Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PACTO CASSANDRA / Robert Ludlum
O PACTO CASSANDRA / Robert Ludlum

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PACTO CASSANDRA

 

O zelador despertou quando ouviu os pneus esmagando o cascalho. Não havia quase mais nenhuma luz no céu, ele acabara de fazer café e o corpo relutava em se levantar. Mas sua curiosidade acabou por levar a melhor. Os visitantes de Alexandria raramente se aventura­vam a entrar no cemitério de Ivy Hill; a cidade histórica às margens do Potomac oferecia uma variedade de outras atrações e diversões mais pitorescas para os vivos. Quanto aos residentes na cidade, não eram muitos os que costumavam aparecer em dias de semana, e menos ainda num final de tarde em que as chuvas de abril açoitavam o céu.

Espiando pela janela da casa de guarda, o zelador viu um homem saltar de um carro tipo sedã de aspecto comum. Será do governo? Calculou que o visitante tivesse pouco mais de quarenta anos, era alto e ostentava boa forma física. Vestia-se adequadamen­te para o tempo, com uma jaqueta impermeável, calças escuras e botinas de sola de borracha.

O zelador observou a maneira como o homem se afastou do carro e olhou em volta, examinando tudo que o cercava. Não é do governo — é militar. Abriu a porta e saiu sob a marquise, observando como o visitante ficava parado ali, olhando fixamente pelos portões abertos do cemitério, sem dar nenhuma atenção à chuva que lhe ensopava os cabelos escuros.

Talvez esta seja a primeira vez que ele volta aqui, pensou o zelador. Todos ficavam hesitantes na primeira vez, detestando a idéia de entrar num lugar associado a dor, luto e perda. Olhou para a mão esquerda do homem e não viu aliança. Será viúvo? Tentou se lembrar se alguma mulher jovem fora enterrada recentemente.

Alô.

A voz surpreendeu o zelador. Era uma voz gentil, para um homem grande como aquele, e suave, como se fizesse o cumpri­mento como um ventríloquo.

Como vai? Se está querendo fazer uma visita, tenho um guarda-chuva que posso lhe emprestar.

Isso seria ótimo, obrigado — o homem respondeu, mas não se moveu.

O zelador estendeu o braço para trás, para um canto com uma bancada feita com uma velha lata de água. Agarrou o cabo de um guarda-chuva e deu um passo na direção do homem, observando o rosto de maçãs altas e surpreendentes olhos azul-marinho.

Meu nome é Barnes. Sou o zelador. Se me disser quem veio visitar, posso lhe economizar o tempo de andar por aí debaixo dessa chuva.

Sophia Russell.

Disse Russell? Não me é familiar. Deixe-me ver onde está. Só vai levar um minuto.

Não se incomode. Sei onde fica.

— Mesmo assim tenho de fazer você assinar o livro de visitantes.

O homem abriu o guarda-chuva.

Sou Jon Smith. Dr. Jon Smith. Sei onde encontrá-la. Obri­gado.

O zelador pensou ter detectado uma mudança de tom na voz do homem. Levantou o braço, pronto para chamá-lo, mas ele já se afastava, suas passadas largas e fluidas, como as de um soldado, até desaparecer entre as rajadas cinzentas de chuva.

O zelador ficou olhando para a direção por onde ele seguiu. Alguma coisa fria e afiada desceu dançando ao longo de sua espinha, fazendo-o estremecer. Tornando a entrar na guarita, fechou a porta e passou a tranca com firmeza.

Da escrivaninha, tirou o livro-registro de visitantes, abriu na data daquele dia e meticulosamente anotou o nome do homem e a hora em que chegara. Depois, num impulso, foi consultar a parte de trás do livro, onde os mortos enterrados ali estavam listados em ordem alfabética.

Russell... Sophia Russell. Aqui está ela: fila 17 lote 12. Enterrada... há exatamente um ano!

Entre os presentes ao enterro que haviam assinado o registro estava Jon Smith, médico.

Então por que não trouxe flores?

 

Smith era grato por chover, enquanto andava pelo caminho que serpenteava por Ivy Hill. Era como uma mortalha, estendida sobre as lembranças que ainda tinham o poder de cortar e queimar, lembranças que foram suas companheiras onipresentes ao longo do ano passado, sussurrando para ele durante a noite, zombando de suas lágrimas, obrigando-o a reviver aquele momento terrível uma vez após a outra.

Vê o quarto branco e frio no hospital do Instituto de Pesquisas Médicas de Doenças Infecciosas do Exército, em Frederick, Maryland. Está vendo Sophia, seu amor, futura esposa, se contorcendo sob a tenda de oxigênio, lutando para respirar. Ele se levanta, a apenas centímetros de distância e, no entanto, está impotente para ajudá-la. Os gritos dele para a equipe de médicos do hospital ecoam nas paredes e voltam para zombar dele. Não sabem o que há de errado com ela. Eles também estão impotentes.

De repente ela grita — um som que Smith ainda ouve em seus pesadelos e reza para nunca mais ouvir de novo. Sua coluna, dobrada como um arco, se eleva em um ângulo impossível; o suor jorra de Sophia como que para livrar o corpo da toxina. Seu rosto está afogueado por causa da febre. Por um instante fica imóvel naquela posição, então desaba. O sangue jorra de seu nariz e garganta. Lá de dentro, bem fundo, vem o estertor da morte, seguido por um leve suspiro, enquanto sua alma, finalmente livre, escapa de seu torturado invólucro corpóreo.

Smith estremeceu e olhou rapidamente ao redor. Não percebe­ra que parara de andar. A chuva continuava a tamborilar sobre o guarda-chuva, mas parecia cair em câmera lenta. Tinha a impressão de que podia ouvir cada gota quando se chocava contra o náilon.

Não tinha certeza de quanto tempo ficara parado ali, como uma estátua abandonada, esquecida; nem o que, finalmente, o fez dar um passo. Não sabia como viera parar no caminho que levava à sepultura nem como de repente se viu parado diante dela.

 

               "SOPHIA RUSSELL

               AGORA NO ABRIGO DO SENHOR"

 

Smith inclinou-se para a frente e passou os dedos de leve sobre a pedra lisa da lápide de granito rosa e branco.

Deveria ter vindo mais vezes, eu sei — sussurrou. — Mas não consegui encontrar forças para vir. Pensei que, se viesse aqui, teria de admitir que perdi você para sempre. Não consegui fazer isso... até agora. "O Projeto Hades." Era esse o nome que deram àquilo, Sophia, ao terror que tirou você de mim. Você nunca viu os rostos dos homens que estavam envolvidos; Deus lhe poupou isso. Mas quero que saiba que eles pagaram por seus crimes. Tive meu gostinho de vingança, minha querida, e acreditei que me traria paz. Mas não trouxe. Há meses venho perguntando a mim mesmo como poderia vir a merecer essa serenidade; no fim, a resposta foi a mesma.

Do bolso da jaqueta, Smith tirou uma pequena caixa de jóia. Abrindo a tampa, olhou para um diamante de seis quilates lapidado em marquesa comprado na Van Cleef & Arpel, em Londres. Era o anel de presente de casamento que tivera a intenção de pôr no dedo da mulher que seria sua esposa.

Smith se agachou e empurrou o anel para dentro da terra macia na base da lápide.

Amo você, Sophia. Sempre amarei você. Seu coração ainda é a luz de minha vida. Mas agora, para mim, está na hora de continuar, de seguir adiante. Não sei para onde ir, nem como chegarei lá. Mas preciso ir.

Smith roçou as pontas dos dedos nos lábios, depois tocou a lápide fria.

Deus a abençoe e a proteja sempre.

Pegou o guarda-chuva e deu um passo para trás, olhando fixamente para a lápide, como que para gravar para sempre sua imagem na mente. Então ouviu o som baixo de passadas às suas costas e virou-se rapidamente.

A mulher, segurando o guarda-chuva preto, tinha trinta e poucos anos, era alta, de cabelos vermelhos lustrosos puxados para trás e presos num rabo-de-cavalo. O nariz e as maçãs do rosto eram salpicados de sardas. Seus olhos, verdes como águas de recife, se arregalaram ao ver Smith.

Jon? Jon Smith?

Megan...?

Megan Olson aproximou-se rapidamente, segurou o braço de Smith e o apertou.

É você mesmo? Meu Deus, faz...

Muito tempo.

Megan olhou para além dele, para o túmulo de Sophia.

Sinto muitíssimo, Jon. Pensei que ninguém estaria aqui. Não tive a intenção de incomodar.

Não tem problema. Já fiz o que vim fazer.

Imagino que nós dois estejamos aqui pelo mesmo motivo — falou ela, baixinho.

Megan o puxou para o abrigo de um enorme carvalho e o exami­nou atentamente. As rugas e as marcas de expressão no rosto dele estavam mais fundas do que ela pudesse imaginar, e havia muitas novas. Podia imaginar o tipo de ano que Smith devia ter passado.

Lamento muito sua perda, Jon — disse. — Gostaria de ter podido dizer isso a você antes — hesitou. — Gostaria de ter estado aqui quando você precisava de alguém a seu lado.

Tentei ligar para você, mas estava fora — ele respondeu. — O trabalho...

Megan assentiu pesarosamente.

Eu estava fora — concordou vagamente.

Sophia Russell e Megan Olson tinham crescido juntas em Santa Barbara, estudado juntas lá, depois ido para a UCLA. Depois da universidade, seus caminhos se separaram. Sophia decidira fa­zer um doutorado em biologia celular e molecular e entrara para o USAMRIID — o Instituto de Pesquisas Médicas sobre Doenças Infecciosas do Exército dos Estados Unidos. Depois de completar seu mestrado em bioquímica, Megan aceitara uma nomeação para um posto nos Institutos Nacionais de Saúde. Mas depois de apenas três anos de trabalho se transferira para a divisão de pesquisa médica da Organização Mundial da Saúde. Sophia recebera cartões postais do mundo inteiro e os colara em um livro de recortes de modo a se manter a par dos movimentos da amiga que vivia viajando mundo afora. Agora, sem nenhum aviso, Megan estava de volta.

NASA — explicou Megan, respondendo à pergunta não formulada de Smith. — Cansei da vida de cigana, me inscrevi na escola de candidatos para missões de ônibus espacial e fui aceita. Agora sou a primeira substituta na próxima missão espacial.

Smith não conseguiu esconder seu espanto.

Sophia sempre disse que nunca sabia o que esperar de você. Meus parabéns.

Megan deu um sorriso esmaecido.

—Obrigada. Acho que nenhum de nós sabe o que esperar. Você ainda está no Exército, no USAMRIID?

Estou sem saber o que fazer — respondeu Smith. Não era toda a verdade, mas ficava bem perto. Mudou de assunto. — Você vai ficar em Washington por algum tempo? Talvez pudéssemos ter uma oportunidade de pôr a conversa em dia.

Megan sacudiu a cabeça.

Eu adoraria. Mas tenho de voltar para Houston esta noite. Mas não quero perder o contato com você, Jon. Ainda está morando em Thurmont?

Não. Vendi a casa. Havia lembranças demais.

No verso de um cartão de visitas, ele escreveu seu endereço em Bethesda junto com um número de telefone que de fato podia ser encontrado sob seu nome no catálogo.

Entregando o cartão, disse:

Não desapareça.

Não vou sumir — respondeu Megan. — Cuide-se, Jon.

Você também. Foi bom ver você, Megan. Boa sorte na missão.

Ela o observou sair do abrigo e desaparecer caminhando na chuva fina.

Estou sem saber o que fazer...

Megan nunca pensara em Smith como um homem sem objeti­vo nem direção. Ainda refletia sobre aquele comentário misterioso quando foi andando até o túmulo de Sophia, com a chuva tamborilando sobre o guarda-chuva.

 

 

O Pentágono emprega mais de 23 mil trabalhadores — militares e civis — abrigando-os em uma única estrutura que cobre quase 372 mil metros quadrados. Qualquer pessoa em busca de segurança, anonimidade e acesso tanto aos sistemas de comunicação mais sofisticados do mundo quanto aos centros de poder de Washington não poderia pedir um local mais perfeito.

A Divisão de Arrendamento de Oportunidades ocupa uma minúscula porção dos escritórios no bloco E do Pentágono. Como seu nome sugere, supervisiona a intermediação, a aquisição, a administração e a segurança de prédios e terrenos para as Forças Armadas, tudo, desde armazéns para estocar materiais em St. Louis a vastas extensões de terras no deserto de Nevada para servir de campo de provas para a Força Aérea. Dada a natureza decididamen­te nada glamurosa de seu trabalho, os homens e mulheres na di­visão são, por temperamento, mais civis que militares. Chegam aos escritórios às 9:00, cumprem zelosamente um dia de traba­lho, e saem às 17:00. Acontecimentos mundiais que poderiam manter seus colegas presos às suas mesas de trabalho ao longo de dias seguidos não têm impacto sobre eles. A maioria gosta que seja assim.

Nathaniel Frederick Klein também gostava — mas por moti­vos diferentes. O escritório de Klein ficava bem no final de um corredor, escondido entre portas que eram identificadas por placas com os dizeres: "CENTRAL ELÉTRICA" e "MANUTENÇÃO". Só que não existiam essas salas de serviços atrás dessas portas, e suas fechaduras não podiam ser abertas nem com o cartão magnético mais sofisticado. Aquele espaço fazia parte dos aposentos secretos de Klein.

Não havia placa com o nome de Klein na porta, só um indicativo interno do Pentágono: 2E377. Se lhes perguntassem, os poucos colegas de trabalho que de fato o viam o descreveriam como um homem de sessenta e poucos anos, de estatura mediana, não muito marcante exceto por seu nariz bastante longo e pelos óculos de armação de metal. Poderiam recordar-se de seus ternos conser­vadores e um tanto amarrotados, talvez a maneira como ele costu­mava sorrir rapidamente quando se cruzavam no corredor. Pode­riam ter ouvido falar que Klein, às vezes, era chamado para se apresentar aos chefes do Estado-Maior ou a comitês do Congresso. Mas isso estaria de acordo com sua antigüidade. Também poderiam saber que ele estava investido da responsabilidade de examinar as propriedades que o Pentágono arrendava ou que tinha algum interesse no mundo inteiro. Isso explicaria o fato de que raramente era visto seja lá por quem fosse. De fato, às vezes era difícil dizer quem ou o que Nathaniel Klein realmente era.

As 20:00, Klein ainda estava à sua escrivaninha no modesto escritório que era idêntico a todos os outros naquela ala. Acrescen­tara uns poucos toques pessoais: gravuras emolduradas mostrando o mundo como era imaginado por cartógrafos do século XVI; um globo terrestre antiquado montado sobre um pedestal; e uma grande fotografia da Terra, emoldurada, tirada durante uma missão espacial.

Embora poucas pessoas se dessem conta disso, a afinidade de Klein por coisas globais era um reflexo direto de seu verdadeiro mandato: servir de olhos e ouvidos do presidente. Daquele escritó­rio modesto, Klein controlava uma organização informal, um grupo conhecido pelo nome Covert-One. Concebido pelo presi­dente depois do horror que ficou conhecido pelo nome Projeto Hades, o Covert-One fora projetado para ser o sistema de alarme antecipado e de opção de resposta secreta.

Como o Covert-One trabalhava fora da burocracia habitual do serviço de informações militar e bem longe do escrutínio do Con­gresso, não tinha nenhuma organização hierárquica nem quartel-general formal. Em vez de agentes credenciados, Klein recrutava homens e mulheres a quem ele chamava de "chaves de código móveis" — indivíduos que eram especialistas reconhecidos em seus campos de trabalho, mas que, em virtude de circunstâncias ou por disposição, se encontravam fora das correntes dominantes de atividades da sociedade. A maioria deles — mas certamente não todos — tinham algum histórico de formação militar, tinham recebido várias menções honrosas e condecorações, mas haviam se irritado e se desgastado sob comando estruturado e, assim, escolhe­ram abandonar os respectivos serviços. Outros vinham do mundo civil: antigos investigadores — estaduais e federais; lingüistas fluentes em uma dúzia de línguas; médicos que tinham viajado pelo mundo e estavam acostumados com as mais duras condições. Os melhores, como o coronel Jon Smith, abarcavam os dois mundos.

Eles também possuíam um fator que desqualificava tantos que Klein considerava recrutar: eram estritamente donos de sua pró­pria vida. Tinham poucos laços familiares ou nenhum, poucas responsabilidades pessoais e uma reputação profissional que resis­tiria ao mais detalhado exame. Essas características eram de valor inestimável para um indivíduo enviado para situações perigosas a milhares de quilômetros de casa.

Klein fechou a pasta do relatório que estivera lendo, tirou os óculos e esfregou os olhos cansados. Estava louco para ir para casa, ser recebido com festa por seu cocker spaniel, Buck, e saborear um dedo de uísque escocês de malte de primeira, seguido pelo jantar que sua empregada tivesse deixado no forno. Estava pronto para se levantar quando a porta que ligava sua sala à sala vizinha se abriu.

Nathaniel?

Quem falava era uma mulher esguia alguns anos mais moça que Klein, com olhos azuis brilhantes e cabelos louros grisalhos, presos em um coque na nuca. Vestia um tailleur azul-marinho conserva­dor, realçado por um fio de pérolas e um bracelete de ouro filigranado.

Pensei que você tivesse ido para casa, Maggie.

Maggie Templeton, que fora assistente de Klein durante os dez anos em que ele trabalhara na Agência de Segurança Nacional (NSA), arqueou as sobrancelhas bem desenhadas.

Quando foi a última vez que saí antes de você? E é bom que não tenha ido. É melhor dar uma olhada nisso.

Klein seguiu Maggie até a sala ao lado, que na verdade era uma grande central de computadores. Três monitores estavam alinha­dos lado a lado, junto com uma variedade de terminais de rede e unidades de arquivamento, todos comandados pelo mais avançado software do governo. Klein ficou para trás e parou um instante para admirar a destreza e proficiência com que Maggie trabalhava no teclado. Era como assistir ao desempenho de virtuose de um pianista num concerto.

Além do presidente, Maggie Templeton era a única pessoa que conhecia toda a operação e funcionamento do Covert-One. Saben­do que precisaria de um braço direito talentoso e de confiança, Klein havia insistido em que Maggie participasse desde o primeiro momento. Além de ter trabalhado para ele na NSA, ela tinha mais de vinte anos de experiência como administradora sênior da CIA. Mas, mais importante para Klein, ela era de sua família. A irmã de Maggie, Judith, era esposa de Klein e morrera de câncer alguns anos antes. Maggie também vivera uma tragédia pessoal: seu marido, um agente secreto da CIA, jamais voltara de uma missão no exterior. O destino havia determinado que Maggie e Klein fossem a única família que ambos possuíam.

Tendo concluído a tarefa no teclado, Maggie bateu na tela com a unha bem-feita e bem pintada.

 

               VETOR SEIS

 

As duas palavras pulsavam no centro da tela, como uma luz de sinal piscando em um cruzamento vazio numa cidade do interior. Klein sentiu os pêlos dos braços ficarem em pé roçando nas mangas da camisa. Ele sabia exatamente quem era Vetor Seis; podia ver o rosto tão claramente como se o homem estivesse de pé a seu lado. Vetor Seis: o nome-código, se jamais aparecesse, deveria ser interpretado por Klein como um sinal de pânico.

Devo abrir a mensagem? — perguntou Maggie em voz baixa.

Por favor...

Ela digitou uma série de teclas e as letras, símbolos e números da mensagem em código apareceram na tela. Então repetiu o pro­cesso, com teclas diferentes, para ativar o programa de decodificação. Segundos depois, a mensagem apareceu em texto claro:

Diner — prix fixe — 8 euro

Spécialité: Fruits de mer

Spécialité du Bar: Bellini

Fermé entre 14 — 16 heures

 

Mesmo que uma terceira pessoa de alguma forma conseguisse decodificar a mensagem, aquele menu, de um restaurante francês não identificado, era ao mesmo tempo inócuo e enganador. Klein tinha combinado o código simples na última vez em que se encon­trara cara a cara com Vetor Seis.

Seu significado não tinha nada a ver com cozinha francesa. Era uma comunicação de último recurso, um apelo para retirada imediata.

Klein não hesitou.

— Por favor, responda da seguinte maneira: Reservations pour deux.

Os dedos de Maggie voaram sobre as teclas, digitando a respos­ta em código. A frase única foi retransmitida por dois satélites militares antes de ser mandada de volta para a Terra. Klein não sabia onde Vetor Seis estava naquele momento, mas desde que tivesse acesso ao laptop que Klein lhe dera, poderia baixar e decifrar a resposta.

Vamos! Fale comigo!

Klein verificou a hora marcada na mensagem: a mensagem fora recebida havia menos de dois minutos.

Uma resposta surgiu na tela: Reservations confirmées.

Klein deixou escapar um suspiro à medida que a tela escureceu e se apagou. Vetor Seis não ficaria conectado nem mais um segundo do que fosse absolutamente necessário. O contato fora feito, um itinerário proposto, aceito e confirmado. Vetor Seis não usaria aquele canal de comunicação novamente.

Enquanto Maggie desconectava a ligação via satélite, Klein sentou-se na outra cadeira na sala, perguntando-se que circunstân­cias extraordinárias teriam levado Vetor Seis a entrar em contato com ele.

Ao contrário da CIA e de outras agências de informações, a Covert-One não mantinha uma rede de agentes estrangeiros. Não obstante isso, Klein tinha um punhado de contatos no exterior. Alguns, cultivados durante seus tempos de NSA; outros, resultado de encontros casuais que haviam desabrochado e se tornado um relacionamento baseado tanto em confiança quanto em interesse próprio de ambos os lados.

Formavam um grupo diverso: um médico no Egito em cuja lista de pacientes incluía-se a maioria da elite governante do país; um empresário do ramo de computadores em Nova Déli, que ofere­cia seu talento e equipamentos ao governo de seu país; um banquei­ro na Malásia, hábil em transferir, esconder, ou retirar dinheiro de fundos de investimento em paraísos fiscais em qualquer lugar do mundo. Nenhuma dessas pessoas se conhecia. Não tinham nada em comum além da amizade com Klein e o computador notebook que ele dera a cada um deles. Aceitavam Klein como um burocrata de nível médio, mas sabiam que, secretamente, ele era muito mais que isso. E haviam concordado em ser seus olhos e ouvidos não só por amizade e crença no que Klein representava, mas porque confia­vam que os ajudaria se, por qualquer motivo, seus respectivos países natais, de repente, se tornassem um lugar perigoso para eles.

Vetor Seis era um desse punhado de homens.

Nate?

Klein levantou o olhar para Maggie.

Quem você vai chamar? — perguntou ela.

Boa pergunta...

Klein sempre usava sua identidade do Pentágono quando viajava ao exterior. Se fosse se encontrar com um contato, se assegurava de que fosse em um lugar público, num lugar seguro. Recepções formais na embaixada dos Estados Unidos eram a me­lhor escolha. Mas Vetor Seis não estava em lugar nenhum próximo a uma embaixada. Estava em fuga.

Smith — disse Klein finalmente. — Ponha-o na linha, por favor, Maggie.

 

Smith estava sonhando com Sophia quando a campainha insistente do telefone se intrometeu. Estava observando eles dois sentados à margem de um rio, nas sombras de imensas estruturas triangulares. Na distância, havia uma grande cidade. O ar estava quente, cheio da essência aromática de rosas e do perfume de Sophia. Cairo... Esta­vam nas pirâmides de Giza, nos arredores do Cairo.

A linha de telefone segura, especial...

Smith sentou-se depressa no sofá onde adormecera, ainda vestido, depois de voltar do cemitério. Do lado de fora das janelas, rajadas de chuva, o vento gemia enquanto arrastava nuvens carre­gadas pelos céus. Ex-especialista em medicina interna de combate e cirurgião de campo de batalha, Smith desenvolvera o dom de despertar totalmente alerta. Essa capacidade lhe fora muito útil durante o tempo em que trabalhara no USAMRIID, onde dormir só era possível em breves períodos entre longas e cansativas horas de trabalho. E foi-lhe útil naquele momento.

Smith verificou a hora no canto inferior direito do monitor: quase 9:00. Dormira durante duas horas. Emocionalmente exaus­to, com a cabeça ainda cheia de imagens de Sophia, dirigira de volta para casa, esquentara uma sopa, depois se deitara no sofá e pusera-se a ouvir a chuva lá fora. Não tivera intenção de adormecer, mas estava grato por isso ter acontecido. Só um homem poderia chamá-lo naquela linha específica. Qualquer mensagem com que ele pudesse marcar o princípio de um dia de infinitas horas.

Boa-noite, sr. Klein.

Boa-noite, para você também, Jon. Espero não estar inter­rompendo seu jantar.

Não, senhor. Comi mais cedo.

Nesse caso, daqui a quanto tempo pode estar na Base Aérea Andrews?

Smith respirou fundo. Klein geralmente tinha uma atitude cal­ma, prática, metódica. Smith raramente o achava rude ou apressado.

O que significa que há problemas — e as coisas estão andando muito depressa.

Cerca de 45 minutos, senhor.

Ótimo. E Jon? Faça a mala para alguns dias.

Smith ficou olhando para o telefone, já desligado do outro lado da linha, em sua mão.

Sim, senhor.

A rotina de Smith era tão arraigada que ele mal teve consciência de cumprir suas etapas. Três minutos para um banho de chuveiro e se barbear; dois minutos para se vestir; mais dois para checar e acrescentar mais algumas coisas à valise de mão, já pronta no armário embutido tipo closet. A caminho da porta, ligou o sistema de segurança da casa; depois, já com o sedã na entrada para carros, ativou o da garagem usando o controle remoto.

A chuva tornou mais longo do que de hábito o percurso até a Base Aérea Andrews. Smith evitou a entrada principal e virou no portão de entrega de suprimentos. Um guarda vestindo um poncho examinou seu cartão de identidade laminado, conferiu seu nome com os da lista de pessoal autorizado a entrar e fez sinal para que passasse.

Smith já embarcara em aviões na Base Andrews com freqüên­cia suficiente para conhecer o caminho. Não teve dificuldade para encontrar o hangar que abrigava a frota de jatos executivos que, na maioria das ocasiões, transportava os figurões de alta patente. Estacionou na área demarcada, bem afastada das pistas de taxiar dos aviões, agarrou a maleta no porta-malas e foi andando espirrando a água empoçada até o hangar.

Boa noite, Jon — cumprimentou Klein. — A noite está horrível. Provavelmente vai ficar pior.

Smith pôs a maleta no chão.

Sim, senhor. Mas só para a Marinha.

Dessa vez, a velhíssima piada não arrancou nem um sorriso de Klein.

Sinto muito ter obrigado você a sair numa noite como esta. Surgiu um problema. Venha andando comigo.

Smith olhou ao redor enquanto seguia Klein até a máquina de café. Havia quatro jatos Gulfstream no hangar, mas nenhum pesso­al de manutenção. Smith imaginava que Klein tivesse mandado que saíssem para garantir que a conversa fosse privada.

Estão abastecendo de combustível um avião com tanques para longas distâncias — disse Klein, consultando o relógio de pulso.

Ofereceu a Smith um copinho de isopor cheio de café preto fumegante, então o observou cuidadosamente.

— Jon, isso é uma operação de retirada urgente. Esse é o motivo de toda a pressa.

E da necessidade de uma chave de código móvel.

Dado seu passado de oficial do Exército, Smith conhecia os termos "retirada urgente", no sentido em que Klein o usara. Signi­ficava tirar alguém ou alguma coisa, de algum lugar ou situação, tão rápida e discretamente quanto fosse possível — geralmente com emprego de força e dispondo de muito pouco tempo.

Mas Smith também sabia que havia especialistas — militares e civis — que cuidavam desse tipo de trabalho.

Quando comentou isso, Klein respondeu:

Há certas considerações especiais neste caso. Não quero envolver nenhuma outra agência, pelo menos não por enquanto. Além disso, conheço este indivíduo, e você também.

Smith se sobressaltou.

Como disse, senhor?

O homem com quem você vai se encontrar e tirar de onde está é Yuri Danko.

Danko...

No olho de sua mente Smith viu um homem forte como um urso, alguns anos mais velho que ele, com um rosto de feições gentis, marcado pela acne desde a infância. Yuri Danko, filho de uma mineiro de carvão de Dovnets, que nascera com um defeito na perna, conseguira chegar ao posto de coronel da Divisão de Infor­mações Médicas do Exército russo.

Smith não conseguia afastar a surpresa que sentia. Sabia que, antes de assinar o acordo de preservação de sigilo que o tornara membro do Covert-One, Klein pusera sua vida inteira sob as lentes de um microscópio. Isso significava que Klein sabia que Smith conhecia Danko. Mas nunca, durante as instruções, Klein sequer insinuara que ele tinha um relacionamento com o russo.

Danko faz parte do...?

Covert-One? Não. E você não deve mencionar o fato de que você faz. No que diz respeito a Danko, estou enviando alguém que ele conhece, um rosto amigo, para ajudá-lo a sair. E é só isso.

Smith duvidava disso. Sempre havia mais nas coisas em que Klein estava envolvido do que se podia ver. Mas de uma coisa tinha certeza: Klein nunca poria um agente em perigo por não dizer a ele tudo que precisava saber.

Na última vez em que Danko e eu nos encontramos — Klein explicava —, combinamos um código simples que só deveria ser usado numa situação de emergência. O código era um menu. O preço — 8 euros — indica a data, 8 de abril, daqui a dois dias. Dia 1, se estivermos trabalhando em hora européia. A especialidade é frutos do mar, o que indica a maneira como Danko estará viajando: por mar. O Bellini é um coquetel que foi feito pela primeira vez no Harry's Bar, em Veneza. O horário em que o restaurante está fechado, entre 14:00 e 16:00, é o horário em que o contato deve ser feito no lugar de encontro — Klein fez uma pausa. — É um código simples, mas muito eficiente. Mesmo se o código fosse quebrado e a mensagem interceptada, seria impossível que o menu fizesse sentido.

Se Danko não deverá chegar antes de no mínimo 24 horas, por que acionar o botão de pânico?

Porque Danko o apertou primeiro — respondeu Klein, com evidente preocupação.—Ele poderia chegar a Veneza antes da hora combinada, ou poderia atrasar-se. Caso aconteça de ser a primeira alternativa, não quero que esteja sozinho entregue à própria sorte.

Smith assentiu enquanto bebericava o café.

Entendido. Agora, vamos à 'pergunta de US$ 64 milhões': o que pôs Danko para correr?

Só ele poderá nos dizer os motivos. E, creia-me, quero muito saber quais são. Danko está numa posição singular. Ele nunca a teria posto em risco...

Smith arqueou uma sobrancelha.

A menos que...

A menos que ele estivesse em via de ficar exposto a perigo — Klein deixou o café sobre o balcão. — Não posso dizer com certeza, Jon, mas acho que Danko está trazendo informações. Se este for o caso, isso significa que ele acredita que preciso ter essas informações.

Klein lançou um olhar por cima do ombro de Smith, para um sargento da Polícia da Aeronáutica que entrara no hangar.

O avião está pronto para decolar, senhor — anunciou o sargento rapidamente.

Klein pôs a mão no ombro de Smith e foram andando para a porta.

Vá para Veneza — disse baixinho. — Encontre Danko e descubra o que ele tem. Descubra depressa.

Pode deixar. Senhor, há uma coisa de que vou precisar em Veneza.

Smith não precisava ter baixado a voz enquanto saíam. O barulho da chuva forte apagou suas palavras. Só o balançar da cabeça de Klein assentindo indicava que Smith estivesse falando.

 

 

Na Europa católica, a semana de Páscoa é um período de pere­grinações e de reuniões. Comerciantes e escolas fecham as portas, trens e hotéis ficam superlotados e os habitantes das cidades his­tóricas do Velho Mundo se preparam para receber uma invasão de estrangeiros.

Na Itália, Veneza é um dos destinos mais populares para aque­les que buscam combinar o sagrado e o profano. A Sereníssima é uma rica tapeçaria de igrejas e catedrais, capaz de satisfazer as necessidades espirituais até do mais devoto dos peregrinos. Entre­tanto, é também uma área de recreação de três mil anos cujas ruas estreitas e ruelas pavimentadas de pedras abrigam empresas capa­zes de satisfazer todas as variedades de apetites humanos.

Precisamente às 13:45, exatamente como tinha feito nos dois dias anteriores, Smith foi andando entre as fileiras de mesas dispos­tas diante do Florian Café na piazza San Marco. Sempre escolhia a mesma mesa, próxima de uma pequena plataforma elevada, sobre a qual ficava um piano de cauda. O pianista chegaria dentro de alguns minutos e, pontualmente às 14:00, notas compostas por Mozart ou Bach dançariam acima do ruído das conversas e dos passos das centenas de turistas que enchiam a praça.

O garçom que servira Smith nos últimos dois dias aproximou-se rapidamente de seu cliente. O americano — só poderia ser americano, dado o sotaque com que falava italiano — era um bom cliente; isto é, um homem que não reconhecia um mau serviço e assim dava gorjetas generosas. A julgar pelo elegante terno cinza grafite e sapatos de acabamento feito à mão, o garçom acreditava que Smith fosse um próspero executivo da área de finanças que, concluídas suas transações, estivesse aproveitando alguns dias para passear à custa da empresa.

Smith sorriu para o garçom, pediu o caffe latte e o sanduíche de prosciutto affumiciatto habituais, e abriu a edição daquele dia do The International Herald Tribune no caderno de negócios.

Sua refeição ligeira chegou exatamente na hora em que o pianista tocou os primeiros acordes de uma variação de Bach. Smith pôs dois cubos de açúcar no café e se demorou mexendo. Enquanto abria o jornal, percorreu com os olhos a área aberta entre sua mesa e o Palazzo de Doge.

Quase a qualquer hora, a piazza de San Marco, com suas inevitáveis multidões, era o lugar perfeito para encontrar discreta­mente um homem em fuga. Mas o fugitivo estava um dia atrasado. Smith perguntou a si mesmo se Yuri Danko sequer conseguira sair da Rússia.

Smith trabalhava no USAMRIID quando encontrara Danko pela primeira vez, seu correspondente na Divisão de Serviços de Informações Médicas do Exército russo. O cenário do encontro fora o palaciano Victoria-Jungfrau Grand Hotel, nas vizinhanças de Berna. Ali, representantes dos dois países se reuniram em um ambiente informal para dar conhecimento uns aos outros dos progressos da paralisação gradual de seus respectivos programas de armas de guerra biológica. As reuniões foram um suplemento das inspeções formais feitas por inspetores internacionais.

Smith nunca se dedicara à atividade de recrutar agentes. Mas, como todos os outros membros da equipe dos Estados Unidos, fora exaustivamente informado por agentes de contra-espionagem da CIA sobre como o outro lado poderia fazer suas aproximações e propostas. Durante os primeiros dias da conferência, Smith se viu tendo Danko como parceiro. Sempre cuidadoso, apesar disso co­meçou a simpatizar com o russo alto e corpulento. Danko não escondeu o fato de que era um patriota. Mas, como disse a Smith, seu trabalho era importante para ele porque não queria que seus filhos vivessem com a possibilidade de algum maluco detonar uma arma de guerra biológica para fazer terrorismo ou por vingança.

Smith tinha mais que plena consciência de que uma situação desse tipo era não só possível, como uma grave probabilidade. A Rússia estava passando pela agonia da mudança, crise e incerteza. Enquanto isso, ainda tinha um enorme estoque de armas de guerra biológica armazenado em contêineres enferrujados, sob a supervi­são indiferente de pesquisadores, cientistas e guarnições militares que, na maioria das vezes, não ganhavam o bastante para dar de comer a suas famílias. Para esses homens, a tentação de vender uma coisinha por baixo do pano podia ser irresistível.

Smith e Danko começam a se encontrar fora dos horários regulares da conferência. Quando afinal os participantes estavam prontos para voltar a seus respectivos países, os dois homens haviam forjado uma amizade baseada em respeito e confiança mútuos.

Ao longo dos dois anos seguintes, eles se encontraram de novo — em São Petesburgo, Atlanta, Paris e Hong Kong — a cada vez sob os auspícios de uma conferência formal. Mas em cada ocasião Smith percebera que Danko estava cada vez mais angustiado. Embora evitasse o álcool, por vezes falava longamente sobre a duplicidade de seus chefes militares. A Rússia, insinuava, estava violando seus acordos com os Estados Unidos e com o mundo. Ao mesmo tempo que dava demonstrações convincentes de estar reduzindo seus programas de armas de guerra biológica, a pesquisa avançada na verdade fora acelerada. E o pior de tudo era que cientistas e técnicos russos estavam desaparecendo apenas para reaparecer na China, na índia e no Iraque, onde havia uma forte demanda e fundos ilimita­dos para seus talentos.

Smith era um estudioso perspicaz da natureza humana. Ao final de uma das confissões torturadas de Danko, dissera:

Trabalharei nisso com você, Yuri. Se é isso o que quer.

A reação de Danko fora semelhante à de um penitente que finalmente conseguiu ser libertado de seu fardo de pecado. Concor­dara em fornecer a Smith informações que acreditava que os Estados Unidos deviam ter. Havia apenas duas condições: ele só trataria com Smith, não com algum representante da comunidade de informações dos EUA; a segunda, queria a palavra de Smith de que este cuidaria de sua família se alguma coisa lhe acontecesse.

Nada vai acontecer com você, Yuri — garantira Smith na ocasião. — Você vai morrer em sua cama, cercado por seus netos.

Observando a multidão saindo do Palazzo del Doge, Smith refletiu sobre essas palavras. Na ocasião, fora sincero ao dizê-las. Mas agora, com Danko 24 horas atrasado, elas deixavam em sua boca um gosto de amargo.

Mas você nem uma única vez mencionou Klein, pensou Smith. Nem que já tinha um contato nos Estados Unidos. Por quê, Yuri? Será que Klein é seu trunfo de reserva?

Havia mais gente chegando de gôndola e na lancha que lançava amarras nos molhes diante dos leões da catedral de São Marco. Mais gente ainda saía da majestosa catedral, de olhos vidrados com a grandiosidade impressionante do monumento. Smith observava a todos — os jovens casais de mãos dadas, os pais e mães com seus filhos, os grupos de turistas reunidos em torno de guias que grita­vam para se fazer ouvir em meio à balbúrdia numa dúzia de línguas diferentes. Manteve o jornal erguido à altura dos olhos, mas seu olhar perambulava incessantemente acima da manchete, exami­nando rostos, tentando encontrar aquele especial.

Onde está você? O que você descobriu de tão terrível para ser obrigado a comprometer seus segredos e arriscar sua vida para vir revelar?

As perguntas consumiam Smith. Desde que Danko interrom­pera todos os contatos, não havia como encontrar respostas. De acordo com Klein, o russo viria através da Iugoslávia, marcada pela guerra, escondendo-se e avançando em meio ao caos e à miséria daquela região até alcançar a costa. Ali, encontraria um navio para fazer a travessia do Adriático até Veneza.

Apenas consiga chegar aqui e você estará em segurança.

O Gulfstream estava de prontidão no aeroporto Marco Polo, de Veneza; havia uma lancha veloz atracada na doca ao lado do Palazzo delle Prigioni, no rio di Palazzo. Smith podia pôr Danko no barco em três minutos depois que o avistasse. Estariam voando uma hora depois.

Onde está você?

Smith estava estendendo a mão para o café quando alguma coisa surgiu em sua visão periférica: um homem forte, corpulento, passando rente a um círculo formado por grupo de turistas. Talvez fizesse parte do grupo, talvez não. Vestia uma jaqueta de náilon impermeável e um boné de golfe; tinha uma barba farta e usava óculos escuros grandes de hastes largas que lhe escondiam o rosto. Mas havia alguma coisa nele.

Smith continuou a observá-lo, então viu — mancava ligeira­mente da perna esquerda. Yuri Danko nascera com a perna esquer­da dois centímetros e meio mais curta que a direita. Mesmo uma plataforma feita sob medida não conseguia esconder totalmente o manquejar.

Smith se mexeu na cadeira e ajustou o jornal de maneira a poder seguir os movimentos de Danko. O russo estava usando o grupo de maneira muito eficaz, movendo-se junto com o grupo, mantendo-se perto o suficiente para ser confundido com um participante, mas não perto demais para chamar a atenção do líder.

Lentamente, o grupo deu as costas para a basílica e seguiu na direção do Palazzo del Doge. Em menos de um minuto, estava em frente à fileira exterior de cadeiras do Florian Café. Alguns turistas se afastaram do grupo, seguindo para o pequeno bar ao lado do café vizinho. Smith não se moveu quando passaram por sua mesa, conversando uns com os outros. Só quando Danko ia passando ele levantou a cabeça.

Ninguém está usando esta cadeira.

Smith observou enquanto Danko se virava, claramente reco­nhecendo a voz de Smith.

— Jon?

Sou eu, Yuri. Vamos, sente-se.

O russo acomodou-se na cadeira, uma perplexidade visível marcando a expressão de seu rosto.

Mas o sr. Klein... Ele mandou você? Você trabalha...?

Aqui não, Yuri. E, sim, eu vim para levar você embora.

Sacudindo a cabeça, Danko fez sinal para um garçom que passava e pediu um café. Tirou um cigarro do maço e o acendeu. Smith reparou que nem a barba podia esconder como o rosto de Danko ficara abatido. Os dedos dele tremiam enquanto tentava acender o cigarro.

Ainda não consigo acreditar que seja você...

Yuri...

Está tudo bem, Jon. Não fui seguido. Estou limpo — Danko se recostou na cadeira e olhou para o pianista. — Maravilhoso, não é? Quero dizer, ouvir música.

Smith inclinou-se para ele.

Você está bem?

Danko balançou a cabeça.

Agora estou. Chegar aqui não foi fácil, mas...

Danko se calou quando o garçom veio trazendo o café.

Foi muito difícil na Iugoslávia. Os sérvios são um grupo paranóico. Estava com passaporte ucraniano, mas até isso foi exa­minado cuidadosamente.

Smith estava se esforçando para calar as centenas de perguntas que rodopiavam em sua mente, tentando se concentrar no que tinha de ser feito a seguir.

Há alguma coisa que queira me dizer ou me dar agora, imediatamente?

Danko pareceu não o ter ouvido. Sua atenção estava concentra­da num par de carabinieri — homens da polícia nacional italiana — que andavam lentamente entre os turistas, as submetralhadoras penduradas atravessadas no peito.

Muita polícia — murmurou.

— É por causa dos feriados—respondeu Smith.—Eles sempre põem umas patrulhas a mais. Yuri...

Tenho uma coisa para dizer ao sr. Klein, Jon — Danko inclinou-se sobre a mesa. — O que eles vão fazer... Eu nunca teria acreditado. E uma insanidade!

O que eles vão fazer? — perguntou Smilh, tentando contro­lar o tom. Quem são eles?

Danko olhou em volta com nervosismo.

Você já fez os preparativos? Pode me tirar daqui?

Podemos ir agora mesmo.

Enquanto enfiava a mão no bolso para pegar a carteira, Smith percebeu que os carabinieri estavam andando entre as mesas do café. Um deu uma gargalhada, como se o outro tivesse feito uma brinca­deira, então fez sinal na direção da lanchonete.

Smith contou algumas liras, pôs as notas debaixo de um prato e estava prestes a empurrar a cadeira para trás quando o universo explodiu.

— Jon!

O grito de Danko foi interrompido pelo som brutal de armas automáticas sendo disparadas à queima-roupa. Depois de passarem pela mesa, os dois carabinieri tinham girado, de armas em punho, disparando. Os dois canos cuspiam morte, crivando o corpo de Danko, a força das balas fazendo-o quicar contra o encosto da cadeira, depois derrubando-o.

Smith mal teve tempo para registrar a carnificina antes de se arremessar na direção da pequena plataforma. As balas costuraram pedras e madeira ao seu redor. O pianista cometeu o erro fatal de tentar se levantar; uma fuzilaria o cortou ao meio. Os segundos pareciam se passar como o gotejar de mel. Smith não conseguia acreditar que os assassinos estivessem se demorando tanto, trabalhando com impunidade mortal. O que sabia era que o piano de cauda, com sua estrutura preta reluzente e teclas brancas horrivel­mente destroçadas, estava salvando sua vida, absorvendo uma rajada após a outra de balas de calibre das Forças Armadas.

Os assassinos eram profissionais; tinham a exata noção do tempo de ação. Largando as armas, agacharam-se atrás de uma mesa virada e tiraram a jaqueta da farda. Por baixo, usavam casacos esportivos cinza e cáqui. Dos bolsos tiraram bonés de pescador. Usando o pânico dos espectadores como cobertura, saíram do esconderijo e correram na direção do Florian Café. Quando irromperam pelas portas da frente, um deles gritou:

Assassini! Eles estão matando todo mundo! Pelo amor de Deus, chamem a polizia!

Smith levantou a cabeça justo a tempo de ver os assassinos mergulharem na multidão de clientes do café que gritavam. Olhou de volta para Danko, caído de costas, o peito rasgado. Um rosnado baixo, animalesco, se avolumou na garganta de Smith, enquanto saltava da plataforma e entrava no café, abrindo caminho com os cotovelos. O movimento da massa de gente o empurrou para as portas de serviço e para a ruela que ficava nos fundos. Arquejando, Smith olhou freneticamente nas duas direções. A esquerda, avistou um vislumbre de casaco cinza desaparecendo na esquina.

Os assassinos conheciam muito bem a área. Enveredaram por duas ruelas cheias de curvas, depois chegaram a um canal estreito onde uma gôndola estava amarrada a um pilar do molhe. Um saltou dentro do barco e agarrou o remo, o outro soltou a amarra. Em segundos estavam descendo o canal.

O assassino que remava fez uma pausa para acender um cigarro.

Um dia de trabalho bastante fácil — comentou com o parceiro.

Por US$ 20 mil, foi quase fácil demais — respondeu o se­gundo. — Mas deveríamos ter matado o outro também. O gnomo suíço foi muito específico: o alvo e qualquer contato que estivesse com ele.

Basta! Cumprimos o contrato. Se o gnomo suíço quiser...

Mas suas palavras foram interrompidas pela exclamação do remador.

Falando do diabo, olhe quem está ali!

O segundo homem se virou para a direção que seu amigo apontava. Ficou boquiaberto ao ver o parceiro da vítima correndo pela calçada na margem do canal.

Mate este figlio di putana! — gritou.

O remador sacou uma pistola de alto calibre.

Com prazer.

Smith viu o braço do remador se levantar, viu a pistola balançar enquanto a gôndola jogava. Ele se deu conta da loucura do que fazia, dando perseguição a assassinos armados sem ter nem sequer uma faca para se proteger. Mas a imagem de Danko fez suas pernas continuarem a correr. Estava a menos de nove metros e se aproxi­mando, pois o remador não conseguia se firmar de modo a atirar.

Seis metros.

Tommaso...

O remador, Tommaso, desejou que o parceiro calasse a boca. Podia ver o demente se aproximando, mas que importância tinha? Evidentemente, não estava armado, caso contrário já a teria usado àquela altura.

Então viu outra coisa, parcialmente exposta sob as pranchas do piso da gôndola: uma pequenina bateria e fios multicoloridos... do tipo que ele próprio já usara tantas vezes.

O grito de Tommaso foi interrompido pela explosão e a bola de fogo consumiu a gôndola, levantando-a nove metros no ar. Por um instante, não houve nada além de fumaça preta, de cheiro acre. Arremessado contra a parede de tijolos de uma fábrica de vidro, Smith não viu nada depois do clarão da explosão, mas sentiu o cheiro de madeira queimando e de carne calcinada quando come­çaram a chover em pedaços vindos do céu.

 

Em meio ao terror e incerteza que dominou a praça, um homem, escondido atrás do pilar sustentando um dos leões de granito da piazza de San Marco, se manteve calmo. Ao primeiro olhar, parecia ter pouco mais de cinqüenta anos. Mas possivelmente o bigode e o cavanhaque o faziam parecer mais velho. Vestia um paletó esporte xadrez de corte francês, com uma roseta amarela na lapela. Um cachecol de tricô de lã fina de cores vivas envolvia sua garganta. Para o observador casual parecia ser um dândi, talvez um professor catedrático de universidade ou um aposentado distinto e elegante.

Só que ele se movia muito rapidamente. Quando os ecos dos disparos ainda ressoavam na praça, o homem já estava seguindo na direção dos atiradores em fuga. Havia uma escolha a fazer: segui-los e o americano que os perseguia ou cuidar do homem ferido. Ele não hesitou.

Dottore! Deixem-me passar! Eu sou médico!

Os turistas assustados obedeceram imediatamente a seu itali­ano impecável. Em segundos, estava ajoelhado ao lado do corpo crivado de balas de Yuri Danko. Um olhar disse-lhe que Danko estava além da ajuda de qualquer pessoa, exceto talvez Deus. Mesmo assim, pressionou dois dedos contra a garganta do homem como se procurasse sentir um pulso. E, ao mesmo tempo, sua outra mão estava ocupada dentro do paletó de Danko.

As pessoas estavam começando a se levantar, a olhar em volta. A olhar para ele. Algumas vindo em sua direção. Por mais chocadas que estivessem, ainda assim iriam fazer perguntas que preferiria evitar.

Você aí! — disse o médico asperamente, dirigindo-se a um rapaz que parecia um estudante universitário. — Venha até aqui e me ajude — agarrou o estudante e o obrigou a segurar a mão de Danko — Agora aperte... eu disse, aperte!

Mas ele está morto! — protestou o estudante.

Idiota! — retrucou o médico. — Ele ainda está vivo. Mas vai morrer se não sentir nenhum contato humano!

Mas você...

Eu preciso ir buscar ajuda. Você fica aqui!

O médico abriu caminho em meio à multidão que se aglome­rava ao redor do homem morto. Não estava preocupado com os olhos que se viraram para encarar os seus. A maioria das testemu­nhas era notoriamente indigna de confiança na melhor das circuns­tâncias. Naquelas condições, nem uma única pessoa seria capaz de descrevê-lo acuradamente.

O primeiro gemido das sirenes de polícia chegaram a seus ouvidos. Dentro de minutos a praça inteira seria ocupada por carabinieri e cercada com cordões de isolamento. As testemunhas em potencial seriam reunidas; os interrogatórios durariam dias. O médico não podia se dar ao luxo de ser apanhado naquela rede.

Sem parecer fazê-lo, seguiu rapidamente para a Ponte dos Suspiros, atravessou a ponte, passou pelas bancadas onde camelôs vendiam souvenires e camisetas, e entrou discretamente no vestí- bulo do hotel Danieli.

Boa tarde, Herr Doktor Humboldt — disse o porteiro.

Bom dia — respondeu o homem que não era médico nem se chamava Humboldt. Para os poucos que precisavam saber, seu nome era Peter Howell.

Howell não ficou surpreendido ao saber que a notícia do massacre ainda não chegara ao augusto oásis do Danieli. Permitia-se que muito pouco do que acontecia no mundo exterior penetrasse naquele palácio do século XIV construído pelo Doge Dandolo.

Howell virou à esquerda, entrando no magnífico salão de visitas e seguiu para o pequeno bar que ficava no canto. Pediu um conhaque e, quando o bartender se virou de costas para ele, fechou os olhos por um instante. Howell já vira muitos homens mortos, já fora tanto o desencadeador quanto a vítima de extrema violência. Mas mesmo assim o assassinato frio, brutal, na piazza San Marco conseguira abalá-lo.

Bebeu metade do conhaque de um só gole. Quando o álcool chegou à corrente sangüínea e sentiu-se relaxar, enfiou a mão no bolso do paletó.

Haviam se passado décadas desde que Howell aprendera a arte de bater carteiras. Sentindo a folha de papel de anotações de Danko entre os dedos, ficou feliz ao ver que não perdera o talento.

Leu a frase uma vez, depois uma segunda vez. A despeito de saber muito bem que seria pouquíssimo provável, tivera esperanças de que alguma coisa na página lhe desse alguma pista de por que Danko fora massacrado. E quem poderia ser responsável. Mas nenhuma das palavras fazia nenhum sentido exceto uma: Bioaparat.

Howell tornou a dobrar a folha de papel e a enfiou no bolso. Acabou com o que restava do conhaque e fez sinal para o bartender para servir-lhe mais uma dose.

Está tudo bem, signore? — perguntou o bartender solicita­mente, enquanto servia o drinque.

Está, obrigado.

Se houver alguma coisa de que precise, por favor não hesite em pedir.

O bartender recuou diante do olhar gelado de Howell.

Não há nada em que possa me ajudar, meu velho. Você não é a pessoa de quem preciso.

Quando Smith abriu os olhos, ficou surpreendido ao ver faces grotescas acima, olhando para ele. A medida que recuperou total­mente os sentidos, descobriu que estava caído no vão da porta de entrada de uma loja de máscaras e fantasias. Lentamente, se levan­tou cambaleando, instintivamente verificando se tinha ferimentos. Não havia nada quebrado, mas sentia dores penetrantes no rosto. Passou a mão na face e os dedos saíram sujos de sangue.

Pelo menos estou vivo.

Não podia dizer o mesmo com relação aos assassinos que tentaram fugir na gôndola. A explosão que fizera a embarcação se desintegrar também levara a identidade de seus ocupantes para a eternidade. Mesmo que a polícia cercasse e capturasse testemu­nhas, elas seriam inúteis: assassinos profissionais com freqüência eram mestres em disfarce.

Foi o fato de pensar na polícia que fez Smith se pôr em movimento. Por causa do feriado, todas as lojas ao longo do canal estavam fechadas. Não havia ninguém por ali. Mas o som conhecido da sirene da lancha de polícia estava ficando mais alto. As autorida­des não poderiam deixar de relacionar o massacre na piazza San Marco com a explosão no canal. Testemunhas lhes diriam que os assassinos tinham corrido naquela direção.

Onde eles me encontrarão... As mesmas testemunhas irão me ligar a Dajiko.

A polícia iria querer saber sobre o relacionamento entre Smith e o homem morto, por que haviam se encontrado, e a respeito de que haviam conversado. Eles se concentrariam no fato de Smith ser membro das Forças Armadas americanas e o interrogatório se tornaria ainda mais duro. Contudo, no final, Smith não poderia lhes dizer nada que fosse capaz de explicar o massacre.

Smith se acalmou, enxugou o rosto o melhor que pôde e limpou o terno. Deu alguns passos hesitantes, então começou a andar o mais depressa que podia até o final da calçada. Ali, atravessou uma ponte e se esgueirou para as sombras de um sequero, um pátio de construção de gôndolas, fechado com tábuas. Meio quarteirão acima, entrou numa igrejinha, vagou em meio às sombras e emergiu através de um outro par de portas. Vários minutos depois, estava no passeio que acompanhava a margem do Grand Canal, perdido em meio ao aglomerado de gente que se movia incessantemente no calçadão de frente para água.

A piazza San Marco estava cercada por cordões de isolamento quando Smith finalmente chegou lá. Carabinieri de expressões carrancudas, com submetralhadoras em punho apontadas para cima na diagonal diante do corpo, criavam uma barreira humana entre os leões de granito. Os europeus, especialmente os italianos, eram bem versados sobre o que fazer depois do que fora, claramente, um ataque terrorista: olhavam reto para a frente e seguiam adiante, an­dando sem parar depois de passar pelo local. Smith fez a mesma coisa.

Atravessou a Ponte dos Suspiros, passou pelas portas giratórias do hotel Danieli e seguiu direto para o lavatório masculino. Lavou o rosto com água fria, depois, pouco a pouco, começou a respirar mais lentamente. Olhou no espelho acima das pias, mas viu apenas o corpo de Danko, sendo sacudido à medida que as balas o acerta­vam. Ouviu os gritos dos transeuntes, os gritos dos assassinos quando o avistaram correndo na direção deles. Então a terrível explosão que os vaporizara...

Tudo isso numa cidade que era uma das mais seguras da Europa. O que, em nome de Deus, Danko trouxera consigo que merecesse tamanha destruição?

Smith se permitiu mais alguns momentos, depois saiu do lavatório. O salão estava vazio exceto por Peter Howell, escondido numa mesa atrás de um pilar alto de mármore. Sem dar uma palavra, Smith pegou a taça de conhaque e a esvaziou completamente. Howell pareceu compreender.

Estava começando a me perguntar o que havia acontecido com você. Foi atrás daqueles canalhas, não foi?

Os assassinos tinham uma gôndola esperando — respondeu Smith. — Acho que o plano deles era passarem despercebidos na paisagem. Ninguém olha duas vezes para uma gôndola.

Exceto que...

Exceto que quem quer que os tenha contratado para matar Danko não acreditava que fossem manter a boca fechada. A gôn­dola estava equipada com C-12 ligado a um cronômetro e a um detonador.

Fez um barulho e tanto. Pude ouvir mesmo lá da praça.

Smith se inclinou para a frente.

E Danko?

—Com ele não cometeram nenhum erro—respondeu Howell.

Sinto muito, Jon. Cheguei lá o mais depressa que pude, mas...

Você fez o que eu trouxe você aqui para fazer — me dar cobertura enquanto eu ajudava Danko a sumir de vista. Não havia mais nada que pudesse ter feito. Danko me disse que estava limpo, que ninguém o seguira e eu acreditei. Estava nervoso, mas não porque acreditasse que fosse seguido. Era por algum outro motivo. Descobriu alguma coisa?

Howell entregou a folha única de papel que parecia ter sido arrancada de um caderno de anotações barato. Olhou com firmeza para Smith.

Que foi? — perguntou Smith.

Não tive a intenção de xeretar — disse Howell. — E meu russo está um pouco enferrujado. Apesar disso, uma palavra me saltou aos olhos — fez uma pausa. — Você não tinha nenhuma idéia do que Danko pudesse estar trazendo como informação?

Smith passou os olhos no texto escrito à mão. Reparou naquela mesma palavra que saltara aos olhos de Peter Howell, tão rapida­mente quanto este: Bioaparat. O centro de pesquisas, projeto e fabricação de armas de guerra biológica da Rússia. Danko falara freqüentemente a respeito dele, mas, até onde Smith sabia, seu trabalho nunca o levara lá. Ou será que levara? Teria ele sido transferido para um período de serviço no Bioaparat? Será que descobrira alguma coisa tão terrível que a única maneira de tirá-la de lá era trazê-la pessoalmente?

Howell observava a reação de Smith.

Também me deixa assustado como o diabo. Alguma coisa que queira comentar comigo, Jon?

Smith olhou do papel para o inglês taciturno. Peter Howell passara a vida inteira a serviço ativo para os mundos das Forças Armadas e do Serviço de Informações britânicos, primeiro na unidade de comandos, o Serviço Aéreo Especial — SAS — depois no MI6. Camaleão letal cujas proezas sempre foram mantidas em segredo, passara para a 'reserva' de sua profissão, mas nunca a deixara totalmente. A necessidade de homens com a experiência e os talentos de Howell sempre existia, e aqueles que precisavam dela - governos ou indivíduos — sabiam como encontrá-lo. Howell podia se dar ao luxo de escolher a dedo suas missões, mas tinha uma regra básica rígida: as necessidades de seus amigos vinham antes de tudo. Sua colaboração fora fundamental para ajudar Smith a perse­guir e apanhar os instigadores do Projeto Hades. Não hesitara em deixar seu retiro nas montanhas da Sierra, na Califórnia, quando Smith pedira para lhe dar cobertura em Veneza.

As vezes Smith se via constrangido pelas limitações que Klein lhe impusera na qualidade de chave de código móvel. Por exemplo, não podia contar nada a Howell sobre o Covert-One — nem que existia, nem que ele fazia parte dele. Não duvidava de que Peter tivesse suas desconfianças. Mas, sendo o profissional que era, mantinha-se em silêncio a respeito delas.

Isso poderia ser coisa séria e muito grande, Peter — comen­tou Smith, em voz baixa. — Tenho de voltar aos Estados Unidos, mas também preciso saber mais sobre aqueles assassinos, quem eles eram e, igualmente importante, para quem estavam trabalhando.

Howell olhou para Smith pensativamente.

—Exatamente como eu disse. Mesmo a mais remota referência ao Bioaparat é o bastante para me deixar noites sem dormir. Tenho alguns amigos em Veneza. Deixe-me ver o que consigo descobrir — hesitou. — Seu amigo, Danko, tinha família?

Smith lembrou-se da fotografia de uma mulher atraente, de cabelos escuros, e de uma criança que Danko certa vez lhe mostrara.

Sim, tinha sim.

Então vá cuidar do que precisa fazer. Sei como entrar em contato com você se for necessário. E, só como precaução, tome aqui o endereço nos arredores de Washington que uso de vez em quando. Tem todos os alarmes e sistemas de segurança. Nunca se sabe quando você pode vir a precisar desse tipo de privacidade.

 

 

As novas instalações de treinamento da NASA nos arredores de Houston consistiam basicamente em quatro hangares gigantes, cada um do tamanho de um campo de futebol. A polícia da Aero­náutica patrulhava o perímetro externo; dentro da cerca de malha de elos de metal, sensores de movimento e câmeras ampliavam a vigilância.

O prédio conhecido como G-3 abrigava um protótipo comple­to, em tamanho natural, da última geração de ônibus espacial. Construído de acordo com os modelos de simuladores de vôo co­merciais usados para treinar pilotos, oferecia à tripulação do ônibus espacial a experiência prática e manual que levariam para o espaço.

Megan Olson estava no longo túnel que levava do compartimento central para o compartimento de cargas especiais para o vôo. Vestindo calças largas azuis e uma camisa folgada de algodão, ela flutuou no ambiente dotado de gravidade parcial tão suavemente como uma pena que cai.

Uma voz crepitou em seu fone de ouvido.

— Você parece estar se divertindo demais aí dentro.

Megan agarrou uma das maçanetas de madeira embutidas na parede do túnel e virou-se para ficar de frente para a câmera que acompanhava seu treinamento. Os cabelos ruivos, presos num rabo-de-cavalo, flutuaram à sua frente e ela os afastou.

— Esta é minha parte favorita da experiência inteira — respon­deu com uma risada. — E como mergulho submarino, sem os peixes.

Megan flutuou até um monitor onde viu o rosto do dr. Dylan Reed, chefe do programa de pesquisa biomédica da NASA.

— As portas do laboratório vão se abrir dentro de dez segundos — advertiu Reed.

Estou a caminho.

Megan fez o percurso descendo num ângulo de 45 graus até a pequena porta circular. No instante em que tocou na maçaneta, ouviu o sibilar de ar comprimido libertando os cilindros dos ferrolhos. Empurrou a porta e esta se abriu suavemente.

Vou entrar.

Acomodou-se no piso de revestimento especial e sentiu as solas de suas botas se prenderem ao material tipo Velcro. Agora estava estável. Fechou a porta, depois digitou um código no pequeno teclado alfanumérico. Os ferrolhos da porta se fecharam.

Megan virou-se e ficou de frente para a área de trabalho do laboratório espacial, dividida em 12 módulos. Cada um era do tamanho de um armário de vassouras; cada um era projetado para uma função ou experiência diferente. Cuidadosamente, Megan foi andando pelo corredor central, que mal tinha largura suficiente para acomodar seus ombros, passando pelo módulo Facilidade de Ponto Crítico e pela EFE (Experiência de Fisiologia Espacial), até chegar a seu posto de trabalho, o Biorack.

Como todos os outros módulos, o Biorack era embutido numa estrutura revestida de titânio que se assemelhava a um grande duto de ar refrigerado, com 1,20 metro de largura, 2,10 metros de altura, com os sessenta centímetros superiores inclinados na direção do usuário num ângulo de trinta graus. Essas características eram necessárias porque o laboratório inteiro ficava dentro de um grande cilindro.

Hoje temos um menu chinês — disse Reed alegremente. — Escolha um item da coluna A e um da coluna B.

Megan se posicionou diante do Biorack e virou o interruptor de eletricidade. O módulo superior, o congelador, foi o primeiro a começar a zumbir. Então, um após o outro, o refrigerador, a incubadora A, a caixa de luvas e a incubadora B, todos entraram em funcionamento. Checou o painel de acesso e controle, depois, finalmente, na altura do joelho, o gerador. O Biorack, ou Bernie, como a unidade fora apelidada, estava funcionando de maneira impecável.

Megan checou a tela de cristal líquido com a lista das experiên­cias a serem realizadas. Como Reed dissera, fazendo piada, o menu de opções era chinês.

Creio que vou pegar a gripe, então acrescentar um pouco de tempero... a 'doença dos legionários'.

Reed deu uma risadinha.

Parece bom. Vou acionar o cronômetro assim que você estiver com a caixa de luvas.

A caixa de luvas era um equipamento do tamanho de uma caixa de sapato que se projetava 25 centímetros para fora do Biorack. Feita nos moldes dos equipamentos de biocontenção encontrados na maioria dos laboratórios, garantia absoluta segurança. Mas, ao contrário de seus primos terrestres, esta caixa fora projetada para ser operada em estado de microgravidade. Isso permitia que Megan e seus companheiros cientistas estudassem organismos de uma maneira que não era possível em nenhum outro ambiente.

Ela enfiou as mãos nas grossas luvas de borracha que se esten­diam dentro da caixa. Os lacres de vedação entre as luvas e a caixa tinham cinco centímetros de espessura e eram feitos de borracha compacta, metal e Keflex — um vidro grosso, virtualmente inquebrável. Mesmo que houvesse um derramamento, poderia ser isolado dentro da própria caixa.

E é ótimo que seja assim, pensou, por estar manuseando a 'doença dos legionários'.

Embora as luvas perecessem grossas e desajeitadas, na verdade eram bastante sensíveis. Megan tocou na tela de controle situada dentro da caixa e delicadamente digitou a combinação de três números. Quase que imediatamente, um dos cinqüenta painéis — não maiores que compartimentos para disquetes laser — deslizou para fora. Em vez de um CD, aninhada na pequena gaveta, havia uma bandeja circular de vidro, com 7,60 centímetros de diâmetro e seis milímetros de profundidade. Mesmo sem o microscópio, Megan viu o líquido cinza ali dentro: a 'doença dos legionários'.

Tanto sua formação científica quanto seu trabalho especializa­do em bioquímica haviam lhe instilado um profundo respeito pelas culturas com que trabalhava. Mesmo nas condições mais seguras, nunca se esquecia do que estava manuseando. Muito cuidadosa­mente, colocou a bandeja de vidro sobre a almofada. Então retirou a tampa expondo as bactérias.

A voz de Reed soou em seu fone de ouvido:

O cronômetro foi acionado. Lembre-se, em gravidade par­cial você só tem trinta minutos para cada uma das experiências. No ônibus espacial, você poderá dispor do tempo que quiser.

Megan sentiu-se grata pelo profissionalismo dele. Reed nunca distraía seus cientistas ao falar com eles durante urna experiência. Depois de abrir a amostra, teria de agir por conta própria.

Megan trouxe mais para a frente o microscópio fixo no tampo da caixa de sapato e respirou fundo. Olhou fixamente para o espécime. Já havia trabalhado com a 'doença dos legionários' antes; era como olhar para um velho amigo.

— OK, meu chapa — falou em voz alta. — Vamos ver se você e eu conseguimos alguma coisa agora que você não pesa tanto.

Apertou o botão que ativava o gravador de vídeo e começou a trabalhar.

Duas horas depois, Megan Olson saiu flutuando do laboratório espacial de volta para o compartimento central, que abrigava os módulos para descanso, os armários de comida, lavatórios e armá­rios para armazenar estoque. Dali, subiu a escada para a cabine de pilotagem, agora deserta, e dali manobrou para encaminhar-se para o aparelho de intercomunicação.

OK, rapazes. Deixem-me sair.

Firmou-se à medida que a pressão do ar dentro do simulador era equalizada. Depois de meio dia de ausência de gravidade parcial, seu corpo parecia-lhe extremamente pesado. Era uma sensação com que nunca conseguira se habituar totalmente. Tinha de repetir para si mesma que pesava exatamente 53,57kg, a maior parte de musculatura muito bem trabalhada.

Quando a pressão estava correta, a escotilha girou nos gonzos e se abriu. A brisa do ar-condicionado que a envolveu, quando passou pela porta, fez suas roupas colarem na pele. Seu primeiro pensamento depois de uma sessão de treinamento era sempre o mesmo: Graças a Deus que posso tomar um banho de chuveiro de verdade. A bordo da imitação de ônibus espacial, praticara tomar banhos com toalha úmida.

Você vai se conformar com banhos de toalha se finalmente acabar conseguindo ir, recordou para si mesma.

Você foi muito bem no laboratório.

Dylan Reed, um homem alto, de aparência distinta, quase cinqüentão, parabenizou Megan quando ela saiu.

Já temos os resultados impressos do computador? — per­guntou ela.

Os computadores estão mandando bala nesse instante.

Este é o terceiro teste que fazemos com as legionelas. Aposto com você um jantar no Sherlock's que estes resultados serão iguais aos outros dois: os bacilos das legionelas se multiplicam feroz­mente, mesmo no pequeno ajuste de gravidade que pudemos fazer. Imagine quando pudermos fazer as experiências em estado de microgravidade.

Realmente acha que eu apostaria contra você? — Reed deu uma gargalhada.

Megan o seguiu pela plataforma até o elevador que os levou ao andar térreo. Quando saltou, parou e olhou de volta por um instante para o protótipo de ônibus espacial, majestoso sob a luz intensa de mil lâmpadas.

Aposto que a nave tem exatamente esta aparência no espaço — comentou baixinho.

Um dia, você vai fazer uma caminhada no espaço e verá pessoalmente — garantiu-lhe Reed.

A voz dela ficou desanimada.

Um dia...

Como uma das tripulantes substitutas, Megan sabia que a possibilidade de participar na próxima missão, programada para partir dentro de sete dias, era remota ou nenhuma. O grupo de cientistas de Reed estava em excelente forma física. Um deles teria que literalmente quebrar uma perna para que ela ocupasse sua vaga.

A caminhada no espaço pode esperar — respondeu Megan enquanto seguiam em direção aos alojamentos dos participantes do programa. — O que preciso agora, neste instante, é de um banho de chuveiro quente.

Quase esqueci — comentou Reed. — Tem uma pessoa aqui que acho que você conhece.

Ela franziu a testa.

Eu não estava esperando ninguém.

É Jon Smith. Ele chegou faz pouco tempo.

Duas horas depois do Gulfstream ter decolado do Aeroporto Marco Polo, de Veneza, o piloto entrou na cabine trazendo uma mensagem para Smith.

Alguma resposta, senhor? — perguntou a seu passageiro.

Smith sacudiu a cabeça.

Não.

A mudança de rota de Andrews para Houston nos dará mais duas horas de tempo de vôo. Pode dormir um pouco se quiser.

Smith agradeceu ao piloto, então se obrigou a comer algumas fatias de frios e frutas oferecidas no compartimento da copa. A mensagem de Klein fora sucinta. Tendo em vista os acontecimen­tos sangrentos em Veneza e a natureza do material que Danko trouxera consigo, Klein queria um encontro cara a cara para discu­tir as informações. Também queria estar perto do presidente, que visitava Houston como demonstração de apoio ao programa espa­cial, caso as informações de Smith tivessem de ser levadas imedia­tamente ao conhecimento do presidente dos Estados Unidos.

Depois de acabar a refeição ligeira, Smith preparou o plano para sua reunião com Klein. Também elaborou uma lista e uma estratégia para as tarefas que acreditava deveriam ser executadas a seguir e trabalhou bem seus argumentos. Antes de se dar conta, o jato estava sobrevoando o Golfo do México em sua aproximação final da pista de pouso da NASA.

Quando viu as vastas instalações surgirem à vista, Smith de repente se lembrou de Megan Olson. Pensar nela trouxe um sorriso de satisfação a seus lábios.

O piloto taxiou a aeronave até a área de segurança onde o Air Force One estava estacionado. Smith desceu as escadas e foi rece­bido por um sargento da Polícia da Aeronáutica que o levou de carro até o centro de visitantes. A distância, Smith viu as arquibancadas, repletas de funcionários da NASA ouvindo o discurso do presidente. Duvidava muito de que Klein estivesse em qualquer lugar próximo do centro das atenções.

O sargento o conduziu até um pequeno escritório bem afastado das atrações principais. O lugar estava vazio exceto por uma escri­vaninha típica de repartições públicas e várias cadeiras. Klein fechou o laptop de última geração em que estivera trabalhando e se aproximou de Smith.

Graças a Deus que você está vivo, Jon.

Obrigado, senhor. Creia-me, compartilho seu sentimento.

Klein nunca deixava de surpreendê-lo. Toda vez que Smith chegava à conclusão de que o chefe do Covert-One tinha água gelada nas veias, Klein demonstrava preocupação sincera com a chave de código móvel que havia despachado para o perigo.

— O presidente estará de partida dentro de menos de uma hora, Jon — informou-lhe Klein. — Conte-me o que aconteceu para eu poder decidir se devo ou não informá-lo.

Ao reparar que Smith examinava o aposento, acrescentou:

O Serviço Secreto fez uma varredura em busca de aparelhos de escuta nesta sala. Pode falar livremente.

Smith relatou, minuto por minuto, o que acontecera, desde o momento em que avistara Danko na Praça São Marcos. Percebeu como Klein contraiu o rosto quando descreveu o tiroteio. Quando mencionou a palavra Bioaparat, Klein ficou visivelmente chocado.

Danko lhe disse alguma coisa antes de morrer? — pergun­tou Klein.

Ele não teve oportunidade. Mas estava trazendo isto. — Smith entregou a página escrita com a letra de Danko.

 

O Bioaparat não pode passar do Estágio Um para o Estágio Dois. Não é uma questão de dinheiro, mas de instalações inadequadas. Contudo, persistem os rumores de que o Estágio Dois será concluído, mas não aqui. Está prevista a partida de um mensageiro do Bioaparat, no máximo até 914 com o carregamento.

 

Klein olhou rapidamente para Smith.

Quem é o mensageiro? É um homem ou uma mulher? Para quem trabalha? Isto é inconclusivo a ponto de enlouquecer! E o que são os Estágios Um e Dois?

Eles geralmente se referem a vírus, senhor — respondeu Smith; acrescentou então:

—Também gostaria de saber o que o mensageiro estará tirando de lá. E para onde ele vai.

Klein foi até a janela, que tinha uma excelente vista de um depósito de combustíveis.

Não faz nenhum sentido. Por que Danko teria fugido se isso era tudo o que ele sabia?

Exatamente a pergunta que venho fazendo a mim mesmo, senhor. Considere a seguinte possibilidade: Danko por acaso des­cobre informações sobre o mensageiro quando está de serviço no Bioaparat. Começa a investigar, e acaba penetrando mais fundo do que deveria. Faz com que alguém comece a desconfiar dele e tem de fugir. Mas não tem oportunidade — ou não ousa — escrever mais nada sobre o que pode ter descoberto. Se Danko chegou a descobrir a identidade do mensageiro, a natureza da carga ou a destinação, essa informação morreu com ele.

Não posso acreditar que ele tenha morrido inutilmente — disse Klein baixinho.

Eu me recuso a acreditar nisso — declarou Smith com veemência. — Creio que Danko estava ansioso para nos avisar porque seja lá o que for que vai sair da Rússia, está destinado a ser usado contra nós.

Você está dizendo que alguém está trazendo uma arma de guerra biológica russa para este país? — perguntou Klein.

Dadas as circunstâncias, diria que há uma forte possibilida­de disso acontecer. O que mais poderia ter assustado Danko tão seriamente?

Klein beliscou o nariz.

Se esse é o caso — ou até mesmo a suspeita — tenho de alertar opresidente. E preciso que providências sejam tomadas. — Fez uma pausa. — O problema é como vamos nos proteger se não sabemos o que devemos procurar? Danko não nos deixou nenhuma pista.

Alguma coisa nas palavras de Klein estimulou a memória de Smith.

Isso poderia não ser verdade, senhor. O senhor me dá licen­ça? — fez um gesto para o computador Dell sobre a escrivaninha.

Smith acessou o USAMRIID e foi passando pelos numerosos pontos de controle de segurança até chegar à biblioteca, o maior e mais abrangente compêndio do mundo sobre armas de guerra biológica. Digitou as palavras "Estágio Um" e "Estágio Dois" e pediu ao computador que listasse os nomes de todos os vírus que tinham dois níveis distintos de desenvolvimento.

A máquina lhe ofereceu treze escolhas. Smith então instruiu o computador a verificar os treze, comparando-os com os vírus que se sabia terem sido desenvolvidos, manufaturados e estocados no Bioaparat.

Poderia ser Marburg ou Ebola — falou Klein, olhando por sobre o ombro de Smith. — Alguns dos vírus mais letais do mundo.

"Estágio Dois" significa implicitamente que houve reconfiguração, recombinação de genes ou alguma outra forma de altera­ção — explicou Smith. — Marburg, Ebola e outros não podem ser 'desenvolvidos' por si mesmos. Eles existem na natureza — e, é claro, nos laboratórios de armas de guerra biológica. Com eles, é mais uma questão de projetar sistemas eficazes para liberá-los em campos de batalha.

De repente, Smith arquejou.

— Mas isto... isto pode ter sido manipulado e alterado. Sabe­mos que os russos estiveram brincando com isso durante anos, tentando alterar o material para produzir uma cepa mais virulenta. Eles supostamente deveriam ter fechado esses laboratórios, mas...

Klein estava ouvindo, mas seus olhos estavam cravados na tela onde letras negras piscavam como caveiras sobre um fundo branco: VARÍOLA.

 

O termo virus é derivado da palavra latina para veneno. Os vírus são tão minúsculos que sua existência era desconhecida até o final do século XIX, quando Dmitri Ivanovsky, um microbiologista russo, os descobriu por acaso enquanto investigava um surto de doença em plantas de tabaco.

A varíola pertence à família dos poxvírus. Seu primeiro regis­tro na história foi feito na China e data de 1.122 a.C. Desde então, ela mudou o curso da história humana, dizimando as populações da Europa do século XVIII e os povos nativos das Américas.

A Variola major ataca o sistema respiratório. Depois de um período de incubação de cinco a dez dias, a doença provoca febre alta, vômitos, dores de cabeça e enrijecimento das articulações. Depois de uma semana, aparece erupção de pele, inicialmente localizada, depois espalhando-se por todo o corpo e formando pústulas supurativas. Estas formam crostas que caem e deixam cicatrizes que servem de incubadoras para um novo ataque da doença. A morte pode sobrevir em duas ou três semanas ou, nos casos da varíola púrpura ou da varíola negra, numa questão de dias.

Foi somente em 1796 que um ataque médico ao vírus passou a ser articulado. Um médico inglês, Edward Jenner, descobriu que ordenhadoras que contraíam uma forma branda do poxvírus de vacas pareciam imunes à varíola. Tirando amostras das lesões das ordenhadoras, Jenner inoculou um garoto que subseqüente­mente sobreviveu à epidemia, jenner batizou sua descoberta de vaccinia — vacina.

O último caso conhecido da doença foi registrado na Somália, em 1977. Em maio de 1980, a Organização Mundial de Saúde declarou a varíola erradicada. A organização também ordenou o fim de programas de imunização, por não haver necessidade tangí­vel de submeter as pessoas nem mesmo ao pequeno risco associado à vacinação.

No final da década de 1980, restavam somente dois estoques de Variola major na terra: nos Centros de Controle de Doenças, em Atlanta, e no Instituto Ivanovsky de Virologia, em Moscou. No caso deste, o vírus subseqüentemente foi transferido para o Bioaparat, situado perto da cidade de Vladimir, 350 quilômetros a sudoeste de Moscou.

De acordo com um tratado assinado tanto pelos Estados Uni­dos quanto pela Rússia, as amostras deveriam ser preservadas em laboratórios de altíssima segurança submetidos a inspeção interna­cional. Nenhuma das amostras poderia ser usada para qualquer tipo de experiência sem que os monitores da Organização Mundial de Saúde estivessem presentes.

Assim, pelo menos, na teoria.

 

— Em teoria, monitores deveriam estar presentes — disse Smith. Lançou um olhar para Klein. — Você e eu sabemos que não foi bem assim.

Klein fungou.

— Os russos apresentaram aos burocratas da OMS um belo discurso sobre instalações mais modernas em Vladimir e os idiotas deixaram que os russos transferissem a varíola. O de que nunca se deram conta foi que os russos lhes mostraram apenas as partes do Bioaparat que queriam que eles vissem.

Isso era verdade. Por meio de desertores e de fontes infiltradas no local, os Estados Unidos conseguiram, ao longo dos anos, compor aos poucos uma sólida imagem do que realmente acontecia no complexo do Bioaparat. Os inspetores internacionais só tinham visto a ponta do iceberg — as instalações para estocagem de varíola, que subseqüentemente foram aprovadas. Mas havia outros prédios, disfarçados de laboratórios de pesquisa de grãos e de fertilizantes, que permaneceram escondidos do mundo. Klein tinha provas suficientes para apresentar à OMS e exigir que o Bioaparat fosse completamente aberto à inspeção. Mas a política era o mais impor­tante. A atual administração americana não queria antagonizar a Rússia, que ameaçava retornar ao governo comunista. Além disso, um bom número de inspetores da OMS não estava inclinado a aceitar, como sendo verdadeiras, provas apresentadas pelos ameri­canos. Tampouco se podia contar com a discrição deles. As agências de informações americanas temiam pela vida daqueles que lhes haviam fornecido as informações, acreditando que, se os russos soubessem quais as informações de que o Ocidente dispunha, poderiam cruzar os fatos e descobrir quem as passara adiante.

Não tenho escolha — comentou Klein, lacônico. — Tenho de contar ao presidente.

O que poderia tornar isso um problema de governo para governo — sublinhou. — Então a questão se tornaria: será que confiamos nos russos o suficiente para acreditar que eles vão caçar quem está passando o material e o mensageiro? Não sabemos com quem estamos lidando no Bioaparat, que nível hierárquico ele tem, nem quem lhe deu as ordens de combate. E possível que não seja algum cientista renegado ou um pesquisador querendo ganhar uma grana rápida entregando uma encomenda à cidade de Nova York. Isto poderia ir até os escalões mais altos do Kremlin.

—Você está dizendo que se o presidente falasse com o chanceler russo nós poderíamos estar mostrando nossas cartas... para as pessoas erradas. Concordo, mas me dê uma alternativa.

Smith levou três minutos para apresentar o plano de contingên­cia que elaborara durante o vôo. Reparou na expressão de ceticismo de Kleine estavapronto para argumentar, mas Klein o surpreendeu.

Concordo. E a única linha de ação que podemos seguir imediatamente — e que tem alguma possibilidade de sucesso. Mas vou lhe dizer uma coisa: o presidente não nos dará muito tempo. Se você não obtiver resultados depressa, ele não vai ter escolha, exceto pegar pesado com os russos.

Smith respirou fundo.

Dê-me dois dias. Entrarei em contato de 12 em 12 horas. Se eu atrasar em fazer meu contato por mais de 12 horas, presuma que provavelmente não vou mais aparecer.

Klein sacudiu a cabeça.

Isso é um risco tremendo, Jon. Não gosto de enviar homens para missões assim, sem apoio e apenas com uma pequena chance de sucesso.

Uma pequena chance é tudo o que temos agora, senhor — retrucou Smith, lacônico. — Há uma outra coisa que pode ser que o senhor queira contar ao presidente. Paramos de produzir vacinas contra a varíola há anos. Agora, neste momento, tudo o que temos são cem mil doses para inoculação — no USAMRIID, estritamente para uso das Forças Armadas. Não poderíamos vacinar nem uma pequena parcela da população — fez uma pausa. — E há uma possibilidade ainda pior: se há gente que está roubando varíola porque eles não podem fazer desenvolvimento de Estágio Dois na Rússia, e estão trazendo para cá, porque aqui podem — alguma coisa já está pronta, esperando pelo mensageiro do lado de cá. Se esse for o caso, e o objetivo não for apenas criar uma cepa mutante, mas também dispersá-la aqui neste país, então estamos indefesos. Pode­ríamos fabricar todas as vacinas do mundo, mas nenhuma seria eficaz contra uma nova cepa de varíola.

