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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PARDAL DO SANTUÁRIO / Ellis Peters
O PARDAL DO SANTUÁRIO / Ellis Peters

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O PARDAL DO SANTUÁRIO

 

               DE SEXTA-FEIRA

               À MEIA-NOITE A SÁBADO DE MANHÃ

Começou, como o fazem as grandes tempestades, como um mero tremor no ar, um fio de som tão distante e vago, e, contudo, tão ameaçador, que o ouvido foi suficientemente apurado para lhe prestar imediatamente atenção e impedir a entrada dos sons circundantes, num esforço para interpretar o aviso. O irmão Cad-fael possuía o ouvido de uma lebre, prontamente vigilante e de concentração apurada. Ele apercebeu-se do frémito e do latido dos cães, neste ponto certamente ainda no extremo oposto da ponte que atravessava o Severn desde a cidade, e assumiu uma atitude rígida, de imobilidade sensível, esforçando-se por ouvir.

Poderia ter sido um som relativamente inofensivo, ou, se não inocente de um intuito sanguinário, pelo menos natural, as vozes distantes dos mochos de caça, e os latidos rapaces de um cão de caça à raposa, em busca de presa na sua baronia nocturna. Sem dúvida, o cunho feroz da caçada soou distintamente aos ouvidos do irmão Cadfael. E mesmo o irmão Anselm, o chantre, completamente absorvido nos cânticos do ofício divino, vacilou e descurou o órgão por um instante, retomando a cadência zelosamente, entregando-se severamente ao dever.

Pois não poderia haver naquilo nada que perturbasse o ritual das Matinas da meia-noite, nessa doce Primavera, quase quatro semanas após a Páscoa do ano da Graça de 1140, com Shrewsbury e toda a sua região seguras na paz do rei, quaisquer que fossem as contendas que grassavam mais para sul entre o rei e a imperatriz, primos em contenda pelo trono. O Inverno tinha sido deveras rigoroso, mas estava ditosamente terminado, o sol brilhara no dia de Páscoa, e continuara a brilhar desde então, interrompido apenas por raros aguaceiros, para confirmarem a bênção. Apenas para oeste, no País de Gales, tinha havido fortes chuvadas primaveris, fazendo subir o nível do rio. A estação anunciava-se promissora, a cidade desfrutava, sob um xerife severo mas imparcial, de uma administração justa e era defendida corajosamente por um preboste e um conselho sensatos. Em tempos de guerra civil, Shrewsbury e o seu condado tinham boas razões para agradecerem a Deus e ao rei Stephen pela relativa ordem. Aqui, certamente, a paz conventual das Matinas não teria a recear uma ruptura. E, contudo, o irmão Anselm, vacilara por um instante.

No sombrio espaço do coro, parcialmente separado da nave da igreja pelo altar paroquial e iluminado apenas pela candeia constante e pelas velas do altar-mor, os irmãos, nos seus cadeirais, pareciam cópias esculpidas, sem idade ou juventude, graciosidade ou rusticidade; eram apenas muitas sombras semelhantes no crepúsculo. A altura da abóbada, a sólida pedra dos pilares e das paredes apoderavam-se do som da voz do irmão Anselm e transformavam -na numa magia espiritual, elevada no ar. Fora do alcance da luz das velas, e no ponto em que as sombras se desvaneciam, havia escuridão, noite no interior e noite no exterior. Uma noite benigna, suave, serena e silenciosa.

Não completamente silenciosa. O tremor no ar tornou-se um murmúrio vago e persistente. Na obscuridade, sob a galeria do crucifixo, do lado direito da entrada do coro, o abade Radulfus agitou-se na sua divisória. À esquerda, o hábito do prior Robert rangeu por um momento, com um efeito mais de desagrado e reprovação que de inquietação. Um leve murmúrio de perturbação ondulou através das filas de irmãos e abrandou novamente.

Mas o som estava a aproximar-se. Mesmo antes de se ter tornado tão intenso que obrigasse ao reconhecimento, sem margem para dúvidas, da cólera nele contida, o tom ameaçador e o excitamento perigoso, característicos de uma caçada. Parecia que a perseguição tinha atingido o ponto em que os caçadores da frente tinham levado a vítima à exaustão, e os batedores estavam a apertar o cerco para a matança. Mesmo a esta distância, era claro que a vida de alguma criatura estava em perigo.

O som aproximava-se agora muito rapidamente, difícil de ignorar, embora o chantre continuasse valorosamente a conduzir o seu rebanho através do ofício divino, levantasse a voz e apressasse o ritmo numa tentativa de vencer o desafio. Os irmãos mais jovens e os noviços agitavam-se, pouco à vontade, murmurando até, meio excitados, meio receosos. O murmúrio transformara-se num alarido feroz e surdo, como se abelhas gigantes se reunissem em enxame contra um intruso. Até o abade e o prior se tinham inclinado para a frente, prontos a erguerem-se dos seus bancos, e trocavam olhares inquiridores na obscuridade.

Com devoção obstinada, o irmão Anselm entoou a primeira frase das "Ladainhas". Não continuou. Na ala oeste da igreja, a aba da grande porta paroquial abriu-se subitamente com violência, embatendo contra a parede, e algo indistinto moveu-se ruidosamente ao longo da nave, gatinhando e arquejando, cambaleando desajeitadamente e evitando as paredes e os pilares, respirando com dificuldade como se tivesse corrido até ao esgotamento fatal. Todos se puseram de pé. Os mais jovens irromperam em exclamações de medo e admiração, acotovelando-se e vacilando, na dúvida sobre o que fazer. O abade Radulfus, no seu próprio domínio, não ficou embaraçado com tais hesitações. Moveu-se com rapidez e energia, arrancou uma vela do candelabro mais próximo e percorreu o altar paroquial com passadas largas e rápidas, que fizeram ondular as suas vestes. Seguiu-o o prior Robert, mais zeloso da sua dignidade, e, por isso, mais lento a atingir a cena da emergência, e, atrás de Robert, todos os irmãos numa agitação atabalhoada. Antes de atingirem a nave, depararam com um grande e exultante bramido de triunfo, e a investida desordenada de dúzias de corpos enfurecidos, no momento em que os perseguidores irromperam pela porta oeste em busca da sua presa.

O irmão Cadfael, em tempos bem acostumado a alarmes nocturnos vindos da terra e do mar, tinha-se erguido do seu assento logo que o abade avançara, mas deteve-se por um instante para apanhar um candelabro duplo para iluminar o caminho. O prior Robert, com um ar muito importante, estava já a bloquear a ala direita que conduzia ao altar paroquial, demasiado aristocrático para se dignar a apressar-se. O irmão Cadfael redobrou a sua velocidade pelo lado esquerdo, e surgiu na nave antes dele, empunhando a luz à sua frente, que servia tanto de arma como de iluminação. A matilha estava a entrar livremente, naquele momento um quarto da cidade, e não o melhor, embora também não fosse necessariamente o pior; artesãos honestos, mercadores, comerciantes, empurrados pela populaça sempre pronta para qualquer rixa, e todos eles fora de si, quer pela bebida, quer pela excitação, ou por ambas simultaneamente, bradando por sangue. E havia sangue, no escorregadio lajedo do chão. Nos três degraus do altar jazia estatelado um pobre infeliz, abatido sob uma onda de inimigos que o espezinhavam e agrediam, todos lhe dando pancadas com os punhos e as botas, tão satisfeitos em tal emaranhado que, comparativamente, poucas pancadas atingiam o seu alvo. Tudo o que Cadfael podia ver da vítima era um braço magro e um punho pouco maior que o de uma criança, que emergia do caos para agarrar a orla da toalha do altar com o desespero de uma luta de morte. O abade Radulfus, toda a sua figura alta, magra e musculosa, encimada por uma cabeça macilenta, autoritária e brilhante de excitação, percorreu majestosamente o altar, com a vela fumegante na mão, fez estalar as saias do hábito como se fossem um chicote através dos rostos animalescos e inclinados dos atacantes mais próximos, e, com uma perna comprida e ossuda, escarranchou-se na criatura caída que se agarrava à guarnição do altar.

- Para trás, gentalha! Blasfemos, retirai-vos deste lugar sagrado e tende vergonha. Para trás, antes que eu amaldiçoe as vossas almas eternamente!

Ele não necessitou de elevar a voz a um grito, bastou-lhe desembainhá-la como um punhal, e ela penetrou nos murmuradores como através de queijo. Eles recuaram como se a sua proximidade os queimasse, mas não foram longe, apenas para fora do alcance do braseiro. Saltaram, contorceram-se e clamaram, indignados, ofendidos, mas receosos de desafiarem o Céu. Separaram-se de um miserável fragmento de homem, prostrado nos degraus do altar, sujo, amachucado e ensanguentado, e não maior que um rapaz de 15 anos. No breve e intimidado silêncio que se fez antes de gritarem a acusação que tinham contra ele, todos os presentes puderam ouvir como a sua respiração palpitava, se esforçava e batia nas suas costelas, lutando penosamente pela vida, ameaçando destruir o seu frágil esqueleto. Cabelo loiro como o linho, salpicado de poeira e sangue, espalhava-se contra a orla do pano do altar que ele agarrava tão freneticamente. Braços e pernas escanzelados abraçavam a pedra, como se a vida dependesse desse contacto. Se podia falar, ou levantar a cabeça, tinha ainda a sensatez suficiente para não se aventurar a fazê-lo.

- Como vos atreveis a afrontar assim a casa de Deus? - inquiriu o abade, com um ardor sombrio. Não lhe tinha passado despercebido o clarão metálico da luz reflectida na mão de um homem acocorado, que deslizava por perto para atingir a vítima por sua própria conta. Põe de lado essa faca ou vais atrair a condenação da tua alma!

Os perseguidores recobraram o fôlego e a raiva em conjunto. Uma dúzia, pelo menos, principiou a falar, gritando de sua justiça e as ofensas do perseguido, tão desordenadamente que mal se percebia uma palavra. Cadfael, reparando que o homem armado se tinha limitado a fazer deslizar a arma para fora de vista, colocou-se firmemente de permeio, e avançou as suas velas com um movimento floreado em direcção a uma bela barba hirsuta.

- Que fale um, se tendes algo que valha a pena contar - ordenou o abade. - Os restantes que façam silêncio. Tu, meu rapaz, pareces estar disposto a avançar.

O jovem que tinha avançado um passo em relação aos seus apoiantes, e cujo direito maior eles pareciam reconhecer, tomou a dianteira, ruborizado e importante, uma figura inesperada para uma noturna caça ao homem. Era alto, bem constituído e seguro de si, um pouco consciente de mais do seu belo rosto, e apresentava-se muito elegante nos seus adornos festivos, mesmo que a sua melhor cota estivesse agora um pouco amarrotada e em desordem devido ao turbilhão da perseguição, e o seu semblante vermelho e frouxo da grande quantidade de vinho bebido. Sem essa coragem induzida, não teria enfrentado o Sr. Abade com tanta impudência.

- Padre abade, falarei por todos, tenho esse direito. Não é nossa intenção desrespeitar a abadia ou vossa senhoria, mas queremos esse homem por assassínio e roubo praticados esta noite. Eu acuso-o! Todos aqui o confirmarão. Ele agrediu o meu pai e saqueou a sua caixa-forte, e viemos para o levar. Assim, se vossa senhoria o permitir, livrá-lo-emos dele.

