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Os Harte e os Gold vivem lado a lado há dezoito anos, partilhando tudo, desde a comida chinesa e a varicela até à boleia dos filhos para a escola. Pais e filhos são os melhores amigos, por isso o namoro entre Chris e Emily no liceu não foi nenhuma surpresa. São almas gémeas desde que nasceram.
Quando recebem o telefonema do hospital, ninguém está preparado para a chocante verdade: Emily, de apenas dezassete anos, morreu com um tiro na cabeça, aparentemente resultado de um pacto suicida. Chris diz à polícia que a bala que resta na arma lhe era destinada, mas uma detective local tem dúvidas.
Num único momento aterrador, os Harte e os Gold enfrentam o maior medo de um pai: será que conhecemos verdadeiramente os nossos filhos?
......
Já não havia nada para dizer.
Cobriu o corpo dela com o seu, e ao abraçá-lo ela imaginou-o em todas as suas encarnações: aos cinco anos, ainda loiro; aos onze, a despontar; aos treze, já com
mãos de homem. A Lua, de olhos oblíquos, percorria o céu nocturno; e ela inspirou o cheiro da pele dele.
- Amo-te - disse.
Ele beijou-a tão delicadamente que ela pensou se não teria sido imaginação. Recuou ligeiramente, para olhar nos olhos dele.
E depois ouviu-se um tiro.
Embora nunca tivessem chegado a fazer uma reserva permanente, a mesa do canto do fundo do restaurante chinês Happy Family estava sempre reservada, nas noites de
sexta-feira, para os Harte e para os Gold, que já lá iam há uma eternidade. Há alguns anos, traziam as crianças, atravancando o canto apinhado com cadeiras altas
e sacos de fraldas até os empregados deixarem praticamente de conseguir colocar as travessas fumegantes de comida em cima da mesa. Agora, eram só os quatro, a chegarem
um por um às seis horas e a aproximarem-se uns dos outros como se, juntos, exercessem uma espécie de atracção magnética.
James Harte fora o primeiro a aparecer. Nessa tarde estivera a operar e acabara surpreendentemente cedo. Agarrou nos pauzinhos que estavam à sua frente, retirou-os
da embalagem de papel e colocou-os entre os dedos como se fossem instrumentos cirúrgicos.
- Olá - disse Melanie Gold, aparecendo de repente à sua frente. - Acho que cheguei cedo.
- Não - respondeu James. - Os outros é que estão atrasados.
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- A sério? - despiu o casaco e enrolou-o colocando-o ao lado.
- Estava com esperança de ter chegado cedo. Não me parece que alguma vez tenha chegado cedo.
- Sabes - disse James, pensativo -, acho que nunca chegaste. Estavam ligados pela única coisa que tinham em comum -
Augusta Harte - mas Gus ainda não tinha chegado. Por isso ficaram sentados no desconforto amigável que surgia por conhecerem assuntos privados um do outro que nunca chegaram a ser directamente confidenciados, mas sim indiscretamente referidos por Gus Harte ao marido na cama ou a Melanie enquanto tomavam um café. James pigarreou e fez girar os pauzinhos nos dedos habilmente.
- O que achas? - perguntou, sorrindo para Melanie. - Devia largar tudo? Para ser baterista?
Melanie corou, como acontecia sempre que era pressionada. Depois de ter passado anos com uma secretária de informações à sua volta como uma saia armada, as respostas
concretas ocorriam-lhe com facilidade; a descontracção não. Se James tivesse perguntado: "Qual é a população actual de Adis Abeba?" ou "És capaz de me dizer que
produtos químicos compõem uma emulsão fixadora para fotografia?" nunca teria corado, porque as respostas nunca poderiam ofendê-lo. Mas esta pergunta do baterista? O que queria ele ao certo?
- Ias detestar - disse Melanie, tentando parecer irreverente. Terias de deixar crescer o cabelo e fazer umpiercing no mamilo, ou qualquer coisa assim.
- E posso saber porque estás a falar de piercings nos mamilos?
- disse Michael Gold, aproximando-se da mesa. Debruçou-se e tocou no ombro da mulher, o que substituía um beijo ao fim de tantos anos de casamento.
- Não fiques com ideias - disse Melanie. - O James é que quer fazer um, eu não.
Michael riu.
- Acho que isso seria razão para seres automaticamente expulso da ordem dos médicos.
- Porquê? - James franziu a testa. - Lembras-te daquele laureado com o Prémio Nobel que conhecemos no cruzeiro ao Alasca no Verão passado? Tinha um piercing na sobrancelha.
- Precisamente - disse Michael. - Não tens de pertencer a nenhuma ordem para escreveres um poema só com palavrões sacudiu o guardanapo e colocou-o no colo. - Onde está a Gus?
James olhou para o relógio que regulava a sua vida; Gus nem sequer usava um. Isso deixava-o louco.
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- Acho que ela ia levar a Kate a casa de uma amiga para passar lá a noite.
- Já pediram? - perguntou Michael.
- A Gus é que costuma pedir - disse James, à laia de desculpa. Gus era geralmente a primeira a chegar, ela é que costumava assegurar a tranquilidade da refeição.
Como se o marido a tivesse invocado, Augusta Harte entrou intempestivamente pela porta do restaurante chinês.
- Meu Deus, estou atrasada - disse ela, desabotoando o casaco com uma mão. - Nem imaginam como foi o meu dia.
Os outros três inclinaram-se para a frente, à espera de uma das suas histórias infames, mas em vez disso Gus fez sinal a um empregado.
- O costume - disse ela, com um sorriso radioso.
O costume? Melanie, Michael e James ficaram a olhar uns para os outros. Seria assim tão fácil?
Gus assistia pessoas profissionalmente sacrificando o seu próprio tempo para que os outros não tivessem de fazê-lo. Os habitantes mais ocupados do New Hampshire
solicitavam os seus serviços
- à Tempo Alheio - quando não queriam ter de esperar na fila da Direcção Geral de Viação, ou de ficar todo o dia à espera do funcionário da televisão por cabo. Tentou
domar os seus cabelos ruivos encaracolados.
- Primeiro - disse, com um elástico preso entre os dentes -, passei a manhã toda na Direcção Geral de Viação, que é horrível mesmo nos melhores dias - tentou corajosamente
fazer um rabo-de-cavalo, como se tentasse controlar uma corrente de electricidade, e olhou para cima. - Então a seguir era a minha vez, sabem, estava mesmo em frente
ao guiché, e o funcionário, juro por Deus, teve um ataque cardíaco. Morreu ali mesmo no chão da repartição.
- Que horror - disse Melanie em voz baixa.
- Mmm. Sobretudo porque encerraram o guiché, e tive de começar do princípio.
- Mais umas horas que podes cobrar - disse Michael.
- Neste caso não - disse Gus. -Já tinha marcado uma reunião às duas horas em Exeter.
- Na escola?
- Pois. com um tal Sr. J. Foxhill. Afinal era um aluno do secundário com muito dinheiro para gastar que precisava que alguém ficasse de castigo por ele por procuração.
James riu.
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- Muito engenhoso.
- Nem preciso de dizer que o director da escola não aceitou e me fez perder tempo com um sermão sobre responsabilidade dos adultos, mesmo depois de lhe dizer que
sabia tanto quanto ele sobre aquele plano. E depois, quando fui buscar a Kate aos treinos de futebol, tive um furo, e quando consegui mudar para o pneu sobresselente
e chegar ao campo de jogos ela já tinha arranjado boleia para casa da Susan.
- Gus - disse Melanie. - O que aconteceu ao empregado?
- Tu mudaste um pneu? - exclamou James, como se Melanie não tivesse dito nada. - Estou impressionado.
- Eu também fiquei. Mas não vá o pneu estar ao contrário, hoje à noite prefiro levar o teu carro para o centro da cidade.
- Vais trabalhar outra vez?
Gus acenou com a cabeça, sorrindo enquanto o empregado trazia a comida.
- vou para as bilheteiras para arranjar bilhetes para os Metallica.
- O que aconteceu ao empregado? - perguntou Melanie, mais veementemente.
Ficaram todos a olhar para ela.
- Caramba, Mel - disse Gus. - Não tens de gritar - Melanie corou e Gus suavizou de imediato a voz. - Não sei ao certo o que aconteceu - admitiu. - Levaram-no numa ambulância - colocou chao min no prato. - A propósito, hoje vi o quadro da Em no Edifício Estadual.
- O que estavas a fazer no Edifício Estadual? - perguntou James. Ela encolheu os ombros.
- Estava à procura do quadro da Em - disse ela. - Parece tão... bem, profissional, com aquela moldura dourada e uma grande fita azul pendurada por baixo. E todos fizeram troça de mim quando eu guardei os desenhos a lápis de cera que ela fazia com o Chris em
nossa casa.
Michael sorriu.
- Nós riamos porque disseste que um dia iam ser a nossa reforma.
- Vais ver - disse Gus. - Uma artista galardoada aos dezassete anos; aos vinte e um vai abrir uma galeria... vai expor no Museu de Arte Moderna antes de fazer trinta - estendeu a mão para o braço de James e voltou o mostrador do relógio para si. - Ainda tenho mais cinco minutos.
James voltou a deixar cair a mão no colo.
- A bilheteira está aberta às sete da noite?
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- Às sete da manhã - corrigiu Gus. - Tenho o saco-cama no carro - bocejou. - Acho que estou a precisar de mudar de carreira. Um cargo com um pouco menos de stress...
como controladora aérea ou primeira-ministra de Israel - estendeu a mão para uma travessa de frango mu-sbu, começou a enrolar as panquecas e a distribuí-las pelos outros. - Como estão as cataratas da Sr.a Greenblatt?
- perguntou distraidamente.
- Desapareceram - disse James. - O mais provável é ficar com uma visão perfeita.
Melanie suspirou.
- Eu quero ser operada às cataratas. Nem imagino como será acordar e conseguir ver bem.
- Não queres ser operada às cataratas - disse Michael.
- Porque não? Livrava-me das lentes de contacto e já conheço um bom cirurgião.
- O James não podia operar-te - disse Gus, sorrindo. - Não há uma lei ética qualquer contra isso?
- Não abrange a família virtual - disse Melanie.
- Gostei dessa - disse Gus. - Família virtual. Devia haver um estatuto... sabes, como as uniões de facto. Quando vivemos muito próximos uns dos outros o tempo suficiente, tornamo-nos parentes
- engoliu o resto da panqueca e levantou-se. - Bem - disse ela -, foi um jantar sumptuoso e relaxante.
- Não podes ir já embora - disse Melanie, virando-se para pedir bolinhos da sorte a um empregado. Quando o homem regressou, enfiou alguns nos bolsos de Gus. - Toma. Na bilheteira não há pronto a comer.
Michael agarrou num bolinho e abriu-o.
- "Uma oferta de amor não deve ser recebida de ânimo leve"
- leu em voz alta.
- "Somos tão jovens quanto nos sentimos" - disse James, examinando a sua própria sorte. - Isso não me é muito favorável neste preciso momento.
Todos olharam para Melanie, mas ela leu a fina tira e enfiou-a no bolso. Acreditava que se a lesse em voz alta, a sua boa sorte não se concretizaria.
Gus tirou um dos bolinhos restantes da travessa e abriu-o.
- Vejam só - disse ela, rindo. - Calhou-me um vazio.
- Não tem nada? - disse Michael. - Devia dar direito a uma refeição grátis.
- Vê no chão, Gus. Deves tê-la deixado cair. Quem já ouviu falar num bolinho da sorte sem sorte? - disse Melanie.
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Mas não estava no chão, nem debaixo da travessa, nem preso nas pregas do casaco de Gus. Abanou tristemente a cabeça e levantou a chávena.
- Ao meu futuro - disse ela. Bebeu o chá todo e depois saiu, cheia de pressa.
Bainbridge, no New Hampshire, era uma comunidade nos subúrbios povoada sobretudo por professores de Dartmouth College e médicos do hospital local. Ficava suficientemente
perto da universidade para ser considerada uma zona atractiva no mercado imobiliário e suficientemente longe para ser considerada "campo". As estradas estreitas
entre as velhas quintas de produção de leite remanescentes ramificavam-se pelos dois hectares de campos sobre os quais fundaram a cidade no final dos anos setenta.
E a Wood Hollow Road, onde viviam os Gold e os Harte, era uma delas.
As terras deles, juntas, formavam um quadrado; dois triângulos que partilhavam a mesma hipotenusa. A terra dos Harte era estreita na via de acesso e alargava-se
mais para cima; a dos Gold era ao contrário, de forma que as casas distavam em cerca de quarenta e cinco metros. Mas estavam separadas por um pequeno bosque denso
que não chegava a tapar completamente a vista para a outra casa.
Michael e Melanie, em carros separados, seguiram o Volvo cinzento que pertencia a James ao virar para Wood Hollow Road. A setecentos e cinquenta metros do sopé do
monte, junto ao poste de granito que anunciava o número trinta e quatro, James virou à esquerda. Michael voltou na via de acesso a seguir. Desligou o motor da carrinha
e saiu para o pequeno quadrado de luz que se projectava do interior do carro, deixando Grady e Beau saltar-lhe às pernas e ao peito.
Os setters irlandeses descreviam círculos à sua volta enquanto esperavam que Melanie saísse do seu carro.
- Parece que a Em ainda não chegou a casa - disse ele. Melanie saiu do carro e fechou a porta num gesto fluido e económico.
- São oito horas - disse ela. - Provavelmente acabou de sair. Michael seguia-a entrando na cozinha pela porta lateral. Ela
pousou uma pequena pilha de livros em cima da mesa.
- Quem está de serviço hoje à noite? - perguntou ela. Michael esticou os braços por cima da cabeça.
- Não sei. Não sou eu. Acho que é o Richards, do Hospital Veterinário de Weston - foi à porta e chamou os setters, que ficaram
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a olhar para ele sem fazerem nenhum esforço para deixar de perseguir folhas ao vento.
- Que bonito - disse Melanie. - Um veterinário que não consegue controlar os seus próprios cães.
Michael afastou-se quando Melanie se dirigiu para a porta e assobiou. Os cães passaram por ele, trazendo lá para dentro o aroma vigoroso da noite.
- São os cães da Emily - disse ele. - É diferente.
Quando o telefone tocou às três da manhã, James Harte acordou instantaneamente. Tentou imaginar o que poderia ter corrido mal com a Sr.a Greenblatt, porque era um
caso de emergência em potencial. Procurou o telefone às apalpadelas do outro lado da cama, onde a mulher devia estar.
- Está?
- Fala o Sr. Harte?
- Fala o Dr. Harte - corrigiu James.
- Dr. Harte, fala o Agente Stanley da polícia de Bainbridge. O seu filho está ferido e vai ser transportado para o Bainbridge Memorial Hospital.
James sentiu a garganta a tentar pronunciar frases que se enredavam umas nas outras.
- Ele está... foi um acidente de viação? Fez-se uma breve pausa.
- Não, senhor - disse o agente. James sentiu um aperto no coração.
- Obrigado - disse ele, desligando o telefone, embora não soubesse por que razão estava a agradecer a alguém que lhe dera uma notícia tão horrível. Assim que pousou
o auscultador, tinha mil perguntas para fazer. Onde ficara Christopher ferido? Seria um ferimento grave ou superficial? A Emily ainda estaria com ele? O que acontecera?
James vestiu as roupas que já tinha colocado no cesto da roupa suja e desceu as escadas em apenas alguns minutos. Sabia que demoraria dezassete minutos a chegar
ao hospital. Já estava a acelerar por Wood Hollow Road quando agarrou no telefone do carro para telefonar a Gus.
- O que disseram eles? - perguntou Melanie pela décima vez.
- O que disseram eles concretamente?
Michael abotoou a braguilha das calças de ganga e enfiou os pés nos sapatos de ténis. Lembrou-se, tarde de mais, de que não tinha calçado meias. Que se lixassem
as meias.
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- Michael.
Ele olhou para cima.
- Que a Em estava ferida e que a levaram para o hospital - tinha as mãos a tremer, e, no entanto, estava surpreendido por ver que era capaz de fazer o que era preciso:
empurrar Mel para a porta, agarrar nas chaves do carro, traçar o caminho mais curto para o Bainbridge Memorial.
Imaginara hipoteticamente o que aconteceria se recebesse uma chamada telefónica a meio da noite, um telefonema que o deixasse sem fala, incrédulo. Lá bem no fundo,
esperara ficar num estado deplorável. Mas ali estava ele, a fazer marcha-atrás com cuidado na via de acesso, a aguentar-se bem, com um ligeiro tique na face, o único
sinal que denunciava o pânico.
- O James faz operações lá - dizia Melanie, numa litania suave e arrastada. - Ele deve saber com quem devemos entrar em contacto; o que devemos fazer.
- Querida - disse Michael, procurando a mão dela no escuro às apalpadelas -, ainda não sabemos nada - mas quando passou pela casa dos Harte absorveu a tranquilidade
absoluta do cenário, a tranquilidade da ausência de luz nas janelas, e não conseguiu evitar sentir uma facada de inveja da normalidade de tudo aquilo. "Porquê nós?",
pensou ele, e não reparou nas luzes dos travões de um carro ao fundo de Wood Hollow Road, já a dirigir-se para a cidade.
Gus estava deitada no passeio, entre um trio de adolescentes de cabelos verdes espetados e um casal que estava o mais próximo possível de fazer sexo num local público.
"Se o Chris alguma vez fizer isto ao cabelo", pensou ela, "nós vamos..." Vamos fazer o quê? Nunca pensaram no assunto porque, desde que Gus se lembrava, os cabelos
de Chris tinham o mesmo comprimento, ligeiramente mais comprido do que um corte militar. E quanto ao Romeu e à Julieta ali do lado direito - bem, isso também era
muito simples. Assim que o assunto se tornou relevante, Emily e Chris começaram a namorar, que era o que todos esperavam desde o início.
Dali a quatro horas e meia, os filhos do seu cliente teriam lugares de primeira para o concerto dos Metallica. Ela iria para casa dormir. Quando voltasse, James
teria regressado da caça (pressupunha que fosse época de caça para qualquer animal), Kate estaria a preparar-se para algum jogo de futebol e Chris, provavelmente,
estaria a levantar-se da cama. Então Gus faria o que costumava fazer aos sábados quando não tinha planos nem uma invasão de familiares: ia a casa de Melanie, ou
convidava Melanie para vir a sua casa, e
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conversavam sobre trabalho, adolescentes e maridos. Tinha várias boas amigas, mas Melanie era a única por quem não precisava de fazer uma limpeza à casa, por quem
não precisava de se maquilhar, ao pé de quem podia dizer tudo o que queria sem recear repercussões, nem parecer verdadeiramente estúpida.
- Minha senhora - disse um dos rapazes de cabelos verdes. Tem um cigarro?
Foi dito à pressa, Temumcigarro, de forma que Gus de início ficou atordoada pela audácia da frase. "Não", queria dizer, "não tenho e tu também não devias ter." Depois
apercebeu-se de que ele estava a agitar um cigarro - pelo menos esperava que fosse só um cigarro - à sua frente e que queria lumes.
- Não, desculpa - disse ela, abanando a cabeça.
Era impossível acreditar que existissem adolescentes como aqueles, pelo menos visto que tinha um como Chris, que parecia ser de um género completamente diferente.
Talvez aqueles jovens, com os seus cabelos de estegossauro e coletes de cabedal, só tivessem aquele aspecto fora de horas, transformando-se em adolescentes limpos
e bem-comportados quando estavam com os pais. "Que ridículo", disse para consigo própria. A simples ideia de que Chris tinha um alter-ego estava fora de questão.
Não era possível dar-se à luz alguém sem pressentir que uma coisa tão dramática estava a acontecer.
Sentiu uma vibração junto à anca e mudou de posição, a pensar que o casal amoroso se aproximara um pouco de mais. Mas a vibração não cessou, e quando baixou a mão
para procurar de onde vinha, lembrou-se dopager, que tinha dentro da mala desde a altura em que inaugurara a Tempo Alheio. James é que insistira; e se ele tivesse
de voltar para o hospital e um dos miúdos precisasse de alguma coisa?
Claro, tal como a maior parte da medicina preventiva funciona, o simples facto de ter o pager conseguira evitar as situações de emergência. Só tocara duas vezes
em cinco anos: uma, quando Kate telefonou para perguntar onde guardava os produtos para limpar tapetes, e outra quando tinha falta de bateria. Tirou-o do fundo da
mala e carregou no botão que identificava quem estava a fazer a chamada. O telefone do seu carro. Mas quem estaria no seu carro àquela hora da noite?
James levara-o para casa quando saíram do restaurante. Depois de ter saído de dentro do saco-cama, Gus atravessou a rua dirigindo-se à cabina telefónica mais próxima,
grafitada com iniciais semelhantes a salsichas. Assim que James atendeu, ouviu o zumbido da estrada debaixo dos pneus.
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- Gus - disse James, com a voz presa. - Tens de vir.
E passado um momento, deixando o saco-cama para trás, ela começou a correr.
Não lhe tiravam as luzes dos olhos. Os candeeiros estavam pendurados mesmo por cima dele, como discos voadores prateados brilhantes que o faziam retrair-se. Sentiu
pelo menos três pessoas tocarem-lhe - pousarem as mãos em cima dele, gritarem orientações, cortarem-lhe as roupas. Não conseguia mexer os braços nem as pernas e,
quando tentava fazê-lo, sentia correias presas em volta deles, e um colar cervical a segurar-lhe a cabeça.
- A tensão arterial está a baixar - disse uma mulher. - Só setenta por palpação.
- Pupilas dilatadas mas não reactivas. Christopher? Christopher? Ouves-me?
- Está com taquicardia. Tragam-me dois cateteres intravenosos de grande diâmetro, catorze ou dezasseis, rápido. Administrem-lhe solução salina normal D-5, totalmente
aberta, um litro para começar, por favor. E quero análises sanguíneas... façam uma contagem sanguínea completa, plaquetas, coagulação, química sanguínea, urinálise,
exame toxicológico e enviem a grupagem e a pesquisa de anticorpos antieritrocitários para o banco de sangue.
Sentiu uma dor lancinante na curva do braço e ouviu o som áspero de um adesivo ser rasgado.
- O que temos aqui? - perguntou uma nova voz, e a mulher respondeu:
- Um lindo serviço.
Chris sentiu uma dor aguda perto da testa, que o fez arquearse contra as correias e voltar a deitar-se para trás flutuando nas mãos suaves e quentes de uma enfermeira.
- Está tudo bem, Chris - tranquilizou-o. Como sabiam o nome dele?
- Há uma parte do crânio visível. Contactem a radiologia, precisamos que verifiquem as vértebras cervicais.
Ouviu-se um barulho de passos, de gritos. Chris olhou para a fenda na cortina à direita e viu o pai. Estava no hospital; o pai trabalhava no hospital. Mas não tinha
a bata branca. Vestia roupas de sair, uma camisa que nem sequer estava correctamente abotoada. Estava com os pais de Emily, a tentar passar por um grupo de enfermeiras
que não o deixava entrar.
Chris debateu-se tão repentinamente que conseguiu arrancar o cateter intravenoso do braço. Olhou directamente para Michael Gold
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e gritou, mas não se ouviu nenhum som, nenhum ruído, só vaga após vaga de medo.
- Que se lixe o procedimento - disse James Harte e, então ouviu-se o estrondo de instrumentos e o ruído de passos que distraiu a atenção das enfermeiras o tempo
suficiente para que conseguisse passar pela cortina manchada. O filho debatia-se contra correias que o prendiam à maca e um colar cervical. Havia sangue por todo
o lado, no rosto, na camisa e no pescoço.
- Sou o Dr. Harte - disse ele para o médico do serviço de urgências que se dirigia a eles a toda a velocidade. - Do voluntariado - acrescentou. Estendeu a mão e
apertou a de Chris com firmeza. - Que se passa?
- A equipa de emergência médica trouxe-o juntamente com uma rapariga - disse o médico numa voz suave. - Pelo que vemos, tem uma laceração no couro cabeludo. Vamos
enviá-lo para a radiologia para verificar se existem fracturas cranianas e das vértebras cervicais e, em caso negativo, vamos levá-lo para fazer uma TAC.
James sentiu Chris apertar-lhe a mão com tanta força que a aliança de casamento se enterrou na pele. "com certeza", pensou ele, "que ele está bem, se tem esta força."
- A Emily - sussurrou Chris com voz rouca. - Para onde levaram a Em?
-James? - perguntou uma voz hesitante. Virou-se e viu Melanie e Michael junto à cortina, horrorizados, sem dúvida, por causa de todo aquele sangue. Só Deus sabia
como conseguiram passar pelos dragões da triagem. - O Chris está bem?
- Ele está bem - disse James, mais para si próprio do que para os outros que ali estavam. - Ele vai ficar bem.
Uma médica residente desligou um telefone. -Já estão à espera na radiologia - disse ela. O médico do serviço de urgências acenou a James.
- Pode ir com ele - disse. - Faça-o manter-se calmo.
James caminhava ao lado da maca, sem largar a mão do filho. Começou a correr quando o pessoal do serviço de urgências o transportou mais depressa ao passar pelos
Gold.
- Como está a Emily? - lembrou-se de perguntar, e desapareceu antes que eles pudessem responder.
O médico que estava a tratar de Chris virou-se.
- Os senhores são o Sr. e a Sr.a Gold? - perguntou. Os dois avançaram em simultâneo.
- Podem vir comigo?
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O médico conduziu-os para um pequeno espaço atrás das máquinas do café, decorado com sofás azuis entufados e mesas feias de fórmica, e Melanie acalmou-se instantaneamente.
Era especialista em interpretar sinais verbais ou não verbais. Se não os levaram logo para uma sala de exames, já devia estar fora de perigo. Talvez Emily já estivesse
num quarto, ou tivesse sido levada para a radiologia, como Chris. Talvez estivessem a trazê-la para junto deles.
- Por favor - disse o médico. - Sentem-se.
Melanie fazia tenções de ficar de pé, mas os joelhos cederam debaixo dela. Michael permaneceu muito direito, petrificado.
- Lamento muito - começou o médico a dizer, as únicas palavras a que Melanie não podia atribuir outro significado que não o seu. Inclinou-se para a frente, com o
corpo a dobrar-se sobre si própria, até a cabeça ficar tão enterrada debaixo dos braços trémulos que deixou de ouvir o que o homem dizia.
- A sua filha foi declarada morta à chegada. Tinha um ferimento de bala na cabeça. Foi instantâneo; não sofreu - fez uma pausa. - Preciso que um dos senhores identifique
o corpo.
Michael tentou lembrar-se de pestanejar. Anteriormente, sempre fora um acto involuntário, mas naquele momento tudo - respirar, ficar de pé, ser - dependia directamente
do seu autocontrole.
- Não compreendo - disse, numa voz demasiado aguda para lhe pertencer. - Ela estava com o Chris Harte.
- Sim - disse o médico. - Foram transportados para aqui juntos.
- Não compreendo - repetiu Michael, quando o que queria realmente dizer era "Como pode ela estar morta se ele está vivo?"
- Quem foi? - obrigou-se Melanie a dizer, de dentes cerrados na pergunta como se fosse um osso que não pudesse largar. - Quem disparou sobre ela?
O médico abanou a cabeça.
- Não sei, Sr.a Gold. Tenho a certeza de que os polícias que estavam no local falarão convosco em breve.
"Polícias?"
- Estão prontos para ir?
Michael ficou a olhar para o médico, a interrogar-se por que razão este homem achava que ele devia sair dali. Depois lembrou-se. Emily. O corpo dela.
Acompanhou o médico de regresso ao serviço de urgências. Seria imaginação sua, ou as enfermeiras agora olhavam-no de forma diferente? Passou por cubículos com pessoas
a gemer, feridas, pessoas
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vivas e, finalmente, parou em frente a uma cortina sem ruído, sem movimento, sem actividade por trás dela. O médico ficou à espera até que Michael inclinou a cabeça,
e afastou-a.
Emily jazia deitada de costas numa mesa. Michael deu um passo em frente, pousando-lhe a mão nos cabelos. A testa era macia, ainda quente. O médico estava enganado;
era só isso. Ela não estava morta, não podia estar morta, ela... Ele mexeu a mão, e a cabeça dela virou-se na direcção dele, deixando-o ver o buraco por cima da
orelha direita, do tamanho de um dólar de prata, de bordos irregulares e com sangue coagulado. Mas não deitava sangue.
- Sr. Gold? - disse o médico.
Michael assentiu com a cabeça e saiu da sala de exames a correr. Passou pelo homem numa maca agarrado ao coração, quatro vezes mais velho do que Emily alguma vez
viria a ser. Passou pelo médico residente com um café. Passou por Gus Harte, sem fôlego, tentando agarrá-lo. Ganhou velocidade. Depois virou a esquina, caiu de joelhos
e vomitou.
Gus fora sempre a correr até ao Bainbridge Memorial acalentando a esperança no peito, uma carga que se tornava mais pesada e mais difícil de transportar a cada passo.
Mas James não estava na sala de espera do serviço de urgências, e todos os seus desejos de que se tratasse de um ferimento com o qual pudesse lidar - um braço partido
ou uma leve concussão - desvaneceram-se ao cruzar-se com Michael na zona de triagem.
- Veja outra vez - exigiu à enfermeira de triagem. - Christopher Harte. É filho do Dr. James Harte.
A enfermeira acenou com a cabeça.
- Esteve aqui há bocado - disse ela. - Só que não sei para onde o levaram - olhou para cima com um ar compreensivo. O melhor é eu ir ver se alguém sabe alguma coisa.
- Sim - disse Gus o mais imperativamente que podia, perdendo as forças assim que a enfermeira voltou as costas.
Percorreu a entrada de serviço das urgências com os olhos, desde as cadeiras de rodas à espera como donzelas tímidas num baile, até à televisão presa ao tecto. Ao
fundo, Gus viu uma mancha de tecido vermelho. Dirigiu-se para ela, reconhecendo o sobretudo escarlate que ela e Melanie descobriram no Filenes com oitenta por cento
de desconto.
- Mel? - sussurrou Gus, Melanie levantou a cabeça, com um ar tão estupefacto como o de Michael. - A Emily também está ferida?
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Melanie ficou a olhar para ela durante bastante tempo.
- Não - disse cautelosamente. - A Emily não está ferida.
- Oh, graças a Deus...
- A Em - interrompeu Melanie - está morta.
- Porque demoram tanto? - perguntou Gus pela terceira vez, andando para trás e para a frente diante da janela minúscula do quarto privado que destinaram a Christopher.
- Se ele está realmente bem, então porque ainda não o trouxeram para aqui?
James estava sentado na única cadeira, com a cabeça apoiada nas mãos. Ele próprio vira as TAC, e nunca examinara nenhuma com tanto medo de encontrar uma contusão
cerebral ou uma hemorragia epidural. Mas o cérebro de Chris estava intacto; os ferimentos eram superficiais. Levaram-no novamente para o serviço de urgências para
que um cirurgião o cosesse; ficaria sob vigilância durante a noite e depois ia fazer mais exames no dia seguinte.
- Ele disse-te alguma coisa? Sobre o que aconteceu? James abanou a cabeça.
- Estava assustado, Gus. com dores. Não ia pressioná-lo. Levantou-se e encostou-se à ombreira da porta. - Perguntou para onde levaram a Emily.
Gus virou-se devagar.
- Não lhe disseste nada - disse ela.
- Não - James engoliu em seco. - Na altura nem sequer pensei nisso. Que eles estivessem juntos quando isto aconteceu.
Gus atravessou o quarto e abraçou James. Até naquela altura, ficou rígido; não fora educado para dar abraços em locais públicos, e o contacto com a morte não alterava
as regras.
- Não quero pensar nisso - murmurou ela, encostando a face às costas dele. - Vi a Melanie, e não consigo deixar de imaginar que poderia ser eu a estar na situação
dela.
James afastou-a e aproximou-se do radiador, que libertava calor.
- Mas onde estavam eles com a cabeça, para passarem por um bairro perigoso?
- Que bairro? - disse Gus, insistindo no novo pormenor. - De onde veio a ambulância?
James virou-se para ela.
- Não sei - disse ele. - Só pressupus isso.
De repente ela era uma mulher com uma missão.
- Podia voltar para as urgências enquanto estamos à espera disse Gus. - Têm que ter essa informação registada - dirigiu-se determinadamente para a porta, mas quando
ia abri-la, esta abriu-se
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do lado de fora. Um auxiliar trouxe Chris numa cadeira de rodas, com a cabeça coberta por espessas ligaduras brancas.
Ficou colada ao chão, incapaz de estabelecer a ligação entre este rapaz debilitado e o filho vigoroso que se erguia bem mais alto do que ela ainda naquela manhã.
Uma enfermeira explicou qualquer coisa, que Gus não se deu ao trabalho de ouvir, e depois ela e o auxiliar saíram do quarto.
Gus ouviu a sua própria respiração acompanhar o leve ruído do cateter intravenoso de Chris. Tinha os olhos vidrados devido aos sedativos, desfocados pelo medo. Gus
sentou-se à beira da cama e embalou-o nos braços.
- Chiu - disse ela, quando ele começou a chorar junto da parte da frente da camisola dela, pequenas lágrimas de início e depois soluços sonoros e imparáveis. - Está
tudo bem.
Passados alguns minutos, os soluços de Chris cessaram, e ele fechou os olhos. Gus tentou segurá-lo junto a ela, mesmo depois de o grande corpo dele se ter relaxado
nos seus braços. Levantou-se. Olhou para James, sentado na cadeira junto à cama de hospital como uma estóica e rígida sentinela. Ele tinha vontade de chorar, mas
não choraria. James não chorava desde os sete anos.
Gus também não gostava de chorar diante dele. Ele nunca lhe dissera para não o fazer, mas o simples facto de ele não estar tão visivelmente perturbado como ela fazia-a
sentir-se tola em vez de sensível. Mordeu o lábio e abriu a porta do quarto, desejando exteriorizar as emoções em privado. No corredor, colocou as palmas das mãos
abertas na parede fria de betão e tentou lembrar-se do dia anterior, quando fora à mercearia e limpara a casa de banho de baixo e gritara com Chris por ter deixado
o leite fora do frigorífico, na bancada da cozinha o dia todo, deixando-o estragar-se. No dia anterior, quando tudo fazia sentido.
- Desculpe.
Gus virou a cabeça e viu uma mulher alta, de cabelos escuros.
- Sou a detective-sargento Marrone da polícia de Bainbridge. A senhora é a Sr.a Harte?
Acenou com a cabeça e apertou a mão à agente.
- Foi a detective que os encontrou?
- Não, não fui eu. Mas fui chamada ao local. Preciso de fazer-lhe algumas perguntas.
- Oh - disse Gus surpreendida. - Achei que seria capaz de responder às minhas.
A detective Marrone sorriu; Gus ficou momentaneamente estupefacta com a forma como aquela transformação a tornava tão bela.
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- Podemos ajudar-nos mutuamente.
- Não me parece que possa ajudá-la muito - disse Gus. O que deseja saber?
A detective tirou um bloco e uma caneta.
- O seu filho disse-lhe que ia sair esta noite?
- Disse.
- Disse-lhe para onde ia?
- Não - disse Gus. - Mas ele tem dezassete anos e sempre foi muito responsável - olhou para a porta do quarto de hospital. - Até hoje à noite - acrescentou.
- Mmm-mmm. A senhora conhecia a Emily Gold, Sr.a Harte? Gus sentiu imediatamente as lágrimas acumularem-se-lhe nos
olhos. Envergonhada, limpou-as com as costas das mãos.
- Sim - disse ela. - A Em é... era como se fosse minha filha.
- E que relação tinha ela com o seu filho?
- Era namorada dele - Gus estava agora mais confusa do que antes. Emily estaria envolvida em alguma coisa ilegal ou perigosa? Teria sido por isso que Chris atravessara
um bairro perigoso?
Só se apercebeu de que tinha falado em voz alta quando a detective Marrone franziu o sobrolho.
- Um bairro perigoso?
- Bem - disse Gus, corando. - Sabemos que havia uma arma. A detective fechou bruscamente o bloco de notas e dirigiu-se
para a porta.
- Agora gostaria de falar com o Chris - disse ela.
- Não pode - insistiu Gus, colocando-se à frente da outra mulher. - Ele está a dormir. Precisa de descansar. Para além disso, ele ainda nem sequer sabe o que aconteceu
à Emily. Não fomos capazes de dizer-lhe, pelo menos assim. Ele amava-a.
A detective Marrone ficou a olhar para Gus.
- Talvez - disse ela. - Mas também talvez a tenha matado.
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PASSADO
Outono de 1979
Pela forma como Melanie levantou o pequeno bolo de banana em forma de tijolo na palma da mão, o marido ficou sem saber muito bem se estava a pensar comê-lo ou deitá-lo
fora. Fechou a porta de entrada, ainda reluzente com a tinta nova, e transportou o bolo para cima das duas caixas de cartão que serviam de mesa de cozinha improvisada.
com dedos reverentes tocou no laço de fita armada com arame e tirou um cartão decorado com um cavalo desenhado à mão.
- "Bem-vindos à VIzinhança" - leu.
- A tua reputação de veterinário antecedeu-te - disse ela, entregando o cartão a Michael.
Michael examinou a breve mensagem, sorriu, e abriu o papel de celofane.
- É bom - disse. - Queres provar?
Melanie empalideceu. Só de pensar no bolo de banana - em qualquer comida - antes do meio-dia dava-lhe náuseas ultimamente. O que era estranho porque todos os livros
que lera sobre gravidez - e lera muitos - diziam que naquela altura, no quarto mês de gravidez, devia sentir-se melhor.
- vou telefonar-lhes para agradecer - disse ela, voltando a agarrar no cartão. - Oh. Caramba - olhou para Michael. - Gus e James. E mandaram-nos um bolo. Achas que
serão... sabes?
- Homossexuais?
- Eu diria "com um estilo de vida alternativo".
- Mas não disseste - disse Michael, sorrindo. Agarrou numa caixa e começou a subir as escadas.
- Bem, seja qual for a... orientação deles, tenho a certeza de que são muito simpáticos - anunciou Melanie diplomaticamente.
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Mas enquanto marcava o número, pensava novamente para que tipo de cidade se teriam mudado.
Não queria mudar-se para Bainbridge; teria ficado satisfeita por ficar em Boston, e, mesmo assim, ainda ficava bastante longe do seu Ohio natal. Mas era como se
esta cidade ficasse no meio de nenhures, e nunca tinha tido muita facilidade em travar novas amizades, e Michael não podia ter arranjado animais grandes para tratar
mais para sul?
Uma mulher atendeu o telefone ao terceiro toque.
- Estação Central - disse a voz, e Melanie desligou o telefone. Voltou a marcar o número com mais atenção, desta vez ouvindo a mesma voz sorridente, dizendo claramente.
- Harte.
- Sim - disse Melanie. - Sou a vizinha do lado. Chamo-me Melanie Gold. Queria agradecer o bolo aos Harte.
- Oh, óptimo. De nada. Já se mudaram definitivamente? Fez-se um silêncio, enquanto Melanie se interrogava sobre
quem seria aquela pessoa e qual seria o protocolo naquela zona do país; se seria normal revelar toda a sua vida a uma empregada de limpeza ou a uma ama.
- Poderia falar com James ou Gus? - perguntou Melanie numa voz suave. - Eu, hum, gostaria de apresentar-me.
- Eu sou a Gus - disse a mulher.
- Mas não é um homem - disse Melanie abruptamente. Gus Harte riu.
- Quer dizer que pensou... uau! Não, desculpe desiludi-la, mas da última vez que vi era uma mulher. Gus, de Augusta. Mas ninguém me trata por esse nome desde que
a minha avó morreu ao tentar dizê-lo. Precisa de ajuda aí em casa? O James saiu e eu já limpei a sala de estar de cima a baixo. Não tenho nada para fazer antes que
Melanie pudesse recusar educadamente, Gus tomou a decisão por ela. - Deixe a porta aberta - disse. - Estarei aí daqui a alguns minutos.
Melanie ainda estava a olhar para o auscultador quando Michael regressou à cozinha, transportando uma grande caixa de loiças.
- Falaste com o Gus Harte? - perguntou por entre dentes. Como é ele?
Tinha acabado de abrir a boca para responder quando a porta se abriu de rompante, como se empurrada por uma rajada de vento, para revelar uma mulher extremamente
grávida com um festival de cabelos rebeldes e um incongruente sorriso doce de santa.
- Ela - respondeu Melanie - é um furacão.
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O novo emprego de Melanie era como bibliotecária na Biblioteca Pública de Bainbridge.
Apaixonara-se pelo pequeno edifício de tijolo no dia em que fora à entrevista, encantada pelos vitrais atrás da secretária, pelas pilhas ordenadas de papel amarelo
reciclado à espera em cima do catálogo da biblioteca, pelos degraus de pedra gastos que décadas de uso alisaram em curvas, como se cada um deles sorrisse. Era uma
bela biblioteca, mas precisava dela. Os livros estavam amontoados em desordem, esmagados uns contra os outros sem que houvesse espaço para respirar ou para procurá-los.
As lombadas de alguns romances estavam rachadas ao meio; os suportes para os panfletos estavam cheios de banalidades. Os bibliotecários, para Melanie, podiam de
certa forma ser equiparados a Deus - quem mais podia incomodar-se, ou melhor, saber as respostas para perguntas tão diversas? O conhecimento é poder, mas um bom
bibliotecário não deseja açambarcar essa dádiva. Ensina aos outros como descobri-lo, onde procurar, como ver.
Apaixonara-se por Michael porque ele a desafiara. Michael era aluno da Escola Veterinária de Tufts quando aparecera junto à secretária dela com duas perguntas: Onde
poderia encontrar estudos sobre lesões hepáticas em gatos diabéticos e se ela queria jantar com ele. À primeira pergunta era capaz de responder de olhos fechados.
A segunda deixou-a sem fala. Os seus cabelos curtos, prematuramente prateados, faziam-lhe lembrar tesouros. As mãos suaves, que eram capazes de convencer uma ave
acabada de sair do ovo a beber de um bebedouro, faziam-na ter consciência do seu próprio corpo de uma maneira completamente nova.
Mesmo após o casamento e durante os primeiros anos no pequeno consultório veterinário, Melanie continuara a trabalhar na faculdade. Progrediu no sistema bibliotecário,
achando que se Michael um dia acordasse e resolvesse deixar de amar uma rapariga franzina que gaguejava, ainda podia ficar impressionado com a inteligência dela.
Mas Michael ia para a escola para tratar de vacas e ovelhas, para criar cavalos, e, depois de passar alguns anos a castrar cachorros com pedigree e a dar vacinas
contra a raiva, disse a Melanie que precisava de mudar. O problema era não haver muitos animais de quinta numa cidade grande.
com as credenciais de Melanie, não foi difícil arranjar emprego na Biblioteca Pública de Bainbridge. Contudo, Melanie estava habituada a jovens enérgicos, a professores
curvados sobre os seus textos
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como pontos de interrogação, a expulsar pessoas à hora de encerramento. Na Biblioteca de Bainbridge, a maior atracção era a hora das histórias para crianças, porque
se servia café de graça às mães. Melanie ficava sentada à secretária dias inteiros em que só via o carteiro.
Ansiava por um leitor, um verdadeiro leitor, como ela. E encontrou-o sob a forma improvável de Gus Harte.
Gus ia todas as terças e sextas à biblioteca sem falhar. Entrava pela estreita arcada, deixando os livros que levara para casa anteriormente. Melanie abria-os cuidadosamente
e fazia corresponder os cartões de requisição, colocando-os no carrinho para serem novamente arrumados na prateleira.
Gus Harte lia Dostoiévski, Kundera, Pope. Lia George Elliot, Thackeray e histórias mundiais. Por vezes, em apenas alguns dias. Como bibliotecária, estava habituada
a ser especialista na sua área mas tivera que se esforçar por isso. Para Gus Harte, esta absorção de conhecimentos, tal como tudo o resto, parecia ser fácil.
- Devo dizer-lhe - disse uma terça-feira a Gus -, que acho que é a única pessoa nesta cidade que aprecia os clássicos.
- Sou - disse Gus sobriamente. - Aprecio.
- Gostou de "Lê Morte dArthur"? Gus abanou a cabeça.
- Não encontrei o que procurava.
"E o que seria isso?" interrogou-se Melanie. Absolvição? Entretenimento? Uma boa dose de lágrimas?
Como se Melanie tivesse falado em voz alta, Gus olhou para cima timidamente.
- Um nome.
Por dentro, Melanie sentiu algo afrouxar-se de alívio. Seria que uma pessoa como Gus a desafiava, devorando romances históricos intricados como se fossem romances
de cordel? Descobrir que apenas os folheava, à procura de algo forte e clássico para dar um nome ao seu bebé... bem, devia ter feito Melanie ficar deprimida. Mas
não ficou.
- Que nome vai dar ao seu? - perguntou Gus.
Melanie ficou sobressaltada. Ninguém sabia que ela estava grávida; ainda não se notava e ela era suficientemente supersticiosa para deixar tudo oculto em mistério
enquanto pudesse.
- Não sei - disse devagar.
- Então - anunciou Gus alegremente -, estamos em pé de igualdade.
Melanie, que fora demasiado estudiosa durante o liceu para ter vida social, de repente tinha uma amiga do sétimo ano. De certa
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forma, em vez de a exuberância de Gus ofuscar as maneiras reservadas de Melanie, completavam-se uma à outra. Era como misturar azeite e vinagre - ninguém queria
apenas um na sua salada, mas juntas pareciam ser um duo tão natural que era fácil acreditar terem sido feitas uma para a outra.
Recebia telefonemas de Gus logo de manhã.
- Como está o tempo lá fora? - perguntava Gus, embora o tempo fosse visível da sua própria janela. - O que devo vestir?
Dava por si sentada ao lado de Gus no grande sofá de couro, a ver o álbum de casamento de Gus e a rir dos penteados semelhantes a capacetes dos familiares. Discutia
com Michael e telefonava a Gus só para que esta lhe dissesse indubitavelmente que ela tinha razão.
Gus começou a sentir-se suficientemente à vontade para entrar em casa dos Gold sem bater à porta; Melanie pediu livros com nomes de bebés emprestados a outras bibliotecas
e deixou-os na caixa de correio de Gus. Melanie começou a usar as roupas de grávida de Gus; Gus comprou descafeinado da marca preferida de Melanie para ter em casa;
começaram a ser capazes de terminar as frases uma da outra.
- Então - disse Michael, aceitando o gin tónico que James Harte tinha preparado para ele. - É cirurgião.
James sentou-se numa poltrona em frente a Michael. Da cozinha, ouvia Gus e Melanie, as vozes delas eram agudas e doces como as de pintassilgos.
- É verdade - disse James. - Estou a terminar uma bolsa de estudo no Bainbridge Memorial. Cirurgia oftalmológica - bebeu um pouco da sua bebida. - A Gus disse-me
que veio substituir o Howath?
Michael acenou com a cabeça.
- Foi um dos meus professores em Tufts - explicou. - Quando escreveu a dizer que ia reformar-se, comecei a pensar que talvez houvesse lugar para outro veterinário
- riu-se. - Não conseguia encontrar uma Holstein num raio de trinta quilómetros de Boston, mas ainda hoje examinei seis.
Os dois homens sorriram pouco à vontade e ficaram a olhar para os copos.
Michael olhou na direcção das vozes das mulheres.
- Elas dão-se bem - disse. - A Gus vem cá tantas vezes que de vez em quando penso que se mudou para aqui.
James riu.
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- A Gus estava a precisar de uma pessoa como a Melanie. Tenho a impressão de que a sua mulher é mais compreensiva do que eu quando ela se queixa das estrias e dos
tornozelos inchados.
Michael não disse nada. Talvez James fosse ambivalente relativamente à gravidez, mas Michael queria saber todos os pormenores. Tinha requisitado livros da biblioteca
de Melanie mostrando um blastocisto a transformar-se num ser humano minúsculo. Fora ele que fizera a inscrição nas aulas de parto natural. E por muito envergonhada
que Melanie estivesse por causa do seu corpo estar a desabrochar, ele achava-o lindo. Maduro como uma romã e opulento, mal conseguia evitar tocar na mulher cada
vez que passava por ela. Mas Melanie despia-se no escuro, puxando os cobertores até ao queixo, esquivando-se do seu abraço. De vez em quando, Michael observava Gus
movimentar-se pela casa - com mais cinco meses de gravidez do que Melanie e pesada, mas com uma confiança e vigor que a iluminavam por dentro - e pensava: "Era assim
que Melanie devia estar."
Olhou para a cozinha, vislumbrando a barriga inchada de Gus a antecedê-la.
- Por acaso - disse Michael devagar -, eu até gosto disto da gravidez.
- Acredite - disse ele. - Já fiz um turno na obstetrícia. Não é bonito de se ver.
- Eu sei - disse Michael.
- Mmm. Mas ajudar os vitelos a nascer deve ser diferente insistiu James. - Uma vaca não grita que vai matar o marido por lhe ter feito aquilo. A placenta de uma
vaca não sai disparada pela sala de partos como uma bala.
- Ah - disse Gus, aparecendo de repente. - Estás outra vez a falar de trabalho - pousou a mão no ombro de James. - O meu marido médico tem um terror absoluto de
partos - troçou ela, falando com Michael. - Gostava de ajudar o meu bebé a nascer?
- Claro - Michael sorriu. - Mas sinto-me mais confortável a trabalhar num celeiro.
Gus tirou uma tábua de queijos das mãos de Melanie e pousou-a na mesa de café.
- Sou flexível - disse ela.
Michael observou Gus instalar-se no braço da cadeira do marido. James não se mexeu para lhe tocar. Debruçou-se ao lado dela para alcançar a tábua de queijos.
- Este é o patê? - perguntou ele. Gus acenou com a cabeça.
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- É caseiro - explicou ela. - O James costuma caçar patos.
- A sério? - disse Michael. Tirou uma bolacha e experimentou-o.
- E caça veados e ursos, e uma vez caçou coelhinhos amorosos - prosseguiu Gus.
- Como podem ver - disse James calmamente -, a Gus não aprecia muito este desporto - olhou para Michael. - Suponho que também não aprecie, visto que é veterinário.
Mas possui uma verdadeira beleza: ficamos diante do resto do mundo, há um silêncio absoluto, e entramos dentro da cabeça da presa.
- Compreendo - disse Michael, embora não compreendesse.
- O James está a ser um idiota - disse Gus numa tarde em que nevava quando Melanie telefonou. - Disse-me que se não deixar de caminhar por Wood Hollow Road vou ter
o bebé debaixo de um poste das linhas telefónicas.
- Parece-me que terias mais tempo do que isso.
- Experimenta dizer-lhe.
- Utiliza uma táctica diferente - disse Melanie. - Diz-lhe que se estiveres em forma antes de o bebé nascer será mais fácil voltares a ter o teu corpo.
- Quem disse que eu quero voltar a ter o meu corpo? - perguntou Gus. - Não posso escolher o corpo de outra pessoa? Da Farrah Fawcett... da Christie Brinkley... -
suspirou. - Não sabes a sorte que tens.
- Por só estar grávida de cinco meses?
- Por seres casada com o Michael.
Melanie ficou um momento sem responder. Gostava de James Harte, com o seu aspecto frio da Nova Inglaterra, o seu encanto natural, o sotaque de Boston na voz. Muitas
das características que Melanie possuía, James também possuía, mas com um toque positivo: ela era reservada, ele era equilibrado; ela era tímida, ele era introspectivo;
ela era obsessiva, ele era rigoroso.
Ele também tinha razão. As águas de Gus rebentaram três dias depois, a pouco menos de um quilómetro de distância em Wood Hollow Road, e se um veículo da companhia
dos telefones que ia a passar não tivesse parado para perguntar-lhe se estava bem, o mais provável era Christopher ter nascido à beira da estrada.
O sonho era assim: Melanie via as costas de Michael enquanto este se agachava num estábulo, com os cabelos prateados a refulgir à luz da manhã, as mãos movendo-se
por cima da barriga latejante
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de uma égua que tentava parir. E ela estava algures mais acima talvez num palheiro? - com a água a escorrer-lhe pelas pernas abaixo como se tivesse urinado, a gritar
por ele embora nenhum som lhe saísse da boca.
Foi assim que soube que ia ter o bebé sozinha.
- Telefono-te de hora a hora - garantiu-lhe Michael. Mas Melanie sabia como Michael funcionava: assim que ficasse absorto por um cavalo com cólicas ou uma ovelha
com uma mastite, perdia a noção do tempo; a maior parte das estradas por onde viajava como veterinário de província não tinha uma profusão de cabinas telefónicas.
A data prevista para o parto passou em finais de Abril. Então uma noite, Melanie ouviu Michael atender o telefone que estava ao lado da cama. Sussurrou qualquer
coisa que ela não chegou a assimilar e desapareceu na escuridão.
Voltou a sonhar com o celeiro e quando acordou viu que o colchão estava ensopado.
A dor fê-la dobrar-se sobre si própria. Michael devia ter deixado um bilhete algures com um número de telefone. Melanie procurou no quarto e na casa de banho, parando
de vez em quando para aguentar as contracções, mas não conseguiu encontrá-lo. Agarrou no telefone e telefonou a Gus.
- Agora - disse ela, e Gus compreendeu.
James estava a operar no hospital, por isso Gus levou Chris na cadeirinha do automóvel.
- Vamos encontrar o Michael - garantiu Gus a Melanie. Colocou a mão de Melanie na alavanca das mudanças, dizendo-lhe para apertá-la quando começasse a doer. Estacionou
o carro no serviço de urgências.
- Fica aqui - disse ela, agarrando em Chris e passando pela porta de abertura automática a correr. - Tem de ajudar-me - gritou para uma enfermeira de triagem. -
Há uma senhora em trabalho de parto.
A enfermeira olhou para ela, depois para Chris, e pestanejou.
- Parece-me que veio tarde de mais - disse ela.
- Não sou eu - disse Gus. - É a minha amiga. Está no carro.
Passados alguns minutos, Melanie estava numa sala de partos, com uma bata limpa, contorcendo-se de dor. A enfermeira obstétrica virou-se para Gus.
- A senhora por acaso não sabe onde está o pai?
- Vem a caminho - disse Gus, embora não fosse verdade. - Eu estou a substituí-lo.
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A enfermeira olhou para Melanie, que estendera a mão para segurar na de Gus, e para Chris, a dormir num berço de plástico.
- vou levá-lo para o berçário - disse ela. - Não podemos ter um bebé na sala de partos.
- Pensava que o objectivo era mesmo esse - resmungou Gus, e Melanie abafou uma gargalhada.
- Não me disseste que doía - disse Melanie.
- Claro que disse.
- Não me disseste - corrigiu ela - que doía tanto.
A médica de Melanie também tinha assistido ao nascimento de Chris.
- Deixem-me adivinhar - disse ela a Gus, metendo a mão debaixo da bata para verificar o colo do útero de Melanie. Divertiu-se tanto da primeira vez que não conseguiu
resistir a voltar
- brincou e ajudou Melanie a sentar-se. - Muito bem, Melanie disse a médica. - Quero que faça força.
Então, com a melhor amiga a segurar-lhe nos ombros e a gritar numa harmonia estridente, Melanie deu à luz uma menina.
- Oh, meu Deus - disse ela, com os olhos húmidos. - Oh, olha para ela.
- Eu sei - disse Gus, de garganta apertada. - Estou a ver e saiu para ir buscar o seu próprio filho.
A enfermeira tinha acabado de colocar gelo entre as pernas de Melanie e de lhe puxar os lençóis até à cintura quando Gus regressou à sala com Chris ao colo.
- Olha quem encontrei - disse ela, segurando na porta para que Michael pudesse entrar.
- Eu bem te disse - repreendeu-o Melanie suavemente, mas já estava a virar a bebé para ele para que pudesse vê-la.
Michael tocou nas lindas sobrancelhas loiras da filha. A unha dele era maior do que o nariz dela.
- É perfeita. É... - abanou a cabeça e olhou para cima. - Nem sei o que dizer.
- Estás em dívida para comigo - sugeriu Gus.
- É verdade - disse Michael, sorrindo por dentro. - Dou-te qualquer coisa menos a minha filha.
A porta da sala voltou a abrir-se e James Harte apareceu de fato operatório, segurando numa garrafa de champanhe.
- Olá! - disse ele, apertando a mão de Michael com firmeza. Ouvi dizer que tiveste uma manhã muito agitada - sorriu para Gus.
- E disseram-me que agora és parteira - abriu a garrafa de Moèt, desculpando-se ao salpicar os cobertores de Melanie, e deitou
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champanhe em quatro copos de plástico. - À paternidade - disse ele, erguendo o copo. - À... ela já tem nome? Michael olhou para a mulher.
- Emily - disse ela. Michael ergueu o copo.
- E, tardiamente, ao Chris.
Melanie olhou para as pálpebras translúcidas e para a boca suave e arqueada, transferindo-a com relutância para o berço de plástico ao lado da cama. Emily mal ocupava um terço do espaço.
- Importas-te? - perguntou Gus numa voz suave, apontando para o berço e depois para Chris, ressonando suavemente ao colo.
- Estás à vontade - Melanie observou Gus colocar o filho ao lado de Emily.
- Olha para isto - disse Michael. - A minha filha só tem uma hora de vida e já está a dormir com um rapaz.
Todos ficaram a olhar para o berço. A bebé sobressaltou-se, um reflexo. Os longos dedos dela abriram-se bruscamente como uma flor e voltaram a cerrar-se em punhos, tentando agarrar qualquer coisa. E embora não se apercebesse do facto, quando Emily Gold voltou a sossegar no seu sono, estava de mão dada com Chris Harte.
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PRESENTE
Novembro de 1997
Muito poucas coisas chocavam Anne-Marie Marrone.
Pensava que dez anos na polícia metropolitana de Washington, D.C., podiam surpreendê-la mais do que os dez anos seguintes na cidade tranquila de Bainbridge, no New
Hampshire, mas estava enganada. Em D.C., nunca conhecia os criminosos. De alguma forma, a violência doméstica era mais perturbante quando cometida pelo lendário e muito querido director da escola primária de Bainbridge. O tráfico de droga efectuado pela Máfia era menos inquietante do que o campo de cannabis cultivado com
amor junto ao manjericão e aos orégãos em casa da velha Sr.a Inglenook. Encontrar uma adolescente mortalmente ferida, um rapaz a sangrar e uma arma fumegante podia
não ser um acontecimento de rotina em Bainbridge, mas isso não queria dizer que Anne-Marie não estivesse à espera.
- Gostava de falar com o Chris agora - repetiu ela.
- Está enganada - disse Gus Harte, cruzando os braços por cima do peito.
- Talvez o seu filho possa dizer-me precisamente isso - não ia dizer a verdade à mãe: que embora não tivesse razões para prender Christopher Harte como suspeito de homicídio, o caso seria tratado como homicídio até se provar o contrário.
- Conheço os meus direitos... - começou Gus a dizer, mas Anne-Marie estendeu a mão.
- Eu também, Sr.a Harte. E se quiser, leio-lhos a si a ao seu filho de bom grado. Mas ele agora não está sob suspeita; só nos ajudará a investigar o caso. E visto que é a única testemunha viva do que aconteceu, não vejo por que razão a senhora se oporia a que eu conversasse com ele. A não ser - disse ela - que ele lhe tivesse contado qualquer coisa que a senhora achasse que devia ocultar?
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As faces de Gus Harte ardiam-lhe; recuou e deixou a detective entrar no quarto de hospital.
Embora a mulher não estivesse fardada nem transportasse visivelmente nada mais ameaçador do que um bloco de notas, tinha um perfume de autoconfiança que inundou
o quarto à sua chegada, fazendo James levantar-se a aproximar-se mais da cama de Chris.
- James - disse Gus numa voz suave, na esperança de que o filho não acordasse -, a detective-sargento Marrone gostava de falar com o Chris.
- Bem - disse James -, como médico, posso informá-la de que ele não está em condições...
- com o devido respeito, Dr. Harte - disse a detective Marrone -, o senhor não é o médico do Chris. O Dr. Coleman já autorizou a minha entrada - sentou-se à beira da cama e pousou o bloco de notas no colo.
Gus viu esta mulher sentar-se onde ela devia estar sentada e sentiu qualquer coisa no peito que lhe fez lembrar o que sentira há anos quando uma criança empurrara Chris para fora do parque infantil, ou quando o professor de Chris no quinto ano insinuara numa reunião de pais que ele não era perfeito. A tigresa, chamava-lhe
James, quando Gus se preparava para uma guerra em defesa do filho. Mas desta vez, protegia-o de quê?
- Chris - disse a detective numa voz suave. - Chris... posso conversar contigo?
Os olhos de Chris abriram-se, pestanejando - olhos irresistíveis, como Gus sempre lhes chamara, tão inexplicavelmente pálidos em contraste com a pele morena e os
cabelos escuros.
- Sou a detective Marrone, da polícia de Bainbridge.
- Detective - disse James -, o Chris sofreu um grande trauma. Não percebo que assunto possa ser assim tão inadiável.
As mãos de Chris ficaram tensas na beira do cobertor. Olhou para a detective.
- Sabe o que aconteceu à Emily?
Anne-Marie demorou um instante a perceber se o rapaz estaria a pedir-lhe informações, ou a desejar fazer uma confissão.
A Emily - disse ela - foi transportada para o hospital, tal como tu - fez sair a ponta da esferográfica. - O que estavas a fazer no carrossel hoje à noite, Chris?
- Fomos lá para... hum, curtir - brincava com a ponta do cobertor. - Levámos uma garrafa de Canadian Club.
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Gus ficou de boca aberta. Chris, que fizera voluntariado com ela para a MADD1, estivera a beber e a conduzir?
- Não levavas mais nada?
- Levava - murmurou Chris. - Levei a arma do meu pai.
- O quê? - exclamou Gus, avançando ao mesmo tempo que James começou a objectar.
- Chris - disse a detective Marrone, sem pestanejar. - Só quero saber o que aconteceu hoje à noite - ficou a olhar para ele. Preciso de saber a tua versão.
- Porque a Em não pode contar a versão dela, pois não? - disse Chris, dobrando-se para a frente. - Ela está morta?
Antes que Gus pudesse aproximar-se da cama e abraçar o filho, a detective Marrone fê-lo por ela.
- Sim - disse ela, enquanto Chris começou a soluçar alto. As costas dele, a única parte do seu corpo que Gus conseguia ver no abraço da agente da polícia, tinham espasmos que pareciam de tosse.
- Vocês os dois zangaram-se? - perguntou numa voz suave, soltando Chris.
Gus reconheceu o momento exacto em que Chris se apercebeu do que a detective estava a sugerir. "Saia daqui", queria ela dizer, aquela defesa feroz a transbordar de dentro dela, mas descobriu que era incapaz de falar. Deu por si, como James, à espera que o filho objectasse.
Interrogando-se por um instante fugaz se ele o faria.
Chris abanou a cabeça com força, como se depois de Marrone lhe plantar a semente nos pensamentos ele precisasse de desalojá-la fisicamente.
- Meu Deus, não. Eu amo-a. Eu amo a Em - ergueu os joelhos debaixo do cobertor e escondeu o rosto neles. - íamos fazer isto juntos - murmurou.
- Fazer o quê?
Embora não tivesse sido Gus a fazer a pergunta, Chris olhou para a mãe, com o medo estampado no rosto.
- Suicidar-nos - disse numa voz suave. - A Em seria a primeira
- explicou ele, ainda a falar com Gus. - Ela... ela matou-se. E a polícia chegou antes que eu também pudesse fazer o mesmo.
"Não penses nisso", ordenou Gus a si própria em silêncio. "Limita-te a agir." Correu para junto da cama e abraçou Chris,
1. Mothers Against Drunk Driving: Mães Contra a Condução sob o Efeito do Álcool. (N. da T.)
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entorpecida pela descrença - Emily e Chris? A suicidarem-se? Era simplesmente impossível - mas só restava uma outra alternativa, mais sinistra. A que a detective
Marrone referira. Por muito inconcebível que fosse Emily suicidar-se, era ainda mais ridículo acreditar que Chris tivesse sido capaz de matá-la.
Gus ergueu o rosto por cima do ombro largo de Chris para olhar para a detective.
- Saia - disse ela. - Já.
Anne-Marie Marrone acenou com a cabeça.
- vou manter-me em contacto - disse ela. - Desculpe.
Gus continuava a embalar Chris quando a detective saiu, interrogando-se se ela pedira desculpa pelo que acontecera, ou pelo que aconteceria quando voltasse.
Michael deitou Melanie na cama, à deriva no Valium que um médico sensível do serviço de urgências lhe receitara. Sentou-se do lado oposto, à espera até a respiração dela se tornar regular devido ao sono, sem querer ir embora até ter a certeza de que também ela não lhe seria tirada de surpresa.
Então percorreu o corredor até chegar ao quarto de Emily. Tinha a porta fechada para ter privacidade; quando a abriu, uma vaga de recordações irrompeu lá de dentro, como se a essência da filha estivesse simplesmente encerrada lá dentro. Entontecido por tal dádiva, Michael encostou-se à ombreira da porta e inspirou a fragrância doce a nozes do perfume da Body Shop que Emily usava, o odor ceroso a etileno de uma tela a secar, onde se encontrava um quadro a óleo recente. Agarrou numa toalha a secar aos pés da cama, ainda húmida.
Ela ia voltar; tinha de voltar; aqui havia demasiadas coisas inacabadas.
No hospital, falara com a detective destacada para o caso. Michael presumira a existência de um assaltante de máscara, um roubo, disparos vindos de um carro a passar. Imaginara apertar a garganta ao desconhecido que tirara a vida à filha.
Não percebera que essa pessoa fora Emily.
Mas a detective Marrone falara com Chris. Dissera que embora todos os casos como este - um sobrevivente, um morto - devessem ser tratados como casos de homicídio, Chris Harte falara de um pacto de suicídio.
Michael tentou recordar-se de pormenores, conversas, acontecimentos. A última discussão que tivera com Emily fora ao pequeno-almoço.
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- Pai - dissera ela -, viste a minha mochila? Não a encontro em lado nenhum.
Seria uma espécie de código?
Michael dirigiu-se para o espelho pendurado por cima da cómoda de Emily e viu, no reflexo, um rosto muito parecido com o da filha. Colocou as mãos abertas na cómoda, derrubando uma pequena embalagem de Blistex. Lá dentro, gravada na parafina amarela translúcida, estava uma impressão digital. Seria o dedo mindinho? Teria sido um dos que Michael beijara quando ela era pequena e caíra da bicicleta ou entalara numa gaveta?
Saiu apressadamente do quarto, saiu de casa silenciosamente e seguiu para norte.
Os Simpson, cuja égua puro-sangue premiada quase morrera ao parir um par de potras na semana anterior, ficaram surpreendidos ao vê-lo nos estábulos de madrugada quando foram dar comida aos cavalos. Não o tinham chamado, disseram, e realmente correra tudo bem nos últimos dias. Mas Michael mandou-os embora, garantindo que uma visita de acompanhamento gratuita estava sempre incluída no caso de partos difíceis. Ficou de pé no estábulo virado de costas para Joe Simpson até o homem encolher os ombros e sair, e, depois, afagou os flancos esguios da égua, tocando nas crinas espetadas e macias das crias, tentando recordar-se de que outrora tivera o poder de curar.
Quando Chris acordou, parecia-lhe que tinha um limão entalado mesmo a meio da garganta e tinha os olhos tão secos que lhe parecia que as pálpebras se fechavam sobre estilhaços de vidro. Também tinha uma enorme dor de cabeça, mas sabia que isso se devia à queda e aos pontos.
A mãe estava enrolada aos pés da cama; o pai adormecera na única cadeira. Não estava lá mais ninguém. Nenhuma enfermeira, nenhum médico. Nenhuma detective.
Tentou imaginar Emily, onde ela agora se encontrava. Numa agência funerária? Na morgue? Onde seria a morgue... nunca estava assinalada nos botões do elevador. Remexeu-se desconfortavelmente, retraindo-se devido ao trovão que tinha na cabeça, tentando recordar-se da última coisa que Emily lhe dissera.
Doía-lhe a cabeça, mas não tanto como o coração.
- Chris? - a voz da mãe envolveu-o como fumo. Sentou-se aos pés da cama, a colcha gravara-lhe um padrão de waffle na face. Querido? Sentes-te bem?
Sentiu a mão da mãe na face, fresca como um rio.
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- Dói-te a cabeça? - perguntou ela.
O pai, a determinada altura, acordara. Agora ambos ladeavam a cama, como um par de suportes para livros, com pena e dor estampadas nos rostos. Chris virou-se de lado e puxou a almofada para cima do rosto.
- Quando chegares a casa - disse a mãe -, vais sentir-te melhor.
- Ia alugar um rachador de lenha este fim-de-semana - acrescentou o pai. - Se os médicos disserem que estás em condições, não vejo por que não possas dar-me uma ajuda.
Um rachador de lenha? Uma porcaria de um rachador de lenha?
- Querido - as mãos da mãe pousaram-lhe nervosamente nos ombros. - Podes chorar à vontade - disse ela, repetindo uma das inúmeras banalidades que o psiquiatra do
serviço de urgências pregara na noite anterior.
Chris não dava sinais de tirar a almofada. A mãe agarrou na ponta, puxando-a suavemente. A almofada caiu da cama de hospital, revelando o rosto de Chris, vermelho,
de olhos secos, furioso.
- Vai-te embora - disse ele, proferindo cada palavra cuidadosamente.
Só quando ouviu a campainha do elevador ao fundo do corredor é que levou as mãos trémulas ao rosto, tocando nas sobrancelhas, na cana do nariz e nas janelas vazias
dos olhos, tentando descobrir quem se tornara.
James amachucou o guardanapo de papel numa bola e meteu-o dentro do copo de café.
- Bem - disse ele, olhando para o relógio. - Tenho de ir embora.
Gus olhou para ele por cima do vapor do seu chá esquecido.
- Tens o quê? - perguntou. - Para onde?
- Tenho uma queratotomia radial hoje às nove da manhã. E já são oito e meia.
Gus tentou falar, sufocada pela incredulidade.
- Vais operar hoje?
James acenou com a cabeça.
- Agora já não posso desmarcar - começou a empilhar copos e pratos de papel em cima do tabuleiro da cantina. - Se me tivesse lembrado disso ontem à noite, seria
diferente. Mas não me lembrei.
Da forma como ele disse isso, pensou Gus, parecia que a culpa era dela.
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- Por amor de Deus - sibilou ela. - O teu filho tentou suicidar-se, a namorada dele está morta e a tua arma ainda está em posse da polícia, mas vais fingir que não aconteceu nada ontem à noite? És capaz de voltar à tua vida normal?
James levantou-se, dando o primeiro passo para ir embora.
- Se não for assim - disse ele -, como posso esperar que o Chris seja capaz de o fazer?
Melanie estava sentada numa sala na agência funerária, à espera que um dos filhos de Saltzman os orientasse nos assuntos práticos do desgosto. Ao lado dela, Michael mexia na gravata - uma das três que possuía e insistira em usar naquela ocasião. Melanie recusara-se a mudar a roupa que usava na noite anterior.
- Sr. Gold - disse um homem, entrando apressadamente na sala. - Sr.a Gold - apertou-lhes as mãos à vez, segurando-as um pouco mais demoradamente do que o necessário. - Lamento muitíssimo a vossa perda.
Michael murmurou um obrigado; Melanie ficou a olhar para ele, pestanejando. Como podia confiar naquele homem, que usava as palavras de forma tão imprecisa, para se responsabilizar pelo enterro? Dizer -que houvera uma perda era ridículo; perde-se um sapato ou um conjunto de chaves. Não se sofre a morte de um filho para depois se dizer que foi uma perda. É uma catástrofe. Uma devastação. Um inferno.
Jacob Saltzman deslizou para trás da grande secretária.
- Garanto-vos que faremos os possíveis para que esta transição seja um pouco mais tranquila para os senhores.
"Transição", pensou Melanie. "De borboleta para casulo. Não..."
- Podem dizer-me onde a Emily se encontra agora? - perguntou Saltzman.
- Não - disse Michael, e depois pigarreou. Melanie ficou envergonhada por ele. Parecia estar tão nervoso, tão certo de ter cometido um erro em frente daquele homem. Mas o que tinha ele de provar a Jacob Saltzman? - ela estava no Bainbridge Memorial, mas as... circunstâncias da sua morte conduziram a uma autópsia.
- Então levaram-na para Concord - disse Saltzman num tom suave, tomando notas num bloco. - Presumo que queiram fazer o enterro o mais depressa possível, o que seria... segunda-feira.
Melanie sabia que ele estava a contar com um dia para a autópsia e um dia para voltar a levar o corpo para Bainbridge. Soltou um leve som do fundo da garganta antes que pudesse evitar.
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- Há alguns assuntos que teremos de discutir - disse Jacob Saltzman. - Primeiro, como é óbvio, o caixão - levantou-se, indicando uma porta de ligação no seu gabinete com um gesto. Podem entrar por um momento, para poderem considerar algumas opções?
- O melhor - disse Michael num tom firme. - Topo de gama. Melanie ficou a olhar para Jacob Saltzman, acenando com a
cabeça com facilidade. Pensou em como seria um assunto do qual se riria com Gus - o negócio das agências funerárias, uma mina de ouro. Que familiar de luto regatearia o preço de um caixão, ou pediria o modelo com promoção?
- E já têm um tema? - perguntou o director do funeral. Michael abanou a cabeça.
- Pode tratar disso?
- Nós tratamos de tudo - disse Saltzman.
Melanie ficou sentada de rosto empedernido durante o debate sobre anúncios no jornal, refrigeração, cartões de agradecimento, lápides. Estar ali era como ser autorizada a entrar num santuário sobre o qual já nos interrogámos mas que nunca desejámos verdadeiramente obter as respostas. Na verdade, nunca se apercebera de que a morte tinha tantos pormenores: se o caixão ficaria aberto ou fechado, se o registo de convidados da agência funerária teria uma encadernação de couro ou de papel, quantas rosas se utilizariam na despedida.
Melanie viu a conta ascender a uma quantia inacreditável:
2000 dólares pelo caixão, 2000 dólares pela protecção de cimento que apenas adiaria o inevitável, 300 dólares pelo rabi, 500 dólares para anunciar a morte no The Times, 1500 dólares para preparar o túmulo, 1500 dólares para utilizar a capela na casa mortuária. Aonde iriam buscar o dinheiro? E então ocorreu-lhe: ao fundo para a universidade de Emily. Jacob Saltzman entregou o total a Michael, que nem sequer pestanejou.
- Está bem - disse novamente -, quero o melhor. Melanie virou-se para Saltzman muito devagar.
- As rosas - disse ela. - O caixão de mogno. O cimento à volta dele. The New York Times - começou a tremer. - O melhor - disse laconicamente -, não vai fazer a Emily ficar menos morta.
Michael empalideceu. Entregou um saco de mercearia ao director do funeral.
- Aqui estão as roupas.
Melanie, já meio levantada da cadeira, deteve-se.
- As roupas?
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- Para o enterro - disse Jacob Saltzman numa voz suave.
Melanie agarrou no saco de papel e desenrolou a parte de cima. Tirou lá de dentro um vestido de Verão com o arco-íris, demasiado fino para Novembro; sandálias que já há dois Verões não serviam a Emily. Tirou um par de collants que ainda cheiravam a amaciador da roupa e um gancho de cabelo com o fecho partido. Michael não trouxera sutiã nem saiote. Será que se lembravam sequer da mesma filha?
- Porquê estas coisas? - sussurrou ela. - Onde as encontraste? Eram estilos de moda esquecidos que Emily não teria querido,
roupas que Emily não suportaria usar para a eternidade. Tinham uma última oportunidade para provar que conheciam Emily, que estavam atentos. E se se enganassem?
Saiu da sala a correr, esforçando-se muito para não ver o verdadeiro problema. Não era que Michael tivesse feito as escolhas erradas; Michael tinha feito escolhas.
Anne-Marie Marrone estava à espera à porta de casa quando regressaram.
Michael conversara brevemente com a detective na noite anterior, mas não estava com muita disposição para ouvi-la. Comunicara-lhe a notícia indesejada sobre a tentativa
de suicídio de Emily e Chris. Michael não imaginava que mais poderia ela ter para lhes dizer, visto que Em já falecera.
- Dr. Gold - chamou a detective Marrone, saindo do seu Taurus. Subiu o caminho de gravilha até chegar ao carro deles. Se reparou que Melanie ainda estava sentada
no banco da frente, a olhar para o vazio, não fez nenhum comentário. - Não sabia que o senhor era médico - disse cordialmente. Apontou para a carrinha dele, estacionada à esquerda, com o nome do seu ofício.
- De animais - disse sobriamente. - É diferente - depois suspirou. Embora o dia já lhe estivesse a correr muito mal, a culpa não era de Anne-Marie Marrone. Estava apenas a fazer o seu trabalho. Olhe, detective Marrone. Tivemos uma manhã difícil. Não tenho tempo para conversar.
- Compreendo - disse Anne-Marie rapidamente. - Só demoro um minuto.
Michael acenou com a cabeça e fez um gesto indicando a casa.
- Está aberta - disse ele. Viu a detective abrir a boca para repreendê-lo por essa transgressão, mas depois pensou melhor. Dirigiu-se ao banco da frente do carro, abriu a porta e puxou Melanie para fora, levantando-a.
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- Vamos lá para dentro - disse, suavizando a voz num tom doce, como se estivesse a tranquilizar um cavalo nervoso. Conduziu a mulher, subindo os degraus de pedra até à cozinha, onde ela se sentou numa cadeira sem despir o casaco.
A detective Marrone fixou de pé de costas viradas para a bancada.
- Falámos ontem à noite sobre a confissão do Christopher Harte, do suicídio duplo - disse ela, indo directa ao assunto. - A sua filha pode ter-se suicidado. Mas o senhor precisa de saber que até se provar o contrário, a morte dela será tratada como um homicídio.
- Homicídio - sussurrou Michael. com aquela única palavra sedutora sentiu um poço de vingança abrir-se dentro da cabeça: uma oportunidade de culpar alguém, para além de si próprio, pela morte de Emily. - Está a dizer que o Chris a matou?
A detective abanou a cabeça.
- Não estou a dizer nada - disse ela. - Estou a explicar um assunto legal. O procedimento de rotina é examinar atentamente a pessoa encontrada ao lado de uma arma fumegante. A pessoa que ainda está viva, de forma conveniente - acrescentou.
Michael abanou a cabeça.
- Se voltar daqui a alguns dias, quando... as coisas estiverem mais tranquilas, teria muito gosto em mostrar-lhe álbuns de fotografias antigas, ou os cadernos de escola da Emily, ou as cartas que o Chris lhe escreveu do campo de férias. Ele não matou a minha filha, detective Marrone. Se ele diz que não foi ele, eu acredito. Ponho as minhas mãos no fogo pelo Chris; conheço-o bem.
- Tão bem como conhecia a sua filha, Dr. Gold? Tão bem que não se apercebeu de que tinha ideias suicidas? - a detective Marrone cruzou os braços. - Porque se a história do Chris Harte for verdadeira quer dizer que a sua filha queria suicidar-se, que se suicidou, sem mostrar sintomas exteriores de depressão.
A detective Marrone esfregou a cana do nariz.
- Olhe. Espero pelo seu bem, pelo bem da Emily e do Chris, que se tratasse de um suicídio duplo gorado. O suicídio não constitui um crime no New Hampshire. Mas se não houver provas de suicídio, o procurador-geral do estado determinará se existe causa provável para acusar o rapaz de homicídio.
Michael não precisava de explicações; percebia que a causa provável derivaria do que Emily lhes dissesse depois de morta, através da autópsia.
- Podemos receber uma cópia do relatório do médico legista?
- perguntou ele.
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Anne-Marie acenou com a cabeça.
- Se quiser, posso mostrar-lhe uma.
- Sim - disse Michael. - Por favor - seria a última afirmação, o bilhete que não deixara. - Mas tenho a certeza de que nunca chegará a isso.
Anne-Marie acenou com a cabeça e começou a dirigir-se para a porta. À entrada, virou-se para trás.
- Já falou com o Chris? Michael abanou a cabeça.
- Eu... não me pareceu ser a altura certa.
- Claro que não - disse a detective. - Estava só a pensar - voltou a apresentar-lhe condolências e saiu.
Michael dirigiu-se para a porta da cave e abriu-a, libertando os dois setters numa confusão de patas e movimentos frenéticos. Conduziu os cães para a entrada e ficou por um momento junto da porta aberta. Não reparou em Melanie, que apertou mais o casaco devido à súbita corrente de ar, com a boca arredondada na palavra homicídio, enterrando-lhe os dentes, sem perdoar.
James estava com Chris no hospital, à espera que o médico dele o transferisse da enfermaria para a unidade de psiquiatria interna dos adolescentes. Gus ficara aliviada com a recomendação do médico - não tinha confiança em si própria para ver em Chris sinais de depressão que aparentemente já lhe tinham passado despercebidos. Um hospital treinado, pessoal experiente, mantê-lo-iam em segurança.
James tivera um ataque. Isso ficaria registado na ficha clínica dele a título permanente? Aos dezassete anos, poderia assinar uma autorização para sair de lá quando quisesse? A escola, os futuros patrões, o governo, alguma vez saberiam que passara três dias numa unidade de psiquiatria?
Gus olhou pela grande janela da sala de estar, para o lindo caminho que ia de sua casa à casa dos Gold. Naquela época do ano, estava dourado pela caruma e húmido devido à geada. Viu uma luz lá em cima, no quarto de Melanie; depois, foi em bicos de pés ver Kate, que soubera o que acontecera a Emily naquela tarde. E tal como suspeitava, a filha adormecera a chorar.
Gus atirou o casaco para cima dos ombros e percorreu o caminho a correr, entrando na cozinha dos Gold. Não se ouvia nenhum barulho, excepto o tiquetaque ruidoso de um relógio de cuco.
- Melanie? - chamou ela. - Sou eu - começou a subir as escadas, espreitando para dentro do quarto, da sala do computador.
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A porta do quarto de Emily estava fechada; Gus decidiu conscientemente não ver lá dentro. Em vez disso, bateu à outra porta fechada, a da casa de banho, abrindo-a devagar.
Melanie estava sentada em cima do tampo fechado da sanita. Quando Gus entrou ela olhou para cima, mas não pareceu ficar surpreendida.
Agora que ali estava, Gus não fazia ideia do que havia de dizer. De repente, parecia estúpido reconfortá-la, quando estava tão intimamente relacionada com a dor.
- Olá - disse Gus numa voz suave. - Como estás? Melanie encolheu os ombros.
- Não sei - disse ela. - O funeral é na segunda-feira. Estivemos na casa mortuária.
- Deve ter sido horrível.
- Não prestei atenção - disse Melanie. - Agora não consigo suportar o Michael.
Gus acenou com a cabeça.
- Pois. O James discutiu com o médico que queria que o Chris fosse internado na enfermaria psiquiátrica, porque vai manchar o nome da família.
Melanie olhou para ela.
- Alguma vez previste uma coisa destas? - perguntou ela, e Gus não fingiu não ter entendido.
- Não - disse Gus, com voz trémula. - Se tivesse, ter-te-ia dito. E sei que me terias dito também - sentou-se na borda da banheira.
- O que poderia ter sido tão horrível? - murmurou. Sabia que estava a pensar nas mesmas coisas em que Melanie estava a pensar: Chris e Emily cresceram com amor, riqueza, com a companhia um do outro. De que mais poderiam precisar?
Melanie agarrou na ponta do papel higiénico e entrelaçou-o por entre os dedos como uma costura.
- O Michael levou uma roupa horrível para vestir a Em para o enterro - disse ela. - E eu tirei-lha. Não deixei que ela a vestisse.
Gus levantou-se, aliviada pela ideia de ter qualquer coisa para fazer.
- Então temos de arranjar qualquer coisa - disse. Agarrou na mão de Melanie, fazendo-a levantar-se, e conduziu-a ao quarto de Emily. Girou a maçaneta como se não estivesse absolutamente aterrorizada das recordações que lhe podiam vir à cabeça.
Mas ainda era simplesmente, maravilhosamente, o quarto de Emily. Um santuário de adolescente com roupas Gap, óleos perfumados e fotografias do próprio filho de Gus.
Melanie ficou de pé,
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hesitante, no meio do quarto, preparada para fugir, enquanto Gus procurava no roupeiro.
- E aquela camisola turquesa que ela usou para tirar a fotografia na escola? - perguntou Gus. - Os olhos dela ficavam tão lindos quando a vestia.
- Não tem mangas - disse Melanie distraidamente. - Morreria de frio - quando as mãos de Gus se imobilizaram nos cabides, Melanie tapou a boca. - Não - gemeu, de olhos marejados de lágrimas.
- Oh, Mel - Gus envolveu a amiga nos braços. - Eu também gostava muito dela. Todos nós gostávamos.
Melanie afastou-se e vírou-se de costas.
- Sabes - disse Gus, hesitante. - Talvez pudesse perguntar ao Chris. Ele deve saber melhor do que nós o que ela costumava vestir para se sentir bem.
Melanie não respondeu. O que teria a detective dito aos Gold? E mais importante, em que acreditariam eles?
- Sabes que o Chris a amava - sussurrou Gus. - Sabes que era capaz de fazer qualquer coisa pela Em.
Quando Melanie se virou, parecia-lhe completamente estranha.
- O que eu sei sobre o Chris - disse ela - é que ele ainda está vivo.
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PASSADO
Verão de 1984
Desta vez, Gus sonhou que estava a percorrer a Route 6. No banco de trás do Volvo, Chris estava a bater com um boneco no suporte do seu assento para automóvel. Ao
lado dele, com o rosto oculto pelo ângulo do espelho retrovisor, estava a bebé.
- Ela está a beber o biberão? - perguntou Gus a Chris, o irmão mais velho, o co-piloto.
Mas antes que ele pudesse responder, um homem bateu na janela. Ela sorriu e abriu-a, preparada para dar indicações. Ele mostrou-lhe uma arma.
- Saia do carro - disse ele.
A tremer, Gus desligou o motor. Saiu do carro - dizem sempre para sairmos do carro - e atirou as chaves o mais longe possível, para o meio da outra faixa.
- Cabra! - gritou o homem, lançando-se atrás das chaves. Gus sabia que tinha menos de trinta segundos. Não era o suficiente para abrir ambas as cadeirinhas, para arrastar ambas as crianças lá para fora, para colocá-las em segurança.
Ele vinha outra vez atrás dela. Tinha de escolher. Alcançou o fecho da porta de trás, soluçando.
- Vá lá, vá lá - chorava, puxando o fecho da cadeirinha e agarrando na bebé. Correu para o outro lado do carro, para o lado de Chris, mas o homem já estava a acelerar e ela ficou a olhar, abraçada a um dos filhos, enquanto o outro era levado para longe.
- GUS, GUS! - chamou James, ela acordou e tentou concentrar-se no rosto do marido. - Estavas outra vez a gemer.
- Sabes - disse Gus sem fôlego -, costuma dizer-se que se estamos a gemer enquanto dormimos, estamos a gritar num sonho.
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- O mesmo pesadelo? Gus acenou com a cabeça.
- Desta vez foi o Chris.
James envolveu Gus nos braços e esfregou a enorme barriga dela, sentindo os altos e elevações que podiam ser os joelhos, ou os cotovelos.
- Isto não te faz bem - murmurou.
- Eu sei - estava banhada em suor; o coração batia a mil pulsações por minuto. - Talvez... talvez devesse consultar um médico.
- Um psiquiatra? - troçou James. - Vá lá, Gus. É só um pesadelo - suavizou o tom da sua voz, acrescentando: - Para além disso, vivemos em Bainbridge - encostou os lábios ao pescoço dela. Ninguém vai roubar-te o carro. Ninguém vai roubar os nossos filhos.
O Verão fora invulgarmente quente, uma coisa que Gus não atribuía ao El Nino nem ao aquecimento global, mas a uma espécie de castigo, visto ter ocorrido no meio da sua segunda gravidez. Todas as manhãs ao longo das últimas duas semanas, à medida que a temperatura subia aos trinta graus, Gus e Melanie levaram as crianças para Tally Pond, um local para nadar gerido pela Câmara.
Chris e Emily estavam à beira de água, de cabeças juntas, com os membros nus enredados uns nos outros e morenos como grãos de café. Gus observou Emily encher as
mãos de lama, levando-as carinhosamente ao rosto de Chris.
- És um índio - disse Emily, traçando pinturas de guerra nas faces dele com os dedos.
Chris debruçou-se para a água e agarrou em duas mancheias de lama. Colocou as mãos no peito nu de Emily, deixando a terra escorrer-lhe pela barriga.
- Tu também - disse ele.
- Oh - murmurou Gus. - Acho que tenho de tirar-lhe aquele hábito desde cedo.
Melanie riu.
- Queres dizer, abusar das raparigas? com sorte, quando isso for importante, os objectos da atenção dele optarão por usar a parte de cima do biquini.
Emily recuou, afastando-se de Chris, guinchou, e desatou a correr pela estreita praia. Melanie viu-os desaparecer por trás de um promontório.
- É melhor ir buscá-los - disse ela.
- Bem, sem dúvida chegas lá mais depressa do que eu - concordou Gus. Inclinou a cabeça para trás e dormitou até que a areia
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estremeceu com as passadas, e ela pestanejou vendo Emily e Chris de pé à sua frente completamente nus.
- Queremos saber porque é que a Emily tem um gigante anunciou Chris.
Atrás dele, surgiu Melanie, trazendo na mão os fatos de banho abandonados.
- Um gigante?
Chris apontou para o pénis.
- Sim - disse ele. - Eu tenho um pénis e ela tem um gigante. Melanie sorriu brandamente.
- Eu trouxe-os de volta, tu explicas-lhes rapariga. Gus pigarreou.
- A Emily tem uma vagina - disse ela -, porque a Emily é uma rapariga. As raparigas têm vagina, os rapazes têm pénis.
Emily e Chris olharam um para o outro, de forma reveladora.
- Ela não pode comprar um pénis? - perguntou Chris.
- Não - disse Gus. - Calha-nos aquilo que nos calhar e pronto. É como os doces do Dia das Bruxas.
- Mas nós queríamos ser iguais - lamuriou-se Emily.
- Não, não querem - disseram Gus e Mel em simultâneo. Melanie estendeu a parte de baixo do biquini a Emily. - Agora veste-te - disse ela. - Tu também, Chris.
As crianças vestiram obedientemente os fatos de banho molhados e dirigiram-se para a cidade de areia que tinham construído naquela manhã. Melanie olhou para Gus.
- Doces do Dia das Bruxas? Gus riu.
- Como se tivesses feito melhor. Melanie voltou a sentar-se.
- No casamento - disse ela -, vamos lembrar-nos disto e rir à gargalhada.
Charlie, o cão de caça de James, estava doente há algum tempo. No ano anterior, Michael diagnosticara-lhe uma úlcera e receitara-lhe medicamentos como Tagamet e Zantac - medicamentos para seres humanos que custavam uma fortuna. Tinham de dar-lhe pequenas quantidades de comida de dieta, e nem pensar em aproximar-se de um
caixote do lixo com gordura de bacon. Mas a doença era cíclica - durante meses seguidos, Charlie estava bem; depois tinha uma crise, e Gus levava-o para que Michael
o examinasse. Escondia os recibos das consultas veterinárias de James, porque sabia que ele nunca teria concordado em gastar quinhentos
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dólares todos os Invernos num cão moribundo. Mas Gus recusava-se a encarar outra opção.
No entanto, naquele Verão, Charlie começou a ter outro problema. Estava sempre a beber - da sanita, de água do banho de Chris, de poças de lama. Urinava nos tapetes
e nas colchas das camas, embora já estivesse ensinado há seis anos. Michael dissera a Gus que provavelmente se tratava de diabetes. Não era comum nos springer spaniels; não era fatal. Mas era uma doença complicada e difícil de controlar. E todas as manhãs, teria de dar-lhe uma injecção de insulina.
Aos sábados à tarde, Gus levava Charlie a casa dos Gold e deixava que Michael o examinasse. Todas as semanas falavam na ausência de melhoras; na opção de abater o cão.
- É um cão doente - dissera-lhe Michael. - Não vou ficar a pensar mal de ti se tomares essa decisão.
No terceiro sábado de Agosto, Gus percorreu o caminho que ia de sua casa a casa dos Gold, com Charlie às voltas junto aos tornozelos. Chris ia com ela, e Emily - estiveram a brincar em casa dos Harte naquela manhã. Subiram os degraus num tornado de patas e pés, as crianças entrando intempestivamente pela cozinha e Charlie passando rápido como uma bala por entre as pernas de Melanie enquanto ela abria a porta.
- Ainda faz chichi? - Gus acenou com a cabeça. - Charlie! gritou Melanie -, já aqui!
Mas antes que o cão pudesse sujar algum tapete lá em cima, Michael apareceu com Charlie ao seu lado.
- Como fazes isso? - riu Gus. - Nem sequer consigo fazê-lo sentar-se.
- Anos e anos de prática - respondeu Michael, sorrindo. - Estás preparada?
Gus virou-se para Melanie.
- Tomas conta do Chris?
- Acho que a Emily já está a fazer isso. A que horas devemos estar em tua casa hoje à noite?
- Às sete - disse Gus. - Podemos deitar os miúdos e depois fingir que não temos filhos.
Michael deu umas palmadinhas na barriga de Gus.
- O que deve ser excepcionalmente fácil para ti, com a tua figura esbelta.
- Se não fosses o veterinário do meu cão - disse Gus -, dava-te um soco por causa disso.
Dirigiram-se ao pequeno escritório que Michael montara por cima da garagem, rindo e conversando, ignorando o facto de que
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até terem desaparecido da sua vista, Melanie os observara a eles e à descontracção que lhes assentava em cima dos ombros como um velho cobertor de flanela.
James apareceu por trás de Gus ao espelho enquanto ela colocava o brinco na orelha esquerda.
- Que idade tenho? - perguntou ele passando-lhe a mão pelos cabelos.
- Trinta e dois anos - disse ela. James abriu muito os olhos.
- Não tenho nada - insistiu. - Tenho trinta e um. Gus sorriu.
- Nasceste em 1952. Faz as contas.
- Oh, meu Deus. Achava que tinha trinta e um - viu a mulher rir-se. - É uma coisa importante - disse ele. - Sabes como às vezes acordamos a pensar que é sexta-feira, e afinal ainda é terça? Bem, acabei de perder um ano inteiro.
Lá em baixo, a campainha da porta tocou.
- Papá - disse Chris, entrando aos saltos no quarto com o pijama do Batman. - A Em chegou. A Em chegou.
- Vai abrir-lhe a porta - disse Gus. - Diz à Melanie que eu vou já descer.
Os olhos de James cruzaram-se com os seus ao espelho. -Já te disse que esta noite estás linda? - murmurou. Gus sorriu.
- Isso é porque não me vês da cintura para baixo ao espelho.
- Mesmo assim - sussurrou James, e beijou-lhe o pescoço.
- E já te disse - disse Gus - que amo todos os teus trinta e um anos?
- Trinta e dois.
- Oh - Gus franziu o sobrolho. - Nesse caso esquece - esboçou um sorriso rasgado e recuou, magnífica com a sua túnica de seda cor de abóbora. - Vens? - perguntou, e quando James acenou com a cabeça, apagou a luz do quarto e começou a descer as escadas.
A meio do serão, o cão vomitou.
Tinham acabado de comer. Os homens tinham ido lá para cima para deitar Emily e Chris na cama king-size do quarto do casal. James estava a descer as escadas quando ouviu uma tosse, seguida de um som inconfundível de vómito.
Percorreu o corredor e viu Charlie vomitar em cima do tapete kilim antigo, numa poça de urina.
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- Raios - resmungou, ouvindo os outros apenas alguns passos atrás de si. Agarrou na coleira de Charlie para arrastá-lo lá para fora.
- Ele não tem culpa - disse Gus suavemente. Melanie já estava de gatas, a limpar tudo com um pano da loiça.
- Eu sei que não - respondeu James de forma lapidar. - Mas isso não torna as coisas mais fáceis - virou-se para Michael, que observava à distância, de mãos nos bolsos. - Não podes fazer nada?
- Não - disse Michael. - Só se o puser em coma insulínico.
- Que maravilha - disse James, tropeçando no tapete. - Óptimo. Gus tirou o pano da loiça das mãos de Melanie, que se levantou devagar.
- Talvez fosse melhor irem embora - disse ela. Michael acenou com a cabeça, e enquanto Gus e James tentavam salvar o tapete antigo, os Gold foram lá para cima. Encontraram a filha num mar de lençóis com Chris, os cabelos de ambos entrecruzando-se sobre a mesma almofada em madeixas loiras e acobreadas. Retirando-a delicadamente, Michael tomou Emily nos braços e levou-a para baixo.
Gus estava à espera à porta.
- Eu telefono - disse.
- Telefona - respondeu Melanie, sorrindo tristemente, a segurar na porta aberta.
Michael ficou por mais um instante. Ajeitou o peso do corpo quente e húmido da filha nos braços.
- Se calhar é altura, Gus - disse ele. Ela abanou a cabeça.
- Lamento o que aconteceu.
- Não - disse Michael. - Eu é que lamento.
Desta vez o assaltante tinha um focinho canino e gengivas negras retraídas.
- Saia do carro - disse ele, e Gus apressou-se, pensando deliberadamente ao atirar as chaves que estas tinham de ser lançadas para mais longe, mais depressa.
Abriu totalmente a porta de trás, tentou abrir o fecho sádico da cadeirinha da bebé, tirando-a do carro.
- Abre o teu fecho! - gritou a Chris, que estava a tentar, mas os seus dedinhos não conseguiam fazê-lo. - Abre o teu fecho!
Correu para o outro lado do carro. O assaltante sentou-se no lugar do condutor, apontando a arma directamente para ela. Gus sentiu que lhe arranhavam o pulso. Olhou para os braços, para a bebé, e apercebeu-se de que estivera sempre a segurar em Charlie.
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James levantou-se da cama antes de o Sol nascer e vestiu umas calças de ganga e uma T-shirt. Era impressionante, o frio que fazia antes que o nevoeiro se dissipasse.
Comeu uma taça de cereais sentado à mesa da cozinha, concentrando deliberadamente os pensamentos numa ampla página em branco, e depois desceu os degraus para a cave.
Charlie, que o pressentia sempre antes de qualquer pessoa, dava saltos no seu canil de grades.
- Olá, companheiro - disse James, abrindo a tranca. - Queres ir lá para fora? Queres ir à caça? - os olhos do cão reviraram-se, com a língua cor de rosa a pender de satisfação. Agachou-se e urinou no chão de cimento.
James engoliu, depois tirou do bolso a chave do armário para guardar armas. Agarrou na arma de calibre .22 que estava a guardar para Chris, quando ele tivesse idade suficiente para caçar esquilos e coelhos. com um pano de silícone, James esfregou o suave cabo de madeira, o cano reluzente. Tirou um par de balas e enfiou-as no bolso das calças de ganga.
O cão saiu a correr pela porta à frente de James, no seu elemento. Charlie farejou o chão, saltando para cima de um grande sapo castanho. Voltou para trás em círculos, seguindo o seu próprio rasto.
- Por aqui - disse James, assobiando, conduzindo o cão mais para o interior do bosque nas traseiras da propriedade. Carregou a arma com as balas e observou Charlie passar por entre os densos arbustos, a pensar em tirar de lá algum faisão ou alguma perdiz, como fora criado para fazer. Viu o cão parar, inclinando a cabeça, em direcção ao céu.
com as lágrimas a escorrerem-lhe lentamente pelo rosto, James colocou-se atrás do cão, tão silencioso e familiar que Charlie nem se virou para trás e, erguendo a arma, deu-lhe um tiro na nuca.
- Olá - disse Gus, entrando na cozinha. - Levantaste-te cedo. James estava a lavar as mãos no lava-loiça. Não olhou para cima.
- Olha - disse ele -, o cão morreu.
Gus ficou parada, a meio da cozinha. Apoiou-se na bancada, imediatamente de lágrimas nos olhos.
- Deve ter sido da insulina. O Michael disse...
- Não foi - disse James, evitando o olhar dela. - Levei-o lá para fora hoje de manhã. À caça.
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Se Gus achou estranho que eles tivessem ido à caça meses antes de ser época de caça de qualquer espécie importante da vida selvagem da Nova Inglaterra, não o demonstrou.
- Foi um ataque? - perguntou, franzindo a testa.
- Não foi um ataque. Foi... Gus, fui eu. Ela levou a mão ao pescoço.
- Tu fizeste o quê - sussurrou ela.
- Matei-o, caramba - disse James. - Está bem? Não me sinto bem por ter feito isso. E não estava zangado por causa do tapete. Só queria ajudá-lo. Acabar com o sofrimento
dele.
- Por isso deste-lhe um tiro?
- O que terias tu feito?
- Levava-o ao Michael - disse Gus, numa voz trémula.
- Para que ele desse uma injecção ao Charlie? E pudesses pegar-lhe ao colo e vê-lo morrer? Assim foi mais humano - disse James. Era o meu cão. Era eu que tinha de
tratar dele - atravessou a cozinha e olhou para a mulher. - O que foi? - desafiou.
Gus abanou a cabeça.
- Eu não te conheço - disse ela, e saiu de casa a correr.
- Que tipo de pessoa - perguntou Gus, segurando na caneca de café com mãos trémulas - mata o seu próprio cão?
Melanie ficou a olhar para ela do outro lado da mesa da cozinha.
- Não foi com maldade - disse ela, mas não estava totalmente convencida. Só alguns momentos antes, quando a melhor amiga entrara pela porta lateral a soluçar, é que Melanie se apercebera do quanto valorizava o empenho do marido em curar.
- Ele não mata os pacientes, pois não? - proferiu Gus, como se lesse os pensamentos de Melanie. - E o que vou eu dizer ao Chris?
- Diz-lhe que o Charlie morreu e que agora se sente melhor. Gus esfregou o rosto com as mãos.
- Estaria a mentir - disse ela.
- Estarias a suavizar o desgosto dele - respondeu Melanie, e sem querer, ambas pensaram naquilo que James fizera, e porquê.
Chris estava à espera nos degraus do alpendre quando Gus chegou a casa.
- O papá diz que o Charlie morreu - anunciou.
- Eu sei - disse Gus. - Tenho muita pena.
- Vamos pô-lo num campo?
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- Numa campa? - Gus franziu o sobrolho. O que teria feito James ao cão? - Não me parece, querido. O papá provavelmente enterrou o Charlie algures no bosque.
- O Charlie agora é um anjo?
Gus lembrou-se do springer, que sempre parecera ter asas nas patas.
- Sim. Acho que sim. Chris esfregou o nariz.
- Então quando vamos voltar a vê-lo?
- Só quando chegarmos ao Céu - disse Gus. - Só daqui a muito tempo.
Olhou para Chris, de faces prateadas de lágrimas. Impulsivamente, entrou em casa, com Chris atrás. Lá dentro, Gus foi à casa de banho e agarrou na escova de dentes e no champô, nas lâminas Bic e no perfume de alperce. Embrulhou tudo isto na camisa de noite de algodão e colocou-a em cima da cama. Depois tirou roupas ao acaso das gavetas e dos cabides.
- Gostavas - perguntou a Chris - que vivêssemos com a Em durante algum tempo?
Gus e Chris dormiram no quarto de hóspedes dos Gold, um espaço estreito por trás do consultório veterinário com uma cama de casal, uma cómoda instável e um intenso odor a álcool. Consciente de como a situação era embaraçosa, e de que estava a impor-se, Gus deitou-se às oito horas quando foi deitar Chris. Estava deitada no escuro ao lado dele, e tentou não pensar em James.
Michael e Melanie não tinham dito nada. Mas também não podiam ter dito; qualquer coisa que dissessem teria parecido mal. James telefonara quatro vezes, para seu mérito. Tinha ido lá duas vezes, para ouvir Gus gritar que não queria vê-lo de dentro de um quarto em casa dos Gold.
Gus ficou à espera até deixar de ouvir água correr nos canos lá em cima. Ouviu a respiração regular de Chris e levantou-se da cama com cuidado. Percorreu o corredor até ao escritório, onde as teclas do telefone brilhavam no escuro.
James atendeu ao terceiro toque.
- Está - disse ele, um pouco atordoado.
- Sou eu.
- Gus - ouvia-o acordar por fases, sentando-se, aproximando mais o telefone. - Gostava que voltasses para casa.
- Onde o enterraste?
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- No bosque. Ao pé do muro de pedra. Eu levo-te lá se quiseres.
- Só quero saber - disse Gus - para poder dizer ao Chris. Não tinha qualquer intenção de dizer a Chris. Queria saber por
recear, de uma forma que mal conseguia articular para si própria, estar a caminhar pelo bosque dali a vários anos após uma chuvada e encontrar um esqueleto.
- Não fiz isto para magoá-lo. Não quero saber da porcaria do tapete. Se pudesse trocar e ter o Charlie de volta saudável, sabes que o faria.
- Mas não fizeste - disse ela. - Pois não? - voltou a pousar delicadamente o auscultador e encostou os nós dos dedos à boca. Só passado um momento é que reparou
que Michael estava de pé à sua frente.
Vestia calças de fato de treino com um buraco no joelho, e uma T-shirt desbotada da Universidade de Tufts.
- Ouvi barulho - explicou ele. - Vim cá abaixo para verificar se estavas bem.
- Bem - disse Gus, revirando a palavra. Lembrou-se da precisão com que Melanie usava as palavras, e daquilo que James dissera naquela manhã: o cão morreu. Mas não
foi realmente assim, pensando bem. O cão foi morto. Era diferente. - Não estou bem - disse ela. - Nem sequer estou cinquenta por cento bem.
Sentiu a mão de Michael no braço.
- Ele fez o que achava que era melhor, Gus. Até levou o Charlie à caça antes - ajoelhou-se ao lado de Gus. - Quando o Charlie morreu, estava com a pessoa de que
gostava mais. Podia ter-lhe dado uma injecção, mas não podia fazê-lo tão feliz antes - levantou-se, puxando-lhe as mãos.
- Vai dormir - disse ele, e conduziu-a novamente para o quarto de hóspedes, com a mão quente a tocar-lhe ao de leve nas costas.
No dia seguinte, Melanie e Gus levaram as crianças para o lago. Chris e Emily correram para a água enquanto as mães ainda estavam a estender as toalhas, a abrir
as cadeiras de praia e a pousar as geleiras. De repente, ouviu-se o nadador-salvador apitar. Um adolescente forte e bronzeado de fato de banho vermelho saltou para
o lago, nadando depressa em direcção à rocha. Melanie e Gus imobilizaram-se nas cadeiras de praia, paralisadas ao aperceberem-se subitamente do mesmo: não viam os filhos.
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Então Emily apareceu, acompanhada por uma mulher que não conheciam. Nas águas azuis turvas via-se uma forma oval a virar-se lentamente, presa debaixo da superfície. O nadador-salvador mergulhou e voltou a emergir, apartando velozmente a água diante dele e transportando a sua carga para a areia.
Chris estava absolutamente imóvel, com o rosto branco, o peito liso. Gus abriu caminho por entre a multidão aos empurrões, incapaz de falar, incapaz de fazer qualquer coisa para além de cair no chão sem forças a pouca distância do filho. O adolescente agachou-se, cobriu os lábios de Chris com os seus próprios lábios, soprando-lhe
vida.
Chris virou a cabeça para o lado, e vomitou água. Arquejando, começou a chorar, afastando-se do nadador-salvador para a segurança dos braços de Gus. O adolescente
levantou-se.
- Ele deve ficar bem, minha senhora - disse o rapaz. - A menina? A amiga dele? Ela escorregou da rocha e ele saltou para a salvar. O problema foi que ela caiu num sítio onde tinha pé. O seu filho não.
- Mamã - disse Chris.
Gus virou-se para o nadador-salvador, a tremer.
- Desculpe. Obrigada.
- Tudo bem - disse o rapaz, e voltou para a areia branca.
- Mamã - disse Chris, e depois de forma mais insistente Mamã! - colocou as mãos, frias como peixes e a tremer uma de cada lado do rosto dela, emoldurando-o.
- O que foi? - disse Gus, com o coração tão pleno que se tornava pesado para o bebé dentro dela. - O que queres?
- Eu vi-o - disse Chris, de olhos brilhantes. - Voltei a ver o Charlie.
Naquela tarde Gus e Chris voltaram para a casa dos Harte. Levaram os artigos de toilette e as roupas lá para cima. Tirando as coisas das malas com cuidado e voltando a arrumá-las casualmente, ao anoitecer - quando James voltou para casa do hospital e viu o filho a dormir e a mulher à espera na cama - parecia que nunca tinham chegado a ir embora.
Desta vez, durante o pesadelo Gus conseguiu lançar as chaves para mais longe do que antes, para debaixo de outro veículo estacionado do outro lado da rua. Abriu o fecho do cinto de segurança e dirigiu-se para a porta da bebé, conseguira tirá-la e libertá-la quando ouviu novamente os passos atrás de si.
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- Seu sacana! - gritou Gus, enfrentando pela primeira vez este pesadelo. Deu um pontapé no pneu. Olhou para o banco de trás, esperando ver o rosto de Chris quando
os pneus chiaram, afastando-se, mas em vez disso viu o marido a alcançar a parte de trás do carro para libertá-lo. E interrogou-se porque teria demorado tanto tempo a reparar que James sempre estivera sentado no assento do passageiro.
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PRESENTE
Novembro de 1997
- vou contratar um advogado para o Chris - anunciou James no sábado, ao jantar. As palavras saíram da boca dele como um arroto, e tapou tardiamente a boca com o
guardanapo como se pudesse retirá-las e declará-las de forma mais educada.
"Um advogado." A travessa escorregou dos dedos de Gus no último momento, caindo na mesa com um estrondo.
- Vais fazer o quê?
- Tive uma conversa confidencial sobre isto com o Gary Moorhouse. Lembras-te dele, da reunião em Groton? Foi ele que sugeriu.
- Mas o Chris não cometeu nenhum crime. Ter uma depressão não é um crime.
Kate virou-se para o pai, incrédula.
- Queres dizer que eles acham que o Chris matou a Emily?
- Claro que não - disse Gus, cruzando os braços, de repente a tremer. - O Chris não precisa de um advogado. De um psiquiatra sim. Mas de um advogado...
James acenou com a cabeça.
- O Gary disse que quando o Chris disse à detective Marrone que se tratou de um suicídio duplo, incriminou-se a ele próprio. Bastou dizer que não houve uma terceira pessoa, que estavam lá apenas a Em e ele, para as suspeitas caírem sobre ele.
- Isso é um disparate - disse Gus.
- Gus, não estou a dizer que o Chris fez o que eles acham que ele fez - disse James num tom suave. - Mas acho que devemos estar preparados.
- Não vais - disse Gus com voz trémula - contratar um advogado de defesa para um crime que nunca ocorreu.
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- Gus...
- Não vais, James. Não vou deixar - os braços dela apertaram-se mais em volta de si própria, quase a tocarem-se a meio das costas. - Se descobrirem que arranjámos um advogado, vão pensar que o Chris tem qualquer coisa a esconder.
- Eles já acham isso. Vão fazer uma autópsia à Emily e enviar a arma para ser examinada. Olha. Tu e eu sabemos o que aconteceu realmente. Não devíamos deixar que uma pessoa especializada comunique à polícia o que aconteceu verdadeiramente?
- Não aconteceu nada! - gritou Gus. Virou-se para o lado, de frente para a cozinha. - Não aconteceu nada - repetiu. "Vai dizer isso à Melanie", murmurou a sua consciência.
Lembrou-se subitamente do dia em que Chris acordou e lhe colocou os braços à volta do pescoço, e ela apercebeu-se de que já não tinha hálito de bebé. Era desagradável e vulgar, não era doce e leitoso, e ela afastara-se instintivamente dele, como se não tivesse nada a ver com a transição para os alimentos sólidos mas sim com o facto de este rapazinho já ser capaz de guardar os seus pecados.
Gus respirou fundo várias vezes, depois voltou a virar-se para a mesa da sala de jantar. Kate estava debruçada sobre o prato como um ramo de salgueiro, com as lágrimas a acumularem-se no pálido reflexo. A travessa estava intacta. E a cadeira de James estava vazia.
Kate ficou de pé, pouco à vontade, à porta do quarto de hospital do irmão, com uma mão na maçaneta, para o caso de ele se passar completamente e se transformar numa espécie de doido varrido, como aquele rapaz loiro de cabelos oleosos que estava escondido atrás de uma maca quando ela passou pelo corredor com a mãe. Por acaso, nem sequer queria ir visitá-lo. O Chris voltaria para casa na terça-feira. Para além disso, os médicos disseram qualquer coisa acerca de ele estar rodeado por pessoas que gostassem dele, mas Kate achava que não estava incluída. A maioria das interacções que teve com o irmão mais velho ao longo do último ano foi hostil: a discutir por causa do tempo que passavam na casa de banho, por entrar no quarto sem bater à porta primeiro, por apanhá-lo com as mãos dentro da camisola de Emily.
A ideia de ver Chris num quarto de paredes de borracha assustava-a - bem, não tinha propriamente paredes de borracha, mas mesmo assim. Ele estava diferente, com olheiras e um ar acossado, como se fosse perseguido por todos. Sem dúvida que não tinha nada a ver com a estrela da natação que fizera dois minutos em mariposa. Kate sentiu um aperto no peito e jurou, em silêncio,
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deixar que Chris fosse o primeiro a usar a casa de banho todas as manhãs. Tantas vezes lhe gritara "Vai-te matar", e ele esteve tão perto de o fazer.
- Olá - disse Kate, e ficou envergonhada por ver que a voz lhe tremia. Olhou por cima do ombro, mas para seu espanto, a mãe desaparecera. - Como te sentes?
Chris encolheu os ombros.
- Na merda - disse ele.
Kate mordeu o lábio, tentando recordar-se do que a mãe lhe dissera: "Anima-o. Não fales da Emily. Faz conversa de circunstância."
- Nós, hum, ganhámos o jogo de futebol.
Chris ergueu uns olhos mortiços e baços para ela. Não disse nada mas também não precisava de dizer. "A Emily morreu, Kate", pensava ele com desprezo. "Achas que eu quero saber do teu estúpido jogo?"
- Marquei três golos - gaguejou Kate. Talvez se não olhasse directamente para ele... Virou-se para a janela, que dava para o incinerador, libertando um fumo negro e espesso. - Meu Deus - disse num sussurro. - Não dava esta vista a um suicida.
Chris soltou um som; Kate virou-se e tapou a boca com a mão.
- Oh. Não devia ter dito isso... - murmurou, e depois viu que Chris sorria. Ela fizera-o sorrir.
- O que te disseram eles para me dizeres? - perguntou Chris. Kate sentou-se na beira da cama.
- Qualquer coisa para ficares feliz - admitiu ela.
- Ia ficar feliz - disse ele - se soubesse quando vai ser o funeral.
- Segunda-feira - disse Kate, encostando-se para trás, apoiada nos cotovelos, relaxando com esta nova confiança hesitante. - Mas não devia dizer-te isso por nada deste mundo.
Chris deixou um sorriso vagaroso estampar-se dolorosamente no rosto.
- Não te preocupes - disse ele. - Não vou guardar ressentimento.
Quando Gus e James entraram no quarto de Chris na segunda-feira de manhã, ele estava sentado na beira da cama, vestido com umas calças azuis que não lhe serviam bem e a camisa que usara na sexta-feira à noite. As manchas de sangue tinham sido lavadas, mas ainda permaneciam no tecido como fantasmas, em tons rosados à luz fluorescente. A gaze que tinha à volta da cabeça fora substituída por um pequeno penso na sobrancelha. Tinha os cabelos molhados, bem penteados.
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- Óptimo - disse ele, levantando-se. - Vamos. Gus deteve-se.
- Vamos aonde?
- Ao funeral - disse Chris. - Não estavam a pensar em deixar-me aqui?