Os olhos de Klein se cravaram em Smith. Sua voz soou baixa e áspera.

Vá e descubra que tipo de pesadelo infernal os russos estão deixando escapar. Descubra rápido!

 

 

Os saltos de Megan ecoavam elegantemente no assoalho de concre­to encerado enquanto ia caminhando pelo hangar gigante e saía para a luz do dia. Embora estivesse em Houston havia quase dois meses, ainda não se habituara com o clima da cidade. Ainda era abril, mas o ar já estava úmido. Mas era grata pelo fato de que seu treinamento não se estendesse até o verão.

O novo centro de visitantes ficava espremido entre os prédios G-3 e G-4. Megan passou pela pequena frota de ônibus da NASA, que transportavam convidados dos portões principais para a área cercada e entrou no vestíbulo estilo átrio. Suspenso nas vigas mestras acima havia uma imitação com metade do tamanho verda­deiro do ônibus espacial. Esgueirando-se entre os grupos de crian­ças de escolas em visita, que admiravam com os olhos arregalados o protótipo da nave, ela se dirigiu para o balcão da segurança. Visitantes nas instalações da NASA, bem como sua movimentação nos interiores, eram registrados num computador. Megan se per­guntava onde encontraria Jon Smith quando o viu de relance caminhando sob o protótipo do ônibus espacial.

Jon!

Smith ficou surpreso ao ouvir seu nome, mas o cenho franzido se transformou em sorriso quando viu Megan.

Megan... Que maravilha ver você de novo.

Megan se aproximou dele e tomou-lhe o braço.

Você parece um homem com uma missão... tão sério e compenetrado. Não me diga que não ia nem me procurar.

Smith hesitou. Seus pensamentos tinham se voltado para Megan Olson, mas nada o havia preparado para de fato se encontrar com ela.

Eu não saberia onde começar a procurar por você—respon­deu com sinceridade.

Logo você, que é um homem tão desembaraçado — comen­tou Megan em tom brincalhão. — O que você está fazendo por aqui? Veio com a comitiva do presidente?

Que nada. Tinha uma reunião, foi um compromisso de última hora.

Ah-há. E agora está indo embora às carreiras. Pelo menos tem tempo para tomar um drinque ou um café?

Embora estivesse ansioso para voltar para Washington, Smith decidiu que preferia não despertar suspeitas, especialmente porque Megan parecia ter aceitado a vaga explicação para sua presença na NASA.

Adoraria um drinque — respondeu; depois acrescentou:

Você parecia estar procurando por mim... ou será que estou imaginando coisas?

Estava — respondeu Megan, seguindo na direção dos eleva­dores. — Na verdade, um amigo seu, Dylan Reed, me disse que soubera que você estava por aqui.

Dylan... compreendo.

De onde você o conhece?

—Dylan e eu trabalhamos juntos quando a NASA e o USAMRIID estavam reequipando e reorganizando o programa bioquímico para o ônibus espacial. Isso já foi há um bocado de tempo. Não o vi mais desde então.

O que obriga a que se faça a pergunta: como, que diabo, como Reed ou qualquer outra pessoa saberia que eu estava aqui?

Como o espaço aéreo nos arredores das instalações da NASA era controlado e de acesso restrito, o piloto do Gulfstream teria subme­tido um relatório de tripulação/passageiros aos controladores da NASA, que o teria encaminhado para a segurança. Mas essa informa­ção deveria ter permanecido confidencial — a menos que alguém estivesse monitorando a chegada de vôos.

Megan enfiou um cartão de acesso na ranhura do elevador envidraçado que subia para o salão de jantar reservado. Lá em cima, ela e Smith caminharam passando pelas janelas do chão ao teto, que ofereciam uma vista panorâmica das instalações do centro de treinamento aéreo. Megan não pôde deixar de sorrir quando viu um KC-135, um avião-tanque convertido, mover-se pesadamente pela pista de decolagem.

Boas lembranças? — perguntou Smith.

Megan deu uma gargalhada.

Só em retrospecto. Aquele '135' foi especialmente modifi­cado para fazer os testes preliminares de várias experiências e equipamentos para a baixa gravidade dos vôos do ônibus espacial. Ele sobe e ganha altitude abruptamente até que sua aceleração alcança dois Gs; então entra em queda livre, criando um ambiente com ausência de peso por vinte ou trinta segundos. Quando fiz meu primeiro vôo, não tinha idéia de como é grande a intensidade com que a gravidade reduzida pressiona os órgãos internos do corpo — ela sorriu. — Foi quando descobri por que o '135' tem a bordo um generoso suprimento de sacos de vômito.

E por que eles o chamam de "Cometa do Vômito"? — acrescentou Smith.

Megan ficou surpreendida.

Você já voou naquela coisa? — perguntou.

Jamais sonharia em fazer isso.

Sentaram-se a uma mesa junto da janela. Megan pediu uma cerveja, mas Smith, que logo estaria voando novamente, escolheu suco de laranja. Quando as bebidas chegaram, ele levantou o copo.

Que você alcance as estrelas.

Megan o olhou bem nos olhos.

Espero que sim.

Eu tenho certeza disso.

Smith e Megan levantaram os olhos e descobriram o dr. Dylan Reed de pé ao lado da mesa.

Jon, que bom ver você de novo. Estava esperando uma pessoa em outro vôo quando vi seu nome na lista de chegadas.

Smith retribuiu o forte aperto de mão e o convidou a sentar-se com eles.

Ainda está no USAMRIID? — perguntou Reed.

Ainda sou vinculado ao instituto. E você já está por aqui há quanto tempo, três anos?

Quatro.

Vai estar a bordo na próxima missão?

Reed sorriu.

—Não puderam me impedir de ir. Eu me tornei um viciado em ônibus espacial.

Smith tornou a erguer o copo.

A um vôo seguro e bem-sucedido.

Depois do brinde, Reed virou-se para Megan.

Nunca me contou como vocês dois se conheceram.

O sorriso de Megan se apagou.

Sophia Russell era minha amiga de infância.

Perdoe-me — desculpou-se Reed. — Soube da morte de Sophia, Jon. Sinto muitíssimo.

Smith ficou ouvindo enquanto Reed e Megan conversavam sobre o exercício daquela manhã no simulador, reparando na maneira afetuosa com que Reed a tratava. Smith perguntou a si mesmo se haveria algo mais que apenas um relacionamento profis­sional entre eles.

Mesmo se houver, não é da minha conta.

Smith sentiu um calor na nuca. Casualmente, virou-se de modo a poder ver o salão inteiro no reflexo das janelas. De pé, junto ao posto de serviço das recepcionistas estava um homem ligeira­mente obeso, de altura média, com quarenta e poucos anos. Mesmo àquela distância, Smith pôde notar que o homem estava olhando fixo, diretamente para ele, com a boca ligeiramente aberta.

Eu não conheço você, então por que está tão interessado em mim?

Dylan?

Smith gesticulou na direção do posto de serviço das recepcio­nistas. Seu gesto fez o observador virar rapidamente o rosto, sem sucesso.

Está esperando por alguém?

Reed olhou em volta.

Exato. Aquele é Adam Treloar, o oficial médico-chefe da missão — acenou. — Adam!

Smith observou enquanto Treloar se aproximava relutante­mente, como uma criança de má vontade, até a mesa de jantar

Adam, quero lhe apresentar o dr. Jon Smith, do USAMRIID — disse Reed.

Muito prazer — respondeu Smith.

Sim, prazer em conhecê-lo — balbuciou Treloar, revelando vestígios de um sotaque britânico.

Já nos encontramos antes? — perguntou Smith em tom simpático.

Tentou imaginar por que a pergunta educada faria os olhos ovalados de Treloar se arregalarem.

Ah, creio que não. Eu teria me lembrado — súbito, Treloar se virou para Reed. — Temos de passar em revista os últimos exames físicos da tripulação. E eu tenho de chegar a tempo para aquela reunião com Stone.

Reed sacudiu a cabeça.

As coisas ficam meio agitadas quando vamos chegando perto da data do lançamento — desculpou-se com Smith. — La­mento, mas terá de me dar licença. Jon, foi ótimo ver você. Não vamos deixar passar tanto tempo para uma próxima vez, OK?

Claro.

Megan, vejo você às três horas no Biolab.

Smith observou os dois homens ocuparem uma área reservada no fundo do salão.

Treloar é meio estranho — comentou. Especialmente quando queria discutir os exames físicos mas não trazia consigo pastas com fichas médicas.

E, ele é mesmo — concordou Megan. — Como médico, Adam é um dos melhores. Dylan o roubou da Bauer-Zermatt. Mas é excêntrico.

Smith deu de ombros.

Fale-me de Dylan. Que tal é trabalhar com ele? Lembro-me de que era um sujeito apegado às regras, todo certinho.

Se está querendo dizer que ele é realmente dedicado ao trabalho, isso é verdade. Mas sempre me desafia, me obriga a pensar melhor, a fazer melhor.

—Fico contente por você ter encontrado alguém assim para tra­balhar — Smith consultou rapidamente o relógio. — Tenho de ir.

Megan se levantou com ele.

Eu também.

Quando saíram do elevador no andar principal, ela pôs a mão no braço dele.

Foi bom ver você de novo, Jon.

—Também gostei de ver você, Megan. Da próxima vez que vier a Washington os drinques serão por minha conta.

Ela sorriu.

Vou cobrar a promessa.

— Não fique olhando fixo para eles!

Adam Treloar virou bruscamente a cabeça, assustado com a aspereza da ordem de Reed. Não conseguia acreditar como Reed, com um sorriso fácil no rosto, podia ser tão frio.

Usando a visão periférica, Treloar observou enquanto Jon Smith e Megan Olson se encaminhavam para o elevador. Ouviu um ping suave quando o elevador chegou e finalmente soltou a respira­ção. Apanhando um guardanapo, enxugou o rosto e a calva.

Você sabe quem é Smith? — perguntou em voz rouca.

Na verdade, sei sim — respondeu Reed calmamente. — Eu o conheço há anos.

Pressionou as costas contra o banco, qualquer coisa para se afastar do cheiro azedo que parecia seguir Treloar onde quer que fosse. Reed não se importava que seu gesto fosse tão evidentemente grosseiro; jamais havia feito segredo do desprezo que sentia pelo médico-chefe da missão.

Se sabe quem ele é, então diga-me o que Smith está fa­zendo aqui — exigiu Treloar. — Era ele quem estava com Danko em Veneza!

A mão de Reed deu um bote como uma cobra, agarrando o pulso esquerdo de Treloar, o punho forte apertando os nervos delicados. Treloar revirou os olhos e sua boca se escancarou en­quanto ele arquejava.

O que você sabe sobre Veneza? — perguntou Reed em voz baixa.

Eu... ouvi você falando de Veneza! — Treloar conseguiu dizer.

Então esqueça de que algum dia falei, está entendendo? — prosseguiu em sua voz macia. — Veneza não é de seu interesse. Nem Smith.

Soltou o pulso de Treloar e ficou satisfeito com a persistência da dor que viu nos olhos do oficial médico.

É que parece coincidência demais que Smith estivesse em Veneza, e agora esteja aqui — disse Treloar.

Creia-me, Smith não sabe de nada. Não tem informação nenhuma. Danko foi eliminado antes de poder dizer qualquer coisa. E há uma explicação simples para o motivo por que estava em Veneza. Danko e Smith se conheciam de conferências internacio­nais. Obviamente eram amigos. Quando Danko decidiu fugir,

Smith foi o homem em quem decidiu que podia confiar. Nada de mais complicado nem de mais sinistro que isso.

Então para mim é seguro viajar?

Muito seguro — garantiu Reed. — De fato, por que não tomamos mais um drinque e examinamos os preparativos?

 

Peter Howell deixou que se passassem várias horas antes de sair do Danieli e procurar o caminho de volta até o rio del San Moise, onde os assassinos haviam morrido calcinados. Como previra, havia apenas um punhado de carabinieri patrulhando o perímetro para assegurar que turistas não entrassem na área cercada por cordas da cena do crime.

O homem que esperara ver ali estava examinando os restos calcinados da gôndola dos assassinos. Atrás dele, mergulhadores continuavam a vasculhar o canal em busca de mais provas. Um carabinieri bloqueou o caminho de Howell.

Desejo falar com o inspetor Dionetti — falou, em italiano lluente.

Howell esperou enquanto o policial andava até o homem baixo, esguio, que alisava pensativamente o cavanhaque enquanto exami­nava um pedaço de madeira enegrecida.

Marco Dionetti, inspetor da Polizia Statale, levantou o olhar e piscou quando reconheceu Howell. Tirou as luvas de plástico, limpou vestígios imaginários de caspa das lapelas de seu paletó feito sob medida por um bom alfaiate, então se aproximou de Howell e o beijou nas duas faces à moda italiana.

Pietro! Que prazer vê-lo de novo — Dionetti examinou Howell dos pés à cabeça. — Pelo menos espero que venha a ser um prazer.

Também estou contente por rever você, Marco. Durante a era áurea do terrorismo, na metade da década de 1980, Peter Howell, emprestado pela SAS, trabalhara com policiais ilalianos de alto escalão em seqüestras envolvendo cidadãos britâ­nicos. Um dos homens que acabara por admirar e respeitar era um aristocrata de voz suave e gentil, mas duro como pedra, chamado Marco Dionetti, na época, uma estrela em ascensão na Statale. Ao longo dos anos, ele e Howell mantiveram contato. Howell tinha um convite permanente para se hospedar no palazzo ancestral de Dionetti sempre que estivesse em Veneza.

Então aqui está você na Sereníssima, mas não me telefonou e muito menos me permitiu ser seu anfitrião. — Dionetti o censu­rou. — Onde está hospedado? I Danieli, aposto.

Mil perdões, Marco — respondeu Howell. — Só cheguei ontem e as coisas têm andado meio confusas.

Dionetti olhou para trás, para os restos espalhados na calçada na margem do canal.

Confusas? É claro, a mania típica dos ingleses de minimizar as coisas. Permite-me ter a ousadia de lhe perguntar se sabe alguma coisa a respeito deste ultraje?

Permito. E ficarei contente em lhe dizer. Mas não aqui.

Dionetti deu um assobio alto, penetrante. Quase que imedia­tamente uma lancha de polícia, azul e branca, veio ronronando até os degraus que levavam do cais para a água.

Podemos conversar no caminho — disse Dionetti.

No caminho para onde?

Ora, mas francamente, Pietro! Nós vamos para a Questura. Seria falta de educação de minha parte esperar que você responda às minhas perguntas se eu não responder às suas.

Howell seguiu o inspetor até a popa da embarcação. Ambos os homens esperaram até que o barco deixasse para trás o rio del San Moise e acelerado entrando no Grand Canal.

Diga-me, Pietro — disse o inspetor falando mais alto que o ronco dos motores diesel. — O que você sabe daquele pequeno horror que explodiu em nossa bela cidade?

Não estou participando em nenhuma operação — Howell lhe assegurou. — Mas o incidente envolveu um amigo meu.

E seu amigo por acaso era o misterioso cavalheiro na piazza San Marco? — perguntou Dionetti. — O que foi visto com a vítima do tiroteio? O que correu atrás dos assassinos, depois desapareceu?

Esse mesmo.

Dionetti deu um suspiro teatral.

Diga-me que isso não tem nada a ver com terrorismo, Pietro?

Não tem.

Encontramos um passaporte ucraniano com a vítima, mas pouco mais. Parecia ter feito uma dura viagem. A Itália precisa se preocupar com o motivo por que ele veio aqui?

A Itália não precisa se preocupar. Ele estava apenas de passagem.

Dionetti ficou olhando fixamente para o tráfego no rio, os barcos-táxis e as barcas-ônibus, as barcaças de lixo e as elegantes gôndolas jogando na esteira das embarcações maiores. O Grand Canal era a artéria principal de sua amada Veneza, e ele sentia atentamente seu pulso.

Não quero problemas, Pietro — disse.

— Então ajude-me — respondeu Howell. — Eu me encarrega­rei de garantir que o problema vá embora — e calou-se por um instante. — Conseguiu encontrar o suficiente para identificar os assassinos e como foram assassinados?

Uma bomba — disse Dionetti em voz fria, sem emoção. — Mais poderosa do que era necessário. Alguém queria destruí-los. Contudo, se essa era a intenção deles, falharam. Encontramos o bastante para fazer uma identificação — presumindo-se que aque­les dois estejam em nossos arquivos. Daqui a pouco veremos.

A lancha reduziu a velocidade quando alcançou o rio di Ca Gazoni, depois roncou lentamente entrando na doca diante da Questura, o quartel general da Polizia Statale.

Dionetti foi na frente, passando pelos guardas armados posta­dos do lado de fora do palazzo do século XVII.

Isto outrora foi o lar de uma família de orgulho — explicou Dionetti. — Foi desapropriada por conta de impostos atrasados. Quando o governo tomou posse dela, tornou-se uma delegacia de polícia elegante — sacudiu a cabeça.

Howell o seguiu por um corredor largo até um aposento que parecia ter sido outrora uma sala de visitas formal. Além das janelas via-se um jardim, agora abandonado.

Dionetti deu a volta em sua mesa de trabalho e digitou no teclado do computador. Uma impressora zumbiu começando a funcionar.

Os irmãos Rocca, Tommaso e Luigi — indicou, entregando as folhas impressas a Howell.

Howell contemplou as fotografias de dois homens de aparência muito dura, com vinte e tantos anos.

Sicilianos?

Exatamente. Mercenários. Há muito tempo suspeitamos de que fossem responsáveis pelo assassinato a tiros de um promotor federal em Palermo e de um juiz em Roma.

E eram caros?

Muito. Por que pergunta?

Porque só alguém com dinheiro e bons contatos teria contratado homens como eles. São profissionais. Não precisam fazer publicidade.

Mas por que matar um camponês ucraniano, se de fato ele era isso?

Não sei — respondeu Howell, com sinceridade. — Mas pre­ciso descobrir. Você tem alguma idéia de onde estavam baseados?

Palermo. Onde nasceram.

Howell assentiu.

E os explosivos?

Dionetti voltou para o computador.

Sim... o relatório preliminar do laboratório de forense indica que foi C-12, uma carga de cerca de meio quilo.

Howell olhou para ele surpreso.

C-12? Tem certeza?

Dionetti deu de ombros.

Você deve se recordar de que nosso laboratório tem padrões muito altos, Pietro. Eu aceitaria a conclusão deles como sendo verdadeira.

Eu também — respondeu Howell, pensativo.

Mas como o assassino dos dois sicilianos teria conseguido pôr as mãos no mais moderno explosivo do Exército dos Estados Unidos?

 

A casa de Marco Dionetti era um palazzo do século XVI, de quatro andares, construído em pedra calcária que ficava de frente para o Grand Canal a alguns metros da Accademia. No grandioso salão de jantar, dominado por uma lareira esculpida por Moretta, os rostos severos dos ancestrais de Dionetti observavam tudo do alto de retratos pintados por mestres do Renascimento.

Peter Howell acabou o último pedacinho de seppioline e se recostou na cadeira enquanto um criado idoso tirava seu prato.

Apresente meus cumprimentos a Maria. O síba estava exce­lente, exatamente como eu me lembrava.

Pode deixar que digo a ela — respondeu Dionetti enquanto uma bandeja de bussolai era oferecida. Peter pegou um dos biscoitos com sabor de canela e mordiscou pensativo.

Pietro, compreendo sua necessidade de discrição. Mas também tenho chefes a quem tenho de dar satisfações. Não há nada que possa me dizer sobre o ucraniano?

Meu trabalho era simplesmente dar cobertura ao contato — respondeu Howell. — Não se tinha nenhuma indicação de que haveria derramamento de sangue.

Dionetti juntou as pontas dos dedos.

Suponho que possa defender uma conclusão de que os irmãos Rocca tinham um contrato e que o cumpriram contra o indivíduo errado, que o homem visto fugindo da piazza era quem deveria ser a vítima.

Isso poderia explicar por que os Roccas foram mandados pelos ares — observou Howell.

Dionetti descartou a possibilidade com um acenar de dedos.

Os irmãos tinham muitos inimigos. Quem poderia dizer se não foi um deles que conseguiu finalmente acertar as contas?

Howell acabou de beber o café.

Se você puder dar argumentos para esta interpretação dos fatos, Marco, eu faria o mesmo. Agora, não quero parecer um convidado mal-educado, mas preciso pegar aquele vôo para Palermo.

Minha lancha está à sua disposição — disse Dionetti, acompanhando Howell até o vestíbulo principal. — Entrarei em contato com você se houver outros desdobramentos. Prometa-me que, quando seus negócios estiverem concluídos, passará por aqui umes de voltar para casa. Iremos ao La Fenice.

Howell sorriu.

Eu gostaria muito disso. Obrigado por toda a ajuda, Marco.

Dionetti observou o inglês passar sobre a amurada e levantou a mão, enquanto a lancha se afastava pelo Grand Canal. Só quando estava absolutamente certo de que Howell não podia mais vê-lo, sua expressão amistosa se dissolveu.

Você deveria ter-me contado mais que isso, velho amigo — murmurou. — Talvez eu pudesse manter você vivo.

 

 

Doze mil e novecentos quilômetros a oeste, na ilha havaiana de Oahu, Pearl Harbor estendia-se placidamente sob o sol quente, tropical. De frente para o porto ficavam os prédios administrativos da Marinha e o quartel-general de comando e controle de opera­ções. Naquela manhã, o Edifício Nimitz estava com acesso proibido para todo mundo exceto pessoal autorizado. Unidades de combate armadas da Patrulha de Costa estavam estacionadas tanto no inte­rior quanto do lado de fora, nos longos corredores refrigerados e diante das portas fechadas do salão de reuniões.

O salão de reuniões era do tamanho de um ginásio e poderia acomodar facilmente trezentas pessoas. Naquele dia, havia apenas trinta pessoas presentes, todas sentadas nas primeiras fileiras dian­te do pódio. A necessidade de segurança reforçada refletia-se nas medalhas e fitas que ornamentavam os uniformes dos presentes. Representando todos os setores das Forças Armadas, eram oficiais de alto escalão do teatro do Pacífico, responsáveis por detectar e eliminar qualquer ameaça das costas de San Diego ao Estreito de Formosa, no Sudeste Asiático. Todos eram veteranos experientes em combate que já tinham visto mais do que a parte que lhes cabia de conflitos. Nenhum tinha paciência alguma com políticos ou teóricos, o que é o mesmo que dizer que não suportavam tolos com boa vontade. Confiavam em seus próprios conhecimentos especiais e instintos e só respeitavam aqueles que já tinham dado provas de competência em campo. Era por isso que todos os olhos estavam cravados no personagem no pódio, o general Frank Richardson, veterano do Vietnã e da Guerra do Golfo, e de uma dúzia de outras surtidas de que o povo americano havia se esquecido completamente. Mas não aqueles homens. Para eles, Richardson, na qualidade de representante do Exército no comando de chefes do Estado-Maior, era um verdadeiro guerreiro. Quando tinha alguma coisa a dizer, todo mundo ouvia.

Richardson apertou o atril com as duas mãos. Homem alto, bem nutrido, era tão forte e sólido hoje, quanto fora durante seus dias de jogador de futebol em West Point. Com os cabelos escuros grisalhos, de cor cinza chumbo, cortados à escovinha, olhos verdes frios e maxilar firme, era o porta-voz dos sonhos de um especialista em relações públicas. Salvo que Richardson detestava virtualmente todo mundo que não tivesse dado sangue por seu país.

Cavalheiros, vamos resumir — disse Richardson, contem­plando sua platéia.—Não são os russos que me preocupam. A maior parte do tempo é difícil saber quem está governando aquele maldito país — os políticos ou a mafiya. Como no golfe, não se pode conhecer os jogadores sem um cartão de marcação.

Richardson fez uma pausa para saborear as gargalhadas provocadas por sua piadinha.

Mas enquanto a Mãe Rússia está na privada — prosseguiu não se pode dizer o mesmo sobre os chineses. Os governos passados estavam tão ansiosos para se meter na cama com eles que nunca perceberam as verdadeiras intenções de Beijing. Nós lhes vendemos nossa mais avançada tecnologia de computador e de satélite sem nos darmos conta de que já haviam se infiltrado em nossas principais instalações de desenvolvimento e produção nu­clear. Los Alamos foi uma visita rápida ao Wal-Mart para esses su­jeitos. Vivo dizendo a este governo — como disse ao anterior — que a China não pode ser controlada somente através de força nuclear.

Richardson desviou os olhos para o fundo da sala. Um homem de cabelos castanho-claros, de quarenta e poucos anos, vestido em trajes civis, estava encostado contra a parede, os braços cruzados sobre o peito. O general percebeu o assentimento quase que imper­ceptível do civil e engrenou outra marcha em pleno vôo, no meio do discurso.

Mas tampouco podem os chineses ter esperança de nos desafiar jogando a cartada nuclear. O problema é que eles têm uma opção: armas de guerra química e biológica. E só espalharem um vírus em um de nossos maiores centros de população e em nossos sistemas comando-e-controle e pronto! — caos imediato. Com completa e plausível negação de qualquer responsabilidade por parte deles. Portanto é imperativo, cavalheiros, que em suas patru­lhas, em suas incursões de reconhecimento e busca de informações, os senhores reúnam a maior quantidade de informações possível sobre o programa de armas de guerra biológica da China. As batalhas da próxima guerra não serão vencidas ou perdidas no campo de batalha ou nos mares — pelo menos de início. Elas serão travadas nos laboratórios, onde o inimigo é medido em trilhões de batalhões e pode estar montado na cabeça de um alfinete. Só quando soubermos onde esses batalhões são criados, nutridos, sustentados e postos em ação, os senhores poderão despachar suas forças para eliminá-los.

Richardson fez uma pausa.

Cavalheiros, agradeço aos senhores pelo tempo e pela atenção.

O homem no fundo da sala não participou da explosão de palmas que se seguiu. Não se mexeu quando os outros na platéia rodearam o general, congratulando-o, bombardeando-o com per­guntas. Anthony Price, vice-diretor da NSA, Agência de Segurança Nacional, sempre reservava seus comentários para momentos de privacidade.

A medida que os oficiais se dispersavam, Richardson se enca­minhou para Price, que pensava em como o general se parecia um galo cheio de si.

Deus, como eu adoro esses homens! Você pode sentir o fedor da guerra neles.

O que sinto é que você quase mandou tudo para o espaço, Frank — retrucou Price. — Se eu não tivesse chamado sua atenção, você teria revelado tudo para eles minuciosamente.

Richardson lançou-lhe um olhar furioso.

Dê-me algum crédito, por favor? — abriu a porta.—Venha, vamos tratar de ir embora. Estamos atrasados.

Saíram do prédio para o dia de céu azul límpido, imaculado, e foram andando rapidamente pelo caminho de cascalho que circun­dava o auditório.

Um dia, Tony, os políticos terão de compreender — decla­rou Richardson em tom sombrio. — Governar este país por meio do que dizem as pesquisas de opinião pública está acabando conosco. Diga que você quer estocar antraz ou Ebola e você verá seus .números despencarem. Isso é besteira!

Isso é notícia velha, Frank — retrucou Price. — Você deveria se lembrar que nosso maior problema é a verificação. Tanto nós quanto os russos fizemos um acordo para que nossos estoques de agentes bioquímicos fossem monitorados por inspetores inter­nacionais. Nossos laboratórios e centros de pesquisa e manufatura, os sistemas de entrega, tudo foi aberto para inspeção, deixou de ser segredo. De modo que os políticos não terão de "compreender" nada. No que lhes diz respeito, armas de guerra biológica são uma questão encerrada.

Exceto quando elas reaparecem e vêm lhes morder o rabo — rebateu Richardson causticamente. — Então vão gritar: "Onde estão as nossas?"

E você vai poder dizer a eles, não vai? — respondeu Price.

Com uma pequena ajuda do nosso bom dr. Bauer.

Graças a Deus que existem homens como ele — retrucou Richardson por entre os dentes cerrados.

Atrás do auditório, havia um pequeno campo de pouso circular. Um helicóptero Jet Ranger comercial, com marcações de identificação civis estava pronto para decolar esperando, os rotores girando preguiçosamente. Quando o piloto viu seus passageiros, começou a aquecer as turbinas.

Price estava prestes a entrar no compartimento de passageiros quando Richardson o deteve.

Este negócio em Veneza — disse, levantando a voz para se fazer ouvir acima do gemido crescente dos motores. — Fomos derrotados?

Price sacudiu a cabeça.

O contrato foi cumprido como combinado. Mas houve um desdobramento inesperado. Estou aguardando novas informações brevemente.

Richardson fungou e seguiu Price entrando na cabine, afivelando o cinto do assento. Por mais que respeitasse Bauer e Price, eles não passavam de civis. Só um soldado sabia que sempre havia desdobramentos inesperados.

A vista da Grande Ilha de uma altura de seiscentos metros nunca deixava de emocionar Richardson. A distância podia-se ver a costa verdejante de Kona, com seus grandes hotéis atracados como grandes transatlânticos ao longo do litoral. Mais adiante, no inte­rior, as planícies negras de lava petrificada, tão sombrias quanto uma paisagem lunar. No centro do que parecia ser pura desolação, ficava o manancial de vida: o vulcão Kilauea, sua cratera fulgurando em vermelho incandescente com o magma fervendo nas profundezas do interior da terra. O vulcão agora estava em repouso, mas Richardson já o vira durante erupções. A criação, a formação do lugar mais novo do planeta, fora uma visão que ele nunca havia esquecido.

À medida que o helicóptero fazia uma volta ao longo do derrame de lavas, o antigo Fort Howard surgiu à vista. Ocupando vários milhares de hectares entre o derrame e o oceano, fora a principal instalação de pesquisa médica do Exército, especializada em curas para doenças tropicais, inclusive a lepra. Vários anos antes, Richardson pusera em movimento maquinaria para que a base fosse desativada. Encontrara um senador oportunista do Havaí e, com alguma ajuda por trás dos bastidores, conseguira que o projeto de fundos destinado a melhoramentos — a ser utilizado como propaganda política — do senador fosse aprovado pelo Con­gresso: um centro médico, novo em folha, em Oahu. Em troca, o senador, que estava na Comissão de Apropriação das Forças Arma­das, havia endossado automaticamente a solicitação de Richardson de desativação de Fort Howard e venda para uma empresa privada.

Richardson já tinha um comprador esperando nos bastidores: a firma bioquímica Bauer-Zermatt A.G., com sede em Zurique. Depois que duzentas mil ações da companhia foram depositadas no cofre do senador, o político se encarregou de assegurar que quais­quer outras propostas de compra da base fossem recusadas por sua comissão.

Richardson falou com o piloto pelo fone de ouvido.

— Sobrevoe a área cercada.

O helicóptero inclinou-se lateralmente, proporcionando ao general uma vista panorâmica da área abaixo. Mesmo daquela altu­ra, podia ver que a cerca que demarcava o perímetro era nova e forte — uma cerca de malha de elos de metal, com três metros de altura, arrematada no alto com rolos de arame farpado. Os quatro postos de guarda eram controlados por homens que pareciam ser pessoal das Forças Armadas. Os veículos utilitários militares de alta mobilida­de estacionados em cada posto acentuavam essa impressão.

A área cercada propriamente dita estava surpreendentemente vazia. Os abrigos pré-fabricados de metal corrugado com isolamento de compensado de madeira, para armazenar suprimentos, as casernas e os armazéns cozinhavam sob o sol tropical, sem nenhu­ma atividade ao redor. Somente o velho prédio do comando, com uma pintura nova e alguns jipes estacionados nas vizinhanças, parecia ser usado. O efeito geral era perfeito: uma instalação militar desativada, ainda com acesso proibido para todo mundo, exceto alguns moradores locais que prestavam serviços básicos para o esqueleto de equipe de funcionários que trabalhava ali.

O efeito era extremamente enganador. Na verdade, o que outrora fora o Fort Howard agora se espalhava por três andares debaixo da terra.

Recebemos autorização para aterrissar, general — informou o piloto.

Richardson lançou um último olhar pela janela e viu uma figura que parecia de brinquedo acompanhando o vôo do helicóptero.

Então pode pousar — respondeu.

 

Era um homem baixo, musculoso, de sessenta e poucos anos, com cabelos grisalhos penteados para trás e um cavanhaque cuida­dosamente aparado. Estava parado com os pés separados, as costas muito retas, as mãos unidas na base da coluna — um oficial de Kiterras do passado.

O dr. Karl Bauer observou o helicóptero descer lentamente, adejar sobre a área gramada do heliporto, e então aterrissar. Sabia que seus visitantes teriam perguntas difíceis para ele. Enquanto os rotores desaceleravam, com cuidado passou em revista exatamente quanto iria lhes contar. Herr Doctor não gostava nem um pouco de ter de dar explicações nem de apresentar desculpas.

Por mais de cem anos, a companhia fundada pelo bisavô de Mauer estivera na vanguarda da tecnologia química e biológica. A Bauer-Zermatt A.G. detinha uma miríade de patentes que, até os dias de hoje, eram uma fonte produtora de rendas. Seus cientistas c pesquisadores tinham criado pílulas e poções que continuavam sendo produtos de consumo básico em todos os lares; ao mesmo tempo tinham introduzido no mercado drogas exóticas que haviam rendido à companhia prêmios humanitários internacionais.

Mas, a despeito de todos os remédios e vacinas que distribuía para agentes de organizações que trabalhavam com saúde pública no Terceiro Mundo, a Bauer-Zermatt tinha um lado oculto ao qual os bem pagos executivos encarregados de campanhas de publicida­de e os folhetos reluzentes nunca aludiam. Durante a Primeira Guerra Mundial, a companhia desenvolvera uma forma especial­mente perniciosa de gás mostarda que fora responsável pela morte lenta de milhares de soldados aliados. Um quarto de século depois, forneceu a companhias alemãs certas substâncias químicas que depois foram combinadas para, subseqüentemente, criar o gás usado nas câmaras de gás em toda a Europa do Leste. A firma também havia monitorado de perto as experiências abomináveis do dr. Joseph Mengele e outros médicos nazistas. No final da guerra, enquanto outros criminosos e cúmplices eram caçados e enforca­dos, a Bauer-Zermatt havia se abrigado atrás da capa de anonimidade suíça, enquanto discretamente aplicava os resultados conhecidos de pesquisas médicas nazistas em novas áreas. Os donos e adminis­tradores responsáveis da Bauer-Zermatt, por sua vez, negavam qualquer conhecimento do que poderia ter sido feito com os produ­tos da corporação depois de deixarem as fronteiras alpinas.

Na segunda metade do século XX, o dr. Karl Bauer não só havia mantido a firma da família na vanguarda da pesquisa farmacêutica legítima, mas também ampliara seu programa secreto de desenvol­vimento de armas bioquímicas. Como um gafanhoto, Bauer ia para onde os campos eram mais férteis: a Líbia de Kadafi, o Iraque de Hussein, as ditaduras tribais da África e os regimes infestados por nepotismo do Sudeste da Ásia. Levava consigo os melhores cientis­tas e os equipamentos mais modernos; em troca recebia dádivas generosas que eram transferidas por meio de uma senha secreta digitada num teclado de computador para as caixas-fortes subter­râneas em Zurique.

Ao mesmo tempo, Bauer mantinha e levava a níveis mais altos seus contatos com os militares tanto dos Estados Unidos quanto da Rússia. Estudante presciente da situação política global, previra a derrocada da União Soviética e o inevitável declínio da nova Rússia esforçando-se para adotar a democracia. Onde os córregos gêmeos do desespero russo e da supremacia americana se encontravam, Bauer pescava.

Bauer aproximou-se para cumprimentar seus visitantes.

Senhores.

Os três homens trocaram apertos de mãos, depois foram caminhando lado a lado até o antigo prédio de comando, de dois andares, em estilo colonial. Dos dois lados do gracioso vestíbulo revestido de madeira ficavam os escritórios da equipe de Bauer, escolhida a dedo, que cuidava das tarefas administrativas do complexo. Mais adiante, ficavam os cubículos onde os assistentes de cientistas trabalhavam, inserindo as informações sobre as experiências de laboratório no sistema de computadores. Bem no fundo, ficavam dois elevadores. Um ficava escondido atrás de uma porta que só podia ser aberta por um cartão com código magnético. Construído pela Hitachi, era um elevador de alta velocidade que ligava os laboratórios subterrâneos ao prédio de comando. O segundo eleva­dor era uma bela gaiola de bronze. Os três homens entraram e em poucos segundos estavam no escritório particular de Bauer, que ocupava o segundo andar inteiro.

O escritório poderia ter pertencido a um governador colonial do século XIX. Tapetes orientais antigos enfeitavam os pisos encerados de tábua corrida de madeira de lei; estantes de mogno e objetos de arte do Pacífico Sul cobriam as paredes. A escrivaninha de madeira maciça ficava na frente de uma janela panorâmica, do clião ao teto, com vista para toda a área do complexo e para o oceano abaixo dos penhascos, até o derrame de lava negra bem longe.

Você fez algumas melhorias desde que estive aqui pela última vez — comentou Richardson em tom seco.

Mais tarde, o levarei para visitar a equipe, os alojamentos e a área de recreação — respondeu Bauer. — A vida aqui não é muito diferente do que é numa plataforma marítima de petróleo: meu pessoal só tem folga uma vez por mês e de apenas três dias. As nmenidades que ofereço compensam o gasto.

Nessas folgas — indagou Richardson — você deixa seu pessoal sair sozinho?

Bauer riu baixinho.

De jeito nenhum, general. Nós os enviamos para uma estância de luxo, muito exclusiva. A segurança está lá, mas eles nunca se dão conta disso.

De uma gaiola dourada para outra — comentou Price.

Bauer deu de ombros.

Não ouvi nenhuma queixa.

Diante do que paga a eles, não me surpreende — retrucou Price.

Bauer foi até um carrinho de bebidas bem fornido.

Posso lhes oferecer um drinque?

Tanto Richardson quanto Price escolheram suco de abacaxi com gelo e polpa da fruta. Bauer ficou com sua água mineral de costume.

Depois que os outros sentaram, Bauer ocupou seu lugar atrás da escrivaninha.

Senhores, permitam-me recapitular. O projeto ao qual devotamos cinco anos de nossa vida está quase pronto para dar frutos. Como sabem, durante a administração Clinton, a varíola, que deveria ter sido destruída em 1999, recebeu uma suspensão de sentença. Atualmente, restam apenas dois estoques em depósito no mundo: um está no Centro de Doenças Contagiosas em Atlanta, que faz parte do CDC; o outro está na Rússia central, no Bioaparat. Todo o nosso plano tinha como base a capacidade de se conseguir obter uma amostra do vírus da varíola. Os esforços para se obter essa amostra do CDC foram infrutíferos; a segurança era pura e simplesmente rigorosa demais. Contudo, o mesmo não era verdade no Bioaparat. Tendo em vista a terrível necessidade dos russos de dinheiro vivo, me foi possível fazer certos acordos. Tenho o prazer de lhe informar que, dentro de dias, um mensageiro trazendo uma amostra do vírus estará partindo da Rússia.

Os seus russos estão garantindo a entrega? — perguntou Richardson.

É claro. Na eventualidade improvável de o mensageiro deixar de comparecer ao encontro com nosso pessoal, a segunda metade do pagamento não será liberada — Bauer fez uma pausa, passando a língua nos dentes pontudos e pequeninos. — Também haverá conseqüências de maior alcance. Posso lhe assegurar que os russos têm plena consciência disso.

Mas há um problema, não? — perguntou Richardson, francamente. — Veneza.

Bauer não respondeu. Em vez disso, enfiou um disco em um aparelho DVD. O monitor passou do azul para imagens confusas, depois para uma imagem espantosamente nítida da piazza de San Marco.

Estas imagens foram feitas por um jornalista italiano que nesse dia estava lá, passeando com a família — explicou Bauer.

Mais alguém tem essas imagens? — perguntou Price imediatamente.

Não, meu pessoal fechou um negócio com o jornalista imediatamente. Não só ele nunca mais terá de gastar um centavo com a educação dos filhos, como pode se aposentar — na verdade, já se aposentou.

Bauer apontou para a tela.

O homem à direita é Yuri Danko, um funcionário de alto escalão da divisão médica do serviço de segurança da Rússia.

E este é Jon Smith, à esquerda — acrescentou Price. Olhou para Richardson. — Frank e eu conhecemos Smith por causa de seu envolvimento no Projeto Hades. Antes disso, trabalhava no USAMRIID. Os boatos dão conta de que era amigo de alguém na Divisão de Informações Médicas da Rússia. A NSA queria o contato e informações, mas Smith se recusou a passá-las. Afirmou não ter nenhuma fonte.

Agora vocês vêem quem era a fonte dele: Danko — prosse­guiu Bauer. — Há um mês, comecei a receber relatórios que davam conta de que Danko estava checando a operação no Bioaparat como parte de seu trabalho no serviço de segurança. Quando se aproxi­mou o dia da partida de nosso mensageiro, Danko fugiu de repente. Mas estava com tamanha pressa de cair fora que foi descuidado. Os russos descobriram que ele havia fugido e me passaram esta infor­mação.

Ponto em que você contratou os homens do gatilho — disse Richardson. — Deveria ter pago para ter profissionais mais talentosos.

Os matadores eram profissionais de primeira linha — replicou Bauer friamente. — Eu já os usara antes e os resultados sempre foram satisfatórios.

Não desta vez.

Teria sido melhor apanhar Danko enquanto ainda estava na Europa Oriental — admitiu Bauer. — Contudo, não tínhamos essa opção. Estava se deslocando depressa demais, cobrindo muito bem seus rastros. Veneza era nossa melhor oportunidade. Quando meu pessoal comunicou que Danko fora visto com um contato, soube imediatamente que este homem também deveria ser eliminado.

Mas não foi — disse Price.

Um erro que será retificado — respondeu Bauer. — Na ocasião, não tínhamos idéia de quem Danko iria contatar. A coisa mais importante é que Danko, cujo último posto de serviço foi no Bioaparat, está morto. Tudo o que sabia morreu com ele.

A menos que tenha conseguido contar a Smith — interrom­peu Richardson.

Assistam com atenção às imagens — sugeriu Bauer. — Verifiquem o tempo que decorre.

Ele repetiu o disco. Richardson e Price olharam fixamente para a tela. A carnificina na piazza de San Marco durara apenas segundos.

Repita mais uma vez — pediu Price.

Desta vez, os dois homens se concentraram no encontro de Danko com Smith propriamente dito. Richardson tirara um cronô­metro do bolso e estava cronometrando o breve encontro enquanto se concentrava nas mãos de Danko. Nada passara das mãos do russo para Smith.

Você tem razão. Danko chega, senta-se, pede um café, ele e Smith conversam...

Bauer apanhou duas cópias de uma transcrição e entregou uma a cada homem.

Mandei um especialista em leitura de lábios fazer isto. Conversa sem importância, foi só o que houve. Mais nada.

Richardson leu rapidamente a página.

Parece que você estava certo: Danko não teve oportunidade para dizer nada. Mas pode ter certeza de que Smith não vai desmon­tar sua barraca e desaparecer na noite. Ele vai investigar dura e seriamente — o general fez uma pausa. — Quem sabe que outros contatos ele tem nas Forças Armadas russas.

Tenho consciência disso — respondeu Bauer. — Creiam-me, não pretendo subestimar o dr. Jon Smith. Isso é parte do motivo por que pedi que viessem aqui, para que possamos decidir como proceder com ele.

Price, que usava o controle remoto para rever as imagens na tela, congelou um quadro em particular.

Este sujeito aqui, o 'Bom Samaritano'. Parece familiar.

— De acordo com minhas fontes, ele se identificou como sendo um médico italiano.

A polícia o entrevistou?

Não, ele desapareceu na multidão.

Qual é o problema, Tony? — perguntou Richardson.

O telefone celular de Price tocou. Abrindo-o, ele se identifi­cou; então olhando para os outros levantou o dedo.

Alô, inspetor Dionetti. Estou feliz por o senhor ter telefona­do. Tenho algumas perguntas para o senhor sobre o segundo homem no tiroteio....

Sentado em seu elegante estúdio com as paredes cobertas de prateleiras de livros, Dionetti contemplou um busto etrusco.

— O senhor disse que queria ser informado se alguém apareces­se fazendo perguntas sobre os irmãos Rocca — explicou.

E?

Um velho amigo meu — Peter Howell, do SAS, era...

Eu sei quem é — interrompeu Price. — O que ele queria?

Dionetti descreveu seu encontro com o inglês e concluiu dizendo:

Lamento o fato de que não poderei conseguir mais informa­ções. Mas fazer perguntas demais...

O que você disse a Howell?

Dionetti lambeu os lábios.

Howell perguntou se havíamos identificado os corpos. Disse-lhe que eram os irmãos Rocca. Não tive escolha. Howell tem outros contatos em Veneza. Se eu não tivesse contado, outros teriam.

Que mais?

Ele viu os resultados da explosão...

E você disse que era um C-12.

Que mais poderia fazer? Howell foi soldado. Conhece essas coisas. Ouça-me, Antonio. Howell está a caminho de Palermo, de onde eram os irmãos Rocca. Está viajando sozinho, é um alvo fácil.

Price refletiu sobre aquilo.

Está bem — disse finalmente. — Mas se Howell entrar em contato com você de Palermo, quero ser informado.

Price resumiu o que Dionetti lhe relatara e fez um resumo da carreira de Howell.

O que um homem desses estaria fazendo com Jon Smith? — quis saber Bauer.

Dando-lhe cobertura — respondeu Richardson sombria­mente. — Smith não é nenhum idiota. Não iria se encontrar com

Danko sozinho — virou-se para Price. — Esse canalha do Dionetti fala demais. Ainda podemos confiar nele?

Enquanto o pagarmos — retrucou Price. — Sem nosso dinheiro Dionetti está a um passo da falência. Quinhentos anos de tradição familiar... — estalou os dedos. —... por água abaixo! Num piscar de olhos. E ele estava certo: Howell teria descoberto sobre os Rocca e o C-12, de uma maneira ou de outra.

Parece que Smith não é o único problema que temos pendente — observou Bauer.

É verdade — concordou Richardson. — Mas Palermo é um lugar perigoso, mesmo para um homem como Peter Howell.

 

 

Ao chegar de Houston, Jon Smith seguiu direto com o carro da Base Andrews para sua casa em Bethesda. Tomou um banho de chuvei­ro, fez uma mala com roupas para uma semana e chamou um carro com motorista para levá-lo ao Aeroporto Dulles.

Estava ativando o sistema de segurança quando o telefone da linha especial tocou.

Aqui é Klein, Jon. Já tomou as providências necessárias?

Tenho uma reserva confirmada no vôo da Delta para Mos­cou, senhor. Parte daqui a três horas.

Ótimo. Falei com o presidente. Ele deu carta branca para o Covert-One agir da forma como achar conveniente, mas tem de ser depressa.

Entendido, senhor.

Aqui vão algumas informações de que vai precisar — depois que Klein lhe deu os detalhes, acrescentou:

Sei que você tem um relacionamento antigo com Randi Russell, Jon, não deixe que isso interfira no que precisa descobrir.

Smith controlou a raiva. Tato não era um traço forte da per­sonalidade de Klein.

Farei contato a cada doze horas, senhor.

Então boa sorte. Vamos esperar que qualquer que seja o problema, os russos arranjem uma maneira de lidar com ele.

Enquanto o vôo da Delta L-1011 ganhava altitude lentamente no céu noturno, Smith se acomodou no assento confortável da classe executiva. Comeu com parcimônia, depois dormiu a viagem inteira até Londres. Depois de reabastecer, o avião prosseguiu em sua jornada rumo ao leste, aterrissando em Sheremetevo de manhã bem cedo. Como estava viajando com seus documentos de identidade das Forças Armadas, Smith não teve nenhum problema na Alfânde­ga e no Controle de Imigração. Depois de uma corrida de táxi de 45 minutos, chegou ao novo hotel Sheraton, na Praça Vermelha.

Smith pendurou um cartão dizendo 'favor não incomodar' na porta do quarto, tomou um banho para se livrar da poeira acumula­da na viagem e dormiu mais quatro horas. Como a maioria dos sol­dados, há muito tempo dominara a arte de descansar quando podia.

Pouco depois do meio-dia, saiu do hotel para o ar frio da primavera de Moscou e caminhou seis quarteirões até um passeio coberto em uma arcada que fronteava a fachada de um prédio do século XIX. As lojas eram luxuosas, oferecendo tudo, de peles e perfumes a ícones preciosos e diamantes "azuis" siberianos. Smith foi passando em meio aos comerciantes de próspera aparência, perguntando a si mesmo quais pertenceriam à nova elite dos negócios da Rússia e quais seriam francamente criminosos remata­dos. Na nova Rússia a distinção não era clara.

Caminhou quase até o fim da arcada antes de ver o endereço que Klein lhe tinha dado. A placa com letras douradas — em cirílico e em inglês — dizia: "BAY DIGITAL CORPORATION".

Através da vitrine de vidro espelhado, Smith viu um balcão de recepção e, atrás dele, uma série de postos de trabalho acoplados a gabinetes de computador tão modernos quanto qualquer um que se pudesse encontrar em Wall Street. Homens e mulheres, elegante­mente vestidos, trabalhavam com rapidez e eficiência, mas uma, em particular, atraiu seu olhar. Tinha trinta e poucos anos, era alta, de cabelos louros dourados curtos. Tinha o mesmo nariz reto e queixo firme de outra mulher que ele conhecera, os mesmos olhos escu­ros... de Sophia.

Smith respirou fundo e entrou. Estava em via de se apresentar à recepcionista, quando a mulher loura levantou a cabeça e olhou para ele. Por um instante, Smith não conseguiu respirar. Era como se sua Sophia tivesse, repentinamente, voltado à vida.

— Jon?

Randi Russell não conseguiu esconder a surpresa, algo que atraiu olhares curiosos do resto dos funcionários. Ela se aproximou rapidamente do balcão de recepção.

Por que não conversamos em meu escritório? — disse, tentando manter o tom de voz normal.

Smith a seguiu até um escritório pequeno, mas agradavelmente decorado, cheio de aquarelas emolduradas com paisagens da costa de Santa Barbara. Randi Russell fechou a porta e o examinou dos pés à cabeça.

Não consigo acreditar — disse, sacudindo a cabeça. — Quando? Como...?

É bom ver você de novo, Randi — disse Smith em voz baixa.

Lamento não lhe ter avisado de que eu vinha aqui. Foi uma viagem imprevista, resolvida de última hora.

Os olhos de Randi se estreitaram.

Nada com você é resolvido de última hora, Jon. Como sabia onde me encontrar?

Smith sabia que, em resultado da tragédia Hades, Randi fora nomeada para um posto de agente de campo da CIA em Moscou. Mas fora necessário que Klein intercedesse para descobrir a natu­reza exata de sua atividade de fachada e onde Smith poderia encontrá-la.

Smith olhou em volta para o escritório.

E seguro conversarmos aqui?

Randi apontou para o que parecia um aparelho leitor de discos DVD.

A última palavra em detecção de grampos. Além disso, nossos faxineiros 'varrem' o local toda noite.

Smith assentiu.

— Tudo bem. Primeiro, eu sabia que você estava em Moscou, mas não onde encontrar você. Outras pessoas me ajudaram nisso. Segundo, preciso de sua ajuda porque um homem — um bom homem — está morto e quero descobrir o que aconteceu com ele.

Randi refletiu sobre as palavras dele. Era capaz de perceber quando as pessoas mentiam, mesmo profissionais cuja matéria-prima de trabalho era a mendacidade. Seus instintos lhe diziam que S mith estava lhe contando a verdade — ou pelo menos tanto quanto podia.

Estou ouvindo, Jon.

Smith explicou rapidamente quem era Danko, depois descre­veu seu encontro com o russo em detalhes. Não se absteve de incluir os detalhes desagradáveis e horríveis do massacre na piazza de San Marco. A violência não era algo que Randi desconhecesse.

Tem certeza de que os assassinos não estavam atrás de você também? — perguntou ela.

Se eu tivesse sido o alvo principal, estaria morto — respon­deu Smith em tom sombrio. — O alvo deles era Danko; asseguraram-se de que estava morto, só depois atiraram contra mim.

Randi sacudiu a cabeça.

Salvo por um piano. Meu Deus! Não consigo acreditar que tenha ido atrás deles desarmado. Teve sorte que alguém os apanhas­se antes — respirou fundo. — O que é que você quer, Jon, vingar a morte de Danko ou entrar no Bioaparat?

Yuri sacrificou sua vida para me trazer um segredo — respondeu ele. — Se descobrir o que é, encontrarei seja lá quem for que o matou. Mas creio que quem quer que seja, ele ou eles também estão ligados ao Bioaparat.

O que você quer de mim?

Seus melhores contatos na Rússia, pessoas que têm poder, pessoas em quem você confiaria.

Ela olhava fixo para as aquarelas.

Oleg Kirov, um general de divisão no Serviço de Segurança Federal da Rússia. Ele se parece muito com o Danko que você descreve: realista, digno de confiança, um patriota. O braço direito dele é Lara Telegin. Muito inteligente, bem informada politica­mente, muito boa em campo.

Lembro-me de ter conhecido Kirov quando trabalhava para o USAMRIID — disse Smith. — Mas não o conheço bem o suficiente para ligar para ele sem mais nem menos. Você poderia organizar um encontro?

É claro. Mas Kirov vai querer saber se está agindo oficial­mente, no desempenho de uma missão autorizada — e eu também.

Não estou trabalhando para o USAMRIID nem para nenhu­ma agência de informações. Isto é a verdade.

Ela olhou para ele desconfiada.

— Tanto quanto é seguro afirmar isso — levantou as mãos para calar os protestos dele. — Olhe, sei como essas coisas funcionam. Kirov também.

Isto é muito importante para mim, Randi.

Ela gesticulou para que se calasse, não querendo ouvir seus agradecimentos, e um silêncio desconfortável se fez entre eles.

Há coisas que preciso contar a você — disse Smith finalmente. — Coisas pessoais.

Descreveu sua visita ao túmulo de Sophia e sobre a conclusão a que conseguira chegar.

Depois do enterro, achei que havia coisas que você e eu tínhamos de dizer um ao outro, mas que nunca dissemos. Cada um seguiu seu caminho, simplesmente nos afastamos.

Randi o encarou.

Sei do que está falando. Mas naquela ocasião, uma parte de mim ainda culpava você pelo que acontecera com Sophia. Levei muito tempo para superar isso.

Você ainda me culpa?

Não. Não havia nada que você pudesse ter feito para ajudá-la. Não sabia da existência de Tremont e de seus assassinos, nem que Sophia era uma ameaça para eles.

Eu precisava ouvir você dizer isso — confessou Smith.

Randi olhou para a fotografia no porta-retratos sobre a escrivaninha, dela e de Sophia em Santa Barbara, antes do horror. Embora mais de um ano já tivesse se passado, Randi não conseguira perdoar a si mesma por não estar presente quando sua irmã mais precisara dela. Enquanto Sophia morria naquele leito de hospital, Randi eslava a milhares de quilômetros de distância, trabalhando como agente secreta infiltrada no Iraque, ajudando a resistência ao regi­me de Saddam Hussein. Só tomou conhecimento de como e por que Sophia fora assassinada semanas depois, quando Jon Smith apare­ceu de repente, em Bagdá, como um misterioso djin.

Em meio aos destroços de seu luto, Randi conseguira encontrar alguns vasos intactos aos quais podia se agarrar e encontrar apoio. Mas seus sentimentos por Smith permaneceram ambiva­lentes. Sentia-se grata pelo fato de ter estado com Sophia em seus derradeiros momentos, de que ela não morrera sozinha. Contudo, à medida que ficara cada vez mais enredada na teia que era o Hades não pudera deixar de se perguntar se Smith não teria, de alguma forma, podido impedir o assassinato de sua irmã. Nesse ponto lambém, a questão ficara irritantemente obscura. Ela sabia que Smith amara Sophia profundamente e que nunca a teria posto em perigo deliberadamente. Entretanto, quando estivara diante da sepultura da irmã, ainda acreditava que ele poderia ter feito alguma coisa para salvá-la.

Randi descartou aquele último pensamento e virou-se para Smith.

Vai levar algum tempo para acertar o encontro com Kirov. Você gostaria de me encontrar mais tarde para um drinque?

Gostaria muito.

Eles combinaram se encontrar no salão do Sheraton, depois de Randi fechar o escritório.

O que exatamente é a Bay Digital? — perguntou Smith. — E o que você faz aqui?

Quer dizer que as pessoas que mandaram você não men­cionaram isso? — Randi sorriu. — Jon, estou chocada. Sou nada mais nada menos que a gerente chefe da filial de uma firma de capital de risco, muito bem-sucedida, querendo investir em pro­missoras empresas russas na área de tecnologia de ponta.

Só que os fundos não vêm de investidores privados nem de fundos de investimentos de risco — declarou Smith.

Isso não importa, qualquer pessoa com dinheiro pode abrir todas as portas na Rússia. Tenho contatos que se estendem do Kremlin ao Exército, e até na máfia russa.

Eu sempre disse que você tinha amigos importantes em lugares inesperados. E existe algo que se possa chamar de tecnologia de ponta neste país?

Acredite se quiser. Os russos não têm nossos equipamentos, mas é só dar-lhes as ferramentas certas que eles são brilhantes — tocou de leve no braço dele. — E realmente bom ver você de novo, Jon, não importam quais sejam seus motivos para estar aqui. Há alguma coisa de que precise de imediato?

Smith pensou na viúva e no filho de Danko.

Diga-me o que os russos costumam levar quando vão visitar uma mulher que acabou de perder o marido — e que ainda não sabe disso.

 

 

Às 7:36 da manhã, hora de Houston, o dr. Adam Treloar embarcou num vôo da British Airways para uma viagem sem escalas sobre o Pólo até o aeroporto Heathrow de Londres. Ao chegar, foi acompanhado até a sala para passageiros em trânsito, onde, na qualidade de passageiro de primeira classe, utilizou os serviços de uma massagista. Depois de um chuveiro rápido, Treloar vestiu seu terno recém - passado entregue por um camareiro e encaminhou-se para o portão 68, onde foi conduzido até o compartimento de primeira classe de um outro avião da BA, este voando para Moscou. Vinte e oito horas depois de ter começado sua viagem, Treloar passou pela Alfândega e pela Imigração russa sem incidentes.

Treloar cumpriu rigorosamente o itinerário acertado com Reed. Depois que o táxi o deixou no novo hotel Nikko do outro lado do rio, defronte ao Kremlin, Treloar se registrou, e deu ao carrega­dor uma gorjeta exagerada para levar as malas até seu quarto. Em seguida, saiu do hotel e tomou outro táxi, que o levou ao cemitério de Mychalczuk Prospekt. A velha que vendia flores junto da entrada ficou espantadíssima ao receber US$ 20 por um buquê de margaridas e girassóis meio murchos. Treloar seguiu para uma área de túmulos relativamente novos à sombra de um grupo de bétulas. Colocou as flores ao pé de uma cruz, tipicamente ortodoxa, que honrava a memória do lugar do último repouso de sua mãe, Helen Treloar, nascida Helena Sviatoslava Bunin.

Os investigadores de antecedentes do FBI registraram devida­mente que a mãe de Treloar nascera na Rússia, quando Treloar se candidatara ao posto de oficial-médico chefe. Até então não se levantaram bandeiras vermelhas. Competindo com os setores pri­vados para contratar médicos talentosos, a NASA ficara especial­mente feliz por conseguir um especialista como Adam Treloar, que viera para a agência depois de quinze anos de trabalho na Bauer-Zermatt A.G. Ninguém perguntou por que Treloar abrira mão de seu tempo de serviço numa firma tão prestigiada, nem por que aceitara uma redução de 20 por cento no salário. Em vez disso, a agência espacial entregou as credenciais impecáveis de Treloar e suas magníficas referências ao Birô para que se fizesse uma rápida verificação dos antecedentes.

Com o fim da Guerra Fria, viajar para a Rússia tornara-se mais fácil que nunca. Milhares de americanos vinham visitar parentes em muitos casos conhecidos somentepor fotografias. Adam Treloar também voltara, para visitar a mãe depois de ela ter-se divorciado e retornado para Moscou, cidade onde nascera. Durante os anos seguintes, ele tomava um avião toda primavera para passar uma semana com ela.

Dois anos antes, Treloar informara seus superiores na NASA de que sua mãe sofria de um câncer terminal. Eles ficaram penalizados e lhe disseram que podia tirar licenças por motivos pessoais sempre que precisasse. O filho devotado aumentara a freqüência de suas visitas para três por ano. Então, no outono passado, quando Helena Bunin finalmente sucumbira, ele voltou para passar um mês intei­ro, ostensivamente para pôr suas coisas em ordem.

Treloar tinha certeza de que o FBI vinha monitorando suas visitas a Moscou. Mas também sabia que, como qualquer burocra­cia, o órgão se satisfazia desde que reconhecesse um padrão e que este padrão não mudasse. Ao longo dos anos, Treloar criara exata­mente esse padrão, alterando-o só quando dispunha de um motivo comprovado para fazê-lo. Como este era o aniversário de seis meses da morte de sua mãe, pareceria estranho se ele não fosse visitar seu túmulo.

Durante o percurso de táxi de volta para o hotel, Treloar passou em revista o que havia feito. O motorista de táxi do aeroporto, o carregador do hotel, a velha do cemitério, os outros motoristas de táxi — todos se lembrariam dele por causa das gorjetas generosas. Se alguém viesse checar, o padrão de sua visita estava claro. Agora pareceria natural que descansasse durante alguns dias em Moscou antes de seguir de volta para casa. Só que o médico da NASA tinha planos mais ambiciosos que passeios turísticos.

Treloar se retirou para seu quarto e dormiu durante várias horas. Quando acordou, a escuridão já se apoderara da cidade. Tomou um banho de chuveiro, fez a barba, vestiu um terno limpo e, agasalhado em um sobretudo quente, saiu para a noite.

Os pensamentos foram surgindo espontaneamente à medida que caminhava. Por mais que o amargurassem, jamais poderia fazer com que saíssem de sua mente. De modo que se entregou, permitin­do que o dominassem, como uma onda arrebentando, respirando aos poucos até que perdessem a intensidade.

Adam Treloar acreditava ser um homem marcado como Caim fora marcado. Era amaldiçoado por terríveis desejos que não con­seguia controlar e dos quais não podia escapar. Eles eram o motivo pelo qual fora obrigado a negociar sua carreira na Bauer-Zermatt.

Numa outra vida, Treloar fora a estrela da divisão de virologia da Bauer-Zermatt, orgulhoso do respeito de seus pares e adulado por seus subordinados — um subordinado em particular, um fauno de olhos negros como carvão, tão bonito que Treloar achara a tentação irresistível. Mas o fauno se revelara um traidor descarado, a serviço de um dos competidores da Bauer-Zermatt. O traidor deveria atrair para a armadilha o pretendente desavisado, colocá-lo numa situação comprometedora e obrigá-lo a ceder à vontade do competidor.

Treloar em momento nenhum vira a armadilha; só tivera olhos para o fauno. Mas depois vira mais que o suficiente, quando os homens chegaram a seu apartamento e mostraram as fitas de vídeo com cenas de sexo comprometedoras nas quais ele desempenhava o papel principal. Ofereceram-lhe uma dura escolha: exposição pública ou cooperação. Por causa da natureza de direitos exclusivos da pesquisa da Bauer-Zermatt, todos os empregados tinham de assinar um contrato de termos precisos e rigorosos cujas disposi­ções incluíam uma cláusula de conduta moral e comportamento. Os torturadores de Treloar fizeram questão de lembrá-lo disso en­quanto repetiam o vídeo. Eles o levaram a encarar o fato de que tinha muito poucas opções: ou entregava-lhes as informações sobre a pesquisa da companhia ou teria de enfrentar a exposição. É claro, a exposição não se limitaria a isso. Em conseqüência, ficaria marca­do publicamente como pessoa de comportamento desviante. En­tão, depois de toda a publicidade, de responder a processo civil — e provavelmente criminal — seria fútil ele tentar encontrar outro emprego em qualquer lugar na comunidade de pesquisa médica.

Deram 48 horas a Treloar para refletir sobre a escolha. Ele perdera as primeiras 24 fazendo exatamente isso. Então, enquanto olhava para um futuro que não continha nada exceto ruínas, deu-se conta de que os chantagistas tinham ido longe demais: eles o haviam colocado numa posição em que não teria nada a perder se revidasse o ataque.

Em virtude de sua posição e tempo de serviço, Treloar conse­guiu marcar um encontro com o dr. Karl Bauer em pessoa. No ambiente elegante do escritório de Zurique de Bauer, relatara suas transgressões e a maneira como era chantageado. Ofereceu-se para reparar os danos de qualquer forma que fosse possível.

Para surpresa de Treloar, Bauer pareceu ficar confuso e sem saber o que fazer com os eventos ocorridos com seu empregado indisciplinado. Ouviu sem fazer comentários, depois instruiu Treloar a voltar na manhã seguinte.

Até aquela data, Treloar não tinha nenhuma idéia do que acontecera por trás dos bastidores. Na manhã seguinte, quando se apresentara a Bauer, este dissera-lhe que nunca mais ouviria falar dos chantagistas. As provas de seus pecadilhos não estavam mais ao alcance do domínio público. E que não haveria repercussões — nunca.

Mas haveria uma recompensa. Bauer informou-o de que, em troca de salvar seu futuro na comunidade de pesquisa médica, Treloar brevemente deixaria a companhia. Uma oferta de emprego chegaria da NASA; ele a aceitaria. Diria a seus colegas que estava aproveitando uma oportunidade de fazer o tipo de pesquisa em que nunca poderia ter-se envolvido se permanecesse na Bauer-Zermatt. Depois que chegasse à NASA, ele se poria à disposição do dr. Dylan Reed. Reed seria seu guia e mentor, e Treloar lhe obedeceria sem questionar.

Treloar se recordava da maneira fria e precisa com que Bauer lhe apresentara esse decreto. Lembrava-se do clarão de raiva, depois de divertimento nos olhos de Bauer, quando Treloar per­guntara temerosamente que tipo de pesquisa iria fazer para a NASA.

— Seu trabalho será de importância secundária — dissera-lhe Bauer. — É sua ligação com sua mãe, com a Rússia, que me interessa. Você passará a vê-la regularmente, creio.

Treloar curvou os ombros para se proteger do vento enquanto se afastava das luzes claras da praça Gorki e entrava nas ruas escuras que conduziam ao bairro de Sadovaya. Os bares tornaram-se mais decadentes, os mendigos e bêbados, mais agressivos. Mas aquela não era sua primeira visita a Sadovaya e ele não teve medo.

Meio quarteirão mais adiante, avistou o familiar letreiro de néon, piscando: "KROKODIL." Um momento depois, bateu na porta pesadona e esperou que o postigo se abrisse. Um par de olhos negros, desconfiados, o examinou, então o ferrolho foi empurrado c a porta aberta. Ao entrar, Treloar deu ao leão de chácara, um gigante mongol, uma nota de US$ 20 para pagar o couvert.

Tirando o sobretudo, Treloar sentiu o último de seus pensa­mentos se dissolver sob as luzes fortes e a música alta. Rostos se viraram para ele, olhos impressionados com seu terno ocidental. Corpos que se requebravam esbarraram nele, mais intencional­mente que por acaso. O gerente, uma criatura magra, com cara de furão, aproximou-se rapidamente para cumprimentar o cliente estrangeiro. Segundos depois Treloar tinha um copo de vodca na mão e era escoltado pela beira da pista de dança até uma área reservada com sofás forrados de veludo e pufes macios.

Suspirou quando relaxou entre as almofadas. O calor da bebida fez as pontas de seus dedos formigarem.

- Devo lhe trazer uma amostra? — sussurrou o 'furão'.

Treloar assentiu alegremente. Para passar o tempo, fechou os olhos e deixou que a música rugisse ao longo de seu corpo. Ele se sobressaltou quando algo macio alisou seu rosto.

De pé diante dele estavam dois garotos de cabelos louros, os olhos de um azul perfeito, a pele imaculada. Não poderiam ter mais de dez anos.

Gêmeos?

O 'furão' assentiu.

E melhor ainda, virgens.

Treloar gemeu.

Mas custam muito caro — advertiu o 'furão'.

—Não se preocupe com isso — respondeu Treloar roucamente.

Traga-nos zakuski. E refrigerantes para meus anjinhos.

Deu palmadinhas nas duas almofadas que o ladeavam.

Venham para junto de mim, meus anjos. Dêem-me um gostinho do céu...

A seis quilômetros do Krokodil há três arranha-céus conhecidos coletivamente pelo nome de praça Dzerzhinsky. Até o princípio da década de 1990, fora o quartel-general da KGB comunista; depois da democratização, o conjunto foi ocupado pelo recém-formado Ser­viço de Segurança Federal da Rússia.

O general-de-divisão Oleg Kirov, com as mãos cruzadas atrás das costas, estava parado diante da janela de seu escritório no 15o andar, olhando para a silhueta de Moscou recortada no horizonte.

Os americanos estão chegando — murmurou.

O que você disse, dusha?

Kirov ouviu o bater de saltos no piso de tábua corrida, sentiu dedos esguios deslizarem sobre seu peito, inalou o perfume quente e doce trazido pelas palavras. Virou-se e tomou nos braços a bela morena, beijando-a avidamente. Sua paixão foi retribuída enquan­to sentia-lhe a língua provocar a sua, as mãos deslizando até seu cinto e depois descendo mais.

Kirov recuou um pouco, encarando os olhos escuros provocan­tes que o atormentavam tanto.

Quem dera eu pudesse — disse baixinho.

A tenente Lara Telegin, ajudante de campo de Kirov, ficou parada com as mãos nos quadris, observando seu amante. Mesmo vestindo o uniforme militar desbotado, parecia uma modelo de passarela.

Você me prometeu jantar esta noite — queixou-se.

Kirov não pôde deixar de sorrir. Lara Telegin fora a primeira da turma na formatura da academia militar Frunze. Era uma atiradora de elite; as mesmas mãos que o acariciavam poderiam tirar sua vida numa questão de segundos. No entanto, ela podia ser tão totalmente desinibida e provocante quanto era profissional.

Kirov suspirou. Duas mulheres em um mesmo corpo. Por vezes, não tinha certeza de qual delas era a verdadeira. Mas apre­ciaria a ambas por tanto tempo quanto pudesse. Aos trinta anos, Lara estava apenas começando sua carreira. Inevitavelmente, seria nomeada para outros postos, e finalmente teria um posto de coman­do só para si. Kirov, vinte anos mais velho, passaria de seu amante para seu padrinho — ou, como os americanos gostavam de dizer, um "rabino" que cuidaria dos interesses de sua favorita.

Você não me falou sobre o americano — observou Lara, agora falando sério. — Qual deles é esse? Ultimamente temos recebido tantos.

Não contei porque você esteve fora o dia inteiro e não tive ninguém para me ajudar com esta papelada infernal — reclamou Kirov. Entregou a ela uma folha impressa por computador.

Dr. Jon Smith — leu ela. — Que nome comum. — Ela franziu a testa. — USAMRIID?

O nosso dr. Smith não tem nada de comum — comentou Kirov secamente. — Eu o conheci quando estava baseado em Fort Detrick.

"Estava"? Pensei que ainda estivesse.

De acordo com Randi Russell, ele ainda está ligado ao USAMRIID, mas está de licença por tempo indefinido. Ela telefonou para me pedir para recebê-lo.

Randi Russell... — Lara deixou o nome pairando no ar.

Kirov sorriu.

Não precisa ficar emburrada.

Só fico emburrada quando tenho bons motivos — respon­deu Lara em tom seco. — Então ela está abrindo caminho para Smith... que, de acordo com o que está escrito aqui, era noivo da irmã dela.

Kirov assentiu.

Ela morreu naquele horror do Hades.

E Russell, que nós dois desconfiamos de que seja agente da CIA, põe a mão no fogo por ele? Será que os dois estão armando algum tipo de operação secreta? Que está havendo, dusha?

Creio que os americanos estão com algum problema — rei ruçou Kirov em tom cansado. — E que nós somos parte desse problema ou eles precisam de nossa ajuda. De qualquer maneira, vamos descobrir daqui a pouco. Você e eu vamos nos encontrar com Smith esta noite.

 

Na tarde que caía, Smith saiu do bloco de apartamentos na Ulitisa Markovo. Levantou o colarinho para se proteger do vento e olhou para cima, para a fachada sombria de concreto do prédio. Em algum lugar atrás das vidraças anônimas do vigésimo andar, Katrina Danko estaria desempenhando a dolorosa tarefa de contar à sua filha de seis anos, Olga, que ela nunca mais veria o pai.

Para Smith o dever de visitar os parentes de mortos era uma obrigação que o afligia como nenhuma outra. Como todas as esposas e mães, Katrina soubera por que estava ali no minuto em que abrira a porta e pusera os olhos nele. Mas era uma mulher de tutano. Recusara a se entregar às lágrimas, perguntando a Smith como Yuri Danko morrera e se sofrerá. Smith lhe contara a verdade, na medida em que fora possível, depois dissera que já haviam sido tomadas providências para trazerem o corpo de Danko de volta para Moscou tão logo as autoridades venezianas o liberassem.

Ele falava muito do senhor — comentou Katrina. — Dizia que era um homem bom. Vejo que é verdade.

Gostaria de poder lhe dizer mais — disse Smith com sinceridade.

De que adiantaria? — perguntou Katrina. — Eu sabia o tipo de trabalho que Yuri fazia... os segredos, os silêncios. Mas ele o fazia porque amava seu país. Orgulhava-se de servi-lo. Tudo que peço é que a morte dele não seja em vão.

Posso lhe prometer que não será.

Smith caminhou de volta para seu hotel e passou a hora seguinte perdido em pensamentos. Visitar a família de Danko acrescentara um sentido de urgência pessoal à sua missão. É claro que podia se assegurar de que Katrina e sua filha vivessem confortavelmente. Mas isso não era suficiente. Agora, mais que nunca, precisava saber quem tinha matado Danko e por quê. Queria poder olhar para a viúva de Danko e dizer: "não, o homem que você amava não morreu em vão".

À medida que a noite caía, Smith desceu para o bar da recepção do hotel. Randi, vestindo um conjunto de saia e paletó azul-marinho, já o estava esperando.

Você está pálido, Jon — comentou logo ao vê-lo. — Está se sentindo bem?

Estou, não se preocupe. Obrigado por vir me encontrar.

Eles pediram vodca condimentada com pimenta e um prato de zakuski — uma conserva de cogumelos, arenque e outros tira-gostos. Depois que a garçonete se afastou, Randi ergueu o copo num brinde.

Aos amigos ausentes.

Smith repetiu suas palavras.

Falei com Kirov—disse Randi—e o informei dos detalhes para essa reunião de vocês — consultou o relógio de pulso. — Você vai ter de ir andando. Há mais alguma coisa que eu possa fazer?

Smith contou alguns rublos e os deixou sobre a mesa.

Vamos ver como correm as coisas com Kirov esta noite.

Randi chegou mais perto dele e pôs um cartão de visitas em sua mão.

Aqui tem meu endereço e o número de meu telefone, só por via das dúvidas. Você tem um telefone seguro, certo?

Smith deu uma palmadinha no bolso.

A última palavra em telefones celulares digitalmente criptografados — deu o número a ela.

— Jon, se descobrir alguma coisa que eu deva saber... — deixou o resto de sua sugestão no ar.

Smith apertou a mão de Randi.

Pode deixar.

 

Jon Smith já estivera em Moscou várias vezes, mas nunca tivera uma oportunidade de visitar a praça Dzerzhinsky. Agora, parado ali no vestíbulo cavernoso do edifício Zamat 3, todas as histórias que ouvira sobre guerreiros dos tempos da Guerra Fria lhe vieram à mente. Havia uma indiferença desalmada naquele lugar que nenhuma quantidade de tinta fresca podia esconder. Os ecos de passos nos pisos encerados soavam como passadas de condenados homens e mulheres que, desde o nascimento do comunismo, tinham sido arrastados por ali a caminho das salas de interrogatório nos porões. Smith perguntou a si mesmo como as pessoas que trabalhavam ali agora lidavam com os fantasmas do passado. Será que tinham consciência da presença deles? Ou seria o passado rapidamente descartado por temor de que, como um golem, pudesse voltar à vida?

Smith seguiu o jovem oficial que o acompanhava e entrou no elevador. Enquanto ia subindo, mentalmente passou em revista os detalhes que Randi lhe fornecera sobre a carreira do general-de-divisão Oleg Kirov e os de sua assistente, Lara Telegin.

Kirov parecia ser o tipo de soldado que conseguira se manter neutro no passado e no futuro. Criado sob o regime comunista, distinguira-se em combate durante a guerra do Afeganistão, o Vietnã da Rússia. Depois aderira ao partido dos reformistas. Quan­do uma frágil democracia se estabeleceu, seus patronos o haviam recompensado com uma comissão no recém-formado Serviço de Segurança Federal. Os reformistas estavam ansiosos para destruir a velha KGB e expurgar os remanescentes do antigo regime de suas fileiras. As únicas pessoas em quem confiavam para fazer este trabalho de limpeza eram os soldados testados em combate como Kirov, cuja lealdade à nova Rússia era inquestionável.

Se Kirov representava uma ponte para o futuro, Lara Telegin era a grande esperança do futuro. Estudara na Rússia e na Inglaterra e era um exemplo da nova linhagem de tecnocratas russos: multilíngüe, com uma visão de mundo global, era um gênio em tecnologia que conhecia mais sobre Internet e Windows que a maioria dos ocidentais.

Mas Randi enfatizara que, quando se tratava de questões de segurança nacional, os russos ainda eram reservados e desconfia­dos. Podiam beber com você uma noite inteira, brindar você com os detalhes de suas mais íntimas ou mais embaraçosas experiências. Mas, se você fizesse a pergunta errada sobre o assunto errado, imediatamente se ofenderiam e a confiança estaria acabada.

O Bioaparat é um assunto tão sensível, quanto um assunto pode ser sensível, pensou Smith, enquanto era convidado a entrar no escri­tório de Kirov. Se Kirov interpretar mal o que tenho a lhe dizer, eu poderia estar embarcando de volta num avião antes do amanhecer.

Dr. Jon Smith!

A voz de Kirov ecoou na sala enquanto se aproximava e apertava a mão de Smith. Era um homem alto, de ombros largos, tronco corpulento, com uma basta cabeleira prateada e um rosto que poderia ser estampado numa moeda romana.

É um prazer vê-lo de novo—prosseguiu. — A última vez foi em... Genebra, há cinco anos. Correto?

Sim, foi, general.

Permita-me lhe apresentar minha ajudante, a tenente Lara Telegin.

Muito prazer, doutor — disse Telegin, avaliando Smith abertamente e aprovando o que via.

O prazer é todo meu — respondeu Smith.

Ele refletiu que com seus olhos escuros e cabelos negros como piche, Lara Telegin parecia o arquétipo da sedutora russa saída de um romance da Rússia do século XIX, uma sereia que levava à loucura e à ruína homens que, não fosse por ela, seriam racionais.

Kirov indicou um carrinho de bebidas.

Posso lhe oferecer um drinque, dr. Smith?

Não, obrigado.

Muito bem. Nesse caso, como vocês americanos gostam de dizer, o que o está preocupando?

Smith lançou um olhar para Lara Telegin.

Sem querer ofendê-la, tenente, gostaria de lhe pedir licença, pois o assunto é altamente confidencial.

Mas é claro, de modo algum, doutor — respondeu ela numa voz sem cor. — Contudo tenho acesso liberado para material de nível COSMIC, do tipo que o senhor levaria a seu presidente. Além disso, pelo que entendi, não está aqui em missão oficial. Não é?

A tenente goza de minha inteira confiança — acrescentou Kirov. — Aqui, o senhor pode falar livremente, doutor.

Muito bem — respondeu Smith. — Vou presumir que esta conversa não esteja sendo monitorada e que esta sala seja segura, sem aparelhos de escuta.

Pode ficar tranqüilo quanto a isso.

Bioaparat — disse Smith.

Aquela única palavra provocou as reações que ele esperava: choque e preocupação.

Qual é o problema com o Bioaparat, doutor? — perguntou Kirov em voz baixa.

General, tenho bons motivos para acreditar que está haven­do uma violação dos procedimentos de segurança no local. Se o material já não tiver desaparecido, há um plano em via de execução para roubar algumas das amostras que são mantidas lá.

Absurdo! — retrucou Lara Telegin indignada. — O Bioaparat tem alguns dos sistemas de segurança mais avançados do mundo. Ja ouvimos esse tipo de acusações antes, dr. Smith. Francamente, as vezes o Ocidente parece que pensa que somos pouco mais que crianças mexendo com brinquedos perigosos. É um insulto e...

Lara!

Kirov falou em voz suave, mas a ordem ficou muito clara.

O senhor deve perdoar a tenente — disse para Smith. — Ela fica ofendida quando o Ocidente parece nos tratar com con­descendência ou paternalismo — algo que às vezes acontece, não concorda?

General, não estou aqui para criticar seus sistemas de segurança — respondeu Smith. — Não teria vindo de tão longe até aqui se não acreditasse que vocês têm um problema grave... ou que o senhor, pelo menos, não ouviria o que tenho a dizer.

Então, por favor, prossiga, diga qual é o nosso "problema".

Smith reorganizou as idéias e respirou fundo.

O alvo mais provável são seus estoques de varíola.

Kirov empalideceu.

Mas isso é loucura! Ninguém em sã consciência tentaria roubar isso!

"Sãs consciências" não tentariam roubar nada do que vocês mantêm no Bioaparat. Mas temos informações de que o roubo está em curso.

Quem é sua fonte, doutor? — questionou Telegin. — Até que ponto ela é digna de confiança?

Absolutamente digna de confiança, tenente.

O senhor a apresentaria a nós de modo que pudéssemos nos convencer também?

A fonte está morta — respondeu Smith, tentando manter a voz calma.

Conveniente — observou ela.

Smith virou-se para Kirov.

— Por favor, me escute. Não estou dizendo que o senhor ou que o governo russo está envolvido nisso. O roubo está sendo tramado por terceiros que, neste momento, são desconhecidos. Mas, para eles, tirar as amostras da Rússia requer que tenham cooperação de pessoas dentro do Bioaparat.

O senhor está sugerindo que o pessoal de pesquisa ou de segurança está envolvido — retrucou Kirov.

Poderia ser qualquer pessoa que tenha acesso às amostras de varíola — Smith fez uma pausa. — Não estou julgando e condenan­do seu povo nem seu sistema de segurança, general. Eu sei que a maioria das pessoas que trabalham no Bioaparat são tão leais quan­to as que trabalham em nossas instalações de pesquisa. Mas estou lhe dizendo que o senhor tem um problema — que se tornará nosso problema, e provavelmente do mundo — se as amostras saírem.

Kirov acendeu um cigarro.

O senhor veio até aqui só para me dizer isso — falava lentamente. — Mas o senhor também tem um plano, não tem?

