, todos nos consideram uma presa fácil. Quanto antes a traslademos, melhor, e mesmo assim…
- Pelo que vejo, o que quer é separá-la da costa e, potanto, do cais.
- Exatamente, senhor. Quero ancorá-la no centro do porto.
- Então descerei para terra pela prancha, pois quando estivermos no centro do porto terei que descer até uma lancha. O que nem sempre faço bem, como terá notado.
- Não diga isso, senhor - replicou Pullings - Qualquer um pode escorregar.
- Ademais, devo partir imediatamente, pois talvez o senhor Lawrence me chame como testemunha no terceiro dia. Não tenho nem um momento a perder.
A carruagem não perdeu nem um momento. O tempo foi bom em todo momento e o elegante veículo preto e amarelo avançou para o norte durante o resto daquele dia e toda a noite, e em nenhuma posta faltaram cavalos nem cocheiros diligentes. Stephen chegou à rua Saint James a tempo para desjejuar e chamou a um barbeiro para que lhe barbeasse e empoasse sua peruca. Depois pôs um traje preto e outra gravata e, muito tranqüilo, subiu no coche que lhe levou até a Cidade.
Tinha tempo de sobra, e, ainda que houve um momento em que o coche se deteve em uma parte de Saint Clement devido ao intenso tráfego, não se impacientou. Quando por fim chegou a Guildhall, não lhe molestou ver o saguão cheio de advogados falando sobre um caso que não compreendeu mas que não tinha nada a ver com Jack Aubrey nem com a bolsa. Sempre ouvira falar do atraso dos advogados, e durante um tempo pensou que haviam adiado o julgamento de Jack por algum motivo e que talvez se celebraria pela tarde. Ficou sentado ali, contemplando o juiz, lorde Quinborough, um homem corpulento com a cara gorda, uma verruga na bochecha esquerda e uma expressão triste e insatisfeita. Tinha a voz grave e às vezes a levantava para interromper a algum advogado. Raras vezes Stephen vira tanta satisfação em si mesmo, tanta dureza e tão pouco senso comum reunidos debaixo de uma mesma peruca. Tentava se informar do que discutiam ao mesmo tempo que estava alerta para ver aos advogados de Jack ou aos seus ajudantes quando chegassem, mas a medida que o tempo passava, ficava mais nervoso, e, quando compreendeu que aquele caso ainda ia durar muito tempo, foi silenciosamente até a porta e perguntou a um zelador:
- Onde se vai celebrar o julgamento de Jack Aubrey?
- O da fraude na bolsa? Já terminou… terminou ontem. Ditarão a sentença no início da próxima semana. Acredito que as pagará todas juntas.
Stephen não conhecia bem a Cidade, mas, como não pôde conseguir nenhum coche, começou a caminhar com rapidez entre a multidão na direção que, conforme acreditava, era a do Temple. Achou que passava pela frente da mesma igreja uma e outra vez e chegou à porta de Bedlam duas vezes. Seu apressado caminhar já lhe parecia um pesadelo e na quarta vez que chegou na rua Love, a rua que sempre lhe enganava, encontrou-se com um transportador do porto desempregado que lhe conduziu até o rio. Ali tomou um bote a remos e, como o barqueiro remou a favor da corrente, pôde levar-lhe ao Temple em menos tempo do que ele havia tardado em ir de Guidhall a Bedlam.
Quando chegou ao escritório de Lawrence, comunicaram que ele estava enfermo, mas que havia deixado um recado para o doutor Maturin: que o relatório baseado nas atas do julgamento estaria pronto no dia seguinte e que se o doutor Maturin não temia se contagiar, o senhor Lawrence lhe receberia com muito gosto em uma ala da prisão King's Bench.
Talvez "lhe receberia fazendo um esforço" tivesse sido uma frase mais exata, pois quando Lawrence se sentou no leito e tirou o gorro de dormir, parecia estar muito mal, seus olhos lacrimejavam, seu nariz corizava e era óbvio que lhe doiam a cabeça e a garganta. A alta febre tinha muito a ver com isso, mas também o fato de estar decepcionado como homem e como advogado.
- Provavelmente já está ciente do resultado - disse. - Aubrey e todos os acusados foram declarados culpados. Terá o relatório completo amanhã, assim que agora só lhe contarei alguns detalhes.
Nesse momento teve um acesso de tosse.
- Farei o melhor que possa - continuou, e então começou a espirrar e a ofegar outra vez. - Perdoe-me, Maturin. Estou em muito mau estado e a mente me falha. Por favor, alcance-me esse frasco que está na prateleira. - Depois de beber um pouco, prosseguiu -: Recorda que lhe pedi que tentasse que Aubrey tivesse uma idéia mais realista das leis, isto é, da administração da justiça? Pois bem, ainda que o senhor houvesse falado com todas as línguas dos homens e inclusive a dos anjos, não poderia tê-lo feito melhor que Quinborough e Pearce. O julgamento foi uma matança, Maturin, uma calculada e fria matança. Já vi alguns julgamentos desagradáveis de caráter político, mas nenhum como este. Não sabia que o Governo pensasse que o general Aubrey e seus amigos radicais eram tão importantes, nem imaginava que pudesse chegar a estes extremos para atacá-los e lograr que os declarassem culpados.
Lawrence teve outro acesso de tosse, bebeu um pouco mais do remédio e depois, segurando a cabeça com as mãos, pediu a Stephen que lhe perdoasse.
- Temo que meu relato não será bom. Como lhe dizia, Pearce queria conseguir um veredito de culpabilidade. É um jovem charmoso e devo admitir que seu discurso foi muito bom. Constantemente sorria para o juiz e tentava desprestigiar a todos os acusados. Foi fácil conseguir que os especuladores da bolsa parecessem um grupo de pilantras e os destruiu. Bem, isso poderá lê-lo no relatório. Quem nos interessa é Aubrey. Pearce lhe atacou de uma maneira que não esperava e que devia ter previsto se naquele dia eu não estivesse com a mente embotada e se tivesse olhado o jure mais atentamente. Todos tinham relação com o comércio: alguns eram comerciantes e outros homens de negócios. Pearce se dirigiu apenas para o jure porque não tinha que fazer nenhum esforço para convencer o juiz. Disse que era tão patriota como qualquer homem e que ninguém admirava tanto a Armada como ele. Também disse que o capitão Aubrey era um prestigioso marinheiro e que não tinha intenção de negá-lo. Acrescentou que sentia muito que seu dever lhe obrigasse a processar a um homem como ele e que gostaria mais de vê-lo no castelinho de uma fragata que nessa penosa situação, mas que, apesar de que sua folha de serviço fosse excelente, nem sempre havia sido assim, pois havia perdido nada menos que três barcos de um valor considerável, de vários milhares de coroas, e que fora julgado por vários conselhos de guerra. Acrescentou que não queria diminuir o mérito que havia conseguido o capitão por seus serviços, mas queria aclarar que não os havia prestado voluntariamente senão que lhe haviam pago por eles com grandes somas, haviam lhe proporcionado alojamento e serventes gratuitamente e lhe haviam premiado com medalhas, condecorações e fitas. Oh, meu Deus, meu Deus! Por favor, alcance-me esses lenços. - Ficou ofegando durante alguns momentos enquanto limpava o nariz com um lenço de cambraia seco e, quando pôde respirar melhor e se reanimou, continuou -: O que vou lhe contar agora não segue a ordem real, mas permitirá que faça uma idéia da mensagem que transmitiu aos jurados mediante afirmações, provas e o interrogatório das testemunhas. Protestei ao ouvir muitas de suas afirmações e também quando apresentou muitas das provas, que me pareciam inadimissíveis. Quinborough teve que dar-me a razão algumas vezes, porém, naturalmente, o estrago já estava feito, o jure já havia formado sua opnião, tanto se as afirmações tinham fundamento como se eram deduções errôneas, e era inútil dizer para que as descartassem. Em resumo, Pearce disse que não tinha que recordar aos cavalheiros do jure que a coragem era uma das mais admiráveis virtudes dos britânicos e uma das que os distinguiam dos homens de outras nações, mas que não necessariamente estava associada a outras virtudes. Ademais, disse que provavelmente os cavalheiros do jure pensariam que a um capitão lhe faltava integridade ou pelo menos delicadeza se recebia a um preto como hóspede de honra em um barco de sua majestade, sobretudo se esse preto era não só o fruto da relação ilícita entre ele e uma mulher negra, senão também um clérigo papista e, potanto, um oponente à supremacia de sua majestade. Insistiu em que o capitão Aubrey compartia as idéias dos radicais sobre o papado e que também estava a favor da emancipação dos católicos. Depois falou da desagradável questão de navegar com bandeira falsa e afirmou que o capitão o havia feito repetidas vezes, e que seus própios diários de navegação e outras provas o demonstravam, assim que era inútil que a defesa tentasse provar o contrário. Disse que não tinha nada contra navegar com bandeira falsa na guerra, ainda que para as pessoas simples e para os honestos comerciantes isso podia ser estranho, pois mesmo o imortal Nelson havia atacado ao inimigo em Trafalgar com uma bandeira falsa; mas acrescentou que se perguntava se o capitão, que ordenara usá-la centenas de vezes, fazia igual em terra, e que essa era a única razão pela qual mencionava o assunto. Perguntou se o imaginário senhor Palmer não era uma prova de que o capitão usava essa estratagema e assegurou que havia acumulado uma considerável fortuna usando o dinheiro dos butins e empregando artimanhas desse tipo. Acrescentou que o capitão havia feito algumas especulações errôneas, que junto com os pleitos que tinha pendentes, podiam acabar com essa fortuna e deixar-lhe sem tudo o que possuía, assim que necessitava de grande quantidade de dinheiro urgentemente. Conforme ele, o fato do capitão compartilhar um coche com um cavalheiro desconhecido depois de chegar a Dover no barco de bandeira branca, havia lhe dado a oportunidade de içar de novo uma bandeira falsa, e ainda que acusasse ao imaginário senhor Palmer de ter lhe enganado e fizesse recair sobre ele a culpa de todo o ocorrido, isso não lhe serviria de nada porque a culpa não podia recair no inexistente senhor Palmer, a quem chamava assim porque, em direito, de non aparentibus et non existeniibus eadem est ratio. Assegurou que os conspiradores haviam inventado tudo isso sobre o inocente cavalheiro desconhecido que havia oferecido um lugar em seu coche ao capitão Aubrey. Por último, disse que esse inocente cavalheiro existia e que seus ajudantes podiam apresentar meia dúzia de moços de estábulo e criadas que podiam prová-lo, mas que não havia nenhuma prova que demonstrasse sua relação com o imaginário Palmer nem com aquela horrível conspiração.
