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O herói órfão, Roland Graeme, é criado como um pajem por Lady Mary Avenel, a heroína do livro O Mosteiro e agora esposa de Sir Halbert Glendinning. Apesar de ser considerado um bastardo sem dinheiro, Roland torna-se um favorito de sua patroa sem filhos, até que seu caráter impetuoso leva à sua demissão. Apoiado por Sir Halbert, Roland entra ao serviço do conde de Murray, que, após a abdicação forçada de Mary, Rainha da Escócia, governa o país como regente em nome da criança James VI. Murray indica-o como uma pajem para o prisioneira Rainha Mary e envia-o para o castelo de Lochleven com instruções para agir como um espião. No entanto, o senso de honra de Roland, a sua fidelidade a Mary (instilada pela sua avó católica, Madgalen Graeme), e seu amor por Catherine Seyton, uma das damas de Mary Stuart, impedem-no de atuar neste papel. No final, Roland torna-se instrumento na fuga da rainha, permanecendo com ela até que ela saia da Escócia. Nesse sentido, ele é ajudado pelo Abade de Kennaquhair, Pai Ambrose (antes Edward Glendinning), de quem o romance leva o título. Pouco antes da derrota de Mary em Langside, Roland descobre sua verdadeira identidade. Ele não é, como pensava, o filho ilegítimo de Catherine Graeme mas o produto de uma união legítima entre Catherine e Julian Avenel e, portanto, herdeiro de fazendas de sua benfeitora. Roland é perdoado pelo regente e casa com Catherine Seyton.
A união de sir Halbert Glendinning e de sua esposa era cheia da ventura que uma mútua afeição pode criar, embora, por duas circunstâncias, toda aquela doçura não deixasse de ter também os seus laivos de amargor. Uma delas era a calamidade peculiar à Escócia inteira, as perturbações internas do desventurado país, que faziam os vizinhos desembainharem as espadas uns contra os outros. Sir Halbert Glendinning era chamado pelo regente Murray a fim de o acompanhar em distantes expedições, ajudá-lo em feitos perigosos e dispensar-lhe seus conselhos para esclarecer os complicados enredos de uma corte semi bárbara; assim, freqüentemente ficava muito tempo longe de seu castelo e afastado da esposa. A tal motivo de aborrecimento juntava-se mais outro: como não tinham nenhum rebento, a dama de Avenel, privada do convívio do seu marido, não encontrava derivativos iguais aos que dela exigiriam os cuidados de uma jovem família.
Durante as viagens de sir Halbert ela vivia inteiramente retirada do mundo, na mansão paterna, só visitando os vizinhos nas poucas ocasiões em que festejavam datas solenes.
Por todas estas razões o castelo de Avenel era uma residência cheia de tristeza e solidão, oferecendo apenas a vantagem de ser um lugar seguro. Construído numa ilhota no meio de um lago, só podia ser alcançado por uma encosta cortada por fossos duplos que, por sua vez, eram defendidos por duas pontes levadiças, fato que então o tornava inexpugnável sem artilharia. Não havia portanto necessidade de precauções contra eventuais surpresas e, para a sua defesa, bastavam os seis homens d'armas que viviam no castelo. Se houvesse alguma ameaça de perigo mais sério, seria possível encontrar auxílio numeroso entre os habitantes de uma aldeia que, sob os auspícios de sir Halbert Glendinning, se tinha erguido no alto de uma pequena planície, situada entre o lago e a montanha.
Um único forasteiro hospedava-se constantemente no castelo de Avenel: era Henry Warden. Já idoso, este encontrava menor facilidade na execução da laboriosa tarefa imposta pelo clero reformador; e tendo com o seu zelo ofendido pessoalmente muitos nobres e muitos chefes das primeiras fileiras, só se achava em absoluta segurança no castelo fortificado de algum amigo atingido. Mesmo assim não deixava de servir à causa com a sua pena, exatamente como fizera outrora com as suas palavras, e iniciou uma furiosa disputa cheia de controvérsias com o abade Eustáquio, sub-prior do monastério de Santa Mary de Kennaquhair, Infelizmente, porém, a natureza de suas ocupações habituais tornava a companhia do teólogo pouco interessante para uma mulher solitária; seu aspecto grave, severo e contemplativo, o pouco interesse que conferia a tudo quanto fugia à suas opiniões religiosas, aumentavam mais ainda a aparência sombria e melancólica do castelo.
Lady Avenel passava a maios parte do dia a fiscalizar o trabalho das mulheres que estavam a seu serviço. Sua roca, sua Bíblia, um passeio solitário pela plataforma, pela encosta e raramente pelas margens do pequeno lago, enchiam-lhe a outra parte. Reinava então na Escócia uma época de segurança tão limitada que, todas as vezes que ela queria ir além da aldeola, uma sentinela subia para a mais alta torre, com a ordem de fiscalizar cuidadosamente tudo quanto se passava nos arredores, enquanto três ou quatro homens se achavam prontos a montar a cavalo ao menor sinal de alerta. Tal era a situação das coisas no castelo quando, depois de uma ausência de muitas semanas, todos os dias se esperava o regresso do cavalheiro de Avenel, nome que freqüentemente davam a sir Halbert Glendinning. Entretanto os dias se passavam e êle não chegava. Escrevia-se raramente naquele tempo. Não tinha sido fixada exatamente a data para o regresso de sir Halbert, mas aquela em que sua esposa esperava vê-lo de volta passara já havia muito, e a inquietação começava a transparecer em meio às suas esperanças desfeitas.
Era a estação mais quente do ano e o sol começava a ocultar-se atrás das montanhas de Liddesdale: lady Avenel passeava sozinha pela plataforma situada sobre as construções toda calçada de grandes lajes de pedra e que formava a fachada do castelo. A lisa superfície do lago só de quando em quando era agitada pelos mergulhos dos patos e das galinhas selvagens, inteiramente dourada pelos últimos raios do poente. Aquela espécie de solidão, graças às crianças da aldeia, inteiramente entregues aos seus folguedos, animava-se por vezes, chegando o eco de suas vozes distantes aos ouvidos de lady Avenel.
"Por que não sou eu a mãe de uma daquelas crianças!" pensava ela a retomar o fio de suas melancólicas reflexões. "Seus pais mal estão em condições de alimentá-los, enquanto eu, eu uma criatura a quem a fortuna cumulou de possibilidades, vejo-me condenada a nunca ouvir uma voz infantil chamar-me de mãe!"
De tal modo a natureza marcou no coração das mulheres o desejo de reviver em seus filhos que tal pensamento, repleto de amargura, quase a tornou invejosa. Nessa altura um cachorrão lebréu aproximou-se dela, esfregou a cabeça em seus joelhos, lambendo-lhe as mãos, e acabou por conseguir a carícia que buscava. Não obstante, a impressão que oprimia o coração de lady Avenel não se desvaneceu.
- Wolf, - disse ela como se o cão pudesse compreender-lhe os queixumes - tu és um animal nobre e bonito. Desgraçadamente, porém, embora sejas o meu favorito, a ternura que meu coração necessita é de natureza muito elevada para poder ser dedicada a ti.
Como se pretendesse indenizar Wolf pela parte de afeição que lhe negava, pôs-se a acariciar-lhe a cabeça e as costas, enquanto o animal parecia procurar-lhe nos olhos aquilo que lhe faltava e o que poderia fazer pelo seu lado para lhe demonstrar a sua dedicação. De repente um grito aflitivo partiu do grupo de crianças que se achavam na margem, grupo havia pouco tão alegre. Lady Avenel olhou e assim que verificou o motivo ficou cheia de terror.
O barquinho que era a causa da atenção e do contentamento das crianças tinha parado sobre um tufo de nenúfares, que crescia a pequena distância da margem. Um dos meninos, o primeiro a correr ao longo do lago, não hesitou um momento em tirar o casaco e em se lançar à água, pondo-se logo a nadar na direção do objeto que tanto interessava seus camaradas. A princípio nenhum deles ficou preocupado. O rapazinho nadava com habilidade e vigor, habituado que estava a tal exercício; em vista disso os demais não supunham sequer que êle pudesse correr algum perigo. Mas fosse porque ao nadar tivesse batido com o peito em alguma pedra oculta sob as águas, porque se visse acometido por cãibras, ou ainda porque houvesse confiado excessivamente nas próprias forças, assim que acabou de soltar a pequena embarcação das plantas que a retinham, pondo-a novamente em condições de prosseguir o seu caminho, e se dispunha a voltar à aldeia, ouviram-se aqueles gritos e viram-se fazer gestos e movimentos que denunciavam receio e dor.
Dando imediatamente o alarme, lady Avenel ordenou aos seus criados que fossem em seu socorro; isso, porém, tardou algum tempo. A única embarcação que poderia ser usada no lago estava no segundo fosso do castelo, e foi necessário algum tempo para desprender a corrente e a levar até ali. Enquanto durava aquilo, lady Avenel presenciava com desesperadora inquietação os esforços que o pobre menino fazia para se conservar encima d'água, e via que o seu esgotamento era tão grande que os mesmos esforços resultariam infrutíferos, caso êle não recebesse um imediato é inesperado auxílio. Mas Wolf, que pertencia a uma das espécies de lebréus mais familiarizados com a água, notando o objeto sobre o qual sua dona tinha os olhos fixos, saiu de perto dela e se lançou no lago. Com o admirável instinto que os pobres animais tão freqüentemente têm revelado em semelhantes circunstâncias, começou a nadar em linha reta na direção do lugar onde sua ajuda era tão necessária. Uma vez chegado, manteve o menino à tona, agarrando-o pela roupa, e principiou de novo a nadar, arrastando-o para a encosta. Os homens que tripulavam a embarcação os encontraram no meio do percurso, retirando o menino que já não dava o menor sinal de vida. Transportaram-no sem demora para o castelo a cuja porta acudira lady Avenel com duas das suas mulheres, a fim de prestar socorros imediatos ao desventurado jovem.
Puseram-no sobre o leito, empregando para chamá-lo à vida todos os meios que podiam fornecer os conhecimentos daquele século e os que a experiência de Warden, senhor de algum preparo médico, podia sugerir. Durante certo tempo todos os cuidados pareciam vãos, enquanto lady Avenel mantinha os olhos fixos e cheios de inexprimível preocupação sobre o bonito rosto do menino. Este parecia ter cerca de dez anos, trajava roupas grosseiras, muito embora seus cabelos longos e crespos e sua fisionomia interessante estivessem em inteiro desacordo com aquela aparente pobreza. Quando lady Avenel ainda mal respirava, sempre com os olhos pregados nos traços regulares e expressivos do menino, um ligeiro rosado pouco a pouco surgiu-lhe nas faces, até o momento em que, soltando um profundo suspiro e estirando os braços, êle pronunciou num leve descerrar de pálpebras: "Minha mãe...mãe!"
- Milady, Deus ouviu as vossas súplicas e deu vida a esta criança, - disse Warden -.Cabe a vós velar para que lhe seja dada uma educação tal, que não lhe deixe margens a lamentar um dia não ter morrido quando em plena inocência.
- Farei tudo quanto fôr possível - respondeu lady Avenel e, apertando o menino nos braços, encheu-o de carícias.
- Mas a senhora não é minha mãe, - disse o menino voltando a si e resistindo brandamente às carícias de lady Avenel -. A senhora não é minha mãe...Infelizmente eu não tenho mãe...Sonhei apenas que tinha uma.
- Realizarei o seu sonho, - gritou lady Avenel - e serei eu a sua mãe.
Pôs-se então a prodigar carícias à gentil e encantadora criança que, voltando aos poucos das conseqüências do seu acidente, recebia tranqüilamente, se bem que com um ar de surpresa, as provas de afeição que lhe eram dispensadas. Não conhecia aquela senhora, cujos trajes eram bem mais suntuosos do que todos aqueles que já vira, mas a natureza lhe tinha dado um temperamento ousado e as crianças, de modo geral, são boas fisionimistas: não só ficam encantadas com tudo quanto é intrinsecamente belo, como têm grande habilidade para lidar com tais coisas. Retribuiu portanto, até certo ponto, as investidas de lady Avenel, que teve de fazer um certo esforço para o deixar repousar.
- A quem pertence o pequeno escudeiro que salvamos? - perguntou ela a Lilias, sua criada de quarto, assim que voltou ao seu apartamento.
- A uma velha da aldeia - respondeu Lilias -; ela está no cubículo do porteiro, aonde veio à cata de notícias. A senhora permite que a deixem entrar?
- Se permito! - anuiu lady Avenel -. Pode duvidar disso? Que mulher poderia deixar de sentir compaixão das angústias de uma mãe, cujo coração está cheio de preocupações por um filho tão gentil?
- Oh! - gritou Lilias, essa mulher é velha demais para ser mãe do menino -. É provável que seja sua avó, ou talvez sua bisavó.
- Não tem importância, Lilias - replicou a senhora -. Seja lá qual fôr o seu grau de parentesco com o menino, deve sofrer cruéis tormentos na incerteza que nutre sobre a sua sorte. Faça-a entrar imediatamente. Eu, aliás, gostaria muito de saber algo sobre tal família.
Lilias saiu e logo voltou acompanhada de uma mulher alta e pobremente vestida, mas que mesmo assim mostrava capricho e limpeza pouco habituais em trajes tão grosseiros, Lady Avenel assim que a viu imediatamente a reconheceu. Era costume, todos os domingos e duas vezes durante a semana, pronunciar Henry Warden na capela do castelo um sermão ou uma prática. Tanto por princípio como por política o cavalheiro de Avenel desejava propagar a fé protestante. Os sermões de Warden contrariavam vivamente o abade Eustáquio e lançavam novos amargores nas controvérsias que este mantinha com o seu antigo condiscípulo. Mais de uma vez o abade ameaçou sublevar seus adeptos para fazer um cerco ao castelo de Avenel e aniquilar àquele antro de hereges. Não obstante aquele ressentimento impotente e se bem que a nova religião contasse ainda com muito poucos partidários no país, Warden não deixava por isso de trabalhar com ardor, fazendo todos os dias entrar no seio da igreja reformada alguma ovelha arrancada ao aprisco romano. A velha pertencia ao número de habitantes de aldeia que compareciam assiduamente à capela; além disso os seus traços e sua altura eram por demais notáveis para que, uma vez vistos, pudessem ser esquecidos. Lady Avenel ficara impressionada; por mais de unia vez tinha perguntado quem era aquela mulher alta, cujo ar de dignidade se enquadravam tão mal com a pobreza de sua indumentária. Sempre lhe respondiam que era uma inglesa que habitava havia pouco tempo uma choupana na aldeia, embora ninguém soubesse quem era.
Lady Avenel perguntou-lhe o nome.
- Magdalen Graeme - respondeu secamente a estrangeira -. Descendo dos Graeme de Hearthergill, na floresta de Nicol, que é aliás uma família antiga.
- Qual foi a razão que a levou a abandonar sua casa?
- Não tenho casa; a minha foi incendiada pelos salteadores das fronteiras. Meu marido e meu filho foram mortos. Não existe uma só criatura neste mundo que tenha nas veias uma gota do sangue de minha família.
- É um infortúnio demasiadamente comum nestes tempos de guerras e tumultos. As mãos dos ingleses mergulharam em nosso sangue tão freqüentemente quanto as dos escoceses no vosso. Mas por que veio refugiar-se num país que é inimigo do seu?
- Meus vizinhos eram papistas vendedores de missas, e foi do agrado dos céus abrir meus olhos à luz. Parei nesta aldeia para ouvir as instruções do digníssimo Henry Warden, que ensina o Evangelho com a sinceridade de seu coração, não pregando senão a verdade.
- A senhora é pobre?
- Vós nunca me vistes pedir esmolas a ninguém. Uma pausa sucedeu a esta última resposta. Embora o tom de Magdalen Graeme não demonstrasse a intenção de faltar com o respeito, não era nada acolhedor e, portanto, não encorajava a novas perguntas. Lady Avenel reiniciou a palestra, falando-lhe de outro assunto.
- Ouviu falar do perigo que correu o menino?
- Sim, milady, e também do socorro que lhe salvou a vida. Possa o céu tornar-nos ambos reconhecidos para todo o sempre!
- A senhora, sem dúvida, é parenta dele?
- Sou sua avó. Êle só me tem a mim para cuidar dele.
- Na situação em que se encontra, isso deve constituir-lhe pesado encargo.
- Não me queixei a ninguém - retrucou a inglesa, mantendo sempre o mesmo tom seco e imperturbável.
- Se o seu neto pudesse ser recebido em uma família nobre, - prosseguiu lady Avenel - isso não seria tão vantajoso para êle como para a senhora?
- Recebido em uma família nobre? - repetiu a velha, erguendo-se e franzindo as sobrancelhas - Mas por que? Para que? Para ser o pajem de milady ou o lacaio de milord? Para disputar a outros servidores os restos da mesa do amo, para enxotar as moscas do rosto da dama quando ela estiver dormindo, carregar-lhe a cauda do vestido quando ela passear, estender-lhe um prato quando estiver jantando, correr a cavalo à frente da sua carruagem, caminhar atrás dela quando sair a pé, cantar quando ela o quiser e se calar assim que ela ordenar?
Falava com uma espécie de volubilidade e de veemência que pareciam anunciar qualquer perturbação de espírito. Lady Avenel pó-se a pensar que fatalmente a criança devia viver exposta a uma série de riscos sob a custódia de uma mulher como aquela, e tal reflexão aumentou-lhe ainda o desejo que concebera de o guardar no castelo.
- A senhora está enganada - retrucou ela com brandura - Não tenciono tomar seu menino ao meu serviço; desejo agregá-lo ao do meu marido. Nem que fosse filho de um conde êle poderia fazer suas primeiras armas em melhor escola do que a de um mestre como é sir Halbert Glendinning.
- Sim - replicou Magdalen Graeme com um sorriso amargo -. Sei o que se ganha em tal serviço: uma maldição quando a couraça não está suficientemente brilhante, pancadas quando a barrigueira do cavalo não está bem apertada, censuras quando os cães perdem o faro e injúrias quando os assaltos não logram êxito. Levar a vida de um assassino e de um ladrão de estradas, eis aí a sorte que lhe é proposta.
- Não, - retrucou lady Avenel - seu menino aqui não estará exposto a levar a existência que acaba de pintar. A senhora aliás não ignora que êle receberá do digno Henry Warden preceitos e exemplos úteis.
A velha inglesa pareceu refletir um instante.
- Vós acabastes de mencionar - falou ela - a única circunstância que poderia decidir-me. A visão me anunciou que eu devo partir dentro em pouco. Não posso permanecer no mesmo lugar. Preciso ir, sim, preciso; é o meu destino. Prometei-me portanto proteger o menino como se fosse vosso até que eu volte a reclamá-lo, e assim consentirei em separar-me dele por algum tempo. Prometei-me sobretudo que êle receberá as instruções do santo homem que Deus colocou em vossa casa para divulgar a verdadeira luz do Evangelho.
- Fique sossegada - disse lady Avenel - Cuidarei do menino com o mesmo carinho com que o trataria se êle tivesse o meu próprio sangue. Quer vê-lo?
- Não, respondeu Magdalen - já basta ter de me separar dele. É preciso que eu vá cumprir minha missão. O sono só me concederá breves favores, o alimento não me dará proveito algum, o repouso não me restaurará as forças até que eu consiga rever Roland Graeme. Ainda uma vez, adeus.
- Boa mulher, - disse Lilias a Magdalen Graeme que se retirava faça a reverência a milady e agradeça-lhe a bondade, como é seu dever.
A velha voltou-se bruscamente para a prestimosa criada de quarto. - A reverência? Faça-me ela primeiro e eu então retribuirei. Por que lhe faria eu uma reverência? Pelo fato de trazer ela uma saia de seda enquanto eu trago uma de algodão azul?
Lilias ia responder-lhe indignada, mas sua ama lhe impôs silêncio, ordenando que reconduzissem a velha à outra margem do lago.
- À outra margem! - bradou Lilias assim que Magdalen Graeme partiu -. Eu gostaria que a tivessem feito mergulhar; assim teríamos visto se ela é de fato feiticeira como afirmam todas as pessoas da aldeia de Lochside. Não sei como milady conseguiu tolerar por tanto tempo aquela insolente!
As ordens de lady Avenel entretanto foram obedecidas e , uma vez levada à outra margem, Magdalen foi imediatamente abandonada ao seu próprio destino. Manteve a sua palavra de não permanecer muito tempo na aldeia, pois partiu na noite seguinte a esta aventura, sem que ninguém pudesse indicar o caminho que havia tomado. Lady Avenel encarregou-se de colher sobre ela novas informações; tudo, porém, quanto conseguiu saber foi que a supunham viúva de algum membro importante da família Graeme, e que se havia estabelecido no "território contestado", nome que se dava a um distrito situado nas fronteiras, objeto de freqüentes disputas entre a Escócia e a Inglaterra. Soube ainda que ela havia sofrido grandes desgraças numa das incursões que seguidamente tinham por teatro aquele desventurado país, e que fora expulsa do seu domicílio. Não havia ninguém que pudesse explicar como ela havia chegado à aldeia; uns olhavam-na como uma feiticeira e outros como uma católica devota. Suas atitudes eram pouco acolhedoras e sua linguagem assaz misteriosa. Tudo quanto se podia concluir de suas palavras era que ela se achava sob a influência de um sortilégio ou se via obrigada a cumprir uma promessa, pois falava sempre como se uma força invisível regulasse imperiosamente todas as suas ações.
O menino que, segundo acreditava lady Avenel, a Providência confiara aos seus cuidados de modo tão estranho, tornou-se repentinamente o seu favorito. O que poderia ser mais natural? Personificara para ela o objetivo daquela necessidade de afeição que, anteriormente, sem saber em quem aplicar, fizera aos seus olhos o castelo ainda mais escuro e sua solidão ainda mais triste. Ministrar-lhe toda a instrução que podia, prover todas as suas necessidades, velar sobre o menino quando este se entregava aos folguedos de sua idade - eis as suas ocupações e as suas novas distrações.
Não obstante, o novo encantamento não bastava para dissipar as preocupações que a prolongada ausência do marido lhe causava. Pouco tempo depois da instalação de Roland no castelo, um escudeiro enviado por sir Halbert chegou finalmente, para anunciar que negócios importantes o reteriam ainda durante algum tempo na corte de Holyrood, A época mais remota que tal mensageiro fixara para o regresso de seu senhor tornou a passar. Ao verão sucedeu o outono e o outono já estava prestes a ser banido pelo inverno: sir Halbert continuava ausente.
VOCÊ também gostaria de ser um soldado! - dizia lady Avenel ao menino, enquanto, sentada num banco de pedra perto da muralha do castelo, via-o, armado de comprida vara, marchar como a sentinela e imitar-lhe todos os movimentos.
- Certamente - respondeu a criança, que já estava familiarizada e respondia ousadamente a todas as perguntas -; certamente desejo ser soldado, pois não há outra espécie de gentil-homem senão aquele que traz a espada suspensa ao cinto.
- Gentil-homem, tu! - disse Lilias que nunca deixava a sua senhora -. Serias tão gentil-homem como um nabo cortado com uma faca enferrujada.
- Não atormente o menino, Lilias - falou lady Avenel -. Sou capaz de apostar como êle é de família nobre. Veja como suas frases injuriosas lhe causaram rubor.
- Se eu fosse a senhora, - retrucou Lilias - um bom punhado de urtigas causar-lhe-iam ainda maior rubor, coisa que não deixaria de ter a sua razão.
Lilias era uma espécie de favorita, uma acompanhante mimada, que tomava maiores liberdades com a ama do que as que esta costumava tolerar. Lady Avenel, porém, seguidamente fingia não ouvir aquilo que lhe desagradava, e assim agiu nessa ocasião. Resolveu então ocupar-se mais com a criança que até então estivera confiada especialmente aos
cuidados de Lilias. "Era impossível, pensava ela, que o menino não tivesse sangue nobre. Como duvidar vendo uns traços tão interessantes e uma fisionomia tão distinta?" E seu caráter altivo e petulante, sua ousadia em enfrentar os perigos, sua impaciência quando era contrariado constituíam outras tantas provas de nobreza. O menino pertencia portanto à mais alta linhagem, e ela o tratava consoante tal suposição. Os criados, menos ciumentos ou menos escrupulosos do que Lilias, agiam como o fazem habitualmente as pessoas de tal classe, e se faziam merecedores aos olhos da senhora conformando-se com os seus caprichos. Assim, a criança, dentro em pouco, assumiu esses ares de superioridade que uma deferência habitual raramente deixa de inspirar. Dava ordens com tanta naturalidade e recebia com tanta graça às provas de submissão exigidas, que até se poderia afirmar ter êle nascido para mandar.
Tal era o estado das coisas no castelo de Avenel quando o som de uma trompa se fêz ouvir do outro lado do lago, som ao qual respondeu incontinenti a sentinela que patrulhava as muralhas. Lady Avenel correu à janela dos seus aposentos. Uns trinta lanceiros contornavam as margens do lago, encaminhando-se para a escarpa. A frente marchava um cavaleiro, em cujas armas brilhantes, de vez em quando se refletia um raio do sol de outubro. Embora à distância, ela reconheceu as cores, o penacho e o ramo de azevinho que lhe ornavam o elmo; além disso o ar cheio de dignidade e á mestria com a qual êle sofreava o fogoso corcel anunciavam claramente Halbert Glendinning.
O primeiro sentimento que o regresso do esposo fêz nascer no coração de lady Avenel foi uma alegria sem par; cedo, porém, apareceu o secreto temor de que êle não aprovasse inteiramente a especial distinção que ela dispensava à criança que de certa maneira havia adotado e, assim, tomou a resolução de só falar sobre o assunto no dia seguinte. Ordenou a Lilias que levasse Roland para fora dos seus aposentos.
- Eu não saio daqui - gritou o menino que já conhecia todo o poder da perseverança e que, como diversas pessoas de mais idade, gostava de fazer valer a própria autoridade -; não vou para o horrível quarto de Lilias, uma voz que desejo ficar para ver de perto o bravo guerreiro que, com um ar tão nobre, atravessa a ponte levadiça.
- Você não vai ficar, Roland - declarou lady Avenel em tom mais decidido que o ordinariamente usado para falar com o seu pequeno favorito.
- Eu quero ficar - replicou o menino que desejava aproveitar a importância que lhe tinham permitido assumir e se julgava seguro do seu êxito.
- Roland, você diz "Eu quero!" O que significa essa expressão? Afirmo-lhe que você precisa sair.
- Eu quero - replicou o menino com atrevimento - é uma expressão que cabe a um homem, enquanto "precisa" não é uma que convenha exatamente a uma mulher.
- Deixe de ser impertinente, menino malcriado! - retrucou lady Avenel -. Lilias, leve-o imediatamente daqui.
Lilias levou o menino que era muito altivo para pretender resistir inutilmente e a seguia lançando à sua benfeitora uns olhares que provavam bem o quanto teria êle zombado daquelas ordens, caso contasse com forças e meios.
Lady Avenel, penalizada, dava-se conta do quanto essa pequena contrariedade a agitava e preocupava, justamente no momento em que eia gostaria de se entregar inteiramente à alegria que o regresso do esposo lhe causava. O rubor do descontentamento ainda lhe cobria as faces e a agitação que a assaltara não se tinha dissipado de todo quando sir Halbert, trazendo sua armadura e livre apenas do elmo, entrou nos aposentos. Tal presença baniu todos os outros pensamentos; lady Avenel atirou-se nos seus braços, abraçando-o com afeição sincera e expressiva. O guerreiro dispensou-lhe também as mesmas provas de ternura; se o tempo que se havia escoado desde que se tinham unidos já havia feito desaparecer aquele ardor romanesco, atributo da primeira mocidade, contudo respeitara outro sentimento mais duradouro, o sentimento que se baseia na estima e na mútua amizade. Aliás bastavam as prolongadas e freqüentes ausências de sir Halbert Glendinning para impedir que a indiferença substituísse o amor.
Sir Halbert continuava a ser sempre o mesmo, embora um pouco diferente do que parecera nos seus jovens anos. À impetuosa franqueza de jovem ambicioso sucedera o sangue frio do soldado e do hábil político. As preocupações já haviam deixado profundos sulcos em seus nobres traços, sobre os quais cada emoção outrora tinha passado com a mesma rapidez de uma nuvem banida pelo vento. Mas em virtude da constante pressão do elmo do que propriamente pela idade sua fronte mostrava-se mais nua do que na mocidade, e a cabeleira negra e basta já não lhe ornava as têmporas. De acordo com o costume da época usava barba curta e espessa e um bigode no lábio superior. Halbert Glendinning, em suma, parecia um cavalheiro feito para seguir à dextra de um rei, sustentar a sua bandeira em tempos de guerra e ser o seu conselheiro em tempos de paz. Seus traços exprimiam essa espécie de firmeza refletida que prognostica prudência nos alvitres e temeridade na realização.
- Mas onde está Wolf? - perguntou ele?-. Ainda não o vi e êle era sempre o primeiro a me felicitar quando eu regressava.
- Wolf, - respondeu lady Avenel com um embaraço que até a ela própria teria sido difícil admitir - Wolf, no momento, está na corrente. Êle foi agressivo para com o meu pajem.
- Wolf na corrente? Wolf agressivo para com um pajem? Wolf nunca fez mal a ninguém e a corrente por certo o tornará selvagem ou covarde. Hei! - gritou êle abrindo uma janela -. Soltem Wolf imediatamente!
A ordem foi obedecida e Wolf, uma vez solto, precipitou-se para o apartamento, onde, na sua exuberante alegria, derrubou as rocas, os fusos e todos os móveis que encontrou pelo caminho. Colocando as coisas em seus devidos lugares, Lilias não pôde conter uma frase exclamativa que dizia ser o favorito do senhor tão insuportável quanto o pajem da senhora.
- Mas quem é esse pajem, Mary? - perguntou o cavalheiro cuja atenção foi despertada uma segunda vez pela observação da acompanhante -. Quem é esse pajem sobre quem já ouvi falar duas vezes e que parecem comparar com meu amigo Wolf? Desde quando se concedeu um pajem? Quem é o menino?
- Suponho, meu caro Halbert, - respondeu lady Avenel um pouco ruborizada - que você não julga sua esposa com menores direitos do que as demais mulheres da mesma condição?
Certamente que não, Mary. Do momento que você o deseja assim, é quanto me basta. Confesso, entretanto, que nunca apreciei muito sustentar ociosos como soem ser pajens de damas.
- Também, Halbert, apenas por brincadeira dei ao menino o título de pajem. É um pequeno órfão que escapou de morrer afogado no lago, que foi salvo por nós e que eu desde então, por caridade, venho mantendo no castelo. - Lilias, vá buscar Roland.
Roland, ao chegar, precipitou-se na direção de sua benfeitora e enquanto lhe segurava o vestido com uma das mãos, fixava os olhos sobre o imponente cavalheiro, com um misto de temor e espanto.
- Roland, - disse lady Avenel - vá beijar a mão do nobre cavalheiro e pedir-lhe que lhe conceda sua proteção.
Sem obedecer, o menino continuava na mesma posição, fitando timidamente sir Halbert.
- Aproxime-se do cavalheiro, Roland. De que tem medo? Vá beijar-lhe a mão.
- Não quero beijar outra mão além da sua - respondeu o menino.
- Faça o que estou mandando - continuou lady Avenel -. Êle está intimidado com a sua presença, - disse ela ao marido, à guisa de desculpas -; não é verdade que é um bonito menino?
- Assim como Wolf é um bonito cachorro - respondeu sir Halbert acariciando o fiel animal -. Wolf, porém, tem duas vantagens sobre o seu novo favorito: obedece às ordens que recebe e não ouve os elogios que lhe dispensam.
- Agora, Halbert, vejo que você está aborrecido e procuro saber o motivo. É digno de censura o fato de socorrer-se um órfão infeliz, de se apreciar o que é apreciável e que merece ser apreciado?
- Não a censuro por ter socorrido o menino, nem tampouco por sentir afeição por êle. Penso, porém, que, dado ao seu nascimento e a sorte à qual parece destinado, você não o deveria tratar com uma ternura pouco equilibrada, cujo resultado pode ser um só: torná-lo incapaz de ocupar a humilde posição para a qual o céu o fêz nascer.
- Halbert, olhe somente para o menino e veja se êle não tem um ar de ter sido chamado pelo céu a fim de desempenhar um papel mais nobre do que o de um simples camponês!
- Seja como você quiser, meu amor. Devo-lhe muito para lhe causar contrariedades em qualquer coisa que possa tomar mais suportável a sua vida solitária. Faça do menino o que desejar e, nesse sentido, concedo-lhe absoluta liberdade. Pense, porém, que tal encargo pesa sobre os seus ombros e não sobre os meus. Lembre-se que há braços para serem úteis aos homens e uma alma para adorar a Deus: eduque-o, portanto, de maneira que ela seja fiel ao seu senhor e ao céu. Quanto ao resto, aja como entender: isso compete a você.
Essa conversa decidiu a sorte de Roland Graeme. A datar de então seu senhor pouca atenção lhe deu e sua senhora continuou a mimá-lo com excessiva indulgência.
O mordomo, mestre Jasper Wingate, não designou ao jovem Roland nenhuma função determinada no castelo, deixando-o senhor absoluto do seu tempo e das suas vontades; e se por acaso lhe dava qualquer tarefa a cumprir, estava sempre pronto a admitir as escusas que o menino apresentava para se fazer perdoar a própria preguiça e negligência. Todos tinham a mesma prudência do mordomo. Roland Graeme não reconhecia nenhuma autoridade no castelo e só adquiria os conhecimentos que uma alma ativa e um espírito naturalmente justo lhe permitiam obter sem o auxílio de pessoa alguma. Um nobre orgulho e um sentimento ambicioso que cedo se desenvolveu nele, deram-lhe aquilo que a verdade unida à assíduas lições concede aos demais. Desenvolvia essa precoce flexibilidade que faz com que os exercícios físicos e espirituais sejam mais uma brincadeira do que propriamente um estudo, e parecia adquirir acidentalmente, sem idéias preconcebidas, dotes que só se incutiam nos outros à força de cuidados, reprimendas, e por vezes até de castigos. Aprendeu com tamanha perfeição os exercícios militares e tudo quanto então se usava ensinar aos jovens, que surpreendia aqueles que ignoravam o fato de ser um ardente entusiasmo digno substituto de constante aplicação.
Foi com essas vantagens, se é que assim as podemos chamar, que o caráter de Roland começou a firmar-se. Ousado, absoluto, decidido, era generoso quando não contrariado e impulsivo quando lhe resistiam às vontades. Parecia considerar-se independente de toda a gente, exceto da sua senhora: havia obtido sobre o espírito desta aquela espécie de ascendência que quase sempre é a conseqüência habitual de uma indulgência excessiva.
O ar altivo e independente de Roland, seu amor ao luxo, seu desinteresse pela instrução, seu pouco caso a todas as advertências, eram outras tantas circunstâncias que levavam a supor que o orgulho e a altivez de espírito que êle alimentava levá-lo-iam por certo à ruína. Quase todos que estavam ligados a. sir Halbert Glendinning partilhavam tal opinião; mas como Roland gozava das boas graças de lady Avenel e o cavalheiro nunca mostrava má disposição contra êle, era de boa política cada qual a conservar para uso exclusivo.
Edward Glendinning, irmão de sir Halbert, que com o nome de padre Ambrose então fazia parte do pequeno número de monges aos quais fora permitido permanecer na abadia de Santa Mary de Kennaquhair com o abade Eustáquio, vinha de vez em quando, se bem que mui raramente, fazer uma visita ao castelo. Observavam que êle concedia a Roland uma atenção toda particular, e que este respondia a suas perguntas com uma cordialidade que não demonstrava a ninguém mais.
Assim passaram alguns anos durante os quais o cavalheiro de Avenel não deixou de desempenhar papel importante nas convulsões do seu desventurado país, enquanto o jovem Graeme, cujas aptidões continuavam a crescer mesmo sem estudos, aspirava chegar à idade que lhe permitiria sair da obscuridade.
ROLANDO Graeme andava pelos seus dezessete anos quando, certa manhã de verão, desceu até à falcoaria de sir Halbert Glendinning para ver se estavam cuidando bem de um falcãozinho que êle próprio havia tirado do ninho que se achava sobre um rochedo das vizinhanças chamado Gledscraig, com o risco de quebrar o pescoço. Como não ficasse satisfeito com os cuidados dispensados, testemunhou claramente o seu descontentamento ao filho do falcoeiro, quem justamente tinha tal encargo.
Para acrescentar maior peso à sua reprimenda, acompanhou-a de um valente par de bofetões, ocorrência que fêz o menino encarregado gritar talvez um pouco mais alto do que o incidente mereceu.
Adam Woodcock, falcoeiro de Avenel, era inglês de nascimento; estava, porém, servindo no castelo havia tanto tempo que já sentia mais afeição pelo amo do que pelo próprio país de origem. Tinha ciúme e orgulho da sua ciência, sentimentos aliás muito cabíveis aos mestres de arte.
- Alto lá, meu belo pajem - gritou êle colocando-se entre o menino e Roland Graeme - Faça o favor de andar mais devagar e, não obstante seus trajes recamados,guarde-se de usar suas mãos assim! Se meu rapaz fêz alguma coisa errada, eu mesmo saberei castigá-lo, sem necessidade da sua interferência.
- Baterei em ambos, - retrucou Roland sem a mínima hesitação -- se não se desincubirem melhor da missão que lhes cabe. A causa disso é a tua preguiça, uma vez que não cuidas senão de beber e dormir, e deixas o teu trabalho entregue a este ocioso que, por sua vez, não lhe confere maior atenção do que tu mesmo.
- Ah! com que então eu sou preguiçoso, nao é? E é justamente um diligente pajem de senhora quem me aponta esse defeito!...
A resposta a esses sarcasmos foi um bofetão, tão bem aplicado, que atirou o falcoeiro ao tanque de falcoaria. Adam Woodcock ergueu-se em seguida e, apanhando uma vara, aprestava-se já a vingar o insulto que havia recebido, quando Roland, desembainhando o punhal, jurou por tudo quanto tinha de mais sagrado que, se o homem ousasse agredí-lo, ocorreria uma cena de sangue.
O barulho era tal que acudiram diversos criados e entre eles o mordomo, grave personagem sobre a qual já falamos. Este, afirmou a Roland que se por acaso referisse ao seu amo, ao amo que estava ausente no momento, mas era esperado a cada minuto, aquela ocorrência sua permanência no castelo não se prolongaria por muito tempo.
- Não obstante, acrescentou êle, referirei à milady. Dominando não sem esforço o impulso que o levava a replicar com desprezo e cólera, Roland meteu o punhal na bainha, lançou um olhar de desdém sobre a criadagem e, girando sobre os calcanhares, empurrando todos quantos se achavam entre êle e a porta, saiu da falcoaria.
Lilias, que o odiava, encarregou-se de contar o caso à sua ama.
A fim de pôr o seu plano em execução, Lilias não deixou de se apresentar à sua senhora com o aspecto de uma pessoa que sabe um importante segredo; tinha os lábios franzidos, os olhos escancarados e um ar de mistério que parecia dizer: eu sei de alguma coisa que resolvi não lhe comunicar.
Por bondosa e prudente que fosse, lady Avenel não deixava por isso de ser uma digna filha de nossa mãe Eva; ao ver o ar misterioso da sua aia, não pôde deixar de querer conhecer-lhe a causa secreta. Durante alguns minutos Lilias ficou impassível, suspirando e murmurando baixinho algumas palavras: - que nada tinha a dizer e esperava que não acontecesse nada de mais. Todas essas insinuações, como ela bem o previra, outra coisa não fizeram senão exaltar ainda mais a profunda curiosidade de lady Avenel.
Assim apertou a serva ainda mais:
- Graças a Deus, disse Lilias, eu não sou uma enredadeira e nunca inventei histórias sobre ninguém. Além disso, graças a Deus, até agora inda não houve nenhum crime.
- Um crime no castelo? - bradou lady Avenel -. O que quer dizer com isto? Explique-se sem delongas, porque do contrário, Lilias poderá arrepender-se.
- Pois bem, milady, - disse Lilias que não desejava outra coisa - uma vez que me ordena dir-lhe-ei a verdade. No entanto, se ela não lhe agradar, a senhora há-de convir que ma pediu. Roland Graeme apunhalou Adam Woodcock, eis tudo!
- Justos céus! - gritou lady Avenel -. Êle morreu?
- Graças a Deus, não. Mas certamente teria morrido, caso não tivessem corrido em socorro dele.
- Lilias, vá logo dizer ao mordomo que me venha ver sem demora.
Lilias não esperou que a ordem fosse repetida; correu em busca de mestre Wingate, que se apresentou diante da sua senhora com uma aparência de respeito meio real e meio simulada.
- O que significa essa história que acabo de saber, Wingate? - perguntou lady Avenel -. É assim que mantém a ordem no castelo? Você suporta que os empregados da casa de sir Halbert Glendinning desembainhem a espada uns contra os outros, como se estivessem numa caverna de malfeitores? Woodcock está seriamente ferido? O que aconteceu com o desventurado agressor?
- Até o presente momento, milady, ninguém está ferido - respondeu o homem do colar dourado -. Entretanto eu não tomaria a responsabilidade de lhe afirmar quantos podem estar mortos daqui até a Páscoa, se não se tomar alguma providência para dobrar o rapaz.
- De quem é a culpa, mestre Wingate? Não é seu dever ensinar-lhe a comportar-se convenientemente e a não perturbar a paz do castelo?
- Queira Deus que milady não esteja pensando verdadeiramente o que acaba de dizer! Seus velhos servidores têm o direito de esperar que, depois de haverem cumprido o seu dever durante tantos anos, a senhora lhes faça bastante justiça para não retirar a confiança que depositou em seus cabelos brancos, unicamente porque eles não podem morigerar o humor impetuoso de um rapazelho que, é forçoso dizê-lo, atreve-se a muito.
- Retire-se; estou esperando sir Halbert a qualquer momento. Assim que regressar, êle próprio tomará conhecimento do ocorrido.
Apesar disso, lady Avenel decidiu-se a não abandonar seu pajem, enquanto o pudesse razoavelmente proteger. E isso para aquilatar até que ponto lhe seria permitido fazê-lo, deu ordens para que o trouxessem à sua presença.
Roland Graeme demorou algum tempo para chegar. Encarregada de ir chamá-lo, Lilias primeiramente procurou abrir a porta do pequeno apartamento que êle ocupava, na esperança de poder gozar a confusão do culpado. Mas um pedaço de ferro redondo ou quadrado, vulgarmente denominado ferrolho, opôs invencível obstáculo a tão boas intenções. Em vista disso, pôs-se a bater, gritando ao mesmo tempo:
- Roland! Senhor Roland Graeme! Faça o favor de abrir a porta! O que está fazendo? - Não obteve, porém, nenhuma resposta -. Pois bem! senhor Roland, - acrescentou a acompanhante - vou dizer a minha senhora que ela envie o seu recado por alguém que possa arrombar a porta.
- O que deseja a sua senhora? - perguntou o pajem sem aparecer.
- Ora essa! Abra a porta e saberá.
- O nome da sua senhora constitue escusa para o seu atrevimento, - disse Roland abrindo a porta - O que milady deseja de mim?
- Que vá falar com ela no salão incontinenti - respondeu Lilias.
- Diga a milady que obedecerei às ordens enviadas - disse Roland voltando ao apartamento, cuja porta fechou, sem sequer esperar que Lilias se retirasse.
- Encantadora educação! - murmurou a acompanhante. Depois saiu e informou à senhora que Roland viria quando julgasse conveniente.
- Êle de fato empregou tais termos, ou isso não passa de um modo de dizer todo seu? - perguntou-lhe friamente lady Avenel.
- Deveras, milady, - replicou Lilias evitando uma resposta direta - e êle parecia disposto a dizer muito mais coisas, se eu desejasse escutá-las. Mas ei-lo aqui e a senhora poderá ouvi-las pessoalmente.
Roland Graeme apresentou-se com o ar ainda mais altivo e um aspecto mais animado que de costume. Se era possível distinguir algum embaraço na sua fisionomia, em compensação nela não havia o menor vestígio de temor nem de ar de arrependimento.
- Rapaz, - perguntou-lhe lady Avenel, - que pretende que eu pense da sua conduta de hoje?
- Se tal conduta lhe foi ofensiva, milady, lamento-o profundamente.
- Se a ofensa atingisse unicamente a minha pessoa eu a perdoaria mais facilmente!. Ela, porém, é ofensiva ao seu senhor. Você é culpado de ter sido violento para com seus camaradas.
- Permita-me que lhe responda, milady, que o único fato que me causa arrependimento é o de ter ofendido minha senhora, minha benfeitora - a única criatura que me protege; esse é o único erro de que posso ser acusado. Não pertenço ao serviço de sir Halbert Glendinning e, portanto, a êle não cabe o direito de me censurar por ter castigado um lacaio insolente.
Lady Avenel já tivera oportunidade de observar o temperamento irritadiço do seu favorito e a impaciência com que êle tolerava as censuras e as reprimendas. Mas num momento em que o seu comportamento tomava um caráter mais grave e mais determinado, ela hesitava um pouco sobre o modo de tratar um rapaz que, de repente, assumia tom e linguagem de homem feito, cheio de resolução. Depois de breve momento de reflexão, falou-lhe cheia da sua natural dignidade:
- É mesmo a mim, Roland, que você se atreve a falar assim? É no intuito de me forçar a arrepender-me dos favores que lhe dispensei que você se declara independente, sem reconhecer mais senhor na terra e no céu? Esqueceu-se do que era? Pensou no que viria a ser caso eu lhe retirasse a minha proteção?
- Não me esqueci de nada; meu mal é ter memória demais. Sei que sem a senhora eu teria perecido no lago - disse êle, estendendo a mão para as águas -. Sua bondade foi mais longe; protegeu-me contra a maldade alheia e contra a minha própria loucura. É senhora, se bem lhe parecer, de abandonar o órfão que educou. Fêz tudo por êle e êle não se outorga o direito de nenhuma queixa; no entanto, milady, não me acuse de ingratidão! Pela senhora, pela minha benfeitora, eu suportei aquilo que por mais ninguém no mundo eu suportaria.
- Por mim? - gritou lady Avenel -. O que pode ter você suportado por mim, quando justamente tudo quanto eu tenho feito só lhe deveria inspirar reconhecimento?
- Não lhe falta justiça, milady, para exigir que eu seja reconhecido à frieza que sir Halbert Glendinning sempre me dispensou, frieza que toca às raias da aversão, ou pelas constantes provas de desprezo e malevolência que nunca deixei de receber dos componentes da sua casa.
- Mas já se ouviu uma coisa assim! - bradou Lilias de braços erguidos -. Não falaria de outro modo se fosse filho de um conde ou de um cavalheiro.
O pajem lançou-lhe um olhar de desprezo mas nem sequer dignou-se lhe dar resposta. Lady Avenel, que apesar de sentir-se gravemente insultada sentia também pena da loucura do seu favorito, retomou a palavra no mesmo tom:
- Roland, você esquece quem é de modo tão insólito, que assim me força a tomar medidas que lhe façam modificar o alto conceito em que se tem e, por conseguinte, a voltar ao lugar que lhe convém na sociedade.
- E o meio perfeito para tal - disse Lilias - seria expulsá-lo do castelo, vestido de mendigo, tal qual entrou quando milady teve a bondade de o acolher.
- Embora se exprima demasiado asperamente, Lilias diz a verdade. Não creio que me caiba a mim poupar mais tempo ainda esse orgulho que, ao que parece, virou-lhe completamente a cabeça.
- Tomo a liberdade de lhe dizer, milady, que Lilias não diz a verdade; a senhora não conhece bastante bem a minha família para ter o direito de a tratar assim com tanto desprezo. Creia que o sangue que me corre nas veias não é um sangue vil. A única parenta que eu tenho me garantiu que eu era de sangue nobre e, além disso, eu sinto dentro do meu coração algo que confirma essa certeza.
- É então mercê dessa vaga impressão que você pretende gozar de privilégios e de prerrogativas que só o nascimento e a estirpe concedem? Vamos, rapaz, retrate-se logo ou o meu mordomo lhe ministrará o castigo digno de uma criança obstinada e atrevida. Pouparam-lhe demais as correções cabíveis a meninos da sua idade e situação,
- Antes que o seu mordomo mas faça conhecer, - gritou Roland entregando-se afinal aos impulsos que até então havia reprimido - êle travará relações com o meu punhal! Procure outro que não eu para servi-la, e tenha o cuidado de escolher alguém de nascimento bastante baixo e de caráter bem vil, para submeter-se ao descaso dos seus lacaios.
- Eu mereci essa afronta - murmurou lady Avenel -. Merecia-a por haver tolerado e alimentado a sua insolência durante tanto tempo. Retire-se! Saia do castelo esta noite mesmo! Fornecer-lhe-ei meios de subsistência, até que você possa procurar honestamente algum.
Profundamente desgostoso o pajem atirou-se-lhe aos pés: - Minha cara e honrada senhora!... - gritou êle. Foi-lhe entretanto impossível pronunciar mais uma sílaba sequer.
- Levante-se - disse-lhe lady Avenel -; a hipocrisia é um meio que não basta para esconder a ingratidão.
- Sou incapaz de uma e de outra - respondeu Roland com ardor, erguendo-se com aquela vivacidade que lhe era natural -. Não julgue que eu tenha o intento de lhe suplicar que me permita permanecer aqui por mais tempo. Ajoelhei-me aos seus pés para lhe pedir perdão de uma palavra irrefletida que me escapou na exaltação, palavra que eu não devia ter dito na sua presença; não lhe peço outra coisa. Fez muito por mim; repito-lhe, porém, que a senhora sabe melhor o que fez por mim do que aquilo que tive que sofrer pela senhora. Eu não nasci para viver na dependência favorecida da minha senhora, ate ao ponto de chegar a ser uma vítima das calúnias dos outros. Que o céu possa derramar bênçãos sobre a sua cabeça querida e respeitada e, pela senhora, sobre tudo quanto lhe é caro.