Ponha o Bioaparat em isolamento — respondeu Smith. — Agora, neste instante. Monte um cerco militar às instalações. Nada entra — e com certeza, nada nem ninguém sai. Amanhã de manhã, o senhor inspeciona os estoques de vírus pessoalmente. Se estiverem todos lá, ótimo, estamos em segurança, e o senhor pode sair atrás do traidor.

E o senhor, dr. Smith? Onde ficaria enquanto tudo isso estivesse acontecendo?

Eu lhe pediria que me concedesse uma posição de observador.

Não confia em que lhe diremos se os estoques estiverem intactos, doutor? — provocou Telegin.

Não é uma questão de confiança, tenente. Se a situação fosse inversa, a senhora não quereria estar em campo, no local de nossas instalações?

Mas ainda há a questão de sua fonte — retrucou Kirov. — Compreenda, doutor. Fazer o que o senhor está pedindo exige que eu consulte o presidente pessoalmente. Eu certamente posso ates­tar a validade de suas credenciais. Mas preciso de muito bons motivos para ir perturbar o sono dele. Se eu tiver o nome de sua fonte, se puder verificar suas qualificações, isso validaria muito do que o senhor nos contou.

Smith virou o rosto. Ele soubera que poderia acabar se resu­mindo nisso, em entregar a identidade de Yuri Danko de maneira a garantir a cooperação de Kirov.

O homem tem família — disse finalmente. — Preciso que me dê sua palavra de que a família não será prejudicada e de que, se quiserem, podem deixar o país — levantou a mão antes que Kirov pudesse responder. — Aquele homem não era um traidor, general. Ele só veio me procurar porque não sabia até que nível ia a conspiração no alto escalão. Ele abriu mão de tudo o que tinha aqui para que a Rússia não fosse responsabilizada se alguma coisa acontecesse.

Compreendo isso — respondeu Kirov. — Tem a minha garantia de que a família não será prejudicada. Além disso, que a nnica pessoa com quem falarei será o presidente Potenko — a menos que me diga que ele de alguma forma pode ser um risco?

Não creio que seja o caso — respondeu Smith.

Então estamos de acordo. Lara, ligue para o oficial de plantão no Kremlin. Diga-lhe que é urgente e que estou a caminho.

Virou-se para Smith.

Agora, aquele nome, por favor.

— Creio que você está depositando uma enorme confiança no americano — comentou Lara Telegin, enquanto ela e Kirov se­guiam pela garagem subterrânea em direção ao carro dele. — Talvez confiança demais. Se for um mentiroso, ou pior, um agente provocador, você poderia acabar tendo que responder a algumas perguntas embaraçosas.

Kirov retribuiu a saudação de seu motorista e deu um passo ao lado para permitir que Lara entrasse no carro.

Perguntas embaraçosas — repetiu depois que estavam acomodados no carro. — Só isso?

Ela lançou um olhar para a divisória que separava o banco do motorista do resto do carro, assegurando-se de que estivesse to­talmente fechada. Esse tipo de comportamento estava enraizado nela, em resultado de seu treinamento de serviço de informações militares.

Você sabe o que estou querendo dizer — replicou. — Para um soldado, você tem opiniões muito progressistas. Já lhe criaram um bocado de inimigos.

Se por progressista você quer dizer que eu quero que a Rússia entre no século XXI, então me declaro culpado — respondeu Kirov. — E se de vez em quando tenho de assumir um risco para me assegurar de que essas opiniões prevaleçam contra os 'neandertais' que gostariam de nos mandar de volta para um sistema político falido, assim seja.

Segurou-se na alça da porta quando o carro saiu e acelerou en­trando na larga avenida arborizada que passa pela praça Dzerzhinsky.

Ouça com atenção, Lara — prosseguiu. — Homens como Jon Smith não empenham a palavra temerariamente. Você pode ter certeza de que ele não está numa missão idiota. Indivíduos no alto escalão do governo americano acreditam que a informação seja importante o suficiente para enviar Smith até aqui. Compreende o que estou querendo dizer? O que autorizaram Smith a fazer, o que lhe deram ordens para fazer — não as palavras dele — legitima a informação que os americanos acreditam ter.

A palavra de um traidor — disse ela com amargura.

Lara precisara de vinte minutos para confirmar que Yuri Danko estava desaparecido e que seu paradeiro era desconhecido. Exceto que os americanos, malditos sejam, sabem que ele está morto!

Se considerarmos apenas as aparências, Danko era um traidor — concordou Kirov. — Mas é fácil compreender seu dilema: que teria acontecido se ele procurasse seu superior imediato, ou mesmo alguém mais acima na hierarquia de comando e essa pessoa tivesse se revelado parte dessa "conspiração"? Danko agora estaria morto e nós não saberíamos de nada.

Kirov olhou para fora pela janela à prova de balas para as luzes das ruas passando ligeiras.

Creia-me, eu espero que os americanos estejam enganados disse em tom suave. — Nada me agradaria mais que mostrar a Smith que o Bioaparat é absolutamente seguro e que ele foi vítima de um engano. Mas enquanto não puder fazer isso, tenho de dar a ele o benefício da dúvida. Você compreende, dusha?

Ela apertou a mão dele.

Melhor do que você imagina. Afinal, estou aprendendo aos pés do mestre.

O grande sedã passou pelo portão Spassky do Kremlin, paran­do apenas no controle de segurança onde a identidade dos passageiros era verificada. Alguns minutos depois, Kirov e Telegin foram escoltados até a área do Kremlin que abriga o apartamento do presidente e seus aposentos particulares de trabalho.

É melhor eu esperar aqui — disse Telegin, quando entraram no imponente vestíbulo abobadado construído por Pedro o Grande. — Certamente haverá mais informações chegando sobre Danko.

Sem dúvida, e Smith nos passará essas informações — respondeu Kirov. — Mas, agora, creio que está na hora de você começar a se habituar a se apresentar a seus superiores civis.

Telegin mal conseguiu esconder sua surpresa e agitação en­quanto seguiam o oficial de serviço subindo a escadaria dupla. Foram conduzidos a uma biblioteca, elegantemente mobiliada, onde um homem vestindo um robe de lã grossa estava sentado diante da lareira acesa.

Oleg Ivanovisch, espero que você realmente tenha bons motivos para privar um velho de suas horas de sono.

Victor Potrenko demonstrou ter um porte de elegância aristocrática quando se levantou para apertar a mão de Kirov.

Permita-me apresentar-lhe minha ajudante, tenente Lara Telegin.

Tenente Telegin — murmurou Potrenko.—Tenho ouvido coisas boas a seu respeito. Por favor, sente-se.

Lara achou que Potrenko se demorara segurando sua mão. Talvez os rumores sobre o velho presidente de 75 anos fossem verdade — que ele tinha uma queda por mulheres jovens, especial­mente bailarinas.

Quando todos estavam sentados, Potrenko prosseguiu:

Então o que é toda essa história sobre o Bioaparat?

Rapidamente, Kirov explicou os aspectos fundamentais de sua conversa com Smith.

Creio que esta é uma situação que devemos levar realmente a sério — concluiu.

É mesmo? — Potrenko refletiu. — Tenente Telegin, qual é sua opinião?

Lara sabia que suas próximas palavras poderiam muito bem pôr sua carreira na linha de tiro. Mas também sabia que os dois homens diante dela eram mestres em detectar nuances e dissimu­lação. Perceberiam uma mentira ou uma evasiva, um subterfúgio mais depressa que um falcão avista uma lebre.

Receio que tenha de desempenhar o papel de advogado do diabo, sr. presidente — e explicou suas reservas com relação a aceitar como verdadeiras as palavras de Smith.

— Boas observações—elogiou Potrenko. Virou-se para Kirov. — Não perca esta aqui — fez uma pausa. — E então, que fazemos? Por um lado, os americanos não têm nada a ganhar denunciando uma violação das regras. Por outro, é doloroso acreditar que um roubo desta magnitude possa ocorrer debaixo de nosso nariz... sem que sequer desconfiemos.

Potrenko se levantou e aproximou-se da grade da lareira, aquecendo as mãos. Pareceu levar muito tempo até começar a falar.

Temos um centro de treinamento de Forças Especiais nos arredores de Vladimir, não temos?

Temos, sr. presidente.

Ligue para o comandante e autorize um cerco militar impondo uma quarentena ao Bioaparat, a ser efetuado imediata­mente. Você, a tenente Telegin e o dr. Smith voarão para lá ao raiar do dia. Se o roubo tiver ocorrido, você me notificará imediatamen­te. De qualquer maneira, quero uma verificação completa dos procedimentos de segurança.

Sim, sr. presidente.

Oleg?

Sim, senhor?

Se até mesmo um grama de varíola estiver faltando, alerte nossos caçadores de vírus imediatamente. Depois prenda todo mundo no Bioaparat.

 

 

Depois de aterrissar no aeroporto de Nápoles, Peter Howell tomou um táxi para o porto, onde embarcou numa grande lancha a motor de alta velocidade para fazer a travessia de trinta minutos do estreito de Messina. Pelas grandes janelas panorâmicas do salão, observou enquanto a Sicília ia surgindo no horizonte, primeiro as crateras do monte Etna, depois Palermo propriamente dita, aninhada sob a silhueta enorme de rocha calcária do monte Pellegrino, que ia se afilando até acabar num platô ao nível do mar.

Colonizada pelos gregos, invadida pelos romanos, árabes, normandos e espanhóis, a Sicília é um ponto intermediário de escala e parada para soldados e mercenários ao longo de séculos. Fazendo parte da mesma tribo, Howell já estivera na ilha tanto como visitante, quanto como combatente. Depois de desembarcar da lancha, foi para o coração da cidade — o Quattro Centri, ou Quatro Cantos. Ali encontrou acomodações numa pequena penzione onde já se hospedara antes. Ficava bem afastada do tráfego de turistas mas, ao mesmo tempo, a uma distância que se podia fazer a pé dos lugares onde Howell precisava ir.

Como era seu costume, Howell saiu para fazer um reconheci­mento das áreas da cidade que pretendia visitar. Como esperava, nada mudara desde sua última visita, e o mapa que trazia na memória lhe foi muito útil. Quando retornou à penzione, dormiu até o anoitecer, então dirigiu-se para a Albergheria, uma área densa­mente populosa, de ruas estreitas, no bairro dos artesãos de Palermo.

A Sicília era famosa por seus fabricantes de facas e pela quali­dade dos produtos que estes ofereciam, e Howell não teve nenhuma dificuldade para comprar uma faca de lâmina muito bem afiada, de vinte e cinco centímetros, com um robusto cabo revestido de couro. Agora que tinha uma arma, Howell seguiu para o porto, onde as tavernas e as pequenas pensões definitivamente não eram mencio­nadas nos guias turísticos.

Howell sabia que o bar se chamava La Pretória, embora não houvesse nenhuma placa nas paredes de pedra. Lá dentro havia um grande salão, apinhado, com o chão coberto de serragem e o teto revestido de toras de madeira. Pescadores e construtores de barcos, mecânicos e marinheiros sentavam-se às grandes mesas comunitá­rias bebendo grapa, cerveja ou o rascante vinho siciliano gelado. Vestindo calças de veludo cotelê, um velho suéter de pescador e um gorro de tricô, Howell não atraiu atenção. Comprou duas grapas no bar e levou os copos para a ponta de uma das mesas.

O homem sentado à sua frente era baixo e corpulento, de rosto com a barba por fazer, marcado pelo mar e pelo vento. Olhos frios cinzentos observaram Howell em meio a uma névoa de fumaça de cigarro.

Fiquei surpreso ao ter notícias suas, Peter — exclamou em voz rouca.

Howell levantou o copo.

Salute, Franco.

Franco Grimaldi — outrora membro da Legião Estrangeira da França, atualmente contrabandista profissional — largou o cigarro e levantou o copo. Teve de fazer isso porque só tinha o braço direito, perdido o esquerdo para a espada de um rebelde tunisiano.

Os dois homens beberam os drinques de um gole e Grimaldi enfiou o cigarro de volta entre os lábios.

Então, velho amigo. O que o traz a meu bar?

Os irmãos Rocca.

Os lábios carnudos de Grimaldi se abriram no que poderia ter sido confundido com um sorriso.

Ouvi dizer que as coisas não correram bem para eles em Veneza — lançou um olhar matreiro para Howell. — Você acabou de vir de lá, não foi?

Os Rocca executaram um contrato, então alguém os execu­tou — respondeu Howell, a voz dura e seca. — Quero saber quem os executou.

Grimaldi deu de ombros.

É melhor não investigar muito de perto os negócios dos Rocca, mesmo estando mortos.

Howell passou um rolo de notas de dólares americanos para o outro lado da mesa.

Preciso saber, Franco.

O siciliano fez o dinheiro sumir como um mágico.

Ouvi dizer que foi um contrato especial — disse, cobrindo o lado da boca enquanto segurava o cigarro.

Seja mais específico, por favor, Franco.

Não tenho como lhe dizer. Geralmente, os Rocca não faziam segredo de seus contratos, especialmente depois de alguns drinques. Mas ficaram calados com relação a esse trabalho.

E você soube dele porque...

Grimaldi sorriu.

Porque durmo com a irmã deles, que cuidava da casa para os irmãos. Ela sabia de tudo que acontecia entre aquelas paredes. Também se excita com facilidade e adora uma fofoca.

Você acha que poderia usar seus encantos para conseguir mais alguns detalhes?

O sorriso tornou-se ainda mais largo.

Seria um trabalho difícil, mas para um amigo... Maria — esse é o nome dela — provavelmente ainda não soube da notícia. Eu contarei a ela, depois a deixarei chorar em meu ombro. Nada como o luto para soltar a língua.

Howell deu a ele o nome da penzione onde estava hospedado.

Ligo para você mais tarde esta noite — disse Grimaldi. — Venha se encontrar comigo no lugar de costume.

Enquanto Howell observava Grimaldi sair, passando discreta­mente entre as mesas, reparou num par de homens sentados numa das mesas menores perto do bar. Estavam vestidos como a gente do lugar, mas o físico de ginastas e o cabelo cortado à escovinha traíam sua verdadeira identidade. Soldados.

Howell estava familiarizado com a grande base militar ameri­cana nos arredores de Palermo. Durante seus tempos de serviço no SAS, tivera ocasião de usá-la como campo de ensaio para operações conjuntas com os SEALs da Marinha Americana — equipes de comandos de mar, terra e ar. Por motivos de segurança, a maioria do pessoal mantinha-se dentro do perímetro da base. Quando se aventuravam a sair, geralmente era em grupos de seis ou mais, e só iam aos bares e restaurantes da moda. Não havia nenhuma razão para que aqueles dois espécimes robustos estivessem ali, a menos...

       C-12.

Os explosivos usados para matar os irmãos Rocca eram uma criação americana. Rigidamente controlada. Mas certamente dis­ponível numa das maiores bases dos Estados Unidos no sul da Europa.

Seria o agente pagador dos Rocca — possivelmente o indivíduo que os contratara para matar Danko — o mesmo que sabotara a gôndola?

Enquanto se levantava da mesa, Howell observou mais uma vez os dois americanos.

Ou será que aquilo fora uma missão de soldados desde o princípio?

 

Pouco antes da meia-noite, o porteiro sonolento da penzione bateu na porta de Peter Howell para informá-lo de que havia um telefo­nema para ele. Ficou surpreso ao descobrir que seu hóspede estava vestido, como se pronto para sair.

Howell falou rapidamente ao telefone, deu uma gorjeta ao porteiro e desapareceu na noite. A lua estava alta no céu, iluminan­do as lojas deportas fechadas do mercado Vuccira. Howell atraves­sou o quadrado vazio até a piazza Bellini, depois seguiu pela via Viltorio Emannuelle, a principal via pública da cidade. No corso Calatofini, dobrou à direita, agora a apenas noventa metros de sua destinação.

Dominando a via Pindemonte, fica o convento dei Cappuccini - o convento dos Capuchinhos. Embora seja um exemplo notável dc arquitetura da Idade Média, o verdadeiro atrativo do monastério fica sob o solo. Nas catacumbas que cercam o convento, estão enterrados mais de oito mil corpos, de leigos e de religiosos. Preservados por meio de vários processos químicos, estão dispostos nos nichos ao longo dos corredores e vestidos com as roupas que as próprias pessoas enterradas forneceram antes da morte. Os corpos não enfileirados nas paredes frias e úmidas, pingando água, de pedra calcária, repousam em caixões de vidro empilhados do chão ao teto.

Embora abertas ao público durante o dia, as catacumbas foram durante séculos um dos esconderijos favoritos de contrabandistas. Havia uma dúzia de entradas e saídas, e Peter Howell, que estudara cuidadosamente as catacumbas, conhecia todas.

Quando ia se aproximando dos portões que fronteavam a entrada cercada de jardins do monastério, Howell ouviu um asso­bio baixo. Fingiu não ver Grimaldi se esgueirar saindo das sombras até o contrabandista estar a apenas alguns passos de distância. O luar criava minúsculos reflexos de luz que pareciam dançar nos olhos cinzentos de Grimaldi.

O que descobriu? — perguntou Howell.

Uma coisa que fez valer a pena sair da cama — respondeu o contrabandista. — O nome do homem que contratou os Roccas. Está com medo. Acha que, depois dos Roccas, será o próximo. Quer dinheiro para sair da ilha e se esconder no continente.

Howell assentiu.

Dinheiro não é problema. Onde está ele?

Grimaldi fez sinal para que o inglês o seguisse. Contornaram a cerca de ferro batido, entrando nas sombras criadas pelas paredes altas do monastério. O contrabandista reduziu o passo, então agachou-se ao lado de um pequeno portão cortado na cerca. Seus dedos estavam ocupados mexendo na tranca, quando Howell detec­tou a anomalia.

A tranca já estava aberta!

Howell se moveu como um fantasma. Tão logo Grimaldi empurrou o portão aberto, desferiu-lhe um golpe destinado a atordoar, não a matar, no lado da cabeça. Grimaldi deixou escapar um leve suspiro e caiu inconsciente.

Howell não parou. Esgueirando-se pelo portão, seguiu colado à fileira da cerca viva que formava um corredor até a entrada das catacumbas. Não avistou nada, o que significava...

A armadilha estava do lado de fora do perímetro, não dentro!

No instante em que girou, fazendo meia-volta, Howell ouviu o ranger do gonzo do portão. Duas sombras se arremessaram em sua direção. Na fração de segundo em que o luar iluminou os rostos, reconheceu os soldados da taverna.

Imediatamente a faca apareceu em sua mão. Howell se manteve na mesma posição até o último segundo possível; então, como um toureiro, girou o corpo para permitir que o primeiro soldado passasse correndo por ele. Num movimento rápido, a lâmina fez uma curva para cima e para o lado, o gume afiado penetrando e cortando o diafragma do homem.

Howell não esperou para vê-lo cair. Fazendo uma finta para a direita, moveu-se para a esquerda, mas isso não enganou o segundo soldado. Ouviu um suave fut! quando a arma automática com silenciador disparou. O hálito quente da bala quase queimou sua têmpora. Howell se abaixou rente ao chão, chutou com as duas pernas e golpeou o joelho do atacante com o calcanhar.

Imediatamente Howell agarrou a pistola, mas antes que pudes­se apontar a arma para o soldado viu Grimaldi se levantar camba­leando. A bala que teria sido para o soldado rasgou a garganta de Grimaldi matando o contrabandista. Enquanto o segundo soldado lugia, Howell enfiou a arma na cintura, correu até Grimaldi e o arrastou para dentro do portão, até a entrada das catacumbas. Como esperava, essa porta também estava destrancada.

Alguns minutos depois, Howell embrenhava-se nas profun­dezas dos túneis do monastério. A luz de um lampião que encontra­ra revelou sua presa daquela noite: Grimaldi estava caído ao lado de um poço revestido de concreto cuja tampa já tinha sido arrancada. O soldado ferido, com a frente da jaqueta coberta de sangue, estava encostado na mureta de noventa centímetros do poço.

Nome.

A respiração do soldado estava arquejante, o rosto empalidecendo por causa da perda de sangue. Lentamente levantou a cabeça.

Vá se danar!

Revistei suas roupas — disse Howell. — Não tem carteira, nenhum documento de identidade, suas roupas nem sequer têm etiquetas. Só gente que tem muito a esconder se dá a todo esse trabalho. Portanto o que você está escondendo?

O soldado cuspiu, mas Howell era rápido demais. Pondo-se de pé, arrastou seu prisioneiro até a borda do poço.

Vocês mataram os vigias do monastério? — interrogou. — Foi aqui que esconderam os corpos?

Agarrando o soldado pelo pescoço, obrigou-o a debruçar metade do corpo sobre o parapeito de concreto.

É aí que vai me jogar?

O soldado gritou quando Howell, agarrando-o pelo colarinho da jaqueta o empurrou para o buraco negro escancarado. De 15 metros mais abaixo subiu o fedor de água salobra.

Howell olhou para os pontos vermelhos que dardejavam lá no fundo.

Ratos. Provavelmente há água suficiente lá em baixo para que a queda não mate você. Mas eles matarão. Bem devagar. — puxou o homem de volta.

O soldado umedeceu os lábios.

Você não...

Howell o encarou.

Você está ferido. Seu parceiro se mandou há muito tempo. Me dê as informações de que preciso e prometo que não vai sofrer. Escute isso.

Howell o empurrou de volta para o chão e depois foi buscar o corpo inerte de Franco Grimaldi. Ele o carregou até o poço e sem nem uma sombra de hesitação o atirou por cima do parapeito, Um segundo depois houve um ruído alto de choque contra a água seguido pelos guinchos estridentes de ratos atacando sua vítima.

Os olhos do soldado se reviraram de terror.

Nome?

— Nichols. Travis Nichols. Sargento de brigada. Meu parceiro é Patrick Drake.

Corpo de Combate de Guerrilha?

Nichols gemeu enquanto assentia.

Quem mandou vocês virem atrás de mim?

Nichols o encarou.

Não posso...

Howell o agarrou e puxou para perto com violência.

Escute bem o que vou dizer. Mesmo se você viver, não seria mais que um fio solto precisando ser cortado. Especialmente quan­do descobrirem que não estou morto. A única chance que você tem é me contar a verdade. Faça isso e eu farei o que você precisa.

Nichols se encolheu contra a mureta de concreto. Suas palavras foram saindo aos arrancos, com bolhas de sangue vermelho vivo.

Drake e eu fazíamos parte de um pelotão especial. De assassinos profissionais. Comunicações só através de interme­diários dando cobertura para operações secretas. Um de nós recebia um telefonema — um engano, só que não era. Então íamos para a agência de correios onde tínhamos uma caixa postal alugada. As ordens estavam lá, esperando.

Ordens escritas?

Em papel falso. Nada mais que um nome ou um lugar. Depois disso, íamos nos encontrar com um contato e ele dava os detalhes.

Neste caso, o contato era Grimaldi. Quais eram as ordens?

Matar você e dar sumiço no corpo.

Por quê?

Nichols olhou para Howell.

Você e eu somos iguais. Sabe muito bem que ninguém dá motivos para esse tipo de coisa.

Quem é ninguém?

As ordens podem ter tido origem em um entre uma dúzia de lugares diferentes: o Pentágono, o Serviço de Inteligência do Exército em Frankfurt, a NSA. Escolha o que preferir. Mas, quando seu trabalho é eliminar gente, sabe que quem emitiu a ordem tem de estar lá nos altos escalões, elas vêm lá de cima. Escute, você pode me entregar aos ratos, mas isso não vai lhe conseguir um nome. Sabe como essas coisas funcionam.

Howell sabia.

O nome Dionetti significa alguma coisa para você?

Nichols sacudiu a cabeça. Seus olhos estavam vidrados.

Howell sabia que ninguém, exceto Marco Dionetti — o ho­mem que o recebera em sua casa e oferecera sua amizade — tinha conhecimento de que ele viria para Palermo. Dionetti... com quem teria de ter uma conversinha.

Como vocês deveriam comunicar que a missão foi bem-sucedida? — perguntou Howell a Nichols.

Deixar uma mensagem numa outra caixa postal — no máximo até amanhã ao meio-dia. Número 67. Alguém virá buscar... Ah, meu Deus, como dói!

Howell chegou o rosto bem perto dos lábios de Nichols. Preci­sava de uma última coisa de Nichols e rezou para que o soldado ainda tivesse forças para dá-la. Esforçou-se para ouvir enquanto o soldado finalmente deixava escapar seus mais preciosos segredos. Então ouviu o gorgolejar suave do estertor da morte.

Deixando a lamparina onde estava, Howell permitiu a si mes­mo um momento para se recompor. Finalmente suspendeu o corpo e o deixou cair sobre a borda do poço. Rapidamente, de modo a não ler de ouvir os ratos, empurrou a tampa pesada de volta para o lugar e girou a tranca.

 

 

À primeira vista, o complexo do Bioaparat poderia ser confundido com um pequeno campus universitário. Os prédios de tijolos vermelhos com telhados de ardósia eram realçados por portas e janelas emolduradas de branco e eram ligados uns aos outros por caminhos revestidos com lajes de pavimentação. O orvalho rebrilhava no gramado sob antigos lampiões de carruagem. Havia vários quadrângulos com bancos de pedra e mesas de concreto pré-fabricadas onde os funcionários podiam apreciar um almoço ao ar livre ou uma partida de xadrez.

O efeito era ligeiramente menos bucólico durante o dia, quan­do era fácil ver os rolos de arame farpado sobre o muro de concreto, de 3,70 metros, cercando o centro. Então, como agora, os guardas armados de metralhadoras fazendo rondas, acompanhados por dobermans, ficavam visíveis. Dentro de alguns dos prédios, havia sistemas de segurança mais sofisticados e complexos.

Havia um motivo pelo qual não se poupara despesas no que dizia respeito à aparência do Bioaparat: o centro de pesquisa era aberto a inspetores internacionais de armas de guerra biológica. Os psicólogos prestando consultoria haviam recomendado que as instalações evocassem um ambiente acolhedor, familiar, que não fosse ameaçador, mas que ao mesmo tempo impusesse uma boa medida de respeito. Muitos projetos foram estudados; no final uma planta de campus fora escolhida. Os psicólogos argumentaram que a maioria dos inspetores eram ou um dia foram acadêmicos. Eles iriam sentir-se à vontade em um ambiente daquele tipo, que falava de pesquisa pura, benevolente. Depois que se sentissem à vontade, os inspetores teriam mais probabilidade de se deixar ser guiados, em vez de bancarem detetives médicos.

Os psicólogos estavam certos: as equipes multinacionais que visitaram o Bioaparat ficaram impressionadas tanto com o ambien­te, quanto com as instalações e equipamento de tecnologia de ponta. A ilusão era alimentada pela familiaridade. Quase todo o equipamento no Bioaparat viera do Ocidente: microscópios ame­ricanos, fornos e tubos de ensaio franceses, reatores alemães, fermentadores japoneses. Os inspetores associavam essas ferra­mentas a pesquisas específicas, principalmente sobre Brucella melintensis, uma bactéria que ataca o gado, e sobre uma proteína do leite, chamada caseína, que estimula um maior crescimento em várias sementes. Dezenas de empregados, vestindo jalecos brancos engomados, cuidando de suas tarefas em laboratórios imaculados completavam o efeito desejado. Tranqüilizados pela sensação de ordem e eficiência, os inspetores estavam preparados para aceitar o que viam no Edifício 103 como sendo verdade.

O Edifício 103 era uma estrutura Zona Dois, construída nos moldes de uma boneca matryoshka. Se o telhado fosse removido, o que se revelaria seria um complexo de uma caixa dentro de uma caixa. A estrutura exterior era reservada ao pessoal administrativo e de segurança, diretamente responsável pela custódia, guarda e proteção das amostras de varíola. A primeira das duas estruturas internas era uma área "quente" que abrigava jaulas de animais, laboratórios especialmente projetados para trabalhar com agentes patogênicos e gigantescos fermentadores de 16 toneladas. A segun­da estrutura, o verdadeiro miolo, continha não só um refrigerador semelhante a uma caixa-forte onde ficavam armazenadas as amostras de varíola, mas também fileiras de centrífugas de aço inoxidá­vel e máquinas de secar e de moer. Ali eram conduzidas experiên­cias projetadas para desvendar o mistério da Variola major. A natureza dos testes, sua duração, a quantidade de varíola usada, e os resultados eram listados num computador que somente as equipes de inspeção internacional podiam consultar. Procedimentos de segurança desse tipo foram projetados para impedir o uso não autorizado de varíola em experiências como recombinação de genes ou replicação.

As equipes de inspeção nunca encontraram provas de que se fizesse qualquer coisa exceto pesquisa aprovada no Edifício 103. Os relatórios elogiavam os cientistas russos por suas tentativas de descobrir se a varíola poderia ou não esconder o segredo para curar doenças que ainda afligiam a humanidade. Finalmente, depois de passar em revista os formidáveis dispositivos de segurança — que consistiam quase que exclusivamente em equipamentos de vigilân­cia eletrônica e de vídeo, e desse modo reduziam ao mínimo a necessidade da presença de seres humanos — os inspetores anun­ciavam oficialmente e por escrito a integridade do Edifício 103. Afinal, nunca se deixara de prestar contas de nem sequer um grama de varíola.

 

O telefonema do presidente Potrenko para o centro de treinamento de Forças Especiais nos arredores de Vladimir foi anotado no registro à 1:30h. Seis minutos depois, um dos oficiais de serviço batia à porta do chalé do coronel Vassily Kravchenko. Meia hora depois, Kravchenko estava em seu escritório, ouvindo as ordens detalhadas de Potrenko para que fosse imposta uma quarentena não detectável, que isolaria totalmente o Bioaparat do mundo exterior.

Homem baixo e atarracado, Kravchenko era veterano da guer­ra do Afeganistão, da Chechênia e de outros lugares para onde seu batalhão de Forças Especiais fora enviado. Ferido em combate, fora dispensado de serviço ativo e enviado para Vladimir para supervi­sionar o treinamento de novos recrutas. Depois de ouvir o que Potrenko tinha a dizer, a oportunidade da chamada o deixou satisfeito: tinha duzentos soldados que haviam acabado de comple­tar os exercícios de treinamento de campo. Com eles, podia cercar e isolar totalmente a cidade inteira de Vladimir, de modo que o complexo do Bioaparat não seria nenhum problema.

Kravchenko respondeu rápida e sucintamente às perguntas de Potrenko, garantindo-lhe que, em menos de uma hora, poderia ter seus homens em posição. Ninguém dentro da área cercada do centro de pesquisas nem na cidade saberia do acontecimento.

Sr. presidente — perguntou — quais são exatamente mi­nhas ordens se alguém tentar sair do Bioaparat depois que o isolamento em quarentena estiver feito?

Dê uma advertência, coronel. Somente uma. Se ele resistir ou tentar fugir, pela presente ordem está autorizado a atirar para matar. Não preciso recordar-lhe o motivo.

Não, sr. presidente.

Kravchenko conhecia muito bem as misturas infernais arma­zenadas nos porões ultra-secretos do Bioaparat. Também fora lestemunha do uso de armas químicas no Afeganistão e os resulta­dos estavam indelevelmente gravados em sua memória.

Executarei suas instruções como ordenou, sr. presidente.

E estarei esperando que me comunique quando o cordão de isolamento estiver em posição, coronel.

 

Enquanto Kravchenko e Potrenko concluíam a conversa telefôni­ca, o tenente Grigori Yardeni, do Destacamento de Segurança do Bioaparat (BSD), encontrava-se em seu escritório no Edifício 103. Observava as imagens nas telas da fileira de monitores de circuito fechado de televisão quando o telefone celular em seu bolso tocou.

A voz estava destorcida por um sintetizador e soava como um sussurro estrangulado.

Faça agora. E prepare-se para usar a Opção Dois. Com­preende?

Yardeni mal conseguiu pronunciar as palavras.

Opção Dois.

Ficou sentado ali por um momento, imobilizado pelas implicações do que acabara de ouvir. Passara tantas noites imaginando receber aquela chamada que agora, recebida, parecia-lhe irreal.

Você esteve esperando por esta oportunidade sua vida inteira. Ande logo com isso!

Havia sessenta câmeras posicionadas nas zonas Um e Dois, todas conectadas a gravadores de vídeo. As máquinas propriamente duas ficavam num gabinete à prova de balas, equipado com uma tranca controlada por mecanismo de relógio que só podia ser aberta ao final de um turno de serviço e somente pelos superiores de Yardeni. Além disso, os gravadores eram absolutamente à prova de adulteração. Yardeni há muito tempo havia se dado conta de que nao tinha opções quanto à maneira de executar o roubo.

O tenente era um rapaz alto e forte, com bem mais de 1,80 metro de altura, de cabelos louros cacheados e feições cinzeladas. Era um favorito no cabaré Little Boy Blue, um clube noturno que apresentava espetáculos de strip-tease masculino em Vladimir. Todas as terças e quintas-feiras, Yardeni e alguns outros oficiais do BSD esfregavam óleo para pele de bebê em seus corpos musculosos e dançavam requebrando os quadris diante de mulheres que grita­vam como loucas. Ganhavam mais dinheiro naquelas poucas horas que em um mês de trabalho para o Estado.

Mas Yardeni sempre tivera maiores ambições. Devoto fanático de filmes de ação, seu astro predileto era Arnold Schwarzenegger, que em sua opinião estava ficando um pouco velho demais. Yardeni acreditava que não havia nenhum motivo para que alguém com sua beleza e físico não pudesse substituir Arnold. Ouvira falar que Hollywood era uma Meca para rapazes de programa, que fossem duros, bem apessoados e com personalidade.

Durante os últimos três anos, Yardeni fizera planos de ir para o Ocidente. Um problema que tinha em comum com milhares de outros russos era dinheiro: não só para pagar as proibitivas taxas de saída e passagens de avião, mas também para viver depois. Yardeni vira fotografias de Bel Air; não tinha nenhuma intenção de chegar a Los Angeles sem dinheiro e ser forçado a viver no gueto de imigrantes russos.

O tenente consultou o relógio acima de sua escrivaninha e levantou-se, a túnica de estilo militar justa no peito. Era mais de lh, aquela hora da noite em que o corpo está em seu sono mais profundo, quando fica mais vulnerável à morte. Exceto pelas patru­lhas de homens e cães fazendo rondas do lado de fora e pela segurança interna, o Bioaparat também dormia.

Yardeni passou em revista os procedimentos que já conhecia de cor, então se controlou e abriu a porta. Enquanto se dirigia para a Zona Um, pensou a respeito do homem que o abordara quase um ano antes. O contato fora feito no Little Boy Blue e inicialmente pensara que o homem, um dos poucos na platéia, fosse homosse­xual. A impressão só durou até o homem revelar quanta coisa sabia sobre a vida de Yardeni. Descreveu seus pais e sua irmã, deu todos os detalhes sobre sua carreira colegial e no Exército, como Yardeni fora o campeão de boxe de sua divisão para depois receber baixa desonrosa quando, num ataque de raiva, quase matara um outro soldado com os punhos nus. O homem comentara que, praticamen­te em todos os sentidos, a carreira de Yardeni ficaria estagnada ali no Bioaparat, onde passaria seus dias sentado sonhando acordado com o que poderia ter sido, enquanto servia de babá para aqueles que de fato conseguiam ir para as cidades encantadas.

É claro, sempre se podia mudar o próprio destino...

Tentando não pensar nas câmeras, Yardeni seguiu para a Zona Dois através de um corredor que era chamado de "passadiço sanitário". Na verdade era uma sucessão de pequenas salas esterilizadas, com portas dando passagem de uma para a seguinte, portas equipa­das com trancas de segredo. As trancas não apresentaram dificulda­de para Yardeni; tinha o cartão de acesso e os códigos mestres.

Ao entrar no primeiro cubículo, um vestiário, despiu-se e apertou o botão vermelho na parede. Uma névoa fina de descontaminação o envolveu.

Os três cubículos seguintes continham itens distintos do traje de proteção: meias azuis e um macacão de mangas compridas, para usar como roupa de baixo; um capuz e um guarda-pó de algodão; o respirador, óculos de armação de plástico bem ajustada aos olhos, hotas de cano curto e máscara de proteção. Antes de deixar o último vestiário, Yardeni apanhou um objeto que deixara em um dos armários no princípio de seu turno de trabalho: um recipiente semelhante a uma pequena garrafa térmica de alumínio escovado, do tamanho de um cantil.

Levantou a garrafa na mão enluvada. Era uma maravilha de engenharia. Vista de fora, parecia não ser nada mais que um brinquedo ocidental caro, funcional, mas extremamente extrava­gante. Mesmo se alguém girasse a tampa de rosca e olhasse o interior, nada pareceria errado. Só quando a base era torcida no sentido inverso ao do relógio, é que o recipiente revelaria seu segredo.

Cuidadosamente, Yardeni torceu a base até ouvir o estalido. Dentro das paredes duplas, minúsculas ampolas de metal libera­vam seu conteúdo de nitrogênio. Imediatamente, o recipiente ficou frio ao toque, como um copo cheio de gelo picado.

Enfiando-o no bolso do traje de proteção, Yardeni abriu a porta para o laboratório da Zona Dois. Lá dentro, seguiu adiante passan­do entre as mesas de trabalho de aço inoxidável até o que os pesquisadores, de brincadeira, chamavam de "máquina de Coca-Cola". Na verdade era um refrigerador de tamanho industrial, com uma porta de Plexiglas especialmente construída, hermeticamente vedada. Aquilo sempre fazia com que Yardeni se lembrasse das barreiras de proteção nos guichês de caixa da agência do American Express.

Enfiou o cartão magnético codificado na fenda, digitou a senha e ouviu o longo e lento sibilar enquanto a porta girava para trás. Três segundos depois, ela se fechou às suas costas.

Puxando uma das gavetas, Yardeni contemplou a sucessão de fileiras, alinhadas uma atrás da outra, de frascos de vidro tempera­do. Trabalhando rapidamente, desatarraxou o recipiente no meio e colocou a metade superior de lado. Embutidos na base, havia seis cilindros muito semelhantes a câmaras de revólver. Enfiou uma ampola em cada um dos cilindros, então recolocou a parte de cima do recipiente, assegurando-se de estar bem encaixada e torcida.

Usando o cartão magnético, saiu da 'máquina de Coca-Cola' e refez o percurso para sair do laboratório. O procedimento nos vestiários foi invertido, à medida que depositava os diversos itens do traje de proteção em sacolas para serem incinerados. Depois de uma segunda passagem pelo banho de névoa descontaminante, estava pronto para se vestir, só que desta vez vestiu roupas à paisana — jeans, um blusão de malha grossa e uma parca acolchoada.

Alguns minutos depois, Yardeni estava do lado de fora, respi­rando fundo no ar noturno. Um cigarro o acalmou. Opção Dois, dissera a voz. Isto significava que alguma coisa não tinha dado certo. Em vez de Yardeni escolher o momento que lhe parecesse oportuno para sair com as amostras de varíola, tinha de levá-las agora. E também rapidamente, porque por algum motivo Moscou dera sinais de desconfiança.

Yardeni conhecia tudo do centro de treinamento de Forças Especiais nos arredores de Vladimir. Fizera amizade com alguns dos recrutas em bares da cidade; eram duros e eficientes, de modo algum o tipo de homens que algum dia gostaria de ter de enfrentar. Mas as rodadas de vodca lhe valeram informações valiosas. Sabia exatamente o tipo de manobras que as Forças Especiais executavam e quanto tempo levavam para executá-las.

Yardeni apagou o cigarro com o bico da bota e começou a se afastar do Edifício 103, encaminhando-se para as casas de guarda no perímetro. Naquela noite, como em todas as noites durante o mês passado, velhos camaradas de seu antigo batalhão do Exército estariam de serviço. Yardeni lhes diria que terminara seu turno de plantão, estava saindo de folga; eles fariam piadas dizendo que Yardeni ainda poderia fazer o último show no Little Boy Blue. E, se alguém se desse ao trabalho de verificar a escala de plantão do computador, que verificasse.

Durante os últimos cinqüenta minutos, Kravchenko trabalhara rápida e silenciosamente. Nenhuma luz se acendera no campo de treinamento, nenhum alarme soara. Seus soldados foram arranca­dos da cama e reunidos em total escuridão. Tão logo as tropas foram passadas em revista, os primeiros veículos blindados para transporte de tropas passaram roncando pelos portões. Kravchenko não podia fazer nada quanto ao ruído dos motores e não deu atenção a isso. Tanto os cidadãos de Vladimir quanto os funcionários do Bioaparat que trabalhavam nos turnos da noite estavam habituados com exercícios de treinamento militar noturnos.

A bordo do veículo blindado de comando, Kravchenko guiou sua coluna pela auto-estrada de duas pistas que saía da área cercada do centro de pesquisas. Suas ordens tinham sido claras; se houvesse um traidor no local, seria cercado. Se havia uma coisa que Kravchenko, um homem eminentemente prático, podia garantir era que ninguém violaria a quarentena.

 

- Grigori?

- Sou eu, Oleg. — Yardeni foi andando em passadas largas pura a casa de guarda de tijolos. De pé do lado de fora, acabando de fumar um cigarro, estava um colega, guarda do BSD.

Seu turno de plantão acabou?

Yardeni fingiu estar entediado.

- Acabou. Arkadi se apresentou mais cedo para o serviço. Estava me devendo tempo do mês passado. Agora posso ir para casa e dormir.

Arkadi, o tenente do BSD que se revezava com ele, Yardeni, naquele momento, Yardeni presumia, devia estar dormindo ao lado de sua esposa gorducha, devendo se apresentar para o serviço dali a mais quatro horas. Mas Yardeni havia induzido o computa­dor a contar uma história diferente.

Um momento, por favor.

Yardeni virou-se na direção da voz que vinha da janela aberta da casa de guarda. Lá dentro estava um guarda que nunca vira antes. Ele lançou um olhar rápido para o amigo.

Você não me disse que Alex estava de folga esta noite.

Está gripado. Este é Marko. Geralmente trabalha no turno do dia.

—Tudo bem. Mas poderia dizer a ele para me deixar sair daqui. Estou ficando com frio.

Quando Oleg abriu a porta da casa de guarda, Yardeni se deu conta de que já era tarde demais: o outro guarda já estava verifican­do no computador.

Tenho o registro de que seu substituto se apresentou para o serviço, mas não há registro de troca de turno na lista de plantão. Tecnicamente, está deixando seu posto sem ter sido rendido.

O tom acusador do guarda decidiu a ação seguinte de Yardeni. Seu amigo Oleg estava de costas para ele. Nem percebeu o braço de Yardeni subir ao redor de seu pescoço e sentiu apenas um puxão violento antes que o pescoço fosse quebrado.

O segundo guarda estava tentando tirar a arma do coldre quan­do Yardeni esmagou sua traquéia com os nós dos dedos da mão di­reita. Depois que o segundo guarda desabou de joelhos, lutando para respirar, foi bastante fácil matá-lo quebrando seu pescoço também.

Yardeni saiu cambaleando da cabine e bateu a porta. O instinto e o treinamento assumiram o comando. Começou a andar, com o velho refrão da infantaria se repetindo uma vez após outra em sua mente: Um pé na frente do outro, e na frente do outro, e na frente...

Fora do muro que cercava o perímetro, Yardeni viu as luzes de Vladimir. Ouviu o apito solitário do trem ainda distante. O apito o trouxe bruscamente de volta à realidade, lembrando-o do que ainda faltava fazer. Deixando a estrada, entrou na floresta que cercava o Bioaparat. Passara muitas horas ali, e encontrar as trilhas certas, numa noite de luar, foi bastante fácil. Imprimiu mais velocidade à sua marcha e seguiu adiante correndo.

Yardeni recorreu a imagens específicas enquanto corria. Um contato estaria esperando. Ele traria o passaporte que identificava Yardeni como um homem de negócios canadense em visita. Have­ria uma passagem de avião para um vôo da Air Canada e um grosso maço de dinheiro americano para ajudá-lo a superar qualquer dificuldade até chegar a Toronto e ao banco em que seu dinheiro e novos documentos de identidade foram depositados.

Esqueça Oleg! Esqueça aquele outro! Você está quase livre.

Yardeni estava profundamente embrenhado na floresta quan­do reduziu a velocidade e finalmente parou. Sua mão desceu até o bolso com zíper da parca, os dedos se fechando ao redor do recipi­ente frio de alumínio. A garantia para sua nova vida estava em segurança.

Foi então que ouviu o som — o rugido distante de veículos pesados se aproximando. Estavam seguindo para oeste, em direção no centro, Yardeni não teve nenhuma dificuldade para identificá-los apenas pelo som: veículos blindados de combate para transporte de tropas, trazendo Forças Especiais. Mas não entrou em pânico. Conhecia os procedimentos que seguiriam. Enquanto estivesse fora do perímetro que eles iriam estabelecer, estaria seguro. Come­çou a correr de novo.

A oitocentos metros da cidade, Kravchenko viu os holofotes de segurança que banhavam o Bioaparat com uma luz branca, quente. Ordenando que sua coluna saísse da estrada, guiou os veículos por estradas secundárias e caminhos para carroças até que os blindados criaram um anel de aço inquebrável ao redor das instalações do centro. Barreiras foram erguidas em todas as artérias de entrada e de saída do complexo. Unidades de observação foram postadas a trinta metros do muro de tijolos, em intervalos de cinqüenta metros. Atiradores de precisão usando mira telescópica térmica ficaram escondidos nesses espaços. Às 2:45, usando transmissão de satélite, Kravchenko informou ao presidente que a armadilha estava montada.

Senhor?

Kravchenko virou-se para seu ajudante de ordens.

Sim, número dois?

Senhor, alguns dos homens estão... fazendo perguntas. Aconteceu alguma coisa errada lá dentro? Houve um acidente?

Kravchenko tirou os cigarros do bolso.

Sei que alguns dos homens têm família na cidade. Diga a eles para não se preocuparem. Isto é o que pode lhes dizer — por enquanto.

Obrigado, senhor.

Kravchenko exalou a fumaça com um sibilar suave. Era um bom comandante que compreendia a necessidade de honestidade quando liderava tropas. Não havia mais nada que funcionasse por muito tempo. Mas naquele caso não achava prudente acrescentar que, no mesmo instante em que falava, um avião de transporte militar Ilyushin pertencente à Unidade de Controle de Biorrisco estava sendo preparado. A hora de se preocupar chegaria se ou quando aquele avião decolasse.

 

O trem de passageiros que parou em Vladimir exatamente às 3:00 começara sua viagem 1.930 quilômetro a oeste, em Kolima nos montes Urais. Vladimir era a última parada — e uma parada breve — antes do trecho final de três horas para Moscou.

O maquinista olhara pela janela da locomotiva enquanto entra­va na estação. Resmungou ao ver o passageiro solitário de pé na plataforma. O único motivo por que Vladimir estava incluída como parada era para apanhar soldados de licença, a caminho de Moscou. Naquela noite decidira que poderia cortar alguns minutos da parada.

O vulto alto, envolto num sobretudo pesado, não se moveu quando o trem passou diante dele. Parado a alguns centímetros da beira da plataforma, continuou a vasculhar a escuridão além das luzes fracas da estação.

Ivan Beria, nascido na Macedônia 38 anos antes, era um homem paciente. Criado no caldeirão de ódios e derramamento de sangue entre etnias que eram os Bálcãs, aprendera em primeira mão como funcionava a paciência: seu avô conta como os albaneses tinham matado quase toda a sua família. A história é repetida tantas vezes que parece que os acontecimentos tiveram lugar ainda ontem. De modo que, quando a oportunidade para vingança finalmente se apresenta, você a agarra com as duas mãos — de preferência em volta do pescoço de seu inimigo.

Beria tinha 12 anos quando matou seu primeiro homem. Continuou a matar até que todas as dívidas de sangue da família estivessem pagas. Aos vinte anos de idade, sua reputação como assassino estava feita. Outras famílias, cujos filhos ou maridos estavam mortos ou aleijados, o procuraram, oferecendo o ouro que tinham nas mãos ou em volta do pescoço como pagamento por serviços a serem prestados.

Beria rapidamente evoluiu de acertar contas de inimizades entre famílias para se tornar um operador freelance, cujos serviços estavam disponíveis para quem pagasse mais, geralmente a KGB. A medida que o crepúsculo foi caindo sobre o comunismo, os órgãos de segurança começaram a empregar cada vez mais freelancers para poderem se manter em posição de negar responsabilidade. Ao mesmo tempo, à medida que investimentos ocidentais começaram a permear a Rússia, os mesmos capitalistas que chegaram para fazer negócios também estavam interessados em investimentos mais exóticos. Procuravam um tipo especial de homem que, por causa das conexões mundiais de computador entre a polícia e as agências de informações, era cada vez mais difícil de se encontrar no Ocidente. Por meio de seus contatos na KGB, Beria descobriu que os bolsos de empresários americanos e europeus eram muito fundos, especi­almente quando era necessário ferir ou eliminar um competidor.

Ao longo de um período de cinco anos, Beria seqüestrou mais de uma dúzia de executivos. Sete deles foram mortos quando os pedidos de resgate não foram satisfeitos. Um dos alvos foi um alto funcionário de uma firma suíça chamada Bauer-Zermatt. Beria ficou estarrecido ao descobrir que, quando o resgate foi pago, havia duas vezes a quantia em dinheiro que ele estipulara. Incluído no pagamento havia um pedido para que Beria não somente libertasse o executivo, mas que também inibisse com severidade o desejo da competidora da Bauer-Zermatt de entrar naquela região. Beria ficou mais do que satisfeito em atender ao pedido e isso marcou o princípio de seu longo e lucrativo relacionamento com o dr. Karl Hauer.

— Você aí! Vai embarcar? Tenho um horário a cumprir.

Beria olhou para o condutor gordo, de rosto avermelhado, o uniforme de caimento folgado, amarrotado porque o homem dor­mira vestido nele. Mesmo ao ar livre, sentia o fedor azedo de álcool que o homem exalava.

Ainda faltam três minutos para a hora de partida.

Este trem parte na hora em que eu digo, e você que se dane!

O condutor estava prestes a sair da plataforma quando, sem qualquer advertência, se viu arremessado contra o flanco de aço do trem. A voz em seu ouvido era suave como a língua de uma serpente.

O horário mudou!

O condutor sentiu alguma coisa ser enfiada em sua mão. Quando se atreveu a olhar rapidamente, descobriu um rolo de dólares americanos em seu punho.

— Vá e dê ao maquinista o que ele precisar — sussurrou Beria.

Direi a você quando chegar a hora de partir.

E empurrou o condutor, observando-o correr e tropeçar em direção à locomotiva. Consultou o relógio de pulso. O homem do Bioaparat estava atrasado; mesmo o suborno não atrasaria o trem por muito tempo.

Beria chegara a Vladimir antes, naquela semana. Seu chefe lhe dissera que esperasse um homem saindo do Bioaparat. Beria deve­ria garantir uma viagem segura tanto para o homem quanto para a encomenda que trazia com ele até Moscou.

Beria esperara pacientemente, passando a maior parte do tem­po em um quartinho frio no melhor hotel da cidade. A ligação que esperava só viera algumas horas atrás. Seu chefe falara de uma mudança de planos, uma necessidade de improvisar. Beria tinha ouvido e garantido ao chefe que poderia cuidar desses aconteci­mentos imprevistos.

Tornou a consultar o relógio. O trem deveria ter partido havia cinco minutos. Lá vinha o gordo condutor, bamboleando, de volta da locomotiva. Ele também estava consultando o relógio.

Beria lembrou-se da coluna de blindados que ouvira e vira de relance, anteriormente, naquela noite. Graças a seu chefe, sabia de tudo que precisava sobre as Forças Especiais, para onde estavam indo e por quê. Se o homem do Bioaparat não tivesse conseguido sair do complexo...

Ouviu o bater de botas pesadas na plataforma. Sua mão entrou ligeira no bolso do casaco, os dedos cerrados ao redor da coronha da Taurus 9mm. Relaxou a mão quando o vulto passou correndo sob uma lâmpada. Reconheceu as feições que lhe foram descritas.

Yardeni?

O peito do tenente estava arquejando por causa do esforço.

Sim! E você é...

A pessoa que lhe disseram que viria encontrá-lo. Caso contrário, como eu saberia seu nome? Agora embarque logo. Estamos atrasados.

Beria empurrou o jovem tenente para cima ajudando-o a subir no vagão do trem. Quando o condutor se aproximou, ofegante, enfiou mais dinheiro debaixo de seu nariz.

Isto é só para você. Quero privacidade. E, se houver algum atraso no caminho para Moscou, avise-me imediatamente. Com­preendeu?

O condutor agarrou o dinheiro.

O trem já estava em movimento quando Beria conduziu Yardeni pelo corredor estreito do vagão até um compartimento de primeira classe. Os assentos haviam sido convertidos em leitos com poltro­nas totalmente reclináveis, completos com pequenos travesseiros sujos e cobertores esgarçados.

Você tem uma coisa para mim — disse Beria, trancando a porta e fechando a cortina.

Pela primeira vez, Yardeni pôde ver bem seu contato. Sim, a voz cavernosa ao telefone poderia ter pertencido a alguém assim. De repente, sentiu-se muito feliz por ser mais jovem, maior e mais forte que o personagem parecido com um monge envolto em panos negros.

Disseram-me que você teria alguma coisa para mim — respondeu.

Beria apresentou um envelope lacrado, observando enquanto Yardeni o abria e examinava o conteúdo: um passaporte cana­dense, um bilhete de avião da Air Canada, dinheiro, vários cartões de crédito.

Está tudo em ordem? — perguntou.

Yardeni assentiu, então enfiou a mão no bolso da jaqueta e tirou o recipiente de alumínio.

Cuidado, está muito frio.

Beria não tocou no cilindro antes de pôr as luvas. Ele o segurou por um momento, como um mercador de dinheiro avaliando um saquinho de ouro em pó, depois o pôs de lado. Tirou do bolso um recipiente idêntico e o entregou a Yardeni.

O que é isso? — perguntou o militar.

Guarde isso. É tudo o que você precisa saber por enquanto - fez uma pausa. — Diga-me o que aconteceu no Bioaparat.

Não aconteceu nada. Eu entrei, peguei o material e saí.

Você esteve diante das câmeras o tempo todo?

Não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. Disse a seu pessoal...

Quando as fitas serão vistas?

No princípio do próximo turno de plantão, dentro de cerca de quatro horas. Que importância tem isso? Não estou pretendendo voltar.

Não houve nenhum problema no portão?

Yardeni era um excelente mentiroso. Apenas não sabia o tipo de homem que tinha diante de si.

Nenhum.

Sei. E você conseguiu sair antes que as Forças Especiais chegassem.

Yardeni não conseguiu esconder a surpresa.

Estou aqui, não estou? — retrucou mal-humorado. — Escute, estou cansado. Tem alguma coisa para beber?

Silenciosamente Beria tirou uma garrafa de bolso de conhaque e a entregou a Yardeni, que examinou o rótulo.

Francês — comentou, enquanto rasgava o selo.

Yardeni ergueu a garrafa, bebeu um gole generoso, e então suspirou. Depois de desfazer os laços dos cadarços das botas, tirou a parca e a dobrou fazendo um travesseiro. Enquanto se deitava, Beria se levantou.

Aonde você vai? — perguntou Yardeni.

Ao banheiro. Não se preocupe. Não vou acordar você quando voltar.

Beria saiu para o corredor, trancou a porta atrás de si e foi até o fundo do vagão. Baixou a metade superior de uma janela apenas o suficiente para que a antena de seu celular pudesse passar pela abertura. Segundos depois a ligação com Moscou estava feita, a voz do outro lado da linha clara como se seu interlocutor estivesse a seu lado.

 

 

O som de pancadas violentas contra a porta arrancou Smith de um sono leve. Ele tateou em busca do interruptor do abajur da mesinha-de-cabeceira quando dois homens da polícia nacional irromperam porta adentro, seguidos por Lara Telegin.

Que diabo está havendo? — exclamou.

Por favor, venha comigo, doutor — respondeu Telegin. Aproximando-se, ela baixou a voz. — Tivemos novos desdobra­mentos. O general precisa que venha vê-lo em seu escritório ime­diatamente. Estaremos esperando do lado de fora.

Smith vestiu-se rapidamente e seguiu Telegin até o elevador que esperava.

Que aconteceu?

O general o informará — disse Telegin.

Cruzaram o vestíbulo deserto e seguiram para um sedã que esperava junto ao meio-fio com o motor ligado. O percurso até a praça Dzerzhinsky levou menos de dez minutos. Smith não detec­tou nenhuma atividade incomum no prédio até chegarem ao 15o andar. Os corredores estavam cheios de pessoal uniformizado movimentando-se rapidamente entre os vários escritórios, com documentos nas mãos. Nos cubículos, os jovens homens e mulhe­res, debruçados sobre teclados de computador, falavam baixo em fones de ouvido. Um agudo sentido de urgência crepitava no ar.

Dr. Smith. Gostaria de lhe dizer bom-dia, só que o dia não anda nada bom. Lara, pode fechar a porta, por favor?

Smith avaliou a aparência de Kirov, refletindo que também deveria ter sido arrancado da cama havia não muito tempo.

O que houve?

Kirov lhe ofereceu um copo de chá em um porta-copo de metal filigranado.

No começo desta madrugada, o presidente Potrenko orde­nou que o contingente das Forças Especiais estacionado nos arre­dores de Vladimir cercasse as instalações do complexo do Bioaparat e instituísse um cordon sanitaire. Isso foi feito sem incidentes. Durante as várias horas que se seguiram, tudo se manteve calmo. Contudo, há trinta minutos, uma patrulha fazendo ronda informou que havia encontrado dois guardas mortos — assassinados — em seus postos.

Smith sentiu um frio lá no fundo do estômago.

As Forças Especiais interceptaram alguém saindo?

Kirov sacudiu a cabeça.

Não. E também ninguém tentou entrar.

E a segurança dentro do complexo, especificamente no Edifício 103?

Kirov virou-se para Telegin.

Ponha a fita para rodar.

Ela apontou o controle remoto para um monitor embutido na parede.

Este é o vídeo das câmeras de segurança dentro do 103. Por favor, preste atenção no datador com cronômetro no canto inferior direito.

Smith acompanhou as imagens em preto e branco na tela. Um guarda uniformizado, alto e forte, caminhou por um corredor e desapareceu ao entrar na Zona Dois. Outros conjuntos de câmeras o enquadraram nos vestiários e nas áreas de descontaminação.

Congele esta imagem! — Smith apontou para o recipiente que o guarda, agora vestindo traje completo de biorrisco, segurava na mão esquerda. — O que é aquilo?

Vai ver por si mesmo em um minuto. Lara?

A fita começou a rodar de novo. Com crescente incredulidade, Smith observou o guarda entrar na caixa-forte do refrigerador industrial e começar a retirar ampolas.

Diga-me que isso não é varíola.

Quem me dera eu pudesse — respondeu Kirov.

O ladrão em traje de biorrisco completou sua tarefa e voltou para a primeira das câmaras de descontaminação.

Onde estão as medidas adicionais de segurança? — perguntou Smith. — Que diabo, como ele pôde apenas chegar lá e entrar assim?

Da mesma maneira que seu pessoal de segurança no USAMRIID pode entrar nas caixas-fortes que vocês têm lá — rebateu Lara Telegin. — Nosso sistema é quase uma duplicata do de vocês, doutor. Temos a mesma profunda confiança em trancas de segredo c contramedidas eletrônicas que vocês, de maneira a reduzir o risco do fator humano. Mas, no final, a coisa sempre se resume a um homem — fez uma pausa. — Os guardas do Bioaparat são submetidos a um processo de seleção rigoroso. Mas, mesmo assim, é impossível ver o que se passa na alma de um homem, não é?

Os olhos de Smith estavam cravados na tela, que mostrava um close-up do rosto de Grigori Yardeni.

Ele não se importa de ser enquadrado pela câmera. E como se soubesse que não há nada que possa fazer contra isso.

Exatamente — Kirov rapidamente explicou por que os guardas de serviço não podiam adulterar as fitas durante seus turnos de plantão.

Se não tivéssemos instalado esse dispositivo, teríamos leva­do muito mais tempo para identificar o ladrão. Do modo como as coisas se apresentam...

Do modo como as coisas se apresentam, ele tinha certeza de que nunca mais voltaria. Que diabo, como conseguiu passar pelas tropas da quarentena?

Por favor, preste atenção no horário — disse Kirov, apon­tando para o canto da tela. — O roubo ocorreu antes que as Forças Especiais estivessem em posição. Esse aí teve uma sorte dos diabos: conseguiu sair apenas minutos antes do coronel Kravchenko pôr cm ação as tropas.

Foi por isso que ele matou os guardas no posto de vigia, porque estava com pressa?

Não tenho certeza. — Kirov olhou para ele cautelosamente.

- Onde está querendo chegar, doutor?

Esse sujeito tinha de ter um plano bem arquitetado — comentou Smith. — Então tudo bem, ele sabia que ia ser apanhado pelas câmeras. Não tinha importância; devia ter algum outro tipo de coisa preparada para compensar isso. Mas não acredito que tivesse previsto matar os guardas. Não faz sentido. Por que correr o risco de que pudessem ser encontrados antes que completasse a fuga? Creio que ele teve de agir antes do que havia previsto, que sabia que as Forças Especiais estavam a caminho — e por quê.

—Está insinuando que ele tinha um informante, um cúmplice, do lado de fora? — perguntou Telegin.

O que lhe parece, tenente? — retrucou Smith.

Examinaremos esta possibilidade mais tarde — interrom­peu Kirov. — Agora, precisamos descobrir por onde anda este tal Grigori Yardeni. A quantidade de varíola que ele levou...

Smith fechou os olhos. Um centésimo daquela quantidade poderia, se corretamente dispersada, infectar uma população de um milhão ou mais.

Que contra-medidas já tomou?

Kirov pressionou um botão na escrivaninha e um painel na parede deslizou para trás revelando uma tela gigante. A ação retratada na tela era em tempo real.

Indicou um ponto vermelho em movimento.

Um Ilyushin de transporte da Divisão de Informações Médicas—nossos caçadores de vírus — está a caminho de Vladimir. Serão eles que entrarão no Bioaparat, mais ninguém.

Apontou para um círculo azul.

Isto é a área de quarentena cercada pelas Forças Especiais. Aqui — indicou três pontos amarelos — temos reforços de Sibiyarisk que já estão voando. Consistem em um batalhão pronto para combate que isolará Vladimir.

Sacudiu a cabeça.

Essa pobre gente vai acordar e descobrir que todos são prisioneiros.

Smith virou-se para o monitor, que ainda mostrava o homem grandalhão vestindo o traje de biorrisco.

É ele?

Os dedos de Telegin dançaram sobre o teclado e uma folha de serviço militar apareceu na tela. Enquanto ela rodava o programa de tradução, Smith pôde ver ainda melhor o rosto de Yardeni. Então o alfabeto cirílico se metamorfoseou passando para inglês.

Não é exatamente o tipo de sujeito que você esperaria que fosse fazer algo assim — murmurou. — Salvo por isso. — Smith apontou para o parágrafo descrevendo o histórico de violência de Yardeni.

É verdade — concordou Kirov. — Mas, exceto por seu temperamento difícil, não havia nada indicando que Yardeni pu­desse contemplar este tipo de traição. Pense bem: ele não tem parentes nem amigos vivendo no exterior. Aceitou a transferência para o Bioaparat como uma forma de se redimir e poder voltar a servir nas Forças Armadas.

Olhou para Smith.

Está familiarizado com o Bioaparat, especialmente com os sistemas de segurança. Ao contrário de nossas outras instalações, está à altura de qualquer coisa semelhante do Ocidente, inclusive o CDC. Inspetores internacionais, entre eles americanos, ficaram mais do que satisfeitos com nossos sistemas.

Smith compreendeu o que Kirov estava tentando fazer: transformá-lo num advogado de defesa. Os russos não foram negli­gentes. A segurança era boa. Aquilo era sabotagem interna, impossível de prever ou de impedir.

Todos nós estamos sujeitos aos mesmos pesadelos, general declarou Smith.—O senhor calhou de acordar para ver um deles de fato acontecendo.

Smith se obrigou a beber um gole de chá.

Há quanto tempo Yardeni está desaparecido?

Telegin chamou à tela o relatório médico.

De acordo com o médico de combate das Forças Especiais, os guardas foram mortos por volta das 2:30.

— Há pouco mais de três horas... Ele poderia ter ido longe nesse espaço de tempo.

Ela jogou uma outra imagem na tela grande, mostrando círcu­los concêntricos — verde, laranja e preto.

O Bioaparat está no centro. O círculo menor — preto — representa a distância que um homem razoavelmente em boa forma lisica poderia cobrir, como um soldado em uma corrida de treina­mento. O círculo laranja aumenta o raio de alcance, se Yardeni tiver um carro ou uma motocicleta.

Que são esses triângulos? — perguntou Smith.

Barreiras com postos de controle da polícia local. Enviamos a foto dele com descrição detalhada via fax.

Quais são as ordens?

Atirar assim que o virem, mas não para matar — percebeu a expressão surpresa de Smith. — Nossas instruções oficiais o descrevem como um assassino múltiplo. Também dizem que é HIV- positivo. Creia-me, doutor, nenhum policial tocará em Yardeni depois que for derrubado.

Estava pensando mais no que ele tem consigo. Se uma bala espatifar o recipiente...

Compreendo sua preocupação com o recipiente, mas, se Yardeni for avistado, não podemos deixar que fuja.

O que é o último círculo?

— A pior de todas as possibilidades: Yardeni tinha um cúmpli­ce com um avião à espera no aeroporto de Vladimir.

Houve decolagens?

Nenhuma registrada, mas isso não significa nada. A nova Rússia tem um excesso de pilotos experientes, a maioria ex-oficiais da Força Aérea. Podem aterrissar numa estrada ou num campo, apanhar a carga e decolar em minutos.

O presidente Potrenko ordenou que aviões de caça fossem para essa área — acrescentou Kirov. — Qualquer avião pequeno será interceptado; se não cumprir as instruções, será imediatamen­te derrubado.

O monitor na parede fascinava Smith. Parecia um organismo vivo, em constante mutação enquanto os símbolos piscavam e se moviam. Mas sentia que, a despeito do impressionante aparato reunido contra o oficial renegado, alguma coisa estava faltando.

Aproximando-se da tela, acompanhou com o dedo uma linha branca que começava a leste de Vladimir e corria para oeste até Moscou.

O que é isso?

A ferrovia entre Kolima, nos Urais, e Moscou — respondeu Kirov. Ele olhou para Telegin. — Havia algum trem previsto para passar por Vladimir ontem à noite?

Telegin retomou o trabalho no teclado.

Havia — anunciou. — Parou em Vladimir às 3:00.

Cedo demais para que Yardeni o pegasse.

Telegin franziu a testa.

Não necessariamente. De acordo com a tabela de horário, só deveria ter parado por lá alguns minutos. Mas não partiu no horário. Ficou 12 minutos a mais.

Por quê? — perguntou Kirov.

Nenhum motivo foi dado. Na verdade, o trem só pára lá quando há soldados de licença vindo para Moscou...

Mas não havia soldados, não é? — perguntou Smith. Bom palpite, doutor — comentou Telegin. — Não havia ninguém previsto para sair de licença.

Então por que o maquinista se demorou?

Kirov chegou perto do console do computador. O horário do assassinato dos dois guardas foi sobreposto ao horário em que o trem partiu de Vladimir. Então esta janela foi comparada com o tempo que seria necessário para que um homem fosse do Bioaparat até a estação.

Ele poderia ter conseguido — sussurrou Kirov. — Poderia ter conseguido pegar o trem porque não partiu no horário.

E atrasou porque alguém o fez esperar! — disse Smith em tom irado. — Yardeni escolheu o caminho mais óbvio. Aquele filho-da-mãe sabia que as estradas seriam bloqueadas mais cedo ou mais tarde. Não tinha um avião. Mas tinha um cúmplice, alguém que, se necessário, poderia segurar o trem o tempo suficiente para que o pegasse.

Smith virou-se para Telegin.

Então tudo o que teria a fazer seria vir nele até Moscou. Ela digitava furiosamente no teclado, então levantou a cabeça. Dezesseis minutos — informou, com voz rouca. — O trem chega à estação central de Moscou dentro de 16 minutos.

 

Ivan Beria oscilava com o balanço do trem; exceto por isso, não se moveu.

Também não tinha despregado os olhos de Grigori Yardeni. A tensão do roubo e da fuga que se seguira, somada aos efeitos do conhaque, tinham cumprido a tarefa. O guarda do Bioaparat ador­mecera minutos depois de o trem partir de Vladimir.

Beria se inclinou para Yardeni. Estava tão imóvel que parecia morto. Beria chegou a orelha mais perto e escutou o roncar suave da respiração regular. Yardeni estava muito profundamente adorme­cido. Não precisaria de muito para tornar seu sono ainda mais profundo.

Esbofeteou-lhe as faces, duas vezes.

— Estamos quase chegando. Hora de se levantar.

Beria olhou pela janela enquanto o trem seguia devagar pelo pátio gigantesco da estação ferroviária. No reflexo, observou Yardeni bocejar e se espreguiçar, girar a cabeça para relaxar o pescoço. Sua voz estava rouca, sonolenta.

Para onde vamos daqui?

Cada um vai seguir seu caminho — respondeu Beria. — Acompanho você até sair da estação e tomar um táxi. Depois disso, está por sua conta.

Yardeni resmungou e fez um movimento em direção à porta.

Para onde vai? — perguntou Beria.

Ao banheiro... se me der permissão.

Sente-se. Todo mundo no vagão teve a mesma idéia. Vai acabar numa fila. Não vale a pena deixar que alguém olhe bem para sua cara, não acha?

Yardeni refletiu e tornou a sentar. Passou a mão sobre um dos bolsos da parca para se assegurar de que os documentos e o dinheiro estivessem onde deveriam. Satisfeito, concluiu que poderia deixar para ir ao banheiro quando chegassem.

Quando o trem entrou num túnel entre o pátio e a estação, as luzes no teto piscaram, se apagaram por um instante, depois pisca­ram e se acenderam de novo.

Vamos andando — disse Beria.

O corredor estava se enchendo de gente. Por causa de sua altura, Yardeni não teve dificuldade para manter Beria à vista, mesmo na luz que ia e vinha. Ignorando os palavrões resmungados, abriu caminho com os cotovelos até a porta.

O trem foi se aproximando lentamente da plataforma e parou com um tremor. O condutor levantou a cobertura da escada. Beria e Yardeni foram os primeiros a desembarcar, caminhando rapida­mente até a frente do trem e em direção às portas que conduziam à estação propriamente dita.

A grande van rugiu velozmente pelas avenidas ainda vazias de Moscou. No interior, Smith, Kirov e Telegin estavam sentados em cadeiras giratórias aparafusadas no piso do veículo. Telegin estava diante de um monitor exibindo os movimentos do tráfego da cidade; em intervalos regulares de alguns segundos ela falava com o motorista pelo fone de ouvido.

Kirov também estava de fone de ouvido. Desde que tinham deixado a praça Dzerzhinsky, estivera em comunicação constante com um grupo de elite do Serviço de Segurança Federal.

Girou a cadeira para encarar Smith.

O trem está... exatamente no horário, como não podia deixar de ser.

A que distância estamos?

Trinta segundos, talvez menos.

Reforços?

A caminho — Kirov fez uma pausa. — Você conhece nossos pelotões volantes? — quando Smith sacudiu a cabeça, prosseguiu.

Ao contrário da SWAT do FBI de vocês, preferimos mandar nossas equipes táticas especiais sob disfarce. Eles se vestem como comerciantes, verdureiros, trabalhadores de rua — você não sabe­ria que estão lá até ser tarde demais.

Esperemos que não seja.

Pela janela espelhada Smith viu a estação, uma estrutura maciça do século XIX. Ele se segurou enquanto o motorista fazia uma curva brusca e pisava fundo nos freios defronte ao prédio principal. Estava de pé antes mesmo que o carro parasse de trepidar.

Kirov o agarrou pelo braço.

O esquadrão volante tem a fotografia de Yardeni. Eles o pegarão vivo, se possível.

Eles têm a minha, para não atirarem em mim por engano?

Para falar a verdade, têm. Mas mantenha-se perto de mim, por via das dúvidas.

Os três passaram depressa pelo pórtico rebuscado e entraram correndo na estação. Para Smith, o interior fazia recordar um museu, tôdo de granito encerado, baixos-relevos e três maciços domos de vidro. Havia poucos viajantes, mas o som de seus passos era como o roncar de uma manada distante. No centro havia uma grande área com fileiras de bancos; nas laterais havia lojas de Nuvenires, balcões de bares e quiosques de jornais, a maioria deles ainda fechados. Smith lançou um olhar rápido para os grandes (juadros-negros de chegadas e partidas suspensos do teto.

Quantos outros também estão para chegar?

Estamos com sorte — respondeu Lara Telegin. — Esse é o primeiro. Mas em vinte minutos chegam os trens de passageiros dos subúrbios. A quantidade de gente vai ser incontrolável.

Qual é a linha?

Ela apontou para a direita.

Por ali. Número 17.

Enquanto corriam para as portas conduzindo àquela extensão dos trilhos, Smith virou-se para Kirov e falou:

Não estou vendo seu pessoal.

Kirov bateu de leve no receptor de plástico em sua orelha.

Pode acreditar, eles estão aqui.

O ar nas plataformas era carregado de vapores de diesel. Smith e os outros passaram correndo pelas locomotivas elétricas laranja e cinza, paradas em suas extensões de trilhos, até encontrarem um fluxo de gente vindo na direção oposta. Afastando-se para o lado, começaram a examinar os rostos.

Vou procurar um condutor — disse Telegin. — Talvez, se lhe mostrar a fotografia de Yardeni, ele se lembre do rosto.

Smith continuou a escrutar os passantes que vinham andando pesadamente, de rosto inchado de dormir, os ombros curvados sob o peso de malas e embrulhos amarrados com barbante e corda.

Virou-se para Kirov.

Aqui não há um número suficiente de passageiros. Estes devem ter saído dos últimos vagões. Quem estava nos vagões da frente já está na estação!

Ivan Beria estava de pé diante de uma banca de jornais que acabara de abrir as portas. Jogou alguns kopeks no balcão e apanhou um jornal. Encostando-se contra um pilar, posicionou-se de maneira a ter uma visão sem obstáculos da entrada do lavatório masculino.

Dado o tamanho de Yardeni e a dose de veneno de ação lenta que fora misturada no conhaque, Beria estimava que o guarda grandalhão não sairia do lavatório vivo.

A qualquer segundo, esperava que alguém saísse correndo, dizendo que um homem estava tendo um colapso lá dentro.

Mas não, lá vinha Yardeni, saindo a passadas largas do lavató­rio, parecendo consideravelmente mais satisfeito, verificando — como um camponês — para ver se tinha fechado a braguilha. Beria enfiou a mão no bolso do casaco, para pegar o Taurus 9mm, quando seus olhos registraram a anomalia: um homem vestindo um maca­cão, como um faxineiro encarregado de limpeza, estava em via de esvaziar uma lata de lixo em seu carrinho de mão. O único problema foi que, assim que viu Yardeni, se esqueceu do lixo.

Onde há um, há outros.

Beria se esgueirou para trás do pilar de modo que Yardeni não o avistasse e rapidamente fez um reconhecimento da estação. Em segundos identificou mais dois homens que estavam fora de lugar: um entregador carregando pão e um que tentava se passar por eletricista.

Beria sabia de uma enormidade de coisas sobre o Serviço de Segurança Federal. Tinha conhecimento de que esse interesse era recíproco e intenso. Mas não podia acreditar que estivessem ali por sua causa. Claramente, o objeto da atenção deles era Yardeni.

Recordando-se do que Yardeni lhe havia contado sobre sua fuga sem problemas do Bioaparat, Beria praguejou. O guarda pagaria caro por suas mentiras.

Beria o viu caminhar despreocupadamente entre os bancos em direção aos quiosques. Os três agentes à paisana o seguiram, for­mando um triângulo atrás dele. Um estava falando em um micro­fone de pulso.

Então Beria reparou num homem alto, magro, saindo das portas que davam para as plataformas. Este não era russo, embora o que vinha logo atrás dele certamente fosse. O rosto do general de divisão Kirov estava gravado de maneira indelével na memória de Beria.

Beria notou que o tráfego de pedestres na estação aumentara. Ótimo. Precisaria de toda a cobertura possível. Beria saiu de trás do pilar apenas pelo tempo necessário para que Yardeni o visse de relance. Não acreditava que os homens que seguiam Yardeni pu­dessem ter discernido exatamente o que Yardeni vira para fazê-lo se mover naquela direção, mas eles certamente o seguiriam.

Beria contou os segundos, depois se esgueirou de trás do pilar de novo. Yardeni estava a menos de três metros e meio de distância. Beria manteve a mão sobre a arma, pronta para sacá-la, quando, sem aviso, Yardeni tropeçou, cambaleou, e desabou no chão. Imediata­mente seus seguidores convergiram para ele.

— Socorro...

Yardeni não tinha nenhuma idéia do que estava lhe acontecen­do. Primeiro seu peito parecera pegar fogo; agora parecia estar preso nos mordentes de um gigantesco torno que impiedosamente estava esmagando-o até a morte.

Enquanto se debatia no chão frio de mármore, sua visão começou a se embaçar. Mas ainda conseguiu distinguir as feições do homem que o trouxera até ali. Instintivamente, estendeu a mão para ele.

Ajude-me...

Beria não hesitou. Assumindo uma expressão preocupada, seguiu direto para o homem caído e para os agentes disfarçados.

Quem é você? — perguntou um deles. — Conhece este homem?

— Nos encontramos no trem — respondeu Beria. — Talvez ele se lembre de mim. Deus do céu, olhe para ele. Está delirando!

O veneno estava fazendo com que Yardeni espumasse, impedindo-o de falar. Beria agora estava muito próximo, se ajoelhando.

—Você vai ter de vir com... — começou a dizer um dos agentes.

Não conseguiu dizer mais nada. O primeiro tiro de Beria rasgou sua garganta. O segundo acertou um outro agente na têmpo­ra. O terceiro acertou o coração do último homem.

Atire, mate-o!

As palavras explosivas sobressaltaram Beria. Ao se levantar, descobriu passageiros deitados no chão, escondendo-se como podi­am debaixo dos bancos. Mas diante das portas estava Kirov, apon­tando para ele, gritando para uma mulher jovem que havia se aproximado por trás de Beria.

Lara, mate-o!

Beria girou rapidamente para enfrentar Lara Telegin, que tinha a arma apontada para ele. Sua visão periférica percebeu mais três vultos correndo na direção deles.

Corra! — ela ordenou baixinho.

Beria não hesitou. Rapidamente escondeu-se atrás da mulher e correu para as saídas.

Depois de se assegurar de que Beria escapara ileso, Telegin assumiu a postura clássica de atirador. Calmamente, como se estivesse numa galeria de treinamento de tiro ao alvo, fuzilou os outros membros da equipe de agentes. Então, sem nenhuma pausa, girou nos calcanhares para encarar Kirov que a observava com incredulidade.

Smith levou apenas uma fração de segundo para perceber que a traição de Telegin paralisara o general na mira de sua arma. Sem pensar, arremessou-se sobre o russo um instante antes de ouvir o tiro. Kirov gritou uma vez enquanto ele e Smith caíam.

Smith levantou-se rapidamente e disparou dois tiros rápidos. Telegin gritou quando as balas a acertaram, atirando seu corpo contra um pilar. Por um instante, ela se manteve assim, a cabeça frouxa, balançando para um lado. Então sua arma caiu, quicou no chão, seus joelhos se dobraram e ela escorregou, sem vida como uma marionete quebrada.

Smith virou-se para Kirov, que se apoiara contra uma porta. Abriu a túnica do general, baixou a manga e viu a carne ensangüentada onde a bala de Telegin havia acertado o braço.

Kirov cerrou os dentes.

Esta entrou e saiu. Vou sobreviver. Vá examinar Yardeni.

Telegin...

Ela que vá para o inferno! Espero apenas que você não seja bom atirador. Tenho muitas perguntas para ela.

Smith foi ziguezagueando em meio à multidão assustada, contornando os corpos dos agentes de Kirov. Quando chegou a Telegin, um olhar lhe disse que ela nunca mais responderia a per­gunta alguma. Rapidamente, virou-se para Yardeni e se deu conta de que o mesmo se aplicava a ele.

Homens das polícias federal e civil encheram a estação. Kirov eslava de pé, atordoado e com dor, mas com forças suficientes para berrar ordens. Em minutos os viajantes foram retirados da área.

Empurrando para o lado um médico militar, Kirov foi para junto de Smith e ajoelhou-se ao lado dos dois corpos.

A espuma na boca...?

Veneno.

Kirov olhou fixamente para os olhos vidrados de Lara Telegin, e então estendeu a mão e baixou-lhe as pálpebras.

Por quê? Por que ela estava trabalhando com ele?

Smith sacudiu a cabeça.

Com Yardeni?

Com ele também, provavelmente. Mas estava falando de Ivan Beria.

Então Smith se lembrou do homem de sobretudo preto, que sumira.

Quem é ele?

Kirov contraiu o rosto quando o médico, com firmeza, o obrigou a sentar e começou a cuidar de seu ferimento.

Ivan Beria. Um agente independente sérvio. Tem uma longa e sanguinária história nos Bálcãs — Kirov hesitou. — Tam­bém era um favorito da KGB. Muito recentemente tem trabalhado por contrato para usar seus talentos a serviço da mafiya e de certos interesses ocidentais.

Smith percebeu alguma coisa no tom de Kirov.

É pessoal, não é?

Dois de meus melhores agentes infiltrados na mafyia foram assassinados de uma maneira particularmente brutal — respondeu Kirov em voz fria e sem emoção. — A assinatura de Beria nesse tra­balho era inconfundível. Vou mandar emitir uma ordem de alerta...

Não, não toque nele! — gritou Smith quando o médico estendeu a mão para o corpo de Yardeni. Aproximando-se do cadáver, apalpou delicadamente os bolsos internos da parca.

—Documentos para viagem — mostrou o passaporte de Yardeni e os bilhetes de avião.

Seus dedos continuaram a trabalhar dentro da parca. De repen­te algo muito frio tocou de leve em seus dedos.

Arranje-me umas luvas! — gritou para o médico.

Segundos depois, Smith tirou com cuidado o recipiente relu­zente de metal e o colocou cuidadosamente no chão.

Preciso de gelo!

Kirov aproximou-se para ver melhor.

Está intacto, graças a Deus!

Reconhece o modelo do recipiente?

É o modelo padrão para transporte de ampolas da caixa-forte do Bioaparat para os laboratórios — falou rapidamente no micro­fone, e então olhou para Smith — a unidade de controle de biorrisco estará aqui dentro de poucos minutos.

Enquanto Kirov dava ordens para que a estação fosse evacuada, Smith colocou o recipiente em um balde de gelo que o médico conseguira encontrar. O nitrogênio na camada térmica mantinha o recipiente numa temperatura pouco acima do congelamento, tornando o vírus inativo. Mas Smith não tinha idéia de quanto tempo a carga de nitrogênio duraria. Manter a garrafa de metal no gelo ofereceria alguma segurança adicional até que a equipe de Controle de Biorrisco chegasse.

De repente, Smith se deu conta de como a estação ficara silenciosa. Olhando em volta, descobriu que todos os milicianos tinham se retirado, levando consigo os últimos viajantes e funcio­nários que trabalhavam na estação. Só restavam ele e Kirov, cerca­dos de corpos.

Já esteve em combate, dr. Smith? — perguntou Kirov.

Pode me chamar de Jon. E, sim, estive.