Gus e James trocaram olhares. Era precisamente isso que estavam a pensar fazer, por recomendação dos médicos da unidade de psiquiatria para adolescentes, que ponderaram na vantagem de deixar Chris chorar a sua dor contra a desvantagem de tocar num ponto muito sensível ao lembrar-lhe que visto que Emily morrera, ele já não desejava continuar vivo. Gus pigarreou.
- O funeral da Em não é hoje.
Chris olhou para o vestido escuro dela, e o pai sem as roupas de trabalho.
- Se calhar vão os dois a algum baile - disse ele. Aproximou-se deles com movimentos bruscos, pouco coordenados. - A Kate disse-me - explicou ele. - E eu vou.
- Querido - disse Gus, agarrando-lhe no braço -, os médicos não acham que isso seja uma boa ideia.
- Os médicos que se lixem, mãe - disse ele, com a voz a soçobrar. Afastou-a. - Quero vê-la. Depois nunca mais poderei vê-la.
- Chris - disse James -, a Emily morreu. O melhor é ultrapassares isso e curares-te.
- Assim sem mais nem menos? - disse Chris, com as palavras a erguerem-se mais alto, num turbilhão, como fios de vidro. - Então se a mãe morresse e tu estivesses no hospital no dia do funeral dela e os médicos te dissessem que estavas demasiado doente para ir, limitavas-te a virares-te para o lado e a adormecer?
- É diferente - disse James. - Não tens propriamente uma perna partida.
Chris confrontou-os.
- Porque não dizem de uma vez? - gritou. - Acham que eu vou ver a Em ser enterrada e vou atirar-me do primeiro penhasco que encontrar!
- Quando te derem alta, podemos ir ao cemitério - prometeu Gus.
- Não podem obrigar-me a ficar aqui - disse Chris, dirigindo-se para a porta. James deu um salto e agarrou-o pelos ombros; ele afastou o pai, empurrando-o. - Larga-me - disse ofegante.
- Chris - disse James, debatendo-se. - Não faças isso.
- Posso assinar a minha autorização para sair.
- Não vão deixar-te - disse Gus. - Sabem que o funeral é hoje.
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- Não podem fazer isto! - gritou Chris, afastando James e atingindo-o no maxilar com o braço. James recuou cambaleando, levando a mão à boca, e Chris saiu do quarto.
Gus correu atrás dele.
- Agarrem-no - gritou ela às enfermeiras na recepção. Ouviu um burburinho de actividade atrás de si, mas não conseguia tirar os olhos de Chris. Nem quando as portas trancadas não cederam sob os puxões titânicos dele, nem quando os enfermeiros lhe torceram os braços atrás das costas e lhe espetaram uma agulha no bíceps; nem quando caiu no chão, com o fulgor das acusações nos olhos e o sabor do nome de Emily nos lábios.
Michael tencionava guardar sete dias de luto depois do funeral. Visto que Melanie se recusara a participar nos preparativos, Michael tivera de encomendar pãezinhos e salmão fumado, saladas, café e biscoitos. Uma vizinha - não fora Gus - tinha colocado a comida em cima da mesa da sala de jantar quando regressaram do cemitério.
Melanie foi directamente lá para cima com o frasco de Valium. Michael sentou-se no sofá da sala, aceitando as condolências do dentista, de um colega veterinário, de alguns clientes. Dos amigos de Emily.
Aproximaram-se dele numa massa amorfa a expandir-se que parecia poder dividir-se a qualquer instante para revelar a filha lá no meio.
- Sr. Gold - disse uma rapariga, Heather ou Heidi, pensou Michael, com olhos tristes de um azul-desmaiado -, não sabemos como foi possível isto ter acontecido.
Ela tocou-lhe na mão, a palma era macia e leitosa. A mão dela era do mesmo tamanho da de Emily.
- Eu também não - respondeu Michael, apercebendo-se pela primeira vez de como isso era verdade. À superfície, Em era dinâmica e inteligente, uma linda e tempestuosa adolescente. Gostava do que via, por isso nunca se lembrara de investigar. Era demasiado assustador desenterrar os espectros das drogas, do sexo, de decisões de adulta que ele ainda não desejava que ela tomasse.
Ainda segurava na mão de Heather. As unhas dela eram pequenas e ovais, pálidas conchas que podia guardar num bolso. Michael levou a mão da rapariga ao rosto, encostando-a à face.
A rapariga deu um salto para trás, retirando bruscamente a mão, cerrando os dedos, de faces ruborizadas. Virou-lhe as costas, e foi imediatamente engolida por uma brecha no grupo de amigos.
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Michael pigarreou, para dizer qualquer coisa. Mas o quê? "Fazes-me lembrar-me dela. Desejava que fosses a minha filha." Nada parecia bem. Levantou-se e abriu caminho para a sala de estar por entre pessoas que apresentavam as suas condolências e familiares chorosos.
- Desculpem - disse numa voz imperiosa. Ficou à espera até que todos os olhos estivessem fixos nele. - Em nome da Melanie e em meu próprio nome, gostaria de agradecer-vos por estarem hoje aqui presentes. Nós, mmm, apreciamos as vossas palavras reconfortantes e o vosso apoio. Por favor, fiquem o tempo que quiserem.
E depois, perante os olhares incrédulos de cinquenta pessoas que o conheciam bem, Michael Gold saiu da sua própria casa.
Havia dois horários de visita na unidade de psiquiatria, um às nove e meia da manhã e outro às três da tarde. A mãe de Chris não só conseguia estar lá das duas vezes, como também conseguia convencer a enfermeira a deixá-la ficar depois da hora de saída, de forma que quando regressava da consulta com o psiquiatra ou do duche na casa de banho comum, encontrava-a frequentemente ainda à espera.
Mas quando Chris acordou do estado de estupor induzido clinicamente no dia do funeral de Emily, a mãe não estava lá. Não sabia se ainda não tinha chegado, se os médicos a teriam proibido de visitá-lo devido ao drama matinal, ou se ela teria simplesmente receio de ir lá vê-lo depois de lhe ter feito aquilo. Levantou-se um pouco na cama, esfregando o rosto com a mão. A boca parecia lixa por dentro e tinha a cabeça a andar à roda, como se uma mosca andasse às voltas lá dentro.
Uma enfermeira abriu cuidadosamente a porta.
- Oh, ainda bem - disse ela. - Estás acordado. Tens uma visita.
Se a mãe estava lá para contar-lhe pormenores do funeral, ele não queria vê-la. Queria saber tudo - o desenho da chanfradura do caixão, as orações ditas pela alma de Em, a textura da terra onde foi enterrada. Era impossível que a mãe se lembrasse desses pormenores e ter de preencher as lacunas na história dela seria pior do que nunca chegar a ouvi-la.
Mas quando a enfermeira se afastou, o pai de Emily entrou no quarto.
- Chris - disse ele, parando pouco à vontade a um metro de distância da cama.
Chris sentiu um aperto no estômago.
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- Provavelmente não devia estar aqui - disse Michael. Despiu o casaco e começou a torcê-lo nas mãos. - Por acaso, sei que não devia estar aqui - pousou o casaco numa cadeira e enfiou as mãos nos bolsos das calças. - Sabes que a Emily foi enterrada hoje.
- Já sabia - disse Chris. Ficou satisfeito ao ouvir a firmeza da sua voz. - Queria estar presente.
Michael acenou com a cabeça.
- Ela teria gostado que estivesses.
- Não me deixaram - disse Chris, e a voz cedeu. Tentou baixar a cabeça para que Michael não lhe visse as lágrimas, presumindo instintivamente que o pai de Em, tal como o seu pai, visse nelas um sinal de fraqueza.
- Não sei se seria assim tão importante ter estado lá hoje disse Michael devagar. - Acho que estiveste com a Em nos momentos mais importantes - ficou a olhar para Chris até o rapaz erguer o olhar. - Diz-me - sussurrou Michael. - Diz-me o que aconteceu na noite de sexta-feira.
Chris ficou a olhar para Michael, paralisado não pelo poder da pergunta mas pela forma como Emily lhe surgia no rosto do pai os olhos do mesmo azul, da cor de um berlinde; o queixo igualmente determinado; o sorriso escondendo-se por trás das mesmas rugas de tensão na boca dele. Era fácil para ele imaginar Emily a fazer a pergunta, e não Michael. "Diz-me", implorou ela, com a boca ainda húmida da boca dele, com o sangue a escorrer-lhe da têmpora. "Diz-me o que aconteceu."
Ele desviou o olhar.
- Não sei.
- Deves saber - disse Michael. Agarrou no queixo de Chris, com o extraordinário calor radioso da adolescência a queimar-lhe as pontas dos dedos tão depressa que o largou quase imediatamente. Esteve cinco minutos a tentar fazer com que Chris voltasse a falar com ele, que deixasse escapar algum pormenor ou informação que pudesse levar consigo no bolso da camisa como um bilhete de uma amante ou um amuleto. Mas quando Michael saiu do quarto, a única coisa de que tinha a certeza era de que Chris não era capaz de olhá-lo nos olhos.
Anne-Marie Marrone fechou a porta do escritório, descalçou os sapatos, e sentou-se com o relatório da autópsia de Emily Gold que lhe fora enviado por fax. Enrolou os pés debaixo de si na cadeira e fechou os olhos, desanuviando a cabeça intencionalmente para não ter preconceitos em relação ao que estava prestes a ler. Depois
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passou os dedos pelos cabelos e ficou a olhar até que as palavras começassem a nadar na página.
A paciente tinha dezassete anos e era do sexo feminino, fora admitida em estado de inconsciência após ter sofrido um ferimento de bala na cabeça. Minutos após a admissão, a tensão arterial da paciente baixou para cinquenta-setentapor palpação. A paciente foi declarada morta às 23h31.
Um exame preliminar revelou queimaduras de pólvora a rodearem o ferimento por onde a bala entrou, na têmpora direita. A bala não descrevera um percurso directo no interior da cabeça, atravessando o lobo temporal e occipital do cérebro e danificando o cerebelo para sair um pouco descentrada na parte de trás do crânio. Foi encontrado um fragmento correspondente a uma bala de calibre .45 no lobo occipital. Os ferimentos eram consistentes com uma bala de calibre .45 disparada directamente para o crânio.
No geral, uma morte que sugeria o suicídio que Christopher Harte referira.
Anne-Marie sentiu um arrepio na nuca ao ler a segunda página do relatório da autópsia. O exame externo revelou equimoses no pulso direito. O médico legista encontrou fragmentos de pele debaixo das unhas de Emily.
Sinais de luta.
Levantou-se, pensando em Chris Harte. Ainda não recebera o relatório do Departamento Forense relativamente à Colt, mas isso não importava. Fora retirada de casa dele, estaria coberta de impressões digitais suas. Restava saber se as de Emily também estariam lá.
Alguma coisa estava a fazer-lhe confusão, e voltou a olhar para a primeira página do relatório. O médico legista explicara apenas em termos gerais os ferimentos de entrada e saída da bala, mas estes não pareciam totalmente correctos a Anne-Marie. Olhou para a mão direita, apontando o dedo como se fosse uma arma, e encostou-o à têmpora. Levantou o polegar, fingindo disparar. A bala devia ter saído perto da orelha esquerda de Emily. Em vez disso, saiu pela parte de trás da cabeça, alguns centímetros atrás da orelha direita.
Anne-Marie torceu o pulso para que a arma imaginária apontasse numa direcção semelhante. Tinha de erguer o cotovelo e colocá-lo numa posição estranha, para que a arma ficasse quase paralela à têmpora - uma posição muito desconfortável e pouco natural para dar um tiro na cabeça.
No entanto a trajectória da bala era perfeitamente lógica se a pessoa que disparou a arma estivesse à sua frente.
Mas porquê?
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Virou para a última página da autópsia para ler sobre o exame preliminar da vesícula, do tracto gastrointestinal, do sistema rep dutivo. De repente, susteve a respiração.
Voltando a calçar os sapatos, Anne-Marie agarrou no telefone, e marcou o número da Procuradoria-Geral.
- Sr.a Gold - dissera a detective ao telefone -, tenho os resultados da autópsia da sua filha. Gostaria de ir a sua casa quando quiser para mostrar-lhos.
Melanie repassara as palavras dentro da cabeça. Havia alguma coisa no pedido da detective Marrone que soara mal, e virou as frases do avesso, pensando no que lhe parecera estranho, examinando-as através de diferentes filtros, como se a sua cabeça fosse um caleidoscópio. Talvez fosse a cortesia da detective, tão diametralmente oposta às últimas vezes em que ela viera perturbar o desgosto deles. Talvez fosse apenas por ouvir as palavras "autópsia" e "sua filha", na mesma frase curta.
Melanie e Michael sentaram-se no sofá, de olhos muito abertos, de mão dada como dois refugiados. A detective Marrone sentou-se diante deles numa cadeira estofada. Os factos e afirmações sobre o corpo de Emily estavam espalhados sobre a mesa de café, as últimas informações que ela tinha para dar.
- Permitam-me que vá directa ao assunto - disse a detective. Tenho razões para acreditar que a morte da vossa filha não se tratou de um suicídio.
Melanie sentiu todo o seu corpo derreter como manteiga ao sol. Não era precisamente o que esperava ouvir? Esta absolvição por um especialista das autoridades que estava agora a dizer: "A culpa não foi sua; não viu nenhum sinal do suicídio iminente da sua filha porque não havia nada para ver."
- O Estado de New Hampshire acredita que existem provas suficientes para levar este caso diante de um grande júri e para haver uma acusação de homicídio - estava a dizer a detective. O caso avançará independentemente de os senhores, enquanto pais da Emily, decidirem envolver-se ou não. Mas esperamos que acedam aos pedidos da Procuradoria-Geral, se for preciso.
- Não compreendo - disse Michael. - Está a insinuar...
- Que a sua filha foi assassinada - disse a detective Marrone, sem pestanejar. - Muito provavelmente por Chris Harte.
Michael abanou a cabeça.
- Mas ele disse que a Emily se suicidou. Que eles tinham planeado suicidarem-se juntos.
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- Eu sei o que ele disse - respondeu a detective num tom mais suave. - Mas a sua filha disse uma coisa diferente - levantou a primeira página do relatório da autópsia, coberta por marcas e medidas estranhas. - Resumindo, o médico legista confirmou que Emily faleceu devido a um ferimento de bala na cabeça. Contudo... - indicou o final da página com um gesto, sublinhando as provas de violência física, de Emily se ter tentado defender.
Melanie deixou de ouvir. Cruzou as mãos no colo e fingiu que Chris Harte era minúsculo e estava escondido entre elas. Pressionou as palmas das mãos, esmagando-as uma contra a outra, até que ele deixasse de ter espaço para respirar.
- Espere - disse Michael, abanando a cabeça. - Não acredito nisso. O Chris Harte nunca seria capaz de matar a Emily. Não há um pingo de maldade nele. Por amor de Deus, eles cresceram juntos.
- Cala-te, Michael - disse Melanie por entre dentes. Ele virou-se para ela.
- Sabes que tenho razão - disse.
- Cala-te.
Michael voltou a olhar para a detective.
- Olhe, eu vejo programas jurídicos na televisão. Sei que se cometem erros. E sei que todas as provas que encontrou na autópsia provavelmente terão uma explicação absolutamente lógica que não tem nada a ver com homicídio - expirou devagar. - Eu conheço o Chris - disse num tom suave. - Se ele disse que ele e a Em se iam suicidar, bem, então não percebo porquê, e fico chocado ao saber isso, mas acredito que era isso mesmo que eles iam fazer. Ele não ia mentir sobre um assunto tão doloroso.
- Talvez mentisse - disse Anne-Marie -, se a sua própria vida dependesse disso.
- Detective Marrone - respondeu Michael -, não quero faltar-lhe ao respeito. Mas a senhora conheceu estes jovens há três dias. Eu conheço-os desde que nasceram.
Michael tinha a nítida impressão de que Anne-Marie Marrone estava a avaliá-lo. Que tipo de pai defenderia o rapaz que podia ter assassinado a filha?
- Está a dizer que conhece bem o Chris Harte - declarou ela.
- Tão bem como a minha própria filha. A detective acenou com a cabeça.
- Então não deve ficar admirado - disse ela pausadamente, virando para a última página da autópsia - se eu lhe disser que Emily estava grávida.
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- Onze semanas - disse Melanie numa voz apagada. - Já sabia há dois meses. Devia ter percebido. Nunca havia tampões na lista de compras - torceu os lençóis nas mãos. - Nem sequer sabia que eles dormiam juntos.
Michael também não. Imaginava isso desde que a detective Marrone se fora embora. Não aquela vida diminuta do tamanho de um amendoim dentro do corpo de Emily, mas o que o colocara lá: as carícias e os afagos que retiraram a pouco a pouco as várias camadas à rapariga para revelar a mulher que ninguém queria admitir que existia.
- Provavelmente foi por causa disso que discutiram - murmurou Melanie.
Michael virou-se para a mulher. O perfil dela, por cima da ponta da almofada, estava sempre a mudar e a realinhar-se, de forma que não conseguia vê-lo com nitidez.
- Quem?
- O Chris e a Em - disse Melanie. - Ele devia querer que ela se livrasse do bebé.
Michael ficou a olhar para ela.
- E tu não? Um ano antes de ir para a faculdade? Melanie fungou.
- Eu queria que ela fizesse aquilo que ela achasse que devia fazer.
- Estás a mentir - disse Michael. - Só estás a dizer isso agora porque já não interessa - ergueu-se, apoiando-se num cotovelo. Nem sequer sabes se ela disse ao Chris.
Melanie sentou-se na cama.
- Mas o que se passa contigo? - disse ela, num tom sibilante.
- A tua filha morreu. A polícia acha que o Chris a matou. E tu estás sempre a defendê-lo.
Michael desviou o olhar. O lençol de baixo estava enrugado, como se o tempo fizesse sentir os seus efeitos num leito matrimonial, como num rosto. Tentou em vão alisá-lo.
- Disseste-me na agência funerária que lindos ornamentos não iam trazer a Em de volta. Bem, crucificar o Chris também não. Em minha opinião, ele é a única coisa que nos resta dela. Não quero vê-lo ser enterrado também.
Melanie ficou a olhar para ele.
- Não te entendo - disse ela, e, agarrando na almofada, saiu do quarto a correr.
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Na terça-feira de manhã, quando surgiram os primeiros raios de Sol, James já estava acordado e vestido. Estava de pé no alpendre, a respiração a formar pequenos círculos, segurando num monte de posters amarelos na mão. A época de caça ao veado estava quase no fim, mas James estava determinado. Tinha finalmente encontrado alguns sinais que comprara há alguns anos e dos quais se esquecera no sótão. Enfiando um martelo no cinto, dirigiu-se aos limites da sua propriedade, ouvindo o tilintar dos pregos no bolso.
Na primeira árvore junto à via de acesso, tirou o martelo e pregou o primeiro sinal com um prego. Depois passou à segunda árvore, apenas a alguns metros, e colocou outro. ZONA DE SEGURANÇA, estava escrito. Mais urgentes do que os sinais tradicionais de PROPRIEDADE PRIVADA, estes informavam os caçadores de que se encontravam a trezentos metros de uma residência. De que uma bala perdida podia ter consequências trágicas.
James prosseguiu para a terceira árvore e, depois, para a quarta. Da última vez que fizera aquilo, quando Chris era apenas uma criança, pendurara um sinal aproximadamente de vinte em vinte metros. Desta vez, pendurara um sinal em cada árvore. Na brisa ligeira restolhavam cem sinais amarelos, garridos e obscenamente festivos nos troncos escuros.
James foi para a estrada para contemplar o seu trabalho. Ficou a olhar para os sinais, lembrando-se de amuletos, do vermelho para afastar o mau-olhado, dos hebreus a pintarem as portas com sangue de borrego, e pensou no que estaria a tentar manter afastado.
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PASSADO
1989
Chris estava deitado ao lado de Emily, as mãos de ambos entrelaçavam-se a segurar no telefone.
- És cobarde - murmurou ele, ouvindo o sinal de chamada.
- Não sou nada - sussurrou Em.
Alguém atendeu do outro lado da linha. Chris sentiu os dedos de Emily mexerem-se acima do seu pulso.
- Está?
Em fez uma voz mais grave.
- Queria falar com o Sr. Paulongo.
- Lamento - disse a mulher. - Neste momento ele não está. Quer deixar algum recado?
Em pigarreou.
- Ele tem realmente um?
- Um quê? - perguntou a mulher.
- Um pau longo?
Então Em desligou o telefone, virando-se de lado num ataque de gargalhadas e num turbilhão de páginas da lista telefónica. Chris demorou algum tempo a parar de rir.
- Achei que não eras capaz - disse ele.
- Porque és estúpido. Chris sorriu-lhe.
- Pelo menos o meu apelido não é Paulongo - passou a mão pela página em que a lista telefónica se abrira ao cair. - O que vamos fazer a seguir? - perguntou ele. - Está aqui um Richard Ressler. Podíamos perguntar se mora ali algum Dick.
2. Dick é o diminutivo de Richard e um termo em calão para designar pénis. (N. da T.)
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Emily virou-se de barriga para baixo.
- Já sei - disse ela. - Telefonas à tua mãe e dizes-lhe que és o Sr. Chambers e que o Chrís está metido em sarilhos.
- Como se ela fosse acreditar que eu sou o director da escola. Em sorriu devagar.
- És um cobarde, és um cobarde - entoou ela.
- Telefona tu - desafiou Chris. - Ela não vai reconhecer a voz da secretária da escola.
- O que me dás em troca? - perguntou Emily. Chris procurou nos bolsos.
- Cinco dólares - Em estendeu a mão; ele apertou-a e deu-lhe o telefone.
Ela marcou o número, apertando o nariz.
- Siiiim - disse ela, demoradamente. - Queria falar com a Sr.a Harte? Fala Phyllis Ray do gabinete do director. O seu filho está metido em sarilhos - Emily lançou um olhar desvairado a Chris. Que tipo de sarilhos? Hum, bem, gostaríamos que a senhora viesse aqui buscá-lo - desligou rapidamente o telefone.
- Para que foste tu fazer isto? - gemeu Chris. - Ela vai até lá de carro para descobrir que eu já saí há uma hora! vou ficar de castigo para o resto da vida - passou as mãos pelos cabelos e depois atirou-se para o outro lado da cama de Emily.
Ela encostou-se a ele por trás, com o queixo por cima do ombro.
- Se ficares - murmurou ela -, eu fico contigo.
Chris estava sentado de cabeça baixa, os pais estavam de pé ao lado dele como sequóias. Interrogou-se se o casamento seria precisamente isso: um deles começava a gritar quando a voz do outro se desvanecia, como se fossem realmente um gigante de duas cabeças.
- Então? - bufou a mãe, terminando a tirada. - Tens alguma coisa a dizer em tua defesa?
- Desculpem - respondeu Chris automaticamente.
- As tuas desculpas não compensam a tua estupidez - disse o pai. - As tuas desculpas não fazem a tua mãe recuperar a entrevista que teve de cancelar para te ir buscar à escola.
Chris abriu a boca para dizer que se ela tivesse pensado racionalmente, ter-se-ia apercebido de que nenhuma criança estava na escola àquela hora da tarde - mas pensou melhor. Voltou a baixar a cabeça, a olhar para o padrão dos fios do tapete, desejando não se ter esquecido de que a mãe estava a lançar o seu próprio negócio enquanto fazia telefonemas falsos com Em. Mas tinha começado
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há tão pouco tempo, como poderia ele lembrar-se? E que tipo de trabalho era aquele em que tinha de ficar à espera nas filas em que mais ninguém queria perder tempo?
- Esperava mais de ti e da Emily - disse-lhe a mãe.
Bem, isso não era de admirar. Toda a gente esperava sempre mais dele e de Emily, como se todos tivessem conhecimento de algum plano grandioso que Emily e Chris desconhecessem. Por vezes, Chris desejava poder deitar uma espreitadela à última página do livro, por assim dizer, para ver o que iria acontecer, para não ter de se dar ao trabalho de passar pelas coisas intermédias.
- Vais ficar no teu quarto durante três dias, só sais para ir à escola - disse o pai. - Vamos ver se assim ficas com bastante tempo para pensares em quantas pessoas incomodaste com as tuas piadinhas - então, como um monstro gigante, os pais saíram do quarto.
Chris deitou-se para trás na cama e lançou o braço por cima dos olhos. Meu Deus, eram tão chatos. A mãe tinha pedido para falar com o Sr. Chambers, que como era óbvio não sabia de nada sobre o Chris estar metido em sarilhos, e depois? Ninguém ia lembrar-se disso dali a um mês.
Abriu as cortinas de uma das janelas do quarto. Virada para leste, ficava mesmo em frente ao quarto de Emily. Não conseguiam ver-se propriamente um ao ouro àquela distância, mas aperceberam-se de que pelo menos o pequeno quadrado de luz da janela era visível. Chris sabia que Emily também estava a ser severamente repreendida; não tinha a certeza se os pais dela a fechariam de castigo no quarto, na cozinha ou onde quer que fosse. Sentou-se ao lado do candeeiro junto à cama e desligou o interruptor, fazendo o quarto ficar na escuridão. Depois voltou a ligá-lo. E a desligá-lo, e a ligá-lo. E a desligá-lo, e a ligá-lo.
Quatro longos momentos de escuridão, depois três mais curtos.
Levantou-se e ficou à janela, à espera. O quarto de Emily, um pequeno quadrado amarelo cortado pelos ramos das árvores, ficou negro. Depois voltou a ficar luminoso.
Tinham aprendido código Morse no último campo de férias. O quarto de Emily estava sempre a piscar. O...L...Á.
Chris voltou a carregar na base do candeeiro com o polegar. C...O...M...O...E..O...I.
O quarto de Emily ficou duas vezes na escuridão.
Chris fez sinal três vezes.
Sorriu e inclinou-se para trás por cima da colcha da cama, a ver as palavras de Emily iluminarem a noite.
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Lá fora no corredor, Gus e James encostaram-se à parede tentando não rir.
- Acreditas - disse Gus sem fôlego -, que eles telefonaram a um homem chamado Paulongo?
James sorriu.
- Também não sei se teria conseguido resistir.
- Sinto-me uma velha jarreta a gritar-lhe daquela maneira disse Gus. - Tenho trinta e oito anos e pareço o Jesse Helms3.
- Tínhamos de castigá-lo, Gus. Se não ia andar para aí a telefonar a perguntar se têm Prince Albert em lata4.
- O que é Prince Albert em lata?
James gemeu e arrastou-a para o fundo do corredor.
- Tu nunca vais ser a velha jarreta, porque eu é que vou receber esse título.
Gus entrou no quarto deles.
- Está bem. Tu podes ser o rezingão. Eu sou a doida que entra no gabinete do director a insistir que o filho fez qualquer coisa de mal.
James riu.
- Eles enganaram-te mesmo, não enganaram? Ela atirou-lhe uma almofada.
James agarrou-lhe no tornozelo, fazendo-a guinchar e afastar-se dele.
- Não devias ter feito isso - disse. - Posso ser velha, mas não estou morta - ele colocou o corpo por cima do dela, sentindo-a amolecer, percorrendo-lhe as curvas dos seios e a garganta. Pousou a boca na dela.
Gus lembrou-se de como era há uma década quando a casa ainda cheirava a madeira aplainada e a tinta fresca, e o tempo era uma dádiva de quem distribuía os horários no hospital. Lembrou-se de como ela e James faziam amor em cima da mesa da cozinha, no vestíbulo, depois do pequeno-almoço - como se a pressão de ser médico residente lhe tivesse retirado todas aquelas sensibilidades conservadoras da cabeça.
- Tu - disse James junto à têmpora dela - estás a pensar de mais.
3. Antigo Senador da Carolina do Norte, republicano conservador convicto. (N. da T.)
4. Piada alusiva à marca de tabaco Prince Albert, ou seja, Príncipe Alberto, cuja resposta seria: "Então é melhor deixarem-no sair." (N. da T.)
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Gus sorriu junto ao pescoço dele. Raramente era acusada disso.
- Talvez então devesse apenas sentir - disse ela, enfiando as mãos debaixo da camisa de James, enquanto os músculos das costas dele se contraíam em resposta, como uma maré. Empurrou-o para o lado, abrindo-lhe o fecho das calças, tomando o seu calor nas mãos.
Então olhou para cima, de olhos faiscantes:
- É o Sr. Paulongo, presumo? James sorriu.
- Ao seu serviço.
Pôs-se em cima dela, dentro dela. Ela respirou fundo, sem pensar em absolutamente nada.
"QUERIDO DIÁRIO,
Blizzard, a porquinha-da-índia da turma vai ter bebés.
Hoje na escola a Mona Ripling disse que beijou o Kenny Lawrence atrás dos colchões de parede na aula de ginástica. O que é um autêntico disparate porque toda a gente
sabe que o Kenny é o rapaz mais ordinário do 4." ano.
Sem contar com o Chris mas o Chris não é como os outros rapazes.
O Chris está a ler uma autobiografia do Muhammad Ali para o trabalho de leitura. Perguntou-me o que eu estava a ler e eu comecei a falar-lhe de Lancelote e de Guinevere e do rei Artur, mas depois parei. Ele provavelmente queria que eu lhe contasse alguma coisa sobre os cavaleiros e eu tenho saltado essas partes.
Os melhores capítulos são quando a Guinevere está com o Lancelote. Ele tem cabelos escuros e olhos escuros, faz coisas como ajudá-la a descer do cavalo e chama-lhe
SENHORA MINHA. Aposto que ele a trata como o ovo de cristal que a minha mãe tem, que não deixa sequer ninguém RESPIRAR ao pé dele. O rei Artur é um velho e um idiota.
A Guinevere devia fugir com o Lancelote porque o ama e porque eles foram feitos um para o outro.
Acho muito romântico.
Eu morria se o Chris soubesse que eu adoro contos de fadas."
Mais tarde, naquela semana, desafiado por Emily, Chris roubou A Alegria do Sexo da biblioteca.
Escondeu-o dentro do casaco até chegarem a casa e se meterem no esconderijo secreto. O pedregulho tinha a forma de um triângulo rectângulo virado ao contrário, com a ampla superfície lisa
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de pedra em cima a servir de base de apoio para se empoleirarem ou para se esconderem debaixo, dependendo da imaginação. Em diferentes alturas da sua infância, fora o ponto de partida para jogar às escondidas, uma gruta de piratas, o abrigo de um índio. Chris sacudiu algumas carumas que estavam no chão. Tirou o livro para fora e sentou-se ao lado de Emily.
Durante algum tempo nenhum deles disse uma palavra, inclinando as cabeças para ver os desenhos de membros entrelaçados, mãos dadas. Emily passou o dedo pelos flancos desenhados a caneta de um homem debruçado por cima de uma mulher.
- Não sei - murmurou ela. - Não vejo nada de alegre nisto.
- Deve ser diferente quando estamos mesmo a fazê-lo - respondeu Chris. Virou a página. - Uau - disse ele. - É como a ginástica.
Emily voltou ao princípio do livro. Parou numa página que mostrava uma mulher em cima de um homem, estendida ao longo do corpo dele, com as mãos dadas por cima das cabeças.
- Que grande coisa - disse Chris. - Já me prendeste assim um milhão de vezes.
Mas Emily não o ouviu. Ficou cativada pela página seguinte, onde estavam representados um homem e uma mulher juntos, mas sentados, de pernas abertas como dois caranguejos, agarrando com força os ombros um do outro.
- Deve ser diferente quando amamos alguém - raciocinou Emily. Chris encolheu os ombros.
- Deve ser - disse ele.
Gus estava a mudar os lençóis da cama de Chris quando encontrou A Alegria do Sexo escondido entre o colchão e o estrado.
Agarrou no livro e folheou as páginas, encontrando posições de que há muito se esquecera. Depois segurou-o com força junto ao peito e saiu lá para fora, dirigindo-se para casa dos Gold.
Melanie abriu a porta com uma caneca de café numa das mãos e com a outra segurou no livro que Gus lhe estendia sem dizer uma palavra.
- Bem - disse ela, examinando a capa. - Não há dúvida de que isto ultrapassa o chamamento do dever da boa vizinhança.
- Ele tem só nove anos - explodiu Gus, deixando cair o casaco no chão da cozinha e sentando-se numa cadeira. - Os rapazes de nove anos deviam estar a pensar no basebol, e não em sexo.
- Acho que as duas coisas estão mentalmente associadas sugeriu Melanie. - Sabes, chegar à primeira e à segunda base, e tudo isso.
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- Quem o deixou requisitar isto na biblioteca? - perguntou Gus, virando-se para a amiga. - Que espécie de adulto deixa uma criança fazer uma coisa destas?
Melanie examinou a parte de trás do livro.
- Ninguém - disse. - Este livro nunca chegou a ser requisitado. Gus escondeu o rosto nas mãos.
- Que maravilha. Ele é um tarado e um ladrão.
A porta da cozinha voltou a abrir-se, e Michael entrou, transportando uma grande caixa de material veterinário.
- Minhas senhoras - saudou, deixando cair a caixa no chão pesadamente. - O que aconteceu? - espreitou por cima do ombro de Melanie e, sorrindo, tirou-lhe o livro das mãos. - Uau - disse, folheando as páginas. - Eu lembro-me disto.
- Mas tinhas nove anos quando o leste? - perguntou Gus. Michael riu.
- Andava no quinto ano.
Melanie virou-se para ele, surpreendida.
- Interessavas-te por raparigas quando eras assim tão novo? Ele beijou-lhe o topo da cabeça.
- Se não começasse cedo - disse ele -, não seria o dínamo que sou hoje - sentou-se numa cadeira em frente de Gus e colocou o livro diante dela. - Deixa-me adivinhar. Encontraste-o debaixo do colchão dele. Era onde eu costumava guardar a minha Penthouse.
Gus esfregou as têmporas.
- Se voltar a castigá-lo, o Serviço de Protecção de Menores vai aparecer-me à porta - olhou para cima, com ar miserável. - Talvez nem sequer devêssemos castigá-lo - disse ela. - Talvez ele esteja apenas à procura de respostas relativamente às raparigas.
Michael ergueu as sobrancelhas.
- Quando as encontrar, dizes-lhe para vir falar comigo? Melanie suspirou compreensivamente.
- Não sei o que faria, se estivesse no teu lugar.
- Quem disse que não estás? - fez notar Gus. - Como é que sabes que a Em não está metida nisto? Tudo o que aqueles dois fazem, fazem-no juntos - olhou para Michael. - Talvez ela tivesse tido a ideia.
- A Em tem nove anos - disse ele, chocado.
- Precisamente - disse Gus.
Gus ficou à espera até ouvir o filho virar o quarto do avesso. Depois bateu à porta, para ser recebida por um turbilhão de roupas, luvas, sticks de hóquei e angústia.
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- Olá - disse ela num tom afável. - Perdeste alguma coisa? viu Chris ficar de vários tons de vermelho. Depois tirou as mãos de trás das costas. - Perdeste isto? - perguntou.
- Isto não é o que parece - disse Chris de imediato, e Gus ficou estupefacta. Onde teria ele aprendido a mentir com tanto à vontade?
- O que achas que parece?
- Que andei a ler aquilo que não devia? Gus sentou-se na cama dele.
- Estás a perguntar-me, ou estás a dizer-me? - suavizou a voz, passando a palma da mão por cima da capa do livro. - O que te faz pensar que não devias lê-lo?
Chris encolheu os ombros.
- Não sei. As imagens de pessoas nuas e isso.
- Foi por isso que quiseste lê-lo?
- Acho que sim - disse Chris, com um ar tão triste que ela quase, quase, sentiu pena dele. - Na altura parecia ser uma boa ideia.
Olhou para o topo da cabeça do filho e lembrou-se de como, quando ele nasceu, uma enfermeira parteira segurara num espelho entre as suas pernas para que ela a visse a aparecer, escura e penugenta, pela primeira vez.
- Não podemos esquecer o assunto? - implorou Chris. Queria exonerá-lo, seduzida pela forma como se contorcia ao
lado dela, uma borboleta espetada num alfinete. Mas olhou por acaso para as mãos dele, cerradas sobre os joelhos ossudos. Já não eram macias como as de um bebé, de dedinhos rechonchudos, como as mãos que seguram nos balões nos desfiles do Dia de Acção de Graças. A determinada altura, quando Gus estava demasiado ocupada para reparar, tinham-se tornado nodosas, com veias azuis, maiores até do que as dela, mãos que já lhe faziam lembrar as de James.
Gus pigarreou, consciente de que este rapaz que estava sentado à sua frente, cujo rosto seria capaz de identificar apenas pelo tacto, cuja voz dissera o seu nome antes de qualquer outra palavra, era uma pessoa que não reconhecia. Era uma pessoa que ouvia a palavra "mulher" e já não pensava nas feições de Gus e no abraço maternal dela, mas numa rapariga sem rosto com seios e ancas curvilíneas.
Quando é que isso acontecera?
- Se tiveres algumas dúvidas, tu sabes, sobre... isto... podes perguntar ao teu pai ou a mim - conseguiu Gus dizer, rezando para que ele escolhesse James. Interrogou-se sobre o que teria sido que a fizera querer reconfortar Chris. Naquela altura, era impossível dizer quem estava mais envergonhado.
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- Tenho - Chris olhou para o colo, torcendo as mãos. Algumas coisas nesse livro... bem, são... - ergueu os olhos. Algumas coisas parecem não funcionar assim lá muito bem.
Gus pousou uma mão nos cabelos do filho.
- Se não funcionassem - disse ela simplesmente -, tu não estarias aqui.
Emily e Chris estavam sentados debaixo de uma tenda de cobertor na cama dela, com uma lanterna equilibrada entre os pés descalços de ambos. Os pais de Chris, que tinham saído para ir a um baile qualquer de beneficência do hospital, pediram aos Gold para ficarem a tomar conta dele e da irmã. Kate tinha ido para a cama depois do banho, mas Chris e Em planeavam ficar acordados até depois da meia-noite. Melanie deitara-os antes das nove e dissera para apagarem as luzes, mas eles sabiam que se ficassem em silêncio, ninguém viria a saber.
- Então? - insistiu Chris. - Verdade ou consequência?
- Verdade - disse Emily. - A pior coisa que já fiz... foi telefonar à tua mãe a fingir que era a secretária do director da escola.
- Isso não é verdade. Esqueceste-te daquela vez em que deitaste acetona para cima da secretária da minha mãe e depois disseste que tinha sido a Kate.
- Só fiz isso porque tu me disseste - sussurrou Emily ferozmente. - Disseste que ela não ia perceber - depois franziu o sobrolho. - De qualquer forma, se sabias qual era a pior coisa que eu já fiz, para que fizeste a pergunta?
- Está bem. vou perguntar-te outra coisa - disse Chris. - Lê-me o que escreveste no teu diário quando eu estava a lavar os dentes.
Emily arquejou.
- Consequência.
Os dentes de Chris .brilharam brancos à luz da lanterna.
- Vai à casa de banho dos teus pais - disse ele. - E traz-me as escovas de dentes deles, para eu saber que estiveste lá.
- Está bem - disse Emily, atirando os cobertores para trás. Os pais já deviam ter adormecido há meia hora. com certeza não estariam acordados.
Assim que ela saiu, Chris ficou a olhar para o livro minúsculo coberto de cornucópías no qual Emily abria o coração todas as noites. Tinha um cadeado, mas ele conseguia abri-lo. Tocou na parte de trás do diário com a mão, e depois voltou a tirá-la bruscamente, queimando-lhe a palma. Teria receio por saber que Em não queria que o lesse? Ou teria medo do que poderia ver?
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Sacudiu o livro e abriu-o. O seu nome estava por todo o lado. Abriu muito os olhos, depois voltou a colocar o diário na secretária dela e voltou para a cama, certo de que tinha a culpa estampada na testa.
- Toma - disse Em, sem fôlego, voltando para a cama. Mostrou-lhe as duas escovas de dentes. - Agora é a tua vez - colocou os pés debaixo do corpo. - Quem é a rapariga mais bonita do quinto ano?
Bem, essa era fácil. Emily estava à espera que ele dissesse que era a Molly Ettlesley, a única rapariga do quinto ano que precisava realmente de usar sutiã. Mas se ele dissesse que era a Molly, sabia que Emily ia ficar zangada, porque ele era o melhor amigo dela.
Olhou para o diário. Em pensava mesmo que ele era uma espécie de cavaleiro?
- Consequência - disse ele por entre dentes.
- Está bem - e antes que Emily pudesse organizar as ideias, disse a Chris que ele tinha de beijá-la.
Ele tirou o cobertor de cima das cabeças deles.
- Eu o quê?
- Ouviste o que eu disse - disse Em, franzindo o sobrolho. Não é tão mau como ir à casa de banho dos meus pais.
De repente tinha as mãos suadas, por isso limpou-as aos joelhos das calças do pijama.
- Está bem - disse ele. Inclinou-se para a frente e encostou a boca à dela. Depois afastou-se para trás, tão afogueado como Emily.
- Bem - anunciou -, foi bastante nojento.
Em tocou suavemente no queixo.
- Sem dúvida - sussurrou.
O único MacDonakTs de Bainbridge, no New Hampshire, exibia um batalhão inconstante de trabalhadores estudantes que labutavam como escravos em volta de grelhas gordurosas e recipientes cheios de óleo até acabarem o liceu. Mas durante vários anos, um homem estivera sempre a trabalhar lá. Tinha vinte e muitos anos, cabelos pretos compridos e um olho torto. Os adultos diziam educadamente que ele "tinha algum problema". As crianças chamavam-lhe O Susto e inventavam histórias sobre ele fritar crianças
na fritadeira das batatas e limpar as unhas com uma faca de mato. Na tarde em que Chris e Emily estavam lá a almoçar, O Susto estava de serviço a fazer limpezas
na sala de refeições.
Os pais de Chris tinham chegado à hora de almoço, a mãe mergulhou como um falcão para lhe beijar a testa. Depois de conversar
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com a mãe de Emily sobre quem vestia o quê na festa da noite anterior, Gus ofereceu-se para levar Emily a almoçar no McDonalds com eles - para agradecer o facto de ter ficado a tomar conta dela durante a noite. Levaram os tabuleiros para a zona de refeições, mas cada vez que Emily olhava para o lado, O Susto estava na mesa ao lado dela, ou mesmo à sua frente, a esfregar a superfície lisa de fórmica e a observá-la com o olho são.
Chris sentou-se ao lado dela no banco.
- Acho - sussurrou ele - que ele é teu admirador secreto.
- Pára com isso - Em estremeceu. - Estás a assustar-me.
- Talvez ele te peça o número de telefone - continuou Chris.
- Talvez ele...
- Chris - avisou Emily, dando-lhe um soco no braço.
- O que se passa? - perguntou Gus.
- Nada - responderam eles em uníssono.
Emily observou O Susto fazer o seu trabalho: apanhar os pacotes de ketchup que as pessoas deixavam cair no chão e limpar uma Coca-Cola entornada com a esfregona. Olhou para ela, como se a sentisse a observá-lo, e ela baixou imediatamente os olhos para o pão coberto de sementes do seu hambúrguer.
De repente Chris debruçou-se para lhe dizer um segredo. Sentia o calor da respiração dele na orelha.
- Desafio supremo - disse ele.
Um desafio supremo era aquele que nos fazia subir a pique na consideração de alguém, quando completado. Não andavam a contar, mas se andassem, certamente Em ficaria à frente. Interrogou-se por alguns instantes se isso seria uma forma de Chris se vingar dela por causa do beijo da noite anterior.
O último desafio supremo fora colocado por Emily. Chris exibira o traseiro a uma rua residencial inteira da janela do autocarro da escola.
Ela acenou com a cabeça.
- Vai fazer chichi - sussurrou Chris - à casa de banho dos homens.
Emily sorriu. Afinal era um desafio bastante bom. E nem se comparava a pôr o traseiro à janela. Se estivesse lá alguém, diria simplesmente que se tinha enganado e sairia; Chris nunca viria a saber se tinha realmente entrado na casa de banho. Primeiro olhou em volta à procura dO Susto, porque não queria passar por ele, por muito disparatado que parecesse. Nessa altura já tinha saído da sala de refeições, provavelmente teria voltado ao serviço de virar hambúrgueres. Quando se levantou do banco, James e Gus olharam para cima.
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- Tenho de ir à casa de banho - disse. Gus limpou a boca com o guardanapo.
- Eu levo-te - disse ela.
- Não! - gritou Em. - Quero dizer, já consigo ir sozinha.
- A Melanie deixa-te ir sozinha? - perguntou Gus duvidosamente.
Emily olhou directamente para ela e acenou com a cabeça. Gus virou-se para James, que encolheu os ombros.
- Estamos em Bainbridge - disse ele. - O que pode acontecer? Gus observou Emily percorrer o labirinto de mesas presas ao
chão e cadeiras até chegar às casas de banho na parte de trás do McDonalds. Depois concentrou-se em Kate, que estava a fazer pinturas com os dedos na mesa usando ketchup.
A casa de banho dos homens era à esquerda. A casa de banho das senhoras era à direita. Emily olhou para Chris, para se assegurar de que ele estava a ver, e depois entrou.
Em menos de cinco minutos, voltou a sentar-se no seu lugar ao lado de Chris.
- bom trabalho - disse ele, tocando-lhe no braço.
- Não foi nada de especial - murmurou Emily.
- Ai não? - sussurrou ele. - Então porque estás a tremer?
- Não é nada - disse ela, encolhendo os ombros, mas não era capaz de olhar para ele. Comeu metodicamente um hambúrguer que já não conseguia saborear, convencendo-se lentamente de que lhe dissera a verdade.
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PRESENTE
Novembro de 1997
S. Barrett Delaney passara a maior parte da vida de adulta a tentar ultrapassar o facto de ser uma advogada chamada Sue5. Já não usava o seu nome próprio para assinar
nada há anos, mas de alguma forma, ficava-se sempre a saber - algum brincalhão dos recursos humanos à procura de uma gargalhada fácil, alguma empresa de cartões de crédito que o solicitava através da certidão de nascimento, alguém que o vira no anuário do liceu. Havia meses inteiros em que tinha de convencer-se de que se
tornara promotora de justiça, e não advogada de defesa, por amor à justiça e não por falta de confiança em si própria.
Olhou para o relógio, apercebendo-se de que estava atrasada, e apressou-se a percorrer o corredor em direcção à cantina. Anne-Marie Marrone já estava instalada numa mesa ao canto com dois copos de Styrofoam. A detective olhou para cima quando ela se sentou à sua frente.
- O teu café está a arrefecer.
O que Anne-Marie tinha de melhor era ter conhecido S. Barrett Delaney quando S. Barrett Delaney ainda era Sue, sem nunca a ter chamado assim. Foram colegas de escola, no colégio Our Lady of Perpetuai Sorrow em Concord. Anne-Marie decidira tentar a Polícia, Barrie ficara-se pelo direito.
- Então - disse Barrie, enquanto abria a tampa do copo de café e a pasta de cartão amarelado com os depoimentos da polícia, o relatório da autópsia de Emily Gold e as notas de Anne-Marie sobre Chris Harte. - Está aqui tudo?
5. Sue, é um nome feminino mas também significa processar alguém. (N. da T.)
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- Tudo até agora - disse Anne-Marie. Bebeu um pouco de café.
- Acho que tens um caso.
- Nós temos sempre um caso - disse Barrie entre dentes, concentrada nas provas. - A questão é, temos um bom caso? - leu as primeiras linhas do relatório da autópsia, depois inclinou-se para a frente, torcendo nas mãos a cruz de ouro que trazia ao pescoço. Diz-me o que sabes - disse ela.
- Os agentes foram chamados devido ao som do tiro. Encontraram a rapariga inconsciente, às portas da morte. O rapaz estava em estado de choque e a sangrar profusamente de um ferimento na cabeça.
- Onde estava a arma?
- No carrossel onde eles estavam. Também encontraram bebidas alcoólicas, uma garrafa de Canadian Club. Foi disparada uma bala, estava outra no revólver; o departamento de balística fez corresponder a bala à arma e ainda não temos os resultados das impressões digitais - limpou os lábios com um guardanapo. Quando entrevistei o rapaz...
- Antes disso - interrompeu Barrie -, claro que lhe leste os direitos...
- Bem, por acaso... - Anne-Marie fez uma careta. - Não foi bem assim. Mas tinha de ir lá, Barrie. Ele tinha acabado de sair do serviço de urgências e os pais não
queriam que eu chegasse perto dele.
- Continua - instigou Barrie. Ouviu Anne-Marie terminar a sua história, depois ficou em silêncio durante algum tempo. Agarrou nas restantes páginas que estavam na
pasta e examinou-as, murmurando ocasionalmente.
- Muito bem - disse ela. - A minha opinião é esta - olhou para a amiga. - Para conseguirmos fazer uma acusação de homicídio intencional, temos de encontrar premeditação,
vontade e deliberação. Terá sido um acto deliberado? Sim, senão não teria tirado a arma de sua casa: não andamos por aí com uma Colt antiga como se fosse um conjunto
de chaves sobresselentes. Terá pensado em matar a rapariga, por um minuto sequer? Claro, visto ter tirado a arma de casa algumas horas antes. Terá sido um acto voluntário?
Presumindo que a intenção dele sempre fora matar a rapariga, então sim, conseguiu concretizar o seu plano.
Anne-Marie franziu os lábios.
- O álibi dele é que se tratou de um suicídio duplo que foi boicotado antes de chegar a sua vez.
- Bem, isso diz-nos que ele é suficientemente inteligente para
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pensar depressa. Bela explicação; só se esqueceu do que as provas forenses demonstrariam.
- O que achas de uma acusação de agressão sexual? Barrie folheou as notas da detective.
- Duvido. Em primeiro lugar, ela estava grávida, por isso já tinham tido relações sexuais anteriormente. E se já praticavam sexo há algum tempo, será difícil acusá-lo de violação. Mas podemos usar as provas como sinais de luta - olhou para cima. - Preciso que voltes a interrogá-lo.
- Aposto que já arranjou um advogado.
- Vê o que podes apurar - instigou Barrie. - Se ele não quiser falar, experimenta a família e os vizinhos. Não quero estar mal preparada. Temos de saber se ele teria conhecimento da gravidez da rapariga. Precisamos de saber como era a relação dos dois; haveria um padrão de violência entre os dois? E temos de descobrir se a Emily
Gold tinha ideias suicidas ou não.
Anne-Marie, que estivera a escrever no bloco de notas, olhou para cima.
- Enquanto eu me esfalfo a trabalhar, o que vais tu fazer? Barrie sorriu.
- vou apresentar este caso a um grande júri.
Assim que Melanie abriu a porta, Gus enfiou a mão por ela, segurando numa lata de azeitonas pretas sem caroço.
- Não tinha um ramo - disse ela, quando Melanie tentou voltar a fechá-la. Determinada, Gus enfiou o ombro no espaço exíguo, e depois o resto do corpo, para ficar
diante de Melanie na cozinha.
- Por favor - disse num tom suave. - Sei que estás a sofrer. Eu também estou. E está a dar cabo de mim não podermos sofrer juntas.
Melanie tinha os braços cruzados com tanta força que Gus pensou que parecia estar em perigo de se dividir em dois.
- Não tenho nada para te dizer.
- Mel, meu Deus, tenho tanta pena - disse Gus, com os olhos a encherem-se de lágrimas. - Tenho pena que isto tenha acontecido, tenho pena que te sintas assim, tenho
pena de não saber o que dizer nem o que fazer.
- Devias ir embora - disse Melanie.
- Mel - disse Gus, tentando alcançá-la. Melanie chegou realmente a estremecer.
- Não me toques - disse ela, numa voz vibrante.
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Gus recuou, chocada.
- Eu... desculpa. Volto amanhã.
- Não quero que voltes amanhã. Não quero que voltes nunca mais - Melanie respirou fundo. - O teu filho - disse, mordendo fortemente cada palavra - matou a minha filha.
Gus sentiu alguma coisa pequena e ardente faiscar-lhe debaixo das costelas, atiçando-se, alastrando.
- O Chris disse-te, e disse à polícia, que eles iam suicidar-se. Claro, eu não sabia que eles iam... bem, tu sabes. Mas se o Chris diz que sim, então eu acredito.
- Pois - disse Melanie. Gus franziu os olhos.
- Olha - disse -, o Chris não ficou propriamente incólume. Levou setenta pontos e passou três dias numa unidade de psiquiatria. Ele contou à polícia o que aconteceu enquanto ainda estava em estado de choque. Que razão poderia ele ter para mentir?
Melanie desatou a rir.
- Sabes o que estás a dizer, Gus? Que razão poderia ele ter para mentir?
- Tu é que não queres acreditar que a tua filha pudesse pensar em suicidar-se sem saberes de nada - ripostou Gus. - Como se vocês as duas tivessem a relação perfeita.
Melanie abanou a cabeça.
- Ao contrário de ti? Consegues lidar com o facto de seres mãe de um suicida. Mas não aceitas de maneira nenhuma ser mãe de um assassino.
Gus tinha tantas respostas, tantas reacções de indignação, que lhe queimaram o fundo da garganta. Convencida de que a queimariam viva, passou por Melanie e saiu pela porta da cozinha. Correu para casa inspirando grandes golfadas de ar frio, tentando não pensar que Melanie consideraria a sua fuga como uma rendição.
- Sinto-me estúpido - disse Chris. Tinha os joelhos chegados ao queixo na minúscula cadeira de rodas, mas só assim podia sair do recinto do hospital. Naquela estúpida geringonça para inválidos, e com um pedaço de papel com o nome do psiquiatra que teria de consultar duas vezes por semana.
- É por razões de responsabilidade do hospital - disse a mãe, como se ele quisesse saber, e entrou no elevador ao lado do auxiliar que o empurrava. - Para além disso, daqui a cinco minutos já estás lá fora.
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- São cinco minutos a mais - resmungou Chris, e a mãe pousou-lhe uma das mãos na cabeça.
- Acho - disse ela - que já estás a sentir-te melhor.
A mãe começou a falar sobre o que iam jantar, e quem tinha telefonado a perguntar por ele, e se ele achava que ia nevar antes do Dia de Acção de Graças naquele ano.
O que ele queria dizer era: "Não finjas que não aconteceu nada. Porque aconteceu alguma coisa, e não vais conseguir que tudo fique na mesma."
Em vez disso, olhou para cima quando ela lhe tocou no rosto, e forçou um sorriso.
Ela colocou um braço em volta da cintura dele quando o auxiliar os deixou na recepção.
- Obrigada - disse ao homem, e dirigiu-se para as portas de vidro de correr com Chris.
Lá fora, o ar estava maravilhoso. Serpenteava-lhe para dentro dos pulmões, mais vasto e mais fresco do que o ar do hospital.
- vou buscar o carro - disse a mãe, enquanto Chris se encostava à parede de tijolos do hospital. Para lá da auto-estrada, viu as protuberâncias cinzentas das montanhas, e fechou os olhos por um instante, memorizando-as.
Ao ouvir o seu nome, pestanejou. A detective Marrone estava ali de pé, tapando aquela linda vista.
- Chris - repetiu ela. - Estava a pensar se não estarias disponível para ir à esquadra.
Ele não estava detido, mas mesmo assim os pais estavam contra.
- Só vou dizer a verdade - garantira-lhes Chris, mas apesar disso a mãe quase desmaiara e o pai fora a correr buscar um advogado para os acompanhar até à esquadra. A detective Marrone fizera notar que aos dezassete anos, Chris podia tomar as decisões que quisesse em termos de representação legal, e que tinham de dar-lhe mérito por isso. Seguiu-a ao longo do estreito corredor da esquadra da polícia, até chegarem a uma sala de conferências com um gravador em cima da mesa.
Ela leu-lhe os seus direitos, que ele reconheceu da disciplina de Governo, e ligou o gravador.
- Chris - disse ela -, gostaria que me contasses com o máximo pormenor o que aconteceu na noite de sete de Novembro.
Chris cruzou as mãos em cima da mesa e pigarreou.
- A Emily e eu tínhamos conversado na escola, e decidimos que eu ia buscá-la às sete e meia.
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- Tens carro?
- Tenho. Estava lá, sabe, quando os polícias chegaram. Um Jeep verde.
A detective Marrone acenou com a cabeça.
- Continua.
- Trouxemos qualquer coisa para beber...
- Qualquer coisa?
- Álcool.
- Os dois?
- Fui eu que trouxe.
- Porquê?
Chris fungou. Talvez não devesse estar a responder a todas aquelas perguntas. Como se a detective Marrone percebesse que estava a pressioná-lo demasiado, fez-lhe outra pergunta.
- Nessa altura, sabias que a Emily queria suicidar-se?
- Sim - respondeu Chris -, ela tinha um plano.
- Que tipo de plano? - insistiu a detective. - Do género Romeu e Julieta?
- Não - disse Chris. - Era o que a Emily queria.
- Queria suicidar-se.
- Sim - respondeu Chris.
- E depois?
- Depois - disse ele - eu ia suicidar-me.
- A que horas foste buscá-la?
- Às sete e meia - respondeu Chris. - Já tinha dito.
- Pois. E a Emily contou a mais alguém que ia suicidar-se? Chris encolheu os ombros.
- Não me parece. -E tu?
- Não.
A detective cruzou as pernas.
- Porque não?
Chris ficou a olhar para o colo.
- A Emily já sabia. Era indiferente se mais alguém soubesse.
- E o que foi que ela te disse?
Ele começou a traçar um padrão na mesa com a unha do polegar.
- Não parava de dizer que queria que as coisas ficassem exactamente como estavam, e que desejava impedir que tudo mudasse. Ficava mesmo nervosa, quando falava sobre
o futuro. Uma vez disse-me que conseguia ver-se a si própria agora, e que também conseguia ver o tipo de vida que queria ter: filhos, marido, subúrbios,
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sabe, mas não conseguia ver como podia ir do ponto A para o ponto B.
- Também era isso que sentias?
- Às vezes - disse Chris num tom suave. - Sobretudo quando pensava na morte dela - mordeu o lábio inferior. - Havia alguma coisa que magoava a Em - disse ele. - Alguma coisa que nem a mim ela contava. De vez em quando, quando nós... quando nós... Sentiu um aperto na garganta, e desviou o olhar - pode dar-me um minuto?
A detective desligou friamente o gravador. Quando Chris acenou com a cabeça, de olhos vermelhos, voltou a carregar no botão.
- Tentaste demovê-la?
- Tentei - disse Chris. - Um milhão de vezes.
- Naquela noite?
- E antes.
- Aonde foram naquela noite?
- Ao carrossel. Aquele ao pé do antigo recinto da feira que agora é um parque infantil. Já trabalhei ali.
- Foste tu que escolheste o sítio?
- Foi a Emily.
- A que horas chegaram?
- Por volta das oito - disse Chris.
- Depois de terem parado para jantar?
- Não jantámos juntos - disse Chris. - Comemos em casa.
- O que fizeram a seguir? Chris expirou devagar.
- Saí do carro e abri a porta à Emily. Levámos a garrafa de Canadian Club para o carrossel e sentámo-nos num dos bancos.
- Tiveste relações sexuais com a Emily naquela noite? Chris semicerrou os olhos.
- Acho que isso não lhe diz respeito.
- Tudo isto - disse a detective Marrone - me diz respeito. Tiveste? Chris acenou com a cabeça, e a detective indicou o gravador
com um gesto.
- Tivemos - disse em voz baixa.
- E foi um acto consensual?
- Sim - disse Chris por entre dentes, com o maxilar tenso.
- Tens a certeza?
Chris abriu as mãos sobre a mesa.
- Eu estava lá - disse ele.
- Mostraste-lhe a arma antes ou depois do sexo?
- Não me lembro. Depois, acho eu.
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- Mas ela sabia que ias trazê-la?
- A ideia foi dela - disse Chris.
A detective acenou com a cabeça.
- E havia alguma razão específica para teres levado a Emily para o carrossel para se suicidar?
Chris franziu o sobrolho.
- A Emily queria ir lá - disse ele.
- Foi a Emily que escolheu?
- Foi - respondeu Chris. - Conversámos muito sobre isso antes de acabarmos por chegar a acordo.
- Porquê o carrossel?
- A Emily sempre gostou dele - disse Chris. - E eu também.
- Então - disse Anne-Marie. - Sentaram-se no carrossel, tomaram uma bebida, viram o pôr do Sol, tiveram relações sexuais...
Chris hesitou, depois estendeu a mão e desligou o gravador.
- O Sol já se tinha posto. Já eram oito horas - disse num tom suave. - Já lhe tinha dito - olhou directamente para a detective. Não acredita no que lhe estou a dizer?
Anne-Marie abriu o gravador e retirou a cassete sem sequer olhar para Chris.
- E devia acreditar? - perguntou.
Na terça-feira à tarde, apesar dos protestos de toda a gente, Melanie regressou ao trabalho. Era dia de história infantil, por isso a biblioteca estava cheia de jovens mães a vestir crianças em várias fases de vestuário de Inverno, mas quando Melanie entrou, recuaram em silêncio, abrindo espaço para ela passar em direcção à sala dos funcionários ao fundo. Quando pendurou o casaco interrogou-se se a notícia da morte de Emily se teria espalhado tão depressa, ou se teria sido por instinto - um perfume que se libertava da pele de Melanie ou alguma perturbação eléctrica em seu redor que avisava as outras mães: "Está aqui uma mãe que não conseguiu manter a filha em segurança."
- Melanie - disse uma voz, sem fôlego. Ela virou-se e viu Rose, a sua subordinada, de pé atrás dela. - Ninguém estava à espera que viesse.
- Venho há dezassete anos - disse Melanie numa voz suave. É aqui que me sinto mais à vontade.
- Bem. Pois - Rose parecia não saber o que dizer. - Como está a aguentar-se, minha querida?
Melanie recuou.
- Estou aqui, não estou?
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Dirigiu-se para a secretária da recepção, instalando-se na cadeira da bibliotecária chefe com alguma trepidação - e se aquilo de repente também se tivesse tornado estranho? Mas não, era como sempre fora, quase com a forma do seu traseiro, com aquela coisa irritante de metal saliente debaixo da coxa direita. Abriu as mãos sobre a bancada e ficou à espera.
Bastava um cliente com uma pergunta e ficaria curada. Seria novamente útil.
Sorriu brandamente a dois jovens com ar de estudantes, que acenaram com a cabeça e passaram por ela a caminho da sala dos periódicos. Descalçou os sapatos, esfregou os pés calçados com meias nas pernas cromadas da cadeira giratória, e voltou a calçá-los. Dactilografou palavras no computador de busca, só para praticar: "Julgamentos das Bruxas de Salem." "Malaquite." "Rainha Isabel."
- Desculpe.
Melanie levantou bruscamente a cabeça e viu uma mulher mais ou menos da sua idade do outro lado da secretária.
- Posso ajudá-la?
- Meu Deus, espero que sim - a mulher expirou. - Estou a tentar reunir o máximo de informação sobre Atalanta - hesitou. - A corredora grega - esclareceu. - Não a cidade da Geórgia.
Melanie sorriu.
- Eu sei - os dedos dela começaram a voar sobre as teclas, o corpo tomado por uma sensação estonteante não muito diferente do efeito de uma dose de nicotina. - Atalanta está na mitologia grega. O número de entrada é...
Melanie já o sabia: 292. Mas antes que pudesse dizê-lo, a mulher revirou os olhos, aliviada.
- Graças a Deus - disse ela. - A minha filha está a fazer um trabalho de estudos sociais, e não conseguimos encontrar nada na Biblioteca de Orford. Sobre Atlas havia três livros. Mas sobre Atalanta...
A minha filha. Melanie olhou para a lista de livros encontrados pelo computador que se encontravam disponíveis mesmo ao virar da esquina. Abriu a boca para dar-lhe a informação, e em vez disso ouviu uma voz que de certeza não podia ser a sua.
- Veja na não-ficção - disse Melanie. - Número de entrada 614.5. Era a secção dos livros de culinária.
A mulher agradeceu-lhe profusamente e foi procurar no sítio errado.
Melanie sentiu algo debater-se e soltar-se dentro dela, uma embolia formada na sexta-feira à noite que - agora desalojada -
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podia envenenar-lhe lentamente o organismo. Abraçou-se a si própria, tentando conter aquela malícia. Um homem aproximou-se dela, pedindo-lhe conselhos relativamente a um romance recente. Disse-lhe que gostava de Clancy, Cussler, Crichton, e que gostava de experimentar um novo escritor.
- com certeza - disse-lhe Melanie. - O último de Robert James Waller.
Mandou estudantes universitários para a sala de livros infantis; historiadores para a secção de auto-ajuda; pessoas que queriam requisitar cassetes de vídeo para os guias de viagem Fodor. Quando um jovem lhe perguntou onde era a casa de banho, indicou-lhe o caminho para a arrecadação onde guardavam os livros fora de circulação. E Melanie nunca deixou de sorrir, constatando que semear a frustração e a tristeza era muito mais gratificante do que transmitir informações alguma vez fora.
Jordan McAfee, o advogado de defesa recomendado por Gary Moorhouse, estava sentado à mesa na cozinha dos Harte, com Chris, solene, à direita e Gus mesmo atrás. Tinha
vindo directamente do ginásio e vestia calções e uma camisola tunisina amarrotada; tinha as faces afogueadas e uma gota de transpiração a escorrer-lhe pela têmpora.
James acreditava profundamente nas primeiras impressões. Claro, eram oito horas da noite... mas mesmo assim. O facto de não ter fato; os cabelos molhados e espetados; as gotas de suor -Jordan McAfee podia estar só com calor, mas para James apenas parecia estar nervoso. James era incapaz de imaginá-lo como defensor fosse de quem fosse, muito menos do seu filho.
- Ora - disse Jordan McAfee -, o Chris já me disse o que contou à detective Marrone. Por ter ido voluntariamente e porque ela realmente lhe leu os seus direitos, tudo o que disse pode ser usado contra ele. No entanto, se for preciso, vou tentar que a conversa que tiveram no hospital não seja admissível - olhou para James. - Tenho a certeza de que deve querer fazer algumas perguntas. Porque não começamos por aí?
"Quantos casos", queria James perguntar, "já ganhou? Como posso saber que vai salvar o meu filho?" Mas, em vez disso, engoliu as dúvidas. Moorhouse dissera que McAfee era uma estrela do direito, publicações legais em Harvard, procurado por todos os escritórios de advogados a leste do Mississippi quando decidiu trabalhar na Procuradoria-Geral de New Hampshire. Passados dez anos, desertara para o lado da defesa. Era conhecido pelo seu
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encanto, raciocínio rápido, e temperamento igualmente impulsivo. James interrogou-se se McAfee teria filhos.
- Quais são as probabilidades de haver um julgamento? McAfee coçou o queixo.
- O Chris ainda não foi formalmente declarado suspeito, mas já foi interrogado duas vezes. Qualquer caso de polícia desta natureza será tratado como um homicídio. E, apesar do álibi do Chris, se a Procuradoria-Geral achar que há provas suficientes, vão fazer uma acusação - olhou James nos olhos. - Diria que há grandes probabilidades.
Gus arquejou.
- E depois o que vai acontecer? Ele tem dezassete anos.
- Mãe...
- Será julgado como um adulto no estado do New Hampshire.
- O que significa isso? - perguntou James.
- Se ele ficar sob custódia, vai haver uma acusação formal no prazo de vinte e quatro horas, propomos um acordo extrajudicial e pagamos uma caução, se necessário. Depois marcar-se-á uma data para ir a tribunal.
- Quer dizer que ele vai passar a noite na prisão?
- Muito provavelmente - disse McAfee.
- Mas não é justo! - exclamou Gus. - Só porque o procurador-geral diz que foi um homicídio, nós temos de fazer o que ele quer? Não houve homicídio nenhum. Foi um suicídio. Não se vai para a prisão por causa disso.
- Há livros inteiros cheios de casos, Sr.a Harte - disse McAfee -, em que o Ministério Público se precipita e só se apercebe de que não tem fundamentos tarde de mais. O Chris e a Emily são as únicas pessoas que podiam dizer o que realmente aconteceu. Conclusão? A Emily não pode contar-nos a sua versão e o estado do New Hampshire não tem razão nenhuma para confiar no seu filho. Neste momento, só vêem uma adolescente morta e uma bala disparada. Não conhecem a história que está por trás destes dois jovens, a relação que tinham, o estado de espírito deles. Vamos vencer este caso, sinceramente. Posso dizer-vos desde já que o procurador-geral vai obter um relatório da autópsia e ler o que quiser nele. Posso dizer-vos que ele vai fazer um alarido por a arma exibir as impressões do Chris. Quanto às outras provas que ele acha que tem... bem, terei de conversar melhor com o Chris.
Gus puxou uma cadeira.
- A sós - acrescentou McAfee. Esboçou um sorriso tenso. - Os senhores podem estar a pagar os meus honorários - disse ele -, mas o meu cliente é ele.
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- Parabéns, Dr. Harte - disse a recepcionista na quarta-feira de manhã.
James ficou a olhar para ela por um momento. Por que raio estaria ela a congratulá-lo? Quando saíra de casa naquela manhã, Chris ainda estava sentado no sofá onde James o deixara na noite anterior, a olhar inexpressivamente para o mesmo canal de televisão em espanhol. Gus estava na cozinha, a preparar um pequeno-almoço que James poderia ter-lhe dito que Chris não comeria. Naquele preciso momento, não havia muitas coisas na sua vida que merecessem congratulações.
Um colega deu-lhe palmadinhas nas costas quando se dirigia para o seu gabinete.
- Sempre soube que ia acontecer a um de nós - disse ele, sorrindo, e foi-se embora.
James entrou no seu pequeno consultório e fechou a porta atrás de si antes que mais alguém pudesse dizer qualquer coisa estranha. A correspondência que não tivera oportunidade de abrir desde sexta-feira estava em cima da secretária. Mas o New England Journal of Medicine estava aberto em cima do monte. O relatório anual com uma lista dos melhores médicos, por área de especialidade, estava exposto em várias páginas. E na cirurgia oftalmológica, assinalado com um círculo vermelho, estava o nome de James.
- Caramba - disse ele, com um sorriso a surgir-lhe algures na zona do coração e espalhando-se para o exterior. Agarrou no telefone e marcou o número de casa, desejando partilhar a informação com Gus, mas ninguém atendeu. Olhou para os diplomas de Harvard, pensando em como o prémio ficaria emoldurado.
Sentindo o espírito muito mais leve, James pendurou o casaco e percorreu os corredores, à procura do primeiro paciente. Se algum dos funcionários tinha conhecimento da estadia de Chris durante o fim-de-semana, não disse nada sobre isso; ou talvez a honra do NEJM tivesse suplantado os rumores menos apetitosos. Deteve-se numa sala de exames, tirando a ficha e examinando o historial clínico da Sr.a Edna Neely.
- Sr.a Neely - disse ele, abrindo a porta. - Como tem passado?
- Não estou melhor, senão teria desmarcado a consulta - disse a senhora idosa.
- Vamos ver se conseguimos tratar disso- disse ele. - Ora bem, lembra-se do que eu lhe disse na semana passada sobre a degeneração macular?
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- Doutor - disse ela -, estou aqui por causa de problemas oculares. Não estou senil.
- Claro - respondeu James num tom suave. - Então vamos lá fazer este angiograma - conduziu a Sr.a Neely para uma grande câmara e fê-la sentar-se diante dela. Depois pegou na seringa hipodérmica de fluorescina e injectou-a no braço da Sr.a Neely. - Pode sentir uma sensação de ardor no braço. Vamos procurar o corante disse ele. - Irá da sua veia para o coração, e depois será transportado por todo o corpo, acabando por chegar ao olho. O corante fica nos vasos sanguíneos normais, mas será vertido pelos vasos anómalos, aqueles que têm hemorragias e que lhe causam a degeneração macular. Vamos ver quais são, ao certo, e tratá-los.
O corante demorava doze segundos, James sabia, para ir do braço até ao coração e chegar ao olho. A luz, por trás do olho, iluminava o corante fluorescente. Como os afluentes de um rio, os vasos sanguíneos normais da retina da Sr.a Neely ramificavam-se em finas linhas hesitantes. Os vasos anómalos eram como raios de Sol, minúsculos fogos-de-artifício, que se suavizavam em poças de corante branco.
Passados dez minutos, quando todo o corante desapareceu, James desligou a câmara.
- Muito bem - disse ele, baixando-se à altura dela. - Agora sabemos onde devemos fazer o tratamento a laser.
- O que vai isso fazer-me?
- Bem, esperemos que estabilize a retina danificada. A DMI é um problema grave, mas há hipóteses de salvar parcialmente a visão, embora possa não ficar tão boa como era antes de reparar na perturbação.
- vou ficar cega?
- Não - prometeu ele. - Isso não vai acontecer. Pode perder alguma visão central, que usa para ler ou conduzir, mas será capaz de movimentar-se, tomar duche, cozinhar.
Ficou à espera por um instante, e depois a Sr.a Neely presenteou-o com um belo sorriso.
- Ouvi as conversas na sala de espera, Dr. Harte. Disseram que é um dos melhores - estendeu a mão pelo curto espaço que os separava e deu umas palmadinhas na dele. - O doutor vai tratar de mim.
James ficou a olhar para o olho distorcido e dilatado dela. Acenou com a cabeça, com o entusiasmo anterior a desaparecer subitamente. Aquele elogio não era uma honra, era um erro. Porque James já sabia o que a Sr.a Neely sentira quando uma tarde se sentou
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e percebeu que a porta não tinha a mesma forma de há alguns minutos, o jornal não estava tão nitidamente impresso, o mundo não era como ela o recordava. O júri
do New England Journal of Medicine rescindiria o prémio quando ficasse a saber que tinha um filho suicida, a ser julgado por homicídio. com certeza que não iam homenagear
um especialista em oftalmologia que não vira que tudo aquilo estava prestes a acontecer.
- Prometeste - disse Chris acaloradamente. - Disseste que era no dia em que eu tivesse alta. E já se passou mais um dia.
Gus suspirou.
- Eu sei o que disse, querido. Só não sei se será uma boa ideia. Chris levantou-se da cadeira da cozinha de um salto.
-Já me impediste de ir ter com ela uma vez - disse ele. - Tens algum sedativo no frigorífico, mãe? Porque é a única maneira de conseguires voltar a fazer o mesmo - aproximou-se tanto que as palavras salpicaram a face dela. - Sou maior do que tu - disse ele numa voz suave. - E se eu quiser não podes deter-me. Se for preciso vou o caminho todo a pé.
Gus fechou os olhos.
- Não - disse ela. - Está bem.
- Está bem?
- Eu levo-te.
Foram em silêncio todo o caminho até ao cemitério. Podia realmente ir-se até lá a pé, do liceu; Gus lembrou-se de que Chris lhe dissera que alguns jovens gostavam
de ir lá nos furos ou para fazer os trabalhos de casa e as leituras. Chris saiu do carro. De início, Gus desviou o olhar, fingindo ler um papel de pastilha elástica que estava preso no assento do passageiro. Mas depois não conseguiu conter-se. Viu Chris ajoelhar-se junto ao monte rectangular, coberto com uma profusão de flores ainda frescas. Viu-o percorrer os lábios frios das rosas, a garganta arqueada de uma orquídea.
Levantou-se muito mais depressa do que ela imaginara e voltou para o carro. Mas dirigiu-se para a janela dela e bateu para que ela a abrisse.
- Porque é que não tem lápide? - perguntou ele. Gus olhou para a terra recentemente revolvida.
- É demasiado cedo - disse ela. - Mas acho que na religião hebraica é diferente. Só passados cerca de seis meses.
Chris acenou com a cabeça e enfiou as mãos nos bolsos do casaco.
- Qual é o lado de cima? - perguntou ele.
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Gus ficou a olhar para ele sem perceber.
- O que queres dizer?
- A cabeça - explicou ele. - Para que lado ficou a cabeça da Emily?
Chocada, Gus lançou um olhar desvairado para o cemitério. As parcelas de terreno não eram direitas, mas distribuídas bastante ao acaso. No entanto, um número predominante de lápides estava virado em determinada direcção.
- Acho que o lado de lá - disse ela. - Não tenho a certeza. Chris afastou-se para se ajoelhar novamente junto à campa, e
Gus pensou: "Ah, claro. Ele quer falar com ela." Mas para seu espanto, Chris subiu para cima do monte e deitou-se nele, com os braços junto aos arranjos de flores que esmagava, a cabeça e os sapatos abarcando o metro e oitenta, o rosto encostado à terra. Depois levantou-se, de olhos secos, e regressou ao Volvo. Gus meteu a mudança e continuou pela estrada do cemitério, estremecendo pelo esforço de não olhar para o filho, cuja boca estava rodeada de terra marcando-o tanto como um beijo de bâton.
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PASSADO
Dezembro de 1993
Chris foi para Sugarloaf no carro dos pais de Emily porque queriam ligar os Game Boys e fazer uma maratona de Tetris. Iam esquiar pelo Natal, alugar um apartamento
com a família de Emily. Aerosmith retumbava nas colunas de som, as da frente estavam no mínimo.
- Caramba - riu Chris, carregando com os polegares na miniconsola. - Estás a fazer batota.
Encostada à parte lateral do assento, Emily grunhiu.
- Estás a mentir.
- Não estou nada - disse Chris.
- Estás sim.
- Oh, pois.
- Deixa lá.
Ao volante, Míchael olhou para a mulher.
- Foi por isto - disse ele - que nunca tivemos outro filho. Melanie sorriu e olhou pelo pára-brisas, para as luzes de trás
do carro dos Harte.
- Achas que estão a ouvir Dvorak e a comer Brie?
- Não - disse Chris olhando para cima. - Se a Kate conseguir levar a dela avante, provavelmente estão a cantar: "One Hundred Bottles of Beer on the Wall" - virou-se
novamente para o pequeno ecrã. - Ei - exclamou -, não é justo.
- Não devias ter respondido aos meus pais - disse Emily com voz doce. - Ganhei.
Chris ficou afogueado.
- Para que estamos a jogar se fazes uma coisa destas?
- Foi um jogo justo!
- Justo o caraças - gritou Chris.
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- Então - disseram Melanie e Michael em simultâneo.
- Desculpem - Chris amuou. Emily cruzou os braços por cima do peito, sorrindo levemente. Chris virou-se para a janela e franziu o sobrolho. Emily ganhou-lhe ao Tetris, e depois? Era um jogo estúpido, para perfeitos anormais. Ela ia ver naquele fim-de-semana. Era capaz de fazer círculos à volta dela a esquiar.
Isso fê-lo sentir-se melhor. Mostrou-lhe o Game Boy, generosamente.
- Queres jogar mais uma vez?
Emily empinou o nariz e virou-se de lado para não ter de olhar para ele.
- Meu Deus - disse Chris. - O que foi agora.
- Deves-me um pedido de desculpas - disse Emily.
- Porquê?
Virou-se para ele, de olhos ardentes e escuros.
- Disseste que eu estava a fazer batota. Eu não faço batota.
- Está bem, não fazes batota. Vamos jogar.
- Não me parece - bufou Emily. - Tens de dizer isso a sério. Chris semicerrou os olhos, atirou o Game Boy como um desafio.
Que se lixasse o jogo de Tetris, que se lixasse o pedido de desculpa, que se lixasse a Emily. Nem sabia porque a deixara convencê-lo a ir no carro dela. Às vezes, ela era muito divertida, claro. Mas outras, tinha vontade de matá-la.
A mãe de Chris estava tão irritada por o pai ter resolvido ir à caça com um homem que conhecera nas telecadeiras, imagine-se, que não lhe falou na manhã da Véspera de Natal, enquanto ele se preparava para sair.
- Mas ele trouxe o beagle dele - tentou explicar o pai. Qual era a probabilidade de conhecer um tipo nas telecadeiras que tivesse trazido caçadeiras a mais e o cão de caça, só para fazer uma incursão nos bosques do Maine? E o pai tinha culpa de Chris ter pedido para ir quando soube?
- O que vamos caçar? - perguntou Chris, quase aos saltos no assento do passageiro. - Alces?
- Não está na época deles - disse o pai. - Provavelmente faisões. Mas quando encontraram Hank Myers ao fundo de uma estrada
não assinalada no meio de nenhures, o homem disse que estava um dia bom para caçar coelhos.
Hank estava satisfeito por conhecer Chris e deu-lhe uma caçadeira de calibre 12. Os três homens caminharam com passo firme para a densa cobertura do bosque, com a cadela de Hank,
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Lucy, a farejar os arbustos. Moviam-se como caçadores, suavemente e alerta, com o silêncio a restringir-lhes os movimentos como marionetas.
Chris manteve os olhos fixos na neve, tentando ver o estranho rasto de cinco patas de uma lebre, a marca final feita pela cauda a arrastar. Era ofuscante, branco sobre branco. Passada uma hora tinha os pés gelados; o nariz a pingar; e não conseguia sentir os lóbulos das orelhas que saíam por debaixo do chapéu. Nem esquiar com a Em era tão aborrecido como aquilo.
Quem ouviu falar em comer guisado de lebre na Consoada?
De repente, Lucy deu um salto. Debaixo de um emaranhado de ramos, Chris viu uma lebre branca de patas achatadas e com pêlo preto à volta de um dos olhos começar a fugir a toda a velocidade.
Chris levantou imediatamente a arma e fez pontaria para a lebre, que corria tão depressa que não percebia como é que alguém conseguiu alguma vez matar uma coisa daquelas. Lucy ainda estava no seu encalço, mas ia bastante atrás. De repente, Chris sentiu uma mão a empurrar o cano da caçadeira para baixo. Hank Myers sorriu-lhe.
- Não precisas de fazer isso - disse ele. - A particularidade das lebres é correrem em círculos. A Lucy não vai apanhá-la, mas não faz mal. Ela vai fazê-la correr até ao ponto de partida.
Realmente, enquanto Chris esperava, os latidos da cadela tornaram-se mais suaves e mais distantes... depois começaram novamente a vir na sua direcção. Sem mais nem menos, a lebre de patas adaptadas à neve voltou a surgir-lhe no campo de visão, correndo para os arbustos de onde fora enxotada.
Chris levantou a caçadeira, fez pontaria para a lebre veloz, e carregou no gatilho.
O coice da arma fê-lo recuar; sentiu a mão firme do pai no ombro.
- Apanhaste-a! - exultou Hank Myers, e Lucy saltou por cima dum cepo para farejar a presa, de cauda a abanar tanto como uma bandeira.
Hank dirigiu-se a passos largos para a presa, sorrindo.
- Foi um belo tiro - disse ele. - Trespassou-a completamente
- ergueu o animal pelas orelhas e mostrou-o a Chris. - Não sobrou grande coisa dela, mas isso não interessa.
Chris já tinha matado veados; teria gostado de caçar um alce, ou um veado do Canadá, ou um urso. Mas lançou um olhar à lebre e ficou agoniado. Não sabia se era por causa do contraste da neve branca com o sangue vivo, ou por causa do pequeno corpo de
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boneco de peluche da própria lebre, ou por ser a primeira vez que caçava um animal mais pequeno e indefeso do que ele próprio mas virou-se para o lado e vomitou.
Ouviu o pai praguejar em voz baixa. Chris limpou a boca ao casaco e levantou a cabeça.
- Desculpem - disse ele, provando a sua repugnância.
Hank Myers cuspiu para a neve e olhou para James.
- Pensei que tivesse dito que ele costumava caçar consigo regularmente.
James acenou com a cabeça, com a boca apertada numa linha.
- E costuma.
Chris não olhou para o pai. Sabia que veria uma mistura velada de raiva e vergonha que surgia quando uma situação se desenrolava de forma diferente do que James estava à espera.
- Eu arranjo-a - disse ele, estendendo as mãos para a lebre, tentando recuperar a dignidade.
Hank começou a dar-lhe o animal e, depois, apercebeu-se de que Chris vestia um casaco de esqui.
- E se trocasses de casaco comigo? - disse ele, bafejando ao frio ao despir o casaco de caça. Chris vestiu rapidamente o casaco do outro homem, depois ergueu a lebre e meteu-a na bolsa de borracha nas costas do casaco. Ainda sentia o calor do corpo dela.
Caminhou ao lado do pai em silêncio, com medo de dizer alguma coisa e com medo de não dizer nada, pensando na lebre a correr para casa em círculos, à espera de encontrar segurança.
Gus meteu uma das mãos pela cintura dos boxers do marido.
- Nem uma só criatura se movia - sussurrou ela. - Nem sequer um rato - rebolou para cima dele, com a mão entre as suas pernas.
- Parece que afinal encontrei uma criatura - James sorriu, interrompendo o beijo dela. Não compreendia a sua boa sorte, mas a raiva de Gus já tinha desaparecido quando ele e Chris chegaram a casa depois da caça. O que era bom, tendo em conta a péssima experiência que fora. Sentiu os dedos de Gus apertarem-lhe os testículos. - Agora - murmurou ela - não é uma boa altura para te rires de mim.
- Não estava a rir. Estava a pensar. Gus ergueu uma sobrancelha.
- A pensar em quê?
- Na visita do Pai Natal - disse ele.
Gus soltou um risinho abafado e sentou-se, desabotoando a camisa de noite num lento e doce striptease.
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- O que achas - disse ela - de desembrulhares um dos teus presentes hoje à noite?
- Depende - disse James. - É um dos grandes?
- Se disseres que sim, meu amigo, é o único presente que recebes - avisou Gus, atirando a camisa de noite para fora da cama.
James puxou-a para cima dele, percorrendo-lhe as costas e as nádegas com as mãos.
- E esta? - murmurou ele. - É mesmo do meu tamanho.
- Ainda bem - arquejou Gus, sentindo os dedos dele entre as pernas. - Porque não sabia onde podia devolvê-lo.
James sentiu as pernas dela fecharem-se com força em volta das suas ancas e o corpo dela abrir-se para ele. Rebolaram na cama e James ficou por cima dela, de mãos cerradas, palma contra palma. Entrou dentro dela e encostou-lhe a boca à clavícula com força, com receio do que poderia dizer ou gritar quando se perdesse nela.
Quando acabou, Gus dissolveu-se debaixo dele, com a respiração acelerada e a pele húmida. James abraçou-a junto a si, com a cabeça dela debaixo da sua.
- Acho que me devo ter portado muito bem este ano - disse ele.
Sentiu Gus sussurrar-lhe um beijo no peito.
- É verdade - murmurou ela.
- Não vais acreditar nisto - disse Michael -, mas ouvi barulho de cascos no telhado.
Melanie interrompeu o gesto de pousar os óculos na mesa-de-cabeceira.
- Deves estar a brincar.
- Não estou - insistiu Michael. - Enquanto estavas no duche.
- Barulho de cascos?
- Como se fossem renas. Ela riu alto.
- Imagino que o Pai Natal esteja escondido no roupeiro. Michael franziu o sobrolho.
- Estou a falar a sério. Espera... ouve isto. O que te parece? Melanie inclinou a cabeça, ouvindo o que realmente parecia
qualquer coisa a raspar e a bater numa superfície sólida. Olhou imediatamente para o tecto, depois franziu o sobrolho e virou-se para a parede onde a cabeceira da cama estava encostada. Encostou a orelha à parede de reboco.
- Estás a ouvir a Gus e o James - anunciou ela.
- A Gus e...
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Melanie acenou com a cabeça, e bateu com a cabeceira da cama na parede, para que Michael percebesse.
- Renas, uma ova. Michael sorriu.
- A Gus e o James? - disse ele.
Melanie afastou os cobertores e meteu-se na cama.
- Quem mais poderia estar ali?
- Eu sei. Mas o James?
Melanie desligou o candeeiro ao lado da cama. Cruzou os braços por cima do peito, de orelhas à escuta para ouvir o baque e o grito seguintes do outro lado da parede.
- O que se passa com o James?
- Oh, não sei. Não achas mais fácil imaginares a Gus a fazer isso do que o James?
Melanie franziu o sobrolho.
- Não costumo pensar em nenhum deles a fazê-lo - ergueu as sobrancelhas. - Tu costumas?
Michael corou.
- Bem, claro. Já me veio à cabeça uma ou duas vezes.
- Que passatempo tão digno.
- Oh, vá lá - riu Michael. - Aposto que eles já pensaram em nós - num movimento rápido, virou-se para ela. - Podíamos dar-lhes qualquer coisa para ouvir - sugeriu.
Melanie ficou horrorizada.
- Claro que não!
Ambos se instalaram nas suas respectivas almofadas. Através da parede fina ouviu-se um lamento grave e doce. Michael riu e virou-se de lado. Muito depois de ele ter adormecido, Melanie deu por si a ouvir os vizinhos fazerem amor e a tentar imaginar aqueles gemidos a saírem-lhe da garganta.
Chris lembrava-se de Vésperas de Natal em que era impossível dormir, pensando no carro de corrida que estava debaixo da árvore, a pista do comboio, a nova bicicleta. Era uma sensação boa, a insónia alimentada pelo entusiasmo. Nada parecido com o que estava a sentir naquele momento.
Cada vez que fechava os olhos, via a lebre morta.
Chris lembrou-se do que o pai às vezes dizia quando estava atormentado por causa de um dia verdadeiramente mau no hospital: "Estou a precisar de uma boa bebida forte."
Esperou que os pais deixassem de fazer de Pai Natal - o que era bastante estúpido, visto que Kate já nem sequer acreditava - e
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desceu sorrateiramente as escadas, para a cozinha do apartamento. Sabia que havia uma garrafa de Sambuca no congelador. O pai e o pai de Emily beberam uns shots acompanhados por alguns charutos bons na noite anterior. Ainda estava três quartos cheia.
Chris encontrou um copo de sumo no armário e encheu-o até às bordas. Cheirou o álcool - fazia-lhe lembrar alcaçuz - e bebeu um pouco. O fogo desceu-lhe pela garganta, até chegar à barriga. "Lebre", pensou ele. "Qual lebre?"
Quando já bebera meio copo, deixou de sentir os dedos dos pés e as pontas dos dedos das mãos. A cozinha estava agradavelmente desfocada. Nessa altura, a garrafa já ia a menos de metade e Chris inclinou-a de lado para ver o álcool vibrar e escorrer. "Talvez pensem que foi o Pai Natal que a bebeu", pensou ele. "Que se lixem o leite e os biscoitos." Achou que era hilariante, começou a rir e foi nessa altura que reparou em Emily de pé à porta da cozinha.
Tinha uma camisa de noite de flanela com pequenos pinguins; pelo menos ele achava que eram pinguins.
- O que estás a fazer? - perguntou ela. Chris sorriu.
- O que te parece que estou a fazer?
Emily não respondeu, apenas se aproximou e cheirou a garrafa de Sambuca.
- Bah - franziu o nariz, afastando-a. - Isto é nojento.
- Isto - corrigiu Chris - é uma maravilha - interrogou-se se Emily alguma vez experimentara uma bebida forte. Tanto quanto sabia, não experimentara. Pensou satisfeito em si próprio como um incitador do mal, e inclinou-se para a frente, oferecendo-lhe o copo.
- Prova. É parecido com os rebuçados do cinema.
- Good Plentys?
Chris acenou com a cabeça.
- Tal e qual.
Emily hesitou, mas a mão dela fechou-se em volta do copo.
- Não sei - disse ela.
- Cobarde.
Chris sabia que bastava isso. Os olhos de Emily faiscaram ao luar e os dedos cerraram-se em volta do copo de vidro. Levou-o aos lábios, inclinando-o antes que Chris pudesse avisá-la para provar só um pouco de cada vez.
Começou a tossir violentamente, com o peito arranhado e cuspindo a boca cheia de Sambuca para cima da mesa da cozinha. Abriu muito os olhos, agarrada à garganta.
- Caramba - disse Chris, dando-lhe uma pancada nas costas.
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Por fim Emily conseguiu respirar.
- Oh, meu Deus - arfou ela. - Aquilo...
- ... não é para tu beberes - Chris e Emily levantaram ambos a cabeça e viram os pais de ambos à porta da cozinha, em vários estados de nudez parcial. James semicerrou
os olhos e avançou.
- Importas-te de me dizer o que estás a fazer?
Chris nunca chegou a descobrir porque Emily disse o que disse naquela noite. No passado, quando eram apanhados em situações complicadas, tinham sempre ficado do mesmo lado - a solidariedade era a base da sua amizade. Mas, daquela vez, sob o olhar furioso do pai dele, Emily cedeu.
- Foi o Chris - disse ela, apontando um dedo trémulo. - Ele obrigou-me a experimentar.
Estupefacto, Chris encostou-se para trás na cadeira.
- Eu obriguei-te? - exclamou ele. - Eu obriguei-te? Fui eu que te encostei o copo aos lábios e o inclinei?
A boca de Emily abriu-se e fechou-se em silêncio, como a de um peixe.
- Mais importante - disse o pai -, porque estás aqui sentado a beber bebidas alcoólicas?
Chris começou a explicar. Mas quando olhou para os olhos do pai, viu outra vez aquela lebre com o estômago rebentado, e as palavras que ele queria usar não conseguiram passar pelo arrependimento alojado na garganta. Abanou a cabeça e aquele movimento levou-o de novo para o bosque com uma caçadeira fumegante na mão, a olhar para o sangue na neve.
Tapou a boca e correu para a casa de banho, depois de ver Emily baixar os olhos e desviar o rosto.
Não foi um Natal feliz.
Chris passou a manhã sozinho no quarto, sentado na cama enquanto ouvia as vozes tensas de todos lá em baixo a abrirem os presentes. A única pessoa que realmente parecia estar a divertir-se era Kate, que estivera sempre a dormir durante o fiasco da noite anterior.
Interrogou-se sobre o que fariam aos seus presentes. Devolvê-los; dá-los para a caridade? Duvidava que chegasse alguma vez a vê-los, o que era verdadeiramente péssimo, porque tinha quase a certeza de que ia receber um par de esquis novos que podia usar no próprio dia. Chris atirou-se para cima da cama de barriga para baixo e tentou convencer-se de que os esquis velhos também eram bons.
Pouco depois das três horas, a mãe entrou no quarto. Vestia o fato de esqui e tinha os óculos à volta do pescoço. Ao vê-la, Chris
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sentiu uma vaga de inveja. Por muito farto que estivesse de esquiar ontem, daria tudo para ter ficado nas encostas, em vez de ir caçar aquela estúpida lebre.
Gus pousou-lhe a mão no braço.
- Olá - disse ela. - Feliz Natal.
- Como queiras - disse Chris, afastando-se dela.
- O teu pai e eu decidimos que se quiseres, podes esquiar o resto do dia.
"O resto do dia" queria dizer para aí uma hora. Chris reparou que a mãe não tinha mencionado os presentes.
- A Emily está aqui - disse ela num tom suave. - Não quis esquiar sem ti.
"Como se eu me ralasse", pensou Chris, mas em vez disso limitou-se a grunhir. Observou a mãe sair do quarto e, depois, reparou em Emily encolhida à porta.
- Olá - disse ela. - Como estás?
- Óptimo - resmungou Chris.
- Tu, hum, queres vir comigo?
Não queria; não teria subido a bordo de um salva-vidas com ela se o navio deles estivesse a afundar-se. Não interessava que ela estivesse assustada na noite anterior e, provavelmente, enjoada do único gole que bebera; não interessava que Chris nunca tivesse tido oportunidade para lhe explicar porque estava a beber. Emily tornara-se uma traidora, e ele não era capaz de perdoá-la assim tão depressa.
- Desci a Black Adder sozinha - disse ela.
Ao ouvir isto, Chris olhou para cima. A Black Adder era uma das pistas mais difíceis do Sugarloaf, cheias de reviravoltas, descidas a pique e curvas que apareciam sem mais nem menos. Já a descera algumas vezes, mas sempre devagar, visto que tinha de esperar que Emily ultrapassasse o medo e esquiasse um pouco mais antes de ficar novamente aterrorizada. Se Emily descera sozinha, provavelmente demorara duas horas.
De repente, algo surgiu no peito de Chris. Podia vingar-se do que Emily lhe fizera na noite anterior, e muito facilmente. Ela sentia-se tão culpada - isso era bastante evidente - que estaria disposta a fazer tudo aquilo que ele quisesse. Levá-la-ia a uma pista mais difícil do que a Black Adder, uma pista que a faria estar a tremer de medo quando chegasse lá abaixo.
Chris deixou que um sorriso iluminasse o seu estado de espírito sombrio.
- Bem - disse ele, levantando-se. - De que estamos à espera?
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Emily tremia como varas verdes na descida a pique do ponto mais alto do Sugarloaf, segurando os bastões à sua frente como se fossem uma barreira entre a pista íngreme e ela própria.
- Em - gritou Chris impaciente por cima do vento -, anda lá.
Ela mordeu o lábio e avançou, aos ziguezagues na neve para controlar a velocidade. Mas a curva era demasiado apertada e acabou num emaranhado de braços, pernas e esquis mesmo atrás de Chris.
- Foi péssimo - disse ela em voz baixa. Chris sorriu maldosamente.
- Esta foi a parte mais fácil - disse ele.
Naquela altura, ela estava a pensar seriamente em tirar os esquis e descer a montanha a pé, mas queria voltar a cair nas boas graças de Chris. Afinal, fora por sua culpa que ele passara a manhã no quarto. Se Chris era suficientemente generoso para deixá-la esquiar com ele, então esquiaria de cabeça para baixo, se ele quisesse.
Observou Chris descer a encosta, as ancas a virarem-se para um lado e para o outro com uma graça felina, a ponta do gorro com a borla a esvoaçar ao vento. Como era
um atleta nato, Chris fazia com que parecesse fácil. Respirando fundo, Emily deu impulso com os bastões. "Pelo menos", pensou ela, "ele vai amparar-me a queda."
Fez a primeira curva depressa de mais, ultrapassando Chris, em paralelo mas alguns metros abaixo dele na encosta, deslizando a uma velocidade alarmante à beira da
pista.
- Corta a curva! - ouviu Chris gritar e quase riu. Pensaria ele realmente que ela tinha assim tanto controlo?
Os esquis, um primeiro e depois o outro, saltaram por cima da beira da pista. Sentiu ramos finos arranharem-lhe as faces, a neve cair das ramagens dos pinheiros lá em cima. Tentou manter os joelhos juntos, os pés direitos, rezando enquanto suava frio debaixo dos braços e nas costas. Sentiu o ar estremecer quando Chris gritou o seu nome, então o esqui ficou preso num arbusto e quando Emily caiu sentiu apenas alívio.
"Tem muita sorte em não ter partido o pescoço."
"Podia ter sido muito pior."
"Deve doer a valer."
Achavam que Chris não era capaz de ouvi-los, mas ele conseguiu perceber cada palavra. Os paramédicos que vieram ao centro de esqui para transportarem Emily de ambulância não tiveram outro
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remédio senão levar Chris com eles para o hospital, visto que ele estava agarrado à maca como uma sanguessuga e os pais dela ainda não tinham respondido à mensagem
que lhes tinham enviado. Ele ficara ao lado de Emily na ambulância, nas urgências e, depois disso, as pessoas deixaram de tentar tirá-lo dali.
Quando ela saíra da pista daquela maneira... Caramba, nem sequer conseguia pensar nisso sem tremer. Não queria deixá-la sozinha, mas tinha de ir procurar ajuda.
Fez sinal a alguém, dizendo-lhe que chamasse a patrulha do esqui e tirou os esquis para poder Correr para onde Emily estava deitada. O gorro dela caíra e tinha os
cabelos espalhados em cima da neve. Ele já sabia que não lhe devia tocar, mas agarrou-lhe na mão e sentiu o estômago às voltas.
A culpa era sua. Se não tivesse levado Emily para aquela pista, para a tornar infeliz, ela nunca teria caído.
Emily recuperou a consciência quando a ambulância estava a caminho do hospital, aos balanços.
- Dói - disse ela, engolindo com dificuldade. - Porquê? - ele não lhe ia dizer que tinha a perna partida, que o tornozelo estava torcido num ângulo impossível, como
o de uma tola personagem de desenhos animados. Não lhe ia dizer a distância que percorreu a rebolar até parar; como os arranhões e equimoses lhe alteravam o rosto.
- Caíste - disse simplesmente. - Vais ficar bem. Os olhos de Emily encheram-se de lágrimas.
- Tenho medo - sussurrou ela, e ele sentiu um aperto na garganta. - Onde está a minha mãe?
- Está a caminho - disse ele -, mas agora eu estou aqui - aproximou-se mais, abraçando-a desajeitadamente. Fechou os olhos e decidiu naquele instante que, para o
resto da vida de Emily, ele seria o seu anjo da guarda.
A perna partida de Emily teve prioridade sobre a transgressão de Chris com a Sambuca. Melanie e Gus insistiram que deviam voltar para Bainbridge, e Michael também
estava inclinado para isso, mas Emily acabou por convencê-los a terminarem as férias. Por solidariedade, todos ficaram em casa, trocando o esqui por maratonas de
Scrabble e Monopólio. Ao segundo dia, Emily estava farta de ser tratada como uma inválida e enxotou toda a gente para as montanhas. Depois de alguma discussão,
até Melanie concordou em ir por cerca de uma hora. Mas Chris recusou-se a sair de junto de Emily.
- Não me apetece - disse ele, e ninguém o forçou.
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Ficou sentado ao lado de Em num sofá em frente da lareira, ela com a perna apoiada na mesa de café. Observaram as chamas e conversaram, Chris falou-lhe na lebre,
Emily confessou a sua culpa por tê-lo denunciado. Disseram piadas sobre ir buscar a Sambuca ao congelador, enquanto os pais não estavam no apartamento. Recordaram como era quando eram pequenos, de como os pensamentos começavam na cabeça dele e acabavam na cabeça de Emily.
Só quando o lume crepitou bem alto, a água a sair de dentro da madeira, é que Chris se apercebeu de que estivera a dormir. Olhou para baixo e viu que Emily também tinha adormecido. Ela ainda dormia. E tinha ficado aninhada debaixo do braço dele.
Era um pouco pesada e desconfortável. Sentiu o calor húmido da face dela através da camisola de algodão; medindo o comprimento espantoso das suas pestanas. O hálito tinha o aroma de frutos silvestres.
Sem mais nem menos, ficou duro como uma pedra. Corando violentamente, tentou ajeitar a braguilha das calças de ganga sem acordar Em. Mas isso só fez com que o braço lhe roçasse no peito. No seio.
Por amor de Deus. Era a Emily. A mesma Emily que usou a cadeira de refeições dele quando já não lhe servia; que o ajudara a secar lesmas com sal; que acampou com ele pela primeira vez no seu próprio quintal.
Como é que uma rapariga que ele conhecia desde que nascera se transformara de repente numa pessoa que ele não era capaz de reconhecer?
Ela mexeu-se, pestanejando um pouco e afastando-se dele quando se apercebeu de que estava deitada por cima do seu peito.
- Desculpa - disse ela, ainda suficientemente perto para que a palavra lhe caísse nos lábios, de forma que quando Chris encolheu os ombros, conseguiu saboreá-la.
Chris pensava que nunca ia ficar sozinho com ela.
Durante três dias tentou arranjar maneiras de Emily se apoiar nele, de se roçar nele e de lhe tocar.
Queria beijá-la. E as oportunidades desapareciam-lhe diante dos olhos.
Os pais deviam ir a uma festa de passagem de ano em Sugarloaf. Mas Melanie e Michael estavam relutantes, receando estar incontactáveis se Emily precisasse deles. Os quatro estavam vestidos de negro com os fatos elegantes de noite, tentando tomar uma decisão.
- Tenho treze anos - disse Emily. -Já não preciso de uma ama.
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- Se acontecer alguma coisa - acrescentou Chris - sei conduzir. Podia ir até ao centro de esqui no outro carro. Gus e James viraram-se.
- Isso - disse James secamente - era uma coisa que não precisávamos de saber - virou-se para Michael. - Leva as tuas chaves
- disse ele.
Melanie, sentada ao lado de Emily no sofá, pousou-lhe a mão na testa.
- Parti uma perna - gemeu Emily. - Não tenho gripe. Gus tocou no ombro de Melanie.
- O que achas?
Melanie encolheu os ombros.
- O que farias tu?
- Ia, acho eu. Não podes fazer mais nada para que ela fique confortável.
Melanie levantou-se, afastando os cabelos de Emily da testa. Emily franziu o sobrolho e voltou a colocá-los na mesma posição.
- Está bem. Mas se calhar volto antes da meia-noite - Melanie esboçou um sorriso dengoso para Gus. - E tu és uma mentirosa, sabes. Se fosse a Kate não te afastavas mais de um metro.
- Tens razão - disse Gus cordialmente. - Mas não fui convincente? - virou-se para Chris. - Deitas a Kate a horas?
Kate, lá em cima, lamuriou-se:
- Mãe - gritou ela. - Não posso ficar acordada até à meia-noite?
- Claro - gritou-lhe Gus de volta. Olhou para Chris, falando num tom mais suave. - Quando ela adormecer no sofá daqui a meia hora, leva-a lá para cima - depois deu
um beijo ao filho e acenou a Emily. - Portem-se bem - disse ela e, acompanhando os outros, deixou Chris e Emily entregues a si próprios.
As mãos de Chris contorciam-se no colo. Doíam-lhe, à espera de tocar em Emily, que estava apenas a vinte e cinco centímetros de distância. Cerrou os punhos, na esperança de que os dedos não o traíssem ao dirigirem-se à coxa de Emily, roçando-lhe na anca.
- Chris - sussurrou Emily. - Acho que a Kate está a dormir acenou com a cabeça para a esquerda, onde Kate dormia enrolada.
- Talvez fosse melhor levá-la lá para cima.
Estaria a tentar dizer que ela também queria ficar sozinha com ele? Chris tentou olhar nos olhos de Emily, para ver o que ela realmente queria dizer, mas ela estava a coçar a pele acima do gesso. Pegou na irmã ao colo e levou-a para o quarto. Meteu-a na cama, e depois fechou a porta.
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Desta vez assegurou-se de que se sentava perto de Emily, esticando o braço ao longo das costas do sofá.
- Queres que te vá buscar alguma coisa? Uma bebida? Pipocas? Emily abanou a cabeça.
- Não quero nada - disse ela. Agarrou no comando da televisão e mudou os canais.
Chris deixou que o polegar roçasse ao de leve na manga de Emily. Visto que ela não deu um salto, ele colocou mais um dedo. E outro. Até a mão tocar ao de leve no ombro dela.
Não conseguia olhar, simplesmente não conseguia. Mas sentiu Emily ficar absolutamente imóvel, sentiu a temperatura da pele dela aumentar alguns graus; e, pela primeira vez naquela noite, começou a relaxar.
Na agitação do dilema de deixar ou não deixar Emily sozinha, ninguém reparou que o convite da festa dizia: "Tragam as vossas bebidas." James ofereceu-se para ir comprar uma garrafa de champanhe, Gus lembrou-lhe que devia voltar antes da meia-noite.
Só olhou para o relógio depois de entrar no parque de estacionamento do terceiro supermercado fechado. "São 23h26", pensou ele, sem reparar que as pilhas do Timex tinham acabado apenas alguns momentos antes. "vou ao apartamento buscar uma garrafa de vinho."
Mas na verdade, faltavam dois minutos para a meia-noite.
Chris lembrou-se de quando conseguiu que uma borboleta lhe pousasse na palma da mão. Ficou absolutamente imóvel, certo de que se tivesse algum pensamento esquisito, a bela criatura partiria a esvoaçar. Era assim agora, com Emily. Ela não dissera uma palavra, e ele também não, mas já tinha o braço em volta dela há quarenta e dois minutos como se fosse algo perfeitamente normal.
Na televisão, as pessoas em Times Square estavam a ficar doidas. Havia homens de cabelos roxos e mulheres vestidas de Maria Antonieta, rapazes da idade dele a levantarem no ar bebés pequeninos que deviam estar a dormir. A bola começou a descer, puxada pelos cânticos entoados pela multidão, e Chris sentiu Emily aproximar-se só um bocadinho.
E então já era 1994. Emily carregou no botão do comando para tirar o som. Não se ouviam gritos na sala de estar do apartamento, nenhuma fanfarra. Chris tinha a certeza de que era capaz de ouvir a sua própria pulsação.
- Feliz Ano Novo - sussurrou ela, e ele inclinou a cabeça em direcção à dela.
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Ela virou-se para o mesmo lado e bateram com os narizes, com força, mas então ela riu e ficou tudo bem porque era a Em. A boca dela era a coisa mais macia que alguma
vez sentira, puxou-lhe o maxilar para que ela se abrisse um pouco e a língua passou pela linha direita dos dentes dela.
Ela afastou-se de imediato, e Chris também. Pelo canto do olho, via um milhão de pessoas em Times Square, aos saltos para cima e para baixo e a rir.
- Em que pensas? - sussurrou ele. Emily ficou muito vermelha.
- Estou a pensar... uau - disse ela. Chris sorriu junto do pescoço dela.
- Eu também - disse, procurando-a novamente.
Quando James entrou no apartamento, a televisão estava aos altos berros em celebrações. Então, de repente, ficou em silêncio. Ele parou no meio da cozinha, com uma garrafa de champanhe na mão. Pousando-a em cima da mesa da cozinha, prosseguiu em direcção à sala.
A primeira coisa que viu foi a televisão, que anunciava silenciosa mas indubitavelmente que já era 1994. A segunda coisa que viu foi Chris e Emily no sofá, aos beijos.
Ao princípio, estupefacto, James não se conseguia mexer, não conseguia falar. Eram miúdos, por amor de Deus. O incidente com a Sambuca ainda estava bem presente na sua cabeça e não podia acreditar que o filho fosse suficientemente estúpido para fazer duas coisas que não devia de seguida.
Depois apercebeu-se de que eles estavam a fazer precisamente aquilo que toda a gente esperava que fizessem.
Afastou-se sem os incomodar, saindo do apartamento e entrando no carro. Quando chegou ao centro ainda estava a sorrir. Gus viu-o, com a raiva a ruborizar-lhe as faces, os papelinhos a embranquecerem-lhe os cabelos.
- Chegaste atrasado - disse ela.
Sorrindo, James contou-lhe a ela e aos Gold o que tinha visto. Melanie e Gus riram, encantadas; Michael abanou a cabeça.
- Tens a certeza - perguntou - de que estavam só aos beijos? Os quatro ergueram os copos de água para fazer um brinde
a 1994. E nenhum deles reparou que James se esquecera do champanhe.
113
PRESENTE
Meados a Finais de Novembro de 1997
Nos dias após a morte de Emily, Melanie ficava fascinada com as coisas mais vulgares: os veios da madeira da mesa da sala de jantar; o mecanismo de um saco Ziploc;
o panfleto sobre a síndroma do choque tóxico na caixa de tampões. Durante horas seguidas era capaz de ficar a olhar para estas coisas como se já não as tivesse visto
um milhão de vezes, como se nunca tivesse reparado no que andava a perder. Sentia uma atracção pelos pormenores que era obsessiva, mas necessária. E se, amanhã de
manhã, uma destas coisas tivesse desaparecido? E se o único conhecimento sobre estes artigos estivesse apenas disponível na sua memória? Agora sabia que podia ser testada a qualquer momento.
Melanie passara a manhã a rasgar as páginas de um pequeno bloco de notas e a atirá-las para o caixote do lixo. Observou as páginas brancas acumularem-se, como uma minúscula tempestade de neve. Quando o saco do lixo estava meio cheio, tirou-o do caixote para levá-lo lá para fora. Começara a nevar, a primeira neve daquela estação. Fascinada, deixou cair o saco do lixo, ignorando o frio e o facto de estar a tremer sem casaco, e estendeu a mão. Quando um floco de neve lhe pousou na palma, aproximou-o para o examinar e viu-o derreter-se antes que pudesse fazê-lo.
O telefone fê-la sobressaltar-se, com o seu toque estridente a soar pela porta aberta da cozinha. Melanie virou-se e correu lá para dentro, levantando o auscultador na parede, sem fôlego.
- Está?
- Estou - disse uma voz a pairar. - Queria falar com a Emily Gold.
"Eu também", pensou Melanie, e desligou o telefone em silêncio.
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Chris esperava em pé, desconfortável, no consultório do Dr. Emanuel Feinstein, fingindo estar a olhar para as fotografias de pontes cobertas que decoravam as paredes e olhando sub-repticiamente para a secretária que dactilografava tão depressa que os dedos eram uma mancha azul desfocada. De repente ouviu-se o toque do intercomunicador. A secretária sorriu para Chris.
- Já pode entrar - disse ela.
Chris acenou com a cabeça e entrou pela porta adjacente, interrogando-se por que razão estivera ali a secar à espera durante meia hora se não estava lá nenhum paciente. O psiquiatra levantou-se, contornando a secretária.
- Entra, Chris. Sou o Dr. Feinstein. Tenho muito gosto em conhecer-te.
Acenou, indicando uma cadeira - e não um sofá, Chris reparou nisso - e Chris sentou-se nela. O Dr. Emanuel Feinstein não era o velhote que ele imaginara baseando-se
no nome, mas um homem que parecia poder sentir-se tão à vontade a carregar madeira como a manobrar uma perfuradora de petróleo. Tinha espessos cabelos loiros, que lhe chegavam aos ombros, e era uns bons quinze centímetros mais alto do que Chris. O consultório dele estava decorado de forma bastante semelhante ao escritório
do pai - madeira escura, xadrez escocês e livros com encadernação de cabedal.
- Então - disse o psiquiatra, sentando-se na poltrona em frente a Chris -, como te sentes?
Chris encolheu os ombros, e o médico inclinou-se para a frente para agarrar no gravador que estava em cima da mesa de café entre ambos. Rebobinou a cassete, ouvindo a sua própria pergunta, e depois sacudiu o aparelho.
- O mais engraçado - disse o Dr. Feinstein. - É que estes aparelhos não captam sinais não verbais. Aqui só há uma regra, Chris. As tuas respostas têm de facto de emitir uma frequência sonora.
Chris pigarreou. Qualquer simpatia relutante que Chris tivesse começado a sentir por este psiquiatra desapareceu.
- Bem - disse ele bruscamente.
- Bem o quê?
- Sinto-me bem - disse Chris entre dentes.
- Tens dormido bem? Tens comido?
Chris acenou com a cabeça, e depois olhou para o gravador.
- Sim - disse propositadamente. - Tenho comido bem. Mas, às vezes, não consigo dormir.
115
- Já tinhas esse problema antes?
"Antes", com A maiúsculo. Chris abanou a cabeça e, depois, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Era uma emoção a que estava a ficar habituado; acontecia sempre que pensava em Emily.
- Como estão as coisas em tua casa?
- Estranhas - admitiu Chris. - O meu pai finge que não aconteceu nada, a minha mãe fala comigo como se eu tivesse seis anos.
- Porque achas que os teus pais te tratam dessa maneira?
- Acho que é por estarem com medo - respondeu Chris. - Eu estaria.
Como seria descobrir, em questão de minutos, que o rapaz em volta do qual achávamos que o mundo girava não era a pessoa que achávamos que era? De repente, franziu o sobrolho para o psiquiatra.
- Vai contar aos meus pais o que eu digo aqui? O Dr. Feinstein abanou a cabeça.
- Estou aqui para te apoiar. Estou do teu lado. O que disseres aqui, não sai daqui.
Chris olhou para ele desconfiado. Como se isso o fizesse sentir-se melhor. Não conhecia o Dr. Feinstein de lado nenhum.
- Ainda pensas em suicidares-te? - perguntou o psiquiatra. Chris enfiou o dedo num buraco nas calças de ganga.
- Às vezes - murmurou.
- Tens um plano?
- Não.
- Achas que aquela sexta-feira pode ter-te feito mudar de ideias? Chris olhou para cima, com um olhar penetrante.
- Não estou a perceber - disse ele.
- Bem, porque não me dizes como foi para ti. Ver a tua amiga a suicidar-se?
- Ela não era minha amiga - corrigiu Chris. - Era a rapariga que
eu amava.
- Isso deve ter tornado as coisas ainda mais difíceis - disse o Dr. Feinstein.
- Sim - disse Chris, voltando a ver tudo de novo, a cabeça de Emily a virar-se bruscamente para a esquerda como se uma mão invisível lhe tivesse dado uma estalada, o sangue que lhe escorreu pelos dedos. Olhou para o psiquiatra, pensando no que o homem estaria à espera que ele dissesse.