Êle já tinha dado alguns passos para se retirar quando se voltou para ela.
- Não obstante o meu descontentamento, - disse lady Avenel - não tenho a intenção de o mandar embora sem meios de subsistência. Tome esta bolsa.
- Perdão, milady. Permita-me, porém, que eu me retire sem me degradar aos meus próprios olhos, ao ponto de receber uma esmola. Tome a sua bolsa e digne-se dizer-me que não se sente cheia de cólera contra mim.
- Sinto menos cólera do que tristeza - respondeu-lhe lady Avenel - tristeza por ver que você tem um caráter tão fantástico e tão arbitrário. Tome este ouro! Certamente precisará dele.
- Que o céu lhe dê a recompensa que merece pela sua bondade e por esta última prova de indulgência Quanto ao ouro, eu não o posso aceitar, tenho f orça e coragem, e não sou tão desprovido de amigos quanto a senhora imagina. Talvez um dia me seja dado provar-lhe a minha gratidão de outra maneira que não por palavras.
Dizendo isso, dobrou um dos joelhos e, pegando nas mãos de lady Avenel, beijou-as respeitosamente. Depois saiu em passos apressados. Lilias permaneceu algum tempo de olhos pregados em sua senhora, que, de tão pálida, parecia prestes a desmaiar. Assim que se dominou, lady Avenel despediu a acompanhante e retirou-se para os seus aposentos.
NA manhã seguinte o favorito renegado abandonou o castelo. Tendo tomado uma embarcação, bordejou em direção à parte do lago mais afastada da aldeia, procurando partir sem ser visto pelos moradores do lugar. Enquanto seu orgulho lhe dizia que sua partida causaria surpresa, e lhe repugnava sentir-se objeto de piedade, sua natural generosidade lhe fazia temer que as provas de interesse a êle dispensadas pudessem ter, no castelo, uma desfavorável repercussão.
Achava-se tonto e por duas ou três vezes escapou de cair, se bem que estivesse caminhando por um atalho bem nivelado. A despeito da agitação interior que experimentava, continuou andando. De súbito, porém, sentou-se na relva e, inteiramente entregue ao próprio desespero, derramou uma torrente de lágrimas.
"Por piores que tenham sido os ultrajes que tive de tolerar, pensava êle, não passaram da justa paga de minha ingratidão. Não foi porventura um grande erro meu ter usufruído da hospitalidade e da ternura mais que maternal de minha benfeitora, ocultando-lhe qual era a minha religião? Fui irrefletido mas não perverso, sim, não perverso, pois sempre a amei, honrei e respeitei."
Com tais idéias a lhe assaltarem o espírito, retomou a passos largos o caminho do castelo. Quando pensou no desprezo que lhe dispensariam ao vê-lo voltar humilhado a fim de solicitar o perdão de sua falta e o consentimento para reassumir o seu encargo de pajem, Roland diminuiu a marcha, sem contudo mudar de rumo.
- E se a minha própria benfeitora pudesse atribuir-me bastante covardia e bastante, baixeza para não ter outro objetivo, ao lhe pedir perdão, senão o de alcançar a restituição de todas as vantagens que eu usufruía perto dela? Como suportaria eu tal suspeita?
Estacou ao ter tal pensamento, enquanto seu orgulho, lhe mostrava que, agindo daquela maneira, longe de readquirir as boas graças de lady Avenel, só poderia inspirar-lh desprezo.
- Se eu pelo menos uma só razão a alegar!
Enquanto refletia assim, alguma coisa cortou o ar tão perto dele, que a pluma que lhe ornava o toque se agitou de leve. Ergueu os olhos e reconheceu o falcão favorito de sir Halbert que, voejando-lhe em volta da cabeça, parecia reclamar atenção devida a um velho amigo. Roland estendeu o braço e fêz o sinal a que a ave estava habituada. Esta logo se lhe empoleirou no punho e, enquanto alisava as próprias penas, olhava Roland de soslaio, como se quisesse saber o motivo pelo qual o rapaz não lhe fazia as carícias habituais.
- Ah! Diamante, - gritou êle como se o falcão pudesse entender - de ora em diante devemos ser estranhos um para o outro. ?
- E por que isso, senhor Roland - Perguntou Adam Woodcock, que uma sebe até então ocultara aos olhos do ex-favorito -. Por que não haveria, mais caçadas de falcão para o senhor?
- Era amistosa a voz do valente falcoeiro e sua investida cheia de cordialidade. A lembrança da disputa que havia tido com o homem e todas as suas conseqüências deixavam Roland embaraçado, sem saber o que responder. Woodcock viu-lhe a agitação e pôde bem adivinhar a causa.
- Mas, senhor Roland, - perguntou ele o senhor que é meio inglês, uma vez que nasceu no território contestado, julga por acaso que eu, um inglês completo, possa guardar-lhe rancor vendo-o aflito? Vamos, senhor Roland, estenda-me a sua mão e nada de rancores.
Embora a altivez de Roland se revoltasse com o tom de familiaridade com que lhe falava o bom Adam, não pôde resistir à franqueza daquele acolhimento cordial e, protegendo o rosto com uma das mãos, estendeu a outra ao falcoeiro, que a apertou amigavelmente.
- Está bem, - disse o homem - eu sempre imaginei que tivesse bom coração, embora houvesse uma certa malícia em suas atitudes. Diga-me, porém, senhor Roland, aonde conta ir agora?
- Pensei em ir até a abadia de Kennaquhair, a fim de pedir conselho ao padre Ambrose.
- Espero que seja bem sucedido, embora haja possibilidade de encontrar os monges desgostosos. Diz-se que os reformados ameaçam bani-los das suas celas e cantar uma missa ao diabo na velha igreja, alegando que já os toleraram por muito tempo.
- Nesse caso, um amigo talvez não seja inútil ao padre Ambrose - murmurou altivamente o pajem.
- Sim, meu valente rapaz. No entanto talvez o próprio amigo do padre Ambrose não se visse em melhores circunstâncias; talvez êle levasse também alguns murros.
- Pouco se me dá. Não será o receio de alguns socos que me há de deter. Receio, porém, semear a discórdia entre os dois irmãos, indo visitar o padre Ambrose. Portanto irei primeiramente ao eremitério de São Cuthbert, e então mandarei alguém saber na abadia se o padre Ambrose julga que eu posso lá ir.
- Por Nossa Senhora! - exclamou o falcoeiro - eis aí um plano muito bem avisado. No momento, porém, - continuou êle substituindo o seu ar franco e aberto por uma espécie de embaraço e perturbação que pareciam anunciar a dificuldade que sentia em expressar o que lhe sobrava a dizer - no momento eu tenho aqui trinta moedas de prata, as melhores que já foram cunhadas, das quais dez estão ao seu dispor.
O primeiro impulso de Roland foi recusar tal auxílio. Abalado pela generosidade sincera do falcoeiro, apressou-se, porém, em aceitar com reconhecimento a sua oferta amistosa, apressando-se também a acrescentar que esperava estar em condições de poder dentro em breve saldar aquela dívida,
- Como quiser, rapaz - respondeu-lhe o falcoeiro -. Agora adeus, e que o céu lhe dê proteção!
O rapaz agradeceu ainda uma vez o bom Adam e se dirigiu para a abadia de São Cuthbert.
Era uma pequena construção gótica de pouca altura, dividida em duas peças, das quais uma era a residência e a outra o oratório do anacoreta. Desde que o credo protestante ganhara tanto terreno, êle resolvera, por prudência, a fim de evitar chamar atenção alheia sobre a própria pessoa, viver em profundo retiro. Não obstante, o estado da casa quando Roland ali chegou, ao morrer do dia, mostrava claramente o quanto tinham sido vãs as suas precauções.
O primeiro impulso do pajem foi bater na porta, mas com surpresa notou que ela estava aberta, quer dizer com quase todas as dobradiças arrancadas, sustentada unicamente por uma, e assim não podia servir mais de claustro. Um pouco alarmado, pôs-se a chamar o ermitão. Como não recebesse nenhuma, resposta, examinou o interior da habitação, antes de se atrever a entrar. Os arbustos que a tapetavam as muralhas pareciam ter sido recentemente, arrancados e suas guirlandas partidas rolavam por terra. A janela estava quebrada. O jardim mostrava-se devastado como se homens e animais o tivessem pisoteado.
Após o primeiro momento de surpresa, Roland não teve grandes embaraços em descobrir a causa daquele saque. A destruição dos edifícios consagrados à Igreja romana não foi simultânea na Escócia inteira. Ocorreu em épocas diversas, segundo o espírito que inflamava os pregadores reformados, Enquanto alguns deles exaltavam o auditório, levando-o a praticar aqueles atos de destruição, outros existiam que mais razoavelmente desejavam a conservação das construções, aconselhando a seus adeptos que se contentassem apenas em retirar os objetos de um culto idólatra.
A existência tranqüila e retirada do eremita de São Cuthbert o tinha poupado durante algum tempo ao naufrágio quase geral; finalmente, porém, a destruição estendera o braço até ali. Ansioso para saber se o venerando recluso não tinha pelo menos sofrido nenhuma agressão, pessoal, Roland acabou por entrar no eremitério meio demolido.
O interior da construção dava a mesma idéia que o seu aspecto exterior. Os poucos móveis que o solitário possuía tinham sido quebrados, e com os seus restos haviam feito uma grande fogueira, no intuito de incendiar o resto da propriedade. Mutilada pelo machado, enegrecida pela fumaça, destacava-se uma velha estátua em madeira, de São Cuthbert, trajando suas vestes episcopais. No pequeno aposento que servia de oratório o altar tinha sido arrancado e as quatro pedras grandes que o compunham lá estavam atiradas, no chão. Um grande crucifixo de pedra colocado em um nicho atrás do altar fora destroçado, e ao cair por terra partira-se em três pedaços com o seu próprio peso.
Secretamente nutrido nos princípios da religião romana, Roland Graeme viu com horror a profanação daquilo que a seus olhos era o mais sagrado emblema da nossa santa religião.
Pôs incontinenti mãos à obra e conseguiu, não sem esforço, erguer o fragmento que formava a parte inferior do crucifixo, colocando-o sobre uma enorme pedra que lhe servia de pedestal. Acabava de concluir o penoso trabalho quando de súbito ouviu uma voz que não lhe soou desconhecida:
- Muito bem, bom e fiel servidor! É assim que eu gosto de rever o filho da minha ternura, a esperança dos meus velhos anos!
Roland voltou-se e reconheceu, logo a estatura gigantesca de Magdalen Graeme. Ela trajava um vestido preto semelhante ao usado pelos penitentes nos países católicos, sombrio como um manto de peregrino. Roland atirou-se-lhe aos pés; ela o levantou, e o abraçou ternamente, conservando sempre o seu ar cheio de gravidade, severo quase.
- Na tua infância e na tua mocidade, mesmo entre os hereges, fôste sempre fiel à tua fé. Guardaste o teu segredo e, o meu dos nossos inimigos. Derramei lágrimas bem amargas ao deixar-te no meio dos hereges. Mas tu fôste fiel! De joelhos, de joelhos, digo-te eu, diante deste símbolo sagrado que os maus injuriam e desrespeitam, para renderes graças aos anjos e aos santos que te preservaram do contágio da lepra que infeta todos os moradores da casa onde te educaste.
- Minha mãe, pois é assim que hei-de a tratar, - respondeu Graeme, - se me vê segundo os seus desejos é graças aos cuidados do venerável padre Ambrose, cujas instruções me firmaram nos princípios que tão cedo a senhora me incubiu, e que me ensinou também a ser ao mesmo tempo discreto e fiel.
- Que o céu o abençoe! - bradou ela -. Mas o padre Ambrose não sabe quem tu és?
- Como poderia eu lhe ter dito? A senhora apenas me deu a entender que sir Halbert Glendinning tem a minha herança e que o sangue que me corre nas veias é tão nobre quanto o do mais nobre barão escocês. São coisas que jamais me esqueci, embora só a senhora me possa explicar.
- Quando o tempo fôr chegado, não mo pedirás em vão. Meu filho, espera tudo do tempo e das circunstâncias.
Aproxima-se o momento da crise. Grandes acontecimentos vão ter lugar e neles tu serás chamado a tomar parte. Não estás mais a serviço de lady Avenel?
- Ela me despediu. Vivi o bastante para me ver despedido como o último dos lacaios.
- Tanto melhor, meu filho; assim terás mais força para empreender o que deve ser executado.
- Com tanto que não seja nada contra lady Avenel, como suas palavras me dão margem a recear! - bradou Roland com ardor.
- Meu filho, falaremos mais tarde sobre o assunto -, continuou Magdalen -; fica sabendo, porém, que não podes retroceder em face do teu dever.
Roland Graeme desde cedo se habituara àquela misteriosa linguagem e sabia, por experiência própria, que era inútil pedir-lhe explicações que permitissem penetrar nos secretos desígnios que ela nutria. Magdalen não manteve mais a mesma palestra; persignando-se depois de haver terminado a sua oração, dirigiu-se ao neto em tom mais próprio às comezinhas circunstâncias da vida.
- Deves continuar o teu caminho, Roland. Precisas partir, mas não antes de amanhã cedo.
Apesar do seu temperamento arroubado e singular, Magdalen parecia conservar para Roland um pouco dessa ternura atenciosa e cheia, de afeto que as mulheres geralmente dispensam aos meninos que amamentam ou àqueles que são confiados aos seus cuidados.
- Deves estar com fome - disse-lhe ela quando saíam do oratório para entrar na peça que servia de morada ao eremita -; precisas de fogo para te protegeres do vento e do frio.
De uma bolsa de couro, oculta, nas suas vestes ela tirou um isqueiro, enquanto os restos do mobiliário do eremita forneciam madeira em abundância.
Assim, que o fogo começou a brilhar na chaminé da cela deserta, ela murmurou:
- Agora é preciso pensar na ceia.
- Não pense nisso, minha mãe, - falou Roland - a não ser que seja para a senhora mesma. Suportarei facilmente a abstinência durante uma noite.
- Fica sabendo que uma mãe não sabe o que é fome até que a do seu filho seja satisfeita. És moço, Roland, e a mocidade não pode dispensar sono e alimento. Poupa as tuas forças, meu filho; assim o exigem teu soberano, tua terra e tua religião.
Enquanto assim falava, da mesma bolsa de couro que lhe havia fornecido meios de acender o fogo ela tirou comida. Embora pessoalmente não tocasse em nada, sentia o prazer de um epicurista ao ver Roland comer com o apetite que a caminhada e a abstinência de um dia inteiro haviam aguçado. Quando êle lhe perguntou por que não partilhava a sua frugal refeição, aliás proporcionada por ela, Magdalen sacudiu a cabeça e retomou o seu ar cheio de gravidade .
- Meu filho, - disse ela - não sabes a quem nem sobre o que tu falas. Aqueles a quem o céu confia seus desígnios devem merecer tal favor pela mortificação dos sentidos, Encontram em si próprios algo que lhes permite dispensar o supérfluo do alimento terrestre. Precisas da força do corpo: quanto a mim, eu só necessito das forças da alma.
Enquanto dizia isso, ia reunindo as folhas secas que formavam a cama do solitário e a dos hospedes aos quais êle, por vezes, dava hospedagem. Cobriu-as com roupas rasgadas que encontrou atiradas pelo chão, tendo grande cuidado de não usar para tal fim os restos de ornamentos sacerdotais; assim conseguiu fazer um leito que nenhum viajante fatigado teria desdenhado. Diversas vezes Roland fêz menção de ajudá-la naquilo: ela, porém, se opunha um tanto irritada . Quando ele lhe suplicou que se deitasse na cama que acabava de preparar, Magdalen respondeu:
- Dorme, Roland, dorme, órfão deserdado e perseguido, dorme enquanto eu vou orar por ti no oratório.
Seu ar era sério e o tom em que falava era cheio de tanto entusiasmo e de tanta firmeza, que Roland não lhe resistiu às ordnes. Não obstante, o rapaz sentia por isso uma espécie de vergonha.
"Será que abandonei os cães e os falcões, pensava êle, para me tornar escravo das suas vontades como se fosse ainda uma criança? É preciso que eu lhe conheça os projetos antes de começar a executá-los."
Tais pensamentos ocuparam por muito tempo o espírito de Roland Graeme e, apesar da fadiga que sentia, o sono só muito tarde lhe cerrou as pálpebras.
DEPOIS de ter passado a noite imerso nesse sono profundo que freqüentemente sucede à agitação e à fadiga, Roland despertou com a brisa fresca da manhã e os raios do sol nascente. Pôs-se a esfregar os olhos e, deitado sobre as folhas, começou, a recordar os acontecimentos do dia precedente. Quanto mais refletia, mais os achava estranhos. No mesmo dia havia perdido a protetora da sua juventude e encontrado novamente aquela que fora o seu guia e único apoio nos dias da infância. Dava-se conta de que a primeira dessas duas circunstâncias seria para êle motivo de eterno desgosto, e conjecturava se de fato devia regozijar--se com a segunda. Lembrava-se de que aquela mulher que para êle fora uma espécie de mãe, sempre se mostrara apaixonada em sua ternura e absoluta no exercício de sua autoridade; recordava-se de que a afeição que ela lhe inspirava não deixava de ter uns laivos de temor e receava que ela pretendesse reassumir o mesmo império sobre todas as suas ações. A conduta que ela tomara na véspera dava-lhe margem a pensar assim e, portanto, tal pensamento constituía um contrapeso à alegria que inicialmente lhe causara aquele encontro.
Baniu os pensamentos que involuntariamente lhe acudiam ao espírito, como teria banido as instigações do espírito maligno. Esperando achar na oração novos meios para sair vitorioso dessa luta, pôs-se a procurar o terço notou porém que o tinha esquecido quando partira do castelo de Avenel.
"De mal a pior, murmurou êle. Ela me recomendou duas coisas mui secretamente: uma, rezar o meu terço, e outra não falar com ninguém. Até agora mantive a minha palavra: mas agora? quando ela quiser saber onde está meu rosário, serei forçado a dizer que o esqueci. Acreditará ela que guardei segredo sobre a minha crença quando, segundo as aparências, demonstro estimar tão pouco um dos seus símbolos?"
Como a natureza, lhe tinha dado excelente memória, êle jamais se esquecera das primeiras instruções ministradas pela avó. Criança ainda, sentira-se orgulhoso da confiança que ela pusera em sua discreção, comprometendo-se a provar-lhe que não tinha sido mal colocada. Tal resolução, no entanto, não era outra coisa senão a resolução de uma criança; fatalmente se teria modificado por exemplos e novos preceitos, durante a sua permanência no castelo, de Avenel, caso não tivesse sido alimentada pelas exortações do padre Ambrose, ou seja Edward Glendinning. Certa carta anônima que lhe chegara às mãos por intermédio de um peregrino informava que uma criança educada na religião católica se encontrava em meio dos hereges, no castelo de Avenel.
A idéia de que uma alma podia estar em perigo, que um católico corria o risco de apostatar, bastava para inflamar o zelo do bom padre. Começou, portanto, a visitar o castelo com maior freqüência, receoso de que, por falta de incentivo e de preparo, o céu perdesse uma alma e a Igreja romana um prosélito.
Enquanto êle assim se achava mergulhado em reflexões, Magdalen Graeme entrou na cela.
- Vamos, - disse ela - segue-me, já é hora de partirmos.
- E aonde vamos nós? - perguntou Roland. Magdalen deu um passo atrás e fitou-o com ar surpreso e descontente.
- Para que esta pergunta? Não basta que eu te mostre o caminho?
- Mas minha mãe, - acrescentou êle depois de um instante, não fique zangada comigo se eu lhe perguntar segunda vez para onde vamos e qual é o motivo da nossa viagem. Já não sou mais uma criança. Sou ura homem feito, senhor das minhas ações. Se for do seu desejo, hei de a seguir até o fim do mundo; contudo devo a mim próprio um esclarecimento sobre o lugar para onde me quer levar e qual o desígnio que para lá me leva.
- Você deve a si próprio? Menino ingrato! - bradou Magdalen -. Você não se deve nada, pois nada tem para tal: é a mim que deve tudo. A ser forçada a ver-te abandonar a nobre causa à qual te consagrei, eu preferiria mil vezes ver-te morto aos meus pés!
Roland ficou alarmado com a agitação da velha ao proferir aquelas palavras. Estava trêmula e suas forças pareciam não agüentar a violência de tanta emoção. Apressou-se por isso em responder:
- Não me esqueço de nada que lhe devo, minha mãe. Diga-me que o meu sangue lhe pode provar o meu reconhecimento e verá se eu sou parcimonioso; mas, a meu ver, uma obediência cega não tem mérito nem justificativa.
- Roland, é unicamente pela obediência que me podes provar o teu reconhecimento e a tua afeição. Que mérito terias tu em seguir a estrada que te recomendo desde que eu te desse razões para tal? Ouve-me, Roland, espera-te o mais glorioso destino que um homem pode desejar; êle te fala pela voz da tua primeira, da tua melhor, da tua única amiga. Vais resistir? Nesse caso retira-te e deixa-me aqui.
- Não, minha mãe, - respondeu Roland, a quem semelhantes palavras recordavam as primeiras cenas de entusiasmo e violência que outrora testemunhara - não a deixarei. Ficarei ao seu lado e nem o mundo inteiro me forçaria a afastar-me da senhora. Esteja certa que hei de obedecer com toda a minha alma.
Magdalen, então, sem lhe dar ensejos para hesitações nem pensamentos sobre a conduta a seguir, sem admitir sequer novas explicações, preparou-lhe o almoço com o que sobrara da véspera; depois se puseram a caminho. Ela seguia na frente, em passo firme e ligeiro, muito mais rápido do que era de esperar em pessoa idosa, enquanto Roland a acompanhava com ar pensativo e preocupado, pouco satisfeito com a situação de dependência à qual se via novamente reduzida.
Por volta de meio-dia chegaram a uma aldeola cheia de casas esparsas. Em uma das suas extremidades encontrava-se um edifício muito mal tratado, quase em ruínas, que apesar disso parecia ter sido residência de pessoas de algum destaque. Era evidentemente enorme e parecia imenso para aqueles que então o habitavam. Parte das janelas, especialmente, as do andar térreo, tinham sido fechadas por pedras, enquanto as demais eram todas protegidas por grossas grades de ferro. Cercado por um muro de claustro todo rachado aparecia o pátio calçado, onde as urtigas e as ervas daninhas cresciam com abundância e lhe davam o aspecto de terreno baldio, abandonado há muitos anos.
Dirigiam-se para o edifício por um atalho sinuoso que o apresentava sob diversas perspectivas, fato que atraía a atenção de Roland Graeme.
- Se vamos ficar naquela casa, - disse êle a avó - espero que não o fiquemos por muito tempo. Tenho a impressão que dois dias de chuva e de vento bastariam para atirá-la no rio.
Enquanto falavam entraram no pátio e Roland pôde observar que a fachada da casa outrora por certo tivera esculturas em pedra vermelha semelhante à da construção do muro; todas elas estavam porém tão arruinadas, que os únicos traços que ainda existiam eram nichos e cavidades. A porta principal fora murada e um pequeno atalho coberto de mato levava a uma varanda fechada por sólida porta guarnecida de pregos grossos e arredondados. Magdalen bateu três vezes, fazendo um pequeno intervalo entre, cada pancada; do lado de dentro responderam por outras batidas mais leves e, à terceira batida uma mulher esquálida abriu a porta. Os viajantes entraram: a mulher fechou imediatamente a porta e correu os dois enormes ferrolhos que a reforçavam por dentro.
Conduziu-os então através um vestíbulo muito estreito até uma antecâmara lajeada e bastante ampla, cujas paredes eram cercadas de bancos de pedra. Uma única abertura iluminava o aposento: era grande e ocupava inteiramente uma das extremidades.
Foi ali que a dona da casa, pois fora ela quem abrira a porta, estacou para abraçar Magdalen Graeme, dando-lhe o nome de irmã e testemunhando-lhe respeitosa afeição.
- Que a bênção de Deus esteja com você, minha irmã! - disse ela em seguida.
Tais palavras não deixaram a Roland nenhuma dúvida sobre a religião da senhora.
Esta parecia ter de cinqüenta a sessenta anos. Seus traços, que provavelmente tinham sido belos, estavam alterados por essa melancolia nascida da desventura, que freqüentemente se assemelha tanto ao descontentamento. Seus trajes de fazenda grosseira e de um castanho escuro eram simplíssimos e, como os de Magdalen, muito se aproximavam do hábito de religiosa. Suas maneiras, seu porte e a sua aparência denunciavam uma educação que a colocava muito acima do seu estado atual.
- Aqui está - disse ela a Magdalen - o filho de sua desventurada filha. É êle que pretende consagrar à boa causa?
- Sim - respondeu Magdalen com o tom firme que lhe era habitual - quero consagrá-lo à boa causa de coração, braços, corpo e alma..
- É bem feliz, minha irmã, - prosseguiu a primeira, por se poder colocar tão acima das afeições humanas, ao ponto de conduzir pessoalmente tal vítima ao altar.
- O céu nos abandonou - continuou ela - O homem cuja prudência nos era tão necessária nesta crise acaba de ser chamado a um mundo melhor. O abade Eustáquio já não existe.
- Que a sua alma possa merecer piedade, - disse Magdalen - e que o céu no-la possa também conceder, a nós que ainda vegetamos nesta terra de pecado. Tal morte é para nós uma perda irreparável, pois onde poderíamos encontrar agora um homem que possua aquela experiência consumada, aquele zelo, aquela sabedoria e aquela coragem?
- Dizem que nenhum dos padres ousaria substituí-lo. Os hereges juraram, opor-se à eleição, ameaçando de vingança terrível qualquer tentativa de nomear novo abade para Santa Mary.
- Onde está sua filha Catherine?
- Na sala, - respondeu-a matrona - mas... - e lançando um olhar a Roland murmurou algumas palavras ao ouvido de Magdalen.
--Não tenha receio dele.- disse esta - o que lhe estou propondo é legítimo e necessário. Por detestáveis que, sejam, os hereges, minha irmã, é forçoso convir que eles educam a mocidade dentro dos mais puros princípios de moral.
- Pois bem, rapaz, venha conosco -. E seguiu na frente com Magdalen.
Foram estas as únicas palavras que dirigiu a Roland. Este as acompanhou em silêncio. Atravessaram vagarosamente numerosos corredores e aposentos desertos.
Depois entraram numa peça, a primeira em que Roland viu alguns móveis. Ali se encontravam algumas cadeiras e uma mesa de madeira sobre a qual se via estendido um pano verde; um tapete cobria o chão e uma grade guarnecia a chaminé. A peça, que dava a impressão de ser habitada, era-o efetivamente.
Os olhos de Roland encontraram finalmente uma distração mais agradável do que a de passar em revista os mobiliários do quarto; a moça que o habitava oferecia-lhes algo de muito superior a tudo quanto lhes tinha sido dado contemplar até então.
Mal os vira entrar, ela se erguera para fazer em silêncio uma reverência às duas matronas; tendo, porém, notado Roland, puxou para o rosto o véu que lhe caía às costas e lhe flutuava sobre os ombros, gesto que executou cheia de modéstia, sem mostrar afetação, embaraço ou timidez.
Não obstante, Roland teve tempo de notar, que aquele rosto que se lhe ocultava pertencia a uma mocinha dos seus dezesseis anos, cujos olhos eram cheios de fulgor e doçura. A tais observações já tão favoráveis, podia ainda acrescentar a certeza de que aquela que as provocava tinha uma bonita estatura e movimentos cheios de graça, que traziam um novo encanto a todos os seus dotes. Seu vestido parecia cortado segundo moda estrangeira e tinha uma saia bastante curta para não esconder completamente os dois lindos pezinhos que se apoiavam na guarnição da mesa que lhe ficava em frente.
É bom notar que foi apenas com algumas olhadelas lançadas furtivamente que Roland Graeme percebeu todos esses interessantes detalhes; e não obstante o véu discreto, êle também julgou por uma ou duas vezes ter visto a mocinha igualmente ocupada em lhe fazer a análise. Entrementes as duas mulheres continuavam a palestrar em voz baixa, lançando sobre os dois jovens olhares tais que não deixavam a Roland a menor dúvida sobre o assunto da dita conversação. Afinal, embora pronunciadas a meia voz, ouviu distintamente Magdalen Graeme dizer estas palavras: "Sim, minha irmã, é preciso dar-lhes oportunidade de conversar um com o outro; é preciso que se conheçam mutuamente porque, do contrário, como poderiam realizar aquilo que lhes deve ser confiado?"
Aparentemente a dona da casa não estava de todo convencida do valor do raciocínio de sua amiga; no entanto o tom incisivo de Magdalen não tardou muito a conseguir a vitória.
- Pois bem, que seja, minha irmã - disse a matrona -; vamos à varanda para concluir a nossa palestra. Deixá-los-emos juntos alguns instantes, - disse ela voltando-se para os jovens: então - Conversem um pouco e travem conhecimento.
Depois encaminhando-se para a moça ergueu-lhe o véu, pondo a descoberto umas feições onde, no momento, havia mais rosas do que lírios. Murmurou-lhe então a meia voz, embora bastante alto para que Roland pudesse ouvir:
- Lembra-te de quem és, Catherine, e a que estás destinada.
E abrindo uma porta envidraçada que servia ao mesmo tempo de janela, entrou com Magdalen na grande varanda que outrora se estendia sobre toda a fachada sul do castelo. As duas senhoras puseram-se a passear, muito ocupadas em conversas sobre seus negócios, mas não o suficiente, como foi dado a Roland notar, para deixarem de olhar o que ocorria dentro da sala, todas as vezes que passavam diante da porta.
CATARINA estava na idade feliz da inocência e da alegria. Passado o primeiro momento de embaraço, a situação que lhe tinham criado ordenando-lhe que travasse relações com um bonito rapaz, cujo nome ela nem sabia, apresentou-se ao seu espírito sob um aspecto inteiramente burlesco. Baixou os belos olhos azuis sobre o trabalho que estava fazendo, conservando uma seriedade imperturbável. Depois, lançando um olhar furtivo a Roland e notando o embaraço em que êle se achava a se revirar na cadeira, amassando o toque entre as mãos e mostrando, por sua aparência, que não sabia como entabular conversação, não pôde manter-se séria por mais tempo e rompeu numa gargalhada tão natural que as lágrimas lhe acrescentaram maior fulgor aos olhos e seus belos cabelos entrançados, agitados por tal acesso de hilariedade, ondulavam cheios de novo encanto. A própria deusa do riso não poderia ser mais encantadora do que Catherine naquele momento.
Um pajem da corte não permitiria que ela risse sozinha por tanto tempo; mas Roland que tinha sido educado no campo e era cheio de timidez e orgulho, cismou que era a causa daquele riso inextinguível. Tentou rir também; seus esforços, porém, foram tão mal sucedidos que só provocaram uma contração forçada, fato que fêz redobrar a alegria da moça. Esta, não obstante todas as suas tentativas, julgava que jamais conseguiria recuperar a gravidade perdida.
Foi por certo uma sorte, tanto para Catherine como para Roland, que este não tivesse partilhado a excessiva alegria da moça. Sentada com as costas voltadas para a varanda, Catherine não podia ser vista pelas duas senhoras que lá passeavam; Roland, porém, estava colocado de maneira tal que não poderia permitir-se semelhante irreverência sem chamar-lhes a atenção, e assim provocar censuras tanto para si como para a sua companheira. Ficou, portanto, em brasas, até que se esgotou o desejo de rir de Catherine; então declarou à moça em tom meio seco que já não era preciso recomendar-lhe maiores conhecimentos, uma vez que ambos já pareciam bastante íntimos.
Esta saída quase originou um novo ataque de riso por parte de Catherine; conseguiu felizmente, porém, dominar-se um pouco, e fitando os olhos no rapaz pediu-lhe perdão, afirmando que evitaria fazer-lhe novas desfeitas.
Roland possuía bastante bom senso para saber que um ar irritado em tal ocasião seria supinamente ridículo, sentindo que era com expressão completamente diferente que seus olhos deviam fitar a encantadora e risonha criatura, cujas feições amáveis haviam desempenhado tão bem o seu papel naquela cena muda. Tentou por isso sair do seu embaraço tomando um tom alegre que estivesse de acordo com o da linda ninfa, perguntando-lhe qual o método que ela preferiria para continuar uma relação iniciada sob tão alegres auspícios.
- Cabe-lhe decidir pessoalmente, - respondeu ela - pois eu talvez já tenha feito até demais dando os primeiros passos.
- Pois bem! E se começássemos, como nos romances, por perguntar o nome um do outro e as nossas respectivas histórias?
- Está muito bem pensado e tal proposta faz honra ao seu bom senso.
- Comece então, e eu escutarei o que me contar, limitando-me a fazer-lhe algumas perguntas sobre aquilo que me parecer demasiadamente obscuro. Vamos, minha nova relação, diga-me o seu nome e a sua história.
- Chamo-me Roland Graeme e aquela mulher alta é minha avó.
- E também sua tutora, não é? Quem são seus pais?
- Eles já não existem.
- Mas quem eram? Presumo que você tenha tido pai e mãe.
- Eu também presumo; mas o que sei sobre a história deles limita-se a muito pouca coisa. Meu pai era um cavalheiro escocês que morreu no campo de batalha; minha mãe era uma Graeme de Heathergill, no território contestado.
- Passemos agora a você mesmo, porque se não me contar a sua história mais depressa não chegarei sequer a saber a metade: madre Bridget cada vez que passa diante da porta faz uma parada mais longa e, na presença dela não se tem mais vontade de rir do que se teria no túmulo dos próprios ancestrais.
- Minha história não será longa. Entrei no castelo de Avenel como pajem da dama do castelo.
- É uma terrível huguenote, não é verdade? E o que aprendeu no castelo? Gosto muito de saber a utilidade que os meus conhecimentos oportunamente me podem oferecer.
- A caçar com falcão, a seguir uma matilha, a montar a cavalo e a manejar o arco, a lança e a espada.
- E a se elogiar. Na França este último dote seria o maior de todos para um pajem; mas continue, por favor. Como foi que um casal de huguenotes se expôs ao perigo de manter um pajem católico em seu castelo?
- Porque eles não conheciam esta parte da minha história, sobre a qual, desde a infância, me haviam recomendado guardar segredo.
Ao terminar essas palavras Roland fêz um movimento para aproximar sua cadeira da de Catherine.
- Não se aproxime tanto, meu belo senhor, - disse a moça de olhos azuis - pois, se é que não estou enganada, nossas veneráveis parentas não tardariam a interromper nossa palestra se porventura lhe vissem a intenção de travar conhecimento de muito perto. Fique onde está e responda às minhas perguntas. Por que feitos demonstrou os distintos méritos que havia adquirido?
Roland, que começava a compreender o tom e o espírito da palestra da sua jovem companheira, respondeu-lhe alegremente:
- Meus feitos eram notáveis, linda senhorita: atirava em cisnes, caçava gatos e assustava as aias.
- Creio que aqueles hereges fizeram terrível penitência conservando por tanto tempo a seu serviço um pajem tão competente! E pode-se saber que lamentável ocorrência os privou de tal servidor?
Roland relatou-lhe rapidamente a sua aventura com o falcoeiro e o extraordinário, acaso que lhe proporcionara o encontro com a avó.
Mas tudo isto não é a sua história - bradou êle, que começava a apreciar a vivacidade de Catherine -. Agora é sua vez.
- Não há necessidade disso. Minha história é paralela à sua. As mesmas palavras podem contá-la, e basta alterar nomes e situação Chamo-me Catherine Seyton e sou órfã.
- Faz muito tempo que perdeu seus pais?
- É a única pergunta a que não posso responder rindo - murmurou Catherine, baixando os belos olhos com súbita expressão de desgosto.
- Está certo, não responda. Certamente a senhora Bridgte é sua avó?
A nuvem, que havia obscurecido a fronte de Catherine dissipou-se com a mesma rapidez daquelas que velam o sol de verão. Ela retrucou no seu habitual tom alegre:
- Vinte vezes pior! É minha tia, e aliás nunca foi casada.
- Justos céus! - gritou Roland a rir -. Que história trágica! Quantos horrores ainda me falta conhecer?
- Como você, entrei a serviço, quer dizer em aprendizado.
- E foi despedida por ter beliscado a aia ou por haver insultado a camareira de milady?
- Não. Aqui minha história varia. Todo o pessoal foi despedido ao mesmo tempo e eu agora me encontro livre.
- Qual era o nome de sua senhora?
- Um nome muito conhecido em sociedade. Ela tinha ama bela casa bem tratada, bem administrada, dirigida por minha tia Bridget. Eu possuía um grande número de companheiras: levantávamos-nos bem cedo, deitávamos-nos tarde, fazíamos orações prolongadas e jantares muito sumários.
- Então você servia a alguma velha avarenta?
- Pelo amor de Deus, não blasfeme! - falou Catherine com uma expressão de temor -. Saiba que não faz ainda muito tempo esta casa era o convento de Santa Catherine de Siena - Minha tia era abadessa, aqui viviam ainda doze religiosas e eu era uma noviça. Os hereges, porém, vieram, e à força pilharam a casa, destruíram-na, e enxotaram todas as minhas companheiras. Minha tia e eu obtivemos consentimento para permanecer aqui, ou melhor, fecham os olhos sobre a nossa permanência.
- Assim você está tranqüilamente sentada à sombra! Como é que não perdeu a vista à força de chorar por ter deixado o serviço de Santa Catherine?
- Não inteiramente -- respondeu ela baixando os olhos sobre o trabalho, depois de lhe ter lançado um olhar contra o qual qualquer defesa era impossível.
- O que diz do seguinte, Catherine? - inquiriu Roland -. Fomos ambos despedidos do serviço ao mesmo tempo e de modo assaz estranho. Se tomássemos o partido, a fim de não perturbar a entrevista de nossas veneráveis guardiãs, de, pelo nosso lado, darmos alguns passos pelo caminho do mando? O que diz Catherine?
- Na verdade que bela proposta a sua! - gritou Catarina -. É mesmo uma proposta digna do cérebro avoado de um pajem. Pensa que se pode viajar por essas estradas de algibeiras vazias? Como encheríamos as nossas? Sem dúvida eu cantaria baladas e você cortaria os cordões das bolsas.
- Como você quiser, pequena desdenhosa - retrucou o pajem, despeitado com o ridículo que Catherine fazia da sua absurda proposta. Quando pronunciava esta frase, a porta da varanda se abriu e Magdalen, juntamente com a madre abadessa, voltaram à sala.
- Então, meus meninos, conversaram bastante? - perguntou Magdalen -. Estudaram bem as respectivas feições para, em qualquer lugar que se possam um dia encontrar, sob qualquer disfarce que as circunstâncias venham impor, tenham possibilidade de reconhecer um no outro o agente secreto da importante obra à qual foram chamados? Olhem-se ainda: que cada linha do rosto de um se grave de maneira inapagável na lembrança do outro. Aprendam a reconhecer pelo ruído dos passos, pela sonoridade da voz, pelo movimento das mãos, por um só piscar de olhos, o parceiro que o céu lhes concedeu para executar a sua vontade. Dize-me, Roland Graeme, serás capaz de reconhecer Catherine Seyton em qualquer lugar e em qualquer época que te seja dado revê-la?
Cheio de solicitude e sinceridade, Roland respondeu afirmativamente.
- E tu, minha filha, - perguntou ela a Catherine - recordar-te-ias da fisionomia deste rapaz?
Na verdade, - retrucou Catherine - há já algum tempo que não vejo tantos homens a ponto de poder confundir-lhes os traços em minha memória. Portanto, assim sendo, não creio que me possa esquecer imediatamente dos traços do seu neto, se bem que haja neles nada que mereça recordação especial.
- Juntem as mãos, meus filhos, e troquem o beijo da paz.
Ao ouvir tais palavras a abadessa se interpôs entre os dois jovens, uma vez que as idéias que professara no claustro não lhe permitiam ser complacente até o ponto que exigia sua companheira.
- Minha irmã, - disse ela a Magdalen - esquece-se de que Catherine é noiva do céu; não posso permitir...
- É em nome do céu que eu lhes ordeno a troca do ósculo da paz bradou Magdalen com voz enérgica.
- Se é assim, - retrucou a abadessa em tom irritado - que o escândalo e o pecado caiam sobre a sua cabeça!
- Estou de acordo - respondeu Magdalen -. Agora, meus filhos, troquem o beijo da paz.
Prevendo talvez o desenlace daquela polêmica, Catherine escapulira durante o fervor da discussão, sendo-nos desnecessário acrescentar o quanto Roland ficou aborrecido com tal fuga.
- Ela foi - disse a abadessa - preparar-nos alguns refrescos.
A moça só reapareceu quando a abadessa a chamou. Colocou sobre a mesa um jarro d'água e alguns copinhos de madeira; Magdalen, provavelmente satisfeita com a vitória obtida que forçara a abadessa a desistir da sua oposição, não pensou em a levar mais longe, moderação essa que não foi muito do agrado do neto.
Entrementes Catherine continuava a arranjar uma refeição frugal que constava de couves cozidas em água, tendo por único tempero apenas um pouco de sal; às couves juntou alguns pedaços, que pareciam contados, de pão de centeio, e como bebida a água do jarro já referido. Depois de um "benedicte" pronunciado pela abadessa, sentaram-se todos à mesa. Não obstante a simplicidade do repasto, comeram com apetite.
- Agora que terminamos - falou Magdalen Graeme - vamos combinar a nossa viagem de amanhã, ponderando sobre a maneira como os jovens devem agir e pensando em todos os recursos de que podemos lançar mão, a fim de lhes suprir a falta de discrição e de experiência.
Apesar do mau jantar que tivera, Roland sentiu um sobressalto no coração ao ouvir tal proposta, sem nutrir a menor das dúvidas quanto à nova entrevista que dali adviria entre êle e a linda noviça. Mais uma vez enganou-se em seus cálculos. Segundo as aparências, Catherine não parecia estar disposta a facilitar esse ponto; por delicadeza, ou por capricho, disse à abadessa que lhe era necessário ausentar-se durante uma hora antes das vésperas; e tendo a superiora anuído imediatamente, ela levantou-se para sair. Antes de abandonar o aposento cumprimentou as duas matronas inclinando-se diante delas, dirigindo então a Roland uma reverência mais íntima, que constava de um leve movimento de cabeça. Executou o gesto de polidez com um ar muito sério, não obstante tanta seriedade, Roland julgou descobrir uma expressão maliciosa de secreto triunfo sobre a contrariedade evidente que aquilo lhe causava.
As duas matronas também se retiraram, depois de haverem formalmente exigido que Roland não só não saísse do convento, sob pretexto algum, como também nem sequer chegasse a uma das janelas, alegando a abadessa como motivo de tanta precaução, o fato de estarem os hereges sempre dispostos a espalhar boatos escandalosos sobre as comunidades religiosas.
-Pois bem, - disse consigo mesmo o nosso pajem - uma vez que estou proibido de atravessar o umbral da porta e de olhar por uma vidraça, a fim de passar o tempo eu preciso ver o que há aqui dentro. Talvez aquela marota de olhos azuis esteja em algum canto.
Saindo do aposento por uma porta oposta àquela pela qual as duas matronas se haviam eclipsado, pôs-se a errar de quarto em quarto pelo prédio deserto, procurando em vão alguma coisa que lhe pudesse trazer distração ou interesse.
Uma escadinha, em caracol, rápida e estreita, que parecia estar ali para relembrar às religiosas os seus deveres de jejuns e mortificação, levou-o aos apartamentos que se encontravam no andar térreo. Achou-os em estado ainda mais deplorável do que aqueles que acabara de percorrer. Cansado de um espetáculo tão triste e tão monótono, já se dispunha a voltar à sala de onde havia saído, quando ouviu o mugido de uma vaca, que vinha da sala vizinha àquela em que se encontrava. Contava tão pouco ouvir aquilo em tal lugar que estremeceu como se estivesse escutando o rugir de um leão; já estava com a mão num punhal quando a amável Catherine Seyton surgiu na porta do quarto de onde chegava aquele ruído.
- Salve, valente campeão -- disse-lhe ela a rir -; ninguém é mais digno, de atacar uma vaca em tão estranho combate.
- Por Deus, - gritou Roland - eu tinha a impressão de ouvir o diabo rugir perto de mim. Quem poderia jamais imaginar a possibilidade de encontrar uma vaca nas salas de um convento?
- Todas as vacas da vizinhança podiam estar aqui: nossos muros destruídos não permitem que lhes vedemos a entrada. Esta, porém, é uma habitante da casa. Agora lhe peço que volte à sala de onde veio.
- Nao antes de ver a reclusa do convento de Santa Catherine - retrucou Roland. E, a despeito das censuras mais graves e meio brincalhonas da linda noviça, acabou entrando no quarto.
A vaca tinha por estábulo um grande salão, justamente o antigo refeitório da abadia. O teto era ornado de entalhes e pelas paredes apareciam nichos que outrora haviam abrigado as imagens de santos, destruídas pela ira dos novos iconoclastas. Esses vestígios arquitetônicos faziam franco contraste com a manjedoura e a grade construídas para a vaca num dos cantinhos da sala, e também com a palha estendida no chão que lhe servia de cama.
- Por Deus, - disse Roland - esta vaca não é a que tem piores acomodações entre os demais habitantes do convento.
- Você andaria acertado se ficasse com ela, - murmurou Catherine, - suprindo com suas intenções filiais a progenitura que ela teve a desventura de perder.
- Encantadora Catherine, eu ficarei pelo menos para lhe prestar auxílio nos arranjos necessários para a noite - respondeu Roland pegando um garfo.
- Você não vai fazer nada porque, sem saber como agir, me arranjaria um daqueles pitos formidáveis, dos quais já me fartei no curso rotineiro das coisas.
- O quê! Você seria censurada por aceitar minha assistência, quando justamente devo ser seu aliado num negócio de suma importância? Isto seria inteiramente descabido. Mas agora, já que me lembrei, diga-me, se é que pode, qual é o grande feito ao qual estou destinado?
- Sei lá! Tirar alguns ninhos de passarinhos, sem dúvida nenhuma, a julgar pelo campeão que escolheram. Saiba que a abadessa e eu partiremos amanhã, antes de você e de sua respeitável avó; e se tolero agora a sua companhia, é justamente porque passará muito tempo até que nos encontremos de novo.
- Por Santo André, assim não será; eu não correrei à caça sem ser em sua companhia.
- Presumo que tanto neste ponto como nos demais será preciso agir segundo nos fôr ordenado. Ouça! Estou escutando a voz de minha tia.
Efetivamente a abadessa chegava. Lançou um olhar severo à sobrinha, enquanto Roland, cheio de presença de espírito fingia prender a correia que segurava a vaca.
- Este rapaz - disse Catherine - estava-me ajudando a prender Combria mais perto da estaca. A noite passada ela assustou a aldeia inteira, mugindo com a cabeça na janela. Se não se descobrir a causa de tal aparição os hereges nos chamarão de feiticeiras; se a descobrirem, por certo tomarão a vaca.
- Vá para o oratório, minha filha; leia o seu livro de "horas" e fique à minha espera.
Catherine foi saindo em silêncio, depois de ter lançado a Roland um olhar meio gaiato que parecia querer dizer: "Está vendo o que me arranjou com a sua visita?!" Mas, mudando subitamente de atitude, encaminhou-se para êle e lhe estendeu a mão desejando-lhe boa noite. O rapaz apertou-a com força, antes que a abadessa, perplexa, tivesse tempo de se opor; logo depois a moça retirou-se.
A abadessa conservou-se calada; a reprimenda que preparara morreu-lhe nos lábios. Fazendo um sinal a Roland, levou-o para a sala onde haviam jantado e onde estava preparada uma pequena refeição, segundo dizia ela, de pão de centeio e leite. Chamada para partilhar tal colação, Magdalen Graeme saiu da peça vizinha; Catherine, porém, não apareceu mais. A refeição foi feita em silêncio e rápidamente. Roland encontrou no aposento vizinho a cama que lhe tinha sido preparada.
Adormeceu logo, e nos seus sonhos só lhe apareceu a imagem encantadora de Catherine Seyton.
ROLANDO Graeme dormiu muito tempo e o sol já estava muito alto no horizonte quando a voz de Magdalen o chamou para continuarem a peregrinação. Vestindo-se apressadamente, correu logo ao encontro dela que já se achava à porta, prestes a partir. Dirigiram-se à abadia de Kennaquhair. Durante o percurso, ressalvando algumas exceções que lhe punham em relevo a ternura maternal, não falou ao rapaz senão sobre a obrigatoriedade de reerguer as sucumbidas honras da Igreja, colocando um soberano católico no trono. Algumas vezes dava-lhe a entender, se bem que de maneira obscura e disfarçada, que ela própria estava predestinada pelo céu a desempenhar um papel importante. Uma caminhada de meia hora levou-os até a fachada do monastério que o furor da época não havia respeitado inteiramente, embora até então houvesse poupado a igreja. Internamente tudo era um montão de ruínas e as paredes externas só haviam resistido às chamas em virtude da sua grande espessura. Os aposentos do abade, que formavam a terceira ala, mostravam-se ainda habitáveis, e serviam de refúgio ao pequeno número de irmãos que embora apenas tolerados, permaneciam ainda em Kennaquhair.