Assim o fariam, não havia que duvidar. Radulfus manteve-se no seu lugar, e os irmãos agruparam-se para completar a barreira.

- Esperava ter ouvido uma reparação - disse o abade severamente, - por esta intromissão. O que quer que este rapaz possa ou não ter feito, não foi ele que derramou sangue e brandiu aço aqui dentro da igreja, aos pés do próprio altar. Violência, pode ele ter feito algures, mas aqui nenhuma, apenas a sofre. O crime de sacrilégio é vosso, de todos vós que aqui vieram quebrar a nossa paz. Faríeis melhor em considerar a saúde das vossas almas. E se tendes uma queixa legal contra esta pessoa, onde está a lei? Não vejo aqui entre vós nenhum beleguim. Não vejo nenhum preboste, que poderia, pelo menos, apresentar uma causa à cidade. Vejo uma multidão, tão em falta com a lei como um ladrão ou um assassino. Agora retirai-vos, e rezai para que as vossas ofensas sejam perdoadas. Quaisquer que sejam as acusações que tendes a fazer, levai-as à lei. Alguns de entre eles começaram a recuar furtivamente nessa altura, moderando-se e meditando sobre a sua invasão, ansiosos por partir sorrateiramente para as suas casas e camas. Mas os vagabundos, sempre prontos a velhacarias, não arredaram pé, com semblantes obstinados e manhosos, e os mais respeitáveis, se abatidos no seu ardor ruidoso, mantinham a sua profunda indignação. Cadfael conhecia a maior parte deles. Talvez o próprio Radulfus, embora não fosse um homem de Shrewsbury por nascimento, fosse mais versado neles que supunham. Manteve o seu lugar, e inclinou a sua sobrancelha firme e ameaçadora contra eles, proibindo a acção.

- Padre abade - aventurou o jovem -, se nos permitir levá-lo daqui, entregá-lo-emos à justiça.

"À árvore mais próxima", pensou Cadfael. E havia árvores suficientes entre aquele lugar e o rio. Cortou o pavio das suas velas e deixou-as cintilar de novo. A barba ainda pairava nas sombras.

- Isso não posso eu fazer - disse o abade secamente. - Mesmo que a própria lei aqui estivesse presente, não há agora poder que possa arrebatar este homem do santuário que ele demandou. Vós deveríeis conhecer esse direito tão bem como eu, e o perigo, para o corpo e a alma, para aquele que ouse violar esse santuário. Ide, levai a profanação da vossa violência para fora deste lugar sagrado. Temos deveres aqui que a vossa presença em ódio conspurca. Ide! Fora!

- Mas, senhor - baliu o jovem encolerizado, sacudindo violentamente a sua cabeça encaracolada, mas mantendo a distância -, não nos ouvistes no respeitante ao crime.

- Ouvir-vos-ei-disse Radulfus com vivacidade-pela manhã, quando vierdes com o xerife ou um sargento para discutir este assunto calmamente e como deve ser. Mas aviso-vos, este homem reclamou a protecção do santuário, e os direitos de santuário são seus, de acordo com o costume, e nenhum de vós ou qualquer outro o obrigará a abandonar estas paredes, até que o tempo da suspensão temporária de pena esteja terminado.

- E previno-vos, senhor - inflamou-se o jovem, vermelho de irritação -, que se ele ousar aventurar-se um passo lá fora, estaremos à sua espera, e o que suceder fora do domínio de vossa senhoria não vos dirá respeito, nem à igreja. - Sim, indubitavelmente ele estava moderadamente bêbado, ou nunca teria ido tão longe, um vulgar jovem burguês da cidade, ainda que abastado. Mesmo com uma noite de vinho, empalideceu com a sua própria audácia, e recuou vacilante um passo ou dois.

- Nem a Deus? - disse o abade friamente. - Ide-vos daqui em paz, antes que a sua cólera vos atinja.

Eles partiram, sombras afastando-se cautelosamente para a sombra, através da porta aberta do lado oeste em direcção à noite, mas sempre com os seus rostos virados para o infeliz feixe prostrado e agarrado ao pano de altar. A loucura da multidão não se extingue tão facilmente e, mesmo que os seus agravos se tivessem provado, mesmo que justificados, eram suficientemente reais para eles. Assassínio e roubo eram crimes mortais. Não, nem todos se iriam embora. Ficariam de atalaia na porta paroquial e no portão com uma corda preparada.

- Irmão prior - disse Radulfus, percorrendo com o olhar o seu abalado rebanho - e irmão chantre, podereis recomeçar as Ladainhas? Que o ofício divino prossiga e os irmãos recolham ao leito, de acordo com a ordem. Os assuntos dos homens requerem a nossa atenção, mas os assuntos de Deus não lhe podem ser subordinados. Olhou para baixo para o fugitivo imóvel, ainda demasiado tenso para se ter apercebido de tudo o que se passara acima dele, e olhou novamente para cima para se cruzar com o olhar preocupado e solícito do irmão Cadfael. - Nós os dois, penso eu, somos suficientes para ouvir a confissão que este nosso hóspede deseje fazer e atender às suas necessidades. Eles partiram - disse o abade desapaixonadamente à figura deitada a seus pés. - Podes levantar-te.

O corpo magro moveu-se com dificuldade, mantendo firmemente uma mão na orla do pano do altar. Movia-se como se cada movimento vacilante lhe doesse, possivelmente seria o caso, mas parecia que, pelo menos, teria escapado a ossos partidos, pois usava o braço livre para o ajudar a erguer-se de joelhos nos degraus, e levantava para a luz um rosto magro e com equimoses, manchado de sangue, suor e muco, que escorria do nariz. Diante dos seus olhos, ele parecia diminuir, quer em idade, quer em tamanho. Poderiam ter estado a contemplar um infeliz rapazito traquinas do Foregate, que tivesse sido perseguido por uma dúzia ou mais dos seus caprichosos companheiros por qualquer delito trivial, e abandonado a gemer numa vala, não obstante o desespero de medo que dele emanava, e a recordação da quadrilha que tinha sido escorraçada a tempo dos seus calcanhares.

Era um pobre diabo demasiado pequeno para ter em crédito assassínio e roubo. De pé, seria talvez da altura de Cadfael, cuja estatura era abaixo da média, mas em largura Cadfael fazia três dele. O seu gibão e os seus calções estavam esfarrapados e coçados e tinham agora vários novos rasgões provocados por mãos que arranhavam e pés que calcavam, para além da poeira e manchas do uso prolongado, mas inicialmente tinham sido coloridos, de um azul e vermelho-vivos. Possuía uma decente largura de ombros, e uma alimentação melhor poderia ter feito dele um homem bem proporcionado, mas quando se moveu constrangidamente para os olhar, parecia ter apenas membros com gânglios, com cotovelos e joelhos grossos com muito pouca carne a cobri-los. Dezassete ou dezoito anos de idade, calculou Cadfael. Os olhos que se ergueram para eles em tão desoladora súplica, eram encovados e evasivos, e um deles estava semicerrado e tumefacto, mas à luz das velas cintilaram com um azul-escuro e brilhante como o das pervincas.

- Meu filho - disse Radulfus com um desprendimento frio, pois os assassinos surgem nas formas, idades e tipos mais diversos -, ouviste as acusações sobre ti lançadas por aqueles que, por certo, te tentavam matar. Aqui entregaste o teu corpo e a tua alma aos cuidados da igreja, e eu e todos os outros temos o dever de te abrigar e socorrer. Nisso podes tu confiar. Neste momento, ofereço-te apenas uma via para a bênção, e faço-te apenas uma pergunta. Qualquer que seja a resposta, aqui estarás em segurança enquanto o direito de santuário durar. Prometo-o.

O infeliz inclinava-se sobre os joelhos, observando o rosto do abade como se o incluísse no número dos seus inimigos, e não proferiu palavra.

- Que tens a dizer sobre esta acusação? - inquiriu Radulfus. - Cometeste hoje assassínio e roubo?

Os lábios distorcidos entreabriram-se penosamente para soltar uma voz fraca, aguda e cautelosa como a de uma criança amedrontada. - Não, padre abade, juro-o!

- Levanta-te - disse o abade, nem confiando, nem julgando. - Aproxima-te e pousa a tua mão neste pequeno cofre que está sobre o altar. Sabes o que contém? Aqui dentro estão as ossadas do abençoado S.to Elerius, o amigo e director espiritual do S.to Winifred. Sobre estas relíquias sagradas reflecte e responde-me de novo, pois Deus está a ouvir-te: és culpado do que te acusam?

Com todo o obstinado e desesperado fervor que um tão débil corpo podia conter, e sem hesitação, a voz fraca proferiu em tom estridente:

- Deus sabe que não sou! Não fiz nada de mal.

Radulfus reflectiu em pesado silêncio durante uns momentos enervantes. Assim responderia um homem que não tivesse nada a esconder e nada a recear de ser ouvido no Céu. Porém, do mesmo modo responderia um ímpio vagabundo no intuito de proteger o seu esconderijo, uma vez que não tinha fé no Céu, nem outros terrores que os deste mundo. Difícil decidir entre os dois. O abade suspendeu o seu julgamento.

- Muito bem, deste a tua palavra solene, e, quer seja ou não verdadeira, tens a protecção desta casa, de acordo com a lei, e tempo para pensares na tua alma, se necessário. - Olhou para o irmão Cad-fael e, olhos nos olhos, avaliaram as necessidades mais urgentes. - Seria melhor que ele permanecesse na própria igreja até termos falado com os representantes da lei e acordado as condições.

- Também penso assim - disse Cadfael.

- Será que ele deverá ser deixado sozinho? - Ambos estavam a pensar no bando recentemente expulso daquele lugar, ainda ávido e pronto para ofensas, e, certamente, não longe dali.

Os irmãos haviam retirado, conduzidos de volta ao dormitório pelo prior Robert, muito direito e profundamente descontente. O coro ficara silencioso e escuro. Se os irmãos, em particular os mais jovens e irrequietos, dormiriam, ou não, era outra questão. O cheiro do perigoso mundo exterior estava nas suas narinas, e um tremor de excitação palpitava-lhes na pele como um prurido.

- Terei trabalho com ele para algum tempo - disse Cadfael, fitando as manchas de sangue que lhe marcavam as sobrancelhas e as faces, e a dolorosa lista de contusões que o homem tinha. Um jovem e flexível corpo, habituado a mover-se com leveza e agilidade. - Se me permitis, padre, permanecerei aqui com ele e tomarei a meu cargo o seu tratamento. Se houver necessidade, poderei chamar alguém.

- Muito bem, assim seja, irmão. Podeis trazer o que for preciso para prover às suas necessidades.

O tempo estava bastante ameno, mas as horas nocturnas seriam frias neste lugar santificado, mas de pedra.

- Precisais de um ajudante para vos ir buscar alguma coisa? O nosso visitante não deve ficar desacompanhado.

- Se puder contar com o irmão Oswin, ele sabe onde encontrar tudo o que eu possa vir a precisar.

- Ser-vos-á enviado. E se este homem desejar contar-vos a sua própria versão desta triste história, prestai-lhe a maior atenção. Amanhã, sem dúvida, teremos aqui os seus acusadores com as formalidades devidas, com um dos oficiais do xerife, e ambos os lados terão de apresentar as suas razões.