Então conhece este silêncio... depois que o fogo de artilharia e os gritos acabam. Só os sobreviventes é que podem ver o trabalho que fizeram — fez uma pausa. — E o sobrevivente que pode agradecer ao homem que salvou sua vida.

Smith assentiu.

Sei que teria feito a mesma coisa. Fale-me mais sobre Beria. Como ele se encaixa?

Beria não é apenas um carrasco, ele é um facilitador. Se você quer que alguma coisa seja entregue ou retirada secretamente de um país, Beria é o homem que garantirá que isso seja feito. .

Então não acha que ele e Yardeni, com a ajuda de Telegin, tenham planejado e executado o roubo sozinhos?

Executado, sim. Planejado, não. O forte de Beria não é a estratégia. Ele é... como vocês diriam?... um operador prático e ativo. Seu trabalho seria acompanhar Yardeni depois que ele saísse do Bioaparat.           

Acompanhá-lo até onde?

Kirov levantou o passaporte canadense.

A fronteira entre a América e o Canadá é pouco vigiada. Yardeni não teria nenhum problema para contrabandear a varíola para seu país.

Aquela idéia fez a pele de Smith se arrepiar.

Está dizendo que Yardeni era um ladrão e um mensageiro?

Um homem como Yardeni não tem os recursos necessá­rios para conseguir para si mesmo um novo passaporte e menos ainda para pagar os serviços de Beria. Mas alguém o fez. Alguém queria pôr as mãos numa amostra de varíola e estava disposto a pagar regiamente pelo privilégio.

Lamento ter de perguntar: onde se encaixa Telegin?

Kirov desviou o olhar, torturado pela traição.

Você não me parece um homem que acredita em coincidên­cias, Jon. Reflita sobre o seguinte: Yardeni estava no lugar certo havia algum tempo. Mas seus patrões escolheram esse momento em particular para mandá-lo entrar em ação. Por que deveria coincidir com sua chegada em Moscou? Eles sabiam que viria? Se sabiam, teriam deduzido que tinham uma última chance para fazer o roubo no Bioaparat. E por que Yardeni recebeu ordens para executar o roubo? Porque alguém o avisou que as Forças Especiais estavam a caminho.

Telegin avisou Yardeni?

Quem mais poderia ter sido?

Mas ela não estava agindo sozinha...

Creio que Lara era os olhos e ouvidos de seja lá quem for que planejou isso. Assim que soube que você estava em Moscou, ela contactou seus chefes, que lhe disseram para ir em frente e mandar Yardeni executar o roubo. Eles não podiam se dar ao luxo de perder o acesso que Yardeni lhes oferecia.

Kirov fez uma pausa e olhou para o corpo de sua amante.

Pense nisso, Jon. Por que Lara teria arriscado tudo — sua carreira, futuro... amor — se as recompensas não fossem imensas, irrecusáveis? De uma generosidade tal que ela nunca teria encon­trado igual na Rússia.

Kirov levantou a cabeça quando as portas da estação se abriram e a equipe de controle de biorrisco, vestida em trajes completos de biossegurança, entrou. Minutos depois, o recipiente pelo qual Yardeni e Telegin haviam morrido estava sendo lacrado numa caixa de aço inoxidável e levado num carrinho para um caminhão blindado, pronto para ser transportado para o principal centro de pesquisas de Moscou, o instituto Serbsky.

Vou iniciar a busca de Beria — disse Kirov, enquanto ele e Smith saíam da estação.

Smith observou o caminhão dos caçadores de vírus se afastar da estação, escoltado por batedores de motocicleta.

Uma coisa que o senhor falou, general. Sobre Beria ser um facilitador. E se Yardeni não fosse sua principal responsabilidade?

Que está querendo dizer?

— Yardeni era importante — essencial — no sentido de que era o homem dentro do lugar que era o alvo. Era ele quem fisicamente ia entrar e pegar a amostra. Mas que valor teria para qualquer pessoa depois disso? É mais provável que se tornasse um risco. Yardeni não morreu de um ferimento à bala. Beria o envenenou.

Onde está querendo chegar?

A conclusão de que a instrução formal de Beria era de proteger as amostras de varíola, não Yardeni.

Mas Yardeni estava trazendo as amostras. Você viu o reci­piente.

— Vi, general? Tudo que vi foi um recipiente. Não quer saber o que há dentro dele?

 

O ônibus que fazia o trajeto da estação para o aeroporto seguia em meio ao tráfego moscovita que se tornava mais intenso. Por causa do horário, Ivan Beria era um dos únicos passageiros a bordo. Sentado junto às portas de saída de trás, observou uma coluna de carros de polícia passar com as sirenes ligadas descendo pela outra pista da avenida arborizada, na direção da estação, e ouviu enquan­to os passageiros especulavam sobre o que estaria acontecendo.

Se eles soubessem...

Beria não estava preocupado com a possibilidade de o ônibus ser parado. Nem mesmo o general de divisão Kirov, o homem que oferecera uma recompensa de cem mil rublos por sua cabeça, seria capaz de organizar uma busca completa a esse ponto em tão pouco leinpo. O primeiro ato de Kirov seria checar as corridas com os despachantes de táxi. Uma fotografia seria mostrada aos policiais na estação e lhes perguntariam se alguém respondendo àquela descrição embarcara num carro particular. Kirov finalmente pode­ria acabar pensando no ônibus, mas não a tempo de isso lhe ser de alguma utilidade.

O ônibus sacolejou ruidosamente ao atravessar trilhos de bonde, depois subiu com dificuldade uma rampa conduzindo à auto-estrada circular que forma um anel ao redor da cidade. Beria verificou o recipiente para se assegurar de que estava em segurança em seu bolso. A confusão e a falta de orientação correta eram suas aliadas: comprar-lhe-iam o tempo de que precisava. Tão logo Kirov revistasse o corpo de Yardeni, descobriria o recipiente que Beria linha dado ao guarda. Kirov acreditaria que continha as amostras de varíola roubadas do Edifício 103. Seu primeiro pensamento seria enviá-las para um local seguro, mas não teria motivo para mandar examiná-las. Quando afinal isso fosse feito, as amostras de varíola estariam seguras no Ocidente.

Beria sorriu e virou-se para a janela à medida que o enorme complexo do aeroporto Sheremetevo surgia mais adiante.

Os batedores se afastaram quando o caminhão transportando o recipiente de Yardeni entrou na garagem subterrânea do instituto Serbsky. O sedã com Kirov e Smith estacionou perto o bastante do caminhão para que os dois homens observassem a retirada do cofre de aço inoxidável de biorrisco.

Será levado para os laboratórios de Nível Quatro, dois andares abaixo — disse Kirov a Smith.

Quanto tempo até sabermos o que temos?

—Trinta minutos — Kirov fez uma pausa. — Gostaria que pu­desse ser mais rápido, mas os procedimentos têm de ser cumpridos.

Smith não discordava disso.

Acompanhados por um grupo de agentes recém-chegados do Serviço de Segurança Federal, embarcaram no elevador para o segundo andar. O diretor do instituto, um homem magro, de feições aquilinas, piscou os olhos nervosamente quando Kirov o informou de que seu escritório agora era o posto de comando central.

Avise-me quando os resultados do teste estiverem prontos — disse-lhe Kirov.

Sem perder tempo, o diretor tirou o guarda-pó do cabide e rapidamente bateu em retirada.

Kirov virou-se para Smith.

Jon. Diante das circunstâncias creio que está na hora de me dizer exatamente por que veio para cá e para quem está trabalhando.

Smith refletiu sobre as palavras do general. Dada a possibilida­de de que os russos não pudessem manter os desdobramentos do roubo das amostras de varíola dentro de suas fronteiras, não tinha escolha senão entrar em contato com Klein imediatamente.

Pode me fornecer meios de comunicação?

Kirov indicou os telefones no console sobre a mesa.

Todas as linhas são de transmissão via satélite com absoluta segurança. Espero lá fora...

Não — interrompeu Smith. — Vai precisar ouvir isto.

Discou o número que magicamente sempre o punha em con­tato com Klein. A voz do outro lado soou vigorosa e clara.

Aqui é Klein.

Senhor, sou eu. Estou no escritório do diretor do instituto Serbsky. O general de divisão Kirov está comigo. Preciso pô-lo a par dos acontecimentos.

Vá em frente, Jon.

Smith levou dez minutos para fazer um relato completo dos eventos.

Senhor, espero ter os resultados em — consultou o relógio 15 minutos.

Ponha-me no viva-voz, por favor, Jon.

Um instante depois, a voz de Klein ressoou na sala.

General Kirov?

Sim?

Meu nome é Nathaniel Klein. Faço o mesmo tipo de trabalho que Valeri Antonov faz para seu governo. Na verdade, conheço Valeri bastante bem.

Smith observou a cor desaparecer do rosto de Kirov.

General?

Sim, estou aqui, eu... compreendo o que está me dizendo, sr. Klein.

Kirov compreendia muitíssimo bem. Valeri Antonov era mais uma sombra que um homem. Embora circulassem rumores de que fosse o conselheiro de maior confiança de Potrenko, nunca era visto em reuniões do conselho. Na verdade, poucas pessoas algum dia o tinham visto. Contudo sua influência era inegável. O fato de que Klein soubesse da existência de Antonov — de que ele o conhecesse bastante bem — dizia tudo.

General — falou Klein. — Recomendo que, até que tenha­mos mais informações, o senhor não alerte nenhuma de suas agências internas de segurança. Se mencionar a palavra "praga", terá nas mãos um pânico coletivo que Beria usará em benefício próprio.

Concordo, sr. Klein.

Então, por favor, receba o que vou dizer a seguir com o mesmo espírito com que o oferecimento será feito: há alguma coisa que eu ou alguma agência dos Estados Unidos possa fazer para ajudá-lo?

— Agradeço o oferecimento, sinceramente — respondeu Kirov. Mas, neste momento, isto é uma questão interna da Rússia.

Há alguma medida de segurança preventiva que sugeriria que tomássemos?

Kirov olhou para Smith, que sacudiu a cabeça.

Não, senhor. Não no presente momento.

Uma segunda linha no console tocou.

Sr. Klein, por favor me dê licença um minuto.

Kirov atendeu a outra chamada e ouviu atentamente. Depois de falar umas poucas palavras em russo, virou-se para Smith.

Os resultados do teste do conteúdo da primeira ampola estão prontos — sua voz não tinha cor. — E chá, não varíola.

O suspiro de Klein assobiou através do éter.

Quantas ampolas havia?

Cinco. Não há nenhum motivo para supor que os outros resultados venham a ser diferentes.

Beria fez uma troca! — exclamou Smith. — Pegou o recipi­ente de Yardeni e deu a ele um falso — calou-se por um minuto. — Foi por isso que Yardeni foi envenenado. Beria queria que encon­trássemos o que tinha com ele, que pensássemos que tínhamos apanhado o ladrão a tempo.

Isso faz sentido — observou Kirov. — Se o plano original de Beria desse certo, teríamos descoberto o roubo mais tarde. A essa altura, Yardeni teria morrido, mas identificar o corpo teria levado tempo. As peças do quebra-cabeça estariam espalhadas por toda parte em Moscou. Beria teria tempo de sobra para concluir sua missão.

Qual é, exatamente, a missão dele?

Tirar secretamente as amostras do país — respondeu Smith devagar.

Kirov olhou para Smith.

O aeroporto! Beria está levando as amostras de varíola, indo direto para Sheremetevo!

As implicações da conclusão de Kirov silenciaram a conversa. Varíola a bordo de um vôo de uma companhia de transporte aéreo de passageiros com destino para Deus sabe onde... Era loucura!

Por que Sheremetevo, general? — perguntou Smith.

É o único lugar lógico para ir. De que outra maneira Beria poderia esperar tirar o vírus do país?

Receio que ele esteja certo, Jon. General, há alguma maneira pela qual o senhor possa apanhar Beria antes de ele chegar a Sheremetevo?

Diante da vantagem que Beria já tem, não há nenhuma chance disso. A única coisa que posso fazer é ligar para o presidente Potrenko e pedir-lhe que mande fechar o aeroporto.

Sugiro que faça isso imediatamente. Se um avião decolar com Beria a bordo, teremos um possível holocausto em andamento!

 

Ivan Beria saltou do ônibus depois que este estacionou na área de partidas do terminal internacional. Por causa da diferença de fuso horário entre Moscou e as capitais ocidentais, a maioria dos vôos partia de manhã cedo. Aqueles que tinham negócios em Zurique, Paris, Londres ou mesmo Nova York chegariam justo quando a maquinaria do comércio nessas cidades começava a funcionar.

Beria examinou atentamente os patrulheiros uniformizados postados ociosamente junto aos balcões de embarque. Não detectando nenhuma atividade incomum, nem segurança reforçada, seguiu pelo amplo corredor na direção das lojas de presentes e duty-free. No caminho, reduziu ligeiramente o passo para dar uma olhada rápida no monitor que listava as partidas daquela manhã. O embarque de passageiros do vôo que tinha instruções para procurar acabara de começar.

Beria foi até a vitrine de grossas vidraças da loja duty-free e fingiu examinar as ofertas de perfumes e charutos. A medida que se aproximava da entrada, procurou o homem com quem deveria se encontrar.

Um minuto se passou lentamente, enquanto passageiros entravam e saíam da loja. Beria começou a se perguntar se seu contato estaria lá dentro. Não havia como verificar, uma vez que não podia entrar na loja sem cartão de embarque.

Então viu o que estava procurando, uma calva reluzente se destacando em meio ao aglomerado de gente. À medida que o homem se aproximou, viu a segunda característica marcante: os olhos bem ovalados que davam a Adam Treloar uma expressão de perplexidade, ligeiramente assustada.

David — chamou baixinho.

Treloar, que andava em círculos perto da entrada da loja, quase desmaiou quando ouviu o nome-senha combinado. Olhou em volta, tentando encontrar quem falara, então sentiu um toque no cotovelo.

Treloar encarou os olhos frios, escuros, do homem diante dele. O esboço de sorriso, destinado a tranqüilizá-lo, o fez lembrar de um corte de navalha.

Você está atrasado! — sussurrou Treloar. — Estou esperan­do há...

Ouviu a risada baixa de Beria, então arquejou quando uma mão agarrou seu braço com uma força incrível. Não ofereceu resistência quando Beria o conduziu a um balcão de bar e o fez sentar no canto do balcão.

Laranjas e limões... — recitou Beria em tom monótono.

Por um instante, houve um branco na mente de Treloar.

Desesperadamente, tentou se lembrar das palavras que completa­riam o verso.

Dizem... Dizem os sinos de São Clemons!

Beria sorriu.

Passe-me a mochila.

Treloar apanhou a pequena bolsa de couro a seus pés e a colocou sobre o balcão.

A bebida.

Treloar tirou da mochila uma pequena garrafa de aguardente de ameixa que comprara no duty-free.

Tirando a tampa, Beria levou a garrafa à boca e fingiu beber. Passou a garrafa para Treloar, que o imitou. Ao mesmo tempo, Beria discretamente tirou o recipiente do bolso e o colocou sobre o balcão.

Sorria — disse em tom natural. — Somos dois amigos tomando um drinque antes que um de nós tenha de partir — os olhos de Treloar se arregalaram quando Beria abriu o recipiente. — E, como não podemos acabar de beber a garrafa, vou lhe dar o resto para você apreciar durante o vôo.

Cuidadosamente pôs parte da bebida no recipiente.

Agora, se os inspetores quiserem examinar, abra e deixe que eles cheirem o que está dentro.

Empurrando seu banco para trás, Beria agarrou o ombro de Treloar.

Faça uma boa viagem — piscou o olho. — E esqueça que me viu.

 

O boletim de alerta geral para a captura de Ivan Beria chegou à segurança do Sheremetevo no exato momento em que Adam Treloar estava passando pelo detetor de metal. O guarda encarregado do escaneador viu o objeto cilíndrico na mochila, retirou o recipiente e abriu a tampa. Sentindo o odor característico de ameixa, sorriu e fechou a tampa.

Entregando-o de volta a Treloar, deu-lhe um conselho.

Seu conhaque está gelado demais. É muito mais saboroso quando não está gelado.

Quando o pelotão de milicianos da guarda nacional ocupou o lerminal, Treloar já estava em segurança, acomodado em seu assen­to de primeira classe. O 767 da American Airlines afastou-se do portão de embarque no mesmo instante em que a segurança do aeroporto começava a examinar as fitas das câmeras de vigilância, em busca de qualquer pessoa que se parecesse com Ivan Beria.

O vôo 1710 da American, direto para Londres, que depois dessa escala prosseguiria para o aeroporto Dulles de Washington, era o segundo na fila para decolagem, atrás de um Airbus da Air France com destino a Paris. O telefonema do ministro da Defesa encontrou o diretor de controle de vôos na torre de controle no instante em que o vôo 1710 recebeu autorização para decolagem imediata pelo controle de tráfego aéreo.

Fechem já! — berrou o diretor no alto-falante.

Vinte e duas cabeças se viraram olhando para ele como se tivesse ficado completamente louco.

Fechar o quê? — perguntou um dos controladores.

O aeroporto, seu imbecil!

O aeroporto todo?

Sim! Nenhum vôo pode decolar.

Toda a atividade na torre se concentrou em transmitir uma mensagem de PARADA TOTAL para os aviões taxiando para assu­mir posições nas pistas liberadas para decolagem e para os que esperavam nas pistas de manobras. Ninguém teve tempo de pensar nos aviões que já tinham levantado vôo. Quando o fizeram, o vôo 1710 da American já se inclinara lateralmente sobrevoando Mos­cou e estava subindo serenamente para a altitude indicada de cruzeiro, de 10.980 metros.

 

 

Por causa da diferença de fuso horário entre Moscou e a costa leste dos Estados Unidos, ainda era o meio da noite quando Anthony Price parou o carro diante do posto de controle de guarda no Forte Belvoir, na Virgínia.

Depois de o computador escanear suas credenciais, seguiu com o carro até a entrada para carros de conchas compactadas até a residência do general Richardson, uma imponente casa vitoriana cercada por um gramado impecável. As luzes estavam acesas no terceiro andar, como Price esperava.

O vice-diretor da Agência Nacional de Segurança encontrou Richardson em seu gabinete, as prateleiras reluzentes repletas de li­vros encadernados em couro, mementos e condecorações públicas por méritos especiais emolduradas. O general levantou-se atrás da mesa de trabalho e fez um gesto para a bandeja de café.

Lamento ter arrancado você da cama, Tony, mas queria que visse isto pessoalmente.

Price, que raramente dormia direito por mais de quatro horas por noite, se serviu de café, depois deu a volta na mesa de modo a poder ver a tela do computador.

A última mensagem de Telegin — disse Richardson, indi­cando o texto decifrado.

Price leu as primeiras frases, em seguida levantou a cabeça.

Então tudo correu de acordo com os planos no Bioaparat. Qual é o problema?

Leia o resto.

Os olhos de Price se estreitaram.

John Smith? Que diabo ele está fazendo em Moscou?

De acordo com Telegin, metendo o nariz em nosso negócio. Parece que quase conseguiu alertar Kirov a tempo.

Mas tanto Beria quanto Treloar escaparam... Não foi?

Richardson esfregou os olhos cansados.

Foi por esse motivo que chamei você: não sei. Telegin deveria fazer contato assim que os dois tivessem conseguido sair. Mas não fez. Dê uma olhada nisso.

Richardson digitou várias teclas e os despachos mais recentes da CNN encheram a tela.

Um problema na estação de trens de Moscou — apontou. — Alguém decidiu fazer um tiroteio de filme de faroeste. Os russos controlaram a situação com dureza e rapidamente, de modo que os detalhes são escassos. Mas a gente tem de fazer a pergunta: que aconteceu com Telegin?

Se não teve notícias dela, está morta — retrucou Price em tom frio.

Ou foi capturada. Se Kirov a apanhou...

Não apanhou! Telegin era uma profissional. Nunca teria se permitido ser capturada viva. — Indicou a tela. — Aqui diz que há pelo menos cinco mortos — todos do pessoal de segurança. Sei que Beria é bom, mas, para derrubar tantos, teria de ter ajuda. Creio que Telegin deu uma ajuda.

Depois de um momento de silêncio, Richardson disse:

Presumindo que Beria tenha conseguido escapar ileso, ainda temos um problema. Kirov e Smith estarão investigando tudo com relação a Telegin — seus movimentos, contatos, tudo que puderem. Ela pode ter deixado pistas.

Price andou de um lado para o outro, todo o comprimento do exuberante tapete oriental da sala de Richardson.

Vou ligar para Fort Mead. Um tiroteio na estação de trens em Moscou? Que diabo, é um atentado terrorista, da competência da NSA. Ninguém vai questionar quando eu puser gente trabalhan­do para levantar informações a respeito disso.

E quanto a Smith? — perguntou Richardson.

Ele é do Exército, de modo que você começa a investigar. Smith tem de estar trabalhando para alguém e, em minha opinião, está juntando peças demais. Primeiro Yuri Danko, agora aparecen­do na Rússia...

Randi Russell é agente da CIA em Moscou.

Não creio que Smith tenha voado 12.800 quilômetros por causa de uma mulher, Frank. Precisamos saber quem, lá em cima, está lhe dando as ordens — então poderemos puxar o tapete dele!

 

A primeira coisa que Randi Russell percebeu quando desativou o alarme e abriu a porta para a Bay Digital foi que não estava sozinha. Embora o sistema de segurança não indicasse a presença de intrusos, sentiu o leve odor de fumaça de tabaco e cravo.

"Cabeça de Cenoura", você está por aí? — gritou.

Estou aqui, Randi.

Suspirando, Randi trancou a porta. Chegara cedo, na esperan­ça de aproveitar a paz e o silêncio para pôr em dia alguns relatórios.

Aqui dentro, Randi.

Aqui onde?

Na sala dos arquivos.

Rangendo os dentes, Randi foi pisando duro até os fundos do escritório. A sala dos arquivos era na verdade uma caixa-forte grande, como quarto de vestir, onde o equipamento mais moderno de computador era mantido. Teoricamente, ela era a única que tinha a combinação.

Randi entrou na câmara refrigerada com temperatura contro­lada onde encontrou o intruso ocupado, baixando o mais recente videogame dos arquivos confidenciais de uma companhia eletrôni­ca japonesa.

"Cabeça de Cenoura", já adverti você a respeito disso — disse, tentando falar com severidade.

Sasha Rublev — apelidado "Cabeça de Cenoura" por causa de seus fartos cabelos crespos, ruivo-alaranjados — abriu um sorriso radiante para ela. Alto e magro, com olhos verdes brilhantes que Randi sabia que deixavam as garotas loucas, tinha apenas 17 anos — e, inquestionavelmente, era o maior gênio de computador da Rússia.

Sasha, um dia desses você vai esbarrar num alarme e vai ligar para mim de uma delegacia de polícia.

Sasha fingiu ficar magoado.

Randi, como você poderia sequer imaginar isso? A seguran­ça de vocês é muito boa, mas...

Mas é café pequeno para alguém como você.

Randi descobrira Sasha Rublev em um seminário de computa­dores que a Bay Digital realizara para os estudantes da Universida­de de Moscou. O adolescente alto, magro e desajeitado, chamara sua menção não só por ser a pessoa mais jovem na sala, mas porque eslava discretamente trabalhando num laptop, invadindo o siste­ma de segurança dos computadores do Banco Central da Rússia para checar o nível das reservas de ouro.

Randi soubera imediatamente que Rublev era um prodígio ainda não descoberto. Numa conversa, enquanto comiam cheese-burgers e tomavam Coca-Cola, ela ficara pasma ao descobrir que aquele filho de condutor de metrô de Moscou tinha um Q.I. que estourava todos os registros mas que, por causa da burocracia, permanecia atolado no antiquado sistema de ensino colegial. De­pois de algum tempo, finalmente conseguira autorização da família de Sasha para ele trabalhar para a Bay Digital algumas horas por semana e nos fins de semana. A medida que a amizade entre mentora e discípulo se tornara mais forte, Randi dera-lhe acesso a alguns dos equipamentos mais sofisticados do escritório, em troca da promessa solene de Sasha de não utilizá-los indevidamente. Mas, como um cachorrinho levado e brincalhão, Sasha insistia em trazer-lhe presentes — informações de cujas fontes ela não queria ter conhecimento.

— OK — disse ela. — O que há de tão importante que não podia esperar que eu chegasse?

O tiroteio na estação de trens.

Ouvi a notícia no jornal da rádio quando estava a caminho. O que há de especial no tiroteio?

Os dedos de ossos finos de Sasha dançaram sobre o teclado.

Estão dizendo que foi obra de rebeldes chechenos.

E?

Então por que fechar o aeroporto de Moscou?

Randi cravou os olhos na tela sobre os ombros dele. Sasha invadira o sistema de computadores do Serviço de Segurança Federal e estava lendo as últimas informações sobre o fechamento iminente do aeroporto Sheremetevo.

Os chechenos vão atacar o aeroporto? — perguntou ele com ceticismo. — Não acredito. Alguma coisa grande está acontecendo, Randi. E o SSF não quer que ninguém saiba.

Randi refletiu por um momento.

Feche o link — recomendou em voz baixa.

Por quê? Estou usando cinco endereços intermediários diferentes. Mesmo se eles detectarem a invasão, pensarão que está vindo de Bombaim.

Sasha...

Ao ouvir o tom de voz de Randi, rapidamente desconectou o laptop.

Randi, parece preocupada. Não fique. Os endereços inter­mediários são...

A questão não é essa, Sasha. É o que você disse: por que fechar o aeroporto?

 

A logística de fechar um grande aeroporto é um verdadeiro pesade­lo. Ao chegar, Smith e Kirov encontraram centenas de viajantes atarantados, amontoados pelos saguões entulhando os corredores, exigindo explicações dos funcionários das companhias aéreas, que não tinham nada a dizer. Policiais vedavam entradas e saídas, fazendo dos viajantes virtuais prisioneiros. Patrulhas de três ho­mens movimentavam-se intensamente nas lojas dos terminais, nos lavatórios e depósitos de materiais, vasculhando as áreas de baga­gem e carga, os salões de empregados e vestiários, e até a capela e a creche. Os rumores circulavam descontroladamente e a raiva cole­tiva aumentava. A medida que os dois se combinavam, o nível de medo entre os passageiros detidos no terminal internacional cres­cia exponencialmente.

Alguém na central de segurança acha que avistou Beria numa fita — disse Kirov a Smith, quando avançavam com dificul­dade pelo salão do terminal.

Realmente espero que sim — respondeu Smith, enquanto os dois seguiam para o posto de comando da segurança do aeroporto.

Smith e Kirov irromperam na central de comando da seguran­ça, que parecia um grande estúdio de televisão. Diante de um console de seis metros, sentavam-se seis técnicos monitorando as noventa câmeras estrategicamente posicionadas em todo o comple­xo. As câmeras eram controladas por cronômetros que determinavam o tempo que deveriam focalizar cada área, depois girar para outra indicando a hora em que as imagens foram captadas, e eram operadas por controle remoto. Com alguns toques no teclado, os técnicos podiam focalizá-las ou fazê-las virar para cobrir uma área específica.

Acima do console, havia telas montadas na parede que ofereci­am ao diretor de segurança uma visão panorâmica em tempo real do terminal visto do alto. Escondidos numa área refrigerada com temperatura constante ficavam os gravadores de vídeo, registrando fielmente tudo que as câmeras captavam.

O que vocês têm aí? — perguntou Kirov.

O diretor de segurança apontou para um dos monitores. A imagem em preto e branco mostrava dois homens sentados diante de um balcão de bar.

A imagem é ruim — desculpou-se. — Mas aquele parece ser o seu homem.

Kirov aproximou-se para olhar mais de perto.

É ele, com certeza — virou-se para Smith. — O que você acha? Você o viu de perto.

Smith examinou a imagem.

É ele. Acha que está falando com o homem ao lado dele?

Kirov virou-se para o diretor.

Pode ampliar a imagem?

O diretor sacudiu a cabeça.

Já fiz o que posso com o equipamento que tenho aqui.

Tem outras imagens deles juntos? — perguntou Smith.

Esta é a única. O movimento das câmeras é controlado por cronômetros. Elas só capturaram aquela imagem de Beria antes de girarem para outro setor.

Smith levou o general para um canto.

— General, eu sei que Beria é nosso alvo principal, mas precisa­mos saber quem é aquele sujeito. E se o seu pessoal escaneasse a fita?

Kirov apontou para as faces borradas na tela.

Veja como a luz cai. E aquela coluna ali... não há nada que possamos fazer para melhorar a imagem. Não temos equipamento para isso.

Smith tentou outro caminho.

O senhor conhece Beria melhor que qualquer pessoa. Ele já trabalhou com um parceiro?

Nunca. Beria sempre foi um operador solitário. Este foi um dos motivos por que sempre conseguiu evitar ser capturado: não deixa ninguém que possamos ligar a ele. Creio que está usando o homem como cobertura.

Havia alguma coisa na imagem que levou Smith se recusar a desistir.

General, pode ser que eu consiga melhorar a qualidade das imagens da fita.

Em sua embaixada? — perguntou Kirov.

Smith deu de ombros.

Se o senhor estiver de acordo.

Kirov refletiu.

Certo, tudo bem.

Telegin, ela tinha um laptop ou um telefone celular?

Ambos.

Posso mandar checar isso também.

Kirov assentiu.

—Vou mandar um de meus funcionários acompanhar você até meu prédio. Os dois aparelhos estão na cozinha.

O que me traz à minha última pergunta — disse Smith. — E se Beria não estiver no terminal?

Os olhos de Kirov se arregalaram quando compreendeu as implicações das palavras de Smith.

Preciso das identificações e destinações dos últimos três vôos que partiram antes que o aeroporto fosse fechado — disse ao diretor.

Smith olhou para o horário marcado na imagem da fita, depois para a tela onde o diretor abrira a lista de horários de partida.

Swissair 101, Air France 612, American 1719. Beria poderia ter embarcado em qualquer um desses vôos.

Mostre-me as fitas das câmeras que cobrem os terminais de embarque — disse Kirov asperamente. — E os relatórios de passageiros.

Enquanto o diretor saía apressado, Kirov virou-se para Smith.

É possível que Beria tenha conseguido embarcar num desses vôos, Jon, mas improvável. As probabilidades são de que ele tenha conseguido sair do aeroporto, mas que ainda esteja na cidade.

Smith sabia o que Kirov insinuava. Havia três aviões de linhas comerciais de passageiros com uma carga combinada de mais de mil pessoas, com destino à Europa Ocidental. Estaria Smith disposto a criar uma série de incidentes internacionais com base na possibi­lidade de que Beria estivesse a bordo de um desses aviões?

E se a situação fosse inversa, general? — perguntou Smith. E se a destinação não fosse Zurique, Paris ou Londres, e sim Moscou? O senhor não quereria saber com certeza? Ou ficaria satisfeito com as "probabilidades"?

Kirov o encarou, assentiu, e estendeu a mão para o telefone.

 

Kirov estava mais perto da verdade do que imaginava: Beria tinha conseguido sair do aeroporto e ainda estava em Moscou. Mas não por muito tempo.

Beria saíra do aeroporto da mesma maneira que chegara — num ônibus de ida e volta. Só que esse o levara diretamente para a estação rodoviária de Moscou.

Ao entrar no prédio frio e maltratado, Beria seguiu direto para um guichê e comprou uma passagem de ida para São Petersburgo. Dispondo de vinte minutos até a hora da partida, entrou num lavatório que cheirava a urina e detergente industrial e passou água no rosto. Quando saiu, comprou vários folheados gordurosos de uma mulher atrás de um balcão e os devorou. Revigorado, foi para a fila de passageiros esperando na área de partidas.

Beria examinou os rostos que o cercavam. Pertenciam princi­palmente a pessoas mais idosas, algumas das quais, calculava, viajavam com todos os bens materiais que possuíam embalados em malas de papelão ou embrulhos fechados com fita adesiva. Derrotadas pelas circunstâncias, invisíveis para a nova classe afluente, eram indivíduos menos que anônimos. Nenhuma polícia local jamais se daria ao trabalho de verificar seus documentos; nem quaisquer câmeras gravariam suas partidas. Melhor ainda, todo mundo ficaria quieto em seu canto, não querendo saber das dificul­dades dos vizinhos.

Beria se esgueirou para o fundo do ônibus, para o banco comprido que se estendia por toda a largura do veículo. Encolheu-se num dos cantos e ouviu o ronco do acelerador enquanto o motorista dava marcha a ré. Pouco depois, o rugido do motor dimi­nuiu, o tráfego do lado de fora da janela tornou-se menos intenso, e Beria afinal dormiu.

 

Smith e Kirov levaram trinta minutos para revisar as fitas dos terminais por onde os passageiros embarcaram nos três vôos para a Europa.

— Há quatro que podem ser — disse Smith. — Foi só isso o que encontrei.

Kirov assentiu.

Nenhuma semelhança definida com Beria, apenas rostos que não pudemos distinguir muito bem.

Smith consultou o relógio do centro de comando de controle de segurança.

O primeiro avião, Swissair 101, chegará a Zurique dentro de duas horas.

Vamos fazer as chamadas — falou Kirov em tom cansado.

Desde a idade de ouro do terrorismo, no princípio da década de 1980, existem planos definidos combinados para lidar não só com seqüestradores de aviões armados com explosivos, mas também com seqüestradores com armas de guerra química ou biológica. Kirov entrou em contato com seus pares no Serviço de Segurança Nacional na Suíça, no Deuxième na França, e no MI5 na Inglaterra. Quando os representantes das três agências estavam prontos, fez sinal para Smith que estava falando com Nathaniel Klein numa linha separada. Então conectou Klein à linha de conferência tele­fônica sem informar aos outros que o americano estaria ouvindo.

Senhores — começou. — Temos um problema em curso.

Kirov não se alongou nos antecedentes da crise; explicou a seus ouvintes o que precisavam saber naquele momento. Cada minuto que passava significava exatamente aquele tempo a menos para se prepararem.

Você diz que é possível, mas que de forma alguma tem certeza absoluta de que este tal de Beria esteja a bordo de nosso vôo — observou o francês. — Há alguma outra maneira pela qual possa confirmar isso?

Quem me dera isso fosse possível — respondeu Kirov. — Mas, a menos que eu encontre Beria nas próximas duas horas, teremos de trabalhar com a presunção de que ele conseguiu embar­car em um desses aviões.

E a ficha de arquivo dele? — perguntou o vice-diretor do MI5. — Disseram-me que nós, pelo menos, temos pouquíssimas informações sobre o sujeito.

Tudo o que temos está sendo enviado por canais seguros de correio eletrônico — respondeu Kirov.

Beria sabe que foi seguido por você até o aeroporto? — perguntou o suíço. — É possível que já suspeite de que pode ser capturado? Estou perguntando porque é imperativo que saibamos com quem estamos lidando: esse tal Beria teria algum motivo para usar esta arma biológica em pleno vôo?

Beria está atuando como mensageiro, não como terrorista — respondeu Kirov. — É de grande interesse financeiro para ele entregar o que roubou do Bioaparat. Não é ideólogo nem mártir.

Os três europeus na linha começaram a discutir qual seria a melhor maneira de reagir à crise que se aproximava rapidamente deles. As opções de que dispunham eram poucas; a escolha, previsível.

Uma vez que o primeiro vôo aterrissa em nosso território, a coisa começa conosco — declarou o suíço. — Vamos tratar a questão como uma ameaça terrorista em potencial e tomar as medidas apropriadas. Se Beria estiver naquele avião, será neutralizado com o emprego de todos os meios disponíveis. Teremos pessoal e equipamento a postos para apreender e proteger as amostras de varíola — fez uma pausa. — Ou para lidar com elas da melhor maneira que pudermos se houver contaminação. Se, por outro lado, descobrirmos que Beria não está a bordo, comunicaremos a todos imediatamente.

Até antes disso, mon vieux — sugeriu o francês. — O vôo da Air France chega a Paris 75 minutos depois do de Zurique.

Recomendo que mantenhamos uma linha de comunicação aberta para monitorar os eventos à medida que evoluírem — interveio o inglês. — Desse modo, poderemos seguir um processo de eliminação, se este existir.

Gostaria de recordá-lo de um detalhe, Londres — interrom­peu Kirov. — O vôo tem como destino a sua capital, mas é um vôo com tripulação e avião americanos. Tenho a obrigação de informar o embaixador.

Desde que isso não resulte num conflito de jurisdição por aqui — replicou Londres.

Tenho certeza de que não resultará — retrucou Kirov. — Agora, se não houver outros comentários ou sugestões, recomendo que encerremos esta ligação para permitir aos senhores acionar os recursos necessários.

Não havia. Um por um os participantes desligaram até apenas Klein permanecer na linha.

Você vai voltar para casa, Jon? — perguntou.

Posso fazer uma sugestão, senhor?

Claro, diga.

Creio que seria melhor que eu permanecesse na área. Se o general Kirov puder me fornecer transporte, posso estar em espaço aéreo europeu antes de o vôo da Swissair aterrissar. Posso monitorar a situação durante o vôo e mandar o piloto seguir para qualquer que seja a cidade em que o avião alvo descer. Estarei na área de impacto, passando informações em tempo real a ambos os senhores.

O que acha, general? — perguntou Klein.

—Acho ótima a idéia de ter um especialista em armas de guerra biológica no local — respondeu o russo. — Providenciarei o trans­porte imediatamente.

Esta também teria sido minha recomendação. Boa sorte, Jon. Mantenha-nos informados.

 

Vinte minutos depois, Jon Smith entrara com um acompanhante no apartamento de Kirov. Sob os olhos vigilantes do agente de segurança, foi até a cozinha, onde encontrou o laptop e o celular que pertencera a Lara Telegin.

O agente em seguida levou Smith de carro até a embaixada, observando enquanto era autorizado a entrar pelo fuzileiro no posto de sentinela e desapareceu depois de os portões serem fecha­dos. O que ele não viu foi Smith tornar a sair assim que seu carro se afastou.

Smith caminhou depressa até a arcada, que ficava a apenas 1.600 metros da embaixada. Ficou aliviado ao ver Randi, tão logo abriu a porta da frente.

Por que eu estava esperando ver você hoje? — perguntou ela baixinho.

Precisamos conversar, Randi.

A chegada de Smith provocou sorrisos entre os funcionários da firma, em particular de um garoto ruivo cujo olhar fez Randi corar.

Eles pensam que você é meu amante — explicou a Smith depois de entrarem no escritório dela.

Ah...

Ela deu uma gargalhada por tê-lo apanhado desprevenido.

Não é a pior coisa que poderiam pensar de você, Jon.

Na verdade, estou lisonjeado.

Agora que cuidamos disso, que posso fazer por você?

Smith apresentou o videoteipe, o laptop e o telefone celular.

— Como você provavelmente deve saber, há um problema no aeroporto.

Um "problema" sendo o fato de que os russos fecharam o aeroporto.

Randi, tudo o que posso lhe dizer é que eles estão atrás de uma pessoa. E, creia-me, é importante para nós que a encontrem.

Ele explicou o problema com o videoteipe.

—E uma questão de ampliar e ganhar resolução na imagem. Os russos simplesmente não têm equipamento de computador e co­nhecimento técnico para fazer isso depressa.

Randi apontou para o laptop e o telefone.

E isso aqui?

— O massacre na estação de trens e o problema no Sheremetevo são resultados diretos de comunicações entre dois cúmplices numa conspiração — respondeu Smith. — Não espero que o telefone nos dê grande coisa. Mas o laptop... Talvez tenha havido troca de correspondência por correio eletrônico. Não sei.

Se seus conspiradores eram profissionais — e presumo que lossem — estariam usando código criptográfico e proteção tipo firewall. Poderia levar algum tempo para decifrá-los.

Agradeceria se fizesse uma tentativa.

Isso nos traz ao problema seguinte. Você não está pensando que posso simplesmente aparecer na embaixada com esse material, assim, sem mais nem menos? Estou aqui em missão secreta extra-oficial. Meu contato com o agente chefe de birô da CIA não existe, liu teria de entrar em contato com Langley e pedir a eles que alertassem o AC. No minuto em que fizer isso, minha chefia vai querer saber por que estou declarando estado de emergência.

Ela fez uma pausa.

Se seguirmos por esse caminho, vai ter de me contar muito mais do que acho que quer — ou pode.

Smith sacudiu a cabeça com frustração.

OK, compreendo. Pensei que talvez...

Eu não disse que não havia nenhuma alternativa — rapida­mente Randi contou a ele sobre Sasha Rublev.

Não sei... — murmurou Smith.

Jon, sei em que você está pensando. Mas reflita sobre o seguinte: o FBI contrata adolescentes especialistas em pirataria de informações para ajudar a caçar terroristas cibernéticos. E eu estarei de olho, vigiando o que Sasha faz a cada minuto.

Você confia tanto assim no garoto?

Sasha faz parte da nova Rússia, Jon, uma Rússia que olha para fora, para o mundo, não uma Rússia que quer manter o mundo a distância. E, quanto à política, para Sasha é a coisa mais chata e entediante do mundo. Além disso, estou presumindo que você não tenha encontrado este laptop por acaso. Os russos devem ter auto­rizado a caçada.

Smith assentiu.

—Autorizaram. Tudo bem. Tenho de sair de Moscou em cerca de uma hora. Você tem meu telefone. Ligue para mim no minuto em que seu menino gênio conseguir alguma coisa.

Sorriu.

E obrigado, Randi. Muitíssimo obrigado.

Fico contente de poder ajudar, Jon. Mas o caminho é de ida e volta, se houver alguma coisa que preciso saber...

Você saberá por meu intermédio, não pela CNN. Prometo.

 

 

Os suíços têm uma das equipes de resposta a ameaças terroristas mais bem organizadas do mundo. Soberbamente treinada, muitís­simo bem equipada, a unidade de vinte homens conhecida como Grupo de Operações Especiais estava a caminho do aeroporto internacional de Zurique minutos depois de receber a ordem do ministro da Defesa para entrar em ação.

Quando o vôo Swissair 101 estava a vinte minutos de aterrissar, os comandos estavam em posição. Metade deles usava o uniforme da patrulha de fronteiras suíça, cuja presença ostensiva em aeroportos e estações de trens passava despercebida por viajantes acostu­mados à presença de agentes de segurança. A outra metade estava vestida como mecânicos, abastecedores de combustível, carregadores e funcionários de reabastecimento e limpeza da companhia aérea — o tipo de gente que qualquer pessoa esperaria ver em torno de um avião recém-chegado.

O contingente à paisana, portando armamento pesado — submetralhadoras MP-5 e granadas de fumaça de efeito moral —, seria a primeira tropa de assalto se a situação degenerasse para uma crise com reféns. Os comandos uniformizados seriam o segundo perímetro, prontos para entrar em ação se Beria de alguma forma conseguisse passar pelo cordão invisível que seria montado ao redor do avião.

Finalmente, havia um terceiro círculo, composto de atiradores do precisão do Exército suíço, que haviam se posicionado nos telhados do terminal internacional e nos hangares de manutenção. Eles teriam uma visão desimpedida do avião enquanto este taxiasse até o último portão. Ali, uma tentativa seria feita de encaixar o passadiço do terminal de passageiros. A tentativa fracassaria. O comandante anunciaria um problema e avisaria os passageiros de que uma rampa seria trazida e acoplada à porta do compartimento dianteiro.

Depois que os passageiros começassem a descer a rampa, os atiradores tentariam identificar Beria e mantê-lo na mira. Se fos­sem bem-sucedidos, haveria no mínimo três rifles cobrindo o alvo a qualquer momento. De acordo com o plano, os comandos à paisana executariam o ataque, derrubariam Beria no chão e o neutralizariam. Mas, se por qualquer motivo houvesse um proble­ma, os atiradores tinham autorização para abrir fogo com tiro justo visando o centro do corpo e a cabeça.

Vestindo um macacão branco largo de fornecedor de refeições, o comandante discretamente entrou em contato por rádio com a torre de controle e recebeu a última atualização sobre a posição do avião: o vôo 101 estava fazendo a aproximação final. A informação foi passada para a equipe; as travas de segurança das armas foram desativadas.

O ônibus entrou sacolejando na rodoviária de São Petersburgo no exato momento em que o vôo Swissair 101 aterrissava em Zurique. Seguindo o fluxo de passageiros, Ivan Beria encaminhou-se para o terminal e dirigiu-se para os armários. Pegando uma chave, abriu um armário e tirou uma maleta barata.

O lavatório era abominável, mas uma gorjeta para o atendente permitiu que Beria conseguisse um cubículo reservado razoavel­mente limpo. Despiu o casacão, o paletó e as calças, e da mala tirou um blazer novo azul-marinho, calças de lã cinza, uma camisa esporte e sapatos mocassins confortáveis. Na maleta também havia um casaco forrado de lã de carneiro, várias sacolas plásticas cheias de suvenires do museu Hermitage e uma carteira contendo uma passagem aérea, passaporte, cartões de crédito e dinheiro america­no. Beria abriu o passaporte e examinou a fotografia, na qual ele estava usando as roupas que acabara de vestir. Achou que parecia um John Strelnikov, um cidadão americano naturalizado que trabalhava como engenheiro civil para uma companhia de constru­ção sediada em Baltimore.

Beria guardou suas roupas usadas na maleta e deixou o banhei­ro. Na rodoviária, parou num balcão de bar, largou a maleta no chão, comprou uma Coca-Cola e seguiu adiante. Dada a população de sem-teto que costumava vagar pela estação, a maleta desapareceria antes que chegasse às portas de saída.

Do lado de fora, entrou num táxi e ofereceu ao motorista US$ 10 além da tarifa negociada se conseguisse levá-lo ao aeroporto em trinta minutos. O motorista chegou dois minutos antes.

Beria sabia que àquela altura sua fotografia e descrição deta­lhada já teriam sido transmitidas para todos os principais centros de transportes aeroviários do país. Aquilo não tinha importân­cia. Não tinha nenhuma intenção de ter qualquer contato com as autoridades.

Caminhando pelo terminal recém-reformado, alcançou a área reservada para grupos de excursões e esgueirou-se para o meio de um bando de cerca de sessenta e poucos viajantes agrupados diante do balcão da Finnair.

Onde está seu crachá? Tem de usar o crachá.

Beria sorriu agradavelmente para a moça atarefada cujo crachá dizia "OMNITURS: TESOUROS DOS CZARES".

Entregando seu passaporte e passagem, balbuciou:

Perdi.

A mulher suspirou, pegou a papelada dele e o conduziu até um balcão onde colocou um crachá de papel que retirou de uma pasta.

John Srtel...

Strelnikov.

Certo. Vamos botar apenas "John", OK?

Usando uma caneta hidrográfica, ela escreveu o nome no crachá, tirou o papelão de trás expondo o adesivo e o apertou com firmeza na lapela de Beria.

Não perca isso! — advertiu. — Caso contrário vai ter pro­blemas com a Alfândega. Quer fazer alguma compra no free-shop?

Beria respondeu que seria bom.

Vai receber seu passaporte e bilhetes depois de passar pela imigração — disse a mulher, já se encaminhando para resolver outro problema no grupo.

Beria estava contando com isso. Era muito melhor ter uma guia americana de excursão exausta para lidar com os vistos de saída e bilhetes aéreos.

Depois de comprar uma água de colônia que colocou na sacola de suvenir do Hermitage, Beria entrou na fila que se movia lenta­mente para passar pelo controle de imigração. Observou, enquanto atrás do balcão, no cubículo envidraçado, dois funcionários entediados carimbavam os passaportes que a guia da excursão lhes havia trazido. Ao ouvir seu nome ser chamado, aproximou-se, recebeu de volta o passaporte e seguiu adiante passando pelo controle de Alfândega até o salão de embarque.

Beria sentou-se ao lado de um casal de meia-idade que se apre­sentou dizendo ser de São Francisco. Como fingia que seu inglês era apenas passável, seus novos amigos se encarregaram da maior parte da conversa. Beria ficou sabendo que o vôo da Finnair para o aeroporto Dulles levaria cerca de dez horas e que o serviço de jantar provavelmente seria decente mas certamente não memorável.

 

O jato executivo Ilyushin C-22 acabara de entrar no espaço aéreo alemão quando Smith recebeu a informação de que Beria não estava a bordo do vôo Swissair 101.

Isto é confirmado com certeza absoluta?

Absoluta — respondeu Klein do telefone via satélite. — Examinaram cada um dos passageiros. Beria não estava lá.

O vôo para Paris aterrissa dentro de 19 minutos. Eles estão prontos?

—As pessoas com quem falo dizem que sim. Em particular, me dizem que o governo está passando por um aperto. Se alguma coisa acontecer e depois vazar a informação de que deram autorização para que o avião aterrissasse... bem, você pode imaginar o desastre.

Você acha que o governo vai vazar a informação?

Há uma boa possibilidade disso. Os franceses terão eleições em duas semanas. A oposição está atrás de qualquer tipo de muni­ção que puder usar.

Smith voltou a refletir sobre uma idéia que lhe havia ocorrido ainda em Moscou, mas sobre a qual não havia falado.

Senhor, e se déssemos uma mãozinha aos franceses?

Como?

Os Airbus deles não são equipados com o sistema SecFax. O vôo 1710 da American pode receber transmissões de fac-símile, via satélite, protegidas por dispositivo de segurança. O senhor poderia falar diretamente com o comandante, botá-lo a par da situação, então enviar-lhe uma foto de Beria via fax.

Smith manteve-se calado enquanto o silêncio se alongava. O que propunha era, na melhor das hipóteses, perigoso. Se sua suges­tão fosse acatada e alguma coisa desandasse terrivelmente no vôo da American, as conseqüências seriam no mínimo desastrosas.

— Deixe-me verificar uma coisa — respondeu Klein finalmen­te. — Ligo de volta para você.

Alguns minutos depois, tornou a ligar.

Falei com o diretor da segurança no aeroporto Dallas-Fort Worth. Ele me disse que o vôo 1710 tem a bordo uma agente de polícia aérea.

Melhor ainda.

O piloto deve ter uma maneira de se comunicar com ela. Depois que ele o fizer, ela pode dar uma busca no avião.

Temos de contar com a possibilidade de que Beria esteja viajando sob disfarce.

Kirov nunca mencionou o fato de que Beria fosse um mestre de disfarce. Possivelmente é, porque ele nunca operou fora de fronteiras conhecidas antes. Uma agente treinada seria capaz de reconhecê-lo, mesmo se estiver usando maquiagem e prótese.

Você sugere que informemos Kirov... ou alguma outra pessoa?

O plano é nosso, senhor. Se a agente o reconhecer, podemos dar aos franceses o sinal de fim de alarme e advertir os britânicos de que Beria está a caminho. Qualquer tempo de antecedência que pudermos dar a eles será inestimável.

Mais um momento de silêncio se seguiu.

Está bem, Jon. Vou botar as coisas em andamento por aqui. O vôo está a noventa minutos de Heathrow. Continue voando até eu ligar de volta.

 

Inalando um bafejo de perfume exótico, Adam Treloar mexeu-se em seu assento de primeira classe. Ouviu um leve farfalhar de seda contra sua pele, e então viu um traseiro de curvas atraentes balançar passando diante de sua linha de visão. Como se tivesse sentido que estava sendo observada, a mulher, uma ruiva de pernas longas, se virou. Treloar corou quando os olhos dela se fixaram nele; seu constrangimento aumentou quando ela sorriu e levantou as so­brancelhas, como que para dizer: seu menino travesso! Então ela se foi, desaparecendo atrás da divisória, entrando na área onde os drinques e a comida eram preparados.

Treloar suspirou, não porque cobiçasse a moça; mulheres de qualquer idade não o interessavam sexualmente. Mas apreciava a beleza em todas as suas formas. Em certas partes do Caribe, em iates particulares, assistira extasiado, enquanto uma beldade como aquela era subjugada para estimular os apetites da platéia.

Uma comunicação do piloto interrompeu seus devaneios.

— Senhoras e senhores, gostaríamos de informar que o último boletim meteorológico de Londres prevê chuva fina, com uma temperatura de 16 graus. Estamos no horário, com um tempo de vôo previsto até a chegada de uma hora e cinco minutos.

Que tédio, pensou Treloar.

Ainda estava refletindo sobre a futilidade desses comunicados quando a mulher reapareceu. Parecia estar andando mais devagar, como que aproveitando um momento para esticar as pernas. Mais uma vez, Treloar teve a sensação de ser tocado por seu olhar audacioso; sentiu as faces corarem de novo.

O nome da mulher era Ellen Diforio. Tinha 28 anos, era uma perita diplomada em artes marciais e campeã de tiro. Estava em seu quinto ano de serviço como agente de polícia federal, seu segundo ano na divisão de polícia aeroviária.

Não seria de esperar? Meu último turno de serviço e isto tinha de acontecer.

Quinze minutos antes, Diforio pensava sobre o encontro mar­cado, naquela noite, com seu namorado advogado em Washington. Seus devaneios foram interrompidos por um anúncio aparente­mente inócuo de que a loja de produtos isentos de impostos a bordo tinha uma oferta especial do perfume Jean Patou 1000. As palavras da senha trouxeram Diforio bruscamente de volta à realidade. Contara dez segundos, apanhara a bolsa e deixara seu assento na classe executiva, seguindo na direção dos toaletes. Sem se deter, prosseguira para o compartimento de primeira classe, passando pela divisória que dava para a área da copa, e então discretamente entrara na cabine de pilotagem.

Diforio leu a mensagem do diretor de segurança e examinou a foto enviada via fax atentamente. Suas ordens eram claras: determi­nar se aquele indivíduo estava ou não a bordo. Se o reconhecesse, não deveria fazer nenhum contato nem tentativa de dominá-lo. Em vez disso, deveria comunicar o fato à cabine de pilotagem imedia­tamente.

E quanto a alguma arma?—perguntou Diforio ao piloto. — Aqui não diz nada sobre uma arma ou uma bomba. Também não há nenhuma informação sobre o homem. Quem é esse sujeito?

O piloto deu de ombros.

Tudo que eu sei é que os britânicos convocaram a turma do SAS. É sério a este ponto. Se ele estiver a bordo e conseguirmos aterrissar, eles o dominarão em terra — o piloto olhou com uma expressão carrancuda para a bolsa de Diforio. — Faça-me um favor, não dê uma de grande campeã de tiro lá atrás.

Seguindo de volta pelo compartimento de primeira classe, Diforio reparou no constrangimento do homem com os olhos estranhos, com o formato curioso de ovos.

Não esse palhaço.

Tinha plena consciência do efeito que causava em homens e planejava aproveitar-se bem dele. Tivessem 17 ou setenta anos, todos prestavam atenção nela; alguns com um pouco mais de sutileza que outros. Mas, se quisesse, podia fazer com que olhassem francamente para ela. Uma sombra de sorriso, um brilho no olhar era tudo de que precisava.

A primeira classe e a executiva não deram em nada. Não que esperasse encontrar o alvo ali. Gente como aquele tal de Beria gostava de se esconder no meio da multidão. Diforio puxou a cortina e entrou na classe econômica.

O compartimento era configurado com três fileiras de três assentos, as fileiras separadas por dois corredores. Enquanto fingia examinar a prateleira de revistas, Diforio examinou as seis primeiras fileiras ao longo do corredor da esquerda: aposentados, adolescentes de férias da faculdade, jovens famílias viajando com orça­mento modesto. Começou a andar para a parte traseira do avião.

Alguns minutos depois Diforio estava nos toaletes no fundo do compartimento. Conseguira dar uma boa olhada em todos os passageiros no perímetro, mais os dois que tinham saído dos banheiros. Os outros assentos estavam ocupados; nenhum dos ocupantes tinha semelhança alguma com o alvo.

Agora a parte difícil.

Diforio voltou pelo caminho por onde viera, entrou na classe executiva, passou pela divisória, deu a volta na copa e voltou para o compartimento da classe econômica. Arqueando as costas, fingiu que tentava relaxar os músculos contraídos. Rostos masculinos curiosos se viraram simpaticamente — e com expressões de apreço - quando seus seios fizeram pressão contra o tecido do colete liso sob o paletó. Ela encorajou os olhares com um ligeiro sorriso, enquanto se movia pelo corredor da direita, seu olhar adejando mas nunca pousando sobre rostos individuais. Mais uma vez sua sorte se manteve. Todos os assentos estavam ocupados; os passageiros do sexo masculino, dormindo ou lendo, ou trabalhando em documen­tos. Sentiu-se grata pelo fato de o filme ter acabado e da maioria das cortinas estar aberta, permitindo que o sol entrasse.

Mais uma vez, Diforio viu-se no fundo do compartimento. Passou pelos toaletes, e então seguiu pelo corredor da esquerda, fazendo uma segunda verificação para se assegurar de não ter deixado passar nenhum assento. Um instante depois, estava no posto de pilotagem.

Negativo, nosso alvo não está aqui.

Tem certeza?

A primeira classe e a executiva estão limpas. Ninguém nem remotamente parecido com este sujeito. A classe econômica está cheia — 230 pessoas, 117 são mulheres — e pode acreditar em mim, elas são mulheres. Vinte e duas são garotos de vinte e poucos anos. De 63 homens possíveis, 28 têm mais de sessenta anos e aparentam a idade. Outros 16 têm mais de cinqüenta. Isso deixa 19 possíveis - e nenhum se encaixa.

O piloto balançou o queixo para o co-piloto.

Danny vai fazer o contato com Dallas. Diga a eles o que encontrou, ou não encontrou — depois de uma pausa, prosseguiu.

Isso quer dizer que posso começar a respirar de novo?

 

O equipamento de comunicações no C-22 permitia que Smith ficasse na escuta do canal de operações de segurança francês. Ouviu enquanto os agentes do Deuxième Bureau passavam informações sobre o desembarque do vôo da Air France 612. Três quartos dos passageiros já haviam saído do avião e nenhum sinal de Beria. Smith começara a concentrar a atenção no vôo da American, a menos de vinte minutos de aterrissar, quando o telefone via satélite tocou.

Aqui é Klein. Jon, acabei de receber um comunicado de Dallas. A agente no vôo 1710 afirma que não há ninguém a bordo que se pareça com Beria.

Isso é impossível! Os franceses praticamente já acabaram o desembarque. Nada por aqui. Ele tem de estar no vôo da American.

Não de acordo com a agente federal. Ela tem quase certeza absoluta de que Beria não está lá.

Quase não basta.

Sei disso. Transmiti as informações dela para os ingleses. Ficaram gratos mas não vão abrir o flanco. O grupo do SAS está em posição e vai ficar.

Senhor, creio que temos de considerar a possibilidade de Beria ter tomado algum outro vôo ou de estar usando algum outro meio de transporte para entrar nos Estados Unidos.

A respiração de Klein assobiou na linha.

Você acha que ele teria ousadia de tentar isso? Deve saber que levantamos todas as barreiras para apanhá-lo.

Beria começou a cumprir uma missão, senhor. Ele já matou para se desincumbir dela. Sim, acho que é suficientemente determinado para tentar chegar lá — fez uma pausa. — Moscou é o ponto central de vôos para o Ocidente, mas não é o único ponto de saída.

São Petersburgo?

Recebe muitos vôos indo e vindo da Escandinávia e do norte da Europa. Aeroflot, Sandinavian Airlines, Finnair, Royal Dutch todas essas companhias têm tráfego regular de ida e volta passando por lá.

Kirov vai ter uma embolia quando eu sugerir que Beria pode ter conseguido chegar até São Petersburgo.

Ele já chegou longe demais do modo como as coisas estão, senhor. Isso é o que o está mantendo um passo à nossa frente.

Smith ouviu alguma coisa no canal francês. Pediu licença, ficou na escuta por um breve instante, depois voltou para Klein.

Paris confirma que o vôo deles está limpo.

Qual é seu próximo passo, Jon?

Smith pensou por um momento.

Londres, senhor. Vou desembarcar lá.

 

 

Com pequenas nuvens de fumaça azul subindo dos pneus e o fedor de freios superaquecidos, o vôo 1710 da American pousou no aeroporto Heathrow de Londres. Seguindo as instruções do co­mandante do Serviço Aéreo Especial Britânico, o piloto informou a seus passageiros que surgira um problema com o passadiço do terminal de passageiros. A torre de controle os estava encaminhan­do para uma outra parte do campo de pouso, onde escadas poderiam ser empurradas até as portas do avião.

Os tripulantes passaram pelos compartimentos de primeira classe e executiva, assegurando aos passageiros que não teriam problemas para fazer suas conexões.

E a continuação do vôo para Dulles? — perguntou Treloar.

Nosso tempo de escala será breve quanto for possível — respondeu um tripulante.

Treloar rezou para que estivesse certo. As cargas de nitrogênio dentro do recipiente metálico estariam bem por mais 12 horas. A escala em Heathrow geralmente era de noventa minutos; o tempo de vôo até Dulles, seis horas e 15 minutos. Depois de passar pela Alfândega e pela Imigração, teria três horas para pôr as amostras de varíola em equipamento refrigerado. Havia muito pouca margem de tempo para imprevistos.

Saindo para a escada, Treloar descobriu que o avião estava estacionado ao lado de um gigantesco hangar de manutenção. Enquanto descia os degraus, viu as carretas de bagagem sendo carregadas e dois ônibus do aeroporto parados junto das portas do hangar, equipado como uma área de trânsito e desembarque temporária.

Enquanto Treloar e seus companheiros de viagem seguiam adiante, não tinham nenhuma idéia de que olhos duros colados a miras telescópicas estavam examinando cada um de seus movimentos. Não poderiam ter imaginado que os rapazes vestindo unifor­mes de agentes alfandegários e fiscais de imigração, bem como os carregadores, motoristas de ônibus e pessoal de manutenção eram todos agentes disfarçados do SAS muito bem armados.

Pouco antes de Treloar desaparecer passando pela porta do hangar, ouviu um ruído alto e estridente. Virando-se, viu um elegante jato executivo aterrissar graciosamente na pista a pouco mais de 180 metros. Imaginou que pertencesse a algum empresário obscenamente rico, ou a algum xeque, sem jamais suspeitar de que dentro do Ilyushin C-22 um homem estivesse, naquele exato mo­mento, dando uma descrição detalhada dele a um atirador de precisão que tinha a testa de Treloar bem no meio de sua mira.

 

Os ingleses dizem que o 1710 está limpo, senhor.

A voz de Klein sibilou na linha.

Recebi a mesma informação. Você precisava ter ouvido Kirov quando lhe dei a notícia. As coisas estão complicadas em Moscou.

Sentado no Ilyushin estacionado, Smith continuou a observar a atividade ao redor do 767 da American.

Alguma notícia de São Petersburgo?

Kirov está compilando uma lista de vôos que partiram até agora. Está correndo para pegar as fitas do terminal de partida e lambém está pondo homens em campo para começar a entrevistar os funcionários.

Smith mordeu o lábio.

Está demorando demais, senhor. A cada hora que se passa, Beria fica cada vez mais longe.

Eu sei. Mas não posso caçar enquanto não tiver um alvo. — Klein fez uma pausa. — Qual será seu próximo movimento?

—Não há nada que eu possa fazer em Londres. Pedi à American um lugar no 1710 e eles concordaram. Está previsto para partir dentro de 72 minutos. Isso me levará de volta a Washington mais depressa que se eu esperar por transporte militar.

Não gosto da idéia de você estar sem um canal de comuni­cações seguro.

A tripulação da cabine de comando saberá que estou a bor­do, senhor. Se houver alguma notícia de Moscou, o senhor pode me passar um rádio para o avião.

Tendo em vista as circunstâncias, vamos fazer assim. Nesse meio-tempo, tente descansar um pouco durante o vôo. Esta história está apenas começando.

 

Anthony Price estava em seu vasto escritório no sexto andar do quartel-general da NSA, em Fort Mead, Maryland. Na qualidade de diretor assistente, Price era responsável pelas operações do dia-a-dia da agência. Naquele exato momento, isso significava manter sua equipe acompanhando de perto a situação em Moscou. Até agora, os russos continuavam insistindo na história de que rebeldes chechenos eram responsáveis pelo massacre — algo muito conve­niente para Price. Dava-lhe um motivo legítimo para cobrir o incidente. E, quanto mais tempo os russos perseguissem os terro­ristas fantasmas, mais fácil seria para Beria e Treloar escapulirem através da rede.

Price levantou a cabeça quando ouviu baterem à porta.

Entre.

A analista sênior de Price, uma mulher jovem, robusta, com uma expressão severa de bibliotecária preocupada, entrou.

—A última atualização de nossas fontes em campo em Moscou, senhor. — Parece que o general Kirov está muito preocupado com um vídeo de segurança do Sheremetevo em Moscou.

Price sentiu uma constrição no peito, mas conseguiu manter a voz normal.

E mesmo? Por quê? Quem está na fita?

Ninguém sabe. Mas por algum motivo os russos entraram em alerta total. Aparentemente, a qualidade do vídeo é muito ruim.

A mente de Price girava a toda velocidade.

Isso é tudo?

Por enquanto, senhor.

Quero que você acompanhe de perto essa questão do vídeo. Se alguém ouvir alguma coisa sobre isso, quero saber.

Sim, senhor.

Depois que a analista saiu, Price se dirigiu ao computador e chamou à tela os vôos previstos para chegar em Dulles. Havia somente um motivo pelo qual os russos poderiam estar tão interes­sados nas fitas: Beria fora visto com alguém. E essa pessoa só podia ser Adam Treloar.

O vôo 1710 da American estava previsto para chegar dentro de pouco mais de seis horas. As técnicas de análise e ampliação e definição de fotografia dos russos estavam longe de ter tecnologia de ponta. As máquinas deles levariam horas para conseguir locali­zar as imagens. A esta altura, o vôo 1710 já teria aterrissado e Adam Treloar estaria em segurança.

Price recostou-se na cadeira executiva de estofamento de cou­ro, tirou os óculos e bateu com a haste nos dentes da frente. A situação em Moscou havia degenerado para um quase fiasco. O fato de Beria ter escapado à carnificina na estação de trens era nada menos que um milagre. Igualmente espantoso era o fato de ter conseguido chegar ao Sheremetevo a tempo de entregar as amostras de varíola a Adam Treloar.

Mas as câmeras de segurança tinham captado um contato entre os dois homens. Kirov dispunha da imagem desse contato. Tão logo tivesse reconstruído a imagem de Treloar, a inseriria nos bancos de dados da Alfândega e da Imigração para comparação. Descobriria exatamente quando Treloar entrara e saíra da Rússia. Alertaria os agentes de ligação da CIA e do FBI na embaixada.

Então começaríamos a procurar Treloar até encontrá-lo, pelo único e simples motivo de que foi visto com Beria... Mas será que Kirov suspeita de que Treloar seja o verdadeiro mensageiro?

Price acreditava que não. Até aquele momento, tudo indicava que a caçada estivesse concentrada em Beria. E os russos estavam chegando perto. Os boletins chegando, enviados por agentes da NSA em São Petersburgo, indicavam intensa atividade de contra-espionagem por lá.

Price chamou à tela mais uma lista de chegadas. Lá estava ele, o vôo da Finnair, previsto para chegar ao Dulles dentro de cinco horas. Será que os russos conseguiriam reunir as informações e confirmar que Beria havia partido de São Petersburgo? Se disparas­sem os alarmes, quanto tempo o FBI levaria para lançar uma rede e lechar o Dulles?

Não muito.

— Este é todo o tempo de que você dispõe, amigo — disse Price para a tela.

Estendendo a mão para o telefone, digitou o número da linha especial de Richardson. O plano mestre havia considerado a pre­sença de Beria nos Estados Unidos uma contingência. Mas com o comprometimento de Treloar tendo se tornado inevitável, esse esquema estava em via de mudar.

 

O general-de-divisão Kirov estivera de pé durante a maior parte das últimas 24 horas. Analgésicos, a traição infame de Lara Telegin e um desejo insaciável de encontrar Ivan Beria o mantiveram em ação.

Olhando pela janela de seu escritório para o crepúsculo que se apagava, Kirov passou em revista a situação. A despeito do que dissera a Klein, a busca por Beria ainda estava concentrada em Moscou. Ouvira o que o americano tinha a dizer e demonstrara seu franco ceticismo à sua teoria de que o assassino havia fugido para São Petersburgo de maneira a sair da Rússia. Kirov acreditava que o fiasco na estação de trens tinha espatifado completamente o plano intricado de Beria. Obviamente um contato, talvez pronto para levar as amostras de varíola, esperava nas proximidades. Igualmen­te verdade era o fato de que o tiroteio o teria posto para correr. Com certeza devia ter sido combinado um segundo ponto de encontro. Mas entre a polícia, a milícia e as forças de segurança, Kirov tinha mais de oito mil homens vasculhando a cidade, todos procurando um único rosto. O monstro dos Bálcãs só podia circular expondo a si mesmo — e seu contato — a um enorme risco. Conhecendo Beria bem como conhecia, Kirov acreditava que ele havia se escondido em algum lugar na cidade. Se este fosse o caso, seria apenas uma questão de tempo para que fosse descoberto e as amostras de varíola, recuperadas.

Mas, a despeito de toda sua certeza, Kirov não era estúpido de apostar todas as suas fichas num único lance de dados. Cumprindo a promessa que fizera a Klein, telefonara para o chefe do Serviço de Segurança Federal em São Petersburgo. O SSF e a polícia já tinham a descrição detalhada de Beria; o chamado de Moscou faria com que se dedicassem à busca com mais empenho. Kirov dera instruções ao comandante do SSF para que concentrasse seus recursos nas esta­ções de trem e na rodoviária — lugares por onde Beria mais prova­velmente teria entrado na cidade — e no aeroporto. Ao mesmo lempo, relatórios de passageiros e vídeos de segurança dos aeropor­tos eram minuciosamente examinados. Se houvesse a menor pos­sibilidade de que Beria tivesse estado ou ainda se encontrasse em São Petersburgo, Kirov deveria ser notificado imediatamente.

Duas horas após o vôo 1710 da American ter partido de Londres, Adam Treloar acabou de tomar o vinho de seu jantar e colocou a bandeja no descanso do braço do assento. Caminhando descontraidamente para o toalete, lavou as mãos e escovou os dentes usando o material fornecido no kit de cortesia. A caminho de volta para o assento, decidiu esticar as pernas.

Puxando a cortina, entrou na classe executiva e seguiu pelo corredor da esquerda do compartimento escurecido. Alguns dos passageiros assistiam a um filme nas telas de vídeo individuais; outros estavam trabalhando, lendo ou dormindo.

Treloar foi até a parte de trás da classe econômica, fez a curva nos toaletes e voltou pelo corredor da direita. De volta à classe executiva, parou bruscamente quando uma calculadora caiu a seus pés. Inclinou-se para apanhá-la, e a estava entregando ao passageiro no assento do corredor, quando por acaso olhou mais além para o homem dormindo no assento da janela.

Está se sentindo bem? — sussurrou o passageiro. Treloar balançou a cabeça e deu dois passos rápidos adiante, esgueirando-se atrás da cortina do compartimento de primeira classe. Impossível! Não pode ser ele.

Sua respiração saiu descontrolada, ofegante, enquanto tentava desesperadamente se acalmar. O homem adormecido no assento da janela era um rosto que lhe era conhecido: Jon Smith.

Posso lhe servir alguma coisa, senhor?

Treloar ficou olhando fixamente para a aeromoça que havia se aproximado dele.

Não... obrigado.

Voltou rapidamente para seu assento, acomodou-se e cobriu-se com um cobertor.

Treloar se lembrava de ter encontrado Smith em Houston. Cometera o erro de revelar que ouvira Reed falar a respeito de Veneza e de Smith. Reed o advertira de que Smith não era de sua conta. Ele assegurara a Treloar que não havia motivo por que o médico voltasse a cruzar o caminho de Treloar.

Então o que ele está fazendo aqui?

As perguntas massacraram Treloar enquanto olhava para sua mochila, encaixada ao lado da antepara. No olho de sua mente, viu o reluzente recipiente metálico e, dentro dele, as ampolas com seu líquido amarelo dourado mortal. Paralisado demais para se mover, tentou controlar o pânico.

Pense com lógica! Se Smith soubesse das amostras de varíola, teria permitido que você embarcasse em Londres? Claro que não! Você estaria na cadeia agora. De modo que ele não sabe. O fato de estar aqui é uma coincidência. Tem de ser!

Seu raciocínio o acalmou um pouco, mas tão logo uma série de perguntas era respondida, surgia uma outra: Talvez Smith soubesse que ele trazia o vírus, mas não houvera tempo para prendê-lo com segurança em Londres. Talvez os ingleses tivessem se recusado a cooperar. Talvez Smith estivesse permitindo que voltasse para casa porque precisava de tempo para preparar um esquema com tudo sob controle em Dulles. Cairiam em cima dele assim que desembarcasse...

Treloar puxou o cobertor para junto do queixo. Lá, na seguran­ça ensolarada de Houston, o plano de Reed lhe parecera tão fácil, tão perfeito. Sim, havia um elemento de perigo, mas era infínitesimal se comparado com as recompensas que teria. E antes do perigo houvera as delícias de Moscou.

Treloar sacudiu a cabeça. Memorizara o que deveria fazer ao chegar a Dulles. Agora, a presença inexplicada de Smith transfor­mava um plano cuidadoso em cinzas. Orientação, explicações, palavras tranqüilizadoras eram necessárias.

Estendendo a mão debaixo do cobertor, Treloar puxou o telefone de bordo. Naquele ponto da operação, era absolutamente proibido qualquer tipo de comunicação. Mas, com Smith a apenas alguns metros de distância, aquela regra não se aplicava mais. Treloar manuseou desajeitadamente o cartão de crédito e o passou na fenda do aparelho. Segundos depois, a transação foi aprovada e a ligação estava feita.

 

A sala ao lado do escritório de Randi fora montada como um pequeno centro de conferências completo, com o mais moderno equipamento audiovisual, monitores de tela plana e uma ilha de edição de vídeo e DVD, que não deixavam nada a desejar se compa­rados aos equipamentos encontrados no departamento de anima­ção da Disney. Na maioria das tardes de sexta-feira, os funcionários costumavam se reunir, comer bobagens e assistir aos últimos lançamentos em DVD por cortesia da Amazon.com.

Sentada ao lado de Sasha Rublev, Randi observava enquanto o rapaz desajeitado usava o programa de computador de edição, ampliação e definição de imagens para melhorar a imagem borrada do rosto na fita. Havia horas que Sasha não desgrudava do compu­tador. De vez em quando, parava apenas o tempo necessário para beber uma Coca-Cola; então, recuperado, retornava ao trabalho.

Durante todo esse tempo, Randi fora apenas uma observadora silenciosa. Estava fascinada com a maneira como Sasha conseguia arrancar delicadamente um pixel atrás do outro do que parecia não ser mais do que uma mancha. Pouco a pouco a imagem de um rosto de homem começou a entrar em foco.

Sasha deu alguns toques finais no teclado, então girou a cabeça em círculo para descontrair o pescoço.

É isso aí, Randi — declarou. — Melhor que isso não consigo.

Randi apertou o ombro dele.

Você fez um belo trabalho.

Ela fixou a imagem de um rosto gorducho, pontuado por bochechas redondas e lábios grossos. Os olhos eram a característica mais surpreendente: grandes e com formato de ovo, pareciam saltar das órbitas.

Ele tem uma cara ruim.

Randi se sobressaltou ao ouvir o tom da voz de Sasha.

Como assim?

Parece um pequeno demônio. Tem alguma coisa realmente má nesse sujeito — fez uma pausa. — A estação de trem...?

Não sei — respondeu Randi sinceramente. Deu um abraço rápido em Sasha. — Obrigada. Você ajudou muito, preciso de alguns minutos para encerrar as coisas por aqui e depois vamos comer uns Egg McMuffins. OK?

Sasha apontou para o laptop e o telefone celular sobre a mesa cie conferência.

E aquilo?

Randi sorriu.

Talvez mais tarde.

Tão logo ficou sozinha, Randi fez urna conexão via computa­dor em linha protegida com o funcionário de serviço diplomático mais graduado da embaixada, que era, de fato, o chefe de birô da CIA. Tão logo ele confirmou estar na linha, ela disparou um pedido urgente para toda e qualquer informação sobre o homem cuja foto enviaria a seguir.

Randi pôs uma folha com a imagem impressa do homem no fax e, consultando o relógio, refletiu que deveria ter uma resposta dentro de cerca de trinta minutos. Enquanto apanhava a bolsa, pensou em jon Smith e se perguntou por que aquele homem de cara "ruim" seria tão importante para ele.

 

— Fique calmo, Adam. Apenas mantenha a calma.

Adam Treloar estava sentado encolhido no canto de seu espa­çoso assento junto à janela. Estava agradecido pela privacidade de que dispunha na cabine de primeira, classe e pelo ronco dos motores. Apesar disso, falou aos sussurros.

Que devo fazer, Price? — perguntou. — Smith está a bordo deste avião. Eu o vi!

Anthony Price girou a cadeira para ficar de frente para as janelas com vidraças à prova de balas que só permitiam que se visse de dentro para fora. Escolheu um ponto no céu e fixou o olhar nele. Então esvaziou a mente de tudo, exceto a questão que tinha diante de si.

Mas ele não viu você, não é? — disse tentando soar tão con­vincente quanto possível. — E não verá. Não se você for cuidadoso.

Mas, para começar, o que ele está fazendo aqui?

Price adoraria saber isso.

Não tenho certeza — disse cautelosamente. — Assim que acabarmos de falar, vou começar a verificar. Mas lembre-se: Smith não lhe diz respeito. E não há absolutamente nenhum motivo para ele estar interessado em você.

Não minta para mim! — sibilou Treloar. — Acha que não sei do papel de Smith no horror do projeto Hades?

Smith não está mais no USAMRIID — replicou Price. E há um detalhe de que você pode não ter conhecimento: a noiva dele foi morta durante o Hades. A irmã dela trabalha em Moscou para uma companhia de investimento de capital de risco.

Está dizendo que Smith esteve por motivos pessoais?

É bem possível.

Não sei... — resmungou Treloar. — Não gosto de coin­cidências.

—Mas, às vezes, as coisas são apenas isso — falou Price em tom tranqüilizador. — Adam, me escute. Mandei que você tivesse tratamento especial no Dulles. Vai passar direto pela Imigração e pela Alfândega. Um de nossos agentes estará esperando por você com um carro. Vai sair sem problemas. Relaxe.

Apenas trate de se assegurar para que nada dê errado. Se eles encontrarem...

Adam! — interrompeu Price asperamente. — Não precisa­mos falar nisso.

Desculpe.

Ligue para mim assim que estiver no carro e não se preocupe.

Price cortou a ligação. Treloar sempre fora o elo fraco da corrente. Mas também indispensável. Era o único membro do Pacto com um motivo justificável e conhecido para ir à Rússia regularmente. Também era um cientista que sabia como manusear a varíola. Mas isso não impediu Price, que odiava os fracos, de desprezá-lo.

Apenas trate de chegar em casa, Adam — sussurrou para o céu. — Chegue em casa e certamente terá sua justa recompensa.

 

 

Depois de deixar os limites da cidade de Washington, Nathaniel Klein seguiu dirigindo pela U.S. 15 até chegar a Thurman, em Maryland. Ali entrou na estrada 77, passou ao largo de Hagerstown e seguiu por Hunting Creek até chegar ao Centro de Visitantes da Reserva Florestal das Montanhas de Catoctin. Contornando o posto da guarda florestal, entrou numa estrada asfaltada de duas pistas até chegar a uma placa que dizia: "PROIBIDO PARAR, REDU­ZIR A VELOCIDADE, ENTRAR OU PERMANECER AQUI." Para re­forçar a mensagem, um veículo blindado do Exército saiu rugindo da curva e veio até o meio da estrada.

Klein aproximou seu discreto Buick sedã, baixou a janela e apresentou a identidade. O oficial, alertado para esperar a chegada de Klein, examinou a carteira. Satisfeito, instruiu Klein a seguir adiante. Tão logo estava a caminho, o telefone do carro tocou.

Aqui é Klein.

Kirov, de Moscou. Como vai o senhor?

Pelo tom de sua voz, melhor do que você. Mas tudo o que disse foi:

Bem, obrigado, general.

Tenho informações — a seguir, uma ligeira hesitação, como se o russo estivesse tentando encontrar as palavras adequadas. Finalmente, elas saíram apressadamente.

Beria conseguiu chegar a São Petersburgo, exatamente como o senhor desconfiava. Francamente, não consigo entender como isso foi possível.

Tem certeza? — perguntou Klein.

Absoluta. Um motorista de ônibus foi parado numa das barreiras na auto-estrada Moscou — São Petersburgo. Mostraram-lhe a fotografia e ele identificou Beria.

A que distância de São Petersburgo ficava a barreira?

Tivemos um pouco de sorte nisso: apenas uma hora. Ime­diatamente concentrei meus recursos na cidade, especialmente no aeroporto. Nenhuma companhia aérea americana havia partido até aquele momento.

Klein respirou um pouco aliviado. Para onde quer que Beria estivesse indo, não era para cá.

— Mas houve um vôo da Finnair que já havia partido quase dez horas antes — disse Kirov. — Leva uma excursão americana.

Klein fechou os olhos.

E?

O funcionário da Imigração se lembra de que a guia do grupo lhe deu uma pilha de passaportes. Ele os examinou cuidadosamen­te. Um dos nomes chamou sua atenção, porque era um nome russo em um passaporte americano. Ivan Beria agora está usando o nome de John Strelnikov. Se o vôo da Finnair estiver no horário, vai aterrissar em Dulles dentro de 15 minutos.

Klein ficou olhando fixamente pelo pára-brisa para os chalés que começavam a surgir à vista.

General, vou ter de ligar de volta para o senhor.

Compreendo. Boa sorte, senhor.

Klein continuou dirigindo, passando pelas casas rústicas até avistar a maior delas, de frente para um pequeno lago. Estacionou defronte aela, saltou e correu para a porta da frente. Nathaniel Klein chegara a Aspen, a casa de campo presidencial em Camp David.

Construída em 1938, como local de descanso para Franklin Delano Roosevelt, a área conhecida como Camp David já fora chamada de Área de Demonstração Recreacional de Catoclin (RDA), usada por servidores federais e suas famílias. A cerca de segurança rodeava um terreno de cinqüenta hectares abrigados por uma densa área florestal de carvalhos, nogueiras, álamos, choupos tremedores e Ireixos. Os chalés para convidados — usados por dignitários estrangeiros, amigos e pessoas da família do presidente — ficavam em locais separados e eram ligados a Aspen por séries de caminhos para pedestres.

Em meio às árvores, Klein viu de relance o Marine Um, o heli­cóptero presidencial. Diante das circunstâncias, ficou satisfeito com o fato de que o tempo de vôo para Washington fosse de apenas trinta minutos.

Samuel Adams Castilla, o chefe do Executivo, estava sentado atrás de uma escrivaninha de pinho torneada, folheando documen­tos. Com um casaco de lã abotoado na frente sobre uma camisa de algodão grosso, o ex-governador do Novo México se levantou e estendeu a mão bronzeada para Klein. Atrás dos óculos de armação de titânio, olhos azuis acinzentados de expressão comedida avali­aram o visitante.

Normalmente, eu diria que é um prazer vê-lo, Nate — saudou o presidente. — Mas depois de dizer que era urgente...

Lamento interromper seu descanso, sr. presidente, mas isso não pode esperar.

Castilla passou a palma da mão sobre o leve sombreado da barba por fazer.

Está relacionado com o assunto a respeito do qual falamos em Houston?

Receio que sim.

O presidente fez um gesto em direção a um dos sofás.

