Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O PARAÍSO É AQUI
Titus e Thomas rolaram pela colina abaixo, rindo e se divertindo ao sentir a maciez da relva verdejante que ia dar na beira de um lago de águas cristalinas. Os dois gostavam de brincar daquela maneira de vez em quando. Rolar desde o alto da colina e ir parar à beira do lago era uma aventura e tanto!
Quando chegavam lá embaixo, voltavam as asas para trás e mergulhavam na água, para observar os peixes exóticos e as plantas subaquáticas do paraíso. Ali, os objetos pareciam reluzir feito ouro, só que iluminados por uma espécie de luz própria.
Após o estupendo mergulho, os dois emergiram com um belo impulso e voaram alto, abrindo as asas brancas e agitando-as com graça, para que secassem ao sol. Brincar assim era realmente maravilhoso!
Mais tarde, poderiam voar entre os colchões de nuvens que haviam começado a se formar desde o início da manhã. Com sorte, até mesmo os querubins se uniriam a eles, para dar vôos rasantes por entre as árvores da floresta, montados em seus pequenos dragões equipados com montarias brilhantes. Sempre que eles apareciam, o divertimento era garantido!
Porém, apesar de toda aquela prosperidade, às vezes Titus desejava ter um trabalho para fazer. Seu peito andava tão cheio de amor e seu potencial miraculoso tão intenso que de vez em quando sua aura brilhava como um sol.
Ele e Thomas estavam quase alcançando a beira do lago quando ouviram uma voz retumbante ecoar pelo vale abaixo da colina.
— Titus, Thomas, onde estão vocês? Teremos uma reunião no prédio dos arquivos. Titus, Thomas...
Era o sr. Beatífico, reconheceu Titus, surpreso. Fazia algum tempo que nenhum arcanjo aparecia por ali para recrutar anjos da guarda.
No mesmo instante, Titus agitou as asas e voltou a subir bem alto, para ter uma visão mais ampla do vale. Thomas o seguiu e ambos começaram a observar a região, à procura do sr. Beatífico.
Não foi difícil identificar aquela enorme aura branca se deslocando por entre as árvores eternamente frondosas do paraíso.
— Oh, aí estão vocês, meninos — disse ele, ao avistá-los. — Teremos uma manhã movimentada pela frente.
Permaneceu onde estava, mantendo as enormes asas recolhidas, enquanto Titus e Thomas flutuavam no alto.
Os olhos incrivelmente azuis de Titus brilharam com um contentamento típico de sua tenra idade. Seu grande sonho era algum dia se tornar um anjo da guarda.
— Qual será o tema da reunião? — perguntou, com um ar esperançoso.
O sr. Beatífico levantou as mãos, que irradiavam uma luz muito alva.
— Não consegue adivinhar, Titus? Elegeremos mais um grupo de anjos da guarda. Precisamos fazer isso para ajudar nossos amigos lá na terra. Pobres almas... — Com um sorriso bondoso, acrescentou: — O que seria deles sem nossa ajuda?
De fato, o que seria de todos sem a ajuda dos anjos da guarda?
O salão principal do prédio dos arquivos era uma das grandes glórias do paraíso, com suas paredes de cristal esculpido que brilhavam formando prismas, sob o efeito da luz divina.
Naquele momento, porém, as paredes translúcidas refletiam o brilho cálido de seres vestidos com mantos cor-de-rosa, azuis, amarelos, verde-esmeralda e lilases.
Por todos os lados, as cores preenchiam o ambiente, formando matizes tão maravilhosos que deixaram Titus encantado com toda aquela beleza. Quanto mais se ascendia às nove escalas angelicais, mais se tornava intenso o brilho das auras dos anjos. Como a do sr. Beatífico, um perfeito exemplo daquilo que os anjos desejavam vir a ser algum dia.
Ali, todos tinham asas. Desde os anjos iniciantes, com asas de camadas duplas e triplas, até as fantásticas asas dos querubins e dos serafins, os cargos mais altos da escala angelical que formava o reino divino.
Assim que chegaram, o sr. Beatífico não perdeu tempo em providenciar o andamento da reunião. Alguns anjos foram incentivados a falar sobre suas experiências com os seres terrestres. Relataram métodos interessantes de como salvar uma alma e conduzi-la às belezas do paraíso, e também de como mandá-la de volta por um longo túnel de luz, quando era preciso que o ser terminasse alguma tarefa na terra.
O trabalho dos anjos da guarda era constantemente renovado e, de vez em quando, um novo grupo se formava com a intenção de melhorar a conduta dos seres na terra. Alguns anjos confessaram estarem até um pouco cansados de tanto trabalho, mas diziam isso com sorrisos radiantes, pois sabiam que estavam trabalhando pela causa divina. E isso era mais importante do que qualquer coisa.
Um anjo em particular, Lucas, contou uma das histórias mais comoventes de todas. Durante vinte e quatro anos, estava servindo como anjo da guarda de uma bela jovem chamada Clara Cavanagh, que se mostrava enérgica demais em tudo, dando a ele um bocado de trabalho. Tanto que Lucas estava começando a sentir perda de energia em uma de suas asas.
— Não é que Clara não seja uma jovem de bom coração e com um considerável nível de espiritualidade. Porém, estou preocupado com os riscos aos quais ela anda se expondo ultimamente — disse Lucas, durante sua explanação. — Clara passou por situações trágicas na vida.
O anjo contou que ela perdera o irmão, Timothy, aos seis anos de idade. O bebê tinha um ano e meio e o fato deixou a família arrasada. Além disso, havia dois anos que uma nova tragédia ocorrera na vida dela. Os pais de Clara sofreram um acidente de carro que matara o pai e deixara a mãe em uma espécie de coma do qual ela nunca mais saíra.
Imersa em um mundo próprio, sem se relacionar com o mundo externo, Delia Cavanagh era mantida em uma clínica de repouso. Clara tentava equilibrar a vida agitada que levava como jornalista de uma famosa rede de televisão com o carinho que ainda dedicava à mãe.
O sr. Beatífico ouviu o relato em silêncio, enquanto pensava no que faria quanto ao caso. Deveria aconselhar Lucas a continuar com Clara? Ou seria mais sensato dar ao anjo algum tempo de descanso? Havia muitos anjos competentes que poderiam substituí-lo e que não fraquejariam diante da primeira dificuldade.
Ao olhar em volta, com ar pensativo, um rosto entre todos lhe chamou a atenção: Titus. Em meio a todos aqueles seres angelicais, de súbito Titus lhe pareceu quase... humano. Os cabelos avermelhados e os expressivos olhos azuis irradiavam um admirável amor divino por tudo e por todos.
Seria interessante pesquisar a vida dele. Teria vivido na terra alguma vez? Enquanto pensava em dar uma espiada nos arquivos divinos, ouviu Titus dizer:
— Por favor, sr. Beatífico, não poderia me dar essa chance? Seria muito "legal"!
"Legal"? O sr. Beatífico arqueou uma sobrancelha. Sem dúvida, Titus já vivera na terra. Unindo os longos dedos alvos, respondeu:
— Lamento, mas não será possível, Titus. Você ainda é jovem demais.
— Mas poderia ser uma boa solução — Lucas interveio. — Reconheço que Titus não tem experiência, mas ele vive! sempre tão cheio de energia que poderia dar conta de proteger Clara sem maiores problemas.
— Nunca enviei alguém tão jovem à terra, Lucas — salientou o sr. Beatífico.
— Mas o senhor começou quando ainda era muito jovem — lembrou Titus.
O sr. Beatífico arqueou novamente as sobrancelhas. Como ele sabia daquele detalhe?
— É verdade — admitiu.
Os outros anjos olharam para Titus com sorrisos ternos.
— Seria maravilhoso ser um anjo da guarda! — exclamou ele, fazendo os cabelos cacheados balançarem com sua empolgação.
O sr. Beatífico ponderou a questão. Titus era um jovem anjo muito prestativo, apesar de viver sempre brincando pelos cantos do paraíso. Talvez a experiência de proteger alguém da terra despertasse nele o senso de responsabilidade e o fizesse ganhar uma nova camada nas asas. De fato, Titus não era muito diferente dele próprio quando tinha aquela tenra idade.
— Está bem, Titus — disse, por fim. Entre uma salva de palmas e de frufrus de asas, o sr. Beatífico completou: — O cargo de anjo da guarda da srta. Clara Cavanagh será seu de agora em diante.
Titus sorriu de puro contentamento, agradecendo com um aceno o incentivo de todos. Quando deu por si, já estava a caminho de seu destino, cercado pelos amorosos querubins que lhe serviram como anfitriões em meio aos primeiros ares terrestres.
Uma brisa agradável soprou suas asas, como que saudando sua chegada à terra. Titus nunca se sentira tão feliz em toda sua vida!
— Não se preocupe, Clara — disse, ainda enlevado pela luz do paraíso. — Agora sou seu anjo da guarda e farei o possível para protegê-la.
Manter Clara em segurança seria sua grande missão. De súbito, sentiu uma onda de amor infinito por sua protegida. Porém, a intensidade do sentimento por ela lhe pareceu novo e muito... humano.
Dê fato, a alma nunca esquece...
Já passava das nove e meia quando Clara finalmente chegou aos estúdios jornalísticos da rede BTQ8. Imaginou se haveria muito trabalho à sua espera, mas o questionamento lhe pareceu tolo no mesmo instante. Claro que havia!
No último ano, desde que McGuire se tornara diretor geral do setor de jornalismo, a quantidade de trabalho havia aumentado ainda mais. "É preciso esforço mútuo para se obter melhores resultados", era o que ele costumava dizer ao ouvir alguma reclamação.
Por não ser uma grande fã de McGuire, Clara preferia ignorar o detalhe de que os lucros também haviam aumentado consideravelmente, desde a chegada dele. E isso se tornara mais evidente depois do fiasco que fora a administração do antigo diretor, Clive Conor.
Ela nunca enchia McGuire de elogios, mas o dono da empresa parecia adorá-lo. Principalmente depois de todo aquele lucro.
Gabriel McGuire era considerado a grande esperança daquele nicho jornalístico, com um brilhante futuro pela frente. E era com esse verdadeiro "mito" que ela teria de lidar dentro de alguns minutos. Esperava que ele estivesse de bom humor, porque essa era a terceira vez que ela perdia a reunião mensal da equipe, nos últimos três meses. Sua moral não andava lá muito em alta...
Ajeitando os ombros do tailleur amarelo, atravessou a área do estacionamento equilibrando seu guarda-chuva em meio ao vento e à garoa intensa.
Assim que entrou no elegante edifício, conteve o fôlego ao avistar McGuire vindo em sua direção. Um metro e oitenta e dois de pura perfeição masculina. O rosto incrivelmente bonito e o porte elegante eram suas marcas registradas, capazes de fazer muitas mulheres suspirarem só de olhar para ele.
Clara também não era imune a toda aquela beleza máscula, mas preferia se manter a salvo conservando uma boa distância entre eles. Para alguém com ancestrais irlandeses, Gabriel tinha uma pele surpreendentemente bronzeada que o mantinha sempre com um ar saudável, capaz de causar inveja nos "oponentes" do mesmo sexo. Os cabelos negros eram usados em um corte elegante e os olhos, também negros, eram ressaltados por sobrancelhas espessas que o tornavam ainda mais charmoso.
— Srta. Cavanagh, está atrasada — avisou ele, sem conseguir disfarçar o ar de admiração.
Como Clara conseguia continuar tão linda após haver acabado de sair de uma garoa intensa? O ar úmido acentuara o encaracolado dos longos cabelos avermelhados, deixando-a parecida com as fadas da floresta, descritas em contos infantis. As sobrancelhas bem delineadas acentuavam a beleza dos olhos incrivelmente azuis, semelhantes a duas preciosas safiras.
Entretanto, ele não poderia fraquejar mesmo diante de toda aquela beleza. Três ausências em três reuniões que ocorriam apenas uma vez por mês já era demais! Se pelo menos ela não fosse tão perfeita... E aquelas pernas de bailarina então? Elas o deixavam maluco!
Clara tossiu levemente, indicando que ele estava sendo indiscreto ao admirá-la tão abertamente.
— No meu escritório, dentro de dez minutos — disse ele.
— Está bem, chefe — respondeu Clara. — Sinto muito por não haver comparecido à reunião.
Gabriel teve de se conter para não tocar os cabelos dela. Sempre tivera vontade de saber se eles eram mesmo tão sedosos quanto pareciam.
— Qual é a desculpa desta vez? — perguntou, mantendo o tom firme.
— Tive de resolver alguns problemas ainda cedo. Clara preferiu não mencionar que tivera de fazer uma visita extra à mãe no início da manhã.
— Espero que não esteja perdendo a ambição, depois dos últimos acontecimentos, srta. Cavanagh — falou ele.
— Foi você quem quis esquentar o jogo, chefe — salientou Clara, com um ar inocente.
— Então também terei de persuadi-la a desistir de se arriscar tanto? Bem, livre-se desse guarda-chuva molhado, para que possamos conversar direito — disse Gabriel, antes de se encaminhar para a sala dele.
Conversar? Essa era boa! Havia muito tempo que os dois não conseguiam se entender direito e muito menos conversar. De fato, nem ela mesma sabia por que sentia tanta indignação com relação a Gabriel sendo que a maioria das mulheres da empresa fariam qualquer coisa para receber ao menos um bom-dia dele.
— Meus Deus, Clara. Como pode estar tão linda depois de haver acabado de tomar chuva? -— disse Mike, seu colega de trabalho mais querido, assim que se encontraram no corredor. — Há recados em sua mesa. Ah, e é melhor inventar uma ótima desculpa porque o chefe não ficou nem um pouco feliz quando notou sua ausência na reunião.
Clara sorriu para ele.
— Eu já sei. Encontrei o megalomaníaco no saguão do prédio. Tive de visitar minha mãe, e acabei ficando presa no trânsito. Tive um sonho muito estranho na noite passada. Minha mãe estava tentando me dizer que alguém havia chegado. Esquisito, não?
Mike balançou a cabeça, decidindo acompanhá-la até a sala dela. Ele e a esposa, Teri, gostavam muito de Clara. Sempre que podia, ela ia visitá-los, pois era madrinha de Samantha, a filha caçula do casal. A menina tinha apenas um ano de idade, mas já reconhecia e adorava a madrinha.
— Que tal um café? — sugeriu Mike.
— Oh, seria ótimo. Mas temos de tomá-lo rapidamente — avisou ela. — McGuire me deu um ultimato: "No meu escritório, dentro de dez minutos" — falou, imitando a voz grave do chefe. Olhando para o relógio, completou: — Oito minutos, para ser mais exata. Ele me olhou de um jeito tão estranho que cheguei a sentir medo.
— Para um chefe tão rígido, McGuire é até complacente demais com você. — Mike foi até a máquina de café e voltou com dois copinhos. — Como está sua mãe? — perguntou, entregando um a ela.
Ele e Teri a acompanhavam nas visitas de vez em quando. Eles eram os únicos que sabiam realmente qual era a situação de Delia Cavanagh.
— Ela está muito serena, Mike — respondeu Clara, com um brilho de lágrimas nos olhos. — Mesmo depois de tudo que aconteceu a ela, não parece ter envelhecido nem um pouco. É como se minha mãe houvesse parado no tempo.
Mike meneou a cabeça, com um ar compreensivo.
— Sei que tem sido difícil para você, querida. Más é uma filha muito especial.
Clara visitava a mãe pelo menos duas vezes por semana, por mais que estivesse cansada com a correria do trabalho.
— Por que isso teve de acontecer, Mike? Não bastou ela perder o marido e o filho? Por mais que eu tente ter esperança, já nem sei se Deus existe mesmo.
— Bem, com certeza ninguém iria querer comprar esse mundo dele — brincou Mike. — Talvez nossa meta seja trabalhar para que o próximo seja melhor.
— Mas eu quero que esse mundo seja melhor — salientou Clara.
— Eu também. Por isso, procuro tratar as pessoas com respeito e carinho. Mas nem todos pensam assim...
Clara suspirou, tomando o último gole do café.
— Bem, agora terei de enfrentar o chefe — declarou, forçando um sorriso.
— Mantenha a diplomacia, querida. Pode não parecer, mas McGuire também anda preocupado com seus problemas.
— Por quê? Ele não sabe nada sobre a minha vida.
— Claro que sabe. Seu pai era um médico renomado e a notícia saiu em todos os jornais. McGuire tem acesso a tudo que quiser saber.
— Não quero a piedade dele.
— Calma, querida — aconselhou Mike, com um ar paternal. — Sei que é difícil enxergar isso, mas McGuire é um grande sujeito.
— Que deixou nosso amigo, Clive, para trás e despediu Ralph e Lindsey — replicou ela.
— Clara, você tem de admitir que Clive perdeu as rédeas da empresa. Todos gostávamos muito dele, mas trabalho é trabalho. Se a situação continuasse como estava, acabaríamos falindo. Clive não tinha o talento de McGuire.
— Tudo bem, tudo bem — Clara admitiu. — Ele é mesmo um dínamo, mas há algo que me amedronta nele. Não gosto de homens que me olham daquela maneira. Além disso, também detesto autoritarismo.
— Ei, pessoal, querem biscoitos? — ofereceu alguém, aproximando-se pelo corredor. — Estão fresquinhos.
Clara e Mike olharam na mesma direção. Era Rosie, uma jovem assistente de produção.
— Oh, obrigada, Rosie — agradeceu Clara, aceitando um biscoito. — Pelo menos meu estômago não fará nenhum barulho embaraçoso enquanto eu estiver falando com o chefe. Por falar nisso, acho melhor ir andando.
— Boa sorte, Clara — desejou Mike. — Você vai precisar.
Quando Clara entrou no escritório, encontrou Gabriel ao telefone. Sem parar de falar, ele fez um sinal para que ela se sentasse. Mantendo o aparelho entre o ombro e o ouvido, ele estava observando alguns papéis sobre a mesa.
Clara sentou-se diante dele, cruzando as pernas com cuidado. Aquele tailleur amarelo era um de seus preferidos porque destacava a cor de seus cabelos, mas ela já não sabia se fora uma boa escolha para o dia. A saia era um pouco curta para alguém que estava tentando evitar investidas masculinas. Para seu maior constrangimento, Gabriel olhou primeiro para suas pernas, antes de lhe fitar o rosto.
Droga, por que ele estava fazendo aquilo? Por que não se concentrava na conversa séria com a pessoa do outro lado da linha? Enquanto falava, Gabriel não deixou de observá-la, como se a estivesse despindo com os olhos.
Clara não soube se agüentaria ficar ali por muito tempo. Apesar de estar com vinte e quatro anos, ainda era virgem e acreditava que só deveria haver sexo onde existisse amor. Nunca aceitara direito aquele "jogo de camas" que algumas pessoas gostavam de manter.
Uma das coisas que a incomodava em Gabriel era a certeza de que ele deveria ser um amante maravilhoso, mas também muito exigente. Sentira isso desde a primeira vez em que o vira e armara sua autodefesa mais do que depressa.
Gabriel finalmente desligou o telefone. Então inclinou-se para a frente, apoiando-se sobre a mesa.
— Por que não veio à reunião? — Foi direto ao assunto. Clara chegou a pensar em contar sobre sua mãe. Devia mesmo estar ficando maluca.
— Fiquei presa no trânsito, chefe. Interditaram a Lang Street, e o lugar está um verdadeiro horror.
— A reunião começou às oito e meia. Que eu saiba, o trânsito só fica mais intenso a partir das nove horas da manhã.
O pior era que ele estava certo.
— Sinto muito, mas foi isso o que me atrasou — insistiu Clara, mantendo um tom firme.
— Por que não consegue conversar direito comigo, Clara? — indagou ele, fitando-a nos olhos.
Ela não soube ao certo como reagir tanto diante da pergunta quanto do fato de ele tê-la chamado pelo primeiro nome.
— Eu... não estou entendendo, chefe.
— Tem muito potencial, srta. Cavanagh — continuou ele, trazendo novamente o ar de alívio ao rosto de Clara, ao chamá-la pelo sobrenome. — Há quanto tempo está na BTQ8?
— Quatro anos, como você bem sabe — respondeu Clara.
— Vim direto da universidade para começar a carreira como repórter de rua. Clive me ensinou tudo que sei.
— Sei que ele a protegeu sob as asas, só isso — "E por que não?", pensou Gabriel. Ele próprio faria o mesmo se pudesse. — De qualquer maneira, seu talento parece falar mais alto. As pessoas da empresa estão comentando seu trabalho a respeito da tragédia em Fairfield. Recebi um telefonema do sr. Llew. Ele me disse que gostou muito da maneira como você conduziu a matéria.
— Obrigada pelo elogio, mas, para ser sincera, detesto cobrir tragédias — confessou Clara.
— Todos detestamos, mas esse é o nosso trabalho. O público tem um apetite voraz por notícias. A característica que a diferencia dos outros repórteres é sua compaixão.
— Não me senti nem um pouco compassiva quando estava diante da casa de Fairfield, esperando uma chance para entrar. Eu me senti mais como uma vampira.
— Isso é compreensível. Um político proeminente prestes a sofrer uma investigação é certamente algo bombástico. Mas um suicídio é muito pior. Fiquei surpreso pela esposa dele haver conseguido dar a entrevista.
— Ela disse que só falaria comigo — salientou Clara, balançando a cabeça com tristeza. — Somente com Clara Cavanagh. Não sei por quê.
— Eu sei. Você tem uma maneira especial de se comunicar com as pessoas que estão com problemas.
Talvez, pensou Clara. Afinal, ela própria não passava de uma problemática.
— O único problema é que está se expondo demais — continuou Gabriel.
— Esse ramo é muito difícil, chefe. Bem, mas deve saber disso mais do que eu. Estou apenas atrás do melhor furo de reportagem para o canal.
Gabriel respirou fundo.
— Tudo bem. Mas não está tomando cuidado, e sabe muito bem disso. Bob está preocupado.
— Ele falou com você?
— Sim, como a maioria de seus amigos, aqui na empresa. Sei que Bob é seu cameraman há muito tempo, e ele anda tão preocupado quanto seu amigo, Mike. A câmara que quebraram quando Bob estava com você era um bocado cara. Além disso, não é tarefa sua realizar matérias envolvendo prisioneiros de guerra. Deixe isso para nossos investigadores, está bem? Da próxima vez, mandaremos Thompson. Pelo menos ele é faixa preta em caratê.
— Está sugerindo que eu aprenda caratê? — indagou Clara, fingindo inocência.
— Estou sugerindo que tenha mais cuidado para não ficar se envolvendo em situações onde até os anjos teriam receio de entrar. — Estreitando o olhar, ele perguntou: — O que acha de ficar como âncora do jornal das sete, no fim de semana?
Gabriel acabara de ter a idéia e a considerara mais do que brilhante. Clara ficou surpresa. Não queria tomar o lugar de ninguém, mas a sugestão lhe pareceu desafiadora.
— Não sei se estou pronta para algo assim — respondeu, evasiva.
Os finais de semana lhe davam um tempo extra para ficar com a mãe, e ela não queria abrir mão disso.
— Essa resposta não pareceu vir de você, srta. Cavanagh.
— É que prefiro elaborar matérias, buscar as bases das notícias, coisas desse tipo. Não sou muito de falar e de me exibir.
— Terá de aceitar a tarefa, se eu decidir que vale a pena tentar.
Clara endireitou as costas.
— Sim, você é o chefe.
— E isso continua a incomodá-la.
— Nem um pouco — ela mentiu.
— Então por que me olha como se eu fosse uma ameaça à espécie feminina?
"Porque você é exatamente isso!", pensou Clara.
— Mandou Marlene Attwell embora — disse a ele.
— Você a admirava?
— Não muito. Ela era invejosa demais para despertar amizade em alguém, mas também era muito profissional. Ficava muito bem na frente das câmaras e despertava credibilidade nas pessoas.
— Marlene insultou muitas pessoas influentes — salientou Gabriel. — Apenas para criar um estilo e se destacar, e não pela notícia em si. Estou à procura de um rosto novo para o jornal. Portanto, pode se preparar.
Clara assentiu.
— Eu sabia que não iria sair de seu escritório com um sorriso — protestou.
— Por que tanta certeza? — Gabriel arqueou as sobrancelhas, com ar de riso. — Mel Gibson estará na cidade no início do próximo mês, fazendo uma rápida viagem à terra natal para promover seu novo filme. Já tive a confirmação de que ele está disposto a ceder uma entrevista para nós.
Clara arregalou os olhos.
— Essa entrevista tem de ser minha!
— Acha que pode dar conta?
Gabriel arqueou uma sobrancelha questionadora. Estaria ele pensando em dar a entrevista a Jennifer?, pensou Clara.
— Já viajei algumas poltronas atrás de Mel Gibson, em um avião — afirmou.
— É mesmo? Então não vai querer perder essa chance. Ele é uma pessoa muito fácil para se conversar. Seja direta e precisa nas perguntas.
— Pode deixar. Jennifer não ficará aborrecida?
— Não há nenhuma regra na empresa que a obrigue a entrevistar artistas. Mesmo sendo ela pontual, nunca faltando às reuniões mensais, nem se envolvendo em entrevistas perigosas.
— Com certeza ouvirei reclamações por parte dela.
— Esse é um problema com o qual você terá de lidar, srta. Cavanagh. — Depois de observá-la por um instante, Gabriel falou: — Estava pensando em despedi-la, mas acho que me rendi ao seu charme. Pode ir agora, estou muito ocupado. A propósito, o sr. Llew oferecerá uma pequena festa, o que significa mais ou menos cem pessoas presentes, no sábado à noite. Acho melhor você comprar um vestido novo.