Roland aproximou-se da porta da igreja mas foi detido pela avó que o guiava.
- Esta porta está condenada há muito - disse ela - a fim de que os hereges não saibam que existem ainda entre os irmãos de Santa Mary alguns indivíduos que se atrevem a render a Deus o único culto que lhe é agradável. Acompanha-me pelo outro lado, meu filho.
Roland a seguiu. Magdalen, depois de verificar se ninguém os observava, uma vez que os riscos do tempo lhe tinham inspirado cautela, ordenou-lhe que batesse numa portinhola que ela lhe indicou.
- Bate devagar - acrescentou ela com um gesto que mostrava a necessidade de precauções. Após breve intervalo, durante o qual não se ouvia nenhuma resposta, mandou Roland bater segunda vez. Finalmente pela porta entreaberta divisou-se o irmão porteiro que, com ar tímido e receoso, tentando manter-se escondido procurava ver quem batia. Murmurou em voz trêmula:
- Não podem entrar agora porque os irmãos estão reunidos.
Mas assim que Magdalen Graeme lhe perguntou em voz baixa:
- Não me reconhece irmão? - êle imediatamente mudou de voz e respondeu:
- Entre, minha cara irmã, mas entre rapidamente, pois alguns olhos perversos pairam sobre nós.
E entraram. Depois de ter fechado e aferrolhado rapidamente a portinhola, o irmão porteiro os conduziu por entre diversos caminhos escuros e tortuosos. Enquanto caminhavam a passos lentos êle ia conversando com Magdalen em voz baixa, como se receasse que até as próprias paredes ouvissem o que lhe tinha a dizer.
- É preciso que nossos padres se escondam como malfeitores que escolhem um chefe em lugar de se mostrarem como santos padres que elegem um abade mirrado.
- Que importa, meu pai? - retrucou Magdalen - Os primeiros sucessores de São Pedro foram eleitos durante as tempestades das perseguições. E preste bem atenção a isto, meu pai; nunca, mesmo nos mais áureos tempos da abadia de Santa Mary, o título de abade foi tão honroso para aquele que o possuiu como o será para quem consentir em assumido nestes tempos de tribulação. Quem julga o senhor quem será o escolhido?
- Quem será o escolhido? Oh, para melhor dizer, quem, a não ser o bom e valoroso padre Ambrose, ousaria aceitar tão arriscada dignidade?
- Eu bem sabia: antes que seus lábios o tivessem dito, meu coração já lhe tinha pronunciado o nome.
- Silêncio, minha irmã, silêncio! - falou o porteiro ao abrir uma porta que levava à igreja -; nossos irmãos vão celebrar a eleição pelo santo sacrifício da missa.
Dizendo isso deixou Magdalen e Roland sozinhos na vasta igreja cujo estilo arquitetônico, rico e casto, provava que ela datava dos começos do século quatorze, época em que foram construídos os mais belos edifícios góticos. Todas as estátuas que decoravam o interior estavam mutiladas e derrubadas e o mesmo sucedia com as que se encontravam do lado de fora; nem sequer os túmulos de príncipes e guerreiros tinham sido poupados.
Uma portinha lateral que levava da sala do capítulo à Igreja abriu-se de repente dando passagem aos padres que iam levar ao altar o superior que acabavam de eleger.
Outrora esta cerimônia fora uma das mais imponentes oferecidas à veneração dos fiéis. Quando nas ocasiões solene, abriam a grande porta da igreja e nela aparecia o novo abade com o anel no dedo, a mitra na cabeça, o báculo na mão, revestido de todos os adornos pontificais, cercado de tudo quanto denunciava a suprema hierarquia a que tinha sido alçado, sua presença era um sinal para que o órgão e a música fizessem ouvir os sons exultantes do "Te Deum", aos quais respondia a congregação inteira com antífonas de alegria. Que diferença hoje! Sete ou oito anciãos curvados tanto pela idade como pelos dissabores e pela desgraça, trêmulos sob o hábito proscrito da sua ordem, levavam ao altar o superior que haviam acabado de eleger, para o reconhecer como tal em meio àquelas ruínas.
Ambrosio, a quem o título de abade de Santa Mary acabava de ser conferido, tinha uma alma talhada para posto tão eminente. Era ousado e entusiasta, paciente e generoso, ativo e zeloso, sábio e prudente. Embora suas feições exprimissem profunda melancolia enquanto se dirigia ao coro, seus passos eram firmes e pausados e sua fronte mostrava-se serena.
Chegou finalmente aos degraus partidos do altar-mor, de pés descalços segundo a regra da sua ordem, mantendo na mão apenas o báculo pastoral, uma vez que o anel e a mitra guarnecida de pedras preciosas haviam sido roubados pelos espoliadores.
A missa foi celebrada às pressas, como se pretendessem satisfazer com tanta rapidez os escrúpulos de uma mocidade impaciente prestes a seguir numa caçada, e não realizar uma cerimônia nobre e solene. O padre que a rezava gaguejou inúmeras vezes ao pronunciar o ofício divino, voltando muitas vezes a cabeça como se esperasse ser interrompido antes do fim da celebração dos santos mistérios.
Esses sintomas alarmantes que aumentaram mais ainda no fim da cerimônia, segundo as aparências não deixavam ter a sua razão; entre cada estrofe do último cântico chegavam sons de natureza completamente outra, inicialmente à distância mas que se vinham aproximando pouco e pouco, até que acabaram por abafar a voz dos cantores. Era um alarido de trompas, tambores, crótalos e címbalos; eram gritos que ora se assemelhavam a gargalhadas e ora a rugidos de raiva; tons estridentes e agudos de vozes femininas e infantis unidos aos clamores mais violentos dos homens.
Tendo cessado os seus cânticos, os monges a princípio fizeram um movimento de dispersão, mas logo voltaram a se agrupar em torno ao novo abade. Este, conservando o ar digno e calmo que havia demonstrado durante todo o cerimonial, mantinha-se sobre o mais alto degrau do altar, como se assim em evidência conseguisse desviar a atenção dos intrusos e pudesse salvar os seus companheiros com a sua dedicação
De início um tanto afastados, encolhidos no recanto sombrio do coro onde haviam permanecido sem serem notados, Magdalen e Roland encaminharam-se para o altar seguindo um impulso quase involuntário, como se pretendessem partilhar o mesmo destino que aguardavam os monges. De olhos pregados na porta da igreja onde batiam insistentemente, o rapaz levou a mão ao punhal.
O barulho aumentava a cada momento; as pancadas vibradas na porta se tornavam mais violentas, enquanto muitas vozes pediam aos gritos que a abrissem. Dirigindo-se então para o portal, em tom calmo porém autoritário, o abade procurou saber quem vinha assim perturbá-lo no exercício do seu culto, e tudo quanto deles desejavam.
Houve breve silêncio sucedido de grandes gargalhadas. Finalmente uma voz respondeu:
- Queremos entrar na igreja. Abra-nos a porta e então verá quem somos nós.
- Em nome de quem desejam entrar? - continuou o abade.
- Em nome do nosso senhor, o reverendo abade - respondeu uma voz de fora. E pelas risadas que seguiram tal resposta, era possível concluir que a frase tinha um sentido inteiramente diferente daquele que as expressões empregadas davam margem a supor.
- Não sei nem desejo saber o que pretendem dizer - prosseguiu o abade -; retirem-se, por amor de Deus, e deixem os seus servos em paz.
- Já que ele não a quer abrir, forcemos a porta - bradou uma voz.
- Sim! Sim! Arrombemos a porta e mandemos ao diabo os monges que se atrevem a resistir-nos.
Em lugar de bater na porta começaram a arrombá-la com o auxílio de martelos e de estacas; não obstante a sua solidez, ela não poderia opor grande resistência. Ao ver que qualquer resistência seria inútil e não querendo irritar os assaltantes por uma contradição declarada, disse então o abade:
- Vamos abrir-lhes a porta. O porteiro foi buscar a chave; suplico-lhes, porém, que ponderem bastante antes para saber se estão em estado de espírito que lhes permita entrar numa igreja santa.
- Seu porteiro que ande depressa e prove que não sofre de gota porque, do contrário, facilmente o dispensaremos. Não é verdade, camaradas?
- Sem dúvida - responderam cem vozes -. Por que precisamos esperar?
E não o teriam feito por muito tempo se felizmente o porteiro não tivesse chegado logo naquele momento com as chaves. Desincumbiu-se tremendo do seu encargo e, mal abriu o grande portal, retirou-se precipitadamente, como um homem que, tendo aberto um dique receasse ser arrastado pela torrente. O abade, a mais ou menos uns dez passos da porta, não demonstrava a menor perturbação ou receio e todos os monges, animados pelo exemplo daquela firmeza e envergonhados de abandonarem seu superior, agruparam-se atrás dele. Logo que a porta se abriu ecoaram grandes aclamações e grandes gargalhadas; não se viu, porém, como era supor, uma multidão desenfreada precipitar-se na igreja. Muito ao contrário. Ouviu-se um brado geral:
- Alto! Alto! Um momento! Ordem! Deixem passar o abade! É preciso que os dois reverendos se possam avistar e falar.
A multidão reunida defronte à porta oferecia o mais grotesco dos espetáculos. Compunha-se de homens, de mulheres e de crianças disfarçados de maneira burlesca, apresentando grupos estranhos e variados. Um desses, encarapitado num palanque móvel de papelão pintado, representava na parte dianteira uma cabeça de cavalo de longas crinas, enquanto sob um pedaço de pano que supostamente lhe ocultava o corpo, o pretenso animal trotava, galopava, saltava, desempenhando perfeitamente o papel de um cavalo de pau. Rival da habilidade e ligeireza que desenvolvia esse personagem, um outro se aproximava oculto sob os traços formidáveis de um enorme dragão de asas espalmadas e goela escancarada, arrastando um grotesco São George com um caldeirão por capacete e um espeto por lança, que acudia de vez em quando a fim de obrigar o monstro a abandonar sua presa
Via-se em seguida um grupo de "outlaws", (1) tendo à frente Robin Hood e seu tenente Little John. Estes últimos atores representavam com muita naturalidade, o que não era de espantar, pois a maioria compunha-se de arqueiros proscritos e ladrões profissionais, justamente os tipos que pretendiam representar. (1) Indivíduos que haviam incorrido em alguma falta grave e por isso eram considerados "fora da lei". Em torno de alguns deles criaram-se lendas interessantes.
A parada que os mascarados fizeram à porta da igreja enquanto pareciam aguardar a chegada de algum outro personagem de maior consideração que os precedesse, deu tempo ao abade e aos monges para uma observação. Não tardaram, muito em atinar com a causa e o objetivo daquele agrupamento.
Poucos serão os leitores que ignoram a existência de uma época na qual a Igreja Romana, na plenitude do seu poderio, admitia mascarados de um gênero mais ou menos semelhante às loucuras que se permitiam então os habitantes de Kennaquhair e das cercanias.
O abade da Insânia, aquele por quem o bando de loucos simulava, tanto respeito, em vestes de gala aproximou-se então da porta da igreja, numa caricata indumentária que copiava a do abade de Santa Mary, do qual se atrevia a escarnecer na presença do seu clero e dentro do seu próprio templo. O pretenso dignitário era um ancião vigoroso, entroncado, de estatura mediana e devia sua rotundidade a uma barriga postiça que havia arranjado. Trazia na cabeça uma mitra de couro e ostentava uma estola de velbutin pintada em diversas cores.
Seu séquito compunha-se de oito ou dez indivíduos com trajes que pretendiam parodiar os dos monges da abadia, e caminhavam atrás do seu pseudo-superior.
Enquanto urravam em coro, aproximou-se a igreja um cavalheiro coberto com sua armadura e acompanhado de três ou quatro homens, que ordenou ao bando em voz de comando que terminasse a cena profana.
O cavalheiro se achava de viseira erguida: mas bastava o ramo de azevinho que lhe ornava o capacete, para indicar sir Halbert Glendinning. Atravessando a aldeia de Kennaquhair de volta ao seu castelo, ouvira a extraordinária algazarra que vinha da igreja da abadia, e que reboava a mais de uma milha em redor. Cheio de temores pela segurança do seu irmão rumara depressa para lá.
- O que significa isto? - perguntou com severidade.
Todos se conservaram calados, se bem que muitos se mostrassem surpreendidos ao ouvir um protestante rigoroso censurar-lhes algo que, para êle, devia constituir motivo de regozijo.
Desembaraçando-se do nariz postiço e do ventre suplementar que o disfarçavam, Adam Woodcock, falcoeiro de Avenel, apareceu conforme era.
- És tu, maroto? - perguntou o cavalheiro - Por que acaso te achas aqui? Queres dizer-me como te atreveste a trazer bulha à casa onde sabes que reside meu irmão?
- Peço perdão a Vossa Excelência - respondeu Woodcock - mas foi justamente por esta razão que compareci. Eu sabia que se cogitava de nomear um abade da Insânia nesta região. Como estou em condições de cantar, dançar e pular, e além disso me posso gabar de ser tão maluco quanto qualquer outro indivíduo que já tenha ocupado o lugar, pensei que, se me fizesse nomear, poderia ser aqui de qualquer utilidade ao irmão de Vossa Excelência, caso as coisas não decorressem em franca amenidade.
- Tu és um maroto astucioso, - disse sir Halbert - e eu sei muito bem que farias tal coisa mil vezes mais por amor à cerveja, à aguardente ou mesmo por mera leviandade, do que por interesse pela minha casa. Vai-te embora e leva os teus arruaceiros a uma taverna, se eles quiserem ir.
Obediente às ordens do seu amo, o falcoeiro reuniu o seu bando desanimado, dizendo-lhe em voz baixa:
- Vamos embora! Vamos embora!
Nesse momento o olhar penetrante do cavalheiro divisou Roland entre dois guardas.
- Ora então, - bradou êle - você também! Eia! Eia, falcoeiro! Então tu te atreveste a trazer aqui o pajem da tua senhora, para o fazer trajando minha libré, girar entre os teus ursos e os teus lobos? Uma vez que era para executar tais extravagâncias, podias pelo menos tê-lo disfarçado em macaco, a fim de salvaguardar a honra de minha casa. Aproxima-te, jovem leviano.
Adam Woodcock era muito justo e muito honesto para tolerar que o ressentimento do seu amo recaísse justamente sobre o rapaz, que aliás não o merecia.
- Juro-lhe que não fui eu quem trouxe o rapaz aqui e que, se êle aqui está, é. . .
- É porque veio deliberadamente tomar parte em tais loucuras, não é? Aproxime-se, jovem estorninho, e diga-me se sua senhora lhe permitiu abandonar o castelo e desonrar a minha libré, associando-se a uns malucos como estes.
- Sir Halbert, - respondeu Roland com firmeza - lady Avenel consentiu, ou melhor, ordenou-me que dispusesse de ora avante do meu próprio tempo como bem me aprouvesse. Foi a contra gosto que pude testemunhar o que aconteceu aqui; quanto à sua libré, se a trago ainda, só o faço até que consiga encontrar outra roupa que não tenha o menor vestígio de servidão.
- Não entendo nada disto - disse sir Halbert -. Explique-se claramente rapaz. Lady Avenel tomou-o sob a sua proteção. Despediu-o por acaso? O que fez você para merecer tal prova de desagrado?
- Nada que valha a pena ser mencionado - respondeu Adam Woodcock -. Uma briga estúpida comigo, relatada mais estupidamente ainda a milady, ocasionou a despedida do pobre rapaz. E convenho que a culpa foi toda minha.
Tendo sir Halbert feito novas perguntas, o falcoeiro contou a história que havia provocado a despedida do pajem, fazendo-o, porém, de modo tão favoravelmente para Roland que ao cavalheiro não escaparam os seus impulsos generosos.
- Vejo que tens bom coração, Adam - disse êle -. De tudo quanto acabo de saber, deduzo que lady Avenel se mostrou um pouco severa, uma vez que não me parecem as razoes alegadas suficientemente fortes para que ela despedisse um rapaz que protegia há tantos anos. Não duvido, entretanto, que esse avoado tenha piorado a situação mais ainda falando-lhe de certa maneira. Seja lá como fôr, isto vem a propósito para a realização de um projeto que eu havia imaginado. Retire-se, Woodcock, e leve todos os seus bichos; quanto a você, Roland, acompanhe-me.
O cavalheiro parou no primeiro aposento que encontrou aberto e ordenou a um dos seus homens que fosse prevenir seu irmão, Edward Glendinning, da sua chegada, pois nunca lhe dava o nome que havia tomado ao pronunciar os votos. Sozinho com o pajem, disse-lhe então:
- Você, rapaz, deve ter notado que eu raramente parecia dar-lhe alguma atenção no castelo de Avenel. Se não o distingui mais, não foi porque desconhecesse em você qualidades louváveis, embora notasse também alguns defeitos que, com os meus elogios, só poderiam ter aumentado. Depois de lhe terem dado uma educação que forçosamente devia incutir em seu espírito sentimentos de arrogância e orgulho, não seria justo abandoná-lo só porque você não conseguiu dominar esses mesmos impulsos, aos quais, inevitavelmente, dada a sua situação, você estaria sujeito. Assim sendo, resolvi conservá-lo em meu séquito até que consiga dispor honradamente de você de outra maneira qualquer, facilitando-lhe os meios de tomar lugar na sociedade, de modo honroso para a casa onde foi educado.
Se bem que Roland encontrasse nas palavras de sir Halbert Glendinning algo de lisonjeiro para o seu amor próprio, pareceu-lhe contudo uma situação um tanto falsa e por isso nitidamente repugnante voltar a uma casa de onde havia sido despedido com certo desprezo. Por isso ficou calado alguns instantes.
- Rapaz, você parece hesitar - observou o cavalheiro com ar de surpresa -. O mundo se lhe afigura sob um aspecto tão sedutor assim, para que você vacile em aceitar o oferecimento que lhe faço? Vejo-me obrigado a recordar-lhe que, embora você tenha ofendido sua benfeitora a ponto de a forçar a mandado embora, ela jamais poderá pensar sem mágoa e sem desgosto que o menino a quem tanto protegeu, vá entrar na vida, nas épocas perturbadoras em que estamos vivendo, sem outro guia além da própria experiência!
- Assim que fui despedido do castelo, - retrucou Roland - encontrei minha única parenta, ou, pelo menos, a única que eu conheço. Devo consulta-la para saber se ela consente que eu aceite a sua proposta, ou se a deferência que devo à sua autoridade, à sua idade avançada e às suas enfermidades crescentes, não me obrigam a permanecer junto dela.
- Mas onde está essa parenta?
- Neste monastério.
- Vamos então procurá-la. Certamente você há de obter o seu consentimento. Seria preciso que ela fosse tresloucada para o recusar.
Roland deixou o aposento a fim de procurar a avó, no momento exato em que o abade entrava nele.
Os dois irmãos defrontaram-se como grandes amigos que se estimam e só mui raramente se encontram: a entrevista, porém foi interrompida pela chegada de Magdalen Graeme.
- Quem é esta mulher? O que deseja de nós? - perguntou sir Halbert Glendinning franzindo as sobrancelhas.
- Pouco se me dá que o senhor não me conheça. A fim de cumprir uma ordem sua, vim aqui para declarar que dou o meu consentimento a Roland para que entre a seu serviço; uma vez dito isto, não pretendo importuná-los mais tempo com a minha presença. Que a paz seja convosco.
Dizendo essas palavras e fazendo um cumprimento respeitoso ao padre Ambrose, sem prestar mais a menor atenção a sir Halbert Glendinning, a mulher encaminhou-se para a porta. O cavalheiro seguiu-a um pouco com os olhos e depois, voltando-se por sua vez para o irmão exprimindo-lhe da maneira mais afetuosa possível os seus desejos de felicidades, pediu-lhe licença para partir.
Os dois irmãos separaram-se não sem contrariedade.
Quase em seguida ecoaram os toques das trombetas do cavalheiro de Avenel. O abade subiu ao alto de uma torre desmantelada, de onde podia ver os cavaleiros vencendo uma colina que ficava defronte à ponte levadiça da abadia. Enquanto acompanhava com os olhos a ordem daquela marcha, Magdalen Graeme aproximou-se dele.
- Você veio para lançar um último olhar ao seu neto. Ei-lo que segue confiado aos cuidados do melhor cavalheiro da Escócia, exceção feita da sua crença.
- Tomo-o como testemunha, meu pai, - falou Magdalen - de que nem eu nem Roland fizemos com que o cavalheiro de Avenel, como aqui é chamado, readmitisse o órfão na sua casa.
- Minha irmã, eu não a compreendo.
- Nunca ouviu dizer, meu pai, que existem espíritos bastante poderosos para, uma vez admitidos, derrubarem os muros de qualquer castelo, embora não possam entrar quando não convidados insistentemente, quando não forçados a fazê-lo? Roland foi assim introduzido por duas vezes na casa de Avenel, e justamente pelos senhores do título. Que eles aguardem o resultado!
Com essas palavras foi descendo da torre, enquanto o abade retomava o caminho do claustro.
Entrementes Roland Graeme marchava alegremente na comitiva de sir Halbert Glendmning. Sentia-se libertado do temor que mais o torturava, que era justamente o de sentir-se exposto à risota e aos sarcasmos que lhe dispensariam caso tivesse voltado logo ao castelo.
Apesar disso, não deixava de experimentar certa surpresa quando pensava na facilidade com que sua avó, não obstante suas convicções religiosas, havia consentido em que êle reingressasse ao serviço da casa de Avenel, e ainda mais atônito ficava quando se lembrava da misteriosa satisfação por ela demonstrada, ao despedir-se dele na abadia.
- O céu - dissera-lhe ela abraçando-o - o céu prepara os seus caminhos com os braços de nossos próprios inimigos, que justamente se julgam os mais fortes e os mais sábios. Quanto a ti, trata de estar sempre pronto a responder ao chamado da tua religião e da tua terra. Meu filho, não te esqueceste das feições de Catherine Seyton?
Roland quis responder negativamente; mas a emoção que esta pergunta imprevista lhe causou, fêz com que as palavras lhe morressem nos lábios; enquanto isso, Magdalen prosseguia em sua exortação:
- Não a deves esquecer, meu filho; vou confiar-te uma coisa, e espero que bem cedo encontres ocasião de lha entregares secretamente.
Ao mesmo tempo deu a Roland um pacote pequenino, recomendando-lhe que tivesse muito cuidado e não o moscasse a ninguém, salvo a Catherine, Seyton. Concedeu-lhe então solenemente a sua bênção, recomendando-o a Deus.
Havia nos seus modos e no seu todo algo que cheirava a mistério; Roland, porém, não estava na idade nem tinha um temperamento capaz de perder muito tempo em aprofundar as coisas. Em breve já não pensava em nada além dos prazeres que lhe proporcionaria uma viagem em que tudo era inédito aos seus olhos. Estava encantado de ir a Edimburgo, e. de poder ir como um homem e não como um pajem. Atingia o auge da alegria especialmente quando pensava que iria rever Catherine Seyton, Catherine cuja vivacidade e encanto lhe haviam deixado tão doce impressão.
Não lhe faltava senão uma coisa para levar o seu entusiasmo ao máximo: e isso êle experimentava montado num ágil e fogoso cavalo, em lugar de se ver obrigado a viajar dificultosamente a pé, como o fizera em dias precedentes.
Nesse ínterim Adam Woodcock, o falcoeiro de Avenel, libertado dos seus trajes de abade da Insânia e já vestido com o seu verde gibão profissional do qual pendia de um lado uma bolsa e do outro um punhal de caça, tendo na mão esquerda uma luva que lhe subia até o meio do braço e na cabeça um toque de plumas, graças às boas pernas do seu cavalinho, alcançara a cavalgada. Uma vez chegado, pôs-se logo a conversar com Roland.
- Com que então, meu jovem pajem, ei-lo ainda uma vez abrigado sob o ramo de azevinho?
- É, meu amigo, e em condições de lhe restituir as dez moedas de prata que me emprestou.
- E que há menos de uma hora me quis pagar com dez polegadas de aço. Por minha fé, chego a acreditar que está escrito no livro do destino que, mais cedo ou mais tarde, deverei travar relações com o seu punhal.
- Não diga isso, meu caro Adam; preferiria cravá-lo em mim mesmo. Mas como poderia eu reconhecê-lo naquele disfarce?
- É exato, senhor Roland, mas de futuro não brinque tão levianamente com o punhal. Olhe, se eu não tivesse uma pança tão solidamente estufada, só teria saído da igreja para ir diretamente ao cemitério.
- Vamos, Adam, mudemos de assunto; este nos levaria muito longe, e eu só tenho ainda alguns momentos para ficar com você. Não regresso a Avenel; sigo para Edimburgo, por ordem do cavalheiro.
- É o que faz com que tenhamos tempo de regularizar nossas contas enquanto caminhamos. Você julga ter-me dado alguma novidade, mas sou eu justamente que lhe vou dar uma. O cavalheiro encarregou-me de conduzí-lo a Edimburgo.
- Você, Adam? E quais são suas instruções?
- Devo ir com o senhor a Edimburghe entrega-lo são e salvo em mãos do regente, em Holyrood.
-Como? Do regente? - gritou Roland surpreendido.
- É, por minha fé, do regente, do conde de Murray. E digo-lhe mais: se não entrar diretamente ao serviço deste, pelo menos a ele ficará adido, como um dos servidores do cavalheiro de Avenel.
- E com que direito, - bradou Roland impetuosamente - com que direito o cavalheiro de Avenel pretende colocar-me ao serviço de outro, ainda gue supostamente me olhando como fazendo parte do seu?
- Mais baixo! mais baixo! - recomendou o falcoeiro -. Esta é uma espécie de pergunta que eu não aconselho ninguém a fazer, a menos que exista uma montanha, um lago ou, o que ainda seria melhor, as fronteiras de um reino, entre êle e o seu senhor feudal.
- Mas eu não reconheço sir Halbert Glendinning como meu senhor feudal, nasci em território contestado, e sua autoridade...
- Mais baixo, rapaz, mais baixo, digo-lhe eu. Pense que se por ventura, vier a incorrer no desagrado do cavalheiro, será coisa mais grave do que perder a proteção da esposa dele. Encostando-lhe um único dedo êle o pode prejudicar muito mais do que ela o faria vibrando-lhe a mais violenta das bofetadas. Êle é, por minha fé, um homem digno de respeito. Mas, chut! Estamos perto da ponte e Sua Senhoria vai estacar. Avancemos a fim de receber as últimas ordens.
- Woodcock, - disse sir Halbert - já sabes aonde deves conduzir este rapaz. Quanto a você, Roland, obedeça com zelo e discrição a todas as ordens que lhe forem dadas. Domine, o seu temperamento altaneiro e arroubado; seja justo, valente e fiel, e assim terá em mãos tudo para se alçar muito acima da sua situação atual. Enquanto você se comportar de maneira prudente e honrosa, pode contar com a proteção do cavalheiro de Avenel.
Deixando-os então, sir Halbert Glendinning dirigiu-se para a cadeia de montanhas, entre as quais se encontrava o castelo de Avenel. Para trás ficaram apenas Roland Graeme, o falcoeiro e um criado que o cavalheiro lhes deixou para cuidar dos animais e ser-lhes útil na estrada.
Enquanto o corpo principal dos cavalheiros punha-se a caminho para o oeste, os nossos viajantes rumavam para o norte.
No dia seguinte de manhã chegaram às portas de Edimburgo.
- Eis aqui então a cidade, - bradou Roland - sobre a qual eu tanto ouvi falar.
- Sim, efetivamente - respondeu o falcoeiro -. Além está o velho castelo e um pouco mais longe, à direita, sobre aquela elevação, aparece o castelo de Craigmillar, onde ocorreram no meu tempo diversas cenas divertidas.
- Não era ali que a rainha mantinha a sua corte?
- Sim, sim, quando era rainha! Mas hoje em dia o senhor não deve dar-lhe tal nome. Bem, que cada um pense como quiser! Ainda mesmo que fosse verdade tudo quanto dizem, mesmo assim mais de um coração se afligiria por Mary Stuart, pois, creia, senhor Roland, ela foi a criatura mais bonita que meus olhos viram.
- E onde está detida agora essa pobre rainha? - indagou Roland, cheio de interesse pela sorte de uma mulher cujas graças e beleza haviam deixado impressão tão marcada no coração displicente de Adam Woodcock.
- Onde está presa? Segundo se afirma, em algum castelo-fortaleza lá para o norte. Eu não sei nada; além disso, para que se preocupar com aquilo que não se pode impedir? Se ela tivesse sabido usar do próprio poder enquanto o desfrutava, não teria chegado a uma situação dessas. Dizem que é necessário que ela abdique em benefício do príncipe
infante. Tanto o nosso amo como os seus vizinhos trabalharam neste sentido. E se por um acaso qualquer a rainha readquirisse os seus direitos, seria bem provável que se visse uma fumaceira pairando sobre o castelo de Avénel, a menos que sir Halbert tivesse habilidade bastante para impor suas condições.
- A rainha Mary prisioneira em um castelo fortificado sito ao norte de seus estados! - exclamou Roland.
- Sim, segundo dizem pelo menos. Trancafiada num castelo que fica atrás do grande rio que vem de muito além, ou que parece ser um, embora seja na realidade ura braço de mar.
- E entre todos os seus súditos, - bradou Roland impetuosamente - não se encontra um só que queira arriscar alguma coisa para a libertar!
- É um assunto delicado, senhor Roland - retrucou o falcoeiro -. E se falar freqüentemente sobre êle, previnuo-o que acabará trancafiado também em qualquer um desses castelos, a não ser que prefiram cortar-lhe o fôlego de uma só vez, a fim de evitarem que o senhor volte a fazê-lo.
- Mas, - indagou Roland - que igreja arruinada é aquela tão próxima à cidade? Terá passado por aqui um abade da Insânia que haja pretendido incendiá-la?
- É a igreja de Field - murmurou o falcoeiro baixando a voz e colocando um dedo nos lábios com ar misterioso -; agora não me pergunte mais nada
A aludida catástrofe fora tão recente que Roland desviou os olhos das ruínas, horrorizado, enquanto as acusações que aquele fato assacava contra a rainha se apresentavam ao seu espírito com tanta violência que estabeleciam uma espécie de contrapeso à compaixão que começavam a inspirar-lhe os presentes infortúnios da soberana.
Foi nesse estado de agitação, parcialmente causado pelo horror e parcialmente pelo interesse da curiosidade, que Roland atravessou o cenário dos terríveis acontecimentos, cujos rumores haviam chegado às mais longínquas solidões da Escócia.
"Agora, pensava êle, vou tornar-me um homem. Pretendem que eu não me destaco pela cautela; assim sendo, pretendo fazê-lo pelo valor. Quero ser um homem entre os homens ou um morto entre os mortos".
Distraiu-se dos seus ambiciosos projetos por pensamentos prazerosos e começou a formar mil conjecturas sobre a época e lugar em que tornaria a ver Catherine Seyton, e sobre a maneira como renovaria suas relações com ela. Estava ainda completamente absorvido por esse devaneio quando reparou que já se encontrava em Edimburgo. Todas as demais idéias se desvaneceram em face dessa sensação de espanto que faz o habitante de uma região quase deserta experimentar uma espécie de vertigem quando se encontra pela primeira vez numa vasta e populosa cidade.
A principal rua de Edimburghera então uma das maiores da Europa.
A população apertada pelas muralhas da cidade tornara-se ainda maior com a quantidade de lords do partido do rei que com suas comitivas haviam acorrido de todos os lados, a fim de cerrar fileiras em torno do regente Murray. As lojas ostentavam montras destacadas, exatamente como os bazares modernos, onde apareciam os diversos objetos à venda. Roland julgava açambarcar com os olhos todas as riquezas do universo quando divisava as tapeçarias e as enormes peças de linho de Flandres; a prataria sobretudo o enchia de espanto. Nada, porém, o atraía tanto como as casas de cutelaria, onde via espadas e punhais fabricados na Escócia, lado a lado com armaduras protetoras importadas de Flandres. A cada passo encontrava tanta coisa para ver e admirar que só com grande esforço Adam Woodcock conseguia fazê-lo avançar através daquela sucessão de encantamento.
O espetáculo da multidão que atopetava as ruas constituía outro motivo de surpresa.
A cada momento Roland observava um galã que passava com ar enfatuoso, vestido segundo a última moda ou então trajando à francesa um gibão colante com vieses da mesma cor do forro, com uma longa espada de um lado e um punhal do outro, acompanhado de uma escolta de servos robustos de acordo com sua estirpe e linhagem, que marchavam militarmente, armados de uma espada comprida e de um escudo arredondado. Dois desses grupos defrontaram-se no meio da rua: sendo os dois chefes da mesma estirpe, provavelmente por diferença de opiniões políticas ou pela recordação de alguma antiga briga feudal, cheios de animosidade um contra o outro, continuaram altivamente, sem desviarem um só passo. Como nenhum dos dois demonstrasse o menor desejo de ceder lugar ao outro, ambos estacaram a um só tempo, já de espadas na mão. No mesmo instante uns vinte punhais saíram da bainha, e nada mais se ouviu além do entrechoque das armas e do brado dos combatentes lançando aos ares o nome dos seus chefes. Uns bradavam: "Socorro, Leslie! Leslie!" enquanto outros gritavam: "Seyton! Seyton!"
Se anteriormente o falcoeiro já tivera dificuldades enormes em fazer Roland prosseguir, julgava que no momento aquilo era uma tarefa acima das suas forças. Sofreando o seu cavalo, o rapaz acompanhava com os olhos todos os combatentes, e sem ouvir absolutamente o que lhe dizia seu guia, demonstrava ter um pessoal interesse naquela contenda.
Dois homens já lá estavam estendidos no chão; o partido dos Seytons, menos numeroso do que o do seu adversário já então reforçado pela chegada de novos adeptos, começava a defender-se fracamente e a perder terreno, quando Roland, ao ver o chefe dos Seyton que embora tivesse combatido com uma coragem sem igual, forçado por muitos assaltantes estava a ponto de sucumbir, bradou vivamente:
- Woodcock, se você é homem pegue a sua espada e vamos em auxílio do Seyton.
Sem esperar resposta e sem escutar os rogos do falcoeiro que lhe suplicava ficasse à margem de uma briga estranha, o impetuoso rapaz atirou-se do cavalo, pegou da espada e, precipitando-se no meio da confusão aos gritos como os outros - "Seyton! ' Seyton!" - fêz comer poeira a um daqueles que de mais perto constrangiam o chefe do partido. Este, readquirindo coragem ao ver aquele socorro inesperado, pôs-se a combater com redobrado furor.
Nesse momento, porém, chegaram quatro magistrados da cidade com uma guarda de alarbadeiros que se lançou afoitamente no meio dos combatentes, forçando-os a uma retirada por diversos lados, deixando cada partido os seus feridos estendidos sobre o campo de batalha.
Arrancando as barbas em sinal de desespero pela temeridade do companheiro, o falcoeiro levou-lhe o cavalo pela rédea.
- Senhor Roland, - perguntou-lhe então - pretende ficar aqui para ser levado à prisão?
Roland que havia batido em retirada com os Seytons, como se fosse um dos seus naturais aliados, voltou a si ao ouvir tais censuras, e, reconhecendo que havia agido impensadamente, voltou a montar com um ar um tanto envergonhado. Verificando que um oficial da cidade se dirigia para êle, partiu a galope, seguido de Woodcock. Logo depois, vendo que ninguém lhes seguia no encalço, ambos diminuíram o passo dos animais, a fim de não atraírem a atenção sobre as próprias pessoas.
- Mas a troco de que tinha o senhor a necessidade de se imiscuir nas brigas dos tais Leslies e Seytons, pessoas cujos nomes jamais ouviu pronunciar antes? - indagou Adam.
- Meu caro amigo, tenho motivos particular amigo dos Seytons.
- É preciso que esses motivos sejam bem secretos, pois eu seria capaz de apostar que o senhor nem sequer conhecia o nome. Continuo a supor que o motivo que lhe fez arriscar a cabeça desmiolada num negócio que não lhe dizia respeito absolutamente, foi mais a paixão que sente pelo maldito tinido das armas do que propriamente o interesse que tem pelos Seytons. Reflita bem! Se é que nutre o projeto de desembainhar sua espada cada vez que deparar com uma lâmina dardejante, em uma cidade como é Edimburgh não lhe será possível fazê-lo durante muito tempo.
-- Agradeço-lhe o conselho; prometo-lhe que o seguirei o mais fielmente que puder, agindo de maneira a reconhecer em mim um dos seus discípulos na difícil arte da prudência.
- E fará muito bem. Dou-me conta também Roland, que, independentemente do prazer que ver luzir a sua espada de boa têmpera, o senhor tem o costume de fitar insistentemente todas as mulheres que passam como se esperasse reconhecer entre elas alguma velha relação. Não está ouvindo o que lhe digo no momento porque só tem olhos para a galante moça que caminha à nossa frente.
- Sim, Adam, estou ouvindo; não perco uma só palavra das que me diz. Cuide um instante do meu cavalo antes que você tenha tempo de assobiar estarei seu lado novamente.
Dizendo isso e sem esperar que Adam terminasse o seu sermão, com grande espanto do falcoeiro, Roland pulou do cavalo, atirou-lhe as rédeas e embrenhou-se numa daquelas estreitas passagens que se abrem sob um portal abobadado que leva à rua principal, tentando alcançar a moça que seu companheiro acabava de admirar.
- Santa Mary! Santa Magdalen! - exclamou o pobre falcoeiro ao ver o rapaz por quem tinha de velar correndo como um louco atrás de uma moça que lhe era desconhecida.
Deixemos o nosso falcoeiro entregue à sua aflição e sigamos o estouvado que o levou a tal embaraço.
A última parte das censuras de Adam Woodcock, embora destinada a ser útil a Roland lhe escapara completamente, justamente porque na jovem criaturinha que passava pela rua envolta num véu de seda listrada êle julgara reconhecer um detalhe qualquer muito semelhante ao talhe esbelto e às harmoniosas proporções de Catherine Seyton. Enquanto os sérios conceitos do falcoeiro lhe martelavam os ouvidos, seus olhos permaneciam pregados no interessante objeto; finalmente a beldade já estava prestes a entrar numa daquelas vielas que vão de Canongate às casas da rua vizinha. Erguera o véu, provavelmente para ver quem era o cavalheiro que não a tinha perdido de vista havia algum tempo já. E o jovem Roland, reconhecendo sob o manto de seda os dois grandes olhos azuis cheios de malícia e de alegria, os dois grandes olhos que, uma vez encontrados, jamais poderiam ser esquecidos, abandonou seu mentor e se lançou no encalço de Catherine Seyton.
Não é coisa fácil correr mais do que um rapazola de dezoito anos que persegue aquela a quem ama. Com a velocidade de um corça acuada pelos caçadores, Catherine atravessou o grande pátio calçado. Tendo chegado a uma porta fechada apenas por uma taramela, num minuto penetrou na casa. Mas se ela havia fugido com a velocidade de uma corça, Roland a tinha perseguido com o ardor de um jovem perdigueiro pela primeira vez lançado sobre a presa. Por mais que ela o fizesse, não a perdera de vista um só instante; e o mais notável em tais carreiras é que o jovem que procura alcançar sua amada leva invariavelmente uma vantagem tão grande sobre a moça que tenta escapar-lhe, que essa vantagem jamais poderá ser compensada pela dianteira que ela porventura possa levar. A uma volta do caminho êle viu flutuar-lhe o vestido; noutra lhe distinguiu o véu; mais adiante ouviu o ruído dos seus passos e finalmente a viu nitidamente entrar na casa.
Imprudente e inconsiderado como já o pintamos, sem nunca cogitar em resistir à impressão do momento, Roland não hesitou um instante em se dirigir à casa que guardava o objetivo que êle procurava. Por sua vez tentou erguer a taramela; e como a porta cedesse à primeira tentativa, teve o prazer de pensar que se encontrava afinal sob o mesmo teto em que se achava Catherine. Entrando com a mesma precipitação que pusera em a perseguir, viu-se num vasto vestíbulo um tanto sombrio, onde o dia penetrava apenas através de alguns vitrais de diversas cores.
Porém a única coisa que se dignou notar foi Catherine Seyton, que, julgando-se já ao abrigo de qualquer perseguição, lá estava sentada num grande banco de carvalho, tomando fôlego depois daquela fuga precipitada. O barulho que fêz Roland ao entrar repentinamente a perturbou. Estremeceu toda e, dando um grito de surpresa, escapuliu por uma das portas que davam para a antecâmara. Roland, sem mais delongas, encaminhou-se para a mesma porta e a entreabriu. Comunicava com uma ampla galeria bem iluminada, de cuja extremidade êle julgou ouvir barulho de vozes e de passos de inúmeras pessoas, que pareciam aproximar-se cautelosamente. Chamado à razão pela iminência de sério perigo, cogitava se deveria de fato permanecer ali, quando Catherine, voltando ao vestíbulo por outra porta, correu para êle com a mesma violência que pusera em fugir-lhe alguns minutos antes.
- Qual foi o gênio mau que o trouxe aqui? - exclamou ela -. Fuja, ou será um homem morto. Mas não, fique: Eles já vêm.
E sem esperar a resposta desapareceu pela mesma porta . No mesmo momento se abriu com estrépito a que dava para a galeria e por ela surgiram seis ou sete jovens ricamente trajados, empunhando as espadas.
- Quem é o temerário - indagou um deles - que se atreve a entrar em nossa casa?
- É um membro da comitiva daquele camponês enobrecido, do celerado Halbert Glendinning.
- Posso identificá-lo pelo ramo de azevinho que é o símbolo das suas hostes. Guardem a porta! É preciso que êle nos justifique tamanha insolência.
Dois entre os valentões correram para a porta e ali se colocaram de espada na mão, como para impedir que Roland fugisse. Os outros avançaram para o pajem, que teve bastante sensatez para sentir que seria inútil e descabida qualquer tentativa de resistência. Subitamente um novo personagem entrou na antecâmara enquanto todos aqueles que com ar ameaçador cercavam Roland, recuavam respeitosamente.
Era um homem de elevada estatura, cujos cabelos negros começavam a se entremear de neve muito embora seus olhos e feições demonstrassem ainda todo o arroubo da mocidade. Estava sem casaco e tinha a camisa de linho da Holanda tinta de sangue. Lançara sobre os ombros um manto purpurino guarnecido de ricas pelicas, que substituía perfeitamente a peça de vestuário que lhe faltava: trazia na cabeça um toque de veludo carmesim três vezes contornado por uma corrente de ouro, segundo a moda então em vigor para os senhores escoceses.
-Meus filhos e meus amigos, o que significa tamanha algazarra? - perguntou êle ao entrar -. A quem estão cercando com ar tão ameaçador?
- Milord, - respondeu um dos jovens - trata-se de um espião, de um traidor que penetrou em sua casa;
- É falsa esta acusação! - exclamou Roland afoitamente -. Vim para falar a lord Seyton.
- Por Deus! - exclamou lord Seyton -. que foi êle quem veio ainda há poucos momentos em meu auxílio, quando a maioria do meu pessoal pensava mais na própria segurança do que na minha. Em lugar do tratamento que lhe dispensais, êle merece vosso reconhecimento e gratidão.
Todas as lâminas voltaram às bainhas, enquanto Seyton, pegando a mão de Roland, agradecia-lhe a generosidade com que este lhe havia auxiliado, acrescentando que não duvidava absolutamente que o interesse demonstrado pelo rapaz quando lhe correra em socorro, fosse o mesmo que logo em seguida o tivesse levado até ali para ss novidades.
Roland inclinou a cabeça de modo a confirmar a opinião de lord Seyton, dizendo-lhe que como notara o ferimento por êle recebido, desejara verificar por si se não era perigoso.
- É apenas um arranhão - respondeu lord Seyton.
Roland Graeme cumprimentou-o respeitosamente e fez um movimento para se retirar. Embora já não receasse ser tratado como um espião, havia ainda o risco de Woodcock, por êle abandonado tão bruscamente, metê-lo em novos apuros tentando fazer no palacete algumas perguntas ou, ignorante do ocorrido, se fosse embora sem o esperar. Lord Seyton, entretanto, não o deixou escapulir tão facilmente.
- Um momento, rapaz. Diga-me o seu nome posição. De algum tempo para cá lord Seyton está mais habituado a ser abandonado pelos seus amigos do que auxiliado por estranhos. Mas os tempos podem mudar e, um dia, êle tenha possibilidade de provar o seu reconhecimento àqueles que lhe tiverem prestado serviço.
- Chamo-me Roland Graeme, milord. No momento sou um pajem de serviço de sir Halbert Glendinning.
- Eu, que nunca poderia ter esperado auxílio de alguém da casa do seu senhor, gostaria muito de saber qual o motivo que lhe fêz arriscar sua própria vida para defender a minha.
- Meu próprio amo teria feito o mesmo - respondeu Roland -; êle não suportaria ver um homem de honra atacado por numerosos inimigos, sem lhe prestar o socorro do seu braço.
- Pois bem, - continuou Lord Seyton - receba este penhor da minha gratidão e o use sempre como lembrança minha.
Dizendo isso, desprendeu a corrente de ouro fechada com um medalhão que lhe contornava o toque e a entregou a Roland.
O rapaz não deixou de sentir-se orgulhoso em receber o presente que êle olhava como um prêmio concedido à sua coragem. Sem demora prendeu a corrente ao próprio toque. Depois de haver agradecido ao nobre barão, saiu da antecâmara, atravessou apressadamente o pátio e a viela, chegando a Canongate no momento exato em que Woodcock se dispunha a abandonar os dois cavalos para correr à procura do seu jovem companheiro.
- Que nova temeridade perpetrou? -- perguntou o falcoeiro assim que o viu de volta.
-- Não me faça perguntas - respondeu Roland saltando agilmente sobre o cavalo -. Veja só como é preciso pouco tempo - continuou êle mostrando seu novo ornamento - para ganhar uma bela corrente de ouro.
- Por Santo Humberto! - exclamou o falcoeiro -. Queira Deus que o senhor não a tenha roubado ou arrancado por meios violentos, embora eu não veja como a poderia ter obtido de outra maneira. Tenho vindo aqui seguidamente, já passei até meses inteiros e nunca encontrei ninguém que me desse correntes ou medalhões.
- Vê você, meu amigo Adam, que em menos tempo fui mais feliz do que você. Mas pode ficar sossegado, porque não a roubei nem a tomei a força; ganhei-a honestamente e ela me foi dada de livre e espontânea vontade.
- Eis-nos chegados à frente da velha abadia - disse Woodcock -. Se a sua maré de ventura o acompanhar ao atravessar este pátio, por Nossa Senhora! poderá desafiar a Escócia inteira.
Enquanto assim falava, chegaram defronte à porta ogival que leva à abadia e ao palácio de Holyrood. Uma escura passagem em arco dava para o pátio.
- Já que é a primeira vez que venho aqui, Adam, deixe-me olhar em volta. Aqui estou eu, portanto, em Holyrood.
Constituía para Roland um espetáculo inteiramente inédito o vestíbulo daquele palácio, continuamente atravessado por estranha multidão. Ora o cruzava um estadista arrastando seu manto-acolchoado e suas sandálias negras; logo depois um militar coberto de ferro e de pele de búfalo com um longo espadão que roçava o solo. Perto dele surgia um humilde solicitador, de olhar inquieto e andar tímido. Uma multidão de guardas, soldados e mensageiros, ia e vinha. Havia naquilo a brilhante confusão que aos olhos da mocidade dava uma falsa impressão de lustro e esplendor, embora aos olhos da experiência não passasse de artificial e vão.
Um amigo de Adam chamado Miguel "Pé de vento" encarregou-se de levar Roland até o conde.
Fê-lo atravessar diversos corredores até chegarem ao patamar de uma enorme escadaria de pedra, de fácil acesso, dada a largura e distância dos degraus que formavam. Quando atingiram o primeiro andar Miguel abriu a porta de uma antecâmara tão escura que, sem ter visto o degrauzinho desastrosamente colocado no limiar da mesma porta, Roland tropeçou.
- Tome cuidado - disse Miguel baixando a voz e lançando um olhar em torno para verificar se estavam sozinhos -; nem sempre se levantam aqueles que tropeçam aqui. Está vendo aquilo? - acrescentou em voz mais baixa ainda, mostrando umas nódoas vermelho-escuras que manchavam o chão.
- O que quer dizer? - indagou o pajem estremecendo, se bem que não soubesse por que -. São manchas de sangue?
- São, são sim - respondeu Miguel quase num sussurro, travando-lhe o braço -. É o sangue que a traição derramou e que a própria traição vingou.
O guia, porém, sem lhe permitir outras perguntas e com o aspecto de um indivíduo que receia ter falado demais sobre assunto tão perigoso apressou-se um pouco. Na outra extremidade do aposento bateu timidamente numa portinha que foi aberta sem demora por um alabardeiro.
-Eis aqui um pajem, - disse "Pé de vento" - que traz uma carta do cavalheiro de Avenel para o regente.
- Levantaram o Conselho -, falou o alabardeiro -; mas certamente Sua Graça o regente há de querer ver imediatamente o mensageiro do cavalheiro de Avenel,
E assim dizendo, seguindo à frente de Roland, levou-o à sala onde acabava de se realizar o Congresso. Havia uma vasta mesa de carvalho cercada de cadeiras da mesma madeira, em cuja principal cabeceira se erguia uma ampla poltrona coberta de púrpura.
O regente possuía o ar nobre e digno que se enquadrava perfeitamente ao poder de que estava investido; e se tivesse sucedido ao trono na qualidade de legítimo herdeiro, é bem provável que viesse a figurar na história como um dos maiores reis da Escócia. Apesar disso, a prisão e a deposição de sua própria irmã são crimes que nunca lhe poderão ser desculpados. Vestia um gibão de veludo negro cortado à moda de Flandres, e um chapéu alto, quebrado de um lado, preso por um pregador de brilhantes.