Diga-me em que pé estão as coisas — ordenou sem fazer rodeios.

Cinco minutos depois, Castilla sabia de mais do que desejara saber.

— Qual é sua recomendação, Nate?—perguntou em voz baixa.

Acionar o FIREWALL — respondeu Klein em tom tenso. — Não queremos que um único daqueles passageiros saia do terminal.

Desenvolvido em colaboração com a FAA e com o Pentágono, o alerta FIREWALL era uma operação de resposta destinada a controlar qualquer incursão terrorista nos Estados Unidos. Se o alarme chegasse com a antecedência necessária, todos os portos de entrada seriam tomados por agentes de segurança esperando por um indivíduo cuja descrição e outros detalhes já estariam em suas mãos. Klein sabia que era tarde demais para fazer isso em Dulles. O melhor que poderia fazer seria alertar todos os agentes disponí­veis uniformizados e pessoal de segurança à paisana que já estives­sem no aeroporto e iniciar uma caçada. Enquanto os agentes esti­vessem se dirigindo para seus postos, o FAA estaria enviando um fax com o relatório de passageiros para o posto de comando central.

O presidente o encarou, balançou a cabeça, e estendeu a mão para o telefone. Em segundos estava falando com Jerry Mathews, diretor do FBI, e explicando o que precisava ser feito.

Não tenho tempo para lhe dar todos os detalhes agora, Jerry. Apenas trate de ativar o FIREWALL. Estou lhe enviando um fax com a descrição do suspeito agora.

O presidente pegou o papel que Klein lhe estendeu e o enfiou na máquina.

O nome verdadeiro dele é Ivan Beria, Jerry. É cidadão sérvio. Mas está usando o nome John Strelnikov e viajando com um passaporte americano falso. Ele não é, e repito, não é cidadão ame­ricano. Jerry, estamos numa situação de nível cinco de segurança.

Cinco era o nível mais alto, significava que o indivíduo em questão deveria ser considerado não só como armado e perigoso, mas como um perigo real e imediato para a segurança nacional.

O presidente desligou e virou-se para Klein.

Ele vai me ligar de volta assim que as coisas estiverem em andamento — sacudiu a cabeça. — Ele perguntou — respeitosa­mente, veja bem — quais eram as minhas fontes.

Compreendo a sua posição, senhor — respondeu Klein.

Fui eu mesmo que a criei.

Depois do pesadelo do projeto Hades e da eleição subseqüente, Samuel Castilla havia jurado que os Estados Unidos nunca mais seriam apanhados desprevenidos. Embora respeitasse o trabalho das agências tradicionais, via uma necessidade urgente de se criar um novo grupo — pequeno, de elite, controlado por um único homem, que não devesse satisfações a mais ninguém, reportando- se somente ao presidente.

Depois de pensar muito, Castilla escolhera Nathaniel Klein para chefiar o grupo que viria a ser conhecido como Covert-One. Usando fundos cuidadosamente transferidos de vários outros de­partamentos governamentais, empregando somente os homens e mulheres mais talentosos e mais dignos de confiança, o Covert-One se transformara de uma idéia em um meio de rígido controle presidencial. Desta vez, pensou Castilla, temos a possibilidade de deter o monstro em vez de chafurdar no horror que ele vai criar.

O telefone tocando interrompeu seus pensamentos.

Diga, Jerry.

Castilla ouviu, pôs a mão sobre o bocal e dirigiu-se a Klein.

Eles têm uma identificação positiva de Strelnikov. A Imi­gração registrou sua entrada oito minutos antes do alarme FIREWALL ser acionado — parou por instantes. — Quer manter o alerta, Nate?

De repente, Klein sentiu-se muito velho. Beria os tinha enga­nado mais uma vez. Oito minutos eram uma eternidade para alguém como ele.

Agora a história mudou inteiramente de figura, senhor. Temos de pôr em ação um segundo plano de segurança — rapida­mente explicou o que tinha em mente.

O presidente voltou para o telefone.

Jerry, ouça com atenção...

Enquanto o presidente falava, o diretor do FBI pôs em campo as equipes patrulhas de elite anti-terroristas estacionadas em Buzzard's Point. Uma descrição de Beria estava sendo enviada para as telas de computador de seus carros. Em trinta minutos as primeiras equipes estariam entrevistando despachantes de táxis, carregadores, motoristas de limusines, qualquer um que pudesse ter visto ou entrado em contato com o suspeito.

Avise-me no minuto em que tiver alguma coisa -— disse Castilla, e encerrou a ligação. Virou-se para Klein. — Exatamente quantas amostras de varíola foram roubadas?

O suficiente para iniciar uma epidemia incontrolável em toda a costa leste.

E nossos depósitos de vacinas, além das que ficam armaze­nadas no USAMRIID para uso militar?

Mal chegam para inocular meio milhão de pessoas. Já estou prevendo sua próxima pergunta, sr. presidente: quanto tempo para fabricar mais? Tempo demais. Semanas.

—Mesmo assim, devemos tentar. E a Grã-Bretanha, o Canadá, o Japão, não podemos comprar deles?

Eles têm menos do que nós, senhor. E precisariam do que têm para proteger suas populações.

Por um instante houve silêncio.

Há algum motivo para acreditarmos que Beria veio para cá com a intenção expressa de disseminar o vírus? — perguntou o presidente.

Não, senhor. Ironicamente, este é nosso único raio de esperança. Beria nunca foi nada além de um assassino de aluguel, um facilitador. Suas convicções políticas giram em torno do preço pago por serviços prestados.

Um facilitador? Está sugerindo que ele veio entregar as amostras de varíola para alguém aqui?

Compreendo que seja uma noção difícil de conceber, sr. presidente. Afinal, se um terrorista quisesse fazer um ataque com arma bioquímica contra nós, seria muito mais seguro montar a arma fora do país, em vez de fazer isso aqui.

Mas as amostras de varíola já são uma arma, não são, Nate?

Sim, senhor. Mesmo em sua forma bruta, a varíola é extre­mamente poderosa. Ponha na central de distribuição de água de Nova York e poderá criar uma crise de proporções gigantescas. Mas, senhor, se pegar a mesma quantidade e reconfigurá-la de modo que possa ser usada em um sistema de aerossol, poderá semear, por assim dizer, uma área muito maior.

O presidente fungou.

O que está dizendo é: por que desperdiçar o potencial quando se pode maximizá-lo?

Exatamente.

Presumindo, por um momento, que Beria seja um mensa­geiro, até onde ele pode ir?

Esperamos poder contê-lo na área de Washington, D.C. Beria tem alguns problemas: não fala bem inglês e nunca esteve neste país, muito menos nesta área específica. De alguma maneira acabará atraindo atenção sobre si mesmo.

Em teoria, Nate. Mas ele não vai aparecer para fazer excur­sões de visita à Casa Branca. Vai entregar o vírus e tratar de dar o fora. Ou pelo menos tentar.

Beria tem de ter ajuda deste lado — concluiu Klein. — Mas, mais uma vez, a área geográfica é limitada. Também deveríamos lembrar que as pessoas usando Beria não vão querer que o vírus seja liberado enquanto não for conveniente para elas fazê-lo. Isso significa que terão de armazená-lo — em local seguro. E isso requer um excelente laboratório. Não estamos falando de prédios ou armazéns abandonados, sr. presidente. Em algum lugar nos condados vizi­nhos, um laboratório com tecnologia de ponta foi criado apenas com esse objetivo.

Está certo — disse finalmente. — A caçada de Beria está em ação. Também vamos começar a procurar esse laboratório. Por enquanto, vamos manter o que está acontecendo em sigilo. Blecaute lolal para a imprensa. Assim lhe parece bom?

Sim, senhor. Com relação à imprensa: Kirov fez um traba­lho incrível mantendo a situação na Rússia em sigilo total. Mas, se houver um vazamento, vai acontecer lá. Sugiro que, quando ligar para o presidente Potrenko, pergunte a ele que medidas está toman­do para manter o blecaute do lado de lá.

Está anotado. Agora, que segundo homem é esse que você mencionou. O tal que Beria pode ou não ter encontrado em Moscou?

Ele é um elemento desconhecido, senhor. — Se conseguir­mos identificá-lo, podemos usá-lo contra Beria.

 

Tão logo ouviu o duplo ping indicando que o avião chegara ao portão, Adam Treloar saiu do assento e começou a se mover para a porta da frente. O resto dos passageiros da primeira classe se enfileirou atrás dele, criando um tampão entre ele e o homem que não podia permitir que o visse nem de relance.

Treloar tamborilou com os dedos na mochila, impaciente para que a porta fosse aberta. Suas instruções eram precisas. Ele as repetira uma vez após outra até sabê-las de cor. A única questão era: será que poderia cumpri-las sem interferência?

A porta foi aberta, a aeromoça deu um passo atrás e Treloar passou rapidamente por ela. Foi andando rapidamente pelo passadiço do terminal de passageiros até o corredor fortemente ilumina­do que acabava numa escada rolante. Desceu a escada rolante e se encontrou diante dos balcões com cabines da Imigração. Depois deles estavam as esteiras de bagagem e os balcões de controle da Alfândega.

Treloar esperou e preferiria que houvesse muita gente. Mas Dulles não era um aeroporto movimentado como Kennedy ou Los Angeles, e nenhum vôo internacional chegara ao mesmo tempo ou pouco antes do American 1710. Dirigiu-se para um balcão vazio e apresentou seus documentos a um funcionário que folheou rapida­mente o passaporte e fez perguntas fúteis sobre onde ele estivera. Treloar contou-lhe a verdade sobre sua mãe, como fora à Rússia para visitar seu túmulo e cuidar das coisas dela. O funcionário balançou a cabeça com uma expressão respeitosa, escreveu alguma coisa no formulário da Alfândega e fez sinal para que passasse.

Treloar tinha bagagem, mas não tinha intenção de perder tempo esperando que esta chegasse. As instruções eram muito específicas nesse ponto: deveria sair do terminal tão rapidamente quanto fosse possível. Passando pelas esteiras, Treloar arriscou um olhar por cima do ombro. Do outro lado do saguão, Jon Smith estava num balcão da Imigração reservado para diplomatas e tripu­lantes. Por que ele...? Mas claro! Smith era do Pentágono. Devia estar viajando com documento de identidade militar, não com passaporte civil.

Apresentando seu formulário, Treloar se aproximou do fiscal da Alfândega.

Viajando sem bagagem, senhor — comentou o fiscal.

Lembrando-se de suas instruções, Treloar explicou que havia despachado sua bagagem na frente usando um conhecido serviço de mensageiros autorizados que atendia viajantes endinheirados que não gostavam de carregar suas malas. Familiarizado com aquele tipo de serviço, o fiscal fez sinal para que passasse.

Pelo canto do olho, Treloar viu Smith se aproximando na direção do mesmo fiscal. Virou para a direita, de modo a não ter que andar bem diante da linha de visão de Smith.

Não, senhor — gritou o fiscal. — Para a esquerda.

Treloar virou abruptamente e quase correu para o túnel de ligação do terminal.

Dr. Smith?

Virou-se para o fiscal da Alfândega que se aproximava.

Sim?

Há uma chamada para o senhor. Pode atender lá dentro.

O fiscal abriu a porta de uma sala de entrevistas onde viajantes detidos eram interrogados. Apontando para um telefone sobre a mesa, disse:

Linha um.

Aqui é Smith.

Jon, é Randi.

Randi!

Ouça. Não temos muito tempo. Acabei de receber uma identificação positiva do sujeito naquela imagem. É Adam Treloar.

Smith apertou o telefone.

Tem certeza?

Absoluta. Conseguimos limpar o vídeo o suficiente para imprimir uma boa foto, que mandei para a embaixada. Não se preocupe. Qualquer que seja o segredo, continua sendo segredo. Disse que Treloar era um possível investidor e pedi uma verificação padrão dos antecedentes dele.

Que descobriu?

A mãe dele era russa, Jon. Ela morreu há pouco tempo. Treloar costuma vir com freqüência, para visitar o túmulo, imagi­no. Ah, e ele estava no mesmo vôo que você, American 1710.

Smith ficou atordoado.

Randi, não sei nem como agradecer. Mas tenho que correr.

O que quer que eu faça com o laptop e o celular que você trouxe?

Será que seu menino gênio poderia trabalhar neles?

Foi o que pensei. Ligo para você assim que tiver alguma notícia.

Smith deixou a saleta, andou rapidamente de volta para o balcão da Alfândega e encontrou o fiscal que o avisara da chamada.

Preciso de sua ajuda — disse em tom urgente, apresentando a carteira militar. — Havia um passageiro a bordo do vôo 1710. Pode descobrir se ele já passou pala Alfândega? O nome é Adam Treloar.

O agente foi ao terminal de computador.

Está bem aqui. Treloar. Passou há cerca de dois minutos. O senhor quer...?

Smith já estava indo embora, saindo da área reservada da Alfândega para o corredor, discando o número de Klein enquanto corria.

Aqui é Klein.

Senhor, é Smith. O sujeito com Beria é americano. Dr. Adam Treloar. É um cientista da NASA e estava no vôo de Londres para Washington.

Pode encontrá-lo? — perguntou Klein, aflito.

Ele está dois minutos à minha frente, senhor. Pode ser que eu consiga encontrá-lo antes que ele deixe o terminal.

Jon, estou em Camp David com o presidente. Espere um minuto, por favor.

Smith continuou caminhando em meio ao fluxo de gente no saguão, enquanto esperava que Klein voltasse à linha.

Jon, escute. Hoje mais cedo, demos um alerta FIREWALL. Para Beria. Mas ele conseguiu passar. Agora que sabemos com quem foi visto, é imperativo que você encontre Treloar. Temos agentes do FBI na área...

Não adianta, senhor. Levaria tempo demais pô-los a par da situação. Acho que tenho mais chance sozinho.

Então aproveite essa chance.

Smith correu pelo túnel. Conhecia intimamente a planta do Dulles. Depois de passar pela Imigração e Alfândega, os passageiros seguiam pela área de chegadas até outros portões, ou, se Washing­ton fosse sua destinação final, para a área onde ônibus de trânsito especialmente construídos esperavam. Esses veículos podiam le­vantar suas plataformas para alcançar a área de embarque. Depois que os passageiros tivessem entrado, o chassi era abaixado e os ônibus atravessavam o aeroporto até o terminal principal. Ali o processo era repetido, e os passageiros desembarcavam e seguiam para a saídas.

Smith correu passando por lojas e bancas de jornal, dardejando entre os viajantes, se esforçando para avistar Treloar. Ao chegar ao final do saguão, encontrou-se numa área de espera. Ao longo de uma parede, havia portas de vidro, semelhantes às de um elevador, pelas quais os passageiros passavam para entrar nos ônibus. Um ônibus estava parado na plataforma. Smith abriu caminho à força em meio ao um aglomerado de vinte e poucos passageiros que estavam se preparando para embarcar.

Ignorando os gritos de reclamação, Smith foi empurrando e dando cotoveladas até chegar ao ônibus, seus olhos saltando de rosto em rosto. Examinou cada passageiro. Treloar não estava lá.

Smith bateu na divisória separando a cabine do compartimen­to do motorista. Um rosto negro espantado virou-se e olhou para ele e para a identidade que ele encostou no vidro.

Um outro ônibus acabou de sair? — gritou.

O motorista balançou a cabeça e indicou um ônibus que estava a mais da metade do caminho entre a área de chegada e o terminal principal.

Smith fez meia-volta e abriu caminho em meio ao aglomerado de gente que aumentava dentro do ônibus. Localizou uma saída de emergência e correu para ela. Os alarmes soaram enquanto ele abria a porta de vidro com avisos escritos em grandes letras vermelhas.

Correndo pela rampa que dava para as áreas de serviço dos portões, Smith avistou um sedã de supervisor do aeroporto parado ao lado de uma fileira de carretas de bagagem. Abriu a porta e saltou atrás da direção. Enfiou o pé no acelerador e o sedã saiu voando pelas pistas de taxiagem, por pouco não batendo num caminhão de combustível.

A corrida de travessia das orlas de estacionamento levou menos de trinta segundos. Abandonando o veículo, Smith se encontrou numa área de espera idêntica, cheia de passageiros esperando para embarcar. Virando-se, viu as costas daqueles que tinham acabado de sair do ônibus. Vasculhou o mar de rostos que o cercavam. Treloar não podia ter conseguido escapulir. Não tão depressa.

Então ele o viu, de início apenas de relance. Mas era inegavel­mente Treloar, além das portas de vidro automáticas que davam para a calçada da rua, onde táxis, limusines e carros particulares esperavam.

Correndo a toda velocidade, Smith se enfiou pelas portas a tempo de ver sua presa pronta para embarcar num Lincoln sedã preto com vidros escuros.

Treloar!

Arremessando-se na direção dele, Smith viu o terror naqueles olhos estranhos, notou a maneira como Treloar estava apertando a mochila contra o peito.

Treloar saltou para dentro do carro e bateu a porta, Smith alcançou o veículo apenas a tempo de enfiar os dedos na maçaneta da porta. Então, sem aviso, o grande carro acelerou e, cantando pneus, se afastou do meio-fio, atirando-o pesadamente na calçada. Smith encolheu os ombros, deixando-os absorver o impacto, e se deixou rolar levado pelo impulso. Quando afinal conseguiu se pôr de novo de pé, o Lincoln estava longe em meio ao tráfego.

Dois policiais do aeroporto vieram correndo e o agarraram pelos braços. Trinta segundos preciosos foram perdidos enquanto Smith lutava para se identificar. Finalmente conseguiu pegar o telefone e ligar para Klein.

Conseguiu pegar o número da placa? — perguntou Klein depois que Smith lhe falou do carro.

Não. Mas vi os três últimos algarismos. E havia uma tarja cor de laranja fixada no canto esquerdo inferior. Senhor, o Lincoln é carro oficial emplacado por uma agência do governo americano.

 

 

Para onde estamos indo?

Os vidros escuros separando os compartimentos de trás e da frente impediam Adam Treloar de ver o motorista. Sua voz, saindo de alto-falantes ocultos, tinha um tom áspero.

— Não precisa se preocupar, dr. Treloar. Todas as providên­cias já foram tomadas. Por favor, relaxe a aprecie a viagem. Não haverá mais comunicações até chegarmos a nosso destino.

Os olhos de Treloar voltaram-se rapidamente para as trancas das portas. Apertou o botão para levantá-las, mas não adiantou.

O que está acontecendo aqui?

Por mais que tentasse se acalmar, Treloar não conseguia apagar a imagem de Smith: no avião, no setor da Alfândega, avistando-o, o reconhecimento se revelando em seu rosto. Treloar considerava um milagre que o ônibus de baldeação tivesse se afastado da plataforma antes que Smith conseguisse embarcar. Mas aquilo não o detivera. Smith era como um cão de caça implacável, se recu­sando a abandonar a perseguição. Treloar o vira de relance no terminal principal, segundos antes de sair correndo pelas portas de saída. Mas mesmo assim Smith quase o alcançara. Treloar se encolheu ao recordar da mão se fechando sobre a maçaneta, tentan­do abri-la à força.

Agora estou seguro, pensou, tentando se tranqüilizar. O carro estava esperando como eles prometeram. Smith não conseguirá me tocar no lugar para onde estou indo.

Aquele raciocínio lhe deu algum conforto, mas não conseguiu calar outras perguntas: Por que Smith estava atrás dele? Será que suspeitava de que Treloar estivesse trazendo a varíola? Será que ele sabia?

Impossível!

Treloar era bom conhecedor dos protocolos relativos a alertas de armas de guerra química e biológica. Se Smith tivesse tido a mais leve desconfiança de que fosse o mensageiro, Treloar jamais teria saído do avião sem ser preso.

Então por quê? O que havia levado Smith a se concentrar nele? Treloar se recostou no banco de couro macio, olhando pela janela para o que parecia uma paisagem noturna. O carro seguia rapidamente pela auto-estrada que levava dos parques industriais nos arredores de Dulles para a cidade propriamente dita. O moto­rista não parecia preocupado com a possibilidade de ser detido por excesso de velocidade.

No que dizia respeito a Treloar, tanto melhor. Quanto mais cedo chegassem a seu destino, mais rápido teria suas respostas.

A notícia da fuga de Adam Treloar deixou Nathaniel Klein abalado.

Sei que você fez o que pôde, Jon — falou numa linha segura.

Mas agora temos de lidar com Beria e Treloar.

Smith estava encolhido junto a um pilar no terminal principal.

Compreendo, senhor. Mas com Treloar, temos uma pista. A tarja e a placa do carro que veio apanhá-lo eram do governo.

Estou checando isso enquanto falamos — respondeu Klein.

O que não compreendo é por que ele fugiu.

Porque é culpado, senhor — retrucou Smith em tom frio. — Não havia nenhum motivo para Treloar me evitar. Ficou evidente que se lembrava de mim de Houston. De modo que, por que fugir? De que estava com tanto medo? — Smith se calou por um instante.

E para onde estava indo com tanta pressa? Ele nem sequer pegou a bagagem.

Mas, de acordo com o que disse você, ele tinha uma mochila.

Que estava abraçando como se as jóias da coroa estivessem dentro.

— Espere um momento — interrompeu Klein. — Está chegan­do alguma coisa sobre a placa.

Smith ouviu o som de uma impressora. Então Klein voltou ao telefone.

O carro que estava esperando é da NASA.

Smith ficou atordoado.

  1. Treloar pode ser funcionário graduado para ter um motorista a sua espera. Mas isso ainda não responde à pergunta: por que fugir?

Se ele estivesse fugindo, Jon, será que teria acertado um meio de transporte tão óbvio?

Claro, porque jamais esperou que fosse me encontrar, nem ser o objeto de nenhuma atenção. — Smith calou-se um instante. — Vamos encontrar o carro e perguntar a ele, senhor.

Vamos fazer melhor que isso. Vou mandar emitir um alerta BOLO para Treloar.

As implicações do que Klein estava sugerindo eram de muito maior alcance. Um alerta BOLO significava que todo agente de polícia local, estadual ou federal, num raio de 160 quilômetros da capital teria a descrição de Treloar e ordens de prendê-lo assim que o avistasse.

Nesse meio-tempo — concluiu Klein —, quero você aqui em Camp David. O presidente está esperando um relatório sobre Beria. Quero que ouça suas informações em primeira mão.

 

O Lincoln foi reduzindo a velocidade no final da avenida Wisconsin e entrou devagar numa rua silenciosa cheia de árvores frondosas. Como era ex-aluno da Escola de Medicina de Georgetown, Treloar reconheceu a área, era Volta Place — um bairro das vizinhanças do campus, que aos poucos vinha se tornando um bairro chique, quarteirão após quarteirão.

As trancas subiram com um estalo e o motorista abriu a porta. Treloar hesitou, depois, pegando a mochila, lentamente saltou do carro. Pela primeira vez teve a oportunidade de olhar direito para o motorista — de físico parrudo de jogador de futebol de defesa, rosto quadrado, sem expressão — e para o lugar que era sua destinação, uma casa agradável, recentemente reformada, de tijolos pintados de branco com as portas e as venezianas de madeira das janelas pintadas de preto.

O motorista abriu o portão da grade de ferro batido que cercava o pequeno gramado.

Estão esperando pelo senhor.

Treloar foi andando pelo caminho de lajes e estava estendendo a mão para o martelo de porta, em formato de cabeça de leão, quando esta se abriu. Entrou num minúsculo vestíbulo de tábuas corridas bem enceradas cobertas por um tapete persa.

Adam, que bom ver você.

Treloar quase desmaiou ao ouvir a voz de Dylan Reed atrás da porta.

Não fique tão chocado — disse Reed, fechando e trancando a porta. — Eu não disse que estaria aqui? Agora está tudo bem.

Não está tudo bem! — explodiu Treloar. — Você não sabe o que aconteceu no aeroporto. Smith...

Sei exatamente o que aconteceu em Dulles — interrompeu Reed. — E sei sobre Smith — olhou para a mochila. — É isso?

É.

Treloar entregou a mochila e seguiu Reed até uma pequena cozinha que dava para um pátio.

Excelente trabalho, Adam — comentou Reed. — Realmen­te excelente.

Apanhando uma toalha, retirou o recipiente de metal da mo­chila e o colocou no congelador.

A carga de nitrogênio — Treloar começou a falar.

Reed consultou o relógio.

Eu sei. Ainda segura por mais umas duas horas. Não se preocupe. Estará devidamente armazenado em segurança antes disso — fez um gesto para uma mesa redonda na copa. — Por que não senta? Vou lhe servir um drinque e então poderá me contar tudo.

Treloar ouviu os estalidos de cubos de gelo e o tilintar de copos. Quando Reed voltou, trazia dois copos altos cheios de gelo e uma garrafa de bom uísque escocês.

Depois de servir doses generosas, levantou o copo:

Bom trabalho, Adam.

Bebendo o drinque em grandes goles, Treloar sacudiu a cabeça com violência. A serenidade de Reed o estava deixando louco.

Estimuladas pelo uísque, as palavras jorraram rápidas. Não es­condeu nada, nem mesmo suas proezas no Krokodil, sem se impor­tar porque Reed já deixara claro, havia muito tempo, que sabia de tudo sobre suas inclinações. Cada minuto da viagem foi devida­mente relatado de modo que Reed pudesse seguir seu raciocínio.

Você não compreende? — perguntou em tom queixoso. — Não pode ter sido uma coincidência o fato de Smith estar no mesmo avião que eu. Alguma coisa deve ter acontecido em Moscou. O contato, fosse lá quem fosse, deve ter sido seguido. Eles nos viram juntos, Dylan. Podem ligá-lo a mim! E depois, aquela cena no aeroporto — Smith tentando me pegar. Por quê? A menos que ele soubesse...

Smith não sabe de nada. — Reed serviu mais uísque a Treloar. — Não acha que, se você fosse suspeito, metade do FBI teria estado esperando sua chegada?

É, eu pensei nisso! Não sou nenhum idiota. Mas a coinci­dência...

E isso, você acabou de dizer exatamente o que foi: uma coincidência — Reed inclinou-se para a frente, a expressão sincera.

- Creio que muito disso tudo foi minha culpa. Quando me telefo­nou do avião, eu lhe dei instruções que, agora percebo, você seguiu ao pé da letra. Mas eu estava enganado. Deveria ter lhe dito para não fugir se Smith se aproximasse. Teria sido apenas curiosidade por parte dele, por se lembrar de ter visto você em Houston. Nada mais.

— Acredite em mim, foi mais que isso — respondeu Treloar em tom mal humorado. — Você não estava lá.

É verdade. Mas você nunca esteve longe de meus pensamentos...

Ouça o que estou dizendo, Adam — disse Reed. —Você está em segurança. Fez o que era necessário e conseguiu voltar para casa. Pense: o que podem dizer? Você foi visitar o túmulo de sua mãe. Tudo isso está documentado. Passeou um pouco em Moscou. Não há nenhum mal nisso. Depois voltou para casa. O que houve no aeroporto? Você estava com pressa. Não tinha tempo para retirar sua bagagem. E Smith? Em nenhum momento realmente o viu direito, certo?

Mas por que ele estava atrás de mim para começar? — insistiu Treloar.

Com relação àquele ponto, Reed se deu conta, só uma parte da verdade funcionaria.

Porque uma câmera de segurança no Sheremetevo gravou imagens de seu contato numa fita... e de você com ele.

Treloar gemeu.

Escute-me, Adam! Eles têm uma fita de dois homens sentados lado a lado num balcão de bar do aeroporto. Isto é tudo o que têm. Nenhuma voz, nada que ligue vocês dois. Mas como sabem o que o mensageiro estava levando, estão investigando todo mundo.

Eles sabem das amostras de varíola — disse Treloar em tom sombrio.

Sabem que estão desaparecidas. E que o mensageiro estava com elas. Mas é atrás dele que estão, não de você. Ninguém suspeita de coisa nenhuma com relação a você. Simplesmente, você, por acaso, sentou-se ao lado do sujeito.

Treloar passou as mãos no rosto.

Não sei se poderia suportar, Dylan... Ser interrogado.

Você não vai ter problema nenhum porque não fez nada — repetiu Reed.—Mesmo que fosse submetido a um teste de polígrafo, que poderia dizer? Conhecia a identidade do homem sentado a seu lado? Não. Tinha alguma combinação para encontrá-lo? Não. Porque o contato poderia perfeitamente ter sido uma mulher.

Treloar bebeu mais uísque. Examinando a situação sob aquele ponto de vista, sentiu-se um pouco melhor. Havia tanta coisa a que ele podia dizer não.

Estou exausto — comentou. — Preciso dormir um pouco, em algum lugar onde ninguém venha me perturbar.

Já está providenciado. O motorista levará você para o Four Seasons. No hotel há uma suíte reservada para você. Descanse todo o tempo que precisar. Me ligue depois.

Pondo o braço sobre o ombro de Treloar, Reed foi andando com ele até a porta.

O carro está lá fora, Adam, muito obrigado. Todos nós agradecemos muito. Sua colaboração foi inestimável.

Treloar estava com a mão na maçaneta da porta.

O dinheiro? — perguntou baixinho.

Há um envelope no hotel. Dentro dele, encontrará dois números. Um é da conta, o outro é o número do telefone particular do diretor do banco em Zurique.

Treloar saiu para o crepúsculo. O vento aumentara e ele estre­meceu. Olhou para trás uma vez e viu apenas a porta preta, fechada.

O carro não estava esperando defronte à casa. Treloar o procu­rou mais acima e mais abaixo na rua, então o avistou no meio do quarteirão mais abaixo. Achava que sabia por quê: não havia vagas para estacionar.

Descendo a rua, com o uísque aquecendo-lhe o estômago, repassou as palavras tranqüilizadoras de Reed. Ele estava certo:

Tudo que acontecera na Rússia ficara para trás. Ninguém tinha nenhuma prova contra ele. Além disso, sabia de tanta coisa sobre Reed, Bauer e os outros que sempre teriam de protegê-lo.

A idéia de ter todo aquele poder distraiu um pouco Treloar. Ao levantar a cabeça, esperava ver o Lincoln à sua esquerda. Em vez disso, estava ainda mais abaixo no quarteirão, quase na esquina da avenida Wisconsin. Sacudiu a cabeça. Estava mais cansado do que imaginava e devia ter calculado mal a distância. Então Treloar ou­viu o bater suave de couro no concreto, passos que se aproximavam.

Treloar viu primeiro os sapatos, depois os vincos impecáveis das calças. Quando levantou a cabeça, o homem estava a menos de sessenta centímetros de distância.

Você!

Os olhos de Treloar giraram nas órbitas, esbugalhados, en­quanto encarava Ivan Beria.

Beria deu um passo rápido em sua direção. Treloar sentiu o cheiro de seu hálito, ouviu o assobio suave que escapou das narinas de Beria.

Senti sua falta — disse Beria baixinho.

Treloar deu um grito fraco quando uma dor penetrante tres­passou seu peito. Por um instante pensou que estivesse tendo um ataque cardíaco.

Quando você era menino, costumava espetar balões com um alfinete? É apenas isso, na verdade. Nada mais que um balão.

Absurdamente, Treloar se agarrou àquela imagem mesmo quando a ponta do estilete se torceu e girou penetrando em seu coração. Suspirou uma vez e sentiu todo o ar sair rapidamente de seus pulmões. Caído ali na calçada, podia ver as pessoas andando pela Wisconsin e Beria saindo da calçada. Deve ter tentado gritar, porque Beria se virou e olhou para ele. Então seus olhos se fecharam, como também se fechou a porta do Lincoln preto.

 

O dr. Dylan Reed parou de pensar em Adam Treloar tão logo a porta se fechara às suas costas. Como fizera os acertos pessoalmente, sabia o destino que estava reservado ao infeliz cientista. Quando voltou à cozinha, o dr. Karl Bauer e o general Richardson — este último vestido à paisana — esperavam.

Richardson ergueu um telefone celular.

Acabei de ter notícias de Beria. Está feito.

Então temos de ir andando — respondeu Reed.

Olhou para Bauer, que já tirara o recipiente do congelador e o estava abrindo no balcão. A seus pés havia um cofre portátil de titânio do tamanho de uma caixa de isopor para piquenique.

Tem certeza de que quer fazer isto aqui, Karl?

Bauer acabou de abrir o recipiente de metal antes de responder.

Abra o cofre, por favor, Dylan.

Ajoelhando-se, Reed girou as maçanetas. Houve um ligeiro sibilar quando as vedações se abriram.

O interior era surpreendentemente pequeno, mas Reed sabia que isso era porque o cofre era apenas uma versão maior do recipi­ente de metal que fora trazido da Rússia. As paredes grossas continham cápsulas de nitrogênio líquido embutidas, que, quando fossem plenamente ativadas, manteriam o interior a uma temperatura constante de duzentos graus centígrados negativos. Criado pela Bauer-Zermatt A.G., o cofre era equipamento padrão quando se transportavam culturas tóxicas.

Usando luvas grossas, com forração especial, Bauer retirou a câmara interna onde estavam as ampolas. Examinando-as, ele pensou que pareciam mísseis em miniatura, enfileirados, prontos para ser disparados. Só que, depois que os protocolos fossem alterados, seriam imensamente mais potentes que qualquer arma nuclear no arsenal americano.

Embora Bauer tivesse trabalhado com vírus por mais de qua­renta anos, nunca se esquecia de com que estava lidando. Assegu­rou-se de que suas mãos estivessem absolutamente firmes e de que não houvesse nenhuma umidade no balcão ou em qualquer lugar próximo de seus pés antes de lentamente colocá-la na armação especial dentro do cofre. Fechando a tampa, digitou uma combina­ção alfanumérica no pequeno teclado da tranca de segurança e programou a temperatura.

Levantando a cabeça, disse:

Cavalheiros, o cronômetro foi acionado.

Os blocos de casas de Volta Place tinham uma característica em comum: todas tinham uma pequena garagem atrás do quintal que dava para uma ruela. Reed e Richardson carregaram o cofre para a garagem e o colocaram no bagageiro de uma camionete Volvo. Bauer ficou para trás e demorou-se um instante para se assegurar de que nada que pudesse ligar os três homens àquela casa fosse esquecido. Não estava preocupado com impressões digitais, fibras ou qualquer outro tipo de minúcia de perícia forense; dentro de alguns minutos, uma equipe especial de limpeza da NSA chegaria para lavar e passar o aspirador no interior da casa. A NSA mantinha várias casas de trânsito seguras na área de Washington. Para a equipe de limpeza, aquela seria apenas mais uma parada num itinerário com muitas outras.

Quando Bauer saiu para a garagem, ouviu o gemido de sirenes vindo da direção da avenida Wisconsin.

— Parece que Adam Treloar está prestes a desempenhar seu último papel —murmurou enquanto os três entravam no utilitário.

— Pena que ele não esteja por aqui para ler as críticas — comentou Reed e entrou devagar com o carro na ruela.

 

 

Peter Howell estava no último lance dos largos degraus que leva­vam à Galleria Regionale na Via Alloro. A galeria mais prestigiada da Sicília gabava-se de ter quadros de Antonello de Messina bem como o magnífico afresco do século XV Triunfo da Morte, de Laurana, que agradava especialmente a Howell.

Mantendo-se bem afastado dos turistas que caminhavam su­bindo e descendo a escadaria, alerta a qualquer pessoa que pudesse estar demonstrando algum interesse indevido em sua pessoa, Howell pegou o telefone com dispositivo de segurança e discou o número que Jon Smith lhe dera.

Jon? Aqui é Peter. Precisamos conversar.

A 7.240 quilômetros de distância, Smith parou o carro no acostamento da Rodovia 77.

Pode falar, Peter.

Continuando a examinar o tráfego de pedestres ao redor da galeria, Howell descreveu seu encontro com o contrabandista, Franco Grimaldi, a tentativa de assassiná-lo que se seguira e seu encontro com o sargento Travis Nichols e seu parceiro, Patrick Drake.

Você tem certeza de que eram das Forças Armadas dos Estados Unidos? — perguntou Smith.

Absoluta — respondeu Howell. — Fiquei vigiando o cor­reio, Jon. Um oficial veio checar a caixa postal, exatamente como Nichols disse que viria. Mas não tive nenhuma oportunidade de capturá-lo — e não tenho como entrar na base americana nas vizinhanças de Palermo — fez uma pausa. — Em que os soldados de seu país estão metidos, Jon?

Acredite, eu adoraria saber.

O aparecimento repentino de pessoal das Forças Armadas americanas — soldados trabalhando como assassinos — acrescen­tava uma nova dimensão a uma equação já complicada, uma dimen­são que precisava ser resolvida imediatamente.

Se Nichols e seu parceiro eram assassinos autorizados, alguém tinha de estar pagando os dois — concluiu Smith.

Exatamente o que pensei — respondeu Howell.

Alguma idéia de como descobrir quem é o homem do dinheiro?

— Na verdade, sim — respondeu Howell, e começou a explicar o que tinha em mente.

Dez minutos depois, Smith tornou a pegar a Rodovia 77. Ao chegar a Camp David, deram-lhe uma escolta militar até chegar a Rosebud, o chalé para convidados mais próximo de Aspen. Encontrou Klein sentado diante de uma lareira de pedras brutas, falando ao telefone.

Klein acenou para que Smith se sentasse, concluiu sua conver­sa monossilábica e virou-se para Smith.

Era Kirov. O pessoal dele está interrogando todo mundo no complexo do Bioaparat, tentando descobrir quem eram os contatos de Yardeni. Até agora não deram sorte. Yardeni parece ter sido um fdp de pouca conversa. Não gastava dinheiro que não devesse ter, nem se gabava de como brevemente estaria vivendo bem no Oci­dente. Ninguém se lembra de tê-lo visto com estrangeiros. Kirov está checando os telefonemas e a correspondência dele, mas não estou nada esperançoso.

Então seja lá quem for que tenha conseguido recrutar Yardeni, fez isso de maneira muito cuidadosa — observou Smith.

Eles se asseguraram de que fosse o homem certo para o serviço um homem sem família, corrupto, e alguém que sabia manter a boca fechada.

É o que também acho.

Que mais Kirov conseguiu?

Nada. E sabe disso. — Klein fungou. — Ele se esforçou muito para não parecer aliviado demais com o fato de que agora o problema é nosso. Não posso culpá-lo.

Mas ainda são amostras de varíola russas que estão na raiz de tudo isso, senhor. Se a informação vazar...

Não vai vazar. — Klein consultou o relógio. — O presidente está esperando uma chamada minha dentro de 15 minutos. Que informações você tem?

Smith falou rápida e sucintamente, descrevendo tudo que acontecera na Rússia, bem como o confronto com Treloar no aeroporto. As sobrancelhas de Klein se levantaram de surpresa quando Smith explicou como agora havia também o envolvimento de soldados americanos. Então apresentou suas sugestões para as medidas a serem tomadas a seguir.

Klein levou algum tempo refletindo.

A maior parte de seu plano me agrada — disse finalmente. — Mas há uns dois pontos que me parecem uma abordagem um pouco agressiva demais.

Não vejo que outras opções nós temos.

A resposta de Klein foi interrompida por um telefonema transferido por sua secretária. Smith percebeu o brilho em seus olhos enquanto ele ouvia.

Pondo a mão sobre o bocal, ele sussurrou:

O BOLO encontrou Treloar!

No instante em que Smith se inclinava para a frente, a expres­são de Klein demonstrou desânimo.

Tem certeza? — perguntou. Depois de uma pausa. — Nenhuma testemunha? Ninguém viu nada?

Klein ouviu mais algum tempo, então disse:

Quero que os relatórios dos detetives e as fotos da cena do crime me sejam enviadas por fax imediatamente. E, sim, pode cancelar o BOLO.

O fone balançou ao bater no gancho.

Treloar — disse Klein, rangendo os dentes. — Policiais de D.C. o encontraram em Volta Place, perto da Wisconsin, morto, apunhalado.

Smith fechou os olhos, imaginando o homem calvo, assustado, com aqueles olhos estranhos.

Eles têm certeza?

Um passaporte e outros documentos de identidade foram encontrados no corpo. É ele. Alguém chegou muito perto e enfiou o que os policiais acham que tenha sido um estilete no coração dele. Acham que foi assalto seguido de morte.

Assalto... Eles encontraram alguma coisa perto do corpo, uma mochila?

Nada.

Ele fora roubado?

O dinheiro e os cartões de crédito tinham sumido.

Mas não a carteira nem o passaporte. Isso foi deixado para trás para ajudar a identificá-lo — Smith sacudiu a cabeça. — Beria. Essa gente que estava usando Treloar sabia que ele era um elo. Um elo fraco. Usaram Beria para se livrar dele.

E "essa gente" é...?

— Não sei. Mas a entrega foi feita. "Eles" estão com as amostras de varíola. Treloar tornou-se dispensável.

Beria...

Foi por isso que Beria foi para São Petersburgo e porque estava naquele vôo da Finnair. Não estava fugindo. Ele veio para cá para eliminar o elo fraco da corrente.

Qualquer um poderia ter feito isso.

Uma execução? Sim. Mas não seria melhor usar um homem que é — ou era — um desconhecido para nós? Temos uma descri­ção, mas não temos impressões digitais, nenhum conhecimento verdadeiro de seus movimentos ou de sua metodologia. Beria é perfeito porque é tão anônimo quanto um assassino pode ser.

Então houve uma entrega no Sheremetevo.

Smith assentiu.

Treloar estava com as amostras de varíola o tempo todo. — Smith fez uma pausa. — E eu estava sentado a nove metros dele.

Sem tirar os olhos de Smith, Klein pegou o telefone.

Não vamos fazer o presidente esperar.

 

Smith ficou surpreso ao ver o chefe de Estado em traje esporte e num ambiente informal. Depois de Klein fazer a apresentação, Castilla disse:

Sua reputação o precede, coronel Smith.

Muito obrigado, sr. presidente.

Então, quais são as últimas notícias?

Klein relatou o assassinato de Adam Treloar e como se encai­xava na situação global.

Treloar — disse o presidente. — Há alguma maneira que possa usá-lo para rastrear os outros membros dessa conspiração?

Creia-me, senhor, vamos botar a vida dele sob as lentes de um microscópio — respondeu Klein. — Mas não tenho grandes esperanças. As pessoas com quem estamos lidando têm sido muito cuidadosas ao escolher seus aliados. O da Rússia — Yardeni — não rendeu nenhuma pista com relação a quem poderiam ser seus empregadores. O mesmo pode acontecer com Treloar.

Vamos voltar àquelas "pessoas" de quem estava falando. Acredita que sejam cidadãos estrangeiros? Alguém como Osama Bin Laden?

— Não vejo a assinatura de Bin Laden neste caso, sr. presidente — Klein olhou rapidamente para Smith. — O fato de que o alcance dos conspiradores seja tão vasto — da Rússia até a NASA em Houston — indica um certo nível de sofisticação. Alguém que está muito familiarizado com o modo como nós e os russos operamos, onde guardamos nossas jóias e como as guardamos.

Está sugerindo que alguém neste país poderia ter orquestra­do o roubo na Rússia?

A varíola está neste país, sr. presidente. O homem que a roubou e o homem que a trouxe para cá foram mortos, ambos pelas mãos de um assassino que, até recentemente, era relativamente um desconhecido no Ocidente. Não há nenhuma conexão árabe no caso que estamos tratando. Acrescente a isso o fato de que o material com que lidamos é não apenas letal, mas exige uma instalação sofisticada para ser transformado numa arma de guerra biológica. Finalmente, há o envolvimento de pessoal das Forças Armadas americanas, pelo menos na periferia.

Pessoal das Forças Armadas? — perguntou o presidente.

Klein virou-se para Smith, que deu ao presidente um resumo dos eventos ocorridos em Palermo.

Vou começar a investigar o histórico desses dois soldados, sr. presidente — disse Klein, e fez uma pausa. — De modo que a resposta para sua pergunta é sim — é muito provável que alguém aqui esteja no comando dessa história.

O presidente precisou de um momento para digerir aquilo.

E monstruoso — sussurrou. — Inacreditavelmente mons­truoso. Sr. Klein, se nós soubéssemos por que eles querem a varíola, isso não nos diria o que pretendem fazer, talvez até quem são?

O tom de Klein revelou frustração.

Diria, sr. presidente. Mas o "porquê" é apenas mais um quebra-cabeça.

— Deixe-me ver se entendo isso direito. Há uma fonte de praga em potencial que pode estar em algum lugar na área de Washington, D.C. Vocês também têm um assassino à solta...

Sr. presidente — interrompeu Smith — o assassino pode ser realmente nossa melhor chance.

Poderia explicar como, sr. Smith?

Os conspiradores eliminaram os dois homens a quem pode­ríamos ter tido acesso. Eles trouxeram seu assassino contratado precisamente por este motivo. Creio que o estão mantendo de reserva, para o caso de haver mais trabalho sujo a ser feito.

E o ponto onde estava querendo chegar era?

Beria é nosso último elo com os conspiradores, sr. presiden­te. Se o encontrarmos e conseguirmos apanhá-lo vivo, ele poderia nos revelar o suficiente para seguirmos na direção certa.

Será que uma caçada vigorosa e decidida desse assassino teria o risco de criar publicidade demais? Talvez assustá-lo?

Teria, senhor — interrompeu Klein. — Exceto por uma coisa: Beria matou um homem a sangue frio numa rua de Washing­ton. Ele não é mais um terrorista e sim um assassino comum. Se o ligarmos ao crime, todas as agências de segurança pública em cinco estados estarão atrás dele.

Mais uma vez: isso não faria apenas com que ele se escondes­se melhor?

Na verdade não, senhor. Beria e os homens que o controlam pensariam que sabem exatamente que tipo de forças estão sendo empregadas contra eles. Eles as evitariam. E iriam sentir-se seguros porque pensariam que sabem exatamente qual seria o próximo passo dos órgãos de segurança pública.

Além disso, se caçarmos Beria sem publicidade e os conspi­radores não tiverem idéia do que estamos fazendo, poderiam acre­ditar que a ameaça de sua captura é maior que sua utilidade — acrescentou Smith. — Caso em que ele acabaria morto como Yardeni e Treloar.

Então fica entendido, sr. Smith — concordou o presidente.

Presumo que tenha um plano para Beria?

Tenho sim, senhor — respondeu Smith em voz baixa, e começou a explicá-lo.

O inspetor Marco Dionetti da Questura de Veneza saltou agilmente da lancha da polícia no cais diante de seu palazzo. Retribuiu a con­tinência do policial e observou enquanto o barco desaparecia em meio ao tráfego do canal, as embarcações iluminadas de proa a popa.

Ao chegar à porta da frente, Dionetti desativou o sistema de segurança antes de entrar. Tanto a cozinheira como a criada eram mulheres idosas que trabalhavam para sua família havia décadas. Nenhuma das duas era adversária à altura de um ladrão e, uma vez que o palazzo continha um número de tesouros capaz de encher um pequeno museu, era necessário tomar precauções.

Dionetti recolheu a correspondência que o esperava no vestíbulo. Seguindo para a sala de visitas, acomodou-se numa poltrona confortável e abriu a carta do Banco Offenbach em Zurique. Bebericou um aperitivo e beliscou azeitonas pretas de Kalamatta enquanto examinava o extrato de sua conta. Os americanos podiam ser muitas coisas — nenhuma delas boa —, mas nunca deixavam de fazer um pagamento.

Marco Dionetti não se preocupava com o quadro mais amplo. Não lhe interessava por que os irmãos Rocca tinham precisado matar nem por que tiveram de morrer. É verdade que sua consciên­cia o havia incomodado quando entregara Peter Howell. Mas Howell viajara para a Sicília e nunca mais se ouviria falar nele. Nesse meio tempo, a herança Dionetti, por cortesia dos dólares americanos, continuaria a florescer.

Depois de um banho de chuveiro revigorante, Dionetti fez sua refeição solitária sentado à grande mesa para trinta pessoas. Depois que o café e a sobremesa foram servidos, dispensou os criados, que se recolheram a seus alojamentos no quarto andar. Perdido em seus pensamentos, Dionetti mordiscou morangos mergulhados em Cointreau e ficou sonhando acordado sobre onde poderia passar férias, por cortesia da generosidade dos americanos.

— Boa noite, Marco.

Dionetti engasgou com a fruta que tinha na boca. Arregalou os olhos incrédulo enquanto Peter Howell entrava no aposento tão calmamente quanto se fosse um hóspede convidado e se sentava na cadeira na outra ponta da mesa.

De dentro do paletó do smoking Dionetti sacou rapidamente uma Beretta, apontando-a para o lado oposto do tampo da mesa antiga de cerejeira de trinta metros.

Que está fazendo aqui? — perguntou com voz rouca.

Por que, Marco? Eu deveria estar morto? Foi isso o que eles lhe disseram?

A boca de Dionetti se abriu e fechou como a de um peixe fora d'água.

Não sei de que está falando.

Então por que está apontando uma arma para mim?

Muito calmamente Howell abriu a palma da mão e colocou um pequeno frasco sobre a mesa.

— Gostou de seu jantar, Marco? O risotto di mare estava com um perfume delicioso. E os morangos — está gostando deles?

Dionetti olhou para o frasco, depois para os poucos morangos que restavam no fundo da tigela. Tentou afastar os pensamentos sombrios que enchiam sua mente.

Está imaginando que eu, de alguma maneira, consegui en­venenar as frutas, Marco? Afinal, consegui driblar sua segurança. Seus empregados nem desconfiaram de que houvesse alguém na casa. Teria sido tão difícil pingar um pouco de atropina na sobre­mesa?

O cano da arma começou a tremer enquanto Dionetti absorvia o que Howell dizia. A atropina era um veneno orgânico encontrado em plantas da família da beladona. Sem sabor e inodoro, matava ao atacar o sistema nervoso central. Freneticamente Dionetti tentou se lembrar de com que rapidez o veneno fazia efeito.

Em alguém com sua altura e peso, eu diria que em cerca de quatro ou cinco minutos... dada a quantidade que usei — informou- lhe Howell. Bateu de leve no frasco sobre a mesa. — Mas aqui está o antídoto.

Pietro, você precisa compreender...

—Compreendo que você me traiu, Marco — respondeu Howell asperamente. — Isso é tudo que preciso compreender. E se você não tivesse algo de que preciso, agora já estaria morto.

— Mas eu posso matar você agora! — declarou Dionetti em voz baixa furiosa.

Howell sacudiu a cabeça numa censura.

Você tomou um banho de chuveiro, não se lembra? Deixou sua arma no coldre sobre a bancada do banheiro. Retirei as balas, Marco. Se não acredita em mim, pode atirar.

Dionetti apertou o gatilho. Tudo que ouviu foram estalidos secos, como pregos sendo enfiados em seu caixão.

Pietro, eu juro...

Howell levantou a mão.

O tempo é de importância crucial para você, Marco. Sei que os soldados americanos mataram os Roccas. Você os ajudou?

Dionetti passou a língua nos lábios.

Disse a eles como os Roccas tinham planejado a fuga.

E como sabia disso?

Recebi instruções pelo telefone. A voz era eletronicamente alterada. Primeiro mandaram que eu ajudasse os Roccas, depois os soldados que os seguiriam.

E que me ajudasse.

A cabeça de Dionetti balançou furiosamente concordando.

E que ajudasse você — sussurrou.

Sua boca estava seca. A voz soava como se estivesse vindo de muito longe. Sentiu o coração martelando contra as costelas.

Pietro, por favor! O antídoto...

Quem paga a você, Marco? — perguntou Howell em tom suave.

Seria uma perda de tempo perguntar a Dionetti sobre os americanos. Jamais teriam revelado a ele quem eram. Seguir o dinheiro sujo seria a melhor maneira.

Howell bateu na mesa com o frasco.

Marco...

— Herr Weizsel... no Banco Offenbach em Zurique. Pelo amor de Deus, Pietro, me dê o antídoto.

Howell fez o telefone celular deslizar até o outro lado da mesa.

Ligue para ele. Tenho certeza de que um cliente de sua estatura tem o número do telefone da casa dele. Assegure-se de que eu possa ouvir os códigos de acesso.

Dionetti pegou o telefone desajeitadamente e digitou os núme­ros furiosamente. Enquanto esperava que a ligação fosse completa­da não conseguia tirar os olhos do frasco.

Pietro, por favor!

Quando chegar a hora certa, Marco. Tudo na hora certa.

 

 

O Learjet aterrissou no Aeroporto de Kona, na Grande Ilha, pouco antes do crepúsculo, no horário havaiano. Sob a supervisão de Bauer, três técnicos descarregaram o contêiner com o vírus e o colocaram num veículo blindado que esperava. O percurso até o complexo Bauer-Zermatt levou 45 minutos.

Como o complexo outrora fora uma instalação de pesquisa médica do Exército, certas exigências de construção foram cumpri­das. Tanto para impedir a entrada de intrusos como a possibilidade de vírus altamente letais escaparem e contaminarem a população da ilha, a parte central da área, entre o penhasco que dava para o mar e o derrame de lavas, fora retirada. O buraco gigantesco foi revestido com milhares de metros cúbicos de concreto, criando uma enorme estrutura de múltiplos andares. Isso então foi dividido em três níveis, ou zonas, a mais profunda reservada para os laboratórios que abrigariam os vírus mais perigosos. Quando Bauer comprara a instalação, virtualmente tudo de que ele precisava já estava pronto. Depois de um ano e US$ 100 milhões, as modernizações necessárias foram completadas e o complexo entrou em plena operação.

Depois que o blindado estava em segurança, estacionado dentro da enorme garagem, o contêiner foi descarregado em um carrinho mecanizado, que o levou a um elevador que esperava. Três andares abaixo, Bauer foi recebido por Klaus Jaunich, o chefe de sua equipe de pesquisa escolhida a dedo. Jaunich e os seis membros de sua equipe foram trazidos do quartel general da companhia em Zurique com o objetivo expresso de trabalhar com a varíola. Todos eles trabalhavam com Bauer havia anos; todos tinham se benefici­ado muito além de seus sonhos mais ambiciosos com essa associa­ção com ele.

E todos sabem que tenho conhecimento de segredos que poderiam acabar com eles num instante, pensou Bauer, sorrindo para Jaunich.

É um prazer ver você, Klaus.

O prazer é todo meu, Herr Direktor.

Jaunich era um estudo de contrastes. Um homem grande, forte e corpulento, de cinqüenta e tantos anos, tinha uma voz extraordi­nariamente suave. Seu rosto redondo, barbado, sugeria um lenhador, mas essa imagem se desfazia no instante em que ele sorria, revelando dentes pequeninos como os de um bebê.

Jaunich fez um gesto para seus dois assistentes que aguarda­vam, seus trajes de proteção de biorrisco, cor de laranja, fazendo com que parecessem astronautas. Retiraram o contêiner do carri­nho e, carregando-o, seguiram adiante, entrando na primeira das quatro câmaras de descontaminação, estações intermediárias para entrar no laboratório propriamente dito.

O Direktor vai querer assistir ao procedimento? — pergun­tou Jaunich.

É claro.

Jaunich os conduziu para um mezanino com paredes de vidro de onde se podiam ver tanto as câmaras de descontaminação quanto o laboratório. Desse ponto privilegiado, Bauer observou enquanto a equipe de entrega passava de uma câmara para a seguinte. Como o procedimento de descontaminação só era necessário quando se saía do laboratório, entrar levava apenas alguns minutos.

Dentro do laboratório, a equipe abriu o cofre. Bauer se inclinou para a frente e falou ao microfone.

Tenham muito cuidado ao fazer a transferência — advertiu aos dois homens.

Ja, Herr Direktor — veio a resposta esmaecida pelos alto-falantes.

Bauer ficou tenso quando a dupla enfiou as mãos na nuvem de nitrogênio e lentamente retirou a câmara semelhante a um revólver que abrigava as ampolas. Mais ao fundo, a porta para a caixa-forte refrigerada, não muito diferente da 'máquina de Coca-Cola' do Bioaparat, se abriu.

Não temos muito tempo — murmurou Bauer. — O resto da equipe está pronto?

Mais que prontos — assegurou Jaunich. — O processo inteiro estará concluído em menos de oito horas.

Vocês começarão o procedimento sem mim — falou Bauer. — Vou repousar um pouco e depois me juntarei a vocês para os passos finais do processo de recombinação.

Jaunich assentiu. Evidentemente Bauer queria estar presente no início do que um dia viria a ser considerado um marco na história da engenharia bioquímica. Mas as circunstâncias que trouxeram as amostras de varíola até ali — quaisquer que fossem — claramente deixaram suas marcas no velho cientista. Antes de se aventurar na atmosfera tensa do laboratório, ele precisava descansar.

Pode ficar tranqüilo que todos os passos do procedimento serão gravados em videoteipe, Herr Direktor.

E da maneira precisa, como deve ser — insistiu Bauer. — O que vamos fazer aqui hoje nunca foi tentado antes. Os russos não podiam fazê-lo no Bioaparat. Os americanos são medrosos demais para sequer tentar. Pense, Klaus: os primeiros passos na alteração genética de um dos grandes flagelos da humanidade, o princípio de uma transformação que tornará todas as vacinas passadas e atuais impotentes! O resultado? A arma de combate de campo perfeita.

Para a qual só existe uma única cura — concluiu Jaunich. — Quarentena rigorosa.

Os olhos de Bauer brilharam de excitação.

Exatamente! Uma vez que não há antídoto conhecido, qualquer país que seja infectado deverá fechar suas fronteiras imediatamente. Tomemos o Iraque, por exemplo. Bagdá não dá nenhuma atenção a nossas advertências para desistirem de uma determinada linha de ação. Toma-se a decisão de fazer um ataque preventivo. Nossa princesinha é introduzida nos sistemas de distri­buição de água ou de alimentos. As pessoas contraem a doença; o número de mortos cresce rápida e exponencialmente. A população fica desesperada para fugir, mas as fronteiras estão fechadas. A notícia se espalhou: qualquer iraquiano deve ser considerado como estando infectado. Mesmo aqueles tentando escapar através das montanhas serão caçados e mortos.

Bauer abriu as mãos como um mágico libertando a pomba.

Puf! De uma tacada o inimigo deixa de existir. Não pode lutar porque não há mais Exército. Não pode resistir porque sua infra-estrutura entrou em colapso. Não pode permanecer no poder porque o que resta de seu povo se rebelará contra ele. A única opção é a rendição incondicional.

Ou implorar por vacinas — observou jaunich.

— Uma súplica que cairá em ouvidos moucos, uma vez que não há vacina — Bauer saboreou o momento. — Ou pelo menos é o que se dirá à vítima — sorriu. — Mas vamos começar pelo princípio: as amostras devem ser preparadas para a recombinação. Se tudo correr bem, poderemos pensar no antídoto.

Pôs a mão no ombro de Jaunich e apertou.

Deixarei, o empreendimento em suas mãos mais do que capazes e verei você dentro de algumas horas.

 

Vários fusos horários para leste, Megan Olson parou seu Mustang vermelho cereja na área do estacionamento da NASA reservada para tripulantes do ônibus espacial. Trancou o carro e caminhou rapida­mente para o prédio da administração. O recado de Dylan Reed interrompera seu jantar com um engenheiro espacial simpático, mas entediante. A última palavra que havia aparecido na telinha de seu bip fora "URGENTE".

Megan passou pelos postos de controle de segurança e entrou num elevador que rapidamente a levou ao sexto andar. Embora a área fosse bem iluminada, havia um silêncio assustador nos corre­dores. A porta do escritório de Reed estava meio aberta, a luz fazendo um ângulo no vestíbulo. Megan bateu à porta e entrou.

O escritório era dividido em um espaço de trabalho e uma área muito maior para conferências, dominada por uma longa mesa oval. Megan piscou. Sentados à mesa, estavam o piloto do ônibus espacial, Frank Stone, e o comandante, Bill Karol. Ao lado deles, estava o diretor da missão, Harry Landon, e o diretor adjunto da NASA, Lorne Allenby. Os dois últimos pareciam cansados, as roupas amarrotadas, como se tivessem acabado de desembarcar de um longo vôo. Megan sabia que esse podia, de fato, ser o caso. Faltando menos de 48 horas para a data do lançamento, Landon e Allenby deveriam ter estado em Cabo Canaveral.

Megan—disse Dylan Reed. — Obrigado por ter vindo com tão pouco tempo de aviso. Acho que você conhece todo mundo aqui.

Megan trocou cumprimentos murmurados enquanto sentava- se ao lado do piloto da missão, Frank Stone.

Reed massageou a nuca, e então apoiou-se na mesa com os dois braços, a atenção concentrada nela.

Já soube da notícia?

Megan sacudiu a cabeça.

Que notícia?

Adam Treloar foi assassinado hoje à tarde em Washington — fez uma pausa. — Um assalto que acabou em morte.

Ah, meu Deus! Que aconteceu?

A polícia de D.C. não tinha muitas informações a nos dar, nem muitas pistas a seguir — respondeu Reed. — Adam tinha acabado de voltar da Rússia, a mãe dele está enterrada lá. Tinha um quarto reservado num hotel, de maneira que presumo que fosse passar a noite lá, antes de ir para o Cabo. Estava andando perto da avenida Wisconsin — que não é uma área perigosa, pelo que me disseram — quando o filho-da-mãe o abordou. — Reed enfiou os dedos nos cabelos. — O que aconteceu a seguir é conjetura. Nin­guém viu nem ouviu nada. Adam estava morto quando um transe­unte finalmente o encontrou e chamou a polícia — sacudiu a cabeça. — Que terrível lástima!

Dylan, todos nós estamos bastante abalados com o que aconteceu — disse Lorne Allenby, o executivo da NASA. — Mas temos de seguir adiante.

Reed abanou a mão em sinal de concordância. Quando se virou para ela, Megan sentiu o coração bater acelerado.

Você é a substituta de Treloar. Por causa da situação, vai ser promovida para serviço ativo como uma das especialistas da mis­são. Está pronta para isso, Megan?

A boca de Megan ficou seca, mas achou que as palavras soaram com vigor e confiança.

É claro. Não é a maneira como eu queria conseguir a vaga, mas sim, estou pronta.

Você não imagina como todos nós ficamos satisfeitos por ouvir isso — disse Reed. Olhou ao redor da mesa. — Alguma pergunta?

Frank Stone, o piloto da missão, tomou a palavra.

Nenhuma pergunta, apenas um voto de confiança. Treinei com Megan. Tenho certeza de que ela está pronta.

Endosso isso — acrescentou Bill Karol, o comandante.

Landon? — perguntou Reed.

O diretor da missão se mexeu na cadeira.

Li os relatórios de treinamento. Sei que Megan pode se encarregar das experiências que Adam e você haviam planejado — levantou os dois polegares.

Fico satisfeito por saber disso — falou Allenby. — Os burocratas do Congresso estão de olho nesta missão como abutres. Tendo enfatizado o que esperamos dessas experiências para obter o que precisamos, tenho de apresentar os resultados — virou-se para Megan. — Traga de volta alguma coisa que faça com que todos nós nos saiamos bem.

Megan conseguiu dar um sorriso fraco.

Farei tudo o que puder — olhou ao redor da mesa. — E obrigada a todos pelo voto de confiança.

Então está resolvido — disse Reed. — Amanhã avisarei o resto da equipe. Sei que alguns de vocês estão cansados, de modo que sugiro que hoje encerremos por aqui e voltemos a nos reunir amanhã, antes da viagem.

Todo mundo assentiu satisfeito e a sala se esvaziou rapidamen­te, deixando apenas Megan e Reed.

Você é a chefe do programa de pesquisa biomédica, Dylan — disse ela em voz baixa. — Você e Treloar eram bastante próxi­mos. Como você se sente com o fato de me ter a bordo?

No final das contas, não posso dizer que conhecesse Adam assim tão bem. Você sabe como ele era — taciturno, a maior parte do tempo preferia ficar sozinho. Não era o tipo de sujeito que saísse para tomar umas cervejas depois do trabalho ou jogasse futebol aos sábados. Mas fazia parte da equipe — era um elemento vital — e sentirei falta dele — fez uma pausa. — Quanto a você, eu não poderia pedir melhor substituto.

Megan tentou controlar as emoções conflitantes em seu ínti­mo. Parte dela já estava correndo à frente para todos os detalhes que teriam de ser cuidados: os preparativos no Cabo, integrar-se na equipe e o procedimento de lançamento. Ela sabia que normalmen­te uma equipe ficava de quarentena durante sete dias antes do lançamento, embora recentemente o período tivesse sido reduzido. Mesmo assim, teria de passar por uma série de exames físicos para se assegurar de que não estivesse incubando nenhuma infecção.

Outra parte dela não conseguia tirar da mente a imagem do estranho Treloar. Reed estava certo: Treloar era um sujeito solitá­rio. Não o ter conhecido pessoalmente tornava mais fácil aceitar o fato de sua morte. Mesmo assim, a maneira como ele morrera lhe dava calafrios.

Você está bem? — perguntou Reed.

Estou. Apenas tentando absorver tudo.

Vamos. Vou acompanhar você até o carro. Tente dormir bem esta noite. Para você, amanhã vai ser uma correria.

 

Megan tinha um pequeno apartamento num conjunto de prédios que atendia pessoal contratado temporariamente pela NASA. De­pois de uma noite de sono inquieto, em que havia se virado um bocado na cama, acordou e foi para a piscina antes que houvesse qualquer pessoa por lá. Ao voltar para o apartamento, descobriu um bilhete colado na porta.

Superando o choque inicial, Megan se vestiu e desceu. Cami­nhando rapidamente, chegou à cafeteria, que ficava no quarteirão seguinte, alguns minutos depois. Dada a hora, o lugar estava quase vazio. Não teve dificuldade em avistá-lo.

Jon!

Ele se levantou do banco reservado num canto.

Olá, Megan.

Meu Deus, o que você está fazendo por aqui? — perguntou ela, acomodando-se no assento diante dele.

— Vou lhe contar daqui a um minuto — parou um instante. — Soube que foi promovida para a missão. Você merece a promoção, não importam as circunstâncias.

— Obrigada. E claro que eu teria preferido que não acontecesse assim, mas...

A garçonete se aproximou e eles pediram o café.

Gostaria que tivesse me ligado — ela disse. — Estou de partida para Cabo Canaveral dentro de poucas horas.

Eu sei.

Ela o examinou com atenção.

Você não veio até aqui só para me dar os parabéns... se bem que eu gostaria de acreditar nisso.

Estou aqui por causa do que aconteceu com Treloar — explicou Smith.

Por quê? De acordo com a imprensa, o departamento de homicídios de D.C. está investigando o caso.

Eles estão. Mas Treloar era o médico-chefe da missão, um membro importante da equipe da NASA. Fui mandado aqui para ver se descubro alguma coisa no passado de Treloar ou em suas ativi­dades que possam lançar alguma luz sobre o motivo por que foi morto.

Os olhos de Megan se estreitaram.

Não compreendo.

Megan, preste atenção. Você está ocupando o lugar dele no vôo. Você deve ter trabalhado com ele. Qualquer coisa que possa me dizer a respeito dele ajudaria.

Eles ficaram em silêncio enquanto a garçonete voltava com os pedidos. A idéia de comer de repente deixou Megan nauseada. Ela se controlou e organizou os pensamentos.

— Em primeiro lugar, quase todo o meu treinamento foi super­visionado por Dylan Reed. De certa maneira, o título de médico-chefe da missão é enganador. Não quer dizer que você estará lá para distribuir aspirinas e band-aids. As tarefas são puramente de pes­quisa. Como chefe do programa biomédico de pesquisa, Dylan trabalhava intimamente com seu médico-chefe da missão, Treloar. E duplicava essas experiências comigo, para o caso de eu ter de substituir Treloar. De modo que nunca realmente trabalhei com Treloar.

E pessoalmente? Treloar era íntimo de alguém? Havia algum tipo de comentário a respeito dele?

— Treloar era um solitário, Jon. Nunca ouvi dizer que estivesse saindo com alguém, muito menos que estivesse namorando. O que posso lhe dizer é que trabalhar com ele não era nada divertido. Tinha uma mente brilhante, mas nenhuma personalidade, nem humor, nada. Era como se uma parte dele — o gênio médico — florescesse, enquanto o resto dele jamais tivesse crescido.

Fez uma pausa.

Sua investigação não vai ter impacto no lançamento, vai?

Smith sacudiu a cabeça.

Não vejo motivo para isso.

Olhe, o máximo que posso fazer é lhe dar os nomes das pessoas que trabalharam diretamente com Treloar. Talvez elas tenham alguma informação.

Smith tinha certeza de que já tinha aqueles nomes — e outros. Passara metade da noite examinando as fichas de arquivo deTreloar, enviadas pelo FBI, pela NSA e pela NASA. Apesar disso, ouviu atentamente enquanto Megan fazia sua lista.

Isto é realmente tudo que sei — concluiu ela.

Bastante coisa com que posso trabalhar. Obrigado.

Megan conseguiu dar um sorriso.

Tendo em vista o que você está fazendo, não creio que haja muita possibilidade de você ir assistir ao lançamento, não é? Eu poderia conseguir-lhe cadeiras especiais.

Gostaria de poder ir — ele respondeu, com sinceridade. — Mas talvez veja você em Edwards, na volta, quando aterrissar. — A base Edwards da Aeronáutica, na Califórnia, era a principal insta­lação para aterrissagem do ônibus espacial.

Ficaram em silêncio por um momento; então Megan disse:

Tenho de ir.

Ele estendeu a mão sobre a mesa e, cobrindo a mão dela, a apertou.

Trate de se cuidar e de voltar em segurança.

 

Perdida em seus pensamentos, Megan caminhou de volta para casa. Adam Treloar estava morto — assassinado — e Jon Smith, de repente, havia se materializado em Houston. Elegantemente havia evitado a pergunta de quem o enviara. Interrogara-a com habilida­de, mas não tinha revelado nada em troca. O que Smith estava realmente fazendo ali? Quem estaria procurando e por quê? Só havia uma maneira de descobrir.

De volta ao apartamento, Megan pegou o telefone digital de código criptográfico e discou o número que, fazia muito tempo, havia memorizado.

Aqui é Klein.

É Megan Olson.

Megan... Pensei que a esta altura já estivesse a caminho para o lançamento do ônibus espacial.

Estarei de partida em pouco tempo, senhor. Houve fatos novos dos quais achei que deveria ter conhecimento.

Rapidamente ela resumiu a conversa com Jon Smith.

Dizer que ele estava sendo evasivo seria pouco — concluiu. — Há alguma coisa que queira que eu faça para ele?

Negativo — respondeu Klein sucintamente. — Smith está envolvido por causa de sua especialização no USAMRIID.

Não compreendo, senhor. Como isto se encaixa?

Klein ficou calado por um instante.

—Ouça com atenção, Megan. Houve um vazamento na Rússia, no Bioaparat — fez uma pausa, enquanto Megan prendia a respira­ção. — Uma amostra foi roubada. Adam Treloar estava em Moscou na ocasião. Os russos têm uma fita em que ele aparece com o men­sageiro que estava com o material. O material foi passado adiante. Temos certeza de que Treloar trouxe as amostras para este país. Então, quando a utilidade dele deixou de existir, foi assassinado.

Que aconteceu com o material que trazia?

Desapareceu.

Megan fechou os olhos.

O que ele trouxe para cá?

Varíola.

Deus do céu!

Escute-me, Megan. Você está na área de impacto. Nós desconfiávamos de que Treloar pudesse ser desonesto. Agora temos certeza de que era. A questão é: será que ele tinha cúmplices no programa do ônibus espacial?

Não sei — respondeu Megan. Parece impossível. São todos indivíduos dedicados. Até onde posso avaliar, não há nada de suspeito acontecendo—sacudiu a cabeça. — Mas eu também falhei e deixei passar Treloar, não foi?

Todo mundo falhou com Treloar—respondeu Klein. — Não se culpe por isso. O importante agora é encontrar a varíola. O Covert-One está trabalhando com base na presunção de que esteja em algum lugar na área de Washington. Seja lá quem for que agora está com as amostras não iria querer transportá-las por mais tempo do que fosse absolutamente necessário. E de Londres, Treloar poderia ter embarcado em um vôo, sem escalas, para qualquer lugar — Chicago, Miami, Los Angeles. Ele escolheu Washington por um motivo específico. Acreditamos que seja onde foram preparadas as instalações para o armazenamento.

Ainda quer que eu prossiga na missão e voe no ônibus espacial?

É claro. Mas, até aquele pássaro deixar o ninho, não atraia atenção para si mesma. Se perceber alguma coisa suspeita, ligue para mim imediatamente — fez uma pausa. — E Megan, se não tivermos oportunidade de falar novamente, boa sorte e cuide-se, trate de voltar em segurança.

Klein cortou a ligação e Megan se viu olhando para o telefone mudo. Sentira-se muito tentada a perguntar a Klein se Jon Smith também trabalhava para o Covert-One, se aquele fora o motivo de sua reticência. Como ela, Jon era uma pessoa sem compromissos, com poucas relações de família e era um especialista com experiên­cia de crises. Megan lembrou-se do dia em que, durante uma de suas breves visitas aos Estados Unidos, Klein surgira de repente em sua vida, oferecendo-lhe sigilosamente a oportunidade de fazer parte de um grupo especial, dando-lhe um sentido maior de propósito e de direção. Ela também se lembrava de que Klein lhe dissera que provavelmente nunca conheceria nenhum outro membro do Covert-One, que parte de sua utilidade estava na rede de contatos mundial que ela havia criado, homens e mulheres a quem podia procurar para pedir informações, favores, abrigo.

Klein nunca me contaria... E nem Jon, se estivesse envolvido.

Enquanto checava a bagagem, Megan pensou no que Klein e Jon lhe disseram, para se cuidar e voltar eiú segurança. Mas, se Klein não encontrasse as amostras de varíola, será que haveria algum lugar para voltar?

O escritório da segurança da NASA ocupava o canto nordeste do segundo andar do prédio da administração. Smith entregou sua identidade do Pentágono e esperou enquanto o oficial de plantão a escaneava no computador.

Onde está seu superior, o oficial no comando? — perguntou Smith.

Senhor, sinto muito. Estamos bem no meio da troca de turno. O coronel Brewster acabou de deixar o prédio; o coronel Reeves parece que está um pouco atrasado por causa de... ah, motivos pessoais.

Não posso ficar esperando o coroneL Autorize minha en­trada.

Mas, senhor...

Tenente, qual é meu nível de autorização de segurança?

COSMIC, senhor.

— O que significa que posso examinar qualquer coisa nestas instalações, inclusive o resultado de seu último teste de aptidão física. Correto?

Sim, senhor!

Agora que já esclarecemos isso, o que vamos fazer é o seguinte: você vai seguir todos os procedimentos apropriados para fazer o registro de minha entrada. Não mencionará minha chegada para ninguém, exceto para o coronel Reeves, com quem falará pessoalmente. Se o coronel quiser falar comigo, informe-o de que estarei da Sala de Arquivos.

Sim, senhor. Há alguma coisa que eu possa apanhar na Sala de Arquivos para o senhor?

Apenas diga aos funcionários para me ignorarem. Agora vamos andando, tenente.

Enquanto o outro apertava o botão que abria as portas à prova de balas permitindo sua entrada, Smith refletiu que seu desempe­nho de durão tinha alcançado o efeito desejado: o subordinado estava assustado; seu par, o coronel Reeves, ficaria aborrecido e curioso, mas também seria prudente. Havia bons motivos para que não fosse muito provável que Reeves saísse fazendo perguntas sobre Smith.

Tecnicamente, a NASA era um programa civil. Mas no princí­pio da década de 1970, quando a agência finalmente decidira de que tipo de ônibus espacial precisava, e como lançá-lo, descobriu que não tinha alternativa exceto pedir ajuda à Aeronáutica. Um acordo diabólico fora feito: em troca de o Pentágono considerar o ônibus espacial "um equipamento militar essencial", a NASA não só pode­ria usar os foguetes lançadores da aeronáutica, Atlas e Titan, para fazer seus lançamentos, mas também seria a beneficiária de uma fonte de renda regular. O outro lado da moeda era que a agência ficava à mercê dos caprichos e da interferência do Pentágono. O coronel Reeves ocupava um posto oficial superior na hierarquia da NASA, mas aqueles que apresentavam o cobiçado passe COSMIC do Pentágono representavam os verdadeiros senhores.

Smith seguiu o tenente por um labirinto de corredores que acabava num beco sem saída numa porta à prova de fogo. Depois de digitar os códigos, o oficial abriu a porta e deu um passo ao lado para permitir que Smith entrasse. A sala tinha uma temperatura pelo menos dez graus mais baixa que o resto do andar. Não havia nenhum som, exceto pelo zumbido das máquinas, dez dos mais rápidos computadores jamais construídos, conectados a torres de armazenamento de dados e unidades PC aninhadas em postos de trabalho individuais.

Smith sentiu os olhos da equipe trabalhando na Central de Arquivos examiná-lo discretamente, mas a curiosidade deles durou pouco tempo. Seguiu o oficial até um posto de trabalho bem afas­tado dos outros.

Este é o computador que o coronel Reeves costuma usar — explicou o oficial de plantão. — Tenho certeza de que ele não se importará que o senhor o utilize.

Obrigado, tenente. Não pretendo demorar muito... desde que não seja interrompido.

Entendido, senhor — entregou a Smith um telefone celular. — Disque três-zero-nove quando acabar, senhor. Virei buscá-lo.

Smith se acomodou diante do monitor do computador e colo­cou o disquete que trouxera. Segundos depois, havia desativado todos os bloqueios de segurança e tinha a rede inteira da NASA em Houston sob seus dedos.

As informações que Smith recebera sobre Adam Treloar das outras agências federais eram apenas o ponto de partida. Smith viera para Houston para começar a rastrear as atividades de Treloar no lugar onde ele tinha vivido e trabalhado. Precisava dos registros de telefonemas dados e recebidos internos e externos, da troca de correspondência eletrônica entre departamentos, qualquer coisa que parecesse uma pista — eletrônica ou não. Ali, descobriria como Treloar tinha vivido, com quem falara e se encontrara, com que freqüência, onde e por quanto tempo. Descascaria fio por fio a vida do traidor, como se fosse um talo de aipo, em busca de uma anomalia, coincidência ou padrão que seria o primeiro elo na corrente que levaria aos cúmplices de Treloar na conspiração.

Smith digitou algumas teclas e começou no que parecia um ponto lógico: quem sabia que Treloar estivera na Rússia? Escondi­das em meio àqueles chips finos como hóstias e fibras ópticas poderia haver instruções — e nomes que as acompanhassem.

 

Quando Dylan Reed chegou a seu escritório, não tinha nenhuma maneira de saber que Smith já havia iniciado sua busca. Estava tão concentrado na agenda carregada daquela manhã que quase igno­rou o ping emitido por seu computador, assinalando um alerta. Distraidamente, digitou uma seqüência de números, com a mente ainda voltada para a primeira reunião daquele dia. O nome que surgiu na tela imediatamente capturou sua atenção. Adam Treloar.

Alguém está espionando!

A mão de Reed voou para o telefone. Segundos depois, ouvia o oficial de plantão explicando a presença de Smith na Sala de Arquivos.

Reed se esforçou para permanecer calmo.

Não, está tudo bem — disse ao oficial. — Por favor avise ao coronel Reeves que nosso visitante não deve ser incomodado.

Nosso visitante! Um intruso!

Reed precisou de um momento para se controlar. Que diabo Smith estava fazendo aqui? As notícias de Washington davam conta de que a polícia estava tratando a morte de Treloar como apenas um assalto, se bem que com conseqüências indesejadas. Mesmo os jornais de televisão consideravam a história corriqueira, uma evolução que agradara Reed, Bauer e Richardson.

Reed bateu com a palma da mão sobre o mata-borrão de couro sobre a mesa. Maldito Smith! Recordou de como Treloar ficara assustado, quase aterrorizado, com Smith. Agora, os mesmos dedos gelados que tinham dançado, subindo e descendo, pelas costas de Treloar viravam-se para ele.

Reed respirou fundo. Bauer estivera certo ao sugerir que Reed protegesse todos os arquivos relativos a Treloar com alarmes marcadores, caso alguém viesse consultá-los.

Alguém veio...

Quanto mais Reed pensava no assunto, menos surpreso ficava de que Smith fosse o intruso. Smith tinha uma reputação de tenacidade que transformava um homem já perigoso em um ho­mem potencialmente letal. Reed se assegurou de que seus nervos estivessem calmos antes de ligar para o general Richardson no Pentágono.

Aqui é Reed. Aquele problema em potencial a respeito do qual falamos? Se concretizou—fez uma pausa. — Por favor, escute o que tenho a dizer, mas creio que concordará: temos de ativar a solução.

 

 

Um sedã do Serviço Secreto esperava por Jon Smith quando ele saiu do Aeroporto Nacional Ronald Reagan. A meio caminho de Camp David, recebeu a ligação que estava esperando.

Peter, como vai?

Ainda estou em Veneza. Tenho algumas notícias interes­santes para você.

Sem entrar nos detalhes de seu interrogatório de Dionetti, Peter Howell contou a Smith sobre a conexão suíça — Herr Weizel no Banco Offenbach em Zurique.

Você quer que eu tenha uma conversinha com o gnomo suíço, Jon?

Melhor esperar até que eu ligue de volta para você. E Dionetti? Não queremos que envie sinais de alarme.

Ele não vai fazer isso — garantiu Howell. — Está sofrendo de um caso grave de intoxicação alimentar e deve ficar no hospital por pelo menos uma semana. Além disso, sabe que tenho todos os seus arquivos financeiros e que posso arruiná-lo com um telefo­nema.

Howell não achou necessário entrar em detalhes.

Vou ficar por aqui até ter notícias suas — disse Howell. — Se for necessário, posso estar em Zurique em duas horas.

Manterei você informado.

O motorista deixou Smith no chalé Rosebud, onde Klein o esperava.

Bom ter você de volta, Jon.

Sim, senhor. Obrigado. Alguma notícia das amostras de varíola?

Klein sacudiu a cabeça.

—Mas dê uma olhada nisso — passou para Smith uma folha de papel enrolada.

O esboço feito com pincel e tinta continha alguns dos traços de Beria, mas não era suficientemente preciso para mostrar as feições claramente definidas do assassino. A aparência de Beria era inde­finida para começar — uma enorme vantagem para um assassino de aluguel. O retrato falado mostrava um homem que poderia ter sido quase que qualquer pessoa. Seria sorte pura e simples se algum agente de segurança, por acaso, o encontrasse — que era exatamente o que Klein queria que os chefes de Beria acreditassem. Com algu­mas alterações feitas com uso de cosméticos, Beria estaria perfeita­mente seguro: seus controladores continuariam acreditando que sua utilidade era maior que o risco potencial que ele constituía.

Enrolando a folha, Smith bateu com ela na palma da mão. Em sua opinião Klein estava correndo um risco enorme: ao negar acesso à polícia e aos órgãos de segurança em geral à verdadeira descrição de Beria, estava efetivamente limitando a caçada. Mas no outro prato da balança havia um benefício colateral: quando o retrato falado entrasse em circulação e os controladores de Beria o vissem, não ficariam assustados. A investigação da morte de Treloar era esperada. Que uma testemunha tivesse fornecido à polícia uma descrição não muito detalhada não seria considerado suspeito. Smith não acreditava que os mandantes fossem se tornar descuida­dos, mas permaneceriam despreocupados, presumindo que não houvesse nenhuma ameaça imediata para seus planos de longo prazo.

Como correram as coisas em Houston? — perguntou Klein.

—Treloar era extremamente cauteloso — comentou Smith. — Quaisquer que tenham sido os contatos que fez, foi muito meticu­loso ao apagar pistas.

Apesar disso, você conseguiu cumprir o objetivo básico de sua missão.