Qualquer outra pessoa ganharia um beijo por haver dado á ela aquela notícia, menos Gabriel McGuire.
— Fui mesmo convidada?
Um brilho de divertimento surgiu nos olhos dele.
— Está galgando a escada da fama, minha cara. O sr. Llew confia no nosso trabalho e quer conhecê-la pessoalmente.
Clara conteve a vontade de gritar de alegria. Ver seu trabalho sendo reconhecido era bom demais para ser verdade! Gabriel riu.
— Suas expressões são tão denunciadoras que seria mais seguro você usar uma máscara — disse a ela. — A festa será em homenagem a Christopher Freeman.
Clara conteve o fôlego. Freeman era um grande empresário, dono de uma fortuna incalculável. Ele era australiano, mas morava nos Estados Unidos.
— Christopher Freeman tem fama de ser mulherengo — falou ela, como que pensando em voz alta.
— Não se preocupe. Estarei lá para protegê-la.
— Oh, isso me alivia muito — ironizou Clara. — Com você por perto, tipos como Freeman não terão chance de se aproximar de mim.
"Virgem profissional com cubos de gelo correndo nas veias", pensou ela, contendo o riso.
— Gostei de ouvir isso, srta. Cavanagh. A propósito, acho bom avisá-la de que a atual âncora do jornal das sete está pensando em se aposentar.
Clara, que já ia à porta, virou-se com ar de surpresa.
— Nunca a ouvi dizer isso.
— Não a tem visto com freqüência ultimamente — salientou Gabriel. — Para alguém que não é muito de falar e que não gosta de se exibir, até que se mantém um bocado ocupada.
— Tenho um lindo jardim para preencher minhas horas vagas.
Gabriel franziu o cenho, parecendo não entender o que ela quisera dizer com aquilo.
— Você é mesmo uma caixinha de surpresas — disse apenas. — Mande Farrell vir até aqui, por favor. As vezes, eu gostaria que ele tivesse o seu dinamismo. — Olhou-a com ar casual ao perguntar: — Aceita uma carona no sábado à noite? Será difícil encontrar vagas em torno da casa do sr. Llew.
A pergunta parecia muito simples, contudo, para Clara, soou como uma armadilha.
— Obrigada pela oferta, chefe, mas conheço bem o lugar e não terei problemas para encontrar uma vaga por perto.
— Bem, a oferta estará de pé, se mudar de idéia. Clara estava prestes a sair, mas se virou no último instante.
— Pensando bem... É tolice irmos em dois carros e ocupar uma vaga que poderia servir para outra pessoa.
Não! Não acreditava que dissera aquilo! O que estava acontecendo com ela afinal? Aquele era Gabriel McGuire, não estava lembrada? Terror da espécie feminina, megalomaníaco e... terrivelmente irresistível!
— Foi o que pensei — anuiu ele, parecendo não ligar muito por ela haver mudado de idéia. — Passarei para apanhá-la às oito horas.
Estava decidido, pensou Clara. Não havia mais como voltar atrás.
Clara e Bob estavam assistindo a um vídeo no monitor de edição, para selecionar o que iria para o ar, quando Rosie apareceu segurando uma prancheta.
— Ouçam, um de nossos informantes telefonou para avisar que está acontecendo um protesto no parque Ashfield. O motivo é o de sempre: defensores da ecologia versus construtores. Dessa vez, o construtor é Rowlands. Ele quer construir um shopping no local. Alguns vizinhos são a favor, mas isso significaria ter de desmatar uma grande área de vegetação que abriga coalas.
— Mas algum conselho deve estar fazendo algo para proteger os animais, não? — Clara arqueou uma sobrancelha.
— Até certo ponto. Puxa, somos nós ou os coalas. Eles parecem estar por todo canto! Basta haver algumas folhas por perto e lá estão eles, fazendo moradia.
— Precisa ser um tipo específico de folha, Rosie. Como ho não bastasse tantas atrocidades, há muitos coalas morrendo atropelados nas estradas, por descuido de motoristas Irresponsáveis.
—- Você quer ou não quer a matéria? — perguntou Rosie. - Podemos mandar Pamela, se quiser.
— Pamela não consegue fazer matérias com muita competência. Nós iremos até lá — avisou Clara, desligando o monitor. — Se as pessoas estiverem dispostas a conversar, em vez de gritar, talvez até encontrem uma solução.
— Conheço Rowlands — afirmou Bob. — Ele nunca foi muito bom em ouvir as pessoas.
— Não acredito que ele estará no local — salientou Clara. — Com certeza, mandará algum representante.
Clara e Bob chegaram no parque Ashfield vinte minutos depois. Clara saiu do carro antes mesmo de o furgão da BTQ8 parar por completo.
— Oh-oh, acho que teremos problemas — disse Bob, ao alcançá-la. — Não imaginei que haveria tanta gente.
— Quanto mais melhor — respondeu ela. — Volte e pegue a câmara, Bob.
— As pessoas se tornam meio imprevisíveis quando estão diante da câmara, Clara. Vamos com calma, sim? Não quero ter mais nenhum equipamento quebrado.
— Olhem ali! — gritou alguém, em meio à multidão. — É Clara Cavanagh, da BTQ8! Conseguiremos ser ouvidos!
Quando Bob chegou com a câmara, Clara seguiu em direção às pessoas. Era a favor da permanência dos coalas, claro, mas não poderia demonstrar isso abertamente. Muitas pessoas pareciam ser a favor da construção do shopping, embora, segundo notaram, houvesse um a dois quilômetros, dali.
Clara começou a falar com as pessoas, obtendo opiniões variadas a respeito da questão. A maioria era de cidadãos preocupados com o meio ambiente, mas alguns queriam apenas fazer baderna.
— Esses desalmados não ficarão satisfeitos enquanto não acabarem com os coalas! — gritou uma mulher.
A representante de Rowlands, uma atraente mulher de meia-idade, vestida com discreta elegância, sorriu e tomou a mão de Clara.
— Sou Mary Stanton, srta. Cavanagh. É um prazer conhecê-la. Eu gostaria de dizer que nenhuma empresa se preocupa mais com o meio ambiente do que a Rowlands, e é disso que estou tentando convencer essas pessoas.
Bob manteve a câmara ligada todo o tempo, filmando o rosto de Mary com a multidão ao fundo. De súbito, ouviram um movimento entre as árvores. O instinto profissional fez Bob desviar a câmara para lá no mesmo instante.
Clara esperava ver algum coala comendo folhas, mas qual não foi seu espanto ao avistar um menino com cerca de nove ou dez anos de idade acenando para baixo, montado em um alto galho de árvore.
— É melhor descer daí, rapazinho — avisou ela.
De súbito, olhou para trás, surpresa. Tivera a nítida impressão de ouvir uma voz sussurrar algo em seu ouvido. Quando não viu ninguém próximo, voltou a chamar o menino.
— Desça, senão acabará se machucando.
Ninguém estava vendo que aquele galho era fino demais?
— Eu estou bem — respondeu o garoto, com um sorriso. Então começou a se arrastar para a ponta do galho.
— Os coalas serão mantidos em segurança... — continuou a falar a representante de Rowlands.
— De quem é esse menino? — perguntou Clara, sem prestar mais atenção à mulher.
Talvez a sensação tivesse algo a ver com a perda de seu irmãozinho, mas ela não gostou de ver o garoto se arriscando a cair daquele galho.
— Precisamos mesmo de mais um shopping aqui? — questionou uma mulher corpulenta, em meio à multidão. — Há um a dois quilômetros de distância!
— Nem todos têm carro para ficar visitando shoppings, minha cara — respondeu uma senhora idosa que, pelo visto, era a favor da construção. — Adoro coalas, mas tenho de reconhecer que um shopping neste local traria muitos benefícios. Eu poderia passear mais e fazer novas amizades.
— E o senhor, o que acha? — perguntou Clara, voltando o microfone para um senhor usando medalhas militares sobre a jaqueta.
— Acho que Rowlands deveria pegar suas coisas e ir para o lugar que merece! — bradou ele.
Mesmo enquanto conversava com as pessoas, de vez em quando Clara olhava para o garoto na árvore. Por que estava tão preocupada com ele?
Quando o galho se partiu de repente, seu corpo tremeu com um sobressalto. As pessoas a seu redor entraram em pânico e correram para os lados. Porém, algo manteve Clara no mesmo lugar. Sem dizer nada, ela estendeu os braços, esperando que o garoto caísse sobre eles.
Parecia impossível, mas foi exatamente isso que aconteceu. As pessoas ficaram boquiabertas, sem acreditar no que haviam acabado de testemunhar. O impacto fez Clara cambalear para trás, até os dois caírem deitados sobre á relva, sem nenhum arranhão.
A multidão, que até então se mantivera em atônito silêncio, começou a aplaudir com entusiasmo, em meio a risos e palavras de admiração.
— Como diabos ela fez isso? — perguntou uma pessoa, próxima à câmara de Bob, que não perdera nem um lance da cena.
— Ela deve ter braços de ferro! — exclamou outra pessoa.
Ao ver que fora salvo pela famosa jornalista Clara Cavanagh, o garoto beijou-a no rosto e lhe pediu um autógrafo. Em seguida, todos quiseram apertar a mão de Clara.
— Não foi nada — disse ela, ainda sem entender como o garoto parecera tão leve em seus braços.
— Puro efeito da adrenalina — explicou um professor aposentado. — As vezes, sob o efeito da tensão, nós nos tornamos verdadeiros super-humanos. Foi maravilhoso, srta. Cavanagh. E o câmara registrou tudo!
Clara agradeceu e se dirigiu à representante de Rowlands.
— Há outro lugar aqui perto onde poderiam construir o shopping, sabia? Uma grande área livre com uma placa de venda.
Teria mesmo visto aquilo?, perguntou-se.
— Oh, deve ser a fazenda do velho Waverley — sugeriu o militar. — Ele não vai aceitar vendê-la para um dono de shopping center.
— Tentou falar com ele? — Clara perguntou a Mary Stanton.
— Sim, nossos advogados tentaram mas ele foi muito hostil.
— Por que você não tenta? — sugeriu Clara. — Ele está sentado dentro de um carro logo ali adiante. — Ela apontou.
Mary respirou fundo.
— Você o conhece?
— Nunca o vi na vida — respondeu Clara. — Mas tenho certeza de que é aquele senhor.
Deus, por que ela tinha tanta certeza? Se aquilo era algum sinal de paranormalidade, queria ser a primeira a saber!
— Não quero correr o risco de abordar um estranho — confessou Mary. — Você pode estar enganada.
— Está bem. Alguém aqui conhece o sr. Waverley? — perguntou Clara, em voz alta.
— O velho Jack? — inquiriu um homem próximo. — Está sentado no carro dele, observando nossa manifestação. A essa altura, já deve ter se arrependido por não ter vendido o terreno para a construção do shopping porque ninguém mais quer pagar o preço que ele está pedindo. Seria a melhor solução e todos nós concordaríamos.
— Está bem — anuiu Mary Stanton. — Verei o que consigo fazer. Obrigada, srta. Cavanagh. Apesar de... inusitada, sua presença foi de grande ajuda. Nunca vi uma jovem tão vibrante e forte.
— Mantenha-me informada — pediu Clara. Então, adiantou-se para pegar um pequeno pulso fugidio. — Espere um pouco, Archie.
O menino ficou boquiaberto.
— Como sabe meu nome? — perguntou ele, com um risinho.
— Você não me disse?
— Claro que não.
Archie continuou olhando-a com espanto, como se estivesse diante de alguma heroína de história em quadrinhos.
— Tenho o mesmo nome do meu avô — explicou ele. — Eu e minha mãe iremos morar com ele.
— Então espere para me contar os detalhes quando eu o levar para casa — pediu Clara. — Mas uma coisa de cada vez, Archie. Por que não está na escola?
— Não sentirão minha falta por lá — cochichou ele. — Os coalas são meus amigos e não quero vê-los indo embora.
Em volta deles, a multidão começou a se dispersar, diante da nova possibilidade de resolução do problema. Se o tal sr. Waverley decidisse vender o outro terreno, seria vantajoso para todos.
"Clara Cavanagh é mesmo uma pessoa especial", foi o que todos saíram falando.
— Não consigo entender! — repetiu Bob pela décima vez, enquanto assistiam ao vídeo no monitor. — A parte em que você pegou o garoto, e cambaleou com ele até cair, simplesmente desapareceu da filmagem!
— A agitação das pessoas em volta não deve ter ajudado muito sua concentração, Bob — justificou Clara. — Tem certeza de que mirou a câmara em mim?
— Está maluca? — Bob se indignou. — Claro que mirei! Deveria se envergonhar por fazer uma pergunta dessa a um profissional como eu. Modéstia parte, sou um dos melhores do ramo, Clara.
— Pois acho que dessa vez você não teve sorte, meu caro Bob. — Clara deu tapinhas no ombro dele. — Depois do incidente, tudo que temos são alguns segundos de conversa entre mim e Archie. Esses acontecimentos não devem ser tão raros assim. Tenho um amigo que levantou um carro para salvar uma criança. A mãe da garotinha estava saindo de marcha a ré da garagem e não viu a menina. Ao avistar a cena, lan pulou a cerca de imediato e levantou o carro pelo pára-choque. A menina não teve nenhum arranhão.
— Eu diria que o anjo da guarda dessa garotinha foi bastante eficiente. — Bob passou a mão pelos cabelos. — Vamos passar a fita mais uma vez. Quero verificar se há algo errado.
— Sim, mas primeiro vamos tomar um café.
Os dois continuavam discutindo o assunto no corredor quando Gabriel passou por eles.
— Vocês dois estão bem? Parede até que voltaram de algum vôo espacial — falou, observando-os com curiosidade.
—Há certas coisas na vida, chefe, que simplesmente não têm explicação — respondeu Bob. — Eu e Clara estávamos cobrindo uma manifestação de protesto há duas horas...
— Ela não consegue mesmo perder o entusiasmo por esse tipo de trabalho — Gabriel o interrompeu, olhando para Clara com ar de divertimento.
— É eu não sei? — anuiu Bob. — Mas dessa vez a presença dela foi imprescindível. Na verdade, aconteceu algo muito estranho.
— Conte-me — pediu Gabriel, curioso.
— Não foi nada — interveio Clara, tentando dissuadir Bob de falar.
— Nada? — Bob arqueou as sobrancelhas. — Havia um garoto com cerca de dez anos em cima do galho de uma árvore. Acerta altura, o galho se partiu. Precisava ter ouvido o barulho! As pessoas correram para os lados, apavoradas, exceto Clara. Quando todos pensaram que o menino iria parar direto no chão, Clara o segurou em pleno ar, parecendo uma espécie de Arnold Schwarzenegger de saias!
Gabriel não disse nada por um momento, mas não desviou a vista do rosto de Clara.
—- Parece que vocês dois voltaram faz pouco tempo do almoço — disse ele, por fim. — Não andaram bebendo vinho?
— Nunca bebo em serviço — declarou Clara. — Também não sei como fiz aquilo. E essa voz meio infantil no meu ouvido...
— Uma consulta com um médico talvez ajude — sugeriu Gabriel. — Filmou a cena, Bob?
— Bem, essa é a parte mais curiosa da história. Foi tudo registrado na filmagem, exceto o momento em que Clara salvou o menino. É como se a câmara houvesse ficado na pausa.
Gabriel riu.
— Vocês têm de me desculpar, mas as brincadeiras que vivem inventando estão cada vez piores.
— Não é brincadeira, chefe — falou Clara. — Eu realmente segurei aquele garoto no ar.
Gabriel não pareceu muito convencido.
— Você? Clara, você deve pesar no máximo sessenta quilos. Não agüentaria um impacto tão forte sem que nada mais grave acontecesse.
— Eu sei — anuiu ela. — Mas houve muitas testemunhas. — Posso conseguir uma declaração se quiser.
Gabriel riu novamente.
— Então você é mesmo especial como imaginei, srta. Cavanagh. Fazer milagres em público não é para qualquer um. Mas continuo achando possível vocês dois terem sonhado com tudo isso.
Bob pareceu chocado.
— Tenho muito respeito por você, McGuire. Não contaria algo insano para meu próprio chefe, se eu mesmo não tivesse visto. Você descreveu com precisão o que aconteceu: um milagre.
— Talvez — anuiu Gabriel, com indiferença. — Preciso ir andando porque já estou atrasado para uma reunião. Quero que estejam presentes quando o júri anunciar o veredicto sobre o caso Chandler. Ouvi dizer que isso poderá acontecer ainda esta tarde.
— Chefe, não acreditou mesmo no que contamos? — Clara insistiu.
Ele sorriu para ela.
— Vocês estão precisando é de uma boa noite de sono — disse e saiu.
— Então vamos esquecer essa história de uma vez por todas — ela disse a Bob. — Temos de nos concentrar no caso Chandler. Ele só pode ser culpado.
— Um veredicto é quase sempre uma surpresa, Clara.
— Bob suspirou.
— Só não no caso de McGuire — replicou ela. — Desde que você começou a contar sobre o que aconteceu, tive a impressão de que ele iria nos condenar. E foi justamente isso o que aconteceu.
Antes de sair da empresa, na sexta-feira, Clara passou pelo escritório de Gabriel. Ele estava ao telefone e fitou-a com um ar de aviso: "Não me interrompa!"
— Muito bem, o que aconteceu? — perguntou a ela, depois de desligar.
Clara ainda não estava acreditando que aceitara o convite dele para levá-la à festa do sr. Llew.
— Eu... não tenho certeza se você sabe meu endereço.
— Sim, é fácil. Já passei em frente à sua casa várias vezes.
— Para quê?
Um sorriso se insinuou nos lábios dele.
— Gosto de saber o máximo possível a respeito de meus funcionários.. A casa é um pouco grande para você, não?
Tratava-se de uma bela construção em estilo colonial, que havia sido deixada para Clara como herança, depois do acidente com seus pais!
— Não consigo me imaginar morando em outro lugar — disse ela.
— É o que parece. Então nos veremos por lá.
— Está bem — respondeu Clara, saindo logo em seguida.
"Otimo! Maravilhoso!", resmungou em pensamento. Esperava que Gabriel estivesse com um humor melhor no dia seguinte. Senão teria de apanhar um táxi.
Na manhã do sábado, Clara saiu para fazer as compras da semana. Nada muito exagerado. Vivia mais a base de frutas frescas e de saladas. Também comprou alguns itens práticos, que poderiam se transformar em uma rápida refeição, se fosse preciso. Não tinha tempo para preparar pratos elaborados.
Na verdade, não lhe restava mesmo era disposição. Não depois de muitas horas de trabalho. De vez em quando, costumava sair para jantar com os amigos, mas nem mesmo em tais ocasiões comia com extravagância.
Logo depois do almoço, passou algum tempo no jardim, cuidando das plantas. Sua mãe adorava todo aquele verde e as flores raras que cultivava com carinho. Seu pai também gostava de ficar ali quando tinha tempo. Porém, aquela época se fora.
Um sentimento de perda fez seu peito se apertar, mas Clara tentou ignorar a tristeza. Nos primeiros dias depois do acidente, sofrera muito, sem conseguir se imaginar vivendo sem os pais. Entretanto, quando soubera do estado em que sua mãe ficaria, convenceu-se de que teria de lutar. Queria estar bem e por perto quando sua mãe despertasse novamente para a vida. Se é que isso aconteceria algum dia. Segundo os médicos, a possibilidade era muito remota.
Com os olhos cheios de lágrimas, admirou as margaridas, as petúnias e as azaléias. Tentava tratar de todas elas com o mesmo carinho com que sua mãe o fazia, mas não tinha muito tempo para dedicar às plantas. Por isso, contratara um jardineiro para cuidar delas uma vez por semana. Desejava manter o jardim como sua mãe gostaria que ele estivesse.
Às três horas da tarde, chegou à casa de repouso. Passeou com a mãe pelos jardins do lugar, empurrando a cadeira de rodas com cuidado. Parou à sombra de uma árvore e sentou-se na relva, segurando a mão de Delia.
Estranho, mas apesar de todas as evidências mostrarem o contrário, Clara nunca tivera a sensação de que a mãe não a reconhecia, embora seus olhos azuis permanecem ausentes, como que contemplando um outro mundo.
Às vezes, Clara se perguntava se ela não estaria tendo visões, em meio àquele universo particular. Estaria sua mãe tendo acesso ao marido e ao filho que perdera? Quem poderia saber?
Clara nunca encarou a dedicação à mãe como um dever. Estar ali era simplesmente uma demonstração de seu amor. Como sempre fazia durante suas visitas, pôs-se a contar o que estava acontecendo em sua vida. Falava como se a mãe estivesse lúcida e interessada no que ela tinha a dizer. Como no passado, quando Delia era uma mulher cheia de vida e agradecida pela felicidade de sua família.
Clara contou sobre os desentendimentos com Gabriel e sobre as últimas reformas que mandara fazer na casa. Também lembrou-se de mencionar o estranho incidente do dia anterior, quando salvara aquele menino.
— Não tenho certeza de que o segurei de verdade — confessou à mãe. — Senti o calor do corpo do menino junto de mim, e, no instante seguinte, a multidão já estava aplaudindo o gritando. Foi como se eu houvesse me transformado, mamãe. Gabriel pensou que eu e Bob havíamos inventado a história o disse que uma boa noite de sono resolveria o problema. Mas aconteceu de verdade. O que você acha que foi?
Então veio o choque.
— O quê?!
Clara estivera olhando para um lago próximo enquanto falava, mas olhou de repente para a mãe. A voz suave de Delia soara com clareza em sua mente!
Porém, a expressão dela continuava impassível. Clara sentiu um arrepio da cabeça aos pés. Estaria ficando maluca?
— Mamãe? — chamou-a, ainda lhe segurando a mão inerte.
Não houve nenhuma resposta.
— Oh, meu Deus... — murmurou, tentando conter as lagrimas.
Devia estar trabalhando demais. Ou talvez o trauma pelo acidente com sua família estivesse surtindo efeito. Ainda assim, poderia jurar que ouvira aquele sussurro. Pensando bem, que mal haveria em ter um pouco de esperança?
Ficou de pé e começou a empurrar a cadeira pela trilha que margeava o lago. Aquele era o caminho que elas sempre costumavam fazer. Estranho, mas a certa altura ela teve a impressão de que uma terceira pessoa as estava acompanhando.
Seria aquilo algum tipo de poder paranormal?, pensou, acariciando o ombro da mãe com carinho. Pelo visto, teria de voltar a pensar no sentido da vida e em quanto se afastara de Deus por causa de sua revolta. Se Deus era bom e perfeito, não poderia ser culpado pelo que lhe acontecera.
Clara nunca havia demorado tanto para se arrumar para uma festa. Nunca passara tanto tempo experimentando vestidos diferentes ou se olhando no espelho com um ar tão crítico.
Por fim, selecionara dois vestidos. Um de seda verde-escuro, longo e com gola alta, e outro de chiffon com uma discreta estampa floral, também com saia longa, mas sem alças. Cada um a deixaria com um estilo completamente diferente. Não eram novos, mas ainda estavam na moda. Não quisera gastar com mais vestidos, sendo que já mantinha uma boa coleção no guarda-roupa.
Talvez o estampado fosse a melhor escolha dessa vez. Ele a deixaria com um ar mais feminino. Depois de vesti-lo, calçou sapatos de salto alto do mesmo tom cor-de-rosa da estampa do vestido. Deixou os cabelos naturalmente soltos sobre os ombros, aplicou uma maquiagem discreta e olhou-se mais uma vez no espelho. Gostou do resultado, mas não pôde deixar de rir. Estava parecendo a fada da primavera de um desses contos infantis.
De súbito, sentiu uma onda de expectativa que havia muito não sentia. Estava ansiosa para ver o que Gabriel diria de seu visual. Mas desde quando passara a se interessar pela opinião dele a esse respeito?
Seu coração acelerou quando ela ouviu o som da campainha. Ficara pronta em cima da hora!
Quando abriu a porta da sala, conteve o fôlego. Sabia que a festa seria a rigor, mas não imaginara que Gabriel ficaria tão magnífico de smoking.
— Olá — ele a cumprimentou, com um brilho de apreciação no olhar. — Está encantadora, fada da primavera — completou, como que lendo os pensamentos que Clara tivera segundos antes.
Ela se espantou, mas acabou rindo do comentário. Gabriel teve de se conter para não tomá-la nos braços e beijá-la com ardor. Nunca a tinha visto com um vestido longo antes o a surpresa fora mais do que encantadora.
— Obrigada — Clara agradeceu com um sorriso. Porém, logo voltou a ficar séria. Não poderia se esquecer de que aquele era Gabriel McGuire, cruel predador da espécie feminina.
— Quer entrar um pouco? — convidou-o por mera educação.
— Sim, quero. — Assim que entrou na sala, ele observou o aposento com ar de admiração. — Sua casa é mesmo magnífica, apesar de ser antiga.
— Eu a adoro. — Clara sorriu, ficando ao lado dele. — Venha conhecer o restante dos aposentos.
— Com prazer. A casa foi construída por seu avô, não é?
Clara olhou-o no mesmo instante.
— Quem lhe disse? Gabriel deu de ombros.
— Já disse que gosto de saber o máximo a respeito de meus funcionários. — Enquanto circulavam pelo andar de cima, ele disse: — Eu também iria gostar de morar em uma casa assim.