Tal era o personagem que Roland Graeme enfrentava cheio de uma sensação de temor respeitoso, bem diversa da sua vivacidade e afoiteza habituais.
Murray segurou com ar amável a carta que o pajem lhe estendia e estacou um instante antes de arrebentar o fio de seda que servia de selo à carta para perguntar o nome do rapaz, tal impressão lhe causara o seu todo interessante.
- Roland Graeme? - repetiu o regente -. Ora! Você pertence então à família dos Graham do condado de Lenox?
- Não, milord, - respondeu Roland -; meus pais habitavam o território contestado.
Sem fazer mais perguntas, Murray começou a ler a correspondência. Enquanto lia, sua testa contraía-se em sinal de descontentamento, como se estivesse tomando conhecimento de algo que lhe causava espanto e contrariedade. Sentou-se de sobrecenhos franzidos e, depois de reler a carta duas vezes, ficou calado durante alguns minutos. Voltou a dirigir--se a Roland:
- Creio que você me disse chamar-se Armstrong?
- Não, milord, chamo-me Roland Graeme. Meus pais traziam o sobrenome de Heathergill, e residiam no território contestado.
- Sim, sim, Su sabia que era um nome do território contestado. Tem alguns conhecimentos em Edimburgo?
- Cheguei apenas há uma hora, milord - respondeu Roland, que preferiu contornar a pergunta a responder diretamente, julgando prudente não falar sobre a sua aventura com lord Seyton -. É a primeira vez na minha vida que venho a esta cidade.
- Mas como!? E é um pajem de sir Halbert Glendinning?
- Sou pajem de lady Avenel, milord. Apenas há quatro dias deixei o castelo pela primeira vez desde que para lá fui, isto é, desde a minha infância.
- Um pajem da senhora - murmurou o regente a meia voz, como se falasse consigo mesmo -. É estranho que êle me mande um pajem de sua mulher para um empreendimento de tamanha importância. Morton dirá que isto tem algo a ver com a nomeação do irmão para o lugar de abade. Não obstante, talvez um rapaz inexperiente seja mais conveniente para o que pretendo. Olhe, o que aprendeu quando a serviço de lady Avenel?
- A caçar, milord...
- Conheces as obrigações de um homem de armas?
- Tudo quanto a teoria pode ensinar a quem jamais combateu, milord. Nunca tive a ventura de assistir a um combate encarniçado.
O regente sorriu, sacudindo a cabeça. Nesse instante a porta se abriu, dando passagem ao conde de Morton.
- Venho apressado, - disse êle - e apareço sem me fazer anunciar unicamente porque lhe trago a confirmação das minhas notícias. Tal qual eu lhe dizia, Edward Giendinning foi nomeado abade de Santa Mary, e...
- Já sei, milord - retrucou o regente com frieza -; mas...
- Mas talvez já o soubesse mesmo antes de mim, milord, concluiu Morton, cujas espessas sobrancelhas se mostravam eriçadas.
- Morton, - bradou Murray - não suspeite de mim; respeite a minha honra. Já tenho sofrido demasiadamente com as calúnias dos meus inimigos para que meus amigos ainda me acabrunhem com suas infundadas suspeitas. Além disso, não estamos sós, acrescentou êle, lembrando-se da presença do pajem.
Conduziu então o conde Morton ao umbral de uma das janelas, onde era possível conversar sem que ninguém escutasse. Murray mostrava-se grave e sério e Morton enciumado e ofendido. À proporção, porém, que a palestra prosseguia, este parecia ir ficando mais calmo.
Como a palestra se animasse, começaram a falar mais alto, esquecendo-se completamente de que havia um terceiro na sala; assim, Roland foi forçado a escutar o que eles diziam melhor do que se o pretendesse. Sem poder tapar as orelhas nem se retirar sem ser mandado, tratava de encontrar um meio de se fazer lembrado; entrementes ia ouvindo tanta coisa que teria sido inábil e, quem sabe, até arriscado, aparecer de repente. Entretanto ouvira apenas parte de uma conversa cujo sentido um político mais atilado é mais ao corrente dos acontecimentos da época teria facilmente compreendido. Roland, porém, só podia fazer conjecturas gerais e bastante vagas quanto ao assunto da discussão.
- Está tudo pronto, - disse Murray - e Lindsay vai partir; ela não deve hesitar mais.
- Mas para que tantos criados em torno dela? Sua mãe não tem uma famulagem bastante numerosa para servir a ambas, sem que seja necessário impor-lhe um séquito inútil e talvez perigoso?
- Ora! Uma princesa! Minha irmã! O mínimo que posso fazer por ela é assegurar-lhe as honras que lhe são devidas.
- É, é assim que suas flechas são lançadas: atira-as com força, mas sempre algum detalhe as encontra no caminho que, tal qual um vento contrário, as impede de atingir o alvo.
- Não fale assim, Morton. O que não fiz, o que não me atrevi a fazer?
-Fêz o bastante para adquirir, mas não o suficiente para conservar. Não julgue que ela pense ou aja do mesmo modo. Feriu-a profundamente em seu orgulho e no seu poder. É em vão que pretende curar a chaga, derramando algum bálsamo sobre ela; a coisa é impossível. No ponto em que se encontra agora é preciso perder o título de irmão extremoso, para alcançar o de indivíduo hábil e resoluto.
- Morton, - bradou Murray impaciente -, o que eu fiz está feito; farei o que me resta a fazer; não posso, porém, tolerar essas censuras.
- E garanto - disse Morton - que a escolha de tais consolações domésticas recairá sobre...
Nessa altura baixou a voz para pronunciar algumas palavras que escaparam aos ouvidos de Roland. Murray respondeu-lhe no mesmo tom e o pajem ouviu apenas o seguinte:
- Estou certo dele porque me foi recomendado por Glendinning. - E independente dessa recomendação eu tenho um penhor da fidelidade do rapaz: sua parenta chegada entregou-se a mim como garantia da sua honestidade, estando de acordo em ser tratada segundo o comportamento do pajem.
- Já é alguma coisa, - respondeu Morton -. Não obstante, pelo interesse e pela amizade que lhe tenho recomendo-lhe cautela. Como as moscas e os gafanhotos após a tempestade, nossos inimigos começam a agir novamente. George Seyton andava hoje de manhã pelas ruas acompanhado de uns vinte rapazes, e teve até uma briga com os meus amigos Leslies. O próprio George Seyton foi ferido por Black Ralph Leslie. Este, por sua vez quase ficou com a cabeça rachada pela pancada de um jovem furioso que ninguém sabe quem é. Dick Seyton de Windigow teve o braço transpassado, e o sangue de mais dois Leslies correu também. Eis aí o que é digno de atenção.
Depois disso saíram do vão da janela. Deparando com Roland Graeme, o regente recomendou-lhe que estivesse pronto a partir logo ao primeiro sinal, chamando o alabardeiro, mandou-o reconduzir Roland para perto do seu companheiro.
O alabardeiro levou Roland a uma sala do andar térreo onde este encontrou Adam e lhes participou que aqueles aposentos seriam a residência deles até que Sua Graça se dignasse de dar qualquer ordem ulterior, dizendo-lhes que deviam dirigir-se à cozinha afim de receberem a ração alimentar. Para o pernoite, acrescentou o homem, deveriam ir ao hotel São Miguel.
Esse albergue assemelhava-se inteiramente às estalagens do Oriente nas quais os viajantes só encontram os talheres e vêm-se obrigados a fazer face a todas as necessidades.
O falcoeiro encontrou logo um lugar vazio perto de um vão, e uma vez sentado, com o seu companheiro pediu que lhes servissem alguns refrescos. Conseguiu obter também umas sobras de capão frio e a metade de uma língua de boi, pedindo que acrescentassem uma garrafa de aguardente.
- Havia muito pouco tempo que Roland jantara para que pudesse fazer honras à nova refeição, além de que tinha mais curiosidade do que propriamente apetite. Olhando pela janela que dava para um vasto pátio cercado de estrebarias e cocheiras enquanto Adam Woodcock esvaziava inúmeros copos, acompanhava com os olhos tudo quando ali ocorria.
O falcoeiro era freqüentemente distraído do seu mister pelas exclamações que Roland deixava escapar todas as vezes que via no pátio algo de interessante.
O cenário tanto tinha de barulhento como de variado; uma vez que grande parte da nobreza da Escócia se encontrava então em Edimburgo, suas comitivas, seus cavalos e suas carruagens atopetavam todas as hospedarias da cidade.
De repente Roland bradou:
- Rainha do céu! O que estou vendo?
Disse essas palavras e emudeceu, conservando sempre os olhos fixos no pátio. Tal atitude não deixou de surpreender Adam Woodcock.
- Senhor Roland, - perguntou êle, - o que viu lhe fêz perder repentinamente a voz?
Roland não deu resposta.
- Senhor Roland Graeme, afirmo-lhe que na minha terra é prova de polidez responder quando falam conosco.
Roland continuou calado.
- Está com o diabo no corpo! - exclamou o falcoeiro. Deve ter engulido a língua.
Esvaziando rapidamente o seu copinho, ergueu-se e aproximou-se de Roland, cujos olhos continuavam sempre fixos no pátio. Embora olhasse também com a maior atenção possível, não conseguia distinguir o que ocupava o rapaz particularmente.
- Na certa enlouqueceu, ?- pensou o falcoeiro.
Roland no entanto tinha razões concludentes para estar surpreendido, se bem que não julgasse cabível comunicá-las ao companheiro.
Os acordes de uma harpa de menestrel já haviam atraído um círculo numeroso, quando Roland viu entrar no pátio um novo personagem, personagem que lhe absorveu a inteira atenção. Era um rapazinho que parecia ter mais ou menos a sua idade, embora fosse um pouco mais baixo, cujo aspecto e trajes denunciava que ambos seguiam a mesma profissão. Era malicioso e enfatuado como um pajem que se preza, e trajava roupas elegantes na maior parte ocultas por um vasto manto de púrpura. Quando chegou ergueu a cabeça para o lado da janela; e Roland, extremamente surpreendido, reconheceu à sombra do toque de veludo vermelho guarnecido de grande pluma branca os traços tão fundamente gravados em sua alma, os imensos olhos azuis cheios de vida e de ardor sob as sobrancelhas arquedas, e o talhe gentil de Catherine Seyton trajada de homem, arvorando, de modo a enganar toda a gente, o aspecto e o jeito de um pajem jovem e estouvado.
- São George! Santo André! - exclamava êle estarrecido -. Onde já se viu uma pequena tão audaciosa! Gomo atravessa a multidão em passo firme e afoito! Santos do céu! Ela brange a chibata como se quisesse bater em todos que lhe impedem a passagem.
Nesse momento uma jovem criada aproximou-se do pajem vestido de púrpura e perguntou-lhe amavelmente:
- Procura alguém aqui, senhor?
- Procuro sim, - respondeu o pajem ou o pretenso pajem -. Preciso falar com um jovem estornindo de cabelos, olhos e sobrancelhas negras, pele branca, gibão verde, um ramo de azevinho no chapéu, com o todo de um provincianozinho.
- Mas como! O que pretenderá ela? - exclamou Roland, mais surpreendido que nunca.
- Vou verificar se êle está por aqui -, respondeu a moça do albergue.
- Se o encontrar, - continuou o pajem seguindo-a - dar-lhe-ei ainda hoje uma moeda de prata e um beijo domingo, quando estiver de avental branco.
Quase no mesmo instante a rapariga entrou na sala, introduzindo a pessoa que tanto havia surpreendido o jovem Graeme.
Um tanto confuso por aquilo que acabara de ouvir e julgando tudo indigno do caráter afoito e empreendedor a que aspirava, Roland resolveu não submeter-se àquela moça extraordinária, mas sim aproximar-se dela com ar tão atilado e tão penetrante, que demonstrasse claramente que a reconhecia e se achava senhor absoluto do seu segredo.
Esse plano parecia muito bem urdido; mas enquanto Roland recorria ao ar malicioso e inteligente que lhe devia garantir o triunfo, deparou com o olhar firme, e decidido do outro pajem, homem ou mulher, que encontrando aquele a quem buscava, dirigiu-se a êle com ar desprendido:
- Senhor Ramo de Azevinho, desejo dizer-lhe uma palavra.
A voz que acabava de pronunciar essas palavras era certamente a mesma que êle ouvira no convento de Santa Catherine; os traços que fitava pareciam mais semelhantes ainda aos de Catherine Seyton, do que quando os divisara à distância, no pátio; não obstante, o sangue frio e a segurança com que falava o pretenso pajem confundiam de modo tal as idéias de Roland, que este começou a duvidar das impressões dos seus próprios sentidos. Ao olhar esperto que gostaria de arvorar sucedeu uma espécie de encabulada timidez, enquanto o sorriso que planejara não passava do insignificante trejeito de alguém que ri para ocultar o embaraço.
- Será que não se compreende escocês em sua terra, Ramo de Azevinho? - indagou a criatura indefinível Disse-lhe que preciso falar com você.
- Que espécie de negócio tem você com o meu companheiro, jovem galo de briga? - perguntou Woodcock querendo acudir o amigo, se bem que não compreendesse por que. Roland subitamente perdera toda a vivacidade e toda a presença de espírito.
- Coisas que não lhe dizem respeito, velho galo de poleiro - respondeu o pajem de gibão vermelho.
Essas palavras vieram acompanhadas de uma risada tão franca e tão natural, que automaticamente recordou a Roland o acesso de hilaridade que Catherine tivera à sua custa, por ocasião de primeira entrevista no convento. Não foi sem dificuldade que conteve a exclamação:
"Por Deus do céu! É Catherine Seyton!" Reprimiu, no entanto, tal impulso, contentando-se em dizer:
- Parece-me, meu pajem, que não somos inteiramente estranhos um ao outro.
- Se nos vimos alguma vez, deve ter sido em sonho. Meus dias são, porém, muito cheios, para que eu me possa lembrar dos sonhos noturnos.
- Ou talvez para que se lembre à noite daquilo que viu de manhã?
O pajem de gibão vermelho por sua vez o fitou com ar surpreendido.
- Não compreendo o que quer dizer - exclamou êle -. Se está procurando briga comigo, fale claramente.
- Ainda que seja do seu agrado falar comigo como se eu fosse um estranho, - retrucou Roland - deve conhecer-me o suficiente para saber que eu não tenho o menor desejo de brigar com você.
- Pois bem! Permita-me então que eu dê o meu recado e me veja livre de você. Acompanhe-me por aqui.
Conduziu Roland para a janela e, depois de ter olhado em torno para certificar-se de que ninguém os observava, virou às costas à gente que se encontrava na sala, tirando de sob o manto um espadim de lâmina curta cujo punho de prata dourada era trabalhado finamente e a bainha guarnecida de lavores de ouro. Disse apresentando-a a Roland:
- Trago-lhe esta arma da parte de um amigo que lha oferece, sob a condição solene de que só a desembainhará quando for rogado por sua legítima soberana. Assim se quiser dar-me sua palavra, fazendo-me a promessa formal de que cumprirá o requisito que acabo de transmitir, a espada é sua.
- E não posso saber quais são as pessoas que me querem dar um tal presente? - indagou Roland, admirando a beleza da arma que lhe apresentavam.
- Não me cabe a mim responder a tal pergunta.
- Mas se alguém me insultar não posso usar esta espada para me defender?
- Não, não esta. Não tem a sua?
- Está bem! Seja. Aceito esta espada porque é você quem ma dá. Mas, se, como sou levado a crer, devemos trabalhar juntos em qualquer grande empreendimento, um pouco mais de franqueza e confiança da sua parte seria necessário para infundir ao meu zelo um impulso conveniente. Não pretendo forçá-la no momento, basta apenas que compreenda ...
- Compreendê-lo? Eu? - exclamou o pretenso ou verdadeiro pajem - Que me enforquem se isto é possível. Vejo-o aí a fazer-me sinais com ar de mistério e de conivência, como se alguma intriga bem complicada se tramasse entre nós, justamente a primeira vez que o avisto.
- O quê? Quererá negar por acaso que já nos encontramos?
- Sem apelo e diante de todas as cortes de justiça da cristandade.
- E sem dúvida negará também que nos foi recomendado estudar bem os traços um do outro, a fim de que, sob qualquer disfarce em que nos encontrássemos, cada um de nós pudesse reconhecer no outro o agente secreto que lhe está associado para uma grande obra? Não se recorda de Magdalen e da senhora Bridget. . .
- Bridget! Magdalen! - repetiu o outro pajem levantando os ombros e lançando sobre Roland um olhar de piedade -. Você ou está sonhando ou então está maluco. Sua cabeça anda na lua! Acredite-me, senhor Ramo de Azevinho, tome um bom caldo, ponha um barrete de lã sobre o seu cérebro enfermo, que eu pedirei a Deus para que amanhã, quando' despertar, você já esteja melhor.
Dizendo-lhe adeus e deixando-o absolutamente perplexo, o pajem de gibão vermelho retirou-se logo depois.
NO dia seguinte Miguel "Pé de Vento" veio procurar Roland da parte do regente. Depois de ter ouvido seus inúmeros conselhos de ter dito adeus ao valente falcoeiro, Roland afastou-se lentamente, como se tivesse perdido sua habitual vivacidade. O barulho dos passos do cavalo ecoavam no fundo do coração do rapaz, que mais uma vez voltava a sentir-se sozinho no mundo.
O velho lacaio "Pé de Vento," como favorito que era tinha acesso mais fácil até o regente do que muitas personalidades de altas credenciais; portanto fêz Roland subir por uma escadinha oculta, introduzindo-o num quartinho pequeno onde se encontrava o chefe do governo da Escócia.
O conde de Murray, embora trajasse um "robe de chambre," mesmo assim tinha à mão sua espada embainhada, precaução que tomava sempre, mais por deferência às censuras dos seus amigos e partidários, do que por temor quanto à própria segurança. Respondeu com uma inclinação de cabeça ao respeitoso cumprimento de Roland, dando depois uma ou duas voltas pelo quarto com seus olhos penetrantes pregados ao rapaz, como se quisesse ler-lhe os arcanos da alma.
- Creio eu que você se chama Julian Graeme, não? perguntou-lhe afinal.
- Roland Graeme, milord, e não Julian.
- Sim, estou com a memória um tanto confusa. Bem, Roland, então tu conheces as obrigações inerentes ao serviço de uma dama?!
- Devo conhecê-las, milord, uma vez que as exerci muito tempo, quando ao serviço de lady Avenel. Orgulho-me, porém, de não as ter que desempenhar mais, uma vez que o cavalheiro de Avenel me prometeu...
- Silêncio, rapaz, a mim cabe-me falar e a você ouvir e obedecer. É necessário, ao menos durante algum tempo, que você entre novamente ao serviço de uma senhora que, pela sua posição, não tem igual na Escócia; uma vez findo esse serviço, dou-lhe minha palavra de príncipe, e de cavalheiro que se abrirá à sua frente uma carreira capaz de satisfazer às mais ambiciosas aspirações. Tomá-lo-ei em minha casa e lhe darei um emprego adido à minha pessoa.
- Seria atrevimento perguntar-lhe, milord, a quem meus humildes serviços serão prestados?
- Você vai entrar ao serviço de uma mui ilustre...de uma mui desventurada senhora... de Mary da Escócia.
- Da rainha, milord? - gritou o pajem sem conseguir dominar a exclamação de surpresa. .
- Da que foi rainha - respondeu Murray num tom que oferecia a mescla singular de embaraço e descontentamento.
- E eu vou serví-la na prisão, milord? - continuou Roland com simplicidade tão franca e audaciosa, que chegou a desconcertar um tanto o político.
- Ela não está na prisão -- respondeu o regente meio irritado -: queira Deus que não esteja. Abandonou unicamente os interesses públicos e se retirou do mundo até que o novo estado de coisas esteja suficientemente consolidado para permitir-lhe mostrar-se com absoluta e completa liberdade. É por essa razão - acrescentou êle com mais brandura - que lhe estou concedendo um séquito tão brilhante quanto lhe permite o retiro em que vive; não obstante, é forçoso que eu possa depositar inteira confiança nas pessoas que são colocadas junto dela. Você pode verificar, portanto, que além de ocupar um cargo muito honroso em sua essência, deverá faze-lo de modo a adquirir um amigo no regente da Escócia. Vejo em seus olhos que alcança tudo quanto eu lhe poderia insinuar sobre o assunto. O ponto essencial é a fidelidade; quero dizer fidelidade para comigo e para com o Estado. Você terá que controlar não somente todas as tentativas para estabelecer comunicações com os lords que se tornaram chefes de grupos no oeste, tais como Hamilton, Seyton, Fleming e muitos outros, mas até mesmo os simples desejos que se esboçarem. É exato que minha ilustre irmã, refletindo sobre as desgraças que atraiu para este reino com os maus conselheiros que outrora abusaram da sua excessiva bondade, decidiu não tomar, de futuro nenhuma parte nos negócios do Estado. Mas é nosso dever, agindo em nome do rei, nosso jovem sobrinho, enchermo-nos de cautelas contra os perigos que poderiam advir de qualquer mudança, ou de qualquer hesitação. Você terá portanto que vigiar com cuidado tudo quanto em nossa irmã puder prenunciar a mínima disposição em abandonar o sítio seguro onde se encontra agora, ou em manter contacto com o que está de fora. Serve-me fielmente e, tão verdade quanto o fato de ser eu regente do reino, grande será a tua recompensa.
Roland dirigiu um respeitoso cumprimento e já se dispunha a partir, quando o regente lhe fêz sinal para permanecer.
- Dou-te grande prova de confiança, rapaz, pois entre todas as pessoas que compõem o séquito de minha irmã, tu és o único que eu pessoalmente escolhi. As mulheres que a servem foram todas nomeadas por ela. És jovem e bem apessoado: conquista-lhe o crédito e observa se sob a aparente leviandade do seu sexo elas não ocultam desígnios mais
profundos. No mais, comporta-te com respeito e dignidade perante tua senhora. Se bem que desgraçada, é uma princesa; e já foi rainha, embora não o seja mais. Assim ela tem direito à tua absoluta deferência; presta-lhe todas as honras compatíveis com a fidelidade que deves a mim e ao rei. Agora, adeus. Um instante! Vais viajar com lord Lindsay, um homem do mundo antigo, áspero honesto, embora sem grande educação. Tem cuidado para não o ofender. Eu preferiria que a missão de lord Lindsay tivesse sido confiada a outro senhor, de temperamento mais brando e mais flexível.
- Mas por que isso, milord? - perguntou o conde de Morton, que chegou nesse momento -. Já tivemos provas excessivas da obstinação dessa senhora, e o carvalho que resiste ao gume afiado do aço deve ser derrubado com o machado de ferro bruto. Este é o tal pajem? Não se esqueça, rapaz, de que vai para o castelo de um Douglas; a traição não pode desenvolver-se lá. O primeiro momento em que der margem a uma suspeita, será o derradeiro de sua vida. Quanto ao senhor milord, rogo-lhe que preste bem atenção: não ignora a minha opinião sobre a moça que permitiu Mary Stuart tomar ao seu serviço; ela vem de uma família que, mais do que qualquer outra, sempre foi nossa inimiga. Se não tivéssemos tomado cautela, ela também teria arranjado um pajem que lhe conviesse identicamente. Ouvi dizer que uma velha católica fanática tentava encontrar para ela um súdito conveniente.
- Morton, pelo menos escapamos desse perigo, e até teremos, segundo parece, certas vantagens em colocar em casa dela um rapaz educado por Glendinning, - respondeu o regente.
Dirigindo-se depois a Roland Graeme, ordenou-lhe que montasse imediatamente a cavalo, pois lord Lindsay já estava de muito preparado. O pajem cumprimentou e saiu do aposento.
Guiado por Miguel "Pé de Vento", que o esperava ao pé da escada, Roland encontrou seu cavalo já arreado no pátio do palácio, onde se achavam reunidos cerca de vinte cavaleiros, cujo chefe se mostrava impaciente.
- Este macaco é o pajem por quem esperamos tanto tempo? - indagou êle mal humorado a "Pé de Vento" -. Lord Ruthven chegará ao castelo muito antes de nós.
Dirigindo-se a um homem de meia idade e de aspecto respeitável, ordenou:
- Sir Robert, montemos depressa, pois não há tempo a perder.
Entrementes, enquanto atravessavam os arrabaldes, Roland teve oportunidade de analisar o aspecto e os traços do barão que chefiava a cavalgada.
Acumulando-se sobre a cabeça de lord Lindsey de Byres, os anos não haviam deixado sulcos muito profundos de sua passagem. Sua elevada estatura e seus membros robustos provavam que êle ainda era capaz de suportar as fadigas da guerra. Enquanto caminhavam Roland teria dado tudo para saber algo sobre o objetivo da missão de lord Lindsay, pois era evidente que êle tinha uma: infelizmente a aparência do indivíduo perto de quem se encontrava não convidava a familiaridades. A tropa inteira parecia dominada pelo mesmo laconismo, e marchava mais como um grupo de monges do que propriamente como um destacamento de soldados. Esse silêncio, aparentemente tão extraordinário, permitia-lhe apelar para o pouco de sensatez que possuía, a fim de pensar sobre a sua situação.
Era evidente que, em conseqüência de circunstâncias alheias à própria vontade, havia entabulado ligações contraditórias com as duas facções inimigas, cujo ódio recíproco estraçalhava o reino, sem que, a bem dizer, estivesse claramente ligado a uma ou a outra. Isto era um fato que poderia dentro em breve levado a uma situação embaraçosa para a sua honra e arriscada para a sua vida.
"Mas vou ver, pensava então na bela e desventurada Mary Stuart, sobre quem tanto ouvi falar, e depois me caberá decidir o partido a tomar: o do rei ou o da rainha. Nem um nem outro pode afirmar que eu empenhei a minha palavra, pois ambos me fizeram andar às cegas, sem me dar o menor esclarecimento sobre aquilo que pretendiam exigir de mim. Felizmente Morton mostrou a cara amassada hoje de manhã no gabinete do regente, porque, do contrário, este não me deixaria partir sem me fazer prometer acordo tácito com suas vontades todas. Afinal de contas não me parece um jogo franco para com a pobre rainha colocar ao seu lado um pajem espião.
Pensando em tudo isto, Roland seguia lord Lindsay. Nenhuma ocorrência alterou a viagem, que terminou às margens do Lochleven, cujo belo lençol de água refletia os raios ardentes do sol de estio.
O velho castelo, que se erguia sobre uma ilha situada quase no meio do lago, recordava ao pajem o castelo de Avenel, onde fora educado. Este lago, porém, era muito maior e cheio de muitas outras ilhas além daquela onde se alçava a fortaleza.
Roland contemplava o castelo-fortaleza, que constava apenas de uma vasta construção semelhante a uma prisão de estado, cercada de um pátio e flanqueada em seus ângulos de duas torres arredondadas, com algumas construções externas de pouca importância. Um bosquezinho de velhas árvores que surgia próximo ao castelo era a única nota que amenizava o sombrio aspecto do local.
Assim que a tropa se formou à beira da água, desfraldou-se o estandarte de lord Lindsay, a agitar-se de um lado para outro, enquanto ele próprio fazia soar a sua trombeta de caça. Responderam do castelo içando uma flâmula, enquanto dois homens punham a flutuar a embarcação que se achava na margem oposta.
- Decorrerá algum tempo até que a barca chegue até nós -, falou sir Robert - : não seria melhor se entrássemos em alguma casa da aldeia a fim de nos arranjarmos um pouco antes de nos apresentarmos no castelo?
- Faça como quiser, sir Robert - respondeu Lindsay -. Quanto a mim, não tenho tempo nem vontade para pensar em tais puerilidades. Essa mulher já me tem feito montar a cavalo mais de uma vez para que a visão de um gibão usado de uma armadura enferrujada possa ferir-lhe os olhos. Foi ela quem levou a Escócia a usar tal libré.
- Para que falar com tamanha aspereza? - perguntou sir Robert; se ela teve faltas, pagou-as muito caro e, ao despojá-la de sua autoridade, não é justo recusar-lhe as aparentes homenagens que são devidas a uma mulher e a uma princesa.
- Torno a dizer, sir Robert, que faça o que.quiser: enquanto a mim já estou muito velho para pensar em me embelezar com o intuito de ser agradável às damas em seu toucador.
Dizendo estas palavras, lord Lindsay pulou do cavalo, envolveu-se em sua capa e, enquanto esperava a chegada da embarcação, que vinha fendendo as águas do lago, estendeu-se na relva. Depois de se haver também apeado, sir Robert Melville pôs-se a passear de um lado para outro perto da margem, com os braços cruzados ao peito e os olhos freqüentemente voltados para o castelo, tendo no rosto um misto de inquietação e desgosto.
Mal a embarcação se aproximou, lord Lindsay ergueu-se indagando daquele que parecia ser o chefe da tripulação o motivo pelo qual não havia trazido um barco bastante grande para conter todos os homens da sua comitiva.
- Nossa ama - respondeu o barqueiro - ordenou-nos que não levássemos ao castelo mais de quatro pessoas.
- Tua senhora é bem cautelosa - retrucou lord Lindsay. - Far-nos-á ela a afronta de pensar em traição? Vai imediatamente buscar um barco maior e, para não perder a viagem, leva logo contigo este pajem.
A porta do castelo de Lochleven encontrava-se uma senhora de porte majestoso: era lady Lochleven, cujos encantos da primeira juventude haviam subjugado Jacques V. Descendia de nobre família e tinha por filho o célebre conde de Murray, que se tornara regente do reino.
De permeio com os vestígios de uma grande beleza, seus traços denotavam melancolia e mau humor. O que mais contribuía ainda para aumentar essa disposição habitual eram os sentimentos religiosos de excessiva rigidez que ela havia adotado, na suposição de que não existiria salvação possível para quem quer que tivesse princípios de fé diferentes dos seus.
Sob todos os aspectos a desventurada rainha da Escócia que estava então hospedada, ou melhor, que se achava presa em casa de lady Lochleven, era detestada por esta. Mulher vingativa, lady Lochleven odiava nela a filha de Mary de Guise, de Mary que havia desfrutado sobre o coração e o reino de Jacques V os direitos legítimos dos quais se considerava injustamente privada; e sobretudo odiava a criatura cuja religião, mais do que o próprio paganismo, ela detestava.
Tal era a mulher que, não obstante a dureza dos traços, mostrava-se ainda bela sob a coifa de veludo colocada com arte, e que correu a indagar do barqueiro quando este desembarcou, o que havia acontecido com lord Lindsay e sir Robert Melville. O homem relatou-lhe o acontecido.
- Volta sem demora, pede desculpas e diz que lord Ruthven já se encontra no castelo, impaciente por se avistar com lord Lindsay. Espera um momento, Randal. Quem é o malandro que trazes aí? - É o pajem, milady.
- Ah! o novo favorito - murmurou lady Lochleven -. A acompanhante já chegou ontem. Quanto a você, - disse ela a Roland - venha comigo ao jardim.
Enquanto dizia essas palavras, seguia na dianteira, em passo lento e solene levando Roland a um jardinzinho cercado de um muro ornado de estátuas.
Formava um gramado que se estendia sobre um dos lados do pátio, com o qual se comunicava por uma porta baixa e abobadada. Foi nesse círculo limitado que Mary Stuart se iniciou no papel de prisioneira que estava destinada a desempenhar durante o resto de sua vida, salvo um fugaz intervalo. Duas acompanhantes a seguiam no seu melancólico passeio; o primeiro olhar de Roland, porém, foi exclusivamente consagrado à mulher de nascimento tão ilustre, celebrizada pelas suas desventuras. Assim, além da presença da rainha da Escócia mal se apercebeu da presença de outras pessoas no jardim.
Quem pode deixar, ao ouvir o nome de Mary Stuart, de ter o seu retrato diante dos olhos? Sua fronte ampla e nobre - suas sobrancelhas gráceis às quais talvez se pudesse censurar a regularidade excessiva, não fora o encanto dos olhos que pareciam dizer tanta coisa, aquela boca perfeita, que parecia só poder articular palavras suaves, a covinha do queixo, o pescoço alvo e gracioso como o de um cisne, finalmente aquele conjunto de traços que em nenhuma outra princesa podia ser achado.
É sabido que mesmo aqueles que nos últimos anos da vida de Mary haviam formado a mais desfavorável das opiniões sobre o seu caráter, nutriam sentimentos análogos aos do carrasco encarregado de a decapitar que, forçado a cumprir seu pavoroso dever, quis antes oscular a mão daquela sobre quem teria de executar sua horrível obrigação.
Vestida de luto, foi com amabilidade que Mary Stuart se dirigiu a lady Lochleven. Esta, por sua vez, fazia por ocultar seu ódio e seu embaraço sob o manto de uma indiferença respeitosa.
- Lamento ter que importunar Vossa Graça, com minha presença -disse lady Lochleven -. Vim apenas para anunciar um novo membro do seu séquito - acrescentou ela mostrando Roland, circunstância essa a que as mulheres raramente se mostram indiferentes.
- De fato, milady, sinto-me reconhecida por todas as bondades dos meus nobres ou, se assim o quiserem, dos meus soberanos. O fato de permitirem àquela que é ainda a rainha deste reino um séquito composto de duas criadas de quarto e de um pajem, é favor que Mary Stuart jamais poderá agradecer bastante. Pois então disporei de um séquito semelhante ao das esposas dos gentis-homens camponeses! Só me falta para isso um arauto e dois lacaios de libré azul.
Abandonando o tom de ironia inicialmente empregado, Mary adotou um de grave autoridade, enquanto erguia a cabeça com majestosa altivez:
- Milady, eu sei que Ruthven já se acha aqui no castelo e que Lindsay, do outro lado do lago aguarda a volta da embarcação para vir também com sir Robert Melville. Com que desígnio vêm aqui? Por que não fui prevenida, como seria cabível, de tal chegada?
- Êles lhe dirão pessoalmente, minha senhora, uma coisa aliás inútil de lhe ser anunciada formalmente, uma vez que Vossa Graça tem entre os membros do seu séquito alguém que desempenha tão bem o papel de espião.
- Ah! minha pobre Fleming, - exclamou a rainha voltando-se para a mais idosa das mulheres que a acompanhavam - tu vais ser acusada, julgada e condenada como uma espiã em campo inimigo unicamente porque atravessaste por acaso o salão na ocasião em que nossa bondosa anfitriã falava, tão alto quanto lhe permitia a sua voz, com o seu almirante Randal.
Voltando-se para lady Lochleven disse-lhe então:
- Dispensamo-lo de formar cortejo. Vamos prepararmos para uma entrevista com grandes e poderosos senhores. Teremos como sala de audiência a antecâmara do nosso quarto de dormir. Quanto a você, rapaz, - disse ela a Roland - já que representa todos os oficiais de nossa coroa, acompanhe-nos a fim de preparar nossa corte.
Com essas palavras afastou-se, retomando o caminho do castelo.
- Todos os oficiais da tua coroa - repetiu lady Lochleven -. Aprouvesse aos céus que nunca tivesse tido outros!
Dando então com os olhos em Roland, que vinha atrás dela, exclamou:
- Já estás à escuta, pequeno atrevido? Acompanha a tua senhora e repete-lhe, se assim o quiseres, o que acabaste de ouvir.
Roland Graeme apressou-se em se juntar a rainha e às damas de sua comitiva, que acabavam de entrar por uma portinha que comunicava o castelo com o jardim. Subiram até o segundo andar onde se encontrava o apartamento da princesa cativa, que se compunha de três peças consecutivas: a primeira, uma espécie de antecâmara, a segunda um amplo salão e a terceira o quarto de dormir da rainha. Noutra peça menor, que dava para o salão, ficavam as camas das duas damas de honor.
Gritos que vinham da parte interna do apartamento atraíram a atenção do pajem, que se esforçava para entrar e ver se podia ser útil em alguma coisa. Sentada num grande sofá, em tremores e convulsões a rainha mal podia respirar. A mais idosa das damas a sustinha nos braços, enquanto a mais nova lhe banhava o rosto com água fresca.
Fazendo um esforço sobre si mesma, Mary exclamou em voz quase extinta:
- Não quero que ninguém veja... sinto-me melhor...Fazendo nova tentativa, se bem que estivesse ainda com as feições alteradas pela emoção, sentou-se no sofá e se esforçou por recuperar as forças:
- Estou envergonhada de minha debilidade - disse ela -. Mas agora tudo já passou e eu continuo a ser Mary Stuart. O tom selvagem daquele homem... Tudo quanto eu conheço da sua insolência... O nome que êle pronunciou... O motivo que o trouxe aqui... Tudo pode servir-me de escusa para um momento de fraqueza.
Tirou a touca que lhe cobria a cabeça, que na sua agitação havia desarranjado, correu os lindos dedos pelos belos cachos dos seus cabelos negros e erguendo-se então, disse sorrindo através das lágrimas:
- Estamos mal preparadas para manter uma entrevista com nossos súditos rebeldes; mas enquanto agüentarmos, procuraremos apresentar-nos ante seus olhos como uma rainha.
Roland nunca vira nada mais adorável, mais majestoso e mais interessante do que Mary. Ficou imóvel, de olhos fixos nela, abrasando-se interiormente no desejo de arriscar sua vida por tão bela causa. Mary não ignorava os sedutores atrativos que possuía: estava sempre pronta a se dar conta das vantagens que seus encantos lhe proporcionavam, e sabia como se aproveitar disso. Lançou sobre Roland um olhar capaz de enternecer um coração de pedra.
- Meu pobre rapaz, - disse ela - tiraram-lhe a liberdade, condição que na sua idade é tão apreciável, para o fazer partilhar do nosso triste cativeiro. Sinto-o por você; mas como lhe dizia eu ainda há pouco, você é o único oficial de minha coroa. Obedecerá às minhas ordens?
- Até a morte, minha senhora -- respondeu Roland com impetuosidade.
- Então guarda a porta do meu apartamento; guarda-a até que eu esteja disposta a receber a visita importuna, ou até que a forcem para entrar aqui.
- Só entrarão passando sobre o meu cadáver - exclamou Roland, que, embora estivesse ainda um tanto indeciso, há bem pouco tempo sentia a sua hesitação anterior desvanecer-se em face do momentâneo impulso.
- Não - disse a rainha -. Não é isto que eu estou mandando. Só resista o tempo necessário para os cobrir de vergonha por usarem de violência contra uma mulher indefesa; depois disso dê-lhes passagem.
E juntando um sorriso a essas palavras, seguida das duas mulheres do seu séquito, entrou no quarto de dormir.
A mais nova, que seguia por último, voltando para Roland fêz-lhe um gesto com a mão. Embora já houvesse reconhecido nela Catherine Seyton, tal circunstância não causara grandes surpresas ao rapaz que, dotado de viva inteligência, não conseguira esquecer as palavras misteriosas das duas matronas no convento de Santa Catherine de Siena, palavras que com a presença de Catherine naquele lugar pareciam tornar-se tão claras.
"O sinal que ela me fêz parecia indicar uma ordem", pensava êle: "talvez quisesse recomendar-me obediência às que acabo de receber da rainha. Quero crer que o conde de Murray seja o primeiro a admitir que um pajem tem por dever impedir á entrada nos aposentos de sua senhora, contra a vontade desta.
Assim refletindo, correu o ferrolho da porta que dava para a escada. Alguns instantes depois ouviu que subiam; tentaram girar a maçaneta, mas como encontrassem resistência, puseram-se a sacudir a porta violentamente. Uma voz áspera bradou:
- Abram a porta! Abram-na sem delongas!
- E com que direito, - perguntou Roland - ordenam-me que abra a porta da rainha da Escócia?
- Abra a porta! - gritaram pela segunda vez -. Lord Lindsay está aqui para falar com lady Mary da Escócia.
- Lord Lindsay, como nobre escocês que é, - respondeu o rapaz, deve ficar à disposição de sua Soberana.
Seguiu-se uma grave altercação entre os que esperavam à porta.
Depois uma voz acrescentou:
- Avise à rainha que seu fiel servidor, Robert Melville, roga, no seu próprio interesse que ela mande abrir a porta a lord Lindsay, encarregado de uma missão do Conselho do Estado.
- Levarei sua mensagem à rainha, - respondeu o pajem - e lhe trarei a resposta.
Encaminhou-se então para o quarto, batendo de leve na porta. A mais velha das senhoras abriu imediatamente. Roland relatou-lhe tudo quanto acabava de ocorrer; ela foi consultar a rainha e voltou com uma ordem para deixar entrar sir Robert Melville e lord Lindsay. O pajem tornou à antecâmara e abriu a porta. Enquanto Lindsay se apresentava com o ar de um soldado que investe pela brecha de uma fortaleza por ele conquistada, Melville o seguia a passos lentos, com aspecto tristonho e abatido.
- Bem! Por que ela não aparece? - indagou Lindsay no meio da peça que servia de salão -. Por que se faz esperar? Zomba por acaso de nós?
- Miiord, paciência, não há pressa; lord Ruthven não chegou ainda.
Nesse momento abriu-se a poria do quarto e a rainha surgiu. Caminhava com aquele ar gracioso e cheio de majestade que lhe era peculiar, sem parecer abalada com a visita nem com os laivos de insolência que a tinham precedido. Trajava um vestido de veludo negro guarnecido de rendas, e trazia na cabeça uma touquinha também de renda, com um grande véu pregueado que lhe pendia sobre as espáduas.
- Lord Lindsay, lamento tê-lo feito esperar - disse a rainha, respondendo com uma reverência majestosa ao cumprimento que lhe havia sido dirigido a contra gosto.
Correndo os olhos pela armadura enferrujada e pelo gibão esburacado e sujo, lord Lindsay murmurou algumas palavras sobre uma viagem feita às pressas, enquanto a rainha com polidez benevolente saudava sir Robert Melville. Houve um certo silêncio. Lindsay voltava-se inúmeras vezes para a porta, aguardando com impaciência o terceiro membro da embaixada.
Felizmente lord Ruthven entrou no mesmo instante, trazendo alguns papéis na mão. Enquanto lhe retribuía o cumprimento o rosto da rainha cobriu-se de mortal palidez; graças porém, a uma resolução súbita e forte no momento em que George Douglas que vinha depois do barão entrou na sala, ela conseguiu dominar-se, estendendo a mão ao rapaz, que a beijou respeitosamente.
Esta foi a primeira homenagem que Roland viu ser prestada à rainha cativa por um dos seus súditos. George Douglas era filho caçula do senhor de Lochleven e, na ausência do seu pai e irmãos, desempenhava as funções de senescal do castelo, sob a direção da senhora de Lochleven.
A uma ordem de Douglas, o intendente de castelo trouxe uma grande mesa, sobre a qual colocou todos os apetrechos necessários para escrever. Obedecendo a um sinal de sua senhora, Roland aproximou dela um sofá. De uma certa maneira a mesa estabelecia uma espécie de separação entre ela e aqueles que lhe vinham fazer tão importuna e desagradável visita. O intendente retirou-se; assim que fechou a porta a rainha sentou-se e, apoiando a cabeça em uma das lindas mãos, lançou a cada um dos nobres senhores que ali se achavam um olhar penetrante. Mary Fleming levou o lenço aos olhos enquanto Catherine Seyton e Roland Graeme trocavam um olhar de compreensão que claramente denotava o excessivo interesse que sentiam por sua senhora e o quão profundamente comovidos se achavam pela sua situação para poderem, no momento, dar guarida a um só pensamento referente às próprias pessoas.
- Espero, milords, a mensagem que vos foi confiada por aqueles que denominais Conselho secreto. Presumo que seja uma petição para me implorar clemência ou para me suplicar que ascenda ao trono a mim pertencente, sem tratar com excessivo rigor aqueles que ilegalmente me despojaram dele.
- Senhora, - respondeu 1 Ruthven - é-nos penoso ter que dizer verdades duras a uma princesa que durante tanto tempo reinou sobre nós. Não viemos pedir perdão: pelo contrário, estamos encarregados de oferecê-lo. Viemos propor-lhe, senhora, que assine essas renúncias, coisa que muito contribuirá para restabelecer a calma no Estado e assegurar-lhe um resto de vida tranqüilo.
- Devo então, milord, assinar em confiança esses documentos que produzirão efeito tão maravilhoso, ou poderei ler primeiramente o conteúdo?
- Sem a menor dúvida, minha senhora: desejamos que tenha conhecimento daquilo que pretendemos impor à sua assinatura.
- Imposição! - repetiu a rainha -. Mas não importa. As palavras correspondem bem às ações. Leia, milord.
Lord Ruthven pôs-se a ler uma lauda redigida em nome da rainha, a quem faziam dizer que fora chamada, desde a mais tenra idade, ao Governo do reino e à coroa da Escócia; depois de ter dispensado todo o seu cuidado à dita administração, experimentara tantas fadigas e tantos desgostos que já não tinha mais o espírito bastante livre nem forças físicas suficientes para suportar o peso dos negócios de Estado; por isso, havendo a divina bondade se dignado conceder-lhe um filho, ela desejava, mesmo em vida, cedo trazer uma coroa que a êle pertencia por direito de nascimento.
- Isto é tudo quanto meus fiéis súditos querem de mim? - perguntou Mary Stuart em tom de amarga ironia aos lords reunidos -. Ficarão realmente satisfeitos com a simples exigência de uma abdicação em pról de um menino de um ano apenas, da coroa que a mim pertence por direito de nascimento? Ficarão satisfeitos ao ver-me abandonar o cetro para empunhar uma roca?
- O outro documento - prosseguiu Ruthven desdobrando-o com a mesma inflexível gravidade - é um ato pelo qual Vossa Graça nomeia Jacques, conde de Murray seu parente mais próximo e também o mais digno da confiança de todos os seus súditos, regente do reino durante a menoridade do jovem rei. - Aliás êle já vem exercendo tais funções por ordem do conselho secreto.
A rainha não conseguiu reter uma espécie de gemido, e bradou juntando as mãos:
- Esta flecha então foi lançada pelo braço do meu irmão? Ai de mim! Eu que olhava o seu regresso da França como a minha derradeira esperança!
A rainha cobriu o rosto com as duas mãos e pôs-se a chorar tão amargamente que, não obstante todo o esforço que fazia para contê-las, ou pelo menos para ocultá-las viam-se as lágrimas a escorrer-lhe por entre os dedos frágeis.
- Fleming, meu lenço; envergonho-me de me ter deixado comover a tal ponto por traidores. Dizei-me, milords, - acrescentou ela enxugando as lágrimas - dizei-me com que direito os súditos pretendem ditar ordens à sua soberana legítima sacudindo o jugo da obediência que lhe juraram, retirando a coroa de uma fronte sobre a qual a vontade divina a colocou?
- Responder-lhe-ei francamente, minha senhora - exclamou lord Ruthven -. Desde a funesta batalha de Pinkie, quando Vossa Graça estava ainda no berço, até o dia de hoje, em que a temos diante dos olhos no vigor da idade, seu reino só tem sofrido uma sucessão de trágicos reveses, desastres e guerras estrangeiras, horrores sem exemplos no resto da nossa história, e cuja procura seria vã -. Como que dentro de um tácito acordo, ingleses e franceses fizeram da Escócia um campo de batalha, para nele resolverem suas velhas disputas. Como não mais podemos tolerar essa espécie de coisas, é que lhe rogamos confiar a outras mãos o governo do país, unicamente a fim de conseguir poupar os desventurados restos do reino estraçalhado.
- Milord, - retrucou Mary - parece-me que sobrecarrega a fronte de sua vítima infeliz com a responsabilidade de males que, com muito maior justiça, poderiam ser atribuídos ao seu próprio temperamento turbulento, áspero e indomável. A fim de manter a paz e reprimir a opressão não fui por acaso obrigada a montar a cavalo e a pegar em armas para dar aos meus soldados um exemplo de firmeza e coragem, esquecendo-me das atribuições suaves de uma mulher e da dignidade de uma rainha?
- Estamos perdendo tempo -- exclamou lord Ruthven -. Suplico-lhe que me participe sua resolução acerca do importante assunto que lhe submeti.
- Mas como, milord? Agora em seguida, sem que me seja dado um momento para refletir? O conselho, como o senhor diz, pode exigir coisa semelhante?
- Minha senhora, o conselho pensa que depois do fatal prazo decorrido entre a noite do assassinato do rei Henry e o dia de Carberry Hill, Vossa Graça já se deve ter preparado para aceitar a medida que lhe é apresentada, como um meio mais fácil de escapar às dificuldades que a cercam.
- Arrebatais a minha coroa, o meu poder, meus súditos e meus estados. Por todos os santos, o que me podeis oferecer, o que me ofereceis como compensação a tamanha perda?
- O perdão redarguiu Ruthven em tom firme -: tempo e meios de passar o resto da vida em penitência e retiro, abraçando a religião reformada.
A rainha empalideceu diante da ameaça de tais palavras.
- E o que me acontecerá, milord, se eu não me prestar a um pedido formulado em termos tão absolutos?
- É vã a pergunta. Vossa.Graça conhece bastante as leis do país para saber que há crimes capazes de levarem ao castigo de morte até mesmo as próprias rainhas.
- E sobre que fatos, milord, baseia o senhor uma tão terrível acusação contra aquela que tem diante dos olhos? As infames e odiosas calúnias que tiveram a precaução de espalhar com o fito de envenenar o espírito público, certamente não constituem provas de crime.
- Não precisamos de outra prova além do vergonhoso casamento da viúva do assassinado com o chefe dos assassinos.