Agitei as águas, senhor. Quem estava controlando Treloar, seja lá quem for que sabe que estou metendo o nariz — parou um instante. — E o presidente vai seguir sua recomendação sobre a vacina?

Ele esteve conversando com as companhias farmacêuticas — respondeu Klein. — Vão colaborar.

Dadas as circunstâncias, era de vital importância que as prin­cipais companhias farmacêuticas redirecionassem seus esquemas de produção de modo a produzir a maior quantidade de vacinas contra varíola possível, no menor tempo possível. Mesmo que a varíola das amostras roubadas fosse geneticamente alterada, a vacina atual poderia ser pelo menos parcialmente eficaz. Mas fabricar a quantidade necessária significaria interromper a produção de outros produtos. Os prejuízos acarretados seriam tremendos, bem como os custos relacionados à produção da vacina. Que o presidente já tivesse concordado em assumir os prejuízos das companhias era apenas a metade da batalha. As companhias quereriam saber por que era necessário ter a vacina com tanta urgência e onde um surto de tamanhas proporções havia ocorrido. Como era impossível negar esta informação — ela inevitavelmente acabaria chegando à mídia —, o local do suposto surto epidêmico teria de ser remoto, mas, ao mesmo tempo, bastante populoso.

Decidimos usar o arquipélago da Indonésia — disse Klein. — O caos interno naquela região se encarregou de praticamente fechar o tráfego de entrada e saída. Não há mais turistas e Jacarta expulsou a imprensa estrangeira do país. Nosso argumento é de que houve surtos esporádicos de varíola, indicando a possibilidade de que o vírus possa se multiplicar e disseminar se for deixado sem confinamento. Daí a necessidade de uma quantidade tão grande, em tão pouco tempo.

Smith refletiu.

Gosto da idéia — comentou afinal. — O atual regime indonésio é um pária aos olhos da maioria dos governos. Mas haverá pânico quando a notícia vazar.

Não há como evitar isso — respondeu Klein. — Quem está com as amostras de varíola, seja lá quem for, deve usá-las muito brevemente — numa questão de semanas, se não dias. Tão logo identifiquemos e prendamos os conspiradores — e recuperemos o vírus —, poderemos elaborar uma história para indicar que os diagnósticos e registros de casos iniciais estavam errados. Dizer que afinal não era varíola.

Deus queira que seja assim.

Smith se virou quando o general de divisão Kirov, vestido em trajes civis, entrou na sala. Ficou surpreso com a aparência do russo.

O homem de meia-idade e boa forma física havia se metamorfoseado, transformando-se num indivíduo de aspecto decadente, vestindo um terno velho, mal cortado, comprado pronto. A gravata e o peito da camisa estavam cheios de manchas de comida e café; os sapatos de sola fina, tão arranhados quanto a maleta de mão barata. O cabelo — agora uma peruca — era comprido e desalinhado; um toque de maquiagem — aplicado com perícia e extrema sutileza — acrescentava uma vermelhidão de alcoólatra aos olhos e tornava mais fundas as olheiras abaixo deles. Kirov havia se recriado à imagem de um homem que era incômodo e mesmo desagradável para o olhar. Sua imagem refletia fracasso, ruína e desesperança — os atributos de um vendedor decadente que os grupos afluentes, vivendo e trabalhando na área chique ao redor do Dupont Circle, não gostariam de reconhecer.

Meus parabéns pela mudança de imagem, general — disse Smith. — Até eu tive de olhar duas vezes.

Vamos esperar que o mesmo seja verdade para Beria — respondeu Kirov sombriamente.

Smith estava satisfeito por ter a força do russo a seu lado. Depois do desastre no Bioaparat e em Moscou, Kirov convencera o presidente russo a enviá-lo aos Estados Unidos para ajudar na caçada a Ivan Beria. Klein achara que Kirov, que já havia passado um ano em Washington e conhecia bem os bairros de estrangeiros, seria de inestimável ajuda. Argumentara a favor disso com o presidente, que por sua vez concordara com a sugestão de Potrenko e permitira que Kirov viesse.

Mas nos olhos duros e inteligentes de Kirov, Smith viu o verdadeiro motivo por que o general estava ali. Kirov fora traído por uma mulher a quem amara e em quem confiara, que fora corrompida por forças desconhecidas ligadas a um assassino que ele deixara escapar. Kirov precisava muito se redimir, para recuperar sua honra como soldado.

Como você quer agir, Jon? — perguntou Kirov.

Preciso dar uma passada em minha casa — respondeu Smith. — Depois disso, podemos ir para Dupont Circle.

Como ninguém na embaixada russa sabia da presença de Kirov na cidade, Smith sugerira que o general ficasse hospedado com ele e que usasse a casa de Bethesda como base para a caçada a Beria.

Tem certeza de que não quer alguma cobertura a distância? — perguntou Klein.

Por mais que Klein confiasse nas habilidades e nos instintos de Kirov, estava relutante em pôr ambos os homens em campo sem cobertura. Era verdade que Smith fora a Houston para encontrar algum rastro que Treloar pudesse ter deixado para trás. Mas sua verdadeira intenção era sacudir as ramificações da teia que ainda ligava Treloar aos conspiradores, às pessoas que o controlavam. Ao dar-lhes conhecimento de que estava disposto a investigar o pró­prio âmago do lugar onde Treloar vivera e trabalhara, Smith esperava provocar uma reação que forçaria os controladores a agir contra ele... O que significava tirar Beria de seu esconderijo.

Não podemos correr o risco de Beria identificar a cobertura, senhor — respondeu Smith.

Sr. Klein — interveio Kirov — compreendo e compartilho sua preocupação. Mas prometo que não deixarei que nada aconteça a Jon. Tenho uma vantagem considerável sobre qualquer cobertura que o senhor possa nos oferecer. Eu conheço Beria. Se ele estiver usando algum disfarce, serei capaz de reconhecê-lo. Há caracterís­ticas e maneirismos que não poderá esconder. — Virou-se para Smith. — Você tem a minha palavra. Se Beria estiver por aqui, se ele vier atrás de você, será seu.

 

Noventa minutos depois, Smith e Kirov chegaram à grande e antiga casa de campo em estilo rústico, em Bethesda, onde Smith morava. Enquanto Smith lhe mostrava a casa, Kirov observou os quadros, as tapeçarias e objetos de artesanato de culturas do mundo inteiro. O americano, de fato, era um homem muito viajado.

Enquanto Smith tomava um banho e se vestia, Kirov instalou-se no quarto de hóspedes. Eles se encontraram na cozinha, onde, tomando um café, estudaram com toda a atenção um mapa em grande escala de Washington, concentrando-se na área multi-étnica ao redor de Dupont Circle. Como Kirov já conhecia a área, rapida­mente elaboraram um plano.

Sei que não falamos a respeito disso com Klein — disse Smith enquanto se preparavam para sair. Mas... — ofereceu ao outro uma pistola SIG-Sauer.

Kirov olhou para a arma e sacudiu a cabeça. Foi até o quarto e voltou com o que parecia um guarda-chuva preto comum. Levan­tou o guarda-chuva em um ângulo de 45 graus, moveu o polegar sobre o punho e, de repente, uma lâmina de dois centímetros e meio se projetou da ponta.

— Isso é uma coisa que eu trouxe de Moscou — explicou Kirov, em tom descontraído. — A lâmina tem um tranqüilizante para animais de ação rápida — Acepromazine. Pode derrubar um javali de cem quilos em segundos. Além disso, se por algum motivo eu vier a ser detido pela polícia, poderia explicar por que estou andan­do de guarda-chuva. Uma arma seria muito mais difícil.

Smith concordou. Ele podia ser a isca, mas seria Kirov quem faria o trabalho de aproximação e captura. Ficou satisfeito com o fato de que o russo não iria enfrentar Beria desarmado.

Smith enfiou a SIG-Sauer no coldre de ombro.

— Então está combinado. Vou lhe dar uma dianteira de 45 minutos, depois o seguirei.

 

Movendo-se pelas ruas como um fantasma, Kirov examinou o tráfego humano que circulava ao seu redor. Como outras áreas próximas do centro de Washington, Dupont Circle estava passan­do por um processo de recuperação e reflorescimento. Mas, escon­didas entre os bares da moda e butiques elegantes, havia padarias macedônias, lojas de tapetes turcas, empórios sérvios cheios de jardineiras de ferro batido e de cobre, restaurantes gregos e cafés iugoslavos. Kirov sabia como seria forte a atração de um ambiente familiar para um homem trabalhando num lugar desconhecido, mesmo que este homem fosse um assassino cruel. Aquela mistura étnica era exatamente o tipo de ambiente para o qual Ivan Beria gravitaria. Ali, poderia encontrar uma cozinha que conhecia, ouvir músicas que ouvira em sua adolescência, ouvir os sotaques que reconhecia. Kirov, que compreendia várias línguas eslavas, tam­bém estava perfeitamente à vontade ali.

Entrando em um quadrilátero ao ar livre cercado por lojas e balcões, Kirov sentou-se à sombra de uma mesa com guarda-sol. Uma mulher croata, que falava apenas um inglês hesitante, anotou seu pedido de café. O russo conteve um sorriso enquanto ouvia a troca de insultos que ela mantinha com o proprietário.

Bebericando o café forte e doce, Kirov observou o movimento de pedestres, reparando nas blusas e saias muito coloridas das mulheres e nas calças largas e jaquetas de couro dos homens. Se Beria viesse ali, usaria as roupas grosseiras e práticas dos trabalha­dores iugoslavos — talvez, também, uma boina com pala para fazer sombra sobre suas feições. Mas Kirov não tinha dúvida de que o reconheceria. Em sua experiência, o único aspecto da aparência que um assassino jamais conseguia disfarçar eram os olhos.

Kirov sabia que havia uma boa chance de que, se tivesse oportunidade, Beria também o reconheceria. Mas Beria não tinha motivo para pensar que Kirov estivesse nos Estados Unidos. Sua principal preocupação seria evitar a polícia, por mais esparsos que fossem os carros de radiopatrulha na área. Não esperaria ver um rosto do passado, tão longe de casa. Justamente por isso, Kirov não esperava ver Beria entrar tranqüilamente na confeitaria mais pró­xima para comprar um lanche. Poderia saber onde o assassino provavelmente se arriscaria a aparecer, mas não tinha idéia de onde estava naquele momento.

Com os olhos semicerrados, Kirov examinou o cenário cambiante ao redor. Também mapeou as entradas e saídas do quadrângulo, por onde as pessoas apareciam e desapareciam. Registrou os carta­zes afixados nas vitrines das lojas indicando os horários de funcio­namento e fez uma anotação mental para depois examinar as ruelas e os becos para veículos de entrega.

Se Beria saísse de seu esconderijo para executar seu trabalho sujo, aquela era uma área onde se sentiria à vontade. Aquilo poderia fazer com que se sentisse em posição de vantagem, e um homem confiante, às vezes, podia ser um homem cego.

 

A pouco mais de um quilômetro de onde Kirov contemplava a possível zona de captura, Ivan Beria abriu a porta de um apartamen­to de dois quartos no último andar de um prédio que se especializa­va em aluguéis de curta temporada para empregados de escritório e comerciantes de passagem pela cidade.

Diante dele estava o motorista do Lincoln, um homem grande e caladão, com um nariz que parecia ter sido quebrado várias vezes e uma orelha esquerda que parecia uma minúscula couve-flor. Beria já conhecera homens como aquele antes. Habituados à violência e invariavelmente discretos, eram os mensageiros perfeitos para as pessoas que os contratavam.

Convidando o motorista a entrar, Beria trancou a porta e aceitou o envelope que ele lhe estendeu. Abriu o envelope e leu rapidamente a mensagem que continha, escrita em sérvio. Afastan­do-se, sorriu para consigo mesmo. Os contratantes sempre subes­timavam o número de pessoas que tinham de ser eliminadas. Naquele caso, Beria já fora pago pelo guarda russo e pelo cientista americano. Agora estavam lhe pedindo que eliminasse mais um.

Virando-se para o motorista, disse:

Fotografia.

Silenciosamente, o motorista pegou a carta de volta e entregou uma fotografia de Jon Smith, tirada por uma câmera de segurança. O homem estava de frente para as lentes, sem sombras no rosto. A resolução era muito boa.

Beria sorriu pensativamente.

Quando?

O motorista estendeu a mão para a foto.

O mais rápido possível. Você deve estar pronto no minuto em que for chamado.

O motorista ergueu as sobrancelhas, perguntando silenciosa­mente se havia mais alguma coisa. Beria sacudiu a cabeça.

Depois que o motorista se foi, Beria entrou no quarto e tirou da mochila um telefone digital via satélite com transmissão cifrada. Um instante depois, estava falando com um tal Herr Weizsel no Banco Offenbach em Zurique. A conta em questão acabara de rece­ber um depósito de US$ 200 mil.

Beria agradeceu ao banqueiro e desligou. Os americanos estão com pressa.

 

Nu, o dr. Karl Bauer saiu da última câmara de descontaminação. No banco do vestiário, havia roupas de baixo, meias e uma camisa. Um terno recém-passado estava pendurado no cabide da porta.

Alguns minutos depois, Bauer estava vestido e a caminho do mezanino envidraçado onde seu chefe de equipe, Klaus Jaunich o esperava.

Jaunich fez uma ligeira mesura e estendeu a mão.

Magnífico trabalho, Herr Direktor. Nunca vi nada se­melhante.

Bauer apertou-lhe a mão e aceitou o elogio.

— Nem temos a probabilidade de ver de novo nada semelhante.

Depois de descansar, Bauer voltara ao laboratório. Embora tivesse trabalhado a maior parte da noite, sentia-se eufórico e cheio de energia. Sabia por experiência que era apenas a adrenalina circulando em seu organismo e que o cansaço, inevitavelmente, se faria sentir e o dominaria. Apesar disso, Jaunich estava certo: fora um trabalho magnífico. Usando sua capacidade de concentração como se fosse um laser, havia aplicado os conhecimentos e a experiência de uma vida inteira para dar os primeiros passos que transformariam um vírus já mortal em um microscópico incêndio de altíssima temperatura capaz de se auto-alimentar. Agora, sentia-se quase prejudicado porque não poderia dar aqueles últimos passos finais que levariam à conclusão.

Nós sabíamos desde o início, não é, Klaus — deu voz a seus pensamentos. — Que nunca poderíamos acompanhar esta criação até o fim. A física da terra em que vivemos me nega meu maior triunfo. Para levá-la a termo, tenho de me desfazer dela — fez uma pausa. — Agora caberá a Reed ir até onde não podemos ir.

Tanta confiança em um só homem — murmurou Jaunich.

Ele fará o que lhe for ordenado — respondeu Bauer com aspereza. — E, quando voltar, teremos aquilo com que, até agora, havíamos apenas sonhado.

Deu uma palmadinha no ombro do homenzarrão.

Vai correr tudo bem, Klaus. Você vai ver. Agora, e o transporte?

A amostra está pronta para ser embarcada, Herr Direktor. O avião está à espera.

Bauer bateu palmas.

Ótimo! Então você e eu devemos tomar um drinque para comemorar.

 

 

Sob o clarão das luzes, parecia uma escultura anunciando solene­mente a chegada do novo milênio. De sua posição privilegiada, a quase cinco quilômetros de distância, Megan Olson observou com admiração e respeito o ônibus espacial, acoplado ao gigantesco tanque externo e aos dois robustos foguetes, lançadores espaciais, ligeiramente menores.

Eram duas horas da manhã de uma noite sem vento e enluarada no Cabo Canaveral. O nariz de Megan comichava por causa do ar salgado e seus nervos estavam aguçados, dominados pela expecta­tiva. Geralmente, a tripulação estava de pé e trabalhando às 3:00, mas Megan não havia conseguido dormir muito mais depois da meia-noite. A idéia de que em menos de oito horas estaria a bordo do ônibus, voando rumo ao espaço, tirava-lhe o fôlego.

Megan fez meia-volta e percorreu a pé toda a distância do caminho que seguia paralelo ao andar térreo do prédio onde a tripulação estava alojada. Noventa metros mais adiante, os rolos de arame farpado reluziam no alto da cerca de malha de elos de metal rodeando o complexo. Ouviu o ronco distante de um jipe de segurança enquanto ele fazia sua ronda em torno do perímetro. A segurança ali no Cabo era ao mesmo tempo impressionante e discreta. Os policiais da Aeronáutica, uniformizados, eram os mais visíveis, sempre um magneto para as câmeras de televisão. Mas além deles havia os destacamentos em trajes civis que patrulhavam toda a instalação 24 horas por dia, assegurando-se de que ninguém e nada interferisse no lançamento.

Megan estava a ponto de voltar para seu quarto quando ouviu o som próximo de passos. Virando-se, viu um vulto sair das sombras do prédio e entrar na área iluminada.

Dylan Reed?

O fato de que Reed não só podia não ouvir o despertador tocar, como de que seria capaz de dormir durante um lançamento se lhe permitissem, era motivo de eternas brincadeiras. Sendo assim, o que estava fazendo de pé, circulando, uma hora antes de soar o toque de despertar?

Levantando o braço, Megan estava pronta para chamá-lo quando a luz forte de um farol apareceu na esquina. Instintivamen­te, ela recuou quando um sedã com o logotipo da NASA na porta esta­cionou perto de onde estava Reed. Mantendo-se nas sombras, Megan observou um homem mais velho saltar do carro e se aproximar de Reed.

Alguém por quem ele estava esperando. Quem? E por que violar a quarentena?

A quarentena era uma parte vital do processo de lançamento, embora daquela vez sua duração, por motivo de força maior, fosse menor que os sete dias habituais. Permitir que uma pessoa de fora entrasse em contato direto com um membro da tripulação, naquele estágio avançado, era sem precedente.

Enquanto o visitante e Reed se afastavam para um círculo de luz, Megan viu alguma coisa pendurada num cordão ao redor do pescoço do homem: um cartão de controle de saúde, indicando que, fosse lá quem fosse, o visitante tinha se submetido a um exame médico e sido aprovado por médicos da NASA.

Tranqüilizada com o fato de que o convidado de Reed tivesse autorização para estar numa área de acesso restrito, Megan come­çou a se afastar. Mas alguma coisa lá no fundo de sua mente resistiu. Sempre confiara em sua intuição e instinto; dar ouvidos a ambos já lhe salvara a vida mais de uma vez. Agora lhe sussurravam que não deveria agir educadamente e se afastar, dando privacidade a Reed.

Megan ficou onde estava. Como os dois homem estavam de frente um para o outro, não podia ouvir o que estavam dizendo, mas não houve dúvida de que alguma coisa havia passado das mãos do visitante para as de Reed: um cilindro metálico reluzente de cerca de 13 centímetros. Megan o viu apenas por uma fração de segundo antes que desaparecesse no bolso do macacão de Reed.

Megan observou o visitante apertar o ombro de Reed, e entrar de volta no carro e ir embora. Reed pareceu ficar acompanhando as lanternas traseiras até se reduzirem a duas cabeças de alfinete; então fez meia-volta e começou a andar de volta para seu alojamento.

Está tendo uma pequena crise, está nervoso com a partida, como todos nós. Alguém muito íntimo veio até aqui para se despedir e acalmá-lo.

Mas a explicação lhe pareceu falsa. Reed era um veterano de seis missões de ônibus espacial, quase indiferente com relação ao pro­cesso. Também não poderia ter sido um parente. Depois que a quarentena entrava em vigor, membros da família não tinham qualquer contato com a tripulação. Eram encaminhados para áreas especiais para visitantes, com vista privilegiada, que ficavam a cinco quilômetros da área de lançamento.

Alguém do programa. Alguém que nunca conheci.

Antes de seguir para a cantina, onde a tripulação faria sua última refeição de verdade até o retorno, Megan fez uma parada em seu quarto. Refletiu sobre suas opções, uma das quais era abordar o assunto casualmente com Reed. Afinal, ele a apoiara desde que chegara à NASA; com o passar do tempo, começara a pensar nele como um amigo. Então se lembrou de Adam Treloar, das amostras de varíola desaparecidas, e da busca desesperada que estava sendo realizada em segredo. As instruções de Klein eram inequívocas: deveria comunicar qualquer coisa suspeita. Embora Megan estivesse certa de que havia uma explicação perfeitamente inocente para o comportamento de Reed, estendeu a mão e pegou o telefone.

 

Às 6:30, a tripulação entrou na sala de descontaminação para se vestir. Como Megan era a única mulher na missão, tinha um cubículo só para ela. Fechando a porta, lançou um olhar crítico para o seu traje espacial de lançamento e entrada, ou TELE. Feito sob medida e pesando robustos quarenta quilos, incluía mais de 15 componentes individuais, inclusive um aparelho para flutuação, calças de gravidade e fraldas. Megan questionara a necessidade desse último item até que Reed lhe explicara exatamente quanta pressão era exercida sobre o corpo durante a entrada em órbita. Era virtualmente impossível que a bexiga não se esvaziasse.

Está muito elegante, Megan — comentou Frank Stone, o piloto da missão quando ela entrou no vestiário masculino.

O que gosto mais são dos apliques — respondeu Megan.

— Diga isso a minha mulher — respondeu animado Bill Karol, o comandante. — Foi ela quem os desenhou.

Cada missão tinha um aplique diferente, desenhado pelos membros da tripulação ou por seus parentes. Aquele retratava o ônibus espacial voando veloz para o espaço. Dentro das bordas redondas estavam bordados os nomes dos tripulantes.

A tripulação formou duplas para que cada um verificasse o traje do outro, assegurando-se de que todos os componentes estavam bem ajustados e no lugar. Então um dos especialistas da missão, David Carter, conduziu o grupo em uma breve oração. O momento ajudou a dissipar o peso criado pela morte inesperada de Adam Treloar.

Faltando pouco mais de três horas para o lançamento, saíram em fila do alojamento para um festival de luzes de câmeras. A caminhada seria a última oportunidade para observadores exter­nos, todos cuidadosamente selecionados e portando passes especi­ais, verem os astronautas. Passando pela passarela, Megan acenou brevemente para a mídia. Quando sorriu, um repórter gritou:

Mais um! Exatamente como este!

O percurso na van estilo UPS até o conjunto de lançamento levou apenas alguns minutos. Quando chegou lá, a tripulação embarcou num elevador que os levou a sessenta metros de altura até a sala branca, última área de plataforma de embarque onde puseram os pára-quedas, arneses, gorros de comunicação, capacetes e luvas.

Como está se sentindo?

Megan virou-se e viu Reed a seu lado, vestido e pronto.

Tudo bem, acho.

Sentindo as borboletas na barriga?

É isso o que está acontecendo dentro de meu estômago?

Ele se inclinou chegando mais perto.

Não espalhe, mas eu também estou sentindo.

Você, não!

Especialmente eu.

Talvez fosse a maneira como estava olhando para ele que provocou as palavras seguintes:

Alguma coisa errada? Quer me perguntar alguma coisa?

Megan abanou a mão no ar.

Acho que é só o momento. Você sonha e treina e trabalha para que chegue, então, um dia, ele chega.

Reed deu uma palmadinha em seu ombro.

Você vai se sair bem. Apenas lembre-se do que Allenby disse: todos nós estamos contando com essas experiências que você tem programadas.

Senhoras e senhores, está na hora — avisou um dos assisten­tes de tripulação.

Megan deixou escapar um suspiro de alívio quando Reed se afastou. Durante sua conversa telefônica com Klein, o chefe do Covert-One dissera que iria investigar imediatamente quem tinha sido o misterioso visitante de Reed, tentar determinar sua identi­dade e que voltaria a ligar para ela. Como não tivera mais notícias dele, Megan presumiu que Klein ainda estivesse investigando ou que havia encontrado uma resposta perfeitamente satisfatória que não pudera lhe comunicar.

Está na hora — anunciou Reed. Ele fez um gesto para Megan. — Por favor, primeiro a senhora.

Megan respirou fundo, agachou-se e passou pela porta que dava acesso ao compartimento. Chegando à primeira escada, des­ceu para o compartimento central onde, além dos beliches para dormir, compartimento de carga para mantimentos e equipamen­tos e o toalete, havia três assentos especiais para ela, Randall Wallace, outro especialista da missão, e David Carter, especialista encarregado da carga especial para a missão.

Acomodando-se no assento desmontável, que seria dobrado e enfiado em seu compartimento após o lançamento, Megan encontrou-se apoiada nas costas, com os joelhos apontados para o teto.

Terceira missão e ainda não consegui me habituar a estes assentos — resmungou Carter, enquanto se ajeitava no assento ao lado dela.

Porque você continua engordando uns quilinhos, meu caro — provocou Wallace. — Toda aquela comida caseira.

Pelo menos tenho uma casa para onde voltar — rebateu Carter.

Batendo a cinza de um charuto imaginário, Wallace fez uma imitação de Groucho Marx.

Deve ser o amor.

A brincadeira morreu quando a equipe de assistentes entrou e afivelou os cintos de segurança dos assentos dos astronautas.

Microfones?

Megan testou os dela e assentiu, na medida do possível, dado o espaço limitado. Enquanto os cintos de seus companheiros eram afivelados, ouviu a tripulação do ônibus espacial checando a lista de lançamento com a equipe de controle da missão.

Com o trabalho terminado, a equipe de assistentes se retirou. Embora não pudesse vê-los, Megan imaginou como suas expres­sões estariam solenes.

Senhoras e senhores, boa viagem, Deus os acompanhe. Voltem em segurança.

Amém para isso — resmungou Carter.

Eu deveria ter trazido um bom livro para ler — comentou Wallace. — Megan, tudo bem com você por aí?

Beleza pura, obrigada. Agora, se vocês não se importarem, rapazes, tenho de fazer meu check-list.

 

A várias centenas de quilômetros a noroeste, Jon Smith acabou de beber sua segunda xícara de café e consultou o relógio. Aquela altura, Kirov já tivera tempo para se posicionar no Dupont Circle. A caminho da saída, Smith deu uma última olhada nos monitores conectados às câmeras de segurança externas. Situada num terreno de esquina, sua casa era cercada por árvores altas que efetivamente a escondiam das vizinhas. O quintal dos fundos era todo gramado, sem arbustos ou moitas onde um intruso pudesse se esconder. Sensores de movimento embutidos nas paredes de pedra da casa escaneavam a área continuamente.

Se alguém conseguisse passar pelos sensores, descobriria um sofisticado sistema de alarme embutido nas janelas de vidraças duplas e nas fechaduras das portas. Se estes de alguma forma fossem ser violados, almofadas de pressão espalhadas na casa inteira seriam ativadas, disparando ao mesmo tempo um alarme e um gás incapacitante por via de um sistema de borrifadores. Testado em prisões federais, o gás derrubava seus alvos em menos de dez segundos, motivo pelo qual Smith mantinha uma máscara de gás na gaveta da mesinha-de-cabeceira.

Embora Smith acreditasse que Beria não fosse tentar matá-lo com um tiro de longo alcance, achou prudente checar o perímetro uma segunda vez. Convencido de estar seguro, Smith voltou para os fundos da casa pela cozinha que tinha ligação direta com a garagem. Estendia a mão para desligar o pequeno aparelho de televisão sobre o balcão quando viu uma imagem que o fez parar. Hesitou por um instante, então sorriu e pegou o telefone.

Faltando 21 minutos para o lançamento, a voz do diretor de vôo, Harry Landon, soou nos fones de ouvido da tripulação.

Companheiros — disse ele em seu sotaque de Oklahoma — parece que temos uma ocorrência inesperada.

Embora tivessem consciência de que trezentas pessoas no centro de controle da missão estavam ouvindo cada som que emitiam, a tripulação não pôde conter um gemido coletivo.

Não me diga que vamos ter de fazer tudo isso outra vez — reclamou Carter.

Qual é o problema, controle? — perguntou o piloto em tom atento e calmo.

—Por acaso falei em problema? Não. Eu disse ocorrência—veio uma breve pausa. — Olson, você acabou de checar seu equipamento de vôo?

Sim, senhor — respondeu Megan, o coração batendo dis­parado.

Nesse caso, quer atender a esta ligação?

Involuntariamente, Megan tentou se levantar, mas não foi a lugar nenhum. Quem poderia estar ligando para ela. Ah, meu Deus!

Harry — respondeu em voz assustada. — Não sei se isso é uma boa idéia.

Não se preocupe. Passo a ligação só para você.

A última coisa que ela ouviu antes da estática foi a exclamação de Carter.

Droga!

Megan?

O pulso dela se acelerou.

Jon? E você?

Não podia deixar você partir sem desejar boa sorte.

Jon, como você... Quero dizer, de que maneira você...

Não tenho tempo para explicar. Tudo bem com você? Você está pronta?

Pronta? Estou. Se está tudo bem? Ora, estou começando a me acostumar a estar sentada sobre uma tonelada de combustível líquido.

Queria lhe desejar boa sorte e boa viagem... Cuide-se e trate de voltar sã e salva.

Megan sorriu.

Pode deixar.

Desculpem-me, amigos — interrompeu Landon. — O tempo acabou.

Obrigada, Harry — disse Megan.

Vou botar você de volta no circuito. Está pronta?

Vá em frente.

Megan preparou-se para ser alvo de piadas e gozação, que não se materializaram. Nos 15 minutos para a contagem regressiva, o resto da tripulação estava ocupado trocando instruções e detalhes. Fechando os olhos, ela murmurou algumas palavras do 24o Salmo. Mal havia acabado, quando o ônibus espacial se moveu um pouco. Um instante depois, o procedimento de ignição dos aceleradores de combustível sólido para o disparo dos lançadores espaciais se iniciou e um rugido alto e surdo envolveu a aeronave.

Em meio às várias vozes do controle de terra rechecando o lançamento, Megan ouviu:

Houston, lançamento do Discovery disparado!

Enquanto o tanque externo alimentava os propulsores princi­pais, Megan teve a sensação de estar na subida de uma gigantesca montanha russa que lhe abalava os ossos — só que não haveria parada naquela volta. Dois minutos e seis segundos depois do disparo, os lançadores de combustível sólido se separaram do veículo espacial caindo no oceano, de onde seriam recuperados. Impulsionado pelo combustível do tanque externo que alimentava seus propulsores principais, o Discovery lutou para se libertar da gravidade. Quanto mais alto e mais velozmente subia, mais a tripu­lação se aproximava da pressão máxima 3-G. Megan fora advertida de que a sensação seria como ter um gorila amarrado ao peito.

Errado. Mais parece um elefante.

Seis minutos depois, a uma altitude de 296 quilômetros, os propulsores principais pararam de funcionar. Com sua missão cumprida, o tanque externo se separou e caiu. Megan ficou pasma com o súbito silêncio e com o fato de o movimento se tornar suave. Virando a cabeça, compreendeu por quê: além da janelinha estreita em sua linha de visão estavam as estrelas. Ela e o Discovery estavam em órbita.

 

 

Na noite anterior, Ivan Beria se encontrara com o motorista do Lincoln do lado de fora da estação do metrô da rua Q com a avenida Connecticut. O motorista tinha informações e instruções adicio­nais para Beria, que as estudou enquanto o carro seguia vagarosa­mente para fora da cidade em direção à Bethesda.

O motorista era necessário porque Beria não podia se arriscar a ser visto nas ruas — e porque só sabia dirigir de maneira muito rudimentar. Apesar de ser um assassino capaz de matar e mutilar um homem em segundos, ficava perdido e confuso com o tráfego que fluía entrando e saindo da cidade. Numa emergência, não podia garantir a execução de uma fuga. Mas havia outra vantagem no carro além do transporte: era perfeito para vigilância. Washington era cheia de grandes carros de passeio de luxo. Aquele não pareceria deslocado num bairro residencial como Bethesda.

Ao se aproximar da casa de Smith, o motorista reduziu a marcha como se estivesse procurando algum número específico. Beria teve oportunidade de ver bem a grande e velha casa de campo, em estilo rústico, que ficava bem recuada, afastada da rua. Reparou que as árvores que, presumia, demarcavam os limites do terreno, se estendiam ao redor dos fundos. Havia luzes nas janelas, mas nenhu­ma sombra que indicasse movimento.

— Dê mais uma volta — disse Beria ao motorista.

Na volta seguinte, Beria examinou com atenção as outras casas do quarteirão. A maioria tinha brinquedos e bicicletas no gramado da frente da casa, uma cesta de basquete sobre a porta da garagem, um pequeno barco a motor empoleirado num trailer escorado na entrada para carros. Em contrapartida, a casa de Smith parecia vazia, sombria. Era, pensou Beria, a casa de um homem que mora sozinho e prefere morar assim, um homem cujo trabalho exige solidão e sigilo. Uma casa daquelas teria um sistema de segurança muito mais sofisticado — e mortífero — do que qualquer coisa anunciada pelas placas das companhias de segurança nas portas das outras casas.

Já vi o suficiente — falou para o motorista. — Voltaremos amanhã de manhã.

Agora, poucos minutos depois das 9:00, na manhã seguinte, Beria estava no banco de trás do Lincoln enquanto esperava com o motor em ponto morto na esquina mais afastada da rua de Smith. O motorista estava de pé do lado de fora, fumando. Para as pessoas que passavam correndo ou passeando com o cachorro, parecia estar esperando por um cliente.

Na quietude climatizada do interior do carro, Beria passou em revista todas as informações sobre Smith. Seu cliente queria o médico americano fora do caminho rapidamente. Mas havia obstá­culos. Smith não trabalhava em um escritório. Sua casa parecia ter boa segurança. Portanto, a execução teria de ser feita em campo aberto, onde quer que se apresentasse uma oportunidade. Outro problema era a imprevisibilidade dos movimentos de Smith depois que saía de casa. Ele não tinha nenhum horário fixo, de modo que o cliente não podia dizer onde estaria em nenhum momento. Isso significava que Beria teria de seguir Smith tão de perto quanto fosse possível e esperar uma oportunidade. Trabalhando a seu favor, havia o fato de que o americano não tinha acompanhantes, e — que fosse do conhecimento do cliente — também não portava arma. E, de maior importância, era o fato de que ele não tinha nenhuma idéia de que estivesse correndo qualquer tipo de risco. Beria consultou o relógio; passaram 45 minutos desde que chegara.

O Lincoln inclinou-se quando o motorista voltou a sentar-se atrás do volante.

Smith está saindo.

Beria olhou pelo pára-brisa para mais abaixo na rua, onde um sedã azul-marinho estava saindo de marcha a ré da garagem. De acordo com o cliente, aquele era o carro de Smith.

E vamos começar — disse Beria baixinho.

Enquanto dirigia para a cidade, Smith observou os espelhos retrovisores continuamente. Depois de alguns quilômetros iden­tificou o Lincoln preto que mudava de pista toda vez que ele mudava de pista. Ligou para Kirov no celular.

É o mesmo Lincoln do aeroporto. Está me seguindo. Acho que Beria está mordendo a isca.

Estou pronto — assegurou Kirov.

Ao frear em um sinal, Smith observou o retrovisor. O Lincoln ainda estava três carros atrás dele.

Depois de entrar na cidade, Smith dirigiu tão rápido quanto o tráfego permitia, mudando de pistas, apertando a buzina. Esperava que Beria acreditasse na imagem do homem atrasado para um compromisso importante, um homem preocupado, de guarda bai­xa, uma presa fácil. Queria que o assassino se concentrasse nele e esquecesse tudo e qualquer outra pessoa. Assim, jamais veria Kirov se aproximar.

Ele está com pressa, pensou Beria. Por quê?

Está seguindo para Dupont Circle — disse o motorista, mantendo os olhos no tráfego.

Beria franziu o cenho. Seu apartamento ficava naquela área. Será que Smith o havia descoberto? Seria para lá que estava indo?

O sedã ganhou velocidade na avenida Connecticut, virou à esquerda na rua R, e depois à direita na rua 21.

Para onde ele está indo?

O sedã reduziu a marcha à medida que Smith se aproximou do triângulo na rua S. Beria o viu parar o carro num estacionamento, depois atravessar a rua 21. Aquela área, com seus restaurantes e loj as do leste europeu, era-lhe familiar. Desde que chegara a Washing­ton, era o único lugar onde se aventurara a ir em que se sentira à vontade.

Ele está aqui tentando encontrar meu rastro. Ou talvez alguém tenha visto meu retrato.

Beria vira o retrato falado da polícia nos telejornais. Achou que ficara muito malfeito, em nada parecido com ele. Mas talvez alguém o tivesse visto na área, apesar de Beria raramente sair do apartamen­to antes de anoitecer.

Não. Se ele suspeitasse de que estou aqui, não teria vindo sozinho. Ele não tem certeza. Está arriscando um palpite.

Pare em um lugar onde eu possa achar você — disse Beria ao motorista.

O motorista apontou para um restaurante chamado Dunn's River Falls.

— Vou ficar no estacionamento.

Saltando do carro, Beria atravessou a rua correndo a tempo de ver Smith se esgueirar sob a arcada ladeada por um bar e uma loja de pôsteres. Agora, sabia exatamente para onde sua presa estava se dirigindo: a pequena área quadrangular, cercada de prédios, entre a rua 21 e a avenida Flórida. Refletiu que era um bocado inteligente da parte de Smith procurá-lo em um lugar para onde Beria poderia ser naturalmente atraído. Mas também era um local que Beria sabia que poderia controlar.

Beria desapareceu debaixo da arcada, depois moveu-se na direção do toldo de um café macedônio. Em uma das mesas, um grupo de velhos jogava dominó; a melodia suave de uma canção nativa folclórica, cantada em voz sentimental, crepitava nos alto-falantes, no interior e na varanda do café. Lá estava Smith, andando em direção à fonte que ficava no centro do quadrângulo. Agora, não tão depressa, olhando ao redor, como se estivesse esperando al­guém. Beria teve a impressão de que podia sentir o cheiro do desconforto de Smith, o constrangimento de alguém que se dá conta de que está fora de seu ambiente. A mão de Beria mergulhou no bolso da jaqueta, os dedos se apertando ao redor do cabo de saca-rolhas de seu estilete de lâmina com armação de mola.

Trinta passos mais adiante, Smith sentiu o pager vibrar contra seu rim. Kirov estava lhe avisando de que Beria estava na área, a menos de 15 metros de Smith. Reduzindo ainda mais o passo, Smith foi andando até a frente de uma barraca com tapetes expostos sobre uma corda de roupas. Parou, consultou o relógio de pulso, depois olhou em volta como se estivesse procurando alguém espe­cial. Dada a hora, havia fregueses circulando — a maioria, pessoas a caminho do trabalho ou indo abrir suas lojas, parando para tomar um café e comer um folheado. Smith acreditava que Beria aceitaria que aquele era um horário lógico para se encontrar com um infor­mante que pudesse estar de passagem.

O pager vibrou de novo — duas vezes. Beria estava a sete metros e se aproximando. Smith sentiu um arrepio gelado descer por sua coluna enquanto seguia adiante, ultrapassando a barraca de tape­tes. Ainda olhando em volta, não viu Beria nem Kirov. Então ouviu o som suave de passos às suas costas.

De seu ponto de observação privilegiado na porta de uma loja de tecidos ainda fechada, Kirov avistara Beria no instante em que ele passara pelo arco. Naquele momento, aproximou-se dele na diagonal, os mocassins de sola fina de borracha feitos sob medida para tornar seus passos inaudíveis.

Não olhe ao redor, Jon. Não fuja. Confie em mim.

Beria agora estava a menos de três metros atrás de Smith, se aproximando rapidamente. Quando a mão dele saiu do bolso, Kirov viu de relance o cabo do saca-rolha e um clarão de aço inoxidável quando Beria apertou o mecanismo que fazia a lâmina saltar encaixada no lugar.

Kirov trazia seu guarda-chuva preto de aspecto comum. O guarda-chuva balançou levemente em sua mão à medida que ele cobriu a distância que o separava de Beria. No exato momento em que o assassino deu mais um passo, sua perna de trás se levantou ligeiramente, com a panturrilha erguida, Kirov baixou e espetou o guarda-chuva. A ponta afiada de navalha cortou o tecido da calça de Beria, enterrou-se na carne e cortou meio centímetro. Beria girou rapidamente, com o estilete reluzindo sob a luz pálida do sol. Mas Kirov já tinha se afastado dois passos. Beria o viu e seus olhos se arregalaram de surpresa. O rosto de Moscou! O general russo da estação de trens!

Beria deu um passo na direção de Kirov, mas não conseguiu alcançá-lo. Sua perna direita se dobrou e cedeu. O estilete caiu de sua mão enquanto ele desabava de bruços. A droga que recobria a ponta do guarda-chuva estava cantando em suas veias, embaçando sua visão, transformando seus músculos em barro.

De olhos vidrados, Beria teve a vaga consciência de estar sendo levantado do chão por um par de braços fortes. Kirov o estava segurando, sorrindo, falando em sérvio, dizendo-lhe como fora um mau garoto e como estivera procurando por ele por toda parte. Beria abriu a boca, mas conseguiu apenas gorgolejar. Agora Kirov o estava puxando mais para junto de si, sussurrando alguma coisa. Sentiu os lábios de Kirov roçarem em sua face, então ouviu um grito em sérvio, de alguém insultando sua masculinidade.

— Vamos, meu amor — disse Kirov baixinho. — Vamos tirar você daqui antes que isso se torne desagradável.

Beria se virou e viu os velhos fazendo gestos obscenos para ele. Agora Smith estava a seu lado, segurando-o pelo outro ombro. Beria tentou mover os pés, mas descobriu que só conseguia arrastá-los. Sua cabeça balançou para trás e ele viu a parte interna do arco. Fora do quadrângulo, o rugido do tráfego era como uma gigantesca catarata. Kirov estava empurrando a porta de correr de uma camionete azul, tirando uma cadeira de rodas dobrável. Mãos em seus ombros obrigaram-no a sentar. Tiras de couro fecharam-se ao redor de seus pulsos e tornozelos. Ouviu o gemido de um motor elétrico e se deu conta de que a cadeira de rodas fora empurrada para uma rampa sendo levantada. Então Kirov estava empurrando a cadeira para dentro da camionete, travando as rodas. De repente, tudo desapareceu, exceto os olhos azuis, gelados, do russo.

Você não sabe a sorte que tem, seu canalha assassino!

Depois disso, não ouviu mais nada.

 

A varanda dos fundos do retiro de Peter Howell, na costa de Chesapeake, dava para um lago de águas lisas, alimentado por um riacho cheio de meandros. Era o final da tarde, quase oito horas passadas da captura de Beria. O sol baixo aquecendo seu rosto, Smith se recostou e observou um par de falcões voando em círculos sobre a presa. As suas costas ouviu os passos de Kirov nas tábuas do soalho antigo de parquê.

Smith não tinha idéia de quem, realmente, era dono daquele recanto rústico, mas como Peter Howell lhe dissera em Veneza, era ao mesmo tempo muito reservado e bem equipado. Limpo e confor­tável, o chalé tinha uma dispensa bem fornida. Sob o tabuado da sala principal, numa masmorra, havia um paiol de armas, remédios e outros artigos de primeira necessidade, indicando que o dono era sem dúvida do mesmo ramo de negócios que Howell. Nos fundos, no que parecia ser um depósito de ferramentas, havia uma outra coisa.

Está na hora, general.

Deveríamos deixá-lo descansar mais um pouco, Jon. Não queremos ter de fazer isso de novo.

Leio os mesmos livros de medicina que você. A maioria dos homens quebra depois de seis horas.

Beria não é como a maioria.

Smith atravessou a varanda e inclinou-se sobre o parapeito. A partir do momento em que ele e Kirov tinham concebido a opera­ção, sabiam que, depois de capturado, Beria não falaria. Não sem ser induzido. E não seria induzido com o uso de nada primitivo como eletrochoques e ou cassetes de borracha. Havia substâncias quími­cas sofisticadas que, em certas combinações, eram muito eficazes e dignas de confiança. Mas tinham desvantagens. Nunca se podia ter certeza de que o receptor poderia ter uma reação inesperada, entrar em choque, ou pior. Esse tipo de risco não podia ser assumido com Beria. Ele tinha de ser quebrado sem o uso de drogas, quebrado de maneira definitiva e, sobretudo, de maneira segura.

Smith não enganava a si mesmo. Quer fosse eletricidade, substâncias químicas, ou qualquer outra coisa, tudo se resumia em tortura. A idéia de ter de sancionar seu uso o revoltava, tanto como ser humano, quanto como médico. Já dissera a si mesmo inúmeras vezes que naquele caso essas táticas eram justificadas. Beria era cúmplice em uma conspiração que poderia expor milhões de pes­soas a uma morte horrível. Era vital conseguir as informações que tinha na cabeça.

— Vamos — disse Smith.

 

Ivan Beria estava cercado de branco. Mesmo que mantivesse os olhos fechados, algo que fazia a maior parte do tempo, via branco.

Quando recuperou a consciência, descobriu que estava de pé dentro de um tubo profundo, cilíndrico, uma espécie de silo. Com cerca de quatro metros de altura, as paredes eram perfeitamente lisas, revestidas de gesso que depois fora pintado e então levado um acabamento de alguma coisa que as fazia brilhar. Lá no alto muito além de seu alcance, havia duas lâmpadas de holofotes acesas o tempo todo. Havia uma ausência total de escuridão, nem sequer uma sugestão de sombra.

Inicialmente, Beria pensara que era algum tipo de cela de prisão improvisada. Aquela idéia o tranqüilizara. Já vivera breves experiências em celas de prisão. Mas então descobrira que o diâme­tro do silo não era largo o suficiente para acomodar seus ombros. Ele podia se inclinar um pouco em qualquer direção, mas não podia sentar.

Depois de algum tempo, pensou ter ouvido um ligeiro zumbi­do, como um sinal de rádio. A medida que as horas foram passando, o sinal se tornou mais forte e as paredes, mais brancas. Então elas começaram a se fechar ao seu redor. Aquela foi a primeira vez em que Beria fechou os olhos, por um breve momento. Quando os abriu, a brancura estava ainda mais intensa, como se tal coisa fosse possível. Agora, simplesmente não ousava abrir os olhos. O zumbi­do aumentara até se tornar um rugido e, além dele, Beria ouviu outra coisa, uma coisa que poderia ter sido uma voz humana. Não tinha idéia de que estava gritando.

Súbito cambaleou para trás, caindo por uma porta escondida que Kirov abrira. Agarrando o braço de Beria, ele puxou o assas­sino para fora do silo e imediatamente enfiou um gorro negro em sua cabeça.

Vai ficar tudo bem — sussurrou Kirov em sérvio. — Vou fazer a dor parar, toda a dor. Você vai beber água e depois pode falar comigo.

De repente, violentamente, Beria atirou os braços em volta de Kirov, abraçando-o como um homem que está se afogando se agarraria a um pedaço de madeira. Enquanto isso, Kirov continu­ava a falar com ele e acalmá-lo, até que Beria deu seus primeiros passos hesitantes.

 

Smith ficou chocado com a aparência de Beria — não porque es­tivesse assustado ou ferido, exatamente pelo motivo oposto: estava com a mesmíssima aparência que da última vez que Smith o vira.

Mas havia diferenças. Os olhos de Beria estavam vidrados e baços, como os de um peixe ao fim de um dia no gelo. Sua voz soava monótona, sem nenhum timbre ou textura. Quando falava, era como se tivesse sido hipnotizado.

Os três sentaram-se na varanda, ao redor de uma mesinha com um pequeno gravador ligado. Beria bebeu água em uma caneca plástica. A seu lado, Kirov vigiava cada um de seus movimentos. Em seu colo, coberta por um pano, havia uma arma, o cano apon­tado para o ombro de Beria.

— Quem contratou você para matar o guarda russo?—pergun­tou Smith em tom suave.

Um homem de Zurique.

Você foi a Zurique?

Não. Falamos por telefone. Só por telefone.

Ele lhe disse como se chamava?

Ele chamava a si mesmo de Gerd.

Como Gerd pagava você?

O dinheiro era depositado numa conta no Banco Offenbach. Quem cuidava da conta era Herr Weizsel.

Weizsel! O nome que Peter Howell conseguira arrancar do policial italiano corrupto, Dionetti...

Herr Weizsel... você o encontrou? — perguntou Smith suavemente.

Sim. Várias vezes.

E Gerd?

Nunca.

Smith lançou um olhar para Kirov, que assentiu, indicando acreditar que Beria estivesse dizendo a verdade. Smith concordava. Esperara que Beria tivesse trabalhado com intermediários. Mas banqueiros suíços eram alguns dos melhores testas-de-ferro.

Sabe o que você tomou do guarda russo? — prosseguiu Smith.

Germes.

Smith fechou os olhos. Germes...

Sabe o nome do homem para quem entregou os germes no aeroporto de Moscou?

Acho que era David. Não era seu nome verdadeiro.

Sabia que teria que matá-lo?

Sabia.

Gerd lhe disse para fazer isso?

Disse.

Gerd alguma vez mencionou americanos? Você alguma vez foi contatado diretamente por americanos?

Só meu motorista. Mas não sei o nome dele.

Ele alguma vez falou com você sobre Gerd ou alguma outra pessoa?

Não.

Smith fez uma pausa, tentando controlar sua frustração. Fos­sem lá quem fossem, as pessoas que controlavam aquela operação haviam criado barreiras de proteção aparentemente impenetráveis entre elas e o assassino.

Ivan, você não quer ouvir o que vou dizer.

Está bem — Beria olhou para o outro lado, uma expressão vazia no rosto.

Jon, ele não tem mais nada para revelar — disse Kirov. — Poderíamos conseguir mais alguns detalhes, se isso adiantar algu­ma coisa — Kirov espalmou as mãos. — E o Lincoln?

— É um veículo da frota da NASA. Dúzias de motoristas o usam. Klein ainda está levantando os detalhes — fez uma pausa. — Deveríamos ter apanhado o motorista. A esta altura, já deve ter comunicado que Beria está desaparecido. Os mandantes vão presu­mir o óbvio. Serão muito mais cuidadosos daqui por diante.

Conversamos a respeito disso — recordou Kirov. — Teria sido impossível que apenas nós dois capturássemos Beria e o motorista. Precisaríamos de reforços.

Beria nos deu dois nomes: o Banco Offenbach e este Herr Weizsel — disse Smith, e contou a Kirov sobre a conexão veneziana.

O russo levantou a cabeça.

— Weizsel teria de tratar com Gerd. Teve de conversar com ele, claro, talvez até se encontrado com ele...

Smith completou o pensamento:

De modo que deve saber o nome verdadeiro de Gerd, não é?

 

 

Quando Ivan Beria não apareceu no limite de tempo combinado, o motorista do Lincoln abandonou o carro. Naquele bairro, havia uma boa possibilidade de que fosse roubado dentro de poucas horas. Depois disso, seria desmontado profissionalmente em al­gum ferro-velho ou depenado por ladrões de rua. De qualquer modo, desapareceria.

Mesmo que as autoridades de alguma maneira o encontrassem antes, renderia poucas pistas. O motorista sempre usava luvas; haveria poucos vestígios, se houvesse algum, que pudessem ligá-lo ao carro. Seu nome também não aparecia em nenhum documento da NASA. A saída do carro fora registrada em nome de um motorista atualmente trabalhando em Pasadena, na Califórnia.

Na estação do metrô da avenida Connecticut com rua Q, o motorista telefonou para seu chefe. Discretamente, explicou o que havia acontecido e sugeriu que o assassino havia sido capturado. A pessoa do outro lado da linha instruiu o motorista a ir imediatamen­te para o aeroporto Dulles. Em um armário, previamente alugado na seção de guarda de bagagem, encontraria duas maletas de mão, uma com dinheiro e documentos de identidade, a outra com uma muda de roupas. Também haveria um bilhete de avião para Cancun, no México, onde deveria ficar até segunda ordem.

Tão logo desligou o telefone depois de falar com o motorista, Anthony Price ligou para o dr. Karl Bauer, que retornara para o Havaí, depois de ter entregado a amostra de varíola recombinada a Dylan Reed, em Cabo Canaveral.

— Sabe o problema que mandou seu empregadinho resolver? — disse asperamente. — Agora está pior que antes. — Depois de dar a Bauer os escassos detalhes, acrescentou:

Se Beria foi capturado, pode apostar que está nas mãos de Smith. No fim, Beria vai acabar falando — se é que já não falou.

Se falar, qual é o problema? —retrucou Bauer. — Ele nunca viu nenhum de nós. Não sabe como nos chamamos. Treloar está morto. A pista morreu com ele.

A pista tem de acabar com Beria! — rebateu Price em tom rude. — Precisamos dar um jeito nele.

Enquanto está sob custódia de Smith? — replicou Bauer sarcasticamente. — Por favor, diga-me como propõe que chegue­mos a ele.

Price hesitou. Smith não manteria Beria numa prisão federal ou numa cela de custódia. Ele o esconderia em algum lugar onde ninguém pudesse encontrá-lo.

Então temos de adiantar a execução do plano — declarou. — Criar uma manobra diversionista.

Fazer isso poria Reed e o projeto inteiro em perigo.

E não fazer nos põe em perigo! Escute-me, Karl. Reed ia fazer a experiência depois de amanhã. Não há nenhum motivo por que não possa fazê-la agora.

Todas as experiências seguem uma tabela fixa de ordem de realização —respondeu Bauer. — Poderia parecer suspeito se Reed mudar a seqüência.

Dadas as conseqüências, uma mudança na seqüência será a última coisa em que as pessoas vão pensar. O importante é ter a mutação de volta o mais rápido possível — e nos garantir.

Houve um silêncio do outro lado da linha. Price prendeu a respiração, se perguntando se o velho cientista concordaria.

Está bem — disse Bauer finalmente. — Vou entrar em contato com Reed e dizer-lhe que adiante nosso plano.

Diga-lhe para trabalhar o mais rápido possível.

Tão rápido quanto for prudente.

Price estava no limite de sua paciência.

Não complique as coisas para mim, Karl. Apenas diga a ele para fazer logo.

Karl Bauer ficou olhando para o telefone agora silencioso. Em sua opinião Anthony Price era um daqueles burocratas contamina­dos por um complexo de Napoleão, inebriado por seu poder, aparentemente, ilimitado.

Deixando o escritório, Bauer tomou o elevador para o segundo andar do subsolo. Ali ficava seu centro de comunicações, uma sala do tamanho de um centro de controle de tráfego aéreo, onde técnicos, usando três satélites particulares, acompanhavam sem cessar os batimentos do pulso eletrônico do império Bauer-Zermatt. Também havia um quarto satélite, que, até aquele momento, permanecera inativo. Atravessando a sala, Bauer entrou em seu gabi­nete particular e se trancou nele. Sentou-se diante do console, ati­vou a tela de alta definição e começou a digitar no teclado. O satélite, construído pelos chineses em Xianpao, lançado e posto em órbita pelos franceses a partir da Guiana, foi ativado. Em termos de ma­quinaria, era um equipamento relativamente pouco sofisticado, mas também tinha apenas um único propósito e um tempo previsto de vida muito curto. Quando concluísse seu trabalho, uma carga explosiva destruiria quaisquer provas de que jamais existira.

Bauer conectou seu terminal 'cavalo de tróia' na freqüência da NASA, preparou sua mensagem para transmissão ultra-rápida, em rajada micro e abriu os circuitos. Em nanossegundos, a mensagem foi transmitida para o satélite, que por sua vez a retransmitiu para o ônibus espacial. Uma vez cumprida a missão, o satélite imediata­mente se desativou. Mesmo que a transmissão em rajada na freqüência dedicada fosse inadvertidamente percebida, seria quase impossível determinar não só sua origem mas também o ponto de reflexão. Com o satélite desativado e silencioso, pareceria que a interferência viera de um buraco negro no espaço.

Recostando-se na cadeira, Bauer juntou as pontas dos dedos em triângulo. E claro que não haveria nenhuma resposta direta do ônibus espacial. A única maneira, para Bauer, de se assegurar de que sua transmissão fora recebida era ficar na escuta pirateando as transmissões entre o ônibus espacial e a NASA. Quando ouvisse a voz de Reed, saberia.

 

Voando a 28.157 quilômetros por hora, a uma altitude de 325 quilômetros o Discovery estava em sua quarta órbita ao redor da Terra. Depois de recolher o assento temporário, Megan Olson dedicou-se à tarefa demorada e delicada de despir o traje de lança­mento/entrada e vestir o macacão confortável, cheio de bolsos com fechos de velcro. Ela reparou que seu rosto e a parte superior do corpo estavam um pouco inchados. Virtualmente todas as rugas tinham desaparecido e sua cintura afinado pelo menos cinco cen­tímetros. Isso acontecia porque havia pouca gravidade para puxar para baixo o sangue e os fluidos do corpo. Depois de seis horas, o excesso de fluidos seria eliminado pelos rins.

Com a ajuda de seus companheiros de tripulação, Carter e Wallace, Megan ativou a eletricidade do ônibus espacial, ar condi­cionado, luzes e comunicações. As portas do compartimento de carga foram abertas para liberar o calor acumulado pelo disparo do foguete lançador de propulsor sólido e dos lançadores principais durante o lançamento. Ficariam abertas durante toda a missão e ajudariam a regular a temperatura no interior do satélite artificial.

Enquanto trabalhava, Megan ficou ouvindo a conversa entre o comandante, Bill Karol, o piloto, Frank Stone, e o controle da missão. Era apenas a troca de informações rotineira sobre o estado, velocidade e posição do ônibus espacial — até que ela ouviu a voz espantada de Karol.

Dylan, está ouvindo isto?

Afirmativo. O que há de novo?

Uma mensagem acabou de ser transmitida pelos circuitos para você. Mas não houve nenhum aviso do controle de missão.

Megan ouviu Reed dar uma risada.

Provavelmente um de meus rapazes no laboratório pisou no fone. Qual é a mensagem?

Aparentemente houve uma mudança na ordem das experi­ências. Megan foi passada para a quarta posição. Você assume a primeira.

Ora, mas isso não é justo — reclamou Megan.

Estava ouvindo, não é? — comentou Reed. — Não se preocupe com isso, Megan. Vai ter sua vez.

Eu sei. Mas por que a mudança?

Vou checar a tabela agora mesmo.

Vou subir até aí.

Flutuando na microgravidade, Megan fez as manobras para subir a escada até a cabine de pilotagem. Reed estava suspenso como um mergulhador em flutuabilidade neutra atrás do piloto e do comandante, examinando o livro de bordo.

Levantando o olhar, comentou:

Você parece dez anos mais moça.

Por favor, cinco anos. E estou me sentindo inchada. Quais são as novidades?

Reed passou o livro para ela.

É uma mudança de planos, de última hora, na ordem das experiências que me esqueci de mencionar. Vou fazer os testes com as células vivas e tirá-las do caminho. Então poderá ficar com o laboratório inteiro só para você e seus micróbios da doença dos legionários?

Realmente estava esperando fazer isso primeiro — respon­deu Megan.

É, eu sei. Primeira viagem. Todo aquele gás. Mas, se fosse você, tentaria dormir um pouco enquanto dou duro em cima de um frasco de cultura "quente".

Quer que eu lhe dê uma mão com os testes?

Agradeço o oferecimento, mas não, obrigado — Reed pegou de volta o livro. — Bem, é melhor eu ir abrir a 'Fábrica'.

A 'Fábrica' era o apelido que a tripulação dera ao laboratório espacial.

No monitor, Megan observou Reed ir manobrando para che­gar à parte central do compartimento, então sair flutuando pelo túnel de comunicação que levava ao laboratório espacial. Ela nunca deixava de se surpreender com a maneira como apenas as paredes curvas do túnel e seu revestimento externo separavam Reed da desolação gelada do espaço.

Megan virou-se para Bill Karol.

Quem mandou a transmissão?

Karl consultou sua tela.

Não há nenhum nome acompanhando a mensagem, apenas um número.

Apoiando-se, Megan leu por cima do ombro dele. O número de seis algarismos era familiar, mas não conseguia compreender por quê.

— Alguém estava com pressa — comentou Stone laconicamente. — Provavelmente alguma confusão de última hora no laborató­rio de terra.

Mas você disse que isto não veio através do controle da missão — disse Megan.

O que eu quis dizer foi que não houve os comentários habi­tuais. Mas, que diabo, Megan, quem mais poderia ter mandado?

Enquanto os dois homens retomavam suas tarefas, Megan se afastou. Alguma coisa não estava certa. Um momento antes ela se lembrara de onde tinha visto aquele número antes. Era o número da identidade da NASA de Dylan Reed. Como era possível que ele tivesse enviado uma mensagem para si mesmo?

Tão logo Dylan Reed entrou no laboratório espacial, desativou os circuitos que controlavam as câmeras gravando as atividades no Biorack. Puxando a tira de velcro do fecho de um dos bolsos da calça, retirou o cilindro rombudo de titânio que Bauer lhe dera menos de 24 horas antes. Embora o tubo fosse cuidadosamente vedado, Reed tinha pleno conhecimento de que estava lidando com um produto "quente" que fora deixado sem refrigeração por tempo demais. Abriu o freezer e enfiou o tubo ao lado das células de milho e os espécimens de vermes nematóides, depois tornou a ligar as câmeras.

Aliviado com o fato de a varíola estar em segurança, Reed começou a preparar o Biorack para os procedimentos que iria realizar. Ao mesmo tempo, tentou imaginar o que teria acontecido em terra para fazer com que Bauer adiantasse a execução do plano tão dramaticamente. A última informação era de que Beria fora acionado para dar sumiço em Smith. Como Bauer pudera transmi­tir sua mensagem e não houvera nenhuma transmissão de emergên­cia do controle de terra indicando acontecimentos extraordinários, a conclusão lógica era que Beria tivera algum problema — e um problema sério o suficiente para que Bauer agisse.

Reed sabia que Bauer não entraria em contato com ele nova­mente, a menos que fosse absolutamente necessário. O piloto e o comandante do vôo não ficariam desconfiados com uma mensagem que não tivesse o jargão interno cifrado característico da NASA; uma segunda seria questionada e investigada. Como no momento Reed não tinha como entrar em contato com Bauer, teria de confiar na fé cega e concluir o trabalho que o velho suíço havia começado.

Reed preferiria estar descansado para aquela tarefa. Diante das circunstâncias, teria de ignorar a fadiga causada pelo lançamento e encontrar um bom ritmo para enfrentar a sessão exaustiva que tinha pela frente. Enquanto enfiava os pés nas formas de controle de movimento engastadas no piso diante do Biorack, calculou o tempo que a tarefa levaria para ser concluída. Se seus cálculos estivessem certos, o resto da tripulação estaria jantando exatamente quando ele tivesse terminado. Todos estariam em um mesmo compartimento, exatamente o que ele queria.

Os olhos de Nathaniel Klein estavam duros e frios como uma rocha. Estava sentado na sala de visitas do Rosebud, enquanto Smith apresentava seu relato de captura de Beria e dos detalhes do inter­rogatório subseqüente.

Um assassino conhecido tem ligação com um banco suíço e um de seus principais funcionários — murmurou.

Smith indicou o cassete na mesa do café.

Beria nos deu muito mais do que isso. Algumas pessoas muito importantes na Rússia e no Leste Europeu o empregaram. Eventos que pareciam não fazer sentido agora podem todos ser ligados a assassinatos e à chantagem de que Beria tomou parte.

Klein fungou.

Ótimo. Temos um monte de sujeira e um dia isso pode vir a ser útil. Mas não haverá esse "um dia" a menos que encontremos a varíola! Onde estão Beria e Kirov agora?

Em um lugar seguro. Beria está sob efeito de fortes sedativos. Kirov está tomando conta dele. O general me pediu que lhe apre­sentasse um pedido: gostaria de levar Beria de volta para Moscou — discretamente — o mais rápido possível.

E claro que podemos providenciar isso — desde que você tenha certeza de que ele não tem mais nada para nos dizer.

Tenho certeza, senhor.

Nesse caso, providenciarei um avião na base Andrews.

Klein levantou-se e andou de um lado para o outro diante da janela panorâmica.

Infelizmente, a captura de Beria não resolveu nosso proble­ma. Você sabe como os suíços são famosos por manter secretas suas operações financeiras. O presidente poderia conseguir convencê-los a quebrar o sigilo do Banco Offenbach sem revelar por que precisamos da cooperação deles, mas é uma possibilidade remota.

Isso não pode ser uma operação de governo para governo, senhor — a voz de Smith era calma. — Não temos o tempo necessário e, como o senhor, creio que os suíços iriam criar empe­cilhos, ficar protelando — fez uma pausa. — Estou com Peter Howell a postos em Veneza.

Klein olhou para Smith e compreendeu sobre o que ele de fato estava falando. Refletiu por um momento avaliando os riscos.

Está bem — disse finalmente. — Mas trate de se assegurar de que ele compreenda que não pode haver repercussões e nada que nos exponha deve vir à tona.

Smith entrou no quarto que se tornara o centro nervoso de comunicações de Klein em Camp David e fez a chamada.

Peter, positivo para Zurique.

Imaginei que isso poderia acontecer — respondeu o inglês. — Tenho uma reserva no vôo do fim da tarde.

Peter, consegui capturar Beria. Ele entregou Weizsel, mas só isso. Preciso saber o nome de quem o estava pagando.

Se Weizsel souber, você saberá. Falo com você de Zuri­que, Jon.

Ótimo. Agora, você por acaso tem um gravador à mão? Tenho uma gravação que poderia ser útil...

Smith voltou até a sala de visita e disse a Klein que Peter Howell estava a caminho de Zurique.

Houve alguma notícia sobre o Lincoln, senhor?

Klein sacudiu a cabeça.

Assim que você ligou dizendo ter apanhado Beria, falei com um contato meu na polícia metropolitana de Washington. Ele incluiu o carro nas listas de carros procurados, fazendo parecer que estava envolvido em um caso verdadeiro de atropelamento e fuga. Até agora nada. E nada também com relação ao motorista — depois de uma pausa, prosseguiu. — Inicialmente, pensei que houvesse uma explicação lógica para a plaqueta da NASA no carro. Agora...

Treloar era da NASA — respondeu Smith. — Por que não poderia ter um carro à espera para apanhá-lo em Dulles? Não esperava ser seguido nem perseguido.

Mas depois o mesmo carro seguiu você, não foi? — olhou atentamente para Smith. — E há mais uma coisa que tem ligação com a NASA. Durante a madrugada, o dr. Dylan Reed recebeu uma visita de um indivíduo que não conseguimos identificar.

Imediatamente Smith encarou Klein com firmeza. Sabia que Klein vivia em um mundo em que os segredos só eram comparti­lhados quando era absolutamente necessário. Agora o chefe do Covert-One admitia ter uma fonte no coração da NASA.

Megan Olson — explicou Smith. — Naquele ponto, com o lançamento tão próximo, não poderia ter sido mais ninguém. O senhor deveria ter me contado, senhor.

Não havia necessidade que você tivesse conhecimento da participação de Megan — respondeu Klein. — Justamente por isso, ela não tem conhecimento da sua.

Por que me contar agora?

Porque ainda não temos nenhuma pista sobre onde está a varíola. Você deve se lembrar de que eu acreditava que estivesse na área de Washington porque foi para lá que Treloar tomou o avião.

Exato. De Londres, ele poderia ter ido para qualquer lugar.

Agora estou achando que talvez haja uma ligação entre Treloar e Reed.

E por isso que Megan está lá, para vigiar Reed? — perguntou Smith.

Por que não me diz se há alguma coisa que você saiba sobre Reed que possa indicar que poderia estar envolvido num caso como este.

Smith sacudiu a cabeça.

Não conheço Reed assim tão bem. Mas a reputação dele no USAMRIID era impecável. Quer que eu volte lá e veja o que posso encontrar?

Não há tempo — respondeu Klein. — Preciso de você para outra coisa. Se não solucionarmos este mistério, haverá tempo de sobra para investigar Reed quando o ônibus espacial voltar para casa.

Klein apanhou dois dossiês.

Estas são as pastas de arquivo com as folhas de serviço dos dois soldados que Howell encontrou em Palermo.

Parecem um bocado finas, senhor — comentou Smith.

Não é mesmo? As folhas de serviço foram "editadas". Datas, locais, missões, a relação dos oficiais superiores — tem muita coisa faltando. E o número de telefone que Nichols entregou não existe.

Como assim, senhor?

Não oficialmente. Jon, não fui adiante com isso porque não sei com que estamos lidando aqui. Mas temos de descobrir onde vai dar esta conexão nas Forças Armadas. Quero que você faça exata­mente o que fez em Houston: que toque na teia para ver que tipo de aranha aparece.

Três horas depois de deixar Veneza, Peter Howell registrou-se no Dolder Grand Hotel de Zurique.

Tem alguma mensagem para mim? — perguntou ao fun­cionário da recepção.

Howell recebeu um grosso envelope de papel pergaminho. Abrindo-o, encontrou uma única folha de papel perfumado com um endereço escrito. Embora a mensagem não estivesse assinada, Howell sabia quem a escrevera — uma ilustre senhora octogenária que estivera envolvida em espionagem desde a Segunda Guerra Mundial.

Como é possível que Weizsel possa se dar ao luxo de jantar no Swan's Way com um salário de bancário? Howell perguntou a si mesmo, e refletiu que poderia ser uma boa idéia descobrir.

Depois de trocar de roupa e vestir um terno formal, Howell tomou um táxi para o coração do centro financeiro da cidade. Eram 20:00 e a área estava deserta, exceto por várias fachadas muito iluminadas. Uma delas tinha um cisne dourado empoleirado sobre a porta.

O interior era exatamente o que Howell esperava: um restau­rante de luxo no porão do que fora uma antiga câmara municipal, com teto de vigas aparentes e mobília antiga e pesada. Os garçons estavam vestidos a rigor, a prataria era maciça e reluzente, e o maitre pareceu perplexo com o fato de que aquele turista pensasse que podia jantar em seu estabelecimento sem fazer reserva.

Sou o convidado de Herr Weizsel — disse-lhe Howell.

Ah, Herr Weizsel... o senhor chegou cedo. A mesa de Herr Weizsel está reservada para as 21:00. Por favor, sente-se no salão, ou no bar, se preferir. Direi a ele onde o senhor está.

Howell seguiu para o salão onde, minutos depois, estava con­versando animadamente com uma bela mulher cujos seios ameaça­vam transbordar pelo decote de seu vestido de noite. Apesar disso, conseguiu avistar o maitre falando com um rapaz e mostrando onde ele estava.

Por acaso devo conhecer o senhor?

Howell olhou por sobre o ombro para um homem alto, magro, com os cabelos penteados para trás e olhos tão escuros que pareciam pretos. Calculava que Herr Weizsel devia estar com seus trinta e poucos anos, que gastava uma pequena fortuna em roupas e cabe­leireiro e olhava arrogantemente para a maior parte do mundo com indisfarçável desprezo.

Peter Howell — apresentou-se.

—Um inglês... O senhor tem negócios com o Banco Offenbach?

Tenho negócios a tratar com o senhor.

Weizsel piscou rapidamente.

Deve haver algum engano. Nunca ouvi falar no senhor.

Mas já ouviu falar em Ivan Beria, não ouviu, meu velho?

Howell estava com a mão no braço de Weizsel, logo acima do cotovelo. A boca de Weizsel se contorceu furiosamente quando Howell fez pressão sobre um nervo.

Há uma mesa simpática e tranqüila ali no canto. Por que não tomamos um drinque?

Howell conduziu o banqueiro até o canto de um banquinho estofado e sentou-se ao lado dele, efetivamente aprisionando Weizsel.

Você não pode fazer isso! — arquejou Weizsel, esfregando o cotovelo. — Nós temos leis...

Não estou aqui para tratar de suas leis — interrompeu Howell. — Estamos interessados em um de seus clientes.

Mas não posso discutir assuntos confidenciais!

Mas o nome Beria lhe disse alguma coisa, não disse? Você administra a conta dele. Não quero o dinheiro. Tudo o que quere­mos é saber quem envia os depósitos.

Weizsel olhou em volta, observando a clientela que aumentava no bar. Esforçou-se para chamar a atenção do maitre.

Não se dê ao trabalho — avisou-lhe Howell. — Dei uma boa gorjeta a ele para não nos incomodar.

Você é um criminoso! — exclamou Weizsel. — Está me mantendo aqui contra minha vontade. Mesmo se eu lhe der o que quer, nunca deixará...

Howell colocou um pequeno gravador sobre a mesa. Conectando um fone de ouvido, o entregou a Weizsel.

Ouça.

O banqueiro fez o que ele mandou. Depois de um momento, seus olhos se arregalaram de incredulidade. Arrancando o fone de ouvido, o atirou sobre a mesa. Peter Howell achou que fora previ­dente da parte de Jon Smith fornecer-lhe aquele trecho específico do interrogatório em que Beria mencionava Weizsel.

Então meu nome é citado. E daí? Quem é esse homem?

— Reconheceu a voz dele, não reconheceu?—indagou Howell, baixinho.

Weizsel se mexeu incomodado.

Talvez.

E talvez se lembre de que pertence a um homem chamado Ivan Beria.

E se me lembrar?

Howell inclinou-se para mais perto.

Beria é um assassino profissional. Trabalha para os russos. Quanto dinheiro russo o senhor administra, Herr Weizsel?

O silêncio do banqueiro foi revelador.

Foi o que imaginei — prosseguiu Howell. — Então deixe-me lhe dizer o que vai acontecer se não cooperar. Vou me assegurar de que os russos saibam que foi muito generoso com relação ao dinheiro deles — de onde vem, como e quando é movimentado, todos aqueles pequenos detalhes que pensavam que estivessem seguros porque, afinal, pagaram-lhe muito generosamente por sua discrição.

Howell fez uma pausa para deixar que o significado de suas palavras fosse compreendido.

Agora — continuou — quando os russos souberem disso, ficarão aborrecidos — compreensivelmente aborrecidos. Exigirão explicações. Não vão tolerar desculpas. E uma vez perdida a con­fiança, meu caro Weizsel, você estará acabado. Já lidou o bastante com russos para saber que eles nunca esquecem, nunca perdoam. Vão querer vingança e suas preciosas leis e polícia suíças não serão impedimento para eles. Estou sendo bastante claro?

Weizsel sentiu a acidez no estômago. O inglês tinha razão, os russos eram bárbaros, chegando com arrogância em Zurique, os­tentando sua riqueza recém-encontrada. E todos os banqueiros queriam uma parte do botim. Não se faziam perguntas. Exigências feitas tornavam-se exigências cumpridas. Os russos reclamavam dos honorários, mas no fim acabavam pagando. Também deixavam muito claro para corretores como Weizsel que eles não podiam fugir, que nunca poderia se esconder, se violassem a confiança. O inglês era o tipo de homem que podia fazer parecer que Weizsel traíra seus clientes. E nada que o banqueiro pudesse dizer ou fazer mudaria a opinião dos russos uma vez que estivessem convencidos de sua traição.

Qual era mesmo aquele nome? — perguntou Weizsel numa voz quase inaudível.

Ivan Beria — respondeu Howell. — Quem manda o dinhei­ro para ele?

 

 

Cinco horas se passaram desde que Dylan Reed se isolara no laboratório espacial. Durante esse tempo, monitorara os movimen­tos da tripulação e as conversas por meio do fone de ouvido. Megan Olson perguntara duas vezes se precisava de ajuda; em outra ocasião tinha querido saber quanto tempo iria demorar. Megan estava impaciente para começar suas experiências.

Ela não estaria tão ansiosa se soubesse o que está acontecendo aqui dentro, pensou Reed, soturno.

De maneira educada, mas com firmeza, respondeu a Megan que ela e os outros teriam de esperar até ele acabar.

Como Reed tinha de monitorar a tripulação, o trabalho estava levando muito mais tempo do que esperava que levasse. Outra distração era a conversa quase que ininterrupta entre a tripulação e o controle da missão. A despeito disso, Reed trabalhou tão rapidamente quanto podia, parando apenas para descansar as mãos, envoltas pelas luvas compridas de borracha presas à caixa, que volta e meia sentia começarem a ficar com câimbras.

A magnitude do que estava fazendo quase o dominava. Olhan­do fixamente pelo microscópio, observava um mundo de varíola nunca visto antes — exceto por seu criador, Karl Bauer. Em seu laboratório do Havaí, o cientista suíço conseguira manipular o ví­rus da varíola e recombiná-lo geneticamente de maneira que tivesse o tamanho triplicado. Depois conseguira abri-lo de maneira que se tornasse receptivo a um maior crescimento. Mas Bauer estava limi­tado pela gravidade da Terra; Reed não tinha essa limitação.

A gênese do trabalho de Bauer podia ser rastreada a uma das primeiras missões do ônibus espacial. Os astronautas haviam des­coberto uma embalagem de sanduíches de dois dias antes, que se esqueceram de comer. A comida estava embalada num saco plástico vedado, flutuando como uma bola de praia. Ao abrir a embalagem, as tripulação pensara que os sanduíches estivessem bons — até que um membro comentara que a única coisa que poderia fazer com que a sacola flutuasse era o fato de que as bactérias na comida tivessem produzido gases suficientes para fazer com que ela inflasse.

Aquela observação improvisada deu aos cientistas provas in­contestáveis de que bactérias crescem mais depressa e tornam-se maiores em um ambiente de microgravidade.

Quando Karl Bauer leu o relatório da NASA sobre o fenômeno, imediatamente concluiu que o que era verdade para bactérias também poderia se aplicar a vírus. A pesquisa inicial demonstrou resultados entusiasmadores, mas, diante das dificuldades impostas pela gravidade, Bauer foi impedido de chegar a uma conclusão definitiva. Anos se passariam antes que encontrasse Reed e uma maneira de conduzir os experimentos finais no espaço.

Agora, o que Reed observava era uma varíola dez vezes maior e mais potente do que qualquer coisa existente na Terra. Suas bolhas de proteínas, que na Terra explodiriam quando alcançassem um determinado tamanho, guardavam sua integridade e capacida­de letal. Como arma de guerra aquela cepa não teria equivalente. Reed estremeceu quando imaginou a rapidez com que populações inteiras seriam dizimadas se aquela variante fosse liberada por meio de uma bomba de carga explosiva de ar. A varíola aceleraria seu ritmo de infecção do trato respiratório para os nodos linfáticos, então se alastraria para o baço, para a medula óssea e outros órgãos linfáticos. Finalmente, acabaria chegando até os pequenos vasos sangüíneos na pele. Com uma cepa normal de varíola, esse processo levaria de cinco a dez dias. Reed estimava que, agora, os períodos de incubação e infecção seriam medidos em minutos. O corpo sim­plesmente não teria chance de reunir quaisquer defesas.

Reed retirou às mãos da caixa de luvas, enxugou-as e permitiu- se um instante para se recompor. Então ativou o microfone junto à garganta.

Alô, companheiros. Acho que acabei por aqui. Já está na hora do jantar?

Íamos mesmo chamar você — respondeu Stone. — Todo mundo pediu bife com ovos.

Reed conseguiu dar uma risada.

Esperem mais um pouco — fez uma pausa. — Gostaria que todo mundo fosse para a cantina de modo que eu possa recapitular a tabela com a ordem das experiências.

Entendido. Vamos guardar um pouco daqueles bifes para você. Até já.

Reed fechou os olhos e se obrigou a manter-se calmo. Desligou o microfone, mas não os fones de ouvido. Não queria ouvir os sons que a tripulação emitiria a seguir. Não seriam nada humanos. Mas, para medir a rapidez com que a varíola agiria, não tinha escolha, exceto ficar na escuta.

Voltando para o Biorack, mais uma vez enfiou as luvas de borracha e cuidadosamente encheu o pequeno tubo com a varíola recombinada. Vedando o tubo, retirou-o da caixa de luva por meio de uma pequena câmara de vácuo e o colocou no congelador.

Usando os apoios para pés, recuou até a parede do fundo do laboratório e abriu um armário. Dentro dele havia uma unidade de mobilidade extraveicular, ou UME, o traje usado para fazer cami­nhadas no espaço. Depois de enfiar-se nele, Reed estendia a mão para pegar o capacete quando viu seu reflexo no visor. Hesitou enquanto os rostos de seus companheiros de tripulação flutuavam na superfície de Plexiglas, pessoas com quem havia trabalhado e treinado durante meses, algumas até anos, pessoas de quem real­mente gostava. Mas não o suficiente para demonstrar compaixão ou misericórdia para com elas.

Naquele reflexo, Reed também viu os rostos de seus dois irmãos, mortos durante um ataque terrorista à embaixada america­na em Nairóbi, e o de sua irmã, uma voluntária do Corpo da Paz, seqüestrada, torturada e finalmente assassinada no Sudão. O que Reed estava fazendo não era em nome da glória maior da ciência, nem, certamente, por reconhecimento ou aclamação públicos. Aquela nova cepa nunca veria a luz do dia — a menos que as circunstâncias ditassem que fosse usada. O general Richardson e Anthony Price eram homens do tipo que não toleravam perdas como as que Reed sofrerá. Para eles, retribuição não era apenas uns poucos mísseis teleguiados lançados contra algumas tendas ou bunkers, mas uma devastação rápida e total por um Exército invisí­vel e impossível de ser detido. Ao ajudar a criar esse Exército, Reed acreditava estar pondo uma lápide sobre as sepulturas de seus familiares, cumprindo uma promessa feita havia muito tempo de que seus sacrifícios nunca seriam esquecidos.

Depois de pôr o capacete e acionar a vedação, Reed voltou caminhando devagar para o Biorack. Conectou seu tubo de forne­cimento de ar a uma fonte independente da que os membros da tripulação usavam quando saíam para o espaço. Calma e deliberadamente, quebrou a vedação da caixa de luvas. Segundos depois, as partículas secas de varíola no frasco de cultura começaram a formar esporos tão minúsculos quanto partículas de poeira. Inexoravel­mente acabaram se encaminhando para as vedações destruídas da caixa de luvas e saindo. Reed observou com fascinação enquanto os esporos pareciam ficar parados ali; foi dominado por um pensa­mento irracional de que eles poderiam atacá-lo. Em vez disso, o flu­xo de circulação de ar os apanhou e rodopiaram como um minús­culo cometa e entraram no tubo de conexão ligando o laboratório espacial ao compartimento principal do satélite artificial.

 

— Você também vem, Megan? — perguntou Carter quando os dois concluíram o relatório para o controle de missão.

Manobrando para ultrapassar os módulos dos beliches, Megan respondeu por sobre o ombro:

Vou. Estou morta de fome.

Naquele instante, os dois tripulantes ouviram um som agudo em seus fones de ouvido.

Discovery, aqui é o controle de missão. Pelo que ouvimos vocês vão fazer uma pausa para jantar?

Afirmativo, controle de missão — respondeu Carter.

— Discovery, nossos instrumentos mostram uma possível per­da de pressão na câmara de vácuo no compartimento inferior. Ficaríamos muito gratos se alguém pudesse verificar.

A voz de Stone se fez ouvir nos fones:

Megan, Carter, vocês estão mais perto.

Carter olhou para Megan com olhos suplicantes, como um cachorrinho.

Estou realmente com fome!

Enfiando a mão num dos beliches, Megan puxou um baralho que estava debaixo de um travesseiro preso por uma faixa. Rasgou a embalagem de celofane, embaralhou as cartas com cuidado para que nenhuma escorregasse e ofereceu o baralho a Carter.

Corte. A carta de maior valor vence.

Carter revirou os olhos, estendeu a mão para o baralho e puxou um dez. Megan tirou um sete.

Carter deu uma gargalhada e tomou impulso seguindo em direção à cantina.

Guardo uns biscoitos Oreos para você! — gritou.

Tá legal, obrigada.

Tudo bem você se encarregar disso, Megan? — perguntou Stone.

Ela suspirou.

Tudo bem. Apenas trate de cuidar para que Carter não devore todas as costeletas de vitela ou lá o que for.