— É mesmo? Pensei que preferisse coisas mais modernas e arrojadas, com todos aqueles móveis retangulares e quadros esquisitos.
Gabriel riu.
— Prefiro estilos que integram o novo ao antigo. Mas, em termos de arquitetura, gosto muito desse estilo colonial com varandas feitas de ferro decorado e coisas desse tipo. É perfeito pura o clima subtropical. Também aprecio tetos altos e aposentos amplos. A pessoa que escolheu a decoração foi muito sensível.
Clara sentiu um aperto no peito.
— Minha mãe. — Foi tudo que conseguiu dizer. Andaram alguns segundos em silêncio, antes que Gabriel falasse:
— Deve ser consolador ter lembranças tão marcantes dela por toda a casa.
— As vezes é — admitiu Clara. — Mas de vez em quando isso se torna um verdadeiro tormento. — Indicou o andar de baixo. — Vamos até a biblioteca. É meu aposento favorito. Assim que abriu a porta do aposento, Clara teve a impressão de ver alguém sentado na cadeira de seu pai, próxima à lareira. Por um instante, a visão foi tão nítida que a fez conter o fôlego.
— Está tudo bem? — Gabriel perguntou.
— Sim, está.
Devia ter sido alguma ilusão de ótica, concluiu ela. Principalmente por ter parecido ser alguém tão pequeno. Seu pai era tão alto quanto McGuire, mas a visão que ela tivera parecera ser a de uma criança. De fato, coisas estranhas andavam lhe acontecendo ultimamente. Não poderia admiti-las por completo, mas sentia que não conseguiria ignorá-las.
— Ficou um pouco pálida — observou Gabriel, quando ela acendeu a luz.
— Estou bem.
— Fica sempre nervosa mesmo sem nenhuma ameaça por perto? — brincou ele.
Clara sentiu vontade de discordar, mas se conteve. Afinal, ele era mais do que uma ameaça, e estava bem próximo.
— Quando sinto alguma ameaça, chamo meu anjo da guarda — respondeu, também em tom de brincadeira.
— Ainda bem. — Gabriel estudou cada detalhe da biblioteca. — Deve ter gostado de crescer aqui.
— Sim. E você? Onde cresceu? — perguntou ela, com gentileza.
— Em uma pequena cidade fora de Sidnei. — Virando-se para ela, acrescentou: — Obrigado por me mostrar sua linda casa. Gostaria de ficar mais algum tempo, mas é melhor irmos andando.
— Sim, claro. Quando Clara passou por ele, dirigindo-se à porta, Gabriel a deteve por um momento e lhe acariciou o rosto.
— Agora sei por que se parece tanto com uma fada. É alguém muito especial.
Clara sentiu o rosto esquentar. Felizmente, Gabriel a soltou e ela pôde se afastar antes que fosse tarde demais. Os dois saíram em seguida.
— Eu não sabia que você tinha um Jaguar — disse, ao ver o carro dele.
— Desde criança, prometi a mim mesmo que algum dia eu teria um. — Ele sorriu.
— Também gosto desse modelo de carro.
— Ainda bem. Achei que não seria lá muito emocionante vir apanhá-la com o mesmo carro com que costumo trabalhar.
— Eu não me importaria.
— Sei disso, Clara.
— Ei, está me chamando pelo primeiro nome! — falou ela, em tom de protesto.
— E você não está me chamando de nada — observou Gabriel. — Pelo menos na minha frente, porque, pelas minhas costas, sei muito bem como me chama.
— Oh, por favor. Não acredite no que as pessoas falam — Clara se defendeu, embaraçada. — Estamos indo a uma festa, lembra-se?
— Então diga logo.
— Dizer o quê?
— Meu nome.
— Sr. McGuire...? — arriscou ela. Ao receber um olhar fuzilante, emendou: — Gabriel, o mensageiro de Deus. Tem de admitir que não combina muito com seu temperamento autoritário.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Acha que tenho mais a ver com Lúcifer? Clara riu alto.
— Também não precisa exagerar. Até mesmo para você isso seria cruel demais. Que tal fazermos um trato? Eu o chamarei de Gabriel durante esta noite, se você continuar me chamando de Clara. Então voltaremos ao tratamento de sempre na segunda-feira.
— Por mim, tudo bem. — Estreitando o olhar, ele perguntou: — Consegue mesmo nos imaginar como amigos? Clara conteve o riso.
— Segundo dizem por aí, tudo é possível...
— Não acho que você vá agüentar isso, srta. Cavanagh. Gabriel olhou-a de soslaio. Deus, como ela era linda!
— Voltou a me tratar por senhorita?
— Apenas para não perder o hábito. Mas continuo com uma dúvida: o que exatamente a deixa apreensiva com relação a mim?
"Tudo!", Clara quase gritou. "Sua beleza, sua força de caráter, sua masculinidade..."
— Gabriel, não tenho nenhum problema com relação a você.
— Tem sim. E não ria.
— Bem... Tenho de admitir que seu maior defeito é ter o dom de me provocar.
Ele pensou um instante.
— Sim, eu admito.
— Deve ter seus motivos para isso.
— Tenho — confirmou Gabriel. — Mas quero o melhor para você, Clara. Posso ser um pouco duro, às vezes, mas minhas intenções são dignas. O problema é que você fazia tudo que queria quando estava sob as asas de seu outro chefe, e não posso admitir isso profissionalmente.
Clara reconheceu que ele tinha razão.
— Clive deixou o cargo muito antes do que deveria — disse a ele.
— Está sendo preconceituosa. Caso não saiba, estamos do mesmo lado, Clara. Mesmo que nosso relacionamento não seja lá dos melhores.
— Clive não gritava comigo.
— E o que acha que devo fazer? Aceitar que falte às reuniões e não me importar quando você entra no meu escritório sem bater?
Clara enrubesceu.
— Isso não é verdade. Eu sempre bato à porta da sua sala.
— Quando se lembra — salientou Gabriel. — De qualquer maneira, tudo isso é superficial. Acho que o problema principal é físico.
Clara deu graças por estarem na penumbra do carro porque tinha certeza de que, àquela altura, seu rosto devia estar vermelho feito um tomate.
— Bem, de fato, você tem muita... presença — admitiu.
— Acha mesmo? Está me fazendo sentir feito Conan, o Bárbaro.
— Por que se importaria com minha opinião a seu respeito? —- inquiriu ela.
— Ei, eu estou fazendo as perguntas.
— Tudo bem, continue, chefe. Estou apenas tomando cuidado com minhas respostas. Se isso lhe serve de consolo, conheço pelo menos vinte mulheres naquele prédio que o consideram muito atraente.
— Vinte e duas, segundo o último levantamento — corrigiu ele.
Ignorando a ironia, Clara continuou:
— Não entendo por que ainda não se casou.
Deus, ela dissera mesmo aquilo? Não era possível! Alguém a hipnotizara!
Gabriel olhou-a de soslaio.
— Se eu a pedisse em casamento, você aceitaria?
— Só pode estar brincando.
— Não, não estou — ele respondeu. — Há muitas características a seu favor. É bonita, elegante, inteligente, conhece meu ramo de trabalho e não ficaria me questionando a todo instante...
Clara balançou a cabeça, aturdida.
— Não, não seria uma boa idéia. Não consigo imaginar nós dois casados.
— Tudo bem, Clara. Eu estava brincando. Mas, falando sério, você não confia em nenhum homem o suficiente para se casar?
— Não.
— Pois eu acredito no amor.
Ela olhou-o com surpresa. Aquilo era a última coisa que ela esperava ouvir de Gabriel McGuire!
— Não tenho motivos para isso — continuou ele —, mas acredito.
Poderia contar muitas desilusões sobre esse sentimento, depois de haver tido um pai violento e uma mãe dominada pelo medo.
— Tive uma infância muito difícil e só pensava em fugir da vida e das pessoas. Com o tempo, percebi que isso não é sábio. Temos de aproveitar a vida ao máximo e nos relacionarmos bem com as pessoas para conseguirmos acreditar no amor.
Clara estava chocada.
— Gabriel, lamento pelo que lhe aconteceu.
Ele sorriu.
— Também já lamentei, mas isso faz parte do passado. Entende o que quero dizer, Clara? Se eu tivesse ficado preso às dores do passado, guardando mágoas destrutivas, não teria conseguido ser quem sou hoje. O melhor é saber que devo isso ao meu próprio esforço.
Clara também sorriu.
— Sabendo desse detalhe, é realmente admirável.
Gabriel revelara um lado maravilhoso, que ela nunca pensou que ele tivesse. Mais uma vez, a vida a surpreendera. De súbito, uma brisa agradável soprou seus cabelos.
O amor é capaz de mudar as pessoas...
Quem dissera aquilo?, pensou ela, olhando depressa para trás.
— O que foi? — perguntou Gabriel.
— Você ouviu?
— O quê?
— Uma voz falando sobre o... Oh, deixe para lá. Deve ser coisa da minha imaginação.
Seria mesmo?
O sr. Llew Williams, dono e presidente da BTQ8 juntamente com alguns sócios minoritários, morava em uma mansão incrivelmente suntuosa, em Riverside, conhecido recanto de milionários.
As ruas próximas à mansão haviam sido interditadas pura abrigar os carros dos convidados menos ilustres. Gabriel nem se deu ao trabalho de procurar uma vaga, indo direto para os portões de ferro da mansão, onde foi logo reconhecido e cumprimentado por um segurança.
— Então é um dos favoritos do patrão? — brincou Clara. — Não sei se isso é muita vantagem — salientou Gabriel. Acabam exigindo que você seja perfeito nos momentos em que, no máximo, você conseguiria ser aceitável.
Assim que saíram do carro, Gabriel segurou a mão dela, mas Clara a soltou com gentileza.
— Ouça, Gabriel. Não quero que fique me tratando como se eu fosse uma garotinha precisando de proteção. É muita gentileza sua se preocupar comigo, mas eu sei me cuidar.
— Tudo bem. Mas estarei por perto se precisar.
Clara sorriu para ele.
— Posso saber por que toda essa preocupação? — perguntou. Não vai demorar muito para Freeman notar sua presença — explicou Gabriel, segurando-a pelo cotovelo e conduzindo-a em direção à entrada.
— Meu Deus, e pensar que o sujeito já teve três esposas! Está mais do que evidente que ele quer ter uma quarta.
— Pode ser, mas você não tem com o que se preocupar. Com todas as notícias escandalosas que já li a respeito dele; nos jornais, tenho certeza de que ele não é o meu tipo.
Gabriel sorriu.
— Clara, acho melhor você manter um tom de voz baixo. Por aqui, até as paredes têm ouvidos.
— Oh, sinto muito. — Ela deu de ombros. — Bem, ninguém é perfeito.
— Eu sei. Estou apenas lhe pedindo para ser cuidadosa. Duas das esposas de Freeman tinham cabelos avermelhados.
Foi a vez de Clara rir.
— Mantê-los dessa cor deve ter custado uma boa soma em dinheiro. Tudo bem, Gabriel. Depois de saber esse detalhe, terei mesmo de tomar cuidado.
— Não dê atenção às investidas dele. Tenho certeza de que ele vai querer flertar com você.
De fato, foi exatamente o que aconteceu.
Assim que os dois entraram no salão principal, Tara Williams se afastou de um grupo e veio sorrindo de encontro a Gabriel. Ficando na ponta dos pés, beijou-o no rosto.
— Gabriel, você está irresistível! Papai me disse para levá-lo até ele assim que você chegasse. E também... — Ela olhou para o lado. — Clara, é esse seu nome?
Era evidente que Tara sabia o nome dela. O rosto de Clara era muito conhecido na televisão.
— Sim. Sou Clara Cavanagh, srta. Williams. — Ela sorriu. — Agradeço por haver sido convidada para a festa.
— Papai gosta de ser generoso com os empregados de vez em quando.
O comentário, nem um pouco delicado, foi feito com um sorriso. Pelo visto, Tara achava que por ser filha de um milionário podia dizer e fazer tudo que lhe vinha à mente
A moça não perdeu tempo em segurar Gabriel pelo braço com um ar de possessividade que seria cômico se não fosse trágico. Mesmo assim, Clara não se importou quando ele demonstrou que iria se afastar com seu acompanhante deixá-la sozinha.
— Com licença, sim, Clara? — disse Tara, com outro de seus sorrisos falsos. — Mandarei um amigo vir lhe fazer companhia. O nome dele é Gregory Pendleton. Quero saber as novidades que Gabriel deve ter para me contar.
A maneira como Gabriel olhou para a moça pareceu irônica, segundo Clara notou. Seriam verdadeiros ou não os rumores que andavam circulando pela empresa, de que os dois tinham um caso? Teve a impressão de que Gabriel estava prestes a convidá-la para acompanhá-los, quando o sr. Llew se aproximou deles. Ele tinha cabelos grisalhos, era alto, elegante e pareceu satisfeito ao ver a filha de braço dado com Gabriel.
Segundo Clara sabia, a sra. Williams havia saído de casa na época em que Tara era uma adolescente de quatorze anos. Não agüentara a pressão de ter uma filha cheia de vontades, e que se tornara a pessoa mais importante na vida de seu marido.
— Gabriel, que bom vê-lo por aqui — ele o cumprimentou, abraçando-o de lado. — Quero que conheça Christopher.
Gabriel pareceu surpreso.
— Eu o conheci em Washington, quando fui realizar um trabalho por lá, sr. Llew. Mas não sei se ele se lembrará de mim.
— Ele se lembra, sim — confirmou o pai de Tara. — Você não escreveu coisas muito gentis a respeito dele na época. Ah, Clara Cavanagh. — Sorriu para ela. — Está encantadora. Venha conosco, Cristopher adora um rosto bonito.
— Claro que você é muito mais do que um mero rosto bonito — sussurrou Gabriel, em um tom que apenas ela pudesse ouvir.
Seguiram o sr. Llew por entre as pessoas, que iam abrindo caminho naturalmente quando ele se aproximava, feito um Moisés dos dias modernos. Christopher Freeman se encontrava a um canto do salão, em meio a um grupo de pessoas que pareciam encantadas com a presença dele. Freeman era um homem muito elegante, com cabelos ligeiramente grisalhos e perscrutadores olhos acinzentados.
A morena glamourosa que se encontrava ao lado dele olhou para Clara com um ar de hostilidade que a deixou confusa. Porém, ela logo descobriria o motivo. Depois das apresentações, Gabriel e Clara foram convidados a participar do grupo.
— Tente apenas parecer inteligente, minha cara — sussurrou a morena, dirigindo-se a Clara com um sorriso mais amigável, provavelmente por pensar que ela e Gabriel formavam um casal.
A conversa incluiu política mundial, algumas piadas e muita fofoca. Demorou mais de meia hora para Gabriel conseguir; se afastar do grupo diplomaticamente e levar Clara consigo.
— Meu Deus, ele não mudou nem um pouco — resmungou Gabriel.
— Ele foi muito gentil com você.
— E mais ainda com você — salientou ele.
—- Pelo menos ele pareceu gostar dos assuntos que você abordou. Segundo notei, a maioria das pessoas fica apenas boquiaberta quando ele está por perto. Deve ter sido uma experiência diferente ter alguém como você por perto.
Gabriel não hesitara em fazer algumas críticas às opiniões de Freeman sobre certos assuntos. Falara com muita polidez, claro, mas não deixara de expressar suas opiniões. Clara concordara com as opiniões de Gabriel. O mundo de Christopher Freeman se resumia apenas a dinheiro. Nada mais.
Ao longo da noite, Clara flagrou o bilionário a seu lado algumas vezes. Não deixava de ser lisonjeiro sob um certo aspecto, mas, a certa altura, ela começou a se sentir pouco à vontade com a maneira como ele insistia em olhar para seus lábios.
Gabriel também deve ter notado porque chamou-a de lado assim que teve oportunidade. Foram para o terraço, tomar um pouco de ar fresco.
— Talvez seja melhor ficar a meu lado durante o restante da noite, Clara.
— Isso combina mais com o estilo de Tara — ela ironizou;
— Não estou brincando.
"Fique calma", ela pensou consigo. "Ele é seu chefe, por mais que você deteste isso."
— Gabriel, está completamente enganado, se pensa que estou interessada em Freeman.
— O problema é que ele está interessado em você.
— Já disse que sei me cuidar.
— Não foi o que pareceu — replicou ele. — Freeman tem um ego do tamanho do cofre que guarda o dinheiro dele no banco. Portanto, você logo vai perceber que ele não aceitará a idéia de que você não está interessada nele.
— Mesmo tendo idade suficiente para ser meu pai?
— Clara. — Ele suspirou. — Isso não me tranqüiliza nem um pouco. Homens com a fortuna de Freeman geralmente conseguem tudo o que querem. E ele nunca escondeu que quanto mais jovens forem suas namoradas, melhor.
Clara percebeu que ele tinha razão. Por isso, usou um tom mais ameno. .
— Gabriel, pare de tentar me proteger, sim? Está exagerando e isso não é do seu feitio.
— Tomara que você esteja certa.
Gabriel olhou-a com a mesma perspectiva que Freeman estava tendo. Clara era linda, jovem e desejável. Só que, no seu caso, sabia manter um limite de aproximação. Não tinha essa mesma certeza a respeito de Freeman.
— Estou ouvindo uma espécie de voz desde que chegamos — confessou a ela. — É estranho, mas ela parece estar me dando conselhos. Conheço Freeman, e sei que ele é muito ardiloso e que pode iludir alguém sem experiência como você.
— Sem experiência? — repetiu Clara, indignada. Estaria ele sugerindo que ela não sabia lidar com questões sentimentais?
— Acho que entendeu o que eu quis dizer.
— Não, não entendi. Explique melhor — pediu ela, cruzando os braços e fingindo interesse.
— Clara, não quero discutir com você no meio de uma festa, está bem?
Sorriu ao notar o brilho de desafio nos olhos dela.
— Tudo bem. Afinal, veio como meu chefe, e não como usou protetor. Pelo visto, só você ainda não percebeu isso. Não preciso que fique me vigiando feito um falcão.
Precisa sim! Vamos conseguir protegê-la, ou não me chamo Titus!
Gabriel franziu o cenho. Lá estava a voz lhe falando mais uma vez. Devia estar trabalhando demais ultimamente.
— O que foi, Gabriel? Tudo bem com você?
— Não sei. É aquela voz novamente.
Clara arqueou as sobrancelhas. Também andava ouvindo vozes de vez em quando.
— E o que ela disse? — perguntou a ele.
— Não sei direito. Parece que falou um nome. Algo como Tinni... Tinnitus...
— Gabriel. — Clara pareceu preocupada e tocou o braço dele.
— Estou bem. Vamos voltar para dentro. O jantar já vai ser servido e precisamos estudar uma estratégia para mantê-la longe de Freeman.
Entretanto, assim que Tara viu Gabriel, acabou dando um jeito de afastá-lo de Clara. Freeman não perdeu tempo em se aproximar, com seu ar de predador. Dessa vez, porém, ele pareceu mudar de tática, pois foi muito gentil e impessoal durante todo o tempo.
Do outro lado do salão, Tara parecia estar conseguindo manter Gabriel "preso" por algum tempo. Levara-o até um grupo pequeno de jornalistas estrangeiros e não soltou o braço dele nem um por instante.
Gabriel, por sua vez, ficava cada vez mais convencido de que estava detestando aquela festa. Todas as vezes em que saía de perto de Clara e que arriscava um olhar na direção dela, encontrava Freeman tentando "fisgá-la".
Contudo, Clara parecia estar gostando da conversa. Deus, e mesmo depois de tudo que dissera a ela sobre Freeman? Não era possível! Tentou se acalmar, dizendo a si mesmo que Clara deveria estar à procura de uma nova matéria para o jornal Freeman, por outro lado, parecia ter um interesse bem diferente.
Por que não a leva para casa?, a voz sussurrou em seu ouvido.
— Não sei se ela vai aceitar — respondeu.
— Algum problema, filho? — perguntou um senhor idoso, próximo a ele.
Gabriel se espantou. Não acreditava que houvesse respondido em voz alta!
— Não foi nada. Eu estava falando comigo mesmo.
O velho sorriu.
— Ah, eu faço isso o tempo todo.
Gabriel forçou um sorriso em resposta. "Só que o senhor já deve ter oitenta anos, e eu estou com trinta!", pensou.
Continuou intrigado com aquela história. Quem estava falando em seu ouvido? Se é que havia alguém fazendo isso. Bem, seria melhor não questionar muito, senão acabaria tendo de admitir para si mesmo que estava ficando maluco.
Olhou para o relógio. Já passava da meia-noite, mais do que hora de partir.
Freeman e Clara levantaram a vista quando ele se aproximou.
— Posso interromper a conversa por um instante?
Clara não gostou nem um pouco do brilho daquele olhar.
— Já estou de partida, Clara — avisou Gabriel. — Se quiser voltar comigo, é melhor me acompanhar.
Sabendo que não lhe restaria escolha, ela forçou um sorriso para Freeman.
— Peguei carona com Gabriel e preciso voltar com ele — explicou.
— Não quer ficar mais? — indagou o bilionário. —- Será um prazer levá-la até em casa depois. Minha limusine estará a disposição.
Clara ficou muito ciente de que o brilho nos olhos de Gabriel se tornou ainda mais perigoso.
— Obrigada pela gentileza, mas preciso mesmo ir agora. foi bom conversar com você. Boa noite. — Ela estendeu a mão para ele.
— Quero vê-la de novo — confessou Freeman.
— Nós a mantemos muito ocupada na BTQ8 — interveio Gabriel.
— Bem, não sei se será possível... — respondeu Clara, Cingindo ignorar o comentário de Gabriel.
— Posso ir visitar a estação de televisão enquanto estou por aqui — sugeriu Freeman.
— Seria um prazer, Freeman — respondeu Gabriel, forçando um sorriso. — Mas já vou avisando que não sei se teremos uma data tranqüila na agenda da empresa.
— Aposto que poderão encontrar alguma data se decidirem gravar uma entrevista minha feita por Clara.
— Com certeza teríamos um aumento na audiência — afirmou Clara.
Christopher Freeman andava sendo um dos empresários mais difíceis de se entrevistar.
— Então está combinado — disse ele, sorrindo para Gabriel.
— Estou mais do que satisfeito com a proposta — Gabriel mentiu. — Ligarei na segunda-feira para acertarmos os detalhes.
— Oh, eu insisto em levar vocês dois para almoçar — convidou Freeman, ciente de que não se livraria de Gabriel tão facilmente.
— Otimo — respondeu ele.
— Não acredito que vou entrevistar Christopher Freeman! — exclamou Clara, assim que os dois saíram da mansão, vinte minutos depois.
Tara os havia alcançado antes de conseguirem sair e, literalmente, "segurara" Gabriel por mais alguns minutos, ignorando por completo a presença de Clara.
— Não entendo por que tanta empolgação.
— Ora, teremos um aumento incrível na audiência, Gabriel!
— Concordo. Mas valerá a pena tanto sacrifício?
— Quem o visse falando pensaria até que está com ciúme de Freeman, por ele estar interessado em mim. — Olhando-o de soslaio, acrescentou: — Não estou interessada nele.
— Não mesmo? Conheço muitas mulheres que ficariam radiantes em se casar com um bilionário — falou Gabriel, enquanto entravam no carro.
— Sei disso, mas não sou uma delas. A única pessoa com quem eu aceitaria ir para a cama seria um homem por quem eu estivesse apaixonada.
— E você já o encontrou ou ainda está à procura dele?
Clara abaixou a vista para colocar o cinto, disfarçando a surpresa pela. pergunta.
— Deve haver alguém por quem eu ainda consiga me apaixonar. Mas a maioria dos homens que conheci não têm nada a ver comigo.
— Eu estou incluído nessa lista?
— Na verdade, não. Estranho, não acha? Em vários aspectos, você me atrai muito.
— Você também é interessante — disse ele.
"Só isso?", pensou Clara. Gabriel a considerava apenas "interessante"? De fato, conversar com Christopher Freeman fora muito fácil quando comparado à apreensão de se lidar com Gabriel. Nunca tinha idéia de qual seria a reação dele em certos momentos.
Quando ele parou o carro diante da casa dela, Clara pensou em oferecer um café, mas logo desistiu da idéia. Gabriel estava preocupado com Freeman, mas a companhia dele também não parecia nem um pouco segura para ela.
— Obrigada pela carona — foi tudo que disse. — O que pretende fazer amanhã?
Clara respirou fundo.
— Tenho várias coisas para arrumar em casa. Depois irei visitar minha mãe.
Ele assentiu.
— Você a ama muito, não?
— Sim.
Sentindo que ela não queria tocar naquele assunto, Gabriel achou melhor mudar o rumo da conversa.
— Deixe que eu lide com Freeman, Clara.
— E para mim que ele quer dar a entrevista.
— Eu sei. O interesse dele ficou mais do que evidente. Bem, boa noite então.
— Boa noite, Gabriel — respondeu com um sorriso. Clara fitou-o por um momento, sentindo-se invadida por uma súbita onda de desejo. O que estava acontecendo com ela?
— É tão raro vê-la sorrir desse jeito para mim — falou ele.
Segurou o queixo dela com delicadeza, observando os belos olhos azuis por um instante que pareceu infinito para Clara. Quando o rosto dele foi ficando cada vez mais próximo, ela não tentou se afastar. Ou melhor, não quis se afastar.
O beijo foi breve, mas tão intenso que a deixou sem fôlego. Quando Gabriel se afastou um pouco, ela continuou olhando-o, sem saber o que dizer.
— Durma bem, Clara. E, se precisar, não esqueça de pedir ajuda ao seu anjo da guarda — brincou.