Após um silêncio prolongado, o médico tentou novamente.
- Deves estar muito perturbado.
- Choro por tudo e por nada.
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- Bem - disse o psiquiatra - isso é perfeitamente normal.
- Oh, pois - disse Chris num tom desdenhoso. - Perfeitamente normal. Levei setenta pontos na sexta-feira à noite. A minha namorada morreu. Estive trancado num manicómio durante três dias e agora estou aqui, onde devo contar tudo o que me vai dentro da cabeça a uma pessoa que nem sequer conheço. Pois, sou um rapaz de dezassete anos perfeitamente normal.
- Sabes - disse o Dr. Feinstein pausadamente - a cabeça é uma coisa extraordinária. O facto de não conseguires ver a ferida não quer dizer que ela não doa. Deixa sempre uma cicatriz, mas cura-se - inclinou-se para a frente. - Não queres estar aqui - disse ele.
- Então onde gostarias de estar?
- com a Emily - disse Chris sem hesitar.
- Morto.
- Não. Sim - Chris evitou o olhar dele. Deu por si a olhar para uma segunda porta, uma porta em que não tinha reparado, que não conduzia para a sala de espera através da qual entrara. Chris apercebeu-se de que seria a porta pela qual sairia. Uma saída para que ninguém viesse jamais a saber que alguma vez estivera lá dentro.
Olhou para o Dr. Feinstein e resolveu que uma pessoa que protegia a sua privacidade não podia ser assim tão má.
- Gostava de estar - disse Chris num tom suave - há alguns meses atrás.
Assim que as portas do elevador se abriram, Gus ficou logo de volta do filho, colocando-lhe o braço em volta da cintura, acertando o passo com o dele, conversando enquanto o conduzia para fora do edifício onde o consultório do Dr. Feinstein se localizava.
- Então - disse Gus, assim que entraram no carro dela. - Como é que correu?
Não obteve resposta. Chris não estava a olhar para ela.
- Em primeiro lugar - disse ela -, gostaste dele?
- Foi algum encontro amoroso? - resmungou Chris.
Gus tirou o carro do parque de estacionamento, inventando desculpas para ele em silêncio.
- Ele é um bom psiquiatra? - insistiu. Chris olhou pela janela.
- Em comparação com o quê? - perguntou ele.
- Bem... sentes-te melhor?
Ele virou-se para ela devagar, trespassando-a com o seu olhar.
- Em comparação com o quê? - repetiu ele.
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James fora educado por pais da elite social e cultural de Boston que elevaram o estoicismo da Nova Inglaterra a uma forma de arte. Ao longo dos dezoito anos em que
vivera em casa, viu-os beijarem-se em público apenas uma vez, e foi um beijo tão fugaz que acabou por pensar que devia com certeza tê-lo imaginado. Ceder à dor,
ao desgosto ou ao êxtase era censurado. Da única vez em que James, quando era adolescente, chorara, por causa da morte do seu cão, os pais reagiram como se ele tivesse feito hara-kirí nos ladrilhos de mármore da sala de estar. A estratégia deles para lidar com coisas desagradáveis ou comoventes era continuar a viver como se estas nunca tivessem acontecido.
Quando James conheceu Gus, já dominava a técnica com mestria - e rejeitara-a imediatamente. Mas naquela noite, sozinho na cave, tentou desesperadamente recuperar de novo aquela abençoada cegueira intencional.
Estava diante do armário das armas. As chaves ainda se encontravam na fechadura; acreditara erradamente que os filhos já tinham idade suficiente para dispensar o cuidado excessivo que tinha há anos. Girou as chaves e abriu a porta, revelando as espingardas e caçadeiras alinhadas como paus de fósforo. A pistola Colt estava nitidamente ausente, ainda confiscada pela polícia.
James tocou no cano da calibre 22, a primeira arma que dera a Chris para que ele disparasse.
A culpa teria sido sua?
Se James não fosse um caçador, se as armas não estivessem acessíveis, isto teria acontecido? Se tivessem sido comprimidos, ou envenenamento por monóxido de carbono,
os resultados teriam sido menos catastróficos?
Tirou a ideia da cabeça, sacudindo-a. Este género de obsessão não o levava a lado nenhum. Precisava de seguir em frente, de avançar, de olhar para o futuro.
Como se de repente tivesse descoberto o segredo do universo, James subiu as escadas da cave a correr. Encontrou Gus e Chris sentados na sala de estar, juntos. Ambos
olharam para cima quando ele entrou intempestivamente pela porta.
- Acho - anunciou sem fôlego - que o Chris devia voltar para a escola na segunda-feira.
- O quê? - disse Gus, levantando-se. - Estás doido?
- Não - disse James. - Mas o Chris também não está. Chris ficou a olhar para ele.
118
- Achas - disse ele devagar - que voltar para a escola, onde todos vão olhar para mim como se fosse algum desequilibrado, vai fazer com que eu me sinta melhor?
- Isso é ridículo - disse Gus. - vou telefonar ao Dr. Feinstein. É demasiado cedo.
- O que sabe o Dr. Feinstein? Só viu o Chris uma vez. Nós conhecemo-lo desde que nasceu, Gus - James atravessou a sala e ficou de pé em frente ao filho. - Vais ver. Vais voltar para junto dos teus amigos e vais voltar a ser o que eras num instante.
Chris grunhiu e desviou o rosto.
- Ele não vai voltar para a escola - insistiu Gus.
- Estás a ser egoísta.
- Eu é que estou a ser egoísta? - Gus riu e cruzou os braços por cima do peito. - James, ele nem sequer consegue dormir à noite. E...
- Eu vou - interrompeu-a Chris suavemente.
James ficou radiante, dando uma forte palmada no ombro de Chris.
- Excelente - disse ele triunfante. - Vais voltar a nadar, e a ficar entusiasmado com a faculdade. Logo que estiveres ocupado, as coisas vão parecer-te muito melhores
- virou-se para a mulher. - Ele precisa de sair, Gus. Tu trata-lo como um bebé, e ele não tem mais nada que fazer a não ser pensar.
James balançou-se para trás apoiado nos calcanhares, certo de que o ar dentro de casa estava mais leve, circulava mais livremente com esta pequena mudança. Defraudada,
Gus deu meia volta e saiu da sala. Ele franziu o sobrolho nas costas dela enquanto se retirava.
- O Chris está bem - gritou-lhe ele, para tranquilizá-la. - Não tem nenhum problema.
Só passado alguns momentos é que sentiu o peso do olhar do filho. Chris tinha a cabeça inclinada para o lado, como se não estivesse zangado com James, mas verdadeiramente confuso.
- Achas mesmo que sim? - sussurrou ele, e deixou o pai ali sozinho.
O telefone acordou Melanie, num sobressalto, fazendo-a sentar-se na cama, desorientada. Quando se deitara para fazer uma sesta, o sol brilhava. Agora, nem conseguia ver a mão diante dela.
Procurou às apalpadelas na mesa-de-cabeceira.
- Está? - disse ela. - Está?
- A Emily está?
119
- Pare - sussurrou Melanie, e deixou cair o auscultador enquanto voltava a enfiar-se debaixo dos cobertores.
Melanie ia fazer compras à mercearia todos os domingos de manhã às oito e meia, quando o resto do mundo ainda estava a descansar na cama com o jornal e uma chávena
de café. No último domingo, claro, não fora. E à excepção da comida que sobrara do funeral, não havia nada em casa para comer. Enquanto apertava o casaco e se debatia com o fecho, Michael observava-a.
- Sabes - disse ele pouco à vontade - eu posso ajudar-te a fazer isso.
- Fazer o quê? - disse Melanie, calçando as luvas.
- Ir às compras. Fazer recados. O que for - ver o rosto franzido de Melanie fez Michael pensar que estava a sofrer da forma errada. Estava a morrer por dentro por causa de Emily, mas por fora não, e de alguma forma a sua dor não parecia tão forte como a da mulher. Pigarreou, obrigando-se a olhar para ela.
- Eu posso ir se ainda não te sentires preparada.
Melanie riu. Aquilo parecia-lhe estranho até aos seus ouvidos, como uma melodia para flauta tocada num piano de um bar.
- Claro que me sinto preparada - disse ela. - Que outras coisas tenho para fazer hoje?
- Bem - disse Michael, tomando uma decisão de momento -, porque não vamos os dois?
Por um breve instante, Melanie franziu o sobrolho. Depois encolheu os ombros.
- Como queiras - disse ela, já de saída.
Michael agarrou no casaco e correu lá para fora, Melanie já estava dentro do carro. O motor estava ligado, o tubo de escape criava uma nuvem em volta do veículo.
- Então. Onde vamos?
- Ao Market Basket - disse Melanie, manobrando o carro. Precisamos de leite.
- Vamos tão longe para comprar leite? Podíamos comprá-lo no...
- Vais ser uma boa companhia - disse Melanie, contorcendo os lábios - ou vais chatear-me enquanto conduzo?
Michael riu. Por um instante, foi fácil. Na semana anterior, podia contar os momentos como aquele pelos dedos de uma mão.
Melanie saiu da via de acesso e virou para Hollow Wood Road, a acelerar. Embora tentasse evitar olhar para lá, Michael lançou instintivamente um olhar para a casa dos Harte. Uma figura caminhava pela via de acesso, colocando o caixote do lixo à beira da estrada.
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À medida que o carro se aproximou, Michael distinguiu o rosto de Chris.
Usava um gorro e luvas, mas não tinha casaco. Ergueu os olhos ao ouvir o carro aproximar-se, e - como Michael já constatara - o seu instinto começou a funcionar
quando se apercebeu que se tratava dos Gold. Provavelmente antes de perceber o que estava a fazer, Chris levantou a mão para cumprimentá-los.
Michael sentiu o carro desviar-se para a direita, em direcção a Chris, como se o rapaz não só tivesse magnetizado a direcção dos pensamentos deles como também os
pneus do carro. Remexeu-se no assento e esperou que Melanie realinhasse o carro.
Em vez disso, este guinou tanto para a direita que saiu do asfalto. Michael sentiu o carro avançar de um salto enquanto ela carregava no acelerador a fundo, dirigindo-se
para Chris. A boca deste arredondou-se num O; as mãos contorceram-se nas pegas do caixote do lixo como se tivesse os pés colados ao chão. As mãos de Melanie mexeram-se,
aproximando ainda mais o carro; e mesmo quando Michael saiu do estado de paralisia provocado pela estupefacção e lhe tira o volante das mãos, ela própria o virou, derrubando o caixote do lixo. Chris recuou vários metros na via de acesso, em segurança, enquanto o caixote ressaltava na rua, espalhando lixo por Wood Hollow Road.
O coração de Michael batia-lhe tão depressa no peito que só conseguiu recuperar a compostura para olhar para a mulher quando já iam no final de Wood Hollow, parados
no sinal de Stop para virar à esquerda em direcção à cidade. Pousou a mão no pulso de Melanie, ainda sem palavras.
Ela virou-se para ele, perfeitamente calma, com um ar inocente:
- O que foi?
Chris lembrava-se de quando era criança, brincar com Em a fingir que tinham o poder de se tornar invisíveis. Punham uns bonés de basebol patetas ou anéis baratos
da loja dos trezentos e, bam, sem mais nem menos, ninguém conseguiria vê-los a entrar sorrateiramente na despensa para ir buscar uma Oreo ou esvaziar a garrafa
de sais de banho na sanita. Dava jeito, a suspensão da descrença. E, aparentemente, era uma capacidade que rapidamente perdíamos ao crescer, porque por muito que
Chris tentasse imaginar que ninguém conseguia vê-lo enquanto percorria os estreitos corredores monótonos do liceu, não conseguia convencer-se de que isso era realmente verdade.
121
Olhava para a frente ao contornar o fluxo de alunos no intervalo entre duas aulas, como uma migração de salmões, casais encostados aos cacifos aos beijos e alunos mais novos com ar ameaçador ansiosos por começar uma briga. Nas aulas, podia límitar-se a ficar sentado de cabeça baixa e abstrair-se como costumava fazer. Mas nos corredores era brutal. Estaria toda a gente a olhar para ele? Porque era sem dúvida o que parecia. Ninguém tentara falar com ele sobre o que acontecera; em vez disso todos segredavam por trás das mãos. Um ou dois rapazes que ele conhecia disseram que era bom ele ter voltado à escola e tudo isso, mas certificaram-se de que não se chegavam demasiado perto enquanto conversavam, no caso de a infelicidade ser contagiosa.
Depois de acontecerem coisas más, ficamos sempre a saber quem são os nossos verdadeiros amigos. Era absolutamente evidente para Chris que a única amiga verdadeira que tinha era Emily.
A quinta aula era de Inglês com a Bertrand. Gostava da disciplina; nunca tivera dificuldades. A Dr.a Bertrand andava atrás dele para se licenciar em inglês na faculdade. Quando tocou a campainha, Chris ao princípio não ouviu. Ainda estava sentado na cadeira quando a Dr.a Bertrand lhe tocou no braço.
- Chris? - disse ela num tom suave. - Sentes-te bem? Ele ficou a olhar para ela, a pestanejar.
- Sim - disse ele, pigarreando. - Sim, claro - fez um grande estardalhaço a meter os livros na mochila.
- Só queria que soubesses que se quiseres falar com alguém, eu estou disponível - sentou-se na secretária em frente da dele. Pode ser que queiras escrever sobre os teus sentimentos - sugeriu ela. - Às vezes é mais fácil do que dizê-los em voz alta.
Chris acenou com a cabeça, desejando apenas afastar-se da Dr.a Bertrand.
- Bem - disse ela, cruzando as mãos. - Fico satisfeita por estares melhor - levantou-se e voltou para a secretária dela. - Os professores estão a preparar uma reunião em memória da Emily - disse ela, e olhou para Chris, à espera de uma resposta.
- Ela ia gostar disso - murmurou Chris, e foi de mal para pior, com uma centena de olhos curiosos a manter a distância.
A ironia do alívio que Chris sentiu quando entrou no consultório do Dr. Feinstein não lhe passou despercebida. Fora o último lugar do mundo onde queria estar, mas
esse troféu agora pertencia ao Liceu de Bainbridge. Sentou-se de cotovelos apoiados nos joelhos, com os pés a baterem no chão ansiosamente.
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Foi o próprio Dr. Feinstein quem abriu a porta que conduzia à sala de espera.
- Chris - disse ele, - Que bom voltar a ver-te - quando Chris resolveu andar de um lado para o outro em frente à estante, encolheu os ombros e foi para junto dele.
- Hoje pareces um pouco inquieto - disse o Dr. Feinstein.
- Voltei para a escola - respondeu Chris. - Foi péssimo.
- Porquê?
- Porque fui uma aberração. Ninguém veio ter comigo, e nem pensar em tocar-me... - expirou, incomodado. - É como se eu tivesse SIDA. Não, esqueça isso. Provavelmente
seria mais bem aceite.
- O que achas que te faz ser diferente deles?
- Não sei. Não sei se sabem a história toda. E não conseguia aproximar-me das pessoas o suficiente para ouvir os rumores esfregou as têmporas. - Toda a gente sabe
que eu estava lá. Estão a preencher os espaços em branco - encostou-se para trás na poltrona, passando o polegar pela fileira de livros encadernados em couro que
estava mais próxima. - Metade deles provavelmente acha que vou cortar os pulsos na cantina.
- E o que acha a outra metade?
Chris virou-se devagar. Sabia perfeitamente bem o que a outra metade dos alunos achava - tudo o que pudesse ser transformado numa história apetitosa seria, através
dos boatos.
- Não sei - disse ele, o mais espontaneamente que conseguiu.
- Provavelmente que a matei.
- Porque pensariam uma coisa dessas?
-Porque eu estava lá - disse bruscamente. - Porque ainda estou vivo. Caramba, não sei. Pergunte aos polícias; é o que eles acham desde o princípio.
Chris só se apercebeu da amargura que sentia em relação à acusação quando falou, de tão velada que esta estava.
- Isso incomoda-te?
- Claro que sim - disse Chris. - Não o incomodaria a si? O Dr. Feinstein encolheu os ombros.
- Não sei. Acho que se soubesse que estava a ser sincero comigo próprio, gostaria de acreditar que mais tarde ou mais cedo o resto das pessoas acabaria por concordar comigo.
Chris grunhiu desdenhosamente.
- Aposto que todas as bruxas de Salem pensaram o mesmo quando sentiram o cheiro do fumo.
- O que te incomoda mais?
123
Chris ficou em silêncio. Não era o facto de não acreditarem na sua palavra; se a situação se invertesse, também ele teria as suas dúvidas. Nem sequer era por todos naquela maldita escola o tratarem como se lhe tivessem crescido seis cabeças de um dia para o outro. Era por, depois de o terem visto com Emily, poderem acreditar que seria capaz de magoá-la voluntariamente.
- Eu amava-a - disse ele numa voz entrecortada. - Não consigo esquecer-me disso. Por isso não percebo como as outras pessoas conseguem.
O Dr. Feinstein aproximou-se novamente da poltrona; Chris afundou-se nela. Observou os pequenos encaixes dentro do gravador a moverem-se lentamente em círculos.
- Falas-me da Emily? - perguntou o psiquiatra.
Chris fechou os olhos. Como poderia transmitir a uma pessoa que nem sequer a conhecia a forma como ela cheirava sempre a chuva, ou como sentia um nó no estômago sempre que a via soltar os cabelos presos numa trança? Como poderia descrever a sensação de ela lhe terminar as frases, virar a caneca que partilhavam para que a boca ficasse no sítio onde a sua estivera? Como poderia explicar que podiam estar junto aos cacifos, ou debaixo de água, ou num bosque de pinheiros do Maine, que desde que Emily estivesse consigo, era como se estivesse em casa?
- Ela era minha - Chris disse simplesmente.
- O Dr. Feinstein levantou as sobrancelhas.
- O que queres dizer com isso?
- Sabe, ela era tudo o que eu não sou. E eu sou tudo o que ela não era. Ela era capaz de pintar círculos em volta de qualquer pessoa; eu nem sequer consigo desenhar uma linha recta. Ela nunca gostou de desporto; eu sempre gostei - Chris ergueu a palma da mão estendida e fechou os dedos. - A mão dela - disse ele. - Cabia dentro da minha.
- Continua - disse o Dr. Feinstein, encorajando-o.
- Bem, quero dizer, nem sempre namorámos. Isso foi uma coisa recente, de há uns dois anos. Mas eu conheço-a desde sempre - riu subitamente. - A primeira coisa que
ela disse foi o meu nome. Costumava chamar-me Kiss6. E depois, quando aprendeu a palavra beijo fazia confusão, olhava para mim e estalava os lábios - olhou para cima.
- Não me lembro propriamente disso. Foi a minha mãe que me contou.
- Que idade tinhas quando conheceste a Emily?
6. Beijo. (N. da T.)
124
- Acho que tinha seis meses - disse Chris. - No dia em que ela nasceu - inclinou-se para a frente, pensando no assunto. Costumávamos brincar juntos todas as tardes.
Quero dizer, ela vivia na casa ao lado e as nossas mães estavam sempre juntas, por isso era natural.
- Quando começaram a namorar? Chris franziu a testa.
- Não me lembro propriamente em que dia foi. A Em lembrar-se-ia de certeza. As coisas evoluíram, foi só isso. Toda a gente achava que era o que ia acontecer, por isso não foi uma grande surpresa. Um dia olhei para ela e não vi apenas a Em, vi uma rapariga muito bonita. E, bem... o doutor sabe.
- Mantinham uma relação íntima?
Chris sentiu o calor a subir-lhe pelo colarinho da camisa. Era um assunto que não queria abordar.
- Tenho de dizer-lhe mesmo que não queira? - perguntou.
- Não tens de me dizer absolutamente nada - disse o Dr. Feinstein.
- Bem - disse Chris. - Não quero.
- Mas amava-la.
- Sim - respondeu Chris.
- E ela foi a tua primeira namorada.
- Bem, pode dizer-se que sim
- Então como sabes? - perguntou o Dr. Feinstein. - Como sabes que era amor?
Não perguntou de forma maldosa nem agressiva. Estava apenas a interrogar-se. Se Feinstein tivesse sido amargo, ou directo, como aquela cabra daquela detective, Chris ter-se-ia retraído imediatamente. Mas assim, era uma boa pergunta, uma pergunta válida.
- Havia uma atracção - disse ele cautelosamente -, mas era mais do que isso - mordeu o lábio inferior por um instante. - Uma vez, separámo-nos durante uns tempos. Comecei a sair com uma rapariga que sempre achei muito atraente, uma chefe da claque chamada Donna. Estava absolutamente caído pela Donna, talvez até enquanto ainda estava com a Em. Em todo o caso, começámos a sair e a curtir, e cada vez que estava com a Donna apercebia-me de que não a conhecia muito bem. Pensava que ela era muito mais do que na realidade era - Chris respirou fundo. - Quando a Em e eu ficámos juntos de novo, percebi que ela nunca ficara abaixo das minhas expectativas. Quando muito, era sempre melhor do que eu me lembrava. E é isso que eu acho que é o amor - disse Chris num
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tom suave. - Quando conhecemos perfeitamente alguém, e apesar disso não queremos mudar nada.
Quando ficou em silêncio, o psiquiatra olhou para cima.
- Chris - perguntou ele -, qual é a tua recordação mais antiga? A pergunta apanhou Chris de surpresa; riu alto.
- Recordação? Não sei. Oh, espere, tinha um brinquedo, um comboiozinho com um botão que apitava. Lembro-me de estar com ele na mão e da Emily a tentar tirar-mo.
- Mais alguma coisa?
Chris colocou as mãos em pirâmide e tentou lembrar-se.
- O Natal - disse ele. - Nós descemos as escadas e havia um comboio eléctrico a andar à volta da árvore.
-Nós?
- Sim - disse Chris. - A Emily era judia, por isso vinha a nossa casa para festejar o Natal. Quando éramos muito pequenos passava lá a noite da Consoada.
O Dr. Feinstein acenou com a cabeça pensativamente.
- Diz-me - disse ele -, tens alguma recordação de infância que não inclua a Emily?
Chris tentou recuar no tempo, revivendo a sua vida como se fosse um filme. Viu-se na banheira com Emily, a fazer chichi na água enquanto ela ria e a mãe gritava a valer. Viu-se a fazer um anjo na neve, abrindo muito os braços e as pernas e atingindo Emily, que estava a fazer o mesmo ao seu lado. Vislumbrou por instantes os rostos dos pais, mas Emily estava sempre ali ao lado.
Chris abanou a cabeça.
- Por acaso - disse ele -, não tenho.
Naquela noite enquanto Chris estava a tomar duche, Gus aventurou-se a entrar no quarto dele para fazer limpezas. Para sua surpresa, a confusão estava controlada - basicamente uma pilha de pratos sujos com refeições que ficaram por comer. Alisou a colcha de Chris e depois ajoelhou-se, procurando instintivamente debaixo da cama meias sem par para colocar no cesto da roupa suja, comida que tivesse rebolado lá para baixo sem ninguém reparar.
O polegar tocou na aresta dura de uma caixa de sapatos antes que ela conseguisse perceber o que encontrara. Meteu a mão lá dentro, os dedos tocaram nas páginas de códigos secretos, óculos para ver filmes a três dimensões, mensagens invisíveis escritas com sumo de limão descodificadas junto de uma lâmpada. Meu Deus, que idade teriam? Nove anos? Dez?
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Gus agarrou na mensagem secreta que estava em cima. Na letra floreada de Emily, anunciava enfaticamente: "O Sr. Polaski é um parvalhão." Passou o dedo sobre a letra i, pontuada com um grande círculo, como se fosse um balão que pudesse levantar a página a qualquer momento. Procurou debaixo das páginas soltas e encontrou uma lanterna, sem pilhas, e um espelho. Sorrindo, desgostosa, Gus sentou-se em cima da cama e agitou o espelho que tinha na mão. Viu o reflexo sair pela janela, percorrendo os bosques.
Na janela do quarto de Emily, viu um reflexo de luz idêntico.
Arquejando, Gus levantou-se, dirigindo-se para o parapeito. Viu a silhueta de Michael Gold segurando na mão um pequeno espelho quadrado.
- Michael - sussurrou ela, erguendo a mão num cumprimento, mas enquanto o fazia, viu o pai de Emily fechar a persiana do quarto.
Na quarta-feira o liceu de Bainbridge realizou uma cerimónia em memória de Emily Gold.
As obras de arte dela - um legado - estavam espalhadas pelo auditório. A fotografia dela do Outono passado fora aumentada até um tamanho quase obsceno e pendurada na parte de trás do palco do auditório, uma ilusão de óptica fazia o olhar dela seguir de forma sinistra os alunos que estavam na assistência quando trocavam de lugar ou quando se levantavam para ir à casa de banho. O director e o vice-director do liceu, o conselheiro e um Dr. Pinneo, especialista em depressões em adolescentes, estavam sentados em cadeiras de madeira em frente à fotografia.
Chris estava sentado na primeira fila com alguns professores. Ninguém lhe guardara propriamente um lugar ali, mas presumiram implicitamente que ele tinha direito a ele. De certa forma, até era bom. Podia ficar a olhar para aquela fotografia da Em sem ter de ver os outros alunos fazerem o que todos faziam numa reunião: segredar, acabar os trabalhos de casa, apalparem-se uns aos outros no escuro. A Dr.a Kenly, que estava ao lado dele, levantou-se quando o director do liceu a apresentou. Como professora de arte, provavelmente conhecia Em melhor do que qualquer outro professor. Falou durante algum tempo sobre a criatividade que Emily tinha na alma e outras tretas, mas eram tretas agradáveis, pensou Chris. Emily teria gostado.
Depois o médico levantou-se e fez um estranho discurso sobre o suicídio nos adolescentes. Sinais de aviso, como se qualquer pessoa que estivesse a assistir tivesse tantas probabilidades
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de os manifestar como de contrair uma gripe. Chris mexia distraidamente na perna das calças de ganga enquanto o médico falava, consciente do olhar pesado do homem fixo na sua própria testa.
Antes que Chris se apercebesse do que estava a acontecer, todo o primeiro terço do auditório - os 363 alunos do último ano - estavam de pé, a serem conduzidos para a parte de trás da sala. Os professores que estavam lá atrás reduziam o grupo que se movimentava a uma fila única, que serpenteava pelas escadas do palco. Quando cada aluno chegava ao pé da fotografia de Emily, ele ou ela já tinha recebido um cravo para atirar para junto do retrato.
Teoricamente era uma boa ideia. Mas Chris - que foi o último não por estar associado a Em mas simplesmente porque ninguém se apercebera de que havia um aluno do último ano sentado na primeira fila junto dos professores - achou-a ridícula. As flores eram atiradas para dentro de uma piscina para crianças que fora usada para fazer um jogo na feira da Primavera; pequenos patinhos amarelos espreitavam por entre as flores cor-de-rosa. "Piroso", teria dito Emily. Quando Chris se aproximou da piscina, estava sozinho no palco. Atirou o cravo para cima do monte que se acumulara e olhou para cima, para o rosto monstruoso de Emily. Era ela, mas não era ela. Os dentes foram branqueados, como os de uma supermodelo. A narina dela era do tamanho da cabeça dele.
Virou-se para sair do palco e viu o director do liceu fazer-lhe sinal para se aproximar.
- Como um dos seus melhores amigos - dizia o Dr. Lawrence -, talvez Chris Harte queira partilhar qualquer coisa connosco.
Sentiu a mão do director agarrar-lhe no ombro, puxando-o para um púlpito e um microfone que parecia a cabeça de uma cascavel pronta a atacar. As mãos começaram a tremer.
Chris deu por si a observar um mar de rostos. Pigarreou; o microfone soltou um guincho.
- Oh - disse ele, inclinando-se para trás. - Peço desculpa. Isto... hum... é uma coisa muito especial que todos fizeram pela Emily. Tenho a certeza de que ela está algures a ver - virou-se um pouco, pestanejando para os holofotes. - E ela ia dizer... - Chris olhou para o monte de flores já a murchar, para o santuário que eles fizeram para Em. Conseguia vê-la com facilidade na fila de trás ao lado dele, grunhindo desdenhosamente perante o espectáculo lamechas, a olhar para o relógio para ver quanto tempo faltava para a campainha tocar.
- E ela ia dizer... - repetiu Chris.
Depois, nunca chegou a saber de onde surgiu. Mas de repente o excesso de emoções que andava a reprimir desde que regressara
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à escola por ordem do pai começou a transbordar do vazio dentro do seu coração onde o encerrara. Dominado pelo cheiro das flores a apodrecer debaixo das luzes, pela fotografia espalhafatosa e pelas centenas de rostos à espera que ele, logo ele, lhes desse respostas, Chris começou a rir.
Ao princípio riu baixinho e, depois, soltou uma gargalhada, pouco educada e ácida, como um arroto. Riu e riu em contraste com o silêncio absoluto do auditório. Riu tanto, que começou a chorar.
Tinha o nariz a pingar, os olhos tão enevoados que não conseguia ver o púlpito à sua frente, Chris afastou-se e dirigiu-se para as escadas ao fundo do palco. Correu pelo longo corredor do auditório, até sair de rompante pela porta dupla para os corredores vazios do liceu, e saiu disparado para os balneários do ginásio.
Estavam vazios - estiveram todos a observá-lo - e vestiu o fato de banho Speedo em tempo recorde. Deixou as roupas amontoadas no chão de cimento, e saiu pela porta que conduzia directamente à piscina. A superfície azul reconfortante parecia vidro, pensou ele, e imaginou-o a estilhaçar-se e a cortá-lo ao mergulhar na parte mais
funda.
A ferida a sarar que tinha na cabeça ardeu-lhe; os pontos só tinham sido tirados no dia anterior. Mas a água era tão familiar como uma amante e, no seu vasto abraço,
Chris ouvia apenas o bater do seu próprio coração e a bomba intermitente do sistema de aquecimento. Ficou a flutuar, imóvel, debaixo de água, olhando ocasionalmente para cima para as bancadas ondulantes e as luzes fluorescentes. Depois, com cuidado, deliberadamente, libertou bolhas de ar pela boca e pelo nariz, reduzindo a sua reserva de oxigénio e sentindo-se afundar centímetro por centímetro, dolorosamente.
- Olhe - disse a voz, agora mais hostil. - A Emily mora ou não mora aí?
Os dedos de Melanie cerraram-se no auscultador do telefone com tanta força que os nós ficaram brancos.
- Não - disse ela. - Não mora.
- E é o 656-4309?
- Sim.
- Tem a certeza.
Melanie encostou a cabeça à fria porta da despensa.
- Não volte a telefonar - disse ela. - Deixe-me em paz.
- Olhe - disse a voz. - Tenho uma coisa que pertence à Emily. Pode ao menos dizer-lhe isso, quando a vir?
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Melanie ergueu o rosto.
- O que é? - perguntou ela.
- Diga-lhe - disse a voz, e desligou.
O Dr. Feinstein abriu a porta adjacente de sobrolho franzido.
- Chris - admoestou - não podes vir sem avisar, sabes. Se tiveres algum problema, telefona. Só estou livre porque outro paciente está doente.
Chris não se deu ao trabalho de prestar atenção. Passou pelo psiquiatra e entrou no consultório.
- Não ia fazê-lo - resmungou.
- Desculpa?
Chris ergueu o rosto, contorcido pela dor.
- Não ia fazê-lo.
O Dr. Feinstein fechou a porta do consultório e sentou-se diante de Chris.
- Estás perturbado - disse ele. - Acalma-te um pouco - esperou pacientemente que Chris respirasse fundo várias vezes, e depois se endireitasse na cadeira. - Agora - disse o psiquiatra, satisfeito. Conta-me o que aconteceu.
- Hoje na escola realizou-se uma cerimónia em memória da Emily - Chris esfregou os olhos com as mãos, a combinação da mágoa com o cloro fazia arder bastante. - Foi absolutamente péssima, com umas flores e... pronto.
- Foi isso que te deixou perturbado?
- Não - disse Chris. - Fizeram-me subir ao palco para fazer um discurso, sabe. E estavam todos a olhar para mim como se eu soubesse o que fazer para melhorar a situação, o que dizer. Porque eu estava lá, e queria fazer o que a Emily fez, por isso devia ser capaz de explicar o que aconteceu para que ela quisesse suicidar-se - grunhiu desdenhosamente. - Como se fosse uma porcaria de uma reunião dos alcoólicos anónimos. "Olá, o meu nome é Chris e queria suicidar-me."
- Talvez fosse a maneira de dizerem que és importante para eles.
- Oh, pois - disse Chris cinicamente. - A maior parte dos alunos passou a cerimónia a lançar bolas de cuspo.
- O que mais aconteceu? Chris curvou a cabeça.
- Queriam que eu falasse sobre a Emily, uma espécie de elegia. E eu abri a boca e... - olhou para cima e levantou as mãos. Desatei a rir.
- Desataste a rir?
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- Às gargalhadas. A rir às gargalhadas.
- Chris, estiveste sob uma enorme tensão - disse o Dr. Feinstein.
- Tenho a certeza de que quando as pessoas...
- Não está a perceber? - explodiu Chris. - Eu desatei a rir. Era um funeral a fingir e eu desatei a rir.
O Dr. Feinstein inclinou-se para a frente.
- Às vezes as emoções muito fortes confundem-se. Estiveste...
- Deprimido. Perturbado. De luto - Chris levantou-se, começou a andar de um lado para o outro. - É só escolher. Estou perturbado por a Emily ter morrido? Cada minuto, cada vez que respiro. Mas todos acham que sou um caso perdido, a um passo de cortar os pulsos. Todos acham que estou à espera da oportunidade certa para tentar suicidar-me outra vez. Toda a gente na escola pensa isso. Estavam à espera que tivesse um esgotamento nervoso, provavelmente, ali mesmo no púlpito, e a minha mãe pensa isso, o doutor não? - Chris lançou um olhar irado ao médico e deu um passo em frente. - Não vou suicidar-me. Não sou suicida. Nunca fui suicida.
- Nem naquela noite?
- Não - disse Chris suavemente. - Nem naquela noite. O Dr. Feinstein acenou com a cabeça lentamente.
- Porque disseste que eras, no hospital? Chris empalideceu.
- Porque desmaiei, e depois acordei e os polícias estavam em cima de mim, a segurar na arma - fechou os olhos. - Fiquei com medo, por isso disse a primeira coisa
que fazia sentido.
- Se não ias suicidar-te, porque foste buscar uma arma? Chris deixou-se cair no chão, sem força nos músculos.
- Fui buscá-la para a Emily. Porque ela realmente queria suicidar-se. E eu pensei... - baixou a cabeça, e disse de novo as palavras asperamente. - Pensei que podia
impedi-la. Achei que seria capaz de convencê-la a não o fazer muito antes de chegarmos àquele ponto - ergueu uns olhos brilhantes para o Dr. Feinstein. - Estou farto de fingir - sussurrou ele. - Não ia lá para suicidar-me. Ia lá para salvá-la - as lágrimas escorriam-lhe pelas faces sem que ele se apercebesse, molhando-lhe a parte da frente da camisa. - Só que soluçou Chris - não a salvei.
O grande Júri que presidia ao Tribunal Superior do Condado de Grafton passou um dia a ouvir a procuradora-geral Barrett Delaney apresentar as provas contra Christopher Harte relacionadas com o homicídio de Emily Gold. Ouviram o médico legista discutir
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a hora e a natureza da morte da vítima, o percurso da bala que lhe atravessou o cérebro. Ouviram o agente da polícia de Bainbridge que estava de serviço na esquadra
a descrever o local do crime tal como o encontrou. Observaram a detective-sargento Anne-Marie Marrone explicar as provas de balística. Ouviram o procurador-geral
adjunto perguntar à detective que percentagem de homicídios foram perpetrados por criminosos que conheciam as suas vítimas; ouviram a detective responder noventa
por cento.
Tal como na maioria das audiências concedidas pelos grandes júris, o arguido não só estava ausente, como também ignorava afortunadamente que um tribunal se reunia
em seu nome.
Às 15h46, S. Barrett Delaney recebeu um envelope selado, dentro do qual estava um papel que acusava Christopher Harte de homicídio qualificado.
- Está. Posso falar com a Emily? Melanie ficou imóvel.
- Quem fala? Houve uma hesitação.
- Uma amiga.
- Ela não está - Melanie cravou as unhas no auscultador, engolindo convulsivamente. - Morreu.
- Oh - a voz do outro lado da linha parecia estupefacta. - Oh.
- Quem fala? - repetiu Melanie.
- É a Donna. Da The Gold Rush. A joalharia que fica na esquina da Main e da Carter? - a mulher pigarreou. - A Emily comprou-nos um artigo. Já está pronto.
Melanie agarrou nas chaves do carro.
- vou já para aí - disse ela.
O percurso demorou menos de dez minutos. Melanie estacionou num lugar mesmo em frente da joalharia e entrou. Os diamantes cintilavam de dentro dos estojos; cordões de ouro jaziam em veludo azul. Uma mulher, de costas viradas para Melanie, estava a mexer na caixa registadora.
Virou-se com um sorriso radioso, que se desvaneceu ao ver os cabelos despenteados de Melanie, sem casaco de Inverno.
- Sou a mãe da Emily - disse Melanie.
- Claro - Donna ficou a olhar para Melanie durante cinco segundos até o corpo se forçar a reagir. - Sinto muito - disse ela. Dirigiu-se para a caixa registadora e retirou um estojo estreito e longo. - A sua filha encomendou isto há algum tempo. Também mandou gravá-lo - disse ela, levantando a tampa para revelar um
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relógio de homem. "Para o Chris", leu Melanie. "Para Sempre. com Amor. Em." Voltou a colocar o relógio na sua almofada de cetim e agarrou no recibo. Havia um bilhete ao fundo impresso com letras grossas destinado aos funcionários da loja: "A oferta é segredo. Ao telefonar, pedir apenas para falar com Emily. Não dar nenhuma informação." O que explicava todo o mistério à volta dos telefonemas, pensou ela. Mas porquê guardar segredo? Então Melanie viu o preço.
- Quinhentos dólares? - exclamou.
- É de ouro de catorze quilates - apressou-se a mulher a realçar. -Ela tinha dezassete anos! - disse Melanie. - Claro que queria
guardar segredo. Se o pai dela ou eu descobríssemos que tinha gasto tanto dinheiro tê-la-íamos obrigado a devolvê-lo! Visivelmente incomodada, Donna mudou de posição.
- O relógio está totalmente pago - disse em jeito de concessão. - Talvez ainda queira dar o presente à pessoa a quem a sua filha o queria oferecer.
Então Melanie percebeu. Devia ter sido o presente de aniversário para Chris, uma coisa especial para assinalar os dezoito anos dele. Na cabeça de Emily, isso justificaria gastar todo o dinheiro que ganhara durante o Verão.
Melanie agarrou no estojo e levou-o para o carro. Sentou-se e ficou a olhar para o pára-brisas, ainda a ver aquela mensagem inacreditavelmente irónica. "Para Sempre."
E interrogou-se por que razão teria Emily encomendado um relógio para o aniversário de Chris, se - como ele disse - eles iam suicidar-se antes disso.
Melanie ainda segurava na maçaneta da porta quando o telefone começou a tocar. Entrou apressadamente, com uma pequena parte do seu ser certa de que seria Donna da
joalharia a telefonar-lhe para lhe dizer que tudo não passara de um engano; havia outro Chris e outra Emily e...
- Está?
- Sr.a Gold? Fala Barrie Delaney da procuradoria-geral. Falei consigo na semana passada?
- Sim - disse Melanie colocando o relógio em cima da bancada. - Eu lembro-me.
- Achei que gostaria de saber - disse Barrie - que um Grande Júri acusou hoje o Christopher Harte de homicídio qualificado.
Melanie sentiu os joelhos cederem. Deslizou para o chão, de pernas desconfortavelmente abertas.
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- Ele... vai haver alguma audiência?
- Amanhã - disse Barrie Delaney. - No Tribunal do Condado de Grafton.
Melanie anotou o nome num bloco que usava para fazer as listas de compras da mercearia. Ouviu a promotora de justiça falar, mas não conseguiu compreender mais nenhuma palavra. Pousou suavemente o auscultador.
Olhou para o estojo da joalharia. Levantou o relógio do seu leito de cetim com muito cuidado e passou o polegar pelo amplo mostrador. O aniversário de Chris era naquela noite. Sabia tão bem a data como sabia a de Emily.
Imaginou Gus e James, e até mesmo Kate, sentados à grande mesa de cerejeira, com as conversas enredadas em nós do tamanho de punhos. Imaginou Chris a levantar-se
e a debruçar-se sobre o bolo, as velas a tremeluzirem e a suavizarem-lhe as feições. Noutras circunstâncias, Melanie, Michael e Emily também seriam convidados.
Melanie segurou o relógio com tanta força que se lhe cravou na palma da mão. Sentiu a raiva crescer dentro de si, impossível de conter. Atravessou-lhe o coração, rompeu-lhe a pele, surgindo grossa como um membro extra sobre o qual, com cuidado, com cautela, experimentou apoiar o seu próprio peso.
Tudo tinha de estar perfeito.
Gus afastou-se da mesa, e depois aproximou-se para ajeitar de novo um guardanapo. Os copos de cristal estavam em sentido, o fiambre em espiral enrolava-se introspectivamente na travessa de servir. O serviço elegante de porcelana, que hibernava no aparador à excepção do Dia de Acção de Graças e do Natal, estava exposto em todo o seu esplendor, com molheira e tudo. Quando Gus saiu da sala de jantar para chamar toda a gente, tentou convencer-se a si própria de que não estavam a festejar mais um ano de vida de uma pessoa que tentara precisamente acabar com ela.
- Muito bem - gritou ela. - O jantar está pronto!
James, Chris e Kate entraram, vindos da sala de estar, onde estavam a ver o telejornal. Kate fazia gestos com as mãos, a falar de um balão de hélio do tamanho de um Chevy que fora liberto com uma mensagem, que fazia parte de um projecto de ciências do liceu.
- Talvez vá até à China - proclamou de forma exuberante. À Austrália.
- Nem vai chegar ao fundo do quarteirão - disse Chris entre dentes.
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- Vai sim! - gritou Kate, depois fechou a boca e olhou para o colo. Chris olhou para a irmã e depois para os pais e deixou-se cair na sua cadeira com mais força do que precisava.
- Ora - disse Gus. - Não está bonito?
- Olha para o bolo - disse James. - Cobertura de coco? Gus acenou com a cabeça.
- com recheio de morango.
- A sério? - perguntou Chris, seduzido apesar do seu mau humor. - Fizeste isto para mim?
Gus acenou com a cabeça.
- Não é todos os dias - disse ela - que uma pessoa faz dezoito anos - olhou para o fiambre e para as cenouras, o empadão de batata-doce. - Por acaso - acrescentou ela -, em honra deste evento acho que devíamos começar pelo bolo.
Os olhos de Chris brilharam.
- Tu és fixe, mãe - declarou ele.
Gus agarrou na caixa de fósforos que estava ao lado do prato do bolo e acendeu as dezanove velas - mais uma para dar sorte. Teve de acender três fósforos ao todo, com os paus a queimarem-lhe as pontas dos dedos antes de terminar.
- Parabéns a você - cantou ela e, quando mais ninguém se juntou a ela, levantou-se, de mãos nas ancas e sobrolho franzido. - Se quiserem comer - disse ela - vão
ter de cantar.
Ao ouvir isto, James e Kate juntaram-se-lhe. Chris agarrou no garfo, já preparado ainda antes de Gus conseguir cortar a primeira fatia.
- Sentes-te diferente por teres dezoito anos? - perguntou Kate.
- Claro que sim - gracejou Chris. - Já começo a ter artrite.
- Muito engraçado. Quero dizer se te sentes mais esperto? Mais adulto?
Chris encolheu os ombros.
- Já podia alistar-me - disse ele. - Essa é a única diferença. Gus abriu a boca, prestes a dizer que, graças a Deus, não havia
guerras naquela altura, mas apercebeu-se de que não era verdade. Nós é que fazíamos as guerras. As tropas americanas podiam não estar envolvidas, mas isso não queria dizer que Chris não estivesse a lutar.
- Bem - disse James, tirando a segunda fatia de bolo. - Acho que o Chris devia fazer dezoito anos todos os dias.
- Também acho - disse Gus, e Chris baixou a cabeça, sorrindo. Tocou a campainha.
- Eu vou - disse Gus, atirando o guardanapo para cima da mesa.
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Voltou a tocar mesmo antes de chegar à porta. Abriu-a, e a luz do alpendre incidiu sobre dois polícias fardados.
- Boa-noite - disse o mais alto. - Christopher Harte está em casa?
- Bem, está - disse Gus -, mas acabámos de nos sentar... O polícia mostrou-lhe uma folha de papel.
- Temos um mandado para efectuar a sua detenção. Gus arquejou, expelindo o ar dos pulmões.
- James - conseguiu dizer, e o marido apareceu. Tirou o mandado das mãos do polícia e examinou-o.
- Por que motivo? - perguntou num tom áspero.
- Foi acusado de homicídio qualificado - o polícia passou por Gus, dirigindo-se para a sala de jantar iluminada.
- James - disse Gus. - Faz qualquer coisa. James agarrou-a pelos ombros.
- Telefona ao McAfee - disse ele. Correu para a sala de jantar.
- Chris! - gritou. - Não digas nada. Não digas uma palavra.
Gus acenou com a cabeça, mas não se dirigiu para o telefone. Seguiu James para o tumulto da sala de jantar. Kate estava sentada à mesa, a chorar. Chris fora arrancado da cadeira. O polícia estava a algemar-lhe as mãos atrás das costas, o outro polícia lia-lhe os direitos. Tinha os olhos enormes; o rosto branco como cal. A cobertura de coco tremia-lhe no lábio inferior.
Cada um dos polícias agarrou num cotovelo de Chris para o levarem lá para fora. Ele ia cegamente entre eles aos tropeções, erguendo as sobrancelhas, confuso, incapaz de focar os objectos familiares dentro de casa. À porta da sala de jantar, onde Gus se encontrava, os polícias hesitaram, à espera que ela se desviasse. Naquela breve pausa, Chris olhou directamente para ela.
- Mamã? - sussurrou ele, e depois foi levado dali.
Ela tentou tocar-lhe, mas eles foram demasiado rápidos. A mão dela, a pairar no ar, cerrou-se num punho que encostou à boca. Ouvia James correr pela casa, a telefonar ele próprio a McAfee. Ouvia Kate soluçar na outra sala. Mas acima de tudo isto ouvia Chris, de dezoito anos, a chamá-la de uma forma afectuosa que já não usava há uma década.
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PARTE II
A RAPARIGA DA PORTA AO LADO
E, afinal, o que é uma mentira? É apenas
a verdade mascarada.
LORDE BYRON
Don Juan
Não há refúgio da confissão à excepção do suicídio;
e o suicídio é uma confissão.
DANIEL WEBSTER
PRESENTE
Finais de Novembro de 1997
No assento de trás do carro da polícia, Chris estremecia. Tinham o aquecimento ligado no máximo mas ele tinha de sentar-se de lado para que as algemas não lhe magoassem
as costas e por muito que se esforçasse para se recompor, dava por si a tremer.
- Estás bem aí atrás? - perguntou o polícia que não estava a conduzir, e Chris disse que sim, com a voz a tremer como varas verdes nessa única sílaba.
Não estava bem. Nem sequer estava minimamente bem. Nunca estivera tão assustado na vida.
O carro estava impregnado de um aroma a café. O rádio tagarelava num dialecto que Chris não compreendia e, por um instante, isso fez todo o sentido - todo o seu mundo se desfez em pedaços, não era lógico que ele deixasse de ser capaz de falar a língua? Remexeu-se um pouco no assento, concentrando-se para não fazer chichi nas calças. Era um engano. O pai e aquele advogado iriam ter com ele para onde quer que o levassem, e Jordan McAfee faria um discurso à Perry Mason e todos perceberiam que estavam enganados. Amanhã ia acordar e rir-se daquilo.
De repente o carro virou para a esquerda e ele viu uma luz passar pela janela. Perdera completamente a noção do tempo e da localização, mas calculou que estivessem
na esquadra da polícia de Bainbridge.
- Vamos - disse o polícia mais alto, abrindo uma das portas de trás. Chris deslizou para a beira do assento, tentando manter o equilíbrio com as mãos presas atrás das costas. Pôs um pé no passeio e tentou sair do carro da polícia mas caiu de cara no chão.
O polícia puxou-o para cima pelas algemas e arrastou-o para dentro da esquadra sem cerimónias. Foi conduzido por uma porta
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nas traseiras em que nunca tinha reparado. O polícia trancou a arma numa caixa e falou por um intercomunicador, depois uma porta de ligação abriu-se com um zumbido. Chris viu-se na recepção, onde estava sentado um sargento de olhos sonolentos. Deixaram-no sentar-se enquanto lhe perguntavam o nome, a idade e a morada, e ele respondeu o mais educadamente possível, no caso de receber pontos pelo bom comportamento.
Depois o polícia que o levara lá para dentro colocou-o de pé contra uma parede e deu-lhe um cartão para segurar, como nos filmes da televisão, com um número e a data. Virou-se para a direita e para a esquerda enquanto uma câmara disparava oflash.
Quando lhe mandaram, Chris esvaziou os bolsos e estendeu as mãos para lhe retirarem as impressões digitais - vinte e uma impressões separadas; um conjunto para a polícia local, outro para a polícia estadual e outro para o FBI. Depois o polícia limpou-lhe as mãos com uma toalhita de bebé, tirou-lhe os sapatos, o casaco e o cinto, e pediu pelo intercomunicador que abrissem a cela três.
- O xerife já aí vem - disse a Chris.
- O xerife? - perguntou Chris, estremecendo novamente. Porquê?
- Não podes passar aqui a noite - explicou o polícia. - Ele vai transportar-te para a prisão do Condado de Grafton.
- Prisão? - sussurrou Chris. Ele ia para a prisão? Assim, sem mais nem menos?
Parou de andar, obrigando o polícia que ia ao seu lado a parar.
- Não posso ir para lado nenhum - disse ele. - O meu advogado vem para aqui.
O polícia riu.
- A sério? - disse ele, e voltou a puxá-lo para a frente.
A cela da esquadra tinha um metro e oitenta por um metro e meio, na cave da esquadra. Chris já a vira antes, quando estava nos escuteiros e fizeram uma visita ao edifício de segurança pública de Bainbridge. Tinha uma combinação de lavatório e sanita de aço inoxidável e uma cama. A porta tinha mesmo grades, e havia uma câmara de vídeo apontada lá para dentro. O polícia verificou debaixo do colchão - armas? Insectos? - depois abriu as algemas e fez Chris entrar.
- Tens fome? - perguntou ele. - Sede?
Chocado por o polícia se preocupar com o seu conforto físico, Chris olhou para ele, pestanejando. Não tinha fome, estava enjoado por causa de tudo. Abanou a cabeça, tentando bloquear o som da cela a fechar-se. Esperou que o polícia estivesse ao fundo
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do corredor, depois levantou-se e urinou. Queria dizer ao polícia que o recebera e ao que o levara para a cela que não tinha assassinado Emily Gold. Mas o pai dissera-lhe para ficar calado, e o aviso trespassava até a espessa cobertura de medo que envolvia Chris.
Pensou no bolo de aniversário que a mãe lhe fizera; as velas a arder até à cobertura, a metade intacta ainda no prato, com o recheio de morango vivo como uma linha de sangue.
Passou os dedos pela parede de betão cheia de buracos, e ficou à espera.
Para Jordan McAfee, não havia nada melhor do que percorrer o terreno do corpo de uma mulher.
Mexeu-se debaixo dos cobertores da sua própria cama, com os lábios e as mãos a calcularem o caminho, como se fosse mapear esta informação.
- Oh, sim - murmurou ela, cerrando as mãos nos cabelos negros e espessos dele. - Oooooh.
Ela estava a levantar a voz. Desconfortavelmente alta. Ele pousou-lhe a mão na barriga.
- Silêncio - murmurou junto da coxa dela. - Lembras-te?
- Como... poderia... esquecer!
Agarrou na cabeça dele e segurou-a junto a si ao mesmo tempo que ele recuou para lhe tapar a boca com a mão. Pensando que era um jogo, mordeu-o.
- Merda - disse ele, saindo de cima dela. Olhou para a mulher de soslaio, embriagado e zangado. Jordan abanou a cabeça, já nem sequer estava excitado. Normalmente avaliava melhor estas coisas. Esfregou a palma da mão dorida, a pensar que nunca mais sairia com uma amiga da sua assistente legal, e se saísse, certamente que não ia beber o suficiente ao jantar para convidá-la para casa.
- Olha - disse ele, tentando sorrir cordialmente -, já te disse porque...
A mulher - Sandra, era como se chamava - rebolou para cima dele, fundindo a boca na sua. Afastou-se e passou o dedo pelo lábio inferior.
- Gosto de um homem que tenha o meu gosto - disse ela.
Jordan sentiu a erecção voltar a expandir-se. Talvez ainda não desse a noite por terminada.
O telefone tocou, e Sandra derrubou-o de cima da mesa-de-cabeceira. Quando Jordan foi buscá-lo praguejando, agarrou-lhe no pulso.
- Deixa estar - sussurrou ela.
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- Não posso - disse Jordan, afastando-se dela para procurar no chão. - McAfee - disse ele ao telefone. Escutou em silêncio, ficando instantaneamente alerta, com
o corpo a executar de cor a tarefa de tirar uma caneta e um bloco de notas da mesa-de-cabeceira para assentar o que o autor do telefonema lhe dizia. - Não se preocupe
- disse ele calmamente. - Nós tratamos do assunto. Sim. Encontramo-nos lá.
Desligou o telefone e pôs-se de pé com uma graça leonina, vestindo as calças que estavam no chão junto à porta da casa de banho com naturalidade. - Lamento ter de fazer isto - disse Jordan, fechando a braguilha -, mas tenho de ir.
Sandra ficou de boca aberta.
- Assim sem mais nem menos? Jordan encolheu os ombros.
- É um trabalho, alguém tem de fazê-lo - disse ele. Olhou para a mulher reclinada na cama.
- Tu, hum, não tens de ficar à minha espera - acrescentou.
- E se quiser ficar? - perguntou Sandra. Jordan virou-lhe as costas.
- Posso demorar muito tempo - disse ele. Enfiou as mãos nos bolsos, lançando-lhe um último olhar. - Eu telefono-te - disse ele.
- Não vais telefonar - discordou Sandra alegremente. Saindo da cama, nua, desapareceu para dentro da casa de banho e trancou a porta.
Jordan abanou a cabeça e entrou silenciosamente na cozinha. Andou às voltas, à procura de qualquer coisa onde escrever. De repente, a cozinha inundou-se de luz e Jordan deu por si a olhar para o filho de treze anos.
- O que estás a fazer acordado? Thomas encolheu os ombros.
- Estou a ouvir coisas que não devia estar a ouvir - disse ele. Jordan olhou para ele de sobrolho franzido.
- Devias estar a dormir profundamente. Amanhã tens aulas.
- São só oito e meia - protestou Thomas. Jordan levantou as sobrancelhas. A sério? Bebera assim tanto ao jantar? - Então - disse Thomas, sorrindo -, vieste apanhar ar?
Jordan esboçou um sorriso desdenhoso.
- Gostava mais de quando eras pequeno.
- Nessa altura, se não tivesse cuidado, fazia chichi na parede da casa de banho. Acho que ter esta idade é muito melhor.
Jordan não tinha assim tanta certeza. Criava o filho sozinho desde que este tinha quatro anos, quando Deborah decidira que a maternidade e o casamento com um advogado empenhado na sua
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carreira não lhe convinham. Entrara no escritório dele com o filho, os papéis para o divórcio e um bilhete de ida para Nápoles. Da última vez que soubera alguma coisa dela, vivia com um pintor com o dobro da sua idade na Rive Gaúche em Paris.
Thomas observou o pai beber avidamente café frio do dia anterior directamente da cafeteira.
- Isso é nojento - disse ele. - Embora não seja tão nojento como trazeres para casa uma...
- Basta - disse Jordan. - Não devia ter feito isso, está bem? Tu tens razão, e eu não tenho. Thomas sorriu, radiante.
- Sim? Podemos gravar este momento histórico em vídeo? Jordan voltou a colocar a cafeteira na máquina de café
Mr. Coffee e apertou o nó da gravata.
- Era um cliente ao telefone. Tenho de ir - vestiu o casaco, ainda dobrado por cima de uma cadeira, e virou-se novamente para o filho. - Não telefones para o pager se precisares de falar comigo. Parece que está avariado. Telefona para o escritório; eu verifico o correio de voz.
- Não vou precisar de falar contigo - disse Thomas. Fez um gesto indicando o quarto do pai. - Talvez devesse cumprimentá-la.
- Talvez devesses ir para o teu quarto - disse Jordan, sorrindo para Thomas, e depois saiu pela porta com a sensação da admiração do filho a pousar-lhe ao de leve nos ombros.
Gus inclinou-se para o assento de trás do carro, abotoando o casaco de Kate até ao pescoço.
- Não tens frio? - perguntou ela.
Kate abanou a cabeça, ainda demasiado chocada pela ideia de o irmão ter sido arrastado pelos polícias para poder reagir normalmente. Ficaria à espera no carro enquanto Gus, James e o advogado resolviam aquela confusão - não era a melhor solução, mas era a única possível. Aos doze anos, Kate ainda não tinha idade para ficar sozinha em casa à noite, e a quem podia Gus telefonar? Os pais viviam na Flórida, os pais de James teriam um ataque cardíaco só de ouvirem falar no escândalo. Melanie - a única amiga a quem Gus se sentiria à vontade para telefonar para fazer de ama à última hora
- achava que Chris lhe assassinara a filha.
Mas por muito que Gus desejasse ter poupado a filha a tudo aquilo, tinha uma voz irritante dentro da cabeça que a incitava a manter Kate o mais perto possível. "Ainda
te resta uma filha", dizia. "Mantém-na debaixo de olho."
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Gus debruçou-se sobre os trinta centímetros que as separavam e afagou os cabelos de Kate.
- Voltamos daqui a bocadinho - disse ela. - Tranca as portas quando nós formos embora.
- Eu sei - disse Kate.
- E porta-te bem.
"Ao contrário de Chris." O pensamento saltou entre Gus e Kate, como uma corrente hedionda e traiçoeira, e elas afastaram-se antes que pudessem dizê-lo em voz alta, ou admitir que pensaram nisso.
Gus e James Harte estavam especados no pequeno cone de luz originado pelo candeeiro à porta da esquadra da polícia, como se atravessar aquela porta sem levar um defensor legal a reboque fosse impensável e indubitavelmente arriscado. Jordan levantou a mão num cumprimento ao atravessar a rua, lembrando-se de um velho adágio sobre as pessoas que viviam juntas durante muito tempo acabarem por ficar parecidas uma com a outra. As feições dos Harte não eram semelhantes, mas o único objectivo ardente nos olhos deles emparelhou-os instantaneamente.
- James - disse Jordan, apertando a mão do médico. - Gus lançou um olhar para a porta da esquadra. - Já estiveram lá dentro?
- Não - disse Gus. - Estávamos à sua espera - Jordan pensou em conduzi-los à recepção, mas depois desistiu da ideia. A conversa que iam ter devia ser privada, e como
antigo delegado do Ministério Público sabia que as paredes das esquadras tinham ouvidos. Aconchegou-se um pouco mais no casaco e perguntou aos Harte o que acontecera.
Gus contou-lhe a detenção durante o jantar. Ao longo da descrição, James colocou-se de lado, como se estivesse ali para admirar a arquitectura em vez de para proteger o filho. Jordan ouviu Gus, mas observou o marido dela pensativamente.
- Então? - terminou Gus, esfregando as mãos para se aquecer.
- Pode falar com alguém para tirá-lo dali, não pode?
- Por acaso, não posso. Chris terá de ficar detido durante a noite até à sua acusação formal, que o mais provável será ocorrer de manhã no Tribunal do Condado de Grafton.
- Tem de passar aqui a noite numa cela?
- Bem, não - disse Jordan. - A polícia de Bainbridge não se encontra equipada para que ele fique aqui numa cela. Vai ser transportado para a prisão do Condado de Grafton.
James desviou o rosto.
- O que podemos fazer? - sussurrou Gus.
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- Muito pouco - admitiu Jordan. - Agora vou entrar e falar com o Chris. vou lá estar logo de manhã quando ele for chamado para a acusação formal.
- E o que vai acontecer?
- Basicamente o procurador-geral vai apresentar a acusação contra o Chris. Nós vamos declarar inocência. vou tentar que ele seja liberto mediante caução, mas isso pode ser difícil, visto que enfrenta uma acusação muito grave.
- Está a dizer - retorquiu Gus, com a voz trémula de raiva -, que o meu filho, que não fez nada de mal, tem de passar a noite na prisão, provavelmente até mais tempo
do que isso, e o senhor não pode fazer nada para o impedir?
- O seu filho pode não ter feito nada de mal - disse Jordan delicadamente -, mas a polícia não acreditou na história dele sobre o pacto de suicídio.
James pigarreou, quebrando o seu silêncio.
- E o senhor? Acredita? - perguntou ele.
Jordan olhou para os pais de Chris - a mãe prestes a desfalecer no passeio; o pai visivelmente embaraçado e incomodado - e resolveu dizer-lhes a verdade.
- Parece... conveniente - disse ele.
Tal como Jordan esperava, James desviou o rosto e Gus cedeu à raiva.
- Bem - bufou ela. - Se não acredita nele, procuramos outra pessoa.
- A minha função não é acreditar no seu filho - disse Jordan.
- A minha função é livrá-lo da acusação - olhou directamente nos olhos de Gus. - E sou capaz de fazê-lo - disse ele num tom suave.
Ela ficou a olhar para ele durante bastante tempo, o suficiente para que Jordan sentisse que ela estava a ler-lhe os pensamentos, a separar o trigo do joio.
- Quero ver o Chris agora - disse ela.
- Não pode. Só durante as mudanças de turno, só daqui a várias horas. Eu digo-lhe o que quiser - Jordan segurou na porta da esquadra para que ela entrasse, deixando um rasto do perfume da sua indignação. Estava prestes a entrar quando James o deteve.
- Posso fazer-lhe uma pergunta? - Jordan acenou com a cabeça. - Confidencial? - Jordan voltou a acenar, um pouco mais devagar.
- É que - disse James cautelosamente - a arma era minha respirou fundo. - Não estou a referir-me ao que aconteceu ou ao que não aconteceu. Só estou a dizer que a polícia sabe que a Colt
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saiu do meu armário das armas. - Jordan ergueu as sobrancelhas. Então - disse James -, isso torna-me cúmplice?
- De homicídio? - perguntou Jordan. Abanou a cabeça. - Não colocou deliberadamente aquela arma ali para que Chris a utilizasse para disparar sobre alguém.
James expirou devagar.
- Não estou a dizer que o Chris a tenha usado para disparar sobre alguém - esclareceu ele.
- Sim - disse Jordan. - Eu sei - e entrou na esquadra de polícia de Bainbridge atrás dele.
Quando ouviu os passos, Chris levantou-se e encostou o rosto à pequena janela de plástico da cela.
- Está aqui o advogado - disse o polícia e, subitamente, Jordan McAfee estava de pé do outro lado das grades.
Sentou-se numa cadeira que o polícia lhe trouxera e tirou um bloco de notas jurídico de dentro da pasta.
- Disseste alguma coisa? - perguntou Jordan bruscamente.
- Sobre o quê? - respondeu Chris.
- Aos polícias, ao sargento na recepção. Qualquer coisa que fosse.
Chris abanou a cabeça.
- Só que o senhor vinha aí - disse ele.
Jordan ficou visivelmente mais calmo.
- Está bem. Isso é bom - disse ele. Seguiu o olhar de Chris até à câmara de vídeo que estava dentro da cela. - Não vão gravar isto
- disse ele. - Não vão ouvir o monitor. São os direitos básicos dos prisioneiros.
- Prisioneiro - repetiu Chris. Tentou fazer parecer que não se ralava, que não estava a lamentar-se, mas a sua voz estava trémula.
- Já posso ir para casa?
- Não. Em primeiro lugar, não dizes nada a ninguém. Daqui a pouco, o xerife vai levar-te para a prisão do Condado de Grafton. Vais ser levado para lá para seres admitido. Faz o que te mandarem; são apenas algumas horas. Quando acordares de manhã eu já estarei lá, e vamos ao tribunal para a tua acusação formal.
- Não quero ir para a prisão - disse Chris, empalidecendo.
- Não tens outra escolha, terás de ficar detido até à acusação formal, e a promotora de justiça fez as coisas de maneira a teres de passar a noite à espera. O que quer dizer que vais para Grafton - olhou directamente para Chris. - Ela fez isto para que ficasses cheio de medo. Quer que estejas a tremer quando a vires amanhã no tribunal.
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Chris acenou com a cabeça e engoliu em seco.
- Foste acusado de homicídio qualificado - continuou Jordan.
- Eu não fiz nada - interrompeu Chris.
- Não quero saber se fizeste ou não fizeste - disse Jordan num tom suave. - Não interessa. vou defender-te na mesma.
- Eu não fiz nada - repetiu Chris.
- Óptimo - disse Jordan desapaixonadamente. - Amanhã a promotora de justiça vai pedir que fiques detido sem caução, o que é provável que aconteça devido à gravidade da acusação.
- Quer dizer, na prisão? - Jordan acenou com a cabeça. Durante quanto tempo?
Qualquer coisa na voz de Chris o sensibilizou. Jordan inclinou a cabeça e de repente as feições assustadas do cliente reconfiguraram-se, e ele estava a olhar para Thomas, muito mais novo, a perguntar quando voltaria a ver a mãe. Há um tom universal na voz de um rapaz que acabou de perceber que não é invencível, que compreendeu como o tempo podia passar devagar.
- O tempo que for preciso - disse ele.
A meio da noite, James acordou sobressaltado. Desorientado, recuou no tempo vários anos, e sentou-se bruscamente para tentar ouvir o choro de Kate com uma otite, ou o som dos pés de Chris a correr depois de acordar de um pesadelo e subir para a cama dos pais em busca de conforto. Mas havia apenas silêncio, e à medida que
os olhos se adaptavam à escuridão apercebeu-se de que a metade da cama do lado de Gus estava completamente vazia.
Esfregou os olhos e dirigiu-se para o corredor. Kate ressonava tranquilamente, e Chris - bem, a cama de Chris estava feita. A súbita percepção atingiu James abaixo
do esterno, uma dor física que o fez cambalear. Desceu as escadas, atraído por um zunido. Um leve brilho rosado emergia da marquise. James atravessou silenciosamente a cozinha, parando a alguns metros da porta da marquise.
Gus estava sentada no chão frio de ladrilhos, de costas encostadas à máquina de secar roupa, que ligara para abafar o som do seu choro. Tinha o rosto vermelho e manchado, o nariz a pingar, os ombros curvados e cansados como os de uma velha.
Nunca ficara bem a chorar. Soluçava como fazia tudo o resto com paixão e excesso. O facto de ter conseguido guardar estas emoções dentro de si durante tanto tempo era surpreendente para James.
Pensou em abrir a porta entreaberta e ajoelhar-se diante da mulher, envolvendo-a nos braços e ajudando-a a subir as escadas.
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Levantou a mão, acariciando a madeira da porta, planeando dizer alguma coisa que a acalmasse. Mas que sabedoria tinha ele para oferecer a Gus, se nem a si próprio prestava atenção?
James voltou a subir as escadas, meteu-se na cama, tapou a cabeça com a almofada, e passadas horas, quando Gus se enfiou debaixo dos lençóis, tentou fingir que não sentia o peso do desgosto dela, que jazia entre eles como uma criança, tão sólido que não conseguia contorná-lo para poder tocar nela.
Havia vedações altas de metal à volta da prisão, encimadas por espirais de arame farpado. Chris fechou os olhos, pensando com a tenacidade de uma criança que talvez
fosse capaz de bloquear toda aquela provação, para que não estivesse realmente a acontecer.
O xerife ajudou-o a sair do carro e conduziu-o até à porta da prisão. Um guarda prisional destrancou a pesada porta de aço para os deixar entrar; Chris observou-a ser trancada novamente.
- Trazes mais outro, Joe?
- São como pulgas - disse o xerife. - Estão sempre a aparecer. Aparentemente, todos acharam isto hilariante e riram durante
algum tempo. O xerife entregou um saco de plástico, dentro do qual estavam artigos que Chris reconhecia - a carteira, as chaves do carro, os trocos. Um segundo guarda agarrou nele.
- Pode preencher a papelada? Nós tratamos dele a partir daqui. O xerife foi-se embora sem sequer olhar para Chris. Sozinho
com dois homens que conhecia ainda pior do que o xerife, Chris começou novamente a tremer.
- Mãos de lado - disse um dos guardas. Colocou-se em frente de Chris, revistando-o do pescoço até à cintura e depois subindo por cada uma das pernas. O segundo guarda começou a catalogar os pertences de Chris.
- Vamos lá - o primeiro guarda agarrou Chris pelo cotovelo e conduziu-o à sala de admissão. Agarrou num placara, entregou-o a Chris e depois fê-lo pôr-se de pé contra
uma parede.
- Sorri - resmungou ele, e mflash disparou ao tirar a fotografia.
Fez Chris sentar-se a uma mesa, passando-lhe outra vez as pontas dos dedos pela tinta para tirar impressões digitais. Depois deu a Chris um pano para limpar as mãos
e colocou uma folha de papel em cima da mesa. Chris olhou para o questionário enquanto o guarda procurava um lápis.
- Preenche isto - disse ele.
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A primeira pergunta deixou Chris perplexo. "Tem ideias suicidas?" O psiquiatra sabia que não. O advogado pensava que sim. Hesitante, assinalou o "Sim." Depois apagou e respondeu "Não."
"Tem SIDA?"
"Tem algum problema médico actualmente?"
"Deseja consultar algum médico enquanto aqui permanecer?"
Chris mordeu a ponta do lápis. "Sim", assinalou. Depois escreveu à margem, "Dr. Feinstein".
Terminou o questionário e olhou para as respostas com a mesma atenção aos pormenores que dedicaria a um exame de admissão à faculdade. E se alguém mentisse? E se tivessem mesmo ideias suicidas, ou estivessem a morrer de SIDA e dissessem que não estavam?
Quem se daria ao trabalho de confirmar?
O guarda conduziu-o lá para cima, para uma zona de controlo cheia de pequenos monitores de televisão. Trocou algumas informações com o guarda que estava de serviço, o que não fez sentido para Chris, e depois levou-o para outra pequena sala. Quando a porta se fechou atrás dele, Chris estremeceu.
- Tens frio? - disse o guarda desapaixonadamente. - Tens sorte que este quarto tem roupas de graça - ficou à espera até Chris se levantar e depois entregou-lhe um fato-macaco azul. - Vá lá - disse ele. - Veste isso.
- Aqui? - perguntou Chris, envergonhado. - Agora?
- Não - disse o guarda. - Em Aruba. - Cruzou os braços.
"Não é nada de especial", disse Chris para consigo. Já se despira completamente um milhão de vezes no balneário em frente a outros rapazes. Um guarda prisional, e só para ficar de boxers - isso não era absolutamente nada. Mas quando fechou o fecho do fato-macaco até ao pescoço, as mãos tremiam-lhe tanto que as escondeu atrás das costas.
- Muito bem - disse o guarda. - Vamos.
Escoltou Chris por um estreito corredor, até à divisão de segurança máxima. Chris tinha de esforçar mais os pulmões a cada respiração. Seria imaginação sua, ou o ar dentro da prisão era mais rarefeito do que lá fora? O guarda destrancou uma pesada porta e conduziu Chris por uma passagem estreita e cinzenta. Havia celas individuais, duas lado a lado ao longo da passagem, mas as portas com grades estavam abertas. Ao fundo do conjunto de celas, havia uma televisão. Estava a dar o telejornal.
De repente ouviu-se um apelo percorrer o ar, que atravessou as grades abertas e as passagens vazias.
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- Trancar celas - gritou a voz, e Chris ouviu o ruído dos pés dos prisioneiros regressarem para as celas devagar.
- Pronto - disse o guarda, levando Chris para uma cela vazia.
- Catre de baixo.
Havia mais três pessoas naquele conjunto de celas. Um homem pequeno de olhos negros minúsculos e encovados e barbicha entrou na cela ao lado da de Chris e sentou-se no beliche. Ao fundo da passagem, a televisão ficou negra.
O guarda voltou a fechar a porta da cela de Chris. As luzes diminuíram de intensidade, mas não se apagaram. Gradualmente, toda a prisão ficou em silêncio, à excepção da respiração colectiva dos reclusos.
Chris deitou-se no beliche de baixo. À medida que os olhos se adaptavam à escuridão conseguiu distinguir a forma de um guarda a passar do outro lado das grades, o brilho do sorriso do homem.
Chris virou-se para o lado de forma a ver apenas a parede de betão que o confinava. Meteu o fato-macaco na boca para abafar o som, e chorou.
Quando Michael desceu para a cozinha na manhã seguinte, não acreditava no que os seus olhos viam. Melanie estava junto do fogão, com uma espátula numa das mãos e uma pega na outra. Viua virar uma panqueca e a colocar uma madeixa de cabelo atrás da orelha e pensou: "Ah, sim. Foi com esta pessoa que me casei."
Fez um ruído intencional, para que ela pensasse que acabara de entrar. Virando-se, Melanie esboçou um sorriso radioso.
- Oh, ainda bem - disse ela. - Ia agora mesmo acordar-te.
- Para comer, espero.
Melanie riu. Era um som tão pouco familiar que tanto ela como Michael pararam por um momento. Então, Melanie virou-se energicamente e agarrou numa travessa de panquecas. Ficou à espera até Michael ocupar o seu lugar habitual à mesa, e depois colocou-a em frente dele, nunca tirando os olhos dos seus.
- Trigo mourisco - disse ela suavemente.
- Por acaso - disse ele -, chamo-me Michael. - Melanie sorriu-lhe, e, sem pensar, Michael colocou-lhe o braço em volta das coxas e aproximou-a de si, encostando-lhe a cabeça à barriga. Sentiu a mão dela afagar-lhe os cabelos. - Senti a tua falta - murmurou ele.
- Eu sei - disse Melanie. Deixou a mão ficar mais um instante, depois tirou-a. - Precisas de xarope - disse ela.
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Tirou uma frigideira do fogão, com o xarope de ácer a borbulhar, e deitou-o por cima das panquecas de Michael.
- Pensei em sairmos hoje de manhã.
Michael meteu na boca uma garfada suculenta do seu pequeno-almoço. Tinha de examinar uma ninhada de cachorros na cidade vizinha, observar um cavalo com cólicas e
tratar um lama. Mas já não via Melanie assim tão... bem, assim tão composta há dias.
- Claro - disse ele. - Só tenho de telefonar a algumas pessoas para adiar as consultas.
Melanie sentou-se na cadeira. Quando Michael estendeu a mão, ela colocou a sua na dele.
- Seria bom - disse ela.
Acabou de comer e foi para o escritório fazer os telefonemas. Quando regressou, Melanie estava diante do espelho do vestíbulo, aplicando uma fina camada de batom na boca. Pressionou os lábios e viu o reflexo de Michael.
- Estás pronto? - perguntou ela.
- Claro - disse ele. - Aonde vamos? Melanie deu-lhe o braço.
- Se te dissesse - disse ela - não seria uma surpresa. Michael adivinhou em silêncio para onde ela o levaria. Para a
sepultura de Emily não; Melanie não faria disso um segredo. Para comer qualquer coisa também não, claro, embora tivessem passado pela rua principal de Bainbridge,
com todos os restaurantes. Às compras também não, era muito cedo. À biblioteca também não, uma vez que ficava na direcção oposta.
Mas então Melanie saiu da cidade. Passaram por campos áridos e quintas leiteiras, longos troços de estrada sem absolutamente nada. Um pequeno letreiro verde anunciava
que a cidade de Woodsville ficava a dezasseis quilómetros de distância.
Mas que raio haveria em Woodsville?
Já lá estivera uma vez, para abater um cavalo que partira uma pata. Se passasse pela zona mais importante da cidade, já não se lembraria dela.
Melanie passou por um edifício de tijolo, atrás do qual espreitava um tufo de arame farpado. E Michael lembrou-se de que a prisão do condado se situava em Woodsville. Convenientemente ao fundo da rua onde ficava o tribunal do condado.
- Aqui há uma coisa - disse ela pausadamente - que acho que devias ver.
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Chris já estava acordado quando a porta da cela se abriu com um guincho às 5h45 da manhã. Parecia que tinha areia debaixo das pálpebras, por muito que esfregasse os olhos. O fecho do fato-macaco magoava-lhe a pele e estava esfomeado.
- Comida - disse o guarda, enfiando um tabuleiro dentro da cela.
Chris olhou para os pedaços pouco apetitosos que estavam no tabuleiro e depois para a passagem. O homem de olhos negros olhava para ele da outra cela. O homem afastou-se e desapareceu por trás de uma cortina de duche.
Chris comeu, lavou os dentes com a escova, que recebera na sala de admissão na noite anterior, e agarrou na lâmina de barbear descartável que um guarda lhe colocara na cela. Hesitando, saiu da cela e dirigiu-se para o duche e o lavatório que ficavam ao fundo da passagem. Chris fez a barba enquanto esperava que o outro homem acabasse de tomar duche, semicerrando os olhos para um espelho cujo reflexo era tão nítido como o de uma folha de alumínio. Quando o outro homem saiu, Chris acenou com a cabeça e entrou.
Fechou a cortina mas pelo canto conseguia ver o homem de olhos negros a ensaboar o rosto em frente ao lavatório, de toalha à volta da cintura enquanto se barbeava em redor da barbicha. Chris despiu-se e pendurou as roupas no varão da cortina. Depois abriu a água e ensaboou-se, fechando os olhos e tentando fingir que acabara de nadar uns quatrocentos metros mariposa absolutamente incríveis, e estava a preparar-se para ir para casa depois da competição.
- És acusado de quê?
Chris tirou a água dos olhos, pestanejando.
- Desculpe? - disse ele.
Através da abertura entre a cortina do duche e a parede, Chris viu o homem apoiado no lavatório.
- Por que razão estás aqui?
Molhados, os cabelos chegavam-lhe quase aos ombros. Era dessa forma que Chris conseguia distinguir os que estavam em prisão preventiva dos reclusos - aqueles que estavam a cumprir pena tinham cabelos curtos com corte à militar. Como os seus já eram.
- Não devia estar aqui - disse Chris. - Foi um engano. O homem riu.
- Isso dizes tu e toda a gente. Para uma prisão, há aqui muita gente que não fez nada de nada.
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Chris desviou o olhar e ensaboou o peito.
- Lá por não me veres, isso não significa que eu me tenha ido embora - disse o homem.
Sacudindo água dos cabelos, Chris fechou a torneira.
- O que fizeste tu?
- Cortei a cabeça da minha mulher - disse o homem desapaixonadamente.
De repente, Chris sentiu os joelhos cederem, parecia-lhe que não seria capaz de manter-se de pé, por isso encostou-se à parede do duche. Não estava ao lado de um assassino na prisão do condado. Não ia ser acusado de homicídio. Enrolou a toalha à volta da cintura às cegas, agarrou nas roupas, e voltou a cambalear para a cela, onde se sentou no beliche e colocou a cabeça entre os joelhos para não vomitar.
Queria ir para casa.
Um guarda dirigiu-se à sua cela para ir recolher a lâmina que lhe tinha dado.
- O teu advogado está aqui - disse ele. - Trouxe-te roupas. Veste-te que nós levamos-te lá para cima para trocares de roupa.
Chris acenou com a cabeça, à espera que ele ficasse ali para vê-lo vestir-se de novo, mas o guarda saiu. As portas das celas estavam abertas. O homem que decapitara a mulher estava a ver o Today na televisão ao fundo da passagem.
- Estou, hum... pronto - disse ele a outro guarda, que o acompanhou até à porta que conduzia para fora do recinto.
- Boa sorte - gritou o homem dos olhos negros, ainda a olhar para o programa da televisão.
Chris parou, olhou por cima do ombro.
- Obrigado - disse num tom suave.
As roupas estavam à sua espera na sala de admissão. Chris reconheceu o blazer Brooks Brothers que comprara com a mãe em Boston. Foram lá especificamente para comprar uma roupa que pudesse usar nas entrevistas para a universidade.
Em vez disso, ia usá-lo na sua acusação formal.
Vestiu uma camisa branca e calças de flanela cinzenta, calçou os sapatos de cabedal macio. Colocou a gravata à volta do colarinho da camisa e tentou fazer o nó, mas não conseguiu acertar. Estava habituado a ver-se ao espelho enquanto o fazia, e na sala de admissão não havia nenhum.
Contentou-se com a parte de trás da gravata um pouco maior do que a da frente.
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Depois vestiu o blazer e dirigiu-se ao guarda que estava à espera, a preencher alguns papéis. Entraram em silêncio numa sala que Chris nunca vira antes, e o guarda abriu a porta.
Jordan McAfee estava à espera na sala de interrogatório.
- Obrigado - disse ele ao guarda, fazendo sinal a Chris para se sentar do outro lado da mesa. Ficou à espera até a porta se fechar atrás do guarda. - Bom-dia - disse ele. - Como passaste a noite?
Sabia perfeitamente como ele tinha passado; qualquer idiota seria capaz de olhar para as olheiras de Chris e perceber que não tinha dormido nada. Mas Jordan ficou à espera para ver o que o cliente diria. Indicar-lhe-ia bastante bem a resistência de Chris durante o resto do longo percurso.
- Bem - disse Chris sem pestanejar. Jordan reprimiu um sorriso.
- Lembras-te do que te disse sobre hoje? Chris acenou com a cabeça.
- Onde estão os meus pais?
- No tribunal, à espera.
- Foi a minha mãe que lhe levou as roupas?
- Sim - disse Jordan. - Belo traje. Muito tradicional, com muita classe. Vai ajudar a estabelecer a tua imagem junto do juiz.
- Eu tenho uma imagem? - perguntou Chris. Jordan acenou com a mão.
- Tens. Branco, classe média alta, atleta, estudante e um bom rapaz - fixou o olhar em Chris. - Ao contrário de um reles assassino marginal - bateu com o lápis no bloco de notas à sua frente, no qual só escrevera coisas sem sentido. Nas acusações formais, um advogado de defesa entrava a frio, como um gato pronto a cair de
pé independentemente de como era atirado. Tinha a acusação contra o seu cliente, mas não fazia ideia do que o delegado do Ministério Público pensava até poder ver
os documentos após a acusação formal.
- Segue as minhas indicações hoje. Se precisar que faças alguma coisa, escrevo no bloco. Mas isto vai ser bastante simples.
- Está bem - disse Chris. Levantou-se, sacudindo as pernas como estivesse a preparar-se para se posicionar na linha de partida, antes de uma corrida. - Vamos - disse
ele.
Jordan olhou para cima surpreendido pois não estava à espera daquilo.
- Não podes entrar no tribunal comigo - disse ele. - O xerife é que vai levar-te para lá.
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- Oh - disse Chris, voltando a sentar-se na cadeira.
- vou estar lá à espera - apressou-se Jordan a acrescentar. - E os teus pais também.
- Pois - disse Chris.
Jordan voltou a guardar o bloco de notas dentro da pasta. Olhou para Chris, franzindo o sobrolho para a gravata.
- Vem cá - disse ele, e quando Chris se levantou ajeitou a gravata para que assentasse bem.
- Não consegui fazer bem o nó - disse Chris. - Não havia espelho.
Jordan não disse nada. Deu uma palmadinha no ombro de Chris e acenou a cabeça perante a sua aparência geral. Depois saiu da sala, deixando Chris a olhar para a porta aberta, para o corredor que conduzia para fora da prisão e para o guarda que estava entre os dois.
Era o dia dos crimes graves no Tribunal do Condado de Grafton.
Num estado rural como o New Hampshire, os crimes graves eram bastante raros, por isso as acusações formais deste tipo eram reunidas em grupos com o intervalo de algumas semanas. Visto serem mais interessantes do que os das pequenas infracções, jornalistas locais, fãs do tribunal e estudantes de direito costumavam assistir aos procedimentos.
Mesmo assim, os Harte estavam sentados na primeira fila, por trás da mesa da defesa. Tinham chegado ao tribunal pouco depois das seis da manhã, "para prevenir", dissera Gus. As mãos dela estavam cruzadas no colo com tanta força que não sabia se seria capaz de as separar. James estava sentado ao lado dela, a olhar para a juíza. Era uma mulher de meia-idade com aspecto de avó e uma permanente mal feita. com certeza, pensou Gus, que uma pessoa com aquele aspecto lançaria um olhar para uma criança como Chris e impediria que esta catástrofe fosse mais longe.
Gus inclinou-se para Jordan McAfee, que estava a organizar documentos no colo.
- Quando vão trazê-lo? - perguntou ela.
- A qualquer momento - disse Jordan.
James virou-se para o homem que estava ao seu lado.
- É o Times? - perguntou. Quando o homem lhe ofereceu o jornal abandonado, James sorriu e agradeceu-lhe.
Gus ficou a olhar para o marido, estupefacta.
- Como és capaz de ler? - disse ela. - Numa altura destas?
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James dobrou metodicamente a primeira secção. Passou com a unha do polegar pela dobra e, depois, repetiu o movimento.
- Se não ler - disse pausadamente -, vou dar em doido. Começou a examinar a primeira página.
Gus sabia que estavam ali outras mulheres como ela; mulheres que podiam não ter um fato de alta-costura nem brincos de diamantes como ela, mas que tinham um filho que ia ser levado para aquela mesa como Chris, acusado de algo demasiado horrível para se imaginar. Algumas daquelas crianças cometeram realmente crimes. Nesse aspecto achava que tinha sorte.
Nem conseguia imaginar como seria para aquelas mães, cujos filhos intencionalmente atearam fogo a casas, ou esfaquearam inimigos, ou violaram jovens mulheres. Não conseguia imaginar como seria ter consciência de que se não tivesse dado à luz, aquela pequena quantidade de mal poderia nunca ter sucedido.
Ao ouvir o ruído de saltos altos no corredor, Gus virou a cabeça. Melanie e Michael Gold sentaram-se nos lugares do outro lado. Melanie olhou para Gus com um olhar vago, e Gus sentiu um aperto no peito. Estava à espera de desdém; não se apercebera de que a indiferença podia ser muito mais dolorosa.
Um oficial de justiça abriu a porta do lado direito ao fundo da sala de audiências e conduziu Chris lá para dentro. Tinha as mãos algemadas à frente, presas a uma corrente à cintura. Tinha os olhos baixos. Jordan levantou-se imediatamente e dirigiu-se para a mesa da defesa, ajudando Chris a sentar-se na cadeira ao lado dele.
A procuradora-geral adjunta era uma jovem de cabelos negros curtos e com um andar nervoso. A voz dela irritava Gus. Era grave e séria; fazia-lhe lembrar um pau de canela a ser raspado. A juíza Hawkins empurrou os óculos para cima na cana do nariz.
- O que se segue? - perguntou ela.
O oficial de diligências leu: "O Estado do New Hampshire contra Christopher Harte. O Grande Júri 5327 entregou uma acusação formal no dia dezassete de Novembro de 1997, por homicídio qualificado. Christopher Harte é acusado de atingir voluntária, consciente e deliberadamente Emily Gold com um tiro na cabeça provocando intencionalmente a sua morte."
As algemas tilintaram quando Chris se balançava. Ao ouvir as palavras em voz alta, e o seu nome ligado a elas, sentiu novamente uma vontade horrível, efervescente de rir, como acontecera na cerimónia em memória de Em. Lembrou-se do Dr. Feinstein a dizer-lhe que algumas emoções fortes estavam muito interligadas, e interrogou-se qual seria o lado inverso do pânico.
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Ouviu-se uma gargalhada áspera na galeria e, por um instante, Chris achou que tinha sido realmente ele - que a tivesse deixado escapar por entre os dentes cerrados.
Mas quando virou a cabeça, como toda a gente, viu a mãe de Emily ainda a rir.
A juíza olhava para Chris.
- Sr. Harte, como se declara?
Chris olhou para Jordan, que acenou com a cabeça.
- Inocente - disse ele, num fio de voz.
Atrás dele, Melanie Gold soltou um grunhido de desdém:
- Inocente de quê?
A juíza semicerrou os olhos para Melanie.
- Minha senhora - disse ela -, tenho de pedir-lhe para ficar calada.
Durante a admoestação, Gus não olhou para Melanie. Curvara cada vez mais a cabeça em direcção ao colo ao longo da leitura da acusação formal. Homicídio voluntário
era uma coisa dos romances policiais, das séries de televisão. Não acontecia na vida real. Não acontecia na vida dela.
- O estado deseja ser ouvido relativamente à caução?
A procuradora-geral adjunta levantou-se.
- Meritíssima - disse Barrie Delaney - dada a gravidade da acusação, pedimos que o arguido seja detido sem caução.
Jordan McAfee objectou ainda antes que ela tivesse terminado.
- Meritíssima, isso é ridículo. O meu cliente é um bom aluno, um atleta respeitado. A família está bem inserida na comunidade. Tem poucos recursos próprios; não há risco de fuga.
- Como é possível - gritou Melanie - que ele possa sair em liberdade? A minha filha não pode.
A juíza bateu com o martelo.
- Oficial de justiça, acompanhe esta senhora para fora do tribunal. Gus ouviu o ruído dos saltos altos de Melanie até ela sair.
- Meritíssima - disse a promotora de justiça - tendo em conta a sentença que acompanha a acusação de homicídio qualificado, existe sem dúvida um risco de fuga.
- Meritíssima - retorquiu Jordan - a acusação pressupõe erroneamente que haverá uma condenação.
- Está bem, está bem - a juíza pressionou as têmporas e fechou os olhos. - Doutor, deixe isso para o julgamento. Estamos a falar de homicídio qualificado; o arguido permanecerá detido sem caução.
- Gus respirou fundo, mas não conseguiu obter ar suficiente. Sentiu a mão de James deslizar-lhe para o colo para apertar a sua com força.
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Um oficial de justiça dirigiu-se a Chris para levá-lo para fora da sala de audiências.
- Espere - disse Chris, olhando para trás por cima do ombro. Olhou para a mãe, para o advogado. - Para onde vou agora?
Chris começou a tremer todo. As algemas magoavam-lhe os pulsos e a corrente que tinha à cintura tilintava a cada passo. Viu-se de novo na cela do gabinete do xerife, no tribunal do condado, um delegado a trancar a porta depois de sair.
- Desculpe - disse Chris, reunindo todas as forças para chamar o homem que já ia embora. - Para onde vou agora?
- De volta - disse o delegado.
- Para o tribunal?
O homem abanou a cabeça.
- Para a prisão.
Numa pequena cafetaria do tribunal do condado, Gus aproximou-se de Jordan McAfee.
- Nem sequer disse nada - acusou-o impulsivamente. - Nem sequer tentou tirá-lo da prisão.
Jordan estendeu as mãos à sua frente, aplacando a raiva dela.
- Foi uma acusação formal normal para uma acusação desta natureza; não podia fazer quase nada. Uma condenação por homicídio qualificado implica uma sentença de prisão perpétua. A procuradora-geral achou que bastava para que Chris quisesse fugir. Ou para que a senhora quisesse ajudá-lo a fugir - hesitou por um instante. - Não tem nada a ver com o Chris. Os juizes simplesmente não concedem cauções aos acusados de homicídio.
Gus, de rosto pálido, ficou em silêncio. James sentou-se para a frente, de mãos cruzadas.
- Tem de haver alguém a quem possamos telefonar - disse ele.
- Recorrer a influências. com certeza que isto não é justo, ser inocente e ter de ficar na prisão até ao julgamento.
- Em primeiro lugar - disse Jordan -, é assim que funciona o sistema legal. Em segundo lugar, é do interesse do Chris que o julgamento só se realize daqui a alguns
meses.
- Meses? - sussurrou Gus.
- Sim, meses - respondeu Jordan, sem pestanejar. - Não vou apresentar nenhuma moção para acelerar o julgamento: o tempo que ele ficar à espera de figurar no registo é o mesmo que eu terei para arranjar uma defesa.
- O meu filho - disse Gus - vai viver com criminosos durante meses?
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- Vai ficar junto dos outros detidos na prisão, e tenho a certeza de que com o comportamento dele será promovido para a segurança média. Não vai misturar-se com os condenados a cumprir pena, só com as outras pessoas que estão a aguardar julgamento.
- Oh - proferiu Gus. - Quer dizer como o homem que violou a criança de doze anos, ou o tipo que abateu a tiro o dono da bomba de gasolina durante o roubo, ou os outros cidadãos cumpridores que foram formalmente acusados hoje de manhã.
- Gus - disse Jordan calmamente -, qualquer um desses homens pode estar a ser acusado injustamente, tal como acha que o seu filho está a ser.
- Deixe-se disso! - disse Gus, levantando-se tão bruscamente que derrubou a cadeira. - Olhe para eles. Olhe só para eles comparados com o Chris.
Jordan já defendera a sua dose de clientes abastados, todos eles com uma imagem impecável e tão culpados por dentro. Lembrou-se do Assassino do Colégio, dos irmãos Menendez, de John Du Pont - todos eles ricos, todos eles com um aspecto encantador. Mas disse:
- O tempo vai passar mais depressa do que julga.
- Para si - disse Gus. - Para o Chris não. Que consequências é que isto vai ter nele? Se queria suicidar-se há uma semana...
- Podemos apresentar uma moção para receber visitas do psiquiatra em Grafton - disse Jordan.
- E a escola?
- Vamos resolver esse assunto.
Olhou para James, que observava a mulher à distância, por trás de partes iguais de desinteresse e apreensão, derivados da crença de que qualquer partícula de emoção revelada faria rachar aquela máscara de controlo cuidadoso, deixando-o feito em pedaços.
- com licença - disse James numa voz pastosa, saindo da cafetaria.
Gus dobrou-se bruscamente para a frente, abraçando os joelhos.
- Tenho de vê-lo. Tenho de entrar para vê-lo.
- Pode fazer isso - disse Jordan. - Têm um horário de visita semanal - recostou-se e suspirou. - Olhe, Gus - disse ele -, vou fazer tudo o que for possível para
descobrir o que posso fazer para tirar o Chris da prisão para sempre. Quero que acredite nisso.
Gus acenou com a cabeça.
- Está bem.
- Está bem - disse Jordan suavemente. - Deixe-me acompanhá-la até lá fora.
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Gus abanou a cabeça rigidamente.
- vou ficar aqui durante mais algum tempo - disse ela, balançando-se para trás e para a frente empoleirada na cadeira.
- Bem. Está bem - Jordan levantou-se. - Telefono-lhe assim que tiver alguma informação.
Gus acenou com a cabeça distraidamente, a fitar a mesa. A sua voz, quando se ouviu, era tão suave que Jordan pensou tê-la imaginado. Virou-se e viu-a observá-lo.
- O Chris sabe?
Percebeu que ela estava a perguntar se o filho compreendia que ficaria na prisão durante vários meses. Mas Jordan ouviu a pergunta ao seu nível mais simples: "O
Chris sabe?" e pensou que talvez Chris fosse o único que soubesse.
O oficial de justiça levara Melanie para um local a vários metros da porta da sala de audiências. Não a incomodava o facto de ter sido expulsa do tribunal depois
de ter feito uma figura triste. Não queria gritar; as palavras simplesmente irromperam de dentro dela como um estranho e vingativo ataque da Síndrome de Tourette. Da primeira vez que falara, sentiu algo ceder dentro do peito, como a mola da corda de um velho relógio que fora demasiado apertada. Da segunda vez, foi assolada por uma probidade que se assemelhava aos momentos estonteantes após dar à luz, quando se sentira simultaneamente exausta e suficientemente poderosa para mover montanhas. Nem sequer ficara perturbada por ver Chris na sala de audiências. Melanie observara as algemas nos pulsos dele, as zonas vermelhas onde roçaram na pele e a deixaram em ferida. "Ainda bem", pensara.
Agora estava encostada à parede de tijolo, à espera que a acusação formal terminasse para que Michael viesse ter com ela e lhe contasse o que tinha acontecido. Estava de olhos fechados, com a cabeça inclinada para trás, quando a porta do tribunal se abriu. Um jovem de blusão de camurça dirigiu-se a ela e deteve-se a cerca de um metro. Tirou um maço de Camel de dentro do casaco e ofereceu-o.
Melanie não fumava desde 1973. Tirou um.
- Obrigada - disse, sorrindo.
- Parecia que estava a precisar de um remédio.
Um remédio. Precisava. Mas no sentido mais elementar da palavra.
- Vi-a lá dentro - disse o homem, estendendo a mão. - Chamo-me Lou Ballard.
- Melanie Gold.
- Gold - disse Lou, assobiando. - Deve ser a mãe da vítima.
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Melanie acenou com a cabeça.
- O que explica o facto de estar ali dentro.
- Sou correspondente do Grafton County Gazette. Melanie ergueu as sobrancelhas, inalando profundamente.
- Ronda dos tribunais?
- Nem mais - riu. - De certeza que já viu os meus artigos enterrados na página dezoito por trás do mapa da meteorologia.
Melanie pisou o cigarro com o salto do sapato.
- A juíza já deliberou?
- A caução foi recusada. Melanie expirou.
- Uau - disse ela num tom suave. Sentia-se como se flutuasse a dois centímetros do chão. - Acho que preciso de outro cigarro disse ela.
Lou voltou a meter a mão no bolso do blusão.
- Vamos fazer uma troca justa? Você fica com os cigarros - deu-lhe o maço inteiro. - E eu fico com uma história de primeira página.
Chris voltou a vestir o fato-macaco na sala de admissão da prisão. Um guarda conduziu-o ao recinto onde passara a noite. A televisão ainda estava ligada e estavam
dois homens na zona. Um, que parecia estar completamente bêbedo, estava a vomitar na sanita da cela de Chris.
Sem prestar atenção ao som nem ao cheiro, Chris deitou-se no colchão onde dormira na noite anterior. Ficou ali durante alguns minutos, enrolado sobre si próprio.
- Quero ir para casa - disse ele. O bêbedo olhou para Chris com olhos enevoados. - Quero ir para casa.
Levantou-se, saindo da cela e dirigindo-se para o fundo do recinto onde o guarda estava atrás de uma porta de metal trancada. Como a porta de uma merda de uma jaula.
Agora ele era um animal. Chris agarrou-se às grades e sacudiu-as com força.
O guarda ficou a olhar para ele. Os outros reclusos ignoraram-no; alguns soltaram risinhos abafados. Chris voltou a sacudir as grades, mais uma vez, até as mãos
lhe doerem de agarrá-las. Caiu de joelhos e ficou assim durante bastante tempo.
Então Chris levantou-se. De olhos secos, passou pela sua cela, dirigindo-se para a televisão ao fundo da passagem. Sentou-se numa cadeira atrás do homem de olhos
negros e barbicha. Ninguém falou com ele; ninguém sequer deu sinal de ter ouvido o seu ataque. Estava a dar Sally Gessy Raphaêl. Chris abriu muito os olhos e ficou a fitar o ecrã até não ver absolutamente nada.
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PASSADO
Abril de 1996
- Nadadores, aos vossos lugares.
Emily inclinou-se para a frente no seu assento no meio das bancadas do liceu. Viu Chris estalar o elástico dos óculos duas vezes, para dar boa sorte, e sacudir os
músculos dos braços e das pernas. Depois curvou os dedos dos pés na beira da linha de partida. Ao dobrar-se para baixo, virou a cabeça e encontrou logo o rosto de Emily num mar de outros rostos. Piscou-lhe o olho.
Ouviu-se uma buzina e Chris lançou-se à água como uma bala, deslizando debaixo da superfície para emergir a meio da piscina. Nadou. Chegou à marca dos cinquenta metros antes de qualquer outro nadador.
Depois deu a volta, com as plantas dos pés a cintilarem prateadas ao acelerar para a meta.
O ginásio enchia-se dos gritos da multidão, e Emily deu por si a sorrir. Chris chegou à parede numa erupção de sons. Acima dos aplausos, o aluno que anunciava a competição entoou o tempo de Chris.
- Um recorde pessoal - exultou ele - e um novo recorde do liceu para os cem metros mariposa!
Ofegante, Chris saiu da piscina. Sorria de orelha a orelha. Emily levantou-se e abriu caminho por entre as outras pessoas que estavam sentadas nas bancadas. Descendo o corredor, dirigiu-se lá para baixo, onde a próxima competição estava prestes a iniciar-se.
Chris abraçou-a e escondeu o rosto no pescoço dela. Emily sentia o esforço do coração e dos pulmões dele. Imaginou a multidão a observá-los enquanto se abraçavam. O facto de toda a gente saber que alguém como ele escolhera alguém como ela era uma das coisas que adorava por ser namorada de Chris.
Infelizmente, também havia coisas que detestava.
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Carlos Creighton, que era um nadador do estilo bruços quase tão lendário como Chris era um nadador do estilo mariposa, tinha o cacifo ao lado do dele.
- Bela prova - disse Carlos quando Chris emergiu debaixo de uma toalha, com os cabelos todos espetados.
- Obrigado. Tu também. Carlos encolheu os ombros.
- Claro, provavelmente também teria sido mais rápido se tivesse uma miúda gira à minha espera depois da meta.
Chris esboçou um sorriso tenso. Não era nenhum segredo que ele e Em namoravam - já há três anos - mas isso conduzia a suposições que não eram necessariamente verdadeiras. Como o facto de Emily praticar sexo, se não por que razão teria Chris ficado com ela durante tanto tempo?
Só que se Chris tivesse resolvido dizer a verdade a Carlos, faria figura de idiota.
- Aposto que vais ter sorte hoje à noite - disse Carlos. Chris vestiu a camisola.
- Quem sabe - disse ele, de forma suficientemente espontânea para parecer modesto.
- Bem, quando ela se fartar de ti dá-lhe o meu número de telefone - disse Carlos.
Chris abotoou a braguilha e pendurou a mochila num ombro.
- É melhor esperares sentado - disse ele.
Emily sabia que a sua relação com Chris era muito diferente da maioria das relações entre adolescentes que via na escola. Em primeiro lugar, não era uma relação fortuita - conhecia Chris desde que nascera. Em segundo lugar, era amor verdadeiro, e não uma paixão; Chris era praticamente da sua família.
Era por isso que Emily não conseguia compreender o que se passava consigo.
Quando ela e Chris começaram a namorar, há dois anos, a exploração fora espantosa. Não havia maneira mais segura de entrar na intimidade do que com um bom amigo. Mas depois algo mudara. As mãos de Chris moviam-se; Emily dava por si a afastá-lo. De início foi por medo, que depois se transformou em curiosidade. O problema é que a curiosidade se transformou noutra coisa.
Em não sabia como era o sexo, mas supunha que não fosse a sua pele a encolher-se debaixo da dele, o estômago às voltas, a
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cabeça a latejar dizendo que aquilo não era certo. De cada vez que o corpo a traía daquela forma, ficava envergonhada. Era evidente que Chris a amava; claro que
queria fazer amor com ela. E com certeza isso era certo - por amor de Deus, ouvia o seu próprio nome ligado ao dele desde antes de ser capaz de falar. Não conseguia
imaginar expor-se assim e ficar tão vulnerável diante de ninguém excepto Chris. Infelizmente, também não conseguia ver como seria capaz de se expor assim e ficar
tão vulnerável diante de Chris.
Ele gritava com ela quando se afastava dele; uma vez até a chamara de provocadora. Mas Emily não se importava, porque a alternativa seria Chris perguntar-lhe o que
se passava. Quando isso aconteceu, ela ficou calada, sem querer e sem ser capaz de magoá-lo com a verdade.
Passando a escova pelos cabelos com violência, Emily afastou-se do espelho do quarto. O jantar fora tranquilo, o pai estava fora a dar consultas e a mãe estava concentrada
no telejornal. Pousou a escova em cima da cama e agarrou nos livros de matemática.
- Onde pensas que vais, quando amanhã tens aulas? - perguntou-lhe a mãe, assim que Emily entrou na cozinha de casaco vestido.
- A casa do Chris - disse ela. - Para estudar.
- Oh. Está bem - Melanie carregou em vários botões na máquina de lavar loiça; ligou-se com um zumbido. - Telefona quando quiseres vir para casa. Não te quero a andar
pelos bosques à noite.
Emily acenou com a cabeça e fechou o casaco. Ainda estava frio para Abril. Sentiu a mão da mãe pousar-lhe no ombro.
- Sentes-te bem?
- Acho que sim - ergueu os olhos, fitando a mãe, desejando que Melanie fosse capaz de juntar as peças que Emily não era capaz de encaixar sozinha. - Se fosse outra
pessoa, e não o Chris, deixavas-me sair?
Melanie afagou os cabelos da filha.
- Provavelmente não - disse ela, sorrindo. - Mas para quê falar sobre uma coisa que não vai acontecer?
Por um instante ambos ficaram à porta do quarto de Chris, com medo de entrar.
Chris engoliu. Como nunca reparara que tinha tão pouca mobília? A cómoda, a pequena secretária e aquela cama.
- Porque não nos sentamos no chão? - sugeriu ele. Aliviada, Emily baixou-se e começou imediatamente a espalhar
os apontamentos.
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- Acho que a McCarthy vai tentar tramar-nos com as provas. Por isso achei que podíamos rever algumas... - interrompeu-se quando Chris se inclinou para beijá-la.
- Devíamos estar a estudar
- sussurrou ela.
- Eu sei. Mas tinha de fazer isto. A boca de Emily contorceu-se.
- Tinhas.
- Nem podes imaginar como - disse Chris. Sentou-se atrás dela, curvando-se para acompanhar as formas do corpo dela, uma mão grande pousada de forma protectora nas suas costelas.
Disto ela gostava. De estar perto de Chris, e de ser abraçada e, bem, de estar assim. Era a outra parte que a incomodava.
Ficou a olhar para uma página de gráficos cuidadosamente impressa, contorcendo-se devido ao que Chris estava a fazer-lhe. Sentia os dentes dele a roçarem-lhe os tendões do pescoço. Emily pensou na curva sinuosa nos seus trabalhos de casa: uma metade a debruçar-se para cima, a outra a inclinar-se para fora.
O chão; parecera ser uma boa ideia. Monástico. Mas deitada de lado, as curvas e sinuosidades do corpo de Emily tornavam-se mais notórias. O facto de Emily num momento poder ser tão familiar como a sua própria irmã e no momento seguinte um mistério não deixava de maravilhar Chris.
Não parava de pensar no que Carlos lhe dissera. Provavelmente toda a gente achava que ele e Emily praticavam sexo. Era praticamente um facto consumado que se casariam um dia, por isso qual era o problema? Não era propriamente essa a única razão por que ele queria estar com Emily. Ela com certeza sabia isso.
Ela deixou-o beijá-la. Às vezes, deixava-o enfiar uma mão debaixo da camisola. Ele nunca tentara nada abaixo da cintura. E ela também não.
Chris aproximou-se mais atrás dela e começou a beijar-lhe o pescoço. Ele torceu-se no seu abraço.
- Não vamos estudar nada, pois não? Ele abanou a cabeça.
- Eu estudei ontem à noite - admitiu ele.
- Que maravilha - resmungou Emily, virando-se para olhar para ele. - E o que é que eu vou fazer?
Ele ia dizer: "Estudas amanhã." Mas as palavras saíram-lhe mal, e quando deu por si tinha agarrado no pulso de Emily colocando a mão dela entre as pernas.
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- Devias tocar-me - disse ele.
Por um momento, os dedos dela enrolaram-se em volta dele. Chris fechou os olhos, à deriva. Depois a mão dela ergueu-se bruscamente, a tremer. Emily sentou-se rapidamente.
- Eu... eu... não consigo - sussurrou, virando o rosto. Estupefacto - ela estava a chorar? - Chris ajoelhou-se.
- Em - disse ele suavemente. - Desculpa - com medo de lhe tocar, estendeu os braços. Ela olhou para ele, de olhos muito abertos e húmidos. Demorou algum tempo, mas
depois foi para junto dele.
- Esta é a época do ano de que gosto mais - anunciou Gus. Estava sentada no alpendre de Melanie, a beber limonada, com uma temperatura demasiado elevada para a época a derreter a última neve do Inverno. - Nada de moscas negras, nada de mosquitos, nada de neve.
- Lama - disse Melanie, de olhos fixos em algo por trás das árvores. - Imensa lama.
- Sempre gostei de lama - disse Gus. - Lembras-te como costumávamos deixar a Em e o Chris rebolarem nela como bacorinhos?
Melanie riu.
- Lembro-me de limpar terra na banheira - disse ela. As duas mulheres olharam para a via de acesso.
- Eram bons tempos - suspirou Melanie.
- Oh, não sei. Eles ainda rebolam... só que não é pelas mesmas razões.
Gus bebeu um pouco da sua bebida.
- Apanhei-os no quarto do Chris uma destas noites.
- A fazerem o quê?
- Bem, eles não estavam propriamente a fazer nada.
- Então como sabes?
- Sei - Gus ergueu as sobrancelhas. - Não achas?
- Não tenho a certeza, como tu - disse Melanie.
- Bem, e se estiverem? De qualquer forma, vão ter relações sexuais um dia.
- Sim - disse Melanie devagar -, mas não tem de ser aos quinze anos.
- Dezasseis.
- Errado. O Chris tem dezasseis anos. A Emily tem quinze.
- Uns quinze anos bastante adultos.
- É uma rapariga de quinze anos. Gus pousou a limonada.
- O que tem isso a ver com o assunto?
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- Tem tudo - Melanie abanou a cabeça. - Espera até ser a vez da Kate.
- vou presumir, tal como faço com o Chris, que a Kate terá idade e inteligência suficientes para tomar as decisões certas.
- Não, não vais. Vais querer que ela seja a tua menina durante o máximo de tempo possível.
Gus riu.
- A Emily vai ser sempre a tua menina - disse ela. Melanie virou-se na cadeira.
- Pensa em como te sentiste, depois da tua primeira vez - insistiu ela. - A Emily agora é minha. Mas depois, será do Chris.
Gus ficou calada por um momento.
- Enganas-te - disse ela suavemente. - Mesmo agora, a Emily já é do Chris.
Na Primavera anterior, Chris trabalhara em Shady Acres - um pequeno parque infantil que nem tinha sombra7 nem tinha um acre completo8. Tinha uma estrutura para trepar semelhante a um polvo, uma caixa de areia e um carrossel antigo, onde cada viagem custava vinte e cinco cêntimos.
Chris geria o carrossel. Era um trabalho mecânico e estonteante - recolher as moedas de vinte e cinco cêntimos, instalar as crianças nos cavalos, verificar os cintos
de segurança, carregar no botão que ligava o motor e depois ficar à espera que a música de órgão terminasse antes de desligar a corrente e deixar que o carrossel girasse cada vez mais lentamente até parar. Gostava do cheiro a doces das crianças que colocava nas selas. Gostava de subir balançando-se num poste de apoio enquanto o carrossel abrandava, para ajudar as crianças a desapertarem os cintos e a descerem. Gostava de agarrar num pano húmido ao fim do dia para limpar as crinas dos cavalos e para olhar para os seus olhos fixos e revirados.
Naquele ano, os proprietários deram-lhe uma chave.
Era sexta-feira, e estava uma noite excepcionalmente quente para Abril. Chris e Emily foram ao cinema, mas era cedo e Chris não queria ir para casa. Conduzindo sem rumo, Chris acabou por ir dar ao parque de estacionamento do parque infantil.
- Olha - disse Emily, radiante. - Vamos andar de baloiço.
7. Shady, na versão original em inglês, significa cheio de sombra. (N. da T.)
8. Acre, na versão original em inglês, é uma medida agrária que corresponde sensivelmente a 0,4 hectares. (N. da T.)
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Saiu do carro e correu pela lama. Quando Chris chegou lá, ela já estava no ar, de rosto virado para o céu nocturno. Caminhou na direcção oposta, ouvindo Emily chamá-lo,
e, depois, com a chave do carrossel, abriu o painel de controlo.
Ao luar, os cavalos começaram a correr.
Encantada, Emily saiu do baloiço e aproximou-se.
- Quando é que te deram a chave? - perguntou ela.
Chris encolheu os ombros.
- No fim-de-semana passado.
- Oh, é maravilhoso. Posso andar?
Ele agarrou-a pela cintura e fê-la subir para junto do cavalo branco de que gostava mais.
- Claro que sim - disse ele.
Emily subiu para o cavalo de madeira e, depois de o carrossel dar uma volta completa, estendeu a mão para Chris.
- Vem também - instigou ela.
Ele escolheu o cavalo ao lado do dela mas, assim que se sentou, apercebeu-se do erro que cometera: quando Emily subia, ele descia, e vice-versa. Debruçou-se para ela quando os cavalos ficaram à mesma altura e beijou-lhe a face. Emily riu-se, depois inclinou-se para trás para beijá-lo.
Desceu do cavalo e estendeu os braços para Emily. E ficaram deitados nas grossas tábuas pintadas por baixo dos cavalos, com os cascos em movimento a rasarem-lhes os braços e as pernas. Emily estendeu-se, de olhos fechados, concentrada na música. Chris enfiou-lhe as mãos por dentro da camisola.
O fecho do sutiã dela era à frente. E oh, meu Deus, como era bom tocar-lhe. Macia e perfeita ao mesmo tempo, e cheirava a pêssegos. Chris inclinou a cabeça para a curva do pescoço dela e lambeu-a, certo de que também teria o gosto deles. Ouviu Emily soltar um som do fundo da garganta, e interpretou-o como se ela estivesse a gostar tanto daquilo quanto ele.
Enfiou a mão pela parte da frente das calças de ganga dela, passando pelas cuecas, de forma que os dedos roçaram-lhe nos pêlos sedosos. Sustendo a respiração, empurrou os dedos mais para baixo.
- Pára - queixou-se ela. - Chris, pára.
E visto que ele não parou, Emily cerrou o punho e deu-lhe um soco na orelha.
Ele afastou-se, com a cabeça a zunir intensamente. Mas antes que pudesse gritar com Em viu a forma oval do rosto dela dizer que não, e depois levantou-se. Saltou do carrossel em movimento,
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caindo uma vez antes de recuperar o equilíbrio, e deixou Chris a andar às voltas.
No cinema, quando aconteciam coisas destas, a heroína conseguia sempre ir para casa. Mas Emily não podia deixar de pensar que, na vida real, a derradeira indignidade era ter de empurrar o namorado e depois precisar que ele a levasse a casa.
Sentiu Chris sentar-se no assento ao lado do seu, e manteve o rosto virado até a luz do tejadilho do Jeep se apagar. Mas não precisava de ver para saber que ele tinha os maxilares tensos, os lábios apertados numa linha fina.
Por instante desejou moldar-se de novo junto a ele, na esperança de que isso o suavizasse. Lembrou-se de quando era pequena, a gritar para que a mãe a pusesse no chão, mas agarrando-se a ela com mais força.
- Talvez - sussurrou ela - não devêssemos ver-nos durante uns tempos.
Chris entrou na estrada. E acenou com a cabeça.
Tudo em Donna DeFelice era lendário - desde os cabelos semelhantes a algodão doce, aos seios do tamanho de toranjas, à espargata de chefe da claque, a mais rápida de que todos se lembravam de ver no liceu. Durante dois anos deixou claro que, se Chris quisesse, ela estava disponível. E, finalmente, pressionado até aos limites por Emily, decidiu corresponder.
Não via nada dentro do Jeep, e a humidade que embaciara o interior das janelas atravessou-lhe o ombro da camisola quando roçou nelas. Por baixo dele, Donna contorcia-se no assento de trás.
Chris nem sequer a levara a jantar. Ela pousara-lhe a mão na perna no caminho para o restaurante e perguntou-lhe o que é que ele queria mesmo comer.
E agora ela estava espantosa e totalmente nua, envolvendo-o com a mão, e Chris achava que ela nem sequer se apercebeu de que ele nunca fizera aquilo antes.