- Como Jack Aubrey reagiu a isso?
- A princípio escutou com atenção e me passou algumas notas sobre o uso de uma bandeira falsa no mar, mas depois pareceu isolar-se. Seguiu ali sentado com uma expressão grave, mas parecia estar em outra parte. Em um momento em que Pearce falava muito rapidamente, Aubrey lhe lançou um olhar cheio de raiva e desprezo e Pearce lhe viu, porque se voltou para ele para dizer que os guerreiros não eram necessariamente bons cidadãos nem comerciantes e se interrompeu. Então um marinheiro que estava no fundo da sala gritou: "Maldito marinheiro de água doce!" e o tiraram dali. Não sei se algum dos ajudantes de Pearce lhe pôs ali para demostrar que os marinheiros são maus e perigosos, mas isso influiu muito no jure e permitiu a Pearce sair de um terreno escabroso e voltar aos tópicos como, por exemplo, que os objetivos e as conexões dos radicais podem provocar a anarquia e ameaçam à Igreja. Depois descreveu com todo detalhe as atividades dos conspiradores na bolsa no dia seguinte que Aubrey chegou a Londres. Jack Aubrey mostrou seus sentimentos só uma vez mais, quando o assessor financeiro de seu pai, que era uma testemunha da promotoria, jurou que ele lhe havia dado a entender que se havia firmado a paz, ainda que sem ser muito explícito. Nessa ocasião parecia perigoso, e quando eu interroguei a testemunha, vi que seus olhos brilhavam; contudo, enquanto os outros advogados pronunciaram seus compridos discursos, que o juiz interrompeu constantemente, parecia tão distante como se estivesse no mar. Não o olhei muitas vezes porque a maldita gripe me obrigava a concentrar todas minhas forças nas perguntas que fazia. O resplendor das lanternas, que estavam acesas há horas, era tão forte que apenas podia ler minhas notas, e seu odor me causava tanto atordoamento que estava a ponto de desmaiar. Mas as testemunhas da promotoria seguiam passando e eu seguia interrogando-as, ainda que soubesse que não o fazia bem e que omitia falar de seus argumentos inconsistentes, confundia as cifras e desperdiçava as oportunidades que se apresentavam. Em casos como este há que aproveitar as ocasiões, sabe? A participação dos outros advogados defensores foi um pouco melhor, mas Pearce estava mais descansado que uma alface e falava alegremente com presunção e com um sorriso estúpido, e fazia breves disquisições. Tudo ia bem e isso o estimulava.
- Quer tomar um pouco de xarope? O senhor está muito rouco.
- Sim, por favor. Estava mais rouco então. - O pobre homem ficou ofegando como um cachorro por alguns momentos e depois continuou -: Mas ao final Pearce ficou sem testemunhas e fechou o caso. Então nós começamos a arrumar nossos papéis e demos graças a Deus, pois, como estávamos ali desde as nove da manhã e já eram dez da noite, pensávamos que se adiaria nossa intervenção; contudo, enquanto espirrava várias vezes seguidas ouvi que aquele demônio dizia que devíamos continuar. Disse: "Queria escutar seu enfoque do caso e, se é possível, as alegações dos acusados. Vários cavalheiros que hão assistido como testemunhas têm muitos inconvenientes para vir amanhã". Isso nos pareceu absurdo e protestamos. O sargento Maule, em nome de Cummings, disse que não lhe parecia bem apresentar as alegações dos acusados tão tarde, pois desse modo Pearce replicaria no início do dia seguinte e, como nós teríamos que chamar outras testemunhas, ele, desafortunadamente, poderia falar outra vez e seria o último em fazê-lo antes das conclusões.
- Pelo que vejo, estes casos se regem por regras estritas.
- Também havia regras estritas na praça onde lutavam os gladiadores: cada um tinha que ter uma espada, mas se devia lutar contra Calígula, a espada devia ser de chumbo. Como um juiz é um imperador em seu própio tribunal, tivemos que continuar. Recordo que escutei atentamente a Maule, que falou muito bem no início, mas logo começou a divagar, a se repetir e a confundir as cifras, e eu me perguntava que poderia dizer a um jure em que todos os membros estavam desgostosos pelo caso e dois terços estavam adormecidos. A Maule seguiu Petty, que defendia outros dois acusados e falou ainda pior, ainda que muito mais, e Quinborough cochilou durante quase todo o discurso. Quando por fim me pus em pé… Mas não vou contá-lo, porque é muito doloroso. Apelei para a razão, mas não serviu de nada; apelei para as emoções e falei das vitórias do capitão, de suas feridas e sua reputação, mas tampouco serviu de nada. De todas formas, minha voz apenas podia ouvir-se e eu quase não podia organizar meus pensamentos em uma seqüência lógica. Mencionei o ponto que, em minha opinião, era o mais importante, que Aubrey não havia vendido suas ações quando estavam mais altas, como os demais, e terminei dizendo: "Seria muito doloroso para mim ver que a coroa de louro que hoje leva como prêmio por sua honra e sua arriscada vida caia pelo peso de seu veredito". Mas tampouco isso serviu de nada, e os poucos membros do jure que estavam acordados ficaram me olhando atônitos. Quando me sentei, com a convicção de que havia perdido o caso, eram três da madrugada. Estávamos sentados por dezoito horas, e finalmente Quinborough adiou o julgamento sem ter ouvido nossas testemunhas.
- Dezoito horas! Jesus, María e José!
- Sim. E regressamos no dia seguinte às dez da manhã. Tinha tão pouco entusiasmo que quase não podia me mover nem falar. A apresentação das testemunhas da defesa levou pouco tempo. As minhas não puderam provar nada mais além de que Aubrey tinha um esplêndida carreira, o que não vinha ao caso; e ainda que lorde Melville falou muito bem, suas palavras pouco influíram no jure, no qual poucos membros sabiam que havia uma pessoa com o cargo de primeiro lorde. Não devemos chamar-lhes, porque quando acabaram de declarar, Pearce começou a réplica, à qual não podíamos responder. Foi uma boa réplica. Conhecia bem ao jure, que agora estava acordado e captava facilmente os argumentos simples e repetidos. Jogou por terra nossos discursos, o que, em minha opinião, não foi difícil, e depois repetiu insistentemente seus argumentos: Aubrey necessitava de dinheiro, uma grande oportunidade se apresentou, quando chegou a Londres fez operações que gerariam milhões e que acordou com todos os implicados. Ademais, disse que os acusados que haviam fugido demonstraram sua culpa com sua fuga. Lorde Quinborough fez a conclusão, que levou três horas.
- É por acaso um juiz com uma verruga na bochecha que vi esta manhã em Guildhall?
- Sim.
- É um homem inteligente?
- Era um homem inteligente. Raras vezes chega-se a juiz um homem que não seja bastante inteligente. Porém, como muitos outros, tornou-se estúpido no tribunal e, além disso, orgulhoso, autoritário e mal-humorado. Desta vez fez um extraordinário esforço para fazer proveito de suas faculdades, pois é um feroz conservador, como o senhor sabe muito bem, e saboreou como se fosse mel esta oportunidade de destruir aos radicais. Ainda que tenha sido muito prosaico e repetitivo, fez tudo o que queria fazer.
Nesse momento Lawrence teve outro acesso de tosse, voltou a espirrar e se sentiu pior. Quando tudo passou e Stephen o acomodou sobre os travesseiros, sussurrou:
- Não lhe contarei os detalhes, pois poderá lê-los no relatório. Com respeito ao caso de Aubrey, a conclusão foi a mais infame que já ouvi. Quando Quinborough declarou que todos os acusados eram culpados, acrescentou Aubrey ao grupo e revisou superficialmente e com cepticismo as provas em favor dele, ou não as levou em consideração e, por outro lado, fez ênfase em todas as que lhe eram contrárias. Praticamente aconselhou ao jure que o declarasse culpado, e quando este se retirou, escrevi uma nota para Aubrey em que lhe dizia que se preparasse para o pior. Aubrey assentiu com a cabeça. Estava muito tranqüilo e muito sério, mas não desanimado, e ainda seguia impassível quando o jure regressou, aproximadamente uma hora depois, e pronunciou o veredito de culpabilidade. Então me apertou a mão e me agradeceu pelo esforço que havia feito, mas eu apenas pude responder-lhe. Voltarei a ver-lhe no dia 20, quando for escutar a sentença.
- Qual a sentença que o senhor acredita que será?
- Espero… espero que só seja o pagamento de uma multa.
CAPÍTULO 9
O chuvisco matutino apenas estava iluminado pelo leste, mas a fábrica de velas já havia começado a desprender seu nauseabundo odor e um grupo de esposas, filhos, amigos e serventes empapados estavam reunidos diante da porta de Marshalsea.
Poucos minutos antes de que abrissem, Sophie Aubrey chegou caminhando pelo barro com tamancos.
- Oh, Stephen, por fim hás chegado! - exclamou. - Quanto me alegro de vê-lo! Como veio cedo! Mas está empapado - acrescentou, olhando-lhe atentamente. - Ponha o chapéu imediatamente, por Deus. Não deve molhar a cabeça. Venha para baixo de minha sombrinha e agarre meu braço.
- Tinha muito interesse em falar contigo antes que entrasse para ver Jack - disse Stephen. - Mas com a pressa me equivoquei de hora. Nunca consegui ser pontual.
As portas se abriram por dentro com seu habitual chiado e as pessoas entraram e tomaram seu caminho habitual. Como todas as seções abriam meia hora depois que a dos devedores, Stephen conduziu Sophie até a cafeteria e ambos se sentaram em um solitário canto.
- Além de estar empapado - disse -, parece cansado. Passe-me seu abrigo - acrescentou, e o pôs para secar sobre o respaldo da cadeira. - Suponho que não ouviu nenhuma boa notícia.
Então, sem esperar a resposta, pediu à senhora Goadby:
- Café forte e quente, alguns bolos e dois ovos passados na água para o senhor, por favor.
- Viajei quase sem parar e esperava que depois de fazer duros esforços ouviria algo alentador, e precisamente um grande homem me disse que talvez não o condenarão à prisão; contudo, todo o resto é mau. Lawrence me explicou que não se pode celebrar um novo julgamento, pois, devido a que a promotoria apresentou um processo contra todos os supostos conspiradores e como foram declarados culpados, todos devem estar presentes para interpor uma apelação, quer dizer, ou a interpõem todos ou não é válida. É uma nova norma dos tribunais.
- Quanto detesto aos advogados! - exclamou Sophie e seus olhos se enturvaram.
- Isso é o que sei com relação à apelação. Quanto à sentença, vários homens e mulheres a quem procurei me disseram que eles "não podem mudar o curso da justiça".