Gabriel partiu em seguida, como se nada diferente houvesse acontecido. Para Clara, porém, foi como se todo seu mundo tivesse mudado por causa de um único beijo.
Então aquele era o beijo que as mulheres da empresa sonhavam em receber? Bem, elas tinham toda razão. Os lábios de Gabriel McGuire eram mesmo arrasadores.
Algo lhe dizia que mais cedo ou mais tarde aquilo acabaria acontecendo. Entretanto, o perigo de se aproximar dele continuava tão evidente quanto antes. Dali em diante, sua cautela teria de ser redobrada. Triplicada!
No domingo de manhã, Clara acordou com um sobressalto. A campainha estava tocando. Ao olhar para o relógio sobre a mesinha-de-cabeceira, surpreendeu-se ao ver que já passava das dez e meia. Dera-se ao luxo de dormir até mais tarde.
Saiu logo da cama e vestiu o robe. Passando as mãos pelos cabelos, foi direto até a porta.
Deparou-se com um jovem na varanda, segurando um imenso arranjo de flores. Dezenas de rosas, margaridas, cravos, orquídeas, crisântemos e verdadeiras nuvens de miosótis, além de uma exótica folhagem.
— Srta. Clara Cavanagh? — perguntou o rapaz. Ela arregalou os olhos, surpresa.
— Alguém deve ter cometido algum engano...
— Não creio. — O rapaz sorriu. Tirando um cartão do bolso, leu: — Número vinte e um da Sunderland Avenue.
— Não pensei que fizessem entregas assim aos domingos. Teve de pegar a cesta com as duas mãos para agüentar o peso.
— Fazemos quando se trata de uma encomenda especial - explicou ele. — É um arranjo e tanto, não? — Ele sorriu.
— Sim.
Depois que o entregador partiu, Clara carregou a enorme costa para a sala. Conseguiu colocá-la sobre a mesinha, mas não sem certo esforço. Curiosa, pegou o cartão preso no laço branco.
"Obrigado pela noite agradável. Christopher."
— Ah, meu Deus...
Por mais que as flores fossem lindas, aquilo significava "perigo". Toda aquela extravagância implicava em uma mensagem que ela preferiria não entender. Detestava ter de admitir, mas, em algumas questões, Gabriel sempre tinha razão.
Na manhã de segunda-feira, Gabriel chamou-a na sala dele, voltando a adquirir o mesmo tom profissional de sempre. Pelo visto, o beijo que haviam trocado só havia significado algo para ela.
— Marquei aquele almoço com Freeman para a quarta-feira — avisou ele, fazendo um sinal para ela se sentar. — Portanto, não marque nada para esse dia a uma hora da tarde. Fiz as reservas no Michaels.
Clara sabia que aquele era um dos restaurantes mais caros da cidade, mas não fez nenhum comentário.
— Também falei com o sr. Llew, que ficou empolgado com a idéia da entrevista. Depois conversei com Graham.
Graham Hewett era o principal apresentador do programa de entrevistas do canal. Clara tomaria o lugar dele para realizar a entrevista com Freeman.
— Nem é preciso dizer que você vai acabar se deparando com alguns "inimigos" nos próximos dias — avisou Gabriel.
— Estou preparada para isso — garantiu Clara.
— Subiu muito em pouco tempo, srta. Cavanagh.
Clara não soube se ele voltara a usar seu sobrenome por causa do acordo que haviam feito ou por estar sendo irônico no comentário.
— Não se sente feliz por mim?
— Sim, muito. Tanto que estava pensando até em lhe oferecer um aumento.
— É mesmo? — Ela se animou. —Vejo que comecei a semana com o pé direito. Posso saber de quanto será o aumento?
— Ainda não sei ao certo, mas não ficará desapontada;
— É muita generosidade sua, chefe.
— Apenas profissionalismo — salientou ele. — Será mais lucrativo mantê-la por aqui, isto é, se ninguém acabar colocando sua cabeça a prêmio.
Clara deu de ombros.
— Todo jornalista corre esse risco quando se envolve em assuntos mais sérios.
— Eu sei. O problema é que a cada dia aparecem mais pessoas malucas, querendo culpar a mídia e o governo por tudo de ruim que lhes acontece. Não entendem que a responsabilidade de ser feliz pertence a cada um. Agora, quero que prometa que vai tomar mais cuidado com suas matérias. Já falei com Bob. — Tornou-se pensativo. — Pensando bem, acho que seria melhor trocarmos seu cameraman...
— Não, chefe! Bob e eu formamos uma equipe.
— É bom mudar o time de vez em quando. Para ser sincero, não acho que Bob esteja preparado para acompanhar seu ritmo. Vou deixá-lo com outro repórter e escalar Giles Stockwell para trabalhar com você.
— Por favor, chefe, não faça isso. Prometo que tomarei cuidado. Bob sempre foi muito cuidadoso, querendo evitar que eu me metesse em confusão. Admito que a culpa foi minha daquela vez em que a câmara foi quebrada.
Gabriel suspirou.
— Está bem. Deixarei vocês dois juntos por enquanto, mas quero que fique bem claro que vocês devem ficar longe de encrencas.
Clara assentiu.
— A propósito, no próximo domingo, os De Haviland vão oferecer uma pequena festa para Freeman, no chalé que eles têm na montanha. O próprio Freeman pediu para que você comparecesse, a menos que tenha outro compromisso...?
Clara não respondeu de imediato. Quando olhou para Gabriel, notou que ele a estava observando com atenção.
— Não vai acreditar, mas Freeman me mandou uma Imensa cesta de flores ontem pela manhã.
— Por que eu não acreditaria? — Gabriel arqueou uma sobrancelha.
— Ora, pensei que não o considerasse como um romântico.
— Espero que não esteja pensando que ele é. Acabará se decepcionando.
— Se quer saber a verdade — disse Clara —, levei-as para a casa de repouso onde minha mãe se encontra.
— E não ficou nem com uma rosinha? — provocou Gabriel.
— O único motivo que me levou a conversar com Christopher Freeman foi obter uma matéria, uma entrevista ou algo do gênero — explicou ela: — Como sabe, consegui o que queria. Você, por outro lado, não obteve nada de promissor.
— A única coisa que quero obter de Freeman é distância.
— Quero deixar claro que meu interesse por ele é profissional — enfatizou ela.
— Eu insinuei alguma outra coisa?
— Acho que sim. De qualquer maneira, visito minha mãe todos os domingos e não sei se poderei ir a essa festa. A que horas será?
— Não terá um horário fixo. O bufe vai funcionar durante o dia inteiro.
— Você vai?
— Sim. Mas isso faz alguma diferença para você? — Indagou Gabriel, com ar curioso.
— Faz sim — admitiu Clara. — Preciso do benefício de sua presença para manter Freeman a distância.
Ele sorriu com charme.
— Agradeço por sua sinceridade. Então não é porque deseja passar o dia comigo?
— De maneira alguma — respondeu ela, também com um sorriso. — Depois de conhecer Tara Williams, sei que ela já se considera sua dona.
— Não diga tolices — protestou ele, como que ofendido,
— Estou apenas seguindo minha intuição, nada mais
— "Intuição feminina", como costumava dizer minha avó irlandesa — salientou ele.
— Isso mesmo. Não ficarei aborrecida se você precisar sair mais cedo para dar uma carona a Tara.
— Nem pensar! Prefiro usar a desculpa de que terei de esperar por você. A que horas pretende sair?
— Meio-dia, mais ou menos. Isso nos daria tempo de subir a montanha com tranqüilidade.
— Combinado. — Gabriel hesitou. — Clara? Não quero parecer intrometido, mas eu gostaria muito de conhecer sua mãe.
— Oh, eu... — Ela não soube o que dizer.
— Eu poderia apanhá-la por volta das dez horas, iríamos visitar sua mãe e depois partiríamos direto para a casa dos De Haviland.
— Gabriel, você sabe que minha mãe se encontra em uma espécie de coma?
— Sim, eu sei. Mas tenho certeza de que ela não vai rejeitar receber um novo amigo.
Clara sorriu.
— Com certeza não.
Na quarta-feira, Gabriel teve de avisar na última hora que não poderia comparecer ao almoço com Christopher Freeman, devido a alguns problemas profissionais que ele teria de resolver.
— Explique o motivo a ele, sim? — pediu a Clara. Olhou-a com um ar preocupado, sem deixar de admirar o tailleur cor-de-rosa que a deixara com uma aparência irresistivelmente feminina.
— Pode deixar. Sinto muito que não possa ir — lamentou ela, com sinceridade.
— Falou como se realmente fosse lamentar a minha ausência.
— E vou.
Gabriel sorriu. Adorava a sinceridade quase ingênua cio Clara.
—Tem certeza de que saberá lidar sozinha com aquela "fera"?
— Acho que sim — ela respondeu. — Para uma pessoa tão bem-sucedida, Freeman não é tão autoritário assim.
— E que você ainda não o viu fazendo negócios. Ele tem fuma de ser um verdadeiro tirano.
— Comigo ele foi bastante gentil.
— Não se iluda com as aparências. Pode deixar.
— Oh, sinto muito que McGuire não tenha podido vir — disse Freeman, negando com o olhar o que seus lábios haviam dito. — Fiquei impressionado com a personalidade dele. Não creio que demorará muito tempo para ele chegar ao topo. — Sorriu. — Talvez acabe até roubando o lugar de Llew.
Clara não gostou doar de malícia com que ele dissera àquilo.
— McGuire não é do tipo que rouba o lugar de alguém. O sorriso de Freeman se desvaneceu um pouco.
— Ah, já entendi. A eterna lealdade ao chefe...
— Ele merece a minha lealdade. McGuire trabalha tão duro quanto os demais funcionários da empresa. Além disso, sabe respeitar todos e colocar cada um no seu devido lugar. Eu tinha uma certa liberdade profissional com meu antigo chefe, mas somente depois de trabalhar com McGuire foi que percebi que aquele método de trabalho não é produtivo.
— Então você o chama de McGuire?
— McGuire, chefe... Ele não se importa.
— Pensei que o estivesse chamando de Gabriel na festa. Clara sorriu.
— Oh, aquilo foi um acordo de que nos trataríamos pelo primeiro nome durante aquela noite.
— Existe algum romance entre vocês?
— O que o levou a pensar isso? — Clara se espantou.
— McGuire me pareceu protetor demais com relação a você.
— Não quero acabar tendo um inimigo, em vez de um amigo do mesmo ramo de trabalho.
— Não acha que está exagerando um pouco?
— Não no que diz respeito a Gabriel McGuire. Ele pode se tornar um inimigo perigoso.
— Então é bom que estejamos todos do mesmo lado. — Ela sorriu.
Clara acabou voltando para o escritório bem mais tarde do que pretendia. Ao entrar, encontrou Jennifer Bourne, uma talentosa jornalista da empresa, que acabara de chegar de uma entrevista política com o primeiro-ministro.
Clara não esperava receber nenhum cumprimento amigável. Jennifer se tornara hostil com ela, depois de saber que Clara estava se destacando no trabalho.
— Olá, Jen! — cumprimentou-a com animação, sem se importar com a reação que a outra poderia ter.
Jennifer, uma morena alta, no início da casa dos trinta unos, virou-se para ela.
— Ah, nossa impetuosa Clara, impecável como sempre. Onde esteve?
— Eu estava almoçando.
— Incrível... — ironizou a outra, olhando para o relógio. — Como pretende explicar a McGuire que chegou do almoço às quatro horas da tarde?
Clara sorriu.
— Oh, já tive de me explicar tantas vezes para ele que acabei adquirindo prática.
Jennifer estreitou o olhar.
— Gosta de viver perigosamente, não? Deveria ter deixado um repórter especializado ir entrevistar aquele criminoso, Ed Cleaver. O sr. Llew não deve ter ficado nem um pouco satisfeito com as ameaças que ele fez.
— Aquilo foram apenas ameaças, Jen. Ed Cleaver não Imitará fazer nada.
— Mas ele quebrou a câmara de Bob. Alguns centímetros para o lado, e ele teria acertado seu queixo, Clara. Seria seu fim, minha cara.
— Jennifer, qual é o problema? — indagou ela, com gentileza. — Pensei que fôssemos amigas.
Jennifer ficou em silêncio por alguns segundos, parecendo embaraçada. Então explodiu:
— Deve estar gostando muito de ser a mais nova protegida de McGuire, não?
Clara não conteve o riso.
— Como pode dizer isso?
— Não se finja de inocente! Vi muito bem como estavam conversando na festa do sr. Llew.
— Você estava lá? — Clara se surpreendeu. — Por que não foi falar comigo?
— Porque você estava ocupada demais, dividindo sua atenção entre McGuire e Freeman.
— Não é nada disso, Jennifer... Eu queria apenas conseguir uma entrevista com Christopher Freeman. Não é esse um dos papéis que todo jornalista almeja? Conseguir entrevistar pessoas famosas?
— Infames, você quer dizer — replicou Jennifer. — Ele pode ser bilionário, mas muitas pessoas não gostam dele.
— Isso é normal. Você consegue imaginar alguém que tenha chegado ao topo, como ele, sem fazer inimigos pelo caminho?
"Eu que o diga!", pensou Clara.
— Eu tomaria cuidado, se fosse você — avisou Jennifer. — Às vezes, o preço que se tem de pagar para chegar ao topo não é tão compensador assim.
Dizendo isso, seguiu em direção à sala de edição.
Clara foi para sua sala, dizendo a si mesma que não deveria se importar com aquelas pressões. A competitividade fazia parte do mercado de trabalho e isso não poderia prejudicar sua carreira.
Fazia dez minutos que estava à mesa quando o telefone tocou.
— Importa-se de explicar por que diabos chegou tão tarde? Gabriel estava furioso.
— Com prazer, chefe.
— Quero vê-la no meu escritório dentro de um minuto.
— Já estou indo.
Vinte segundos depois, Clara já estava na sala dele.
— E então? Como foi o almoço? — Gabriel foi direto ao assunto.
— Sabia que Freeman sofre de insônia? — inquiriu ela, sentando-se com graciosidade diante dele.
A expressão impassível de Gabriel indicou que a brincadeira não fora bem-aceita.
— É verdade, chefe.
— Ele deve ter exagerado no termo. Também não durmo muito e nem por isso me considero um insone.
— Anda pensando muito em seus problemas?
— Meu maior problema é você, srta. Cavanagh. Descobriu mais alguma coisa "interessante", ou preferiu deixar tudo para a entrevista? Aliás, desculpe-me por interferir no seu estilo de entrevistas, mas quero ler com antecedência as perguntas que fará a Freeman.
— Não pretendo insultá-lo, se é disso que está com medo.
— Não tenho motivos para isso, mas ainda confio no seu bom senso — declarou Gabriel.
— Muito obrigada pelo voto de confiança — ela ironizou.
— Espero que tenha aproveitado o almoço. Eu, particularmente, não pude me dar a esse luxo.
— Gabriel, você não almoçou?
— Grande novidade.
— Espere um pouco aqui que eu irei ao Spiro's Deli, mandar fazer alguns sanduíches — Clara se ofereceu. — Também trarei café.
— Faria isso por mim? — Os lábios dele se curvaram ligeiramente.
— Sim, a menos que prefira mandar alguma outra pessoa. Mas acho melhor aproveitar meu espírito de boa samaritana. Isso é muito raro de acontecer. O que você quer?
— Ouça, eu não...
— Deixe-me fazer isso por você — pediu ela. — Aposto que não comeu nada desde o desjejum.
— Bem, se comer uma maçã pode ser considerado um desjejum... Mas não precisa ter todo esse trabalho, Clara.
— Já estou a caminho — insistiu ela. — Trarei sanduíches de queijo e presunto — avisou, antes de sair.
Porém, assim que chegou ao saguão do prédio um homem com aparência estranha se dirigiu à recepção.
— Olá, moça.
Amanda, a recepcionista, ficou de pé no mesmo instante, parecendo apreensiva.
— O senhor deseja falar com alguém?
O homem a ignorou e concentrou a atenção em Clara.
— Ah, então essa é aquela repórter — disse, com um ar de quem acabara de descobrir algo notável. — Não tenho nada para falar com você — avisou a Amanda. — Não é a grande felizarda.
— Com quem deseja falar, por favor? — insistiu a recepcionista. — Talvez eu possa ajudá-lo.
Clara disfarçou bem o próprio pânico. Colocando uma mão nas costas, tentou fazer um sinal para Amanda "apertar o botão de emergência que havia debaixo da mesa dela.
O homem se dirigiu a Clara.
— Um amigo seu, aquele tal de Bart Taylor, andou falando coisas que não devia a respeito de algumas pessoas.
Clara manteve uma expressão tranqüila. Bart mostrara uma ótima matéria sobre drogas na semana anterior.
— Qual é seu nome? — perguntou ao desconhecido.
— Isso é o que todos vocês, repórteres, fazem — continuou ele, ignorando a pergunta. — Vivem metendo o nariz onde não devem!
— Cumprimos apenas nossos papéis de jornalistas — Clara se justificou. — Não quer se sentar um pouco? Providenciarei alguém que possa registrar sua reclamação. Veio até aqui para isso, não?
— Exatamente, moça. Por que você mesma não faz isso? Eu sempre a vejo na televisão.
— Não tenho autoridade para falar pela diretoria. Deus, onde estava a equipe de segurança? Em qualquer outro horário era preciso brigar para passar por eles. —Espere aqui que eu conseguirei alguém — disse ao homem. Fez menção de se retirar, mas ele a segurou pelo braço.
— Fique onde está, moça.
Clara se tornou tensa. Aquele "moça" era de fazer qualquer uma tremer de medo. Amanda, que nunca se vira diante de uma situação como aquela, continuava no mesmo lugar, paralisada pelo pânico.
De súbito, o homem agarrou Clara e segurou-a diante de si, como um escudo.
— Calados! — gritou ele, indicando que somente ele teria o direito de gritar dali em diante.
Ouviu-se uma agitação no corredor e uma mulher deu um grito que foi logo abafado pela mão de um colega.
Em questão de segundo, Gabriel apareceu no saguão, não parecendo nem um pouco satisfeito com o que estava vendo.
— O que diabos está acontecendo aqui? Amanda, pare de choramingar. Você... — Olhou para o desconhecido. — Solte minha funcionária — mandou, com firmeza. — Clara, venha já para cá!
Um dos funcionários começou a engatinhar de mansinho por trás da mesa de Amanda, para apertar o botão de emergência. Porém, o criminoso o avistou.
— Pare aí, idiota! — gritou ele.
— Faça o que ele está pedindo, Terry — mandou Gabriel. — Tudo ficará bem.
— Onde está Taylor? — o homem perguntou a Gabriel, perdendo o interesse em Terry.
— Qual é o problema afinal? — Gabriel perguntou.
— Não sabe o que vai acontecer se aquele idiota continuar fazendo perguntas demais — respondeu o criminoso com uma expressão angustiada, mantendo Clara junto de si. — Eles virão em cima de mim! — Ele olhou para Terry, ainda afetado por um ataque de heroísmo. — Já disse para sair daí! Estou armado!
"Ah, meu Deus", pensou Gabriel, olhando para Clara. Aquele maluco podia muito bem ser um desses terroristas que andam com bombas pelo corpo.
— Por que usaria sua arma? — Gabriel disse a ele, mantendo ò tom firme. — Há homens da segurança na área, e a polícia já deve estar chegando.
Aquilo não passava de um blefe, claro. Aquela altura, os seguranças deviam era estar tomando o "chá da tarde", como na Inglaterra.
— Não tenho nada a perder — falou o criminoso. — A maldita investigação do seu repórter me transformou em um fugitivo.
Gabriel tentou se manter calmo. Pelo visto, teria de agir sozinho, já que o pessoal da segurança não parecia muito interessado em trabalhar. Não acreditava que o homem estivesse realmente armado, mas, pelo modo como estava falando, devia estar sob o efeito de drogas. E uma pessoa naquela condição era capaz de fazer qualquer loucura. Decidindo mudar de tática, falou:
— Eu gostaria de poder ajudá-lo. Investigações são realmente desagradáveis para qualquer pessoa. Mas não farei nada se você não largar essa arma.
— Minha vida se transformou em um inferno!
— Por que não pede proteção à polícia? — Eles me encontrariam mesmo assim.
— Já esteve preso alguma vez?
— Muitas!
Por mais estranho que pudesse parecer, o homem sorriu com orgulho ao dizer aquilo. Enquanto falava, Gabriel esperava o momento certo para agir e salvar Clara das mãos daquele lunático.
Porém, em uma fração de segundo, Clara pareceu tomada por uma força descomunal. Com um golpe certeiro, usou o cotovelo para atingir o criminoso no estômago. Quando ele se encolheu de dor, ela o chutou entre as pernas. O golpe foi tão forte que o fez cair no chão, desmaiado.
Gabriel ficou boquiaberto. De onde ela tirara tanta força para se livrar de um homem tão corpulento?
Terry pôde finalmente apertar o botão de segurança.
— Ei, esse é meu trabalho! — protestou Amanda.
— Pelo amor de Deus, Clara — falou Gabriel, olhando-a com ar incrédulo. — Andou fazendo musculação?
— Usei apenas o elemento da surpresa, chefe.
Clara tentou sorrir com naturalidade, mas nem ela entendera muito bem o que acontecera. Aquela mesma força que a dominara para salvar o garoto parecera surgir novamente, deixando-a com uma energia estranha.
Quando o pessoal da segurança finalmente chegou, exibindo posições de alerta quase teatrais, Gabriel ficou furioso.
— Onde diabos vocês estavam?
— Mil perdões, sr. McGuire — foi tudo que o chefe da segurança conseguiu dizer.
Os homens correram até o criminoso, que começara a ficar consciente de novo.
— É melhor verificarem se ele está armado — avisou Gabriel.
— Ele não está — falou Clara.
— Como sabe?
— Não sei explicar por quê, mas tenho certeza.
— Ele está desarmado, sr. McGuire — avisou um dos seguranças.
Ouviram as sirenes da polícia se aproximando, do lado de fora do prédio. Gabriel se aproximou de Clara e a abraçou.
— Você é maluca, sabia?
— As vezes, é preciso ser —- respondeu ela, deixando-se ficar nos braços dele.
Depois de levarem o criminoso para o carro da polícia, um policial pediu o depoimento de Gabriel e de Clara.
Quando ela contou que derrubara o homem com apenas dois golpes, o policial arqueou as sobrancelhas e olhou-a de alto a baixo, incrédulo.
— Sei que pode não parecer, mas foi isso o que aconteceu — disse ela.
— É mesmo? — Ele sorriu para Gabriel.— Ela deve ser muito mais forte do que parece.
— Estudei balé durante oito anos — afirmou Clara, como se aquilo justificasse alguma coisa.
"Se começar a falar sobre meus 'poderes', acabarei indo parar em um manicômio", pensou ela. Dez minutos depois, o policial partiu, com a promessa de notificá-los sobre o andamento da investigação.
— A essa altura, em vez de lanche, acho que prefiro jantar. E você? — perguntou Gabriel.
— Está me convidando para jantar?
— Mais ou menos. — Ele deu de ombros. — Só nós dois, sem testemunhas. Sei que estarei correndo risco, mas não me importo.
— Acha que pode correr risco estando perto de mim?
— O perigo parece fazer parte do seu dia-a-dia.
— Estou viva, não estou?
— Sim, mas às vezes acho que está tendo uma ajudazinha extra. — Ele sorriu.
— Aonde iremos?
— Prefiro que seja surpresa. Vá para casa e se arrume. Passarei para apanhá-la às oito horas.
— Já posso ir para casa? -—Clara se surpreendeu.
— Sim. Também vou dispensar Amanda. Ela ficou muito abalada.
— Acho que ela está mesmo precisando descansar — anuiu Clara, olhando para o rosto abalado da recepcionista. — Até mais tarde então.
Gabriel assentiu e ficou olhando ela se afastar. Incrível que alguém aparentemente tão frágil pudesse ter aqueles "surtos" de força.
O restaurante que Gabriel escolheu ficava em uma baía, a trinta quilômetros da cidade. A grande extensão de água parecia um espelho natural, refletindo as luzes da cidade e do céu estrelado.
O clima estava agradável e Clara preferiu ocupar uma mesa do lado de fora do restaurante. A leve brisa agitava os coqueiros ao longo da baía, criando um relaxante farfalhar de folhas. Unido ao som do mar, o ruído dava origem a uma espécie de música natural, tornando o lugar ainda mais exótico e acolhedor.
Gabriel tivera tempo de passar em casa, pois aparecera barbeado e vestido com uma roupa esporte em tons de caqui. De vez em quando, um delicioso perfume de colônia pós-barba chegava às narinas de Clara, fazendo-a desejar poder senti-lo mais de perto.
Ela escolhera um vestido de crepe lilás, com um corte reto, saia acima dos joelhos e sedutoras alças fininhas. Se soubesse que iriam a um lugar com aparência tão tropical, teria colocado um hibisco atrás da orelha ou coisa do gênero, pensou.
Quando o garçom se aproximou, pediram um jantar à base de mariscos e vinho branco para acompanhar.
Clara mal acreditava que estivesse mesmo ali, jantando com Gabriel McGuire, e o que parecia mais estranho: se divertindo! A apreensão que sentira no início aos poucos fora se transformando em relaxamento, até ela começar a sentir que realmente valera a pena aceitar o convite.