Entendido. Vejo você daqui a pouco.

Megan sabia que aquele "daqui a pouco" significava no míni­mo uma hora. Checar uma câmara de vácuo significava vestir uma UME.

Agarrando os corrimãos, desceu a escada para o compartimento inferior. Encaixada atrás da carga e do equipamento que o ônibus espacial transportava ficava a câmara de vácuo.

A luz vermelha sobre a porta estava piscando, indicando um possível defeito.

Uma droga de um mau contato, deve ser só isso — resmun­gou Megan e seguiu adiante.

 

— Vejam só isso.

Carter abriu uma embalagem de suco de laranja, levantou a embalagem e apertou, esguichando parte do líquido. Assumindo uma forma semelhante à de uma esfera, o suco flutuou no ar diante de Carter, que a perfurou com um canudo e começou a sugar. Em segundos, o sólido que era líquido desapareceu.

Muito bonito — comentou Stone. — Você pode vir fazer truques de mágica no próximo aniversário de meu filho.

Ai, ai, ai, o molho escapuliu — exclamou Randall Wallace.

Stone se virou e descobriu que, enquanto estivera falando com Carter, o molho do coquetel de camarão tinha perdido contato com sua colher. Pegou uma tortilha e fez um movimento de varredura para apanhá-lo.

— Por que será que Dylan está demorando tanto? — perguntou Carter, enquanto mastigava uma boa colherada de galinha com molho, que estava comendo da própria embalagem.

Dylan, está me ouvindo? — perguntou Stone no microfone.

Não houve resposta.

Provavelmente está no banheiro — disse Carter. — Ele tem paixão por churrasco com feijão. É capaz de ter contrabandeado uma porção para bordo.

Feijão, bem como brócolis e cogumelos, nunca fazia parte dos cardápios do ônibus espacial. O excesso de gases era muito mais doloroso no espaço e os médicos que cuidavam dos vôos ainda não tinham certeza de como gases reagiam em estado de microgravidade.

Carter tossiu.

Você está comendo depressa demais — censurou Stone.

A resposta de Carter se perdeu numa crise de tosse seca e intermitente.

Hei, talvez ele tenha se engasgado com alguma coisa — comentou Wallace.

Enquanto Stone se aproximava dele, Carter, de repente, agar­rou o piloto pelos ombros. Um outro acesso de tosse o dominou e ele vomitou sangue no ar à sua frente.

Mas que diabo! — gritou Stone.

Suas palavras se interromperam enquanto ele apertava o peito e começava a enfiar as unhas no macacão. Seu corpo parecia estar em fogo. Quando passou a mão no rosto, viu que havia sangue nas costas de sua mão.

Karol e Wallace observaram com horror enquanto seus com­panheiros de tripulação perdiam os sentidos, os braços e as mãos se debatendo como que numa convulsão.

Corra para a cabine de pilotagem e isole-se lá dentro! — rugiu Karol.

Mas...

Vá! — enquanto empurrava Wallace para a escada, uma voz do controle de missão falou em seu fone de ouvido.

Discovery, vocês estão com algum problema?

Estamos sim! — gritou Karol. — Alguma coisa está destru­indo Carter e Stone...

O corpo de Karol sofreu um espasmo.

Ah, meu Deus! — enquanto se dobrava para a frente, um rastro de sangue escorreu de seus olhos e narinas e saiu girando no ar. De algum lugar muito longe, ouviu a voz aflita do controle de missão.

Discovery, estão ouvindo?

Uma resposta se formou em sua mente, mas antes que pudesse dizer as palavras, uma névoa vermelha desceu sobre seus olhos.

 

Enquanto trabalhava na câmara de vácuo no compartimento infe­rior, Megan ouviu os gritos e gemidos. Apertou o botão de transmis­são em seu UME.

Frank? Carter? Wallace?

Agora tudo o que ouvia era estática. Seu equipamento de comunicação estava com defeito.

Deixando de lado as fiações que estivera verificando, Megan estendeu a mão para a alavanca que abria a câmara de vácuo. Para seu horror, a alavanca não se moveu.

 

No laboratório espacial, Dylan Reed apertou o cronômetro que segurava na mão enluvada. A varíola mutante estava funcionando com uma rapidez assustadora. Sabia que devia medir exatamente com que rapidez estava infectando e destruindo a tripulação. Bauer fora inflexível com relação ao fato de que testes em cobaias humanas eram a única maneira de se avaliar a capacidade letal da nova varíola. Também era uma maneira de se livrar de quaisquer teste­munhas em potencial. Mas fazer isso teria significado olhar para o cronômetro. Dylan Reed teria de abrir os olhos, algo que não ousava fazer porque então, certamente, veria os rostos atrás dos gritos.

A um mundo de distância, o diretor da missão Harry Landon estava em um cubículo no fundo do corredor do controle de missão, pondo o sono em dia, algo de que muito precisava. Veterano de vinte anos da NASA, dez dos quais passados na panela de pressão do Cabo, Landon aprendera a descansar sempre que se apresentava uma oportunidade. Também era capaz de despertar imediatamente, alerta e pronto.

Landon percebeu a mão antes mesmo de senti-la em seu ombro. Virando-se, deu de cara com o rosto de um jovem técnico.

O que houve? — perguntou.

Há um problema a bordo do Discovery — respondeu o técnico nervosamente.

Landon levantou-se da cama de campanha, apanhou os óculos que deixara sobre um gaveteiro e dirigiu-se para a porta.

Mecânico? De vôo? Que tipo de problema?

Humano.

Landon não reduziu o passo enquanto gritava por sobre o ombro.

Que está querendo dizer com "humano"?

É a tripulação — gaguejou o técnico. — Há alguma coisa errada.

Alguma coisa estava errada — terrivelmente errada. Landon percebeu isso no instante em que entrou na sala de controle de missão. Todos os técnicos estavam debruçados sobre seus consoles, falando angustiadamente com o Discovery. Pelos fragmentos de conversa que ouviu à medida que passava, Landon se deu conta de que ninguém a bordo do satélite artificial estava respondendo.

Assumindo seu posto de controle, ordenou:

Mandem-me imagem!

Não podemos senhor, senhor — alguém gritou de volta. — A geração de sinal de vídeo deve ter caído na ponta deles.

Então quero áudio!

Landon enfiou o fone de ouvido e tentou manter a voz calma.

— Discovery, aqui é o diretor da missão. Por favor, respondam — o ruído de estática crepitou em seu ouvido. — Discovery, vou repetir, aqui é o diretor da missão...

Controle de missão, aqui é Discovery.

A voz estrangulada fez o sangue de Landon gelar.

Wallace, é você?

Sim, senhor.

O que está havendo por aí, meu filho?

Landon teve de esperar ouvindo mais estática. Quando Wallace finalmente falou, parecia estar sufocando.

Wallace, qual é o problema?

Controle... controle, está copiando?

Wallace, apenas diga-nos...

Estamos todos morrendo...

 

 

Durante os anos desbravadores das viagens do ônibus espacial, no princípio da década de 1980, foram criados procedimentos para se lidar com infortúnios inevitáveis, defeitos de funcionamento ou tragédias. Enumerados no assim chamado Livro Preto, esses pro­cedimentos foram usados pela primeira vez em janeiro de 1986, depois do desastre que destruiu o Challenger 51-L.

Harry Landon esteve presente no controle de missão naquele dia. Ainda se lembrava da expressão de horror do diretor da mis­são quando o ônibus espacial explodiu 73 segundos após o lan­çamento. Então observara enquanto o diretor, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, pegara o livro e começara a dar os telefone­mas necessários.

Os dedos de Landon tremeram enquanto procurava a chave para destrancar a gaveta que rezara para nunca ter de abrir. O Livro era um volume fino de três pastas encadernadas. Landon abriu a primeira página, estendeu a mão para o telefone, e hesitou.

Levantando-se, plugou o fone de ouvido no sistema de intercomunicação que o conectava com todos os fones usados pela equipe.

— Senhoras e senhores — disse gravemente. — Gostaria de ter sua atenção por alguns momentos... Muito obrigado. Todos vocês ouviram a última comunicação do Discovery. Se estiver correta — e não temos certeza de que esteja — então estamos bem no meio de uma verdadeira catástrofe. O que temos de melhor a fazer por nossos companheiros que estão lá em cima é seguirmos os procedimentos, estando prontos para atender a qualquer solicitação de assistência. Continuem a monitorar todos os aspectos do vôo e das condições do ônibus espacial. Se houver algum desvio ou qualquer coisa de incomum — por mais insignificante que seja —, quero que me dêem conhecimento. Quero que a equipe encarregada de coletar os dados faça uma revisão de todas as fitas, todas as conversas, todas as transmissões. Seja lá o que for, o que aconteceu lá em cima, aconteceu rapidamente. Mas deve ter havido um gatilho. Quero saber o que foi. — Landon fez uma pausa.

Sei o que vocês devem estar pensando e pelo que devem estar passando. Sei bem que o que peço é difícil. Mas não podemos perder a esperança de que possa haver sobreviventes. É para eles que estamos trabalhando. Sejam eles quem forem, queremos trazê-los de volta em segurança. Nada mais importa.

Olhou em volta.

Obrigado a todos.

O silêncio que se apoderara do salão começou a se desfazer. Landon ficou aliviado ao ver que as expressões deprimidas eram substituídas por expressões decididas e cheias de determinação. Sempre acreditara que as pessoas com quem trabalhava eram as melhores; agora estavam provando que tinha razão.

A primeira chamada de Landon foi para Rich Warfield, o conselheiro científico do presidente. Médico por formação, Warfield estava familiarizado com o programa do ônibus espacial. Imediata­mente compreendeu a magnitude do infortúnio.

Que posso dizer ao presidente, Harry? — perguntou. — ele vai querer saber mesmo os piores detalhes, sem conversa fiada.

OK — respondeu Landon. — Primeiro, não houve mais comunicações com o Discovery desde a última transmissão de Wallace. Nessa transmissão, ele afirmava que a tripulação estava morrendo ou morta. Vou mandar alguém tocar a fita com a gravação original para você, caso o presidente queira ouvi-la. Quanto ao ônibus espacial, parece estar estável. Não houve nenhuma alteração na rota, na velocidade nem na trajetória de vôo. Todos os sistemas a bordo estão operando bem.

Diga-me qual é sua opinião sobre o que acha que pode ter acontecido — pediu Warfield.

Todas as leituras de suprimento de ar estão normais — respondeu Landon. — Isso significa que não há contaminação por agentes tóxicos. Não há fumaça, nem fogo, nem gases.

E intoxicação alimentar? — sugeriu Warfield. — Poderia ser alguma coisa simples assim?

A tripulação deveria estar fazendo a primeira refeição. Mas, mesmo que toda a comida estivesse contaminada, duvido de que o veneno pudesse ter se disseminado tão rapidamente e com tanta virulência.

E a carga especial?

Este vôo não tinha nenhuma missão secreta. O laboratório espacial levava a coleção habitual de animais: sapos, insetos e camundongos para serem usados nas experiências...

Mas o quê, Harry?

Landon verificou mais uma vez a tabela com a lista das expe­riências previstas.

Estava previsto que Megan Olson começaria a trabalhar com a 'doença dos legionários'. Esta era a única bactéria a bordo. Ela nem chegou a começar.

Seria possível que as bactérias tivessem escapado de alguma forma provocando a contaminação?

As probabilidades são de dez mil para uma que isso tenha acontecido. Temos todo tipo de sensores para detectar vazamentos no Biorack. Mas digamos que tenha acontecido. A 'doença dos legionários' não age com essa rapidez. Seja lá o que for que matou a tripulação, o fez numa questão de minutos.

Por um momento houve um silêncio.

Sei que não é minha área de especialização — disse Warfield finalmente. — Mas se você deixar de lado as outras possibilidades, ainda me parece que algum tipo de vírus ou bactéria escapou.

Extra-oficialmente, sinto-me tentado a concordar com você — respondeu Landon. — Mas não iria pôr esta idéia na cabeça do presidente. Agora, neste momento, simplesmente não sabemos.

O presidente vai fazer perguntas — disse Warfield em tom cansado. — Acho que você sabe qual vai ser a primeira.

Landon fechou os olhos.

O procedimento é o seguinte, Rich. Durante o lançamento, o oficial responsável pelo limite de segurança rastreia o vôo. O dedo dele nunca está longe do botão de destruição. Se alguma coisa sai errada, bem... Você se lembra do Challenger? Depois da explosão do tanque externo e depois que o ônibus espacial explodiu, os lançadores espaciais a combustível sólido continuaram voando. O oficial responsável pelo limite de segurança os derrubou. O ônibus espa­cial tem um dispositivo de auto-destruição que pode ser ativado por nós quando estiver a caminho de volta para a Terra. Nesse ponto, ainda estará suficientemente distante de modo que, se tivéssemos de fazê-lo, poderíamos explodi-lo sem nenhum perigo para a popu­lação aqui embaixo.

Landon fez uma pausa.

Rich, quando você disser isso ao presidente, recorde-o de que é ele quem tem que dar esta ordem.

— Está bem, Harry. Deixe-me passar as informações que temos até o momento. Não fique surpreendido se ele ligar pessoalmente para você.

No minuto em que eu souber de mais alguma coisa, avisarei a você — respondeu Landon.

Harry, uma última pergunta: podemos trazer o ônibus espa­cial de volta e fazê-lo aterrissar com piloto automático?

Que diabo, podemos fazer aterrissar até um 747 com piloto automático. A pergunta é: será que vamos querer fazer isso?

A chamada seguinte de Landon foi para o oficial responsável pelo limite de segurança, que já fora informado da emergência. Landon deu-lhe as explicações de que dispunha, então acrescentou que o tempo de duração original daquela missão fora previsto para oito dias.

Evidentemente, não é mais o caso — observou. — A questão não é sobre se traremos o ônibus espacial de volta, mas quando.

E quando estiver dentro do limite de segurança? — pergun­tou o oficial em voz baixa.

Veremos quando chegar a hora.

Landon seguiu adiante com a lista, que incluiu telefonemas para o general Richardson e para Anthony Price. Além de ser chefe do Estado-Maior da Força Aérea, Richardson também era co-diretor da Divisão de Segurança, responsável pela identificação e monitoração de qualquer coisa que estivesse se aproximando da Terra ou em órbita ao seu redor. Na qualidade de chefe da Agência Nacional de Segurança, Price estava na lista porque o ônibus espacial às vezes fazia missões secretas patrocinadas pela NSA.

A cada vez que chegava ao fim de uma chamada, Landon olhava em volta, na esperança de que alguém de sua equipe tivesse alguma notícia para lhe dar. Reconhecia que aquilo era um gesto de homem desesperado; diante da situação em que se encontrava, qualquer conversa que porventura tivesse seria interrompida se o contato com o ônibus espacial fosse restabelecido.

Durante as duas horas seguintes, Landon continuou traba­lhando nos telefones. Sentia-se grato pelo fato de que, pelo menos por enquanto, não teria de lidar com a imprensa. Muita gente na NASA se ressentia do fato de que atualmente os vôos do ônibus espacial eram considerados tão corriqueiros que não mereciam cobertura. Durante o fatídico lançamento do Challenger, a rede CNN fizera apenas um burocrático registro. Agora, somente as câmeras da NASA tinham gravado o lançamento do Discovery.

Landon, circuito quatro!

Landon nem se deu ao trabalho de ver quem estava falando. Encontrou o canal e ouviu uma voz fraca em meio aos estalidos da estática.

Controle de missão, aqui é o Discovery. Estão me ouvindo?

 

Dylan Reed ainda estava no laboratório espacial, protegido pela UME, as botas enfiadas nas alças do piso que o mantinham posicionado diante do painel auxiliar de comunicações. As várias horas de silêncio deliberado lhe pareceram uma eternidade. Desli­gara o rádio de modo a não ter que ouvir as vozes desesperadas vindo do controle de missão. Agora, para passar à fase seguinte da opera­ção, restabelecera o contato.

Controle de missão, aqui é Discovery. Estão na escuta?

Discovery, aqui é o diretor da missão. Qual é seu status?

Harry, é você?

Dylan?

Sou eu. Graças a Deus, Harry! Não pensei que fosse voltar a ouvir uma voz humana.

Dylan, o que aconteceu aí em cima?

Não sei. Estou no laboratório. Uma das UMEs estava sinali­zando defeito. Eu a vesti para testá-la. Então ouvi... meu Deus, Harry, parecia que eles estavam sendo estrangulados. E o equipa­mento de comunicações estava com defeito...

— Dylan, agüente firme, OK? Tente se manter calmo. Há mais alguém no laboratório?

Não.

E você não tem comunicação com o resto da tripulação?

Não, Harry, escute. O quê...?

Não sabemos, Dylan. Em poucas palavras, isto é tudo. Recebemos uma mensagem truncada de Wallace, mas ele não pôde nos dizer o que aconteceu. Só pode ter sido alguma coisa rápida e extremamente letal. Estamos achando que houve contaminação por algum vírus ou bactéria. Vocês têm alguma coisa desse tipo a bordo?

Para falar a verdade, o que tenho é um ônibus espacial que é uma enorme "zona quente".

Mas o que ele disse foi:

Jesus, Harry! De que está falando? Examine o relatório. O pior que temos a bordo é a 'doença dos legionários' e ainda está no biofreezer.

Dylan, você tem de fazer isso — Landon falava em tom moderado. — Vai ter de voltar ao compartimento central e ver... e nos dizer o que vê.

Harry!

Dylan, nós precisamos saber.

E se todos estiverem mortos, Harry? O que devo fazer por eles?

Nada, meu filho. Não há nada que você possa fazer. Mas vamos trazer você de volta para casa. Ninguém deixará seu posto até você estar de volta em terra, são e salvo.

Landon esteve à beira de acrescentar "prometo", mas não permitiu que as palavras chegassem a seus lábios.

Está bem, Harry. Vou checar o ônibus espacial. Quero manter o circuito de comunicação aberto.

Precisamos que você cheque o circuito de vídeo. Estamos sem imagem.

É porque dei um jeito nas câmeras.

Entendido. Estou saindo do laboratório agora.

O volumoso traje espacial tornava seus movimentos desajeita­dos, mas lentamente Reed flutuou pelo túnel de comunicação, tomando cuidado para não prender nenhuma parte do traje. Mes­mo um minúsculo rasgo seria fatal.

A cena no compartimento central lhe deu ânsias de vômito. Stone, Karol e Carter tinham sido reduzidos a cadáveres inchados cobertos de pústulas, flutuando livremente ou enganchados em alguma peça de equipamento por um braço ou uma perna. Tentan­do não olhar, Reed manobrou para contorná-los até chegar à escada. Quando subiu à cabine de pilotagem, encontrou Wallace preso pelos cintos no assento do comandante.

Controle de missão, aqui é Discovery.

Landon respondeu imediatamente.

Prossiga, Dylan.

Encontrei todo mundo, menos Megan. Deus do céu, não posso lhe dizer...

Precisamos saber qual é o aspecto deles, Dylan.

Os corpos estão inchados, com pústulas, sangue... nunca vi nada semelhante.

Há algum sinal do agente de contágio?

Negativo. Mas não vou tirar a UME.

— É claro que não. Pode nos dizer o que eles estavam comendo?

Estou na cabine de pilotagem, com Wallace. Deixe-me descer.

Depois de alguns minutos, Reed voltou a fazer contato. Na verdade, não saíra do lugar.

O que foi trazido para bordo, ao que parece. Galinha, manteiga de amendoim, camarão...

— OK, estamos checando a origem da comida agora mesmo. Se estava contaminada, o agente pode ter sofrido uma mutação em estado de microgravidade — Landon fez uma pausa. — Você precisa encontrar Megan.

Eu sei. Vou checar o compartimento central de novo, o banheiro... Se não estiver lá, estará no compartimento de carga.

Entre em contato comigo assim que a encontrar. Diretor de missão encerrando contato.

 

Graças a Deus!

Embora seu botão de transmissão ainda estivesse com defeito, Megan ouvira cada palavra da conversa entre Reed e Landon. Deixou-se cair para a frente, o capacete batendo contra a porta da câmara de vácuo. Centenas de perguntas surgiram em sua mente: Como era possível que o resto da tripulação estivesse morta? O que poderia ter-lhes acontecido tão rapidamente? Seria alguma coisa que tinham trazido para bordo? Menos de uma hora passara desde que ela vira Carter e os outros pela última vez. Agora esta­vam mortos?

Megan se obrigou a se acalmar. Olhou para o ninho de fios no painel aberto sobre a porta. Evidentemente ocorrera algum tipo de erro na conexão dos fios. Seguindo as instruções escritas no painel da porta, ela tentara inverter algumas conexões, mas até aquele momento não encontrara a que estava errada.

Relaxe, disse a si mesma. Dylan estará aqui embaixo dentro de poucos minutos. Quando não me encontrar lá fora, vai se dar conta de que estou aqui. Ele abrirá a porta pelo lado de fora.

Megan procurou se confortar com aquele pensamento. Não era dada a claustrofobia, mas começava a sentir as paredes da câmara de vácuo — que não era maior que um par de armários de vassouras postos lado a lado — fechando-se a seu redor.

Se ao menos a droga do microfone funcionasse! Ser ouvida por um outro ser humano seria a melhor coisa do mundo.

Então conserte o microfone, disse a si mesma.

A voz de Dylan soou em seu fone de ouvido:

Diretor de missão, estou no compartimento inferior. Por enquanto não há sinal de Megan. Vou checar os compartimentos de carga.

Embora soubesse que o som ficava amortecido no espaço, Megan levantou as duas mãos e começou a socar a porta. Talvez, de alguma forma, Dylan a ouvisse.

Diretor de missão, já verifiquei a maior parte do comparti­mento de carga. Até agora nada.

A voz de Landon soou no fone de Megan:

Sugiro que você examine a câmara de vácuo.

Isso, examine a câmara de vácuo!

Entendido, diretor de missão. Vou cortar as comunicações até chegar a câmara de vácuo.

Assim que Reed se aproximou da porta, viu o rosto de Megan atrás da vigia. A alegria e o alívio que viu em seus olhos o trespas­saram. Ligou o intercomunicador em seu equipamento de comuni­cações.

Megan, pode me ouvir?

Ele a viu assentir.

Não estou ouvindo você. Seu transmissor está arriado?

Megan assentiu, depois flutuou para cima e apontou a unidade de comunicações embutida no peito de sua UME. Fez o sinal uni­versal com o polegar virado para baixo e voltou para junto da vigia. Reed olhou para ela.

  1. Compreendo. Não que faça alguma diferença.

Megan não teve certeza de tê-lo ouvido bem e encolheu os ombros num gesto de incompreensão.

Você não compreende — disse Reed. — É claro que não. Como poderia? Megan... — ele hesitou. — Não posso ajudar você a sair.

Os olhos dela se arregalaram de terror e incredulidade.

— Deixe-me dizer a você o que está aqui fora, Megan. Um vírus. De um tipo que o mundo nunca viu antes, porque não é deste mundo. Ele nasceu na Terra, mas adquiriu vida aqui, no laboratório espacial. Era nisso que eu estava trabalhando.

Ela estava sacudindo a cabeça, os lábios se movendo freneticamente em palavras sem som.

Você deveria tentar se manter calma — continuou Reed. — Ouviu quando falei com o controle de missão. Eles sabem que todo mundo está morto. Não têm nenhuma idéia do que aconteceu aqui. E nunca terão.

Reed umedeceu os lábios.

O Discovery tornou-se uma espécie de Marie Celeste, um navio fantasma condenado. É claro, há algumas diferenças. Eu ainda estou vivo e você também — por enquanto. A NASA pode e vai fazer o ônibus espacial aterrissar por meio do piloto automá­tico. Enquanto eu estiver vivo, eles não vão apertar o botão de auto-destruição.

Reed deixou que um instante se passasse.

Não precisarão fazer isso.

Megan sentiu as lágrimas ardentes escorrerem em suas faces. Tinha uma vaga consciência de estar gritando, mas aquilo não teve nenhum impacto sobre Reed. A expressão dele se manteve fria e distante como gelo ártico.

Gostaria que fosse outra pessoa e não você, Megan — continuou ele. — Realmente gostaria. Mas Treloar teve de ser eliminado e você era a substituta dele. Agora, não espero que você compreenda. Mas, como fui eu que trouxe você para o programa e lhe dei esta oportunidade, sinto que lhe devo uma explicação. Sabe, precisamos manter nosso arsenal de armas químicas e biológicas forte. Todos aqueles tratados que assinamos — você acha que países como o Iraque, a Líbia ou a Coréia do Norte lhes dão alguma importância? Claro que não. Estão muito ocupados aperfeiçoando suas próprias armas. Bem, agora teremos uma coisa que vai preva­lecer sobre qualquer coisa que tenham criado. E seremos os únicos a tê-la.

Continuou em seu discurso algo delirante.

A amostra que fiz? A quantidade que cabe num dedal é suficiente para erradicar qualquer país que escolhermos. Sei que essa não é uma medida muito científica, mas você compreende o que estou querendo dizer. Se não acredita em mim, veja só o que aconteceu aqui, com que rapidez a varíola entrou em ação, as conseqüências...

Nunca em sua vida Megan sentira-se tão impotente. A voz de Reed zumbia continuamente em seus ouvidos como algo saído de um pesadelo. Não conseguia acreditar que aquelas palavras estives­sem sendo ditas por um homem que pensara conhecer como um co­lega, um mentor, alguém em quem havia confiado implicitamente.

Ele está maluco. Isto é tudo que preciso saber. E o que preciso fazer é sair daqui!

Quando Reed voltou a falar, foi como se tivesse lido seus pensamentos.

Você fez a maior parte de meu trabalho para mim, Megan, quando se trancou aí dentro. O fogo fará o resto. Eu não havia mencionado isso? Bem, vai haver uma confusão enorme e terrível quando esta coisa aterrissar. A única coisa que o controle de missão terá em mente será me tirar daqui em segurança. Depois disso, se alguma coisa explodir, bem... — ele deu de ombros. — Você já entrou para a História, Megan. Eu nunca me esquecerei de você — nem dos outros.

Os olhos dele, em momento algum, deixaram os dela enquanto ele tocou na botoneira de sua unidade de comunicações.

Diretor de missão, aqui fala Reed. Está me ouvindo?

Ela ouviu a voz de Landon.

Na escuta, Dylan.

Tenho uma notícia. Eu... eu encontrei Megan. Ela está morta... como os outros.

Houve um momento de silêncio do outro lado.

Entendido, Dylan. Sinto muitíssimo. Ouça, estamos to­mando as providências para trazer você de volta para casa. Pode ir até a cabine de pilotagem?

Afirmativo.

Não precisaremos de nenhuma ajuda, mas se alguma coisa sair errada...

Entendido. Harry?

Sim?

Você abriu o Livro Preto, certo?

Abri, Dylan.

Há um nome que não está nele. O dr. Karl Bauer. Ele tem mais conhecimento sobre vírus que qualquer outra pessoa viva. Creio que talvez fosse conveniente consultá-lo sobre a quarentena.

— Entendido. Vamos trazer Bauer para o local de aterrissagem. Estamos testando os modelos de pouso de emergência agora. Assim que tivermos uma trajetória definida, o avisaremos.

Reed sorriu ligeiramente e, olhando bem nos olhos de Megan, disse:

Entendido, diretor de missão. Discovery, desligando.

 

 

O helicóptero que transportava Jon Smith de Camp David pousou na área de aviões de carga da Base Aérea Andrews. Smith saltou para o chão e correu pela pista até o veículo utilitário branco estacionado ao lado de um elegante jato executivo.

Alô, Jon — disse o general-de-divisão Kirov, observando os ordenanças tirarem a maca da camionete.

Correu tudo conforme o planejado? — perguntou Smith.

Correu — respondeu Kirov. — Estes homens — indicou os ordenanças — chegaram à sua casa exatamente no horário. Foram muito rápidos, muito eficientes.

E ele está bem?

Os tranqüilizantes funcionaram perfeitamente — respon­deu Kirov.

Smith assentiu.

Enquanto a maca era levada para dentro do jato, Kirov virou- se para Smith.

Sou muito grato a você — e ao sr. Klein — por terem permitido que eu ajudasse. Gostaria apenas de poder fazer mais.

Smith apertou a mão do russo.

Eu ficarei em contato, general. Creio que arrancamos de Beria tudo que podíamos, mas se ele disser mais alguma coisa interessante...

Você será o primeiro a saber — assegurou-lhe Kirov. — Adeus, Jon Smith. Espero que voltemos a nos encontrar, em cir­cunstâncias mais agradáveis.

Smith esperou até que Kirov embarcasse e que a porta fosse fechada. Quando o jato afinal começou a acelerar na pista, ele já estava dentro do carro, recebendo autorização para passar pelo posto de controle de segurança do perímetro. Enquanto seguia em direção à auto-estrada, seus pensamentos se voltaram do que já fora feito para o que ainda estava por fazer.

 

Em Moscou era o meio da noite, mas as luzes ainda estavam acesas nos escritórios da Bay Digital Corporation.

Na sala de conferências, Randi Russell tomava sua quarta xícara de café, observando Sasha Rublev enquanto ele se esforçava para arrancar os segredos do laptop que Jon Smith lhe entregara. Rodeado por equipamentos e maquinaria de computador conectados ao laptop, Sasha digitara em seu teclado durante mais de sete horas, volta e meia bebendo uma Coca-Cola para manter seu nível de energia. Em três ocasiões Randi sugerira que parassem por aquela noite, mas a cada vez Sasha abanava a mão ignorando suas palavras.

Estou quase conseguindo — resmungava. — Só mais alguns minutos.

Mas, naquele momento, Randi chegou à conclusão de que Sasha não media o tempo como os simples mortais.

Acabou de tomar o café, olhou fixamente para a borra, depois disse:

OK, agora chega. Dessa vez estou falando sério.

Sasha levantou uma das mãos e continuou digitando com a outra.

Espere só que...

Ele apertou uma tecla triunfan tem ente e se recostou na cadeira.

Veja... — disse orgulhoso.

Randi não conseguiu acreditar no que tinha diante dos olhos. A tela do grande monitor, que estivera cheia de símbolos incompre­ensíveis a noite inteira, de repente se metamorfoseara em uma sucessão de mensagens de correio eletrônico decodificadas.

Sasha, como... ? — Randi sacudiu a cabeça. — Deixe para lá. Eu nunca seria capaz de compreender.

Sasha sorriu radiante para ela.

A pessoa a quem este computador pertence usava o CARNIVORE, o mais recente programa criptográfico do FBI — olhou para ela com ar matreiro. — Pensei que ninguém fora da América tivesse isso.

— Eu também — murmurou Randi.

Usando o mouse, ela escaneou as mensagens, sem conseguir acreditar no que estava lendo.

Que diabo é o Pacto Cassandra?

 

Ao chegar em Bethesda, Jon Smith preparou uma refeição ligeira e levou a bandeja para seu estúdio. O leve odor de drogas e do medo de um homem derrotado ainda pairavam na casa. Smith abriu a janela e sentou-se examinando os arquivos que Nathaniel Klein lhe dera.

Travis Nichols e Patrick Drake... Ambos sargentos do Exército dos Estados Unidos. Ambos da mesma cidadezinha na região central do Texas onde homens jovens iam trabalhar nos campos de extração de petróleo ou entravam para as Forças Armadas. Vetera­nos com experiência de combate, ambos estiveram em campo de batalha na Somália, no Golfo e, mais recentemente, na Nigéria.

O interesse de Smith se aguçou quando leu os relatórios de aptidão física da Escola Superior de Guerra de Fort Benning, na Geórgia. Nichols e Drake tinham se formado como primeiro e segundo da turma, homens frios e duros, cujas habilidades e forças aguçadas foram ainda mais afiadas por instrutores nas mais terrí­veis artes de combate.

E então eles desaparecem...

Agora, Smith entendia o que Klein quisera dizer quando havia mencionado lapsos. Em ambas as pastas de arquivo, ao longo dos últimos cinco anos havia períodos de meses em que o paradeiro dos soldados simplesmente não podia ser determinado. Não havia quaisquer anotações feitas por oficiais superiores; não havia ordens de viagem ou de transporte disponíveis.

Bom conhecedor dos hábitos das Forças Armadas, Smith podia imaginar onde Nichols e Drake haviam desaparecido. Espa­lhadas em todo o Exército, havia unidades especiais. Dessas, a mais conhecida do público era a dos Rangers, de tropas de comandos. Mas havia outras, cujos membros eram selecionados entre as tropas mais experientes e mais endurecidas em combate. No Vietnã, elas foram conhecidas como LRRP — Patrulhas de Reconhecimento de Longa Distância; em outros lugares do mundo, simplesmente não tinham nenhum nome que as identificasse.

Smith tinha conhecimento da existência de três unidades desse tipo, mas desconfiava de que houvesse mais. Não conhecia ninguém em nenhuma delas, e não tinha o tempo nem os recursos necessários para começar uma busca a partir do zero. Só havia um caminho a seguir: usar o telefone que Peter Howell conseguira arrancar dos lábios moribundos de Travis Nichols.

Durante a hora seguinte, Smith examinou um plano de ação após o outro. De cada um aproveitou um detalhe ou dois que, quando reunidos uns aos outros, formavam um todo coerente. Então repassou a coisa inteira repetidas vezes, em busca de fraque­zas, eliminando perguntas, tentando dar a si mesmo o máximo de vantagem que pudesse. Sabia que no minuto em que fizesse a ligação para aquela pessoa, ainda desconhecida, do outro lado da linha de um número de telefone que não existia, sua vida depende­ria de cada palavra que desse e de cada ato que fizesse.

Lá fora, os insetos e passarinhos começaram sua litania notur­na. Quando Smith se levantou para fechar a janela, o telefone tocou.

Jon, é Randi.

Randi! Que horas são por aí?

Não sei. Perdi a noção. Escute, Sasha conseguiu penetrar as barreiras de proteção do laptop. Todas as mensagens de correio eletrônico — e tudo o mais — está decodificado.

Pelo tom de Randi, Smith sabia que ela queria uma explicação.

Preciso das informações que você tem, Randi — disse em voz baixa e calma. — Sem perguntas. Pelo menos, não agora.

Jon, você me pediu que lhe fizesse um favor. Eu fiz. Do pouco que li, esta história é explosiva. Há referências ao Bioaparat e a uma coisa chamada Pacto Cassandra...

Mas não vi nada disso — disse Smith em tom aflito. — E por isso que preciso do material, para tentar descobrir o que está acon­tecendo.

Você tem que me dizer uma coisa — respondeu Randi. — Este "problema", seja lá o que for, está localizado na Rússia? Ou alguma coisa saiu?

Smith enfrentara a determinação de Randi antes. Sabia que não estava competindo em busca de glória; era uma agente de serviço de informações tentando fazer seu trabalho. De alguma forma tinha de convencê-la de que os interesses dele e os dela eram os mesmos.

Alguma coisa saiu — respondeu.

Ela parou, abalada.

Não é como o Hades, Jon. Não de novo!

Não, não é absolutamente como aquilo — Smith tranqüili­zou-a. — Estamos com um problema aqui em casa. Creia-me, neste caso não estou escondendo nada. As ordens vêm do mais alto escalão. Você entendeu? Do mais alto escalão — e esperou até que ela tomasse plena consciência do significado de suas palavras. — O que você fez vai me ajudar muitíssimo — prosseguiu. — Por favor, acredite no que estou dizendo: não há mais nada que você possa fazer pelo seu lado. Pelo menos não agora.

Então, pelo que entendi, não quer que eu avise Langley.

Isto é a última coisa que quero que você faça. Estou pedindo que confie em mim, Randi. Por favor.

Depois de um momento de hesitação, ela respondeu:

Não é uma questão de confiança, Jon. Só não quero... eu não suportaria ficar parada e permitir que uma outra situação como a de Hades evoluísse.

Ninguém poderia. E isso não vai acontecer.

Você pelo menos vai me manter informada?

Na medida em que me for possível—respondeu Smith com sinceridade. — As coisas estão andando depressa por aqui.

Está bem. Mas lembre-se do que me prometeu.

Você não vai saber pela CNN.

Vou lhe enviar o material agora. O que você quer que eu faça com o laptop?

Smith refletiu sobre as opções que tinha. O correto seria mandar devolver o computador a Kirov. Mas e se Lara Telegin não fosse a única traidora? Não podia correr o risco de que de alguma forma segredos vitais pudessem cair nas mãos erradas.

Tenho certeza de que você tem um bom cofre — respondeu. — De preferência alguma coisa a prova de violação.

Tenho um dos novos cofres com dispositivo lança-chamas. Qualquer um tentando arrombá-lo vai ter uma surpresa de­sagradável.

Ótimo. Uma última coisa: o telefone celular.

Tinha um monte de números na memória — todos da central telefônica militar russa. Vou lhe enviar cópias.

Ouvindo um ping!, Smith se virou para o monitor enquanto uma mensagem chegando ia surgindo na tela.

Estou recebendo sua mensagem — disse.

Espero que seja do que você precisa. — Randi hesitou, depois acrescentou: — Boa sorte, Jon. Estarei pensando em você.

Smith concentrou a atenção na tela e examinou as mensagens uma por uma. O remetente tinha o codinome Esfinge; o destinatá­rio, Mefisto.

Enquanto continuava a ler, a enormidade do que era chamado pelo nome Pacto Cassandra cresceu diante de seus olhos. Lara Telegin — a Esfinge — estivera em contato com Mefisto por mais de dois anos, passando-lhe informações ultra-secretas sobre o Bioaparat, sua equipe de funcionários e pessoal de segurança. As notas mais recentes mencionavam Yuri Danko e Ivan Beria pelo nome.

Para quem você estava passando informações? Quem é Mefisto?

Smith examinou com mais cuidado as várias mensagens. De repente, viu uma coisa que despertou sua atenção. Era uma mensa­gem de congratulações. Mefisto recebera uma condecoração públi­ca por méritos especiais. E havia uma referência a uma cerimônia numa determinada data.

O Dia dos Veteranos...

Usando seu código de acesso do USAMRIID, Smith entrou no site do Pentágono e digitou a data. Imediatamente os detalhes da cerimônia apareceram na tela, inclusive fotografias. Havia uma foto do presidente Castilla com a condecoração na mão. E diante dele o soldado que iria recebê-la.

 

— Você tem certeza absoluta? — perguntou Klein.

Smith achou que a voz de Klein parecia cansada, mas talvez fosse apenas um problema na linha.

Sim, senhor. A mensagem se refere a uma data específica. Houve apenas uma única cerimônia. Somente uma única condeco­ração foi concedida. Não há hipótese de erro.

Compreendo... Tendo em vista este novo fato, você conse­guiu planejar alguma maneira de proceder?

Sim, senhor.

Smith precisara de duas horas para rever e alterar o plano que havia elaborado antes do telefonema de Randi Russell. Rapida­mente explicou os detalhes a Klein.

Parece-me terrivelmente perigoso, Jon. — falou Klein, em voz baixa. — Eu me sentiria muito melhor se você não estivesse indo sozinho.

Creia-me, adoraria ter Peter Howell comigo, mas não há tempo para trazê-lo até aqui. Além disso, preciso dele na Europa.

E tem certeza de que quer agir imediatamente?

Desde que o senhor consiga aqueles itens que mencionei, estarei pronto.

—Está feito, Jon. E, Jon, você vai usar um transmissor, não vai?

Smith ergueu um pequenino adesivo com malha de fibra óptica que era exatamente idêntico a um pequeno band-aid redon­do, do tipo que se poderia usar num corte depois de fazer a barba.

Se alguma coisa sair errada, senhor, pelo menos vai saber até onde consegui ir.

Nem pense nisso.

Depois de desligar, Smith se permitiu um momento para se preparar. Pensou em tudo o que acontecera até aquele ponto, em todas as vidas que tinham sido sacrificadas no altar do Pacto Cassandra. Então viu Yuri Danko vindo em sua direção, atraves­sando a piazza San Marco... e em Katrina, sua viúva.

Sem hesitar, estendeu a mão para o telefone, certificou-se de que o scrambler estivesse ativado e discou o número que Peter Howell lhe passara. Se alguém tentasse rastrear a origem da chama­da, iria se descobrir batendo de endereço falso em endereço falso pelo país inteiro.

Do outro lado da linha, o telefone estava tocando. O fone foi tirado do gancho e uma voz estranha, eletronicamente distorcida, respondeu:

Pronto?

Aqui é Nichols. Estou de volta. Ferido. Preciso de abrigo.

 

 

O general Frank Richardson sem querer deixou o charuto aceso cair dentro do cinzeiro de cristal lapidado.

Pode repetir — disse ao telefone.

Uma voz entrecortada, alquebrada lhe respondeu:

—... é Nichols... Ferido... voltar.

Richardson apertou o fone com os dedos.

—Vá para o ponto de encontro Alfa. Repito: ponto de encontro Alfa. Entendido?

Entendido.

A ligação foi cortada.

Richardson ficou olhando fixamente para o telefone como se esperasse que fosse tocar de novo. Mas o silêncio em seu escritório só era quebrado pelo tique-taque suave do relógio de pêndulo e o ronco distante dos veículos blindados enquanto os destacamentos de segurança faziam suas rondas ao redor de Fort Belvoir.

Nichols... Ferido... Impossível!

Richardson deu uma tragada no charuto para se acalmar. Comandante experiente, rapidamente passou em revista as opções e tomou sua decisão. A primeira chamada foi para o alojamento de subalternos na base. Uma voz firme e alerta atendeu o telefone.

O segundo telefonema de Richardson foi para o vice-diretor da NSA, Anthony Price. Ele também estava acordado e, por sorte, não muito longe, em sua casa em Alexandria.

Enquanto Richardson esperava que os dois homens chegas­sem, ouviu a fita com a gravação da conversa. Embora sua linha especial de telefone estivesse conectada com o mais moderno equipamento de gravação, a qualidade da voz de seu interlocutor estava pouco nítida. Richardson não sabia dizer se a chamada fora local ou interurbana. Mas não acreditava que "Nichols" estivesse muito longe, não se estava pronto para um encontro no ponto Alfa.

Mas Nichols está morto.

Boa noite, general — apresentou-se o sargento Patrick Drake, batendo continência com grande formalidade.

Descansar — respondeu Richardson. Fez um gesto para o bar no canto da sala. — Sirva-se de um drinque, sargento. Creia-me, vai precisar dele.

Cinco minutos depois, Anthony Price foi trazido até a sala pelo ajudante-de-ordens do general.

Boa noite, Tony.

Price olhou para Drake e levantou as sobrancelhas.

Que está acontecendo, Frank?

O que está acontecendo é isto — respondeu Richardson e apertou o botão do gravador.

Observou as expressões dos dois homens enquanto ouviam a rápida conversa. Não detectou nada exceto genuína surpresa — e, no caso de Price, preocupação.

Como é possível que Nichols tenha feito esta chamada? — perguntou Price. Virou-se para Drake. — Pensei que você tivesse dito que ele estava morto, soldado!

Com o devido respeito, senhor, Nichols está morto — respondeu Drake numa voz sem cor. Olhou para Richardson. — General, eu vi Nichols levar uma facada no estômago. O senhor sabe que não há maneira de um homem sobreviver a isso a menos que receba tratamento médico imediato — algo que não aconteceu.

Você deveria ter-se certificado de que ele estava morto — retrucou Price asperamente.

Tony, pare com isso! — interrompeu Richardson. — Eu me lembro do relato que me fez logo após a ação, sargento. Mas talvez seja indicado explicar os detalhes ao sr. Price.

Sim, senhor — Drake dirigiu-se a Price. — Senhor, nosso contato, Franco Grimaldi, foi descuidado. Ele permitiu que Peter Howell percebesse a armadilha. Howell o derrubou primeiro, então partiu para cima de Nichols e de mim quando estávamos nos aproximando. Howell conseguiu tomar a arma de Nichols e atirou em Grimaldi. Nesse ponto, não tive alternativa senão bater em retirada. Minhas ordens eram conduzir a operação de maneira clandestina. Se alguma coisa não desse certo, deveria me retirar e esperar uma oportunidade melhor.

Que nunca se apresentou — disse Price ironicamente.

São coisas que acontecem na guerra, senhor — respondeu Drake em voz inexpressiva.

Chega de críticas ! — Richardson ordenou asperamente. — Drake cumpriu as ordens que tinha, Tony. O fato de que aquela operação tenha sido um desastre do princípio ao fim não foi culpa dele. A questão é: quem está se passando por Nichols?

Peter Howell, evidentemente — respondeu Price. — Parece-me claro que Nichols sobreviveu por tempo suficiente para dar-lhe o número do telefone de contato.

Richardson olhou para Drake.

Sargento?

Concordo que Nichols tenha dado o número, senhor. E o local do ponto de encontro também. Caso contrário, a pessoa que telefonou teria lhe pedido para identificar qual é o ponto Alfa. Mas não creio que tenha sido Howell.

Por quê?

Howell mora neste país, senhor. Embora esteja na reserva, há muito tempo suspeitamos de que ainda esteja disponível para certas operações e é de conhecimento público que ele e Smith traba­lharam juntos durante o Hades. Creio que Howell entraria em ação se Smith lhe pedisse, mas só faria isso fora do país. Foi por isso que era ele, e não Smith, quem estava em Palermo. Creio que Smith fez a chamada, general.

Richardson assentiu.

Eu também.

Smith... — resmungou Price. — Tudo acaba sempre voltan­do a ele. Primeiro estava em Moscou, depois Beria desaparece. Agora está aqui. Frank, você tem de dar um jeito nele de uma vez por todas.

Também acho — concordou Richardson. — E foi por isso que dei instruções a ele para ir para o ponto de encontro Alfa — olhou para Drake. — Onde você estará esperando.

Usando tênis de cano alto, calças pretas, um suéter de gola rulê e uma jaqueta de náilon escura, Jon Smith saiu rapidamente da casa e entrou no carro. No caminho de saída de Bethesda, verificou continuamente os espelhos retrovisores. Nenhum veículo o seguiu nas ruas tranqüilas do bairro residencial. Ninguém veio segui-lo depois que entrou no anel rodoviário.

Smith atravessou o Potomac e entrou no condado de Fairfax, na Virgínia. Naquela hora da noite, o tráfego estava leve e passou rapidamente pela região de criação de cavalos nos arredores de Vienna, Fairfax e Falls Church. Ao sul de Alexandria, reencontrou o rio e o seguiu quase até o limite do condado Prince William. Ali a paisagem luxuriante permitia que se descortinassem panoramas das margens do rio ladeadas por áreas de densa floresta. Quando foi se aproximando da linha que demarcava o limite do condado, Smith avistou o ponto Alfa.

A Usina de Produção e Distribuição de Eletricidade e Água fora construída na década de 1930, quando o carvão era barato e a discussão sobre questões de saúde, inexistente. O advento de usinas menos poluidoras, associado aos protestos de ambientalistas, fo­ram o bastante para fechar a usina no princípio da década de 1990. Desde então, todas as tentativas de modernizá-la fracassaram dian­te de considerações orçamentárias. De modo que continuou ali, na margem do Potomac, uma enorme construção escura parecendo uma fábrica abandonada.

Smith fez a curva saindo da estrada de pista dupla e, apagando os faróis, seguiu devagar pela estrada de acesso. Estacionou debaixo de um grupo de árvores a cerca de quatrocentos metros e, pondo a mochila nos ombros, correu o resto do caminho.

A primeira coisa que lhe chamou a atenção quando se aproxi­mou foi a cerca de elos de malha de aço — nova, ainda reluzente, com o acabamento de rolos de arame farpado no alto. Um robusto cadeado, sem nenhum sinal de ferrugem, prendia a corrente grossa fechando os portões da frente. O perímetro era bem iluminado, as lâmpadas de halógeno davam um brilho invernal ao estacionamento deserto diante da usina.

Sendo usada, mas não em uso...

Smith já vira prédios como aquele antes. O Exército preferia os prédios maltratados, abandonados e semi-arruinados, onde podia dar a seus pelotões especiais o tipo de treinamento impossível de duplicar em reservas militares. A Usina de Produção e Distribuição de Eletricidade e Água tinha exatamente aquela atmosfera peculi­ar... usada, mas não em uso.

Perfeita para ser o ponto de encontro Alfa.

Smith deu a volta em quase todo o perímetro antes de encontrar um ponto de entrada adequado, onde a cerca alcançava a margem do rio. Escalando os rochedos escorregadios, conseguiu ultrapassar a cerca, depois atravessou correndo uma seção do estacionamento deserto até a parede mais próxima. Depois de parar para se orientar, vasculhou o perímetro. Não viu nada, não ouviu nada, exceto os ruídos distantes de animais noturnos nas vizinhanças da água. Contudo sua intuição lhe dizia que não estava sozinho. Seu telefo­nema fizera tremer a teia. Só que ele não estava vendo a aranha... Por enquanto.

Colado à parede lateral do prédio, Smith foi avançando, procu­rando um ponto de entrada.

 

Três andares acima de Smith, escondido nas sombras de uma janela quebrada, o sargento Patrick Drake observou Smith através de binóculos de visão noturna. Ele o avistara no instante em que Smith ultrapassara a cerca, o ponto de entrada lógico. De acordo com o conteúdo do dossiê que Drake lera, Smith era uma pessoa absolu­tamente lógica. Esta era uma qualidade admirável em um soldado, mas uma qualidade que o tornava previsível. E, no presente caso, fatalmente vulnerável.

Trouxeram Drake de helicóptero para a usina. Mais tarde, um carro estaria esperando por ele quando acabasse o serviço. Ter podido chegar ali tão rapidamente lhe permitira se familiarizar com o terreno na usina, escolher o local onde mataria sua presa e encontrar um ponto privilegiado para observar a entrada de Smith.

Lá estava ele, junto à porta que Drake esperava que encontras­se, testando-a... abrindo-a.

Drake deu as costas para a janela e atravessou o salão vazio que outrora abrigara as bombas hidráulicas da usina. Seus sapatos de sola de lona emborrachada permitiam-lhe mover-se pelo piso de concreto sem fazer nenhum ruído.

Ao chegar à escada, sacou o Colt Woodsman com silenciador. O calibre 22 era uma arma de assassinos profissionais, destinada a trabalhos executados a pequena distância. Drake queria ver o rosto de Smith antes de matá-lo. Talvez o terror em sua expressão ajudasse a aliviar o sofrimento que Drake sentia por ter perdido seu parceiro.

Ou talvez eu o acerte primeiro no estômago, para que ele possa sentir o que Travis sentiu.

Dois andares mais abaixo, Drake parou num patamar entre os dois lances de escada e cuidadosamente abriu uma porta que dava para uma segunda casa de bombas. O luar que entrava pelas janelas altas banhava o piso de concreto esburacado como se fosse uma camada de gelo. Movendo-se rapidamente de pilar para pilar, Drake se posicionou de maneira que pudesse ter uma visão clara de outra porta, ainda fechada. Tendo em vista o lugar por onde Smith entrara, aquele era o único ponto de entrada para aquela sala. Como qualquer bom soldado, Smith examinaria todos os espaços que encontrasse, para certificar-se de sua segurança, para se assegurar de que ninguém o surpreenderia apanhando-o pelas costas. Mas, naquele caso, nem mesmo as precauções lógicas o salvariam.

Em algum lugar fora da casa de bombas, Drake ouviu o som de uma passada. Soltou a trava de segurança da Woodsman, apontou o cano para a porta e esperou.

 

Smith encarou a porta, seu revestimento de metal riscado por velhas manchas de tinta vermelha. Ponto de Encontro Alfa. O lugar onde Travis Nichols iria se apresentar ao voltar da missão. Onde o dono daquela voz terrivelmente distorcida estaria esperando.

Ele não viria sozinho, pensou Smith. Traria reforços. Mas quantos?

Smith tirou a mochila dos ombros. Enfiando a mão dentro dela, tirou um objeto pequeno, redondo, do tamanho de uma bola de borracha. Então sacou sua SIG-Sauer e abriu a porta com a ponta da botina.

A luz intensa do luar que banhava o aposento destruiu sua visão noturna. Ao mesmo tempo, deu um passo transpondo o umbral da porta. De repente, alguma coisa muito dura chocou-se contra o seu peito. A mochila caiu de sua mão enquanto cambaleava para trás. Um segundo golpe o arremessou girando contra a parede.

Smith teve a sensação de que seu peito estava em fogo. Arquejando, tentou se manter de pé, mas seus joelhos se dobraram. Enquanto deslizava para o chão encostado na parede, viu uma sombra emergir de trás de um pilar.

Seu polegar soltou o pino da granada de choque. Com um arremesso fraco, a atirou para o lado oposto da casa de bombas e cobriu os olhos e orelhas.

 

Drake avançou para Smith com a confiança de um caçador que sabe que acertou em cheio um tiro — na verdade, dois. Ambas as balas haviam atingido a massa central do corpo de Smith. Se o coronel já não estivesse morto, brevemente estaria.

Drake estava se regozijando com esse pensamento quando viu uma esfera preta fazer um arco em sua direção. Seus instintos e reações eram soberbos, mas não conseguiu cobrir os olhos a tempo. A granada explodiu como uma supernova, cegando-o. A onda de choque o arremessou violentamente ao chão.

Drake era jovem e estava em excelente forma física. Durante treinamentos de combate com munição de carga viva e em missões já havia sofrido o impacto de muitas explosões. Tão logo bateu no solo, cobriu a cabeça para se proteger de estilhaços. Não entrou em pânico quando, ao abrir os olhos, não viu nada, exceto um branco total. O ofuscamento causado pelo clarão passaria em alguns segundos. Ainda estava com a arma na mão. Sabia que tinha acertado Smith e que ele fora derrubado. Tudo que precisava fazer era esperar que sua visão voltasse.

Então Drake ouviu o gemido distante de sirenes. Praguejando, levantou-se cambaleante. Embora o aposento ainda fosse um borrão, conseguiu chegar às janelas. Sua visão clareou o bastante para que distinguisse dois pontos vermelhos piscando entre as árvores que ladeavam a estrada de acesso.

— Droga! — berrou quando ouviu as sirenes, Smith tinha trazido reforços! Quem eram eles? Quantos?

Com a visão quase de volta ao normal, Drake correu para onde vira Smith cair.

Mas ele não estava lá!

As sirenes estavam ficando mais altas. Praguejando, Drake agarrou a mochila e seguiu para a escada. Conseguiu chegar do lado de fora bem a tempo de ver dois sedãs estacionarem diante dos portões.

Podem vir, pensou. Tudo o que vão encontrar é um cadáver.

 

Olhando fixamente para os fios soltos saindo do painel, Megan Olson lutou para afastar o desespero. Perdera a referência de todas as combinações que tentara, conectando diferentes fios a diferentes terminais. Até agora nada havia funcionado. A porta da câmara de vácuo do ônibus espacial continuava hermeticamente fechada.

Seu único consolo era achar que tinha consertado o microfone. Mas ainda não queria testá-lo.

Acalme-se, disse a si mesma. Existe uma maneira de sair daqui, você precisa apenas encontrá-la.

Era de enlouquecer o fato de que a menos de trinta centímetros, do outro lado da porta, estivesse a alavanca de abertura de emergên­cia. Tudo que Dylan Reed precisaria fazer era puxá-la.

Ao invés disso, ele vai deixar você morrer. Como todos os outros...

Por mais que tentasse, Megan não conseguia se distanciar do horror das ações de Reed. Durante as últimas horas, o ouvira em suas conversas concisas e intermitentes com Harry Landon no controle de missão. Em uma delas, ele fizera uma descrição deta­lhada dos corpos.

Mas como ele conseguiu uma amostra?

De Treloar! Klein lhe contara sobre o roubo das amostras do Bioaparat e como Treloar ajudara a contrabandear as amostras de varíola russas para o país. Mas como Treloar conseguira trazer o vírus para o local de lançamento? Ele morrera logo depois de chegar a Washington.

Foi então que ela se lembrou da madrugada do lançamento, de não conseguir dormir, de sair para dar uma caminhada na escuri­dão, de ver o local do conjunto de lançamento a distância, de ver Reed... Depois o visitante anônimo, aproximar-se dele, entregar-lhe alguma coisa e ir embora. Será que aquilo podia ter sido uma entrega de último minuto? Tinha de ser.

Se o que Reed recebera era de fato varíola, pensou Megan, então teria se mantido estável até o ônibus espacial estar em órbita e Reed poder armazená-la no freezer.

O laboratório espacial! De repente ela se lembrou da mensa­gem que chegara ao posto de pilotagem. Minutos depois, Reed alterara a ordem dos experimentos, passando-a para depois e assu­mindo o primeiro horário. Explicara a coisa toda tão bem que ninguém, nem mesmo ela, o questionara.

Nem mesmo quando você viu que o número de identidade da NASA daquela mensagem era o número de Reed. E você perguntou a si mesma como era possível que ele tivesse enviado uma mensagem para si mesmo...

Megan sacudiu a cabeça. As perguntas estavam lá, mas ela as havia ignorado. Em vez disso, aceitara os acontecimentos como coincidências e escolhera acreditar na integridade do homem que a trouxera até as estrelas.

A questão de por que Reed aceitara ser cúmplice de um ato de tamanha barbárie a atormentava. Mesmo depois de ter passado em revista tudo o que conhecia a respeito dele, nenhuma resposta se apresentou. Havia alguma coisa nele, alguma coisa a respeito dele, que ela não vira. Ninguém vira.

Inicialmente, Megan se agarrara à frágil esperança de que Reed fosse voltar. Uma parte dela não conseguia acreditar que ele a mataria a sangue frio. Mas, à medida que as horas se passaram e enquanto ela ouvia as comunicações dele com o controle de missão, acabara por aceitar que, no que dizia respeito a Reed, ela já estava morta.

Megan olhou fixa e atentamente para o painel. Como podia ouvir as conversas com o controle de missão, sabia como Harry Landon pretendia trazer de volta e pousar o ônibus espacial e, mais importante, quanto tempo levaria. Ainda tinha tempo para tentar encontrar uma maneira de escapar. Depois que o fizesse, seguiria direto para a unidade de comunicações auxiliar no compartimento inferior.

 

Smith se levantou trôpego, tirou fora a jaqueta e arrancou as tiras de velcro do colete à prova de balas Kevlar Second Chance. Era considerado garantido para deter qualquer coisa até um projétil de calibre 9mm. Mas, apesar de ter absorvido as balas 22 de Drake facilmente, Smith ainda se sentia como que escoiceado no peito por uma mula.

Depois de entrar no carro, ativou o sistema de posicionamento global embutido no painel. Imediatamente um ponto azul brilhan­te apareceu na pequena tela que mostrava um mapa do condado de Fairfax.

Smith pegou o telefone.

Aqui é Klein.

Sou eu, senhor — disse Smith.

Jon! Você está bem? Recebi informes de uma explosão.

Isso foi obra minha.

Onde você está?

Do lado de fora da usina. O alvo está em movimento — ao que tudo indica, a pé. Eles chegaram aqui no momento exato para pôr Drake para correr.

E Drake? Engoliu a isca?

Smith olhou rapidamente para o ponto azul que pulsava.

Sim, senhor. Está a caminho.

 

O sargento Patrick Drake levou cinco minutos para cobrir os 1.800 metros da trilha que atravessava a floresta entre a usina e a área de recreação deserta onde estacionara o carro.

Alerta para qualquer sinal de que alguém o seguisse, Drake dirigiu-se para os arredores de Alexandria. Entrando no estaciona­mento de um motel Howard Johnson, parou o carro defronte ao último chalé. Drake abriu a porta e, no interior, encontrou o general Richardson e Anthony Price.

Sargento, qual é o relatório da missão? — perguntou Richardson.

O alvo foi neutralizado, senhor — respondeu Drake pron­tamente. — Dois tiros justos na massa central.

Tem certeza? — questionou Price.

O que você quer, Tony? — retrucou Richardson com aspereza. — A cabeça de Smith numa bandeja? — Virou-se para Drake. — Descansar, sargento. Fez um bom serviço.

Obrigado, senhor.

Price gesticulou na direção da mochila que Price trouxera com ele.

O que é isso?

Drake largou a mochila em cima de uma das camas.

Uma coisa que Smith deixou cair.

Depois de abrir as fivelas das tiras, Drake colocou o conteúdo sobre a cama: dois pentes de munição sobressalente, um mapa rodoviário, um telefone celular, um gravador microcassete e um objeto pequeno, redondo, que despertou a atenção de Price.

O que é isso?

Uma granada, senhor — disse Drake, fingindo não reparar na expressão chocada de Price. — Não há nenhum perigo, senhor, o pino está preso.

Precisamos de um instante para uma conversa particular — disse Price.

Enquanto Drake trancava-se no banheiro, Price agarrou o braço de Richardson.

Chega dessa merda de brincar de soldadinho, Frank. Ne­nhum de nós dois precisava estar aqui. Drake poderia ter telefonado para nos informar dos resultados.

Richardson soltou o braço com um safanão.

Não é essa a maneira como trabalho, Tony. Perdi um soldadinho, como você o chama, em Palermo. Ele tinha um nome, Travis Nichols. E, caso tenha esquecido, Smith chegou perto de nós o bastante para telefonar para mim em Fort Belvoir — numa linha que você garantiu ser segura!

O número era seguro! — rebateu Price. — Seu homem o passou adiante.

Richardson sacudiu a cabeça.

Para alguém que fez as coisas que você fez, parece que realmente não gosta de sujar as mãos, não é mesmo? Prefere dar ordens e deixar os outros morrerem enquanto assiste aos resultados na televisão, como se tudo isso fosse um grande jogo — Richardson inclinou-se para perto do outro. — Não estou disputando um jogo, Tony. Estou fazendo isso porque acredito que seja necessário. Estou fazendo isso por meu país. Em que você acredita?

Na mesma coisa — respondeu Price.

Richardson fungou.

Mas cuidou bem de si mesmo com a Bauer-Zermatt, não é verdade? Assim que dermos ao mundo uma pequena prova do que nosso vírus pode fazer, todo mundo vai clamar por um antídoto. Por coincidência a Bauer-Zermatt vai vazar a notícia de que está na dianteira na pesquisa e suas ações subirão à estratosfera. Estou curioso, Tony. Quantas ações, exatamente, Bauer deu a você?

—Um milhão — respondeu Price calmamente. — E ele não me deu as ações, Frank. Trabalhei para merecê-las. Não se esqueça de que fui eu quem encontrou Beria, quem deu proteção a você, assegurando que ninguém tivesse nem a menor idéia do que estava acontecendo no Havaí. De modo que não tente esfregar essa merda de heroísmo no meu nariz!

Olhou rapidamente para os objetos que Drake tinha tirado da mochila.

Agora vamos tratar de encerrar esta história...

As palavras dele se interromperam de repente.

Qual é o problema? — perguntou Richardson.

Price apanhou o gravador microcassete, examinou a parte externa e abriu a tampa.

Diga que não é — resmungou.

O quê? — perguntou Richardson. — Smith trouxe isso para poder gravar uma confissão.

Talvez...

Price tirou a fita e puxou um dos dois pinos que a mantinham no lugar. O conjunto saiu todo inteiro.

E talvez não! — O rosto dele estava enrubescido pela raiva. — Sabia que tinha reconhecido esta coisa! Dê uma olhada, Frank.

Na cavidade, Richardson viu um transmissor de tecnologia de ponta.

A última novidade em tecnologia de vigilância! — sibilou Price. — Seu soldado se deixou enganar! Smith sabia que, se alguma coisa desse errado, seu assassino certamente levaria a mo­chila. Alguém ouviu cada palavra que dissemos aqui!

Sargento! — rugiu Richardson.

Drake saiu em disparada do banheiro, de arma em punho. Richardson foi rapidamente até junto dele e lhe mostrou o gravador desmontado.

Diga-me de novo, Smith está morto?

Drake reconheceu o transmissor imediatamente.

Senhor, eu não sabia...

Ele está morto?

Sim, senhor!

Isto significa apenas que não pode nos dizer onde está o receptor — declarou Price. Olhou para Richardson. — Você é um homem religioso, Frank? Por que talvez a única coisa que nos reste seja rezar!

 

A porta da frente do chalé se abriu e Richardson, Price e Drake saíram depressa, encaminhando-se para seus carros.

A uma distância de 150 metros, escondido nas sombras, Jon Smith os observou pela janela do pára-brisa de seu carro.

São Richardson, Price e Drake — disse ao telefone.

Eu sei — respondeu Klein. — Reconheci as vozes — exceto pela de Drake. O presidente também.

Smith lançou um olhar rápido para a unidade de transmissão, colocada sobre o banco do passageiro.

Vou me aproximar deles.

Não, Jon. Olhe ao redor.

Smith viu dois sedãs pretos se posicionando de maneira a bloquear a entrada da frente do motel. Um outro par estava fechan­do a saída dos fundos.

Quem são eles, senhor?

Não importa. Vão cuidar de Richardson e Price. Trate de se manter escondido até estar tudo acabado, então saia daí. Espero por você na Casa Branca ao raiar do dia.

Senhor...

O pára-brisa explodiu quando uma bala despedaçou o vidro laminado. Smith se atirou sobre o assento enquanto mais dois tiros penetravam sibilando dentro do carro.

 

— Você disse que ele estava morto! — berrou Price.

E estará — retrucou Richardson sombriamente. — Entre no carro. Sargento, desta vez trate de ter certeza.

Drake não se deu ao trabalho de olhar para trás. Avistara o sedã às escuras no instante em que eles saíram do quarto. O veículo de Smith estava estacionado nas sombras de algumas grandes caçam­bas de lixo, uma boa escolha. Mas Smith se esquecera da lua. Frio e brilhante, o luar banhava o interior do carro, iluminando-o perfeitamente. Drake disparara o primeiro tiro antes de Smith se dar conta de que fora visto. Agora Drake estava em movimento para se assegurar de ter apanhado sua presa.

Estava a quatro metros e meio do carro quando, de repente, os faróis se acenderam, ofuscando-o. Drake ouviu o rugido do motor e compreendeu o que estava acontecendo. Mas mesmo ele não era suficientemente rápido para sair do caminho a tempo. Enquanto Drake se arremessava no ar, duas toneladas de metal frio chocaram- se contra seu corpo, catapultando-o sobre o carro.

Atrás do volante, Smith se levantou e manteve o pé no acelera­dor. Sua visão periférica registrou formas escuras saindo dos sedãs formando a barreira, mas aquilo não o deteve. Viu Richardson e Price entrarem rapidamente num carro e sair velozmente em marcha a ré. Virando a direção, tentou impedir a passagem deles. Por uma fração de segundo, viu a expressão de Richardson pela janela, depois sentiu um tremendo solavanco quando os dois carros colidiram num emaranhado de metal.

Smith continuou agarrado à direção, tentando empurrar o carro de Richardson para o lado. Então olhou para cima e viu os dois sedãs na saída. Girando o volante, pisou nos freios e entrou numa derrapagem controlada.

Frank Richardson sentiu seu carro sacudir com violência quando o carro de Smith saiu derrapando. Então ele também viu a barreira.

Frank! — gritou Price.

Richardson pisou fundo nos freios, mas era tarde demais. No exato instante em que levantou as mãos para cobrir o rosto, o carro bateu violentamente contra as frentes embicadas dos sedãs. Segun­dos depois, um pedaço de metal denteado cortou-lhe a garganta enquanto ele era arremessado para fora do carro pelo pára-brisa.

Smith saltou do carro, correndo a toda velocidade. Conseguiu se aproximar o bastante para ver o corpo de Richardson esparrama­do sobre o capô antes que um par de braços fortes o segurassem.

É tarde demais, senhor! — gritou uma voz.

Smith lutou para se soltar, mas foi arrastado para trás. Um momento depois, uma enorme explosão o arremessou no chão.

Arquejando e tossindo, Smith se esforçou para respirar. Le­vantando a cabeça do asfalto, viu uma bola de fogo gigantesca engolir os três veículos. Lentamente, rolou para mais longe, sem dar atenção às sombras dardejando ao redor, vozes urgentes cha­mando umas às outras. Um par de mãos o puxou e o pôs de pé e ele se viu cara a cara com um jovem de feições bem marcadas.

Seu lugar não é aqui, senhor.

Quem... são vocês?

O homem apertou um jogo de chaves contra a palma de Smith.

Há um Chevrolet verde ali, dobrando a esquina. Pegue o carro e vá. E, senhor? O sr. Klein disse para recordá-lo da reunião na Casa Branca.

 

 

Atordoado e exausto, Smith de alguma forma conseguiu dirigir até Bethseda. Depois de entrar na casa, foi tirando as roupas e deixan­do-as cair a caminho do banheiro, abriu a torneira do chuveiro e ficou parado debaixo do jato forte e quente.

O jorrar da água afogou os gritos e explosões da noite. Mas, por mais que tentasse, Smith não conseguia apagar a imagem do carro de Richardson chocando-se contra a barreira, a bola de fogo explo­dindo, a visão de Richardson e Price transformados em tochas humanas.

Smith seguiu cambaleante para o quarto e deitou-se nu sobre as cobertas. Fechando os olhos, ligou o despertador mental de soldado e se permitiu ser levado para dentro de um túnel longo e escuro. Sentiu-se flutuar girando sobre si mesmo, como um astro­nauta que perdeu seu cabo de segurança e ficou condenado a cair interminavelmente pelo cosmo. Então sentiu alguma coisa esbar­rar nele e com um sobressalto despertou para descobrir que estava tateando na mesinha-de-cabeceira em busca da arma.

Smith tomou mais um banho de chuveiro e se vestiu rapida­mente. Estava se encaminhando para a porta quando se lembrou de não ter checado se havia recados no telefone celular. Rapidamente examinou a lista e descobriu um bilhete de Peter Howell. Havia algo esperando por ele no computador.

Smith ligou a máquina, rodou o programa criptográfico e baixou o arquivo que Howell enviara. Ficou atordoado enquanto lia. Depois de fazer uma cópia, salvou o texto num arquivo prote­gido e digitou uma mensagem rápida que Howell receberia em seu telefone móvel: Belo trabalho — excelente. Volte para casa. Drinques por minha conta. J. S.

Quando o dia começava a raiar, Smith saiu de casa e dirigiu pelas ruas vazias até o portão oeste da Casa Branca. O guarda comparou sua identidade com a lista computadorizada e acenou para que passasse. Quando chegou ao pórtico, um cabo dos fuzilei­ros navais o escoltou pelos corredores silenciosos da Ala Oeste até um escritório pequeno e atravancado onde Nathaniel Klein se levantou para cumprimentá-lo.

Smith ficou surpreso com a aparência de Klein. O chefe do Covert-One não tinha se barbeado e parecia ter dormido com as roupas que vestia. Com um gesto fatigado, fez sinal para que se sentassem.

Você fez um trabalho fantástico, Jon — falou em voz baixa.

As pessoas têm uma dívida de gratidão com você. Estou presu­mindo que tenha saído ileso.

Alguns ferimentos leves e hematomas, mas fora isso estou intacto, senhor.

O sorriso de Klein se apagou.

Você não ouviu nada, não é?

Ouvir o quê, senhor?

Klein balançou a cabeça.

— Bom... Isso é bom. Significa que o blecaute está funcionando - respirou fundo. — Oito horas atrás, Harry Landon, diretor da missão no Cabo, foi avisado de que havia uma emergência a bordo do Discovery. Quando conseguiu restabelecer a comunicação via áudio, soube que... que toda a tripulação estava morta, exceto por um membro.

Klein olhou para Smith com tristeza e o tremor em sua voz revelou seu pesar.

Megan se foi, Jon.

Smith sentiu o corpo se enrijecer. Tentou falar, mas não conseguiu encontrar palavras. A voz que ouviu parecia não lhe pertencer.

Que aconteceu, senhor? Um incêndio?

Klein sacudiu a cabeça.

Não. O satélite artificial está funcionando perfeitamente. Mas alguma coisa atacou a espaçonave e matou a tripulação.

Quem é o sobrevivente?

Dylan Reed.

Smith levantou a cabeça.

O único sobrevivente? Temos certeza?

Reed percorreu a espaçonave inteira. Sabemos do paradeiro de todos. Sinto muito.

Smith já perdera pessoas antes em situações de morte súbita e violenta. Sabia que sua reação era típica de um sobrevivente: sua mente retornou à última vez em que vira Megan na cafeteria perto do complexo da NASA, em Houston.

Agora estava morta. Num piscar de olhos.

Landon e o resto da equipe da NASA andaram arrancando os cabelos — Klein contava. — Ainda não conseguiram descobrir o que pode ter dado errado.

Como Reed sobreviveu?

Estava vestindo um daqueles trajes que são usados para andar no espaço. Aparentemente, estava preparando alguma expe­riência.

E o resto da tripulação estava vestindo as roupas normais de trabalho, os macacões — disse Smith. — Nenhum equipamento de proteção—fez uma pausa.—Disse que não houve fogo, que alguma coisa os atacou.

Jon...

Megan lhe disse que viu alguém com Reed pouco antes do lançamento — Smith o interrompeu. — Já desconfiava de uma ligação entre Treloar e Reed... — refletiu por um instante. — Em que estado estavam os corpos?

Landon disse que Reed os descreveu como inchados, cober­tos de feridas, sangrando pelos orifícios.

Smith sentiu um calafrio à medida que as conexões foram se encaixando em sua mente.

Recebi uma mensagem de Peter Howell — disse a Klein. — Ele teve uma longa conversa com Herr Weizsel. Weizsel foi tão cooperativo que insistiu em levar Peter até seu apartamento, onde acessou os computadores do Banco Offenbach pelo laptop. Parece que Ivan Beria teve um relacionamento longo e lucrativo com o banco, especialmente quando um Cliente o empregou com exclusi­vidade: a Bauer-Zermatt A.G.

Klein ficou estarrecido.

O gigante da farmacêutica?

Smith assentiu.

—Ao longo dos últimos três anos, a Bauer-Zermatt fez um total de dez depósitos na conta de Beria, dois dos três últimos pouco antes que o guarda russo e Treloar fossem eliminados.

E o terceiro? — perguntou Klein.

Esse era pelo contrato para me eliminar.

Depois de um momento de silêncio, Klein perguntou:

Você tem provas?

Como se estivesse movendo uma peça em um tabuleiro de xadrez para o xeque-mate, Smith puxou do bolso um disquete.

Provas concretas.

Klein sacudiu a cabeça.

Então está certo. A Bauer-Zermatt está — ou estava — pagando Beria para cometer assassinatos. Estes incluíam o guarda russo e Treloar. Isto liga a Bauer-Zermatt às amostras de varíola roubadas. Mas há duas perguntas: porque a Bauer-Zermatt quereria as amostras de varíola? E quem na companhia autorizou os assas­sinatos e os pagamentos? — apontou para o disquete. — Há algum nome?

Não, nenhum nome — respondeu Smith. — Mas não é difícil adivinhar, não é? Apenas um homem poderia ter autorizado que se empregasse alguém como Beria: Karl Bauer, pessoalmente.

Klein deixou o ar escapar pelas narinas assobiando.

OK... Mas encontrar provas concretas da autorização de Bauer para que Beria fosse empregado, ou para que os próprios pagamentos fossem feitos, é outra conversa.

Essas provas não existirão — disse Smith secamente. — Bauer é cuidadoso demais para deixar alguma pista assim tão evidente — calou-se por um instante.—Mas por que Bauer haveria de querer as amostras de varíola para começar? Para fazer uma vacina? Não. Já somos capazes de fazer isso. Para fazer experiên­cias? Para modificá-la geneticamente? Talvez. Mas por quê? A varíola é estudada há anos. Não pode ser usada como arma de campo de batalha. O período de incubação é longo demais. Os efeitos não são cem por cento previsíveis. Então por que mesmo assim Bauer ainda quereria as amostras? E quereria tanto que mataria para obtê-las?

Olhou para Klein.

Sabe como as pessoas morrem de varíola? Os primeiros sintomas são erupções de forma leve no palato e nas mucosas bucais, que depois se espalham para o rosto e antebraços, e então para o resto do corpo tornando-se erupções pustulosas. As pústulas supuram, formam-se crostas, depois há uma nova erupção pustulosa. Fi­nalmente, começa a haver sangramentos pelos orifícios do corpo...

Klein ficou com os olhos cravados nele.

Exatamente como a tripulação! — sussurrou. — Eles mor­reram da maneira como as vítimas de varíola morrem! Você está dizendo que Bauer conseguiu pôr as amostras roubadas de varíola a bordo do Discovery?

Smith se levantou e tentou afastar a imagem de Megan, de como morrera, de seus últimos e terríveis momentos.

Sim, é isso que estou dizendo.

Mas...

No espaço — em estado de microgravidade — é possível recombinar células, bactérias, virtualmente qualquer coisa, de uma maneira que não pode ser feita na Terra — Smith calou-se por um momento.—Nós erradicamos a varíola do planeta, mas guardamos dois conjuntos de amostras — um aqui, um na Rússia. Ostensiva­mente, fizemos isso porque não conseguimos nos obrigar a erradicar uma espécie em extinção. Mas a verdade é algo bem pior que isso: nunca soubemos quando poderíamos precisar dela. Talvez daqui a muitos anos descobríssemos uma maneira de transformá-la numa arma. Ou, se alguém o fizesse, teríamos material suficiente com o qual poderíamos produzir uma vacina — ou pelo menos teríamos uma esperança de poder produzi-la.

Smith prosseguiu.

Bauer não quis esperar anos. De alguma forma, descobriu um processo que acreditava que iria funcionar. Talvez já tivesse percorrido cinqüenta ou sessenta por cento do caminho até chegar a isso, mas não podia concluí-lo. Não podia ter certeza. A única maneira de provar que estava certo era conseguir que uma experi­ência fosse feita em um ambiente singular em que as bactérias crescem rápido como um relâmpago. Precisava fazê-la a bordo do ônibus espacial — Smith se calou. — E fez.

Se você estiver certo, Jon — retrucou Klein, em tom tenso — isso significa que Dylan Reed é um criado dele.

Reed é o único sobrevivente, não é? O diretor do programa de pesquisa biomédica da NASA. O sujeito que estava conveniente­mente vestido com o traje de proteção quando o horror dos infernos se desencadeou.

Está insinuando que Reed assassinou sua própria tripula­ção? — perguntou Klein.

É exatamente isso o que estou dizendo.

Mas pelo amor de Deus, por quê?

Por dois motivos: Para se livrar de quaisquer possíveis testemunhas, e... — a voz de Smith ficou embargada. — Para realizar uma experiência controlada com cobaias humanas para ver com que rapidez o vírus mataria.

Klein deixou-se cair encolhido na cadeira.

Isto é loucura, uma insanidade.

— Apenas porque a pessoa que planejou isso é louca—declarou Smith. — Não louca delirante, não louca furiosa, com a boca espumante. Mas insidiosamente, malignamente louca. Sim.

Klein o encarou.

Bauer...

E Richardson, Price, Treloar, Lara Telegin...

Para apanhar Bauer, precisamos de provas concretas, Jon. Podemos tentar rastrear suas comunicações...

Smith sacudiu a cabeça.

Não há tempo. Vou lhe dizer qual é minha opinião sobre a situação: devemos partir do pressuposto de que há uma arma biológica a bordo do ônibus espacial e de que Reed a tem sob seu controle. Bauer e seus cúmplices vão querer destruir todas as provas do que aconteceu durante a viagem. Além disso, tenho certeza de que não encontraremos nenhuma prova de quaisquer ligações com Richardson ou com Price. Mas Bauer ainda precisa se assegurar de que o ônibus espacial volte e pouse em segurança. Bauer tem de tirar Reed e a amostra de dentro dele. Quando a NASA está pretendendo trazer o ônibus espacial de volta?

Dentro de cerca de oito horas. Eles precisam esperar que se abra uma janela atmosférica para se poder fazer a aterrissagem na Base Aérea Edwards, na Califórnia.

Smith inclinou-se para a frente.

Pode me conseguir uma audiência com o presidente — agora, imediatamente?

Duas horas mais tarde, depois de falar com o presidente, Smith e Klein encontravam-se na pequena sala de conferências ao lado da Sala Oval. Enquanto esperavam que o presidente terminasse sua reunião, Klein recebeu um telefonema do Cabo.

Sr. Klein? Aqui é Harry Landon no controle de missão. Tenho as informações que pediu.

Klein ouviu em silêncio e agradeceu a Landon. Antes de desligar, perguntou:

Em que pé está a descida do ônibus espacial?

Vamos trazê-lo de volta tão delicadamente quanto for possível — respondeu Landon. — Tenho de lhe dizer, nunca fizemos nada parecido — isto é, exceto em simulações. Mas vamos conseguir trazê-los de volta. O senhor tem a minha palavra.

Obrigado, sr. Landon. Eu me manterei em contato.

Virou-se para Smith.

Landon telefonou para todo mundo no Livro Preto... e para uma pessoa para a qual Reed lhepediupessoalmenteque telefonasse.

Vamos ver se adivinho quem era. Karl Bauer.

Na mosca.

Faz sentido — observou Smith. — Ele iria querer estar no local quando Reed descer com sua cria.

Klein assentiu e apontou para o monitor de circuito fechado de televisão que, de repente, mostrou uma imagem.

Está na hora do show.

 

A despeito do semblante bastante marcado por rugas de preocupa­ção e pés-de-galinha, o presidente, sentado à sua mesa de trabalho, projetava uma imagem de autoridade e de controle. Enquanto esperava que o último membro do grupo de trabalho chegasse, observou os indivíduos a seu redor.

A Agência Central de Inteligência estava representada por Bill Dodge, frio, austero, sua expressão não revelando nada enquanto folheava a última atualização fornecida pela NASA.

Martha Nesbitt, a conselheira de segurança nacional, estava sentada ao lado de Dodge. Veterana do Departamento de Estado, Marti, como era chamada, era famosa pela rapidez com que avaliava uma situação, formulava uma decisão e a punha em andamento.

Defronte a ela estava o secretário de Estado, Gerald Simon, limpando vestígios inexistentes de caspa de seu terno feito sob medida, um ritual que indicava estar dominado pela indecisão.

Espero que vocês tenham tido tempo para refletir — decla­rou o presidente. — Porque, nas circunstâncias em que nos encon­tramos, temos de tomar a decisão correta logo na primeira tentativa.

Olhou em volta para o grupo.

A contar do presente momento, o Discovery alcançará a "janela" para tornar a entrar na atmosfera da Terra dentro de aproximadamente uma hora. Quando chegar a esse ponto, levará mais quatro horas antes de iniciar o procedimento de descida. Setenta e cinco minutos depois, aterrissará na Base Edwards. A questão diante da qual estamos e que temos que decidir é simples: vamos permitir que a nave espacial aterrisse?

Tenho uma pergunta — manifestou-se Martha Nesbitt. — Em que ponto perdemos a capacidade de destruir o ônibus espacial?

Não existe um ponto específico assim, determinado — respondeu o presidente. — O fato de que o ônibus espacial tem um dispositivo de autodestruição, de carga de alto poder explosivo, por motivos óbvios, nunca foi tornado público. Contudo, usando trans­missões via satélite, podemos ativar o mecanismo a qualquer ponto entre a posição atual do ônibus espacial e a aterrissagem.

Mas, sr. presidente, o mecanismo na verdade foi projetado para destruir o ônibus espacial no espaço — observou Bill Dodge. — Seu objetivo principal é não introduzir agentes de contaminação em nossa atmosfera.

Isso é verdade — concordou Castilla.

O que também é verdade é que não temos nenhuma idéia do que realmente aconteceu a bordo do Discovery — acrescentou Gerald Simon. Olhou rapidamente em volta para as outras pessoas na sala. — Cinco pessoas dedicadas estão mortas. Não sabemos como ou por quê. Mas uma ainda está viva. No campo de batalha, sempre trazemos de volta nossos mortos. E, se há um sobrevivente Sá, é nossa obrigação ir buscá-lo.