- Maldita justiça! - exclamou Sophie no mesmo tom que sua prima Diana teria empregado.
- Ainda que era isso precisamente o que queria que eles fizessem, o que me interessa mais é a mudança do costume, quer dizer, que não apaguem o nome de Jack da lista de oficiais. Se é culpado, isto é, se o "declaram" culpado de ter cometido um horrível delito, automaticamente apagarão seu nome dela; não porque a lei mande mas por costume, um costume tão arraigado que o príncipe William me assegurou com lágrimas nos olhos que nem ele nem o primeiro lorde poderiam mudá-lo. Somente o rei ou, neste caso, o regente têm autoridade para fazê-lo. Mas o regente se encontra na Escócia e, além do mais, só me conhece por ser amigo de seu irmão, com quem não se dá muito bem neste momento, assim que fui até Brighton para visitar a sua esposa.
- A sua esposa?
- Sim, ainda que todos a conhecem como a senhora Fitzherbert.
- Mas, estão casados? Pensei que ela era católica.
- Certamente que estão casados! O própio Papa lhe escreveu para lhe dizer que a cerimônia era válida e que era sua esposa conforme os cânones. Charles Weld, um primo de seu primeiro esposo que exerceu como sacerdote na Espanha durante um tempo e a quem eu conhecia bem, me mostrou o documento. Ainda que tenha me recebido amavelmente, disse, negando com a cabeça, que quase não tinha influência em nada e que, mesmo no caso de que tivesse, duvidava que pudesse fazer algo; contudo, aconselhou-me que fosse ver lady Hertford e isso é o que vou fazer. Mas o pedido de ajuda ao regente não pode ser feito com rapidez, Sophie, se é que realmente se pode. Entretanto, Jack disporá da Surprise, que acabo de comprar para usá-la como barco de guerra privado. Se encontra ancorada em Shelmerston, e Tom Pullings, que está a cargo dela, mandou dizer que montes de marinheiros de primeira, entre os quais há muitos de nossos antigos companheiros de tripulação, hão dito que embarcariam nela se estivesse sob o comando de Jack. Se ele aceitar o comando, poderemos sair daqui assim que tudo termine, se ele não for condenado à prisão. Tem que convencê-lo, minha amiga.
- Mas, por que não lhe perguntou, Stephen? Por que não lhe falou disto?
- Bem… - disse, olhando seu prato. - Em primeiro lugar, porque não tive tempo, já que estava de viagem, mas, além disso, porque não achava fácil, sabe? Não gosto em absoluto de fazer o papel de deus ex machina, e você pode fazê-lo melhor que eu. Em caso de que falasse de agradecimento, diga-lhe que não tem nada que agradecer, pois um põe o capital e o outro põe sua habilidade. Eu não seria capaz de governar uma embarcação ainda que estivesse em um bebedouro nem de atacar sequer a um bote de remos, e, por outro lado, nunca navegaria com outro capitão. Por favor, diga-lhe que espero que responda afirmativamente quando venha para visitar-lhe esta tarde. Tenho que ir. Que Deus te bendiga! Recorde-se que não deve dizer barco "corsário" mas barco de guerra "privado" ou "com patente de corso".
Quando Stephen estava perto da porta da casa de sir Joseph, no mercado Shepherd, viu o coronel Warren sair, montar em um coche que cedeu sob seu peso e começar a se afastar nele. Sabia que Warren era o novo representante do corpo de cavalaria no comitê e que era um homem muito inteligente e ativo, mas não desejava encontrá-lo, assim que seguiu andando durante alguns minutos mais. Quando por fim visitou ao seu amigo, encontrou-lhe muito preocupado.
- Ao passo que vamos - disse sir Joseph -, chegarei a suspeitar que lorde Liverpool e a metade do Conselho de Ministros hão cometido alta traição. Há algumas contradições inexplicáveis… talvez o própio Cerberus se haja tornado louco. Quanto eu gostaria que resolver este caso fosse a metade da facilidade que solucionar o seu!
Então abriu uma gaveta e continuou:
- Aqui tem as patentes que lhe autorizam a fazer corso contra a França, a Holanda, as repúblicas italiana e lígure, Estados Unidos da América, os barcos que naveguem com bandeira de Pappenburgh e de meia dúzia de países mais. Eu as tinha prontas desde a quarta-feira.
- Que Deus lhe bendiga, Blaine! - exclamou Stephen. - Eu lhe estou muito agradecido. Deveria ter vindo na quarta-feira, e o teria feito se não houvesse passado por Londres às duas da madrugada quando me dirigia para uma cidade chamada Bury. Fui ver todos os homens e mulheres importantes do reino que me têm simpatia.
- Se viajou para ajudar a Aubrey, do que estou convencido, poderia ter poupado o dinheiro do aluguel dos carros. Neste país já não se podem subornar juízes e tampouco conseguir que outros os subornem ou os persuadam, e muito menos que lhes dêem ordens. Mas há uma única excessão, da qual podia ter-lhe falado antes de que o senhor partisse: quando o juiz também é membro do Governo, como é o caso de lorde Quinborough, e, por definição, tem a responsabilidade de cumprir os desejos de seus companheiros relacionados com os assuntos políticos. Deve saber que escolhemos ao senhor para estabelecer extra-oficialmente contato com o Chile e o Peru, algo que a Administração considera muito importante. Pensamos que é a pessoa ideal porque o senhor fala espanhol e é um agente secreto experiente, que tem o barco adequado para navegar por essas águas e a desculpa idônea para explicar sua presença ali. Ademais, como o senhor é católico, poderá tratar melhor com outros católicos, muitos dos quais são irlandeses ou meio irlandeses, como, por exemplo, o jovem O'Higgins. Todos esses atributos acrescentados ao fato de que o senhor possue uma considerável fortuna foram decisivos. Os membros do pequeno grupo que se reuniu para a eleição se esfregaram as mãos para expressar sua satisfação, mas um cavalheiro disse que apesar do senhor ter todas essas virtudes, não navegaria em um barco que não estivesse ao comando de Aubrey. Como este assunto insta, acho que não deve se preocupar com o encarceramento de seu amigo.
Sir Joseph olhou o relógio e prosseguiu:
- Se quer vê-lo quando compareça no julgamento, deve se apressar.
- Não quero - disse Stephen. - Em minha opinião, ali os abelhudos estão fora de lugar. Tomei a liberdade de dizer que me enviassem uma mensagem aqui.
- Muito bem - disse sir Joseph. - Eu temo que a sentença lhe surpreenderá. Quinborough não o condenará à prisão, mas lhe inoculará seu veneno de outra maneira. Neste caso havia muita maldade, sabe?, pois se pretendia que os outros acusados saíssem em liberdade sob fiança quando lhes declarassem culpados e só Aubrey fosse encarcerado. Indubtavelmente o julgamento ocultava um objetivo político, a destruição dos radicais, e é compreensível que alguns políticos que se deixam levar pelas paixões o tivessem, mas também havia má intenção. A insistência com que atacaram ao seu amigo…
- Perdoe, senhor - disse a senhora Barlow. - Uma mensagem para o doutor Maturin.
- Abra-a, por favor - rogou sir Joseph.
- A picota - disse Stephen em tom grave. - Uma multa e a picota. "Pagará ao rei uma multa de duas mil e quinhentas libras e será exposto na picota que se encontra diante do edifício da bolsa na Cidade de Londres durante uma hora, entre as doze do meio-dia e as duas da tarde."
- Me o temia - disse Blaine depois de uma comprida pausa e acrescentou -: Diga-me, Maturin, há visto na Inglaterra a algum homem exposto na picota?
- Não.
- Em certas ocasiões pode dar lugar a um espetáculo sangrento. Oates esteve a ponto de morrer e muitos homens resultam mutilados. Uma vez vi que a um lhe sacaram os dois olhos atirando-lhe pedras. Como é evidente que neste caso há interesse em fazer estrago a uma pessoa, seria conveniente que o senhor contratasse um grupo de tipos musculosos para que o protejam. O investigador saberá onde achá-los e os contratará em seu nome.
- Mandarei buscar-lhe imediatamente. Obrigado pela advertência, Blaine. Agora, diga-me, o que o senhor pensa de lady Hertford?
- Do ponto de vista físico, moral ou social?
- Como meio de evitar que apaguem o nome de Aubrey da lista de oficiais. A senhora Fitzherbert me aconselhou que procurasse ela.
- Há que apagar-lhe forçosamente da lista, porque essa é a regra. O importante é sua inclusão de novo na lista. Outras vezes foi feito, respeitando inclusive a antiguidade dos oficiais nos casos em que haviam sido expulsos da Armada por bater-se ou por coisas similares, e em ocasiões por ter listas falsas que não haviam causado nenhum problema; contudo, geralmente demora muito tempo e requer muita influência. Em um caso como este… O senhor conhece a senhora Fitzherbert?
- Só lhe fiz alguma ou outra inclinação de cabeça. Mas acho que atualmente goza de muita influência sobre o regente e, conforme me disseram, ela se dá muito bem com Andrew Wray. Pensei que com uma apresentação e um presente adequados poderia convencê-la de que, pelo menos, comece a falar do assunto com o regente.
- É possível que isso dê resultado, mas o regente está na Escócia e passeia por ali sua volumosa figura enfeitado com um kilt que lhe chega aos joelhos, meias multicolores, uma capa de lã e uma boina típica dos escoceses. Suspeito que lady Hertford está com ele, e se quiser averiguo se é assim e lhe digo.
- O senhor é muito amável. De toda forma, vou parar na rua Grosvenor quando vá a Marshalsea.
- Provavelmente saberá que entre uma mulher odiosa e um tipo pretencioso e astuto como Wray é provável que perca o presente e o dinheiro.
- Certamente! Que o senhor passe um muito bom dia, meu estimado Blaine.
Quando o doutor Maturin parou na rua Grosvenor para visitar ao senhor Wray, este não se encontrava em sua casa, mas sim a senhora Wray. Ela ouviu que o doutor deu seu nome ao abrir a porta, desceu correndo a escada e lhe pegou as mãos. Era uma jovem gorda, de pele morena e feições ordinárias, mas agora tinha um aspecto quase bonito, pois a indignação havia ruborizado sua cara e fazia brilhar seus olhos. Já sabia a notícia e exclamou:
- Que injustiça! Quanta maldade! Pôr na picota a um oficial de marinha! Isto é incrível! É um homem tão valente, tão distinto, tão charmoso, tão alto! Entre para minha salinha.
Levou Stephen a uma salinha adjunta ao seu quarto. Nas paredes havia muitos quadros com barcos pintados, dos quais alguns foram governados por seu pai e muitos mais pelo capitão Aubrey nos tempos em que Babbington estava sob seu comando.
