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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PÂNTANO DA MEIA NOITE / Nora Roberts
O PÂNTANO DA MEIA NOITE / Nora Roberts

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PÂNTANO DA MEIA NOITE

 

A morte, com toda a sua cruel beleza, vivia no bayou (Termo do francês da Louisiana, usado sobretudo na região do delta do Mississipi, que designa um braço fluvial pantanoso N.T.). As suas sombras estavam em toda a parte. Qualquer sussurro que abafado por elas se ouvisse, nas ervas, nos canaviais ou na ratoeira do emaranhado do kudzu (Planta trepadeira originária do Japão, perfeitamente adaptada ao clima do Sul dos EUA, e que, se não for controlada, pode transformar-se numa verdadeira praga N.T.) significava vida, ou uma morte recente. O seu sopro era espesso e esverdeado, os olhos amarelos cintilavam no escuro.

O rio, silencioso como uma serpente, corria numa linha sinuosa: água negra debaixo de uma gorda Lua branca onde os joelhos dos ciprestes rompiam a superfície como ossos a perfurarem a pele.

O vulto comprido e nodoso de um jacaré sulcava a água escura e manchada pela Lua quase sem provocar ondulação. A sua ameaça era silenciosa, como se de um segredo se tratasse. Quando atacava, com a cauda fustigante a talhar triunfantemente a água, quando apertava o descuidado rato almiscarado nas mortíferas mandíbulas, o bayou ecoava com um único e breve grito.

E o jacaré afundava-se então no fundo lodoso com a sua presa.

Outros haviam conhecido as cruéis e silenciosas profundezas desse rio. Sabiam que era frio, frio, mesmo durante o terrível calor do Verão.

Carregado de segredos, o bayou nunca estava completamente imóvel. À noite, a morte andava atarefada sob a alta lua do caçador. Os mosquitos, como vampiros vorazes, zuniam numa rejubilante nuvem de avidez. Eram os instrumentistas da música do pântano e misturavam-se com os zumbidos, sussurros e gotejares pontuados pelos guinchos de pavor das presas capturadas.

Uma coruja soltava as suas duas lúgubres notas nos altos ramos de um carvalho, ensombrecido pelo musgo e pelas folhas. Alertado, um coelho fugia para salvar a vida.

E uma brisa que agitava o ar desvanecia-se logo depois, como o suspiro de um fantasma.

A coruja abandonava o seu poleiro com um rápido bater de asas.

Perto do rio, enquanto a coruja atacava e o coelho morria, uma velha casa cinzenta dormia nas sombras, com um embarcadouro que balançava ao sabor da ondulação. Mais além, sobre uma comprida e luxuriante extensão de erva, uma imponente mansão branca erguia-se atenta sob o luar.

O bayou estendia a sua linha entre o rio e a casa, repleto de vida e de morte.

 

 

Mansão Manet, Louisiana, 30 de Dezembro de 1899

A bebê estava a chorar. Abigail ouvia em sonhos o choro tênue e inquieto, o agitar dos minúsculos membros sob os cobertores macios. Sentiu as primeiras pontadas de fome, um anseio no ventre, como se a criança ainda estivesse dentro de si. O leite brotou-lhe dos seios antes de acordar completamente.

Levantou-se apressada e sem qualquer ruído. Dava-lhe tanto prazer: a intensa sensação de ternura e abundância nos seios. A sua utilidade. A filha precisava de alimento e ela fornecer-lho-ia.

Pegou no roupão branco pousado sobre o recamiet (Tipo de sofá com o apoio da cabeça elevado e o apoio dos pés mais baixo, geralmente sem encosto N.T.). Inalou o aroma dos lírios de estufa - os seus favoritos - colocados numa jarra de cristal que fora presente de casamento.

Antes do aparecimento de Lucian, contentava-se em enfiar flores silvestres dentro de garrafas.

Lucian também teria acordado se estivesse em casa. Ela teria sorrido e ter-lhe-ia afagado o cabelo louro e sedoso enquanto lhe dizia que não se preocupasse, que continuasse a dormir, mas ele teria ido ao quarto das crianças antes de ela ter acabado de dar a mamada da meia-noite a Marie Rose.

Tinha saudades dele: era mais uma dor no seu ventre. Mas quando vestiu o roupão, lembrou-se de que ele voltaria no dia seguinte. A partir da manhã ficaria atenta à sua chegada, à espera de o ver a galopar pela álea de carvalhos.

Correria ao encontro dele, indiferente ao que as pessoas pudessem pensar ou dizer. O seu coração sobressaltar-se-ia, oh, sobressaltava-se sempre, quando ele se apeasse do cavalo e a levantasse no ar.

E dançariam no baile de Ano Novo.

Começou a cantarolar baixinho e acendeu uma vela, protegendo-a com a mão enquanto saía do quarto para o corredor da enorme casa onde fora outrora criada e era hoje, se não filha da casa, pelo menos a esposa do filho.

O quarto das crianças ficava no terceiro piso da ala da família. Fora uma batalha que travara e perdera com a mãe de Lucian. Josephine Manet tinha regras definidas sobre o comportamento, os assuntos domésticos e as tradições. Madame Josephine tinha ideias definidas sobre tudo, pensou Abigail enquanto passava rápida e silenciosamente pelas portas dos outros quartos. E o lugar de um bebê de três meses era no quarto das crianças, sob os cuidados de uma ama, e não num berço enfiado a um canto no quarto dos pais.

A luz da vela tremulou e varreu as paredes enquanto subia a estreita escadaria. Pelo menos conseguira manter Marie Rose consigo durante seis semanas. E usara o berço que fazia parte das tradições da sua própria família e que fora construído pelo seu avô. A sua própria mãe dormira nele e, dezessete anos mais tarde, fora a vez de Abigail ser nele aconchegada.

Marie Rose passara as suas primeiras noites nesse berço, um minúsculo anjinho com os extremosos e nervosos pais ali sempre junto dela.

A sua filha iria respeitar a família do pai e os costumes deles. Mas Abigail estava determinada a que também respeitasse e aprendesse as tradições da família da mãe.

Josephine queixara-se tão insistentemente da bebê e do berço caseiro que ela e Lucian tinham acabado por ceder. Lucian disse que era assim que a água erodia as rochas: incessante, até a rocha ceder caminho ou se desgastar.

A bebê passava agora as noites no quarto das crianças, no berço feito na França e no qual os bebês Manet haviam dormido durante um século.

Era um acordo aceitável, confortável até, pensou Abby como consolação. A sua petite Rose era uma Manet. Ia ser uma senhora.

E, tal como Madame Josephine não se cansava de repetir, o sono dos outros membros daquele lar não podia ser perturbado por gritos angustiantes. Independentemente do modo como se lidava com tais assuntos no bayou, ali, na Mansão Manet, cuidava-se das crianças no quarto que lhes estava destinado.

Como os lábios dela se tinham curvado quando dissera aquilo: bayou, como se a palavra fosse proferida depois em bares e em bordéis.

Não se importava que Madame Josephine a detestasse, que Monsieur Henri a ignorasse. Não se importava que Julian a olhasse como homem nenhum olharia para a esposa do irmão.

Lucian amava-a.

Não se importava que Marie Rose dormisse no quarto das crianças. Quer estivessem separadas por um piso ou por um continente, sentia as necessidades de Marie Rose como sentia as suas. O laço era tão forte, tão verdadeiro, que nunca poderia ser quebrado.

Madame Josephine podia ganhar batalhas, mas Abigail sabia que tinha sido ela quem ganhara a guerra: tinha Lucian e Marie Rose.

Havia velas acesas no quarto das crianças. Claudine, a ama, não confiava na luz alimentada a gás. Pegara já em Marie Rose e tentava sossegá-la com uma chupeta embebida em açúcar, mas a bebê abanava os punhos como pequenas bolas de raiva.

- Mas que feitiozinho ela tem. - Abigail pousou a vela e riu enquanto avançava de braços já estendidos.

- Ela sabe bem o que quer, e quando quer. - Claudine, uma bonita cajun (Designação dada originariamente aos nativos da Louisiana descendentes dos colonos franceses expulsos da Aaquidia, Nova Escócia, em 1755 e que hoje se aplica a todos os que partilham a herança cultural francesa trazida por esses primeiros exilados N.T.) de olhos escuros e cheios de sono, fez um rápido afago à bebê e entregou-lha. - Até agora quase não fez barulho. Não sei como a ouviste lá em baixo.

- Ouvi-a no meu coração. Pronto, bebê. A mamã está aqui.

- Tem a fralda molhada.

- Eu mudo-a. - Abigail esfregou o queixo no da bebê e sorriu. Claudine era uma amiga: outra batalha ganha. Tê-la ali no quarto das crianças e na mansão proporcionava-lhe o conforto e a camaradagem que nenhum dos elementos da família de Lucian lhe oferecia.

- Volta para a cama. Assim que lhe der de mamar, vai dormir até de manhã.

- É um anjinho, é o que ela é. - Claudine passou a ponta dos dedos pelo cabelo encaracolado de Marie Rose. - Se não precisas de mim, se ficar bom para você vou dar um passeio pelo rio. O Jasper vai lá estar. - Os seus olhos escuros iluminaram-se. - Disse-lhe que, se pudesse ausentar-me, talvez me encontrasse com ele por volta da meia-noite.

- Devias obrigar esse rapaz a casar contigo, chère.

- Oh, e obrigo! Talvez fique por lá uma hora ou duas, se não te importares, Abby.

- Não me importo, mas tem cuidado para não apanhares mais nada sem ser lagostins. A não ser lagostins - corrigiu-se enquanto se preparava para mudar a fralda a Marie Rose.

- Não te preocupes. Volto antes das duas. - Estava prestes a atravessar a porta de ligação, mas olhou para trás. - Abby? Quando eramos crianças, alguma vez pensaste que um dia ias ser patroa desta casa?

- Aqui não sou nenhuma patroa. - Fez cócegas nos dedos dos pés da bebê e Marie Rose soltou uns risinhos. - E aquela que é, vai provavelmente viver até aos cento e dez anos só pela maldade de impedir que eu venha a sê-lo.

- Se alguém te pode impedir, é ela. Mas um dia acabaras por ser tu a patroa. Tiveste sorte, Abby, e mereces.

Já sozinha com a bebê, Abby fez-lhe cócegas e sussurrou-lhe com carinho. Aplicou-lhe suavemente o pó de talco e apertou cuidadosamente a fralda limpa. Vestiu-lhe um conjuntinho lavado e aconchegou-a; depois instalou-se na cadeira de balance e desnudou o seio para aquela minúscula boquinha esfomeada. As primeiras sucções de avidez, aquela sensação no ventre, fizeram-na suspirar. Sim, tivera sorte. Porque Lucian Manet, o herdeiro da Mansão Manet, o cintilante cavaleiro de qualquer conto de fadas, olhara para ela. E apaixonara-se.

Baixou a cabeça para ver a bebê a mamar. Marie Rose tinha os olhos completamente abertos e fixos no rosto da mãe. Um minúsculo vinco de concentração formara-se entre as suas sobrancelhas.

Oh, tinha a forte esperança de que aqueles olhos continuassem azuis, como os de Lucian. O cabelo da bebê era escuro como o dela. Escuro e encaracolado, mas a pele era de um branco leitoso: novamente como a do papá e não o tom mais carregado, aquele dourado-escuro da sua mamã cajun.

Ela teria o melhor deles dois, pensou Abby. Teria o melhor de tudo.

Não era depois o dinheiro, aquela casa imponente, o status social, embora desejasse todas essas coisas para os filhos, agora que ela própria as experimentara.

Era a aceitação, a aprendizagem, saber que se pertencia a um lugar. A filha, e todas as crianças que viessem a seguir, saberiam ler e escrever e falariam um inglês correto, um francês correto, com vozes educadas.

Ninguém as olharia com desdém.

- Vais ser uma senhora - murmurou Abigail enquanto afagava o rosto da criança e esta lhe apertava o seio como se apressasse o leite a sair. - Uma senhora educada, com o coração doce do papá e o bom senso da mamã. O papá regressa amanhã a casa. É o último dia de um século inteiro, e tu tens toda uma vida para aqui viver.

A sua voz era calma, um ritmo de cantilui que as embalava a ambas.

- Que excitante é, Rosie, minha Rosie! Amanhã à noite vamos ter um grande baile. Tenho um vestido novo. É azul, como os teus olhos. Como os olhos do papá. Já te tinha dito que me apaixonei primeiro pelos olhos dele? Tão lindos! Tão gentis! Quando voltou da universidade para a Mansão Manet, parecia um príncipe de regresso ao seu castelo. Oh, o meu coração batia com tanta força!

Recostou-se e ficou a balançar à luz tremeluzente das velas.

Pensou nas celebrações de Ano Novo da noite seguinte, como dançaria com Lucian, como o seu vestido esvoaçaria e rodopiaria quando dançassem a valsa.

Como ficaria orgulhoso dela!

E então lembrou-se da primeira vez que tinham dançado a valsa.

Fora na Primavera, com o ar pesado do perfume das flores e a casa iluminada como um palácio. Esgueirara-se para o jardim, para longe dos seus deveres, porque queria tanto ver tudo aquilo! O modo como o cintilante átrio branco, com as suas balaustradas que pareciam um rendilhado escuro, se destacava contra o céu estrelado, o modo como as janelas flamejavam. E como a música delas jorrara, e das portas do alpendre, para onde os convidados tinham ido apanhar ar.

Imaginara-se a si própria no salão de baile, a rodopiar e a rodopiar ao som da música. E rodopiara nas sombras do jardim. E fora assim, a rodopiar, que vira Lucian observá-la na vereda do jardim.

Era o seu próprio conto de fadas, pensou. O príncipe dera a mão à Cinderela para dançarem momentos antes de soar a meia-noite. Não tinha sapatinhos de vidro nem nenhuma carruagem-abóbora, mas a noite tornara-se mágica.

Ainda conseguia ouvir a música derramar-se pelas portas da varanda até ao jardim.

- Quando o baile acabar, quando a manhã romper...

Cantou baixinho o refrão enquanto mudava a bebê para o outro seio.

- Quando os dançarinos partirem, quando as estrelas se forem...

Tinham dançado aquela canção triste e encantadora no jardim iluminado pela Lua, com o branco régio e as sombras douradas da casa por trás deles. Ela com aquele seu vestido simples de algodão e Lucian com o seu elegante traje de noite. E tal como nos contos de fadas, apaixonaram-se durante aquela canção triste e encantadora.

Oh, ela sabia que tudo começara muito antes dessa noite. Para ela começara na primeira vez que o vira montado na égua castanha que o trouxera de Nova Orleães até à plantação. O modo como o sol irradiava das folhas e do musgo nos carvalhos ao longo da álea e o envolvia como as asas de um anjo. Julian, o irmão gêmeo, cavalgava ao lado dele, mas ela depois vira Lucian.

Estava naquela casa há depois algumas semanas, uma simples criada que fazia o possível para agradar a Monsieur e Madame Manet de modo a manter o posto e o salário que recebia.

Quando passavam um pelo outro, Lucian falava com ela com gentileza e educação. Mas pressentia que ele a observava. Não do mesmo modo que Julian, de olhos excitados e com aquele sorriso trocista que lhe retorcia os lábios, mas, como gostava de lembrar agora, com uma espécie de desejo.

Cruzara-se frequentemente com ele nas semanas que se seguiram. Ele procurava-a. Sabia-o agora, valorizava-o agora, depois de ele lho ter confessado na noite do casamento.

Mas tudo começara verdadeiramente na noite do baile. Quando a canção terminara, Lucian mantivera-a junto a si, não mais que um instante. Depois curvava-se numa mesura, como um cavalheiro se curva perante uma dama. E beijara-lhe a mão.

E então, já ela pensava que tudo tinha acabado, que a magia se ia desvanecer, ele pegou na mão que beijara e deu-lhe o braço. Começou a caminhar com ela, a falar com ela. Sobre o tempo, as flores, os mexericos da casa.

Como se fossem amigos, pensava agora Abby com um sorriso. Como se dar um passeio no jardim com Abigail Rouse fosse a coisa mais natural do mundo para Lucian Manet.

E houve muitas mais noites em que deram passeios pelo jardim. Dentro de casa, onde os outros os podiam ver, continuavam a ser patrão e criada. Mas durante toda aquela inebriante Primavera percorreram as veredas do jardim como jovens amantes, partilhando expectativas e sonhos, tristezas e alegrias.

Quando ela fez dezessete anos, Lucian trouxe-lhe um presente embrulhado em papel prateado, com um cintilante laço azul-claro. O relógio de esmalte era um belo círculo que balançava das asas douradas de um broche. O tempo voava quando estavam juntos, dissera-lhe ele enquanto lhe prendia o relógio ao algodão esmaecido do vestido. E ele preferia que a sua vida passasse a voar do que vivê-la separado dela.

Ajoelhara-se e pedira-lhe para ser sua esposa.

Era impossível - oh, como ela tentara dizer-lho por entre as lágrimas! Lucian estava para lá do seu alcance e podia escolher quem bem quisesse.

Lembrava-se agora de como ele se rira, de como a alegria irrompera naquele seu rosto formoso. Como podia ele estar para lá do seu alcance se ela tinha a mão dele entre as suas nesse mesmo momento? E se podia escolher quem quisesse, então escolhia-a a ela.

- Por isso, agora temo-nos um ao outro, e também a ti - sussurrou Abby, mudando a bebê cheia de sono para o ombro. - E que interessa se a família dele me detesta? Eu faço-o feliz. - Voltou o rosto para a curva suave do pescoço da bebê. - Estou a aprender a falar como eles falam, a vestir como eles se vestem. Nunca pensarei como eles pensam mas, por causa do Lucian, comporto-me como eles se comportam, pelo menos quando é preciso.

Sentia-se feliz e continuou a balançar enquanto esfregava as costas à bebê. Mas levantou-se rapidamente quando ouviu passadas pesadas a subirem tropegamente as escadas.

Retesou os braços num círculo de proteção em redor da bebê enquanto se virava para o berço.

Ouvira Julian a abrir a porta e soube instintivamente que ele estava bêbado. Estava quase sempre bêbado ou a fazer por isso.

Abby não falou. Pousou a bebê no berço e afagou-a para a sossegar quando Marie Rose começou a chorar com inquietação.

- Onde está a ama? - quis ele saber. Abby continuou de costas voltadas.

- Não te quero aqui se estiveste a beber.

- Agora dás ordens? - A voz era arrastada e o seu equilíbrio incerto. Mas conseguia pensar com clareza. Sempre acreditara que a bebida o ajudava a clarificar a mente.

E a sua mente estava clara no que dizia respeito à esposa do irmão. Se Lucian tinha uma coisa - e o que era uma mulher senão uma coisa? -, Julian também a queria.

Ela era baixa, de constituição quase delicada. Mas tinha pernas bem fortes. Conseguia distinguir-lhes a forma quando a luz da lareira do quarto das crianças brilhava através das suas finas roupas de noite.

Aquelas pernas envolvê-lo-iam tão facilmente como faziam às do irmão.

Os seios eram firmes e cheios, agora ainda mais cheios desde que tivera a cria. Já uma vez lhes deitara a mão e ela esbofeteara-o. Como se tivesse a palavra final quanto a quem podia tocar-lhe.

Fechou a porta atrás de si. A prostituta que trouxera nessa noite depois lhe aguçara o apetite. Chegara a altura de o saciar.

- Onde é que está a outra puta do bayou?

Abby cerrou os punhos e voltou-se, protegendo o berço com o corpo. Parecia-se tanto com Lucian. Mas havia nele uma rudeza que Lucian não tinha. Uma escuridão.

Seria verdade o que a sua avó dizia: que, nos gêmeos, às vezes os traços se dividiam no útero? Que um ficava com os traços bons e o outro com os maus?

Não sabia se Julian viera ao mundo já estragado pelos mimos. Mas sabia que era perigoso quando estava bêbado. Chegara a altura de ele saber que também ela era perigosa.

- A Claudine é minha amiga e não tens o direito de falar assim dela. Sai daqui. Não tens o direito de aqui entrar e de me insultares. Desta vez o Lucian vai saber disto.

Viu o olhar fixo dele descer pelo seu rosto, viu a luxúria assomar-lhe aos olhos. Cobriu de imediato o seio ainda parcialmente exposto por ter estado a dar de mamar.

- És nojento! Porco! Entrar assim no quarto das crianças, cheio de pensamentos perversos pela mulher do teu irmão.

- Pela puta do meu irmão. - Julgou sentir a raiva e o medo dela: um perfume estonteante. - Terias aberto as pernas para mim se eu tivesse nascido quinze minutos mais cedo. Mas não me tinhas roubado o nome como roubaste o dele.

Abby ergueu o queixo.

- Nem sequer te vejo. Ninguém te vê. Não és nada comparado com ele. És uma sombra, uma sombra que fede a whiskey e a bordel.

Queria fugir. Ele assustava-a, sempre a assustara a um nível profundo e primário. Mas não ia correr o risco de o deixar ali com a bebê.

- O Lucian vai pôr-te fora daqui quando lhe contar isto.

- Ele aqui não manda nada, todos o sabemos. - Aproximou-se mais, ágil como um caçador em pleno bosque. - Quem manda nesta casa é a minha mãe. E eu sou o preferido dela. A hora de nascimento não altera isso.

- Ele vai expulsar-te daqui! - Sentia as lágrimas a picarem-lhe a garganta, pois sabia que Julian tinha razão. Era Josephine quem reinava na Mansão Manet.

- O Lucian fez-me um favor ao casar contigo. - A sua voz arrastava-se agora com indolência, quase em tom de conversa. Sabia que ela não tinha para onde fugir. - Ela até o retirou do testamento. Oh, vai ficar com a casa, ela isso não pode mudar, mas eu é que fico com o dinheiro. E é o dinheiro dela que governa este lugar.

- Fica com o dinheiro, fica com a casa! - lanceu as mãos ao ar, como se pusesse de lado tudo aquilo, e também a ele. - Fica com tudo! E que o inferno te leve a ti e a tudo o mais!

- Ele é fraco, o santinho do meu irmão. Os santos são sempre fracos debaixo de toda aquela piedade.

- Ele é homem, muito mais homem do que tu!

Tinha a esperança de o enfurecer, de o enfurecer o suficiente para que lhe batesse e saísse intempestivamente dali. Em vez disso, ele riu-se baixinho e aproximou-se ainda mais.

Quando viu a intenção nos seus olhos abriu a boca para gritar. Julian agarrou num punhado do cabelo escuro que lhe caía encaracolado até à cintura. E o puxão sufocou-lhe o grito num arquejo. Depois envolveu-lhe a garganta com a outra mão e apertou-a.

- Apodero-me sempre do que é do Lucian! Até mesmo das putas dele!

Abby começou a bater-lhe, a esbofeteá-lo, a morder-lhe. Quando conseguia respirar, gritava. Julian arrancou-lhe o roupão e agarrou-lhe os seios. A bebê começou a berrar no berço.

Instigada pela aflição da filha, Abby arranjou forças para se libertar, rodopiou e tropeçou na bainha rasgada do roupão. Cerrou a mão sobre o atiçador da lareira e descarregou-o com toda a força no ombro dele.

Julian caiu de costas contra a lareira, a uivar de dor, e Abby correu para junto do berço.

Tinha de pegar na bebê. Pegar na bebê e fugir.

Ele agarrou-lhe na manga e Abby gritou novamente quando o tecido se rasgou. Julian arrastou-a para trás quando ela tentava baixar-se para tirar a filha do berço.

Atingiu-a no rosto com as costas da mão e projetou-a de encontro a uma mesa. A vela que caiu ao chão extinguiu-se na própria cera.

- Puta! Prostituta!

Estava louco. Via-o agora no brilho feroz dos seus olhos, no rubor alcoólico das suas faces. Foi nesse instante que o medo se transformou em terror.

- Ele vai-te matar por causa disto! O meu Lucian vai-te matar! - Tentou levantar-se, mas ele bateu-lhe novamente, desta vez usando o punho, para que a dor lhe irradiasse do rosto para o corpo. Ficou atordoada e começou a rastejar para o berço. Sentia sangue na boca, quente e adocicado.

A minha bebê! Meu Deus, não o deixes fazer mal à minha bebê!

Todo o peso dele estava em cima dela; e o seu fedor. Abby lanceu a cabeça para trás e gritou por socorro. Os gritos furiosos da bebê fundiram-se com os seus.

- Não! Não! Maldito sejas!

Enquanto Julian lhe puxava o roupão para cima, Abby sabia que, por mais que suplicasse, por mais que lutasse, nada o deteria. Ele humilhá-la-ia, conspuraqui-la-ia.

Por ser quem era. Por pertencer a Lucian.

- É isto que tu queres! - Penetrou-a, e a excitação do poder jorrou através dele como vinho escuro. O rosto de Abby estava branco de medo e de choque, dorido dos golpes que ele desferira. Ninguém te pode valer, pensou ele enquanto martelava toda a sua furiosa inveja. - É isto que querem todas as putas cajun.

Violentou-a, numa violência incontrolada. A excitação de a penetrar à força fazia-o respirar em curtas explosões que grunhia por entre os dentes cerrados.

Abby chorava agora, enormes soluços que a sufocavam. Mas também gritava. Gritava enquanto ele descarregava dentro dela toda a sua fúria e os seus ciúmes, o seu desdém.

Quando o relógio começou a bater a meia-noite, Julian fechou as mãos em volta da garganta dela.

- Cala-te! Maldita sejas!

Bateu-lhe com a cabeça no chão e apertou ainda com mais força. Mas os gritos continuavam a perfurar-lhe o cérebro.

Abby também os ouvia. Tenuemente. Os gritos desesperados da bebê repicavam-lhe na cabeça ao mesmo tempo que as lentas e formais badaladas da meia-noite. Tentou esbofeteá-lo, mas eram débeis protestos contra aquelas mãos que lhe tiravam o ar. Tentou fechar o corpo à inominável invasão.

Ajuda-me! Mãe de Deus! Ajuda-me! Ajuda a minha bebê!

Sentiu a visão toldar-se. As convulsões faziam-na bater violentamente com os calcanhares no chão.

A última coisa que ouviu foi a filha a chorar. A última coisa que pensou foi: Lucian.

A porta do quarto escancarou-se de repente. Um olhar rápido, frio, foi quanto bastou a Josephine Manet para perceber o que tinha acontecido.

- Julian.

Ele levantou a cabeça, ainda com as mãos enclavinhadas na garganta de Abby. Se a mãe viu loucura naqueles olhos, preferiu ignorá-la. Aproximou-se, com o cabelo dourado cuidadosamente entrançado para a noite e o austero roupão abotoado até ao pescoço, e baixou o olhar para o corpo inerte.

Os olhos de Abby estavam desmesuradamente abertos e fixos. Tinha um fio de sangue a escorrer-lhe pelo canto da boca e equimoses a desabrochar-lhe nas faces.

Imperturbável, Josephine baixou-se e pousou-lhe os dedos na garganta.

- Está morta - anunciou ela dirigindo-se de pronto à porta de ligação. Abriu-a e espreitou para o quarto da criada. Depois fechou-a e tratou de a trancar.

Ficou ali imóvel por um momento, de costas apoiadas na porta, com a mão na sua própria garganta enquanto pensava no que poderia sobrevir de tudo aquilo. A desgraça, a ruína, o escândalo.

- Foi... um acidente. - As mãos de Julian começaram a tremer assim que largaram a garganta de Abby. O whiskey rodopiava-lhe agora na cabeça e escurecia-o. Agitava-lhe o estômago, provocava-lhe náuseas.

Conseguia ver as marcas na pele dela, marcas escuras, profundas, conduitórias.

- Ela... tentou seduzir-me, e depois atacou-me...

Josephine atravessou novamente o quarto, com os chinelos a baterem na madeira. Baixou-se e esbofeteou-o. Uma forte pancada de carne contra carne.

- Cala-te! Cala-te e faz exatamente o que te vou dizer! Não vou perder outro filho por causa desta criatura. Leva-a para o quarto dela. Sai pela varanda e fica lá até eu chegar.

- A culpa foi dela.

- Sim. E agora pagou por isso. Leva-a para baixo, Julian. E despacha-te.

- Eles vão-me... - Uma única lágrima formou-se no canto do olho e deslizou rosto abaixo. - Eles vão-me enforcar. Tenho que fugir.

- Não, não te vão enforcar. - Pousou a cabeça dele sobre o seu ombro e afagou-lhe o cabelo, assim debruçados sobre o corpo de Abby.

- Não, meu querido, não te vão enforcar. Agora faz o que a mamã te diz. Leva-a para o quarto e espera lá por mim. Vai correr tudo bem. Tudo voltará a ser como sempre devia ter sido. Prometo.

- Não quero tocar nela.

- Julian! - O tom carinhoso transformou-se bruscamente numa ordem gelada. - Faz como te digo. Já!

Josephine levantou-se e aproximou-se do berço, onde os lamentos da bebê se haviam tornado num choro infeliz. Levada pelo ímpeto do momento, pensou em pousar simplesmente a mão sobre a boca e o nariz da criança. Seria como afogar um saco de gatos.

E no entanto...

A criança tinha o sangue do seu filho e, portanto, também o seu. Podia desprezá-la, mas não podia destruí-la.

- Dorme - disse. - Depois decidimos o que fazer de ti.

Quando o filho levou a moça que violentara e assassinara, Josephine começou a arrumar o quarto das crianças. Pegou na vela e esfregou a cera já ressequida até apagar todos os vestígios.

Colocou o atiçador na lareira e limpou os salpicos de sangue servindo-se do roupão rasgado de Abby. Fez tudo com eficiência, afastando a mente daquilo que causara os estragos no quarto e concentrando-se firmemente no que precisava de ser feito para salvar o filho.

Quando se certificou de que tudo estava como devia estar, destrancou novamente a porta e deixou ali sozinha a neta que agora dormia.

De manhã despediria a ama por ter faltado aos seus deveres. Pô-la-ia fora da Mansão Manet antes de Lucian regressar e descobrir que a esposa desaparecera.

A moça é que fora responsável pelo que lhe acontecera, pensou Josephine. Era no que dava as pessoas tentarem erguer-se acima da sua condição. Havia uma ordem nas coisas, e uma razão para essa ordem. Ainda estaria viva se não tivesse enfeitiçado Lucian - pois de certeza que havia naquilo algum feitiço local.

A família já tinha sofrido escândalos que chegassem. A fuga para se casarem. Oh, a vergonha que passara! Ter de manter a cabeça erguida quando o nosso filho primogênito foge com uma fêmea descalça e sem um tostão que cresceu num barraco no pântano.

E depois o sabor amargo do fingimento que se seguira. Fora essencial para salvar a face, mesmo depois de uma tal afronta. E não tinha ela feito tudo o que podia para que a criatura se vestisse como convinha à família Manet?

Bolsas de seda, pérolas a porcos, pensou. De que valiam as modas de Paris se bastava a moça abrir a boca para soar como as gentes do pântano? Por amor de Deus, não passava de uma criada!

Entrou no quarto, fechou a porta atrás de si e olhou fixamente para a cama onde a mulher morta do filho jazia de olhos fixos no dossel de seda azul.

Ora bem, pensou, Abigail Rouse não passa de um problema que tem de ser resolvido.

Julian era um volume inerte na cadeira, com a cabeça entre as mãos.

- Para com esses gritos - balbuciava. - para com esses gritos! Josephine avançou para ele e firmou-lhe as mãos nos ombros.

- Queres que venham atrás de ti? - vociferou. - Queres arrastar a família para a desgraça? Ser enforcado como um ladrão vulgar?

- A culpa não foi minha! Ela provocou-me! E depois atacou-me! Veja! Veja! - Virou a cabeça. - Não vê como me arranhou a cara?

- Sim. - Por um momento, por um brevíssimo momento, Josephine vacilou. O coração dentro do símbolo em que se tornara ergueu-se em protesto contra o horror daquele ato que todas as mulheres temiam.

Independentemente de quem era, Abigail amara Lucian. Independentemente de quem era, Abigail fora violentada e assassinada a centímetros do berço da própria filha.

Julian forçara-a, espancara-a, conspurcara-a. Matara-a.

Estava bêbado e tresloucado e matara a mulher do irmão. Por amor de Deus!

Mas não tardou a sacudir aqueles pensamentos.

A moça estava morta. O seu filho não.

- Esta noite pagaste a uma prostituta. Não me vires a cara! - lanceu-lhe com brusquidão. - Sei bem as coisas que os homens fazem. Pagaste a alguma mulher?

- Sim, mamã.

Josephine anuiu secamente com a cabeça.

- Então foi a prostituta que te arranhou, se alguém tiver a temeridade de perguntar. Nunca estiveste no quarto das crianças esta noite. - Agarrou-lhe no rosto com ambas as mãos para manter os olhos dele ao nível dos seus. E enterrou os dedos naquelas faces enquanto falava num tom baixo e nítido. - Que razão terias para lá ir? Saíste, para beber e estar com mulheres e, saciado de ambas as coisas, voltaste para casa e foste para a cama. Percebeste?

- Mas... como vamos explicar...

- Não vamos precisar de explicar nada! Já te disse o que fizeste esta noite. Repete-o.

- Eu... eu fui à cidade. - Lambeu os lábios. Engoliu em seco. - Bebi e depois fui a um bordel. Vim para casa e deitei-me.

- Isso mesmo. Isso mesmo. - Afagou-lhe a face arranhada. - Ora bem, vamos fazer a mala dela com algumas coisas, algumas roupas e jóias. Vamos fazê-lo à pressa, tal como ela o fez à pressa quando decidiu fugir com um homem com quem andava a encontrar-se em segredo. Um homem que pode muito bem ser o pai daquela criança lá em cima.

- Que homem?

Josephine soltou um longo suspiro. Julian era o seu filho dilecto, mas aquela cabeça por vezes desesperava-a.

- Não interessa, Julian. Não sabes nada sobre isso. Toma. - Foi ao guarda roupa e escolheu uma capa comprida de veludo escuro. - Embrulha-a nisto. Depressa. Já! - disse, num tom que o fez levantar-se de pronto.

Agoniado, com as mãos a tremer, Julian embrulhou o corpo no veludo o melhor que pôde, enquanto a mãe enfiava coisas numa caixa de chapéus e numa mala de viagem.

Com a pressa, Josephine deixou cair um broche de asas douradas com um pequeno relógio de esmalte pendurado. E a ponta do chinelo fê-lo deslizar para um canto.

- Vamos levá-la para o pântano. Temos que ir a pé, e depressa. Há uns tijolos velhos no barraco do jardim. Podemos afundá-la com eles.

E os jacarés, pensou ela, os jacarés e os peixes farão o resto.

- Mesmo que a encontrem, será longe daqui. O homem com quem fugiu é que a matou. - Enxugou o rosto com o lenço que tinha no bolso do roupão e passou a mão pela longa trança dourada. - É o que as pessoas vão pensar se for encontrada. Temos que a tirar daqui, para longe da Mansão Manet. Rapidamente.

Ela própria começava a sentir-se um pouco louca.

Havia luar. Disse a si própria que havia luar porque o destino compreendia o que ela estava a fazer e porquê. Ouvia a respiração rápida do filho e os sons da noite.

As rãs, os insetos, as aves noturnas, todos fundidos nota única, densa.

Era o fim de um século, o começo do novo. Livrar-se-ia daquela aberração estranha ao seu mundo e iniciaria o novo século, a nova era, limpa e fortalecida.

O ar estava gelado e úmido. Mas Josephine sentia-se quente, quase a escaldar, enquanto se afastava de casa carregada com as bagagens que emalara e os pesos que lhes pusera dentro. Os músculos dos braços e das pernas protestavam, mas marchava como um soldado.

Uma vez, depois uma, julgou sentir qualquer coisa a roçar-lhe na face, como a respiração de um fantasma: o espírito de uma moça morta que caminhava a seu lado, acusando-a, conduindo-a, amaldiçoando-a para toda a eternidade.

Mas o medo tornava-a ainda mais forte.

- Aqui. - Parou e espreitou para a água. - Deita-a aqui. Julian obedeceu e reergueu-se rapidamente, de costas voltadas e tapando o rosto com as mãos.

- Não consigo fazer isto, mamã! Não consigo! Estou agoniado! Agoniado!

Cambaleou para a água, a vomitar e a chorar.

Que rapaz tão inútil, pensou ela, ligeiramente aborrecida. Os homens nunca conseguiam lidar com uma crise. Era preciso uma mulher, era preciso o sangue-frio e a mente clara de uma fêmea.

Josephine abriu a capa e colocou tijolos em cima do corpo. O suor começou a escorrer-lhe pelo rosto, mas cumpriu a horrenda tarefa como cumpriria qualquer outra: com uma eficiência impiedosa. Tirou a corda da caixa de chapéus e atou cuidadosamente o corpo amortalhado: em cima, em baixo e a meio. Pegou noutra corda, passou-a pelas alças da mala e atou-a com um nó bem firme.

Levantou a cabeça e viu que Julian a observava com o rosto branco como a cal.

- Vais ter que ajudar. Não consigo deitá-la à água sozinha. É muito pesada.

- Eu estava bêbado.

- Isso mesmo, Julian. Estavas bêbado. E agora estás suficientemente sóbrio para lidar com as consequências. Ajuda-me a deitá-la à água.

Julian sentia as pernas vergarem e cederem a cada passo, como as de uma marioneta. O corpo deslizou para dentro de água quase sem um ruído. Ouviu-se um pequeno plop, quase um gorgolejo, e depois o silêncio. A ondulação espalhou-se pela superfície, tremeluziu ao luar e dissipou-se novamente.

- Já saiu das nossas vidas - declarou Josephine numa voz calma.

- Em breve será como aquela ondulação. Como se nunca tivesse existido. Não te esqueças de limpar bem as botas, Julian. Não as confies a nenhuma das criadas. - Enfiou o braço no dele e sorriu, embora o sorriso fosse um pouco selvagem. - Temos que voltar e descansar um pouco. Amanhã vai ser um dia muito atarefado.

 

 

Mansão Manet, Louisiana, Janeiro de 2002

A sua mãe tinha razão, como sempre. Declan Fitzgerald olhava fixamente através do parabrisas salpicado de lama para a chuva invernal e sentia-se contente por ela não estar ali para se vangloriar.

Não que Colleen Sullivan Fitzgerald alguma vez se rebaixasse a esse ponto. Limitava-se a erguer uma sobrancelha perfeita num arco perfeito e deixava que o silêncio se vangloriasse por ela.

Quando Declan fora visitá-la antes de deixar Boston, ela dissera-lhe, muito sucintamente, que ele perdera a cabeça. E que se arrependeria desse dia. Sim, tinha quase a certeza de que ela dissera que se "arrependeria desse dia".

Não ficara assim tão deprimido a ponto de se arrepender - por enquanto -, mas, agora que observava a selva de ervas daninhas, os alpendres decaídos, a tinta a descascar e as goteiras quebradas da velha fazenda, já não confiava na sua própria saúde mental.

O que o levara a pensar que conseguiria restituir o antigo esplendor àquela velha ruína? Ou, mais concretamente, o que o levara a pensar que devia fazê-lo? Por amor de Deus, ele era um advogado, um Fitzgerald dos Fitzgerald de Boston, com mais vocação para agitar um taco de golfe do que um martelo.

Recuperar uma casa citadina no seu tempo livre durante um período de dois anos era bem diferente de mudar-se para Nova Orleães e fingir que era um empreiteiro. O lugar parecera-lhe assim tão decrépito da última vez que lá estivera? Seria possível? Claro que isso fora cinco, não, seis anos atrás. De certeza que não parecera assim tão decrépita da primeira vez que a vira. Tinha então vinte anos e viera ali passar um louco Mardi Gras com o seu colega de quarto da faculdade. Há onze anos, pensou, passando os dedos pelo cabelo louro-escuro.

A velha Mansão Manet andava a remoer-lhe o cérebro há onze anos. Em matéria de obsessões, aquela era mais duradoura que a maior parte das relações amorosas. Seguramente mais do que as suas.

Agora a casa era dele, para o que desse e viesse. E não conseguia libertar-se da sensação de que não devia vir nada de bom.

Os seus olhos, tão cinzentos e, naquele momento, tão lúgubres quanto a chuva, examinaram a estrutura. Os graciosos arcos gêmeos da dupla escadaria que dava para a varanda do segundo piso tinham-no encantado nesse Fevereiro já longínquo. E todas aquelas altas janelas em arco, a estranheza do mirante no telhado, a elegância das colunas brancas e as balaustradas de ferro bizarramente ornamentado. Aquela mistura fantasiosa de estilo italiano e neoclássico parecera-lhe tão incrivelmente exuberante, ao mesmo tempo sulista e europeia.

Já naquela altura se sentia deslocado na Nova Inglaterra, de uma forma que nunca tinha sido capaz de explicar.

A casa atraíra-o para uma espécie de câmara profunda. Como um gancho que lhe atravessasse a memória, pensava agora. Conseguira visualizar o interior antes mesmo de ele e Remy terem forçado a entrada para vaguearem lá por dentro.

Ou talvez tivessem sido os litros de cerveja que entornara que o tinham levado a pensar que conseguiria.

Não se podia confiar num bêbado, ainda mais recém-saído da adolescência. Nem sequer num homem de trinta e um anos sóbrio como uma pedra, admitiu com amargura.

Declan fizera uma oferta assim que Remy lhe mencionara que a Mansão Manet estava novamente à venda. Comprara-a sem a ver, e não a vira durante mais de meia década.

Tinha de a ter. Como se tivesse esperado por ela toda a vida.

O preço até fora rmotivoável, se descontasse o que teria de lá enterrar para a tornar habitável. De modo que não quisera pensar nisso - até agora.

Era sua, quer estivesse louco ou no seu perfeito juízo. Fosse como fosse, trocara a pasta de executivo por um cinto de ferramentas. Foi quanto bastou para o animar.

Pegou no celular: conseguia-se fazer o advogado sair de Boston, mas... Continuou a examinar a casa e ligou para Remy Payne.

Atendeu uma escrivaninha, e ele imaginou Remy sentado diante de uma pilha de dossiês e relatórios. A imagem fê-lo sorrir, um sorriso rápido e torcido que lhe alterava os ângulos do rosto, encovando-lhe as faces e suavizando a linha por vezes sombria da boca.

Sim, pensou, a vida podia ser bem pior. Podia estar ele sentado à escrivaninha.

- Então, Dec? - A voz arrastada e indolente de Remy flutuou no Mercedes fora-de-estrada completamente cheio como neblina sobre um rio de águas lentas. - Ei, por onde é que andas?

- Estou aqui sentado no meu carro a olhar para este elefante branco que comprei num acesso de loucura. Por que raio não me dissuadiste nem me mandaste internar?

- Estás aqui?! Filho da mãe! Pensei que só chegavas amanhã.

- Comecei a ficar ansioso. - Coçou o queixo: ouviu o arranhar da barba por fazer. - Conduzi quase toda a noite e arranquei bem cedinho esta manhã. Remy? Mas onde tinha eu a cabeça?

- Raios, eu é que sei?! Ouve, dá-me duas horas para despachar aqui uns assuntos e depois saio. Levo qualquer coisa para molharmos a goela. Vamos brindar a esse ninho de ratos e pôr a conversa em dia.

- Boa ideia.

- Já foste lá dentro?

- Não. Estou a ver se ganho coragem.

- Caramba, Dec, sai da chuva e mete-te lá dentro!

- Está bem. - Passou a mão pelo rosto. - Até logo.

- Vou levar comida. Por amor de Deus, não tentes cozinhar nada. Não vale a pena queimar o lugar todo sem lá passares sequer uma noite.

- Vai-te foder. - Ouviu Remy a rir antes de desligar.

Ligou novamente o motor e avançou até à base do que restara da dupla escadaria que emoldurava a entrada. Abriu o porta-luvas e pegou nas chaves que lhe tinham sido enviadas pelo correio após ter fechado o negócio.

Saiu do carro e ficou imediatamente todo encharcado. Resolveu deixar os caixotes para mais tarde e correu para se abrigar no alpendre da entrada; sentiu que alguns dos tijolos do chão cediam agourentamente sob o seu peso e sacudiu-se como um cão.

Devia ter havido trepadeiras a subir pelas colunas dos cantos, pensou. Qualquer coisa com lindas flores azuis. Conseguia visualizá-las se se concentrasse. Qualquer coisa a desabrochar, quase como uma xícara, com folhas em forma de coração.

Devo ter visto isso em algum lado, refletiu e virando-se para a porta. Era dupla, com entalhes e compridos painéis de vidro de ambos os lados e encimada por uma meia-lua também de vidro. Passou os dedos pela porta e sentiu ruiscer o entusiasmo.

- Bem-vindo a casa, Dec - disse em voz alta ao abri-la.

O átrio era como se lembrava. O vasto chão de pinho, o teto alto. O medalhão de estuque, ao centro, era um anel duplo de uma espécie de flores que não sabia identificar.

Provavelmente exibira um fabuloso lustre de cristal nos seus dias de glória. A única coisa que restava agora era uma lâmpada nua, pendurada de um comprido fio. Mas acendeu-se quando ligou o interruptor da parede. Já era alguma coisa.

De qualquer modo, a escadaria era o centro das atenções. Erguia-se larga e estreitava até ao segundo piso, onde curvava para a direita e para a esquerda, para cada uma das alas.

Para que é que um homem solteiro, sem quaisquer perspectivas nem intenções de deixar de o ser, precisava de uma casa com duas alas era uma questão que não queria colocar-se naquele momento.

O corrimão estava coberto por uma poeira acinzentada, mas ao percorrê-lo com um dedo sentiu a madeira macia por baixo. Quantas mãos se terão agarrado aqui? Quantos dedos o terão percorrido?, perguntou-se. Aquele tipo de questões fascinava-o e atraía-o para o interior.

O tipo de questões que o fez subir as escadas e deixar a porta aberta à chuva atrás de si, com as suas coisas ainda à espera no carro.

Outrora, talvez as escadas tivessem sido atapetadas. Provavelmente houvera passadeiras no comprido corredor central, algum rico padrão de um vermelho-profundo. Os soalhos, os painéis de madeira e os tampos das mesas decerto eram religiosamente polidos com cera de abelha até brilharem como o cristal dos lustres.

Nas festas, mulheres em vestidos esplendorosos teriam deslizado pelas escadas: confiantes, cheias de estilo. Alguns dos homens certamente se reuniriam na sala dos bilhares, servindo-se do jogo como desculpa para fumar charutos e falarem pomposamente sobre política e finanças.

E a criadagem andaria apressada de um lado para o outro, sempre eficiente e invisível, a atiçar as lareiras, a levantar copos, a atender pedidos.

Abriu um painel no patamar. A porta oculta fora habilidosamente embutida na parede, no papel de parede desbotado e no lambril agora sem brilho. Não tinha a certeza como soubera da sua existência. Por certo alguém lho mencionara.

Espreitou para dentro do corredor mal iluminado e úmido. Achou que fazia parte dos aposentos e acessos da criadagem. A família e os convidados não se importavam de ter debaixo dos pés aqueles que os serviam. Um bom criado não deixava vestígios do seu trabalho, limitava-se a cumprir discretamente os seus deveres, em silêncio e com eficiência.

Declan franziu a testa e forçou os olhos para tentar ver. Onde é que fora buscar aquilo? À mãe? Por muito que às vezes tivesse o nariz empinado, não a imaginava a dizer algo tão pomposo.

Encolheu os ombros e fechou a porta. Exploraria aquela área noutra altura; quando tivesse uma lanterna e um saco com migalhas de pão.

Percorreu o corredor e foi espreitando pelas várias portas. Quartos vazios, cheios de poeira... e do cheiro cinzento e úmido da chuva. Algumas paredes estavam forradas com papel, outras expostas até ao esqueleto das vigas de suporte.

Sala de estar, escritório, lavabos, e seguramente a sala de bilhares que imaginara, pois o velho bar de mogno ainda lá estava.

Circundou-o para tocar na madeira, acocorou-se e examinou o trabalho de artesão.

A sua paixão pela madeira começara no ensino secundário. Era, até à data, a sua relação mais duradoura. Optara por trabalhar como carpinteiro no Verão, apesar de a família se ter oposto. Tal como ele se opusera à ideia de passar os longos dias de Verão enfiado num escritório de advocacia, e preferira trabalhar ao ar livre. Para fortalecer o bronzeado e o físico.

Fora uma das raras ocasiões em que o pai contradissera a mãe e o apoiara a ele.

Ficara queimado do sol, com feridas de lascas de madeira, bolhas, calos e dores nas costas. E apaixonara-se pela construção de coisas.

Não tanto a construção, pensou. A reconstrução. Pegar em algo já feito e melhorá-lo, repará-lo, restaurá-lo.

Nada lhe dera tanto entusiasmo, nem sequer metade do prazer.

Tinha jeito para aquilo. Um talento natural, como lhe dissera o entroncado capataz irlandês. Boas mãos, bons olhos e boa cabeça. Declan nunca mais esquecera a excitação daquele Verão. E nunca mais conseguira repeti-la.

Talvez agora, pensou. Talvez agora conseguisse. A vida tinha de ser mais do que passar os dias a fazer o que esperavam dele, o que era aceitável.

Foi com um prazer e uma expectativa crescentes que retomou a exploração da casa.

Deteve-se junto à porta do salão de baile e sorriu.

- Uau! Que chique!

A sua voz ecoou e ricocheteou pelas paredes até regressar novamente para junto dele. Encantado, entrou. O soalho estava marcado e manchado. Havia zonas danificadas, onde aparentemente alguém colocara divisórias a dividir o salão, divisórias que alguém voltara a derrubar.

Podia consertá-las. Um idiota qualquer lançara toscamente gesso e tinta amarela sobre as paredes de estuque originais. Nada que também não tivesse conserto.

Pelo menos tinham deixado o teto em paz. O trabalho em gesso era maravilhoso: complicadas coroas de flores e frutos. Iria precisar de algumas reparações pela mão de um mestre. Arranjaria um.

Escancarou as portas da varanda à entrada da chuva. Diante dele estendia-se a negligenciada selva dos jardins, com as suas veredas serpenteantes de tijolos partidos parcialmente encobertas pela vegetação. Provavelmente havia ali um tesouro em plantas. Iria precisar de um paisagista, mas esperava fazer ele próprio algum do trabalho.

A maioria dos anexos eram agora meras ruínas. Conseguia ver parte de um conjunto de canos de chaminé, o que restava da parede de um barraco abandonado e sufocado por trepadeiras, os tijolos manchados e o telhado enferrujado de um velho pombal - era frequente os plantadores crioulos criarem pombos.

A compra da casa incluíra depois mais três acres. O mais certo era que outras estruturas pertencentes à fazenda estivessem agora a desmoronar-se na terra de outras pessoas.

Mas tinha árvores, pensou. Árvores extraordinárias. Os antigos carvalhos que formavam a álea, cheios de musgo e a escorrerem água, e os ramos grossos e estendidos de um sicômoro, que se retorciam como uma fera pré-histórica.

Uma mancha de cor prendeu-lhe a atenção e fê-lo sair para a chuva. Qualquer coisa que ali desabrochava, um arbusto alto e espesso com flores vermelho-escuras. Que raio desabrochava em Janeiro?, perguntou-se, e fez uma anotação mental para perguntar a Remy.

Fechou os olhos por um momento e pôs-se a ouvir. Só conseguia ouvir a chuva, o gotejar de água no telhado, no chão, nas árvores.

Tomara a opção correta, disse para si próprio. Não estava louco, afinal de contas. Encontrara o seu lugar. Sentia-o como seu e, se assim não fosse, que importava?

Procuraria outro. Pelo menos, conseguira finalmente reunir a energia para vir inspecionar a casa.

Voltou para dentro e pôs-se a cantarolar enquanto atravessava de novo o salão de baile em direção à ala familiar, para inspecionar cada um dos cinco quartos.

Deu por si a cantar baixinho enquanto vagueava pelo primeiro.

- Quando o baile acabar, quando a manhã romper; Quando os dançarinos partirem, quando as estrelas se forem...

Parou de examinar as tábuas do soalho e olhou por cima do ombro como se esperasse ver alguém atrás de si. De onde lhe viera aquela música? Aquela melodia, aqueles versos. Abanou a cabeça e endireitou-se.

- Do salão de baile, idiota - murmurou. - Estavas com o salão de baile na cabeça e por isso começaste a cantar a propósito de um baile. Estranho, mas nada de louco. E falares sozinho também não tem nada de louco. Muita gente o faz.

A porta do quarto do outro lado do corredor estava fechada. Embora esperasse o ranger de dobradiças, o som provocou-lhe um calafrio na espinha. Mas a sensação foi imediatamente acompanhada pelo assombro. Seria capaz de jurar que lhe cheirara a perfume. A flores. Lírios. Casamentos e funerais. E tentou a imaginá-los por um momento, lírios puros e brancos e até um pouco selvagens, numa alta jarra de cristal.

Depois sentiu-se irritado. Só tinha enviado previamente algumas peças de mobília, incluindo a do quarto, mas a empresa de mudanças despejara-a no quarto errado, apesar de ele ter sido bem claro. O seu quarto seria o principal, ali na esquina da casa, sobranceiro ao jardim e ao tanque das traseiras e flanqueado pela álea de carvalhos.

Agora teria de optar por este, ou então carregar o raio das coisas sozinho.

O aroma de lírios era avassalador quando escancarou completamente a porta. Era quase estonteante. Ficou confuso e apercebeu-se de que não era a sua mobília. A cama era um baldaquino completo, coberto por um dossel de seda de um azul carregado. Havia ainda um guarda roupa de madeira entalhada e uma cômoda alta, ambos cintilantes.

Captou o odor de cera de abelha por debaixo do aroma floral. Viu os lírios na alta jarra de cristal em cima de uma penteadeira de pernas curvas como o pescoço dos cisnes.

A cadeira era delicada e o assento um intrincado padrão de bordado azul e rosa.

Escovas revestidas de prata, um broche de asas douradas com um relógio de esmalte. Compridas tapeçarias azuis, nichos para iluminação a gás, ornamentados e ajustados para irradiarem uma luz tênue e trêmula. Um roupão branco de mulher, atirado para as costas de um cadeirão azul.

Castiçais sobre a lareira e um retrato numa moldura de prata.

Viu tudo com a nitidez de uma fotografia. E antes que o seu cérebro conseguisse processar uma explicação, deu por si a olhar fixamente para um quarto vazio onde a chuva escorria pelo lado de fora das janelas sem cortinas.

- Santo Deus! - Agarrou-se à ombreira da porta para se equilibrar. - Mas que raio?!

Inspirou uma golfada de ar. Um ar em que havia depois poeira e humidade.

Uma projeção, para si próprio. depois uma projeção mental do aspecto que o quarto teria tido. Não vira nada, não lhe cheirara a nada. Ficara depois enredado no encanto do lugar, no espírito da casa.

Mas não conseguiu obrigar-se a transpor a porta.

Fechou-a de novo e avançou diretamente para o quarto do fundo. Ali estava a sua mobília, tal como pedira. A visão aliviou-o e fê-lo recuperar a compostura.

A boa e sólida cama Chippendale com cabeceira e apoio sem adornos. A única coisa em que ele e a mãe sempre tinham estado de acordo: o amor pelas antiguidades, o respeito pelo trabalho do artesão, pela história.

Comprara a cama depois de Jessica ter desistido do casamento. Bem, depois de ele ter desistido, admitiu com os habituais remorsos. Quisera começar uma vida nova, e até procurara encontrar novas peças de mobiliário para o quarto.

Optara por aquela cômoda de solteiro, não só porque aparentemente iria continuar sozinho, mas também porque gostara do estilo, do duplo embutido do escudo, dos compartimentos secretos, das pernas curtas e torneadas. Escolhera o armário para ocultar a televisão e a aparelhagem, e os esguios abajurs Deco porque lhe tinha agradado a mistura de estilos.

Ver as suas coisas naquele quarto espaçoso, com a atraente lareira de granito de um verde carregado, as portas em arco da varanda, o papel de parede suavemente desbotado, o soalho desgraçadamente coberto de marcas, despertou-o de novo para a realidade.

A área adjacente, o quarto de vestir, fê-lo sorrir. Agora só precisava de um mordomo, de uma gravata branca e de uma sobrecasaca. O banheiro, a julgar pelo estilo, fora aparentemente modernizado nos deploráveis anos 70, e a louça verde-abacate fê-lo estremecer e ter vontade de tomar um banho quente.

Resolveu dar uma volta rápida pelo terceiro piso, depois fazer o mesmo no andar térreo e por fim experimentar a feia banheira verde.

Dirigiu-se ao piso de cima. A melodia continuava a soar-lhe na cabeça, às voltas, como uma valsa. Deixou-a tocar. Sempre lhe fazia companhia até Remy aparecer.

Muitas as esperanças que se desvaneceram após o baile.

Ali a escadaria era mais estreita. Era o piso das crianças e da criadagem. E nem uns nem outros precisavam de retoques elaborados.

Resolveu deixar a ala da criadagem para mais tarde e encaminhou-se para o que presumiu ser o quarto das crianças, o depósito e o sótão.

Estendeu a mão para uma maçaneta de metal tornado baço pelo tempo e pelo abandono. O corredor foi varrido por uma aragem, suficientemente fria para lhe atravessar os ossos. Ficou surpreendido ao ver a sua própria respiração condensar-se numa delicada nuvem de vapor.

Assim que pousou a mão na maçaneta, a náusea apoderou-se tão rápida e profundamente dele que lhe tirou a respiração. Um suor frio perlava-lhe a testa e sentia a cabeça a girar.

O seu desejo foi fugir dali aos gritos. Em vez disso, cambaleou para trás e apoiou-se contra a parede, enquanto o terror e o medo o estrangulavam como mãos assassinas.

Não entres aí! Não entres!

Não sabia de onde provinha aquela voz na sua cabeça, e todavia achou por bem obedecer-lhe. Sabia que corriam rumores de que a casa estava assombrada, mas não dava importância a essas coisas.

Ou julgava que não dava.

Mas a ideia de abrir aquela porta, de acrescentar o que pudesse haver do outro lado, estava para lá das suas forças. Para mais de estômago vazio e após uma viagem de dez horas.

- Só estou aqui a perder tempo - disse, para ouvir o conforto da sua própria voz. - É melhor ir descarregar o carro. Isso, vou descarregar o carro.

- Com quem estás a falar, cher (caro N.T.)?

Declan deu um salto que mais parecia o de um basquetebolista na bola ao ar do início do jogo. E só a custo conseguiu transformar o grito num latido masculino mais aceitável.

- Porra, Remy! Assustaste-me!

- Tu é que estavas aqui a falar com uma porta. Dei uns gritos ao subir. Provavelmente não ouviste.

- Pelos vistos...

Declan encostou-se à parede, respirou fundo e olhou para o amigo.

Remy Payne tinha aquele bom aspecto do charlatão empertigado. Fora talhado para a advocacia, pensou. Manhoso, arguto, com uns olhos azuis e joviais e uma boca larga que, como naquele momento, conseguia esticar como borracha num sorriso desarmante que quase nos fazia acreditar em tudo o que dizia, mesmo quando detectavamos nele o cheiro inconfundível da vigarice.

Pertencia à classe dos magros, nunca conseguira ganhar volume apesar de ter um apetite de elefante. Na faculdade usava uma lustrosa juba castanho-escura que lhe caía por cima do colarinho. Agora que a aparara dir-se-ia uma espécie de Júlio César.

- Pensei que tinhas dito duas horas.

- E foram. Quase duas horas e meia! Sentes-te bem, Dec? Pareces um pouco pálido.

- A viagem foi cansativa. Meu Deus, que bom ver-te!

- Estava a ver que nunca mais dizias nada. - Deu uma gargalhada e prendeu Declan num abraço afetuoso. - Ui! Tens feito exercício. Vira-te, deixa-me ver o traseiro.

- És mesmo idiota! - Trocaram palmadas nas costas. - Diz-me uma coisa - continuou Declan dando um passo atrás. - Terei perdido a puta da cabeça?

- Claro que perdeste. Há muito tempo. Vamos lá para baixo beber qualquer coisa.

Instalaram-se no que fora outrora a sala dos cavalheiros, sentados no chão com uma pizza de pimentões e uma garrafa de Jim Beam.

A primeira golada de bourbon escorregou como seda líquida e desfez todos os nós no estômago de Declan. A pizza era saborosa e gordurenta, e levou-o a concluir que tudo não passara de fome e de fadiga.

- Estás a planejar viver assim por muito tempo, ou vais comprar uma cadeira ou duas?

- Não preciso de cadeiras. - Declan tirou a garrafa a Remy e entornou mais um trago de bourbon. - Pelo menos por enquanto. Durante uns tempos quero reduzir as coisas ao mínimo. Já tenho a mobília do quarto. Talvez ponha uma mesa na cozinha. Se começo a comprar móveis, só me vão estorvar enquanto ando a por em ordem a casa.

Remy olhou em volta.

- Da maneira como isto está, vais precisar do raio de uma cadeira de rodas antes de acabares.

- A maior parte é quase só cosmética. Pelo que ouvi dizer, os proprietários anteriores adiantaram bastante o grosso das obras. Parece que queriam transformar isto num hotel de charme, ou coisa que o valha. Andaram nisto quase seis meses até desistirem. Provavelmente ficaram sem dinheiro.

Remy ergueu as sobrancelhas, passou um dedo pelo soalho e examinou a camada de pó que recolhera.

- Que pena não poderes vender esta sujidade, ficavas podre de rico. Ah, já me esquecia. Já és podre de rico. E a tua família, como vai?

- A mesma coisa de sempre.

- Devem estar a pensar: o nosso rapaz, o Dec, ele é louco! - Fez um gesto com o dedo junto do ouvido. - Ficou tolinho de todo.

- Oh! Talvez tenham razão, mas pelo menos é finalmente o raio de uma tolice só minha. Se tivesse de assistir a mais um depoimento, a mais uma reunião, de negociar mais um acordo, tinha-me afogado no Charles (Rio que banha a cidade de Boston N.T.).

- O que te fartou foi o Direito Comercial, cher. - Remy lambeu o molho que tinha nos dedos. - Podias ter tentado o Direito Penal, como eu. Põe-nos o sangue a circular. Basta dizeres e amanhã abrimos juntos um escritório.

- Obrigado pela ideia. Ainda continuas com essa paixão.

- Sim. Adoro os aspectos dúbios e escorregadios, a pompa e circunstância, a luta renhida, as palavras requintadas. Essa porra toda. - Abanou a cabeça e entornou mais um trago. - Tu nunca gostaste disso.

- Não, nunca.

- Todos aqueles anos a dar cabo do couro em Harvard, que desperdício. É isso que te têm dito?

- Entre outras coisas.

- Estão errados. Sabes bem que sim, Dec. Não desperdiçaste nada. Estás a seguir algo diferente. Descontrai-te e desfruta. Agora estás em Nova Orleães, ou não muito longe. Aqui levamos as coisas com calma. Vamos livrar-te dessa pele de ianque num instante, pôr-te a dançar os ritmos cajun e a preparar um bom prato de feijão vermelho e arroz no dia das limpezas.

- Lá terá que ser.

- Aparece lá na cidade assim que te instalares, eu e a Effie levamos-te a jantar fora. Quero que a conheças.

Remy tinha tirado a gravata e o casaco e enrolara as mangas da camisa azul de advogado. excetuando o cabelo, não parecia muito diferente do que fora quando estavam em Harvard a engolfar pizza e bourbon, pensou Declan.

- Vais mesmo para a frente com isso do casamento? – Remy soltou um suspiro.

- Dia doze de Maio, faça chuva ou faça sol. Vou assentar este couro rebelde, Dec. Ela é mesmo o que quero.

- Uma biblioteaquiria. - O terno espantava Declan. - Tu e uma biblioteaquiria.

- Especialista em investigação - corrigiu Remy, soltando uma sonora gargalhada. - A mais linda ratinha de biblioteca que alguma vez vi! E esperta. Estou mesmo apanhadinho, Dec. Tolinho de todo por ela.

- Fico feliz por ti.

- Ainda andas com remorsos por causa da... como se chamava ela? Jennifer?

- Jessica. - Declan estremeceu e deu mais uma golada para cortar o sabor daquele nome. - Cancelar um casamento três semanas antes de subir ao altar deixa qualquer um com remorsos.

Remy anuiu com um rápido encolher de ombros.

- Talvez. Sentir-te-ias pior se tivesses ido em frente.

- A quem o dizes. - Os seus olhos cinzentos mantiveram-se cabisbaixos enquanto olhava fixamente para a garrafa. - Mas acho que ela teria reagido melhor se tivessemos casado na mesma e nos divorciassemos no dia seguinte. - A ideia ainda o fazia estremecer. - A verdade é que não podia ter reagido pior. Agora tem saído com o meu primo James.

- James... James... Aquele que dá gritinhos como uma menina ou o do cabelo à Drácula?

- Nem um nem outro. - Os lábios de Declan esboçaram um ligeiro esgar. - O James é o tipo perfeito. Cirurgião plástico, joga pólo, coleciona selos.

- Um tipo baixinho, de queixo recuado e forte sotaque ianque?

- Esse mesmo, mas já não tem o queixo recuado. Fez um implante. Segundo a minha irmã, a coisa está a ficar séria entre eles. É para eu aprender, diz ela.

- Está bem, intrometida. A tua irmã que case com a Jennifer!

- Com a Jessica. E foi o que eu lhe disse - respondeu, gesticulando com a garrafa para dar ênfase. - Ficou duas semanas sem falar comigo. Foi um alívio. Neste momento não sou muito popular no seio dos Fitzgerald.

- Bem, sabes, Dec, devo dizer, dadas as circunstâncias e tudo o mais... que se lixem.

Declan riu-se e passou-lhe a garrafa.

- Brindemos a isso. - Tirou outra fatia de pizza da caixa. - Deixa-me perguntar-te uma coisa sobre este lugar. Andei a investigar um pouco a história, depois de termos vindo aqui da primeira vez.

- Para aqui aos tombos como uns tolinhos, completamente bêbados.

- Sim, e - não tarda estarmos na mesma, se continuamos a dar no bourbon. De qualquer modo, sei que foi construída em 1879, depois da estrutura original ter queimado num incêndio sem explicação, muito provavelmente incêndio criminoso por razões políticas... A Reconstrução e essas confusões do pós-Guerra Civil (Referência ao período da história norte-americana entre 1865 e 1877, durante o qual os estados separados durante a Guerra Civil foram reorganizados sob o domínio federal e mais tarde reintegrados na União. N.T.).

- Filho, era a Guerra da Agressão Nortista. - Remy apontou-lhe um dedo acusador. - Lembra-te de que lado da Linha Mason-Dixon (A fronteira que separava a Pensilvânia do Maryland e da Virgínia, encarada como a linha divisória entre os estados livres e os estados esclavagistas antes da Guerra Civil Americana. N.T.) tens o teu eu ianque sentado agora.

- Certo. Desculpa. Continuando. Os Manet arrebataram as terras, bem barato, segundo os velhos registros, e construíram a estrutura atual. Cultivaram sobretudo açúcar e algodão e dividiram parcelas pelos rendeiros. Viveram bem durante cerca de vinte anos. Houve dois filhos mas ambos morreram novos. Depois o velhote morreu e a mulher aguentou-se mais uns tempos, até que, aparentemente, teve uma trombose durante o sono. Não existia qualquer herdeiro. Havia registro de uma neta, mas tinha sido deserdada. O lugar foi a leilão e desde essa altura tem passado de mão em mão. Mas tem estado quase sempre vazio.

- E daí?

Declan inclinou-se para a frente.

- Acreditas que está assombrada?

Remy esticou os lábios e deitou a mão ao último pedaço de pizza.

- Toda essa lição de história foi a maneira que arranjaste para chegar a essa pergunta? Rapaz, tens todos os atributos para te tornares num refinado advogado sulista. Claro que está assombrada. - Os olhos dançaram-lhe enquanto mordiscava a pizza. - Uma casa que se preze, abandonada este tempo todo, só pode estar assombrada. A neta que referiste era uma Rouse, da parte da mãe. Sei isso porque sou primo em quarto ou quinto grau dos Simone, e os Simone descendem dessa linhagem. Creio que a moça foi criada pelos avós maternos depois de a mãe fugir com um homem... Pelo menos é o que se diz. Não me recordo bem do que aconteceu ao pai da criança, mas há por aí quem se lembre, se quiseres saber. O que sei é que Henri Manet, a esposa Josephine e o outro filho, raios me partam se me lembro do nome dele, morreram todos nesta casa. Era uma vergonha se nenhum tivesse tomates para a assombrar.

- E as pessoas que morreram aqui? De causas naturais, foi? Remy franziu a testa com curiosidade.

- Tanto quanto sei. Porquê?

- Não sei. - Teve de reprimir um calafrio. - Pressentimentos.

- Queres trazer aqui alguém? Umas coisinhas com amuletos, um pouco de vudu para escorraçar o teu fantasma ou talvez convocar o espírito para uma conversinha? Encontras uma bruxa ou um médium em cada esquina da cidade.

- Não, obrigado.

- Diz-me se mudares de ideias. - Piscou-lhe o olho. - Ponho-te em contato com a pessoa certa para teres aqui um belo espetáculo.

Não queria nenhum espetáculo, decidiu Declan mais tarde. Mas desejava o banho e a cama. Com o Jin Beam a zumbir-lhe agradavelmente no sangue, carregou algumas caixas para dentro de casa e vasculhou-as até encontrar lençóis e toalhas. Levou para cima aquilo de que podia precisar para passar a noite.

Foi a boa e velha culpa católica, não qualquer necessidade de arrumação, que o levou a fazer a cama. Presenteou-se com um banho de dez minutos e depois enfiou-se nos lençóis frescos ao som da chuva incessante.

Adormeceu em trinta segundos.

Havia um bebê a chorar. Não estranhou o terno. Os bebês costumavam chorar no meio da noite ou quando lhes dava vontade. A criança parecia mais inquieta e incomodada do que assustada.

Alguém devia ir lá pegar nela... fazer o que as pessoas faziam aos bebês quando eles choravam. Dar-lhe de mamar. Mudar-lhe a fralda. Embalá-lo.

Quando era criança e acordava com pesadelos, a mãe ou a ama, às vezes até o pai, acariciavam-lhe a cabeça e sentavam-se junto dele até o medo desaparecer.

O bebê não estava assustado. O bebê tinha fome.

Não estranhou ter pensado nisso. Não estranhou sabê-lo.

Mas estranhou, estranhou bastante, acordar banhado em suor e dar por si no terceiro piso, com a mão na maçaneta de metal baço, imóvel diante da porta.

 

 

Sonambulismo. Aí estava uma coisa que não lhe acontecia desde a infância. Mas, sob a luz aquosa da madrugada, era fácil perceber o que acontecera: Jim Beam, pizza de pimentões e aquela conversa sobre fantasmas.

Aceitava mais dificilmente o terror que se lhe agarrava às entranhas e que sentira quando voltara a si e dera consigo junto àquela porta do terceiro piso. Arrancara-se bruscamente da amnésia e entrara num pesadelo de pânico: tinha a certeza de que ouvira os tênues ecos do choro inquieto de um bebê.

Desatara a correr. Não conseguiria abrir aquela porta mesmo que lhe apontassem uma arma à cabeça. E, portanto, desatara a correr, perseguido pelo seu próprio medo, até se trancar no quarto. Como um doente mental, pensava agora enquanto bebia uma xícara de café instantâneo morno.

Felizmente ninguém o vira a fazer essa figura.

Contudo, pensando bem, até fora uma primeira noite bastante auspiciosa. Zonas frias, bebês-fantasma, amnésias. Era sem dúvida melhor do que estar sentado na sua vazia casa citadina, em Boston, a entornar cerveja e a ver o canal da ESPN.

Talvez passasse algum tempo a investigar mais aprofundadamente a história da casa. Da sua casa, corrigiu-se, apoiando-se na balaustrada molhada da varanda do quarto enquanto bebia o café.

A sua vista. Linda, desde que ignorasse o caos dos jardins.

A chuva gotejava das folhas com plops constantes e musicais e o ar tremeluzia com o peso que a tempestade deixara para trás. As brumas rastejavam pelo chão, dedos vaporosos e serpenteantes que circundavam as árvores, transformando-as em silhuetas românticas e misteriosas.

Se o Sol rompesse, a luz cintilante seria espetacular, embora naquele momento também não fosse de desdenhar.

Havia um tanque, um tanque pequeno, sufocado de folhas de nenúfar, e campos: alguns já protnos para cultivo, alguns já plantados e à espera de uma Primavera que ali chegava muito mais cedo. Conseguia ver a curva do rio que serpenteava através das sombras profundas do bayou.

Uma pequena ponte periclitante atravessava a água com uma corcunda e, mais adiante, uma estrada de terra batida empurrava as árvores em direção a uma casa que quase ocultavam. Conseguiu após discernir um fio de fumo que se elevava no ar e se misturava com a neblina.

Já visitara o mirante nessa manhã e ficara aliviado ao descobrir que continuava tudo em bom estado, inclusive o telhado e as chaminés. Os últimos proprietários tinham cuidado dessa área e da varanda do segundo piso antes de se darem por vencidos.

Aparentemente, também tinham começado a reparar o alpendre das traseiras, que haviam fechado com redes de mosquiteiro.

O que talvez não fosse má ideia. Ia pensar nisso.

Não tinha a certeza se tinham ficado sem dinheiro ou sem energia; ou ambas as coisas. Tanto melhor para ele.

Dinheiro não lhe faltava e, naquele preciso momento, enquanto observava o vapor a elevar-se acima das ervas daninhas e da água, sentia-se cheio de energia.

Aproximou a xícara dos lábios, mas afastou-a quando viu uma mulher - uma moça? - esgueirar-se por entre as árvores em direção à curva do rio. A seu lado caminhava um enorme cão negro.

Estava demasiado distante para conseguir distinguir-lhe os traços. Viu que usava uma camisa de xadrez vermelho e calças jeans, que o cabelo era comprido, escuro e loucamente encaracolado. Seria nova ou velha? Bonita ou feia?

Decidiu-se por nova e bonita. Afinal de contas, a escolha era sua.

Ela atirou uma bola ao ar e interceptou-a agilmente quando o cão deu um salto. Atirou-a mais duas vezes enquanto o cão saltava e corria em círculos. Depois recuou como um lançador de basebol e arremessou-a para longe. O cão lanceu-se atrás dela e não hesitou em saltar para dentro do tanque, agarrando-a com uma dentada instantes antes de cair à água.

Belo estouro!, pensou Declan, rindo enquanto via a moça bater palmas.

Gostava de a poder ouvir. Tinha a certeza de que estava a rir-se, com gargalhadas cavas e guturais. O cão nadou, trepou para a borda do tanque, cuspiu a bola aos pés dela e sacudiu-se.

Decerto tinha ficado encharcada, mas não se afastou nem se pôs a esfregar irritadamente as calças.

Continuaram a brincadeira, com Declan no papel de espectador hipnotizado.

Imaginou-a ali mais perto da mansão, suficientemente perto para poder acuir-lhe da varanda e convidá-la para uma xícara de mau café. Seria a sua primeira tentativa de hospitalidade sulista.

Ou, melhor ainda, podia dar um passeio lá por baixo. Ela estaria a lutar com o cão, escorregaria na erva molhada e cairia no tanque. E ele estaria precisamente ali à mão para a ajudar a sair. Não, para mergulhar prontamente atrás dela e salvá-la porque ela não sabia nadar.