A profissão exigia que os dois estivessem sempre bem informados, por isso não faltou assunto em nenhum momento. Abordaram desde política até os trabalhos de arte que andavam sendo feitos. De vez em quando, Clara se flagrava rindo com divertimento de algo que ele dissera enquanto Gabriel a observava com seus perscrutadores olhos negros. Aos poucos, Clara parecia estar cedendo ao feitiço.
Gabriel continuou a comer mesmo depois de Clara haver acabado a refeição. Ele devia estar mesmo faminto depois de não comer nada durante o dia inteiro, pensou ela.
— Acredite se quiser, mas ainda vou pedir sobremesa — avisou ele, com um ar maroto.
— Bem, fique à vontade — Clara o encorajou. — O jantar estava realmente divino. A comida deste lugar é ótima.
— Então voltaremos a comer aqui — declarou ele, com ar casual.
— Você vai me convidar?
—Eu já pretendia fazer isso — Gabriel confessou. —: Estava apenas esperando o momento certo.
Clara levou as mãos ao rosto, parecendo surpresa.
— Gabriel, o que deu em nós? Até poucos dias, não nos suportávamos!
— Você não me suportava — salientou ele, com ar de riso.
— Está bem, reconheço que não era uma de suas fãs, mas isso é assustador!
— Por quê? — Ele arqueou uma sobrancelha. — Só porque, pela primeira vez na vida, está deixando alguém se aproximar de você?
— Talvez. E quanto a você? Também parecia ser uma pessoa reservada.
— Não quando estou com você.
Clara adorou ouvir aquilo, mas preferiu não demonstrar.
— Então fale mais sobre você — pediu a ele.
— O que quer saber? Ela hesitou.
— Estamos tendo uma noite tão agradável. Tem certeza de que deseja conversar seriamente?
Gabriel tocou a mão dela sobre a mesa.
— Eu sempre falo sério, Clara. Ela sentiu o coração acelerar.
— Sua infância foi mesmo difícil, como mencionou?
— Esse é o começo da entrevista, srta. Cavanagh?
— Não, Gabriel. — Ela fitou-o nos olhos. — Quero conhecê-lo melhor, nada mais.
— Não sei se devo contar tudo a você.
— Isso poderá ajudá-lo.
— Não gosto de falar sobre esse assunto, mas vamos lá. Meu pai era um veterano do Vietnã. Piloto de helicóptero. Quando voltou da guerra, havia se transformado em uma pessoa completamente diferente daquela que eu e minha mãe conhecemos. O sofrimento da guerra o modificou pelo resto da vida. E nos afetou também. Meu pai não conseguia controlar os acessos de agressividade que, com o passar dos anos, transformaram-no em um homem muito violento.
— Oh, Gabriel. Sinto muito. Falou no tempo passado para se referir a ele — observou Clara.
— Ele morreu prematuramente. A única maneira através da qual ele conseguiu conviver consigo mesmo foi se entregando à bebida.
— E sua mãe?
— Ela está bem. — Gabriel deu de ombros. — Na medida do possível. Mora com uma irmã, na Tasmânia. Eu a vejo pelo menos duas vezes por ano, e ela sempre tenta se desculpar por não haver sido mais forte.
— Mas ela não teve culpa pelo que aconteceu.
— Eu já disse isso a ela, mas minha mãe vive se culpando por eu não haver tido uma infância feliz. Confesso que já tive problemas por causa disso, mas eu os superei.
— Por isso acredita tanto no amor e pensa em criar uma família?
— Tenho uma idéia muito clara sobre paz e felicidade em uma família, Clara. Para obtê-las, é essencial que aja amor.
— Onde aprendeu isso?
— Com a vida. Não me deixando abater pelos problemas, e sim lutando para superá-los e aprender algo com isso.
— Espero que encontre essa felicidade, Gabriel.
— Eu também.
— Mas vai precisar de uma "ajudazinha extra" se decidir compartilhá-la com Tara Williams — ironizou ela.
— Você sabe mesmo como me provocar, srta. Cavanagh. -—Não estou provocando-o. Por que está me olhando
desse jeito?
— Admita que está com ciúme — disse Gabriel.
— Ciúme?!
— Isso mesmo. O que você tem contra Tara?
— Preciso mesmo responder a essa pergunta? Aquela mulher é arrogante demais! Ela faz alguma coisa na vida?
— Ouvi dizer que realiza trabalhos sociais ocasionalmente.
— Quanta generosidade — desdenhou Clara.
— Acho que vou desistir da sobremesa. Quer café?
— Sim.
Pouco depois, enquanto o café estava sendo servido, Tara Williams em pessoa apareceu no restaurante, acompanhada por um homem de meia-idade. Ao vê-la, Clara quase soltou um grito de susto.
— Ah, meu Deus... Quando foi que você viu Tara pela última vez?
Gabriel estava de costas para a entrada e franziu o cenho.
— Bem, acho que foi em ...E o Vento Levou.
— Não é hora para brincadeira, Gabriel. Segunda chance.
— Tara Williams? Eu a vi pela última vez na festa.
— Bem, não olhe agora, mas ela acabou de entrar no restaurante.
— Essa não... Há alguém com ela?
— Pode ficar tranqüilo porque o acompanhante dela não pode competir com você. E velho, gordo, careca e baixinho.
— Então deve ser Al Jacobsen — supôs Gabriel, em um tom casual. — Ouvi dizer que ele iria chegar essa semana. Al é diretor de outro canal do sr. Llew, no exterior.
— Espero que esteja ansioso para vê-lo, porque eles estão vindo para cá.
Ele fez um ar de desagrado.
— Imaginei que isso acabaria acontecendo. Quer terminar logo esse café, por favor?
Clara arregalou os olhos.
— Quer que eu o engula quente? Prefiro preparar outro para tomarmos em casa.
— Isso é um convite? — Ele arqueou uma sobrancelha.
— Apenas uma sugestão. Gabriel fingiu um ar de decepção.
— Não me deixe triste, Clara.
— Está bem, então. E uma promessa.
Tara arregalou os olhos de repente e apontou na direção deles.
— Gabriel, mas que surpresa! Conhece Gabriel McGuire, não é, Al?
— Não, ainda não fomos apresentados — respondeu ele, com um sorriso.
Os garçons começaram a se mover de um lado para outro, imaginando que a mesa seria compartilhada pelos quatro.
Tara olhou para Clara com um sorriso amplo demais. Um gesto que mais parecia querer dizer: "Mandarei meu pai colocá-la no olho da rua, minha querida".
— Eu não sabia que você e Gabriel eram tão... amigos.
— Saímos uma vez ou outra para almoçar ou jantar. Mas não com freqüência.
Os dois homens trocaram um aperto de mãos.
— Poderíamos tomar um drinque, se quiserem — sugeriu Al com animação, enquanto o garçom, paciente, esperava por um sinal.
— Infelizmente, eu e Clara precisamos voltar para a cidade — respondeu Gabriel. — Foi um prazer conhecê-lo — acrescentou, segurando Clara pelo braço e fazendo menção de se retirar. — Espero que gostem do jantar. A comida daqui é ótima.
— Foi o que Tara me disse — anuiu Al.
— Lembra-se de quando viemos aqui há um mês, Gabriel? — perguntou ela, com um tom de voz possessivo.
— Só um mês? — perguntou ele. — Para mim, parece que faz tanto tempo...
— Ficarei na cidade por pouco tempo, mas assistirei ao seu programa, srta. Cavanagh — falou Al, com simpatia.
— Ela não tem um programa — interveio Tara, passando a mão pelo braço dele. —A srta. Cavanagh apresenta apenas pequenas reportagens. A preservação dos coalas, defesa do meio ambiente, esse tipo de coisa.
— "Pequenas reportagens. A preservação dos coalas, defesa do meio ambiente, esse tipo de coisa..." — Clara imitou a voz afetada de Tara, assim que entraram no Jaguar. — Se pudesse, ela teria me matado com o olhar!
— Felizmente conseguimos escapar antes que acontecessem maiores danos. Tara está apenas com ciúme, nada muito nocivo.
Clara o olhou de soslaio.
— Está brincando? Ela pode arruinar a minha carreira, se for contar ao pai uma versão particular sobre essa história.
— Esqueceu-se de que é minha funcionária?
— Não, não esqueci.
— Se eu fosse você, estaria me preocupando mais em descobrir o melhor ângulo do seu rosto diante das câmaras.
— Por quê?
— Porque estou pensando em colocá-la como apresentadora de um programa de entrevistas.
— Gabriel!
Aquele era o grande sonho de Clara, mas ela nunca pensara que fosse alcançá-lo tão cedo. Estaria mesmo tendo alguma "ajudazinha extra" em sua vida?
Quando chegaram à casa de Clara, Gabriel ficou na sala enquanto ela foi preparar o café. Promessa era promessa.
Minutos depois, ela estava prestes a sair com a bandeja quando Gabriel entrou na cozinha. Clara teve a impressão de que o aposento se tornara pequeno demais para os dois.
— Comecei a me sentir solitário na sala — explicou ele, com um sorriso charmoso.
— Posso preparar ovos mexidos e bacon, se você ainda estiver com fome — brincou ela.
— Quer me matar? — Aproximando-se mais, Gabriel fitou-a nos olhos. — Gostei muito de ter saído com você, Clara. Espero que também tenha gostado.
— Sim, foi muito agradável.
— O café está pronto? — Gabriel olhou para a mesa.
— Sim. Quer açúcar ou creme?
— Vou tomá-lo puro. Preciso manter a mente bem lúcida. Clara o olhou, surpresa.
— Mas Gabriel, nós só bebemos um pouco de vinho...
— É você que me deixa zonzo, Clara. Vamos nos sentar, antes que eu acabe caindo.
Ela riu.
— Seu exagerado.
— É verdade, Clara. Você está linda demais com esse vestido. O tom de lilás destacou a cor fulgurante de seus cabelos.
— Gabriel, pare por favor — pediu ela, com gentileza. Ele olhou para cima de repente.
— Há algo flutuando pela cozinha? Clara balançou a cabeça negativamente.
— Como você mesmo me disse certa vez, está precisando é de uma boa noite de sono, Gabriel.
— Não está sentindo uma presença carinhosa por aqui? — insistiu ele, olhando em torno de si.
— Não imaginei que você acreditasse em espíritos e em coisas desse tipo.
— Nunca pesquisei o assunto a fundo, mas ele sempre me interessou. Não sei explicar, mas venho sentindo algo diferente nos últimos dias.
— O pior é que acredito em você. Comigo também tem acontecido algumas coisas estranhas, como você já viu.
— Não está mesmo fazendo musculação?—Gabriel brincou.
— Claro que não. Mas você descreveu exatamente o que venho sentindo: uma presença carinhosa.
— Acho que toda pessoa solitária acaba sentindo a necessidade de sentir isso em algum momento — disse ele. Após uma breve pausa; acrescentou: — Acho melhor eu ir andando.
— Vou acompanhá-lo até a porta.
Gabriel seguiu na frente pelo corredor que levava à sala. Porém, parou de repente e Clara acabou esbarrando nele.
— Oh, sinto muito — disse Gabriel, virando-se depressa para ampará-la.
Clara sorriu.
— Acho que ainda não me acostumei com seu ritmo. Ele também sorriu.
— Boa noite, Clara.
Segurou o queixo dela com delicadeza. Pretendia beijá-la brevemente, apenas para se despedir, mas no último instante Clara o fitou com um olhar tão sonhador que ele não resistiu. Puxou-a para si com paixão e beijou-a como imaginara que deveria fazê-lo desde o primeiro instante em que a vira.
Clara nunca havia sido beijada daquela maneira. Sentiu um delicioso calor invadir seu corpo, enquanto os lábios de Gabriel esmagaram os seus em um beijo de tirar o fôlego.
Quando ele se afastou de repente, teve de ampará-la para que ela não caísse.
— Sinto muito, Clara.
Dizendo isso, apressou-se em direção à porta, como que sentindo-se culpado pelo que acabara de fazer. Clara o seguiu depressa, sem entender direito o que estava acontecendo.
— Eu estou bem, Gabriel. Fiquei apenas apreensiva por um instante.
— É sobre isso que preciso pensar. — Virou-se para ela, quando chegou à porta. — Você tem medo de mim.
— De uma maneira diferente da que você está pensando — protestou ela. — Não precisa ir embora desse jeito, como se houvesse cometido um crime ao me beijar.
— Pois acho que cometi. Sei que quer se reservar para o homem por quem se apaixonar, e eu não tinha o direito de fazer isso.
Clara tocou o braço dele.
— Gabriel, não estou entendendo o que está acontecendo aqui.
— Está sim.
— Conte-me o que o está preocupando.
— Não seria simples me envolver com você. Embora ainda seja virgem, sabe reconhecer sensações de desejo. Eu a desejo muito, Clara. Creio que sabe disso desde que nos conhecemos. E é justamente isso que a deixa tão assustada.
— Gabriel, sou uma mulher adulta.
— Eu sei. Mas o modo como me olhou antes de nos beijarmos me fez perceber que talvez você espere coisas que eu não possa lhe oferecer.
Clara reconheceu que ele poderia ter razão. Por outro lado, não acreditava que Gabriel não fosse capaz de oferecer o amor que ela esperava receber.
— Talvez seja melhor eu realmente ir embora — disse ele, forçando um sorriso. — Tudo voltará a ser como antes, na segunda-feira, está bem?
Clara sentiu uma onda de desapontamento, mas concordou com um gesto de cabeça.
— Ainda pretende ir visitar minha mãe no domingo? — perguntou quando Gabriel já estava entrando no carro.
— Só se quiser que eu vá com você.
— Claro que quero.
Acene para ele! Acene para ele!
Clara ouviu a voz com mais nitidez do que das outras vezes.
— Está bem — disse em voz alta.
Gabriel manobrou o carro e olhou uma última vez para Clara, parada diante da porta. A luz vinda de dentro da casa a iluminava por trás, deixando-a com uma aura brilhante em torno dos cabelos avermelhados e do vestido lilás.
Estava acenando de uma maneira tão doce que o deixou comovido. Quando deu por si, estava acenando também. Contudo, interrompeu-se ao avistar uma súbita luminosidade próxima a Clara, na varanda. Parecia uma bela criança com cabelos tão avermelhados quanto os dela.
Gabriel pestanejou, imaginando que se tratasse de alguma ilusão de ótica causada pela luz vinda da casa. Se houvesse alguém ali, era evidente que Clara também teria notado. No entanto, ela continuou a lhe acenar com aquele ar encantador.
O brilho daquela imagem pareceu continuar em sua retina por algum tempo. Teria sido mesmo ilusão?
"Gabriel, você tem uma imaginação fértil demais", era o que sua mãe costumava lhe dizer quando ele era garoto.
Talvez ela tivesse razão.
Clara e Gabriel se viram pouco durante o resto da semana. Na manhã do domingo, ela acordou cedo, arrumou-se e ficou esperando na varanda pela chegada de Gabriel.
— Olá — cumprimentou-o, andando até o carro assim que ele chegou.
— Como está você, Clara?
Ela sorriu em resposta, sem deixar de notar que ele parecia estar agindo de uma maneira diferente.
— Estou bem. Fiquei contente com o aumento na audiência que a reportagem de ontem provocou.
— É verdade — anuiu ele. — Não é todo dia que uma senhora de sessenta anos passa a pilotar o avião do marido e ainda por cima o salva, depois de ele ter um enfarte. Tivemos sorte por você haver chegado primeiro ao local. Como sempre, sua competência foi impecável.
— Obrigada — agradeceu ela, enrubescendo.
— Ontem à noite, fiquei sabendo que o sr. Robbins vai se recuperar.
— Sim, eu sei. Cheguei junto com a ambulância que foi buscá-lo no aeroporto.
Ao entrar no carro, Clara avistou um ramalhete de rosas brancas no banco de trás do carro.
— São para sua mãe — explicou ele.
— Oh, quanta gentileza, Gabriel. São lindas. Minha mãe sempre adorou flores, e acho que continua adorando.
— Tenho certeza disso.
— Não recebeu nenhum telefonema de Tara? — perguntou Clara, assim que Gabriel colocou o carro em movimento.
Ele apenas a olhou de soslaio, sem responder.
— Pensei que ela houvesse ficado aborrecida com você — explicou Clara.
— Ela sabe "que isso não surtiria nenhum efeito em mim. Não me importo com esse tipo de atitude.
— Mas ela ligou, não?
— Sim — admitiu ele. — O sr. Llew está pressionando um pouco a situação.
— Deve estar sendo difícil para você — afirmou Clara, com um leve tom de ironia.
— Não acha que eu e Tara formamos um belo par? — Ele a provocou.
— Talvez. Mas foi você quem insistiu em falar com tanta eloqüência sobre a importância do amor.
— E você acha que Tara não é do tipo que acredita no amor? Clara balançou a cabeça negativamente.
— Nem sei por que comecei a falar sobre isso — disse a ele.
— Tudo bem, Clara. Não quero que haja segredos entre nós sobre nenhum assunto. É evidente que não vou querer ficar com você e com Tara.
— Comigo?
Clara não soube o motivo, mas sentiu vontade de chorar.
— Talvez o fato de haver me rejeitado tão completamente no início a tenha tornado mais desejável aos meus olhos.
— Gabriel, isso é verdade?
— Não, estou brincando. Mas você me fez sentir algo diferente desde a primeira vez em que nos vimos. Ainda me lembro como se fosse hoje... Quando levantei a cabeça, você estava na minha frente, feito um anjo que acabara de cair do céu.
Clara sentiu os olhos se encherem de lágrimas.
— Gabriel, essa foi a coisa mais bonita que já ouvi de alguém. Não mereço isso.
— Não merece mesmo, sua criatura cruel — brincou ele.
— Nunca mostrou nem um pouco gentileza ou de respeito por mim. Não demorou muito para eu descobrir que andava me chamando de megalomaníaco.
— Só que é um megalomaníaco especial, Gabriel. Eu sempre soube que você era muito competente.
— E tarde demais, Clara. Agora não adianta ficar me elogiando. Ainda vou me vingar por isso algum dia desses. Pode acreditar.
Chegaram na casa de repouso dez minutos antes do horário de visitas. Aproveitaram o intervalo de tempo para caminhar um pouco pelos jardins. Gabriel ficou encantado com a beleza do lugar e com o cuidado com que tudo era mantido.
Os dois pararam à beira do lago e ficaram olhando a luz do sol se refletindo sobre a água e fazendo-a brilhar como um tapete de brilhantes. Um pássaro de canto exótico pousou em uma árvore a pouca distância deles, como que saudando-os pela visita.
— É difícil de acreditar que haja tanta correria a poucos quilômetros de distância — disse Gabriel, pensativo. —Tudo aqui é tão pacífico.
Clara assentiu.
— Eles fazem questão de manter o lugar isolado para contribuir com a melhora dos pacientes.
— Deve ser caro manter tudo isso tão ordenado.
— Sim. A mensalidade não é barata. Posso ter de acabar vendendo a casa, se minha mãe não se recuperar. Mas não me sentirei bem se tiver de fazer isso.
— Sei o que quer dizer.
Quando eles chegaram no quarto, Delia Cavanagh estava sentada em sua cadeira de rodas, de costas para a entrada. A luz que entrava pela janela refletia-se sobre os cabelos dela, um misto de mechas avermelhadas e grisalhas.
— Bom dia, mamãe — Clara a cumprimentou, beijando-a no rosto. Então virou a cadeira de frente para Gabriel.— Trouxe um amigo para conhecê-la. Já me ouviu falar sobre ele. É Gabriel McGuire.
Ele se adiantou segurando o ramalhete de rosas. Segurou a mão de Delia por um momento.
— Olá, Delia. Sou Gabriel.
Sentiu uma onda de compaixão por aquela senhora de rosto sereno e de aparência tão encantadora quanto a filha. Era como se ela houvesse escapado da vida por uma porta alternativa.
Comovida, Clara pegou as rosas e colocou-as em um vaso, sobre a mesinha-de-cabeceira. Observou a mãe, que continuava com olhar vago, não parecendo notar a presença de Gabriel.
Ele sentou-se em uma cadeira ao lado da dela e continuou a segurar-lhe a mão. Foi então que Clara notou algo muito inusitado acontecer. Um raio de sol entrou pela janela e incidiu sobre sua mãe, iluminando-lhe o rosto sereno. Até que, como por milagre, os lábios de Delia se curvaram em um sorriso. Um sorriso que se mostrou não apenas nos lábios, mas também no brilho dos olhos.
Mal acreditando no que acabara de presenciar, Clara olhou para Gabriel.
— Ela sorriu! Você também viu, Gabriel? Ela sorriu! Ele continuou segurando a mão de Delia, parecendo tão comovido quanto Clara.
— Não resta a menor dúvida — respondeu, com um sorriso.
Gabriel percebeu que acabara de compartilhar um momento muito importante da vida de Clara. Um momento de intensa esperança.
— Venha até aqui.
Estendeu a mão para ela, que se aproximou sem hesitar, trazendo um brilho de lágrimas nos olhos.
— Mamãe nunca mais havia sorrido depois... — Clara não terminou a frase.
— Então ela acabou de voltar a sorrir.
Gabriel preferiu não dizer mais nada que pudesse alimentar falsas esperanças em Clara. Porém, no íntimo, teve a impressão de que havia uma chance de Delia Cavanagh estar despertando novamente para a vida.
— Os médicos acham que ela nunca vai se recuperar.
— As vezes eles também se enganam, Clara.
— Sim, mas não quero acabar me desiludindo. Talvez seja efeito dos remédios ou... — Ela se interrompeu, contendo a vontade de chorar. — Oh, Deus, eu não sei...
Quando saíram para o jardim, Clara já não estava mais com o corpo trêmulo. Gabriel contou a elas sobre a viagem que fizera ao Tibete, o topo do mundo. Tivera o privilégio de conhecer Potala, a construção em forma de castelo que servia como monastério particular do Dalai Lama.
Ao chegar lá, ele e mais algumas pessoas haviam assistido a uma palestra. Gabriel também falou dos tibetanos, da admirável espiritualidade daquele povo e da poderosa força mística que ele sentira ao visitar o Himalaia.
Porém, o mais incrível naquilo tudo era que Delia parecia estar ouvindo cada palavra de Gabriel. Durante as duas horas em que durou a visita, Delia se manteve em uma espécie de estado intermediário, ouvindo as palavras de Gabriel, tendo noção do jardim em torno deles e voltando ao estado de dormência.
Ver Gabriel tão à vontade na companhia de sua mãe ofereceu a Clara momentos de paz que havia muito ela não sentia. Momentos como aquele infelizmente eram raros em meio ao caos diário, mas poderiam se tornar mais freqüentes se pessoas especiais como Gabriel surgissem na vida de todos.
A viagem pela montanha serviu para acentuar ainda mais a paz de espírito de Clara. O chalé da família De Haviland parecia uma espécie de santuário, situado em meio à deslumbrante paisagem de montanha.
A anfitriã apareceu assim que eles chegaram, saudando-os com um sorriso radiante. Trajando uma blusa de seda azul e uma confortável calça preta, Luna De Haviland irradiava uma aura de elegância que lhe parecia muito natural. Os longos cabelos negros caídos às costas, em conjunto com o rosto de traços orientais, deixavam-na com uma aparência exótica e marcante.
— Oh, que bom que vocês vieram! — exclamou ela. — Venham se juntar aos que já chegaram. Nosso convidado de honra ainda não chegou — acrescentou, com uma piscadela.
Luna acompanhou os dois até a sala onde os convidados já estavam conversando com animação e comendo petiscos. Os dois se uniram a um grupo de jovens até Tara Williams chegar, vestida com um top preto colado ao corpo e uma calça cor de caramelo também muito justa. Em torno do pescoço, usava um lenço da mesma cor da calça, preso na frente por um anel dourado.
— Olá, pessoal — disse ela, jogando beijos pelo ar. — Meu pai e Christopher chegarão um pouco atrasados. Aqueles dois falaram de negócios a noite inteira! — acrescentou, revirando os olhos.
Alguns riram com polidez, exceto um jovem que estava próximo de Clara e que resmungou algo engraçado. Logo ficou evidente que Tara não era muito estimada no meio social, embora parecesse totalmente alheia ao fato. Como Clara já havia imaginado, ela não perdeu tempo em se aproximar de Gabriel.
— Querido, que bom revê-lo! — cumprimentou-o com um beijo no rosto.
Sem querer se envolver em nenhuma confusão, Clara se afastou discretamente. Quando Freeman chegou, meia hora depois, procurou Clara assim que teve chance. Ela tentou ser gentil, mas manteve certa distância, enquanto Gabriel ainda tentava se livrar das "garras" de Tara.
Os dois tiveram a chance de voltar a se falar somente quando todos foram para o bufe.
— Por andou, Gabriel? — perguntou Clara, com ar de censura, quando ele se sentou ao lado dela à mesa.
— Duvido que tenha sentido minha falta — replicou ele. — Notei a animação com que estava conversando com Freeman.
— Ora, estamos em uma festa, não?
— Então por que está brava por eu haver ficado longe de você?
— Não estou brava!
Gabriel riu, balançando a cabeça. Notando que se exaltara, Clara disfarçou provando uma porção da salada.
Mais tarde, quando ela estava no toalete, retocando a maquiagem, Tara se aproximou dela com um ar de desafio.
— Está apaixonada por Gabriel?
Indignada com o tom de ameaça da moça, Clara respondeu:
— Talvez ele esteja precisando de alguém como eu. De qualquer maneira, Tara, se isso a deixa mais aliviada, não estou à procura de ninguém no momento.
— Não é o que parece — retrucou Tara. — Essa é a terceira vez que a vejo com ele.