À luz ténue do tablier, o peito de Donna estava tingido de um verde luminoso, mas apesar disso era magnífico. Tinha os olhos semicerrados e a boca arredondava-se pronunciando o nome dele. O único problema dela era não ser Em.
- Oh, meu Deus - gemeu Donna. - Dá-me tudo agora - puxou-o para dentro de si.
"Uma vez", pensou ele, "e vou perder o controlo." Mas para sua surpresa, não estava tão entusiasmado como esperava estar. Era
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quase como se estivesse a observar-se a si próprio de um canto do carro; a ver Donna debater-se debaixo dele como um animal que não sabia bem nomear.
Quando terminou, ela afastou-o de si e vestiu as cuecas. Depois aconchegou-se debaixo do braço dele, onde não era o seu lugar.
- Foi de mais - murmurou -, não foi?
- De mais - concordou Chris. Ficou a olhar pelo pára-brisas, interrogando-se como podia ter sido tão estúpido para achar que queria sexo, quando só queria Emily.
Emily passou o dia todo a esconder-se nos corredores da escola e a entrar na casa de banho para que ninguém a visse chorar. Mas para onde quer que fosse, ouvia pessoas falarem de como Chris Harte andava abraçado à Donna DeFelice. Na sexta aula do dia, quando Emily se dirigia à aula de Trigonometria que tinha com Chris e o viu debruçado sobre Donna, junto a uma fileira de cacifos mesmo à porta, acabou por não aguentar mais. Pediu à Dr.a McCarthy que lhe desse um passe para ir à enfermeira e não
teve qualquer problema em convencer a mulher de que estava doente. Não era a garganta, e não era febre, mas um coração partido doía na mesma.
Quando a mãe veio buscá-la, Emily deixou-se cair no assento do passageiro e desviou o rosto. Depois foi para o quarto e enfiou-se debaixo dos cobertores. Ficou lá até escurecer.
O Jeep de Chris saiu às seis e um quarto. Emily viu as luzes dos faróis desaparecerem ao fundo de Wood Hollow Road até deixar de as ver. Imaginou aonde Chris levaria Donna DeFelice numa sextafeira à noite. Não teve de imaginar o que fariam a seguir.
Agoniada consigo própria, sentou-se à secretária e tentou concentrar-se no trabalho de Inglês que tinha de entregar na segunda-feira. Mas só conseguiu tirar o clipe que prendia as folhas do rascunho que fizera.. Ficou a olhar para as palavras, sem as ler, e dobrou o clipe para trás e para a frente, deixando que a fricção gerasse calor e acabasse por quebrá-lo.
Às onze, sem que Chris tivesse chegado a casa, a mãe de Emily bateu à porta e entrou.
- Como te sentes, querida? - perguntou ela, sentando-se ao lado de Emily na cama.
Emily virou-se para a parede.
- Não estou bem - disse ela com voz pastosa.
- Podemos ir ao médico de manhã - sugeriu Melanie.
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- Não... não é isso. Eu estou bem. Só... só queria ficar aqui durante algum tempo.
- E isto tem alguma coisa a ver com o Chris? Espantada, Emily virou-se para olhar para a mãe.
- Quem te disse? Melanie riu.
- Não é preciso nenhum diploma para perceber que vocês os dois não fizeram nenhuma visita um ao outro esta semana.
Emily passou uma mão pelos cabelos.
- Tivemos uma discussão - admitiu ela. -E?
"E o quê?" com certeza que ela não ia contar à mãe qual fora o motivo da discussão.
- E acho que ele ficou suficientemente zangado para não se aproximar de mim - respirou fundo. - Mãe - disse ela -, o que devo fazer para que ele volte?
Melanie parecia estupefacta.
- Não tens de fazer nada. Ele vai voltar.
- Como é que sabes?
- Porque vocês são duas metades de um todo - disse Melanie, depois beijou a filha na testa e saiu do quarto.
Emily olhou para baixo, devido a uma dor aguda no braço, e viu que ainda segurava na ponta irregular do clipe. Curiosamente, passou-a por cima da pele, arranhando a superfície. A linha vermelha ficou mais viva quando passou uma segunda vez, e depois uma terceira. Cravou cada vez mais profundamente, até sangrar, até as iniciais de Chris estarem gravadas tão profundamente no braço que deixariam uma cicatriz.
O Jeep de Chris chegou a casa pouco depois da uma da manhã. Emily viu-o através da janela do quarto; ligou luz após luz ao entrar na cozinha e subir as escadas. Quando entrou no quarto e começou a preparar-se para se deitar, Emily vestira uma camisola por cima da camisa de noite e calçara os pés descalços com ténis.
O chão, consideravelmente macio devido ao clima que fizera sentir-se recentemente, era húmido e mole, e a caruma que jazia adormecida debaixo da neve rangia-lhe debaixo dos pés. A janela de Chris ficava mesmo por cima da cozinha. Já não faziam aquilo há anos, mas Emily agarrou num pauzinho e atirou-o aos vidros. Atingiu-os com um leve ruído, e fez ricochete em direcção a ela. Apanhou-o do chão, entre os pés, e voltou a atirá-lo.
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Desta vez, o candeeiro da mesa-de-cabeceira acendeu-se e o rosto de Chris surgiu à janela. Ao ver Emily, abriu-a espreitou lá para fora.
- O que estás a fazer? - sibilou. - Fica aí. Passados alguns segundos, abriu a porta da cozinha.
- O que foi? - perguntou ele.
Imaginara muitas coisas relativamente a este reencontro, mas a raiva nunca fizera parte delas. Remorsos, talvez. Alegria, aceitação. Mas não a expressão que Chris tinha no rosto naquele momento.
- Vim perguntar - disse ela, com voz trémula - se te divertiste. Chris praguejou e passou uma mão pelo rosto.
- Não preciso disto. Não consigo fazer isto agora - deu meia-volta e dirigiu-se novamente para dentro de casa.
- Espera! - gritou Emily. As palavras dela estavam cheias de lágrimas, mas ergueu o queixo e cruzou os braços com força por cima do peito para não tremer. - Eu, hum, tenho um problema. Acabei com o meu namorado, percebes. E estou muito perturbada por causa disso, por isso queria falar com o meu melhor amigo engoliu e olhou para o chão negro. - Só que, tu és os dois.
- Emily - sussurrou Chris, e puxou-a para junto de si.
Tentando não pensar no cheiro estranho que ele tinha, um perfume misturado com qualquer coisa voluptuosa e madura, Emily concentrou-se na sensação de estar novamente perto de Chris. Duas metades de um todo.
Ele beijou-lhe a testa, as pálpebras. Ela encostou o rosto à camisola dele.
- Não aguento - disse ela, sem saber bem a que se referia. De repente, Chris agarrou-lhe no pulso.
- Caramba - disse ele. - Estás a sangrar.
- Eu sei. Cortei-me.
- com quê?
Emily abanou a cabeça.
- Não é nada - disse ela. Mas deixou que Chris a fizesse sentar-se na cozinha enquanto ia buscar um penso rápido. Se reparou que ela tinha as suas iniciais no braço, foi suficientemente sensato para não dizer nada. Ela fechou os olhos enquanto ele lhe tocava com todo o carinho do mundo, e começou a recuperar.
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PRESENTE
Dezembro de 1997
Chris tinha pouco mais de três metros quadrados de espaço.
A cela estava pintada num estranho tom de cinzento que absorvia a luz toda. O catre de baixo tinha uma almofada, um colchão plástico e o cobertor que lhe deram.
Ao lado havia uma sanita e um lavatório. A cela estava entalada entre outras duas, como uma apertada fileira de dentes. Quando a porta gradeada da cela estava aberta - durante a maior parte do dia, excepto à hora das refeições
- Chris podia estar na estreita passagem que atravessava o recinto. Numa ponta havia um duche e um telefone, onde podia fazer chamadas a pagar no destino. Na outra ponta havia um televisor, colocado estrategicamente do outro lado das grades.
Chris aprendeu muito no primeiro dia, sem sequer pedir informações. Descobriu que quando se entra na prisão, tem-se a folha limpa. O sítio para onde se vai - do nível de segurança à posição do catre - não é determinado pela acusação ou pelo comportamento anterior ao encarceramento, mas pela forma como se reagia assim que lá se chegasse. As boas notícias eram que o conselho de classificação se reunia todas as quintas-feiras e podia apresentar-se uma petição para mudar de local. As más notícias eram que hoje era quinta-feira.
Chris resolveu que passaria uma semana sem falar com ninguém. Então, na quinta-feira seguinte, seria com certeza transferido da zona de segurança máxima para a zona de segurança média.
Ouvira dizer que lá em cima, as paredes eram amarelas.
Acabara de comer, uma refeição servida na cela trancada num tabuleiro de plástico selado, quando dois reclusos apareceram à porta.
- Olá - disse um deles, um homem com quem falara no dia anterior. - Como te chamas?
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- Chris - disse ele. - E tu?
- Hector. E este é o Damon - o homem desconhecido de cabelos longos e oleosos acenou a Chris. - Não chegaste a dizer-me por que estás aqui - disse Hector.
- Acham que matei a minha namorada - disse Chris entre dentes.
Hector e Damon trocaram um olhar.
- A sério? - disse Damon. - Julguei que eras um chibo. Hector coçou as costas nas grades. Vestia boxers e uma T-shirt,
com chinelos de borracha.
- O que usaste? - Chris ficou a olhar para ele sem perceber. Faca, arma de fogo, tu sabes.
Chris tentou passar por eles.
- Não quero falar sobre isso - disse. Deu um encontrão em Damon com o ombro e sentiu a mão do homem mais corpulento pousar nele. Olhou para baixo e viu uma faca
improvisada na mão de Hector, uma lâmina de barbear encostada às costelas de Chris.
- Mas eu talvez queira - disse Hector.
Chris engoliu e recuou. Hector escondeu a faca dentro da camisola.
- Olha - disse Chris cautelosamente. - Porque não nos comportamos de forma racional?
- Racional - disse Damon. - Ora aí está uma palavra cara. Hector grunhiu desdenhosamente.
- Pareces um menino betinho da faculdade - disse ele. - Andas na faculdade?
- Ando no liceu - disse Chris. Ao ouvir isso, Hector exultou.
- Por acaso, menino da faculdade, estás na prisão - bateu com a mão nas grades. - Olhem - gritou ele -, temos aqui um génio apoiou um pé no beliche de baixo. - Diz-me
uma coisa, menino da faculdade. Se és assim tão esperto, porque foste apanhado?
Um guarda que caminhava ao longo da passagem evitou que Chris tivesse de responder.
- Alguém quer ir para a sala de exercício?
Ele levantou-se. Hector e Damon também começaram a dirigir-se para a porta ao fundo do recinto. Damon virou-se e sussurrou:
- Ainda não acabámos, meu.
Percorreram em fila um corredor cheio de câmaras. Alguns homens chamaram-se mutuamente; era a única altura do dia em que tinham algum contacto. Ao virar da esquina, Chris reparou que Damon ficava para trás, até conseguir dar uma forte cotovelada nas
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costas de outro recluso numa determinada curva do corredor. Chris apercebeu-se de que era o ponto cego entre duas câmaras.
Imediatamente antes da sala de exercício havia duas celas da solitária. Podia ir-se para a solitária por duas razões - à força, por comportamento agressivo; ou voluntariamente, por receio dos outros reclusos. Agora só uma estava ocupada. Os prisioneiros começaram a gritar, batendo na porta, um deles até se debruçou para cuspir na abertura.
A sala de exercício era pequena e bastante vazia, com pouco equipamento. Mas funcionava como tudo o resto na prisão, por acordo prévio. Não houve espera nem discussão quando dois homens negros corpulentos ocuparam as bicicletas fixas; quando Hector e Damon agarraram nas raquetas de pingue-pongue; quando um tipo alto com uma suástica tatuada na face começou a levantar pesos. Chris apercebeu-se de que havia uma hierarquia que lhe era desconhecida. Mas por outro lado, porque haveria ele de conhecê-la?
Aquele não era o seu lugar.
Franzindo o sobrolho, saiu para o pátio, um quadrado enlameado densamente cercado por arame farpado. Os homens conversavam em pequenos grupos, gesticulando com as mãos. Outros caminhavam sem rumo, no sentido inverso dos ponteiros do relógio. Chris encontrou um homem encostado à grade de arame, a olhar para as montanhas à distância.
- Aquele tipo na solitária - disse ele sem nenhum preâmbulo. O que foi que ele fez?
O homem encolheu os ombros.
- Abanou o bebé dele até morrer. Maldito animal.
Chris olhou por cima do arame farpado e pensou na honra entre ladrões.
Telefonou para casa a cobrar no destino.
- Chris?
- Mãe - disse ele, só aquela palavra, vezes sem conta, com a cabeça encostada ao telefone público azul.
- Oh, querido. Tentei ir visitar-te, disseram-te? Chris fechou os olhos.
- Não - disse rigidamente.
- Bem, tentei. Mas disseram-me que o horário das visitas é só no sábado. Por isso, vou estar aí logo que comece - respirou fundo.
- Isto é um erro terrível, sabes. O Jordan já tem os documentos do Ministério Público. Vai encontrar uma maneira de tirar-te daí o mais depressa possível.
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- Quando é que ele vem visitar-me?
- vou telefonar-lhe para perguntar - disse a mãe. - Tens comido bem? Posso levar-te alguma coisa?
Pensou nisso, sem ter a certeza do que era permitido levar.
- Dinheiro - disse ele.
- Espera aí, Chris. O teu pai quer falar contigo.
- Eu... não. Tenho de desligar. Está aqui uma pessoa que precisa de usar o telefone - mentiu.
- Oh... está bem. Telefona sempre que quiseres, percebes? Não importa o custo da chamada.
- Está bem, mãe.
De repente ouviu-se uma gravação de uma voz fraca: "Esta chamada", anunciou, "está a ser feita de um estabelecimento prisional." Tanto Chris como a mãe ficaram em silêncio durante um momento.
- Adoro-te, querido - disse Gus por fim.
Chris engoliu, e voltou a pousar o auscultador. Ficou ali por um instante, com a cabeça apoiada no telefone público, até sentir um corpo encostar-se a ele com força.
Damon estava a roçar a coluna, bafejando no pescoço de Chris:
- Tens saudades da mamã, professor? - estendeu os lábios, encostando a virilha às nádegas de Chris.
Não era daquilo que ele estava à espera? Não era o que receava? Chris virou-se bruscamente, apanhando o homem mais corpulento de surpresa.
- Afasta-te de mim - disse ele, de olhos faiscantes, e voltou para a cela.
Mesmo com os cobertores por cima da cabeça, ouviu Damon rir.
Chris agradecia a Deus O facto de não ter mais ninguém na sua cela. Vivia com medo de Damon ser subitamente lançado para cima do seu catre, porque embora os guardas fossem bastante eficazes a manter o controlo durante o dia, sabia-se lá se estavam atentos ao que se passava à noite? Começou a manter-se ao corrente do enredo de Days of Our Lives. Foi a uma reunião dos AA na quarta-feira à noite, só para sair do recinto.
Preencheu um formulário de encomenda, que parecia um formulário do serviço de quartos para o pequeno-almoço num hotel do Canadá onde a família ficara hospedada no
Verão anterior. Um boião de café de duzentos e cinquenta gramas custava cinco dólares e vinte e cinco cêntimos; uma barra Three Musketeers custava sessenta cêntimos.
Os chinelos custavam dois dólares. Um guarda
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entregou-lhe os artigos naquela tarde, e a quantia total foi descontada da sua conta prisional.
Dormia muito, fingindo mesmo quando não estava cansado para que as pessoas o deixassem em paz. E quando os homens se reuniam em grupos no pátio de exercício, Chris estava sempre sozinho.
Jordan deixara de acreditar na verdade há muito tempo.
Não havia verdade, pelo menos na sua profissão. Havia versões. E, em todo o caso, um julgamento não se baseava na verdade, mas nas provas que a polícia tinha e na forma como reagíamos a elas. Um bom advogado de defesa criminal não pensava na verdade, concentrava-se em vez disso no que um júri ia ouvir.
Há anos que Jordan deixara de perguntar aos clientes qual era a verdadeira história. Agora aparecia de rosto inexpressivo e limitava-se a perguntar: "O que aconteceu?"
Estava na zona de controlo da unidade de segurança máxima, à espera que o guarda responsável lhe desse o registo para poder assinar a sua entrada como visitante. Na primeira visita que fazia a Chris após a acusação formal, levava Selena Damascus, uma investigadora privada negra, de um metro e oitenta e oito de altura, que parecia mais indicada para as passerelles do que para fazer o trabalho de investigação de Jordan, mas que desempenhava muito bem as suas funções há vários anos.
- Onde é que ele está? - perguntou Selena.
- Na segurança máxima - respondeu Jordan. - Só está aqui há dois dias.
Uma pesada porta de grades fechou-se algures lá em cima, e apareceu um guarda prisional fardado.
- Olá, Bill - disse o guarda do posto de controlo. - Diz ao Harte que o advogado dele está aqui.
Abriu-se outro portão - por muitas vezes que Jordan o ouvisse, não conseguia habituar-se ao som, que era como um tiro - e entrou, vislumbrando fugazmente os reclusos antes de virar à esquerda em direcção a uma sala de conferências utilizada para visitas dos advogados aos clientes.
Selena seguia atrás dele, como uma sombra, e sentou-se ao seu lado à mesa de conferências. Inclinou a cadeira para trás e ficou a olhar para o tecto.
- É uma prisão mesmo feia - disse ela. - Penso nisso sempre que aqui venho.
- Mmm - concordou Jordan. - com certeza que não é a decoração que a torna tão popular.
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A porta abriu-se e Chris entrou na sala. Olhou para Jordan e depois para Selena.
- Esta é a Selena Damascus. Uma investigadora privada que nos vai ajudar.
- Olhe - disse Chris sem nenhum preâmbulo -, tenho de sair daqui.
Jordan tirou uma pilha de papéis da pasta.
- Na melhor das hipóteses, Chris, é precisamente isso que vai acontecer.
- Não, não está a perceber. Tenho de sair daqui agora.
Algo no tom de voz do rapaz fez Jordan olhar para cima. O rapaz assustado à beira das lágrimas na cela da esquadra de Bainbridge desaparecera, e no seu lugar estava uma pessoa mais resistente, mais forte, capaz de ocultar os seus terrores.
- Qual é o problema, em concreto? Ao ouvir isso, Chris explodiu.
- Qual é o problema? Qual é o problema? Estou para aqui sentado numa cela na prisão, é só isso. Devia acabar o liceu este ano. Devia ir para a faculdade. Mas em vez disso estou fechado numa cela com um bando de... de criminosos!
Jordan nem sequer pestanejou.
- É uma pena que o júri não tenha estabelecido uma caução. E tens razão: isso significa que vais ter de ficar na prisão até ao julgamento, que pode demorar de seis
a nove meses. Mas não é tempo perdido. Cada minuto que ficares naquela cela, eu vou fortalecendo o teu caso para que possas sair em liberdade.
Inclinou-se para a frente, endurecendo a voz.
- Vamos esclarecer uma coisa - disse Jordan. - Eu não sou teu inimigo. Sou o advogado, e tu és o cliente. Ponto final. E foste acusado de homicídio qualificado, o que implica uma pena de prisão perpétua. Isso significa, Chris, que a tua vida está literalmente nas minhas mãos. O facto de a passares na prisão ou em Harvard depende de eu ser ou não capaz de te livrar - levantou-se e passou por trás de Selena. - E isso depende da tua colaboração. O que me disseres a mim e à Selena não sai desta sala. Eu controlo o que dizes e a quem. E dizes-me o que eu precisar saber quando eu quiser. Entendido?
- Entendido - disse Chris, olhando-o nos olhos.
- Muito bem. Deixa-me explicar-te em que ponto estamos. Eu vou tomar muitas das decisões relativamente a este caso, depois de consultar-te, mas há três coisas que só tu podes decidir. A primeira é se aceitas um acordo judicial ou se vais a julgamento.
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A segunda é, se fores a julgamento, queres que esse julgamento se realize apenas diante de um juiz, ou queres que também haja um júri. Finalmente, se houver julgamento,
tens de decidir se queres ou não testemunhar. vou dar-te o máximo de informação possível para tomares decisões com conhecimento, mas terás de fazer as tuas escolhas enquanto nos preparamos. Estás a perceber? Chris acenou com a cabeça.
- Muito bem. A seguir. vou receber a instrução da procuradoria-geral muito em breve. Depois disso, voltarei aqui e vamos rever tudo em pormenor.
- Quando vai ser isso?
- Daqui a cerca de duas semanas - disse Jordan. - Depois daí a mais ou menos cinco semanas, haverá uma conferência preliminar antes do julgamento - ergueu as sobrancelhas. - Antes de começarmos, queres fazer mais alguma pergunta?
- Quero. Posso falar com o Dr. Feinstein? Jordan semicerrou ligeiramente os olhos.
- Não me parece que seja uma boa ideia. Chris ficou de boca aberta.
- Ele é um psiquiatra.
- Também pode receber uma intimação. A relação de confidencialidade entre médico e paciente nem sempre é inviolável, sobretudo quando se trata de uma acusação de homicídio. Falares sobre o crime com alguém pode prejudicar-nos posteriormente. Falando nisso, não digas nada a ninguém dentro da prisão.
Chris grunhiu desdenhosamente.
- Como se eu tivesse feito muitas amizades aqui. Jordan fingiu não ter ouvido.
- Há aqui tipos com acusações relacionadas com droga que podem cumprir sentenças com uma duração máxima de sete anos. Mas se conseguirem tirar informações sobre ti para fazerem um acordo judicial, aproveitarão essa oportunidade. Os polícias até podem meter um chibo na tua cela para esse efeito.
- E se o Dr. Feinstein e eu não falarmos sobre o que... aconteceu?
- Então e de que vão falar?
- De outras coisas - disse Chris num tom suave. Jordan apoiou-se na mesa, junto a Chris.
- Se precisas de alguém com quem falar - disse ele - essa pessoa devo ser eu. - Começou a dirigir-se novamente para o seu lugar.
- Mais perguntas?
- Sim - disse Chris. - Tem filhos?
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Jordan ficou imóvel.
- Se eu tenho o quê?
- Ouviu o que eu disse.
- Não percebo o que isso possa ter a ver com o teu caso.
- Não tem - admitiu Chris. - É que se vai ficar a conhecer-me assim tão bem quando isto terminar, achei que devia saber qualquer coisa sobre si.
Jordan ouviu Selena soltar um risinho abafado.
- Tenho um filho - disse ele. - Tem treze anos. Agora, se já acabámos as apresentações, queria ir directamente ao assunto. Hoje vamos recolher o máximo de informação
possível. Precisamos que assines uma autorização para podermos ter acesso aos teus ficheiros clínicos. Há algumas hospitalizações de que devemos ter conhecimento?
Incapacidade" físicas ou mentais que te tornem fisicamente incapaz de carregar no gatilho?
- A única altura em que estive hospitalizado foi depois daquela noite. Por causa da minha cabeça, feri-me quando desmaiei - Chris mordeu o lábio. - Já caço desde os oito anos.
- Onde arranjaste a arma naquela noite? - perguntou Selena.
- Era do meu pai. Estava no armário para guardar armas juntamente com as espingardas e as caçadeiras.
- Então estás habituado às armas de fogo.
- Claro - disse Chris.
- Quem carregou o revólver?
- Fui eu.
- Antes de saíres de casa?
- Não - Chris ficou a olhar para as mãos. Jordan passou a mão pelos cabelos.
- Dizes-me os nomes das pessoas que podem descrever a tua relação com a Emily?
- Os meus pais - disse Chris. - Os pais dela. Acho que qualquer pessoa no liceu.
Selena olhou por cima do bloco de notas.
- O que devo esperar que essas pessoas me digam? Chris encolheu os ombros.
- Que eu e a Emily estávamos juntos.
- Essas pessoas também podiam ter reparado que a Emily pensava em suicidar-se? - perguntou Selena.
- Não sei - disse Chris. - Ela guardava bem esse segredo.
- Também precisamos de mostrar a um júri que planeavas suicidar-te naquela noite. Falaste com alguns técnicos de aconselhamento? Consultaste alguns especialistas em saúde mental?
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- Queria falar consigo sobre isso - disse Chris, passando a língua pelos lábios secos. - Não há ninguém que possa dizer-lhe que eu planeava suicidar-me.
- Talvez tenhas referido esse facto num diário? - sugeriu Selena. - Num bilhete que tenhas mandado à Emily?
Chris abanou a cabeça.
- A verdade é que não planeava - pigarreou. - Suicidar-me. Jordan colocou vigorosamente de lado a confissão dele.
- Falamos disso mais tarde - disse, resmungando silenciosamente. Na opinião de Jordan, era melhor não saber mais do que o necessário sobre o crime de um cliente. Assim podia prosseguir com a defesa sem violar nenhuma norma de ética. Mas assim que o cliente contava a sua história, a história era essa. E se testemunhasse teria de manter-se fiel a ela.
Confuso, Chris olhou para Jordan e depois para Selena.
- Espere - disse ele -, não quer que eu conte o que realmente aconteceu?
Jordan virou a página do bloco de notas para uma nova página, em branco.
- Por acaso - disse ele -, não quero.
Naquela tarde, Chris recebeu um companheiro de cela.
Pouco antes do jantar, estava enrolado no beliche, absorto em pensamentos, quando um guarda levou o homem lá para dentro. Estava de fato-macaco e ténis, como toda a gente, mas tinha qualquer coisa diferente. Uma coisa deslocada e espalhafatosa. Acenou com a cabeça para Chris e subiu para o catre de cima.
Hector apareceu à porta da cela.
- Já te fartaste da tua cara, meu?
- Desaparece, Hector - suspirou o homem sem se virar.
- Não me digas para desaparecer, seu...
- Comida - gritou um guarda.
Quando Hector se foi embora para a sua cela para trancarem todas as portas, o homem levantou-se do beliche desceu para receber o tabuleiro. Chris, no catre de baixo, apercebeu-se de que o homem não tinha sítio para se sentar. Se voltasse a subir para o beliche de cima teria de comer deitado.
- Podes, hum, sentar-te aqui - disse ele, olhando para os pés do beliche.
- Obrigado - o homem destapou o tabuleiro. Havia um pedaço pouco apetitoso de três cores no meio. - Chamo-me Steve Vernon.
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- Sou o Chris Harte.
Steve acenou com a cabeça e começou a comer. Chris reparou que Steve não era muito mais velho do que ele. E parecia igualmente propenso a não se envolver.
- Olha, Harte - gritou Hector da sua cela. - O melhor é dormires de olhos abertos hoje à noite. Os rapazinhos não estão seguros ao lado dele.
Chris desviou o olhar para Steve, que ainda comia metodicamente. Teria sido este o tipo que matou o bebé?
Chris obrigou-se a concentrar-se novamente no prato, tentando recordar-se de que um homem era inocente até se provar o contrário. Ele era uma prova disso.
Apesar disso, Chris lembrou-se do que Hector lhe dissera quando passaram pela solitária: "Agarrou no filho a meio da noite e ficou doido, meu. Abanou-o com tanta força para que parasse de chorar que lhe partiu o pescoço." Quem sabe o que poderá fazer alguém descontrolar-se daquela maneira?
Chris sentiu as entranhas às voltas. Pousou o prato e dirigiu-se para a porta da cela, para ir à casa de banho ao fundo do corredor. Mas as portas ainda permaneceriam trancadas durante mais meia hora pelo menos, e, pela primeira vez, desde a sua chegada não estava sozinho na cela. Ficou a olhar para a sanita cinzenta, apenas a alguns centímetros do joelho de Vernon, e corou de embaraço. Baixando as calças, Chris sentou-se e tentou não pensar no que estava a fazer. Manteve os braços cruzados à cintura, de olhos fixos no chão.
Terminou e levantou-se, vendo que Steve estava novamente no catre de cima, com o prato meio comido em cima do catre de baixo. Vernon desviara o rosto da sanita, olhando para a parede nua, proporcionando a Chris o máximo de dignidade possível.
O telefone tocou exactamente quando Michael estava a preparar-se para sair para dar uma consulta.
- Estou? - perguntou impacientemente, o corpo começando desde logo a suar debaixo do peso do casaco de Inverno.
- Oh, Mikey - disse a prima Phoebe, da Califórnia, a única pessoa que lhe chamava Mikey. - Quis telefonar-te só para dizer que tenho muita, muita pena.
Nunca gostara de Phoebe. Era filha da sua tia; devia ter sido avisada pela mãe dele após o funeral, visto que Michael não fizera nenhum telefonema para comunicar a morte de Emily aos familiares. Usava tranças e dedicava-se à olaria fazendo potes intencionalmente
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inclinados. Quando Michael falava com ela, o que acontecia nas reuniões familiares, ela recordava-o de quando tinham quatro anos e ela se rira dele por ter feito chichi nas calças.
- Phoebe - disse ele. - Obrigado por telefonares.
- A tua mãe disse-me - acrescentou ela, o que Michael achou interessante: como podia a mãe transmitir informações que Michael ainda não conseguia aceitar? - Achei que talvez quisesses falar com alguém.
"Contigo?" Quase perguntou Michael, mas depois absteve-se. E então lembrou-se de que o companheiro de Phoebe se enforcara no varão do roupeiro há dois anos.
- Eu sei como é - continuou Phoebe. - Descobrir de repente uma coisa em que devíamos ter reparado há muito tempo. Eles vão para um sítio melhor, sabes, e era isso que queriam desde o início. Mas tu e eu, ficámos para trás com todas as perguntas a que eles não responderam.
Michael permaneceu em silêncio. Então ela ainda sofria, passados dois anos? Estaria ela a sugerir que tinham alguma coisa em comum? Fechou os olhos e sentiu um arrepio, apesar do casaco grosso. Não era verdade; simplesmente não era verdade. Não conhecia o companheiro de Phoebe, mas ela não podia conhecê-lo tão bem como ele conhecia Emily.
"Tão bem", pensou Michael, "e aconteceu isto sem mais nem menos?"
Sentiu uma dor lancinante no peito e apercebeu-se de que a culpa surgia de todos os ângulos: por não se ter apercebido da aflição da filha; por ser tão egoísta que mesmo agora concentrava-se no que o suicídio de Emily dizia das suas capacidades de pai, e não sobre o que isso dizia da própria Emily.
- O que é que eu faço? - murmurou, só se apercebendo de que falara em voz alta quando ouviu a resposta de Phoebe.
- Sobrevives - disse ela. - Vais fazer o que eles não conseguiram - do outro lado da linha, Phoebe suspirou. - Sabes, Michael, costumava ficar sentada a tentar encontrar um sentido para tudo o que aconteceu, como se houvesse alguma resposta que eu pudesse encontrar se procurasse muito bem. Então um dia apercebi-me de que se houvesse uma resposta, o Dave ainda estaria aqui. E pensei se esta... esta sensação de não ser capaz de entender... fosse aquilo que Dave também sentia - pigarreou. Ainda não compreendo por que razão o fez; e não me agrada que ele o tenha feito; mas pelo menos compreendo um pouco melhor o que ele pensava.
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Michael imaginou o estômago de Emily com o mesmo nó górdio que apertava o seu, os pensamentos de Emily igualmente enredados. E desejou, pela milionésima vez, ter
estado suficientemente alerta para poupar-lhe uma dor assim tão intensa.
Murmurou os seus agradecimentos a Phoebe e desligou o telefone. Depois, vestindo ainda o casaco de pele de cordeiro subiu as escadas na casa vazia. Entrou no quarto
de Emily e estendeu-se na cama, olhando para o espelho, para os livros da escola, para as roupas abandonadas, tentando ver o mundo através dos olhos da filha.
Francis Cassavetes fora sentenciado a seis meses de prisão. Mas estava a cumprir a pena aos fins-de-semana. Era um castigo vulgar para aqueles que estavam empregados
e que contribuíam para a sociedade - o juiz mandava-os ir para a prisão na sexta-feira e sair no domingo, permitindo-lhes trabalhar no resto dos dias. Os reclusos
de fim-de-semana eram a realeza da prisão, e passavam a maior parte do tempo em que cumpriam pena a aceitar subornos dos reclusos menos afortunados nas suas penas. Faziam contrabando de cigarros, agulhas, Tylenol - qualquer coisa - por um preço.
Quando Francis entrou no recinto de segurança máxima, envolveu o rosto de Hector nas mãos.
- Sou ou não sou teu amigo? - disse ele. Passou por Hector, dirigindo-se à sanita.
Francis regressou, trazendo alguma coisa na mão.
- Ficas a dever-me o dobro por causa disto, Hector. Esta merda faz-me sangrar.
Chris observou a mão de Hector roçar na de Francis e viu um pequeno tubo branco surgir fugazmente durante a troca. Virou-se e regressou para a sua cela.
Steve dobrou o canto da revista que estava a ler.
- O Francis voltou a comprar-lhe cigarros?
- Acho que sim - disse Chris. Steve abanou a cabeça.
- O Hector devia pedir era um penso de nicotina - disse ele entre dentes. - Provavelmente também seria mais fácil para o Francis trazer cá para dentro.
- Como é que ele consegue? - perguntou Chris, curioso. Trazê-los cá para dentro?
- Ouvi dizer que costumava escondê-los na boca. Mas foi apanhado, por isso agora usa um orifício diferente - visto que Chris continuou a olhar para ele sem perceber, Steve abanou a cabeça. Quantos buracos tens tu? - perguntou propositadamente.
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Chris ficou muito vermelho. Steve virou-se para o outro lado e voltou a abrir a revista.
- Caramba - resmungou. - Como raio vieste aqui parar?
Assim que Chris entrou na sala com as suas longas mesas cheias de marcas e um sortido de reclusos e familiares, viu a mãe. Ela abraçou-o quando chegou junto dela.
- Chris - suspirou, afagando-lhe os cabelos como quando ele era pequeno. - Estás bem?
O guarda bateu delicadamente no ombro da mãe.
- Minha senhora - disse ele -, tem de largá-lo. Sobressaltada, Gus soltou o filho e sentou-se. Chris sentou-se à
frente dela. Não havia nenhuma janela de Plexiglas entre ambos, mas isso não significava que não houvesse uma barreira.
Podia ter dito à mãe que no livro de normas do superintendente - um dossier do tamanho de um dicionário - estava decretado que uma visita podia começar com um breve abraço ou beijo (não de boca aberta) e acabar da mesma maneira. No mesmo dossier encontravam-se as normas contra a posse de cigarros, contra o uso de linguagem grosseira, contra empurrar outro recluso. Estas infracções tão leves no mundo real, na prisão constituíam um crime grave. O castigo era aumentar a duração da pena.
Gus debruçou-se sobre a mesa e agarrou na mão de Chris. Reparou, pela primeira vez, que o pai também estava lá. James sentou-se com a cadeira um pouco mais atrás, como se tivesse medo de tocar na mesa. Quase ficou encostado a um recluso com uma teia de aranha tatuada na face esquerda.
- É tão bom ver-te - disse a mãe.
Chris acenou, baixando a cabeça. Se dissesse o que queria que precisava de ir para casa, que nunca vira nada mais belo do que ela, naquele preciso momento, em toda a sua vida - irromperia em lágrimas, e não podia dar-se ao luxo de fazer isso. Só Deus sabia quem estaria a ouvir, como isso se viraria contra ele.
- Trouxemos-te algum dinheiro - disse Gus, estendendo-lhe um envelope cheio de notas. - Se precisares de mais podes telefonar - entregou o envelope a Chris, que fez imediatamente sinal a um guarda, pedindo-lhe que o colocasse na conta prisional.
- Então - disse a mãe.
- Então.
Ela olhou para o colo, e ele quase sentiu pena. Não havia nada para dizer, realmente. Passara a semana toda num recinto de
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segurança máxima da prisão do condado, e os pais não iam considerar isso um tema de conversa aceitável.
- Na próxima semana vais ter oportunidade de seres transferido para o nível de segurança médio, não é?
A voz de James sobressaltou-o.
- vou - disse Chris. - Tenho de apresentar uma petição ao Conselho de Classificação.
Abateu-se um silêncio.
- A equipa de natação ganhou o torneio contra Littleton ontem.
- disse Gus.
- Sim? - Chris tentou parecer interessado. - Quem é que me substituiu?
- Não tenho a certeza. Robert Ric... Rich... qualquer coisa.
- Richardson - Chris esfregou o ténis no chão. - Provavelmente fez uma porcaria de um tempo.
Ficou a ouvir a mãe falar-lhe sobre o trabalho de história que Kate tinha de fazer, para o qual tinha de vestir-se como uma mulher dos tempos coloniais. Ficou a
ouvi-la falar dos filmes que estavam em exibição no cinema local, da sua visita à Associação de Automobilistas para encontrar o caminho mais rápido de Bainbridge
a Grafton. E percebeu que seria assim que preencheriam este horário de visita durante os nove meses seguintes - Chris não ia falar dos horrores dos quais nem sequer
queria que os pais tivessem conhecimento, a mãe é que pintaria um retrato do mundo que ele deixara para trás.
Ficou novamente atento quando a mãe pigarreou.
- Então - repetiu ela. - Conheceste alguém? Chris grunhiu desdenhosamente.
- Isto não é nenhuma festa de Natal - disse ele, apercebendo-se imediatamente do erro que cometera quando a mãe, de rosto vermelho, ficou a olhar para o colo. Por
um instante surpreendeu-se com a sua própria solidão, incapaz de se misturar com os reclusos por causa de quem fora; incapaz de se misturar com os pais por causa
de quem era.
James lançou um olhar ameaçador ao filho.
- Pede desculpa - disse num tom severo. - A tua mãe está a passar momentos muitos difíceis por causa disto.
- E se eu não pedir? - ripostou Chris. - O que vais fazer-me? Meter-me na prisão?
- Christopher - avisou James, mas Gus interrompeu-o pousando-lhe a mão no braço.
- Não faz mal - tranquilizou-o. - Ele está perturbado - debruçou-se sobre a mesa e agarrou na mão de Chris.
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Sem mais nem menos, lembrou-se de quando ele era pequeno e ela costumava dizer-lhe que estavam num parque de estacionamento, ou numa rua movimentada, e, depois,
baixava a mão para agarrar-lhe nos dedos. Lembrou-se do cheiro a borracha no asfalto e o movimento ruidoso das máquinas a passarem, e de como se sentia em segurança
apesar disso, desde que conseguisse sentir a mão dela na sua.
- Mãe - disse Chris, com a voz embargada - não me faças isso. Antes que começasse a chorar, chamou um guarda.
- Espera! - exclamou Gus. - Ainda faltam vinte minutos!
- Para fazer o quê? - disse Chris num tom suave. - Para ficarmos aqui sentados a desejar que não estivéssemos? - debruçou-se por cima da mesa e abraçou-a desajeitadamente.
- Telefona-nos, Chris - sussurrou Gus. - Vemo-nos na terça-feira à noite.
Esse era o próximo horário de visita marcado para a divisão de segurança máxima.
- Terça-feira - confirmou Chris. Depois virou-se para o pai. Mas... não quero que venhas.
Naquela tarde a temperatura desceu aos dezoito graus negativos. O pátio de exercício estava vazio porque o clima expulsara toda a gente de lá. Chris saiu lá para
fora, com a respiração a traçar um trilho de nevoeiro à sua frente. Deu uma volta ao pátio e reparou em Steve Vernon encostado à parede de tijolo.
- Dois tipos subiram por ali no ano passado - disse Steve, acenando em direcção ao canto mais elevado onde o arame farpado entrava em contacto com o edifício de tijolo. - O guarda foi fechar a porta da sala de exercício e, zás, eles tinham desaparecido.
- Conseguiram fugir? Steve abanou a cabeça.
- Foram apanhados duas horas depois, ali mesmo na Route 10. Chris sorriu. Qualquer pessoa suficientemente estúpida para se
manter na estrada principal depois de ter fugido da prisão merece ser apanhada.
- Já pensaste em fazer isso? - perguntou Chris. - Em saltar a vedação?
Steve expirou pelo nariz, uma nuvem branca.
- Não. -Não?
- Não tenho nada lá fora que me faça querer voltar - disse ele. Chris virou a cabeça.
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- Porque estavas na solitária?
- Não queria estar ao pé dos outros.
- Estás aqui por teres realmente abanado o teu filho até à morte? Steve semicerrou ligeiramente os olhos, mas não desviou o
olhar.
- Estás aqui - disse ele pausadamente - por teres realmente matado a tua namorada?
Chris lembrou-se imediatamente do aviso de Jordan McAfee: que a prisão estava cheia de chibos. Desviou o olhar, bateu com os pés no chão e soprou para as mãos para aquecê-las.
- Está frio - declarou.
- Pois está.
- Queres entrar? - Steve abanou a cabeça. Chris encostou-se à parede de tijolo, consciente do calor do corpo do homem que estava ao seu lado.
- Eu também ainda não estou pronto - disse ele.
Logo após o jantar, houve uma rusga.
Realizava-se uma vez por mês, por decreto do superintendente: os guardas passavam as celas a pente fino, atirando colchões e almofadas, enfiando as mãos nas roupas lavadas e sapatos abandonados na esperança de encontrarem qualquer coisa incriminatória. Chris e Steve estavam de pé do lado de fora das grades, a ver o seu pequeno quadrado de privacidade ser violado.
O guarda, um homem gordo, levantou-se de repente, trazendo qualquer coisa na mão. Apontou para os ténis que estavam no chão
- Chris estava a dormir descalço, quando eles entraram.
- De quem são estes?
- São meus - disse Chris. - Porquê?
O guarda abriu os dedos semelhantes a salsichas, um por um. Na palma da mão estava um grande cigarro branco.
- Isso não é meu - disse Chris, visivelmente espantado. O guarda olhou para Chris e depois para Steve.
- Poupa o discurso para o corredor da morte - disse ele. Quando o guarda saiu, Chris ajeitou a cama e voltou a subir
para o beliche.
- Olha - disse Steve, sacudindo-lhe o ombro. - Não fui eu que o pus lá.
- Deixa-me em paz.
- Só estou a dizer-te.
Chris enfiou a cabeça debaixo da almofada, mas só depois de vislumbrar o sorriso de Hector cintilar ao passar pela cela.
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Nas dezoito horas que se passaram entre ter sido encontrado o cigarro e a revisão disciplinar oficial de Chris, ele juntou todas as peças do quebra-cabeças. Hector
abdicara de um dos seus preciosos artigos de contrabando para poder matar dois coelhos de uma cajadada: testar a lealdade de Chris, o recém-chegado, e tramar Steve,
o assassino de bebés. Se Chris denunciasse Hector, ia arrepender-se disso durante muito tempo, Se atribuísse as culpas a Steve - que, enquanto seu companheiro de cela, teria mais oportunidades de colocar um cigarro no ténis de Chris - juntar-se-ia ao grupo de Hector.
Um guarda conduziu Chris a uma pequena sala onde o superintendente adjunto trabalhava. Lá dentro estava o guarda que revistara a cela e o próprio superintendente adjunto, um homem musculoso, mais parecido com um treinador de futebol americano do que com um burocrata a trabalhar na prisão. Chris ficou de pé muito direito enquanto o superintendente adjunto lia a acusação formal e o alertava para os seus direitos.
- Então, Sr. Harte - disse o homem. - Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?
- Tenho. Peça-me para fumá-lo.
O superintendente adjunto ergueu as sobrancelhas.
- Isso era precisamente o que mais queria fazer agora.
- Não fumo - disse Chris. - Isso vai prová-lo.
- Vai provar que consegue fingir uma tosse - disse o homem.
- Não me parece. Agora: tem alguma coisa a dizer em sua defesa?
Chris pensou em Hector, com a sua caneta com uma lâmina de barbear. Pensou em Steve, com o qual estabelecera uma trégua hesitante. E lembrou-se do que lhe tinham dito sobre as transgressões leves na prisão - este cigarro podia acrescentar três a sete anos à sua pena, se fosse condenado.
Por outro lado, isso era uma grande incógnita.
- Não - disse Chris em voz baixa. -Não?
Olhou nos olhos do superintendente adjunto.
- Não - repetiu Chris.
Os guardas olharam uns para os outros e encolheram os ombros.
- Está ciente - disse o superintendente adjunto - de que se achar que não temos conhecimento de parte da história, pode sugerir que falemos com outro recluso.
- Eu sei - disse Chris. - Mas não têm de falar.
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O homem franziu os lábios.
- Muito bem, Sr. Harte. Baseando-nos nas provas, é declarado culpado de posse de uma substância ilegal e sentenciado a cinco dias de isolamento. Vai permanecer dentro da cela vinte e três horas por dia, com uma hora livre para tomar duche.
O superintendente acenou com a cabeça para os outros guardas, que levaram Chrís para fora da sala. Percorreu o recinto de segurança máxima em silêncio, recolhendo os seus pertences sem dizer nada a ninguém. Só quando estava a ser levado para a sua nova cela é que Chris se apercebeu de que ficaria ali até quinta-feira dois dias depois da visita da mãe; dois dias depois de o Conselho de Classificação poder transferi-lo para a segurança média.
Chris passou aqueles dias a dormir. Sonhava frequentemente. com Emily, com o toque e o sabor dela. Que a beijava profundamente, com a língua, e que ela empurrava qualquer coisa para dentro da sua boca, uma coisa pequena e dura como um rebuçado de mentol. Mas quando a cuspiu para a mão, viu o que realmente era: a verdade.
Fazia agachamentos, um número incontável deles, porque era o único exercício que tinha espaço para fazer na cela estreita. Durante o duche, esfregava-se até a pele ficar rosada e a arder, para aproveitar bem a hora de que dispunha para sair da cela. Revivia provas de natação, noites com Em, aulas, até a cela ficar desconfortavelmente cheia de recordações e começar a perceber por que razão os reclusos não se davam ao trabalho de pensar no que tinham deixado para trás.
Não telefonou à mãe, claro, e, na terça-feira, pensou se ela teria vindo até Woodsville só para lhe dizerem que o filho estava em isolamento disciplinar. Também pensou em quem teria sido transferido para a segurança média. Steve devia ter apresentado a sua petição ao Conselho de Classificação naquele dia.
Na quinta-feira de manhã bateu nas grades assim que terminou o pequeno-almoço e disse ao guarda que queria que o transferissem.
- E vais ser transferido - disse o guarda. - Assim que for possível. Só foi possível às quatro da tarde. Um guarda abriu a porta da
cela e conduziu-o ao outro recinto de segurança máxima, onde estivera na semana anterior.
- Bem-vindo a casa, Harte - disse ele.
Chris deixou cair os seus escassos pertences no beliche de baixo. Para sua surpresa, havia um vulto enrolado no beliche de cima.
- Olá - disse Steve.
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- O que estás aí a fazer? Steve riu.
- Ia a um bar, mas não consegui encontrar as chaves do carro.
- Achei que já devias estar lá em cima.
Olharam ambos para o tecto da cela, como se fosse possível ver a segurança média, com as suas paredes de betão amarelas, a sala de convívio em forma de ferradura, os seus duches espaçosos. Steve encolheu os ombros, sem dizer o que Chris sabia que ele estava a pensar: que depois de terem descoberto o cigarro, qualquer pessoa na prisão teria apontado o dedo a Steve, embora Chris tivesse resolvido não o fazer.
- Mudei de ideias - disse ele. - Lá em cima temos mais espaço, mas há mais três tipos na cela.
- Mais três?
Steve acenou com a cabeça.
- Achei que era melhor ficar à espera até ter alguém conhecido lá em cima.
Chris deitou-se no catre e fechou os olhos. Depois daquele tempo todo, gostava de ouvir o som da voz de outra pessoa, as ideias de outra pessoa.
- Terça-feira já está outra vez a chegar - disse ele. Ouviu Steve suspirar.
- É isso - respondeu ele. - Talvez seja desta.
O mais engraçado era que Chris se transformara num herói. O facto de não ter tramado Hector por causa do cigarro, quando podia perfeitamente tê-lo feito, elevara-o ao grau de recluso respeitável, que estava disposto a assumir as culpas no lugar de outra pessoa. Por muito indigna que ela fosse.
- Companheiro - chamava-lhe Hector. Chris podia decidir, das quatro às cinco da tarde, em que canal devia estar sintonizado o televisor. Na sala de exercício, era autorizado a exercitar-se com os pesos durante algum tempo.
Um dia, ao regressar da sala de exercícios Hector encostou-o à parede num canto escuro da escadaria, no local que as câmaras não conseguiam captar.
- Duche - sibilou ele -, às dez e um quarto.
E que raio queria isso dizer? Chris passou o resto do dia a pensar se teria um encontro marcado para levar uma tareia, ou se Hector teria outros planos que exigiam encontrar-se com ele em privado. Esperou até às dez, depois agarrou na toalha e dirigiu-se para o pequeno cubículo ao fundo do recinto.
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Não estava lá mais ninguém. Encolhendo os ombros, Chris despiu-se e abriu a torneira. Entrou no duche e tinha começado a ensaboar-se quando Hector espreitou lá para dentro.
- Mas que merda é esta?
Chris pestanejou, tirando a água dos olhos.
- Disseste-me para vir para aqui - disse ele.
- Não te disse para tomares um duche - disse.
Por acaso, dissera. Mas Chris não ia referir esse facto. Fechou a torneira, mas Hector enfiou um braço dentro do duche para voltar a abri-la.
- Deixa estar - disse ele. - Esconde o fumo.
Depois tirou do fato-macaco uma caneta Bic que fora aquecida para formar uma curva e esticada numa das pontas para fazer um pequeno reservatório para o tabaco. Desdobrou um quadrado de papel, colocou qualquer coisa preciosa no cachimbo improvisado e, em seguida, acendeu um isqueiro interdito.
- Toma - disse ele, inalando profundamente.
Chris não era suficientemente estúpido para recusar a hospitalidade de Hector. Afastou a cabeça do fio de água a escorrer e inalou, explodindo num ataque de tosse. Não era um cigarro, isso era verdade, mas também não tinha o gosto doce da erva.
- O que é isto? - perguntou ele.
- Cascas de banana - disse Hector. - O Damon e eu queimámo-las - agarrou no cachimbo, batendo levemente para assentar.
- Por um boião de café, faço-te um pacote.
Chris sentiu a água que lhe escorria pela nuca ficar fria.
- Vamos ver - disse ele, agarrando novamente no cachimbo que Hector lhe oferecia.
- Sabes, menino da faculdade - disse Hector -, julguei-te mal. Chris não respondeu. Colocou os lábios no cachimbo, inalou,
e não ficou muito admirado por ver que daquela vez o fumo saiu naturalmente.
No sábado de manhã Chris foi um dos primeiros reclusos a ser levado para se encontrar com as visitas. Ao contrário da última vez que a mãe viera à prisão, estava dolorosamente direita, com a fúria e o medo a estalarem em seu redor como correntes eléctricas que Chris conseguia ver mesmo àquela distância. Abraçou Chris e por um breve instante teve a sensação de que os anos não tinham passado; de que era de novo mais pequeno e mais fraco do que ela.
- O que aconteceu? - disse ela asperamente. - Vim aqui na terça-feira e descobri que não podia ver-te porque estavas a cumprir
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uma espécie de castigo disciplinar, e, quando perguntei que castigo era esse, disseram-me que estavas fechado numa espécie de... de jaula vinte e quatro horas por dia.
- Vinte e três - disse Chris. - Temos direito a uma hora no duche. Gus aproximou-se mais, com os lábios brancos.
- O que fizeste? - sussurrou ela.
- Armaram-me uma cilada - murmurou Chris. - Um dos outros reclusos estava a tentar meter-me em sarilhos.
- Estava... estava o quê? - chocada, Gus encostou-se pesadamente para trás. - E tu limitaste-te... a deixá-lo?
Chris sentiu duas manchas de cor a surgirem-lhe nas faces.
- Ele pôs um cigarro dentro do meu ténis; um cigarro que os guardas encontraram quando revistaram a cela. E sim, deixei-o, porque estar sozinho durante cinco dias era melhor do que este tipo andar atrás de mim com uma faca que fez com lâminas de barbear.
Gus encostou o punho à boca, e Chris interrogou-se que palavras estaria a tentar guardar lá dentro.
- Tem de haver alguém com quem eu possa falar - disse ela por fim. - vou falar com o superintendente quando sair daqui hoje. Não é assim que uma prisão devia funcionar e...
- Como sabes? - Chris abanou a cabeça. - Não vás defender-me - disse ele, cansado.
- Tu não és como estes criminosos - disse Gus. - És só uma criança.
Ao ouvir aquilo, Chris levantou bruscamente a cabeça.
- Não, mãe. Não sou uma criança. Já tenho idade para ser julgado como um adulto; já tenho idade para cumprir a minha pena numa prisão para adultos - olhou por cima dela. - Não me transformes numa coisa que eu não sou - disse ele, e as suas palavras eram como um jogo limpo de cartas na mesa.
No sábado à noite, houve uma tempestade terrível, e até mesmo as paredes sólidas de cimento pareciam ranger e ameaçar cair. As portas das celas fechavam-se tarde nos fins-de-semana às duas da manhã - e a maioria dos reclusos estava mais desordeira do que o habitual. Chris ainda não cultivara a arte de dormir como uma pedra quando o resto do recinto estava animado e ruidoso, mas estava deitado no catre com uma almofada por cima da cabeça, interrogando-se se seria verdadeiramente possível ouvir o som da chuva infiltrar-se nos tijolos e vergastar o tecto.
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Houvera uma briga antes - uma discussão sobre se deviam ver o Saturday Night Live ou o Mad TV, que resultara em duas celas terem sido fechadas durante uma hora,
com os reclusos a gritarem um com o outro através das grades. Steve vira televisão durante algum tempo, depois entrara na cela e subira para o catre de cima. Chris
estava a fingir que dormia, mas ouviu Steve abrir o invólucro de uma barra de NutRageous que comprara naquela semana.
Também comprara algumas coisas para Chris. M&Ms, café e Twinkies. Por causa do castigo disciplinar, Chris não estivera lá no dia de fazer as encomendas, e achou
que aquela era a maneira de Steve lhe agradecer por não ter sido um chibo.
Passado algum tempo, cessaram os movimentos no catre de cima, e Chris apercebeu-se de que Steve adormecera. Ficou à espera até os guardas os chamarem para trancar
as celas, e depois ouviu o ruído dos chinelos de borracha no chão; o som leve de alguém a urinar; a diminuição gradual de intensidade até ao silêncio.
Apagaram-se as luzes.
As luzes, na realidade, nunca se apagavam completamente. Diminuíam consideravelmente de intensidade, mas, por outro lado, era tão soturno na secção de segurança máxima que demorávamos quase o mesmo tempo a adaptarmo-nos a ver durante o dia do que a dormir nas sombras. Chris ficou a ouvir aquele vento, imaginando que estava lá fora no meio de um campo tão vasto que não conseguia ver-lhe os limites. A chuva escorria por ele, e erguia o rosto para ela e via o céu.
Ouviu-se um lamento, e depois outro.
Chris bateu com a palma da mão aberta no beliche de cima; já o fizera uma ou duas vezes quando Steve estava a ressonar. Mas em vez de ouvir o outro homem virar-se para o lado e continuar a dormir, ouviu-se um grito agudo e doloroso.
Levantou-se da cama e pôs-se de pé quando Steve começou a agitar-se no beliche, soluçando convulsivamente. Chris ficou imóvel e estupefacto durante um instante, a observá-lo. Steve tinha os olhos fechados, uma respiração ofegante. Era evidente que estava perturbado, e era igualmente evidente que estava a dormir.
Ao segundo grito, Chris agarrou no ombro de Steve. Sacudiu-o com um pouco mais de força, e à luz ténue da noite na prisão viu as fendas prateadas dos olhos de Steve. Steve sacudiu a mão de Chris, e este sentiu-se corar de vergonha. A regra mais importante da prisão era que não devíamos tocar em ninguém se não nos pedissem expressamente para o fazer.
- Desculpa - balbuciou ele. - Estavas a ter um pesadelo.
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Ao ouvir isto, Steve pestanejou.
- Estava?
- Estavas a gritar e tudo - disse Chris, hesitando. - Não me pareceu que quisesses acordar toda a gente.
Steve saiu do catre de cima. Contornou Chris e sentou-se na sanita fechada, apoiando a cabeça nas mãos.
- Merda - disse ele.
Chris sentou-se no seu catre. À distância, ainda ouvia o assobio do vento.
- Devias voltar a dormir. Steve ergueu os olhos.
- Sabias que às vezes também gritas à noite?
- Não grito nada - contrariou-o Chris automaticamente.
- Gritas sim - disse Steve. - Eu oiço-te. Chris encolheu os ombros.
- Como queiras - disse ele, puxando uma cutícula.
- Vê-la? A Em?
- Como raio sabes da Em? - perguntou Chris.
- É o nome que costumas dizer. À noite - Steve levantou-se, encostando-se às grades de metal da cela. - Estava só a pensar se a verias, como eu o vejo... a ele.
Chris lembrou-se do aviso de Jordan McAfee, sobre bufos que os polícias colocam nas celas só para sondarem confissões. Se fizesse perguntas, far-lhe-iam perguntas, e não tinha a certeza se queria estabelecer esse tipo de ligação. Mas apesar disso, Chris ouviu-se murmurar:
- O que aconteceu?
- Estava sozinho em casa com ele - sussurrou Steve. - Eu e a Liza tivemos uma grande discussão e ela foi a correr para o cabeleireiro onde trabalhava. Nem sequer me falava quando se foi embora, mas disse-me para tomar conta do bebé. Fiquei irritado, e comecei a beber tudo o que havia no frigorífico. E então ele acordou a chorar tão alto que fiquei com dores de cabeça - Steve virou-se, encostando a testa às grades. - Tentei dar-lhe o biberão e mudei-lhe a fralda, mas ele continuou a berrar. Por isso peguei-lhe ao colo, sempre com ele aos gritos nos meus ouvidos, e a cabeça a latejar. Quando dei por mim estava a abaná-lo, a dizer-lhe para parar de chorar - respirou fundo, em lágrimas. - E depois estava a abaná-lo para tentar fazê-lo chorar de novo.
Steve virou-se, de olhos cinzentos e vidrados.
- Sabes o que é, pegar nesta... nesta pessoa pequenina ao colo... depois... e saber que nós é que devíamos protegê-la?
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Chris engoliu em seco, com um nó na garganta.
- Como se chamava ele?
- Benjamin - disse Steve. - Benjamin Tyler Vernon.
- Em - disse Chris num tom suave, uma resposta perfeitamente apropriada. - Emily Gold.
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PASSADO
Maio de 1996
"A respiração está tão próxima que sinto o gosto dele. Põe-me as mãos na cintura, depois fá-las deslizar para cima e belisca-me. Quero dizer-lhe que magoa, mas não
consigo falar. Quero dizer-lhe que assim já não gosto.
Ele empurra-me para trás e, depois, a mão está lá em baixo e eu começo a gritar."
O grito do despertador fez Emily sentar-se bruscamente na cama. Tinha os lençóis enrolados em volta dos pés; a camisa de noite suada. Pondo as pernas para fora da cama, espreguiçou-se. Foi à casa de banho e abriu a torneira do duche, ficou à espera até haver uma nuvem de vapor por cima da cabeça antes de entrar. Ao passar diante do espelho, desviou o rosto. Ver-se nua não lhe parecia completamente correcto.
Inclinou a cabeça para trás e deixou que a água lhe acalmasse o couro cabeludo. Depois agarrou no sabonete e esfregou a pele até sangrar em alguns sítios, mas não conseguia sentir-se limpa.
Para variar, História era interessante. Repugnante, mas absolutamente fascinante. O Dr. Waterstone interrompera provisoriamente os sistemas de medida no sistema de impostos sem representação para particularizar a vida na América colonial. Tinham passado a semana anterior a aprender os preços de um rolo de chita, de uma colheita
de algodão, de um escravo saudável. Hoje, iam estudar os índios.
Ups. Nativos americanos. O objectivo deste desvio do manual era dar aos alunos uma noção de como era a vida de um colono. Que englobava não só a interferência da
coroa inglesa, mas também uma deliberada falta de contacto com os nativos.
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Os olhos de Emily estavam colados ao ecrã em frente à turma. Como constatava, nem mesmo os piores alunos - completamente agarrados - estavam a passar bilhetinhos. Todos assistiam à encenação notável de um guerreiro Mohawk abrir o peito de um padre jesuíta franco-canadiano e comer-lhe o coração diante dos seus olhos.
Ouviu-se um baque ao fundo da sala, e Emily desviou o olhar o tempo suficiente para reparar que Adrienne Whalley, uma chefe de claque, estava estendida no chão desmaiada.
- Oh, merda - disse o Dr. Waterstone em voz baixa, mas praguejou na mesma. Parou o filme, acendeu as luzes, e mandou um aluno ao gabinete da enfermeira. O próprio Dr. Waterstone agachou-se junto a Adrienne, esfregando-lhe a mão, e Em interrogou-se se não teria sido essa a intenção de Adrienne desde o início. O jovem Dr. Waterstone, com os seus cabelos negros pelos ombros e olhos de um verde intenso, era o professor mais atraente do liceu.
A campainha soou no exacto momento em que a enfermeira entrou na sala de aula com um frasco de amoníaco de que Adrienne, já acordada, não precisava. Emily agarrou nos livros e dirigiu-se para a porta da sala, onde Chris já estava à espera. Deu-lhe a mão e começaram a caminhar em fila.
- Como foi a aula do Waterstone? - perguntou ele; Chris ia ter História ao último tempo.
Emily encostou-se mais a ele quando um grupo de alunos passou, e depois ficou ao seu lado.
- Oh - disse ela. - Vais gostar.
Gostava dos beijos.
Na realidade, se pudesse ficar só por aí, ficaria. Gostava de abrir a boca junto da de Chris para que ele a preenchesse com a língua, como se estivesse a transmitir-lhe segredos. Gostava de sentir o gemido dele rebolar, redondo como um rebuçado e morno, para dentro da sua boca. Gostava sobretudo da forma como as mãos grandes dele lhe envolviam a cabeça, como se conseguisse manter os pensamentos coesos mesmo quando estes começavam a fugir em direcções que ela não queria explorar.
Mas ultimamente, parecia que se beijavam menos e passavam mais tempo a discutir onde as mãos de Chris deviam estar.
Agora estavam no banco de trás do Jeep - quantas vezes Emily pensara se Chris teria escolhido aquele carro por os assentos se inclinarem para trás? - com os vidros das janelas todos embaciados.
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Num deles, Emily desenhara um coração com as iniciais deles. Agora via Chris encostar-se ali, apagando-o.
- Quero-te tanto, Em - sussurrou Chris junto ao seu pescoço, e ela acenou com a cabeça. Também queria Chris. Só que não da mesma maneira.
Em abstracto, a ideia de fazer amor com Chris era intrigante. Porque não haveria de fazer, visto que o amava mais do que qualquer outra pessoa no mundo? Mas a parte física - a forma como ele lhe tocava - fazia-a sentir-se agoniada. Receava que quando tivesse coragem para fazer sexo, estaria demasiado ocupada a vomitar para terminar aquilo que tinha começado. O problema era que olhava para a mão de Chris no seu seio e imaginava aquela mesma mão, embora mais pequena, a roubar meia dúzia de biscoitos acabados de sair do forno antes que a mãe de Chris visse. Ou imaginava os longos dedos cruzados num jogo de Pedra, Papel ou Tesoura quando estavam sentados no banco de trás do carro numas férias em família.
Às vezes parecia que estava a rebolar no assento de trás do Jeep com um rapaz incrivelmente atraente e sexy. E, outras vezes, parecia que estava a lutar com o próprio irmão. Por muito que se esforçasse, não conseguia separar um do outro.
Empurrou suavemente o peito de Chris, tentando fazê-lo sentar-se. Quando levantou a cabeça de sobrolho franzido, ela sorriu-lhe. Ainda tinha os lábios brilhantes
e húmidos, e sentiu um círculo frio à volta do mamilo. Entrelaçou os dedos nos dele.
- Sentes-te... ãa... próximo de mim? Os olhos de Chris faiscaram.
- Claro que sinto. Emily vacilou.
- Não queria dizer... isso - corrigiu ela. - Acho, bem, é que me conheces melhor do que o meu próprio irmão.
- Não tens nenhum irmão.
- Eu sei - disse Emily. - Mas se tivesse, serias tu. Chris esboçou um sorriso malicioso.
- Bem, graças a Deus que não sou - disse ele, voltando a curvar a cabeça.
Ela puxou-lhe os cabelos.
- Já pensaste em mim dessa maneira? - perguntou ela timidamente. - Como uma irmã?
- Não neste preciso momento - disse ele numa voz sufocada, e encostou os lábios aos dela.
- Posso jurar-te que nunca - beijou-a novamente -, nunca - e mais uma vez -, tive vontade de fazer isto com a Kate - afastou-se
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dela voluntariamente, o volume debaixo das calças de ganga a suavizar-se. - Meu Deus! - disse ele, estremecendo. - Agora fizeste-me ficar arrepiado.
Emily pousou-lhe uma mão no peito. Adorava o peito dele, com uma penugem clara e músculos longos.
- Desculpa. Foi sem querer - colocou-se entre os braços de Chris e sentiu-os fecharem-se em seu redor. - Vamos ficar calados sugeriu ela, e escondeu o rosto no calor da pele dele.
"A respiração dele entra-me na boca, é o único ar de que disponho. As mãos começam nos tornozelos e deslizam-me pelas canelas, afastando-as como um torno, e sei o que vai acontecer quando os dedos dele me penetram com violência.
Não me deixa fechar as pernas, não me deixa afastar-me. Tem sangue na mão. Empurra-me os ombros e traça-me uma linha vermelha a meio do peito. Abre-se e sinto-o enfiar a mão dentro de mim, de forma tensa, desconfortável; então há algo que estremece como gelatina e sai cá para fora, e, quando ergo os olhos, vejo os dentes de Chris cravarem-se no meu coração."
- Não.
Emily puxou o colarinho da camisa de Chris.
- Não - repetiu, e quando as mãos dele a apertaram com mais força, beliscou-lhe o pescoço. - Não! - gritou, tirando-o de cima dela com um violento empurrão. - Eu disse que não - disse ela, ofegante.
Chris engoliu em seco, a sua erecção rosada por cima das calças de ganga abertas.
- Achava que não estavas a falar a sério - disse ele.
- Caramba, Chris - disse ela. Esfregou os braços, toda arrepiada, e desviou o rosto. O problema era que, no Jeep, não havia muito espaço para onde ir.
Ficou à espera que as mãos dele se fechassem sobre os ombros, como acontecia sempre que chegavam àquele ponto. Era como uma peça de teatro, chegando ao fim do mesmo acto, todas as noites. Caía o pano, e amanhã repetiam tudo de novo. Mas Emily não sentiu Chris aproximar-se dela daquela vez. Ouviu o ruído do fecho ao vestir-se, o ranger do banco rebatido do Jeep quando se ajoelhou, movimentando-se à sua volta.
- Sai daí - disse num tom áspero e, quando ela saiu, voltou a colocar o banco na posição inicial.
Só quando a luz do tejadilho se acendeu, quando Chris abriu a porta da frente para se sentar no lugar do condutor, é que Emily
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se apercebeu de que ele queria ir embora. Passando por cima da consola das mudanças, conseguiu apertar o cinto de segurança enquanto Chris saía do parque de estacionamento vazio a acelerar. Conduzia depressa e loucamente, o oposto da cautela natural de Chris. Quando deu uma curva na estrada sobre duas rodas, Emily pousou-lhe uma mão no braço.
- O que se passa contigo?
Ele ficou a olhar para ela, com um rosto tão tenso ao brilho das luzes da estrada que por um instante Emily não o reconheceu.
- O que se passa comigo? - repetiu ele. - O que se passa comigo? Sem avisar, guinou o carro para um beco sem saída à direita e
colocou-o em ponto morto.
- Queres saber o que se passa comigo, Em? - agarrou-lhe a mão e encostou-a com força às virilhas. - É isto que se passa comigo - largou-lhe o pulso, deixando que a mão dela se retraísse para debaixo da coxa, escondendo-se. - É a única coisa que me faz prosseguir. E noite após noite tu dizes que não, e eu devo afastar-me para lidar com isto à minha maneira, só que não consigo lidar com isto. Já não - Emily corou e ficou a olhar para o colo, ouvindo Chris suspirar passado um momento. Passou a mão pelos cabelos, fazendo-os ficar todos espetados. - Fazes alguma ideia - disse ele, numa voz suave -, alguma ideia do quanto te quero?
Ela mordeu o lábio.
- Querer não é amar. Ele riu, sobressaltado.
- Estás a brincar? Amo-te... bem, caramba, desde que nasci. O desejo é que é novo para mim - afagou a têmpora de Emily com o polegar. - Querer não é amar - concordou ele. - Mas é como se fosse, pelo menos para mim.
- Porquê? - conseguiu Emily dizer.
Chris sorriu-lhe, derretendo as suas defesas mais fortes.
- Porque querer-te, Em - disse ele -, só me fez amar-te ainda mais.
"Tudo estava mais nítido. Sentia o cheiro do hálito negro dele, sentia os pêlos ásperos nas costas da mão, via o seu próprio rosto olhar para ela. Vestia qualquer coisa com uma cintura de elástico; estalou-lhe nas ancas. Havia as sensações familiares de ele a arranhá-la com as unhas, as palmas das mãos a rasparem-lhe os mamilos, o ardor entre as pernas.
Mas desta vez havia mais. O zumbido de - quê? - abelhas? O cheiro acre a desinfectante. O aroma inconfundível de uma cozinha, de algo a ser frito em óleo."
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Abalada, Emily acordou, incapaz de se lembrar do que a deixara tão desperta e tensa que voltar a adormecer era impossível. Provavelmente, estava a sonhar com o que aconteceria na noite seguinte. A noite que ela e Chris tinham reservado para praticar sexo pela primeira vez.
"Fazer amor", relembrou a si própria, como se o eufemismo pudesse transformá-lo em qualquer coisa mais fácil de aceitar.
Semicerrou os olhos na escuridão, tentando encontrar os ténis. Arrastou-os de debaixo da secretária e calçou-os, deixando-os desapertados. Depois vestiu a camisola da natação de Chris por cima da camisa de noite e desceu as escadas em bicos de pés para sair de casa.
Estava calor para Maio e a Lua ia alta e redonda, realçando o caminho entre a casa dos Harte e a dos Gold como um regato prateado. Emily apressou-se, com os braços alvos como os finos ramos das bétulas por que passava.
Para sua surpresa, ao chegar a casa de Chris a luz do quarto dele ainda estava acesa. Às três da manhã? Numa quinta-feira à noite? Apanhou uma pequena pedra e atirou-a à janela dele, vendo o seu rosto aparecer quase instantaneamente. A luz apagou-se e de repente Chris estava a alguns metros dela, de T-shirt e boxers, com os dedos
apoiados na ombreira da porta.
- Não conseguia dormir - disse Emily.
- Eu também não - admitiu Chris, com um sorriso. - Não conseguia deixar de pensar em amanhã e ficar todo entusiasmado.
Emily não disse nada. Ele que pensasse que também fora por isso que não conseguia dormir.
Saiu do alpendre, descalço, retraindo-se por causa da gravilha e dos ramos que lhe cortavam as plantas dos pés ao aproximar-se de Emily.
- Anda lá - disse ele. - É melhor termos insónias juntos. Puxou-a para a extremidade do relvado dos Harte, para o local
onde começava a floresta. O chão ali era mais macio - carumas ainda molhadas do Inverno, musgo que crescia numa franja verde irregular. O passo de Chris tornou-se mais seguro à medida que se dirigiam para o bosque, para uma enorme laje de granito.
Já lá não iam há anos, costumavam ali brincar com paus a fingirem de mosquetes e pequenos seixos como balas de canhão. Chris trepou para a rocha alta e plana, e ajudou Emily a subir. Envolveu-a com um braço e olhou para trás, para a casa.
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- Lembras-te de quando me empurraste daqui para baixo e tive de levar pontos?
A mão de Emily tocou às cegas no local, no maxilar de Chris.
- Tens dezassete anos - disse ela secamente. - E ainda não me perdoaste.
- Oh, eu perdoei-te - Chris tranquilizou-a. - Só que não me esqueci.
- Está bem - disse ela, abrindo os braços. - Empurra-me também, para ficarmos quites.
Chris lançou-se, fazendo Emily cair de costas enquanto ela ria e dava pontapés com os calcanhares nas canelas dele. Fizeram cócegas e rebolaram como Emily se lembrava que faziam em crianças, como cachorrinhos a perseguirem as caudas uns dos outros. E então de repente, as mãos de Chris imobilizaram-se por cima dos seus seios e a boca dele pairava sobre a sua no espaço de uma respiração.
- Admite a derrota - sussurrou ele, apertando ligeiramente.
- Ad... - disse Emily. Então a língua dele encheu-lhe a boca e as mãos deslizaram da clavícula para as ancas, num jogo completamente diferente. Ela fechou os olhos,
ouvindo a respiração de Chris e o pio gutural daquela coruja.
Tão depressa como começara, Chris saiu de cima dela. Fez Emily sentar-se e colocou castamente um braço à sua volta.
- Acho - disse ele -, que já basta. Emily virou-se para ele, de boca aberta.
- De repente consegues esperar?
No escuro, os dentes dele eram muito brilhantes.
- Agora que há uma luz ao fundo do túnel, consigo - disse ele. Colocou-lhe o braço em volta da cintura. Emily estremeceu, e
tentou convencer-se de que era por causa do frio.
Estavam deitados nas tábuas de madeira do carrossel, a ver as estrelas girarem através da confusão de cascos e caudas esculpidos. Os ombros, os cotovelos e as ancas tocavam-se, pontos que pareciam queimar. Chris cobriu a mão dela com a sua, e ela quase deu um salto.
Ele levantou-se, apoiado num cotovelo.
- O que foi?
Ela abanou a cabeça, com um doloroso aperto na garganta.
- Não consigo ficar aqui sentada à espera que aconteça - disse ela. - Quero despachar isto.
Chris abriu muito os olhos.
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- Não é nenhuma execução, sabes - disse ele.
- Isso dizes tu - resmungou Emily.
- Bem - disse ele. - E se conversássemos um bocado, para ver o que acontece?
- Conversar - Emily soltou um grunhido de desdém, como se o próprio conceito de que isso conduziria ao sexo fosse impensável. - Vamos conversar sobre o quê?
- Não sei. E se falássemos sobre aquela vez em que vimos os cães fazerem isso?
Emily riu.
- Já me tinha esquecido disso - disse ela. - O caniche da Sr.a Morton e a springer spaniel de Fieldcrest Lane - sentiu os dedos de Chris entrelaçarem-se nos seus
e falar tornou-se subitamente mais fácil. Achava que o caniche não ia conseguir pôr-se em cima dela.
Chris sorriu.
- Foi engraçado, não foi? - e depois riu.
- O quê?
- Estava a pensar que o que é justo é justo, devíamos ir à procura daqueles cães - disse ele - para que pudessem ver-nos.
Ela lembrou-se do pénis longo e fino do caniche a sair da spaniel maior do que ele e a bater-lhe nas patas enquanto saltava. O que quer que fosse que ela e Chris estivessem prestes a fazer não podia ser mais embaraçoso do que aquilo. O braço de Chris envolveu-lhe os ombros.
- Estás melhor?
- Estou - admitiu ela, virando o rosto para debaixo do braço dele. Cheirava a desodorizante doce, suor e entusiasmo.
- E se eu - sugeriu ele inclinando-lhe o rosto para cima - só te beijasse?
- Só um beijo - disse ela.
- Por agora. Não penses no resto. Emily sorriu junto dos lábios dele.
- Pois, está bem.
A boca de Chris curvou-se juntamente com a dela.
- Faz-me a vontade - percorreu o contorno dos lábios dela com a língua, depois continuou a beijá-la deslizando pelo pescoço. Sentiu as mãos dele tremer ao enfiarem-se por baixo da camisola, e isso fê-la sentir-se melhor do que qualquer outra coisa, saber que também Chris estava nervoso.
Então, como o tempo passa na adolescência, demasiado depressa e muito lentamente em simultâneo, Emily apercebeu-se de
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que estava despida, com a pele arrepiada. Observou Chris colocar um preservativo, e surpreendeu-se ao achá-lo belo, nem estranho, nem feio. Deixou que Chris se colocasse em cima dela, o peito dele a arder junto do seu, o corpo dele entre as suas pernas.
- Achas - sussurrou ela, em pânico - que vai doer? Isso fê-lo parar.
- Não sei - disse ele. - Acho que sim, um bocadinho - virou-se, colocando-se ao lado de Emily e pousou-lhe uma mão na anca, preocupado.
- O que foi? - perguntou Emily.
- Nada - disse ele, olhando-a nos olhos. - Já me tinha esquecido disso.
- Tenho a certeza de que não deve doer assim tanto - disse Emily. - Não me parece que alguém tenha morrido disso - "O que estou eu a fazer?", pensou ela , desvairada. "Porque estou a incentivá-lo?"
Chris sorriu e afastou-lhe os cabelos da testa.
- Se pudesse evitar magoar-te, evitava - disse ele. - Quem me dera ser eu a sentir a dor.
Emily tocou-lhe no braço.
- Isso é muito altruísta.
- Não é altruísta - disse Chris. - É egoísta. Sei que eu aguento um pouco de dor. Mas acho que não aguento ver-te sofrer.
Emily meteu a mão entre as pernas dele, envolvendo-o com os dedos e fazendo-o arquejar. Rebolou para cima dela apoiando-se nos cotovelos.
- Se doer - disse ele -, belisca-me. Para ficarmos em pé de igualdade.
Ela sentiu que ele lhe tocava, sentiu qualquer coisa húmida que percebeu que vinha dela, e depois ele fê-la esticar, parando em seguida. Vislumbrou fugazmente os quebra-cabeças de mil peças que faziam em crianças, como Chris tinha tendência para enfiar peças onde não se encaixavam bem.
- Em - disse ele, com a testa coberta de suor. - Queres fazer isto? Ela apercebeu-se de que ele pararia se abanasse a cabeça. Mas
pensou que o que ela desejava e o que Chris desejava eram duas coisas inextrincavelmente misturadas, e ela sabia que ele desejava aquilo acima de tudo.
Quando ela acenou ligeiramente com a cabeça, Chris entrou suavemente dentro dela.
Doeu por um instante, e ela cravou-lhe as unhas nas costas. Depois deixou de doer tanto. Era estranho, esticava-a de dentro
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para fora, mas não era doloroso. Sentiu as ancas moverem-se quando Chris começou a empurrar e a gemer, cada vez mais depressa, fazendo as costas dela deslizarem alguns centímetros para trás em cima das tábuas do chão do carrossel.
Quando ele gritou, ela fitava de olhos muito abertos a barriga nua de um dos cavalos, apercebendo-se pela primeira vez de que não tinha sido toda pintada.
Chris saiu de cima dela, ofegante.
- Oh, meu Deus - disse ele, estendido de costas. - Acho que morri - passado um instante puxou-a para junto de si. - Amo-te - sussurrou, tocando-lhe nas têmporas com um dedo. - Mas fiz-te chorar.
Ela abanou a cabeça, vendo apenas naquele momento que as lágrimas ainda escorriam.
- Fizeste-me... - a voz dela desvaneceu-se, e deixou a frase ficar assim.
"É só um desafio, tentara convencer-se a si própria naquele dia, e abriu a porta da casa de banho dos homens do McDonalds. Para sua surpresa era exactamente igual à das senhoras, à excepção de dois urinóis na parede, e o facto de cheirar pior. Estava alguém no outro cubículo; Emily via-lhe as pernas. Paralisada de vergonha - e se ele reparasse que os sapatos dela eram de uma menina de nove anos? - ficou presa ao chão em frente ao lavatório. Ouviu-se o som da descarga do autoclismo, e depois a porta do cubículo abriu-se. O Susto estava ali, com as roupas a cheirar a gordura e a desinfectante.
- Ora bem - disse ele. - O que temos aqui? Emily sentiu as pernas tremer.
- Eu... devo ter-me enganado - gaguejou ela. Virou-se, dirigindo-se para a porta, mas ele agarrou-lhe no pulso.
- Ai sim? - disse ele, com a voz a enrolar-se à sua volta como fumo, puxando-a para mais perto dele. - Como é que sabes que te enganaste?
Empurrou-a contra a porta, barrando a entrada a qualquer outra pessoa. Segurando-lhe as mãos por cima da cabeça, enfiou a outra mão por dentro da camisola dela.
- Não tens maminhas - disse ele. - Podes ser um homem - depois enfiou a mão por baixo do elástico dos calções e esfregou os dedos entre as pernas fechadas. - Mas
também não sinto nenhuma pilinha - disse ele. Inclinou-se para a frente, tão perto que Em sentia o odor do hálito dele. Temos de ter a certeza - disse ele, e enfiou
um dedo dentro dela.
O pânico era como uma mortalha que a envolvia, endurecendo-lhe o corpo e enchendo-lhe a boca de forma que mesmo que gritasse dentro da sua cabeça, não lhe saía nenhum som da garganta. Tão depressa como a agarrara o homem largou-a. Emily caiu no chão de ladrilhos castanhos quando ele
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saiu, sentindo o ardor do desinfectante das mãos dele dentro de si. Vomitou no chão, depois levantou-se e passou a boca por água. Endireitou as roupas e voltou para
a mesa, onde Chris estava à sua espera."
- Chiu - disse Chris, abraçando-a junto ao peito. - Estavas a gritar.
Ainda estava nua, e Chris também, a erecção dele roçava-lhe na anca. Afastou-se, enrolando-se numa bola.
- Adormeci - disse ela, numa voz trémula.
- Oh - disse Chris, sorrindo suavemente. - Desculpa por ser tão aborrecido.
- Não é isso - explicou Emily.
- Eu sei. Vem cá e senta-te aqui comigo - estendeu-lhe a mão, sem nenhuma ameaça, e Emily sentou-se no colo dele, tentando convencer-se de que era perfeitamente normal fazerem aquilo, embora estivessem ambos completamente nus.
Sentiu as mãos de Chris em cima dela, fazendo-a deitar-se de novo nas tábuas frias de madeira. Quando tentou esquivar-se, ele segurou-a, e ela gemeu.
- Sei que estás dorida - disse ele. - Só quero olhar para ti. Há bocado foi tudo muito à pressa.
Pousou os olhos nos seios dela, e depois os dedos. Traçou círculos à volta dos mamilos, mordeu-lhe a clavícula. Deixou que as mãos descessem para a barriga, as ancas e depois abriu-a e passou um dedo pelas pregas. A tremer, ela tentou afastá-lo com os pés, mas ele segurou-lhe nos tornozelos.
- Não - disse ele. - Deixa-me só olhar para ti.
Sentiu a boca dele a deixar-lhe uma marca húmida no umbigo, depois deslizou mais para baixo.
- És perfeita - declarou, e ela empalideceu, sabendo agora que nada podia estar mais longe da verdade. - Não te mexas - disse ele, com as palavras a vibrarem-lhe entre as pernas, e então começou a soluçar.
Ele recuou imediatamente, alarmado.
- O que foi? Magoei-te?
Ela abanou a cabeça, fazendo as lágrimas voarem.
- Não quero ficar quieta. Não quero ficar quieta - abraçou Chris, e colocou as pernas à sua volta, e sem ter intenção, sentiu-o entrar dentro dela de novo, ajustando-se de forma surpreendente.
- Amo-te - sussurrou Chris, já para além da coerência. Emily desviou o rosto.
- Não faças isso - respondeu.
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PRESENTE
Dezembro de 1997
Gus interrogou-se se Chris sentiria falta de tomar decisões.
Fitando a abundância colorida de frutas no supermercado, lado a lado, como um arco-íris de soldados, não conseguiu evitar comparar os castanho-avermelhados e os
cinzentos do Estabelecimento Prisional do Condado de Grafton com a beleza inadvertida da mercearia. As opções eram esmagadoras - escolheria as tangerinas, as maçãs verdes Granny Smith, os tomates de faces macias? Uma escolha a cada esquina - a antítese completa de nos mandarem comer determinada coisa, entrar em determinado sítio, tomar duche em determinada altura.
Estendeu a mão para as clementinas. Eram as preferidas de Chris, e adoraria levar-lhe algumas na terça-feira seguinte... mas seria sequer permitido? Imaginou um
daqueles homens robustos de fato azul a dividir os frutos em bocados à procura de lâminas de barbear, como ela própria fizera aos doces do Dia das Bruxas quando ele era pequeno, à procura de alfinetes. Só que ela procurava por amor. Os guardas procurariam por dever.
Gus abriu o saco e voltou a colocar as clementinas no monte.
"Será possível?"
"Naquela casa?"
Gus virou-se, empurrando o carrinho para a variedade de alfaces, mas viu apenas algumas comadres de Bainbridge fazerem as compras semanais.
"Bem. Eu acredito. Vi o rapaz uma vez, e ele estava..."
"Sabia que o pai recebeu uma homenagem em medicina?"
Gus cerrou as mãos na pega do carrinho de compras. Endurecendo, dirigiu-se para as mulheres que estavam ocupadas a cheirar melões.
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- Desculpem - disse Gus, mostrando os dentes num sorriso tenso. - Têm alguma coisa para me dizer?
- Oh, não - disse uma das mulheres, abanando a cabeça.
- Bem, eu tenho - anunciou a amiga. - Acho que, quando uma criança dessa idade comete um crime tão horrível como este, temos de culpar os pais. Afinal, ele teve
de aprender esse comportamento algures.
- A menos que seja uma ovelha negra - murmurou a primeira mulher.
Gus agarrou-as.
- Importam-se de me dizer - disse ela suavemente - por que razão isso vos diz respeito?
- Quando alguma coisa acontece na nossa cidade, passa a ser um problema nosso. Anda, Anne - disse a segunda mulher, e dirigiram-se para um corredor adjacente.
com manchas de cor a ruborizarem-lhe as faces, Gus deixou o carrinho de compras parcialmente cheio e saiu da loja. Só reparou nos jornais nas bancas porque teve
de passar por uma mãe de gémeos à saída. Dobrado para revelar o título, o Grafton County Gazette anunciava: "HOMICÍDIO NUMA CIDADE PEQUENA, PARTE II." E em letras
muito mais pequenas: "Aumentam as Provas Contra o Atleta do Liceu Preso por Matar a Namorada."
Gus concentrou-se novamente no título. "PARTE II", estava escrito. O que teria acontecido à PARTE I?
Os Harte recebiam o Grafton County Gazette, a maioria das pessoas ali da zona recebia. Por muito sentimentalista que fosse, com os seus artigos de primeira página
sobre silos em quintas leiteiras que tinham ardido completamente e impasses em orçamentos escolares, era também o único jornal que fazia a cobertura da cidade de Bainbridge. Muitos lares também compravam o Boston Globe, mas só para comparar as estatísticas de criminalidade e as posições políticas e basicamente para se lembrarem
de como as suas vidas eram idílicas no New Hampshire. Nas noites em que estavam demasiado ocupados para abrir o Globe, o Gazette - com trinta e duas páginas no máximo
- era um jornal que tinham tempo para ler.
Por acaso, a única vez de que Gus se lembrava de não ter lido o jornal, fora naqueles dias da acusação formal, quando andara tão desiludida que mal conseguia viver no seu próprio mundo, quanto mais ler sobre o mundo que a rodeava.
Gus respirou fundo várias vezes e leu o artigo. Depois abriu-o na página da edição, encontrou o que procurava, e enrolou o jornal debaixo do braço. Encontraram provas
de que Chris estivera no
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carrossel, e depois? Nunca houvera dúvidas da sua presença no local do crime. Só quando chegou ao carro é que percebeu que tinha levado o jornal sem pagar. Por momentos,
ponderou voltar para deixar os trinta e cinco cêntimos, depois resolveu não o fazer. "Que se lixe", pensou. "Eles que pensem que é uma família de criminosos."
Os escritórios do Grafton County Gazette eram quase tão sombrios como a prisão, uma ideia agradável que deu a Gus o ímpeto de se dirigir à recepcionista com o cabelo de dois tons e pedir para falar com Simon Favre, o chefe de edição.
- Lamento - disse a recepcionista de maneira previsível. - O Sr. Favre está em...
- Maus lençóis - terminou Gus por ela, e entrou pela porta dupla que conduzia aos gabinetes editoriais.
Ecrãs verdes de computador exibiam letras e apitavam; ouvia-se o som de uma impressora em plano de fundo.
- Desculpe - disse Gus, dirigindo-se a uma mulher que estava sentada a uma das secretárias, debruçada sobre uma fita de negativos com uma lupa. - Sabe dizer-me onde está o Sr. Favre?
- Por ali - disse a mulher, apontando para uma porta ao fundo da sala. Gus acenou com a cabeça e dirigiu-se para lá, batendo uma vez à porta e depois abrindo-a para se deparar com um homem baixo, com um telefone encostado à orelha.
- Não me interessa - disse ele. - Já lhe disse isso. Está bem. Adeus.
Olhou para Gus e semicerrou os olhos.
- Posso ajudá-la?
- Duvido - disse ela secamente. Escarrapachou o exemplar do Gazette na secretária dele para que o título ofensivo ficasse em evidência.
- Gostava de saber desde quando os jornais publicam ficção. Favre soltou um som do fundo da garganta e virou o jornal
para conseguir lê-lo correctamente.
- E a senhora é?
- Gus Harte - disse ela. - A mãe do rapaz que é acusado de um alegado homicídio.
Favre apontou para a palavra.
- Diz aqui que se trata de um alegado crime - disse ele. - Não percebo...
- Não, nem podia perceber - interrompeu Gus. - Não podia perceber porque não tem um filho inocente que tem de ficar na prisão durante nove meses até ter hipóteses de provar a sua inocência.
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Não podia perceber porque deixou um jornalista pegar numa informação fornecida pela polícia e transformá-la em algo sensacionalista. O meu filho nunca ocultou o facto de que estava com a Emily Gold quando ela morreu, por isso para quê fazer parecer que isso é um ponto fulcral na resolução do caso?
- Porque, Sr.a Harte - disse Favre -, chama a atenção. E não há muitas coisas que chamem a atenção aqui nas redondezas.
- Isso é uma exploração - disse ela. - Podia processá-lo.
- Podia - disse o chefe de edição. - Mas acho que já está a gastar bastante dinheiro em advogados neste momento - ficou a olhar para Gus até que esta desviasse o rosto. - Claro, estaríamos dispostos a ouvir a sua versão. Como provavelmente sabe, a mãe da rapariga deu um exclusivo ao Lou; ele gostaria muito de entrevistá-la também.
- Claro que não - disse Gus. - Porque haveria eu de dar explicações relativamente ao que aconteceu, se o Chris não fez nada de mal?
Favre pestanejou uma vez.
- A senhora é que sabe - disse ele.
- Olhe - disse Gus -, o meu filho é inocente. Ele amava aquela rapariga. Eu adorava aquela rapariga. A verdade é esta - deu uma palmada no jornal. - Quero que seja publicada uma retractação.
Favre riu.
- Do artigo?
- Do tom. Qualquer coisa que afirme com mais clareza do que este lixo que Christopher Harte só será culpado se for condenado em tribunal.
- Muito bem - concordou Favre. Cedera muito facilmente.
- Muito bem?
- Muito bem - repetiu. - Mas não fará qualquer diferença. Gus cruzou os braços por cima do peito.
- Porque não?
- Porque o público já ouviu falar sobre isto - disse o editor. Até já pode ser do conhecimento da Associated Press - amachucou o jornal numa bola e atirou-o para o caixote do lixo. - Até podia dizer que cresceram asas de anjo ao seu filho e que foi a voar para o céu, Sr.a Harte. Até podia ser verdade. Mas se as pessoas já cravaram os dentes na história, não vão largá-la.
Selena entrou em casa de Jordan, despiu o casaco, e estendeu-se no sofá. Thomas, que ouvira a porta abrir-se, saiu do quarto a correr.
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- Oh, olá - disse ele. - O que aconteceu?
- Olha só para ti - disse Selena, bocejando. - Estás cada vez mais bonito.
- Já podes sair comigo? Selena riu.
-Já te disse. No baile de finalistas, ou quando tiveres um metro e noventa, o que acontecer primeiro - agarrou numa lata de Pepsi meio vazia, cheirou-a e bebeu, examinando a confusão de documentos espalhados pelo chão da sala de estar.
- Onde está o teu pai?
- Estou aqui - anunciou Jordan, saindo do quarto de calças de fato de treino largas e uma T-shirt da Nike. - Mas quem é que te deu a minha chave de casa?
- Fui eu - disse Selena, imperturbável. - Fiz uma cópia há alguns meses.
- Bem, estás à vontade - disse Jordan. - Não me peças autorização primeiro.
- Anima-te - Selena virou-se para Thomas. - O que tem ele?
- Recebeu hoje a instrução da procuradoria-geral - Thomas abanou a cabeça, com ar contristado. - Precisa de um ombro macio onde possa chorar.
- Eu não tenho ombros macios, e não costumo ir com pessoas que me pagam - disse Selena.
- Eu não te pago - fez notar Thomas.
- Adeus, Thomas - disseram Selena e Jordan em uníssono. Rindo, Thomas voltou para o quarto e fechou a porta.
Selena sentou-se no sofá enquanto Jordan se afundava nas pilhas de papéis que se amontoavam no chão.
- É assim tão mau?
Jordan bateu com o dedo nos lábios.
- Não diria necessariamente que é tudo mau. Só não é categoricamente bom. Muitas das provas tanto podem ser boas como más, dependendo do ponto de vista.
- Não o vais pôr a testemunhar.
Selena disse isto como uma afirmação, sabendo perfeitamente bem que era essa a intenção de Jordan.
- Não - Jordan passou os olhos por Selena, reclinada sobre as almofadas com a Pepsi na mão. - Acho que assim teremos um caso mais forte - agora que Chris lhe transmitira a informação de que não planeava suicidar-se, essa era a sua história. Ponto final. Se Jordan o chamasse para testemunhar, eticamente seria isso que lhe diria para dizer. Por outro lado, se Chris não testemunhasse, Jordan
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poderia dizer tudo aquilo que quisesse para que o cliente saísse em liberdade. Desde que Chris não cometesse perjúrio, Jordan poderia utilizar a defesa que quisesse.
- Digamos que és uma jurada - supôs Jordan. - Em qual destas duas versões acreditarias mais facilmente: o Chris, que pesava mais vinte e cinco quilos do que a Emily, estava ali naquela noite para impedir que ela se suicidasse, mas não conseguiu tirar-lhe a arma da mão? Ou: iam ambos suicidar-se numa linda prova de amor... só que depois Emily estoirou os miolos, espalhando-os pela camisola do Chris e já não era assim tão bonito, e ele desmaiou antes de conseguir disparar sobre si próprio.
- Percebo o que queres dizer - disse Selena. Fez um gesto indicando as pilhas de papéis. - Por onde devo começar?
Jordan esfregou o rosto com as mãos.
- Não sei. vou demorar dias a ver isto tudo. Em primeiro lugar, acho que deves tentar os pais dele. Precisamos de uma ou duas testemunhas abonatórias irrepreensíveis.
Selena agarrou numa folha de papel, virando-a ao contrário um recibo da lavandaria - e começou a fazer uma lista. Enquanto Jordan se debruçava sobre um relatório forense, Selena agarrou no ficheiro que estava mais próximo. A entrevista que a polícia fizera aos Gold, após a morte. Nada de inesperado da parte da mãe de Emily Gold - muita histeria, uma dose saudável de desgosto, a recusa peremptória de que a sua querida filha se tivesse suicidado.
- Oh, isso? - disse Jordan, olhando. - Passei os olhos por isso hoje à tarde. Não vais conseguir nada da mulher. Ela deu uma entrevista exclusiva ao Gazette - fez uma careta. - Não há nada como o bom jornalismo isento para ajudar a acelerar a justiça.
Selena não respondeu. Virara a página e estava fascinada pela segunda entrevista.
- A Melanie Gold é uma causa perdida - concordou ela. Depois sorriu para Jordan. - Mas o Michael Gold pode ser a tua salvação.
Ser mãe dá-nos um tipo de visão singular, um prisma através do qual conseguimos ver um filho com muitos rostos ao mesmo tempo. É por isso que podemos vê-lo a partir um candeeiro de loiça, e lembrarmo-nos dele como um anjo. Ou abraçá-lo quando chora, mas imaginar o seu sorriso. Ou vê-lo dirigir-se a nós, do tamanho de um homem, e ver a pele cheia de covinhas de um bebé.
Gus pigarreou, embora Chris não fosse capaz de ouvi-la devido ao burburinho dos outros visitantes e à distância considerável. Cruzou os braços e agarrou nos cotovelos, tentando fingir que ver
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o primogénito vestido com o traje regulamentar da prisão não a afectava; que o reflexo monótono das luzes fluorescentes nos cabelos dele não parecia artificial. Quando ele se aproximou, colou um sorriso rasgado no rosto, certa de que a tensão a partiria ao meio.
- Olá - disse ela alegremente, abraçando Chris assim que o guarda se afastou. - Como estás?
Chris encolheu os ombros.
- Bem - disse ele. - Tendo em conta a situação - começou a brincar com os fechos da camisa muito lavada, e não o fato-macaco desbotado que usava antes, reparou Gus. A camisa e calças com elástico na cintura a condizer pareciam um daqueles fatos que se vêem nos hospitais, e era de manga curta, embora fosse Dezembro.
- Não tens frio?
- Nem por isso. O termostato está nos vinte e seis graus - disse-lhe Chris. - A maior parte do tempo tenho calor.
- Devias pedir aos guardas para o baixarem - sugeriu Gus, e Chris revirou os olhos.
- Ora - disse ele -, porque não me lembrei disso antes? Um silêncio tenso abateu-se sobre eles.
- Vi o Jordan McAfee - acabou Chris por dizer. - E uma senhora que o ajuda a trabalhar nos casos dele.
- A Selena - disse Gus. - Já a vi. Ela é extraordinária, não é? Chris acenou com a cabeça.
- Não falámos muito - disse ele. Olhou para o colo. - Ele disse-me para não falar com ninguém sobre o que aconteceu.
- Sobre o caso, queres tu dizer - disse Gus devagar. - É natural.
- Mmm - concordou Chris. - Mas estava a pensar se estarias incluída.
Ora bem, ali estava. Toda a normalidade que Gus se esforçara tanto por criar - o sorriso, o abraço, a conversa - se dissolveram diante do simples facto de que por muito que fingisse, a relação entre mãe e filho alterava-se irreversivelmente quando um deles estava na prisão.
- Não sei - disse ela, tentando dar um tom leve ao diálogo. Acho que depende do que quiseres contar-me - inclinou-se para a frente, sussurrando. - Foi o Professor Plum, na Biblioteca, com a Chave-Inglesa?
Sobressaltado, Chris riu, e foi o melhor momento que Gus teve desde que aquele pesadelo começara.
- Não ia ser assim tão óbvio - disse ele, com os olhos ainda a sorrir. - Mas acho que podes ficar magoada na mesma.
Tentou ignorar o arrepio a percorrer-lhe a pele.
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- Sou de uma cepa muito resistente.
- Deves ser - disse Chris -, senão a quem teria eu saído? a imagem de James, com os seus antepassados do Mayflower, caiu entre ambos como uma pedra. - Só que - prosseguiu Chris - eu disse ao Jordan uma coisa que já tinha contado ao Dr. Feinstein. Uma coisa que não te contei.
Gus encostou-se para trás, tentando não pensar no pior. Sorriu, encorajando-o.
- Não queria suicidar-me - sussurrou Chris. - Nem naquela noite, nem agora.
O simples facto de esta confissão não ter sido "Sou culpado" fez Gus sorrir como uma idiota.
- Bem, isso é maravilhoso - disse ela, antes de pensar bem no assunto.
Chris ficou a olhar pacientemente para ela, à espera do resto. Quando ela abriu muito os olhos e tapou a boca com a mão, ele acenou com a cabeça.
- Tive medo - admitiu. - Foi por isso que disse o que disse. E a Em, bem, ela ia suicidar-se. Eu estava a ser conivente para tentar evitar que ela o fizesse.
Gus ficou estonteada com as implicações da confissão. Significava que o filho não estivera quase a suicidar-se, e isso com certeza era um motivo para celebrar. E significava que ela e James não tinham reparado antes daquela noite que o filho tinha tendências suicidas não por negligência, mas porque estas não existiam.
Também significava que Chris, injustamente acusado, estava a ser condenado por ser um herói. E que, se ele tivesse recorrido à ajuda de outra pessoa, aquele resultado terrível talvez nunca tivesse chegado a verificar-se.
Apercebendo-se de repente de que havia muitos ouvidos em seu redor, Gus abanou a cabeça imperceptivelmente.
- Talvez devesses escrever tudo - sugeriu ela - e enviares-me pelo correio. - Inclinou a cabeça em direcção ao recluso que estava atrás dela.
Virando-se ligeiramente, ele corou.
- Tens razão - disse.
- Ainda bem que me contaste - apressou-se Gus a dizer. - Até compreendo porque disseste o que disseste às... autoridades. Mas não tinhas de nos mentir.
Chris ficou em silêncio por um momento.
- Para mim não foi bem mentir - disse ele por fim. - Foi mais não dizer toda a verdade.
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- Bem... - disse Gus. Limpou os olhos, sentindo-se tola por ter de fazê-lo. - O teu pai vai ficar radiante. Ele não percebia como é que uma pessoa com tantas coisas a seu favor podia querer suicidar-se.
Chris imobilizou-a com o olhar.
- Pode acontecer - assegurou-lhe.
- Talvez queiras ser tu a contar ao teu pai - disse Gus numa voz suave. - Ele está no carro. Queria entrar...
- Não - interrompeu Chris. - Não quero vê-lo. Diz-lhe tu, se quiseres. De qualquer forma, não me interessa.
- Interessa sim - insistiu Gus. - Ele é teu pai - quando Chris encolheu os ombros, sentiu a raiva subir, por parte de James. - Ele faz tanto parte de ti como eu - lembrou a Chris. - Porque não queres vê-lo, se me deixas visitar-te?
Chris passou o dedo por uma marca na mesa.
- Porque - disse ele suavemente. - Tu nunca esperaste que eu fosse perfeito.
Na quarta-feira à tarde, um dos guardas deteve-se na passagem em frente da cela de Chris e Steve.
- Arrumem as vossas coisas, rapazes - disse ele. - Vão ter um quarto com vista.
Steve, que estava a ler no catre de cima, debruçou-se e olhou para Chris. Descendo, reuniu os seus pertences.
- Vamos ficar juntos lá em cima? - perguntou Steve.
- Tanto quanto sei - disse o guarda -, é esse o plano. Ambos tinham apresentado petições ao Conselho Classificativo
para serem transferidos para a segurança média, embora as probabilidades de terem autorização parecessem escassas, uma vez que o incidente com Hector ainda estava fresco na memória de todos. Mas nem Chris nem Steve queriam averiguar. Chris saltou do catre e agarrou na escova de dentes, no fato-macaco suplente, num par de calções e nas suas provisões. Olhou para a almofada e para o cobertor que estavam no beliche, e depois virou-se para o guarda:
- Tenho de levar isto? - perguntou.
O guarda abanou a cabeça e depois fê-los sair pela passagem, passando pelas outras celas da segurança máxima. Alguns dos reclusos vaiaram-nos, ou gritaram perguntas. Quando chegaram às escadas junto à sala de controlo, voltou a ficar tudo em silêncio.
- Vocês os dois ficam com os beliches de cima - disse o guarda enquanto subiam as escadas. Chris não ficou admirado; os piores lugares ficavam para os que estavam lá há menos tempo -
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os beliches de cima eram considerados menos desejáveis do que os outros. Também significava que já estavam duas pessoas na cela em que ele e Steve estavam prestes
a entrar, e, tal como qualquer combinação de elementos, só mais tarde se veria como todos se iriam dar.
As paredes lá em cima eram de betão, mas estavam pintadas de um amarelo pálido e soalheiro. As passagens tinham o dobro da largura; as celas tinham meio metro a
mais em todas as direcções. Havia quatro camas em cada cela, mas também havia uma grande sala comum que ligava os dois recintos, com mesas e cadeiras e tanto espaço que Chris sentiu a coluna esticar-se, apercebendo-se só então que até aí andara curvado.
- O que foi que eu te disse? - disse Steve, atirando as suas coisas para o beliche de cima à esquerda. - É o nirvana.
Chris acenou com a cabeça. Os outros companheiros de cela não estavam lá, mas os seus pertences estavam muito bem arrumados em caixas colocadas mesmo a meio dos beliches de baixo, numa clara tentativa de comunicar aos recém-chegados quais eram os seus lugares.
Estavam cerca de quinze homens sentados na sala comum, alguns a ver a televisão que estava montada no cimo da parede, outros encaixando as peças dos quebra-cabeças que estavam empilhados em cima dos cacifos.
Chris sentou-se numa cadeira de plástico - ali havia bastante espaço para ela, ao contrário da estreita passagem da segurança máxima. Steve sentou-se à sua frente e colocou os pés em cima da mesa.
- O que achas? Chris sorriu.
- Que era capaz de vender a minha avó para não ter de voltar para a segurança máxima.
Steve riu.
- Pois é. Tudo é relativo - estendeu a mão para o topo de uns cacifos e tirou de lá duas caixas da Milton Bradley.
- Só há isto - queixou-se. - Alguém pegou fogo ao tabuleiro de Monopólio no mês passado.
Chris riu à gargalhada. Uma sala cheia de criminosos e os únicos jogos que havia eram Sorry!9 e Risco.
- Qual é a piada? - perguntou Steve.
Chris agarrou na caixa que Steve tinha na mão.
- Não é nada - disse Chris. - Absolutamente nada.
9. Sorry significa desculpa. (N. da T.)
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James levantou-se e dirigiu-se para o púlpito ao som dos estrondosos aplausos dos colegas. Gus achou-o extraordinariamente belo junto das paredes cor de vinho da sala de banquetes, segurando a placa comemorativa.
- Isto - disse ele, empunhando o prémio - é uma enorme honra. O Bainbridge Memorial Hospital homenageava um membro da
sua equipa todos os anos em conjunto com os docentes da vizinha Escola Superior de Medicina. Aparentemente, o jantar destinava-se a fazer os jovens médicos que recentemente entraram no ramo perceberem a que tipo de semideuses iriam juntar-se. Naquele ano, o Dr. James Harte fora escolhido devido ao seu contínuo contributo para o Bainbridge Memorial Hospital, embora todos os presentes soubessem que James estava a ser homenageado devido a ter sido incluído na lista dos "Melhores Médicos". Infelizmente para o comité de nomeação, o evento já tinha sido planeado quando o pequeno contratempo envolvendo o filho do Dr. Harte ainda não tinha ocorrido.
- O melhor neste prémio em particular - disse James -, foi eu ter tido o tempo suficiente para planear o que vou dizer a todos os presentes. Disseram-me: "Qualquer coisa que sirva de inspiração." Por isso, antes de começar talvez deva pedir desculpas por ter escolhido ser cirurgião, em vez de padre.
Ficou à espera que os risos educados acalmassem.
- Quando era muito mais novo, achava que só tinha de estudar muito e passar nos exames para vir a ser médico. Mas há uma grande diferença entre ser médico e ser um bom médico. Pensava que o mais importante no estudo da oftalmologia era descobrir a doença. Literalmente, olhava para os olhos das pessoas sem necessariamente as ver. Ao olhar para trás, sem querer fazer trocadilhos, apercebo-me do quanto me escapava. Apelo aos que agora estão a começar as carreiras que se lembrem de que não estão a ser formados para tratarem sintomas, mas sim pacientes.
Fez um gesto indicando o director de cirurgia.
- Claro, nunca chegaria a estas conclusões sem ter o apoio dos meus ilustres colegas a incentivar-me, e uma instituição fabulosa como o Bainbridge para poder fazê-lo. E tenho de agradecer aos meus pais, que me deram um estojo de médico para brincar quando tinha dois anos; e claro, à Augusta e à Kate, por me ensinarem que se há pacientes no hospital, tem de haver paciência em casa - voltou a erguer a placa, e a sala dissolveu-se em aplausos.
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Gus aplaudiu rigidamente, com um sorriso colado ao rosto. Esquecera-se de mencionar Chris.
Intencionalmente?
Tinha a cabeça a andar à roda. Levantou-se antes que James pudesse sequer regressar à mesa e abriu caminho às cegas em direcção à casa de banho das senhoras. Lá dentro, apoiou-se no lavatório e passou os pulsos por água fria, com as palavras de James às voltas na cabeça: "Olhava para os olhos das pessoas sem necessariamente as ver."
Endireitou o vestido e agarrou na mala, pretendendo sair da casa de banho e dirigir-se à recepção onde pediria ao porteiro que lhe chamasse um táxi. James ia perceber, e quando ele chegasse a casa talvez já tivesse cuspido a raiva suficiente da boca para conseguir falar com ele.
Abriu a porta de madeira da casa de banho e quase caiu em cima de James.
- O que aconteceu? - perguntou ele. - Estás maldisposta? Gus inclinou a cabeça.
- Por acaso - disse ela -, até estou - cruzou os braços. - Sabes que não mencionaste o Chris no teu discurso?
James teve a delicadeza de corar.
- Sei. Apercebi-me disso mesmo quando ia a sair do púlpito, quando te vi a sair da sala". Sempre disse que ainda bem que não sou actor, porque ia esquecer-me de alguém importante quando recebesse o Oscar.
- Não tem graça, James - disse Gus, tensa. - Lá estavas tu, a pregar a aceitação a todos aqueles... estudantes de medicina deferentes, e nem sequer consegues fazer isso na tua própria casa. Deixaste o nome do Chris de fora de propósito. Não querias que ninguém associasse esse escandalozinho à tua Grande Noite.
- Não fiz de propósito, Gus - disse James. - Subconscientemente? Ora, isso é outra história. Sim, para ser franco, não queria que nada estragasse esta noite. Preferia que o público apontasse para mim e dissesse: "Oh, é o Melhor Cirurgião de Oftalmologia do Nordeste" do que "O filho dele vai ser julgado por homicídio."
Gus sentiu calor no rosto.
- Afasta-te de mim - disse ela, tentando empurrá-lo para Poder passar. - Não admira que te sintas tão à vontade aqui. Estas Pessoas são todas como tu. Ninguém me falou do Chris. Ninguém me perguntou se ele estava bem, se sabemos quando será o julgamento, nada.
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- A culpa não é minha - fez notar James. - Afecta-os demasiado. Não percebes, Gus? Eu sou demasiado parecido com estas pessoas. Se uma coisa destas pode acontecer-me a mim, quem sabe se um dia não poderá acontecer-lhes a eles também?
Gus grunhiu desdenhosamente.
- Bem, já aconteceu, James. Está a acontecer. E digas o que disseres, ou não disseres, não podes impedi-lo.
Já ia a meio do corredor quando ouviu a voz do marido, tão suave que talvez tivesse imaginado a dor que a perpassava.
- Não - disse ele. - Mas não podes impedir-me de tentar.
Uma das coisas que Selena Damascus aprendera nos seus dez anos de investigadora privada era que os acidentes não acontecem por acaso. De vez em quando eram cuidadosamente planeados, calculados e delineados em proveito de alguém - tudo encapotado sob a forma de acaso, claro.
Responderia a qualquer pessoa que lhe perguntasse que não havia nada de mágico em ser-se investigador; bastava apenas senso comum e a capacidade de fazer as pessoas falarem. Mas, para esse fim, desenvolvera um repertório de competências, destinadas a obter o máximo de informação o mais depressa possível. Não se negava a servir-se da aparência, do corpo, nem do cérebro para poder abrir uma porta fechada; e, assim que conseguia entrar sorrateiramente, não saía sem levar qualquer coisa que valesse a pena.
No dia em que pretendia encontrar-se com Michael Gold, Selena acordou às quatro da manhã. Vestiu umas calças de ganga e uma T-shirt branca da Gap, e estava à espera dentro do carro numa estrada que partia de Wood Hollow quando a carrinha de Michael Gold saiu da sua casa pouco depois das cinco. Claro, naquela altura, já sabia que Michael tinha um consultório veterinário, sobretudo para animais de grande porte. Sabia que ele tinha um Toyota 4x4. Sabia que quando parava para beber café a caminho da primeira consulta, juntava leite mas não usava açúcar.
Selena seguiu discretamente a carrinha de Michael, um desafio ainda maior devido à ausência de carros àquela hora. Quando ele virou para uma longa estrada com um letreiro a dizer "Quinta dos Sete Acres", ela continuou sem olhar para trás. Estacionou a oitocentos metros e voltou para trás, seguindo o aroma doce a feno e cavalos até um campo à distância.
Por observar Michael há alguns dias, Selena sabia que ele começava pelo estábulo, para cumprimentar todos os animais e para avaliar o local, independentemente do motivo da consulta. Naquela
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manhã, o ferrador também estava a trabalhar, o que era uma extraordinária vantagem, visto que o homem corpulento que malhava as ferraduras presumiria que ela era assistente do veterinário, e o veterinário presumiria que era a assistente do ferrador. Sorriu a todos ao passar - que grande azáfama, àquela hora da manhã - e encontrou Michael debruçado sobre a pata dianteira de uma égua alazã numa das boxes.
Ao ouvi-la aproximar-se, deixou a pata da égua pousar nas palhas.
- Não vejo sinais de abcesso, Henry - disse ele, virando-se para olhar para trás. - Oh - levantou-se, sacudindo as mãos e encostando-se à égua. - Desculpe. Pensei que era outra pessoa.
Selena abanou a cabeça.
- Não faz mal. Posso ajudá-lo?
- Está tudo sob controlo. Não viu o Henry por aí?
- Não - respondeu ela sinceramente. - Mas se o vir, digo-lhe para vir ter consigo. - Antes que ele pudesse fazer alguma pergunta, ela desapareceu ao fundo do corredor do estábulo.
Evitou Michael deliberadamente por uma hora, até ele apertar a mão a um homem que levava um grande baio para fora do estábulo e percorrer a estrada de acesso. Depois foi para junto do poste da vedação mais perto da carrinha dele, sorrindo quando ele a saudou e começou a arrumar as ferramentas do seu ofício.
- O senhor é o Dr. Gold? - perguntou Selena.
- Sou - disse Michael -, mas só nos meus cartões. Os meus clientes chamam-me Michael.
- Pensava que os seus clientes não lhe chamavam nada - gracejou Selena.
Michael riu.
- Está bem. Os donos deles.
- Será que tem um minuto para podermos conversar - disse Selena.
- Claro. É sobre algum dos cavalos da quinta?
- Para ser sincera - disse Selena -, é sobre o Christopher Harte. Viu o choque surgir-lhe no rosto, cuidadosamente suavizado
por um olhar vago credível.
- É jornalista? - perguntou por fim.
- Sou investigadora - admitiu Selena. - Estou a trabalhar para a defesa.
Michael riu.
- E pensou mesmo que eu queria falar consigo? - passou por ela e abriu a porta da carrinha, entrando lá para dentro.
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- Não pensei que quisesse - gritou Selena. - Mas achei que talvez precisasse.
Ele abriu a janela da porta que já tinha fechado.
- O que quer dizer com isso? Selena encolheu os ombros.
- Já vi como faz o seu trabalho. E não imagino como uma pessoa que se esforça tanto para salvar a vida a animais seria capaz de arruinar intencionalmente a vida
de
uma pessoa - fez uma pausa, observando as diversas emoções estampadas no rosto dele. É disso que se trata, sabe - acrescentou num tom suave.
Michael Gold ficou a olhar para ela, engolindo em seco. Selena pousou-lhe uma mão no braço.
- O que aconteceu à sua filha foi horrível, e terrivelmente triste. Ninguém do nosso lado contesta isso.
- Não me parece que seja comigo que deva falar - disse Michael.
- Está enganado - contrariou Selena. - É precisamente consigo que eu devo falar. Queria perguntar-lhe uma coisa, enquanto pai da Emily: ela queria ver o Chris no meio deste circo? Teria acreditado que ele queria matá-la?