Cadfael compreendeu a importância daquilo. Uma pequena discrepância na história do jovem entre a meia-noite e a manhã poderia ser assaz reveladora. Mas, pela manhã, os volúveis acusadores poderiam também ter esfriado os seus ânimos, e surgir com uma versão ligeiramente modificada, pois Cadfael, que conhecia a maior parte dos habitantes da cidade, tinha por esta altura recordado o motivo pelo qual eles estavam acordados tão tarde, vestidos com os seus melhores trajos, e bem bebidos. O jovem galispo, de indumentária festiva, deveria estar deitado com a sua noiva, em lugar de perseguir um pobre homem insignificante pela ponte fora, com gritos de caça por roubo e assassínio. Nada menos que o casamento de um herdeiro poderia ter desatado os cordões à bolsa da família Aurifa-ber de forma a proporcionar um tal fornecimento de vinho.

- Deixo-vos de sentinela - disse Radulfus, e partiu para arrastar o irmão Oswin para fora da sua cela, e enviá-lo para baixo, para se juntar à vigília. Ele veio tão jovialmente que era evidente que tinha estado esperançado em tal chamamento. Quem, senão o aprendiz do irmão Cadfael, seria admitido às suas assistências nocturnas? Oswin chegou, todo ele olhos abertos e curiosidade ansiosa, tão excitado como um aluno preguiçoso que anda à solta à meia-noite, tomando parte nalguma patifaria sensacional. Inclinou-se sobre o trémulo estranho, entre um horror fascinado por ver um assassino de perto e uma piedade surpreendida por se deparar com um tão infeliz ser humano, no lugar de um monstro brutal. Cadfael não lhe deu tempo para se assombrar.

- Quero água, panos limpos, o unguento de centauro e amor-de-hortelão, e uma boa medida de vinho. Põe-te a andar, sem demora! É melhor acenderes a candeia da oficina, ainda poderemos precisar de mais coisas.

O irmão Oswin arrancou uma vela do candelabro, e partiu com tal irrupção de zeloso entusiasmo, que foi de admirar que a luz não se tivesse apagado à saída. Mas a noite estava calma, e a chama reacendeu-se, ondulando fumegante através do espaçoso pátio que conduzia aos jardins.

- Acende a braseira! - pediu-lhe Cadfael, ao ouvir os dentes do infeliz a seu cargo começarem a bater. Um contacto próximo com a morte é passível de fazer um homem sucumbir como um odre furado, e este tinha pouca carne ou energia para resistir ao choque. Cadfael rodeou-o com um braço antes que ele se dobrasse como um gibão vazio, e deslizasse para o lajedo.

- Por aqui, vamos. Vamos levar-te para um banco. - O peso era tão leve como o de uma criança, ele ergueu-o com vigor, e dispôs-se a retirar, contornando o altar, para os confins do coro, menos atreitos a correntes de ar, mas o punho escanzelado que todo aquele tempo se agarrara firmemente ao pano do altar não queria soltar-se. O corpo magro deu uma sacudidela nos seus braços.

- Se eu largo, eles matam-me.

- Não enquanto eu tiver braços ou voz - disse Cadfael. - O nosso abade lançou sobre ti a sua mão, eles não farão mais nada esta noite. Deixa ficar o pano e vem para dentro. Há ali relíquias suficientes, e ainda mais sagradas que estas.

Os dedos sujos, com unhas negras e feridas, soltaram relutantemente o pano, a cabeça loira, resignadamente, tombou no ombro de Cadfael. Este amparou-o em redor do coro, e deitou-o na divisória mais próxima e cómoda, que era a do prior Robert. A usurpação não era desagradável. O jovem tremia violentamente da cabeça aos pés, mas descontraiu-se no assento com um enorme suspiro e ficou imóvel.

- Perseguiram-te até te deitarem por terra - disse Cadfael, ajeitando-o no abrigo-, mas pelo menos na terra adequada. O abade Radulfus não te vai entregar, nem penses nisso. Podes recobrar as forças, tens aqui um abrigo para os dias mais próximos. Coragem! Nem aquele bando lá fora é tão mau como supões, uma vez passado o efeito da bebida, acalmarão. Eu conheço-os.

- Eles tencionavam matar-me - disse o jovem, a tremer. Não havia que negá-lo. Tê-lo-iam feito, caso lhe tivessem deitado a mão fora deste enclave. E havia uma nota de pura desorientação na voz aguda, de terror completamente desconcertado, que não escapou ao ouvido atento de Cadfael. O rapaz estava extremamente debilitado e aliviado do medo, e soava verdadeiramente como se não soubesse a razão por que fora ameaçado. Assim se deveria sentir a raposa, procedendo inocentemente de acordo com a sua natureza, ao ouvir o ruído dos cães.

O irmão Oswin voltou, carregado com um bornal cheio, com um frasco de vinho e um pote de unguento, um rolo de linho limpo debaixo de um braço, e uma bacia de água nas mãos. Deveria ter colocado a sua vela acesa no banco do pórtico, onde tremeluzia uma luz fraca e vacilante. Ele chegou abrupto, pressuroso e afogueado, os caracóis castanho-claros em redor da sua tonsura erectos como uma sebe de espinheiros. Pousou a bacia, desenrolou o linho e inclinou-se solícito para amparar o doente no momento em que Cadfael o trouxe para a luz.

- Sê grato pelas pequenas mercês, não vejo em ti sinais de ossos partidos. Foste espezinhado e agredido, e não tenho dúvida de que és um monte de equimoses, mas com isso podemos nós lidar. Pousa aqui a tua cabeça... assim! Há aqui um vergão com mau aspecto desde a têmpora até à face. Foi uma moca que fez isto. Fica quieto, agora. - A cabeça loura inclinou-se com submissão nas suas mãos. O vergão ferira a parte superior da face direita e abrira a pele ao longo da parte esquerda da cabeça, escorrendo sangue sobre o pálido cabelo.

À medida que Cadfael o lavava, alisando as emaranhadas madeixas de cabelo, a pele estremecia sob a água fria, e a crosta de poeira e sangue seco desaparecia. Este não era o mais recente dos seus ferimentos. A suavidade do linho sobre a testa, a face e o queixo revelavam um rosto delicado, puro e jovem.

- Como te chamas, filho? - disse Cadfael.

- Liliwin - respondeu o jovem, fitando-o ainda cautelosamente.

- Saxão. Assim como os teus olhos, e o teu cabelo. Onde nasceste? Não foi aqui junto à fronteira.

- Como posso sabê-lo? - disse o jovem, indiferente. - Numa valeta, e abandonado aqui. A primeira coisa de que me lembro é de me ensinarem a fazer acrobacias logo que comecei a andar. Não estava em estado de se defender; talvez não estivesse sequer em estado de mentir. O melhor seria obter dele o que quer que ele estivesse disposto a dizer, agora, enquanto estava forçado a entregar-se nas mãos de outrem, com a sua vulnerabilidade como um fardo de negro desespero sobre ele.

- É assim que tens vivido? Percorrendo as estradas, fazendo cabriolas nas feiras, fazendo malabarismos e cantando para ganhares o teu jantar? É uma vida dura, com mais pontapés que amabilidades, creio bem. E para uma criança? - Ele podia adivinhar o tipo de treino a que tinha de sujeitar-se um corpo infantil, para fazer o género de contorções que poria embasbacada uma multidão na feira. Havia processos de magoar, como castigo, sem danificar a agilidade de membros em crescimento. - E estás sozinho, agora? Eles foram-se, não é verdade, aqueles que te tiraram da valeta e te submeteram à sua serventia?

- Fugi deles logo que cresci um bocado - disse a voz suave e triste. - Para três pantomineiros que andam pela estrada, um rapaz que não lhes custou nada foi uma dádiva para eles, souberam explorar-me bem. Tudo o que lhes fiquei a dever foram pontapés e pancadas. Trabalho por conta própria, agora.

- No mesmo ofício?

- É tudo o que sei. Mas sei fazê-lo bem - disse Liliwin, levantando subitamente a cabeça com orgulho, e não estremecendo da picada da loção que banhava a sua face esfolada.

- E foi isso que te levou a casa de Walter Aurifaber na noite passada - disse Cadfael suavemente, arregaçando uma manga rasgada de um antebraço magro e musculoso, marcado por um longo golpe de faca. - Para tocar na festa de casamento do seu filho. Um olho azul-escuro examinou-o de esguelha.

- Sabeis quem eles são?

- Há poucas pessoas na cidade que eu não conheça. Presto assistência a muitos deles no interior dos seus muros, entre os quais a velha Srª Aurifaber. Sim, conheço a casa. Mas tinha-me esquecido que o ourives casava o filho ontem. -Por aquilo que os conhecia, tinha a certeza que, apesar do seu desejo de causar boa impressão, não pagariam o dinheiro suficiente para atrair a melhor casta de músicos, tais como os que a nobreza recebia como convidados. Mas um pobre jogral errante, tentando a sua pouco prometedora sorte na cidade, isso poderiam eles considerar. Ainda para mais, se a sua actuação suplantasse a sua aparência, e pudessem obter genuína música por tuta e meia. - Portanto, ouviste falar da celebração, e conseguiste ser contratado para divertir os convidados. Que aconteceu, então, para conduzir a jovialidade a um tão sinistro defecho? Alcançai-me um pedaço de tecido, Oswin, e segurai na vela mais perto.

- Eles prometeram-me três pences pelo serão - afirmou Liliwin, tremendo agora tanto de indignação como de medo e frio -, e enganaram-me. Não foi culpa minha! Toquei e cantei o melhor que sei, fiz todos os meus truques. A casa estava cheia de gente, eles amontoavam-se em meu redor, e os rapazes novos, que estavam bêbados e barulhentos, deram-me encontrões! Um jogral precisa de espaço! Não foi minha a culpa de o jarro se ter partido. Um dos jovens saltou para apanhar as bolas que eu estava a fazer rodopiar, esbarrou contra mim no seu voo e as bolas caíram em cima da mesa e o jarro partiu-se. Ela disse que era o seu melhor... a velha senhora... gritou comigo, e bateu-me com a bengala...

- Ela fez isso? - interrogou Cadfael com suavidade, tocando na ferida enfaixada da têmpora do jogral.

- Sim! Atacou-me, furiosa, e jurou que a coisa valia mais que eu tinha ganho e que tinha de a pagar. E quando eu protestei, atirou-me um pence, e disse-lhes para me expulsarem!

"Seria bem capaz disso", pensou Cadfael pesarosamente, vendo-a perder a cabeça se um haver precioso se partisse, ela que amealhava cada moeda que não fosse gasta no perverso acarinhar da sua alma, que inundava de esmolas os altares da abadia, e fazia do prior Robert um prudente amigo seu.

-E eles fizeram-no? Não deveria ter sido uma expulsão branda, todos deveriam estar inflamados e violentos. Que horas eram então? Uma hora antes da meia-noite?

- Mais. Nenhum tinha saído, ainda. Atiraram-me pela porta fora, e não me deixaram entrar novamente. - Ele tinha longa experiência da sua impotência em circunstâncias similares, a sua voz baixou de tom desanimadamente. - Nem sequer pude apanhar as minhas bolas de malabarista, perdi-as todas.

- E foste abandonado, na noite gélida, expulso do domínio. Que aconteceu depois para te perseguirem ? - Cadfael enrolou delicadamente um pedaço do rolo de linho à volta do braço magro que se sacudia nas suas mãos com raiva frustrada. - Mantém-te quieto, filho, assim mesmo! Quero este corte bem fechado, unir-se-á perfeitamente se tiveres calma. Que é que fizeste?