— Espera que eu peça desculpas por isso? — Clara arqueou as sobrancelhas.
— Escute aqui, se não se afastar de Gabriel, terei de tomar algumas providências que não irão agradá-la.
— Não está sendo muito gentil, Tara. Agora preciso ir andando. Quer me dar licença, por favor?
Tara ficou de lado para ela abrir a porta. Porém, antes de sair, Clara ainda a ouviu dizer:
— Lembre-se de que sua carreira está nas suas próprias mãos!
Clara e Gabriel estavam na estrada que descia a montanha, discutindo sobre as investidas de Tara e de Freeman, quando ele olhou para o céu nublado.
— Deveríamos ter saído pelo menos vinte minutos antes — falou, preocupado.
— Bem, se Tara houvesse soltado seu braço antes...— Clara ironizou.
Gabriel olhou-a de soslaio, parecendo não haver gostado do comentário.
— Não existe nada entre mim e Tara. Admito que saí com ela algumas vezes...
— E a beijou algumas vezes?
— Muito pouco. Mas não dormi com ela, Clara. Por que não pergunta diretamente a ela?
— Porque esse assunto não me interessa— mentiu Clara. A chuva finalmente começou. A princípio caíram apenas algumas gotas pela estrada, mas logo a chuva se tomou intensa.
— Pelo menos já estamos quase chegando ao fim da montanha — disse Gabriel. — Quando chegarmos lá embaixo, vou parar um pouco. Não é seguro dirigir com toda essa chuva.
— Não estou gostando disso, Gabriel. A chuva está muito intensa e alguém pode acabar sofrendo um acidente.
— Não se preocupe. Estamos seguros.
O carro que ia na frente deles se afastou um pouco e entrou em uma curva, saindo de vista por um momento.
Porém, quando Gabriel e Clara passaram pela mesma curva, não viram mais sinal do carro adiante.
Clara havia notado uma mulher ao volante e uma criança no banco de trás. Não vê-las mais na estrada deixou-a preocupada.
— Gabriel, para onde ela foi?
Antes que eles pudessem responder, avistaram os faróis do outro carro virados em um ângulo esquisito, em um local abaixo da estrada. O veículo havia capotado!
— Meu Deus! — exclamou Gabriel, parando no acostamento. — O carro deslizou para o lado e capotou. Vou ver o que aconteceu. Pegue meu telefone celular e ligue para o serviço de resgate.
Gabriel saiu do carro em seguida. O barulho da chuva estava ensurdecedor, deixando Clara ainda mais assustada. Gabriel desceu a encosta com cautela até alcançar o carro caído de lado. Ao olhar com dificuldade através da janela, viu que a criança estava bem no banco de trás, segura pelo cinto da cadeirinha própria para bebês. A mulher parecia estar inconsciente.
Quando olhou para trás, Gabriel avistou Clara descendo a encosta e vindo em sua direção.
— Há um bebê aí dentro — gritou ele, acima do barulho da chuva. — Tente salvá-lo enquanto eu tiro a mulher do carro.
Clara havia chamado a equipe de resgate, mas se os dois não fizessem algo rápido, quando eles chegassem poderia ser tarde demais.
A essa altura, ambos já estavam encharcados. Ignorando a chuva, Clara abriu a porta do veículo com dificuldade, mas conseguiu tirar a criança que estava chorando sem parar.
Do outro lado, Gabriel se esforçou para tirar a mulher, mas o fato de ela estar desmaiada dificultou um bocado a situação.
— Clara, vá para o carro! — gritou ele, ao vê-la com a criança nos braços.
A mulher estava com um ferimento na testa, mas parecia estar bem. O receio de que a criança acabasse tendo alguma complicação em meio a toda aquela chuva levou Clara a seguir em direção à encosta. Descer fora fácil, mas subir com a chuva e o barro se acumulando em seus pés seria muito difícil.
Venha por aqui!, disse-lhe a voz que já se tornava familiar para ela.
Clara seguiu a intuição e acabou encontrando uma trilha que ia dar no alto, já na estrada.
Siga peia direita, continuou a voz.
Ela obedeceu os conselhos, conseguindo ter apenas uma noção de que alguém a estava guiando. A certa altura, quase escorregou, mas equilibrou-se no último instante.
Vá com cuidado.
— Está bem — respondeu em voz alta.
Ao chegar na estrada e deixar a criança em segurança, no banco traseiro do carro de Gabriel, ela voltou para o local e tentou avistá-lo. A chuva havia formado uma enxurrada que estava descendo pela montanha e começando a se acumular em torno do carro capotado.
— Gabriel! —- gritou, assustada.
Ele está bem.
— Quem é você? — sussurrou ela, envolta por uma onda de conforto.
Não houve nenhuma resposta. Logo em seguida, avistou Gabriel carregando a mulher nos braços. Deus, como ele iria subir pela encosta?
Ele também encontrará a trilha, respondeu-lhe a voz.
De fato, algum minutos depois ele alcançou a estrada. Parecia cansado, mas não tinha nenhum ferimento.
— Oh, graças a Deus! — exclamou Clara, correndo até ele. A chuva foi diminuindo aos poucos e quando chegaram ao carro, ela já havia praticamente cessado. Clara pegou a blusa de lã fina que levara consigo, e que continuava seca, e embrulhou o bebê, feliz ao ver que ele estava bem. Talvez acabasse resfriado, mas não seria difícil a mãe dele lidar com isso.
A mulher também estava bem, sentada no carro. Continuava inconsciente, mas estava respirando normalmente.
Gabriel abraçou Clara assim que teve chance. Não era todo dia que tinham a chance de salvar duas vidas daquela maneira.
Ouviram as sirenes da ambulância que chegou logo, seguida por um carro da polícia rodoviária. Esperaram que a mãe e a criança fossem resgatados, antes de darem um breve depoimento à polícia e serem liberados.
O policial que anotara o depoimento ficara abismado com a maneira como eles haviam conseguido fazer o resgate.
— Mesmo que houvesse sol, o lugar onde desceram seria extremamente perigoso — dissera ele.
— Deve ter sido o efeito da adrenalina — respondera Clara, forçando um sorriso.
No caminho de volta para a cidade, ela e Gabriel ficaram algum tempo em silêncio, preferindo nem comentar o fato de que suas roupas haviam ficado subitamente secas e sem nenhuma sujeira. Contudo, a curiosidade acabou falando mais alto e eles acabaram abordando o assunto.
— Como fizemos aquilo, Clara? — Gabriel foi o primeiro a falar.
— Não pergunte. Acho que não devemos perguntar isso.
— Por quê?
— Não vê que aquilo foi uma espécie de experiência mística, Gabriel?
— Há muito tempo não presencio uma experiência mística. Mas você pode estar certa.
Ela se espantou.
— Você já passou por uma experiência assim? Ele respirou fundo.
— Sim, quando eu ainda era criança. Eu havia aprontado alguma coisa, pois não era lá muito bem-comportado, depois de haver crescido em meio à violência. Meu pai pegou um cinto e começou a me bater sem parar. Eu tinha apenas dez anos na época e pensei que fosse morrer naquele dia. Fiquei desesperado e chamei meu anjo da guarda para me ajudar. Depois não entendi direito o que aconteceu, mas meu pai parou de repente, como se estivesse vendo alguma coisa. Talvez meu anjo da guarda tenha aparecido para ele ou algo do gênero. Só sei que depois daquele dia ele não voltou a me espancar daquela maneira alucinada.
— Puxa, isso deve ter sido mesmo marcante.
Quando chegaram à casa de Clara, havia um furgão da BTQ8 parado diante do portão.
— Essa não... — resmungou ela. — Já souberam da história.
— Está vendo como não é bom ser o centro das notícias? — ironizou Gabriel.
Assim que saíram do carro, foram abordados por Jennifer Bourne e por um cameraman.
— Olá! Como foi a aventura na montanha?
— Muito divertida — desdenhou Gabriel. — Vejo que já estão sabendo de tudo.
— Claro que sim — confirmou Jennifer. — Recebemos cerca de oito telefonemas! Quando terminarmos a entrevista com vocês, iremos ao hospital falar com a mãe e o bebê.
— Acho que ele não vai conseguir responder às suas perguntas, Jen — avisou Gabriel. — O bebê deve ter apenas um ano de idade.
— Oh, você entendeu o que eu quis dizer, chefe. Onde trocaram as roupas? — inquiriu a repórter, olhando-os de alto a baixo.
— Não as trocamos — respondeu Clara. — São as mesmas com que fizemos o resgate. Elas devem ter secado por causa do sol, enquanto vínhamos para cá.
— Acho difícil de acreditar nisso — insistiu Jennifer. — Preferem guardar esse detalhe como um segredinho?
— Não há nenhum segredo — Gabriel interveio. — Essas são as mesmas roupas com que fomos à festa no chalé dos De Haviland.
Jennifer estreitou o olhar.
— Têm certeza de que não passaram por nenhum motel na estrada?
— O que está sugerindo, Jennifer? — Gabriel se manteve sério.
— Estou só brincando, chefe.
Demorou mais meia hora para que Jennifer e o grupo os deixassem finalmente em paz. Gabriel partiu em seguida, dizendo que queria tomar um banho e descansar um pouco.
No início da noite, Clara recebeu um telefonema de Freeman.
— Arrisquei ligar, mas não pensei que estivesse em casa — disse ele. — Não falou que tinha um compromisso à noite?
— Tive de cancelá-lo — ela mentiu. — Fiquei com dor de cabeça e resolvi não sair.
— Não é de admirar, minha querida — afirmou ele, com simpatia superficial. — Eu a vi na televisão junto com McGuire.
Durante a conversa, Clara tentou não ser muito formal, mas não estava com disposição para conversar depois de tudo que acontecera. Deu graças quando Freeman finalmente se despediu e desligou.
Tentando se distrair, preparou um chá quente e pegou um livro, sentando-se no sofá. Entretanto, não conseguiu ler. Começou a se lembrar dos estranhos acontecimentos dos últimos dias e acabou pensando em sua mãe. Como sempre ocorria em momentos como aquele, viu-se invadida por uma sensação de melancolia e de impotência.
Não se desespere, Clara. Acredite em você e na vida.
Ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Lá estava aquela voz terna e infantil lhe dizendo coisas comoventes. Ao ouvir a campainha, levantou devagar e foi atender à porta.
Ficou feliz ao ver que era Gabriel.
— Fiquei preocupado com você — disse ele, depois de entrar.
— Estou contente que tenha voltado.
Gabriel abraçou-a em silêncio, aninhando-a entre os braços durante algum tempo. Quando Clara levantou o rosto para olhá-lo, ele a beijou com um carinho infinito, como que desejando apagar os temores que a estavam perturbando.
— Gabriel, faça amor comigo — pediu ela, em um sussurro.
— Clara, eu não posso fazer isso.
— Preciso tanto do seu amor... — Clara o abraçou com força.
Gabriel segurou-a pelos ombros e afastou-a com delicadeza. O rosto que ele sempre achara lindo pareceu afetado por uma súbita angústia.
— Não estava dizendo a verdade quando falou que me desejava? — perguntou ela.
— Eu ainda te quero, Clara. Mas não teria coragem de magoá-la por nada desse mundo.
— Gabriel, não sou feita de porcelana. Não vou quebrar em seus braços.
— Eu sei. Só não quero que decida algo tão importante no estado emocional em que você se encontra. Você não me ama, Clara.
Os olhos dela se encheram e lágrimas.
— Não me peça isso agora, por favor — disse ela. — Quando minha mãe estiver curada e tudo voltar ao normal, prometo que pensarei nisso. Por enquanto, quero apenas que fique e que faça amor comigo. Eu preciso de você.
Gabriel tocou os lábios dela, silenciando-a.
— Você é mesmo virgem, Clara?
— Isso importa?
— Muito — respondeu ele, respirando fundo.
— Sei que não há muitas virgens da minha idade hoje em dia, mas sim, eu sou — respondeu ela, com uma segurança que estava longe de sentir.
— Deve ter sido um páreo duro para os homens que se apaixonaram por você.
Gabriel tentou amenizar a tensão, porém não teve muito sucesso.
— Isso não é uma piada, Gabriel.
— Eu sei. — Ele manteve os lábios curvados em um sorriso. — A verdade é que não confio em mim mesmo o suficiente para fazer amor com você. Sempre pareceu tão delicada aos meus olhos que tenho medo de não corresponder às suas expectativas.
— Você? Com receio de levar uma mulher para a cama?
— Você é diferente, Clara. Poderia se apaixonar por mim, se pelo menos se deixasse levar pelos sentimentos.
— Não sei se conseguiria "me deixar levar", depois de tudo que já passei. — Ela o fitou nos olhos. — A única certeza que tenho nesse momento é a de que quero fazer amor com você.
Gabriel a olhou em silêncio por um momento. Então, sem que Clara esperasse, tomou-a nos braços e a levou até o sofá.
— Se quiser que eu pare, é só dizer — avisou a ela.
— Você é mesmo diferente, Gabriel — falou Clara, com ar de riso.
Antes que ela pudesse dizer algo mais, Gabriel beijou-a com ardor, entrelaçando os dedos entre os cabelos dela e puxando-a para si. Quando Clara gemeu baixinho, ele se afastou devagar.
— E então? — perguntou a ela. — Não mudou de idéia?
— Claro que não.
Dessa vez, foi Clara quem o beijou até fazê-lo gemer de prazer. Sentir aquele corpo másculo tão próximo ao seu, exalando o calor do desejo, levou Clara a se perguntar se tudo aquilo estaria mesmo acontecendo.
— O que está tentando fazer comigo, Clara? — inquiriu Gabriel, com voz rouca.
— Estou lhe agradecendo por haver salvado a vida daquela mulher.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Acho que já recebi agradecimentos suficientes por aquilo.
Gabriel sabia que Clara não tinha noção do poder sedutor que tinha sobre ele. De certa forma, isso a tornava ainda mais encantadora.
— Sinto muito — ela se desculpou. — Foi tolice minha dizer isso. Deve estar me achando maluca.
Ele sorriu.
— Não, não estou. Está querendo alguém para confortá-la, só isso. — Afagou os cabelos dela. — Eu gostaria de poder fazer algo mais por você.
— Só eu mesma posso resolver meus problemas, Gabriel.
— Pelo menos compartilhe-os comigo. Não precisa viver sob tanta pressão e ansiedade. Quero fazer amor com você mais do que qualquer coisa nesse mundo, mas algo, ou alguém, está me dizendo que isso seria tirar vantagem de sua fragilidade emocional.
— Então o que faremos? — indagou ela, em um fio de voz.
— Bem, não senti nenhuma proibição para beijá-la... Gabriel beijou-a mais uma vez. Clara experimentou uma sensação nova e completamente gratificante. A dor em seu peito foi sumindo aos poucos, cedendo lugar a uma intensa onda de carinho. As carícias dos lábios de Gabriel não pareciam estar surtindo efeito apenas em seu corpo, mas também em sua alma. Se fazer amor era melhor do que aquilo, tinha dúvidas de que sobreviveria a tanto prazer.
Gabriel teve de se esforçar para controlar as próprias emoções. Seu corpo estava queimando de desejo, mas manter a confiança de Clara era mais importante do que qualquer coisa.
Quando se afastou um pouco, notou que ela continuava de olhos fechados. Porém, seu semblante parecia muito mais sereno. Clara se deixara levar por seu beijo e confiara nele completamente. Foi então que a certeza de que a amava o atingiu feito um raio. Era Clara a mulher com quem ele sempre sonhara e com quem queria ficar pelo resto da vida.
— Clara?
Se ela abrisse os olhos e lhe desse um daqueles sorrisos irresistíveis, ele a levaria dali direto para a cama, pensou, sentindo uma nova onda de desejo pelo corpo.
De súbito, uma estranha brisa soprou no interior da casa, agitando as cortinas e as contas delicadas do pequeno lustre de cristal que iluminava a sala. Um pequeno bibelô que se encontrava sobre a mesinha do telefone bambeou e tombou.
— O que foi isso? — Clara se sobressaltou, endireitando o corpo.
Gabriel sorriu.
— Eu lhe disse que havia uma presença a mais entre nós.
— O que está sugerindo? — perguntou ela, indo fechar as janelas. — Engraçado, mas parece não haver nenhum vento do lado de fora. As folhas das árvores estão completamente paradas.
Gabriel foi até a mesinha do telefone e arrumou o bibelô em forma de anjo. Era uma bonita peça que por pouco não se espatifara no chão.
— Que tal tomarmos um café? —- sugeriu ele. — Para ser sincero, ando pensando em procurar alguma organização ligada a assuntos paranormais.
Clara terminou de fechar a última janela e a cortina.
Como Gabriel, ela também acreditava que estavam sendo influenciados por algum tipo de força desconhecida.
— Boa idéia — disse a ele.
Olhou para Gabriel, ainda surpresa com a mudança do papel dele em sua vida. Passar de chefe opressor a confidente era uma mudança e tanto. E a rapidez com que Isso acontecera era mais surpreendente ainda.
Observando-o como se o estivesse vendo pela primeira vez, não teve dúvida de que Gabriel era o homem mais atraente que ela já havia conhecido. De fato, não sabia se conseguiria mais viver sem ele em sua vida. Isso parecia maravilhoso e assustador ao mesmo tempo.
— Clara? — Gabriel chamou-a com gentileza, dizendo a si mesmo que guardaria para sempre a bela imagem de Clara ali, parada, observando-o com uma expressão sonhadora.
Em silêncio, estendeu a mão para ela. Havia uma diferença no modo como haviam passado a mencionar o nome um do outro, pensou Clara. No início, o tom era de ironia, brincadeira e até provocação. Mas aos poucos aquilo adquirira um significado especial que parecia cada vez mais real para ambos, sempre que diziam o nome um do outro.
— Sempre me lembrarei desta noite, Gabriel — falou, pousando a mão sobre a dele.
"Mais um teste para meu autocontrole", pensou ele. Continuava não querendo perder a confiança de Clara. Quando a tivesse para si, teria de ser porque ela o quisera, e não por estar com carência afetiva.
— Acho que vou deixar o café para outro dia, Clara. Acompanhe-me até a porta, por favor. Eu gostaria de poder ficar, mas sinto que aquela voz mental está me aconselhando a ir embora.
Ainda não havia amanhecido e o silêncio reinava em todos os aposentos da casa de repouso. Mesmo assim, como que por encantamento, um pássaro cantou do lado de fora do quarto de Delia. A beleza do canto cristalino a comoveu tanto que duas lágrimas rolaram por seu rosto. Lágrimas? Algo lhe dizia que ela não chorava havia muito tempo.
Continuou deitada em meio à penumbra, tentando identificar onde se encontrava. Sua mente parecia muito desperta, mas mesmo assim ela não conseguia entender o que estava fazendo ali.
O tempo foi passando, talvez cerca de uma hora, mas ela continuou imóvel, pensativa. Sentia-se completamente em paz, ciente de que algo maravilhoso estava lhe acontecendo e que um novo nível de entendimento começara a se estabelecer entre sua mente e seu corpo. Era como se uma força amorosa e infinita houvesse tocado o íntimo de sua alma, despertando-a para a verdade da vida. Sim, ela estava viva!
Fechou os olhos, fazendo mais duas lágrimas rolarem por seu rosto.
Quando a luz do dia foi iluminando o aposento, ela se deu conta de que não estava em casa. Parecia estar em um hospital ou algo parecido. Onde estaria Clara? Sua linda Clara... Não sabia se teria forças para pensar em Peter. Teria ele realmente partido? E Timothy? Seu bebê... Perdê-los fora um golpe duro. Duro demais.
Seus lábios se curvaram em um sorriso, ao recordar a bela imagem de seus filhos. Como ela, na juventude, ambos tinham cabelos avermelhados e olhos muito azuis. Timothy Michael e Clara Sue Cavanagh... Belos nomes para duas lindas crianças.
Abriu os olhos devagar, ainda sorrindo. Então sobressaltou-se com o que viu.
— Tim?! O que está fazendo aqui?
Sorrindo, Tim se aproximou da cama. Não era mais um bebê, mas um lindo menino aparentando ter oito anos de idade.
— Ah, meu querido... Estive dormindo durante quanto tempo?
Tim apenas se aproximou e beijou-a no rosto. Um beijo divino, que a encheu de alegria e de esperança.
Um raio de sol penetrou através da cortina e a distraiu por um instante. Quando Delia voltou a olhar para ele, Timothy não estava mais lá.
— Tim?
"Oh, Deus, ele não podia ter ido embora. Sentira tanta falta dele durante todo aquele tempo..."
Um brilho diferente continuou a permear o quarto durante alguns segundos, dando a ela a certeza de que Tim estivera mesmo ali. Mas para onde ele teria ido? E Peter onde estaria? Seu Peter...
Ao olhar para o outro lado da cama, avistou Peter e Timothy de mãos dadas e sorrindo para ela. Eles a fitaram com um brilho amoroso no olhar, como que desejando dizer que gostariam de vê-la voltar à vida.
Delia sentiu-se forte de repente. Tão forte que desejou sair da cama. Sorriu quando os dois estenderam as mãos para ela.
— Venha, mamãe — ela ouviu Tim dizer. — Você vai conseguir.
Às seis horas da manhã, a enfermeira Marge Harding se dirigiu ao quarto de Delia com o sorriso animado de sempre. Não se importava que a sra. Cavanagh nunca respondesse aos seus comentários. Sempre a considerara uma senhora adorável e continuava cuidando dela como se ela fosse sua própria mãe.
— Bom dia, sra. Cavanagh! — exclamou, ao abrir a porta.
Porém, sobressaltou-se ao ver a cama vazia. Preocupada, entrou no quarto rapidamente e qual não foi seu espanto ao avistar a sra. Cavanagh sentada diante da janela, observando o jardim.
Delia virou-se devagar, com um sorriso amável iluminando-lhe o rosto.
— Bom dia, enfermeira. Tive um sonho maravilhoso essa noite. Sonhei que meu filho e meu marido vieram me visitar. Eles pediram que eu voltasse a viver por Clara. Ela precisa de mim. Quero falar com ela.
Marge apenas assentiu, sem conseguir dizer nada. Milagres realmente aconteciam, e ela acabara de presenciar um.
Clara recebeu a notícia dez minutos depois. A enfermeira começou a contar os detalhes com empolgação, mas acabou se contendo um pouco ao se dar conta de que não seria sensato alimentar esperanças sem ter certeza de que Delia Cavanagh realmente se recuperara.
— Ah, meu Deus... Ah, meu Deus... — Foi tudo que Clara conseguiu balbuciar em resposta.
Assim que desligou o telefone, saiu correndo para se arrumar. Aquele milagre ultrapassava os limites de sua imaginação. Era a resposta às suas preces! Porém, uma onda de apreensão lhe ocorreu de repente. E se a recuperação de sua mãe fosse apenas temporária?
"Não, não posso pensar nisso", pensou consigo, escovando os dentes e lavando o rosto tão rápido que espalhou água por toda a pia.
Ao chegar no quarto, vestiu a primeira roupa que surgiu no guarda-roupa: um jeans desbotado e uma camiseta branca. Desde o dia em que sua mãe sorrira, ela vinha tendo a esperança de isso poderia acontecer.
Deus, precisava contar a Gabriel. Não agüentaria dividir aquela alegria sozinha. Não depois de ele haver se tornado uma pessoa tão próxima. Ele fora o primeiro a ver sua mãe sorrir depois de todo aquele tempo, e merecia receber a notícia em primeira mão.
Ela olhou para o relógio. Seis e vinte da manhã era muito cedo para, telefonemas, mas tinha certeza de que Gabriel não se importaria. Digitou o número da casa dele e ficou esperando, sentindo o coração acelerado.
Depois de alguns toques, uma voz feminina o atendeu.
— Alô?
Clara conteve o fôlego, chocada. Teria ligado para o número errado? Não, não. Era aquele mesmo.
— Alô? — repetiu a voz sensual, com mais ênfase. Clara continuou emudecida, sem conseguir falar nada.
Mas não podia se deixar abater por aquilo. A recuperação de sua mãe era mais importante do que qualquer coisa.
Estava prestes a desligar quando reconheceu a voz de Gabriel do outro lado da linha.
— Quem é? — indagou ele, com um tom decidido.
Clara hesitou. Gabriel morava sozinho e a mãe dele residia na Tasmânia. Ele não tinha irmã e sua única prima era casada e morava em uma ilha, ao sul da Nova Zelândia.
Por algum motivo, provavelmente sentimento de culpa, ele disse:
— Clara? É você?
Ela desligou o telefone sem dizer nada. Em outra oportunidade, diria a ele o que achava de tudo aquilo. Sua mãe estava à sua espera, e isso era o mais importante. O que era uma pequena desilusão amorosa, quando comparado a ter sua mãe de volta à vida? Já tivera muitos desapontamentos na vida, e superaria mais esse.
Ainda assim, por baixo daquela máscara de coragem, havia uma Clara movida por um misto de emoção, raiva, mágoa e gratidão. Isso demonstrava até que ponto Gabriel entrara em sua vida.
O telefone começou a tocar quase em seguida, mas ela o ignorou. No trajeto até a casa de repouso, segurou o volante com firmeza, ansiosa para saber se a boa notícia era mesmo verdadeira.
Ao chegar à recepção, cumprimentou a recepcionista, que já a conhecia, e saiu correndo em direção ao quarto de sua mãe.