Michael passou o polegar pelo volante.
- Senhora, hum...
- Damascus. Selena Damascus.
- Selena, então - disse ele. - Quer tomar um café?
O café para onde Michael se dirigiu era mais um ponto de paragem para camionistas do que qualquer outra coisa, cheio de homens corpulentos vestidos de flanela vermelha e bonés de basebol sujos, cujos camiões se alinhavam no parque de estacionamento como as teclas de um xilofone.
- Por estas bandas não há muitos restaurantes - disse ele, à laia de desculpa, e sentou-se na mesa ao fundo do restaurante. Brincou com o saleiro e o pimenteiro.
"Está nervoso", pensou Selena enquanto esperava que a empregada de mesa lhes trouxesse duas canecas de loiça cheias de café fumegante.
- Cuidado - avisou ele, quando Selena a levou aos lábios. Costuma estar bastante quente.
Selena deu um gole mais cuidadoso e fez uma careta.
- E é tão corrosivo como ácido de baterias - acrescentou ela. Pousou a caneca na mesa e colocou as mãos abertas na mesma, uma de cada lado de um pequeno bloco de notas e uma caneta.
- Então - disse num tom casual.
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Michael expirou.
- Tenho de saber - disse ele. - Esta conversa tem carácter oficial?
- Já lhe disse, Dr. Gold. Não sou jornalista. Não há nenhum carácter oficial.
Pareceu ficar surpreendido ao ouvir isto.
- Então porque precisa de falar comigo?
- Porque vai haver um julgamento - disse Selena num tom suave. - Para nós é importante saber o que o senhor poderá ter de dizer.
- Oh - disse Michael. Era evidente que ainda não tinha pensado nisso, que seria arrastado para o banco das testemunhas para reviver o seu desgosto diante de um júri. - Alguém vai saber que nós conversámos?
Selena acenou com a cabeça.
- O advogado de defesa vai saber - disse ela. - O Chris vai saber.
- Bem, não faz mal - disse Michael. - Só que... como posso explicar-lhe isto? Não quero que pareça que mudei de lado.
- Não vejo como isso possa acontecer - disse Selena. - Só quero fazer-lhe algumas perguntas sobre a sua filha e sobre a relação que ela tinha com o Chris. Não tem de responder se não se sentir à vontade.
- Está bem - disse Michael passado um momento. - Diga.
- Sabia que a sua filha pensava suicidar-se?
Michael suspirou.
- Uau. Não começa de forma muito suave, pois não? - abanou a cabeça. - Isso é uma faca de dois gumes, sabe. Se eu lhe disser que ela pensava em suicidar-se, estou a admitir uma coisa que não quero admitir. A questão é esta, não sei se não consigo acreditar nisso por ser o que é, sabe, suicídio com um S maiúsculo, ou por estar ainda em negação - mordeu o lábio inferior. - Mas se lhe disser que a Emily não pensava suicidar-se, então como posso explicar o facto de ela estar morta?
Selena esperou pacientemente, sabendo perfeitamente que ele não respondera verdadeiramente à pergunta - e que não tinha culpado Chris. Michael expirou devagar.
- Não sabia que ela pensava suicidar-se - disse por fim. - Mas não sei bem se foi por eu não saber realmente o que devia procurar, ou porque ela não pensava de facto em suicidar-se.
- Ela costumava ir ter consigo voluntariamente para discutir problemas?
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- Podia vir - disse Michael, fazendo Selena pensar que não ia.
- A quem mais - insistiu ela - poderia Emily ter recorrido em busca de apoio?
- À Melanie, acho eu, mais do que a mim - sorriu tristemente.
- São coisas de mulheres, acho eu. Às vezes quando estava zangada trancava-se no quarto e pintava três ou quatro telas até lhe passar hesitou, e depois abanou a cabeça.
- O que foi? - encorajou Selena.
- Ia dizer: E claro que conversava com o Chris. Mas depois achei que não devia.
- Não é nenhum segredo que a sua filha e o Chris tinham uma relação - fez notar Selena.
- Relação - disse Michael, fazendo a palavra rolar-lhe na língua. - Pode dizer-se que sim.
- O que diria o senhor? Ele sorriu.
- Eram dois lados da mesma moeda. Houve alturas, quando os miúdos estavam a crescer, em que me esqueci de que o Chris não era realmente meu filho.
- Parece que passavam muito tempo juntos.
- Eram inseparáveis, acho que é essa a palavra certa.
- Bastante intenso para um romance de liceu - observou Selena.
- Não era um romance de liceu - disse Michael. - Pelo menos, ninguém o encarava como tal. Ninguém ficaria surpreendido se eles se casassem depois da faculdade.
- Acha que era isso que a Emily desejava?
- Acho. E o Chris. Caramba, para ser franco, os pais dos dois também.
Selena assentou: "Juntos por amor? Ou para satisfazerem as expectativas dos pais?"
- Seria muito útil para a defesa se me autorizasse a entrar no quarto da Emily.
Era uma hipótese bastante remota, mas lá dentro ela sabia que haveria uma série de pistas que poderiam ajudar a defesa: fotografias presas num espelho, bilhetes
de amor guardados numa caixa de jóias, blocos com o nome de Chris ainda escrito com letra floreada.
- Não posso - disse Michael. - Mesmo que... bem, a minha mulher não ia compreender - passou um dedo pela borda da caneca de café. - Sabe, a Melanie está empenhada
neste... julgamento. Às vezes, olho para ela e quem me dera que para mim também fosse assim tão fácil. Quem me dera ser capaz de esquecer que,
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oh, há seis meses estávamos todos a falar sobre onde ia realizar-se o casamento. Tentei, sabe, por causa da Emily, mas parece que não consigo largar o passado.
Selena conteve-se, o truque mais antigo de um interrogador para o interrogado continuar a falar.
- Está a perceber, fui identificar o corpo da Emily no hospital. Mas na manhã anterior tinha-a visto, ao pequeno-almoço, correr lá para fora quando o Chris apitou a buzina do carro para levá-la para a escola. Vi-o beijá-la quando ela entrou no carro. E não consigo juntar as duas coisas na minha cabeça.
Selena examinou a expressão dele.
- Acha que o Chris Harte matou a sua filha?
- Não posso responder a essa pergunta - disse Michael, fitando a mesa. - Se responder, não estaria a colocar a minha filha em primeiro lugar. E ninguém amava a Emily mais do que eu - ergueu os olhos. - À excepção, talvez, do Chris.
Selena inclinou a cabeça.
- Aceita voltar a conversar comigo, Dr. Gold? Michael sorriu, sentindo um peso sair de cima dele.
- Gostaria muito - respondeu.
Por um instante Melanie ficou à porta do quarto da filha, olhando para a grossa camada de tinta na porta de seis painéis, que não conseguia tapar completamente o aviso profundamente gravado de NÃO ENTRAR.
Emily tinha, oh, talvez nove anos, quando gravara a mensagem na madeira com um X-Acto, ficara de castigo por estragar a porta e por tirar uma ferramenta perigosa da gaveta da secretária do pai. E se Melanie bem se lembrava, obrigara Emily a pintar outra vez a porta sozinha. Mas embora as palavras tivessem sido apagadas, a
ideia subjacente não fora, e desse dia em diante nem Michael nem Melanie voltaram a entrar no quarto sem primeiro baterem à porta.
Sentindo-se apenas ligeiramente estúpida, Melanie levantou o punho em direcção à porta e bateu duas vezes, girando em seguida a maçaneta. Tanto quanto sabia, Michael também não entrara ali. As últimas pessoas que lá estiveram foram os polícias, à procura de Deus sabe o quê. Mas, pelo menos, Melanie achava que não tinham levado nada. As fotografias de Chris ainda estavam presas no espelho da cómoda, as mangas da camisola da equipa de natação ainda envolviam a almofada da cama - Em dizia que tinha o cheiro dele. O livro que Emily estava a ler para a disciplina de Inglês estava
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aberto, virado ao contrário, em cima da mesa-de-cabeceira. Um monte de roupas que Melanie lavara e dera a Emily para arrumar ainda estava na beira da secretária.
Suspirando, Melanie agarrou nas primeiras peças e começou a arrumá-las nas respectivas gavetas. Depois ficou no meio do quarto, andando às voltas, a tentar resolver o que haveria de fazer a seguir.
Não estava preparada para retirar todas as provas de que Emily vivera ali, dormira ali, respirara ali havia apenas algumas semanas. Mas havia algumas coisas naquele quarto que ela já não suportava ver.
Melanie começou arrancando as fotografias de Chris do espelho. "Mal me quer, bem me quer", pensou ela. Juntou as fotografias num monte e colocou-as em cima da cama, depois tirou a camisola de Chris da almofada e enrolou-a numa bola. Retirou cuidadosamente a fita adesiva de uma caricatura de Emily e Chris que estava presa à porta do roupeiro e juntou-a ao monte em cima da cama. Depois, satisfeita, procurou alguma coisa onde pudesse colocar tudo.
Se Melanie não estivesse a tentar alcançar uma das caixas de sapatos vazias que estavam ao fundo do roupeiro de Emily, nunca teria reparado que havia um buraco na parede falsa. Mas estava de gatas, a apalpar, quando sentiu a mão atravessar a parede.
Pensando em ratos, insectos e morcegos, ficou aliviada ao constatar que o único objecto que conseguia agarrar com os dedos era sólido e imóvel. Retirou de lá um livro forrado a tecido que se abriu para revelar as curvas familiares da letra de Emily.
- Não sabia que ainda tinha um - murmurou Melanie. Quando Em era mais nova, tinha um diário, mas Melanie já não a via escrever num há anos. Folheando-o até chegar à última página, e depois voltando a abri-lo na primeira, viu que aquele diário era recente. Datava de há quase um ano e meio. E ia até ao dia anterior à morte de Emily.
Sentindo-se claramente desconfortável, Melanie começou a ler. Muitas das entradas eram mundanas, mas certas frases sobressaíam:
"Às vezes é como beijar um irmão, mas como posso dizer-lhe isso? Tenho de olhar para o Chris para perceber o que devia sentir, e depois passo o resto da noite a
pensar por que razão não sinto.
Tive outra vez aquele sonho, aquele que me faz sentir suja."
Que sonho? Melanie recuou algumas páginas, e depois avançou. E antes que conseguisse encontrar outra referência ao sonho, deu por si a ler sobre a noite em que a filha perdeu a virgindade.
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Emily fizera amor pela primeira vez no mesmo sítio onde fora assassinada.
Melanie leu o livro todo de seguida, perdendo a noção do tempo. As mãos dela relaxaram, e o diário chegou à última página; à entrada escrita no dia em que Emily morreu.
"Se lhe disser, ele vai casar comigo. É tão simples quanto isso."
Estava a referir-se ao bebé. Era evidente, mesmo sem que a palavra específica figurasse na página. Na altura em que escrevera isto, no dia 7 de Novembro, Emily ainda
não tinha dito ao Chris que estava grávida. Tal como não dissera aos pais.
Todo o caso de Barrie Delaney contra Chris se baseava neste bebé, no pressuposto de que ele tencionava matar Emily para se ver livre dele. Mas como poderia ele ver-se livre de uma criança cuja existência desconhecia?
Melanie fechou o diário, sentindo-se mal. A sua cabeça ainda fremia de vingança, tão cheia de justiça que nem sequer reparara que Emily não se despedira no seu diário.
Reuniu as fotografias de Chris que arrancara do espelho e atou a camisola com elas lá dentro. Depois desceu as escadas, com o livro debaixo do braço, agarrando com força na camisola. Dirigiu-se para a sala de estar formal, aquela que nunca ninguém usava, onde se situava a única lareira da casa.
Fora usada apenas umas quatro vezes desde que estavam naquela casa. com um fogão a lenha na cozinha, a lareira parecia extemporânea, sobretudo numa sala cheia de mobília desconfortável estilo Queen Anne, herdada de algum antepassado esquecido. Melanie ajoelhou-se e espalhou as fotografias do outro lado da grade de ferro, depois colocou a camisola amachucada em cima delas. Foi buscar uma caixa de fósforos à cozinha e acendeu o lume, observando as chamas lamberem as fotografias de
Chris antes de penetrarem no tecido da camisola e irromperem num grande pico azul. Então atirou o diário pela grade, cruzando os braços com força quando a capa começou a encaracolar e as páginas se transformaram em cinza.
- Melanie?
Quando chegou a casa depois do trabalho, Michael percorreu a casa, parando por fim na pequena sala não utilizada. Ficou a olhar para a lareira, ainda a arder, e depois para a mulher.
- O que estás a fazer? Melanie encolheu os ombros.
- Tinha frio - disse ela.
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PASSADO
Setembro de 1997
com a mão direita, o treinador Krull, segurava numa banana. Na esquerda tinha um preservativo.
- Senhoras e senhores - disse ele desapaixonadamente -, aos vossos lugares.
Houve um som generalizado de coisas a rasgarem-se quando a turma, em grupos de dois, abria as embalagens individuais de preservativos. Emily teve de usar os dentes para abrir o invólucro. Na mesa ao lado, um rapaz viu-a morder o papel de alumínio.
- Au - retraiu-se.
Heather Burns, uma amiga de Emily e sua parceira nesta ridícula aula de Saúde, riu.
- Ele tem razão - sussurrou ela. - Não deves usar os dentes.
Emily corou violentamente, agradecendo a Deus pela milionésima vez o facto de ser Heather e não Chris a sua parceira. Já era suficientemente mau ter de fazer aquilo,
mas fazê-lo com ele seria muito mais embaraçoso.
Saúde era obrigatório para os alunos do décimo segundo ano, embora a maioria deles já colocasse preservativos em pénis verdadeiros há vários anos quando assistiam àquela aula. O facto de serem os treinadores do liceu - como o treinador Krull, da equipa de natação - a servirem de professores tornava-a ainda mais desagradável. Todos os treinadores eram homens gordos, quase a chegar aos cinquenta anos. Qualquer conhecimento sobre sexo que transmitissem aos adolescentes só poderia ser encarado com uma boa dose de cepticismo. Na realidade, a única coisa que salvava a aula era ver o treinador Krull gaguejar cada vez que dizia a palavra "menstruação".
O treinador levou um apito aos lábios e soprou, e houve um frenesim de mãos acariciadoras, enquanto trinta preservativos eram
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colocados em trinta bananas. Franzindo o sobrolho, esforçando-se muito para não pensar em Chris, Emily passou a mão pela casca amarela da banana, alisando as rugas do preservativo.
- Olhem! A minha banana partiu-se! - gritou um rapaz. Outra pessoa soltou um risinho abafado.
- Isso costuma acontecer-te, McMurray?
Emily colocou o preservativo no seu lugar, na parte de baixo da banana.
- Já está - suspirou.
Heather levantou-se de um salto.
- Ganhámos! - guinchou.
Toda a gente olhou para elas. O treinador Krull percorreu a sala e parou diante das carteiras delas.
- Vejamos. Temos um bom espaço em cima, como deve ser. E o preservativo não está levantado de um dos lados... e está bem ajustado em baixo. Minhas senhoras - disse ele -, os meus parabéns.
- Bem - disse McMurray, comendo a sua banana -, agora já sabemos porque a Heather é fogo10.
A turma riu-se da piada dele.
- Continua a sonhar, Joey - disse Heather, sacudindo os cabelos. O treinador Krull presenteou Emily e Heather com barras de chocolate SKOR. Emily interrogou-se se supostamente não seria uma piada.
- Na vida real - disse o treinador Krull -, colocar um preservativo não é nenhuma corrida - sorriu, acrescentando. - Embora provavelmente pareça - apanhou uma casca de banana do chão e atirou-a para o caixote do lixo. - Se utilizado correctamente, e apenas correctamente, é a melhor maneira à excepção da abstinência de evitar uma doença sexualmente transmissível ou a SIDA
- disse ele -, mas com uma eficácia de setenta e cinco por cento não é um contraceptivo muito eficiente. Pelo menos para aquelas vinte e cinco mulheres em cem que acabam por engravidar. Por isso, se este for o vosso método de eleição, pensem num plano de recurso.
Enquanto o treinador Krull falava, Heather abriu a barra de chocolate e deu uma dentada. Emily cruzou um olhar com a amiga e sorriu ligeiramente.
- Au - pronunciou silenciosamente.
10. Burns, na versão original em inglês, significa arder. (N. da T.)
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com o coração aos saltos, Emily trancou a porta da casa de banho e retirou a caixa de cartão de dentro da camisola. Esfregou os sítios onde os cantos aguçados se
cravaram na barriga e depois colocou a caixa em cima do lavatório e ficou a fitá-la.
"Retire a vareta do estojo. Certifique-se de que lê com atenção as instruções antes de iniciar o teste."
com mãos trémulas Emily retirou o invólucro de alumínio. O estojo com o teste era um pedaço de plástico longo e estreito com uma ponta quadrada e duas pequenas janelas mais acima.
"Segure a ponta da vareta debaixo do fluxo de urina durante dez segundos."
Quem era capaz de fazer chichi durante dez segundos?
"Coloque a vareta no lugar e espere três minutos. Saberá que o teste está a funcionar quando vir uma linha azul de controlo aparecer na primeira janela. Se vir uma linha azul aparecer na segunda janela, por muito ténue que seja, está grávida. Se não houver nenhuma linha azul na segunda janela, não está grávida."
Emily baixou as calças de ganga e sentou-se na sanita, colocando a vareta entre as pernas. Fechou os olhos e tentou fazer devagar, mas só tinha contado até quatro quando a bexiga ficou vazia. Depois agarrou na vareta, com gotas de urina ainda no plástico e colocou-a no suporte de plástico fornecido.
Três minutos é muito tempo.
Viu a linha de controlo surgir na primeira janela, e pensou: "Tivemos sempre cuidado."
Depois ouviu a voz do treinador Krull: "com uma eficácia de setenta e cinco por cento não é um contraceptivo muito eficiente, pelo menos para aquelas vinte e cinco mulheres em cem que acabam por engravidar."
A segunda linha apareceu fina como uma fissura óssea, provocando a mesma dor. Emily dobrou-se sobre si própria, com a mão inconscientemente fechada sobre a barriga,
enquanto olhava para a embalagem do único teste em que queria chumbar.
Os músculos das costas de Chris reluziam devido ao esforço, e os ombros ocultavam a Lua a Emily quando ele recuava em cima dela. Ergueu as ancas contra ele pensando impiedosamente que talvez pudesse tirar aquilo de dentro dela, mas Chris interpretou esse gesto como paixão e começou a mover-se, devagar, penetrando profundamente nela. Ela virou a cabeça para o lado, sentia-o como um aríete. Sentiu a mão dele deslizar entre ambos - ele detestava que ela não se viesse também - e ela cerrou as pernas antes de se lembrar de relaxar.
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- Sssh - disse ele; penetrando-a tão profundamente que ela sentia uma pressão insuportável, como se a pessoa que estava dentro dela estivesse a empurrar Chris para fora daquele espaço.
De repente Chris teve uma convulsão, e - como sempre fazia quando ele soçobrava - apertou-o com os braços e as pernas e abraçou-o junto a si. Ele era pesado em cima dela, como uma pedra no seu coração, empurrando-lhe o ar para fora dos pulmões e, juntamente, quase o seu segredo.
O gabinete do planeamento familiar situava-se convenientemente junto a uma carreira de autocarro que ligava Bainbrige a outras comunidades menos prósperas a sul
e a leste. A sala de espera exibia uma mistura de etnias, algumas mulheres sozinhas e outras com os parceiros, algumas de ventre protuberante e outras a chorarem
de rosto escondido nas mãos, mas nenhuma delas se parecia com Emily; uma menina rica de uma comunidade residencial onde coisas destas não aconteciam.
- Emily? - a técnica de aconselhamento, uma enfermeira chamada Stephanie Newell, estava a chamá-la lá para dentro. Agarrando no casaco, Emily seguiu a enfermeira até uma sala pequena e confortável. - Bem... - disse Stephanie, sentando-se em frente a Emily. - Está grávida. De aproximadamente seis semanas, pelos vistos - fez
uma pausa, perscrutando o rosto de Emily. Presumo que não sejam notícias agradáveis.
- Não propriamente - sussurrou Emily.
Até àquele momento não tinha sido real. Havia sempre uma margem de erro tratando-se de testes de gravidez feitos em casa, ou a hipótese de tudo ter sido apenas um pesadelo. Mas aquilo uma desconhecida a dizer-lhe que era verdade - era uma prova inegável.
- Já disse ao pai?
Emily reparou, de uma forma difusa, desapegada, que ninguém utilizava a palavra "bebé". "Grávida", claro. "Pai", sim. Mas pelo sim pelo não, não havia necessidade de atribuir um rosto a algo que talvez não quiséssemos conservar, presumiu ela.
- Não - disse, com voz tensa.
- A decisão é sua - disse Stephanie suavemente -, mas é mais fácil passar por uma coisa destas, seja qual for a sua opção, com alguém a seu lado.
- Não lhe vou dizer - Emily disse num tom firme, apercebendo-se à medida que as palavras lhe saíam da boca que era verdade. - Ele está fora do assunto.
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- Está fora do assunto - insistiu Stephanie -, ou quer que ele fique de fora do assunto?
Emily virou-se para a enfermeira.
- Não posso ter este bebé - disse ela bruscamente. - No próximo ano vou para a faculdade.
Stephanie acenou com a cabeça, sem julgar.
- O aborto é uma das opções que disponibilizamos - disse ela.
- Custa trezentos e vinte e cinco dólares e terá de pagar adiantado.
Emily empalideceu. Calculou que tivesse de pagar, mas era uma quantia muito elevada. Teria de pedir aos pais... ou a Chris... e isso era impossível.
Puxou a ponta da camisola para cima e torceu-a nas mãos. Vivera toda a sua vida a ser aquilo que todos queriam que fosse. A filha perfeita, a artista a despontar, a melhor amiga, o primeiro amor. Estivera tão ocupada a cumprir as expectativas de todos, que demorara anos a lembrar-se por que razão era tudo uma grande farsa. Não era perfeita, longe disso, e o que era por fora não correspondia ao que era por dentro. Lá bem no fundo, era suja, e era isso que acontecia às raparigas como ela.
- Trezentos e vinte e cinco dólares - repetiu. - Está bem.
No fim, acabou por ser fácil. Inicialmente pensara em ir ter com Chris para que a ajudasse a arranjar o dinheiro, mas ele ia perguntar-lhe para que era, e mesmo que ela lhe dissesse que não podia falar sobre isso, ele ia perceber. Uma rapariga de dezassete anos não precisava de tanto dinheiro, nem tão depressa, para muitas outras coisas.
Por isso, Emily pôs o despertador para acordar a meio da noite. Desceu sorrateiramente as escadas e procurou o livro de cheques dentro da mala da mãe. Retirando o cheque número 688, preencheu-o para levantar a quantia total, falsificando facilmente a assinatura de Melanie. A mãe só usava os cheques para pagar contas, e apenas uma vez por mês. Quando Melanie estivesse a dar em doida para tentar lembrar-se para que servira o cheque 688, provavelmente todo o processo já estaria terminado.
No dia seguinte, depois das aulas, Emily pediu a Chris que a levasse ao banco. Tinha de levantar um cheque para a mãe, disse ela. O empregado da caixa conhecia-a; em Bainbridge, todos se conheciam. E Emily foi para casa 325 dólares mais rica.
Na noite anterior ao dia que Emily marcara para fazer o aborto, ela e Chris foram à praia do lago. Para Setembro, estava ameno -
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era o Verão de São Martinho, a noite cobria o céu como uma gaze translúcida, trazendo uma escuridão imponderável. Emily não conseguia sossegar nem concentrar-se; a pele parecia pequena de mais para o corpo, e estava convencida que conseguia sentir aquilo crescer dentro de si. Desesperada para tirar esse assunto da cabeça, atirou-se para cima de Chris, beijando-o com tal fúria que ele a dada altura recuou e ficou a olhar para ela perplexo.
- O que foi? - perguntou ela, mas ele limitou-se a abanar a cabeça.
- Nada - murmurou. - Nem pareces tu.
- Então quem é que eu pareço? - perguntou ela. Chris sorriu.
- O meu sonho mais louco - disse ele, e enfiou-lhe as mãos nos cabelos. E então, de repente, puxou Emily para cima dele, e as pernas dela abriram-se, uma de cada lado das suas ancas.
- Senta-te - instigou Chris, e ela sentou-se, sentindo-o entrar dentro de si com a mudança de posição.
Era demasiado cedo. Emily apoiou imediatamente as mãos nos ombros de Chris inclinando-se para trás num esforço para se afastar.
- Oh, assim é bom - murmurou Chris, com a cabeça virada de lado. Emily ficou paralisada, e, depois, encorajada pelas palmas das mãos de Chris nas suas ancas, moveu-se hesitantemente. - Pareces um centauro - disse ele e, surpreendida, ela riu.
O movimento fez Chris penetrar ainda mais profundamente nela, tornando tudo muito pior. Estavam a brincar, como costumavam fazer. Era como se estivessem a lutar, como quando eram crianças, praticamente irmãos. Mas não estavam a lutar, e não eram irmãos, por isso não fazia mal terem relações sexuais. Pois não?
Emily cerrou os olhos, dispersando os pensamentos.
- Assim tu serias o cavalo - disse ela, ligeiramente nauseada. Chris apertou as nádegas.
- A galope - disse ele, e moveu-se por baixo dela de forma que a Lua lhe passou por cima do ombro, incidindo ao de leve no seio.
Depois, estava deitada de lado, com a cabeça apoiada no braço de Chris e a mão dele pousada na anca, aconchegada a ele. Era por este momento que ansiava, o momento pelo qual valia a pena submeter-se ao sexo. Estivera aconchegada junto de Chris um milhão de vezes ao longo da vida. Depois, era como sempre fora, sem nada embaraçoso entre eles.
- A areia - sussurrou ele subitamente - é muito sobrevalorizada. Ela sorriu ligeiramente.
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- Sim?
- Tenho o rabo esfolado - admitiu ele. Emily sorriu.
- É bem feito - disse ela.
- É bem feito? Eu estava a ser cavalheiro, deixei-te ficar em cima - colocou a palma da mão na barriga dela.
Emily sentou-se bruscamente, agarrou na peça de roupa que estava mais perto - a camisola de Chris - e embrulhou-se nela para caminhar à beira do lago.
Chris teria o direito de saber? Estaria a mentir, se não dissesse absolutamente nada?
Se lhe contasse, casar-se-iam. O problema era que ela não tinha a certeza de que queria que isso acontecesse.
Disse para consigo que não era justo para Chris, que pensava que ia ficar com uma rapariga que nunca fora tocada por outro homem.
Mas um ligeiro latejar incómodo no fundo dos seus pensamentos dizia-lhe que também não era justo para ela. Se, às vezes, ia para casa depois de fazer amor com Chris e vomitava durante horas; se, às vezes, não conseguia suportar que as mãos dele deslizassem para dentro do sutiã e das cuecas por se parecer mais com incesto do que com excitação - poderia realmente passar a vida inteira casada com ele?
Emily lançou uma pedra ao lago, perturbando a superfície lisa. Era uma sensação estranha, saber que a sua vida estaria para sempre ligada à de Chris - meu Deus, estava ligada à dele desde o dia em que nascera - e, no entanto, saber que ainda esperava secretamente encontrar uma saída. Toda a gente estava à espera que Chris e Emily ficassem juntos para sempre, mas para sempre parecia muito distante.
Colocou a mão sobre a barriga. Agora, para sempre era algo real.
Emily supunha que a resposta era sim. Podia casar-se com Chris. A alternativa seria explicar-lhe que gostava dele como uma irmã, como uma amiga, e não necessariamente como sua mulher. E veria o rosto dele empalidecer, sentiria o coração a desfazer-se-lhe nas mãos.
Não amava Chris o suficiente para casar com ele, mas amava-o demasiado para lho confessar.
Emily olhou, pestanejando, para a superfície do lago com uma ondulação profunda, a ressoar com o som dos grilos. Imaginou como seria fácil entrar naquele lago, com os pés a escorregarem no
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fundo lodoso, até que a água negra lhe cobrisse a cabeça e lhe fizesse peso nos pulmões, afundando-a como uma pedra.
Sentiu Chris aproximar-se por trás e colocar-lhe suavemente um braço por cima dos ombros.
- Em que estás a pensar?
- Em afogar-me - disse num tom suave. - Entrar ali até mergulhar a cabeça. Muito tranquilo.
- Caramba - disse Chris visivelmente sobressaltado. - Não me parece que fosse nada tranquilo. Acho que começarias a debater-te e a tentar chegar à superfície...
- Tu sim - disse Emily. - Porque és um nadador.
- E tu?
Ela virou-se nos braços dele, e encostou-lhe a cabeça ao peito.
- Eu deixava-me ir - disse ela.
Talvez tivesse corrido bem, mas o médico que estava de serviço no dia em que Emily ia fazer o aborto era um homem. Estava deitada na maca, com as pernas dobradas para cima, reveladoras, e Stephanie ao seu lado. Viu o médico entrar e dirigir-se ao lavatório para lavar as mãos. O sabonete deslizava-lhe por entre os dedos, oleoso e branco, exagerando-lhe a forma e o tamanho. Ele virou-se e sorriu para Emily.
- Ora bem - disse ele -, o que temos aqui?
"Ora bem. O que temos aqui?"
Depois meteu a mão debaixo da bata, como o outro fizera, depois de dizer a mesma coisa horrível, e enfiou os dedos dentro dela. Emily começou a dar pontapés, os tornozelos a derrubarem os suportes, o pé a atingir o médico de lado na cabeça enquanto este recuava por precaução.
- Não me toque - gritou ela, tentando sentar-se, colocando as mãos entre as pernas e entalando a bata debaixo das coxas. Sentiu a mão de Stephanie pousar-lhe no ombro e virou o rosto para o braço da técnica de aconselhamento.
- Não deixe que ele me toque - sussurrou ela, mesmo após o médico ter saído da sala.
Stephanie ficou à espera até que Emily parasse de chorar, depois sentou-se no banco do médico.
- Talvez - sugeriu ela - fosse altura de contar ao pai.
Não diria nada a Chris, sobretudo agora. Porque assim que dissesse, teria de falar-lhe daquele horrível aborto e do médico e da razão por que não suportava que um homem lhe tocasse. E da razão
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por que não suportava que Chris lhe tocasse. E da razão porque não era a rapariga que Chris pensava que ela era. Assim que lhe contasse tudo, teria feito a sua própria cama, e teria de se deitar nela com ele.
Também teria de contar tudo aos pais. E eles ficariam a fitá-la em estado de choque - a sua menina? A culpa era dela, por ter atraído a atenção daquele homem nojento quando ainda era tão nova.
Em todo o caso, todos haveriam de ficar a saber. Estava completamente encurralada, apenas com uma estreita saída oculta, tão escura e escondida que a maioria das pessoas nem sequer ponderava atravessá-la.
Emily ouviu Stephanie, a sua técnica de aconselhamento em termos de escolhas, falar continuamente durante mais de uma hora. Era espantoso, tendo em conta que na verdade não havia escolha nenhuma.
- Passas-me a manteiga? - perguntou Melanie, e Michael deu-lha.
- Isto está bom - disse Michael, apontando para o jantar. - Em, querida, devias provar o frango.
Emily pressionou as têmporas com os dedos.
- Não tenho fome - disse ela. Melanie e Michael trocaram um olhar.
- Não comeste nada o dia todo - disse Melanie.
- Como é que sabes? - ripostou Emily. - Podia ter-me banqueteado na escola. Não estavas lá - curvou a cabeça. - Preciso de Tylenol - murmurou.
- Viste os papéis da candidatura à Sorbonne? - disse Melanie.
- Estavam hoje no correio.
O garfo de Emily bateu no prato.
- Não vou.
- Que mal tem candidatares-te? - perguntou Melanie. Sorriu para Emily do outro lado da mesa, sem dúvida interpretando mal a sua relutância. - O Chris vai estar precisamente onde o deixaste, quando regressares a casa - disse ela em tom de brincadeira.
Emily abanou a cabeça, sacudindo os cabelos.
- Achas que é disso que se trata? Que não consigo viver sem ele? - abafou a pergunta que lhe queimava o fundo da garganta: "Conseguiria?" Atirando o guardanapo para cima do prato, levantou-se. - Deixem-me em paz! - gritou, saindo da sala a correr.
Melanie e Michael ficaram a olhar um para o outro. Então Michael cortou um pedaço de frango e colocou-o na boca, mastigando.
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- Bem - disse ele.
- É da idade - concordou Melanie, e agarrou na faca.
Havia uma clareira na estrada de Classe IV situada nas traseiras das propriedades dos Harte e dos Gold onde as pessoas abandonavam fogões e frigoríficos velhos, sacos cheios de garrafas de vidro grosso e latas enferrujadas. Por falta de uma palavra melhor, era conhecida em Bainbridge como a Lixeira, e há já vários anos que servia de campo de tiro. Chris penetrou na clareira de carro e deixou Emily sentada no capo do Jeep enquanto dispunha uma fila de garrafas e latas a trinta metros
de distância. Carregou o revólver Colt, enxotando as moscas que zumbiam em volta das ervas altas e doces que rodeavam os pneus do Jeep. Chris voltou a colocar a
câmara no lugar enquanto Emily se debruçava para apanhar um caule verde, prendendo-o nos dentes da frente. Tirou um Kleenex do bolso e enfiou pequenas bolas nos ouvidos, e depois deu-o a Emily.
- Tampões - disse ele, apontando, incitando-a a fazer o mesmo. Acabara de erguer o revólver, segurando-o com ambas as
mãos, quando ouviu Emily gritar.
- Espera! Não podes simplesmente disparar - disse ela. - Tens de dizer-me a que estás a fazer pontaria.
Chris sorriu.
- Pois, claro. Para fazer má figura se não acertar - semicerrou os olhos, fechando um deles, e voltou a levantar o Colt. - Rótulo azul, acho que é uma garrafa de sumo de maçã.
O primeiro tiro foi ensurdecedor e, apesar do lenço de papel, Emily tapou as orelhas com as mãos. Não viu propriamente onde acertou, mas as árvores atrás do alvo estremeceram. O segundo tiro acertou em cheio na garrafa de rótulo azul, e o vidro explodiu contra a casca áspera das árvores.
Emily saltou do capo do carro.
- Quero experimentar - disse ela. Chris tirou o Kleenex do ouvido.
- O quê?
- Quero experimentar.
- Queres o quê? - abanou a cabeça. - Detestas armas. Estás sempre a dizer-me que não queres que eu vá à caça.
- Usas uma espingarda, e as espingardas são muito grandes fez notar Emily, fitando o revólver com curiosidade, de olhos ligeiramente semicerrados. - Isto é diferente - aproximou-se mais e tocou na mão de Chris. - Posso?
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Chris acenou com a cabeça, colocando as mãos dela em volta da arma. Ficou admirada com o peso dela, visto que era tão pequena, e com a falta de naturalidade com
que as palmas das suas mãos se moldavam às suas curvas frias e escorregadias.
- Assim - disse Chris, colocando-se atrás dela. Mostrou-lhe a mira no cano, explicando-lhe como devia fazer pontaria a um alvo.
Não queria que ele soubesse que estava a suar. As mãos escorregaram-lhe ligeiramente no metal quando Chris as ergueu, ainda por baixo das suas, ao nível a que devia
preparar-se para disparar.
- Espera - gritou Emily, saindo do abraço de Chris e virando-se de frente para ele com a arma. - Como é que eu...
O rosto dele estava branco. com cautela, levantou um dedo e empurrou o cano curto para o lado.
- Nunca se aponta uma pistola a alguém dessa maneira - disse ele numa voz estrangulada. - Pode disparar-se.
Emily corou.
- Mas ainda nem sequer a engatilhei.
- E achas que eu sabia? - deixou-se cair para o chão, num monte de membros e músculo. - Santo Deus - murmurou.
Mortificada, Emily voltou a levantar o revólver, firmou as pernas, engatilhou e disparou.
Uma lata tilintou e girou, erguendo-se no ar, ficando a pairar por um instante antes de cair no chão.
A própria Emily recuara com o ricochete, e teria caído se Chris não se tivesse levantado para a segurar.
- Uau - disse ele, genuinamente impressionado. - Estou apaixonado pela Annie Oakley.
- Sorte de principiante - disse ela, mas estava a sorrir e tinha as faces coradas de prazer. Emily olhou para os dedos, segurando ainda a arma, agora tão confortavelmente
quente como a mão de um velho amigo.
Estava húmido dentro do Jeep, o aquecedor embaciava as janelas e criava uma humidade tropical pegajosa.
- O que farias - disse Emily suavemente, sentada e encostada a Chris - se as coisas não acontecessem como planeaste?
Sentiu que ele franzia o sobrolho.
- Queres dizer, por exemplo, se não entrar numa boa universidade?
- Por exemplo, se não fores sequer para a universidade. Se os teus pais morressem de um acidente de automóvel e de repente tivesses de tomar conta da Kate.
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Ele expirou suavemente, agitando-lhe os cabelos.
- Não sei. Acho que tentaria fazer o melhor que pudesse. Talvez fosse para a universidade mais tarde. Porquê?
- Achas que os teus pais ficariam desiludidos contigo, por não te tornares na pessoa que eles pensaram que te tornarias?
Chris sorriu.
- Os meus pais estariam mortos - lembrou-lhe. - Por isso o choque não os afectaria muito - mudou de posição, para ficar virado para ela, apoiado num cotovelo. - E eu não me importo com o que os outros pensam. Excepto tu, claro. Ficarias desiludida?
Ela respirou fundo.
- E se ficasse? E se já não quisesse estar... estar contigo?
- Bem, então - disse Chris de ânimo leve -, provavelmente suicidava-me - beijou-lhe a testa, alisando uma ruga. - Mas porque estamos a falar sobre isto? - Curvou-se para a frente, destrancando a porta de trás do Jeep, e abriu-a expondo a noite repleta de estrelas.
O Verão de São Martinho acabara, e o ar tinha um aroma leve e fresco, cheio do travo das maçãs silvestres e com uma pitada das primeiras geadas. Emily fê-lo penetrar nos pulmões e manteve-o ali, o frio a fazer-lhe cócegas no nariz, antes de expeli-lo numa pequena nuvem branca.
- Está frio - disse ela, chegando-se mais a ele.
- Está lindo - sussurrou Chris. - Como tu - tocou-lhe no rosto e beijou-a profundamente, como se quisesse tirar-lhe a dor. Os lábios deles separaram-se com um som ténue semelhante a algo a rasgar-se.
- Eu não sou linda - disse Emily.
- Para mim és - Chris puxou-a para o meio das pernas dobradas, de costas viradas para o peito dele, e colocou-lhe os braços em volta das costelas. O céu parecia sumptuoso e pesado, e aquele instante encheu-se subitamente de mil pequenas coisas de que Emily sabia que nunca se iria esquecer - as cócegas que os cabelos de Chris faziam ao roçarem-lhe a nuca, o calo suave na parte de dentro do dedo médio, as luzes traseiras do Jeep, projectando uma sombra vermelho-sangue na erva.
Chris esfregou-lhe o nariz no ombro.
- Já leste o capítulo de Ciências?
- Que romântico - riu Emily. Chris sorriu.
- É mais ou menos. Diz que uma estrela é só uma explosão que aconteceu há milhares de milhões de anos. E a luz só agora está a chegar a nós.
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Emily semicerrou os olhos para o céu, reflectindo.
- E eu que pensava que podia pedir um desejo. Chris sorriu.
- Acho que também podes fazer isso.
- Tu primeiro - disse Emily.
Ele abraçou-a com força e ela teve a sensação familiar de usar a própria pele de Chris, como uma capa de calor ou uma barreira protectora, talvez até uma segunda identidade.
- Desejava que tudo pudesse ficar assim... para sempre - disse ele suavemente.
Emily virou-se nos braços dele, com medo de ter esperança, ainda com mais medo de perder esta oportunidade. Tinha a cabeça virada de lado, por isso não conseguia olhar directamente para Chris mas conseguia fazer com que as palavras lhe caíssem nos lábios.
- Talvez seja possível - disse ela.
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PRESENTE
Natal de 1997
- Harte ao Posto de Controlo
Chris olhou por cima do livro que estava a ler e levantou-se do beliche, ignorando propositadamente um dos companheiros de cela, Bernard, que estava sentado no seu
próprio beliche a quebrar gelo com os dentes. Os guardas traziam gelo uma vez ao dia e colocavam-no numa geleira situada na sala comum, onde devia aguentar-se até
à noite. Infelizmente, Bernard conseguia açambarcar a maior parte dele antes de os outros reclusos sequer terem reparado que já chegara.
Percorreu a passagem até à porta trancada ao fundo da unidade de segurança média, onde ficou à espera até um dos guardas que estavam na cabina de controlo reparar nele.
- Visita - disse-lhe o guarda, destrancando a porta e esperando que Chris desse um passo em frente.
A mãe, da última vez que lá estivera, informara-o chorosa de que não poderia vir no sábado, visto que o recital de dança de Kate era precisamente à mesma hora. É óbvio que Chris lhe dissera que compreendia, embora tivesse ficado cheio de ciúmes. Kate tinha a mãe sete dias na semana. Não podia abdicar de uma maldita hora?
Um guarda estava à espera à porta da cave.
- Aqui está - disse ele, colocando Chris em direcção à mesa mais afastada.
Por um instante, Chris ficou de pé imóvel. A visita não era a mãe, nem sequer era o pai, o que já seria um grande choque.
Era Michael Gold.
Chris deu um passo rígido, e depois outro, dirigindo-se mecanicamente para junto do pai de Emily. Ficou um pouco mais
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encorajado devido ao facto de os guardas que ali estavam para impedi-lo de fugir, também ali estivessem para protegê-lo.
- Chris - disse Michael, indicando-lhe uma cadeira.
Chris sabia que tinha o direito de recusar uma visita. Mas antes que conseguisse falar, Michael suspirou.
- Não te culpo - disse ele. - Se estivesse no teu lugar, teria ido a correr lá para cima assim que me visse.
Chris sentou-se devagar.
- É o mal menor.
O rosto de Michael ensombrou-se.
- Então isto é assim tão mau?
- É uma festa - disse Chris amargamente. - De que estava à espera?
Michael corou.
- Eu só queria dizer, bem... comparado com a alternativa ficou um segundo a olhar para o colo e depois levantou a cabeça.
- Se tudo tivesse corrido como tinhas planeado, não estarias aqui. Estarias morto.
As mãos de Chris, a tamborilar no tampo da mesa, imobilizaram-se. Era suficientemente perspicaz para saber reconhecer uma trégua e, a menos que estivesse enganado, Michael Gold acabara de admitir que, apesar da porcaria que a acusação estava a impingir, ele acreditava na história de Chris.
Embora não fosse verdadeira.
- Porque está aqui? - perguntou Chris. Michael rodou os ombros, um de cada vez.
- Perguntei isso a mim próprio. Durante o caminho todo até aqui, estive a pensar - lançou um olhar franco a Chris. - Não sei ao certo - disse ele. - O que achas?
- Acho que anda a espiar para o procurador-geral - disse Chris, não tanto por acreditar nisso, mas para ver a reacção de Michael.
- Meu Deus, não - disse Michael, estupefacto. - Eles têm espiões?
Chris raspou o ténis no chão.
- Não me espantaria - disse ele. - O objectivo é trancarem-me na prisão, não é? Impedir que mate uma série de raparigas, como matei a Em?
Michael abanou a cabeça.
- Não acredito.
- Não acredita em quê? - perguntou Chris, levantando a voz. Que o procurador-geral não quer que eu fique trancado para sempre? Ou que não a matei?
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- Não - disse Michael, de lágrimas nos olhos. - Não a mataste. Chris tinha a garganta tão apertada que não conseguia falar.
Raspou a cadeira no chão, a pensar no que raio o teria feito sentar-se antes de mais, o que o teria feito pensar que tinha alguma coisa para falar com o pai de Emily.
Michael ficou a olhar para a mesa, passando o polegar pela horda cheia de marcas.
- Vim... vim porque - começou a dizer - queria perguntar-te uma coisa. É que nós não nos apercebemos. A Melanie e eu, não sabíamos que a Emily estava perturbada. Mas tu apercebeste-te; deves ter-te apercebido. E estava a pensar que... - fez uma pausa, olhando para cima. - Como é que eu não vi? - sussurrou. - O que dizia ela quando eu não estava a ouvir?
Chris praguejou em voz baixa e levantou-se, pretendendo escapar, mas Michael agarrou-lhe no braço. Chris debruçou-se para junto dele, de olhos ardentes.
- O que foi? - disse com voz rouca. - O que quer que eu lhe diga?
Michael engoliu.
- Que a amavas - disse ele numa voz pastosa. - Que sentes falta dela. - Colocou os dedos nos cantos dos olhos, esforçando-se por manter a compostura. - A Melanie não... bem, não posso falar com ela sobre a Emily. Mas pensei... pensei... - desviou o rosto. Nem sei o que pensei.
Chris apoiou os cotovelos na mesa e escondeu o rosto nas mãos. Não podia prometer nada a Michael Gold. Por outro lado, se ele queria falar sobre Emily, não era possível arranjar um interlocutor mais preso ao seu lugar.
- Alguém vai descobrir que veio até aqui - avisou ele. - Não devia estar aqui, sabe?
Michael hesitou.
- Sei - disse ele por fim. - Mas tu também não devias.
Gus empurrava o carrinho de compras distraidamente pelos corredores do supermercado Caldor, surpreendida pelo facto de a sua família, que já não era de maneira nenhuma vulgar, permanecer presa às coisas mundanas, precisando de champô, pasta de dentes e papel higiénico como qualquer outra. Obrigada a ir fazer compras por desespero, deambulava pela grande loja, por vezes tão absorta nos seus pensamentos que passava pelos Kleenex sem colocar nenhuma embalagem no carrinho, que ficava a olhar distraidamente para a comida de gato durante minutos, sem nunca ter tido nenhum.
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Acabou na secção dos artigos de desporto, passando ociosamente por bicicletas e patins reluzentes até se deter, cativada pelos artigos de caça e pesca. Ofuscada por enormes impermeáveis de camuflado e coletes cor de laranja fluorescente, examinou os pequenos artigos pendurados no escaparate - diluente Hoppes 9, compressas de gaze para limpeza, produto antiferrugem. Urina de raposa, do de corça. Coisas que não acreditava que fossem vendidas ao público, mas que nunca deixavam de fazer o marido sorrir quando as encontrava na meia de Natal ou no cesto da Páscoa.
Ficou a olhar para a fotografia de um caçador a fazer pontaria e apercebeu-se de que nunca mais queria que James voltasse a pegar numa arma.
Se nunca tivesse chegado a comprar aquele Colt antigo, aquilo teria acontecido?
Gus sentou-se na prateleira de metal por baixo do escaparate, junto ao chão. Respirou fundo várias vezes, com a cabeça entre os joelhos. E com os ouvidos a zumbir, só ouviu o carrinho aproximar-se quando este lhe tocou na ponta do sapato.
- Oh - disse ela, levantando a cabeça ao mesmo tempo que outra voz dizia:
- Desculpe.
A voz de Melanie.
Gus ficou a olhar para as linhas tensas do rosto dela, a pele baça, a raiva que a fazia parecer vários centímetros mais alta do que na realidade era. Melanie conduziu o carrinho através do corredor.
- Sabes - disse ela -, afinal não peço desculpa. - Afastou-se empurrando o carrinho. Deixando o seu no meio do corredor, Gus foi a correr atrás dela. Tocou no braço de Melanie e a mulher virou-se, com os olhos cheios de uma raiva fria acumulada.
- Vai-te embora - proferiu.
Gus lembrou-se de como tinha sido quando conhecera Melanie; como ficavam sentadas com as mãos por cima das barrigas, sabendo que a outra entendia o ondular, o zumbido de uma criança a esticar-se; o arrepio nas pontas dos dedos, na nuca e nos mamilos que surgia no fim da gravidez, quando já tínhamos entregado o corpo a outra pessoa.
O que queria dizer a Melanie era: "Não foste só tu que ficaste magoada. Não foste só tu que perdeste uma pessoa amada." Na realidade, Gus sofria por duas. Perdera Emily - e perdera a melhor amiga.
- Por favor - conseguiu Gus finalmente dizer, engolindo em seco. - Fala comigo.
Melanie abandonou o carrinho e saiu da loja.
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De repente, Jordan levantou-se da mesa atafulhada na pequena sala de conferências e puxou a janela com força, abrindo-a a custo. Por fora tinha grades, claro, mas uma brisa fresca entrou na sala. Chris inclinou-se para ela, sorrindo.
- Está a tentar ajudar-me a fugir daqui?
- Não - disse Jordan -, estou a tentar evitar que morramos sufocados - limpou a testa com a manga. - Adorava ver as contas do aquecimento deste sítio.
Chris entrelaçou as mãos por cima do estômago.
- Habituamo-nos.
Jordan olhou para cima por um breve instante.
- Suponho que sim - disse ele, e depois abriu as mãos por cima de uma pilha de papéis.
Estavam a examinar a instrução da procuradoria-geral há três horas. Era o período de tempo mais longo que Chris passara fora da cela. Estava à espera que Jordan lhe fizesse outra pergunta, lendo distraidamente os nomes nas lombadas dos códigos do New Hampshire dispostos num carrinho de metal para o uso dos advogados que estivessem de visita.
Jordan dissera-lhe, quase assim que chegara naquela manhã, que a sua estratégia de defesa se basearia num duplo suicídio que não fora totalmente levado a cabo. Também dissera a Chris que não ia testemunhar em sua defesa. Jordan insistira que era a única maneira de ganhar o caso.
- Então porque é que - disse Chris pela segunda vez - na televisão o arguido testemunha sempre?
- Oh, santo Deus - resmungou Jordan. - Voltamos outra vez a isso? Porque na televisão o júri diz sempre o que está escrito no guião. Na vida real a incerteza é consideravelmente maior.
Chris cerrou os lábios.
- Eu já lhe disse que não queria suicidar-me.
- Precisamente. É por isso que não vais para o banco das testemunhas. Posso dizer tudo o que quiser no julgamento para que sejas absolvido, mas tu não podes. Se testemunhares, terás de dizer ao júri que nunca quiseste suicidar-te, e isso enfraquece a defesa.
- Mas é a verdade - disse Chris. Jordan apertou a cana do nariz.
- Não é a verdade, Chris. Não há nenhuma verdade. Há apenas o que aconteceu, segundo a tua percepção. Se não te colocar
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no banco das testemunhas, só estarei a transmitir a minha percepção do que aconteceu. Só que não te peço para transmitires a tua.
- É uma mentira por omissão - fez notar Chris. Jordan grunhiu desdenhosamente.
- Desde quando te tornaste num bom católico? - perguntou ele. Recostou-se na cadeira. - Não vou andar às voltas com este assunto - disse ele. - Queres testemunhar e fazer as coisas à tua maneira? Muito bem. A primeira coisa que a promotora de justiça vai fazer é apresentar as entrevistas da polícia e mostrar ao júri como já alteraste a tua história uma vez. Depois vai perguntar-te porque levaste uma arma carregada com balas, em vez de uma vazia só para dar espectáculo, se querias salvar a Emily. E então o júri vai apresentar um veredicto de culpado e eu vou ser o primeiro a desejar-te boa sorte na Penitenciária Estadual.
Chris resmungou qualquer coisa em voz baixa e levantou-se, virando-se para a parede do fundo da sala de conferências.
- Segundo o relatório de balística - disse Jordan, ignorando-o -, o cartucho da bala que foi disparada ainda estava na câmara do revólver, juntamente com uma segunda bala. As tuas impressões digitais foram encontradas em ambas, o que para nós constitui uma boa prova: por que razão haverias de colocar duas balas na câmara se não pensavas destinar uma para ti próprio? Também me agracia o facto de as impressões digitais dela terem sido encontradas na arma, juntamente com as tuas.
- Pois. Mas só encontraram as impressões digitais dela no cano
- disse Chris, lendo por cima do ombro de Jordan.
- Não interessa. Só temos de lançar uma dúvida razoável. As impressões digitais da Emily estão algures naquela arma. Portanto, em determinada altura, ela segurou nela - abriu as mãos.
- Parece confiante - disse Chris.
- Preferias que não estivesse? Chris sentou-se na cadeira.
- É que há mesmo muitas provas para explicar.
- Pois há - concordou Jordan energicamente. - E a única coisa que fazem é colocar-te no local do crime, algo que nunca negaste. Mas não prova o que estavas lá a
fazer - sorriu para Chris. Acalma-te. Já ganhei casos com muito menos coisas a que recorrer do que este.
Jordan abriu o relatório do médico-legista com os pormenores relativos à autópsia de Emily. Enfeitiçado, Chris estendeu a mão e torceu a pasta, lendo as marcas distintas do corpo dela que ele próprio poderia ter catalogado, a medida dos pulmões, a cor do cérebro. Não
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teve de ler o número metódico para saber o peso do coração de Emily; já era seu há anos.
- És canhoto ou dextro? - perguntou Jordan. -Canhoto - disse Chris. - Porquê? Jordan abanou a cabeça.
- Por causa da trajectória da bala - disse ele. - E a Emily?
- Era dextra. Jordan suspirou.
- Bem, está de acordo com as provas - disse ele. Continuou a folhear os registos enviados pela procuradoria.
- Praticaram sexo antes de ela se suicidar - afirmou Jordan. Chris corou.
- Hum, sim - disse ele.
- Uma vez?
Sentiu as faces arderem ainda mais.
- Sim.
- Coito normal? Ou praticaram sexo oral? Chris baixou a cabeça.
- Precisa mesmo de saber isso?
- Sim - disse Jordan pausadamente. - Preciso. Chris mexeu numa falha na mesa.
- Só normal - murmurou. Observou o advogado folhear o relatório da autópsia. - Que mais diz aí?
Jordan expirou pelo nariz.
- Pouco do que precisamos - ficou a olhar para Chris. - Sabes de alguma doença que pudesse explicar a depressão de Emily?
- Tal como?
- Como algum desequilíbrio hormonal? Cancro? - Chris abanou a cabeça duas vezes. - E a gravidez?
Por um instante, o ar da sala adensou-se.
- O quê! - disse Chris.
Tinha consciência de que Jordan o observava atentamente. . - A gravidez - disse Jordan, voltando novamente o relatório da autópsia para Chris. - De onze semanas. Chris abriu e fechou a boca.
- Ela estava... oh, meu Deus. Não sabia - lembrou-se de Emily como a vira pela última vez: deitada de lado, o sangue a espalhar-se pelos cabelos, com a mão por cima da barriga. E então a sala ficou escura, e ele imaginou que caía para ocupar o seu lugar ao lado dela.
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Habitualmente uma visita à enfermeira da prisão custava três dólares, mas parecia que desmaiar durante uma reunião com o advogado garantia ao recluso um estatuo prioritário na triagem e uma visita grátis à pequena sala utilizada para fazer os tratamentos médicos. Chris acordou ao sentir umas mãos frias na testa.
- Sente-se bem? - perguntou uma voz aguda e abafada, como se viesse através de um túnel. Tentou sentar-se, mas as mãos eram surpreendentemente fortes. Passado um momento, respirou fundo várias vezes e tentou concentrar-se, e os seus olhos fitaram o rosto de um anjo.
As enfermeiras revezavam-se, contratadas do lar de idosos situado mesmo ao lado. Chris conhecia certos reclusos que preenchiam o pedido de visita médica e pagavam os três dólares só para ver se apanhavam a enfermeira Carlisle, que era sem dúvida a mais atraente das três mulheres.
- Desmaiou - dizia-lhe agora a enfermeira Carlisle. - Mantenha os pés para cima, sim, assim, e vai ficar bem daqui a alguns minutos.
Ele manteve os pés para cima, virando a cabeça na almofada áspera para poder ver a enfermeira Carlisle andar com uma graça pragmática no pequeno cubículo que servia de enfermaria. Voltou com um copo de água cheio de, oh, meu Deus, gelo precioso.
- Beba isto devagar - disse ela, e ele bebeu, enfiando os pequenos cubos na boca assim que ela se virou.
- Já desmaiou anteriormente? - perguntou a enfermeira Carlisle, de costas viradas para ele, e quase disse que não, antes de se lembrar da noite em que Emily morreu.
- Uma vez - disse ele.
- Bem, já estive naquelas salinhas de conferência - confessou a enfermeira. - Admiro-me como é que alguém consegue estar ali sem desmaiar, por causa do calor.
- Pois - disse Chris. - Deve ter sido disso - mas agora que ela mencionava a sala de conferências, lembrou-se de tudo. A instrução que examinava com Jordan. As pequenas letras negras que compunham o relatório da autópsia de Emily. O bebé.
Sentiu-se afundar novamente na mesa, e quase de imediato a enfermeira estava ao seu lado.
- Sente-se mal outra vez? - perguntou ela, voltando a levantar-lhe os pés, cobrindo-o com um cobertor.
- Tem filhos? - perguntou Chris numa voz pastosa.
- Não - a enfermeira riu. - Porquê? Pareço uma mãe? - aconchegou-lhe o cobertor dos lados. - E você?
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- Não - respondeu Chris. - Não, não tenho - as mãos cerraram-se, agarrando no tecido.
- Pode ficar aqui o tempo que quiser - disse a enfermeira Carlisle. - Não se preocupe com os guardas; eu explico-lhes o que aconteceu.
O que aconteceu? Chris já nem sequer sabia ao certo. Emily... grávida? Não tinha dúvidas de que o bebé era seu; sabia-o como sabia que o Sol se ia pôr naquela noite e que o céu estaria azul na manhã seguinte - um facto que sempre fora assim e que sempre seria. Cerrou os olhos, tentando lembrar-se se a barriga dela estaria menos lisa; se as feições estariam diferentes; se a verdade sempre ali estivera exposta. Mas só conseguia lembrar-se de Emily a afastar-se dele de cada vez que lhe tocava.
Talvez Jordan tivesse razão; a gravidez era o que a fazia estar tão deprimida. Mas porquê? Podiam ter-se casado e ter o bebé; podiam ter ido juntos fazer um aborto. com certeza ela sabia que podiam resolver isso juntos.
A não ser que fosse precisamente isso que receava.
De repente uma raiva poderosa fez Chris estremecer. Como se atrevia ela a confiar nele para uma coisa, e não para outra?
com grande precisão, Chris virou-se para o lado e desferiu um soco na parede falsa, atravessando-a com o punho.
Selena estava sentada num banco alto, à espera que Kim Kenly acabasse de lavar as mãos. Deixou que os olhos percorressem a sala de aulas, vendo as mesas negras largas
e a parede coberta de prateleiras que albergavam um arco-íris de cartolinas, alguns cavaletes e um festival de tintas. A professora de Arte limpou as palmas das mãos à parte da frente do avental de ganga e virou-se para Selena com um sorriso no rosto.
- Ora - disse ela, puxando vigorosamente um banco. - Em que posso ajudá-la?
Selena abriu o caderno.
- Gostava que me falasse da Emily Gold - disse ela. - Parece que foi sua aluna?
Kim sorriu melancolicamente.
- Foi sim. Era uma das minhas preferidas.
- Ouvi dizer que era muito artística - sondou Selena.
- Oh, sim. Foi ela que fez os cenários para o Clube de Teatro, sabe. E ganhou um concurso de arte do liceu, a nível estadual, no ano passado. com as notas que tinha, tínhamos falado em ela ir para uma escola superior de artes, ou até mesmo para a Sorbonne.
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Ora, isso era interessante. A pressão podia vir de várias direcções, não apenas dos pais, para fazê-la sentir-se esmagada.
- Alguma vez notou que a Emily estivesse preocupada por ter de viver em função de estar à altura das expectativas de todos?
A professora de Arte franziu a testa.
- Não sei se alguém era mais severo para a Emily do que ela própria - disse ela. - Muitas personalidades artísticas têm uma faceta perfeccionista vincada.
Selena recostou-se, esperando pacientemente que Kim explicasse.
- Bem, talvez fosse melhor dar um exemplo - disse ela. Levantou-se e procurou ao fundo da sala, regressando com uma tela de tamanho médio onde estava pintado o retrato
fiel de Chris.
Emily Gold era ainda melhor do que boa; era uma pintora muito dotada.
- Oh - disse Kim -, pois é. Deve conhecer o Chris.
- E a senhora conhece-o? Ela encolheu os ombros.
- Não muito bem. Tenho todos os alunos do liceu, por um pequeno período de tempo no nono ano. Os mais interessados inscrevem-se para continuarem a ter aulas de Arte, os outros abandonam o curso - sorriu tristemente. - O Chris teria sido dos primeiros a sair, se não fosse a Emily.
- Então ele também tinha aulas de Arte?
- Oh, meu Deus, não. Mas vinha aqui bastantes vezes durante as horas livres para posar para a Emily - levantou a mão para a tela.
- Este é um de muitos.
- Estava sempre aqui com eles?
- A maior parte do tempo. Impressionava-me a maturidade da relação deles. Na minha profissão, vemos muitas risadinhas e beijos nos corredores, mas raramente vemos uma ligação como a que eles tinham.
- Pode explicar?
Bateu com o dedo nos lábios.
- Acho que o melhor exemplo seria o próprio Chris. É um atleta, sempre em movimento. No entanto, não se importava de ficar imóvel horas a fio só porque Emily lhe pedira - ergueu a tela, preparando-se para guardá-la, mas depois lembrou-se porque a tinha ido buscar. - Oh, o perfeccionismo. Está a ver aqui? - olhou mais de perto para a tela, e Selena também olhou, distinguindo apenas as camadas dos vários tons de tinta. - A Emily deve ter voltado a trabalhar nas mãos umas seis ou sete vezes, ao longo de meses.
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Dizia que não conseguia fazê-las exactamente bem. Lembro-me de o Chris, que naquela altura já estava a ficar bastante farto de posar para ela, lhe dizer que não devia ser uma fotografia. Mas, está a ver, para Emily era. Se não conseguisse captar o retrato da forma como a sua mente o via, não era aceitável - Kim enfiou a tela por trás de outras. - É por isso que o tenho - disse ela. - A Emily não queria levá-lo para casa. Por acaso, até a vi destruir outras telas que não tinham ficado exactamente como ela queria, cortando a tela ou pintando por cima. E não podia deixar que isso acontecesse a esta, por isso escondi-a e disse-lhe que um dos funcionários da manutenção a tinha guardado no sítio errado.
Selena escreveu uma nota a lápis no caderninho, e depois voltou a olhar para a professora de Arte.
- A Emily pensava em suicidar-se - disse ela. - Achou-a deprimida nos últimos meses, detectou alguma alteração no comportamento dela?
- Nunca me disse nada - admitiu Kim. - Ela nunca falava muito. Entrava aqui e começava logo a trabalhar. Mas o estilo dela mudou - disse ela. - Achei que estava apenas a experimentar.
- Pode mostrar-me?
O trabalho mais recente de Emily estava apoiado num cavalete junto às grandes janelas da sala de artes.
- Viu o retrato que ela fez do Chris - disse Kim, à laia de explicação. Esta última tela tinha um fundo vermelho e negro. Uma caveira a pairar sorria no quadro, de ossos alvos e reluzentes, um céu dolorosamente azul polvilhado com nuvens via-se através das órbitas. A língua vermelha realista serpenteava por entre dentes amarelos.
Ao fundo, Emily assinara o seu nome. E tinha-o intitulado de Auto-Retrato.
A empregada de limpeza de Jordan, tal como as outras seis antes dela, acabou por se fartar de limpar o pó e aspirar em volta de pilhas de papéis que devia "deixar ficar exactamente no mesmo sítio" e despediu-se. Bem, realmente despedira-se há um mês, mas fora precisamente quando o caso de Chris surgira e ele esquecera-se completamente do assunto. Até àquela noite, quando estava a folhear as suas notas deitado na cama e se apercebeu de que o cheiro que não desaparecia vinha dos lençóis.
Suspirando, Jordan levantou-se da cama e colocou cuidadosamente as notas em cima da cómoda. Depois tirou os lençóis do colchão, amachucando-os numa bola e dirigiu-se para a máquina de
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lavar roupa. Só quando passou por Thomas, a fazer os trabalhos de casa em frente à Roda da Fortuna, é que viu que provavelmente também devia mudar os lençóis da
cama do filho.
Afinal, se Maria não se tivesse despedido, Jordan talvez nunca chegasse a encontrar a Penthouse. Assim, quando ela caiu por cima do monte de lençóis, a única coisa
que foi capaz de fazer foi ficar a olhar para ela, estupefacto.
Por fim, recompôs-se e apanhou a revista. Na primeira página estava uma mulher cujos seios desafiavam a gravidade, as partes Privadas estavam ocultas por um par
de binóculos pendurados bastante abaixo. Jordan esfregou o maxilar com a mão e suspirou. Ficava completamente perdido quando se tratava desta faceta de ser Pai.
Como podia dizer ao filho para se ver livre de uma revista pornográfica, quando ele próprio exibia beldade após beldade?
"Se vais ter esta conversa", disse para consigo, "é melhor que ? Thomas te escute." Enfiando a revista debaixo do braço, Jordan entrou na sala de estar.
- Olá - disse ele, sentando-se no sofá. Thomas estava agachado junto da mesa de café, com um livro aberto à sua frente. Em que estás a trabalhar?
- Estudos Sociais - disse Thomas, e antes que o pudesse evitar Jordan pensou: "Talvez demasiado sociais."
Observou o filho escrever no dossier de três argolas, a mão esquerda escrevendo cuidadosamente para que o lápis não ficasse esborratado. Era canhoto; Thomas herdara
isso de Deborah. Bem como os espessos cabelos negros e o formato dos olhos. Mas a Potencial largura dos ombros e a longa linha das costas, vinham ambas directamente
de Jordan.
Aparentemente também transmitira ao filho uma libido saudável.
Suspirando, tirou a revista e colocou-a por cima do dossier.
- Queres falar-me sobre isto? - perguntou ele. Thomas lançou um olhar de relance à capa.
- Nem por isso - disse.
- É tua?
Thomas balançou-se para trás, apoiado nos calcanhares.
- Visto que só tu e eu é que vivemos aqui, e sabes que não é tua, então acho que isso é bastante óbvio.
Jordan riu.
- Andas a conviver com advogados há demasiado tempo disse ele. Depois ficou sério, olhando directamente para Thomas. Por quê? - perguntou simplesmente.
Thomas encolheu os ombros.
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- Queria ver, só isso. Queria saber como era.
Jordan olhou para a Miúda dos Binóculos na capa da revista.
- Bem, posso dizer-te que não é bem assim - mordeu o lábio.
- Por acaso, posso dizer-te tudo o que me quiseres perguntar.
Thomas corou, ficou da cor de uma peónia.
- Então está bem - disse ele. - Porque não tens uma namorada? Jordan ficou de boca aberta.
- Uma quê?
- Tu sabes, pai. Uma namorada fixa. Uma mulher que durma realmente contigo e que volte outra vez.
- Não estávamos a falar de mim - disse Jordan, tenso, pensando porque seria tão mais fácil manter o controlo diante de desconhecidos num julgamento. - Estávamos a falar sobre porque é que tens uma Penthouse na tua posse.
- Talvez estejas a falar disso - Thomas encolheu os ombros -, mas eu não. Disseste que podia perguntar-te qualquer coisa, mas não me respondes.
- Não estava a referir-me à minha vida privada.
- Porque não? - exclamou Thomas. - Estás a fazer-me perguntas sobre a minha vida privada!
- O que eu faço nos meus tempos livres só a mim me diz respeito - disse Jordan. - Se te incomoda que eu traga mulheres cá para casa, podes expressar a tua opinião e discutimos o assunto. De outra forma, espero que respeites a minha privacidade.
- Bem, o que eu faço nos meus tempos livres também só a mim me diz respeito - respondeu Thomas, e enfiou a Penthouse debaixo da pilha de livros escolares.
- Thomas - disse Jordan numa voz aterradoramente suave -, dá cá isso.
Thomas levantou-se.
- Obriga-me - disse ele.
Prepararam-se para a contenda, a tensão a adensar o ar, as divergências deles pontuadas pelos aplausos do público no estúdio da televisão. De repente, Thomas agarrou na revista que estava debaixo dos livros e correu para o quarto.
- Volta aqui! - rugiu Jordan, dirigindo-se a passos largos para o quarto de Thomas, ouvindo a porta bater e trancar-se. Estava de pé no corredor, a ponderar arrombar a porta por princípio, quando a campainha soou.
Selena. Ia lá a casa para discutir o caso Harte. O que, naquele preciso momento, talvez fosse o melhor para todas as partes envolvidas.
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Jordan dirigiu-se para a porta de entrada, admirando-se por ver um homem desconhecido fardado.
- Telegrama - disse ele.
Aceitando o envelope, Jordan voltou para dentro de casa. "CASO 25 DEZ STOP QUERIA THOMAS VIESSE STOP ENVIO BILHETES AVIÃO PARA PARIS PARA TEU ESCRITÓRIO STOP OBRIGADA, JORDAN STOP DEBORAH."
Olhou para a porta fechada do quarto de Thomas e pensou, como já pensara mil vezes antes, que o sentido de oportunidade era tudo.
- Deixa-me adivinhar - disse Selena passados poucos minutos quando entrou em casa e viu Jordan tristemente estendido no sofá.
- A Emily voltou à vida para apontar o dedo ao teu cliente.
- Humm? - Jordan levantou-se, apoiado num cotovelo, e tirou os pés de cima do sofá, para que Selena pudesse sentar-se. - Não, nada disso - entregou o telegrama a Selena e ficou à espera que ela o lesse.
- Nem sequer sabia que a tua mulher estava viva, quanto mais que andava com alguém.
- Ex-mulher. Eu sabia que ela estava viva. Ou, melhor, o meu contabilista sabia. Tinha de enviar a pensão de alimentos para algum lado - suspirou e endireitou-se. - O pior é que o Thomas e eu acabámos de ter uma discussão.
- Vocês os dois nunca discutem.
- Bem, há uma primeira vez para tudo - Jordan franziu o sobrolho. - E agora pode escapar-se para ir ter com a mãe.
- Em Paris - acrescentou Selena, olhando em volta. - Devo dizer-te, Jordan. Não podes competir com a Rive Gaúche.
- Muito obrigado - resmungou ele. Selena deu-lhe pancadinhas no joelho.
- Vai tudo resolver-se - previu ela.
- Como tens tanta certeza?
Ela olhou para ele, surpreendida.
- Ora, porque é o teu forte - tirou cá para fora uma pilha de caderninhos e colocou-os em cima da mesa de café ao lado dos dossiers da escola de Thomas. - Hoje à noite vamos ficar a cismar? Ou vamos falar sobre o caso? Não me importo de fazer qualquer uma das coisas - apressou-se a acrescentar.
- Não, não, o caso - disse Jordan. - Assim não vou ficar a pensar no Thomas - dirigiu-se para a sala de jantar, regressando com uma grande pilha de papéis. - O que
vais fazer no Natal?
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- vou à casa da minha irmã - disse Selena, olhando para cima.
- Desculpa - ficou à espera que Jordan se sentasse outra vez ao seu lado. - Pronto - disse ela. - Eu mostro-te o meu se me mostrares o teu.
Jordan riu.
- O que conseguiste arrancar ao Michael Gold? Selena folheou o caderno.
- Acho que ele vai ajudar-nos. Relutantemente. Podes usá-lo para pôr em evidência o facto de a Emily passar muito pouco tempo com os pais, para lançar a dúvida sobre
o facto de ele conhecer a filha assim tão bem...
Jordan voltou a pensar em Thomas, a esconder a Penthouse. Há quanto tempo estaria ali, com Jordan ausente, a trabalhar, sem ter tempo para a encontrar?
Selena ainda falava sobre Michael Gold.
- ... embora não vá dizer diante do júri que o Chris não a matou, acho que somos capazes de levá-lo a admitir que o Chris amava a Emily.
- Mmm - disse Jordan, olhando para as notas dela. - E podemos referir que o Michael foi visitar o Chris à prisão.
-Foi? Jordan sorriu.
- Deves ter despertado qualquer coisa nele.
- Para além dele só tenho a professora de arte da Emily, que não fez nenhuma referência verbal relativamente ao suicídio, mas que tem um quadro bastante convincente
- disse Selena, referindo-se ao auto-retrato de Emily.
- Terei de pensar sobre isso. Quem podemos arranjar para interpretar a diferença de estilos? Não se trata propriamente de uma artista verdadeira.
- Ficarias admirado - disse Selena. Descalçou os sapatos. O que temos?
- Bem - disse Jordan -, a Emily estava grávida de onze semanas.
- O quê?
- Foi precisamente isso que o Chris disse - murmurou Jordan -, antes de desmaiar - olhou para Selena. - Sabes, já vi muitos mentirosos ao longo dos anos. Bolas, fiz a minha carreira a conviver com eles. Mas ou este rapaz é o melhor mentiroso que já conheci, ou realmente não sabia da existência do bebé.
Os pensamentos de Selena fervilhavam.
- Esse é o motivo da acusação - calculou em voz alta. - Ele sabia e estava a tentar eliminar o problema.
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- Se juntares a universidade à mistura, também consegues ser a S. Barrett Delaney - troçou Jordan.
- Bem, então é simples. Só temos de fazer uma defesa em duas frentes. Provamos que a Emily queria suicidar-se e que o Chris não sabia da existência do bebé.
- É mais fácil de dizer do que de fazer - lembrou Jordan. O facto de não ter dito nada a ninguém não implica que não soubesse.
- vou voltar a falar com o Michael Gold - disse Selena. - E a professora de Arte disse uma coisa, sobre a Emily querer ir estudar para o estrangeiro, ou frequentar uma escola superior de belas-artes. Talvez fosse ela que não quisesse o bebé.
- O suicídio parece-me ser um método de aborto um pouco radical - disse Jordan.
- Não, é a pressão, não percebes? A Emily é uma perfeccionista e, de repente, os planos dela ruíram. Não ia estar à altura das expectativas de toda a gente, por isso matou-se. Fim.
- Muito bonito. É pena que não sejas a porta-voz do júri.
- Deixa-te disso - disse Selena animadamente. - O médico dela sabia da gravidez?
- Parece que não - disse Jordan. - Não está nos ficheiros clínicos que o Ministério Público entregou.
Selena começou a escrever no bloco.
- Podemos experimentar o Wellspring e o Planeamento Familiar - disse ela. - Talvez tenhamos de apresentar uma notificação para aceder aos ficheiros, mas vou ver se encontro alguém que esteja disposto a falar. Também quero tentar suscitar dúvidas sobre quem levou a arma. Talvez colocar o James Harte no banco das testemunhas e perguntar-lhe se a Emily tinha acesso ao armário para guardar armas, se sabia onde estava a chave, sabes. Fazer com que o júri olhe noutra direcção. Ah, e vou encontrar-me com a professora de Inglês do Chris. Diz-se por aí que ela acha que ele é a reencarnação de Jesus Cristo.
Parou para respirar e olhou para cima, vendo Jordan observá-la com um sorriso a dançar-lhe aos cantos da boca.
- O que foi? - perguntou ela.
- Nada - disse Jordan, desviando o olhar. Colocou a mão no colarinho, como se pudesse conter o rubor que lhe subia pelo pescoço. - Absolutamente nada.
Era altamente improvável que qualquer profissional de saúde estivesse disposto a falar com uma investigadora a trabalhar para a
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defesa sem receber uma notificação formal. Mesmo assim, as regras nas clínicas de cuidados e exames pré-natais eram ligeiramente diferentes. Embora os registos estivessem selados, as paredes tinham ouvidos. As pessoas conversavam nas clínicas, choravam, e outras pessoas ouviam-nas.
Selena tentara Wellspring primeiro, sem conseguir demover a recepcionista de feições duras. Depois recuperou forças num café das redondezas e dirigiu-se com optimismo para o Planeamento Familiar. Situado a duas cidades de Bainbridge, era perto da carreira de autocarro. Emily, que não tinha carro, podia ter-se deslocado lá sem dificuldade.
O gabinete era pequeno e amarelo-limão, situado dentro de uma casa colonial convertida. A recepcionista tinha cabelos ripados da mesma cor das paredes, e sobrancelhas pintadas.
- Posso ajudá-la? - perguntou.
- Sim - disse Selena, entregando-lhe um cartão. - Será que posso falar com a directora?
- Lamento, de momento não está. Posso saber de que assunto se trata?
- Estou a trabalhar para a defesa num caso envolvendo o alegado homicídio de Emily Gold. É possível que ela tivesse sido uma paciente recente. E gostaria de falar com alguém que a tivesse examinado.
A recepcionista olhou para o cartão.
- vou entregar isto à directora - disse ela -, mas posso poupar-lhe algum trabalho. Ela vai dizer-lhe que terá de apresentar uma notificação para aceder aos registos, se estiverem aqui.
- Óptimo - disse Selena, mostrando os dentes. - Obrigada pela ajuda.
Viu a recepcionista virar-se para um telefone a tocar, e voltou para a sala de espera. Uma técnica de aconselhamento que segurava numa tabela olhou para Selena enquanto
ela vestia o casaco. Quando estava a sair, a técnica acompanhava uma mulher no fim da gravidez lá para dentro.
Selena entrou no carro e ligou o motor.
- Caramba - disse ela, batendo com tanta força no volante que a buzina tocou. A última coisa que desejava era ter de apresentar uma notificação para aceder aos registos, pois isso implicava que o Estado também estivesse presente, e só Deus sabia o que o Planeamento Familiar teria para dizer. Para Selena, Emily Gold até podia ter chegado ali a dizer que o bebé era de outro tipo qualquer, e que Chris ameaçara matá-la.
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Deu um salto quando ouviu uma pancada na janela. Abrindo-a, Selena viu-se cara a cara com a técnica de aconselhamento que estava lá dentro.
- Olá - disse ela. - Ouvi o que disse lá dentro - Selena acenou com a cabeça. - Eu... posso entrar? Está frio.
Selena reparou que a mulher ainda vestia a bata curta de enfermeira.
- Esteja à vontade - disse ela, inclinando-se para o lado para abrir a porta do lugar do passageiro.
- Chamo-me Stephanie Newell - disse a técnica de aconselhamento. - Estava a trabalhar no dia em que a Emily Gold veio aqui
- respirou fundo e Selena começou a rezar muito, mesmo muito. Só me lembro desse nome porque li muito sobre ela nos jornais. Veio aqui algumas vezes. Ao princípio falava em fazer um aborto, mas depois teve medo e estava sempre a adiar. Aqui temos técnicos de aconselhamento... sabia que todas as mulheres têm de falar com técnicos de aconselhamento? - Selena acenou com a cabeça. - Bem, fui eu que falei com a Emily. E quando lhe fiz perguntas sobre o pai do bebé, ela disse que ele estava fora do assunto.
- Fora do assunto? Foram essas as palavras que ela usou? Stephanie acenou com a cabeça.
- Tentei fazê-la explicar-se, mas ela não quis. Cada vez que perguntava se ele vivia noutro estado, ou até se sabia da existência do bebé, ela limitava-se a dizer que ainda não lhe contara. Como técnicos de aconselhamento, somos formados para ajudar os clientes a ter em conta todas as hipóteses, mas não devemos forçá-los a mudar de ideias. A Emily chorava muito e, na maior parte das vezes, eu só escutava - remexeu-se no assento. - Depois comecei a ler nos jornais que um rapaz matara a Emily por causa do bebé e achei que aquilo não estava bem, porque ele nem sequer sabia que ela estava grávida.
- É possível que tenha convencido a Emily a contar-lhe? Talvez após uma das visitas?
- É possível - disse Stephanie. - Mas cada vez que via a Emily ela dizia o mesmo: que não tinha contado ao pai; que não queria. E vi-a pela última vez no dia em que morreu.
Ao ouvir a pesada porta de grades fechar-se, o Dr. Feinstein deu um salto, levando Jordan a acreditar que não seria assim tão difícil convencer o homem a não voltar.
- Por aqui, Doutor - disse Jordan, solícito, conduzindo o homem para a estreita escadaria que ia dar à sala de conferência da prisão para uso dos advogados. O guarda que destrancou a porta
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esboçou um sorriso soturno, prendeu as mãos no cinto e disse que Chris estava a chegar.
- Um tipo interessante - disse Jordan, sentando-se na pequena sala abafada.
- O Chris?
- Não, o guarda. Foi ele que ficou refém aqui no ano passado.
- Oh - disse o Dr. Feinstein, espreitando pela porta. - Lembro-me de ver isso nas notícias.
- Pois. Foi uma grande confusão. O autor de um homicídio com um machado que aguardava julgamento é que liderou a rebelião, e eles trancaram o homem numa das celas depois de lhe terem cortado o rosto com uma lâmina de barbear - encostou-se para trás, cruzando as mãos por cima da barriga e desfrutando do facto de o Dr. Feinstein ter ficado extremamente pálido. - Ora, bem, lembra-se das condições desta entrevista?
O Dr. Feinstein desviou o rosto da porta a custo.
- Condições? Ah, sim. Embora volte a dizer-lhe que o meu maior interesse é tratar da saúde mental do Chris, e há algumas vantagens em explorar o momento em que esta foi perturbada num ambiente agora seguro.
- Bem, vai ter de fazer os seus "tratamentos" de outra maneira
- disse Jordan peremptoriamente. - Não poderá falar sobre o crime, nem sobre o caso.
O Dr. Feinstein insistiu.
- Tudo o que o Chris disser estará protegido pela confidencialidade dos pacientes - disse ele. - Não precisa realmente de estar presente.
- Em primeiro lugar - disse Jordan -, a confidencialidade dos pacientes já foi violada antes em casos extremos, e o Homicídio Qualificado insere-se certamente nessa categoria. Em segundo lugar, a dinâmica da sua relação com o meu cliente vem em segundo lugar relativamente à minha relação com ele. E se é que ele pode confiar em alguém presentemente, esse alguém sou eu, doutor. Porque o senhor pode ser capaz de lhe salvar a saúde mental, mas sou eu que lhe posso salvar a vida.
Antes que o psiquiatra pudesse responder, Chris apareceu à porta. Surgiu-lhe um sorriso no rosto ao ver o Dr. Feinstein.
- Olá - disse ele. - Eu, hum, mudei de endereço.
- Estou a ver - riu o Dr. Feinstein, recostando-se na cadeira com um à vontade tal que Jordan teve dificuldade em acreditar que fosse o mesmo homem que estava a tremer na cabina de controlo apenas há alguns minutos. - O teu advogado possibilitou
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amavelmente esta reunião contigo em privado. Desde que ele possa assistir.
Chris lançou um olhar ao advogado e encolheu os ombros. Jordan encarou isso como um sinal muito positivo. Sentou-se na cadeira vazia e apoiou as mãos abertas na mesa.
- vou começar por perguntar-te como te sentes - começou o Dr. Feinstein.
Chris virou-se para Jordan.
- Bem... sinto-me esquisito, com ele aqui - disse ele.
- Finge que não estou - sugeriu Jordan, fechando os olhos. Finge que estou a fazer uma sesta.
Chris arrastou a cadeira pelo chão, virando-a de lado para não ter de olhar para Jordan.
- Ao princípio estava muito assustado - disse ao psiquiatra. Mas depois vi que desde que me mantivesse isolado não havia problema. Tento ignorar a maior parte das pessoas - puxou a cutícula do polegar.
- Deves ter muitas coisas para dizer. Chris encolheu os ombros.
- Talvez. Converso um pouco com um dos meus companheiros de cela, o Steve. Ele não é mau. Mas há coisas que não conto a ninguém.
"É assim mesmo", pensou Jordan em silêncio.
- Queres falar sobre essas coisas?
- Não, não quero - disse Chris. - Mas acho que preciso - olhou para o psiquiatra. - Às vezes parece que a minha cabeça vai abrir-se ao meio - o Dr. Feinstein acenou com a cabeça. - Descobri que a Emily estava... íamos ter um bebé.
Fez uma pausa, como se estivesse à espera que Jordan interviesse, qual anjo vingador da justiça, para dizer que esse assunto estava demasiado relacionado com o caso para ser abordado. Perante o silêncio, Chris cruzou as mãos, apertando os nós dos dedos uns contra os outros para que a dor o mantivesse concentrado.
- Quando descobriste isso? - perguntou o Dr. Feinstein, com uma expressão meticulosamente vaga.
- Há dois dias - disse Chris suavemente. - Quando já era tarde de mais - olhou para cima. - Quer que lhe conte o sonho que tive? Os psiquiatras não adoram sonhos?
O Dr. Feinstein riu.
- Os freudianos sim. Não sou psicanalista, mas podes contar.
- Bem, aqui não costumo ter muitos sonhos. Compreende, as portas estão sempre a fechar-se durante a noite e, de vez em
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quando, um dos guardas piores aparece na passagem e aponta uma lanterna mesmo à nossa cara. Por isso o facto de eu dormir tão profundamente que chegue a sonhar é bastante surpreendente. De qualquer forma, sonhei que ela estava sentada ao meu lado, a Emily, quero dizer, e estava a chorar. Abracei-a, e sentia-a encolher, só pele e ossos, por isso abracei-a com mais força. Mas isso apenas a fez chorar mais e, de repente, ficou muito leve, olhei para baixo e vi que estava a pegar num bebé.
Jordan remexeu-se desconfortavelmente. Quando decidira estar presente nesta sessão privada, apenas pensara em proteger Chris legalmente. Agora, estava a começar a perceber que a relação entre um psiquiatra e um cliente era muito diferente da relação entre um advogado e o cliente. Um advogado apenas tinha de averiguar os factos. Um psiquiatra era obrigado a extrair os sentimentos.
Jordan não queria conhecer os sentimentos de Chris. Não queria conhecer os sonhos de Chris. Isso implicava envolver-se pessoalmente e isso nunca era uma boa ideia quando se exercia direito.
Teve um vislumbre fugaz de Chris, completamente vazio por dentro devido ao Dr. Feinstein e a ele próprio, a ser levado pelo vento como uma casca.
- Porque achas que tiveste este sonho? - estava a dizer o Dr. Feinstein.
- Oh, ainda não acabei. Aconteceu uma coisa depois - Chris respirou fundo. - Estava a pegar no bebé, e ele estava a chorar. Como se tivesse fome, mas não sabia o que havia de lhe dar para comer. Esperneava cada vez mais, e eu falei com ele mas não adiantou nada. Então, dei-lhe um beijo na testa e depois levantei-me e bati com a cabeça dele no chão.
Jordan escondeu o rosto nas mãos. "Oh, meu Deus", rezou em silêncio. "Não deixeis que o Feinstein seja notificado."
- Bem. Um psicanalista diria qualquer coisa sobre estares a tentar regressar à dita infância da tua relação original - disse o Dr. Feinstein, sorrindo. - Mas eu diria que talvez estivesses frustrado quando te deitaste.
- Frequentei a disciplina de Psicologia no liceu - prosseguiu Chris, como se Feinstein não tivesse dito nada. - Acho que consigo perceber por que razão a Emily se transformou num bebé no sonho: de alguma forma relacionei-os um com outro na minha cabeça. Até compreendo porque estava a tentar matá-lo: aquele tipo de que eu falei, o meu companheiro de cela, o Steve? Ele está aqui porque abanou o bebé dele até à morte. Então, isso também já andava às voltas na minha cabeça quando adormeci.
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O Dr. Feinstein pigarreou.
- Como te sentias quando acordaste do sonho?
- Isso é que é estranho - disse Chris. - Não estava triste. Estava completamente furioso.
- Por que razão achas que estavas zangado? Chris encolheu os ombros.
- Foi o doutor que disse que as emoções estão todas misturadas.
Feinstein sorriu.
- Então estavas atento - disse ele. - Neste sonho, fizeste mal ao bebé. Será que estás zangado por a Emily estar grávida?
- Espere um instante - objectou Jordan, consciente de que informações críticas estavam prestes a ser reveladas.
Mas Chris não estava a ouvir.
- Como poderia estar? - disse ele. - Quando soube, já era indiferente.
- Porquê?
- Porque sim - disse Chris, taciturno.
- Porque sim não é uma resposta - disse o Dr. Feinstein.
- Porque ela está morta - explodiu Chris. Afundou-se na cadeira e passou as mãos pelos cabelos. - Meu Deus - disse ele num tom suave. - Estou furioso com ela.
Jordan inclinou-se para a frente, com as mãos entaladas entre os joelhos. Recordava-se agora como, no dia em que Deborah o deixara, fora trabalhar na procuradoria-geral e fora buscar Thomas ao infantário, agindo como se não tivesse acontecido nada fora do normal. E, então, passada uma semana Thomas derrubara uma caneca de leite e Jordan quase o esfolara vivo - ele, que nunca batera no filho - antes de perceber quem realmente estava a tentar castigar.
- Porque estás zangado com ela, Chris? - perguntou o Dr. Feinstein num tom suave.
- Porque ela guardou segredo - disse Chris num tom arrebatado. - Ela disse que me amava. Quando amamos alguém, deixamos que essa pessoa cuide de nós.
O Dr. Feinstein ficou calado por um momento, observando o paciente recuperar o controlo.
- Se ela te tivesse falado no bebé, como terias cuidado dela?
- Teria casado com ela - disse imediatamente. - Alguns anos não teriam feito diferença nenhuma.
- Hmm. Achas que a Emily sabia que terias casado com ela?
- Sim - disse Chris com firmeza.
- E o que te assusta tanto neste assunto?
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Por um instante, Chris ficou sem palavras, de olhos fixos no Dr. Feinstein como se estivesse a pensar se o homem não seria vidente. Depois desviou o rosto e limpou
o nariz às costas da mão.
- A minha vida girava toda à volta dela - disse Chris, com uma voz pastosa. - E se a vida dela não girasse toda à minha volta? - curvou a cabeça ao mesmo tempo
que Jordan se levantou e saiu da sala de conferências, quebrando as suas próprias regras para não ter de ouvir mais nada.
A Casa dos Harte estava decorada, em grande parte, no prático estilo WASP11 da Nova Inglaterra que incluía mobília Chippendale esguia, tapetes antigos muito puídos
e retratos de pessoas austeras que não eram da família. Em contraste, a cozinha - onde Jordan estava agora sentado - parecia um conjunto de festivais étnicos. Azulejos
de Delft decoravam a parte de trás do lava-loiça; cadeiras de costas de cabedal ao estilo colonial contrabalançavam com a mesa de tampo de mármore; uma tela sboji
tapava a entrada para a sala de jantar; individuais zapotecas, das cores do arco-íris, rodeavam a caneca de cerveja alemã onde havia um sortido desirmanado de talheres
e utensílios de cozinha. O ambiente eclético adequava-se maravilhosamente a Gus Harte, pensou Jordan, enquanto a observava a servir-lhe um copo de água fresca. Quanto
a James desviou a atenção para o homem, de mãos nos bolsos a olhar para um comedouro de aves do outro lado da janela - bem, provavelmente passava o tempo no resto
da casa.
- Aqui tem - disse Gus, aproximando a segunda cadeira da mesinha redonda. Franziu o sobrolho ao olhar para o tampo. - Não será melhor irmos para outro lado? - perguntou
ela. - Aqui não há muito espaço?
Deviam ter saído dali; Jordan trouxera um caixote cheio de papéis. Mas estar numa das outras salas mais sóbrias e conservadoras não agradava a Jordan, pelo menos
quando se tratava de discutir um caso que requeria uma flexibilidade quase de ginasta.
- Aqui está óptimo - disse ele, colocando as mãos em pirâmide. Olhou para Gus e depois para James.
- Vim aqui hoje para falar sobre os vossos testemunhos.
- Testemunhos?
11. WASP - White, Anglo-Saxon and Protestant - significa Branco, Anglo-Saxão e Protestante. A cultura WASP foca os valores tradicionais e uma religiosidade inflexível.
(N. da R.)
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A pergunta foi de Gus; Jordan deixou o olhar pousar no rosto dela.
- Sim - disse ele. - Vamos precisar de si como testemunha de carácter do Chris. Quem o conhece melhor do que a própria mãe?
Gus acenou com a cabeça, de rosto pálido.
- De que terei de falar?
Jordan sorriu, compreensivo. Era muito frequente que as pessoas tivessem medo de subir ao banco das testemunhas; afinal, todos os olhos na sala de audiências estariam
postos nelas.
- Nada que já não tenha ouvido antes, Gus - tranquilizou-a. Vamos falar sobre as perguntas que lhe vou fazer antes de prestar testemunho. Basicamente descreveremos
a personalidade do Chris, os interesses, a relação com a Emily. Se, na sua prezada opinião, o seu filho seria ou não capaz de cometer um homicídio.
- Mas a procuradora-geral... ela não vai fazer perguntas também?
- Vai sim - disse Jordan num tom suave -, mas provavelmente podemos calcular quais.
- E se ela me perguntar se o Chris queria suicidar-se? - disse Gus bruscamente. - Teria de mentir.
- Se ela perguntar isso, vou objectar. Alegando que a Gus não é perita em suicídios nos adolescentes. Então a Barrie Delaney vai reformular e perguntar se o Chris
alguma vez lhe falou em suicidar-se, ao que a Gus vai responder simplesmente que não.
Jordan virou-se na cadeira para falar com James, que ainda estava a olhar pela janela.
- Quanto a si, James, não vamos usá-lo como testemunha de carácter. O que eu gostaria de saber através de si é se a Emily podia ter tirado ela própria a arma naquela
noite. A Emily sabia onde estavam guardadas as armas em sua casa?
- Sim - disse James numa voz suave.
- E alguma vez o viu tirar uma arma do armário onde as guardava? Ou o Chris?
- Tenho a certeza de que viu - disse James.
- Por isso é possível, visto que não estavam lá para ver, que tivesse sido a Emily, e não o Chris, a tirar o Colt do armário?
- É possível - disse James, e Jordan esboçou um sorriso.
- Pronto - disse ele. - É só isso que terá de dizer.
James levantou um dedo e fez balançar um anjo de vitral pendurado na janela para reflectir o sol.
- Infelizmente - disse ele - não vou testemunhar.
- Desculpe? - proferiu Jordan. Acreditara, até àquele momento, que os Harte concordariam com qualquer coisa que ficasse aquém
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do suborno, e possivelmente até que o incluísse, para que o filho saísse em liberdade. - Não vai testemunhar? James abanou a cabeça.
- Não posso.
- Compreendo - disse Jordan, embora não compreendesse. Pode dizer-me porquê?
O relógio de cuco na parede ganhou vida de forma obscena, saindo sete vezes cá para fora como uma língua.
- Por acaso - disse James, - não. Jordan foi o primeiro a recuperar a voz.
- Está realmente ciente de que tudo o que a defesa tem de fazer para que Chris seja absolvido é suscitar uma dúvida razoável. E que o seu testemunho, enquanto proprietário
daquela arma, quase seria capaz de fazê-lo por si só?
- Compreendo - disse James. - E recuso.
- Seu canalha - Gus estava de pé diante da tela sboji, de braços cruzados. - Maldito canalha egoísta - aproximou-se do marido, tanto que a raiva dela lhe agitava
as madeixas de cabelo. - Diz-lhe por que razão não queres fazê-lo - James desviou o rosto. - Diz-lhe! - virou-se para ficar de frente para Jordan. - Não tem nada
a ver com o medo da ribalta - disse ela, tensa. - É porque se o James tiver de participar no julgamento, deixa de poder fingir que isto não passou de um terrível pesadelo. Se tiver de participar no julgamento, ficará activamente envolvido na defesa do filho...o que significa que havia um problema inicialmente - grunhiu desdenhosamente com repulsa, James passou por ela e saiu da cozinha.
Por um instante, tanto Jordan como Gus permaneceram calados. Depois, ela voltou a sentar-se na cadeira à frente dele, brincando com a colecção de talheres na caneca de cerveja, fazendo-os tilintar contra as bordas de loiça.
- Posso colocá-lo na lista de testemunhas - disse Jordan -, no caso de ele mudar de ideias.
- Não vai mudar - disse Gus. - Mas pode fazer-me as perguntas que lhe ia fazer.
Surpreendido, Jordan ergueu as sobrancelhas.
- Viu a Emily com o Chris quando ele estava a abrir o armário para guardar as armas?
- Não - disse Gus. - Na verdade nem sequer sei onde o James guarda a chave - passou com a unha do polegar sobre a decoração gravada da caneca. - Mas posso dizer tudo o que quiser que eu diga, pelo Chris.
- Sim - disse Jordan. - Imagino que sim.
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A regra tácita na prisão era que os assassinos de bebés não deviam ter descanso. Se estivessem a tomar duche, atiravam-lhes coisas. Se estivessem a defecar, eram surpreendidos. Se estivessem a dormir, eram acordados.
À medida que a população da segurança média diminuía - parecia que o maior afluxo ocorria após a época natalícia - os dois prisioneiros que partilhavam a cela com Chris e Steve foram de lá retirados. Um foi transferido para a segurança máxima por ter cuspido para cima de um guarda. O outro terminou a pena que estava a cumprir e foi liberto. Na ausência destes companheiros de cela, Hector recomeçou a sua campanha para fazer Steve pagar pelo crime que cometera.
Infelizmente, Chris partilhava a cela com Steve.
Uma segunda-feira, enquanto Chris dormia, Hector começou a bater nas grades da cela. A privacidade era uma ilusão na prisão, sobretudo nas alturas em que as celas
não estavam trancadas. Mas mesmo que a porta de uma cela estivesse aberta, não se entrava lá sem se ser convidado. E se os ocupantes estivessem a dormir, eram deixados
em paz.
Steve e Chris sentaram-se ambos na cama ao ouvirem Hector tocar xilofone na parte da frente da cela com as pernas de uma cadeira.
- Oh - disse ele sorrindo ao vê-los. - Vocês estavam a dormir?
- Caramba - disse Chris, colocando as pernas para fora do beliche. - Que se passa contigo?
- Não, professor - disse Hector. - O que se passa contigo? - debruçou-se lá para dentro, com um hálito desagradável da noite. - Acho que agora tudo faz sentido. Andam a comparar os apontamentos?
Chris esfregou os olhos.
- O que queres dizer com isso? Hector aproximou-se ainda mais.
- Quanto tempo achavas que eu ia demorar a descobrir que mataste a rapariga porque ia ter um filho teu?
- Seu cabrão - disse Chris, as mãos a moverem-se com vontade própria rodeando o pescoço de Hector. Atrás de si, sentia Steve puxá-lo pelo ombro, mas sacudiu-o com facilidade, colocando toda a força e concentração em estrangular o imbecil à sua frente que dissera uma mentira tão ignóbil.
Não lhe ocorreu interrogar-se como aquela informação se tornara do conhecimento público. Talvez Jordan tivesse comentado
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com a enfermeira, e um recluso estivesse a lavar o chão à porta do gabinete médico na altura. Talvez um guarda tivesse ouvido. Talvez tivesse sido publicada nos jornais disponíveis para os reclusos na sala de convívio.
- Chris... - disse Steve, num fio de voz a pairar-lhe sobre o ombro. - Larga-o - e, de repente, Chris deixou de suportar que todos naquele... naquele inferno, o juntassem sempre com Steve. Havia uma diferença enorme entre dar-se com Steve por vontade própria e dar-se com Steve porque não havia mais ninguém.
Hector tinha os olhos esbugalhados, bufava e estava roxo como uma beringela e Chris achava que nunca vira nada tão belo. E então, subitamente, prenderam-lhe os braços atrás das costas, algemando-o, e caiu de joelhos devido a uma pancada no pescoço. Hector, imobilizado por outro guarda, estava a recuperar a cor normal e o fôlego.
- Seu cabrãozinho - gritou ele, enquanto Chris era arrastado para fora do recinto. - Vais pagar por isto!
Só quando Chris chegou à sala de controlo é que conseguiu perguntar para onde iam. E nem assim obteve resposta.
- Se te comportas como um animal - disse o guarda -, és tratado como um animal.
Conduziu Chris para a solitária. Antes de lhe tirar as algemas, o guarda verificou debaixo do colchão. Não havia almofada.
Sem dizer uma palavra, o guarda soltou as mãos de Chris e deixou-o sozinho.
- Então! - disse Chris, correndo para a porta de metal maciço à excepção da ranhura onde introduziam o tabuleiro com a comida. Enfiou os dedos na ranhura. - Não pode fazer-me isto. Tem de apresentar-me uma falta disciplinar.
Ouvia gargalhadas algures ao fundo do corredor.
Deixou-se cair para o chão e olhou tristemente em seu redor. Acabaria por receber a sua falta disciplinar algum tempo depois de cumprir o castigo. Entretanto, ficaria enfiado naquele buraco só Deus sabia quanto tempo, e a pequena cela não tinha sido limpa depois de lá ter estado o seu último ocupante. Havia uma poça de vómito a um canto e fezes espalhadas numa das paredes.
Chris levantou-se de um salto, esticando-se para alcançar a saliência de sete centímetros e meio por cima do chuveiro, só para ver se alguém deixara lá ficar alguma coisa. Esgravatou inutilmente debaixo do colchão e da cama pregada ao chão. Depois voltou a colocar-se na posição inicial, enrolado junto da porta, de joelhos encostados ao peito, com vómitos a cada respiração.
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Às 12h15 enfiaram-lhe o almoço através da ranhura.
Às 14h30 os reclusos da segurança máxima dirigiram-se para a sala de exercícios, passando pela solitária. Um deles cuspiu pela ranhura, o muco manchou a parte de
trás da camisola de Chris.
Às 15h45, quando os homens da segurança média se dirigiam à sala de exercícios, Chris despiu a camisola e enfiou-a debaixo da porta, uma faixa de tecido lisa. Ficou à espera que lhe caísse alguma coisa em cima, enquanto ouvia o ruído estrondoso dos pés passarem, e, depois, voltou a tirá-la cuidadosamente. Alguém - Steve, achava ele - lhe atirara uma caneta.
Tentou desenhar nas paredes, mas a tinta não se agarrava ao betão. Nem ao beliche de metal, nem ao duche, restando-lhe apenas uma coisa. Ao longo das três horas seguintes, até à hora de jantar, Chris desenhou na camisola e nas calças do uniforme da prisão, desenhos desenfreados que lhe faziam lembrar os rabiscos artísticos de Emily.
Depois do jantar deitou-se de barriga para cima e reviu cada mensagem que o treinador escrevera a giz no quadro do balneário durante os treinos. Cruzou os braços por cima do peito e imaginou o sangue a circular do coração para as artérias e, depois, para as veias.
Quando ouviu o ranger de sapatos de sola de borracha lá fora, estava certo de ter imaginado o som.
- Olá! - gritou ele. - Olá! Quem está aí?
Tentou espreitar lá para fora pela abertura, mas o ângulo do metal não o deixava ver nada. Aguçando os sentidos, distinguiu rodas a rolarem e o ruído de uma esfregona. Os empregados de limpeza.
- Olá - voltou a dizer. - Ajude-me.
Os movimentos rotineiros da esfregona cessaram distintamente. Chris inclinou novamente a cabeça junto da ranhura, depois deu um salto para trás quando qualquer coisa lhe atingiu a têmpora.
Procurou avidamente no chão, na esperança de encontrar comida, mas sentiu a lombada inequivocamente grossa de uma Bíblia.
Suspirando, Chris deitou-se na cama e começou a ler.
As férias de Natal começavam na quinta-feira, por isso Selena ficou extremamente agradecida quando a Dr.a Bertrand aceitou falar com ela na quarta-feira à tarde. Estava desconfortavelmente sentada na pequena cadeira de madeira a pensar quem diabo teria achado que aquela mobília contribuía para a aprendizagem. Chris Harte era mais alto do que Selena, de um metro e oitenta e oito de altura;
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como teria ele conseguido enfiar as pernas debaixo de uma mesa daquelas? Não era de admirar que os adolescentes hoje em dia mal pudessem esperar para saírem da escola...
- Estou muito satisfeita - disse a Dr.a Bertrand - por ter telefonado.
- A sério? - Selena ficou surpreendida. Na sua carreira profissional, podia contar pelos dedos de uma mão o número de pessoas que não lhe lançaram um olhar desconfiado quando disse que trabalhava para um advogado de defesa.
- Sim. Quero dizer, claro que li os jornais. E só a ideia de que uma pessoa como o Chris... bem, isso é ridículo - esboçou um sorriso rasgado, como se isso bastasse para ele ser absolvido. - Ora bem, em que posso ajudá-la?
Selena tirou a caneta e o bloco ubíquos do bolso do casaco.
- Dr.a Bertrand - começou.
- Por favor, trate-me por Joan.
- Joan, então. Estamos à procura de certas informações que possam ser apresentadas a um júri para tornar a acusação de homicídio... como disse, ridícula. Há quanto tempo conhece o Chris?
- Oh, há quatro anos, acho eu. Ele foi meu aluno no nono ano, mas eu sempre soube o que ele andava a fazer, mesmo nos anos em que não foi meu aluno: ele é daquele género de aluno de que os professores estão sempre a falar, sabe, de uma forma positiva, e depois este ano também estava na minha turma.
- Lecciona Literatura Inglesa?
- Inglês Avançado - corrigiu ela. - Os alunos vão fazer exame em Maio.
- Então o Chris é um bom aluno.
- bom! - Joan Bertrand abanou a cabeça. - O Chris é extraordinário. Tem o dom da clareza, de chegar ao âmago de um assunto complicado. Não ficaria surpreendida se ele fosse para a faculdade e se tornasse escritor. Ou advogado - acrescentou. - Só de pensar que uma mente daquelas seja... desperdiçada meses a fio na prisão
- abanou a cabeça, incapaz de prosseguir.
- Não é a primeira pessoa a ter essa opinião - murmurou Selena. Franziu a testa olhando para o armário dos ficheiros, com as letras do alfabeto.
- São os portfólios dos alunos - disse Joan. - Pastas com os trabalhos escritos - pôs-se de pé num salto. - Devia mostrar-lhe o do Chris.
- A Emily Gold também era sua aluna?
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- Sim - disse Joan. - Mais uma aluna excelente. Mas mais reservada do que o Chris. Claro, estavam sempre juntos, suponho que o director até lhe possa ter dito isso. Mas não a conhecia tão bem como o Chris.
- Parecia-lhe deprimida nas aulas?
- Não. Muito atenta ao seu trabalho como habitualmente. Selena olhou para cima.
- Posso ver a pasta dela também?
A professora de Inglês trouxe duas pastas castanho-amareladas.
- Esta é a da Emily - apontou. - E esta é a do Chris.
Selena abriu primeiro a pasta de Emily. Havia poemas lá dentro - nenhum deles mencionava a morte - e um texto criativo ao estilo das obras de Arthur Conan Doyle. Absolutamente nada de útil. Fechou a pasta e voltou a olhar para cima.
- O Chris parecia-lhe estar deprimido?
Tinha de perguntar, embora já soubesse qual seria a resposta. Era pouco provável que um estranho reparasse em tendências suicidas que não existiam.
- Oh, santo Deus, não.
- O Chris alguma vez veio ter consigo para pedir ajuda?
- Não nos trabalhos da escola; era capaz de fazê-los sozinho. Fez-me perguntas sobre as universidades, quando começou a candidatar-se. Escrevi-lhe uma carta de recomendação, também.
- Estava a referir-me a assuntos pessoais. Joan franziu a testa.
- Encorajei-o a vir ter comigo, depois... depois da morte da Emily. Sabia que ele precisava de alguém. Mas ele não teve oportunidade - disse ela delicadamente. - Realizámos uma cerimónia em memória da Emily aqui. Para admiração de todos, quando pediram ao Chris que fizesse um discurso, ele começou a rir.
Selena ponderou sobre o bom senso de colocar a Dr.a Bertrand no banco das testemunhas.
- Claro, conhecendo o Chris como eu conheço, atribuí tudo isso aos nervos - disse ela. Visivelmente incomodada pela recordação, Joan agarrou na pasta de Chris e
abriu-a diante de Selena.
- Disse aos professores que estavam a comentar o assunto para lerem isto - disse ela, dando uma palmada num ensaio argumentativo. - Nenhuma mente assim tão promissora participaria num homicídio.
Selena não concordava verdadeiramente, tendo conhecido uma boa dose de criminosos inteligentes, mas olhou educadamente para o ensaio.
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- O trabalho era adoptar uma posição em relação a um assunto delicado - explicou Joan. - Apresentar provas convincentes a favor da mesma, e depois refutar o ponto de vista alternativo. É algo que nem a maioria dos estudantes universitários é capaz de fazer, sabe. Mas o Chris saiu-se maravilhosamente bem.
Os parágrafos de Chris estavam bem alinhados, justificados pela impressora.
- "Concluindo" - leu Selena - "ser a favor da escolha é uma designação errada. Não se trata realmente de uma escolha. É contra a lei tirar a vida a alguém, ponto final. Afirmar que um feto não é uma vida é evadirmo-nos à verdade, uma vez que todos os sistemas do organismo já se encontram desenvolvidos quando a maioria dos abortos é realizada. Afirmar que uma mulher tem o direito de escolher também é pouco claro, porque não se trata apenas do corpo dela mas também de um outro. Numa sociedade que defende os interesses das crianças, parece realmente estranho..."
Selena levantou a cabeça e deixou que um amplo sorriso lhe inundasse o rosto.
- Feliz Natal, Dr.a Bertrand - disse ela.
Parecia arcaico oferecer uma Bíblia para servir de conforto, num mundo onde um tubo de crack lhe ganharia dois a um, mas Chris estava fascinado. Nunca lera realmente
a Bíblia. Por um breve período de tempo, frequentara a catequese, mas porque o pai insistira em pertencer à igreja episcopal devido ao estatuto social que proporcionava. Acabaram por deixar de assistir aos serviços religiosos à excepção dos dias santos, em que a probabilidade de ser visto era maior.
As citações familiares saltavam-lhe aos olhos, fazendo Chris sentir-se como se tivesse a cela cheia de velhos amigos. "Pedi e recebereis, procurai e encontrareis, batei à porta e esta abrir-se-á diante de vós." Ficou a olhar para a pesada porta. Não era mesmo nada provável.
Quando as luzes se apagaram - aqui não havia avisos, só uma escuridão enevoada - Chris levantou-se da cama e ajoelhou-se. O chão estava gelado debaixo do fino tecido de algodão das calças, e, na recente escuridão, o cheiro a merda na parede parecia subitamente mais forte, mas conseguiu entrelaçar as mãos e curvar a cabeça.
- Agora que me deito para dormir - sussurrou, sentindo-se muito, muito pequeno. - Rezo para que o Senhor proteja a minha alma - franziu as sobrancelhas, tentando lembrar-se do resto, mas não conseguiu.
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- Já não faço isto há muito tempo - continuou Chris, sentindo-se tolo. - Espero que consigais ouvir-me. Não Vos condeno por me terdes posto aqui. E, provavelmente,
não mereço nenhum favor - deixou a voz desvanecer-se, pensando naquilo que mais desejava. com certeza que se pedisse apenas uma coisa, teria mais hipóteses de obtê-la.
- Queria rezar pelo Hector - disse suavemente. - Rezo para que ele saia daqui em breve.
Chris interrogou-se se Deus já conheceria Emily. Fechou os olhos, imaginando os longos cabelos loiros que enrolara nas suas mãos como rédeas, a ponta do queixo dela e a suave depressão azulada da garganta onde podia sentir-lhe a pulsação com os lábios. Lembrou-se de algo que lera naquela noite: "Também vos darei um novo coração e colocarei um novo espírito dentro de vós." Agora esperava que Emily recebesse isso.
Enquanto caía no sono, ainda ajoelhado no chão como um penitente, Chris ouviu Deus. Chegou até ele sob a forma de passos, de chaves a girarem nas fechaduras e assobios incorpóreos. E Ele murmurou, agitando os finos cabelos na nuca de Chris.
- Perdoa, e serás perdoado.
Gus acordou com um objecto pesado a cair-lhe em cima do peito. Sobressaltada, começou a afastá-lo, apercebendo-se depois de que era Kate a segurá-la.
- Levanta-te, mãe - disse ela, de olhos brilhantes, com um sorriso tão contagioso que Gus momentaneamente se esqueceu de que acordar significava ter de viver um novo dia.
- O que foi? - perguntou ela, meio a dormir. - Perdeste o autocarro?
- Não há autocarro - disse Kate. Sentou-se, de pernas cruzadas.
- Anda lá abaixo - apalpou debaixo dos cobertores, recebendo um grunhido do pai. - Tu também - disse ela, e saiu do quarto a correr.
Passados dez minutos, Gus e James entraram na cozinha, vestidos e de olhos vermelhos.
- Queres começar a fazer café - perguntou Gus, - ou queres que seja eu a fazer?
- Não podem começar a fazer café - disse Kate, saltitando à frente deles. Agarrou-lhes nas mãos e conduziu-os para a tela sboji que separava a cozinha da sala de
estar. - Ta-da! - entoou ela, afastando-se para revelar um eucalipto enfezado dentro de um vaso, decorado à pressa com uma mancheia de bolas de vidro e ornamentos
de Natal. - Feliz Natal! - cantarolou ela, e abraçou a mãe.
Gus olhou para James por cima da cabeça curvada de Kate.
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- Querida - ouviu-se dizer. - Fizeste isto tudo sozinha? Kate acenou com a cabeça timidamente.
- Sei que é um bocado parolo, a árvore do vestíbulo e tudo isso, mas achei que se cortasse alguma lá de fora iam ficar muito chateados.
Gus teve um vislumbre fugaz de Kate presa debaixo de um pinheiro caído.
- Está linda - disse ela. - A sério.
As luzes de Natal, pequeninas e a piscar, tinham um temporizador. Acendiam-se e apagavam-se, fazendo Gus lembrar-se da ambulância estacionada à porta do hospital quando a chamaram por causa de Chris.
Kate entrou na sala de estar e instalou-se alegremente debaixo da arvorezinha.
- Calculei que vocês não tivessem disponibilidade para fazer as decorações, por causa de tudo o que aconteceu - entregou um embrulho a Gus e outro a James. - Tomem - disse ela. - Abram.
Gus ficou à espera enquanto James desembrulhou uma nova agenda DayTimer com capa de imitação de pele de crocodilo. Depois rasgou o papel de embrulho do seu presente, um par de brincos de jade. Gus ficou a olhar para Kate, ainda a sorrir, e interrogou-se quando a filha teria ido ao centro comercial. Interrogou-se quando é que a filha teria decidido que ia celebrar o Natal como de costume, a todo o custo.
- Obrigada, querida - disse Gus, abraçando Kate com força. E segredou-lhe ao ouvido: - Por tudo.
Então Kate voltou a sentar-se novamente, ansiosa. Gus cerrou as mãos nos bolsos do roupão e olhou para James. Como é que ia dizer à filha de catorze anos que se esquecera completamente do presente de Natal dela?
- O teu presente - anunciou ela de forma extemporânea. Ainda não está completamente pronto.
O sorriso desvaneceu-se por fases no rosto de Kate.
- Está a ser... ajustado ao teu tamanho - disse Gus. Ergueu-se um muro entre elas, sólido e implacável apesar da
transparência.
- O que é? - perguntou Kate.
Sem querer continuar a mentir, Gus virou-se para o marido, que se limitou a encolher os ombros.
- Kate - apelou Gus, mas a filha já estava de pé, acusadora.
- Não compraram absolutamente nada para mim, pois não? disse ela numa voz pastosa. - Estás a mentir. - Lançou um braço na
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direcção do eucalipto. - Se eu não tivesse feito esta árvore de Natal duvidosa, passariam o dia em branco como costumam fazer.
- As coisas este ano são diferentes, Kate. Sabes que com aquilo que aconteceu ao Chris...
- Sei que por causa daquilo que aconteceu ao Chris, vocês nem sequer dão pela minha presença! - arrancou a caixa dos brincos das mãos de Gus e atirou-a à parede.
- O que terei de fazer para que vocês me vejam? - gritou ela. - Matar alguém?
Gus deu uma estalada no rosto de Kate.
Um pesado choque abateu-se sobre a sala, o único som que se ouvia era o ténue sibilar das luzes. Kate, com a palma da mão encostada à face a escaldar, virou-se e
saiu da sala a correr. Trémula, agarrando na mão como se não lhe pertencesse, Gus virou-se para James.