E depois uma coisa levava a outra e fariam sexo na erva molhada, sob a luz aquosa. O corpo dela, molhado e esguio, erguer-se-ia sobre o dele. Encheria as mãos com os seus seios e...

- Credo! - Piscou os olhos e viu-a desaparecer entre as árvores.

Não tinha a certeza se sentia vergonha ou alívio por descobrir que estava excitado. Só tivera sexo uma vez nos últimos seis meses, desde que tinha rompido com Jessica.

E fora mais um reflexo que verdadeiro desejo.

No entanto, se estava tão excitado com uma fantasia ridícula despertada por uma mulher cujo rosto nem sequer vira, isso queria dizer que as coisas estavam a voltar ao normal.

Já podia riscar da lista de problemas a preocupação com a sua masculinidade.

Entornou o resto do café frio. Não se importava de começar o dia com uma fantasia erótica extraviada, mas custava-lhe começá-lo com mau café. Estava na hora de se dedicar às coisas práticas.

Voltou para dentro, agarrou na carteira e nas chaves e foi à cidade comprar mantimentos.

A tarefa ocupou-lhe a maior parte do dia. Além das compras, teve de voltar a familiarizar-se com a cidade que ia passar a ser a sua.

Se Boston era uma esposa respeitável, com uns quantos segredos sórdidos, Nova Orleães era uma amante sensual que celebrava as suas facetas mais obscuras.

Ofereceu-se um enorme café da manhã, tão carregado de colesterol que imaginou o seu coração simplesmente a afundar-se com o choque.

Comprou café em grão e um moinho, pãezinhos e donuts da Louisiana. Abasteceu-se com a cozinha de macho solteiro: refeições embaladas, pizza congelada, cereais. Foi à loja de bebidas buscar cerveja, bourbon e bons vinhos.

Carregou tudo no carro e fez nova investida, tanto pelo prazer de perambular pelas ruas como pela necessidade de encontrar algo para comer e alguns utensílios de cozinha. Decidiu-se por pratos de papel e talheres de plástico, e deteve-se a ver um músico de rua abrir o estojo do trompete e colocar lá dentro algumas moedas, para depois encher o ar com um fluxo de magia.

Declan deu-lhe o primeiro dólar do dia.

Evitou a tentação das lojas de antiguidades e o engodo do Bairro Francês. A música da hora do almoço jorrava já dos clubes, odores exóticos fluíam dos restaurantes.

Comprou uma muffulleta - essa maravilha de carne, queijo e azeite em pão italiano - para levar para casa e comer mais tarde.

Ao voltar para o carro, reparou nos turistas com os seus sacos do Café du Monde ou das lojas da Marginal, nas cartomantes sentadas a mesinhas articuladas em redor de Jackson Square, que liam a sorte por dez dólares. Captou a tênue fragrância a marijuana sob o fedor intenso do lixo enquanto caminhava por uma ruela lateral.

E viu uma enorme mulher negra a fumar indolentemente na varanda atafulhada de plantas por cima de uma loja que fabricava velas eróticas.

Comprou uma para Remy, de uma mulher nua com seios parecidos com torpedos, e riu-se imenso enquanto voltava para o carro.

Fez a viagem de regresso com as energias retemperadas. Carregou as compras, enfiou-as onde lhe pareceu lógico na altura e depois iniciou uma rigorosa inspeção quarto a quarto ao piso principal. Tomou nota dos problemas e potencialidades, estabeleceu planos, definiu prioridades.

A cozinha estava sem dúvida no topo da lista. Já passara por essa experiência com a sua casa de Boston e com duas remodelações em casas de amigos.

Embora não pudesse vangloriar-se de cozinhar mais do que a ocasional omelete ou torrada, encarava a cozinha como o coração de qualquer lar. A última transição por que a cozinha da Mansão Manet passara fora no início dos anos 80: branco cru e cromados, uma ilha central com tampo de mármore e um soalho de um branco ofuscante.

Os pontos positivos eram as janelas generosas, a velha e útil lareira de tijolo e o belo teto decorado. Gostou da enorme despensa, mas achou que seria mais útil como vestíbulo. Descascaria tudo até ao soalho original de madeira, arrancaria o papel de parede com padrões de bules e trocaria a ilha central por uma antiga bancada de padeiro ou algo do gênero.

A decoração não era o seu forte. Sempre deixara isso a cargo de Jessica, que tinha preferência por cores pálidas e linhas clássicas.

E, agora que pensava no assunto, concluiu que preferia cores mais fortes e o encanto dos caprichos. Apreciava pormenores e confusão. Era a sua casa, raios, e faria as coisas à sua maneira. De cima a baixo.

Colocaria armários com portas de vidro onde pudesse dispor antigos utensílios de cozinha. Pratos rachados e desemparelhados, garrafas e jarras. Tudo atravancado.

Bancadas sólidas. Torneiras de cobre. Que importava se ficavam manchadas? Pareceriam ainda mais reais.

Um geladeira mesmo grande. Máquina de lavar louça e fogão último lançamento. Todo apainelado com madeira a imitar o antigo.

Agora sim, as coisas começavam a andar.

Redigiu resmas de apontamentos, mediu e tornou a medir. Dispôs dos seus livros de pesquisa e examinou-os sentado no chão da biblioteca vazia enquanto comia metade da sanduíche e bebia café em quantidade suficiente para lhe pôr os ouvidos a zumbir.

Conseguia visualizar tudo de um modo tão perfeito. As prateleiras do chão ao teto, atravancadas de livros, as paredes de um verde carregado e o suave tom creme do teto de estuque e do friso. Robustos castiçais de prata sobre a lareira. Contrataria um profissional para verificar todas as chaminés, de modo a torná-las funcionais e acabar com aquele ar gélido.

Restauraria o friso e poli-lo-ia até ficar macio como cetim. Tanto aquelas portas como as outras, mais maciças, que faziam a separação entre a sala de estar dos cavalheiros e a das senhoras, estavam em excelente estado.

Alguém havia iniciado já os restauros no soalho da biblioteca.

Rastejou pelo chão enquanto passava as mãos pela madeira. Poli-la-ia ligeiramente, aplicar-lhe-ia uma ou duas camadas de verniz claro até ficar impeaquivel. Os tapetes haviam-na protegido bem: os bons e espessos Aubusson que Josephine tinha mandado vir de Paris.

Cheirou-lhe a brandy, a couro, a cera de abelha e a rosas, mas não se fixou nessas sensações. Tinha os olhos escurecidos e distantes quando se deteve junto da lareira de mosaicos e passou o polegar pelo canto lascado. Aquela seção teria de ser substituída, ou poli-la-ia se não conseguisse arranjar material igual. Os mosaicos tinham sido pintados à mão e envernizados em Itália, a um preço considerável.

Julian derrubara o castiçal que estava em cima da lareira e lascara os mosaicos. Outra vez bêbado. Outra vez enfurecido.

O celular tocou quando Declan estava sentado sobre os calcanhares. Pestanejou, desorientado, e olhou em volta da sala vazia. Que estivera ele a fazer? Em que tinha estado a pensar? Olhou para o polegar e reparou que o ferira no mosaico lascado. Pegou no celular, desconcertado.

- Sim? Alô?

- Finalmente! Já estava quase a desistir. - A voz jovial de Remy ribombou-lhe na cabeça enquanto olhava fixamente para os mosaicos. Tinha estado a pensar nos mosaicos.

Alguma coisa...

- Estou a... a... a percorrer a casa quarto a quarto. A tirar medidas. Essas coisas.

- E que tal arrancares-te daí para fora por um bocado? Tenho uma reunião tardia e pensei que podíamos encontrar-nos para uns copos depois. E a Effie também, se conseguir convencê-la a sair.

- Que horas são? - Declan virou o pulso para ver o relógio. - Meia-noite? É meia-noite?

- Ainda não. Estiveste a beber?

- Só café. - Verificou as horas enquanto franzia a testa e batia no mostrador. - A pilha deve ter acabado.

- Pouco passa das seis. Talvez consiga sair aí pelas nove. Porque não vens até aqui? Encontramo-nos no Et Trois, no Bairro Francês, na Dauphine, mais ou menos a um quarteirão da Bourbon.

- Está bem. - Passou distraidamente a mão pelo cabelo e reparou que tinha a testa ligeiramente molhada de suor. - Sim, parece boa ideia.

- Precisas que te indique o caminho, ianque?

- Eu descubro. - Esfregou o polegar que latejava. - Remy?

- É o meu nome.

Declan abanou a cabeça e riu para si mesmo.

- Não é nada. Até logo.

Foi cedo para a cidade. Não estava particularmente interessado em beber, mas queria ver a metamorfose de Nova Orleães do dia para a noite. As ruas cintilavam num carnaval de luzes, apinhadas de gente que vagueava à procura de entretenimento.

Não eram os turistas nem os comerciantes que dirigiam o espetáculo, pensou ele. Era a própria cidade. E era a música que fazia girar a engrenagem.

Jorrava das portas: um jazz aprazível, um rock acalorado, um blues lânguido. As varandas dos restaurantes estavam cheias de clientes que se protegiam do ar gélido de Janeiro com molho picante e álcool. Os pregoeiros dos clubes de strip prometiam toda a espécie de deleites visuais, e nas lojas as caixas registadoras tilintavam enquanto os turistas carregavam T-shirts e máscaras de Carnaval. Os bares serviam cocktails típicos aos ianques, e cerveja e bebidas espirituosas àqueles que não se deixavam enganar.

Mas era a música que mantinha a parada em movimento.

Deixou-se embeber pelo ambiente enquanto vagueava Bourbon Street abaixo, passando por várias entradas, luzes brilhantes e súbitos e inesperados pátios. Contornou um grupo de mulheres agrupadas no passeio e a tagarelarem como papagaios.

Captou-lhes a fragrância - a flores e a caramelo - e sentiu a típica reação masculina de prazer e pânico quando elas irromperam em risadinhas.

- Rico traseiro! - comentou uma delas, mas Declan continuou a andar.

As mulheres em grupo eram entidades perigosas e misteriosas.

Ocorreu-lhe que devia levar uma presente a Effie. Uma espécie de presente de noivado. Não sabia do que gostava, ou sequer como ela era, agora que pensava nisso. Mas tinha o dom de comprar os presentes adequados. Lamentando não ter pensado nisso mais cedo, espreitou um par de lojas sem grandes expectativas. Naquela zona, quase tudo se destinava ao comércio para turistas, e não achava que um pênis de plástico, de dar corda, fosse lá muito adequado para uma pessoa que nem sequer conhecia.

A presente podia esperar, pensou, ou então poderia recorrer ao tradicional cesto de loções e poções femininas.

Foi então que a viu, uma rã de prata, apoiada nas quatro patas como se se preparasse para um vigoroso salto. Tinha uma expressão alegremente matreira e um sorriso rasgado e atrevido. Lembrou-se logo de Remy. Se esta Effie se apaixonara pelo seu antigo colega de faculdade, certamente apreciava excentricidades. Mandou embrulhar o presente num belo papel com um grande laço vermelho.

Estava pronto para se sentar num bar, longe da área central do circo. Ouviria talvez uma musiquinha e entreter-se-ia com uma cerveja. Durante as próximas semanas teria de trabalhar arduamente. Passar os dias a quebrar a cozinha e as noites a planejar o próximo ponto de ataque. Precisava de arranjar artesãos especializados. De pedir orçamentos. De pôr as coisas em marcha.

Mas nessa noite ia estar com os amigos, depois voltar para casa e dormir umas boas oito horas de sono.

Avistou o letreiro do Et Trois. Era difícil não o ver, pois dançava alegremente num azul-vivo sobre uma porta de madeira já gasta de um prédio a poucos metros da rua.

O segundo andar exibia a típica varanda e balaustrada de ferro adornado. Alguém a decorara com bojudos vasos de barro com gerânios de um rosa-vivo e luzinhas brancas ao longo das goteiras. O tipo de local onde uma pessoa podia sentar-se a beber um copo de vinho e contemplar as pessoas que passeavam em baixo na rua.

Abriu a porta e foi recebido por uma explosão de zydeco bastante animado e pelo aroma a alho e a whiskey.

Uma banda de cinco elementos ocupava o pequeno palco: washboard, rabeca, bateria, guitarra e acordeão. A pequena pista de dança encontrava-se já repleta de pessoas que executavam o rápido e exuberante two-step a que a música convidava.

Verificou através da luz tênue que nenhuma das mesas de madeira chegadas para os lados se encontrava livre. Virou-se para o bar. A madeira estava enegrecida pelo tempo, mas ainda brilhava. Tratou de arrebatar o único banco que restava antes que alguém se antecipasse.

As garrafas alinhavam-se ao longo do espelho atrás do balcão, intercaladas com saleiros e pimenteiros numa variedade de temas: um elegante casal em traje de gala, cães, Rocky e Bullwinkle, Porky e Petunia, os seios arredondados e desnudados de uma mulher reclinada, máscaras de Carnaval e fadas aladas.

Contemplou-os e perguntou-se que gênero de pessoa colecionaria e exporia fadas e partes do corpo e concluiu que seria alguém que compreendia Nova Orleães.

No palco, a rabequista começou a cantar em cajun. A voz soava como uma serra enferrujada e era inexplicavelmente apelativa. Declan começou a bater com o pé e olhou de relance para a outra ponta do bar. O empregado tinha rastas até à cintura, um rosto que podia ter sido talhado num grão de café polido por um hábil artesão e mãos que se moviam com graciosidade enquanto operava as torneiras e servia shots.

Ergueu a mão para chamar a atenção do indivíduo. E foi então que a viu surgir da porta atrás do balcão.

Mais tarde, quando conseguiu pensar com clareza, concluiu que fora como se lhe tivessem enterrado um martelo pneumático no peito. Não para lhe parar o coração, antes para o estimular. O coração, o sangue, as virilhas, o cérebro. De repente, tudo começou a andar mais depressa.

És tu!, ouviu gritar dentro de si. Finalmente.

Conseguia ouvir no corpo um murmúrio tão intenso que afogava a música e as vozes. A sua visão focou-se nela como se estivesse iluminada por holofotes num palco às escuras.

Não era bonita, em nenhum dos sentidos clássicos. Mas era espetacular.

O cabelo era escuro como a noite cerrada, uma juba de cigana que lhe derramava anéis selvagens pelos ombros. Tinha um rosto de raposa matreira, o nariz estreito e algo aristocrático, as faces altas e simétricas, o queixo afiado. Os olhos tinham pálpebras compridas e pesadas, a boca era grande, cheia e pintada com um luxuriante vermelho-sangue.

O todo da imagem não combinava, pensou com o cérebro a fervilhar. Os elementos do rosto não funcionavam como um todo. Mas eram perfeitos. Surpreendentes, sexy, soberbos.

Era baixa, de constituição quase delicada, e envergava uma blusa justa, cor de papoula, de colarinho arredondado e apertado, que lhe destacava os músculos esguios dos braços e a curva firme dos seios. Um fio de prata com uma minúscula chave também de prata assomava entre o vale dos seios.

A pele era trigueira, e os olhos, quando pestanejaram rapidamente ao cruzarem-se com os dele, do castanho rico e profundo do chocolate amargo.

Os lábios curvos e vermelhos, o sorriso lento e eloquente enquanto avançava e se apoiava no balcão até os rostos de ambos ficarem suficientemente próximos para ele conseguir ver o minúsculo sinal postiço mesmo acima da curva do lábio superior direito. Suficientemente próximos para lhe captar o aroma de jasmim noturno e deixar-se afogar nessa fragrância.

- Posso ajudar, cher?

Oh, sim, pensou. Por favor.

Mas tudo o que conseguiu dizer foi:

- Hum... - Ela inclinou um pouco a cabeça, como se o avaliasse. Falou novamente, naquele escorreito ritmo cajun: - Tens sede? Ou esta noite estás depois... com fome?

- Ah... - Desejava enfiar a língua naqueles lábios vermelhos, naquele minúsculo sinal, e sorvê-la de um trago. - Uma Corona.

Observou-a a pegar na garrafa e a espremer uma lima. Movia-se como uma dançarina, em alguma parte entre o bailado e a dança exótica. Sentiu literalmente a língua a enrolar-se.

- Queres que te abra conta aqui, jeitoso?

- Ah! - Meu Deus, Fitzgerald, vê lá se te controlas! - Sim, obrigado. Serve para abrir o quê? - Pegou na garrafa quando ela franziu as sobrancelhas. - A tua chave?

- Esta? - Baixou a mão e fez deslizar o dedo pela pequena chave, num gesto que fez a tensão arterial dele rebentar a escala. - Ora, o meu coração, cher. Que pensavas que fosse?

Estendeu a mão para a dela. Se não lhe tocasse, ainda se ia abaixo e se punha para ali a choramingar.

- Chamo-me Declan.

- Ai sim? - Deixou ficar a mão na dele. - Lindo nome. Pouco comum.

- É... irlandês.

- Uh-huh. - Virou-lhe a mão e inclinou-se mais como se estivesse a ler-lhe a sina. - Que vejo eu aqui? Não estás há muito tempo em Nova Orleães, mas esperas ficar. Fugiste do frio do Norte, não foi, Declan?

- Sim. Acho que não é difícil de adivinhar.

Ela levantou novamente a cabeça e desta vez o coração dele parou realmente.

- E consigo adivinhar mais. Um rico advogado ianque lá de Boston. Compraste a Mansão Manet.

- Como sabes? - Sentiu algo semelhante a elos forjados numa corrente quando agarrou na mão dela. - Já nos conhecíamos?

- Não nesta vida, querido. - Deu-lhe uma pequena palmadinha na mão e dirigiu-se para a outra ponta do bar para atender outros pedidos.

Mas continuava atenta a ele. Declan não era aquilo que esperava da descrição de Remy. Se é que sabia o que esperava! Mesmo assim, gostava de surpresas. E o homem sentado ao balcão a observá-la com aqueles olhos de um cinzento-tempestade parecia cheio de surpresas.

Gostava dos olhos dele. Estava habituada a que os homens a olhassem com desejo, mas nos dele havia algo mais. Uma espécie de choque de cortar a respiração, simultaneamente doce e lisonjeiro.

E era excitante ver um homem como ele, um homem capaz de se haver com qualquer situação, mas que ficava atarantado quando lhe sorriam.

Embora Declan quase não tivesse tocado na cerveja, acercou-se novamente dele e bateu com o dedo na garrafa.

- Pronto para outra?

- Não, obrigado. Podes fazer um intervalo? Posso oferecer-te uma bebida, café, um carro, um cão?

- Que tens aí dentro?

Declan olhou para o pequeno embrulho do presente que colocara sobre o balcão.

- É uma presente para uma pessoa que vou conhecer.

- Compras presentes para muitas mulheres, Declan?

- Não é uma mulher. Quer dizer, não é a minha mulher. Neste momento não tenho nenhuma. Eu... eu costumava ser melhor nestas coisas.

- Melhor em quê?

- A cantar a canção do bandido. - Ela riu-se: aquele som cavo e gutural que ouvira nas suas fantasias. - Podes fazer um intervalo? Corremos alguém de uma das mesas e assim podes dar-me outra oportunidade.

- Não estás a sair-te assim tão mal para uma primeira tentativa. Sou dona disto e portanto não faço intervalos.

- És dona disto?

- Exato. - Virou-se quando uma das empregadas chegou ao balcão com um tabuleiro.

- Espera. Espera. - Estendeu novamente a mão para a dela. - Não sei o teu nome. Como te chamas?

- Angelina. - Disse-o baixinho. - Mas chamam-me Lui, porque não sou nenhum anjo, cher. - Passou o dedo pelo rosto dele e afastou-se para ir atender os pedidos.

Declan deu um sorvo profundo e demorado na cerveja para empurrar a saliva que se lhe acumulara na boca.

Estava compenetrado a pensar noutra abordagem quando Remy lhe bateu nas costas.

- Vamos precisar de uma mesa, filho.

- Daqui a vista é melhor. Remy seguiu-lhe o olhar.

- Uma das melhores que a cidade tem para oferecer. Já conheces a minha prima Lui?

- Prima?

- Primos em quarto grau. Deixa-me pensar, talvez em quinto grau. Angelina Simone, uma das jóias de Nova Orleães. E aqui está outra. Effie Ruiult. Effie, querida, este é o meu grande amigo Declan Fitzgerald.

- Olá, Declan! - Esgueirou-se entre os dois e beijou-o no rosto. - Estou tão contente por te conhecer!

Tinha uma nuvem de cabelo louro a emoldurar-lhe o bonito rosto em forma de coração e olhos de um azul claro e estival. Os lábios apresentavam uma profunda curva ao estilo das bonecas Kewpie, e exibiam um tom rosado.

Tinha o aspecto de quem podia ser a chefe de torcida do ensino secundário local.

- És demasiado bonita para perderes o teu tempo com este tipo - disse-lhe Declan. - Porque é que não foges antes comigo?

- Quando partimos?

Declan deu uma gargalhada, apeou-se do banco e retribuiu-lhe o beijo.

- Bom trabalho, Remy.

- A melhor coisa que já fiz. - Remy comprimiu os lábios contra o cabelo de Effie. - Senta-te aqui, querida. Este sítio está apinhado. Se calhar o melhor é ficarmo-nos aqui pelo balcão. Quer vinho?

- O branco da casa serve.

- Queres que volte a encher-te isso, Declan?

- Deixa estar. Hoje pago eu.

- Nesse caso, oferece um Chardonnay à minha menina. Eu bebo o mesmo que tu.

- Vejam só quem aqui está! - Lui sorriu para Remy. - Olá, Effie! O que é que vão beber?

- Um copo de Chardonnay para a senhora. E mais duas Coronas - disse-lhe Declan. - E depois talvez possas ligar para o 112. O meu coração para sempre que olho para ti.

- Aqui o teu amigo é todo falinhas mansas assim que ganha confiança, Remy - disse Lui enquanto tirava uma garrafa de vinho do geladeira.

- Aquelas meninas lá de Harvard derretiam-se-lhe nas mãos.

- Nós, as meninas do Sul, estamos demasiado habituadas ao calor para nos derretermos tão facilmente. - Serviu o vinho e colocou os gomos de lima nas cervejas.

- Tenho a certeza de que te conheço. - De repente a lembrança ressaltou-lhe na memória. - Vi-te esta manhã, a brincar com o teu cão. Um cão preto enorme, ao pé do tanque.

- O Rufus. - Lui teve um pequeno sobressalto ao aperceber-se de que ele tinha estado a observá-la. - É da minha avó. A casa dela fica atrás do bayou. Às vezes vou até lá fazer-lhe companhia.

- Para a próxima passa lá por casa. Faço-te uma visita guiada.

- Talvez. Nunca a vi por dentro. - Colocou uma taça de salgadinhos sobre o balcão. - Querem alguma coisa da cozinha?

- Vamos decidir ainda - disse Remy.

- Então depois digam. - Deu meia-volta e cruzou a porta das traseiras.

- Dec, é melhor limpares essa baba toda do queixo. - Apertou-lhe o ombro. - É embaraçoso.

- Não o provoques, Remy. Não há homem que não fique um pouco excitado com a Lui por perto, e ele ainda não conhece algumas partes essenciais.

- Devias fugir mesmo comigo - decidiu Declan. - Mas até lá, desejo-vos o melhor. - Entregou-lhe o presente.

- Compraste-me uma presente? Que querido! - Rasgou o embrulho com um entusiasmo que fez Declan sorrir. E sorriu de novo quando ela pegou na rã e a observou fixamente até lançar a cabeça para trás e soltar uma gargalhada ululante. - Parece o Remy! Olha só, amor, até tem o teu sorriso!

- Não vejo onde.

- Vejo eu. E o Dec também. - Girou no banco e olhou radiante para Declan. - Gosto de ti! Estou tão contente por gostar de ti! Adoro tanto este tolo que quase nem aguento, e até estava disposta a fingir que gostava de ti. Mas não preciso de fingir.

- Oh, vá lá, não chores, Effie. - Remy sacou de um lenço enquanto ela fungava. - Ela fica assim quando está feliz. Na noite em que a pedi em casamento, chorou tanto que demorou dez minutos a dizer sim. - Deu-lhe a mão. - Anda, chère (querida), vais dançar comigo até ficares enxutinha.

Declan voltou a sentar-se no banco, pegou na cerveja e viu-os dirigirem-se para a pista.

- Fazem um belo par - comentou Lui atrás dele.

- Sim. Sim, fazem mesmo. Estás interessada em ver se fazemos também um belo par?

- Tu não desistes. - Soltou um suspiro. - Que carro me vais comprar?

- Carro?

- Ofereceste-te para me pagares uma bebida, um café, um carro ou um cão. As minhas bebidas posso eu pagá-las, e gosto do meu café. E tenho um cão, por assim dizer. E um carro também. Mas posso muito bem ter dois carros. Que carro me vais comprar?

- Escolhe.

- Depois digo-te - replicou, afastando-se novamente para a outra ponta do balcão.

 

 

Declan trabalhou obstinadamente durante três dias. Na sua opinião, não havia nada mais satisfatório do que derrubar coisas. Nem sequer voltar a reconstruí-las lhe despertava o mesmo gozo primário.

Quebrou a cozinha, arrancou a ilha central, as bancadas e os armários. Descolou o papel de parede com jatos de vapor e arrancou o linóleo.

Ficou com um revestimento de estuque e madeira e infindáveis possibilidades.

À noite, cuidava das bolhas nas mãos e dos músculos doridos e examinava livros de design.

Todas as manhãs, antes de começar o dia, tomava a sua primeira xícara de café na varanda, na esperança de vislumbrar Lui e o grande cão preto a que ela chamava Rufus.

Contatou operários e artesãos, encomendou materiais e, num frenesi de entusiasmo, comprou um enorme furgão de carga num leilão.

Na primeira noite em que conseguiu acender a lareira na sala de estar voltada para o rio, celebrou a ocasião e o seu próprio esforço com um solitário copo de Merlot.

Não voltara a sofrer de sonambulismo, mas teve sonhos. Quando acordava, conseguia lembrar-se depois de fragmentos. Música, e muitas vezes a melodia parecia alojada no seu cérebro como um tumor. Ou então vozes iradas.

Certa vez sonhara com sexo, com suaves suspiros no escuro, com o indolente roçar de pele sobre pele, e sentira essa necessidade apoderar-se dele como uma onda de calor.

Acordara com os músculos a tremer e um aroma de lírios que parecia dissipar-se.

Sonhar com sexo parecia ser o melhor que conseguia arranjar, pelo que concentrou as energias no trabalho.

A primeira pausa digna desse nome foi para fazer uma visita, para o que se armou com um ramo de malmequeres brancos e um osso de couro cru.

A casa do bayou, de madeira de cipreste, era uma sucessão de quartos alinhados num único piso. Um pequeno barco branco balançava gentilmente num embarcadouro já muito torto.

As árvores ladeavam a habitação onde a água não o fazia: ciprestes, carvalhos e nogueiras-pecã. Dos ramos pendiam garrafas transparentes, cheias com água até meio.

E havia uma estátua da Virgem Maria aninhada nas raízes nodosas de um carvalho.

Aos pés dela, amores-perfeitos.

No pequeno alpendre que dava para a vereda de terra batida viam-se mais vasos de flores e uma cadeira de balance. As portadas estavam pintadas num verde lustroso.

Da porta de mosquiteiro, remendada em dois sítios, escoava-se a voz forte e melancólica de Ethel Waters.

Declan ouviu os sonoros latidos de aviso. Mesmo assim, não estava preparado para o tamanho e a velocidade de Rufus quando este irrompeu da porta e o atacou.

- Céus! - foi tudo o que conseguiu dizer. Teve depois um instante para se perguntar se devia atirar-se pela janela para dentro do furgão ou continuar ali petrificado, quando a massa negra do tamanho de um pônei derrapou até se deter junto aos seus pés.

Rufus pontuava os latidos com uivos tonitruantes, rosnadelas úmidas e uma impressionante exibição dos dentes. Como duvidava que conseguisse repelir o cão com um ramo de malmequeres, optou por uma aproximação amigável.

- Ei, Rufus, seu canzarrão! Como vai isso?

Rufus farejou-lhe as botas, depois a perna e deteve-se nas virilhas.

- Oh, não vamos ficar assim tão íntimos de um momento para o outro. - Perante aqueles dentes, Declan decidiu que mais valia arriscar a mão do que o pênis. Lentamente, afastou a cabeça maciça e fez-lhe uma festa.

Rufus olhou-o com um par de olhos castanhos e faiscantes, ergueu-se nas patas traseiras num único movimento rápido e fluido e pousou-lhe as enormes garras nos ombros.

Depois passou-lhe uma língua quase do tamanho do Mississipi pelo rosto. Declan, apoiado contra o lado do furgão, esperava que as longas lambidelas molhadas fossem uma saudação, e não uma espécie de preparativo para tornar a carne mais tenra.

- Prazer em conhecer-te também.

- Larga-o já, Rufus!

O cão baixou-se perante aquela ordem séria vinda da porta da frente; sentou-se e pôs-se a bater com a cauda.

A mulher imóvel no alpendre era mais nova do que Declan esperava, teria pouco mais de sessenta anos. Tinha a mesma constituição franzina da neta, os mesmos traços agudos no rosto. O cabelo era escuro, livremente estriado de branco e colhido numa massa de caracóis.

Envergava um vestido de algodão que lhe dava pelas canelas e, por cima, uma camisa vermelha e larga. A cobrir-lhe os pés trazia umas robustas botas castanhas, com umas espessas meias vermelhas que lhes caíam por cima. Declan ouviu o tilintar dos braceletes quando ela apoiou as mãos nas quadris estreitos.

- Ele gostou do seu cheiro, e da sua voz, por isso deu-lhe um beijo de boas-vindas.

- E se não gostasse?

Ela sorriu, um rápido cintilar que aprofundava as rugas que o tempo lhe gravara no rosto.

- Que acha?

- Acho que me dou por feliz por ter um cheiro amigável. Chamo-me Declan Fitzgerald, Mrs. Simone. Comprei a Mansão Manet.

- Sei quem você é. Entre e sente-se por uns instantes. - Recuou e abriu a gasta porta de mosquiteiro.

Declan dirigiu-se para o alpendre, com o cão arrastando-se pesadamente ao seu lado.

- Prazer em conhecê-la, Mrs. Simone.

Ela observou-o, com um olhar franco e cauteloso naqueles olhos escuros.

- Você é mesmo bonito, sim senhor.

- Obrigado. - Estendeu as flores. - A senhora também. Ela aceitou as flores e cerrou os lábios.

- Veio cortejar-me, Declan Fitzgerald?

- Sabe cozinhar?

Ela riu-se, com um som cavo e gutural, e Declan sentiu-se um pouco apaixonado.

- Tenho pão de milho acabado de fazer, de modo que pode comprovar por si próprio.

Convidou-o a entrar e conduziu-o pelo estreitíssimo corredor central. Declan vislumbrou o vestíbulo, um quarto de costura e os quartos de dormir - um com um crucifixo de ferro sobre uma cama simples, também de ferro - e reparou que todas as divisões estavam confortavelmente cheias e asseadas.

Cheirou-lhe a verniz e a alfazema, e depois, a uns passos da cozinha, captou o aroma campestre do pão a assar.

- Sabe que mais, minha senhora? Tenho trinta e um anos, sou financeiramente independente e o meu último exame médico deu-me um atestado de saúde irrepreensível. Não fumo, geralmente bebo com moderação e sou rmotivoavelmente asseado. Se casasse comigo, tratava-a como uma rainha.

Ela deu umas gargalhaditas e abanou a cabeça, apontando-lhe a mesa da cozinha.

- Sente-se e estenda essas pernas compridas debaixo da mesa para eu não tropeçar nelas. E já que está a animar-me, pode tratar-me por Miss Odette.

Destampou uma travessa que estava em cima da bancada e tirou dois pratos do armário. Declan ficou a olhar pela porta da cozinha enquanto ela cortava fatias de pão de milho.

O bayou estendia-se num sonho de água escura e troncos de cipreste e o reflexo sombrio das árvores tremeluzia à superfície. Viu um pássaro de asas vermelho-vivas erguer-se nos ares e desaparecer.

- Uau! Como é que consegue fazer o que quer que seja quando podia muito bem ficar o dia todo aqui sentada a olhar?

- É um bom sítio. - Tirou um jarro de chá escuro de uma velha geladeira pouco mais alta do que ela. - A minha família vive aqui há mais de cento e cinquenta anos. O meu avô tinha uma boa destilaria por detrás daquele carvalhal. Os fiscais do governo nunca a descobriram.

Pousou o copo e a bandeja diante dele.

- Mangez. Coma. Que faz o seu avô?

  • Era advogado. Na verdade, ambos os meus avós eram.
  • Já morreram, não?- Você também, hã? - Pegou numa gorda garrafa de um azul-pálido quando deu a primeira dentada no pão de milho.- Tenho jeito para fazer pão. E gosto de malmequeres - acrescentou enquanto os enfiava na garrafa que enchera com água. - Dão um toque jovial. Vai dar ao Rufus esse osso que trouxe, ou vai obrigá-lo a suplicar-lho?Odette pôs as flores no centro da mesa e sentou-se na cadeira ao lado de Declan.- Todo o tipo de coisas. Voltar a pôr aquilo como em tempos foi, tanto quanto for possível.- Não sei. Viver lá.Agora queria ver de que cepa era feito.- Também não sei, mas desejei-o desde a primeira vez que pus os olhos na casa.- Creio que ainda não se decidiu. Já a viu por dentro?- Não, senhora.- Não, senhora. - Sorriu enquanto levantava o copo de chá. - Gosto de moças. Só que ainda não encontrei a moça certa para mim.- Desculpe? Declan franziu a testa e inclinou-se mais para a frente para olhar fixamente para a sua própria mão.- Que lhe importa isso? Ela também não o amava a si.- O seu amor está a caminho, um amor que o vai fazer cair estatelado no chão. Vai fazer-lhe bem.- Você tem laços fortes com a Mansão Manet. Laços fortes e antigos. Vida e morte. Sangue e lágrimas. Alegria, se for suficientemente forte, suficientemente esperto. Você é um homem inteligente, Declan. Seja suficientemente inteligente para olhar o passado e o futuro e descobrir-se a si mesmo. Você não está sozinho naquela casa.- Está assombrada. O que existe naquela casa impediu outros de se lá instalarem. Diziam que era o dinheiro, o tempo ou coisa que o valha, mas o que existe naquela casa afugentou-os de lá para fora. A casa tem estado à sua espera.- Porquê?Declan curvou os dedos para dentro da palma da mão, que latejava.- De vez em quando vejo o que vejo. Um pouco de magia caseira - disse enquanto voltava a encher os copos. - Mas isso não faz de mim uma bruxa, depois uma mulher. - Reparou no olhar de soslaio que ele lanceu à cruz de prata emaranhada em contas coloridas que ela usava ao pescoço. - Acha que é uma contradição? De onde pensa que vem o poder, cher!- Qualquer que seja o dom que o bom Deus nos deu, se não o usarmos bem, estamos a desperdiçar essa dádiva. - Inclinou a cabeça, e Declan viu que também usava brincos. Grandes pedras azuis que balançavam dos minúsculos lóbulos. - Ouvi dizer que ligou ao Jack Tripadoe por causa de um possível trabalho de canalização em sua casa.- Esse Remy é um ponto. - O seu rosto iluminou-se, e qualquer mistério que nele tivesse havido desvaneceu-se. - O Jack é primo da mulher do irmão do marido da minha irmã. Far-lhe-á um bom trabalho, e se não lhe fizer um preço justo, diga-lhe que Miss Odette vai querer saber porquê.- Vou tratar de saber. Vai custar-lhe um bom saco de moedas pôr aquele lugar como era e mantê-lo assim.- Você tem boas maneiras, cher. A sua mamã educou-o bem.- Vou gostar de o ter por aqui - declarou ela. - Venha visitar-me sempre que quiser.O sol cintilou no rosto dela enquanto o olhava. O ângulo do rosto, o divertimento nos olhos escuros, a curva provocante dos lábios. De repente tudo lhe recordou o bar escurecido no Bairro Francês.- Pois parece. Você já anda de olho na minha Lui?- Bem, já estamos entendidos que gosto de moças, certo? - Ela deu uma pequena pancadinha na mesa para pontuar a gargalhada enquanto se levantava.Também ele gostava dela, tanto que decidiu comprar umas cadeiras para ela poder sentar-se quando o visitasse. Trataria disso no sábado, pensou enquanto regressava para dar a primeira demão nas paredes da cozinha. Procuraria as cadeiras à tarde, antes do jantar marcado com Remy e Effie.E, se Lui não trabalhasse nessa noite, voltaria a sair e atirar-se-ia para debaixo do primeiro carro que passasse.As paredes estavam desnudadas, reparadas e preparadas para a pintura. As marcas de lápis que fizera indicavam as medidas dos armários que começaria a construir no dia seguinte. Até tentara alinhar os tijolos na lareira, e achava que não fizera um trabalho assim tão mau. Expusera o velho soalho de pinho, agora protegido com panos. E já tratara de assinalar os locais para o fogão e o geladeira.Levou uma garrafa de água para cima, tomou o habitual banho de nove minutos e depois estirou-se na cama com os seus apontamentos, esboços e livros. Adormeceu de cansaço a meio dos ajustes nos planos para a sala da frente.Não sabia onde estava, sabia depois que estava no chão e não na cama. Estava frio e conseguia ver o nevoeiro branco da sua própria respiração embrenhar-se na escuridão negra.Lírios. Sentiu o corpo estremecer enquanto registava este aroma. Sabia agora onde estava: no quarto ao fundo do corredor, o quarto, à semelhança do do terceiro piso, que evitara com tanto cuidado ao longo dos últimos dias.- Podes assustar-me. Mas não conseguirás afugentar-me daqui.Sentia o ar de Janeiro quente e pesado contra a sua pele gelada. Avançou cambaleante e agarrou-se à balaustrada. A noite parecia o interior de uma caverna. O velho ditado era verdadeiro, concluiu. Não havia escuridão como a escuridão do campo.- Esta casa agora é minha. - disse calmamente. Depois desceu da varanda e voltou para o seu quarto.- Sim. Aconteceu-me durante cerca de seis meses quando tinha onze anos. - Declan encolheu os ombros, mas não conseguiu desembaraçar-se do peso que sentia.- Deve ser aterrador acordar e descobrir que estamos noutro lugar qualquer - disse Effie.- Desde que te mantenhas dentro de casa - interveio Remy. - Não quero vir a saber que foste feito sonâmbulo enterrar-te ao pântano.- Remy! - Effie deu-lhe uma palmada na mão. - Acho que devias ir ao médico - disse ela a Declan. - Podias tomar qualquer coisa para te ajudar a dormir melhor.- Não passa de correntes de ar e ranger de madeira velha. Remy sorriu.- Nem em cartomancia, em ler folhas de chá ou outros disparates desse gênero. - A voz dela era afetada e um pouco defensiva.- A tua menina tem é bom senso - replicou ela. - Dec, o terno é que tiveste sensações estranhas, ali completamente sozinho naquela enorme casa velha. E aposto que também não andas a comer bem. Devias viver com o Remy por uns tempos, até te acostumares às coisas.- Vou viver contigo quando casarmos e não antes.- Sabes que mais, Effie? Anda tu passar umas noites comigo. Estritamente platônico - disse Declan com um sorriso enquanto Remy semicerrava os olhos. - Aposto que mudavas de opinião sobre fantasmas depois de uma noite ou duas.- Leio. E, por falar nisso, preciso de ir à biblioteca, para ver se consigo desenterrar mais alguma coisa sobre a Mansão Manet. Também tenho feito algumas tentativas no jardim. Dou passeios. Fui visitar Miss Odette.- Gostei realmente dela. A verdade é que a casa me tem mantido tão ocupado que geralmente só paro por volta das dez da noite. Mas esta tarde já comprei uma mesa e cadeiras, e outras coisas.- Não queremos que te feches lá e te mates a trabalhar - concluiu Effie. - Espero que venhas à cidade e nos visites pelo menos uma vez por semana daqui em diante. E, Remy, devias começar a ir lá aos sábados e dar uma mão ao Dec. Passas demasiado tempo sozinho - declarou enquanto afastava a cadeira da mesa. - É esse o teu problema. Ora bem, todos prontos para a tarte? Podia passar um serão a ler outra coisa que não livros de pesquisa.Teve de estacionar a mais de um quarteirão do Et Trois, mas, quando entrou e viu Lui ao balcão, concluiu que a caminhada valera a pena.Nessa noite estava uma loura atrás do balcão, para além da proprietária e do tipo das rastas. Andavam os três atarefados de um lado para o outro.- Corona?Continuava com o mesmo bom aspecto de que ele se lembrava. exatamente o mesmo bom aspecto. Nessa noite estava de azul: uma camisa bastante desabotoada e enrolada até aos cotovelos. Os lábios continuavam vermelhos, mas tinha o cabelo apanhado dos lados com travessões de prata. Conseguia ver-lhe o brilho das argolas nas orelhas.- Está-se?- Não. - Ofereceu-lhe aquele riso rápido e vaporoso. - Não falas a Nova Orleães, cher! Quando digo "Está-se", estou a perguntar-te como tens passado.- Isso mesmo. Eu também estou bem. Atarefada. Chama-me se precisares de mais alguma coisa.Nunca pôs a hipótese de voltar para casa. Quando um banco ficou livre, instalou-se nele.Ela surgiu novamente.- Sim. - Continuava de olhos fixos nos dela. - Estou à espera. Lui limpou o balcão úmido com o pano.- Há um dia ou dois. És parecida com ela.- Tinha esperança de que isso fosse um benefício extra, mas não. Fui lá porque ela é minha vizinha. Estava à espera de uma vizinha velhota, uma mulher idosa, sozinha, e pensei que ia gostar de saber que tinha alguém por perto para lhe dar uma mão. Mas depois de a conhecer percebi que não precisa da minha ajuda para nada.Tirou uma pequena bolsa de detrás do balcão e colocou a comprida alça sobre o ombro.- Sim, podes.- E então, ouvi dizer que estás a trabalhar no duro na tua casa.- Ultimamente não. - A verdade é que se mantivera afastada deliberadamente. Tinha curiosidade em ver se ele voltaria ao bar. Avançou pelo passeio fora.- A minha avó também.- Oh, ambos gostam de mim.- Lui. - Pegou na mão dela.- Oh! Bem, lá se vai a minha ideia de te seduzir com a minha inteligência e o meu charme na longa caminhada até casa. E se...Ergueu-se na ponta dos pés e inclinou-se. Deslizou a mão até à nuca dele e fê-lo aproximar a boca da sua.O sedoso deslizar dos lábios e da língua dela, o quente roçar da sua pele, o aroma intoxicante do seu perfume.- És bom nisto - murmurou ela, pousando a ponta do dedo nos lábios dele. - Já tinha um pressentimento. Boa noite, cher.Sentiu a divertida curva dos lábios dela contra os seus e deixou-se afogar enquanto lhe percorria as costas e o cabelo com as mãos.O sabor, vagamente familiar, começou a infiltrar-se no seu sangue.Sentia-se quente, um calor à flor da pele, quase febril. Enlaçou as mãos atrás do pescoço dele.- Está bem. Continuarei a aparecer.- Vou esperar até entrares. Lui franziu as sobrancelhas.- Que tenhas bons sonhos, cher. Mansão Manet, 2 de Janeiro de 1900Lucian estava sentado a um canto da cama, encurralado naquele entorpecimento que se apoderara dele desde que voltara para casa, dois dias antes. Voltara e encontrara a mansão num alvoroço. E a sua esposa desaparecera.Mentiras!Algo acontecera a Abigail - abria e fechava as mãos sobre o broche-relógio que lhe oferecera quando a pedira em casamento. Acontecera-lhe algo de terrível.Um parente doente, pensou enquanto se levantava e dava voltas, voltas e mais voltas.As pessoas ainda continuavam à procura dela, nas estradas, no pântano, nos campos.A jovem esposa de Lucian Manet fugira com outro homem.Mentiras horríveis, maldosas!- Lucian. Ele voltou-se.- Não. - Josephine fechou a porta atrás de si com um gesto hesitante. - Nem vão encontrar. Desapareceu, e neste momento está provavelmente a rir-se de ti com o amante.- Ela não fugiu.Tudo o que ele via era o vestido de baile azul com os debruns e rosetas de que ela tanto se orgulhava.- Tu é que estás enganado. E as jóias? - Josephine tirou a caixa de couro da prateleira e abriu a tampa. - Onde estão as pérolas que lhe deste no Natal? A pulseira de diamantes que lhe compraste quando teve a criança?Com um som de desprezo, Josephine virou as jóias sobre a cama.- Não! - Fechou os olhos com força enquanto sentia o coração despedaçar-se. - Ela não me abandonava. E nunca abandonaria a Marie Rose.A fúria manchou-lhe as faces de vermelho. A dúvida estava plantada, pensou Josephine com frieza. Agora ajudá-la-ia a desabrochar.- Se lhe tivesse pago, como a uma puta?! Como o Julian paga às mulheres dele? - Avançou, tão irado que as mãos lhe tremiam. - A minha esposa não é uma puta!Já sozinho, Lucian sentou-se na cama e afundou-se em lágrimas com o broche-relógio na mão.- Volta daqui a umas semanas - disse Declan da sala de jantar adjacente, onde montara aquilo a que chamava a sua carpintaria.- O soalho vai ficar bonito. É como uma tela em branco - disse enquanto olhava em volta da cozinha desmontada. - Teve que a limpar completamente antes de poder pintar a imagem apropriada.- Para de te meteres com a minha menina.Remy tinha a sensação de que o amigo não usava uma lâmina de barbear há três dias. - Queres que faça alguma coisa, ou ficamos aqui de pé a admirar o teu ar de machão?- Claro. - Remy lanceu o braço em redor do ombro de Effie. - Trabalhamos a troco de cerveja.A vida tinha momentos assim, perfeitos, pensava ele enquanto removia uma última lasca de madeira do polegar.- Camélias - disse-lhe Effie. - Estes canteiros estão um pecado, Dec.- Não podes tratar de tudo. Devias arranjar alguém para vir limpar isto.- Negócio de família? - Sempre confiara nos negócios familiares.- Irmão e irmã.- Sim. O Frank X de Xavier, tem aqui um destes egos! Deu o nome dele a ambos os filhos. Vou dar-te o número. Diz-lhes que fui eu que te disse para ligar.- Importas-te que dê uma volta pela casa?- Ainda bem que a vi primeiro - comentou Remy quando Effie foi para dentro.- Aqui para mim, andas de olho noutra mulher, da maneira como não tiras os olhos do bayou.- Sim, pois andas. - Remy riu-se e reclinou-se apoiado nos cotovelos. - A Lui sabe mexer com os homens, põe-nos a pensar em todo o tipo de coisas interessantes.- Isso não quer dizer que o meu cérebro tenha deixado de funcionar. Mas não te preocupes, a Effie é tudo o que quero. - Soltou um longo suspiro de homem satisfeito. - Que queres dizer com isso? - Declan pousou a cerveja e olhou fixamente para o amigo. - Tu e a Lui. Tu... e a Lui?- Num Verão quente e suado. Deve ter sido quase há quinze anos. Uii! - Inclinou-se para a frente para esfregar o peito. - Isto dói. Foi há cerca de... sim, eu tinha dezessete anos, acabado de sair do ensino secundário. Ela devia ter uns quinze. Passamos umas noites memoráveis no banco de trás do meu velho Chevy Camaro. - Reparou na expressão amuada de Declan. - Ei, eu também a vi primeiro! Andei apaixonado por aquela menina durante uns bons seis meses. Pensava que ia morrer se ela não fosse minha. Sabes como é quando se tem dezessete anos.- Bem, eu andava louco por causa dela, sempre à volta dela, sempre atrás dela. Levava-a ao cinema e a dar longos passeios de carro. Levei-a ao meu baile de formando. Meu Deus, que estampa ela era! E então, numa noite estonteante de Junho, consegui finalmente despi-la no banco de trás do Camaro. Era a primeira vez dela. - lanceu um olhar a Declan. - Sabes, dizem que uma mulher nunca esquece a primeira vez. Já tens o caminho aberto, cher.- Separamo-nos, é tudo. Fui para a faculdade, no Norte, e ela ficou aqui. A febre extinguiu-se e ficamos amigos. Somos amigos, Dec. É uma das minhas pessoas preferidas.- Estava depois a pensar que odiaria ver dois dos meus amigos magoarem-se um ao outro. Vocês dois trazem muita bagagem, rapaz.- Talvez. Só Deus sabe como ela se tem esforçado por manter a dela trancada no sótão. A mãe... - Calou-se ao ouvir o grito de Effie.- Lá em cima! - Declan virou à esquerda e galgou as escadas da cozinha. - Está lá em cima.Estava sentada no chão, abraçada a si própria, e lanceu-se nos braços de Remy assim que ele se acocorou junto dela.- Não. Não. Vi... - Enterrou o rosto no ombro dele. - Ali. Em cima da cama.- Que viste, Effie? - perguntou Declan.- Querida. - Remy olhava fixamente para o quarto e afagava-lhe o cabelo. - Não há ali nada. Olha agora. Não há ali nada.- Diz-me o que viste. - Declan ajoelhou-se ao lado dela. - Que viste ali?Embora o seu rosto estivesse branco como a cal, conseguiu levantar-se e dirigiu-se para a porta.- Não. Espera. - Tinha os olhos muito abertos e o coração continuava a bater-lhe violentamente enquanto perscrutava o quarto. - Não devo ter visto nada. É um quarto vazio. Não passa de um quarto vazio. Deve ter sido imaginação minha...- Como sabes o que eu vi?- Lírios brancos numa jarra alta - continuou Effie, e uma lágrima escorreu-lhe pela face. - Achei estranho, e até adorável, que tivesses posto flores aqui. Mas depois pensei, depois por um instante: como é que ele decorou este quarto com tanto primor e porque é que não disse nada? E então entrei e vi-a na cama. Desculpem. Preciso mesmo apanhar ar.- Meu herói! - murmurou ela enquanto ele a levava para as escadas.Declan olhou fixamente para o quarto durante um longo momento. Depois seguiu-os para o piso inferior.- Que pensas agora dos fantasmas?- Foi imaginação minha.- Um broche-relógio - disse ela baixinho. Soltou um arquejo trêmulo. - Não consigo explicar.- Tinha o rosto todo contundido e a sangrar. Oh, Remy!- Não, está tudo bem. - Effie respirou fundo e pousou a cabeça no ombro de Remy. Cruzou o olhar com o de Declan e manteve-o fixo nele. - Mas é tão estranho, tão horrível. Acho que era nova, mas não tenho a certeza. Cabelo escuro e abundante, encaracolado. A roupa, o vestido de noite, estava rasgado. Tinha equimoses horríveis no pescoço, como... meu Deus!, como se tivesse sido estrangulada. Percebi logo que estava morta. Gritei e caí para trás. Senti as pernas fraquejar.- Posso fazer alguma investigação. - Effie pousou o copo e conseguiu esboçar um sorriso. - Afinal de contas, é o meu trabalho.- Talvez seja melhor. - Effie estendeu a mão e tocou no braço de Declan. - Anda conosco. Não sei se deves ficar aqui.Precisava de ficar, pensou quando ficou sozinho e o forte ruído da pistola de pregos ecoava através da sala de jantar. Não estava depois a restaurar a casa, estava a torná-la sua. Se uma moça assassinada fazia parte da casa, então também ela lhe pertencia.Se aquelas imagens e sentimentos tinham afastado outros, a ele só o compeliam a fixar-se ainda mais.Quando deu o dia por findo e se foi deitar, deixou as luzes acesas.Frank e Frankie, tão parecidos como os respectivos nomes, de ombros robustos e cabelo cor de lama, arrastavam-se pelos canteiros e iam emitindo ruídos que tanto podiam ser de aprovação como de descontentamento. Little Frankie era aparentemente o cérebro das operações e, após uma hora de inspeção, forneceu a Declan um orçamento para eliminar a vegetação rasteira e as ervas daninhas. Mesmo perguntando-se se a intenção deles seria reformarem-se à custa daquele trabalho, decidiu confiar em Remy e contratá-los.Quando olhou lá para fora, reparou que o emaranhado começava a desaparecer.Inspecionaram juntos a casa, com Tibald a rabiscar num minúsculo livrinho de apontamentos com os cantos dobrados. Quando chegaram ao salão de baile, o negro olhou para o teto com uma expressão sonhadora.- Já aqui esteve antes?- Porquê?- Tinham ideias grandiosas e refinadas e não achavam que as gentes locais fossem capazes de as executar. Na minha opinião, deviam achar que quanto mais dinheiro gastassem, maior seria o brilho, se é que percebe o que quero dizer.- Reparei o estuque em Harvest House, na River Road. Tenho fotografias no furgão, como referência. Talvez queira dar-lhes uma vista de olhos, ou mesmo ir lá ver o trabalho. Fazem visitas guiadas, e agora até lá organizam festas chiques. Fiz alguns trabalhos em Nova Orleães, Baton Rouge e Metairie. Posso dar-lhe nomes.Os instantâneos do antes e do depois de várias cornijas, paredes e medalhões mostraram a Declan que o seu homem era um artista. Para formalizar o contrato solicitou um orçamento, e Tibald estendeu-lhe a mão depois de prometer apresentar-lho por escrito lá para o fim da semana.- Hei-de lá chegar.- Ainda estou longe de precisar de uma governanta.- Não, não me refiro a esse tipo de limpeza. - Ofereceu uma a Declan, tirou outra para si, dobrou-a ao meio e enfiou-a na boca. - Limpeza de espíritos. Você tem ali espíritos fortes. - Mascava contemplativamente. - Sobretudo no terceiro piso.- Sinto-os a respirarem-me no pescoço. Você não? Os Rudicker perderam dois trabalhadores quando andavam a fazer obras na casa. Fugiram e nem olharam para trás. Nunca voltaram. Pode ter sido uma das razões por que foram buscar gente longe daqui. - Encolheu os ombros e continuou a mascar a pastilha elástica. - Pode ter sido a razão por que nunca chegaram a pôr em prática aquelas ideias grandiosas e refinadas.- Não. Nem conheço ninguém que saiba. Conheço algumas pessoas que não iriam lá acima por mais que lhes pagasse. Se precisar de algum trabalho meu no terceiro piso, chame primeiro a minha irmã Lucy.- É o carro de Miss Lui, e Miss Odette vem com ela. - O sorriso de Tibald rasgou-se ainda mais quando o antigo MG parou junto do seu furgão. - Boa tarde, minhas senhoras. - Tibald aproximou-se do lado do passageiro para abrir a porta a Odette. - Está-se?- Não tenho razões de queixa.- A minha avó achou que era altura de fazer uma visita. - Observou o caminho e reparou no número de carrinhas. - Que fizeste, cher! Contrataste um exército?- Posso fazer-vos uma visita guiada?- Serão entregues. Tenho que ir. Hei-de trazer-lhe esse orçamento, Mr. Fitzgerald.Cheirava a alfazema, e os seus gestos faziam tilintar as jóias e os braceletes. Tudo nela transmitia a Declan uma sensação de bem-estar.Odette piscou o olho a Lui quando Declan lhe beijou a mão.- Parecem dar conta do recado. Não sei como. - Observou os canteiros irregulares da frente enquanto mantinha os polegares enfiados nas presilhas. - Realmente, nunca os vejo a fazer nada, mas desaparecem carradas de vegetação rasteira num piscar de olhos. Querem dar uma volta pelo terreno?- Garrafas de espíritos?- Devia preocupar-me com os espíritos malignos? - perguntou Declan.- Garrafas de espíritos - declarou Declan, pegando numa. Vira-as penduradas no exterior da casa do bayou. - Mas como funcionam exatamente?Declan bateu duas uma contra a outra. O som era bastante agradável, pensou, e não particularmente assustador.- Acredito na tal precauçãozinha. - A sua figura pequena e bem torneada foi juntar-se à avó. Demoraram quase uma hora a percorrer o caminho em redor da casa até entrarem, pois houve conversas com os jardineiros, perguntas sobre a família deles, especulações sobre o tempo, discussões sobre o jardim.- É uma boa cor, como uma bela crosta de bolo cozido. A maior parte dos homens não conhece senão o branco. Realça estes belos soalhos de pinho.Odette entrou na sala de lábios cerrados e passou a mão por um dos armários.- Obrigado.- É verdade. Querem ver a salinha? Coloquei lá uma mesa. Vamos tomar chá. - Ergueu o olhar quando algo pesado embateu no soalho do piso de cima. - Desculpem o barulho.- Não há que enganar. É a única divisão com mesa.- Pois é.- Muito.- Pois anda.- Ainda estou a pensar. Meu Deus, que casa! - Passou as mãos numa parede. - Entradas suficientemente largas para caber um carro. Até dá vontade de chorar ver como tem sido deixada ao abandono.Aposto que não preparou uma única refeição decente desde que aqui chegou.- Avó, não me vais fazer ter pena dele a ponto de lhe preparar o jantar. - Divertida, Lui aproximou-se da janela. - Que beleza de vista. Imagina como seria estar aqui à janela quando a casa estava na sua glória. Cavalos a surgirem da álea, aqueles velhos carros engraçados a roncarem pelo caminho acima.Lui brincou com a pequena chave que trazia pendurada ao pescoço.- Vou já acendê-la - disse Declan, entrando com um jarro de chá demasiado forte e copos de plástico. Gostava da presença feminina na sua salinha, com a lareira a crepitar alegremente e o Sol do fim da tarde a debater-se através da poeira das janelas.- Espero que volte muitas vezes. Teria muito gosto em lhe mostrar o resto da casa.- Eu levo-te, avó.- Já tenho os telefones a funcionar. - Tirou do bolso um pedaço de papel e anotou o número com um lápis que tinha no bolso da camisa. - Ligue se precisar de alguma coisa.- Isso é a sua maneira de me dizer que não tenho qualquer hipótese consigo, Miss Odette? - Oh! Se eu fosse trinta anos mais nova, ela teria uma adversária à altura. Vá então, e mostre-lhe a casa.- Gostas da minha avó - disse Lui da entrada da salinha.- Se deseja caminhar, que caminhe. Ninguém consegue impedi-la de fazer o que quer. - Aproximou-se da porta da frente e colocou-se ao lado dele. - Olha só, o Rufus veio para a acompanhar até casa. Juro-te, aquele cão tem um radar sintonizado nela.- Porquê?- Se quero que um homem se vá embora, digo-lhe para se ir embora.Os lábios dela curvaram-se naquele sorriso felino que lhe dava vontade de beijar o pequeno sinal negro.- Sim. - Levantou-lhe o queixo e beijou-a. - Claro. A propósito... - Levou-a pela mão enquanto se dirigiam para as escadas. - Miss Odette deu-me permissão para te cortejar.- É minha intenção seduzir-te de modo a ultrapassarmos esse aspecto. As escadas são fabulosas, não são?- Ex-advogado. E não estou a compreender-te.- Sim, pretendo.- Bem, o dinheiro não é problema. E também não traz felicidade. Lui deteve-se no patamar e riu-se.- Se quiseres ajudar-me a gastar algum...- Tens algum primo no ramo?- O encanador - explicou Declan. - Dei-lhe instruções para começar as obras no banheiro principal. Era... bem, tanto abacate era uma vergonha. Se souberes de alguém que queira apliques de banheiro verdadeiramente feios... avisa-me.- Está frio aqui. - Abraçou-se a si própria, mas não parava de tremer. - Devias aproveitar o papel de parede. É um padrão bonito. Violetas e botões de rosa.- É um quarto triste, não é? Precisa de luz. E vida.- Achas? - Virou-se para ele. Tinha o rosto um pouco pálido e os olhos muito abertos. - Não dá a sensação de... violência, depois tristeza. Vazio e tristeza.- Sentes-te bem?Declan estendeu a mão para lhe esfregar os braços, mas sentiu um choque ao contato.- Acho que não era a isto que a minha avó se referia quando disse para me cortejares, cher.- Os fantasmas não me preocupam. Também não devias deixar que te preocupassem. Não te podem magoar. - Mas encaminhou-se para a porta e teve de reprimir a vontade de sair precipitadamente.Sorriu junto à porta do quarto de Declan.Apoiou-se na ombreira e conversou uns minutos com os encanadores. Declan manteve-se afastado, simplesmente a olhá-la.Quando ela olhou para ele por cima do ombro, Declan sentiu o abalo até às solas dos pés.- Sim, gostava de ver. - Mas, quando se preparavam para descer, Lui apontou para as escadas. - O que há ali em cima?- Vamos dar uma vista de olhos.- Daqui tem-se acesso ao mirante? - perguntou ela. - Costumava olhar para lá e imaginar-me lá em cima a ver a vista.A ordem estridente fez com que a mão dela se petrificasse na maçaneta de latão baço do quarto das crianças.- Não, é só que... - Sentia o pânico a apoderar-se dele, a queimar-lhe o fundo da garganta. - Há algo de errado nesse quarto.Declan tinha razão. Atingiu-a mal entrou, a mesma sensação latejante de sofrimento, perda e solidão. Viu paredes, chão e janelas, poeira e abandono. E sentiu que o seu coração se dilacerava.- É o centro - declarou ela, embora não tivesse qualquer certeza sobre o que dissera, ou de como o soubera. - Consegues sentir? Consegues?O quarto rodopiava. Ouviu um grito, viu o rosto de Lui, o pânico nele estampado. Julgou ver a boca dela mexer-se e formar o seu nome. Depois sentiu a visão turvar-se, pontos brancos que dançavam no meio da bruma.Alguém que lhe afagava o cabelo e o rosto. Lábios a roçar nos seus. Abriu os olhos mas era tudo indistinto. Fechou-os novamente.- Abre os olhos!- Desmaiaste.- Desculpa, mas os homens não desmaiam. Acontece, por vezes, que desfalecemos ou perdemos os sentidos. Mas não desmaiamos.- Peço desculpa. O senhor desfaleceu. Sem mais nem menos. Caíste no chão com tanta força que a tua cabeça até rebateu. - Debruçou-se novamente e roçou os lábios pelo arranhão na testa dele. - Vais ficar com uma equimose, bebê. Não consegui agarrar-te. E se tivesse conseguido, tínhamos caído os dois. - Fê-lo voltar-se de lado e afagou-lhe as faces pálidas. - Costumas desfalecer com frequência?- Está bem. Consegues levantar-te? Acho que não consigo erguer-te, cher. És muito pesado.Lui envolveu-lhe a cintura com um braço e tentou suportar o peso dele.- Está tudo bem. Vou ficar bem. - Sentia os ouvidos a zumbir. Saiu do quarto e foi sentar-se nas escadas com a cabeça entre os joelhos. - Credo!- Fecha a porta. Fecha-a.- Tenta recuperar o fôlego, depois vamos para baixo e para a cama.O aperto que ela sentia no estômago atenuou-se um pouco.- Já estou melhor. - Já conseguia respirar e a náusea esmorecia. - Agora só preciso de bater em alguém ou abater algum mamífero para recuperar a minha masculinidade.- Cereais, o café da manhã dos campeões. - Conseguiu esboçar um tênue sorriso. - Mas parece que não foi suficiente.- A sério? - Sentiu-se percorrido pelo simples prazer da ideia. - Vais cozinhar para mim?- No meu mundo é, Lui, aquele quarto...- Sou homem - respondeu ele com um encolher de ombros. - Os hábitos de alimentação dos homens nunca morrem. Tenho manteiga de amendoim para acompanhar aquela geleia. Tinha também uma fatia solitária de fiambre, dois ovos, um pouco de queijo de aspecto anêmico e meia embalagem de salada prepreparada. - Aqui. - Bateu com os dedos no tampo de um microondas.- Ah... - Vasculhou a caixa dos seus atuais utensílios de cozinha e encontrou uns talheres de plástico.Declan sentou-se num cavalete e ficou a vê-la bater os ovos, desfiar o fiambre e o queijo e polvilhar tudo com o conteúdo da embalagem de salada.- Tenho sal e pimenta. Já é alguma coisa - murmurou ao ouvi-la suspirar. - Os exploradores descobriram continentes inteiros por causa do sal.- Sim. E depois?- Comida para fora, entregas a domicílio e microondas. Com essas três coisas, nenhum homem precisa passar fome.- Já que vais viver aqui, era melhor contratares um cozinheiro.- Tens graça, Declan. - O seu rosto apresentava agora uma boa cor, os olhos estavam claros. O nó que sentia no estômago desde que ele desmaiara começava a desatar-se. - Já tive uma, mas no fundo não a queria.- O Remy não te contou?- Estive noivo. Cancelei tudo três semanas antes do casamento, e isso, sabes, faz de mim um canalha. Em Boston, um monte de pessoas continua a amaldiçoar o meu nome.- Foi por isso que partiste?- Não a amavas. - Ficas triste quando dizes isso. - Retirou a tigela, pegou num garfo de plástico e estendeu-lho. Notou que os olhos dele se revelavam novamente tempestuosos. Com arrependimento. - Ela amava-te?- Mas tu não.Lui afastou-lhe o cabelo da testa.- Talvez. Isto está bom - disse enquanto devorava a omelete. - Por que é que não tens homem?- Quem diz que não tenho?- Preciso de saber se tens.- E porquê?- Também és bom nisso... dizer coisas que mexem com uma mulher. - Se fosse assim tão simples, depois uma questão de mexer com ela, Lui podia ter-se enfiado entre aquelas pernas compridas e satisfeito os dois. Mas ele não era um homem simples, pensou.- Come a omelete - disse ela, largando-lhe a mão. - Porque é que começaste pela cozinha se comes manteiga de amendoim e não possuis um único prato digno desse nome?- Isso é bom. - Apoiou-se contra um armário e observou-o. - Queres fazer sexo comigo, cher?- Claro. Deixa-me só pôr o encanador fora daqui. - Adorou a maneira como ela se riu. - Oh, não te referias a este preciso momento. Foi, digamos, como uma daquelas questões de verdadeiro ou falso. Deixa-me ver. - Verificou a pulsação. - Sim, ainda continuo vivo, portanto a resposta é verdadeiro.- És um homem interessante, Declan. E gosto de ti.- Para que é isto?- Aposto que a Jessica ainda esperneia por te ter deixado escapar. Realmente, quero que sejamos amigos. - Revirou a chave de parafusos na mão e pousou-a. - Ainda não sei se quero que sejamos depois amigos. Tenho que pensar nisso.Lui não tentou afastar-se. Pelo contrário, ergueu o rosto ao encontro dos lábios dele. Gostava do deslizar fácil do quente para o tórrido, do percurso fluido oferecido por um homem sem pressas.De vez em quando saciava os seus dessa maneira.No entanto, não conseguiu evitar levar as mãos ao rosto dele e deixar o beijo prolongar-se.- Angelina.Depois afastou-se de tudo aquilo.- Já me excitaste o suficiente para um dia.- Acredito. - Soltou um suspiro e puxou o cabelo para trás. - Tenho que ir. Trabalho esta noite.Por calma que fosse a voz dele, os olhos revelavam tempestades. O gênero de tempestades que, imaginava ela, proporcionam uma imensa excitação antes de desabarem sobre a nossa cabeça.- Lui, quero estar contigo. Quero passar tempo contigo.- Um encontro?- A que horas queres que te vá buscar? Ela sorriu e abanou a cabeça.- Segunda-feira. Às oito.Oh, sim, pensou ela, seria uma enorme excitação antes de a tempestade se abater.Um aviso, era mais isso, pensou ela. Declan não estava tão domado como aparentava.- Lui, não falamos do que aconteceu lá em cima.Só conseguiu respirar calmamente quando saiu. Não seria tão simples lidar com ele como julgara. Os bons modos não eram nenhum verniz, estavam-lhe no sangue. Mas o mesmo acontecia ao desejo e à determinação.O que não significava que não conseguiria lidar com ele, disse a si própria enquanto entrava no carro. Lidar com os homens era uma das suas especialidades.Sabia o que os homens viam quando olhavam para ela. E não se importava com isso, porque havia nela mais do que aquilo que eles viam. Ou mais do que aquilo que queriam ver.Olhou pelo retrovisor para a Mansão Manet enquanto se afastava. Preocupava-a que Declan Fitzgerald pudesse abalar esses alicerces como ninguém antes conseguira.E eles partiam sempre. A não ser que ela partisse primeiro.Conseguia ouvir o som da respiração dela, como a sustinha e libertava em curtos arquejos de prazer. Conseguia cheirá-la, aquela dança de sereia de jasmim que o fazia pensar em haréns e sombras proibidas.E viu-a apressando-se ao longo de um corredor, os braços carregados com roupa de cama. O cabelo, todo aquele cabelo esplendoroso, estava impiedosamente preso atrás, e o corpo tentador tapado do pescoço aos tornozelos com um vestido muito largo, coberto de minúsculas flores esmaecidas.Estava com pressa para arrumar a roupa de cama. Madame Manet já se levantara e não gostava de ver as criadas apressadas nos corredores. Se não se apressasse, corria o risco de ser vista pela patroa.Precisava do emprego. A família precisava daquele dinheiro, e ela adorava trabalhar na Mansão. Era a casa mais encantadora que alguma vez vira. Sentia-se tão feliz e orgulhosa por poder cuidar também dessa casa.E agora estava lá dentro, responsável, ainda que minimamente, por cuidar dessa beleza.No sonho de Declan, ela saía do corredor por uma das portas ocultas do segundo piso. Os seus olhos detinham-se em tudo enquanto se apressava: no papel de parede, nos tapetes, nas madeiras e nos vidros. Esgueirava-se para o quarto de vestir e arrumava a roupa de cama num armário.Declan viu, tal como ela, os cavaleiros que se aproximavam por entre os grandiosos carvalhos da álea. Sentiu, tal como ela, o coração sobressaltar-se quando o seu olhar se fixou no homem que montava um lustroso alazão. Tinha o cabelo louro, que esvoaçava enquanto galopava. O aprumo de um soldado, com um casaco cinzento sobre os ombros largos e as botas negras a brilhar.E suspirou, como suspiram as moças quando se apaixonam insensatamente. Ele sorriu, como se sorrisse para ela, mas a jovem sabia que era a casa o motivo do sorriso que lhe adornava o rosto.O jovem amo voltara a casa, pensava ela. E perguntava-se o que aconteceria depois.- Mas que raio?!Desta vez não estava no seu quarto fantasma. Estava num dos corredores da criadagem, onde estivera a moça do seu sonho.A ideia de tropeçar na escuridão até descobrir uma saída era pouco atraente, mas sempre era melhor que passar as próximas horas ali, à espera da madrugada.Saiu de rompante, com uma prece de agradecimento quando sorveu ar mais fresco e viu, sob a tênue luminosidade, os contornos do corredor do segundo piso.Se isto continua, disse para si próprio, tenho de ir ao médico e pedir-lhe uns comprimidos para dormir. Com a esperança de que as aventuras da noite tivessem terminado, foi lavar-se e beber água, para refrescar a garganta que lhe ardia. E fechou-se no quarto. - Não precisavas de fazer todo este caminho para me trazeres isso. Eu ia ter contigo.- Estás bem?- Não tenho dormido bem. - Mas não queria falar dos sonhos, do sonambulismo, dos sons que o acordavam tão frequentemente no silêncio da noite. - Vamos para a cozinha, para eu poder vangloriar-me. Tenho limonada... não de limões verdadeiros, mas está fresca.Olhou para dentro da salinha da entrada. Havia papéis empilhados no chão, livros abertos, uma pilha de tintas e amostras de tecidos.- Sobre os Manet. Os ternos são bastante simples - disse ela enquanto percorriam a casa. - Henri Manet casou com Josephine Delacroix. Ambos provinham de famílias crioulas abastadas e importantes. Henri era politicamente ativo. Corria o boato de que o pai tinha feito muito dinheiro com o negócio dos mantimentos, durante a guerra entre os estados. Com a Reconstrução tornaram-se republicanos ferrenhos, e corria também o boato de que usavam o poder e a influência para comprar votos e políticos. Oh, meu Deus, Dec, olha só para isto! - Entrou na cozinha e olhou radiante para os armários que ele tinha montado. - Mas que lindos! Declan enfiou os polegares nos bolsos de trás e esboçou um sorriso malandro.- Bem, e estou, mas de um modo bastante elogioso. O Remy mal consegue pregar um prego na parede para pendurar um quadro. - Passou a mão pela madeira, abriu e fechou uma porta. - Estão mesmo impecáveis. Deves estar orgulhoso.Pousou os livros sobre uma prancha de laminados que tinha em cima dos armários.- Quero. - Entrou na sala de jantar atrás dele. Dois dos armários superiores já estavam concluídos e havia um terceiro já iniciado. - Vão ficar realmente bonitos. Deves andar a trabalhar noite e dia.- Sempre é melhor do que ser sonâmbulo. - Sentia-se inquieto e enfiou novamente as mãos nos bolsos para se manter calmo. - Conta-me mais, Effie.Declan estendeu-lhe um copo.- Quanto a isso, há boatos e especulações. - Bebeu. - Consta que se mataram um ao outro. Parece que ninguém sabe porquê, mas houve uma violenta discussão familiar. Dizia-se que Lucian tinha ido a Nova Orleães, por ordem da mãe, buscar o irmão a um dos bordéis que este frequentava. Julian não quis voltar e discutiram, e um deles, provavelmente Julian, puxou de uma faca. Lutaram e ambos ficaram feridos. Julian morreu logo ali. Lucian ainda aguentou cerca de uma semana, depois conseguiu levantar-se da cama, saiu de casa e caiu no tanque, onde se afogou.- Deve ter sido duro para os pais.- O Remy disse que havia uma neta. Do Lucian ou do Julian?- Talvez a tenham posto fora de casa quando Lucian morreu.- Um retrato claro de uma moça que fugiu ou morreu há cem anos.- Vou perguntar a Miss Odette. E à Lui. Vou encontrar-me com ela na segunda-feira.- Eu mantenho-o ocupado.- Para de te preocupares comigo.- Os fantasmas não fazem mal a ninguém. - Beijou-a na testa. - Estão mortos.No domingo descansou e dormiu até tarde. Acordou com o céu a debater-se para clarear e passou mais uma hora na cama com os livros que Effie lhe trouxera.As fotografias formais de Henri e Josephine Manet não lhe causaram o mesmo entusiasmo. Sentiu depois curiosidade. A mulher fora indiscutivelmente bela, muito ao estilo da época, com o acentuado corpete quadrado do vestido de baile bordejado de rosas e o elevado gancho emplumado que lhe adornava o cabelo apanhado no topo.Mas havia uma frieza naquele rosto, uma frieza que para Declan não resultava da rigidez da pose ou da qualidade da impressão. Era algo que se sobrepunha à delicadeza da sua constituição e a tornava intimidante.Já vira aquele rosto no seu sonho. O jovem bonito, com o cabelo louro a esvoaçar, montado num alazão a galopar entre carvalhos ornados de musgo.De qualquer modo, causava-lhe calafrios.Mas, em vez disso, menos de uma hora depois entrou no Et Trois.A jukebox tocava uma melodia animada de Beau Soleil que se misturava com o ruído das conversas.- Olá. A Lui está?- Obrigado.Bateu à porta com a tabuleta privado e enfiou a cabeça. Lui estava sentada a uma escrivaninha, a trabalhar no computador. Tinha o cabelo apanhado atrás e Declan sentiu vontade de lhe mordiscar carinhosamente a nuca.Ela recostou-se e relaxou indolentemente os ombros.- Andava pelas redondezas e pensei vir aqui oferecer-te o almoço. Como prelúdio para a noite de amanhã.- Estou a fazer a contabilidade. Foi então que ela reparou no pequeno saco que ele trazia.- Lá chegaremos ao carro.Guardou o laço e a fita no saco, abriu a parte de cima, fez a caixa deslizar para fora do embrulho e dobrou cuidadosamente o papel.- Gosto de levar o meu tempo. - Abriu a caixa e sentiu os lábios tremerem-lhe, mas manteve uma expressão sóbria enquanto tirava para fora o saleiro e pimenteiro em forma de caranguejos sorridentes. - Bem, bem, não fazem mesmo um par bonito?- Isto faz parte da tua campanha de sedução, cher?- Nada mal. - Passou um dedo por um daqueles feios sorrisos. - Nada mal, realmente.Lui recostou-se e rodou na cadeira enquanto considerava a proposta dele.- Revista-me. De qualquer modo, as minhas pernas são mais compridas, e portanto apanhava-te logo. - Inclinou-se sobre a escrivaninha e franziu o sobrolho. Lui vestia uma saia curta. As pernas dele podiam ser mais compridas, mas não seriam tão bonitas enfiadas em meia-calças. - Mas conseguias um grande avanço com essas meias. Porque é que estás toda aprumada?- Surpreendeste-me.Não conseguia explicar porque é que aquela pergunta o fazia estremecer.- Oh! - Cerrou os lábios. - A minha avó vai ficar desiludida contigo.- Qual é o teu nome de crisma?- Está bem. - Errado disse a sua mente prática, mas levantou-se e pegou na bolsa. - Podes pagar-me o almoço, mas tem que ser rápido. - Debruçou-se, guardou a pasta e desligou o computador.- O meu é Louisa. Angelina Marie Louisa Simone.- Bien sûr. E quero comida italiana. - Deu-lhe o braço. - Oferece-me uma pasta.Lui acenou a alguém, apontou para uma mesa vazia e fizeram-lhe sinal para a ocupar.Fez o seu melhor para parecer absolutamente inocente e quase o conseguiu.- Não. - Recostou-se e cruzou as pernas. - Um encontro é quando se combina um dia e uma hora e me vais buscar a casa. Isto é uma saída casual. Portanto, amanhã é o nosso primeiro encontro. Só para o caso de estares a pensar naquela regra dos três encontros.Os lábios dela curvaram-se.- Lui. - Beijou-lhe os dedos e entregou-lhe uma menu. - É bom ver-te.- Ninguém consegue fazer melhor. - Apertou a mão a Declan e entregou-lhe também uma menu. - A Mama está hoje na cozinha.Declan viu-a então agitar-se na cadeira, erguer o rosto e olhar para Marco como se os dois estivessem sozinhos numa pequena ilha de intimidade. Aquilo era sexual, não havia dúvidas, mas também era... amabilidade, concluiu.- Tens uma filha realmente inteligente.O modo como os seus lábios se mexiam, pontuados pelo minúsculo sinal.- Desculpa, disseste alguma coisa? Estava a olhar para ti e perdi-me.- É bonito também, não é? - perguntou Lui.- Não vais pedir o mesmo. - Lui bateu com o dedo na menu que Declan ainda não consultara. - Senão não tem piada eu provar do teu prato. Experimenta talvez o guisado de mexilhão. A Mama prepara-os como ninguém.- Não, porque tu vais conduzir e eu vou trabalhar.- Trago uma garrafa. - Pensei enfiar-me nas lojas de antiguidades. Ando à procura de um guarda-pratas para a cozinha e de coisas para meter lá dentro. Pensei em fazer uma visita a Miss Odette de regresso. De que é que ela gosta? Quero levar-lhe alguma coisa.- Mas gostava.- Então leva-lhe uma garrafa de vinho. Um bom tinto. Diz-me uma coisa, cher, não usarias a minha avó para chegar até mim, pois não?Era impressionante, mas mais impressionante era a repentina passagem da calmaria para a fúria, e de novo para a calmaria.- Entendeste as coisas ao contrário - disse-lhe ele. - Estou a usar-te para chegar a Miss Odette. É ela a moça dos meus sonhos.- Sim, agiste mal.- Desculpa, fui maldosa. Vou dizer-te uma coisa, Declan: as palavras maldosas têm o hábito de me saírem da boca para fora. Nem sempre me arrependo de as dizer. Não sou uma mulher de modos doces nem de temperamento moderado. Não sou de confiar nos outros. Tenho qualidades, mas são tantas quantos os defeitos. Gosto de ser assim.- Sou de ideias fixas, competitivo e temperamental. Tenho um feitio terrível. Mas demora bastante tempo a manifestar-se e isso é bom para a população em geral. Não tenho de impor a minha vontade nas pequenas coisas, mas quando decido que quero uma coisa, que a quero mesmo, arranjo maneira de a conseguir. E eu quero-te. Portanto, hei-de ter-te.- Estás a dizer isso para me irritar.Lui ficou amuada e pegou no pão.- Visito-a no fim de semana. Tenho que instalar as bancadas da cozinha. Ontem o Remy ajudou-me com os módulos das paredes. Deve ficar pronta daqui a uma semana ou duas.- Sim. - Primeiro tivera que se fortalecer com uma boa golada de Jim Beam, mas voltara lá. - Desta vez não me estatelei no chão, mas tive um grande ataque de pânico, embora não seja dado a ataques de pânico. Descobri mais coisas sobre a história da família Manet, mas faltam peças. Talvez tu mas possas fornecer.- Certo. O que é que...- O que é que sabes acerca dela? - perguntou quando ficaram novamente a sós.- Mama Realdo. É uma deusa na cozinha. Prova a tua - ordenou-lhe, inclinando-se para provar do prato dele.Ela sorriu-lhe, um sorriso longo e demorado que se lhe alojou no estômago. Depois continuou a comer.Partiu um pedaço de pão e mordiscou-o enquanto observava Declan.- Aquele quarto no piso de cima. Era certamente o quarto das crianças. Era aí o quarto da bebê.Uma moça morta na cama de dossel num quarto gélido, pensou Declan, enquanto a pasta se lhe alojava na garganta como cola. Pegou na água com gás e bebeu um longo gole.- A família dela procurou-a por toda a parte. Diz-se que, enquanto foi vivo, o Lucian vasculhou o bayou de uma ponta à outra. Quando não procurava no bayou, andava na cidade a tentar descobrir o rasto dela. Nunca conseguiu, e ele próprio não viveu muito mais tempo. Com a morte dele, e a do irmão gêmeo, que a mãe preferia inquestionavelmente, Miss Josephine mandou a bebê para junto dos pais da Abigail. Ficaste pálido, Declan.Desta vez passou-lhe o pedaço de pão que partira e barrara com manteiga. A avó tinha razão, pensou Lui, ele precisava de comer.Declan pousou rapidamente a mão sobre a dela.- Passamos essas coisas de uns para os outros, de filha para filha. A minha avó deu-mo quando fiz dezesseis anos. Porquê?- Como sabes?O modo como ele disse aquilo, tão neutro, tão frio, agoniou-lhe o estômago.- No quarto das crianças.- A ti? - Passou a mão pelo rosto. - Bem, acho que sei quem é esse meu fantasma. Coitada da Abigail, a perambular pela Mansão, à espera que o Lucian volte para casa.- Talvez seja isso que tenho de descobrir, para que ela possa... tu sabes, repousar em paz.- E porquê tu?- Acho que vais descobrir. És obstinado, cher. Não sei porque é que isso me atrai tanto. Fala com a minha avó, talvez ela saiba mais coisas, ou talvez conheça alguém que saiba.- Agora manda vir dois cappuccinos.- Já não tenho apetite. - Abriu a bolsa e pegou num maço de cigarros.- Compro um maço por mês. - Tirou um cigarro e percorreu-o de alto a baixo com os dedos.Lui colocou o cigarro entre os lábios e acendeu-o com um isqueiro esguio e prateado. Tal como fizera com a primeira garfada de pasta, suspirou quando deu a primeira passa.- Quantos cravas às outras pessoas durante o mês? Os olhos dela cintilaram através do halo de fumo.Passou a ponta do dedo pelas costas da mão dele e, só pelo gozo do gesto, roçou o pé contra a perna dele debaixo da mesa.- A ver vamos.Mas o maior tesouro era o armário de cozinha que encontrara, e que o levara a suplicar e a subornar para que lho entregassem no dia seguinte.- Abigail. - Proferiu o nome, ouviu-o a ecoar pela casa. E aguardou.Continuou ali imóvel ao fundo da grande escadaria e não conseguia explicar como sabia que não estava sozinho. Deu uma olhadela ao relógio da mesinha-de-cabeceira e viu que faltava um minuto para a meia-noite. Mas não podia ser, pensou Declan. Só se deitara depois da uma hora. Perguntou-se se a tempestade teria causado um corte na eletricidade, e acendeu o abajur da mesinha.- Raios! - Esfregou os olhos encandeados e agarrou na garrafa de água que colocara numa mesa ao lado da cama. Levantou-se e foi à varanda contemplar o espetáculo.E o bebê a chorar.Não estava a sonhar, disse para si próprio ao mesmo tempo que estendia a mão para se agarrar à balaustrada úmida. Não estava sonâmbulo. Estava desperto, completamente consciente do que o cercava. E ouvia o bebê a chorar.Esperou que o pânico surgisse: aquele nó no estômago, a súbita falta de ar, o latejar do coração.E o bebê já não chorava.Tinha as palmas das mãos suadas, mas era nervosismo e não medo. Estendeu a mão e rodou a maçaneta. A porta abriu-se com um gemido das dobradiças.Havia um berço com barras torneadas e um outro mais pequeno, de ferro, com roupa de cama branca.Os lábios dela agitavam-se numa cantiga ou historinha que Declan desconhecia. Não conseguia ouvir. Mas ela olhava fixamente para a criança enquanto a amamentava e o seu rosto estava iluminado de amor.Ela ergueu a cabeça em direção à entrada onde ele estava imóvel e, durante um segundo de parar o coração, julgou que o ouvira, que ia falar com ele. Quando ela sorriu e levantou a mão, Declan avançou um passo para ela.Tinha o cabelo louro, e era alto e de constituição esguia. Vestia uma espécie de roupão de um bordeaux carregado. Quando se ajoelhou junto da cadeira de balance, afagou a face do bebê com a ponta do dedo e depois os minúsculos dedinhos que pressionavam o seio dela.- Não. Tu nunca os abandonaste. Hei-de descobrir o que te fizeram, o que vos fizeram aos três.Sobressaltou-se, deu meia volta e deu por si novamente mergulhado na escuridão, depois iluminada pelas explosões dos relâmpagos e pela luz da lanterna. O peso abateu-se-lhe sobre o peito como uma pedra, tirando-lhe o ar. O quarto estava vazio, gelado, e o pânico assomou-lhe à garganta.Quando conseguiu abri-la, rastejou de gatas lá para fora e deitou-se de rosto encostado ao chão, com o coração a ribombar-lhe no peito enquanto a tempestade ribombava sobre a casa.Talvez andasse a perder horas de sono, pensou enquanto se levantava ainda a tremer, mas aprendera algumas coisas.E sabia agora que tinha mais do que um fantasma nas mãos.Se alguma coisa aprendera com a mãe, fora a lidar com o gênero masculino. Era uma tutela invertida. Ganhara o hábito de fazer exatamente o oposto do que Lilibeth fazia e fizera no que respeitava a relacionamentos.Gostava de estar nas mãos do homem certo quando se sentia com disposição para se entregar. E uma mulher satisfeita tendia a proporcionar ao homem uma boa sessão de amor.O problema era que Declan tinha o dom de lhe despertar o apetite sexual durante o tempo todo. E ela não tinha o hábito de se deixar guiar pelas hormônios.Não se lhes podia levar isso a mal.Se acreditasse que ela e Declan avançavam para um simples caso que começava e acabava na excitação mútua, não se teria preocupado. Mas havia nele mais do que isso. E, o que era mais preocupante, também nas reações dela a ele havia uma camada que estava para além da mera luxúria. O que era igualmente complicado e misterioso.Além de que lhe pusera o sangue a ferver, confessou. Tinha uns lábios realmente hábeis.Era melhor ir com calma. Arqueou o pescoço e deixou deslizar pela pele a tampa de cristal do frasco de perfume. Lentamente. Não valia a pena ir até ao fim da estrada se não se apreciasse a viagem.Apercebeu-se de que há muito tempo não desejava um homem assim tão... ardentemente. E como já era demasiado tarde para uma brincadeira rápida e anônima entre os lençóis, seria sensato conhecê-lo um pouco melhor antes de o deixar pensar que conseguira levá-la para a cama.O terno assentava-lhe bem, com muita classe, parecia um oficial, concluiu. Estendeu a mão e passou os dedos pela lapela cinza-pedra.- Desculpa, o meu cérebro deixou de funcionar e só consigo dizer: Uau!- Isto dá resultado contigo, então?- Oh, sim! Resulta mesmo bem! Chamou-o com o dedo. - Chega aqui por um instante. - Desviou-se, enfiou a mão no braço dele e virou-se para um velho espelho de moldura de prata. - Não estamos elegantes? - disse, e o seu reflexo riu-se para o dele. - Aonde me vais levar, cher?- Se não estiver, então afinal este vestido não está a dar resultado. - Saiu para o pequeno alpendre com passos decididos. Estava prestes a estender-lhe a mão quando reparou na comprida limusine branca estacionada junto ao passeio.- Compraste um carro novo, querido?Para um primeiro encontro, pensou enquanto Declan a levava para baixo, aquele prometia. E melhorou ainda mais quando o chofer de farda lhes abriu a porta com uma mesura.- As rosas seriam óbvias - disse ele, pegando numa flor para lha oferecer. - E tu és o oposto disso.- É assim que seduzes as meninas em Boston? Declan serviu-lhe uma taça de champanhe.- Estás a deixar-me maravilhada, Declan. Lui recostou-se e cruzou as pernas num movimento lento e propositado que sabia que captaria a atenção dele.- Não te vou magoar, Lui.Declan optou por um elegante restaurante francês de estilo europeu. Os empregados usavam gravata preta, a luz era matizada e a mesa do canto estava concebida para a intimidade.- Disseram-me que a comida aqui é notável. É uma casa do início do século vinte - continuou. - Estilo neocolonial georgiano, e pertenceu a um artista. Foi uma casa particular até há cerca de trinta anos.- Questões de ambiente, sobretudo em Nova Orleães. E também de cuisine. Dizem que o caneton a l'Orange é uma especialidade da casa.- Desta vez escolhes tu.- O teu francês é bom, pelo menos para fazer os pedidos. Costumas utilizá-lo noutras ocasiões?- Já foste a Paris?Lui inclinou-se para a frente com os braços cruzados na ponta da mesa e o olhar fixo no dele.- É.- A Atuis não. Ainda não. A minha mãe gostava de viajar, e quando eu era criança íamos todos os anos à Europa. E de dois em dois anos à Irlanda. Ainda temos lá família.- É difícil dizer. A costa oeste da Irlanda, as colinas da Toscana, uma esplanada em Paris. Mas, por agora, o meu lugar preferido é aqui mesmo.- É uma cidade portuária da Nova Inglaterra, de grande importância histórica. - Quando ela se riu, Declan recostou-se e absorveu-lhe o riso. - Oh, não era a isso que te referias...- Dois irmãos e uma irmã.- Estás a brincar? Os meus pais eram muito cautelosos na questão do "crescei e multiplicai-vos". A minha mãe tem seis irmãos e o meu pai vem de uma família de oito. Nenhum dos irmãos deles tem menos de cinco filhos. Somos uma legião.- Tenho? Está bem, tenho - admitiu com relutância. - Aqui, a esta simpática distância de segurança, apercebi-me de que gosto realmente da minha família.- Acabará por acontecer. Esperarão todos que a minha mãe volte novamente a falar comigo. Lá em casa tudo gira em volta dela.Perguntou-se se seria alguma espécie de estratagema para fazer com que um homem reparasse em cada uma das suas linhas, curvas e gestos.- Achas que a tua mãe está zangada contigo?- Zangada não. Irritada, aborrecida, desiludida. Se estivesse realmente zangada, estaria aqui a azucrinar-me, a consumir-me até eu ceder à sua terrível vontade.- Sim. Amamo-nos como dois idiotas. Mas ficaria bem mais contente se a minha felicidade encaixasse nas ideias dela.- Porque é que não lhe dizes que isso te magoa?- Se nunca lhe disseres que isso te magoa, como é que queres que ela o saiba?- Oh, não desiludiste nada - retorquiu Lui com uma espécie de simpatia impaciente. - Achas que a tua família te quer ver infeliz e insatisfeito? Casado com uma mulher que não amas, apostado numa carreira que não desejas?- Então acho que devias perguntar-lhes.- Não. E esta noite vamos falar de ti. Eu fico para outra altura. Encontraste o que querias nas lojas de antiguidades?- Como sabes o que pretendes antes de teres o quarto pronto?- Porque é que estás a esforçar-te tanto? A casa não vai fugir dali.- Isso não significa que não possas relaxar um pouco. Quantas horas por semana estás a trabalhar?- Não estou assim tão preocupada contigo. - Mas deixou a mão na dele, deixou-o tomá-la na sua palma dura e calejada. - Mas vem aí o Mardi Gras. Se não tiras tempo para apreciar isso, mais valia teres ficado em Boston. - Olhou para o soufflé duplo que o empregado colocara no centro da mesa. - Oh, meu Deus! Meu Deus, meu Deus! - Inclinou-se para a frente, fechou os olhos e aspirou o aroma. E estava a rir quando os abriu novamente. - E o teu, está onde?- És cheio de surpresas.Inclinava-a para trás e fazia-a rir mesmo quando a pulsação dela disparava. Lui deixava pender a cabeça e o cabelo escorria-lhe pelas costas quando ele aproximava o rosto do seu. Os lábios dele roçavam-lhe no queixo numa mera insinuação dos dentes, depois tornava a erguê-la, envolvia-a, seduzia-a.- Estás bem para mim, Lui. Estamos bem um para o outro. Ela abanou a cabeça e virou-a de modo a que o seu rosto ficasse encostado ao dele.- Vais poder comprová-lo. - Mordiscou-lhe o lóbulo da orelha e sentiu-a estremecer repentinamente. - Quero tocar-te. Sei como a tua pele vai reagir ao meu toque. Sonhei com isso.- Limita-te a dançar comigo. Está a ficar tarde e quero mais uma dança.Era um homem que se dava ao trabalho dos pormenores. Dos pequenos e grandes pormenores. Com a casa que escolhera, com a mulher que queria.- Tu sabes entreter uma menina, cher.- Amanhã à noite trabalho.- Vou pensar nisso. Não estou a ser pudica, Declan. - Sentou-se direita para poder olhar para ele. - Não faz o meu gênero. Estou a ser prudente. Também não posso dizer que isso me preocupe muito, mas, no que te diz respeito, creio que é a coisa mais inteligente a fazer. E eu gosto de agir com inteligência. - Passou-lhe o dedo pelo rosto enquanto a limusine deslizava junto ao passeio em frente à casa dela. - Agora vais acompanhar-me até à porta e dar-me um beijo de boas-noites.O beijo foi mais doce do que Lui esperava. Estava preparada para o desejo, para o desejo persuasivo e insinuante que poderia derrubar a sua resistência. Em vez disso, Declan ofereceu-lhe um final de noite doce e gentil. Com romance, tal como começara.Olhou para ele, completamente perdida.- Deve estar bom tempo. Podemos estender uma manta junto do tanque. Podes trazer o Rufus para fazer de acompanhante. Gosto de o ver a saltar para dentro do tanque.- Está bem. - Afagou-lhe o cabelo. - Vou só esperar até entrares.Declan cerrou as mãos sobre os punhos dela e sentiu-lhe a pulsação acelerada.Enquanto ele galgava as escadas, Lui pegou nas flores e entrou em casa. Se era um erro, não seria o primeiro, pensou. Nem o último.Tivesse ou não sido persuadida, a decisão era dela. Não valia a pena arrepender-se antes de ter sequer começado.Abriu a porta e a voz plangente de Billie Holiday jorrou lá para fora. Declan enfiou as mãos nos bolsos e sorriu-lhe.- Olá novamente, menino bonito. - Lui estendeu a mão e agarrou-lhe na gravata. - Anda aqui. - Puxou-o para dentro, tê-lo-ia arrastado diretamente para o quarto.- Gosto da tua música. - Fê-la dançar com ele. - Quando conseguir deixar de olhar para ti, digo-te se gosto da tua casa.- É um dom natural. - Roçou os lábios pelos cantos da boca dela, por cima do sinalzinho sexy. - As ruas de Boston estão cheias de conquistas minhas. Aquilo estava a pôr o trânsito num caos e foi por isso que a municipalidade me pediu para partir. - Roçou a face pela dela. - Sinto o teu cheiro enquanto durmo. E acordo a desejar-te.- Percebi que trazias complicações assim que entraste no meu bar. - Retesou-se sob a mão que lhe percorria as costas. - Só não sabia até que ponto.- Mmm. Tenho várias possibilidades em mente.- Ah! Referia-me a onde fica o teu quarto.- A porta à esquerda.- Gostava de não me apressar, se não te importares. - Passou a ponta do dedo pela clavícula dela, pela encantadora curva do seio que o vestido desvelava. - Sabes, como se estivesse a desembrulhar um presente.Esperava uma precipitação - mãos rápidas, boca esfomeada - que correspondesse ao desejo implacável que vira no olhar dele. Quando lhe agarrou nas mãos e entrelaçaram os dedos, quando os lábios pousaram sedosos sobre os seus, lembrou-se de como ele controlara impiedosamente a ira no dia anterior.Não estava preparada para o romance. Declan compreendera isso quando ela vira as tulipas. Mais do que surpresa, houvera suspeita nos olhos de Lui. Tal como havia agora enquanto ele abrandava o ritmo e se demorava no sereno prazer de um beijo.Os lábios dela estavam quentes e desejosos. Não sentia qualquer dificuldade em unir os seus aos dela, em vogar naquele indolente deslizar de línguas enquanto os corpos se embalavam juntos como se ainda estivessem a dançar.- Tens boas mãos, cher, e lábios muito sexy. - Observava-o agora, tal como ele a observava, e desapertou-lhe o nó da gravata. - Vamos lá ver o resto de ti.E quando lhe desabotoou a camisa e lhe passou as mãos pelo peito com um pequeno murmúrio de aprovação, sentiu o pesado bater do coração dele sob as suas mãos.- Ex-advogado. - Era como morrer, pensou, morrer centímetro a centímetro enquanto aqueles dedos compridos e esguios de unhas vermelho-vivas o percorriam. Lui beliscou-lhe levemente os bícepes e lambeu os lábios.Estavam novamente a dançar a mais velha das danças e, de certo modo, era ela quem conduzia. Os músculos da barriga dele estremeceram quando Lui retirou o cinto com brusquidão e o atirou para cima do ombro.Esperá-lo-ia.- Parece que não estou a conseguir acompanhar-te - disse em tom de brincadeira. - E já que não paro de imaginar o que tens debaixo desse vestido, gostava de descobrir se as minhas especulações se aproximam da realidade.Usava renda preta.O torso esguio, os quadris gentilmente arredondados, com mais rendas a descerem-lhe pelas pernas. Pernas bem torneadas, com meias de um v negro profundo e saltos altos assassinos.- É o meu dragão. Está de guarda aos portões. - Lui tremia agora, e não estava preparada para tremer. - Muitos homens pensam que conseguem passar por ele. E acabam por se queimar.- Vamos brincar com o fogo.Lui arqueou-se, enclavinhou os braços em volta do pescoço dele e abandonou-se. O mergulho na impetuosidade deixou-a deslumbrada, brutalmente excitada e pronta para ser tomada. Agora sentia a avidez dele, e a sua, que crescia para se lhe unir.Lui ficou de respiração suspensa. O seu corpo retesou-se.- Quando estiver dentro de ti, não conseguirás pensar em mais nada. - Desprendeu a outra liga. - Mas primeiro preciso de te tocar, de te tocar como tenho sonhado tocar-te. - Roçou os lábios pelo ombro dela até afastar a alça do soutien. - Angelina. - Virou o rosto dela para si, deixou que os seus dedos se lhe enterrassem no cabelo e puxou-lhe a cabeça para trás. - Esta noite és minha.- Eu pertenço a mim mesma. Levantou-a e deitou-a na cama.Cerrou a boca sobre a dela, para lhe deter as palavras, para lhe intoxicar o cérebro. Lui virou a cabeça para inspirar, para tentar recompor-se. Mas os lábios dele foram descendo até ao seio, até à carne, até aos rendilhados. Os longos e úmidos apertos na barriga libertaram-lhe os músculos, derreteram-lhe a vontade.Declan sentiu-a entregar-se, sentiu-a a ceder. Ouviu-o no lento e profundo gemido de prazer e aceitação. O corpo dela era um tesouro de pele perfumada e curvas femininas. Alimentou-se com aquele sabor em sorvos lentos e golfadas demoradas. Depois libertou os seios dela nas suas mãos, na sua boca. Sentia o sangue a enfurecer-se como uma tempestade de fogo, mas deixou-se arder e torturou-os a ambos.Comprimiu o rosto contra a barriga dela e fê-la subir aos céus. O corpo de Lui era uma massa de dores, de alegrias, com a ponta aguçada das sensações a atravessá-la como um relâmpago de luz até explodir dentro dela, fazendo-a estremecer descontroladamente.- Agora. Quero-te. - Sentiu-o estremecer, no preciso momento em que ela própria estremeceu. Viu-se a si mesma nos olhos dele enquanto Declan se erguia sobre ela. Declan agarrou-se à última réstia de controle e, quando as pernas dela o envolveram, penetrou-a lentamente, muito lentamente. Penetrou-a ainda mais fundo quando ela se ergueu para ele. Deixou-se ficar assim, de respiração presa na garganta, e tudo o que ele era perdeu-se dentro dela.Os lábios uniram-se e Declan sentiu os dela curvarem-se contra os seus antes de erguer a cabeça e a ver sorrir.Lui retesou-se debaixo dele e inclinou a cabeça para trás até expor a linha da garganta aos seus lábios. Apertou-se em volta dele, estremeceu, estremeceu. Declan enterrou novamente o rosto no cabelo dela e desta vez também se deixou voar.- Vais-me deixar ficar? Ou apanho um táxi? Lui olhava fixamente para as sombras. Acordou ao romper do dia. Lui aconchegara-se nele durante o sono, mas reparou que ela mantinha o braço entre eles e um punho cerrado sobre o coração. Como se estivesse a protegê-lo, pensou. A pequena chave prateada pendia contra a mão.Um sobressalto e um choque para um homem que acreditava não ser capaz de amar. A não ser a família ou os amigos. A sua crise pessoal por causa da Jessica - que todos, incluindo a própria Jessica, afirmavam que era perfeita para ele - convencera-o de que desperdiçara a única oportunidade de um relacionamento duradouro e feliz com uma mulher.E agora olhava para a mulher que era a resposta. E não achava que ela estivesse disposta a ouvir a pergunta.Pensou em acordá-la e lembrar-lhe como se davam bem na cama. Não conseguia pensar em melhor maneira de começar o dia, sobretudo porque ela era quente e macia e se enrolava nele.Afastou-se dela, não sem arrependimento, e saiu da cama. Ela agitou-se e suspirou no sono, enrolando-se depois no calor que ele deixara.Na sua opinião, podia descobrir-se muito sobre uma pessoa através do seu banheiro. O dela estava ao mesmo tempo rigorosamente limpo e descuidado. Grossas toalhas de tom verde-floresta combinavam com os apliques brancos e acentuavam o padrão de pequenos diamantes espalhado pelo lajedo.Havia mais garrafas, reflexos de jóias e caixas fechadas com óleos fragrantes, loções e sais de banho. Reparou que ela gostava de sabonetes requintados e os guardava num elegante vaso.Quando saiu do banheiro ela ainda dormia. Estava agora estendida sobre os cobertores e o sol matinal incidia oblíquo sobre as costas esguias e desnudadas. Afastou firmemente da cabeça a ideia de voltar a enfiar-se na cama com ela e concentrou-se antes em descobrir café.Compreendeu porque é que ela deixara a casa assim: para que a sua história e caráter sobrevivessem.A meio da sala havia um sofá de costas altas de tom azul real, coberto com almofadas, como as mulheres cobrem misteriosamente os sofás e as camas.Foi à cozinha e deu por si a sorrir. Não era frequente deparar com fotografias de nus - masculino e feminino - a preto e branco nas paredes de uma cozinha.Fechou a porta para que o som da moagem dos grãos não chegasse ao quarto. E, enquanto o café fervia, pôs-se à janela da cozinha a observar aquela zona de Nova Orleães.Lui vestia um roupão vermelho curto e tinha os olhos pesados de sono, bem como um sorriso de preguiça.- Não ouvi. - Respirou profundamente. - Mas cheirei os resultados. Estás a preparar o café da manhã, cher?- Oh, pensei que ontem à noite já tinha provado o teu melhor. - Continuou a sorrir e avançou lentamente para ele, rodeando-lhe o pescoço com os braços. - Dá-me outro - disse, erguendo a boca para a dele.Depois vira a camisa dele, o casaco, os sapatos, e ficara deleitada. Demasiado deleitada. Quando um homem tinha assim tanto poder, era altura de recuperar algum. - Porque é que não te limitaste a virar-te de lado e a acordar-me, doçura?Ela riu e afastou-se.- Queres que me ponha aqui a suplicar-te de pé, de joelhos ou completamente deitado? - Obrigado. Já que és boa na cozinha, não vamos precisar de contratar uma cozinheira quando casarmos e criarmos os nossos seis filhos.- Sinto-me obrigado a manter a tradição dos Sullivan-Fitzgerald. Gosto mesmo da tua arte na cozinha. Não é um local habitual para nus.Pegou numa tigela azul. Declan viu-a partir um ovo na borda e fazer a clara e a gema deslizar para dentro, tudo com uma única mão.- E se fosses lá dentro pôr música? Isto não vai demorar. Comeram sentados a uma pequena mesinha articulada que ela enfiara debaixo de uma das janelas da sala de estar.- Com a minha avó. Também tentou ensinar-me a costurar, mas para isso não tive grande queda.- Gosto de cozinhar quando desejo. Como modo de vida, fazer isso a toda a hora...- Queria o meu próprio negócio. Quando se trabalha para alguém, dizem: faz isto, não faças isso, anda aqui, vai ali. Não condiz comigo. Portanto, frequentei a escola comercial e pensei: que negócio pretendo? Não quero vender lembranças, não quero uma loja de lembranças, não quero vender roupa. Além de que tudo isso se vende em Nova Orleães, mas o que é que dá ainda mais dinheiro? O prazer. Um pecadilho inofensivo e diversão, é isso o que as pessoas vêm procurar à Big Easy (Nome informal com que se designa Nova Orleães, segundo o título homónimo do romance The Big Easy, 1970, de James Conaway. N.T.). Portanto... Et Trois.- Ora bem. - Já tinha comido a sua torrada, e espetou o garfo numa das quatro que empilhara no prato dele. - Há cinco anos.- Ei, como sabes que idade tenho?– Vou ter que lhe bater por causa disso. Já devia saber que com a idade de uma mulher não se brinca. Com que mais brincou ele?- Isto está mesmo fantástico. O que é que lhe puseste? Ela não disse nada durante uns dez segundos.Incomodado consigo mesmo e com o amigo, Declan respondeu:- Sorte a dele eu saber isso e sentir o mesmo. Lembras-te da primeira moça com quem estiveste no banco de trás, Declan? Lembras-te dela com afeição?Lui apreciou que ele tivesse dito prontamente o nome da moça, mesmo que o tivesse inventado.- Trocou-me por um jogador de futebol, um defesa esquerdo. Meu Deus, um jogador de futebol sem pescoço e com o QI de um lápis. Ainda continuo zangado com ela. Mas, voltando a ti... e a propósito, tens mesmo jeito para te esquivares a perguntas pessoais, mas eu fui advogado. De qualquer modo, como conseguiste ter êxito? Aos vinte e três anos é-se muito jovem para montar um negócio, um negócio que se aguentou quando a maior parte vai abaixo num espaço de três anos.- Que diferença é que isso faz, senhor advogado?- É por isso que tenho andado tão ocupada. Mas prefiro a tua versão. A minha é comparativamente mais aborrecida. Trabalhava depois das aulas e durante o Verão para poupar dinheiro. Sou boa a poupar quando é preciso. Depois trabalhei a servir bebidas num bar, e frequentei uma escola comercial em part-time. O meu avô morreu antes de eu fazer vinte e dois anos. Caiu de uma escada e partiu o pescoço. - Ficou de olhos marejados ao dizer aquilo. - Acho que ainda continuo zangada com ele.- Amei-o mais do que a qualquer homem no mundo. O Pete Simone, com as suas sonoras gargalhadas e as suas mãos enormes. Tocava rabeca e andava sempre com um lenço vermelho. Sempre. Bem... - Pestanejou para afastar as lágrimas. - Tinha um seguro de vida, bem maior do que seria de esperar. Metade para mim, metade para a minha avó. E ela obrigou-me a ficar com tudo. Não se consegue fazê-la mudar de ideias quando mete uma coisa na cabeça. De modo que investi o dinheiro e um ano depois abri o meu negócio.- Sim, tenho. - Levantou-se e pegou nos pratos. - É melhor vestires-te, cher, se queres carona até casa.Vê-lo chegar a casa às nove da manhã com o terno amarrotado fez Big Frank esboçar um sorriso e piscar-lhe o olho quando carregava três cepos para uma pilha a arder.Tropecei em alguma coisa, pensou Declan, afagando o coração enquanto entrava em casa para começar a trabalhar.As celebrações e os negócios do Mardi Gras estavam próximos, disse-lhe ela. Sendo assim, não tinha tempo para sair e brincar.Remy apareceu uma tarde vestindo Hugo Boss e com um colar de contas douradas que tirou e pôs ao pescoço de Declan.- Pensei juntar-me à loucura geral no fim de semana. - Nesta zona não. Anda dar uma vista de olhos. - Levou-o até à salinha da entrada, onde Tibald estava empoleirado num escadote a retocar pacientemente os adornos de gesso do teto.- É mesmo. A Effie tem passado bem?- A melhor coisa que um homem tem a fazer nesses casos é dizer que sim com a cabeça a tudo o que ela achar que é melhor e limitar-se a aparecer no dia marcado.Declan pegou numa garrafa de água semi cheia.- Até ela acalmar. - Remy entornou os comprimidos e a água e pôs-se a pensar enquanto contemplava o oleado do chão. - Foste tu que pintaste as paredes, Dec, ou contrataste alguém?- És uma típica mistura de Bob Vila e Martha Stewart. De que vais ocupar-te a seguir?- Com certeza. - Remy passou-lhe os comprimidos e a água. - Estás com problemas de trabalho ou com problemas de mulheres?- Ouvi dizer que uma noite destas levaste a nossa Lui a passear numa enorme limusine branca - disse Remy enquanto se dirigiam para as traseiras. - Que classe.- Andas com ideias de lhe dar romance, é um bom começo.Remy engasgou-se e cuspiu a água.- Meu Deus, Dec! Meu Deus, tu e a Lui vão casar?- Isso é que é andar depressa.- Dec, acho que precisas de algo mais forte que Tylenol.- Talvez seja eu que precise de algo mais forte.- Vou preparar uma bebida para os dois.Remy trouxe dois copos e deu um longo sorvo enquanto observava o rosto do amigo.- Eu sei que sim. - Achas que perdi a cabeça.- Agradeço que me tenhas explicado isso, papá.- A Lui é uma mulher muito sexy.- Exsuda feromônios, ou lá o que raio é, da mesma forma que as outras mulheres exalam ao perfume com que se borrifam para excitar um sujeito. Ela limita-se a respirar e excita-nos logo.- Exatamente. - Remy pousou uma mão compreensiva no ombro de Declan. - Nenhum homem te reprovaria por isso. Além do mais, filho, a vossa relação só tem uns mesitos e, conhecendo eu o modo como costumas carregar a culpa como se fosse a tua arca do tesouro, estou em crer que não desimpediste regularmente a canalização desde que rompeste com a Jennifer.- Oh, valha-te Deus. - Remy deu outro valente sorvo no whiskey. - Dec, ainda nem há um mês aqui estás.- Aqui com dois advogados a debater o assunto, ficamos aqui até à semana que vem. - Por amor de Deus, Dec.- Se queres a Lui, então que assim seja. Só que, Dec, independentemente do que sintas, isso não te garante que ela sinta o mesmo.Agitou o whiskey que ainda não começara a beber.Nessa noite ouviu um choro. O soluçar áspero e dilacerado de um homem. Declan agitou-se no sono, acabrunhado de sofrimento, incapaz de fazer parar aquilo, incapaz de dar ou procurar consolo. Bayou Rouse, Março de 1900Mas viera, uma e outra vez, para perambular pelo pântano como se, de algum modo, pudesse deparar-se com ela a passear pela curva do rio onde as flores do pântano desabrochavam.E tudo estaria novamente bem.Temia estar a enlouquecer, o sofrimento escurecia-lhe a mente tal como a noite escurecia o dia. De que outro modo podia ele explicar que conseguia ouvi-la a sussurrar-lhe durante a noite? Que mais podia ele fazer senão abafar aquele som, aquela dor?Ela desaparecera. A sua Abby fugira para longe dele, como aquela ave fantasma. Era o que toda a gente dizia. A família, os amigos. Ouvira os criados sussurrar que Abigail Rouse fugira com um zé-ninguém e abandonara o marido e a filha ilegítima.Ela abandonara-o a ele e à criança.Deixara de ir ao quarto das crianças. Odiava-se por isso, mas o mero ato de subir as escadas até ao terceiro piso era como afogar-se num mar de desespero.Não. Ali, sob a tênue luz do crepúsculo, com a noite a ganhar vida à sua volta, Lucian cobriu o rosto com as mãos. Não, não conseguia, não queria acreditar nisso. E mesmo que isso fosse mentira...- Lucian!Abby corria para ele, afastava as frondes de um salgueiro-chorão, com o cabelo solto pelos ombros em anéis carregados como a noite. O seu coração, amortalhado em sofrimento, despertou com um sobressalto selvagem.Claudine agarrou-lhe nas mãos. O medo deixara-lhe os dedos frios. Vira o que passara pelos olhos dele: a morte.- Ela abandonou-me.- Então onde é que ela está? - Libertou a raiva que vivia debaixo do torpor do sofrimento. Agarrou nos braços de Claudine e levantou-a do chão. Parte dele, uma parte escura e secreta, sentia vontade de lhe esmurrar o rosto, de o apagar por causa da sua ligação a Abigail e ao seu próprio abismo de desespero. - Onde é que ela está?Afastou-a para o lado e cambaleou até se apoiar contra o tronco de um carvalho.- Estou a dizer-te. Sei-o. Sinto-o. Tenho tido sonhos.- Lucian, tens que me ouvir! Eu estava lá naquela noite. Ela veio ao quarto ver a criança. Conheço a Abby desde que eramos bebês. Nela só havia amor por ti e pela Marie Rose. Eu não devia ter saído da Mansão naquela noite. - Claudine cruzou as mãos sobre o peito, como se mantivesse unidas as duas metades do seu coração despedaçado. - Passarei o resto da minha vida a pedir-lhe perdão por não ter lá estado.- Tenho que aceitar.Lucian voltou-se repentinamente, de rosto tão contorcido de fúria que Claudine se afastou.- Não sei o que aconteceu. Mas sei que a Abby não fugiu. A Mama Rouse foi ter com a Evangeline.- Disparates vudu.- Então fui eu que a matei? Cheguei a casa à noite e assassinei a minha mulher?O calafrio lancetou-o de cima a baixo, provocando-lhe uma agonia crua no estômago e um rugido abominável na cabeça.- Leva isto, guarda-o para a criança. - Já não conseguia chamá-la pelo nome. - Deve ficar com alguma coisa que tenha pertencido à mãe.- Estás a matá-la uma segunda vez não acreditando nela.- Tu sabes! - gritou Claudine nas costas dele. - Tu sabes que ela era fiel. Mansão Manet, Fevereiro de 2002Os jardins, que um mês antes eram umas tristes ruínas, revelavam agora sinais do seu antigo esplendor. As sufocantes trepadeiras, as ervas daninhas invasoras, os galhos secos e os tijolos partidos tinham sido removidos, revelando assim, centímetro a centímetro, as veredas sinuosas, os arbustos, os bulbos e as plantas que teimosamente se tinham recusado a morrer.Tinha magnólias, pervinca, camélias e jasmim. Anotara tudo o que os Frank recitavam nas suas vozes indolentes. Quando descrevera a trepadeira que imaginava nas colunas dos cantos, eles disseram-lhe que o que ele queria eram campainhas.Achava que o seu corpo estava a habituar-se às cinco ou seis horas de sono perturbado que conseguia dormir por noite. Ou talvez fosse depois uma energia tensa que o alimentava.Se era Abigail quem assombrava a casa, então era sem dúvida uma mulher caprichosa. Havia alturas em que se sentia extremamente confortável, completamente em paz. E outras em que um medo gélido lhe eriçava a nuca. Alturas em que sentia nas entranhas que o observavam.Bem, era mulher para ti, pensou enquanto beberricava o café matinal. Num momento sorrisos, noutro bofetadas.Não pensou duas vezes: pousou o café e dirigiu-se para as escadas da varanda.Perguntou-se o que haveria naquele lugar e naquele homem que a fascinava tanto. Havia outras casas grandiosas e antigas ao longo de River Road, em direção a Baton Rouge.Mas fora sempre aquela casa que lhe capturara o interesse e a imaginação. Agora parecia que aquele homem que galgava a maciça escadaria de pedra enfiado numa camisa gasta e numas calças jeans ainda mais gastas, de rosto áspero da barba por fazer, conseguia provocar-lhe idêntico efeito.Construíra a sua vida tijolo após tijolo, raios! E gostava dela tal como era. Por amável que um homem fosse, iria, na melhor das hipóteses, alterar esse padrão. Mantivera-se afastada dele desde a noite em que o levara para a sua cama. Só para provar que conseguia.Rufus saltou, passou a língua pelo rosto de Declan e deixou-se cair, de barriga para cima, para uma festinha.Também seduz os cães, pensou quando Declan se acocorou para fazer festinhas e brincar. Aquele homem tinha verdadeiramente demasiado encanto. Fosse para quem fosse, mas sobretudo para ela.- Os Boston Sox podiam contratar-vos.Lui agarrou-se à camisa dele, não para se equilibrar, embora os seus pés balançassem vários centímetros acima do chão. Mas porque debaixo da camisa estava aquele homem todo músculos e desejo.- Bom dia - disse Declan, baixando-a. - Tá-se?- Se soubesse que vinhas ter comigo esta manhã, teria tratado disso.- Ela está bem? Disseste que passavas lá a noite quando ela não se sentia bem.- Achas que ela gostaria que eu passasse lá mais tarde?- Disseste que ela tem uma irmã. Tem mais alguma família?- Filhos?- Sou tudo o que lhe resta. Foste à cidade ver os festejos?- Ainda não. Pensei ir esta noite. Vais trabalhar?- Andas a deitar-te tarde. Pareces um pouco cansada.- Tu também és uma ave madrugadora, não és, cher?- Tenho andado ocupada.Lui franziu o sobrolho, formando uma linha longa e tênue de aborrecimento.- Não disse o contrário. Mas estou a irritar-te. Não me importo, Lui. - Estendeu a mão para lhe tocar no cabelo e ficou contente e deliciado por ver a ira escurecer-lhe o rosto. - Mas já me importo se pensas que me contento com uma única noite contigo.- E importava-me - continuou ele num tom ameno, embora a mão que lhe agarrou o braço antes que ela pudesse dar meia-volta se mostrasse firme. - Importava-me muito se pensasses que quero depois enfiar-me contigo entre os lençóis.- Não me conheces, Lui, sim? - Havia aço nos seus dedos, no seu tom. - Acalma-te. Provocar uma discussão também não vai fazer com que te livres de mim. Esta semana quiseste manter a tua distância, muito bem. Sou um homem paciente, Lui, mas não sou nenhum capacho. Não penses que vais passar por cima de mim ao saíres porta fora.Não se importava com os resultados. Em vez disso, afagou-lhe a face.Ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o na face.Houve algo no modo como ele usou o nome completo dela que a fez retesar-se. Era uma espécie de aviso.- E foi o quê?- Um interlúdio muito satisfatório para ambos. Porque é que não deixamos as coisas como estão e somos novamente amigos?Puxou-a para si e levantou-a no ar. E apoderou-se da boca dela. Desta vez sem paciência, sem razão, sem aquele encantador unir de lábios. Era como uma marca a ferro quente, e ambos o sabiam.Lui não conseguiu resistir. Não quando aquele ataque de emoções a atingiu em cheio, libertando necessidades que ela esperava manter fechadas. Com um juramento abafado, envolveu-lhe o pescoço e correspondeu à ferocidade do beijo.- Ainda temos coisas para resolver. - Declan passou as mãos possessivas pelos braços dela.- Passo por lá esta noite e levo-te a casa depois de fechares. Na quarta-feira, quando as coisas acalmarem, gostava que viesses até aqui. Jantavamos juntos.- Cozinhas tu?- Vou surpreender-te.Estava irritada consigo própria. Não depois por ter perdido a batalha, mas pela covardia. Aliás, fora a covardia que a levara a começar a discussão.Lui deteve-se na curva daquilo que, tanto quanto se lembrava, sempre fora conhecido como o Bayou Rouse. Aquele lugar misterioso, com as suas águas lentas e penumbrosas, com os seus ossos de cipreste e odores espessos, era tanto o seu mundo como as ruas sinuosas e o ritmo animado do Bairro Francês.Era o lar do seu sangue, tal como o Bairro Francês se tornara no lar da sua ambição. Não regressava somente quando a avó se sentia triste, mas também quando ela própria se sentia assim.Havia muitas coisas debaixo da superfície de Declan Fitzgerald. Teria preferido que ele fosse um menino rico e mimado, detentor de fundos fiduciários e com vontade de se divertir. Teria gostado dele assim e tê-lo-ia afastado quando ambos se cansassem um do outro.Como amante, preocupava-a terrivelmente.Brincou com a chave que trazia ao pescoço e regressou à casa do bayou. As coisas que seguissem o seu curso, disse para si própria. As coisas seguiam sempre o seu curso. - Cheira-me a pão - disse Lui.- Tem saúde que chegue.Lui avançou e sentou-se no degrau ao lado da horta.- O aspecto com que uma mulher fica quando um homem lhe pôs as mãos em cima e não acabou o trabalho.Beliscou as folhas de agulha e passou-as em frente do nariz pelo simples prazer do aroma.- Não é o sexo que governa a minha vida, avó.Aquele tratamento afetuoso da infância - pintainho - fez Lui sorrir.- E não tens de ficar sozinha se encontrares alguém que desperte em ti a faísca certa.- Não creio que ele ande à procura de faíscas. Acho que anda à procura da fogueira toda. - Inclinou-se para trás, apoiada nos cotovelos, e sacudiu o cabelo. - Vivi este tempo todo sem me queimar, e vou continuar assim. - Que acontece se me deixar apaixonar por ele? - perguntou Lui. - E se ficar farto das águas do pântano e voltar a correr para Boston? Ou se se fartar de dançar comigo e arranjar outra companhia?- Que acontece se chover até inundar tudo e nos arrastar para o Mississipi? Por amor de Deus, Lui, não podes pensar assim. Vais acabar por murchar.- Não sabes, não. - Odette levantou-lhe o rosto. - Se eles não se tivessem amado, se Abby Rouse e Lucian Manet não se tivessem amado e dado vida a uma criança, tu e eu não estaríamos aqui.- Oh, chère. - A exasperação e o afeto matizavam a voz de Odette. - Não é a Abby Rouse que assombra aquela a casa.- Espero que seja isso que aquele rapaz veio aqui descobrir. Pode ser que estejas aqui para o ajudar. - Cheirou o ar. - O pão está pronto - disse um momento antes de soar o alarme do forno. - Queres levar-lho à Mansão?- Não.Declan abrira todas as portas e janelas do rés-do-chão. A aparelhagem berrava o blues ritmado de Ry Cooder. Trabalhava ao ritmo da batida enquanto espalhava a primeira e fina camada de verniz no recém-lixado soalho da salinha da entrada.A madrugada rosada não cumprira a sua promessa.Ora explodia toda irada, ora se derretia numa provocação sexy, tentando transformar a noite que haviam passado juntos num encontro fortuito.- Cher, para quê ficares assim tão chateado? - murmurou. - Ainda não viste o que é estar chateado, querida. Mas vais ver antes de isto acabar.Voltou-se e verteu um pouco de verniz. Quase caiu de joelhos quando viu Odette sorrir-lhe da entrada.- Não é de estranhar. - Com o privilégio que a idade lhe conferia, inclinou-se e baixou o volume da aparelhagem portátil quando Ry Cooder mudava de ritmo e lamentava as lágrimas derramadas. - Também gosto do Ry Cooder, mas não tão barulhento. Vim trazer-lhe um pão que cozi esta manhã. Pode acabar o que estava a fazer. Eu levo isto para a cozinha.- Não pare por minha causa, cher.- Acho que vou fazer isso mesmo. Está um tempo um pouco abafado, e nem sequer é Março. Não tenha pressa.- A minha mãe tinha um velho ferro de fazer panquecas igual a este. E ainda tenho um espremedor como o que tem ali. Como se chamam estes pratos? Já não me lembro.- Isso. Sempre me soou a festa. Pagou muito por aquelas velhas jarras de cantaria, cher?Odette soltou um estalido com a língua perante aquela maravilha.- Ficará tudo composto quando vierem as bancadas e eu acabar os painéis para os eletrodomésticos.- Já comprei alguma mobília para lá colocar. Um bocado por impulso. Não quer sentar-se, Miss Odette?Sentou-se a uma mesa que ele ali colocara e tirou do saco uma velha moldura de couro acastanhado.Declan pegou na fotografia e olhou fixamente para a mulher que lhe assombrava os sonhos. Poderia ser a Lui, pensou, mas havia demasiada suavidade naquele rosto, embora algo indistinta. As faces eram mais redondas, os olhos de pálpebras compridas eram demasiado inocentes e mais tímidos.Era uma moça, ao passo que Lui era uma mulher, refletiu.- A minha avó achava que ela deveria ter aí uns dezoito anos quando essa foto foi tirada. Não devia ter mais, já que não chegou a assistir ao décimo nono aniversário.- Parece que o seu fantasma também está furioso.- Mas você não tem aspecto de quem vá a lado nenhum. Havia uma espécie de loucura em torno do Mardi Gras. A música, as máscaras, a confusão, tudo se amalgamava numa desesperada celebração de tom jovialmente inocente e cruamente sexual. Declan duvidava que a maior parte dos turistas vindos para os festejos compreendessem ou se preocupassem com o objetivo da ocasião. Procuravam depois empanturrar-se de prazeres antes dos quarenta dias de jejum.Decidiu que a visão de seios desnudados, que um par de estudantes universitárias exibiam ao cumprirem a tradição de levantar as blusas, seria menos alarmante após algumas bebidas.- Obrigado - conseguiu dizer quando se libertou.Declan não queria deixar correr os bons tempos quando isso envolvia línguas desconhecidas a afundarem-se na sua boca, e escapou-se pelo meio da multidão.As portas do Et Trois estavam escancaradas, o barulho jorrava lá de dentro e misturava-se com o ruído das ruas. Teve de seguir um caminho sinuoso pelo meio dos foliões que juncavam o passeio e dos que se apinhavam lá dentro até alcançar um lugar de pé junto do balcão.Lui empurrava uma cerveja de pressão com uma mão e com a outra servia um shot de bourbon. Os outros dois empregados estavam igualmente atarefados, e havia mais quatro empregadas a servir às mesas.- Uma cerveja e um shot - disse ela, enfiando os copos nas mãos que esperavam as bebidas. Quando avistou Declan, ergueu o dedo e serviu mais três clientes enquanto se aproximava dele.- Quero-te a ti. Isto está apinhado - acrescentou. - Aqui e lá fora no passeio.- Posso ajudar-te?- Em quê?Alguém se aproximou abrindo caminho às cotoveladas para pedir aos berros uma tequila sunrise e uma Dixie de pressão.- Sabes atender à mesa, menino universitário?- A empregada ruiva é a Marcella. - Apontou com a cabeça para a confusão geral. - Diz-lhe que foste contratado. Ela mostra-te o que fazer.O seu traseiro fora beliscado, apalpado e cobiçado. Que havia no traseiro dos homens para atrair tanto as mulheres? Alguém devia estudar o assunto.Por volta das duas da manhã, já nada o espantava na capacidade do corpo humano para o vício, e fora obrigado a rever qualquer percepção anterior sobre as capacidades e resistência requeridas na atividade de restauração.Às três da manhã a casa continuava a fervilhar, e concluiu que Lui não andava a evitá-lo. Ou, se andava, pelo menos tinha uma boa desculpa.- Quando as pessoas se forem embora. - Estava a servir cerveja de garrafa em copos de plástico para levar.Lui sorriu, mas foi um sorriso rápido e distraído enquanto observava a multidão.- Fico.Ela estava a conseguir lidar com eles, mas eram insistentes.- Raios, não! - Um deles, que usava uma T-shirt da Universidade do Michigan debaixo de uma avalancha de colares de contas, inclinou-se para a frente. Bastante para a frente. - Temos alojamento lá em cima na Royal. Porque é que não vens para lá comigo, querida? Despes-te e enfias-te no jacuzzi.- Eu dou-te o que medir - disse ele, agarrando nos testículos enquanto os dois companheiros uivavam e ululavam.- Estás a fazer-te à minha menina. - Sentiu-a retesar-se sob a sua mão e viu o carrancudo desafio nos olhos do rapaz do Michigan.Para o provar, o rapaz do Michigan mostrou os dentes.A voz de Declan soou com bonomia.- Consigo ver bem, ó cara de cu!Declan encostou-se ao balcão com ar de conversador e apontou com a cabeça para a T-shirt.Atônito e embriagado, o rapaz do Michigan olhou-o a pestanejar.- Curiosidade. - Puxou uma taça de aperitivos e pegou num. - Tenho uma prima que dá aulas no departamento de Inglês, a Eileen Brennan. Talvez a conheças.- Ela é rija, sempre me assustou. Quando estiverem com ela, digam-lhe que o Dec mandou cumprimentos. Aqui têm a cerveja.- Soubeste lidar bem com aqueles palermas universitários, cher. Tão bem que nem me vou zangar pelo comentário de eu ser a tua "menina".Havia bastantes hipóteses de ele ter ouvido falar dela.- O menino nem vinte e dois anos tinha.- Não luto com crianças. Além do mais, odeio realmente levar com um murro na cara, magoa sempre. - Levantou-lhe o queixo. Lui parecia exausta. - Tiveste uma noite longa, não foi?Mais do que devias, pensou ela. Ele entrara de imediato no ritmo da casa e trabalhara. Encantara os clientes, tolerara os apalpões e evitara uma situação potencialmente feia usando a sensatez em vez do ego.Tirou um envelope do bolso de trás.- O teu pagamento.- Trabalhaste, tenho que te pagar. Não aceito burla. - Enfiou-lhe o envelope nas mãos. - Sem recibo. Não quero fazer a papelada.- Ora bem, acho que é melhor dar-te uma boa gorjeta. - Rodeou-lhe o pescoço com os braços e roçou o corpo no dele. Manteve os olhos abertos, mordiscou-lhe o lábio e avançou centímetro a centímetro até o beijar.- Tens que descansar os pés.Declan roçou-lhe o pescoço, a orelha, e novamente a boca enquanto a levava para o quarto.O desejo era um lento fervilhar sob a glória cintilante de já não estar apoiada nos pés doridos.Pousou-a na cama e quase a sentiu suspirar de alívio por estar na posição horizontal. Tirou-lhe um dos sapatos.Cansado ou não, o rosto dela tornou-se malandro.- Melhor do que isso. - Passou um dedo pelo peito do pé dela. - Uma massagem aos pés.Declan sorriu, flexionou-lhe o pé e massageou-lhe os dedos e viu os olhos dela enevoarem-se de prazer.- Descontrai-te e aprecia. O Tratamento de Reflexologia Fitzgerald é famoso no mundo inteiro. Também oferecemos massagem corporal completa.A pior das dores começou a dissipar-se. Quando ele começou a massagear-lhe as canelas, os músculos exaustos estremeceram numa combinação de dor e prazer.Lui devaneava e esforçou-se por se concentrar no som da voz dele.- Que preguiçosa. - Deu-lhe um beijo distraído no joelho. - Pronto, vamos lá tirar-te a roupa.- Que mais estás a pensar massagear, cher?Depois deslizou até à barriga. Ela estremeceu e gemeu e depois derreteu-se completamente quando ele lhe massajou o pescoço.- Oh, meu Deus! - Se tivesse um único desejo naquele momento, seria que ele continuasse a fazer aquilo durante uma semana inteira. - Podias ganhar bem a vida a fazer isto.- Adoro brincar de médico.A próxima coisa de que teve consciência foi do sol a jorrar pelas janelas. Uma olhadela ensonada ao relógio da mesinha de cabeceira mostrou-lhe que eram dez e vinte. E tinham-na enfiado na cama tão cuidadosamente como se tivesse sido a avó a fazê-lo. Aconchegada e sozinha.O doutor Dec fizera um serviço completo, pensou. E estava em casa, provavelmente amuado por ela não lhe ter pago os honorários. Não podia censurá-lo, já que ele fora uma doçura, e ela limitara-se a jazer ali como um cadáver.Entrou na cozinha e olhou fixamente para a cafeteira elétrica cheia em cima da bancada e para o bilhete que a acompanhava. Franziu a testa, pegou no papel e rodou o botão para aquecer o café enquanto lia.Tive que ir. Os sujeitos das bancadas vêm esta manhã. Não sabia quando ias acordar e por isso não quis deixar a cafeteira ligada. Mas tem a frescura das sete e dez da manhã, se não te deixares dormir até muito tarde. A propósito, ficas linda quando dormes.Declan- Não paras de me surpreender - murmurou enquanto batia com o bilhete na mão. - És um verdadeiro enigma.A porta estava aberta. Calculou que ele devia ser uma das poucas pessoas da zona que deixavam a porta da frente aberta para quem quer que por ali perambulasse. Vida do campo ou não, alguém tinha de o alertar para a necessidade de um sistema de segurança.A salinha da entrada captou-lhe a atenção. Acocorou-se, tocou com os dedos no soalho lustroso e verificou que estava seco e rijo; entrou e deu uma olhada.A cor, a madeira, a elegante lareira, o brilho das janelas, que imaginava tinha sido ele próprio a limpar.Nunca conhecera um homem que se desse a tanto... trabalho com o que quer que fosse. Ou com quem quer que fosse. Talvez, viu-se obrigada a admitir, tivesse desperdiçado demasiado tempo com o tipo errado de homem.Voltou-se emoldurada pelas janelas e pela luz, e olhou para ele imóvel à entrada.- Que simpatia. - Avançou para ela. - Que grande simpatia. Parece que dormiste bem.- Sempre te vi com um aspecto encantador. Hoje, além desse encanto, pareces ter dormido bem.- Deu-ma Miss Odette. Tem algumas semelhanças contigo.Já vira aquela fotografia antes e chegara a analisá-la, ponto a ponto, durante o período da sua vida em que achara toda aquela história imensamente romântica, envolta como estava em mistério. Um período em que ela própria era suficientemente jovem para ver romantismo na tragédia.- É aqui que pertence. E tu também.Tornava-se cada vez mais difícil imaginar a sua vida sem ele.- Não viste o bilhete? Os sujeitos das bancadas. - Apontou com o polegar para a cozinha. - Tive que lhes suplicar e pagar-lhes um extra para virem aqui num sábado de manhã. Tinha que aqui estar.Declan sentiu a irritação minar-lhe a boa disposição.- Isso é porque as coisas raramente são tão simples como parecem.- Por regra, os homens não, a não ser que estejam à espera de outro em troca. Que procuras tu, Declan?- Sabes, isso é um insulto. Se estás preocupada com a tua ética de pagar pelo trabalho, posso dispensar-te agora uns vinte minutos. Podemos ir lá para cima dar transar e ajustar contas. Caso contrário, tenho muito que fazer.- Custa-te compreender que pudesse preocupar-me contigo ao ponto de colocar o sexo em segundo plano para poderes ter umas horas de sono?- Talvez não seja insultuoso. Talvez seja depois triste. - Viu que as faces dela se ruborizaram quando as palavras a atingiram. A cor do embaraço, apercebeu-se. - Gosto sempre de saber no que me estou a envolver. Se não sabemos no que nos estamos a envolver, não conseguimos decidir se é isso que queremos, ou que direção pretendemos seguir.- Bem o podes dizer.- Porque é assim que tu queres as coisas.- É assim que impões a tua vontade? - perguntou ela. - Fazendo uma lista das regras nesse tom irritantemente sensato?Lui olhou-o fixamente, tentando formular possíveis comentários sardônicos. Mas acabou por desistir e riu-se.- Soa-me bem. Tens que voltar já, ou ainda tens uns minutos? Podias ajudar-me a trazer e a desenrolar o carpete que ali tenho. Ia pedir a um dos sujeitos das bancadas, mas estou a pagar-lhes tanto que prefiro deixá-los ocupados com o trabalho deles.- Não se nada em dinheiro se o deixarmos escorrer pelas mãos. Além do mais, assim conseguia manter-te aqui e olhar-te durante mais uns minutos.- Na sala ao lado. - Apontou para as portas de ligação. - É aí que guardo a maior parte das coisas que comprei até agora. A seguir vou começar a trabalhar na biblioteca, para poder arrumar o que lá fica e o que vai para a sala da frente antes de começar a tratar desta.- Meu Deus, Declan, quando é que arranjaste estas coisas todas?Lui reparou num hipopótamo de estanho pousado em cima daquilo que julgou ser uma mesinha Hepplewhite.- Olha este abajur. - Declan passou os dedos pelo quebra-luz de um Tiffany que explodiu em cores de pedras preciosas. - Tenho um fraquinho por abajurs.- Tenho um fraquinho por ti, isso é certo. Aqui está o carpete. - Deu uma palmadinha no comprido carpete enrolado, encostado a uma parede. - Acho que conseguimos arrastá-lo por entre estas coisas todas. Devia tê-lo colocado mais perto da porta, mas quando o comprei ainda não sabia bem onde o ia pôr. Agora sei.- Sabes - disse Lui quando ambos se deixaram cair de joelhos e a ofegar na salinha -, daqui a um mês ou dois vais ter que enrolar novamente o carpete. Aqui ninguém usa carpetes durante o Verão. Torna-se demasiado quente.Lui sentou-se sobre os calcanhares e afagou-lhe o rosto.Começaram a desenrolá-lo com as mãos e os joelhos e o padrão foi ficando visível. Lui vislumbrou depois parte das cores e da textura, mas foi o suficiente para compreender por que razão ele a queria ali.- Compraste um jardim de rosas, Declan. Quase consigo cheirá-las.- Porque não vemos primeiro como ficam aqui os sofás?- Eu estou aqui agora.Lui limitou-se a fuzilá-lo com o olhar e voltou para a improvisada sala de depósito.Olhou para Declan, mas ele parecia absorto em pensamentos.- Ouviste? Mais ninguém consegue ouvir. Conseguem ouvir as portas a bater. E também a água a correr mesmo sem ninguém ter aberto qualquer torneira. Mas ninguém consegue ouvir o bebê.- De onde vem?- Tenho que lá ir. Não consigo ouvir um bebê a chorar assim. - Dirigiu-se para o vestíbulo e começou a subir as escadas. O choro cessou.- Que estranho! - Mantinha-se nas escadas, com a mão no corrimão. E com o coração a latejar. - Estava a pensar em pegar no bebê. Diz-se que se deve deixar os bebês chorar, mas não compreendo porquê. Estava a pensar nisso e ele parou de chorar.- Provavelmente não te dirão nada.- Devia assustar-me, mas não, não assusta. É fascinante, creio... - Calou-se quando uma porta bateu lá em cima. - Bem, não foi nenhum bebê que fez isto. - Subiu apressadamente as escadas.Lui avançava decidida corredor afora, escancarando tudo o que era porta. Quando chegou ao quarto de Abigail, sentiu uma aragem fria. Hipnotizada com o vapor da sua própria respiração, apertou os braços contra o peito.- Não. Está zangado. - Quando lhe pôs as mãos sobre os ombros, para a afastar dali, para a aquecer, a porta fechou-se na cara deles.- Este teu fantasma não é muito hospitaleiro.- É o quarto da Abigail. Nós, os cajuns, não temos bom feitio quando nos irritam.- Sabes muitas coisas sobre moças, cher.- Se alguém me matasse e enterrasse o meu corpo num local desconhecido, também seria bastante perversa. - Obrigou-se a estender a mão para agarrar na maçaneta gelada da porta. - Não roda.- É um pouco assustador, não é? - disse ela, transpondo a entrada.- Sabes o que acho, cher?- Acho que quem fica sozinho nesta casa, noite após noite, quem sai para ir comprar tapetes e mesas e abajurs... - Voltou-se e rodeou-lhe a cintura com os braços. - Acho que um homem que faz isso tem muita determinação.Lui riu-se e abraçou-o com força.Declan conseguiu impedir-se de lhe suplicar, mas foi por um triz. Ainda mantinha a mão entre as pernas dele e sentia aquela dureza.- Quando estiveres livre. - Esmagou a boca contra a dela para lhe dar a provar um pouco daquilo que ele sentia. - Vens até aqui. Jantamos juntos. E ficas. - Encostou-a contra a parede. Mordeu-a. - Ficas aqui a dormir. Quero-te na minha cama. Quarta-feira. Diz-me que vens e que ficas comigo.- Cedo.Beijou a ponta de um dedo e apontou-o para ele como se fosse uma arma antes de se afastar.Tudo o que tinha a fazer era esperar até quarta-feira. Então poderia deixar-se alvejar novamente. Acendeu a lareira para conseguir alguma alegria e calor e depois deu por si sentado junto ao lume e a passar o dedo pelo mosaico lascado. Provavelmente não iria substituí-lo. Nem tudo tinha de ser perfeito. Havia que aceitar os acidentes e absorver a sua natureza.Se substituísse o mosaico, estaria a honrar a história da Mansão ou a recriá-la?Aquele pensamento percorreu-o como um calafrio, apesar de estar de costas voltadas para as chamas crepitantes.Morte.Agora, com Lucian fechado com o pai no escritório, a tratarem de negócios de terras e colheitas, e com a chuva a tamborilar nas janelas, podia dedicar-se a uma tarde de leitura.Já não era uma criada naquela casa, era uma esposa.Estava com as regras atrasadas, o que não era normal. Acordara indisposta nos últimos três dias. Mas aguardaria mais uma semana. Falar daquilo tão cedo poderia fazer com que não se concretizasse.E provavelmente, muito provavelmente, uma criança conseguiria suavizar a mãe de Lucian. Talvez uma criança trouxesse alegria à casa, tal como o desejo de ter um filho trazia alegria ao seu coração.Tropeçava nelas, pensou, mas estava a progredir. Satisfeita consigo mesma, virou-se e viu Julian refastelado numa das poltronas cor de vinho, com um copo na mão e uma garrafa junto do cotovelo.Ele assustava-a. Repugnava-lhe. Mas lembrou a si própria que já não era uma criada. Era a esposa do irmão e devia tentar conviver com ele.Ele ergueu a garrafa e serviu-se de mais brandy.- Eu sei ler. - Retesou repentinamente as costas. - Gosto de ler.Apertou o livro com força na mão quando ele se levantou e depois descontraiu-se ao vê-lo aproximar-se da lareira e pousar a bota sobre a base e um cotovelo sobre a prateleira.Julian riu-se e ela sentiu o brandy nas gargalhadas.- Sou a esposa do teu irmão. - Tinha de haver maneira de dar um primeiro passo para ultrapassar aquele orgulho. Foi em nome de Lucian, em nome da criança que crescia dentro de si, que deu esse primeiro passo em direção a Julian. - Só quero que ele seja feliz. Eu faço-o feliz. Sois do mesmo sangue, Julian. Sois gêmeos. Não é correto estarmos assim malquistos. Quero tentar ser tua irmã. Tua amiga.- Queres ser minha amiga, é?- Amiga como? - lanceu-se a ela e agarrou-lhe com força nos seios.- Cabrão! Animal! Pões-me outra vez as mãos e mato-te! Pertenço ao Lucian! Sou a esposa do teu irmão!Afastou-se com fúria da lareira. O pesado castiçal de prata tombou contra um dos mosaicos e arrancou uma lasca na borda.Tal como acontecera durante a... visão? Amnésia? Alucinação?Talvez não houvesse fantasmas, pensou. Talvez tivesse um maldito tumor cerebral. Faria mais sentido. Qualquer coisa faria mais sentido.Sentiu as pernas fraquejarem e quase cederem sob o seu peso quando se levantou. Teve de se agarrar à prateleira da lareira e os seus dedos apertaram-na com tanta força que se surpreendeu por o mármore não estalar.Sentindo-se recomposto, foi à cozinha procurar as aspirinas; enquanto retirava quatro da embalagem, concluiu que seria como tentar apagar um incêndio florestal urinando-lhe em cima. Mas lá as engoliu. Depois passou o copo frio pela testa.Estendeu a mão para o telefone mas deteve-se e abanou a cabeça. Louco, pensou, seria depois mais uma acha para a fogueira. Se consultasse o tio Mick, a notícia dos seus potenciais problemas médicos espalhar-se-ia pela família como um vírus contagioso.Faria exames físicos e pediria ao médico que lhe recomendasse um especialista. Simples, direto e eficiente.Quando pousou o copo, uma porta bateu no segundo piso. Limitou-se a olhar para o teto e a esboçar um sorriso sombrio.Na quarta-feira sentia-se novamente senhor da situação. Talvez a expectativa de ver Lui o tivesse animado, bem como o trabalho que conseguira concluir nos últimos dias antes da Quaresma. Tinha marcado uma consulta com o médico de Remy para a semana seguinte, e esse passo permitira-lhe esquecer grande parte da preocupação com o estado do seu cérebro.O boletim meteorológico matinal anunciara vinte e cinco centímetros de neve para Boston.A luz do sol e a provocação da Primavera obrigaram-no a alterar os planos mais cedo do que pretendia. Adiou o trabalho na biblioteca e instalou-se no exterior para reforçar a varanda do segundo piso e substituir as tábuas danificadas.Na Primavera sentar-se-ia na varanda aos domingos de manhã, a comer pãezinhos e a beber café au lait - na companhia de Lui. Domingos compridos e lentos, a olhar para a relva, para os jardins. E, uns anos mais tarde, a olhar para as crianças nos pátios, nos jardins.Sabia que era sincero no que sentia por ela, no que planejava para ambos. Ajudá-la-ia no bar se ela precisasse, mas teria o seu próprio trabalho.Usaria as mãos, bem como as costas e a imaginação, para transformar outras casas. As pessoas daquelas bandas lembrar-se-iam de Declan Fitzgerald quando precisassem de um empreiteiro. Deviam ter visto aquela velha casa antes de ele deitar mãos à obra, diriam. Querem um trabalho bem feito, basta chamarem o Dec. Ele trata de tudo.Por volta das quatro horas, com o comprido soalho da varanda terminado, deitou-se de barriga para baixo para fazer uma pausa. Adormeceu com B. B. King a implorar à sua Lucille.A relva que pisava era espessa, o calor do sol banhava-lhe o rosto e incidia-lhe em cheio na cabeça apesar do chapéu que usava como proteção.Gostava da música dos pássaros e não se importava muito com o calor. O calor era honesto. O ar dentro da Mansão era frio e falso.Voltou-se quando ouviu chamarem pelo seu nome. E sorriu quando a sua amada atravessou o relvado púrpura em direção a ele.- Declan. Declan.Declan abriu os olhos, mas tinha um olhar vítreo. E parecia olhar através dela, para alguma coisa, ou alguém.- Vamos sentar-nos debaixo do salgueiro-chorão, onde ninguém consegue ver-nos.A reação de Declan foi lenta, entorpecida, como se deslizasse para junto dela. Contra ela. Para dentro dela. Soube-o no momento em que ele se arqueou e todo o seu corpo se retesou. Começou a balançar-se, mas Lui persistiu.- Desculpa. Preciso de me sentar. - Deixou-se cair sobre a relva, de testa apoiada nos joelhos. - Meu Deus!- Que raio se passa comigo? Estava na varanda, estava a trabalhar na varanda.Declan levantou a cabeça e olhou para o tanque.- Desceste as escadas do lado direito da casa. Pensei que ias galgá-las de uma vez. - Sentiu o coração sobressaltar-se de novo ao lembrar-se de como essas escadas eram instáveis. - Não parecem seguras, Declan. Devias isolá-las.- Não estás louco.- Isso não passa de conversa de ianque. Aqui nem chega a ser excêntrico. A minha tia-avó Sissy tem longas conversas com o marido, o Joe, que morreu há doze anos. E ninguém pensa que ela está louca.- Oh, assuntos de família, acontecimentos da atualidade, o tempo. Política. O tio-avô Joe adorava queixar-se do governo. Sentes-te melhor, cher?- Desceste as escadas e atravessaste o relvado até ao tanque. Não caminhavas como habitualmente e soube logo que havia algo de errado.- Tens um modo de andar suave e esguio e não estavas a caminhar assim. Depois paraste junto do tanque.- Eu não parava de te chamar. Acabaste por te virar e sorriste-me. - Sentiu os músculos do estômago retesar-se com a lembrança. - Mas não sorrias para mim. Acho que não me estavas a ver. E disseste que querias sentar-te debaixo do salgueiro, onde ninguém pudesse ver-nos.- Bem. - Apontou para o cepo. - Havia, dantes. Parece que estás a ter sonhos em que talvez vejas coisas que aconteceram outrora. É uma espécie de dom, Declan.- Hoje à noite posso fazer isso por ti.- Achas que me sairia bem?- São as minhas cinzas sagradas. Lui não conseguia suportar vê-lo afundar-se novamente na escuridão, pelo que manteve a voz animada e mesmo um pouco mais alta que o habitual.Ele encolheu os ombros.- Acho que todas as bênçãos seriam bem-vindas no teu caso. - Esfregou o polegar na mancha de cinzas que tinha na testa e depois esfregou-o na dele. Declan sorriu.- São quase cinco. Disseste-me para vir cedo.Declan assustara-a imenso, confessou a si mesma. Tivera quase a certeza de que ele pretendia entrar no tanque, para se afogar entre as folhas dos nenúfares como Lucian Manet fizera.- Declan...- Se como carne, porque me hei-de preocupar com a cor que tem? Vamos sentar-nos lá fora. Tenho uma ideia que quero discutir contigo.- E se não forem fantasmas? Se não forem meros fantasmas? - perguntou-lhe ela. - Que pensas da reencarnação?- Sempre me pareceu possível... e também justo. Toda a gente merece mais do que uma oportunidade, não achas? Talvez estejas a recordar coisas que aqui aconteceram porque já aqui viveste antes. Talvez sejas o Lucian, que voltou para a sua Abigail ao fim de todos estes anos.- Não és tu que escolhes. E se te pões a zombar da ideia, não digo mais nada.- Não acho que seja mais rebuscado do que dizer que este lugar está assombrado, ideia que tu engoliste prontamente. Explicaria porque compraste esta casa, porque precisas dela, porque estás a trabalhar tão arduamente para a restaurar. O modo como viste a mobília no quarto lá de cima.- O quê?- Nada.- Claro que não. Estava apenas a pensar em voz alta.- Estás mesmo preocupado que possas ter alguma coisa na cabeça que te leva a ver coisas, a fazer coisas?- Não estás doente, cher. - Aflorou-lhe a face com os lábios. Nunca um homem lhe despertara aquela faceta de ternura de modo tão consistente e imediato. - Garanto-te. Mas se ficas mais descansado por ser um médico cheio de palavreado a dizer-te a mesma coisa, não vejo mal nisso.- Portanto, a tua ideia é ires sozinho fazer exames ao cérebro? Aqui não fazemos as coisas assim, cher. Não queres que o Remy saiba, está muito bem, mas diz-me quando é para eu ir contigo.- Não vais sozinho. Vou contigo, senão conto ao Remy e caímos-te em cima.- Diz-se que Lucian Manet era bonito, uma espécie de jovem deus louro. - Passou os dedos pelo cabelo desalinhado dele. Era louro-escuro, espesso, abundante, e seria capaz de apostar que encaracolava para cima de modo sexy com o sol do Verão. - Nesta vida acho que conseguiste ultrapassá-lo.- Nunca me interessei muito pelo tipo deus louro. Geralmente são demasiado bonitos para o meu gosto. - Empertigou a cabeça e inclinou-se para o beijar. - Tu adequas-te ao meu gosto, cher.- Amo-te, Lui.Afastou-a de si e Lui deixou de sorrir quando o viu sorrir a ele.Manteve-a junto de si quando ela tentou levantar-se e afastar-se.- Sim, preciso... mas não creio que estejas a referir-te ao mesmo que eu. Preciso de assentar, neste local, contigo. Não me importa se é a primeira ou a quinquagésima vez que saímos um com o outro. És a pessoa por quem tenho esperado. - Bastou-me olhar para ti uma vez. - Nem sequer me conheces.- Estás enganada. Sei que és inteligente e forte. O suficiente para trabalhares arduamente para construíres o teu próprio negócio praticamente a partir do nada. Sei que pagas as tuas dívidas. Sei que és fiel e carinhosa. Sei que alguém te magoou e que não é preciso muito para a ferida abrir novamente. E sei que estou a assustar-te agora porque pensas que não estás preparada para ouvir o que te estou a dizer.- Não procuro o amor, Declan. Lamento.- Cher, as pessoas estão sempre a apaixonar-se e a desapaixonar-se. Não passa de um deslumbramento provocado pela química.Irritada, Lui tentou afastar-se, e desta vez Declan deixou-a.- A mim pareces-me tudo.- Ficas sempre tão irritada quando alguém diz que te ama? - Não gosto que me forcem, e quando me forçam, faço questão de não seguir nessa direção. Se era um truque, ou alguma estratégia para a abalar, conseguira-o, pensou ela.Declan cozinhava como um homem que não confiava nas suas capacidades culinárias. Batatas grelhadas com a pele e bifes. E ainda a convenceu a preparar a salada.Perguntou-lhe sobre o trabalho, como correra o negócio durante os dois dias de chuva. Pôs música, com o som baixo, e falou através da porta da cozinha enquanto o grelhador aquecia e ela cortava os legumes.Comeram na bela cozinha dele, à luz das velas. A própria casa mostrava-se séria. Apesar disso - ou talvez por causa disso -, sentiu-se inquieta durante toda a refeição.- Não posso.- Não posso durante quarenta dias. Desisti do chocolate durante a Quaresma. Tenho um apetite incrível por chocolate.- De que é que desistirias?- Se continuas a falar assim, quero as minhas cinzas de volta. - Estava a provocá-la, pensou. A melhor forma de lidar com a situação era provocá-lo mais ainda. Colocou-se atrás dele enquanto ele procurava qualquer coisa no geladeira, envolveu-lhe a cintura com os braços e encostou o corpo contra o dele. - Precisas de abdicar de algo, cher, algo por que tenhas um apetite desmesurado.Deixou que ela o virasse para si e o encostasse contra a geladeira.Se Lui não percebia que ele podia amá-la tanto quanto a desejava, cabia-lhe a ele demonstrar-lho.Empurrou-o em direção à porta. Declan quase a empurrou para trás, para junto das escadas da cozinha, mas concluiu que poderia ser interessante seguir o caminho mais comprido.- Lá chegaremos.Debateram-se com as roupas enquanto se iam aproximando das escadas. Os sapatos aterraram com um baque surdo. O soutien dela flutuou sobre o corrimão e as calças dele caíram sobre o terceiro degrau.As mãos dele eram ásperas, eram agora as mãos de um trabalhador que vibravam enquanto a percorriam. Sentiu a pele ganhar vida.Quase a tomou ali onde estavam, mas queria tê-la debaixo de si. Queria estar sobre ela, de costas arqueadas.As sombras envolveram-nos enquanto se dirigiam para o quarto.- Declan.Caíram sobre a cama, num emaranhado de braços, pernas e pressa. Quando mergulhou dentro dela, as unhas de Lui enterraram-se nas suas costas. O prazer, escuro e desesperado, inundou-a, e essa glória selvagem avassalou-a de tal modo que se entrelaçou nele para lhe acompanhar o ritmo furioso. Agarrou-se a ele, cavalgando a tempestade de sensações, cada vez mais perto do precipício.Quando Declan fez menção de se afastar, Lui agarrou-o com mais força.- Sou muito pesado para ti. - Passou os lábios pela curva da garganta dela.- É bem melhor do que bolo de chocolate.- Pronto, agora já não preciso de me preocupar com a possibilidade de te esmagar.- Eu sei.- Não. - Afagou-lhe o cabelo e as costas. - Não tenho nenhum relógio que dê as horas.- Sim, eu também. Mas não tenho nenhum relógio de pêndulo. Lui levantou a cabeça e soltou um lento suspiro.- Não. Na opinião de Declan, a melhor maneira de ultrapassar os obstáculos não era lançar-se diretamente contra eles, arriscando-se a partir a cabeça, mas antes desgastá-los aos poucos. Gradualmente, com sensatez. Implacavelmente. Quer fosse um problema jurídico, um evento desportivo ou um caso amoroso, era crucial não perder o objetivo de vista, de modo a poder seleccionar os meios mais adequados.Quando se sentou no banco ao lado delas, no domingo de manhã, recebeu um demorado olhar especulativo de Lui e um conivente piscar de olho de Miss Odette.Mas não iria contar à mãe a confusão que lhe ia na mente. A experiência dizia-lhe que ela era bastante menos flexível do que o Todo-Poderoso.- Muito seguro de ti, não és, cher?- Limitei-me a preparar as coisas de antemão.- A sua neta é muito cínica - respondeu ele enquanto oferecia o braço a Odette.- Pensei ir rezar um pouco.- Que a senhora fugisse comigo para o Bornéu.- Você é realmente o homem ideal.Instalaram-se à mesa a beber mimosas e a saborear o primeiro prato do dispendioso menu. Declan contou-lhes os progressos na restauração da casa, enquanto em fundo um quarteto de jazz tocava Dixieland.- Posso tentar arranjar-lhe alguém - ofereceu-se Miss Odette.- Homens crescidos a fugirem por causa de umas portas a bater. - Lui curvou os lábios num esgar de troça. - Deviam ter mais coragem.- Que gritos?- E que pensa dessas coisas? - perguntou Odette.Lui engoliu uma garfada de milho: uma típica receita sulista a que as papilas gustativas de Declan ainda precisavam de se habituar.- Por exemplo, os ornamentos de estuque. Nas áreas em que o trabalho progride, as coisas correm bem. Estou a restaurá-las, a repor o original. Mas nas divisões em que fiz alterações, como no banheiro, onde mudei a louça e os ladrilhos, as coisas tornam-se mesmo interessantes. É como se aquilo que existe na casa ficasse supremamente irritado por não nos regermos pelo plano original.- E realmente tenho pensado. Imagino Josephine Manet. - Apesar de estarem no restaurante, com Dixieland a encher o ar e o champanhe a borbulhar, o nome fê-lo estremecer com medo. - A senhora da Mansão. Basta olhar para as fotografias dela para ver que era uma mulher que não gostava que a contrariassem. Ora bem, agora venho eu e deixo as minhas marcas por tudo o que era dela.- Decidi viver na Mansão, à minha maneira. Se ela quiser armar confusão, o problema é dela.- Que achas, avó? Corajoso ou teimoso?- Obrigado, mas não sei se sou muito corajoso. Agora a casa é minha e ponto final. Mesmo assim, acho que não se pode censurar um homem que investiu o seu tempo e trabalho se decidir pôr-se a andar. De qualquer modo, que acha, Miss Odette? Estarei a perturbar a Josephine? - O que é?- Se vier comigo para o Bornéu, até pode banhar-se em champanhe.- Vou pedir mais uma rodada.Era atencioso, inteligente, sexy, rico, obstinado e generoso.Acreditava que o conhecia suficientemente bem para ter a certeza de que não o teria dito se não o sentisse realmente. Era esse fato que a irritava.Declan conseguiria fazê-la apaixonar-se. Já pouco faltava para isso acontecer. Sempre que tentava firmar os pés no chão perdia novamente o equilíbrio, e a queda era tão preocupante quanto entusiasmante.Quando tinham importância para sempre, esse fato alterava tudo.Conseguia imaginar-se a senti-los dia após dia, ano após ano.Receio não, corrigiu-se, mas irritação consigo mesma. Estava relutante em abandonar-se. Não desejava abandonar-se.E ele cortejava-a. Era, aparentemente, uma palavra sulista particularmente do agrado de Declan. Sugeria imagens de luar e de cadeiras de balance no alpendre, limonada forte e danças campestres.Celebrou os resultados negativos dos exames neurológicos com um dia de folga passado à procura de antiguidades. A Primavera fizera desabrochar as flores e forçara os transeuntes a enrolarem as mangas para cima. Os cavalos que puxavam as caleches tão do agrado dos turistas faziam ressoar os cascos sobre a calçada.Fez compras com a sua habitual entrega ao impulso, abrilhantando o dia de vários lojistas até se deter num lugar singelamente chamado Yesterday.A princípio foi o anel que lhe captou a atenção. O rubi vermelho sangue e o diamante branco-gelo formavam as duas metades de um coração embutido sobre uma peça de platina.Mas era aquele o anel que queria colocar no dedo dela. E decidiu que se um homem podia comprar uma casa por capricho, também podia comprar um anel, que raio!- É encantador - disse a vendedora. - Ela é uma mulher com sorte.- Tenho uns brincos maravilhosos que formariam um belo conjunto com o anel. O rubi é a pedra de sorte dela? - perguntou a mulher enquanto lhe mostrava um par de brincos com corações de rubi e diamante.- Então é mesmo. Acertei por sorte.Já a via com eles postos, tal como imaginava que a vendedora via a inscrição Comprador Impulsivo estampada na testa dele.Achou que tinham chegado a um acordo justo quando viu que o sorriso da mulher tinha perdido parte do brilho.- Sim, tenho que me apressar. Já estou... - Calou-se quando olhou para o relógio e viu que parara novamente nas doze horas. - Sabe, dava-me jeito um relógio... um relógio de bolso. O meu anda a dar-me problemas e tenho andado ocupado com trabalhos de carpintaria. Este provavelmente levou algumas pancadas.Conduziu-o para junto de outra vitrina, retirou uma gaveta e colocou-a sobre o balcão.- Não. - As extremidades do seu campo de visão toldaram-se como fumo. O burburinho das vozes dos outros clientes viu-se reduzido a um murmúrio. Parte dele permanecia suficientemente consciente para saber que estava a alhear-se de si próprio. Tentou controlar-se, recuar, e viu a sua mão estender-se e escolher um relógio de ouro e a respectiva corrente.Para o meu marido, para o aniversário dele. O que ele tinha partiu-se. Quero dar-lhe algo especial. Este é tão bonito. É possível fazer uma gravação?            Para comemorar o nosso tempo juntos. - O quê?- Não. - Apertou o relógio com força, mas a sensação começava a desvanecer-se. - Não, obrigado. Estou bem. Vou levá-lo.Além disso, era sempre bom passar algum tempo com um amigo que, mesmo que o achasse louco, não deixava de o adorar.- Não contava vir aqui hoje.- Na verdade, vão chegar algumas coisas na próxima semana. Sobretudo livros - disse enquanto vagueava pelo gabinete. Passou os olhos por livros de Direito, por grossos dossiês, por memorandos. Todos esses escombros da vida de advogado que lhe parecia agora tão distante. - Algumas peças que tinha no meu escritório e que talvez fiquem bem na biblioteca.- Vais dizer-me o que te preocupa ou limitar-te a andar de um lado para o outro até cavares uma trincheira no meu carpete? - Remy tinha o casaco pousado sobre as costas da cadeira, a gravata desapertada e as mangas arregaçadas; voltou a sentar-se e começou a passar de uma mão para a outra uma mola plástica de um verde-cintilante. - Já te contei algumas das coisas que têm acontecido.- Acho que vou arranjar um piano para a salinha de estar das senhoras. Parece-me o local adequado. De qualquer modo, gosto de tocar quando sinto vontade.- E então, passaste aqui para me dizeres que andas à procura de um piano?- E a tua intenção é exibi-lo? Queres que chame a minha secretaria ou alguns dos estagiários?- A sério? - O brinquedo, espalmado sobre si mesmo, foi posto de lado. - Como sabes? Onde o encontraste?Remy abriu a tampa.- Tu não... não te transmite nenhuma sensação?- Vê nas costas, Remy.- Sorte? Não creio. Entrei na loja, comprei um anel para a Lui e depois...- Eu disse-te que ia casar com ela. - Declan encolheu os ombros. - Encontrei o anel. Não faz mal nenhum comprá-lo antes do tempo. Mas não é essa a questão.- Já lhe disse o que sentia, o que queria. Vou deixá-la pensar nisso por uns tempos. Podemos voltar ao relógio?- Entrei na loja e resolvi que precisava de um relógio porque o meu tem andado a funcionar mal. Resolvi que precisava de um relógio de bolso apesar de nunca ter usado nenhum, nem ter pensado vir a usar. Foi então que vi este relógio, e soube logo. Soube logo que era dele, soube que ela o tinha comprado como presente de aniversário. Soube o que estava gravado nas costas antes de o ler. Sabia exatamente o que dizia. Porque o ouvi na minha cabeça.- Chama-se psicometria. Tenho andado a ler bastante sobre a ciência paranormal nos meus tempos livres - explicou quando Remy franziu a testa. - Mas nunca me tinha acontecido nada assim. A Lui tem uma teoria, acha que é um caso de reencarnação.- Estou mais inclinado para isso do que para essa coisa da psico-não-sei-quê.- Tudo isto tem sido estranho desde o início, cher.No Vieux Carré, Lui preparava-se para sair do apartamento para o turno da tarde no bar; abriu a porta e entrou num outro ciclo. Um ciclo antigo.Entorpecida pela estupefação, Lui não conseguiu recuar a tempo de evitar que aqueles braços a rodeassem como correntes. Encurralada, sentiu-se assaltada pelas mais variadas sensações. Demasiado perfume que não conseguia encobrir o cheiro bafiento do tabaco, a figura ossuda, desgastada por anos de uma vida de excessos, camadas de laca sobre os caracóis tingidos de preto-alcatrão.- Primeiro fui ao bar e aquele jovem encantador atrás do balcão disse que ainda estavas aqui em cima. Ai, estou tão feliz por te encontrar! - A voz era uma bolha brilhante que ricocheteava e balançava no ar. - Deixa-me olhar para ti! Juro-te, juro-te que estás cada vez mais bonita! Doçura, tenho que me sentar um pouco para recuperar o fôlego. Estou tão feliz por te ver que quase não aguento!- Olha só o que fizeste a esta casa! - Lilibeth deixou-se cair numa cadeira e largou a mala de motivos florais. Bateu palmas como uma criança e as pulseiras de plástico tilintaram nos pulsos ossudos. - Ai, adoro mesmo! Combina contigo, querida. Combina mesmo contigo.Aos quarenta e quatro anos, o rosto de Lilibeth evidenciava o desgaste de demasiado álcool, demasiados comprimidos e muitos, muitos homens.- Que queres?Lui sentiu-se invadir pela repulsa e agarrou-se a essa sensação. Antes a repulsa que o desespero.- Oh, essa agora, podes dispensar um tempinho à tua mamã. Afinal de contas a dona és tu. Estou tão orgulhosa da minha menina, tão crescidinha e dona do seu próprio negócio. E tens-te saído bem - continuou enquanto olhava à sua volta.- Disse-te da última vez que era mesmo a última vez. De mim não levas mais dinheiro nenhum.- Não sou nenhuma menina - disse Lui num tom fatigado. - E, sobretudo, não sou a tua menina.Lilibeth pôs-se de pé, com a mão no coração. A unha do dedo mindinho da mão direita era muito comprida e ligeiramente curva.- Cometi alguns erros, eu sei que sim, querida. - A voz soava apologética e arrependida. - Tens que compreender, era tão nova quando nasceste.Lilibeth enfiou a mão na bolsa vermelho-cintilante e tirou um lenço gasto.- Tu não tens coração. E não és a minha mamã.- E uma semana depois abandonaste-me. Um gato vadio passa mais tempo com a sua ninhada do que tu passaste comigo.Era isso, essa tristeza, que levava Lui a conferir-lhe, uma e outra vez, algum espaço no seu coração. Até que este ficara empedernido de tantos golpes.- Mas, querida. - Lilibeth estava em pânico e exibia novamente uma voz lacrimejante e sufocada. - Tens que me dar uma oportunidade para remediar as coisas. Vou arranjar emprego. Posso trabalhar para ti por uns tempos, não seria divertido? Fico aqui contigo depois uma semana ou duas, até arranjar um lugar para mim. Vamos passar uns bons tempos juntas. Como verdadeiras amigas.- Nessa altura estava doente. Agora estou limpa, querida, juro-te que estou! Não podes virar-me assim as costas! - Estendeu as mãos, de palmas viradas para cima, num gesto de súplica. - Estou completamente falida. O Billy levou-me tudo o que tinha e fugiu.- Estás drogada agora. Pensas que sou cega ou estúpida?- Também já usaste essa desculpa. - Resignada, Lui pegou na bolsa e contou cinquenta dólares. - Toma. - Enfiou-os na mão dela. - Toma este dinheiro, apanha o ônibus e vai o mais longe que ele te levar. E não voltes. Aqui não há lugar para ti.- Sim, posso. - Pegou na mala e pô-la fora da porta. - Está-me no sangue. Leva os cinquenta dólares. É tudo o que vais conseguir. E vai-te, ou juro por Deus que sou eu que te ponho daqui para fora!- Nunca foi minha intenção ter-te.Tinha a certeza de que conseguira limar as arestas quando se dirigiu nessa noite para a Mansão Manet. Quase cancelara os planos do jantar com Declan, mas isso seria dar demasiada importância à mãe.Precisava de ocupar a mente com outras coisas, e nunca o conseguiria se ficasse em casa a pensar. Passaria aquela noite hora a hora, e pela manhã Lilibeth já teria desaparecido. Já teria desaparecido da sua vida e da sua mente.Com o passar dos anos, começara a encarar a Mansão Manet como uma espécie de lugar onírico, enterrado no passado. Mais do que isso, concluiu. Um lugar do passado.Declan estava a dar-lhe nova vida.Fora ele quem as plantara, pensou enquanto avançava para a porta. Era um homem que gostava de pôr as mãos nas coisas. Sobretudo quando as considerava suas.Entrou com um passo decidido. Achava que quando duas pessoas já tinham dormido juntas uma ou duas vezes, os formalismos eram desnecessários.Alguns diriam que era uma tolice, outros que era encantador, supôs, mas agora ninguém poderia dizer que a entrada da velha mansão era estéril.Porque lhe tremiam os dedos?, perguntou-se quando estendia a mão para lhes tocar. Porque lhe pareciam aqueles velhos castiçais manchados tão estranhamente familiares?Estremeceu, recuou e saiu daquela divisão.Lui soltou uma gargalhada ofegante, recuperou a compostura e olhou para Declan. Tinha teias de aranha no cabelo, sujeira no rosto e nas mãos. Brandiu a lanterna que trazia na mão.- Eu digo-te o mesmo. - Expirou profundamente e levou as mãos ao cabelo para retirar as teias de aranha. - Pregaste-me um susto que me tirou cinco anos de vida.- Não, os aposentos da criadagem. Há portas em cada piso e resolvi dar uma olhada. É interessante, mas está uma verdadeira confusão. - Olhou para as mãos imundas. - Podias persuadir-me a preparar bebidas para ambos. Que deseja?- Nada, para além de me teres pregado um susto de morte.- Talvez me sinta aborrecida porque nem te preocupaste em dar-me um beijo de boas-vindas.- Desço já.- Declan, acho que queres mais do que uns momentos bem passados, mas também não sei o que procuras.Declan não insistiu. Se ela precisava de fingir que não estava preocupada nem agitada, ele dar-lhe-ia espaço. Deram um passeio pelo jardim de trás enquanto o crepúsculo se abatia.Voltou-se para observar a casa. Oh, ainda precisava de obras. Madeiras e pintura. Novos frontispícios aqui e ali. Mas percebeu que já não parecia... morta. Não estivera depois abandonada, estivera morta até ele chegar.- Conseguias viver aqui?- Tenho a minha própria casa.- Se me incomodasse, não teria aqui vindo hoje à noite para jantar contigo. E a propósito, que vai ser o jantar, cher?Lui ficou hipnotizada com o relógio. Sentiu o estômago agitar-se como quando vira os castiçais.- Descobri-o hoje numa loja. - Alertado pelo tom dela, e também fascinado, Declan mostrou-lhe o relógio. - Parece-te familiar?- Soube que ia ser meu assim que o vi. Acho que o compraste para mim - disse ele, levando-a a empertigar a cabeça. - Há muito tempo. - Virou o relógio para ela ler a inscrição nas costas.- Sim, acho.- Não te parece tudo demasiado certo e arrumado... e um tanto egocêntrico?- Meu Deus, tu és tão... cativante. E irrita-me ter de ser eu a fazer o papel de pessoa sensata. Gosto de estar contigo, Declan.- Gosto da tua companhia, gosto do teu aspecto. E gosto de fazer amor contigo. É tudo o que tenho para oferecer por agora.- Aceito. Declan não estava ao seu lado na cama, mas o calor dele continuava ali.Inteligente, pensou, bocejando enquanto enterrava a cabeça na almofada. Ele raramente parecia forçá-la, nunca se mostrava insensato. E conseguia sempre o que queria.Embora preferisse ter despertado na sua própria cama, sentia-se feliz por ter ficado ali. Chegara com uma disposição pesada e um pouco irritadiça. Ver a mãe tinha geralmente esse efeito sobre ela. Conseguira esquecer-se disso durante algumas horas e apreciar a companhia dele.Ter êxito, à sua maneira. Viver, precisamente do modo que escolhesse. E nunca, nunca, colocar as suas esperanças, as suas necessidades, os seus desejos, nas mãos de outrem.Por conseguinte, seria muito cuidadosa para não se apaixonar por ele. Muito cuidadosa para não o magoar enquanto ele acreditasse que a amava.Longos anos se passaram, criança - e eu nunca me casei, fiel ao meu amor perdido, que nem na morte enjeitei.Intrigada - de onde lhe vinham aquelas palavras? -, levantou-se e dirigiu-se para o banheiro. Conhecia a melodia mas, mais do que isso, conhecia a letra. Aquela história triste de morte e falta de fé, unidas pela melodia romântica.A dançar ao luar, com a casa transformada num farol branco que rasgava a escuridão da noite. Uma moça envolta em musselina de tons suaves, o jovem muito aprumado e elegante na sua casaca. A fragrância dos lilases, forte e adocicada.A vertigem da dança. A vertigem do juramento.- Oi! - Declan amparou-a e levantou-a do chão. Estava ainda úmido do banho e o seu cabelo gotejou sobre o rosto dela enquanto a levava de volta para a cama.- Querida, estás branca como um lençol. - Afastou-lhe o cabelo para trás e esfregou-lhe a mão gelada entre as suas. - O que aconteceu?- Vou buscar-te um copo de água. - Provavelmente não. - Sentou-se ao lado dela. - Tenho que substituir o cilindro. Se esperares meia hora, deve dar para outro banho.Aquela sim, concluiu Lui, era uma excelente maneira de iniciar o dia. Bebeu demoradamente a primeira xícara de café sentada à pequena mesinha que Declan instalara na varanda do quarto. Como os cafés da manhã dele eram no máximo bastante frugais, decidiu-se por uma tigela de cereais e viu-o encher os dele com açúcar.- Não tenho nenhum.- Tens aqui um espaço bem bonito - disse-lhe ela. - Uma espécie de lugar de contemplação matinal.Lui encheu a colher com cereais.- Assim parece. - E isso deliciou-o. - Quem diria, hã?- Quero terminar a primeira seção das escadas exteriores. Se o tempo se mantiver durante o fim de semana, vou dar um bom avanço à fachada da casa. Já contratei pessoal para dar início aos outros banheiros. E ainda tenho mais compras para fazer. Queres vir comigo?E isso não equivaleria a um novo elo que os tornaria num casal em vez de duas pessoas que estavam depois a aproveitar o momento? Por conseguinte, abanou a cabeça e negou-se esse prazer.- Acho que podemos fazer isso também, enquanto procuramos puxadores de gavetas e louças. De fato... espera um segundo. Distraíra-o, pensou. Ou ele pretendia que o distraíssem do que acontecera naquela manhã. Ela quase desmaiara, e não teria sido a primeira vez.Teria ele realmente razão? Seria assim tão perfeitamente claro? Que ele fora Lucian numa vida passada e ela a sua conduida Abigail?A ser verdade, que significava isso para eles agora, nesta vida?- Cher, se continuas a oferecer-me presentes, que vais fazer quando for o meu aniversário?- Bem, acho que não vais conseguir arranjar melhor do que o saleiro e o pimenteiro, mas... - Abriu a caixa, à espera de ver um engraçado e disparatado alfinete ou uns brincos extravagantes. Reparou então no par de corações de rubi e diamante.- Tu... tu não podes dar-me uma coisa assim. - Era a primeira vez que gaguejava desde que o conhecia. - Tu não podes... não podes dar-me uns brincos assim. São pedras verdadeiras. Achas que sou assim tão estúpida que não reconheceria verdadeiros diamantes?- Não me interessa se és muito rico. - Fechou a tampa com força para fazer desaparecer aquele faiscar de sangue e gelo. - Não me interessa quanto dinheiro tens investido nas tuas carteiras de ações e guardado nas tuas contas bancárias. Não quero que me ofereças jóias caras. Se quiser diamantes e rubis, então, alors, eu própria os compro. Não ando a dormir contigo para obter bugigangas ou seja lá o que for.- Portanto, já não haveria problema para ti se fossem de vidro? Deixa-me ver se percebo as regras básicas. Se vir alguma coisa que gostasse de te oferecer, tem que ser o quê, abaixo de cem dólares? Cento e cinquenta? Dá-me um valor aproximado. - Lui, se precisasses de mim para te comprar coisas, comprava-te a mercearia, por amor de Deus! Estes brincos são bonitos, fizeram-me pensar em ti. E olha só isto. - Uma coisa que custa tanto como um carro decente em segunda-mão pressupõe compromissos, cher.Os olhos dela reduziram-se a fendas.- Parece que isto perturbou o teu equilíbrio moral, mas não vale a pena desperdiçá-los.- Estás a agir como uma idiota. Limito-me a representar a minha parte no teu dramazinho. Gostava de tos oferecer, mas não se pensas que são um pagamento por serviços prestados. Isso é tão insultuoso para mim como para ti, Lui - disse quando ela ficou de boca aberta. - Dizeres-me que não queres que te paguem pelo sexo, é dizeres-me que eu estou disposto a pagar-te por isso. Não passam do raio de umas pedras!E não era mesmo dele, exatamente mesmo dele, ficar ali sentado, a observar calmamente a sua ira e a sua fúria?- Fui rude, e reagi de forma exagerada. Não estou habituada a que os homens me dêem diamantes e rubis enquanto tomo os meus cereais.Lui riu e afastou o cabelo do rosto.- Que raio queres dizer com isso? - quis ele saber.- Que tal me ficam? Lui inclinou-se e beijou-o.- Ainda bem.- Quando casares comigo - disse ele junto à entrada -, vou oferecer-te diamantes ao café da manhã uma vez por semana.- Está bem, mas mantém isso em mente.- Dás-me carona até lá? Tenho uma coisa para ela.- Também lhe compraste outra presente.- Porque é que tens de estar sempre a comprar coisas, cher? Agora já o conhecia, e aquele ligeiro ondular dos ombros revelou-lhe que ele estava agastado e incomodado. - Tenho dinheiro - disse ele. - E gosto de coisas. Trocamos dinheiro por coisas, e isso é mais divertido e interessante do que guardar um maço de papel verde na carteira.- Achas?- Isso agrada-me. - Virou-se e envolveu Lui pela cinta. - E tu? Gostas de mim?- É difícil não gostar de ti. Levou para o carro um pequeno saquinho com o presente. Lui achava estranho e encantador que ele se lembrasse de coisas assim. Não era depois um presente que ele comprava sem dificuldade, mas a apresentação de tudo. Lindos sacos ou laços, fitas ou embrulhos com que a maioria dos homens - ou os homens que ela conhecera - nunca se incomodariam.- Vou fazer-te uma pergunta - disse ela enquanto ligava o carro.- Acho que é mais do tipo ensaio.- Diz lá.- Nenhuma delas conseguiu parar-me o coração ou fazê-lo disparar como um cavalo de corrida. Tu sim. Nenhuma delas conseguiu fazer-me imaginar estender a mão para pegar na dela daqui a dez ou vinte anos. Mas tu sim, Lui. E o que eu mais quero no mundo é ficar contigo.- É uma boa resposta - conseguiu dizer.- Acredito que sim. Não sei o que pensar disto, Declan. És o primeiro homem que consegue deixar-me sem saber o que fazer. Tenho sentimentos muito fortes por ti. - Eis o que penso. Acho que devíamos casar em segredo em Las Vegas e depois já não tinhas preocupações.Sem dúvida iam adorar.Lui riu-se com aquelas palavras, e isso aliviou-lhe a inquietação que sentia no peito.- Não somos fáceis. Temos depois um gosto excepcional. Estacionou diante da casa de Odette e virou-se finalmente para ele.- Os meus pais.Odette saiu da cozinha enquanto enxugava as mãos num pano de xadrez avermelhado. Os aromas de café e pão fresco seguiram-na. Estava, como sempre, adornada com várias camadas de jóias e umas botas pesadas. Mas em redor dos olhos e da boca havia uma tensão em que o próprio Declan reparou de imediato.- Que se passa?- Apenas uma pequena lembrança que pensei que apreciaria. - Já na cozinha, Declan pousou o saco sobre a mesa. - Cheira maravilhosamente aqui. Talvez eu devesse aprender a fazer pão.- Pode ser que lhe ensine uma ou duas coisas. Amassar pão é uma boa terapia. Afasta-nos a cabeça dos problemas e dá-nos tempo para pensar. - Tirou do saco a pequena caixinha embrulhada em papel, revirou-a na mão e soltou o laço. - Lui, se tu não deitares a mão a este moço, ainda fico eu com ele. - Quando abriu a caixa o seu rosto suavizou-se.Quando ergueu a tampa, começou a tocar uma melodia.- Quando o baile acabar - disse-lhe Odette. - É uma valsa antiga. Triste e carinhosa. - Olhou para ele. - Por acaso não tem um simpático tio viúvo que pudesse apresentar-me?- Se tiver metade do seu coração, serve.Lui sentiu-se retesar ao ouvir aquela voz, como se alguém lhe tivesse encostado uma arma à cabeça e se preparasse para disparar. Declan viu o olhar que ela trocou com a avó: apologético da parte de Odette e de choque da parte de Lui.Lilibeth encostou-se à ombreira da porta. Vestia um robe avermelhado, curto, com o cinto frouxamente apertado. O cabelo caía-lhe desalinhado sobre os ombros e o rosto já estava maquiado para o dia, com os olhos carregados de sombra e os lábios tão brilhantes e vermelhos quanto o robe.- Que faz ela aqui? - quis saber Lui. - Que raio faz ela nesta casa?- Eu disse-te para apanhares o ônibus e ires embora!- Como pudeste fazer isto? - perguntou Lui a Odette. - Porque voltaste a aceitá-la?- Sou eu a tua filha! - A fúria amarga jorrou e deixou-lhe um gosto horrível na boca. - Vais acabar por deixá-la ficar até ela te sugar tudo novamente, até ela e um drogado qualquer com quem ela ande te roubarem tudo desta vez? Agora é cocaína. Não vês? E isso leva o dinheiro todo!- És uma mentirosa! Foste sempre uma mentirosa!- Pense duas vezes. - Disse-o com calma, mas a voz acalorada encheu a cozinha.- Ela não tem o direito de falar assim comigo. - Os lábios de Lilibeth tremiam. - E logo à frente de um estranho.- Isto é um assunto de família, Declan. - Lui mantinha os olhos irados fixos no rosto da mãe. Mais tarde preocupar-se-ia com o embaraço da situação. Naquele momento sentia depois um leve entorpecimento através da capa de fúria. - É melhor ires.- Não vou ficar. Vou-te levar. - Teve de respirar fundo para conseguir suportar a dor que as suas palavras iriam causar. - Avó, amo-te com todo o meu coração. Mas enquanto ela estiver aqui em casa, eu não estarei. Lamento se isso te magoa, mas não posso passar por isto outra vez. Avisa-me quando ela partir. E tu... - Virou-se para Lilibeth. - Se a magoares novamente, se lhe tirares um dólar que seja ou trouxeres para esta casa algum dos canalhas com quem gostas de te dar, não te darei descanso! Juro por Deus que o farei, para onde quer que vás! E desta vez senti-lo-ás na pele.Já no exterior, Lui voltou-se.Fechou a porta do carro com força, ligou o motor e saiu apressadamente, provocando uma fina nuvem de fumo que obscureceu a mãe e a casa onde crescera.- Não podes censurar a tua avó por isto, Lui.- Não... Não me vou embora. - Outros tinham ido, apercebia-se agora. E era daí que vinha a mágoa. - Queres falar disto aqui ou lá dentro?- Vais, sim. Escolhe o lugar.- Vive por estas bandas?- Vamos dar uma volta.- Não vais voltar para a cidade enquanto estiveres assim agitada. Vamos dar uma volta a pé.Lui não tinha energia para o contrariar. Mas, em vez de lhe pegar na mão, saiu do carro e enfiou as suas nos bolsos.Calculou que ele achava que os jardins - os novos rebentos, as ternas fragrâncias - a apaziguariam. Pretenderia confortá-la. Ele era assim. Mais, iria querer saber, para tentar encontrar soluções.- A família pode ser uma chatice, não é?- Ela não é a minha família.- Não ter canapés suficientes numa festa, ou ter duas tias que aparecem com um vestido igual, não é um problema.- Achas que ter dinheiro faz desaparecer os problemas pessoais? Que apaga o sofrimento, que enterra as tragédias? Isso é uma banalidade, Lui.- Isso é um disparate, mas tens o direito de sentir pena de ti mesma depois de quase teres sido esbofeteada. O dinheiro não fez a minha prima Angie sentir-se melhor quando o marido a engravidou a ela e à amante no mesmo mês. E também não ajudou a minha tia quando a filha morreu num acidente de automóvel no dia em que fez dezoito anos. A vida pode lixar-nos, independentemente do número de zeros na nossa conta banaquiria.- Desculpa. Ela tem o condão de me deixar com uma disposição em que não sirvo para companhia de ninguém.- Para com isso, Declan.- Não sirvo para ti. Não sirvo para ninguém e nem quero servir.- Sim.- Não foi um homem mas uma mulher que te quebrou o coração. E agora queres fechá-lo e trancá-lo para não aceitares o amor quando to oferecem. Não te permites retribuir. É mais seguro desse modo. Se não amares, não importa se a pessoa se vai embora. Isso faz de ti uma covarde.- Esqueceste-te dos golden retrievers - disse ele em tom calmo.- Não podia estar mais de acordo. Primeiro, a única mulher que conheço chamada Alexandra tem dentes de cavalo e assusta-me um bocado. Segundo, e mais importante, o que vou fazer, Angelina, é viver a minha vida nesta enorme casa antiga contigo. Vou constituir família contigo, precisamente aqui. Os golden retrievers são opcionais.Declan sorriu, um sorriso franco e aberto.Havia algo nele quando se comportava assim, apercebeu-se, algo potente e um pouco assustador quando exibia aquela afabilidade sobre um núcleo de teimosia e determinação.Deixou-a partir. Por agora era suficiente que a ira que ela sentia em relação a ele tivesse conseguido secar as lágrimas que lhe cintilavam nos olhos. Julian estava embriagado, como gostava de estar. Tinha sobre o colo uma prostituta seminua e amparava-lhe o pesado seio com uma das mãos. O velho negro tocava uma melodia animada no piano, e o som fundia-se agradavelmente na sua cabeça com o selvagem riso feminino.O fato de estar - novamente - falido não o preocupava muito. Era um cliente habitual do bordel e acabava por conseguir sempre o necessário para pagar as suas contas. Escolhera a prostituta porque era loura, de corpo luxuriante e vazia de cérebro. Mais tarde, quando estivesse a montá-la, podia dizer a si próprio que não via o rosto de Abigail a olhá-lo fixamente.Entornou uma nova golada de bourbon e beliscou o mamilo da loura. Ela soltou um gritinho e bateu-lhe na mão na brincadeira. Julian ainda sorria quando Lucian entrou.Julian achou-o pálido, louro e perfeito no meio da névoa de fumo, das cores garridas e do ruído caótico.Aguardou enquanto balançava a loura sobre os joelhos e lhe apertava o seio. Lucian perscrutava o vestíbulo. Quando os seus olhos se cruzaram - olhos idênticos -, deu-se um embate. Julian até juraria ter ouvido na cabeça o som de duas espadas a entrechocar-se.- Envergonhas-te a ti e à nossa família, Julian. Mandaram-me vir-te buscar.O rosto de Lucian tornou-se branco.- O meu irmão casou com uma prostituta dos pântanos - disse num tom casual, agarrando a loura quando esta tentou abandonar o seu colo. Sentia o coração dela a latejar com força, a latejar sob a sua mão agora que a discussão entre ele e o irmão despertava nela o medo.- Lucian, o orgulho dos Manet, trouxe essa vadia para a nossa casa e agora sofre e chora porque ela o trocou por outro e lhe deixou o fardo de uma cria bastarda.Tinha de acreditar naquilo, senão enlouquecia.- Quero que ela fique onde está. - Julian agarrou-lhe nos braços enquanto ela se debatia.- Cavalheiros. - A dona da casa precipitou-se para eles. Atrás dela vinha um sujeito enorme impecavelmente vestido. - Não queremos aqui problemas. Monsieur Julian. - Tinha uma voz afetada e passou a mão com intimidade pelo rosto dele. Mas os olhos eram glaciais. - Vá com o seu irmão, mon cher ami. Aqui não é o lugar apropriado para querelas familiares.Tombaram sobre a mesa e o abajur, que se despedaçaram com o impacto. As pessoas fugiam e as mulheres gritavam enquanto eles rolavam e desferiam violentos golpes com os punhos, atacando-se como cães, dando largas à fúria contida durante uma vida inteira.Insultos e gritos seguiram-no porta fora. E a sua ira foi abafada pela humilhação. Abanou a cabeça e levantou-se.- Foi a isto que chegámos? - disse com cansaço. - À pancada em bordéis, estendidos na sarjeta. Quero paz entre nós, Julian. Só Deus sabe como não tenho paz em lado nenhum.Mas a vergonha de Julian tinha uma cor diferente. Era negra.Sentiu a lâmina trespassar o corpo do irmão com uma espécie de júbilo selvagem. E tinha os lábios abertos e um olhar tresloucado quando sentiu o cheiro do primeiro sangue.E quando a extremidade aguçada se cravou e afundou dentro dele, Julian abriu desmesuradamente os olhos, ofuscado por um horror cintilante. Mansão Manet, 2002Não produzia tanto estando sempre a arrastar as ferramentas para trás e para diante, mas continuava a fazer progressos. Era isso que importava.Pensava nela enquanto pregava tábuas, quando examinava amostras de tinta, enquanto instalava as ventoinhas.Durante o dia tentou esquecer-se do sonambulismo. Mas não conseguiu esquecer-se dela.O casamento de Remy aproximava-se a passos largos. O que significava não só que iria ver o seu melhor amigo casado, como também... que os seus pais viriam à cidade.Estava determinado a acabar as varandas em dois quartos. Assim a casa causaria mais impato quando descessem a vereda e poderia provar-lhes que tinha realmente o quarto que lhes oferecera.Desceu da escada, agarrou na geleira e bebeu um valente gole de água fria. Depois verteu o resto sobre a cabeça. Já refrescado, atravessou o relvado e virou-se para olhar.- Nada mau - disse em voz alta. - Mesmo nada mau para um amador ianque.Compreendeu que a escadaria seria a menina dos seus olhos.De qualquer modo, não ia aguardar até terminar a parte de trás da casa. Queria a fachada pintada, queria ficar ali imóvel como agora a vê-la cintilar, branca como um vestido de noiva.Depois vasculhou a caixa de ferramentas à procura do celular e ligou para Lui.Foi então que viu Lilibeth a atravessar o seu relvado. Desligou, levantou-se e voltou a colocar o celular na caixa de ferramentas.- Um chuveiro improvisado. - Recuou instintivamente para que o dedo dela deixasse de lhe tocar na pele. - Em que posso ajudá-la, Miss Simone?- Claro. Não é preciso ser-se muito inteligente - disse. - Só é preciso dispor de bastante tempo.- Ora, ora, não sejas modesto. É um milagre o que tens feito aqui. Espero não estar a incomodar-te demasiado se te pedir para me mostrares o interior. E sabia-me bem uma bebida fresca. Caminhar até aqui deixou-me ressequida.- Naturalmente. Tenho chá.Seguiu-o até à entrada e sentiu-se satisfeita quando ele lhe abriu a porta e se afastou para a deixar entrar à sua frente. Deixou o corpo roçar no dele, depois uma ínfima sugestão, entrou no vestíbulo e não conteve uma exclamação de surpresa.Nunca gostara muito daquela casa. O lugar provocava-lhe calafrios, com as suas sombras, poeira e teias de aranha, o seu glamour apagado.O dinheiro antigo comprava ou conservava coisas antigas. Era um conceito que a intrigava, sobretudo quando havia no mundo tanta coisa nova e cintilante.Teria preferido a cidade, onde havia ação, mas verificava agora que uma mulher podia viver como uma rainha num lugar como aquele. E trazer a ação ali para dentro, ao sabor dos seus caprichos.- As coisas vão andando. A cozinha é por aqui. Vou preparar-lhe a tal bebida fresca.- Consegue-se fazer muita coisa se cumprirmos o planejado. Como teria de a suportar, pelo menos por enquanto, reprimiu o desejo de a levar novamente para o exterior. Não conseguia ver quase nada de Lui na mãe. Havia algumas semelhanças físicas, mas enquanto Lui tinha um corpo compacto e voluptuoso, o de Lilibeth definhara com o tempo e os excessos, deixando-a quase cadavérica.Carregara pesadamente na maquiagem e o calor não a favorecera. O rosto parecia amarelado e falso debaixo daquela cor emprestada. O cabelo estava frisado, e havia raízes grisalhas a espreitarem aqui e ali.- Sente-se. Vou preparar-lhe a bebida.- Uma cozinha assim... - Afundou-se numa cadeira. Aquela zona era fresca, e Lilibeth inclinou a cabeça para trás para deixar o ar chegar-lhe à garganta. E para o observar. - Não me digas que também cozinhas. Se for esse o caso, doçura, vou ter que afastar a Lui e casar eu contigo.- Bem, uma moça pode sempre fazer algumas concessões. - Passou a língua pelos lábios. Declan tinha um físico agradável e robusto que combinava bem com a carteira recheada. E ela já começava a ansiar por um homem. - Por acaso não tens nada um pouco mais forte do que chá, querido?Preferia um bom copo de whiskey, mas anuiu com a cabeça.- Fico-me pelo chá. Ainda tenho trabalho para fazer hoje.- Deito água fria pela cabeça abaixo. Como está Miss Odette? – Lilibeth cerrou os lábios.- Sim, tenho família.- Sim.- Quero que a Lui veja que é depois isso que eu quero. Ela ainda não confia em mim, e não a censuro. Tinha a esperança de que talvez pudesses convencê-la a dar-me uma oportunidade. - Deslizou a mão pela mesa e pousou-a sobre a dele. - Ficar-te-ia muito grata por isso. Sinto-me tão só. Uma mulher na minha situação precisa de um amigo, um homem forte com quem possa contar. Se pudesse contar contigo, isso ajudar-me-ia muito.- Talvez vocês os dois não sejam tão íntimos quanto supunha.Lilibeth bebeu um pouco mais.- Não vou discutir isso consigo.- Miss Simone, está a colocar-me na incômoda situação de ter que lhe pedir que tire as mãos de cima de mim.Declan prendeu-lhe os pulsos com a mão e afastou-a.Ficou rubra de cólera.- Quanto a isso não há dúvidas. Vá-se embora e esqueço que isto aconteceu.- Não sei o que fazer! Sinto-me tão só! Estou tão assustada! Preciso de ajuda! Julguei... julguei que me ajudarias se me entregasse a ti. Não sei o que fazer - Levantou a cabeça e deixou correr pela maquiagem as duas lágrimas que conseguira forçar a cair. - Estou numa situação tão terrível!- Que tipo de situação?Colocou a água diante dela.Reparou de imediato no rápido brilho de satisfação que perpassou pelos olhos dela antes de os tornar a baixar.Declan sentou-se de novo e olhou-a fixamente.Lilibeth atirou-lhe a água à cara. Declan quase não pestanejou.- Pensava que já tínhamos acordado que essa hipótese estava posta de lado.Aquelas palavras de Lilibeth agoniaram-no, obstruíram-lhe a garganta e a lucidez. O rosto dela alterou-se diante dos seus olhos, tornou-se maior, mais velho. Mais frio.- Saia daqui! - Não tinha a certeza, pelo menos não inteiramente, se estava a falar com a mulher de carne e osso ou com o fantasma. Sentia as mãos a tremer enquanto se apoiava na borda da mesa.Declan sentiu as pernas fraquejar, mas aguentou.- Gente como tu não põe as mãos numa mulher. Pensas que não sei ver a diferença? - Amparada pela coca e pela confiança, lanceu o cabelo para trás. - Se queres continuar a enfiá-lo nela e se queres manter a tua família afastada disto, vais ter que me passar um cheque, cher. Vais ter que o passar bem depressinha. E agora vão ser dez mil, porque me feriste os sentimentos.- Hão-de valer, depois de eu ter uma conversinha com a tua mamã.- Eu preciso do dinheiro!Teve de se sentar até sentir as pernas novamente firmes. Sentia-se indisposto, fisicamente indisposto. Algo acontecera quando ela lhe gritava enfurecida a propósito de Lui. O rosto que vira nela era o rosto que via nos seus sonhos.Que lhe queria mal.Levantou-se e pegou no celular. Um resultado positivo daquele incidente repugnante foi fazê-lo dar mais valor à sua própria mãe.- Olá, mãe.- Não, eu...- Ainda mantenho as duas, bem como todas as outras partes do corpo. Só telefonei para dizer que te adoro.- Acabaste de saber que tens uma doença terminal e depois seis meses de vida.- Apanhaste-me. Sou um homem morto e quero contatar a família para poder ter um velório à maneira.- Nem pensar. Prefiro descansar logo em paz.- Quero falar-te da mulher por quem estou apaixonado e com quem quero casar.- É alguma brincadeira?- Acho que consigo arranjar tempo para ti na minha agenda.- Quando a vou conhecer?- Tenho a certeza de que consegues ultrapassar esse pequeno pormenor. Qual é o problema?Quando desligou, sentiu-se mais aliviado. Levado pelo impulso, foi ao piso de cima lavar-se e mudar de roupa. Iria confrontar-se com Lui um pouco antes da data agendada. Quando a recepcionista informou da sua presença, ouviu a voz quase em pânico do amigo através do intercomunicador:Assim que abriu a porta, verificou a razão desse pânico.Como prova de amizade, Declan reprimiu a vontade de recuar e fugir. Em vez disso, fechou a porta, acercou-se e afagou o ombro de Effie.- Pronto, foi uma piada de mau gosto. - Declan esfregou as palmas das mãos suadas nas calças. - Que se passa?- Já não há local para o casamento. - Agarrou no lenço de Remy e enterrou o rosto nele. - Houve... houve um incêndio na cozinha e vieram os bombeiros e eles... eles... Oh, que vamos fazer agora?- A culpa é minha.- Pronto, querida, e como é que ateaste o fogo? Aquilo fê-la rir-se, por um escasso segundo.- Não, não estamos nada, querida. Vamos arranjar outro lugar. Pleure pas, chère. - Remy beijou-lhe a ponta do nariz. - O pior que pode acontecer é casarmo-nos e fazermos a festa depois. Teremos um verdadeiro fais do-do depois da lua-de-mel.- Não me interessa onde vamos casar. - Beijou-a agora nos dedos. - Desde que casemos.- Desculpa. Estou a ser idiota e egoísta. Tens razão. Não interessa onde ou como.- Que queres dizer com isso, o teu sítio? - perguntou Remy.Os jardins estão em bom estado, a cozinha está pronta, bem como os vestíbulos e a biblioteca. Ainda há muitas zonas por acabar, mas as pessoas não se importarão com isso. Irão gostar da casa, dos terrenos, dos fantasmas. Falarão disso durante anos.- Absolutamente. Acho que dará certo.- Oh, meu Deus! Oh, gosto mesmo de ti! - lançou os braços em redor do pescoço de Declan. - És o homem mais maravilhoso do mundo! Um anjo! - disse e beijou-o. - Um santo!Effie riu-se e levantou-se de um salto.- Se me derem o vosso primogênito, já será pagamento suficiente. Remy sentou-se na ponta da escrivaninha e abanou a cabeça.- Mas a ti já eu tenho. - Voltou-se, enlaçou Remy, suspirou e descansou a cabeça no ombro dele. - Quero que seja uma coisa bela, Remy. Quero que seja especial. Significa muito para mim.- Sim. - Apertou-lhe a mão uma última vez e afastou-se. A mulher triste e lacrimejante foi substituída por uma mulher frenética. - Posso ir já até lá? - perguntou a Declan. - Preciso ir buscar a minha mãe e a minha irmã para começarmos a tratar de tudo.- Obrigada. - Beijou-o na face. - Obrigada. - Depois na outra face. - Obrigada. - Depois na boca, um beijo longo e demorado. - Remy, vai ter comigo assim que puderes. – Ah, Dec? - Pegou no celular enquanto se dirigia para a porta. - As minhas cores de noiva são o rosa e o azul. Importas-te que pintemos a casa com essas cores?- Ela estava a brincar, não estava?- Não aguentei vê-la chorar assim. Além disso, faz todo o sentido. - Rosa e azul, pensou. Que problemas lhe trariam cores tão inofensivas como o rosa e o azul? - De qualquer modo - acrescentou, esfregando a mão sobre o coração desalentado -, já tenho experiência de planejar casamentos.Declan remexeu-se sem sair do lugar, inquieto.- Bastante.A boa ação deixou-o bem-humorado. Quando entrou no Et Trois, estava preparado para uma cerveja bem gelada, à laia da palmadinha autocongratulatória nas costas. Ela estava atrás do balcão, a tirar uma cerveja de pressão e a conversar com um dos clientes habituais. Viu-a olhar em volta até se centrar nele. E manter o olhar fixo enquanto ele se aproximava e levantava a porta-balcão.As palmas e os assobios dispersos fizeram-no sorrir enquanto a segurava no ar.Lui roçou os lábios ardentes pelos dele.- Vais precisar de alguém para te substituir.- A Lui precisa que a substituas - gritou lá para dentro e apontou com a cabeça para a porta-balcão. - Importa-se? - perguntou ao homem que bebia a cerveja.- Declan. - Lui não se debatia para não estragar a imagem. - Tenho um negócio para gerir.Levou-a lá para fora. Lançaram-lhes alguns olhares enquanto descia o passeio e a levava para o pátio.- Não estou a forçar-te, estou a levar-te ao colo. Onde tens a tua chave extra? - perguntou enquanto subia as escadas. Como ela não dizia nada, encolheu os ombros. - Debaixo do vaso, o segundo à esquerda.Para sua estupefação, Declan colocou-a sobre o ombro enquanto se baixava para pegar na chave. Lui sempre subestimara a força dele e, tinha de confessá-lo, a sua própria reação a ela.- Desculpe, senhor? - disse ela no seu melhor tom de beleza sulista frígida.- Estás a precisar de tratamento, cher.- Nem imaginas como me sinto lisonjeada por teres tirado folga para vir à cidade dar uma rapidinha, mas eu...- Declan, agora começas a irritar-me seriamente. É melhor pores-me no chão e...- Mas que raio tens tu? Entras de rompante no meu bar como se fosses dono daquilo e carregas-me como se fosse um despojo de guerra. Se pensas que estou aqui para te coçar as costas sempre que quiser, olha que vais ter uma grande surpresa.- Volta a calçar-mo, senão saio descalça. De qualquer modo, quero que te vás embora.- Desculpa - disse num tom suave enquanto lhe desapertava as calças. - Foi demasiado rápido para mim. Estavas a dizer que eu era um porco que devia arder no inferno, ou que devia ir para o inferno e comer porco assado?Lui esbofeteou-o, praguejou, deu pontapés. Depois arqueou-se como uma égua selvagem quando a esmagou debaixo dele e lhe cobriu a boca ofegante com a sua num beijo ardente e ávido.- Para! Para já com isso! - Sentia o coração desenfreado sob a mão áspera dele. Não, não estava à espera daquilo, tal como não esperava aquela sua reação elétrica à dominação dele.- Solta-me as mãos. - Embora o olhar dela continuasse firme, a voz tremia-lhe. - Solta-me as mãos.- Diz. - Os músculos tremiam-lhe. - Ou queres ou não queres. Lui agarrou-lhe o cabelo com força e puxou novamente a boca dele ao encontro da sua.Usou os dentes para lhe morder implacavelmente os lábios. Usou as pernas para o enlaçar e o prender a si.- Prepara-te - avisou-a, e mergulhou dentro dela.De plus en plus. Mais e mais, gritava a sua mente.Ele assim fez. Empurrou-lhe os joelhos para trás, abriu-a e penetrou-a com força.A luz brilhante do sol que dardejava pelas janelas, a explosão metálica de um trompete lá fora na rua, o insano uivar das molas do colchão enquanto uma pele suada batia ritmicamente noutra pele suada.Amo-te. Perdidamente.Ouviu-a arquejar, sentiu-a comprimir-se contra ele quando se veio. Rendido, quase louco, explodiu. E inundou-a.E depois parou.- Não precisas.- Acreditas que eu tinha vindo somente para falar contigo?- Mas vim. Pensava fazermos isto mais tarde. Mudei de planos. Devo-te uma blusa e alguma roupa íntima.Declan conseguira recompor-se o suficiente para se apoiar nos cotovelos e olhar para ela. Tinha as faces coradas e cintilantes. Caracóis de cabelo úmido agarravam-se-lhe às têmporas e espalhavam-se pelos lençóis em desalinho.- Excitou-me imenso irritar-te - disse-lhe.- Não ias?- Tu és tudo o que eu quero.- Vamos tomar um banho e depois falamos. Falamos - repetiu quando ela ergueu o sobrolho. - Palavra de escoteiro. - Levantou dois dedos em juramento.- Angelina.- Vai-te lavar. Vou ligar para o bar a saber se está tudo em ordem.Quando ela voltou, usando a mesma saia sexy e uma blusa lavada, estendeu-lhe um dos copos.Nos últimos dias havia-se resignado à situação. Durante todo esse tempo parte dela ansiara realmente por ele. E sempre que dera por si a olhar em direção à porta do bar, à espera dele, ou a acordar a meio da noite e a estender a mão para ele, amaldiçoara-se por ser tão tonta e fraca.- Declan - começou. - Não fui justa contigo no outro dia. Não estava com disposição para ser justa.- Julgo que sim. O que mais odeio é saber que ela está ali com a minha avó, saber que a vai magoar novamente. Não posso impedi-lo, não posso solucioná-lo. E isso perturba-me. Mas tu não precisavas de te envolver nisto.- Cher, não digo que não estejas preparado. Mas este aspecto particular da vida, da minha vida, está para lá do teu alcance. Não irias compreender uma pessoa como ela.A cor saudável que o calor e o sexo haviam deixado no rosto de Lui desvaneceu-se de imediato.- A Lilibeth fez-me uma visita por volta do meio-dia. Ponderei se deveria contar-te ou não e resolvi não esconder nada nem mentir-te. Nem que fosse para te poupar. Ela veio e convidou-se a si própria para tomar uma bebida fresca. Depois tentou seduzir-me.- Cala-te. Pareço-te alguém que precise da tua proteção? E poupa-me à tua indignação até eu terminar - disse-lhe. - Quando ela estendeu a mão para o fecho das minhas calças, disse-lhe para não se humilhar. A reação dela foi atirar-se para cima da mesa de cozinha a chorar. - Sentou-se no braço do sofá, ao lado de Lui. Ocorreu-lhe que o tom da conversa não se ajustava a uma postura indolente entre todas aquelas almofadas macias e coloridas. - Não conseguiu verter muitas lágrimas para acompanhar toda aquela choradeira, mas dou-lhe valor pelo esforço. Contou a história de que uns tipos maus e perigosos andavam atrás dela. Que iriam magoá-la, e a ti e a Miss Odette, se não lhes desse cinco mil dólares. A quem podia ela recorrer, que podia ela fazer?- Deste-lhe dinheiro? Como foste tu acreditar...- Era bem capaz disso. - Agora era mais do que o frio, sentia também a náusea a revolver-lhe o estômago. - Declan, ela é perfeitamente capaz de...- Sinto-me envergonhada. Não compreendes?- Não é por tua causa, nunca teve a ver contigo. - Enxugou uma lágrima antes que se derramasse. - É o que tenho tentado dizer-te desde o início.- Nunca conseguirei livrar-me dela, não de modo definitivo. Por mais que tente.- Lamento. Não, raios, vou dizê-lo! - proferiu abruptamente quando o rosto dele se retesou. - Lamento que ela tenha ido a tua casa. Lamento que ela tenha referido a tua família. Vou pedir-te que não menciones nada disto à minha avó.Lui anuiu com a cabeça, levantou-se e pôs-se a perambular pela sala. Adorava aquela casa porque já a tornara sua. E respeitava a sua própria vida pelas mesmas razões. - Ela abandonou-me ainda eu não tinha duas semanas de vida - começou. - Limitou-se a partir certa manhã. Enfiou-se no carro da mãe e partiu. Abandonou o carro em Baton Rouge. Tinha três anos quando ela voltou.- Depende do estado de espírito dela. Certa vez contou-me que era um rapaz e que ambos se amavam, mas que os pais dele os separaram à força e o mandaram para longe. Noutra ocasião, contou-me que tinha sido violentada quando vinha da escola. Ou que tinha sido um homem velho e rico que um dia havia de regressar para nos levar a ambas e nos instalar numa casa luxuosa. - Virou-se para ele. - Só quando eu tinha dezoito anos é que me contou uma versão que me pareceu verosímil. Pelo menos fazia sentido, de tal maneira ela andava sempre drogada, e sendo descuidada e mesquinha como é. Como é que raio havia ela de saber, disse-me. Houve imensos homens. Que raio lhe importava quem a tinha engravidado? Tanto fazia que fosse este ou aquele. Andava a prostituir-se quando ficou grávida de mim. Ouvi coisas quando já tinha idade suficiente para perceber o que significavam. Quando se meteu em complicações, voltou a correr para os meus avós. Teve medo de fazer um aborto... medo de morrer e ir para o inferno ou coisa que o valha. Portanto, lá me teve, e abandonou-me. São as duas únicas coisas que lhe devo. - Respirou fundo e obrigou-se a sentar-se de novo. - De qualquer modo, regressou quando eu tinha três anos, fez as suas habituais promessas de que tinha aprendido a lição, de que estava arrependida, de que tinha mudado. Ficou uns dias e partiu novamente. É um padrão que se tem repetido. Às vezes aparecia espancada por um cabrão qualquer com quem se tinha metido mais recentemente. Outras voltava doente, ou simplesmente drogada. Mas a Lilibeth volta sempre.- E magoa-te sempre que volta - disse Declan num tom calmo. - Magoa-te a ti e magoa Miss Odette.- E nada que ela possa fazer irá alterar quem tu és. És a prova do teu próprio caráter, Lui, e um tributo às pessoas que te criaram. Ela odeia-te por aquilo que és.- Ela odeia-me - balbuciou. - Nunca fui capaz de dizer isso a ninguém. Porque é que dizer uma coisa destas, uma coisa tão horrível, ajuda tanto?Lui bateu pensativamente com a ponta do cigarro no cinzeiro.- Não faz mal. Assim posso continuar a surpreender-te. E ouve só isto: ela tem qualquer ligação à Mansão Manet.- Não sei exatamente, e não consigo explicar. Só sei que há uma ligação. E penso que talvez ela estivesse destinada a voltar agora, para me dizer aquelas coisas. É mais um elo na corrente. E acho que os tempos dela aqui acabaram, de uma vez por todas. Liga à tua avó, Lui. Não deixes que essa mulher se intrometa entre vocês.- Podias ter tentado.- Podemos ser amigos. Quero que os nossos filhos tenham pais que gostem um do outro.- Tenho que voltar para o trabalho.Lui esfregou a testa e tentou reagir tão calmamente quanto ele.- Estás a ter uma atitude muito negativa e nada prestável, sobretudo porque ia pedir-te que me desses uma ajuda. Que tal te sais com um pincel?- Salvas sempre toda a gente?Lilibeth fez nova visita à Mansão entre a saída de Declan e a chegada de Effie. Vinha drogada e agressiva. Se o estupor do cabrão não podia dispensar uns quantos dólares à mãe da mulher que andava a foder, então ela própria trataria disso.A experiência dizia-lhe que as pessoas endinheiradas tinham sempre dinheiro à mão. Avançou rapidamente, escancarou as gavetas, vasculhou-as e soltou um grito quando encontrou um belo maço de notas de cinquenta dólares. Enfiou-o no bolso.Apressou-se a subir a escadaria principal. O fato de ele poder regressar a qualquer momento só aumentava a excitação do roubo.Uma casa enorme, antiga, cheia de correntes de ar. De fato, sentiu o ar frio passar por ela quando se tornou a levantar.Não tinha importância. O quarto dele era ao fundo do corredor. Não era tão estúpida como as pessoas a julgavam. Não observara ela a casa durante os últimos dias? Riu-se alto e o som foi-lhe devolvido; apressou-se a entrar pela porta aberta. Puxou a gaveta de cima de uma cômoda e achou que tinha acertado em cheio ao descobrir uma velha caixa gravada.Colocou a caixa em cima da cômoda e vasculhou mais algumas gavetas até descobrir outro maço de notas.Atirou as notas para dentro da caixa das jóias e enfiou-a debaixo do braço.Precisava de tempo para transformar as jóias em dinheiro, tempo para transformar algum desse dinheiro em droga. Tempo para se pôr a milhas dali. O melhor era deixar as coisas como estavam.Mas quando voltou a entrar no corredor deu por si a olhar fixamente para as escadas do terceiro piso.Agora já não arquejava, agora a respiração saía-lhe num zumbido. Sentia a pele fria como gelo. Mas não conseguiu resistir ao impulso de subir aquelas escadas. Estava sozinha lá em casa, não estava? Estava completamente sozinha, e isso tornava a casa sua.Engolia continuamente para umedecer a garganta seca e de repente sobressaltou-se. Estremeceu.Está na altura de te ires embora.A sua intenção era abri-la lentamente, só para dar uma espreitadela. Mas assim que lhe tocou esta abriu-se de par em par.E o homem, de cabelo louro sob aquela luz tênue, virou-se para a olhar.Formou-se outro vulto no quarto. Um vulto feminino, firme, com um robe comprido.Lilibeth virou-se e fugiu, tomada de um terror indescritível. Tinha pintores, encanadores, carpinteiros e moços de recados. No meio da confusão, ocorreu-lhe que se metade daquelas pessoas tivessem aparecido para reparar o local original da boda, as obras teriam sido concluídas em cerca de vinte minutos, mas decidiu guardar esse pensamento para si próprio.E, sinceramente, apreciava a mão de obra. Lembrava-se disso sempre que certas partes da casa lhe eram retiradas e confiadas a outra pessoa.Tal como tencionava lixar e envernizar o soalho do salão de baile, mas animou-o a lembrança de todos os outros soalhos que o aguardavam no resto da casa. E não se importava minimamente com o fato de passar para as mãos de outros a pintura dos exteriores.Bem, não faltava o que fazer, pensou.Remy tinha razão, era realmente assustadora. Declan escondia-se dela sempre que podia. E nem tentava disfarçá-lo.O nível de ruído era impressionante. Vozes, rádios, ferramentas elétricas. Por mais que apreciasse o convívio, daria mil dólares por cinco minutos sozinho na sua casa.O som da voz de Miss Ruiult fê-lo dar uma rápida meia volta e mudar de direção. Quase colidiu com Odette.- Tem a casa cheia de gente.Ela sorriu: um tênue curvar dos lábios que não chegava a afetar-lhe os olhos.- Neste momento não faço mais do que afastar-me para não atrapalhar.- Bem, sim. - Encolheu os ombros e passou a mão empoeirada pelo cabelo coberto de pó. - Ainda haverá muito que fazer quando todos partirem. Não vamos tocar no terceiro piso, nem na ala da criadagem, e no segundo piso vamos mexer depois num ou noutro quarto. Que se passa, Miss Odette?- Tem visão - acabou por dizer. - Imagina o que quer e depois fá-lo acontecer. É um belo talento, cher.- Você é tudo menos obstinado. Tem muitos canais nessa sua cabeça. Trabalhar num de cada vez até estar pronto, para mim só demonstra caráter. Gosto muito de si, Declan.- Não, não se incomode, e não se arrisque a ser recrutado à força pela Sarah Jane Ruiult. Essa sim, é uma pessoa obstinada, e nem a censuro por isso.- Anda nervosa, querido. A Effie é a menina dela, a filha mais nova. - Cerrou os lábios. - Declan, tenho vergonha do que tenho para lhe contar, e não lhe levo a mal se depois me disser para não voltar a pôr aqui os pés.- Nada do que disser tornará a sua presença indesejada na minha casa, Miss Odette. Quem lhe fez mal?- Vamos verificar. Quero que se sente. A sério.Declan refreou a ira enquanto pousava a caixa sobre a mesa para a abrir. Viu primeiro a caixa do anel e abriu-a. A fúria atenuou-se quando viu as pedras preciosas cintilarem diante dos seus olhos.- Não está a dizer a verdade - disse Odette num tom apagado.- Preciso de saber quanto é para lho poder devolver.Os lábios dela quase tremiam, e Odette pressionou-os firmemente.- Qual responsabilidade?! Sinto-me insultado se voltar a referir que quer devolver o dinheiro.- Sei que ela é responsabilidade minha. E sei que nunca será aquilo que eu esperava, aquilo por que me esforcei, aquilo que desejei desde o momento em que soube que ela crescia dentro de mim. Mas deu-me a Lui. - Pegou num lenço e enxugou as faces. Não verteria mais lágrimas. - Já contava que ela me roubasse antes de desaparecer novamente, mas nunca pensei que fosse roubá-lo a si. Nunca imaginei, e lamento-o.- Não, não me culpa. Oh, como gostava que a minha Lui fosse sua. Estou aqui sentada com a consciência de que a minha filha o roubou e só consigo pensar que gostava que a minha menina fosse para si.Odette olhou para o anel e suspirou.- Sim.- Não se preocupe. Onde está a Lilibeth?- Lidamos com isso quando acontecer. - Inclinou-se e beijou-a na face. - Adoro-a. - Tomou-lhe a mão quando os olhos dela ficaram novamente marejados. - Quer Lui esteja preparada ou não, agora somos uma família. E a família mantém-se unida.- Será uma boa maneira de travarem conhecimento. E se formos dar uma olhada ao que está a acontecer por aqui? Assim protege-me do general Ruiult.Como estava a braços com uma série de sim-sim, boa-ideia e não-há-problema, que se haviam tornado na sua ladainha em resposta à agenda de trabalhos do noivado imposta pelas Ruiult, achou que confrontar-se com Lui seria um alívio.- Sim-sim.- Boa ideia.- Não há problema. Lui. - Estendeu-lhe a mão: um náufrago a agarrar-se a uma corda. - Estamos a falar dos arranjos florais.- Estou ótima, Miss Sarah Jane. Que excitante, não é? Fazer a contagem decrescente até ao grande dia. Effie, deves andar quase louca a tratar de todos os pormenores.- Está tudo tão bonito. - Mantinha um sorriso brilhante e a voz animada apesar do calor sombrio que se tinha apoderado dela. - Aqueles rododendros vão ficar magníficos no dia do casamento.- Talvez os Frank consigam desencantar alguma coisa. Ah, desculpam-me por um momento? Preciso de mostrar uma coisa à Lui. - Escapou e levou-a para junto das escadas da varanda do segundo piso, pois ainda havia alguns elementos da milícia do general Ruiult no andar de baixo. - São como formigas - balbuciou. - Aparecem às centenas quando menos esperamos.- Das pessoas. Estão em todo o lado. Cuidado com esse balde. Creio que estaremos à vontade no salão de baile.- Tenho pensado numas ricas férias em Maui até isto acabar. Mas tenho que te dizer que admiro as mulheres.- Consegues estar furiosa e mesmo assim manter uma conversa bem-educada sobre rododendros. - Espreitou pelas portas do salão de baile e suspirou. - O caminho está livre. De qualquer modo, a maior parte dos homens, quando atinge um ponto de saturação, explode. Bem... - Entrou. - Que achas?- É enorme.Lui atingira o ponto de saturação desde que conversara com a avó, mas começava a sentir-se mais aliviada agora que testemunhava o prazer e orgulho inquebrantáveis dele.- Olho assim para ti. Lui teve de se virar.- Estou zangado. E se tiver ocasião de me encontrar novamente com ela, far-lho-ei saber.- Pensei nisso. Talvez recuperasse algum dinheiro, mas ia envergonhar Miss Odette.- Eu sei. Para que agravar ainda mais a situação? Recuperei as coisas que interessavam.- Entrou na tua casa, vasculhou as tuas coisas. Levou-te coisas. Declan franziu a testa perante o tom de voz dela.- Raios! Raios, Declan, ela invadiu a tua casa! Não é o mesmo que roubar-me a mim ou à minha avó. Quanto levou ela?Lui retesou os maxilares.- Já sabes que o vou rasgar. Esquece isso, Lui. Creio que foi uma lição barata: quando se vem viver para o campo, numa casa cheia de peças valiosas e dinheiro, não se pode sair de casa e deixar as portas abertas.- Sim. É por isso que vou arranjar um par de cães. Sempre quis ter cães. Estou a pensar em ir ao canil depois do casamento. Queres vir comigo?- Uma ladra drogada tira-te cerca de dois mil dólares, e aposto que até era mais, e a tua reação é comprar cães.- Para com isso, Declan.- Se queres cachorros, arranja-os tu. - Mas conseguira arrancar-lhe um sorriso. - E depois andas atrás deles quando te urinarem nos tapetes e te roerem os sapatos.- Agora são meus.- Talvez. Depois verifico que me ficam mesmo bem e esqueço-me completamente de ti.- Um colar. - Passou os dedos pela nuca dele e depois pelo cabelo. - Um par de encantadoras pulseiras cintilantes.Ela riu-se e aproximou-se mais para poder encostar o rosto ao dele. Estavam a valsar e Lui sentia uma melodia a soar-lhe na cabeça. Uma melodia que o ouvira cantarolar ou assobiar vezes sem conta. Sentia nele o dia de trabalho - o suor, o pó - e, debaixo disso, a tênue fragrância do sabonete do banho matinal. E o rosto por barbear, áspero contra o seu.- Sinto tantas coisas por ti. Mais do que alguma vez senti por alguém, ou que alguma vez quis sentir. Não sei lidar com estes sentimentos.Sentiu a cabeça a girar e a música elevar-se no ar. O intenso aroma dos lírios pairava no ar e quase a sufocava.- Não... - A voz dele soou-lhe distante. E, quando tentou afastá-lo, pareceu-lhe ver outro rosto a flutuar sobre o dele. - Estou a sentir vertigens.- Espera um minuto. - Teve necessidade de recuperar a compostura. Só estavam ali os dois. Não havia música, nem luz de cristal, nem vasos repletos de fragrantes lírios brancos. E, no entanto, tudo isso ela ouvira, vira e cheirara. - Não sabia que as alucinações eram contagiosas.- Sim, aqui estamos nós. E não estou a viver a vida de outra pessoa.- Eu senti que era. E viver a vida de outra pessoa pode significar morrer como ela. Ele afogou-se naquele tanque e ela...Lui inspirou profundamente para se acalmar.- Eu sei que foi assim. Lá em cima, no quarto das crianças. Alguma coisa lhe aconteceu lá em cima. E ele nunca soube. Sofreu até à morte por não saber. Preciso de descobri-lo. Por ele e por mim. Preciso que me ajudes.- Anda comigo ao quarto das crianças. Agora estamos mais próximos um do outro. Talvez desta vez te lembres.- Penduraste garrafas nas minhas árvores e agora negas qualquer possibilidade de reencarnação, uma ideia que tu própria sugeriste logo no início?O efeito foi o mesmo que enfiar uma soqueira e desferir-lhe um murro no estômago. O choque das palavras dela provocou-lhe vertigens.- Porque não?- Não sei porque é que isso é um choque tão grande para ti. Muitas pessoas dão-se bastante bem sendo mulheres.- É o que faz mais sentido, se é que isto faz algum sentido.- És tu que continuas a ouvir a bebê chorar. - Nunca o vira tão corado. - São as mães que ouvem, antes de qualquer outra pessoa. E sentes-te atraído por aquele quarto lá em cima, tal como uma mãe é atraída pelo seu bebê. Embora o quarto te assuste, também te fascina. Disseste que perambulaste pela ala da criadagem, que te orientavas facilmente. Ela saberia orientar-se assim, mas o Lucian?- E há mais - continuou Lui. - Uma coisa leva à outra. Naquele dia em que vim aqui e te vi caminhar em direção ao tanque em estado de transe. Caminhavas de um modo estranho. Não consegui descobrir porque é que a tua maneira de andar me surpreendia. Mas agora sei. Caminhavas como uma mulher grávida. Um pouco bamboleante - disse enquanto ele se virava e a olhava boquiaberto e com uma expressão de horror. - Comprimias a mão contra o fundo das costas. Davas passos pequenos, cautelosos.- Oh, por amor de Deus, cher. Há quem acredite que podemos voltar na pele de um cão, porque não na de uma mulher grávida?O horror no rosto dele era cômico, e foi o suficiente para ela não insistir mais na teoria.Declan sentiu vontade de esfregar as virilhas só para ter a certeza de que tudo estava no lugar. E talvez soltar um arroto de macho.- Mantém a mente aberta, cher. Tenho de ir trabalhar.- Tenho que trabalhar para ganhar a vida.- Tenho de passar uma noite ou duas em casa da minha avó, até ela se sentir mais calma.- Hmm. - Tocou com a língua no lábio superior e fingiu reflectir. - Não. Posso atestar que foste muito homem. Agora desanda. Tens muito que fazer nos próximos dias para te manter a mente ocupada. Esta coisa toda já esperou cem anos e pode esperar até ao casamento do Remy.- Está bem.- Receio bem que sim - murmurou. E afastou-se.Era o lar da sua infância. Talvez fosse o lar do seu coração. Embora fizesse a sua vida na cidade, era para ali que voltava quando se sentia muito feliz, ou muito perturbada. Era para ali que vinha para pensar profundamente ou para se entregar aos seus sonhos mais secretos.Quando deixara de sonhar com isso?No pântano que era dela, com o rapaz que era dela. Com a mãe dela.Sabia que agora o rapaz já não importava. Já quase não conseguia lembrar-se da cara dele. Sentia bem no seu âmago que a mãe também já não importava. Mas o momento importava.Mas aquela visão crua de sexo e traição tinha-a marcado. Compreendera nessa altura o que talvez tivesse levado anos a aprender se as circunstâncias fossem outras: que era mais inteligente e seguro ser a própria mulher a tomar as rédeas da sua vida. Os homens vinham e partiam e era agradável passar bons momentos com eles.Um suicídio? Abanou a cabeça enquanto se apeava do carro. Aquilo era absurdamente dramático, não era? Um coração despedaçado não era o mesmo que morrer.Ouviu a voz dizer-lhe aquilo na cabeça. Não fora o ferimento do punhal, não fora o tanque que trouxera a morte a Lucian Manet.Entrou e reparou imediatamente na luz que provinha do quarto de Odette. Quando se aproximou, ouviu Rufus bater com a cauda no chão. Avançou para a porta e inclinou a cabeça. Odette estava sentada na cama, com um livro aberto sobre o regaço e o fiel cão enroscado no chão.- À espera da minha menina. Pensei que só voltasses daqui a uma hora ou mais.Odette bateu com a mão na cama, num convite para ela se sentar ao seu lado.- Costumavas dizer-me que as preocupações ficavam para ti. - Deitou-se sobre a cama, com a cabeça pousada sobre o braço da avó. - Agora, também eu as tenho. Desculpa se ela te magoou.- Estava a pensar no que custou a ti e ao avô criar uma bebê depois de já terem criado a vossa própria filha.- Fez-me pensar no fato de os Manet terem trazido a tua avó para aqui quando ainda era uma bebê. Ainda te lembras bem dela, não lembras?- Ela alguma vez disse que a Mansão devia ser dela?- Mas deve ter pensado nos pais dela, e nos Manet. Por feliz que fosse aqui, deve ter pensado neles.- A sério? Nunca me tinhas contado.- Pela mãe, achas?- E achas que é aí que a Abigail está? No rio?- Não estou a perguntar às outras pessoas. Estou a perguntar-te a ti.Lui apoiou novamente a cabeça e fechou os olhos.- Eu sei.- Seguramente que mudará - murmurou, continuando a afagar-lhe o cabelo. - Seguramente que mudará. Ninguém parecia importar-se.- Vamos embora, meu amigo.- Quase.- Onde está toda a gente?- Oh! Cagões. - Exibiu um sorriso de borracha. - Tu e eu, Dec, só nós é que ainda temos tomates.- Vamos ver se descobrimos mais uma mulher nua.- Vou casar daqui a três dias. - Estendeu quatro dedos. - Acabaram-se as farras aqui para o Remy. - Olhou em volta. As ruas estavam praticamente desertas e gordurosas com a leve chuva. - Vamos ter que pagar a fiança a alguém?- Isso mesmo, raios. Onde está a minha menina? Effie! - Gritou o nome dela, e o eco devolveu-lho de pronto, fazendo Declan engasgar-se no seu próprio riso ébrio.- Tenho que encontrar a minha menina e fazer amor devagar, devagarinho, com a minha Effie.- Queres apostar? - Deitou as mãos ao fecho, e Declan teve ainda consciência suficiente para se levantar cambaleante e o impedir.- Não há azar, somos advogados.- Um táxi até casa da Effie. Onde está a minha noivinha toda coradinha?- Então não andas a fodê-la como deve ser!- Não tens andado a experimentar a roupa íntima dela nem nada de coisas esquisitas, pois não, meu filho?- De certezinha que estás a brincar. Espera. - Deteve-se e inclinou-se sobre o passeio, com as mãos apoiadas sobre os joelhos. Depois endireitou-se lentamente. - Falso alarme. Não vou vomitar.- Onde é que moro? - perguntou Remy. - Agora esqueci-me. Posso ligar à Effie e perguntar-lhe?Quando o táxi parou, deu uma cotovelada a Remy, fazendo-o despertar de repente como uma seta disparada por um arco.- Consegues safar-te sozinho? - perguntou-lhe Declan.- Ugh! - foi tudo o que Declan conseguiu dizer quando Remy saiu do táxi.- Faz isso. Espere até ele entrar - disse Declan ao taxista. Viu Remy cambalear, dividir-se em dois e tropeçarem ambos para dentro do edifício. - Pronto, o resto é com ele. Sabe onde fica a velha Mansão Manet?- Creio que sim.- É muito longe. - O taxista virou-se e olhou-o de alto a baixo. - Tem dinheiro suficiente para pagar?- Você é que sabe. - Abanou a cabeça e arrancou. - Deve ter sido uma grande festa, amigo.Quando voltou a si, a primeira coisa que lhe ocorreu, literalmente, foi que tinha uma banda de Dixieland a explodir-lhe na cabeça. Continuava de rosto voltado para baixo, mas a praia de Waikiki tinha-lhe desaguado na boca, e a língua dir-se-ia embrulhada num casaco de peles.- Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores.- Sinto-me a morrer. Chama um padre.Declan engoliu, engasgou-se e sentiu que qualquer coisa abjeta lhe lavava a língua e a areia que sentia na garganta. A sua reação foi tentar afastar o copo dos lábios e abrir os olhos.Lui deu um estalido com a língua.- Que olhos? Que olhos? Foram reduzidos a cinzas.- Vai-te embora, vai para bem longe e leva o teu veneno contigo.Declan deitou-se de costas e cobriu o rosto com uma almofada.- A Effie telefonou-me.- Felizmente vai casar com uma mulher muito tolerante, compreensiva e bem-humorada. A quantos bares de streapers foram ontem à noite?- Deve ser por isso que tens colado na cara um daqueles enfeites que elas usam no mamilo.- Pronto, querido. - Pressionou a almofada até ele erguer as mãos e destapar o rosto para respirar.- Não teve piada nenhuma.- Vais sentir-te melhor daqui a pouco. Não completamente, mas vais sentir-te melhor. Lava-te e come qualquer coisa por cima dessa poção que te dei e daqui a duas ou três horas voltas a sentir os braços e as pernas.- O que era aquela coisa que me deste?- Porquê?- Alguém te pediu alguma coisa?- Como já previa uma ressaca, fiz saber que quem viesse aqui antes das três da tarde seria fuzilado sem julgamento.- Parece que ainda tens umas horas.- Estou na cozinha. - Franziu o sobrolho. - Traz a tua arma, cher, e vamos ver se ainda sabes usá-la.Lui soltava risadinhas enquanto descia para o piso de baixo. Riu-se ainda mais quando ouviu uma porta a bater. Aposto que se vai arrepender, pensou. Depois deteve-se e olhou para trás quando ouviu outras duas portas a bater.- Podem fazer o escarcéu que quiserem - disse voltando a encaminhar-se para a cozinha. - Não me preocupam nada.Raios, ele estava mesmo ficando maluco, pensou enquanto procurava o café. Pálido, másculo e zangado. E com aquele estúpido adorno colado na cara.Moeu os grãos e preparou o café. Estava a bater os ovos numa tigela quando lhe ocorreu que era a primeira vez na sua vida que preparava o café da manhã para um homem com quem não dormira na noite anterior.Mais estranho ainda era dar por si a cantarolar na cozinha de um homem com ressaca, irritado e malcheiroso que para mais a repreendera. Nem pareces tu, Lui. Que se passa aqui?Espreitou da janela para o jardim que uns meses antes se apresentava selvagem e negligenciado. Agora desabrochava em beleza, com novos rebentos verdes a despontar.Estava apaixonada por ele. E, oh, Deus, não queria sentir-se assim - tanto para o seu bem como para o dele.E aterrorizavam.Poderia? Conseguiria?A porta de um dos armários bateu quando falou. Uma grossa caneca azul caiu e foi estilhaçar-se aos pés dela.- Parece que já o fiz. E tu não queres nada disso, não? - Deu meia volta, com a taça ainda na mão. - Aceitas tudo, exceto ver-nos juntos. Veremos quem ganha, não é? Veremos.- Não sou fraca como ele era. Se aceito o amor, se prometo amar, sou fiel à minha promessa.- Raios, vai abrir a porta! - Era a voz irritada de Declan que ecoava lá em baixo. - E depois mata quem tocou à estúpida da campainha!- Se continuares a gritar comigo, vais ter mais do que uma ressaca para curar - gritou ela enquanto avançava pelo vestíbulo.- Daqui a pouco vou aí e torço-te o pescoço! E depois de te torcer o pescoço, dou-te uns pontapés nesse traseiro!- Sou Colleen Fitzgerald. - A mulher elegante, loura e encantadora estendeu-lhe a mão. - E você quem é? Se pretende dar esses pontapés no traseiro do meu filho, gostava de saber o seu nome.- Mudança de planos. Saíste da cama agora? - perguntou Colleen. - Já passa da uma da tarde.- Deveras? - disse Colleen, olhando para Lui.- Prazer em conhecê-la. - Patrick, alto, esguio e com o cabelo escuro encantadoramente grisalho nas têmporas, ofereceu um generoso sorriso a Lui.- Feriu-se.- Que te aconteceu? Estás a sangrar. Credo, Lui! - Assustado, Declan agarrou-lhe no pulso; quase a levantou do chão e levou-a apressadamente para a cozinha.- Cala-te. Deixa-me ver a ferida.- É esta a moça?- Lá vistosa é.Era mais, muito mais do que estava à espera. Não que duvidasse do gosto do filho. Mas fora levada a crer que a casa se encontrava num estado de ruína talvez irrecuperável. E na cozinha viu o filho debruçado sobre a mão de uma mulher muito bela e muito irritada, que parecia perfeitamente capaz de cumprir a ameaça que proferira antes.Declan virou-se para vasculhar os armários.- Oh, para de te preocupares. Até parece que decepei a mão. E se não tens cuidado, ainda pisas os cacos e ficas pior do que eu. Peço desculpa pela sua chegada ser tão atribulada - disse para os pais dele. - Vou varrer esta confusão e depois tenho de ir.- Deita o conteúdo da tigela numa caçarola, liga o fogão e já tens comida. - Abriu o armário com um puxão. - Porque é que não ofereces café ou uma bebida fresca aos teus pais depois de uma viagem, tão longa? Já te esqueceste da educação que te deram?- Desculpem. Distraí-me ao ver o chão manchado com o sangue da mulher que amo.- Um café seria ótimo - disse Patrick com jovialidade. - Viemos para aqui diretos do aeroporto. Queríamos ver a casa... e a ti também, Dec - acrescentou com um piscar de olho.- Mandamo-la para o hotel. Filho, esta casa é enorme. É muito espaço para um homem só.- Pronto, três - emendou ele sem se desmanchar. - Mas é a minha última oferta.Saiu pelas traseiras porque era mais perto, e reprimiu a intensa vontade de bater a porta com força e partir as janelas.- Irritaste-a e envergonhaste-a - disse-lhe Colleen.Uma hora depois, Declan estava sentado com a mãe no alpendre das traseiras enquanto o pai preparava sanduíches e se distraía da conversa.Meu Deus, sentira saudades deles, pensou. Só tivera consciência disso quando os vira.- Vou. - Mas continuou sentada a contemplar os jardins. - Está calor, não está? Ainda é cedo para tanto calor nesta época do ano, creio eu.Colleen atentou no modo como ele dissera aquilo, com uma espécie de orgulho.- O esqui é uma coisa que as pessoas inventaram para fingir que a neve é divertida.- Não preciso de ficar em Boston para estar perto. Ela abanou a cabeça.- Não quero que fiques triste.- Estás sempre a dizer isso - disse ele em tom de brincadeira. Ela olhou-o: olhos cinzentos fixos em olhos cinzentos.- Obrigado. - Inclinou-se e beijou-a.- A Lui.- Talvez devesses adotá-la.- Não te custava nada teres-me dito qualquer coisa.- A quem o dizes.Pegou na mão da mãe e passou-a pelo rosto.- Temporariamente. Ainda não tenho opinião formada sobre ela. E acredita-me, rapaz, ela também não tem uma opinião formada sobre o teu pai e eu. Portanto, aconselho-te a manteres-te à margem e a deixar essa questão conosco.- Patrick, tiveste que ir caçar um porco para fazer os sanduíches? Declan sorriu e deu um beijo ruidoso na mão da mãe.- Nós também te adoramos. - Colleen apertou-lhe os dedos com força e largou-lhe a mão. - Só Deus sabe porquê.O suor e as lágrimas escorriam pelo rosto dele - pelo rosto dela. O rosto dela, o corpo dela. A dor dele.A dor apoderou-se do seu ventre com a contração seguinte. Cegou-a. E o grito que soltou foi primitivoo, queimou-lhe a garganta.Estava tão cansada, exausta, enfraquecida. Como conseguiria suportar tanta dor? Mas rangeu os dentes. Quase enlouquecia. Tudo o que era, tudo o que tinha, se concentrou naquele labor, naquele milagre.Já se vê a cabeça! Et là! Tanto cabelo! Só mais uma vez, Ab. Só mais uma vez, chère!Aquele momento, aquele ato, era a maior dádiva que uma mulher tinha para oferecer. Aquela dádiva, aquela criança, estaria segura, seria acarinhada. Seria amada até ao fim dos seus dias.Uma menina! Uma linda menina!Minha rosa! Minha linda Marie Rose! Vai dizer ao Lucian. Oh, por favor, traz o Lucian para ver a nossa filha!Lucian tinha lágrimas nos olhos quando entrou no quarto. Os dedos tremiam-lhe quando agarrou na mão dela.E ela contou-lhe aquilo que jurara no momento em que tinham colocado Marie Rose nos seus braços.Claro que sim. É tão linda, Abby! As minhas lindas meninas! Amo-te.Lucian continuou a segurar na mão de Abigail e afagou o rosto da filha com ternura. Amá-la-ei e cuidarei dela, para sempre, juro. - Sabes, Colleen, isto é quase como intrometermo-nos e andarmos a espiar.Patrick teve de se rir. Após quase quarenta anos de casamento, a esposa conseguia sempre fazê-lo rir, o que considerava, antes de mais, sinal de uma parceria de sucesso.- E pronto, vamos dar uma vista de olhos ao negócio dela e tomar uma bebida. É perfeitamente natural e respeitável.Usava aquela expressão e aquele tom somente quando caçoava dela. Colleen hesitou entre dar-lhe uma boa cotovelada nas costelas ou rir-se. Fez ambas as coisas.Boston tinha certamente o seu lado sórdido, mas não o exibia de forma tão ostensiva. Claro que o sexo devia ser divertido e interessante - não era nenhuma puritana, por amor de Deus. Mas também devia ser uma coisa íntima.Se o filho estava determinado a construir ali o seu lar, teria de aceitar esse fato. E talvez com um pouco mais de estudo e conversação conseguisse aceitar também a mulher.Colleen suspirou. Os homens, Deus os abençoasse, eram criaturas deveras simples. E ingênuas. O primeiro passo seria, obviamente, observar a moça no seu próprio meio.Gostou da varanda, dos vasos com flores: cores fortes contra um fundo de suaves tons creme. Revelava gosto e estilo, um apreço pela atmosfera.Entrou no Et Trois e dedicou-se a uma inspeção objetiva e aprofundada.Supôs que a música que jorrava dos autofalantes fosse cajun, o que também aprovou. Era uma música alegre, mas não ruidosa a ponto de transformar uma simples conversa num ato penoso.Avistou o que concluiu serem turistas devido às máquinas fotográficas e aos sacos de compras. Presumiu que as outras pessoas fossem habitantes locais.Lui saiu da cozinha. Os olhares cruzaram-se imediatamente num reconhecimento instantâneo. Colleen curvou os lábios num pequeno sorriso bem-educado e dirigiu-se para o balcão com Patrick atrás dela.- É raro a Colleen passar por uma loja e não ver alguma coisa que precise de comprar.- Já almoçamos, obrigada. - Colleen sentou-se num dos bancos. - Adorava um martini, Stoli, gelado, muito seco e bem batido. Com três azeitonas.- Pode ser o mesmo. - Ocupou o banco ao lado da esposa. - Tem aqui um local agradável. Música ao vivo? - perguntou, apontando com a cabeça na direção do palco.- Estamos ansiosos pelo casamento - comentou Colleen. - O Remy é como se fosse da família. E estamos felizes por ver que o Declan tem feito tantos progressos na casa.- Sim.- Seria melhor para vocês se ele se sentisse feliz em Boston... com aquela com quem quase se casou.Lui colocou as azeitonas nos martinis e serviu-os com mãos firmes.- Obrigada. - Colleen pegou no seu copo e bebeu um pequeno gole. Ergueu uma sobrancelha. - Está excelente. Sempre achei que preparar um martini perfeito era uma espécie de arte, e sempre me surpreendeu e desiludiu verificar que muitas vezes eram os donos dos clubes ou dos restaurantes que preparavam ou serviam martinis imperfeitos.- Exatamente. É uma questão de orgulho, não é? Em nós próprios, no nosso trabalho, na nossa vida. Os defeitos são compreensíveis e mesmo necessários para nos tornarem humanos e humildes. Mas servir um convidado ou um cliente e não darmos o nosso melhor, soa-me a arrogância ou desleixo. Ou ambas as coisas.- É uma boa política - Colleen provou uma azeitona. - Sem padrões elevados, acomodamo-nos a fazer menos do que aquilo que nos tornaria felizes e produtivos, e arriscamo-nos a desiludir as pessoas que verdadeiramente nos importam.Quando Patrick se inclinou para observar atentamente o martini da esposa, Colleen franziu-lhe o sobrolho.- Estou a tentar ver o que é que a tua bebida tem que a minha não. Lui riu-se e sentiu os ombros relaxarem.- Agora, entretemo-nos com esta - disse Colleen.- E então? - perguntou Patrick. - Creio que conseguiu pôr-te no teu lugar.- Não estou nervoso. - Remy estava na biblioteca, pálido, desassossegado, enquanto Declan lhe afixava o ramo de lírios do campo na lapela do smoking.- Eu estou quieto.- Quero casar com a Effie. Quero viver a minha vida com ela. Hoje é o dia por que ambos ansiavamos.- Sinto-me um pouco indisposto.- Não. A minha mãe já é encargo bastante. Quantas pessoas disseste que estão lá fora?- Céus! Porque é que não casamos em segredo? Como é que querem que um tipo fique ali imóvel diante de centenas de pessoas e mude a sua vida para sempre?- Não há dúvida de que isso me acalma, cher. E se fosses arranjar-me um golinho de bourbon?- Já imaginava que ias precisar de uma golada. E disto. - Deu-lhe também uma embalagem de Altoids. - Para não chegares ao pé da noiva com hálito de whiskey. Ainda acabava por ser ela a fugir.- Estão os dois tão elegantes! Declan, não lhe dês mais do que um gole desse whiskey que escondeste atrás das costas, e certifica-te de que ele lava a boca para refrescar o hálito.- Muito bem. - Aproximou-se com um sorriso para ajeitar o laço de Remy. - Estás nervoso porque é o dia mais importante da tua vida. Era mau sinal se não tremesses um pouco. Juro-te que os tremores passam assim que vires a Effie. Está tão bonita! - Segurou-lhe o rosto entre as mãos. - Estou muito orgulhosa de ti.- De ti trato depois. Vais casar com a mulher que amas - prosseguiu Colleen. - Estás rodeado de família e amigos e todos vos adoram. O dia está maravilhoso e o teu irmão, o teu irmão de coração, tratou de tudo para que o casamento decorresse num cenário magnífico. Dá lá uma golada nesse bourbon e respira fundo. Depois, mexe-me esse traseiro e casa-te.- Eu sei. Também te adoro, mas não te dou um beijo senão ainda estrago a maquiagem. Só uma golada, Declan. Se este rapaz aparecer ali meio cambaleante, o responsável és tu.- É a minha menina.E ali ficou, de pé no jardim primaveril, com a velha casa branca a elevar-se sobre o relvado verdejante, a ver os seus amigos casar.Sentiu que o seu próprio sorriso se distendia até se revelar quase tão desmesurado quanto o de Remy.Estava vestida de vermelho. Um cintilante vermelho-papoula que lhe deixaria as costas desnudadas se não fosse a intrigante teia de delicadas alças. Prendera por cima do coração o relógio de esmalte e as asas douradas que Lucian oferecera outrora a Abigail.- É especial - disse ela -, por isso guardo-o para ocasiões especiais. Foi uma cerimônia maravilhosa, Declan. Fizeste um excelente trabalho a aprontar a casa para o casamento. És um bom amigo.- Temos andado ambos ocupados.- Talvez. Há muita gente com quem devias estar a conversar.- A tua mãe levou-a para um lado qualquer.O orgulho retesou-lhe a espinha e a voz.- Sim? - Divertido, Declan semicerrou os olhos em desafio. - Se chegarem a vias de fato, aposto na Colleen. Tem uma esquerda fabulosa. E se fôssemos buscar champanhe e procurá-las? E verificar quantos rounds já travaram.- Ela nunca faria isso. - Declan já não estava a achar graça, e abanou-lhe ligeiramente os ombros. - Por quem a tomas, Lui? Se se afastou com Miss Odette, é porque queria conhecê-la.- Estiveram no teu bar?Declan sentiu os tremores do pânico masculino perante a imagem das duas mulheres mais importantes da sua vida a medirem forças.- Disse o que tinha a dizer, foi só. Agora compreendemo-nos bem uma à outra.- Não é a altura nem o lugar.Lui encolheu os ombros ao detectar a ira na voz dele. Sorriu e passou-lhe o dedo pela face.- Está bem, agendemos isso para mais tarde. - Agarrou-lhe no queixo. - Ainda não percebi por quem tens tão pouca consideração, Lui, se por mim, se pela minha família, se por ti própria. Avisa-me quando souberes a resposta. - Inclinou-se e beijou-lhe levemente os lábios. - Até logo.Declan gostava de imaginar que a casa absorvia toda aquela energia positiva, inclusive os cantos escuros das divisões que mantivera fechadas.- Alguém matou o Remy? - Conduziu-a para o meio do salão. - Não vejo outra maneira de ele deixar que te afastasses mais de um centímetro dele. - Beijou-lhe a mão antes de a tomar nos braços. - E não o censuro. Quando a mulher mais bonita nos pertence, mantemo-la junto de nós.- Quando te cansares dele, avisa-me.- Foram só duas semanas? - Riu-se. - Valeu por cada hora em que me mantive escondido nos armários para que nenhuma de vocês me encontrasse.- E estou.Declan sentiu os tremores percorrerem-na e afagou-lhe as costas para a tranquilizar.- Estou preocupada contigo. Há qualquer coisa por terminar. E parte disso é, de certa forma, por minha culpa.- Quem me dera saber. Só sei aquilo que sinto. Trata-se de algo que fiz, ou não fiz, por ti. Sei que não faz nenhum sentido, mas sinto-o com tanta intensidade... Sinto que não pude ajudar-te quando mais precisavas de mim. Receio que algo de mau aconteça novamente se isso não for corrigido. Portanto, e por tolo que possa parecer, quero dizer-te que lamento, que lamento terrivelmente ter-te desiludido, qualquer que tenha sido essa desilusão.- Tens razão. Mas... tem cuidado - disse enquanto Remy se acercava e desferia na brincadeira um murro no amigo.- Boa ideia.Declan virou-se ligeiramente e estendeu a mão para a avó da sua amada.- Ainda está para chegar o dia em que recusarei dançar com um homem bonito.- Os casamentos fazem-me sentir jovem. Tive uma agradável conversa com a sua mãe.- Não esteja a imaginar coisas - disse ela com uma risada. - Tenho a dizer-lhe que nos entendemos muito bem. E pareceu-me ter ficado contente quando lhe disse que, assim que a vi, percebi logo a razão de ser dos bons modos do filho. Ela retribuiu-me o elogio dizendo o mesmo da minha Lui. Depois falamos de coisas de que as mulheres costumam falar nos casamentos, coisas que certamente o aborreceriam... exceto quando nos pusemos de acordo quanto ao fato de o filho dela ser um jovem muito bonito. E que os jovens bonitos deviam arranjar motivos para usar mais vezes um smoking.- Então vou ter que esperar até ao seu casamento para poder voltar a vê-lo todo ajanotado.- Tempestade? Cher, ontem à noite não houve nenhuma tempestade.- Estive de pé até à meia-noite. - Observou-lhe o rosto. - A dar os remates à bainha deste vestido. E levantei-me por volta das quatro quando o Rufus resolveu que queria ir lá fora. Reparei que havia aqui luzes acesas. Perguntei-me o que estaria a fazer de pé àquela hora... O céu estava completamente limpo, Declan.Mas não estivera acordado às quatro. E, tanto quanto sabia, não se levantara sequer depois da meia-noite, altura em que percorrera a casa para apagar todas as luzes antes de se deitar.Mãos femininas, vozes femininas - de Effie? - que proferiam palavras de conforto, de encorajamento.Tinha dado à luz. Estivera em trabalho de parto.- Cher? Declan? Vamos lá para fora. - Odette conduziu-o gentilmente para fora do salão. - Precisa de apanhar ar.- O quê?- Volte para o baile - disse-lhe ele. - Vou caminhar um pouco, para desanuviar a cabeça.- Um milagre - murmurou. - Tenho de comprar uma presente verdadeiramente magnífica para a minha mãe. Não consigo perceber como é que vocês, as mulheres, conseguem recuperar depois da primeira vez. Ela passou quatro vezes por isso. Extraordinário! - balbuciou e dirigiu-se para as escadas. - Verdadeiramente extraordinário!Ouvia a música do salão de baile jorrar pelas escadas abaixo. Conseguia sentir no teto as vibrações de dezuis de pés a dançar.- Declan. - Lui entrou pela porta da varanda e fechou-a atrás de si. - Que se passa?- Ninguém te vê há quase uma hora. As pessoas começam a perguntar por ti.- Dói-te muito?- E se descansasses uns minutos?- É tentador. Quando vejo um homem de smoking, desejo sempre despi-lo.- Ora aí está uma piada bastante estúpida. Já deves estar a sentir-te melhor.Lui cerrou os lábios.- Não tanto quanto planejava. Lembras-te de onde te surgiu essa teoria de que eu era a Abigail Manet? Bem, começo a pensar que talvez não estejas longe da verdade, porque sonhei que estava naquele quarto ao fundo do corredor, na cama que vi, na cama que lá não existe. E não estava a ver a Abigail ali deitada na fase final do trabalho de parto. Era eu que estava a passar por isso, e devo dizer-te que não é nada fácil. Qualquer mulher que opte por não tomar sedativos, e dos fortes, só pode ser completamente louca. É uma experiência que ultrapassa todas as crueldades que possam ter inventado durante a Inquisição Espanhola.- Não parecia um sonho, Lui, e creio que estive nesse quarto quando tive a... visão ou alucinação, ou o que quer que lhe queiramos chamar. Lembro-me da tempestade, do barulho, e de como estava assustado, a esforçar-me por trazer o bebê ao mundo. - Calou-se e atentou nas suas próprias palavras. - Bem, isto soa muito estranho.- Ouvia as vozes das mulheres que estavam a ajudar-me. Conseguia ver os rostos delas, sobretudo o da mais jovem, mais ou menos da minha idade... da idade da Abigail. Conseguia sentir o suor que me escorria pelo rosto, e a incrível fadiga. E depois aquela sensação, o auge daquilo tudo, quando parecia que estava prestes a ser rasgada em dois. Aguentei a dor, e depois veio o alívio, o entorpecimento, o deslumbramento de trazer uma vida ao mundo. E uma vaga de orgulho e amor quando colocaram aquele milagre nos meus braços. - Olhou para as mãos enquanto Lui o observava fixamente. - Consigo ver a bebê, Lui, tão nítida como a vida, consigo vê-la. Toda vermelha e enrugada e zangada. Olhos azuis-escuros, cabelo escuro. Uma boquinha como um botão de rosa. Dedinhos minúsculos e esguios, e pensei: são dez, é perfeita. A minha rosa perfeita. - Olhou então para Lui. - Marie Rose, a tua trisavó. Marie Rose - repetiu -, a nossa filha. Envolveu-se novamente entre a multidão, entre a música e os risos. Agora era o presente, pensou. O que importava era o momento presente.Rosas e verbenas, balsamina, jasmim.E no quarto das crianças havia rosas. Minúsculos botões rosados para a preciosa Marie Rose.Não queria o passado. O passado estava morto e enterrado. Não queria o futuro. O futuro era caprichoso e frequentemente cruel. Devia viver e apreciar o momento presente. Quando o pai de Declan lhe pegou na mão, Lui sorriu-lhe com os olhos a cintilar.- Já vamos descobrir.- Patrick, você nasceu para isto. Tem a certeza de que é mesmo ianque?- Que idade tem a sua mãe?Lui fez por manter uma expressão alegre.- Isso é que é intrigante. E se bebessemos um copo de champanhe e me contasse tudo? - Uma noite perfeita - disse ela, aspirando o ar. - Veja os jardins. É difícil acreditar naquilo que eram há uns meses atrás. O Declan falou-lhe dos Frank?- Bem, omitiu muita coisa. - Bebericou o seu champanhe e perambulou pela varanda. As pessoas continuavam a dançar no relvado. Um grupo de mulheres estavam sentadas a uma das mesas brancas sob a Lua branca, com bebês a dormirem sobre os ombros e crianças cheias de sono nos regaços.Intrigada, Lui esqueceu as pessoas e as encantadoras luzes de decoração e olhou para Patrick.- Infeliz, inquieto, mas bastante aborrecido. Com o trabalho, com a noiva, com a vida. A única coisa capaz de o animar era a velha casa que estava a restaurar. Preocupava-me que ele fosse em frente e acabasse por casar com a mulher errada, que trabalhasse numa área que detestava, que vivesse uma vida que só o satisfazia pela metade. Não devia ter-me preocupado. - Apoiou-se na balaustrada e observou o salão de baile através das portas abertas. - A mente e o coração dele não queriam seguir o caminho que eu e a mãe lhe tínhamos desbravado. Não quisemos ver isso durante muito tempo, estavamos cegos.- Sim, e a índole do Declan é fazer o possível para tornar felizes aqueles que ama. E ama-a a si. - Como ela não dizia nada, Patrick olhou-a no rosto. - Você disse que ele era obstinado. É mais do que isso. Assim que o Declan se decide por um objetivo, por um sonho, a determinação dele é como granito. Não permite que quaisquer obstáculos, desculpas ou protestos o desviem do caminho. Se não o ama, Lui, se não quer viver a vida com ele, então magoe-o. Magoe-o rápida e profundamente. E depois afaste-se.- Ele julgava que já não era capaz de amar ninguém. Disse-mo quando rompeu com a Jessica. Disse que não sentia nenhum amor dentro dele. Agora sabe que não é assim, e sente-se melhor por isso. Você já operou uma mudança na vida dele, uma mudança importante. Agora tem que o amar também, ou então abandoná-lo. Seria cruel optar por uma situação intermediária, e você não é cruel.- Ele não é aquilo que eu esperava. Não é aquilo que eu procurava.- A vida está cheia de surpresas, não é? Algumas surpresas são um verdadeiro pontapé no traseiro. Inclinou-se e beijou-lhe a face. - Vemo-nos mais tarde - disse. A festa continuou um bom par de horas depois de os noivos terem partido sob uma chuva de confetes: confetes que Declan calculou que encontraria durante os seis meses seguintes no seu relvado, nas suas roupas e talvez na sua comida.Declan manteve-se de pé junto aos degraus da entrada e viu partir os últimos convidados. O céu começava a empalidecer a oriente, num delicado atenuar da cor escura. A manhã começava a romper.- Não. - Continuou a olhar para o céu. - Devia estar, mas não estou.- Não. O general e as suas tropas vêm aqui tratar disso amanhã. Ordenaram-me que me mantivesse afastado, ordem que cumprirei com agrado. Não pensei que ficasses.Virou-se e olhou para ela. Eram uma espécie de Romeu e Julieta, pensou. E ansiou por um final melhor.- Não tenho a certeza. Não sei que pensar de ti, Declan. Juro por Deus, não sei mesmo. Os homens nunca foram um problema para mim. Talvez fosse eu um problema para eles - disse com um ligeiro sorriso. - Mas és o primeiro que me dá problemas.- Nenhum deles te amava.- Mas isto entre nós os dois não é um jogo.- Sinais e beliscaduras por enquanto, Lui. - Calou-se. - Sinais e beliscaduras.- A ti vejo-te claramente. Mas vejo em nós algo que não pode ser ignorado ou esquecido. Algo que talvez precise de ser esclarecido antes de prosseguirmos. - Enfiou a mão no bolso e tirou o relógio de Lucian. - Já te ofereci isto em tempos, vai para cem anos. Está na altura de o reaveres.- Se isso é verdade, não vês que tudo acabou em sofrimento, morte e tragédia? Não conseguimos mudar aquilo que aconteceu. Para quê correr o risco de o fazer reviver?- Está bem. - Guardou o relógio no bolso do casaco curto que vestia. Depois soltou o que trazia preso no vestido. - Já te dei isto em tempos. Devolvo-to.- Meia-noite - disse ele com toda a calma deste mundo. - Irá bater doze badaladas. Olhou para o mostrador do relógio que segurava na mão. - Meia-noite - repetiu, e mostrou-lho. - Verifica no teu.- Santo Deus! - arquejou quando viu ambos os ponteiros completamente sobrepostos. - Porquê?Enquanto falava, ouviram os gritos angustiados.- A bebê está a chorar. Tem fome. Precisa de mim. Os pais do Lucian estão a dormir. Eu retiro-me sempre mais cedo quando ele não está em casa. Detesto sentar-me com eles na salinha depois do jantar. Noto bem como ela me despreza.- Declan!Começou a subir as escadas e abrandou a passada, e Lui ouviu-o então respirar apressadamente.Lui reuniu toda a sua coragem e deu-lhe a mão.A mão dele tremia. O frio que enchia o ar infiltrava-se-lhe nos ossos. Sentia o estômago agoniado e a náusea subir-lhe à garganta. Tentou controlar-se e empurrou a porta com força.- Ele vem aí! Está bêbado! Não o quero aqui, mas ele não se quer ir embora! Toda a gente diz que se parece com o Lucian, mas as pessoas não reparam nos olhos dele. Tenho que o afastar daqui, tenho que o afastar da minha bebê! Quem me dera que a Claudine não tivesse saído para se encontrar com o Jasper. Não gosto de estar aqui sozinha com o Julian. Ele assusta-me, mas não quero que perceba isso.- Declan, oh, meu Deus, volta a ti! - Apertou-lhe a mão com força.- Oh! - Lui estremeceu e tentou ampará-lo, confortá-lo. - Não! Não, não, não!- Não, não, não! - Foi tudo o que ela conseguiu dizer enquanto se agarrava a ele.- Perdoa-me! Oh, perdoa-me!- Declan, basta.- Não! - Agora era Lui quem chorava. Por ele, por Abigail, por si própria, por Lucian. - Não!- Não pude impedir o que te aconteceu. Não estava aqui para o impedir.- Como é que quebrei a promessa?- Eu sei. - Lui fechou a mão sobre o relógio que tinha no bolso e sentiu o peso, o sofrimento, a mágoa.- Não sei. Sentia-me debilitado. Não era tão corajoso ou tão verdadeiro quanto tu. Pensava que tu... que tu eras a força da minha vida e que, quando desaparecesses, não teria nada a que me agarrar para sobreviver.- Talvez te amasse demasiado a ti, e a ela não o suficiente. Perdoa-me. Perdoa-me pelo que fiz, pelo que devia ter feito. Não posso voltar atrás e alterar as coisas. - Tirou o relógio do bolso e segurou-o na mão com o mostrador voltado para ela. - Por mais que o tempo pare, é demasiado tarde. Se pudesse, nunca te teria deixado sozinha. Ter-te-ia levado comigo, a ti e à bebê. Faria tudo para impedir o que te aconteceu.Virou-se, abriu as portas da varanda e saiu.- Declan.- Sim? Estou a tentar decidir se preciso de um exorcista, de um psiquiatra, ou se devia investir dinheiro num remake de As Três Faces de Eva, comigo no papel principal. - Encolheu os ombros, como se tentasse livrar-se de um peso irritante. - Acho que me contento com um Bloody Mary.- Vou preparar um para cada - disse, pousando a mão nas costas dele. Declan afastou-se para o lado para fugir ao toque dela e deixou-a ali com a mão suspensa no ar.Lui aguardou uns instantes, esforçando-se por recuperar a compostura, e foi juntar-se a ele na cozinha.- Eu sei preparar o raio da minha própria bebida.- Está bem, prepara o raio da tua própria bebida. E enquanto a preparas, devias pensar em viver a tua própria vida.O frio instalou-se-lhes nos ossos.- Não!A ira abandonou-a.- Já me sinto agoniado. Preciso de tomar um banho.- Muito bem. Como queiras. - Subiu ruidosamente as escadas. Lui sentou-se por uns momentos, porque ainda sentia as pernas a tremer. Tirou o relógio do bolso e olhou para o mostrador. O ponteiro dos segundos continuava a tiquetaquear. Mas era sempre meia-noite.Levou-o para o piso de cima, juntamente com umas torradas: a refeição que a avó lhe preparava quando era criança e ficava adoentada. Declan estava sentado na beira da cama, envergando umas calças de trabalho puídas. O cabelo continuava molhado, e a pele avermelhada de se ter esfregado com força. Pousou o tabuleiro ao lado dele.- Não. - Quando ela lhe serviu uma xícara de chá, aceitou-a e tentou aquecer as mãos. Apesar do calor abrasador do banho, ainda se sentia enregelado. - Não me limitei a ver ou a lembrar. Senti. O medo, a dor, a violação. A humilhação. E, como se isso não bastasse, parte de mim ainda era eu. E essa parte, a parte maior, a parte dura e masculina, sentia-se indefesa, completamente indefesa enquanto via uma mulher aterrorizada ser violentada e estrangulada. Não consigo explicar.Declan levantou obedientemente a xícara.- Chá doce e torradas. Vai fazer-te bem. - Subiu para a cama, ajoelhou-se atrás dele e começou a massagear-lhe os ombros. - Ela era mais forte do que ele. Não foi tanto por culpa dele. Criaram-no como um fraco. Mas ele amava-a, Declan. Sei isso sem a mínima dúvida. Culpou-se a si próprio, mesmo sem saber as coisas terríveis que lhe tinham acontecido a ela. Culpou-se por não estar com ela, por não se lhe ter entregue suficientemente.- Abandonou-a. Sim, abandonou-a - retorquiu Lui. - E embora tenha sido um erro da parte dele, embora tenha sido um erro acabar com a própria vida e deixar a criança órfã, apesar disso ela teve uma vida melhor. Viveu rodeada de pessoas que a amavam, que estimavam a memória da sua mãe. Nunca teria tido uma vida assim aqui na Mansão.Encostou o rosto à cabeça dele.- Não consigo compreendê-lo.- Talvez. É difícil. Há ainda muito do desespero dela dentro de mim. - O desespero dela, e uma boa porção do seu próprio desespero, pensou.- Creio que não.Não tentou detê-la. Provavelmente era melhor ficar sozinho. Deitou-se e ficou a olhar para o teto, a ouvir as primeiras notas do canto matinal dos pássaros.Por certo adormeceu, pois quando abriu os olhos o Sol já se erguia no horizonte. Ainda era cedo, concluiu, mas o general e as suas tropas alvoroçadas não deviam tardar a invadir-lhe a casa com esfregonas, vassouras e só Deus sabe que mais.E, por Deus, também não iria desistir de Lui.- Quer dar um passeio? - perguntou-lhe ela.- Veste uma camisa e calça os sapatos.- Digo-te quando sairmos.- Quero levar-lhe flores, à Marie Rose. - Como sua antepassada, pensou Lui, como pai dela. - Achei que também ias gostar desta visita. - Declan não disse nada. Declan pegou num dos ramalhetes.- Sim, quando não podemos fazer mais nada. - E os outros ramalhetes?- Por que razão o fazes?- Vou contigo.Lui deteve-se junto de um dos túmulos. Havia vários, simples e sem ornamentos. Era ali que o seu avô repousava, bem como outros que faziam parte dela. Mas hoje viera apenas por uma pessoa.- A minha avó disse-me que a Marie Rose foi uma mulher feliz e teve uma vida boa. Que se sentia feliz com a vida que tinha. Pode não ter sido o suficiente para compensar o mal causado, mas se tivesse sido diferente acho que hoje não estaria aqui contigo...- O túmulo dele fica em alguma parte perto - conseguiu Lui dizer. A sua voz era rouca e tinha os olhos marejados de lágrimas.O jazigo dos Manet era uma torre quadrada, com pórticos gravados e portas espessas e cravejadas. Estava encimada por um anjo feroz que segurava uma harpa como um soldado seguraria um escudo.- Nunca lhe perdoaram - explicou Lui. - Nunca lhe perdoaram o casamento, a criança, a morte desonrosa. Disseram que se afogou acidentalmente, apesar de toda a gente saber que tinha sido suicídio. E embora Josephine não o quisesse no jazigo da família, mesmo assim quis que fosse enterrado em solo consagrado. Caso contrário, teria havido outro escândalo.- Que mulher geniosa.- Tu és mais forte do que ele alguma vez foi. Mais inteligente, mais resistente.Afastou-se sem dizer mais nada. Declan permaneceu um pouco mais, a olhar fixamente para a placa e para as flores. Depois, num impulso, agarrou numa das flores do ramalhete e depositou-a sobre o túmulo.- Foi gentil da tua parte.Não falaram no caminho de regresso. E nem Rufus nem Odette vieram recebê-los quando Lui estacionou diante da casa da avó. Declan continuou em silêncio quando ela o conduziu através do pântano. Em silêncio, tal como naquela noite, com o ar frio, o luar tênue, o pio de uma coruja. E as respirações ofegantes de um assassino e da sua cúmplice.- Não. - O suor escorria-lhe pelas costas apesar do frio que sentia dentro de si. - Preciso fazer isto.Havia flores dos pântanos a desabrochar ao longo da estreita vereda de terra batida. Declan concentrou-se nas flores, na sua cor, na sua beleza. Mas quando se deteve junto da margem, estava sem fôlego e sentia vertigens.- Eu sei. Era aqui que a Marie Rose vinha, a este preciso lugar. O coração dela sabia.- Nem toda a gente pode colocar flores no próprio túmulo.- Não te sintas assim. - Levantou-a e abraçou-a. - Agora está tudo bem.- Tem havido demasiado sofrimento. Como agora. - Levantou-lhe o rosto e disse aquilo que compreendera existir dentro dela, dentro de Abigail, no momento em que tinham depositado as flores em memória de Marie Rose. - Perdoo-te.- Talvez. Talvez seja por isso que continuamos a viver. Dá-nos a oportunidade de emendar as coisas que destruímos.- Está bem. - Declan beijou-lhe a mão. - Estamos bem.- Boa ideia.- Creio que já estão reunidos. - Ou quase reunidos, pensou. Quase, porque sentia uma leveza no coração que nunca esperara voltar a sentir. - Esses sinais serão uma boa recordação. Vamos escolher um local para os colocar. E depois plantamos lá qualquer coisa, nós dois.- Talvez um salgueiro-chorão.- Cher, convenceste-me por desgaste. Parece que os teus soldados já chegaram.- Não achas que vai ser divertido? E se nos esgueirassemos pelas escadas da entrada e nos fechassemos no meu quarto? Sinto-me capaz de dormir durante uma semana inteira.- E eu ainda tenho energia para uma hora - retorquiu, levando o dedo aos lábios e subindo furtivamente pelas escadas. - Alguma vez rebolaste nua na cama, com a casa cheia de mulheres a esfregarem o soalho nas outras divisões?- Desmancha-prazeres.- É o que estou a fazer - disse quando a aprisionou nos braços. - Vou esperar agarrado a ti. E, oh, meu Deus, meu Deus, é tão bom! Tenho sentido a tua falta - murmurou, e compreendeu que era ele e Abby que a abraçavam assim.Ela perdeu, percebeu então. Josephine. Tudo lhe fugia agora das mãos.- Já chega de palavras. - Uniu os lábios aos dela num beijo suave e voluptuoso. - Deita-te comigo, Lui. Deita-te comigo. Sinto tantas saudades de me abraçar a ti.- E que tal preocupares-te com o que vai ser?Declan sentiu todo o seu ser agitar-se e tornar-se brilhante como o Sol.- Espera até eu terminar. - Suspirou e manteve-se calada até ter a certeza de que conseguia falar com calma. - Tenho muitos amigos que se preocupam comigo. Talvez me amem com aquele amor de amigo. Tive o meu avô, que fez de mim a luz da sua vida. Tenho a minha avó. Mas nunca ninguém me amou como tu. E o pior é que eu também nunca amei ninguém como te amo a ti. É tudo. - Levantou os braços e desapertou a corrente que trazia ao pescoço. Deu-lha, e a minúscula chave balanceu. - Isto agora pertence-te. Creio que já te pertence há algum tempo. És tu a chave, cher. Sempre foste.- Vou fazer-te tão feliz.- Podes crer. - Riu-se, levantou-a do chão e fê-la rodopiar em círculos. - Consegues sentir?- Agora a casa é nossa. Somente nossa. - Pousou-a novamente no chão. - Acabaram-se os fantasmas. Não vive aqui mais ninguém a não ser nós. E estamos apenas a começar.- Bem-vindo a casa.

 

  • Manteve-se abraçada a ele enquanto retirava o relógio do bolso para verificar o mostrador. E viram que o tempo tinha recomeçado a avançar.
  • Lui abraçou-o e uniu a boca à dele.
  • - Sentir o quê? Tenho a cabeça a girar.
  • - Espero bem que sim. Vamos casar-nos ou não?
  • Aceitou-a, e depois deixou-a encantada quando a colocou no seu próprio pescoço.
  • - Angelina.
  • - Isso é a tua teimosia a falar, e eu adoro-a. Adoro tantas coisas em ti que já lhes perdi a conta. E agora, eis-me apaixonada por um maldito ianque endinheirado.
  • - Preciso de fazer isto de pé. - Afastou-se e manteve-se sob o jorro da luz do sol. - Até hoje fiz sempre as coisas à minha maneira e tenho-me saído bem. Tu tens complicações, coisas confusas que me irritavam e me viraram a vida do avesso por causa daquilo que eras, que és e que poderás vir a ser. Nunca me preocupei muito com o que poderá vir a ser, Declan.
  • - Tenho coisas que te quero dizer.
  • Um círculo, um círculo que novamente se fechava, pensou. E desta vez não se quebraria.
  • - Declan. Não. Deixa as portas abertas. Não, espera só...
  • - Não, e isso não cabe na agenda desta manhã.
  • - É uma boa ideia, mas só tenho uma hora. Depois preciso voltar para o trabalho.
  • Declan olhou e viu os carros.
  • - Como aquele de que ela tanto gostava. - Assentiu também com a cabeça. - Às vezes conseguimos repor as coisas como elas eram, outras vezes alteramo-las. Desta vez faremos ambas as coisas. Depois, quando tivermos filhos, podemos fazer aí piqueniques e contar-lhes a história. - Calou-se por um momento. - Desta vez não me disseste para me calar.
  • Lui anuiu com a cabeça.
  • - Queria pedir-te uma coisa - disse ela enquanto voltavam a percorrer a vereda. - Gostava de colocar três sinais, talvez junto do tanque. Um em nome do Lucian, outro em nome da Abby, outro em nome da Marie Rose. Acho que está na altura de se reunirem.
  • - Creio que estamos no bom caminho. Agora vamos. Gostava de ir a pé, para me recompor.
  • - Ou a oportunidade de cometer os mesmos erros. Também tenho uma coisa para te dar. Mas não aqui. Quando voltarmos à Mansão. É lá o local apropriado.
  • - Tens mais capacidade de perdão do que ela.
  • - Ele não confiou o suficiente. Eu não confiei o suficiente. Foi demasiada mágoa e pouca fé. Como agora.
  • - Lamento muito. - As lágrimas escorriam-lhe pelas faces. - Lamento sinceramente. - Ajoelhou-se e atirou a flor para um local onde pudesse flutuar isolada. Tateou à procura da mão dele. - Lamento tanto ter-te magoado.
  • Desta vez entregou a ele o ramalhete e retirou depois uma flor para si. Declan atirou as flores ao rio e viu a beleza das cores flutuar na água acastanhada.
  • - Foi aqui. Exatamente aqui.
  • - Estamos perto.
  • - Queres voltar para trás? Estás terrivelmente pálido.
  • - Bem, faz-se o que se pode. - Desta vez deu-lhe a mão.
  • Lui pôs os óculos de sol porque estava a chorar.
  • - Espero que sim. E espero que ele descanse em paz. As flores não vão durar muito com este sol, mas... Bem, faz-se o que se pode.
  • - Ele não tinha avós como eu que o amassem, que o resguardassem dos golpes da vida. Tinha um irmão gêmeo que o odiava simplesmente por existir. Tinha fortuna e posição, educação e privilégios. Mas não tinha amor. Até aparecer a Abigail. E depois afastaram-na dele. - Depositou as flores. - Fez o melhor que conseguiu. Mas não foi suficiente.
  • Declan olhou novamente para o jazigo.
  • - Que visão alegre - comentou Declan. - Diria que nenhum deles faleceu em paz. - Olhou em volta e viu a caixa de cimento sobre uma lápide. A placa dizia: Lucian Edward Manet. 1877-1900. - Foi sepultado aqui fora?
  • Caminharam sob a luz do sol, através das sombras dos túmulos, em silêncio.
  • Começou a depositar as flores e Declan fechou a mão sobre a dela e sobre os ramalhetes. Depuseram-nos sobre o túmulo: o túmulo da bebê, da moça, da mulher adulta, juntas.
  • Agarrava com força nas flores. Marie Rose, leu no túmulo. Sangue do meu sangue, coração do meu coração.
  • Desceu, mas não lhe deu a mão, ao contrário do que ela esperava. Percorreram as veredas entre os jazigos, entre as grades ornadas, entre os anjos de mármore e através das sombras projetadas pelas cruzes.
  • - Ele faz parte de mim. Através do sangue, e não só. Se conseguir aceitar quem me gerou, se conseguir viver com isso, então posso aceitar tudo o resto. - Estacionou o carro e pegou em dois ramalhetes. - Fica por perto. Não me demoro.
  • - A Marie Rose também punha flores no túmulo da mãe, igualmente uma vez por ano. Parte dela devia saber. Ia todos os anos ao rio, pelo aniversário, e lançava flores à água. A minha avó disse-me onde. - Conduzia suavemente, embora com alguma velocidade, até que abrandou para virar para o cemitério. - Sei que continuas zangado com ele, e comigo. Se não quiseres fazer isto, podes esperar no carro. Não te levo a mal.
  • - É o teu símbolo da piedade?
  • - A minha avó contou-me que a Marie Rose costumava ir ao cemitério uma vez por ano por ocasião do aniversário. Punha flores no túmulo do pai. Esta manhã, quando fui mudar de roupa, disse-me onde fica o jazigo dele e colhemos estas flores no pântano. Também quero levar flores ao Lucian.
  • Foi ela quem conduziu e era ele quem tinha agora as flores sobre o regaço.
  • - Aonde vamos?
  • - Creio que sim.
  • Sentou-se, franziu a testa e viu-a sentada na cadeira no outro lado do quarto. Vestia calças jeans e uma simples camiseta branca. Tinha três pequenos ramalhetes sobre o regaço.
  • Talvez a casa precisasse de ser limpa, abalada. Continuava a ser a sua casa. Não ia desistir dela. O que quer que tivesse acontecido, o que quer que a casa partilhasse com ele, não iria desistir.
  • Abigail tinha sido quebrada, pensou. Tinham-lhe quebrado o corpo e o coração.
  • - Porque não tentas? Preciso de ir mudar de roupa. - Deslizou para fora da cama, levantou a bandeja e colocou-a de lado. - Tenta dormir um pouco. Não demoro.
  • - Consegues descansar?
  • - Não, um homem como tu nunca compreenderia um homem como ele. Talvez eu consiga, talvez eu consiga compreender um homem que fugiu com uma mulher em vez de fazer frente aos pais. Um homem que depois a trouxe para uma casa cheia de ressentimento e sombras em vez de criar um lar para ambos. Um homem que se deixou sucumbir ao ponto de se afogar em vez de viver com a mágoa e criar a própria filha com o amor e a compaixão que lhe haviam negado a ele. Queria ser mais do que aquilo que era. E tê-lo-ia sido ao lado dela. Não devias desprezá-lo, Declan, devias sentir compaixão por ele.
  • - Não consegues perdoar-lhe.
  • - Tinha direito a uma vida assim. Ele devia ter-se preocupado com isso.
  • - Abandonou a criança. - A sua voz era determinada.
  • - Bom. Agradavelmente adocicado.
  • - Não precisas de explicar. Também senti um pouco isso. Não de maneira tão forte e tão clara como tu, mas... Quando olhaste para mim, quando ela olhou para mim através dos teus olhos, senti tanta dor, tanto arrependimento. Tanta culpa. Bebe o teu chá, querido.
  • - Queres que me vá embora?
  • Guardou-o novamente e levantou-se para ir fazer o chá.
  • - Vai então. Vais sentir-te melhor. Vou fazer um chá. Deixa-me ao menos fazer isso - disse prontamente, antes que ele pudesse contrariá-la. - Talvez nos acalme um pouco.
  • - Não bebas assim, cher. Vais acabar por ficar agoniado.
  • - E provavelmente também nunca te estrangularam até à morte, pois não? - Pôs de lado os bons modos e sorveu demoradamente da garrafa. - Vou dar-te uma pista. Estas coisas tendem a deixar-te verdadeiramente irritada.
  • - Alguma vez foste violentada? Lui soltou o braço com força.
  • Virou-se e esbofeteou-o quando ele lhe agarrou no braço. E quando a sua mão lhe atingiu o rosto, o relógio de pêndulo começou a soar novamente e as portas bateram com força.
  • Doeu-lhe quando ele lhe arrancou a garrafa de vodca das mãos. Doeu-lhe como se a tivesse esbofeteado.
  • - Deixa-me preparar as bebidas. A profissional sou eu.
  • - Não preciso que me dêem palmadinhas ou me afaguem. Ainda continuo um pouco em carne viva. Por ter sido violentado e assassinado, creio. - Enfiou as mãos nos bolsos e desceu as escadas em passadas largas.
  • Lui aproximou-se cautelosamente por trás dele.
  • Ele estava apoiado à balaustrada, a olhar fixamente para os primeiros sinais da aurora.
  • Lui sobressaltou-se com a porta que bateu com força atrás de si. Parecia uma rude gargalhada a troçar da infelicidade alheia. Ignorou o ruído, saiu e respirou fundo.
  • - Eu amava-te. E o coração não mais parou de me doer depois que me afastaram de ti. Uma dor que foi de sofrimento, depois de esperança e de mágoa. Tu escolheste a morte em vez da vida, Lucian. E continuas a escolher a solidão em vez do amor. Como posso eu perdoar-te se tu não te consegues perdoar a ti mesmo? Enquanto não te perdoares, eles terão ganho, e a casa que deveria ter sido nossa continuará a abrigá-los. Nenhum de nós será livre enquanto não fizeres essa escolha.
  • - Tinhas a Marie Rose.
  • - Como pudeste deixá-la sozinha? Como pudeste abandoná-la? Tu eras tudo o que ela tinha. Juraste-me.
  • - Prometeste amar a nossa filha e cuidar dela para sempre. Fui-te sempre fiel, Lucian. É a verdade.
  • - Não, não estavas aqui nessa noite. E nunca mais aqui estiveste realmente. Não estiveste aqui para mim, não estiveste aqui pela nossa filha. Quebraste a promessa que me tinhas feito. O voto solene que me juraste naquela cama, na noite em que ela nasceu. Mais do que a morte, foi isso que nos condenou.
  • - De início não. Temeste por mim. Procuraste-me. Choraste por mim. Eu tentei ir ao teu encontro, mas tu não me deixaste entrar dentro de ti. Não me deixaste entrar dentro de ti porque uma parte de ti acreditava já nas mentiras deles. Eu amava-te. Com todo o meu coração, com a minha alma, com o meu corpo. E morri por ti.
  • - Não, ainda não! - Dirigiu-se para as escadas, desceu para o corredor e abriu a porta do quarto de Abigail. - Ele pousou-me aqui em cima da cama. E chorou. Não por mim, mas por ele mesmo. Que iria acontecer-lhe? As suas mãos tinham-me aviltado, assassinado, mas pensava apenas em si próprio. E continua a pensar depois em si próprio. Porque continua nesta casa, ele e Josephine. Sempre a caminharem de um lado para o outro, sempre à espera, no seu pequeno inferno. - Acercou-se da parede onde existira outrora o guarda-roupa e abriu a porta que via na sua mente. - Pegaram em algumas das minhas roupas. Eu tinha guardado aqui o vestido para o baile. Tinha tanto orgulho nesse vestido. Queria ficar bela para ti. Queria que sentisses orgulho em mim. Ela deixou cair o meu relógio, mas não percebeu. Ordenou ao Julian que me amortalhasse e levaram-me lá para fora, juntamente com uma mala cheia de coisas minhas. Ataram-me tijolos velhos para que o peso me arrastasse para o fundo e levaram-me. Foi penoso. Apesar de haver luar, apesar de estar fresco, foi uma caminhada penosa a carregar aquele peso todo. O Julian sentiu-se agoniado, mas ela não estava para aturar pieguices. Diriam que eu tinha fugido com outro homem. Deixariam que se espalhasse o boato de que a minha menina era uma filha bastarda e que eu te convencera de que era tua filha. Ela disse ao Julian como iriam ser as coisas enquanto me colocavam os tijolos por cima, enquanto me envolviam com a capa e me atavam com uma corda, enquanto me arrastavam para o pântano. - Olhou novamente para Lui. - E tu acreditaste neles.
  • - Depois veio ela. - Declan levantou-se, firme como uma rocha. - Veio ela e viu o que ele me tinha feito. Olhou para mim como se eu fosse lixo que tivesse de ser varrido antes que os vizinhos aparecessem. - Tinha agora os olhos secos e semicerrados enquanto as portas do segundo piso batiam com força. - Era a casa dela, os filhos dela, e eu era a prostituta do bayou que tinha invadido o seu território. Vi-a olhar para mim. Parecia um sonho, olhar assim para ela. Vi-a dizer-lhe para me levar para o quarto do andar de baixo enquanto ela limpava o sangue, a cera da vela e as louças partidas. Ele levou o meu corpo para a varanda, mas eu continuava a observá-la e vi-a acercar-se da minha querida menina e ouvi a mente dela questionar-se se não seria melhor sufocar também a criança. Ponderou essa hipótese, e acredito que se tivesse tentado ainda me restavam forças suficientes para a fulminar como um relâmpago. - Declan voltou para junto da porta. - Ela pensava que eu era débil, mas estava enganada. Podiam matar-me, mas não conseguiriam eliminar-me completamente.
  • - Ele está a ferir-me, mas resisto-lhe. Tento detê-lo, mas ele não para. Estou tão assustada, tão assustada, mas sei que ele não está a fazer isto porque me deseja. É porque te odeia! - Declan voltou-se, com os tempestuosos olhos acinzentados completamente inundados de lágrimas. - Ele odeia-te! E porque sou tua, tem que me quebrar. Tal como quebrou os teus brinquedos quando eram crianças. Suplico-lhe que pare, mas ele não quer saber. Tenta sufocar-me os gritos, mas eu não paro de gritar. Não paro! Começa a apertar-me a garganta com as mãos. - Aquela pressão hedionda, aquela terrível falta de ar obrigou-o a dobrar-se sobre si próprio. - Não consigo respirar! Não consigo respirar! A minha menina chora por mim e eu não consigo respirar. Ele está a matar-me! Enquanto a minha menina chora no berço. A nossa menina. Enquanto ele continua dentro de mim. E quebra-me como a um brinquedo que pertence ao irmão. - Levantou a cabeça e olhou para Lui. E quando falou a sua voz era tão profundamente sofrida que ela se surpreendeu como conseguiam ambos suportar aquilo. - Tu nunca mais chegavas. Chamei por ti, mas nunca mais chegavas.
  • - Está a violentar-me! - O fogo ardia no âmago do seu ser. Dor, aquela dor, e o medo. Oh, meu Deus, o medo! - Grito por ajuda. Grito por ti, mas tu não estás! - A voz foi dilacerada pelas lágrimas. - Tu nunca mais chegas! E eu preciso de ti!
  • - Quando ele tenta agarrar-me, eu fujo. - A voz era agora ofegante. Continuava ajoelhado, um homem alto e esguio, de cabelo alourado e vestido com um smoking cujo laço pendia solto. Um homem com recordações de uma mulher, um homem invadido interiormente pelo terror de uma mulher. - Mas não posso deixar a minha bebê sozinha. Agarro no atiçador da lareira. Se tiver de ser, mato-o! Mato-o se tocar em mim ou na minha bebê! Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! - Lui sentiu os joelhos ceder. Deixou-se cair no chão ao lado dele e tentou abraçá-lo. - Ele é mais forte do que eu. Grito e grito, mas ninguém vem ajudar-me. Está bêbado e fora de si. Atira-me ao chão e rasga-me a roupa! Não consigo fugir-lhe. A minha menina chora, mas não consigo soltar-me. Não consigo detê-lo!
  • O seu rosto tornara-se pálido como a morte, e tinha os olhos vidrados.
  • Tombou, apesar de Lui tentar ampará-lo, e caiu de joelhos.
  • - Vamos entrar juntos.
  • - Tenho que ir lá acima. - Voltara a recuperar a sua própria voz, que revelava agora indícios de medo. - Tenho que lá ir. Tenho que ir ver.
  • - A Claudine vai pegar nela ao colo e mudar-lhe as fraldas, mas a minha querida Rosie precisa da mamã. Não gosto que ela fique no terceiro piso - disse enquanto se precipitava pelo corredor. - Mas Madame Josephine consegue sempre o que quer. Nem sempre - corrigiu-se, e havia agora um sorriso na sua voz. - Se assim fosse, eu já me teria tornado em comida de jacaré em vez de ter casado com o Lucian. Ele chega amanhã. Tenho tantas saudades...
  • A voz dele alterara-se, compreendeu Lui enquanto o seguia. Revelava agora uma cadência cajun.
  • - Vamos embora. Declan, vamos pegar no carro e fugir daqui. Mas ele avançava já para dentro de casa.
  • - Já vamos descobrir. Temos que ir para dentro de casa. - Olhou para cima, para o terceiro piso. - Tenho que ir ao quarto das crianças. A bebê...
  • Sentia os dedos trêmulos ao pegar no relógio.
  • Quando o aceitou, o relógio de pêndulo que outrora existira dentro da mansão começou a soar.
  • - Porque temos de arriscar. Porque desta vez somos mais fortes. - Abriu a mão, depositou o relógio na palma da mão dela e fechou-lhe os dedos. - Porque se não o corrigirmos, nunca terminará realmente.
  • Lui sentiu os dedos gelarem perante a ideia de pegar naquele objeto.
  • - O que vês quando olhas para mim? Alguém, algo do passado. Não podes viver a vida amparado nos mortos.
  • - Já te magoei.
  • - Não, nenhum deles me amava. Queriam-me. Desejavam-me, mas isso era a parte mais fácil. Podemos ser despreocupados com as necessidades. E se queres saber a verdade, às vezes, a maior parte das vezes, eu gostava dessa despreocupação. Não depois pelo sexo, mas pela dança. Pelo jogo, o que quer que queiras chamar a essa corte que afinal não é corte nenhuma. Quando a música para ou o jogo acaba, podemos ficar com alguns sinais ou beliscaduras, mas ninguém sai realmente magoado.
  • Começou a subir as escadas ao encontro dela.
  • - Porque ficaste?
  • - Nem eu.
  • - Vais precisar de uma semana para limpar a casa toda.
  • - Deves estar cansado - disse Lui da varanda por cima dele.
  • Viu uma estrela dissipar-se.
  • A música continuou animada e os convivas mostravam-se felizes. Às primeiras horas da madrugada alguns dirigiram-se para os seus carros. Outros tiveram de ser transportados, e nem todos eram crianças.
  • E deixou-a sozinha.
  • Patrick sorriu gentilmente e afagou-lhe a mão.
  • Lui ergueu a mão e cerrou os dedos em redor da chave que trazia ao pescoço e depois baixou-a, agora com nervosismo, para as asas que afixara ao peito.
  • - Não quero magoá-lo. É aí que reside o problema.
  • - Queriam apenas o melhor para ele. As pessoas tendem a pensar que aquilo que é melhor para elas, é também o melhor para as pessoas que amam.
  • - Aborrecido?
  • - Sentia-se aborrecido em Boston.
  • - Falou-me dos Frank e do Tibald. Da Effie e de Miss Odette. Falou-me de fantasmas e de si.
  • Não lhe deu hipótese de recusar. Tal pai, tal filho, pensou ela enquanto lhe dava firmemente a mão. Patrick levou-a até ao bar, pediu duas taças de champanhe e depois levou-a lá para fora.
  • - Ora essa, o que é que poderia preocupar-me numa altura e num local tão encantadores?
  • - Oitenta e seis. - Fê-la rodopiar e aproximou-a novamente de si. - Os Fitzgerald tendem a viver uma vida longa e vigorosa. Está com um ar preocupado.
  • - De carne e osso. Mas há que ter em conta o sangue irlandês. A minha mãe era uma dançarina incrível, e ainda é capaz de executar uns bons passos depois de um par de cervejas.
  • Rodopiaram por entre os pares dançantes, com movimentos rápidos e estilizados que fizeram com que Lui lhe sorrisse.
  • - É uma dança cajun. Acha que consegue dançá-la?
  • Devia dominar o presente.
  • Sobressaltou-se e pôs de lado aqueles pensamentos, aquelas imagens. Arranjou um parceiro e seduziu-o para dançar com ela.
  • Lírios. A sua flor preferida era o lírio. Tinha sempre lírios no quarto. Primeiro na ala da criadagem e depois no seu próprio quarto. Trazia-os em segredo do jardim ou da estufa.
  • Sentia-se viva, com o ar quente da noite sobre a pele, debaixo do luar branco e puro, repleto da fragrância das flores dos jardins alvoroçados à sua volta.
  • A filha deles. Algo que Lui não podia ignorar, algo que lhe doía bem no âmago do seu ser. Mas não conseguia falar disso, não queria falar disso, sobretudo quando sentia a cabeça e o coração tão pesados.
  •  
  • - Sim. Soa mesmo. - Sentou-se ao lado dele.
  • - Sonhaste que eras a Abigail e...
  • - Cher, bebeste muito esta manhã?
  • - Tendo em conta que dei à luz há menos de vinte e quatro horas, posso dizer que me sinto bem.
  • - Os maitres d'hôtel devem adorar-te.
  • - Não me vou enfiar na cama no dia do casamento do meu melhor amigo... a não ser que queiras fazer-me companhia.
  • - Já tive piores.
  • - Vou já. - Mas sentou-se na beira da cama. - Daqui a pouco. Lui aproximou-se dele.
  • - Nada. Uma dor de cabeça.
  • Teria de voltar para a festa e cumprir as suas obrigações de padrinho e anfitrião. Sentia um enorme desejo de se atirar para cima da cama, de fechar os olhos e mergulhar no esquecimento.
  • Contornou a casa e esgueirou-se pelas traseiras para ir beber um copo de água gelada. Entornou-a juntamente com três aspirinas extrafortes, na esperança de atenuar a terrível dor de cabeça que se apoderara dele ao lembrar-se do sonho.
  • - O que é que lhe veio à memória?
  • - Esqueça. - Sentia-se mortificado, e apavorado com o que lhe acontecera no seu próprio sonho. Nas suas próprias memórias, supôs.
  • - Sim. As damas sulistas são peritas em desmaios, não é verdade?
  • Santo Deus!
  • Lembrava-se agora claramente, e imobilizou-se, petrificado, a meio da dança.
  • Sonhos, pensou. Vento e chuva, relâmpagos. As chamas amareladas na lareira. Dor, suor, sede. Sangue.
  • - Eu... devo ter sonhado com uma tempestade. Stresse pré-nupcial.
  • - Houve. E foi bem forte. Não me diga que não percebeu.
  • - Isso mesmo. - Olhou por cima da cabeça dela, mas Lui já se tinha afastado. - De qualquer modo, este casamento está a correr bastante bem. Receava que a tempestade da noite passada pudesse estragar as coisas.
  • - Podia tornar-me maitre d'hôtel. Mas esses costumam receber melhores gorjetas quando têm uma pronúncia afetada, e não sei até que ponto conseguiria representar bem o papel.
  • - Sim?
  • - Está encantadora - disse-lhe enquanto se dirigiam para o centro do salão.
  • - Miss Odette, concede-me a honra desta dança?
  • Procurou Lui e encontrou-a entre um grupo de pessoas. A cor vermelha do vestido assemelhava-se a uma língua de chamas sobre a pele trigueira. E a sua reação àquela imagem foi-lhe devolvida pelos olhos dela quando se aproximou, por aquele seu olhar sabido, tão intrinsecamente feminino.
  • - Estás aí a monopolizar a minha esposa, cher. Agarra-te à tua própria menina.
  • - Está tudo bem. - Beijou-a na testa. - A culpa não é tua. O que quer que tenha sido, se é que aconteceu, a culpa não foi tua. E hoje não é o dia apropriado para olhar para o passado, querida. Agora só interessa o amanhã.
  • - Por tua culpa? - Afastou-a um pouco para poder olhá-la no rosto e depois conduziu-a para um dos cantos. - Que queres dizer com isso?
  • - Não devias pensar nisso hoje. Hoje não te devias preocupar.
  • - Não o suficiente. - Aproximou os lábios do ouvido dele. - Declan, há qualquer coisa nesta casa que continua por terminar. Nunca me imaginei a acreditar nesse tipo de coisas, mas... sinto-o. Sinto-o sempre que aqui venho. E hoje também.
  • - Estou tão feliz! Estou tão feliz e adoro-te! Hoje adoro toda a gente - disse, soltando uma risada. - Toda a gente do mundo. Mas hoje, a seguir ao Remy, és tu quem mais adoro, e por isso quero que também estejas feliz.
  • - Quero agradecer-te por tudo o que fizeste para tornar este dia perfeito. Sei que a minha mãe, a minha irmã e eu quase te deixamos doido durante as duas últimas semanas.
  • - Oh, Declan! - Encostou a face à dele. - Se não estivesse loucamente apaixonada pelo meu marido, faria tudo para te conquistar.
  • - Declan. - Effie agarrou-lhe no braço. - Concede-me a honra desta dança.
  • A festa mudou-se para o salão de baile, mas os convivas eram tão numerosos que se espalhavam ainda pelas varandas e pelo relvado. Pela primeira vez em décadas, a casa estava repleta de música e riso. Crianças a correr, bebês a chorar, pares a namorar e amigos simplesmente na conversa enchiam o grandioso salão, descansavam à sombra de guarda-sóis brancos em redor de mesas colocadas nos jardins ou recostando-se na varanda.
  • - Pronto, não fiques irritado, cher. Estamos numa festa. Podemos discutir noutra hora qualquer.
  • - Havemos de encontrá-los.
  • - Porque é que não me pões a par de tudo para eu também te poder compreender?
  • - Que raio queres dizer com isso?
  • - No meu bar, sim. - Contrariada consigo própria por deixar que aquilo a irritasse, Lui pegou numa taça de champanhe que um empregado andava a servir. - Foi lá fazer uma inspeção, ao local e a mim. Não só conseguiu o que queria, como ainda lhe ofereci um raio de um martini. Mas pu-la na ordem.
  • - Suponho que foi por isso que arrastou o teu papá até ao meu bar. Para poder conhecer-me melhor.
  • - Se ofender a minha avó...
  • - A minha avó chega bem para ela.
  • - Queres que a vá resgatar?
  • - Estão a conversar uns com os outros. Onde está Miss Odette? Lui franziu a testa.
  • - Fica aqui hoje à noite. - Agarrou-lhe na mão ao ver recusa e desculpas nos olhos dela. - Angelina, fica aqui hoje à noite.
  • - Tenho muito boas qualidades, e isso faz de ti uma mulher cheia de sorte. Senti a tua falta durante os últimos dias.
  • - Já me tinha perguntado se alguma vez usarias isso.
  • A música soou quase de imediato. Rabecas, washboards, acordeões. Quando o fotógrafo focou a câmara apenas nos noivos, Declan afastou-se e abriu caminho através do mar de gente, até junto de Lui.
  • Quando eles se beijaram e os declararam marido e mulher, irromperam as saudações, muito mais libertadoras e festivas do que as palmas a que Declan estava habituado.
  • Deu por si a perscrutar os grupos de pessoas, à procura de Lui. E tu és a minha, pensou. Desta vez vamos fazer com que dê certo.
  • Declan não tardou a confirmar que a mãe tinha razão, como de costume. Quando se pôs ao lado de Remy, e Effie, envolta num branco diáfano, surgiu à varanda, Declan sentiu o amigo - o seu irmão - libertar-se do nervosismo. Viu um desmesurado sorriso espalhar-se pelo rosto dele e ouviu-o dizer com ternura:
  • - Sim, minha senhora. Adoro-a, Mrs. Colleen.
  • - E de mim? - perguntou Declan. - Fui eu que me lembrei dos Altoids.
  • - Trouxe Altoids.
  • Declan começou a servir a bebida, mas ocultou rapidamente a garrafa e o copo atrás das costas quando bateram à porta e a mãe entrou de rompante.
  • Declan acercou-se de um armário pintado de onde retirou uma garrafa.
  • - Creio que se criou esta tradição para evitar que o noivo fugisse. Iam logo atrás dele como um pelotão de linchamento.
  • - Da última vez que olhei, umas centenas, e ainda faltava gente.
  • - É demasiado tarde para ires vomitar - observou Declan em tom divertido. - A contagem decrescente já começou. Queres que volte a chamar o teu pai?
  • - Certo. Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida - disse Declan num tom sério.
  • - Certo, estás firme como uma rocha, a não ser por esses tremeliques que não consegues esconder.
  • - Se disseres isso mais uma dúzia de vezes, ainda acabas por te convencer. Raios, para quieto, Remy.
  • - Sim. - Visivelmente satisfeita, Colleen deu mais um gole no seu martini. - Está aprovada.
  • - Desculpem-me por um minuto. Tenho que preparar um pedido. - Aproximou-se da ponta do bar, onde a empregada a aguardava com o tabuleiro vazio.
  • - Ele é terrivelmente parecido consigo, não é? Mas tem os olhos da mãe. Uns olhos que vêem dentro de nós. Mesmo quando não queremos. Ele adora-vos, e isso tem um grande significado para mim. De modo que vou dizer-vos uma coisa. - Inclinou-se um pouco mais. - Venho de uma família humilde. Forte, mas humilde. A minha mãe é um peso morto e é para mim um embaraço maior do que deixo transparecer. Mas o meu avô era um homem decente e respeitável. A minha avó é tão respeitável quanto qualquer outra pessoa, ou mais do que a maioria. Dirijo este negócio porque sei fazê-lo bem, gosto disto e não desperdiço o meu tempo com coisas de que não gosto. - Prendeu o cabelo atrás da orelha e manteve o olhar ao nível do de Colleen. - Sou egoísta e teimosa e, raios, não vejo nada de errado nisso. Não me interessa o dinheiro dele, ou o vosso, portanto ponhamos já isso de lado. É o melhor homem que encontrei na minha vida e eu não sou suficientemente boa para ele. E digo isto sabendo que sou suficientemente boa para quase qualquer um, mas ele é diferente. Acontece que debaixo daquele comportamento afável, consegue ser ainda mais teimoso do que eu, e ainda não sei bem o que pensar disso. Quando souber, ele será o primeiro a saber. Espero que vos informe do resultado. Muito bem. - Brincou inconscientemente com a chave que trazia pendurada ao pescoço. - Querem outra bebida?
  • - Que estás a fazer?
  • - Quando alguém é importante para mim, e sou muito cuidadosa quanto a isso, quero sempre o melhor para essa pessoa. Talvez ela até se contentasse com menos. Mas eu não.
  • - Não vejo que sentido há em fazer as coisas pela metade - disse Lui, enchendo uma taça com aperitivos. - Se não sei preparar um martini, muito bem, afasto-me até aprender como deve ser. Caso contrário, desiludir-me-ia a mim e à pessoa a quem iria servi-lo.
  • - Para quê fazer as coisas se não fizermos bem feitas?
  • - Isso é algo que tenho de discutir com ele, quando estiver preparada. As bebidas são oferta da casa - acrescentou. - Espero que estejam do vosso agrado.
  • - Sim, seria, não seria? Mas não podemos ditar a vida às outras pessoas. Nem sequer aos nossos filhos. E seguramente não se pode escolher a pessoa que eles vão amar. Está apaixonada pelo meu filho, Lui?
  • Lui pegou nos dois copos que tinha posto a gelar.
  • - Ele é feliz aqui.
  • - Todas as noites, às nove. - Começou a preparar os martinis e presenteou-o com um sorriso genuíno. - Se gosta de dançar, devia voltar aqui. Conseguíamos pô-lo a bailar. Está a gostar da visita?
  • - E para si, Mr. Fitzgerald?
  • - Então o Declan tem a quem sair. Querem que lhes traga o menu?
  • - Boa-tarde, Mrs. Fitzgerald, Mr. Fitzgerald. - Um sorriso igualmente pequeno e bem-educado assomou aos lábios de Lui. - Andam a apreciar o Bairro? - perguntou, lançando um olhar de relance aos sacos de compras que Patrick carregava.
  • A comida espalhava pelo bar um aroma quente de especiarias.
  • Atrás do balcão viu um negro vestido com uma vistosa camisa vermelha. Bonito, mãos delicadas, concluiu. Uma jovem empregada servia às mesas - loura, bonita, com umas calças jeans talvez um pouquinho justas demais.
  • Era um local asseado, fato que lhe agradou. Estava repleto de gente mas não apinhado, fato que agradou ao seu sentido do negócio. Era demasiado cedo para a ruidosa multidão noturna, concluiu, e demasiado tarde para o intervalo do almoço.
  • Conseguira obter de Declan a informação de que Lui vivia por cima do bar, e perguntava-se agora se deveria tentar convencê-la a mostrar-lhe a casa para poder examinar os aposentos.
  • Analisou a vizinhança, a localização do bar, a intensidade do movimento. Concluiu que Lui escolhera ajuizadamente, e tivera o bom gosto e a sensatez suficientes para deixar que o exterior do bar se fundisse discretamente com os outros estabelecimentos.
  • - Vais ter tempo e oportunidade para a interrogar amanhã no casamento - lembrou-lhe Patrick.
  • Mesmo assim, o lamento trágico derramado no ar por um saxofone tenor fez vibrar uma corda dentro dela.
  • A multidão, o ruído, o calor e aquela espécie de elegância florida e decadente da cidade não eram coisas que a cativassem para mais do que uma breve visita. Preferia o encanto do Velho Mundo, e, sem dúvida, a dignidade de Boston.
  • - Sim, querida.
  • - Ela pode não estar lá. Ser proprietária de um bar não significa que se esteja lá durante todo o dia, ou todos os dias.
  • - Aonde queres chegar?
  • Patrick Fitzgerald deu a mão à esposa enquanto vagueavam pelo Bairro Francês. Sabia que se dirigiam para o Et Trois e que a sua missão era verem novamente Angelina Simone.
  •  
  • Di-lo. Preciso de te ouvir dizê-lo.
  • Vamos protegê-la sempre, Lucian. Aconteça o que acontecer, vamos mantê-la sempre segura e feliz. É a nossa filha. Promete-me que a amarás e cuidarás sempre dela, sempre.
  • Quando olhou para a criança que tinham gerado, o seu rosto encheu-se de assombro.
  • Primeiro limparam a mãe e a bebê, e sorriram ante a impaciência dela e o choro frenético da criança.
  • Esqueceu a dor. As horas de suor, sangue e sofrimento reduziram-se a nada perante aquela alegria cintilante. Foi com lágrimas nos olhos que estendeu os braços para o pequeno bebê que se contorcia e gritava, certamente de triunfo.
  • E amparou-se naquela dor enquanto os relâmpagos faiscavam, amparou-se no rugido da tempestade e fez força, fez força, fez força até aquela vida vir ao mundo com um gemido.
  • Agora ria-se. Era melhor do que gritar, mesmo que o riso revelasse laivos de histeria. Apoiou-se nos cotovelos e lançou a cabeça para trás ao sentir-se trespassada por novo acesso daquela dor indizível.
  • O filho dela. O filho dela, o filho de Lucian, estava a lutar para vir ao mundo. Fez força com toda a energia que lhe restava. Uma vida dependia disso.
  • Faz força, Abby! Tens que fazer força! Está quase!
  • A luz do gás inundava o quarto com uma luminosidade dourada, e ouvia-se o crepitar da lareira. E, enquanto a tempestade rugia lá fora, uma outra percorria o corpo dela. O corpo dele.
  • Sonhou com tempestades e dor. Com medos e alegrias. A chuva e o vento fustigavam as janelas, e a dor que o dilacerava irrompeu num grito sufocado.
  • - Adoro-vos.
  • Colleen estendeu as pernas.
  • - Chamaste-lhe Lui.
  • - Não tentes desviar-me do assunto, especialmente quando estou prestes a ficar sentimental. Foste sempre uma criança feliz. Alegre, inteligente e de língua afiada, e sempre respeitei isso. Tinhas aquilo a que eu chamaria um coração cheio de vida. E perdeste-o. Agora vejo que o recuperaste. Vi-o novamente nos teus olhos quando olhaste para a Lui.
  • - Talvez não, mas estava zangada contigo.
  • - Fica calado. - A voz dela era serena... e determinada. Lui teria reconhecido imediatamente aquele tom. - Ainda não terminei. Por mais que a Jessica fosse a nora ideal para mim, não era obviamente a mulher certa para ti. Não te sentias feliz, e eu comecei a ver isso e a preocupar-me ainda antes de teres rompido com ela. Tentei convencer-me de que era o nervosismo da aproximação do casamento, mas estava só a iludir-me.
  • - Eu sei o nome dela, Declan - retorquiu Colleen em tom seco. - Como potencial sogra, tenho o direito de me referir a ela como "aquela mulher" até a conhecer. Quanto àquela mulher, não se parece em nada com o que imaginava para ti. Não quando te via a progredir a passos largos no escritório de advocacia, a comprar uma casa nas redondezas, perto do country club. Num cenário desses, a Jessica teria correspondido ao meu ideal de nora. Uma boa parceira de ténis, que soubesse jogar bridge e com capacidade para se destacar nos círculos certos.
  • - Ora bem, quanto àquela mulher...
  • - Sorte a nossa, amo-te o suficiente para saber quando devo abrir mão de ti. Encontraste aqui o teu lugar. Não vou negar que esperava que não conseguisses, mas já que assim é, fico feliz por ti. Raios!
  • - Ora, claro que fico triste. Não sejas tolo. Adoro-te, não te adoro?
  • - Não vais aparecer lá em casa sem avisar. Não vamos encontrar-te por acaso em restaurantes, em festas ou no teatro. E isso aflige-me. Mas só vais compreender quando tiveres esses três ou quatro filhos que desejas.
  • - Não sei se este ano te convidamos para Vermont. - Mas estendeu a mão para afagar a dele. - A casa é encantadora, Declan. Até neste estado é bela, embora ainda faltem coisas. Imaginava que andares às voltas com ferramentas e madeiras e essas coisas não era senão um passatempo. Essa ideia agradava-me mais. Enquanto fosses advogado, o mais provável era ficares por Boston, ou por perto. Assustava-me ver-te partir, por isso dificultei-te as coisas. Não me arrependo. És o meu filhinho - disse, tocando-o no mais fundo do coração.
  • - Nunca foste grande apreciador do frio. Mesmo quando íamos esquiar, preferias ficar dentro de casa do que esquiar pelas encostas abaixo.
  • - Na verdade, hoje está mais fresco. Havias de ter aqui estado há uns dias. Podiam-se fritar ovos lá fora.
  • - E então - acabou por dizer -, vais dizer-me o que achas?
  • O pior da ressaca já se dissipara. Declan calculou que devia agradecer à misteriosa poção que Lui lhe dera - e ao prazer de a ver no mesmo espaço que os pais.
  • - Ainda bem. É minha intenção ir fazendo progressos desse modo. Vou preparar o café e depois mostro-vos a casa.
  • - Não é linda? - perguntou Declan com um sorriso rasgado. - Não é perfeita?
  • - Estou farta disto! - Enfiou a vassoura e a pá nas mãos dele. - Limpa tu a tua desarrumação. Espero que apreciem a vossa estada - disse num tom formal para Colleen e Patrick. - Estou atrasada para o trabalho.
  • - Eu e a Lui queremos ter quatro filhos. Lui despejou os cacos no lixo e repreendeu-o.
  • - Onde está a sua bagagem?
  • - Declan. - Embora tivesse falado num tom pausado, o aviso de Lui era nítido e audível.
  • - Realmente - concordou Colleen.
  • - Aonde? - perguntou Declan. - Prometeste-me comida. Lui perguntou-se se ele conseguiria ouvir os dentes dela a ranger.
  • - Precisas de anti-séptico e de uma atadura.
  • - Peço desculpa. - Lui afastou Declan com o cotovelo e sorriu gentilmente para os pais dele. - Deixei cair uma xícara, foi tudo. É um prazer conhecê-los.
  • E via agora divisões graciosas, pormenores encantadores, vidros e madeiras cintilantes.
  • - Eu também tenho olhos, Patrick. - E usou-os para apreciar a casa enquanto iam ao encontro deles.
  • - Ele acha que sim. - Colleen cerrou os lábios e entrou. - Vamos ver no que isto dá.
  • Patrick, ainda junto à entrada, virou-se para a esposa.
  • - É só um arranhão. Larga-me, Declan. Olha os teus pais. Estás a envergonhar-me - sussurrou-lhe ela.
  • - Não foi nada.
  • Depois mostraram-se preocupados quando viram o polegar dela.
  • - Oh, ela não. Ela veio aqui fazer de Florence Nightingale (Enfermeira britânica, 1820-1910, que trabalhou na Guerra da Crimeia e se tornou conhecida como a “Senhora da Candeia”. Fundou posteriormente a Escola de Enfermagem Nightingale, no Hospital de St. Thomas, em Londres N.T.). Colleen e Patrick Fitzgerald, Angelina Simone.
  • - Ontem à noite foi a despedida de solteiro. Muita bebida e mulheres com pouca roupa.
  • - Mãe? - Declan correu apressadamente para o cimo das escadas, ainda a escorrer água e envergando depois umas calças de trabalho rasgadas. - Ei! Mãe, pai! - Apesar da devastação causada pela ressaca, Declan desceu de imediato, lançou os braços sobre eles e apertou-os contra si. - Pensei que só vinham amanhã.
  • Abriu a porta de rompante enquanto proferia esta última ameaça, e deu por ela a olhar surpreendida para um casal muito bonito. A irritação dissipou-se de pronto quando viu os olhos de Declan no rosto feminino que a olhava com curiosidade.
  • - Se te fosses embora e me deixasses morrer em paz, já não tinha que gritar!
  • Campainha? Passou a mão livre pelo cabelo. Tinha instalado uma campainha que imitava a melodia de Quando o baile acabar. Era mesmo dele.
  • O repentino som das badaladas sobressaltou-a. Era a melodia de Declan, as primeiras notas, O medo e o assombro sufocaram-na, e a taça tremeu-lhe nas mãos.
  • Estendeu a mão para um dos estilhaços e pressionou-o contra o polegar. Quando o sangue jorrou, levantou a mão e deixou-o gotejar.
  • Lui recuou de um salto, com o coração a bater violentamente e os tornozelos envoltos numa chuva de lascas. Olhou para o sangue que gotejava dos minúsculos cortes.
  • - Acho que quero - disse baixinho. - Acho que quero, porque é ele.
  • Casamento. Ele queria casar e ela não acreditava em promessas a não ser que fossem seladas com sangue.
  • Declan conseguira retirar a capa de poeira dos sonhos de juventude que ela tão arduamente sufocara. Aqueles sonhos coloridos, com amor, esperança e confiança. Eram agora tão brilhantes que a olhavam diretamente no rosto. Tão brilhantes que a ofuscavam.
  • Afinal deixara que acontecesse. Deixara que ele a invadisse furtivamente, apesar de todas as suas defesas e barreiras.
  • Ficara intrigada com o jovial divertimento de Effie face ao estado de Remy. E agora ali estava ela, a sentir o mesmo por Declan.
  • E não era realmente uma coisa estranha?
  • Os homens perdiam metade do QI quando viam uma mulher nua. E quando se juntavam em grupo, com mulheres dispostas a despirem-se ao som da música, ficavam reduzidos à sensatez de um molho de brócolis.
  • As portas da biblioteca estremeceram quando passou por elas. Não deu importância. Se um homem mal-humorado e malcheiroso não conseguia afugentá-la, não era um fantasma irritado que ia consegui-lo.
  • Enfim... os fantasmas é que ele não ia conseguir ameaçar com uma arma.
  • - Isso é um eufemismo? - gritou ele, arrependendo-se de imediato por ter elevado a voz. Segurou a cabeça entre as mãos e saiu a custo da cama.
  • - Se tiver que sair desta cama, pego numa arma. Vai-me custar matar-te, mas fá-lo-ei.
  • Lui verificou as horas.
  • - E não tenhas pressa de sair do chuveiro. Cheiras como o soalho do bar. - Levantou-se. - Porque é que hoje não veio ninguém?
  • - Porque pareces um coitado. - Começou a beijá-lo mas afastou-se prontamente, colocando a mão entre os dois. - Credo, trata-me desse hálito, cher, antes que mates alguém!
  • - Não queiras saber, mas misturei-lhe quatro aspirinas, por isso não tomes mais nenhuma por enquanto. Vou preparar-te uma omelete e umas torradas.
  • Descobriu que alguém lhe tirara aquela sensação de ter pêlos na língua. Mas não tinha a certeza se era uma melhoria.
  • - Devias estar na minha pele. - Riu-se. Declan continuava vestido, com a camisa amarrotada e manchada de álcool semienfiada nas calças. Uma outro adorno rosa-prateada espreitava do bolso da camisa. Semicerrou os olhos com esforço.
  • Tinha o rosto corado e os olhos raiados de sangue mostravam-se um pouco selvagens.
  • - Não tenho nada colado na cara. - Mas quando tateou o rosto, sob a almofada, sentiu o adorno. - Oh, meu Deus! Tem misericórdia de mim e mata-me de uma vez por todas.
  • - A todos. A todos os que há aqui na terra.
  • - Quando é o funeral do Remy?
  • - Como soubeste que eu estava a morrer?
  • - Isso não é maneira de falar a quem vem cuidar de ti no teu leito de morte.
  • - Bebe o resto.
  • - Já te disse para não abrires os olhos.
  • Iria para o túmulo a jurar que o som que emitiu não se parecia em nada com um grito feminino.
  • - Pronto, está aqui a Lui. - Levantou-o delicadamente e riu-se enquanto lhe amparava a cabeça. - Bebe isto.
  • - Isso agora não te serve de nada. Vira-te devagar, cher. Não abras já os olhos.
  • Um sádico qualquer entretinha-se a espetar-lhe farpas no ombro.
  • - A quem o diz - balbuciou Declan, caindo de rosto contra o assento.
  • - Tenho. Tenho montes de dinheiro. - Enfiou desajeitadamente as mãos nos bolsos e tirou notas que deixou cair no táxi. - Montes de dinheiro.
  • - Vivo aí. Leve-me a casa, está bem?
  • O taxista olhou-o pelo retrovisor.
  • - És o raio do melhor amigo que já tive, e foi o raio da melhor festa de despedida de solteiro que já houve. Vou para casa, vomitar e desmaiar.
  • - Consigo aguentar o álcool que bebi. Os dezoito litros inteirinhos. - Mexeu-se, agarrou no rosto de Declan e beijou-o com força na boca. - Adoro-te, cher. Mas se fosses a Abigail, teria enfiado a língua.
  • - O quê? Onde? Caralho, cheguei a casa. E esta, hã?
  • Felizmente, Declan lembrava-se. Enquanto Remy dormitava sobre o ombro dele, Declan esforçou-se por se manter consciente até cumprir o último dever de fazer o amigo chegar vivo a casa.
  • - Boas notícias. Táxi! - Acenou desesperadamente quando viu um a passar. - Bendito seja Deus. Entra tu primeiro - disse, limitando-se a empurrar Remy para dentro e enfiando-se ele próprio depois.
  • - Do que gosto mais, é das calcinhas de renda preta com rosas. Fazem-me as pernas elegantes.
  • - Não, seu palerma. E lembra-me para te bater mais tarde por isso. Ela pensa que eu sou a Abigail.
  • - Na cama em casa, tal como todas as mulheres decentes às... - Levantou o pulso de Remy e tentou ver as horas. - Às horas que forem da manhã. A Lui está na cama. Ela acha que eu sou uma mulher.
  • - Fala por ti. Táxis. Temos que encontrar táxis.
  • - Deixa a coisa em paz antes que te magoes. Ainda somos presos por comportamento indecente.
  • - Agora não conseguias levantar a coisa nem com um macaco hidráulico.
  • - Stella! (Evocação de uma conhecida cena do Filme de Elia Kazan Um Eléctrico Chamado Desejo,1951, com Marlon Brando e Vivien Leigh nos papéis principais. N.T.) - Gritou por sua vez. E achou-se tão engraçado que se deixou cair pesadamente numa poça de água. - Que se foda, Remy. Vamos dormir aqui.
  • - Que se lixem.
  • - Creio que já as vimos a todas. São horas de ir para casa, velho amigo e camarada.
  • - Mas olha que por este andar não há-de ser por muito tempo. - Tropeçou e teve de se agarrar com ambas as mãos a Remy para não cair desamparado. - Demasiada gravidade. Aqui fora há absolutamente demasiada gravidade.
  • - Desmaiados, na prisão ou mortos num beco.
  • Remy olhou em volta enquanto saíam aos tropeções e de braço dado, tanto por necessidade quanto por camaradagem. A cabeça de Remy balançava como a de uma marionete presa a um fio.
  • - Hã? O quê? Já é de manhã?
  • Num espírito de boa camaradagem, Declan enfiou um último dólar nas ligas puídas de uma coxa flácida e branca e depois ajudou Remy, de olhos vidrados, a levantar-se.
  • Como anfitrião da festa de despedida de solteiro de Remy, Declan sentiu-se socialmente obrigado a ficar mesmo até ao fim. E o fim era um mergulho nas vielas sujas do Bairro Francês, onde o álcool abria buracos no que restava das paredes do estômago e as strippers já tinham perdido há muito o fulgor da juventude.
  •  
  • - Se eu também o amar, tudo mudará. – Odette sorriu e inclinou-se para apagar a luz.
  • - Eu pensava que já tinha encontrado. Agora já não tenho tanta certeza. Ele ama-me, avó.
  • - Sei que algumas vezes, quando caminho ao longo da margem, sinto uma tristeza infinita. E às vezes penso que almas antigas procuram uma nova vida. E continuam a procurar até a encontrarem. Que procuras tu, Lui?
  • - É o que alguns dizem. Lui levantou a cabeça.
  • - Nunca o disse, mas acho que sim.
  • - Dizia que lhe devia a vida: a dela, a dos filhos e a dos netos. Até colocava flores nos túmulos de Josephine e Henri Manet. Mas nunca lá ficava para dizer uma oração. E fazia outra coisa no dia do aniversário, todos os anos até morrer: levava flores e atirava-as ao rio. E aí, sim, dizia uma oração.
  • - Creio que sim. Costumava levar flores ao túmulo do pai. Levava-as todos os anos no aniversário dela.
  • - Nunca a ouvi dizer nada sobre isso. Era uma mulher feliz, Lui. Talvez fosse mais feliz aqui do que teria sido na Mansão, se as coisas tivessem sido diferentes. Tinha jeito para fazer pão. Foi dela que o herdei. Também sabia contar bem histórias. Às vezes, quando eu ficava com ela, inventava histórias como se fossem verdadeiras. Acho que podia ter sido escritora, se tivesse querido.
  • - Lembro-me muito bem. Tens traços dela. Sabes disso, já viste fotografias antigas...
  • - Foste um enorme prazer para nós.
  • - Oh, minha filha, a função dela é magoar as pessoas. E só Deus sabe como ela é perita nisso. - Afagou-lhe o cabelo. - Mas tenho-te a ti. Tenho a minha Lui.
  • - Saíste mais cedo porque estavas preocupada comigo. Não precisavas.
  • - Havia pouco movimento.
  • - Que fazes acordada tão tarde?
  • Fora o coração despedaçado.
  • Ele morreu por causa disso.
  • Mas amá-los era um suicídio.
  • Se não fosse isso, quem sabe que direção a sua vida teria tomado? Oh, ela e aquele rapaz teriam seguido caminhos separados pouco tempo depois. Mas isso podia ter acontecido com alguma ternura, podia ter-lhe deixado uma memória carinhosa do primeiro amor.
  • Aquilo despedaçara-lhe a vida, concluía agora. Em tempos ainda houvera esperança, sonhos inocentes e fé. Agora, havia depois ambição, determinação e o voto implaaquivel de nunca, nunca mais voltar a acreditar.
  • Naquela abrasadora tarde de Verão, admitiu. Naquele dia quente e nublado em que vira o rapaz que amava do fundo do coração e da sua inocente juventude a transar com a mãe em cima de um cobertor esfarrapado. No pântano, como dois animais.
  • Certa vez permitira-se sonhar: um desses sonhos femininos de romance e de um belo homem que a amasse, de um lar e crianças, de manhãs de domingo.
  • Lui fez o possível por sair cedo, mas já passava da uma da manhã quando estacionou junto à casa do bayou. A luz do alpendre estava ligada e atraía as traças para a morte. Sentou-se por um momento, a ouvir a música das rãs e das árvores noturnas e o provocante murmúrio da brisa.
  • - Amo-te, Lui.
  • - Volta e fica aqui quando Miss Odette se sentir melhor.
  • - Está bem. Está bem. - Soltou um profundo suspiro quando chegaram ao piso principal. - Deixa-me experimentar uma coisa. - Fê-la rodopiar e esmagou a boca contra a dela. Depois beijou-a com enlevo. - Não sentiste nenhuma vibração lésbica, pois não? - perguntou depois de a beijar.
  • - Volta depois de fechares. Fica aqui.
  • - Espera aí, espera aí. - Precipitou-se atrás dela. - Largas essa bomba em cima de mim e vais-te embora?
  • - Gosto mais da outra teoria.
  • - Não creio que vás ter de repetir esse ato nesta vida. Já pensaste que, se encarares este quebra cabeça sob uma nova perspectiva, talvez encontres as respostas que procuras?
  • - Porque a dada altura as mulheres grávidas entram em trabalho de parto, e depois têm que empurrar um bebê de alguns quilos por um espaço muito limitado.
  • - Não só estás a dizer que fui uma moça, mas também que estava grávida?
  • - Era a casa dele. - Mas lembrava-se de se imaginar a olhar pela janela e ver dois homens aproximar-se da casa montados a cavalo. Porque é que imaginaria ver Lucian regressando a cavalo se ele fora Lucian?
  • - Não faz. Nenhum. Nem pensar.
  • - Eu não. Não sou moça. Nunca fui.
  • - Porque... - Corado, estranhamente envergonhado, levantou-se. - Estás a dizer que fui uma moça?
  • - O quê?! Isso não é possível.
  • - Não foi isso que quis dizer. Não há nada de que eu me possa lembrar porque não sou eu a Abigail. Tu é que és.
  • - Declan. - Tomou-lhe o rosto nas mãos. - Não há nada de que eu me possa lembrar.
  • - Que queres que faça?
  • - Depende da versão da história em que se acredite.
  • - Ela morreu nesta casa.
  • - Não é isso.
  • - Não é uma alucinação. É a memória. A memória, por alguma razão que desconheço. Eles dançaram aqui, o Lucian e a Abigail. Tal como nós. Amaram-se um ao outro, tal como nós. - Quando ela abanou a cabeça, Declan praguejou. - Muito bem, raios, ele amou-a, tal como eu te amo. E ainda há alguma coisa viva entre eles. Talvez algo que precise de ser terminado, ou simplesmente reconhecido. E aqui estamos nós, Lui.
  • - Vamos sentar-nos. - Continuou a agarrar-lhe nos braços e sentaram-se no chão. - Tu também ouviste. A música. Tu também sentiste.
  • - Consegues ouvir? - As mãos de Declan tremiam enquanto lhe agarrava nos braços. - Violinos.
  • - Dá-mos - suplicou ele, afagando-lhe o cabelo com os lábios. Lui não se apercebera de que tinha falado em voz alta. Não fora essa a sua intenção. E ter-se-ia afastado, mas ele puxou-a mais para si. Tão juntos e tão próximos que quase não conseguia respirar.
  • Se a vida fosse um conto de fadas, pensou, poderiam ficar assim para sempre, a valsar sobre aquele soalho acetinado enquanto o Sol descia no horizonte, as flores se amotinavam e as luzes de centenas de minúsculos prismas de cristal caíam em cascata por cima deles.
  • - Estava a pensar num anel para os dedos do pé.
  • - Bom, então vou ter de encontrar outras maneiras de não te esqueceres de mim.
  • - Pensas em mim quando os pões?
  • - Pode ser que o Rufus lhes ensine bons modos. Puseste os brincos que te dei - disse, enlaçando-a e fazendo-a deslizar num movimento de dança.
  • - Hã-hã. - Avançou para ela com uma careta de satisfação. - Vamos arranjar um par de cachorrinhos de boa raça, Lui. Será um bom treino antes de termos filhos.
  • - Achei que podia ser divertido. Que achas? Também vão ser os teus cães.
  • Lui limitou-se a abanar a cabeça.
  • - Ela teria arrombado uma janela.
  • - Amanhã passo-te um cheque.
  • - Uns dois mil.
  • - Vais começar a ferver novamente?
  • A amargura apoderou-se novamente dela.
  • - Ela já está envergonhada.
  • - Devias ir à polícia.
  • - Fazes com que seja difícil continuar zangada. Diz-me porque é que não estás zangado, Declan? Porque é que não estás zangado por ela te ter roubado?
  • - É mesmo amor, não é? Entre ti e esta casa. A maior parte dos homens não olha para uma mulher como tu olhas para essas portas.
  • - É necessário para a ocasião. O general diz que vão vir duzentas e cinquenta pessoas. Além do mais, podem usar-se as portas de ligação para transformar o espaço em duas salinhas. - Avançou e retirou uma das enormes portas do respectivo encaixe. - Não é espantoso? - Passou reverentemente os dedos pela madeira talhada. - A mestria com que as fizeram. Há mais de cem anos. Detesto ter que as cobrir. Olha só como o padrão combina com os medalhões do teto. O Tibald fez um excelente trabalho de restauração.
  • As paredes eram de um rosa-pálido e o soalho era dourado e cintilava.
  • - Sim? - Olhou para os escadotes, as lonas, os detritos das obras e para as duas mulheres que avançavam cuidadosamente com visões de tule e renda na cabeça. - E porquê?
  • - Andas a sentir-te pressionado, cher?
  • - Estás a falar de quê?
  • - Os jardins vão ser uma visão esplêndida - concordou Miss Ruiult, percorrendo novamente a sua lista. - Só é pena não ter havido tempo para montar um caramanchão com ervilhas-de-cheiro. - Olhou para Declan por cima dos óculos de leitura com um olhar levemente acusador.
  • - Quase louca, não. Vou enlouquecer de vez!
  • - As flores são a paisagem de um casamento - declarou Miss Ruiult, fazendo mais anotações no bloco de notas que levava para todo o lado. - Como vais, Lui?
  • - A florista vai ter que começar bem cedo no dia do casamento, por isso não atrapalhe e certifique-se de que têm acesso a todas as áreas da casa que assinalei aqui no meu esquema.
  • - E haverá cestos com flores, cestos brancos, na varanda.
  • - As balaustradas e os corrimões serão envoltos em tule e renda.
  • Não esperava que fosse demorar e, por conseguinte, não ficou desapontado. Lui contornou a esquina da casa na altura em que a maior parte da mão de obra voluntária dava por findo o dia de trabalho. Declan encontrava-se no jardim das traseiras, por imposição de Effie e da mãe.
  • - Quando conhecer a sua mamã - conseguiu ela dizer -, vou dar-lhe um enorme abraço com muita força.
  • - Desapareceu. Encontrei isto no quarto dela esta manhã. Quase não saiu do quarto desde ontem. Quando lá entrei, descobri isto e guardei-o onde ela não pudesse encontrá-lo. Depois discuti com ela.Fez as malas e partiu. Mas voltará - disse com o mesmo tom desalentado que ele ouvira a Lui. - Daqui a um ano ou dois. E passaremos por tudo isto uma vez mais.
  • - E vai ter que pensar numa maneira de evitar que ela se afaste quando souber. Certamente é o que fará.
  • - Vai ficar-lhe bem. De certeza que lhe fica bem. Ela tem um bom coração, Declan, mas com cicatrizes. Ela é forte. Às vezes preocupo-me por ser tão forte e poder esquecer-se de que também deve entregar-se. Tenho que lhe contar do roubo.
  • - Isso é bom, porque eu também a quero para mim. - Pegou na caixa do anel e acercou-se de Odette. - Comprei isto para ela. Talvez pudesse dar-lhe uma palavrinha por mim para que ela aceite quando eu lho oferecer.
  • - Olhe-me nos olhos e veja se eu a culpo por isso.
  • Apesar de ter prometido que não verteria uma única lágrima diante dele, sentiu uma escorrer-lhe pelo rosto.
  • - Sou responsável por ela.
  • - Acha que eu aceitaria dinheiro de si? - A ira apoderara-se novamente dele, e Odette estremeceu. - Olhe para mim. Acha que eu aceitaria dinheiro de si, fosse pelo que fosse?
  • - Falta algum dinheiro, é tudo.
  • - Muito bem. - Suspirou. - O mais importante ainda aqui está. - E, tanto quanto via, também tudo o resto, exceto uns milhares de dólares em notas de vinte que mantinha presas com o gancho que pertencera ao seu bisavô. - Não falta nada.
  • Ela anuiu com a cabeça e afundou-se numa cadeira.
  • - Oh, mon Dieu, não me perdoarei se isto prejudicar aquilo que existe entre si e a minha Lui. A minha filha roubou-o - disse abruptamente. - Veio aqui e levou o que era seu. - Foi com pesar que enfiou a mão na bolsa e retirou uma caixa gravada. - Isto estava no quarto dela. Soube que era sua mesmo antes de a abrir e ver os botões de punho com as suas iniciais. Não sei se está tudo aqui, mas só havia isto. Se faltar alguma coisa...
  • Aquelas palavras alarmaram-no, quase tanto quanto a dor que via nos olhos dela.
  • - Disse-me para cortar o cabelo no fim de semana para não parecer tão desleixado ou recém-tosquiado no casamento. - refletiu naquilo e passou hesitantemente a mão pelo cabelo. - E vai pôr sabonetes, toalhas e outras coisas requintadas em todos os banheiros na véspera do casamento. Estou proibido de os usar sob pena de morte. E devo colocar mais plantas dentro de casa. Uma casa não consegue respirar sem plantas verdes.
  • - Também gosto muito de si. Gostava que se sentasse, Miss Odette. Parece fatigada. - E preocupada. - E se eu for buscar uma bebida para ambos?
  • - Algumas pessoas chamam-lhe obstinação.
  • - Antes tenho que ganhar coragem. - Pousou o saco de compras que trazia e foi dar uma vista de olhos a alguns dos livros dele. Muitos ainda não tinham saído das caixas, mas isso não a impedia de imaginar o resultado final: torres de palavras, algumas velhas e gastas, outras frescas e novas. Pequenos tesouros, cores fortes.
  • - Preferia que todas estas pessoas regressassem para donde vieram e o deixassem em paz para poder brincar com a sua casa.
  • - É tão bom rapaz, Declan. Fazer tudo isto pelo seu amigo...
  • - A quem o diz. Se no Dia D não estiver ao gosto do general Ruiult, seremos todos fuzilados. - Deu-lhe o braço enquanto falava e, pensando depois na sua própria sobrevivência, apressou-a a entrar na biblioteca. Fechou as portas. - Posso ir viver para sua casa?
  • - Ei, desculpe. Magoei-a? Não a vi. Estava a fugir.
  • - Jim Ready? Quero aquelas janelas a brilhar, estás a ouvir? Achas que as fotografias do casamento vão ficar bem se as janelas estiverem baças? Dobra-me essa espinha, rapaz!
  • No segundo dia da enorme campanha, decidiu verificar os progressos no alpendre dos fundos. Estava coberto de poeira, resultante do corte dos mosaicos que acabara de colocar, e sentia-se bastante animado.
  • E havia também o puro prazer de ver Effie entrar e sair apressadamente à hora do almoço ou depois do trabalho. Inclusive quando trouxe a mãe consigo. Miss Ruiult era uma versão mais velha e mais meticulosa da filha, com um olhar de águia e uma voz que parecia a de um sargento de instrução.
  • Era uma tarefa que exigiria suor, esforço e empenho, e risaqui-la da sua lista deixava-o livre para se dedicar à casa de banho das senhoras no piso de baixo, e para pendurar o candelabro de vidro soprado que comprara para o átrio, e para concluir os planos da salinha de entrada. E para...
  • Andava ansioso por colocar ele próprio a rede de mosquiteiro no alpendre das traseiras, mas consolou-se com a ideia de que um bom furacão exigiria que a substituísse.
  • Achou que seria indelicado dizê-lo.
  • No espaço de vinte e quatro horas, Declan descobriu que tinha mais braços para o ajudarem com a casa do que aqueles de que precisava. Aparentemente, todas as pessoas da Louisiana estavam convidadas para o casamento, e estavam dispostas a ajudar.
  •  
  • Julian.
  • Lilibeth tentou gritar, mas não tinha fôlego suficiente. Mal abriu a boca, algo entrou à força dentro dela. E, durante um instante de pavor, essa coisa tornou-se nela própria. E depois atravessou-a. Uma coisa fria, perversa, furiosa.
  • Viu o homem e a mulher no chão, ouviu o bebê a chorar no berço. Viu os olhos da mulher: olhavam fixamente e eram cegos. E mortos.
  • Mas parecia ter umas mãos a pressionar-lhe as costas, a empurrá-la, até que, com os dedos trêmulos, estendeu a mão para a porta.
  • Vozes? Como poderia ouvir vozes se não estava ali mais ninguém? Mas as vozes detiveram-na, forçaram-na a voltar para trás. Aqui há qualquer coisa errada, malévola.
  • Era a sua casa.
  • Que haveria ali?, perguntou-se. Talvez algo valioso. Talvez algo que pudesse vir buscar mais tarde. Algo que a tornasse rica.
  • Sairia pelo outro lado, não fosse dar-se o caso de a sua metediça mamã estar a olhar naquela direção.
  • Ficou ali imóvel, ofegante de excitação, com a cocaína a dançar-lhe no sangue, e pensou no prazer que lhe daria vandalizar aquele lugar. Dar-lhe-ia imenso prazer - mais do que qualquer pagamento. Mas não seria inteligente. E ela era inteligente.
  • Afinal, acabaste por pagar, não foi, cabrão? Acabaste por pagar o que é justo!
  • Botões de punho de ouro - pelo menos supunha que fossem de ouro verdadeiro. Ou até de prata, com uma requintada pedra preciosa azul. Botões de diamante, um relógio de ouro. E, dentro da caixa, uma outra caixa, com um anel de mulher de... de rubi, talvez, diamante e rubi, modelados em corações interligados.
  • Não o vira ela vir à varanda do quarto da ponta?
  • Tocou numa maçaneta e afastou a mão imediatamente. Estava tão fria que queimava.
  • Ouviu bater uma porta e caiu prontamente de joelhos. Depois uma corrente de ar, disse para si própria enquanto recuperava o fôlego e a pulsação lhe latejava na garganta.
  • Calculou que os livros que ele colocara nas estantes e aqueles que ainda permaneciam encaixotados provavelmente tinham algum valor. Mas eram pesados e seria difícil vendê-los. Devia haver ali mais coisas de valor, algumas peças de joalheria no quarto do piso de cima.
  • Tinha inspecionado o primeiro piso quando ele a conduzira para a cozinha, de modo que entrou pelas traseiras, dirigindo-se imediatamente à biblioteca e à grande escrivaninha de tampo de correr em que reparara.
  • - Somente aqueles que me importam.
  • Ela soltou um suspiro.
  • - Na... com as divisões por concluir e ferramentas e madeiras e...
  • - Está bem. Mas ouve, e por falar em casamento, houve uma ligeira mudança de planos no do Remy e da Effie. A coisa vai ser toda em minha casa.
  • Lui ergueu os braços.
  • - Estou a falar a sério. Estavamos melhor se voltassemos atrás e tentassemos ser amigos.
  • - Tenho andado a pensar nisso. Acho que vou telefonar-lhe. Declan... - Pegou no copo e pousou-o de novo. Aquele gesto inútil fê-lo erguer as sobrancelhas. - Eu ia acabar tudo entre nós.
  • - Que queres dizer com isso?
  • - Estou sempre a subestimar-te.
  • - Não posso dizer que não te voltará a magoar, porque pode. Mas talvez agora não consiga magoar-te tanto, ou durante tanto tempo.
  • Olhou fixamente para ele.
  • - Ela magoa toda a gente. É o único talento que tem. Estava drogada quando apareceu na festa dos meus treze anos. Fizemos um fais do-do lá em casa, com todos os amigos e a família, e ela drogada, com um vadio qualquer. As coisas azedaram e três dos meus tios escorraçaram-nos dali. Preciso fumar - disse, saindo da sala. - Voltou pouco depois com um cigarro. - Eu andava com um rapaz, estava louca por ele. Tinha dezesseis anos quando ela regressou novamente. Encheu-o de álcool e drogas e deu umas cambalhotas com ele. Pouco mais velho era do que eu, por isso não é justo censurá-lo por ter sido um idiota. Ela achou engraçado quando surpreendi os dois no bayou. Não parava de rir. Mesmo assim, quando arranjei este apartamento, voltou de novo e eu aceitei-a. Antes eu do que a avó, pensei. E talvez desta vez... Talvez, quem sabe. Mas levava os clientes para a minha cama e trouxe droga aqui para casa. Roubou-me e abandonou-me novamente. Desisti dela a partir daí. Desisti. Mas nunca conseguirei livrar-me dela, Declan. Não posso fazer nada para alterar o fato de que é minha mãe.
  • Calou-se e ponderou lugubremente naquele terno simples e inevitável.
  • - E o teu pai? Encolheu os ombros.
  • E agora explicar-lhe-ia, porque se preocupava, porque respeitava aquele homem que estava tão determinado a fazer parte da sua vida.
  • - Por que razão o faria?
  • - Não.
  • - Também não tem a ver contigo, Lui. Nunca teve a ver contigo. Eu olhei para ela. Olhei-a com muita atenção e não vi nela nada que seja parte de ti. A família não se escolhe, Lui. Apesar da família, o que fazemos com a vida é que nos confere a fibra e o coração.
  • - Compreendo. Compreendo, embora sejamos ambos suficientemente inteligentes para saber que isto não teve nada a ver contigo. E lamento, lamento ter contribuído para isso.
  • - Não te disse para esperares até eu terminar? - Não era uma voz que a flagelasse, que a ferisse. Era simplesmente implacável. - O preço duplicou para dez mil com a ideia da chantagem. Creio que não ficou satisfeita com a minha resposta, pois arrastei-a para fora de casa. Foi isso, e agora já podes indignar-te se quiseres. Não chores. - Falou com aspereza quando viu os olhos dela marejados de lágrimas. - Ela não merece uma única lágrima tua.
  • - Primeiro chamaste-me um choramingão mimado, agora sou um otário. - Soltou um suspiro exagerado e bebericou o seu chá. - Estás realmente de ego inchado, querida. Não lhe dei um tostão e fiz-lhe ver claramente que não me deixaria enganar. Isso irritou-a e ameaçou contatar a minha família. Parece que andou a fazer perguntas sobre mim e surgiu-lhe então a ideia. Calculou que eles iam ficar chocados e envergonhados com a ideia de este rapaz louro sucumbir aos teus encantos. E, para ser mais convincente, contar-lhes-ia que também tinha fodido com ela.
  • A cor voltou novamente ao rosto de Lui e espalhou-se pelas faces.
  • - Desculpa. - Sentia os lábios rígidos e frios como gelo. A garganta ardia-lhe como fogo. - Não volta a acontecer. Eu própria me encarregarei disso.
  • - Que queres dizer com isso?
  • - Porque fui muito protegido - anuiu com a cabeça. - Ela hoje foi ter comigo.
  • - Não deves culpar-te. Aconteceu simplesmente. - Inclinou a cabeça. - Corrige-me se estou errado. Tendo em conta quem sou e de onde venho, tens a impressão de que não estou preparado para lidar com os aspectos mais sombrios, mais difíceis e mais melindrosos da vida. Em particular da tua vida.
  • - Se vais pedir desculpas por isso, não precisas. Eu queria enfurecer-te. Prefiro ver-te zangada do que triste. Ela tem esse duplo efeito sobre ti.
  • Até que olhara para a porta e lá estava ele. O enorme prazer que sentira, o profundo alívio, irritara-a mesmo antes de ele lhe ferir o orgulho ao arrancá-la do seu próprio bar.
  • Lui levou-o para a sala de estar.
  • Entrou no banho assim que ele saiu. Declan calculou que fosse de propósito, para evitar qualquer intimidade. Deu-lhe espaço e foi para a cozinha. Encontrou o já esperado bule de chá e encheu dois copos.
  • - Está bem. - Fez-lhe sinal para se levantar. Sabia que não valia a pena discutir com ele. Só Deus sabia por que razão achava tão atraente aquele seu lado teimoso.
  • - Tenho que voltar para o trabalho.
  • - Mas nada que te possa fazer o menor bem. Sai. - Empurrou-lhe o ombro com delicadeza. - Sai de cima de mim. Estamos os dois encharcados em suor.
  • - Não. - Levou a mão à face dele, surpreendida por aquela onda de ternura. - Já me tinha decidido. Depois apareces-me no bar, todo sexy e bonito e levantas-me do chão. Confundes-me as ideias, cher. Obrigas-me a reformular sempre tudo, vezes sem conta.
  • - A mim também. Deve ter sido isso. Não ia voltar a fazer isto contigo.
  • Desejava lambê-la como um gato lambe leite.
  • - Tenho mais.
  • - Não.
  • Tinha os lábios encostados à garganta dele e o movimento que faziam despertou em Declan uma enorme ternura. Um arco-íris depois da tempestade.
  • - Não consigo mexer-me - murmurou ele. Sentia-se vazio, leve como um invólucro de semente à mercê da mais pequena brisa.
  • Sem fôlego, fora de si, deixou-se cair sobre ela, que continuava a tremer e a agitar-se debaixo dele, sempre a estremecer, naquelas reverberações posteriores à erupção.
  • Declan não sabia se tinha falado em voz alta ou se as palavras simplesmente lhe rodopiavam na mente. Mas viu que o olhar dela se alterou. Viu a emoção inundar-lhe os olhos e cegá-los.
  • E os olhos dela, escuros e cintilante como ónix, prenderam-se nos dele.
  • Declan sentia-se a arder. Os pulmões, o coração, as virilhas. Aquele calor feroz, aquele prazer indizível de enlouquecer com ela, turvou-lhe a visão e inundou tudo à sua volta.
  • - Mais! - conseguiu dizer. - Quero mais!
  • Lui gritou quando uma sensação de explosão a sacudiu de alto a baixo, e gritou de novo quando ele se enterrou mais e com mais força. Preenchida, devassada, recebeu-o até as suas necessidades, as suas necessidades extremas e desesperadas, a invadirem por completo. Raspou as unhas pelas costas dele, beliscou-lhe os quadris.
  • - Toma-me! - exigiu-lhe. - Depressa! Depressa e com força! Declan lançou a mão por debaixo da saia curta e justa e arrancou-lhe as delicadas calcinhas. O suor reluzia já na pele de ambos quando ela se arqueou para o receber.
  • - J'ai besoin. Preciso.
  • Soltou-lhe uma das mãos.
  • - Olha para mim. - Prendeu-lhe as mãos de ambos os lados da cabeça. - Diz-me que não me queres, que não queres isto? Di-lo, mas com seriedade, e eu vou-me embora.
  • - Não era o que esperavas de mim, não? - Estava sem fôlego e excitadíssimo e rasgou-lhe a blusa. - Até aqui dei-te demasiado daquilo de que já estavas à espera.
  • Já estava preparado quando ela saltou, e riu-se quando ela se lançou sobre ele. Chegara a altura de uma queda rápida e violenta, e aquelas unhas aguçadas e dentes afiados eram perfeitos como retoque final.
  • Arrancou-lhe o outro sapato e depois a blusa. A reação dela foi pôr-se de joelhos e metralhá-lo em cajun com tal rapidez e contundência que ele só conseguiu captar o sentido de uma palavra ou outra.
  • Declan limitou-se a sorrir, tirou-lhe um sapato e atirou-o para o lado.
  • O resto das palavras perdeu-se - bem como o ar dos seus pulmões - quando ele a atirou para cima da cama. Declan conseguiu ver-lhe os olhos a faiscar perigosamente por detrás do cabelo antes de ela o afastar do rosto. Perfeito, pensou. Desejava uma coisa rápida e física, transpirada, sexy.
  • - Excelente ideia. Não era a minha primeira prioridade, mas para quê esperar? - Colocou-a numa posição mais segura sobre o ombro e dirigiu-se para o quarto.
  • - Já estou a tratar disso - disse, levantando a mão para lhe apalpar o traseiro enquanto fechava a porta com o pé.
  • - Deve ser porque tens ansiado por mim.
  • - Perdeste uns quilinhos - comentou ele enquanto abria a porta. - Excelente.
  • - Excelente.
  • - Muito bem. Vamos ser presos por aquilo que planejo fazer aqui no teu alpendre, mas estou disposto a arriscar.
  • - Não gosto que me forcem, cher.
  • - E tens-te saído mesmo bem. Obrigado - acrescentou quando o homem levantou a porta-balcão. - O negócio aguenta bem sem ti durante meia hora. - Acenou com a cabeça quando o homem se apressou a abrir-lhe a porta.
  • - Com certeza.
  • - Estou ocupada, cher. Vai sentar-te que eu trago-te uma cerveja. Levantou-a novamente e fê-la balançar um pouco as pernas para poder pegar nela ao colo. Empurrou a porta que dava para a cozinha com o cotovelo.
  • - Ainda bem. - Afagou-lhe a face e dirigiu-lhe aquele olhar rápido e malicioso. - Agora põe-me no chão, rapaz, aqui trabalha-se.
  • - Tive saudades tuas.
  • Só teve tempo para passar a caneca espumosa para as mãos que a aguardavam e começar a virar-se antes de ele a levantar do chão e unir os lábios aos dela.
  • E preparado para Lui.
  • - Segura-me.
  • - É assustadora?
  • - Ainda não conheces a mãe dela.
  • - Provavelmente. - Remy soltou um suspiro: conhecia bem a sua menina e o bando com quem se dava. - Cher, nem sabes no que te meteste. Fizeste a minha menina feliz e estou-te grato, mas devo dizer-te que vais ficar a braços com um par de semanas de pura loucura.
  • Ficou boquiaberto enquanto ela fechava a porta atrás de si.
  • - Claro.
  • - Eu sei que sim. Também significa muito para mim. Vai ser uma grande festa, não vai?
  • - Eu digo-te que caso contigo em qualquer lugar e em qualquer altura, e tudo o que ele faz é oferecer-te uma casa em escombros e quem recebe o beijo é ele.
  • - Oh, não devia deixar-te fazer isto. Vais ter todos aqueles desconhecidos a perambularem pela tua casa, a pisarem o teu relvado. Mas vou aceitar porque estou desesperada, e é mesmo perfeito. Juro-te, juro-te que não vais ter nenhum trabalho. Eu trato de tudo. Vou ficar a dever-te um favor para toda a vida.
  • - Importas-te? - disse Declan a Remy. - Gostavamos de ficar sozinhos.
  • - Dec... - começou Remy, mas Effie não o deixou acabar.
  • - Estás a falar a sério? - Effie agarrou nas mãos de Declan antes que Remy pudesse falar.
  • - A Mansão. Raios, é suficientemente grande. O salão de baile precisa de algumas obras, mas há tempo. Tenho que recrutar pintores, mas esta manhã terminei a entrada.
  • - Claro que interessa. - A afirmação de Declan fez com que ambos o olhassem fixamente, Effie com as lágrimas ainda a marejarem-lhe os olhos e Remy com uma expressão de frustração e perplexidade. - Não podem deixar que um pequeno incêndio vos estrague os planos. Usem o meu sítio.
  • Effie fungou, suspirou e apoiou-se nele.
  • - E vamos casar-nos onde? No registro?
  • - Eu é que quis usar aquela antiga fazenda. É tão romântica e encantadora. O Remy disse que era muito mais fácil reservar o salão de baile de um hotel, mas não, as coisas tinham que ser à minha maneira. E agora vejam o resultado. Temos menos de três semanas e estamos... Estamos afundados, é o que é.
  • Declan imitou Remy e acocorou-se também.
  • - Estragos causados pelo fumo e pela água - explicou Remy a Declan. - Estragos superiores aos causados pelo fogo. Não vão conseguir reparar os danos a tempo.
  • - Problemas com o local do casamento - começou Remy, e Effie soltou um gemido.
  • - Querida, disse-te que lhe dizia eu que ias trocá-lo por mim. Effie limitou-se a levantar a cabeça, a cobrir o rosto com as mãos e a soluçar.
  • Effie estava sentada numa das cadeiras para os clientes, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces e com Remy acocorado junto dela. Embora Remy lhe limpasse as lágrimas e tentasse confortá-la, lançou a Declan um olhar de puro pânico masculino.
  • - Mande-o entrar já!
  • Declan passou pelo escritório de Remy a caminho do Et Trois. O casamento aproximava-se rapidamente e as suas obrigações como padrinho incluíam coordenar a despedida de solteiro. Embora achasse que os planos eram bastante claros - bebida suficiente para afundar um navio de guerra e um clube de strip -, havia pequenos pormenores que precisavam de ser trabalhados.
  •  
  • Sentou-se novamente e contou-lhe acerca de Lilibeth.
  • - No casamento do Remy. Há depois um pequeno problema... para além de ela ainda não se sentir preparada para dizer "sim".
  • - Está bem. - Pegou no seu chá gelado. O gelo já derretera, mas entornou-o na mesma. - Chama-se Angelina Simone, é linda, fascinante, irritante, teimosa e perfeita. É mesmo perfeita, mãe.
  • - Não. Tens uns minutos?
  • Desta vez o silêncio foi ainda mais demorado.
  • - Combinado. Que se passa realmente, Declan?
  • - Queres que o tio Jimmy cante Danny Boy?
  • Declan riu-se.
  • Fez-se um silêncio longo e eloquente.
  • - Todas essas ferramentas horríveis. Decepaste a mão?
  • - Declan? Porque estás a ligar-me a meio do dia? Que se passa? Tiveste um acidente?
  • Marcou o número e sentiu-se mais aliviado ao ouvir o som familiar da voz dela.
  • Agora não restavam dúvidas de que a mãe de Lui também lhe desejava mal, disse para si próprio.
  • Um rosto que pertencia à casa, ou à parte que batia com as portas e que o queria ver dali para fora.
  • - Não o arranjará aqui. - Já com a paciência esgotada, agarrou-a pelo braço e arrastou-a até à porta. - Posso causar-lhe mais problemas a si do que você a mim. Acredite. - E fechou-lhe a porta na cara.
  • - A minha mãe reduzia-a a farrapos. - Foi até à bancada, puxou uma gaveta e tirou um bloco de notas. Rabiscou um número. - Tome. É o número dela. Ligue-lhe. Pode usar o meu telefone, desde que eu possa ficar a ouvir enquanto ela a desfaz em pedacinhos.
  • - Os seus sentimentos não valem um tostão para mim, Lilibeth.
  • - Saia da minha casa antes que lhe bata!
  • - Todos esses doutores, advogados e manda-chuvas lá de Boston, que vão achar eles quando souberem que o seu rico menino de ouro anda a dar-se com uma filha bastarda do bayou? Sem dinheiro, sem linhagem. Dona de um bar de segunda classe e com uma avó que costura roupa para fora para ganhar uns tostões extra. Riscam-te logo do testamento, doçura. Deixam-te sem um tostão e com este enorme elefante branco nas mãos. Sobretudo quando eu lhes disser que também dormiste com a mamã dela.
  • Josephine.
  • - Julgas-te muito esperto, não é? Muito importante porque nasceste rico. - Levantou-se. - Numa família grande, chique, snobe. Descobri tudo sobre ti, Declan Fitzgerald. E agora pergunto-te: o que é que essa tua enorme família chique e snobe vai pensar quando souber que andas a aquecer a cama com uma prostituta cajun dos pântanos?
  • - Vai-te foder!
  • - É uma mentirosa. Está a tentar comover-me para lhe dar cinco mil dólares e assim poder arranjar droga e sair da cidade. Calculou que eu fosse um alvo fácil, mas calculou mal. Se não fosse por causa da Lui, dava-lhe umas centenas de dólares para a mandar para longe daqui. Mas, Lilibeth, tenho que pensar na Lui. Ela não ia gostar.
  • - Cinco mil dólares. A culpa não foi minha. De verdade, a culpa não foi minha. Confiei na pessoa errada, um homem - disse num tom fatigado. - Ele fugiu com o dinheiro e fiquei eu com a dívida. Se não arranjar maneira de o devolver, eles vêm atrás de mim para me fazerem mal. E à mamã e à Lui.
  • - Quanto dinheiro?
  • - Devo dinheiro. Foi por isso que saí de Houston. Tenho medo que me encontrem e me façam mal. E à Lui também. Não quero que magoem a minha menina.
  • Declan aproximou-se da bancada, abriu a torneira e encheu um copo.
  • Lilibeth sentia vontade de lhe gritar, de lhe bater. Mas conseguiu controlar-se. Não bebera assim tanta cerveja que lhe entorpecesse a razão, e a linha de coca que snifara antes de vir fora quase nada. Dramatizou a situação, afundou-se na cadeira, deixou cair a cabeça sobre os braços cruzados e soluçou.
  • - Provavelmente julgas-te demasiado bom para mim.
  • - Está a humilhar-se. - Contorceu-se para poder levantar-se da cadeira e ficarem face a face. - Isso é consigo. Mas está a querer usar-me para tentar conquistar a Lui, e isso já me diz respeito.
  • - És mesmo tímido. - Com uma gargalhada que soprou a respiração quente e o hálito a cerveja para o rosto de Declan, foi descendo as mãos até ao colo dele.
  • - Porque não? - Passou o copo gelado entre os seios, riu-se e levantou-se. - És tímido, querido? Não sejas tímido com a Lilibeth. Nós dois podíamos ser amigos. - Contornou a mesa e inclinou-se por detrás dele. - Bons amigos - acrescentou, abraçando-o e mordiscando-lhe a orelha.
  • - Andas a dormir com ela, não andas?
  • - É sempre arriscado fazer suposições. - Replicou-lhe na mesma moeda.
  • - Se tiver que optar, fico do lado da Lui. De qualquer modo, não posso intrometer-me em assuntos de família... e se fosse suficientemente estúpido para o tentar, ela também não me daria ouvidos.
  • Enxugou delicadamente as lágrimas com a mão.
  • - E agora estás aqui e sentes a falta deles, e eles a tua. Apesar dos problemas que possa haver entre vocês, põem-nos de lado e ajudam-se uns aos outros. Aconteça o que acontecer, não é assim?
  • - Oh, está bem. De manhã a casa fica quente como um inferno quando ela assa pão. Tem que poupar os seus tostões. Tenho-a ajudado o melhor que posso, mas as coisas estão más. Declan... - Passou o dedo pela condensação no copo e bebeu um pouco mais. - Queria pedir-te desculpa pelo que se passou lá em casa no outro dia. Eu e a Lui, bem, a maior parte das vezes não nos entendemos. Acho que não posso negar que não agi da melhor maneira com ela quando era criança. Mas estou a tentar compensá-la. - Abriu excessivamente os olhos até sentir picadas e estes começarem a ficar adequadamente úmidos. - Mudei. Cheguei a uma altura da minha vida em que sei que o importante é a família. Sei que me compreendes. Também tens família.
  • - Está demasiado calor para se trabalhar. - Recostou-se e observou-o por baixo das pestanas. - Em dias assim, só deseja uma pessoa enfiar-se numa banheira fresca e depois deitar-se num quarto quase às escuras com uma ventoinha a refrescar-lhe a pele. - Pegou no copo de cerveja que ele lhe servira e sorveu um pouco. - Que fazes para suportar o calor, querido?
  • - Agradecia-te. Acompanhas-me?
  • - Prefere uma cerveja?
  • - Lamento. - A menção a Lui fê-lo retesar-se. Mas estava de costas para ela, e Lilibeth não conseguiu ver-lhe o rosto. - Não cozinho.
  • E ela interpretou a gentileza da voz dele como atração.
  • Quando chegaram à cozinha, achou-a demasiado patética para lhe guardar qualquer ressentimento.
  • E exibi-lo nuns minúsculos shorts vermelhos e num top justo só a fazia parecer vulgar e patética: uma boneca gasta, mascarada para uma última noite de Carnaval. Sentiu uma certa pena daquela mulher que procurava aceitação e atenção tentando ostentar uma sexualidade que perdera.
  • Em vez disso, aproveitou para a observar quando ela se encaminhou para a biblioteca, emitindo os seus sons ronronantes.
  • - Agradecia-te, mas não me apresses. - Passou a mão com ousadia pelo braço dele e não o largou enquanto apreciava o vestíbulo. - Estou fascinada com o que fizeste aqui. A mamã disse que iniciaste as obras apenas há uns meses.
  • - Meu Deus, já disse que eras inteligente? És um gênio. Ficou tudo tão belo e fresco. - Virou-se novamente para ele. - Deves sentir-te incrivelmente orgulhoso.
  • - Meu Deus, doçura, isto parece uma sala de exposições. Uma verdadeira sala de exposições - repetiu, entrando na salinha.
  • Mas agora estava repleta de luz e brilho. Soalhos lustrosos, paredes brilhantes. Nunca apreciara mobília antiga, muito menos como moda. Mas estava a par dos preços.
  • Não precisou de fingir estupefação ou espanto enquanto admirava a grandiosa entrada. Já estivera ali antes. Remy e Declan não tinham sido os primeiros a embebedar-se e a forçar a entrada da Mansão Manet.
  • - Nada seria mais bem-vindo.
  • Não a queria dentro da sua casa. Mais do que desagrado, sentia uma espécie de pavor primitivo. Mas, apesar de tudo, era a mãe de Lui, e a sua própria mãe tinha-lhe inculcado bons modos.
  • E dinheiro, pensou ela. Bastante dinheiro.
  • - Podes começar por me chamar Lilibeth. Afinal de contas, és um grande amigo da minha mamã... e da minha menina, não é? - Perambulou um pouco e os seus olhos abriram-se desmesuradamente enquanto examinava a casa. - Nem consigo acreditar no que fizeste nesta enorme casa velha. Deves ser terrivelmente inteligente, Declan - disse num tom insinuante. - Posso tratar-te por Declan, não posso?
  • - Juro, este calor é prostrante. - Sorriu-lhe e pestanejou enquanto abanava a mão diante do rosto. Declan reparou que as pulseiras que trazia eram de Odette. - E ainda não é meio-dia. Olha para ti - continuou, numa voz lenta e ronronante. Dirigiu-se diretamente para ele e passou-lhe um dedo pelo peito nu. - Está todo suado.
  • Tinha de partilhar aquela excitação com ela. Que importava se estava a antecipar-se ao combinado?
  • Retrocedeu novamente em direção à casa e, só pelo prazer que isso lhe dava, subiu lentamente o lance da direita, atravessou a varanda e tornou a descer pelo da esquerda. Ficou tão entusiasmado que decidiu repetir o percurso.
  • Agora só precisava de subornar os pintores para trabalharem debaixo daquele calor. Ou rezar por um tempo mais ameno.
  • Terminara a escadaria dupla. O lance de degraus curvava para lados opostos na varanda do segundo piso. A elegância da estrutura anulava todos os arranhões, cortes, esfoladelas e horas de trabalho.
  • Pingava água, que começava já a evaporar-se, e sentiu o sorriso espalhar-se pelo rosto.
  • A mãe iria querer certificar-se. Era um dado adquirido.
  • Sentia-se ridiculamente grato por terem declinado o convite para ficar em casa dele. Era melhor para todos que se enfiassem numa agradável suite de hotel.
  • Mais um dia, disse para si próprio enquanto limpava o suor do rosto. Depois iria à cidade bater-lhe à porta. Se tivesse de a encostar a um canto para a obrigar a falar com ele, então era isso que faria.
  • E pensou nela quando acordou a meio da noite e deu por si enroscado na relva junto à borda do tanque, apertando na mão o relógio de Lucian e com o rosto úmido de lágrimas.
  • Não telefonou a Lui, calculou que ela precisasse ferver até acalmar. Mas pensava constantemente nela.
  • O calor vindo do Sul era asfixiante. Declan tinha a impressão de que até o ar transpirava. De manhã e ao fim da tarde, quando a temperatura era mais tolerável, trabalhava no exterior. Durante a tarde procurava as zonas mais frescas da casa.
  •  
  • - Mère de Dieu - murmurou, olhando fixamente para o sangue que lhe escorria do peito. - Mataste-me.
  • Lutaram, Lucian com dor e estupefação, Julian envolto numa névoa negra, com o punho da lâmina já a escorregar-lhe das mãos.
  • Não se lembrava de ter tirado o punhal da bota. O álcool, a ira e a culpa cegavam-no. Não se lembrava também de se levantar de um salto e o atacar.
  • Estendeu a mão para ajudar Julian a levantar-se.
  • Olhou para o irmão, para aquele reflexo de si próprio, e sentiu outra espécie de vergonha.
  • O segurança interpôs-se entre os dois, agarrou em Julian pelo pescoço, arrastou-o até à porta e empurrou-o para o exterior. Lucian tentava ainda recompor-se quando o ergueram.
  • - Obviamente. As minhas desculpas. - Pegou na mão dela e beijou-a. Depois virou-se e lanceu-se sobre Lucian.
  • Nenhum dos dois reparou que a sala ficara silenciosa à medida que as notas do piano e os risos se desvaneciam. Lucian estendeu a mão e arrancou a loura do colo de Julian. A moça saltou como um coelho quando Lucian puxou o irmão da cadeira.
  • - Allez! - ordenou Lucian à loura. - Sai daqui!
  • Tinha de acreditar naquilo. Durante o Inverno afogara os olhos fixos de Abigail num oceano de bourbon, asfixiara o som do seu corpo a deslizar para dentro do pântano.
  • E esse medo excitava-o como nenhuma das promessas que ela lhe sussurrara anteriormente ao ouvido.
  • - Não fales dela neste lugar.
  • - Não tenho vergonha de pagar por uma prostituta. - Pousou o copo e passou a mão pela coxa da loura. - Agora, se casasse com uma, isso já era outra questão. Mas nisso tu passaste-me a perna, irmão, tal como em muitas outras coisas.
  • - Mas que é isto? - disse quando Lucian se aproximou. - Finalmente desces ao nível do resto dos humanos? O meu irmão precisa de uma bebida. Uma bebida e uma mulher para mon frère! - disse em voz alta. - Embora duvide que ele saiba o que fazer com ambas as coisas.
  • E perguntou-se se Caim olhara para Abel e sentira a mesma violenta repulsa que ele sentia agora.
  • - O meu santo irmão. - Embora as palavras fossem arrastadas, pronunciara-as com amargura. Deu nova golada enquanto via Lucian abanar a cabeça a uma ruiva que se aproximara dele.
  • Desta vez não.
  • Ali o seu crédito era bom, por enquanto.
  • O fumo dos charutos enchia o ar e provocava-lhe uma vaga necessidade de tabaco. Mas não conseguia decidir-se entre fumar um charuto ou levar a prostituta para o piso de cima.
  • Nova Orleães, 1900
  •  
  • - Vou trabalhar. Mantém-te afastado de mim por uns tempos, ouviste? Estou demasiado irritada para lidar contigo.
  • - Queres apostar?
  • - Não é por repetires isso muitas vezes que vais fazer com que aconteça.
  • - Oh! - Ergueu as mãos. - Merde!
  • - E se fizer? - Afastou a mão dele. - É a minha vida. Vivo-a da maneira que quero e tenho-me dado bem. És um romântico, cher. Debaixo de toda essa sensatez ianque, dessa educação dispendiosa, és um sonhador. Não dou crédito aos sonhos. As coisas são como são. Um destes dias vais acordar e dar por ti nesta enorme casa antiga no meio do nada, a perguntares-te onde raio tinhas tu a cabeça. E voltarás rapidamente para Boston, para a advocacia, casarás com uma mulher elegante chamada Alexandra e terão uns belos rebentos.
  • Declan estendeu a mão e ergueu a chave que ela usava pendurada ao pescoço.
  • - É essa a chave, não é?
  • - Não consigo.
  • - Eu não sou uma companhia qualquer. - Tomou-lhe o rosto nas mãos antes que ela pudesse fugir. - Amo-te.
  • Lui calou-se e obrigou-se a pensar.
  • - Sou uma menina banal. Está-me no sangue.
  • Declan ponderou se deveria ignorar o insulto. Afinal de contas ela estava magoada e irritadiça. Mas custava-lhe engolir aquilo.
  • - Já percebi. Mas é um problema familiar. Na minha família estão sempre a acontecer problemas. Provavelmente porque somos muitos.
  • Olhou-o abruptamente: um olhar escuro e feroz que cintilava de humidade.
  • Mas, no que dizia respeito a Lilibeth, não havia soluções.
  • Calculou que caminhariam um pouco, que falariam. E seria tudo.
  • Para se certificar de que ela não fugia enquanto ele descia, tirou as chaves da ignição e enfiou-as no bolso. Saiu, contornou o carro para lhe abrir a porta e estendeu-lhe a mão.
  • - Isto não se resolve com passeios nem com beijos, Declan. Preciso de voltar.
  • - Não sei onde vive. Há muito que não tem pouso fixo. Ontem foi a minha casa. Drogada e cheia de mentiras e com a conversa do costume sobre começar de novo e sermos amigas. Pensou que eu a deixaria viver novamente comigo. Nunca mais! - disse, recostando a cabeça no assento. - Dei-lhe cinquenta dólares para o bilhete de ônibus. Quem me mandou ser tão estúpida? De certeza que já os enfiou pelo nariz acima.
  • - Já te contei tudo que precisas de saber. A minha mãe é uma puta e uma drogada. Quando não consegue ganhar o suficiente para alimentar os seus vários vícios sozinha, rouba. Prefere mentir a enfrentar as pessoas.
  • - Não vou falar disto em nenhum lado.
  • - Não a censuro. A sério. - Sentia a ardência do choro a irromper-lhe da garganta. - Mas não quero fazer parte disto. Não quero. - Carregou com força nos travões em frente da Mansão. - Agora preciso de ir. - Mas baixou a testa para o volante. - Vá lá, sai.
  • - Bem, foi divertido, não foi? - Lui carregou no acelerador. – Aposto que a tua família ia adorar a Lilibeth Simone. Puta, drogada, ladra e mentirosa.
  • - Já tiveste a última oportunidade comigo. Não te aproximes de mim! Não te aproximes da minha casa! Para mim estás morta, ouviste?
  • - Lui, querida! - Lilibeth precipitou-se pelo estreito corredor quando Lui se encaminhou para a porta. - Eu mudei, querida! Quero compensar-te por tudo! Dá-me uma oportunidade para...
  • - Daqui a pouco. - Serviu o café e estendeu a xícara a Odette. Baixou-se até ficar com o rosto ao nível do dela. - Sou irlandês - disse-lhe. - Pelo lado materno e paterno. Ninguém provoca tanto escarcéu numa discussão familiar como os irlandeses. Se precisar de mim é só chamar. - Apertou-lhe a mão e levantou-se. - O mesmo para ti - disse a Lui.
  • - Declan Fitzgerald. Sou um amigo da Lui e de Miss Odette. Eu sirvo o café, Miss Odette. Sente-se.
  • - Pões a mão nela uma vez que seja, Lilibeth, e ponho-te fora daqui! - Odette acercou-se do fogão e serviu café com as mãos um pouco inseguras. - Estou a falar a sério.
  • Lilibeth lanceu-se para a frente. No momento em que Lui estendia o queixo para receber o golpe, Declan interpôs-se entre as duas.
  • - Já te disse que estou limpa. - Lilibeth bateu com a caneca na bancada.
  • - Lui. - Tudo o que Odette conseguiu fazer foi dar-lhe a mão. - Ela é minha filha.
  • - Não recebo ordens da minha própria filha. - Lilibeth afastou-se da ombreira e avançou para o fogão. - Isto é café fresco, mamã?
  • - Esta casa é tão tua quanto minha - respondeu Lilibeth. - Há pessoas com mais respeito pelos laços de sangue do que outras.
  • - E quem é este? - Levantou a mão e afastou languidamente o cabelo enquanto dirigia a Declan um demorado sorriso felino.
  • E viraram-se então.
  • - Que coisa tão comovente...
  • - Bem, há o tio Dennis, mas é tão caseiro quanto um bode selvagem.
  • - Há semanas que ando a ouvir essa canção na cabeça - disse-lhe Declan. - Portanto, quando vi isto, achei por bem comprá-la.
  • A caixinha de latão cabia na palma da mão. Tinha a forma de um coração, com a imagem pintada à mão de um casal sentado num banco de jardim e envergando trajes antiquados.
  • Odette sorriu tal como ele esperava, mas a tensão no ar não se atenuou.
  • - Esta manhã fiz pão - disse Odette, fugindo à questão dela. - Venham para a cozinha. - Enlaçou Lui pela cintura para que a acompanhasse. - Que traz nesse bonito saquinho, cher?
  • - A visita de um cavalheiro é sempre bem-vinda. bebê - disse, beijando Lui no rosto.
  • - Então nessa altura veremos, não achas? - Saiu do carro e avançou para a porta antes dele. - Avó! - Escancarou a porta e entrou apressada. - Trouxe um cavalheiro encantador para te fazer uma visita.
  • - Algum dos Fitzgerald vem ao casamento do Remy e da Effie?
  • - Todos os Fitzgerald são assim tão fáceis?
  • - Dar-lhes-ia assunto para falar durante uma década ou duas. A minha mãe iria gostar de ti - disse quase para si próprio. - E ela não é nenhuma pêra doce. Iria gostar de ti por seres senhora de ti mesma e não tolerares disparates de ninguém. Diriges o teu próprio negócio, cuidas da tua avó. Respeitaria e apreciaria isso. E amar-te-ia porque eu também te amo. O meu pai olharia uma única vez para ti e ficaria teu escravo.
  • - Oh, tenho a certeza de que os Fitzgerald de Boston ficariam encantados ao saber que te tinhas casado em segredo com uma cajun do bayou, proprietária de um bar.
  • Preferia não ter.
  • - É uma resposta verdadeira. - Retirou-lhe a mão tensa do volante e beijou-a. - É a verdade, juro por Deus.
  • Não olhou para ele, não se atrevia, pois tudo dentro dela parecia estar a transbordar, e sabia que bastava olhá-lo nos olhos para que tudo se derramasse. Sentia-se doce, carinhosa e conquistada.
  • - Como é que, com todas aquelas belas damas lá em Boston, e com todas as mulheres bem-parecidas aqui em Nova Orleães, decidiste escolher-me a mim?
  • Declan recostou-se e esticou as pernas enquanto ela conduzia pela vereda. Sempre tivera excelentes resultados nos testes.
  • - Verdadeiro ou falso? Escolha múltipla?
  • Todas as mulheres que conhecia diriam que Declan Fitzgerald era um grande partido. E era a ela que ele queria.
  • - Ainda bem. - Uniu os lábios aos dela e depois afastou-se. - E disto ainda gosto mais.
  • Uma comprida linha de calor fluiu-lhe pela espinha abaixo e quase a fez suspirar.
  • - Ela gosta de ti.
  • - Não sei. Eu, por exemplo, gosto bem desse papel verde, mas... - Passou os dedos pelos diamantes que lhe ornavam as orelhas. - Vou gostar imenso destes lindos presentes. Pronto, traz então o que compraste para a minha avó. Vai animar-lhe o dia, o que quer que seja, por seres tu.
  • Por conseguinte, atenuou a pergunta dando-lhe um rápido beijo no rosto.
  • - Não me censures - avisou-a. E preparou-se para levantar a mesa.
  • Quando cruzou novamente os olhos com os dele, Lui tinha uma expressão indulgente e um pouco irritada.
  • - Tenho que ir. Quero visitar a minha avó antes de voltar.
  • - Para com isso.
  • - Vou ter que usar o cabelo puxado para trás. Para os exibir. Raios - disse enquanto corria para a porta. - Tenho que ver. - Deteve-se diante do espelho e manteve o cabelo preso atrás com a mão. - Oh, meu Deus! São fabulosos! Nunca tive nada tão belo na minha vida! És tão querido, Declan. És um tipo casmurro, louco e querido.
  • - Obrigada. Assustaram-me um bocado, mas já passou.
  • - Perfeitos.
  • Ela limitou-se a abanar a cabeça e a pegar na caixa. Examinou demoradamente os brincos pousados na almofada de veludo até os tirar e os colocar.
  • - És realmente demasiado bom para mim.
  • - Está bem. Queres que espere e te dê os brincos à mesa com um belo bife para jantar?
  • Inspirou profunda e demoradamente enquanto ele a olhava com paciência e divertimento.
  • - São umas pedras bonitas. - Raios, raios, raios! Porque é que ele conseguia perturbá-la constantemente?
  • - Estás a tentar fazer-me parecer uma idiota.
  • - Sim?
  • - Errado. O dinheiro é relativo. Se eu tenho muito, assim seja. Se não os queres, muito bem. - Encolheu os ombros e pegou no seu café. - Dá-los-ei a outra pessoa.
  • - Pegou na caixa e passou os dedos por ela. - Sem compromissos.
  • - Não preciso que me compres coisas.
  • - Bem, estes foram um grande achado. - Recostou-se na cadeira para a olhar diretamente nos olhos em fúria, pois ela pusera-se de pé num salto quando lhe gritara.
  • - Não. - Era interessante, pensou, que ela passasse abruptamente da agitação para a ira perante aquela presente. - Achei que te ficariam bem.
  • - Não consegui resistir.
  • - Alguma coisa me ocorrerá.
  • A preocupação desvaneceu-se do seu rosto assim que ele voltou e pousou uma pequena caixinha ao lado da tigela dela.
  • Teriam dançado ao luar, ao som daquela velha e triste canção?
  • Havia algo naquela casa que a afetava, pensou, tal como afectava Declan. Um lado puxava-a para dentro, o outro empurrava-a dali para fora. Mas estava determinada a manter-se firme.
  • Levantou-se e entrou em casa enquanto Lui se recostava com a tigela entre as mãos e espraiava o olhar pelo jardim, até ao tanque.
  • - Estás por tua conta, doçura, a não ser que essas compras envolvam procurar sapatos ou brincos.
  • - Nunca vi um homem tão louco por compras. - Era tentador abandonar-se à encantadora imagem de ir à caça de tesouros com ele. E participar na selecção de peças para a casa.
  • - E o que é que o senhor caseiro planejou para hoje?
  • - És muito caseiro, não és, cher?
  • - E será melhor quando substituir as tábuas e estiver pintado. E precisa de outras coisas também. - Olhou em volta. - Vasos, sabes, flores e coisas assim. Um balance ou cadeiras de balance.
  • Sorriu-lhe e, raios, deixava-a realmente sem fôlego!
  • - Cher, mais valia optares por um daqueles grandes torrões doces para o café da manhã.
  • - Mmm. Ora bem, que posso eu fazer em meia hora? - Riu-se e puxou-o para dentro da cama.
  • - Doçura, não te incomodes. Os Simone não são dados a desmaios. - Passou o dedo pelo queixo dele. Estava tudo a desvanecer-se agora, a canção, o aroma dos lilases, a estonteante sensação de rodopiar. - Embora essa tua linda carinha me deixe sem fôlego. Sobrou água quente para mim?
  • - Nada. - Dilacerada entre a confusão e o embaraço, fez-lhe sinal para a sentar sobre a cama. - Levantei-me muito depressa, foi só. Depois desequilibrei-me quando estendi a mão para a porta e tu a abriste. Estou bem, cher. Ça va. É depois um bocadinho cedo para eu estar a pé.
  • - Estou bem. Foi depois... desequilibrei-me.
  • Vacilou e estendeu a mão para se apoiar na porta. Mas esta abriu-se e o vapor jorrou para fora enquanto ela caía para a frente.
  • O ar carregado com o aroma das flores, tão carregado que é difícil respirar. Tão carregado que causa vertigens enquanto rodopiam uma e outra vez ao longo das lajes do jardim, com a música sempre a tocar.
  • E sentia o pulsar do coração. Sentia-o pulsar na garganta.
  • Uma melodia estranha para um homem cantar em voz alta no chuveiro, pensou, e deu por si a acompanhá-lo mentalmente no refrão. Quando o baile acabar, quando a manhã romper.
  • Franziu a testa. Ouvira realmente alguém a cantar. No chuveiro, apercebeu-se: a voz de Declan sobreposta ao tamborilar da água.
  • Declan acabaria por partir mais cedo ou mais tarde. Todos o faziam. Mas desta vez ela importava-se mais, e faria um esforço genuíno para permanecerem amigos.
  • Era o suficiente - e teria que ser suficiente para ambos enquanto durasse. Ver Lilibeth permitira-lhe recordar as promessas que fizera a si própria.
  • Diabos o levassem se não o admirava por isso.
  • Abriu os olhos e pestanejou contra a luz do dia nublado. Não fora sua intenção passar ali a noite, mas as suas intenções eram frequentemente adaptadas aos desejos dele. Mais do que isso, os desejos dele enredavam-na até se tornarem também seus.
  • Lui rolou na cama e deslizou de uma almofada para a outra. Ouviu alguém a cantar: uma voz masculina e profunda num refrão encantador. Suspirou e passou a mão pelos lençóis.
  •  
  • Abraçou-a.
  • Brincou com a chave que trazia pendurada ao pescoço enquanto falava. Era um hábito do qual provavelmente não tinha consciência, pensou ele.
  • - Assassinato, desespero, suicídio, um século de almas perdidas? - Encolheu os ombros e voltou a enfiar o relógio no bolso. - Não me parece lá muito certo, se queres a minha opinião. Mas acho que o amor talvez seja suficientemente paciente para aguardar que o seu tempo volte novamente.
  • Ela abanou a cabeça.
  • - Era do Lucian. - Como o seu instinto foi fechar os dedos, obrigou-se a estendê-los e a tocar na gravação. - Muito estranho. Mesmo estranho, Declan. Achas que eu era a Abigail?
  • - Já não se vêem muitos homens a usar este tipo de relógio.
  • - Onde arranjaste isso?
  • - Vou tentar os meus dotes a grelhar atum. - Tirou o relógio do bolso. - Daqui a pouco - disse depois de verificar as horas.
  • - Não foi isso que perguntei. Perguntei-te se conseguirias. Se te sentirias confortável aqui, ou se a ideia de partilhar a casa com... fantasmas ou recordações, ou o que quer que seja, te incomodaria.
  • Os olhos dela, espantados e até mesmo em pânico, fixaram-se prontamente nos dele. Mas o olhar de Declan era calmo e neutro.
  • - Estás a devolver-lhe a vida. É mais do que dinheiro e trabalho.
  • - Este lugar. Durante todos estes anos, vieram e partiram pessoas. Partiram sobretudo. E aqui estás tu, a fazer mais coisas em meses do que alguém fez desde que me lembro.
  • - Angelina, tu és aquilo que procurei durante toda a minha vida.
  • Lui começou a descer mas deteve-se e falou sem olhar para trás.
  • - Talvez ainda não confies suficientemente em mim e imagines que tudo o que quero de ti são uns quantos momentos bem passados. - Levantou-lhe o queixo com o dedo e olhou-a fixamente nos olhos até os dela começarem a piscar. - Estás enganada. Amo-te. - Aguardou um momento e depois anuiu com a cabeça quando ela não respondeu.
  • - Estás preocupada. Noto que estás. Ela tentou esboçar um sorriso.
  • - Uma cerveja sabia-me bem. - Observou então o rosto dela, agora que já recuperara do sobressalto. - Que se passa, Lui?
  • - E se fores buscar uma bebida ou algo do gênero? Vou-me lavar.
  • - Bem, ainda te chamei, mas depois resolvi procurar-te aqui em cima. - Espreitou por sobre o ombro dele. - Que tens aí, passagens secretas?
  • - Meu Deus, cher, da próxima vez dá-me um tiro e acaba com a coisa de uma vez!
  • Continuou a chamar por ele enquanto subia as escadas. Quando chegou ao patamar do primeiro piso, a porta oculta na parede abriu-se. Ambos reprimiram um grito em simultâneo.
  • Realmente, não tinham nada de especial. Dispendiosos, talvez, mas demasiado ornamentados para o seu gosto. E no entanto... passou os dedos por cada um deles, ao de leve. E no entanto, ficavam ali bem, tão bem que conseguia imaginar as esguias velas brancas que aguardavam ser novamente ali colocadas e o cheiro da cera a derreter.
  • - Declan? - perambulou por ali e reparou em mais algumas aquisições. Dirigiu-se para a biblioteca e deu por si a avançar para a lareira e para os pesados castiçais lá colocados em cima.
  • Sentiu primeiro o aroma dos lírios, a fragrância forte e agradável que trazia o jardim para dentro de casa. Declan adquirira uma encantadora mesa antiga, um par de cadeiras de espaldar direito e, reparou com um sorriso, uma enorme vaca de cerâmica para o vestíbulo da entrada.
  • Perguntou-se se Declan a encararia a ela como mais uma das obras que tinha entre mãos. Provavelmente. Não conseguia decidir se a ideia a divertia ou a irritava.
  • Embora os jardins da frente estivessem um pouco esquecidos e abandonados, já havia flores a desabrochar. E a varanda exibia um enorme vaso de barro repleto de begônias.
  • E agora, com tábuas novas ainda por pintar misturadas com as velhas tábuas brancas com a tinta descascada, com algumas janelas a cintilar e outras cobertas de pó, era uma obra que progredia a olhos vistos.
  • A casa parecia diferente, pensou. pequenas mudanças que, de certa forma, a faziam parecer mais real. Era agradável apreciá-la, olhá-la com atenção e pensar como algumas coisas podiam mudar para melhor. Com a visão certa.
  • Seria reconhecer que a mágoa conseguira dilacerar-lhe o coração apesar de todas as defesas.
  • - Então estamos quites. Eu também nunca te quis. - Fechou a porta na cara da mãe. Depois trancou-a e sentou-se no chão. E chorou num silêncio absoluto.
  • Lilibeth avançou para a porta. O dinheiro desaparecera já dentro da sua bolsa. Deteve-se e lanceu um último olhar faiscante a Lui.
  • - Não sejas assim tão má para mim, querida! Não podes ser assim tão fria!
  • - Não estou! Só tomei um bocadinho porque me sentia nervosa por te ver. Sabia que ias zangar-te comigo. - As lágrimas caíram-lhe, arrastando a maquilhagem pelas faces abaixo. - Só tens que me dar uma oportunidade para te compensar, Lui, querida. Eu mudei.
  • Lui só podia supor que Billy fora o último da série de falidos, falhados e abusadores em redor dos quais Lilibeth gravitava.
  • - Não, não vais trabalhar para mim, e não, não podes ficar aqui. Cometi esse erro há quatro anos, e quando te apanhei a fazer das tuas, roubaste-me e partiste novamente. Não vou deixar que isso se repita.
  • - Já há muito tempo que não tens dezesseis anos. Nem eu. Não vou perder tempo a discutir contigo. Tenho que ir trabalhar, e tu tens que te ir embora.
  • - Tinha dezesseis anos.
  • - Carreguei-te durante nove meses dentro de mim, não carreguei? - A mágoa transformou-se em ira, como se alguém tivesse ligado um interruptor. A voz adquiriu um tom estrídulo. - Nove meses enjoada e gorda, enfiada naquele maldito bayou. Ali deitada com dores durante quatro horas até te dar à luz.
  • - Ai, és assim tão dura com a tua mamã, minha filhinha? Porque me magoas tanto o coração?
  • - Já usaste essa desculpa.
  • Unha de coca, apercebeu-se Lui sem qualquer choque ou compaixão. Sabia agora qual era a atual droga de Lilibeth.
  • - Não sejas má, querida, fiz todo este caminho só para te ver novamente. Sei que não tenho sido uma boa mamã para ti, querida, mas vou remediar isso.
  • - Porque me magoas assim? - Lilibeth abriu desmesuradamente os olhos que começavam a encher-se de lágrimas. - Só quero passar uns dias com a minha menina.
  • Lui reparou no olhar dela e na malícia que revelava. Sentiu o peito apertar-se e retesou as costas.
  • - Tenho que ir trabalhar.
  • - Ai, ver-te, claro! - Lilibeth soltou uma risada estrídula que arranhou o cérebro de Lui como umas unhas a raspar num quadro de ardósia. - Mas que pergunta. Tinha tanta vontade de te ver, querida. Disse a mim mesma: a minha Lui anda ocupada, mas temos que passar algum tempinho juntas. De modo que me meti num ônibus e aqui estou. Só tens que te sentar aqui ao pé de mim e contar-me tudo o que tens feito.
  • Lui deixou a porta deliberadamente aberta e permaneceu imóvel junto da entrada. O som do trânsito e o aroma da padaria do outro lado da rua ajudavam-na a manter os pés firmes na terra.
  • Já fora uma mulher bonita, pensou Lui enquanto observava a mãe. Tinha visto fotografias. Mas pouca restava dessa beleza.
  • Falava demasiado depressa, reparou Lui, caminhava demasiado depressa em cima dos finíssimos saltos altos que combinavam com o rosa-garrido das calças justas. Sinais de uma dose recente da sua atual droga de eleição.
  • E, por entre tudo isso, infiltrava-se o seu próprio medo sombrio.
  • - Querida! - Lilibeth Simone abriu os braços.
  • - E o mais problemático é que, se aceitar que sou o Lucian, então sei que a Lui é a Abigail. Só não sei é se devo levá-la lá para casa, para corrigir o passado, ou se devo mantê-la afastada e desfazer o ciclo dessa forma.
  • - Nesse caso, então a casa, e agora este relógio, estão a despertar memórias de uma vida passada. É bastante estranho.
  • Remy cerrou os lábios e recolocou o relógio na caixa.
  • - Não sei o que pensar disso. - Remy passou os dedos pelo cabelo. - Não um fenômeno em que as pessoas tocam num objeto e vêem imagens que têm a ver com ele? Com a sua história e sei lá mais quê?
  • - Et là! Sempre foste casmurro. Continua.
  • - Raios, mas é uma questão bem séria, se queres a minha opinião! Ela sabe das tuas intenções?
  • - Ei, ei, volta um pouquinho atrás. Um anel?
  • - Os nomes e as datas coincidem - concluiu Remy. - Raios, mas que golpe de sorte teres dado com isto.
  • - Sensação?
  • - É elegante, se pretendes pôr-te a vasculhar no bolso sempre que quiseres saber as horas. Pesado - acrescentou quando pegou nele.
  • - Numa lojinha no Bairro Francês. - Pegou na caixa e colocou-a sobre a escrivaninha. - Ora vê.
  • - Era o relógio de Lucian Manet.
  • - Hoje comprei um relógio.
  • Remy colocou a mola na vertical e deixou que a espiral colorida sucumbisse sobre si própria.
  • - Recebi um relato em primeira mão quando te visitei no sábado. Sentir-me-ia melhor se me dissesses que a música de piano que ouvimos provinha de algum rádio que te esqueceste de desligar.
  • - Estás a deixar-me exausto.
  • Pegou num peso de papel de latão e tornou a pousá-lo. Enfiou a mão no bolso e fez tilintar uns trocados.
  • - Andaste outra vez nas compras. - Apontou com a cabeça para o saco que Declan trazia. - Rapaz, não vais mandar vir nada de Boston?
  • - Se me tivesses dito que vinhas tinha despachado uns assuntos para podermos ir almoçar - disse Remy enquanto fechava a porta do gabinete.
  • Sentia-se um pouco abalado e dirigiu-se para o escritório de Remy. Achou que passar algum tempo na sensatez da zona financeira da cidade, na atmosfera racional do Direito, o ajudaria a acalmar.
  • - Quer que lhe traga um copo de água? Quer-se sentar?
  • - Mr. Fitzgerald? Mr. Fitzgerald, sente-se bem? Quer que lhe traga um copo de água? Está tão pálido.
  •            4 de Abril, 1899”
  •          “Para o Lucian, da sua Abby.
  • E soube então o que iria encontrar, soube exatamente o que iria encontrar antes de virar o relógio para ler o que lá estava escrito.
  • A voz da lojista pairava no limiar da sua consciência. Uma outra voz cortou o ar, nítida como um sino. Uma voz feminina, jovem, excitada.
  • - Relógios como este dizem mais do que as horas - disse ela. - Contam uma história. Este aqui...
  • - Tenho belíssimos relógios de bolso antigos. São muito mais imaginativos do que os que se usam atualmente.
  • - E é tudo por hoje?
  • Encostou-se ao balcão e começou a contrapor as suas capacidades regateadoras às técnicas sulistas do comércio de cavalos.
  • - Realmente. - Sentiu uma pontada de entusiasmo quando olhou de novo para o anel. Havia coisas que estavam destinadas, disse a si próprio. Pegou num dos brincos.
  • - Não sei. - Mas conseguira que Miss Odette lhe dissesse a data do aniversário dela, para não a deixar passar em claro. - Nasceu em Julho.
  • - Estou a esforçar-me por a convencer disso.
  • - Vou levá-lo.
  • Assim que o segurou na mão, soube que desejava oferecê-lo a Lui. Talvez fosse uma insensatez comprar um anel de noivado naquela fase do relacionamento. E era imprudente restringir-se àquele objeto antes de procurar outras opções.
  • Era um amontoado de estatuária, abajurs, acessórios e jóias antigos, com três cabinas com cortinas num dos cantos da loja, onde os clientes podiam fazer uma leitura de tarot.
  • Em breve o Verão faria sentir a sua mão pesada e o ar ganharia a consistência do melaço. O pensamento lembrou-lhe que tinha de reforçar o sistema de ar condicionado e talvez ponderar a instalação de ventoinhas nalguns dos quartos.
  • Durante o mês de Março, duas coisas lhe ocuparam a mente, o tempo e os planos: Lui e a casa.
  • Viu-o inclinar-se e beijar a avó na face e receou - não valia a pena fingir o contrário - acabar por ceder a tudo o que ele lhe pedisse.
  • Ele quereria promessas que ela receava fazer.
  • As coisas já se tinham alterado, admitiu. Tudo começara com a ânsia que sentia dentro de si. E agora sentia também um conforto e um desafio quando estava com ele.
  • Mas o que aconteceria quando caísse mesmo? Sabia que assim que sucumbisse não haveria maneira de voltar atrás. Os relacionamentos eram fáceis quando não tinham importância ou, se a tinham, esta era depois momentânea.
  • Porque, aliado às suas outras qualidades, havia um vasto fundo de honestidade. E uma obstinação pura.
  • E tinha dito que estava apaixonado por ela.
  • Ele é tão querido com ela, pensou Lui. A namoriscar com a avó durante a demorada e indolente refeição até o rosto dela ficar corado de prazer. Preocupava-se com as pessoas, pensou. Dispensava-lhes tempo, esforçava-se por descobrir aquilo de que gostavam para depois lhes proporcionar esses pequenos prazeres.
  • - Cher, se continuo a beber, olhe que ainda aceito.
  • - Oh, uma pequena magia caseira. Basta guardá-lo no bolso. Talvez não ajude, mas mal não fará. - Pegou novamente no copo e sorriu. - Quem diria, estou a beber champanhe ao café da manhã.
  • - Acho que há duas forças opostas naquela casa. A força que o trouxe para aqui e a força que quer que se afaste. Tudo se resume a saber qual delas sairá vencedora. - Abriu a bolsa domingueira e retirou um pequeno saquinho de musselina. - Fiz isto para si.
  • - Oh, ele tem um pouco das duas coisas. É uma boa mistura.
  • Lui recostou-se.
  • - Decidiu-se a viver com ela? - perguntou Odette, observando o queixo firme de Declan.
  • - Isso dá que pensar - comentou Odette.
  • - O que queres dizer com isso?
  • - Tenho algumas ideias. Parece-me que quanto mais os trabalhos de restauração progridem, mais exposta e volátil se torna a... a atividade paranormal, por assim dizer. Sobretudo, bem, quando me afasto do esquema original.
  • - O sujeito dos ladrilhos. - Declan esboçou um sorriso. - Disse que ouviu alguém entrar no quarto e pensou que era eu. Estava a falar, a colocar o ladrilho, e pensava que era eu a andar por ali. Como não respondia às perguntas que ele fazia, levantou-se e entrou. Não estava ninguém. Pelo que depreendi do que me disse, algo incoerentemente, a porta do banheiro fechou-se atrás dele e as achas pegaram fogo na lareira. Também afirma que sentiu alguém pôr-lhe a mão no ombro. Tive que o acalmar.
  • - Agora é um pouco mais do que isso. Relógios a darem badaladas quando não há relógio nenhum, música a tocar em quartos vazios. Quando o pintor lá esteve, as portas de ligação da biblioteca não paravam de abrir e fechar. E depois houve aqueles gritos.
  • - Agradeço-lhe, mas acho que tenho que começar a procurar fora desta zona ou a tentar fazer eu próprio essas tarefas. As coisas estão a ficar um bocado animadas na Mansão.
  • - Vou dedicar-me às obras no exterior enquanto o tempo se mantiver assim. O Tibald ainda anda ocupado com os ornamentos de estuque, e eu quero ver se arranjo um pintor para o exterior. Não quero fazê-lo eu. O tipo que contratei para pintar a salinha da frente veio dar uma olhadela à biblioteca mas saiu de maneira um tanto abrupta. - Exibiu uma expressão de desalento enquanto bebericava a sua mimosa. - Não creio que volte. O homem dos ladrilhos também não. Completou apenas metade de um dos banheiros até arrumar as coisas e partir.
  • - Sim. - Olhou diretamente para Lui. - Vou ser o homem ideal.
  • Miss Odette deu uma gargalhada e sentou-se na cadeira que Declan lhe oferecia.
  • - Algum pedido em especial?
  • - Inteligente, é o que ela é. - Deu-lhe uma palmadinha na mão e as pulseiras tilintaram. - Uma mulher tem de ser levada com falinhas mansas, meu belo rapaz. Um homem que vai à igreja para passar a manhã de domingo com uma mulher também é bastante inteligente.
  • - Não és nenhum escoteiro, doçura.
  • Os olhos dele eram inocentemente cinzentos como os de um antigo menino do coro.
  • Direcionou o seu encanto para Miss Odette, e convenceu-as a irem almoçar com ele depois da missa. Recebeu um novo olhar distante de Lui quando deu o seu nome à empregada. Já tinha reservado mesa para os três.
  • Calculou que Deus compreenderia e apreciaria aquele estratagema e que não lhe guardaria qualquer ressentimento por se servir da missa dominical como um meio para atingir o seu fim.
  • Descobriu a missa e a igreja a que Lui e a avó costumavam ir. A pesquisa era essencial em qualquer estratégia.
  •  
  • - Então a mim também não - disse, pousando novamente a cabeça sobre o coração dele.
  • - Oh. Pois muito bem. E isso assusta-te?
  • - Cher, tu desconcertas-me completamente, mas eu ouvi um relógio a dar as doze badaladas.
  • - Soou como aqueles velhos relógios de pêndulo. Onde o puseste? Na salinha da entrada?
  • - És um verdadeiro cavalheiro. - Satisfeita, colocou-se numa posição confortável. - Sempre gostei de relógios que dão as horas. Mas precisas de o acertar. Ainda não é meia-noite.
  • Ele riu-se e rolou para o lado, arrastando-a consigo até ela ficar estendida sobre o seu peito.
  • - Estou a gostar. Gosto disso. - Inclinou indolentemente a cabeça para ele poder acariciá-la até ao queixo. Sentiu o corpo usado, magoado e maravilhosamente solto.
  • - Mmm. Não vás já.
  • Ao longe, um relógio começou a dar as suas sonoras badaladas. E à décima segunda explodiu juntamente com ele.
  • Sem controle, sem qualquer desejo de controle. depois a sede feroz de mais e mais e mais. E a fome implaaquivel da entrega.
  • - Isto somos nós. Isto é nosso. - Assim que falou, com a voz ofegante enquanto a abraçava e a agarrava com força, o frio recuou.
  • O frio que escorria das portas fê-la estremecer.
  • Invadiu-lhe a boca, envolveu-lhe a cintura e levantou-a do chão. Sentiu-se trespassado por uma sensação crua e primitiva, uma consciência de que já não havia escolha, um impulso animal que os obrigava a acasalar.
  • - Apressa-te! - Enterrou-lhe os dentes no ombro quando o desejo disparou dentro dela, uma violenta tempestade de fogo que consumia qualquer precaução. - Meu Deus, apressa-te!
  • Antes de chegarem ao patamar já estavam sem fôlego.
  • Baixou a mão para lhe levantar a blusa, tirou-lha e lanceu-a para o chão. Enredaram-se um no outro e inverteram posições com um movimento rápido. Foi com mãos impacientes que ela lhe puxou a camisa, com tal força que os botões saltaram e ficaram a dançar no chão.
  • Encostou-a contra a parede do corredor e assediou-lhe a garganta com a boca.
  • - Na tua cama, foi o que disseste. - A boca dela era impiedosa, continuamente desassossegada enquanto lhe percorria o rosto. - Na tua cama.
  • Oh, conhecia-a bem, pensou enquanto ela se servia dos lábios para lhe provocar uma série de explosões na corrente sanguínea. Sabia que estava a servir-se do sexo para se manter um passo à frente dele. Ou um passo atrás.
  • - Com certeza que não será de ti.
  • - De usar roupa de baixo feminina. Vai-me custar, mas acho que consigo aguentar até à Páscoa.
  • - Oh! - Voltou a colocá-lo no geladeira. - Eu tenho provavelmente outro tipo de apetite...
  • - Pode ficar para mais tarde.
  • Declan tirou do geladeira um bolo que comprara. Lui olhou para ele e suspirou.
  • Era como se fossem amigos, ou amantes em perfeita sintonia.
  • Não disse mais nada sobre o amor.
  • Não o compreendia, e aquelas suas mudanças de humor eram uma forma infalível de a manter presa ao enigma.
  • - Admiro-te por isso. - Exibiu um sorriso afável enquanto se levantava. - Também gosto de ti, Lui. Aprecio a tua companhia e quero-te na cama. Por agora será o suficiente. Tens fome? Acho que vou ligar o grelhador.
  • Nunca ninguém mo disse, quase confessou. Nunca ninguém lho dissera verdadeiramente.
  • - Mon Dieu! - As palavras ficaram-lhe presas na garganta. Reprimiu a sensação e tentou falar com clareza. - Gosto de ti, Declan, e aprecio a tua companhia. Quero estar contigo na cama. Se isso não for suficiente para ti, parto agora e poupo-nos a bastantes problemas e desilusões.
  • - Estás enganado. Não há homem nenhum, nenhum fantasma de um amante que me tenha despedaçado o coração. Pareço-te um cliché?
  • - Ele magoou-te mesmo.
  • - Nem eu, mas aconteceu. Não precisamos de nos precipitar. Não ia dizer-te nada por enquanto, mas... precisei de o fazer.
  • Lui sentiu o coração latejar-lhe de dor, como se lhe tivessem desferido um murro numa ferida em carne viva.
  • Declan puxou-a de si pela segunda vez, lembrando-lhe assim de que continuava determinado e com uma certa irritação.
  • Tem uns olhos tão profundos, tão claros, pensou ela. Como a superfície de um lago ao crepúsculo.
  • - Declan, estás a dar mais importância a isto do que devias. - Sentia a voz quase a tremer-lhe. E só Deus sabia como o estômago lhe tremia já. - Fomos jantar juntos. Dormimos juntos. Vimo-nos um par de vezes.
  • - Precisas de acalmar - disse ela.
  • - Amo-te - repetiu ele. - Nunca soube o que isto significava e nunca pensei que viesse a saber.
  • - Se estás a tentar levar-me para a cama com falinhas mansas antes de me dares de comer...
  • Aproximou-a mais de si e apoiou o queixo no ombro dela enquanto olhava por cima das grades da varanda.
  • - Sim? - Abraçou-a pela cinta. - Conta-me mais.
  • - Está bem. Digo-te quando tiver a consulta marcada e podes ir segurar-me na mão. Entretanto, vou apostar a minha fortuna na tua teoria da reencarnação. É estranha, mas é muito menos complicada do que uma cirurgia cerebral.
  • - Lui, já sou crescidinho.
  • - Não fales disto ao Remy. - Pegou-lhe na mão até ela seruir e cruzar o olhar com o dele. - O casamento está para breve. Já tem preocupações que cheguem.
  • - Não estou preocupado. Estou apenas... Ouve, vou fazer uns exames, para eliminar essa possibilidade.
  • Mas Lui leu-lhe a preocupação estampada no rosto, uma preocupação que a fez levantar-se e ir-se sentar ao colo dele.
  • - Achas que tens um tumor no cérebro? Que disparate, Declan. - A voz saíra-lhe mais aguda do que pretendia, pelo que continuou num tom mais suave: - Isso não passa de um disparate, cher. Não há nada de errado com a tua cabeça nem com mais coisa nenhuma.
  • Declan abanou a cabeça e bebeu novamente.
  • - Reencarnação - repetiu ele. - Soa melhor do que tumor cerebral.
  • - Está bem, não te irrites. - Sorveu o seu vinho e contemplou o espaço em volta. - Então a tua teoria é que estou aqui e estas coisas estão a acontecer porque vivi uma vida passada na pele de Lucian Manet.
  • - É uma ideia romântica. Serei o Lucian se tu fores a Abby.
  • - Vidas passadas? Almas recicladas? - Encolheu os ombros. - Não sei.
  • - Oh, é uma ideia animadora. Que mais pode ser? Vampiros? Lobisomens? Talvez uns zombies que comem carne? Agora vou conseguir dormir muito melhor, obrigado.
  • Sentaram-se nos dois caixotes de madeira que ele usava como cadeiras.
  • - Tenho bifes e um grelhador - disse ele enquanto servia vinho. Precisava de se concentrar nas coisas normais, concentrar-se no aqui e no agora. - Todos os verdadeiros homens sabem grelhar bifes. Se vais dizer que não comes carne vermelha, vais ter que te contentar com pizza congelada.
  • E a consciência desse fato abriu-lhe todo um novo reino de possibilidades.
  • - Sim, disse. Porque não nos sentamos aqui fora a beber vinho? Observou-o com atenção durante uns segundos mas pareceu-lhe novamente seguro de si enquanto escolhia o vinho. Tirou dos armários novos uns maravilhosos copos antigos.
  • - Isto é provavelmente um sacrilégio, mas obrigado. Que horas são? - Olhou para o relógio e praguejou. - Tenho que levar este ferro-velho para consertar. Está sempre a parar. Sei que já passa do meio-dia e de certeza que ainda não é meia-noite.
  • - Pareces a minha mãe. Esqueci-me. Mais ou menos. Lui arqueou um sobrolho.
  • - Presumo que não tenhas ido à igreja, neste dia sagrado e obrigatório.
  • - Ah, claro. - O seu cérebro estava inegavelmente de férias. - Quarta-Feira de Cinzas. Para além de não saber onde estou, também não sei a quantas ando.
  • - Bastante bem. - Soltou um suspiro e franziu o sobrolho ao ver a mancha de sujidade que ela tinha na testa. - Tens fuligem ou coisa que o valha - disse, mas ela puxou a cabeça para trás antes que ele pudesse estender a mão.
  • - Estás a tentar animar-me com fantasias de dominação sexual?
  • - Onde é que o devolvo? - Abanou a cabeça. - Não sei, não consigo lembrar-me quando acordo. Mas começo a pensar que à noite devia atar-me ao poste da cama.
  • - Aqui não há salgueiros.
  • Não lhe disse que passara por um momento de choque quando tivera quase a certeza de que ele pretendia caminhar direito à água.
  • - Que queres dizer com isso?
  • - Não sei. O que é que eu fiz? O que é que me viste fazer?
  • - De que falam eles?
  • - Sou sonâmbulo... e agora também acontece de dia. Tenho alucinações, ouço vozes. Não me parecem coisas sãs.
  • - Sim. - Esfregou o rosto. - Vou fechar-me num quarto de paredes almofadadas enquanto isto continuar a acontecer-me.
  • - Não sei como vim aqui parar.
  • - É a última coisa de que te lembras?
  • - Agora estás bem, já estás bem. - Ajoelhou-se junto dele, afagou-lhe o cabelo e murmurou-lhe em cajun, a língua que usava para reconfortar. - Basta recuperares o fôlego.
  • - Acalma-te, cher. Agarra-te a mim até conseguires aguentar-te nas pernas.
  • Não havia nenhum salgueiro, apenas um cepo apodrecido. Lui sentiu o medo a instalar-se no fundo da garganta, mas refreou-se. Deixou-se guiar pelo instinto, ergueu-se na ponta dos pés e pousou delicadamente os lábios sobre os dele.
  • - Declan! - Mantinha a voz e as mãos firmes enquanto lhe segurava o rosto. - Olha para mim! Estás a ouvir-me? É a Lui.
  • Assustada, Lui agarrou-o pelos braços e abanou-o. Vira-o descer as escadas traiçoeiras enquanto estacionava o carro e vira-o caminhar para o tanque com um passo desajeitado e hesitante, muito diferente da sua habitual passada descontraída.
  • Desde que se mantivessem juntos, desde que se amassem, a Mansão manter-se-ia firme, pensou.
  • Dilacerava-lhe o coração ver a casa que amava apodrecer mergulhada em amargura. Deteve-se junto à borda do tanque e olhou para as folhas verdes dos nenúfares branco-creme que embelezavam a água. Viu uma libelinha passar a zumbir - o sol cintilava-lhe de tal modo nas asas que fazia dela uma mancha iridescente. Ouviu o plop de uma rã e o canto de um pisco.
  • Os outros estavam lá dentro, mas ele queria ver o tanque e os nenúfares. Queria sentar-se a ler à sombra do salgueiro-chorão que dançava sobre a água.
  • E continuava a dormir quando se levantou e desceu as escadas trêmulas e enviesadas que conduziam ao relvado da frente.
  • A ideia fê-lo sorrir enquanto arrancava outra tábua apodrecida.
  • Virou as mãos e examinou os calos que ganhara nas palmas, os pequenos arranhões e cicatrizes que encarava como medalhas de mérito pessoal.
  • Queria constituir a sua própria família, e era bom sabê-lo. Nunca antes sentira essa necessidade de se agarrar ao aqui e agora, ao mesmo tempo que olhava para o amanhã.
  • Ouvia Ray Charles e sentia-se cheio de saúde. Decidiu que os Frank se ocupariam da maior parte das primeiras sementeiras, já que ele próprio não tinha tempo. Mas no ano seguinte queria ser ele a fazê-lo, pelo menos tanto quanto lhe fosse possível.
  • Telefonou imediatamente à mãe a troçar da situação.
  • Não tivera mais ataques de amnésia, pelo menos nenhum de que se lembrasse. A chuva acabara por passar, flagelava agora a Flórida, e deixara-lhe os primeiros jarros e narcisos espalhados por uma das veredas do jardim.
  • - Sim, eu também estou indisposto.
  • Se os fantasmas não conseguiam afastá-lo da Mansão Manet, diabos o levassem se um tumor cerebral o conseguiria!
  • Além do mais, para que precisava de voltar a correr para Boston? Também havia médicos em Nova Orleães. Tinha de descobrir o nome do médico de Remy. Podia dizer ao amigo que precisava de ter um médico e um dentista ali na zona. Tinha lógica.
  • Iria a Boston visitar o tio. O irmão mais novo da mãe era cardiologista, mas indicar-lhe-ia um bom neurocirurgião. Um dia ou dois, alguns exames, e saberia se estava louco, assombrado ou a morrer.
  • Se havia algo de errado consigo, física ou mentalmente, teria de lidar com isso. Os Fitzgerald não enterravam a cabeça na areia quando as coisas se tornavam difíceis.
  • Portas a baterem, zonas frias, até o sonambulismo, eram efeitos colaterais da casa, podia viver com eles. Mas vira aquelas pessoas dentro da sua cabeça. Ouvira-as: as palavras, o tom. E, muito, mas muito mais perturbador, sentira-as.
  • Pressionou a testa com a mão, entre os olhos, onde a dor de cabeça lhe trespassava o crânio como uma lança.
  • Declan não se mexera. Quando recuperou a consciência estava ainda sentado junto à lareira, de costas voltadas para as chamas crepitantes. A chuva continuava a tamborilar no chão e a escorrer pelas janelas.
  • - És a puta do meu irmão! - gritou Julian enquanto ela se precipitava para a porta. - Prostituta cajun, hei-de ver-te morta antes que deites a mão àquilo que é meu por direito!
  • O choque daquela atitude petrificou-a. O insulto flamejou através do pânico com um calor abrasador. Descarregou a mão na face dele com força suficiente para o fazer cambalear para trás.
  • - Sim, por amor a Lucian, devíamos...
  • Julian entornou o resto do brandy.
  • - Aposto que montas mesmo. Aposto que consegues montar um homem até o fazer suar. Esses teus olhos inocentes podem enganar o meu irmão, ele foi sempre um tolo. Mas eu sei bem quem és e o que pretendes.
  • - Estou a aprender a montar a cavalo. O Lucian está a ensinar-me. Ainda não monto bem, mas gosto. - Oh, queria dar-se bem com ele. Aquela casa merecia calor, riso e amor.
  • - De que mais gostas, chère?
  • - Esse livro - disse, dando uma longa golada – tem palavras de mais de uma sílaba.
  • - Olá, Julian. Não te tinha visto.
  • A observá-la.
  • Escolheu Orgulho e Preconceito de Austen. O título adequava-se, pensou. A Mansão Manet tinha tanto de ambos. Mordeu o lábio enquanto folheava as páginas. Era uma leitora lenta e esforçada, mas Lucian dizia que isso significava depois que saboreava as palavras.
  • E como desejava um filho! Como desejava dar um filho a Lucian. Colocou a mão sobre a barriga enquanto percorria as estantes e imaginava o belo filho ou filha que traria ao mundo.
  • Uma esposa. Abraçou-se ao pronunciar aquelas palavras. Era ainda tudo tão novo, tão cintilante. Tal como era nova a vida que crescia dentro de si. Tão nova que ainda não contara a Lucian.
  • Não estava ainda habituada a fazer do tempo o que lhe aprouvesse, pelo que se esgueirou para a biblioteca como se fosse um prazer proibido, já não precisava de dobrar linhos, de limpar o pó às mesas, de carregar pratos.
  • Ela queria um livro. Ler era para ela um prazer - um prazer lento e brilhante. A visão da biblioteca, com fila atrás de fila de livros, fazia-a encarar aquela divisão tão reverentemente como a uma igreja.
  • Uma casa fria, fria, cheia de segredos, ira e inveja.
  • Não fora um lar feliz.
  • Queria dar nova vida à casa, mas quereria devolver-lhe exatamente o aspecto de outrora? Já alterara coisas, e essas mudanças tornavam a casa sua.
  • A chuva surgiu no sábado à noite e instalou-se definitivamente durante todo o fim de semana, obrigando Declan a permanecer sozinho dentro de casa. Iniciou os trabalhos preliminares na biblioteca enquanto ouvia Blind Lemon Jackson.
  •  
  • Um gesto muito apropriado, pensou Declan. Havia ocasiões em que o olhar dela era tão letal quanto uma bala.
  • - Logo se vê. Não precisas de me acompanhar à porta, cher. - lanceu-lhe um sorriso matreiro. - Caminhar vai ser um bocado complicado para ti, no estado em que estás. Aparece no bar se mudares de ideias.
  • - Está bem. - Desprendeu-se dele. Mais uns segundos, pensou, e não conseguiriam esperar até quarta-feira. Teria de se lhe entregar ali no chão. - Tenho que voltar. Não devia ter-me demorado tanto. - Olhou para ambos os lados do corredor quando saiu do quarto. - Creio que nunca passei a noite numa casa assombrada. A que horas devo vir?
  • - Quarta-feira?
  • - Quarta-feira - disse-lhe. - Quando estiveres livre.
  • - Desculpa, doçura. Tenho de voltar. Vem aí a noite de sábado. Mas se andares pelas redondezas, acho que posso ficar acordada até... - Enfiou a mão entre as pernas dele e acariciou o jeans. - Ficar acordada para te esfregar bem essa grande determinação.
  • - Sim? - Leu o convite dela e baixou a cabeça para a beijar. - Agora podia desencantar uns vinte minutos para a tal sessão de sexo.
  • - O quê?
  • - Sim.
  • Declan colocou a mão sobre a dela. O frio soprou novamente e a maçaneta rodou com facilidade. Quando abriram a porta viram depois um quarto vazio, cheio de sombras e luz do sol.
  • - Desculpa, mas tenho uma irmã e ela consegue ser má como as cobras. O que eu queria dizer é que me pareceu uma coisa mais... encorpada. Mais perversa.
  • - Só que não me parece que seja a ira de uma moça. Muito menos daquela coisa linda da fotografia que está lá em baixo.
  • - É a primeira vez que acontece. - Sentia um nó duro no fundo da garganta: o coração, concluiu enquanto tentava respirar fundo. - Quem quer que seja... ou tenha sido... está realmente zangado.
  • Lui sobressaltou-se: não conseguiu evitá-lo. E ouviu o nervosismo na sua própria voz estrangulada.
  • - Não me parece que tenha sido a bebê - murmurou.
  • - Lui! - Mas esta contornava já a esquina do patamar e Declan não teve outra alternativa senão precipitar-se atrás dela.
  • - Bem, se não perguntar é que não dizem mesmo. Isto assusta-te? Lui olhou novamente para o topo das escadas e colocou a mesma questão a si própria.
  • - É estranho, não é, pensares que ias pegar na tua trisavô? É a Marie Rose - disse quando Lui se virou nas escadas e olhou para ele. - Tenho a certeza. Talvez consigas ouvi-la porque és do mesmo sangue. E suponho que eu também consigo porque sou o dono da casa. Tentei telefonar aos anteriores proprietários. Queria perguntar-lhes, mas não consegui contatá-los.
  • Por um instante, foi como se toda a casa se silenciasse. Depois ouviu o clamor vindo da cozinha, o jorro de música de um rádio, o burburinho das vozes dos operários.
  • - Sobretudo do quarto das crianças. Às vezes do quarto no segundo piso. O quarto da Abigail. Mas geralmente do quarto das crianças. Para quando me aproximo da porta. O Remy já aqui esteve duas vezes em que isso aconteceu e não ouviu nada. Mas tu consegues ouvir.
  • Lui sentiu um calafrio percorrer-lhe as costas e olhou com inquietação para o corredor.
  • - Algum dos sujeitos das bancadas trouxe um bebê? - perguntou, enquanto Declan fechava os olhos e se afundava no sofá.
  • Assim que acabaram de colocar o segundo sofá no lugar, Lui recuou para ver o efeito. E foi então que ouviu o bebê a chorar.
  • - Não quero que te machuques.
  • - Hmm? Oh, são pesados, vou pedir ao Remy que me dê uma ajuda mais tarde. Ele ficou de aparecer.
  • - Esplêndido, hã? Fica mesmo bem aqui. Vou usar os dois sofás American Empire e acho que também a mesinha Biedermeier. Começo por aí, depois vejo o resultado. - Olhou para o medalhão do teto. - Vi um magnífico candelabro de vidro soprado, ao estilo muito Dale Chuhuly. Devia tê-lo comprado.
  • Os verdes das folhas eram suaves, tal como os das paredes, e misturavam-se com rosas centifólias de um rosado desbotado contra um fundo verde mais carregado. Assim que a desenrolaram, Lui levantou-se para verificar o efeito enquanto ele se afadigava a ajustar os cantos.
  • - Cher, vais começar a pensar no Verão antes do fim de Abril. - Puxou as mangas para cima e agarrou no carpete. - Estás pronto?
  • - Em Junho logo me preocupo com isso.
  • Conseguiram fazê-lo deslizar para o chão; depois, Declan baixou-se e começou a caminhar para trás por entre as ilhas de mobília. Teve que parar para afastar um sofá, e novamente para desviar uma mesa.
  • - Cher, a julgar pelo que vejo, diria que tens um fraquinho por qualquer coisa.
  • - Missão cumprida.
  • - Uma coisinha aqui, uma coisinha ali. Eu bem me digo que não, mas não consigo refrear-me. De qualquer modo - começou a avançar cuidadosamente por entre os estreitos corredores formados pelas suas compras -, a casa é enorme. Precisa de montes de... coisas. Cheguei a pensar em manter-me fiel à época da construção original, mas depois achei que ia cansar-me. Gosto de misturar as coisas.
  • Lui avançou para as portas que ele acabava de abrir e olhou com estupefação. Uma gruta de Aladim, pensou, mobilada por um louco muito rico e com um gosto muito eclético. Havia mesas, sofás, carpetes, abajurs e aquilo a que sua avó chamaria quinquilharias espalhados por todo o lado.
  • - Que esperteza. - O terno é que queria ficar, queria estar com ele. - Está bem, vou ajudar-te com o carpete antes de ir embora. Onde está?
  • - Agora pões-te a contar os tostões? E logo tu, que nadas em dinheiro.
  • - Bem, quando chegar a ocasião, primeiro vamos ter a discussão. Depois temos sexo para fazer as pazes. É uma espécie de bônus.
  • - São termos e não regras - corrigiu ele no tom que ela consideraria irritantemente sensato. - E só irritante porque te mostrarias mais confiante se estivessemos a discutir. Já desperdiçamos os vinte minutos que podíamos ter destinado para o sexo. Uma boa sessão de sexo, ou uma boa discussão, leva o seu tempo. Vou ter que marcar ambas as coisas para outra ocasião.
  • - Porque é assim que as coisas são. - Era um tom neutro, final. - Nada entre nós é, ou vai ser, igual ao que qualquer dos dois já viveu. Vais precisar de tempo para te habituares a isso.
  • - Ainda bem. Sou um tipo bastante agradável, Lui, mas não vou ser igual aos outros com quem lidaste. De fato, nem sequer vais ter de lidar comigo. Vamos lidar um com o outro.
  • - E eu estou a lixar-te o sentido de orientação.
  • - Para mim, nem tudo se reduz ao sexo. Ajuda a esclarecer as coisas, mas não é tudo.
  • - Custa.
  • - Não pretendia insultar-te. - Mas verificou, bastante nitidamente, que acabava de o fazer. - Não consigo compreender-te. Os homens que conheci a um nível íntimo ficariam irritados pelo que não aconteceu entre nós esta manhã. Também esperava que ficasses irritado, e não te censuraria. Teria compreendido.
  • Ele calou-se por momentos, enquanto esperava que o primeiro ímpeto de ira passasse.
  • - Está bem. Vamos pôr as coisas em pratos limpos. Fui à cidade porque queria estar contigo. Servi às mesas porque queria ajudar-te. Massajei-te os pés porque calculava que já estavas a trabalhar há mais de doze horas. Nunca te fizeram um favor?
  • - És complicada, Lui. Tens aqui um talento para complicar as coisas simples.
  • - Não me referia a isso. Não foste à cidade trabalhar, quantas horas foram?, cerca de seis horas a servir às mesas?, e dar-me uma massagem aos pés, porque não tinhas nada melhor para fazer numa sexta-feira à noite. Foste para ter sexo, cher, e vieste embora sem o ter. Porquê?
  • - Porque vieste embora hoje de manhã?
  • Lui abanou a cabeça à ideia, e à mágoa com que aqueles olhos escuros e límpidos lhe recobriam o coração. Voltou-se e olhou longa e pensativamente para Declan. Roupas de trabalho, pensou, cinto de ferramentas, barba por fazer. Tornava-se cada vez mais difícil imaginá-lo de terno de riscas e pasta na mão.
  • - É estranho - vê-la aqui - disse. - Ver parte de mim aqui.
  • - Não, nunca tive um aspecto assim tão inocente. - Sentindo o impulso, Lui passou a ponta do dedo por aquele rosto jovem e esperançoso.
  • - És todo falinhas mansas. - Afastou-se para junto da lareira. Passou a mão pela prateleira e deteve-se quando avistou a moldura de cabedal castanho com a fotografia de uma jovem. - A Abigail - sussurrou, e sentiu-se tomada de mágoa. Uma mágoa profunda.
  • - Não é suposto um homem dizer a uma mulher que dormiu bem. É suposto dizer-lhe que está com um aspecto encantador.
  • - Acho que esta casa tem sorte por te ter. Acho que a vês como deve ser e vais esforçar-te por a trazer novamente à vida.
  • - Que achas?
  • Tal como o imaginava a mobiliar aquela divisão pessoalmente - com cuidado e atenção aos pormenores.
  • Ele dera-se ao trabalho, foi tudo o que conseguiu pensar. Ele dera-se ao trabalho de cuidar do que era dele. Prestava atenção aos pormenores e tornava-os importantes.
  • Ouviu o barulho dos operários nas traseiras da casa, mas levou o seu tempo a dirigir-se para lá.
  • Precisou de ir ao bar para verificar o turno do almoço e os mantimentos. Depois, para satisfazer a curiosidade, foi até à Mansão Manet.
  •  
  • Ligo-te mais tarde.
  •  
  • Tinha de o compensar, disse a si mesma enquanto se arrastava para fora da cama para ir pôr o café a fazer antes de se enfiar debaixo do chuveiro.
  • Virou-se até ficar de costas, espreguiçou-se e bocejou. E apercebeu-se, com uma espécie de choque tênue, de que não lhe doía nada. Nem o pescoço, nem os pés, nem as costas.
  • Da manhã?, pensou com os olhos pesados de sono. Como era possível ser já de manhã?
  • Esperou que ele mudasse de tom e que as mãos dele se tornassem exigentes. Ele era um amor, pensou, cheia de sono. Mas era um homem. Dormiria um pouco, e deixaria que ele a acordasse depois.
  • - Foi sempre uma alternativa possível de carreira. Tens aqui uns pontos de tensão bastante sérios. O doutor Dec vai pôr-te boa.
  • - Era o que eu pensava - afirmou ele. - A maior parte da tensão está aqui. Também sinto o mesmo.
  • Declan entregou-se ao prazer de lhe acariciar os seios e apreciou a reação imediata dela, o modo como passava os dedos pelo cabelo dele, o modo como unia os lábios aos seus. Tirou-lhe a blusa e desapertou-lhe o soutien. Beijou-a do pescoço aos seios enquanto ela arqueava as costas em sinal de entrega.
  • Desapertou-lhe as calças. Lui levantou os quadris e espreguiçou-se com indolência. Declan duvidava que ela tivesse consciência de que a sua voz se tornara roufenha e que as palavras se arrastavam.
  • - Tiro folga na Quarta-Feira de Cinzas.
  • - Vais tirar alguma folga depois do Mardi Gras?
  • - Aposto que sim.
  • - Mmm. Declan, tens mesmo um bom par de mãos.
  • - Uma quê?
  • - Saldos na Saks?
  • - Vou dar-te algo por que todas as mulheres anseiam. - Afastou o sapato para o lado, subiu para a cama e retirou-lhe o outro.
  • - Acho que consigo adivinhar.
  • - Sabes o que te vou fazer?
  • - Mmm. Meu Deus, sim!
  • Declan correu as mãos pelo corpo dela até as firmar nos quadris e depois ergueu-a até as pernas dela lhe rodearem a cinta.
  • - Está bem, pronto. - Enfiou o envelope no bolso. Compraria qualquer coisa para ela.
  • - Meu Deus, Lui, não quero o teu dinheiro.
  • - Que é isso?
  • Quanto mais o conhecia, mais havia para conhecer, refletiu.
  • - Vão ser longas até quarta-feira. Agradeço-te a ajuda, doçura. Estafaste-te.
  • - Fez vinte e um em Janeiro passado. Vi os cartões deles.
  • - Alguns homens teriam posto os músculos em ação. - Pousou as chaves. - Teriam ido lá para fora rebolar no chão para provar quem tinha pênis maior. - Cansada, levantou a mão para tirar o colar enquanto observava Declan. - Deve ser do advogado que há em ti, é por isso que evitas os confrontos.
  • - Tu és a minha menina, só que ainda não descobriste. Além disso, foi fácil lidar com eles. A minha prima Eileen já tem a sua reputação na Universidade do Michigan.
  • Já passava das quatro quando Lui o levou para o apartamento.
  • - A professora Brennan é tua prima? - O tom carrancudo transformou-se num companheirismo surpreendido. - Raios, ela quase me chumbou neste semestre!
  • - Que tens a ver com isso?
  • - Férias de fim de semestre? Que curso?
  • - Exatamente. E que tal uma bebida para ti e para os teus amigos? Querida, põe essas cervejas na minha conta.
  • - Ora bem, para quê ir lá para fora andar à pancada se estás depois a admirar o meu bom gosto? Ela é espetacular, não é? Se não tivesses tentado atirar-te a ela, ia pensar que estavas demasiado bêbado para ver.
  • - E se te fosses foder? Ou queres ir lá fora para eu te dar cabo das trombas?
  • Noutras circunstâncias, pensou Declan enquanto o avaliava - um metro e oitenta, os seus noventa quilos -, devia ser do tipo que fazia a cama todas as manhãs e visitava velhinhas nos lares de terceira idade. Do tipo que salvava cachorrinhos. Mas, naquele momento, estava bêbado, excitado e estúpido.
  • Declan avançou e passou uma mão possessiva sobre o ombro de Lui.
  • - Ora aí está uma oferta tentadora, cher, mas não tenho mãos a medir.
  • - Se querem aguentar até Terça-Feira Gorda, têm que se acalmar um bocado. - Pousou dois copos de plástico debaixo das torneiras. - Não vão conduzir, pois não?
  • Carregou os copos vazios para a cozinha e voltou a tempo de ver um trio de homens muito bêbados - rapazes, na verdade, como reparou - a atirarem piropos a Lui.
  • - Durante o Mardi Gras, nem por isso. Porque é que não vais para casa, cher? Isto ainda vai demorar mais uma ou duas horas.
  • - E achas que vão?
  • - A que horas fechas? - perguntou quando carregava outra carrada de copos para a cozinha.
  • Fez sessenta e três dólares e oitenta e cinco cêntimos em gorjetas e jurou queimar a roupa que trazia vestida à primeira oportunidade.
  • Perdera a conta às propostas que lhe tinham feito, e não queria pensar na enorme mulher que o içara para o colo. Era como se tivesse sido abafado por uma almofada de cento e trinta e cinco quilos ensopada em whiskey.
  • À meia-noite, Declan achava que tinha carregado cerca de meia tonelada de copos vazios para a cozinha e que despejara o equivalente ao Monte Rainier em pontas de cigarro.
  • - Acho que consigo dar conta do recado.
  • Lui estendeu a mão para a garrafa e afastou-se para tirar a cerveja.
  • - Qualquer coisa.
  • Lui voltou a mexer no cabelo.
  • - Na calçada - corrigiu ela. - Aqui chamamos-lhe calçada. - Puxou o cabelo para trás, entrançado com contas púrpura e douradas. A pequena chave prateada balançava contra a pele perlada de transpiração. - Posso oferecer-te uma bebida, cher, mas não tenho tempo para conversar.
  • - Que vais querer, jeitoso?
  • Vislumbrou o seus caranguejos sorridentes na prateleira atrás do balcão e sentiu-se ridiculamente contente.
  • O bar estava cheio de fumo, de música e do bater de pés na madeira enquanto as pessoas dançavam acotoveladas na pista. No palco, um rabequista produzia ritmos tão quentes que Declan não teria ficado surpreendido se o arco irrompesse em chamas.
  • Talvez estivesse a ficar velho, pensou - ou talvez fosse depois o seu substrato de Boston -, mas queria encontrar um sítio onde pudesse sentar-se e observar a festa em vez de ser arrastado por ela.
  • - Volta aqui - gritou-lhe a mulher mascarada. - Laissez le bon temps rouler!
  • Assim como ser agarrado por uma perfeita desconhecida e ser presenteado com um beijo que se afundava até às amígdalas. A língua que naquele momento lhe invadia a boca transferiu para a sua a tonta doçura de muitos hurricane (Bebida alcoólica à base de rum, típica de Nova Orleães N.T.) e uma luxúria alegremente embriagada.
  • Declan também desejava saborear a ocasião, e decidiu vaguear através da multidão, conseguindo até deitar a mão a algumas contas quando foram atiradas de uma varanda num cintilar de ouro baratucho. Os ouvidos ecoavam-lhe com o estrépito dos instrumentos de sopro e do riso selvagem.
  •  
  • - Não. - Sentou-se diante dela no momento em que outra porta bateu e tornou a olhar para o sorriso tímido e esperançoso de Abigail Rouse Manet. - Não vou a nenhum lado.
  • - Começou a acontecer hoje. O ajudante do encanador disparou daqui para fora como uma bala há umas duas horas.
  • Enquanto falava, uma porta bateu ruidosamente lá em cima, como que irada. Odette limitou-se a olhar para o teto.
  • - Era encantadora - disse ele. - Encantadora e jovem. Parte-me o coração.
  • Tão jovem, pensou. E inocente, apesar do vestido adulto com a alta gola debruada a pele, apesar do desenvolto ângulo do pequeno chapéu de veludo com as provocantes penas.
  • - É uma fotografia, um retrato da Abigail Rouse.
  • - Por uns minutinhos. Tenho uma coisa que talvez gostasse de ter, talvez para pôr sobre a lareira da salinha ou de alguma outra divisão.
  • - Ficou bonito - repetiu. - E a salinha em que está a trabalhar, não podia estar mais encantadora.
  • - Há coisas que não têm preço. Mas não há dúvida de que são bonitas. Venha um dia destes vasculhar o meu telheiro e ver se há alguma coisa que queira. - Voltou-se e acenou aprovadamente com a cabeça enquanto olhava em redor. - Ficou bonito, Declan, trabalhou bem.
  • - Receio bem que sim.
  • - Fiestaware.
  • Quando deu por concluído o que tinha a fazer, encontrou Odette a contemplar o conteúdo do guarda-louça da cozinha.
  • - Não, por favor. Cinco minutos. Há... qualquer coisa, esqueci-me do que era, para beber no geladeira. Porque não vai lá servir-se?
  • - Dê-me só um minuto.
  • - Não a ouvi chegar.
  • - Parece mesmo furioso.
  • Merda para aquilo.
  • Aquela mulher mexia com ele, pensou. E sabia-o. Numa noite envolvia-se toda nele na cama e na outra não lhe dava mais do que uma conversa ao telefone.
  • Doía-lhe o corpo todo. Cada músculo e cada osso do seu corpo cantavam com a mesma ferocidade de Ry Cooder. Julgara que o puro esforço físico de lixar lhe atenuaria o mau humor. Agora esperava que a atenção e o esforço necessários à aplicação do verniz tivessem esse efeito.
  • - Está bem. - Odette subiu as escadas e abriu a porta das traseiras. - Levo-lho eu. - Os olhos dançavam-lhe quando olhou por cima do ombro. - E pode ser que o roube mesmo debaixo do teu nariz.
  • Lui retesou o rosto.
  • - Então quem é?
  • - Se estivessem destinados um ao outro, ela não teria morrido do modo como morreu. Não seria um fantasma naquela casa.
  • - Eu andava bem até ele aparecer, e hei-de andar bem quando ele se for embora. - Sentia-se amuada, e estendeu a mão para afagar Rufus quando este lhe bateu com a cabeça no joelho. - Aquela casa, avó, aquela casa a que ele está tão determinado a dar vida é o símbolo do que acontece quando duas pessoas não pertencem ao mesmo lugar. Eu tenho o sangue dela e sei disso.
  • Odette afastou o chapéu e o rosto revelou toda a sua exasperação.
  • - Para ti foi sempre assim ou assado. Não se consegue pôr-te no meio termo nem com um chicote. És a minha menina, mesmo que já sejas uma mulher crescida, e portanto digo-te isto: não há nada de mal em uma mulher andar sozinha, desde que seja pelas razões certas. Mas ter medo de tropeçar, isso já é errado.
  • Aceitou o pé de rosmaninho que Odette lhe estendia e roçou-o pela face.
  • - Eu sei.
  • - Não, mas de certeza que a tornava mais agradável. - Endireitou-se novamente. - Não és a Lilibeth, poulette!
  • - Para quê darmo-nos ao trabalho de coçar a comichão se alguém a pode coçar por nós? Posso ter quase setenta anos, mas sei ver quando um homem é determinado e capaz.
  • - Eu sei acabar o trabalho sozinha, se é esse o problema. Odette soltou uma risada trocista e arrancou um pé de rosmaninho.
  • - Que aspecto é esse?
  • - Saúde que chegue para querer dar-te uma mordidela. - Voltou aos seus afazeres, com as robustas botas de trabalho firmemente plantadas na terra. - Tentou dar-te uma mordidela esta manhã? Tens aspecto disso.
  • - Pão escuro. Tenho lá dentro um naco que podes levar para casa. - Odette endireitou-se e pressionou ligeiramente o fundo das costas com a mão. - Sobra um que podes levar à Mansão para aquele rapaz. Ele não anda a comer nada bem.
  • Exibiu um sorriso ao aproximar-se e ver a avó, protegida com um velho chapéu de palha enquanto trabalhava na horta.
  • Queria demasiado, já o sentia a sugá-la. E isso assustava-a, assustava-a não ser capaz de pôr cobro à situação.
  • Era muito mais difícil afastar aquilo que respeitávamos. Admirava a força dele, os seus objetivos, o seu humor. E, como amigo, ele proporcionar-lhe-ia bastante prazer.
  • Vislumbrou o focinho nodoso de um jacaré que deslizava por perto. O que estava debaixo da superfície podia arrastar-nos para o fundo numa dentada tão rápida quanto horrível se não estivessemos alerta e precavidos, pensou.
  • Percorrera-o em criança, aprendera a diferenciar uma carriça de um pardal, como evitar um ninho de serpente venenosa pelo fedor a pepino, como lançar a linha e apanhar um peixe-gato para o jantar.
  • Caminhou, lentamente pelo pântano enquanto Rufus corria para as árvores e através da espessa e verdejante vegetação rasteira na esperança de afugentar um coelho ou um esquilo.
  • - Surpreendes-me sempre - retorquiu ela enquanto ele se afastava.
  • Declan sorriu e aflorou-lhe a testa com os lábios.
  • Lui conseguiu esboçar um sorriso.
  • - Talvez tenhamos.
  • Rufus soltou um ganido e sentou-se a morder a bola.
  • Rufus soltou um ganido de aviso enquanto ela se debatia. Mas Declan ignorou-o, mesmo quando o ganido se transformou num rosnido. Enfiou a mão no cabelo dela, puxou-lhe a cabeça para trás e ambos se embrenharam mais profundamente. Ira, mágoa e fome, tudo irrompeu tempestuosamente dentro dele para acentuar o beijo.
  • - Podíamos ser. Ou podíamos tentar desta maneira.
  • Lui encolheu os ombros.
  • - Ora bem, querido Declan, eu gosto de ti. Gosto mesmo. E na outra noite, bem, tu quase me punhas fora de mim. Passamos uns bons momentos, não passamos? Mas não queiras fazer disto mais do que aquilo que foi.
  • - O que é que pretendes fazer mesmo, Angelina?
  • - Pronto, cher. - A sua voz era seda líquida. - Mas porque estás tão zangado? Irritaste-me, só isso. Não estou no meu melhor a esta hora da manhã, e aqui estás tu, todo mal-encarado e carrancudo. Não era minha intenção magoar-te.
  • Apercebeu-se de que a ira não era a maneira de lidar com ele. Não tinha dúvida de que conseguiria vencer aquele controle e provocá-lo para uma boa discussão aos gritos. Seria interessante e mesmo divertido. Mas tinha cinquenta por cento de hipóteses de perder.
  • - Os homens não me tocam a não ser que eu lhes diga que podem tocar-me. - Afastou-lhe a mão.
  • - Durmo contigo se quiser e quando quiser.
  • - O que eu digo é verdade.
  • - Já mo tinhas dito.
  • - Ultimamente sim. E se viesses até lá dentro comigo para tomar café e veres como tenho ocupado o meu tempo já que não posso passá-lo contigo?
  • - Não costumo levantar-me tão cedo, mas a minha avó é uma ave madrugadora. Assim que se levanta, toda a gente tem de se levantar. - Ergueu os braços bem alto e espreguiçou-se.
  • - Até Quarta-Feira de Cinzas não faço outra coisa senão trabalhar. As pessoas gostam de beber antes da Quaresma.
  • Passaste das marcas, concluiu ele. Mas decidiu não fazer caso. Por enquanto.
  • O rosto dela fechou-se.
  • - Duas irmãs e um irmão, todos ainda vivos.
  • - Ela gosta da tua companhia. - Como Rufus abanava impacientemente a cauda, Lui lanceu novamente a bola.
  • - Às vezes sente-se abatida, é só isso. - E raios, raios, aquela instantânea e genuína preocupação dele comoveu-a. - Tem saudades do Pete. Tinha dezessete anos quando casaram e cinquenta e oito quando ele morreu. Mais de quarenta anos é muito tempo para entrelaçar duas vidas.
  • - Não vinha ter contigo. - Apanhou a bola que Rufus largara aos seus pés e lanceu-a, assim como ao cão, novamente pelos ares. - Ando a brincar com o cão da minha avó.
  • - Uau! - Tinha de o felicitar por ambas as saudações. - Tá-se? - respondeu levantando a mão para a passar por aquela face áspera. - Precisas de fazer a barba, cher.
  • Ouviu o cão a ladrar, três latidos roucos e profundos, e depois ficou encharcada com a água que ele sacudiu do corpo. Mas não se teria espantado se a água resultasse do calor que sentia à flor da pele.
  • Enquanto o cão patinhava para a margem, Declan aproximou-se, colocou as mãos sob os cotovelos de Lui e levantou-a do chão. Teve depois um instante para verificar que ela pestanejou de surpresa antes de unir a boca à dele e Declan a levantar ainda mais.
  • - Rufus - chamou, fazendo o cão levantar-se numa agitação de músculos e membros que quase atirou Declan por terra. Lui riu-se e lanceu bem alto a bola que trazia, arrebatando-a agilmente na queda. Rufus avançou para ela, numa mancha de pêlos escuros e entusiasmo. Lui atirou a bola por cima do tanque. Rufus lanceu-se no ar e sobre a água e agarrou a bola com os dentes segundos antes de cair estrondosamente lá dentro.
  • Lui sabia que era o modo de Rufus demonstrar um amor incondicional.
  • Mas agora tinha um sorriso pronto para ele, um lento sorriso de "gato junto ao buraco do rato", e manteve-se imóvel enquanto o cão se precipitava ao encontro dele, rasgando a neblina rasteira.
  • Na pior, faria os tijolos desabar.
  • Não gostava de se sentir carente, pois isso só atrapalhava as coisas. E quando essa carência envolvia um homem, pior ainda.
  • E também não faltavam homens bonitos, para quem andasse à procura de um.
  • Lui tinha-o avistado muito antes. Estivera ao abrigo das árvores e das neblinas matinais, a afagar indolentemente a cabeça de Rufus e a observar a casa. A observá-lo.
  • Estava ele entretido com aqueles pensamentos quando viu Lui e o enorme cão negro surgirem por entre o arvoredo.
  • Que o perseguiam.
  • Algo o impelia, algo o guiava passo a passo através da transformação da casa que lhe pertencia. E no entanto, de algum modo, não lhe pertencia depois a ele.
  • Gostou do som da palavra. Ali as campainhas poderiam tocar livremente.
  • Um velho caramanchão de ferro estava totalmente recoberto com aquilo a que os Frank chamavam glicínias, e havia um ilhéu de azáleas que exibia rebentos promissores.
  • Declan observava da varanda o dia a ganhar vida. A madrugada era uma mancha rosada no céu a oriente, com laivos de malva, como se fossem sonolentas equimoses. O ar estava a aquecer. Sentia que estava a aquecer cada vez mais de dia para dia. Ainda não era Março, mas o Inverno começava a retirar-se.
  •  
  • Claudine apertou o relógio contra o peito e jurou passá-lo, e à verdade, para a filha de Abigail.
  • - Mantém-te longe de mim! - Afastou-se a cambalear em direção à Mansão Manet, em direção ao inferno que escolhera. - Mantém-te longe!
  • Olhou fixamente, com sofrimento, para aquele símbolo na mão de Claudine. O tempo parara para Abigail.
  • - Não quero ouvir mais! Vai para casa, Claudine. Mantém-te longe da Mansão. - Levou a mão ao bolso, tirou para fora o broche-relógio e enfiou-o na mão de Claudine.
  • - Duas metades, Lucian, que partilhavam um útero. Olha para o teu irmão.
  • - A Evangeline tem poderes. Disse que houve sangue e dor e medo. E um pecado escuro, escuro. Morte, disse ela, e um túmulo de água. Disse que tu tens duas metades, e que uma é negra como uma caverna do Inferno.
  • Lucian abanou a mão e virou-se novamente.
  • - Queres que eu acredite que a minha mãe matou a minha esposa e depois disfarçou o crime, o pecado, o horror, dando a entender que a Abby tinha fugido?
  • - A tua mãe odiava a Abby. Mandou-me embora no dia seguinte. Teve medo de me manter lá em casa, medo que eu pudesse descobrir...
  • - Ela levou roupas, jóias. A minha mãe tem razão. - Cerrou firmemente os lábios naquilo que acreditava ser um ato de força, mas era depois a sua fé enfraquecida.
  • - Também eu. - As lágrimas picavam-lhe os olhos e tornavam a luz aquosa. - Também eu tive sonhos.
  • - Isso não passa de outra loucura.
  • - Morta! - Claudine gritou e a sua voz ecoou no ar quente e pesujeitoso. - Mataram-na! Só a morte a poderia afastar de ti e da Rosie.
  • - Não! Não, não é verdade! Andam a mentir-te. Andam a mentir, Lucian. Ela amava-te. Amava-te a ti e à Marie Rose mais do que tudo.
  • - Ela nunca quereria que fizesses isso. Nunca quereria que conduzisses a tua alma pondo fim à vida.
  • Depois, o último raio de sol trêmulo incidiu sobre o rosto dela e Lucian morreu novamente.
  • Ficou petrificado na margem escorregadia.
  • Baixou as mãos e avançou para a água. Estaria quente, tal como o sorriso dela era quente. Suave, tal como a pele dela era suave. E naquele momento a cor carregava-se mais e era quase da cor dos olhos dela.
  • Tinham concebido a criança juntos, com amor, com confiança, com desejo.
  • Diziam que a criança não era dele.
  • Agora era ele quem partia, partia completamente menos em corpo. Atravessava cada dia como um homem em transe. E, que Deus o perdoasse, não conseguia ser um pai para a criança, para aquela imagem de Abigail que ele duvidava em segredo e com vergonha que fosse do seu próprio sangue. O fato de procurar por ela trazia-lhe uma dor indescritível.
  • Acreditava nisso, embora continuasse a procurar em Nova Orleães, em Baton Rouge, em Lafayette, embora continuasse a assombrar o bayou como se ele próprio fosse um fantasma nas horas mais solitárias da noite.
  • Viu uma garça azul elevar-se do canavial como um fantasma, bela, pura, perfeita, deslizando sobre a água cor de chá até se esgueirar entre as árvores. Para longe dele. Sempre para longe dele.
  • Nada voltaria a estar bem.
  • Ela sorrir-lhe-ia e estender-lhe-ia a mão.
  • Não sabia porque viera ali e se pusera a olhar fixamente para a água enquanto espessas sombras verdes se espalhavam em seu redor, à medida que a noite se adensava para devorar o dia.
  •  
  • E a mágoa continuou mesmo quando o silêncio por fim chegou.
  • - Ela não sabe o que pensar de mim - murmurou. - Vai ser divertido deixá-la descobrir.
  • - Talvez me parta o coração, mas, raios, sentir muito é bem melhor do que não sentir nada. - Dizia aquilo repetidas vezes a si mesmo desde que tomara consciência de que estava apaixonado por ela. - De um modo ou de outro, tenho que tentar.
  • - Não consegui amar a Jessica. - A culpa voltou a insinuar-se na sua voz. - Não consegui, e bem tentei. Raios, quase me contentei com o afeto, o respeito e um passado comum, porque nunca pensei conseguir mais do que isso, ou ser capaz de dar mais do que isso. Mas não é verdade. Nunca me senti assim, Remy - repetiu. - E sinto-me bem.
  • - Então deixa-me dizer-te isto. Nunca me senti assim antes, nunca na minha vida. Nem creio que conseguisse. Acho que havia qualquer coisa dentro de mim que não funcionava como devia.
  • - As pessoas dizem sempre coisas desse gênero, como se o tempo tivesse alguma importância. - E como o lado crítico da sua mente lhe dissera a mesma coisa, estava irritado por ouvir o seu melhor amigo afirmar o mesmo. - Ora essa, há alguma lei que diga que só podemos apaixonar-nos depois de passar um certo período de tempo, durante o qual as duas partes confraternizam, comunicam e, se possível, praticam sexo de modo a assegurar a compatibilidade? Se há, e se funciona, explica-me então a taxa de divórcios.
  • - Com a Jessica, idiota. - Divertido e comovido, Declan apoiou-se contra a balaustrada. - Não estou enfeitiçado. Pensei que estava, com uma boa dose de luxúria à mistura. Mas não é isso. Não é uma questão de canos entupidos e não ando a pensar com a cabeça de baixo. É o meu coração.
  • - Estás a tentar dizer-me que estou enfeitiçado, ou submerso na pesada onda da luxúria.
  • - Quanto a isso, não se discute.
  • Remy limitou-se a abanar a cabeça e a perambular de um lado para o outro na varanda.
  • - Não. Em algumas situações, raios, na maior parte das situações, um homem pensa com a cabeça de baixo. E geralmente não consegue ver as coisas com muita clareza.
  • - Por isso, vou falar contigo de irmão para irmão... se eu tivesse um, e não aquelas minhas irmãs sempre a atormentar-me.
  • - Declan, gosto de ti como de um irmão.
  • - Quero só um pouco - disse-lhe Dec distraidamente. - Ainda tenho que trabalhar hoje.
  • - Há bourbon na cozinha. E gelo na geladeira. A geladeira nova deve chegar amanhã.
  • - Não estou louco. Estou apaixonado por ela. Começo a pensar que me apaixonei por ela antes de a conhecer. Foi por isso que nunca houve mais ninguém que realmente me interessasse. Não desta maneira. Porque ela estava aqui e eu ainda não a tinha encontrado.
  • - Nem por isso. É depois uma questão de empenho. - Sorriu enquanto observava o rosto desconcertado de Remy. - Oh, não estavas a referir-te à casa mas à Lui. Ainda não a pedi em casamento. Ela limitar-se-ia a dizer não. Olha ali, os bulbos começam a desabrochar. Narcisos, tulipas, jarros, é o que os Frank dizem. Enterrados debaixo de todas aquelas ervas daninhas e trepadeiras, talvez tenham florescido debaixo daquilo durante anos. É notável.
  • - Gostava que o casamento fosse aqui, no Outono. Talvez em Setembro. - Contemplou a varanda, o jardim. Perguntou-se que ave seria aquela que cantava desabridamente. - A casa não vai ficar pronta, mas isso só contribuirá para o encanto da ocasião. Claro que, se levar mais tempo a convencê-la, podemos agendar a coisa para a próxima Primavera.
  • - Mas que grande cuspidela - comentou Declan. - Podes ficar com a garrafa.
  • - As minhas ideias vão para além disso - disse Declan enquanto Remy bebia da garrafa. - Vou casar com ela.
  • - Sou um sujeito com classe. - Passou-lhe a garrafa de água e abriu as portas envidraçadas da sala de jantar.
  • - Um pouco de ambos. Anda à varanda de trás, para veres o que os Frank fizeram no jardim.
  • - Da biblioteca. Ainda tenho de tratar de uns pormenores aqui e na cozinha, mas a biblioteca está agendada para a próxima semana. Depois espero poder ocupar-me do exterior por uns tempos. Dá-me dois desses teus comprimidos.
  • - Fui eu. - Satisfeito, Declan passou os dedos pela superfície lisa das paredes de um verde-Paris. - Nos últimos três dias ocupei-me desta sala. - E durante as noites, pensou. - Acho que esta cor a faz parecer mais fresca do que um papel de parede com padrões, e gosto do modo como combina com o rodapé.
  • - Vieste até aqui para te esconderes?
  • - Podias ter-me avisado antes de eu lhe dizer que gostava das rosas grandes e gordas quando o fato é que ela já se tinha decidido pelos botões amarelos. - Tirou do bolso uma embalagem de Tylenol. - Tens alguma coisa para eu misturar com isto, Dec? Aquela mulher pôs-me com uma dor de cabeça de todo o tamanho.
  • - Os planos de casamento só me dão vontade de beber uns copos. Ontem escolheu o bolo, e até se pensaria que era uma questão de vida ou morte o bolo ter botões de rosa amarelos ou rosas completamente desabrochadas nas bordas.
  • - Ei, Tibald! - Remy enfiou os polegares nos bolsos e esticou o pescoço para trás. - Um trabalho magnífico.
  • - Cher, é Mardi Gras. Todas as noites são fim de semana.
  • - Quando vens à cidade?
  • Sabia quando estavam a testá-lo, a empatá-lo, a enredá-lo. E decidiu que a deixaria esticar a corda. Até ele a recolher toda depois.
  • Lui não queria encontrar-se com ele nessa noite nem na seguinte. Tinha de se contentar com telefonemas que o faziam sentir-se como um adolescente enquanto vagueava pela casa com o celular e dava voltas à cabeça à procura de um estratagema de conversa para a manter em linha.
  • - Ontem à noite o senhor tropeçou na sorte.
  • Não conseguiu convencê-la a entrar. Teve de se contentar com um beijo estonteante antes de ela o empurrar para fora do carro e partir.
  • - Não vejo nada de aborrecido nisso. Tens um bom bar, Lui.
  • - Lamento. - Pousou a mão sobre a dela. - Gostavas muito dele.
  • - Está bem. - Encolheu os ombros e continuou a comer. - Vou partir do princípio de que assaltaste um banco, de que subornaste a Máfia, de que seduziste e depois assassinaste o anterior proprietário... depois de ele te deixar o bar em testamento. E continuaste com jogatinas ilegais e prostitutas na sala dos fundos.
  • Lui recostou-se.
  • - Que aconteceu?
  • - A Sherry Bingham, uma bonita lourinha. Amei-a com desespero durante quase todo o último ano de ensino secundário.
  • - Não foi isso. Foi uma coisa nostálgica. E carinhosa. Significaste qualquer coisa para ele. Ainda significas.
  • - Estou a ver. Os homens não conseguem deixar de se vangloriar com as suas proezas sexuais.
  • Declan concedeu um pouco da sua atenção ao café da manhã.
  • - Disse-me o Remy. Lui olhou para o teto.
  • - Abriste um bar quando tinhas vinte e três anos?
  • - Há quanto tempo o tens?
  • - Então... Como é que chegaste a proprietária de um bar?
  • - Surpreende-me que não tenhas aberto um restaurante em vez de um bar.
  • - Onde aprendeste a cozinhar? - perguntou-lhe.
  • - Estou a ver o que queres dizer. Faz outra vez. Lui soltou uma risada e partiu outro ovo.
  • - Porquê? - Pegou numa caçarola de ferro negro. - Cozinhar é uma arte e é sexy se for bem feita.
  • - Seis?
  • - Tu excitas-me, Declan. Vou preparar-te torradas. Le pain perdu - acrescentou quando ele ficou boquiaberto. - Torrada à francesa. Já devorei quase uma baguette inteira. - Passou-lhe para as mãos uma grossa caneca branca cheia de café.
  • - Como já estou acordada, quero café. - Abriu um armário e lanceu-lhe um olhar cúmplice sobre o ombro. - Se pedires com jeitinho, talvez te prepare o café da manhã.
  • - Pensei nisso. - Ainda pensava nisso. - Mas achei que precisavas de mais dez minutos de sono pois vais trabalhar hoje à noite. Mas como já estás acordada...
  • A maneira mais segura era escurecer-lhe a mente com sexo.
  • Acordara sozinha e quase tivera a certeza de que ele se fora embora. Nunca deixava os homens passarem a noite na sua cama. Acabavam sempre por se esgueirar porta fora. Era melhor mandá-los logo embora e dormir sozinha do que acordar sozinha.
  • - Queres torradas? É o que sei fazer melhor.
  • - Desculpa, pensei que tinha abafado o som do moinho do café.
  • Ouviu deslizar a porta da cozinha.
  • Mais feliz ficou quando descobriu o café.
  • Admirou o estilo que ela criara ali. Mesas velhas e sutilmente gastas e cores agressivas. E gostou de ver as suas tulipas na mesinha do café.
  • A complementar as paredes desbotadas pendurara coloridos posters emoldurados. Reparou que eram cartazes de anúncios. Mulheres elegantes a vender champanhe, homens de ar aprumado empunhando charutos.
  • A zona da sala de estar tinha tetos altos e soalhos de madeira escura. O esponjado azul das paredes fazia lembrar jeans desbotada. Numa delas via-se uma lareira, emoldurada pela mesma madeira escura e com uma prateleira queimada pelo sol que ele cobiçou de imediato. Os adornos eram de madeira envelhecida e a tinta de cor creme estava a descascar.
  • Também descobriu que a água quente dela durava mais do que a sua. Sorriu de felicidade com um banho de quinze minutos que aqueceu a divisão como um banho turco.
  • Luxuriantes plantas verdes alinhavam-se no parapeito e um trio de narcisos erguia-se de uma esguia garrafa verde-pálida.
  • Declan agarrou nas calças e foi para o banheiro.
  • Mas não lhe parecia justo despertá-la quando tinham dormido tão pouco. O dia de trabalho dela terminava bastante mais tarde que o seu.
  • Por conseguinte, teria de a persuadir, de um modo ou do outro, mais cedo ou mais tarde. Porque falara verdade quando na noite anterior dissera que pertenceriam um ao outro.
  • Algo difícil de aceitar para um homem que, no seu âmago, acreditava firmemente na família, no lar e no casamento. E apercebeu-se de que essa aceitação era largamente responsável pela infelicidade e inquietação que o perseguira durante meses como um cão fiel.
  • Desejava erguer aquela mão e abrir-lhe gentilmente os dedos. Expor-lhe o coração. O seu já lho entregara. Entregara-lho assim que a vira, concluiu.
  •  
  • - Fica.
  • Mais tarde, deitado a observar o jogo das sombras no teto enquanto lhe acariciava as costas, enquanto a absorvia, perguntou:
  • A carne deslizava sobre a carne numa fricção de seda. A música, esse trágico soluçar que vinha da sala, tornou-se numa súbita explosão celebratória vinda da rua, e ambas se fundiram na sua cabeça juntamente com a respiração ofegante dela.
  • Agora eram suspiros e uma respiração ofegante. Mantinham os olhos um no outro e moviam-se, num ritmo quase indolente que espalhava o prazer como uma piscina quente.
  • - Quero que me preenchas. Que me preenchas por completo.
  • Ela estendeu a mão e cerrou-a no membro dele. Estava duro como pedra. Queria-o dentro de si tanto quanto ansiava por respirar.
  • Quando fez a renda rolar pelas coxas abaixo, Lui arqueou-se. Abriu-se. Declan percorreu-a com os dedos, observou-lhe o rosto à luz das velas enquanto ela fechava os olhos, enquanto os lábios tremiam num gemido. E quando os introduziu dentro dela, dentro do veludo quente e úmido, Lui arqueou-se e gritou. Pô-lo louco.
  • E apoderou-se daquilo por que ansiara dolorosamente desde o momento em que a vira por entre a neblina matinal.
  • Abandonou-se, dizendo a si própria que estava a render-se às suas próprias necessidades e não a ele.
  • - Esta noite vamos pertencer um ao outro.
  • Negação, desafio, ambos os sentimentos se debatiam naquele jogo de sedução.
  • - Mon Dieu!
  • Declan deslizou a mão e enfiou-a entre as pernas dela, pressionou e trouxe-a até ao limite crucial da libertação. Mas, antes que ela se abandonasse, correu os dedos pela coxa dela e, com um rápido gesto, desprendeu-lhe uma das ligas.
  • Puxou-a com força contra si e devorou-lhe a boca. E quando isso não foi suficiente, fê-la virar-se para lhe morder o ombro e o pescoço. Enterrou o rosto no cabelo dela e correu as mãos pelo seu corpo, enchendo-as com os seios cobertos de rendilhados.
  • Declan acariciou-a mais acima, ao longo do sensível vale entre os rendilhados e a coxa.
  • - Está quase. - A respiração queimava-lhe os pulmões. - Quase. O que é isto? - Passou a ponta do dedo pela tatuagem na parte interior da coxa dela, acima do bordo rendilhado da meia.
  • E era a fantasia de qualquer homem. Pele trigueira, cabelo solto, seios cheios e firmes, quase não contidos na elegância de rendilhados.
  • Pousou os lábios sobre o ombro desnudado dela e usou-os para fazer o tecido escorregar pelo braço abaixo. E deu graças pelas leis da gravidade quando o vestido escorregou e se amontoou aos pés dela.
  • Em vez disso, agarrou-lhe em ambas as mãos antes que pudesse desapertar-lhe as calças e levou-as aos lábios. Observou-a e viu a surpresa - e novamente a suspeita.
  • Na sua mente, Declan viu-se a si próprio a atirá-la para cima da cama e a introduzir-se com força, a si e àquela necessidade incontrolável, dentro dela. Ela aceitá-lo-ia.
  • - Sim, és realmente cheio de surpresas. Gosto de um homem forte. - Bateu com as unhas na fivela do cinto e o seu sorriso era de fêmea. De felina. - Vamos lá ver que outras surpresas tens para mim.
  • - Tens um corpo magnífico para um advogado.
  • Havia algo de especial em despir um homem de terno, pensou. O tempo que levava a remover todas as camadas até chegar à pele, a expectativa que se criava, a curiosidade que despertava. Declan tocou-lhe enquanto ela lhe desabotoava a camisa e fez-lhe deslizar o vestido pelos ombros até pender, eroticamente, na curva dos seios. Mordiscava-lhe os lábios, nunca se apressava, nunca se atirava às cegas.
  • Abriu o fecho do vestido num lento deslizar da mão e passou os dedos pela pele assim exposta. Lui arqueou as costas e só conseguiu ronronar.
  • Já não era suficiente seduzi-la até à cama. Queria seduzir aquela suspeita até a tornar num prazer indefeso.
  • Como se esse controle se estendesse também a outras paixões.
  • - Não posso dizer que me importe.
  • Teve uma série de impressões enquanto a levava para o quarto. Cores vibrantes, madeira velha. Mas a maior parte dos seus sentidos estava absorvida pela mulher nos seus braços. O peso dela, as formas e o aroma. A surpresa que lhe perpassou pelo rosto quando a pousou no chão junto da cama e não em cima dela.
  • Foi com uma gargalhada lenta que Lui lhe mordeu o lábio inferior.
  • O sangue que restava na cabeça dele foi disparado diretamente para as virilhas.
  • - Imensas complicações. - Levantou-a do chão e esmagou a boca contra a dela até ambos gemerem. - Para onde?
  • O coração dela estremeceu, como se se enchesse de calor depois de muito tempo ao frio.
  • - Tiveste aulas para saber o que dizer às mulheres para se apaixonarem por ti?
  • Mas Declan pousou a mão nos quadris dela e puxou-a para si.
  • - Olá.
  • Declan bateu à porta. O terno de ele bater à porta em vez de entrar logo fê-la sorrir. Boas maneiras e sangue quente. Uma combinação interessante. Irresistível.
  • Acendeu as velas e pôs a tocar Billie Holiday. O sexo seria fácil, lembrou a si mesma. Quando acontecia entre dois adultos sem compromissos e com algum afeto a acompanhar o desejo, só podia ser uma celebração.
  • - Cinco minutos. Não mudes de ideias. Dois minutos - emendou. - Cronometra-me.
  • - Entra já na limusine - repetiu ela. - Paga ao chofer e diz-lhe que vá para casa. E depois voltas aqui.
  • - Raios! - Agora era ela quem aprisionava o rosto dele nas mãos. - Raios! Quero que entres já naquela enorme limusine branca!
  • - Um piquenique?
  • - E se for antes de ires trabalhar? - Aproximou os lábios da mão dela. - Levo-te a um piquenique.
  • Declan levou o balde de prata com as tulipas púrpura. Pousou-o diante da porta e depois emoldurou-lhe o rosto com as mãos.
  • - Então na tua próxima noite livre.
  • - Deixa-me entreter-te amanhã à noite.
  • Admirava isso. Admirava-o.
  • Na limusine, apoiou a cabeça no ombro dele. A música, o vinho e as luzes suaves ainda continuavam a agitar-lhe a cabeça. Sentia-se inundada de romance, e saber que fora essa a intenção dele não diminuía o efeito... o acentuava.
  • Lui mantinha os olhos fechados, tentando refrear aquele anseio.
  • - Se fazes amor tão bem como danças, deves ter deixado um rasto de sorrisos femininos atrás de ti.
  • As luzes eram de um azul quente e vaporoso, e os movimentos dele tão fluidos que parecia estarem a mover-se debaixo de água. Lui sentiu no estômago aquele anseio sub-reptício para o qual não estava preparada. Semicerrou os olhos e passou a mão pelo cabelo dele para o aproximar mais de si, um último centímetro mais para que a boca dele se unisse à sua.
  • - Podes crer! - Rodopiou-a nos braços e levou-lhe a tensão arterial aos píncaros quando lhe percorreu o corpo e lhe agarrou nos quadris. O corpo dela balanceu contra o dele, uma onda deslizando sobre outra onda enquanto um saxofone tenor gemia.
  • Levou-a a dançar. Descobriram um clube onde tocavam os lentos fox-trots e os swings jazísticos dos anos 30, e surpreendeu-a ao fazê-la girar na pista até as pernas dela fraquejarem.
  • - Não sei. Geralmente, dez ou doze por dia. - Sorriu e deu-lhe a mão. - Estás preocupada comigo? Tiro mais tempo de folga se o passares comigo.
  • - Lembras-te de te falar da minha natureza competitiva e obstinada?
  • - Sei simplesmente. - Encolheu os ombros. - Não sei explicar. Tenho um grandioso sofá à espera para a salinha que dá para o rio. Vou dedicar-me a ela a seguir, e não é um trabalho tão árduo como o da cozinha. Paredes e soalhos, sobretudo. Quero aplicar-me nos interiores para depois me concentrar nas varandas, nas escadarias duplas e, com sorte, começar a pintar a casa em Abril. Assim, conseguiremos trabalhar novamente no interior antes do calor do Verão.
  • - Algumas coisas, como sempre. - Sentia-se mais à vontade a falar de aquisições do que da família, e respondeu-lhe ponto por ponto até chegar o prato principal.
  • - Tens irmãos?
  • - Sim. Não - respondeu. - Honestamente, não sei.
  • - Desiludi-os.
  • - O quê?
  • Lui inclinou a cabeça e ele captou novamente o faiscar de prata através dos espessos e escuros caracóis do cabelo.
  • - Quer que sejas feliz?
  • Declan teve de fazer um esforço para conseguir retomar o fio à meada.
  • Raios, ela estava realmente a afetá-lo.
  • Lui foi provando as entradas que ele pedira para ela. Não usava anéis, e Declan perguntou-se porquê. Tinha mãos encantadoras, esguias, elegantes, delicadas. A chave de prata pendia contra a pele suave e trigueira e tinha um brilho prateado nas orelhas. Mas nada nos dedos e nos pulsos, maravilhosamente desprovidos de adornos.
  • - Virão visitar-te?
  • - Tens saudades deles.
  • - Uma família grande.
  • - Fala-me da tua família. Tens irmãos, irmãs?
  • - Lá estás tu outra vez com falinhas mansas. Muito bem, fala-me de Boston.
  • - E de todos os lugares onde estiveste, qual é o teu preferido? - Pousou os cotovelos sobre a mesa e apoiou o queixo nos dedos entrelaçados.
  • - Gostava de lá ir um dia. A Paris e a Florença, a Barcelona e a Atuis. - Eram sonhos entusiasmantes e coloridos, e a expectativa de os realizar era tão emocionante quanto o desejo. - Aposto que já foste a todos esses lugares.
  • - É maravilhosa?
  • - Já.
  • - Sim, mas o cajun francês ainda consegue desconcertar-me.
  • Das entradas ao soufflé de chocolate, Declan pediu tudo com o à vontade de alguém acostumado a jantares refinados em restaurantes exclusivos.
  • - Então um de nós devia pedi-lo. - Intrigada, Lui pôs o menu de lado. Ele não era depois divertido, pensou. Não era depois sexy e elegante. Era interessante.
  • - Investigas sempre a história dos restaurantes que frequentas?
  • Uma segunda garrafa de champanhe chegou segundos depois de se terem sentado, sinal de planejamento prévio. Possivelmente o primeiro de muitos.
  • - Oh, uma ova é que não vais. - Mas soltou uma gargalhada lenta e deliciada. - Isso faz parte do risco, doçura. E, até aqui, estou a gostar.
  • - És um homem perigoso. Sabes o que te torna realmente perigoso? Isso só se revela se se olhar bem debaixo de todo esse verniz.
  • - A ideia é essa. - Fez tilintar o copo no dela. - Sou mesmo bom a levar uma ideia até ao fim.
  • - Não há mais menina nenhuma. Desconcertada, ela bebeu um gole.
  • Lui girou a tulipa sob o nariz.
  • Lá dentro havia dois baldes prateados. Um com uma garrafa de champanhe e outro com uma floresta de tulipas púrpura.
  • - É alugado. Desta forma ambos podemos beber todo o champanhe que desejarmos.
  • Era raro ficar sem palavras, mas demorou uns bons dez segundos a recuperar a voz e a lucidez.
  • - Já vamos saber. - Pegou num lenço de pescoço de seda vermelha e pô-lo sobre os ombros dela. - Vais estar suficientemente aquecida?
  • O vestido ajustava-se-lhe ao corpo, delineava-o e tremulava. As glândulas dele executavam agora uma dança jovial.
  • Lui lanceu-lhe aquele olhar maroto de pestanas baixas e descreveu um círculo lento sobre os saltos altos.
  • - Mmm. Sabes mesmo vestir-te, cher.
  • - És pontual, não és, cher? - comentou em voz alta quando bateram à porta. Verificou uma última vez o seu reflexo no espelho, soprou um beijo a si mesma e foi abrir a porta.
  • Passou o dedo pela linha acima dos seios e imaginou os dedos dele ali pousados. A boca.
  • E, quando não estava a prestar atenção, percebia-se-lhe nos olhos um olhar magoado. E ela não resistia a corações magoados.
  • Gostava do aspecto dele, e do som de seixos a rolar da sua voz de ianque. E conseguira toaqui-la num ponto sensível com a sua óbvia afeição pela avó.
  • Demasiadas camadas, pensou. E parecia não conseguir atravessá-las todas e compreendê-lo.
  • E as mulheres que diziam que não tentavam excitar os homens, ou eram frígidas ou mentirosas.
  • A coisa mais sensata e segura que uma mulher podia fazer era controlar esse apetite. Decidir quando, onde, como e com quem. Os homens, esses eram excitados por natureza.
  • Saíam todos a ganhar.
  • Na sua opinião, se uma mulher não gostava de sexo era porque não sabia escolher os parceiros com astúcia suficiente. Uma mulher astuta selecionava homens que revelassem disponibilidade e capacidade para aprender como essa mulher queria que lhe dessem prazer.
  • O processo mantivera o coração de Lui ileso durante quase trinta anos. Não tinha o menor desejo ou intenção de se abandonar às mãos de um homem. Metaforicamente falando, pensou com um esgar enquanto pintava os lábios.
  • Estava provavelmente a cometer um erro, pensou Lui enquanto enfiava um curto vestido preto. Já cometera vários pequenos erros em relação a Declan Fitzgerald, e isso irritava-a, pois raramente cometia erros no que dizia respeito aos homens.
  • Se o que vira no quarto das crianças era verdade e não uma fantasia que ele próprio fabricara, então Abigail Rouse Manet não abandonara a Mansão Manet por vontade própria.
  • - Estou bem, estou bem. Estou bem, raios, e vou levantar-me do chão e voltar para a cama!
  • Procurou a maçaneta, mas as mãos luzidias de suor escorregaram no latão gélido. A respiração estrangulada parecia querer libertar-se em gritos e uivos, súplicas e preces. As tonturas fizeram-no cair de joelhos e tateou desesperadamente à procura da maçaneta. Agarrou-a com força e puxou a porta.
  • Enquanto falava, a porta fechou-se com estrondo atrás dele.
  • A mulher, Abigail, ergueu a mão e apertou a dele. E, rodeados por aquela luz suave, os três uniram-se então, enquanto a boquinha leitosa da bebê chuchava e a mulher se balançava delicadamente.
  • Até que sentiu os joelhos ceder, quando o homem do outro lado do quarto passou através dele como se fosse ar e se dirigiu para ela.
  • - Tu nunca a abandonaste - disse Declan baixinho. - Nunca o terias feito.
  • Ela estava sentada numa cadeira de balance, a dar de mamar a um bebê. Conseguia ver a mão da criança sobre o seio, uma mão branca contra a pele dourada. O cabelo solto derramava-se pelos ombros e pelos braços da cadeira.
  • Na lareira ardia um fogo lento. A luminosidade que produzia, e a luz das velas, dançava em belos padrões nas paredes de um tom de pêssego muito pálido. As janelas exibiam estofos azul-escuros e cortinas rendilhadas. O soalho estava polido como um espelho, com dois tapetes com um padrão de tons de pêssego e azul.
  • - Já que cheguei até aqui... - resmungou.
  • Mas desta vez nada disso aconteceu. Os degraus eram agora meros degraus, a porta uma mera porta com uma maçaneta de latão a precisar de ser polida.
  • Teve de se obrigar a mexer-se, mas voltou para dentro do quarto, coberto de suor, e verificou a lanterna. Saiu descalço e em tronco nu da segurança do quarto e dirigiu-se para o terceiro piso.
  • A garrafa escorregou-lhe da mão e caiu, molhando-lhe os pés.
  • Valia o preço de um bilhete, concluiu. Uma chuva fustigante, relâmpagos bifurcados e um vento que flagelava as árvores em gemidos e uivos. Conseguia ouvir o excitado clangor das garrafas dos espíritos e a guerra selvagem da trovoada.
  • A luz disparou, ofuscando-o.
  • Acordou com uma tempestade a desabar, mas pelo menos estava deitado na sua cama. Os relâmpagos chicoteavam o lado de fora das janelas e inundavam o quarto com uma supernova de luz.
  •  
  • Mas não sentiu qualquer rajada de ar frio, nenhuma perturbação súbita do silêncio.
  • Transportou o que conseguiu na primeira viagem e pousou tudo no vestíbulo. Fechou a porta atrás de si.
  • O crepúsculo já se tinha instalado quando Declan voltou para casa. A parte de trás do seu furgão ia carregada com tesouros que desenterrara em lojas de antiguidades.
  • - Como anda a tua determinação? - perguntou ela.
  • - Isso seria fazer trapaça, e eu não faço trapaça. O prazer não é nada a não ser que tenhas força de vontade para aguentar até o apreciares realmente, doçura.
  • - Pelo prazer, cher. Um maço tem vinte cigarros, e um mês tem trinta ou trinta e um dias, exceto Fevereiro. Adoro mesmo o mês de Fevereiro. Ora bem, posso fumar o maço inteiro num dia, só que enlouqueceria durante o resto do mês. Ou então posso reparti-los, lenta e cuidadosamente, e fazê-los durar. Comprar outro maço antes do início do mês é que nunca.
  • - Um maço por mês? Com que finalidade?
  • - Não sabia que fumavas.
  • - Não queres sobremesa?
  • Lui afastou o prato vazio para o lado.
  • - Porque não? Só pode ter sido um dos Manet. A mãe, o pai, o irmão. Depois enterraram-na em qualquer lado e disseram que tinha fugido. Preciso de descobrir mais coisas sobre ela.
  • Já não estava pálido, pensou Lui. O rosto dele endurecera e enrijecera novamente com aquele fundo de determinação.
  • - Mas se ela morreu realmente na Mansão, quem a matou?
  • - Não sei. Estás a assustar-me, Declan.
  • - É o que as pessoas pensam, as pessoas da minha família.
  • - Vi-o. - Um calafrio dançou-lhe pela espinha acima. - Em cima da penteadeira no quarto que devia ser o dela. Um quarto vazio - continuou -, com mobília fantasma. O quarto onde a Effie viu uma moça morta na cama. Mataram-na, não foi?
  • - Um relógio de esmalte, suspenso de pequenas asas douradas? As faces dela ruborizaram-se.
  • - Esse broche ainda existe?
  • - A bebê era a avó da minha avó. Os Manet deserdaram-na, diziam que era filha ilegítima e não do sangue deles. Mandaram-na para os Rouse com o vestido que trazia e um pequeno saco com brinquedos. A única coisa que trouxe da Mansão foi o broche-relógio que a Claudine lhe tinha dado e que era da Abigail.
  • - Sinto-me pálido. Continua.
  • - Chegaram a procurá-la?
  • - É provável. Havia uma ama que casou posteriormente com um dos irmãos da Abigail. A maior parte das histórias sobre a Mansão provém dela. Parece que, uns dias antes do fim do ano, Lucian foi a Nova Orleães em negócios e, quando regressou, a Abigail tinha desaparecido. Diziam que tinha fugido com um rapaz do bayou com quem se encontrava às escondidas. Mas não parece ser verdade. A ama chamava-se... Claudine, e disse que a Abigail nunca teria abandonado o Lucian e a bebê. Disse que de certeza tinha acontecido alguma coisa grave e terrível, e culpava-se a si própria porque tinha saído para ir ter com o namorado na noite em que a Abigail desapareceu.
  • - A mistura de classes é um assunto incômodo. Depois ele levou-a para a Mansão, e isso também foi um assunto incômodo. As pessoas dizem que Josephine Manet era uma mulher severa, orgulhosa e fria. Toda a gente se pôs a contar pelos dedos, mas a bebê só nasceu dez meses depois.
  • - Conheço as histórias que se contavam na minha família. Ninguém sabe ao certo. A Abigail era criada na Mansão. Algumas famílias ricas contratavam moças cajun para as limpezas e coisas assim. Conta-se que Lucian Manet regressou de Tulane e se apaixonou por ela. Fugiram e casaram-se. Tiveram que fugir porque ninguém iria aprovar uma união daquelas, nem a família dele nem a dela.
  • - Excelente. A melhor refeição que já tive desde aquela omelete no microondas.
  • Lui enrolou uma garfada de pasta, suspirou fundo e engoliu.
  • Deteve-se porque ela voltara a centrar a sua atenção em Marco, que trazia a pasta. Enquanto se embrenhavam numa indolente discussão sobre a comida, Declan lembrou-se a si mesmo de que no Sul as coisas avançavam mais lentamente.
  • - Queres saber acerca da Abigail Rouse.
  • - Que bom para ti. - Desejava-lhe aborrecer e, pela expressão divertida dele, apercebeu-se de que ele sabia disso. - Voltaste a ir ao terceiro piso?
  • - Talvez mais tarde. A irritação estraga-me o apetite. Enfim. - Encolheu os ombros e mordiscou o pão. - Não vás hoje visitar a minha avó. Esta tarde vai visitar a irmã.
  • - Não, isso é depois um benefício que vem por acréscimo. - Recostou-se, pegou na cestinha e ofereceu-lhe pão. - É uma discussão que procuras?
  • Estava enganada. Ele não regressara repentinamente à calmaria. A ira ainda lhe fervilhava por detrás dos olhos. Como tentava ser sempre honesta consigo própria, não se preocupou em fingir que o comportamento dele não a excitava.
  • Declan imitou a atitude dela.
  • Lui esperou até servirem o pão e a água. O tom dele irritara-a, sobretudo porque merecera a pronta reprimenda, tinha de admitir. Cruzou os braços sobre a mesa e inclinou-se para ele.
  • - Desculpa.
  • Um homem que conseguia refrear-se assim tinha uma vontade de ferro, concluiu. Mais um ternor a ter em conta.
  • Viu a ira faiscar-lhe nos olhos, uma ira mais escura e mais acesa do que esperava dele. Estava ciente de que os seus modos afáveis ocultavam algo acutilante e afiado.
  • Lui apoiou o braço nas costas da cadeira e tamborilou com os dedos na mesa enquanto o observava.
  • - Não precisas de lhe levar nada.
  • - E então... - Lui prendeu o cabelo atrás da orelha quando Marco os deixou. - O que estás a pensar fazer hoje, cher?
  • - Que severa. San Pelligrino? - Olhou para Marco.
  • - Guisado de mexilhão então. - Teve a sensação de que teria experimentado cartão esmagado se ela o pedisse. - Queres vinho?
  • - Muito simpático. A Lui vai querer o linguini de marisco. E o senhor, já sabe o que quer, ou precisa de tempo para decidir?
  • - As pessoas do Norte têm falinhas mansas - disse Marco.
  • Quando Lui se voltou para ele, Declan abanou a cabeça e perguntou:
  • Conversaram por uns momentos, mas Declan entreteve-se a observar o rosto dela: o modo como as sobrancelhas se erguiam, baixavam e se uniam ao sabor dos sentimentos.
  • - Não podia estar melhor. A minha Sophie ganhou um concurso de soletrar na sexta-feira.
  • - Então espera-nos um banquete - disse Lui. - Como vai a família, Marco?
  • - Este é o Declan, de Boston, um amigo de faculdade do Remy. Trouxe-o aqui para ver como preparamos a comida italiana aqui no Vieux Carré.
  • - Há muita coisa que vocês não gostam de pensar que sabemos. - Mantinha os olhos fixos nos dele, mas acenou ao homem de cabelo escuro que se deteve junto da mesa. - Olá, Marco.
  • - Nós, os homens, não gostamos de pensar que vocês, as mulheres, sabem disso.
  • - Não?
  • - Isto não é um encontro - disse quando Declan afastou a cadeira para ela se sentar.
  • Pelas visitas anteriores, Declan sabia que tinha de se esforçar bastante para descobrir uma má refeição em Nova Orleães. Quando Lui o levou a um restaurante pequeno e despretensioso, não se preocupou. Bastava-lhe cheirar o ar para saber que iam comer bem.
  • - Muito francês.
  • - É Michael - disse ele, estendendo-lhe a mão. - Declan Sullivan Michael Fitzgerald. Se fosse mais irlandês do que sou, até sangrava verde.
  • - Digo-te se vieres almoçar. - Estendeu a mão para os caranguejos e fê-los dançar sobre a escrivaninha. - Vá lá, Lui, sai e brinca comigo. O dia está bonito.
  • - Fui menino do coro durante três anos. Já é alguma coisa.
  • - Sou um tanto relapso.
  • - Foste à missa hoje, Declan?
  • - Não estou aprumada. Roupa de ir à igreja. Fui à missa. - Agora sorria. - Com um nome como o teu, imagino que sejas um rapaz católico.
  • - Porque é que tenho a sensação de que, sempre que te vejo, devia começar logo a correr na direção oposta?
  • - Muito bem. Já que te interrompi, e te seduzi, porque é que não me deixas dar-te de comer e retribuir-te pela omelete?
  • - Podes crer. Deu resultado?
  • - Achei que sim. Também tinham jacarés, mas estes pareceram-me mais amigáveis.
  • - Quanto tempo levas a abrir os teus presentes na manhã de Natal? - perguntou ele.
  • Lui manteve os olhos presos nos dele por mais uns instantes enquanto pegava no saco. Depois lanceu as mãos à caixa embrulhada em papel dourado e com um laço branco e formal. Demorou o seu tempo a desembrulhá-la. Sempre acreditara que a expectativa era tão importante como a presente.
  • - Não vejo como é que conseguiste enfiar aí dentro um carro novo.
  • - E eu interrompi-te. Não detestas isso? - Decidiu entrar e sentou-se na borda da escrivaninha. - Trouxe-te um presente.
  • Estivera a pensar nele, mais do que devia. E ele ali estava, alto, esguio e másculo.
  • - Estás a aprender. Que fazes aí à minha porta, cher?
  • - Olá. Tá-se?
  • - Sempre às ordens, menino bonito.
  • - Lá atrás no gabinete. A porta à direita do palco.
  • O aroma das frituras veio lembrar ao seu estômago que ainda não tomara o café da manhã. Reconheceu a loura que servia ao balcão e acercou-se, esboçando um sorriso.
  • Reparou que o negócio corria bem para um domingo à tarde: um misto de turistas e gentes locais. Ficou contente por estar a aprender a distinguir uns dos outros.
  • Decidiu ir a Nova Orleães e passar algumas horas a vasculhar lojas de antiguidades.
  • O poder da sugestão? Ou simplesmente esperara que o rosto do sonho fosse real e projetava-o agora no malfadado Lucian?
  • Mas foi a fotografia de Lucian Manet que o petrificou.
  • O vestido, enfiado numa cinta incrivelmente pequena, conferia-lhe uma delicadeza acentuada pelas curvas das saias de brocado e pelas mangas generosamente tufadas que se uniam às compridas luvas brancas.
  • Ela tinha assinalado as páginas que achava que lhe deviam interessar mais. Declan analisou e observou velhas fotografias das grandiosas casas das fazendas. E sentiu o entusiasmo percorrê-lo ao ver a antiga fotografia em preto e branco da Mansão Manet no seu esplendor do virar do século.
  • Mas à noite, com o ruído do vento e da chuva, e com o estrépito das garrafas dos espíritos, não pareciam mortos.
  • - Não consigo evitar. Penso em ti, sozinho nesta casa, com aquele quarto lá em cima. - Olhou com inquietação para o cimo das escadas. - Provoca-me calafrios.
  • - Porque é que não vais com ele à cidade? - disse quando se preparava para sair. Tinha vontade lhe dar o braço e arrastá-lo daquela casa. - Podíamos jantar e ir ao cinema.
  • - Sim? - A ideia animou-a. - Acho que vamos ter mais boatos e especulações. - Devolveu-lhe o copo. - Tenho que ir. Amanhã mando o Remy vir aqui para te dar uma mão e fazê-lo largar as minhas saias. Tenho que ir provar o vestido e tratar de outros preparativos para o casamento.
  • - Querido, isto aqui é o Sul. Cem anos é como se fosse ontem. Ela tinha dezessete quando casou com Lucian. Era do bayou. A família dele certamente não aprovou o casamento. Duvido que a vida dela nesta casa tenha sido um mar de rosas. Pode muito bem ter fugido. Por outro lado... eu vi algo ou alguém no quarto do piso de cima. Não acredito nesse tipo de coisas. Não acreditava. - Reprimiu um calafrio. - Já não sei o que penso disso agora, mas gostava de descobrir.
  • - Talvez. Falei com o Remy acerca disso. - Dirigiu-se para as janelas e olhou para a confusão dos jardins. - Ele é um pouco vago, mas parece que se recorda de ouvir histórias de ela ter fugido com outro homem. - Voltou-se para ele. - As histórias do lado dos Rouse diferem completamente e inclinam-se mais para a hipótese de um ato criminoso. Conseguias um melhor retrato dela e do que pode ter acontecido se falasses com alguém da família dos Rouse ou dos Simone.
  • - Quanto a isso, também é especulação. Embora os registros indiquem que Lucian casou com uma Abigail Rouse em 1898 e que nasceu uma filha no ano seguinte, não há nenhum registro da morte de Abigail. Depois da morte de Lucian, os Manet deserdaram legalmente a criança e retiraram-na do testamento. Parece que foi criada pelos Rouse. Não consegui descobrir mais nada sobre Abigail Rouse para além das certidões de nascimento e de casamento.
  • - O coração do pai cedeu poucos anos depois. Josephine ainda viveu uns bons anos, mas sofreu um revés financeiro. Possuía a casa e alguns terrenos, mas o dinheiro esgotara-se. Especula-se que Julian desbaratara grande parte no jogo e que nunca conseguiram recuperá-lo completamente.
  • O tanque, pensou ele, sufocado de folhas de lírios e vaporoso com as neblinas da madrugada.
  • - Como?
  • - Está bem. - Reprimiu a vontade de o mimar e voltou aos ternos. - Os proprietários originais perderam grande parte da fortuna durante a guerra. Mas aguentaram, vendendo parcelas de terra ou arrendando-a. Eram opositores políticos dos Manet. Perderam tudo num incêndio que reduziu a casa a cinzas. Os Manet compraram a propriedade e mandaram construir esta casa. Tiveram dois filhos, gêmeos. Lucian e Julian. Ambos estudaram em Tulane: Lucian saiu-se muito bem e Julian licenciou-se, por assim dizer, na bebida e no jogo. Lucian era o herdeiro, estava destinado a dirigir os negócios da família. A maior parte do dinheiro dos Manet tinha-se dissipado, mas Josephine possuía uma herança considerável. Ambos os filhos morreram antes de completarem os vinte e três anos.
  • E a perder peso, pensou ela. Estás a ficar com a cara magra demais.
  • - Sempre queres a limonada?
  • - Sinto-me bastante satisfeito comigo mesmo. Os sujeitos da bancada acabaram de sair. Escolhi uma superfície maciça. A imitar ardósia. Encomendei uma gigantesca geladeira Sub-Zero, por razões que ainda não consegui perceber, e um fogão e uma máquina de lavar louça. Vou fazer painéis, de modo que só se vai ver madeira.
  • - Pareces surpreendida.
  • - É o meu próximo projeto. Pensei iniciar as obras numa divisão em que as pessoas possam sentar-se com conforto. Que tipo de informações?
  • - Está bem. - Tocou no braço dele numa espécie de reconhecimento silencioso e falou com um tom mais suave. - Só tenho cerca de meia hora, mas trago informações para ti. Informações e especulações. Mas que se passa aqui?
  • - Sim. - Soltou um daqueles longos suspiros e anuiu com vivacidade. - Estou ótima. - Depois franziu a testa perante as sombras que acossavam os olhos dele. - Mas tu pareces exausto.
  • - Não me custou nada. Cancelaram uma reunião e fiquei com algum tempo livre. E o terno é que... - Respirava lentamente e deu meia volta. - Tinha que provar a mim mesma que não ia fugir a sete pés quando aqui viesse.
  • Declan tirou a carrada de livros dos braços de Effie e beijou-a na face.
  •  
  • Tinha teias de aranha no cabelo e as mãos e os pés sujos.
  • Foi avançando pé ante pé. Quando sentiu o painel de uma porta, estava encharcado em suor.
  • Por estranho que fosse, pensou, percorrera o mesmo caminho que ela.
  • Aturdido e agoniado, estendeu a mão e tocou numa parede. Usou-a como referência e levantou-se. Continuou a tatear, esperando chegar a um canto, a uma porta. Demorou uns instantes a perceber que a parede não tinha papel de parede.
  • Declan acordou com um sobressalto, no frio, na escuridão. Cheirava-lhe a humidade e a pó, e sentia debaixo dele a madeira dura do soalho.
  • Foi com o coração a latejar que se apressou a sair do quarto, de volta ao labirinto da ala da criadagem.
  • Ela levou a mão à garganta e pensou com toda a clareza: Eis o príncipe de regresso ao seu castelo.
  • Mas, ao voltar-se para a porta, algo lhe chamou a atenção, e aproximou-se da janela na ponta dos pés.
  • Adorava envernizar a madeira, varrer os soalhos, ver como os vidros faiscavam depois de os limpar.
  • Quantas vezes a contemplara das sombras do bayou? Admirara-a, ansiara por uma oportunidade para espreitar pelas janelas para toda a beleza do interior.
  • Não queria que Madame a visse. As criadas mantinham o emprego por mais tempo se fossem invisíveis. Era o que dizia Mademoiselle LaRue, a governanta, e ela nunca se enganava.
  • Os lábios não estavam pintados e tinha-os firmemente cerrados. E, no sonho, conseguia ouvir os pensamentos dela como se fossem os seus.
  • Mergulhou mais profundamente no sono, ansiando dolorosamente por ela.
  • Adormeceu a pensar em Lui e sonhou com ela. Sonhos robustos e encorpados em que ela estava debaixo dele, mexendo-se com fortes e rápidos meneios dos quadris. Pele úmida, como ouro liquefeito. Olhos escuros como chocolate e lábios vermelhos e úmidos.
  • Preocupava-a ter dificuldade em sarar as fendas quando ele partisse.
  • Tinha sensatez, costas firmes, e a determinação para usar ambas para conseguir o que queria. Conduzia a sua vida do mesmo modo que dirigia o bar, com apreço pela cor e alicerces de ordem debaixo do caos.
  • Mas este homem era bastante mais complicado do que aparentava à superfície. E bastante mais intrigante do que qualquer outro que conhecera até então.
  • Era um todo que ela admirava e respeitava.
  • - Havemos de falar - disse ela, dirigindo-se para a porta.
  • - Não esquecerei. Até logo, cher.
  • - Um mero lembrete - disse-lhe ele.
  • Agarrou-lhe novamente nos braços e puxou-a para si. Desta vez não caíram suavemente no desejo, mergulharam profundamente.
  • - Esta noite estou de serviço. Estou de folga na segunda-feira à noite. Às segundas-feiras à noite o bar não está tão cheio. Vai-me buscar às oito.
  • - O tipo de encontro em que me vais buscar à porta de casa e me levas a jantar a um sítio chique. - Bateu-lhe com o dedo no peito. - Levas-me a dançar, depois acompanhas-me até à porta de casa e dás-me um beijo de boa-noite. És capaz disso?
  • - Queres passar tempo comigo? Marca um encontro.
  • - Não me parece.
  • - Eu levo-te a casa.
  • - Estava depois a começar.
  • - Sim, tenho de pensar nisso. - Pousou-lhe a mão no peito quando ele tentou puxá-la novamente para si. - Acalma-te, cher. - Ofereceu-lhe um sorriso lento e sonolento.
  • Era Declan quem dizia o nome dela, não mais que um murmúrio enquanto mudava o ângulo do beijo. Enquanto o aprofundava. Milhares de avisos ecoaram no cérebro de Lui e foram ignorados. Por instantes deixou-se ir, abandonou-se ao desejo, à necessidade. Ao anseio.
  • Dentro dela, bem fundo, um suspiro.
  • Mas ali havia algo mais, havia um anseio. E os anseios, mesmo satisfeitos, podiam dar motivo a uma dor que o desejo nunca causava.
  • Ela compreendia o desejo. O do homem. O seu. E sabia que alguns desses desejos só podiam ser saciados em rápidos e tórridos acasalamentos na escuridão.
  • - Está bem. - Agarrou-lhe nos braços e correu as mãos até aos ombros dela. - Pensa nisso.
  • - Para ma cravares no coração quando me disseres que queres que sejamos depois amigos.
  • - Hã-hã. Espera um minuto. - Olhou em redor e pegou numa chave de parafusos pousada sobre uma prancha. - Toma - disse, passando-lha para as mãos.
  • Lui abanou a cabeça, tirou-lhe a tigela vazia das mãos e atirou-a para dentro da caixa que ele utilizava para o lixo.
  • Sentiu um sobressalto no coração, mas nada que o impedisse de saltar agilmente do cavalete.
  • - Tenho pratos, mas não do gênero dos que se podem lavar. A cozinha é o coração de uma casa. A casa onde cresci... aquela enorme casa maravilhosa com quartos enormes e maravilhosos. Tínhamos um cozinheiro, mas acabavamos sempre na cozinha quando havia uma crise ou qualquer celebração, ou simplesmente quando havia alguma coisa para discutir. Acho que quero aqui algo do gênero.
  • Estar com ele não seria simples.
  • - Porque não paro de pensar em ti. Não consigo tirar-te da cabeça, de dentro de mim. Porque, sempre que te vejo, o coração começa a saltar-me no peito.
  • Lui olhou para a mão dele, depois para o rosto.
  • Agarrou-lhe na mão antes que ela pudesse voltar-se.
  • Ela empertigou a cabeça.
  • - Foi mais corajoso sair do que atirares-te.
  • - Aliás, nunca queríamos. E quanto mais nos aproximavamos do Dia D, mais via a minha vida simplesmente a... a estreitar-se, até ficar enfiado num buraco minúsculo. Sem espaço, sem ar. Sem luz. Compreendi que casar com a Jessica me fazia sentir o mesmo que quando exercia advocacia, e que se o resto da minha vida ia ser assim, mais valia atirar-me de uma ponte. Ou então sair daquele buraco enquanto era tempo.
  • - Não. Ficavamos bem juntos. Estavamos habituados um ao outro. Ela julgava que queríamos as mesmas coisas.
  • - Não, não a amava.
  • - Não, foi por isso que compreendi que podia partir.
  • Declan estava a tentar fazer daquilo numa piada, pensou Lui, mas não conseguia.
  • - Ele não me conta tudo.
  • - Ai sim? - Abriu o microondas quando este emitiu o sinal sonoro, mexeu a omelete e programou-o novamente. - Que aconteceu?
  • - Como é que ainda não tens uma mulher?
  • - Quanto cobras?
  • Enfiou a tigela no microondas e programou-o.
  • - Que fizeste quando foste morar sozinho?
  • - Cresceste ao lado de um cozinheiro, não foi?
  • - Tens condimentos, cher? Alguma especiaria?
  • - Querido, isto é mesmo triste. Senta-te, que a Lui vai cuidar de ti. Mas só desta vez - acrescentou.
  • - Bem, vamos ter que improvisar. Tigela? Faca? Garfo?
  • - Parece que afinal vou ter que cozinhar para ti. Onde está o fogão?
  • - Olhou em volta da cozinha. - por toda parte.
  • - Falamos disso depois de meteres qualquer coisa no estômago. A escolha não era muita. Uma olhadela na geladeira em segunda mão que atualmente embelezava a sala de jantar fez com que Lui deitasse a Declan um longo olhar de piedade. - Que idade tens? Doze?
  • - Preparar um sanduíche não é cozinhar.
  • - Vou preparar-te um sanduíche.
  • - Deixa-me ver a tua cara. - Puxou-lhe a cabeça para trás e observou-o. - Ainda estás um bocado pálido, mas já estás a ganhar cor. Aposto que a minha avó tem razão. Tu não comes. O que é que comeste hoje, cher?
  • - Já estás a recuperar, não estás?
  • - Ando à espera de te ouvir dizer isso desde a primeira vez que te vi.
  • Lui voltou apressadamente atrás e fechou-a com força.
  • - Pronto, meu querido. - Afagou-lhe o cabelo.
  • - Um passo, dois passos. Vamos para baixo para te deitares.
  • - Consigo. - Pôs-se de joelhos e tentou recuperar o fôlego, mas sentia a respiração novamente presa, como se tivesse um enorme peso sobre o peito e o coração se debatesse para recuperar o ritmo. Levantou-se cambaleante e tombou.
  • - Geralmente tenho que beber até não me lembrar de nada, coisa que não faço desde a faculdade. Olha, e correndo o risco de parecer ridículo outra vez numa questão de minutos, tenho mesmo que sair deste maldito quarto.
  • O suspiro de Lui foi um estremecimento de alívio. Declan podia ter partido a cabeça, pensou ela, mas recuperara a consciência e o humor.
  • Abriu os olhos e fixou-os no rosto dela. A humilhação debatia-se com uma ligeira náusea.
  • - Que raio aconteceu?
  • - Não, não faças isso! - Agora batia-lhe nas faces com os dedos ligeiramente trêmulos. Declan cedera como uma árvore perante um machado, lívido, com os olhos revirados.
  • - Declan. Pronto, cher. Pronto, querido.
  • Declan vacilou na entrada. Oprimido, fincou os dedos na ombreira da porta. Aquele medo era irracional, trespassava-lhe os ossos como uma lâmina. A casa era sua, pensou. Era sua, raios! Deu um passo, depois outro.
  • Sentiu o frio. Sentiu-o soprar sobre a sua pele como respiração, deslizar como dedos pelo seu cabelo.
  • - Há algo de errado em quase todos - respondeu ela abrindo a porta.
  • - Que foi? Tens aqui dentro alguma mulher acorrentada? Os teus segredos estão todos aqui fechados, cher!
  • - É mais fácil do... Não!
  • - Não tem nada de especial. - Tentou agarrar-lhe a mão, mas Lui já começara a subir.
  • - Mais quartos vazios. Arrumos e os quartos da criadagem.
  • - E se te mostrasse o salão de baile? Será o cenário perfeito.
  • Que patético, disse para si próprio, aquela paixoneta infantil que desenvolvera por Lui.
  • - Bem, aqui já não é tão cru. Tens gosto, cher. - Enfiou a cabeça banheiro, onde os operários trabalhavam e praguejavam ruidosamente. - O mesmo já não posso dizer de quem construiu este banheiro. És tu, Tripadoe? A tua mãe sabe que essa tua boca é a mesma com que comes?
  • Perambulou pelos outros quartos, mas não sentiu aquela aflição, o medo e a solidão opressiva que a tinham impelido para fora do primeiro.
  • - É este quarto. Há qualquer coisa estranha neste quarto.
  • Lui desviou-se, soltando uma espécie de gargalhada.
  • - Tenho frio.
  • A sua voz engrossara. Instintivamente, Declan entrou e aproximou-se dela.
  • - Há um fantasma. Uma mulher. Acho que a mataram aqui.
  • Estava a meio caminho das portas da varanda quando se deteve e os estremecimentos se transformaram em calafrios. O sentimento que se apossou dela era de aflição.
  • Começou a afastá-la da porta da divisão que agora encarava como o seu quarto fantasma. Mas Lui rodou a maçaneta e abriu a porta. Declan ficou de respiração suspensa enquanto ela entrava.
  • - Um ou dois. - Franziu as sobrancelhas ao ouvir o ruído e os palavrões vindos do fundo do longo corredor.
  • - Talvez. - Olhou por cima do corrimão para o grandioso vestíbulo. - Vais precisar de mobília. Conheço uns sítios.
  • - Oh, cher, se é isso que pensas, é porque não sabes onde comprar.
  • - Então não és rico. És mais do que rico. És abastado. É isso?
  • - Tens o suficiente para restaurar esta casa, para a manter... pretendes mantê-la realmente?
  • - São. - Passou a ponta avermelhada do dedo pelo corrimão. - A tua casa é grandiosa, Declan. E, daquilo que vi, compreendo que afinal não és nenhum advogado rico.
  • - Parece-me é que precisas da minha permissão e não da dela.
  • - Geralmente. Vais mostrar-me o teu casarão cher?
  • - Os homens fazem sempre o que lhes dizes?
  • - Existe a persistência e existe o assédio. - Estendeu a mão e enrolou o dedo no cabelo dela. - Achei que, se conseguisse esperar até aqui vires, não pensarias em pedir uma providência cautelar contra mim.
  • - Eu tinha esperança de que ele aparecesse por aqui. - Virou-se para Lui. - Que te trouxesse aqui. Esta semana houve duas noites em que estive para ir a tua casa, mas dissuadi-me.
  • - Estou completamente apaixonado. É fantástica. Ouve, é uma grande caminhada até casa dela. Devias...
  • Viu-a passar pelas árvores onde balançavam as garrafas dos espíritos.
  • Ela riu-se e afagou-lhe o rosto.
  • - Sim, você tem realmente bons modos. - Inclinou o rosto, num convite a que a beijasse. Quando a acompanhou à porta, Odette fez-lhe sinal para se aproximar. - Tem a minha aprovação para cortejar a minha Lui. Sei que será carinhoso com ela, o que não acontece com a maior parte dos homens.
  • - Não, fica mais um pouco. - Por casual que fosse o seu tom, os olhos exibiam uma expressão matreira. - Quero caminhar, e depois já vão sendo horas da minha sesta. - Quando se levantou, Declan ofereceu-lhe a mão. E fê-la sorrir. - Tem bons modos, você. Visite-me quando não estiver ocupado. Preparo-lhe sauce potato, batatas guisadas, antes que fique tão magrinho que as roupas lhe caiam pelo corpo abaixo.
  • - Mostre à Lui. Quanto a mim, volto para casa a pé.
  • - Hei-de voltar - disse-lhe Odette -, para ver a sua cozinha quando estiver terminada.
  • Estava a ser um bocado bem passado, pensou Declan. E isso sem contar com Remy e Effie, que haviam sido a sua primeira companhia.
  •  
  • - Eu disse que ainda estou a pensar. Aqui já se sente o frio - acrescentou. - Precisa de uma lareira acesa.
  • - Ficará novamente bela. Mas precisa de uma mulher, tal como aquele rapaz.
  • Lui franziu o sobrolho.
  • - Ao abandono? Não sei. Parece-me é que a casa se tem limitado a esperar. Isto é mesmo de homem - disse quando entraram na salinha. - Viver com uma mesa e duas cadeiras.
  • - Que vais fazer quanto a isso?
  • - Anda de olho em ti, chère. Lui riu-se.
  • - E bonito.
  • - É um jovem muito simpático - comentou Odette ao sair com Lui.
  • - O trabalho raramente é uma atividade calma. Eu e a Lui preferimos vaguear por aí, se não se importa. Nós encontramos a salinha.
  • - E isto fá-lo feliz.
  • - Bom trabalho, Declan. Você tem jeito.
  • - Devo ter os armários prontos na próxima semana. - Apontou para a sala de jantar. - Também estou a usar pinho ali. Com vidraças.
  • Quando finalmente conseguiu levá-las para a cozinha, Odette apoiou as mãos nos quadris e fez que sim com a cabeça.
  • Quer fosse vudu ou depois velhas garrafas de vidro, gostou de as ver penduradas nas suas árvores. E quando voltou a bater com uma garrafa na outra, gostou do som que emitiam.
  • - Acreditas no vudu?
  • - É um velho truque vudu - disse-lhe Lui. - Fazem um som estridente que assusta e afasta os espíritos malignos.
  • - Uma precauçãozinha. - Odette pegou em duas garrafas e dirigiu-se para as árvores.
  • - Para afastar os espíritos malignos. - Lui tirou da mala umas garrafas cheias com água até meio.
  • - Eu gostava. Lui, querida, traz da mala do carro as garrafas de espíritos. Vamos pendurá-las naqueles carvalhos, para começar.
  • - Daremos uma vista de olhos quando acabarmos de ver aqui fora. Ouvi dizer que contratou o Big Frank e a Little Frankie - disse, apontando com a cabeça para a carrinha deles. - Como se têm saído?
  • - Bem-vindas à Mansão Manet, tal como está.
  • - Chame-me Declan. Fico à espera. Miss Odette. - Declan tomou-lhe a mão enquanto Tibald se enfiava no furgão. Odette trazia um vestido de algodão da cor da cabaça madura e uma camisa verde-escura para se proteger do frio de meados do Inverno. Nesse dia as meias combinavam com o resto.
  • - Mmm. Lá chegaremos. Tibald, manda cumprimentos meus à Mazie, sim?
  • - Depois um batalhão. - Ela cheirava a jasmim, pensou. Cheirava à noite. Tinha que se concentrar nos bons modos, ou ainda acabava por engolir o chiclete.
  • Declan abriu a porta a Lui. As calças jeans assentavam-lhe admiravelmente, acompanhadas por uma camisa da cor da turquesa polida.
  • - Oh, bastante bem, Tibald. Como vai essa tua família?
  • Voltaram-se ambos ao ouvirem um carro que se aproximava.
  • - Sabe o que aconteceu no terceiro piso?
  • - Como sabe?
  • Tibald riu-se e tirou do bolso um pacote de pastilhas elásticas Big Red.
  • - Talvez queira falar com a minha irmã, a Lucy. Ela faz limpezas.
  • - Confesso que gostava de restaurar aquele salão de baile. - Tibald olhou novamente para a casa. - Está a fazer alguma reparação no terceiro piso?
  • - Vamos dar uma olhada às fotografias.
  • - Sim, percebo. Do modo como eu vejo as coisas, quando se contrata gente local, as pessoas empenham-se mais no trabalho. Consegue fazer este tipo de reparação?
  • Tibald continuou a sorrir e a olhar para o teto.
  • - Já. Os Rudicker pediram-me um orçamento para as obras. Devem ter sido as pessoas a quem o senhor comprou a Mansão. Tinham ideias grandiosas e refinadas, esses Rudicker. Mas nunca fizeram grande coisa. De qualquer modo, iam contratar alguém de Savannah. Foi o que ouvi dizer.
  • - Penso sempre que meti na cabeça uma imagem que não existe - disse. - Acho que nunca me vou habituar a ver este tipo de trabalho.
  • O estucador enviado por Miss Odette era um negro magro como uma vara que dava pelo nome de Tibald e cujo bisavô, ao que contaram a Declan, trabalhara outrora como jornaleiro para os Manet.
  • Vieram armados com pás, picaretas e enormes tesouras de poda. Declan estava na sala de jantar a trabalhar nos armários e conseguia ouvir o indolente sobe e desce das suas vozes e a ocasional pancada e tropeção.
  • Durante os dias seguintes, esteve demasiado ocupado para pensar em fantasmas ou em sonambulismo, ou até naquelas noitadas que prometera a si próprio. O eletricista e o encanador que contratara trabalhavam arduamente com as suas equipas. A casa estava demasiado cheia de ruído e pessoas para os fantasmas.
  • Conseguia viver com fantasmas, pensou enquanto passava a mão pela parte lateral do primeiro armário completo. Mas só descansaria quando os conhecesse.
  • Queria saber o nome dela, a sua história. De onde viera? Porque morrera? Talvez ele estivesse destinado a habitar aquela casa para descobrir esses enigmas.
  • - Tenho de ficar. Quero ficar.
  • - Se houve um assassinato, estou a crer que com o passar dos anos se teriam ouvido histórias. - Remy abanou a cabeça. - E a verdade é que nunca ouvi nada. Querida, vou levar-te a casa.
  • - Tenho de descobrir quem era - declarou Declan. - Deve haver maneira. Um membro da família, uma criada, uma hóspede. Se alguma mulher nova morreu violentamente nesta casa, deve haver um registro em alguma parte.
  • - Pronto, pronto. - Afagou-lhe o cabelo e abraçou-a com força. - Não penses mais nisso. Deixa-a em paz, Declan.
  • - Que me sabes dizer acerca da mulher?
  • - Um roupão branco em cima da chaise longue. Um conjunto de escovas de prata, uma espécie de broche de ouro e esmalte.
  • Ela bebeu a água enquanto observava Declan por cima da borda do copo.
  • Foi buscar um copo de água e levou-o para a varanda onde Remy se sentara com Effie ao colo.
  • - Pregaste-me um grande susto, chère! Declan, vai buscar água para a minha menina.
  • Sem dizer palavra, Remy abraçou-a e levantou-a no ar.
  • - Porque também vi o mesmo, no primeiro dia em que aqui estive. E senti um cheiro a lírios.
  • - Uma cama de dossel? De tecido azul? Uma cômoda e uma penteadeira com espelho. Um penteadeira e uma chaise longue azul. Nichos da iluminação a gás, velas sobre a lareira e um retrato emoldurado.
  • - Effie, querida, estás a tremer! Vamos para baixo.
  • - Vi... - Estremeceu e comprimiu os lábios numa linha firme. - Ajuda-me a levantar, Remy.
  • - Mas eu vi...
  • - Na cama. Uma mulher... o rosto dela. Estava morta!
  • Declan olhou pela porta entreaberta. A única cama que ali havia era a que ele tinha imaginado. Empurrou lentamente a porta até esta ficar completamente aberta. Viu a camada de poeira no chão, que Effie agitara ao entrar. O sol brilhava através das janelas, incidindo depois sobre a madeira e o papel de parede desbotado.
  • - Querida, que aconteceu? Magoaste-te?
  • - Remy! Remy, vem depressa!
  • Levantou-se de um salto, fazendo tombar a garrafa de cerveja, e lanceu-se pela porta da cozinha à frente de Declan e a gritar o nome dela.
  • - Eu sei guardar a minha.
  • - Eu sei detectar um aviso. Queres as meninas todas, Remy?
  • - Acho que consigo fazer melhor do que um adolescente todo empertigado. - Embora, admitiu, ela o fizesse sentir-se assim. - Que se passou entre vocês?
  • - Sim. Também sei como é quando se tem trinta e um. Remy riu-se.
  • Remy piscou-lhe o olho.
  • - Além do mais, eu e a Lui demos as nossas voltas aqui há uns tempos.
  • - Tu já tens menina.
  • - Só posso ter a Effie se te matar, por isso ando a cortejar Miss Odette como prova da nossa amizade.
  • - Raios, podes crer!
  • - Querida. - Declan tomou-lhe a mão e beijou-a. - Podes fazer o que quiseres.
  • - Vou-me lavar. - Effie olhava para as mãos manchadas de tinta.
  • - Um irmão e uma irmã, ambos chamados Frank?
  • - Pai e filho?
  • - Big Frank e Little Frankie. - Remy bebeu uma longa golada de cerveja. - Eles tratavam-te disso. Trabalham bem.
  • - Eu sei. Tenho que tratar deles.
  • - Que arbusto é aquele a desabrochar ali? - Apontou para o caos dos canteiros.
  • Quatro horas mais tarde estavam sentados no alpendre da cozinha recém-pintada. Effie parecia minúscula, enfiada na velha camisa jeans que Declan lhe dera como roupa de trabalho, e tinha sardas de tinta no nariz. A cerveja estava fria e agradável, e os Foghat empreendiam uma lenta incursão melódica na aparelhagem de Declan.
  • - Dava-me jeito ter um ou dois ajudantes. - Passou a serra pela madeira com um zumbido de satisfação, provocando uma chuva de serragem. Depois desligou-a antes de olhar para eles. - Estão mesmo dispostos a isso?
  • E diabos o levassem se aquele aspecto desgrenhado de homem dos sete ofícios não lhe ficava bem!
  • Remy dirigiu-se para a entrada. Declan estava junto de uma serra elétrica, com um cinto de ferramentas pendurado à cintura e um lápis de carpinteiro atrás da orelha.
  • - Effie, deixa esse cretino e vem viver comigo.
  • Effie levantou uma ponta do pano colocado sobre o chão.
  • - Justiça te seja feita, rapaz. - Remy contemplava a cozinha com as mãos apoiadas na cintura. - Armaste aqui uma tremenda bagunça!
  • - Ela usou-te - disse Josephine num sussurro maldoso. - Tirou-te a dignidade e manchou a nossa. Entrou nesta casa como criada e saiu daqui com os despojos. A meio da noite, como uma ladra, com a filha a chorar nas costas dela. - Agarrou-lhe os braços e abanou-o. - Tentaste mudar o que não podia ser mudado. Esperaste demasiado dela. Nunca poderia ter sido senhora da Mansão Manet. - Eu sim. - Pelo menos teve o bom senso de o saber. E agora fugiu. Manter-nos-emos de cabeça erguida até os mexericos se calarem. Somos Manet e sobreviveremos a isto. - Voltou-se e dirigiu-se para a porta. - Espero que te ponhas apresentável e te juntes à família para o jantar. As nossas vidas já foram suficientemente abaladas.
  • - Precisamente porque vivi na mesma casa que ela, mas não estava cega pela luxúria nem enfeitiçada. Isto é tanto culpa tua como dela. Se tivesses satisfeito os teus apetites como os outros homens, se lhe tivesses pago e dado algumas bugijeanss, não teríamos agora mais este escândalo nas mãos.
  • - Como pode perguntar-me tal coisa? Como pôde viver com ela na mesma casa durante um ano e dizer uma coisa dessas?
  • - Por mais afeição que ela tivesse pela criança, duvido que ela ou o amante quisessem o fardo de um bebê. Como sabes tu, Lucian, que a criança é tua?
  • - Levou tudo o que brilhava mais. Uma moça da laia dela é só isso que vê. Enfeitiçou-te, fez com que envergonhasses a tua família, o teu nome, e agora desgraçou-nos a todos.
  • - Alguém as roubou.
  • - A criada está enganada. - Mas a voz tremia-lhe.
  • - És um tolo. Foste tolo em casar com ela, e continuas um tolo. - Avançou para o guarda-roupa e escancarou-o. - Não vês que faltam roupas dela? Não foi o que disse a criada?
  • Quase acreditava nas suas próprias palavras. E em breve seria essa a verdade, pensou.
  • - Encontraram-na? - Ainda não tinha tirado a roupa que sujara durante a última busca, e a esperança cintilou por entre sujidade do seu rosto.
  • A porta abriu-se. Josephine nem se dera ao incômodo de bater. A Mansão Manet era dela, agora e sempre. Entrava em qualquer divisão sempre que o desejava.
  • E ele percebia os sussurros por detrás dos sussurros. De que é que estava à espera? Lixo cajun. O mais certo era a filha nem sequer ser dele.
  • Mas os boatos e os mexericos precipitavam-se já ao longo do rio.
  • Mas sabia que não era esse o caso. Não cavalgara ele como um louco pelo pântano, para perguntar, para exigir saber, para suplicar à família, aos amigos dela, se sabiam o que lhe acontecera?
  • Mas o quê? O que a teria forçado a abandonar a casa a meio da noite?
  • Ele era o único homem. Tomara um anjo por esposa, levara uma virgem para o seu leito nupcial.
  • Com outro homem. Era o que diziam. Um amor antigo com quem se encontrava em segredo sempre que Lucian ia a Nova Orleães em negócios.
  • Eram mentiras! Só podiam ser mentiras frias e cruéis! Nunca acreditaria, nunca acreditaria que a sua querida Abby o abandonara. Que o abandonara a ele, que abandonara a filha deles.
  •  
  • - Seria uma mudança agradável - murmurou ele quando ela fechou a porta atrás de si.
  • - És mesmo único. - Declan fora carinhoso, e ela beijou-o na face antes de avançar para as escadas. Quando destrancou a porta e olhou para trás, ele ainda lá estava.
  • - Continuam sempre a aparecer por causa da Lui. - Durante uns tempos, pensou enquanto se afastava. - Agora volta para casa, Declan.
  • - És mesmo bom nisto - repetiu, virando a cabeça de modo a roçar a face na dele. Uma vez, outra vez. - Mas não vais subir esta noite. Tenho que pensar no teu caso.
  • Alguém abriu a porta do bar. A música jorrou aqui para fora e depois voltou a desaparecer. Um carro passou acelerado na rua e uma nova explosão de música irrompeu através das janelas abertas.
  • Ups! Foi o pensamento que atravessou a mente de Lui enquanto se abandonava. A boca dele era paciente, mas sentia-lhe a ânsia. As mãos eram gentis, mas agarravam-na firmemente.
  • - Espera um momento. - Não estava assim tão traumatizado que não conseguisse reagir. Agarrou-lhe na mão. - Foi um mero treino - disse-lhe, fazendo-a rodopiar com estilo nos seus braços.
  • Quando começou a afastá-la de si, Lui abrandou.
  • Declan sentiu-se afundar, como se caminhasse sobre terra firme e de repente esta se transformasse em água. Uma queda longa e íngreme que despertou nele milhares de sensações.
  • - Não. - Bateu-lhe com um dedo no peito. - Não vais subir, esta noite não. Mas acho que vamos ultrapassar isto e ver no que dá.
  • - É aqui que moro. - Apontou para as escadas que davam para a varanda do segundo piso, a mesma que ele admirara na primeira noite.
  • Entrou por um portão alto de ferro quando ele se riu. Foram dar a um minúsculo pátio calcetado, com uma mesa de ferro solitária e duas cadeiras.
  • - E tu?
  • - Conheci o Rufus. Gosta de mim.
  • - Noite e dia - anuiu ele. - Comecei pela cozinha. Fiz grandes progressos. Não te tenho visto junto do tanque pelas manhãs.
  • Afastou-se do balcão e sorriu quando ele lhe abriu a porta.
  • - Posso acompanhar-te até casa, Lui?
  • - Foi simpático. - Lui suspirou. - Foste simpático. O terno é que a ela até lhe davam jeito umas costas fortes de vez em quando. Dupris, querido? - chamou sem tirar os olhos de Declan. - Fechas isto por mim, está bem? Vou para casa.
  • - É o que dizem. - Enfiou a ponta do pano no bolso de trás. - Foste lá para exibir o teu encanto ianque e ela me falar bem de ti?
  • - Soube que fizeste uma visita à minha avó.
  • - Estás à espera de alguma coisa, jeitoso?
  • Era como ser observada por um enorme gato bonito, pensou Lui. Firme, paciente, talvez um pouco perigoso. Declan embalou a sua Coca-Cola, pediu outra e continuou ali sentado quando o local começou a esvaziar.
  • Teve de se contentar em vê-la ocupar-se do seu terço do bar, a atender pedidos, trocar uma palavra ou outra, esgueirar-se em idas e voltas à cozinha sem nunca parecer apressada.
  • - Ah! Bem, obrigado. Está-se?
  • - Hum, creio que estou aqui mesmo.
  • Colocou um copo alto diante dele.
  • - Acho melhor uma Coca-Cola.
  • Lui lanceu-lhe um breve olhar enquanto servia duas canecas de cerveja de pressão e um gin tônico.
  • Nessa noite não conseguiu deitar mão a um banco sequer, mas conseguiu espremer-se por entre os clientes e reclamar um cantinho do balcão. A música era animada e ruidosa, tal como a multidão.
  • Mais, pensou. Ia forçar-se a atravessar o bloqueio mental que erigira em relação ao quarto do terceiro piso.
  • Talvez Effie tivesse razão, pensou Declan enquanto procurava um lugar para estacionar. E, mesmo que não fosse esse o caso, era decididamente determinada. Tentaria conviver um pouco mais. Podia vir à cidade uma ou duas vezes por semana para uma refeição a sério. E talvez levar Remy e Effie a comer fora, uma coisa informal.
  • Era sempre um erro, pensou como se ralhasse consigo mesmo, deixarem-no entrar numa loja de antiguidades.
  • - Já conheces Miss Odette? - perguntou Remy enquanto devorava o resto do jantar. - Ela é especial, não é?
  • - Lamento. Sou uma moça da cidade. Que fazes lá completamente sozinho, Declan, quando não estás a trabalhar?
  • - Oh, chère. Maio ainda está tão longe. Sinto a tua falta quando não estás aqui. - Tomou-lhe a mão e beijou-lha languidamente.
  • - Já que ela não quer. - Remy apontou com a cabeça na direção de Effie.
  • - Aqui a minha menina tem os pés firmes na terra.
  • - A Effie não acredita em fantasmas.
  • - Talvez. Estou lá há uma semana e só aconteceu duas vezes. De qualquer modo, os soporíferos não resolvem a questão do fantasma.
  • - Mas que belo pensamento. Obrigado.
  • - Tem o seu quê de fantasmagórico. É curioso que acabei por ir dar aos dois quartos que mais me inquietam. Ou se convem até é lógico, qualquer coisa subconsciente.
  • Não era sua intenção abordar o assunto, pelo menos não superficialmente. O jantar que Effie preparara no apartamento de Remy no Garden District era bem-vindo, assim como a companhia. Mas, por qualquer razão, passara do seu relato sobre as obras de reconstrução para as suas aventuras noturnas.
  • - Sonambulismo? - Remy engolfou nova garfada de arroz.
  • Quando os seus olhos se habituaram, virou-se e fechou firmemente as portadas.
  • Os dedos roçaram em algo sólido. Soltou uma espécie de latido e afastou-os logo, um segundo antes de se dar conta que era uma parede. Respirou fundo para se acalmar, tateou ao longo da parede, tropeçou num rodapé e pisou em vidro. Continuou a tatear até encontrar o puxador das portas da varanda e escancarou-as.
  • Agora estava lá dentro, pensou enquanto dava outro passo arrastado. E embora fosse um tanto insano pensar assim, sabia que não estava sozinho.
  • Rolou de lado e levantou-se. Estendeu a mão como um cego e tateou o ar enquanto dava um cauteloso passo em frente.
  • Acordou na mais completa escuridão, a tremer de frio. O bebê acordara-o. Os tênues gritos ainda lhe permaneciam nos ouvidos quando se sentou de repente, com o coração a bater como um martelo de encontro às costelas.
  • Se não conseguisse arranjar o guarda-louça apropriado para a comprida parede, raios, também o construiria. Estava no caminho certo.
  • Trabalhou até depois de escurecer, após o que decidiu oferecer-se uma cerveja a acompanhar um jantar de galinha Hungry-Man. Comeu sentado num cavalete enquanto admirava os progressos na cozinha.
  • Depois, coroaria a noite com uma bebida no Et Trois.
  • - Gosto mesmo de si, Declan.
  • Declan ficou um pouco ruborizado ao aperceber-se de que falara alto e tentou esboçar um sorriso.
  • - Ela parece-se tanto consigo.
  • - Obrigado, Miss Odette. - Pegou na deixa e levantou-se. - Também vou gostar de a ter por aqui.
  • - Importa-se de escrever isso e assinar? Punha-o num envelope e mandava-lho.
  • - Tenho muitas moedas. Espero que venha visitar-me um destes dias para poder mostrar-lhe a casa. Não sei fazer pão de milho, mas consigo dar conta do chá.
  • - Agradeço-lhe. Por acaso não conhece nenhum estucador? Alguém capaz de fazer um trabalho bem feito?
  • - Ah... - Esforçou-se por desviar os pensamentos do fantástico para o prático, enquanto a palma da mão ainda vibrava com o deslizar dos dedos dela. - Sim. Foi-me recomendado pelo meu amigo Remy Payne.
  • - Acho que nunca pensei nisso.
  • - Então a senhora é uma espécie de médium? Divertida, levantou-se para ir buscar o jarro de chá.
  • - Cabe a si descobrir. - Apertou-lhe a mão e depois largou-a para beber o seu chá.
  • O calafrio subiu-lhe pela espinha como uma seta gelada.
  • Declan ficou com a garganta seca, mas não pegou no chá. Não mexeu um único músculo.
  • Embora continuasse a afagar-lhe a palma da mão com o polegar, olhava agora para o rosto dele. Os seus olhos pareceram tornar-se mais profundos. Declan julgou ver mundos dentro deles.
  • - Bem, essa doeu - disse ele rindo-se um pouco.
  • - Consegue ver a Jessica aí? - Fascinante. - Ela acaba por ficar com o James?
  • - Esta mulher. - Odette passou delicadamente a unha pela borda da palma da mão dele. - Aquela de que se afastou. Não era para si.
  • - Deixe-me ver as suas mãos. - Pegou-lhe a mão, com a palma virada para cima. - Ainda são mãos de citadino, mas você está a tratar disso rapidamente. - Passou o polegar pelas bolhas, pelas esfoladelas, pela borda dos calos em formação. - Tenho aqui um unguento que lhe posso dar antes de ir, para que essas bolhas não o incomodem. Você tem uma mão forte, Declan. Tão forte que até mudou o seu destino. Está a percorrer uma estrada nova. Você não a amava.
  • - Um rapaz tão bonito como você, a passar dos trinta. Não é gay, pois não?
  • - Hmm. - Anuiu com a cabeça. - Já há muito tempo. É muita casa para um homem novo. Tem alguma moça em Boston?
  • - E o que é que a Mansão acha de si?
  • - Porquê?
  • Odette partiu um dos cantos do pão de milho. Já decidira que gostava do aspecto dele: o cabelo desalinhado, os olhos de um cinza-pedra num rosto esguio. E da voz dele, de ianque, mas não empertigado. E tinha uns modos polidos, naturais e amistosos.
  • - E depois?
  • - Que vai fazer com aquele lugar velho e enorme, Declan Fitzgerald?
  • Como Rufus estava nesse momento sentado aos pés dele e com uma das pesadas patas sobre a sua coxa, Declan decidiu que o animal já tinha suplicado o suficiente. Tirou o osso do saco. O cão tirou-lho com uma dentada surpreendentemente delicada, abanou duas vezes a cauda como um chicote, depois baixou-se e começou a roê-lo.
  • - Mais ou menos, pelo menos reformei-me do Direito. Isto está maravilhoso, Miss Odette.
  • - Reformaram-se.

 

                                                                                Nora Roberts  

 

                      

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