Encontrou-a sentada na cama, usando um vestido cor-de-rosa que alguém devia ter dado a ela de presente, pois Clara nunca a tinha visto. O sorriso que recebeu da mãe foi o melhor presente que Clara poderia receber naquele momento. Ela estava mesmo de volta! Sua mãe estava curada!
Clara atravessou o quarto com os braços abertos e foi abraçá-la, explodindo em lágrimas. Delia também começou a chorar, feliz ao ver que sua filha estava tão bem.
— Oh, minha querida... — disse ela, com carinho maternal.
— Que bom que você voltou, mamãe.
Delia segurou o rosto dela entre as mãos e fitou-a nos olhos.
— Voltei por você, meu anjo.
As lágrimas continuaram a molhar o rosto das duas, mas nenhuma delas se importou com isso. A emoção era grande demais para ser contida.
Quando Clara sentou-se ao lado dela, na cama e lhe segurou as mãos, Delia falou:
— Tim esteve aqui. E seu pai também. Eu os vi com a mesma nitidez com que a estou vendo agora.
A sinceridade das palavras e do olhar de sua mãe deixou Clara intrigada e apreensiva ao mesmo tempo. Estaria ela realmente curada?
— Não precisa ficar com receio, minha querida — avisou Delia, com um sorriso compreensivo. — Aconteceu exatamente isso que eu lhe contei. Eu os vi, e não foi alucinação. Acredite em mim.
Enquanto ouvia a mãe, Clara se pôs a pensar em tudo que acontecera nos últimos tempos. Aquelas vozes, sua força surgida do nada, o despertar de sua mãe... Estaria mesmo recebendo alguma ajuda externa?
Apesar de haver passado por acontecimentos estranhos, por que estava sendo tão difícil acreditar na história que sua mãe contara? Acreditava mais que houvesse sido um sonho.
As duas ainda estavam conversando quando uma enfermeira apareceu, acompanhada por dois médicos. Dr. William Gough, neurologista, e dr. Simon Blakely, psiquiatra. Pelo visto, a notícia já havia se espalhado e Delia seria submetida a exames. Médicos não acreditavam em milagres.
Clara saiu do quarto para que sua mãe fosse examinada. Ainda atônita, perambulou pelo corredor e foi para a recepção, onde sentou-se em um sofá. Uma das enfermeiras lhe serviu chá, parabenizando-a pelo que havia acontecido.
Clara agradeceu. Enquanto tomava o chá, não pôde deixar de se preocupar com as respostas que sua mãe poderia dar aos questionamentos dos médicos. Eles não acreditavam em experiências místicas e acabariam diagnosticando que ela não estava completamente curada.
De súbito, notou uma breve movimentação vinda do balcão onde ficava a recepcionista. Curiosa, ficou de pé para ver do que se tratava.
Vestido com uma roupa tão casual quanto a dela, Gabriel se adiantou em sua direção assim que a viu. A recepcionista o seguiu, dizendo que ele não poderia entrar sem se identificar.
— Tudo bem — disse Clara à moça. — Eu o conheço. Achou melhor do que dizer "ele é um amigo" ou coisa do gênero. De fato, já não sabia mais qual era o papel de Gabriel em sua vida.
— Clara. — Ele se aproximou, tão charmoso como sempre, para maior desespero dela. — Telefonei para sua casa, mas você não respondeu. Fiquei muito preocupado, então me ocorreu que poderia estar com sua mãe. Ela está bem?
Clara tentou se manter calma ao responder:
— Ela recobrou a consciência. Está conversando e me contou várias coisas, entre elas uma visão que teve durante a madrugada. Os médicos estão examinando-a agora.
"E provavelmente chegando a conclusões indevidas", pensou ela. Gabriel segurou o queixo dela com delicadeza.
— Foi você quem me telefonou pela manhã?
— Não.
— Pois eu acho que foi — Gabriel insistiu.
— Cometi um erro, nada mais.
— Clara, sobre o que está falando?
— Você sabe muito bem.
— Oh, querida. Ficou aborrecida porque uma mulher atendeu o telefone?
Clara desviou o olhar, sem querer demonstrar que sentira ciúme.
— Bem, digamos que não achei isso muito normal, depois de você haver dito que mora sozinho.
— E foi logo tirando conclusões precipitadas? Como uma criança? — Ele sorriu.
— Tudo bem. Talvez eu não consiga agir com tanta maturidade quanto você a respeito desse assunto. Más o que acha que devo pensar quando uma de suas namoradas atende seu telefone às seis e vinte da manhã?
— Não é nada disso, Clara. A moça era Sue Ashton, minha vizinha. Ela e a colega de apartamento, Patrícia Sommers, tinham de ir para o aeroporto bem cedo e me ofereci para dar uma carona a elas, só isso. — Ele riu. — As duas ganharam um pacote de férias em uma ilha da Nova Zelândia e estavam levando tanta bagagem que duvidei que conseguiriam carregar tudo aquilo sozinhas. Eu e Pat havíamos acabado de levar algumas malas até o elevador e Sue atendeu o telefone, tentando ser prestativa.
— E elas viajaram para a Nova Zelândia justamente para não haver quem confirme a história, certo?
— Precisa de confirmação? — Gabriel arqueou uma sobrancelha. — Não consegue simplesmente acreditar em mim?
— Acreditar no que os homens dizem exige uma quantidade muito grande de fé. Não sei se tenho tanta.
— Acreditar em mim, você quer dizer? Clara passou a mão pelos cabelos.
— Não estou conseguindo pensar com clareza, Gabriel. Aconteceram muitas coisas em pouco tempo.
— Eu entendo. Sente-se um pouco. Apesar de maravilhosa, a notícia da recuperação de sua mãe deve ter sido um choque para você.
— Nós dois a vimos sorrir naquele dia.
— Eu sei. Deve ter havido alguma intervenção divina em tudo isso, Clara :— acrescentou ele, com um sorriso.
Ela se inclinou na direção dele, mas não ousou tocá-lo.
— Acho que me enganei.
— Sim, se enganou — Gabriel confirmou.
— Sinto muito.
Um sorriso se insinuou nos lábios dela. A idéia de perder Gabriel não fora nem um pouco agradável, mas, felizmente, tudo voltara a ser como antes.
— Para ser sincero, também me decepcionei com você. Pensei que estivéssemos próximos, Clara.
— Claro que estávamos.
— Correção: estamos. Manter um relacionamento implica em se ter confiança mútua. Terá de decidir se quer mesmo confiar em mim, porque, da minha parte, desejo muito manter nossa... amizade.
— Já tive problemas demais na vida e isso me deixou cautelosa ao extremo. Ouvir uma mulher atender seu telefone àquela hora da manhã me fez sentir que minha confiança em você havia sido abalada.
— Entendo. Acho que se eu ligasse para sua casa e ouvisse um sujeito atender o telefone também ficaria furioso. Mas vamos esquecer esse assunto, sim? Eu gostaria muito de poder cumprimentar sua mãe, se for possível.
— Acho que os médicos não se oporão a isso, quando terminarem os exames.
— Sua mãe está bem... em todos os sentidos? — indagou ele, com delicadeza.
— Ela está agindo normalmente, até onde percebi. Mas disse algumas coisas estranhas — admitiu Clara.
-— Que coisas?
— Prefiro que ela mesma lhe conte, se quiser.
— Entendo.
Notando que fora indelicada, Clara voltou atrás.
— Não é que eu queira deixá-lo de fora, Gabriel. E só que... minha mãe está falando como se estivesse tendo visões.
— Acredito nela — afirmou ele, para espanto de Clara.
— Acha realmente que isso seja um problema?
— Nem todo mundo acredita em visões — ela salientou.
— Os médicos tendem mais a achar que se trata de alucinações. Eles são muito céticos a respeito de fenômenos espirituais.
— Felizmente, já nem todos pensam assim. Conheço alguns que passaram a se interessar por assuntos desse tipo, depois de verem evidências em seus pacientes. Pare de se preocupar, Clara. Tenho certeza de que sua mãe saberá responder a cada uma das perguntas que fizerem a ela.
De fato, foi exatamente o que aconteceu.
Depois que Delia foi liberada dos exames, os três ficaram um bom tempo na beira do lago, conversando sobre amenidades que não a emocionassem demais e que não colocassem em risco sua recuperação.
A princípio, Delia recebera Gabriel como um estranho bem-vindo, sorrindo e apertando-lhe a mão. Porém, aos poucos foi sentindo cada vez mais simpatia por ele, até que, no momento de se despedirem, ela lhe confidenciou:
— Lembro-me de seu rosto, Gabriel. Deve ter vindo me visitar quando eu ainda estava... "apagada", não? — indagou, em tom de brincadeira.
— Sim, eu vim.
— Logo vou tirá-la daqui, mamãe — prometeu Clara. — Assim que os médicos a liberarem.
— Não se preocupe, querida. Eu ficarei bem. — Olhando para uma árvore próxima, ela perguntou à filha: — Por que não cumprimenta seu irmão?
Clara sentiu um aperto no peito. Seria demais esperar uma cura completa.
— Porque não posso vê-lo, mamãe — respondeu, contendo a vontade de chorar.
— Olhe naquela árvore, querida. Timothy se apresenta de diferentes formas.
— Sim, mamãe.
Clara olhou na mesma direção que Delia. E qual não foi seu espanto ao avistar um pombo branco pousado em um dos galhos. Levou a mão aos lábios de repente. As penas da ave brilhavam!
— Veja, Gabriel!
Contudo, o lindo pombo desapareceu em um piscar de olhos.
— O que está acontecendo? — inquiriu Clara, quando os dois partiram no carro de Gabriel.
Ele havia insistido em levá-la para casa, dizendo que Clara não estava em condições de dirigir e que depois mandaria alguém apanhar o carro dela.
— Acho que precisamos aceitar que há alguma força estranha agindo entre nós, Clara. E sinto que é uma força voltada para o bem. Não costumo ignorar esse tipo de coisa, muito pelo contrário.
— Mas será que os médicos terão essa mesma opinião quando continuarem acompanhando minha mãe?
— A euforia da volta à vida pode até estar causando alucinações nela — sugeriu Gabriel. — Não podemos descartar esse possibilidade. Mas não creio que seja esse o caso.
Nunca tenha medo de acreditar, Clara. Nunca.
— Gabriel, você disse isso?
Ela olhou-o, surpresa. Claro que fora uma pergunta idiota. Desde quando Gabriel passara a ter voz de criança?
— O quê?
— "Nunca tenha medo de acreditar, Clara. Nunca." — repetiu ela.
— Eu não falei isso. Mas não deixa de ser um bom conselho. Pense nele durante o resto do dia, Clara. Vai lhe fazer bem.
A entrevista com Christopher Freeman foi pré-gravada na terça-feira, para ser exibida na noite seguinte. Com o máximo de delicadeza, Clara rejeitou o convite que ele lhe fizera para jantar, mas Freeman não era do tipo que desistia facilmente. Por fim, ela se vira forçada a aceitar por motivos profissionais.
— Jantaremos no hotel onde estou hospedado — avisou ele. Clara sabia que o hotel era um dos mais luxuosos da cidade. Pensado bem, talvez não fosse tanto sacrifício assim... Mas Gabriel não teve a mesma opinião.
— Poderia ter usado alguma desculpa para dispensá-lo — disse ele, com ar de censura.
— Veja pelo outro lado, Gabriel. Quando se perde algo, ganha-se outra coisa.
— Espero que não estejamos falando de virgindade. Ela estreitou o olhar.
— Você é mesmo terrível.
— Que culpa tenho eu, se não gosto do sujeito? Onde vocês irão jantar?
— No hotel Waverley.
— Onde ele está hospedado? — Ele arqueou uma sobrancelha. — E o que você vai vestir?
Foi a vez de Clara arquear as sobrancelhas.
— Não pensei que se interessasse por moda feminina.
— Eu me interesso pelo que você veste.
— Tudo bem. Estou pensando em usar um vestido preto fechado por um único botão em formato de brilhante, acima do decote.
— Isso não vai facilitar as coisas demais para ele?
— Gabriel, quantas vezes preciso dizer que sei me cuidar?
— Tudo bem. Tome cuidado, Clara.
— Ora, não vai me dizer "divirta-se"?
— Para você se divertir, eu teria de estar por perto. Clara riu e se dirigiu à porta do escritório.
— Oh, eu te amo, sr. McGuire! — exclamou e soprou um beijo para ele.
Gabriel ficou algum tempo olhando para a porta fechada. Se pelo menos aquilo fosse verdade...
Clara conteve o fôlego ao observar o luxo do saguão do hotel Waverley.
— Srta. Cavanagh? — O homem alto e elegante se apresentou como Dominic Collins, gerente do hotel. — O sr. Freeman me pediu para acompanhá-la até a suite dele.
Clara franziu o cenho.
— Ele não vai me encontrar no restaurante do hotel? O gerente pareceu surpreso.
— O sr. Freeman pediu que o jantar fosse servido na suite. Eu mesmo providenciei tudo. Não ficará desapontada, srta. Cavanagh.
"Não tenho tanta certeza disso", pensou Clara.
Freeman abriu a porta logo depois do primeiro toque. Olhou Clara de alto a baixo, com ar de admiração. Adorava ruivas vestidas de preto.
— Clara, você está linda. Entre. Achei que seria mais confortável jantarmos na minha suite, para não ficarmos sendo observados por curiosos. Espero que não se importe.
Ela forçou um sorriso e entrou, observando o aposento com cautela. A única saída que havia no lugar era a sacada, a doze andares do chão.
— Obrigado, Collins — ele agradeceu ao gerente. — Chamarei se precisar de alguma coisa.
— Sente-se e relaxe, Clara. Espero que McGuire não tenha ficado aborrecido por você ter vindo jantar comigo.
Ela sorriu.
— Ele sabe que você é um cavalheiro, Christopher. Ele também sorriu, servindo duas taças de champanhe.
Em seguida, entregou uma a ela.
O jantar foi maravilhoso, com iguarias variadas e de sabores exóticos. Embora estivesse gostando, durante todo o tempo Clara se manteve alerta.
— Vamos tomar o café na sacada — sugeriu Freeman quando terminaram a refeição. — A noite está muito bonita.
Ele tinha razão. Ao chegar à sacada, Clara ficou encantada com a beleza das luzes da cidade. Imaginou o que Gabriel estaria fazendo naquele momento.
— Clara? — Freeman se aproximou por trás dela. — No que está pensando?
— Oh, estou apenas admirando a vista.
Ela ficou apreensiva ao sentir a mão dele em sua cintura.
— Não sei se já percebeu, Clara. Mas acho que estou apaixonado por você.
"Oh, Deus, como fui me meter nisso?", ela se censurou.
— Aposto que diz isso a todas as mulheres que vêm jantar com você, Christopher.
Mantenha a calma. Isso é muito importante agora. Clara franziu o cenho. Teria mesmo ouvido aquela voz novamente?
— Tem razão. — Freeman sorriu. — Mas dessa vez estou falando sério.
— Pensei que fosse me falar sobre seu contrato com a Avalon Mercer.
— Quer falar de negócios em uma noite como essa?
— Christopher, não quero magoá-lo. Agradeço por haver me dado aquela entrevista exclusiva, mas espero que não me cobre algum pagamento por isso. Não irei para a cama com você assim, sem que haja nada entre nós.
Pela primeira vez, ele pareceu chocado com algo que ela dissera.
— Clara, está sugerindo que deveríamos nos casar primeiro?
Ela arregalou os olhos.
— Isso nem me passou pela mente!
— Confesse que passou. Sei que sou considerado um ótimo partido.
— Não quero estragar nossa amizade com essas coisas, Christopher, Está sendo um prazer jantar com você, mas não espero nada além disso.
Ela fez menção de se afastar, mas Freeman puxou-a para si de repente.
— Talvez esteja precisando de algum incentivo...
Clara teve de resistir à vontade de esbofeteá-lo e acabar com aquele sorriso cínico.
— Tudo será maravilhoso se você relaxar — garantiu ele, com um tom de voz que a deixou nauseada.
— Christopher, pare com isso, por favor.
Freeman sorriu, não parecendo convencido de que ela estava falando sério. Fazia tempo demais que ele não era rejeitado por uma mulher, e não seria uma repórter qualquer que o faria.
— Bem, se você prefere bancar a difícil...
— Não é nada disso! Preciso ir embora.
Para mostrar que estava falando sério, ela se desvencilhou dos braços dele, preparando-se para uma fuga desesperada. Sabia exatamente onde deixara sua bolsa, portanto, não teria maiores problemas em ser rápida.
Freeman achou que aquela tática não daria certo com ela. Pensando em usar outra, adiantou-se com um movimento brusco e tentou agarrá-la. De súbito, ouviu um ruído de algo caindo no chão. Era o botão que fechava o decote do vestido de Clara.
Então, várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Freeman tentou agarrá-la novamente, já que o primeiro empecilho já havia sido eliminado. Ela gritou, tentando se soltar, mas ele era forte demais e a manteve prisioneira.
De súbito, ouviram uma forte batida à porta.
— Quem diabos será? — Freeman se aborreceu.
Clara tentava se soltar e unir as duas partes de seu decote que haviam se separado com a perda do botão. Sabendo que só poderia ser Gabriel à porta, ela se livrou de Freeman e correu para abri-la.
— Oh, Gabriel, eu sabia que era você! — gritou, aliviada ao vê-lo.
— O que está acontecendo aqui? —perguntou ele, alarmado ao ver os seios de Clara cobertos apenas por um sutiã de renda preta.
Não entendia direito como fora parar ali. Lembrava-se de estar em seu apartamento, assistindo a um filme de Humphrey Bogart, quando ouvira aquela voz familiar lhe dizer: Clara está precisando de você!
Saíra no mesmo instante e fora direto para o hotel Waverly, disposto a ensinar uma lição a Freeman, se fosse preciso. E, pelo visto, seria.
Fazendo um sinal para Clara ficar de lado, avançou em direção a Freeman, furioso. Em uma atitude quase infantil, Freeman foi para trás da mesa, usando-a como escudo.
— Gabriel, ele não fez nada! — gritou ela, com receio de que ele acabasse agredindo Freeman.
— Não?! — Gabriel franziu o cenho.
— Deixe-a explicar, McGuire — pediu Freeman. Clara respirou fundo.
— Perdi o botão do vestido, só isso. Sei que é embaraçoso, mas acho que ele não estava bem preso.
— Acha que sou algum idiota, Clara?
— É a verdade, Gabriel.
Ele fez menção de se aproximar de Freeman, mas ela se adiantou e segurou-o pelo braço.
— Solte-me, Clara. Preciso ensinar uma lição a esse sujeito.
— Não é preciso — insistiu ela. — Precisamos conversar. Deixe-me apenas tentar consertar o botão.
— Vi uma caixa de costura naquela gaveta — avisou Freeman, com ar prestativo, apontando uma espécie de cômoda. — É compreensível que tenha entendido mal o que viu, McGuire. Mas não. consigo entender por que veio até aqui.
— Eu... recebi um chamado — emendou Gabriel.
— É mesmo? — Freeman não pareceu muito convencido.
— Por que esse acesso de fúria? Tem algum compromisso com Clara?
— Tomar conta dela tem se tornado parte do meu trabalho — explicou Gabriel.
— Foi tudo um grande engano. — Clara forçou um sorriso, improvisando um nó nas duas partes do decote.
— Estou chocado que tenha pensado qualquer outra coisa
— Freeman disse a Gabriel. — Tenho muito carinho por Clara. — Respirou fundo. — Cheguei até a pedi-la em casamento — mentiu.
Gabriel riu com ironia.
— Isso é verdade, Clara?
—Acho que tudo isso não passa de um grande mal-entendido. Christopher, obrigada pelo jantar, mas precisamos ir embora.
— Foi um prazer conhecê-la, Clara. Não sei se posso dizer o mesmo de você, McGuire. De qualquer modo, terei de voltar para Nova York no fim de semana.
— Bon voyage — ironizou Gabriel.
Clara ficou apreensiva quando ele não disse nada no caminho até o carro. Somente depois de estarem no confortável interior do Jaguar, foi que ele falou:
— Quer me contar a verdadeira versão dessa história?
— Acho que já contei. Agora é você quem me deve uma explicação. Que história foi aquela de receber um chamado? Eu não telefonei para você.
— Que diferença isso faz? — Ele deu de ombros. — Cheguei quando você estava em apuros, e é isso que importa. Não foi muito sensato da sua parte usar aquele vestido.
— Eu queria parecer sofisticada, só isso.
— Então poderia pelo menos estar usando algo menos provocante por baixo do vestido. Renda preta deixa qualquer homem maluco, ainda mais se ele já tiver tendências insanas, como Freeman.
— Não vamos mais falar nisso, está bem? Não me lembro de haver pedido que viesse me salvar, mas obrigada mesmo assim.
Quando chegaram à casa dela, Gabriel fez questão de acompanhá-la e de verificar se as janelas estavam bem fechadas.
— Não sei o que seria de mim sem você — zombou ela. — O que faria se alguém surgisse atrás da cortina?
— Não faria nada — respondeu ele, sem hesitar. — Deixaria tudo por sua conta.
Ela riu.
— Quer um pouco de café?
— Não consegue pensar em outra coisa?
— O que está insinuando com isso? — perguntou Clara. Deus, como Gabriel estava lindo com aquela camisa marrom e a calça bege. Notou que os cabelos dele haviam crescido um pouco, mas se mantinham ajeitados em leves ondas sedosas.
— Por que está me olhando desse jeito? — perguntou ele, com um ar defensivo.
— Que mal há nisso? É um homem muito atraente.
— Ah, está querendo dizer que levou todo esse tempo para descobrir isso.
— Não. Mas pensei que homens morenos não fizessem o meu tipo.
— E qual é o seu tipo?
— Estou olhando para ele —- respondeu ela, observando algo além dele.
Surpreso, Gabriel olhou na mesma direção que ela. Avistou a foto do pai dela na estante. Na verdade, havia várias fotos antigas da família.
Gabriel se aproximou da estante e observou com mais atenção aquela que mostrava o pai de Clara. Um homem na casa dos quarenta anos de idade, com cabelos castanhos e olhos acinzentados,
— O nome dele era Peter — explicou ela, aproximando-se também. — Uma ótima pessoa, de quem guardo muitas recordações boas. Estava no auge da carreira de médico quando morreu.
— O universo está imerso em um jogo que não compreendemos, Clara. — Após um momento de silêncio, Gabriel perguntou: — Quando trará sua mãe para casa?
— Talvez no fim de semana — respondeu ela, indo para a cozinha.
Gabriel a seguiu.
— Também estou pensando em ver minha mãe.
— Por que não a traz para nos visitar? Ela e sua tia — sugeriu Clara.
— Sempre quero fazer isso. O difícil é minha mãe concordar. Mas vamos deixar esse assunto de lado, sim?
— Sinto muito, Gabriel. Sei que assuntos ligados à família às vezes são difíceis. Mas pode contar comigo, se precisar.
Ele se aproximou, pousando as mãos na cintura dela. Fitando-a nos olhos, disse:
— Sabe de uma coisa, Clara? Se eu não for embora agora, acabarei fazendo amor com você.
Clara também o desejava mais do que tudo. Estava cansada de viver sozinha, sem alguém para amar e para compartilhar seus momentos de alegria e de tristeza. O que sentia por Gabriel era algo novo e intenso demais para ser contido por uma mera amizade.
Ciente disso, abraçou-o com força, deixando-se ficar com o rosto aninhado naquele peito protetor.
— Clara?
— Não vá embora. Fique aqui comigo.
— Não sei se posso.
Ela levantou o rosto para ele. — Terei de levá-lo para meu quarto?
— Clara, isso é sério. Eu a desejo mais do que tudo no mundo, e se começar a fazer amor com você não haverá mais volta.
— Não precisa me tratar como se eu fosse feita de cristal, Gabriel. Eu também te quero, e estou muito ciente disso.
— Então está bem.
Clara ouviu a porta da frente ser aberta e fechada, como se alguém houvesse saído da casa.
— Você ouviu isso? — perguntou a ele.
— O quê?
— A porta da sala.
Os dois foram até lá, mas tudo parecia perfeitamente tranqüilo. De fato, tranqüilo até demais. Perfeito para o amor.
Na penumbra do quarto, Gabriel a despiu devagar enquanto beijava e acariciava Clara com infinito carinho. Pensou que ela ficaria receosa, por ser a primeira vez, mas Clara se mostrou ansiosa para se entregar ao amor. Ela confiava nele e isso era essencial para Gabriel.
Ele seria o primeiro amor da vida dela e nada mudaria isso dali em diante. Queria que fosse perfeito para Clara, para que toda vez que ela se lembrasse daquele momento, um sorriso sonhador surgisse em seus lábios.
O luar atravessou a fresta da cortina entreaberta, iluminando o quarto com um etéreo brilho prateado.
"Se eu viver cem anos, a lembrança desse dia seguirá comigo", pensou Clara, enquanto se entregava ao calor dos braços de Gabriel. As mãos experientes lhe despertaram ondas de desejo que ela não imaginava que fosse capaz de sentir.
Quando seus corpos nus finalmente se encontraram em um abraço íntimo, a dança do amor os conduziu pelo caminho do êxtase. A certa altura, Clara sentiu como se seu corpo fosse a corda tencionada de um instrumento, prestes a participar da harmonia de uma linda música.
No momento em que aquele instante mágico finalmente aconteceu, as ondas de prazer que se espalharam por seu corpo se assemelharam ao ápice da canção. Ouviu Gabriel chamar seu nome, como se ele fizesse parte daquela música que soava tão divina em seus ouvidos. Seria aquela a canção dos amantes?
Se houve alguma resposta ao seu questionamento, Clara não chegou a ouvi-la. Estava ocupada demais, nos braços de seu grande amor.
Delia Cavanagh voltou para casa em uma linda manhã ensolarada. Gabriel prometera visitá-las à tarde. Sabia que aquele momento era muito importante para Clara e não queria se intrometer.
Quando as duas entraram na casa, Delia olhou demoradamente ao redor, ciente de que não teria mais a companhia do marido e do filho. Apesar disso, continuava muito serena e isso também deixou Clara com uma sensação de paz. Enquanto andavam pela casa, tinha a impressão de que Peter e Timothy estavam acompanhando-as em espírito.
Passaram um bom tempo no jardim. Algumas flores haviam desabrochado nos últimos dias, em uma espécie de saudação à nova moradora. Delia ficou encantada com a beleza do jardim e com o zelo com que Clara o havia conservado.
— Oh, querida, senti tanto sua falta! — exclamou ela, enlaçando a mão pela cintura de Clara. — Manteve tudo tão lindo! Como conseguiu isso ocupada com tanto trabalho?
Clara sorriu.
— Bem, na verdade, nem eu mesma sei. Contratei um jardineiro para cuidar do jardim uma vez por semana, e eu cuido da casa quando tenho tempo, nos fins de semana.
— Vamos entrar, querida? Estou morrendo de vontade de tomar uma xícara de chá.
— Sim, claro.
As duas entraram novamente em casa, felizes com a perspectiva da nova vida que se iniciava.
Durante os dias que se seguiram, Clara sentiu-se grata aos céus por sua mãe estar se recuperando tão bem. Ficou ainda mais feliz ao saber que alguns amigos iriam visitá-la.
Delia e o marido, na época um médico talentoso, haviam feito muitas amizades. As pessoas haviam ficado abaladas com o que acontecera após o acidente, mas à notícia de que ela se recuperara deixara todos animados e ansiosos para revê-la.
Clara, por sua vez, passou a semana seguinte se preparando para a visita anual dos jornalistas ao hipódromo mais famoso da Austrália, marcada para o sábado. Algumas pessoas da imprensa haviam sido convidadas, incluindo ela e Gabriel. Por ser uma repórter conhecida em todo o país, sabia que deveria aparecer o mais elegante possível no evento. Porém, o detalhe interessante era que a BTQ8 estaria pagando os gastos com sua roupa.
Foi a uma butique ver o que lhe ficaria bem, mas acabou ficando em dúvida entre dois lindos modelos de tailleur estilizados. Um era branco com detalhes em preto, e o outro cor-de-rosa com botões dourados. Ambos era acompanhados por chapéus e sapatos combinando.
As roupas lhe caíram tão bem, que até mesmo as vendedoras ficaram em dúvida sobre qual delas seria melhor Clara escolher.
— Pedirei a opinião do meu chefe — disse ela. — Ele tem um gosto excelente para roupas e quer que eu esteja muito elegante na ocasião.
Porém, Clara não conseguiu falar com Gabriel durante o dia inteiro. Segundo ficou sabendo, ele tivera uma longa reunião com dois influentes industriais americanos, que o haviam conhecido quando ele estivera em Washington.
— Gabriel se destacou muito quando esteve por lá — disse Jennifer, de pé, diante da mesa de Clara. — Ele me disse que adorou a época em que esteve nos Estados Unidos, e que aprendeu muito do que sabe com os jornalistas de lá.
— E mesmo assim preferiu vir trabalhar na Austrália?
— Sim, ele gosta muito daqui — confirmou Jennifer. — Mas você já deve ter notado que Gabriel não está usando todo o potencial que tem.
— É verdade. Com tanto talento profissional, ele já deveria ter seu próprio canal jornalístico.
— Talvez algum americano reconheça isso e acabe chamando-o para ter algo mais "sólido" nos Estados Unidos, quem sabe? — Jennifer supôs. — Não ficaria surpresa se recebêssemos essa notícia. Portanto, tome cuidado para não ficar envolvida demais com ele, Clara -— acrescentou ela, com um sorriso falso. — Fique contente ao saber sobre a recuperação de sua mãe. Claro que não iria querer deixá-la para ir morar nos Estados Unidos, não é?
Não, não teria coragem de fazer isso, concluiu Clara, quando Jennifer se retirou. Sua mãe estava ganhando mais força e disposição a cada dia, embora Clara desconfiasse que houvesse restado algumas seqüelas. Delia continuava dizendo que conversava com Timothy.
Mas quem era ela para criticar a mãe, se também andava ouvindo "vozes" de vez em quando?
Ao longo da semana, várias pessoas abordaram Clara para perguntar sobre sua mãe e para lhe contar detalhes sobre os visitantes de Gabriel.
— Espero que não estejam tentando convencê-lo a voltar para os Estados Unidos.— disse Bob, em um dos encontros para um café, no corredor. — McGuire é o melhor chefe que já tive. Precisamos de alguém com pulso firme por aqui, e ele é a pessoa certa. Demorou algum tempo para nos acostumarmos com ele, depois da morosidade de Clive, mas agora estamos indo de vento em popa. Até mesmo você já se acostumou com ele, Clara.
Ela assentiu, sem conseguir falar ao sentir um nó na garganta.
— Ele é atraente aos olhos das mulheres e pode acabar indo para a frente das câmaras, se os americanos o convencerem a tentar. Se McGuire aceitar, tenho certeza de que acabará se dando bem.
— Logo saberemos, Bob — falou Clara, olhando na direção da sala de Gabriel. — A propósito, eu gostaria de lhe perguntar sobre o passeio do sábado. Vão mesmo filmar e fotografar todo o evento?
— Sim, por quê?
— Porque preciso ter certeza de que estarei elegante o suficiente. Aliás, poderia me ajudar, dando uma opinião sobre minha roupa.
Bob arqueou as sobrancelhas.
— Clara, não poderia escolher outra pessoa para fazer isso? Mas tudo bem, darei minha opinião.
— Estou em dúvida entre um tailleur branco e outro cor-de-rosa.
— Tenho certeza de que você ficará linda com qualquer um deles. — Ele fez menção de se retirar, mas parou um instante. — Jen não foi convidada dessa vez. Ela foi eleita a mais elegante da festa nos últimos anos.
— Eu sei. — Clara suspirou. — Sei que ela está magoada, mas não posso fazer nada se fui convidada para ir no lugar dela, Bob.
— Jen é talentosa, mas não tanto quanto você. Lamento que ela a esteja atacando com palavras ultimamente. Jen não está conseguindo disfarçar a inveja de você.
— Não deve estar sendo fácil para ela — disse Clara, em um tom compreensivo. — A única coisa que me deixa aliviada é ter a certeza de que nunca prejudiquei ninguém para que meu talento fosse reconhecido. Eu nunca teria coragem de fazer isso.
— Eu sei, querida.
No final da tarde, Clara recebeu um recado para ir à sala de Gabriel. Ao chegar lá, sentou-se diante dele e esperou que ele falasse. Quando estavam na empresa, Gabriel nem parecia o mesmo homem que a havia amado com tanto ardor naquela noite.
Ali, ele era McGuire, seu chefe e o jornalista que comandava o BTQ8, tornando-o um dos canais de televisão mais bem-sucedidos do país.
Gabriel estava examinando uma página impressa. Parecia muito concentrado no que estava lendo, mantendo o cenho franzido enquanto fazia algumas anotações.
Quando finalmente olhou para ela, mostrou um sorriso que deixou Clara sem fôlego.
— Tudo bem com você?
— Sim. — Achando melhor manter o ar profissional, ela continuou: — Consegui fazer uma rápida entrevista com Elle Macpherson, antes de ela começar a fazer a divulgação do novo filme que fez para o cinema. Depois conversei com George Clooney. Deve haver pelo menos uma centena de jornalistas de televisão, rádio e jornais tentando obter uma entrevista com eles.
— Está brincando!
— Não, não estou. Verá com seus próprios olhos no noticiário dessa noite porque já mandei as matérias para a edição. George é muito simpático, e Elle a elegância em pessoa. Por falar nisso, estou com dúvida sobre o que deverei vestir no sábado. Pensei em pedir sua opinião, antes de tomar a decisão final.
— Sim, claro. Será um prazer. Como está Delia?
— Melhor do que imaginei que ela ficaria. Está recebendo visita de amigos, cuidando do jardim... Enfim, tudo que ela sempre gostou.
— Então por que ficou com ar de preocupação ao falar sobre ela?
Clara respirou fundo.
— Ela continua falando com Tim.
Os lábios de Gabriel se curvaram em um sorriso.
— Já disse para você não se preocupar com isso. Talvez Delia esteja mesmo conversando com Tim. Que mal há nisso?
Ela suspirou, sem responder nada. Após um momento de silêncio, perguntou:
— Como foi seu encontro com os americanos? Gabriel passou a mão pelos cabelos fazendo as mechas sedosas se ajeitarem sobre sua testa.
— Um deles é Jack Sting, presidente de um importante canal de televisão — explicou. — O outro é um repórter de Nova York, chamado Joe Costello.
— E o que eles queriam com você?
Gabriel deu de ombros.
— Sei que parece inacreditável, mas eles querem que eu vá trabalhar com eles. Joe, em particular, lembra do tempo em que trabalhamos juntos, em Washington.
— Quando você pretendia me contar?
— Clara, estive com eles o dia inteiro e só fiquei livre ainda a pouco.
— Desculpe-me.
— Não precisa se desculpar. Contei isso para poucas pessoas, e você é uma delas. O que acha?
— Eu nunca o incentivaria a desistir de sua grande chance, Gabriel. Você merece todo sucesso possível e uma carreira melhor do que a que tem agora.
— Preciso de algum tempo para pensar nisso. Sentiria minha falta, se eu decidisse ir?
— Claro que sim.
— Não gostaria de ir comigo?
— Não posso, Gabriel. Minha mãe está tendo uma segunda chance na vida e não posso deixá-la nesse momento. Preciso estar por perto se ela precisar de mim. Entende o que quero dizer?
— Sim, claro. Sei que você abriria mão de sua própria " felicidade pelo bem de sua mãe.
— Ela faz parte da minha felicidade.
— Eu a entendo, Clara. Fomos bem longe com tudo isso, não?
— Sim. E acho que acabei me apaixonando por você — confessou ela. — Mas entendo sua ambição, Gabriel. Nesse aspecto, sou muito parecida com você.
— Não precisaremos nos separar se não quisermos.
— Continuaríamos como amantes, você quer dizer. Não sei se quero isso para mim. Quando me entreguei a você, foi de corpo e alma.
— Eu sei. E foi maravilhoso — disse Gabriel. — Ainda não tomei nenhuma decisão, Clara. Não estou dizendo que vamos nos separar. Queria apenas que soubesse o que está acontecendo na minha vida.
— Entendo.
Ele respirou fundo.
— Estarei livre amanhã, às dez e meia, para ver sua roupa. Para surpresa de Clara, no dia seguinte Gabriel não levou nem um minuto para decidir qual das roupas ficaria melhor nela.
— A branca com detalhes em preto — disse a ela. — Esse chapéu ficou arrasador em você.
— O que há de errado com o visual cor-de-rosa? — Clara arqueou uma sobrancelha.
— É bonito, mas serviria mais para uma festa em um jardim, com todas essas florzinhas no chapéu. A branca a deixou glamourosa, como você deverá estar. Confie em mim.
No sábado, a festa e as apostas no hipódromo se revelaram mais divertidas do que Clara imaginara. Seu visual "arrasador", segundo Gabriel definira, realmente chamou a atenção de muitas pessoas.
Tara, em particular, não se mostrou nem um pouco satisfeita ao vê-la. Trajando um vestido preto curto demais para parecer elegante, a moça teria liquidado Clara com o olhar, se isso fosse possível.
— Deve estar um bocado desapontada nos últimos dias, não? — perguntou ela, aproximando-se de Clara, assim que teve chance.
— Por que deveria? Na verdade, estou muito feliz.
— Por sua mãe, talvez. Mas já deve estar sabendo que Gabriel está pensando em nos deixar.
— Como sabe?
— Ele mesmo me contou — Tara mentiu. — Achou que me devia uma satisfação, afinal, fomos amantes durante algum tempo...
— Isso é novidade para mim, Tara.
Clara tentou se manter calma. Precisava aprender a confiar em Gabriel.
— Há muitas coisas que não sabe sobre mim e Gabriel, minha cara. Mas não quero estragar seu divertimento. Aproveite a festa!
Dizendo isso, Tara se retirou com seu costumeiro andar provocante.
Bem, de fato, ela não conseguiu estragar o divertimento de Clara. Era evidente que aquela história fora inventada apenas para provocá-la.
Quando Gabriel voltou para junto dela, Clara nem achou que valia a pena comentar o que Tara havia feito. Aquilo fora pura infantilidade, nada mais.
— O que é isso? — perguntou, ao vê-lo com alguns bilhetes na mão.
— Não sou muito de apostar, mas hoje senti vontade de apostar em todos os cavalos que tivessem nomes relacionados a anjo ou algo do gênero. — Riu.— Acabei de ganhar mil dólares com Mistério. Trouxe a lista para você escolher outro.
— Que ótimo! — festejou Clara. Pegando os bilhetes, leu os nomes. — Asas de Anjo, Paraíso, Guardião... — Ela riu para Gabriel. — Aposte em Asas de Anjo. É sempre bom voar alto.
— Você é quem manda — respondeu ele, saindo para fazer a aposta.
Dessa vez, ganharam mil e quinhentos dólares. Encantada com a sorte do dia, Clara havia escolhido um lugar mais próximo da raia para assistir à corrida seguinte. Gabriel havia saído para buscar refrigerante, e ela continuou atenta à corrida.
Os cavalos estavam correndo a toda velocidade quando, de repente, algo atingiu o focinho de Raio Solar, um belo animal de pêlo castanho. Demorou algum tempo para Clara conseguir identificar que fora um chapéu feminino, provavelmente carregado pelo vento que se tornara forte de repente.
Assustado, o cavalo derrubou o jóquei e seguiu em frente, parando próximo do gradil. Bufando e relinchando, ele fez menção de pular a cerca para avançar sobre o público.
Clara estava a alguns metros de distância. Em vez de ficar apavorada, como as outras pessoas, pulou a cerca com cuidado e foi se aproximando do cavalo devagar.
— Ela é louca! — gritou alguém.
— Mas talvez seja nossa única salvação — falou outra pessoa. Clara continuou a se aproximar fazendo ruídos iguais aos que os tratadores de cavalos costumavam fazer. Lembrava-se de quando tivera um pônei, aos seis anos, e de como seu pai a ensinara a "conversar" com ele. E foi isso que ela fez. Como que por milagre, o cavalo se acalmou e até deixou que ela lhe acariciasse o focinho.
Gabriel, que estava chegando com dois copos de refrigerante, não acreditou no que viu. Clara estava entregando as rédeas do cavalo ao jóquei, que fora buscá-lo e que não sofrera nenhum ferimento.
— Isso vai estar em todos os jornais amanhã! — exclamou Bob, do lado dele. — Espero que tudo tenha sido filmado dessa vez — acrescentou, lembrando-se do que acontecera no protesto pela preservação dos coalas.
— Nunca vi algo assim — falou Mike, ao lado de Bob. — Clara não mudou mesmo, hein, chefe? Sempre sob os refletores, sendo e fazendo notícia.
— Sim, é verdade — anuiu Gabriel.
O anjo da guarda de Clara devia ser tão impetuoso quanto ela para conseguir aqueles "milagres", pensou ele.
Quando Clara avistou Gabriel vindo em sua direção, sorriu para ele, satisfeita.
— Oh, Gabriel... Você viu?
— Clara, acho melhor levá-la para casa. Não, vou tirar os olhos de você nem por um minuto!
— Eu estou bem, não se preocupe — ela disse e desmaiou nos braços dele.
O médico fez Clara ficar imóvel por algum tempo.
— Costuma fazer esse tipo de coisa com freqüência? — indagou o dr. Fraser.
— Apenas em situações de emergência — respondeu ela.
— Faremos alguns exames. Tudo parece perfeitamente normal com você, mas está agindo como se estivesse sob constante estresse. Muita ansiedade, eu suponho.
— Não há nada de errado comigo. Foi Gabriel quem insistiu para que eu viesse vê-lo.
— Ele fez bem. Disse-me que você desmaiou.
— Sim, mas estou muito bem agora.
Ao se despedirem, o médico avisou a Gabriel que havia solicitado alguns exames e que Clara deveria voltar dali a alguns dias.
— Por que não passamos pelo meu apartamento? — sugeriu Gabriel, assim que ficou sozinho com ela. — Quero conversar com você, e não moro longe daqui.
Aquela experiência desagradável o fizera perceber quanto Clara era importante em sua vida.
Quando entraram no apartamento, Gabriel fechou a porta logo, como que temendo que ela pudesse fugir. Estava com medo de perdê-la e nem ele mesmo sabia explicar o motivo.
O apartamento tinha uma decoração discreta e tipicamente masculina. O conjunto tornava a atmosfera do lugar aconchegante e fina ao mesmo tempo.
Gabriel tirou o paletó e afrouxou a gravata. Sentindo-se mais à vontade na companhia dele, Clara também tirou o casaco do tailleur, ficando apenas com a blusa de seda que estava usando por baixo. Em seguida, sentou-se no sofá. Podia sentir que Gabriel parecia nervoso e que havia uma espécie de tensão entre eles.
— O que devo fazer com você? — Gabriel foi o primeiro a quebrar o silêncio.
— O que você quer fazer a meu respeito?
O modo insinuante como Clara sorriu foi uma verdadeira tortura para Gabriel, que teve de se esforçar para não tomá-la nos braços. Porém, ela logo voltou a ficar séria.
— Não quer me magoar, não é, Gabriel? Está sem coragem de me dizer que irá embora.
— É você quem está dizendo isso, Clara — falou ele, sentando-se no sofá diante dela.
— Bem, pelo menos foi o que Tara me contou.
Clara não pretendia mencionar aquilo, mas Gabriel estava tão terrivelmente irresistível que ela resolveu provocá-lo.
— Eu?! Pelo amor de Deus, Clara! Ela mordeu o lábio, contendo o riso.
— Tudo bem. "Sei que não disse isso a ela. Mas ninguém está lhe pedindo para desistir de uma oportunidade tão brilhante quanto essa.
— Não fale como se não se importasse — pediu Gabriel. — Você também é muito importante para mim, Clara.
Ela segurou uma almofada junto de si, contendo a vontade de chorar. Devagar, Gabriel se levantou e sentou-se ao lado dela.
— O que é isso? Um novo tipo de autodefesa? — Roçou os dedos no rosto dela, com gentileza. — Está magoada e não está sabendo como lidar com isso, não é?
Clara sentiu o coração acelerar sob o efeito daquele mero toque.
— Tente entender, Gabriel. Não tive uma vida fácil.
— Mas isso mudou — salientou ele, afagando-lhe os cabelos.
— Mudou? — Clara suspirou. — Você vai mesmo embora?
— Então realmente decidiu que não irá comigo — declarou ele.
— Minha mãe precisa de mim.
— Clara, sua mãe não está mais doente. Tenho certeza disso. Você sempre esteve ao lado dela enquanto ela precisou, mas agora que Delia está curada, você precisa dar atenção à sua própria felicidade.
— Como? Arrumando minhas malas e indo para Nova York com você?
— Eu não me lembro de ter dito que iria para algum lugar. Por outro lado, estou vendo que está muito ansiosa para que eu vá.
Clara olhou-o com um ar entristecido.
— Gabriel, não faça isso comigo. Se você for embora, sentirei muita solidão.
— Quanta solidão?
— Não sei ao certo. Só tenho certeza de que não conseguirei mais voltar a ser o que era. Você me mostrou um mundo novo e não quero perder o que conquistei.
Gabriel abraçou-a com carinho.
— Oh, Clara. Por que estamos perdendo tempo em nos torturar?
Ela levantou o rosto, fitando-o nos olhos.
— Quer que eu diga que te amo?
— Bem, acho que seria um bom início — respondeu ele, com um brilho de divertimento no olhar.
— Está bem. Eu te amo, Gabriel. Mais do que você pode imaginar. Está satisfeito agora?
— Não. Clara, quer se casar comigo amanhã? Responda direto, sem se dar tempo para questionamentos. Deixe seu coração responder.
— Gabriel. — Ela levou as mãos ao rosto. — Se não parar de brincar comigo, vai me deixar maluca.
— É essa a intenção. — Ele riu. — Agora responda.
— Quero me casar com você, mas não posso magoar minha mãe.
— Mas não é isso o que eu quero. Uma dás coisas que a torna mais linda é justamente seu senso de lealdade à sua família. Nunca tive uma família de verdade, e não quero
perder a chance de ter uma agora.
— O que está querendo dizer?
— Eu já disse aos meus amigos americanos que iria ficar por aqui mesmo. Isso não diz tudo? Eu te amo, Clara e quero ficar com você. Delia poderá ficar conosco quando nos casarmos.
Os olhos dela se encheram de lágrimas.
— Oh, Gabriel.
— E então? Aceita se casar comigo?
— Claro que sim.
Clara sorriu, feliz. Não soube explicar direito, mas ao abraçar Gabriel, teve a impressão de que um par de asas se fecharam sobre eles, como que abençoando a união. Seria mais algum truque de sua imaginação?
Provavelmente não. Já estava acreditando que o amor era mesmo capaz de realizar milagres.
Naquele mesmo dia, o sr. Beatífico contou a Lucas suas preocupações a respeito do jovem Titus.
Lucas, o anjo da guarda verdadeiro de Clara, já parecia bem mais disposto depois de alguns dias de descanso.
— Não e que Titus não tenha levado alegria à vida de Clara — dizia o sr. Beatífico. — Mas como todo anjo mais jovem, ele é muito impulsivo. Tem injetado energia demais no corpo de Clara, fazendo-a passar por situações embaraçosas. Não intencionalmente, claro. O problema é que Titus não tem noção do potencial de sua força.
— Entendo. — Lucas suspirou.
— Sabia que ele foi o irmão de Clara enquanto esteve na terra, como humano?
— Meu Deus! — Lucas se sobressaltou. — Esse tipo de coisa não acontece com freqüência, não é?
— É raro, mas não impossível. De qualquer maneira, Titus ajudou muito tanto Clara quanto a mãe. Vou parabenizá-lo pelo esforço.
Lucas sorriu com benevolência.
— Ele ficará radiante.
— Eu sei. Mas agora é preciso que volte à sua função de anjo da guarda, Lucas. Será mais fácil proteger Clara de agora em diante. Ela encontrou o amor e isso deixa todos mais tranqüilos.
— E quanto a Titus? Tem algum plano em mente para ele, sr. Beatífico?
— Andei pensando nisso e cheguei à conclusão de que Titus se dará melhor ficando na terra por mais algum tempo. Ele tem muita energia para gastar! Por isso, voltará como um lindo bebê...
Clara se lembraria para sempre do nascimento de seu lindo bebê.
As luzes da cidade passando pela janela do carro enquanto Gabriel dirigia rapidamente até o hospital. O sorriso encorajador das enfermeiras, o semblante concentrado dos médicos, o ar de nervosismo de Gabriel segurando sua mão...
Foi seguindo as instruções do médico, até chegar a um ponto em que não foi mais preciso que ele dissesse nada. Ela sabia o que fazer e seu bebê queria muito nascer.
Sentiu os olhos se encherem de lágrimas ao ouvir o primeiro choro de seu filho. Um lindo menino com cabelos negros, como os do pai.
Quando a enfermeira o colocou em seu colo, Clara experimentou uma das maiores emoções de sua vida: tinha nos braços o fruto de sua felicidade ao lado de Gabriel.
Beijou-o com infinito carinho, adorando sentir aquele cheirinho de bebê. Seu filho.
— Acaba de ganhar um anjinho, sra. McGuire — disse a enfermeira, com um sorriso.
Clara apenas sorriu em resposta, emocionada demais para conseguir falar.
No dia seguinte, toda a família se reuniu no quarto onde Clara ainda estava descansando.
Gabriel, o pai todo orgulhoso, Delia, adorando a experiência de ser avó e Janet, mãe de Gabriel, que viajara especialmente para o nascimento do neto. Assim que se conheceram, ela e Delia se deram muito bem e começaram uma promissora amizade.
Quando a enfermeira chegou com o bebê, Gabriel foi o primeiro a pegá-lo no colo.
— Ele é lindo, não? — Olhou para Clara, que sorriu. As avós cercaram Gabriel e ficaram olhando o neto, encantadas.
— Qual será o nome dele? — perguntou Delia. Gabriel fitou Clara com um ar amoroso.
— Pensei em chamá-lo de Michael — sugeriu, esperando aprovação.
Porém, Clara estava olhando para algum lugar acima do ombro dele. Ela adquirira uma expressão de encantamento, como se estivesse vislumbrando algo divino.
Sem se importar com o que diziam à sua volta, Clara continuou observando a imagem brilhante que aos poucos se materializara acima de seu filho. Era o anjo da guarda de Michael!
O anjo olhou para o bebê com tanta ternura que enterneceu o coração de Clara.
— Querida? — Gabriel se aproximou da cama segurando o filho. — Gostou do nome?
— Sim, Michael é perfeito, como ele.
Acima deles, o lindo anjo agitou as asas com graciosidade, aprovando a escolha do nome de seu mais novo protegido. Michael, Timothy, Titus... Que importância tinha um nome afinal? A beleza do amor e da vida era o que mais importava. Sempre.
Margareth Way
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