- Faz qualquer coisa - implorou ela.
Ele ficou a olhar para ela durante um momento, depois acenou com a cabeça e saiu de casa.
Era um daqueles raros anos em que o Natal e o Chanuka calhavam no mesmo dia. O mundo estava em festa, o que significava que Michael não ia trabalhar, e sabia precisamente
o que queria fazer.
Já há meses que dormia no sofá, por isso não sabia se Melanie já estava acordada. Mas tomou duche na casa de banho de baixo e fez um scone para levar na carrinha.
Depois dirigiu-se para o cemitério para visitar Emily.
Estacionou um pouco longe, preferindo caminhar por causa da solidão e da paz que oferecia. A neve rangia debaixo das botas e o vento fazia-lhe doer as pontas das
orelhas. Fez uma pausa junto ao portão do cemitério para olhar para o vasto céu azul.
A sepultura de Emily situava-se no cimo da colina, escondida pelo topo. Michael caminhava, pensando no que ia dizer-lhe. Não tinha problemas em falar para a sepultura,
estava sempre a falar com coisas que convencionalmente não eram capazes de entender - cavalos, vacas, gatos. Subiu o último troço do longo caminho, até conseguir ver
a sepultura. Da última vez que Michael lá fora levara flores, agora apenas caules quebradiços. E fitas a esvoaçar e pedaços de papel a caírem sobre a neve. E Melanie,
sentada no chão gelado, a desembrulhar presentes.
- Oh, olha para isto - disse ela, quando ele se aproximou o suficiente para ouvir. - Vais adorar - e colocou um pendente de safira nos caules das rosas mortas que Michael lá deixara.
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Michael olhou para a jóia reluzente e depois para os outros presentes, dispostos como oferendas de cada um dos lados da lápide. Uma cafeteira individual, um romance, vários tubos de tinta de óleo e os pincéis caros de que Emily gostava.
- Melanie - disse ele num tom brusco. - O que estás a fazer? Ela virou-se devagar, com ar sonhador.
- Oh - disse Melanie. - Olá. Michael sentiu o maxilar cerrar-se.
- Foste tu que trouxeste estas coisas?
- Claro - disse Melanie, como se ele é que estivesse doido. Quem mais poderia ter sido?
- Para... para quem são?
Ela ficou a olhar para ele, depois levantou as sobrancelhas.
- Ora, são para a Emily - disse. Michael ajoelhou-se ao lado dela.
- Mel - disse suavemente -, a Emily está morta.
Os olhos da mulher encheram-se imediatamente de lágrimas.
- Eu sei - disse numa voz pastosa. - Mas sabes...
- Não sei.
- É que é o primeiro Chanuka que ela passa longe de casa disse Melanie. - E eu queria... eu queria...
Michael abraçou-a antes de ver as lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto.
- Eu sei o que querias - disse ele -, e eu também quero - escondeu o rosto nos cabelos dela e fechou os olhos. - Vens comigo? - sentiu-a acenar com a cabeça junto a si, a respiração morna no colarinho. Percorreram o caminho para sair do cemitério, deixando para trás as tintas e os pincéis, a cafeteira e as safiras, pelo sim, pelo não.
O aeroporto de Manchester estava apinhado no dia de Natal, cheio de gente levando latas de bolo de frutas e sacos de compras a romper pelas costuras cheios de presentes. Ao lado de Jordan, na sala de espera, Thomas saltitava no assento. Franziu o sobrolho quando o filho deixou cair a pequena carteira com os bilhetes que tinha no colo pela milionésima vez.
- Tens a certeza de que te lembras de como se faz a ligação.
- Tenho - disse Thomas. - Se a assistente de bordo não me levar, peço a outra pessoa na porta.
- Não vais sozinho - reiterou Jordan.
- Não em Nova Iorque - disseram em simultâneo.
Os pés de Thomas dançavam impacientemente, dando pontapés nos varões de metal do suporte das cadeiras.
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- Pára com isso - disse Jordan. - Toda a gente que está nesta fila sente.
- Pai - perguntou Thomas -, achas que em Paris há neve?
- Não - disse Jordan. - Por isso o melhor é voltares para casa para usares os teus esquis - num gesto de suborno declarado, comprara deliberadamente um par de esquis Rossignol para Thomas pelo Natal, oferecendo-os ao filho antes de partir de férias para ir ter com Deborah.
Houve alguns telefonemas transatlânticos, uma acesa troca de palavras sobre se Thomas teria ou não idade suficiente para fazer uma viagem tão longa sozinho e um
impulso de compromisso. Durante alguns dias Jordan recusara realmente o pedido de Deborah. Mas então acordou a meio da noite num fim-de-semana e entrou no quarto
de Thomas para o ver dormir. Deu por si a pensar nas perguntas que o Dr. Feinstein fizera a Chris Harte: "O que o assusta assim tanto?" E apercebeu-se de que a sua resposta era igual à de Chris. Até àquela altura, toda a vida de Thomas estava preenchida por Jordan. E se, mediante uma alternativa, as coisas não permanecessem assim?
Telefonara a Deborah na manhã seguinte para dar o seu aval.
- Voo 1246 para o Aeroporto LaGuardia, Nova Iorque, a embarcar na porta três.
Thomas levantou-se de um salto, tão depressa que tropeçou por cima do saco que ia levar para o avião.
- Então, aguenta-te aí - disse Jordan, estendendo uma mão para que ele se equilibrasse. Fez uma pausa, prestes a agarrar no saco, de olhos fixos no filho. E apercebeu-se
de que veria aquele momento para sempre - uma das imagens da sua vida - Thomas de perfil: a penugem suave da pré-adolescência nas faces, a magreza de campo de concentração dos braços ossudos, o bilhete de "jovem" cor de laranja a roçar no cós das calças de ganga. Pigarreando, Jordan levantou o saco para levar no avião.
- Meu Deus, isto é pesado - disse ele. - Mas que levas tu aqui dentro?
Thomas sorriu, de olhos radiantes.
- Umas dez ou doze Penthouses - disse ele. - Porquê? Ainda era um assunto delicado, algo de que não falavam mas
em cujas arestas aguçadas de vez em quando batiam quando passavam demasiado perto do frigorífico ou a sair da casa de banho. Aliviado, Jordan sentiu a tensão das últimas semanas dissipar-se.
- Vai-te lá embora - disse ele, e abraçou o filho. Thomas abraçou-o também, com força.
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- Dá um beijo à mãe por mim - disse Jordan. O rapaz afastou-se.
- Na face ou nos lábios?
- Na face - disse Jordan, empurrando suavemente Thomas para a rampa de embarque. Em seguida respirou fundo e dirigiu -se para as grandes janelas paralelas ao avião. Ficaria à espera, pensou, no caso de Thomas mudar de ideias à última hora. De mãos nos bolsos, Jordan ficou de vigia, observando o autocarro do aeroporto dirigir-se para a pista ao vento, até desaparecer do seu campo de visão.
- Feliz Natal - disse o guarda, abrindo a porta da solitária. Chris sentou-se, levantando-se do chão onde estava enrolado.
A Bíblia caíra para baixo da cama, enfiou-a rapidamente no cós das calças.
- Pois - murmurou ele, balançando para trás sobre os calcanhares.
O guarda grunhiu.
- Queres ficar à espera do Ano Novo? Chris pestanejou.
- Quer dizer que já está? Posso sair?
- O superintendente hoje sente-se caridoso - disse o guarda, segurando na porta para que Chris pudesse passar. Percorreu o corredor a passo acelerado, parando na sala de controlo.
- E agora para onde vou?
- Vais Directamente Para a Prisão - disse o guarda, rindo da sua própria piada.
- Quero dizer, para que nível de segurança?
- Normalmente voltam para a máxima - disse o guarda. - Mas visto que o teu companheiro de cela disse que foste provocado e como não tinhas nenhuma falta disciplinar antes de ires para o buraco, vamos voltar a colocar-te na média - abriu a porta para Chris passar. - Ah, é verdade - acrescentou ele. - O teu amigo Hector voltou lá para baixo.
- Para a segurança máxima? - perguntou Chris. O guarda acenou com a cabeça, e Chris fechou os olhos por um breve momento.
Steve estava a ler dentro da cela quando Chris entrou. Deitou-se na cama e tentou esconder-se debaixo da almofada, cheirando aquele horrível odor da prisão no detergente, mas deleitando-se com o simples facto de ter uma almofada. Sentia o olhar de Steve fixo nele, mesmo através de todas aquelas camadas, ponderando se devia ou não falar.
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Por fim, porque mais cedo ou mais tarde ia acontecer, Chris tirou a almofada de cima do rosto.
- Olá - disse Steve. - Feliz Natal.
- Igualmente para ti - respondeu Chris.
- Estás bem?
Chris encolheu os ombros.
- Obrigado por lhes teres contado aquilo do Hector - estava a falar sinceramente. Hector não era de perdoar àqueles que o denunciavam.
- Não foi nada - disse.
- Bem, obrigado na mesma.
Steve desviou o olhar, brincando com um borboto na manga da camisa muito usada.
- Tenho uma coisa para ti - disse num tom casual. - Pelo Natal. Horrorizado, Chris entrou em pânico. Nunca pensara em oferecer presentes ali, por amor de Deus.
- Não tenho nada para ti - disse ele.
- Por acaso - disse Steve, metendo a mão debaixo da cama -, até tens - tirou de lá um instrumento de ar ameaçador, feito com uma caneta Bic e uma longa agulha de aspecto letal. - Tatuagens sussurrou ele.
Chris queria perguntar-lhe como arranjara a agulha - não conseguia imaginar um recluso de fim-de-semana a enfiá-la pelo rabo acima - mas sabia que se ia fazer aquilo, não tinha muito tempo. As tatuagens da prisão - e os instrumentos utilizados para fazê-las
- eram ilegais. Ter uma, ali mesmo às claras, angariava o respeito dos outros por exibir as transgressões debaixo dos narizes dos guardas.
Steve, na verdade, estava a oferecer-lhe uma forma de preservar a dignidade.
Estendeu o braço, sem ter a certeza se queria mesmo fazer aquilo mas suficientemente lúcido para saber que se queria evitar a SIDA o melhor era ser o primeiro. Lançando um olhar rápido ao guarda que fazia a ronda, Steve tirou um isqueiro - outra surpresa de contrabando - e colocou a agulha sobre a chama.
Chris apoiou o cotovelo no joelho e sentiu a primeira queimadura cauterizar-lhe a carne. Tinha um aroma estranhamente doce, a carne grelhada, e a dor chegou-lhe às virilhas. Cerrando o punho, viu o sangue escorrer-lhe pelo bíceps enquanto Steve aquecia, gravava e cortava. Depois sentiu Steve esguichar a tinta do cartucho da Bic para cima da ferida, esfregando-a na pele em carne viva onde permaneceria para sempre.
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- Só vais conseguir ver quando lavares bem - disse Steve -, mas é uma bola número oito12 - olhou para Chris, de olhos límpidos e argutos. - Porque parece que ambos estamos numa situação difícil.
Chris baixou a manga o máximo que podia, lambendo os dedos para tirar os resíduos de sangue e tinta. Um guarda passou pela cela, e Steve meteu-lhe o isqueiro na mão.
- Faz-me uma - disse ele. - Por favor.
As mãos de Chris tremiam enquanto cauterizava a agulha e a encostava ao braço de Steve. Steve retraiu-se, depois contraiu os músculos. Chris desenhou o círculo, o número oito e o fundo negro. Depois esfregou a tinta nos cortes, voltando a colocar rapidamente a agulha nas mãos de Steve.
Os dedos deles tocaram-se ao de leve.
- É verdade - perguntou Steve, sem olhar para cima -, aquilo do bebé?
Chris lembrou-se de Jordan, que lhe dissera para não dizer nem uma palavra a ninguém. Pensou naquelas tatuagens a condizer, marcando-os como iguais. E lembrou-se
de palavras que lera na noite anterior na imundice da solitária: "Ouvi a minha voz e sereis o meu povo."
Chris olhou para o seu amigo, o seu confidente, a sua congregação.
- É - disse ele.
Fora uma boa visita. Michael levantou-se, como agora já era costume, e observou Chris sair da cave da prisão. Naquele dia, não estava a pensar em ir lá. Mas ver
Melanie junto à sepultura deixara-o desanimado, e queria falar com alguém sobre isso. Acabara por não dizer nada a Chris - afinal não lhe pareceu correcto -, mas estar ali no dia de Natal aliviava-lhe a consciência. Se não tivera oportunidade de falar com Emily naquela manhã, pelo menos poderia conversar com Chris à tarde.
Desejou um Feliz Natal ao guarda e subiu as escadas a correr em direcção à sala de controlo. Era a única saída da prisão; ficava-se fechado lá dentro quando se visitava um prisioneiro.
Ficou pacientemente atrás de uma mulher de casaco de pêlo de camelo, com os cabelos escondidos debaixo de um gorro felpudo de mobair.
12. A bola número oito, num jogo de snooker, é uma bola negra que pode colocar um jogador em desvantagem. (N. da T.)
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- Sim - disse ela ao guarda. - Vim visitar o Chris Harte.
- É um rapaz muito popular - disse o guarda. Berrou pelo altifalante: - Harte ao Controlo.
Michael sentiu um aperto no coração debaixo das costelas.
- Gus - disse ele, com a boca seca.
Ela virou-se, o gorro caiu e os seus cabelos brilhantes tombaram para cima da gola do casaco.
- Michael! - arquejou. - O que estás aqui a fazer?
- Parece que estou a fazer o mesmo que tu - disse, sorrindo maliciosamente.
Os lábios dela moveram-se por um instante, sem soltar nenhum som.
- Tu... tu visitas o Chris? Michael acenou com a cabeça.
- Tenho visitado - admitiu ele. - Recentemente. Ficaram a olhar um para o outro por um instante.
- Como estás? - perguntou Gus. Michael disse em simultâneo:
- Como tens passado? - e, abanando a cabeça, ambos sorriram. As faces de Gus ruborizaram-se, e ela olhou para as escadas.
- Tenho de ir - disse.
- Feliz Natal - respondeu Michael.
- Para ti também! Oh...
- Não faz mal.
- Feliz Chanuka.
- Isso também - Michael sorriu. Gus colocou a mão na ombreira da porta junto à escadaria mas não fez nenhum movimento para entrar. - Queres... quero dizer, talvez queiras tomar um café depois?
Ela sorriu, o rosto todo a iluminar-se.
- Gostaria muito - disse ela. - Mas eu... o Chris...
- Eu sei. Eu espero - disse Michael. Encostou-se à parede e colocou o casaco por cima do braço. - Tenho todo o tempo do mundo.
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PARTE III
A VERDADE
"Sempre assim foi, o amor só conhece
a sua intensidade na hora da separação."
KAHLIL GIBRAN
The Profet
"A mentira que é meia verdade é a mais negra de todas; A mentira completa pode ser detectada
e directamente confrontada;
Mas a mentira que é parcialmente verdade
é mais difícil de confrontar."
ALFRED, LORDE TENNYSON
The Grandmother
PRESENTE
Fevereiro de 1998
Feitas as contas, o Ilustre Leslie F. Puckett não era uma má escolha para presidir ao julgamento.
Por três vezes no passado, Jordan estivera envolvido em casos em que Puckett presidiu, tanto do lado do Ministério Público como enquanto advogado de defesa. Dizia-se
que a sua abordagem severa e críticas aguçadas que fazia aos advogados nos julgamentos se deviam à insegurança relativamente ao seu próprio nome - Leslie não era
tão masculino como ele gostaria - mas dispensava alfinetadas à acusação e à defesa de forma igual. Tirando isso, a única particularidade que o juiz Puckett apresentava
nos seus casos era a predilecção por amêndoas, que guardava num boião em cima da secretária, tanto na sala de audiências como no gabinete, e cuja casca partia ruidosamente com os dentes.
As audiências que antecediam o julgamento normalmente realizavam-se em tribunal e eram abertas ao público, mas a gravidade da acusação de Chris e a publicidade
que o caso atraíra levaram todos os envolvidos a achar que era melhor realizar a reunião no gabinete do juiz. Puckett, com a toga negra a esvoaçar-lhe à volta
dos tornozelos, entrou no gabinete com Jordan e Barrie Delaney atrás, em passo acelerado. Os três sentaram-se, e Puckett tirou uma amêndoa do boião e enfiou-a na
boca.
Ao ouvir o som odioso, Jordan olhou para Barrie.
Embora os advogados fossem extremamente formais na sala de audiências, até mesmo os promotores de justiça e advogados de defesa mais implacáveis baixavam a guarda lá dentro. Jordan, enquanto antigo promotor de justiça, mantinha relações aceitáveis com a maior parte dos procuradores-gerais adjuntos. Barrie Delaney
era outra história. Nunca trabalhara com ela - ela chegara à
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Procuradoria-Geral depois de ele ter saído, de punhos cerrados - e parecia levar muito a peito o facto de Jordan ter desertado para o outro lado da lei. Caramba,
ela parecia levar tudo muito a peito.
Estava sentada como uma menina de um colégio de freiras, de mãos cruzadas, com a saia preta entalada debaixo das pernas e um sorriso vidrado no rosto, mesmo quando Leslie Puckett cuspiu a casca da amêndoa para a palma da mão.
O juiz organizou alguns papéis que tinha em cima da secretária. Jordan tossiu para chamar a atenção da promotora de justiça.
- Belo trabalho policial, Delaney - disse ele em voz baixa. Nada como um pouco de coacção para o meu cliente.
- Coacção! - sibilou para Jordan. - Nem sequer era suspeito quando estava no hospital. Aquela entrevista foi completamente honesta e você sabe disso.
- Se foi completamente honesta, como sabia que eu estava a falar dela?
- McAfee e Delaney - interrompeu o juiz. - Já terminaram? Os advogados viraram-se para a secretária.
- Sim, meritíssimo - disseram em uníssono.
- Muito bem - disse ele num tom azedo. - Ora bem, o que é preciso ficar registado?
- Bem, meritíssimo - interveio Barrie -, temos um especialista a analisar os salpicos de sangue que precisa de algum tempo; mais os testes de ADN que ainda estão no laboratório - consultou a agenda. - Estaremos prontos no dia um de Maio.
- Está a pensar em entregar alguma coisa?
- Sim, meritíssimo. Algumas moções para refutar os ditos especialistas do arguido e outras provas objectáveis.
O juiz tirou outra amêndoa do boião, fê-la rolar na língua, e virou-se para Jordan:
- E o doutor?
- Uma moção para suprimir uma entrevista feita no hospital ao meu cliente que violou claramente os seus direitos.
- Isso é um disparate! - gritou Barrie. - Ele podia ter ido embora a qualquer altura.
Jordan mostrou os dentes numa espécie de sorriso.
- Manifestamente ilegal - disse ele. - O meu cliente não tinha muita vontade de ir embora visto que acabara de levar setenta pontos para fechar uma ferida na cabeça
e estava sob o efeito de vários analgésicos. E a sua detective sabia muito bem disso.
- Continuem assim - disse o juiz -, e eu não terei de ler as moções.
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Jordan virou-se novamente para Puckett.
- Posso apresentá-la no prazo de uma semana...
- À qual responderei com todo o gosto - acrescentou Barrie.
- Vai perder o seu tempo, Barrie - murmurou Jordan. -Já para não falar no do meu cliente.
- Você...
- Doutores! Jordan pigarreou.
- As minhas desculpas, meritíssimo. A Dr.a Delaney faz-me perder a calma.
- Estou a ver - disse Puckett. - Podem apresentar as vossas moções até ao final da próxima semana?
- Não há problema nenhum - disse Jordan.
- Sim - Barrie acenou com a cabeça.
- Muito bem, então - disse Puckett, abrindo as mãos por cima da agenda, como se fosse profetizar uma data. - Vamos começar a seleccionar o júri no dia sete de Maio.
Jordan agarrou na pasta e observou Barrie Delaney reunir os documentos. Lembrava-se disso de quando trabalhava para o Ministério Público - da quantidade incrível de documentos, com pouco tempo para fazer justiça em cada caso individual. Para bem de Chris Harte, esperava que ainda fosse assim.
Por costume de há muito, segurou a porta do gabinete do juiz para a Dr.a Delaney passar, embora pessoalmente a considerasse mais próxima de um pitbull do que de um membro do belo sexo. Percorreram o corredor do tribunal, ambos furiosos e em silêncio, cheios de visões de vitória. Então Barrie virou-se para Jordan, impedindo-o de prosseguir.
- Se quiser fazer um acordo judicial - disse ela directa -, oferecemos-lhe homicídio preterintencional - Jordan cruzou os braços.
- Trinta anos a prisão perpétua -, acrescentou Barrie.
Visto que Jordan nem sequer pestanejou, Barrie abanou a cabeça devagar.
- Olhe, Jordan - disse ela. - Ele vai ser condenado de qualquer maneira. Ambos sabemos que o seu caso está num beco sem saída. Já viu as provas: as impressões digitais, a bala, a trajectória através da cabeça e ambos sabemos que ela não pode ter-se suicidado dessa maneira. Um júri nem sequer se vai afastar o suficiente desses factos para prestar atenção às suas manobras de diversão. Se aceitar os trinta anos, pelo menos ele sairá da prisão antes dos cinquenta.
Jordan esperou um instante, depois descruzou os braços.
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- Já acabou? -Já.
- Óptimo - começou a caminhar novamente ao longo do corredor.
Barrie correu atrás dele.
- E então? Jordan parou.
- Então. Só vou mencionar esse monte de disparates ridículos que acabou de dizer à laia de proposta ao meu cliente porque sou obrigado a fazê-lo - ficou a olhar para
Barrie, com uma sugestão de sorriso no rosto. - Já estou nisto há muito mais tempo do que você - disse ele. - Por acaso, antigamente estava do seu lado. Fazia exactamente
o mesmo jogo que está a fazer agora. O que significa que também sei que não está assim tão convicta de uma condenação como diz estar - inclinou a cabeça por um breve momento. - vou falar com o meu cliente - disse ele -, mas vemo-nos no tribunal.
Quando Jordan terminou de falar, Chris tamborilou com os dedos na mesa.
- Trinta anos - disse ele, com a voz trémula apesar do autocontrolo. Olhou para o advogado. - Que idade tem?
- Trinta e oito anos - disse Jordan, sabendo exactamente aonde a conversa ia chegar.
- Isso é a sua vida inteira - disse Chris. - E o dobro da minha.
- Mesmo assim - fez notar Jordan -, é mais ou menos metade de uma verdadeira sentença de prisão perpétua. E há liberdade condicional.
Chris levantou-se e dirigiu-se para a janela.
- O que devo fazer? - disse num tom suave.
- Não posso dizer-te - disse Jordan. - Eu disse que havia três coisas que tinhas de decidir sozinho. Se vais ou não a julgamento é uma delas.
Chris virou-se devagar.
- Se tivesse dezoito anos; se estivesse no meu lugar, o que faria?
Um sorriso surgiu no rosto de Jordan.
- Tenho o mesmo advogado demolidor?
- Claro - Chris riu. - Esteja à vontade.
Jordan também se levantou, enfiando as mãos nos bolsos.
- Não vou dizer-te que ganhar é garantido, porque não é. Mas também não vou dizer-te que vamos de certeza perder. Mas posso
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dizer-te que se aceitares o acordo judicial, vais passar trinta anos a pensar se terias ou não ganho.
Chris acenou com a cabeça, mas não disse nada, olhando para a paisagem coberta de neve fora da prisão.
- Não tens de decidir já - disse Jordan. - Pensa no assunto. Chris colocou as mãos abertas no vidro frio, fazendo uma sombra fantasmagórica.
- Quando começa o julgamento?
- No dia sete de Maio - disse Jordan. - Selecção do júri.
Os ombros de Chris começaram a estremecer, e Jordan aproximou-se dele, alarmado pela ideia de permanecer encarcerado por mais três meses ter feito Chris perder o controlo. Mas quando tocou no ombro do cliente, apercebeu-se de que Chris estava a rir.
- É supersticioso? - disse Chris, limpando os olhos.
- Porquê?
- Sete de Maio é o dia de aniversário da Emily.
- Estás a brincar - disse Jordan, de boca aberta. Tentou imaginar o que Barrie Delaney ia fazer quando soubesse. Provavelmente levaria um bolo de gelado para o júri saborear durante o seu discurso de introdução. Tentou lembrar-se de uma moção que pudesse apresentar ou de uma testemunha que pudesse reter para pedir um adiamento; tentou avaliar a sensibilidade do juiz Puckett.
- Faça isso - disse Chris, numa voz tão suave que Jordan de início não o ouviu.
- O quê?
- O acordo judicial - Chris contorceu os lábios. - Diga-lhes para irem para o Inferno.
Não havia nenhuma regra escrita que afirmasse que Gus e Michael tinham de manter os seus almoços semanais em segredo, escondidos como um sorriso num funeral, mas faziam-no na mesma, entrando furtivamente no pronto a comer como se tivessem atravessado as linhas inimigas. De certa forma, era isso mesmo uma batalha - e era como se fossem espiões, procurando conforto numa pessoa que tinha todas as razões para traí-los assim que voltassem as costas. Mas por outro lado, de uma forma muito elementar, podiam ser a salvação um do outro.
- Olá - disse Gus sem fôlego, sentando-se à mesa. Sorriu para Michael, que folheava a lista encadernada com a unha do polegar.
- Como está ele hoje?
- Está bem - disse Michael. - Está ansioso por ver-te, acho eu.
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- Ainda está doente? - perguntou Gus. - Na semana passada tinha uma tosse horrível.
- Está muito melhor - garantiu-lhe Michael. - Encomendou Robitussin do dispensário.
Gus colocou o guardanapo no colo, com uma emoção a percorrer-lhe o peito e os ombros, como uma menina de liceu com uma paixoneta. Conhecia Michael há vinte anos, mas só agora começava a vê-lo realmente, como se esta situação não só tivesse alterado a sua percepção do mundo, mas também as pessoas que o habitavam. Como é que nunca reparara que a voz de Michael era tão tranquilizadora? Que as mãos dele pareciam tão fortes, os olhos tão bondosos? Que a ouvia como se ela fosse a única pessoa na sala?
Gus estava perfeitamente ciente de que a conversa que estava a ter com aquele homem era a conversa que devia ter com o marido, e sentia-se culpada. James continuava a recusar-se a falar sobre o filho, como se o nome de Chris e as acusações contra ele fossem um grande morcego negro, que uma vez libertado abriria as asas a guinchar, recusando-se a voltar para o sítio de onde viera. Começara a ansiar avidamente por estes almoços semanais, combinados no horário de visita da Prisão de Grafton, porque teria alguém com quem falar.
O facto de ser Michael, por vezes, era estranho. Visto que a mulher dele fora a melhor amiga de Gus durante - bem, quase desde sempre - sabiam muito acerca um do outro indirectamente. Havia coisas sobre Michael que Melanie contara a Gus e coisas sobre Gus que Melanie contara a Michael. Tornava-os desconfortavelmente íntimos, transbordando de informações um do outro que de outra forma não deveriam ter.
- Hoje estás muito bonita - disse Michael.
- Eu? - Gus riu. - Bem, obrigada. Tu também - estava a falar sinceramente. As camisas de flanela e as calças de ganga desbotadas de Michael, escolhidas devido à profissão, faziam lembrar a Gus palavras suaves e muito macias, como "conforto", "aninhar" e "aconchego".
- Vestes-te especialmente para as tuas visitas, não é?
- Acho que sim - disse Gus. Olhou para o vestido com padrão e sorriu. - Quem estarei eu a tentar impressionar.
- O Chris - respondeu Michael por ela. - É assim que queres que ele se lembre de ti entretanto.
- E como sabes? - brincou Gus.
- Porque faço o mesmo quando vou à campa da Emily - disse ele. - De casaco e gravata, imaginas-me assim vestido? No caso de ela estar a ver.
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Chocada, Gus ergueu o rosto.
- Oh, Michael - disse ela. - Às vezes esqueço-me de que isto é muito pior para ti do que para mim.
- Não sei - disse Michael. - Pelo menos para mim já acabou. Para ti, é só o princípio.
Gus passou o dedo pela borda do pires.
- Como é possível lembrar-me dos dois a apanharem rãs e a jogarem à apanhada como se tivesse sido ontem?
- Porque foi - respondeu Michael num tom suave. - Não foi assim há tanto tempo - olhou em volta, no pequeno pronto a comer. - Não sei como chegámos até aqui - disse ele. - Esses tempos para mim são tão nítidos que sinto o cheiro da relva que acabei de cortar e vejo a parte de trás das pernas da Emily cheias de resina de pinheiro. E depois, zás. Estou a visitar a campa da minha filha e o Chris na prisão.
Gus fechou os olhos.
- Nessa altura era tão fácil. Nunca me passou pela cabeça que fosse acontecer uma coisa destas.
- Porque não deve acontecer a pessoas como nós.
- Mas aconteceu. Porquê? Ele abanou a cabeça.
- Não sei. Estou sempre a fazer essa pergunta a mim próprio, a recordar. Acho que é como uma raiz saída para fora da terra que da primeira vez contornei por acaso,
e em que agora estou sempre a tropeçar - ficou a olhar para Gus. -Jovens como a Emily e o Chris não resolvem suicidar-se assim sem mais nem menos, pois não?
Gus torceu o guardanapo. Apesar da sua recente intimidade com Michael, não tinha confessado que Chris nunca pensara em suicidar-se. Em parte, porque não queria trair a defesa do filho. E em parte, porque apenas ia voltar a abrir a ferida no coração de Michael, que já começara a sarar.
- Lembras-te - disse ela, tentando mudar o rumo da conversa
- de como a Emily costumava gritar quando eles jogavam à apanhada? O Chris corria atrás dela e ela guinchava tão alto que vinhas a correr de tua casa e eu vinha a correr da minha?
Um sorriso surgiu no rosto de Michael.
- Lembro-me - disse ele. - Parecia que ele estava a matá-la assim que as palavras lhe saíram da boca, os olhos de Gus pousaram nos seus. - Desculpa - disse ele, empalidecendo. - Não... não queria dizer isso.
- Eu sei.
- A sério?
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- Não faz mal - disse Gus. - Eu compreendo. Michael pigarreou, visivelmente incomodado.
- Está bem, então. O que vamos comer?
- O costume - disse Gus, animando-se. - Ainda nem consigo acreditar que encontrei pastmmi ao estilo nova-iorquino no Condado de Grafton, no New Hampshire.
- Tudo tem os seus aspectos positivos - disse Michael, acenando à empregada de mesa. Fizeram o pedido e, depois, começaram a conversar, mantendo-se bem afastados dos assuntos explosivos, determinados por acordo tácito: Melanie, James e o que todos foram outrora uns para os outros.
Curiosamente, um dos assuntos aprovados era o julgamento que se avizinhava. com Chris a fazer de ponto comum, discutiram o facto de Jordan querer que Michael testemunhasse pela defesa e sobre a reserva natural de Michael.
- Não sei porque peço o teu conselho - disse Michael. - Não és propriamente isenta.
- Sou desavergonhadamente parcial - admitiu Gus. - Mas deves imaginar o que um júri pensaria, mesmo que mal dissesses uma palavra, só por te ver no banco das testemunhas a favor do Chris.
Michael pousou a carne enlatada.
- É precisamente isso que imagino - disse num tom suave. Penso: que tipo de pai serei eu? - tamborilou com os dedos da mão direita na mesa. - Por muito que goste do Chris, seria capaz de fazer isso à Emily?
- A Emily não desejaria que o Chris fosse condenado de um homicídio que não cometeu - disse Gus num tom firme.
Michael sorriu desdenhosamente.
- Ah. Então é por isso que vens almoçar comigo. És a arma secreta no arsenal do McAfee.
O rosto de Gus ficou sem cor. A arma secreta no arsenal de Jordan era que ele ia mentir - fazendo o júri acreditar que Chris também queria suicidar-se. Tal como actualmente ela deixava que Michael acreditasse. Colocou o guardanapo sobre o almoço inacabado e estendeu a mão para o canto mais afastado da mesa para agarrar no
casaco.
- Tenho de ir - disse entre dentes, abrindo a mala para deixar a sua parte da conta. - Que porcaria de mala - disse ela com os dedos a escorregarem no fecho.
- Então? - exclamou Michael. - Gus - estendeu a mão por cima da mesa, para onde os dedos de Gus se torciam furiosamente no fecho, e colocou-a sobre a dela.
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Gus ficou imóvel. "É tão bom", pensou ela, "ser tocada." Duas rosetas de cor viva surgiram nas maçãs do rosto de Michael.
- Não queria dizer isso - disse ele. - Que tu trabalhavas para o advogado.
- Eu sei - conseguiu ela dizer.
- Então porque ficaste com pressa para ir embora tão de repente?
Gus olhou para a beira do prato.
- Não digo ao James que costumo almoçar contigo. Dizes à Melanie?
- Não - admitiu Michael. - Não digo.
- Porquê?
- Não sei - disse Michael.
Gus retirou a mão delicadamente.
- Eu também não.
James sentou-se à secretária e agarrou no papelinho cor-de-rosa com o recado telefónico que a secretária lhe dera. Palm DOr, chamava-se o restaurante, e ficava a
sessenta e cinco quilómetros, no meio de nenhures, embora apresentasse uma classificação de cinco estrelas na maioria dos guias de viagem e de restaurantes. Claro,
isso era praticamente garantido com uma lista de preços fixos - pagava-se setenta e cinco dólares por cabeça e comia-se o que servissem naquele dia. Suspirando, James olhou para o número do restaurante e agarrou no telefone. Era o décimo quinto aniversário de Kate, ela escolhera o sítio, e ele não ia desiludi-la.
Desde o Natal mostrara-se realmente muito solícito em relação a Kate. Costumavam ficar sentados à mesa depois de jantar, após terem sido levantados todos os pratos, só a conversar. Kate, ao contrário da mãe, mostrava-se de facto interessada nos casos e operações que James realizara naquele dia. James ouvia Kate tagarelar sobre rapazes, sobre o seu desejo ardente de furar as orelhas, a sua desconfiança em relação às provas algébricas. E ele apaixonava-se pela filha vezes sem conta. Observava-a noite após noite e pensava: "Ainda me resta tudo isto."
- Estou, sim - disse ele, quando uma voz atendeu o telefone.
- Queria fazer uma reserva. Também servem almoços? Excelente. Sim, no próximo sábado. O meu nome é Harte, H-A-R-T-E - bateu com um lápis numa pilha de papéis que estava em cima da secretária. - É um grupo de três pessoas.
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Pousou o auscultador, pensando em todas as vezes, ao longo dos últimos meses, em que se esquecera e olhara para o banco de trás do carro, esperando ver as longas pernas de Chris dobradas para cima, ou abrira cuidadosamente a porta do quarto do filho à noite para vê-lo a dormir.
Um grupo de três pessoas.
Mas que grupo.
Melanie pousou ruidosamente uma tigela de sopa em frente a Michael e sentou-se do outro lado da mesa, levantando a colher e começando a comer sem dizer uma palavra.
- Então - disse ele corajosamente. - O que fizeste hoje? Os olhos de Melanie focaram-se devagar.
- O quê?
- Perguntei-te o que fizeste hoje. Ela riu.
- Porquê?
Michael encolheu os ombros.
- Não sei. Para fazer conversa.
- Somos casados - disse ela sem rodeios. - Não precisamos de conversar um com o outro.
Michael mexeu a sopa, sentindo a pouca resistência do aipo e das cenouras demasiado cozidos.
- Eu, hum... - hesitou. Estava prestes a dizer que fora à prisão visitar Chris, mas apercebeu-se de que não estava preparado para revelar essa informação. - Encontrei a Gus hoje. Fomos almoçar.
Disse-o num tom despreocupado, mas as suas palavras pareceram demasiado casuais até a Michael, tão espontâneas que foram claramente ensaiadas.
- Ela tem passado bem - acrescentou.
Melanie ficou de boca aberta, uma fina película de sopa a reluzir no lábio inferior.
- Almoçaste com ela?
- Almocei - disse Michael. - E depois?
- E depois não posso acreditar que almoçaste com ela de livre vontade!
- Meu Deus, Mel. Ela era a tua melhor amiga.
- Isso foi antes de o filho dela ter matado a Emily.
- Não sabes se ele a matou - disse Michael.
- E quem te terá dito isso? - Melanie grunhiu com desdém, com a voz pastosa de sarcasmo. - Ela chorou mesmo a meio da salada?
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Ou esperou até acabar de comer para dizer-te que o Ministério Público cometeu um erro terrível?
- Ela não fez nada - disse Michael num tom suave. - Mesmo que... mesmo que... - não conseguia dizer. - Mesmo assim ela não teria culpa.
Melanie abanou a cabeça.
- És um idiota. Não percebes até onde uma mãe é capaz de ir para proteger o filho? - olhou para cima, de narinas frementes, lábios brancos. - É isso que a Gus está
a fazer, Michael. E não posso dizer o mesmo de ti.
O plano, no sábado seguinte, era Kate e James irem juntos para o Palm DOr e Gus iria ter com eles depois de visitar o Chris. Mas James e Kate estavam sentados à
mesa há meia hora, quando o empregado apareceu pela terceira vez.
- Talvez - disse ele - desejem começar sem o resto do grupo.
- Não, papá - disse Kate, franzindo o sobrolho. - Quero esperar pela mãe.
James encolheu os ombros.
- Vamos esperar mais alguns minutos - disse.
Estava recostado na cadeira, a ver Kate brincar com as pétalas delicadas da orquídea que decorava o centro da mesa.
- Ela costuma atrasar-se - disse Kate, quase a falar sozinha -, mas normalmente não se atrasa tanto.
De repente, Gus entrou intempestivamente na pequena sala de refeições, com o casaco de pêlo de camelo quase a voar-lhe de cima das costas para as mãos do empregado de mesa enquanto se apressava a ir ter com James e Kate.
- Desculpem - disse ela inclinando-se para Kate. - Parabéns, querida - disse ela, dando-lhe um beijo.
-James - cumprimentou-o formalmente, sentando-se na cadeira. E depois para o empregado: - Só água, por favor. Não tenho fome.
- Como podes não ter fome? - perguntou James. - São horas de almoço.
Gus olhou para o colo.
- Comi qualquer coisa antes de vir para aqui - disse ela para encerrar o assunto. - Agora - sorriu para Kate -, diz-me como é ter quinze anos.
- O papá diz - Kate sorriu radiante - que posso furar as orelhas se tu deixares. Hoje. Depois do almoço.
- Mas que óptima ideia! - disse Gus, virando-se para James.
- Podes levá-la?
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De início, ele não ouvira Gus, porque estava a deleitar-se com os aromas que ela trouxera consigo para a sala de refeições abafada: o aroma a gualteria da neve lá fora, a maçãs do amaciador dela e o aroma persistente do perfume. Mas havia mais qualquer coisa, um aroma mais profundo e tropical que não conseguia identificar... o que seria?
- Podes? - voltou Gus a perguntar.
- Posso o quê?
- Levar Kate à ourivesaria. As orelhas - disse Gus, mexendo nos seus próprios lóbulos. O rosto ruborizou-se. - Eu... bem, não posso ir. vou visitar o Chris outra vez.
- Estiveste lá agora mesmo - disse James.
Ele não teria achado possível, mas as faces de Gus ficaram mais vermelhas.
- Hoje há um horário de visitas alargado - disse ela, alisando o guardanapo em cima do colo. - Disse ao Chris que ia voltar a vê-lo.
James suspirou e virou-se para Kate.
- Vamos à ourivesaria depois de almoço - disse-lhe. Virou-se novamente para a mulher, com intenção de lhe perguntar para que se dera ao trabalho de ir até ao restaurante quando ia voltar directamente para lá, mas foi outra vez impedido pelo aroma dela. Apercebeu-se de que havia qualquer coisa de diferente. Depois de visitar o Chris vinha sempre para casa a cheirar à prisão, abafada e confinada, um aroma que persistia nas roupas dela e na sua pele até ser lavado. Hoje fora visitar Chris, dissera ela, mas esse cheiro não estava presente. Havia outra coisa no seu lugar - aquele elemento exótico, que James subitamente reconheceu como sendo o doce aroma ardente da mentira.
Chris estava recostado na cadeira, a tentar não ficar chateado com a mãe sem conseguir. Ele não ansiava propriamente pelas visitas dela - tentava encará-las com o máximo de indiferença, porque se não ficasse entusiasmado, os outros dias não lhe pareceriam tão maus. Mas apesar disso, estivera na sua cela às 10h45, a hora a que ela chegava sempre, esperou e esperou e só quase às duas horas é que o chamaram para descer.
- O que te aconteceu? - resmungou ele.
- Desculpa - disse a mãe. - Fomos almoçar fora por causa do aniversário da Kate.
- E então? - disse Chris, mal-humorado. - Podias ter vindo antes.
- Por acaso - disse Gus -, tive um compromisso anterior.
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Um compromisso anterior? Chris franziu o sobrolho, afundando-se ainda mais na cadeira. O que achava ela que aquilo era, algum salão do século XIX? Mas que raio de compromisso anterior seria mais importante do que arranjar tempo para ir visitar o próprio filho que estava a apodrecer na prisão?
- Chris - disse a mãe, encostando-lhe a mão à testa. - Estás outra vez doente?
Ele afastou-se dela.
- Estou bem.
- Não pareces estar bem.
- Oh, a sério? Como devo estar depois de saber que vou ficar enfiado na prisão durante mais três meses antes que um júri possa trancar-me aqui para o resto da vida?
- É isso? - perguntou Gus. - Estás a ficar nervoso por causa do julgamento? Porque eu posso dizer-te...
- O quê, mãe? O que é que podes dizer-me? - desviou o rosto, as feições distorcidas pela repugnância. - Absolutamente nada.
- Bem - disse Gus -, o Michael e eu achamos que o Jordan tem um caso muito forte.
Chris desatou a rir.
- com certeza, eu daria ouvidos ao Michael. O pai enlutado da vítima.
- Não tens o direito de dizer isso! Ele está a esforçar-se para te ajudar. Devias agradecer-lhe.
- Por ter sido acusado?
- Ele não teve nada a ver com isso. Isso compete ao Estado e não aos Gold.
- Caramba, Mãe - disse Chris, estupefacto. - De que lado estás? Gus ficou a olhar para ele durante um momento.
- Do teu - disse por fim. - Mas o Michael decidiu finalmente ser testemunha da defesa, o que é muito bom.
- Ele disse-te isso? - perguntou Chris, optimista de forma reservada.
- Hoje - disse Gus.
Ao ouvir isso, Chris semicerrou os olhos na dúvida.
- Quando? - perguntou ele.
- Encontrei-me com ele hoje de manhã, antes de sairmos com a Kate - disse Gus, levantando o queixo. - Temo-nos encontrado nos dias em que ambos te visitamos.
Os ombros de Chris ficaram tensos ao aperceber-se de que a mãe chegara atrasada para visitá-lo naquele dia, e desviou o rosto,
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sentindo-se estranhamente frágil e ciumento. - De que costumam falar? - perguntou num tom suave.
- Não sei - disse Gus. - De ti. Das nossas famílias. Só... conversamos - sentiu os contornos vagos do coração dentro do peito, do tamanho de um punho e arredondado,
ao bater um pouco mais depressa. - Não há nenhum mal nisso - disse ela, de forma defensiva, antes de lembrar-se de que não tinha satisfações a dar.
Chris ficou a olhar para a mesa cheia de marcas durante algum tempo, entretanto o recluso que estava ao lado deles saiu. Gus mantinha os olhos fixos no rosto do filho.
- Não há dúvida de que tens qualquer coisa para me dizer anunciou ela.
O filho virou-se, cuidadosamente inexpressivo.
- Podias perguntar ao pai - disse Chris -, se ele quer visitar-me?
- Será que trabalhar contigo vai fazer-me velha e gorda prematuramente? - disse Selena, dando uma dentada numa fatia de pizza cheia de gordura.
Jordan olhou para cima, surpreendido.
- Serei um patrão assim tão implacável?
- Não. Mas tens péssimos hábitos alimentares. Sabes sequer o que é uma salada?
- Claro - disse Jordan, sorrindo. - É aquela coisa para a qual inventaram uma barreira de protecção - pôs de lado um bocado de pepperoni. - É para o Thomas - explicou.
Selena lançou um olhar para a porta fechada do quarto.
- Ah sim? Os croissants não o estragaram?
- Não. Por acaso ele emagreceu um bocado lá, disse que a comida era demasiado gordurosa para ele - Jordan fez uma careta para a pizza, que ensopava a caixa de cartão. - Mas se foi a comida de plástico americana que o trouxe de volta, por mim está tudo bem.
- Oh, ele voltaria de qualquer forma - tranquilizou-o Selena. Deixou cá ficar o Nintendo.
Jordan riu.
- Fazes-me tão bem ao ego - disse ele.
- Como se tu não te encarregasses muito bem disso sozinho disse Selena secamente. - Pagas-me para investigar, e não para te agraciar.
- Mmm - concordou Jordan. - Então o que tens feito ultimamente para mereceres o teu ordenado?
Selena, tendo acabado de entrevistar todos do lado da defesa, estava agora a começar a entrevistar as pessoas que constavam da
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lista de testemunhas da acusação, para que Jordan soubesse o que ia defrontar.
- Não estou à espera de nenhuma surpresa da parte do médico-legista nem da detective - disse ela. - E a rapariga que vai testemunhar, uma amiga da Emily, deve estar naturalmente aterrorizada e não será uma grande ajuda para a Delaney. A única testemunha imprevisível é a Melanie Gold, de quem não consigo aproximar-me o suficiente para poder entrevistar.
- Bem, talvez eu tenha sorte - disse Jordan. - Talvez tenha um esgotamento clinicamente certificado nos próximos meses e o Puckett possa declará-la mentalmente incapaz
de testemunhar.
Selena revirou os olhos.
- Não estou a contar com isso - disse ela.
- Eu também não - admitiu Jordan. - Mas já aconteceram coisas mais estranhas.
Selena acenou com a cabeça, e colocou os pés em cima da mesa de café, ao lado dos de Jordan.
- Pés descalços - disse ela distraidamente, mexendo os dedos.
- Quando era pequena, pensava que a frase era "pés no encalço".
- Não admira que te tenhas tornado investigadora privada. Ela tocou ao de leve no ténis dele.
- E tu? - perguntou.
- Porque me tornei investigador privado? - disse Jordan, sorrindo.
- Sabes o que quero dizer.
- Fui para a Faculdade de Direito pela mesma razão por que toda a gente vai para a Faculdade de Direito: não fazia ideia do que havia de fazer à minha vida e os meus pais estavam dispostos a pagar.
Selena riu.
- Não, eu consigo perceber porque te tornaste advogado: para seres pago para as pessoas te ouvirem argumentar. Queria saber por que mudaste de lado.
- Da Procuradoria-Geral, queres dizer? - Jordan encolheu os ombros. - Os salários eram uma porcaria.
Selena olhou em seu redor, para a casa bastante usada. Jordan gostava de conforto, mas nunca seria ostensivo.
- A verdade - insistiu ela. Ele olhou para ela.
- Sabes qual é a minha opinião sobre a verdade - disse numa
voz suave.
- Então a tua versão - disse Selena.
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- Bem - respondeu Jordan -, enquanto promotor de justiça, tem-se o ónus da prova. Enquanto advogado de defesa, só se tem de suscitar uma pequena dúvida. E como é possível que um júri não tenha dúvidas? Quero dizer, eles não estavam lá no local do crime, pois não?
- Queres dizer que mudaste de lado porque querias uma saída fácil? Não acredito.
- Mudei de lado - disse Jordan -, porque eu também não acreditava. Na ideia de haver só uma versão correcta. Para estarmos do lado da acusação temos de acreditar nisso senão qual será a base do nosso caso?
Selena mudou de posição, virando-se de lado, e o seu rosto ficou apenas a alguns centímetros do de Jordan.
- Achas que o Chris Harte é culpado? - pousou uma mão no braço dele. - Eu sei que achas que isso é indiferente - disse ela. Continuarias a defendê-lo, e bem. Mas queria saber.
Jordan olhou para as mãos.
- Acho que ele amava aquela rapariga, e acho que ele estava aterrorizado quando a polícia os encontrou. Para além disso? - abanou a cabeça. - Acho que o Chris Harte mente muito bem - disse devagar. Depois olhou para Selena. - Mas não mente tão bem como a acusação pensa.
Era quinta-feira, um dia tranquilo no cemitério, por isso a voz do rabi parecia propagar-se, flutuando até aos ramos das árvores onde os tentilhões observavam com
os seus olhos negros como botões, os bicos cerravam-se em redor das palavras como se as orações fossem tão nutritivas como as sementes dos cardos. Michael estava
de pé ao lado de Melanie, os sapatos elegantes dele não conseguiam combater o frio que vinha da terra calcada. "Como", pensou, "teriam eles conseguido colocar a pedra?" E pela quinquagésima vez naquela manhã, os olhos fixaram-se na pedra tumular nova de mármore cor-de-rosa na campa de Emily, o motivo desta cerimónia.
A pedra em si não dizia muito: o nome de Emily, as datas do nascimento e da morte. E ligeiramente abaixo, em letras grandes, uma única palavra: BELOVED" . Michael
não se lembrava de encomendar aquela frase ao canteiro, mas imaginava que fosse possível; fora há tanto tempo e andava tão desorientado. Por outro lado, não ficaria surpreendido se Melanie tivesse mandado acrescentar aquela
13 Amada. (N. da T.)
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parte. Mas ficou a pensar se a ideia de colocar um pequeno espaço entre o E e o L teria sido dela, ou se se teria devido a um deslize da mão do canteiro, de forma
que não se sabia bem se a palavra seria uma descrição de Emily - BELOVED - ou se seria BE LOVED uma directiva promulgada a seu favor.
Ficou a ouvir os sons guturais do hebraico da boca do rabi, e o som suave das lágrimas de Melanie. Mas os olhos não paravam de se mover, deambular, até que viu o
que estava à espera de ver.
Gus surgiu a subir a encosta, vestida com uma parca negra volumosa e uma saia negra, de cabeça curvada contra o vento. Olhou directamente para os olhos de Michael
e ocupou um lugar ligeiramente atrás dele, do outro lado de Melanie.
Michael recuou um passo, e depois outro, até ficar ao lado de Gus. Escondido debaixo das pregas esvoaçantes do casaco dela, ele tocou-lhe na mão enluvada.
- Vieste - sussurrou.
- Pediste-me - murmurou ela em resposta.
E depois estava tudo terminado. Michael baixou-se e agarrou numa pequena pedra, que colocou na base da nova lápide. Melanie fez o mesmo, e depois passou por Gus
caminhando vigorosamente como se ela não estivesse ali. Gus ajoelhou-se e encontrou um seixo branco liso, dirigiu-se para a sepultura e colocou a sua oferenda junto
das outras duas.
Sentiu a mão de Michael novamente no braço.
- Eu acompanho-te ao carro - disse ele, virando-se para que Melanie soubesse aonde ia, mas ela tinha desaparecido.
Gus esperou que Michael falasse ao rabi e lhe entregasse um envelope. Depois começou a caminhar ao lado dele, ambos sem nada dizerem até chegarem ao carro.
- Obrigado - disse Michael.
- Não, eu é que te agradeço - disse Gus. - Eu queria vir olhou para Michael para dizer adeus, mas havia algo no rosto dele, as rugas aos cantos dos olhos, ou talvez
o sorriso trémulo, que a fez abrir os braços e envolvê-lo. Quando Michael se afastou os olhos dela estavam tão húmidos como os seus.
- Sábado? - perguntou ele.
- Sábado - disse ela. Ficou absorto por um instante, como se travasse uma luta interna, e, depois, aparentemente tomou uma decisão. Ainda abraçado a ela, inclinou-se,
beijando-a suavemente na boca, e depois foi-se embora.
14. Sê amada. (N. da T.)
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Gus parou o carro a quatrocentos metros do cemitério. Era bem possível que na pressão do momento - e uma cerimónia daquelas era sem dúvida stressante - Michael não
tivesse pensado bem no que estava a fazer. Por outro lado, Gus teria apostado as suas poupanças em como Michael estava perfeitamente consciente.
Estava emocionalmente carente, sabia-o. Meu Deus, há meses que não dormia com James, não conversava realmente com ele ainda há mais tempo. E na mesma altura em que perdera o marido, a melhor amiga virara-lhe as costas. O facto de haver um adulto que queria - queria! - falar sobre Chris era sedutor.
Mas pensou, sentindo-se ligeiramente enjoada, se estaria ansiosa por encontrar-se com Michael para poder falar de Chris, ou se estaria a servir-se de Chris como desculpa para encontrar-se com Michael.
Conversavam realmente sobre Chris, Emily e o julgamento. E era bom tirar aquele peso todo de cima do peito. Mas isso não explicava porque ficava toda arrepiada quando ele olhava para ela e sorria, ou o facto de poder fechar os olhos e imaginar o rosto dele numa variedade de expressões, da mesma forma que acontecera outrora com James.
Conhecia Michael há anos, conhecia-o quase tão bem como conhecia o marido. Era uma atracção nascida da intimidade e da falsa familiaridade. Não significava absolutamente nada, dissera para consigo.
Mas conduziu até casa apenas com uma mão, com as pontas dos dedos da mão livre a tocarem ligeiramente na boca, os pneus a sibilarem na estrada lisa, sussurrando:
"Amada15."
Embora nenhum deles tivesse falado no assunto, desde a decisão de James de não aceitar testemunhar a favor de Chris que Gus dormia noutro quarto. O quarto de Chris.
Havia algum conforto em sentir o colchão curvar-se debaixo de si no sítio onde se moldara ao corpo do filho durante anos; em sentir o cheiro pungente de um conjunto
de equipamento desportivo a fermentar no chão do roupeiro, em acordar ao som de um despertador sintonizado na estação de rádio preferida dele - tudo isso contribuía
para a ilusão de que ele ainda estava tão perto de Gus como qualquer uma dessas coisas.
Era a noite em que James ficava a trabalhar até tarde no hospital. Gus ouviu-o entrar, o estalido pesado da porta de entrada, o ritmo
15. Beloved no original. (N. da R.)
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dos passos nas escadas. Ouviu-se um ligeiro ranger quando ele foi ver Kate, que adormecera horas antes, e o som da água a correr pelos canos quando abriu a torneira
do duche na casa de banho principal. Não foi falar a Gus. Nem se aproximava do quarto de Chris.
Ela levantou-se da cama, os pés silenciosos na carpete enquanto vestia o roupão.
Era estranho ver a sua própria cama. Os lençóis estavam limpos e lisos, mas pendiam soltos como uma língua - uma prova clara de que ela não dormia ali. James gostava dos lençóis soltos; do lado de Gus, estavam sempre entalados, a linha de demarcação alterando-se ligeiramente noite após noite.
A água do duche parara de correr. Gus imaginou James a sair do duche e a enrolar uma toalha à volta da cintura, os cabelos espetados depois de os esfregar vigorosamente. Então abriu a porta da casa de banho.
James virou-se imediatamente para ela.
- O que foi? - perguntou ele, certo de que só uma emergência explicaria o facto de ela estar ali, nenhuma outra razão.
- Tudo - disse Gus, enquanto desapertava o roupão turco e o deixava cair.
Aproximou-se dele, hesitante, colocando-lhe as mãos abertas sobre o peito. com uma força espantosa, os braços de James fecharam-se à sua volta. Foi deslizando ao longo do corpo dela, com a boca nos seios e nas costelas, e encostou-lhe a face à barriga.
Ela fê-lo levantar-se e conduziu-o para o quarto. James caiu para cima dela, com o coração a bater tanto como o seu. Gus passou-lhe as mãos sobre os músculos dos braços, a leve penugem das nádegas, as covas ao fundo da coluna - todos os lugares que precisava de tocar, e voltar a memorizar. Quando ele a penetrou, arqueou-se debaixo dele como um salgueiro. James fez mais um movimento e Gus mordeu-lhe a pele do ombro com força, com medo do que poderia dizer. E então, tão depressa como tinha sucedido, terminou, com James arquejando em cima dela, as mãos a arranharem as roupas da cama, um ao outro, ainda em silêncio.
com um sorriso tímido, James foi para a casa de banho, com marcas de unhas a deixarem-lhe vergões nas costas. Gus tocou nos seios, arranhados pela barba, e olhou para a cama. Estava uma confusão, a colcha estava caída. Até havia sangue nos lençóis, das costas de James, e tinham derrubado um dos candeeiros da mesa-de-cabeceira. Não parecia o local de uma reconciliação, nem um ninho de amor. Na realidade, pensou Gus, assemelhava-se mais ao local de um crime do que a qualquer outra coisa.
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Jordan retirou o elástico da pequena pilha de correspondência. Ao ver o nome e endereço do Tribunal Superior de Grafton, sentiu a pulsação acelerar. Rasgou o envelope e viu a carta enviada pelo Ilustre Leslie Puckett, em resposta às moções anteriores ao julgamento que ele e Barrie apresentaram.
As moções da promotora de justiça, procurando excluir duas das suas testemunhas especialistas e o trabalho de Inglês a favor da escolha que Selena encontrara, foram recusadas.
A sua moção de supressão para excluir a entrevista que a detective Marrone fizera no hospital fora aceite, visto que Chris Harte não se sentira livre de abandonar a entrevista, e assim fora formalmente interrogado sem que lhe tivessem sido lidos os seus direitos.
Era uma vitória pequena, mas fê-lo sorrir. Jordan enfiou a carta atrás do resto da correspondência, voltou para o escritório e fechou a porta.
Quando Chris viu o pai de pé, tenso, atrás da cadeira de metal na zona dos visitantes, ficou imóvel. Dissera à mãe que queria que James viesse, mas não esperava verdadeiramente que o seu desejo fosse realizado. Afinal, quando Chris o banira das visitas, alguns meses antes, todos sabiam que James estava simplesmente a assumir as culpas por algo que fizera.
- Chris - disse o pai, estendendo a mão.
- Pai - apertaram as mãos, e Chris ficou momentaneamente chocado pelo calor da pele do pai. Lembrou-se, num breve clarão, que as palmas das mãos do pai sempre lhe pareceram tranquilizadoramente quentes, por cima dos seus ombros num abrigo camuflado para caçar patos, ou a segurar-lhe nos braços enquanto o ensinava a disparar. - Obrigado por teres vindo.
James acenou com a cabeça.
- Obrigado por me receberes - disse formalmente.
- A mãe veio contigo?
- Não - disse James. - Achei que querias que viesse sozinho. Chris nunca dissera isso, mas fora assim que a mãe interpretara.
E provavelmente não tinha sido uma má ideia.
- Querias perguntar-me alguma coisa em particular? - perguntou James.
Chris acenou com a cabeça. Lembrou-se de muitas coisas em simultâneo: "Se eu for para a prisão, ajudas a mãe a continuar a viver a vida dela? Se te pedir, és capaz de dizer-me na cara que te
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magoei mais do que alguma vez achaste possível?" Mas em vez disso, a boca abriu-se rolando à volta de uma frase que surpreendeu tanto Chris como James.
- Pai - disse ele -, nunca fizeste nada de errado em toda a tua vida?
James encobriu o riso sobressaltado com uma tosse.
- Bem, claro - disse ele. - Chumbei a Biologia no primeiro semestre da faculdade. Roubei um pacote de pastilhas elásticas quando era pequeno. E bati com o carro do meu pai depois de uma festa da universidade - soltou um riso abafado, traçando as pernas.
- Só nunca estive perto de cometer um homicídio.
Chris ficou a olhar para ele.
- Eu também não - disse num tom suave. James empalideceu.
- Eu não queria dizer... isto é... - acabou por abanar a cabeça.
- Não te culpo pelo que aconteceu.
- Mas será que acreditas em mim? James olhou directamente para o filho.
- É muito difícil acreditar em ti - disse ele -, quando estou a esforçar-me tanto para fingir que isto nunca chegou a acontecer.
- Mas aconteceu - disse Chris, numa voz abafada. - A Emily está morta. E eu estou enfiado nesta maldita prisão, e não posso mudar o que já está feito.
- Eu também não - James entalou as mãos entre os joelhos. Tens de compreender... cresci com os meus pais a dizerem-me que a melhor maneira de sairmos de uma situação complicada era pensar que ela não existia - disse ele. - Que se espalhem os boatos... Se a família não se mostrar incomodada, porque haveria alguém de se mostrar incomodado?
Chris sorriu ligeiramente.
- Fingir que estou num hotel de luxo não melhora o sabor da comida daqui, nem as celas ficam maiores.
- Bem - disse James, numa voz mais suave. - Nada nos impede de aprendermos com os nossos filhos - esfregou a cana do nariz. Por acaso, agora que me fizeste pensar nisso, fiz uma coisa mesmo horrível.
Chris inclinou-se para a frente, intrigado.
- O quê?
James sorriu, tão emocionado que Chris teve de desviar o olhar.
- Estive longe daqui - disse ele -, até agora.
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O julgamento de Steve por homicídio durou quatro dias. O advogado era oficioso, visto que nem ele nem os pais podiam pagar um advogado mais esplendoroso. E, embora não falasse com Chris sobre o seu caso, Chris sabia que estava cada vez mais nervoso com o fim do julgamento a aproximar-se.
Na noite anterior ao júri entregar o veredicto, Chris acordou com o som de qualquer coisa a raspar ao de leve. Virou-se no beliche e viu Steve esfregar uma lâmina de barbear na borda da sanita.
- Que raio estás tu a fazer? - sussurrou Chris. Steve olhou para cima.
- vou para a prisão - disse ele, numa voz carregada.
- Já estás na prisão - disse Chris. Steve abanou a cabeça.
- Isto é um clube privado comparado com a Penitenciária Estadual. Sabes o que costumam fazer lá aos que estão a cumprir pena por matarem crianças? Sabes?
Chris sorriu um pouco.
- Tornam-te a pega lá do sítio?
- Achas que tem assim tanta graça? Porque podes estar na mesma situação daqui a três meses - Steve tinha uma respiração rouca, tentando não chorar. - Às vezes só nos batem, e os guardas olham para o outro lado porque acham que merecemos. Às vezes chegam até a matar-nos - agarrou na pequena lâmina prateada, um brilho na obscuridade da cela. - Achei que era melhor poupar-lhes o trabalho - disse Steve.
Ainda atordoado pelo sono, Chris demorou um momento para perceber o que ele estava a dizer.
- Não podes fazer isso - disse ele.
- Chris - murmurou Steve -, é a única coisa que posso fazer. Chris lembrou-se de repente de Emily, a tentar explicar-lhe
como se sentia. "Consigo ver-me agora", disse ela. "E consigo ver o que quero ser, daqui a dez anos. Mas não percebo como hei-de chegar daqui até ali." Chris viu Steve erguer uma mão trémula, a lâmina a tremeluzir como uma chama. Saltou da cama e começou a bater nas grades da cela, gritando para chamar a atenção de um guarda e fazer pelo amigo aquilo que não fizera por Emily.
Os boatos espalhavam-se pela prisão, difusos como mosquitos e igualmente difíceis de ignorar. No dia seguinte, ao pequenoalmoço todos sabiam que Steve fora transferido para a cela anti-suicídio na segurança máxima, onde era vigiado por uma câmara na
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sala de controlo. Ao almoço, o xerife ia levá-lo para o tribunal para ouvir a decisão do júri.
Um pouco depois das três e meia, um dos guardas entrou na cela de Chris e começou a embalar as coisas de Steve. Chris pousou o livro que estava a ler.
- Já acabou o julgamento? - perguntou ele. -Já. Culpado. Condenado a prisão perpétua.
Chris observou o guarda apanhar os pedaços de plástico da lâmina de barbear, aquela que Steve abrira para retirar a lâmina. Tapou a cabeça com a almofada, soluçando como não fazia desde o dia em que chegara à prisão. Sem averiguar se chorava por Steve ou por si próprio; pelo que fizera, ou pelo que tinha a certeza que ia acontecer.
De início, Barrie Delaney telefonava frequentemente a Melanie, para informá-la sobre as provas que iam chegando do gabinete de medicina legal, ou do laboratório forense. Depois Melanie começou a fazer as chamadas telefónicas, periodicamente, só para que a Dr.a Delaney não se esquecesse de Emily. Agora, Melanie telefonava talvez uma vez por mês, não querendo roubar à promotora de justiça o tempo precioso que devia gastar a preparar-se para o julgamento.
Por isso, Melanie ficou bastante surpreendida quando Barrie Delaney a localizou na biblioteca para falar com ela.
Atendeu o telefone, certa de que a outra bibliotecária tinha percebido mal o nome do autor da chamada, para ouvir a voz clara e ritmada da promotora de justiça.
- Olá - disse Melanie. - Está tudo a correr bem?
- Eu é que devia fazer-lhe essa pergunta - disse Barrie. - Por acaso, está tudo bem.
- A data do julgamento foi alterada?
- Oh, não. Ainda está marcado para Maio - suspirou para o telefone. - Compreende, Sr.a Gold, estava a pensar que talvez pudesse ajudar-me a fazer alguma pesquisa.
- Tudo o que quiser - garantiu-lhe Melanie. - De que precisa?
- É o seu marido. Ele aceitou testemunhar pela defesa. Melanie ficou tanto tempo calada que a promotora de justiça
começou a chamar o nome dela.
- Ainda estou aqui - disse num fio de voz, lembrando-se de Gus no cemitério, com a certeza de que fora ela que convencera Michael a fazer aquilo. Sentiu o coração aos saltos. - Que posso fazer?
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- O ideal era convencê-lo a desistir - disse Barrie. - E se ele recusar, talvez consiga averiguar o que ele irá dizer de tão útil para a defesa.
Naquela altura, Melanie tinha a cabeça baixa, a testa a roçar na secretária.
- Compreendo - disse ela, embora não compreendesse. - E o que devo fazer?
- Bem, Sr.a Gold - disse a promotora de justiça. - Acho que a senhora é que sabe.
A primeira coisa em que Michael reparou quando entrou em casa, suado, cansado e a tresandar a desinfectante para limpar a lã das ovelhas, foi que a aparelhagem de som estava ligada. Após meses de silêncio prolongado, a música parecia um sacrilégio, e teve o impulso absurdo de desligá-la. Mas, depois, entrou na cozinha e viu Melanie cortar vegetais, com os tons de jóia dos pimentos a polvilharem a bancada como papelinhos de carnaval.
- Olá - disse ela alegremente, tão parecida com a mulher que era há um ano que Michael ficou sobressaltado. - Estás com fome?
- Estou esfomeado - disse ele, de boca seca. Ouviu o som de um trombone no CD, e resistiu ao desejo de estender a mão e tocar em Melanie para ter a certeza de que ela estava mesmo ali.
- Vai lavar-te - disse ela. - Estou a preparar um belo guisado de borrego.
Dirigiu-se para a casa de banho como um autómato, com a cabeça a andar à roda. Afinal, fora isso que aprendera sobre o desgosto - podia mudar uma pessoa drasticamente e, depois, um dia, ficaria tudo bem. Fora sem dúvida isso que lhe acontecera a ele. Talvez agora fosse a vez de Melanie voltar à vida.
Enquanto se ensaboava no duche e lavava, o cabelo com champô, não conseguia deixar de visualizar Melanie como a vira na cozinha, de costas viradas para ele, a curva das costas graciosa debaixo da camisola de gola alta, as madeixas nos cabelos a cintilarem em tons dourados, prateados e arruivados ao sol da tarde.
Saiu de toalha, encontrando Melanie sentada na cama com dois pratos fumegantes e dois copos de vinho tinto.
Vestia um roupão verde de seda, do qual se lembrava da sua segunda lua-de-mel há um milhão de anos, com o cinto a desatar-se.
- Achei que talvez não quisesses esperar - disse ela. Ele engoliu.
- Por o quê? - perguntou.
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Melanie sorriu.
- Pelo guisado - levantou-se, a iguaria colorida nos pratos a agitar-se com o movimento do colchão, e ergueu um copo de vinho.
- Queres? - quando Michael acenou com a cabeça, bebeu um pouco, e depois inclinou-se para beijá-lo, deixando o vinho escorrer-lhe sobre os lábios para a garganta.
Pensou que ia vir-se ali mesmo.
Há meses que não fazia amor com Melanie, desde que a filha morrera. Teria delirado com um convite para partilhar a cama com ela... mas esta não era Melanie. Ao longo de todos os anos de casados, Melanie nunca tomara a iniciativa relativamente ao sexo. Pensou nela a deixar escorrer o vinho para dentro da boca dele, ficou ainda mais excitado, e depois interrogou-se de que livro teria tirado a ideia.
Antes que pudesse evitar, riu.
Os olhos de Melanie agitaram-se; alguém que não a conhecesse tão bem quanto Michael podia não ter reparado na indecisão que lhe dilatou as pupilas durante aquela fracção de segundo. Para seu mérito - e choque dele - pousou o copo de vinho, agarrou-lhe na parte de trás da cabeça e puxou-o para baixo para beijá-lo.
Michael sentiu o roupão abrir-se, os mamilos dela contra o seu peito. Sentiu a língua dela enrolar-se-lhe na boca e os dedos a afagar-lhe a nuca. E depois sentiu a outra mão deslizar entre ambos, para lhe envolver os testículos.
Tinha-o na mão.
De repente compreendeu porque Melanie estava a preparar um guisado, se vestiu de seda, e queria fazer amor com ele. Não tinha mudado de um dia para o outro. Queria apenas alguma coisa.
Ergueu a cabeça e afastou-se. Melanie soltou um pequeno som nítido e abriu os olhos.
- O que se passa? - perguntou ela.
Viu-a olhar para ele, sentiu a admiração dela quando o pénis ficou flácido na sua mão. Ela apertou-o quase com crueldade e depois soltou-o, fechando o roupão.
- Vais ser uma testemunha da defesa - sibilou ela. - A tua filha está morta e tu vais defender o assassino dela.
- Então é por causa disso? - disse Michael, incrédulo. Achavas que uma queca ia fazer-me mudar de ideias?
- Não sei! - gritou Melanie, enterrando as mãos nos cabelos. Achei que talvez não o fizesses. Que me devesses isso.
Michael olhou para ela pestanejando, estupefacto por num casamento que durava há vinte anos ela ter pensado, sequer, usar o
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sexo como um pagamento, em vez de uma oferta. Desejando magoar Melanie tanto quanto ela o magoara, Michael assumiu um rosto cuidadosamente inexpressivo.
- Tens-te em muito alta consideração - disse ele, e saiu do quarto.
Estava nu, mas isso não importava. Percorreu a casa e subiu as escadas de ligação para o consultório veterinário. Ali vestiu o fato operatório que, por vezes, usava durante as cirurgias, sentando-se à secretária. Ouvia um leve ruído de Melanie na cozinha.
Tinha as mãos a tremer quando agarrou no telefone e marcou o número.
Gus entrou no restaurante Happy Family e dirigiu-se imediatamente para a mesa do fundo que costumavam ocupar nas noites de sexta-feira. Michael estava lá sentado vestindo um fato operatório verde, a beber o que parecia ser vodka puro.
- Michael - disse ela, e ele levantou a cabeça.
Já vira aquela expressão anteriormente, mas não conseguia lembrar-se onde. A posição vaga dos olhos, as pequenas curvas descendentes aos cantos da boca, como parênteses. Demorou um momento a reconhecê-la como desespero, uma expressão que vira estampada no rosto de Chris antes que ele se lembrasse de colocar a sua máscara de indiferença.
- Vieste - disse Michael.
- Eu disse que vinha.
Telefonara para casa dela, o que era arriscado, a implorar-lhe que fosse ter com ele imediatamente. Tentando escolher um local público que não estivesse muito cheio àquela hora do dia, ela sugerira o restaurante chinês. Só quando ia a caminho, depois de mentir a James e a Kate, é que se apercebeu de como aquele sítio estaria cheio de memórias.
- É a Melanie - disse Michael, e Gus abriu muito os olhos.
- Ela está bem?
- Não sei. Depende do teu ponto de referência - disse ele. Contou a Gus o que acontecera.
Quando terminou, o rosto de Gus estava rosado. Lembrava-se, não há muito tempo, de estar a rir com Melanie enquanto tomavam café, a discutir a grossura e o comprimento e outras abstracções relativamente ao sexo que pareciam estar demasiado presentes para se sentir à vontade agora.
- Bem - disse ela, pigarreando -, já sabias que ela descobriria que ias testemunhar.
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- Pois. Acho que não foi propriamente isso que me incomodou
- olhou para Gus, de olhos embaciados, - É que esta coisa horrível aconteceu-nos aos dois, percebes? E acho que sempre pensei que se chegássemos a este ponto, ficaríamos ainda mais juntos. Enfrentávamos a tempestade - ficou a olhar para o individual, profusamente decorado com a roda do calendário chinês; o ano do rato, do búfalo, do cavalo. - Sabes o que é entregar todo o nosso ser a uma pessoa, e também o coração, até já não nos restar mais nada para dar, e depois percebermos que, apesar de tudo, ainda não era suficiente?
- Sei - disse Gus simplesmente. - Sei sim - estendeu as mãos por cima da mesa a agarrou nas de Michael, dando-lhe força. E pensaram individualmente em Melanie e em James, e em como uma pequena brecha de diferença entre duas pessoas podia, de um momento para o outro, transformar-se num desfiladeiro.
Ainda estavam de mãos dadas quando apareceu o empregado para anotar o pedido.
- Senhora! Senhor! - exultou, com um sorriso rasgado no rosto enquanto Gus e Michael se afastaram um do outro. - Passar muito tempo desde que vir aqui comer - disse ele, com uma pronúncia asiática melodiosa, - Quando vir o outro casal?
Gus ficou a olhar para o empregado, de boca aberta. Foi Michael que se apercebeu do erro que ele cometera.
- Oh... não - disse ele, sorrindo. - Nós não somos casados. Quero dizer, somos, mas não um com o outro.
Gus acenou com a cabeça.
- Os outros dois, aqueles que não estão aqui... - disse ela, e depois interrompeu a frase a meio enquanto o empregado sorria beatificamente para eles, sem querer ou sem conseguir compreender.
Michael pousou a palma da mão sobre a lista.
- Frango com brócolos - disse ele. - E mais vodka.
No silêncio embaraçoso após o empregado ter ido embora, Gus meteu as mãos debaixo da mesa, sentindo ainda o formigueiro devido ao toque de Michael. Michael bateu com os pauzinhos na borda do copo de vodka.
- Ele pensou que tu e eu éramos...
- Sim - disse Gus. - Que estranho - mas estava a olhar para o individual, para o bizarro calendário chinês, a pensar se o empregado seria a única pessoa que achava que as esposas eram permutáveis. Afinal era um erro lógico; qualquer pessoa que tivesse visto os Harte e os Gold ali durante anos, e a relação entre os quatro, podia chegar à mesma conclusão.
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Gus olhou para Michael por cima da chávena de chá, considerando os espessos cabelos grisalhos, as mãos quadradas, o coração. Viera ter com Michael porque ele precisava
dela. Parecia perfeitamente natural - afinal, ele era quase um membro da família.
O que em si era um pouco aterrorizador.
E incestuoso.
A pesada chávena de chá de porcelana tilintou na mesa ao escorregar da mão de Gus. Ambos sentiram a estranha simultaneidade de à vontade e desconforto daquela atracção. Mas tinham idade suficiente para se afastarem um do outro, quando a realidade
- sob a forma de um empregado de mesa chinês - se intrometia. Podia não ser assim tão simples para uma pessoa mais nova.
Quem sabe se Emily também não se teria sentido empurrada para um romance com um rapaz que poderia ser seu irmão?
Grávida de um filho dele?
Gus fechou os olhos e disse uma curta oração, apercebendo-se subitamente do que mais ninguém conseguiu perceber ao longo de muitos meses - a razão por que Emily Gold, alegre, cheia de vida e inteligente, estaria suficientemente confusa para acabar com a própria vida.
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PASSADO
Outubro de 1997
Da primeira vez que Emily disse a Chris que se queria suicidar, Chris riu.
Da segunda vez, fingiu não ter ouvido.
Da terceira vez, prestou atenção.
Estavam a caminho de casa vindos da última sessão de cinema e Emily adormecera. Acontecia-lhe isso muitas vezes ultimamente, apercebeu-se Chris - dormitava a meio
da tarde, ficava a dormir até tão tarde de manhã que Chris tinha de acordá-la antes de a levar à escola, e uma vez até tinha adormecido na aula. Tinha a cabeça apoiada ao de leve no ombro dele, o corpo inclinado para o lado por cima da alavanca das mudanças entre os assentos. Chris segurava no volante com a mão esquerda e tinha a direita numa posição estranha para apoiar a cabeça de Emily e impedir que andasse de um lado para o outro.
Precisava de ambas as mãos para sair da auto-estrada, largou Emily e esta deslizou do ombro para lhe cair no colo, com a orelha encostada à fivela do cinto, os seios aninhados na alavanca das mudanças e o nariz a centímetros do volante. A cabeça dela era pesada e quente, enquanto ele conduzia pelas ruas silenciosas de Bainbridge apoiava a mão nela, afastando-lhe os cabelos do rosto. Virou para casa dela e desligou o motor e as luzes, observando-a enquanto dormia.
Passou um dedo pela orelha rosada, tão frágil que Chris conseguia ver a rede de ténues veias azuis, imaginar o sangue a percorrê-las.
- Então - disse ele num tom suave. - Acorda.
Ela acordou, sobressaltada, e teria batido com a cabeça no volante se a mão de Chris não estivesse lá para impedir. Endireitou-se, com a mão de Chris ainda pousada na nuca.
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Emily espreguiçou-se. Tinha um vergão vermelho e profundo na face esquerda, uma marca gravada pelo cinto dele.
- Porque não me acordaste antes? - disse ela com voz rouca. Chris sorriu-lhe.
- Estavas tão gira - disse ele, e colocou-lhe uma madeixa de cabelo atrás da orelha.
Não era nada, um elogio como milhares de outros que ele já lhe fizera, mas ela desatou a chorar. Estupefacto, Chris inclinou-se por cima da alavanca das mudanças, esforçando-se ao máximo para abraçá-la.
- Emily - disse ele -, conta-me.
Ela abanou a cabeça; sentiu o leve movimento junto ao ombro. Depois afastou-se, limpando o nariz com a manga.
- És tu - disse ela. - É de ti que vou sentir falta.
Parecia uma forma estranha de dizê-lo - "Sinto a tua falta" teria feito mais sentido - mas Chris sorriu.
- Podemos visitar-nos - disse ele. - Por isso é que há férias grandes na faculdade, sabes.
Ela riu, embora pudesse ter sido um soluço.
- Não estou a falar da faculdade. Estou sempre a tentar dizer-te - disse Emily, hesitante. - Mas tu não me ouves.
- Dizer-me o quê?
- Não quero estar aqui - disse Emily. Chris alcançou a chave da ignição.
- É cedo. Podemos ir a outro sítio - disse ele, com um zumbido de alarme a subir-lhe pelas costas.
- Não - disse Emily, virando-se para ele. - Não quero ser. Ele ficou sentado em silêncio, engolindo em seco, a rever as
outras coisas que Emily dissera inutilmente e que conduziram àquilo. E viu aquilo que andava a esforçar-se tanto por não ver: para alguém que conhecia Emily tão bem quanto ele, viu que ela estava diferente.
- Porquê? - conseguiu dizer. Emily mordeu o lábio.
- Acreditas que te contaria tudo o que pudesse contar? - Chris acenou com a cabeça. - Não aguento mais. Só quero que tudo acabe.
- Queres que acabe o quê? O que foi?
- Não posso dizer-te - desabafou Emily. - Oh, meu Deus. Nunca mentimos um ao outro, tu e eu. Talvez nem sempre tivéssemos contado tudo um ao outro, mas nunca mentimos.
- Está bem - disse Chris, com as mãos a tremer. - Está bem sentiu-se rodopiar para fora do corpo, como quando batera com a
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cabeça na beira da prancha de mergulho e desmaiara: ávido das coisas mais vulgares, como o ar e a paisagem que tinha diante dos olhos, sabendo que não conseguiria impedir que se dissolvessem.
- Em - disse ele, engolindo, a voz dele era apenas mais uma sombra dentro do carro. - Estás... isto é sobre te quereres suicidar?
- e quando Emily desviou o rosto, os pulmões incharam como balões e o seu mundo ficou sem fundo.
- Não podes - disse Chris passado um minuto, espantado por ter conseguido soltar algum som, com os lábios tão dormentes e grossos. "Não vou falar sobre isto", pensou ele. "Porque se falar sobre isto, vai realmente acontecer." Emily não estava sentada à sua frente, pálida e bela, a falar em suicídio. Estava a ter um pesadelo. Estava à espera da deixa. Mas conseguia ouvir a voz dela, aguda e assustada, já convencido. - Não... não podes fazer isso - gaguejou.
- Não vais suicidar-te só porque um dia te sentes em baixo. Não vais decidir uma coisa dessas sem mais nem menos.
- Não é sem mais nem menos - disse Emily pausadamente. E não é um dia.
As narinas de Chris fremiam, e abriu a porta do carro com um sacão.
- vou falar com os teus pais.
- Não! - gritou Emily, com tanto medo naquela palavra que Chris parou imediatamente. - Por favor, não faças isso - murmurou ela. - Eles não vão compreender.
- Eu não compreendo - disse Chris ardentemente.
- Mas estás disposto a ouvir - disse ela, e, pela primeira vez, em cinco minutos, qualquer coisa fez sentido para Chris. Claro que ele estava disposto a ouvi-la; faria qualquer coisa por ela. E os pais dela... bem, ela tinha razão. Aos dezassete anos, as mais pequenas crises assumiam tremendas proporções; os pensamentos de outra pessoa podiam criar raízes na nossa própria cabeça; ser aceite por alguém era tão vital como o oxigénio. Os adultos, a anos-luz de distância disto, reviravam os olhos e sorriam desdenhosamente, dizendo: "Isso vai passar" - como se a adolescência fosse uma doença como o sarampo, algo que todos recordavam como um leve contratempo, esquecendo completamente como na altura fora doloroso.
Havia manhãs em que Chris acordava a suar, a transbordar de vida, ofegante como se tivesse subido um penhasco a correr. Havia dias em que sentia que não cabia na sua própria pele. Havia noites em que ficava aterrorizado por não estar à altura do modelo daquilo em que viria a transformar-se, precisando acima de tudo de inspirar
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o aroma inebriante do champô nos cabelos de Emily, sem querer admiti-lo. Mas não podia explicar isto a ninguém, muito menos aos pais. E Emily, só por ser ela própria, agarrava-se a ele e enfrentava a tempestade até ele conseguir vir à superfície para respirar.
Ficou em pânico e ao mesmo tempo orgulhoso por Em o tornar seu confidente. Na altura não reparou que ela não fora capaz de lhe dizer o que a incomodava. Inebriado pela confiança dela, foi arrastado pela glória de manter todos de fora, de ser o único salvador de Emily.
Depois pensou nela a cortar os pulsos e sentiu qualquer coisa ceder dentro do peito. Era de mais para eles.
- Tem de haver alguém - disse ele. - Um psiquiatra, ou qualquer coisa assim.
- Não - repetiu Emily num tom suave. - Contei-te isto porque sempre te contei tudo. Mas não podes... - a voz dela vacilou. - Não podes estragar-me isto. Hoje é a primeira noite em... meu Deus, nem sei há quanto tempo... em que sinto que consigo lidar com isto. É como uma dor muito grande que conseguimos aguentar, sabes? Porque já tomámos o remédio e sabemos que em breve vai deixar de doer.
- O que te dói? - perguntou Chris com voz pastosa.
- Tudo - disse Emily. - A cabeça. O coração.
- É... é por minha causa?
- Não - disse ela, de olhos novamente brilhantes. - Não és tu. Então ele agarrou-a, ignorando o duro manipulo da alavanca
das mudanças entre ambos, e esmagou-a contra o peito.
- Se não queres que te ajude, porque me contaste? - sussurrou. Emily entrou em pânico.
- Não vais dizer nada?
- Não sei. Achas que devo ficar sentado a fingir que está tudo bem até fazeres isso? E depois dizer: "Ah, pois... ela realmente disse qualquer coisa sobre suicidar-se" - afastou-se, com a mão a cobrir os olhos. - Meu Deus. Nem acredito que estou a falar sobre isto.
- Promete-me - disse Emily - que não vais dizer nada a ninguém.
- Não posso.
As lágrimas que se acumularam nos olhos de Emily transbordaram.
- Promete - pediu de novo, agarrando na camisola dele com as mãos cerradas.
Durante anos fora visto como o futuro protector de Emily, a sua outra metade - e embora nunca tivesse imaginado ser menos do que isso, não conseguia perceber, realmente, como haveria de
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desempenhar esse papel na totalidade. Apercebeu-se subitamente de que também ele estava a ser testado, não era só Emily, era a sua oportunidade de afastar Emily de tudo aquilo em segurança. Se ela confiava nele, ele tinha de merecer essa confiança... embora isso tivesse significados diferentes para cada um deles. Ele tinha tempo. Fá-la-ia falar. Descobriria aquele horrível segredo e mostrar-lhe-ia que existia outra maneira melhor; e todos - incluindo Emily - acabariam por agradecer-lhe por isso.
- Está bem - sussurrou Chris. - Prometo.
Mesmo com Emily encostada a si, sentiu um muro erguer-se, deixando de senti-la verdadeiramente, embora a pele de ambos estivesse em contacto. Como se também o sentisse, Emily aproximou-se mais.
- Contei-te - disse ela baixinho - porque não sabia como podia não te contar.
Chris olhou-a nos olhos, percebendo a força daquilo que dissera. Mas que diferença havia entre levar Emily a tentar explicar o que desejava que acontecesse, ou bater à porta e descobrir que se suicidara, se o resultado final era o mesmo?
- Não - disse ele calmamente, cheio de determinação. Agarrou-lhe nos braços ao de leve e abanou-a. - Não vou desistir de ti.
Emily olhou para ele e, por um instante, conseguiu ler-lhe os pensamentos. Melanie costumava dizer que eles eram como gémeos, com uma linguagem secreta e silenciosa.
Naquele instante, Chris sentiu o medo, a resignação dela e a dor de embater repetidamente num muro de tijolo. Ela desviou o olhar, e ele voltou a poder respirar.
- Só que, Chris - disse Emily -, a escolha não é tua.
Chris deslizava pela água, fazendo o aquecimento no treino de natação com quatro voltas de estilo livre. Nadar fizera-lhe sempre bem à cabeça - não havia muito mais a fazer em cinquenta metros para além de pensar. Memorizara a tabela periódica enquanto nadava na piscina, e o vocabulário para os exames de acesso à universidade e até ensaiara as coisas que ia dizer a Emily para convencê-la a dormir com ele. Na maior parte do tempo, conseguia manter um ritmo ocioso sem alterar o seu progresso. Mas pensar na morte - e em Emily - fazia os braços dele moverem-se mais depressa e as pernas fustigarem a água a um ritmo castigador, como se conseguisse ultrapassar os pensamentos.
Terminando, içou-se para fora da piscina, com o coração acelerado. Tirou os óculos de natação e a touca e depois foi sentar-se
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num dos bancos junto à piscina. O treinador aproximou-se, com um sorriso no rosto.
- Costumamos quebrar os recordes nas competições, Harte disse ele. - É só um treino. Não te mates.
"Não te mates."
Não podia deixar que Emily o fizesse; pura e simplesmente. E talvez fosse por razões puramente egoístas, mas com certeza que um dia ela ia agradecer-lhe por lhe ter salvado a vida. O que quer que fosse que a incomodava - e que raio poderia ser, para ela não lhe poder contar? - podia certamente resolver-se. Sobretudo se ele estivesse lá para ajudá-la.
Abriu mais os olhos. Era isso. Em queria a sua compreensão e o seu silêncio. Se ele entrasse no jogo, teria oportunidade de dissuadi-la de fazer isso. Mesmo à última hora. Fingiria que aquela ideia disparatada de se suicidar era aceitável e, depois, como um cavaleiro andante, surgiria para salvar Emily de si própria. Nunca ninguém saberia o que quase acontecera. E ele não teria de quebrar a promessa que lhe fizera de manter aquele horrível plano em segredo. Os fins justificavam os meios.
Chris não se lembrou de que podia não conseguir.
Sentindo-se muito melhor, levantou-se ao som do apito do treinador e voltou a mergulhar na piscina para fazer outro exercício.
Emily estava à espera dele depois do treino. Também costumava ficar na escola até mais tarde, junto ao cavalete na sala de artes, acabando a tempo de se encontrar com Chris depois do treino de natação para que ele pudesse levá-la a casa. Estava à espera dele numa cadeira ao lado do bebedouro à porta do balneário dos rapazes, com as mãos a cheirarem ligeiramente a terebintina e o casaco enrolado num monte aos pés, como um cãozinho de colo.
- Olá - disse Chris, com o saco de desporto por cima do ombro, aproximando-se dela.
Debruçou-se para beijá-la na face, e ela inspirou o aroma dele, aquela mistura deliciosa de rebuçados Safeguard, cloro e detergente da roupa. As patilhas dele ainda escorriam água do duche; estava tão perto que ela podia deitar a língua de fora e apanhar uma gota. Emily fechou os olhos, traçando um esboço da imagem na cabeça para poder levá-la consigo.
Acertou o passo ao lado dele a caminho do parque de estacionamento dos alunos.
- Estive a pensar - começou Chris a dizer. - Sobre aquilo que disseste no sábado à noite.
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Emily acenou com a cabeça, mas manteve os olhos fixos nos sapatos.
- E queria que soubesses, oficialmente, que era a última coisa no mundo que eu queria que acontecesse - disse Chris. - vou fazer tudo o que puder para te fazer mudar de ideias - respirou fundo e apertou a mão dela. - Mas se... se chegarmos a esse ponto - disse ele -, gostava de estar contigo.
Enquanto ele dizia aquelas palavras, Emily apercebeu-se de que talvez ainda tivesse alguma esperança, depois de desejar tanto que isso acontecesse, no seu subconsciente.
- Gostava que estivesses - disse ela.
Chris iniciou uma campanha subtil e imparável para mostrar a Emily o que ela ia perder. Levou-a a jantar em restaurantes onde uma refeição custava cem dólares; levou-a a ver o pôr do Sol nos pontões sobre o Atlântico. Foi buscar bilhetes antigos que enviavam um ao outro num sistema de roldanas com uma lata que funcionara precisamente três vezes antes de se enredar irremediavelmente nos pinheiros entre as duas casas. Fê-la ver as pilhas de papéis para a candidatura à universidade, como se o contributo dela fosse crucial para as suas decisões. E fazia amor com ela, oferecendo o corpo com ternura e raiva, sem saber bem qual a melhor maneira de lhe dar pedaços da sua alma para que ela pudesse remendar a sua com eles.
E Emily aguentava. Era realmente a melhor maneira que Chris tinha de descrevê-lo; ela suportava tudo o que ele colocava no seu caminho, mas à distância, como se estivesse a observar lá do alto, decidida já há muito tempo.
Para seu espanto, Emily não cedia um centímetro. Tentava perceber qual seria o problema dela com todo o estoicismo e delicadeza estratégica de um general a planear a invasão de um território. Mediante o silêncio dela, sonhava com as piores coisas que podia imaginar: que ela era uma toxicodependente; que era lésbica; que copiara nos exames de acesso à universidade - coisas que não o fariam deixar de a amar.
Tentou arrancar-lhe o segredo com jogos; tentou o Vinte Perguntas; tentou intimidá-la. Isso só fazia Emily cerrar a boca e afastar-se, e Chris entrava em pânico com medo de a poder perder mais cedo. Só podia pressioná-la até certo ponto, porque se começasse a pensar que não ia ajudá-la realmente a suicidar-se, o seu jogo - e a oportunidade de salvá-la corajosamente - ficaria arruinado.
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- Não posso falar sobre isso - disse ela.
- Não queres - corrigiu Chris.
Frustrada, Emily disse que ao mencionar o assunto, Chris apenas estava a agravar o seu sofrimento. Se a amava realmente, deixava de fazer perguntas.
E Chris, igualmente desgastado pelo impasse, abanava a cabeça.
- Não posso - disse.
- Não queres - repetiu Em, forçando-o a não falar sobre o assunto, mais uma vez.
Estavam deitados de barriga para baixo na sala de estar da casa dos Gold, com os livros de matemática abertos à sua frente, as derivadas e as equações diferenciais enroladas como uma língua estrangeira sobre as páginas.
- Não - disse ela, apontando para o sítio onde Chris cometera um erro. - É 2xy-x - corrigiu. Depois deitou-se de costas, olhando para o tecto. - Porque será tão importante para mim ter a nota máxima - disse pensativamente -, se nem sequer vou estar aqui para receber o relatório com as classificações?
Parecia tão desprendida que Chris se sentiu nauseado.
- Talvez seja por não quereres realmente suicidar-te - fez notar.
- Obrigada, Dr. Freud - disse Emily.
- Estou a falar a sério - disse Chris, erguendo-se apoiado num cotovelo. - Digamos que esperas seis meses, para veres como te sentes.
O rosto de Emily ficou gelado.
- Não - disse ela.
- É só isso? Só não?
Ela acenou com a cabeça.
- Não.
- Ora bem, que maravilha - disse Chris, fechando o livro com força. - É mesmo uma maravilha, Em.
Emily semicerrou os olhos.
- Achava que ias ajudar-me.
- Claro - disse Chris, zangado. - O que queres que eu faça? Empurro-te da cadeira quando tiveres a corda ao pescoço? Carrego no gatilho?
O rosto de Emily ficou vermelho.
- Achas que para mim é fácil falar sobre isto? - perguntou com voz tensa. - Porque não é.
- É mais fácil para ti do que para mim - explodiu Chris. Nem, sequer percebes o que estou a dizer. Olho para ti e vejo uma
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pessoa linda e extraordinária. Há muitos livros e canções escritos sobre pessoas à procura do amor das suas vidas, sem nunca o encontrarem, e nós encontrámo-lo e para ti isso não vale nada.
- Vale sim - disse Emily, cobrindo a mão de Chris com a sua.
- É a única coisa que tem valor. E eu só estou a tentar mantê-la assim para sempre.
- Que raio de maneira de fazê-lo - disse Chris num tom amargo.
- A sério? - perguntou Emily. - Preferias passar o resto da vida a pensar em nós e a lembrar-te de uma relação absolutamente perfeita, ou seria melhor deixar que
ficasse tudo estragado e recordares-te dela assim?
- Quem disse que estragaríamos tudo?
- íamos estragar - disse Emily. - Acontece.
- Não percebes? - disse Chris, tentando impedir que as lágrimas se reflectissem na voz. - Não percebes o que me estás a fazer?
- Não te estou a fazer nada - respondeu Emily numa voz suave. - Estou a fazê-lo por mim.
Chris ficou a olhar para ela.
- Qual é a diferença? - disse ele.
Para sua admiração, quanto mais Emily falava em suicidar-se, menos chocante o assunto se tornava. Chris deixou de discutir com ela sobre isso, porque apenas ficava ainda mais determinada, e adoptou uma nova abordagem: explorar metodicamente as opções, para que pudesse ver como a ideia era absolutamente ridícula.
Uma noite virou-se para ela a meio de um filme na televisão e perguntou-lhe como ia fazê-lo.
- O quê? - era a primeira vez que Emily ouvia Chris puxar o assunto; normalmente era ela a falar sobre esse tópico.
- Ouviste o que eu te disse. Calculo que tenhas pensado nisso. Emily encolheu os ombros, lançou um olhar rápido para trás,
para se certificar de que os pais ainda estavam lá em cima.
- Pensei - disse ela. - Nada de comprimidos.
- Porque não?
- Porque é muito fácil enganarmo-nos - disse ela. - Acabamos a fazer uma lavagem ao estômago, numa unidade de psiquiatria.
Por acaso, a ideia até lhe agradava.
- Então, qual é a alternativa?
- Há o envenenamento por monóxido de carbono - disse ela, e depois sorriu. - Mas provavelmente teria de usar o teu Jeep. E cortar os pulsos parece... deliberado.
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- Acho que o suicídio, em geral, é bastante deliberado - disse Chris.
- Pode doer - disse Emily, docemente. - Só quero que seja imediato.
Chris olhou para ela. "Antes que possas mudar de ideias", pensou ele, "ou eu possa mudá-las por ti."
- Estava a pensar numa arma - disse ela.
- Tu detestas armas.
- Bem, e que tem isso a ver com o assunto?
- Onde vais arranjar uma arma? - disse Chris. Emily olhou para ele.
- Talvez tu me arranjes - sugeriu ela. Ele levantou as sobrancelhas.
- Oh, não. Nem pensar.
- Por favor, Chris - disse ela. - Podias só dar-me as chaves do armário. Dizer-me onde estão as balas.
- Não vais suicidar-te com uma caçadeira - resmungou Chris.
- Estava a pensar na arma mais pequena. No Colt.
Viu-o erguer um muro, e teve um espasmo no peito. Chris já vira aquele olhar antes - os olhos bem abertos, resignada, encurralada a um canto - numa corça, no momento antes de a abater. E percebeu que agora Emily era assim, que só parecia estar feliz quando estava a planear a forma como ia morrer.
As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, causando um aperto na garganta dele e fazendo-o chorar, da mesma forma que, por vezes, o orgasmo dela desencadeava o seu.
- Costumavas dizer que farias qualquer coisa por mim - apelou Emily.
Chris olhou para as mãos deles, juntas por cima dos livros de estudo, e aceitou pela primeira vez que - por alguma razão - poderia falhar, que aquilo poderia realmente vir a acontecer.
- E farei - disse ele, com o coração a partir-se sob o peso da verdade.
Estavam sentados no escuro do cinema, de mãos dadas. O filme que tinham ido ver - Chris já nem se lembrava do título - acabara há muito. Os créditos já tinham passado, os outros espectadores já tinham saído. À sua volta, um ou dois funcionários tiravam embalagens de pipocas dos corredores, movendo-se num ritmo silencioso e fazendo os possíveis por ignorar o casal que ainda estava aconchegado nas últimas filas do cinema.
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Às vezes, tinha a certeza de que ia tornar-se num herói, e um dia ele e Emily achariam tudo aquilo muito engraçado. E outras achava que seria apenas o que prometera
a Emily ser: uma pessoa que estivesse lá para vê-la partir.
- Não sei o que vou fazer sem ti - sussurrou Chris.
Viu Emily virar-se para ele, com os olhos a brilharem no escuro.
- Podias suicidar-te comigo - disse ela, e engoliu, com a sugestão ainda a amargar-lhe na garganta.
Chris não respondeu, deixando propositadamente que ela se sentisse agoniada pela ideia. Pensou em silêncio: "O que te faz ter assim tanta certeza de que ficaríamos
juntos depois? Como sabes que será assim?"
- Porque... - disse Emily, tão claramente como se o tivesse ouvido. - Não consigo imaginar isso de outra forma.
Uma noite, foi à cave e tirou a chave da bancada de trabalho do pai. O armário de segurança para guardar as armas estava trancado, como sempre, por causa das crianças.
E não por causa de adolescentes como Chris, que já sabiam.
Abriu o armário e tirou o Colt, porque conhecia Emily suficientemente bem para ter a certeza de que a primeira coisa que ela ia pedir era para ver a pistola. Se
ele não a levasse, ela ia perceber que havia ali qualquer coisa e deixaria de confiar nele antes que tivesse oportunidade de impedi-la de se suicidar.
Ficou ali sentado, com o peso da arma nas mãos, a lembrar-se do cheiro acre do solvente Hoppe #9 e da forma como as mãos do pai, dotadas e precisas, esfregavam o
cabo e o cano com um pano de silicone. "Como a lâmpada do Aladino", pensara Chris uma vez, esperando magia.
Lembrava-se das histórias que o pai lhe contara sobre a arma, sobre Eliot Ness e Al Capone, sobre estabelecimentos ilegais e rusgas secretas e ginfizz de abrunhos.
Dissera a Chris que aquela arma fizera justiça.
Então lembrou-se da primeira vez que caçara veados, em que não conseguira acertar a matar. Chris e o pai seguiram o animal pelos bosques, onde jazia deitado de lado
respirando com grande dificuldade. "O que devo fazer?" perguntara Chris, e o pai erguera a espingarda e disparara. "Acabar com o sofrimento dele", dissera.
Chris estendeu a mão para o fundo do armário e tirou as balas para o .45. Emily não era nenhuma idiota; também pediria para vê-las. Fechou os olhos e obrigou-se
a imaginá-la a encostar o cano
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prateado à testa; a imaginar-se a levantar a mão para afastar a arma da cabeça dela, se chegasse a esse ponto.
Era egoísta, mas era simples: não podia deixar que Emily se suicidasse. Quando estamos com uma pessoa ao longo de toda a vida, não conseguimos imaginar viver num
mundo em que ela não esteja presente.
Impedi-la-ia. Sem dúvida.
E não pensou por que razão enfiara duas balas no bolso, em vez de apenas uma.
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PRESENTE
Maio de 1998
Gus estava sentada na cama a alisar os collants. "A seguir", pensou ela, sem ânimo, "as roupas." Entrou no roupeiro para ir buscar o vestido simples azul-marinho
e um par de sapatos de salto raso a condizer. Também usaria as pérolas - elegantes e discretas.
Não podia estar na sala de audiências. As testemunhas ficavam isoladas até prestarem o seu depoimento. Era muito provável que não fosse chamada a depor naquele dia, talvez nem sequer no dia seguinte. Estava a vestir-se devido à hipótese remota de poder ver Chris, mesmo que só de passagem.
Gus ouviu a água correr na casa de banho enquanto James fazia a barba. Era como se fossem a um jantar, ou a uma conferência com um dos professores das crianças. Só que não iam.
E, assim, James saiu da casa de banho e viu Gus sentada na cama de sutiã e collants, de olhos fechados e corpo curvado, respirando rápida e superficialmente como se estivesse a fugir há uma eternidade.
Melanie e Michael saíram de casa juntos. Os pés dela afundaram-se na terra mole, sujando os saltos. Abriu a porta do carro, e sem dizer uma palavra entrou.
Michael entrou na carrinha. Seguiu a mulher até Wood Hollow Road, olhando para a traseira do carro. Tinha duas luzes de travagem elevadas, uma de cada lado da ampla janela negra, e também uma longa fileira de luzes em baixo, no pára-choques do carro. Cada vez que Melanie carregava no travão, todas elas piscavam, como se o carro estivesse a sorrir.
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O gato de Barríe Delaney derrubou a caneca de café precisa mente quando ela devia sair para o tribunal.
- Merda, merda, merda - resmungou, empurrando o gato a miar para longe da porcaria e limpando o café com um pano da loiça. Não era suficiente, o café ainda estava a escorrer por baixo da mesa da cozinha. Barrie lançou um olhar rápido para o lava-loiça, decidindo que não tinha tempo para limpar aquilo.
Só alguns dias mais tarde é que viu que o café deixara uma mancha no chão de vinil branco, e que, ao longo dos próximos dez anos, ao entrar na cozinha lembrar-se-ia de Christopher Harte.
Jordan pousou a pasta em cima da bancada da cozinha. Depois virou-se para Thomas, com uma mão a alisar a gravata.
- Então? Thomas assobiou.
- Um espectáculo - disse ele.
- Estou com ar de quem vai ganhar?
- Estás com ar de quem vai lixá-los - exultou o filho. Jordan sorriu e deu uma palmada nas costas do filho.
- Cuidado com a língua - disse ele não muito a sério, e agarrou na caixa de Cocoa Krispies, ficando desanimado. - Oh, Thomas. Não me digas - franziu as sobrancelhas ao olhar para os cantos escuros e vazios da caixa de cereais.
Thomas, de boca cheia, ficou de boca aberta.
- Já não há? Juro, pai, pensava que ainda havia.
Todas as manhãs antes de um julgamento, Jordan comia Cocoa Krispies. Era uma superstição patética, tinha tanto fundamento como o facto de um jogador de basebol que não se barbeava para obter vitórias consecutivas, ou um jogador de cartas com uma pata de coelho cosida por dentro do forro do casaco. Mas era uma superstição, caramba, e resultava. Se comesse os Krispies, ganhava o julgamento.
Thomas remexeu-se sob o olhar ameaçador do pai.
- Podia ir a correr comprar outros - sugeriu. Jordan soltou um grunhido de desdém.
- Em que veículo?
- Na minha bicicleta.
- Então ias voltar a tempo de... oh, talvez de almoçar -Jordan abanou a cabeça. - Quem me dera - disse ele, tentando não perder a calma - que, de vez em quando, pensasses antes de agir.
Thomas ficou a olhar para a taça.
- Podia ir ali ao lado pedir à Sr.a Higgins.
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A Sr.a Higgins tinha pelo menos setenta e cinco anos. Jordan duvidava muito que os Cocoa Krispies fossem um artigo essencial na sua dispensa.
- Esquece - disse ele, irritado, tirando um scone do frigorífico.
- Já é tarde.
Era estranho, vestir um fato. Um guarda trouxera a Chris as roupas juntamente com o pequeno-almoço; o casaco e as calças que não via desde a acusação formal há sete meses. Lembrou-se de quando ele, Em e a mãe foram comprar o fato. A loja cheirava a dinheiro e a tecidos de lã. Estava dentro do gabinete de provas, aos saltos para vestir as calças, enquanto Em e a mãe conversavam sobre gravatas, as vozes delas a atravessarem a porta como o chilrear dos tentilhões.
- Harte - disse um guarda, à porta da cela. - São horas de ir embora.
Atravessou o recinto de fato, com gotas de suor nas têmporas, consciente do silêncio conspícuo dos ocupantes das outras celas. Afectava-os demasiado, era só isso. Era impossível ver alguém dirigir-se para o julgamento sem pensar no que podia acontecer futuramente.
Quando a pesada porta voltou a trancar-se atrás dele, o guarda conduziu-o a um delegado do xerife, um dos vários que estavam posicionados no Tribunal do Condado de Grafton.
- Dia importante - disse ele, algemando Chris e depois prendendo as algemas a uma corrente à cintura. Ficou à espera que o guarda destrancasse a porta principal da prisão e levasse Chris lá para fora, com uma das mãos a agarrar-lhe o braço com firmeza.
Era a primeira vez, em sete meses, que Chris estava lá fora, limitado apenas pelas montanhas e pela faixa ociosa do rio Connecticut. A quinta ao lado da prisão tresandava a estrume. Respirou fundo e ergueu o rosto, com o sol a incidir-lhe nas faces e na cana do nariz, os joelhos a cederem sob o peso hesitante da liberdade.
- Vamos - disse o delegado impaciente, puxando-o na direcção do tribunal.
A sala de audiências estava conspicuamente vazia, com a maior parte das pessoas envolvidas no drama isoladas por serem futuras testemunhas. James estava rigidamente sentado na fila de assentos mesmo por trás da mesa da defesa. Jordan, que chegara alguns minutos adiantado, estava a falar com um colega, com o pé
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apoiado numa cadeira. Parou de falar quando a porta lateral se abriu, e James seguiu o olhar dele para ver Chris ser conduzido para dentro da sala.
Um oficial de justiça conduziu Chris à mesa da defesa. James sentiu um aperto na garganta ao ver o filho e, antes de poder evitar debruçou-se por cima da divisória
para tentar tocar no braço de Chris.
Chris estava mesmo à frente de James, mas a trinta centímetros de distância.
"Fizeram isto assim", pensou James, "de propósito."
- Não me parece - gritava Jordan, apontando para as algemas, que eram horríveis, mas previsíveis. Na verdade fora Jordan que mencionara o assunto aos Harte, por isso James não percebia por que estaria ele tão surpreendido. Gesticulava desvairadamente, dirigindo-se a passos largos para o gabinete do juiz, juntamente com a promotora de justiça.
Chris virou-se na cadeira.
- Pai - disse ele.
James voltou a estender a mão. Pela primeira vez na vida ignorou completamente uma sala inteira cheia de pessoas a observarem. Passou as pernas por cima da divisória, sentando-se na cadeira que Jordan desocupara. Depois abraçou o filho, envolvendo-o com o corpo de forma que os jornalistas e os espectadores que entravam na sala para fitar o arguido nem conseguiram perceber que ele estava acorrentado.
No gabinete do juiz, Jordan explodiu.
- Por amor de Deus, meritíssimo - disse ele. - Já agora, por que não lhe fazemos umas rastas e lhe deixamos crescer a barba e... caramba, vamos fazer-lhe uma tatuagem na testa como os skinheads para que o júri forme realmente uma opinião parcial ainda antes de começar o julgamento!
Barrie revirou os olhos.
- Meritíssimo, está perfeitamente dentro dos precedentes que um alegado homicida seja levado a julgamento algemado.
Jordan ripostou:
- O que acha que ele vai fazer? Apunhalar uma pessoa até à morte com uma caneta Bic? - virou-se para o juiz. - A única razão para as correntes, como todos sabemos, é levar as pessoas a pensarem que ele é perigoso.
- Ele é perigoso - fez notar Barrie em voz baixa. - Matou uma pessoa.
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- Deixe isso para o júri - resmungou Jordan entre dentes.
- Meu Deus - disse Puckett, cuspindo uma casca de amêndoa para a mão. - Será por isto que devo esperar ansiosamente?
- as pálpebras fecharam-se enquanto esfregava as têmporas. Pode haver precedentes, Dr.a Delaney, mas vou arriscar e pressupor que o Chris Harte não está a pensar em ceder a nenhum impulso assassino. O arguido pode ficar sem algemas ao longo do julgamento.
- Obrigado, meritíssimo - disse Jordan.
Barrie virou-se, batendo com o ombro no de Jordan ao dirigir-se para a porta.
- Deve ter uma defesa bastante fraca - sussurrou ela -, para estar já a implorar favores ao juiz.
Jordan sorriu confiante para Chris, que ainda esfregava os pulsos.
- Isto - disse ele, acenando para Chris recentemente liberto -, é um excelente sinal.
Chris não conseguia perceber bem porquê, visto que até um verdadeiro assassino teria de ser um perfeito idiota para atacar alguém no meio de um tribunal. Ele sabia e Jordan sabia - caramba, toda a gente sabia - que só o tinham trazido algemado para o privarem da sua dignidade.
- Não olhes para a promotora de justiça - prosseguiu Jordan.
- Ela vai dizer coisas horríveis, pode-se fazer isso num discurso introdutório. Ignora-a.
- Ignoro-a - repetiu Chris obedientemente, e, depois, um tipo escanzelado com uma maçã-de-adão do tamanho de um ovo mandou toda a gente levantar-se.
- O Ilustre Leslie F. Puckett vai presidir - anunciou, e um homem com uma toga esvoaçante entrou por uma porta lateral, partindo qualquer coisa com os dentes de forma audível.
- Sentem-se - disse o juiz, abrindo um documento. Tirou uma amêndoa de um boião largo e quadrado que tinha à sua frente e sorveu-a por entre os lábios, como krill
a entrar pelas barbas de uma baleia. - A acusação pode começar - disse ele.
Barrie Delaney levantou-se e virou-se para o júri.
- Senhoras e senhores - disse ela. - Chamo-me Barrie Delaney e estou aqui para representar o Estado do New Hampshire. Quero agradecer-vos a todos por aceitarem desempenhar uma tarefa muito importante. Os doze estão aqui presentes para garantirem que seja feita justiça nesta sala de audiências. E, neste caso, justiça significa
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declararem aquele homem - levantou um dedo e apontou -, Christopher Harte, culpado de homicídio.
"Sim, homicídio. Parece chocante, e talvez ainda vos pareça mais chocante por estar a indicar-vos um jovem bem-parecido. Aposto que até estarão a pensar: "Ele não parece um assassino." virou-se para examinar Chris juntamente com os membros do júri. Ele parece... bem, um rapaz de um colégio particular. Não se enquadra na imagem de assassino de Hollywood. Mas, senhoras e senhores, não estamos em Hollywood. É a vida real, e na vida real, Christopher Harte matou Emily Gold. Antes do fim deste julgamento, vão ficar a saber realmente quem o arguido é, debaixo daquele casaco elegante e daquela linda gravata azul: um assassino frio e calculista.
Lançou um olhar a Jordan.
- A defesa vai tentar jogar com as vossas emoções, e dizer-vos que se tratou de um duplo suicídio que não chegou a concretizar-se. Não foi isso que aconteceu. Deixem-me dizer-vos o que aconteceu realmente - virou-se, com as mãos apoiadas na balaustrada do lugar do júri, dirigindo a atenção para uma senhora idosa de cabelos azulados com um vestido de algodão às flores. - Na noite de sete de Novembro, às seis da tarde, Christopher Harte foi ao armário de segurança das armas, na cave de sua casa, e tirou um revólver Colt .45 meteu-o no bolso do casaco e foi buscar a namorada, Emily. Levou-a para o carrossel em Tidewater Road. O arguido também levou bebidas alcoólicas. Ele e Emily beberam, tiveram relações sexuais e, depois, ainda com Emily nos braços, o arguido sacou da arma. Após uma breve luta, Christopher Harte encostou o cano daquele revólver à têmpora direita de Emily e alvejou-a.
Fez uma pausa, deixando que o discurso fosse assimilado.
- Senhoras e senhores, vão ouvir a detective Anne-Marie Marrone. Ela irá dizer-vos que temos a arma, coberta de impressões digitais do arguido. Irão ouvir o médico legista do condado dizer que o ângulo do ferimento torna virtualmente impossível que Emily tivesse ela própria carregado no gatilho. Irão ouvir uma empregada de joalharia da cidade dizer que Emily comprou um relógio de quinhentos dólares para oferecer a Chris no dia do seu aniversário, no mês a seguir à sua morte. E tanto uma amiga de Emily como a mãe vão dizer-vos que ela não estava a pensar em suicidar-se.
"Também irão ficar a saber qual o motivo de Christopher Harte: Por que razão haveria ele de ter matado a namorada. Compreendem, senhoras e senhores, é que Emily estava grávida de onze semanas - perante o arquejo silencioso de um jurado, Barrie
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escondeu um sorriso. - Este jovem tinha grandes planos para o futuro e não precisava que um bebé ou uma namoradinha do liceu os arruinasse, por isso resolveu, de forma bastante literal, "livrar-se do problema".
Afastou-se do lugar do júri.
- O arguido é acusado de homicídio qualificado. Uma pessoa é culpada de homicídio qualificado quando causa propositadamente a morte a outra, e quando os seus actos para atingir esse objectivo são premeditados e deliberados. Christopher Harte matou Emily Gold propositadamente? Sem dúvida. Os seus actos naquela noite foram premeditados e deliberados? Sem dúvida - virou-se apoiada no calcanhar, imobilizando Chris com os olhos verdes frios. - Na Bíblia, senhoras e senhores, o Diabo surge sob um grande número de disfarces. Não se deixem enganar por este último.
- Que belo discurso. A Dr.a Delaney fez um óptimo trabalho, não fez? - Jordan levantou-se e dirigiu-se prazenteiramente para o júri. - Infelizmente, só tinha razão numa coisa: o facto de Emily Gold... estar morta - abriu as mãos. - Isso é uma tragédia. E estou aqui para garantir que não vão deixar que aconteça outra tragédia: que não deixem que este jovem seja condenado por um crime que não cometeu.
"Imaginem por um instante a dor terrível de perder uma pessoa amada. Já lhe aconteceu a si - disse Jordan, olhando para a mesma senhora de cabelos azulados que Delaney tinha escolhido. - E a si disse ele a um criador de gado leiteiro, de rosto tão enrugado que parecia novamente esbatido. - Todos nós já perdemos alguém. E, recentemente, o Chris também perdeu. Lembrem-se de como se sentiram quando vos aconteceu, a dor, o sofrimento... agora imaginem o horror de serem acusados do homicídio dessa pessoa.
"O Estado afirma que Christopher Harte cometeu um homicídio, mas não foi isso que aconteceu. Ele quase cometeu suicídio. Viu a namorada suicidar-se e, depois, desmaiou antes de ele próprio poder suicidar-se.