- Arrastei-me dali para fora - disse Liliwin amargamente. - Que outra coisa podia eu fazer? A sentinela deixou-me sair pela portinhola do portão da cidade, e eu atravessei a ponte e esgueirei-me para o bosque deste lado, com intenção de partir desta cidade pela manhã, em direcção a Lichfield. Há uma mata razoável acima do caminho do rio, do lado oposto da estrada da abadia, fui para lá e arranjei um bom lugar nas ervas para pernoitar. - Mas com a ofensa fervendo e apodrecendo nele, e, ajuntar a isso, o seu desamparo, se é que o que ele dizia era verdade. E uma longa familiariedade, com a injustiça e a injúria, não reconcilia o coração.

- Então, como é possível que todo aquele bando estivesse a perseguir-te cerca de uma hora depois, gritando que eras culpado de assassínio e roubo?

- Deus é testemunha - proferiu desajeitadamente o jovem, tremendo - de que não sei mais do que vós! Estava quase a dormir quando os ouvi chegar, berrando pela ponte fora. Não tinha razão para pensar que tinha a ver comigo, pelo menos até eles se precipitarem para o Foregate, mas era um barulho de meter medo a qualquer homem, quer tivesse algo a pesar-lhe na consciência, quer não. E, nessa altura, pude ouvi-los, gritando assassínio e vingança, bradando que tinha sido o pantomineiro que tinha feito aquilo, e ladrando pelo meu sangue. Espalharam-se e começaram a bater os arbustos, e eu corri para salvar a minha vida, pois estava seguro de que me encontrariam. E todo o bando veio aos berros atrás de mim. Estavam quase a deitar-me a mão ao cabelo quando entrei aos tropeções pela porta dentro. Mas Deus me cegue, se sei o que sou acusado de ter feito... e me mate, se estou agora a mentir-vos.

Cadfael terminou a sua ligadura, baixou sobre ela a manga esfarrapada.

- De acordo com o jovem Daniel, parece que o seu pai foi agredido e o cofre esvaziado. Uma triste maneira de terminar uma noite de casamento! Dizes-me que tudo isto pode ter acontecido depois de teres sido posto fora sem pagamento? Em face disso, essa circunstância poderia conduzir os seus pensamentos para ti e a tua ofensa, se estivessem à procura de um provável assassino.

- Juro-vos - insistiu o jovem veementemente - que o ourives estava de boa saúde e bem-disposto da última vez que lhe pus a vista em cima. Não houve discussão, nem violência, senão a que eles usaram para comigo, estavam a rir, bebendo e cantando ainda. Sobre o que aconteceu daí em diante, não sei mais do que vós. Vim-me embora dali... Que ganharia em ficar? Irmão, pelo amor de Deus, acreditai em mim! Não toquei nem no homem, nem no seu dinheiro.

-Então, é isso que vai ser descoberto - disse Cadfael firmemente. - Entretanto, aqui estás em segurança, e tens de ter confiança na justiça e no abade Radulfus, e contar a tua história, tal como ma contaste a mim, quando te interrogarem. Nós temos tempo, e a seu tempo a verdade virá ao de cima. Tu ouviste o padre abade, permaneces dentro da igreja esta noite, mas se eles chegarem a um acordo razoável amanhã, poderás circular livremente pela abadia. - Liliwin estava muito frio ao tacto, com medo e em choque, e ainda trémulo. - Oswin - disse Cadfael com vivacidade -, vai buscar um par de mantas do armazém e depois aquece-me outra boa medida de vinho na braseira, e condimenta-o bem. Vamos aquecê-lo um bocado.

Oswin, que se tinha mantido admiravelmente silencioso enquanto os seus olhos devoravam o estrangeiro, partiu num pé de vento de zelo para fazer os seus recados. Liliwin seguiu-o com o olhar, e virou-se para observar Cadfael, não menos cautelosamente. Seria de admirar que ele sentisse alguma confiança em alguém nesse momento.

- Não me abandonareis? Eles irão aparecer aí à porta antes de a noite acabar.

- Não te abandonarei. Fica calmo!

Um conselho difícil de seguir, admitiu ele contrariado, na situação de Liliwin. Mas com suficiente vinho aquecido dentro dele, poderia dormir. Oswin regressou resplandecente com a pressa e ruborizado por ter estado inclinado sobre a braseira, e trouxe duas espessas e grosseiras mantas, nas quais Liliwin se enrolou com gratidão. Uma leve cor voltou ao rosto magro e ferido.

- Vai para a tua cama, meu rapaz - disse Cadfael, conduzindo Oswin às escadas utilizadas à noite. -Podes ir, agora, ele arranja-se até de manhã. Depois veremos.

O irmão Oswin olhou com algum espanto para o corpo enfaixado, quase engolido na espaçosa divisória do prior Robert, e inquiriu num murmúrio:

- Pensa, todavia, que ele pode ser realmente um assassino?

- Meu filho - disse Cadfael, suspirando -, até termos um relato sensato do que aconteceu na propriedade de Walter Aurifaber esta noite, duvido que tenha sequer havido assassínio. Com bebida suficiente, os punhos podem perfeitamente ter começado a voar, e alguns narizes terem ficado ensanguentados, e um pateta qualquer pode muito bem ter-se enchido de pânico, com outros patetas prontos a continuar o alarme. Vai para a tua cama e espera para ver.

"Também eu tenho de esperar para ver", pensou ele, observando Oswin subindo obedientemente a escada. Estava muito certo desconfiar dos alarmes do momento, mas, no fim de contas, nem todos os volúveis acusadores estavam bêbados. E algo imprevisto tinha certamente acontecido na casa do ourives, para pôr um fim violento às celebrações do casamento do jovem Daniel. E se Walter Aurifaber tivesse sido realmente assassinado? E o seu tesouro roubado? Por aquele acabrunhado cinco-réis de gente, enfaixado nas mantas, meio ébrio com o vinho que lhe tinham despejado para dentro, meio adormecido, mas mantido alerta pelo terror? Atrever-se-ia ele, mesmo com uma amarga razão de queixa? Teria conseguido levar a cabo o acto, mesmo que se tivesse atrevido? Uma coisa era certa, se ele tinha roubado, teria tido de desembaraçar-se dos seus lucros rapidamente na escuridão, numa cidade que não era certamente sua conhecida. Na sua escassa indumentária, naquela coçada profusão de cores, mal havia lugar para esconder o únicopenny que a velha senhora lhe havia atirado, e muito menos para o conteúdo do cofre de um ourives.

Quando ele se aproximou da divisória, embora silenciosamente, as pálpebras pisadas abriram-se desmesuradamente sobre os olhos azul-escuros, e estes fixaram-se nele em instantâneo pavor.

- Não te retraias, sou eu. Mais ninguém te incomodará esta noite. E o meu nome, se necessitares, é Cadfael. E o teu é Liliwin. - Um nome estranhamente adequado para um actor vagabundo, muito jovem e solitário e pobre, e, no entanto, orgulhoso da sua competência na sua arte, acrobata, contorcionista, cantor, malabarista, dançarino, providenciando divertimento para os outros, enquanto ele próprio tinha poucas razões para ser alegre. - Que idade tens tu, Liliwin?

Semi-adormecido e receoso de ceder e dormir a sério, parecia ainda mais novo, diminuindo de idade até parecer uma criança de cueiros, tranquilizadoramente corado, agora que o frio o abandonava. Mas ele próprio não sabia a resposta. Só pôde franzir as sobrancelhas e arriscar duvidosamente:

- Penso que posso ter passado os vinte. Posso ter mais. Os pantomineiros podem ter mentido e ter dito que eu tinha menos idade que a real... As crianças angariam mais esmolas.

Era bem possível que o fizessem, e o rapaz era de constituição leve, magro e pequeno. Poderia ter até vinte e dois anos, talvez, seguramente não mais.

- Bem, Liliwin, se conseguires, dorme, servir-te-á de auxílio e conforto, e necessitas dele. Não precisas de ficar de atalaia, eu farei isso.

Cadfael sentou-se no banco do abade e aparou as velas de serviço, para que pudesse ter uma boa visão do que lhe estava confiado. A calma instalou-se, logo a seguir ao seu silêncio, de uma forma bastante consoladora. A noite no exterior podia bem ter as suas inquietações, mas aqui a abóbada do coro era como mãos unidas, abrigando a sua ameaçada e precária paz. Foi surpreendente para Cadfael ver, após prolongada calma, duas grandes lágrimas brotando sob as pálpebras fechadas de Liliwin, e rolando lentamente sobre a saliência do seu magro maxilar, para ir cair no cobertor.

- Que é? Que te aflige? - Por si próprio ele tinha tremido, argumentado, inflamado, mas não chorado.

- A minha rabeca, tinha-a comigo no bosque, num albornoz de linho, quando eles me fizeram fugir. Não sei como, um ramo prendeu-se no cordão e arrancou-o. E eu não me atrevi a parar para o procurar às apalpadelas na escuridão. E agora não posso ir lá! Perdi-a!

-No bosque, deste lado da ponte, do lado de lá da estrada? - Era um desgosto que Cadfael podia compreender. - Tu não podes lá ir, rapaz, por enquanto, não, lá isso é verdade. Mas eu posso. Eu procurá-la-ei. Aqueles que te perseguiram não te largariam assim que te vissem. A tua rabeca está com certeza segura no bosque. Vai dormir e esquece as preocupações - disse Cadfael. -É demasiado cedo para desesperar. Para o desespero - acrescentou ele vigorosamente - é sempre cedo de mais. Lembra-te disso, e anima-te.

Uns olhos azuis desconcertados arregalaram-se para ele e reflectiram o brilho das velas antes de se cerrarem de novo. Fez-se silêncio. Cadfael reclinou-se no assento do abade, e dispôs-se a uma longa vigília. Antes de Primeiras, ele teria de se levantar para remover o intruso para um lugar menos privilegiado, ou o prior Robert ficaria furioso com a ofensa. Até lá, que Deus e os santos velassem, pois não havia mais nada que um simples mortal pudesse fazer.

Logo que a primeira luz da aurora começou a arrancar cores da escuridão, nessa clara manhã de Maio, Griffin, o aprendiz do serralheiro, que dormia como guarda na oficina, levantou-se da sua enxerga e foi tirar água ao poço do pátio das traseiras. Griffin era sempre o primeiro a levantar-se, de ambas as casas que partilhavam o pátio, e tinha geralmente acendido o fogo e aprontado tudo para o dia de trabalho, antes de o oficial de serralheiro chegar de sua casa, que ficava a duas ruas dali. Naquele dia particular, Griffin partiu do princípio que tinham ficado até tarde no casamento e não estariam em condições de se levantar cedo para trabalhar. Griffin não tinha sido convidado para a festa, embora Mistress Susanna lhe tivesse enviado Rannilt com uma travessa de carnes e pão, um pedaço de bolo e uma caneca de cerveja, e ele tivesse comido à sua vontade, e dormido inocentemente, sem se dar conta do tumulto ocorrido à meia-noite.

Griffin tinha 13 anos, e era descendente de uma criada e de um latoeiro que por ali passara. Era bem constituído, agradável, de boa índole e jeitoso de mãos, mas era um simplório. Baldwin Peche, o serralheiro, envaidecia-se pela sua generosidade em acolher um tal inocente, mas a verdade é que Griffin, apesar da sua falta de inteligência, era muito habilidoso nas tarefas práticas, e valia bem a despesa que dava.