- Ele me tratava muito amavelmente quando eu não era mais que uma menina gorducha, apesar de que meu pai era às vezes muito duro com ele. Charles, quero dizer, o capitão Babbigton tem uma excelente opinião dele e quase lhe venera. Doutor Maturin - acrescentou com outro tom de voz e com um olhar penetrante -, Charles aprecia muito seus conselhos e me alegro disso. Ontem à noite partiu para os downs.
Depois, a modo de resumo, exclamou:
- E pensar que sua pobre esposa verá como o apedrejam sem poder fazer nada! Isto é monstruoso, monstruoso. Zombarão dele e o insultarão. Provavelmente morrerá de vergonha.
- Com respeito a isso, senhora, esquece a senhora que ele é inocente e não tem nada de que se envergonhar.
- Certamente que é inocente! E isso faz uma grande diferença. Para mim não importaria que houvesse cometido dez vezes mais operações fraudulentas na bolsa, porque todo mundo as faz. Sei que o senhor Wray ganhou uma grande soma ao mesmo período. Porém, por favor, sente-se, doutor Maturin. Em que estava pensando? O que Charles pensaria de mim? Por favor, tome uma taça de madeira.
- Obrigado, senhora, mas tenho que ir embora. Devo ir a Marshalsea.
- Então, por favor, diga ao capitão que lhe envio um respeitoso, isto é, um afetuoso cumprimento e à senhora Aubrey toda minha estima. E se posso ajudá-la em algo, como cuidar das crianças, dos gatos…
No momento em que ambos saiam da salinha a porta da rua se abriu e do alto da escada puderam ver Wray sustentado por dois cocheiros. Imediatamente dois criados o seguraram com destreza e quando atravessavam o saguão ele se voltou para Stephen e disse:
Uma esposa maltratada e um cornudo quebraram a corrente do matrimônio juntos.
Em Marshalsea foi difícil para Stephen atravessar a ala onde ficavam os oficiais da marinha porque havia muitos ali reunidos, a maioria deles falando ao mesmo tempo e todos muito indignados. Inclusive os menos inteligentes e os que estavam quase loucos admiravam muito a Armada e pensavam que expor a um oficial na picota era um intolerável ultraje a ela. Stephen teve que escutar a leitura de uma petição e firmá-la antes de poder seguir avançando. Os prisioneiros haviam deixado vazio o terreno onde jogavam boliche, situado na parte baixa do edifício onde Jack ficava, por respeito a seus sentimentos, algo que não haveriam feito se lhe houvessem condenado a morrer enforcado. Killick estava sentado no degrau mais baixo e tinha uma expressão de espanto como se tivesse visto sua casa em chamas.
Quando Stephen subia a escada, ouviu Jack tocando no violino uma triste fuga com paixão e austeridade, e esperou que terminasse para bater na porta. Depois entrou e foi recebido com um olhar grave e penetrante.
- Desculpe, Jack - disse -, mas pensei que haviam dito "entre".
- Oh! - exclamou Jack e relaxou a cara. - Eu lhe confundi com… Quanto me alegro de lhe ver, Stephen! Sente-se. Sophie acaba de sair para comprar umas costeletas.
Nesse momento pôs de um lado o violino e o arco, voltou sua opulenta figura para Stephen e em tom solene disse:
- Me contou tudo sobre a Surprise. Eu lhe agradeço muito a oferta que me fez e será um prazer para mim governá-la agora que se há convertido em um barco de guerra privado. Mas o que não entendo, Stephen, é se realmente poderei armá-la além de comprá-la. Quando pague a multa…
- Uma multa injusta.
- Sim, mas se lamentar não serve de nada. Quando pagar a multa e somar todas as perdas que tive na bolsa, não terei nada, e armar um barco, ainda que seja para uma viagem curta, custa muito mais do que você imagina.
- Meu amigo, já lhe disse que recebi uma herança de meu padrinho.
- Sim. Lembro que você disse quando regressamos para a Inglaterra, mas pensei que consistia, e perdoe-me por me meter em seus assuntos, em uma pequena quantidade de dinheiro para livros, um anel de luto e alguns lembranças, ou seja, as coisas que habitualmente se herdam dos padrinhos e que também têm grande valor.
- É muito mais que isso, muito mais, tanto que não temos que contar cada penique antes de gastá-lo. Poderemos fazer a guerra por nossa conta sem nos privar de nada.
Stephen se levantou, assomou-se pela janela e olhou para o céu cinzento. Depois voltou a olhar para o interior do quarto e viu Jack iluminado pela luz que entrava pela parte norte e sentado em uma postura apropiada para se fazer um retrato. Parecia mais; robusto e mais pesado que antes, estava muito sério e tinha um gesto leonino; contudo, por baixo de sua seriedade Stephen percebeu uma ferida na qual a notícia da Surprise apenas havia produzido efeito e, com a esperança de aliviá-la um pouco, acrescentou:
- Meu amigo, eu lhe direi um segredo: nossa guerra não será totalmente privada. Já sabe que tipo de atividades realizo e, entre uma tentativa de aniquilar o comércio do inimigo e outra, tenho que fazer alguns trabalhos relacionados com elas.
Jack compreendeu imediatamente e expressou sua satisfação sorrindo e fazendo uma inclinação de cabeça, mas sua dor não diminuiu. Então Stephen prosseguiu:
- A maldita picota não deve ter importância para um homem inocente, meu amigo, mas é tão desagradável como uma dor de dente. Muitas vezes lhe mediquei para dor de dente, e com o que lhe trouxe agora ser exposto na picota lhe parecerá um sonho - disse, pegando um pequeno frasco do bolso -, um sonho distante e só um pouco desagradável. Eu mesmo o tomei várias vezes e me fez muito efeito.
- Obrigado, Stephen - disse Jack, pondo o frasco na prateleira.
Stephen compreendeu que não tinha intenção de tomá-lo e que a dor não havia diminuído. O fato de ter deixado de pertencer à Armada causara a Jack mais tristeza do que se o tivessem condenado a milhares de picotas e mais que a perda de sua fortuna, sua patente e seu futuro. De certa forma isso era como a perda de sua identidade, e quem lhe conhecia bem notava que havia conferido à sua cara e aos seus olhos uma expressão estranha.
Ainda tinha aquela expressão melancólica e absorta na quarta-feira seguinte, quando estava em um quarto sujo e vazio da ala sul de Cornhill esperando para que o levassem para a picota. Os policiais encarregados de sua custódia se achavam agrupados junto à janela, e como estavam muito nervosos falavam sem parar.
- Tínhamos que tê-lo feito há dias, justo depois de que se ditasse sentença. A notícia teve tempo de chegar até Land's End e John o'Groats.
- E a todos os malditos portos do reino: Chatham, Sheerness, Portsmouth, Plymouth…
- Sweeting's Alley está bloqueado.
- Castle Alley também, e acredito que lhes seguirão outros. Deveriam ter mandado buscar os soldados faz tempo.
- Somos quatro tenentes, quatro cabos e um oficial de justiça. Que podemos fazer frente a uma multidão?
- Se saírmos desta com vida, levarei minha mulher e meus filhos para viver do outro lado de Epping.
- Seguem chegando do rio. Aí estão os tipos das brigadas recrutadoras com seus sangrentos sabres e cassetetes. Que Deus tenha misericórdia!
- Estão bloqueando os dois lados da rua da bolsa com carroças. Que Deus nos proteja!
- Por que não dá a ordem? Por que o senhor Essex não dá a ordem? Estão ficando furiosos lá embaixo. Vão nos matar a bordoadas.
Em Saint Paul e nas igrejas da Cidade os sinos haviam tocado já fazia cinco ou dez minutos e a multidão amontoada em frente a Cornhill se impacientava.
- Oito badaladas! - gritaram alguns. - Toquem oito badaladas! Virem o relógio de areia e toquem o sino!
- Tragam-no! - gritou o líder de um grupo que, assim como os outros, tinha uma bolsa de pedras e havia sido contratado por alguns acionistas decepcionados. - Tragam-no e deixem-nos vê-lo!
Bonden se voltou para ele e perguntou:
- Que faz aqui, companheiro?
- Vim para ver o espetáculo.
- Então va ver o espetáculo de Hockley em Hole, amigo. Este é só para marinheiros, sabe? Só para marinheiros, não para homens de terra adentro!
O homem olhou para Bonden e para os homens com cara séria e expressão ameaçadora que estavam detrás, homens bronzeados e fortes com brincos e compridas tranças; depois olhou para os de seu grupo, esquálidos e pálidos, e quase sem pausa replicou:
- Bem, não me importa. Que o passe bem, marinheiro!
Davis, um homem muito robusto, feio e perigoso que havia acompanhado Jack em muitas missões, despachou ainda mais facilmente a um grupo de tipos forçudos contratados por Wray. O grupo, cujos membros usavam roupa de cores brilhantes e chapéus de copa baixa, destacava-se entre a massa formada quase integralmente por marinheiros. A maioria das pessoas, incluídos os aprendizes e os meninos de rua, que tinham baldes cheios de lixo, haviam ficado do outro lado dessa barreira ou haviam ido para edifícios próximos. Davis, acompanhado de seus quatro irmãos, que eram mais feios que ele, e um ajudante de oficial de derrota preto e mudo, aproximou-se do grupo gritando furiosamente:
- Que se vão os sacanas!
Depois de ver como se afastavam, abriu passagem entre seus companheiros a cotoveladas e chegou até os degraus da picota, onde Stephen estava com alguns lutadores que o investigador havia logrado contratar e que também se destacavam entre os outros. Então lhes disse:
- E os senhores também têm que sair daqui. Não queremos lhes ferir, cavalheiros, mas têm que sair daqui.
Stephen os olhou, assentindo com a cabeça, e eles se moveram para um lado em direção a Saint Michael. Quando chegaram à igreja, o relógio desta marcou um quarto para a hora e o senhor Essex finalmente deu a ordem.
Jack saiu da escura habitação para a intensa luz, e quando os policiais lhe fizeram subir os degraus não podia ver nada devido ao resplendor.
- Por favor, senhor, ponha a cabeça aqui e as mãos aqui - disse um policial muito nervoso em voz baixa e tom amável.