"Todas as provas que o Estado referiu corroboram um duplo suicídio. Não vou aborrecer-vos com contradições. vou apenas pedir-vos agora que ouçam todas as testemunhas com muita atenção, e olhem para todas as provas com muita atenção... porque todas as provas de homicídio que o Estado está a utilizar foram distorcidas.
"Senhoras e senhores, para declarar o Chris Harte culpado de homicídio, terão de estar convencidos para além de qualquer dúvida razoável de que o cenário que a Dr.a Delaney vos descreveu
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é o cenário real. Mas é só isso de que o Estado dispõe: a descrição de um cenário - regressou à mesa da defesa e colocou a mão sobre o ombro do cliente. - Quando este julgamento estiver terminado, terão mais do que uma dúvida razoável e saberão que não se trata de homicídio. Emily Gold queria suicidar-se e Chris decidiu juntar-se a ela. Amava tanto a Emily que não valia a pena viver sem ela Jordan abanou a cabeça e virou-se para Chris. - Não é um crime, senhoras e senhores. É uma tragédia.
- A acusação chama a detective Anne-Marie Marrone ao banco das testemunhas.
Ouviu-se um ligeiro burburinho quando a primeira testemunha fez o juramento. Instalou-se com o à vontade de quem já estivera naquela situação anteriormente, de olhos postos no júri.
Anne-Marie Marrone vestia um fato negro simples; os cabelos estavam presos num carrapito na nuca. À excepção do coldre que se via debaixo do casaco, era fácil esquecer que era polícia.
Barrie Delaney caminhou em frente ao banco das testemunhas.
- Por favor diga o seu nome e morada diante do tribunal - a detective obedeceu, e Barrie acenou com a cabeça. - Pode dizer-nos qual é a sua profissão?
- Sou detective-sargento da polícia de Bainbridge.
- Há quanto tempo trabalha aqui?
- Há dez anos - sorriu. - Faz dez anos em Junho.
Houve uma breve troca de palavras sobre a formação dela, o trabalho na academia de polícia e a sua experiência policial. Então Barrie parou de andar de um lado para
o outro, colocando a mão na balaustrada do banco das testemunhas.
- Quem era responsável pela investigação da morte de Emily Gold?
- Era eu - disse a detective.
- Determinou a causa da morte?
- Sim. Um ferimento de bala na cabeça.
- Então houve uma arma envolvida neste caso.
- Um Colt .45.
- E conseguiu recuperar essa arma? Anne-Marie acenou com a cabeça.
- Estava no local do crime - disse ela. - No carrossel recolhemos a arma e submetemo-la a uma série de testes de balística.
- Esta é a arma que recolheram no local do crime? - perguntou Barrie, segurando no Colt .45.
- É sim - disse a detective Marrone.
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- Meritíssimo - disse Barrie -, gostaria de registá-la como Prova A - continuou com o procedimento habitual, mostrando a arma a Jordan, que a afastou com um gesto de rejeição. Depois virou-se novamente para a detective. - Determinou a origem da arma?
- Sim. Localizámos o proprietário, James Harte.
James, atrás da mesa da defesa, ficou sobressaltado ao ouvir o
seu nome.
-James Harte - disse a promotora de justiça. -É da família do arguido?
- Objecção - gritou Jordan. - Relevância?
- vou permitir - disse o juiz.
A detective olhou para o juiz e, depois, para Barrie Delaney.
- É pai dele.
- Teve oportunidade de entrevistar James Harte?
- Tive. Ele disse que a arma era uma peça de colecção, mas que ainda a usava para fazer tiro ao alvo. Também disse que o filho estava familiarizado com a arma, tinha acesso a ela e também a usava para fazer tiro ao alvo.
- Pode falar-nos nos testes que realizaram na arma? A detective Marrone mudou de posição na cadeira.
- Bem, determinámos que foi disparada uma bala, que penetrou na têmpora da vítima, saiu da cabeça e ficou alojada na madeira do carrossel. Encontrámos o cartucho dessa bala ainda na câmara da arma, bem como a segunda bala que não foi disparada. As impressões digitais do Christopher Harte estavam em ambas as balas.
Barrie apontou.
- Ao referir-se a Christopher Harte, está a referir-se ao arguido.
- Estou - confirmou a detective Marrone.
- Mmm - Barrie virou-se para o júri, como se estivesse a reflectir sobre este facto favorável pela primeira vez. - Então as impressões digitais dele estavam em ambas as balas. Encontrou as impressões digitais de mais alguém nas balas?
- Não.
- E na sua opinião de especialista, o que é que isso sugere?
- Ele foi a única pessoa que tocou nas balas.
- Compreendo - disse Barrie. - A arma foi submetida a mais algum teste?
- Sim, realizou-se um teste padrão de balística em busca de impressões digitais na própria arma. Encontrámos as impressões digitais de Christopher Harte e Emily Gold na arma. Mas as impressões digitais do Sr. Harte encontram-se em toda a arma. As impressões digitais da vítima estão apenas no cano.
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- Pode demonstrar-nos o que disse? - perguntou Barrie, agarrando no Colt, com a sua nova etiqueta de prova.
A detective agarrou na arma com facilidade.
- As impressões digitais do Sr. Harte estavam aqui, aqui e aqui
- disse ela, apontando. - As impressões digitais da Emily Gold encontravam-se apenas nesta zona.
Passou a unha pelo cano de metal contundente.
- Mas para disparar esta arma, detective Marrone, teria de colocar a mão onde? - ficou à espera que Anne-Marie indicasse o cabo da arma. - E as impressões digitais da Emily Gold não estavam aí.
- Não.
- Mas as do Sr. Harte estavam.
- Objecção - disse Jordan ociosamente. - Foi perguntado e respondido.
- Deferido - disse Puckett. Barrie virou as costas a Jordan.
- Foram realizados mais testes no local do crime?
- Sim. Fizemos um teste de Luminol, um spray fluorescente que detecta padrões de salpicos de sangue. Baseando-nos nisso, bem como no ângulo da bala que acabou por se alojar no carrossel, deduzimos que Emily Gold estava de pé quando a bala foi disparada, e que mais outra pessoa estava de pé muito perto e ligeiramente em frente dela. Também sabemos que ficou deitada de costas a sangrar durante vários minutos antes de ser colocada na posição em que os agentes a encontraram quando chegaram ao local do crime.
- Qual era?
- A sangrar profusamente, com a cabeça no colo do arguido.
- E o Luminol detectou mais alguma coisa?
- Sim. Uma grande mancha não relacionada com o padrão de salpicos de sangue do ferimento de bala, onde o arguido supostamente bateu com a cabeça.
- Objecção -Jordan fez um gesto indicando Chris. - Gostariam de ver a cicatriz?
Puckett lançou um olhar calculado a Jordan.
- Continue, Dr.a Delaney - disse ele.
- Através dessa mancha, será possível determinar como ou porquê o arguido caiu? - perguntou Barrie.
- Não - disse a detective. - Apenas demonstra que ele ficou ali deitado imóvel durante cerca de cinco minutos, a sangrar.
- Compreendo. Mais testes?
- Havia resíduos de pólvora em ambas as vítimas e nas roupas
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do arguido. Também realizámos testes no cadáver à procura de resíduos de pólvora nos dedos.
- E o que apuraram?
- Não havia resíduos de pólvora nos dedos de Emily Gold.
- Num suicídio, com a vítima a segurar na arma ao suicidar-se, é normal encontrar-se resíduos de pólvora nas mãos?
- Sem dúvida. Foi por isso que comecei a pensar que a Emily Gold não se tinha suicidado.
Barrie ficou em silêncio durante um momento, avaliando os rostos do júri. E agora tinha-os na mão. Os doze estavam sentados na beira dos assentos; vários tomavam notas cuidadosas nos blocos fornecidos.
- Encontraram mais alguma coisa no local do crime?
- Encontrámos uma garrafa de Canadian Club. Uma bebida alcoólica.
- Ah... consumo de bebidas alcoólicas por menores - disse Barrie, sorrindo.
A detective também sorriu.
- Na altura essa não foi a minha maior preocupação. Ao ouvir isto, Jordan objectou.
- Meritíssimo - disse ele -, não reparei que tivesse sido feita alguma pergunta.
Puckett fez rolar uma amêndoa com a língua, entalando-a cuidadosamente na bochecha.
- Tenha cuidado, doutora - avisou Barrie.
- Havia alguma coisa relevante no relatório da autópsia? Anne-Marie acenou com a cabeça.
- A vítima estava grávida de onze semanas.
A promotora de justiça levou a detective a falar sobre as entrevistas que fizera aos amigos de Emily Gold, aos vizinhos - com uma excepção flagrante, os pais, os professores.
- Detective Marrone, também teve oportunidade de falar com o arguido? - Barrie fez questão de olhar Anne-Marie nos olhos. A detective era boa, uma profissional, mas fora previamente avisada para não referir a conversa que tivera com Chris no hospital. Por ter sido declarada inadmissível em tribunal, mencioná-la podia invalidar o julgamento.
- Tive, sim. Ele veio à esquadra da polícia no dia onze de Novembro. Li-lhe os direitos, e ele renunciou a eles.
- Este é o relatório da polícia com a transcrição da conversa de onze de Novembro? - a promotora de justiça mostrou um documento, com o logotipo da polícia de Bainbridge.
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- É sim - disse a detective.
- Escreveu este relatório quanto tempo depois da sua conversa com o Christopher Harte, detective?
- Logo após ele ter ido embora.
- Qual foi o tema principal dessa conversa?
- O Sr. Harte basicamente disse-me que levou a arma para o local do crime, dirigiu-se para o local do crime e viu a Emily Gold suicidar-se.
- Isso coaduna-se com as provas que observou? -Não.
- Porquê?
A detective Marrone inclinou a cabeça, olhando para Chris. Ele sentiu as faces ruborizarem-se, e obrigou-se a manter um olhar firme e directo.
- Se fosse apenas uma dessas coisas, em vez de todas... se fosse só a bala que atravessou a cabeça da vítima num ângulo bizarro...
- Objecção!
- Ou se o pulso dela tivesse equimoses, mas tudo o resto parecesse corroborar um suicídio...
- Objecção!
- ... ou até se uma pessoa dissesse que ela estava perturbada. Mas havia demasiadas coisas que não se encaixavam.
- Objecção, meritíssimo!
O juiz olhou para Jordan de olhos semicerrados.
- Indeferida - disse ele.
Barrie tinha o coração aos saltos.
- Por isso não se tratou de suicídio, na sua opinião de especialista, apesar daquilo que o arguido lhe disse. Depois de ter observado as provas, as impressões digitais, os padrões de salpicos de sangue, os resíduos de pólvora, a garrafa de bebida, as entrevistas, formou uma teoria alternativa relativamente ao que aconteceu?
- Sim - disse a detective Marrone numa voz firme. - O Christopher Harte assassinou-a.
- Como chegou a essa conclusão?
Anne-Marie começou a falar para si própria, pintando um quadro que pairava na sala de audiências como uma tapeçaria, rica em pormenores e impossível de ignorar.
- A Emily era uma rapariga alegre que ninguém, nem os professores, nem os pais, nem os amigos, consideravam de modo nenhum deprimida. Era bonita, popular, tinha uma óptima relação com os pais: era uma filha modelo. Estava grávida de onze semanas,
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do namorado. E Chris estava no último ano do liceu, prestes a ir para a universidade, já estava a apresentar as candidaturas: estava sem dúvida numa altura em que não precisava de ter um bebé na sua vida, nem de uma namorada agarrada a ele.
Jordan ponderou em objectar - tudo aquilo era especulativo -, mas apercebeu-se de que isso só ia prejudicá-lo e fazer o testemunho da detective assumir uma importância maior do que desejava. Suspirou de forma audível, na esperança de transmitir ao júri como achava a teoria de Marrone ridícula.
A detective baixou a voz e o júri inclinou-se para a frente para ouvir.
- Por isso combinou irem ao carrossel para uma espécie de encontro amoroso. Ofereceu-lhe uma bebida, tentando embriagá-la para que não se debatesse quando ele sacasse da arma. Tiveram relações sexuais, vestiram-se, ele abraçou-a, e quando ela deu por isso, tinha uma arma encostada à cabeça - Anne-Marie levou a mão à têmpora e depois baixou-a. - Ela debateu-se, mas ele era muito maior e mais forte do que ela, e alvejou-a. Foi isso - disse ela, suspirando - que acho que aconteceu.
Barrie voltou a dirigir-se para a sua mesa, quase pronta para liberar a testemunha.
- Obrigada, detective. Uma última pergunta. Apurou mais alguma coisa importante através da sua entrevista com o Christopher Harte na esquadra da polícia?
Anne-Marie acenou com a cabeça.
- Ele teve de assinar um papel a aceitar ser entrevistado, faz parte dos procedimentos normais. E agarrou na caneta com a mão esquerda. Por isso perguntei-lhe e ele disse-me que realmente era canhoto.
- E por que é que isso é importante, detective?
- Porque através do percurso da bala e do padrão de salpicos de sangue sabemos que estava lá outra pessoa, em frente da Emily. E se essa pessoa a alvejou na têmpora
direita, teve de fazê-lo com a mão esquerda.
- Obrigada - disse Barrie. - Não tenho mais perguntas.
Quando Jordan se levantou para o primeiro contra interrogatório, sorriu para Anne-Marie Marrone.
- Detective - disse ele -, todos a ouvimos dizer à Dr.a Delaney que já está na polícia há dez anos. Dez anos - assobiou. - É muito tempo para estar na função pública.
Anne-Marie acenou com a cabeça, demasiado inteligente e demasiado experiente para relaxar, como Jordan pretendia.
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- Gosto do que faço, Dr. McAfee.
- Gosta? - disse Jordan, com um grande sorriso. - Eu também.
- no lugar do júri, alguém soltou um riso abafado. - Em dez anos, detective, quantos homicídios investigou?
- Dois.
- Dois - repetiu Jordan. - Dois homicídios. - Franziu a testa. Este é o segundo?
- Exactamente.
- Por isso investigou apenas um antes deste?
- Sim.
- Bem, então porque foi escolhida para conduzir a investigação? As faces de Anne-Marie ruborizaram-se.
- É uma esquadra pequena - disse ela -, e eu sou a detective principal. Compete-me a mim.
- Então. É o seu segundo homicídio - disse ele, sublinhando a completa falta de especialização da especialista. - E começou por examinar a arma. Não é verdade?
-É.
- E encontrou nela dois conjuntos de impressões digitais.
- Sim.
- E encontrou duas balas.
- Sim.
- Mas se uma pessoa fosse alvejá-la de muito perto, não ia precisar de duas balas, pois não?
- Depende - disse a detective.
- Percebo que não está muito habituada a isto, detective - disse Jordan -, mas basta responder sim ou não.
Viu Anne-Marie cerrar os maxilares.
- Não - disse entre dentes.
- Por outro lado - Jordan continuou animadamente -, não faria sentido precisar de duas balas, se estivesse a planear cometer um duplo suicídio com uma amiga?
- Sim.
- E as balas continham as impressões digitais do Chris?
- Sim.
- O facto de as balas conterem apenas as impressões digitais do Chris corrobora um duplo suicídio, visto que o próprio Chris admitiu que a arma pertencia ao pai e que ele é que a trouxera?
- Sim.
- Na realidade, não seria invulgar ver as impressões digitais da Emily nas balas que foram introduzidas na câmara, visto que ela não tinha experiência nenhuma com armas?
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- Acho que sim.
- Óptimo. Também disse à Dr.a Delaney que submeteu aquela arma a alguns testes.
- Precisamente.
- Foram encontradas as impressões digitais da Emily na arma, juntamente com as do Chris, não foram?
- Foram.
- Não é verdade que foram encontradas mais impressões digitais na arma?
- Sim. Algumas que coincidiam com as de James Harte, o pai do arguido.
- Exacto. Mas ele não esteve sob suspeita ao longo da sua investigação.
Anne-Marie suspirou.
- Porque as impressões digitais constituíam a única prova que o colocava no local do crime.
- Por isso não pode confiar unicamente nas impressões digitais, pois não? O simples facto de as impressões digitais de alguém estarem presentes numa arma não significa que essa pessoa lhe tivesse tocado naquela noite em particular?
- Exactamente.
- Ah. Foram encontradas as impressões digitais da Emily na parte de cima da arma - disse Jordan, dirigindo-se ao escaparate com as provas. - Há alguma objecção em que eu agarre nela? - perguntou, indicando o Colt. Pegou-lhe cuidadosamente. - E foram encontradas as impressões digitais do Chris nesta zona, na parte de baixo.
- É verdade.
- Mas não foram encontradas impressões digitais conclusivas no gatilho da arma.
- Não, não foram encontradas.
Jordan acenou com a cabeça pensativamente.
- É verdade que é apenas necessário meio centímetro de impressão digital, realmente uma área muito pequena, para estabelecer uma correspondência conclusiva?
- Bem, sim - disse Anne-Marie -, mas tem de ser o meio centímetro certo. Um sítio em particular.
- Então as impressões digitais não são assim tão fáceis de tirar, parece, como nos filmes?
- Não, não são.
- Podem ficar esborratadas devido a impressões digitais mais recentes?
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- Sim.
- Na verdade, detective, procurar impressões digitais está longe de ser uma ciência exacta, não acha?
- Sim.
- Se eu agarrar nesta arma e disparar e, depois a detective agarrar nela e disparar, é possível que as minhas impressões digitais não apareçam no gatilho?
- É possível.
- Deixe-me recapitular: embora as impressões digitais da Emily não tivessem sido identificadas no gatilho durante os testes, detective Marrone, pode dizer sem a
menor dúvida que ela nunca tocou no gatilho?
- Não, mas por outro lado o Chris também poderia ter-lhe tocado sem deixar marcas - sorriu para Jordan.
Jordan inspirou.
- Falemos no Luminol - disse ele. - Disse que o padrão de salpicos de sangue no carrossel indicava um lugar onde o arguido sangrou.
- Presumo que sim. Estava a sangrar de uma ferida no couro cabeludo quando os agentes chegaram.
- No entanto diz que isso não prova que Chrís tenha desmaiado. Então afirma - disse com desprezo -, que o Chris se deitou no chão do carrossel, bateu com a cabeça na beira e, depois, ficou ali estendido durante vários minutos até que se formasse uma poça de sangue?
Anne-Maríe lançou-lhe um olhar superior. -Já tem acontecido.
- A sério? - perguntou Jordan, verdadeiramente surpreendido.
- Presumo que tenha acontecido no seu anterior caso de homicídio?
- Objecção! - disse Barrie.
- Deferido - Puckett lançou um olhar ameaçador a Jordan. Não preciso de avisá-lo, Dr. McAfee.
Jordan dirigiu-se à mesa onde se encontravam as provas.
- Esta é a transcrição da sua entrevista com o Chris Harte? -É.
- Pode ler esta linha... aqui? - levou os papéis à detective e apontou.
Anne-Marie pigarreou.
- "íamos suicidar-nos juntos."
- É uma citação directa de uma frase que Chris lhe disse? -É.
- Ele disse-lhe abertamente que se tratava de um duplo suicídio?
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- Sim, disse.
- E pode dizer-me o que está aqui escrito, na página três? A detective olhou para Barrie Delaney.
- Houve uma pausa na gravação.
- Hmm. Porquê?
- Desliguei o gravador porque o suspeito estava a chorar.
- O Chris estava a chorar? Porquê? Anne-Marie suspirou.
- Estávamos a falar sobre a Emily e ele ficou muito perturbado.
- Na sua opinião de especialista, isso corrobora um desgosto verdadeiro?
- Objecção - disse Barrie. - A minha testemunha não é especialista em desgosto.
- vou permitir - disse o juiz.
A detective encolheu os ombros.
- Acho que sim - disse ela.
- Então deixe-me esclarecer uma coisa. A meio desta entrevista, uma entrevista em que Chris Harte renunciou ao direito de que eu estivesse presente e disse, sem rodeios, que ele e Emily se iam suicidar, começou a chorar tanto que teve de desligar o gravador?
- Sim - disse Anne-Marie com determinação. - Mas também não estava ligado a um detector de mentiras.
Jordan não demonstrou sinais de a ter ouvido.
- Referiu que na sua teoria, Chris estava a tentar embriagar Emily.
- Sim, estou convencida disso.
- Para que ela ficasse submissa - esclareceu Jordan.
- Exactamente.
- Por acaso, pediu ao médico legista que verificasse a taxa de alcoolemia da Emily?
- Isso é feito automaticamente - disse a detective.
- Descobriu qual era?
- Sim - disse ela com ressentimento. - 0,02.
- O que demonstra isso, detective? Anne-Marie tossiu.
- Que tomou uma bebida. Talvez um shot, no caso de uma rapariga pequena.
- Ela tomou apenas um shot da garrafa inteira?
- Parece que sim.
- E qual é a taxa legal para poder conduzir neste estado, detective?
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- 0,08.
- Qual era a da Emily, podia repetir?
- Já lhe disse - respondeu Anne-Marie. - 0,02.
- Consideravelmente menos do que o limite legal para conduzir sob o efeito de álcool. Diria que ela estava embriagada?
- Provavelmente não.
- Referiu vestígios de pólvora nas roupas da Emily e do Chris
- disse Jordan. - Não é verdade que o facto de encontrar resíduos de pólvora na camisola apenas prova que o tecido esteve em contacto próximo com a arma disparada?
- É verdade.
- Pode determinar quem disparou realmente a arma através dos resíduos de pólvora?
- Não de forma conclusiva. Mas também não encontrámos resíduos de pólvora nas mãos da vítima. E quem comete suicídio costuma ter alguns vestígios de pólvora na pele.
Jordan aproveitou a deixa.
- Numa investigação de homicídio costuma cobrir-se as mãos da vítima com um saco de plástico de imediato?
- Normalmente sim, mas...
- Quando é que o cadáver foi submetido a um teste em busca de resíduos de pólvora?
Anne-Marie olhou para o colo.
- No dia nove de Novembro.
- Está a afirmar que não foram realizados testes às mãos de Emily no local do crime, e que não foram realizados testes a caminho do hospital e que nem sequer foram realizados testes na morgue, até dois dias após a sua morte? É possível que durante esse período de tempo, alguém tenha interferido com as mãos de Emily?
- Bem, eu...
- Sim ou não?
- É possível - disse Anne-Marie.
- Alguém poderia ter tocado nas mãos da Emily durante o percurso do local do crime para o hospital?
- Sim.
- Profissionais de saúde ou agentes fardados?
- Qualquer um dos casos seria possível.
- Nas urgências do hospital, alguém podia ter-lhe tocado nas mãos?
- Sim.
- Por exemplo, enfermeiras ou médicos?
- Suponho que sim.
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- Nas urgências é possível que a tenham limpado com gaze, visto não terem recebido instruções para não o fazerem?
- Sim - disse a detective.
- Por isso várias pessoas podiam ter interferido com provas importantes antes de estas serem recolhidas das mãos da Emily? resumiu Jordan.
- Sim - admitiu Marrone.
- Também não seria normal numa investigação de homicídio submeter imediatamente as mãos do suspeito a testes em busca de resíduos de pólvora?
- Faz parte dos procedimentos normais.
- Quando viu o Chris pela primeira vez, no local do crime, examinou as mãos dele em busca de resíduos de pólvora?
- Bem, não. Mas nessa altura ele não estava directamente sob suspeita.
Jordan abriu muito os olhos.
- A sério, detective Marrone? Ele não era suspeito quando a polícia chegou ao local do crime?
- Não.
- Então quando é que percebeu que ele era suspeito?
- Objecção! - gritou Barrie.
- Doutor, é melhor reformular a sua pergunta - disse Puckett secamente.
- vou prosseguir. Submeteu-o a alguns testes no hospital? insistiu Jordan.
- Não.
- Submeteu-o a alguns testes no dia a seguir, quando procurou reunir mais informações?
- Não.
- Submeteu o Chris a alguns testes quando ele foi à esquadra da polícia para aquela entrevista?
- Não.
Jordan soltou um grunhido de desdém.
- Então ele nunca foi submetido a nenhum teste em busca de resíduos de pólvora, nem no início, quando ainda não era suspeito, nem depois, quando decidiu que ele era um assassino?
- Ele nunca foi submetido a nenhum teste.
- Não será possível que, se tivesse conseguido submeter as mãos de Emily a um teste antes de alguém poder interferir, tivesse encontrado resíduos de pólvora nelas?
- É possível.
- E isso indicaria que ela disparara a arma.
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- Sim, indicaria - disse Anne-Marie.
- E se submetesse as mãos do Chris a um teste em busca de resíduos de pólvora ali mesmo no local do crime, também poderia não os ter encontrado?
- É verdade.
- E isso indicaria que ele não tinha disparado a arma?
- Exactamente.
"E assim nenhum de nós teria de estar aqui." Jordan não precisava de dizer as palavras. Dirigiu-se para o compartimento do júri, ficando de pé numa das pontas, como se fosse um dos membros.
- Muito bem, detective. A sua teoria afirma que o Chris estava no local do crime. Carregou a arma com duas balas no caso de falhar da primeira vez, a milímetros de distância. Tentou embebedar a Emily sem conseguir, teve relações sexuais com ela e foi buscar a arma. A Emily viu-o agarrar na arma, lutaram e, depois, ele disparou sobre ela. Acredita realmente que foi isto que aconteceu?
- Sim, acredito.
- Não tem a mínima dúvida?
- Nenhuma.
Jordan aproximou-se mais do banco das testemunhas.
- O facto de haver duas balas na arma naquela noite não podia implicar um duplo suicídio?
- Bem...
- Não podia?
- Podia - suspirou Anne-Marie.
- E o Canadian Club não podia lá estar para suavizar uma tentativa de suicídio?
- Talvez.
- E não podiam existir impressões digitais naquela arma que não estivessem no sítio certo, ou suficientemente nítidas, para serem identificadas por aquele seu teste?
- Sim.
- E um outro teste para encontrar resíduos de pólvora, um teste que por alguma razão não foi realizado, não poderia mostrar que o Chris Harte não disparou aquela arma?
- Talvez.
- Então afirma, detective, que na sua opinião de especialista, pode haver outra maneira de abordar esta questão.
Anne-Marie Marrone expirou pela boca.
- Sim - disse ela. Jordan virou-se de costas.
- Não tenho mais perguntas - disse.
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O júri - para não falar no juiz - estava a ficar de olhos vidrados; uma reacção bastante comum ao depoimento muito pormenorizado da polícia. O juiz Puckett anunciou um intervalo de dez minutos, durante o qual a sala de audiências ficou vazia.
Selena agarrou no braço de Jordan quando este regressava da casa de banho dos homens.
- Belo trabalho - elogiou-o. - O jurado cinco está na tua mão de certeza, e acho que o jurado sete também.
- Ainda é cedo.
- Mesmo assim - ela encolheu os ombros, esfregando-lhe levemente o braço. - Por outro lado, o teu cliente está completamente desmoralizado - fez um gesto indicando Chris, visível através da porta da sala de audiências. Chris ainda estava sentado à mesa da defesa, com dois oficiais de justiça e um delegado do xerife atrás dele, a vigiá-lo de braços cruzados, uma barreira física para evitar o contacto. - Acabou de passar uma hora a ouvir dizer que é um sociopata, e não há nem um rosto amigável
na sala de audiências.
Jordan olhou para Chris, com o corpo a curvar-se ligeiramente para cima da mesa.
- O pai dele está aqui - disse a Selena.
- Pois, mas ele não é propriamente o Ward Cleaver16. Jordan acenou com a cabeça e passou uma das mãos pelos
cabelos.
- Está bem - disse ele. - vou falar com ele.
- Devias ir. A menos que queiras que ele desmaie durante o testemunho do médico-legista.
Jordan riu.
- Pois. Provavelmente ia partir a cabeça nas rodinhas da cadeira da Barrie Delaney, e ela ainda ia arranjar maneira de fazer parecer que o Chris estava a fingir - Selena apertou-lhe ligeiramente o braço e Jordan voltou à sala de audiências. Acenou ao grupo que rodeava o seu cliente.
- Meus senhores - disse ele, sentando-se na cadeira e ficando à espera que desaparecessem.
- Está a correr bem - disse a Chris. - A sério. Para sua admiração, Chris riu.
16. Personagem de uma série cómica de televisão, Leave it to Beaver, que retratava uma típica família americana dos subúrbios nos anos 50. Ward Cleaver era o arquétipo
do pai de família responsável e compreensivo. (N. da T.)
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- Espero que sim - disse ele. - Porque parece-me um bocado cedo para admitir a derrota - depois o sorriso desvaneceu-se-lhe do rosto, revelando, como Selena dissera, a boca firmemente cerrada e a tez pálida de um adolescente muito assustado.
- Sabes - disse Jordan - sei que é difícil para ti estares a ouvir descreverem-te como um monstro. A promotora de justiça pode dizer tudo o que quiser... mas nós também. Só que ainda não chegou a nossa vez, e a nossa história é a melhor.
- Não é isso - Chris passou o dedo pelas linhas azuis de um bloco jurídico. - É que... a promotora de justiça está a tornar tudo real. Já se passaram sete meses, sabia? Mas com todos estes pormenores técnicos, e o sangue, e onde a Emily estava, e onde eu estava, e... - fez uma pausa, escondendo a cabeça nas mãos. - Ela está a fazer-me reviver tudo aquilo, e eu mal sobrevivi da primeira vez.
Jordan - que era capaz de arrasar qualquer testemunha da acusação com as suas palavras confiantes, que tinha milhares de respostas para qualquer uma das perguntas de Barrie Delaney - ficou a olhar para o cliente, sem saber o que dizer.
O médico-legista do condado de Grafton - chamava-se Dr. Jubal Lumbano, era um homem magro de óculos que parecia muito mais adequado a perseguir borboletas com uma grande rede do que a estar enfiado até aos cotovelos nas entranhas de um cadáver. Barrie Delaney demorou uns bons dez minutos a ler as credenciais do Dr. Lumbano para que ficassem registadas e para garantir que o júri soubesse que, pelo menos desta vez, a testemunha era experiente - o discreto Dr. Lumbano realizara mais de quinhentas autópsias ao longo da sua carreira.
- Dr. Lumbano - começou Barrie -, realizou a autópsia à Emily Gold?
- Sim - disse o médico-legista, batendo com o nariz no microfone com um ruído agudo. Encostando-se para trás, sorriu apologeticamente. - Sim, realizei.
- Pode dizer-nos qual foi a causa da morte?
- Tudo o que foi encontrado indica que a causa da morte foi o disparo de uma bala de calibre quarenta e cinco junto ao crânio que penetrou no cérebro; mais especificamente, que penetrou no lobo temporal direito, não atingindo o lobo frontal, e saindo pela parte de trás lobo occipital, do lado direito.
Barrie incluiu uma figura nas provas mostrando os contornos de uma cabeça tridimensional rodeando um cérebro. Depois virou-se para o júri com um sorriso inevitável.
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- Dr. Lumbano, para os que, como eu, não estão tão... familiarizados... com os lobos temporais e occipitais, podia usar esta figura para mostrar-nos a trajectória da bala?
Deu ao médico legista um marcador Magic Marker - vermelho sangue - e o médico pousou-o cuidadosamente no desenho.
- A bala entrou aqui - disse ele, assinalando com um X a têmpora direita. - Depois fez aproximadamente esta trajectória, e saiu por cima do pescoço, aqui - mais um X, atrás da orelha direita. A linha entre eles era quase paralela ao lado da cabeça na figura.
- Pode dizer-nos quanto tempo a Emily Gold demorou a morrer? - perguntou Barrie.
- Não foi uma morte imediata - disse o Dr. Lumbano. - Ela ainda estava viva quando os paramédicos chegaram. Podia até ter estado consciente durante parte desse tempo.
- Consciente... e capaz de sentir dor?
- com certeza.
Barrie fez um ar adequadamente horrorizado.
- Então... a Emily ficou viva, possivelmente em sofrimento, durante quanto tempo?
- Diria que mais ou menos durante meia hora.
- Doutor Lumbano, encontrou mais algumas marcas no corpo da Emily Gold?
- Sim.
- Indicam violência?
- Meritíssimo, está a guiar a testemunha - interrompeu Jordan.
- Ainda não está provado que tenha ocorrido violência.
- Deferido - Puckett fez sinal à promotora de justiça. Dr.a Delaney, não guie a sua testemunha.
- Havia algumas marcas distintas no corpo da Emily Gold, doutor?
- Sim. Tinha equimoses no pulso direito.
- O que depreendeu disso?
- Que podia ter ocorrido violência.
- Podiam ter sido causadas por alguém a puxar-lhe o pulso? pelo canto do olho, Barrie viu Jordan abrir a boca. - Deixe-me reformular a pergunta - disse ela, antes que ele pudesse objectar.
- Enquanto especialista em medicina, a que atribuiria essas equimoses?
- É possível que tivessem sido causadas por alguém que lhe tivesse agarrado no pulso.
- Quanto tempo antes da morte diria que essas equimoses foram formadas?
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- Na hora que antecedeu a morte - disse o Dr. Lumbano. O sangue tinha começado a emergir à superfície da pele.
- Descobriu mais alguma coisa durante a autópsia?
- Havia vestígios de sémen, o que com o estado dos tecidos vaginais sugeria actividade sexual recente - aproximadamente meia hora antes da morte. E a vítima também tinha pele debaixo das unhas, amostras de células que não correspondiam à própria pele da vítima.
- O que isso indica?
- Que ela arranhou alguém.
- Determinou de quem era a pele que estava debaixo das unhas?
- Sim, as amostras de tecido correspondiam às que foram recolhidas de Chris Harte e trazidas pelos detectives.
Barrie acenou com a cabeça.
- Sabe se a Emily era canhota ou dextra?
- Sei. Todas as calosidades encontravam-se na mão direita, calosidades mais espessas no lado esquerdo do dedo médio e no lado direito do dedo indicador. Na minha opinião enquanto médico, diria que a vítima era dextra.
- E o ferimento de bala encontra-se na têmpora direita.
- Sim, é verdade.
Barrie acenou com a cabeça, pensativamente.
- Já viu muitos suicídios, doutor?
- Oh, bastantes. Sessenta a setenta.
- Algum deles foi causado por um ferimento de bala na cabeça?
- Trinta e oito - disse o Doutor Lumbano. - Receio que seja um método popular.
- Desses trinta e oito suicídios, em quantos foi utilizada uma pistola ou um revólver?
- Em vinte e quatro - disse o Dr. Lumbano.
- E como se suicidaram essas vinte e quatro pessoas?
- Diria que noventa por cento dispararam na boca, porque é o que resulta melhor. Os outros dez por cento dispararam sobre a têmpora. Embora tivesse visto um caso estranho em que um homem disparou uma bala pelo nariz.
- Nos dez por cento de pessoas que apontam a arma para a têmpora, onde se situa o ferimento de saída?
- No lobo temporal oposto - apontou para ambas as têmporas.
- E por onde saiu a bala na Emily Gold?
- No lobo occipital do mesmo lado - movendo a mão esquerda para trás da cabeça apontou para um sítio atrás da orelha direita.
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- Achou isso invulgar?
- Por acaso - disse o médico-legista, com as faces rosadas de entusiasmo. - Nunca vi nada igual. Seria muito difícil apontar uma arma à têmpora direita para que a bala saísse na parte de trás da cabeça, do mesmo lado. Era preciso que a arma estivesse mais ou menos neste ângulo. - O Dr. Lumbano levantou a mão direita apontando o dedo como se fosse o cano da arma, e encostou-a à têmpora direita quase paralelamente à cabeça, torcendo o pulso numa posição forçada, artificial. - Na minha opinião, essa não
- Objecção!
- ... é uma posição típica...
- Objecção]
- Deferido - disse Puckett.
- Já não era sem tempo - resmungou Jordan entre dentes
- O que foi, doutor? - o juiz enfiou uma amêndoa na boca Disse alguma coisa? Não? - virou-se para o júri. - Por favor ignorem a última frase do Dr. Lumbano.
Barrie aproximou-se da sua testemunha.
- Na sua opinião profissional, Dr. Lumbano, o que depreendeu disso?
- Especulativo! - voltou Jordan a gritar. - Então?
- Meritíssimo, peço autorização para abordá-lo - disse Barrie acenando a Jordan, que se juntou a ela ao pé da secretária elevada do juiz.
- Dr.a Delaney - disse Puckett -, só colocando uma coleira ao pescoço da sua testemunha conseguiria guiá-la mais do que a tem guiado.
Barrie mordeu o lábio.
- Se a minha testemunha não for autorizada a especular sobre este assunto, gostava de poder mostrar ao júri aonde quero chegar... mas vou precisar da ajuda do arguido.
Jordan olhou para Barrie e depois para o juiz. Não fazia ideia do que ela ia fazer, e não estava disposto a conceder-lhe liberdade total relativamente ao seu cliente.
- Quero saber o que ela quer fazer - diz ele. Puckett virou-se para a promotora de justiça.
- Dr.a Delaney? Ela abriu as mãos.
- Uma demonstraçãozinha, meritíssimo. Quero mostrar ao júri como o Chris podia ter feito isto.
- De maneira nenhuma - sibilou Jordan. - Isso é puro preconceito.
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- Olhe, meritíssimo - disse Barrie. - vou transmitir a minha ideia. Se for preciso uso o doutor, ou um oficial de justiça. Só preciso de um corpo, porque não há-de ser aquele que esteve alegadamente envolvido no assunto?
Puckett partiu uma amêndoa.
- Proceda com cautela, doutora, senão vou voltar a falar consigo aqui.
- O quê? - explodiu Jordan.
-Já decidi - disse Puckett com firmeza. E dirigindo-se a Barrie:
- Prossiga.
Jordan regressou à mesa da defesa, pensando que pelo menos agora tinha uma questão para poder apresentar recurso. Sentando-se na cadeira, tocou no ombro de Chris.
- Não sei bem o trunfo que tem ela na manga - sussurrou. Limita-te a olhar para mim que eu aceno com a cabeça, ou objecto, se ela passar dos limites.
Naquela altura, Barrie estava a dirigir-se para Chris.
- Muito bem, Dr. Lumbano. O arguido vai ajudar-me nisto sorriu para Chris. - Pode levantar-se, por favor, Sr. Harte?
Chris olhou para Jordan, que acenou com a cabeça de forma imperceptível. Levantou-se.
- Obrigada. Podia vir até aqui? - fez sinal para um sítio entre o compartimento do júri e o banco das testemunhas. - Ora bem, Sr. Harte, é capaz de estender os braços à sua frente? - fez sinal, como o monstro de Frankenstein, até Chris erguer hesitantemente os braços.
E Barrie Delaney colocou-se precisamente entre eles.
Chris ficou sobressaltado quando ela o abraçou, as mãos a roçarem-lhe as abas do casaco e o corpo dela a encostar-se ao seu. Ficou hirto como uma tábua quando a cabeça dela se encostou ao ombro direito, colocando-se no mesmo sítio que a de Emily costumava ocupar quando ele a abraçava. "O que se passa?", pensou ele.
- Sr. Harte - disse Barrie, numa voz ligeiramente abafada junto ao tecido do blazer. - Pode colocar os seus braços à minha volta? Chris olhou para o advogado, que acenou com a cabeça, tenso. Agora, pode colocar as sua mão esquerda junto à minha têmpora?
De olhos fixos em Jordan, que apesar de todas as objecções que levantara recentemente estava agora sentado imóvel como uma pedra, Chris obedeceu.
Estavam posicionados de tal forma que o júri tinha uma visão desimpedida de Chris inclinando-se para trás, talvez uns vinte centímetros, o suficiente para encostar a mão esquerda ao lado direito
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da cabeça da promotora de justiça, enquanto ainda a abraçava com o braço direito.
- Agora, Dr. Lumbano - disse Barrie -, se o Sr. Harte tivesse uma arma na mão neste momento, qual seria a probabilidade da bala disparada sobre a minha têmpora neste local sair na parte de trás do lobo occipital, do lado direito?
O médico-legista acenou com a cabeça.
- Diria que há uma grande probabilidade de isso acontecer.
- Obrigada - disse Barrie, tirando os braços de Chris, afastando-se com passos enérgicos e deixando-o sozinho de pé no meio da sala de audiências.
- Caramba - sibilou Chris, com o rosto vermelho como um tomate ao sentar-se no seu lugar ao lado de Jordan. - Porque não fez alguma coisa?
- Não podia - disse Jordan entre dentes. - Se interviesse, o júri podia ficar a pensar que estás a esconder qualquer coisa.
- Oh, óptimo. Em vez de pensarem o que agora estão a pensar: que sou um assassino?
- Não te preocupes. vou tratar disso no contra-interrogatório levantou-se, presumindo que depois daquela catástrofe Delaney não devia ter muito mais perguntas a fazer à testemunha, mas foi detido pela voz dela.
- Mais uma pergunta - disse Barrie. - Reparou em mais alguma coisa relativamente às condições físicas da Emily durante a sua autópsia?
- Sim - disse o Dr. Lumbano. - Na noite em que a Emily Gold morreu, estava grávida de onze semanas.
Jordan fechou os olhos e voltou a sentar-se.
- Todos nós lhe agradecemos por estar aqui hoje, Dr. Lumbano
- disse Jordan passados alguns minutos. - E todos nós sabemos que trabalhou em trinta e oito casos de suicídio. Ouvimo-lo dizer que havia vestígios de sémen, vestígios de equimoses e vestígios de pele debaixo das unhas da Emily. Ora bem, vamos colocar tudo isso no seu lugar. O sémen revela que houve relações sexuais, não é verdade?
-É.
- Sabe se a Emily formava equimoses com facilidade ou não?
- Não - disse o Dr. Lumbano. - Tirando o facto de ela ter a pele bastante clara, o que sugere que podia ter facilidade em formar equimoses.
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- Estas equimoses podiam ter ocorrido durante... - tossiu delicadamente e olhou para o júri. - Uma altura particularmente ardente das relações?
- Podiam - disse o médico-legista, com ar sério.
- E a pele debaixo das unhas, doutor. É possível ter pele de outra pessoa debaixo das unhas por coçar-lhe delicadamente as costas?
-É.
- E por arranhar o ombro num frenesim de paixão? Isso deixaria pele debaixo das unhas?
- com certeza.
- E ao acariciar a face e o queixo?
- É possível.
- Então está a dizer que há diversas razoes para a Emily ter pele do Chris debaixo das unhas, e que muitas dessas diversas razões se enquadram num acto sexual não violento e apaixonado. Não é verdade?
- Não pode afirmar com algum grau de certeza que nessa noite houve algum acto de violência entre a Emily e o Chris, pois não?
- Não, não exactamente. Mas a vítima tinha um ferimento de bala na cabeça.
- Ah, sim - disse Jordan. - Todos vimos o que a Dr.a Delaney fez com o Chris. Mas naquela noite podiam ter acontecido muitas coisas, não é verdade? Vamos considerar alguns outros cenários para ver como esse ferimento podia ter sido infligido de outra forma virou-se subitamente para o cliente. - Chris? Se não se importa... outra vez?
Confuso, Chris levantou-se e dirigiu-se para Jordan, quase para o mesmo sítio onde a promotora de justiça o levara antes. Em seguida Jordan dirigiu-se à mesa das provas e agarrou na arma.
- Posso usar isto? - sem esperar para ver se Barrie concordava, transportou casualmente a pistola para junto de Chris. - Ora bem sorrindo para o júri, agarrou nas mãos de Chris e colocou-as na sua cintura. - Vão ter de usar a vossa imaginação neste caso, porque eu não faço de mulher de forma tão convincente como a Dr.a Delaney
- fez sinal a Chris, cujo pescoço ficou carmesim enquanto abraçava lassamente Jordan.
Ouviu-se um burburinho na galeria quando Jordan encostou a arma à sua própria cabeça. Sorriu, sabendo que acabara de oferecer ao júri uma imagem mental ainda mais chocante do que a de Chris com Barrie Delaney.
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- Doutor, e se a Emily estivesse a segurar na arma assim, como normalmente alguém seguraria numa arma, mas como não tinha experiência com armas, virou o cano na sua direcção? - inclinando-se ligeiramente para trás nos braços de Chris, Jordan apontou a arma à têmpora no mesmo ângulo desconfortável em que o médico legista a colocara antes. - Se a arma estivesse encostada à cabeça dela assim, a trajectória da bala seria conforme com o que viu na autópsia?
- Sim, acho que sim.
- Doutor, e se ela estivesse a segurar na arma assim, do lado da têmpora como aqueles dez por cento de pessoas que se suicidam com pistolas que o doutor viu, mas a mão estivesse a tremer tanto que saltou quando ela carregou no gatilho? Seria possível que a trajectória fosse alterada?
- É possível.
- E se a Emily estivesse tão incomodada pela própria ideia de segurar numa arma que tivesse agarrado nela assim? - agarrou na arma com ambas as mãos e encostou-a à cabeça, quase paralela à têmpora, com os polegares junto ao gatilho. Se ela tivesse segurado assim na arma, a bala podia descrever a mesma estranha trajectória?
- Sim.
- Então está a dizer, doutor, que há uma série de possibilidades que podiam justificar a estranha trajectória da bala?
- Suponho que sim.
- E, Dr. Lumbano - terminou Jordan, virando-se no abraço do cliente -, em qualquer um destes cenários alternativos, viu as mãos do Christopher Harte no gatilho desta arma?
- Não.
Jordan afastou-se de Chris e voltou a colocar a arma na mesa das provas, deixando os dedos pousados no metal por um momento.
- Obrigado - disse ele.
A loura oxigenada que estava no banco das testemunhas olhou ansiosamente para o boião de amêndoas em frente ao juiz, e levantou a mão. Sobressaltada, Barrie olhou por cima das suas notas.
- Hum... sim?
- Estava a pensar, se o juiz pode comer aquilo, talvez não fosse muito mau se eu mascasse só um pedacinho de pastilha elástica? Quero dizer, eu sei o que me disse antes e tudo isso, mas como um cigarro está fora de questão, e eu estou um bocado nervosa com
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tudo isto... - pestanejou olhando para a promotora de justiça como uma coruja. - Então?
Para surpresa de todos, o juiz Puckett riu.
- Talvez até - disse ele -, fosse capaz de aceitar o convite para fumar um cigarro, Sr.a DiBonallo - fez sinal a um oficial de justiça para levar o boião de amêndoas à testemunha. - Receio que mascar pastilha elástica tornaria o seu testemunho difícil de perceber. Mas estou disposto a partilhar.
A mulher acalmou-se um pouco, até se aperceber de que não havia nada para partir as amêndoas. Naquela altura, Barrie estava pronta para interrogar a sua testemunha.
- Pode dizer o seu nome, morada e profissão para que fique registado?
- Donna DiBonallo - disse ela em voz alta para o microfone.
- Rosewood Way, número quatrocentos e cinquenta e seis, Bainbridge. E trabalho na Gold Rush.
- Que tipo de estabelecimento é a Gold Rush?
- Uma joalharia - disse Donna.
- Alguma vez entrou em contacto com a Emily Gold?
- Sim, ela veio à loja comprar um presente de aniversário para o namorado. Um relógio, queria mandá-lo gravar.
- Compreendo. O que queria ela mandar gravar nele?
- O nome Chris - disse Donna, desviando ligeiramente o olhar para a mesa da defesa.
- E quanto custou?
- Quinhentos dólares.
- Uau - disse Barrie. - Quinhentos dólares? Isso é muito dinheiro para uma rapariga de dezassete anos.
- É muito dinheiro para qualquer pessoa. Mas ela disse que estava muito entusiasmada com aquilo.
- Rumores - objectou Jordan.
- Deferido.
- Ela disse-lhe por que razão estava a efectuar a compra? - perguntou Barrie.
Donna acenou com a cabeça.
- Disse que o relógio era para oferecer ao namorado quando fizesse dezoito anos.
- Deixou-lhe algumas instruções específicas?
- Sim. Estavam escritas na factura. Se tivéssemos de telefonar-lhe para dizer qualquer coisa sobre o relógio, como por exemplo quando estaria pronto, devíamos apenas perguntar pela Emily sem dizer nada sobre a joalharia nem o relógio.
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- Ela disse-lhe por que queria manter tudo em segredo?
- Disse que ia ser uma surpresa.
- Mais uma vez - gritou Jordan. - Rumores. O juiz acenou com a cabeça.
- Aproximem-se.
Jordan e Barrie ficaram de pé lado a lado, tentando habilmente obter a melhor posição.
- Ou arranja outra maneira de transmitir isto - disse Puckett à promotora de justiça -, ou será apagado do registo.
Barrie acenou com a cabeça e virou-se novamente para a testemunha, enquanto Jordan voltava a sentar-se.
- Deixe-me reformular a pergunta - disse ela. - Quais eram exactamente essas instruções?
Donna franziu a testa, pensando.
- "Telefonar para casa, perguntar pela Emily. É um assunto privado. Não dizer do que se trata."
- A Emily disse-lhe quando era o aniversário do namorado?
- Disse, porque tinha de estar pronto nessa altura. Foi uma encomenda especial que veio de Londres. Tinha de estar pronto em Novembro.
- Alguma data específica?
- Bem, a data também devia ser gravada no relógio. Vinte e quatro de Novembro. Ela queria que o relógio estivesse na loja no dia dezassete de Novembro, para dar-nos uma semana no caso de haver algum problema, porque planeava oferecê-lo no dia vinte e quatro.
Barrie encostou-se ao compartimento do júri.
- Estava à espera que a Emily viesse buscar o relógio no dia dezassete de Novembro?
- Estava, sim.
- E ela foi buscá-lo?
- Não.
- Veio a saber por que razão?
Donna DiBonnalo acenou com a cabeça com um ar sério.
- Morreu na semana anterior.
Jordan ficou sentado à mesa da defesa durante um minuto, após a testemunha lhe ter sido entregue para o contra-interrogatório. Ela não tinha muito para lhe dizer. Levantou-se devagar, com os joelhos a estalarem.
- Sr.a DiBonnalo - disse num tom agradável. - Quando é que a Emily Gold fez a encomenda?
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- No dia vinte e cinco de Agosto.
- E foi a primeira vez que a viu?
- Não. Tinha aparecido para dar uma vista de olhos na semana anterior.
- Pagou-lhe quando fez a encomenda?
- Sim, a quantia total.
- Como é que ela lhe pareceu estar quando a viu em Agosto? Alegre? Animada?
- Claro. Ficou muito entusiasmada por encontrar o relógio para oferecer como presente de aniversário.
- Quando chegou o relógio, Sr.a DiBonnalo?
- No dia dezassete de Novembro - sorriu. - Não houve nenhum problema.
"Depende do ponto de vista", pensou Jordan, mas devolveu-lhe harmoniosamente o sorriso.
- E quando telefonou para casa dos Gold?
- No dia dezassete de Novembro, pela primeira vez.
- Então não teve nenhum contacto com a Emily entre o dia vinte e cinco de Agosto e Novembro?
- Não.
- Quando telefonou para casa dos Gold, que tipo de resposta obteve?
- Bem, por acaso a mãe dela foi muito indelicada comigo! Jordan acenou com a cabeça compreensivamente.
- Quantas vezes teve de telefonar?
- Três - Donna fungou.
- À terceira vez, acabou por falar no relógio à Sr.a Gold?
- Sim, depois disso ela disse-me que a filha tinha morrido. Fiquei chocada.
- Então a Emily parecia estar bastante feliz em Agosto... e depois não teve nenhum contacto com ela até Novembro, quando veio a saber que ela tinha morrido.
- Sim - disse Donna.
Jordan enfiou as mãos nos bolsos. Parecia um interrogatório infrutífero, mas ele sabia que não. Utilizaria o testemunho dela nas suas alegações finais, para fazer notar que apenas três meses antes da sua morte, Emily Gold não parecia ter ideias suicidas. Na verdade, podia ter sido bastante rápido. O que ficava a meio caminho de explicar o facto de os professores e os amigos de Emily - a sua própria mãe - não se terem apercebido do que estava para acontecer.
- É tudo, minha senhora - disse Jordan, voltando a sentar-se na cadeira.
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A limpeza dentária que o juiz Puckett tinha marcada fez terminar os testemunhos pouco depois das duas da tarde. Os jurados foram dispensados com o aviso de não falarem
sobre o caso com ninguém; as testemunhas que ainda não tinham sido chamadas a depor foram avisadas para regressar no dia seguinte às nove da manhã; e Chris foi novamente algemado e conduzido para o gabinete do xerife na cave do tribunal.
James encontrou-se com Gus à entrada do tribunal. Sabia que legalmente não devia falar com a mulher sobre o que transpirara na sala de audiências naquele dia. Também sabia que Gus não ia deixar que uma coisa trivial como o sistema de justiça a impedisse de ficar a saber como estava a correr o julgamento até à altura. Por isso ficou admirado quando Gus acertou o passo com o seu, absorta em pensamentos, e estranhamente silenciosa.
Estava a chover lá fora.
- vou buscar o carro - disse James, lançando um olhar aos sapatos de salto alto de Gus. - Fica aqui à espera.
Ela acenou com a cabeça, de pé com a mão encostada ao amplo vidro da janela da entrada enquanto James saltava por cima das poças de água. Ao sentir uma mão pousar-lhe no braço, Gus virou-se.
- Olá - disse Michael, o toque da mão dele fazia a pele dela arrepiar-se, e ao mesmo tempo tinha vontade de afastar-se dele.
Forçou um sorriso.
- Estás com tão mau aspecto como eu me sinto mal.
- Obrigado.
Gus observou James abrir a porta do carro.
- Vi-te com a Melanie - estavam à entrada, isolados tal como ela, a algumas filas de distância.
Michael colocou uma das mãos na janela ao lado da de Gus.
- É difícil, não é? Tentar imaginar o que se passa lá dentro? Gus não respondeu. No parque de estacionamento, o Volvo
saiu do seu lugar.
- Amanhã - disse ele -, esperamos juntos. Conteve-se para não olhar para ele.
- Tenho de ir embora - disse, e correu para a chuva gelada.
Selena apressou-se a entrar pela porta enquanto Jordan sacudia o guarda-chuva que partilharam.
- Tens de arranjar um maior - riu ela, com os cabelos completamente molhados.
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- Tenho de arranjar uma investigadora mais pequena - argumentou Jordan, sorrindo para Selena. - Demorei anos a encontrar um guarda-chuva de que gostasse.
Saíram juntos do pequeno vestíbulo para entrarem na sala de estar, onde Thomas estava à espera de braços cruzados.
- Então? - perguntou ele. Selena sorriu.
- O teu pai é um mestre - disse ela.
Um sorriso rasgado surgiu no rosto de Thomas.
- Eu sabia - disse ele. Cumprimentou Jordan dando-lhe uma palmada na mão e deixou-se cair para cima de uma cadeira estofada.
- Quer dizer que estás de bom humor, não é?
- Porquê? - perguntou Jordan na defensiva. - O que fizeste?
- Nada! - disse Thomas, ofendido. - Só estou com fome, mais nada. Podemos encomendar uma pizza?
- Às três e meia? Não é um pouco cedo para jantar?
- Digamos que é um lanche - sugeriu Thomas.
Jordan revirou os olhos e entrou na cozinha, ainda de gabardina.
- Lancha o que está no frigorífico - disse ele, abrindo a porta do electrodoméstico. - Oh, talvez não - disse ele, atirando algo embrulhado em película aderente para o lixo. - Não há aqui mais nada?
- Cerveja - disse Thomas. - E leite. Tudo o resto é uma cultura de penicilina.
Selena colocou o braço por cima dos ombros magros de Thomas.
- Queres pepperoni ou salsicha?
- Tudo menos anchovas - disse Thomas. - Vais telefonar? Selena acenou com a cabeça.
- Eu aviso-te quando o homem da pizza chegar.
Thomas, aproveitando a deixa, retirou-se para o quarto. Selena passou por Jordan e dirigiu-se ao frigorífico para tirar uma cerveja.
- Tens sorte por ele não ter bebido isto. Queres uma? Jordan olhou para o relógio, pensando melhor, e depois viu
Selena tirar a carica de enroscar da garrafa.
- Claro - disse ele.
Instalaram-se na sala de estar depois de terem telefonado para a pizzaria. Jordan bebeu um grande trago de cerveja e retraiu-se.
- Do que eu preciso mesmo - disse -, é de um Tylenol.
- Aqui - disse Selena, dando palmadinhas no colo. - Deita-te. Ele deitou-se, agradecido, pousando a garrafa de Samuel
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Adams no chão. Os longos dedos de Selena afastaram-lhe os cabelos da testa e deslizaram-lhe pelas têmporas como cascatas.
- Estás a ser muito solícita - murmurou. Selena bateu-lhe delicadamente no crânio.
- Temos de manter essa genialidade a funcionar.
Ele fechou os olhos, deixando que as mãos dela percorressem os pontos fulcrais. Quando Selena parou, ele levantou a mão e tocou-lhe no pulso, incitando-a a continuar, e visualizou imediatamente Barrie Delaney a levar a mão de Chris à têmpora.
Jordan gemeu, com a dor de cabeça a regressar vingativa. Se ainda estava a pensar nisso, o que poderia ele esperar do júri?
Chris foi revistado sem roupa, as roupas boas foram levadas para ficarem guardadas a salvo para a manhã seguinte. Quando vestiu as calças com cordão à cintura, e a camisola macia de manga curta, relaxou. Aquelas roupas, usadas e desbotadas eram mil vezes mais confortáveis do que as calças pregueadas que restringiam os movimentos e o nó da gravata que era obrigado a usar o dia todo.
Mas por outro lado, já tinham passado sete meses. Naquele dia descobrira que havia muitas coisas às quais já não estava habituado: luz do Sol directa; contacto humano; até Pepsi. A lata que Jordan lhe levara - a bebida que desejava tanto há tanto tempo - tinha feito efervescência no estômago e dera-lhe volta à barriga.
Chris deitou-se na cama, com a ideia desagradável de que mesmo que fosse autorizado a voltar para o mundo real, podia já não se adaptar a ele.
A meio da noite, com as persianas corridas e o quarto como um casulo sem ar, Gus virou-se para James. Tal como ela, ele estava deitado na cama absolutamente imóvel, como se a imobilidade pudesse dar origem ao sono, mas Gus sabia que ele estava tão acordado como ela. Respirou fundo, grata pela escuridão que a impedia de lhe ver o rosto para ver se ele estava a mentir ou não.
- James - disse -, vai tudo correr bem?
Ele não fingiu ter percebido mal, mas debaixo dos cobertores, alcançou a mão dela às cegas, cobrindo-a com a sua.
- Não sei - disse ele.
Na manhã seguinte, Jordan tomou um duche, fez a barba e vestiu-se. Entrou na cozinha, já a pensar nos contra-interrogatórios do dia. Era capaz de interrogar Heather Burns, uma amiga de Emily, a dormir. Melanie Gold era um caso completamente diferente.
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Só quando se sentou é que reparou que Thomas lhe sorria do outro lado da mesa. E no lugar dele, estava uma tigela e uma colher limpas, um jarro de leite e uma caixa
de Cocoa Krispies por abrir.
Heather Burns tremia tanto no banco das testemunhas que as pernas da cadeira, de tamanhos ligeiramente diferentes, batiam no chão como um tamborilar célere. Procurando
pôr a rapariga à vontade, Barrie Delaney dirigiu-se a ela, bloqueando-lhe o campo de visão, de modo que só a via a ela própria.
- Acalme-se, Heather - disse em voz baixa. - Lembra-se? Já ensaiámos todas as perguntas.
Heather acenou com a cabeça corajosamente, de rosto branco como a cal.
- Heather - disse Barrie -, sei que era a melhor amiga da Emily.
- Sim - disse ela num fio de voz. - Éramos amigas já há quatro anos.
- É muito tempo. Encontrava-se com ela na escola?
- Sim. Tínhamos algumas aulas juntas. Saúde e Cálculo. E também algumas aulas de arte... mas a Emily era muito melhor do que eu em arte.
- com que frequência se encontravam?
- Todos os dias, pelo menos nas aulas.
- E ela falava-lhe nos seus planos para o futuro?
- Queria ir para a faculdade e aprender a tornar-se uma pintora melhor.
- Conhecia a Emily quando ela começou a namorar com o Chris?
Heather acenou com a cabeça.
- Ela já namorava com o Chris quando a conheci. Eles estavam sempre juntos.
- Sempre?
- Bem, uma vez no décimo ano eles separaram-se durante alguns meses, o Chris andava a sair com outra rapariga e a Emily ficou mesmo muito perturbada por causa disso.
- Então, entre eles nem sempre houve uma perfeita harmonia.
- Não - Heather olhou para baixo. - Mas eles acabaram por ficar juntos outra vez.
Barrie sorriu tristemente.
- Sim. É verdade. Pode dizer-me, Heather, como estava a Emily em Novembro, em termos de personalidade?
- Estava normalmente bastante calada: ela sempre foi assim. Mas não estava sempre a chorar nem a dizer que ia suicidar-se. Era
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simplesmente a Emily, e estava sempre com o namorado. Foi por isso... - a voz dela desvaneceu-se e os olhos, pela primeira vez durante o seu testemunho, dirigiram-se para Chris. - Foi por isso que fiquei tão chocada quando soube o que acontecera.
Jordan esboçou um sorriso cativante para Heather Burns. Era uma rapariga pequena e frágil como um pardal, de cabelos castanhos caídos pelo meio das costas e um anel de prata em cada dedo.
- Heather, obrigado pela sua presença aqui. Sei que é difícil disse ele, e em seguida sorriu. - Mas pelo menos não tem de ir à escola.
Heather soltou um risinho, começando a simpatizar com o advogado de defesa, não parecendo de maneira nenhuma prestes a desmaiar como há um minuto atrás.
- Costumava ver a Emily todos os dias na escola - disse ele. Então e fora da escola?
- Não tanto - disse Heather.
- Não se encontravam na Gap, ou no cinema aos fins-de-semana?
- Não.
- Não combinavam sair as duas?
- Quase nunca - disse ela. - Não que eu não quisesse, mas a Emily estava sempre com o Chris.
- Então apesar de ser a melhor amiga dela, acabava por não a ver muitas vezes fora da escola?
- Eu era a melhor amiga dela - admitiu Heather. - Mas o Chris conhecia-a melhor do que qualquer outra pessoa.
- Costumava ver o Chris e a Emily juntos?
- Sim.
- Como era a relação deles?
Os olhos de Heather ensombraram-se.
- Costumava pensar que era mesmo romântica - disse ela. Quero dizer, já estavam juntos há uma eternidade, e, às vezes, parecia que só ouviam a voz um do outro e só viam o rosto um do outro
- mordeu o lábio. - Costumava achar que a Emily tinha o que todas nós desejávamos ter.
Jordan acenou com a cabeça, com um ar sério.
- E Heather, baseando-se na relação que testemunhou entre o Chris e a Emily, consegue imaginar que ele alguma vez fosse capaz de a magoar?
- Objecção - gritou Barrie.
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- Indeferido.
Quando Jordan acenou com a cabeça, Heather olhou directamente para Chris, de olhos muito abertos e líquidos.
- Não - sussurrou ela. - Não consigo.
Melanie Gold estava vestida de preto. No banco das testemunhas, com os cabelos puxados para trás de forma severa e os amplos ombros enchumaçados do casaco do fato, parecia uma implacável madre superiora, ou talvez até mesmo um arcanjo.
- Sr.a Gold - disse Barrie, colocando uma das mãos sobre a da sua testemunha. - Obrigada por estar aqui presente. Lamento muito ter de submetê-la a esta formalidade, mas preciso que alguns factos fiquem registados. Pode dizer-nos o seu nome?
- Melanie Gold.
- Qual era a sua relação com a vítima? Melanie olhou directamente para o júri.
- Era a mãe dela - disse num tom suave.
- Pode falar-nos da relação que tinha com a sua filha? Melanie acenou com a cabeça.
- Passávamos muito tempo juntas - começou ela, as palavras como pinceladas, trazendo Emily de volta à vida com a mesma elegância artística que Emily possuía. - Ela passava algum tempo comigo depois das aulas, quando eu estava a trabalhar na biblioteca, íamos as duas às compras ao fim-de-semana. Ela sabia que podia contar comigo.
- De que tipo de coisas lhe falava a Emily?
Melanie começou a falar, dirigindo novamente a sua atenção para a promotora de justiça.
- Falávamos bastante sobre a faculdade. Ela estava a preparar-se para se candidatar.
- Como se sentia ela por ir para a faculdade?
- Estava muito entusiasmada - disse Melanie. - Era muito boa aluna, e uma artista ainda melhor. Por acaso, ia candidatar-se à Sorbonne.
- Uau - disse Barrie -, é impressionante.
- A Emily era impressionante - disse Melanie.
- Quando soube pela primeira vez que tinha acontecido alguma coisa à Emily?
Melanie esmoreceu na cadeira.
- Recebemos um telefonema a meio da noite a dizer-nos para irmos imediatamente para o hospital. Só sabíamos que a Emily tinha saído com o Chris. Quando lá chegámos, a Emily já tinha morrido.
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- O que vos disseram sobre a morte dela?
- Não muito. O meu marido foi identificar... a Emíly. Eu... olhou para o júri. - Eu não consegui. E depois o Michael voltou e disse-me que ela tinha levado um tiro na cabeça.
- O que pensou, Sr.a Gold? - perguntou delicadamente Barrie.
- Pensei "Oh, meu Deus, quem fez isto à minha menina?"
O silêncio que segue no encalço da verdadeira dor abateu-se sobre a sala de audiências, de forma que o júri ouvia a caneta de Jordan escrever, o tiquetaque do relógio do oficial de justiça, a respiração pesada de Chris.
- Pensou em algum momento, Sr.a Gold, que pudesse ter sido um suicídio?
- Não - disse Melanie, numa voz firme. - A minha filha não queria suicidar-se.
- Como sabe?
- Como poderia não saber? Sou a mãe dela. Ela não estava triste; não estava deprimida; não andava a chorar. Era a jovem maravilhosa de sempre. E nunca usou uma arma na vida dela; não percebia nada de armas. Porque haveria de tentar suicidar-se com uma?
- Começou a receber telefonemas de uma empregada de joalharia após a morte da Emily?
- Sim - disse Melanie. - Ao princípio não sabia quem era. A senhora estava sempre a perguntar-me pela Emily, e parecia uma piada de mau gosto. Mas depois acabou por falar num relógio que a Emily tinha comprado para o Chris e fui lá buscá-lo. Era um relógio de quinhentos dólares: mais cinquenta dólares do que ela recebera por ter trabalhado o Verão inteiro num campo de férias. A Emily sabia que teríamos ficado muito incomodados por ela gastar esse dinheiro todo num presente de aniversário surpresa para o Chris; era demasiado extravagante, e tê-la-íamos obrigado a devolvê-lo - respirou fundo, e depois prosseguiu. - Depois de ter ido à joalharia, levei o relógio para casa e percebi que aquela era a maneira da Emily me dizer para olhar com mais atenção para o que acontecera - ficou a olhar para o júri. - Por que razão teria a Emily comprado um relógio para oferecer ao Chris em finais de Novembro, se sabia que iam suicidar-se antes disso?
Barrie aproximou-se da mesa da defesa.
- Como sabe, Sr.a Gold, a única pessoa que também estava no carrossel naquela noite era o Christopher Harte.
Melanie olhou-o de alto a baixo.
- Eu sei.
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- Conhece bem o arguido?
- Conheço - disse Melanie. - O Chris e a Emily cresceram juntos. Somos vizinhos da família dele há dezoito anos - a voz dela tornou-se pastosa, desviou o olhar. - Foi sempre bem recebido na nossa casa. Era como se fosse nosso filho.
- E sabe que ele está aqui presente por ter sido acusado de homicídio? O homicídio da sua filha?
- Sim.
- Acha que o Chris podia ser violento para a sua filha?
- Objecção - disse Jordan. - Esta testemunha é parcial.
- Parcial! - proferiu Barrie. - A filha desta senhora está morta e enterrada. Pode ser tão parcial quanto quiser.
Puckett massajou as têmporas.
- A acusação tem o direito de convocar as testemunhas que quiser. Vamos dar à Sr.a Gold o benefício da dúvida.
Barrie voltou a virar-se para Melanie.
- Acha - repetiu ela - que o Chris podia ser violento para a sua filha?
Melanie pigarreou.
- Acho que ele a matou.
- Objecção! - berrou Jordan.
- Indeferido.
- Acha que ele a matou - reafirmou Barrie, deixando as palavras de Melanie assentarem, num desafio. - Porquê?
Por um momento, Melanie ficou a olhar para Chris.
- Porque a minha filha estava grávida - proferiu, esquecendo o aviso da promotora de justiça para se manter calma. - O Chris ia para a faculdade. Não queria ver a carreira, nem os estudos, nem o futuro na natação serem arruinados por um bebé e por uma rapariga da terra - Melanie viu Chris sobressaltar-se e depois começar a tremer. - Era o Chris que percebia de armas - disse ela, tensa. O pai dele possui o seu próprio arsenal. Estavam sempre a caçar imobilizou Chris com o olhar, proferindo as palavras unicamente para ele. - Puseste duas balas na arma.
Jordan levantou-se de um salto.
- Objecção!
- Planeaste tudo. Mas não conseguiste evitar provocar-lhe uma equimose quando ela se debateu...
- Objecção, meritíssimo! É impróprio! Melanie ficou a olhar para Chris, imparável.
- Não conseguiste assegurar o ângulo da bala. E não conseguiste fazer nada em relação ao relógio, porque nem sequer sabias
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da existência dele - as mãos dela cerraram-se na balaustrada do banco das testemunhas, com os nós dos dedos brancos.
- Sr.a Gold - interrompeu o juiz.
- Mataste-a - gritou Melanie. - Mataste a minha filha e mataste o teu filho.
- Sr.a Gold, pare com isso imediatamente! - gritou Puckett, batendo com o martelo. - Dr.a Delaney, controle a sua cliente!
As pontas das orelhas de Chris estavam de um vermelho flamejante. Encolheu-se ao lado de Jordan.
- A testemunha é sua - disse Barrie, oferecendo-lhe a mulher a soluçar, de coração despedaçado.
- Meritíssimo - disse Jordan, tenso. - Talvez fosse melhor fazer um breve intervalo.
Puckett olhou para a promotora de justiça.
- Talvez fosse melhor - disse ele.
Quando Melanie voltou para o banco das testemunhas, tinha os olhos vermelhos e as faces rosadas, mas para todos os efeitos recuperara a compostura.
- Parece que a Emily era uma filha notável, Sr.a Gold - disse Jordan, ainda sentado à mesa da defesa, de forma tão casual como se a tivesse convidado para almoçar. - Talentosa, linda e confiava em si. Que mais se pode desejar numa filha?
- Estar viva - disse Melanie friamente. Momentaneamente atrapalhado - Jordan não esperava que ela
fosse tão arguta - deu mentalmente um passo atrás.
- Quantas horas por semana costumava passar com a Emily, Sr.a Gold?
- Bem, trabalho três dias por semana, e a Emily estava na escola.
- Então...?
- Diria que duas horas à noite, nos dias de semana. Talvez mais aos fins-de-semana.
- Quanto tempo costumava ela passar com o Chris?
- Bastante.
- Podia ser mais específica? Mais do que duas horas à noite e mais algum tempo aos fins-de-semana?
- Sim.
- Então ela passava mais tempo na companhia do Chris do que consigo?
- Sim.
- Compreendo. A Emily tinha expectativas em relação ao futuro?
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Admirada com a mudança de assunto, Melanie acenou com a cabeça.
- Muitas.
- Os senhores deviam ser uns pais muito incentivadores.
- É verdade. Não há dúvida de que prezávamos o sucesso académico e ajudávamo-la a aprofundar o seu interesse pela arte.
- Diria que era importante para a Emily estar à altura das vossas expectativas?
- Acho que sim. Sabia que tínhamos orgulho nela. Jordan acenou com a cabeça.
- E também diz que a Emily confiava em si.
- Sem dúvida.
- Devo dizer-lhe, Sr.a Gold - disse ele. - Tenho um pouco de inveja - virou-se para o júri, convidando-os para serem seus confidentes. - Tenho um filho de treze anos, e não é assim tão fácil manter as linhas de comunicação abertas.
- Talvez não se mostre disponível para ouvi-lo - disse Melanie num tom sarcástico.
- Ah. Então era isso que fazia todas as noites naquelas duas horas aos dias de semana? Mostrava-se disponível para ouvir o que a Emily quisesse dizer?
- Sim. Ela contava-me tudo.
Jordan encostou-se ao compartimento do júri.
- Ela contou-lhe que estava grávida? Melanie cerrou os lábios.
- Não - disse.
- Ao longo das onze semanas de gravidez, em todas aquelas conversas íntimas, ela nunca a mencionou?
-Já disse que não.
- Por que razão não lhe contou? Melanie alisou o tecido da saia.
- Não sei - disse numa voz suave.
- Podia ter pensado que por ter engravidado não estava à altura das grandes expectativas que tinha em relação a ela? Que talvez não pudesse ser artista, nem sequer ir para a faculdade?
- Talvez - disse Melanie.
- Podia ter ficado tão perturbada por não estar à altura das suas expectativas, por já não ser a filha perfeita, que ficasse demasiado assustada para lhe poder contar?
Melanie abanou a cabeça, com as lágrimas agora a escorrerem livremente.
- Preciso de uma resposta, Sr.a Gold - disse Jordan delicadamente.
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- Não - disse ela. - Ela ter-me-ia contado.
- Mas acabou de dizer que não lhe contou - fez notar Jordan.
- E a Emily não está aqui para poder explicar as suas razões. Por isso concentremo-nos nos factos. A senhora diz que a Emily era tão chegada a si que lhe contava tudo. Mas não lhe disse nada sobre a gravidez. Se lhe escondeu uma coisa tão importante, não poderia ter-lhe escondido outras coisas: por exemplo, o facto de estar a pensar em suicidar-se?
Melanie tapou o rosto com as mãos.
- Não - murmurou.
- A gravidez não poderia ter dado origem a ideias suicidas? Que não quisesse viver visto que não tinha estado à altura das suas expectativas?
A culpa assentou como uma luva sobre os ombros de Melanie, e ela começou a soçobrar. Afundou-se no banco das testemunhas, enrolando-se como fizera ao descobrir que a filha estava morta. Jordan, apercebendo-se de que não podia pressioná-la mais sem fazer má figura, dirigiu-se ao banco das testemunhas e pousou a mão no braço de Melanie.
- Sr.a Gold - disse ele, oferecendo-lhe um lenço limpo. Minha senhora. Permita-me - ela aceitou o lenço com cornucópias e limpou o rosto, enquanto Jordan continuou a dar-lhe palmadinhas no ombro. - Lamento muito perturbá-la desta maneira. E sei como deve ser devastador sequer pensar nestas possibilidades. Mas preciso mesmo da sua resposta, para que fique registada.
com uma suprema força de vontade, Melanie endireitou-se. Limpou o nariz e enfiou o lenço de Jordan no punho cerrado.
- Desculpem - disse ela com dignidade. - Agora já estou bem. Jordan acenou com a cabeça.
- Sr.a Gold - disse ele. - Não terá sido a gravidez da Emily que a fez querer suicidar-se?
- Não - disse Melanie com firmeza, numa voz sonora. - Sei o tipo de relação que a minha filha e eu tínhamos, Dr. McAfee. E sei que a Emily me teria contado tudo, apesar das mentiras que o senhor está a tentar espalhar. Ela ter-me-ia dito, se alguma coisa estivesse a incomodá-la. Se não me disse nada, foi porque nada a incomodava. Ou talvez nem sequer tivesse a certeza de que ia ter um bebé.
Jordan inclinou a cabeça para o lado.
- Se ela não sabia que ia ter um bebé, Sr.a Gold, então como poderia ter contado ao Chris?
Melanie encolheu os ombros.
- Talvez não tenha contado.
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- Está a dizer que ele podia não saber que ela estava grávida?
- Exactamente.
- Então por que razão - perguntou Jordan - haveria ele de querer matá-la?
Houve uma agitação na sala de audiências quando Melanie saiu do banco das testemunhas. Caminhou devagar pelo corredor central, acompanhada por um oficial de justiça. Assim que as portas se fecharam atrás dela, uma rajada de perguntas e comentários irrompeu na galeria, tão difusa e célere como um surto de febre.
Chris sorria quando Jordan voltou para o seu lugar.
- Aquilo - disse ele - foi extraordinário.
- Ainda bem que gostaste - disse Jordan, alisando a gravata.
- O que vai acontecer a seguir?
Jordan abriu a boca para dizer a Chris, mas Barrie fê-lo em seu lugar.
- Meritíssimo, a acusação terminou.
- Agora - murmurou Jordan para o seu cliente -, montamos um espectáculo.
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PASSADO
7 de Novembro de 1997
Emily esfregou o corpo com uma toalha e enrolou-a à volta dos cabelos. Ao abrir a porta da casa de banho entrou uma lufada de ar frio do corredor. Estremeceu, tendo
o cuidado de não olhar para a barriga lisa ao espelho ao sair.
Não estava ninguém em casa, por isso dirigiu-se para o quarto nua. Fez a cama e colocou a camisola de Chris, aquela que tinha o cheiro dele, à volta da almofada. Mas deixou as roupas sujas amontoadas no chão, para que os pais tivessem alguma coisa familiar quando regressassem a casa.
Sentou-se à secretária, com a toalha agora solta por cima dos ombros. Havia uma pilha de candidaturas para as faculdades de belas-artes - Rhode Island School of Design e a Sorbonne, no topo. Um bloco de notas em branco, para fazer os trabalhos de casa.
Devia deixar um bilhete?
Agarrou num lápis e encostou a ponta ao papel, com força suficiente para deixar marca. O que dizer às pessoas que nos deram a vida, quando estávamos prestes a rejeitar voluntariamente essa dádiva? Suspirando, Emily largou o lápis. Nada. Não se dizia nada, porque seriam capazes de ler nas entrelinhas aquilo que ficara de fora, achando que a culpa era toda deles.
Como se isso a tivesse feito lembrar-se, procurou um pequeno livro encadernado a tecido na mesa-de-cabeceira e levou-o para o roupeiro. Lá dentro, atrás da pilha de caixas de sapatos, havia um pequeno buraco, roído pelos esquilos há anos e utilizado, quando ela e Chris eram pequenos, para esconder os seus tesouros secretos.
Ao enfiar a mão lá dentro, encontrou um pedaço de papel dobrado. Uma mensagem escrita com sumo de limão, uma tinta
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invisível que era revelada ao calor da chama de uma vela. Ela e Chris deviam ter cerca de dez anos. Trocavam mensagens com um sistema de latas e roldanas que ligava as janelas dos dois quartos, antes de a linha de pesca ter ficado enredada nos ramos das árvores. Emily passou o dedo pelas bordas rasgadas do papel e sorriu. "vou aí salvar-te", escrevera Chris. Se bem se lembrava, estava de castigo na altura. Chris trepara pela estrutura para segurar as roseiras de um dos lados da casa, planeando entrar pela janela da casa de banho e libertá-la da sua cela - mas em vez disso caíra e partira o braço.
Amachucou o papel no punho cerrado. Não era a primeira vez que ele a salvava deixando-a ir.
Emily entrançou os cabelos e foi deitar-se na cama. E ficou assim - nua, com a mensagem bem apertada na palma da mão - até ouvir Chris ligar o motor do carro junto à casa ao lado.
Quando Chris fizera quinze anos, o mundo tornara-se estranho. O tempo passava demasiado rápido e, ao mesmo tempo, inacreditavelmente devagar; parecia que ninguém percebia o que ele dizia; altos e baixos causavam-lhe formigueiros nos membros e esticavam-lhe a pele. Lembrava-se de uma tarde de Verão, quando ele e Em estavam ociosamente numa jangada no lago; adormecera a meio de uma frase de Emily e acordara com o sol mais baixo e mais quente e ela ainda a falar, como se tudo e nada tivesse mudado.
Agora era outra vez assim. Emily, cujo rosto Chris era capaz de visualizar de olhos fechados, estava subitamente irreconhecível. Queria dar-lhe algum tempo para que se apercebesse de como aquela ideia era disparatada, mas o tempo esgotara-se e aquele pesadelo crescera como uma bola de neve, imenso e impossível de manejar, impossibilitando Chris de detê-lo. Queria salvar-lhe a vida
- por isso fingia que a ajudaria a morrer. Por um lado, sentia-se impotente num mundo demasiado grande para que pudesse alterá-lo; por outro lado, o mundo dele encolhera
até atingir o tamanho de uma cabeça de alfinete sem deixar espaço para mais nada, só ele, Emily e o pacto de ambos. Estava paralisado pela indecisão - convencido
com todo o dramatismo da adolescência de que seria capaz de lidar com algo tão gigantesco como aquilo, e ao mesmo tempo desejando segredar a verdade ao ouvido da mãe para que ela resolvesse tudo.
As mãos tremiam-lhe tanto que, ultimamente, costumava sentar-se em cima delas, e havia alturas em que pensava que estava
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a enlouquecer. Encarava aquilo como se fosse um campeonato que simplesmente tinha de ganhar, e, no mesmo instante, recordava-se de que ninguém morria no final de uma prova.
Pensava em como o tempo passara depressa desde a noite em que Emily lhe contara tudo. Desejava que passasse mais depressa, para que se tornasse num adulto e, como os outros adultos, deixasse de se lembrar bem daquela altura da sua vida.
Interrogava-se por que razão parecia que a estrada se desfazia debaixo dele, quando apenas queria conduzir devagar por uma zona de segurança.
Ela sentou-se no assento do passageiro, num movimento tão familiar que Chris teve de fechar os olhos para não ver.
- Olá - disse ele, como sempre. Conduziu para fora da via de acesso sentindo-se como se alguém tivesse mudado o enredo da peça que estava a representar, sem o avisar.
Tinham acabado de fazer a curva para Wood Hollow Road quando Emily lhe pediu para encostar.
- Quero vê-lo - disse ela.
A voz tinha aquele tom agudo de entusiasmo, e os olhos, agora que conseguia vê-los, estavam vidrados e brilhantes. Como se estivesse febril. E Chris pensou se afinal não seria alguma coisa que lhe corresse no sangue.
Alcançou o casaco e tirou a arma, embrulhada numa camurça. Emily estendeu a mão, hesitando tocar-lhe. Depois passou o indicador pelo cano.
- Obrigada - disse de repente. - Não te esqueceste? Chris bateu no bolso.
Emily ficou a olhar-lhe para a mão, por cima do coração, no bolso da camisa, e depois para o rosto.
- Não dizes nada?
- Não - disse Chris. - Não digo.
Emily é que tivera a ideia de irem para o carrossel. Em parte, porque sabia que ia estar deserto naquela altura do ano, e em parte porque estava a fazer um esforço consciente para levar consigo as melhores coisas do mundo que desejava abandonar, no caso de poder transportar as recordações nos bolsos e usá-las para traçar o percurso do que quer que fosse que se sucedesse.
Sempre gostara daquele carrossel. Nos dois últimos Verões, quando Chris trabalhara lá, ia muitas vezes ter ali com ele. Tinham baptizado os cavalos: Tulipa e Leroy; Sadie, Starlight e Buck. Às
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vezes aparecia durante o dia e ajudava Chris a levantar, as crianças, compactas e húmidas, para cima das selas; outras chegava ao crepúsculo para ajudá-lo a limpar tudo. Era o que mais gostava. Havia algo de incrivelmente belo na máquina a abrandar até parar, os cavalos a moverem-se em câmara lenta ao som roufenho das engrenagens.
Não tinha medo. Agora que encontrara uma saída, nem mesmo a ideia de morrer a assustava. Só queria que tudo acabasse antes que as outras pessoas que amava ficassem tão magoadas como ela estava.
Olhou para Chris e para a pequena caixa prateada que continha o mecanismo que activava o carrossel.
- Ainda tens a tua chave? - perguntou ela.
O vento fazia a trança bater-lhe na face, e tinha os braços cruzados para tentar manter-se quente.
- Tenho - disse Chris. - Queres andar?
- Por favor - subiu para o carrossel, passando a mão nos focinhos dos cavalos robustos. Escolheu aquele a quem chamara Delilah, um cavalo branco com crina prateada e esmeraldas e rubis falsos incrustados nas rédeas. Chris ficou junto à caixa prateada, com a mão pousada no botão vermelho que punha a máquina a funcionar. Emily
sentiu o carrossel ganhar vida debaixo dela, a música do órgão a desafinar à medida que o carrossel ganhava velocidade. Estalou o couro rachado das rédeas no pescoço
do cavalo e fechou os olhos.
Imaginou-se a si própria e a Chris, duas crianças pequenas de pé lado a lado no pedregulho do quintal, de mãos dadas a saltar juntos para cima de um grande monte
de folhas caídas. Lembra va-se dos tons de jóia dos áceres e dos carvalhos. Lembrava-se do esticão que sentiu no braço junto a
Chris quando foram puxados pela gravidade.
Mas acima de tudo lembrava-se do momento em que ambos acharam que estavam a voar.
Ele estava de pé no chão a observar Emily. Tinha a cabeça atirada para trás e o vento pusera-lhe uma cor rosada nas faces. As lágrimas escorriam-lhe dos olhos, mas
sorria.
"É agora", apercebeu-se. Ou deixava Emily ter o que queria acima de tudo, ou ficava ele com o que queria. Era a primeira vez em que as duas coisas não eram uma só.
Como podia ficar ali a vê-la morrer? Por outro lado, como podia impedi-la, se estava a sofrer tanto?
Emily confiara nele, mas ele ia traí-la. E, então, da próxima vez que tentasse suicidar-se - porque ia haver uma próxima vez, ele
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sabia - só ficaria a saber depois do facto consumado. Como o resto das pessoas.
Sentiu um arrepio na nuca. Estaria mesmo a ponderar o que pensava que estava a ponderar?
Tentou desanuviar a cabeça, como costumava fazer antes de uma prova, para que a única coisa em mente fosse o caminho mais rápido daqui até ali. Mas, desta vez, não seria tão fácil. Não havia um caminho certo. Não havia nenhuma garantia de que ambos conseguissem chegar ao lado de lá.
Estremecendo, concentrou-se na longa linha branca do pescoço dela, na pulsação a meio. Manteve os olhos fixos na pulsação até que ela desapareceu do capo de visão do outro lado do carrossel, sustendo a respiração até vê-la voltar para ele.
Ficaram sentados no banco do carrossel onde as mães costumavam andar com os bebés mais pequenos, a madeira com bolhas e espessa debaixo das mãos deles devido às sucessivas camadas de tinta. A garrafa de Canadian Club estava pousada entre os pés de Chris. Sentiu Emily estremecer ao lado dele, e preferiu pensar que estava com frio. Inclinando-se para ela, abotoou-lhe o casaco até cima.
- Ainda adoeces - disse ele, e depois, reflectindo sobre as suas palavras, sentiu-se agoniado. - Amo-te - sussurrou, e foi naquele instante que soube o que ia fazer.
Quando amamos alguém, colocamos as necessidades dessa pessoa à frente das nossas.
Por muito inconcebíveis que sejam; por muito perversas; por muito que isso nos faça sentir como se estivéssemos a ser feitos em pedaços.
Só se apercebeu de que começara a chorar, em parte devido ao choque e em parte por aceitação, até provar as suas lágrimas, molhadas e salgadas, nos lábios de Emily. Não devia ser assim; oh, meu Deus, mas como podia ele ser um herói quando ao salvar Emily apenas a ia fazer sofrer mais? Para reconfortá-lo, as mãos de Emily começaram a afagar-lhe as costas, e ele interrogou-se: "Quem está aqui para ajudar quem?" Então, de repente, tinha de estar dentro dela, e com uma urgência que o surpreendeu deu por si a abrir-lhe as calças de ganga e a puxá-las pelas coxas abaixo, enrolando as pernas dela à sua volta quando se veio.
"Leva-me contigo", pensou ele.
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Emily endireitou as roupas, de faces flamejantes. Chris não parava de pedir desculpa, como se o facto de se ter esquecido de um preservativo fosse algo de que ela lhe pudesse guardar rancor por toda a eternidade.
- Não interessa - disse ela, enfiando a camisola para dentro das calças: "Se soubesses."
Ficou sentado a alguma distância dela, de mãos cruzadas no colo. Ainda tinha as calças de ganga desabotoadas, e o cheiro de sexo era transportado pelo vento. Sentia-se invulgarmente calmo.
- O que queres que eu faça - disse ele -, depois?
Não tinham falado no assunto; na verdade, até àquele momento Emily não sabia ao certo se Chris não ia fazer alguma estupidez, como atirar as balas para os arbustos quando fosse carregar a câmara, ou tirar-lhe a arma da mão à última hora.
- Não sei - disse ela, e era verdade. Nunca chegara tão longe nos seus pensamentos. Havia o planeamento, a organização e até o acto em si -, mas a verdade de estar morta não era algo que tivesse imaginado. Pigarreou.
- Faz qualquer coisa - disse ela. - O que tiveres de fazer. Chris traçou o padrão das tábuas de madeira do chão com a
unha do polegar, subitamente um estranho.
- Tens uma hora marcada? - perguntou, tenso.
- Ainda não - sussurrou Emily, e perante o adiamento Chris abotoou as calças de ganga e puxou-a para o colo. Abraçou-a e ela inclinou-se para junto dele, pensando:
"Perdoa-me."
Tinha as mãos a tremer quando abriu a câmara da arma. O Colt levava seis balas. Depois de uma ser disparada, o cartucho permanecia dentro do revólver. Explicou tudo
isto a Emily enquanto procurava no bolso da camisa, como se recitar o puro mecanismo do acto pudesse torná-lo menos doloroso.
- Duas balas? - disse Emily. Chris levantou um ombro.
- Para prevenir - respondeu ele, desafiando-a a pedir-lhe para explicar uma coisa que nem ele próprio entendia totalmente "No caso de uma bala não bastar? No caso de descobrir que depois de ver Emily morta também desejava morrer?"
A arma estava entre eles, como uma coisa viva. Emily agarrou nela, com o peso a vergar-lhe o pulso.
Chris queria dizer tantas coisas. Queria que ela lhe contasse aquele horrível segredo; queria implorar-lhe para não o fazer.
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Queria dizer-lhe que ainda ia a tempo de recuar, embora sentisse que as coisas tinham chegado a um ponto tal que nem ele próprio acreditava. Encostou os lábios aos dela, com força - uma marca mas então a boca contorceu-se num soluço e afastou-se antes de terminar o beijo, o corpo a dobrar-se sobre si próprio como se tivesse levado um soco.
- Faço isto - disse ele - porque te amo.
O rosto de Emily estava imóvel e alvo com lágrimas.
- Faço isto porque também te amo - agarrou na mão dele. Quero que me abraces - disse ela.
Chris abraçou-a, ela encostou o queixo ao seu ombro direito. Memorizou o peso sólido do corpo dela, e a vida que a atravessava como uma corrente, antes de se afastar ligeiramente para dar a Emily espaço para apontar a arma à cabeça.
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PRESENTE
Maio de 1998
Randi Underwood pediu desculpa ao júri.
- Trabalho à noite - explicou ela -, mas não queriam manter-vos acordados até à altura em que costumo estar mais lúcida. Acabara de fazer um turno de trinta e seis
horas no hospital, onde era médica assistente nas urgências. - E se eu tentar entubar alguém com uma caneta, batam-me.
Jordan sorriu.
- Agradecemos-lhe muito por estar aqui presente, Dr.a Underwood.
- Repare - sorriu a testemunha. - Que importância têm algumas horas de sono?
Era uma mulher corpulenta, ainda vestindo um fato operatório do hospital com um padrão de pequenos flocos de neve. Jordan já estabelecera a identidade dela para que ficasse registado.
- Dr.a Underwood - prosseguiu -, estava de serviço na noite de sete de Novembro, quando a Emily Gold foi transportada para o serviço de urgências do Bainbridge Memorial?
- Sim, estava.
- Lembra-se dela?
- Lembro. Era muito jovem, e são sempre esses os que custam mais a ver. De início havia grande actividade em volta dela, estava em paragem cardio-respiratória quando os paramédicos a trouxeram, mas parece que tudo acabou em questão de segundos, e ela foi declarada morta quando estava num cubículo no serviço de urgências.
- Compreendo. O que aconteceu a seguir?
- Bem, o procedimento normal é que alguém identifique o corpo antes de ser transportado para a morgue. Disseram-nos que os pais estavam a chegar. Por isso, comecei a limpá-la.
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- Limpá-la?
- É o normal - disse ela. - Sobretudo quando há muito sangue; é mais difícil para os familiares ver muito sangue. Basicamente limpei-lhe as mãos e o rosto. Ninguém
nos disse que não devíamos lavá-la.
- A que se refere?
- Em investigações policiais, provas são provas, e um cadáver também constitui uma prova. Mas os agentes que a trouxeram disseram que se tratava de um suicídio Ninguém
da polícia nos disse para tratarmos do caso de outra forma; não apareceu ninguém para submetê-la a testes nem nada.
- Lavou-lhe especificamente as mãos?
- Lavei. Lembro-me de que ela tinha um lindo anel de ouro, um daqueles desenhos celtas, sabe?
- E quando saiu do cubículo?
- Quando o pai da rapariga entrou para identificar o corpo disse ela.
Jordan sorriu para a testemunha.
- Obrigado - disse ele -, não tenho mais perguntas.
Tal como Jordan esperava, Barrie Delaney recusou contra-interrogar a médica assistente. Não podia fazer-lhe muitas perguntas sem que a sua testemunha principal, a detective Marrone, parecesse uma idiota. Por isso Jordan chamou o Dr. Linwood Karpagian a depor, pensando, ao observar o homem, que devia a Selena uma dúzia de rosas por tê-lo encontrado.
O júri não conseguia tirar os olhos de cima do Dr. Karpagian parecia Cary Grant no seu melhor, de cabelos grisalhos ondulados nas têmporas e mãos bem cuidadas que
pareciam ser capazes de conter a nossa confiança, quanto mais qualquer coisa mais convencionalmente concreta. Sentou-se com à vontade no banco das testemunhas, acostumado
a ser o centro das atenções.
- Meritíssimo - disse Barrie -, peço permissão para me aproximar. Puckett fez sinal para que os advogados se aproximassem, e
Jordan ergueu as sobrancelhas, à espera de ouvir o que Barrie tinha a dizer.
- Para o registo do Tribunal de Recursos, ainda objectamos esta testemunha.
- Dr.a Delaney - disse o juiz Puckett -, já deliberei sobre este assunto na sua moção anterior ao julgamento.
Enquanto Barrie regressava à sua mesa, Jordan pediu ao Dr. Karpagian para enunciar as suas credenciais, impressionando ainda mais o júri.
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- Doutor - disse ele -, com quantos adolescentes já trabalhou?
- com milhares - disse o Dr. Karpagian. - Não podia começar por reduzir esse número.
- E quantos tinham uma natureza suicida?
- Oh, já trabalhei com mais de quatrocentos adolescentes com tendências suicidas. Claro, sem contar com os perfis de outros adolescentes suicidas referidos nos três livros que escrevi sobre o assunto.
- Então publicou os seus estudos?
- Sim. Para além dos livros, publiquei trabalhos no Jornal de Aconselhamento e Psicologia Clínica e no Jornal de Psiquiatria Infantil Anómala.
- Visto que não estamos tão familiarizados com o fenómeno do suicídio na adolescência como o doutor, podia dar-nos uma perspectiva geral das suas características?
- com certeza. O suicídio na adolescência é uma epidemia alarmante, que aumenta todos os anos. Para um adolescente, o suicídio é encarado como uma afirmação simultânea de força e desespero. Os adolescentes precisam, acima de tudo, que os levem a sério. E o mundo de um adolescente gira em torno de si próprio. Ora, imaginem um adolescente perturbado com um problema. Os pais afastam-no, por não quererem aceitar que o filho está perturbado ou porque não têm tempo para ouvi-lo. E em resposta o adolescente pensa: "Ah, é sim? Ora bem, vejam o que eu sou capaz de fazer." E suicida-se. Não pensa em estar morto. Encara o suicídio como uma maneira de resolver o problema, de acabar com o sofrimento, e de dizer: "Aí têm!" de uma vez só.
- Há algum estudo que enuncie as percentagens de suicídios no sexo masculino e no sexo feminino?
- As raparigas tentam suicidar-se três vezes mais do que os rapazes, mas estes são bem-sucedidos muito mais vezes.
- A sério? - Jordan fingiu admiração. Na realidade, ele e o Dr. Karpagian tinham ensaiado este testemunho durante horas na semana anterior, e nada do que o doutor dissesse poderia surpreendê-lo. - Porquê?
- Bem, quando as raparigas tentam suicidar-se, utilizam frequentemente métodos menos decisivos. Comprimidos ou envenenamento por monóxido de carbono - os quais requerem um longo período de tempo para funcionarem, durante o qual a vítima é muitas vezes encontrada ainda com vida e levada para o hospital. Por vezes cortam os pulsos, mas a maioria das vezes utilizam a lâmina para fazer um corte lateral, sem se aperceberem de que a
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maneira mais rápida de morrer é fazer um corte vertical, ao longo da artéria. Por outro lado - disse ele -, os rapazes tendem a utilizar armas, ou a enforcar-se. Ambos os métodos são rápidos, a morte ocorre antes de alguém poder salvá-los ou impedi-los de se suicidarem.
- Compreendo - disse Jordan. - Há algum determinado tipo de adolescente mais predisposto a suicidar-se do que os outros?
- Isso é uma questão intrigante - disse o Dr. Karpagian, com a vivacidade do interesse académico nos olhos. - Um adolescente pobre tem as mesmas probabilidades de tentar suicidar-se do que um rico. Não há um verdadeiro perfil socioeconómico entre os adolescentes suicidas.
- Existem alguns comportamentos que sobressaiam e nos digam: "Esperem, este jovem está prestes a suicidar-se!"
- A depressão - disse Karpagian sem rodeios. - Pode ser algo que exista há anos; pode ser bastante rápido, em apenas alguns meses. O próprio suicídio é muitas vezes provocado por um determinado acontecimento, que, acompanhado da depressão, parece demasiado esmagador para ser aceite.
- Esta depressão é evidente para as pessoas que conhecem o adolescente?
- Bem, sabe, Dr. McAfee, esse é um dos problemas. A depressão pode manifestar-se de diversas maneiras. Nem sempre é notória para os amigos e para a família. Há determinados sinais de comportamento suicida que os psicólogos reconhecem e que devem ser levados a sério, caso se manifestem. Mas, alguns adolescentes não mostram nenhum sinal, e alguns mostram-nos todos.
- Quais são esses sinais, doutor?
- Por vezes constatamos uma preocupação com a morte. Ou uma mudança dos hábitos alimentares ou de sono. Comportamento rebelde. Afastamento das pessoas, ou mesmo fuga. Alguns adolescentes suicidas mostram-se permanentemente entediados, ou apresentam dificuldades de concentração. Pode haver evidência de consumo de álcool e drogas, descida das notas. Podem negligenciar o seu aspecto, mostrar alterações de personalidade, ou apresentarem queixas psicossomáticas. Às vezes, vemos jovens que abdicam dos seus bens mais preciosos ou dizem piadas sobre o suicídio. Mas, tal como disse, por vezes, não vemos nada disto.
- Faz-me lembrar muitos adolescentes perfeitamente normais que eu conheço - disse Jordan.
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- Precisamente - disse o psicólogo. - É por isso que é tão difícil fazer um diagnóstico precoce.
Jordan agarrou num documento, uma colecção de informações clínicas de Emily Gold e de entrevistas aos seus vizinhos, amigos e familiares feitas por Selena e pela polícia.
- Doutor, teve oportunidade para examinar o perfil da Emily Gold?
- Sim, tive.
- E o que dizem os amigos e familiares sobre ela?
- Basicamente, os pais não se aperceberam de nenhuma depressão. Os amigos também não. Os comentários da professora de Arte sugerem que embora a Emily não tivesse dito que estava perturbada, os trabalhos dela tornaram-se macabros. Lendo nas entrelinhas, parece-me que a Emily andava a isolar-se nas semanas anteriores à sua morte. Passava muito tempo com o Chris, o que também corrobora um pacto de suicídio.
- Um pacto de suicídio. O que significa isso realmente?
- Duas ou mais mortes planeadas para ocorrerem juntas. Na verdade, trata-se de uma ideia bastante bizarra para um adulto: ter-se uma influência tão grande sobre outra pessoa que a leve a suicidar-se também - sorriu tristemente para o júri. - A maioria de vós já esqueceu, provavelmente por boas razões, como era ter dezasseis
anos ou dezassete; como era crucialmente importante ter a compreensão e admiração de alguém. Crescemos, e torna-se tudo mais relativo. Mas para um adolescente, aquela
relação próxima é fulcral. Sente-se tão ligado a essa pessoa que usa o mesmo tipo de roupa, ouve o mesmo tipo de música, faz o mesmo tipo de coisas para se divertir
e pensa da mesma forma. Só é preciso que um adolescente tenha a ideia de se suicidar. Há uma série de razões psicológicas para um segundo adolescente decidir que é uma boa ideia.
O Dr. Karpagian olhou para Chris, como se agora estivesse a analisá-lo.
- Os adolescentes que decidem suicidar-se juntos são normalmente muito chegados. Mas, assim que tomam a decisão de suicidarem-se, esse pequeno mundo torna-se ainda mais pequeno. Só confiam um no outro. Só desejam ver-se um ao outro. E tudo se vai reduzindo, até a única coisa importante ser o acto de suicidar-se; o planeamento, o próprio evento. Vão fazer uma afirmação colectiva para toda a gente que está fora desse pequeno mundo, as pessoas que não os compreendem.
- Dr. Karpagian, baseando-se no perfil da Emily, ela parecia suicida?
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- Sem a ter conhecido, o máximo que posso dizer é que é totalmente possível que estivesse suficientemente deprimida para se suicidar.
Jordan acenou com a cabeça.
- Afirma que não é preciso que haja um sinal evidente no perfil? Que uma rapariga que aparenta ser uma adolescente bastante normal, mas que se isole um pouco, pode ser suicida?
- Já houve casos anteriores - disse o Dr. Karpagian.
- Compreendo - concentrou-se nas suas notas. - Teve oportunidade para examinar o perfil do Chris?
Por grande insistência de Jordan, Selena criara um perfil através de conversas com familiares e amigos e suscitando comentários, de forma muito semelhante ao perfil de Emily. Sabendo - embora relutantemente - que Chris nunca pensara em suicidar-se, não ia resultar colocá-lo frente a frente com um especialista, e depois colocar esse especialista no banco das testemunhas depois de ter jurado dizer a verdade.
- Realmente examinei-o. E a coisa mais importante que vi no perfil do Chris Harte foi a sua preocupação com a Emily Gold. Fui psicólogo muito antes de me especializar
em suicídio, sabe, e existe um termo específico para o tipo de relação que se desenvolveu entre o Chris e a Emily ao longo dos anos.
- Qual é?
- Fusão - sorriu para o júri. - Como na física. Significa que duas personalidades ficaram tão ligadas uma à outra que se criou uma nova personalidade, e as personalidades
isoladas deixaram de existir.
Jordan ergueu as sobrancelhas.
- Podia explicar isso outra vez?
- Em termos simples - disse o Dr. Karpagian -, significa que a mente e a personalidade do Chris e da Emily estavam tão ligadas que não havia realmente distinção entre eles. Tornaram-se tão chegados que deixaram de funcionar um sem o outro. Qualquer coisa que acontecesse a um destes jovens ia afectar o outro. E no caso da morte de um deles, o outro não seria capaz de continuar a viver, literalmente - olhou para Jordan. - Isso faz mais sentido?
- É mais claro - disse Jordan -, mas é difícil de aceitar. O Dr. Karpagian sorriu.
- Parabéns, Dr. McAfee. Isso significa simplesmente que é mentalmente saudável.
Jordan sorriu.
- Não sei se a Dr.a Delaney concordaria com isso, doutor, mas agradeço-lhe - o júri soltou um riso abafado atrás dele. - Então na
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sua opinião de especialista, Dr. Karpagian, chegou a alguma conclusão relativamente ao Chris Harte e à Emily Gold?
- Sim. Para mim a Emily é que era suicida por alguma razão. E, é importante ter isto em conta, podemos nunca chegar a saber que razão era essa. Mas qualquer coisa
a fez ficar deprimida e a morte parecia uma saída. Recorreu ao Chris, porque ele era sem dúvida a pessoa mais chegada, e disse-lhe que ia suicidar-se. Mas assim que fez essa confidência a Chris, ele apercebeu-se de que, se a Emily morresse, deixaria de haver razão para continuar a viver.
Jordan observou o júri.
- Então está a afirmar que a razão pela qual a Emily queria suicidar-se não era a mesma do Chris?
- Não. O mais provável é o simples facto de Emily querer suicidar-se ter levado Chris a aceitar fazer um pacto de suicídio.
Jordan fechou os olhos por um instante. Para ele, era a maior dificuldade da sua defesa - fazer o júri acreditar que aqueles dois jovens podiam ter tido aquela ideia terrível juntos. O doutor, graças a Deus - ou a Selena, que o encontrara - tinha feito isso parecer possível.
- Mais uma coisa - disse Jordan. - A Emily comprou um presente muito caro para uma pessoa vários meses antes de se suicidar. O que diria sobre esse tipo de comportamento?
- Oh, isso é uma pista - disse o Dr. Karpagian. - Qualquer coisa que planeava deixar para alguém, para garantir que não seria esquecida.
- Então a Emily comprou este presente para comunicar a toda a gente que estava a pensar em suicidar-se?
- Objecção - gritou Barrie. - Está a guiar a testemunha.
- Meritíssimo, isto é muito importante - argumentou Jordan.
- Então reformule, Dr. McAfee.
Jordan virou-se novamente para o Dr. Karpagian.
- Na sua opinião de especialista, por que razão compraria Emily um presente caro como aquele relógio, se realmente pensava suicidar-se?
- Diria - afirmou o psicólogo, pensativo -, que a Emily comprou o relógio antes de decidir suicidar-se e envolver o Chris num pacto de suicídio. E pode ter sido realmente caro, mas isso não importa - sorriu tristemente para o advogado. - Quando uma pessoa se vai suicidar, a última coisa em que pensa é em ser reembolsada.
- Obrigado - disse Jordan, e sentou-se.
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Barrie tinha a cabeça a andar à roda. Tinha de fazer um especialista parecer um idiota, e não tinha conhecimentos absolutamente nenhuns naquela área.
- Muito bem, doutor - disse ela, manipuladora -, o senhor examinou o perfil da Emily. E referiu muitas características que os adolescentes por vezes apresentam quando são suicidas - agarrou no bloco jurídico, coberto de notas. - Insónia é uma delas?
- Sim.
- E verificou isso no perfil da Emily?
- Não.
- Encontrou alterações inexplicáveis dos hábitos alimentares no perfil?
- Não.
- A Emily exibia um comportamento rebelde?
- Que eu visse, não.
- E fuga?
- Não.
- Estava preocupada com a morte?
- Não manifestamente.
- Parecia estar entediada, ou ter dificuldades em concentrar-se?
- Não.
- Consumia álcool ou drogas?
- Não.
- Faltava às aulas?
- Não.
- Negligenciava o seu aspecto?
- Não.
- Queixava-se de doenças psicossomáticas?
- Não.
- Dizia piadas sobre o suicídio?
- Parece que não.
- Então as únicas características que o levaram a achar que a Emily podia ser suicida são o facto de se isolar ligeiramente e de se mostrar irritável. Isso não é bastante normal em noventa por cento das mulheres, pelo menos uma vez por mês?
O Dr. Karpagian sorriu.
- Posso dizer que é verdade - disse ele.
- Então, visto que não apresentava a maior parte destas características, a Emily podia não ser suicida?
- É possível - disse o psicólogo.
- Os poucos sinais que a Emily realmente apresentava, na sua opinião, constituem um comportamento normal num adolescente?
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- Sim, frequentemente.
- Muito bem. Ora, trabalhou a partir de um perfil da Emily, não é verdade?
-É.
- Quem elaborou esse perfil?
- Acho que foi a investigadora da defesa, a Sr.a Damascus, que o coligiu. Houve uma série de entrevistas realizadas por ela e pelo Estado, a amigos e familiares da adolescente em questão.
- Segundo o seu testemunho, o Chris Harte era a pessoa mais chegada à Emily Gold. As observações dele fazem parte do perfil dela?
- Bem, não. Não foi interrogado.
- Mas era a ele que Emily mais recorria durante aquelas últimas semanas?
- Sim.
- Então ele talvez pudesse dizer-lhe se ela apresentava ou não alguma daquelas características que enumerámos. Provavelmente saberia mais do que qualquer outra pessoa.
- Sim.
- Mas não falou com ele, apesar de ser obviamente a sua melhor fonte de informação?
- Estávamos a tentar fazer uma avaliação sem o contributo do Chris, para ser totalmente imparcial.
- Não era essa a pergunta, doutor. A pergunta era: "O senhor entrevistou o Chris Harte?"
- Não, não entrevistei.
- Não entrevistou o Chris Harte. Ele estava vivo e disponível, mas nem sequer foi consultado, embora fosse a melhor testemunha que tinha relativamente ao comportamento da Emily antes da sua morte. À excepção da própria Emily, isto é - Barrie imobilizou a testemunha com o olhar. - E o senhor não podia entrevistar a Emily, pois não?
Kim Kenly apareceu para a sua breve estadia no tribunal vestindo uma túnica tingida, com centenas de pequenas mãos imprimidas.
- Não é linda - disse ela ao oficial de justiça que a acompanhou ao banco das testemunhas. - Os alunos da infantil ofereceram-ma.
Jordan estabeleceu as credenciais dela e, em seguida, perguntou à Dr.a Kenly como é que conhecia Emily Gold.
- Fui professora de Arte dela ao longo do liceu - disse. A Emily era incrivelmente talentosa. Devem compreender que, como professora de uma disciplina opcional,
vejo quinhentos alunos
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por dia. A maior parte deles limita-se a passear pela sala e a deixar uma confusão atrás de si. Há alguns que não desistem, e mostram ter uma verdadeira afinidade
com a disciplina. Talvez um ou dois tenham talento. Bem, a Emily era a jóia mais rara. Aparece um aluno assim de dez em dez anos, acho eu: um aluno que não só adora
a arte mas também sabe aproveitar ao máximo as suas capacidades.
- Parece ser muito especial.
- Talentosa - disse Kim. - E dedicada. Passava todos os tempos livres na sala de Arte. Até tinha o seu próprio cavalete montado ao fundo da sala,
Jordan agarrou numa série de telas que o oficial de justiça trouxera juntamente com a Dr.a Kenly.
- Tenho aqui vários quadros para registar como provas - disse ele, ficando à espera que estes fossem examinados por Barrie e devidamente etiquetados pelo oficial de diligências. - Pode falar-nos destes quadros?
- Claro. O rapaz com o chupa-chupa foi um que ela fez no nono ano. O quadro do décimo ano, a mãe com o filho, está mais desenvolvido, está a ver, na estrutura facial? Mais natural? As figuras são também mais tridimensionais. O terceiro quadro, bem, é evidente que é um retrato do Chris.
- Do Chris Harte? Kim Kenly sorriu.
- Dr. McAfee - disse ela -, não consegue perceber?
- Consigo - assegurou-lhe. - Mas o registo do tribunal não consegue.
- Muito bem, então, sim. O Chris Harte. Em todo o caso, a Emily capturou a expressão do rosto do modelo, bem como o realismo das feições. Na verdade, o trabalho da Emily sempre me fez lembrar um pouco as obras de Mary Cassatt.
- Ora bem - disse Jordan. - Agora perdi-me. Quem é a Mary Cassat?
- Uma pintora do século XIX que representava frequentemente mães e filhos. A Emily também, e também dedicava a mesma atenção aos pormenores e às emoções.
- Obrigado - disse Jordan. - Então os quadros da Emily foram-se desenvolvendo de maneira bastante lógica à medida que progredia no liceu?
- Tecnicamente sim. Desde o início que havia um grande empenho, mas à medida que foi progredindo, do nono para o décimo segundo ano, deixei de ver o que ela pensava dos seus
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modelos representados, e passei a ver o que eles pensavam de serem representados. É algo que raramente se vê em pintores amadores, Dr. McAfee. É um sinal de verdadeiro refinamento.
- Reparou em alguma mudança de estilo da Emily?
- Bem, por acaso reparei. No Outono passado ela estava a trabalhar num quadro que era tão radicalmente diferente do seu trabalho habitual, que realmente me surpreendeu.
Jordan agarrou no último quadro a ser registado como prova. A caveira a pairar, com as suas órbitas preenchidas por nuvens de tempestade e a língua pendurada, captou a atenção do júri. Uma mulher tapou a boca com a mão e disse:
- Oh, meu Deus.
- Também foi isso que eu pensei - disse Kim Kenly, acenando com a cabeça para a jurada. - Como podem ver, já não se trata de realismo. É surrealismo.
- Surrealismo - disse Jordan. - Pode explicar-nos?
- Já toda a gente viu quadros surrealistas. Dali, Magritte perante o olhar vago de Jordan, ela suspirou. - Dali. O homem que pintou os relógios a escorrer?
- Oh, é verdade - lançou um olhar rápido para o júri. Tal como qualquer grupo escolhido ao acaso no Condado de Grafton, a sua composição era um estudo de contradições. Um professor de economia de Dartmouth estava sentado ao lado de um homem que Jordan apostava nunca ter saído da sua quinta de produção de leite em Orford em toda a sua vida. O professor de Dartmouth parecia entediado, e, provavelmente, sabia quem era Dali desde o início. O agricultor escrevia no bloco de notas. - Dr.a Kenly, quando é que a Emily pintou isto?
- Começou em finais de Setembro. Não estava totalmente acabado quando ela... morreu.
- Não? Mas está assinado.
- Sim - disse a professora de arte franzindo a testa. - E tem um título. É evidente que ela pensou que estava prestes a acabar.
- Pode dizer-nos que título deu a Emily a este quadro?
A longa unha vermelha de Kim Kenly pairou por cima dos contornos da caveira, pela ampla língua e as nuvens a passar nas órbitas, acabando por pousar nas palavras ao lado da assinatura da artista.
- Aqui mesmo - apontou -, "Auto-Retrato".
Durante um minuto Barrie Delaney ficou a observar o quadro, com o queixo apoiado na mão. Depois suspirou e levantou-se.
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- Bem, não consigo perceber bem - admitiu a Kim Kenly. - E a senhora?
- Não sou nenhuma especialista... - começou Kim a dizer.
- Não - interrompeu Barrie. - Mas fique descansada, a defesa já encontrou um. Mas estava a pensar que, como professora de Arte da Emily, podia ter-lhe perguntado por que razão estava a pintar um quadro tão perturbador.
- Realmente mencionei que era muito diferente daquilo que habitualmente pintava. E ela disse que era o que lhe apetecia pintar na altura.
Barrie começou a andar para trás e para a frente diante do banco das testemunhas.
- É raro que os pintores experimentem diferentes meios e estilos?
- Não.
- A Emily alguma vez experimentou a escultura?
- Uma vez, por pouco tempo, no décimo ano.
- E cerâmica?
- Um pouco.
Barrie acenou com a cabeça, encorajando-a.
- E aguarelas?
- Sim, mas preferia tintas de óleo.
- Mas ocasionalmente a Emily fazia um quadro que destoava?
- Claro.
Barrie aproximou-se lentamente do quadro da caveira.
- Dr.a Kenly, quando a Emily experimentou as aguarelas pela primeira vez, reparou em alguma coisa diferente na atitude dela?
-Não.
- Quando experimentou a escultura, reparou em alguma alteração no comportamento dela?
- Não.
Barrie agarrou no quadro com a caveira.
- Quando pintou este quadro, Dr.a Kenly, comportava-se de maneira notoriamente diferente do habitual?
- Não.
- Não tenho mais perguntas - disse Barrie, e voltou a colocar o quadro na mesa das provas, virado ao contrário.