O grande balde de madeira, de velhas tábuas usadas e corroídas, por dentro e por fora, devido ao uso prolongado, surgiu das profundezas cintilando aos primeiros raios oblíquos do sol-nascente. Griffin encheu as duas selhas, e estava a lançar de novo o balde ao poço quando um raio de luz acendeu um brilho de prata entre duas tábuas, alojado de lado na fenda. Ele equilibrou o balde no rebordo de pedra do poço, inclinou-se e pescou o objecto brilhante, dando-lhe um puxão com o indicador e o polegar, e sacudindo um fragmento coçado de tecido azul que veio agarrado a ele. Brilhou na palma da sua mão, uma rodela de prata lindamente gravada com um busto, e uns sinais estranhos, que ele não reconheceu como letras. No reverso havia um ornato circular com uma pequena cruz no interior, e mais sinais misteriosos. Griffin ficou encantado. Levou o seu trofeu de volta para a oficina, e quando Baldwin Peche finalmente se levantou da cama e apareceu, de olhos lacrimejantes e de mau-humor, o rapaz presenteou-o orgulhosamente com o que havia descoberto. Tudo o que pertencia àquele lugar, pertencia ao seu patrão. O serralheiro deu-lhe uma olhadela, e o seu rosto iluminou-se como uma lanterna acesa, a cabeça e os olhos tornando-se espantosamente lúcidos. Fê-la rodar nos seus dedos, examinando de perto ambos os lados, e levantou os olhos com um sorriso curioso e enigmático, e uma pergunta cautelosa:

- Onde é que encontraste isto, rapaz? Mostraste-a a mais alguém?

- Não, mestre, trouxe-a logo para dentro, para lha entregar. Estava no balde do poço - disse Griffin, e contou-lhe como se havia alojado entre as tábuas.

-Bem, bem! Não há necessidade que outros saibam que eu tenho isto. Estava presa nas tábuas, não era? - meditou Baldwin, cismando jovialmente sobre o seu tesouro. - És um bom rapaz! Um bom rapaz! Fizeste bem em trazer-me isto logo, atribuo-lhe um grande valor! Um grande valor! - Estava sorrindo para si próprio com uma imensa satisfação, e Griffin reflectiu orgulhosamente o seu contentamento. -Vou dar-te uns doces que arranjei ontem na festa para o teu jantar. Verás como sei ser reconhecido com um rapaz cumpridor.

 

                   SÁBADO

                   DE PRIMEIRAS AO MEIO-DIA

O irmão Cadfael tinha acordado Liliwin e tornara-o tão apresentável quanto possível antes de os irmãos descerem para Primeiras. Tinha-se arriscado a ajudá-lo a sair aos primeiros raios da manhã para os primeiros rituais, onde ele poderia, pelo menos, lavar o seu rosto espancado e tranquilizar o espírito, e regressar para enfrentar o convento reunido para Primeiras com uma certa dignidade triste. Isto para não falar da necessidade urgente de deixar o lugar do prior Robert vago e pronto para ele, pois a rígida desaprovação de Robert em relação ao intruso já era suficientemente clara, e não havia necessidade de agravar a sua hostilidade. O acusado tinha já inimigos suficientes.

Entrou pela portaria, no preciso momento em que os irmãos regressavam de Primeiras, uma sólida falange de cidadãos com a intenção de apresentar as suas acusações, desta vez de forma devida e irrepreensível. O xerife Prestcote tinha delegado o inquérito e as negociações no seu beleguim, uma vez que tinha entre mãos questões mais importantes, os assuntos do rei, do que um assalto e roubo casuais numa habitação do burgo. Regressara recentemente do seu serviço de Páscoa no tribunal do rei Stephen e da entrega das receitas e despesas do condado, e a inspecção estival das defesas reais do distrito estava prestes a iniciar-se. Nesta altura, Hugh Beringar, o seu delegado, encontrava-se no norte do condado tratando dos mesmos indispensáveis assuntos, embora Cadfael, que confiava no bom discernimento de Hugh em quaisquer questões que envolvessem pobres almas sob a alçada da lei, esperasse ardentemente o seu rápido regresso a Shrewsbury, para emprestar um olhar perspicaz e um ouvido atento a ambas as partes em disputa. Os acusadores estavam sempre em vantagem, sem a presença de um saudável céptico.

Entretanto, ali estava o beleguim, corpulento, suficientemente experiente e perspicaz, mas mais inclinado para os acusadores que para o acusado, com uma formidável mobilização de burgueses atrás de si, conduzidos pelo preboste, Geoffrey Corviser. Um homem decente, corajoso e paciente, e que não se apressava a condenar sem provas conscienciosas, mas já influenciado pelas queixas de vários cidadãos igualmente respeitáveis, a acrescentar à família ofendida. Uma festa de casamento fornece de imediato um grande número de testemunhas, e um poderoso argumento para duvidar de metade das suas provas.

Atrás das autoridades do condado e da cidade vinha o jovem Daniel Aurifaber, um pouco menos elegante a vestir após a sua agitada e pouco ortodoxa noite de núpcias, desta vez na sua roupa de trabalho, mas ainda beligerante. Estaria, no entanto, tão perturbado como o deveria estar um jovem perante o intempestivo assassínio de seu pai? Estava mesmo algo envergonhado e, por esse facto, ainda mais carrancudo.

Cadfael retirou-se para a retaguarda dos irmãos, entre o exército dos cidadãos e a igreja, e preparou-se para bloquear a entrada, caso alguma das testemunhas perdesse de novo a cabeça e se atrevesse a desafiar a ira do abade. Isso não parecia provável, com o beleguim ali, assumindo o controlo da situação, e bem ciente da necessidade de lidar cortês e amigavelmente com um abade de mitra. Mas em qualquer dúzia de homens pode perfeitamente existir um incorrigível idiota capaz de uma loucura. Cadfael lançou uma olhadela sobre o ombro e vislumbrou um rosto pálido e receoso, mas um corpo imóvel, silencioso e atento, quer porque confiasse no seu abrigo eclesiástico, quer porque estivesse simplesmente resignado, era impossível saber.

- Fica aí dentro, fora da vista, rapaz - disse Cadfael por cima do ombro -, a não ser que te chamem. Deixa tudo ao cuidado do Sr. Abade.

Radulfus saudou o beleguim calmamente, e, de seguida, o preboste.

- Aguardava a vossa visita, após o alarme desta noite. Conheço as acusações então feitas a um homem que apelou ao direito de santuário na nossa igreja, e que foi recebido conforme é nosso dever. Mas as acusações não têm força enquanto não forem apresentadas na devida forma, através da autoridade do xerife. Sois bem-vindo, beleguim, confio em vós para me informar exactamente em que assenta esta questão.

Ele não tinha qualquer intenção, pensou Cadfael, observando, de os convidar a entrar para a casa do capítulo ou para o vestíbulo. A manhã estava bela e soalheira, e o assunto podia ser resolvido mais activamente aqui, de pé. E o beleguim tinha já reconhecido que não tinha poder para retirar o fugitivo das mãos da igreja, e tencionava apenas acordar os termos da questão, indo colher as suas provas em outro lugar.

- Foi-me apresentada queixa - disse ele pragmaticamente - que o jogral Liliwin, que foi contratado na noite passada para actuar num casamento na casa de mestre Walter Aurifaber, agrediu o mencionado Walter na sua oficina, onde se encontrava nesse momento a guardar no cofre algumas valiosas prendas de casamento, e roubou do mesmo um tesouro em moedas e peças de ourivesaria de grande valor. Isto é jurado pelo filho do ourives, aqui presente, e por dez dos convidados que estiveram na festa.

Daniel fincou os pés, esticou o pescoço, e acenou com a cabeça em enfática concordância. Vários dos vizinhos na sua retaguarda murmuraram e acenaram também a cabeça.

- E haveis-vos certificado - disse Radulfus vivamente - que as acusações são justificadas? Pelo menos que esses actos foram praticados, quem quer que os tenha feito?

- Examinei a oficina e o cofre-forte. O cofre está esvaziado de tudo, à excepção de pesadas peças de prata que seria difícil transportar sem serem notadas. Colhi testemunho sob juramento que continha uma grande soma em moedas de prata e belas peças de joalharia. Tudo desapareceu. E quanto ao acto de violência contra o mestre Aurifaber, vi marcas de sangue junto ao cofre, onde ele foi encontrado, e vi como ele se encontra, ainda sem sentidos.

- Mas não morto? - disse Radulfus rispidamente. -Foi assassínio que se gritou aqui à meia-noite.

- Morto? - O beleguim, um homem honesto, ficou boquiaberto com a sugestão. - Não! Ficou completamente inconsciente, mas não foi uma pancada assim tão violenta. Se não estivesse bem regado, poderia estar apto para dizer de sua justiça neste momento, mas está ainda toldado. Foi uma valente pancada que alguém lhe deu, mas com uma boa e sólida cabeça... Não, ele está bem vivo e, em minha opinião, viverá o tempo que lhe está destinado.

As testemunhas, firmes e taciturnas atrás de si, mudaram de posição e desviaram o olhar, mas regressaram disfarçadamente para fitar o abade e a porta da igreja, e ficaram frustrados ao verem refutada a sua maior pretensão, mantinham, todavia, com firmeza, a sua ofensa mortal, e exigiam um pescoço pendurado por sua causa.

- Parece, pois - disse o abade calmamente -, que o homem que temos em santuário é acusado de agressão e roubo, mas não de assassínio.

- Assim é. A causa é ele ter sido privado do seu pagamento por inteiro, porque partiu um jarro durante os seus malabarismos, e queixou-se amargamente quando foi expulso. E algum tempo depois, deu-se este assalto ao mestre Aurifaber, enquanto a maioria dos convidados ainda se encontrava na casa, e o confirma.

- Compreendo perfeitamente - disse o abade - que em vista de uma tal acusação tenhais de investigar, e que justiça seja feita. Mas julgo que também conheceis bem o carácter sagrado do direito de santuário. Não se trata de abrigo contra o pecado, é a concessão de um período de tranquilidade, em que o culpado pode examinar a sua alma, e o inocente confiar na sua salvação. Mas não pode ser violado. Tem uma duração limitada, mas até esse tempo se esgotar, é sagrado. Durante quarenta dias, o homem que buscais sob esta acusação é nosso... Não, ele pertence a Deus!, e não pode ser arrastado daqui, nem induzido a sair, nem por processo algum afastado deste edifício contra a sua vontade. É a nós que nos compete alimentá-lo, protegê-lo e abrigá-lo, durante estes quarenta dias.

- Isso, eu concedo - disse o beleguim. - Mas há condições. Ele entrou aqui de sua livre vontade, pode usufruir apenas da ração de comida de que gozam os que aqui estão dentro.

Menos do que ele consumia, a julgar pela sua corpulência robusta, mas certamente mais que Liliwin tinha alguma vez gozado como fornecimento regular.

- E quando a prorrogação terminar, não poderá ser novamente abastecido com comida, mas deverá apresentar-se e submeter-se a julgamento.

Estava tão convicto do seu caso como o abade nos dias de suspensão temporária da pena, e proferiu a sua ordem friamente. Não haveria dilatação do prazo concedido. Quando este terminasse, eles assegurar-se-iam de que ele passaria fome até se entregar. Era justo. Quarenta dias é tempo suficiente para reconsiderar.