O policial pôs lentamente o parafuso, depois o fixou com a porca e se moveram as dobradiças. Jack ficou imóvel com as mãos apoiadas na parte inferior dos orifícios e imediatamente sua vista se aclarou. Então viu que a larga rua estava cheia de homens silenciosos e atentos, e ainda que alguns usavam longas capas, outros a roupa de descer a terra e outros malhas, percebeu que eram todos marinheiros. Também havia dúzias, montes de oficiais e guardas-marinhas. Babbington estava ali, justo diante da picota, com a cabeça descoberta e olhando-lhe fixamente. Também estava Pullings e, naturalmente, Stephen, e Mowett, Dundas… lhes fez uma inclinação de cabeça, ainda que sem mudar sua expressão impassível. Depois viu Parker, Rowan, Williamson, Hervey e outros homens que fazia muito tempo que não via e cujos nomes apenas podia recordar: capitães, tenentes e suboficiais que punham em perigo sua ascensão e guardas-marinhas e ajudantes de oficiais de derrota que punham em perigo seus postos.
- Por favor, senhor, passe a cabeça um pouco para frente - murmurou o policial.
Depois a parte superior da armação de madeira imobilizou a cara de Jack e ele ouviu o som metálico do parafuso. Então, em meio do silêncio, ouviu-se uma potente voz gritar:
- Tirem o chapéu!
Ao mesmo tempo centenas de marinheiros lançaram ao ar seus chapéus de aba larga e começaram a dar vivas a plena voz, como os que Jack ouvira amiúde nas batalhas.
CAPÍTULO 10
- Deve ficar claro que o senhor não entrará em nenhum combate - disse o senhor Lowndes, um funcionário do Ministério de Assuntos Exteriores -, a menos que as circunstâncias sejam extraordinariamente favoráveis para isso. O senhor se limitará a estabelecer contatos em Valparaíso e Santiago. E com respeito às presas capturadas, seu valor menos os dez por cento será deduzido da subvenção diária acordada e não haverá reclamação de nenhum outro pagamento ao Governo de Sua Majestade.
- Também peço a metade dos gastos de manutenção - disse Stephen. - Calcula-se que a manutenção de um barco de tanto valor como esse, quando navega por águas exageradamente agitadas, custa cento e setenta libras por mês: cento e setenta libras a cada mês lunar. Insisto neste ponto e quero que conste por escrito.
- Muito bem - admitiu o senhor Lowndes mal-humorado, e fez uma nota. - Aqui tem uma lista dos militares e pessoas notáveis recomendadas pela Organização Para a Libertação do Chile e por nossas própias fontes de informação; aqui tem uma das munições e do dinheiro que pode proporcionar-lhe a organização. Deve ficar claro que o material e o dinheiro sempre serão fornecidos pela organização, não pelo Governo. Acho que é desnecessário repetir que se tiver algum conflito com as autoridades locais, terá que abandonar o plano e deixará de ter apoio oficial. Isto é tudo, se o coronel Warren e sir Joseph não tiverem nada a acrescentar.
- Por minha parte só quero dar ao doutor Maturin os nomes e os códigos das pessoas mais importantes com que pode se pôr em contato - disse o coronel Warren, que não falava como militar mas como membro do comitê, ao qual os três pertenciam. - Provavelmente o senhor quererá revisá-la, senhor - acrescentou, entregando-lhe um feixe de papéis para Stephen.
- Com relação às questões navais, aqui tem estes dois documentos - disse sir Joseph, dando-lhes golpezinhos com os óculos. - Um é uma dispensa que impedirá o recrutamento forçoso dos homens do doutor Maturin; o outro lhe permitirá reabastecer e obter apetrechos dos estaleiros de sua majestade a preço de custo e pagar em Londres a noventa dias.
- Então só me resta desejar êxito ao doutor Maturin - disse o senhor Lowndes, pondo-se de pé.
- E um feliz regresso - disse o enorme coronel com sua voz aguda, apertando a mão de Stephen e olhando-lhe com afeto.
Sir Joseph os acompanhou até a porta da rua e quando ela se fechou aproximou-se da escada da parte traseira e, projetando a voz para abaixo, gritou:
- Senhora Barlow, pode servir a janta quando queira! - Depois voltou para o quarto e disse -: sinto muito, Maturin. Foi inumano que Lowndes se estendesse tanto. Parecia que tentava firmar um tratado com uma potência hostil em vez de… espero que não lhe haja tirado o apetite. Como sei que as pessoas que professam a antiga fé têm que mortificar seu corpo hoje, fui cedo ao mercado e consegui algumas ostras e duas lagostas realmente frescas. Ademais encontrei um excelente robalo, e se ele cozinhou muito não perdoarei o Ministério de Assuntos Exteriores enquanto viva - acrescentou enquanto servia duas taças de xerez. - Mas devo confessar que admiro sua tenacidade ao discutir a parte financeira.
- Isso é produto da riqueza - assegurou Stephen - Desde que disponho de dinheiro me desgosta muito desprender-me dele, sobretudo se tratam de forçar-me. Antes cedia docilmente quando alguém tentava que o entregasse usando ardis ou a força, mas agora contra-ataco com uma segurança e uma aspereza que me surpreendem e quase sempre me fazem ganhar.
Então levantou sua taça e disse:
- Brindo por seu êxito.
- Obrigado - disse Blaine. - Warren e eu acreditamos que já estamos muito perto do raposa. Indubtavelmente, trata-se de um caso de alta traição, e só vinte homens poderiam cometê-la, quer dizer, estão em posição de cometê-la. O homem em questão é muito astuto e prudente, mas acho que Warren, com todos os recursos de que dispõe, o encontrará. Warren é muito mais inteligente do que um poderia imaginar vendo sua cara de militar e sua figura. O senhor sabia que ele é um eunuco, um homem sem…?
- Quando queira, senhor - disse a senhora Barlow em tom grave da porta.
Sir Joseph, ruborizado, conduziu Stephen à sala de jantar e quando estivam sentados, perguntou:
- Que sabe do pobre Aubrey?
- Tem todos os marinheiros que quer. Recusou muitos e aceitou somente os que gostava. Pensa fazer uma pequena viagem pelo golfo de Vizcaya durante um mês para ver se se comportam satisfatoriamente. Pegarei a diligência que parte amanhã cedo para reunir-me com ele no sábado.
- Alegro-me de que tenha sorte com a tripulação. É lógico que os homens mais astutos compareçam em tropel para alistar-se no barco de um capitão tão bom e que captura tantas presas. Como isso é diferente quando há dependência dos barcos recrutadores! Merece um pouco de sorte depois de passar tantas desgraças. Apesar de tudo, esse horrível assunto não fez bem ao Conselho de Ministros, e provavelmente Quinborough seja o homem mais impopular do país. As pessoas o insultam pela rua e está tão incômodo pela sentença e a forma em que se celebrou o julgamento que não se recorda dos radicais. Em toda a cidade elogiam os oficiais e os marinheiros que deram vivas diante da bolsa. É óbvio que o Governo não compreendeu bem quais eram os sentimentos da nação. As pessoas gostam de ver na picota a um padeiro que engana no peso dos produtos e a intermediários financeiros que fazem operações fraudulentas, mas não pode suportar ver nela a um oficial da marinha.
- Os marinheiros eram dignos de se ver. Estava encantado e assombrado de ver tantos.
- O Governo não poderia ter feito as coisas pior. Atrasou a execução da sentença até que toda a ilha foi um clamor de indignação e até que chegou uma grande esquadra dos downs, ancoraram vários barcos em Nore e atracaram em Medway e nos embarcadouros da parte norte do Támesis mais embarcações do que as habituais. Havia grande quantidade de marinheiros nesses barcos e muitos outros desocupados em terra e, ademais, a essa hora do dia a maré e o vento eram favoráveis para vir navegando rio acima e regressar navegando rio abaixo. Naturalmente, também vieram numerosos oficiais e muitos grupos de tripulantes de licença. Me contaram que inclusive vieram algumas brigadas recrutadoras com a desculpa de buscar desertores. A Quinborough e seus amigos não restou outro remédio do que mandar escrever alguns panfletos para justificar seu comportamento.
Chegou o excelente robalo junto com uma garrafa de vinho de Montrachet e, depois de uma pausa na qual estiveram muito ocupados, Stephen disse:
- Acho que pode perdoar ao senhor Lowndes, apesar de tudo.
- É um animal tagarela - disse sir Joseph sem má intenção. - Falando de escritos, o que pensa do de seu amigo, o senhor Martin?
- A verdade é que não o li - respondeu Stephen. - Recebi um pacote do remoto lugar onde vive o pobrezinho justo antes de partir para Bury. Pela nota adjunta soube que seu estado era bom, que nenhum ponto havia se soltado e que a ferida havia fechado bem, assim que decidi lê-lo mais tarde. Imagino que é um ensaio sobre os autênticos gorgulhos que pensava escrever há tempos.
- Oh, não! o título é: Informe sobre certas práticas imorais que prevalecem na Armada Real e alguns comentários sobre os açoites e o recrutamento forçoso.
Stephen soltou o garfo e um pedaço de pão que tinha na mão.
- É muito duro? - perguntou.
- Tem escorpiões dentro. Exclue a fragata S…, governada pelo capitão A…, de honorável conduta, das embarcações em que se praticam a prostituição e a sodomia, aplicam-se castigos cruéis e se tiraniza aos homens, às quais ataca com a força de mil tijolos. Também ataca o sistema de recrutamento forçoso. Afortunadamente, ele pode permitir-se o luxo de fazê-lo, pois, conforme entendi, está casado e conta com recursos econômicos para viver no campo.
- Não conta com recursos econômicos para viver no campo e em nenhuma outra parte. Pensa seguir viajando com Aubrey e comigo como capelão.
- Lamento muito, porque é um excelente entomólogo e seu amigo, mas depois de ter feito este ataque, ainda que com razão e em defesa da moral, não voltará a encontrar um barco. Teria sido mais conveniente que falasse dos autênticos gorgulhos ou, melhor ainda, dos cicindélidos do Novo Mundo. Espero que sua esposa possa proporcionar-lhe uma moderada fortuna para que possa seguir dando-se o luxo de falar das faltas dos outros. Ah, os cicindélidos, esses bonitos insetos! Somente pude ordenar e classificar pouco mais da metade dos insetos que o senhor teve a amabilidade de trazer-me, apesar de que às vezes o faço até a uma da madrugada. Maturin, quero confessar-lhe algo com respeito a um exemplar muito raro, ainda que me dá muita vergonha: o duodecimpunctatus caiu no chão ao fazer um movimento desajeitado, e ao tratar de salvá-lo me movi ainda com mais torpeza e o pisei. Se por casualidade passar pela margem do Orinoco, eu lhe agradeceria…
Falaram dos insetos, da Associação de Entomólogos e da Royal Society até que chegou o queijo, e quando a senhora Barlow trouxe o café, disse:
- Sir Joseph, pus os ossos do cavalheiro debaixo de seu chapéu, que está na poltrona do saguão.