- Milord! milord! - exclamou a rainha violentamente -- lembre-se que outros consentimentos além do meu consagraram tão funesta união, esse ato desgraçado entre os mais desgraçados dos reinos! Nunca ouviu falar, milord, de um documento assinado pelos nobres, recomendando a Mary uma união formada sob os mais funestos auspícios? Se examinassem cuidadosamente tal documento, suponho que nele encontrariam os nomes de Morton, Lindsay, e até mesmo o seu, Ruthven, entre os dos indivíduos enganadores ou enganados, que me forçaram ao empreendimento fatal.
- Senhora, - interrompeu Ruthven queremos apenas saber se, uma vez que nós lhe asseguremos a vida e a honra, chegará a consentir em abdicar a coroa da Escócia.
- E que garantia teria eu de que executaríeis o vosso convênio comigo se eu trocasse o meu direito à coroa pela liberdade de chorar em silêncio no meu retiro?
- Nossa honra e nossa palavra, minha senhora.
- Essa garantia, milord, parece-me um pouco fraca.
- Vamos embora, Ruthven, vamo-nos, daqui - exclamou Lindsay-Deixemo-la entregue à sua obstinação, para que sofra todas as conseqüências.
- Esperem, milords, - exclamou sir Robert Melville - ou por outra, consintam que eu palestre alguns minutos em particular com Sua Graça. Suplico-lhes que não interrompam a conferência e não abandonem o castelo até que eu possa transmitir-lhes a resolução definitiva de Sua Graça.
- Esperaremos meia hora - disse Lindsay -. Se esse prazo escoar-se antes que ela se decida a aceder aos desejos da Nação, seus dias estão contados.
E dizendo isso, ambos se afastaram da rainha.
Mal eles partiram, entregando-se novamente ao seu receio e à sua mágoa, a rainha deixou-se cair no sofá. As duas mulheres rogavam-lhe que se acalmasse enquanto sir Robert Melville, ajoelhado aos seus pés, lhe fazia o mesmo pedido.
- Minha senhora, - exclamou êle - tomo o céu como testemunha de que meu coração continua a ser-lhe tão devotado e tão fiel como o era quando Vossa Graça desfrutava o seu poderio.
- Devotado! Fiel! - murmurou a rainha em tom de censura -. Ora essa, Melville. O que significam uma fidelidade e um devotamento que se põem de acordo com meus cruéis inimigos? Oh, Seyton! Onde está seu nobre pai? Onde está o prudente, o fiel e valoroso lord Seyton?
Roland não pôde resistir por mais tempo ao desejo que tinha de oferecer seus préstimos a uma princesa tão desventurada e tão bela.
- Minha senhora, - bradou êle - se uma espada pode fazer alguma coisa para apoiar a prudência do nobre conselheiro ou para defender seus legítimos direitos, eis aqui uma à disposição e eis aqui um braço pronto a empunhá-la. E no mesmo instante levou a mão ao punho da espada que lhe fora entregue no albergue de São Miguel.
- O que vejo? - exclamou Catherine subitamente -. Será que estou enganada? Não é a espada do meu pai? - E correndo para Roland levantou-lhe a aba do gibão, perguntando-lhe como havia obtido tal arma.
Roland respondeu-lhe com surpresa:
- Parece-me que este momento não comporta brincadeiras, miss Seyton. Deve saber, melhor do que ninguém, quando e como esta espada me foi entregue.
- Não compreendo, não, - retrucou Catherine -; tire agora mesmo a espada da bainha.
- Se Sua Majestade assim mo ordenar - respondeu o pajem, lançando os olhos sobre Mary Stuart.
- Em que está pensando, Seyton - indagou a rainha -. Estará querendo lançar o pobre rapaz numa briga inútil com os dois guerreiros mais famosos de toda a Escócia?
- Não temo ninguém, - gritou o rapaz - quando em defesa da causa de Vossa Majestade -. No mesmo instante tirou a espada da bainha, enquanto um pergaminho que envolvia a lâmina caía ao chão.
Catherine apanhou-o sem demora.
- É uma carta de meu pai, - exclamou ela - e destina-se a Vossa Majestade. - Sabia que ela deveria ser enviada deste modo, muito embora a esperasse por um outro mensageiro.
"Por minha fé, conjecturava Roland, se você ignorava que seria eu o portador da missiva secreta pelo meu lado eu o ignorava mais ainda".
Entrementes a rainha, que começara a ler a mensagem, ficou durante alguns minutos, mergulhada em profundas reflexões.
- Sir Robert, - disse ela afinal - esta carta aconselha-me que ceda à "necessidade de assinar aquilo que esses audaciosos indivíduos me apresentam, como uma mulher que se submete em conseqüência do receio que naturalmente lhe inspiram os rebeldes assassinos. Não obstante, parece-me que simulando ceder assim os direitos que seu nascimento lhe conferiu, descendente de uma tão longa estirpe de soberanos não demonstraria a coragem digna dos seus ancestrais; essa fraqueza seria uma mancha na história de Mary Stuart. Aliás, sir Robert, apesar da insolência e das ameaças desses traidores, creio que eles não se atreveriam a tocar em sua rainha.
- Infelizmente, minha senhora, nossos olhos já têm testemunhado espetáculos horríveis e temos visto em nossos dias os crimes mais atrozes.
- Se a morte fosse coisa imediata e simples, - exclamou a desventurada princesa - se não acarretasse tão pavorosas angústias, nenhuma outra mulher na Escócia inteira a receberia de melhor grado que eu. É injustamente que me acusam de haver colaborado na morte de Darnley; não obstante, Virgem Santíssima, dei margem a tal suspeita casando-me com Bothwell!
- Não se deve preocupar agora com essas coisas, minha senhora: pense antes nos meios de salvar-se e de salvar seu filho. Aceda às solicitações que lhe são feitas, por mais descabidas que pareçam, e espere desfrutar dentro em breve uma época mais feliz. O tempo urge e não deve deixar partir as embarcações que eu estou vendo preparar. Tem inúmeros testemunhos da violência que empregaram para poder provar que cedeu à solicitação do conselho coagida e forçada, e não por sua livre e espontânea vontade. Ouço passos na escada; aí vêm eles para saber a sua última resolução. Ah! minha senhora! Siga o alvitre do nobre Seyton e talvez venha ainda um dia a comandar aqueles que hoje se sentem triunfantes cora a sua desgraça. Estão entrando na antecâmara.
Mal acabara de falar quando George Douglas abriu á porta do salão e introduziu os dois nobres escoceses.
- Voltamos, minha senhora, - disse Ruthven - para pedir uma resposta.
- Uma resposta que deve decidir seu destino, - acrescentou Lindsay - pois, preste bem atenção, uma recusa aceleraria a sua morte.
- Milords, - respondeu Mary Stuart cheia de encanto e de dignidade - é forçoso submeter-se aos males que se não podem evitar. Se eu estivesse na outra margem do lago com dez fiéis cavalheiros, mais facilmente assinaria a sentença da minha eterna condenação do que a renúncia à minha coroa. Mas aqui no castelo de Lochleven, cercada de água por todos os lados e tendo-vos, milords, diante dos olhos, não me cabe a liberdade de escolha. Assinarei portanto os documentos que me trouxeram.
A rainha assinou ambos com ar indiferente, como se se tratasse de negócios de pouca importância ou de mera formalidade. Quando terminou aquela tarefa muito mais árdua para ela do que parecia, ergueu-se e cumprimentou os três deputados do conselho.
Roland colocou-se perto da única janela que iluminava a antecâmara para os ver partir. Vê-los chegar à outra margem dava a impressão de que também a ocupação de lady Lochleven e de George Douglas que, parados sob a janela de Roland mantinham a seguinte palestra, que. nosso pajem ouvia distintamente.
- Sua altivez dobrou-se a ponto de renunciar ao reino para salvar a vida - dizia lady Lochleven.
- Salvar a vida? - repetiu Douglas -; eu não sei quem se atreveria a perpetrar um atentado contra ela no castelo do meu pai. Se eu pudesse de leve suspeitar que Lindsay trazia tal desígnio quando insistiu em vir para cá com seus homens, nem êle nem os homens teriam atravessado a porta do castelo de Lochleven.
Nessa altura a atenção de Roland desviou-se com uma pancada que lhe vibraram no ombro. Reconheceu imediatamente Catherine Seyton num traje bem diferente daquele que usava no Convento de Santa Catherine, mais de acordo com a filha de um dos primeiros barões do reino, dama de honra de uma princesa.
- Parece-me, meu lindo pajem, - disse ela - que saber escutar às portas é uma qualidade peculiar a você e aos seus colegas.
- Minha bela irmã, - retrucou Roland no mesmo tom - se alguns dos meus camaradas sabem os demais segredos da profissão como sabem praguejar atrevidamente e brandir a chibata, não têm a menor necessidade de consultar outro pajem para serem iniciados nos mistérios da nossa profissão.
- A menos que esta bela tirada pretenda demonstrar que você mesmo esteve submetido ao regime da chibata desde a nossa última entrevista, confesso-lhe que não sei o que pretende dizer. Agora, porém, não é o momento propício para explicações, porque já está na hora do jantar.
A moça afastou-se enquanto entravam quatro lacaios carregados de diferentes iguarias, precedidos pelo velho intendente que Roland já vira, e seguidos por George Douglas, que entrou na sala de braços cruzados ao peito e com os olhos baixos. Roland ajudou pôr a mesa no salão; quando esta ficou inteiramente pronta o intendente e Douglas inclinaram-se respeitosamente. Nesse momento abriu-se a porta do quarto de dormir: Douglas que havia erguido os olhos com vivacidade, abaixou-os sem demora, ao ver lady Mary Fleming aparecer sozinha.
- Sua Graça não comerá nada esta noite - disse ela ao entrar.
- Assim sendo, nossa presença é inútil - disse o senescal - por isso e vamos deixá-la jantar sozinha.
Retirou-se com os mesmos passos lentos e com o mesmo aspecto melancólico da chegada. Mal êle saiu, Catherine Seyton veio juntar-se a sua companheira, e ambas sentaram-se à mesa enquanto Roland se preparava para servir com eficiência. Catherine disse uma palavra ao ouvido de lady Fleming que, lançando um olhar sobre o pajem, perguntou à meia voz:
- Ele é de bom nascimento e tem boa educação?
A resposta que recebeu foi sem dúvida satisfatória, porque levantando os olhos para Roland, disse:
- Sente-se, rapaz, e partilhe a refeição de suas irmãs de cativeiro.
- Deve dar-se conta, belo pajem, - murmurou Catherine - que não lhe concederão para jantar mais tempo do que o estritamente necessário. Por isso sugiro que ande depressa.
- Você fala muito livremente, miss Seyton - observou lady Fleming -; a modéstia deste rapaz deve ensinar-lhe o modo de agir para com as pessoas a quem se vê pela primeira vez.
Catherine baixou os olhos sem responder, mas não antes de lançar sobre o pajem a quem sua companheira dirigia a palavra em tom tão protetor um olhar cheio de malícia.
- Desculpe-lhe a leviandade, rapaz, e sente-se num lugar qualquer. A viagem deve ter-lhe despertado o apetite. Roland obedeceu com prazer, pois ainda não comera nada desde a véspera.
Quando verificou que às senhoras haviam terminado, derramou um pouco d'água numa bacia de prata, colocou uma toalha debaixo do braço e se apresentou diante de lady Fleming, com a mesma gravidade que teria caso ela fosse a própria rainha da Escócia. Fêz a mesma coisa com Catherine Seyton; esta, porém, enquanto lavava as mãos como que acidentalmente, borrifou-lhe algumas gotículas de água pelo rosto. Não obstante tal atitude fracassou por completo o projeto que sua malícia lhe ditara: pretendendo saber guardar o conveniente decoro, Roland não se atreveu sequer a sorrir. Tudo quanto ela conseguiu com a sua travessura foi uma severa reprimenda de lady Fleming, só interrompida por um silvo de apito de prata que a rainha usava para chamá-la. Saiu imediatamente ao ouví-lo deixando os jovens sozinhos na sala.
- Posso perguntar, meu lindo pajem, - indagou Catherine aparentando um ar severo o que acha de estranho na minha cara a ponto de justificar os olhares misteriosos e cúmplices que lhe apraz conceder-me? Pelo modo com que me fita, dir-se-ia que existem entre nós laços secretos; entretanto, Nossa Senhora é testemunha de que até agora só nos vimos duas únicas vezes.
- E quais foram essas duas felizes ocasiões? - inquiriu Roland -. Seria muita ousadia perguntar-lhe?
- A primeira no convento de Santa Catherine, e a segunda por ocasião de uma visita que você julgou fazer à casa do meu honrado pai. É humilhante para mim que, em ocasiões como essas, a minha memória seja mais fiel do que a sua.
- No entanto, minha bela senhorita, a sua também não me parece das mais valiosas, uma vez que se esqueceu da nossa terceira entrevista no hotel de São Miguel.
- A menos que tenha o espírito perturbado, - concluiu Catherine fitando-o com um ar de extrema surpresa - não compreendo nada do que acaba de dizer.
- Como! Não foi você que eu vi ontem à noite em Edimburgo, no albergue de São Miguel? Não me entregou esta espada, fazendo-me prometer que só a tiraria da bainha por ordem de minha legítima soberana? Não cumpri a minha promessa? Já não sei mais o que supor.
Nessa altura, porém, viu-se interrompido pelo sino do castelo que anunciava a hora da prece; a porta da antecâmara abriu-se, dando entrada ao intendente de fisionomia severa, com sua corrente e seu bastão de ouro. No tom de um arauto que proclama alguma coisa, êle anunciou:
- Minha nobre senhora participa a lady Mary da Escócia e às pessoas de seu séquito, que um verdadeiro servidor do evangelho, seu reverendo capelão, vai pronunciar hoje à noite, como de costume, uma instrução, uma prece, uma exortação, segundo as formas da igreja evangélica cristã.
- Ouça-me bem, - murmurou Catherine -. Compreendo perfeitamente tudo quanto acaba de nos dizer, pois é uma fórmula que repete todas as noites; rogo-lhe, porém, que tenha em mente o fato de lady Fleming e eu havermos resolvido subir ao céu pelo caminho que São Pedro nos traçou. Assim sendo, não vejo aqui pessoa alguma a quem sua instrução, sua prece, sua exortação possa oferecer qualquer utilidade salvo esse pobre pajem que estando, como o senhor, no poder de Satã, andaria mais acertado se o acompanhasse do que permanecendo aqui para assistir aos ritos de uma devoção melhor compreendida.
O pajem estava prestes a desmentir formalmente tal asserção; lembrando-se, porém, do que havia ocorrido entre o regente e êle, e vendo Catherine erguer o dedo de tal maneira que julgou uma advertência para não a contradizer, viu-se forçado, exatamente como outrora no castelo de Avenel, a dissimular.
Portanto seguiu Dryfesdale até a capela do castelo, onde assistiu à prece da noite.
O capelão chamava-se Elie Henderson. Era um homem na flor da idade, dotado de qualidades naturais cuidadosamente cultivadas. Recebera a melhor educação que poderia ter sido dada a um rapaz daquele tempo; a tais dotes juntava um claro raciocínio, metódico e restrito, de quando em quando iluminado por natural eloqüência auxiliada de perto por uma feliz memória. Como já tivemos ocasião de observar, a crença de Roland não tinha uma sólida base e era resultado de uma passiva obediência às vontades da avó. Corava de não saber sequer em que consistia a diferença das opiniões que separava a igreja reformada da igreja romana. Ouviu por isso o sermão do pregador com o máximo da atenção que até então concedera a semelhantes assuntos.
Assim terminou o primeiro dia que Roland passou no castelo de Lochleven.
A vida a que tinham condenado Mary e seu pequeno séquito tanto tinha de monótona como de solitária; a alteração que sofria dependia unicamente do tempo, que permitia ou não à rainha dar o seu passeio pelo jardim ou pela plataforma da torre. Esta passava a maior parte do dia fazendo com suas damas trabalhos de agulha ou tapeçarias. O pajem então ficava livre para percorrer o castelo e a pequena ilha. George Douglas chegava a convidá-lo algumas vêzes para irem juntos caçar ou pescar, conservando sempre mesmo entre suas distrações, o rosto velado por profunda melancolia. Era tão sério que Roland nunca o vira sorrir.
Para Roland os momentos mais agradáveis do dia eram aquêles em que seus deveres o levavam para perto da rainha, e a hora do jantar, que sempre passava com lady Fleming e Catherine Seyton. Tinha freqüentemente a oportunidade de notar a vivacidade de espírito e a imaginação desta última, que nunca deixava de inventar novos meios para distrair sua senhora banindo assim, ao menos durante alguns instantes, a tristeza do seu coração. Dançava, cantava e contava histórias. Havia nela um misto de simplicidade aldeã e de estouvamento infantil, que pareciam mais cabíveis numa jovem camponesa do que em a nobre filha de um antigo barão: Uma espécie de afoiteza que não chegava a ser atrevimento e que se distanciava muito da grosseria, dava um ar picante a tudo quanto ela fazia.
Os momentos que Roland passava perto daquela feiticeira corriam tão rápidos que, embora fugazes, o indenizavam do tédio da outra parte do dia. Limitavam-se geralmente ao tempo das refeições, uma vez que nenhuma entrevista particular com Catherine lhe era permitida ou facilitada. Fosse por uma precaução especial para salvaguardar a honra da casa da rainha ou fosse porque assim interpretasse as conveniências e o decoro, o fato é que lady Fleming parecia ter um cuidado todo especial em evitar qualquer entrevista a sós entre os dois jovens. O que ela, porém, não podia impedir eram alguns encontros casuais; seria preciso para isso que Catherine tivesse maior cautela em os evitar e Roland menor entusiasmo em os procurar. Um sorriso, uma brincadeira, um sarcasmo despojado de sua severidade pelo olhar malicioso que o acompanhava, era tudo quanto podia obter naquelas ocasiões raras e furtivas; jamais nenhuma entrevista se prolongava o bastante para dar a Roland a ocasião de se fazer explicar o aparecimento do pajem de manto purpurino na hospedaria de São Miguel.
Os meses de inverno escoaram-se lentamente e a primavera já ia bem adiantada quando Roland observou uma mudança na conduta de suas companheiras de cativeiro, naquilo que lhe dizia respeito. Começou pouco a pouco a suspeitar, e acabou por se convencer totalmente, de que suas companheiras tinham algum projeto em mente sobre o qual não desejavam instruí-lo; tornou-se quase certo aos seus olhos que Mary, por algum meio que êle não podia compreender, mantinha uma correspondência além das muralhas e do lençol de água que a cercavam de todos os lados, na secreta esperança de ser libertada ou de fugir.
"Imaginam que eu sou cego, dizia Roland intimamente; julgam que não podem confiar em mim porque sou moço, ou talvez porque fui mandado para cá pelo regente. Está bem. Seja! Com o tempo elas talvez desejem servir-se de mim e a própria Catherine Seyton, com toda a sua malícia, talvez possa encontrar na minha pessoa um confidente tão seguro quanto o tristonho Douglas, perto de quem ela sempre se refugia. É possível que estejam zangadas porque eu acato as instruções de Elie Henderson. Mas não foi a própria Catherine quem me mandou lá? E se êle usa a linguagem do bom senso e da verdade, porque não pode ter tanta razão quanto o papa ou os concílios?
É provável que, ao formular esta última conjectura, Roland tivesse adivinhado a verdadeira causa que impedia as três prisioneiras de o adimitirem em seu conselho privativo .
- Inflamado de zelo como o apresentamos, Henderson havia aproveitado com entusiasmo a ocasião de ministrar a Roland instrução religiosa.
Não sabia absolutamente que tinha a ventura de trabalhar para a conversão de um papista, fato que teria ainda aumentado o seu fervor.
Durante algum tempo Roland julgou poder manter indefinidamente uma espécie de neutralidade entre os dois partidos que habitavam o castelo de Lochleven; mas, à medida que fazia progressos nas boas graças do capelão, via, com desgosto, que perdia terreno ao lado da ilustre prisioneira e de suas aliadas.
Chegou gradativamente a sentir-se olhado como um espião encarregado de repetir as palavras que ouvia e, em lugar de conversarem livremente diante dele, como o faziam antes, elas tinham a precaução de limitar suas palestras aos assuntos mais indiferentes, mantendo até neste sentido uma estudada reserva. Tão evidente falta de confiança fazia-se acompanhar de uma mudança proporcional na conduta que, sob todos os aspectos, mantinham com êle. A própria rainha, que outrora lhe havia dispensado uma bondade flagrante, mal lhe dirigia a palavra. Lady Fleming nunca lhe falava com outras expressões que não ásperas e friamente polidas. Até mesmo Catherine tornava seus sarcasmos mais amargos, evitava-lhe a presença e só lhe demonstrava mau humor. E o que mais ainda o contrariava era a impressão de que existia um entendimento entre ela e George Douglas; e assim atormentado pelo ciúme, convenceu-se de que um transmitia ao outro segredos importantes por meio de olhares significativos.
A situação de Roland acabou por tornar-se verdadeiramente intolerável, enquanto seu coração mui naturalmente se revoltava contra a injustiça do tratamento que lhe dispensavam, tratamento que o privava do único consolo que experimentava, submetido a um retiro tão desagradável sob os demais aspectos. "Não suportarei por muito tempo mais uma existência dessas, dizia ele intimamente. Porque duvido que a religião de minha senhora seja a melhor, devem concluir daí que eu esteja disposto a atraiçoá-la? Meu espírito não pode viver num eterno cativeiro, para ali ficar exposto à frieza e à desconfiança. Falarei amanhã com George Douglas quando formos pescar juntos".
Passou a noite inteira quase sem dormir, preocupado unicamente com a resolução. Levantou-se de manhã sem ter ainda tomado um partido decisivo sobre o que devia de fato fazer. Aconteceu que o vieram chamar por parte da rainha em hora completamente desusada, no momento preciso em que ia encontrar George Douglas. Mary Stuart achava-se no jardim e Roland dirigiu-se para lá a fim de receber suas ordens; mas como levava uma linha na mão e tal circunstância anunciava claramente o projeto que êle havia formado, voltando-se para lady Fleming a rainha disse:
- É forçoso, minha boa amiga," que Catherine encontre qualquer outra diversão porque, como você vê, nosso atencioso pajem já tomou todas as providências para a sua distração de hoje.
- Eu já havia dito, - respondeu lady Fleming - que Vossa Majestade não devia contar muito com a companhia de um rapaz que tem amigos huguenotes, e que pode encontrar meios de passar seu tempo muito mais agradavelmente do que nós.
- Eu gostaria bem - interrompeu Catherine rubra de despeito - que seus amigos o carregassem para longe e que assim nós pudéssemos ter em seu lugar outro pajem mais fiel à sua senhora e ao seu Deus.
- Parte do seu desejo pode realizar-se - respondeu Roland, sem conseguir disfarçar o mau humor que lhe causava o modo com que todos o tratavam.
- Por que permanece aí parado como se tivesse criado raizes no jardim? indagou Mary.
- Estou esperando as ordens de Vossa Majestade.
- Não tenho nenhuma a lhe dar. Retire-se.
Esta pequena cena decidiu Roland e o determinou a deixar o castelo, se assim fosse possível, informando George Douglas do que resolvera sem perda de tempo. Calado como de costume, George já estava sentado à popa da pequena embarcação que usavam para as pescarias. Roland lhe disse:
- Morro de tédio no castelo de Lochleven e por isso decidi abandoná-lo.
- Esta não é uma resolução fácil de tomar nem de realizar.
- Se lady Margareth e você consentirem, nada mais fácil.
- Engana-se, Roland; é ainda necessário o consentimento de mais duas pessoas; o consentimento de lady Mary, sua senhora, e o do meu tio regente, que o pôs aqui perto dela, e provavelmente não cogitará de substituir tão depressa assim as pessoas do seu séquito.
- Então é preciso que eu fique, quer queira quer não? - indagou o pajem meio desconcertado.
- É preciso que pelo menos você permaneça aqui até que meu tio consinta em sua partida. Falando-lhe francamente, Douglas, como a um indivíduo incapaz de me trair, confesso-lhe que se me julgasse realmente cativo neste castelo, não seriam seus muros nem o seu lago que me impediriam de sair.
- Falando-lhe francamente Roland, como a um indivíduo prestes a fazer uma tolice, sou forçado a dizer-lhe que se você tivesse a infelicidade de cair nas mãos de meu tio, de meu pai ou mesmo de um dos meus irmãos numa circunstância dessas, seria enforcado sem dó nem piedade, exatamente como uma sentinela que abandona seu posto; depois da pescaria voltaremos a este assunto.
A pesca foi feliz; mas nunca dois pescadores guardaram tão rigoroso silêncio.
A hora de voltar, Douglas disse ao pajem:
- Só tenho uma coisa a dizer-lhe; mas é um segredo tão profundo que não me posso decidir a deixá-lo sair dos meus lábios.
- Você tem razão, Douglas, se é que de fato duvida da honra da única pessoa que poderia ouví-lo.
- Não duvido da sua honra; você, porém, é jovem e de gênio inconstante.
- É exato que sou jovem; mas quem lhe disse que sou inconstante?
- Uma pessoa que talvez o conheça melhor do que você mesmo.
- Presumo que você se refira a Catherine Seyton - disse o pajem, cujo coração batia fortemente ao falar assim -; mas ela própria é cinqüenta vezes mais variável do que a água que sulcamos.
- Suplico-lhe, meu jovem amigo, que tenha em mente o fato de ser a miss Seyton uma moça de alta linhagem, sobre quem você não deve falar levianamente.
- Se o seu segredo diz respeito a Catherine Seyton, pouco se me dá conhecê-lo; você mo poderá dizer, mas se assim o desejar, pois lhe afirmo que ela lhe fornecerá ainda, como aliás já o tem feito, mais de uma ocasião de falar com ela.
O rubor que invadiu o rosto de Douglas pôs Roland ao corrente de que havia acertado, e tal convicção foi uma punhalada que lhe transpassou o coração. Seu companheiro pôs-se a remar e chegaram ao ponto de desembarque sem terem pronunciado mais nenhuma palavra. Os criados vieram recolher o produto da pesca enquanto os dois pescadores, tomando cada um o caminho dos seus próprios aposentos, separaram-se em silêncio.
Ao tomar seu lugar atrás da cadeira da rainha, Roland o fêz com um ar de dignidade tão ofendida, que foi impossível a esta não reparar. Aquilo lhe parecia de tal modo ridículo que dirigiu às suas duas damas uma observação em francês, observação essa que fêz rir lady Fleming e aparentemente divertiu Catherine. A brincadeira, cujo teor o desventurado pajem não podia compreender, tomou a seus olhos a forma de um novo insulto e aumentou-lhe o aspecto de sombria gravidade, circunstância que poderia ter provocado qualquer outra zombaria se Mary Stuart, sempre bondosa e complacente, não se tivesse apiedado da sua situação.
Com aquele tacto que lhe era peculiar, procurou dissipar a nuvem escura que nublava a fronte de Roland falando-se sobre a beleza de uma truta que se achava sobre a mesa elogiando-lhe a cor e o paladar, e indagando se vinha da pescaria da manhã.
O mau humor de Roland não era de longa duração e jamais resistia a uma prova de benevolência: desaparecia logo, como a neve que se funde aos raios do sol.
Pouco depois a rainha se recolheu ao quarto seguida de lady Fleming, deixando sozinhos Roland e Catherine. Catherine resolveu-se a falar primeiro:
- É-me permitido meu belo senhor, perturbar suas importantes reflexões com uma simples pergunta? Pode-me dizer o que aconteceu com o seu rosário?
- Perdi-o - respondeu Roland embaraçado.
- E seria atrevimento meu indagar por que não o substituiu por outro?
Tenho até vontade de lhe oferecer um, pedindo-lhe que o conserve como lembrança da nossa antiga relação -. Dizendo isso, tirou da algibeira um terço de ouro e ébano.
Pronunciou tais palavras com um leve tremor na voz, e fêz desaparecer instantaneamente todo o ressentimento de Roland; o rapaz deixou o lugar que ocupava na outra extremidade do aposento, correndo para perto dela. Catherine bem cedo readquiriu o tom decidido que lhe era habitual.
- Não lhe pedi para vir sentar-se perto de mim - disse ela -; a relação a que aludi já está morta e enterrada há muitos dias.
- Queira Deus que não, linda Catherine - respondeu o pajem -: está apenas modorrando. E se você estiver disposta a permitir que desperte, creia que esta prova do ressurgimento de sua amizade...
- Não, não, - murmurou Catherine escondendo o rosário para o qual o rapaz estendia a mão enquanto falava -. Que necessidade pode ter um herege de um terço que foi bento pelo próprio Santo Padre?
Roland estava em brasas. Atinava claramente com o objetivo daquelas palavras e sabia que ia defrontar um grande embaraço.
- Não mo ofereceu como prova de amizade? - indagou êle.
- Muito bem; esta amizade, porém, era concedida ao católico fervoroso, àquele que juntamente comigo se havia dedicado à execução de um grande dever e ao serviço da Igreja, e não a este que se associa a hereges, já prestes a tornar-se um renegado.
- Eu nunca poderia imaginar miss Seyton, - exclamou Roland indignado - que o catavento de suas boas graças só pudesse girar com o vento do catolicismo, quando via o mesmo rodar na direção de George Douglas que, segundo suponho, pertence simultaneamente ao partido do rei e à igreja reformada.
- Livre-se de pensar - bradou Catherine, - que George Douglas... - Estacou ao pronunciar estas palavras, como se receasse ter falado demais -. Sabemos muito bem, entretanto - prosseguiu ela - que o altíssimo e poderosíssimo traidor Jacques, conde de Murray, nomeou-o pajem de dama por seus fiéis e leais serviços como espião e carcereiro de sua legítima soberana, a rainha Mary Stuart.
- Você está sendo injusta, Catherine, - exclamou Roland - muito injusta comigo. Deus sabe que eu arriscaria mil vezes, e mil vezes sacrificaria a minha vida por ela. Mas o que posso fazer? E que papel posso ter numa execução que jamais me foi comunicada? Soube, por acaso, a mínima coisa que se esperava da minha pessoa? A que me furtei? Pelo contrário, todos procuraram esconder de mim os seus desígnios, como se eu fosse o mais pérfido dos espiões!
- E quem poderia fiar-se no inseparável companheiro de Henderson, o herético pregador?
Você escolheu um excelente mestre para substituir o respeitável padre Ambrose que, banido de sua abadia por não se ter submetido à tirania de Morton, erra agora sem eira nem beira, se é que não se estiola num cubículo qualquer.
Nosso pajem sentia-se embaraçado e confuso com as censuras que lhe eram dirigidas por aquela criatura que desde o primeiro encontro seu coração não conseguira substituir por nada no mundo.
- Não sei o que esperam nem o que receiam de mim - disse ele -. Fui enviado para cá a fim de servir à rainha Mary. Cumprirei para com ela os meus deveres de servo fiel na vida e na morte. Se pretendiam que eu prestasse serviços de um gênero especial, deviam comunicar-me.
Não confirmo nem renego a doutrina da nova Igreja.
- Basta - bradou Catherine juntando as mãos -. Então você quer dizer que não nos abandonaria se nossa ama, tendo recobrado sua liberdade, pudesse sustentar a justiça de sua causa contra os súditos rebeldes que a despojaram de sua autoridade?
- Sem dúvida que não.
- Pois bem, se isto é verdade, - retrucou Catherine entusiasmada - eu que jurei concorrer para o grande empreendimento da libertação de Mary, eu...é.... eu o amarei mais do que qualquer irmã já amou um irmão.
- Prossiga, prossiga - disse Roland dobrando um joelho diante dela e tomando a mão que ela lhe estendera no calor de sua exortação.
- Não - murmurou a moça estacando -: já disse muito, já disse demais. A boa causa triunfa por sua própria força; assim sendo, eu o consagro a ela -. Pronunciando essas palavras aproximou a mão da fronte do rapaz e, sem a tocar, nela traçou o sinal da cruz: depois, inclinando-se para êle, fêz menção de beijar o espaço vazio no qual traçara o símbolo da salvação. De repente se afastou bruscamente dali e entrou nos aposentos da rainha.
Roland Graeme permaneceu ainda alguns instantes com um joelho em terra, mal respirando, de olhos fixos na cadeira que Catherine acabara de deixar. Se o seu coração não experimentava uma alegria incomparável, sentia pelo menos alguma coisa do delírio e da inexplicável embriaguez que por vezes esgotamos na taça da vida, quando, segundo as aparências, é o próprio amor que nela se nos oferece. Afinal se levantou e saiu lentamente.
NO dia seguinte Roland Graeme passeava pelo alto das grossas muralhas do castelo, como no único refúgio em que se podia entregar às próprias reflexões sem correr o risco de ser interrompido por ninguém. Enganava-se, porém, nos seus cálculos, pois minutos depois se encontrou com Elie Henderson.
- Eu o procurava - disse o pregador - porque preciso falar-lhe. George Douglas disse a lady Lochleven que seu serviço aqui no castelo lhe é fastidioso; e como a digna senhora não pode permitir que o abandone inteiramente, em parte também por minha interferência, decidiu-se a proporcionar-lhe algumas distrações, confiando-lhe encargos externos que até agora foram confiados a outros, pessoas aliás de absoluta confiança. Vou agora levá-lo até perto dela, uma vez que a partir de hoje a dama conta conceder-lhe uma prova de sua boa fé.
- Espero que me desculpe, senhor Henderson - disse o pajem, ciente de que a confiança da dona do castelo só tornaria a sua situação ainda mais melindrosa com respeito à rainha -: além de não ser possível servir dois senhores a um só tempo, tenho absoluta certeza de que minha ama não gostaria que eu recebesse ordens outras que as suas.
- Não tenha receio quanto a isto, porque tal consentimento será solicitado e provavelmente obtido. Temo até que ela aceda muito prontamente, na esperança de entabular, por seu intermédio, correspondência com os amigos distantes.
- E assim estarei exposto às suspeitas vindas de ambos os lados. Minha senhora só verá em mim um espião quando notar que seus inimigos confiam na minha pessoa; e lady Lochleven por sua vez, nunca deixará de nutrir suspeitas a respeito de minha traição, porque as ocorrências criarão circunstâncias que o permitam. Prefiro permanecer como estou.
Sucedeu uma pausa de dois ou três minutos, durante a qual Elie Henderson tentava descobrir nos traços do rapaz se tal resposta não tinha maior profundeza do que as expressões aparentemente enunciavam; fê-lo porém, em vão porque tendo sido pajem desde a infância, Roland sabia tomar um ar obstinado, quando queria ocultar suas mais secretas emoções.
- Acompanhe-me assim mesmo, e vamos procurar lady Lochleven.
Encontaram-na a almoçar na companhia do neto, George Douglas.
- Que a paz seja convosco, milady - murmurou Henderson -. Aqui está Roland Graeme, pronto a receber suas ordens.
- Roland, - disse lady Lochleven - como nosso capelão assegurou-nos a tua fidelidade decidimos encarregar-te de algumas coisas na aldeia de Kinross referente ao nosso serviço. Tomarás a canoa com dois dos meus homens. Trarás de Kinross a prataria e as tapeçarias que um carro deve ter trazido ontem de Edimburgo.
- E depois entregará esta encomenda - acrescentou Douglas - a um dos nossos lacaios que você encontrará lá. É o relatório dirigido a meu pai - disse êle fitando a avó, que lhe fêz com a cabeça um sinal de aprovação.
- Já informei o senhor Henderson - falou Roland - de que os deveres que tenho a desempenhar junto de Sua Graça não me permitem aceitar o encargo de vossa mensagem, sem que me seja concedida permissão para isso.
- Vá pedi-la, meu filho - disse lady Lochleven a Douglas -; são honrosos os escrúpulos do rapaz.
- Peço-lhe perdão, minha senhora, - respondeu George com ar indiferente - mas não tenho o menor desejo de me apresentar a Mary esta manhã; ela poderia não gostar e isso não me seria nada agradável .
- Quanto a mim - exclamou a senhora - não penso em expor-me aos seus sarcasmos sem uma premente necessidade.
- Se a senhora permite, - disse o predicador - encarrego-me de comunicar seu pedido a Sua Graça. Desde que habito o castelo ela não se dignou ainda conceder-me uma audiência particular, e portanto eu ficaria satisfeito se finalmente lhe pudesse falar.
O capelão afastou-se com Roland e mandou pedir à princesa cativa uma audiência, que esta concedeu sem maiores delongas. Encontrou-a na forma de costume, ocupada com suas damas numa tapeçaria. Mary recebeu-o com a cortesia que testemunhava habitualmente a todos quantos dela se aproximavam; o ministro, porém, encontrou mais dificuldades do que esperava em explicar o motivo de, sua visita. Depois de a ter cumprimentado um tanto contrafeito, foi logo dizendo:
- A boa senhora de Lochleven, se assim fôr do agrado de Vossa Graça...
Estacou um instante, procurando meio de concluir a frase.
- Agradaria muito á Minha Graça - disse Mary sorrindo - que lady Lochleven fosse de fato uma boa senhora. Mas prossiga. Que deseja de mim a boa senhora de Lochleven?
- Ela deseja que Vossa Graça dê permissão a este rapaz, Roland Graeme, seu pajem, para ir buscar em Kinross a prataria e as tapeçarias destinadas ao seu uso, a fim de melhor guarnecer os aposentos de Vossa Graça.
- Lady Lochleven faz uma cerimônia assaz inútil quando solicita nosso consentimento para algo que depende unicamente da sua própria vontade. Sabemos perfeitamente que não teriam deixado o rapaz tanto tempo a nosso serviço, se não imaginassem que êle estava mais às ordens da boa senhora do que às minhas próprias. No mais, não gostaríamos de condenar ninguém ao cativeiro que somos obrigadas a tolerar: lady Lochleven pode fazer do meu pajem o que quiser. Não o quero tornar suspeito, falando-lhe em particular antes da partida. Pegue esta bolsinha, Roland. Veja, senhor, - disse ela esvaziando-a aos olhos do ministro -, não há mais nada além de trezentas moedas de ouro. Tome esta bolsa, Roland, a fim de que não lhe faltem recursos para se divertir. Traga-me as novidades de Kinross, mas novidades tais que mas possa relatar na presença do reverendo ministro e da boa senhora de Lochleven, sem correr o risco de se tornar suspeito.
Henderson retirou-se e Roland acompanhou o capelão. Mas ao sair, recuando de costas segundo a etiqueta e depois de haver feito à rainha uma respeitosa saudação, observou que Catherine Seyton erguendo um dedo no ar lhe dirigia um gesto furtivo, gesto que parecia querer dizer: "Lembre-se do que houve entre nós."
O pajem recebeu as últimas instruções de lady Lochleven.
- Hoje há festa na aldeia de Kinross, - disse ela -; não proíbo que tome parte nela, mas desfrute os vãos prazeres com moderação. Luc Lundin, nosso camarista em Kinross, doutor Luc como ele tem a debilidade de se intitular, dir-lhe-á o que tem a fazer em relação ao seu encargo. Lembre-se de que lhe concedo a minha inteira confiança; vá e mostre-se digno dela.
Se tivermos em mente que Roland Graeme não contava ainda dezenove anos completos, não ficaremos surpreendidos com o fato de seu coração ter dado pinotes de alegria e curiosidade, só com a perspectiva de uma festa de aldeia. Correu ao seu quartinho e deu um balanço no seu guarda-roupa. Por ordem de Mary, que vivia de luto, usara até então roupas escuras; mas para tal ocasião escolheu o traje mais alegre e mais elegante que suas malas lhe ofereciam: era um traje escarlate forrado de cetim preto, as cores reais da Escócia. Arranjou graciosamente os longos cabelos negros, prendeu a corrente e o medalhão em volta de um chapéu de castor dos mais modernos, e suspendeu a um cinturão bordado a bela espada que lhe tinha sido entregue de modo tão misterioso. Essa indumentária, ao lado de uma bela estatura e de um físico agradável, fazia de Roland o exemplar perfeito das pessoas elegantes da época. Gostaria de poder dizer adeus a rainha e às duas damas, mas Dryfesdale não o permitiu, arrastando-o para a embarcação.
- Não, não, meu senhor, nada de despedida. Minha senhora concedeu-lhe sua confiança; eu tratarei de evitar pelo menos as tentações que possa ter para abusar dela. Que o céu o proteja, meu filho - acrescentou êle, lançando um olhar de desprezo à brilhante indumentária do rapaz; se houver um circo na feira, evite aproximar-se.
- E por quê, se faz favor? - indagou Roland.
- Porque os guardas poderiam tomá-lo por um dos macacos que porventura tivesse fugido - disse Dryfesdale sorrindo perversamente.
Não sem dificuldade, Roland conseguiu dominar o ímpeto de cólera que o sacudia e, sem dar resposta envolvendo-se no manto escarlate, entrou no barco. Enquanto se fazia ao largo, êle julgou divisar o rosto de Catherine Seyton surgindo em uma das aberturas do castelo, cheia de cautela para não ser notada por olhos indiscretos. A fim de mostrar que a tinha visto, o rapaz tirou o chapéu e, agitando-o no ar à guisa de adeus. Um lenço branco que um instante tremulou através das grades, respondeu ao aceno.
Em vista disso no decorrer da viagem, a imagem de Catherine Seyton se lhe tornou mais absorvente do que a idéia dos prazeres da festa à qual pretendia comparecer. Ao acercar-se da margem foi acolhido pelo som dos instrumentos, pelos cantos alegres e por gritos de toda espécie. Mal desembarcou, saiu à procura do camarista para saber quanto tempo podia dedicar a si mesmo.
Foi fácil a Roland distinguir sem demora no meio da multidão que se comprimia entre o lago e a aldeia um personagem da importância do dr. Luc Lundin, encarregado oficialmente de representar o senhor do lugar.
Os lucros que lhe proporcionava seu cargo de camarista eram bastante limitados, sobretudo numa época de desordem como aquela; êle em vista disso, procurava melhorá-los continuando a exercer sua antiga profissão de médico. Não obstante tal fato era ainda bastante generoso para cuidar gratuitamente dos pobres, que por vezes curava de todos os seus males.
Duas vezes pedante, como médico e como homem de posição, orgulhoso dos farrapos de ciência que tornavam seus discursos quase sempre ininteligíveis, o doutor Luc Lundin, aproximando-se da margem, mal avistou Roland logo o cumprimentou.
Levou-o para a feira, enquanto ao longo do caminho dava início a uma peroração enorme e incompreensível; subitamente se viu interrompido por uma aparição que lhe causou surpresa e terro-.
Quem tanto impressionava o Esculápio da aldeia era uma velha de elevada estatura, cujo chapéu muito alto parecia torná-la mais alta ainda, e que trazia ainda um pano sob o queixo que lhe ocultava a parte inferior do rosto; como o chapéu era desabado nada deixava ver de sua fisionomia além das maçãs do rosto cobertas de uma pele morena e enrugada, e dos olhos cheios de fogo que brilhavam sob as duaa grossas sobrancelhas grisalhas.
- É a velha Nicniven em pessoa - murmurou o doutor -. É ela quem me vem desafiar na minha própria jurisdição e em pleno exercício de minhas funções! Hob Anster! Prenda essa mulher e leve-a para a cadeia.
Sem se atrever a obedecer, Hob Anster respondeu que tinha como dever executar as ordens de Sua Honra; a despeito de tudo quanto se dizia sobre a ciência e as feitiçarias da tia Nicniven, se Sua Honra assim o exigisse êle a prenderia, confiante em Deus. Não obstante, Sua Honra não devia ignorar que a tal Nicniven não era uma feiticeira vulgar.
Ardendo de impaciência o doutor aceitou tão prudente conselho, só se tranqüilizando com a promessa que lhe fêz seu humilde satélite de tomar todas as medidas para prender a velha, a primeira vez que ela ousasse reaparecer no território de Kinross.
- Neste caso - gritou o doutor - boas achas de lenha celebrarão a sua volta.
Pronunciou tais palavras em voz bastante alta para serem ouvidas pela tia Nicniven, que passava perto dele e que se limitou a lançar-lhe um olhar de desprezo, com ar de insultante superioridade.
Chegaram finalmente ao lugar que servia de teatro, provocando com isto grande alegria na multidão, que esperava o camarista para ver iniciar-se o espetáculo.
Os atores tinham por palco um tapete de verdura e por bastidores um recanto que ficava atrás de uma sebe de espinheiros. Os espectadores estavam acomodados num anfiteatro todo gramado, que ocupava três quartos de espaço total, sendo o outro quarto destinado à entrada e saída doa artistas. Como um dos mais eminentes personagens da região, o camarista ficava bem no centro do auditório.
O espírito da peça, que não era justamente de um gênero ainda por demais explorado, visava sobretudo as crendices supersticiosas da religião católica. O pajem, que não tinha a menor idéia de um espetáculo teatral, mesmo de gênero tão primitivo, estava maravilhado, rindo e aplaudindo incessantemente. Afinal ocorreu um incidente que conseguiu desviar-lhe a atenção do interesse que tomava na peça.
A causa principal foi um daqueles peregrinos, nômades que iam de uma terra a outra carregando verdadeiras ou supostas relíquias, com o auxílio das quais enganavam o populacho, exaltando-lhe a fé ou a caridade. O referido peregrino tirou de uma maleta um frasquinho cheio d'água cuja principal qualidade era fazer espirrar as criaturas cuja virtude não fosse muito equilibrada.
O temível talismã, com todas as formalidades cabíveis ao caso, foi colocado perto do nariz de todas as figuras do drama. Ninguém conseguiu resistir ao pretenso comprovante da própria virtude: todos eles, para contentamento dos espectadores, espirraram mais tempo e com mais violência do que talvez contassem. Tendo alcançado o seu objetivo com esta cena, o peregrino começou em seguida outra brincadeira, no momento exato em que o bufão, apoderando-se do frasco que continha o licor extraordinário, levou-o inopinadamente ao nariz de uma moça que trazia o rosto velado por um véu de seda negra, e que sentada na primeira fila dos espectadores, dava a impressão de estar inteiramente absorvida pelo que acontecia no palco. Tal líquido era realmente de natureza a sustentar a honrosa tradição do peregrino; mostrou ação tão imediata sobre o olfato da senhorita e a fêz espirrar com violência tamanha, que o auditório em peso rompeu na gargalhada. Os que riam, porém, não puderam fazer indefinidamente, porque a moça, entre dois espirros vibrou tão violenta bofetada no bobo que êle tropeçou e foi cair a poucos passos do peregrino.
O camarista não compartilhava da alegria geral. Julgando-se ofendido em sua dignidade, ordenou a dois dos seus satélites que lhe trouxessem a culpada. Estes encaminharam-se pois para a moça que se pôs na defensiva, de punhos para a frente, como se estivesse decidida a opor qualquer resistência . Depois da prova de vigor e coragem que acabara de dar, os dois alabardeiros acharam prudente diminuir o passo e estacaram a uma distância respeitosa. Entrementes a mocinha já tinha mudado de opinião. Envolvendo-se modestamente na capa, voluntariamente deixou o seu lugar, encaminhando-se para o doutor, seguida dos dois valentões. Enquanto caminhava, mostrava essa leveza elástica e essa graça que, segundo os entendidos, sempre acompanham a beleza. Além disso, seu corpete vermelho apertava uma cinturinha bem feita e seu saiote curto, também da mesma côr, deixava entrever uma perna fina e bem torneada.
Estacou defronte ao assento doutoral: embora trouxesse o rosto oculto pelo véu, o camarista, não obstante sua seriedade, havia divisado suficiente para poder julgar favoravelmente o valor da peça pela pequena amostra.
- A malandra! - disse baixinho o doutor a Roland -. Garanto-lhe que é bonita; e tem a voz doce como mel - Menina, é conveniente que possamos ver a pessoa com que estamos tratando; tenha a bondade de erguer o véu.
- Espero que Vossa Honra queira ter a fineza de esperar que fiquemos a sós - retrucou ela - Tenho amigos por aqui e não gostaria que soubessem quem é a pobre moça escolhida pelo maldito bobo para alvo de suas sandices.
- Bem! - replicou o doutor - uma vez que se compromete a procurar-me em particular a fim de me expressar seu arrependimento pelo desacato de que foi a causadora, volte ao seu lugar e os folguedos continuarão como se não tivessem sido interrompidos.
A moça fêz uma reverência e foi conduzida ao lugar que abandonara. O espetáculo continuou; Roland, porém, não estava mais em condições de prestar-lhe a menor atenção.
A voz, a estatura e o pouco que o véu lhe permitira divisar do pescoço e dos cabelos da jovem camponesa a assemelhavam tanto a Catherine Seyton, que se julgava vítima de uma alucinação. A memorável cena do hotel São Miguel voltou-lhe ao espírito com todos os seus maravilhosos detalhes. Teria ela conseguido sair do castelo de Lochleven, guarnecido de altas muralhas e banhado por todos os lados pelas águas do lago sobre o qual, como se pretendesse verificar se existia ainda, lançou um olhar furtivo, sair de um castelo que era guardado com todo o cuidado que exigia a segurança daqueles que se haviam apoderado da administração do reino? Teria ela conseguido vencer todos os obstáculos e logo em seguida desafiar todos os perigos, a ponto de usar sua liberdade para puxar uma briga pública em uma feira de aldeia? Não sabia qual das duas coisas era mais inexplicável: se a maneira pela qual conseguira evadir-se do castelo, e mudando facilmente de roupa chegara até Kinross, ou se a conduta atrevida e resoluta que acabava de testemunhar.
Perdido em suas conjecturas, conservava os olhos fixos sobre aquela que as provocava: em cada gesto, em cada movimento que a moça fazia, êle descobria alguma coisa que a assemelhava mais ainda a Catherine Seyton. Por mais de uma vez imaginou que talvez estivesse enganando a si próprio, exagerando alguns traços de acidental semelhança para daí concluir a identidade de alguém. Nessa altura, porém, o pajem de Edimburgh acudia-lhe ao espírito; e assim lhe parecia completamente inverossímil que em circunstâncias tão diferentes, unicamente a força da imaginação pudesse pregar-lhe a mesma peça. Por isso resolveu banir as dúvidas. A moça a quem vigiava cuidadosamente, temendo que lhe escapasse no meio da multidão quando a peça terminasse não parecia notar que fosse o alvo dos seus olhares. O digno doutor, porém, que lhe seguia a direção dos olhos, soltou duas ou três piadas sobre a evidente atenção que o pajem não cessava de conceder à bela desconhecida e sobre o ciúme que êle, Luc Lundin sentia com isto.
- Senhor pajem, você tem uma ou duas horas à sua disposição. Agora que a peça já terminou e os menestréis afinam seus instrumentos, se gosta de dançar o campo está livre. Eu, aliás, sei quem vai convidar para tal. Orgulho-me de que você seja obrigado a convir que sei fazer meus diagnósticos muito bem uma vez que unicamente com o rabo de um olho pude distinguir a sua enfermidade e lhe indicar um remédio eficaz.
O pajem mal escutou a recomendação que lhe fêz o camarista para que não se distanciasse muito a fim de que pudesse estar pronto a partir ao primeiro sinal, tamanha era a pressa que tinha em se livrar do douto companheiro e satisfazer sua curiosidade no que dizia respeito à jovem desconhecida. Não obstante, apesar do entusiasmo com que correu para ela, teve ainda tempo para ponderar que se quisesse de fato palestrar com ela, devia aproximar-se de maneira a não causar receios. Tratou, portanto, de recuperar algum sangue frio; e afastando três ou quatro jovens camponeses que nutriam o mesmo desejo que êle, apresentou-se diante da moça com ar confiante, dizendo que vinha solicitar-lhe a honra de uma giga, como substituto do venerável camarista.
- O venerável camarista - disse ela estendendo-lhe a mão - andou muito acertado fazendo desempenhar por um substituto esta parte de suas funções.
- Linda senhorita, se a escolha do substituto não lhe é inteiramente desagradável...
- Isto eu lhe direi depois que tivermos dançado os primeiros compassos.
Já relatamos que Catherine Seyton tinha pendor para a dança e fazia uso dela quando procurava distrair por alguns minutos a infortunada Mary Stuart de suas atribulações. Roland Graeme seguidamente observara isso, e até mesmo, por mais de uma vez, a mandado da rainha, havia dançado com ela. Conhecia portanto o modo de dançar de Catherine, e pôde observar que seu par do momento dispunha da mesma graça e da mesma agilidade, seguindo bem o compasso e executando precisamente o ritmo. A única diferença era que a giga escocesa que dançavam na ocasião exigia movimentos mais vivos e mais rápidos do que as pavanas e os minuetos que dançara com ela em presença da rainha; aliás, a moça não dançava menos bem por isso. A atividade que tal dança exigia não dava tempo ao rapaz para refletir, e muito menos ainda para conversar; mas assim que executaram o seu passo a dois, por entre as aclamações dos camponeses que nunca haviam visto ninguém dançar com tanta graça, e cederam seu lugar a outro casal, êle começou a conversar com a desconhecida misteriosa, cuja mão ainda segurava.
- Minha bela parceira, - perguntou êle - posso saber o nome da pessoa que acedeu em dançar comigo?
- Certamente - respondeu ela -. Mas agora é preciso saber se eu estou disposta a dizê-lo.
- E por que não estaria?
- Porque ninguém gosta de dar as coisas em vão.
- Não lhe posso dizer o meu em retribuição?
- Conheço-o melhor do que você mesmo.
- É? E então por quem me toma?
- Por um pato selvagem que certo cachorro pescou num açude e levou para certo castelo.
- Vá lá! Compreendo a sua metáfora linda senhorita. Acontece, porém, que eu a conheço tão bem quanto você me conhece a mim. Assim sendo, não tenho a menor necessidade da informação, que aliás lhe pedi por simples formalidade.
- Deveras! Prove-me isto e só assim lhe atribuirei maior penetração do que estava disposta a fazê-lo.
- Posso provar logo. Seu sobrenome começa por S e acaba por N.
- Admirável. Continue.
- Hoje lhe apraz usar um corpete e um bastão. Amanhã talvez seja vista com um toque guarnecido de plumas, botas e um manto purpurino.
- Isto é que se chama atingir o alvo - bradou a desconhecida alegremente.
- Você é uma feiticeira bastante poderosa para fascinar os olhos dos homens e lhes roubar os corações.
Roland pronunciou esta última frase em voz baixa e com um leve tom de ternura que, para seu aborrecimento, redobrou a disposição que a desconhecida mostrava para a alegria, causando-lhe prolongado acesso de riso. Assim que ficou mais calma, retirando a mão que êle segurava ainda a moça lhe disse:
- Se me considera assim tão temível, fêz muito mal em dançar comigo. Já que me conhece tão bem, julgo perfeitamente inútil mostrar-lhe meu rosto.
- Bela Catherine, - disse o pajem - aquele a quem fosse dado viver tanto tempo sob o mesmo teto que você, a serviço da mesma senhora, e que não reconhecesse o seu todo elegante, a sua cintura esbelta e a perfeita simetria de suas proporções, seria indigno da ventura de a ter encontrado um dia. Seria preciso ser cego para não a reconhecer em tantos detalhes,
- E consequentemente você identificará meu rosto melhor ainda - disse a moça. Ao mesmo tempo, jogando para o lado o véu que a cobria, mostrou a Roland todas as feições de Catherine Seyton. Não obstante, quase em seguida uma espécie de colérica impaciência encheu-lhe o rosto de extraordinário rubor, quando quis repor o véu no rosto e uma espécie de dificuldade impediu-lhe executar esse gesto que era um dos principais talentos das elegantes da época.
- O véu que vá para o diabo! - exclamou ela tentando cobrir-se novamente com o véu que lhe flutuava nos ombros. Pronunciou tais palavras em tom firme e decidido que Roland estremeceu de surpresa. Olhou-a mais uma vez e seus olhos lhe afirmaram que era Catherine Seyton em pessoa que estava sentada a seu lado. Ajudou-a a recolocar o véu e ambos permaneceram calados alguns instantes. A moça foi a primeira a falar, pois o pajem continuava mudo de espanto ao verificar tudo quanto de contraditório oferecia a pessoa e o caráter de Catherine.
- Você parece espantado daquilo que ouve e que vê - disse ela -. Mas o tempo, que transforma as mulheres em homens, é o que menos convém aos homens para se tornarem mulheres. Não obstante isso, você está prestes a sofrer semelhante metamorfose.
- Eu? - exclamou Roland.
- Você mesmo, a despeito do atrevimento que alardeia. Quando devia permanecer solidamente ligado à sua religião, no momento exato em que a vê atacada por traidores, rebeldes e hereges, você a deixa sair do coração como se fosse um filete d'água que lhe escorresse por entre os dedos. Esquece-se dos seus deveres mais primordiais; isto não é por acaso uma atitude feminina? Parece atônito por me ouvir proferir uma praga ou uma imprecação; mas você mesmo, você que aspira à carreira de gentil-homem e ao título de cavalheiro, não deveria surpreender-se muito mais com a própria covardia a própria boa fé e o próprio interesse?
- Eu gostaria que um homem me falasse assim; antes que se escoasse um só minuto, êle veria se tinha motivo para me tachar de covarde.
- Tome cuidado para não se exceder - disse a, moça -. Ainda há pouco disse que eu às vezes usava botas e capa.
- E mesmo que os usasse não deixaria por isso de ser Catherine Seyton - respondeu o pajem, procurando segurar-lhe de novo a mão.
- Apraz-lhe chamar-me assim - replicou ela escondendo a mão sob o manto -. Mas eu tenho ainda mais de um nome.
- Suplico-lhe, minha querida Catherine, que conversemos sério um momento.
- Uma vez que insiste em me chamar sua querida Catherine, pergunto-lhe por que razão, se é que imagina que eu pude furtar duas ou três horas de minha vida ao tédio do velho castelo, é bastante cruel para insistir em conversar seriamente durante os únicos momentos de alegria que eu talvez tenha conseguido desfrutar depois de muitos meses.
- Certamente, bela Catherine. Mas você será a primeira a convir, que há momentos de sensibilidade muito mais valiosos do que dez mil anos de vivo contentamento. Assim foi ontem, quando você se dignou...
- Dignou-se de quê? - indagou em vão a moça.
- De aproximar seus lábios do sinal que acabava de traçar em minha fronte.
- Mãe do céu! - bradou ela impulsivamente, erguendo-se de modo inteiramente masculino -. Se meus ouvidos não me enganam, ouvi dizeres que Catherine Seyton aproximou os lábios da fronte de um homem, e que este homem és tu! Mentes, vassalo.
Embora atingisse ao auge da surpresa, na suposição de que tivesse melindrado a delicadeza da miss Seyton aludindo ao instante de entusiasmo que ela experimentara na véspera, Roland esforçou-se por gaguejar uma desculpa qualquer: por mais inexpressiva que esta fosse, sua companheira, que julgara conveniente suprimir sua indignação após a primeira explosão, mostrou satisfazer-se com ela.
- Não toquemos mais nisto - disse então -; separemo-nos agora. Uma palestra tão prolongada pode expor-nos a observações que ambos temos modos para evitar.
- Consinta então que eu a acompanhe a qualquer lugar menos freqüentado.
- Você não ousaria.
- E por que não? Aonde você poderia ir que eu não ousasse segui-la?
- Vou à casa da tia Nicniven - disse a moça.
- Não faz mal. Vou com você.
- Então venha a certa distância.
Com essas palavras a moça rumou em direção à aldeia. Roland a seguia alguns passos mais atrás, tomando todas as precauções necessárias para que ninguém pudesse notar que a acompanhava e, sobretudo, para não a perder de vista um só instante.
À entrada da principal rua de Kinross a moça voltou-se, como se quisesse ter a certeza de que o rapaz não lhe perdera o rastro; encontrando-o de olhos pregados nela, virou à direita e penetrou num caminho, sem calçamento, ladeado de choupanas em ruínas. Depois de ter andado cerca de duzentos passos, estacou à porta de uma das mais miseráveis cabanas; e após ter lançado segundo, olhar ao pajem, levantou a taramela, abriu a porta e desapareceu.
Por mais interessado que estivesse o pajem em lhe seguir o exemplo, a dificuldade que teve com a taramela e a porta que resistiu ao seu primeiro esforço, retardou uns dois minutos a sua entrada na choupana. Uma vez dentro dela, desembocou num corredor escuro que o separava dos aposentos; no fim desse corredor deparou com a porta que levava ao interior.
Ao entrar no quarto deu com a mulher que o camarista chamara de tia Nicniven, sentada perto da lareira; porém ela estava sozinha. Olhou em volta muito surpreendido por não ver Catherine Seyton; mal tinha lançado os olhos sobre a pretensa feiticeira quando a velha, atirando ao chão o lenço que lhe cobria a cabeça e franzindo as grossas sobrancelhas de modo a formar mil rugas sobre a fronte, agarrou-o pelo braço, arrastou-o até uma janelinha que dava um pouco de claridade ao quarto e, assumindo um ar autoritário, mostrou a Roland as feições de Magdalen Graeme.
- Sim, Roland, - disse ela - sou eu mesma. Teus olhos não te enganam; tens diante deles aquela a quem enganaste e cuja esperança transformaste em desespero: é ela que te pergunta o que vieste procurar aqui.
Roland não se sentia em condições de falar ou de fazer qualquer movimento. Aquela mulher extraordinária conservara sobre êle o mesmo ascendente que havia adquirido durante a sua infância. Aliás êle sabia também o quanto a menor contradição a exaltava; receava por isso que com a menor coisa que lhe dissesse desencadeasse uma explosão de raiva. Ficou portanto calado, enquanto Magdalen lhe perguntava outra vez, com maior veemência ainda:
- O que procuras aqui? Vens pisar meus cabelos brancos como já pisoteaste os mais ardentes desejos do meu coração?
- Perdoe-me, minha mãe, - disse finalmente Roland - mas eu na verdade não mereço as suas censuras. Todos sempre me trataram, e a senhora inclusive, como uma criatura despida dos mais elementares atributos de bom senso ou de raciocínio; falaram-me unicamente por parábolas. Vi-me como um homem que vivesse um pesadelo incompreensível e exaustivo; e agora todos me censuram por não ter tido o discernimento de um indivíduo que raciocina, que sabe aquilo que faz e também por que o faz. Testemunhar fatos mais semelhantes a visões do que a realidades é o suficiente para abalar a mais firme das fés e transtornar a mente mais sã. Procurava aqui, uma vez que devo confessar minha loucura, a mesma Catherine Seyton que a senhora me fêz conhecer e cuja presença em Kinross aliás me surpreendeu bastante, uma vez que eu a havia deixado uma hora antes no bem guardado castelo de Lochleven. Era ela, quem eu procurava aqui, estou novamente atônito por encontrar em seu lugar a minha própria mãe, num disfarce muito mais estranho do que o da própria Catherine.
- E para que precisas de Catherine Seyton? Quando a trombeta chamar todos os fiéis da Escócia para formarem fileiras sob o estandarte de sua soberana legítima, será preciso ir procurar-te no toucador de uma dama? Catherine Seyton só entregará seu coração àquele que conseguir libertar a rainha sua senhora: pode ser que tenhas em tuas mãos a possibilidade de vires a ser o feliz mortal. Não guardes, portanto, dúvidas nem temores, e prepara-te para fazer aquilo que a religião te pede, que necessita a tua terra e que exigem teu dever e tua fidelidade. Fica certo de que só assim poderás satisfazer teus desejos secretos.
Mal havia acabado de falar, quando alguém bateu na porta. Apressadamente apanhou o chapéu e o lenço e voltou a sentar-se perto do fogo.
Roland viu entrar um homem vestido como os membros comuns da comitiva de qualquer senhor, com a espada suspensa a um cinturão e um escudo na mão esquerda.
- Procurava-a, minha irmã, e também a este rapaz que está com você -. E dirigindo-se a Roland Graeme, perguntou-lhe:
- Não tem um pacote de George Douglas?
- Tenho um, sim, - respondeu Roland, lembrando-se de repente do que recebera de manhã. Só o posso entregar, porém, à pessoa que provar ter o direito de mo reclamar.
- Sua precaução tanto tem de prudente como de justa - retrucou o homem d'armas. Aproximando-se então de Roland, murmurou-lhe ao ouvido: - O pacote de George Douglas contém o relatório dirigido ao seu pai. Vê você que eu estou ao corrente. Isto lhe basta?
- Sim - afirmou Roland entregando-lhe a missiva.
- Tudo vai bem - disse o homem d'armas -: o negócio pegou e foi fixado para a noite de amanhã.
- Que negócio? Que noite? - bradou Roland. Espero que meu pacote não tenha caído em mãos perversas.
- Não se preocupe, rapaz; não lhe dei minha palavra e todas as provas de que o pacote me era destinado?
- As provas podiam ser falsas e, quanto à palavra, eu talvez não devesse acreditar tão facilmente no que me diz um estranho.
- Pois bem, - interrompeu Magdalen - se tivesse confiado às mãos de um súdito leal da rainha o pacote entregue a ti por um rebelde, julgarias isso, cabeça de vento, como uma grande desgraça?
-- Por Santo André que sim -. exclamou o pajem -. O meu primeiro dever é o de ser fiel àqueles que me empregam.
- Pela ternura toda que te dedico, - bradou a matrona - juro que te imolaria com as minhas próprias mãos se te ouvisse repetir que deves mais a rebeldes hereges do que à Igreja e à tua soberana.
- Paciência, minha irmã - interrompeu o homem --expor-lhe-ei razões que lhe vencerão certamente os escrúpulos. Ainda que mal aplicados, seus sentimentos lhe fazem honra. Venha comigo rapaz.
- Antes que eu vá receber as explicações desse estranho, - disse Roland a Magdalen - veja se eu posso fazer alguma coisa por você.
- Nada, meu filho, nada. Toma cuidado apenas para que eu não venha a saber de nada que possa atingir a tua honra, a tua verdadeira honra. Vai com o estrangeiro; êle te porá ao corrente de coisas que estás bem longe de imaginar.
Enquanto isso o homem d'armas permanecia no limiar da porta, como se estivesse esperando por Roland. Assim que o viu disposto a partir, seguiu na frente com seus passos largos, e sempre pelo mesmo caminho dirigiu-se para o lado do lago.
Depois de dez minutos de marcha o estrangeiro parou junto de uma pequena porta aberta na muralha, lançou um olhar em volta como que para certificar-se de que estavam sozinhos e depois entrou, fazendo um sinal a Roland para o acompanhar; enquanto o estrangeiro fechava cuidadosamente a porta, o pajem reparou que estavam numa horta muito bem tratada.
Ali, sentando-se num banco de relva o homem convidou Roland para sentar-se junto dele, dizendo-lhe após um momento de silêncio:
- Você me pediu uma garantia melhor do que a palavra de um estranho como comprovante da autorização a mim concedida por George Douglas para receber o pacote de que era o portador. . .
- Sim - murmurou Roland.
- Sou-lhe portanto absolutamente estranho -- continuou o homem d'armas -. Mas olhe bem para mim, e veja se minhas feições não lhe recordam um indivíduo que viu freqüentemente.
Roland analisou-o com atenção.
- Será possível? - exclamou por fim. Estacou, porém, ao dizer tais palavras: a idéia que lhe acudira ao espírito parecia-lhe por demais incompatível com o indivíduo que tinha diante dos olhos para que puedsse decidir-se e exprimí-la.
- Sim, meu filho - disse o estrangeiro ao observar seu embaraço -; as aparências não são mentirosas. Você está vendo o infortunado padre Ambrose, o mesmo que outrora se felicitava por tê-lo salvo das armadilhas da heresia e que hoje lamenta profundamente vê-lo caído nelas.
Roland sentiu-se comovido até o fundo d'alma por encontrar seu antigo mestre, seu primeiro guia espiritual, numa situação que denunciava tal mudança de sorte.
- De certa maneira, Catherine Seyton me havia preparado para o que estou vendo agora. Mas uma mudança tão obsoluta, uma destruição tão completa...
- Sim, meu filho, seus olhos me viram na ocasião da minha ascensão ao lugar de abade de Santa Mary, honra que eu era indigno de ter. Aquela foi a derradeira solenidade celebrada no monastério, até que os céus queiram libertar a igreja do seu cativeiro. No momento presente o pastor está ferido, prostrado por terra, e o rebanho se dispersou.
- Mas o cavalheiro de Avenel, seu irmão, não fêz nada para o proteger?
-- Êle próprio incorreu nas suspeitas dos poderosos do dia, que tanto têm de injustos para com os amigos como de cruéis para com os inimigos. Mas deixemos esse assunto e vamos falar sobre o motivo que nos reuniu. Presumo que você agora não se recusará a aceitar minha palavra, quando lhe afirmo que era a mim que se destinava o pacote de que era o portador?
- Assim, George Douglas é...
- Fiel à sua soberana e, segundo espero, dentro em breve seus olhos se abrirão também à luz da verdadeira religião.
- Contudo, - prosseguiu o pajem - eu não aprecio que o devotamento à boa causa seja provado com uma traição.
- Não lhe censuro os escrúpulos, meu filho; eles seriam cabíveis em tempos comuns. Mas forçando os cristãos a renunciarem sua crença e os súditos a negarem sua legítima soberana, todos os liames básicos da sociedade foram rompidos.
Sempre cheio de respeito por aquele de quem tinha recebido os primeiros ensinamentos, Roland Graeme relatou-lhe em síntese todas as ocorrências que nossos leitores já conhecem, sem disfarçar a impressão que haviam causado sobre seu espírito, os argumentos de Elie Henderson em prol da religião reformada, confessando até sem a menor premeditação, os sentimentos que Catherine Seyton lhe inspirara.
- Meu caro filho, - disse o abade Ambrose - é para mim motivo de alegria verificar que cheguei a tempo de o deter à beira do abismo no qual estava prestes a lançar-se. Não é unicamente pela razão que você deve procurar vencer seus inimigos; precisa também do auxílio da graça e da fé. Tome muito cuidado com Catherine Seyton; ela é filha de um dos mais altivos e mais dignos barões da Escócia inteira e sua situação ainda não lhe permite aspirar a tanto. Mas assim é a vida: o céu lança mão da loucura dos homens para realizar as suas obras de sabedoria; tanto o amor ambicioso de Douglas quanto o seu, contribuirão para se chegar ao fim desejado.
- Com que então, meu pai, minhas suspeitas tinham seu fundamento? Douglas ama...
- Sim, meu filho, ama; e o amor dele é tão descabido quanto o seu. Não procure, porém, prejudicá-lo nem opor-lhe obstáculos.
Foram interrompidos pela chegada de um ancião, tão bem vestido quanto o possível para um camponês, que depois de cumprimentar o abade foi dizendo:
- Desculpe-me, mas o camarista mandou procurar este rapaz por todos os lugares; é preciso que êle vá procurá-lo sem delongas.
- Acompanhe-o, Roland, - disse o abade - e lembre-se de minhas palavras; está bem próximo o dia em que os escoceses serão chamados a darem prova de lealdade. Que o seu coração seja da mesma têmpera que o aço de sua lança!
O pajem cumprimentou em silêncio e ambos separaram-se. O rapaz acompanhou o jardineiro que, não obstante sua idade avançada, caminhava com passos bem regulares.
Fêz Roland sair por uma porta diferente daquela pela qual entrara, e persignando-se devotamente voltou ao jardim, cuja porta fechou cautelosamente.
Pelo caminho Roland ia refletindo sobre tudo quanto lhe dissera o padre Ambrose; pensava que, o abade evadira mais do que propriamente refutara as objeções de Henderson contra os pontos de doutrina da Igreja Católica. "Mas êle não teve tempo para responder, dizia consigo mesmo, e eu não tenho nem calma nem sabedoria bastante para me arvorar em juiz a respeito de assuntos de tal importância. Mas que partido tomarei com referência a Catherine Seyton, amada por Douglas, e que só pensa em mim nos momentos de capricho e de vaidade? É preciso que, na primeira oportunidade, ela me explique sua conduta, ou do contrário romperei para sempre.
No momento em que tomava tão magnânima resolução, esbarrou com o dr. Luc Lundin.
- Ah! Ah! Eis aqui o meu jovem amigo! Mas de onde vem você? Está com um aspecto preocupado e melancólico. A moça foi cruel? Vamos, coragem, coragem, meu rapaz. Há mais de uma menina em Kinross.
Como resposta a estas tiradas, o pajem contentou-se em indagar se o carro havia chegado de Edimburgo.
- Há uma hora que o procuro para preveni-lo. Todas as encomendas já estão no barco e o barco está à sua espera.
Quando atravessavam numeroso grupo reunido em volta de alguns menestréis, o pajem julgou reconhecer Catherine Seyotn. Abandonando imediatamente o seu companheiro, que ficou atônito com uma fuga tão brusca, o rapaz rompeu a multidão. Certo de que estava falando com a mesma jovem com quem havia dançado, disse-lhe ao ouvido:
- Será prudente, Catherine, que você permaneça aqui mais tempo ainda? Não pensa em regressar ao castelo?
- Vá para o diabo com suas Catherines e com seus castelos - respondeu a moça -. Pretende aborrecer-me novamente com as suas maluquices? Retire-se, pois não tenho nada que fazer em sua companhia. Aliás aviso-o também de que há perigo por aqui.
- Mas, minha bela Catherine, se de fato há perigo, por que não permite que eu o compartilhe com você?
- O perigo, seu louco, é unicamente para você. O perigo existente, uma vez que sou forçada a dizer, é que eu mesma lhe dê um bofetão que lhe feche a boca -. Com essas palavras afastou-se precipitadamente, rompendo a multidão, atônita com a ousadia com que arranjava lugar em meio à aglomeração.
Se bem que muito despeitado, Roland dispunha-se a segui-la; mas o doutor, que havia conseguido alcançá-lo, travou-lhe do braço, lembrando-lhe que o barco o esperava e que dois sinais já haviam sido feitos da torre do castelo. Roland deixou-se levar, despediu-se do doutor e partiu para Lochleven.
Uma vez terminada a pequena viagem, foi recebido na margem pelo severo e causticante Dryfesdale.
- Ei-lo afinal por aqui, senhor pajem, depois de seis horas de ausência e de dois sinais do castelo. Você certamente caiu na farra em lugar de procurar desincumbir-se de sua missão. Vamos, vamos, minha senhora há de recebê-lo muito bem, pois sua ausência causou-lhe bastante mau humor.
- E onde está lady Lochleven? Presumo que esteja falando a respeito dela.
- E de quem falaria eu? Quem, além de lady Lochleven, tem o direito de mandar no castelo?
- Lady Lochleven é sua senhora; a minha, porém, é Mary, rainha da Escócia.
- Se você deseja saber se lady Lochleven ou a outra senhora sobre quem está falando necessitam dos seus préstimos, poderá encontrá-las ambas no apartamento de lady Mary,
Roland apressou-se em ir até lá, contente por escapar aos olhares penetrantes do velho maligno e sem poder atinar com a razão que levara lady Lochleven aos apartamentos da rainha em hora tão diversa daquela em que costumava sempre se apresentar. Julgou, no entanto, ter adivinhado o motivo; "ela quer, concluiu êle, ver-me chegar à presença da rainha, a fim de verificar se existe algum acordo secreto entre nós. É preciso que eu tome as minhas cautelas".
Assim resolvido, entrou no salão onde a rainha, sentada num sofá em cujo encosto lady Fleming se apoiava, mantinha lady Lochleven de pé diante dela havia mais de uma hora; tal fato visivelmente aumentara o ar de mau humor peculiar à velha senhora. Ao entrar, Roland Graeme cumprimentou respeitosamente a rainha em primeiro lugar, e logo em seguida lady Lochleven. Depois ficou imóvel perto delas, esperando modestamente que o interrogassem.
Ambas lhe dirigiram a palavra quase ao mesmo tempo
- Ei-lo de volta, rapaz - disse lady Lochleven; enquanto isso, sem lhe dar atenção, a rainha murmurava:
- Benvindo seja, Roland.
- Lamento ter ficado retido tanto tempo, minha se nhora; a culpa cabe ao carroceiro de Edimburghque chegou muito tarde, forçándo-me assim a esperá-lo.
- Veja só! - disse a rainha a lady Lochleven -; suas preocupações são perdoáveis, uma vez que nossos aposentos têm um mobiliário tão escasso que nós não pudemos oferecer-lhe sequer um banquinho, durante todo o tempo que nos concedeu o prazer de sua companhia.
- Mais do que os meios, minha senhora, - retrucou lady Lochleven com azedume - faltou-lhe propriamente a vontade.
- Ora essa! - acrescentou a rainha olhando em tôrno e simulando um ar de surpresa -; existem, por acaso, banquinhos neste apartamento? É verdade! Um, dois, e contamos até quatro, incluindo aquele que não tem um pé. É de fato um mobiliário real! Lady Lochleven deseja sentar-se?
- Não, minha senhora, vou livra-la de minha presença.
- Mas, milady, - prosseguiu a rainha erguendo-se - se um banco não lhe convém, tome o meu lugar. Não será a primeira pessoa de sua família que faz o mesmo -. E dizendo isso, com a mão fazia um gesto convidando-a a sentar-se no sofá.
Roland mal ouvira a troca de palavras um tanto violentas. Estava inteiramente absorvido por Catherine Seyton, que acabava de sair do quarto de dormir da rainha, com o traje que usava habitualmente, sem que nada indicasse uma troca de roupa feita às pressas. Ousou cumprimentá-la assim que a viu entrar; ela respondeu-lhe com ar tranqüilo e despreocupado, ar que lhe parecia inteiramente inexplicável nas circunstâncias em que ela se encontrava.
"Quero crer, pensava êle, que ela não pretenda obrigar-me a duvidar do testemunho dos meus próprios olhos, assim como quis fazer com referência à aparição no Albergue de São Miguel. Tentarei demonstrar-lhe que será uma tentativa inútil e que o melhor a fazer é conceder-me uma confiança ilimitada".
Tais idéias acudiam-lhe precipitadamente até o momento em que a rainha lhe dirigiu novamente a palavra.
- Roland, o que nos diz sobre a feira de Kinross?
- Estava animada como sempre, segundo me disseram, minha senhora; eu, porém nada observei que mereça a sua atenção.
- Oh! Mas você não pode avaliar o quanto me tornei indulgente por tudo aquilo que diz respeito às satisfações daqueles que fruem a sua liberdade.
- Espero - disse lady Lochleven dirigindo por sua vez a palavra ao pajem - que no meio de todas aquelas loucuras não tenha havido nenhuma das desordens que fatalmente acontecem?!
Roland lançou um olhar a Catherine. . - Não, minha senhora, nada perturbou a harmonia da feira. Eu pelo menos nada notei que mereça repetir, a não ser, talvez, o bofetão que uma mocinha de temperamento assaz decidido vibrou em um dos artistas.
Enquanto dizia essas palavras, olhou novamente para Catherine; ela, porém, recebera o ataque com o maior sangue frio. Não parecia confusa nem desconcertada; dava a impressão de que ouvia falar de uma coisa que lhe era completamente estranha e indiferente.
- A não ser que tenha algo a me ordenar, não imporei por mais tempo à Sua Graça a fadiga de minha presença - disse lady Lochleven.
- Nada, nossa boa anfitriã; rogo-lhe apenas que noutra ocasião não se julgue na obrigação de passar perto de nós um tempo que poderá empregar melhor.
- Ser-lhe-á conveniente, minha senhora, mandar seu pajem acompanhar-me a fim de me prestar contas das encomendas que deve ter trazido e que são destinadas a seu uso?
- Não lhe podemos recusar nada do que deseja, minha senhora.
Roland Graeme saiu com lady Lochleven, que não deixou de lhe fazer insistentes perguntas sobre tudo quanto acontecera na feira; êle respondeu de maneira a afastar toda e qualquer suspeita que ela pudesse ter concebido, sem a deixar entrever sequer que estava inclinado a favorecer a rainha.
Desceu em seguida ao jardim, onde lhe era permitido passar os momentos de folga.
A tarde inteira Roland arrastou por ele suas melancólicas reflexões, analisando os acontecimentos do dia e comparando o que o abade lhe dissera sobre George Douglas com aquilo que pessoalmente havia observado. Não podia mais duvidar que tinha um rival; e de tão dolorosa convicção deduziu que fora com o auxílio de Douglas que Catherine achara meio de deixar o castelo para ir a Kinross, e para regressar de lá em seguida, com a rapidez de um raio. Mas como o amor ainda espera mesmo quando a razão já não espera mais, uma nova idéia lhe acudiu ao espírito: Catherine talvez alimentasse a paixão de Douglas unicamente com o objetivo de servir a sua senhora, pois tinha um coração muito franco e muito nobre para ter dado a êle, Roland, algumas esperanças, se pensasse realmente enganá-lo. Perdido em tantas conjecturas, sentou-se afinal num banco de relva do qual se divisa de um lado as bordas do lago e do outro a parte do castelo onde se encontravam os apartamentos da rainha.
O sol já se pusera havia algum tempo e o crepúsculo começava a ser substituído por uma bela noite. Olhando para o lado da mansão êle viu brilhar uma luzinha na janela do quarto que Catherine Seyton ocupava: a luz eclipsava-se de vez em quando pela interposição de um corpo estranho, sem dúvida a linda habitante do aposento. Por fim desapareceu por completo e com ela se desvaneceu a nova fonte de reflexões que se apresentara ao espírito do rapaz.
Poderemos confessar o que houve sem nos arriscarmos a causar um mal irreparável à reputação do nosso herói? O fato é que seus olhos pouco a pouco se tornaram pesados; as dúvidas que o agitavam sobre os pontos controversos da doutrina religiosa e suas conjecturas sobre o estado do coração de sua senhora juntamente se confundiram, de modo a não produzirem, outra coisa senão um caos informe. As fadigas do dia venceram as preocupações que o assaltavam, em suma, o rapaz adormeceu.
A princípio teve um sono tranqüilo; despertou, porém, sobressaltado, graças às badaladas do sino do castelo. Todas as noites, às dez horas, tocavam o sino, e tal toque era o sinal para fechar todas as portas da mansão, cujas chaves eram em seguida entregues ao senescal. Roland correu para a porta que comunicava o jardim com o prédio; mas para sua desventura chegou precisamente a tempo de ouvir correr o último ferrolho.
- Um momento! - gritou êle - um momento! Deixem-me entrar antes de fecharem a porta.
- A hora já passou, senhor pajem - respondeu a voz azeda de Dryfesdale, num tom que denunciava o mau humor satisfeito -. A hora já passou. Você não gosta de estar trancafiado entre os muros do castelo: assim, terá o prazer de passar a noite fora, tal qual como passou o dia. Adeus, meu jovem senhor.
Depois de ter dado inúmeras voltas pelo jardim e de se esgotar em passos precipitados e vãos juramentos de vingança, o rapaz começou a ver que em lugar de se entregar a uma raiva inútil devia rir da sua aventura. Uma noite passada ao ar livre não era inconveniente muito grave para um jovem caçador, que mais de uma noite dormira ao relento, unicamente pelo seu bel-prazer. Voltou, portanto, ao banco de relva que acabava de deixar, e que era protegido por uma sebe de azevinhos. Bem enrolado em sua capa, estendeu-se nele e tratou de recuperar o sono que o sino do castelo inutilmente interrompera.
Mas o sono, como a fortuna, freqüentemente nega seus favores justamente no momento era que estes são mais ardentemente desejados. Quanto mais Roland o chamava, mais êle se distanciava de suas pálpebras.
Com o espírito exausto pelas reflexões que sucessivamente lhe tinham acudido, o rapaz finalmente caiu nesse estado de torpor em que a pessoa fica por assim dizer, nem dormindo nem acordada. Foi sacudido pela voz de duas criaturas que passeavam pelo jardim e cujo som, que a princípio lhe parecera produto de um sonho, acabou por despertá-lo de todo. Ergueu-se sem ruído e sentou-se no banco que lhe servira de leito. Seria possível que duas criaturas se encontrassem a uma hora daquelas no jardim do castelo de Lochleven, um castelo guardado com tanto cuidado? Não podia dominar o seu espanto. Supôs que George Douglas, como senescal, senhor de todas as chaves, aproveitava aquela circunstância para ter no jardim entrevistas secretas com Catherine Seyton. Firmou-se mais ainda em tal conjectura ao ouvir uma voz que lhe era muito conhecida perguntar em tom cheio de precaução se tudo estava pronto.
Aproveitando-se de uma brecha que havia na sebe, Roland Graeme podia ver, mantendo-se oculto, quem eram as criaturas que tão inesperadamente lhe haviam perturbado o repouso; o que viu então confirmou os temores que o ciúme lhe havia inspirado. Foi-lhe muito fácil reconhecer a voz e a estatura de Douglas ao lado dos trajes de pajem que encontrara no Albergue de São Miguel, em Edimburgo.
- Estive à porta do quarto do pajem - dizia Douglas -: ou êle não estava ou então não quis responder. Não sei o que deduzir do seu silêncio.
- Talvez tenha contado muito com êle -- respondeu-Ihe o interlocutor -: um desmiolado sobre cujo espírito inconstante nada pode causar uma impressão duradoura.
- Eu não tinha a menor intenção de dispor dele; mas como me haviam garantido que assim que viesse a ocasião nós o encontraríamos bem disposto, eu...
Nessa altura baixou tanto a voz, que Roland não pôde ouvir. Ficou muito contrariado com isto, sobretudo porque sabia ser êle próprio o motivo da palestra.
- Quanto a mim, - prosseguiu o pajem - eu nunca confiaria. Safei-me com bonitas palavras. Mas se êle no momento nos prejudicar, você não tem por acaso um punhal? Assim, caso não nos queira ajudar, ficará pelo menos num estado em que não nos possa causar dano.
- Isto seria uma imprudência - respondeu Douglas - aliás eu já lhe disse que a porta está aferrolhada. Talvez o rapaz esteja dormindo. Vou voltar e ver se o acordo.
"É preciso que eu seja iniciado imediatamente em todos esses mistérios, disse consigo Roland. Uma vez iniciado, agradecerei a miss Catherine, se fôr realmente ela, pelo uso que ela carinhosamente insinuou a George Douglas fazer do seu punhal. Segundo minhas deduções, estão a minha procura. Pois bem, se é assim, não me procurarão inutilmente".
Entremente Douglas voltara ao castelo e deixara aberta a porta de comunicação. O pajem estrangeiro ficou sozinho no jardim, com os braços cruzados ao peito. Num instante Roland chegou perto dele.
- Miss Catherine, - disse então em tom irônico -, eis uma noite soberba para uma moça comparecer fantasiada a uma entrevista no jardim.
- Paz! cérebro esquentado - exclamou o pajem -. Silêncio! Dize-me numa só palavra, se és amigo ou inimigo.
- Como seria amigo daquela que me enganou com tão belas palavras e que acaba de dar a Douglas lições tão aproveitáveis sobre o que deve fazer com seu punhal?
- Que o diabo te carregue, louco desmiolado, a ti e a Douglas!
Seremos descobertos; tudo ficará perdido.
- Catherine, -- continuou Roland - você me tem enganado e tratado cruelmente; mas agora chegou o momento de uma explicação e dela você não escapará, pois não estou disposto a perder a ocasião. Pelo menos desta vez saberei com quem estou lidando.
- Largue-me - gritou o pretenso pajem, procurando tirar a capa e acrescentando num tom em que a cólera parecia sufocar o desejo de rir: - Trata com tão pouca cerimônia assim a filha de lord Seyton?
Como Roland, porém, talvez encorajado pelo tom brincalhão, persistisse em lhe segurar firmemente o manto, julgando que sua temeridade não parecesse sem perdão, seu adversário lhe disse em voz irada:
- Cabeça sem cérebro! Larga-me imediatamente; é uma questão de vida ou de morte! Tenho pena de ti, mas toma cuidado para não me levares a um extremo.
Concluindo tal frase, lançou-se bruscamente em novo esforço para se libertar; esse movimento fêz disparar a pistola que trazia no cinto.
O barulho alarmou o castelo inteiro. A sentinela que estava de guarda na torre pôs-se a tocar a trompa gritando ao mesmo tempo: "Traição! Traição! Às armas! Às armas!"
O falso pajem, que no primeiro momento de surpresa Roland largara, desapareceu: quase no mesmo instante ouviu-se no lago um ruído de remos. Um instante depois, cinco ou seis arcabuzes disparavam do alto das torres do castelo enquanto ecoava a recomendação de apontarem um falconete contra a embarcação. Supondo que Catherine Seyton estivesse nela e grandemente preocupado com a sua segurança, Roland não viu outro meio de a proteger senão recorrer a George Douglas. Apressou-se, portanto, em entrar no castelo e foi correndo ao apartamento da rainha, de onde chegava grande algazarra.
Mal entrou, viu-se logo no meio de um grupo assaz numeroso, mergulhado em surpresa e confusão; todos falavam a um só tempo e se entreolhavam com ar consternado. Numa das extremidades do salão achava-se a rainha, acompanhada não apenas de lady Fleming mas, para o espanto inexprimível de Roland, também da miss Seyton, que parecia ter o dom de estar em todos os lugares ao mesmo tempo; as três usavam trajes de viagem e Catherine segurava debaixo do braço um pequeno baú, que continha as poucas jóias deixadas a Mary Stuart. Na outra extremidade, perto da porta, encontrava-se lady Lochleven, em trajes de noite arranjados às pressas, cercada de guardas e lacaios. Entre os dois partidos via-se George Douglas, pálido e desfigurado, com os olhos pregados no chão, tal qual um criminoso apanhado em flagrante que, sem poder negar o seu crime, não pode contudo decidir-se a confessá-lo.
- Silêncio !- gritou lady Lochleven -. Quanto a você, Douglas, fale e se justifique da suspeita que pesa sobre sua honra. Diga: um Douglas jamais faltou ao seu dever, e eu sou um Douglas! Pronuncie estas palavras, meu filho; não peço mais nada para te julgar inocente, não obstante todas as aparências; dize que essa conjura não passa de uma artimanha dessas três mulheres juntamente com o jovem miserável a quem eu concedi demasiada confiança.
- Quanto ao canalha deste pajem, - disse Dryfesdale - milady, posso afiançar-lhe que é impossível ter êle aberto a porta do apartamento, uma vez que eu mesmo o fechei ontem no jardim. Seja lá quem tenha sido o organizador dessa escapada noturna, na realidade êle não podia ter tomado parte esta noite.
- Mentes, Dryfesdale! - exclamou lady Lochleven.
Ouvindo tais palavras, Douglas ergueu a cabeça, dizendo com a voz calma de um indivíduo que tomou sua resolução.
- Senhora, não é preciso pôr a vida de ninguém em perigo por minha causa: eu sozinho...
- Douglas, - interrompeu a rainha - você está louco? Ordeno-lhe que se cale.
- Minha senhora, peço que me perdoe por não poder obedecer à sua ordem; mas aqui precisam de uma vítima e eu não posso tolerar que escolham errado. Sim, minha senhora, - prosseguiu dirigindo-se a lady Lochleven - é sobre mim unicamente que deve recair o seu ressentimento. Se a palavra de um Douglas tem alguma importância para a senhora, acredite que o rapaz está inocente; êle ignorava tudo e assim, se o punir, cometerá uma iniqüidade.
No que diz respeito à rainha, ousaria a senhora censurada por haver consentido em aproveitar a oportunidade que eu lhe oferecia para recuperar a liberdade? Sim, não só minha lealdade sincera como um sentimento mais intenso ainda haviam preparado a fuga da mais bela e mais perseguida de todas as mulheres. Longe de me arrepender do que fiz por ela, vanglorio-me até; lamento apenas não ter conseguido libertá-la, pois morreria com prazer para servi-la.
- Que os céus concedam à minha velhice a força necessária para agüentar tamanha aflição - exclamou lady Lochleven -. Oh! velha mansão de Lochleven, tão conhecida pela tua nobreza e pela tua honra, maldita seja á hora que trouxe esta sereia aos teus muros.
- Não fale assim, minha senhora - replicou George -; a honra da casa Douglas brilhará com um novo esplendor quando um dos seus membros tiver morrido pela mais adorável das mulheres e também a mais desventurada das rainhas.
- Infeliz criança - exclamou lady Lochleven desesperada -. Por que te deixaste prender tanto assim nas teias desta moabita? Trocaste a tua honra, a tua fé e as tuas juras pelas lágrimas de crocodilo e pelo sorriso que enfeitiçou o débil Francisco e o imbecil Darnley?
- Não blasfeme, senhora minha - gritou Douglas -. Quanto à senhora, minha bela rainha, minha virtuosa e linda princesa não julgue mui severamente a presunção de seu vassalo neste momento. Acreditou por acaso que o simples devotamento de um súdito me faria desempenhar o papel ao qual me afoitei? Sem dúvida é bem merecedora de que seus súditos afrontem a morte por sua causa; mas eu fiz mais ainda, fiz aquilo que unicamente o amor podia, levar um Douglas a fazer: eu dissimulei. Adeus, portanto, rainha de todos os corações e soberana do coração de Douglas. Quando for libertada dessa indigna escravidão - e o será algum dia, se é que ainda há justiça no céu - conceda um pensamento àquele que não aspiraria a outra recompensa senão beijar-lhe a mão: conceda um suspiro à sua fidelidade e uma lágrima à sua memória -. Dizendo isto, lançou-se aos seus pés e, tomando-lhe a mão ela não tivera coragem ou tempo para retirar, nela apoiou ternamente os lábios.
- Fuja, Douglas - exclamou Mary Stuart -; fuja, sua rainha lhe ordena.
Êle ergueu-se precipitadamente.
- Minha vida está à sua disposição -. E puxando da espada abriu caminho por entre os lacaios que lhe barravam a porta. Foi tudo tão rápido e tão imprevisto que só lhe poderiam ter interceptado a passagem por meios violentos. Como os criados do castelo, porém, o amavam e temiam, nenhum se atreveu a opor um empecilho à sua fuga. Lady Lochleven ficou mais colérica ainda quando o viu fugir.
- Mas então eu estou cercada de traidores? - bradou ela -. Sigam-lhe no encalço imediatamente e mo tragam morto ou vivo.
- Minha senhora, êle não pode sair da ilha, - disse Dryfesdale - pois eu estou com as chaves da corrente das barcas.
Nessa altura ouviu-se a voz dos servos que o tinham perseguido anunciando do jardim que êle se lançara no lago.
- Atirem - ordenou lady Lochleven.
Ecoaram dois ou três tiros de espingarda, provavelmente dados para simular obediência às ordens da senhora do castelo. Randal, que foi o primeiro a voltar, trouxe a notícia de que o senhor de Douglas havia sido recolhido por uma embarcação que se achava no lago, a curta distância.
- Tome outro barco, - disse lady Lochleven - e siga sem demora em seu encalço.
- É demasiado tarde - respondeu Randal.
- Então êle fugiu! - exclamou a velha senhora batendo com as mãos na fronte -. A honra de nossa casa está irremediavelmente perdida e nós figuraremos como cúmplices de sua traição.
- Lady Lochleven, - murmurou Mary dirigindo-se a ela -, embora tenha destruído na noite de hoje as mais belas de minhas esperanças, mesmo assim concedo aos seus desgostos a piedade que recusa aos meus. Gostaria de a poder consolar.
- Deixe-me, mulher dissimulada -, retrucou lady Lochleven -. Quem já soube alguma vez na vida melhor do que a senhora, infíingir as penas mais cruéis sob essa máscara de cortesia e bondade?
- Não me pode ofender neste momento, lady Lochleven. Contraí esta noite tamanhas dívidas para com um dos membros da família de Douglas, que devo perdoar tudo quanto a senhora deste castelo me disser ou fizer no seu ímpeto de violência.
Depois disso Mary recolheu-se ao quarto, enquanto lady Lochleven, inteiramente fora de si, se afastava dos aposentos murmurando palavras de ódio e vingança.
POR mais entediado que se sentisse com a permanência no castelo de Lochleven e por maior desgosto que tivesse com o fracasso do projeto de fuga da rainha, creio que Roland nunca se levantou com sensações mais agradáveis do que aquelas que se lhe apresentaram no dia seguinte ao do malogrado plano de Douglas para libertar Mary Stuart. A princípio ficou convencido de que havia interpretado erroneamente o que lhe insinuara o abade Ambrose, dizendo-se que pensara unicamente na miss Seyton, ao passo que o abade se referia à rainha. Em seguida começou a esperar pela possibilidade de um encontro com a miss Seyton, a fim de lhe participar que a partir de então se dedicaria à sua causa para todo o sempre; o destino foi-lhe muito complacente, oferecendo-lhe a tão desejada possibilidade muito mais cedo do que êle supunha.
À hora de costume o intendente trouxe o almoço; logo que o pôs na mesa do salão, disse a Roland em tom sarcástico:
- Meu jovem pajem, deixo-o desempenhar aqui as atribuições do trinchador e de provador. Há muito tempo elas vêm sendo exercidas perante lady Mary por um membro da casa de Douglas.
Tendo ficado sozinho, Roland pôs-se a meditar da melhor maneira a graça com que Douglas se desincumbia dessa missão diante da rainha da Escócia. Punha naquilo algo de mera vaidade; punha um pouco da generosidade devotada de um soldado valente quando toma o lugar de um camarada que caiu diante dos seus olhos.
- Agora eu sou o único paladino, e, aconteça o que acontecer, enquanto tiver recursos para tanto, permanecerei destemido, fiel e tão digno de confiança quanto qualquer Douglas.
Nessa altura, contra seus hábitos, Catherine apareceu sozinha e, o que era menos usual ainda, entrou enxugando os olhos com um lenço. Com o coração palpitante, Roland aproximou-se dela, perguntando-lhe em voz baixa e hesitante como ia a rainha.
- Como pode fazer-me uma pergunta desta? - respondeu ela -. Julga que ela tenha uma alma de bronze ou de aço para resistir ao cruel contratempo de ontem à noite? Oxalá permitissem os céus que eu fosse homem para poder servi-la mais eficientemente.
- Nem sempre são homens os que usam punhais e pistolas - retrucou o pajem -; por vezes são apenas amazonas, e nem por isso deixam de ser menos formidáveis.
- Pode ser que você aprecie fazer espírito - murmurou Catherine -; mas eu, no entanto, no momento não estou absolutamente disposta a divertir-me.
- Consinta então que eu lhe fale seriamente. Em primeiro lugar, permita-me dizer-lhe que provavelmente as coisas teriam corrido melhor a noite passada se se tivesse dignado pôr-me ao corrente dos seus projetos.
- Tal era a intenção. Mas, como podíamos adivinhar que o senhor pajem ia ter a fantasia de passar a noite no jardim, como um cavalheiro errante de romances espanhol, em lugar de se achar no quarto quando Douglas lá foi a fim de comunicar o nosso plano?
- E por que retardaram tanto essa confidência?
- Porque suas relações com Henderson nos faziam recuar quando surgia a ocasião de lhe confiar tão importante segredo.
- Mas então, - disse Roland insultado, - desde que eu lhes inspirava tantas suspeitas, por que resolveram confiar-mo à última hora?
- Fique sabendo - continuou Catherine - que tínhamos dois motivos para lhes confiar o segredo: O primeiro, porque seria muito difícil ocultá-lo aos seus olhos, uma vez que estaríamos obrigados a atravessar a antecâmara que lhe serve, de quarto; o segundo...
- Ora essa - exclamou o pajem - dispenso perfeitamente o segundo. O primeiro por si só, já constituía uma prova de confiança.
- Paz! - falou Catherine -. Ouça-me. O segundo, dizia eu, é a existência de uma louca entre nós que, não obstante sua cabeça esquentada, julga o coração de Roland Graeme muito bondoso; alguém lhe julga sua honra e sua fé indiscutíveis, se bem que por vezes sua língua seja demasiadamente solta.
- Dir-me-á, miss Seyton, - interrogou o pajem encantado -, o nome dessa amiga generosa que se dignou de fazer justiça ao pobre Roland? Dir-me-á a quem devo apresentar os mais eloqüentes agradecimentos?
- Já que seu coração não lho diz, - respondeu Catherine sempre de olhos baixos - é preciso...
- Querida Catherine !- gritou Roland tomando-lhe a mão e dobrando um joelho diante dela.
- É preciso que seja bem ingrato, - prosseguiu ela -, pois, segundo a bondade maternal de lady Fleming...
- Por Deus do céu, Catherine.- disse o rapaz erguendo-se precipitadamente -. Tanto suas frases como sua pessoa são hábeis nos disfarces. Você bem sabe que lady Fleming só pensa em si própria e na rainha. Aliás, você não ignora também que pouco se me dá a opinião de qualquer das outras, até mesmo a da rainha, se você não tiver de mim um bom conceito.
- Isto é ainda mais vergonhoso para você - respondeu Catherine cheia de sangue-frio.
- Diga-me, Catherine, por que arrefece assim o meu ardor, justamente quando pretendo, dedicar-me de corpo e alma à causa de sua senhora?
- Porque agindo assim, - retrucou ela com os olhos em chamas e o rosto coberto de rubor -, juntando a ela um motivo menos puro, um mero impulso de egoísmo você degrada uma causa profundamente nobre.
- Minha bela Catherine, antes de qualquer coisa, como se estivesse em confissão, responda a minha pergunta! Eu sei que a bela rainha é infeliz... mas... você a julga inocente? Acusam-na de assassínio!
- Devo julgar por acaso a ovelha culpada, unicamente porque vejo os lobos estraçalhando-a?
- Gostaria de estar tão convencido quanto você parece estar - continuou o pajem suspirando e baixando os olhos -. Uma coisa, porém, é certa; ela sofre um cativeiro injusto. Defenderei sua causa até a morte.
- De verdade? - bradou Catherine tomando-lhe por sua vez a mão - Oh! tenha sempre tanta constância de espírito quanta coragem e arroubo tem no coração..
- Mas quando eu houver logrado êxito na libertação da rainha, querida Catherine, não poderíamos cogitar de uma recompensa para mim? Amor, por exemplo?
- Este é um assunto sobre o qual teremos muito tempo para falar. Cuidemos primeiro da rainha.
- É impossível que eu não logre êxito; apesar disso, farei todos os esforços possíveis para o conseguir, e isto é tudo quanto se pode exigir de um homem. É necessário que saiba, bela Catherine, pois desejo que você leia no fundo do meu coração, que não é apenas o desejo de salvar a rainha ou a ânsia de obter uma recompensa que você não quer discutir que me impelem a trabalhar para tal libertação. Faço isso tudo porque me sinto obrigado a fazê-lo por imperioso dever.
- Deveras? Mas há ainda bem pouco tempo, você nutria suas dúvidas quanto a êle.
- Sim, mas então a sua vida não estava ameaçada.
- Ameaçada? - indagou Catherine em tom que mostrava preocupação e terror.
- Não se alarme. Mas não viu de que modo a rainha e lady Lochleven se separaram? Escutei o juramento de vingança que esta última pronunciou; tal juramento foi ouvido também por um homem que a êle respondeu de modo a provar que está disposto a executá-lo.
- Você me apavora! - exclamou Catherine.
- Não se deixe abater assim. Seja "homem", Catherine: você bem sabe sê-lo quando quer.
Catherine esforçou-se por sorrir.
- Compreendo o que quer dizer - respondeu ela-; mas não me faças perguntas agora sobre o assunto que tanto lhe perturba o espírito; com o tempo saberá de tudo. Sabê-lo-ia desde já se...Mas psiu! Eis a rainha.
Mary surgiu dos seus aposentos mais pálida que de costume, aparentemente esgotada pelas fadigas de uma noite passada entre dolorosas reflexões. Contrariamente aos seus hábitos, sua "toileite" fora feita às pressas e seus cabelos geralmente arranjados cuidadosamente por lady Fleming, fugiam da touca que mal os cobria, caindo-lhe sobre os ombros em compridos cachos.
Assim que ela apareceu à porta, Catherine enxugou as lágrimas e foi-lhe ao encontro, dobrou então um dos joelhos, e, depois de lhe beijar a mão, ergueu-se sem demora e se postou ao seu lado para partilhar com lady Fleming a honra de ampara-la. O pajem aproximou o sofá no qual Mary habitualmente se sentava, arranjou a almofada, preparou um tamborete aos seus pés e, saindo um instante de perto da mesa, foi tomar o lugar que habitualmente ocupava o jovem senescal nas horas de refeição, pronto a desempenhar suas funções. Os olhos da rainha fixaram-se um instante sobre êle e não puderam deixar de notar a mudança.
- Pobre Douglas! - exclamou.
- Sim, minha senhora, - disse Catherine fingindo alegria a fim de dissipar a pesada tristeza da rainha - perdemos nosso bravo cavalheiro; resta-nos, porém, o jovem escudeiro, que nem por isso é menos devotado ao serviço de Vossa Majestade, e que, por minha boca, lhe oferece o seu braço e a sua espada.
- Mas para quê, para quê, Catherine, havemos de procurar arrastar novas vítimas em nossa ruína? Não será melhor cessar de lutar?
- Não fale assim diante de seus súditos fiéis - disse Catherine -; quer arrefecer-lhes o zelo e partir-lhes o coração? - Roland, provemos à nossa soberana que somos dignos de abraçar sua causa, e assim forcemo-la a tornar a si.
Encaminhando-se com Roland para perto da rainha, ambos se prosternaram diante dela. Mary ergueu-se e, enquanto dava uma das mãos a beijar ao pajem, com a outra afagava as tranças que cobriam a fronte da arroubada Catherine.
- Mas, meu bem, -. exclamou então, tratando assim a jovem acompanhante -- será preciso que você e o rapaz, tão jovens ambos agreguem uma existência inteira ao destino de uma mulher sem ventura? Veja-os, Fleming; não formam uma dupla adorável? Não é uma pena pensar que os dois se perderão comigo?
- Não, - exclamou Roland com vivacidade - não Graciosa soberana, nós seremos os seus libertadores.
- Se voltarmos ao nosso trono, Fleming, teremos as alegres bodas de um casal, cujo nome não lhe quero declinar hoje. Mary se esquecerá então do peso de seus desgostos e das preocupações do seu trono, e ainda uma vez abrirá um baile. Fleming quais foram as bodas em que dançamos pela derradeira vez? quero crer que as contrariedades me perturbaram a memória, pois não consigo lembrar-me de nada! Pode ajudar-me, Fleming? Estou certa que sim.
A mulher que fora educada na corte, não ousou deixar a frase sem resposta; pálida como uma morta, gaguejou hesitante:
-- Graciosa soberana...se não me falha a memória... foi um baile de máscaras... em Holyrood... no casamento de Sebastian...
A rainha, que até esta última palavra a estivera ouvindo com melancólico sorriso, interrompeu-a com um grito agudo que ecoou pelas arcadas do aposento. Roland e Catherine, que se haviam conservado a seus pés, ergueram-te precipitadamente, enquanto lady Fleming parecia a imagem viva da consternação. As idéias horríveis que o maldito nome despertaram no espírito de Mary levaram-na a perder todo o controle e até mesmo o uso da razão.
- Traidora! - gritou ela fixando seus olhos alucinados em lady Fleming -. Querias assassinar tua soberana! Chamem a guarda francesa. Socorro! Socorro! Meus franceses! Mataram o meu esposo! Socorro! Socorram a rainha da Escócia -. Deu alguns passos para a frente: seus traços, anteriormente tão serenos não obstante sua palidez, inflamaram-se de furor.
- Pelo amor de Deus, minha caríssima soberana, acalme-se por favor - pediu Catherine chorando. Voltando-se então para lady Fleming, murmurou com azedume: - Como pôde dizer-lhe algo que lhe recordasse o marido?
Esta última palavra feriu o ouvido da desventurada princesa.
- Seu marido? - indagou ela -. Que marido?
- Rogo-lhe, minha senhora, - suplicou lady Fleming - que tenha um pouco de calma e tranqüilidade.
Mas a imaginação delirante da rainha não se podia desviar das idéias negras que a invadiam.
- Seu espírito está cada vez mais transtornado, - disse lady Fleming -, e aqui há muitos ouvidos.
- Pelo amor de Deus, Roland, - suplicou Catherine - retire-se. Você aqui não pode prestar nenhum socorro; deixe-nos só com a rainha. Vá-se embora! Vá-se embora!
Dizendo isso, empurrou-o para a antecâmara. Uma vez ali e mesmo com a porta já fechada, êle continuou a ouvir a rainha que falava alto e em tom categórico, como se estivesse dando ordens; afinal ela se foi acalmando até que só se fizeram audíveis seus prolongados gemidos.
Nessa altura Catherine entrou na antecâmara.
- Não fique muito preocupado, - disse ela - a crise já passou. Mantenha, porém, a porta fechada, e não deixe ninguém entrar até que ela esteja completamente calma.
- Em nome de Deus! O que significa tudo isto? - indagou o pajem - O que tinham as palavras de lady Fleming para produzirem sobre a rainha efeito tão terrível?
- Ora, lady Fleming! - exclamou Catherine impaciente -. Lady Fleming é uma louca. Embora muito afeiçoada à sua senhora, prova-lhe tão mal o seu devotamento, que se a rainha porventura lhe pedisse veneno julgaria seu dever obedecer.
- E que história de Sebastian é essa? Aqui só vejo e ouço enigmas.
Você não é mais sensato do que lady Fleming - replicou a miss Seyton -. Então não sabe que na noite em que Henry Darnley foi assassinado a rainha estava ausente num baile de máscara que ofereceu a Holyrood para festejar o casamento de Sebastian, seu criado favorito, com uma moça ligada ao seu serviço? - Mas continue a tomar conta da porta. Por nada no mundo eu toleraria que um desses hereges visse a rainha em estado tão deplorável.
Mal Catherine deixou o quarto, Roland ouviu girar o trinco da porta que dava para a escada; o ferrolho interno, porém, resistiu aos esforços da pessoa que queria entrar.
- Quem está aí? - perguntou o pajem.
- Sou eu -, respondeu a voz áspera e azeda de Dryfesdale -. Vim saber a causa dos gritos que partem do apartamento da rainha.
- Ela não precisa dos teus socorros nem dos da tua senhora; não quer receber ninguém. Portanto vai-te embora e, deixa de ser importuno.
Forçado a satisfazer-se com esta resposta, Dryfesdale retirou-se e foi logo ao encontro de lady Lochleven, que se achava sozinha em seu quarto. Esta se esforçava por concentrar a atenção numa bíblia quando Dryfesdale, com a fisionomia ainda mais sombria e sinistra que de costume, apresentou-se perturbado diante dela.
- Depois de ter sido tão duramente insultada a noite passada, milady pode julgar-se bem vingada esta manhã. Onde está o capelão?
- Que significa isto e qual é o motivo de sua pergunta?
- Mary da Escócia está morrendo.
- Morrendo!? bradou lady Lochleven erguendo-se precipitadamente - Morrendo no meu castelo? De quê? Qual foi o acidente?...
- Paciência, milady, paciência. Fui eu quem fêz tudo.
- Tu...Celerado! Como ousaste? - Quando insultada, milady pediu vingança: prometi vingada e agora vim dizer-lhe que a promessa foi cumprida.
- Monstro! Terás ousado envenenada?
- Se eu o tivesse feito, qual seria o grande mal? Não se envenenam por acaso os insetos daninhos e os animais destruidores?
- Se é que queres salvar o pescoço da corda que bem mereces, põe-me logo ao corrente da verdade.
- Saiba então, milady, que a última vez que fui a Kinross consultei uma velha chamada tia Nicniven. Ela me entregou um pozinho branco, dizendo-me: - Mistura-o em qualquer bebida e tua vingança será completa.
- Diabólico celerado! Então misturaste o pó infernal ao alimento da cativa para desonrares imediatamente a casa do teu senhor?
- Dissolvi-o na garrafa de água de chicória que elas raramente deixam de esvaziar.
- Some da mina vista e deixa-me ir ver se já não é demasiadamente tarde para...
- Não permitirão que entre, milady, a menos que empregue a violência. Apresentei-me em vão diante da porta.
- Se fôr preciso, mandarei arrombá-la... abrirei qualquer janela. Randal! - gritou ela - Randal! Aconteceu uma grande desgraça! Toma um barco, rema com vontade e vai até Kinross. Traze-me o camarista Luc Lundin; dizem que tem alguns conhecimentos de medicina. Traze também a terrível feiticeira chamada Nicniven; é preciso que ela repare o mal que fêz. Dê-lhe em meu nome um salvo conduto, prometendo-lhe também plena e absoluta segurança. Trata de ir depressa; tua vida responderá pelo menor atraso.
- Eu devia ter adivinhado tudo isto - disse Dryfesdale mal humorado.
- Vai para a prisão da torre, miserável, e não saias de lá até que eu veja como acaba tão horrível aventura.
Assim que êle se foi lady Lochleven correu para a porta dos aposentos da rainha; mas em vão ordenou ao pajem que a abrisse.
- Jovem insensato, - dizia ela - sabes por acaso que disso depende a tua vida e a vida da tua senhora? Ordeno-te que abras imediatamente ou, do contrário, arrombarei a porta.
- Não a posso abrir sem ordem da rainha - respondeu Roland -. Ela passou muito mal e agora está repousando.
- Pelo menos toma cuidado para que ninguém toque em nada do que foi servido esta manhã, sobretudo na garrafa de água de chicória - concluiu Lochleven.
Depois disso dirigiu-se à prisão da torre, onde encontrou Dryfesdale, preso sob palavra, ocupado em ler a bíblia.
Enquanto lady Lochleven visitava seu intendente, Roland, através da porta comunicava a Catherine a conversa que tivera com a senhora do castelo.
- Queria envenenar-nos então! - bradou a miss Seyton -. Eis aqui o licor fatal que devia fazer-nos dormir um longo sono. Sim, devíamos esperar por isto, isto tinha que acontecer no momento em que Douglas não provasse mais os nossos alimentos. E você, Roland, designado para substituí-lo em tais funções, estava destinado a morrer conosco. Minha cara lady Fleming, mil vezes perdão pelas injúrias que lhe dirigi num momento de raiva. Foi o céu quem lhe inspirou as palavras que deviam salvar a nossa vida e a vida da rainha. A rainha ainda está dormindo; temos que ganhar tempo. É preciso que a feiticeira não saiba que seu plano fracassou. Ajude-me, Roland; esvazie na cinza da lareira a garrafa de água de chicória, mexa em todos os pratos, suje-os, para que possamos dar a impressão de termos almoçado como de costume. Vou sentar-me perto da rainha; assim que despertar eu lhe relatarei o risco que corremos; como tem o espírito fértil em recursos, dir-nos-á o que convém fazer. Entrementes, Roland, recorde-se de que até nova ordem a rainha está sofrendo muito. Lady Fleming em estado de torpor (este é o papel que melhor lhe convém, disse a moça baixinho, pois lhe poupará qualquer cansaço de espírito). Quanto a mim... eu estou levemente indisposta. Compreendeu?
Mal as duas senhoras tinham voltado ao quarto de dormir da rainha, lady Lochleven bateu de novo à porta. O pajem resistiu um momento pró forma, e abriu-a logo em seguida pedindo muitas desculpas:
- A rainha - murmurou êle - sentiu-se indisposta assim que acabou de almoçar. Levaram-na para a cama, onde ela se acha imersa em profundo sono.
- Ela então comeu e bebeu? - indagou lady Lochleven entrando no salão.
- Claro - respondeu o pajem.
- E a garrafa? - indagou ela procurando-a com os olhos --. Está vazia. Lady Mary bebeu todo o conteúdo?
- Quase três quartos, minha senhora; eu até ouvi a miss Seyton fazer, de brincadeira, uma censura a lady Fleming dizendo que como esta não lhe deixara uma quantidade razoável, ela mal conseguira provar.
- E como estão as duas?
- Não sei o que significa isso - prosseguiu Roland -; o fato é que lady Fleming se tem queixado de uma espécie de letargia e parece mais lerda, que de costume; isso com lady Fleming; quanto à miss Seyton, parece ainda mais avoada.
- Eu preciso entrar, no quarto da rainha, - continuou lady Lochleven - É absolutamente necessário que eu a veja....
Quando se encaminhou para a porta, a miss Seyton murmurou a meia voz:
- Ninguém entrará aqui. A rainha está repousando.
- Afirmo-lhe que preciso entrar, menina. Sei que não existe nenhuma tranca de ferro pelo lado de dentro, portanto mesmo contra a sua vontade eu hei de entrar.
- É exato que não há nenhuma tranca; não obstante, as argolas estão em seu lugar. Enfiei nelas meus braços, exatamente como fêz uma das suas ancestrais, mais leal do que os Douglas de hoje em dia, que assim protegeu o quarto de sua soberana contra a sanha dos assassinos. Experimente a sua força e veja se uma Seyton não pode ter a mesma coragem de uma Douglas.
- Se é assim, não me atrevo a abrir passagem - murmurou consigo mesma lady Lochleven - Seyton, - acrescentou ela em voz alta - juro-lhe pela minha honra que só o interesse pela rainha é que me trás aqui. Se gosta dela, desperte-a e peça-lhe que me deixe entrar.
Catherine ajoelhou-se perto do leito de Mary e, beijando-lhe a mão inúmeras vezes, conseguiu despertá-la sem sobressaltos. A princípio Mary Stuart mostrou-se surpreendida por estar deitada na cama inteiramente vestida; mostrava-se, porém, tão calma e tão tranqüila, que a miss Seyton julgou conveniente informá-la em algumas palavras e sem preâmbulos, de tudo quanto ocorrera. A rainha empalideceu e persignou-se ao saber do risco que correra.
- Não temos nada de melhor a fazer, meu bem, - disse ela a Catherine - do que seguir o plano que teu espírito e tua afeição sugeriram Com tanta ousadia e tanta rapidez. Abre a porta e deixa lady Lochleven entrar; assim ela defrontará alguém que, se não lhe é igual em perfídia, pelo menos o é em astúcia. Puxe as cortinas, Fleming, e esconda-se atrás delas, apoiada em minha cama. Duvido que seja uma boa atriz; mas finja que respira com dificuldade e solte um gemido de vez em quando; é seu papel, Psiu! Estão chegando.
Catherine introduziu lady Lochleven no quarto de dormir, onde reinava a penumbra. Na pontinha dos pés a senhora do castelo encaminhou-se para o leito. Mary lá estava estendida, em tal imobilidade que bastava para confirmar os temores da anfitriã.
- Deus queira perdoar nossos pecados! - exclamou lady Lochleven esquecendo-se do seu orgulho e pondo-se de joelhos perto do leito - Então é bem verdade! assassinaram-na!
- Quem está no meu quarto? - indagou a rainha como se estivesse despertando de profundo sono -. Seyton, Fleming, onde estão vocês? Parece-me que ouvi uma voz estranha. Oh! É nossa boa anfitriã. Durante muito tempo, minha boa lady Lochleven, constituímos um fardo muito pesado para a senhora; pensamos, porém, que suas funções chegam ao fim.
- É com o coração despedaçado - retrucou lady Lochleven - que eu suplico a Vossa Graça a bondade de me dizer o que sente, a fim de que se possa encontrar meios de aliviá-la.
- Não sinto nada de mais respondeu a rainha; apenas um torpor espalhado por todos os membros e um frio no coração. Mas os membros e o coração de um prisioneiro raramente não sofrem tais sintomas. Creio que um pouco de ar livre e fresco contribuiria para a minha cura.
Lady Fleming cuidou que o momento era favorável para provar que não lhe tinham apreciado convenientemente a habilidade. Erguendo bruscamente a cabeça exclamou:
- Não seria de todo inútil se a senhora procurasse ver o efeito que a liberdade poderia produzir sobre nossa saúde. Pelo que me diz respeito, estou plenamente convencida de que um passeio na várzea me faria o maior bem deste mundo.
- Ora essa! - exclamou lady Lochleven fitando-a com um olhar penetrante -. Está seriamente indisposta, milady?
- Mui seriamente, minha senhora - respondeu lady Fleming -. Especialmente depois do almoço.
- Socorro! socorro! - bradou Catherine, desejosa de interromper uma palestra que não prenunciava nada de bom -. A rainha perdeu os sentidos. Ajude-me a socorre-la, lady Lochleven.
Lady Lochleven foi buscar água e pôs-se a esfregar o rosto e a fronte da rainha, prodigando-lhe todos os cuidados possíveis. Ao fim de alguns instantes Mary abriu os olhos e, fixando-os na senhora do castelo, disse em tom desfalecente:
- Muito obrigada, minha cara lady Lochleven, muito obrigada.
Enquanto a rainha assim se expressava, Roland pela janela viu um barquinho aproximar-se rapidamente da margem . Reconheceu o médico camarista com sua roupa de veludo verde sentado na popa, enquanto Magdalen Graeme, alcunhada de tia Nicniven, de pé na proa, com as mãos postas e a cabeça voltada para o castelo dava a impressão de já estar lá, tamanho era o desejo que tinha de já ter chegado. Desembarcaram afinal. Deixaram a pretensa feiticeira numa sala do andar térreo e conduziram o médico aos aposentos da rainha, onde êle entrou com aspecto sério e solene.
- Lundin, - falou lady Lochleven - diga-me sem demora se esta dama ingeriu alguma coisa nociva e perigosa.
- Mas, minha digna senhora, minha mui honrada dama, se minha ilustre doente se recusa a responder-me por outra coisa senão suspiros e gemidos, se a outra senhora sentada perto da cama só faz bocejar quando lhe pergunto quais são os sintomas do seu mal, e se finalmente a linda senhorita, ou aliás a que eu considero como tal...
- Não se trata de moças bonitas - gritou lady Lochleven -. Tomaram ou não tomaram veneno? Sim ou não?
- Os venenos, milady, dividem-se em três classes - respondeu o doutor camarista -: alguns como o Lúpus marinus, são extraídos do reino animal... e os outros do reino mineral.
- Onde já se viu um louco semelhante! - bradou a dona do castelo -. Mas eu sou mais louca ainda por esperar alguma coisa aproveitável de uma fonte como essa. Mandem subir a velha feiticeira. É preciso que ela declare o que deu ao bandido do Dryfesdale; do contrário, mandarei cerrar-lhe os polegares até ela confessar.
Magdalen Graeme não tardou a chegar.
- Miserável, - disse-lhe lady Lochleven em tom de desprezo - qual foi o pó que deste ao, servo desta casa chamado Robert Dryfesdale? Confessa sem demora o que foi, ou então, antes que o sol se ponha, mandarei que te queimem viva. Tragam aqui Dryfesdale para o acarear com ela.
- Não dê esse trabalho a sua gente, minha senhora, Não vim aqui para ser acareada com um vil lacaio. Preciso falar com a rainha da Escócia. Abram caminho.
Dizendo isso, empurrou lady Lochleven para o lado, que confusa com tanta audácia e transtornada com o novo insulto que acabava de receber, entrou por sua vez no quarto da rainha.
- Levanta-te! - bradou a velha - levanta-te, rainha da França e da Inglaterra! Não te rebaixes a fingir com os mesmos traidores que bem cedo defrontarás no campo de batalha.
- Impostora! - exclamou lady Lochleven voltando a si da sua surpresa - Não passas de uma impostora. Levem-na para um calabouço.
- Lady Lochleven, - disse Mary erguendo-se do leito e dirigindo-se para ela com o ar de dignidade que lhe era natural - antes de mandar prender alguém na minha presença, ouça-me um instante. Fui injusta com a senhora, julguei-a cúmplice do projeto que seu intendente formara para me envenenar, e enganei-a fazendo-lhe crer que êle havia conseguido seu intento. Reconheço o meu erro, milady, pois vejo que sinceramente deseja o meu restabelecimento. Saiba, portanto, que não toquei na beberagem que a traição havia preparado para mim, e que é unicamente a necessidade de liberdade que me faz sofrer.
- É uma confissão digna de Mary da Escócia - confirmou Magdalen Graerne -. Saiba aliás, mulher orgulhosa, - disse ela dirigindo-se a lady Lochleven - que mesmo que a rainha tivesse bebido a beberagem até ao fim, não lhe aconteceria maior mal do que se bebesse a água mais pura tirada do poço. Julga que eu, eu, teria posto um veneno nas mãos de um servo ou de um vassalo da casa dos Douglas, sabendo quem estava presa neste castelo?
- Serei de tal modo desafiada no meu próprio castelo? - atalhou lady Lochleven -. Levem-na imediatamente e inflijam-lhe o castigo reservado às feiticeiras e às envenenadoras.
Magdalen, porém, mostrando o seu salvo-conduto, relembrou a lady Lochleven a sua promessa.
- Pois bem! Randal que leve a feiticeira de volta a Kinross e lá a ponha em liberdade, prevenindo-lhe, porém, sob pena de morte, de que nunca mais ponha os pés em meus domínios.
Depois dessa cena lady Lochleven recolheu-se aos seus aposentos, ordenando que levassem o intendente à sua presença.
- Bandido! - disse ela -. Acabei de escrever a meu filho e vou mandar-lhe um mensageiro para trazer a sua sentença. Por isso, se quiseres, trata de te preparar para a morte.
- Aquele que olha a morte como coisa inevitável que deve chegar a uma hora fixa e determinada, está sempre preparado, milady. Mas a quem vai encarregar dessa bela mensagem?
- Gabo-me de não ter falta de mensageiros.
- Pois bem, minha senhora, vai ter falta de um. Só tem no castelo uma guarnição, muito limitada, dada a fiscalização que exigem suas prisioneiras; despediu os três homens que suspeitou estarem de acordo com o senhor George Douglas; precisa de uma guarda permanente de cinco homens; os demais não têm tempo nem para tirar a roupa e descansar um pouco. Contratar novos homens seria arriscado, porque a senhora necessita de pessoal seguro e experimentado. Não vejo, portanto, outro meio senão encarregar-me eu mesmo de sua mensagem a sir William Douglas. Milady, já nasci como servo dos Douglas. Levarei a sua mensagem ao seu filho tão fielmente como se se tratasse do pescoço de outro. E ao meu acontecerá o que tiver de acontecer...
Lady Lochleven deu suas ordens para que preparassem um barco enquanto Dryfesdale se dispunha a desempenhar uma missão tão pouco comum.
Se bem que sua desgraça já houvesse transpirado, o intendente mal chegou a Kinross não teve dificuldade em achar um cavalo. Prestes a partir para Edimburgo, o carroceiro Auchtermuchty prontificou-se a seguir com êle, uma vez que as estradas não tinham fama de muito seguras.
O digno carroceiro nunca deixava de ter razões excedentes para parar pelo caminho freqüentemente e em qualquer lugar que lhe parecesse bom; um local porém que êle nunca deixava à margem era o botequim isolado num lindo vale, conhecido pelo nome de Keirie-Craigs.
O velho Keltie, dono do albergue, acolheu Auchtermuchty com ar de alegre cordialidade; entraram juntos na casa sob o pretexto de um negócio importante, que na realidade não era outra coisa senão o desejo de esvaziarem juntos uma ou duas canecas de "usquebaugh". (Bebida escocesa)
Enquanto os dois amigos assim se entretinham, Dryfesdale, muito aborrecido, penetrou na cozinha do botequim. Não havia ali ninguém, salvo um estrangeiro como êle. Era um rapaz vestido de pajem, cujo olhar e atitudes denotavam altivez aristocrática, cheio de um atrevimento que chegava às raias da insolência.
- Meus cumprimentos - disse o rapaz em tom de intimidade -. Segundo suponho, veio de Lochleven? Quais são as novidades sobre a nossa boa rainha?
- Os que falam sobre o castelo de Lochleven e sobre aqueles que vivem entre suas paredes -- retrucou Dryfesdale secamente. - falam do que concerne aos Douglas; e aqueles que falam do que concerne aos Douglas, incorrem em riscos e perigos.
- Diz isso pelo receio que eles lhe inspiram, meu velho, ou o diz por que deseja brigar com eles? Penso que a idade devia ter-lhe esfriado o sangue.
- Nunca isso acontecerá, enquanto houver a cada passo jovens enfatuados que mo possam aquecer.
- A vista dos teus cabelos grisalhos impede que o meu escalde - respondeu o pajem, que, depois de se ter levantado, voltou a sentar-se numa cadeira.
- Tanto melhor para ti, porque do contrário to arrefeceria com esta vara de azevinho. Creio que és um desses valentões que, se as palavras fossem espadas e as juras mosquetes, bem cedo reporiam a rainha no trono.
- Não digas mais nada! - bradou o rapaz -. Se disseres, por São Bennet de Seyton, dou-te uma bofetada, velho herege e caduco.
- São Bennet de Seyton! - repetiu o intendente -. Vou prender-te como traidor do rei Jacques e do digno regente. Hei Hei! Auchtermuchty! Ajude-me contra um traidor do rei.
Dizendo isso agarrou o colete do pajem e, desembainhando a espada, ergueu-a para ferir; mas o pajem, que tirara ao mesmo tempo o seu punhal, desferiu-lhe dois golpes, ambos mortais. Soltando profundo gemido, o intendente caiu.
- Rapaz, fizeste a mim o que eu já fiz a muitos outros -; estou sofrendo o que já vi sofrer. Estava escrito que eu morreria assim e tu não podias deixar de executar a decisão eterna. Mas, se quiseres ser justo comigo, encarregar-te-ás de fazer chegar por um caminho certo esta carta a sir William Douglas, a fim de que não me acusem de a ter desviado por temer pelo meu pescoço; isto desonraria a minha memória,
O rapaz cuja cólera sucedera o remorso e a piedade, ouvia atentamente o que lhe dizia o moribundo, quando George Douglas, enrolado numa vasta capa que o cobria até os olhos, entrou no aposento.
- Justos céus! Dryfesdale! Dryfesdale agonizante!
- Sim, - disse o intendente - é Dryfesdale; é Dryfesdale que lamenta não ter morrido antes de ouvir a voz do único Douglas que já foi um traidor! Não obstante, não lamento tê-lo visto. Julguei que a poção preparada por mim afastaria do senhor todas as tentações. Se bem que eu tenha dado à sua mãe outras razões, a principal foi minha amizade ao senhor. Não se deixou por acaso encantar de tal modo pela bela feiticeira, que, à despeito de tudo quanto devia a seus pais, a sua religião e a seu rei, quis ajudá-la a fugir do castelo e a subir novamente ao trono?
- Cala-te, Dryfesdale! Pensa em Deus e procura arrepender-te; senão, fica calado. Seyton, ajuda-me a amparar este desgraçado a fim de que êle se possa acalmar e ter melhores pensamentos.
- Seyton! - repetiu o agonizante --; Seyton! É então pela mão de um Seyton que eu morro! George Douglas, adeus, morro... fiel à casa de teu pai.
As convulsões o assaltaram e ao fim de alguns minutos expirou. Seyton foi o primeiro a romper o silêncio.
- Juro-lhe pela minha honra, Douglas, que lamento o ocorrido. Mas êle me agrediu e me ameaçou com a espada; só desembanhei o meu punhal em legítima defesa. Ainda que fosse dez vezes seu servo e seu amigo, só posso dizer no momento que lamento profundamente.
- Lamento também que isto tenha acontecido, Seyton; entretanto não lhe faço censuras. É preciso examinarmos a tal carta.
Retiraram-se para a outra peça e lá permaneceram algum tempo em conferência. Keltie não tardou a encontra-los, e com ar embaraçado perguntou a George Douglas o que devia fazer do corpo e como explicaria aquela morte.
- Dize que êle insultou um Seyton amigo meu, e que o mesmo Seyton o puniu. Não receio a briga que possa resultar daí.
- Seu plano - disse Douglas a Seyton - concluindo a palestra, assim que Keltie saiu - parece-me muito bom; apesar disso, sem pensar em outros motivos, você é muito jovem e tem a cabeça muito esquentada para desempenhar o papel que pretende.
- Sobre isso consultaremos o abade. Vai hoje à noite a Kinross?
- Sim, a noite estará escura e acolhedora para quem não quiser ser reconhecido.
ENQUANTO isso, no seu quarto do castelo de Lochleven Mary escrevia. As três pessoas que compunham sua comitiva aguardavam com impaciência a chegada do jantar ao salão, sobretudo porque, como nos devemos lembrar não haviam almoçado.
- Creio - disse o pajem - que como falhou o projeto de envenenamento, agora vão tentar o da fome.
Lady Fleming ficou um tanto alarmada com tal observação; bem cedo, porém, se tranqüilizou, porque se recordou que toda a manhã a fumaça subira da chaminé da cozinha, fato que anulava aquela hipótese.
Catherine, que se achava à janela, gritou de repente:
- Ei-los! Ei-Ios! Os criados que trazem o jantar atravessam o pátio, precedidos da velha lady Lochleven.
Tendo mandado colocar os pratos sobre a mesa, lady Lochleven executou pessoalmente o cerimonial da prova.
A rainha apareceu sem demora, falando cortesmente com a senhora de Lochleven, em tom que muito se aproximava da cordialidade.
- Está agindo nobremente, milady - disse-lhe ela -. Se bem que pessoalmente não tenhamos nada a recear sob o seu teto, essas senhoras ficaram muito assustadas com o que aconteceu esta manhã; sua presença, porém, as tranqüilizará e lhes restituirá toda a alegria. Não quer sentar-se?
Lady Lochleven sentou-se e Roland pôs-se a desempenhar as funções de escudeiro trinchador. Não obstante as palavras da rainha, o jantar decorreu silencioso e triste, enquanto todos os seus esforços para animar a palestra eram arrefecidos pelas respostas frias e lacônicas da senhora.
De repente os interrompeu Randal, que entrou no apartamento com o aspecto de tal modo trantornado, que lady Fleming soltou um grito de surpresa; a rainha estremeceu ao passo que lady Lochleven, muito altiva para exteriorizar o seu espanto, perguntava-lhe apressadamente o que tinha êle para anunciar.
-- Minha senhora, Dryfesdale morreu. Foi assassinado há algumas milhas daqui pelo jovem Henry Seyton.
Houve um momento de silêncio. A rainha e lady Lochleven entreolharam-se. Catherine chorava com um lenço nos olhos.
- Veja, minha, senhora, como agem seus sanguinários papistas.
- Antes veja nisso - replicou Mary - a justiça do céu contra um calvinista envenenador.
- Muito bem, minha senhora. Apesar de tudo fico satisfeita por tal ocorrência poder reconciliá-la com o seu retiro, fazendo-lhe conhecer as pessoas que a desejam libertar. São todas elas uns monstros cruéis, sorvedores de sangue, desde os Seyton assassinos...
- A senhora se esquece de que eu sou uma Seyton - disse Catherine rubra de indignação, retirando o lenço do rosto. ,
- Se eu de fato me tivesse esquecido, minha amiga, sua arrogância bastaria para mo fazer recordar.
- Se meu irmão matou o celerado que quis envenenar sua irmã e sua soberana, só lastimo que lhe tenha cabido executar a tarefa que por direito devia caber ao carrasco Além disso, ainda mesmo que Dryfesdale fosse o mais valente dos Douglas, ser-lhe-ia uma honra perecer pela espada de um Seyton.
- Adeus, menina - disse lady Lochleven, erguendo-se para ir embora - são as moças como você que tornam a rapaziada dissipada e brigona. Adeus, minha senhora - disse ela à rainha -; por mais desagradável que lhe seja a minha presença, voltarei aqui à hora do "apaga-fogo" para lhe servir a ceia.
- É coisa deveras muito estranha - murmurou a a rainha, depois da saída de lady Lochleven -; dize-me, meu bem, teu irmão continua a se parecer tanto contigo como outrora? Lembro-me que tua mãe alegava essa semelhança como um dos motivos para te destinar ao claustro. Dizia que se ambos ficassem em sociedade, certamente te atribuiriam algumas das aventuras do teu irmão.
- Minha, senhora, suponho que até hoje ainda existem criaturas bastante simples para não nos distinguirem um do outro, sobretudo quando meu irmão, de molecagem, se veste de mulher -. Enquanto assim falava, lançou um olhar furtivo a Roland Graeme, a quem esta conversa permitia decifrar o enigma que havia tanto o atormentava e que, assim esclarecido sentia imenso prazer.
- Se se parece tanto contigo, deve ser um belo cavalheiro.
- Nada posso dizer sobre seu físico, minha senhora; mas gostaria que tivesse um temperamento menos arrebatado e menos impetuoso. Deus é testemunha de que não desejo que êle poupe a própria vida, quando está em jogo o serviço de Vossa Majestade; mas para que puxar briga com o primeiro que aparece?
- Paciência, Catherine. Não quero que acuses assim o meu jovem defensor, sem antes conhecer bem os fatos. Êle talvez tenha sido obrigado a defender-se.
Roland recordou-se então de mil indícios na voz e nas atitudes do rapaz que, caso não estivesse assim tão prevenido, teriam bastado para lhe mostrar a diferença entre o irmão e a irmã. Sentia-se constrangido pelo engano. Mil vezes procurou o olhar de Catherine a fim de ler as disposições da moça para com êle depois que lhe fizera esta revelação; ela, porém, não olhou para o lado um só momento. Quando a rainha lhes ordenou que a acompanhassem ao jardim, Mary deu-lhe uma oportunidade favorável para conversar com Catherine; talvez o tivesse feito a propósito, quem sabe? pois a agitação de Roland não podia escapar a tão boa observadora. Seguindo na frente com lady Fleming, ordenou a miss Seyton que se mantivesse a alguma distância, como se tivesse que tratar de assuntos muito importantes.
- Minha bela Catherine - disse Roland - há duas horas que estou ansioso por saber se você não me considerava um indivíduo louco e estúpido, por não ter feito nenhuma distinção entre você e seu irmão.
- Era um engano muito pouco lisonjeiro para mim, uma vez que me confundiu assim tão facilmente com um jovem estouvado; mas como com o tempo eu me tornarei mais prudente, para chegar a tal resolvi corrigir-me das minhas próprias loucuras, em lugar de me preocupar com as suas. Temos ambos mais de uma coisa a nos censurarmos mutuamente.
- Fui louco, imperdoavelmente louco; mas você, bela Catherine...
- E eu - disse Catherine num tom sério que não lhe era comum - eu tive que suportar durante muito tempo que você me invectivasse tais expressões.
- Mas o que foi que aconteceu para alterar tão subitamente nossas relações, obrigando-a a tratar-me com tanta crueldade?
- Não sei bem lhe dizer se não foram os acontecimentos de hoje que me tornaram flagrante a necessidade de pôr, de futuro, maior distância entre nós. Algo semelhante ao que o fêz ciente da existência do meu irmão pode pôr Henry ao corrente da familiaridade com que me fala; e, justos céus, se tal acontecesse seu caráter, sua conduta, e aquilo que êle fêz ainda hoje, fazem-me temer pelas conseqüências que daí poderiam advir.
- Não tenha receio algum sobre isso, Catherine, pois estou em condições de me defender contra perigos desta natureza.
- Quer dizer - exclamou Catherine com vivacidade - que para me dar uma prova de sua afeição, você lutaria com meu irmão?
- Está sendo injusta comigo, Catherine. Minha imaginação só me apresentava uma espada ameaçadora, sem me mostrar a mão na qual ela se encontrava. Se seu irmão, dono de todas as suas feições, estivesse na minha frente de armas na mão, poderia matar-me cem vezes antes que eu pensasse em atacá-lo.
- Mas, - disse ela suspirando - não se trata apenas do meu irmão. Você não pensa que quando eu voltar a casa do meu pai abrir-se-á um abismo entre nós, abismo que você só poderá transpor arriscando a própria vida?
- Encantadora Catherine, o amor pouca importância dá a geneologias.
- É possível. Lord Seyton, porém, dá muita.
- A rainha sua e minha senhora intercederá por mim...Oh! Catherine, não me afaste de você. Se eu contribuir para libertá-la, não me afirmou que ambas ficariam minhas devedoras?
- Comece por libertá-la. O resto veremos depois.
Cortando subitamente a palestra com essas palavras, correu para a rainha que, ao vê-la chegar tão inesperadamente, exclamou:
Espero que não tenha havido nenhuma discórdia na minha pequena corte. Não, não - acrescentou ela notando o rubor de Catherine e os olhos brilhantes de Roland -; vejo que tudo vai bem. Ouço tocar o "apaga-fogo" em Kinross; voltemos aos nossos aposentos por que está na hora da refeição da noite, hora que nossa anfitriã prometeu honrar com a sua presença.
- Se me fosse possível - disse Catherine - ser Henry por um só instante e dispor de todas as prerrogativas de um homem, com que prazer eu não atiraria o meu prato ao rosto daquela velha, que não passa de um aglomerado de orgulho, afetação e maldade!
A rainha achou graça na explosão da jovem companheira. Mal haviam regressado quando a ceia chegou, precedida da senhora do castelo. A rainha, que havia tomado a resolução de ser prudente, suportou-lhe corajosamente a presença; sua paciência, porém, esgotou-se, vendo-a cumprir uma formalidade nova que até então não fizera parte do cerimonial usado em Lochleven. Lá pelo fim da ceia entrou Randal trazendo as chaves do castelo enfiadas numa corrente, entregou-as respeitosamente à sua senhora, dizendo-lhe que acabava de pôr sentinelas e de fechar todas as portas. Lady Lochleven retirou-se levando todas as suas chaves.
- Agora surge a nova dificuldade - disse a rainha -; se ela se encarrega de guardar as chaves, como as conseguiremos? ... É um dragão que não se pode fazer dormir nem conquistar.
- Vossa Majestade me permite uma pergunta? - indagou Roland - Se estivesse fora dos muros do castelo teria meios de atravessar o lago e de ficar em segurança na outra margem?
- Tenha confiança em nós para isso - respondeu Mary -. Quanto a esses dois pontos, temos nossos planos sofrivelmente organizados.
- Nesse caso, se Vossa Majestade consente, eu exporei um projeto que acabo de formar, aliás, ao meu ver, bem viável.
- Fale, meu caro escudeiro.
- O cavalheiro de Avenel, meu primeiro protetor, queria que todos os jovens de sua casa aprendessem a manejar o machado e a bigorna, o martelo e a lima, e soubessem lidar com madeira e ferro. Nessas coisas adquiri bastante habilidade - aliás a miss Catherine pode testemunhar, pois depois que aqui cheguei fiz para ela uma agulheta de prata.
- Sim, - disse Catherine - e era tão bem trabalhada e tão resistente que eu a quebrei; logo no dia seguinte, e já não sei mais onde pus os pedaços.
- Não acredite no que ela diz, Roland - interrompeu Mary -: vi-a chorar quando a agulheta se quebrou. Mas Roland e o seu projeto? O seu projeto?...Será que você pode forjar as chaves que abririam as portas do castelo?
- Não, minha senhora, porque para isso eu precisaria dos moldes; posso, porém, fazer outras que se pareçam bastante com as que esta mulher perversa acaba de levar, para que ela, se chegarmos um dia a substituí-las, não note a diferença.
- Graças aos céus, a boa senhora também não tem vista excelente. Mas para isso você precisa de ferramentas, de uma forja, e, sobretudo, de poder trabalhar sem ser observado.
- Já trabalhei mais de uma vez com o armador na forja do castelo, que fica no subterrâneo da torre. Este acaba de ser despedido, como suspeito de estar demasiadamente ligado a Douglas. Estão acostumados a ver-me trabalhar pela manhã e assim eu poderei facilmente encontrar um pretexto qualquer para pôr em ação o fole e a bigorna. Fecharei os ferrolhos da porta para não ter que temer uma visita importuna; e, se por acaso baterem, disporei de tempo suficiente para esconder o meu trabalho antes de abri-la.
ROLAND adiantava rapidamente o seu trabalho. Com a prata que a rainha lhe entregou fêz primeiramente algumas pequenas jóias e com elas presenteou aqueles que podiam mostrar curiosidade pela tarefa que êle executava na forja todas as manhãs; tendo adormecido assim as suspeitas, conseguiu forjar certo número de chaves bastante semelhantes em peso e forma àquelas que todas as noites eram entregues a lady Lochleven; a menos que as examinassem com muita atenção, seria impossível notar qualquer diferença. Para dar-lhes o ar antigo e a cor enferrujada das verdadeiras empregou água com sal. Tendo finalmente conseguido o que desejava, levou-as à rainha com ar triunfante.
A rainha examinou-as com prazer, porém sacudiu a cabeça com ar de dúvida.
- Convenho - disse ela - que como a vista de lady Lochleven não é das melhores, poderíamos enganá-la se chegássemos, por um meio qualquer, a .substituir pelas falsas chaves as que constituem instrumentos de sua tirania. Mas como fazê-lo? Quem, na minha pequena corte, conseguiria executar com sucesso tamanha proeza.
- Se Vossa Majestade permitir eu o farei - disse Roland. Estou convencido de que conseguiria substituir as chaves verdadeiras por estas falsas. Receio, porém, a sentinela que de uns dias para cá puseram justamente por onde teríamos que passar agora.
- Estamos certas, caso precisarmos de auxílio de amigos do outro lado do lago - atalhou a rainha.
- Mas como poderá dizer-lhes que tudo está pronto para a sua fuga e, se preciso for, que necessita de algum auxílio?
- Num piscar de olhos e da maneira mais fácil do mundo.
- Então os sabe também vigilantes como os sabe fiéis?
- Respondo por eles com a minha própria vida. Vou dar-lhe uma prova concludente. Venha comigo ao meu quarto de dormir.
A rainha, lady Fleming e Roland entraram no quarto de dormir, em cuja extremidade havia uma janela que dava para o lago.
- Roland, - disse a rainha - aproxime-se da janela. Entre as luzes que começam a acender na aldeia de Kinross, você não distingue uma solitária, mais próxima da água que as outras? Aquele sinal me diz que pensam na minha libertação e que estão prontos a auxiliar-me em tudo quanto pelo meu lado eu puder fazer; faz renascer a esperança no meu coração, mostrando que meus amigos conceberam algum novo projeto. A voz da desventurada cativa se perderia sobre as águas do lago muito antes de lhes chegar aos ouvidos e, no entanto, posso comunicar-me com eles. Você vai ser testemunha disso, Roland, pois não quero esconder-lhe nada. Vou perguntar-lhes se está próximo o momento da realização do projeto que conceberam. Fleming, coloque a lâmpada na janela.
Lady Fleming obedeceu e no mesmo instante a luz da casa do jardim desapareceu.
- Um, dois, três - disse a rainha; quando chegou a dez a luz brilhou novamente.
- Deus seja louvado! - gritou ela. Anteontem tive de contar até trinta e nove para que a luz reaparecesse; agora sei que eles julgam imediata a hora da minha libertação. Não se deve, contudo, cogitar hoje de substituir as chaves, pois é muito possível que ainda não estejam preparados.
Voltaram ao salão e a noite decorreu como sempre.
No dia seguinte, à hora do jantar, enquanto lady Lochleven experimentava as iguarias servidas na mesa da rainha, Randal veio avisar que um homem d'armas enviado pelo seu filho acabava de chegar ao castelo, mas sem trazer nenhuma mensagem.
-Deu-lhe a senha?
- Só a quer dar à senhora mesma.
- Isso é que se chama ser prudente. Mande-o aqui sem demora; tenho pressa em falar com êle. Pouco depois Randal entrou acompanhado do homem d'armas que havia anunciado e no qual Roland reconheceu o abade Ambrose.
- Como se chama, meu amigo? - perguntou lady Lochleven.
- Edward Glendinning - disse o abade cumprimentando.
- É da família do cavalheiro de Avenel?
- Sim, minha senhora, sou um dos seus parentes próximos.
- O cavalheiro de Avenel - continuou ela em voz alta - é um homem cuja fidelidade e bravura são incontestáveis; assim, sinto grande prazer em encontrar um dos seus parentes. Sem dúvida professa a verdadeira fé?
Certamente que sim, minha senhora - retrucou o padre-soldado.
- Pois bem, Glendinning, nós o recebemos como um dos nossos guardas. Apesar disto, Randal, até que eu tenha do meu filho notícias mais positivas, não o ponha na guarda externa; confie-lhe, por exemplo, o posto do jardim. Não receia o ar da noite, Glendinning?
- Para servir a dama que aqui vejo, minha senhora, não receio nada.
-- Não se pode pretender melhor - atalhou lady Lochleven, satisfeita com o elogio que julgava dirigido a ela -. A nossa guarnição acha-se reforçada com um soldado que julgo digno de confiança.
Quando lady Lochleven se retirou, a rainha perguntou a Roland:
- Não sei por que o todo desse estrangeiro mo faz simpático.
- Sua penetração não lhe mentiu, Majestade. Quem acaba de ver na pessoa daquele indivíduo é o próprio abade de Santa Mary.
- O quê? - exclamou a rainha -; e é por mim, indigna pecadora, que o santo homem usa o traje de um simples soldado? Você observou com que habilidade o bom padre desviava as perguntas de lady Lochleven, muito embora não lhe dissesse senão a verdade, coisa que ela aliás interpretava de modo diferente?
- Agora vamos prestar atenção aos sinais que nos devem transmitir da margem oposta - atalhou Catherine -. Meu coração me diz que em lugar de uma luz a brilhar haveremos de ver duas.
Os pressentimentos de Catherine não a enganaram; de fato duas luzes brilhavam. O pajem ouviu darem ordens ao homem d'armas recém-chegado para vigiar o jardim; apressou-se em levar à rainha a boa notícia. Mary estendeu-lhe a mão e êle dobrou o joelho para levá-la aos lábios; mas quando a tocou achou-a coberta de um suor frio -. Minha senhora, - disse êle - em nome do céu não se deixe abater neste momento crítico e arme-se com toda a sua coragem.
- Oh Roland! -- interrompeu Mary em tom desolado - seja-me fiel; foram tantos os que já me traíram. Tenho o pressentimento de que este empreendimento me custa rá a vida. Um adivinho na França predisse que eu morreria na prisão, de morte violenta. Está chegando a hora, queiram os céus que eu esteja preparada.
Segundo o costume as chaves tinham sido entregues a lady Lochleven. Com as costas voltadas para uma janela que, como a do quarto da rainha, dava para o lago, ela se achava de pé diante da mesa sobre a qual as chaves tinham sido colocadas e, com maior freqüência do que a habitual, seus olhos pareciam fixar-se na funesta cambada. Havia acabado a cerimônia de experimentar todos os pratos destinados à rainha e já estendia a mão para apanhar as chaves quando Roland, que estava perto dela e sucessivamente lhe tinha apresentado todas as iguarias para que as experimentasse, voltando a cabeça para a janela que descrevemos, anunciou que via uma luz no cemitério de Kinross.
Lady Lochleven não era de todo isenta das superstições do seu século. Acreditava em presságio: e uma luz que brilhasse num cemitério passava por sinal de morte. Virou a cabeça por um momento; foi tudo quanto bastou para perder o fruto da sua longa vigilância. Roland que tinha sob o gibão a cambada de chaves falsas, logo as substituiu pelas verdadeiras, com grande habilidade e destreza. Não obstante isso, não pôde impedir que as chaves fizessem um pequeno ruído.
- Quem tocou nas minhas chaves? - indagou lady Lochleven voltando-se impetuosamente. Roland explicou que a manga do seu gibão as roçara no momento em que se dispunha trinchar uma asa de frango que se achava perto delas. Sem suspeitar sequer do que havia ocorrido, ela as pegou rapidamente e tornou a virar-se para o lado da janela.
- Aquelas duas luzes - disse então - não brilham no cemitério. Estou certa que vêm da choupana de Blinkhoolie, o velho jardineiro. Amanhã mesmo verificarei - E cumprimentando a rainha, retirou-se.
- Amanhã! - exclamou o pajem esfregando as mãos de alegria, asism que ela partiu -; os bobos contam com o dia de amanhã, enquanto os prudentes aproveitam o dia de hoje. Eis-nos senhores de todas as portas do castelo. Atrevo-me a suplicar a Vossa Majestade que se recolha aos seus aposentos e lá fique à espera de que tudo adormeça na cidadela. Vou pôr um pouco de óleo nesses instrumentos preciosos, a fim de que façam menos ruído.
- Temos que andar depressa -- disse a rainha - acabam de apagar uma das duas luzes, o que quer dizer que o barco se fêz ao largo.
- Levarão algum tempo para fazer a travessia, - atalhou o pajem - pois remarão com cautela a fim de não serem ouvidos. Aprontem-se, que eu vou prevenir o abade.
À meia-noite, enquanto um silêncio profundo reinava em Lochleven, Roland experimentou todas as chaves na porta que levava ao jardim até encontrar aquela que a abria. Deparou com o abade disfarçado.
- A barca já chegou? - perguntou-lhe então.
- Há uma meia hora que já está perto do muro do jardim - respondeu o abade Ambrose -. É impossível que a sentinela da torre possa dar com ela em tal lugar.
- O silêncio e a noite nos favorecem - continuou o pajem -. Aliás é Hildebrando quem está de guarda na torre. É um imbecil que nunca fêz um plantão sem esvaziar uma garrafa de cachaça e adormecer logo depois.
- Então, prosseguiu o abade - traga a rainha enquanto eu vou prevenir Henry Seyton. Que o céu nos proteja!
As três prisioneiras, precedidas de Roland, desceram as escadas nas pontas dos pés, quase sem respirar, estremecendo com o ruído que faziam seus vestidos enquanto caminhavam. Foram recebidas à porta do jardim pelo abade e por Henry Seyton.
- Reverendo abade, dê o braço a minha irmã; eu me encarrego da rainha e este rapaz terá a honra de conduzir lady Fleming.
Tal arranjo não era precisamente aquele que convinha a Roland; mas não estavam em momento propício para fazer objeções. Catherine Seyton, que conhecia o terreno, ia na frente. Animada pela sua coragem natural, a rainha vinha em seguida pelo braço de Henry Seyton; finalmente lady Fleming se arrastava na retaguarda, dando imensos suspiros, pisando em falso a cada minuto, e esmagando com o seu peso, um dos braços do pobre Roland que, sob o outro carregava um embrulho e um bauzinho pertencentes a rainha.
Henry Seyton entrara no jardim escalando o muro. Como as prisioneiras não podiam sair assim, foi preciso abrir a porta que conduzia a beira do lago. Em vão muitas chaves foram experimentadas, dando lugar a uma expectativa cheia de esperança e de terror! Finalmente a porta se abriu e encontraram a alguns passos de distância um barco equipado. Henry fêz a rainha sentar-se à popa; de um salto Catherine pulou na barca. Roland chegou então com lady Fleming: quando ia fazê-la entrar, gritou em voz baixa, batendo na testa:
- Que esquecimento! Que esquecimento o meu! Esperem-me meio minuto! - E dizendo isso entrou no jardim com a rapidez de um cervo.
- Pelos céus! êle nos traiu - bradou Seyton -. Eu sempre tive este receio.
- Respondo por êle, porque é incapaz disso - afirmou Catherine.
- Silêncio - atalhou bruscamente seu irmão -. Vamos, remadores, vamos para o largo a força de remar; é uma questão de vida ou morte.
- Mas então como é isso? - exclamou lady Fleming mais alto do que a prudência permitia - então vão embora sem mim?
- Ao largo! ao largo !- ordenou Seyton - contanto que a rainha se salve, o resto que importa?
- A senhora toleraria isto? - perguntou Catherine à rainha - Toleraria que seu libertador fosse abandonado à morte?
- Certamente que não - respondeu Mary -. Ordeno-lhe que espere, Seyton, - disse Mary - custe o que custar.
- Perdoe-me a desobediência, minha senhora - replicou o arrebatado jovem que, depois de puxar lady Fleming para a barca, pegou um remo e pôs-se a remar a fim de se afastar da margem. Já estavam a alguns pés de distância quando Roland, que chegava arquejante, ao ver que partiam sem êle atirou-se agilmente na barca, derrubando Seyton que se achava de pé diante dele. Henry ergueu-se resmungando uma praga.
- Por que não cobriu os remos? - indagou Roland -. O barulho que estão fazendo despertará a sentinela, se é que ainda não despertou com tanto falatório.
- Tudo isto é por culpa tua - disse Seyton -. Mas tanto por isso como por outras coisas tu me prestarás contas mais tarde.
Os receios de Roland bem cedo se justificaram para que êle tivesse tempo de retraçar. Meio adormecido, Hildebrando não ouvira o ruído de vozes; mas o barulho dos remos o despertou. Ouviram-no gritar:
- O barco! O barco! Voltem, voltem sem demora, ou do contrário eu atiro! - Vendo que o barco continuava a afastar-se, voltou a gritar:
- Traição! Traição! - e, descarregando o arcabuz, pôs-se a tocar o sino de alarme. As senhoras, apavoradas, atiraram-se umas sobre as outras; o piloto deixou o leme e cobriu a rainha com o seu próprio corpo, enquanto mais de uma bala que assobiava no ar caía na água a pouca distância do barco.
- Remem! Remem! - gritava Seyton - forcem os temos porque vão mandar qualquer embarcação em nosso encalço.
- Foi isto que eu quis evitar - disse Roland - deixei-os um instante unicamente para fechar as portas do castelo. Afirmo agora que elas estão bem fechadas e que será preciso muito tempo para arrombá-las. Demito-me neste momento do cargo de porteiro do castelo de Lochleven -. E com essas palavras atirou no lago a cambada de chaves.
- Que a bênção do céu caia sobre você, meu filho - disse o abade - Sua prudência causa vergonha a todos nós.
- Eu sabia - disse a rainha - eu conhecia a fidelidade e o zelo do meu jovem escudeiro. Espero que êle venha a ser amigo de George Douglas e de Henry Seyton, meus devotados paladinos. Mas onde está Douglas?
- Ei-lo aqui, minha senhora - respondeu em voz melancólica o homem que desempenhava as funções de piloto.
- O quê? Douglas, então era você que fazia do seu corpo uma muralha protetora, quando as balas choviam em torno de nós?
- Julga então, minha senhora, - respondeu êle - que Douglas cederia a quem quer que fosse o direito de sacrificar a própria vida para salvar a de Mary Stuart?
Tal diálogo foi interrompido pela carga de uma daquelas pequenas peças de artilharia chamadas falconetes, que eram usadas naquela época; A noite, porém, estava muito escura para que pudessem fazer pontaria sobre a barca à distância em que esta se encontrava de Lochleven. Poucos minutos depois chegaram ao desembocadouro onde se achavam a espera os séquitos de Seyton e Douglas, compostos de
uns vinte cavaleiros. Entregaram cavalos à rainha às duas senhoras; e enquanto procuravam evitar a pequena aldeia, já alarmada com o fogo do castelo, seguindo pela planície a trote, bem cedo se distanciaram de Kinross.
A frescura da noite e sobretudo o sentimento da liberdade que lhe fora restituída, aos poucos dissiparam o abatimento que invadira a rainha. Esta não podia esconder a mudança que se operava nela ao homem d'armas de viseira caída que trotava ao seu lado a quem aliás tomava pelo abade Ambrose, uma vez que Seyton, com toda a impetuosidade de um rapazola orgulhoso com seu primeiro triunfo, conferia-se ares de importância e parecia ter pessoalmente assumido o comando da pequena tropa.
O cavaleiro que seguia perto de Mary dava-lhe inteira atenção, como se estivesse encarregado de velar por um ser de ordem superior. Quando o caminho era perigoso, ou simplesmente escorregadio, não pensava no seu próprio animal, e segurando as rédeas do cavalo de Mary procurava evitar o menor acidente.
- Eu nunca suporia, reverendo padre, que pudessem existir tão bons cavaleiros no convento de Santa Mary - Aquele com quem falava assim, suspirou sem responder Não sei - continuou ela sem lhe prestar atenção - se é o sentimento de liberdade ou o prazer de me entregar ao meu exercício favorito, do qual me vi tanto tempo privada, que parece dar-me asas; tenho a impressão de que estou cavalgando Rosabela, que não tinha similar na Escócia inteira, tanto pela sua docilidade como pela firmeza do passo.
- Se o animal que carrega tão precioso fardo pudesse falar, --- retrucou a voz melancólica de George Douglas - certamente diria: Que outra égua senão Rosabela poderia-servir sua dona neste momento crítico, e que outro cavalheiro senão Douglas deveria velar pela sua segurança?
Os primeiros alvores da aurora não haviam surgido ainda quando estacaram diante da porta de West-Niddrie, castelo pertencente a lord Seyton. Tendo a rainha se decidido a apear, Henry Seyton preveniu a Douglas, depois oferecendo a mão a Mary, com um joelho em terra, suplicou-lhe que entrasse no castelo de seu pai, um dos seus servidores mais fiéis.
- Vossa Majestade - disse êle - pode aqui descansar em toda a segurança. Já existe uma guarnição suficiente para defendê-la; aliás meu pai, a quem mandei comunicar sua fuga, chegará de um momento para outro à testa de quinhentos homens.
Henry cumprimentou-a respeitosamente e a rainha subiu ao apartamento que lhe era destinado acompanhada de lady Fleming e Catherine Seyton. Depois de haver rendido rapidamente as mais fervorosas ações de graças pela sua liberdade, procurou readquirir com algumas horas de sono as forças necessárias para suportar as fadigas do dia seguinte.
Ia alta a manhã quando despertou. Seu primeiro pensamento foi o de ter sonhado ura sonho lindo; a fim de certificar-se de que realmente estava em liberdade, pulou da cama e correu à janela. Vista deliciosa! Em lugar do triste lago de Lochleven distinguiu uma fértil planície e o parque que cercava o castelo repleto de cavaleiros armados para defendê-la.
Abriu a janela; e assim mesmo como saira da cama, de cabeça descoberta cabelos em desordem e o lindo braço mal coberto pelo manto, respondeu com um aceno agradecido aos gritos de alegria que seus bravos adeptos soltavam de longe. Depois do primeiro momento de entusiasmo, lembrou-se de que estava apenas vestida; ocultando então com as duas mãos o rosto cheio de rubor, retirou-se precipitadamente da janela. Suspeitada a causa de seu desaparecimento, cresceu o entusiasmo geral pela princesa que, na pressa de ver seus vassalos fiéis, esquecera-se da etiqueta de sua estirpe.
- Chame Fleming - disse a rainha a Catherine - pois é preciso que façamos uma "toilette" real, pelo menos o quanto as circunstâncias o permitirem. Espero que ela não se tenha esquecido do meu bauzinho.
- Oh! nossa bondosa lady Fleming no momento de partir não estava em condições de pensar em nada.
- Catherine, você está caçoando? Não é do caráter de lady Fleming esquecer-se de uma coisa como essa.
- Roland lembrou-se por ela. Vi-o tomar conta do baú e de um pacote grande; e quando, no momento de embarcar, êle nos deixou com tanta precipitação, entregou o baú a lady Fleming e, com o risco de mo lançar na cabeça, atirou o pacote no barco. Onde já se viu um pajem tão desajeitado?
- Êle reparará essa ofensa e todas as outras que porventura haja cometido.
Lady Fleming pôs em ação toda a sua habilidade; quando a rainha surgiu diante dos seus nobres reunidos, apareceu trajada irrepreensivelmente, segundo a sua dignidade, sem que fosse possível fazer-lhe a menor restrição.
- Milords, aonde vamos agora? Qual foi o trajeto que combinaram?
- Minha senhora, contamos com a aprovação de Vossa Majestade, ganhar primeiramente o castelo de Draphane, e de lá seguir para Dumbarton a fim de a deixar em segurança; depois voltaremos à campanha para ver se os traidores se atrevem a sair.
- E quando vamos partir?
- Depois do jantar, - respondeu Seyton - se Vossa Majestade não estiver muito cansada.
- Milords, o que lhes convier, me convirá também. Seus conselhos orientarão a minha marcha, do mesmo modo que dentre em breve, segundo espero, me ajudarão a governar meus estados. Permitir-me-ão partilhar o almoço? É preciso que sejamos meio soldados e que deixemos de lado toda a cerimônia.
Essa prova de condescendência provocou novo entusiasmo na assembléia. Correndo os olhos sobre todos quanto ali se encontravam, a rainha em vão procurou Douglas e Roland. Em vista disso perguntou em voz baixa a Catherine onde eles se achavam.
- Perto daqui, minha senhora, - respondeu Catherine - e ambos muito tristes - A rainha observou que sua favorita tinha os olhos vermelhos.
- Não deve ser assim - retrucou a rainha - vou buscá-los pessoalmente, encarregando-me de fazer as respectivas apresentações.
Entrou no oratório e logo distinguiu Douglas parado no limiar de uma janela, perdido em profundas reflexões. O rapaz estremeceu quando viu a rainha, e nos seus olhos brilhou momentaneamente uma expressão alegre, logo substituída pela sua habitual melancolia.
- Douglas o que significa isto? - perguntou ela. Por que quem tomou uma parte tão ativa em nossa libertação, o primeiro que para ela trabalhou, evita a presença da soberana a quem serviu e dos nobres reunidos para servi-la, exatamente como êle já o fêz. O que impede que venha partilhar a satisfação daqueles que me felicitam pela minha libertação?
- É que, por mais deserdado e por mais dedicado que eu seja, nem por isso, minha senhora, deixo de ser também um Douglas. A maior parte dos nobres que lhe são devotados, há séculos odeiam minha família: a frieza deles seria para mim um insulto e sua amizade uma humilhação.
- Ora, Douglas, ora! Ponha de lado este humor sombrio. Venha comigo, Mary Stuart lho ordena.
- Basta essa palavra, minha senhora; estou pronto a obedecer.
Dizendo isso, acompanhou a rainha que logo o apresentou aos barões reunidos como um dos seus libertadores, colocando-o numa extremidade da mesa.
- Agora, se eu quiser impedir alguma bulha entre êle e Henry Seyton, preciso ir procurar o outro rapaz.
Entrou novamente no oratório, onde Roland fora testemunha silenciosa do que ocorrera entre ela e Douglas. O pajem retirara-se discretamente para a outra extremidade do aposento, a fim de não ouvir a conversa. Sua fronte, também nublada e pensativa, bem cedo resplandeceu com as palavras que a rainha lhe dirigiu.
- Roland, por que está negligenciando seu serviço esta manhã? Será por causa do cansaço da viagem?
- Absolutamente, minha senhora. Desempenharei com o maior prazer as minhas funções habituais junto de Vossa Majestade. Disseram-me, porém, que o pajem de Lochleven já não é o pajem do castelo de West-Niddrie; mestre Henry Seyton julgou oportuno despedir-me assim,
- Chamem Henry Seyton - ordenou a rainha, entreabrindo a porta do oratório.
Ele acudiu logo.
- Aproxime-se, Henry - disse ela - quero que seja amigo deste rapaz que, se me tivesse privado do seu devotamento, lhe teria deixado ainda em cativeiro. Estenda-lhe a mão.
- De todo o meu coração, minha senhora, contanto que ele me prometa nunca mais tocar na de outra pessoa da minha família que bem conhece. - Ordeno-lhe mais uma vez - disse ele a Roland - jamais falar de maneira que possa fazer crer na possibilidade de minha irmã ser para você outra coisa além do que ela e para o filho do mais ínfimo camponês da Escócia.
A rainha estava prestes a intervir, pois vira o sangue afluir ao rosto de Roland e achava muito problemático que o amor do rapaz por Catherine vencesse o seu temperamento ardente e impetuoso. Mas, nesse momento, sobreveio a chegada de terceiro personagem, até então invisível, que dispensou a rainha de tal intervenção. Havia no oratório um gabinete isolado por uma pequena grade. Deste gabinete, onde provavelmente se achava imersa em orações, Magdalen Graeme saiu repentinamente. Lançando sobre Henry um olhar fuzilante ela repetiu:
- Do mais ínfimo camponês da Escócia! Mas de que argila então são feitos os Seytons, se o sangue dos Graemes não é digno de misturar-se ao deles? Fica sabendo, jovem orgulhoso, que ao reconhecer esse rapaz como filho de minha filha, conto entre seus ancestrais Malise, conde de Strathern. Assim sendo, duvido que o sangue de tua casa possa ter saído de uma fonte mais pura.
- Eu supunha, boa mãe, que sua santidade lhe tivesse alçado acima das vaidades do mundo - disse Seyton -. Não obstante, parece que lhe fez esquecer alguma coisa. A senhora devia saber que para ser-se de sangue nobre é preciso que a linhagem paterna seja tão distinta quanto a materna.
- E se eu disser que êle descende do sangue dos Avenel pelo lado do pai, não direi que tem um sangue tão colorido quanto o teu?
- Dos Avenel? - exclamou a rainha - meu pajem pertence à família de Avenel?
- Sim, graciosa soberana; é o último rebento masculino da velha casa; Julian Avenel, seu pai, morreu de armas na mão combatendo os ingleses.
- Ouvi algo sobre esta história trágica - continuou a rainha -. Então era sua filha aquela que seguiu Julian ao campo de batalha, e que depois morreu de dor sobre o seu cadáver? Roland então é a criança que foi deixada entre mortos e moribundos? Henry, êle é seu igual em sangue e nascimento.
- Só aceitaria isso, - disse Henry - se êle fosse filho legítimo. Mas, se se deve dar crédito à história, seu pai era um sedutor e sua mãe uma moça frágil e crédula.
- Pelo céu, estás mentindo! - bradou Roland. Dizendo isto, levou a mão à espada, enquanto Henry desembainhava a, sua. A presença de lord Seyton, que no momento entrava no oratório, impôs-se a ambos. Sem encontrar um motivo que justificasse a ausência tão prolongada da rainha, viera para colher informações.
- Socorro, milord, - bradou a rainha - separe esses dois rapazes fogosos e indomáveis.
- Mas como é isso Henry, no meu próprio castelo e na presença de sua soberana? Com quem pretende brigar assim? O que vejo? É o mesmo rapaz que tão valentemente me defendeu contra os Leslies. Aproxime-se, jovem: é de fato êle. Eis a corrente e o medalhão que lhe dei de presente. Henry, se você se interessa pela minha bênção, respeite-o e estime-o. Estenda a sua mão a Roland Avenel, pois presumo que seja este o nome que terá de usar agora.
- Êle será senhor do baronato, -- disse a rainha - se Deus protejer a justiça de nossas armas.
- E então, Henry, ainda não lhe deu a mão?
- Ei-la - disse o rapaz, estendendo-a com aparências de cordialidade. Mas enquanto fazia isso murmurou em voa baixa:.
- Mas não pense por isto já ter alcançado a de minha irmã.
- Agora, - perguntou lord Seyton - Vossa Majestade quer dignar-se de honrar nosso almoço com a sua presença? Precisamos montar de novo a cavalo, o mais depressa possível.
ENQUANTO o quartel-general de Mary se achava em Hamilton, o regente reunia, em nome do rei, outro exército em Glasgow. Este, embora não fosse tão numeroso quanto o da rainha, era, contudo, formidável pela estratégia militar de Murray, Morton e muitos outros chefes que desde a primeira juventude haviam guerreado, tanto na Escócia como em países estrangeiros.
Foi na planície de Hamilton que teve lugar a revista de tropas, que ao som de um hino militar, com seus estandartes e bandeiras desfraldados desfilaram com toda a pompa dos tempos feudais. Colocada no centro do exército, a rainha inspirava aos seus defensores confiança e entusiasmo. Estava acompanhada da miss Seyton, lady Fleming e muitas outras damas que tinham vindo reunir-se a ela, e tinha uma guarda especial para velar por sua segurança, da qual faziam parte Henry Seyton e Roland Graeme. Muitos eclesiásticos se haviam juntado ao exército, mas Roland em vão procurava entre eles o abade de Santa Mary. Somente no momento da partida foi que o viu reaparecer junto da rainha, mas já então com o hábito de religioso.
- Nós dois retomamos os trajes que nos convinham, meu filho -- disse-lhe o abade -. Sua fronte tinha direito ao galho de azevinho, e eu há muito aguardava o momento em que pudesse ostentá-lo, em virtude unicamente do seu nascimento.
- Então o senhor sabia quem era meu pai?
- Sua avó confiou-me o segredo, mas sob o sigilo da confissão. Assim, eu devia guardá-lo até que ela própria o revelasse.
- Mas o senhor dispõe de algum meio para provar que eu não tenho motivo para me envergonhar do meu nascimento?
- Sei que os Seytons conceberam alguma dúvida sobre este ponto; porém, segundo me disse o Padre Bonifácio, nosso antigo abade, não creio que exista alguma mancha sobre o seu escudo.
- Estou chegando dos condados do sul, - prosseguiu o abade - onde ordenei a muitos chefes que armassem seus vassalos para os juntar sob os estandartes da rainha. Quando parti, deixei aqui guerreiros cautelosos e prudentes; agora os encontro cheios de loucura e de presunção. Por vanglória e amor próprio querem fazer a rainha desfilar em triunfo por perto da cidade de Glasgow, bem ao alcance do exército inimigo! Raramente o céu sorri a uma confiança tão descabida. Seremos atacados, coisa que aliás se podia ter evitado.
- Antes assim! - disse Roland -. Tive por berço um campo de batalha.
Quando finalmente o exército se encontrou em linha paralela à cidade de Glasgow, muitos estafetas chegaram da vanguarda anunciando que Murray estava em campanha com todo o seu exército e parecia ter como objetivo opor um obstáculo à passagem da rainha, uma vez que evidentemente tencionava lançar-se em batalha. Quando assim de inopino esbarraram com um inimigo determinado, quase sem tempo para deliberar sobre aquilo que deviam fazer, os soldados de Mary sofreram uma experiência brusca e inesperada. Os chefes reuniram-se sem demora em torno da rainha, e ali mesmo estabeleceram apressadamente um conselho de guerra.
- À luta! À luta! - bradavam todos - e rechaçaremos os rebeldes da posição vantajosa que ocupa.
- Nobres senhores, - disse o abade Ambrose - parece-me que seria mais prudente procurar retirar-lhes esta vantagem. Deveremos passar pela cidadezinha de Langside, situada nestas colinas; a facção que tiver a ventura de tomá-la em primeiro lugar poderá ali defender-se e dominar a estrada, graças às grades e aos jardins que existem por lá.
- O reverendo padre tem razão - disse a rainha -. Parta imediatamente, lord Seyton, e trate de chegar antes dos nossos inimigos.
- Vossa Majestade honra-me sobremodo - respondeu lord Seyton - vou partir agora mesmo para tomar o posto.
- Não antes de mim, milord, - bradou lord Arbroath - lembre-se de que eu sou o comandante da vanguarda.
- Antes do senhor e de todos os Hamiltons da Escócia,
- retrucou lord Seyotn - uma vez que a rainha assim mo ordenou. - Amigos e vassalos, sigam-me. São Bennet! Para a frente.
- A mim, meus nobres parentes e meus nobres homens d'armas, - exclamou lord Arbroath - e vejamos a quem caberá o posto de honra. Deus e a rainha Mary!
- Infeliz precipitação! -murmurou o abade ao vê-los correr para a elevação, invejosos um do outro, sem sequer pensarem em estabelecer os soldados que os seguiam em boa ordem, e cujo exemplo arrastava o exército inteiro.
- Bem! continuou êle vendo que Henry Seyton e Roland Avenel se dispunham a partir como os outros - o que vão fazer? Pretendem deixar a pessoa da rainha sem guarda?
- Roland, Seyton, - gritou Mary - não me abandonem! Já há guerreiros suficientes para o combate; não me privem daqueles com quem conto para a minha própria segurança.
- Precisaríamos de um guia que nos pudesse indicar um lugar seguro para a rainha - disse o abade -. Todos os nossos membros vão combater e nenhum deles pensa naquela por quem vão lutar.
- Sigam-me - disse um cavaleiro muito bem montado e coberto de uma armadura negra, cuja viseira do capacete estava descida.
- Não podemos seguir um desconhecido, -- respondeu o abade - sem termos alguma garantia de sua fidelidade.
- A rainha garantirá - atalhou êle.
Realmente, mal o cavalheiro negro murmurou algumas palavras ao ouvido de Mary, esta esboçou um gesto de consentimento e soltou as rédeas de Rosabela. Tomando depois um tom de autoridade, disse em voz alta:
- Meus senhores, como rainha ordeno que todos me acompanhem. Sim, sim, ordeno - acrescentou ela com uma espécie de arroubo. .
No mesmo instante tudo se pôs em movimento; e o cavaleiro negro, tendo estabelecido na pequena escolta que restava a rainha a melhor ordem possível, pôs-se à frente da cavalgada, rumando para um castelo que se erguia numa elevação de onde se podia descobrir a cidadezinha que pretendiam ocupar, e que, segundo as aparências, em breve estaria transformada em campo de batalha.
- A quem pertence aquele castelo? - perguntou o abade ao cavaleiro negro - Tem certeza de que lá encontraremos apenas amigos?
- Está desabitado - respondeu o desconhecido -. Queira prevenir a esses rapazes, tão absorvidos com o movimento das tropas, que se apressem um pouco mais; não são obrigados a ver o início de uma ação que não estão destinados a partilhar.
- Mas, - disse Roland - vejo avançar do oeste um numeroso corpo de cavalaria que chegará à cidade antes que lord Seyton possa fazê-lo.
- É somente cavalaria, - retrucou Henry olhando por sua vez para o mesmo lado - e, sem arcabuzes, não poderá sustentar-se na cidade.
- Preste um pouco mais de atenção, - atalhou Roland - e verá que cada cavalariano traz um arcabuzeiro na garupa.
- Pelo céu, êle tem razão! - exclamou o cavaleiro negro -. É preciso que um de vocês corra a toda brida para prevenir lord Seyton e lord Arbroath, a fim de evitar que eles entrem na aldeia antes de a infantaria chegar.
- Cabe-me a mim tal encargo - disse Roland - uma vez que fui eu quem descobriu o estratagema do inimigo.
- Sem pretender ser-lhe desagradável, - gritou Seyton - já que está em jogo o estandarte do meu pai, cabe ao seu filho correr-lhe em socorro.
- Resignar-me-ei à decisão da rainha -- concluiu Roland.
- Se é preciso que um dos dois me deixe, que seja então Seyton.
Orgulhoso de uma decisão que encarava como uma vitória, Henry saudou a rainha, firmou-se na sela, brandiu sua lança com ar satisfeito e partiu a galope para juntar-se à flâmula paterna, saltando cercas e fossos que se opunham à sua passagem.
- Corra, miss Seyton, corra, - gritou o abade quando chegaram perto das muralhas do castelo -: venha ajudar lady Fleming a sustentar sua soberana desfalecida.
O pequeno grupo estacou: tiraram Mary do cavalo para transportá-la ao castelo.
- Não!Não! - murmurou ela em voz fraca -. Não aqui, não aqui. Eu nunca atravessarei essas muralhas.
- Seja rainha, minha senhora - atalhou o abade - e se esqueça de que é mulher.
- É preciso que eu me esqueça de coisa bem diferente - acrescentou ela a meia voz - até que possa firmemente olhar para esses lugares... - O excesso de emoção não permitiu que ela dissesse mais nada.
- É o castelo de Crookstone - disse lady Fleming em voz baixa -. Foi aqui que a rainha manteve sua primeira corte logo depois do seu casamento com Darnley, que em seguida foi assassinado.
O barulho de uma carga de artilharia que sucedeu a essas poucas palavras anunciou o começo das operações e devolveu à rainha todo o seu sangue frio.
- Daquela árvore - murmurou ela mostrando um grande teixo situado numa colina próxima ao castelo - a vista é muito ampla.
E no mesmo instante largando os braços que a amparavam, encaminhou-se com passo rápido e decidido para o lugar que acabava de mostrar. O abade, Catherine e Roland seguiram com ela, enquanto lady Fleming mantinha a alguma distância o resto da comitiva. O cavalheiro negro seguia também a rainha como a sombra segue o corpo, sempre uns quatro ou cinco passos mais atrás. Conservava os braços cruzados sobre o peito e voltava as costas à batalha, ocupado apenas em olhar Mary através da viseira do seu capacete.
Cada um mantinha os olhos fixos no campo de batalha: mas tudo quanto conseguiam distinguir era uma luta encarniçada. Descargas múltiplas anunciavam que nenhum dos dois partidos havia ainda cedido o campo ao outro.
- Não seria bom - indagou Roland - se eu me aproximasse mais do campo de batalha a fim de trazer notícias certas da luta?
- De fato - disse o abade - por que se nossos amigos forem derrotados não poderemos fugir assim tão prontamente. Mas por favor não se exponha: lembre-se de que mais de uma vida depende da sua volta.
- Não chegue muito perto - pediu Catherine -; mas trate de ver como os Seytons se comportam.
- Não tenha receio, - respondeu Roland - verei tudo e tomarei toda a cautela.
Partiu em direção à cidadezinha de Langside, vencendo o mais rapidamente que podia colina após colina, sempre com a precaução de olhar em torno, receoso de topar com algum destacamento inimigo. À medida que se aproximava, o barulho dos mosquetes ecoava-lhe aos ouvidos com uma violência maior e êle sentia o mesmo pulsar de coração que até os indivíduos mais corajosos experimentam quando avançam sozinhos para um lugar onde se desenrola alguma cena interessante e perigosa.
Atingiu finalmente uma elevação coberta por um bosque que a ocultava de todos os olhos e de onde podia dominar a cidadezinha e suas cercanias. Quase aos seus pés encontrava-se um caminho aberto, por onde, com mais coragem que cautela, o exército da rainha tinha avançado, a fim de ocupar aquele objetivo tão importante. Os inimigos, porém, que sob o comando de Kirkaldy de Grange e do conde Morton já o haviam tomado, não mostravam menor ardor para o conservar do que as tropas da rainha para os tirar de lá.
Os dois partidos disputavam o terreno palmo a palmo, com um encarniçamento sem igual. No meio do tumulto ouviam-se as vozes dos chefes que davam suas ordens, as dos soldados que repetiam o grito de reunião de cada grupo, as queixas e gemidos dos feridos e dos agonizantes. Os que caíam eram substituídos sem delongas por outros, e pisados tanto pelos próprios companheiros como pelos inimigos. Os que não podiam alcançar as primeiras linhas davam tiros de mosquete e pistolas por cima das cabeças dos seus camaradas, atirando nos adversários os pedaços das armas quebradas que iam apanhando.
O combate já durava quase uma hora; embora as forças dos dois partidos parecessem esgotadas, não o estava a coragem que os animava. Roland de repente viu desembocar uma coluna de infantaria comandada por alguns cavalerianos, que depois de contornar a elevação sobre a qual êle se encontrava, pôs-se a atacar o flanco do exército da rainha. O primeiro olhar revelou-lhe que tal movimento estava sendo dirigido pelo cavalheiro de Avenel, seu antigo senhor, e que seria aquele que decidiria a sorte da batalha.
Fatigado pelos esforços prolongados, os exércitos da rainha, cujo flanco se viu atacado por tropas recém-chegadas, que ainda não haviam entrado em ação, não puderam resistir a tal impetuosidade. Suas fileiras foram rompidas; a desordem se insinuou entre elas, fazendo com que fossem rechaçados da cidadezinha que inutilmente haviam procurado tomar. Era em vão que os chefes induziam os soldados a resistirem: a derrota foi completa. Alguns lá ficaram mortos no campo de batalha, enquanto outros eram carregados de permeio com os fugitivos.
Quando viu aquela debandada, Roland sentiu que só lhe podia voltar para junto da rainha, a fim de velar por sua segurança. Ao deparar, porém, justamente na falda da colina onde se encontrava, com Henry Seyton separado dos seus partidários e coberto de sangue, a defender-se sozinho de três ou quatro inimigos que o perseguiam, esqueceu-se subitamente de tudo. Desceu a colina a galope, derrubou um dos adversários de Henry com a impetuosidade do seu cavalo, prostrou o segundo com um golpe de espada, pondo os dois restantes em fuga, amedrontados com aquele socorro inesperado.
Estendendo então sua mão a Seyton, disse-lhe:
- Vivamos ou morramos juntos; mas primeiramente tratemos de sair deste local perigoso.
Seyton agarrou-se na crina do cavalo de Roland, mas como suas pernas não o auxiliassem, acabou caindo na relva.
- Não pense mais em mim - disse ele: - esta é minha primeira e última batalha. Pense unicamente em salvar a rainha. Dê lembranças minhas à Catherine: agora já não a confundirá mais comigo.
- Coragem, Henry! Faça mais um esforço. Vou ajudá-lo a montar no meu cavalo.
- Nenhum animal me levará mais, Roland. Adeus: gosto mais de você ao morrer do que gostei durante a minha vida. Salve a rainha.
Pronunciando estas últimas palavras, que recordaram a Roland o dever que tinha a cumprir, o rapaz expirou. O pajem, no entanto, não foi o único a ouvi-las.
- A rainha! Onde está a rainha? - bradou sir Halbert Glendinning, que chegava acompanhado de dois ou três homens. Roland não lhe deu resposta; contando com a velocidade do seu cavalo, largou-lhe as rédeas, meteu-lhe as esporas e partiu a galope rumo ao castelo de Crookstone. Com armas mais pesadas e cavalgando um animal já fatigado, o cavalheiro de Avenel, que o perseguia de lança em riste, ia perdendo terreno, e procurava fazê-lo parar com as censuras que lhe dirigia, chamando-lhe de covarde e de poltrão, e perguntando-lhe com que direito ostentava no capacete aquele galho de azevinho que estava desonrando fugindo assim.
Roland, no entanto, que não sentia a menor vontade de combater contra seu antigo senhor e que sabia muito bem o quanto a segurança da rainha dependia de sua diligência, não respondia com uma palavra sequer às censuras de sir Halbert, e continuava a aproveitar as vantagens que lhe dava a rapidez do galope. Assim que notou o pequeno grupo da rainha ao alcance de sua voz, pôs-se a gritar:
- O inimigo! O inimigo! As damas a cavalo e os homens às armas.
Girando então hábil e rapidamente sobre o seu cavalo, aparou o choque de sir Halbert Glendinning. Atacando o primeiro homem que o seguia, vibrou-lhe um golpe de lança tão vigoroso que o arrancou da sela. Nesse ínterim o cavaleiro negro lançou-se contra sir Halbert; encontraram-se ambos com tamanha violência, que cairam cavalos e cavaleiros. Nem um nem outro se ergueu. O cavaleiro negro fora transpassado de lado a lado pela lança do seu antagonista, e este, aturdido pela queda e esmagado pelo peso do cavalo, não parecia em melhores condições do que aquele a quem ferira mortalmente.
- Renda-se, cavalheiro de Avenel, - ordenou Roland, que depois de ter posto fora de combate o segundo homem d'armas havia regressado para perto da rainha.
- Sou forçado a render-me, - disse sir Halbert - embora me envergonhe de fazê-lo a um covarde como tu.
- Não me chame covarde - bradou Roland levantando a viseira e ajudando sir Halbert a erguer-se -. Sem a lembrança de suas antigas bondades, sobretudo sem a lembrança das bondades de sua esposa, o senhor veria que eu não tenho medo de lutar com pessoa alguma.
- O pajem favorito de minha mulher! - exclamou sir Halbert surpreendido - Desventurado rapaz, eu soube da tua traição em Lochleven.
- Meu irmão, não diga que êle é um traidor, - interrompeu o abade - o rapaz não passou de um instrumento dos desígnios celestes.
- A cavalo! A cavalo! - gritou Catherine -. Vejo nossas tropas a fugirem em todas as direções; os inimigos as perseguem e bem podem vir para este lado; estaremos perdidos se nos detivermos um só instante. A cavalo, Roland! Minha senhora, a cavalo! Já devíamos ter feito mais de uma milha.
- Olhem para este rosto - disse Mary a Catherine, mostrando-Ihe o cavaleiro agonizante, cujo capacete uma mão compadecida havia retirado. Olhe, e diga-me se a criatura que lhe causou a ruína de tudo quanto queria, deve dar mais um passo para evitar a sua própria.
O cavaleiro não era outro senão George Douglas que, sem querer tomar parte num combate onde encontraria como inimigos seu pai e todos seus parentes, tomara aquele disfarce para velar pela segurança da rainha.
- Olhe bem para ele, olhe bem para ele - continuou Mary-; tal tem sido a sina de todos quantos têm amado Mary Stuart. Não, não irei além; deixem-me em paz. Não posso morrer mais de uma vez e aqui quero ficar.
Enquanto assim falava, suas lágrimas caíam sobre o rosto do moribundo que, fixando nela seus olhos ainda cintilantes de uma paixão que nem mesmo a própria morte pudera extinguir, murmurou-lhe em voz débil:
- Não me lastime! Pense em sua segurança! Sinto-me feliz, morro Como um Douglas, chorado por Mary Stuart.
Mal havia pronunciado essas palavras, sempre de olhos pregados na rainha que continuava a chorar debruçada sobre o seu corpo soltou o último suspiro. O abade Ambrose, porém, julgou ser seu dever chamá-la à razão.
- Minha senhora, é preciso fugir, é preciso fugir agora mesmo. Dizer aonde vamos não é coisa assim tão fácil; entretanto poderemos pensar enquanto caminhamos. Ajudem a rainha a montar a cavalo e vamos embora.
Roland ficou um momento para trás, a fim de ajudar o cavalheiro de Avenel a voltar para o castelo de Crookstone e dizer-lhe que lhe restituía a liberdade sem outra condição além de ter sua palavra de honra sobre o absoluto sigilo em que êle guardaria a direção que a rainha tomasse em sua fuga. Quando se ia afastando, reconheceu Adam Woodcock a fita-lo com tal expressão de surpresa, que só ela bastaria em outra qualquer circunstância para faze-lo rir. Adam fora o primeiro homem d'armas que êle arrancara da sela. Reconheceram-se logo e Roland, depois de dirigir ao honesto falcoeiro um gesto amistoso, partiu a galope para se reunir à rainha.
O naufrágio de suas belas esperanças, o receio do futuro e a pena de haver perdido tão valentes adeptos, fizeram a rainha derramar muitas lágrimas durante a sua fuga. As mortes do jovem Seyton e do valente Douglas pareciam ter afetado a princesa, a ponto de fazê-la esquecer o trono ao qual esperara novamente ascender.
Foi assim sucumbida, depois de se haver encontrado com lord Herries e alguns outros senhores, que a rainha chegou à abadia de Dundrenna, ao fim de um percurso de sessenta milhas sem apear do cavalo. Naquela parte retirada de Galoway, os reformados haviam perseguido os monges um pouco menos; os de Dundrenna, por exemplo, habitavam suas celas. Com os olhos em lágrimas, o prior veio receber a rainha à porta do convento.
Amparada por lady Fleming e a miss Seyton, Mary Stuart foi levada a um dos apartamentos. Os poucos nobres que permaneceram perto dela fizeram logo um conselho, para saber qual o partido mais conveniente a tomar: a funesta resolução de um retiro na Inglaterra foi finalmente adotada, e um mensageiro foi mandado sem demora ao governador das fronteiras de Cumberland, a fim de solicitar um salvo-conduto e hospitalidade para a rainha da Escócia.
No dia seguinte, o padre Ambrose, passeando com Roland pelo jardim da abadia, mostrou-lhe o quanto desaprovava o partido que acabavam de tomar.
- É a mais rematada das imprudências - disse êle -. A rainha faria melhor confiando sua pessoa aos selvagens montanheses ou aos salteadores de fronteiras, do que à discrição de Elizabeth. Uma mulher confiar em sua rival. A herdeira presuntiva do trono da Inglaterra entregar-se nas mãos de uma rainha invejosa!
Nesse momento se ouviu um toque de trombeta que vinha do lado da margem.
- Este é o sinal da queda definitiva do trono de Mary Stuart - murmurou o abade -. Anuncia-nos a chegada da resposta do governador das fronteiras, que não pode deixar de ser favorável; já se fechou por acaso alguma vez a porta da armadilha à presa que se quer atrair?
Encontraram a rainha à beira do mar, cercada de sua pequena comitiva. A fisionomia de Mary denunciava uma estranha mistura de vontade de partir e desejo de ficar. Com suas palavras e gestos procurava distribuir esperanças e consolações àqueles que a cercavam, e pareciam tentada a persuadir-se a si própria, de que o que ia empreender era isento de perigo e podia ter absoluta certeza de bom acolhimento.
Não obstante, seus olhos esgazeados e seus lábios trêmulos provavam o quanto lhe custava abandonar a Escócia, e o quanto temia confiar-se à fé equívoca dá Inglaterra.
- Adeus, meu pajem, quero dizer meu cavalheiro; adeus por algum tempo - disse ela a Roland -. Enxugarei todo o pranto de Catherine ou então chorarei com ela, até que já não tenhamos mais lágrimas nenhuma.
Estendeu a mão a Roland que se pôs de joelhos, beijando-a com emoção e respeito. Dispunha-se já a prestar idêntica homenagem à miss Seyton quando a rainha, tomando um ar alegre, exclamou:
- Não a mão, os lábios. É preciso que este senhor inglês veja que mesmo em nosso clima glacial a beleza sabe recompensar a bravura e a fidelidade.
- Sei - respondeu polidamente o guarda -. Sei que a Escócia é célebre pelo encanto de suas damas e pelo valor de seus soldados. Lamento não poder oferecer na Inglaterra uma recepção cordial a todos quanto quisessem acompanhar aquela que é na Escócia não só a rainha da beleza como também a soberana do país. Nossa rainha, porém, deu-nos ordens peremptórias para o caso de tal circunstância se apresentar, e é dever de seus súditos executá-las. Poderei observar a Vossa Majestade que a maré está favorável?
O guarda ofereceu a mão à rainha; esta já tinha pisado o escaler por onde devia entrar na embarcação quando o abade, saindo de repente do estupor que lhe haviam causado as palavras do guarda, entrou na água até o meio da pernas, retendo Mary pela barra do vestido.
- Tanto ela previa que Vossa Majestade haveria de procurar abrigo nos seus Estados, que ordenou uma recepção dessas. Princesa enganada não abandonará assim a sua herança! Oh! Por que não disponho do braço e das armas do meu irmão! Roland Avenel, meu filho, tira a tua espada da bainha!
- Para que violência? - indagou o guarda -. Vim aqui a pedido de sua rainha; se meus serviços lhe parecem inúteis ela só tem que me dizer uma palavra e eu me retirarei. Não é surpreendente que a sabedoria de nossa rainha tenha previsto que tal ocorrência poderia realizar-se em meio às perturbações que agitam este reino, e que, embora desejosa de conceder hospitalidade à sua irmã, tenha julgado prudente não permitir a entrada em seus Estados de um resto de exército em debandada.
Enquanto o abade estivera falando, receosa e irresoluta, a rainha permanecera com um pé no escaler e outro na margem que ia abandonar para sempre; mas depois de haver escutado as palavras do guarda, desvencilhando brandamente seu vestido, ela disse ao abade;
- Como o senhor vê, deixamos este reino por nossa livre e espontânea vontade; provavelmente estaremos livres para seguir logo depois rumo a França ou, quando bem nos parecer, regressar novamente aos nossos domínios. Aliás, agora já é demasiado tarde. Sua bênção, meu pai, e que Deus o proteja.
- Que ele se compadeça também de Vossa Majestade e lhe dê toda a proteção! Meu coração me diz que estou vendo pela última vez a minha rainha.
As velas foram desfraldadas e a embarcação atravessou rapidamente o braço de mar que separa as margens de Cumberland das margens de Galloway. Cheios de preocupação, os vassalos da rainha permaneceram à beira d'água, até perderem de vista o barco que se afastava.
Alguns dias depois do embarque da rainha, um correio todo esbaforido - Adam Woodcock em pessoa - trouxe uma mensagem de sir Halbert Glendinning dirigida ao abade Ambrose que, como Roland, ainda se achava em Dumdrennan. A carta do cavalheiro pedia a ambos que fossem sem demora ao seu castelo. "A clemência do regente lhe concede, e também a Roland, - dizia êle - um perdão generoso, sob a condição de que ambos fiquem por algum tempo entregues à minha vigilância. Tenho também a comunicar-lhe, com referência a Roland, coisas que ambos gostarão de saber, e que forçosamente me levarão a tomar mais interesse do que nunca por um rapaz que é o mais próximo parente de minha mulher".
O abade leu a carta em voz alta e depois permaneceu calado, como se estivesse refletindo sobre o que devia fazer. Enquanto isso, chamando Roland à parte, Woodcock lhe disse:
- Senhor Roland, leia isto.
O papel que lhe entregou era um atestado de padre Phillip, sacristão do Convento de Santa Mary, confirmando que havia secretamente ministrado o santo sacramento do matrimônio a Julian Avenel e Catherine Graeme, mas que como Julian se havia arrependido daquela união, ele, padre Phillip, tivera a culpável fraqueza de a conservar oculta e de se tornar cúmplice de uma conjura urdida por Julian, com o fito de fazer crer a Catherine Graeme que a cerimônia do seu casamento havia sido celebrada por um indivíduo não revestido do sacramento da ordem, e portanto não tinha caráter valido.
- Senhor Roland, daí pode concluir que é herdeiro legítimo de Avenel e que tal domínio lhe pertencerá por morte do meu senhor e de minha senhora.
Roland e o abade seguiram para o castelo de Avenel, onde sir Halbert Glendinning os recebeu com verdadeira afeição, enquanto sua esposa derramava lágrimas de alegria por encontrar novamente o órfão que havia protegido, último rebento de sua família. O cavalheiro de Avenel não deixou de se mostrar surpreendido ao verificar a prodigiosa mudança que um espaço de tempo tão curto produzira em Roland, e ficou encantado ao reconhecer que o menino mimado se transformara num jovem prudente, meigo, modesto, digno de obter, sem os pedir, os mesmos cuidados que outrora exigira sem os merecer. O velho mordomo foi o primeiro a cantar seus louvores, coisa que a própria Lilias repetia.
Havia muito tempo que o coração de Roland secretamente pendia para a religião reformada; os laços que o ligavam a Magdalen Graeme e o reconhecimento que lhe devia, eram os únicos impecilhos existentes para a sua renúncia à religião católica. Alguns meses depois de sua chegada ao castelo de Avenel ele teve a certeza de que ela morrera em Colônia, em conseqüência das fadigas que suportara numa peregrinação realizada pela rainha, em seguida a derrota de Langside.
Roland desposou Catherine que, depois de haver passado dois anos ao lado de sua desventurada senhora, quando submeteram Mary a uma prisão mais rigorosa, foi recambiada da Inglaterra. Voltou então para perto do pai; e como Roland fora reconhecido herdeiro legítimo da antiga casa dos Avenel, cujos bens haviam sido consideravelmente aumentados por sir Halbert Glendinning, lord Seyton, que escapara do desastre de Langside, consentiu sem esforço que ela casasse com um rapaz que, não obstante tivesse dado à sua legítima soberana provas de fidelidade, gozava, mesmo assim, de certo conceito, graças à influência de Halbert Glendinning sobre o partido reinante.
Walter Scott
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