- Concordais então que durante esse período - disse o abade - o homem pode descansar aqui e examinar a sua alma. O meu interesse na justiça não é menor que o vosso. Sabeis que cumprirei os termos do acordo, e não farei, nem permitirei que outros façam qualquer proposta para auxiliar o homem a escapar do vosso domínio e do vosso alcance. Mas seria conveniente estabelecer que ele não necessita de se confinar àigreja, mas terá liberdade de movimentos em todo o recinto, a fim de que possa fazer uso dos lavabos e das coisas necessárias, fazer algum exercício ao ar livre, e manter-se com dignidade no meio de nós.

Com isto concordou o beleguim sem hesitação.

- Dentro do vosso território, senhor, ele é livre. Mas se der um passo para o exterior, os meus homens estarão prontos e à sua espera.

- Fica entendido. Agora, se o desejardes, podereis falar com o jovem acusado, na minha presença, mas sem estas testemunhas. Aqueles que o acusam contaram a sua história, é justo que ele também conte a sua com o mesmo à-vontade. Depois disso, a questão deve aguardar posterior julgamento e sentença.

Daniel abriu a boca como se tencionasse protestar furiosamente, cruzou o olhar frio do abade e reconsiderou. Os homens de confiança que se encontravam atrás de si movimentaram-se e murmuraram, mas não se aventuraram a fazer-se ouvir claramente. Apenas o preboste falou, no interesse da cidade em geral.

- Senhor, eu não fui um dos convidados do casamento de ontem, não tenho conhecimento directo do que aconteceu. Encontro-me aqui para formar a correcta opinião de Shrewsbury, e, com vossa permissão, gostaria de ouvir o que o jovem tem a dizer em sua defesa.

O abade concordou de bom grado.

- Vinde então para a igreja. E vós, boa gente, dispersai em paz. - E assim fizeram, não sem alguma relutância por não terem conseguido deitar as mãos à sua presa de imediato. Apenas Daniel, em vez de se retirar, deu um passo em frente precipitadamente, para atrair a atenção do abade, com modos agora ansiosos e insinuantes, a sua ofensa posta de parte em favor de uma diferente incumbência.

- Padre abade, por favor! É verdade que todos nós ficámos loucos a noite passada, ao ver o meu pobre pai jazendo inanimado e sangrando. Acreditámos verdadeiramente que ele tinha sido assassinado, e gritámo-lo demasiado cedo, mas mesmo agora não sabemos a gravidade do seu estado. E a minha velha avó, ao saber do caso, teve um ataque, semelhante a outros anteriores, e embora esteja melhor agora, não está completamente restabelecida. E desde a última crise que teve, tem mais confiança nos remédios do irmão Cad-fael que em todos os médicos. Ela ordenou-me que perguntasse se ele pode vir comigo e medicá-la, pois ele sabe o que é necessário quando esta sufocação a atinge e as dores no peito são muitas.

O abade olhou em redor à procura de Cadfael, que tinha emergido das sombras do claustro ao ouvir este apelo. Não havia que negar que ele sentiu um nítido frémito de expectativa. Depois da noite que tinha passado com Liliwin, não podia evitar sentir-se a arder de curiosidade sobre o que se tinha realmente passado na ceia de casamento de Daniel Aurifaber.

- Podeis acompanhá-lo, irmão Cadfael, e fazer o que for possível pela mulher. Podeis dispor do tempo que for necessário.

-Assim farei, padre - disse Cadfael sinceramente, e dirigiu-se apressadamente ao jardim para ir buscar à sua oficina o que pensava poder vir a ser preciso.

A propriedade do ourives estava situada na rua que conduzia às portas do castelo, onde o istmo estreitava, de tal maneira, que os terrenos traseiros das casas de ambos os lados da rua confinavam com a muralha da cidade, enquanto que a grande área arredondada de Screwsbury se estendia ordenadamente para sudoeste no meandro do rio Severn. Era uma das maiores da cidade, tal como o seu proprietário era considerado um dos homens mais abastados; uma casa em ângulo recto com uma ala sobre a rua, e o vestíbulo e os aposentos principais prolongando-se para trás em comprimento. Aurifaber, sempre em busca de outros meios de fazer dinheiro, tinha separado a ala, e tinha-a alugado para oficina e habitação ao serralheiro Baldwin Peche, um viúvo de meia-idade sem filhos, que a achou conveniente e adequada às suas necessidades. Uma passagem estreita fazia a ligação entre as duas oficinas e o pátio das traseiras, com o poço comum, e as cozinhas, vacarias e latrinas separadas. Corriam rumores que Walter Aurifaber tinha até mandado murar a sua fossa, o que muitos consideravam ser uma usurpação dos privilégios da pequena nobreza. Para lá do pátio, o terreno, ocupado por uma grande horta e pelos galinheiros, descia gradualmente até à muralha, e a propriedade da família estendia-se mesmo para além daquela, através de um portão em arco, conduzindo a uma vasta área de relva macia que descia até à margem do rio.

Cadfael tinha efectuado várias visitas à casa a pedido da velha senhora, pois ela estava já na casa dos oitenta, e considerava que as suas ofertas à abadia lhe davam direito a cuidados médicos neste mundo, além de lhe conferirem santidade para o próximo. Aos oitenta anos há sempre qualquer coisa que aflige um corpo, e a Srª Juliana era dada a úlceras na perna, caso sofresse qualquer ferimento ligeiro ou arranhão, e saía muito pouco do seu próprio quarto, que era um dos dois existentes sobre o átrio. Se ela tinha presidido à ceia de casamento de Daniel, como é evidente que o fizera , devia ter sido com a bengala ao alcance da mão - desgraçadamente para Liliwin! Ela era conhecida por estar sempre pronta a atacar com ela se algo lhe desagradasse.

A única pessoa por quem ela tinha um fraco, dizia-se, era este rapazola que era o seu neto, e nem mesmo ele descobrira ainda uma maneira de lhe desatar os cordões à bolsa. O seu filho Walter saíra a ela, tão parcimonioso como a senhora, mas, ou estava mais seguro que a sua virtude lhe dava o direito à salvação, ou ainda não estava suficientemente velho para se preocupar com a vida eterna, pois os altares da abadia não lhe deviam grandes benefícios. Devia ter havido um espectáculo impressionante pelo casamento do herdeiro, mas o dinheiro que fora pago por ele seria extorquido ao orçamento da casa durante os próximos meses. Havia um gracejo de mau gosto entre aqueles que não gostavam do ourives, que afirmavam que a sua mulher tinha morrido de fome, após lhe ter dado um varão, uma vez que já não era necessário gastar dinheiro com o seu sustento.

Cadfael seguiu um carrancudo e taciturno Daniel através da passagem existente entre as oficinas. A porta do átrio estava aberta para o pátio, a esta hora completamente à sombra, mas coberto por um radioso céu azul-pálido. No interior, uma obscuridade com um odor a madeira envolveu-os. Havia uma porta à direita, o quarto da filha, e mais adiante as despensas da casa, que ela superintendia. Para lá dessa porta, as escadas que conduziam ao primeiro andar. Cadfael subiu os largos degraus de madeira sem corrimão, sem precisar de orientação. O quarto de Juliana era a primeira porta fora da estreita galeria que se estendia ao longo da parede lateral. Daniel, sem uma palavra, tinha-se retirado cabisbaixo do átrio, dirigindo-se à oficina. Durante alguns dias, pelo menos, ele era o ourives. Um bom artesão também, dizia-se, quando queria, ou quando os mais velhos conseguiam fazê-lo trabalhar.

Uma mulher saiu do quarto no momento em que Cadfael se aproximou. Alta, como o seu irmão mais novo, com a mesma rica tez morena, de uns trinta e tal anos de idade, e patroa da casa há cerca de quinze, Susanna, a filha de Walter, tinha uma aura de fria dignidade que não se coadunava com violência e crime. Tinha assumido as responsabilidades de sua mãe, com a qual se dizia ser parecida, logo que a Srª Juliana adoecera. As chaves eram dela, as despensas eram dela, toda a casa era governada por ela, com serenidade e competência. Uma boa menina, diziam as pessoas. Só que a sua meninice já passara.

Ela sorriu para o irmão Cadfael, mas até o seu sorriso era distante e frio. Tinha um pálido rosto oval com olhos cinzentos, afastados, que faziam um estranho contraste com a abundância de cabelo cas-tanho-avermelhado, entrançado e austeramente preso à cabeça. O seu trajo doméstico era elegante, escuro e simples. As chaves que trazia à cintura eram as suas únicas jóias.

Eram velhos conhecidos. Cadfael não podia reclamar mais ou melhor que isso.

- Não é caso grave - disse a rapariga com vivacidade. - Já ultrapassou a crise, embora esteja amedrontada. Está na situação ideal para ouvir bons conselhos, espero eu. Margery está lá dentro com ela.

Margery? É claro, a noiva! Estranha ocupação para uma noiva, no dia a seguir ao do seu casamento, a de estar cuidando da avó do seu noivo. Margery Bele, recordou Cadfael, filha do mercador de tecidos Edred Bele, teria um dia uma bela fortuna à sua espera, uma vez que não tinha um irmão, e trouxera já com ela um dote muito apreciável. Valia bem a pena que uma família avarenta o tentasse obter para o seu herdeiro. Mas estaria ela, então, tão privada de pretendentes que esta única proposta a tivesse conquistado? Ou teria ela já visto e desejado aquele rapazola de cabelos encaracolados, bem-parecido e mimado, naquele momento certamente carrancudo e irritado com os prejuízos sofridos ali na oficina?

- Tenho de deixá-la entregue a vós e a Deus - disse Susanna. - Ela não liga a mais ninguém. E eu tenho o jantar para preparar.

- E o vosso pai?

- Vai melhorar - respondeu ela pragmaticamente. - Estava bastante alegre, a pancada foi mesmo em cheio, caiu mole que nem uma almofada. Ide vê-lo, depois de ela vos receber. - Lançou-lhe o seu sorriso forçado e deslizou silenciosamente pelas escadas abaixo.

Se o ataque da Srª Juliana lhe tinha de algum modo afectado a fala, tinha conseguido uma recuperação notável. Embora estendida nas almofadas, e assim devesse continuar durante um ou dois dias, a verdade é que a sua língua abanou sem piedade durante todo o tempo que Cadfael lhe examinou a testa e o bater do seu coração, e lhe levantou a pálpebra que cobria um feroz olho cinzento para olhar de perto a pupila. Ele deixou-a falar ininterruptamente, sem lhe dar qualquer resposta ou encorajamento, embora não lhe escapasse nada do que ela tinha para dizer.

- Não esperava uma coisa destas do Sr. Abade - disse ela, enrolando os seus lábios finos e azulados. - Que ele tivesse tomado o partido de um salteador vagabundo, de um assassino e ladrão, contra artesãos honestos que pagam os seus impostos e as suas devoções como bons cristãos. É uma grande vergonha para todos vós darem abrigo a um tal patife.

- O vosso filho, segundo me disseram - disse Cadfael serenamente, remexendo no seu bornal à procura do pequeno frasco de pó de visco branco de carvalho -, não está morto, nem nada que se pareça, por enquanto, embora o grupo dos vossos convidados tenha feito um alarido pela noite fora gritando assassínio.

-Podia perfeitamente estar morto-interrompeu ela.-E morto ou não, de qualquer modo, é um caso de forca, como bem sabeis. E se eu tivesse morrido, hem? De quem teria sido a culpa? Poderíamos ter sido dois a enterrar, e, ainda por cima, a família ter ficado arruinada. Maldade suficiente para um miserável trovador numa noite de vingança. Mas ele há-de pagá-las! Com ou sem os quarenta dias, nós estaremos à sua espera, não nos escapa.