À entrada do tribunal havia uma zona com cadeiras, colocadas como uma charneira entre as duas salas de audiência. Todos os dias as cadeiras eram ocupadas por advogados perturbados, pessoas à espera de acusações formais e testemunhas que foram avisadas para
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não falarem umas com as outras. Nos dois dias anteriores, Michael estivera sentado numa das extremidades da recepção com Melanie; Gus estivera sentada na outra.
Mas aquele era o primeiro dia em que Melanie era autorizada a participar no julgamento, para apresentar o seu testemunho. Gus ocupara o lugar do costume, tentando desesperadamente ler o jornal e não reparar quando Michael entrasse.
Quando ele se sentou ao lado dela, dobrou o jornal.
- Não devias - disse ela.
- Não devia o quê?
- Sentares-te aqui.
- Porquê? Desde que não falemos em nada relacionado com o caso, não faz mal.
Gus fechou os olhos.
- Michael, o simples facto de estarmos os dois a respirar o mesmo ar nesta sala está relacionado com o caso. O simples facto de tu seres tu, e eu ser eu.
- Viste o Chris?
- Não, vou vê-lo hoje à noite - Gus virou-se, pensando melhor. -E tu?
- Acho que não seria correcto - disse ele. - Sobretudo se testemunhar hoje.
Gus esboçou um leve sorriso.
- Tens uma noção estranha de moralidade.
- O que queres dizer com isso?
- Nada. É que já vais testemunhar a favor da defesa. O Chris deve querer agradecer-te pessoalmente por isso.
- Claro. vou testemunhar a favor da defesa. E hoje à noite provavelmente vou sair e apanhar uma bebedeira para esquecer isso.
Gus virou-se no assento.
- Não faças isso - disse ela, pousando-lhe a mão no braço. Ambos olharam para ela, irradiando calor.
- Então vens comigo? - perguntou ele. Gus abanou a cabeça.
- Tenho de ir à prisão - disse suavemente. - Pelo Chris. Michael desviou o olhar.
- Tens razão - disse ele pausadamente. - Devemos sempre fazer o que é melhor para os nossos filhos - e levantou-se e dirigiu-se para o fundo do corredor.
- Dr.a Vernon - disse Jordan -, a senhora é terapeuta de Arte.
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- É verdade.
- Pode explicar-me o que isso é? - esboçou um sorriso cativante. - Aqui no New Hampshire não há muitos terapeutas de Arte.
Realmente, Sandra Vernon tinha vindo de Berkeley. Tinha um bronzeado californiano, cabelos curtos platinados, e um doutoramento em psicologia pela UCLA.
- Bem, trabalhamos na área da saúde mental. Normalmente quando somos chamados damos orientações em que pedimos ao cliente para desenhar qualquer coisa específica, como uma casa, uma árvore ou uma pessoa. E baseando-nos no desenho e no estilo do mesmo, podemos tirar conclusões sobre a sua saúde psicológica.
- Isso é incrível - disse Jordan, verdadeiramente admirado. Olha para um rabisco e consegue perceber em que as pessoas estão a pensar?
- Sem dúvida. No caso de crianças muito pequenas, que não conhecem as palavras para contar-nos as coisas, conseguimos averiguar se sofreram abusos sexuais ou físicos, e coisas do género.
- Já trabalhou com adolescentes?
- Ocasionalmente, sim.
Jordan colocou-se atrás de Chris, pousando-lhe a mão no ombro de forma bastante intencional.
- Já trabalhou com adolescentes profundamente deprimidos e suicidas?
-Já.
- É capaz de olhar para um desenho de um adolescente e encontrar sugestões de abuso sexual ou de tendências suicidas?
- Sim - disse Sandra. - As imagens muitas vezes representam sentimentos inconscientes que estão a ser reprimidos, demasiado sensíveis para emergirem à superfície de outra maneira.
- Então pode conhecer uma criança que não exterioriza os seus sentimentos mas ao ver os desenhos que ela faz ver que há algo na vida dela que a perturba intensamente?
- Sem dúvida.
Jordan aproximou-se da mesa das provas e agarrou no quadro que Emily pintara de uma mãe com o filho no décimo ano.
- Podia descrever-me o estado de espírito da pessoa que pintou este quadro?
Sandra tirou um par de óculos ao estilo dos anos cinquenta do bolso e colocou-os no nariz.
- Bem, parece-me ser um trabalho de uma pessoa estável e
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bem adaptada. Vemos que o rosto e as mãos estão bem proporcionados; que existe um forte elemento de realismo; que nada parece ser verdadeiramente fora do normal ou exagerado; foram utilizadas cores alegres.
- Muito bem - Jordan agarrou no quadro com a caveira. E este?
Sandra Vernon levantou as sobrancelhas.
- Bem - disse ela. - Este é muito diferente.
- Podia dizer-nos o que vê nele?
- Claro. Em primeiro lugar, há uma caveira. Isso diz-me desde já que há provavelmente uma preocupação com a morte. Mas a forma como as cores vermelho e negro são justapostas no fundo é ainda mais reveladora: é uma sugestão documentada de suicídio, em muitos estudos de terapia de Arte. Também há um céu nublado. Muitas vezes vemos quadros de nuvens ou de chuva quando as pessoas estão deprimidas e ou apresentam tendências suicidas... mas ainda mais perturbadora é a forma como a artista colocou as nuvens no espaço onde os olhos deviam estar. Os olhos simbolizam os pensamentos de uma pessoa. Diria que a escolha da artista ao colocar uma tempestade a formar-se nas órbitas sugere nitidamente que pensa em suicidar-se.
Inclinou-se por cima da balaustrada do compartimento das testemunhas.
- Posso... podia aproximá-lo um pouco mais? -Jordan passou o quadro por cima e apoiou-o entre Sandra e o juiz. - Alguns pormenores do quadro também são bastante perturbadores. É pintado ao estilo surrealista...
- Isso é importante?
- Não, não propriamente. Mas a composição deste quadro é. Podemos ver que embora a caveira seja só osso, também tem longas pestanas bem desenvolvidas e uma língua bastante realista a sair-lhe da boca. Esses aspectos lançam-me sinais de aviso relativamente a abuso sexual.
- Abuso sexual?
- Sim. As vítimas de abuso sexual concentram-se em línguas, pestanas e objectos em forma de cunha. Cintos também - olhou para o quadro de olhos semicerrados, reflectindo. - E a caveira está a flutuar no céu. Normalmente quando vimos alguém representar uma imagem de um corpo a flutuar sem mãos ou uma cabeça separada, isso indica que essa pessoa não tem controlo sobre a sua vida. Não tem os pés assentes no chão, por assim dizer, por isso não conseguem afastar-se daquilo que os perturba.
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Jordan voltou a colocar o quadro na mesa das provas.
- Dr.a Vernon, se examinasse este quadro a nível profissional, qual seria a sua recomendação clínica para a artista?
Sandra Vernon abanou a cabeça.
- Ficaria bastante preocupada com o estado mental da artista, relativamente à depressão a até mesmo ao suicídio - disse ela. Sugeria-lhe que consultasse um terapeuta.
Melanie mexeu-se na cadeira. Era o primeiro dia em que podia ouvir os testemunhos, visto já ter desempenhado a sua função enquanto testemunha. E, de todos os testemunhos que queria ouvir, o desta mulher de Berkeley era o mais perturbador. "Línguas. Pestanas. Objectos em forma de cunha."
"Sinais de aviso; abuso sexual."
As mãos cerraram-se no colo, e lembrou-se nitidamente da sensação do diário de Emily, que encontrara enfiado atrás do painel apodrecido do roupeiro. Que lançara para o lume.
Que lera até ao fim.
Melanie passou pelas outras pessoas na fila dela aos empurrões e saiu da sala de audiências, passando por Gus Harte, pelo marido e por centenas de outras pessoas, até que chegou à casa de banho das senhoras e vomitou no chão.
- Dr.a Vernon, frequentou a Escola de Belas-Artes?
- Sim - disse Sandra, sorrindo para a promotora de justiça. Quando os dinossauros ainda andavam por aqui.
Barrie não esboçou o mais leve sorriso.
- Não é verdade que precisou de reunir entre quinze e vinte slides dos seus trabalhos para enviar para uma Escola de Belas-Artes juntamente com a sua candidatura?
-É.
- Este quadro não podia ilustrar um estilo artístico alternativo para essa Escola de Belas-Artes, para exibir a amplitude das capacidades da artista?
- Por acaso, as Escolas de Belas-Artes preferem saber que um artista é bastante coerente.
- Mas não será isso possível, Dr.a Vernon? -É.
Barrie aproximou-se e tirou duas caixas de plástico de dentro da pasta.
- Gostaria de registá-los como provas - disse ela, colocando os dois CDs em cima da mesa das provas para serem etiquetados. -
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Dr.a Vernon, estes são CDs retirados do quarto da Emily Gold. Pode descrevê-los?
A terapeuta tirou os discos da mão estendida da promotora de justiça.
- Um é um CD de Grateful Death - disse ela. - Bastante bom, devo acrescentar.
- O que vê na capa?
- Uma caveira a flutuar sobre um fundo psicodélico..
- E o outro? - perguntou Barrie.
- Os Rolling Stones. com uma boca e uma longa língua na capa.
- Já conheceu adolescentes que reproduzissem arte que fosse importante para eles, Dr.a Vernon?
- Sim, vemos isso com bastante frequência. Faz parte da adolescência.
- Então é perfeitamente possível que a artista que pintou a caveira estivesse apenas a copiar elementos da capa de alguns dos seus CDs preferidos?
- É sem dúvida possível.
- Obrigada - disse Barrie, voltando a guardar os CDs.
- Também referiu que certos elementos que viu no quadro a deixaram perturbada. Pode citar-me alguma fonte específica que afirme que as nuvens significam suicídio?
- Bem, não. Não se trata de uma fonte específica, é o resultado de estudos de muitas orientações dadas a crianças.
- Então pode indicar-nos o nome de um estudo que afirme que uma língua a sair de uma boca indica abuso sexual?
- Mais uma vez, trata-se de uma compilação de vários casos.
- Então não pode afirmar, especificamente, que por haver negro e vermelho num quadro, a pessoa que o pintou vai suicidar-se.
- Bem, não. Mas em noventa por cento dos quadros em que existe vermelho e negro representados desta forma, verificámos que os artistas tinham ideias suicidas.
Barrie sorriu.
- É interessante que diga isso - tirou um póster, e mostrou-o a Jordan.
- Objecção - disse ele imediatamente, dirigindo-se ao lugar do juiz. - Mas que raio é aquilo? - perguntou a Barrie. - E o que tem a ver com este caso?
- Vá lá, Jordan. É um Magritte. Sei que é um imbecil em questões culturais, mas até o Jordan consegue perceber aonde eu quero chegar com a impressão deste quadro.
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Jordan virou-se para o juiz.
- Se eu soubesse que ela ia colocar um Magritte ali, teria feito uma pesquisa sobre o assunto.
- Oh, desista - disse Barrie. - Esta ideia ocorreu-me ontem à noite. Dê-me alguma margem de manobra.
- Se introduzir aquilo como prova - disse Jordan -, então eu também quero ter margem de manobra. Quero ter algum tempo para ficar a saber tudo sobre Magritte.
Barrie esboçou um sorriso doce.
- com os conhecimentos que tem sobre arte, nessa altura o seu cliente já deve ter uns setenta anos.
- Quero algum tempo para fazer uma pesquisa sobre Magritte
- repetiu Jordan. - Provavelmente andava a consultar Freud.
- vou permitir - disse Puckett.
- O quê? - exclamaram Barrie e Jordan em uníssono.
- vou permitir - disse ele. - O Jordan é que trouxe uma especialista em Arte. Deixe que a Barrie lhe dê alguma coisa para poder comentar.
Quando Jordan regressou à sua mesa, Barrie registou o póster de Magritte como prova.
- Conhece este quadro?
- Claro. É um Magritte.
- Magritte?
- Foi um pintor belga - explicou Sandra. - Pintou uma série de variações sobre este tema em particular - indicou com um gesto a imagem da silhueta de um homem, com o chapéu de coco conservador cheio de nuvens.
- Consegue ver semelhanças entre este póster e o quadro que o Dr. McAfee lhe pediu para examinar?
- Claro. Há nuvens, embora as de Magritte não sejam tão tempestuosas, a preencherem não apenas os olhos mas toda a cabeça
- Sandra sorriu. - Temos de gostar de Magritte.
- Alguém gosta - murmurou Jordan entre dentes.
- Magritte fazia terapia? - perguntou Barrie.
- Não sei.
- Fez terapia depois de pintar este quadro?
- Não faço ideia.
- Estava deprimido quando pintou este quadro?
- Não sei ao certo.
Barrie virou-se para o júri, confusa,
- Então está a dizer que a terapia de Arte não é conclusiva. Não pode olhar para um quadro e afirmar, com certeza, que se alguém
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pintar uma língua realista então sofreu abusos sexuais. Ou se alguém pintar uma tempestade no lugar onde os olhos deviam estar, então é suicida. Não é verdade, Dr.a
Vernon?
- Sim - admitiu a terapeuta.
- Tenho mais uma pergunta para si - disse Barrie. - Em terapia de Arte, dá uma orientação a uma criança ou a um adolescente, certo?
- Sim. Pedimos-lhes que desenhem uma casa, uma pessoa, um cenário qualquer.
- A maioria dos estudos realizados em terapia de Arte baseia-se em orientações?
- Sim.
- Por que razão deve ser dada uma orientação?
- Uma parte da terapia de Arte - explicou Sandra - implica observar a pessoa a criar. Isso é tão importante como o produto acabado para perceber qual é o elemento perturbador.
- Pode dar-nos um exemplo?
- Claro. Uma rapariga a quem pediram para fazer um desenho da família e que hesita em desenhar o pai, ou não desenha a sua metade inferior provavelmente está a indicar abuso sexual.
- Dr.a Vernon, viu a Emily Gold pintar o retrato de uma caveira?
- Não.
- Deu-lhe uma orientação, para desenhar um auto-retrato?
- Não.
- Então o facto de estar agora a ver este quadro pela primeira vez pode alterar o grau de certeza das suposições que fizer sobre ele?
- Tenho de admitir que sim.
- Então não seria possível que a Emily Gold não tivesse ideias suicidas quando pintou este quadro e que não tivesse sofrido abusos sexuais e que... talvez aqui como o Sr. Magritte... estivesse apenas num dia mau?
- É possível - disse Sandra. - Mas por outro lado, aposto que este quadro foi pintado durante alguns meses. São muitos dias maus seguidos.
A boca de Barrie cerrou-se ao receber o golpe verbal.
- A testemunha é sua.
- vou fazer um novo interrogatório - disse Jordan. Levantou-se, aproximando-se da terapeuta de Arte. - Disse à Dr.a Delaney que não pode afirmar de forma conclusiva que nenhum dos elementos perturbadores no quadro da Emily prova que ela tivesse sofrido abusos sexuais ou que tivesse tendências suicidas. Podia
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estar apenas a experimentar um novo estilo para ser admitida na Sorbonne. Mas na sua opinião de especialista, qual será a probabilidade de isso se verificar?
- Bastante baixa. Há muitas coisas estranhas naquele quadro. Se fosse só uma ou duas - disse Sandra -, como um relógio a derreter-se, ou uma maçã no meio de um rosto, diria que ela estava a fazer experiências com o surrealismo. Mas há maneiras de exibir as suas capacidades sem recorrer a meia dúzia de coisas que causem arrepios a um terapeuta.
Jordan acenou com a cabeça, depois dirigiu-se para a mesa das provas e agarrou cuidadosamente no póster de Magritte com as pontas dos dedos.
- Ora bem, acho que o que ficou provado neste julgamento foi a minha grande falta de conhecimentos sobre arte - a terapeuta sorriu-lhe. - Por isso em relação a si estou em clara desvantagem. Mas acredito na sua palavra... e na da Dr.a Delaney... de que isto é um Magritte.
- Sim. Era um pintor maravilhoso. Jordan coçou a cabeça.
- Não sei. Não o penduraria em minha casa - virou-se para o júri, segurando no póster para que o pudessem examinar. - Ora, até eu sei que Van Gogh cortou a orelha e que os rostos de Picasso não se encaixam bem, e que, enquanto grupo, os artistas são muitas vezes pessoas muito emotivas. Sabe se o Sr. Magritte consultava um psicólogo?
- Não.
- Então podia ter um desequilíbrio mental.
- Suponho que sim.
- Pode ter sofrido abusos sexuais?
- É possível - disse Sandy.
- Infelizmente - prosseguiu Jordan -, não tive tempo para fazer uma pesquisa sobre Magritte, mas o que está a dizer é que ele, para um terapeuta de Arte, parece
sofrer de alguns problemas emocionais. Não é verdade?
Sandra riu.
- Claro.
- Também disse à Dr.a Delaney que a maior parte dos seus estudos se concentram em orientações. É por isso que diz que nunca examina desenhos ao acaso para verificar se uma criança em particular pode ter algum problema?
- Não, de vez em quando fazemos isso.
- Um pai preocupado pode trazer-lhe um desenho feito pelo filho?
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- Pode.
- E através desses desenhos consegue determinar se a criança tem algum problema?
- Muitas vezes sim.
- Quando examina um desenho que não foi feito sob orientação, com que frequência diagnostica problemas e posteriormente vem a saber que o artista precisava realmente de ajuda?
- Oh, nove vezes em cada dez - disse Sandra. - Somos bastante perspicazes.
- Infelizmente - disse Jordan -, a Emily não está aqui para que lhe dê uma orientação. Talvez se estivesse, pudesse tê-la ajudado. Mas em vez disso, e depois de ter examinado este quadro, como terapeuta certificada ficaria preocupada com a saúde mental da Emily?
- Sim, ficaria.
- Não tenho mais perguntas - Jordan sentou-se, sorrindo para Chris.
- Gostava de fazer mais algumas perguntas, meritíssimo Barrie colocou-se diante de Sandra Vernon. - Acabou de dizer ao Dr. McAfee que ocasionalmente efectua avaliações
preliminares através de trabalhos artísticos que não foram feitos sob orientação.
- Sim.
- E disse que nove em cada dez desenhos com elementos perturbadores acabam por revelar alguém com problemas mentais que precisam de ser resolvidos.
- Sim.
- Então e o que resta?
- Bem - disse Sandra. - Em geral a pessoa encontra-se normal.
Barrie sorriu.
- Obrigada - disse ela.
Joan Bertrand era uma mulher de meia-idade de aspecto simples cujos olhos verdes sonhadores revelavam horas passadas a imaginar-se nos maiores romances mundiais,
talvez até contracenando com os seus alunos preferidos do sexo masculino. Alguns minutos depois de se ter sentado no banco das testemunhas em defesa de Chris, a
professora de Inglês dele conseguiu transmitir que não só ele era um aluno muito querido, como tinha potencial - em sua opinião - para ser uma das próximas grandes mentes do século XX. Jordan sorriu de dentes cerrados. Lá fora, quando os seus adereços eram apenas um quadro negro e fileiras
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de secretárias dos alunos, Bertrand não parecera tão fanática como numa sala de audiências.
- Que tipo de aluno é o Chris?
Joan Bertrand cruzou as mãos sobre o coração.
- Oh, excelente. Não me parece que alguma vez lhe tenha dado menos do que um Muito bom. É o tipo de aluno sobre o qual os docentes falavam na sala dos professores, sabe, "Quem é que vai dar aulas de Estudos Sociais ao Chris Harte neste período?" e coisas assim.
- Ele foi seu aluno no Outono passado?
- Sim, durante três meses.
- Dr.a Bertrand, reconhece isto? - Jordan mostrou um ensaio cuidadosamente dactilografado.
- Sim - disse ela. - O Chris escreveu isto para Inglês Avançado. Foi entregue na última semana de Outubro.
- Qual era o tema?
- Escrever um ensaio argumentativo. Disse aos alunos que escolhessem um tema que dividisse opiniões, um assunto bastante polémico, e defendessem um dos lados de acordo com as suas convicções pessoais. Tinham de elaborar uma tese, apoiá-la, desacreditar a antítese e chegar a uma conclusão.
Jordan pigarreou.
- Eu era quase tão mau a Inglês como a Arte - disse Jordan, cheio de um encanto modesto. - Podia explicar novamente?
A Dr.a Bertrand sorriu timidamente.
- Tinham de escolher um assunto, enumerar os prós e os contras e chegar a uma conclusão.
- Ah - disse Jordan. - Agora percebi muito melhor.
- A maior parte dos alunos do segundo ano da faculdade não consegue fazer isto. Mas o Chris saiu-se muito bem.
- Pode dizer-nos qual o tema do ensaio do Chris, Dr.a Bertrand?
- O aborto.
- E de que lado estava ele?
- Defendia o direito à vida de forma muito apaixonada.
- Os alunos tinham realmente de acreditar nos assuntos sobre os quais escreviam?
- Sim. Alguns não acreditavam, claro, mas reunimo-nos várias vezes em conferências de escrita, e posso afirmar, por ter conversado com o Chris, que ele tinha convicções bastante fortes.
- Podia ler, Dr.a Bertrand, a parte que está assinalada ao fundo da página quatro?
A professora segurou no papel à distância de um braço, semicerrando os olhos.
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- "Não se trata realmente de uma escolha. É contra a lei tirar a vida a alguém, e essa lei deve ser universalmente aplicada. Afirmar que um feto não é uma vida é evadirmo-nos à verdade, uma vez que todos os sistemas do organismo já se encontram desenvolvidos quando a maioria dos abortos é realizada. Afirmar que uma mulher tem o direito de escolher também é pouco claro, porque não se trata apenas do corpo dela mas também de um outro." - olhou para cima, à espera.
- Tem razão; é bastante claro. Na sua opinião, Dr.a Bertrand, o Chris Harte teria matado a namorada por ter descoberto que ela estava grávida?
- Objecção - disse Barrie. - Trata-se de uma professora de Inglês, não lê pensamentos.
- vou permitir - respondeu Puckett. Jordan olhou para Barrie.
- Quer que repita a pergunta, Dr.a Bertrand? Na sua opinião, o Chris Harte teria matado a namorada por ter descoberto que ela estava grávida?
- Não. Ele nunca faria uma coisa dessas. Jordan exibiu as suas covinhas nas faces.
- Obrigado - disse.
Joan Bertrand ficou a olhar para ele.
- De nada - suspirou.
Barrie levantou-se de imediato.
- Ao contrário do Dr. McAfee - disse ela -, eu gostava muito de Inglês. Parece que o Chris também gosta. E era, sem dúvida, um dos seus alunos preferidos.
- Oh, sim.
- Não consegue imaginá-lo a fazer algo tão horrível como cometer um homicídio.
- Certamente que não.
- E, claro, baseando-se nesse ensaio impressionante, não consegue imaginá-lo a tirar a vida a um bebé, nem a assassinar a namorada a sangue-frio?
- Não, não consigo imaginá-lo a matar ninguém.
- Nem a ele próprio?
- Oh - a Dr.a Bertrand abanou a cabeça vigorosamente. - Claro que não.
- Bem. Então deixe-me recapitular - Barrie começou a contar pelos dedos. - Ele não tiraria a vida a ninguém. Ele não tiraria a vida à Emily, ele não deixaria que a Emily tirasse a própria vida, e sem
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dúvida que não se suicidaria. Mas, por outro lado, temos um cadáver; temos uma confissão do Chris afirmando que a Emily ia suicidar-se e que depois também ele faria o mesmo; e temos todo o tipo de provas que colocam o Chris no local do crime - inclinou a cabeça para o lado. - Então, Dr.a Bertrand. Qual é a sua teoria?
- Objecção! - rugiu Jordan.
- Retiro a pergunta - disse Barrie.
Durante o almoço, Chris foi levado lá para baixo, para o gabinete do xerife. Jordan levou-lhe uma sande de peru e comeu a sua numa cadeira dobrável à porta da cela.
- Sinto-me mal por causa dela - disse Chris, de boca cheia. A Dr.a Bertrand.
- É uma senhora simpática.
- Pois. Ao contrário da promotora de justiça. Jordan encolheu os ombros.
- Profissões diferentes exigem estilos diferentes - disse ele. Eu era tão implacável como ela quando era procurador-geral.
Chris esboçou um ligeiro sorriso.
- Quer dizer, ao contrário de agora, que se tornou tão brando.
- Olha - disse Jordan, agarrando-se às grades da cela. - Não estás a começar a duvidar de mim, pois não? - visto que Chris não respondeu, Jordan soltou um grunhido de desdém. - Ó homem de pouca fé.
Ao ouvir aquilo, Chris olhou para cima, com um ar bastante sério.
- Eu tenho fé - disse ele. - Só não sei bem em quê - pousou a sande por comer em cima da folha de alumínio e amachucou tudo, deitando fora. - O que acontece - perguntou ele - se for declarado culpado?
Jordan olhou directamente para ele.
- Terás uma audiência para ouvir a sentença - disse ele. E, com base nisso, serás transportado para Concord.
Chris acenou com a cabeça.
- E pronto.
- Não. Apresentamos recurso da decisão.
- O que pode demorar uma eternidade e não levar a lado nenhum.
Jordan olhou para a sande, que subitamente ficara a saber a serradura, e não disse nada.
- Sabe, é engraçado - disse Chris. - Não quer que eu seja sincero consigo e eu só quero que seja sincero comigo - desviou o
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rosto, passando a unha do polegar pelas grades da cela. - Mas parece-me que nenhum de nós está muito satisfeito com a situação.
- Chris - disse Jordan. - Não te dou falsas esperanças. Mas as tuas melhores testemunhas ainda estão para intervir.
- E depois, Jordan?
O advogado ficou a olhar para ele, absolutamente inexpressivo.
- Não sei.
Houve um ligeiro burburinho à tarde quando Stephanie Newell subiu ao banco das testemunhas, e alguém que estava sentado na última fila da sala de audiências atirou um tomate podre que lhe acertou em cheio na blusa, gritando: "Assassina!" antes de sair porta fora. A seguir a um pequeno intervalo, durante o qual Stephanie recebeu uma camisola lavada e a polícia foi chamada para lidar com a pequena manifestação anti-aborto, o tribunal voltou a reunir-se. Quando Stephanie Newell se sentou realmente no banco das testemunhas e enumerou as suas credenciais, a maior parte dos membros do júri já tinha deduzido que Emily Gold se dirigira ao Planeamento Familiar para fazer um aborto.
- Eu era a técnica de aconselhamento nomeada para o caso da Emily - disse ela.
- Tem algum ficheiro em nome dela? - perguntou Jordan.
- Tenho.
- Quando se encontrou pela primeira vez com a Emily?
- Vi-a pela primeira vez no dia dois de Outubro.
- O que fez nessa consulta?
- Fiz uma entrevista preliminar à Emily, e expliquei-lhe os resultados do teste de gravidez positivo e quais eram as opções dela.
- Quando foi a segunda consulta?
- No dia dez de Outubro. É necessário haver uma sessão de aconselhamento pré-aborto, e, nessa altura, faz-se o pagamento. Também perguntamos se estará alguém presente para ajudar a mulher durante o procedimento.
- Como o pai da criança?
- Exactamente. Ou, no caso de uma adolescente, os pais. Mas a Emily indicou que os pais não a apoiavam, que não tinha dito nada ao pai do bebé e não queria dizer.
- Como reagiu a isso?
- Disse-lhe que devia contar ao pai, pelo menos para ter alguém que a apoiasse.
- E quando se realizou a consulta seguinte?
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- No dia onze de Outubro. Era essa a data marcada para fazer o aborto. A técnica de aconselhamento está presente para apoiar antes, durante e depois do procedimento.
Jordan aproximou-se do compartimento do júri.
- O aborto realizou-se?
- Não, algo perturbou a Emily e ela decidiu não se submeter ao procedimento.
Jordan apoiou ambos os cotovelos na balaustrada.
- Foi uma situação invulgar?
- Oh, não. Por acaso acontece muitas vezes. As pessoas estão sempre a desistir à última hora.
- O que fez depois de ela decidir não abortar? Stephanie suspirou.
- Aconselhei-a a contar ao pai.
- Qual foi a reacção dela?
- Ficou ainda mais perturbada, por isso não falei mais no assunto - disse Stephanie.
- Quando viu a Emily Gold pela última vez, Sr.a Newell?
- No dia sete de Novembro, na tarde antes da morte dela.
- Porque a viu nesse dia?
- A consulta fora previamente marcada.
- A Emily Gold estava perturbada com alguma coisa nesse dia?
- Objecção - exclamou Barrie. - Especulativo.
- Indeferido - disse Puckett.
- A Emily parecia-lhe estar perturbada? - reformulou Jordan.
- Muito - disse Stephanie.
- Disse-lhe porquê?
- Disse que achava que tinha esgotado as opções. Não sabia o que fazer em relação ao bebé.
- O que lhe disse?
- Reiterei que devia falar com o pai. Que ele talvez a apoiasse mais do que ela esperava.
- Quanto tempo esteve a conversar com ela sobre se devia ou não contar ao pai? - perguntou Jordan.
- A maior parte da sessão... uma hora.
- Na sua opinião, quando saiu do consultório, ia contar tudo ao pai do bebé?
- Não. Nada do que eu disse a fez mudar de ideias.
- Ao longo das cinco semanas em que falou com ela, a Emily alguma vez se mostrou hesitante sobre se devia ou não contar tudo ao pai do bebé?
- Não.
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- Tem alguma razão para achar que teria mudado de ideias após a última sessão?
- Não, não tenho. Jordan sentou-se.
- A testemunha é sua - disse ele.
Barrie aproximou-se do compartimento das testemunhas.
- Sr.a Newell, esteve com a Emily no dia sete de Novembro?
- Estive.
- A que horas?
- Tinha uma consulta às quatro horas. Das quatro às cinco.
- Sabe que a morte da Emily ocorreu algures entre as onze horas e a meia-noite desse dia?
- Sim.
- Entre as cinco e as onze são, vejamos... - Barrie bateu no queixo. - Seis horas. Esteve com a Emily durante esse tempo?
- Não, não estive.
- Alguma vez falou com o Chris?
- Não.
- Participou em alguma das conversas que eles tiveram durante as seis horas antes da morte dela?
- Não,
- Então, Sr.a Newell - disse Barrie -, a Emily não poderia resolver contar tudo ao Chris sobre o bebé, afinal?
- Bem... sim, acho que sim.
- Obrigada - disse a promotora de justiça.
Michael Gold dirigiu-se para o banco das testemunhas com o entusiasmo de um condenado, manteve os olhos fixos no juiz, recusando-se deliberadamente a ver Melaníe, à sua esquerda, e James Harte, à direita. Assim que se sentou, com a mão sobre a Bíblia, olhou para Chris. E pensou: "Estou a fazer isto por ti."
No fundo do seu coração, não conseguia imaginar Chris a assassinar a filha. A acusação podia ter mostrado a Michael uma arma fumegante ainda na mão de Chris, que ele teria dificuldades em acreditar. Mas havia uma pequena semente de dúvida nos seus pensamentos, com o potencial para crescer e assumir proporções gigantescas, que perguntava: "Como sabes?" E não sabia. Ninguém sabia, excepto Chris, e Emily, e Chris podia ter feito o impensável. E era por isso que não ia dar a Jordan McAfee o que ele queria.
Michael e Jordan encontraram-se duas noites antes para ensaiar o testemunho.
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- Se disser directamente ao júri que o Chris não matou a sua filha - dissera Jordan -, então o Chris terá algumas hipóteses.
Michael concordara educadamente em pensar sobre o assunto. "Mas e se isso tivesse acontecido?" dizia uma vozinha. "E se isso tivesse acontecido?"
Agora fitava o rapaz que a filha amara. O rapaz que lhe fizera um filho. E pediu desculpa em silêncio por aquilo que não diria.
- Sr. Gold - disse Jordan delicadamente -, obrigado por estar hoje aqui presente - Michael acenou com a cabeça. - Deve parecer-lhe estranho estar a testemunhar pela
defesa - acrescentou. - Afinal trata-se do julgamento de um caso de homicídio e o arguido é acusado de ter matado a sua filha.
- Eu sei.
- Posso perguntar-lhe por que razão decidiu testemunhar, hoje, a favor da defesa?
Michael passou a língua pelos lábios, o cérebro a localizar mecanicamente a resposta que ensaiara com Jordan.
- Porque conheço o Chris tão bem como conhecia a minha filha.
- Serei breve, Sr. Gold, e tentarei tornar isto o menos doloroso possível. Podia descrever a sua relação com a Emily?
- Era muito chegado a ela. Era a minha única filha.
- Fale-nos sobre o Chris. Como é que o conhecia?
Os olhos de Michael pousaram em Chris, sentado muito quieto na cadeira.
- Conheço-o desde que nasceu.
- Que diferença de idade havia entre o Chris e a Emily?
- Três meses. Por acaso, a mãe do Chris assistiu ao nascimento da Emily, eu cheguei um pouco atrasado. O Chris chegou ao quarto de hospital onde a minha filha estava antes de mim.
- E viu-os crescerem juntos?
- Oh, sim. Eram inseparáveis, desde o primeiro dia em que partilharam o berço. Acho que Chris costumava estar lá em casa tanto quanto a Emily costumava estar em casa dos Harte.
- Quando é que passaram de amigos para... algo mais?
- Começaram a namorar quando a Emily tinha treze anos.
- O que achou disso? - perguntou Jordan. Michael puxou a manga do blusão.
- O que acha qualquer pai disso? - reflectiu. - Era protector; ela ia ser sempre a minha menina. Mas não havia mais ninguém com quem eu preferisse que ela explorasse tudo isso. Ia acontecer a qualquer altura, e eu conhecia o Chris e confiava. Não há dúvida
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de que lhe confiei a coisa mais preciosa que tinha na vida: a minha filha. Realmente nessa altura já lha confiara há anos.
- Que percepção tinha da relação deles?
- Eram muito, muito chegados. Mais do que a maioria dos adolescentes, acho eu. Estavam sempre a fazer confidências um ao outro. Meu Deus... não me lembro de nada que a Emily não contasse ao Chris. Ele era o melhor amigo dela e ela era a melhor amiga dele, e se essa amizade estava a encaminhar-se para um nível mais adulto, talvez fosse porque era altura disso.
- Quanto tempo costumava ela passar com o Chris?
- Horas - Michael esboçou um ligeiro sorriso. - Às vezes parecia que todo o tempo em que estavam acordados.
- Seria justo dizer que o Chris convivia mais com a Emily do que o senhor?
- Sim - sorriu. - Acho que convivia tanto com ela como a maioria dos pais de adolescentes.
Jordan riu.
- Sei ao que se refere, tenho um em casa. Pelo menos espero que esteja em casa - aproximou-se do banco das testemunhas. Então não convivia assim tanto com a Emily, em termos de tempo, mas apesar disso sentia-se muito chegado a ela?
- Sem dúvida. Tomávamos sempre o pequeno-almoço juntos, e estávamos sempre a conversar. Jordan suavizou a voz.
- Sr. Gold, sabia que a Emily era sexualmente activa? Michael corou.
- Talvez... talvez suspeitasse. Mas acho que nenhum pai quer realmente saber isso.
- Terá sido por alguma coisa que a Emily lhe tivesse dito?
- Não. Acho que isso a teria deixado tão pouco à vontade como a mim.
Jordan alcançou a balaustrada do banco das testemunhas, encurtando a distância entre ele próprio e Michael.
- Ela disse-lhe que estava grávida?
- Não fazia ideia.
- Sabe se contou à sua mulher?
- Não.
- Ela era muito chegada a si e à sua mulher, mas não lhes disse nada?
- Não - Michael olhou para Jordan, oferecendo-lhe o mais pequeno presente que podia. - Acho que era o tipo de coisa que a Emily não teria contado a ninguém.
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- Então a Emily não mencionou a gravidez. Disse-lhe que estava deprimida?
- Não, não disse - Michael engoliu, sabendo aonde ia chegar.
- E eu próprio não reparei.
- Não a via assim com tanta frequência porque ela estava com o Chris...
- Eu sei - disse Michael, numa voz oca. - Mas isso não serve de desculpa. Não andava a comer muito bem; e estava sob uma enorme pressão, com, as candidaturas para a universidade e tudo isso. E eu pensei... pensei que a vida dela estava só muito agitada
- disse e estendeu a mão para agarrar num copo de água ali colocado para as testemunhas e bebeu um pouco, limpando os lábios com as costas da mão. - Não consigo deixar de pensar - disse num tom suave -, que vou encontrar um bilhete. Que me faça sentir melhor. Mas não encontrei. Sofro muito por ter perdido a minha filha. Mais do que qualquer outra coisa na vida. E, por sofrer tanto, é muito tentador colocar as culpas em alguém. É muito mais fácil para mim, para a minha mulher... para qualquer pai a quem isto possa acontecer no futuro, se dissermos: "Oh, não havia sinais nenhuns para ver. Ela não se suicidou, foi assassinada." - Michael virou-se para o júri. - Um pai devia ser capaz de saber se a filha pensava em suicidar-se, não devia? Ou até mesmo se estava deprimida? Mas eu não fui. Se puder apontar o dedo a outra pessoa, então a culpa não foi minha por não ter reparado; por não estar muito atento - passou uma das mãos pelos cabelos grisalhos. - Não sei o que aconteceu no carrossel naquela noite. Mas sei que não posso acusar outra pessoa, só para não me sentir culpado.
Jordan soltou a respiração que estava a suster. Gold dera-lhe mais do que ele esperava e - sentindo-se optimista - decidiu pressionar um pouco.
- Sr. Gold - disse ele -, temos dois cenários aqui: homicídio ou suicídio. Não deseja acreditar em nenhum deles; mas o facto é que a sua filha está morta.
- Objecção - disse Barrie. - Foi feita alguma pergunta à testemunha?
- Estou a chegar à questão principal, meritíssimo. Dê-me alguma margem de manobra.
- Indeferido - disse Puckett.
Jordan virou-se novamente para Michael.
- Diz que conhece o Chris tão bem como conhecia a sua filha. Por conhecer o Chris desde que ele nasceu, e como testemunha de longo prazo da relação do Chris e da Emily, foi homicídio ou suicídio?
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Michael apoiou a cabeça nas mãos.
- Não sei. Não sei mesmo. Jordan ficou a olhar para ele.
- O que sabe então, Sr. Gold? Fez-se um longo silêncio.
- Que o Chris não quereria viver sem a minha filha - disse Michael por fim. - E que apesar de ele estar ali sentado, não é o único que devia ser julgado.
Barrie Delaney não gostava de Michael Gold. Não gostara dele da primeira vez que se encontraram, quando lhe pareceu ser absolutamente incapaz de perceber que todas as provas apontavam para o facto de que o vizinho do lado tinha matado a sua filha. Ficou a gostar ainda menos dele quando soube que ia testemunhar a favor da defesa. E agora, após a autoflagelação no banco das testemunhas, não o suportava de maneira nenhuma.
- Sr. Gold - disse ela, irradiando uma falsa simpatia -, lamento muito que hoje tenha de estar aqui presente.
- Eu também, Dr.a Delaney.
Caminhou em frente ao banco das testemunhas, até ficar alinhada com a ponta do compartimento do júri.
- Disse que era muito chegado à Emily - disse ela.
- Sim.
- Não sabia que ela estava grávida.
- Não - admitiu Michael. - Não sabia.
- Também disse que ela contava tudo ao Chris.
- Sim.
- Não consegue imaginar nada que ela não contasse ao Chris.
- É verdade.
- Então ela devia ter dito ao Chris que estava grávida, não é verdade?
- Não... não sei.
- Sim ou não.
- Acho que sim.
Barrie acenou com a cabeça.
- Sr. Gold, disse que veio aqui por conhecer tão bem o Chris Harte.
- É verdade.
- Mas este julgamento centra-se na sua filha e no que lhe aconteceu. Ou se suicidou, ou foi assassinada. É uma escolha terrível, tal como disse o Dr. McAfee. É horrível que o seu vizinho do lado é que seja acusado; e ainda mais terrível que a sua filha é que esteja
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morta, mas a verdade é que o júri tem duas opções, Sr. Gold. E o senhor também - respirou fundo. - Consegue realmente visualizar a sua filha a agarrar numa arma,
a encostá-la à cabeça e a carregar
no gatilho?
Michael fechou os olhos, fazendo o que a promotora de justiça pedira, pela Emily, pela mulher e por aquela voz estridente que tinha dentro da cabeça. Imaginou o
lindo rosto de Emily, os olhos cor de âmbar a fecharem-se, a arma a roçar-lhe na têmpora. Imaginou uma mão a segurar naquela arma, com confiança, com desespero, com sofrimento. Mas não conseguia dizer ao certo se era
a mão de Emily.
Sentiu as lágrimas escorrerem-lhe pelos cantos dos olhos, e enrolou-se ligeiramente no banco das testemunhas, como se quisesse proteger-se.
- Sr. Gold - incitou a promotora de justiça.
- Não - sussurrou. Abanou a cabeça, com as lágrimas agora a escorrerem mais depressa. - Não.
Barrie Delaney virou-se para o júri.
- Então - perguntou ela - o que nos resta?
O acto de despir as roupas do julgamento e vestir a farda da prisão parecia a Chris uma mudança de pele, como se ao despir o blazer e as calças elegantes também tirasse uma camada de civilidade e boas maneiras, ficando em bruto, primário, de volta à sua cela. Durante a primeira hora após regressar do tribunal, Chris não conseguiu falar com ninguém, e os outros reclusos tiveram o cuidado de não se dirigirem a ele. Teve de inspirar o ar abafado da prisão até lhe encher completamente os pulmões, encolher-se para caber no seu espaço e só então foi capaz de se mover com o passo seguro e a indiferença que cultivara após sete meses passados na prisão.
Aventurou-se a ir à sala de convívio da segurança média, apercebendo-se de um burburinho de inquietação. Vários homens lançaram olhares furtivos na sua direcção, depois olharam para a televisão, para as paredes ou para as fileiras de cacifos. Chris já lá estava há tempo suficiente para saber que os outros o deixariam em paz durante o seu julgamento, mas tratava-se de algo mais profundo. Não estavam a ignorá-lo; estavam a guardar um segredo.
Dirigiu-se para a mesa rodeada de homens.
- O que foi? - perguntou simplesmente.
- Meu, não sabes? O Vernon enforcou-se ontem à noite na Penitenciária Estadual. com uma porcaria de uns atacadores.
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Chris abanou a cabeça para desanuviar.
- Ele o quê?
- Morreu, meu.
- Não - Chris afastou-se do grupo de reclusos que o observavam. - Não - dirígiu-se rapidamente para a cela que partilhara com Steve um mês antes.
Conseguia recordar-se mais facilmente do rosto de Steve agora do que do de Emily. Lembrou-se do que Steve dissera antes de ser transferido, sobre o que faziam em Concord aos condenados que mataram crianças.
No final da semana, também Chris podia estar a dirigir-se para a prisão estadual.
Enfiou-se debaixo dos cobertores, estremecendo silenciosamente de desgosto e medo até ouvir convocarem-no para o Controlo para receber uma visita.
Gus abraçou Chris assim que ele se aproximou o suficiente para poder fazê-lo.
- O Jordan disse-me que está a correr bem - disse, entusiasmada. - Não podia estar a correr melhor.
- Não estavas lá - disse Chris, contraindo-se. - E o que achas que ele devia dizer? Que não está a fazer render o teu dinheiro?
- Bem - disse Gus, instalando-se na sua cadeira. - Não tem razões para mentir.
Chris curvou a cabeça, massajando as têmporas.
- Não é nenhum santo - disse entre dentes.
Não estava mais ninguém na sala de visitas. Normalmente Gus chegava mais cedo, mas devido ao julgamento tivera de ir a casa por causa de Kate e para fazer o jantar antes de voltar a sair para visitar Chris. Que parecia extremamente agitado. Gus lançou-lhe um olhar curioso.
- Estás bem? - perguntou.
Ele esfregou os olhos, e olhou para ela a pestanejar.
- Estou bem - disse ele. - Óptimo - começou a tamborilar com as pontas dos dedos na mesa, e olhou para o guarda junto às escadas.
- O Jordan diz que eu sou a testemunha principal - disse Gus.
- Disse-me que o júri vai acompanhar as minhas emoções para te considerar inocente.
Chris mexeu-se bruscamente.
- É mesmo uma frase dele.
- Pareces estar muito inquieto esta noite - disse Gus. - Mas pelos vistos, o Michael hoje ajudou-te imenso. O Jordan fez um
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excelente trabalho até agora. E tu sabes que eu daria saltos mortais para te libertar, Chris.
- O que eu estou a dizer, mãe - respondeu Chris -, é que o júri pode não te querer ver a dar saltos mortais. Podem já ter decidido.
- Isso é um disparate. Não é assim que o sistema funciona.
- O que sabes tu sobre o funcionamento do sistema? Será justo que eu esteja na prisão há quase um ano, só à espera de um julgamento? Será justo que o meu advogado nunca me tenha perguntado: "Olha, Chris. O que aconteceu realmente?" - fixou uns frios olhos azuis na mãe. - Já pensaste nisso, mãe? Este julgamento um dia vai acabar. Já pensaste de que cor vais pintar o meu quarto quando eles me encarcerarem para o resto da vida? Sobre como eu vou ser, aos quarenta, cinquenta e sessenta anos, depois de estar todos esses anos a viver num quarto do tamanho de um roupeiro?
Estava a tremer quando acabou, e tinha um olhar desvairado em que Gus reconhecia o pânico.
- Chris - acalmou-o -, isso não vai acontecer.
- Como sabes? - gritou ele. - Como podes saber?
Gus viu o guarda dar um passo em direcção a eles pelo canto do olho. Abanou ligeiramente a cabeça, e ele retomou o seu lugar junto às escadas. Depois tocou delicadamente no braço de Chris, ocultando cuidadosamente o seu próprio medo ao ver o filho, de rosto vermelho, tremer. Apercebeu-se de como devia ser tremendamente difícil ter dezoito anos e ouvir desconhecidos decidirem a sua própria vida. Era precisamente como James lhe dissera: Chris usava uma máscara no tribunal. O simples facto de estar ali sentado sem soçobrar dizia muito sobre a sua determinação, sobre o seu carácter.
- Querido - disse ela -, compreendo por que razão isto é tão assustador...
- Não, não compreendes!
- Compreendo. Sou tua mãe. Conheço-te.
Chris virou a cabeça para ela devagar, um touro prestes a investir.
- A sério? - disse ele. - E que sabes tu?
- Sei que és o mesmo filho maravilhoso que sempre adorei. Sei que vais ultrapassar isto, tal como ultrapassaste tudo o resto. E sei que o júri não vai condenar uma pessoa inocente.
Chris tremia tanto nessa altura que a mão de Gus escorregou-lhe do ombro.
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- O que tu não sabes, mãe - disse ele numa voz suave - é que eu disparei sobre a Emily - e com um grito abafado, virou-se e subiu as escadas a correr em direcção
aos guardas que o trancariam em segurança.
Gus registou a sua saída na cabina de controlo, passou pelo guarda que destrancou a porta da prisão, e dirigiu-se para o carro antes de cair de joelhos no parque
de estacionamento e vomitar. "Sou tua mãe", dissera. "Conheço-te." Mas parece que não era verdade. Limpou a boca à manga do casaco e sentou-se ao volante do carro, enfiando as chaves às cegas na ignição quando percebeu que não estava em condições de conduzir. Chris dissera-o, claro como água. Disparara sobre a Emily. E enquanto Gus o defendia dos boatos e da difamação e até da indiferença do pai, estivera a fazer figura de idiota.
Pequenos dardos penetraram-lhe os pensamentos: a camisa de Chris no hospital, coberta de sangue; a sua relutância em falar com o Dr. Feinstein; Chris admitir aliviado que nunca pensara em suicidar-se. Encostou a testa ao volante e gemeu suavemente. Chris, oh, meu Deus, Chris matara Emily.
Como podia ela não ter visto isso?
Engatou a mudança e saiu devagar do parque de estacionamento da prisão. Ia para casa e contaria a James, ele saberia o que fazer... e até os conhecimentos rudimentares de Gus em termos de defesa criminal lhe diziam que isso seria uma má ideia. Ia para casa e fingiria que nunca chegara a visitar o filho naquela noite. De manhã, tudo pareceria diferente.
E depois seria chamada a depor.
Parecia estranho a Gus que no sistema legal houvesse imunidade para a proteger de testemunhar contra o marido, mas que não houvesse nada que a protegesse de testemunhar contra o próprio filho. Era esquisito, visto que o filho é que podia ter o seu sorriso, ou os seus olhos, ou pelo menos o seu sangue a correr-lhe nas veias. Seria
dez vezes mais provável que Gus apresentasse provas contra James do que contra Chris. E, na sua cabeça atormentada, não se tratava de uma questão de perjúrio, mas
de maternidade.
Tinha um vestido cor de granada cujas mangas franzidas apenas evidenciavam que ela tremia incontrolavelmente. Gus colara um sorriso no rosto, certa de que, se deixasse os lábios descontraírem minimamente do seu esgar, diria imediatamente o que
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sabia. Estava de pé à porta da sala de audiências, depois de Jordan lhe ter dito que seria a primeira - e única - testemunha a ser chamada naquele dia. O oficial de justiça estava à sua frente, impassível.
De repente a porta abriu-se, e levaram-na pelo corredor da sala de audiências. Manteve os olhos fixos nos pés ao longo de todo o percurso. Ao sentar-se no pequeno compartimento, pensou: "Quanto maior será aquele onde o Chris ficará preso para toda a vida?"
Sabia que Jordan queria que ela olhasse para Chris assim que se sentasse, mas manteve os olhos fixos no colo. Sentia a presença do filho, uma atracção magnética à esquerda, com os nervos a ressoarem quase tão alto como os dela.
Subitamente, uma grossa Bíblia muito usada foi colocada diante dela. O oficial de diligências do tribunal instruiu-a para colocar a mão esquerda sobre ela e erguer a direita.
- Jura dizer a verdade, toda a verdade, e nada além da verdade, com a ajuda de Deus?
"com a ajuda de Deus." Pela primeira vez desde que entrara na sala de audiências, Gus olhou directamente para o filho.
- Sim - disse ela numa voz sonora. - Juro.
Jordan não sabia que diabo acontecera a Gus Harte. Sempre que a vira - caramba, até na noite em que o filho foi levado pela polícia local com um mandado de detenção - parecia confiante e bela. Ligeiramente selvagem e natural, com aquela cascata de caracóis acobreados, mas apesar disso bonita. No entanto, precisamente no dia em que precisava que ela estivesse perfeita, estava uma desgraça absoluta. Tinha os cabelos a saírem-lhe de uma trança feita à pressa; o rosto estava pálido e franzido sem maquilhagem; as unhas roídas até ao sabugo.
Ser testemunha afectava todos de forma diferente. Algumas pessoas brilhavam. Outras pareciam intimidadas perante o sistema. A maioria cumpria a tarefa com uma dose adequada de reverência. Gus Harte só parecia desejar estar em qualquer outro lado.
Endireitando os ombros, Jordan aproximou-se dela.
- Pode dizer o seu nome e morada para que fique registado? Gus inclinou-se para o microfone.
- Augusta Harte - disse ela. - Wood Hollow Road número trinta e quatro, Bainbridge.
- E pode dizer-nos porque conhece o Chris?
- Sou a mãe dele.
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Jordan virou as costas ao júri e a Barrie Delaney e sorriu para Gus, na esperança que ela relaxasse. "Acalme-se", pronunciou ele silenciosamente.
- Sr.a Harte, fale-nos do seu filho.
Os olhos de Gus percorreram nervosamente a sala de audiências. De um dos lados viu Melanie, com o seu rosto de pedra, e Michael, de mãos cerradas sobre os joelhos. Do outro lado estava James, que lhe acenava ligeiramente com a cabeça. Abriu e fechou a boca em silêncio.
- O Chris é... é um excelente nadador - disse por fim, e Jordan virou-se.
- Um bom nadador?
- É detentor do recorde da escola nos duzentos metros mariposa - disse ela incoerentemente. - Temos muito orgulho nele. O pai e eu.
Jordan abordou-a antes que pudesse afastar-se mais do testemunho ensaiado.
- Na sua opinião, diria que ele é responsável? Digno de confiança?
Sentia Barrie atrás de si, palpavelmente confusa a ponderar se devia ou não objectar o facto de Jordan estar a guiar a sua testemunha principal.
- Oh, sim - disse Gus nervosamente, olhando para o colo. O Chris sempre se comportou muito acima da sua idade. Confiava-lhe a minha... - parou bruscamente. - A minha
vida - terminou.
- Conhecia, portanto, a Emily Gold - disse Jordan, agora perplexo, mas sabendo que tinha de impedir que Gus dissesse coisas que o júri não precisava de ouvir. -
Há quanto tempo?
- Oh - disse Gus numa voz suave. Procurou Melanie com o olhar, na galeria. - Fui eu que acompanhei a Melanie Gold durante o trabalho de parto. Vi a Emily mesmo antes da própria mãe.
"Graças a Deus", pensou Jordan.
- Há quanto tempo os Gold são seus vizinhos?
- Há dezoito anos - disse Gus. - O Chris e a Emily passaram a maior parte desses anos juntos.
- Quer dizer que nunca estavam longe um do outro?
- Sim - disse Gus pausadamente. - Era como se fossem gémeos. - "Então o que aconteceu?", pensou ela, com a pergunta a ressoar-lhe na cabeça. - Eles tinham a sua própria linguagem, e saíam de casa às escondidas para irem ter um com o outro, e...
"Então o que aconteceu?"
- ... a defenderem-se um ao outro...
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Jordan acenou com a cabeça.
- Também mantinha uma relação próxima com os pais da Emily?
- Éramos muito amigos - disse Gus numa voz pastosa. - Como uma família alargada. O Chris e a Em cresceram como dois irmãos.
- Quando é que o Chris e a Emily se tornaram namorados?
- O Chris tinha catorze anos - disse Gus.
- A senhora e os Gold encorajaram essa relação?
- Desejávamo-la - murmurou ela.
- Acha que o Chris amava a Emily?
- Tenho a certeza de que a amava - disse Gus numa voz firme.
- Tenho a certeza - mas estava a pensar no que sentira com Michael, mesmo sentindo-se atraída por ele: aquela necessidade de se afastar igualmente intensa. E pensava
que talvez não fosse possível passar de irmão e irmã para namorado e namorada, acrescentar aquela dose de amor e compromisso, sem sentir demasiada proximidade. "Teria sido isso que aconteceu?"
Jordan semicerrou os olhos ao perceber subitamente qual era o problema daquele testemunho tão estranho: Gus não estava a olhar para Chris - na realidade, parecia estar relutante em olhar para ele, e o júri certamente ia reparar nisso.
- Sr.a Harte - disse Jordan. - É capaz de olhar para o seu filho? Gus virou a cabeça devagar. Respirou fundo e fitou Chris
decididamente, limpando rapidamente as lágrimas ao canto dos olhos.
- Este rapaz - continuou Jordan. - Este filho que conhece há dezoito anos. Seria capaz de fazer mal à Emily Gold?
- Não - sussurrou Gus, desviando o olhar do filho. Limpou rapidamente as lágrimas com as costas da mão. - Não - repetiu com voz trémula.
Sentiu os olhos de Chris fixos nela, implorando-lhe que olhasse para ele. Então ergueu o rosto para o dele e viu o que o júri não conseguia ver: os olhos atormentados e a boca cerrada de dor, ao ver a mãe mentir por ele.
- Sei que isto é muito difícil para si, Sr.a Harte -Jordan aproximou-se do banco das testemunhas, pousando-lhe a mão no braço, afectuoso e solícito. - Tenho apenas mais uma pergunta. Na sua opinião...
Gus sabia o que vinha aí. Ensaiara-o com Jordan McAfee; revivera esse momento milhares de vezes na noite anterior. Fechou os olhos, antecipando as palavras reais que a fariam quebrar o juramento.
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- Não.
Ao ouvir a voz rouca e entrecortada, Gus abriu bruscamente os olhos. Jordan virou-se, tal como o juiz e a promotora de justiça, para olhar para Chris Harte.
O juiz Puckett franziu o sobrolho.
- Dr. McAfee - disse ele -, é capaz de controlar o seu cliente? Jordan atravessou a sala e agarrou firmemente no braço de
Chris, de costas voltadas para o júri.
- Mas que raio estás tu a fazer?
- Jordan - disse Chris com urgência -, tenho de falar consigo.
- Ainda me falta uma pergunta. A seguir peço para fazermos um intervalo. Está bem?
- Não. Tenho de falar consigo agora.
Jordan respirou fundo e levantou a cabeça, num movimento aparentemente harmonioso, com os anos de prática a permitirem-lhe ocultar como estava absolutamente furioso.
- Meritíssimo, posso aproximar-me?
Barrie, sem perceber absolutamente nada, dirigiu-se para junto do juiz ao lado dele.
- Olhe - disse Jordan. - O meu cliente está a dizer-me que tem de falar comigo imediatamente. Podemos fazer um curto intervalo?
Puckett franziu o sobrolho.
- É bom que seja crucial - disse ele. - Tem cinco minutos.
Jordan arranjou uma pequena sala no tribunal, não muito maior do que a cela de Chris.
- Muito bem - disse ele, visivelmente zangado. - O que se passa?
- Não quero que a minha mãe continue a testemunhar - disse Chris.
- Azar - proferiu Jordan. - Ela é a nossa melhor defesa.
- Tire-a dali.
- Só falta uma pergunta, Chris. O júri tem de ouvir a tua mãe dizer que não consegue imaginar que o filho tenha morto a Emily Gold.
Chris lançou um olhar irado a Jordan, como se o advogado não tivesse dito nada.
- Quero que a tire dali - disse ele - e que me ponha a mim a testemunhar.
Durante um momento, Jordan ficou sem palavras.
- Se testemunhares vais perder o caso - disse ele.
Em regra, os advogados de defesa não colocavam os clientes no banco das testemunhas. Era demasiado fácil que um promotor
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de justiça pregasse uma rasteira a um arguido, ou distorcesse as palavras. Bastava um passo em falso ansioso - um olhar nervoso e até o arguido mais inocente pareceria mentiroso aos olhos do júri. Mas pôr Chris a testemunhar estava absolutamente fora de questão por uma razão diferente. Ele próprio confessara que não queria suicidar-se. Qualquer promotor de justiça razoável seria capaz de lhe arrancar isso. E toda a estratégia de defesa de Jordan baseava-se num duplo suicídio interrompido. Apesar disso Jordan tinha um pressentimento doentio e agoirento de que Chris desejava precisamente contar a sua versão da história.
- Se fores ali para cima - disse Jordan, com uma veia a latejar-lhe na têmpora -, irás para a prisão. É tão simples quanto isso. És uma testemunha, tens de dizer
a verdade. Passei quatro dias a dizer a toda a gente que querias estoirar os miolos, e tu vais para ali para dizer a toda a gente que não te querias suicidar, e depois o que acontecerá à minha defesa?
Chris ficou calado durante algum tempo. Depois virou-se, falando tão baixo que Jordan teve de se esforçar para o ouvir.
- Há sete meses, disse-me que a decisão de testemunhar ou não era minha, e só minha. Disse-me que se eu quisesse ir para o banco das testemunhas, teria de me colocar lá por lei.
Ficaram a olhar um para o outro, num impasse. Então Jordan desviou o olhar, erguendo as mãos.
- Muito bem - disse ele. - Que se lixe - e saiu da sala.
Quase esbarrou com Selena.
- Mas que raio está a acontecer? - perguntou ela.
Jordan agarrou no braço de Selena e afastou-a um pouco dos observadores que tinham as cabeças viradas na direcção deles.
- Ele quer testemunhar. Selena susteve a respiração.
- O que lhe disseste?
- Que seria o primeiro a desejar-lhe boa sorte na prisão estadual - atirou a cabeça para trás. - Caramba, Selena. Nós tínhamos uma hipótese.
- Tinham mais do que uma hipótese - disse ela num tom suave.
- É como se o entregasse à Delaney e lhe dissesse que era um presente de Natal adiantado.
Selena abanou a cabeça, em sinal de solidariedade.
- Porque é que ele quer fazer isso? - perguntou ela. - E porquê agora?
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- Descobriu que tinha uma consciência. Viu Deus. Merda, não sei - Jordan enterrou as mãos nos cabelos. - Quer dizer ao júri que não ia suicidar-se. Não quer que a mãe faça isso no lugar dele. O facto de isso fazer toda a defesa parecer ridícula não tem nada a ver
com o assunto.
- Achas mesmo que é isso que ele vai dizer? - perguntou Selena.
Jordan soltou um grunhido de desdém.
- Por amor de Deus - disse entre dentes. - O que podia ser pior do que isso?
Voltou a entrar na sala onde Chris estava sentado calmamente, e atirou com um papel para cima da mesa.
- Assina isto - disse bruscamente.
- O que é?
- É uma renúncia. Diz que estás prestes a lixares-te voluntariamente embora eu te tenha avisado para não o fazeres, para não ser processado quando apresentares recurso
ao Supremo Tribunal por aconselhamento jurídico ineficaz. Podes estar disposto a arriscar a pele, mas eu não estou.
Chris agarrou na caneta que Jordan lhe entregara e escreveu o
seu nome.
O tribunal tinha vida, vibrava com rumores e perguntas quando Jordan se levantou para ficar diante de Gus Harte no banco das testemunhas pela segunda vez.
- Obrigado - disse bruscamente. - Não tenho mais perguntas. Pensou que quase valia a pena ver a cara de Barrie quando ele
disse aquilo. A promotora de justiça sabia - tal como Jordan - que era inútil colocar a mãe do arguido no banco das testemunhas sem tentar que ela dissesse que Chris nunca seria capaz de matar a Emily.
Estupefacta, Barrie levantou-se. Era capaz de apostar o seu salário, embora parco, que Chris se levantara de um salto por ter uma pergunta extraordinária para Jordan fazer à mãe, senão porque haveria ele de interromper o contra-interrogatório a meio? Aproximou-se cautelosamente do banco das testemunhas, perfeitamente ciente de que estava a caminhar por um campo minado, e pensou no que haveria para apurar num contra-interrogatório.
"Bem", pensou, "ao menos faço-o pelo McAfee."
- Sr.a Harte - disse ela -, a senhora é mãe do arguido?
- Sim.
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- Não quer que ele vá para a prisão, pois não?
- Claro que não.
- Seria muito difícil para qualquer mãe imaginar que o filho seria capaz de matar alguém, não acha?
Gus acenou com a cabeça, fungando alto. Barrie olhou para cima, atenta, percebendo que mais uma pergunta podia fazer a testemunha descontrolar-se novamente, fazendo Barrie parecer uma megera. Abriu a boca e em seguida fechou-a.
- Não tenho mais perguntas - disse, e regressou rapidamente para o seu lugar.
Gus Harte foi tirada do banco das testemunhas e Barrie ocupou-se com as suas notas. Jordan diria que a defesa não tinha mais nada a acrescentar, e depois ela devia conduzir o júri ao veredicto que desejava com as alegações finais. O que, tinha de admitir, seria canja depois daquela última testemunha. Era capaz de ouvir a sua própria voz, ressoando de convicção. "E a própria mãe... a própria mãe de Chris Harte... nem sequer conseguiu olhar para ele enquanto apresentava o seu testemunho."
- Meritíssimo - disse Jordan -, temos mais uma testemunha.
- Têm o quê? - exclamou Barrie, mas Jordan já estava a chamar Christopher Harte a depor.
- Objecção! - exclamou Barrie bruscamente. O juiz Puckett suspirou.
- Doutores, vamos reunir-nos no meu gabinete. Tragam o arguido.
Seguiram o juiz para o seu gabinete, com Chris atrás. Barrie começou a falar antes mesmo de a porta estar completamente fechada.
- Isto é uma surpresa absoluta, meritíssimo. Não fui avisada de que isto ia acontecer hoje.
- Pois não foi a única - disse Jordan num tom amargo.
- Gostaria de fazer um intervalo, Barrie? - perguntou Puckett.
- Não - disse ela entre dentes. - Mas gostaria de um pouco mais de cortesia.
Como se ela não tivesse dito nada, Jordan escarrapachou a renúncia em frente do juiz.
- Eu disse-lhe que não queria que ele testemunhasse, e que isso podia arruinar a defesa.
O juiz Puckett lançou um olhar a Chris.
- Sr. Harte, o seu advogado explicou-lhe todas as implicações que o facto de apresentar o seu testemunho poderá ter no seu caso?
- Explicou, meritíssimo.
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- E assinou este documento a dizer que o seu advogado realmente lhe explicou isso?
- Assinei.
- Muito bem - o juiz encolheu os ombros. Voltou a levar o pequeno grupo para a sala de audiências.
- A defesa - disse Jordan - chama Christopher Harte como testemunha.
Jordan dirigiu-se para a frente da mesa da defesa, aproximando-se do seu cliente. Via os membros do júri, sentados na beira das cadeiras. E Barrie, com um ar muitíssimo
satisfeito, e por que não haveria de estar? Até podia contra-interrogar Chris em suaíli e mesmo assim vencer este caso.
- Chris - disse Jordan -, tem consciência de que está a ser julgado pelo homicídio de Emily Gold?
- Sim.
- Pode dizer-nos o que sentia pela Emily Gold?
- Amava-a mais do que tudo no mundo.
A voz de Chris era clara e firme; Jordan não podia deixar de admirar o rapaz. Não era fácil enfrentar uma sala de audiências, onde provavelmente todos já o tinham sentenciado mentalmente, e contar a sua versão da história.
- Há quanto tempo a conhecia?
Tudo em Chris se suavizou: os contornos do corpo, as palavras.
- Conheci a Emily toda a vida dela.
Jordan pensou, desorientado, no que devia dizer a seguir. O seu objectivo, embora pudesse ser pouco eficaz, era prevenir o golpe.
- Quais são as suas recordações mais antigas?
- Objecção - gritou Barrie. - Será mesmo necessário ficarmos a ouvir dezoito anos disto?
O juiz Puckett acenou com a cabeça.
- Vá directo ao assunto, Doutor.
- Pode falar-nos da sua relação com a Emily?
- Sabe - disse Chris numa voz suave - como é amar tanto alguém que não conseguimos imaginar-nos sem essa pessoa? Ou como é tocar em alguém e sentir que chegámos a casa? - cerrou uma mão num punho e pousou-o na palma da outra mão. - A nossa relação não se centrava no sexo, nem em estar com alguém só para exibir essa pessoa, como no caso dos outros jovens da nossa idade. Nós éramos feitos um para o outro. Alguns passam a vida inteira à procura dessa pessoa - disse ele. - Eu tive a sorte de a ter sempre comigo.
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Jordan ficou a olhar para Chris, estupefacto, sem palavras, devido ao discurso dele, tal como o resto das pessoas presentes na sala de audiências. Não parecia um rapaz de dezoito anos a falar. Parecia alguém mais velho, mais experiente, mais triste.
- A Emily queria suicidar-se? - perguntou ele de repente.
- Sim - respondeu Chris.
- Chris, pode contar-nos o que aconteceu na noite de sete de Novembro?
Chris baixou os olhos.
- Foi a noite em que a Emily quis suicidar-se. Arranjei-lhe a arma, como ela me pediu. Levei-a de carro ao carrossel. Conversámos durante algum tempo, e... pronto - a voz desvaneceu-se e Jordan observou-o atentamente, percebendo que ele estava de novo naquele carrossel, de novo com Emily. - E depois - disse Chris num tom suave, erguendo os olhos para o advogado - disparei sobre ela.
A sala de audiências entrou em erupção, os jornalistas correram para os telemóveis e Melanie Gold gritava e apontava o dedo enquanto o marido, pálido e em silêncio, a arrastava dali para fora.
- Preciso de um intervalo, meritíssimo - disse Jordan, tenso, e arrastou fisicamente Chris para fora da sala de audiências. Barrie Delaney ria às gargalhadas. Gus ficou sentada muito quieta, com as lágrimas a escorrerem-lhe livremente pelas faces. Ao lado dela, James balançava-se ligeiramente para trás e para a frente, sussurrando:
- Oh, meu Deus. Oh, meu Deus - passado um minuto, virou-se para Gus e agarrou-lhe na mão, mas o que viu estampado no rosto dela deteve-o. - Tu sabias - murmurou.
Gus curvou a cabeça, incapaz de admitir, igualmente incapaz de negar.
Esperava sentir uma leve corrente de ar ao seu lado quando James se levantasse do lugar para andar para trás e para a frente, para pensar, simplesmente para se afastar dali. Mas em vez disso, sentiu a mão dele, quente e firme, agarrar na sua. E apertou-a com toda a força que tinha.
No pequeno vestíbulo, Jordan sentou-se com a cabeça apoiada nas mãos. Não se mexeu, não disse nada, durante sessenta segundos. Quando começou a falar, ainda tinha a cabeça baixa.
- Queres apresentar recurso? - disse pausadamente. - Ou queres apenas desgraçar-te?
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- Nenhuma das coisas - disse Chris.
- Então és capaz de me dizer o que se passa?
A voz de Jordan era suave, demasiado suave para as emoções que lhe rodopiavam na cabeça. Queria esganar Christopher Harte por fazê-lo parecer um idiota, não uma, mas duas vezes. Tinha vontade de bater em si próprio por ser tão convencido e não ter perguntado dez minutos antes a Chris o que ia dizer no banco das testemunhas. E queria tirar aquele sorriso do rosto da promotora de justiça com uma estalada, porque ela sabia e ele sabia quem ia ganhar.
- Queria dizer-lhe antes - disse Chris. - Mas não me quis ouvir.
- Bem, visto que já lixaste isto tudo irremediavelmente, o melhor é contares-me tudo - Jordan riu, perante tal indignidade. Pela primeira vez em dez anos, talvez até mais tempo, via-se obrigado a resgatar um caso com a verdade. Porque era só isso que tinha.
Aprendera há muito que a verdade não se encaixava numa sala de audiências. Ninguém - nem o promotor de justiça, e mais frequentemente, nem o arguido - a queria lá. Os julgamentos centravam-se em provas e provas em contrário, e em teorias. E não no que acontecera realmente. Mas as provas, provas em contrário e teorias tinham ido todas por água abaixo. E a única coisa a que Jordan podia recorrer era aquele rapaz, aquele rapaz tão estúpido, que se sentira impelido pela honra a contar a toda a gente o que realmente acontecera.
Passados quinze minutos, Jordan e Chris saíram da pequena sala, lado a lado. Nenhum deles sorria. Nenhum deles falou. Caminhavam depressa, afastando com passos largos as multidões que ouviram os boatos e ficavam a observá-los de boca aberta. À porta da sala de audiências, Jordan virou-se para Chris.
- Faça eu o que fizer, tu acompanhas-me. Diga eu o que disser, segues as minhas indicações - viu Chris hesitar. - Deves-me isso
- sibilou.
Chris acenou com a cabeça, e juntos empurraram a porta.
Estava tudo tão silencioso na sala de audiências que Chris ouvia a sua própria pulsação. Estava novamente no banco das testemunhas, de mãos suadas e a tremer tanto que teve de enfiá-las debaixo das coxas. Olhara para os pais só uma vez; a mãe sorria ligeiramente e acenou-lhe com a cabeça. O pai - bem, o pai ainda lá estava.
Não olhou para os pais de Emily, embora sentisse a fúria deles, em brasa, desde a galeria.
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Estava muito, muito cansado. As costuras do casaco eram ásperas através da camisa de algodão fino, e os sapatos novos tinham-lhe feito uma bolha no calcanhar. A
cabeça parecia prestes a explodir.
E então, de repente, ouviu a voz de Emily. Clara, calma, familiar. Dizia-lhe que ia ficar tudo bem, que nunca ia abandoná-lo. Chris olhou em volta, desorientado,
tentando perceber se os outros também conseguiam ouvi-la, na esperança de vê-la, mesmo quando sentiu um silêncio imóvel no coração.
- Chris - repetiu Jordan -, o que aconteceu na noite de sete de Novembro?
Chris respirou fundo e começou a falar.
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PASSADO
7 de Novembro de 1997
Manteve os olhos fixos nela, a arma, na pequena marca que deixava na pele branca da têmpora. As mãos dela tremiam tanto como as dele, e não conseguia deixar de pensar.-
"Vai disparar." E a seguir: "Mas é o que ela quer."
Ela tinha os olhos cerrados; os dentes mordiam o lábio inferior. Sustinha a respiração. Esperava uma grande dor, apercebeu-se ele.
Já a vira assim anteriormente.
Lembrou-se com uma grande nitidez de algo que se esquecera de contar ao Dr. Feinstein, com certeza era a sua recordação mais antiga, visto que mal andava. Estava a correr no passeio e caíra. A mãe pegara-lhe ao colo, a berrar, e sentara-se no alpendre enquanto lhe beijava o joelho esquerdo aparentemente incólume e lhe colocava um penso rápido mesmo sem necessidade. Só depois de se ter acalmado é que percebeu que Emily também chorava, recebendo o mesmo tratamento da mãe. Estava mesmo ao lado dele no passeio, embora não tivesse caído. Mas tinha o joelho esquerdo esfolado.
- Ele corta-se - disse a mãe a rir. - E ela é que sangra.
Acontecera outras vezes quando eram crianças - Chris magoava-se e via Emily retrair-se, ou vice-versa - ela caía da bicicleta e ele gritava. O pediatra dissera que era uma dor de solidariedade, dissera que passaria com a idade.
Mas não passou.
A arma escorregou da têmpora de Emily, e ele soube de repente que se ela se suicidasse, ele morreria. Talvez não imediatamente, talvez não com a mesma dor ofuscante, mas morreria. Não era possível viver-se por muito tempo sem coração.
Estendeu a mão e agarrou firmemente no pulso direito de Emily. Era maior do que ela; podia afastar-lhe a arma da cabeça.
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com a mão livre abriu os dedos de Emily no cabo do Colt e desengatilhou cuidadosamente a arma.
- Desculpa - disse ele. - Mas não podes fazer isto.
Os olhos de Emily demoraram um instante a focarem-se nos dele, e ao fazê-lo escureceram de perplexidade, choque e depois raiva.
- Posso sim - disse Emily, tentando agarrar na arma que Chris segurava fora do seu alcance.
- Chris - disse ela, passado um minuto. - Se me amas, dá-ma.
- Eu amo-te! - gritou Chris, de rosto contorcido.
- Se não consegues ficar aqui comigo, eu compreendo - disse ela, olhando para a pistola. - Vai-te embora, então. Mas deixa-me fazer isto.
Chris cerrou os lábios e ficou à espera, mas ela não olhava para ele. "Olha para mim", implorou em silêncio. "Nenhum de nós vai ganhar." E embora não sentisse o chumbo da bala, agora que se abrira a essa hipótese, sentia nitidamente o desgosto de Emily, que lhe dificultou a respiração e o impediu de raciocinar. Tinha de sair dali. Tinha de se afastar de Emily, para não sentir absolutamente nada.
Levantou-se cambaleando e abriu caminho por entre os arbustos que rodeavam o carrossel, as lágrimas a distorcerem a noite, fazendo-a curvar-se de forma extravagante. Limpando os olhos com as costas das mãos, começou a correr, até chegar ao Jeep.
Não entrou no carro, apercebendo-se de que estava à espera de ouvir o tiro.
Passou meia hora, lenta e viscosa, e quando Chris percebeu o que estava a fazer já ia a meio caminho do carrossel. Viu Emily precisamente onde a deixara, de pernas cruzadas nas tábuas do chão com a arma aninhada entre as mãos. Acariciava-a como se fosse um gatinho, e chorava tanto que não conseguia respirar.
Emily olhou para cima quando reparou nos pés dele à beira do carrossel. Tinha os olhos vermelhos; o nariz a pingar.
- Não consigo - disse ela, sufocada com as próprias palavras.
- Posso dizer-te para saíres daqui e posso gritar e berrar e dizer que quero, mas não consigo.
com o coração aos saltos, Chris levantou Emily. "Isto é um sinal", pensou ele. "Diz-lhe o que significa." Mas assim que ela ficou de pé, colocou-lhe a arma na palma da mão. A pistola estava escorregadia com o suor de Emily, e tão quente como a pele dela.
- Sou demasiado cobarde para me matar - sussurrou ela. E demasiado cobarde para viver - ergueu os olhos. - O que faço agora?
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O que quer que fosse que Chris ia dizer, secou-lhe na garganta. Sabia que se quisesse, podia tirar a arma a Emily e lançá-la para tão longe que ela nunca seria capaz de encontrá-la. Era mais forte do que ela... e era esse o problema. Conseguia sofrer; sempre fora capaz de fazê-lo. Era por isso que conseguia nadar mariposa tão vigorosamente; que conseguia esperar horas num abrigo camuflado para caçar patos em temperaturas de dezoito graus negativos; que conseguia convencer-se a deixar Emily suicidar-se. Mas mesmo quando eram pequenos, quando via as equimoses solidárias aparecerem na pele de Emily, isso magoava mais Chris do que quando ele realmente caía. Conseguia aguentar a dor. Só não conseguia aguentar a dor dela.
Chris ficou trespassado pela agonia que viu no rosto de Emily. Aquilo que não podia contar-lhe, fosse o que fosse, estava a matá-la. Devagar, e muito mais dolorosamente do que Chris o faria.
Chris ficou lúcido com um grande zumbido e um clarão de luz, como às vezes acontecia quando cortava a superfície da água na braçada final da vitória. Sem mais nem menos, tudo fez sentido. Emily não tinha medo de morrer. Tinha medo de não morrer.
Naquele momento, com a noite a encolher em seu redor, Chris não pensou em fugir, para ir buscar ajuda, para fazer tempo. Eram só os dois, e não havia alternativa - pela primeira vez Chris compreendeu o que Emily sentia.
- Por favor - sussurrou ela, e ele percebeu que fazer favores a Emily era só o que ele desejava realmente.
Agarrou na arma com a mão esquerda e abraçou-a.
- É isto que queres? - e Emily, percebendo, acenou com a cabeça. Relaxou nos braços dele, e aquela pequena dose de confiança fê-lo soçobrar. - Não te posso fazer isto - disse ele, afastando-se.
Emily colocou a mão na dele e levou a arma à têmpora.
- Então fá-lo por mim - disse ela.
Não conseguia ver o rosto dele naquela posição, mas imaginou-o. Imaginou Chris como ele estava num determinado momento no Verão anterior, no corte de ténis da escola. Estavam uns trinta e cinco graus brutais, e só Deus sabia por que razão decidiram jogar ténis, mas ali estavam eles, Emily com os seus serviços descontrolados, passando bem por cima do campo adjacente, e Chris a correr atrás das bolas, com as gargalhadas a ressoarem igualmente alto.
Lembrava-se dele de costas para o sol. Tinha a raqueta na mão esquerda, com a direita lançava uma bola Wilson. Parou para
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passá-la pela testa, limpando o suor, e depois esboçou um sorriso rasgado para Emily. A voz dele era rouca e grave, muito amada.
- Estás pronta? - perguntou.
Emily sentiu a arma tocar-lhe na pele, e susteve a respiração.
- Agora - disse ela.
- Agora, Chris, agora.
Ouviu as palavras, ouviu a voz de Emily vibrar-lhe junto ao peito, mas tinha outra vez as mãos a tremer e se carregasse no gatilho provavelmente dispararia sobre si próprio, e isso seria assim tão mau?
"Agora. Agora."
Ele chorava tanto naquela altura que ao olhar para Emily pelo canto do olho, o rosto dela ondulou, e pensou que já tinha começado a esquecê-la. Mas depois piscou os olhos e ela estava bela, calma e à espera, com os lábios ligeiramente entreabertos, como por vezes acontecia quando estava a dormir. Ela abriu os olhos, e ele só viu neles a sua convicção.
- Oh, amo-te - disse ele, pelo menos pensava ter dito, mas Emily ouviu, em todo o caso. Levantou a mão direita e colocou-a por cima da dele, com os dedos a fecharem-se por cima dos dele, incitando-o.
Apertou-lhe a mão, e ele carregou no gatilho, e depois ficou surdo e tonto, caindo, com Emily ainda nos braços.
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PRESENTE
Maio de 1997
Chris calou-se, e o choque abateu-se sobre a sala de audiências como uma rede de pesca, juntando todas as perguntas que foram levantadas durante o julgamento. Jordan
moveu-se, o primeiro a quebrar o feitiço. Chris estava curvado no banco das testemunhas, de braços cruzados por cima do estômago, com uma respiração irregular.
Só havia uma maneira de salvar aquele caso. Sabia exactamente o que o Estado ia dizer - ele próprio o fizera durante anos. E a única hipótese que tinha de sair por cima era colocar Barrie Delaney em desvantagem: acusar Chris antes que ela tivesse oportunidade de fazê-lo.
Jordan aproximou-se do banco das testemunhas, preparando-se de forma sinistra para arrasar o seu próprio cliente.
- Porque estava lá? - perguntou Jordan cinicamente. - Estava a pensar em suicidar-se, ou quê?
Confuso, Chris olhou para o advogado. Apesar do que acontecera na hora anterior, Jordan ainda devia estar do lado de Chris.
- Achei que podia impedi-la.
- A sério - Jordan soltou um grunhido de desdém. - Achou que podia impedi-la e acabou por lhe dar um tiro. Porque levou duas balas?
- Não... não sei bem - disse Chris. - Simplesmente levei-as.
- No caso de falhar?
- No caso... não estava a raciocinar muito bem - admitiu Chris.
- Levei duas, foi só isso.
- Desmaiou - disse Jordan, mudando de assunto. - Tem a certeza disso?
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- Acordei no chão, com a cabeça a sangrar - disse ele -, não me lembro de mais nada. - E, sem mais nem menos, recordou-se de algo que Jordan lhe dissera alguns meses antes: "O banco das testemunhas pode ser um lugar muito solitário."
- Estava inconsciente quando a polícia chegou?
- Não - disse Chris. - Estava sentado, a abraçar a Emily.
- Mas não se lembra de ter desmaiado. Lembra-se do que aconteceu precisamente antes do seu suposto desmaio?
Chris abriu e fechou a boca à volta de palavras vazias.
- Estávamos os dois a segurar na arma - conseguiu dizer.
- Onde estavam as mãos da Emily?
- Por cima da minha mão.
- Na arma?
- Não sei. Acho que sim.
- Não se lembra de onde elas estavam, exactamente?
- Não - disse Chris, numa voz tensa, tornando-se mais agitado.
- Então como pode ter a certeza de que estavam por cima da sua?
- Porque ainda sinto o toque dela, agora, quando penso nisso. Jordan revirou os olhos.
- Oh, vá lá, Chris. Deixe-se dessas tretas lamechas. Como sabe que as mãos da Emily estavam por cima da sua?
Chris lançou um olhar irado ao advogado, de rosto afogueado.
- Porque estava a tentar fazer-me carregar no gatilho! - gritou. Jordan atacou-o.
- E como sabe? - espicaçou-o.
- Porque sei! - as mãos de Chris cerraram-se na balaustrada do compartimento das testemunhas. - Porque foi o que aconteceu! inspirou, estremecendo, para recuperar o controlo. - Porque - disse ele - é verdade.
- Oh - disse Jordan, recuando. - A verdade. E por que haveríamos de acreditar nesta verdade? Já houve tantas.
Chris começou a balançar-se lentamente no assento. Jordan dissera a Chris que ele lixara a sua defesa, e Chris percebeu que agora o advogado estava a fazê-lo pagar por isso. Se alguém ia sair do tribunal a parecer um idiota, esse alguém seria o próprio Chris.
De repente, Jordan estava novamente ao seu lado.
- A sua mão estava a segurar naquela arma?
- Sim.
- Onde?
- No gatilho.
- E onde estava a mão da Emily? - perguntou ele.
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- Por cima da minha. Na arma.
- Bem, onde? Por cima da sua mão, ou na arma? Chris curvou a cabeça.
- As duas coisas. Não sei.
- Então não se lembra de desmaiar, mas lembra-se de que a mão da Emily estava por cima da sua e na arma. Como pode ser?
- Não sei.
- Por que razão a Emily colocou a mão por cima da sua?
- Porque estava a tentar que eu a matasse.
- Como sabe? - atormentou Jordan.
- Ela dizia "Agora, Chris, agora." Mas eu não era capaz de fazê-lo. Não parava de dizer aquilo e depois colocou a mão dela por cima da minha e apertou-a.
- Estava a apertar-lhe a mão? Apertou-lhe o dedo no gatilho?
- Não sei.
- O dedo dela roçou sequer naquele gatilho, Chris?
- Não tenho a certeza - abanou a cabeça com força, tentando desanuviar.
- A mão dela tocou-lhe no dedo que tinha no gatilho?
- Não sei - Chris soluçou. - Não sei.
- Foi o Chris que carregou no gatilho? - disse Jordan, a centímetros do rosto de Chris. Chris acenou com a cabeça, de nariz a pingar, de olhos vermelhos e a arder. - Chris - disse Jordan -, como sabe?
- Não sei - gritou Chris, tapando os ouvidos. - Não sei, meu Deus, não sei.
Jordan estendeu as mãos por cima da balaustrada do compartimento das testemunhas e puxou delicadamente as mãos de Chris, colocando-as debaixo das suas na divisória de madeira.
- Não tem a certeza, Chris, de que matou a Emily, pois não? Chris ficou com a respiração presa na garganta. Ficou a olhar
para o advogado de olhos muito abertos. "Não tens de descobrir", implorou-lhe Jordan em silêncio. "Tens apenas de admitir que não podes ter a certeza."
Estava magoado de dentro para fora e parecia que o coração fora espezinhado... mas estava em paz pela primeira vez há meses.
- Não - murmurou Chris, aceitando aquela dádiva. - Não tenho.
Em toda a sua vida, Barrie Delaney nunca participara num julgamento que se assemelhasse a este. Jordan fizera o trabalho dela de forma bastante eficaz, até ao fim quando o arguido estava um
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farrapo emocional e basicamente refutou a sua confissão. Mas fizera uma confissão. E Barrie não era pessoa para desistir assim tão facilmente.
- Aconteceu na noite de sete de Novembro, não foi?
Chris olhou para a promotora de justiça e acenou com a cabeça, desconfiado.
- Sim.
- Mesmo no final - disse Barrie -, a sua mão estava a segurar na arma?
- Sim.
- Essa arma estava encostada à cabeça da Emily? -Sim.
- O seu dedo estava no gatilho? Chris respirou fundo.
- Sim - disse ele.
- Foi disparado um tiro?
- Sim.
- Sr. Harte - disse Barrie -, a sua mão ainda estava a segurar na arma, e no gatilho, quando o tiro foi disparado?
- Sim - sussurrou Chris.
- Acha que disparou sobre a Emily Gold? Chris mordeu o lábio.
- Não sei - disse ele.
- Gostaria de voltar a interrogar a testemunha - Jordan voltou a aproximar-se do banco das testemunhas. - Chris, dirigiu-se para o carrossel a pensar que ia matar a Emily?
- Meu Deus, não.
- Foi lá naquela noite a pensar em matá-la?
- Não - abanou a cabeça vigorosamente. - Não.
- Mesmo no momento em que encostou aquela arma à cabeça da Emily, Chris: queria matá-la?
- Não - disse Chris numa voz pastosa. - Não queria. Jordan virou-se, deixando de estar virado) para Chris, para fitar
Barrie Delaney enquanto repetia as perguntas dela no contra-interrogatório.
- No final da noite de sete de Novembro, Chris, a sua mão estava a segurar na arma?
- Sim.
- Essa arma estava encostada à cabeça da Emily?
- Sim.
- Tinha o dedo no gatilho?
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- Sim.
- Foi disparado um tiro?
- Sim.
- A mão da Emily também estava a segurar na arma, como a sua?
- Sim - disse Chris.
- Ela estava a dizer: "Agora, Chris, agora"?
- Sim.
Jordan atravessou a sala de audiências, parando em frente ao júri.
- Pode afirmar, Chris, sem a menor dúvida, que as suas acções, os seus movimentos, os seus músculos, foram a única coisa que fez disparar a arma?
- Não - disse Chris, de olhos brilhantes. - Acho que não.
Para admiração de todos, o juiz Puckett insistiu em que fizessem as exposições aos jurados após o almoço. Enquanto os oficiais de justiça avançavam para levar Chris para a cela do xerife lá em baixo, ele estendeu a mão para tocar na manga de Jordan.
- Jordan - começou ele a dizer.
O advogado estava a reunir as notas, lápis e documentos que estavam espalhados em cima da mesa. Não se deu ao trabalho de levantar a cabeça.
- Não fale comigo - disse, e saiu sem olhar para trás.
Barrie Delaney mimou-se com uma barra de gelado Hàagen Dazs. Chocolate por dentro, chocolate por fora. Nitidamente para celebrar.
Como procuradora-geral adjunta, a única forma de criar uma reputação era ter a sorte de ser a primeira da lista quando surgisse um caso importante. Nisso, Barrie tinha tido sorte. Os homicídios eram raros no Condado de Grafton; as confissões dramáticas no tribunal inéditas. Toda a gente ia falar daquele caso durante dias. Barrie até podia ser entrevistada para o telejornal.
Lambeu cuidadosamente o gelado, sabendo que uma nódoa no fato não seria uma boa ideia, visto que ainda tinha de fazer as alegações finais. Mas tanto quanto sabia, até podia levantar-se após a exposição de Jordan e recitar o alfabeto, que Chris Harte seria condenado por homicídio. Apesar dos últimos esforços de Jordan para salvar a situação, um júri sabia quando estava a ser enganado. Todas aquelas tretas sobre uma tentativa de duplo suicídio a que a defesa recorreu como estratégia, e que não passavam disso - tretas - iam
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ter um peso bastante grande para os doze quando se retirassem para deliberar.
O júri lembrava-se de Chris a dizer que disparara sobre aquela rapariga. O fiasco da mãe dele no banco das testemunhas. E o facto de, pela primeira vez em três dias de julgamento, saber-se que a defesa estava a mentir deliberadamente.
Ninguém gostava de saber que fora enganado.
Barrie Delaney sorriu e lambeu os dedos. "Muito menos", imaginou, "Jordan McAfee."
- Vai-te embora - gritou Jordan por cima do ombro.
- Não está certo - gritou-lhe Selena em resposta.
- Deixa-me em paz, está bem? - afastou-se dela, mas ela era mesmo muito alta e aquelas longas pernas acompanharam as passadas dele. Aproveitando a oportunidade, enfiou-se na casa de banho dos homens, mas Selena empurrou a porta com força, fazendo-a girar nas dobradiças, e entrou lá dentro. Lançou um olhar ameaçador a um homem idoso que estava a usar o urinol, que se apressou a fechar a braguilha, afogueado, e saiu. Depois encostou-se à porta, para impedir que mais alguém entrasse.
- Agora - ordenou ela. - Fala.
Jordan encostou-se ao lavatório e fechou os olhos.
- Fazes alguma ideia - disse ele - do que isto vai fazer à minha credibilidade?
- Absolutamente nada - disse Selena. - O Chris assinou uma renúncia.
- E é precisamente isso que ninguém vai ouvir nas notícias. Vão presumir que sou tão incompetente numa sala de audiências como um dos Sete Anões.
- Qual deles? - perguntou Selena, sorrindo ligeiramente.
- O Dunga - suspirou Jordan. - Meu Deus. Serei um idiota? Como pude apresentá-lo como testemunha sem primeiro lhe perguntar o que ia dizer?
- Estavas zangado - disse Selena.
- E então?
- Então. Não sabes como ficas quando estás zangado - tocou-lhe no braço. - Fizeste o melhor que podias pelo Chris - recordou-lhe delicadamente. - Não podes ganhar
sempre.
Jordan olhou para ela.
- Porque não?
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- Sabem uma coisa? - começou Jordan a dizer, diante do júri.
- Há três horas, não fazia a mínima ideia do que ia dizer-vos agora. Mas depois ocorreu-me: queria congratular-vos. Porque hoje viram algo muito invulgar. Algo surpreendente que nunca, nunca se encontra numa sala de audiências. Senhoras e senhores, viram a verdade.
Sorriu, encostando-se à mesa da defesa.
- É uma palavra traiçoeira, não é? Parece ser o mais importante
- endureceu o rosto numa boa imitação do juiz Puckett. - Muito séria. Fui ver ao dicionário - admitiu. - O Webster diz que é o estado real das coisas, o conjunto de acontecimentos ou factos reais.
- Jordan encolheu os ombros. - Por outro lado, Oscar Wilde disse que a verdade pura e simples, raramente é pura e nunca é simples. É que a verdade está nos olhos de quem a vê.
"Sabem que já fui promotor de justiça? É verdade. Trabalhei no mesmo escritório em que a Dr.a Delaney agora trabalha, durante dez anos. Sabem porque desisti? Porque não gostava da ideia de verdade. Quando somos promotores de justiça, vemos o mundo a preto e branco, e as coisas ou aconteceram ou não aconteceram. Sempre achei que há mais de uma maneira de contar uma história, de ver as coisas. Nunca achei que a verdade sequer se encaixasse num julgamento. Enquanto promotores de justiça apresentamos as provas e as testemunhas, e depois a defesa tem oportunidade de apresentar as mesmas coisas sob uma perspectiva diferente. Mas reparem que não disse nada sobre apresentar a verdade.
Riu.
- É engraçado, não acham, que agora tenha de me agarrar à verdade até ao fim? Porque é tudo o que me resta, para defender o Chris Harte. Este julgamento... inacreditavelmente... centrou-se na verdade.
Jordan dirigiu-se ao júri e colocou as mãos abertas na balaustrada do compartimento.
- Começámos este julgamento com duas verdades. A minha bateu no peito - e a dela - apontou para Barrie Delaney com um gesto do polegar. - E depois vimos muitas variações. A verdade, para a detective e para o médico-legista, provém da organização das provas. Não quer dizer que as provas não os conduzam à sua teoria. A verdade, para Michael Gold, é assumir a responsabilidade por algo demasiado horrível para se imaginar, embora seja mais fácil colocar as culpas noutra pessoa. E a verdade, para a mãe do Chris, não tem nada a ver com este caso. A verdade dela é acreditar no filho... independentemente do que isso implique.
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"Mas a verdade mais importante que ouviram veio da boca do Chris Harte. Apenas duas pessoas sabem realmente o que aconteceu na noite de sete de Novembro. Uma delas está morta. E a outra acabou de vos contar tudo.
Jordan passou a mão pela balaustrada do compartimento do júri enquanto o observava.
- É nessa altura, senhores e senhoras, que devem intervir. A Dr.a Delaney apresentou-vos um conjunto de factos. E o Chris Harte contou-vos a verdade. Concordam cegamente com a Dr.a Delaney, vêem as coisas como ela quer que vejam, apesar do seu mundo a preto e branco? Afirmam: havia uma arma, houve um disparo, uma rapariga morreu; logo, deve tratar-se de um homicídio? Ou querem contemplar a verdade?
"Têm escolha. Podem fazer o que eu costumava fazer, o que gosto de fazer como advogado, basearem-se nos factos e formarem uma opinião própria. Ou podem olhar para a verdade diante de vós e encará-la como a dádiva que é - inclinou-se para o júri, suavizando a voz. - Era uma vez um rapaz e uma rapariga. Cresceram juntos. Amavam-se como irmãos. Passavam todo o tempo juntos, e quando cresceram tornaram-se amantes. As suas emoções e os seus corações ficaram tão entrelaçados que deixaram de identificar as suas necessidades individuais.
"Então, por uma razão que podemos nunca vir a conhecer, um destes jovens começou a sofrer. Sofria tanto que já não queria viver. E virou-se para a única pessoa em
quem confiava - Jordan dirigiu-se para Chris, parando a centímetros do cliente. - Ele tentou ajudá-la. Tentou impedi-la. Mas ao mesmo tempo sentia a dor dela como
se fosse sua. E no final não conseguiu impedi-la. Falhou. Chegou mesmo a afastar-se.
Jordan olhou para o júri.
- Só que a Emily não conseguia suicidar-se. Implorou-lhe, suplicou-lhe, gritou, colocou a mão por cima da dele na arma. Ela fazia parte dele e ele fazia parte dela, de tal maneira que nem sequer foi capaz de completar este acto final sozinha. Ora, eis a pergunta com a qual se deparam, enquanto membros do júri: Foi o Chris que disparou sozinho?
"Quem sabe, senhoras e senhores, o que fez disparar aquele gatilho? Há uma força física, e depois há a força mental. Talvez fosse a Emily a pressionar a mão do Chris.
E talvez fosse a Emily a dizer-lhe que queria morrer, acima de tudo. Talvez dizer-lhe que confiava nele, que o amava, bastasse para que ele a ajudasse a fazê-lo.
Tal como disse, o Chris Harte é a única pessoa nesta sala de audiências
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que estava presente. E segundo o seu testemunho, nem sequer o Chris sabe ao certo o que aconteceu.
"A Dr.a Delaney quer que condenem o Chris por homicídio qualificado. Mas, para isso, terá de provar que teve tempo e oportunidade para reflectir. Que pensou no que ia fazer, que tinha um objectivo e que estava decidido a tirar a vida à Emily.
Jordan abanou a cabeça.
- Mas sabem uma coisa? O Chris não queria matar a Emily naquela noite, nem em qualquer outra. Era a última coisa que desejava fazer. E o Chris não teve tempo para pensar no que aconteceu. Nunca chegou a decidir nada. A Emily decidiu por ele.
"Este julgamento não se centra no conjunto de factos da Dr.a Delaney, nem em nada daquilo que eu disse na minha introdução, nem sequer nas testemunhas que apresentei. Centra-se no Chris Harte e naquilo que ele decidiu revelar-vos - Jordan percorreu lentamente o júri com os olhos, olhando directamente para cada um dos membros. - Ele estava presente e tem algumas dúvidas sobre o que aconteceu realmente. Como podem os senhores jurados não ter?
Jordan dirigiu-se para a mesa da defesa, parando a meio caminho.
- O Chris disse-vos uma coisa que a maioria dos jurados nunca chega a ouvir: a verdade. Agora são os senhores que têm de lhe mostrar que estavam a ouvir.
- O Dr. McAfee tem sem dúvida um grande futuro enquanto romancista - disse Barrie. - Eu própria estava a deixar-me envolver no drama. Mas o que o Dr. McAfee estava a tentar fazer era desviar-vos dos factos deste caso, que ele diz que não serem a mesma coisa que "a verdade".
"Ora, não sabemos realmente se o Chris Harte está a dizer a verdade - disse ela. - Sabemos que mentiu anteriormente, à polícia, aos pais. Na verdade, ouvimos três versões diferentes neste julgamento. A primeira foi que a Emily ia suicidar-se e o Chris também. A segunda versão era que a Emily ainda queria suicidar-se... mas o Chris ia tentar impedi-la - Barrie fez uma pausa. - Sabem, para mim essa é um pouco mais aceitável, porque o Chris não me parece muito suicida.
"Oh, mas então o Chris voltou a alterar a sua versão: a Emily não conseguia carregar sozinha no gatilho, por isso ele teve de fazê-lo por ela, fisicamente - Barrie suspirou de forma dramática. O Dr. McAfee quer que contemplem a verdade - ergueu as sobrancelhas. - Qual delas?
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"Para podermos argumentar, vamos aceitar a última versão do Chris. Vamos pressupor que essa é a verdade. Mas mesmo que seja, não têm outra hipótese senão condená-lo. Observaram as provas físicas, a única coisa que se manteve inalterada no decurso deste julgamento. Ouviram a detective Marrone dizer que a arma tinha as impressões digitais do Chris; ouviram o médico-legista dizer que a trajectória da bala ao atravessar a cabeça da Emily indica que outra pessoa disparou sobre ela; ouviram-no dizer que havia pele do Chris debaixo das unhas da Emily e que as equimoses que tinha no pulso ocorreram durante uma luta. Mas, talvez, o mais importante, seja o que ouviram o Chris Harte dizer, que disparou sobre a Emily Gold. Ele próprio admitiu que a matou.
"Uma pessoa é culpada de homicídio qualificado se tem intenções de causar a morte de outra. Se os seus actos forem premeditados, deliberados e voluntários.
"Pensemos nisto: o Chris Harte pesou os prós e os contras e decidiu levar uma arma para o local do crime. Isso é premeditado. Carregou a arma. Isso é deliberado. Tirou a arma da mão da Emily de livre vontade, encostou-lha à cabeça e ainda a tinha na mão quando foi disparada. Isso, senhoras e senhores, é homicídio qualificado. Não interessa que tivesse pena da Emily. Não interessa que a Emily lhe tenha pedido para disparar. Não interessa que tenha sofrido por matá-la. Neste país, não podemos agarrar simplesmente numa arma e matar outra pessoa. Mesmo que essa pessoa nos peça.
Barrie dirigiu-se para o júri.
- Se acreditarmos agora no Chris, onde estabelecemos o limite? Sobretudo quando a vítima já não está viva para testemunhar. Teríamos as ruas cheias de criminosos, garantindo que as suas vítimas lhes imploraram que as matassem, jurando por Deus - apontou para o banco das testemunhas. - O Chris Harte sentou-se ali e disse-vos que agarrou na arma, encostou-a à cabeça da Emily e disparou sobre ela. Independentemente de tudo o resto, as emoções, os termos pouco claros de psicologia, a confusão, foi isso que aconteceu. Esta é a vossa verdade.
"Têm de declarar o Christopher Harte culpado, se a morte da Emily Gold foi uma consequência directa dos seus actos. Se esses actos foram premeditados, deliberados e voluntários. Então... como podem ter a certeza de que os actos do Chris cumprem esses requisitos? - Barrie atravessou a sala de audiências, assinalando os pontos já referidos. - Porque ele podia ter pousado aquela pistola. Porque podia ter-se ido embora a qualquer altura. Porque não foi obrigado a disparar sobre a Emily Gold - parou junto da mesa das
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provas e agarrou na arma do crime. - Afinal, senhoras e senhores, ninguém tinha uma arma encostada à cabeça do Chris.
Às seis da tarde, o júri ainda não tinha apresentado um veredicto. Chris foi novamente levado para a prisão para dormir. Despiu as roupas e enfiou-se debaixo dos cobertores, recusando o jantar, recusando-se a falar com todos os que lhe batessem nas grades da cela.
Um ritmo latejava-lhe na base do crânio - a única coisa que nem Jordan McAfee nem Barrie Delaney mencionaram. Talvez não fosse importante para eles; o próprio Chris não pensara nisso até Jordan lhe ter refrescado a memória daquela noite, como ela realmente fora. E tratava-se de Emily.
Ela amava-o. Sabia-o; nunca duvidara disso. Mas também lhe pedira para a matar.
Quando amamos assim tanto uma pessoa, não lhe colocamos esse fardo nas costas para o resto da vida.
Chris debatera-se com essa questão e decidira que amar Emily implicava deixá-la ir, se era realmente isso que ela queria. Mas Emily fora tão egoísta, nem sequer lhe dera uma hipótese de escolha. Ligara-o irreversivelmente a ela, pela vergonha, pela dor, pela culpa.
Os sons de uma luta entre reclusos no andar de baixo e o tilintar das chaves de um guarda foram engolidos por uma raiva a expandir-se e a rugir aos ouvidos de Chris. Naquele momento, estava furioso com Emily por lhe ter feito aquilo. Por colocar os seus próprios desejos à frente dos dele, quando ele fizera precisamente o contrário.
Por tê-lo colocado naquele buraco durante sete meses, sete meses que nunca iria recuperar. Por não lhe ter dito nada sobre o bebé. Por tê-lo deixado para trás. Por lhe ter estragado a vida.
E naquele momento, Chris apercebeu-se de que, se Emily Gold estivesse presente, a teria matado de bom grado.
Selena afastou o copo de vinho vazio.
- Acabou - disse ela. - Agora já não podes mudar nada.
- Podia...
- Não - disse a Jordan. - Não podias.
Ele fechou os olhos e encostou-se para trás na cadeira, o bife estava quase intacto numa travessa à sua frente.
- Detesto esta parte - disse ele. - Esperar. Seria mais barato para os contribuintes se me dessem uma espada de hara-kirí e me dissessem para estar à vontade.
Selena desatou a rir.
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- Jordan, és tão optimista - disse ela. - Um pequeno deslize não vai arruinar-te a carreira.
- Não quero saber da minha carreira.
- Então o que é? - observou-o, com a boca a arredondar-se. Oh... o Chris.
Ele passou as mãos pelo rosto.
- Sabes o que não consigo tirar da cabeça? - disse. - Aquela altura em que o Chris estava no banco das testemunhas, e disse que ainda conseguia sentir a Emily tocar-lhe, às vezes. E eu disse-lhe para se deixar de tretas.
- Tinhas de dizer, Jordan.
Ele rejeitou as palavras dela com um gesto.
- Não é isso. É que tenho quase o dobro da idade do Chris Harte, já fui casado e nunca me senti assim. O que diz o meu instinto: ele matou aquela rapariga? Sim, acho que sim. Pelo menos, teoricamente. Mas, caramba, Selena. Tenho inveja dele. Nem imagino como será amar tanto alguém que fazemos tudo o que essa pessoa pedir. Até cometer um homicídio.
- Farias tudo pelo Thomas - disse Selena.
- Não é a mesma coisa e tu sabes que não. Durante um momento, Selena ficou calada.
- Não tenhas inveja do Chris Harte. Deves ter pena dele. Porque as hipóteses que ele tem de voltar a ter uma relação tão íntima com outra pessoa são bastante reduzidas. Tu, por outro lado, podes ainda ansiar por tudo.
Jordan encolheu os ombros, colocando os dedos em pirâmide.
- Seja o que for - disse ele. Selena suspirou e fê-lo levantar-se.
- São horas de ires para casa - disse ela. - Amanhã tens de te levantar cedo - e então, no meio do restaurante, agarrou-lhe nas orelhas e puxou-lhe delicadamente a cabeça para a frente para poder beijá-lo.
A boca dela encostou-se com força à dele e a língua deslizou-lhe com facilidade por entre os lábios. Quando Selena se afastou, Jordan estava com falta de ar.
- O que te levou a fazer isto? - perguntou. Ela deu-lhe palmadinhas na face.
- Só queria dar-te mais alguma coisa em que pensar - disse ela, e deu meia volta, não lhe deixando outra alternativa senão ir atrás dela.
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Às nove horas, os Harte estavam prontos para ir para a cama. Gus não se lembrava de outra maneira de fazer a manhã chegar mais depressa. Desligou a luz e ficou à espera que James saísse da casa de banho.
O colchão rangeu e afundou-se quando James se enfiou debaixo dos cobertores. Gus virou a cabeça para o outro lado, olhando pela janela, onde a Lua estava fina como uma unha. Quando estivesse novamente cheia, o seu primogénito estaria a cumprir prisão perpétua na Penitenciária Estadual.
Sabia porque Chris interrompera o seu testemunho, como sabia que estava a fazer um péssimo trabalho. Ele não aguentou vê-la no banco das testemunhas, cada mentira a despedaçar-lhe o coração, dividindo-o num conjunto de matrioscas, cada vez mais pequenas até já não haver nada lá dentro. Chris nunca conseguira ver alguém de quem gostasse sofrer.
Fora por isso que matara Emily.
Devia ter soltado um som, um soluço involuntário, porque de repente James puxou-a para junto do peito. Gus virou-se para o calor sólido do corpo dele, abraçando-o.
Queria aproximar-se mais, fundir-se com James; tornar-se parte dele para deixar de ter os seus pensamentos, as suas preocupações. Queria a força dele. Mas, em vez de falar, virou o rosto para cima e beijou-o, a boca a roçar-lhe no pescoço e as ancas a encostarem-se às dele.
A cama, o quarto, estavam a arder à volta deles. Arranharam-se um ao outro na tentativa de se fundirem. James penetrou Gus em questão de segundos, o corpo dela arqueando-se junto ao dele, a cabeça abençoadamente, alegremente vazia.
Quando acabou, James afagou-lhe as costas húmidas.
- Lembras-te - murmurou ela - da noite em que o fizemos? Ele acenou com a cabeça junto aos cabelos de Gus.
- Nessa altura já sabia - murmurou ela. - Senti que tinha sido diferente das outras vezes. Como se te tivesses entregado a mim, completamente.
James apertou-a nos braços.
- E era verdade - disse ele. Sentiu os ombros de Gus estremecerem e as lágrimas molhadas junto ao peito. - Eu sei - confortou-a. - Eu sei.
Enquanto o júri entrava em fila na sala de audiências, Chris apercebeu-se de que não conseguia engolir. Tinha a maçã-de-adão entalada na garganta, e sentia a respiração ofegante e os olhos
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húmidos. Nem um único membro do júri olhou para ele, e tentou lembrar-se do que os outros reclusos da cela tinham dito sobre isso, baseando-se nas suas experiências... seria algo positivo, ou não?
O juiz Puckett dirigiu-se a um dos jurados, um homem idoso com uma camisa manchada.
- Sr. porta-voz do júri, já chegaram a um veredicto? -Já, meritíssimo.
- E esse veredicto é unânime?
- É sim - quando o juiz acenou com a cabeça, o oficial de diligências do tribunal aproximou-se do compartimento do júri e tirou um papel dobrado das mãos do porta-voz. Caminhou devagar, a passo de caracol, pensou Chris, dirigindo-se novamente ao juiz e entregou-lho. O juiz acenou com a cabeça e, depois, devolveu o papel ao porta-voz.
Leslie Puckett olhou para cima, de rosto inexpressivo.
- O arguido levante-se, por favor?
Chris sentiu Jordan levantar-se ao seu lado. Também queria levantar-se, mas as pernas não obedeciam. Estavam flácidas debaixo do banco, os pés pesados como blocos e imóveis. Jordan olhou para baixo e levantou as sobrancelhas. "Levanta-te."
- Não consigo - sussurrou Chris, e sentiu que o advogado o agarrava, por debaixo do braço e o puxava para cima.
Tinha o coração a bater descontroladamente e as mãos pareciam tão rígidas que nem sequer conseguia cruzá-las, por muito que tentasse. Era como se de repente o corpo tivesse deixado de lhe pertencer.
Nesse instante conseguiu sentir tudo: o cheiro do sabão usado para limpar as madeiras da sala de audiências na noite anterior; a gota de suor que lhe escorria por entre as omoplatas; o som do sapato da estenógrafa do tribunal na borda da sua secretária.
- No caso de "O Estado do New Hampshire contra Christopher Harte", acusado de homicídio qualificado, como declara o arguido?
O porta-voz olhou para o pedaço de papel que tinha na mão.
- Inocente - leu.
Chris sentiu Jordan virar-se para ele, com um grande sorriso de admiração no rosto. Ouviu o choro suave da mãe a alguns metros de distância. Ouviu o barulho ensurdecedor da sala de audiências, explodindo a seguir ao inesperado. E, pela terceira vez na vida, Christopher Harte desmaiou.
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EPÍLOGO
Para aonde quer que Chris fosse, abria as janelas. Conduzia com os vidros completamente descidos, mesmo que tivesse o ar condicionado ligado. Abria-as em todas as
divisões da casa. Até à noite, mesmo quando estava frio, amontoava cobertores por cima da cama, preferindo-os a um pequeno quadrado de ar que não circulasse.
Mas, às vezes, mesmo com todo aquele ar fresco, um aroma era transportado pelo vento. Acordava de repente, debatendo-se para se afastar dele, a sufocar. E os pais encontravam-no na manhã seguinte a dormir no sofá, ou no chão da sala de estar, e uma vez aos pés da cama deles.
"O que se passa?", perguntavam. "O que aconteceu?"
Mas era impossível explicar a alguém que não tivesse estado lá: sem razão absolutamente nenhuma, de repente, sentira o cheiro da prisão.
Chegou num sábado em Junho, um longo camião branco com o mundo pintado dos lados, a entrar na via de acesso dos Gold de marcha atrás, saindo de lá seis homens para levarem os seus pertences. Gus e James ficaram a observar do alpendre as caixas a serem arrastadas e os colchões instalados, os candeeiros com os seus próprios fios enrolados e as bicicletas transportadas para dentro das entranhas do camião. Não disseram nada um ao outro, para que pudessem testemunhar durante o resto do dia.
Os boatos da vizinhança diziam que os Gold iam mudar-se para o outro lado da cidade - não era uma longa distância, mas a mudança era necessária. A casa tinha sido posta à venda e compraram uma nova mesmo antes de ter sido vendida.
As pessoas diziam que Michael queria ir para longe, talvez para o Colorado, ou até para a Califórnia. Mas Melanie recusara-se a deixar a filha para trás, e que hipóteses lhes restavam?
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A casa nova também tinha um escritório, para o consultório veterinário de Michael, e toda a gente dizia que era bonita e isolada. Eram boatos, claro, mas alguém ouvira dizer que tinha três quartos. Um para Michael Gold, um para a mulher e um para Emily.
Antes que conseguisse evitar, Gus dirigiu-se para o fim da via de acesso. Viu o grande camião desaparecer do outro lado da colina, seguido do Taurus de Melanie. E, depois, bastante mais atrás, surgiu a carrinha de Michael.
As janelas da carrinha estavam abertas; era demasiado velha para ter o ar condicionado a funcionar com regularidade. Michael abrandou ao chegar à via de acesso dos Harte. Ela viu que ele ia parar. Viu que queria falar com ela. Para aceitar as suas desculpas, para perdoá-la, para simplesmente lhe dizer adeus.
A carrinha abrandou até quase parar, e Michael virou-se, cruzando o seu olhar sóbrio com o de Gus. Sentiu uma pontada de dor; o peso da possibilidade; e a seguir, o olhar directo do entendimento.
Sem dizer uma palavra, continuou a andar.
Chris estava no quarto quando o camião das mudanças começou a afastar-se da via de acesso dos Gold. Longo e branco, passou pelas árvores que ladeavam o trilho de gravilha a gemer, por pouco batendo na caixa do correio.
O Ford de Melanie Gold e, por fim, a carrinha de Michael. Uma caravana, pensou Chris. Como os ciganos - partiam em busca de algo mais fácil, ou melhor.
E, depois, a casa ficou vazia, um monólito amarelo de tábuas de madeira. As janelas, sem cortinas, pareciam olhos vagos e distantes, desejando observar mas incapazes de recordar. Chris debruçou-se sobre o parapeito da janela aberta, ouvindo o zumbido das cigarras, o calor pesado do Verão e o ligeiro ruído do camião das mudanças ao longo de Wood Hollow Road.
Curioso, esticou o pescoço, tentando ver a borda da parte superior que se curvava em cima. Ainda estava lá, a roldana que estava numa das extremidades do sistema
de latas para transportar mensagens que montara com Emily quando era criança. Sabia que havia outra, na parte de cima da antiga janela de Emily.
Chris estendeu a mão, puxando a linha de pesca coberta de bolor, mas ainda intacta. Ficara presa há muito tempo num dos pinheiros entre as propriedades, enredando
a lata e a mensagem que estava lá dentro, e nunca conseguiram soltá-la.
Chris tentara, mas nessa altura era demasiado pequeno.
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Torceu-se, para ficar sentado no parapeito, esticando as mãos por entre as telhas no exterior da casa. Conseguiu agarrar o fio com os dedos, e sentiu uma satisfação desproporcionada, como se agarrá-lo à primeira tentativa tivesse algum significado. Quando o fio apodrecido cedeu, Chris viu a lata enferrujada cair do seu poiso entre as duas casas.
com o coração aos saltos, Chris desceu as escadas a correr, dois degraus de cada vez. Dirigiu-se para o local onde vira a lata cair, procurando com os olhos, para trás e para a frente, até ver um reflexo prateado.
As árvores ali eram altas e delgadas, ocultando o sol. Chris ajoelhou-se junto a um pinheiro alto e enfiou um dedo na lata, retirando um pedaço de papel. Não se lembrava de qual fora a mensagem final; nem sequer se lembrava se fora ele que a enviara a Emily ou se fora Emily que lha enviara a ele. Sentiu um nó no estômago quando o papel saiu de dentro da lata.
com cuidado, sentindo as dobras frágeis cederem, abriu-o.
O papel estava em branco.
Não sabia se sempre assim fora, ou se os anos tinham apagado o que lá estava escrito. Chris enfiou a mensagem no bolso dos calções e afastou-se da casa de Emily, pensando que isso talvez não fosse importante.
Jod Picoult
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