- Ah, sim! - exclamou Blaine. - Cuvier enviou por Banks um pacote de ossos para que entregasse ao senhor, e Banks me os deu porque sabia que o senhor viria hoje.
- Provavelmente serão os de um pássaro solitário - disse Stephen, apalpando o pacote quando se levantou para despedir-se. - Cuvier foi muito amável.
Foi rapidamente até Black's e subiu com pressa para seu quarto, onde estavam espalhadas todas suas posses a espera de que as metesse no baú. Imediatamente abriu o pacote e viu que não eram os ossos de um pássaro solitário nem muito menos os de um dodo, senão uma mistura de ossos de cegonhas e grous comuns e possivelmente de um pelicano pardo. Os ossos estavam envoltos em uma pele de alcatraz e haviam se conservado bastante bem, ainda que não perfeitamente. Podiam ser encontrados em qualquer das lojas naturalistas próximas ao Jardín des Plantes, mas Stephen achava improvável que alguém fizesse uma brincadeira de tão mau gosto como essa e examinou os ossos um a um. Não encontrou neles nada de particular, mas viu escrito uma mensagem na parte interior da pele. Parecia a nota de um taxidermista; dizia: "Si la personne qui s'intéresse au pavillon de partance voudrait bien donner rendez-vous en laissant un mot chez Jules, traiteur à Frith Street, elle en aurait des nouvelles".
- "Pavillon de partance" - murmurou Maturin, franzindo o cenho.
Fez muitas outras combinações, mas a única que tinha sentido era pavillon de partance, e quanto mais a repetia mais seguro ficava de que ouvira a frase, fazia muito tempo, na França.
desceu a escada, ainda murmurando, para ir à biblioteca, mas ao chegar embaixo se encontrou com o afável almirante Smyth.
- Boa noite, senhor - disse. - Ia consultar uma enciclopédia na biblioteca, mas acho que vou poupar-me a viagem. Por favor, o que significa pavillon de partance?
- Provavelmente o senhor a viu com freqüência, doutor - respondeu o almirante em tom amável. - É a bandeira azul com um quadrado branco no centro que içamos no tope do traquete para indicar que vamos zarpar imediatamente. Em geral é chamada de bandeira de saída.
- A bandeira de saída! Certamente! Obrigado, almirante, muito obrigado.
- De nada - replicou o almirante, rindo, e seguiu avançando pelo corredor.
Stephen subiu de novo a escada e regressou para seu quarto. Então jogou no chão as três camisas que estavam sobre a cadeira de braços e se sentou nela. Sentia em seu peito o tumulto de muitas emoções, e algumas lhe causavam uma dor aguda. A bandeira e a mensagem, que havia compreendido quando o almirante Smyth lhe deu aquela explicação, haviam feito com que recordasse com detalhes uma série de incidentes, e agora, olhando fixamente pela janela, reviveu a história relacionada com eles. A cor da bandeira era igual ao de um grande diamante em forma de coração que Diana possuía quando estava em Paris, no início da guerra, e era um objeto que lhe encantava e pelo qual sentia afeto. Diana podia viver então ali, já que antes de se casar com Stephen e se converter em uma súdita britânica era cidadã norte-americana, e ali se achava quando a corveta Ariel, ao comando de Jack Aubrey, naufragara diante da costa de Bretanha. As autoridades suspeitavam que Stephen era um espião e lhe levaram a Paris e lhe prenderam no Temple, uma prisão francesa, junto com Jack e Jagiello, um oficial do Exército sueco. Era provável que matassem Stephen, e Diana tentou salvar-lhe subornando a mulher de um ministro com o diamante, um ato que esteve a ponto de causar-lhe uma desgraça porque parecia demostrar que era um importante agente secreto. Os três foram deixados em liberdade, mas por uma causa muito diferente: um grupo de homens influentes em Paris, dirigidos por Talleyrand, estavam convencidos de que nesse momento poderiam depor Bonaparte e pôr fim à guerra se a Inglaterra quisesse negociar a paz, e necessitavam de um mensageiro que tivesse excepcionais dotes e bons contatos para que apresentasse suas propostas. O agente que lhes representava era Duhamel, um membro de um dos serviços secretos franceses de mais antiguidade, e disse para Stephen que ele era a pessoa apropiada. Stephen, depois de resistir durante um tempo, acedeu a colaborar com a condição de que deixassem em liberdade seus companheiros e Diana e devolvessem o diamante. Ainda que por razões políticas não lhes fosse possível devolvê-lo imediatamente, prometeram fazê-lo. Isso havia ocorrido há anos, e desde então ele não havia voltado a saber nada do diamante azul. Haviam passado tantas coisas desde então que apenas recordava o brilho da grande pedra preciosa.
"É uma proposta rara e não isenta de perigos -disse, olhando a pele de alcatraz. Durante um momento refletiu sobre seus possíveis riscos, como o sequestro, o assassinato e outras coisas, mas finalmente pensou -: Vale a pena tentar. Ainda que pegue a diligência lenta que sai ao meio-dia poderei chegar quando mude a maré, a sagrada maré que Jack não pode desperdiçar." Escreveu uma nota em que dizia que o doutor Maturin gostaria de se encontrar com o amável cavalheiro que lhe enviara os ossos, marcava um encontro para as oito e meia da manhã no pasto situado no final do caminho no parque Regent's, e lhe rogava que fosse sozinho e com um livro na mão. Deu a nota ao porteiro, pediu que mandasse imediatamente um garoto levá-la à rua Frith e depois seguiu fazendo sua bagagem. Arrumava lentamente e com torpeza, e ainda que no clube houvesse muitos serventes que podiam tê-la feito habilmente, estava tão acostumado a levar todos seus assuntos em segredo que já era algo quase instintivo, e não gostava que nenhum estranho visse sequer suas camisas desdobradas. Sobretudo lhe era difícil fazer o baú, que tinha duas gavetas e um pequeno cofre interno, pois algumas vezes, quando o enchia completamente e forçava a tampa para fechá-lo, percebia que uma dessas três coisas estava na cama ou atrás da porta. Por volta da meia-noite já tinha a bagagem arrumada e bem fechada, e então percebeu que as duas pistolas que pensava usar estavam no compartimento mais baixo do baú.
- A vida não vale a pena - disse e se deitou na cama com o informe de Martin.
Era um informe detalhado e bem fundamentado dos abusos que se cometiam na Armada, e até agora talvez o mais imprudente que havia escrito um pastor que exercia suas funções em um barco. Martin não tinha nenhum benefício eclesiástico nem possibilidades de tê-lo e sua esposa não lhe proporcionara uma fortuna, assim que havia posto todas suas esperanças na proteção de Jack Aubrey e em sua permanência na Armada.
Uma das razões pelas quais se faziam muitas viagens da França para Inglaterra era a presença do conde de Lille, o jure de Luis XVIII, em Hartwell, Buckinghamshire. Seus conselheiros tinham contatos freqüentes com os grupos realistas, especialmente os de Paris, e como alguns dos ministros de Bonaparte pensavam que era conveniente se proteger do acaso, não só consentiam que se fizessem senão que mandavam seus própios emissários com mensagens que geralmente não continham nada de concreto senão pouco mais que expressões respeitosas e de boa vontade. O número de mensageiros aumentava ou diminuía em função das vitórias de Bonaparte (ultimamente conseguira muito poucas) e permitia aos serviços secretos britânicos ter uma idéia bastante exata da opinião dos setores mais influentes de Paris.
"Provavelmente será um deles", pensou Stephen quando o coche lhe transportava com rapidez para o parque Regent's. Mas depois pensou que, desde o início, os serviços secretos franceses haviam infiltrado entre os mensageiros seus própios agentes e, em alguns casos, a tipos desagradáveis que eram espiões duplos ou triplos, pelo que era possível que quem lhe mandara os ossos fosse um deles. Obviamente, esse homem sabia que Stephen havia sido convidado para ir a Paris dar uma conferência sobre o pássaro solitário no Instituto da França, que pertencia à Royal Society e que Cuvier e Banks faziam intercâmbios, mas isso não permitia identificá-lo. Era possível que qualquer indesejável soubesse essas coisas. Então disse para si: "Alegro-me de ter pego as pistolas, mas não sei como vou enfrentar-me de novo a esse baú".
- Já chegamos, senhor - disse o cocheiro. - E fizemos uma viagem muito rápida.
- De fato.
Apesar da viagem ter sido rápida, Stephen não foi o primeiro a chegar ao encontro. Apoiou-se na cerca branca que ficava no final do caminho, olhou ao longe por cima do terreno coberto de grama que se estendia para o norte e viu uma figura solitária, movendo-se de um lado para o outro com um livro na mão.
Não havia sol, mas do alto e claro céu chegava uma tênue luz que permitiu a Stephen reconhecer ao homem quase imediatamente. Sorriu, passou por debaixo da cerca e avançou pelo pasto em direção à distante figura. A certa distância ao oeste viu um rebanho de ovelhas que pastava e que parecia uma mancha branca sobre o verde brilhante; passou tão perto de uma lebre que estava em sua toca com as orelhas baixas e que parecia convencida de que era invisível, que quase pôde tocá-la; e quando estava a pouca distância do homem tirou o chapéu e exclamou:
- Duhamel, quanto me alegro de ver-lhe outra vez!
Duhamel parecia muito mais velho, pálido e pior do que a última vez que se viram, mas lhe cumprimentou com a mesma alegria e disse que também ele se alegrava de ver-lhe e que esperava que estivesse bem.
- Sinto muito ter lhe trazido para este lugar afastado - disse Stephen -, mas como não sabia quem era o senhor, achei que era melhor para os dois ver-nos em um lugar discreto. Pelo visto, foi fácil encontrá-lo.
- Eu o conheço muito bem - disse Duhamel. - No ano passado estive caçando aqui com meu enlace na Inglaterra. Lamentavelmente, só tínhamos armas emprestadas e alguns cachorros muito maus, mas eu logrei caçar quatro lebres e ele duas e um faisão, ainda que vimos trinta ou quarenta. Refiro-me às lebres, não aos faisões.
- Gosta de caçar, Duhamel?
- Sim, mas prefiro pescar. Para mim a felicidade é ficar sentado na beira de um tranqüilo riacho observando a cortiça.
Fez uma pausa e pouco depois continuou:
- Peço desculpas por ter-me comunicado com o senhor de uma forma tão inapropiada, mas da última vez que estive em Londres vi que a hospedaria onde costumava hospedar-se estava destruída e não tinha nenhum outro endereço. Por outro lado, não queria levar isto ao Almirantado por medo de lhe comprometer.
Pegou do bolso uma pequena bolsa de algodão como as que os joalheiros costumam usar, abriu-a e, em meio da intensa luz, viu o resplandecente diamante, cujo brilho já não era uma recordação mas uma realidade. Teve a impressão de que aquele extraordinário objeto brilhava mais e era de um colorido azul mais forte que o da imagem que tinha em sua mente, e notou em sua mão sua frieza e seu peso.
- Obrigado - disse, jogando-o no bolso de seus calções depois de observá-lo silenciosamente por alguns momentos. - Eu lhe agradeço muito, Duhamel.
- Esse era o acordo - disse Duhamel. - A única pessoa que merece seu agradecimento, caso tivesse que dá-lo, é d'Anglars. Ainda que seja um pederasta, é o único homem de palavra entre todos esses políticos egoístas e corruptos. Ele insistiu em que lhe devolvesse.
- Espero poder demostrar-lhe meu agradecimento alguma vez, e estou seguro de que a dama dirá o mesmo. Gostaria de regressar andando para a cidade?
Havia notado a amargura de Duhamel, mas não percebeu de qual era sua magnitude até que percorreram um longo vão em silêncio, e disse:
- Em geral, em nossa profissão as conversações estão fora de lugar, mas queria saber se o senhor estaria seguro tomando uma xícara de café comigo. Em Marylebone há uma pastelaria francesa onde sabem fazer um bom café, algo raro nesta ilha.
- Estaria muito seguro, obrigado. Monsieur de Lille me há acreditado como representante seu e em Londres me conhecem só três homens, isto é, agora só dois. Mas tenho que recusar seu convite, pois do outro lado dessa fila de carros de construtores está me esperando um coche que me levará para Hartwell.
"Então terei tempo para encher de novo o baú e pegar a diligência lenta do meio-dia", pensou. Mas Duhamel, sem mudar o tom, prosseguiu:
- Nossa profissão… Maturin, não sei se o senhor também está cansado da duplicidade, das constantes mentiras e do ódio que temos não só por nossos inimigos senão também pelos membros de nosso grupo e de outras organizações.
Agora tinha a cara muito mais pálida e seu gesto transluzia sua emoção.
- A luta pelo poder e para ter vantagem na carreira política - acrescentou -, a falsidade e a traição a direita e a esquerda, a troca de aliados, a falta de fé e de lealdade… Sei que têm um plano para sacrificar-me. O meu enlace em Londres, o homem com quem estive caçando, foi sacrificado, ainda que tenha sido por dinheiro e em meu caso será para que meu chefe demostre sua lealdade ao imperador. Iam eliminar o senhor em Bretanha e eu não teria podido lhe salvar, porque foram os homens de Lucan que prepararam o caso de madame da Feuillade. Mas suponho que o senhor sabia de algo, já que não foi.
Como se tivessem se posto de acordo, ambos deram a volta e voltaram a percorrer o terreno coberto de grama.
- Estou farto de tudo - continuou Duhamel. - Essa é uma das razões pelas quais me alegro de ter terminado esta missão como devia. Por fim fiz algo limpo e digno! Escute-me bem, Maturin: quero abandonar tudo - acrescentou, estendendo os braços e fazendo uma careta de desgosto. - Quero ir para o Canadá, concretamente para Quebeque. Se o senhor pode me facilitar o meio de consegui-lo, darei em troca algo que vale dez vezes mais; sim, dez vezes mais. Sei de algumas coisas relacionadas com seus assuntos e lhe dou minha palavra de que o que vou lhe contar afeta muito à sua organização e ao capitão Aubrey.
Stephen fixou nele seus claros olhos e depois de olhar-lhe com atenção alguns momentos, disse:
- Farei um esforço para consegui-lo. Eu lhe darei a resposta amanhã. Onde podemos nos encontrar?
- Em qualquer parte. Como lhe disse, em Londres só dois homens me conhecem.
- Poderia vir ao clube Black's, na rua Saint James?
- Em frente ao Button's? - perguntou Duhamel em tom estranho e com um gesto de desconfiança que apenas durou um instante. - Sim, certamente. Acha bom às seis?
- Sim - respondeu Stephen. - Então, até amanhã às seis.
Eles se separaram ao chegar ao caminho e Duhamel seguiu andando em direção oeste para regressar ao coche e Stephen, em direção sul, olhando ao seu redor atentamente para ver se passava algum carro de aluguel. Por fim, em frente de um edifício em construção, achou um quase oculto pelas carroças com tijolos e o pó que formavam e foi nele até o hotel Durrant's.
Ao chegar ali perguntou pelo capitão Dundas e não se surpreendeu quando lhe disseram que havia saído.
- Eu o esperarei - disse.
Sentou-se pensando que talvez teria que esperar várias horas, pois às vezes não chegavam as notas ou as pessoas esqueciam as mensagens, e, ainda que não fosse assim, raras vezes quem as recebia percebia a urgência de quem as enviava. E de fato, teve que esperar várias horas, ainda que não as achou muito longas porque alguns dos numerosos oficiais da marinha que, como era habitual, hospedavam-se no hotel, haviam se sentado ao seu lado um tempo para mostrar sua simpatia por Jack Aubrey. O último deles, um capitão de navio gordo e com óculos que se chamava Hervey, contava que achava revoltante que houvessem privado a Armada de um marinheiro tão bom como ele justo quando as fragatas norte-americanas conseguiam tantas vitórias, e de repente parou e disse:
- Aí está o capitão Dundas, que está ainda mais indignado do que eu.
- Venham almoçar cordeiro comigo - convidou Dundas, aproximando-se deles.
- Lamento, mas não posso, tenho um compromisso - respondeu Hervey e olhou atentamente o relógio e se levantou de um salto dizendo -: Estou atrasado! Estou atrasado!
- Seria um prazer - afirmou Stephen, e dizia a verdade, pois simpatizava com Dundas, não pudera desjejuar por culpa do maldito baú e, apesar de estar ansioso, tinha muita fome.
- Vai zarpar logo rumo à base naval da América do Norte, né? - perguntou quando lhes trouxeram o bolo de maçã.
- Na segunda-feira, se o vento e o tempo permitirem - respondeu Dundas. - Amanhã vou me despedir de todos.
- O senhor se importaria que passássemos para a sala de fumar? - inquiriu Stephen.
Quando entraram nela Stephen percebeu que havia demasiada gente e disse:
- A verdade é que queria lhe falar em particular. Podemos ir subir?
Dundas o conduziu ao seu quarto, ofereceu-lhe uma cadeira e assegurou:
- Sabia que tinha algo acontecendo.
- Acho que podemos fazer um grande favor a Aubrey - disse Stephen. - Estive falando com um homem em quem tenho muita confiança que deseja ir para o Canadá. Em troca de que lhe levem ali, ele me dará certa informação que tem muito valor para Jack.
Em resposta à desconfiança que se refletia no rosto de Dundas, Stephen disse:
- Já sei que com tão simples palavras isto parece uma ingenuidade ou inclusive uma estupidez, mas não posso revelar coisas que são confidenciais; não posso dar detalhes que lhe convenceriam. Contudo, pelo menos posso mostrar-lhe isto.
Pegou o diamante azul do bolso, o desenbrulhou e lhe mostrou à luz do sol.
- Que gema! - exclamou Dundas. - É uma safira?
- É o diamante azul de Diana - respondeu Stephen. - Como recordará, ela estava em Paris quando Jack e eu fomos presos, e o fato de ter deixado para atrás o diamante tem muito a ver com nossa fuga. Mas haviam prometido devolvê-lo, e o homem de que lhe falo me entregou ele antes de ir para Hartwell. Eu lhe conto isto para que compreenda pelo menos uma das razões pelas quais confio em sua palavra e para que veja que levo a sério o que diz. Nada podia ter impedido que ficasse com a jóia, e, contudo, ele me a entregou sem pôr condições.
- É um diamante extraordinário - disse Dundas. - Acho que nunca vi nenhum melhor fora da Torre. Deve valer uma fortuna.
- Mas o mais assombroso é que um homem que tem a intenção de partir para o Novo Mundo para começar uma nova vida entregue a outro uma fortuna semelhante. Um homem assim não fala por falar.
- Sabe por que quer ir para o Canadá?
- Não pediria ao senhor que o levasse se fosse um fugitivo da justiça. O que lhe passa é que está farto da má fé de seus colegas, suas discórdias e sua hipocrisia, e deseja começar do zero.
- Como vai a Hartwell, suponho que é francês.
- Não estou certo. Talvez seja de algumas das províncias do vale do Reno. Mas lhe asseguro que não é partidário de Bonaparte.
- Acha que devemos lhe dizer que o levarei sob a condição de que a informação seja útil para Jack?
- Não.
- Imaginei. Mas faríamos papel de tontos se…
Dundas caminhou de um extremo a outro refletindo durante um tempo e por fim disse:
- Bem, acho que terei que levá-lo. Escreverei uma nota para Butcher para que o receba como a um convidado meu. Afortunadamente temos um lugar livre porque o oficial de derrota subirá a bordo quando chegarmos a Halifax. Ele fala inglês?
- Muito bem, quer dizer, com soltura. Aprendeu com sua babá, que era escocesa, e depois com um tutor escocês. Fala com o sotaque do norte do país, que não é desagradável nem incompreensível, e usa palavras arcaicas que dão certo encanto a suas frases. Só alguém com muito bom ouvido poderia dizer por seu sotaque que é estrangeiro. É tranqüilo e inofensivo e provavelmente passará toda a viagem em sua maca, porque não está acostumado a navegar.
- Tanto melhor, porque é contrário às normas levar estrangeiros a bordo.
- Também é contrário às normas levar mocinhas, tanto do país como estrangeiras, e acho que já vi a alguns fazê-lo.
- Bem, desçamos para buscar uma caneta e tinta - disse Dundas.
O doutor Maturin teve todo o dia seguinte para refletir sobre o que havia feito e o que estava fazendo. Ambas as coisas eram uma imprudência do ponto de vista profissional e também do pessoal, já que ia se comprometer e se expor a que lhe fizessem graves acusações. Seus atos poderiam ser considerados delitos, talvez delitos graves. Guiava-se por seu instinto, mas seu instinto não era infalível, pois algumas vezes havia falhado e outras estivera condicionado a seus desejos. Para se tranqüilizar olhava de vez em quando o esplêndido diamante que levava no bolso, como se fosse um talismã, e passou a tarde no mais quente dos banhos turcos de Covent Carden, com seu magro corpo suando tanto como era possível.
"Duhamel será pontual? Dará importância ao tempo?", Stephen se perguntou quando estava sentado no saguão do Black's, em um lugar de onde via a porta e a escrivaninha do porteiro. Não teve resposta até que o relógio terminou de dar as seis e Duhamel apareceu na escada com um pacote. Aproximou-se dele antes que pudesse perguntar por ele ao porteiro e o conduziu para a grande sala do piso superior que dava para a rua Saint James. Duhamel estava ainda mais pálido, mas tinha o rosto impassível, como sempre, e parecia tranqüilo.
- Consegui que a Eurydice lhe leve para Halifax - disse Stephen. - Terá que subir a bordo antes da segunda-feira e viajará como convidado do capitão. Hei dado a entender que o senhor estava ou está relacionado com Hartwell de alguma maneira, mas lhe rogo que fale pouco e que permaneça em sua cabine alegando que está enjoado. Aqui tem uma nota que lhe permitirá subir ao barco, e, como poderá ver, conservei o nome Duhamel.
- A verdade é que o prefiro, porque assim terei uma complicação a menos - confessou Duhamel e pegou a nota. - Eu lhe estou muito agradecido, Maturin. Acho que lamentará isto.
Olhou ao seu redor e viu em um canto um homem muito velho lendo os debates parlamentários com uma lupa.
- Pode falar abertamente - disse Stephen. - Esse cavalheiro é um bispo anglicano e, ademais, é surdo.
- Ah, um bispo anglicano! - exclamou Duhamel. - Muito bem. Me alegro de estar nesta sala - acrescentou, olhando para a rua pela janela, mas imediatamente voltou a atender a Stephen e perguntou -: Como poderia começar meu relato? Nomes…, nomes… Essa é uma das dificuldades: não estou certo de como se chamam os três homens dos quais quero lhe falar. Meu enlace em Londres usava o nome de Palmer, mas esse não era seu verdadeiro nome, e ainda que fosse um excelente agente por muitas razões, falhava nisso porque nem sempre respondia imediatamente nem com naturalidade quando lhe chamavam por seu nom de guerre. O nome do segundo homem lhe é familiar: Andrew Wray. Mas durante um período bastante longo se fez chamar senhor Grey. Não é um bom agente, e depois de um tempo começou a atraiçoar a si mesmo porque se embebedava. Não é um bom agente em absoluto e, sinceramente, Maturin, me admira que não o tenha descoberto em Malta.
Stephen baixou a cabeça quando a luz começou a entrar na sala e fez ressaltar sua humilhação.
- Nunca imaginei que pudesse contratar a um tipo tão presunçoso e tão pouco confiável - murmurou.
- Tem algumas boas qualidades - disse Duhamel -, mas é verdade que é emotivo e covarde. Não tem princípios, e não só falaria no primeiro interrogatório sério como poderia delatar a si mesmo em qualquer tipo de interrogatório. Não haveríamos trabalhado tanto tempo com ele se não houvesse sido por seu amigo, o terceiro homem, a quem conheço como o senhor Smith. É um homem que ocupa um posto muito alto, e na rua Villars lhe tinham quase devoção pelos informes que fazia.
- Tem um posto mais alto que Wray?
- Oh, sim! E é muito mais inteligente. Quando estão juntos parecem um mestre e seu aluno. Também é um homem duro. - Duhamel olhou seu relógio e continuou -: Tenho que ser breve. Apesar de Smith ser mais hábil que Wray e de Wray está bem respeitado, os dois são medíocres, gastadores e jogadores. Ambos são nominalmente agentes voluntários, mas sempre estão pedindo dinheiro. Depois da reorganização da rua Villars, diminuiram os fundos disponíveis, e eles mandaram uma depois de outra muitos pedidos de dinheiro, cada vez mais urgentes, mas lhes disseram que ultimamente haviam nos fornecido pouca informação e de escassa importância, o que é verdade. Responderam que dentro de algumas semanas lograriam desfazer-se de sir Joseph Blaine por fim e teriam acesso direto ao comitê, pelo que sua informação ia ser sumamente importante. - Duhamel voltou a olhar seu relógio e o aproximou do ouvido. - E enquanto esperavam maquinaram o caso das operações fraudulentas na bolsa.
Ainda que Stephen notava que Duhamel lhe estava escrutinando, não podia ocultar de todo sua emoção. O coração lhe pulsava tão forte que sentia as pulsadas na garganta, e uma vez mais se assombrou de sua própia estupidez. Agora tudo aquilo estava evidente.
- Parece que lhe preocupa o tempo - disse.
- Sim - afirmou Duhamel, aproximando a cadeira da janela. - Naturalmente, lamento muito que seu amigo tenha passado tão mal momento, mas à parte disso, qualquer um que analise o plano com objetividade tem que reconhecer que estava muito bem traçado. O senhor poderia dizer que, conhecendo todos os movimentos do capitão Aubrey e as conexões de seu pai e dispondo de um agente competente como Palmer, era fácil fazê-lo, mas essa seria uma análise simplista… Maturin, o senhor se incomodaria se me ausentasse por alguns minutos e regressasse mais tarde?
- Não, em absoluto - respondeu Stephen.
- Houve um momento em que achou que o plano era todo um êxito, e ainda que eles não podiam ganhar muito dinheiro sem atraiçoar a si mesmos, obtiveram o suficiente para saldar as dívidas mais importantes.
"Então foi quando Wray me pagou o que me devia", pensou Stephen, e voltou a sentir vergonha.
- Mas isso não lhes bastou e nos fizeram duas propostas - disse Duhamel. - A primeira era negociar umas letras de extraordinário valor nos mercados do norte da Europa; a segunda, que entregariam o senhor em Lorient. Com relação à proposta das letras, não estou seguro de se foi recusada ou retirada, e quanto ao senhor não lhe entregaram; assim que Lucan, que havia comparecido em Bretanha, ficou furioso e lhes tirou até a remuneração mensal. Agora os dois estão em más condições e prepararam um informe que asseguram que é de extraordinária importância.
Duhamel olhou seu relógio uma vez mais e continuou:
- Palmer me contou detalhadamente o caso da bolsa quando estávamos pescando em um riacho não longe de Hartwell. Estou seguro de que o senhor simpatizaria com ele. Podia conseguir que um martim pescador se pousasse em sua mão e tinha muitas boas qualidades. Essa foi a última vez que o vi. Quando ofereceram uma grande recompensa por sua captura, iniciou-se uma feroz perseguição, e o mataram para evitar que fosse descoberto e pudesse lhes delatar. Não o enviaram para o estrangeiro, mataram-no ou mandaram matá-lo. Não posso perdoar-lhes por terem cometido esse crime.
- Duhamel - disse Stephen, aproximando tanto sua cadeira que quase tocava o vidro da janela -, pode dar-me algo tangível, alguma prova concreta?
- Não - respondeu Duhamel -, agora não, mas espero poder dá-la dentro de cinco minutos.
Continuou falando de Palmer, um homem por quem era evidente que sentia afeto, mas de repente começou a dizer frases desconexas e pouco depois se interrompeu no meio da frase. Então pegou o pacote e depois de dizer "Me desculpe, Maturin. Olhe pela janela", saiu precipitadamente da sala.
Stephen o viu reaparecer na rua e caminhar com rapidez para a esquerda, em direção a Picadilly. Depois o viu atravessar perigosamente entre as carruagens, avançar em direção ao parque Saint James pelo outro lado da rua e deter-se quase em frente da janela atrás da qual ele estava, à altura do clube Button's. Duhamel voltou a olhar seu relógio, como se esperasse por alguém. Stephen olhou para o final da rua e, entre as pessoas que vinha do parque e de Whitehall, distinguiu a Wray e ao seu amigo Ledward, mais alto e mais velho que ele, que caminhavam de braços dados. Ambos se separaram para tirarem o chapéu e cumprimentar a Duhamel, que se aproximava deles. Os três falaram por alguns momentos; depois Ledward entregou um envelope a Duhamel em troca do pacote e se separaram. Duhamel, depois de lançar uma olhada para a janela atrás da qual Stephen estava, avançou de novo em direção a Picadilly.
Stephen desceu a escada correndo, pegou papel e caneta da escrivaninha do porteiro, escreveu apressadamente uma nota e disse:
- Charles, Charles, por favor, chame um mensageiro e diga-lhe que leve urgentemente esta nota para a casa de sir Joseph Blaine, no mercado Shepherd! Não há nem um momento a perder!
- Mas, senhor, não acho que seja necessário mandá-la urgentemente - disse Charles, sorrindo -, porque aí está sir Joseph, subindo a escada apoiado no braço do coronel Warren.
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{1} Paduasoy: Seda grossa que se usava para a roupa dos homens e das mulheres no século XVIII.
{2} Jardim: Nome que se dá à latrina nos barcos.
{3} Assim era chamado vulgarmente Birmingham. Outrora se citavam as moedas feitas nessa cidade como exemplos de moedas falsas, pois várias foram cunhadas ali no século xvii.
{4} Prancha: Prancha com travessões cravados em intervalos que se emprega como ponte provisória entre um barco e a margem, ou entre dois barcos.
{5} Jareta: Mar. Rede de cabos ou gradeado de madeira, que cobria horizontalmente o castelo de popa para deter os moitões e pedaços de cabo ou de madeira que pudessem desprender-se da mastreação durante uma batalha, ou se colocava verticalmente por cima das bordas, para dificultar a entrada dos inimigos nas abordagens; Cabo que se amarra e tesa de brandal a brandal de um lado a outro para segurá-los, e assegurar os paus quando os amantilhos se afrouxam em um temporal; Cabo que com outros iguais segura o pé das arraigadas e os amantilhos, indo de um lado a outro por baixo do cesto da gávea.
{6} Chasse-mareé: Barco francês de três paus empregado para a navegação costeira. No tempo de Napoleão era usado com a exárcia dos lugres para o contrabando e para fazer o corso.
{7} Cachorro manchado: Pudim de sebo com passas (manchas).
{8} Lagopo: Nome vulgar das aves do género Lagopus, que são aves galináceas com penas nas patas.
{9} Ushant: Nome que os britânicos davam à ilha d’Ouessant.
{10} Semáforo: Aparato instalado nas costas para se comunicar com os barcos por meio de sinais feitas com bandeiras, conforme um código internacional.
{11} Royal Society: Organização criada por Carlos II da Inglaterra em 1662 para fomentar o desenvolvimento das ciências naturais.
{12} Hotentote: Individuo de uma nação negra que habita perto do cabo de Boa Esperança.
{13} "Por que só tu és santo, só tu és o Senhor, só tu és o Altíssimo"
{14} lucus a non lucendo: Latim. Bosque por não reluzir
{15} Pompey: era como antiguamente os marinheiros chamavam Portsmouth.
{16} Hurling: jogo tradicional irlandês.

 

 

                                                                                                    Patrick O'brian

 

 

 

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