- Se ele fugiu daqui carregado com os vossos bens - disse Cadfael, sacudindo um pouco de pó para a palma da mão -, a verdade é que não levou nada com ele para a igreja. Tem consigo o miserá-velpenny, que lhe pagaste, e é tudo. - Virou-se para a rapariga que se mantinha de pé, ansiosamente, à cabeceira da cama. - Tendes aí vinho, ou leite? Qualquer um serve. Deitai-o numa chávena e misturai-lhe isto.

Era uma rapariga baixa, roliça e simples, esta Margery, talvez de uns vinte anos, com uma pele fresca e rosada e uma grande abundância de cabelo louro em desalinho. Os seus olhos eram redondos e desconfiados. Não era para admirar que se sentisse perdida nesta casa pouco familiar e abalada, mas movia-se calma e ponderadamente, e as suas mãos seguravam firmemente no jarro e na chávena.

- Ele teve tempo para esconder o produto do roubo em qualquer sítio - insistiu a velha com ar sinistro. - Walter tinha desaparecido há meia hora quando Susanna começou a estranhar e foi à sua procura. Por essa altura, o miserável podia ter atravessado a ponte para ir para o bosque.

Aceitou a bebida que lhe levaram aos lábios e engoliu-a prontamente. Embora descontente com o abade e a abadia, tinha confiança nos remédios de Cadfael. Seria improvável que qualquer um deles concordasse com o outro fosse no que fosse, mas, apesar de tudo, respeitavam-se mutuamente. Até mesmo esta velha avarenta e terrível, tirana da sua família e terror dos seus criados, tinha certas virtudes de coragem, espírito e honestidade que não eram de desprezar.

- Ele jura que não tocou nem no vosso filho, nem no dinheiro - disse Cadfael. - Assim como eu ponho a hipótese de ele estar a mentir, também vós deveis considerar que podeis estar enganados.

Ela assumiu um ar desdenhoso. Afastou do pescoço enrugado a pequena trança de frágil cabelo grisalho que lhe irritava a pele.

- Quem mais poderia ter sido? O único estranho, e com ressentimentos por eu lhe ter descontado o valor do que ele partiu...

- Quanto a isso ele afirma que um jovem, na sua euforia, o empurrou, e fez que ele partisse o jarro.

- Ele tem de se adaptar à audiência que encontra quando é contratado. E agora me lembro - disse ela -, nós pusemo-lo fora sem os seus brinquedos pintados, argolas de madeira e bolas. Não quero nada do que é dele, e o que ele me roubou a mim, tê-lo-ei de volta antes de tudo acabar. Susanna dar-vos-á as suas coisas, e que lhe façam bom proveito. Ele não poderá dizer que fomos tão ladrões como ele.

Ela devolver-lhe-ia, escrupulosamente, o que era dele, mas contemplaria o seu pescoço torcido sem vacilar.

- Ficai descansada, já lhe haveis partido a cabeça. Mais uma pancada daquelas, e é bem possível que a lei vos acuse de assassínio a vós. E agora é melhor que me escuteis calmamente! Mais um ataque de fúria como este, e sereis a causadora da vossa própria morte. Aprendei a encarar a vida com calma e a controlar o vosso génio, ou haverá um terceiro e mais grave ataque, e esse pode muito bem ser o último.

Ela pareceu, por uma vez, seriamente pensativa. Talvez tivesse estado a dizer o mesmo para si própria, mesmo sem o aviso dele.

- Eu sou como sou - disse ela, mais como um reconhecimento que como um alarde.

- Sede assim o tempo que vos for possível, e deixai que sejam os mais novos a precipitar-se em furores por questões que, a seu tempo, serão ultrapassadas. E agora deixo-vos aqui este frasco, é a decocção de trevo, a melhor coisa que conheço para o coração. Tomai-a como vos ensinei da outra vez, e ficai de cama durante o dia de hoje, que amanhã virei ver-vos de novo. E agora - disse Cadfael - vou andando para ver como passa Master Walter.

O ourives, com a sua cabeça calva envolta em ligaduras e o seu rosto comprido e desconfiado relaxado no sono, estava ressonando ruidosamente, e parecia que o melhor tratamento seria deixá-lo continuar a dormir. Cadfael desceu atenciosamente à procura de Susanna, que estava lá fora na cozinha nas traseiras da casa. Uma rapariguinha magra afadigava-se a atiçar um fogo lento e a pendurar um grande pote no gancho que estava por cima. Cadfael já a vira de relance uma vez, uma garota de grandes olhos escuros num rosto pálido e enfarruscado, e um emaranhado de cabelos escuros. Fruto de algum encontro casual entre uma pobre criada com o amo, o filho deste, ou um convidado de passagem. Apesar de toda a avareza desta casa, a rapariga podia ter caído em piores mãos. Pelo menos, davam- lhe de comer e roupa que já não servia, e, se a velha matriarca era severa e aterradora, Susanna era serena e calma, não era rabugenta, nem autoritária.

Cadfael informou-a do estado da doente, e Susanna observou-lhe o rosto atentamente, abanou a cabeça em sinal de compreensão, e não fez perguntas.

- E o vosso pai está a dormir. Deixei-o estar. Que mais se pode fazer por ele?

-Eu fui buscar o médico dele ontem à noite - disse ela -, quando o encontrámos. Ela agora só vos quer a vós, mas meu pai tem confiança em Master Arnold, e ele está aqui perto. Ele diz que a pancada não é perigosa, embora tivesse sido suficiente para o pôr inconsciente por algumas horas. Embora a bebida também possa ter tido algo a ver com isso.

- Ele ainda não foi capaz de vos contar o que aconteceu? Viu quem era o homem que o atacou?

- Nem uma palavra. Quando recupera os sentidos, a cabeça dói-lhe tanto que não consegue lembrar-se de nada. Talvez mais tarde se recorde.

Para a salvação ou condenação de Liliwin! Mas em qualquer dos casos, e por muitos defeitos que tivesse, Walter Aurifaber não era um mentiroso. Entretanto, não se podia saber nada por ele, mas pelo resto das pessoas da casa talvez, e esta rapariga era a mais séria e sensata da família.

- Eu ouvi a acusação feita a esse jovem, mas não o modo como a coisa aconteceu. Sei que houve algumas brincadeiras rudes entre os rapazes, o que não é de admirar numa festa de casamento, e o jarro se partiu. Sei que a vossa avó lhe bateu com a bengala, e o mandou expulsar, pagando-lhe apenas nrapenny. A sua versão é que ele se foi embora nessa altura, sabendo que era inútil continuar a protestar, e não soube nada do que se passou até que ouviu o alarido dos caçadores atrás dele, e correu até nós em busca de protecção.

- É natural que ele diga isso - concordou ela com sensatez.

- As afirmações de qualquer pessoa podem ser verdadeiras ou falsas - disse Cadfael, sentenciosamente. - Há quanto tempo tinha ele saído, quando Master Walter foi à oficina?

- Devia ter sido há cerca de uma hora. Alguns convidados estavam de saída nessa altura, mas os rapazes, mais animados, ficaram para ver Margery ser conduzida ao leito nupcial, e uma boa dúzia deles estava na escada que conduzia ao quarto. As prendas de casamento estavam em cima da mesa para serem admiradas, mas vendo que a noite estava a terminar, o meu pai pegou nelas e levou-as para as fechar em segurança no cofre. E deve ter sido cerca de meia hora depois, no meio da alegria lá em cima, que eu comecei a ficar admirada que ele não tivesse regressado. Havia uma corrente de ouro e anéis que o pai de Margery lhe dera, uma bolsa de malha de prata e um ornamento de peito de prata e esmalte... Belos objectos. Eu saí pela porta do átrio e contornei a casa até à loja, e ali estava ele, caído de bruços junto do cofre, de pálpebras abertas, e tudo desaparecera, à excepção das peças de prata pesadas.

- Então, o trovador fora-se embora uma hora antes de isto acontecer. Alguém o viu a rondar depois de o terem posto fora?

Ela sorriu, abanando a cabeça pesarosamente.

- Havia escuridão suficiente para esconder cem vadios. E ele não partiu tão docilmente como pensais. E sabe praguejar, também, gritou-nos nomes que eu nunca tinha ouvido, podeis ter a certeza, e berrou que havia de vingar-se do mal que lhe tínhamos feito. Não digo que ele não tivesse passado um mau bocado por causa daquilo. Mas quem mais poderia ter sido? Pessoas que toda a vida conhecemos, vizinhos aqui da rua? Não, podeis ter a certeza de que ele ficou aí no pátio a coberto da escuridão até que viu o meu pai ir sozinho até à loja, entrou furtivamente lá dentro e viu a quantidade de riquezas que havia no cofre aberto. O suficiente para tentar um homem pobre, não digo que não. Mas mesmo os homens pobres têm de resistir à tentação.

- Estais muito segura - disse Cadfael.

- Tenho a certeza. Tem de pagar com a vida pelo que fez.

A criadita virou a cabeça bruscamente, olhando fixamente de lábios entreabertos. Os olhos, enormes e desolados. Proferiu um som muito fraco, como o miar de um gato.

- Rannilt está fascinada pelo rapaz - disse Susanna com simplicidade, com um desprezo tolerante por essa loucura. - Comeram juntos na cozinha e ele tocou e cantou para ela. Tem pena dele. Mas o que está feito, está feito.

- E quando descobristes o vosso pai assim inanimado, certamente voltastes aqui correndo, para pedir ajuda?

- Eu não conseguia levantá-lo sozinha. Desatei a gritar o que tinha acontecido e os convidados que ainda cá estavam vieram a correr, e Iestin, o nosso aprendiz, subiu a correr a escada desde a cave, onde dorme. Ele tinha ido para a cama uma hora antes, ou mais, sabendo que teria de tomar conta da oficina sozinho, hoje de manhã...

- Certamente contando que o ourives estivesse de ressaca e que o filho deste permanecesse até tarde com a noiva.

-Transportámos o meu pai para cima até à cama, e alguém, não sei quem foi o primeiro, gritou que isto era obra do jogral, que ele não podia estar longe, e todos saíram a correr para lhe dar caça. Eu deixei Margery a vigiar o meu pai, enquanto corria a ir buscar Master Arnold.

- Fizestes o que vos era possível - concedeu Cadfael. - Então, quando é que a Srª Juliana teve o seu ataque?

-Enquanto eu estive fora. Ela tinha ido para o quarto, e pode até ter estado a dormir, embora eu duvide, com todas aquelas brincadeiras e risos na galeria. Mas eu mal tinha saído, quando ela se dirigiu, coxeando, ao quarto do meu pai, e o viu deitado, com a cabeça ensanguentada e sem sentidos. Levou a mão ao coração, diz Margery, e caiu. Mas, desta vez, não foi um ataque muito grave. Ela já tinha recuperado os sentidos e a fala - disse Susanna - quando eu voltei com o médico. Tivemos pois auxílio para os dois.

Bem, ambos escaparam ao pior - disse Cadfael, cismando -, desta vez. O vosso pai é um homem forte e saudável, e viverá, provavelmente, o tempo que lhe está destinado, sem problemas. Mas quanto à senhora, outro choque deste género poderá ser a sua morte, e foi o que eu lhe disse.