Concordo — disse Marti Nesbitt. — Em primeiro lugar, de acordo com as últimas informações, o ônibus espacial está em perfeitas condições, em termos mecânicos. Segundo, a NASA ainda está averiguando o que pode ter matado a tripulação. Acertadamente, estão concentrando os esforços nos suprimentos de alimentos e líquidos. Sabemos que bactérias crescem muito rapidamente em estado de microgravidade. É inteiramente possível que alguma coisa, que é inofensiva em terra, tenha sofrido uma mutação grotes­ca e abatido suas vítimas antes que pudessem reagir.

— Mas não é exatamente por isso que não podemos nos arriscar a trazer o ônibus espacial de volta? — perguntou Gerald Simon. — Tenho de examinar esta questão do ponto de vista do Departamen­to de Estado. Sabemos que temos alguma coisa letal naquela espaçonave, mas mesmo assim vamos trazê-la de volta? A que tipo de perigo estamos nos expondo — e o resto do mundo?

Talvez a nenhum perigo — respondeu Bill Dodge. — Isso aqui não é uma conjuntura como no filme "Enigma de Andrômeda", Gerry. Nem um "Arquivo X" sobre uma praga extraterrestre que de alguma forma invadiu o ônibus espacial. Seja lá o que for que tenha matado essas pessoas, veio da Terra. Mas aqui evidentemente não tinha a capacidade letal. Retire o ambiente de microgravidade e a maldita da coisa morre.

Você está disposto a arriscar o país baseado nessa teoria? — retrucou Simon. — Ou o planeta?

Acho que sua reação está meio exagerada, Gerry.

E acho que sua atitude está um pouco arrogante demais.

Senhoras e senhores! — as palavras do presidente silencia­ram a sala. — Debates, perguntas, comentários, são bem-vindos. Mas nada de discussões e troca de insultos. Não temos tempo para isso.

A NASA tem alguma expectativa razoável de determinar o que aconteceu lá em cima? — perguntou o conselheiro de Seguran­ça Nacional.

O presidente sacudiu a cabeça.

Fiz a mesma pergunta a Harry Landon. A resposta foi não. Embora o sobrevivente, Dylan Reed, seja médico, ele não tem tempo, equipamento, nem auxiliares para conduzir qualquer tipo de investigação significativa. Temos uma descrição geral do estado dos corpos, mas certamente não o bastante para determinar a causa da morte.

Passou os olhos ao redor da sala.

Há uma coisa que posso dizer com certeza: Harry Landon não acredita que sequer se esteja considerando a hipótese de destruir o ônibus espacial. Portanto, nem ele nem ninguém da NASA pode ter permissão de participar de nossa discussão. Isso dito, e uma vez que todos vocês já tiveram a oportunidade de examinar os fatos que conhecemos, precisamos fazer uma votação preliminar. Bill, vamos começar com você: resgatamos ou abortamos?

Resgatamos.

Marti?

Abortamos.

Gerry?

Abortamos.

Enquanto o presidente unia os dedos em triângulo, Bill Dodge tomou a palavra.

Senhor, posso compreender por que meus colegas decidi­ram seus votos dessa maneira. Mas não podemos perder de vista o fato de que temos um sobrevivente no ônibus espacial.

Ninguém está perdendo isso de vista, Bill — Marti Nasbitt começou a replicar.

Deixe-me concluir, Marti. Creio que tenho uma solução — Dodge virou-se para o grupo. — Como todos vocês têm conheci­mento, tenho mais de um cargo, um deles, o de co-diretor da Divisão de Segurança do Espaço. Antes de seu trágico acidente, Frank Richardson compartilhava esta responsabilidade comigo. Pois bem, previmos que em algum momento no futuro, um inci­dente de natureza biológica — se isto foi o que ocorreu — poderia acontecer a bordo de um vôo tripulado ou não tripulado. Nós nos concentramos especificamente no ônibus espacial e construí­mos uma instalação especial exatamente para uma contingência deste tipo.

E onde fica essa instalação? — perguntou Gerald Simon.

Em nosso campo de provas de aviação, em Lake Groome, a 96 quilômetros a nordeste de Las Vegas.

De que, exatamente, estamos falando?

Dodge tirou um videocassete da pasta de documentos.

É melhor que todos vejam, cada um por si.

Ele inseriu a fita no VCR abaixo do monitor de televisão de alta definição e apertou o botão para rodar a fita. Depois de um momen­to de chuvisco na tela, uma imagem de deserto surgiu em foco perfeito.

Não parece ser grande coisa — comentou o conselheiro de Segurança Nacional.

Mas isso é intencional — respondeu Dodge. — Aproveita­mos uma idéia dos israelenses. Devido a seu território limitado, Israel tem poucos lugares para esconder seus aviões de combate. De modo que construíram uma série de bunkers subterrâneos, com pistas de pouso e decolagem que não parecem ser pistas de pouso e decolagem — e que têm uma característica singular.

Na tela, o que parecera ser o solo do deserto começou a se inclinar para baixo, em um ângulo gradualmente cada vez maior. Dodge congelou a imagem.

— Aqui é onde a pista parece acabar. Mas debaixo disso fica um sistema de macacos hidráulicos. A pista na verdade se estende por mais 460 metros, ao mesmo tempo que vai se inclinando para baixo e entrando em um bunker subterrâneo.

A câmera seguiu o declive da pista. De ambos os lados, surgiu uma fileira de luzes acesas. A medida que a câmera descia a rampa, um imenso bunker revestido de concreto apareceu saindo da semi-obscuridade.

Isto é a câmera de biocontenção — explicou Dodge. — As paredes são de concreto reforçado, com 1,82 metro de espessura. A circulação de ar tem filtros HEPA, da agência de proteção ambiental, iguais aos que são usados nos laboratórios de zona "quente" do CDC. Depois que o ônibus espacial estiver dentro da câmara de biocon­tenção, a instalação será hermeticamente fechada. Uma equipe especial estará esperando pelo dr. Reed quando ele sair e o levará para uma câmara de descontaminação. Outra equipe colherá amos­tras de dentro do ônibus espacial para determinar o que, se houver alguma coisa, está lá dentro.

E se eles encontrarem alguma coisa? — perguntou o secre­tário de Estado. Alguma coisa que podemos não querer ter por aqui?

Então, depois que a equipe for retirada, acontecerá isto.

Na tela, a imagem irrompeu em chamas.

O que criamos é o equivalente não a uma, mas a três bombas aéreas incendiárias. O fogo e o calor incinerarão tudo — e quero dizer, realmente, tudo.

Concluída a apresentação, Dodge retirou a fita.

Alguém tem perguntas ou observações? — perguntou o presidente.

Essa instalação já foi testada, Bill? — perguntou Marti Nesbitt.

Nunca destruímos um ônibus espacial, se é isto o que está querendo dizer. Mas o Exército já incinerou tanques até virarem cinzas torradas. A Força Aérea, foguetes lançadores Titan inteiros. Posso garantir, nada sobrevive lá dentro.

Eu, francamente, gosto da idéia — manifestou-se Gerald Simon. — Creio que tão importante quanto trazer o dr. Reed de volta é descobrir o que aconteceu no espaço. Se tivermos uma oportunidade de obter essa informação e pudermos destruir a nave espacial se for necessário, então estou disposto a mudar meu voto.

Houve assentimentos e murmúrios de concordância em toda a sala.

Preciso de alguns minutos para refletir a respeito disso — falou o presidente, se levantando. — Vou pedir a todos que perma­neçam aqui. Não vou demorar.

 

Na sala ao lado, o presidente encarou Smith e Klein. Apontando para o monitor do circuito fechado, disse:

Vocês viram e ouviram tudo. A que conclusões chegaram?

Não é uma coincidência interessante que exista uma insta­lação em Lake Groome que não só é feita sob medida para a presente situação, mas também de que ninguém jamais ouviu falar, senhor? — perguntou Klein.

O presidente sacudiu a cabeça.

Nunca desconfiei de que um lugar como este existisse. Dodge deve ter arranjado dinheiro no orçamento "negro", com relação ao qual não precisa se preocupar com supervisão do Con­gresso — nem de mais ninguém.

Esse lugar foi construído e projetado com um único objeti­vo, sr. presidente: receber o ônibus espacial, retirar a amostra e destruir o ônibus espacial — declarou Smith.

Concordo — acrescentou Klein. — A operação de Bauer foi planejada e está em progresso há anos, sr. presidente. Richardson teria precisado de, no mínimo, o mesmo tempo para criar aquela instalação. E Bauer não teria entrado nesse projeto a menos que tivesse um cúmplice em quem pudesse ter absoluta confiança. A posição do general Richardson com relação ao Tratado de Armas Químicas e Biológicas que o senhor assinou é de conhecimento público. Ele se opôs ao senhor em cada passo.

E, finalmente, cruzou a linha entre o patriotismo e a traição — concluiu Castilla. Encarou os dois homens. — Ouvi o plano de vocês. Mas tenho de perguntar de novo: realmente recomendam que deixemos essa coisa aterrissar?

 

Três rostos se ergueram cheios de expectativa, os olhos voltados para o presidente quando ele voltou para o Salão Oval.

Senhoras e senhores, obrigado por sua paciência — disse o presidente para começar. — Depois de refletir cuidadosamente, decidi que o ônibus espacial deve receber autorização para aterris­sar em Groome Lake.

Todos os presentes balançaram a cabeça em sinal de assentimento.

Bill, quero ver os detalhes completos a respeito dessa insta­lação e os planos para lidar com o ônibus espacial e seu conteúdo.

O senhor os terá em menos de uma hora, senhor — respon­deu o diretor da CIA prontamente. — Também gostaria de recordar a todos que o dr. Reed solicitou especificamente que o dr. Karl Bauer esteja presente na instalação de aterrissagem. Creio que esta seja uma boa sugestão. O dr. Bauer é uma autoridade mundial em incidentes químico-biológicos. No passado já trabalhou em estrei­ta colaboração com o Pentágono — inclusive no projeto de Lake Groome — e possui autorização de acesso a segredos de Estado. Seria de inestimável valor como observador e consultor.

Houve murmúrios de concordância ao redor da mesa.

Então a reunião está encerrada — disse o presidente. O Air Force One partirá para Nevada dentro de duas horas.

 

 

Depois de enviar instruções para Dylan Reed alterar a ordem das experiências, o dr. Karl Bauer embarcara imediatamente em seu jato e voara para leste, para o amplo complexo de instalações de sua companhia perto do Laboratório de Propulsão a Jato, em Pasadena, na Califórnia.

Como sabia que o ônibus espacial só poderia aterrissar nas instalações do campo de provas de Groome Lake, Bauer tivera o cuidado de fazer com que sua presença na Califórnia parecesse uma coincidência. O plano de vôo do Havaí fora aprovado três dias antes; o pessoal de Pasadena, avisado de sua chegada.

Foi em seu escritório, de janelas com vista para as distantes Montanhas San Gabriel, que Bauer recebeu a primeira chamada de Harry Landon. Primeiro manifestou choque absoluto, depois pro­funda preocupação, quando o diretor da missão explicou a natureza da emergência que ocorrera no Discovery. Não pôde deixar de sorrir quando Landon lhe disse que Reed pedira especificamente que ele estivesse presente em Groome Lake. Bauer respondera que, é claro, estaria à disposição. Sugeriu que Landon entrasse em contato com o general Richardson para confirmar a autorização para sua presença.

O diretor de vôo, com a voz trêmula, embargada, contara a Bauer que Richardson e Price tinham morrido em um acidente quando o carro em que estavam havia derrapado e perdido o controle. O choque de Bauer foi genuíno. Agradecendo a Landon, imediatamente conectou a CNN.com e devorou os detalhes. De acordo com todos os relatos, a morte de Richardson e Price fora exatamente aquilo — um acidente.

O que significa haver menos duas testemunhas. Ótimo.

Para Bauer, ambos os homens já tinham servido a seu propó­sito. Foram especialmente úteis na remoção daquele intrometido Smith. O que faltava fazer Bauer poderia resolver ele mesmo.

Embora estivesse muito longe de sua instalação principal no Havaí, Bauer ainda tinha recursos para monitorar as transmissões NASA — Discovery. Embutido na mesa de trabalho, havia um conso­le de comunicações que estava conectado com seu computador laptop. A tela exibiu a atual distância e trajetória do ônibus espacial; no fone, ouviu em tempo real a conversa entre o Discovery e o controle de missão. A NASA estava seguindo exatamente o plano de manobras que ele previra. Depois de ver as horas, pensou que, a menos que houvesse complicações, o ônibus espacial faria a reentrada na atmosfera da Terra dentro de pouco mais de quatro horas.

Bauer tirou os fones de ouvido, fechou o laptop e desligou o console. Em poucas horas, estaria de posse de uma forma de vida absolutamente nova, uma entidade que ele criara e que se algum dia fosse liberada seria o mais temível flagelo a jamais ameaçar a Terra. Aquele pensamento o deixou inebriado. Que ninguém — pelo menos por muito tempo — o associaria ao novo vírus era uma questão de menor importância. A atitude mental de Bauer era a mesma de um colecionador de arte que comprou uma obra-prima apenas para escondê-la do mundo. A felicidade, a excitação, a emoção e a sensação de embriaguez vinham não do valor monetá­rio, mas do fato de que era única e era dele. Como o colecionador, Bauer seria o único que poderia olhar demoradamente para a varíola, testá-la, descobrir seus segredos. E já tinha um lar para abrigá-la em uma seção de contenção especial do laboratório de Big Island.

 

A 960 quilômetros a oeste do Mississippi, o Air Force One continu­ava a voar para oeste.

O presidente e o grupo de trabalho do Salão Oval estavam na sala de conferências no compartimento superior examinando os últimos informes do controle de missão. Exatamente naquela hora, o Discovery estava se aproximando da janela pela qual poderia reentrar na atmosfera terrestre. De acordo com Harry Landon, todos os sistemas a bordo da espaçonave estavam em perfeito funcionamento. Embora Dylan Reed se mantivesse na cadeira do piloto na cabine de pilotagem, os computadores no controle de missão tinham assumido o comando do Discovery.

Fluindo por alto-falantes invisíveis, a voz de Landon encheu a sala.

Sr. presidente?

Estamos todos aqui, dr. Landon — respondeu Castilla ao microfone.

Estamos prontos para iniciar a contagem para fazer a traves­sia da janela. Neste momento, senhor, tenho de avisar ao oficial res­ponsável pelo limite de segurança se deve abrir ou não o canal para ativar o sistema de auto-destruição ou se deve renunciar a esta opção.

O presidente fitou cada um dos presentes.

Se você abrir o canal, quais são as implicações?

— Isso daria margem para que houvesse... possíveis defeitos de funcionamento, sr. presidente. Mas, se o canal permanecer fecha­do, não haverá hipótese de aquela carga ser ativada.

Cuidarei disso imediatamente, sr. Landon. O senhor terá a autorização necessária em instantes.

Castilla deixou a sala de conferências, passou pela cabine do Serviço Secreto e entrou no verdadeiro coração do Air Force One — sua central de comunicações. Em uma área do tamanho de uma copa-cozinha de avião comercial, oito especialistas monitoravam consoles e cuidavam de equipamentos que estavam anos-luz à frente de qualquer coisa que o público poderia sequer imaginar. Protegidas contra sinais eletromagnéticos, as máquinas podiam enviar e receber mensagens digitalmente criptografadas para e de qualquer instalação civil ou militar dos Estados Unidos em qual­quer lugar do mundo.

Um dos três técnicos de plantão levantou a cabeça.

Sr. presidente?

Preciso enviar uma mensagem.

 

A Base Aérea Edwards ficava a 120 quilômetros a nordeste de Los Angeles, na orla do deserto de Mojave. Além de abrigar bombardei­ros equipados com mísseis nucleares e aviões de combate, e de servir como zona habitual de pouso para o ônibus espacial, a base tinha outra função, muito menos pública: era uma das seis áreas de reunião e mobilização para entrada em ação das tropas dos grupos de combate RAID que seriam ativadas caso houvesse um incidente químico-biológico.

Virtualmente desconhecido pelo público, o Rapid Attack and Incursion Detail — Destacamento de Ataque e Incursão Rápida — era similar ao NEST, o corpo de especialistas que caçava armas nucleares perdidas ou roubadas. O contingente ficava abrigado em um prédio baixo, semelhante a um bunker na seção oeste do campo de pouso. Em um hangar próximo, havia um avião de transporte C-130 e três helicópteros Commanche que levariam a equipe para o local onde ocorrera a emergência.

A sala de instruções para a equipe de combate era uma área retangular, revestida de blocos de cimento misturado com escória de carvão, do tamanho de uma quadra de basquete. Ao longo de uma das paredes, havia 12 cubículos, separados por cortinas. Em cada um havia um traje de proteção de biorrisco Nível Quatro completo, com tanque de ar e respirador, uma arma e munição. Os 11 homens que compunham aquela equipe de incursão estavam silenciosa­mente testando suas armas. Como as equipes da SWAT, dispunham de uma variedade de armas, desde rifles de assalto a diversas armas de fogo, facas e armas de choque. A única diferença entre eles e a SWAT era a ausência de atiradores de precisão. As operações do RAID eram trabalho de cerco, isolamento e ataque; a responsabilidade de garantir a segurança do perímetro com armas de longo alcance ficava com o Exército ou com uma unidade federal da SWAT.

O 12o homem, o comandante Jack Riley, estava em seu escritó­rio improvisado numa das extremidades da sala. Ele olhou por cima do ombro para seu oficial de comunicações, sentado diante de uma unidade portátil de comunicação, depois de volta para Smith.

O ônibus espacial está quase chegando, Jon — comentou. — Estamos começando a ficar meio em cima da hora.

Smith assentiu para o homem alto e magro com quem havia treinado no USAMRIID e depois servido na Tempestade no Deserto.

Eu sei.

Smith também es tivera de olho no relógio. Ele e Klein tinham partido de Washington para Groome Lake duas horas antes que o presidente e os outros embarcassem no Air Force One. Klein seguiria direto para o campo de provas, enquanto Smith se juntaria à equipe do RAID. A caminho da Base Edwards, o chefe do Execu­tivo falara com Riley, pondo-o a par de uma situação de emergência a bordo do ônibus espacial, mas sem dar maiores detalhes. Também dissera-lhe que Jon Smith estava a caminho e que Riley e sua equipe receberiam ordens dele.

Como estão os Commanches? — perguntou Smith.

Os pilotos estão a postos sentados nas cabines — respondeu Riley. — Tudo de que precisam é um aviso com dois minutos de antecedência.

Senhor, temos uma ligação do Air Force One — avisou o oficial de comunicações.

Riley tirou o fone do gancho, identificou-se e ouviu atenta­mente.

Entendido, senhor. Está sim, bem aqui ao lado. — Riley passou o telefone para Smith.

Alô? — disse Smith.

Jon, aqui é o presidente. Estamos a cerca de sessenta minu­tos de Groome Lake. Qual é a situação por aí?

—Todos prontos para entrar em ação. Tudo de que precisamos são as plantas da câmara.

Estão sendo enviadas agora mesmo. Ligue para mim depois que você e Riley as tiverem examinado.

Quando Smith desligou, o oficial de comunicações havia arru­mado os fax recém-chegados sobre uma mesa.

Parece um incinerador industrial — murmurou Riley.

Smith concordou. As cópias dos desenhos técnicos mostravam uma área retangular de 43 metros de comprimento por 12 metros de largura e 18 metros de altura. Todas as quatro paredes eram construídas com concreto reforçado. Uma parte do teto era, na realidade, uma rampa que se fecharia hermeticamente depois que o ônibus espacial estivesse lá dentro. A primeira vista, poderia ter parecido um estacionamento ou uma área de depósito. Mas, exami­nando mais detalhadamente, Smith viu o que Riley havia mencio­nado — as paredes eram recobertas de tubulações que, de acordo com as plantas, eram conectadas a encanamentos de gás. Smith podia imaginar muito bem o tipo de inferno que criariam quando fossem acesos.

Estamos partindo da premissa verdadeira de que o ônibus espacial esteja limpo do lado de fora, certo? — perguntou Riley. — Nada poderia ter saído?

Smith sacudiu a cabeça.

Mesmo que pudesse, o calor da reentrada se encarregaria de deixar limpa toda a superfície externa. Não, é o interior que é a zona quente.

Nosso tipo de área de recreio.

Exato, só que dessa vez pode ser que tenhamos de tomá-la de uma outra pessoa — disse Smith.

Riley o puxou para um canto.

Jon, esta operação não está andando exatamente como manda o regulamento. Primeiro o presidente me telefona e me diz para pôr a equipe pronta para uma ação. A única informação que ele me dá é que vamos para algum lugar em Nevada. Este lugar, depois fico sabendo, é uma base secreta em Groome Lake onde o ônibus espacial vai fazer um pouso de emergência porque houve um acidente com contaminação bioquímica. Agora, parece que você pretende incinerar o diabo da coisa.

Smith fez com que Riley o acompanhasse até se afastarem o suficiente para não serem ouvidos pelo resto da equipe. Um mo­mento depois, um dos integrantes da equipe RAID cutucou um companheiro.

Olhe só para a cara do Riley. Parece que vai botar as tripas para fora.

Na verdade, Jack Riley estava desejando nunca ter perguntado a Smith o que havia a bordo do ônibus espacial.

 

Megan Olson aceitara o fato de ter esgotado todas as alternativas. O ninho de fios a derrotara. Nenhuma das combinações que tentara tinha funcionado. A porta da câmara de vácuo permanecia fechada.

Afastando-se da porta, Megan ouviu a conversa entre Reed e o controle de missão. O ônibus espacial estava a apenas alguns minutos de entrar na janela atmosférica pela qual voltaria à Terra. Aquele era exatamente o tempo de que ela dispunha para decidir.

Megan se obrigou a olhar para os pinos explosivos encaixados em cada um dos cantos da porta. Durante o treinamento, seus instrutores tinham-nos mostrado, dizendo que na verdade eram uma redundância. A tripulação nunca precisaria usá-los. Estavam lá para o caso de a equipe de terra da NASA precisar entrar durante uma emergência para retirar a tripulação depois de o ônibus espa­cial ter aterrissado.

Depois de aterrissar, os instrutores haviam enfatizado. E só se a entrada pelas portas principais fosse, por algum motivo, impossí­vel. Tinham advertido de que os pinos eram munidos de um dispo­sitivo de controle de tempo que dariam tempo à tripulação de terra para buscar cobertura.

— Esses pinos criam uma explosão controlada — recordou os instrutores comentarem. — Você não iria querer estar a menos de 15 metros quando explodissem.

Megan calculava que, na melhor das hipóteses, estava a quatro, talvez quatro metros e meio da porta da câmara de vácuo.

Se você vai fazer isso, faça agora!

Por causa de seu treinamento no 'Planeta do Vômito', Megan sabia que a trepidação causada pela descida através da atmosfera da terra seria ainda pior que a do lançamento. Lembrava-se de Carter dizer "era como estar montando um touro brahma em um rodeio". Tudo e todos tinham de estar muito bem presos com cintos e faixas de segurança. Se ficasse ali na câmara de vácuo, seria arremessada de um lado para o outro contra as paredes até perder a consciência — ou pior. O traje EMU certamente se rasgaria, de modo que, mesmo que ela sobrevivesse à reentrada, o vírus que Reed liberara na espaçonave a mataria. Mas havia alternativas. Tinha de dar a si mesma uma oportunidade de ir até o laboratório espacial, encontrar a monstruosidade que Reed criara e destruí-la, antes que o ônibus espacial estivesse demasiado próximo da Terra.

Megan sentiu uma calma se apoderar dela, apesar de seu coração estar batendo disparado e forte como uma britadeira. Concentrou a atenção nos parafusos com cabeças hexagonais, pin­tadas de vermelho com um ponto amarelo no centro. Tomando impulso da parede, flutuou atravessando o piso. Quando alcançou o parafuso inferior direito, pressionou o ponto amarelo. Um peque­no painel de controle deslizou para fora. O mostrador de cristal líquido piscou à sua frente: ARMAR/DESARMAR. Cuidadosamente, porque a luva da EMU dificultava os movimentos de seus dedos, pressionou ARMAR.

Merda!

O cronômetro imediatamente se ativou iniciando uma conta­gem regressiva de sessenta segundos, um período de tempo menor do que Megan previra. Tomando impulso no piso, ela se segurou e ativou os dois parafusos superiores. Quando acabou, restavam-lhe vinte segundos.

Megan deu dois passos, depois flutuou afastando-se da porta o máximo possível. Apesar de ter baixado o visor, ainda podia ver as luzes pulsando no centro dos parafusos. Sabia que deveria virar-se de costas para a porta da câmara de vácuo, ou pelo menós manter-se de lado, de modo que as explosões não a apanhassem na face. Mas, à medida que os segundos iam se passando, não conseguiu despregar os olhos das luzes piscando.

 

Dois níveis acima, na cabine de pilotagem, Dylan Reed recebia as instruções finais de Harry Landon no controle de missão.

Você está progredindo muito bem — comentou Landon. — A reentrada está no curso previsto.

Não posso ver o cronômetro — observou Reed. — Quanto tempo de blecaute de comunicações?

Quinze segundos.

Um blecaute de comunicações era uma ocorrência normal durante a reentrada. A interrupção durava cerca de três minutos e ainda era, mesmo depois de todos os vôos tripulados, o intervalo mais desgastante para os nervos da missão inteira.

Está com todos os cintos de segurança bem presos, Dylan?

perguntou Landon.

Tanto quanto é possível. Esse traje é um pouco volumoso.

Agüente firme e tentaremos fazer com que o percurso seja tão tranqüilo e rápido quanto for possível — Landon fez uma pausa.

Dez segundos... Boa sorte, Dylan. Falo com você depois da reentrada. Sete, seis, cinco...

Reed se recostou e fechou os olhos. Pensou que imediatamente depois da reentrada e do restabelecimento de contato com Landon, teria de voltar ao laboratório espacial e...

O ônibus espacial corcoveou, a força quase arrancando Reed dos cintos que o prendiam ao assento.

Que diabo foi isso?! Harry!

Dylan, qual é o problema?

Harry, houve...

 

A voz de Reed foi cortada abruptamente. Nada, exceto um ligeiro som de estática enchia os alto-falantes do controle de missão.

Repita a gravação!

Que diabo foi isso?! Harry!

Dylan, qual é o problema?

Harry, houve...

Uma explosão! — sussurrou Landon.

 

O grupo de trabalho ainda estava na sala de conferências do Air Force One com o presidente quando o oficial responsável pelas comunicações entrou apressado. Depois de ler a mensagem rapida­mente, o rosto de Castilla empalideceu.

Tem certeza? — perguntou, encarando o oficial.

Landon afirma que sim, senhor.

Ponha-me em contato com ele. Agora! Olhou ao redor da mesa.

Alguma coisa explodiu no ônibus espacial.

 

Os parafusos saíram voando como foguetes na direção de Megan, chocando-se e penetrando nas paredes da câmara de vácuo. Mas, como o ônibus espacial havia corcoveado na reentrada, a porta, que teria voado diretamente para cima dela foi arremessada violenta­mente para a esquerda. Bateu e quicou duas vezes na parede, passou velozmente a poucos centímetros de Megan, depois chocou-se contra a outra parede.

Sem parar para pensar, Megan tomou impulso e seguiu para a porta, agarrando-a e imobilizando-a com os dois braços. Ficou segurando-a por um momento, depois a soltou e deixou que saísse flutuando.

Passando pela cavidade da entrada para o compartimento inferior, subiu a escada para o compartimento central e dirigiu-se para a porta que dava para o túnel de comunicação até o laboratório espacial.

 

Ela explodiu os parafusos! A vaca explodiu os parafusos!

Reed teve certeza assim que sentiu os tremores sacudirem a nave. A confirmação veio sob a forma de luzes piscando no console, indicando defeito de funcionamento na porta da câmara de vácuo.

Libertando-se dos cintos e tiras, Reed moveu-se em direção à escada e, como um mergulhador saltando para dentro d'água, mergulhou de cabeça. Calculava que tinha cerca de dois minutos para encontrar Megan. Depois disso, a trepidação tornaria o per­curso da nave acidentado demais para continuar uma busca. A nave também sairia do blecaute. Reed não tinha nenhuma dúvida de que mesmo que o controle de missão não tivesse ouvido a explosão, seus instrumentos a teriam registrado. Harry Landon o encheria de perguntas, exigindo explicações e atualizações.

Enquanto Reed serpenteava descendo a escada, descobriu-se admirado com as ações de Megan. Fora preciso ter coragem — mais do que pensara que ela tinha — para explodir a porta da câmara de vácuo. Mas as probabilidades eram de que estivesse morta. Já vira os efeitos de uma explosão em um espaço confinado como uma câmara de vácuo.

Reed alcançou o compartimento central e estava quase seguin­do adiante quando percebeu um movimento pelo canto do olho.

Meu Deus, ela está viva!

Reed observou enquanto Megan, de costas para ele, girava o volante tipo porta de submarino da porta do túnel. Foi a uma caixa de ferramentas, abriu uma gaveta e tirou um serrote especialmente projetado.

 

Sentado no Commanche líder, Jon Smith observou os semblantes sombrios dos outros agentes do RAID. Naquele momento, todos vestiam macacões de vôo. Isso mudaria assim que chegassem a Groome Lake, onde vestiriam seus trajes de proteção Nível Quatro antes de entrar no bunker.

Virando-se para Jack Riley, falou no microfone do capacete de vôo.

A que distância estamos?

Riley levantou um dedo e se comunicou com o piloto.

Quarenta minutos — respondeu. — Pode ter certeza de que já estamos no radar de Groome Lake. Mais alguns quilômetros e vão mandar um helicóptero deles ou um par de F-16, só para dar uma olhada.

Ele levantou as sobrancelhas.

O que o presidente ainda está esperando? O Air Force One já aterrissou há quase meia hora.

Como se ouvindo a deixa, uma outra voz soou no fone de Smith.

Aqui é Pássaro Azul chamando RAID Um.

Smith respondeu imediatamente.

— RAID Um na escuta. Prossiga, Pássaro Azul. — Pássaro Azul era o código que identificava Nathaniel Klein.

Jon?

Estou aqui, senhor. Estávamos nos perguntando quando nos chamaria.

Tivemos um... um problema por aqui. O presidente acabou de dar a ordem de autorização para que seu vôo aterrisse. Para o propósito desta missão, você e seu pessoal serão considerados como fazendo parte da comitiva dele.

Sim, senhor. Mencionou um problema?

Houve uma ligeira hesitação.

O controle de missão relatou que manteve contato com Reed imediatamente antes do ônibus espacial entrar na zona negra. A última coisa que Landon ouviu foi uma explosão, que os computa­dores depois confirmaram.

A nave está intacta? — perguntou Smith.

De acordo com a verificação dos instrumentos, o Discovery ainda está seguindo o plano de vôo designado. A explosão ocorreu numa câmara de vácuo. Por algum motivo que desconhecemos, os parafusos explodiram.

A câmara de vácuo... Onde estava Reed na ocasião?

Na cabine de pilotagem. Mas Landon não tem certeza com relação à extensão dos danos e nem mesmo se Reed ainda está vivo. Ninguém está respondendo lá em cima, Jon.

 

 

A última coisa que Megan ouviu no fone foi a conversa entre Reed e Harry Landon, segundos antes que os parafusos na câmara de vácuo explodissem. Depois de subir para o compartimento central, percebeu que Reed descera para investigar. Tinha de se certificar de que ela estivesse morta ou ferida — qualquer das duas possibilida­des era conveniente a seus propósitos. Se não a encontrasse na câmara de vácuo nem no compartimento inferior, começaria a procurar em outro lugar.

Megan sabia que não poderia se esconder dele por muito tempo. A nave era pura e simplesmente pequena demais. Havia apenas uma maneira de escapar. Seguindo para o compartimento central, ela flutuou para a porta que dava passagem para o túnel de comunicação que ia até o laboratório espacial. Agarrou as alças do volante da porta e começou a girá-lo.

Mas Megan em nenhum momento se esqueceu de que estava de costas para a escada que ligava os três níveis. Jamais ouviria Reed se ele a descobrisse e se aproximasse dela pelas costas. O pequeno espelho que colocara no piso apoiado na parede do túnel salvaria sua vida.

No reflexo, vira Reed descer a escada, hesitar, depois avistá-la e começar a flutuar em sua direção. Ela o observou parar junto de uma caixa de ferramentas, retirar uma espécie de serrote de poda, depois continuar a chegar mais perto.

Megan girara o volante da porta o máximo possível, mas manteve as mãos nas alças e fingiu que o volante estava travado. Olhando para baixo, viu Reed se aproximar com a mão direita estendida para ela. Em sua mão o serrote parecia o bico de um marlim.

Megan deixou a mão esquerda escorregar soltando o volante. Embutido na porta havia um botão de disparo que puxava a porta, abrindo-a, depois que o volante fosse totalmente girado. Com os olhos cravados no espelho, calculou a distância entre si e Reed. Sua capacidade de escolher o momento certo para agir teria de ser perfeita.

Reed observou Megan dar trancos enquanto tentava forçar o volante a girar. Levantando o serrote, flutuou para mais perto. Como ela estava de pé, Reed escolheu um ponto entre o pescoço e o ombro. Os dentes do serrote cortariam o plástico do traje espacial. O resultado seria despressurização imediata. O ar dentro do traje sairia rapidamente e o ar contaminado que a cercava entraria pelo rasgão. Depois de duas ou três inalações, a varíola estaria em seus pulmões.

Em estado de microgravidade, é impossível se mover realmen­te com velocidade. Quando Reed começou o movimento giratório para descer o braço, parecia estar se movendo em câmera lenta. Mas Megan, usando a porta para tomar impulso, arremessou-se, impelindo-se lateralmente para se afastar da porta. Ao fazê-lo, apertou o botão de abertura. Com um sibilar de ar comprimido, a porta girou, abrindo-se, enquanto Reed flutuava para o espaço que Megan estivera ocupando apenas um segundo antes. A porta pesada o apanhou batendo em cheio no capacete de Reed, atirando-lhe para trás, depois empurrando-o enquanto se abria totalmente. Os dedos dele largaram o serrote, que se afastou flutuando.

Atordoado e cambaleante, Reed fez uma débil tentativa de agarrar Megan enquanto por ele passava flutuando e entrava no túnel. Lá dentro, encontrou um outro botão, apertou e observou a porta começar a se fechar.

Ande logo, vamos, ande logo.

A porta pareceu se mover bem devagar em sua direção. Tão logo conseguiu alcançar as alças no volante, começou a puxar.

Viu o brilho repentino do serrote enquanto passava rapida­mente num movimento cortante pela abertura, a apenas centíme­tros da manga de seu traje. Quando Reed o puxou para trás para golpear de novo, ela conseguiu fechar a porta e girar o volante. Os cilindros das trancas foram acionados, e Megan puxou a alavanca de emergência para travá-los.

A voz rascante de Reed fez seu coração saltar até a garganta.

Que garota esperta você é, Megan. Está me ouvindo? Tam­bém conseguiu consertar seu intercomunicador?

Megan apertou um botão no aparelho e ouviu um ligeiro crepitar.

Estou ouvindo você respirar — disse Reed. — Ou, mais precisamente, hiperventilando.

E eu ouço você, mas não muito bem — respondeu ela. — Vai ter de falar mais alto.

Fico satisfeito por você não ter perdido seu senso de humor — disse Reed. — Muito traiçoeiro o que você fez. Estava se fazendo de boba inocente, não é? Esperando por mim...

Dylan... — não sabia por onde começar.

Você acha que agora está segura? — perguntou ele. — Enquanto as trancas de emergência estiverem travadas, não vou poder entrar. Mas se pensar bem no assunto, Megan, se deixar de lado seu pânico e realmente pensar, vai ver que isso não é verdade.

Megan se esforçou para compreender a que ele estava se refe­rindo, mas não lhe ocorreu nada.

Não importa o que você pense que pode fazer, nunca deixará esta nave com vida — prosseguiu Reed.

Contendo um calafrio, Megan respondeu:

—Você também não vencerá, Dylan. Vou destruir o horror que fez aqui.

É mesmo? Você não tem idéia do que eu fiz aí dentro.

Ah, mas tenho, tenho sim!

Eu vou encontrar!

Com menos de sessenta minutos para a aterrissagem? Creio que não vai. O máximo que vai poder fazer é tentar se manter viva quando passarmos pelos últimos estágios da reentrada. E, Megan, mesmo se encontrasse, o que faria — jogaria fora pelos portais de lixo? Não seria má idéia — se ainda estivéssemos no espaço. Mas, uma vez que você não tem idéia de em que eu estava trabalhando, como pode ter certeza de que morrerá depois que estivermos na atmosfera da Terra? Jogar fora significaria correr o risco de possi­velmente disseminá-lo.

Fez uma pausa.

Você não viu os corpos, não é? Ainda bem, sinceramente. Mas, se tivesse visto, nem sequer pensará em dispersar um vírus.

Reed deu uma risadinha.

Agora está perguntando a si mesma, onde eu teria posto? De que maneira estará disfarçado? Tantas perguntas e nenhum tempo para encontrar as respostas. Porque praticamente estamos chegan­do ao momento de nossa próxima cavalgada trepidante. Se fosse você, procuraria alguma coisa em que me segurar — rapidamente.

Megan ouviu o clique do microfone quando Reed desligou. Então sentiu um tremor percorrer a nave à medida que o ônibus espacial atravessava mais uma camada da atmosfera da Terra. Sem olhar para trás, começou a se encaminhar para o laboratório espa­cial apoiando-se nas paredes.

 

Reed tornou a subir para a cabine de pilotagem e conseguiu se prender com o cinto e as tiras de segurança na cadeira do comandan­te, enquanto as ondas de turbulência atingiam o ônibus espacial. A nave trepidou, depois deu uma guinada. Checando o painel de instrumentos, Reed viu que o motor do sistema de manobra orbital entrara em ação, reduzindo a velocidade da nave apenas o suficiente para que a gravidade pudesse exercer efeito. Se tudo corresse bem, a gravidade atrairia o Discovery tirando-o de órbita e levando-o a planar suavemente até a Terra.

A forte trepidação transformou-se numa série de vibrações à medida que a velocidade da nave se reduzia de 25 vezes para duas vezes a velocidade do som. Então o sacolejar cessou totalmente e o Discovery entrou em sua rota de planador. O blecaute de comunica­ções acabara e Reed ouviu a voz aflita de Harry Landon.

— Discovery, está na escuta? Dylan, está me ouvindo? — depois de uma pausa — nossos instrumentos registraram uma explosão a bordo. Pode confirmar? Você está bem?

Não tenho tempo para isto agora, Harry.

Reed fechou o canal de comunicação e examinou o painel de instrumentos até encontrar o que estava procurando. Dissera a Megan que estava enganada ao pensar que ele não poderia passar pelas trancas na porta do túnel. Perguntou a si mesmo se ela já teria descoberto como. Provavelmente não. Por mais inteligente e capaz que Megan fosse, ainda era uma novata. Não tinha como saber que um comutador no painel de controle da cabine de pilotagem podia desativar as trancas na porta do túnel.

Não havia muita coisa em que pudesse se segurar dentro do labora­tório espacial, de modo que Megan improvisou. No centro do laboratório, havia um objeto metálico que parecia um cruzamento entre uma roda de tortura dos dias de hoje e uma espreguiçadeira ultra moderna. Seu nome técnico era Experimento de Fisiologia Espacial. A tripulação a chamava de "cadeira trenó". Ali, os mem­bros da tripulação, deitados de barriga para cima e bem presos por tiras de segurança, submetiam-se a testes para verificar os efeitos da gravidade nas articulações e nos músculos, sobre o sistema auditivo interno e o globo ocular, além de várias outras experiências.

Apertando bem todas as tiras de segurança prendendo-a na cadeira trenó, Megan conseguiu suportar bem a turbulência até passar. Então soltou as tiras e, com um esforço considerável, levan­tou-se. A tonteira, causada pelo volume reduzido de sangue, apode­rou-se dela imediatamente. Megan sabia que levaria no mínimo alguns minutos para que o volume aumentasse à medida que a nave se aproximasse da Terra. O processo teria sido mais rápido se tivesse um pouco de água e tabletes de sal para tomar.

Mas não tem. E seu tempo está se esgotando!

Ela examinou a dúzia de prateleiras que serviam de postos de trabalho para as experiências do laboratório espacial.

Pense! Onde ele poderia ter guardado?

O olhar de Megan percorreu o sistema acelerador de medida espacial, depois o equipamento de ponto crítico. Não. Começou a se encaminhar para o módulo de investigação vestibular de micro-gravidade, e então parou.

Um vírus... Reed modificou a ordem das experiências. Ele se colocou como o primeiro da lista, ocupando o meu lugar! Ele precisava do Biorack!

Megan se aproximou do Biorack e ligou os sistemas. O CD de gravação de arquivo estava em branco.

Seja o que for que tenha feito, ele apagou os arquivos.

Olhando para a caixa de luvas, descobriu que estava vazia.

Foi ali que você fez seu trabalho, seu filho-da-puta. Mas onde foi que guardou os resultados?

Megan examinou as duas unidades incubadoras, os painéis de acesso e de controle, e o painel de eletricidade. Este estivera ligado antes mesmo que ela tocasse no sistema operacional do Biorack...

... porque o refrigerador está ligado!

Megan abriu o refrigerador e examinou o conteúdo. Tudo estava no lugar. Nada fora retirado ou acrescentado. De modo que restava o freezer.

Puxando para baixo o painel, rapidamente inventariou o con­teúdo. A primeira vista, tudo que havia ali estava previsto e podia ser explicado. Não satisfeita, puxou uma bandeja de tubos de ensaio padrão, examinou suas identificações e empurrou a bandeja de volta. Repetiu o processo com mais duas bandejas. Na terceira, encontrou um tubo sem identificação.

Assim que o vôo do ônibus espacial se estabilizou, Reed abriu as fivelas dos cintos que o prendiam ao assento do comandante. Iniciou um programa de computador que cancelava os comandos, acionou o cronômetro e ativou a seqüência. Se seu cálculo estivesse correto, deveria chegar à porta do túnel no instante em que o programa destravaria as trancas de emergência.

Descendo a escada, Reed entrou no compartimento central e caminhou lentamente até a porta. Teve de esperar apenas uns pou­cos segundos até que as trancas se destravassem. Girando o volante, empurrou a porta até abri-la e começou a se arrastar pelo túnel. Quando chegou ao fim, abriu a porta do laboratório espacial. Lá estava Megan, de pé diante do Biorack, revistando o refrigerador.

Reed se aproximou dela pelas costas. Seu braço direito a acertou na lateral do peito enquanto o pé lhe dava uma rasteira. A gravidade encarregou-se do resto. Megan caiu para trás, batendo pesadamente no ombro e rolando pelo piso.

— Não se dê ao trabalho de se levantar — disse Reed no microfone. — Está me ouvindo?

Ele a viu assentir, então abriu o freezer e puxou uma bandeja de tubos de ensaio. Sabia exatamente onde havia colocado o que continha a varíola e lá estava ele. Enfiando-o em um bolso com fecho de Velcro, afastou-se. Megan se virara de maneira a poder olhar para ele.

Ainda pode pôr um fim a isso, Dylan.

Ele sacudiu a cabeça.

Não se pode botar o gênio de volta dentro da lâmpada má­gica. Mas pelo menos você vai morrer sabendo que é o nosso gênio.

Reed não despregou os olhos dela enquanto recuava em dire­ção à porta. Saindo para o túnel, fechou e trancou a porta.

O relógio acima indicava que faltavam vinte minutos para a aterrissagem.

 

 

Pouco mais de uma hora se passara desde que o Air Force One aterrissara em Groome Lake, Nevada. Escoltado por um par de caças F-15 Eagle, pousara na mesma pista que, uma década antes, fora construída para as provas de vôo do bombardeiro B-2. Assim que a plataforma presidencial chegou ao solo, um contingente de seguranças da Força Aérea acompanhou o chefe do Executivo e seu grupo de trabalho até as instalações para a aterrissagem do ônibus espacial a 2.400 metros dali.

Apesar do calor, o presidente insistiu em percorrer a pé a pista de pouso com seu grupo e depois descer a rampa que dava para a área de biocontenção. Examinou o interior do bunker. Com as paredes lisas de concreto, interrompidas apenas pelos orifícios de saída para os jatos de gás, o lugar o fez pensar em um gigantesco crematório.

Que é exatamente isto...

O presidente apontou para um tubo semelhante a um casulo, com 2,5 metros de altura, 1,5 metro de largura, que se estendia de uma das paredes até o meio do bunker, como um gigantesco cordão umbilical.

— O que é aquilo? — perguntou a um tenente da polícia da Aeronáutica.

Castilla se virou quando ouviu o zumbido suave de um carri­nho de golfe movido a bateria elétrica. Sentado ao lado de um guarda de segurança da força aérea, estava o dr. Karl Bauer. Quando o carrinho parou perto do grupo, Bauer saltou e, depois de cumpri­mentar os membros da comitiva com acenos de cabeça, encaminhou-se diretamente para o presidente.

Sr. presidente — disse em tom grave. — É um prazer vê-lo de novo. Embora preferisse que fosse em circunstâncias mais agradáveis.

O presidente sabia que seu ponto fraco eram seus olhos. Eles sempre traíam seus humores e emoções. Tentando não se recordar do que Smith e Klein lhe haviam relatado, obrigou-se sorrir e apertar a mão de um homem a quem outrora havia respeitado, que fora recebido com honras na Casa Branca. Que é uma porra de um monstro.

Mas o que disse foi:

— O prazer é meu, dr. Bauer. Creia-me, sou-lhe muito grato por estar aqui — ele fez um gesto em direção ao casulo. — Talvez possa me explicar o que é aquilo.

Com certeza.

Bauer o conduziu até a ponta do casulo. Olhando para o inte­rior, o presidente viu que o último metro e oitenta da câmara era isolado do resto, criando uma espécie de galeria ou câmara de vácuo.

Este casulo portátil foi projetado e fabricado por mim — disse Bauer. — Pode ser transportado de avião para qualquer lugar do mundo, montado numa questão de horas, depois acoplado por controle remoto ao alvo. Seu único propósito é retirar um indivíduo de uma zona quente em que possa ser difícil ou impossível entrar — que é a situação que estamos enfrentando.

Por que não entrar diretamente no ônibus espacial, doutor? Sem dúvida com os trajes de proteção isto é possível.

Possível, sim, sr. presidente. Mas recomendável? Não. Não temos idéia do que está à solta dentro da nave. No presente momen­to, temos um sobrevivente, o dr. Reed, que não está contaminado. Seria melhor trazê-lo para fora da nave e submetê-lo a um processo de descontaminação em vez de correr o risco de mandar alguém ir buscá-lo. Há menos probabilidade de um acidente e poderíamos descobrir muito rapidamente o que aconteceu.

Mas o dr. Reed não sabe o que aconteceu — objetou o presidente. — Nem com que estamos lidando.

Não podemos ter certeza — respondeu Bauer. — Nessas circunstâncias não é incomum que as pessoas tenham observado coisas ou que se lembrem de mais do que imaginam inicialmente. De qualquer maneira, temos de enviar uma sonda robô para colher amostras. Aqui temos um laboratório com equipamento completo. Poderei lhe dizer em menos de uma hora com que estamos lidando.

Enquanto isso, o ônibus espacial fica aqui, parado, e "quen­te", como vocês costumam dizer.

Certamente o senhor pode dar a ordem para que seja destruído imediatamente — respondeu Bauer. — Entretanto, há os corpos dos outros membros da tripulação. Se houver alguma chance de retirá-los, dar-lhes um enterro decente, creio que deveríamos agüentar, esperar um pouco para não perder essa possibilidade.

O presidente fez um enorme esforço para manter sua raiva sob controle. A preocupação do açougueiro por suas vítimas era quase mais do que ele podia suportar.

Concordo. Por favor, continue.

Depois que o casulo estiver acoplado ao ônibus espacial, entrarei pela outra extremidade, atrás da parede — explicou Bauer. — Entrarei nessa pequena câmara de descontaminação, farei um exame para me certificar de que está em ordem e a vedarei. Só então o dr. Reed receberá instruções para abrir a porta do Discovery e entrar diretamente na área de descontaminação.

Bauer apontou para as tubulações de PVC que se estendiam pelo teto ao longo do comprimento do casulo.

Esses tubos fornecem eletricidade e detergentes de descon­taminação. A câmara é equipada com luz ultravioleta, mortal para todas as formas conhecidas de bactérias. O detergente é uma precaução adicional. O dr. Reed se despirá. Tanto ele quanto seu traje espacial — exceto pela amostra de que precisamos — serão limpos ao mesmo tempo.

Por que limpar o traje?

Porque não temos um meio prático de destruí-lo dentro da câmara, sr. presidente.

O presidente se lembrou da pergunta que Klein lhe pedira que fizesse. A resposta de Bauer era vital, mas tinha de ser obtida de maneira a não despertar a menor suspeita.

Se o traje precisa ser esterilizado — perguntou —, então como a amostra será retirada?

— A câmara possui um equipamento de transporte — explicou Bauer. — O dr. Reed depositará a amostra numa bandeja fixa sobre uma esteira. Do outro lado, acionarei a esteira para trazer a bandeja para dentro da caixa de luvas. Desse modo a amostra permanecerá sempre dentro de um ambiente seguro. Usando a caixa de luvas, colocarei a amostra dentro de um recipiente seguro e vedado, depois sairei com este recipiente.

E o senhor vai fazer tudo isso sozinho.

Como pode ver, sr. presidente, o espaço dentro do casulo é bastante limitado. Sim, vou trabalhar sozinho.

De modo que ninguém possa ver o que você realmente está fazendo.

O presidente deu um passo para trás olhando para o casulo.

Tudo isso é bastante impressionante, dr. Bauer. Esperemos que funcione como o senhor diz.

Funcionará, sr. presidente. No mínimo, sabemos que pode­mos salvar uma dessas bravas almas.

O presidente virou-se para o grupo.

Creio que, na medida do possível, estamos prontos.

Recomendo que nos encaminhemos para o bunker de obser­vação — sugeriu o diretor da CIA, Bill Dodge. — O ônibus espacial está a quinze minutos de viagem. Poderemos assistir a aterrissagem nos monitores.

Houve algum contato com o dr. Reed? — perguntou o presidente.

Não, senhor. As comunicações ainda não foram restabe­lecidas.

E a explosão?

Ainda estou esperando por mais detalhes, sr. presidente — respondeu Marti Nesbitt. — Mas, o que quer que tenha sido, não afetou a trajetória de vôo do Discovery.

Enquanto o grupo seguia o presidente para a entrada do bunker, Castilla olhou para trás.

O senhor não vem conosco, dr. Bauer?

A expressão de Bauer estava adequadamente sombria.

Ah, não, sr. presidente. Meu lugar é aqui.

 

Agarrando-se ao sistema de aceleração do espaço, Megan conseguiu se levantar. Seu peito latejava onde Reed a acertara e sentia uma dor penetrante na base da coluna onde batera ao cair.

Seu tempo está se esgotando. Mexa-se!

Megan cambaleou até a cadeira trenó. Não tinha nenhuma dúvida de que Reed usaria o sistema de autodestruição do Discovery para explodir e transformar em vapor todas as provas de seu trabalho diabólico. Aquela seria a única maneira de assegurar sua segurança. Fora por isso que não a matara antes de sair do laboratório espacial. Megan examinou a cadeira trenó e teve certeza de que era sua única esperança.

Não havia nenhum equipamento de comunicações propria­mente dito no laboratório. Mas, durante os testes e exames médicos, os tripulantes ficavam conectados não somente com os instrumen­tos de gravação a bordo do Discovery, mas também com um equipa­mento transmissor de áudio que enviava o sinal com os resultados diretamente para os médicos no controle de missão. Acomodando- se na cadeira, Megan prendeu as tiras nos tornozelos e em um dos pulsos. Com a mão livre, conectou um plugue de microfone na unidade de comunicações em seu traje espacial. Até onde sabia, o transmissor enviava sinal digitalizado, não sinal de voz, mas com dados convertidos em digitais para o controle de missão. Mas, mesmo assim, ninguém nunca lhe dissera que comunicações de voz fossem impossíveis.

Por favor, permita que alguém do outro lado me ouça, rezou, e ativou o painel de instrumentos da cadeira.

 

— RAID Um para Espelho, responda.

A voz do piloto no Commanche líder crepitou no fone de Smith. Um segundo depois, ele ouviu a resposta da torre de Groome Lake.

RAID Um, aqui é Espelho. Você está em espaço aéreo restrito. Solicito autorização imediata.

A autorização é Chapéu de Cobre — respondeu o piloto calmamente. — Repito, Chapéu de Cobre.

Chapéu de Cobre era o nome código do Serviço Secreto para o presidente.

Vôo RAID, aqui é Espelho — respondeu o controlador de vôo. — Temos sinal positivo para sua identidade. Está autorizado a pousar na pista R 27, L esquerda.

R 27, L esquerda, entendido — respondeu o piloto. — Aterrissagem em dois minutos.

Onde está o ônibus espacial? — perguntou Smith.

O piloto sintonizou a freqüência da NASA.

A 13 minutos de vôo.

No controle de missão, Harry Landon estava acompanhando o progresso do ônibus espacial através da atmosfera em um gi­gantesco quadro que mostrava seu percurso, onde a nave aparecia como um ponto vermelho que vinha descendo suavemente. Den­tro de poucos minutos, satélites de baixa altitude teriam condições de transmitir imagens. A medida que o Discovery se apro­ximasse, aviões de reconhecimento da Força Aérea poriam suas câmeras em ação.

Landon?

Landon levantou o olhar para o técnico de comunicações.

Que foi?

Não tenho certeza, senhor — respondeu o técnico, visivel­mente confuso. Entregou uma folha impressa com informações de um computador. — Isso acabou de chegar.

Landon passou os olhos rapidamente pela folha.

É o sinal de transmissão dos dados médicos da cadeira trenó — sacudiu a cabeça. — Deve ser algum defeito. Reed está na cabine de pilotagem. Para que esta transmissão de sinal estivesse correta, seria necessário que alguma outra pessoa estivesse na cadeira trenó.

Eu sei, senhor — concordou o técnico. Não precisava de que ninguém lhe recordasse que alguém teria que estar vivo. — Mas olhe para isto. Os instrumentos da cadeira estão ligados. O monitor de batimentos cardíacos mostra sinais de atividade — muito fracos, mas, mesmo assim, há atividade.

Landon ajeitou os óculos de leitura no nariz. O técnico estava certo: o monitor de batimentos cardíacos registrava um organismo vivo.

Mas que diabo será isso?

Escute só isso, senhor — disse o técnico. — São os últimos minutos de gravação da fita de comunicação. Continuamos gravan­do apesar...

Landon agarrou os fones.

Rode para mim!

Desde o princípio da emergência, Landon tinha ouvido tantas horas de transmissão que podia excluir o sibilar e o crepitar que encheu seus ouvidos. Além da estática ouviu alguma coisa, preca­riamente discernível, mas distintamente humana... uma voz cha­mando do éter.

Aqui é... Discovery... Laboratório espacial... estou viva... Repito, viva... Ajudem-me...

 

Jack Riley e sua equipe do RAID começaram a saltar para fora dos helicópteros antes mesmo que os rotores dos Commanches paras­sem de girar. Smith olhou rapidamente para os enormes hangares enfileirados como tartarugas pré-históricas, os telhados pintados de um marrom fosco para não se destacarem na paisagem desolada. Ao sul e a oeste, havia cadeias de montanhas; a nordeste, nada senão deserto. Apesar do barulho intenso produzido por homens e máquinas, pairava uma estranha quietude na base.

A equipe arrumou o equipamento em um caminhão aberto que havia estacionado nas proximidades, depois embarcou nele para fazer o pequeno percurso. Smith e Riley seguiram no veículo blindado.

O interior do hangar estava separado em seções por divisórias para dar privacidade à equipe e, Smith desconfiava, para impedir que vissem o que mais havia armazenado ali. Como Riley promete­ra, um console de comunicações estava montado e em funciona­mento, sendo operado por uma jovem oficial.

—Coronel — disse ela. — Há mensagens de Pássaro Azul para o senhor.

Smith ajustava o fone na cabeça quando Klein entrou na linha.

Em que pé estão as coisas com vocês, Jon?

Estamos vestindo os trajes Nível Quatro neste momento. E o ônibus espacial?

Já estará na câmara de biocontenção quando vocês chega­rem lá.

E Bauer?

Não desconfia de nada. Já está vestido com o traje de proteção e pronto para acoplar o casulo ao ônibus espacial.

Smith vira as plantas e fotos da criação de Bauer, mas nunca estivera dentro dela.

— Jon, há uma coisa que você precisa saber — e ouvir — disse Klein. — Há alguns minutos, Landon recebeu comunicações do interior do laboratório espacial. Era um pedido de socorro. Estamos submetendo a gravação a testes de voz neste instante. Não quero lhe dar grandes esperanças, mas pareceu ser a voz de Megan.

Uma profunda alegria se apoderou de Smith. Contudo, ao mesmo tempo, teve consciência das conseqüências possivelmente mortais daquele desdobramento.

Landon falou com Reed a respeito disso?

Não que seja de meu conhecimento. As comunicações ainda estão interrompidas. Mas eu deveria ter dito a Landon que se man­tivesse calado caso o contato fosse restabelecido. Espere um minuto.

Smith tentou controlar suas emoções contraditórias. A idéia de que Megan estivesse viva trazia-lhe esperança. Ao mesmo tem­po, se Reed de alguma forma descobrisse isso, ainda teria chance de matá-la antes de deixar o ônibus espacial.

Jon? Está tudo bem. Landon diz que ainda não há contato. Eu o deixei um bocado confuso ao dar-lhe ordens para não falar caso seja restabelecido, mas ele me deu a palavra de que não dirá nada a Reed.

Algum resultado dos testes? — perguntou Smith.

Até agora não são conclusivos.

Pode me deixar ouvir a fita?

Há um bocado de ruído na gravação.

Smith fechou os olhos e ouviu. Depois de alguns instantes, disse:

- É ela, senhor. Megan está viva.

 

 

— Espelho, aqui é Olho. Está na escuta?

Olho, estamos ouvindo alto e claro. O que está vendo?

O Discovery acabou de sair da cobertura de nuvens. O ângulo de vôo está bom. Angulo de descida bom. Velocidade boa. Parece que vai fazer uma aterrissagem perfeita.

Entendido, Olho. Mantenha a vigilância. Espelho des­ligando.

A conversa entre Olho, o avião caça líder que escoltaria o ônibus espacial e a torre de controle em Groome Lake, foi ouvida com muita atenção por várias pessoas.

No bunker de observação, o presidente olhou em volta rapida­mente para os presentes. Todos os olhos estavam cravados nos monitores que mostravam o Discovery se deslocando no ar. Numa outra tela, viu o dr. Karl Bauer pronto para deixar a área de descontaminação, chamada de sala de preparo. O presidente respi­rou fundo. Faltava pouco... muito pouco.

Vestindo um traje de biorrisco Nível Quatro, Bauer entrou no corredor entre a sala de preparo e a porta maciça, semelhante à de uma caixa-forte subterrânea que lhe permitiria entrar no casulo. Ao chegar lá, levantou a cabeça, olhou para a câmara embutida na parede e balançou a cabeça. Lentamente a porta começou a se abrir, revelando uma cavidade cortada na parede de concreto. Bauer entrou no casulo, e imediatamente a porta começou a se fechar.

À sua frente, viu um longo túnel, banhado por uma luz azul. Depois que a porta estava bem fechada e trancada, percorreu uma plataforma estreita revestida de piso de borracha. As paredes do casulo eram feitas de plástico ultra-resistente, semitransparente. Olhando por elas, Bauer podia ver os contornos vagos da vasta área de contenção, iluminada por gigantescos holofotes. Enquanto se encaminhava para a câmara de descontaminação do casulo, ouviu um rugido surdo. Mais luz jorrou para o interior do bunker enquan­to a rampa da pista era baixada.

Aqui é Bauer — falou para o fone. — Estão me ouvindo?

Estamos, senhor — respondeu o técnico no bunker de observação.

O ônibus espacial já pousou?

Está quase aterrissando, senhor.

— Ótimo — respondeu Bauer, e continuou a andar até a câmara de descontaminação do casulo.

Do outro lado da base, Smith ouvia aquela conversa. Virou-se para Jack Riley.

Vamos embarcar.

A equipe embarcou em dois utilitários do tipo caminhão de carga de pequeno porte com cobertura de lona. Smith teria prefe­rido usar os veículos militares polivalentes, mais ágeis e rápidos em vez dos caminhões, mas, por causa dos volumosos trajes de biorrisco da equipe, o espaço era um problema.

As portas do hangar se abriram e o pequeno comboio, com Riley na direção do veículo militar na dianteira, saiu para a noite no deserto. Balançando para trás e para a frente em um banco na traseira do caminhão, Smith tentou manter um pequeno monitor, tipo Palm-top, o mais firme que podia. O ônibus espacial estava a apenas 915 metros acima do solo do deserto. O nariz foi ligeiramen­te embicado para cima enquanto os trens de aterrissagem eram baixados e travados. Por mais que tentasse, Smith não conseguia afastar o pensamento de Megan. Sabia que seu primeiro instinto seria correr para o interior da nave e procurá-la. Mas se fizesse isso apenas poria sua vida em risco. Tinha de primeiro apanhar Reed e neutralizá-lo. Só então poderia procurá-la.

Smith recordou-se das objeções de Klein quando lhe contara o que pretendia fazer. O chefe do Covert-One compartilhava a preocupação de Smith por Megan, mas também sabia do perigo a que Smith estaria se expondo.

Não há nenhuma garantia de que vá encontrá-la viva, Jon — dissera. — Precisamos saber com que estamos lidando antes de deixar você entrar.

Nós saberemos — prometeu Smith sombriamente.

A voz de Riley crepitou em seu fone.

Jon, olhe para sudeste.

Smith olhou pela traseira do caminhão e viu luzes intensas descendo rapidamente. Dos dois lados havia o conjunto de luzes piscando dos aviões de escolta do ônibus espacial. Ficou ouvindo enquanto Riley fez a contagem regressiva da aterrissagem.

Cento e cinqüenta metros... sessenta metros... aterrissando.

O comboio estava numa pista de pouso paralela à que o ônibus espacial havia usado. Smith viu a nave inclinar-se para baixo à medida que o trem de aterrissagem dianteiro absorvia o peso. Então os pára-quedas se abriram, reduzindo a velocidade da nave.

Lá vai a cavalaria — ouviu Riley dizer.

Os três caminhões de bombeiros e um veículo de Biorrisco formaram um leque seguindo atrás do ônibus espacial, mantendo- se a uma distância de 45 metros.

Smith os observou passar, então disse:

OK, Jack. Vamos atrás deles.

Os caminhões puseram-se em marcha e seguiram o veículo militar de Riley enquanto entrava na pista de taxiar, depois na pista principal.

Acelere, Jack! — instruiu Smith enquanto observava o ônibus espacial alcançar a rampa que descia para o bunker.

Riley obedeceu. Pisando fundo no acelerador, chegou à rampa no mesmo instante em que o ônibus espacial desaparecia.

- Jon!

Mas Smith já saltara e estava correndo para dentro do bunker. A dois terços do caminho de descida, sentiu a rampa estremecer e lentamente começar a subir. Movendo-se o mais rápido que podia, alcançou o final da rampa e descobriu que estava três metros acima do piso do bunker. Smith respirou fundo e saltou, caindo pesa­damente, encolhendo-se e rolando. Deitado de costas, observou a rampa subir lentamente, cobrir o céu, depois fechar-se e vedar-se.

Pondo-se de pé, ele se virou e viu o casulo, uma monstruosa mi­nhoca branca sob as luzes do teto. Dentro dele, uma sombra fez uma pausa em seu movimento e lentamente se virou para ele.

O dr. Karl Bauer observara o ônibus espacial estacionar, depois voltou sua atenção para a rampa. Por um instante, pensou ter visto alguma coisa cair da rampa, mas descartou o pensamento quando sentiu a rampa se fechar com um tremor. A caverna estava vedada.

Controle, aqui é Bauer.

Aqui fala o controle, doutor — respondeu um técnico. Está tudo bem?

Sim. Vou fazer a operação de acoplamento do casulo com o ônibus espacial. Quando o dr. Reed sair e estiver em segurança, tornarei a fechar e vedar a porta da nave. Entendido?

Entendido, doutor. Boa sorte.

 

Olhando fixamente através do plástico, Smith viu o vulto de Bauer se tornar cada vez mais indistinto à medida que o cientista seguia adiante no casulo. Tomando cuidado para não permitir que Bauer o visse, começou a se encaminhar para o ônibus espacial quando reparou numa abertura perfeitamente redonda no concreto. Então descobriu uma outra. Depois muitas outras. Eram os lugares onde o cimento fora aberto para a saída dos dutos de gás que alimentari­am as chamas.

 

Na cabine de pilotagem, Dylan Reed permanecera preso com as faixas e o cinto de segurança no assento do piloto até a luz no console indicar que os sistemas do ônibus espacial tinham se desativado completamente. A descida fora uma tortura para os nervos. Em Cabo Canaveral, Reed assistiu a simulações de computador sobre como, no caso de uma emergência, os computadores fariam a nave pousar — e estacionar em um ponto exato se fosse necessário. Ele se lembrava de ter sorrido e dito como aquilo era maravilhoso. Para consigo mesmo pensava: Certo. Algumas centenas de galões de resíduo de combustível de alta octanagem a bordo de uma nave com dez anos de idade, voando a toda velocidade, construída pelo licitante que havia apresentado o menor preço. Contudo, por algum milagre, tanto os computadores quanto a nave tinham cumprido a missão.

Reed soltou as tiras, levantou-se do assento e encaminhou para a escada no compartimento central. Lançou um olhar rápido para a porta que se abria para o túnel levando ao laboratório espacial. Perguntou a si mesmo se Megan Olson de alguma forma teria sobre­vivido. Não importava. Ela nunca mais veria nada que lhe fosse familiar.

Durante a reentrada, Reed mantivera os canais de comunica­ção desligados. Não acreditava que suportaria ouvir as perguntas chorosas e as manifestações de preocupação de Harry Landon. Nem queria que nada o distraísse do que estava por vir. Posicionando-se diante da porta de saída, pressionou o código alfanumérico que destravava as trancas. Mas a porta ainda tinha de ser aberta por fora.

Reed lançou um olhar rápido para o bolso da calça onde guardara o frasco com a amostra de varíola. Subitamente, queria muito se ver livre dele.

Vamos! pensou impacientemente.

Sentiu o ônibus espacial se mover ligeiramente. Depois uma segunda vez. Imaginou que estivesse ouvindo o sibilar do ar en­quanto o casulo se acoplava ao ônibus espacial. Ansiosamente, olhou para o painel luminoso acima da porta. Uma luz verde apareceu, indicando que o acoplamento estava completo.

Reed estava trocando as freqüências no rádio do traje quando, sem aviso, a porta se abriu e se retraiu, e ele se viu cara a cara com o rosto mascarado do dr. Karl Bauer.

— Você! — exclamou.

 

O plano original exigia que Bauer esperasse por Reed do lado em quarentena da câmara de descontaminação. Mas, com Richardson e Price fora de cena, Bauer decidira aperfeiçoar seu plano. Manipu­lando as alavancas no painel de controle montado em um pedestal, elevou o casulo de modo que sua extremidade aberta se acoplasse ao ônibus espacial. Depois que as vedações estavam posicionadas e ativadas, permitiu-se um momento para entrar em seu novo papel, depois abriu a porta. Quase sorriu quando viu a expressão espanta­da de Reed.

O que você está fazendo aqui? — perguntou Reed. — O que há de errado?

Bauer gesticulou para que recuasse de modo a poder entrar.

Richardson está morto — disse sem rodeios. — E Price também.

Mortos? Mas como...?

Bauer começou a incluir as mentiras.

O presidente sabe do vírus.

Mesmo com a placa protetora do capacete cobrindo-lhe o rosto, Bauer viu como Reed empalideceu.

Isso é impossível!

— É a verdade — respondeu Bauer. — Agora escute-me. Ainda existe uma saída para nós. Está me ouvindo?

O capacete de Reed balançou quando ele assentiu.

Ótimo. Agora me dê a amostra.

Mas como nós...?

Vamos sair com ela? Vai sair comigo. Escute, Dylan. Não tenho nenhuma idéia de quanto Castilla e seu pessoal sabem sobre Richardson e Price. Talvez já tenham ligado você a eles. Mas não podemos nos dar ao luxo de que o tenham feito. Se você for revistado, estará tudo acabado. Mas eles não ousariam encostar o dedo em mim.

E o que vai acontecer comigo? — perguntou Reed, a voz em pânico.

Nada. Você tem minha palavra quanto a isso. Quando tudo isso estiver acabado, você será o herói, o único sobrevivente de uma missão que teve um resultado trágico. Agora, me dê a amostra.

Cuidadosamente, Reed enfiou a mão no bolso e entregou o frasco. Deu um salto para trás quando Bauer calmamente o abriu e derramou o conteúdo mortal sobre uma bancada de aço inoxidável.

Está maluco? — gritou. — Isso é tudo o que temos!

Eu não disse que não levaríamos uma amostra — retrucou Bauer.

Tirou uma haste com uma mecha de algodão na ponta e uma minúscula cápsula de cerâmica, do tamanho de uma cápsula de vitamina. Inclinando-se sobre a pequena poça que acabara de criar, esfregou a mecha no fluido, quebrou a ponta e a guardou dentro da cápsula vedando-a. Reed assistiu, confuso. Não conseguia compre­ender muito bem para que serviria a cápsula.

Vai tirá-la daqui assim? — perguntou. — E o processo de descontaminação?

A cerâmica protegerá a amostra—respondeu Bauer. Afinal as placas que revestem esta nave são feitas desse mesmo material, para proteger o ônibus espacial do calor da reentrada. Não se preocupe, Dylan. Tudo isso faz parte de meu novo plano.

Alguma coisa não soou muito bem para Reed.

Então o que eu...

Pelo canto do olho viu o brilho do bisturi que cortou uma abertura em seu traje, penetrando fundo até atingir a carne.

Não! — berrou, cambaleando para trás.

— Testemunhas não fazem parte do novo plano — disse Bauer. — Se eu deixasse você sair, os interrogadores acabariam com você. E, como fundamentalmente é um homem fraco, acabaria falando. Mas, se não sobreviver, então poderei escrever o capítulo final da história do Discovery, por mais triste que venha a ser.

Bauer simplesmente deu um passo para o lado quando Reed fez uma tentativa desesperada de agarrá-lo. Reed caiu e rolou de bruços, então começou a tremer violentamente. Seu corpo foi sacudido por convulsões que fizeram sua espinha se dobrar como um arco. Mantendo uma distância segura, Bauer observou fascina­do, enquanto sua criação cumpria seu papel mortal. Não conseguia tirar os olhos de Reed por mais de alguns segundos, nem mesmo quando começou a ativar a seqüência de auto-destruição.

 

 

Não vai ser o gás. Será alguma outra coisa... O quê?

A pergunta ecoou na mente de Smith enquanto corria sob a asa esquerda do ônibus espacial em direção ao trem de pouso. Bauer não sabia ou havia se esquecido do fato de existir outro modo de entrar na nave sem ser pelo casulo. Smith subiu nos pneus, então passou para o trem de aterrissagem. Abriu uma pequena escotilha, enfiou a mão dentro dela e retirou uma manivela portátil. Encai­xando uma ponta numa fenda, começou a girá-la. Pouco a pouco, a porta oval maior começou a se soltar da nave.

Empurrando a porta para um lado, Smith subiu na barriga do compartimento de carga situada atrás do laboratório espacial. Viu-se agachado ao lado das latas de metal onde material para experiên­cias e suprimentos eram armazenados. Diante delas, havia uma porta oval como uma porta de submarino — a entrada dos fundos do laboratório espacial.

Dentro do laboratório espacial, Megan Olson olhou horrorizada quando o volante da porta de trás começou a girar cada vez mais depressa. Reclinada na cadeira trenó, sentia-se tonta e nauseada. Apesar de ter apertado as tiras prendendo-a à cadeira o máximo que pudera, as pancadas causadas pela trepidação da reentrada foram extremamente fortes. Sentia-se como se tivesse levado socos no corpo inteiro.

Não é tarde demais. Ainda posso sair daqui.

Agarrando-se a este pensamento, levantou-se da cadeira e cambaleou até a porta que ligava o laboratório ao túnel. Mas, depois de alguns minutos de tentativas, se deu conta de que estava fraca demais ou que a porta estava trancada por fora.

Lutando para conter as lágrimas, tentou desesperadamente pensar numa outra maneira de sair. Então ouviu os sons vindo da seção da porta do compartimento de carga.

Por que Reed está voltando? E por que por esse caminho?

Freneticamente, Megan olhou em volta em busca de alguma coisa que pudesse servir de arma, mas não encontrou nada. Ouviu o sibilar da vedação se abrindo. Quando a porta girou para trás, ela se afastou para o lado e levantou os dois braços sobre a cabeça. A surpresa seria sua única defesa contra Reed.

Primeiro, apareceu uma perna, depois um par de braços. Assim que viu o capacete, Megan começou a baixar os braços para golpear. Então, naquela fração de segundo, ela se deu conta de que não era um traje espacial, e sim um traje de proteção para trabalho de biorrisco. Conseguiu deter o golpe no instante em que a pessoa levantou a cabeça e olhou para ela.

Megan!

Ela tentou agarrar Smith, mas as mãos enluvadas escorrega­vam no traje dele. No instante seguinte, ele a estava segurando pelos ombros, seu capacete batendo no dela, as placas transparentes dos visores se tocando. Megan não conseguia despregar os olhos dos olhos dele. Apoiou-se contra o ombro dele e chorou por tudo que, apenas instantes antes, parecia ter-lhe sido tomado e que agora lhe estava sendo devolvido. Ela recuou um pouco para olhar para ele.

Como você soube?

Eles ouviram você no controle de missão. Não chegou muita coisa, mas o suficiente para saberem que estava viva.

E você veio me buscar...

Eles se entreolharam, então Smith falou:

Vamos. Temos de sair daqui.

Mas Reed...

Sei de tudo a respeito dele — disse-lhe Smith. — Estava trabalhando para Karl Bauer.

Bauer?

Era ele o homem que você viu com Reed na noite antes do lançamento. Bauer está a bordo neste momento. Veio para levar a mutação de varíola que Reed criou em estado de microgravidade.

Mas não vai simplesmente sair daqui, Megan. Precisa destruir todos os vestígios do que aconteceu nesse vôo.

Então contou a ela exatamente onde o ônibus espacial estava estacionado e por quê, sobre a câmara de biocontenção, que era um gigantesco crematório.

Megan sacudiu a cabeça.

Não, Jon — replicou. — Ele vai fazer isso de outra maneira.

Megan apontou para um mostrador suspenso que chamara sua atenção um momento antes.

Aquilo é a seqüência de auto-destruição, armada e em con­tagem regressiva. Depois de acionada, não pode ser desarmada nem ter o horário limite estendido. Temos menos de quatro minutos antes que o ônibus espacial exploda.

 

Setenta segundos depois, Smith e Megan Olson estavam saindo da espaçonave pelo mesmo caminho por onde Smith entrara.

Megan estremeceu depois que olhou ao redor para a cavernosa câmara da morte. Virou-se para Smith, que estava fechando a porta por onde tinham saído.

Que está fazendo?

Me assegurando de que ninguém nos siga — pisou no pneu, depois saltou para o chão.

Movendo-se tão rapidamente quanto seus trajes volumosos permitiam, deram a volta na asa. Megan arquejou ao ver o casulo acoplado à porta de saída inferior e à cavidade na parede do lado oposto.

— É assim que devemos sair?

É a única saída.

A medida que se aproximaram do casulo, Smith viu que a porta do ônibus espacial estava fechada. Não havia sinal de Bauer no interior do túnel de plástico nem na área isolada de descontaminação. Do traje RAID Smith retirou uma faca com lâmina de mola e com alguns golpes certeiros cortou uma abertura no casulo.

Entre — disse para Megan, depois a seguiu para o interior do casulo.

Uma vez lá dentro, Megan se virou quando não sentiu mais a mão de Smith em seu ombro. Foi encontrá-lo de olhos cravados na porta.

Jon, nosso tempo está se esgotando!

Então, viu a expressão fria, impiedosa, por trás do visor, o sofrimento em seus olhos. A raiva dele a contaminou quando imaginou os corpos de seus companheiros de tripulação, a maneira terrível como tinham morrido. Compreendeu exatamente o que ele pretendia fazer.

Siga adiante pelo túnel — disse Smith. — Não pare. Não olhe para trás. Há uma câmara de descontaminação logo atrás da porta blindada.

Jon...?

Vá, Megan.

Smith não pensou no tempo que lhe restava, na probabilidade limitada que tinha de sair vivo da câmara. Sabia que um homem como Bauer, rico e poderoso, dificilmente pagaria por seus crimes — especialmente porque aqueles que poderiam tê-lo condenado já estavam mortos. Pior, Bauer tentaria de novo. Em algum lugar, em algum momento haveria um outro Pacto Cassandra.

Smith correu pela pequena área de descontaminação — do tamanho de um chuveiro — e alcançou a porta. Pela vigia retangu­lar viu o corpo mutilado de Dylan Reed e viu Bauer segurando uma cápsula de cerâmica na palma da mão.

Ele não ia trazer a amostra inteira. Não precisava. Uma gota seria mais que suficiente. Uma gota ele poderia esconder em seu traje; aquilo bastaria para recriar a monstruosidade.

Agachando-se, Smith abriu um painel na base da porta e ligou o mecanismo de controle manual. Levantou-se exatamente no instante em que Bauer se virou, com uma expressão de total incredulidade.

Não pode ser...!

Smith viu os lábios de Bauer se moverem mas não ouviu suas palavras enquanto não mudou a freqüência do rádio do capacete.

—... você está fazendo aqui?

Silenciosamente, ficou olhando enquanto Bauer apertava as teclas no painel e observou enquanto a incredulidade dele se dissolvia em horror quando a porta não se abriu.

O que você está fazendo aqui? — berrou Bauer. — Abra esta porta!

Não, doutor — respondeu Smith. — Creio que vou deixar o senhor com sua criação.

O rosto de Bauer se contorceu de medo.

Escute-me...!

Smith trocou de freqüência e começou a se afastar. Pensou ter ouvido punhos socando a porta, mas sabia que era apenas sua imaginação.

Controle, aqui fala Smith. Onde está Olson?

O som de estática crepitou em sua orelha, então uma voz familiar se fez ouvir:

— Jon, aqui é Klein. Megan está em segurança. Está na área de descontaminação. Ela me disse que o sistema de auto-destruição estava armado.

Bauer fez isso.

Onde está ele?

Ainda lá dentro.

Depois de um momento de hesitação, Klein respondeu:

— Entendido. Vamos abrir a porta blindada, Jon. Mas você tem apenas alguns segundos. Ande logo!

Na extremidade do casulo, Smith viu a porta enorme começar a se abrir. Com o suor jorrando, obrigou-se a andar mais depressa. Lá estava a cavidade cortada na parede no final do casulo.

Então a porta parou e começou a se fechar. Ainda estava a pelo menos uns 15 passos de distância.

Que está acontecendo? — perguntou Smith.

A porta se fecha automaticamente — Klein gritou de volta. — Ficará hermeticamente fechada cinco segundos antes da explo­são. Jon, saia daí.

Smith obrigou os músculos cansados a se moverem ainda mais depressa. Um passo, um segundo, um passo, um segundo...

A porta blindada continuou a se mover implacavelmente, reduzindo o tamanho da abertura. Com um último esforço deses­perado, Smith se arremessou para a frente, batendo na ponta exter­na da porta, passando espremido pela abertura, enquanto ela o empurrava e se trancava.

Segundos depois, foi atirado ao chão enquanto a terra parecia corcovear e alguma coisa como um punho de gigante chocava-se contra a porta.

Ao abrir os olhos, viu uma brancura total: teto, paredes, lençóis. Com os instintos de soldado manteve-se perfeitamente imóvel, depois lentamente moveu o pescoço, as mãos, os pés, os braços e per­nas. Seu corpo parecia ter descido as cataratas de Niágara num barril.

A porta se abriu e Klein entrou.

Onde estou? — perguntou Smith, com a voz fraca.

Na terra dos vivos, fico feliz em dizer — respondeu Klein. — O médico me disse que você vai ficar bem.

Como...?

Depois que o ônibus espacial explodiu, Jack Riley e sua equipe entraram na câmera de descontaminação, fizeram você passar pelo processo, depois tiraram você de lá.

E Megan?

Ela está bem. Vocês dois estão.

Smith sentiu o corpo amolecer como se tivesse se transformado em gelatina.

Acabou — sussurrou.

De algum lugar, muito longe, ouviu Klein responder:

Sim, o pacto foi quebrado.

 

 

De acordo com os relatos da imprensa, o general Frank Richardson e o diretor-assistente da NASA, Anthony Price, morreram em um trágico acidente devido a um defeito nos freios. Richardson foi sepultado, com honras de herói de guerra, no cemitério de Arlington, enquanto Price foi enterrado no jazigo da família em New Hampshire. O presidente, alegando compromissos no exterior, esteve ausente em ambas as ocasiões.

Matérias subseqüentes noticiaram a queda de um jato particu­lar sobre o Oceano Pacífico. O avião, pertencente à companhia farmacêutica Bauer-Zermatt, caiu a novecentos quilômetros a oes­te de Los Angeles a caminho da Big Island, no Havaí. Havia apenas um passageiro a bordo: o dr. Karl Bauer.

O presidente Castilla conduziu a nação durante a cerimônia fúnebre pelos mortos da maior tragédia envolvendo um ônibus espacial desde o desastre do Challenger. Os investigadores determi­naram que a explosão a bordo do ônibus espacial Discovery fora provocada por problemas na bomba de combustível durante a descida da nave rumo à base aérea Edwards.

Que vai acontecer com Megan?—perguntou Randi Russell.

Ela estava ao lado de Smith em um pequeno cemitério chama­do Tsarsoye, com vista para Moscou e o rio.

Não é mais Megan — respondeu Smith. — Tem um novo nome, um novo rosto, uma nova identidade — depois de uma pausa, prosseguiu — ela sobreviveu, mas no fim foi incluída entre os mortos. Não havia escolha. Tinha de abandonar a vida anterior para que o segredo do que realmente aconteceu pudesse permane­cer intacto.

Randi assentiu. Por meio da rede de boatos da CIA, ouvira rumores de que um ou mais entre os astronautas do ônibus espacial havia sobrevivido. Mas, depois de algum tempo, os rumores cessa­ram. Quando Smith chegou a Moscou, ela pediu que lhe contasse a verdade. Megan Olson fora amiga de muitos anos de Sophia... e dela também. Randi sentia que tinha o direito de saber se Megan ainda estava viva em algum lugar.

Obrigada por me contar — disse afinal.

Smith olhou para as fileiras de lápides.

Sem sua ajuda, tudo teria acabado de uma maneira diferente — murmurou.

Smith se aproximou e colocou flores no túmulo de Yuri Danko.

Sem os bravos, onde estaríamos todos nós?

 

                                                                                Robert Ludlum & Philip Shelby  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor