Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O PAPAGAIO MENTIROSO
Perry Mason observou a pasta de cartão, rotulada «CORRESPONDÊNCIA IMPORTANTE POR RESPONDER», com um olhar pouco simpático.
Della Street, a sua secretária, de aparência tão imaculada e eficiente como a de uma enfermeira de bata limpa e engomada, disse, com o seu melhor ar de segunda-feira de manhã:
- Analisei a correspondência com todo o cuidado, chefe. As cartas que estão por cima são aquelas que requerem uma resposta impreterível. Eliminei uma grande parte das que estavam no fundo.
- No fundo? - repetiu Mason. - E como é que isso foi possível?
- Bom - confessou ela -, eram coisas que já aí estavam há demasiado tempo.
Mason inclinou-se para trás na cadeira giratória, cruzou as compridas pernas, arvorou o seu melhor semblante de advogado e disse, como se estivesse a interrogar uma testemunha:
- Ora, vamos lá a esclarecer uma coisa, Miss Street. Tratava-se de cartas que tinham sido colocadas na pasta «CORRESPONDÊNCIA IMPORTANTE POR RESPONDER»?
- Sim.
- E de tempos a tempos, a menina analisa atentamente essa pasta?
- Sim.
- E elimina tudo o que não requer a minha atenção pessoal?
- Sim.
- E no entanto, nesta manhã de segunda-feira, dia 12 de Setembro, a menina tirou uma grande quantidade de cartas do fundo da pasta?
- Correcto - admitiu ela, com os olhos a brilhar.
- Quantas cartas, se é que eu posso saber?
- Oh, umas quinze ou vinte.
- E respondeu a essas cartas pelo seu próprio punho?
Ela abanou a cabeça, sorrindo.
- Então, que fim lhes deu? - perguntou Mason.
- Transferi-as para outra pasta.
- Qual pasta?
- A pasta das «CARTAS PRESCRITAS».
Mason soltou uma gargalhada, divertido.
- Ora aí está uma óptima ideia, Della. Deixamos pura e simplesmente as cartas dentro da pasta «Correspondência Importante por Responder» o tempo suficiente para perderem a importância e depois transferimo-las para a pasta «Cartas Prescritas». Assim, elimina-se correspondência, poupa-se dores de cabeça e evita-se que eu me enterre na rotina do escritório, que detesto... De facto, Della, há coisas que parecem terrivelmente importantes na hora e que, com o tempo, se transformam em meras insignificâncias. Os acontecimentos são como os postes telefónicos que vemos passar pela janela de um comboio em andamento. A princípio, parecem muito grandes, depois diminuem com a distância e tornam-se tão pequenos, que acabam por desaparecer por completo. É o que acontece com a maior parte das coisas que consideramos absolutamente cruciais.
Ela arregalou os olhos, numa expressão de ingenuidade.
- Os postes ficam mesmo mais pequenos, chefe, ou parecem simplesmente mais pequenos?
- É claro que não ficam mais pequenos - disse ele. - A pessoa é que está mais longe deles. E, entretanto, surgem outros postes telefónicos a encherem o campo de visão. Os postes telefónicos são todos do mesmo tamanho, no entanto, à medida que uma pessoa se afasta, vão parecendo cada vez mais pequenos e... - Mason calou-se bruscamente e disse: - Espera aí. Por acaso não estás a tentar mostrar-me discretamente uma falha no meu raciocínio, estás?
Perante o sorriso triunfal de Della, Mason fez uma careta a brincar.
- Eu devia saber que não se deve discutir com uma mulher. Muito bem, sua vilã, prepara o teu bloco de notas e vamos lá dar resposta a essas malditas cartas.
Mason abriu a pasta de arquivo, analisou uma carta de uma conceituada firma de advocacia, atirou-a para cima da mesa na direcção de Della e disse:
- Escreve a esta gente a dizer que não estou interessado em trabalhar neste processo, nem que me pagassem o dobro da quantia mencionada. Não passa de um simples e banal caso de homicídio. Uma mulher farta-se do marido, dá-lhe um tiro de pistola e depois chora e grita que ele estava bêbado e a tentar bater-lhe. Viveu com ele durante seis anos e vê-lo bêbado era tudo menos uma novidade. A história de ter medo de que ele a matasse não bate certo com a versão das outras testemunhas.
- De tudo o que disseste - perguntou Della Street, com uma eficiência calma - o que é que queres que eu ponha na carta?
- Simplesmente que não estou interessado em trabalhar nesse processo... Oh, meu Deus, mais um. Um homem, que intrujou um monte de pessoas para que elas comprassem acções sem valor nenhum, quer que eu prove que ele agiu dentro dos limites da lei.
Mason fechou a pasta com um gesto brusco e disse:
- Sabes uma coisa, Della? Gostava que as pessoas aprendessem a distinguir entre o advogado conceituado que defende pessoas acusadas de um crime e o advogado criminal que se torna um sócio oculto das receitas do crime.
- Aos teus olhos, qual é a diferença? - perguntou ela.
- O crime é pessoal - respondeu Mason. - As provas de um crime são impessoais. Nunca aceito um caso se não estiver convencido de que o meu cliente era incapaz de cometer o crime de que é acusado. Assim que chego a essa conclusão, deduzo que deve haver alguma discrepância entre as provas e as conclusões que a polícia tirou a partir delas. E ponho-me em campo para a encontrar.
Della riu-se.
- Pela maneira como falas, mais pareces um detective do que um advogado.
- Não - ripostou Mason -, são duas profissões diferentes. Um detective reúne provas. Torna-se especialista em saber quais as provas que deve procurar, onde as encontrar e como obtê-las. Um advogado interpreta as provas depois de terem sido recolhidas. Descobre aos poucos...
Mason foi interrompido pelo toque do telefone que se encontrava na mesa de Della. Ela atendeu e disse:
- Espera um instante - e depois, tapando o bocal com a mão, virou-se para Perry Mason. - Estás interessado em falar com um tal Mr. Charles Sabin sobre um assunto da máxima importância? Mr. Sabin diz que está disposto a pagar seja o que for por uma consulta.
- Depende do que ele quer. Se for um caso de homicídio, eu falo com ele. Se, pelo contrário, só está interessado em que eu redija um contrato de hipoteca, a resposta é não. Não há dinheiro que me convença a... Espera aí, Della. Como é que ele se chama?
- Sabin - disse ela. - Charles W. Sabin.
- Onde é que ele está?
- Ali fora.
- Manda-o esperar uns minutos - disse Mason. - Não, espera aí. Descobre se ele tem alguma coisa a ver com Fremont C. Sabin.
Della fez a pergunta ao telefone e esperou que a rapariga da recepção colocasse por sua vez a pergunta ao visitante. Depois, virou-se novamente para Mason e disse:
- Sim, é filho de Mr. Fremont C. Sabin.
- Diz-lhe que eu vou recebê-lo - respondeu Mason. - Mas explica que vai ter de esperar cerca de dez minutos. Vai ter com ele, Della. Tira-lhe as medidas. Leva-o para a biblioteca de Direito e ele que espere lá. Traz-me os jornais de hoje. Isto, minha menina, caso não saibas, é uma Oportunidade com O maiúsculo. Muito bem, despacha-te... Espera, tenho aqui um dos jornais.
Mason precipitou-se sobre o jornal, afastando a pasta da correspondência importante para o canto da mesa, para arranjar espaço à pressa em cima do tampo.
O relato do homicídio de Fremont C. Sabin ocupava grande parte da primeira página. A segunda e a terceira páginas traziam fotografias e um artigo sobre o seu temperamento e personalidade.
O que se sabia sobre o homicídio era suficiente para despertar a imaginação. Fremont C. Sabin, multimilionário excêntrico, estava praticamente afastado das muitas empresas que davam pelo seu nome. O filho, Charles Sabin, assumira as rédeas no lugar do pai. Nos últimos dois anos, o milionário tornara-se uma espécie de eremita. De vez em quando, viajava numa roulotte, detendo-se em parques de campismo para confraternizar com outros campistas, discutir questões políticas e trocar ideias. Nenhuma das pessoas com quem ele falava fazia a mínima ideia de que aquele indivíduo, com o seu reluzente fato de executivo, o seu feitio acanhado e os seus discretos olhos cinzentos, tinha uma fortuna de mais de dois milhões de dólares.
Ou, então, desaparecia durante uma semana ou duas de seguida e ia ver livrarias, visitar bibliotecas, vivendo num reino intelectual e abstracto, imerso em livros.
Os bibliotecários pensavam sempre que se tratava de um funcionário de escritório, desempregado.
Ultimamente, passava muito tempo numa cabana nas montanhas, na encosta coberta de pinheiros de uma cordilheira agreste, perto de um riacho agitado. Sentava-se no alpendre, de hora a hora, com uns potentes binóculos em punho, e observava os pássaros, fazia amizade com os esquilos, lia livros - a única coisa que ele queria era que o deixassem em paz.
Próximo dos sessenta anos, Fremont Sabin era um homem estranho; uma pessoa que retirara da vida tudo o que esta tinha para oferecer em termos materiais; um homem que possuía literalmente tanto dinheiro que nem sabia o que fazer com ele. Uma parte desse dinheiro encontrava-se sob a forma de fundos fiduciários, mas, regra geral, Sabin não acreditava na filantropia, convencido de que o objectivo supremo da vida era fortalecer a personalidade e que, quanto mais uma pessoa dependesse de ajuda externa, mais fraca se tornava.
O jornal publicava uma entrevista com Charles Sabin, o filho do indivíduo assassinado, que esclarecia alguns aspectos do temperamento do pai. Mason leu-a com todo o interesse. Fremont Sabin defendia que a vida se tratava de uma luta e que assim era por um motivo; que a competição desenvolvia a personalidade; que a vitória só tinha valor no sentido em que assinalava a conquista de um objectivo; que ajudar outra pessoa a conquistar uma vitória era fazer-lhe uma injustiça, porque as vitórias eram progressivas.
Fremont Sabin colocara uma quantia superior a um milhão de dólares em fundos fiduciários destinados a fins caritativos, mas estipulara que esse dinheiro só seria atribuído a pessoas que tivessem ficado incapacitadas nas lutas da vida: aleijados, velhos e doentes. Aquelas que ainda tivessem forças para lutar não receberiam nada das suas mãos. O privilégio de lutar para conquistar algo era o privilégio de viver, e retirar a alguém o direito de lutar era o mesmo que lhe retirar a própria vida.
Della Street entrou no gabinete de Mason, quando ele estava a terminar a leitura dessa parte do artigo.
- E então? - perguntou Mason.
- Ele é interessante - disse ela. - Escusado será dizer que está a aceitar muito mal o que aconteceu. Encontra-se numa espécie de estado de choque, mas sem histerias e sem fingimentos, no que toca ao seu sofrimento. É discreto, determinado e tem um autocontrolo enorme.
- Que idade tem? - quis saber Mason.
- Uns trinta e dois, trinta e três. Vestido discretamente... aliás, é essa a impressão que ele dá: de ser discreto. Fala numa voz baixa e harmoniosa. Tem uns olhos de um azul muito frio e muito, muito firmes... não sei se estás a ver o que eu quero dizer.
- Penso que sim - respondeu Mason. - Tem uma aparência simples e austera?
- Tem, com umas maçãs do rosto altas e uma boca firme. Creio que vais achar que ele pensa imenso, que é um intelectual.
- Muito bem - disse Mason. - Vamos lá a desencantar mais factos sobre este homicídio.
Concentrou-se novamente na leitura do jornal, mas, de repente, disse:
- Estes textos têm demasiada palha, Della, e poucas informações concretas. Eu devia averiguar só os factos principais, porque provavelmente ele não vai querer falar sobre o assunto.
Voltou a mergulhar no jornal, procurando os factos relevantes no relato do homicídio.
A temporada de pesca em Grizzly Creek começara na terça-feira, 6 de Setembro. Estivera suspensa até essa data por ordem da Comissão de Caça e Pesca, para proteger a pesca de fim de estação. Fremont C. Sabin fora para a sua cabana nas montanhas, pronto para aproveitar o primeiro dia da época. A polícia reconstituiu o que aconteceu na cabana a partir das provas circunstanciais que recolheu. Sabin deitara-se cedo e pusera o despertador para as cinco e meia da manhã. Levantara-se, fizera o pequeno-almoço, pegara no equipamento e regressara por volta do meio-dia, com um cesto com o limite de peixe permitido pela lei. Algum tempo depois - e a polícia, pelas provas que até então apresentara, era incapaz de dizer ao certo quando -, Fremont Sabin fora assassinado. A hipótese de um roubo estar na origem do crime foi imediatamente eliminada, já que a vítima tinha uma carteira bem recheada no bolso. Ainda trazia o anel de diamantes no dedo e um valioso alfinete de esmeralda foi encontrado na gaveta da cómoda, junto da cama. Ele fora alvejado no coração, à queima-roupa, com uma pistola de cano curto, obsoleta em termos de forma, mas mortal quanto à sua eficácia.
O papagaio de estimação de Sabin, que nos últimos anos o acompanhara praticamente em todas as suas excursões à cabana nas montanhas, encontrava-se no quarto com o corpo. O assassino pusera-se em fuga.
A cabana era isolada, a quase cem metros de distância da estrada que serpenteava do sopé da encosta até à modesta casa de toros de pinho. A estrada tinha pouco movimento e, com o tempo, as pessoas que viviam na vizinhança tinham aprendido a deixar o rico eremita sossegado no seu canto.
Durante vários dias, o trânsito que percorria a auto-estrada passara sem se deter, enquanto na cabana, à sombra das árvores, um papagaio aos gritos zelava pelo corpo sem vida do seu dono.
Só passados alguns dias do homicídio, no domingo, 11 de Setembro, quando os pescadores afluíram em massa ao ribeiro, é que alguém suspeitou de que se passava alguma coisa de errado.
Foi nessa altura que os gritos roucos e estridentes do papagaio, alternados com duros palavrões, chamaram a atenção das pessoas. «Louro quer comer. Porra, Louro quer comer. Vocês não sabem que Louro tem fome, seus burros?»
Um vizinho, proprietário de uma cabana ali perto, investigara o caso. Ao espreitar pelas janelas da cabana, vira o papagaio e depois vira mais qualquer coisa que o fizera telefonar para a polícia.
O assassino tivera dó do pássaro, mas não do dono. A porta da gaiola estava aberta. Alguém, aparentemente o assassino, deixara um pires com água no chão e uma boa quantidade de comida junto da gaiola. A comida ainda lá estava, mas o pires encontrava-se seco.
Mason levantou os olhos do jornal e disse a Della Street:
- Muito bem, Della, podes mandá-lo entrar.
Charles Sabin deu um aperto de mão a Perry Mason, olhou de relance para o jornal em cima da mesa e disse:
- Espero que tenha conhecimento dos factos envolvidos na morte do meu pai.
Mason fez um sinal de assentimento, esperou que a sua visita se sentasse na dura poltrona de cabedal preto e, então, perguntou:
- Ao certo, o que é que quer que eu faça?
- Uma série de coisas - respondeu Sabin. - Entre outras, quero que se certifique de que a viúva do meu pai, Helen Watkins Sabin, não dá cabo dos negócios. Tenho motivos para crer que existe um testamento que faz de mim herdeiro da maior parte dos bens do meu pai e, em especial, que me nomeia executor testamentário. Não consegui encontrar o testamento entre a papelada do meu pai. Temo que se encontre na posse dela e ela é bem capaz de o destruir. Não quero que seja administradora dos bens.
- Não gosta dela?
- Detesto-a.
- O seu pai era viúvo de um casamento anterior?
- Era.
- Quando é que se casou com a actual mulher?
- Há cerca de dois anos.
- Teve mais algum filho?
- Não. Mas a viúva dele tem um filho adulto.
- Esse segundo casamento foi bem sucedido? O seu pai era feliz?
- Não. Ele era muito infeliz. Percebeu que tinha sido manipulado. Teria pedido a anulação do casamento, ou o divórcio, não fosse o pavor que tinha do falatório que isso suscitaria.
- Continue - incitou Mason. - Explique-me o que quer ao certo que eu faça.
- Vou pôr as cartas na mesa - disse Charles Sabin. - Todas as minhas questões jurídicas são tratadas pela firma Cutter, Grayson & Bright. Eu quero que o senhor trabalhe em parceria com eles.
- Na aprovação oficial do testamento, é a isso que se está a referir? - perguntou Mason.
Sabin abanou a cabeça.
- O meu pai foi assassinado. Quero que o senhor ajude a polícia a levar o culpado a tribunal.
«Lidar com a viúva do meu pai não vai ser fácil. Penso que se trata de uma tarefa que está para lá das capacidades da firma Cutter, Grayson & Bright. Quero que seja o senhor a encarregar-se disso.
«Estou, como é óbvio, profundamente chocado com o que aconteceu. Fui informado ontem à tarde pela polícia. Tem sido terrível enfrentar isto. Garanto-lhe que nunca teria saído de casa num dia como o de hoje, se o assunto não fosse de suma importância.» - Mason olhou para as rugas de sofrimento gravadas no rosto de Charles Sabin e disse:
- Compreendo perfeitamente.
- E - continuou Sabin - tenho noção de que o senhor vai querer fazer-me algumas perguntas. Gostaria que o interrogatório fosse o mais breve possível.
- Vou precisar de autorização oficial para... - começou Mason.
Sabin tirou uma carteira do bolso.
- Penso que previ tudo o que é necessário, Mr. Mason. Aqui tem um cheque de depósito, juntamente com uma carta a declarar que o senhor está a agir na qualidade de meu advogado e, por conseguinte, poderá ter acesso a todos e quaisquer bens deixados pelo meu pai.
Mason pegou na carta e no cheque.
- Vejo - comentou - que é uma pessoa metódica.
- Tento ser - respondeu Sabin. - O cheque é um depósito para assegurar os seus serviços. Considera-o suficiente?
- Mais do que suficiente - disse Mason, sorrindo. - É muito generoso.
Sabin inclinou a cabeça.
- Tenho seguido a sua carreira com muito interesse, Mr. Mason. Penso que tem um talento jurídico excepcional e uma invulgar capacidade de dedução. Quero poder contar com ambos.
- Obrigado - disse o advogado. - Mas, para poder ajudá-lo, Mr. Sabin, vou precisar de liberdade total.
- Em que sentido? - perguntou Sabin.
- Quero ter liberdade para fazer o que bem me apetecer neste caso. Se a polícia acusar alguém do crime, quero ter o privilégio de representar essa pessoa. Por outras palavras, quero deslindar o crime à minha maneira.
- Porque pede uma coisa dessas? - disse Sabin. - Estou, com certeza, a pagar-lhe o suficiente para...
- Não é isso que está em causa - atalhou Mason -, mas, se seguiu os. meus processos atentamente, deve ter reparado que a maior parte deles foi resolvida em pleno tribunal. Posso desconfiar dos culpados, mas a única maneira que tenho de provar a minha teoria é contra-interrogando as testemunhas.
- Compreendo - cedeu Sabin. - Parece-me perfeitamente razoável.
- E - acrescentou Mason - vou querer tomar conhecimento de todos os factos relevantes, de tudo o que me puder contar que possa ser útil.
Sabin recostou-se na cadeira. Falou calmamente, quase com indiferença.
- Há duas ou três coisas a tomar em consideração para se ter uma perspectiva da vida do meu pai. Uma delas foi o facto de ele e a minha mãe terem tido um casamento muito feliz. A minha mãe era uma mulher maravilhosa, de uma lealdade sem par e muitíssimo tranquila. Durante toda a sua vida de casada, nunca proferiu uma única palavra amarga, simplesmente porque nunca se permitiu a si mesma desenvolver esses reflexos emocionais que fazem, tão frequentemente, com que as pessoas se abespinhem com os entes queridos ou com os conhecidos com quem contactam diariamente.
«Claro está que o meu pai passou a usá-la como bitola para julgar toda e qualquer mulher. Depois da morte dela, ele sentiu-se profundamente só. A sua actual mulher trabalhava para ele, na qualidade de governanta. Era astuta, manipuladora, fatal, maquiavélica, avara e perspicaz. Decidiu insinuar-se no coração dele. Fê-lo deliberadamente. O meu pai nunca tinha lidado com mulheres do estilo dela. Em termos de temperamento, ele não estava preparado para enfrentá-la ou sequer para compreender o seu feitio. Consequentemente, deixou-se enfeitiçar e aceitou casar-se com ela. Escusado será dizer que foi desesperadamente infeliz.»
- Onde se encontra Mrs. Sabin actualmente? - perguntou Mason. - Se bem me lembro, o jornal dizia que tinha partido em viagem.
- Sim, foi fazer um cruzeiro à volta do mundo, há cerca de dois meses e meio. A polícia localizou-a a bordo de um navio que partiu do Canal do Panamá, ontem, e alugou um avião para ir buscá-la a um dos portos da América Central. Deverá cá chegar amanhã de manhã.
- E ela vai tentar assumir as rédeas de tudo? - perguntou Mason.
- Sem dúvida que sim - respondeu Sabin, numa voz enfática.
- Claro está que, sendo filho - disse Mason -, o senhor tem determinados direitos.
Num tom cansado, Sabin retorquiu:
- Uma das razões que me fez pôr o meu sofrimento de lado e vir falar consigo numa altura destas, Mr. Mason, foi a necessidade de o senhor começar a trabalhar antes de ela chegar. Trata-se de uma mulher muito hábil, que será uma adversária impiedosa.
- Compreendo - disse Mason.
- Ela tem um filho de um casamento anterior, Steve Watkins - continuou Sabin. - Costumo dizer que ele é o espião dela. Desenvolveu a simpatia como uma arma em seu proveito. Tem a manha de um político e é traiçoeiro como uma cobra. Está na Costa Eeste há algum tempo e meteu-se num voo em Nova Iorque para ir apanhar o avião que irá buscar a mãe à América Central. Chegarão juntos.
- Que idade tem ele? - perguntou Mason.
- Vinte e seis anos. A mãe conseguiu que ele tirasse um curso universitário. O Steve encara os estudos como uma simples fórmula mágica que deverá permitir-lhe passar pela vida sem trabalhar. É um jovem que defende uma filosofia de «partilha da riqueza», achando que deve ser recompensado na vida sem ter de se empenhar num trabalho competitivo. Quando a mãe dele se casou com o meu pai, conseguiu convencer o meu pai a dar-lhe avultadas quantias de dinheiro, que depois o Steve esbanjou prodigamente, O comportamento dele foi o que seria de esperar, nessas circunstâncias. Tem um profundo desprezo pelo povo, a que chama «rebanho de ovelhas».
- O senhor faz alguma ideia - perguntou Mason - de quem assassinou o seu pai?
- Não, de todo. Se fizesse, tentaria eliminá-la do meu pensamento. Não quero imaginar ninguém que eu conheça nessa situação, até ter provas. E quando eu tiver provas, Mr. Mason, quero que a justiça siga os seus trâmites.
- O seu pai tinha inimigos?
- Não. Excepto... Há duas coisas que eu creio que deveria saber, Mr. Mason. De uma delas, a polícia tem conhecimento; da outra, não.
- E quais são? - perguntou o advogado.
- Isto não saiu nos jornais - disse Sabin -, mas na cabana foram encontradas algumas peças de roupa íntima feminina. Estou convencido de que essas peças foram lá colocadas pelo assassino, para que a opinião pública se condoesse da viúva.
- E que mais? Disse que havia uma coisa que a polícia desconhecia. Era...
- É uma coisa - interrompeu Sabin - que poderá ser relevante, Mr. Mason. Penso que terá lido nos jornais que o meu pai tinha uma grande afeição pelo papagaio.
Mason fez que sim com a cabeça.
- O Casanova foi uma prenda que o irmão lhe deu, há uns três ou quatro anos. O irmão dele é um grande apreciador de papagaios e o meu pai afeiçoou-se muito ao pássaro. Andava frequentemente com ele... Ora, o papagaio que foi encontrado na cabana junto do corpo do meu pai, e que a polícia e todas as outras pessoas deduziram que era o Casanova, não é o papagaio do meu pai.
Os olhos de Mason denotaram a sua enorme curiosidade.
- Tem a certeza? - perguntou.
- A certeza absoluta.
- E pode-se saber como é que tirou essa conclusão?
- Em primeiro lugar - explicou Sabin -, o papagaio encontrado na cabana tem a mania de praguejar, especialmente quando pede comida. Ora, o Casanova nunca aprendeu a dizer palavrões.
- Talvez - sugeriu Mason - isso tenha sido provocado por uma mudança de ambiente. Sabe que os papagaios apanham tudo...
- Além disso - disse Sabin -, e vai-me desculpar por o interromper, Mr. Mason, mas o argumento que eu tenho para lhe apresentar é irrefutável: o Casanova tinha uma garra a menos, faltava-lhe uma garra na pata direita. Este papagaio, não.
Mason franziu o sobrolho.
- Mas por que diabo haveria alguém de querer substituir o papagaio?
- O único motivo que me vem à cabeça - disse Sabin - é o papagaio ser mais importante do que possa parecer à primeira vista. Tenho quase a certeza de que o Casanova estava na cabana das montanhas, quando o meu pai foi assassinado. Talvez ele tenha visto, ou ouvido alguma coisa, e daí ter sido retirado e substituído por outro papagaio. O meu pai regressou a casa na sexta-feira, dia 2 de Setembro, o que lhe deu tempo de sobra para ir buscar o Casanova. Estávamos à espera que ele só voltasse na segunda-feira, dia 5.
- Mas teria sido muito mais simples e fácil para o assassino limitar-se a matar o papagaio - disse Mason.
- Tenho noção disso - respondeu Sabin - e sei que a minha teoria é bizarra. No entanto, é a única explicação que me vem à cabeça.
- Porque não contou isto à polícia?
Sabin abanou a cabeça. Desta vez, não fez qualquer esforço para esconder o cansaço que lhe transparecia nos olhos e na voz.
- Tenho-me apercebido - disse - de que é absolutamente impossível para a polícia esconder seja o que for da imprensa e não tenho uma grande fé na capacidade das autoridades para resolverem um crime como este. Penso que verá que ele tem ramificações muito extensas, Mr. Mason. Contei à polícia apenas o estritamente necessário, só dei as informações que me pediram. Estou a contar-lhe isto a si e sugiro que não o comunique às autoridades. A polícia que construa o seu próprio caso.
E, posto isto, Sabin pôs-se de pé e esticou o braço, mostrando que já tinha dito tudo o que sabia.
- Muito obrigado, Mr. Mason - disse. - Fico muito mais descansado, sabendo que o assunto está nas suas mãos.
Mason, andando de um lado para o outro do seu gabinete, debitava comentários. Paul Drake, chefe da Agência de Detectives Drake, estendido de través na dura poltrona de cabedal, tirava apontamentos num caderninho forrado a pele.
- A troca de papagaio - disse Mason - é uma pista que nos coloca em vantagem relativamente à polícia... É um papagaio mal-educado... Mais tarde, haveremos de descobrir porque é que o assassino quis substituir o papagaio. Neste momento, vamos tentar identificar a origem do papagaio mal-educado, o que deverá ser fácil... Não podemos ter ilusões de competir com a polícia, por isso vamos ignorar os factores banais.
- E quanto à camisa de noite de seda cor-de-rosa? -, perguntou Paul Drake, na sua voz lenta e arrastada. - Fazemos alguma coisa em relação a isso?
- Absolutamente nada - disse Mason. - A polícia atirou-se a isso com unhas e dentes... O que é que sabes sobre este caso, Paul?
- Não muito mais do que saiu na imprensa - respondeu Drake -, mas um dos meus amigos, que trabalha num jornal, fez-me umas perguntas sobre armas.
- O que é que ele queria saber? - perguntou Mason.
- Uma coisa sobre a arma do crime.
- O que tem a arma de especial?
- É peculiar - disse Drake. - Tem o cano curto, com um gatilho que se dobra para não estorvar. É suficientemente pequena para uma pessoa a poder levar para todo o lado.
- De que calibre?
- 41.
- Tenta descobrir onde é que se arranjam munições - disse Mason.
- Vê se as balas se encontram em stock... Não, esquece isso. A polícia vai tratar dessas coisas todas. Cinge-te aos papagaios, Paul. Percorre as lojas todas de animais de estimação. Averigua as vendas de papagaios que foram feitas nas últimas duas semanas.
Paul Drake, cuja eficiência enquanto detective dependia, em grande parte, do facto de ter uma aparência tão inofensiva, fechou o caderno forrado a pele e enfiou-o no bolso. Fitou Perry Mason com os seus olhos ligeiramente protuberantes, que habitualmente tinham uma expressão vítrea.
- Até onde queres que eu investigue a Mrs. Sabin e o filho, Perry? - perguntou.
- Descobre tudo o que puderes - disse Mason.
Drake esticou os dedos das mãos para confirmar todos os itens.
- Vejamos se não me esqueci de nada. Investigar a viúva e o Steve Watkins. Percorrer as lojas de animais de estimação e descobrir de onde saiu o papagaio mal-educado. Averiguar tudo o que for possível sobre a cabana nas montanhas e o que aconteceu por lá. Arranjar fotografias do interior e... E do exterior, também queres, Perry?
- Não, Paul - respondeu Mason. - Pego no carro e vou até lá dar uma vista de olhos. As únicas fotos que eu quero são as que foram tiradas quando a polícia encontrou o corpo.
- É para já - disse Drake, deslizando para fora da cadeira.
- E já agora - disse Mason, quando o detective ia a meio caminho da porta -, aqui fica mais uma questão. Se o assassino substituiu o papagaio por outro, que aconteceu ao Casanova?
- Macacos me mordam! - disse Drake, sorrindo. - Eu sei lá o que é que uma pessoa faz com um papagaio! Usa-o para rechear uma tarte ou espalha-o numa torrada?
- Não, põe-no numa gaiola e ouve-o falar.
- A sério?! - exclamou Drake, fingindo-se surpreendido. - Não me digas.
- Vê se metes nessa tua cabeça de alho chocho que eu não estou a brincar - ripostou Mason. - É exactamente isso que se faz com um papagaio e a pessoa que levou o Casanova talvez o tenha feito para ouvir alguma coisa que ele tivesse para dizer.
- Ora, aí está uma ideia plausível - disse Drake.
- Além do mais - continuou Mason -, o assassino é bem capaz de se ter mudado para uma nova zona. Averigua o aparecimento de novos papagaios nos bairros habitacionais.
- E como é que sugeres que eu averigue uma coisa dessas? - perguntou Drake. - Faço um recenseamento da população de pássaros, ou monto um bebedouro para aves no telhado e fico à espreita de papagaios? Meu Deus, Perry, tem dó! Como é que um homem pode descobrir um papagaio novo na cidade?
- Julgo - disse Mason - que vais chegar à conclusão de que não existem assim tantos papagaios. É um animal de estimação barulhento e não muito adequado a um apartamento. As pessoas que têm papagaios costumam viver nos subúrbios. Os papagaios são um transtorno para os vizinhos. Creio que há uma lista municipal de papagaios criados em apartamento. E penso que descobrirás qualquer coisa falando com as lojas de animais de estimação. Verifica a venda de gaiolas novas. Descobre se houve alguém interessado em saber como é que se trata e alimenta um papagaio. E já agora, Paul, lembra-te de que há uma loja aqui mesmo, no quarteirão. O Karl Helmold, o tipo que gere a loja, é meu cliente. Provavelmente tem listas comerciais que te indicarão os nomes das principais lojas de animais de estimação dos arredores, e poder-te-á dar muitas informações sobre papagaios. Destaca todos os detectives que puderes para este caso.
- Está bem - disse Drake. - Vou a caminho.
Mason fez um sinal a Della Street.
- Anda, Della. Vamos lá dar uma vista de olhos à cabana.
A estrada serpenteava pela encosta do comprido desfiladeiro, cheia de curvas e contracurvas como uma cobra a contorcer-se de dores. Pelo vidro do pára-brisas, Mason captava, de onde em onde, vislumbres das montanhas arroxeadas. Lá em baixo, um ribeiro estreitinho despenhava-se, espumoso, sobre rochedos de granito. Atrás do automóvel, a bruma de calor pesava sobre o vale como um cobertor gasoso, opressivo e reluzente.
O ar estava seco, àquela altitude, e impregnado do odor que se libertava das agulhas dos pinheiros. Também estava quente, mas era um calor seco e balsâmico, agradável de respirar. Lá no alto, o céu do Sul da Califórnia era tão azul que quase parecia negro, em contraste com o sol intenso que incidia nas arestas de granito, onde não havia terra suficiente para crescerem árvores.
Chegaram a uma viragem na estrada, à sombra, de onde se via um riacho que corria para uma lagoa natural e, depois, transbordava para um canal e ia cair num ribeiro, que desaparecia no espesso negrume da vegetação densa.
Mason parou o carro e disse:
- Vamos deixar o motor arrefecer e beber um gole de água das montanhas... Oh, vem aí um carro da polícia.
Apontou para a encosta da montanha, para um troço da estrada que se via praticamente na vertical abaixo deles. Um automóvel subia penosamente a longa e sinuosa estrada, com uma sirena vermelha e luminosa da polícia a reluzir no canto superior direito do pára-brisas.
- Tentamos antecipar-nos a eles? - perguntou Della Street.
Mason, esticando as compridas pernas, inspirou várias golfadas de ar seco da montanha e disse:
- Não. Vamos esperar e segui-los. Assim, poupamos tempo à procura da cabana.
Beberam a água fresca, debruçando-se sobre uma rocha para encostarem a boca à superfície límpida da lagoa. Aos poucos, sobrepondo-se ao som do vento a suspirar por entre os eloquentes pinheiros, ouviram as engrenagens de um motor, com a caixa de velocidades a gemer por causa da subida íngreme.
Quando o carro deu a curva, Mason disse:
- Penso que é o nosso velho amigo, o sargento Holcomb, da polícia... Ora, porque haveria ele de se interessar por um caso de homicídio que ocorreu fora da cidade...? Ele vai parar.
O carro guinou abruptamente para fora da auto-estrada asfaltada e deteve-se no espaço de estacionamento arborizado à beira da estrada. A primeira pessoa a sair do automóvel foi um indivíduo corpulento, com um chapéu Stetson preto de aba larga. A ele seguiu-se, instantes depois, o sargento Holcomb da Polícia Metropolitana.
Holcomb dirigiu-se agressivamente para Mason.
- Que diabos está você a fazer aqui? - perguntou.
- É estranho, sargento - respondeu Mason -, mas estava a pensar exactamente a mesma coisa sobre si.
- Estou a dar uma ajuda ao xerife Barnes - disse o sargento Holcomb.
- Ele telefonou-me a pedir apoio e a polícia cedeu os meus serviços ao gabinete dele. Apresento-lhe Perry Mason, xerife.
O xerife, um homem corpulento de cinquenta e muitos anos, que se movia com uma eficiência lenta, esticou uma mão bronzeada que tragou os dedos de Mason. Mason apresentou Della Street e, em seguida, mostrou a carta que Charles Sabin lhe dera. O xerife ficou impressionado.
O sargento Holcomb tirou os olhos da carta e fitou Mason. Tinha uma expressão de desconfiança no rosto e na voz, quando disse:
- O Sabin contratou-o?
- Sim.
- E deu-lhe esta carta?
- Sim.
- O que é que ele quer de si, ao certo?
- Quer que eu colabore com a polícia.
O riso do sargento Holcomb foi sarcástico.
- Essa é a melhor piada que já ouvi nos últimos vinte anos. O Perry Mason a colaborar com a polícia! Você colabora com a polícia da mesma maneira que os republicanos colaboram com os democratas.
Mason virou-se para o xerife.
- O facto de um advogado defender arguidos inocentes não significa que ele se oponha às autoridades - disse baixinho.
- O tanas! - exclamou o sargento Holcomb. - Você sempre foi contra a polícia.
- Pelo contrário - respondeu Mason -, já vos ajudei a resolver bastantes casos de homicídio.
- O que você faz é arranjar maneira de ilibar os seus clientes - disse o sargento Holcomb.
- Exactamente - concordou Mason. - Por acaso a polícia estava a tentar condenar pessoas inocentes e coube-me a mim provar que os meus clientes eram inocentes, encontrando os verdadeiros assassinos.
O sargento Holcomb corou, deu um passo em frente e abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas o xerife Barnes deteve-o, interpondo um ombro de maneira aparentemente casual.
- Ouçam, meus senhores - disse -, não há motivo nenhum para discussões. Eu sou o xerife deste condado. Este caso é um bocado complicado de mais para mim. Não tenho meios suficientes para o investigar como gostaria, por isso pedi à polícia metropolitana para me ceder um homem que me pudesse ajudar com as impressões digitais e fizesse algumas sugestões. No que me toca, agradeço toda a ajuda que me puderem dar e estou-me nas tintas de onde ela vem. Já li notícias nos jornais sobre alguns dos processos do Perry Mason. A meu ver, quando um advogado prova que o seu cliente é inocente, mostrando que o culpado pelo crime é outra pessoa, está a fazer um bem à sociedade e a polícia não tem nada que o criticar.
- Bom - disse o sargento Holcomb ao xerife -, o problema é seu. Os métodos que ele usa até deixam uma pessoa com os cabelos brancos.
O xerife Barnes puxou o chapéu para trás e passou os dedos pelos cabelos suados.
- Cabelos brancos já eu tenho - ripostou. - Então, Mason, vem lá acima?
- Eu sigo-vos - respondeu Mason. - Conhecem o caminho?
- Claro, ontem estive lá em cima praticamente o dia todo.
- Mexeram em muita coisa? - quis saber Mason.
- Em absolutamente nada. Retirámos o corpo e deitámos fora uns peixes que já estavam podres. Claro está que também levámos o papagaio. À parte isso, não tocámos em nada, a não ser para procurarmos impressões digitais.
- Encontraram algumas? - perguntou Mason.
- Bastantes - admitiu o xerife, mas sem se comprometer. Abruptamente, o sargento Holcomb disse:
- Bom, xerife, vamos lá. O Mason pode vir atrás de nós.
A estrada atravessava uma crista e desembocava num planalto. Aqui e ali, havia pequenas clareiras, com cabanas aninhadas contra o pano de fundo das árvores. Lá no cimo, na ponta do planalto, quando estavam a umas dezenas de metros do ribeiro que se despenhava montanha abaixo, pelo desfiladeiro, o xerife Barnes fez bruscamente um sinal para virarem à direita. Meteu por um caminho de terra batida, coberto de agulhas de pinheiro, que ia dar à cabana. Esta fundia-se de tal maneira no arvoredo que parecia ser obra da natureza e não de mãos humanas.
- Vê-me só a cabana, Della! - exclamou Mason. - Realmente, o cenário é maravilhoso!
Um gaio-azul, incomodado com a intrusão, lançou-se do cimo de um dos pinheiros, soltando gritos roucos.
Mason estacionou o carro na zona arborizada nas traseiras da casa. O xerife Barnes foi ter com ele e disse:
- Peço-lhe para ter cuidado e não tocar em nada, Mr. Mason, e penso que seria melhor a Miss Street esperar aqui fora.
Mason fez um sinal de assentimento.
Um homem alto e esguio, que se movia com a elegância de alguém habituado a calcorrear as montanhas, emergiu das sombras e cumprimentou o xerife, dando um toque na aba do seu chapéu um tanto ou quanto amassado.
- Não há nada de novo, xerife - disse.
O xerife Barnes tirou uma chave do bolso, abriu o cadeado da porta e apresentou o indivíduo:
- Este é o Fred Waner. Vive aqui em cima. Pedi-lhe para guardar a cabana.
O xerife abriu a porta.
- Agora, vamos tentar não andar de um lado para o outro, só o estritamente necessário. Você sabe o que fazer, sargento.
Mason deu uma vista de olhos à cabana, com a sua grande lareira, mesa simples de pinho, vigas de madeira talhadas à mão. Uma cama cuidadosamente feita com lençóis alvos contrastava profundamente com o chão coberto de sementes. A um canto, estavam umas galochas sujas de lama, inertes; por cima delas, uma cana de pesca.
O sargento Holcomb disse:
- O meu conselho, xerife, é que deixe o Mr. Mason dar uma vista de olhos sem tocar em nada e que, depois, ele se vá embora. Enquanto ele aqui estiver, nós não podemos fazer nada.
- Porquê? - perguntou o xerife. O sargento corou.
- Por vários motivos. Um deles é que, antes que você tenha tempo de acabar o seu trabalho aqui dentro, já este homem vai estar na ofensiva. Vai virar-se contra si e tentar destruir o processo que você tiver construído contra o assassino. Quanto mais lhe mostrar os seus métodos, mais ele terá oportunidade de dar cabo de si no banco das testemunhas.
- Não tem mal - retorquiu o xerife Barnes teimosamente. - Se alguém vai ser enforcado por homicídio com base nas minhas conclusões, quero que as provas do meu processo sejam absolutamente indestrutíveis.
- Gostava de ver o que me puder mostrar - disse Mason ao xerife. Depreendo que essas marcas de giz representem o lugar onde o corpo foi encontrado.
- Sim, é isso mesmo. A arma foi encontrada ali, a cerca de três metros de distância, onde foi assinalada com giz.
- É possível que o Mr. Sabin se tenha suicidado? - perguntou Mason.
- É completamente impossível, segundo o testemunho dos médicos. Além disso, a arma foi limpa para eliminar as impressões digitais. O Sabin não tinha luvas calçadas. Se se tivesse suicidado, teria deixado impressões na arma.
Mason, franzindo a testa pensativamente, disse:
- Então, o assassino nem sequer queria que parecesse um suicídio.
- Como assim? - perguntou o xerife.
- Podia facilmente ter colocado a arma mais perto do corpo. Podia ter limpado as suas próprias impressões digitais e depois colocado a arma na mão do morto.
- Tem lógica - concordou o xerife.
- E - continuou Mason - o assassino devia querer que a polícia encontrasse a arma.
- Tretas - disse o sargento Holcomb. - O assassino não queria simplesmente que a polícia encontrasse a arma na sua posse. É o que faz qualquer assassino que seja esperto. Cometido o crime, larga logo a arma. Nem sequer a guarda até arranjar um lugar para a esconder. A arma pode levar um criminoso à forca. Eles disparam-na e largam-na.
- Muito bem - disse Mason, sorrindo -, como quiser. Eles disparam-na e largam-na. Que mais, xerife?
- A gaiola do papagaio estava aqui no chão - disse o xerife - e a porta estava aberta e presa com um graveto para o papagaio poder sair quando lhe apetecesse.
- Ou entrar, se tivesse saído? - perguntou Mason.
- Bom, sim. É uma ideia.
- E há quanto tempo acha que o papagaio estava sem comida e sem água, xerife?
- Ele tinha comida de sobra. A água é que acabou por secar na panela. Está a ver aquela panela ali ao fundo? Bom, tudo indica que foi ali posta cheia de água, mas que a água secou... a que o papagaio não leve tempo de beber. Dá para ver pontinhos de ferrugem no fundo, que mostram o sítio onde as últimas gotas se evaporaram.
- Nesse caso, o corpo - deduziu Mason - já aqui devia estar há algum tempo, antes de ser descoberto.
- O homicídio - declarou o xerife Barnes - ocorreu algures na terça-feira, 6 de Setembro. Provavelmente teve lugar por volta das onze horas da manhã.
- Como é que chegou a essa conclusão? - perguntou Mason. - Ou prefere não me contar?
- Não, não tem mal nenhum - disse o xerife. - A temporada de pesca neste distrito foi inaugurada no dia 6 de Setembro. A Comissão de Caça e Pesca queria ter uma zona destinada à pesca de Outono que ainda não estivesse esgotada, por isso escolheu alguns ribeiros que manteve fechados até mais para o fim da temporada. Este foi um dos últimos. A temporada, aqui, começou no dia 6.
«Ora, o Sabin era um tipo peculiar. Tinha a mania de frequentar determinados lugares e de fazer determinadas coisas, e nós ainda não descobrimos tudo. Só temos conhecimento de alguns dos seus hábitos. Ele tinha uma roulotte e andava pelos parques de campismo, onde parava para dar dois dedos de conversa às pessoas, para saber o que se passava no mundo. Às vezes, pegava numas roupas velhas e coçadas, e ia correr as bibliotecas durante uma semana ou duas...»
- Sim, li isso no jornal - interrompeu Mason.
- Bom - prosseguiu o xerife -, ele disse ao filho e ao Richard Waid, o secretário, que iria a casa na segunda-feira, dia 5, buscar o seu equipamento de pesca. Tinha-se ausentado numa pequena viagem. Eles não sabem ao certo para onde fora, mas ele surpreendeu-os, aparecendo em casa na sexta-feira, dia 2. Pegou na cana de pesca, no papagaio, e veio para aqui. Parece que estava a fechar um negócio qualquer muito importante, em Nova Iorque, e tinha dito ao secretário para alugar um avião e preparar-se para ir para a Costa Leste, assim que ele dissesse. O secretário esperou por ele no aeroporto a tarde toda de segunda-feira. Tinha um avião a postos para descolar. Por volta das dez da noite, no dia 5, o secretário recebeu finalmente a chamada. Disse que o Sabin parecia muito bem-disposto, que explicou que tinha corrido tudo bem e que o Waid podia meter-se no avião e ir imediatamente para Nova Iorque.
- O Sabin ligou aqui da cabana? - perguntou Mason.
- Não. Disse ao Waid que o telefone daqui não estava a funcionar e que, por isso, tivera de telefonar de uma cabina pública. Não disse onde e o Waid não se lembrou de lhe perguntar. Claro que, na altura, isso não lhe pareceu particularmente importante. O Waid estava com pressa de partir para Nova Iorque.
- Você falou com o Waid? - perguntou Mason.
- Através de uma chamada interurbana - disse o xerife. - Ele ainda estava em Nova Iorque.
- Ele disse-lhe de que tipo de negócio se tratava?
- Não, disse que era uma coisa importante e extremamente confidencial, e recusou-se a acrescentar fosse o que fosse.
- Depreendo que o Waid tinha alugado um avião? - perguntou Mason. O xerife sorriu e disse:
- Parece que o Waid arrepiou caminho, quanto a isso. O Steve Watkins, o filho da mulher de Sabin, fruto de um casamento anterior, é um aviador e pêras. Tem um avião veloz e gosta de percorrer o país. Penso que o Fremont Sabin não gostava particularmente do Steve e teria ficado aborrecido se soubesse que o Waid tencionava voar até Nova Iorque com o Steve; mas o Steve queria fazer a viagem e precisava de dinheiro, por isso o Waid tratou de lhe pagar o preço do aluguer de um avião e o Steve Watkins levou-o.
- A que horas partiram?
- Às dez e dez da noite de segunda-feira, dia 5 - explicou o xerife. - Para que não houvesse dúvidas, confirmei junto do aeroporto.
- E a que horas é que o Sabin telefonou ao Waid?
- O Waid diz que cerca de dez minutos antes de descolar. Pensa que seriam umas dez horas.
- Ele reconheceu a voz do Sabin? - perguntou Mason.
- Sim, e disse que o Sabin parecia muito satisfeito, por algum motivo. Contou ao Waid que tinha fechado o negócio e mandou-o pôr-se imediatamente a caminho de Nova Iorque. Explicou que tinha havido uma pequena demora, porque o telefone daqui estava avariado e ele tivera de ir de carro até uma cabina pública, mas disse que voltava logo a seguir para cá e que ficaria aqui durante uns dois ou três dias. Se o Waid tivesse algum problema, que lhe telefonasse.
- E o Waid não telefonou?
- Não, porque correu tudo às mil maravilhas e o Sabin tinha-lhe dito para lhe telefonar só se houvesse algum problema.
- Bom, então vejamos - disse Mason, pensativo. - Ele estava vivo às dez horas da noite de segunda-feira, 5 de Setembro. Mais alguém o viu ou falou com ele depois disso?
- Não - disse o xerife. - Essa é a última indicação que nós temos de que ele estava vivo. A partir daí, somos obrigados a fazer deduções. A temporada de pesca abriu na terça-feira, 6 de Setembro. Ali ao fundo, está um despertador que ficou sem corda. O relógio parou nas duas e quarenta e sete. O despertador estava marcado para as cinco e meia.
- O despertador também ficou sem corda? - perguntou Mason.
- Hum-hum.
O toque do telefone quebrou o silêncio. O xerife pediu licença e pegou no auscultador. Ouviu o que lhe diziam do outro lado durante uns instantes e, depois, disse:
- Está certo, não desligue - e virou-se para Mason. - É para si - anunciou.
Mason agarrou no auscultador e ouviu a voz de Paul Drake do outro lado do fio.
- Olá, Perry. Decidi arriscar e ligar-te para aí. Podes falar à vontade?
- Não - disse Mason.
- Mas podes ouvir?
- Sim. Diz. O que é que se passa?
- Acho que encontrei o teu assassino... ou, pelo menos, tenho uma pista sobre o papagaio mal-educado e uma bela descrição do homem que o comprou.
- Onde?
- Em San Molinas.
- Continua - disse Mason.
- Um homem chamado Arthur Gibbs tem uma loja de animais de estimação em San Molinas, que dá pelo nome de Loja de Animais Quinta Avenida. Na sexta-feira, dia 2, um indivíduo com ar manhoso entrou na loja para comprar um papagaio à pressa. O Gibbs lembra-se disso, porque o homem parecia estar-se nas tintas para o papagaio, a não ser quanto ao aspecto dele. O Gibbs vendeu-lhe um papagaio mal-educado. Ele acha que o homem não sabia que o bicho tinha a mania de praguejar... penso que é melhor falares com ele, Mason.
- Mais algum pormenor? - perguntou Mason.
- Tenho uma óptima descrição.
- Coincide com alguém conhecido? - inquiriu Mason.
- Não, tanto quanto eu saiba - respondeu Drake. - Olha, Perry, vamos fazer o seguinte. Eu vou para o Hotel Plaza e espero por ti no átrio. Tu vais lá ter assim que puderes. Se passar das cinco e meia, peço ao Gibbs para esperar.
- Óptimo - disse Mason e desligou o telefone, deparando-se em seguida com o olhar frio e desconfiado do sargento Holcomb.
Aparentemente sem ter reparado na interrupção, o xerife Barnes disse:
- Quando arrombámos a porta, encontrámos um cesto de verga com peixe. Pusemos tudo num contentor estanque e enviámo-lo para o laboratório da polícia, na cidade. Disseram que o cesto continha peixes que tinham sido amanhados e embrulhados em folhas, mas faltava lavá-los uma última vez. Encontrámos o resto do pequeno-almoço do Sabin: dois ovos e umas fatias de bacon. Encontrámos o resto do almoço: feijão enlatado. O corpo estava de pantufas, calças largas e uma camisola fininha. O casaco de cabedal que ali está encontrava-se nas costas da cadeira. Essas botas que aí estão, sujas de lama, eram as botas de pesca dele. E a cana e os iscos em cima da mesa estão exactamente como o Sabin os deixou, quando voltou para cá.
«Ora, eu deduzo que ele foi assassinado por volta das onze horas da manhã de terça-feira, dia 6. Quer saber como é que deduzi isto?»
- Quero e muito - disse Mason.
O sargento Holcomb girou sobre os calcanhares e afastou-se, mostrando silenciosamente o seu desagrado.
O xerife Barnes explicou:
- Bom, eu não tenho muita experiência no que toca a homicídios, mas sei fazer deduções. Estive no Departamento de Florestas e trabalhei com gado, por isso consigo decifrar pistas num trilho. Não sei se o mesmo tipo de raciocínio funciona para um caso de homicídio, mas não vejo porque não. Seja como for, a minha teoria é a seguinte. O Sabin levantou-se às cinco e meia, porque foi a essa hora que o despertador tocou. Comeu ovos e bacon ao pequeno-almoço e, depois, foi pescar. Apanhou o limite máximo de peixe permitido pela lei e voltou para cá, cansado e com fome. Nem se deu ao trabalho de lavar o peixe e de o guardar na geleira. Tirou as botas, enfiou o cesto de peixe ali, foi à cozinha e cozinhou feijão enlatado. Havia café na cafeteira, provavelmente um resto do pequeno-almoço. Ele aqueceu-o.
«A próxima coisa que ele teria feito seria lavar o peixe e guardá-lo na geleira. Ele foi assassinado logo a seguir ao almoço, antes que pudesse fazer isso. Eu digo que deviam ser umas onze horas.»
- Porquê onze horas e não mais tarde? - perguntou Mason.
- Ah, sim - disse o xerife -, esqueci-me desse pormenor. O sol incide na cabana por volta das dez e meia, onze horas, e começa a aquecer. Às quatro da tarde, deixa de bater na cabana e a casa arrefece imediatamente. Durante o dia, está quente. À noite, fria. Por isso, depreendi que o Sabin foi assassinado depois de a cabana ter aquecido e antes de ter arrefecido, mas não no auge do dia, quando está muito quente. Se estivesse muito fria, ele estaria de casaco vestido e teria acendido a lareira. Como vê, tudo bate certo. Se estivesse muito quente, ele não estaria de camisola.
- Bela dedução - disse Mason, aprovador. - Fez alguma experiência para descobrir quanto tempo é que o relógio-despertador demora a ficar sem corda?
- Enviei um telegrama para a fábrica - disse o xerife. - Eles dizem que entre trinta e trinta e seis horas, dependendo do estado do despertador e de quanto tempo foi usado.
«Mais uma coisa, Mr. Mason. A pessoa que matou o Sabin tinha bom coração, era alguém atencioso, pelo menos é o que me parece.»
Puxou o chapéu para trás e coçou os cabelos grossos na zona atrás das orelhas, num gesto característico seu.
- Ora, poderá achar estranho uma pessoa dizer isso de um assassino, mas, ainda assim, é o que eu penso. Este homem tinha qualquer coisa contra o Sabin. Quis matá-lo, mas não quis matar o papagaio. Deduziu que o corpo do Sabin ia demorar algum tempo a ser encontrado e fez as coisas de maneira a que o papagaio não morresse à fome nesse intervalo.
«Isso leva-nos a crer que o assassino tinha algum motivo muito forte para querer eliminar o Sabin. Não se tratou de um roubo, nem de mera maldade, porque o assassino mostrou que tinha bom coração... se é que me entende.»
- Penso que sim - disse Mason, com um sorriso. - E muito obrigado, xerife. Não vou incomodá-lo mais tempo, a si e ao sargento Holcomb. Creio que percebi a situação. Vou dar umas voltas pelo exterior da cabana e dar-lhe uma última vista de olhos. Agradeço muito a sua delicadeza e...
Calou-se quando alguém bateu à porta da cabana.
O xerife Barnes abriu a porta. Um jovem de trinta e poucos anos, louro, de aspecto sério, espreitou para o interior com uns olhos de coruja por detrás de uns óculos de aros grossos.
- Xerife Barnes? - disse.
- Você é o Waid? - perguntou o xerife.
- Sou.
O xerife Barnes cumprimentou-o com um aperto de mão.
- Este é o sargento Holcomb - apresentou - e o Mr. Mason.
Waid deu um aperto de mão a cada um deles.
- Segui as suas ordens à risca, xerife - anunciou. - Saí do avião em Las Vegas. Viajei sob um nome falso. Fugi dos jornalistas todos e...
- Espere um instante - interrompeu o sargento Holcomb. - Não diga mais nada, Waid. O Mr. Mason é advogado, não é um agente da lei. E ele está de saída.
Waid virou-se subitamente para Perry Mason, com os olhos arregalados.
- O senhor é Perry Mason, o advogado - disse. - As minhas desculpas por não ter reconhecido imediatamente o seu nome. Já li várias notícias sobre os seus processos, Mr. Mason. Interessou-me particularmente aquele em que o senhor ilibou...
- O Mason está de saída - interrompeu o sargento Holcomb - e preferíamos que não falasse com ninguém, Waid, antes de nos contar a sua história.
Waid remeteu-se ao silêncio, com um sorriso divertido a tremeluzir-lhe aos cantos da boca.
- Falarei consigo noutra altura, Waid - disse Mason. - Sou o representante legal de Charles Sabin. Ele, sabe que você está aqui?
O sargento Holcomb deu um passo resoluto em frente.
- Chega - disse ele. - A porta da rua é serventia da casa, Mason. Não se demore mais por nossa causa.
- Não se preocupe - sossegou-o o advogado, com um sorriso. - O ambiente aqui dentro está demasiado abafado para o meu gosto... não acha, sargento?
A resposta do sargento Holcomb foi bater com a porta, quando Mason saiu da cabana, sob o brilho intenso do sol nas montanhas.
Della Street estava sentada no estribo do automóvel, a travar amizade com meia dúzia de esquilos. Os animaizinhos aproximavam-se quase das pontas dos dedos dela e depois fugiam em direcção à relativa segurança de um tronco de pinheiro caído, onde se punham a pairar e em seguida voltavam a correr para ela, parando a uns escassos centímetros de distância. No cimo do pinheiro sobranceiro a Della, um gaio-azul, aparentemente convencido de que ela estava a dar de comer aos esquilos, esvoaçava, nervoso, de ramo em ramo, descendo cada vez mais, de cabeça inclinada para um lado e depois para o outro, emitindo uns guinchos guturais de protesto por ser excluído do festim - um estranho misto de impudência e desafio.
- Olá, chefe - disse ela. - Quem é o rapaz que acabou de chegar?
- O Richard Waid, o secretário - respondeu Mason. - Ele tem uma coisa para lhes dizer. Foi por isso que vieram para aqui, para a cabana. Queriam encontrar-se com o Waid num sítio onde não houvesse jornalistas... E o Paul Drake telefonou a dizer que descobriu uma pista quente em San Molinas.
- Então, e o Waid? - perguntou ela. - Vamos ficar à espera, a ver se ele fala, chefe?
- Não. Vamos já para San Molinas. O sargento Holcomb vai avisar o Waid para não me contar nada do que sabe, mas mais tarde o Charles Sabin conseguirá arrancar-lhe o que se passa e, nessa altura, saberemos os pormenores todos. Anda, despede-te dos teus amiguinhos e vamos embora.
Mason instalou-se ao volante, ligou o carro e desceu lentamente o caminho que ia da cabana até à estrada principal. Por duas ou três vezes, parou para olhar para os ramos do pinheiro.
- Aquele gaio-azul - disse ele, rindo-se - vem atrás de nós. Quem me dera ter qualquer coisa para lhe dar de comer.
- Temos um saco com torrão de amendoim, no porta-luvas - disse Della Street. - Podes dar-lhe um bocado.
- Vamos experimentar - disse Mason.
O advogado abriu o porta-luvas e Della tirou um saco de papel.
- Tens aqui alguns pedacinhos no fundo do saco - disse ela, e deitou-os na mão de Mason, em concha.
Ele pôs-se de pé no estribo do carro e ergueu as mãos acima da cabeça para que o gaio-azul conseguisse ver o torrão de amendoim. O pássaro esvoaçou ruidosamente de ramo em ramo, desceu até ficar quase à altura do ombro de Mason e, depois, assustado com a sua própria ousadia, subiu na vertical com um guincho espavorido. Repetiu a manobra duas vezes. À terceira, empoleirou-se nas mãos de Mason o tempo suficiente para apanhar um bocado de torrão com o bico, antes de saltar e voltar para os ramos da árvore.
Rindo-se, Mason disse:
- Meu Deus, Della, acho que é isto que eu quero fazer, quando estiver pronto para me reformar. Deve ser tão agradável ter uma cabana aqui, onde se pode fazer amizade com...
- O que se passa, chefe? - perguntou ela, ao ver que ele se calava de repente.
Sem lhe responder, Mason dirigiu-se para o pinheiro onde o gaio-azul estava empoleirado. O pássaro, pensando que estava a ser perseguido, voou para o negro refúgio da floresta e o seu grito gutural e espavorido deu lugar a um coro de vituperaçòes mais roucas e contínuas contra o homem que traíra a sua confiança. Della Street deslizou ao longo do banco do automóvel, com os pés apontados para a porta, deu impulso com a mão no volante e aterrou no chão, mostrando um vislumbre das suas belas pernas. Correu para o lugar onde Mason estava parado.
- Que foi, chefe?
Pausadamente, Mason disse:
- Aquele fio, Della.
- O que é que tem...? Não estou a ver nenhum... Ah, sim... Bom, o que é, chefe?
- Não sei - disse Mason. - Não é uma antena e percebe-se que foi escondido. O fio passa ao longo daquele ramo e vê-se que foi colado com fita adesiva à parte de cima. Depois, vai dar ao tronco da árvore, atravessa o tronco e passa para aquele outro ramo, sobe por ele acima, passa para esta árvore, depois percorre aqueles ramos... Leva o carro lá para fora e estaciona-o à beira da auto-estrada, Della. Vou dar uma vista de olhos.
- O que achas que é, chefe?
- Parece - disse ele - que alguém pôs o telefone do Fremont Sabin sob escuta.
- Meu Deus, chefe! - exclamou ela. - Mas que coisa!
Perry Mason fez um gesto de concordância, mas não disse nada. Começou a andar sob a copa das árvores, seguindo o fio tão engenhosamente escondido que praticamente só um observador muito atento o veria.
Della Street estacionou o automóvel na berma da auto-estrada, trepou uma vedação e fez um atalho por entre o arvoredo para ir ao encontro de Mason. A uma centena de metros, uma cabana em madeira bruta passava tão despercebida entre os pinheiros que parecia fazer parte da paisagem, como os rochedos em redor.
- Penso que é aquilo que nos interessa - disse Mason -, mas vamos seguir o fio e logo veremos.
- O que fazemos quando lá chegarmos? - perguntou ela.
- Depende - respondeu Mason. - É melhor ficares para trás, Della, para poderes ir buscar o xerife, se as coisas derem para o torto.
- Deixa-me ficar contigo, chefe - implorou ela.
- Não - disse ele. - Fica aqui. Se ouvires alvoroço, corre a sete pés para a cabana do Sabin e chama o xerife.
Mason seguiu o fio até ao sítio onde este saía abruptamente do esconderijo das árvores e se enrolava à volta de uns canos isoladores, por cima das caleiras da cabana em bruto. Nesse ponto, tinha sido colocado de maneira a parecer a antena de um rádio. Mason deu duas voltas à cabana, tentando manter-se o máximo possível sob o abrigo das densas sombras.
Della Street, observando-o ansiosamente a cerca de cinquenta metros de distância, avançou lentamente em direcção a ele.
- Está tudo bem - disse-lhe ele bem alto. - Vamos avisar o xerife.
Aproximou-se dela e, juntos, voltaram para a cabana, onde Fred Waner apareceu de repente, vindo do nada, para lhes barrar a passagem.
- Preciso de falar novamente com o xerife - disse Mason.
- Está bem. Esperem aqui. Vou avisar o xerife de que aqui estão.
Waner dirigiu-se para a porta da cabana e chamou o xerife. Instantes depois, o xerife Barnes saiu para ver o que ele queria. Ao deparar-se com Mason. o seu rosto turvou-se de desconfiança.
- Pensava que se tinha ido embora - disse, aborrecido.
- E fui - respondeu Mason -, mas voltei para trás. Se não se importar de vir até aqui, xerife, penso que tenho uma coisa importante para lhe mostrar.
O sargento Holcomb veio à porta da cabana e postou-se mesmo atrás do xerife.
- O que se passa? - perguntou.
- Quero mostrar uma coisa ao xerife - respondeu Mason. Irritado, o sargento Holcomb ripostou:
- Se isto é uma artimanha para nos distrair, Mason, eu...
- Estou-me nas tintas para si - interrompeu Mason. - Estou a falar com o xerife e não consigo!
Virando-se para Waner, o sargento disse:
- Waner, fique aqui com o Mr. Waid. Não o deixe ir embora. Não deixe ninguém falar com ele. Não o deixe mexer em nada. Percebeu?
Waner assentiu com a cabeça.
- Pode contar com a minha ajuda, sargento - disse Waid, num tom frio e formal. - No fim de contas, não sou um criminoso. Estou a tentar ajudá-lo.
- Eu sei - disse Holcomb -, mas sempre que o Perry Mason...
- O que tem para nos mostrar, Mason? - interrompeu o xerife Barnes.
- Venha por aqui, por favor - disse Mason.
Abriu caminho pela estrada abaixo, até ao sítio onde o fio eléctrico fora ligado à linha telefónica. O sargento Holcomb e o xerife seguiram-no a uma curta distância.
- Estão a ver aquilo? - perguntou o advogado, apontando para cima.
- O quê? - perguntou o xerife.
- Aquele fio.
- É uma linha telefónica - resmungou o sargento Holcomb. - Que raio pensou que era, Mason?
- Não estou a falar desse fio - disse Mason. - Estou a falar do outro que está ligado a ele. Estão a ver que atravessa aquele pinheiro ali, por entre as agulhas e...
- Meu Deus, tem toda a razão! - exclamou o xerife. - Está ali um fio!
- Muito bem - disse Mason -, agora que estão a ver o sítio onde surge o fio. eu vou mostrar-lhes aonde ele vai ter - e conduziu-os até a um lugar de onde podia apontar para a cabana de madeira em bruto, escondida no arvoredo.
O sargento Holcomb perguntou, desconfiado:
- Como é que reparou no fio, Mason?
- Estava a dar de comer a um gaio-azul - explicou Mason. - Ele tirou um pedaço de torrão de amendoim da minha mão, depois saltou para aquela árvore e sentou-se no ramo onde passa o fio.
- Estou a ver - disse Holcomb, num tom que denotava total descrença -, e por mero acaso viu o fio, enquanto estava parado debaixo da árvore a olhar para o gaio-azul a que acabara de dar um pedaço de torrão. Foi isso que aconteceu?
- Exactamente.
- Queria ter a certeza de que o bicho não se engasgava com o torrão?
- Não, queria dar-lhe mais um pedaço - explicou Mason pacientemente. - Queria que ele descesse da árvore e viesse comê-lo da minha mão.
O sargento Holcomb virou-se para o xerife Barnes:
- Não sei que jogada é a dele, mas se o Perry Mason anda pela estrada fora a dar de comer a gaios-azuis, pode apostar que traz água no bico. Ele sabia perfeitamente que aquele fio ali estava, à partida, caso contrário, nunca o teria visto.
O xerife Barnes olhou soturnamente para a cabana.
- Afastem-se - disse, como se não tivesse prestado a menor atenção à conversa deles. - Vou entrar na cabana, sargento, se ouvir algum disparo, conto consigo para me proteger.
Calma e silenciosamente, o xerife aproximou-se da cabana, bateu vigorosamente à porta com os nós dos dedos, depois baixou o ombro e atirou o peso do seu corpo contra a porta. À terceira investida, a porta cedeu e escancarou-se para trás. O xerife Barnes deu um passo em direcção à penumbra que reinava no interior e apercebeu-se de que Perry Mason estava mesmo atrás de si e o sargento Holcomb atrás de Mason, de arma em punho.
- Está tudo bem - disse o xerife -, a cabana está vazia... Você, Mason, não devia ter arriscado tanto.
Mason não respondeu. Estava a olhar fixamente, de sobrolho franzido, para a parafernália que se encontrava no interior da cabana. O que parecia uma mala aberta era um rádio. O transmissor fora instalado de tal maneira dentro do estojo que, fechado, era impossível distingui-lo de uma mala normal. Tinha uns auscultadores, uns complexos aparelhos de gravação, um lápis e um maço de folhas. Um cigarro meio fumado estava na beira da mesa de pinho. O cigarro, aparentemente esquecido, queimara a madeira do tampo. Uma fina camada de pó depositara-se sobre a mesa e tudo o mais que havia naquele espaço.
- Parece-me óbvio - constatou o xerife - que há uns tempos que ninguém aqui entra. Mas, quando a pessoa se foi embora, fê-lo à pressa. Até se esqueceu do cigarro.
- Como é que sabia da existência disto? - perguntou o sargento Holcomb a Perry Mason, numa voz dura e acusadora.
Mason encolheu os ombros e virou costas.
O xerife Barnes deteve-o, quando ele fez menção de sair da cabana.
- Espere um instante, Mason - disse, num tom baixo que, não obstante, estava carregado de autoridade.
Mason deteve-se.
- Sabia que esta linha tinha sido posta sob escuta, Mason?
- Sinceramente, xerife, não.
- Como é que a descobriu?
- Como lhe expliquei há pouco.
O xerife Barnes continuou com uma expressão de dúvida. O sargento Holcomb nem tentou disfarçar o cepticismo e o desprezo que tinha estampados no rosto.
- Sabia - perguntou o xerife Barnes - que o Fremont C. Sabin estava
por detrás de uma tentativa de denúncia de jogo e corrupção organizada no seio da Polícia Metropolitana?
- Claro que não! - exclamou Mason.
O sargento Holcomb, com o rosto vermelho como um pimento, disse:
- Eu não lhe dei essa informação para o senhor a espalhar aos sete ventos, xerife.
Sem tirar os olhos de Mason, o xerife respondeu:
- Não estou a espalhá-la aos sete ventos. Você provavelmente leu a notícia, Mason, sobre umas informações confidenciais que o Supremo Tribunal tem andado a receber, informações que desencadearam um inquérito oficial contra algumas pessoas de destaque no mundo da política?
- Ouvi uns zunzuns sobre isso - admitiu Mason, à cautela.
- E sabia que por detrás dessa campanha se encontrava um cidadão particular?
- Ouvi uns rumores nesse sentido, sim.
- Fazia ideia de que essa pessoa era o Fremont C. Sabin?
- Xerife - disse Mason -, garanto-lhe que não fazia a mínima ideia de quem essa pessoa era.
- Então, é tudo - concluiu o xerife Barnes. - Só queria ter a certeza, Mason.
- Obrigado - respondeu o advogado, e foi-se embora, deixando-os sozinhos na cabana.
Paul Drake estava à espera de Mason no átrio do Hotel Plaza, em San Molinas. Consultou o relógio e disse:
- Vens atrasado, Perry, mas o Gibbs está à nossa espera.
- Antes de lá irmos, Paul, houve mais alguém que tenha tentado entrar em contacto com o Gibbs?
- Penso que não. Porquê?
- Sabes se houve?
- Não, não sei. Estive na loja até há cerca de uma hora e depois vim para aqui esperar por ti. Há uma hora que estou à espera que tu apareças de carro.
- Atrasei-me, porque descobri que a linha telefónica do Sabin estava sob escuta.
- Sob escuta?
- Sim. A linha telefónica que ia dar à cabana. É provável que o centro de escuta não seja usado há uns tempos. Por outro lado, alguém pode ter ouvido a nossa conversa. E mais uma coisa: o Sabin é a pessoa que tem andado a patrocinar a comissão de cidadãos que anda a investigar casos de corrupção e a transmitir informações ao Supremo Tribunal.
Drake soltou um assobio.
- Se assim é - disse -, podemos contar entre cem e cento e cinquenta pessoas capazes de o terem assassinado sem sequer pensar duas vezes.
- Bom, isso cabe à polícia investigar. É uma questão demasiado grande para nós averiguarmos - disse Mason.
- És tu que mandas - respondeu Drake. - Vamos lá falar com o Gibbs. Ele fez uma descrição excelente do homem que comprou o papagaio.
- Ele tem a certeza quanto ao papagaio?
- Tem - disse Drake. - Podes falar directamente com ele, mas isto é canja. Ele diz que o tipo tinha um ar um bocado manhoso - continuou o detective -, mas que outra coisa se poderia esperar, não é, Perry? Se alguma das pessoas envolvidas no caso de corrupção decidiu limpar o sebo ao Sabin, é óbvio que contrataria um indigente para o fazer, ou então um mafioso.
- E o tipo seria capaz de reconhecer o indivíduo que comprou o papagaio, se o visse de novo?
- Eu penso que sim.
- Está bem - disse Mason -, vamos lá.
Della Street estava à espera no carro, na berma do passeio, com o motor ligado.
- Olá, Paul - cumprimentou e entregou um jornal a Mason. - Aqui tens o vespertino, chefe, acabado de chegar da cidade. Queres que eu conduza?
- Quero.
- Onde é a loja, Paul? - perguntou ela.
- Desces esta rua ao longo de três quarteirões, depois viras à direita e percorres mais dois quarteirões, e a seguir viras à esquerda. Fica numa rua lateral, a meio do quarteirão. Deves conseguir arranjar lugar para estacionar mesmo em frente.
- Está bem - disse ela, e meteu primeira.
Quando Della enfiou o grande automóvel na estrada, Mason abriu o jornal e disse:
- Provavelmente não deve vir aqui nada de especial.
- Como é que a polícia determinou a hora da morte com tanto rigor - perguntou Drake -, se o corpo esteve tantos dias para ser encontrado?
- É uma longa história - respondeu Mason. - Mas o ponto de partida foi uma dedução do xerife, um tipo bastante sensato. Quando tivermos mais tempo, eu conto-te.
Perry Mason leu o vespertino na diagonal, enquanto Della Street guiava o carro, rápida e expedita, rumo à loja de animais de estimação. Mason e Drake saíram do automóvel.
- Queres que eu fique aqui, chefe? - perguntou Della.
- É melhor - respondeu Drake. - Estás estacionada à frente de uma boca-de-incêndio. Não desligues o motor. Provavelmente não vamos demorar.
Mason entregou o jornal à secretária.
- Dá uma vista de olhos à secção da actualidade, enquanto nós investigamos os papagaios; e pára de comer o torrão. Vais ficar sem apetite para o jantar.
Ela riu-se.
- Eu estava óptima, até tu me lembrares que tínhamos torrão no carro. Mas, como vais ter de me pagar o jantar, a mim e ao Paul, e incluí-lo nas tuas despesas, chefe, pode ser que a minha falta de apetite seja uma bênção encapotada para ti.
Drake e Mason levavam um sorriso na cara, quando entraram na loja.
Arthur Gibbs era um homem magro, careca, com os olhos de um azul desbotado como o de uma camisa que tivesse ficado demasiado tempo pendurada ao sol.
- Boa-tarde - disse ele, numa voz calma e bem colocada. - Estava a preparar-me para fechar a loja. Já tinha desistido dos senhores.
- Apresento-lhe Perry Mason - disse Paul Drake.
Mason esticou o braço. Gibbs deu-lhe um aperto de mão com uns dedos ossudos e compridos, que pareciam completamente destituídos de iniciativa. Quando Mason lhe soltou a mão, ele disse:
- Depreendo que queira saber informações sobre o papagaio. Mason assentiu com a cabeça.
- Bom, foi exactamente o que eu lhe contei - declarou, virando-se para Paul Drake.
- Esqueça o que me contou - avisou Paul Drake. - Quero que o Mr. Mason ouça tudo em primeira mão. Diga-lhe a ele tudo o que sabe.
- Pois então, vendi um papagaio no...
- Antes de entrar nesses pormenores - interrompeu Drake -, conte ao Mr. Mason como é que identificou o papagaio em causa.
- Bom - disse Gibbs -, nem é preciso dizer que isto não passa de uma mera dedução. O senhor perguntou-me por um papagaio que dizia palavrões sempre que queria comer e eu contei-lhe que ensinei um papagaio a fazer isso.
- A que propósito? - perguntou Mason.
- Por brincadeira - explicou Gibbs. - De vez em quando, aparece uma pessoa ou outra que acha piada a um papagaio que diz palavrões.
Geralmente cansam-se dele, passado pouco tempo, mas quando ouvem um pássaro a praguejar pela primeira vez, acham imensa graça.
- E você ensina-os a dizer palavrões de propósito? - perguntou Mason.
- Claro. Às vezes, um pássaro apanha uma expressão ou uma frase só de a ouvir uma vez mas, regra geral, é preciso insistir nos sons para que os bichos os decorem. Claro está que não os treinamos para dizerem verdadeiros palavrões; só uns «porras» e «bolas». As pessoas divertem-se tanto ao ouvir um papagaio soltar uma frase apimentada em vez do habitual «Louro quer uma bolacha», que compram o pássaro de imediato.
- Está certo. Quando é que vendeu o pássaro em causa?
- Na sexta-feira, 2 de Setembro.
- A que horas?
- Por volta das duas ou três da tarde, se não me engano.
- Descreva-me o homem que o comprou.
- Bom, usava óculos e tinha uns olhos cansados. As roupas não eram lá grande coisa e ele parecia... um tanto ou quanto desanimado... não, não era isso. Desde que falei com o Mr. Drake, estou a tentar pensar como é que o hei-de descrever com mais clareza. Ele não parecia infeliz... Aliás, parecia ser um homem que sabia o que estava a fazer e que vivia a vida à sua maneira e tirava algum proveito disso. Não parecia ter muito dinheiro. O fato estava coçado e com os cotovelos esgaçados, mas, verdade seja dita: era asseado.
- De que idade? - perguntou Mason.
- Cerca de cinquenta e sete, cinquenta e oito, algures por aí.
- Tinha barba?
- Não. Tinha umas maçãs do rosto altas e uma boca cerrada. Era mais ou menos da sua altura, mas não tão corpulento.
- Como era a tez dele? Branca ou avermelhada? - perguntou Mason.
- Ele parecia um rancheiro - disse o homem. - Alguém que passa muito tempo ao ar livre.
- Tinha um ar nervoso ou excitado?
- Não, tinha cara de quem não se excitava com nada, era calmo e sossegado. Disse que queria comprar um papagaio e descreveu-me o tipo de pássaro que pretendia.
- O que é que quer dizer com «descreveu»? - perguntou Mason.
- Oh, disse-me qual era a raça, o tamanho e a idade.
- Você tinha outros pássaros, além do que lhe vendeu?
- Não, era o único que eu tinha que correspondia à descrição que ele fez.
- Ele ouviu o pássaro falar?
- Não, o que é estranho. Ele parecia querer simplesmente um papagaio com um determinado aspecto. Não parecia interessado em mais nada. Deu uma vista de olhos ao pássaro, perguntou-me o preço e disse que o levava.
- Também comprou uma gaiola?
- Sim, claro, para levar o papagaio com ele.
- E veio de carro?
- É disso que não me consigo lembrar - disse Gibbs, franzindo a testa. - Não me lembro se levei a gaiola para o carro ou se foi ele que o fez. Tenho a sensação de que ele veio de carro, mas não prestei atenção. Se de facto tinha carro, era o tipo de automóvel banal que uma pessoa associa a um homem daqueles, sem nada que dê nas vistas, nada que me tenha ficado na memória.
- Ele falava como uma pessoa instruída? - perguntou Mason.
- Bom, falava calmamente e baixinho, e tinha uma maneira esquisita de olhar enquanto estava a falar... era como se estivesse a olhar para mim sem me ver, mas sem fazer de propósito. Há pessoas que colam os olhos em nós enquanto falam, e outras que parecem penetrar-nos com o olhar, mas este tipo tinha uma maneira discreta de...
- Espere aí - interrompeu Mason. - Reconheceria esse homem, se visse uma foto dele?
- Sim, acho que sim. Sei que o reconheceria se o visse ao vivo, e julgo que o reconheceria numa foto, desde que fosse boa.
- Espere um instante - disse Mason.
Foi ter com Della Street, que estava sentada no carro. Pegou no canivete e disse:
- Vou ter de cortar o teu jornal aos bocados, Della.
- Para fazer bonecas de papel? - perguntou ela.
- Para criar mistérios - respondeu ele, e recortou a fotografia de Fremont C. Sabin que vinha no jornal. Levou-a de volta para a loja de animais, desdobrou-a e disse: - Foi este, porventura, o homem que comprou o papagaio?
Gibbs ficou excitado.
- É ele mesmo - disse -, é precisamente esse homem. É uma boa foto dele; com as maçãs do rosto proeminentes e essa boca firme e determinada.
Mason dobrou a foto do jornal e enfiou-a no bolso. Trocou um olhar cúmplice com Drake.
- Quem era? - perguntou Gibbs. - A foto dele saiu recentemente nos jornais?
- Era só um homem que gostava de papagaios - respondeu Mason casualmente. - Vamos esperar um bocado antes de falar sobre ele. Agora, quero algumas informações. Sabe de alguns papagaios novos que tenham sido vendidos por estas bandas, nos últimos tempos?
- Já disse tudo o que sabia ao Mr. Drake - respondeu Gibbs. - Mas quando o Mr. Drake me interrogou sobre comida de papagaio, esta tarde, e se alguém me tinha feito perguntas sobre como tratar de papagaios, eu não me lembrei de ninguém; mas depois de o Mr. Drake se ter ido embora, lembrei-me da Helen Monteith.
- E quem é a Helen Monteith? - perguntou Mason.
- A bibliotecária da Biblioteca Municipal, uma rapariga muito simpática. Tenho a sensação de ter lido há pouco tempo que ela se ia casar. Veio cá, há cerca de uma semana, comprar comida de papagaio e perguntou-me como é que se tratava de um papagaio.
- Há quanto tempo?
- Oh, há mais ou menos uma semana... Vejamos... sim, há pouco mais de uma semana, talvez dez dias.
- Ela disse-lhe que tinha comprado um papagaio?
- Não, não disse; fez só umas perguntas sobre papagaios.
- Perguntou-lhe o porquê do interesse dela?
- Talvez... já não me lembro. Tenho uma ideia vaga dessa conversa. Sabe como é, um homem não se lembra particularmente desses pormenores. Olhando para trás, agora, lembro-me de ter pensado se ela teria ido à cidade comprar um papagaio... Pensando melhor, acho que nem lhe perguntei nada, limitei-me a dar-lhe o que ela me pediu.
- Tem a morada dela?
- Posso procurá-la na lista telefónica - disse Gibbs.
- Não vale a pena - respondeu Mason -, nós procuramos. Feche lá a loja e vá para casa. Quer dizer que ela vem na lista telefónica?
- Creio que sim. Se não vier, aposto que vem na lista da Câmara Municipal. Olhe, deixe-me procurar.
Gibbs folheou um grosso livro azul, com os seus dedos compridos e sem vida, e depois disse:
- Aqui está: 219 East Wilmington Street. O senhor percorre dez quarteirões da Main Street e vai dar a uma estrada larga, que é a Washington. A estrada a seguir, do outro lado, é a Wilmington. Vire à direita, ande mais dois quarteirões e estará pertinho de casa dela. ’
- Obrigado - disse Mason. - Podemos recompensá-lo de alguma maneira pelo seu incómodo...?
- Não, não é preciso - disse Gibbs. - Foi um prazer.
- Bom, agradecemos-lhe imenso.
- Por acaso não sabe se a Miss Monteith está na biblioteca agora, ou se estará em casa? - perguntou Drake.
Antes que Gibbs pudesse responder, Mason disse:
- Não me parece que isso seja particularmente relevante agora, Paul. No fim de contas, foi só uma pessoa que fez uma pergunta casual. Meu Deus, se tentarmos localizar toda a gente que encomenda comida de papagaio, daqui a um ano ainda estamos a trabalhar neste caso! - Virou-se para Gibbs com um sorriso e disse: - Pensávamos que estávamos na pista de uma coisa importante, mas, pelos vistos, parece que não era nada de especial.
Pegou no braço de Paul Drake e conduziu-o para a porta. Quando chegaram ao passeio, Drake disse:
- Qual foi a ideia, Perry? Ele podia ter-nos dado mais informações.
- Pouco mais - respondeu Mason - e eu não quero que ele pense que isto é muito importante. Mais tarde, vai com certeza ler o vespertino e, se achar que nós estamos a seguir uma pista quente, vai entrar em contacto com a polícia e...
- Tens razão - interrompeu Drake. - Não tinha pensado nisso.
- Tiveram sorte? - perguntou Della Street.
- Muita - respondeu Mason -, mas se isso é positivo, negativo ou irrelevante, ainda não sabemos. Agora, conduz-nos até Main Street e desce a rua até passarmos pela Washington, depois vira à direita no quarteirão a seguir. Nós dizemos-te onde deves parar.
Della levou dois dedos da mão direita à estreita aba do seu chapéu inclinado.
- Sim, senhor - disse ela, a brincar, e ligou o carro.
- Não queres passar pela biblioteca, primeiro? - perguntou Drake. Provavelmente fica mais perto daqui.
- Não - disse Mason. - Nenhuma mulher guardaria um papagaio numa biblioteca. De certeza que o guardava em casa.
- Achas que ela tem um papagaio em casa?
- Não me espantaria. Daqui a dez ou quinze minutos, dir-te-ei mais qualquer coisa.
Della Street conduziu o automóvel com perícia por entre o trânsito do final da tarde. Drake, com a cabeça fora do carro, a ler os nomes das ruas, anunciou:
- Esta é a Washington, Della, e a próxima é a que nós procuramos.
- Não há nenhuma placa nesta esquina - disse Della, abrandando.
- Penso que é a esquina que procuramos - disse Mason. - Avança e vira aqui, de qualquer maneira. Meu Deus, não percebo por que é que uma Câmara Municipal se esforça tanto e gasta tanto dinheiro em campanhas publicitárias para atrair turistas e forasteiros para a cidade, se depois se comporta como se só os habitantes locais, que conhecem todas as ruas, fossem procurar uma morada. Não custava nada pôr uma placa que se lesse bem, em cada cruzamento importante... É aqui, Della, encosta o carro à berma da estrada.
A casa era um pequeno bungalow californiano, que datava de uma época de edifícios mais antigos e baratos. O exterior consistia em tábuas de sequóia com ripas de madeira reforçadas. Nas traseiras da casa, ficava uma pequena garagem, cujas portas estavam abertas, mostrando um interior que era claramente utilizado como arrecadação e casa da lenha.
Quando Mason saiu do carro, um papagaio gritou numa voz aguda e estridente:
- Olá, olá. Entre e sente-se. Mason sorriu para Drake.
- Bom - disse o advogado -, pelos vistos encontrámos um papagaio.
- Ali está ele - indicou Della Street -, numa gaiola no alpendre.
- Vamos bater à porta da rua e interrogar a Helen Monteith? - perguntou Drake.
- Não - disse Mason. - Vamos à porta das traseiras interrogar o papagaio.
Perry Mason atravessou a faixa de relva seca que, em tempos, fora um jardim, até a falta de cuidados e a longa seca que afectara o Sul da Califórnia o terem obrigado a abdicar da sua luta pela sobrevivência. O papagaio, dentro de uma gaiola em forma de sino, no alpendre, saltitou ao longo do poleiro cilíndrico para trás e para a frente, excitado, enquanto guinchava:
- Entre e sente-se. Entre e sente-se. Olá, olá. Entre e sente-se.
Mason disse:
- Olá, Louro - e aproximou-se do alpendre.
- Olá, Louro - repetiu o pássaro. Mason apontou para o papagaio.
- Ai, ai - disse ele.
- O que foi? - perguntou Drake.
- Olha para a pata direita. Falta uma das garras - disse Mason.
O papagaio, como se estivesse a fazer troça dele, desatou-se a rir, um riso estridente e muito alto; depois, claramente bem-disposto, arranjou as suas brilhantes penas verdes, alisando-as cuidadosamente com a parte de cima do bico e a superfície da língua preta. Bruscamente, o pássaro virou os seus olhos maliciosos e cintilantes para Perry Mason. Eriçou as penas como se estivesse muito alvoroçado e, de repente, gritou:
- Baixa essa arma, Helen! Não dispares!... Meu Deus, deste-me um tiro! O papagaio fez uma pausa e inclinou a cabeça para o lado, como que para observar melhor os três rostos espantados, alinhados à sua frente no alpendre, para ver o efeito que as suas palavras tinham causado.
- Meu Deus - disse Drake. - Acham que...
Calou-se quando uma voz feminina disse:
- Boa-tarde. O que desejam?
Viraram-se e viram uma mulher com ar de matrona, de ombros largos e robustos, a olhar fixamente para eles, curiosa.
- Ando à procura de Miss Monteith - disse Mason. - Ela vive aqui?
Com um leve tom de reprovação na voz, a mulher inquiriu:
- Bateram à porta principal?
- Não, não batemos - admitiu Mason. - Estacionámos o carro aqui no passeio e vimos que a garagem estava vazia... Foi então que o papagaio me chamou a atenção. Interesso-me por papagaios.
- Importa-se de me dizer como se chama?
- Mason - disse o advogado -, Mr. Mason. E a senhora?
- Sou Mrs. Winters, a vizinha da Helen Monteith, só que ela já não se chama Monteith.
- Ah, não?
- Não. Casou-se há quase duas semanas... com um homem chamado Wallman, George Wallman, um contabilista.
- Por acaso sabe - perguntou Mason - há quanto tempo ela tem o papagaio?
- Penso que o papagaio foi uma prenda do marido. Ela tem-no há quase duas semanas. Têm algum assunto para tratar com a Mrs. Wallman?
- Queria só falar com ela e fazer-lhe algumas perguntas - disse Mason, no seu tom mais desarmante, e quando Mrs. Winters olhou para Paul Drake e Della Street como se estivesse à espera que Mason os apresentasse, Mason desligou-se do grupo e levou-a para um canto, onde baixou a voz, em gesto de confidência. Della, interpretando a estratégia do advogado, deu um toque com o cotovelo em Drake e voltaram ambos para o carro, onde se sentaram à espera.
- Há quanto tempo é que a Mrs. Wallman saiu, Mrs. Winters? - perguntou Mason...
- Há cerca de meia hora ou três quartos de hora.
- Não sabe onde ela foi nem quando volta, sabe?
- Não, não sei. Ela chegou a casa cheia de pressa e atravessou o relvado a correr. Entrou dois ou três minutos, depois saiu disparada e tirou o carro da garagem.
- Ela não veio no seu próprio carro? - perguntou Mason.
- Não, normalmente não vai trabalhar de carro. São só oito ou dez quarteirões de distância e, quando está bom tempo, vai a pé.
- Como é que ela chegou a casa? - inquiriu Mason.
- De táxi. Não sei o que ela tenciona fazer em relação ao papagaio. Não me pediu para eu lhe dar nem comida, nem água. Suponho que deve haver o suficiente na gaiola até amanhã, mas não sei quanto tempo ela vai estar fora... Tenho de fechar a garagem. Ela nunca a deixa aberta quando leva o carro, mas hoje não teve tempo para nada, limitou-se a tirar o carro em marcha atrás e depois desceu a rua a toda a velocidade.
- Provavelmente tinha um encontro na cidade para ir ao teatro ou algo assim - disse Mason. - Talvez fosse ter com o marido... Depreendo que o marido não veio com ela.
- Não. Penso que ele está para fora, à procura de emprego... ele vem e vai. Ela passou o fim-de-semana com ele algures, porque me pediu para tratar do papagaio.
- O marido está desempregado? - perguntou Mason.
- Está.
- É o caso de muita gente, nos tempos que correm - disse Mason -, mas pensei que um jovem cheio de força e determinação...
- Ele não é nenhum jovem - interrompeu Mrs. Winters, com ar de quem estava disposta a contar mais pormenores, desde que a incentivassem um pouco.
- Mas eu pensei que ela fosse jovem - disse Mason. - Claro está que nunca a vi pessoalmente, mas...
- Bom, depende do que considera jovem. Ela tem trinta e poucos anos. O homem com quem se casou deve ter mais vinte anos do que ela. Suponho que ele seja uma pessoa estável e simpática e essa coisa toda, mas por que carga de água é que uma rapariga haveria de querer casar com um homem que podia ser pai dela...! Bom, é melhor não me pôr a bisbilhotar. O assunto não me diz respeito. No fim de contas, quem casou com ele foi ela e não eu. Quando ela mo apresentou, tomei a decisão de não fazer nenhum comentário sobre a idade dele. No fundo, não tenho nada a ver com o assunto e não gosto de me meter onde não sou chamada... Posso saber porque quer falar com a Mrs. Wallman?
- De facto, eu queria falar com a Mrs. Wallman - explicou Mason -, mas também gostava de falar com o marido. Não sabe como é que posso contactá-lo?
Os olhos dela cintilaram de desconfiança.
- Pensei - disse Mrs. Winters - que não soubesse que ela se tinha casado.
- E não sabia - confessou Mason - quando aqui cheguei, mas, agora que sei, gostava imenso de falar com o marido. Eu... talvez eu tenha um emprego para ele.
- Há muitos homens mais jovens do que ele sem emprego, hoje em dia - disse Mrs. Winters. - Não sei o que passou pela cabeça da Helen para aceitar um homem assim, a viver às custas dela, porque é isso que vai acontecer. Suponho que ele seja uma pessoa simpática, sossegada e honesta, mas no fim de contas está desempregado e, se quer que eu lhe diga, isso vê-se nas roupas que ele usa. Pensei que a Helen lhe fosse comprar um fato novo. Como ela vive com toda a simplicidade, diz-se que tem uma boa quantia posta de parte para um momento de aflição.
Mason franziu os olhos, pensativo. Bruscamente, enfiou o polegar e o indicador no bolso do colete e tirou a fotografia de Fremont C. Sabin que saíra no jornal.
- Por acaso - perguntou, mostrando a foto a Mrs. Winters -, a pessoa desta fotografia é o marido dela?
Mrs. Winters ajustou os óculos com cuidado, tirou o recorte da mão de Mason e levantou-o para que a luz de oeste incidisse nele.
Dentro do automóvel, Paul Drake e Della Street observavam a cena, sustendo a respiração.
Uma expressão de surpresa perpassou o rosto de Mrs. Winters.
- Minha Nossa Senhora, é mesmo - exclamou. - É ele, cuspido e escarrado. Eu era capaz de reconhecê-lo onde quer que fosse. Meu Deus, o que é que o George Wallman fez para ir parar aos jornais?
Mason recuperou a fotografia.
- Ouça, Mrs. Winters - disse -, é extremamente importante eu encontrar a Mrs. Wallman imediatamente e...
- Ah, então, agora quer falar é com a Mrs. Wallman! É isso?
- Com ela ou com o marido - respondeu Mason. - Como foi a ela que a senhora viu da última vez, talvez me pudesse dizer onde posso encontrá-la.
- Não sei. Ela pode ter ido visitar a irmã. Tem uma irmã que é professora em Edenglade.
- A irmã é casada? - perguntou Mason.
- Não, nunca se casou.
- Nesse caso, chama-se Monteith?
- Sim, Sarah Monteith. É dois anos mais velha do que a Helen, mas parece uns quinze anos mais velha. É uma pessoa terrivelmente correcta, leva a vida demasiado a sério e...
- Não tem conhecimento da existência de outros familiares? - perguntou Mason.
- Não.
- E de nenhum outro lugar para onde ela possa ter ido?
- Não.
Mason terminou o interrogatório, levantando o chapéu num gesto de
extrema delicadeza.
- Bom, Mrs. Winters - disse -, agradeço-lhe imenso pela sua ajuda. Lamento muito tê-la incomodado. Parece que vou ter de deixar o meu encontro com a Mrs. Wallman para outro dia.
Virou-se na direcção do carro.
- Pode deixar um recado comigo - sugeriu Mrs. Winters. - Eu dou-lho... mas...
- Lamento, mas tenho de falar com ela pessoalmente - disse Mason, entrando no carro e fazendo sinal a Della Street para arrancar.
- Baixa essa arma, Helen! - gritou o papagaio no alpendre. - Não dispares!... Meu Deus, deste-me um tiro!
Della Street arrancou com o carro.
- Muito bem, Paul - disse Mason -, descobre onde é que ela está. Sai e começa a fazer telefonemas. Espalha agentes pelo país todo. Arranja uma descrição do carro dela e a matrícula através da Direcção-Geral de Viação ou da Câmara Municipal ou seja como for. Fala com a irmã em Edenglade.
- Onde vais? - perguntou Drake.
- Vou a casa do Sabin na cidade - disse Mason. - Acho que é bem provável que ela esteja a caminho de lá e quero chegar antes dela, se for possível.
- O que faço, se a encontrar? - perguntou o detective.
- Leva-a para um lugar onde ninguém possa falar com ela antes de mim.
- Isso - disse Drake - é uma coisa um bocado pesada para se pedir, - Perry.
- Ora bolas - exclamou Mason -, não sejas tão susceptível. Leva-a para um sanatório qualquer, alegando que sofreu um esgotamento.
- Provavelmente ela está perturbada - disse Drake -, mas daí até conseguir provar que teve um esgotamento vai um grande passo!
- Vais ver que isso não custa nada, quando ela tomar consciência do que o papagaio anda a dizer - respondeu Mason duramente.
Mason encostou o automóvel ao passeio e olhou para a casa iluminada do outro lado da estrada.
- Realmente é enorme - disse ele a Della Street. - Não admira que o velhote se tenha sentido só, a viver ali.
O advogado saíra do automóvel e estava parado no passeio, a trancar a porta, quando Della Street disse:
- Acho que é um dos agentes do Paul Drake que aí vem.
Mason levantou os olhos e viu um homem sair das sombras, olhar para a matrícula do automóvel e depois atravessar a luz lançada pelos faróis.
- Desligo os faróis, chefe? - perguntou Della Street.
- Se fazes favor - disse ele.
O interruptor mergulhou a rua na escuridão. O indivíduo aproximou-se de Mason e disse:
- O senhor é o Mr. Mason, não é?
- Sou. O que se passa?
- Sou da Agência Drake. A velha e o filho apanharam o avião esta tarde e vieram directamente para cá. É outro agente que está a segui-los. Eles estão lá dentro, neste instante, a meio de uma discussão dos diabos.
Mason olhou para o casarão recortado contra o céu nocturno, com as janelas a brilhar com uma luz atenuada pelos cortinados.
- Bom - disse ele, sorrindo - Nesse caso é melhor eu entrar e juntar-me à discussão.
- O patrão telefonou-nos - explicou o agente - a dizer para estarmos à coca de um carro com a matrícula IV-1302. Eu vi-o chegar, Mr. Mason, e pensei que talvez fosse o automóvel que procurava.
- Não - respondeu Mason -, provavelmente esse é o carro da Helen Monteith. Ela vive em San Molinas e é capaz de vir aqui a casa. Quero falar com ela assim que for possível...
Calou-se quando um automóvel dobrou a esquina e uns faróis lançaram sombras de um lado ao outro da estrada.
- Vou ver quem é - disse o detective. - Provavelmente mais algum familiar para se juntar à discussão.
Deu a volta à traseira do carro de Mason, depois voltou a correr e disse:
- É a matrícula que o patrão nos mandou pôr debaixo de olho. Quer lá ir?
A resposta de Mason foi desatar a correr em direcção ao lugar onde o automóvel estava a fazer marcha atrás para estacionar junto do passeio. Quando a rapariga que ia ao volante desligou os faróis e saiu do carro, já Mason estava à frente dela.
- Quero falar consigo, Miss Monteith - disse ele.
- Quem é você? - perguntou ela rispidamente.
- Chamo-me Mason - respondeu ele. - Sou advogado e represento Charles Sabin.
- O que quer de mim?
- Quero falar consigo.
- Sobre o quê?
- Sobre Fremont C. Sabin.
- Não tenho nada a dizer.
- Não seja tola - respondeu Mason. - O caso já foi tão longe que a senhora perdeu completamente as rédeas da situação.
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que os jornalistas já estão em campo e não vão demorar muito tempo a descobrir que a senhora afirma ter-se casado com o Fremont C. Sabin, que dava pelo nome de George Wallman. Quando chegarem a esse ponto, descobrirão que o papagaio do Sabin, o Casanova, está no alpendre de sua casa em San Molinas e, que desde o homicídio, não pára de dizer: «Baixa essa arma, Helen... Não dispares... Meu Deus. deste-me um tiro.»
Helen Monteith era suficientemente alta para só ter de levantar ligeiramente os olhos para fitar os do advogado. Era suficientemente esguia para ser graciosa e fluida nos seus movimentos, e a sua postura denotava autoconfiança e uma capacidade de tomar e executar decisões rapidamente.
- Como - perguntou ela, aparentemente sem a menor emoção - é que o senhor descobriu isso tudo?
- Usando os mesmos métodos que a polícia e os jornalistas vão usar - disse Mason.
- Muito bem - disse ela baixinho -, eu falo. O que quer saber?
- Tudo - respondeu Mason.
- Quer falar dentro do meu carro ou dentro de casa? - perguntou ela.
- No meu carro - disse Mason -, se não se importa.
Pôs a mão no cotovelo dela, acompanhou-a até ao seu automóvel, apresentou Della Street e mandou Helen Monteith sentar-se ao seu lado no banco da frente.
- Quero que compreenda - disse Helen Monteith - que não fiz nada de mal... nada de que me envergonhe.
- Compreendo - respondeu Mason.
O advogado via o perfil dela recortado contra a luz que se infiltrava pelas janelas do carro. A atitude de Helen Monteith era rápida, alerta, inteligente, e a sua voz, bem controlada. Tinha claramente uma vasta gama vocal que lhe permitia conferir expressividade ao discurso quando assim desejava e, no entanto, preferia não recorrer a truques de ênfase ou expressão para ganhar a compaixão dos outros. Falava depressa e conseguia dar a impressão de que, quaisquer que fossem os seus sentimentos pessoais em causa, mantinha as suas emoções completamente dissociadas dos acontecimentos que julgava necessário transmitir.
- Sou bibliotecária - explicou - na biblioteca de San Molinas. Por vários motivos, fiquei solteira até tarde. O meu cargo dá-me simultaneamente uma oportunidade de cultivar um gosto pelo que há de melhor na literatura e de aprender bastantes coisas sobre o carácter das pessoas. Não tenho nada em comum com esta geração jovem que precisa de estímulo alcoólico para iniciar uma conversa ou para se divertir.
«Conheci o homem que actualmente sei que se chama Fremont C. Sabin há cerca de dois meses. Ele entrou na biblioteca e pediu livros que abordassem determinados assuntos financeiros. Disse-me que nunca lia jornais, porque não passavam de um apanhado de crimes e propaganda política. Consultava revistas sérias para se informar sobre questões gerais e interessava-se por História, Economia, Ciências e biografias. Tinha lido algumas das melhores obras de ficção. As perguntas e os comentários dele eram invulgarmente inteligentes e eu fiquei impressionada. Percebi, como é óbvio, que ele era muito mais velho do que eu e, a avaliar pelo aspecto, desempregado. Usava umas roupas bem tratadas, mas que já tinham visto melhores dias. Estou a dar-lhe estes pormenores todos, porque quero que compreenda bem a situação.»
Mason fez um gesto de assentimento com a cabeça.
- Ele disse-me que se chamava George Wallman; que tinha trabalhado como empregado de mercearia, poupara algum dinheiro e comprara um negócio próprio; que, depois de ter ganhado assim o seu sustento durante vários anos, dera por si sem trabalho por causa de uma série de circunstâncias infelizes. O capital que investira na loja evaporara-se. Tentara arranjar emprego, mas não fora capaz, porque, como tantas vezes lhe tinham dito, não havia emprego e, se por acaso houvesse, os patrões preferiam dá-lo a homens mais jovens.
- A senhora não fazia ideia da verdadeira identidade dele? - perguntou Mason.
- Absolutamente nenhuma.
- Sabe porque é que ele preferiu adoptar essa identidade falsa? - perguntou Mason.
- Sei - respondeu ela de imediato.
- Porquê?
- Agora tenho conhecimento - disse ela - de que, antes de mais, era casado; em segundo lugar, era rico. Ele estava a tentar proteger-se, por um lado, de uma mulher extremamente desagradável e, por outro, de caçadoras de fortunas ou chantagistas.
- E, pelos vistos, pelo meio, deu cabo da sua vida - disse Mason, com compaixão.
Helen Monteith virou-se para ele, não com raiva, mas com ressentimento.
- Isso mostra - disse - que você não conhecia o George... isto é, o Mr. Sabin.
- É um facto evidente, ou não é? - perguntou Mason. Ela abanou a cabeça.
- Não sei qual é a explicação completa para o caso - disse -, mas pode ter a certeza de que, quando todos os factos vierem a lume, veremos que os motivos dele eram bons.
- Não ficou com rancor dele? - inquiriu o advogado.
- Absolutamente nenhum - respondeu ela e, por um instante, a sua voz denotou uma certa nostalgia. - Os dois meses mais felizes da minha vida foram os que se seguiram ao meu encontro com o Mr. Sabin. Esta tragédia toda foi um golpe terrível para mim... mas não é o meu sofrimento aquilo que lhe interessa.
- Estou só a tentar compreender o que se passou - disse Mason delicadamente.
- Foi basicamente o seguinte - disse ela. - Eu tinha algum dinheiro posto de parte, que conseguira poupar do meu salário. Percebi logo que era impossível um homem de cinquenta e muitos anos, sem uma formação especial numa determinada profissão, arranjar emprego, por isso disse-lhe que o ajudava a montar uma mercearia em San Molinas. Ele percorreu a zona, mas chegou à conclusão de que não seria possível começar um negócio lá. Posto isso, eu disse-lhe para procurar outro lugar qualquer.
- E então? - perguntou Mason.
- Então, ele decidiu ir percorrer o território, à procura.
- Teve notícias dele? - inquiriu Mason.
- Por carta, sim.
- O que é que ele dizia nas cartas?
- Era um pouco vago no que tocava ao negócio - disse ela. - As cartas dele eram... sobretudo pessoais. Estávamos casados há menos de uma semana, quando ele se foi embora. - Virou-se subitamente para Mason e disse:
- E independentemente do que se possa vir a descobrir, ele amava-me.
Disse-o com simplicidade, sem dramatismo, sem permitir que o seu sofrimento pessoal se intrometesse na frase. Era uma mera declaração dos factos, feita com a calma de quem tem a certeza do que diz.
Mason fez um silencioso sinal de assentimento.
- A primeira indicação que tive do que aconteceu - disse ela - foi... foi... esta tarde, quando abri o vespertino e vi a fotografia dele com o nome de Fremont C. Sabin, o indivíduo que foi assassinado.
- Reconheceu-o de imediato?
- Sim. Havia coisas que não eram particularmente... coerentes na personalidade que ele tinha inventado. Desde o nosso casamento que eu dava por mim a observá-lo com um certo constrangimento, porque ele pura e simplesmente não se encaixava no perfil de uma pessoa fracassada. Era um homem que não podia ter falhado em nada na vida; tinha demasiada força e personalidade, demasiada inteligência, demasiada astúcia inata; e parecia demasiado relutante em tocar no meu dinheiro. Estava sempre a adiar essa decisão, dizendo que tinha algum dinheiro posto de parte e que viveríamos das suas poupanças até elas se esgotarem, e só então é que mexeria na minha conta.
- Mas nunca desconfiou de que ele tivesse uma grande fortuna? - perguntou Mason.
- Não - respondeu ela. - As dúvidas que eu tinha nem sequer eram dúvidas, na minha cabeça. Eram apenas pequenas coisas que eu tinha registado na memória e que, depois, quando vi a foto dele no jornal e li o relato da morte, se encaixaram todas umas nas outras. De certo modo, eu estava preparada para isso, quando li a história da cabana nas montanhas, no jornal matutino... e vi as fotos da cabana.
- Claro está - depreendeu Mason - que já não recebia cartas há uma semana...
- Pelo contrário - disse ela -, recebi uma carta dele ainda este sábado, dia 10. Foi enviada de Santa Delbarra. Ele dizia que estava a negociar um contrato de arrendamento do que parecia ser o armazém ideal. Estava muito entusiasmado com o negócio e esperava voltar daí a uns dias.
- Deduzo - disse Mason - que não conhecesse bem a caligrafia dele e...
- Tenho a certeza - afirmou ela - que era a letra do Mr. Sabin... ou do George Wallman, como eu o conhecia.
- Mas - disse Mason - as provas indicam que o corpo se encontrava dentro da cabana... Desculpe eu ser tão cru, Miss Monteith, mas é necessário: as provas mostram que ele foi assassinado no dia 6 de Setembro.
- Não percebe o que se passou? - disse ela, cansada. - Ele estava a testar o meu amor. Queria manter a identidade de Wallman até ter a certeza de que eu o amava e que não estava interessada em dinheiro. Ele não andava à procura de armazém nenhum. Deixou estas cartas com alguém e tratou de tudo para que fossem enviadas de vários lugares em diferentes datas.
- Guardou essa última carta? - perguntou Mason.
- Guardei.
- Posso vê-la?
Ela fez um gesto como se fosse abrir a carteira, mas depois abanou a cabeça e disse:
- Não.
- Porquê?
- A carta é pessoal - disse. - Compreendo que, até certo ponto, a minha privacidade tenha forçosamente de ser invadida pelas autoridades encarregadas da investigação, mas não faço tenções de mostrar as cartas dele, a menos que seja absolutamente indispensável.
- Vai ser indispensável - disse Mason. - Se ele deixou cartas na posse de alguém para serem enviadas em diferentes datas e de diferentes lugares, esse alguém poderá ter sido a última pessoa a vê-lo com vida.
Ela ficou calada.
- Quando é que se casaram? - perguntou Mason.
- No dia 27 de Agosto.
- Onde?
Ela hesitou um instante, depois levantou o queixo e disse:
- Atravessámos a fronteira com o México e casámo-nos lá.
- Posso saber porquê?
- O George... o Mr. Sabin disse que, por determinados motivos, preferia casar-se lá... e...
- Sim? - incitou Mason, quando ela se calou.
- fomo-nos casar novamente - disse ela - em Santa Delbarra.
- Porquê aí?
- Ele... ele deu a entender que a anterior mulher tinha tratado do divórcio, que o despacho interlocutório ainda não era definitivo e que podia haver dúvidas quanto à validade do casamento. Ele disse que ia... Enfim, Mr. Mason, isto é um assunto pessoal.
- Por um lado, sim - replicou Mason -, e por outro, não.
- Então, veja as coisas da seguinte maneira. Eu sabia, quando me casei com ele, que o casamento era legalmente duvidoso. Considerei-o como... como um gesto em prol das convenções. Sabia que, muito em breve, íamos fazer um segundo casamento, mais legítimo aos olhos da lei.
- Nesse caso, pensava que o seu primeiro casamento era ilegal?
- Não - disse ela -, eu pensava que era legal... Bom, quando digo que era legalmente duvidoso, quero dizer que foi um casamento que teria sido ilegal, se se tivesse realizado neste país... É difícil de explicar... e, sinceramente, nem sei se me apetece.
- E o papagaio? - perguntou Mason.
- O meu marido... o Mr. Sabin sempre quisera ter um papagaio.
- Sim, isso eu sei. Há quanto tempo é que o papagaio estava na sua posse?
- O Mr. Sabin trouxe-o para casa na sexta-feira, dia 2, se não me engano. Foi dois dias antes de se ir embora.
Mason observou, de sobrolho franzido, aquele perfil tão cheio de determinação.
- Sabia - perguntou - que o Mr. Sabin comprou o papagaio em San Molinas?
- Sabia.
- Como é que o papagaio se chama?
- Casanova.
- Leu nos jornais que foi encontrado um papagaio na cabana das montanhas?
- Sim.
- Sabe alguma coisa sobre esse papagaio?
- Não.
Mason franziu a testa e disse:
- Sabe que mais, Miss Monteith? Esta história não bate certo.
- Eu sei - admitiu ela prontamente. - Por isso é que eu penso que é um erro tentar julgar o Mr. Sabin pelo que aconteceu. Isto significa simplesmente que não dispomos dos factos todos.
- Sabe alguma coisa sobre a cabana das montanhas? - perguntou Mason.
- Claro que sei, foi lá que passámos a lua-de-mel. O meu mari... o Mr. Sabin disse que conhecia o dono da cabana e que ele lha emprestara por uns dias. Olhando para trás, agora, percebo que é ridículo eu ter acreditado que um homem que se dizia desempregado pudesse... Bom, ele tinha as suas razões para fazer o que fez e eu respeito-as.
Mason ia dizer qualquer coisa, mas pensou melhor e então franziu o sobrolho, pensativo, durante uns longos e silenciosos segundos.
- Quanto tempo estiveram na cabana? - perguntou finalmente.
- Ficámos só durante o fim-de-semana. Eu tinha de trabalhar na segunda-feira à noite.
- Casaram-se no México e depois foram de carro para a cabana?
- Sim.
- E o seu marido conhecia os cantos todos à casa, isto é, parecia muito à vontade na cabana?
- Sim, ele disse-me que, em tempos, tinha lá passado um mês.
- Ele disse-lhe como se chamava o proprietário da cabana?
- Não.
- E a senhora não tentou averiguar?
- Não.
- Casaram-se no dia 27 de Agosto?
- Sim.
- E chegaram à cabana na noite do dia 27?
- Não, na manhã de 28. Era uma viagem demasiado longa para fazermos nessa primeira noite.
- Deixou algumas peças de roupa na cabana?
- Deixei.
- Fê-lo de propósito?
- Sim, viemo-nos embora um bocado à pressa. Um dos vizinhos foi bater à porta da cabana e o Mr. Sabin não queria falar com ele. Suponho que não queria que o vizinho tomasse conhecimento da minha presença... ou tinha medo de que eu descobrisse a sua verdadeira identidade por intermédio do vizinho. Seja como for, ele não abriu a porta e depois metemo-nos no carro à pressa e viemo-nos embora. O Mr. Sabin disse-me que mais ninguém ia usar a cabana e que lá voltaríamos no próximo mês.
- Enquanto estiveram na cabana, o Mr. Sabin serviu-se do telefone?
- Fez duas chamadas.
- Sabe a quem se destinavam as chamadas? Ouviu a conversa?
- Não.
- Faz ideia de quem o poderá ter matado, tem alguma pista, seja ela qual for, do que...?
- Absolutamente nenhuma.
- E depreendo - continuou Mason, num tom casual - que também não saiba nada sobre a arma com a qual o crime foi cometido?
- Sei - disse ela inesperadamente -, sei, sim.
- Sabe?
- Sim.
- O que é que sabe? - perguntou Mason.
- A arma do crime - disse ela pausadamente - pertence a uma colecção da Biblioteca Municipal de San Molinas.
- A biblioteca tem uma colecção de armas?
- Tem, há um museu numa sala ligada à biblioteca... isto é, o museu não é propriamente gerido pela biblioteca, mas a colecção foi cedida à Câmara Municipal e, mediante um acordo feito com a direcção da biblioteca, esta está encarregada dessa sala. O porteiro, que zela pela biblioteca, faz o seu papel de porteiro e...
- Quem tirou a arma da colecção?
- Eu.
- Porquê?
- O meu marido pediu-me. Ele... Não, creio que é melhor eu não falar sobre isso, Mr. Mason.
- A quem deu a arma?
- Penso que é melhor esquecermos esta história da arma.
- Quando é que soube pela primeira vez que o seu marido era Fremont C. Sabin?
- Hoje de manhã, quando vi a fotografia da cabana no jornal... bom, foi nessa altura que desconfiei. Como não sabia o que fazer, limitei-me a esperar, cheia de esperança, apesar de todas as evidências. Depois, os jornais da tarde publicaram a foto dele. Foi então que soube.
Abruptamente, Mason perguntou:
- O que tem a ganhar em termos financeiros, Miss Monteith?
- O que quer dizer com isso?
- Havia algum testamento, alguma apólice de seguro, algum...
- Não, claro que não - interrompeu ela. Mason observou-a, pensativo.
- O que tenciona fazer? - perguntou.
- Vou entrar ali em casa e falar com o filho do Mr. Sabin. Vou explicar-lhe as circunstâncias.
- A mulher dele está lá agora - avisou Mason.
- Refere-se à mulher do Fremont C. Sabin?
- Sim.
Ela mordeu o lábio, depois ficou sentada, em silêncio, a digerir essa informação.
- Sabe, Miss Monteith - começou Mason delicadamente -, as autoridades não vão compreender essa história da arma do crime... Ouça uma coisa. Será que a senhora por acaso não descobriu quem o George Wallman realmente era, e que ele já era casado, e ficou furiosa e...
- E o matei, é isso que está a insinuar? - interrompeu ela.
- Sim - confirmou Mason.
- Só a ideia é absurda! Eu amava-o. Nunca tinha amado ninguém antes... - calou-se.
- Ele era consideravelmente mais velho do que a senhora - comentou Mason.
- E mais sensato - disse ela - e mais meigo e mais atencioso e... O senhor não faz ideia de como ele era magnânimo; em comparação com os rapazes que eu conheço na biblioteca, os atrevidos que me convidam para sair, os estúpidos, os que perderam todas as ambições na vida... - A sua voz esmoreceu e ela remeteu-se ao silêncio.
Mason virou-se para Della Street.
- Della - disse -, quero que leve a Miss Monteith consigo. Quero que a leve para um lugar onde ela não seja incomodada por jornalistas, percebeu?
- Penso que sim - disse Della Street baixinho, do banco de trás, e a sua voz deu a sensação de que ela estivera a chorar.
- Eu não quero ir para lugar nenhum - disse Helen Monteith. - Sei que tenho uma situação extremamente desagradável pela frente e a única coisa que posso fazer é encará-la.
- Quer conhecer a Mrs. Sabin? - perguntou Mason. - Ouvi dizer que ela é extremamente antipática.
- Não - respondeu Helen Monteith secamente.
- Miss Monteith - disse Mason -, penso que os acontecimentos das próximas horas poderão ser decisivos. Neste preciso instante, a polícia ainda não identificou a arma do crime; isto é, ainda não descobriu a sua proveniência. Quando isso acontecer... bom, a senhora vai ser detida e assunto encerrado.
- Quer dizer que me vão acusar de assassínio?
- Será acusada de suspeita de homicídio.
- Mas isso é ridículo!
- Do ponto de vista da polícia, não é - disse Mason. - Aliás, não é ridículo para nenhuma pessoa de bom senso que tente reconstituir o crime através das provas.
Helen Monteith ficou calada durante uns segundos, a pensar no que o advogado tinha dito, depois virou-se para ele e perguntou:
- Quem é que o senhor representa?
- Charles Sabin.
- E o que está a tentar fazer?
- Entre outras coisas - explicou Mason -, estou a tentar esclarecer este homicídio. Estou a tentar descobrir o que aconteceu.
- Porque está interessado em mim?
- A senhora - disse Mason - está metida numa alhada. A minha formação profissional leva-me sempre a ficar do lado dos injustiçados e a lutar por eles.
- Mas eu não sou nenhuma injustiçada.
- Será, assim que aquela família lhe deitar a mão - disse Mason soturnamente.
- Está a dizer-me para fugir?
- Não, é precisamente isso que eu não quero que faça. Se até amanhã o caso não estiver esclarecido, nós... bom, nós lidaremos com isso quando lá chegarmos.
Ela tomou uma decisão.
- Muito bem - disse -, eu vou. Mason virou-se para Della Street:
- Vão no carro de Miss Monteith, Della.
- Quer que depois eu entre em contacto consigo, chefe? - perguntou ela.
- Não - disse Mason. - Há determinadas coisas que quero descobrir e outras sobre as quais prefiro não saber nada.
- Eu percebo, chefe - respondeu Della. - Vamos, Miss Monteith. Não podemos perder mais tempo aqui paradas.
Mason ficou imóvel no passeio, a ver o carro afastar-se até os faróis traseiros se tornarem uns pontinhos vermelhos, ao longe. Em seguida, virou-se para o soturno casarão, com o seu ar sombrio de pesada respeitabilidade.
Richard Waid, o secretário, abriu a porta em resposta ao toque de Mason. O seu rosto denotou alívio ao ver que era o advogado.
- O Charles Sabin tem estado a tentar apanhá-lo ao telefone - disse.
- Já liguei para o seu escritório várias vezes.
- Aconteceu alguma coisa? - inquiriu Mason.
- A Mrs. Sabin está em casa... a viúva.
- E isso causou problemas? - perguntou o advogado.
- Pode crer que sim. Não os ouve lá dentro?
Richard Waid afastou-se ligeiramente para o lado e a voz de uma mulher alvoroçada chegou até eles. As palavras eram ininteligíveis, mas o tom duro e desagradável da voz, em si, era inequívoco.
- Bom - disse Mason -, talvez seja melhor eu ir participar na discussão.
- Peço-lhe que o faça - respondeu Waid e, depois, passado um instante, acrescentou: - Pode ser que consiga acalmá-la um pouco.
- Ela tem advogado? - perguntou Mason.
- Ainda não. Está a ameaçar contratar todos os advogados da cidade.
- A ameaçar? - inquiriu Mason.
- Sim - respondeu Waid secamente e, enquanto o conduzia até à sala, acrescentou: - E olhe que não estou a exagerar.
Charles Sabin levantou-se de imediato, assim que Mason entrou na sala. Aproximou-se para lhe dar um aperto de mão, visivelmente aliviado.
- O senhor deve adivinhar os pensamentos das pessoas, Mr. Mason - disse. - Há meia hora que estava a tentar apanhá-lo ao telefone.
Virou-se e disse:
- Helen, apresento-lhe Perry Mason. Mrs. Helen Watkins Sabin, ME Mason.
Mason assentiu com a cabeça.
- Prazer em conhecê-la, Mrs. Sabin.
Ela lançou-lhe um olhar carrancudo, como se ele fosse um insecto espetado com um alfinete e afixado num quadro de parede.
- Pfff! - soltou ela.
Helen Watkins Sabin era uma mulher corpulenta, mas a sua robustez não tinha nada de flácido. O seu corpo era rijo e os olhos tinham a arrogante firmeza de uma pessoa que está habituada a pôr os outros na defensiva e a mantê-los nesse estado.
- E o filho, Mr. Watkins - apresentou Charles Sabin.
Watkins deu um passo em frente para apertar a mão de Mason, num cumprimento firme e cordial. Os olhos dele procuraram os do advogado, e deu um tom enfático às palavras quando disse:
- É um prazer enorme conhecê-lo, Mr. Mason. - Prosseguiu: - Tenho lido tantas coisas sobre si, de tempos a tempos, que é um verdadeiro prazer conhecê-lo em pessoa. Interessou-me particularmente o relato que saiu nos jornais sobre o julgamento daquele processo em torno do assassínio do homem dos seguros.
- Muito obrigado - disse Mason, observando a testa protuberante de Steve Watkins, as suas faces rechonchudas, os olhos azuis e firmes, e o corte das calças de flanela bem passadas.
- Foi uma viagem e pêras - disse Watkins, à laia de explicação. - Apanhei um avião de Nova Iorque até à América Central, para ir buscar a minha mãe, e voltei com ela. Ainda nem sequer tomei banho.
- Veio aos comandos do seu próprio avião? - perguntou Mason.
- Não, embora voe bastante, mas o meu avião não estava devidamente preparado para um voo longo. Apanhei um voo comercial até à Cidade do México e depois aluguei um avião particular para ir buscar a minha mãe. Arranjámos outro avião para esperar por nós na Cidade do México.
- Realmente foi uma viagem e pêras - concordou Mason.
- Esquece a conversa de circunstância, Steve - ordenou Mrs. Sabin. Não é hora de perdermos tempo a conversar amigavelmente com o Mr. Mason. Sabes muitíssimo bem que ele vai tentar apunhalar-nos, por isso mais vale começarmos já a guerra e despacharmos o assunto de uma vez por todas.
- Guerra? - perguntou Mason.
Ela espetou o queixo agressivamente para a frente e disse:
- Guerra, sim, foi o que eu disse. O senhor deve saber o que a palavra significa.
- E estamos em guerra por causa de quê? - insistiu Mason.
- Não se ponha com rodeios - disse ela -, que nem parece uma coisa sua... pelo menos, tendo em conta tudo o que ouvi dizer de si. Espero que não me desiluda. O Charles contratou-o para ver se você me priva dos meus direitos enquanto mulher do Fremont. Pois eu não tenciono permitir uma coisa dessas.
- Dadas as circunstâncias, Mrs. Sabin - começou Mason -, talvez fosse melhor a senhora contratar um advogado e deixar-me tratar do assunto com ele...
- Eu vou fazer isso quando estiver pronta - retorquiu ela. - Não preciso de advogado nenhum... pelo menos por agora. Quando precisar, tratarei disso.
- Espere um instante, mãe - disse Steve Watkins -, o tio Charles só disse que...
- Cala-te - atalhou Mrs. Sabin, irritada. - Eu é que mando aqui. Eu ouvi o que o Charles disse. Muito bem, Mr. Mason, o que tem a dizer?
Perry Mason deixou-se cair numa cadeira, cruzou as suas compridas pernas, sorriu para Charles Sabin e não disse nada.
- Muito bem, nesse caso, falo eu - continuou a viúva. - Já disse o que tinha a dizer ao Charles Sabin e agora digo-lho a si. Sei muito bem que o Charles me detesta desde que me casei com o pai dele e entrei para a família. Se eu tivesse contado ao Fremont metade das coisas que tive de aguentar, o Fremont teria posto o Charles no seu devido lugar. Não teria admitido isso por um minuto que fosse. Independentemente do que o Charles possa pensar, o Fremont amava-me. O Charles tinha tanto medo de perder uma parte dos bens que ficou completamente cego. Aliás, se ele se tivesse mostrado disposto a ser justo comigo, talvez eu fosse justa para com ele agora. Dadas as circunstâncias, sou eu que tenho as rédeas na mão e vou servir-me delas. Percebeu, Mr. Mason?
- Talvez - sugeriu Mason, acendendo um cigarro - pudesse ser um pouquinho mais clara, Mrs. Sabin.
- Muito bem, eu explico. Sou a viúva do Fremont. Estou convencida de que há um testamento que estipula que eu sou a herdeira do grosso dos seus bens. Ele disse-me que ia fazer um testamento nesse sentido. Se, de facto, há um testamento, eu sou a executora; se não há, tenho o direito de ser a administradora dos bens. Seja como for, vou tomar posse da herança e não quero que nenhum dos familiares do Fremont interfira.
- Não tem o testamento aqui consigo? - perguntou Mason.
- Claro que não. Não costumo andar com os documentos do meu marido na carteira, muito menos um testamento. Depreendo que esteja algures no meio da papelada dele, a menos que o Charles o tenha destruído. E caso não saiba, Mr. Mason, o Charles Sabin é muito bem capaz de ter feito uma coisa dessas.
- Será que podemos deixar os ataques pessoais fora disto, Mrs. Sabin? - perguntou Mason.
Ela fitou-o com ar de desafio e disse simplesmente:
- Não.
Richard Waid fez menção de dizer qualquer coisa, mas depois mudou de ideias.
- Ouça, Mrs. Sabin - disse Mason. - Gostava de lhe fazer uma pergunta pessoal. A senhora e o Mr. Sabin não estavam separados?
- O que quer dizer com isso?
- Exactamente o que disse. Não é verdade que estavam separados e que tinham decidido deixar de viver juntos enquanto marido e mulher? A sua viagem à volta do mundo não foi precisamente uma consequência dessa decisão?
- Claro que não, que absurdo.
- A senhora não tinha chegado a um acordo com o Mr. Sabin para meter os papéis do divórcio?
- Com certeza que não.
- Sinceramente, Mr. Mason, eu... - começou Waid, mas calou-se quando viu Mrs. Sabin lançar-lhe um olhar fulminante.
O telefone tocou e Waid disse:
- Eu vou atender.
Mason virou-se para Charles Sabin e disse enfaticamente:
- Chegaram até mim determinadas informações, Mr. Sabin, que me levam a crer que o seu pai tinha motivos para julgar que na segunda-feira, dia 5 deste mês, a Mrs. Sabin teria conseguido obter o divórcio. É a única interpretação possível para as informações que recebi.
- Isso é uma calúnia - disse Mrs. Sabin, num tom belicoso. Mason manteve os olhos postos em Charles Sabin.
- Sabe alguma coisa em relação a isso? - perguntou. Sabin abanou a cabeça.
Mason virou-se de novo para Mrs. Sabin.
- Quando esteve em Paris, Mrs. Sabin?
- Isso não é da sua conta.
- Obteve o divórcio enquanto estava em Paris?
- É claro que não!
- Porque - continuou Mason -, se foi isso que aconteceu, eu vou acabar por descobrir, mais cedo ou mais tarde, e aviso-a de que vou procurar provas que...
- Tretas - teimou ela.
Richard Waid, que estivera parado junto da porta do corredor onde se encontrava o telefone, entrou na sala a passos largos e disse:
- Bom, não são tretas, é a mais pura verdade.
- O que sabe sobre isso? - perguntou Mason.
Waid olhou para Mrs. Sabin em cheio nos olhos e virou-se para Charles Sabin.
- Sei absolutamente tudo. Ouça, Mr. Sabin, eu sei que vai haver uma disputa familiar. Conheço o feitio da Mrs. Sabin o suficiente para saber que isto vai ser um pandemónio. Como ela teve o cuidado de me dizer uns minutos depois de aqui chegar, a melhor maneira de eu salvaguardar os meus interesses é ficando calado e não me intrometendo no assunto. Mas a minha consciência não mo permite.
- Você e a sua consciência - disse Mrs. Sabin, elevando a voz para um tom estridente. - Você não passa de um homem pago para dizer que sim a tudo. O meu marido tinha perdido a confiança toda em si. Provavelmente não sabe, mas ele estava a preparar-se para o despedir. Ele...
- A Mrs. Sabin - interrompeu Waid - não foi fazer uma viagem à volta do mundo.
- Ah, não? - disse Mason.
- Não - insistiu Waid. - Isso foi só para atirar areia para os olhos dos jornalistas, para poder obter o divórcio sem que houvesse falatório. Ela embarcou num navio que ia dar a volta ao mundo, mas só foi até Honolulu. Depois, apanhou um navio de volta e instalou-se em Reno. Foi aí que obteve o divórcio. Tudo isto foi feito sob as ordens do Mr. Sabin. Ela ia receber cem mil dólares em dinheiro vivo, assim que entregasse ao Mr. Sabin provas de que o divórcio fora decretado. Em seguida, devia ir para Nova Iorque de avião, apanhar um navio que desse a volta ao mundo e regressasse através do Canal do Panamá. Deixaria, então, que o Mr. Sabin anunciasse o divórcio quando achasse mais conveniente. Foi este o acordo que eles fizeram.
Com uma frieza ameaçadora, Mrs. Sabin disse:
- Richard, eu avisei-o para ficar de boca fechada em relação a esse assunto.
- Não contei nada ao xerife - prosseguiu Waid -, porque achei que não me cabia a mim discutir a vida privada do Mr. Sabin. Não contei ao Mr. Charles Sabin, porque a Mrs. Sabin me disse que era melhor eu ficar calado, para meu próprio bem. Ela disse que, se eu a ajudasse, me ajudaria por sua vez, assim que tivesse o poder.
- A questão - disse Mason - é se o divórcio realmente foi decretado ou não.
Mrs. Sabin recostou-se na cadeira.
- Muito bem - disse ela a Richard Waid. - Foi você que começou a festa. Agora deite lá os foguetes.
- Assim farei - respondeu Waid. - De qualquer maneira, os factos deste caso vão acabar por se saber, mais cedo ou mais tarde. O Mr. Sabin era infeliz há algum tempo. Ele e a mulher estavam praticamente separados. Ele queria recuperar a sua liberdade e a mulher queria um acordo financeiro.
«Por um motivo qualquer, o Mr. Sabin queria que o assunto permanecesse no segredo dos deuses. Não confiava em nenhum dos seus advogados habituais para tratar do assunto, por isso procurou um indivíduo chamado C. William Desmond. Não sei se algum dos senhores o conhece.»
- Eu conheço-o - disse Mason. - É um advogado muito conceituado. Continue, Waid. Conte-me o que aconteceu.
- Marido e mulher chegaram a um acordo, pelo qual a Mrs. Sabin aceitava meter os papéis do divórcio em Reno. Quando ela apresentasse ao Mr. Sabin uma cópia do decreto do divórcio autenticada por um notário, ele pagar-lhe-ia a quantia de cem mil dólares em dinheiro vivo. O acordo estipulava que não haveria absolutamente nenhuma publicidade em torno do divórcio e que cabia à Mrs. Sabin a responsabilidade de fazer com que a imprensa não tomasse conhecimento do caso.
- Quer dizer, então, que ela não foi fazer uma viagem à volta do mundo? - perguntou Mason.
- Não, claro que não foi. Como eu lhe disse, foi só até Honolulu, depois apanhou outro navio de volta para cá, instalou-se durante seis semanas em Reno, obteve o decreto do divórcio e seguiu para Nova Iorque. Foi por causa disso que o Mr. Sabin me telefonou na noite do dia 5. Disse que estava tudo tratado e que a Mrs. Sabin ia encontrar-se comigo em Nova Iorque, com a cópia autenticada do decreto do divórcio. Como expliquei à polícia, o Steve estava à espera no aeroporto com o avião pronto para descolar. Eu embarquei e partimos para Nova Iorque. Chegámos a Nova Iorque no dia 6 à tarde. Fui directamente ter com os banqueiros que o Mr. Sabin me tinha indicado e, depois, passei pela firma de advogados que representava o Mr. Sabin em Nova Iorque. Queria que eles analisassem a autenticidade do decreto de divórcio antes de entregar o dinheiro à Mrs. Sabin.
- E eles assim fizeram? - perguntou Mason.
- Sim.
- E quando entregou o dinheiro à Mrs. Sabin?
- Na quarta-feira à noite, dia 7, num hotel de Nova Iorque.
- Como foi efectuado o pagamento?
- Em dinheiro vivo.
- Não foi em cheque?
- Em dinheiro vivo - repetiu Waid. - Cem notas de mil dólares. Era assim que a Mrs. Sabin queria.
- Ela passou-lhe um recibo? - perguntou Mason.
- Sim, claro.
- E a cópia do decreto de divórcio autenticada por um notário?
- Encontra-se na minha posse.
- Porque não me contou isto antes, Richard? - perguntou Charles Sabin.
- Preferi esperar pela chegada do Mr. Mason.
Mason virou-se para Mrs. Sabin.
- E então, Mrs. Sabin? Isto é verdade? - perguntou.
- A festa é do Waid - disse ela. - Ele que continue a deitar os foguetes. Já fez a primeira actuação, agora estou à espera do encore.
- Felizmente - continuou Waid -, insisti para que o dinheiro fosse entregue na presença de testemunhas. Pensei que talvez a Mrs. Sabin estivesse a preparar-se para dar um dos seus golpes.
- Mostre-me a cópia do decreto de divórcio - pediu Mason. Waid tirou um papel dobrado do bolso.
- Devia ter-me dado isso a mim - disse Charles Sabin.
- Lamento muito - desculpou-se Waid -, mas as ordens do Mr. Sabin eram para eu guardar o decreto do divórcio e não o dar a ninguém, a não ser a ele próprio. Eu estava proibido de falar nisso fosse a quem fosse. O assunto que me levou a Nova Iorque devia ser tão confidencial que ninguém, nem sequer os seus conselheiros de Nova Iorque, podiam ter conhecimento do que se tratava. Avisou-me especialmente para não lhe dizer nada a si. Compreendo agora, como é óbvio, que a situação mudou. Ou o senhor, ou a Mrs. Sabin, vai ficar à frente dos bens todos e o meu contrato, se é que continuo empregado, vai depender das ordens de um dos dois.
«A Mrs. Sabin teve o cuidado de me avisar que vai assumir o poder e que, se eu contasse alguma coisa a alguém, iria sofrer as consequências»
Mason esticou o braço e tirou o documento dobrado da mão de Waid. Sabin aproximou-se para espreitar por cima do ombro do advogado.
- Parece - disse Mason, analisando o documento com o carimbo do notário - estar tudo em ordem.
- Foi o que disseram os advogados de Nova Iorque - confirmou Waid. Mrs. Sabin soltou uma gargalhada.
- Nesse caso - disse Charles Sabin -, esta mulher não é viúva do meu pai. Depreendo, Mr. Mason, que nestas circunstâncias ela não tenha direito a nenhuma parte da herança... isto é, a menos que haja uma cláusula ou uma ordem específica num testamento.
O riso de Mrs. Sabin tornou-se duro e trocista.
- O teu advogado está calado que nem um rato - disse ela. - Foste demasiado longe, Charles. Mataste-o demasiado cedo.
- Matei-o demasiado cedo?! Eu?! - exclamou Charles Sabin.
- Ouviste o que eu disse.
- Mãe - suplicou Steve Watkins -, por favor tenha cuidado com o que diz.
- Eu tenho todo o cuidado - disse ela -, porque o que eu digo é a verdade. Vá, Mr. Mason, porque não lhes dá a má notícia?
Mason levantou a cabeça e enfrentou o olhar perturbado de Charles Sabin.
- O que se passa? - perguntou Sabin. - O decreto não é válido?
- Tem de ser válido - disse Waid. - Os advogados de Nova Iorque aceitaram-no. A Mrs. Sabin recebeu cem mil dólares à conta da validade desse decreto.
Num tom baixo, Mason explicou:
- Hão-de reparar, meus senhores, que o divórcio foi concedido na terça-feira, dia 6. Não há nada no documento que indique a que horas do dia 6 o divórcio foi decretado.
- E que tem isso a ver com o assunto? - perguntou Sabin.
- É simples - disse Mason. - Se o Fremont C. Sabin foi morto antes de a Mrs. Sabin obter o divórcio, o divórcio fica sem efeito. Ela tornou-se viúva do Sabin imediatamente a seguir à morte dele. Não se pode obter o divórcio de um morto.
O silêncio que se seguiu foi quebrado pelo riso estridente de Mrs. Sabin.
- É como te digo, Charles, mataste-o demasiado cedo.
Muito devagar, Charles Sabin atravessou a sala e sentou-se na sua cadeira.
- Mas - continuou Mason -, se o seu pai foi morto depois de o divórcio ter sido decretado, o caso muda de figura.
- Ele foi morto de manhã - afirmou Mrs. Sabin categoricamente -, depois de voltar da pesca. O Richard Waid fez-me um apanhado dos factos todos, numa reunião que tivemos antes. Esses factos não podem ser alterados nem distorcidos... porque eu me vou Certificar de que ninguém os muda.
- Há vários factores a ter em conta para determinar a hora do crime, Mrs. Sabin - disse Mason.
- E é aí que eu entro - ripostou ela. - Vou certificar-me de que ninguém deturpa as provas. O meu marido foi morto antes do meio-dia de 6 de Setembro. Eu só obtive o divórcio às quatro e meia da tarde.
- Claro está que o decreto do divórcio não indica a que hora do dia o divórcio foi concedido - disse Mason.
- Bom, penso que o meu testemunho terá algum peso, não é verdade? - retorquiu ela, irritada. - Eu sei quando é que obtive o divórcio. Mais, vou pedir uma carta ao advogado que me representou em Reno.
Charles Sabin fitou Mason com uns olhos inquietos.
- As provas - disse ele - indicam que o meu pai foi assassinado antes do meio-dia, provavelmente por volta das onze horas.
Mrs. Sabin ficou calada, a embalar-se para trás e para a frente, com ar triunfal, na grande cadeira de baloiço.
Charles Sabin virou-se para ela com ar enlouquecido.
- Não me poupou a acusações - disse -, mas o que é que você estava a fazer a essa hora? Se alguém tinha um motivo para o matar era você.
Ela fez um sorriso de orelha a orelha.
- Não te deixes dominar pela raiva, Charles - disse. - É mau para a tensão arterial. Lembra-te do que o médico te disse... Eu estava em Reno, Charles, a tratar dos papéis do divórcio. A sessão começou às duas horas e eu tive de esperar duas horas e meia antes de me chamarem. Penso que terás de arranjar uma falha enorme no meu álibi para me poderes acusar do crime... não achas?
- Vou contar-lhes uma coisa - disse Mason - que ainda não foi tornada pública. As autoridades de San Molinas possivelmente vão descobri-la muito em breve. Entretanto, sou eu quem está na posse destes dados e penso que todos vocês deveriam tomar conhecimento deles.
- Estou-me nas tintas para esses factos, sejam eles quais forem anunciou Mrs. Sabin. - Não me venha com bluffs.
- Não estou a fazer bluff - disse Mason. - O Fremont C. Sabin atravessou a fronteira com o México e casou-se, numa cerimónia civil, com uma bibliotecária de San Molinas, chamada Helen Monteith. Toda a gente está convencida de que o papagaio que foi encontrado na cabana, junto do corpo, era o Casanova, o papagaio pelo qual o Mr. Sabin nutria um grande carinho. Na verdade, por motivos que ainda não consegui esclarecer, o Mr. Sabin tinha comprado outro papagaio em San Molinas e deixado o Casanova aos cuidados da Helen Monteith. O Casanova esteve na companhia da Helen Monteith desde sexta-feira, dia 2, até hoje.
Mrs. Sabin pôs-se de pé.
- Bom - disse ela -, não vejo o que é que isso me diz respeito, e penso que não vamos a lado nenhum com esta conversa. Você, Waid, vai-se arrepender de ter traído a minha confiança e desrespeitado as minhas ordens. Pelos vistos, agora vou ter de me dar a uma trabalheira enorme para recolher depoimentos feitos sob juramento sobre a hora a que o divórcio foi decretado... Quer dizer que o meu marido tem uma mulher bígama, é isso? Quem diria! Anda, Steve, vamos deixar estes senhores sozinhos. Assim que eu me tiver ido embora, eles vão tentar arranjar provas que mostrem que o Fremont não foi morto antes de terça-feira à noite, dia 6. E, para isso, é bem provável que tentem deturpar as provas. Parece-me, Steve, que o melhor é contratarmos um advogado. Temos de proteger os nossos interesses.
E posto isto, saiu da sala a passos largos. Steve Watkins foi atrás dela, mas virou-se para fazer um desajeitado gesto de cortesia, como mandavam as regras de etiqueta.
- Foi um prazer conhecê-lo, Mr. Mason - disse, e virando-se para Charles Sabin: - Espero que compreenda a minha posição, tio Charles.
Assim que eles saíram da sala, Charles Sabin disse:
- Acho que nunca vi uma mulher com um feitio tão irritante como o dela. Então, Mr. Mason? Vou ter de ficar de braços cruzados e deixá-la acusar-me de ter assassinado o meu pai?
- O que gostaria de fazer? - perguntou Mason.
- Gostava de dizer à Helen Watkins Sabin exactamente o que penso dela. Gostava de lhe fazer ver que ela não me engana nada, que eu sei que não passa de uma caçadora de fortunas cheia de manha...
- Isso não serviria de nada - interrompeu Mason. - O senhor dizia-lhe o que pensava dela. Ela dizia-lhe o que pensava de si. Pelos vistos, Mr. Sabin, o senhor não tem muita experiência no que toca a dizer às pessoas o que lhe vai na alma, pois não?
- Não, de facto não - admitiu Sabin.
- Mas ela, sim - disse Mason. - Em termos de troca de insultos pessoais, provavelmente ela dava cabo de si antes mesmo de você abrir a boca. Se quer lutar contra a Mrs. Sabin, só há uma maneira de o fazer.
- Qual? - perguntou Charles Sabin, numa voz que denotava o seu interesse.
- Atingi-la onde ela menos espera. Só há uma maneira de lutar, que é ganhando. Nunca ataque uma pessoa onde e quando ela está à espera de ser atacada, porque foi precisamente nesse ponto que ela montou todas as defesas.
- Bom - perguntou Sabin -, qual é o ponto fraco dela, onde a possamos atacar?
- Isso é o que nós ainda não sabemos - respondeu Mason.
- Porque é que o meu pai - quis saber Sabin - se deu a tanto trabalho para garantir a confidencialidade do divórcio? Eu sei que ele não gostava de publicidade e que preferia evitar falatórios o mais possível. Mas há coisas que são inevitáveis. Quando uma pessoa se divorcia, é necessário toda a gente saber do divórcio.
- Penso - disse Mason - que provavelmente o seu pai tinha algum motivo para querer evitar que a fotografia dele saísse nos jornais naquela altura em especial, embora seja difícil saber ao certo porquê.
Sabin reflectiu uns instantes.
- Quer dizer que ele já andava a namorar a tal rapariga e não queria que ela soubesse quem ele era?
- Desculpem - interrompeu Richard Waid -, mas eu creio que posso esclarecer essa situação. Eu sei que o Fremont C. Sabin era bastante... hum... tímido em relação às mulheres, depois da experiência que teve com a actual Mrs. Sabin... Bom, eu estou convencido de que, se ele tencionava casar-se novamente, tomaria todas as precauções possíveis para se certificar de que não se tratava de uma caçadora de fortunas.
Charles Sabin franziu a testa.
- O caso complica-se - disse. - É verdade que o meu pai detestava publicidade em torno da sua vida privada. Depreendo que os planos do divórcio foram feitos antes de ele ter conhecido essa tal rapariga em San Molinas, mas provavelmente ele estava só a tentar evitar os jornalistas. Que história é essa do papagaio, Mr. Mason?
- Refere-se ao Casanova?
- Sim.
- Ao que tudo indica - disse Mason -, por motivos que só ele conhecia, o seu pai decidiu guardar o Casanova num lugar seguro, durante uns tempos, e levar outro papagaio para a cabana das montanhas.
- Meu Deus, mas porquê? - perguntou Sabin. - Não me diga que o papagaio corria perigo de vida?!
Mason encolheu os ombros e disse:
- Ainda não dispomos de todos os factos.
- Se me permite uma sugestão - disse Waid -, penso que o papagaio não corria o mínimo perigo de vida. A pessoa que assassinou o Mr. Sabin foi extremamente atenciosa para com o papagaio.
- Estranhamente atenciosa, Waid, penso que a palavra certa é essa - disse Mason. - Bom, tenho de me ir embora. Tenho uma série de questões pendentes para tratar. Terão notícias minhas, mais tarde.
Sabin acompanhou-o até à porta.
- Estou particularmente ansioso para que este caso seja esclarecido, Mr. Mason.
Mason sorriu.
- Também eu - disse. - Vou mandar fazer cópias do decreto do divórcio e depois vamos analisar os registos do tribunal.
Mason encontrava-se a dois quarteirões do edifício onde ficavam o seu escritório e a sede da Agência de Detectives Drake, quando o seu automóvel foi subitamente envolvido pela luz vermelha de um foco da polícia. Uma sirene mandou-o encostar na berma.
Mason parou o carro e franziu o sobrolho na direcção do carro da polícia, conduzido pelo sargento Holcomb.
- Bom - perguntou ele -, qual é o motivo de tanto alarido?
- Tenho aqui dois cavalheiros que querem falar consigo, Mason - respondeu Holcomb.
O xerife Barnes abriu a porta traseira do carro e logo atrás dele saiu um indivíduo com menos uns dez anos do que ele, que se dirigiu para o automóvel de Mason e deu imediatamente início à conversa.
- O senhor é Perry Mason? - perguntou.
Mason fez um sinal de assentimento.
- Chamo-me Raymond Sprague e sou o delegado do Ministério Público de San Molinas.
- Prazer em conhecê-lo - cumprimentou Mason.
- Queremos falar consigo.
- Sobre o quê? - perguntou Mason.
- Sobre Helen Monteith.
- O que se passa com ela? - inquiriu Mason.
- Onde é que ela está?
- Não sei - disse Mason.
- É melhor irmos para um lugar onde possamos conversar à vontade - sugeriu o xerife Barnes.
- O meu escritório fica a dois quarteirões daqui - lembrou Mason.
- E a Agência Drake fica no mesmo edifício, não fica? - inquiriu Sprague.
- Sim.
- Era para lá que ia? - perguntou Sprague.
- Isso tem alguma importância? - ripostou Mason.
- Eu penso que tem - disse Sprague.
- Bom, como é óbvio - comentou Mason -, eu não posso adivinhar o que o senhor pensa.
- Não respondeu à minha pergunta - insistiu Sprague.
- Ah, fez-me uma pergunta?
O xerife Barnes interpôs-se.
- Espera um instante, Ray - disse. - Assim não vamos a lado nenhum - e, lançando um olhar enfático na direcção dos transeuntes curiosos que se tinham reunido no passeio, acrescentou: - Isto não ajuda nada o processo. Vamos subir até ao escritório do Mason.
Mason pisou a embraiagem e meteu primeira.
- Já lá vou ter, então - disse.
Os outros homens enfiaram-se no carro da polícia e seguiram-no de perto até o advogado ter estacionado o automóvel. Subiram com ele no elevador e entraram para o gabinete. Assim que Mason acendeu as luzes e fechou a porta, o sargento Holcomb disse:
- Depois não digam que não vos avisei em relação a este homem.
- A mim não me avisou de nada - disse Raymond Sprague -, só avisou o xerife.
- O que se passa, afinal? - perguntou Mason.
- O que é que você fez da Helen Monteith?
- Nada - respondeu Mason.
- Pois não é o que nós pensamos - anunciou Sprague.
- Então, diga-me o que é que pensam - disse Mason.
- Você mandou a Helen Monteith desaparecer.
Mason virou-se de frente para eles, com os pés muito afastados, os ombros direitos e as mãos enfiadas nos bolsos do casaco.
- Muito bem - disse -, vamos esclarecer uma coisa. Eu sou o representante legal da Helen Monteith. Também represento o Charles Sabin. Estou a tentar solucionar o homicídio do Fremont C. Sabin. Os meus clientes estão a pagar-me para fazer precisamente isso. Os senhores estão a ser pagos pelo condado para solucionarem o mesmo homicídio que eu. Como é óbvio, os senhores vão esclarecê-lo à vossa maneira e, pela mesma lógica, eu tenciono resolvê-lo à minha.
- Queremos interrogar a Helen Monteith - disse Sprague.
Mason fitou-o olhos nos olhos.
- Então, interrogue-a.
- Onde é que ela está?
Mason tirou a cigarreira do bolso e disse:
- Já lhe disse uma vez que não sei. Vocês é que têm as rédeas do caso na mão e não eu.
- Não quer que eu o acuse de cúmplice do crime, ou quer? - perguntou Sprague ameaçadoramente.
- Acuse-me do que quiser, estou-me nas tintas - respondeu Mason. - Mas, se quer discutir questões de lei, lembre-se de que não posso ser cúmplice de crime nenhum, a menos que ajude o assassino. Ora, está a alegar que foi a Helen Monteith quem cometeu o homicídio?
Sprague corou e disse:
- Estou.
O xerife Barnes intrometeu-se na conversa, com um comentário arrastado.
- Espera aí, Ray, é melhor não pormos o carro à frente dos bois.
- Eu sei o que estou a fazer - ripostou Sprague. Mason virou-se para o xerife Barnes e disse:
- Penso que o senhor e eu nos podemos entender bem, xerife.
- Eu não teria tanta certeza disso - disse Barnes, tirando um pacote de tabaco do bolso e despejando um pouco para cima de uma mortalha de papel pardo. - Vai ter de explicar uma série de coisas para eu poder voltar a confiar em si.
- O quê, por exemplo? - perguntou Mason.
- Pensava que ia colaborar comigo.
- E vou - afirmou Mason -, no sentido em que tenciono descobrir quem é que assassinou o Fremont C. Sabin.
- Nós também queremos descobrir isso.
- Eu sei que sim. E para isso, vocês usam os vossos métodos e eu uso os meus.
- Não gostamos que interfiram com os nossos métodos.
- Eu compreendo - disse Mason.
- Não gastes o teu latim a falar com ele - contrapôs Sprague.
- Se vocês quiserem acusá-lo de prestar auxílio a um criminoso ou de ser cúmplice a posteriori do crime - disse o sargento Holcomb -, terei todo o prazer em detê-lo.
Mason acendeu um fósforo, aproximou-o do cigarro do xerife Barnes e, em seguida, acendeu o seu. A conversa ficou bruscamente em suspenso. Passados uns instantes, Mason disse a Sprague:
- Vai aceitar a sugestão do sargento, Sprague?
- Penso que sim - ripostou Sprague, irritado -, mas, primeiro, vou arranjar algumas provas.
- Creio que não encontrará grande coisa aqui no meu escritório - avisou Mason.
- Eu levo-o para a esquadra - disse Holcomb -, basta vocês darem-me ordem.
O xerife Barnes virou-se para eles.
- Ouçam - disse -, vocês ainda não pararam de me chatear por eu ter dado uma oportunidade ao Mason. Continuo sem perceber porque temos de nos precipitar e atacar uns aos outros. Por mim, não tenciono virar-me contra ninguém até descobrir umas coisas, primeiro. - Voltou-se para Mason e disse: - Sabia que a arma que matou o Fremont C. Sabin foi tirada de uma colecção que estava exposta na Biblioteca Municipal de San Molinas?
- E daí? - perguntou Mason.
- E que a bibliotecária, a Helen Monteith, contraiu casamento com um homem que dava pelo nome de George Wallman e que os vizinhos identificaram como sendo, de certeza absoluta, o Fremont C. Sabin?
- Continue - disse o sargento Holcomb sarcasticamente -, dê-lhe as informações todas de que dispõe e, no fim, vai vê-lo fazer o seu trabalhinho e gozar com a sua cara.
- Pelo contrário - disse Mason -, estou absolutamente disposto a colaborar. Se os senhores já chegaram até aí na investigação, depreendo que repararam que o papagaio engaiolado que estava no alpendre do pequeno bungalow da Helen Monteith é o Casanova, o papagaio do Fremont C. Sabin, e que o papagaio que foi encontrado na cabana das montanhas é um papagaio que o Sabin tinha comprado recentemente na loja de animais de estimação Quinta Avenida, em San Molinas?
O xerife Barnes arregalou os olhos por um instante e, depois, semicerrou-os.
- Está a dar-nos os factos todos assim, de bandeja? - perguntou.
- Com certeza - disse Mason.
- Ele está só a tentar despistar-nos - alertou o sargento Holcomb, revoltado.
- Se sabia isso tudo - disse Raymond Sprague - e depois escondeu a Helen Monteith para nós não a podermos interrogar, eu penso que efectivamente vou acusá-lo de cumplicidade.
- Esteja à vontade - incitou Mason. - Se bem me lembro do que diz a lei, terá de me acusar de esconder o principal suspeito de um crime, com o intuito de permitir a esse suspeito evitar ou fugir a uma detenção, a um julgamento, a uma condenação ou a um castigo, tendo conhecimento de que o dito suspeito cometera o dito crime, ou fora acusado do dito crime. Ora, se bem me parece, até à data a Helen Monteith não foi acusada de crime algum.
- Não, de facto, não foi - admitiu Barnes.
- E penso que ela não cometeu crime algum - declarou Mason.
- Pois eu acho que cometeu - ripostou Sprague.
- Uma mera divergência de opiniões - comentou Mason e, depois, virou-se novamente para o xerife Barnes. - Provavelmente terá interesse em saber, xerife - disse -, que o papagaio que está na gaiola no alpendre da Helen Monteith não pára de dizer: «Baixa essa arma, Helen... Não dispares... Meu Deus, deste-me um tiro.»
O rosto do xerife denotou interesse.
- Como é que explica isso? - perguntou.
- Não explico - respondeu Mason. - Claro está que a maneira óbvia de explicar esse facto é dizendo que o papagaio estava presente quando uma mulher chamada Helen ameaçou alguém com uma arma e, depois, tendo sido avisada para baixar a arma, deu um tiro que atingiu o alvo. Contudo, o tiroteio não teve lugar no bungalow da Helen Monteith, mas numa cabana nas montanhas, a quilómetros de distância, enquanto que, ao que tudo indica, o papagaio que se encontra no alpendre da Helen Monteith não esteve presente durante os disparos.
- Aonde é que quer chegar, ao certo? - inquiriu o xerife Barnes.
- Estou a tentar colaborar convosco - disse Mason.
- Pois nós não queremos a sua colaboração - disse Sprague. - Parece-me óbvio que você conseguiu obter muitas informações interrogando a Helen Monteith. Ora, eu vou-lhe dar vinte e quatro horas para a apresentar à justiça. Se não o fizer, vou fazê-lo comparecer diante de um júri de acusação em San Molinas.
- É melhor dar-lhe só doze horas - sugeriu o sargento Holcomb. Sprague hesitou um instante, depois consultou o relógio e disse:
- Quero-a em San Molinas amanhã, até ao meio-dia, para ser interrogada por um júri de acusação. Caso contrário, é você quem sofrerá as consequências.
Fez um sinal ao sargento Holcomb e dirigiram-se para a porta. Mason olhou para o xerife Barnes e disse:
- Vai-se embora, xerife, ou o senhor quer ficar?
O xerife Barnes deixou-se cair na dura poltrona de cabedal e disse:
- Não te vás já embora, Ray.
- Esta conversa não nos leva a lado nenhum - protestou Sprague.
- Eu acho que leva - disse o xerife, puxando calmamente uma fumaça do seu cigarro.
Mason sentou-se numa esquina da sua grande mesa de trabalho. Sprague hesitou um instante, depois atravessou o gabinete e instalou-se numa cadeira. O sargento Holcomb, sem tentar disfarçar minimamente a sua revolta, ficou parado à porta que dava para o corredor.
Dirigindo-se ao xerife Barnes, Mason disse:
- Surgiu uma situação bastante peculiar em casa do Sabin. Parece que a Mrs. Sabin e o Fremont C. Sabin fizeram um acordo pelo qual ela fingiria partir numa viagem à volta do mundo, depois voltaria noutro navio, iria para Reno e instalar-se-ia lá, onde pediria o divórcio, fazendo todos os possíveis para evitar qualquer tipo de publicidade. Tendo feito isso, receberia, em troca de abdicar de todos os seus direitos enquanto esposa do Fremont C. Sabin, a quantia de cem mil dólares em dinheiro.
- Ela não estava em Reno. Estava num barco que vinha a atravessar o Canal do Panamá, quando a localizámos - disse Sprague. - Essa história de Reno não passa de uma fantasia.
- Talvez - admitiu Mason -, mas o Richard Waid foi ter com ela a Nova Iorque, na quarta-feira, dia 7. Ela deu-lhe uma cópia autenticada do decreto do divórcio e ele entregou-lhe os cem mil dólares, em troca de um recibo que ela lhe passou nesse valor. Foi desse assunto urgente que ele foi tratar a Nova Iorque.
- Aonde é que quer chegar, Mason? - perguntou o xerife Barnes.
- É muito simples - disse Mason. - O Secreto tem a data de terça-feira, dia 6. Se o divórcio foi decretado antes de o Sabin ter sido assassinado, a viúva recebeu cem mil dólares depois da morte dele, em consonância com um acordo que fora feito. Mas, se o Sabin foi assassinado antes de o divórcio ter sido decretado, então o decreto de divórcio perdeu a validade, a Mrs. Sabin recebeu cem mil dólares em dinheiro vivo e, além disso, ainda tem direito a uma parte da herança, na qualidade de viúva do falecido. Trata-se de uma questão legal interessante e bastante complicada, meus senhores.
Num tom cansado, o sargento Holcomb disse:
- Ouça. A Helen Monteith casou-se com o Sabin. Ela não sabia que ele já era casado, pensava que se chamava George Wallman e foi com ele para a cabana. Identificámos a origem das roupas que lá encontrámos, através da marca da lavandaria: eram da Helen Monteith. Entretanto, ela descobriu que ele era casado, achou que ele tinha andado a gozar com ela e decidiu acabar com a brincadeira toda. Precisava de uma arma e precisava dela imediatamente. Não podia ir a uma loja comprar uma arma, mas havia uma colecção de armas na biblioteca, da qual ela tinha uma chave. Escolheu uma arma, pensando colocá-la depois no seu devido lugar. Talvez só pretendesse fazer bluff, não sei. Talvez tenha sido legítima defesa. Não sei e não me interessa. O facto é que ela levou a arma para a cabana e matou o Fremont C. Sabin.
«A seguir, foi ter com o Mason para ele a representar. O Mason descobriu coisas que só podia ter descoberto depois de falar com ela. Ela disse à irmã que ia a casa do Sabin falar com o filho dele. Consta que nunca chegou a aparecer na residência dos Sabin. Sabemos que o Mason foi até lá, na companhia da secretária, mas voltou sozinho. Onde está a secretária? Onde está a Helen Monteith?
«Vocês começam a interrogá-lo e ele decide usar a Mrs. Sabin como engodo para vos despistar. E enquanto vocês continuarem a cair como patos, ele vai continuar a inventar mais engodos.»
Subitamente, ouviram uma pancada peculiar, em código, na porta do corredor. Mason levantou-se, atravessou o gabinete e abriu a porta. Paul Drake, parado na entrada, disse:
- Bom, Perry, eu... - e calou-se, ao ver as pessoas reunidas no gabinete.
- Entra, Paul - disse Mason. - Conheces o sargento Holcomb, como é óbvio, e este é o xerife Barnes, de San Molinas, e Raymond Sprague, o delegado do Ministério Público de San Molinas. O que descobriste?
- Queres que eu te faça o relatório aqui - perguntou Drake -, neste momento?
- Claro - disse Mason.
- Bom, andei a fazer telefonemas de longa distância para trás e para a frente, e a pôr agentes em campo... Tanto quanto sei neste momento, a Mrs. Sabin foi de barco até Honolulu, apanhou um navio de regresso, dirigiu-se para Reno e instalou-se no Silver City Bungalows sob o nome de Helen W. Sabin. Tudo indica que, ao fim de seis semanas de residência, meteu os papéis do divórcio para se separar do Fremont C. Sabin, mas só amanhã de manhã é que consigo ter acesso aos registos do tribunal. Na noite de quarta-feira, dia 7, a Mrs. Sabin encontrava-se em Nova Iorque, de onde partiu à meia-noite.
- Então, esteve em Reno até quando? - perguntou Mason ao detective.
- Tanto quanto conseguimos apurar, apanhou o avião em Reno na noite de terça-feira, dia 6, e chegou a Nova Iorque a 7.
- Então, o decreto do divórcio deve ter sido concedido no dia 6 de manhã - deduziu Raymond Sprague.
- É o que tudo indica - concordou Drake. Sprague fez um sinal de assentimento e disse:
- Ela deve ter estado no tribunal no dia 6.
- Onde é que queres chegar? - perguntou o xerife Barnes.
- Estou só a confirmar os factos - disse Sprague. - O Mason acabou de dar um tiro no pé.
- Em que sentido? - perguntou Barnes.
- É muito simples - explicou Sprague. - O Mason está a tentar distrair-nos da Helen Monteith com estas histórias da Mrs. Sabin, mas se ela esteve presente no tribunal de Reno, não podia estar, precisamente ao mesmo tempo, a matar o marido numa cabana das montanhas, no condado de San Molinas. Independentemente do mais que possa ter feito, é impossível ela ter estado implicada no homicídio.
Mason esticou os braços acima da cabeça e soltou um monumental bocejo.
- Bom, meus senhores - disse -, pelo menos eu abri o meu jogo.
Raymond Sprague dirigiu-se para a porta.
- Eu penso - disse - que somos perfeitamente capazes de fazer a nossa própria investigação. Quanto a si, Mason, ouviu o ultimato que lhe fiz. Ou apresenta a Helen Monteith ao júri de acusação de San Molinas, amanhã ao meio-dia, ou então é você quem irá a julgamento.
O xerife Barnes foi o último a sair do gabinete. Parecia relutante em partir. No corredor, disse baixinho:
- Não estás a ser um bocado precipitado, Ray?
A resposta do delegado do Ministério Público foi um resmungo em voz baixa, abafado pelo bater da porta.
Mason sorriu para Paul Drake e disse:
- Bom, Paul, é tudo.
- Escondeste a Helen Monteith em algum lugar? - perguntou Drake.
Mason fitou-o com um sorriso e respondeu:
- Não faço a mínima ideia do paradeiro da Helen Monteith, Paul.
- O meu agente disse-me que foste buscá-la à porta de casa dos Sabin e que ela e a Della Street se foram embora no automóvel da bibliotecária.
- Espero que o agente que te fez esse relatório não fale com ninguém de fora, Paul.
- Não te preocupes - assegurou Drake. - O que vais fazer no que toca a levá-la ao tribunal de San Molinas, Perry?
- Não posso levá-la ao tribunal - disse Mason -, porque não sei onde ela está.
- A Della sabe.
- Eu não sei onde está a Della.
- Bom - disse Drake -, então estás lixado.
- E a escuta telefónica? O que descobriste em relação a isso? - perguntou Mason.
- Absolutamente nada - confessou Drake. - E quanto mais esmiuço a coisa, menos conclusões tiro.
- Seria algum dos corruptos - aventurou Mason - a querer saber em que ponto estava a cruzada contra a corrupção?
- Nem pensar - disse Drake.
- Porque não?
- Os corruptos não estão preocupados.
- Porquê?
- Porque não estão. Têm as costas demasiado quentes.
- A tal Comissão de Cidadãos estava a desencantar muitas provas - disse Mason.
- Mas provas que não levariam ninguém a uma condenação. Eram provas que se limitaram a levantar muitas suspeitas, mais nada. Os corruptos, e todas as formas de corrupção organizada, percebem essas coisas, Perry. De vez em quando, há uma limpeza geral e umas sacudidelas. Alguns dos peixes miúdos tentam defender-se, nadando contra a corrente. Os peixes graúdos, não; deixam-se levar pela corrente e esperam que a polícia esclareça o caso.
- A polícia? - perguntou Mason.
- Claro - respondeu Drake. - Vê bem, Perry. Sempre que há uma zona de corrupção conhecida, ou de jogo às claras, há participação da polícia. Isso não quer dizer que todos os polícias estejam envolvidos. Significa que alguns dos polícias estão e que alguns dos superiores hierárquicos também. Sempre que há uma denúncia, os manda-chuvas do jogo sentam-se com toda a calma e dizem aos seus amiguinhos da polícia: «Muito bem, vocês avisem-nos quando pudermos retomar a actividade. Entretanto, como estamos todos a perder dinheiro, o melhor é despacharem-se.»
- Então, achas que não eram os manda-chuvas do jogo que estavam a tentar escutar as conversas telefónicas do Sabin?
- Acho. Eles limitaram-se a fechar o estaminé e a ir de férias... Sinceramente, Perry, eu diria que foi obra de um particular.
- Referes-te a um detective particular?
- Sim.
- A mando de quem? - perguntou Mason.
- Da Mrs. Sabin, é esse o meu palpite - disse Drake. - Vistas bem as coisas, Perry, aquela mulher não me parece nada burra.
- Pois não - concordou Mason -, de burra não tem nada... Tens o teu carro lá fora, Paul?
- Sim, porquê?
- Tenho uma missão para ti.
- O quê?
- Vais-me acompanhar - disse Mason. - Vamos fazer uma visita-relâmpago a San Molinas.
- Para quê? - quis saber Drake.
- Vamos roubar um papagaio - disse Mason.
- Roubar um papagaio?
- Foi o que eu disse.
- O Casanova?
- Sim.
- Que raio queres tu do Casanova?
- Analisa bem as coisas, Paul - disse Mason -, e o que é que nós temos? Um caso que gira à volta de um papagaio. O Casanova é a pista-chave desta história toda. Repara que quem matou o Sabin foi particularmente atencioso em relação ao bem-estar do papagaio.
- Queres dizer que foi alguém que gostava do papagaio, ou que tinha um fraquinho por pássaros, em geral?
- Ainda não sei ao certo qual foi o motivo - respondeu Mason. - No entanto, começo a desconfiar de uma coisa. Além disso, Paul, não te esqueças de que ultimamente o Casanova diz: «Baixa essa arma, Helen... Não dispares... Meu Deus, deste-me um tiro.»
- O que quer dizer que provavelmente o Casanova é o papagaio que estava presente quando os tiros foram disparados? - perguntou Drake. - E quem quer que tenha cometido o crime levou o Casanova e mais tarde o substituiu por outro papagaio?
- Porque é que um assassino faria uma coisa dessas? - perguntou Mason.
- Para ser sincero, Perry, não sei. Essa história do papagaio parece-me uma asneirada.
- Bom - disse Mason -, para mim, todas as explicações apresentadas até aqui me parecem uma asneirada. Mas o meu palpite é que o papagaio representa a chave do mistério. Ora, neste momento, a Helen Monteith não está em casa. O xerife e o delegado do Ministério Público do condado de San Molinas andam por estas bandas a tentar ver o que acontece por aqui, com a ajuda do sargento Holcomb. Posto isto, este deve ser o momento ideal para fazer uma visita-relâmpago a San Molinas.
- Se te apanharem a passar por cima das regras naquele condado, vais parar à cadeia - avisou Drake.
- Eu sei - admitiu Mason, sorrindo -, e é por isso que não quero ser apanhado a passar por cima das regras. Se tens o teu carro aqui, vamos.
- Vais roubar a gaiola e tudo? - perguntou Drake.
- Hum-hum - disse Mason -, e vou pôr outro papagaio no lugar do que lá está.
Pegou no telefone, marcou um número e, passado um instante, disse:
- Olá, Helmold, é o Perry Mason, o advogado. Gostava que você fosse a correr à sua loja de animais de estimação e a abrisse. Quero comprar um papagaio.
Na parte de trás do carro, o papagaio soltava gritos de protesto sempre que o sacolejar do automóvel o fazia perder o equilíbrio.
Drake, instalado ao volante, parecia particularmente pessimista quanto ao provável resultado daquela missão, enquanto Mason, confortavelmente recostado no banco almofadado, fumava cigarro atrás de cigarro e contemplava, num silêncio introspectivo, a faixa de estrada iluminada pelo luar, que se desenrolava diante dos faróis do automóvel em alta velocidade.
- Não convém esquecer que Reno não fica assim tão longe... não de avião - disse Drake. - Se a Mrs. Sabin de facto estava em Reno, e se foi ela que contratou detectives particulares para pôr o telefone do Sabin sob escuta, então é melhor esqueceres a Helen Monteith.
- Quanto é que cobras para pôr um telefone sob escuta? - perguntou Mason.
Drake ficou tão espantado que, por um instante, tirou os olhos da estrada.
- Eu? - perguntou.
- Hum-hum.
- Ouve, Perry - disse Drake -, estou disposto a fazer praticamente tudo o que tu me peças, mas pôr um telefone sob escuta é considerado crime neste estado. E isso eu recuso-me a fazer por ti.
- Foi o que eu pensei - comentou Mason.
- Aonde é que queres chegar? - quis saber Drake.
- É muito simples, Paul. Aquela linha telefónica estava sob escuta. Tu achas que não foram os corruptos que o fizeram. Não tem cara de ter sido obra da polícia. Tu dizes que deve ter sido uma agência de detectives particulares que o fez. O meu palpite é que uma agência de detectives pensaria duas vezes antes de se meter a fazer escutas telefónicas.
- Algumas, sim - concordou Drake -, mas outras, não. Há alguns tipos neste ramo que estão dispostos a fazer seja o que for por dinheiro. No entanto, percebi aonde queres chegar, Perry, e talvez tenhas razão. Mas lembra-te de que, hoje em dia, a maior parte das escutas são feitas pela polícia.
- Porquê pela polícia? - perguntou Mason.
- Oh, sei lá. Devem pensar que as leis não se aplicam a eles. Nem imaginas a quantidade de escutas telefónicas que eles fazem para ouvir as nossas conversas. Faz praticamente parte do método de investigação deles.
- Bom, aí está um assunto interessante para analisarmos - disse Mason. - Se a linha telefónica da cabana foi posta sob escuta pela polícia, o sargento Holcomb deve estar a par do caso. Se assim foi, a polícia deve ter um registo das conversas que tiveram lugar através daquele telefone... Amanhã de manhã bem cedo, verifica os registos do tribunal em relação ao divórcio, Paul.
- É o que eu vou fazer - disse Drake. - Tenho dois homens postados em Reno. Vão analisar os registos assim que estes estiverem disponíveis para consulta.
Percorreram vários quilómetros num silêncio introspectivo, até verem uma placa a assinalar os limites urbanos de San Molinas.
- Queres ir directamente para casa da Helen Monteith? - perguntou Drake.
- Certifica-te de que não estamos a ser seguidos - avisou Mason, deslizando no banco para poder espreitar pela janela de trás.
- Tenho estado a prestar atenção a isso - disse Drake.
- Bom, faz um oito, só para termos a certeza absoluta - pediu Mason. Quando Drake terminou a manobra, Mason, satisfeito, fez um sinal de assentimento.
- Muito bem, Paul, vamos direitos ao bungalow.
- A vizinha é bastante bisbilhoteira - comentou Drake, pensativo. - É melhor desligarmos os faróis um quarteirão antes da casa... Que tal estacionarmos umas portas mais abaixo, Perry?
- Não - disse Mason -, quero fazer isto o mais depressa possível. Podes dar uma volta ao quarteirão, enquanto eu avalio os riscos, depois desligas os faróis e encostas o carro ao passeio, o mais perto possível do alpendre...
Espero que este maldito papagaio não se ponha aos berros, quando eu o mudar de lugar.
- Pensava que os papagaios dormiam de noite - disse Drake.
- E dormem - confirmou Mason. - Mas quando estão a ser arrastados pelo país fora, de automóvel, ficam nervosos... e também não sei até que ponto o Casanova vai desatar aos gritos, quando eu o roubar.
- Ouve, Perry - disse Drake -, sejamos racionais. Se a coisa der para o torto, não sejas casmurro e não insistas em fazer a troca dos pássaros. Eu vou estar aqui, pronto para uma fuga a toda a velocidade. Pelo amor de Deus, tu largas o papagaio e corres para o carro.
- Acho que vai correr tudo bem - disse Mason - ...a menos que a casa esteja sob vigilância, mas basta darmos uma volta ao quarteirão para verificarmos isso.
- Bom, daqui a um minuto temos a resposta - disse Drake, dando uma guinada para a esquerda no volante. - Estamos a dois quarteirões da casa.
Percorreu os dois quarteirões e virou novamente à esquerda. Mason observou o bungalow, quando passaram diante dele.
- A casa está às escuras - disse. - A casa ao lado tem luzes acesas, e a do outro lado da rua, também. O alpendre parece de fácil acesso.
- Nem imaginas o alívio que vou sentir quando isto estiver despachado, Perry - confessou Drake.
Deu uma volta ao quarteirão e encostou o carro ao passeio, com os faróis apagados e o motor desligado.
Mason deslizou para fora do automóvel, com a gaiola e o papagaio numa mão, e desapareceu nas sombras. Não teve dificuldade em cortar a rede da porta que dava para o alpendre, abrir o trinco e entrar. O papagaio que levava na mão estava irrequieto, mexendo-se no poleiro da gaiola, mas Casanova, aparentemente morto de sono, mal se moveu quando Mason tirou cuidadosamente a gaiola do gancho e a substituiu pela que levava consigo.
Instantes depois, Mason pousava Casanova no banco de trás do automóvel.
- Já está, Paul - disse.
Drake não precisou de ouvir mais nada. Pôs o carro em andamento no instante em que a porta da casa ao lado se abria e a figura corpulenta de Mrs. Winters aparecia na entrada.
Quando Paul Drake dobrou a esquina, com os faróis apagados, o papagaio na parte de trás do automóvel murmurou, ensonado:
- Meu Deus, deste-me um tiro.
Mason abriu a porta do seu escritório e, de repente, imobilizou-se, ao deparar-se com Della Street.
- Della! - exclamou, espantado.
- Eu mesma - disse ela, piscando os olhos para conter as lágrimas. - Acho que vais ter de arranjar uma secretária nova, chefe.
- O que se passa, Della? - perguntou ele, dirigindo-se para a secretária, cheio de atenções.
Ela começou a chorar e ele abraçou-a, dando-lhe umas palmadinhas nas costas para a reconfortar.
- O que aconteceu? - perguntou o advogado.
- Aque-que-que-la traido-do-dora - gaguejou ela.
- Quem? - perguntou Mason.
- A bibliotecária, a Helen Monteith.
- O que é que ela tem, Della?
- Ela escapou-se-me.
- Vem cá. Senta-te e conta-me o que aconteceu - disse Mason.
- Oh, chefe, tenho tan-tan-tanta pena de te ter desiludido!
- Por que achas que me desiludiste, Della? Talvez não me tenhas desiludido tanto quanto pensas.
- Olha que sim. Mandaste-me levá-la para um lugar onde ninguém a pudesse encontrar e...
- O que é que aconteceu? - perguntou Mason. - Eles encontraram-na ou foi ela que desapareceu?
- Ela desapareceu.
- Muito bem, como é que isso aconteceu?
Della Street enxugou os olhos delicadamente com um lencinho rendado.
- Meu Deus, chefe, detesto parecer uma chora-chora-choramingona - disse ela. - Podes não acreditar, mas ainda não tinha chorado até aqui... Só me apetece torcer-lhe o pescoço com as minhas próprias mãos! Ela contou-me uma história de partir o coração.
- Que história? - perguntou Mason, com o rosto inexpressivo.
- A história de um romance que ela teve - explicou Della. - Disse-me que... Oh, chefe, só uma mulher é que pode compreender... Contou-me a história da vida dela. Disse que, em nova, era muito romântica e tinha tido um amor no liceu, muito ingénuo, que para ela era sério, mas que para o rapaz, nem por isso... isto é, na altura. Não sei se estás a ver, chefe... eu não sou capaz de te contar a história como ela o fez.
«Esse rapaz era extremamente querido. Ela descreveu-mo de tal maneira que eu o vi exactamente como ela: um rapaz simpático, asseado, honesto, com qualquer coisa de místico, ou espiritual... uma coisa que todas as mulheres desejam encontrar no homem que amam! Estamos a falar de uma verdadeira história de amor.
«Depois, o rapaz foi-se embora para arranjar emprego, para poder ganhar dinheiro e casar-se com ela, e ela ficou toda cheia de orgulho. Mas, passados uns meses, ele voltou e...»
- ...E estava apaixonado por outra pessoa? - sugeriu Mason, quando a viu hesitar.
- Não, não foi isso - disse Della. - Ele continuava apaixonado por ela, mas tinha-se tornado um grosseirão. Olhava para ela como se fosse uma conquista. Não estava com pressa nenhuma de se casar, e andava metido com um grupo de rapazes que achavam que era uma burrice ter ideais na vida. Eles tinham uma pose sofisticada e... enfim, nunca me hei-de esquecer da maneira como ela descreveu as coisas. Ela disse que o ácido do pseudo-realismo deles tinha carcomido a patina de ouro que o revestia e deixado só o vil metal que havia por baixo.
- E o que aconteceu depois? - perguntou Mason.
- Depois, como seria de esperar, ela tornou-se céptica em relação aos homens e ao amor. Numa altura em que a maior parte das raparigas via o mundo como se fosse cor-de-rosa, ela estava amarga e desiludida. Não se interessava por bailes e festas e, aos poucos, foi-se interessando cada vez mais por livros. Disse que os seus amigos eram os livros; que os livros não brincam connosco até conquistarem a nossa amizade e depois, de repente, viram a casaca e nos dão um estalo na cara.
«Por essa altura, adquiriu a fama de ser uma rapariga de vistas estreitas, puritana e sem sentido de humor. Tudo começou por causa de uns rapazes que se sentiram insultados por ela não beber gin caseiro e não os deixar beijá-la. Espalharam que ela era uma chata de primeira apanha e, aos poucos, essa fama colou-se-lhe à pele. Lembra-te, chefe, de que a Helen Monteith vivia numa terra pequena. É muito difícil as pessoas conhecerem-se realmente numa terra pequena. Os outros só vêem a fama com que ficámos, à conta das más-línguas.»
- Foi assim que ela te contou a história? - perguntou Mason. Della Street assentiu com a cabeça.
- Muito bem, continua. O que aconteceu depois?
- Depois, quando ela já tinha praticamente desistido do amor, apareceu o Fremont Sabin. Era delicado e meigo, não tinha nada de ganancioso. Defendia uma filosofia de vida que via o lado bonito de todas as coisas. Ou seja, chefe, pelo que eu percebi, o Sabin possuía qualquer coisa do idealismo que ela adorara no rapaz por quem estivera apaixonada no liceu. Mas, enquanto o rapaz tinha ideais de juventude, e esses ideais não estavam suficientemente enraizados nele para resistirem ao cinismo e à visão mundana e vulgar dos amigos, este homem enfrentara com unhas e dentes todas as desilusões que a vida lhe dera e conquistara o seu idealismo como se fosse um grande feito, um objectivo supremo a atingir. Os ideais dele tinham fundamento, tinham sido cuidadosamente pensados. Sobreviveram aos embates do tempo.
- Pelos vistos - disse Mason, pensativo -, o Fremont C. Sabin devia ser realmente uma figura maravilhosa.
- Parece que sim, chefe. Claro está que ele pregou uma partida terrível à rapariga, mas...
- Não sei se pregou - disse Mason. - Podemos ver as coisas do ponto de vista do Sabin e tentar perceber o que ele estava a fazer. Se analisarmos tudo pela devida perspectiva, e à luz de algumas provas novas que descobrimos, vemos que, afinal, é tudo bastante coerente com o feitio dele.
- Podes contar-me que provas novas são essas, chefe?
- Não, primeiro conta-me o que se passou com a Helen Monteith.
- Bom, houve um homem que começou a aparecer na biblioteca com frequência. Ela conhecia-o simplesmente pelo nome de Wallman, um homem que estava desempregado, que não tinha nenhum ofício em particular, nem motivo para pensar que o mundo era um lugar agradável; e, no entanto, era isso mesmo que pensava. Interessava-se por livros de filosofia e reforma social, e interessava-se sobretudo pelas pessoas. Sentava-se na biblioteca, por vezes à noite, aparentemente a ler um livro, mas na verdade estava a analisar os homens que se encontravam à sua volta. E depois, sempre que podia, metia conversa, sem qualquer ostentação, e escutava as pessoas. Estava sempre à escuta.
«Claro está que a Helelen Monteith, no seu papel de bibliotecária, o observava e acabou por ficar interessada nele. Ele começou a falar com ela. Parece que tinha muito jeito para fazer com que as pessoas se abrissem e, sem dar por isso, ela contou-lhe imensas coisas sobre si própria. E, depois, apaixonou-se por ele. Como ele era mais velho e ela não estava nada à espera de uma coisa daquelas, o amor apanhou-a desprevenida. Quando ela percebeu que se apaixonara, já estava irremediavelmente caidinha por ele. E depois, quando descobriu que ele a amava... Bom, chefe, ela disse que era como se a sua alma estivesse a cantar o tempo todo.»
- Ela tem jeito para se exprimir - comentou Mason, semicerrando ligeiramente os olhos.
- Não, chefe, ela não estava a fazer teatro. Foi cem por cento sincera. Ela adora falar nisso, porque foi uma história tão bonita para ela. Apesar do choque da tragédia, e da desilusão de descobrir que ele era casado, continua feliz e filosófica em relação ao caso. Acha que finalmente encontrou a felicidade na vida. Uma felicidade que não durou, mas ela não parece ter ficado amarga, pelo contrário, sente-se grata por ter conhecido essa felicidade. Claro está que, quando leu no matutino o relato do crime e que o Sabin costumava usar um nome falso e andar pelas bibliotecas a analisar as pessoas... bom, é claro que ficou desconfiada. Depois, viu a fotografia da cabana nas montanhas e reconheceu-a. Mas calou os seus medos, tentando convencer-se de que o que a razão lhe dizia não era verdade... Foi então que o vespertino publicou a fotografia do Sabin, confirmando os seus piores receios.
- Então, achas que não foi ela que o matou? - perguntou Mason.
- Tenho a certeza absoluta - disse Della. - Ela não podia... bom...
- Porquê a hesitação? - perguntou Mason, quando a voz de Della esmoreceu.
- Bom - disse a secretária -, a personalidade dela tem uma outra faceta... Se ela tivesse pensado que ele ia fazer qualquer coisa para a magoar... Se tivesse pensado que os ideais dele iam... bom, talvez não os ideais, chefe, mas se ela tivesse pensado que havia algo de falso nele, creio que o teria matado para evitar descobrir isso... não sei se me entendes.
- Penso que sim - disse Mason. - Continua. O que aconteceu?
- Bom, levei-a para um pequeno hotel. Tomei determinadas precauções para ter a certeza de que a polícia não nos poderia localizar. Depreendi que era isso que querias. Levei umas bagagens de minha casa e instalámo-nos no hotel como se fôssemos duas irmãs vindas de Topeka, no Kansas. Fiz montes de perguntas ao empregado da recepção, como os turistas costumam fazer, e penso que ele acreditou piamente em mim.
«Ficámos num quarto de esquina, nas traseiras, com duas camas e casa de banho e, discretamente, sem que ela reparasse no que eu estava a fazer, tranquei a porta por dentro e guardei a chave na carteira.
«Sentámo-nos à conversa e ela contou-me a história toda sobre o romance e tudo o que acontecera. Devemos ter falado durante umas três ou quatro horas. Sei que já passava há muito da meia-noite quando nos fomos deitar; e deviam ser umas cinco da manhã quando ela me acordou, abanando-me, para me dizer que não conseguia abrir a porta. Estava vestida da cabeça aos pés e parecia muito aflita.
«Perguntei-lhe porque queria abrir a porta e ela disse que tinha de voltar para San Molinas, que era impreterível. Tinha-se esquecido de uma coisa.
«Disse-lhe que ela não podia lá ir. Ela insistiu que tinha mesmo de ser e acabámos por ter uma discussão dos diabos. Por fim, ela disse que ia telefonar para a recepção e pedir para alguém ir abrir a porta. Foi então que fui dura com ela.»
- O que é que lhe disseste? - perguntou Mason.
- Disse-lhe que tu estavas a fazer imensos sacrifícios para a ajudar e que ela te estava a trair; que ela corria perigo e que, se a polícia a apanhasse, a acusava de homicídio; que o romance dela seria esmiuçado por todos os tablóides e que ela seria levada a tribunal, tornando-se o centro de todas as atenções e más-línguas... Disse-lhe tudo o que me veio à cabeça. Falei como se fosse um advogado a tentar convencer um júri.
- O que é que aconteceu?
- Continuou a insistir - disse Della Street -, por isso eu ameacei que, se ela saísse daquele quarto, tu não terias mais nada a ver com ela, deixarias de a proteger; disse-lhe que ela ia ter de obedecer às tuas ordens e ficar ali, até eu conseguir entrar em contacto contigo. Ela quis saber quando é que eu ia entrar em contacto contigo e respondi que não sabia, não antes de tu chegares ao escritório, por volta das nove e meia da manhã, mas que podia pedir ao Paul Drake para te dar um recado. Queria que eu ligasse directamente para tua casa e eu disse-lhe que nem pensar, porque tinha medo que a polícia tivesse o teu telefone sob escuta e porque achei que não querias saber onde ela estava, nem ter nada a ver com o seu desaparecimento.
«Bom, ela pensou uns instantes e decidiu que isso era razoável. Disse que estava tudo bem, que ia esperar pelas nove e meia, mas obrigou-me a prometer, a jurar solenemente, que ia tentar contactar-te nessa altura. Despiu-se e voltou para a cama e pediu desculpa por ter feito aquela cena. Demorei meia hora a recompor-me e a conseguir adormecer outra vez... E quando acordei, ela tinha desaparecido. Ela fingiu deliberadamente que cedia, só para poder atraiçoar-me.»
- Tirou a chave da tua carteira? - perguntou Mason.
- Claro que não - respondeu Della Street. - Eu tinha a carteira enfiada debaixo da almofada. Era impossível ela tirar-me a chave sem me acordar. Saiu pelas escadas de incêndio. A janela estava aberta.
- Não sabes que horas eram quando se foi embora? - perguntou Mason.
- Não.
- A que horas acordaste?
- Já passava das oito - disse ela. - Eu estava muito cansada e depreendi que não teríamos nada para fazer a não ser esperar, por isso meti na cabeça a ideia de acordar por volta das oito horas. Quando acordei, fiquei deitada por uns instantes, pensando que ela estava na outra cama e sentindo-me aliviada por ela se ter acalmado. Saí silenciosamente de debaixo dos lençóis, para não a acordar, e fui em bicos de pés à casa de banho, mas, quando olhei por cima do ombro, vi que a cama dela estava com um aspecto esquisito. Aproximei-me para ver melhor. Ela tinha usado a velha artimanha de enfiar uns cobertores e uma almofada debaixo dos lençóis para dar a sensação de que estava alguém a dormir na cama... E é tudo, chefe.
Mason abraçou-a.
- Não te preocupes, Della - disse. - Fizeste tudo o que era possível... Para onde é que ela foi, sabes?
- Penso que a ideia dela era ir para San Molinas.
- Se ela for para lá - disse Mason -, é o mesmo que ir direita à forca.
- Pois eu penso que foi isso que ela fez. Provavelmente está lá agora.
- O que fizeste - perguntou Mason - quando deste pela falta dela?
- Telefonei imediatamente para a agência do Paul Drake e disse-lhe para entrar em contacto contigo. Tentei localizar-te, eu própria, mas não te consegui encontrar em lado nenhum.
- Fui tomar o pequeno-almoço e depois passei pelo barbeiro - explicou Mason.
- Bom, creio que o Paul Drake está a tratar do assunto. Consegui finalmente falar com ele, ao telefone, e expliquei-lhe o que tinha acontecido e pedi-lhe para mandar os agentes que tinha em San Molinas procurarem-na e porem-na num lugar discreto.
- O que é que o Paul disse? - perguntou Mason.
- Não me pareceu particularmente entusiasmado com a ideia - disse Della, com um sorriso abatido. - Devo tê-lo apanhado antes de ele tomar o café logo pela manhã. Fiquei com a sensação de que tinha medo de ser levado à justiça, se tentasse fazer uma coisa dessas em San Molinas.
- Conseguiste convencê-lo? - perguntou Mason.
- Consegui - respondeu Della, num tom lúgubre -, mas tive de ser muito dura com ele, para o convencer. O Paul... - calou-se, ao ouvir as pancadas na porta características de Drake, e disse: - Aqui vem ele.
Mason fez-lhe um sinal de assentimento e ela atravessou o escritório em direcção à porta, depois virou-se e disse:
- Estou com uns olhos que metem medo ao susto. Abre-lhe tu a porta, sim?, enquanto eu vou pôr um bocado de água fria na cara.
Mason fez um sinal de assentimento com a cabeça. Quando ela transpôs discretamente a porta que conduzia à biblioteca de Direito, Mason abriu a porta que dava para o corredor.
- Olá, Paul - disse.
Drake trazia os ombros descaídos e uma expressão lúgubre.
- Olá, Perry - cumprimentou, dirigindo-se para a grande poltrona de cabedal e instalando-se nela de través, na sua posição favorita.
- Novidades? - perguntou Mason.
- Muitas - respondeu Drake.
- Boas, más ou indiferentes?
- Depende do que tu entendes por indiferente - disse Drake, esboçando um lento sorriso. - Para começar, Perry, a tua cópia autenticada do decreto de divórcio é uma falsificação de primeira apanha e isso foi uma jogada de génio, que valeu cem mil dólares.
- Tens a certeza? - perguntou Mason.
- Absoluta. Provavelmente a Mrs. Sabin teve a ajuda de algum advogado de Reno, mas nunca havemos de descobrir quem foi, claro, porque é um esquema ilegal obter dinheiro sob falsos pretextos. O decreto tinha os espaços todos preenchidos como deve ser, a assinatura do funcionário do tribunal e do delegado, e pelos vistos até conseguiram arranjar um carimbo genuíno com o selo do tribunal. O funcionário admitiu que isso pode ter acontecido, se alguém se esgueirou para trás do balcão numa altura em que ele estava muito ocupado e, por conseguinte, distraído, porque normalmente eles não deixam qualquer desconhecido passar para trás do balcão. Portanto, tudo indica que foi um golpe cuidadosamente planeado de antemão.
- Quer dizer, então, que o processo de divórcio dos Sabin nunca chegou a dar entrada no tribunal?
- Exactamente.
- Foi um golpe de mestre - comentou Mason. - Se não fosse por este homicídio, ninguém teria detectado que se tratava de uma falsificação. Uma cópia autenticada de um decreto de divórcio é aceite em qualquer lugar. A menos que surja alguma questão relativa às alegações, ninguém se lembra de ir analisar os registos do tribunal. Que belo estratagema. Cem mil dólares no bolso e ela continua a ser a esposa legítima do homem! Claro está que se trata de uma falsificação e de obter dinheiro sob falsos pretextos, mas, se não tivesse havido este assassínio, ninguém teria descoberto isso.
- Mesmo nestas circunstâncias ela está a sair-se muito bem – disse Drake. - Continua a ser a viúva legal e, como tal, tem direito a assumir a administração dos bens.
- Muito bem - concluiu Mason -, vamos deixar isso de lado, por agora. O que aconteceu à Helen Monteith?
Drake fez uma careta e disse:
- Preferia que lavasses tu próprio a tua roupa-suja, Perry.
- Porquê? - perguntou Mason.
- Já acho suficientemente mau ter de ajudar-te quando tu resolves contornar a lei - disse Drake -, mas ver-me de repente obrigado a violar a lei, eu próprio, é péssimo.
Mason sorriu, estendeu um humidificador ao detective e pegou num cigarro.
- Continua - disse ele, acendendo-o -, conta-me o que se passou.
- A Della telefonou para a agência por volta das oito e um quarto, hoje de manhã, num estado lastimável - informou Drake. - Queria falar comigo e queria entrar em contacto contigo, e queria que os meus agentes procurassem a Helen Monteith em San Molinas. A minha agência contactou-me e eu liguei à Della para o número que ela indicara. Ela estava instalada num hotel, em nome de Edith Fontayne. Contou-me que a Helen Monteith fugira e que tu querias que ela ficasse longe da polícia e que eu fosse a San Molinas buscá-la e escondê-la.
«Eu mandei-a entrar em contacto contigo. Ela respondeu que não sabia onde tu estavas. Eu disse que ia tentar encontrar-te, mas que não faria rigorosamente mais nada. Meu Deus, ainda ontem ralhei contigo por tu estares a correr o risco de esconder um fugitivo do xerife e do delegado do Ministério Público e, de repente, vem a Della propor que eu arrisque o meu pescoço a fazer a mesma coisa. A situação era tão perigosa que nem tu quiseste saber onde ela estava...
- E então, o que fizeste? - interrompeu Mason.
- O que eu fiz? - resmungou Drake. - Que raio é que eu podia fazer? Fiz exactamente o que ela queria. Meu Deus, Perry, sempre me dei bem com a Della e temos tido uma relação equilibrada e informal. Sempre achei que ela era minha amiga, mas quando lhe disse que tinha os meus limites, ela transformou-se numa gata assanhada ao telefone. Disse-me que, se eu queria que tu me desses trabalho, eu tinha de fazer as coisas como tu querias; que eu devia estar careca de saber que tu nunca me deixarias num aperto e que nunca tinhas dado um passo em falso; que querias que a Helelen Monteith ficasse longe da polícia e...
- Esquece o que ela te disse - atalhou Mason, sorrindo. - O que fizeste?
- Calei-me e obedeci, telefonei aos meus agentes em San Molinas e mandei-os irem a casa da Helen Monteith para a apanharem e trazerem de volta para a cidade, assim que ela aparecesse; disse-lhes para a raptarem se fosse preciso, ou o mais que julgassem necessário. Os meus agentes começaram a discutir comigo e eu tive de lhes lembrar quem era o patrão e garantir-lhes que eu assumiria a responsabilidade.
- Bom - disse Mason -, onde está a Helen Monteith neste momento?
- Na cadeia - disse Drake, soturno.
- A que propósito?
- Os meus agentes não receberam o recado a tempo. Ela chegou a casa cerca de meia hora antes deles. Claro está que a polícia pedira à Mrs. Winters para os avisar, assim que a Helen Monteith aparecesse. O xerife e o delegado do Ministério Público foram a correr para lá e apanharam a Helen. Ela tinha andado a matar papagaios, a queimar papéis e a tentar arranjar um lugar para esconder uma caixa de munições de calibre 41... Podes imaginar a alhada em que se meteu.
- Que história é essa de matar papagaios? - perguntou Mason, curioso.
- Ela foi a casa e matou o papagaio - disse Drake. - Cortou-lhe a cabeça com uma faca da cozinha. Um golpe certeiro.
- Assim que chegou a casa? - perguntou o advogado.
- Penso que sim. O xerife demorou algum tempo a descobrir isso. Apanharam-na em flagrante com as munições de calibre 41 e as coisas que ela tinha andado a queimar na lareira. O xerife fez trinta por uma linha para recuperar alguma coisa das cinzas, mas o que deu apenas para perceber foi que ela tinha andado a queimar papelada. Levaram-na para a cadeia e chamaram um técnico da Brigada de Homicídios de cá, para ver o que se podia fazer para reconstituir os papéis... O sargento Holcomb tem estado a trabalhar de perto com as autoridades de San Molinas, sabias?
- Sabia - disse Mason. - O que é que ela disse sobre as munições de calibre 41? Admitiu tê-las comprado?
- Não sei - respondeu Drake. - Levaram-na para a cadeia e ninguém sabe mais nada além disso.
- Quando é que deram com o papagaio?
- Há bocado - disse Drake. - Parece que os homens do sargento Holcomb o descobriram, quando foram revistar a casa...
- Espera aí - interrompeu Mason. - O papagaio não pode ter sido morto depois de a Helen Monteith ter sido detida?
- Nem pensar - disse Drake. - A polícia pôs a casa sob vigilância logo depois de a prender, para ninguém poder lá entrar e ocultar provas. Penso que a tua amiga, a Helen Watkins Sabin, é capaz de estar por trás desta jogada. Parece que estão a analisar a casa à lupa, à procura de mais provas. Descobriram o que aconteceu ao papagaio e o meu agente telefonou-me para me fazer um relatório há cerca de quinze minutos... Por que carga de água achas que ela matou o papagaio, Perry?
- O assassínio de um papagaio - disse Mason, com os olhos a brilhar - é relativamente semelhante ao assassínio de um ser humano; isto é, temos de procurar os motivos. Assim que descobrirmos qual foi o motivo, basta vermos quem é que teve oportunidade e...
- Deixa-te de coisas - interrompeu Drake. - Pára de fazer teatro, Perry. Sabes perfeitamente por que é que ela matou o papagaio e agora eu quero saber.
- Porque é que achas que eu sei? - perguntou Mason.
- Bolas! - exclamou Drake. - Por quem me tomas? Um tonto? A Helen Monteith quis eliminar o papagaio e tu quiseste preservar o papagaio como prova de uma coisa qualquer. Sabias que ela ia matar o pássaro, se tivesse oportunidade, por isso mandaste a Della esconder a fulana o tempo suficiente para irmos lá a casa trocar o papagaio. Depreendo que tenha sido por causa do bicho andar a dizer «Baixa essa arma, Helen» e «Meu Deus, deste-me um tiro», mas continuo sem perceber porque é que ela não matou o papagaio antes, em vez de esperar até se ver obrigada a descer uma escada de incêndio para poder ir matar o animal à facada... Confesso que, ontem à noite, pensei que estavas a tentar esconder a Helen Monteith das autoridades e, hoje de manhã, pensei a mesma coisa, quando a Della me telefonou. Só agora é que percebi que, na realidade, o que estavas a tentar fazer era manter a tipa longe do papagaio.
- Bom - disse Mason -, agora que o papagaio está morto, mais vale...
- Mas o papagaio não está morto - interrompeu Drake. - Tu tens o papagaio. Suponho que o bicho seja testemunha de uma coisa qualquer, provavelmente do homicídio do Fremont Sabin, mas não entendo como é que isso seja possível. Diz-me lá, Perry, um papagaio pode servir de testemunha em tribunal?
- Não sei - disse Mason. - É uma questão interessante, Paul. Receio que não se possa pedir a um papagaio para fazer o juramento obrigatório em tribunal, portanto, isso significa que ele poderia cometer perjúrio.
Drake lançou um olhar de esguelha a Mason e disse:
- Podes gozar à vontade, meu caro. Pelos vistos, se não me queres contar o que se passa, eu também não te posso obrigar.
- Que mais sabes? - perguntou Mason, mudando bruscamente de assunto.
- Oh, umas coisitas - respondeu Drake. - Tive um punhado de agentes a trabalhar a noite toda, a tentar descobrir o máximo possível sobre as escutas telefónicas da cabana. Sabes que me lembrei, Perry, de que poderia descobrir quais foram as chamadas interceptadas, arranjando uma cópia da factura telefónica. A linha da cabana está ligada a uma rede local, mas o Sabin não estaria interessado em ter um telefone para ligar aos vizinhos. Todos os contactos dele estavam na cidade e, claro, falar com eles requeria chamadas interurbanas.
- Foi uma boa ideia, Paul - disse Mason. - Mereces uns pontos por isso.
- Uns pontos, o tanas - ripostou Drake, num tom lúgubre. - Mereço é uma bela quantia em dinheiro! Quando receberes a minha conta, vais ficar de rastos, Perry. Tenho homens a trabalhar em turnos consecutivos de nove horas e tenho-os espalhados de uma ponta à outra do país.
- Óptimo - disse Mason. - Como é que arranjaste a factura telefónica, Paul?
- Um dos meus agentes decidiu arriscar - explicou Drake - e foi à central dos telefones, dizendo que era «detective» e que, por causa do homicídio, queria desligar a linha telefónica e pagar a factura. A funcionária caiu que nem uma patinha e deu-lhe a conta. Ele insistiu em verificar todas as chamadas interurbanas cobradas.
- O que é que descobriste? - perguntou Mason.
- O Sabin fez umas quantas chamadas para a sua residência aqui da cidade - disse Drake -, para falar com o secretário. Algumas das vezes queria só falar com alguém da casa, mas regra geral pedia para falar pessoalmente com o Richard Waid. Mas, o mais interessante, Perry, são os telefonemas para Reno.
- Os telefonemas para Reno?
- Sim. Aparentemente, ele esteve em contacto telefónico quase diário com a mulher, em Reno.
- A que propósito? - perguntou Mason.
- Não faço a mínima ideia - disse Drake. - Provavelmente para ter a certeza de que os papéis do divórcio estavam a correr como previsto e que ela iria a Nova Iorque levar uma cópia autenticada do decreto.
Della Street, com o rosto retocado e os olhos praticamente sem vestígios de lágrimas, entrou atarefadamente no gabinete e fingiu-se surpreendida ao ver Paul Drake.
- Olá, Paul - disse.
- Não me venhas com esse «olá, Paul» como se nada fosse - resmungou Drake. - De todas as pressões que já tive de aguentar na vida...!
Ela aproximou-se da cadeira dele e pousou a mão no braço do detective.
- Não faças essa cara de rabugento - disse, rindo-se.
- Cara de rabugento, o tanas - retorquiu ele. - Tu é que me puseste entre a espada e a parede, a dizer que ou eu cometia um rapto, ou perdia os negócios do Mason.
- Bom, Paul - disse ela -, eu só estava a tentar fazer o que o chefe queria, ou melhor, o que eu achava que ele queria, naquelas circunstâncias.
Drake virou-se para Mason e comentou:
- Tu és mau, mas esta menina é duas vezes pior que tu.
Mason sorriu para Della.
- Não fales com o Paul hoje de manhã, Della. Ele está com um mau humor entranhado até aos ossos.
- Apanhou a Helen Monteith? - perguntou a secretária.
- Não, mas a polícia, sim - respondeu Mason.
- Oh! - exclamou, angustiada.
- Não tem mal, Della - sossegou-a Mason. - Liga para casa do Sabin e pede para falar com o Richard Waid ou com o Charles Sabin, aquele que estiver disponível. Diz que quero falar com eles os dois, aqui no escritório, assim que puderem.
Virou-se novamente para Paul Drake.
- Os teus homens descobriram onde foram compradas as munições de calibre 41?
- Onde foram compradas, não - disse Drake -, mas por esta altura a polícia já descobriu quem as comprou, disso não há dúvida.
Mason fez um gesto com a mão, como que para afastar a ideia.
- Concentra-te por agora em Reno, Paul. Descobre o que puderes sobre o que a Mrs. Sabin fez em Reno e arranja-me cópias da factura de chamadas interurbanas.
- Está bem - disse Drake, deslizando para fora da poltrona -, mas lembra-te de uma coisa, Perry Mason: a próxima vez que tu te puseres ao fresco, porque a coisa está demasiado «quente» para ti, eu tenciono fazer o mesmo. Até aceito ser teu testa-de-ferro, mas ver-me atirado para o meio da guerra de trincheiras, no preciso instante em que as metralhadoras começam a disparar, é uma história bem diferente!
Passava pouco das onze horas, quando Charles W. Sabin e Richard Waid chegaram ao escritório de Mason. O advogado não perdeu tempo com preliminares.
- Tenho uma notícia - anunciou - que deverá interessar-lhes. Como lhes disse, ontem à noite, consegui localizar o Casanova. Estava na posse da Helen Monteith, com quem o Fremont C. Sabin aparentemente se casou sob o nome de George Wallman. O papagaio que estava em casa dela foi morto ontem à noite ou hoje de manhã bem cedo. A teoria da polícia é que a Helen Monteith o matou. O papagaio andava a dizer repetidamente: «Baixa essa arma, Helen... não dispares... Meu Deus, deste-me um tiro.»
- Ora - continuou Mason, olhando para um e depois para o outro -, isto diz-lhes alguma coisa?
- Deve querer dizer que o papagaio estava presente quando o meu pai foi assassinado - concluiu Sabin. - Nesse caso, a Helen deve ter... mas qual Helen?
- Mas o papagaio que foi encontrado na cabana era outro - lembrou Mason.
- Talvez o assassino tenha trocado o papagaio - aventurou Waid.
- Antes de discutirmos isso - disse Charles Sabin -, eu tenho uma coisa de suprema importância para tratar consigo.
- Diga - incitou Mason. - O papagaio pode esperar.
- Encontrei um testamento - anunciou Sabin.
- Onde?
- Lembra-se de que foi dito que C. William Desmond representou o meu pai na qualidade de advogado, em relação a determinadas questões do acordo de divórcio? Isso foi novidade para mim, que não sabia de nada. Só descobri quando o Waid me contou. Parece que o meu pai não queria que a firma Cutter, Grayson & Bright o representasse no que tocava ao divórcio.
- E ele pediu ao Desmond para redigir um testamento ao mesmo tempo que tratava do acordo de divórcio? - perguntou Mason.
- Sim.
- O que dizia o testamento? - quis saber Mason.
Charles Sabin tirou do bolso um caderno forrado a pele e disse:
- Fiz uma cópia das provisões relacionadas com a distribuição dos bens. Dizem o seguinte:
«Dado que, no dia de hoje, fiz um acordo com a minha esposa, Helen Watkins Sabin, pelo qual fica entendido e aceite que ela receberá da minha parte a quantia de cem mil dólares em dinheiro, que constitui a totalidade definitiva dos bens a que terá direito, e que a dita quantia será paga após o término do processo de divórcio e a apresentação de uma cópia autenticada do decreto final de divórcio, estipulo que, na eventualidade de eu morrer antes de essa quantia de cem mil dólares ser paga à minha dita esposa, Helen Watkins Sabin, e nessa eventualidade apenas, a minha dita esposa receberá, dos bens que eu deixar, a quantia de cem mil dólares em dinheiro. Na eventualidade, porém, de essa quantia já ter sido paga à dita Helelen Watkins Sabin antes da minha morte, nesse caso não faço intencionalmente qualquer outra provisão em nome dela neste meu testamento, porque a dita quantia de cem mil dólares é suficiente para provir as necessidades dela e compensá-la devidamente por quaisquer direitos que ela reivindique sobre os meus bens.
«Todos os bens remanescentes, móveis, imóveis ou de natureza pessoal, são deixados em propriedade plena e livres de encargos ao meu querido filho, Charles W. Sabin, que, durante anos, fez prova de uma louvável paciência para com os devaneios de um homem excêntrico, que deixou de considerar o dólar como o objectivo supremo do ser humano, e ao meu querido irmão, Arthur George Sabin, que provavelmente não terá interesse em receber uma parte da minha fortuna.»
Sabin levantou os olhos do caderno.
- Supondo que o meu pai tenha morrido antes de o divórcio ter sido concedido - disse ele -, isso tem alguma repercussão no testamento?
- Não - respondeu Mason. - Pela maneira como o testamento foi redigido, Helen Watkins Sabin fica completamente excluída dele. Conte-me lá quem é esse irmão.
- Não sei muita coisa sobre o tio Arthur - disse Charles Sabin. Nunca o vi, mas sei, em termos gerais, que é uma pessoa um tanto ou quanto excêntrica. Sei que, depois de o meu pai ter feito fortuna, ofereceu ao tio Arthur uma oportunidade de entrar para os negócios e que o tio Arthur recusou, indignado. Depois disso, o meu pai visitou-o e ficou muito impressionado com a filosofia de vida dele. Penso que, em parte, o afastamento do meu pai da vida activa dos negócios se deveu à influência do tio Arthur e creio que é isso que ele quer dizer no testamento... Compreende, com certeza, Mr. Mason, que eu queira tomar providências independentes em prol da viúva do meu pai?
- Refere-se à Helen Watkins Sabin? - perguntou Mason, surpreendido.
- Não, refiro-me à Helen Monteith, ou Helen Wallman, ou seja qual for o nome legal dela. De certo modo, considero-a como sendo viúva do meu pai e com muito mais direito a ser reconhecida como tal do que a caçadora de fortunas que enfeitiçou o meu pai para que ele se casasse com ela. A propósito, Mr. Mason, Wallman é um nome de família. Eu próprio chamo-me Charles Wallman Sabin. Foi provavelmente por isso que o meu pai o utilizou.
- Bom - disse Mason -, já que falamos nisso, a Helen Monteith, como lhe chamaremos daqui para a frente, encontra-se detida em San Molinas. As autoridades tencionam acusá-la do homicídio do seu pai.
- Essa é uma das coisas sobre as quais eu lhe queria falar, Mr. Mason - explicou Sabin. - Queria perguntar-lhe, com toda a justiça e franqueza, se o senhor acha que ela assassinou o meu pai.
- Estou convencido, praticamente a cem por cento, de que ela não o assassinou - respondeu Mason -, mas há algumas provas circunstanciais que ela vai ter dificuldade em explicar... aliás, talvez nunca o consiga fazer, a menos que encontremos o verdadeiro assassino.
- Quais provas, a título de exemplo? - perguntou Sabin.
- Em primeiro lugar - disse Mason -, ela tinha um motivo para cometer o crime. Foi enganada e levada a fazer um casamento bígamo. Já houve homens assassinados por menos do que isso. Ela teve a oportunidade de o cometer, e mais, tinha a arma.
«É esse o grande problema das provas circunstanciais. O advogado de acusação dispõe de tudo o que é preciso para efectuar uma investigação meticulosa. Descobre os factos e escolhe aqueles que, na sua opinião, são relevantes. Assim que conclui que a arguida é culpada, os únicos factos que considera relevantes são aqueles que apontam para a culpa da arguida. É por isso que as provas circunstanciais enganam tanto. Os factos, em si, tornam-se irrelevantes e a única coisa que conta é a interpretação que fazemos deles.»
- Pois ocorreram alguns factos relevantes lá em casa - disse Waid, olhando para Charles Sabin. - Tencionava contar ao Mr. Mason o que aconteceu à Mrs. Sabin e ao Steve?
- Obrigado, Richard, por me lembrar isso - disse Sabin. - Depois de o senhor se ter ido embora ontem à noite, Mr. Mason, o Steve Watkins e a mãe fecharam-se no quarto a ter uma conversa muito séria. Saíram de casa por volta da meia-noite e nunca mais voltaram. Não deixaram qualquer indicação de para onde iam e nós não conseguimos localizá-los. O juiz de instrução de San Molinas pediu para fazer um inquérito judicial hoje, às oito horas da noite, e o funeral está marcado para amanhã, às duas horas. A ausência da Mrs. Sabin na cerimónia será, obviamente, embaraçosa para a família. Considero a partida dela uma mostra de profundo mau gosto.
Mason olhou para Waid.
- Contou ao xerife Barnes e ao sargento Holcomb o que foi tratar a Nova Iorque, a pedido do Mr. Sabin?
- Não, só lhes disse o que me pareceu pertinente para o caso. Sobre esse outro assunto, não disse absolutamente nada a ninguém, até ontem à noite. A Mrs. Sabin tinha-me intimidado o suficiente para eu ficar calado.
- Contou ao xerife que recebeu um telefonema do Mr. Sabin às dez horas da noite?
- Sim, claro. Achei que era pertinente para o caso e que não estava a trair a confiança do Mr. Sabin.
- O Mr. Sabin pareceu-lhe bem-disposto quando falou com ele?
- Extremamente bem-disposto. Acho que nunca o ouvi com a voz tão feliz. Olhando para trás, agora, claro está que compreendo porquê. Tinha acabado de receber a notícia de que a Mrs. Sabin ia obter o decreto do divórcio no dia seguinte e isso permitia-lhe casar-se com a Miss Monteith. É óbvio que a Mrs. Sabin lhe tinha telefonado a contar que o divórcio estava a correr.
- Sabia que ele costumava ir a San Molinas? - perguntou Mason.
- Sabia, sim - admitiu Waid. - Sabia que ele passava bastante tempo por lá. Ligou-me várias vezes de San Molinas.
- Eu também sabia disso - interpôs Charles Sabin. - Não sabia o que ele lá ia fazer, mas o meu pai tinha as suas manias. Ele costumava ir para uma comunidade nova, mudar completamente de identidade, assumir um nome falso e conviver com as pessoas.
- Sabe porque é que ele fazia isso? - perguntou Mason. - Isto é, se ele tinha algum objectivo especial em mente?
- Não faço a mínima ideia - disse Charles Sabin. - Claro está que, quando analisamos o feitio do meu pai, temos de ter em conta determinadas coisas. Ele era um homem de negócios muito bem sucedido, de acordo com os padrões de sucesso da nossa sociedade; isto é, tinha feito uma fortuna considerável, portanto não tinha nada a ganhar em aumentar os seus bens materiais. Penso que, em função disso, ele estava pronto para acolher sugestões novas, que por acaso vieram do tio Arthur. O tio Arthur vivia algures no Kansas... pelo menos, vivia lá há dois ou três anos, quando o meu pai o visitou; e eu sei que a filosofia de vida dele deixou o meu pai muito impressionado. Quando ele regressou, disse que éramos todos demasiado gananciosos; que venerávamos o dólar como se fosse o objectivo do nosso sucesso; que era um objectivo falso; que o homem devia empenhar-se mais em desenvolver a sua personalidade.
«Penso que lhe interessará conhecer a filosofia económica dele, Mr. Mason. Ele defendia que o homem atribuía demasiada importância ao dinheiro, enquanto tal. Achava que o dólar era uma recompensa de um trabalho efectuado, que os homens recebiam essas recompensas para as guardarem até precisarem do produto do trabalho efectuado por outro homem, que qualquer pessoa que tentasse apoderar-se de uma dessas recompensas sem dar o seu melhor trabalho em troca era um falsário económico. Acreditava que a maior parte das nossas depressões se deviam ao desejo universal de obter o máximo de recompensas possível, em troca do mínimo trabalho possível... que havia demasiados indivíduos a tentar angariar muitas recompensas sem fazer trabalho nenhum. Dizia que os homens deviam parar de pensar em termos de recompensas e pensar, em vez disso, apenas em termos de trabalho efectuado com o máximo de conscienciosidade possível.
- Como é que ele relacionava a origem das depressões com essa teoria das recompensas? - perguntou Mason, interessado.
- Através da ganância - disse Sabin. - Ele dizia que toda a gente andava a jogar, a tentar ganhar recompensas sem trabalhar. Depois, como as recompensas deixavam de representar o trabalho honesto, os homens não suportavam separar-se delas. Um homem que efectuasse um trabalho de má qualidade, em troca de uma recompensa, não suportava separar-se dessa recompensa para adquirir produtos de má qualidade efectuados por outro trabalhador. Ou seja, a recompensa, em si, passou a ter mais valor do que aquilo que se podia obter em troca dela... ou assim pensavam as pessoas, porque havia demasiada gente que se tornara um falsário económico.
- É interessante - comentou Mason. - Já agora, quantas pessoas viviam lá em casa?
- Só nós os dois, eu e o Richard Waid.
- Não havia empregados?
- Uma governanta e mais nada. Quando a Mrs. Sabin foi fazer a viagem à volta do mundo, o meu pai mandou fechar praticamente a casa toda e dispensou os empregados. Na altura, não percebi o porquê dessa decisão, mas é claro que agora percebo que o meu pai sabia que a Helen Watkins Sabin não ia regressar e, por conseguinte, tencionava fechar a casa.
- E o papagaio? - perguntou Mason. - O seu pai costumava levar o papagaio nas suas viagens?
- O papagaio andava quase sempre com o meu pai. Às vezes, ele deixava-o em casa... sobretudo com a Mrs. Sabin. A propósito, a Mrs. Sabin era muito afeiçoada ao papagaio.
Mason virou-se para Waid.
- O Steve Watkins tinha algum motivo para cometer o crime, algum ódio contra o Mr. Sabin?
- O próprio Steve não podia ter matado o Mr. Sabin - afirmou Waid categoricamente. - Eu sei que o Mr. Sabin estava vivo às dez horas da noite de segunda-feira, 5 de Setembro. O Steve e eu partimos rumo a Nova Iorque logo depois de eu ter recebido esse telefonema. Só chegámos a Nova Iorque ao fim da tarde de terça-feira. Há uma diferença horária de quatro horas, por causa da diferença de fuso horário e da hora acrescida do horário de Verão.
- O decreto de divórcio autenticado que a Mrs. Sabin lhe entregou em Nova Iorque - anunciou Mason - era uma falsificação.
- Era o quê?! - exclamou Waid, estupefacto.
- Uma falsificação - repetiu Mason.
- Ouça, Mr. Mason, aquele decreto foi aprovado pelos advogados de Nova Iorque do Mr. Sabin.
- Era perfeitamente legal em termos de forma - admitiu Mason. - Aliás, foi tudo planeado até ao último pormenor: incluindo o nome do funcionário e do delegado de serviço. Trata-se de uma falsificação extremamente astuta... não obstante, o documento é falso.
- Como descobriu isso? - perguntou Sabin, excitado.
- Investiguei os registos do tribunal. Entreguei uma cópia do decreto a um detective, que foi de avião até Reno. O caso era supostamente uma questão passiva e foi tratado de maneira rotineira. Para minha surpresa, quando investiguei, descobri que não havia qualquer registo de divórcio no tribunal.
- Meu Deus - disse Charles Sabin -, o que é que ela esperava ganhar com isso? Devia saber que ia ser apanhada.
- Em circunstâncias normais - lembrou Mason -, ninguém se lembraria de ir analisar uma cópia autenticada de um decreto de divórcio. A falsificação seria, no fundo, muito pouco arriscada.
- Mas porque é que a Helen Watkins Sabin havia de querer ficar dependente de um documento forjado? - perguntou Sabin.
- Não sei - confessou Mason. - Há várias hipóteses. Uma delas é poder haver um problema qualquer a nível da legitimidade do casamento dela com o seu pai.
- Mas porque é que isso a impediria de pedir o divórcio? - perguntou Waid.
- Porque - explicou Mason -, independentemente das ideias optimistas do Fremont Sabin, de certeza que ia haver publicidade em torno do divórcio. Os jornalistas têm investigadores altamente especializados em Reno, com o objectivo de analisar pedidos de acção de divórcio. Estão particularmente interessados em saber se alguma estrela de cinema vai a Reno, à socapa, para obter um divórcio sob o seu verdadeiro nome e sem revelar a sua identidade de Hollywood. Ora, se porventura a Helen Watkins Sabin tinha outro marido em vida, do qual nunca se divorciara... bom, não quereria correr o risco de haver falatório. Estavam cem mil dólares em jogo, o que é uma quantia bastante elevada.
- Pode haver alguma coisa ilegal nesse primeiro casamento - disse Sabin -, mas então e a cerimónia de casamento que o meu pai realizou com a Helen Monteith no México?
- Agora - disse Mason, com um sorriso - é que estamos a chegar ao verdadeiro problema legal.
- Qual é a resposta? - perguntou Sabin.
- Isso depende muito - explicou Mason - do que conseguirmos descobrir interrogando a Helen Watkins Sabin no banco das testemunhas. Suponho que o senhor, Mr. Sabin, estará presente durante o inquérito que vai decorrer hoje à noite, em San Molinas? Julgo que o xerife tem as vistas suficientemente largas para ordenar uma investigação completa. De certeza que virão a lume alguns factos bastante interessantes.
O telefone privado e confidencial de Mason tocou estridentemente. Mason pegou no auscultador e ouviu a voz de Paul Drake a dizer:
- Estás ocupado neste momento, Perry?
- Estou.
- Está aí alguém relacionado com este caso?
- Está.
- Creio - disse Drake - que será melhor vires ter comigo à porta do escritório.
- Isso não será necessário - disse Mason. - A reunião que estou a ter com os meus clientes está praticamente no fim. Vem ter comigo daqui a um instante.
Desligou o telefone e estendeu a mão a Sabin.
- Ainda bem que encontrou um testamento - disse.
- Informa-nos, se surgir alguma novidade? Enfim... o que eu quero dizer é se tiver notícias da Helen Watkins Sabin, avise-me do que ela anda a fazer, está bem?
- Provavelmente ela vai continuar fora de circulação - disse Mason - até descobrir quais são as medidas que vão ser tomadas em relação ao decreto de divórcio falsificado.
- Não, aquela mulher não faria uma coisa dessas - disse Charles Sabin.
- O senhor nunca vai conseguir pô-la na defensiva. De certeza que, neste momento, ela está ocupada a arranjar-nos uma bela pilha de sarilhos.
Mason acompanhou-os até à saída.
- Bom - disse, com um sorriso -, pelo menos é enérgica. Quando os seus clientes dobraram a esquina do corredor, Mason ficou parado à porta, à espera de Drake. O detective apareceu uns segundos depois.
- O caminho está desimpedido? - perguntou.
- Está - confirmou Mason, fazendo-o entrar para o seu escritório.
- Acabei de ter uma reunião com o Charles Sabin e o Richard Waid, o secretário. O que descobriste, Paul?
- Querias a lista das chamadas interurbanas que foram efectuadas da cabana - começou Drake. - Pois bem, pus os meus homens a verem a quem correspondiam os números de telefone. Descobrimos o seguinte. O último telefonema de que há registo foi feito na tarde de segunda-feira, dia 5, por volta das quatro horas. Ora, pelo que sei, o secretário diz que, quando o Sabin lhe ligou às dez horas, avisou que o telefone da cabana estava avariado. Está correcto?
Mason anuiu com a cabeça.
- Bom - disse Drake -, se o telefone estava avariado, o Sabin não podia fazer nem receber chamadas. Percebes o que eu quero dizer?
- Não, não percebo - ripostou Mason. - Explica-te lá melhor.
- Bom - disse Drake -, aconteceu qualquer coisa que fez com que o Sabin mandasse o Waid ir a Nova Iorque. Não sabemos o que foi. Não sabemos onde fica a cabina telefónica de onde o Sabin lhe telefonou, mas o mais provável é ter sido a cabina mais próxima da cabana. Saberei mais pormenores quando analisar as chamadas; mas imaginemos que a cabina ficava a uma distância de vinte ou trinta minutos da cabana.
- Aonde é que queres chegar? - perguntou Mason.
- É simples - explicou Drake. - Se o telefone estava avariado a partir das quatro horas e o Sabin telefonou ao Waid a mandá-lo ir a Nova Iorque, o Sabin deve ter recebido alguma informação entre as quatro da tarde e provavelmente as nove e meia da noite que o convenceu de que a Mrs. Sabin estaria em Nova Iorque na noite de quarta-feira, dia 7, para entregar a cópia autenticada do decreto do divórcio e receber o dinheiro.
«Ora, como é que ele recebeu essa informação? Se o telefone estava avariado, não podia tê-la recebido por telefone. Era óbvio que às quatro da tarde ainda não sabia de nada. Ou seja, Perry, essa informação só pode ter sido obtida por intermédio de alguém que foi à cabana.»
- Ou que enviou uma mensagem ao Sabin - disse Mason. - É uma questão interessante, Paul. Claro que não temos a certeza se o telefone ficou avariado logo a seguir às quatro da tarde.
- Pois não - concordou Drake -, não sabemos, mas, por outro lado, é pouco provável que o telefone estivesse a trabalhar quando o Sabin recebeu a notícia de que o divórcio ia ser decretado e que depois tenha avariado assim que ele tentou telefonar a dar a notícia ao Waid... o que teria sido logo a seguir.
- Estás-te a esquecer - lembrou Mason, semicerrando os olhos, pensativo - que aquela linha telefónica estava sob escuta.
- Meu Deus, tens toda a razão! - exclamou Drake.
- Tudo pode acontecer com uma linha sob escuta - disse Mason.
- As pessoas que puseram o telefone sob escuta podem tê-lo desligado num abrir e fechar de olhos.
- Com que objectivo? - perguntou Drake.
- Isso - disse Mason - é o que temos de descobrir.
- Bom - respondeu Drake -, pensei que ficarias particularmente interessado nesse telefonema das quatro horas, por causa do que aconteceu.
- E fiquei - confirmou Mason. - Para quem foi o telefonema?
- Para o Randolph Bolding, o perito em caligrafia.
Mason franziu a testa.
- Por que diabos é que o Sabin havia de querer telefonar a um perito em caligrafia? - perguntou.
- Achas que ele deu uma vista de olhos à cópia autenticada do decreto de divórcio e viu que era uma falsificação? - perguntou Drake.
- Não - respondeu Mason. - O decreto tinha a data de dia 6. Se ele o tivesse visto no dia 5, saberia de imediato que era uma falsificação.
- Tens razão - admitiu Drake.
- Falaste com o Bolding?
- Um dos meus agentes falou - disse Drake, sorrindo - e o Bolding pô-lo na rua. Disse que tudo o que tinha discutido com o Sabin estava salvaguardado pelo sigilo profissional. Por isso, pensei que o melhor era ires tu até lá, Perry, e convencê-lo a ser um menino obediente.
Mason pegou no chapéu.
- Vou a caminho - disse.
Randolph Bolding cultivava meticulosamente uma aparência que, em tempos, Mason descrevera a um júri como sendo de «seriedade profissional sintética». Todos os seus gestos eram calculados de modo a convencer qualquer público de que ele era uma das maiores sumidades da ciência exacta da caligrafia.
Bolding fez uma vénia profunda.
- Como está, Mr. Mason? - cumprimentou.
Mason entrou para o gabinete e sentou-se. Bolding fechou cuidadosamente a porta, sentou-se atrás de uma mesa enorme, alisou o colete e ajustou mecanicamente os papéis em cima do mata-borrão, dando ao seu visitante a oportunidade de olhar para as fotografias ampliadas de várias assinaturas que tinham sido analisadas em tribunal e que adornavam as paredes.
Bruscamente, Mason disse:
- Estava a fazer um trabalho para o Fremont C. Sabin, Bolding?
Bolding levantou os olhos; uns olhos protuberantes, húmidos e inexpressivos.
- Prefiro não responder a essa pergunta.
- Porquê?
- A minha relação com os meus clientes é abrangida pelo sigilo profissional. Exactamente como a sua.
- Represento o Charles Sabin - informou Mason.
- Isso não significa nada para mim - retorquiu Bolding.
- Na qualidade de herdeiro do Fremont C. Sabin, o Charles Sabin tem o direito às informações de que você disponha.
- Não me parece.
- A quem vai comunicar essas informações?
- A ninguém.
Mason cruzou as compridas pernas e recostou-se na cadeira.
- Pois o Charles Sabin - explicou - queria que eu lhe dissesse que achou a sua factura demasiado elevada.
O perito em caligrafia piscou os olhos húmidos várias vezes, muito depressa.
- Mas eu ainda não apresentei a factura - disse.
- Eu sei; mas o Sabin pensa que é demasiado elevada.
- Bom, que tem isso a ver para o caso?
- O Sabin - disse Mason - provavelmente vai ser o testamenteiro.
- Mas como é que ele pode dizer que a minha factura é demasiado elevada sem saber de quanto é?
Mason encolheu os ombros.
- Isso é uma questão que terá de discutir com o Sabin. Claro está que sabe como as coisas são, Bolding. Se o testamenteiro aprovar as facturas a pagar com os fundos da herança, elas são pagas de imediato. Se ele não as aprovar, você tem de meter um processo na justiça para justificar a conta que apresentou. Caso não saiba, é um longo processo.
Bolding contemplou, pensativo, o mata-borrão da mesa durante vários segundos.
Mason espreguiçou-se, bocejou sofregamente e disse:
- Bom, penso que é melhor eu ir andando. Tenho imenso que fazer.
- Espere - disse Bolding, quando Mason se levantou e se dirigiu para a porta. - Esse comportamento não é justo.
- Provavelmente não - concordou Mason, despreocupado. - No entanto, o Sabin é meu cliente e é esta a opinião dele. Você sabe como são os clientes, Bolding. Temos de seguir à risca os desejos e instruções deles.
- Mas é tão injusto - protestou Bolding.
- Não acho - respondeu Mason.
- Não?
- Não.
- Porque não?
- Porque você não está a apresentar uma factura ao Fremont C. Sabin por um serviço que lhe fez pessoalmente - explicou Mason -, está a apresentar uma factura ao administrador da herança por um serviço que fez para preservar os bens do Fremont Sabin em vida dele... pelo menos, suponho que foi essa a ideia.
- Foi, sim - concordou Bolding.
- Pois bem - disse Mason -, você não preservou nada.
Bolding corou.
- Não tenho culpa se o homem morreu antes de pôr os seus planos em prática.
- Não - concordou Mason -, de facto não. No entanto, isso é um problema seu e não nosso. Você é que perdeu um cliente.
- Mas, por lei, tenho direito a ser pago pelos meus serviços. Mil dólares é uma quantia perfeitamente razoável.
- Esteja à vontade - disse Mason - para reclamar os seus honorários. Eu só lhe estava a dar um conselho de amigo, dizendo-lhe que o Charles Sabin acha os seus honorários demasiado elevados. Provavelmente ele vai convocar outros especialistas, que só têm estado à espera de uma oportunidade para deitar o seu negócio abaixo, e pedir-lhes para testemunharem que os seus honorários são, de facto, exorbitantes.
- Está a fazer chantagem comigo? - perguntou Bolding.
- Não, estou só a avisá-lo - respondeu Mason.
- O que é que quer?
- Eu? - perguntou Mason, surpreendido. - Ora, eu não quero nada!
- O que é que o Sabin quer?
- Não sei - disse Mason. - Você vai falar com o Sabin, quando lhe apresentar a factura. Pergunte-lhe nessa altura.
- Não lhe vou perguntar nada.
- Por mim, tudo bem - ripostou Mason. - O Charles Sabin considera os seus honorários um verdadeiro roubo. Diz que, o que quer que você tenha feito, fê-lo a pedido do Fremont Sabin e não do administrador da herança.
- Fi-lo em nome da herança.
- Não estou a ver como - disse Mason.
- Teria de saber do que se tratou para perceber isso - respondeu Bolding.
- Sem dúvida que - admitiu Mason - se eu estivesse a par dos factos, teria uma opinião diferente. Sem dúvida que se o Charles Sabin estivesse a par dos factos, teria também uma opinião diferente. A questão é que ele não está na posse dos factos e, pelos vistos, nunca estará... a tempo de poder proteger a herança.
- Está a pôr-me numa situação muito complicada, Mason - disse Bolding, irritado.
A voz de Mason denotou surpresa.
- Estou? Ora, pensei que isso fosse culpa sua.
Bolding empurrou a cadeira giratória para trás, dirigiu-se para um arquivador de aço, destrancou-o e abriu a gaveta com um gesto brusco e mal-humorado.
- Pronto - disse -, se você vai continuar com essa atitude!
Bolding abriu as pastas e espalhou uns papéis em cima da mesa.
- Richard Waid - disse - era o secretário do Fremont C. Sabin. Tinha uma procuração do Sabin e autorização para assinar cheques até cinco mil dólares. Os cheques de quantias superiores a cinco mil dólares tinham de ser assinados pelo próprio Sabin. Nesta pasta, tenho dezasseis mil e quinhentos dólares em cheques falsificados. Trata-se de três cheques, cada um de mais de cinco mil dólares, e todos eles teriam sido supostamente assinados pelo Sabin. As falsificações foram tão bem feitas que o banco os descontou.
- Como é que foram detectadas? - perguntou Mason.
- O Sabin descobriu-as quando fez uma auditoria à conta bancária.
- Como é que o Waid não deu por nada?
- Porque o Sabin tinha o hábito de passar cheques de tempos a tempos sem dizer nada ao secretário.
- E o Waid acabou por tomar conhecimento dos cheques?
- Não, o Mr. Sabin quis guardar segredo de toda a gente, porque achava que se tratava de um assunto de família.
- O que quer dizer com isso? - perguntou Mason.
- Talvez o melhor seja eu citar directamente da carta que o Fremont Sabin me enviou - disse Bolding - e que esclarecerá a questão. - Pegou numa carta dactilografada, passou a primeira página e leu um trecho da segunda:
«Suponho que será difícil detectar características próprias da caligrafia do falsificador na assinatura em meu nome. No entanto, lembrei-me de que, apesar de os portadores provavelmente serem fictícios, os endossos nas costas do cheque talvez lhe possam dar algumas pistas. Anexo, por conseguinte, além dos cheques, uma carta que me foi enviada pelo Steve Watkins. Dado que o rapaz é filho da minha mulher, pode imaginar a importância que tem manter este assunto no máximo sigilo possível. A imprensa não pode, em circunstância alguma, ter conhecimento disto. O banco obedece à regra do sigilo. Eu próprio nada direi. Por conseguinte, se houver alguma fuga de informação, saberei que se deveu a uma indiscrição da sua parte.
«Assim que chegar a uma conclusão, avise-me, por favor, por telefone. Estarei na minha cabana nas montanhas, na segunda-feira, dia 5, e lá ficarei durante vários dias.»
- A que conclusão é que você chegou? - perguntou Mason.
- Os cheques são falsificações muito bem feitas. A falsificação foi feita à mão livre, isto é, as assinaturas foram rabiscadas a grande velocidade por um falsificador ousado e competente. Não têm vestígios de tremores. Não foram decalcadas. Não há sinais de uma escrita penosa, como é típico de um falsificador lento e desajeitado que se serve da técnica do decalque. Esse tipo de assinatura passa a olho nu, mas ao microscópio tem um aspecto muito diferente dos traços fluidos e céleres de uma assinatura feita rapidamente, como estas.
- Compreendo - disse Mason.
- A assinatura falsificada poderá ser obra do Steven Watkins, o jovem cuja caligrafia o Mr. Sabin me enviou. Não sei. Estou inclinado a pensar que os endossos, porém, não foram feitos pelo jovem Watkins. Na verdade, têm todas as marcas de serem assinaturas genuínas, embora possam ser fictícias.
- Como é que os cheques foram descontados?
- Os cheques foram depositados, cada um, num banco diferente por uma pessoa diferente, que abriu uma conta, deixou-o lá ficar durante uma semana ou duas e depois levantou a totalidade do saldo. As referências, moradas, etc., em cada caso foram inventadas.
- E pensa que o responsável foi o Steve Watkins?
- Sinceramente - disse Bolding -, não... isto é, em relação aos endossos dos cheques. Quanto à falsificação da assinatura, não sei dizer ao certo.
- Deu a sua opinião ao Mr. Sabin?
- Dei.
- Quando?
- Na sexta-feira, 2 de Setembro. Ele estava na cidade e telefonou-me para uma rápida troca de ideias.
- E depois? - perguntou Mason.
- Ele disse que ia pensar no assunto e que depois me dizia alguma coisa.
- E disse?
- Disse.
- Quando?
- Por volta das quatro horas de segunda-feira, dia 5 de Setembro. Era um feriado, mas por acaso eu estava no meu escritório. O Fremont Sabin fez uma chamada interurbana.
- Ele disse onde estava?
- Disse que estava na cabana das montanhas.
- E que mais?
- Que tinha pensado no assunto das falsificações e que me ia enviar outras amostras de caligrafia, num envelope que ia pôr no correio nessa tarde.
- Recebeu esse envelope? - perguntou Mason.
- Não.
- Então, acha que ele não o enviou?
- Parece-me uma dedução plausível.
- Sabe porque não o pôs no correio?
- Não. Pode ter mudado de ideias; pode ter adiado a decisão ou feito um acordo qualquer... talvez um acordo de bens... condicionado pelo facto... Bom, tire as suas próprias conclusões.
- Porque pensa que foi isso que aconteceu? - perguntou Mason.
- Por causa de determinadas circunstâncias que não posso divulgar.
- Dadas as circunstâncias, Bolding, parece-me que os seus serviços foram da máxima importância para a preservação dos bens do Fremont Sabin. Vou aconselhar o testamenteiro a pagar a sua factura.
- Obrigado - disse Bolding, sem entusiasmo.
- Se precisa de dinheiro - disse Mason -, posso adiantar, eu próprio, a quantia da minha conta pessoal e apresentar o montante, mais tarde, ao administrador dos bens.
- Isso seria óptimo - disse Bolding.
- A sua factura era de mil dólares? - perguntou Mason.
- Mil e quinhentos.
- Claro está que eu ficaria na posse dos documentos do processo, em nome do administrador - informou Mason.
- Com certeza.
Mason puxou do livro de cheques, passou um cheque no valor de mil e quinhentos dólares, rabiscou a descrição da factura de Bolding nas costas do cheque e entregou-o ao perito em caligrafia.
- A sua assinatura nas costas do cheque - disse - servirá de recibo da quantia paga e anulará o seu direito a quaisquer bens provenientes da herança.
- Obrigado - disse Bolding. Guardou o cheque no bolso, tirou um envelope da gaveta da secretária, colocou os cheques e as cartas de Sabin dentro dele e entregou-o ao advogado. Em seguida, levantou-se, dirigiu-se para a porta do gabinete e abriu-a.
Nesse instante, Mason ouviu o dique... dique... dique rápido e nervoso dos saltos altos de uns sapatos de mulher. Recuou, de modo a ficar escondido atrás da porta, quando ouviu Helen Watkins Sabin dizer:
- Aposto que pensou que eu não ia cá voltar com o dinheiro, não foi, Mr. Bolding? Pois bem, aqui está, mil dólares em dez notas de cem dólares. Agora, dê-me um recibo, entregue-me os documentos e...
Bolding interrompeu-a:
- Peço desculpa, Mrs. Sabin, mas importa-se de entrar para o outro gabinete? Tenho um cliente aqui comigo.
- Pois o seu cliente pode sair à vontade - disse ela. - Ele que finja que não me vê. Você estava aí parado à porta para o fazer sair, por isso pode simplesmente fazer-me entrar.
Ela passou por Bolding para entrar no gabinete e, de repente, deu de caras com Perry Mason.
- Você! - exclamou. Mason fez uma vénia.
- O que faz você aqui? - perguntou ela.
- Vim buscar provas - disse Mason.
- Provas de quê?
- Provas do que poderá ter sido um motivo para assassinar o Fremont Sabin.
- Tretas - disse ela. - O Mr. Bolding não tem provas nenhumas nesse sentido.
- Quer dizer que sabe que tipo de provas ele tem na sua posse? - perguntou Mason.
- Não vim aqui para ser interrogada - disse ela. - Tenho assuntos para tratar com o Mr. Bolding e não quero que você assista à nossa conversa.
- Muito bem - disse Mason e saiu para o corredor.
Tinha acabado de chegar junto do elevador, quando ouviu uma porta a abrir e a fechar com violência. Ouviu alguém a correr pelo corredor fora e, quando se virou, deparou-se com Mrs. Sabin precipitando-se para ele com uma expressão ameaçadora.
- Você obteve esses documentos junto do Bolding - acusou ela.
- Exactamente - confirmou Mason.
- Pagou-lhe quinhentos dólares a mais e ficou com os documentos. Pois não pense que se vai safar assim. Não tem direito nenhum a eles. Eu sou a viúva do Fremont. Tenho o direito a todos os bens dele. Dê-me esses documentos imediatamente.
- Há algumas dúvidas - disse Mason - quanto à pessoa que vai administrar os bens. Há, inclusive, algumas dúvidas se a senhora é, de facto, viúva do Fremont Sabin.
- Se se meter comigo - ameaçou ela -, vai arrepender-se. Eu quero esses papéis e vou ficar com eles. Pode poupar tempo a toda a gente entregando-mos já.
- Mas eu não quero poupar tempo - disse Mason, com um frio sorriso. - Não tenho pressa nenhuma.
Os olhos dela cintilaram com a intensidade das emoções que a assolavam.
- Você vai tentar acusar o Steve de alguma coisa - disse ela. - Mas não vai conseguir. Estou a avisá-lo.
- Acusá-lo de quê? - perguntou Mason.
- Sabe muito bem de quê. Dessas falsificações.
- Não estou a acusar ninguém de nada - disse Mason. - Estou simplesmente a tomar posse de umas provas.
- Pois não tem direito a isso. Eu encarrego-me das provas.
- Ah, não - disse Mason. - Não posso permitir uma coisa dessas. A senhora podia perder os cheques falsificados. Estamos a atravessar um momento difícil e empolgante, Mrs. Sabin. Se a senhora perdesse estes cheques e não conseguisse encontrá-los novamente, estaria a dar uma oportunidade única ao falsificador de escapar disto tudo impunemente... sobretudo tendo em conta que o falsificador é, quase de certeza, o assassino.
- Tretas! - exclamou ela. - A Helen Monteith é que é a assassina! Eu descobri tudo sobre ela. Mas imagino que você é bem capaz de meter o Steve ao barulho só para a salvar, não é?
Mason sorriu e disse:
- Pois sou.
- Vai dar-me esses cheques?
- Não.
- Vai arrepender-se.
- Já agora - comentou Mason, num tom muito cordial -, o inquérito realiza-se hoje à noite, em San Molinas. Penso que o xerife vai intimá-la a depor e...
Ela bateu com o pé.
- Isto é o equivalente a um roubo. Acho que há uma lei sobre isso. Todos os bens pertencentes ao falecido...
- Um cheque falsificado é um bem? - perguntou Mason.
- Bom, seja como for, eu quero esses documentos.
- Foi o que eu pensei - respondeu Mason afavelmente.
- Oh! - exclamou ela. - Seu... seu... seu...
Precipitou-se sobre ele, tentando arrancar o envelope que o advogado tinha guardado no bolso interior do casaco. Mason empurrou-a calmamente para o lado e disse:
- Isto não a leva a lado nenhum, Mrs. Sabin.
Uma luz vermelha piscou, quando a cabina do elevador parou no andar.
Mason entrou.
- Também desce, minha senhora? - perguntou o ascensorista a Mrs. Sabin.
- Não - disse ela, e girou sobre os calcanhares, voltando a passo belicoso para o escritório de Randolph Bolding.
Mason desceu no elevador e, de carro, dirigiu-se de imediato para uma estação dos correios. Selou cuidadosamente o envelope que continha os cheques falsificados e as várias cartas, e endereçou-o ao xerife Barnes de San Molinas. A seguir, colocou os selos no envelope e enfiou-o no marco.
Perry Mason, Della Street e Paul Drake sentaram-se os três no banco da frente do carro de Mason. O papagaio ia no banco de trás, com a gaiola parcialmente coberta por uma manta.
Drake, olhando para o relógio, disse:
- Vais chegar cedíssimo, Perry.
- Quero falar com o xerife e com a Helen Monteith - disse Mason. Quando o advogado desviou o automóvel para fora do trânsito da cidade e meteu pela auto-estrada, Drake disse:
- Bom, parece que o teu palpite estava certo, Perry, em relação a esta história do divórcio. É muito provável que a Helen Watkins não tenha chegado a divorciar-se de Rufus Watkins. Encontrámos uma testemunha que diz que a Helen Watkins lhe contou que não se divorciou. Isso foi duas semanas antes de ela começar a trabalhar para o Fremont C. Sabin.
- Não pode ter-se divorciado depois? - inquiriu Mason.
- Não sei, Perry, mas estou mais inclinado a pensar que não o fez. E que ela morava na Califórnia e não podia sair de lá para se instalar noutro estado onde o processo de divórcio fosse mais rápido. Se pedisse o divórcio na Califórnia, teria de esperar um ano para que o despacho interlocutório fosse definitivo e só depois poderia voltar a casar-se, o que não encaixava nada bem nos planos dela. Ainda nem trabalhava para o Sabin há três semanas e já andava a tentar fisgá-lo.
- Então, e o Rufus Watkins? - perguntou Mason. - Ela não pode ter feito um acordo com ele, para que fosse ele a pedir o divórcio?
- Essa é a grande questão - disse Drake. - Ela pode ter feito isso, mas parece que esperou até depois de estar casada com o Sabin para se mexer e, por essa altura, já o Rufus tinha a faca e o queijo na mão para fazer uma bela chantagem.
- Isso são deduções tuas - perguntou Mason - ou tens provas para sustentar a tua teoria?
- Ainda não sei ao certo - disse Drake -, mas parece que temos provas para a sustentar. Soubemos que a conta bancária da Helen Watkins Sabin foi utilizada para pagar alguns cheques em nome de Rufus W. Smith. Estamos a averiguar essa informação e a tentar encontrar o tal Rufus W. Smith. Sabemos que a descrição geral dele corresponde à do Rufus Watkins, mas ainda não conseguimos determinar se são realmente uma e a mesma pessoa.
- Excelente trabalho, Paul - disse Mason. - Isso dá-nos uma boa base para avançarmos.
- Claro está, Perry, que há muitas coisas a pesarem contra a Helen Monteith - salientou Drake. - As autoridades descobriram uma testemunha que a viu nas proximidades da cabana, por volta do meio-dia de 6 de Setembro.
- Isso - admitiu Mason - não a ajudaria nada, de facto.
- Bom, talvez não passe de um boato - disse Drake. - Foi o meu agente em San Molinas que ouviu dizer.
- Vamos falar com o xerife assim que lá chegarmos - anunciou Mason.
- Talvez ele esteja disposto a pôr as cartas na mesa.
- Chefe, ela pura e simplesmente não pode ser culpada de homicídio - disse Della Street. - Ela estava mesmo apaixonada por ele.
- Eu sei - concordou Mason -, mas a verdade é que deixou muitas provas circunstanciais à solta... A propósito, há aqui uma questão jurídica muito interessante. Se realmente ela é viúva do Fremont Sabin, então vai herdar uma parte dos bens dele, porque o testamento perde a validade por causa dela.
- Como assim? - perguntou Drake.
- Um testamento - explicou Mason - é revogado pelo casamento subsequente do testador. Por outro lado, um testamento que não tenha em conta a situação da esposa, sendo essa omissão aparentemente não intencional, também fica sujeito a contestação. Quanto mais aprofundamos isto, Paul, mais hipóteses surgem.
Percorreram vários quilómetros num silêncio pensativo, até que, subitamente, vinda do banco de trás, se ouviu a voz rouca do papagaio:
- Baixa essa arma, Helen! Não dispares!... Meu Deus, deste-me um tiro!
- Temos dois suspeitos neste caso - disse Drake -, ambos chamados Helen. Perry, se apresentares o papagaio como prova de que a Helen Watkins Sabin disparou o tiro, o delegado do Ministério Público vai virar a tua prova contra ti para demonstrar que a autora do crime foi a Helen Monteith.
Mason sorriu.
- Esse papagaio, Paul, é capaz de ser uma testemunha bem melhor do que tu pensas.
O xerife Barnes tinha um gabinete na ala sul do velho tribunal. A luz do sol da tarde, jorrando pelas janelas, incidia sobre móveis desconjuntados e um chão coberto de linóleo, que em vários sítios se apresentava completamente gasto. Os placards afixados na parede estavam forrados com circulares impressas sobre pessoas procuradas por diferentes crimes. Em frente a essas folhas, na parede oposta, encontravam-se expositores de vidro com várias armas letais que tinham sido usadas em homicídios que entraram para a história do condado.
O xerife Barnes estava sentado atrás de uma antiquada escrivaninha com o tampo de correr, numa cadeira giratória decrépita, que rangia monotonamente sempre que ele se movia para trás e para a frente.
Enquanto Perry Mason falava, o xerife tirou um pedaço de tabaco de mascar do bolso das calças, abriu um canivete, cuja lâmina estava fininha de tanto ser afiada, e cortou uma ponta de tabaco preto e húmido.
Assim que Mason acabou de falar, o xerife ficou calado durante uns momentos, enrolando o tabaco na língua; em seguida, pousou o seu olhar firme e pensativo no advogado, e disse:
- São todos os factos de que dispõe?
- É um resumo geral de tudo - disse Mason. - Pus as minhas cartas todas na mesa.
- Não devia ter feito o que fez para arranjar a factura telefónica - disse o xerife a Paul Drake. - Tivemos alguma dificuldade em obter um duplicado da factura. Atrasou-nos um bocado a investigação.
- Desculpe - disse Mason -, a culpa foi minha. Eu assumo a responsabilidade.
O xerife balouçou o seu peso lentamente para a frente e para trás na cadeira que chiava.
- A que conclusões chegou? - perguntou ele.
- Penso que ainda não estou pronto para tirar conclusões - informou Mason. - Preferia esperar até depois do inquérito.
- Acha que nessa altura já o poderá fazer?
- Creio que sim - disse Mason -, se me fosse permitido interrogar as testemunhas.
- Essa tarefa cabe ao juiz de instrução, não é? - perguntou o xerife.
- É - confirmou Mason -, mas pensei que o juiz de instrução poderia fazer o que o xerife sugerisse que fosse melhor, para bem da justiça.
- Penso que ele teria sempre de consultar o delegado do Ministério Público - comentou o xerife, pensativo.
- Nesse caso - disse Mason -, estamos perdidos. Foi por isso que eu disse que não queria tirar nenhuma conclusão a partir das provas. Assim que uma pessoa tira conclusões, começa a interpretar os factos à luz da sua teoria e deixa de ser um avaliador imparcial. Foi o que aconteceu ao Raymond Sprague. Ele tirou a conclusão de que eu estou contra a justiça; que, por conseguinte, os meus métodos são forçosamente contra a justiça; e que, posto isso, ele só pode servir a justiça barrando-me o caminho a cada oportunidade que tiver. Também concluiu que a Helen Monteith é culpada de homicídio e, como tal, interpreta todos os factos à luz dessa teoria.
- Não está a ser demasiado duro para com o Sprague? - perguntou o xerife.
- Julgo que não - respondeu Mason. - No fim de contas, ele é humano.
O xerife mascou o pedaço de tabaco e, depois, lentamente, assentiu com a cabeça e disse:
- Uma das coisas que critico neste estado é a maneira como avalia a eficiência dos delegados do Ministério Público. O estado tem um registo dos julgamentos criminais realizados nos diferentes condados e avalia a eficiência dos delegados do Ministério através da percentagem de condenações que eles conseguem obter nos processos julgados. Ora, isso não está certo. Se eu quisesse avaliar um delegado, dava-lhe mais pontos por descobrir que alguém era inocente e por evitar levar essa pessoa a julgamento, do que por conseguir uma condenação só porque foi a tribunal.
Paul Drake fez menção de dizer qualquer coisa, mas Mason mandou-o calar com um gesto.
- Claro está - continuou o xerife Barnes - que o Raymond Sprague tem de pensar no seu futuro. O Sprague é um bom rapaz, mas quer fazer carreira política. Ele sabe que, quando se candidatar a um cargo político, seja ele qual for, as pessoas vão analisar o seu registo de condenações enquanto delegado do Ministério Público.
«Ora, eu sou diferente. Sou o xerife e é só isso que quero ser: xerife. Sei que tenho imenso poder ao meu dispor e quero usá-lo de uma maneira justa e correcta para com toda a gente. Não quero que um inocente seja condenado.»
- Nesse caso - disse Mason -, não acha que seria mais justo que a culpa ou a inocência fossem determinadas durante o inquérito do juiz de instrução, hoje à noite? Talvez assim não fosse necessário levar o caso a tribunal. Se a Helen Monteith não for inocente, a acusação tem tudo a ganhar, deixando-me apresentar todos os meus factos ao júri do juiz de instrução. Se ela for inocente, a acusação também tem tudo a ganhar, não se apresentando em tribunal com um processo importante para depois ver um júri passar o veredicto de inocente.
- Claro está - disse o xerife - que se fizéssemos isso durante o inquérito do juiz de instrução, não nos poderíamos pôr com muitas objecções e protestos; teríamos de ir direitos às questões essenciais. Você não poderia começar a levantar demasiadas objecções às perguntas, Mason.
- Não o farei - prometeu Mason.
- Bom - disse o xerife -, vou ver o que se pode arranjar.
- Preferia - disse Mason - que não comentasse o assunto com o Sprague. Isto é, não quero revelar o meu jogo ao Sprague. Prefiro ser sincero consigo.
- Não - respondeu o xerife -, eu estou a trabalhar a par com o delegado do Ministério Público; o delegado tem de saber tudo o que se passa. Talvez ele esteja disposto a dar-lhe uma oportunidade. Ou talvez não. Vou ser muito honesto consigo: se ele aceitar deixá-lo falar, será para o ver enforcar-se, Mason.
- Por mim, tudo bem - disse o advogado. - Só quero que me dêem essa oportunidade.
- Terá de ter tacto - avisou o xerife. - O Sprague não vai gostar, se você der a sensação de estar a atacar as provas todas.
- Eu compreendo - disse Mason. - Vou tentar dar a sensação de estar a colaborar com o delegado; se realmente posso colaborar com ele ou não, depende do ponto de vista do Sprague.
O xerife Barnes olhou pela janela. A luz do sol incidiu nos traços do seu rosto duro e reflectiu-se nos fios grisalhos dos seus cabelos. Cerrou os lábios durante uns pensativos dez segundos e, depois, cuspiu o tabaco para dentro de um escarrador.
- Bom - disse -, veremos o que se pode fazer. Se percebi bem, a única coisa que você quer é apresentar as provas perante o júri de instrução.
- É isso mesmo - confirmou Mason - e gostava de o fazer de maneira a que o júri de instrução pensasse que eu estava a tentar ajudar o juiz. Como disse antes, quando as pessoas metem ideias fixas na cabeça, interpretam tudo à luz dessas teorias. Basta ver a política, por exemplo. Às vezes, olhamos para determinados acontecimentos do passado e o seu significado fatídico parece-nos tão óbvio que não percebemos como é que as pessoas não viram isso imediatamente. E no entanto, milhões de eleitores, na época, viram esses factos e deturparam o seu significado para que eles pudessem sustentar as suas crenças políticas erradas.
«O mesmo se aplica às coisas que acontecem no presente. Daqui a uns anos, olharemos para trás, espantados com o facto de as pessoas não terem visto os sinais de fatalidade que se apresentavam no horizonte político. Daqui a vinte anos, até o aluno de liceu mais burro será capaz de perceber a importância desses sinais e os resultados que inevitavelmente daí decorrerão. Mas, neste momento, temos vinte e cinco milhões de pessoas que pensam o contrário. E ambas as partes julgam que estão a interpretares factos correctamente. (1)
O xerife levantou-se, fazendo com que a cadeira soltasse um longo e derradeiro chiar de protesto, que provocou um estremecimento em Della Street.
- Bom - disse ele -, daqui a cerca de uma hora, eu dou-lhe uma resposta. Vou ter de falar com o juiz de instrução e o delegado do Ministério.
Nota 1: Note-se que Erle Stanley Gardner publicou este livro em 1939, ano em que rebentou a Segunda Guerra Mundial. (N. da T.)
Pessoalmente, Mason, estou do seu lado. Não sou eu que estou à frente da acusação, mas estou à frente do departamento de investigação criminal. Um homicídio foi perpetrado no meu condado e eu vou fazer tudo o que puder para descobrir quem cometeu esse crime. Penso que você não é imparcial, porque acredita que a Helen Monteith é inocente, enquanto eu julgo que ela é culpada. Como é natural, você está a tentar proteger a sua cliente. Por outro lado, tem muito mais experiência do que eu no que toca a grandes casos de homicídio. Não vou permitir que me manipule, mas tenciono deixá-lo dar-me toda a ajuda que puder e ainda lhe agradeço.
«E, agora, quer ver a Helen Monteith?»
Mason fez um sinal de assentimento.
- Muito bem - disse o xerife -, para isso terá de ir à cadeia, mas só você é que poderá falar com ela. Os seus colegas não podem vir connosco.
Assim que o xerife Barnes abriu a pesada porta de ferro, Mason entrou no gabinete de chão de cimento da cadeia. O ambiente estava impregnado com um cheiro adocicado e enjoativo a desinfectante industrial e com as emanações psíquicas de tantos reclusos desanimados. O efeito era estranhamente deprimente para qualquer pessoa que ainda não se tivesse tornado imune a ele.
- Ela está na ala de detenção - disse o xerife -, que fica ali ao fundo. A encarregada é mulher do director da prisão. Vou chamá-la. Entretanto, você pode esperar naquela sala.
Mason entrou no pequeno gabinete e esperou cerca de cinco minutos até que a mulher do director trouxe Helen Monteith.
- Então - disse a rapariga, deixando-se cair numa cadeira -, o que é que quer?
- Quero ajudá-la, se puder - respondeu Mason.
- Receio que não seja possível Parece que enfiei o pé na argola, e de que maneira!
A encarregada disse:
- Eu fico aqui do lado de fora da porta e...
- Vá-se embora e feche a porta - mandou o xerife. - Deixe-os falar em particular.
Assim que a porta se fechou, Mason disse:
- Conte-me o que aconteceu.
Helen Monteith parecia à beira de um esgotamento mental.
- Oh, para quê? - disse ela. - ...Eu acho que estava simplesmente demasiado feliz, mais nada... Nunca desci tão baixo na vida. Quando isto tudo terminar, de certeza que já não tenho emprego. O único homem que amei na vida está morto. Estou a ser acusada de o ter assassinado e... e... Piscou os olhos para conter as lágrimas e disse: - Não, não vou chorar. Está tudo bem. Quando uma mulher chega à minha idade, chorar passa a ser um sinal de autocomiseração e eu não tenciono começar a ter pena de mim mesma.
- Porque fugiu da Della Street? - perguntou Mason.
- Porque - disse ela, no mesmo tom de desalento - queria ir a casa queimar as cartas que recebi do... do meu marido - rematou, com um toque de desafio na voz.
- Afinal, é possível que ele fosse realmente seu marido legítimo. Há algumas dúvidas quanto à validade do casamento dele com a Helen Watkins. Se me ajudar, talvez consigamos fazer alguma coisa por si.
- O senhor não pode fazer nada por mim - disse ela, cansada. - Eles têm tudo contra mim. Ainda não lhe contei a pior arma que eles têm contra mim.
- O quê? - perguntou Mason.
- Eu fui à cabana das montanhas na terça-feira, dia 6.
- Porquê? - quis saber Mason.
- Por sentimentalismo. Ninguém vai acreditar em mim, nunca ninguém poderia entender. Acho que é preciso estar apaixonado para compreender o meu ponto de vista e provavelmente teria de ser um amor que viesse depois de uma grande desilusão romântica. Seja como for, voltei lá simplesmente porque fui muito feliz naquela casa. Tive vontade de sentir o cheiro da floresta, desfrutar do sol, da paz e do sossego que rodeiam a cabana. Os esquilos eram tão dados, os gaios tão atrevidos e curiosos... Quis reviver mentalmente a felicidade que senti.
- Porque não contou isso à polícia?
- Não queria parecer ridícula. É o mesmo que se passa com as cartas de amor. Parecem sagradas e cheias de ternura quando as lemos, mas quando são lidas em tribunal, são simplesmente atrozes.
- Alguém a viu lá?
- Sim, fui detida por excesso de velocidade. Ou melhor, o agente da Brigada de Trânsito diz que eu ia com excesso de velocidade. Pessoalmente, acho que ele só queria preencher a sua quota de multas do dia. Era uma curva íngreme e ele disse que havia um limite de vinte e cinco quilómetros por hora e que eu ia a quarenta... Seja como for, ele anotou a matrícula do meu carro e passou-me uma multa, que eu assinei. A polícia descobriu isso, o que me deixa numa grande alhada.
- Então, e a arma? - perguntou Mason.
- O meu marido pediu-me para eu lhe arranjar aquela arma.
- Ele disse para quê?
- Não. Ligou-me para a biblioteca e perguntou-me se havia alguma arma na colecção que ainda funcionasse. Eu disse-lhe que não sabia, mas que supunha que sim. Ele explicou que tinha visto uma pistola que lhe parecia estar em bom estado e para a qual ele achava que conseguiríamos arranjar munições. Pediu-me para lhe arranjar a arma e comprar munições. Disse que só a queria durante uns dias e que depois eu podia guardá-la novamente entre as outras.
- Esse pedido não lhe pareceu descabido? - perguntou Mason.
- É claro que não. Eu estava apaixonada - disse ela simplesmente, no tom de alguém que levara uma vida familiar feliz e que, depois, fora destruída por uma qualquer catástrofe.
- Portanto, voltou a sua casa para queimar as cartas?
- Sim.
- Não foi para esconder as munições?
- Não.
- Mas tentou esconder as munições?
- Quando lá cheguei, pensei que seria boa ideia desfazer-me delas.
- E o papagaio? - perguntou Mason. - Matou o papagaio?
- Deus nos livre, não! Porque haveria eu de querer matar o papagaio?
- Provavelmente reparou - disse Mason - que o papagaio não parava de dizer: «Baixa essa arma, Helen... Não dispares... Meu Deus, deste-me um tiro.»
- Mas eu não tenho culpa disso - respondeu ela. - O meu marido comprou aquele papagaio numa loja de animais, na sexta-feira dia 2. Não sou responsável pelas coisas que um papagaio diz. Além do mais, aquele pássaro nunca esteve sequer perto da cabana.
Subitamente, os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas.
- Eu não acredito, pura e simplesmente não acredito que ele alguma vez tenha planeado fazer alguma coisa que não fosse para meu bem. Oh, meu Deus, porque é que ele teve de morrer? Era tão carinhoso e meigo e atencioso e tinha um feitio magnífico...!
Mason aproximou-se dela e pousou a mão no ombro da jovem.
- Tenha calma - disse ele -, poupe os seus nervos ao máximo. Esta noite, vai passar por uma dura prova diante do júri de instrução.
- O que quer que eu faça? - perguntou ela, tentando conter os soluços.
- Que lhes di-di-ga que me recuso a responder a perguntas? Acho que é o conselho que os me-me-melhores advogados dão aos clientes acusados de ho-ho-homicídio.
- Pelo contrário - disse Mason -, você vai sentar-se no banco das testemunhas e responder a todas as perguntas. Por mais que eles lhe façam acusações, ou que tentem intimidá-la, você vai manter a calma e contar-lhes simplesmente a verdade. Vai ser uma dura prova, mas a Helen vai sair dela airosamente.
- Não era essa a sua postura, ontem à noite - disse ela. - Na altura, estava a tentar manter-me longe da polícia.
- Da polícia, não - corrigiu Mason. - Eu estava a tentar mantê-la longe de um assassino de papagaios.
- Como assim?
- Pensei - explicou Mason - que era muito provável alguém tentar matar o papagaio que estava em sua casa. Se você lá estivesse e ouvisse o intruso... Bom, quem quer que tenha matado o papagaio já cometera um homicídio. Mais um ou menos um não teria feito grande diferença.
- Mas como é que soube que alguém ia tentar matar o papagaio?
- Era só um palpite - disse Mason. - Acha-se capaz de aguentar a prova desta noite?
- Vou tentar - prometeu ela.
- Muito bem. Anime-se - urgiu Mason. - Liberte-se desse sentimento de desespero.
- Vou tentar manter a cabeça bem erguida e aguentar as pancadas - disse ela. - Há apenas uns dias, pensava que era a mulher mais feliz à face da terra. Agora, se me deixasse levar pela autocomiseração, sentiria que era a mais infeliz. Que reviravolta!
- Eu sei - disse Mason, solidário.
- Perdi o homem que amava e, como se isso não bastasse, sou acusada do assassínio.
- Essa acusação não vai durar muito tempo - garantiu Mason.
Helen Monteith esboçou um sorriso e levantou ligeiramente a cabeça.
- Muito bem, vamos lá.
Andy Templet, o juiz de instrução, tendo adquirido uma certa fama de homem filosófico e prático, não se deixou intimidar pela presença lisonjeira da imprensa, que fizera preparativos para cobrir o inquérito. Posou, com toda a calma e serenidade, para os fotógrafos da imprensa, que fotografavam os seus olhos brilhantes e generosos e o sorriso que lhe aflorava os lábios. Depois de dar início ao inquérito e de seleccionar o júri de instrução, fez um breve discurso sem grandes pretensões de eloquência.
- Muito bem - disse -, temos de determinar a causa da morte neste caso. Por outras palavras, temos de descobrir como é que este homem morreu. Se alguém o matou, e alguma das partes souber quem foi esse alguém, pode dizê-lo. Se não souber, é melhor não tentar atribuir a culpa a ninguém. Não estamos aqui para julgar ninguém. Estamos apenas a tentar determinar como é que Fremont C. Sabin morreu, na sua cabana das montanhas.
«Ora, o juiz de instrução tem por missão levar a cabo os inquéritos judiciais. A maior parte das vezes, deixa o delegado do Ministério Público fazer as perguntas, quando o delegado assim o deseja, mas isso não significa que é o delegado quem conduz o inquérito. Significa simplesmente que o delegado está aqui para nos ajudar e, num caso desta natureza, está aqui para tentar encontrar factos que o ajudarão a condenar o assassino. O xerife também é uma parte interessada no processo e o xerife tem um advogado aqui presente, Mr. Perry Mason. Mr. Mason representa os herdeiros... isto é, um dos herdeiros. Mr. Mason quer descobrir como é que o assassínio foi cometido. Mr. Mason também representa Helen Monteith.
«Quero que todos os presentes compreendam que não vamos ter golpes teatrais, nem perorações, nem objecções de meia hora. Vamos avançar com o inquérito sem demoras, e se as provas não forem expostas correctamente, a responsabilidade é minha. Não quero que ninguém apresente nada além dos factos. Não quero que ninguém tente desestabilizar as testemunhas.
«Vou começar por fazer algumas perguntas. Quando terminar, deixarei o delegado do Ministério Público fazer o mesmo, Perry Mason a seguir e os jurados podem igualmente intervir. Mas vamos restringir-nos ao essencial e iremos direitos ao assunto. Toda a gente percebeu?»
- Eu percebi - disse Perry Mason.
O delegado do Ministério Público respondeu:
- Convém dizer que o juiz de instrução pode considerar como uma questão de ordem técnica uma coisa que para mim não é, e nesse caso...
- ...e nesse caso - interrompeu o juiz -, o que eu penso será aquilo que conta. Não passo de um simples cidadão comum e banal. Tentei arranjar um júri de instrução composto por cidadãos igualmente simples, comuns e banais. O objectivo deste inquérito é dar ao júri de instrução a oportunidade de determinar o que aconteceu. Não temos aqui um júri de advogados. Temos um júri de cidadãos. Eu julgo saber o que eles querem... Seja como for, sei o que eu quero.
Andy Templet silenciou o burburinho que percorreu a sala do tribunal e disse:
- Julgo que devemos começar pelo vizinho que encontrou o corpo. Fred Waner apresentou-se e prestou juramento. Indicou o seu nome, morada e profissão.
- Foi o senhor quem encontrou o corpo, não é verdade, Mr. Waner?
- Sim.
- Onde?
- Na cabana que o falecido tinha nas montanhas, em Grizzly Flats.
- Ele era proprietário de uma cabana nessa região?
- Era.
- Ora, tenho aqui umas fotografias. Mais tarde, voltaremos a elas, mas são fotos da cabana. Olhe bem para elas e diga-me se se trata da cabana em causa.
- É essa, sim. São fotos da cabana de Mr. Sabin.
- Muito bem. O senhor encontrou o corpo no interior da casa. Quando?
- No domingo, dia 11 de Setembro.
- A que horas?
- Por volta das três ou quatro da tarde.
- O que aconteceu?
- Bom, eu ia na estrada, a caminho de minha casa, e perguntei-me se o Sabin já teria chegado para participar na pesca. Não o tinha visto, mas geralmente ele vinha assim que abriam a pesca em Grizzly Creek, por isso parei o carro para ir dar uma vista de olhos à cabana e ouvi o papagaio a gritar que nem um desvairado. Por isso. disse cá para comigo: «Bom, se o papagaio está em casa, ele também está» e fui até à porta. As portadas estavam todas fechadas, como quando a cabana se encontra desocupada, e a garagem estava trancada, por isso pensei: «Enganei-me, afinal não está ninguém em casa.» Quando já me ia embora, ouvi o papagaio outra vez.
- O que é que ele estava a dizer? - perguntou o juiz. Waner sorriu e disse:
- O papagaio estava a praguejar como um camionista; tinha fome.
- Então, o que fez?
- Bom, perguntei-me se o Sabin teria deixado o papagaio em casa sozinho. Pensei que talvez tivesse ido pescar, mas não percebi porque teria fechado todas as portadas. Saí do carro e fui inspeccionar a casa. A garagem estava trancada, mas consegui abrir uma nesga da porta, o suficiente para ver que o carro do Sabin estava lá dentro, por isso dei a volta à cabana e fui bater à porta, mas ninguém respondeu; por fim, pensando que talvez se passasse alguma coisa de errado, abri uma das portadas à força e espreitei lá para dentro. O papagaio não parava de gritar e, quando olhei para o interior, vi a mão de um homem estendida no chão. Abri a janela e entrei. Vi logo que o homem já estava morto há bastante tempo. Havia um bocado de comida de pássaro no chão e uma panela com vestígios de água. mas a água já se tinha evaporado. Peguei imediatamente no telefone e liguei para a polícia. Não toquei em nada.
- E a seguir, o que fez?
- A seguir, saí para apanhar ar e fechei a casa até o senhor juiz chegar - disse a testemunha.
- Creio que não é necessário fazer mais nenhuma pergunta a esta testemunha, pois não? - perguntou o juiz.
O delegado do Ministério disse:
- Eu gostava de fazer uma pergunta, só para estabelecer o facto jurisdicional. O corpo era o de Fremont C. Sabin?
- Sim, já estava em estado de decomposição, mas era o Sabin, sem dúvida.
- Há quanto tempo conhecia Fremont C. Sabin?
- Há cinco anos.
- Penso que é tudo - disse o delegado.
- Só mais uma pergunta - interveio o juiz. - Ninguém tocou em nada até eu chegar, pois não, Mr. Waner?
- Em absolutamente nada, tirando o telefone.
- E o xerife foi até lá comigo, não foi?
- Sim, foi isso que aconteceu.
- Bom, ouçamos o xerife - disse o juiz de instrução.
O xerife Barnes instalou-se no banco das testemunhas, cruzou as pernas e recostou-se, à vontade.
- Muito bem, xerife - começou o juiz -, conte-nos o que viu quando chegámos à cabana de Sabin.
- Bom, o corpo estava estendido no chão, sobre o lado esquerdo. Tinha o braço esquerdo esticado e os dedos fechados. O braço direito estava deitado por cima do corpo. A cena não era bonita de se ver. Abrimos todas as janelas para deixar entrar o máximo de ar possível... inspeccionámos as janelas antes de as abrirmos, como é óbvio, para nos certificarmos de que estavam trancadas por dentro e de que não havia indícios de terem sido forçadas.
«A porta tinha uma fechadura de mola e estava fechada, por isso quem cometeu o assassínio saiu da cabana e fechou a porta atrás de si. Metemos o papagaio na gaiola e trancámo-la. A porta da gaiola tinha sido aberta e presa com um graveto. Peguei num pau de giz e delineei a posição do corpo no chão e a posição da arma, e depois o juiz de instrução analisou as roupas e, a seguir, um fotógrafo tirou fotos do corpo, que estava estendido no chão.»
- Tem cópias dessas fotografias aqui consigo? - perguntou o juiz.
- Tenho, sim - respondeu o xerife, e apresentou algumas fotos. Pegando nelas, o juiz de instrução disse:
- Muito bem, vou entregá-las ao júri daqui a pouco. Vamos agora averiguar o que aconteceu.
- Bom, depois de termos retirado o corpo e arejado a casa - explicou o xerife -, analisámos o interior todo. Vou começar pela cozinha. Havia um caixote do lixo na cozinha, dentro do qual estavam as cascas de dois ovos e um bocado de bacon, um resto de torrada dura, muito queimada de um lado, e uma pequena lata aberta de feijão com carne de porco. No fogão, ele tinha um fogão a gás lá instalado, estava uma frigideira, que servira para aquecer um bocado de feijão com carne de porco, há já bastante tempo. A frigideira estava toda ressequida e os feijões tinham ficado duros e colados à volta do fundo. A cafeteira que se encontrava no fogão ainda tinha algum café feito e muito café moído no depósito. Havia um prato e uma faca e um garfo no lava-louça. O prato servira para comer o feijão. A geleira tinha um resto de manteiga, um frasco com natas e duas embalagens de queijo por abrir. Havia um armário cheio de comida enlatada e uma caixa de pão, que tinha metade de um cacete e um saco com duas dúzias de bolachas.
«Na sala, havia uma mesa sobre a qual se encontrava uma cana de pesca, uma série de iscos e um cesto com um resto de peixe podre. O peixe estava ali há tanto tempo quanto o corpo. Arranjámos uma caixa para guardar o cesto, vedámo-la para que ficasse o mais estanque possível e fechámo-la com pregos, sem tocarmos no conteúdo. Depois, analisámos a arma e verificámos que era uma pistola de calibre .41, com cartuchos usados nos dois barris. O corpo tinha dois buracos de bala abaixo do coração e, pela posição deles, deduzimos que ambos os barris da arma tinham sido disparados ao mesmo tempo.
«Estavam umas botas de borracha junto da mesa, com restos de lama seca; na mesinha-de-cabeceira, encontrava-se um despertador, que tinha parado nas duas e quarenta e sete. O despertador fora posto para as cinco e meia; o relógio, em si, tinha deixado de trabalhar. O corpo estava vestido com umas calças largas, uma camisa e uma camisola fina. Calçava meias de lã e pantufas.
«Havia um telefone na cabana e, no dia seguinte, quando Perry Mason e o sargento Holcomb estavam a ajudar-me a fazer a investigação, descobrimos que a linha telefónica tinha sido posta sob escuta. A pessoa que o fez instalara a sua central numa cabana, a cerca de trezentos e cinquenta metros da cabana de Sabin. Tratava-se claramente de uma velha cabana abandonada que fora arranjada para instalar a central de escutas telefónicas. Encontrámos indícios de que a pessoa que lá estava se foi embora à pressa. Havia um cigarro na mesa, que tinha sido aceso e logo a seguir esquecido em cima do tampo, ficando reduzido a cinzas. O pó indicava que a cabana não era usada há cerca de uma semana e pouco.»
- Helen Monteith fez algum depoimento sobre a arma? - perguntou o juiz.
- Fez, sim - confirmou o xerife. - Mas fê-lo só hoje.
- Espere um instante - disse o delegado do Ministério Público. - Esse depoimento foi feito de livre e espontânea vontade, e não em troca de quaisquer promessas ou instigações?
- Exactamente - disse o xerife. - O senhor perguntou-lhe se ela já tinha visto aquela arma antes e ela disse que sim. Disse que a tirara da colecção da biblioteca a pedido do marido e, depois, comprara munições, e que lhe entregara a arma e as munições no sábado, dia 3 de Setembro.
- Ela disse quem era o marido? - inquiriu o delegado.
- Sim, disse que o homem a quem se referia como seu marido era Fremont C. Sabin.
- Alguém quer fazer alguma pergunta ao xerife? - perguntou o juiz.
- Não - respondeu Mason.
- Penso que é tudo, por agora - disse o delegado.
- Chamo Helen Monteith ao banco das testemunhas - anunciou o juiz de instrução. Virou-se para o júri de instrução e disse: - Penso que Mr. Mason não quererá que a sua cliente faça um depoimento nesta altura. Provavelmente ela vai recusar-se a responder às perguntas, por estar detida por suspeita de homicídio, mas eu vou seguir o procedimento normal, deixando os senhores verem-na, pelo menos, e ouvirem o que ela diz quando se recusar a responder.
Helen Monteith apresentou-se, prestou juramento e sentou-se no banco das testemunhas.
Mason disse ao juiz de instrução:
- Ao contrário do que, pelos vistos, o senhor estava à espera, não aconselhei Miss Monteith a recusar-se a responder às perguntas. Aliás, sugiro que Miss Monteith se vire para o júri e conte a sua história com palavras suas.
Helen Monteith virou-se para o júri. Todo o seu comportamento denotava um profundo cansaço mas, ao mesmo tempo, havia qualquer coisa de desafio, de orgulho, no seu rosto. Contou a história do indivíduo que começara a frequentar a biblioteca e travara conhecimento com ela, conhecimento esse que se transformara numa amizade e, mais tarde, em amor. Falou do seu casamento; do fim-de-semana de lua-de-mel passado na cabana das montanhas. Aos poucos, reconstituiu o seu romance perante o júri e o choque que sentiu quando soube da tragédia.
Raymond Sprague estava tão ansioso por interrogá-la que quase se precipitou para ela.
- A senhora tirou a arma da colecção do museu?
- Tirei.
- Porquê?
- Porque o meu marido me pediu uma arma.
- Porque é que não comprou uma arma?
- Ele disse-me que precisava de uma imediatamente e que, por lei, qualquer loja demoraria três dias a entregar-lhe uma, depois de feito o pedido de encomenda.
- Ele disse para que queria a arma?
- Não.
- Sabia que, ao tirar aquela arma, estava a cometer um furto?
- Não a roubei, pedi-a emprestada.
- Ah, quer dizer que Sabin prometeu devolvê-la, foi?
- Foi.
- E a senhora quer mesmo convencer este júri de que Fremont C. Sabin lhe pediu deliberadamente para roubar a arma com a qual foi assassinado?
- Não responda, Miss Monteith - disse Mason. - Limite-se a relatar os factos. Penso que o júri a compreenderá perfeitamente.
Sprague virou-se agressivamente para Mason e disse:
- Pensava que não nos íamos pôr a discutir questões de ordem técnica.
- E não estamos a fazê-lo - sossegou-o Mason, com um sorriso.
- Esse seu protesto foi de ordem técnica.
- Não foi nada - contrapôs Mason. - Foi apenas uma instrução minha para a cliente não responder à pergunta.
- Exijo que ela responda - disse o delegado ao juiz de instrução.
- Penso que pode interrogar Miss Monteith apenas quanto aos factos, Mr. Sprague - disse o juiz. - Não lhe pergunte de que é que ela quer convencer o júri.
Corando, Sprague disse:
- E o papagaio?
- Está a falar do Casanova?
- Sim.
- Mr. Sabin comprou-o... ou melhor, foi isso que eu percebi.
- Quando?
- Na sexta-feira, dia 2 de Setembro.
- O que é que ele disse, quando levou o papagaio para sua casa?
- Disse simplesmente que sempre quisera ter um papagaio e que, portanto, resolvera comprar um.
- E a senhora teve o papagaio em sua casa, desde então?
- Sim.
- Onde se encontrava no domingo, 4 de Setembro?
- Estava com o meu marido.
- Onde?
- Em Santa Delbarra.
- Ficou instalada num hotel?
- Sim.
- Sob que nome?
- Mrs. George Wallman, como é óbvio.
- E Fremont C. Sabin era o indivíduo que dava pelo nome de George Wallman, que se encontrava lá consigo?
- Era.
- E ele tinha a arma com ele, nessa altura?
- Penso que sim. Não sei. Não a vi.
- Ele disse se tencionava voltar para a cabana, para a abertura da temporada de pesca?
- Claro que não. Ele estava a querer convencer-me de que era um homem pobre, à procura de emprego. Disse-me que segunda-feira era feriado, mas que, apesar disso, tinha de ir ver umas pessoas, por isso voltámos para casa na segunda-feira.
- No dia 5?
- Sim.
- Onde esteve na terça-feira, dia 6?
- Estive na biblioteca durante uma parte do dia e... e no resto do tempo fui até à cabana, de automóvel.
- Ah, quer dizer que esteve na cabana na terça-feira, dia 6?
- Sim, foi isso que eu disse.
- E o que é que lá fez?
- Limitei-me a dar uma volta e a olhar para a cabana.
- A que horas?
- Por volta das onze da manhã.
- Em que estado se encontrava a cabana nessa altura?
- No mesmo estado que da última vez que eu a vira.
- As portadas estavam fechadas?
- Estavam.
- Exactamente como aparecem naquela fotografia?
- Sim.
- Ouviu algum papagaio?
- Não.
- A cabana parecia vazia?
- Sim.
- Reparou se estava algum carro na garagem?
- Não.
- O que fez?
- Limitei-me a dar umas voltas de carro e depois vim-me embora.
- Porque foi até lá?
- Fui até lá para... bom, simplesmente para ver a cabana. Tinha algum tempo livre e apeteceu-me ir dar uma volta e achei que esse seria um bom passeio.
- Ainda era uma distância bastante grande, não era?
- Sim.
- A senhora tem noção de que as provas indicam que Fremont C. Sabin foi assassinado por volta das dez e meia, onze horas da manhã do dia 6 de Setembro?
- Tenho.
- E que ele chegou à cabana na tarde de segunda-feira, dia 5 de Setembro?
- Sim.
- E quer convencer o júri de que encontrou a cabana com as portadas fechadas, de que não viu sinais de a casa estar ocupada, de que não ouviu nenhum papagaio e de que não viu Mr. Sabin nessa altura?
- É isso mesmo. Encontrei a cabana exactamente como a descrevi e não vi Mr. Sabin. Não fazia ideia de que ele lá estava. Pensava que ele se encontrava em Santa Delbarra, à procura de um local para montar uma mercearia.
- Julgo que a testemunha já deu todas as informações que tinha para dar - disse Mason. - Penso que fazer mais perguntas constituiria um contra-interrogatório e seria argumentativo. Se não há novas informações a solicitar à testemunha, aviso o juiz de instrução e o delegado do Ministério Público de que, a menos que entremos numa nova fase do processo, vou instruir a minha cliente para não responder a mais nenhuma questão.
- Eu dou início a uma nova fase do processo - disse o delegado, em tom de ameaça. - Quem matou o papagaio que estava em sua casa?
- Não sei.
- Esse papagaio foi levado para sua casa na sexta-feira, dia 2?
- Exactamente.
- E no sábado, dia 3, a senhora foi-se embora com o seu marido?
- Não, o meu marido foi-se embora no sábado à tarde e seguiu para Santa Delbarra. Segunda-feira era feriado. Eu fui de automóvel para Santa Delbarra no domingo e passei essa noite e a manhã de segunda-feira com ele no hotel. Voltei para San Molinas na segunda-feira à noite. A minha vizinha do lado, a Mrs. Winters, tinha ficado a tomar conta do papagaio. Como cheguei demasiado tarde à noite, já não pude ir lá buscá-lo. No dia seguinte, terça-feira, dia 6, eu só tinha de ir para a biblioteca às três da tarde. Apetecia-me estar sozinha, longe das pessoas, por isso levantei-me cedo de manhã e fui de carro até à cabana. Voltei a tempo de ir directamente para a biblioteca, às três horas.
- É ou não é verdade - insistiu o delegado do Ministério Público que a senhora regressou a sua casa hoje de madrugada, com o objectivo, entre outras coisas, de matar o papagaio que lá se encontrava, o papagaio que a sua vizinha do lado, a Mrs. Winters, guardara, enquanto a senhora passava a sua chamada lua-de-mel com a pessoa a quem se referiu como sendo seu marido, na dita cabana das montanhas?
- Não, não é verdade. Eu nem sequer sabia que o papagaio estava morto, só soube quando o xerife me contou.
- Talvez eu possa refrescar a sua memória em relação a este assunto, Miss Monteith - disse o delegado.
Virou-se e fez sinal ao seu adjunto, um rapaz que se encontrava parado perto da porta. O adjunto foi lá fora buscar qualquer coisa embrulhada num pano e voltou, apressado, para a sala, passando pelas filas de espectadores de cabeça virada para o ver, e entregou o estranho embrulho a Sprague.
Com um gesto teatral, o delegado Sprague afastou o pano. Todas as pessoas presentes na sala soltaram uma exclamação, ao verem o que o pano tapava: uma gaiola de pássaro manchada de sangue, em cujo fundo jazia o cadáver hirto de um papagaio decapitado.
- Isto - disse o delegado teatralmente - foi obra sua, não foi, Miss Monteith?
O tronco de Helen Monteith oscilou ligeiramente, no banco das testemunhas.
- Estou tonta... - disse. - Por favor, leve isso daqui... O sangue... O delegado virou-se para os espectadores e, triunfal, anunciou:
- A assassina vacila quando é confrontada com as provas do seu...
- Não é nada disso - rugiu Mason, pondo-se de pé e dirigindo-se a passos belicosos para Sprague. - Esta jovem foi submetida a um tratamento inumano. No curto espaço de vinte e quatro horas, soube que o homem que amava, e que ela considerava seu marido, tinha sido assassinado. Ninguém a reconfortou na sua hora de luto. Em vez de reconforto, foi arrastada para as primeiras páginas dos jornais e...
- Está a fazer um discurso? - interrompeu o delegado do Ministério.
- Não, estou a terminar o seu - retorquiu Mason.
- Pois eu sou muito bem capaz de o fazer sozinho - gritou o delegado.
- Se tentar acabar esse discurso que começou - ameaçou Mason -, você vai-se...
O juiz de instrução bateu com o martelo. O xerife, saltando da cadeira, aproximou-se a passos determinados.
- Ordem na sala - disse o juiz.
- Eu respeito a ordem - disse Mason -, se o senhor impedir o delegado de fazer discursos. A questão é que esta jovem, que foi submetida a uma pressão psicológica premeditada, de modo a deixá-la histérica, se viu subitamente confrontada com um espectáculo sangrento e macabro. A sua compreensível repugnância é interpretada pelo delegado como uma mostra de culpa. Ele é livre de pensar o que quiser, mas quando se põe a fazer discursos sobre isso...
- Eu não fiz nenhum discurso - disse o delegado.
- Bom - comentou o juiz -, acabaram-se os discursos de ambas as partes. Estou inclinado a pensar que realmente é excessivo para qualquer rapariga ver-se subitamente exposta a um espectáculo macabro como este.
- O objectivo desta artimanha teatral - disse Mason - foi única e simplesmente tirar proveito do estado nervoso de Miss Monteith.
- Não foi a minha intenção - defendeu-se o delegado.
- Então, qual foi? - perguntou o juiz.
- Queria apenas que ela identificasse o papagaio como sendo o mesmo que o marido lhe deu na sexta-feira, dia 2 de Setembro.
- Pode fazer isso - disse Mason - sem atirar com esta parafernália toda ensanguentada para cima dela.
- Não preciso das suas opiniões - ripostou Sprague. O xerife aproximou-se.
- Se o juiz quiser tomar alguma decisão judicial - disse ele secamente -, eu estou aqui para a executar.
- O juiz vai tomar uma decisão judicial - anunciou Andy Templet.
- O juiz estipula que não haverá mais nenhuma troca de comentários pessoais entre as partes. O juiz também determina que não haverá mais nenhuma apresentação inesperada e teatral de peças de roupa manchadas de sangue, gaiolas ou pássaros mortos.
- Mas eu só queria que o papagaio fosse identificado - teimou o delegado.
- Escusa de se repetir, que eu ouvi-o da primeira vez - disse o juiz -, e espero que o senhor tenha ouvido o que eu disse. Agora, avancemos com o inquérito.
- É tudo - disse o delegado.
- Posso fazer uma pergunta? - inquiriu Mason. O juiz de instrução fez um sinal de assentimento.
Mason deu um passo em frente e, numa voz baixa e afável, disse:
- Não quero submeter os seus nervos a mais nenhuma pressão escusada, Miss Monteith, mas peço-lhe que tente olhar para o papagaio. Quero que o analise atentamente e me diga se este é, de facto, o papagaio que o seu marido levou para sua casa.
Helen Monteith fez um esforço para se controlar. Virou-se e olhou para o papagaio inerte no fundo da gaiola, mas depois desviou bruscamente a cabeça.
- N-n-não consigo - disse, numa voz trémula -, mas o papagaio que o meu marido trouxe para minha casa tinha uma garra a menos. Penso que era na pata direita. O meu marido disse que ele tinha ficado com a pata presa numa ratoeira e que...
- Este papagaio tem as garras todas - anunciou Mason.
- Então, não é o mesmo papagaio.
- Um instante - disse Mason. - Vou pedir-lhe para fazer outra identificação.
Fez sinal a Paul Drake que, por sua vez, passou palavra a um agente que estava à espera no corredor. O agente entrou na sala com um papagaio dentro de uma gaiola.
Por entre um silêncio tão tenso que os passos do detective se ouviram enquanto ele percorria o corredor alcatifado entre os bancos, de repente, o papagaio engaiolado desatou a rir-se estridentemente.
Os lábios de Helen Monteith tremeram. Aparentemente, ela estava a fazer um esforço sobre-humano para não entrar em histeria.
Mason tirou o papagaio engaiolado das mãos do agente.
- Chiu, Louro - disse ele.
O papagaio virou a cabeça primeiro para um lado, depois para o outro, e olhou em redor da sala com uns olhos brilhantes de malícia; depois, quando Mason pousou a gaiola na mesa, o pássaro prendeu o bico nos arames cruzados da gaiola e deu a volta, percorrendo a parte de cima de cabeça para baixo e, no fim, regressou ao poleiro como se estivesse orgulhoso da sua façanha.
- Lindo menino - disse Mason.
O papagaio arranhou as patas no poleiro.
Helen Monteith virou-se para observar o papagaio.
- Oh - disse ela -, mas é o Casanova...! O xerife disse-me que ele tinha sido morto.
O papagaio, inclinando ligeiramente a cabeça para o lado, disse numa voz gutural e rouca:
- Entre e sente-se, sim? Entre e sente-se, tem aí uma cadeira... - Lançou dois gritos - Baixa essa arma, Helen... Não dispares... Meu Deus, deste-me um tiro!
Os espectadores ficaram de olhos arregalados a assistir àquele drama, em que o papagaio aparentemente estava a acusar a testemunha.
- É mesmo o Casanova! - exclamou Helen Monteith. O delegado do Ministério Público disse teatralmente:
- Quero que as palavras do papagaio fiquem registadas em acta. O papagaio está a acusar a testemunha. Quero que isso fique registado em acta.
Mason fitou o delegado com um meio sorriso ao canto da boca.
- Tem noção - inquiriu - de que está a tomar este papagaio como sua testemunha?
- O papagaio fez uma declaração. Quero que fique em acta - insistiu o delegado.
- Mas o papagaio não fez o juramento como qualquer testemunha - comentou Mason.
O delegado apelou para o juiz.
- O papagaio fez uma declaração. Foi uma declaração claramente audível.
- Eu gostava de saber - disse Mason - se o delegado do Ministério Público está a fazer do papagaio uma testemunha.
- Não estou a falar de testemunhas - contrapôs Sprague. - Estou a falar de papagaios. Este papagaio fez uma declaração e eu quero que fique registada em acta.
- Se o papagaio vai ser considerado uma testemunha - disse Mason -, eu devia ter o direito de o contra-interrogar.
- Bom - decidiu o juiz -, um papagaio não pode ser uma testemunha, mas é verdade que, de facto, ele falou. Essas palavras podem ficar registadas em acta, mas com as devidas salvaguardas. Penso que o júri de instrução compreende perfeitamente a situação. Nunca fui apologista de escrever coisas na acta e depois apagá-las. Quando os jurados ouvem uma coisa, depois não dá para voltar atrás e fingir que não ouviram nada. Agora, continuemos com o inquérito.
- Não tenho mais nenhuma pergunta a fazer - disse Mason.
- É tudo - corroborou Sprague -, a não ser... esperem... Miss Monteith, se este papagaio é o Casanova, então de onde saiu o papagaio que foi assassinado?
- Não sei - disse ela.
- Estava em sua casa.
- Não tenho culpa disso.
- A senhora deve ter tido alguma coisa a ver com o assunto.
- Não tive.
- Mas tem a certeza de que este é o Casanova?
- Tenho. Reconheço-o por causa da garra que falta e pelo que ele disse sobre baixar a arma.
- Ah, quer dizer que já tinha ouvido isso antes?
- Já. O meu marido comentou isso comigo, quando trouxe o pássaro para casa.
O delegado do Ministério disse:
- Miss Monteith, não estou convencido de que a sua violenta reacção ao ver este papagaio morto tenha sido o mero resultado do seu estado nervoso. Por conseguinte, insisto para que a senhora observe atentamente este papagaio e...
Mason pôs-se de pé e disse:
- Não precisa de olhar para o papagaio, Miss Monteith. Sprague corou e disse:
- Eu insisto nisso.
- E eu insisto no contrário - ripostou Mason. - Miss Monteith não vai responder a mais nenhuma pergunta. Ela já fez o seu papel de testemunha. Está sob uma pressão emocional enorme. Penso que o júri compreenderá a minha posição, enquanto seu advogado, ao anunciar que ela já terminou o seu testemunho. Miss Monteith deu ao delegado e ao juiz de instrução uma oportunidade de lhe fazerem todas as perguntas que eram razoáveis. Não quero que o interrogatório se prolongue escusadamente.
- Ele não pode fazer isso - queixou-se Sprague ao juiz.
- Já o fiz - anunciou Mason.
- Não sei se pode ou não pode fazê-lo - disse o juiz -, mas vejo que esta jovem está nervosa. Não creio que você esteja a tomar isso em conta, Sprague. Em circunstâncias normais, uma viúva costuma receber os pêsames e o reconforto das outras pessoas, que tentam poupá-la a qualquer trauma nervoso. Esta testemunha foi, de facto, submetida a uma série de provações nas últimas vinte e quatro horas. No que me toca, enquanto juiz de instrução do processo, ela pode descer do banco das testemunhas. Estamos a tentar fazer este inquérito numa só sessão. O meu objectivo é obter os factos, mais nada. E quero que continuemos a avançar. Terá oportunidade de sobra para interrogá-la em tribunal, no banco das testemunhas... E, agora, peço a Helen Watkins Sabin que se apresente para depor.
- Ela não está cá - informou o xerife.
- Onde é que está?
- Não sei, não consegui entregar-lhe a intimação para depor.
- E Steve Watkins?
- A mesma coisa.
- E Waid, o secretário, está aqui?
- Está. Foi intimado e encontra-se presente.
- Bom, ouçamos o sargento Holcomb - decidiu o juiz. - Sargento Holcomb, apresente-se para prestar juramento, por favor.
O sargento Holcomb sentou-se no banco das testemunhas.
- O senhor é sargento da Brigada de Homicídios da Polícia Metropolitana, não é verdade, sargento? - perguntou o juiz. - E conhece a fundo os procedimentos de investigação de casos de homicídio e o método científico para apreender criminosos?
- Correcto - disse o sargento Holcomb.
- Ora, o senhor recebeu uma caixa que o xerife Barnes lhe enviou com o cesto de peixe?
- Sim, recebemo-la no laboratório técnico da polícia. O xerife Barnes já nos tinha telefonado a avisar que ia enviá-la.
- O que descobriu relativamente ao peixe? - perguntou o juiz.
- Fizemos alguns testes - disse o sargento Holcomb. - Não fui eu próprio quem fez os testes, mas estive presente durante os mesmos e sei o que os peritos descobriram.
- O que foi?
- Descobriram que o cesto continha o limite máximo de peixe que a lei permitia pescar de uma assentada; que o peixe estava, como é óbvio, em avançado estado de decomposição, mas, tanto quanto puderam determinar, o peixe tinha sido amanhado e embrulhado em folhas de salgueiro. Não tinha sido lavado depois de embrulhado nas folhas.
- E no dia seguinte, o senhor foi à cabana com o xerife Barnes?
- Exactamente. O xerife Barnes queria que eu visse a cabana e tínhamos combinado encontrar-nos com Richard Waid lá. Ele estava a chegar de Nova Iorque, de avião, e queríamos falar com ele num lugar onde a nossa primeira conversa não fosse interrompida por jornalistas.
- Muito bem, continue - incitou o juiz.
- Bom - prosseguiu Holcomb -, fomos até à cabana e encontrámos Mr. Mason na estrada que conduzia à casa. Richard Waid chegou quando já estávamos dentro da cabana.
- O que encontraram na cabana, em termos físicos? - perguntou o juiz.
- Sensivelmente o mesmo que foi descrito.
- Neste momento - disse o juiz -, penso que o júri devia olhar bem para todas as fotografias, porque eu vou fazer algumas perguntas ao sargento Holcomb sobre elas.
O juiz esperou que as fotografias chegassem às mãos dos jurados e, depois, virou-se novamente para o sargento Holcomb.
- Sargento Holcomb - disse -, quero que partilhe com os elementos deste júri a sua experiência de agente no terreno. Quero que lhes explique o que as várias coisas presentes na cabana indicam.
O juiz de instrução olhou para Perry Mason e disse:
- Suponho que vai protestar que se trata de conclusões pessoais da testemunha, mas parece-me que este homem tem muita experiência e não vejo porque é que ele não há-de...
- Não, não tenho nenhum protesto a fazer - disse Mason. - Parece-me uma pergunta extremamente pertinente. Julgo que é uma maneira perfeitamente adequada de averiguarmos os principais factos do caso.
O sargento Holcomb instalou-se numa posição mais confortável no banco das testemunhas, fitou intensamente o júri e disse:
- Helen Monteith matou Fremont C. Sabin. Há dezenas de pormenores, suficientes para construir um processo absolutamente incontestável contra ela, perante qualquer júri. Em primeiro lugar, ela tinha um motivo para cometer o crime. Sabin casara-se com ela sob um nome falso; colocara-a na situação de mulher bígama. Mentira-lhe, iludira-a e enganara-a. Quando descobriu que o homem com quem se casara era Fremont C. Sabin, e que Sabin tinha uma mulher, deu-lhe um tiro. Provavelmente não tencionava alvejá-lo quando foi à cabana. A nossa experiência mostra que, em homicídios passionais como este, é frequente uma mulher pegar numa arma só para ameaçar um homem, para o assustar, ou para o fazer ver que não deve brincar com ela; depois, tendo-lhe apontado a arma, é muito fácil premir o gatilho, é quase que um reflexo inconsciente, um abandono momentâneo à emoção. O resultado, claro está, é desastroso.
«Em segundo lugar, Helen Monteith tinha a arma do crime na sua posse. A declaração que fez, de que a entregou ao marido, é obviamente absurda, porque o crime não pode ter sido um suicídio. O indivíduo não se mexeu mais, depois de cair ao chão. A arma foi encontrada a alguma distância do corpo e tinha sido limpa para eliminar as impressões digitais.
«Em terceiro lugar, ela admite ter estado presente na cabana, no preciso momento em que Sabin foi morto. Por conseguinte, Helen Monteith teve o motivo, os meios e a oportunidade de cometer o crime.»
- Como é que estabeleceu a hora a que ocorreu o homicídio? - perguntou o juiz.
- É uma questão de fazer as deduções certas a partir das provas circunstanciais - disse o sargento Holcomb.
- Espere aí - interrompeu Mason. - Não seria melhor deixarmos o sargento explicar ao júri os vários factores que determinam o elemento tempo, neste processo, e deixar os jurados tirarem as suas próprias conclusões?
- Não sei - hesitou o juiz. - Estou a tentar despachar o inquérito o mais depressa possível.
- Seria completamente disparatado - opinou o sargento Holcomb - recorrer a um procedimento desses. A interpretação das provas circunstanciais é algo que requer um treino altamente especializado. Há coisas a partir das quais até um leigo é capaz de fazer deduções lógicas mas, quando se trata de uma questão complicada, são precisos anos de experiência. Eu tenho essa experiência necessária e as devidas qualificações para interpretar as provas em prol do júri. E digo que Fremont C. Sabin morreu algures entre as dez da manhã e o meio-dia de terça-feira, dia 6 de Setembro.
- Explique ao júri como é que interpretou as provas de modo a estabelecer a hora do crime - pediu o juiz.
- Em primeiro lugar, pegamos nos factos conhecidos e raciocinamos a partir deles - disse o sargento Holcomb. - Sabemos que Fremont C. Sabin tencionava ir para a sua cabana na segunda-feira, dia 5, para aproveitar a abertura da temporada de pesca no dia 6. Sabemos que, de facto, ele assim fez; sabemos que estava vivo às dez da noite do dia 5 de Setembro, porque falou com o secretário ao telefone. Sabemos que se foi deitar, que deu corda ao relógio e pôs o despertador. Sabemos que o despertador tocou às cinco e meia da manhã. Sabemos que ele se levantou, saiu e apanhou o limite máximo de peixe permitido pela lei. É problemático determinar quanto tempo terá demorado a apanhar essa quantidade de peixe, mas, conversando sobre as condições de pesca com outros pescadores do riacho, parece que, e isto na melhor das hipóteses, ele não poderia ter apanhado aquela quantidade antes das nove e meia da manhã. Voltou para a cabana, portanto, entre as dez e as onze da manhã. Já tinha tomado o pequeno-almoço, dois ovos, provavelmente mexidos, bacon e café, mas ficou outra vez com fome. Abriu uma lata de feijão, aqueceu-a e comeu-a. Fez isto antes mesmo de se dar ao trabalho de colocar o peixe na geleira. Deixou o peixe dentro do cesto, tencionando guardá-lo na geleira depois de o lavar. Mas tinha tanta fome que preferiu comer antes de tratar do peixe. Em circunstâncias normais, teria guardado o peixe imediatamente a seguir ao almoço, provavelmente antes de lavar a louça. Mas não foi isso que fez.
- Por que diz que o crime ocorreu antes do meio-dia? - perguntou o juiz.
- São essas pequenas coisas -- disse o sargento Holcomb, com nítido orgulho - que saltam aos olhos de um investigador experiente e de mais ninguém. O corpo envergava umas calças e uma camisola ligeira. Pelas observações que fiz relativamente à temperatura dentro da cabana, verifiquei que esta varia muitíssimo. A sombra naquela zona de arvoredo é tal que o sol só atinge o telhado depois das onze da manhã. A partir daí, a casa aquece muito depressa até cerca das quatro horas, altura em que a sombra recai novamente sobre o telhado e, a seguir, o interior arrefece muito depressa, ficando frio à noite.
«Ora, havia lenha pronta na lareira, mas esta não tinha sido acesa, o que mostra que não era assim tão tarde e que a casa ainda não tinha arrefecido. Do meio-dia até às quatro da tarde, estaria demasiado calor para que uma pessoa se sentisse confortável de camisola. Os registos indicam que os dias cinco, seis e sete foram muito quentes, isto é, quentes durante o dia. Àquela altitude nas montanhas, arrefecia muito depressa à noite. Era preciso acender a lareira ao serão, para evitar sentir frio. Não nos podemos esquecer de que aquela cabana é apenas uma cabana de montanha, de construção muito ligeira e mal isolada em termos térmicos, ao contrário do que acontece com as casas urbanas.»
- Compreendo - disse o juiz aprovadoramente. - Portanto, pensa que Mr. Sabin terá regressado e comido o seu segundo pequeno-almoço, ou almoço, antes de o sol incidir no telhado?
- Exactamente.
- Penso que isso explica perfeitamente a situação - rematou o juiz.
- Posso fazer uma ou duas perguntas? - inquiriu Mason.
- Com certeza.
- Como é que sabe - perguntou Mason - que Mr. Sabin não morreu, digamos, por exemplo, na quarta-feira dia 7 em vez de no dia 6?
- Em parte, por causa do estado do corpo - disse o sargento Holcomb.
- O corpo estava na cabana há pelo menos seis dias. Provavelmente sete. Com o calor e o ar estagnado dentro da sala, a decomposição ocorreu muito depressa. Além disso, há outra razão. O falecido tinha comido bacon e ovos ao pequeno-almoço. Mr. Sabin era um pescador entusiasta. Foi para a cabana com o objectivo de pescar na manhã de abertura da temporada de pesca. É impensável que ele tenha ido pescar nessa primeira manhã e não tenha apanhado pelo menos algum peixe. Se tivesse apanhado, haveria indícios de ele ter comido peixe ao pequeno-almoço, na manhã seguinte, em vez de bacon e ovos. Não havia restos de peixe em lado nenhum no caixote do lixo, nem na lixeira nas traseiras da casa, para a qual o conteúdo do caixote do lixo era transferido todos os dias.
E o sargento Holcomb sorriu para o júri, como quem diz: «E isto mostra como é fácil evitar as ratoeiras de um advogado.»
- Muito bem - disse Mason. - Analisemos as coisas de outra perspectiva. A lenha foi colocada na lareira, mas não foi ateada, certo?
- Correcto.
- Ora, faz bastante frio dentro de casa, de manhã?
- Bastante.
- E à noite?
- Também.
- Ora, segundo a sua teoria, o despertador tocou às cinco e meia da manhã e Mr. Sabin levantou-se para ir pescar, não é assim?
- É.
- E preparou um pequeno-almoço muito sumário?
- Um pequeno-almoço apressado, diria eu - corrigiu o sargento Holcomb. - Quando uma pessoa se levanta às cinco e meia da manhã no primeiro dia da temporada de pesca, está doida para sair de casa e ir pescar.
- Estou a ver - disse Mason. - Ora, quando Mr. Sabin voltou da pesca, estava cheio de pressa para comer qualquer coisa. Podemos depreender que a primeira coisa que fez, ao entrar em casa, e logo a seguir a ter descalçado as botas, foi preparar qualquer coisa para comer. A seguir, em termos de prioridade, ele teria lavado o peixe e colocado tudo na geleira. Correcto?
- Correcto.
- No entanto, segundo a sua teoria - disse Mason -, quando ele voltou para casa, deu-se ao trabalho de dispor a lenha na lareira, pronta para acender, antes mesmo de tratar do peixe.
O rosto do sargento Holcomb turvou-se por uns instante e, depois, ele disse:
- Não, ele deve ter feito isso na noite anterior. - Reflectiu um momento e, triunfal, acrescentou: - É claro que o fez na noite anterior. De manhã, não teve tempo para preparar a lareira; estava frio quando se levantou, mas ele foi direito à cozinha, fez o pequeno-almoço e, depois, saiu para ir pescar.
- Exactamente - disse Mason. - Mas ele tinha motivos para acender a lareira na noite anterior, creio eu.
- O que é que quer dizer?
- Por outras palavras - explicou Mason -, sabemos que ele estava na cabana às quatro da tarde de segunda-feira, dia 5. Podemos deduzir que ele permaneceu na cabana até pouco antes das dez horas da noite, hora a que saiu para ir fazer um telefonema. Se estava frio na segunda-feira à noite, por que razão não acendeu ele a lareira?
- Ele acendeu-a - disse o sargento Holcomb. - Deve ter acendido. Não há nada que mostre que não o fez.
- Exactamente - continuou Mason. - Mas quando o corpo foi encontrado, havia lenha fresca na lareira. Ora, segundo a sua teoria, ou ele colocou essa lenha na segunda-feira à noite, numa grade que tinha acabado de ser usada... ou então preparou-a no dia seguinte, quando voltou da pesca. Isto é, ele deu-se ao trabalho de preparar a lareira antes de tratar do peixe. Isso parece-lhe lógico?
O sargento Holcomb hesitou um instante e, em seguida, disse:
- Bom, essa é uma daquelas coisas de somenos importância. Não é particularmente relevante. Acontece imensas vezes encontrarmos pequenas coisas que são mais ou menos incoerentes com a interpretação geral das provas.
- Compreendo - disse Mason. - E quando o senhor se depara com essas pequenas coisas, o que é que faz, sargento?
- Ignoro-as - respondeu o sargento Holcomb.
- E quantas pequenas coisas desse género é que ignorou para tirar a conclusão de que Fremont C. Sabin foi assassinado por Helen Monteith?
- Essa foi a única - disse o sargento Holcomb.
- Muito bem, analisemos as provas de uma perspectiva ligeiramente diferente. Peguemos no pormenor do despertador, por exemplo. O despertador tinha ficado sem corda, não foi?
- Sim.
- E onde estava o despertador?
- Na prateleira junto da cama... ou melhor, numa mesinha-de-cabeceira.
- Perto da cama?
- Sim.
- A uma distância que permitisse um fácil acesso?
- Sim.
- E já agora - insistiu Mason -, a cama estava feita, certo?
- Sim.
- Ou seja, depois de se levantar de madrugada, às cinco e meia, para ir pescar, Mr. Sabin demorou-se o tempo suficiente para preparar a lenha na lareira, fazer a cama e lavar a louça do pequeno-almoço?
- Uma cama não demora assim tanto tempo a fazer - ripostou o sargento Holcomb.
- A propósito - inquiriu Mason -, reparou se a cama estava feita de lavado?
- Estava, sim.
- Então, ele não só fez a cama, como ainda por cima mudou os lençóis. Encontrou os lençóis sujos algures na cabana, sargento?
- Não me lembro - disse o sargento Holcomb.
- Não há nenhum sítio para se lavar roupa na cabana. A roupa suja é metida no carro de Mr. Sabin e lavada na cidade, e depois transportada de tempos a tempos de volta para a cabana, não é verdade?
- Penso que sim.
- Nesse caso, o que foi feito dos lençóis sujos? - perguntou Mason.
- Não sei - respondeu o sargento Holcomb, irritado. - Nem sempre se consegue ligar esses pormenores todos.
- Exactamente - disse Mason. - Ora, voltemos ao despertador, sargento. O despertador estava completamente sem corda?
- Estava.
- O relógio tinha um botão que permitia desligar o despertador quando tocava?
- Sim, claro que sim, qualquer bom relógio tem.
- Pois. E este relógio era bom?
- Era.
- No entanto, o despertador não tinha sido desligado?
- Não reparei... bom, não, penso que não. Como estava sem corda nenhuma...
- Pois. Ora, na sua experiência, sargento, enquanto perito na interpretação de provas circunstanciais, uma pessoa costuma deixar o despertador tocar até ficar sem corda e só depois é que o desliga?
- Há pessoas que têm o sono mais pesado do que outras - disse o sargento.
- É verdade - concordou Mason -, mas quando uma pessoa é despertada por um despertador, o primeiro reflexo é desligá-lo, não é? Estando o despertador a uma curta distância da pessoa?
- Bom, não se pode generalizar - disse o sargento Holcomb, cujo rosto começou lentamente a corar. - Há quem volte a adormecer depois de desligar o despertador e por isso coloca o despertador fora de alcance.
- Eu percebo isso - disse Mason -, mas neste caso o despertador estava ao alcance da pessoa que se encontrava a dormir na cama, pelos vistos para que a pessoa pudesse desligar o despertador assim que ele tocasse, não é verdade?
- Sim, creio que sim.
- Mas não foi isso que aconteceu?
- Bom, há pessoas que têm o sono muito pesado.
- Quer dizer que ele só acordou depois de o despertador ter tocado até ficar sem corda?
- Sim.
- Mas, assim que um despertador fica sem corda, pára de fazer barulho, não pára, sargento?
- Oh, esta conversa não nos leva a lado nenhum - disse o sargento Holcomb. - O despertador estava sem corda. Ele levantou-se com toda a certeza. Não ficou lá deitado a dormir, pois não? Levantou-se e saiu de casa e apanhou uma cesta de peixe. Talvez o despertador tenha tocado até ficar sem corda e não o tenha despertado, e ele tenha acordado meia hora depois, sobressaltado, apercebendo-se de que tinha dormido além da conta.
- E depois - disse Mason, com um sorriso -, apesar disso, parou para fazer o pequeno-almoço, lavar a louça, fazer a cama, mudar os lençóis da cama, preparar a lenha na lareira e levar os lençóis sujos, de carro, para a cidade para serem lavados. E depois voltou para as montanhas, para ir à pesca.
- Isso é completamente absurdo - disse o sargento Holcomb.
- Porquê? - perguntou Mason enfaticamente.
O sargento Holcomb ficou quieto e calado, num silêncio fervilhante.
- Bom, sargento - disse Mason -, uma vez que o senhor parece incapaz de responder a essa pergunta, voltemos ao despertador. Se bem me lembro, o senhor fez umas experiências com despertadores semelhantes, não fez, para descobrir quanto tempo demoram a ficar sem corda?
- Fizemos experiências com o próprio despertador - disse o sargento. - Depois, fizemos experiências com outros despertadores e contactámos o fabricante.
- O que descobriram? - perguntou Mason.
- Segundo o fabricante, os despertadores param cerca de trinta a trinta e seis horas depois de alguém lhes dar corda. Segundo uma experiência que fizemos com aquele despertador, ele parou ao fim de trinta e duas horas e vinte minutos depois de lhe termos dado corda.
- Nesse caso - disse Mason -, o despertador deve ter levado corda cerca de vinte minutos depois das seis horas, correcto?
- Bom, que mal tem isso?
- Nenhum - respondeu Mason. - Estou simplesmente a pedir-lhe para interpretar as provas para benefício do júri, que foi precisamente o que se dispôs a fazer à partida, sargento.
- Está certo, tudo bem, o despertador levou corda às seis e vinte, e daí?
- Diria que foi às seis e vinte da manhã ou às seis e vinte da tarde? - perguntou Mason.
- Da tarde. O despertador tocou às cinco e meia. Ele não teria dado corda ao despertador de manhã e, se tivesse, teria voltado a dar-lhe corda. Fê-lo às seis e vinte da tarde.
- Óptimo - disse Mason -, é precisamente a conclusão que eu tirei, sargento. Ora, o senhor analisou as facturas telefónicas relativas às chamadas interurbanas que foram efectuadas da cabana?
- Analisei.
- E descobriu, não é verdade?, que a última chamada registada foi efectuada às quatro horas da tarde de segunda-feira, dia 5 de Setembro, para Randolph Bolding, especialista em caligrafia?
- Exactamente.
- E falou com Mr. Bolding sobre essa chamada?
- Falei.
- Mr. Bolding conhecia Mr. Sabin pessoalmente?
- Conhecia.
- E o senhor perguntou-lhe se ele reconheceu a voz de Mr. Sabin?
- Perguntei. Ele reconheceu a voz de Sabin ao telefone. Já tinha trabalhado para ele antes.
- E Sabin perguntou-lhe que conclusões ele tinha tirado sobre uns documentos que lhe entregara?
- Sim.
- E Bolding disse-lhe que, claro está, os documentos eram falsificações; que ainda não conseguira determinar se os endossos no verso dos cheques tinham sido feitos pela mesma pessoa da amostra que lhe fora entregue, mas que estava inclinado a pensar que não?
- Sim, foi isso mesmo.
- E que mais disse Mr. Sabin?
- Mr. Sabin disse que ia enviar-lhe outro envelope, contendo meia dúzia de outras amostras de caligrafia de cinco ou seis pessoas diferentes.
- Mr. Bolding recebeu esse envelope?
- Não.
- Portanto, Mr. Sabin não chegou a ter oportunidade de enviar essa carta?
- É o que tudo indica.
- Ora, voltemos por um instante à identidade do assassino. Sabemos agora que Mr. Sabin desconfiava que Steve Watkins falsificara cheques de uma quantia avultada. Um perito em caligrafia estava a analisar a escrita de Watkins. Ora, se Watkins fosse culpado, não seria natural ele tentar silenciar Mr. Sabin, matando-o?
A boca do sargento Holcomb cerrou-se num esgar de troça.
- O problema é que Watkins tem um álibi perfeito - disse. - Watkins meteu-se num avião, na presença de uma testemunha credível, pouco depois das dez da noite de segunda-feira, 5 de Setembro, e partiu para Nova Iorque. Sabemos onde ele esteve o tempo todo.
- É verdade - disse Mason. - Se partirmos do princípio de que Fremont C. Sabin foi assassinado na terça-feira, dia 6, mas o problema do seu raciocínio, sargento, é que não há nada que nos indique que ele não foi assassinado no dia 5.
- No dia 5?! - exclamou o sargento Holcomb. - Impossível. A temporada de pesca só começou no dia 6 e Fremont Sabin nunca teria ido pescar antes de começar a temporada.
- Não - concordou Mason -. também julgo que não. Creio que isso é considerado um crime, não é, sargento?
- É.
- E um homicídio também é um crime?
O sargento Holcomb nem se deu ao trabalho de responder à pergunta.
- Por conseguinte - continuou Mason -, um assassino não teria o mínimo escrúpulo em ir pescar na véspera da data de abertura da temporada de pesca. Ora, sargento, importa-se de explicar ao juiz de instrução, e ao júri, o que há no seu raciocínio que seja mais forte do que uma mero cesto de peixes?
O sargento Holcomb ficou parado a olhar para Perry Mason com uma expressão estupefacta.
- Ou seja - disse Mason -, tendo tirado a conclusão de que Helen Monteith assassinou Fremont C. Sabin às onze horas da manhã de terça-feira, dia 6 de Setembro, o senhor interpretou todas as provas de maneira a elas sustentarem a sua teoria; mas uma análise justa e imparcial indica que Fremont C. Sabin foi assassinado por volta das quatro horas da tarde de segunda-feira, dia 5 de Setembro, e que o assassino, sabendo que o corpo ia demorar algum tempo a ser descoberto, tomou medidas para despistar a polícia e fabricar um álibi perfeito: foi simplesmente ao riacho, apanhou o limite máximo legal de peixe, na tarde antes de começar a temporada de pesca, e deixou o peixe num cesto.
«E para justificar essa conclusão, sargento, não é preciso ignorarmos nenhum pormenor de somenos importância. Por outras palavras: a cama estava feita de lavado, porque ninguém dormiu nela. O despertador ficou sem corda às duas e quarenta e sete, porque o assassino deixou a cabana aproximadamente às seis e vinte da tarde, hora a que deu corda ao relógio, depois de ter espalhado cuidadosamente todas as provas. O motivo pelo qual o despertador tocou às cinco e meia da manhã seguinte e ninguém o desligou foi porque a única pessoa que se encontrava na cabana a essa hora estava morta. E se o assassino se mostrou tão atencioso para com o papagaio foi porque queria que o papagaio cometesse perjúrio, recitando as deixas que ele tivera tanto trabalho a ensinar-lhe: 'Baixa essa arma, Helen... Não dispares... Meu Deus, deste-me um tiro.' A lenha estava na lareira, porque Sabin não tivera motivos para ateá-la nessa tarde. Ele estava de camisola, porque o sol tinha acabado de deixar o telhado e começava a arrefecer, mas foi assassinado antes de a casa ficar suficientemente fria para justificar acender a lareira.
«Sabin deixou entrar o assassino, porque o assassino era alguém que ele conhecia; no entanto, Sabin tinha motivos para crer que corria perigo. Pedira uma arma à mulher para se proteger. O assassino também tinha uma arma que tencionava usar mas, quando entrou na cabana, viu aquela pistola em cima da mesa junto da cama e percebeu imediatamente que teria toda a vantagem em matar Sabin com essa arma, em vez de utilizar aquela que ele próprio levara. O assassino só teve de pegar na arma e disparar. E agora, sargento, importa-se de me dizer o que tem esta teoria de mal? Importa-se de interpretar todas as provas e me dizer se há alguma que está errada, e importa-se de explicar ao júri o que é que sustenta a sua bela tese de acusação, além de um mero cesto de peixe?»
O sargento Holcomb mexeu-se na cadeira, constrangido, e por fim disse:
- Pois eu não acredito que Steve Watkins seja o assassino. Você lembrou-se disso só para proteger Helen Monteith.
- Mas o que é que essa teoria tem de errado? - teimou Mason.
- Tudo - afirmou o sargento Holcomb.
- Aponte-me uma única incoerência entre ela e os factos conhecidos.
Subitamente, o sargento Holcomb desatou a rir-se.
- Como é que Sabin pode ter sido morto às quatro horas da tarde de segunda-feira, 5 de Setembro, se às dez da noite do mesmo dia 5 telefonou ao secretário a dizer-lhe que estava tudo bem?
- Não pode - concordou Mason - e pura e simplesmente não o fez.
- Então, a sua teoria acaba de ir para o espaço - anunciou o sargento Holcomb, vitorioso. - Hum... isto é...
- Exactamente - disse Mason. - Como o senhor acaba de perceber, sargento, Richard Waid é que é o assassino.
O xerife Barnes levantou-se de um salto.
- Onde está o Richard Waid? - perguntou.
Os espectadores entreolharam-se, sem saberem a resposta. Duas das pessoas que se encontravam junto da porta disseram:
- Se era o rapaz que estava sentado nesta cadeira, ele levantou-se e saiu há cerca de dois minutos.
O juiz de instrução anunciou subitamente:
- Vou suspender este inquérito por meia hora.
Um alvoroço de vozes excitadas encheu a sala onde o inquérito se estava a realizar; ouviram-se cadeiras a cair, quando as pessoas que estavam mais próximas da porta saíram a correr para o passeio. O xerife Barnes, chamando um dos seus homens, disse:
- Envie um alerta geral, mande vigiar todas as estradas que saem da cidade e peça à polícia metropolitana para avisar todos os carros-patrulha.
Mason virou-se para Helen Monteith e sorriu.
- E parece-me que é tudo - concluiu.
Mason estava sentado no gabinete do xerife Barnes, pacientemente à espera que fossem concluídas todas as formalidades para a libertação de Helen Monteith, que se encontrava, como que atordoada, numa cadeira junto da porta.
O xerife Barnes, detendo-se de quando em quando para verificar as mensagens telefónicas que não paravam de lhe entregar, tentou reordenar a situação mentalmente, através de uma série de perguntas que fez a Mason.
- Não consigo perceber como é que deslindou o caso - disse ele.
- Foi muito simples - respondeu Mason. - O assassino tinha de ser alguém com acesso ao papagaio, alguém que andava a planear o assassínio há muito tempo; alguém que tencionava atirar as culpas do crime para cima da Helen Watkins Sabin, uma vez que provavelmente não tinha conhecimento da existência da Helen Monteith. Como sabia que o Sabin normalmente levava o papagaio, quando ia para a cabana na abertura da temporada de pesca, essa pessoa, que tinha de ser alguém que morava na casa dos Sabin, começou a treinar o papagaio para dizer: «Baixa essa arma, Helen... Não dispares... Meu Deus, deste-me um tiro!» O crime foi todo cuidadosamente planeado. O Fremont Sabin devia passar por casa na segunda-feira, dia 5, para ir buscar o papagaio antes de partir para a cabana, para ir à pesca. O assassino tinha feito os seus planos todos, inclusive fabricado um álibi.
«E depois, o Sabin estragou-lhe ligeiramente os planos, ao aparecer no dia 2 para ir buscar o papagaio. Quando pegou no pássaro, ouviu-o soltar inesperadamente a sua nova deixa: ’Baixa essa arma, Helen... Não dispares... Meu Deus, deste-me um tiro!’
«Provavelmente, nunca ninguém há-de saber o que aconteceu depois disso, mas, ou o Sabin pensou que a sua vida corria perigo, ou então as frases repetitivas do Casanova começaram a enervá-lo. Ele queria ter a companhia de um papagaio, ou por gostar de papagaios, ou por, de alguma maneira, querer enganar o eventual assassino... confesso que esta troca de papagaio me intriga e não vou descansar enquanto não descobrir ao certo, se é que é possível, o que está por detrás dessa substituição.
«Sabemos, porém, o seguinte: o Fremont Sabin ficou assustado. Trocou os papagaios e pediu à Helen Monteith para lhe arranjar uma arma. Apesar dessas precauções, foi assassinado. O assassino depreendeu, como é óbvio, que o papagaio dentro da gaiola era o Casanova e tomou excelentes medidas para garantir que o pássaro não morria antes de o corpo do Sabin ser encontrado.
«O Sabin, entretanto, pensava que ia obter o divórcio, isto é, pensava que a mulher estava a tratar disso. Julgava que em breve seria livre para reiterar a cerimónia de casamento que se realizara no México, e que era bígama, fazendo uma segunda cerimónia, perfeitamente legal, desta vez nos Estados Unidos.
«O Richard Waid, escondido na cabana a uns metros da cabana do Sabin, a ouvir todas as conversas telefónicas que passavam pelo telefone do patrão, estava à espera do momento ideal para atacar.»
- Mas porque é que ele queria tanto ouvir as conversas telefónicas? - inquiriu o xerife.
- Porque o sucesso do seu plano dependia de ele poder partir de avião, na companhia do Steve Watkins, numa altura que lhe desse um álibi. A única desculpa que tinha para fazer isso era o encontro que o Sabin marcara para pagar os cem mil dólares à mulher, em Nova Iorque. Ele sabia que o Sabin estava em constante contacto telefónico com a mulher em Reno. Por conseguinte, tinha de se certificar de que nada corria mal.
«Enquanto estava de vigia ao telefone sob escuta, ouviu o Sabin fazer uma chamada para o Bolding, o perito em caligrafia, e percebeu subitamente que se o Sabin enviasse amostras ao Bolding da caligrafia de todas as pessoas com quem ele lidava, essas amostras incluiriam uma sua e que o perito identificaria os endossos dos cheques falsificados como seus e diria que ele, Waid, era o falsificador. Percebeu, de repente, que ia ter de agir muito depressa. Penso que ele tencionava esperar até às oito horas e só depois cometer o crime. Já tinha apanhado o peixe e as provas estavam prontas para serem colocadas na cabana, mas foi então que ele ouviu esse telefonema. O Waid percebeu que ia ter de apanhar o Sabin antes que ele enviasse os documentos por correio, por isso levantou-se de um salto e correu para a cabana, sem sequer parar para pegar no cigarro que tinha pousado em cima da mesa, quando ouvira o telefonema.»
- Porque não nos avisou, para podermos apanhar o Waid? - resmungou o xerife.
- Porque as provas teriam peso redobrado, se o Waid entrasse em pânico e desaparecesse de repente - explicou Mason. - A fuga, em si, é uma admissão de culpa. Deu para ver que o Waid estava em pânico. Assim que percebeu que tinha assassinado o papagaio errado, teve consciência que as provas do papagaio seriam fatais, porque provariam sem qualquer dúvida que o papagaio não aprendera a sua deixa ao ouvir as últimas palavras alvoroçadas do Fremont C. Sabin e, sim, por ter sido cuidadosamente treinado para repetir essas frases por alguém que tinha acesso a ele; e o Waid era a única pessoa, além do Fremont Sabin e do filho Charles, que tinha acesso ao papagaio. Note-se que o Steven Watkins não vivia lá em casa e que a Mrs. Sabin estava fora há seis semanas.
«De todas as pessoas que tinham um álibi pleno, o papagaio era o que tinha o melhor, porque pura e simplesmente não estava presente no local do Crime. Isso foi confirmado pela Mrs. Winters. Por conseguinte, o papagaio não podia ter aprendido a sua deixa ouvindo-a da boca do Sabin. Pareceu-me bastante provável que o assassino do Sabin estivesse na sala, ontem à noite, quando eu revelei a história da troca dos papagaios. O Charles Sabin já tinha conhecimento disso há algum tempo, mas a informação foi novidade para a Mrs. Sabin, para o Steve e para o Waid, e era essa a minha intenção... Foi por isso que o Waid decidiu que a única hipótese que lhe restava era matar o papagaio. Ele não sabia que outras pessoas tinham ouvido os comentários do papagaio. É esse o problema de ensinar um papagaio a dizer qualquer coisa: nunca se sabe a quantidade de vezes que ele a repete, ou quando é que a dirá.
«Mas o Waid teve imensa sorte. Não tencionava atirar com as culpas do crime para cima da Helen Monteith. Provavelmente nem sequer sabia da existência da Helen Monteith. A ideia dele era inculpar a Helen Watkins Sabin. Imaginem a consternação dele quando descobriu que a Helen Watkins tinha um álibi; que ela estava em Reno, no tribunal, quando o assassínio supostamente foi cometido. De repente, ele percebeu que era uma oportunidade excelente para incriminar a Helen Monteith, mas tinha de se livrar do papagaio. E, depois, sentiu-se novamente seguro quando soube que o decreto do divórcio tinha sido falsificado e que, afinal, a Mrs. Sabin não tinha um álibi.
«Tendo determinado correctamente a hora do crime, e ignorando as provas do peixe a que o sargento Holcomb deu tanta importância, tornou-se óbvio que o Sabin não estava vivo às dez horas da noite de segunda-feira, dia 5. Por conseguinte, a declaração do Waid, de que falara com o Sabin ao telefone, só podia ser falsa.»
- Pois eu espero que o enforquem! - exclamou Helen Monteith. Matou um dos melhores homens de todos os tempos. Não faz ideia de como o Fremont Sabin era altruísta e atencioso. Pensava em tudo, nenhum pormenor lhe escapava, por mais pequeno que fosse. Tratava de absolutamente tudo para se certificar do meu bem-estar.
- Eu compreendo - disse Mason, muito sério. - Tudo o que ele fez... Esperem aí...
Calou-se bruscamente.
- O que se passa? - perguntou o xerife. Excitado, Mason disse:
- O testamento! Ele redigiu-o efectivamente depois de se ter casado consigo e, no entanto, não tomou nenhuma providência em relação a si. Pensou em toda a gente, menos em si.
- Sim - disse ela.
- Porque é que ele não a incluiu no testamento? - perguntou Mason.
- Não sei, mas deve ter tido uma boa razão. Seja como for, eu não queria dinheiro nenhum. Queria-o a ele.
- É essa questão que eu não consigo entender - insistiu Mason. - O Fremont Sabin fez o testamento no momento em que andava a negociar o acordo de bens com a mulher.
- Que mal tem isso? - perguntou o xerife Barnes.
- É incoerente com tudo o resto - explicou Mason. - Ele tomou providências em nome de todas as pessoas de quem gostava, mas não deixou nenhuma cláusula em nome da Helen Monteith.
- Porque não tinha motivos para o fazer - disse o xerife. - Ele casara-se com ela no México e ia casar-se com ela novamente, mais tarde. Sabemos que ele estava à espera que a Helen Watkins Sabin obtivesse o divórcio. Obviamente que não estava a contar morrer entretanto.
- Não, isso não explica a situação - contrapôs Mason. - Um homem de negócios não faz um testamento por pensar que vai morrer e, sim, para que este entre em efeito quando, de facto, ele morrer. A ideia é cobrir todas as eventualidades. Reparem que o testamento estipula o pagamento de dinheiro à Helen Watkins Sabin na eventualidade de o Fremont Sabin morrer antes de o decreto do divórcio ter sido concedido e a soma paga. Ou seja, a Helen Watkins, tendo feito uma tentativa de boa-fé para concretizar o acordo, devia ser protegida, independentemente do que acontecesse ao Sabin. Isso mostra até que ponto ele era um homem justo. E, no entanto, não tomou qualquer providência em nome da Helen Monteith.
- Eu não queria que ele o fizesse - disse Helen Monteith. - Não dependo dele para nada. Ganho o meu próprio sustento. Eu...
De repente, Mason levantou-se e começou a andar de um lado para o outro do gabinete. Uma ou duas vezes, fez pequenos gestos com os dedos, como se estivesse a verificar itens de um qualquer inventário mental que se desenrolava na sua cabeça. Bruscamente, virou-se para Della Street.
- Della - disse -, vá buscar o carro. Encha o depósito, meta óleo e traga-o até à entrada. Vamos dar uma volta.
Virou-se para o xerife Barnes e disse:
- Xerife, estaria a fazer-me um favor pessoal se despachasse todas as formalidades o mais depressa possível. Passe por cima de toda a burocracia que puder evitar. Quero tirar a Helen Monteith daqui imediatamente.
O xerife observou-o por debaixo de um sobrolho franzido.
- Acha que ela corre perigo aqui? - perguntou.
Mason não respondeu à pergunta. Virou-se para Helen Monteith.
- Importa-se - disse - de me ajudar a verificar uma parte do seu álibi?
- Em que sentido, Mr. Mason?
- Quero que você faça uma coisa que vai ser muito dura para si. Detesto submetê-la a uma pressão destas, mas tem de ser. Há um facto que quero esclarecer imediatamente.
- O quê? - perguntou ela.
- Penso que sei qual foi o verdadeiro motivo para a troca dos papagaios - disse Mason. - Há pouco, comentei que provavelmente nunca saberíamos o que levou o Fremont Sabin a fazer essa troca. Agora, julgo que conseguiremos descobrir o que foi. Se aquilo de que eu desconfio for verdade, há uma questão que é tão de suma importância para este caso que... Acha que consegue aguentar uma viagem até Santa Delbarra? Acha que consegue mostrar-me qual foi exactamente o quarto onde viu o seu marido pela última vez?
- Sim - disse ela -, mas não percebo para quê.
Mason desviou os olhos para os do xerife Barnes, que tinham uma expressão inquisitiva.
- Falámos imenso sobre o risco de uma pessoa ficar hipnotizada por provas circunstanciais. Assim que alguém mete uma ideia fixa na cabeça, interpreta tudo o que aconteceu à luz dessa ideia. É um hábito perigoso e receio que eu próprio não fui imune a ele. Estava tão preocupado em mostrar essa ratoeira aos outros, que eu próprio caí nela sem me aperceber.
- Não sei que ideia é a sua, Mason - disse o xerife Barnes -, mas vou despachar as coisas. Já pedi à encarregada da cadeia para nos vir trazer todos os objectos pessoais da Miss Monteith... Aqui vem ela. Verifique se estas coisas são suas e inspeccione o conteúdo da sua carteira, Miss Monteith. Depois, assine este recibo nas costas deste envelope de papel pardo.
Helen Monteith tinha acabado de assinar o recibo, quando Della Street entrou no gabinete e fez sinal a Mason.
- Está tudo pronto, chefe.
Mason deu um aperto de mão ao xerife.
- Mais tarde, ligo-lhe, xerife - disse. - Entretanto, muito obrigado por tudo.
O advogado pegou no braço de Helen Monteith e, com Della Street do outro lado, conduziu-a para o ar fresco da noite cálida.
Por duas vezes, enquanto subiam a longa estrada iluminada pelo luar até Santa Delbarra, Helen Monteith tentou descobrir o que é que Perry Mason estava à espera de encontrar no seu destino. De ambas as vezes, Mason esquivou-se à pergunta.
Por fim, em resposta a uma pergunta directa, Mason disse com toda a franqueza:
- Não sei. Só sei que há uma incoerência nesta história toda, algo que nos impede de atar todas as pontas do caso. Quero investigar o assunto para ficar com a consciência tranquila e preciso da sua ajuda. Compreendo que é uma provação para si, mas não vejo como evitá-la.
Depois disso, Mason conduziu em silêncio, até a auto-estrada passar por cima de uma colina e descer abruptamente para os arredores de Santa Delbarra.
- Agora - disse Mason a Helen Monteith -, indique-me o caminho para o hotel onde ficaram instalados...
- Não é um lugar particularmente convidativo - comentou ela. - É um hotel barato e...
- Eu sei isso tudo - interrompeu Mason. - Diga-me simplesmente qual é o caminho.
- Desça esta rua até eu lhe dizer para virar - indicou ela.
Mason conduziu o carro ao longo de uma avenida ladeada de palmeiras recortadas contra o céu iluminado pela lua, até Helen Monteith dizer:
- É aqui. Vire à direita.
Ele guinou o automóvel para a direita.
- Percorra dois quarteirões e o hotel faz esquina do lado esquerdo.
Mason viu o hotel, parou o carro e perguntou a Helen Monteith:
- Lembra-se do número do quarto?
- Quarto 29 - disse ela. Mason fez sinal a Della Street.
- Quero ir lá acima ao quarto, Della - anunciou ele. - Vá ter com o recepcionista e pergunte-lhe se o quarto está ocupado. Se estiver, descubra por quem.
Enquanto Della Street transpunha a porta e desaparecia no interior do átrio do hotel, Mason trancou o carro e pegou no braço de Helen Monteith. Juntos, entraram no hotel.
- Tem elevador? - perguntou Mason.
- Não - disse Helen Monteitb. - Só escadas.
Della Street virou as costas à recepção e dirigiu-se para Mason. Tinha os olhos arregalados de espanto.
- Chefe - disse ela -, eu...
- Espere - avisou Mason.
Subiram as escadas, que rangiam, até ao terceiro andar e percorreram um longo corredor, cuja alcatifa estava tão gasta que mal abafava o som dos passos deles.
- É aqui - disse Helen Monteith.
- Eu sei - respondeu Mason. - O quarto está ocupado... não está, Della?
Ela assentiu, muda, e bastou Mason ver a maneira como as feições da secretária estavam contraídas para perceber tudo o que ela lhe queria dizer.
Mason bateu à porta.
Do lado de dentro, alguém se mexeu. Mason e as duas raparigas ouviram passos a dirigirem-se para a porta.
Mason virou-se para Helen Monteith.
- Penso - disse ele - que é melhor preparar-se para um choque. Não lhe quis dizer antes, porque tinha medo de estar enganado, mas...
A porta abriu-se. Um homem alto e de costas muito direitas, parado na entrada, observou-os com uns intensos olhos cinzentos que tinham a firmeza inabalável de alguém que está habituado a encarar de frente, e sem medo, as vicissitudes da vida.
Helen Monteith soltou um grito de susto e deu um salto, esbarrando em Mason, que se encontrava mesmo atrás. Mason pôs um braço à volta da cintura dela e disse:
- Calma.
- George! - exclamou ela, numa voz que era praticamente um sussurro. - George!
Esticou um braço hesitante, para lhe tocar, como se ele fosse uma aparição e pudesse evaporar-se a qualquer instante ao toque dela.
- Helen, minha querida - disse ele. - Meu Deus, o que se passa, parece que viste um fantasma...! Minha querida...
Ela caiu nos braços dele, a soluçar incoerentemente, enquanto o indivíduo, mais velho, a abraçava com força, reconfortando-a com palavras meigas sussurradas ao ouvido e palmadinhas carinhosas nos ombros.
- Está tudo bem, minha querida - disse ele. - Escrevi-te uma carta, esta tarde. Encontrei o lugar ideal que procurava para a mercearia.
George Wallman estava instalado numa velha cadeira de baloiço, no quarto do hotel. Helen Monteith, sentada ao seu lado, no chão, com as faces reluzentes de lágrimas de felicidade, tinha os braços à volta dos joelhos dele. Perry Mason encavalitara-se numa cadeira de costas rectas e assento de palhinha, com os cotovelos apoiados nas costas; Della Street instalara-se aos pés da cama.
Numa voz arrastada, George Wallman disse:
- Sim, mudei de nome quando o Fremont fez fortuna. As pessoas estavam constantemente a confundir-nos por eu ser parecido com ele e espalhou-se a história de que eu tinha um irmão que era multimilionário, o que não me agradou nada. Nós não somos gémeos, mas com a idade ficámos incrivelmente parecidos um com o outro. Estavam sempre a confundir-nos.
«Wallman era o nome de solteira da minha mãe. O filho do Fremont chama-se Charles Wallman Sabin e o meu segundo nome é George, por isso adoptei o nome de George Wallman.
«Durante muito tempo, o Fremont pensou que eu era louco, mas depois, quando me foi visitar ao Kansas, tivemos oportunidade de conversar com calma. Penso que foi nessa altura que começou a fazer-se luz no espírito do Fremont. Seja como for, de repente ele percebeu que era um disparate considerar o dinheiro como o objectivo supremo da vida. Há anos que ele tinha tudo o que queria. Se vivesse até aos mil anos, continuaria a ser riquíssimo.
«Bom - prosseguiu Wallman, passado um instante -, julgo que eu também fui um pouco tolo, mas no sentido oposto, já que nunca, pensei em pôr dinheiro de parte para tempos difíceis... Seja como for, depois da visita do Fremont, tornámo-nos muito próximos um do outro e, quando eu vim para cá, para a Costa Oeste, o Fremont passou a visitar-me de tempos a tempos. Às vezes, íamos viver juntos para uma roulotte , outras vezes, ficávamos na cabana dele nas montanhas. O Fremont disse-me, no entanto, que ia manter a nossa relação em segredo, no que tocava aos seus sócios, porque se eles soubessem de mim e da minha filosofia de vida, eram capazes de achar que ele tinha ficado maluco. Por mim, tudo bem.
«Pouco depois do meu casamento, o Fremont foi a San Molinas falar comigo.»
- Ele soube do seu casamento? - interrompeu Mason.
- Claro. Deu-me as chaves da cabana dele e disse-me para ir lá passar a lua-de-mel. Disse que podia usá-la sempre que quisesse.
- Compreendo - disse Mason. - As minhas desculpas pela interrupção. Continue.
- Bom, o Fremont trouxe o papagaio com ele. Tinha ido a casa buscá-lo e o papagaio não parava de dizer: «Baixa essa arma, Helen... Não dispares... Meu Deus, deste-me um tiro!» Eu achei que boa coisa não era. Sou uma espécie de perito em papagaios. Fui eu que ofereci o Casanova ao Fremont e sabia que o Casanova não diria uma coisa daquelas, a menos que alguém se tivesse dado ao trabalho de lha ensinar, repetindo-a várias vezes na sua presença. Os papagaios variam, mas eu conhecia bem o Casanova. Por isso, sugeri ao Fremont que talvez ele corresse perigo. O Fremont achou que não, mas lá consegui convencê-lo. Eu queria analisar o papagaio, tentar perceber quem é que tinha andado a ensiná-lo. Por isso, mandei o Fremont comprar outro papagaio e...
- Então, foi realmente o Fremont quem comprou o papagaio? - perguntou Mason.
- Claro que foi.
- Continue - pediu Mason.
- Bom, o Fremont comprou o papagaio, para ninguém desconfiar de que eu andava a analisar o Casanova, e eu queria dar-lhe uma arma, por isso pedi à Helen para me arranjar uma arma e umas munições, e entreguei-as ao Fremont. Depois, ele foi para a cabana e eu vim para aqui, para Santa Delbarra, procurar um local para instalar uma mercearia. Não li os jornais, porque nunca me dou ao trabalho de o fazer. Leio algumas das revistas mensais e bastantes biografias e livros científicos, e passo imenso tempo em bibliotecas.
- Bom - disse Mason -, receio que vá ter de reajustar a sua filosofia de vida. De acordo com o testamento do seu irmão, o senhor herdou uma fortuna e pêras.
George Wallman ponderou uns instantes e, depois, baixou os olhos para a sua mulher. Deu-lhe uma palmadinha no ombro, para a sossegar, e disse:
- Que tal, querida? Aceitamos uma parte, para abrirmos uma merceariazinha, ou dizemos-lhes que não queremos um tostão?
Ela riu-se, feliz. Quando tentou falar, tinha a voz embargada.
- Fazemos o que tu achares melhor, amor - respondeu. - O dinheiro não compra felicidade.
Mason levantou-se e fez sinal a Della Street.
- Vão-se embora? - perguntou Wallman.
- Já fiz tudo o que tinha a fazer, aqui - disse Mason.
Wallman levantou-se da cadeira, debruçou-se para beijar a mulher e, em seguida, aproximou-se de Mason para lhe dar um aperto de mão.
- Pelos vistos - disse ele -, pelo que ouvi, o senhor fez um excelente trabalho, Mr. Mason.
- Eu espero que sim - disse Mason - e posso dizer-lhe que nunca tive um caso, ou um cliente, tão gratificante como este. Vamos, Della.
Desceram a escada que rangia, em direcção à rua. Quando Mason entrou no carro, Della Street disse:
- Estou tão feliz, chefe, que até me apetece gritar.
Pensativo, Mason comentou:
- Ele realmente deixa-nos com uma sensação diferente, não deixa, Della?
Ela fez que sim com a cabeça.
- Deve ser maravilhoso ser feliz assim como eles, chefe.
Seguiram de carro pela noite dentro, ao luar, ao longo da faixa de estrada ladeada de palmeiras. Ficaram calados, imersos nos seus pensamentos, envoltos naquela espécie de entendimento perfeito que surge entre pessoas que não precisam de palavras para se exprimirem na presença uma da outra.
Ao fim de algum tempo, Mason ligou o rádio do automóvel.
- Della - disse ele -, não sei o que tu achas, mas eu gostava de encontrar uma emissão qualquer que passe valsas... ou uma musiquinha havaiana, com...
O rádio desatou aos gritos, em pleno noticiário. Mason ouviu o fim de uma peça sobre ele próprio, em que o locutor dizia: «... Perry Mason, o conhecido advogado criminal.» Seguiu-se uma curta pausa e, depois, o jornalista continuou: «O xerife Barnes disse apenas que tinha espalhado brigadas por vários pontos do condado e que encontrar Richard Waid na cabana das montanhas que este usara como sede para escutar as conversas telefónicas de Fremont Sabin fora, por um lado, mera rotina e, por outro, um golpe de sorte. O sargento Holcomb, da Polícia Metropolitana, deu uma longa entrevista aos meios de comunicação. «Eu sabia que Waid fugiria para a cabana», declarou. «Não lhes posso dizer todas as provas que apontavam nesse sentido, mas foram o suficiente para me fazerem ir até lá. Waid ofereceu muita resistência, mas foi detido com vida.»
Mason desligou o rádio e fez-se silêncio.
- Já chega de polícia e assassínios e provas, pelo menos durante uns tempos, Della. Não consigo tirar da cabeça o George Wallman e a filosofia de vida dele... Eu devia ter desconfiado da verdade muito mais cedo. As provas estavam lá todas. Eu é que não as vi... É uma bela ideia, passar pela vida fazendo o seu melhor trabalho sem se preocupar com as recompensas feitas por mão humana, Della.
- Pois é - concordou Della, e passado um instante, acrescentou: Bom, de qualquer maneira, é isso que tu fazes, chefe. - Deslizou no banco, de maneira a apoiar a cabeça no encosto. A lua banhava as suas feições numa luz suave. - Meu Deus, pensa só na quantidade de pessoas que tem tanto a agradecer-te na vida!
Ele riu-se.
- Pensemos no luar e não nisso, Della.
A mão da secretária deslizou para o volante e pousou na de Mason, por um instante.
- Tens razão - disse.
Será que o multimilionário Fremont Sabin se divorciou da mulher antes de morrer? Eis uma pergunta que vale milhões e cuja resposta porá uma choruda herança nas mãos de alguém...
Os candidatos são o revoltado filho do milionário e a sua implacável viúva, que se acusam mutuamente da destruição do testamento de Sabin... e do seu assassinato! À falta de um documento que prove a quem é que o afável excêntrico tencionava deixar a sua fortuna, Perry Mason vê-se a braços com um enigma complicado. Mas o elemento mais desconcertante deste caso é o papagaio. Cosanova era o animal de estimação de Fremont Sabin, mas o pássaro sem papas na língua que foi encontrado no local do crime revela ser, afinal, um impostor. Escusado será dizer que, quando Mason resolve cortar as asas a um astuto assassino, provoca um enorme alvoroço...
Erle Stanley Gardner
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