-A perda do seu tesouro - disse Susanna secamente - foi choque suficiente para a matar. Se sobreviver a ele, será capaz de resistir a qualquer outra coisa até que chegue a sua hora. Nós somos uma espécie resistente, irmão Cadfael, muito resistente.

Cadfael tomou o rumo oposto à saída na passagem que conduzia à rua, e entrou na oficina de Walter Aurifaber pela porta lateral. Devia ter sido por ali que Walter entrara, carregado com várias peças seleccionadas de ouro e prata, esmalte e pedras preciosas, para as fechar à chave no cofre com as suas outras riquezas; de onde, tudo levava a crer, Mistress Margery teria grandes dificuldades em as retirar novamente para seu uso. A não ser, é claro, que aquela figura suave e apagada ocultasse um insuspeitado espírito forte. As mulheres podem ser bastante enganadoras.

Ao entrar na loja, vindo da passagem, ele tinha a porta da rua à sua esquerda, havia uma mesa assente sobre cavaletes, coberta com um pano, e a parte detrás da divisão estava ocupada por prateleiras estreitas, o pequeno forno, apagado, e os bancos de trabalho, onde Daniel se encontrava a trabalhar num engaste para uma ágata de tonalidades verde-musgo, de sobrancelhas franzidas numa protuberância sombria. Mas os seus dedos eram bastante hábeis com as delicadas ferramentas, apesar de toda a sua preocupação com as desventuras da família. O aprendiz estava inclinado sobre uma balança na bancada ao lado do forno, pesando pequenas barras de prata. Uma pessoa robusta e compacta, este Iestyn, aparentando vinte e sete ou vinte oito anos de idade, com cabelo escuro, curto e liso, sob um gorro espesso. Voltou a cabeça, ao ouvir alguém entrar, e o seu rosto era largo mas ossudo, tinha pele morena, sobrancelhas espessas, olhos encovados, um verdadeiro galês. Um homem mais bem-humorado que o seu amo, embora não tão bem-parecido. Ao ver Cadfael, Daniel pôs de lado as suas ferramentas.

- Haveis visto os dois? Como estão eles?

-Ambos escaparão desta vez - disse Cadfael. - Master Walter encontra-se sob os cuidados do seu médico, e é considerado fora de perigo, apesar da sua memória estar abalada. A Srª Juliana recuperou do seu ataque, mas mais outro choque pode ser fatal, o que é natural. Poucos atingem uma idade tão avançada.

A julgar pela expressão do jovem, este meditava sobre se alguém deveria sequer atingi-la. Mas, apesar disso, ele sabia que ela o favorecia, e sabia tirar partido da sua indulgência. Talvez até a estimasse, à sua maneira, e na medida em que era possível haver afecto entre a velhice amarga e a juventude impaciente. Ele não parecia uma pessoa totalmente insensível, apenas estragado com mimos. Os herdeiros únicos das casas de mercadores podem ser tão deformados pelos privilégios como os das casas nobres. Num canto ao fundo da sala estava o cofre saqueado de Walter, uma grande arca de madeira com cantos de ferro, firmemente acorrentada ao chão e à parede. Disposto a convencer da magnitude do crime qualquer representante da abadia que teimava em acolher o criminoso, Daniel abriu as fechaduras duplas e levantou a tampa, exibindo o que restava lá dentro, algumas pesadas salvas de prata, demasiado incómodas para serem ocultadas numa pessoa. A história que ele contou, e repetiria indignadamente sempre que tivesse um ouvinte, coincidia com o relato de Susanna. Iestyn, chamado a testemunhar a veracidade de cada afirmação ofendida, não fazia outra coisa senão abanar solenemente a cabeça morena, e confirmar todas as suas palavras.

- E todos vós tendes a certeza - disse Cadfael - que o jogral é o culpado? Ninguém pensou noutro possível ladrão? Master Walter é conhecido como um homem rico. Creio bem que há na cidade algumas pessoas que, provavelmente, invejam um artesão bem sucedido.

- Isso é uma verdade - concordou Daniel sombriamente. - E não é preciso ir mais longe que a distância do pátio para me fazer duvidar, se ele não tivesse estado aqui à minha vista durante o tempo todo. Mas esteve, e é caso

arrumado. Imagino que foi o primeiro a adivinhar que era o jogral o homem que procurávamos.

- Quem, o vosso vizinho, o serralheiro? Um homem bastante inofensivo, pensava eu. Paga a sua renda e ocupa-se da loja, como os demais.

- O seu oficial John Boneth é que se ocupa da loja - disse Daniel, com uma gargalhada. - E o rapaz pateta ajuda-o. Peche ocupa-se mais a meter o seu comprido nariz na vida dos outros, e a espalhar mexericos pelas tabernas que a exercer o seu ofício. Pela frente, um bajulador servil e sorridente, mas pronto a dizer mal de nós assim que lhe viramos as costas. Considero-o capaz de qualquer roubo sorrateiro, se quereis saber. Mas ele esteve aí no átrio durante o tempo todo, portanto, não foi ele. Não, não vos iludais, estávamos na pista certa quando pusemos o grupo atrás desse patife Liliwin, e isso ficará provado no final.

Todos contavam a mesma história, e a história podia muito bem ser verdadeira. Havia apenas um pormenor contra eles: onde guardaria um forasteiro, lá fora na escuridão, um saque tão valioso, com a segurança e segredo necessários para o esconder dos outros, mas que lhe permitisse recuperá-lo? A família ofendida podia ignorá-lo. Cadfael considerava-o uma objecção muito séria para a sua aceitação.

Ele estava a retirar-se pela porta por onde entrara, e a fechá-la atrás de si na lingueta de ferro, quando a corrente de ar provocada pelo movimento e os raios de luz que penetravam na passagem sacudiram e iluminaram um pedaço de fio amarelo-pálido, que ondulava em frente dos seus olhos na ombreira da porta. A ombreira que estava agora à sua direita, à esquerda quando entrara, mas nessa altura fora do alcance dos raios de sol. Pálido como o linho, comprido e brilhante. Ele segurou-o entre os dedos e arrancou-o cuidadosamente da madeira, juntamente com uma pequena mancha de sangue escuro e acastanhado que o colara à parede, e um segundo cabelo, mais curto, que estava enrolado e preso à mancha. Cadfael olhou-o atentamente por um instante e lançou uma olhadela por detrás do ombro antes de fechar a porta. Naquele sítio, o cofre era perfeitamente visível, como o seria também um homem que estivesse inclinado sobre ele.

Era uma coisa bem pequena, para abalar daquela maneira a defesa de um homem que tinha a vida em jogo. Alguém ali tinha estado encostado àquela ombreira, espreitando para dentro, alguém que tinha mais ou menos a altura de Cadfael - um homem baixo, de cabelo loiro como o linho, e uma esfoladela ensanguentada do lado esquerdo da cabeça.

 

             SÁBADO, DO MEIO-DIA À NOITE

Cadfael segurava ainda a pequena mancha de mau agoiro na palma da mão, quando ouviu chamar o seu nome da porta do átrio e, nesse momento, uma refrescante lufada de vento fez voar os cabelos. Ele deixou-os ir. Por que não? Já tinham sido bastante eloquentes, não tinham nada a acrescentar. Voltou-se e viu Susanna retirando-se para dentro, e a criadita correndo precipitadamente para ele, segurando uma trouxa.

-Mistress Susanna diz que a Srª Juliana quer estas coisas fora de casa. - Ela abriu a trouxa, e deixou entrever os objectos de madeira pintada, marcados pelo uso. - Pertencem a Liliwin. Ela disse que vós lhos levaríeis. - Os grandes olhos escuros que fitavam resolutamente o rosto de Cadfael dilataram-se ainda mais. - É verdade? - perguntou ela, num tom de voz baixo e urgente. - Ele está seguro na igreja? E vós protegê-lo-eis? Não permitireis que o vão buscar?

- Ele está connosco e em segurança - disse Cadfael. - Ninguém ousa tocar-lhe, agora.

- E não lhe fizeram mal? - perguntou ela, muito séria.

-Nada que não se consiga curar agora, em paz. Não há razão para preocupações durante algum tempo. Ele tem quarenta dias de suspensão temporária da pena. Parece-me - disse ele, perscrutando o rosto magro, as delicadas maçãs-do-rosto sob os olhos afastados - que este jovem te agrada.

Ele tocou música tão bela - disse a garota sonhadoramente. - Falou comigo com gentileza, e estava contente por estar comigo na cozinha. Foi o melhor momento que alguma vez passei. E agora tenho medo por causa dele. Que vai acontecer quando os quarenta dias terminarem?

- Bem, se isto se arrastar até lá, porque quarenta dias é tempo suficiente para mudar muita coisa, mas mesmo que se arraste até lá, e ele tenha de se entregar, ficará nas mãos da lei, não nas mãos dos seus perseguidores. A lei é bastante severa, mas tenta ser justa. E por essa altura aqueles que o acusam terão esquecido o seu ardor, mas mesmo que não tenham, não podem tocar-lhe. Se queres ajudá-lo, presta bem atenção ao que vês e ao que ouves, e se souberes alguma coisa, fala.

Era claro que só de pensar nisso ficava aterrorizada. Quem é que alguma vez prestaria atenção ao que ela tivesse para dizer?

- Comigo podes falar francamente - disse ele. - Sabes de alguma coisa que se tenha passado aqui ontem à noite?

Ela abanou a cabeça, lançando olhares cautelosos por cima do ombro.

- Mistress Susanna mandou-me para a cama. Durmo na cozinha, nem sequer ouvi... estava muito cansada. - A cozinha estava bastante distanciada da casa pelo receio do fogo, como era hábito nestas casas da cidade, muito próximas e revestidas de madeira, ela podia muito bem ter dormido durante todo o alarme, após as suas longas horas de trabalho. - Mas há uma coisa que eu sei - disse ela, erguendo o queixo corajosamente, e ele viu que, apesar de toda a sua juventude e fraqueza, era um queixo voluntarioso, com uma postura que ele aprovava. - Sei que Liliwin nunca fez mal a ninguém, nem ao meu amo, nem a qualquer outra pessoa. O que dizem dele não é verdade.

- Nem sequer roubou? - perguntou Cadfael suavemente. Ela não se deu por achada, e sustentou firmemente o olhar, com os seus olhos enormes.

- Para comer, sim, talvez, quando estava com fome, um ovo a uma galinha, em qualquer lado, uma perdiz na floresta, talvez mesmo um pão... isso, talvez. Durante toda a sua vida teve fome. - Ela sabia, porque também a tivera, durante grande parte da sua. -Mas roubar mais que isso? Dinheiro, ouro? De que é que isso lhe servia? E ele não é desses... Nunca!

Cadfael deu-se conta da cabeça que emergia da porta do átrio antes que Rannilt o fizesse, e avisou-a brandamente:

- Olha ali, corre! Diz que te retive com as minhas perguntas, e que tu não sabias as respostas.

Ela foi muito rápida, deu meia volta e apressava-se a voltar quando a voz de Susanna ressoou impaciente:

- Rannilt! - Cadfael não esperou para a ver desaparecer lá para dentro para junto da sua ama, mas virou-se de imediato para retomar o seu caminho ao longo da passagem para a rua.

Baldwin Peche estava sentado com uma caneca de cerveja à porta da sua oficina. O facto de a rua ser estreita, e as fachadas aqui estarem viradas para noroeste e mergulhadas em profunda sombra, sugeria que ele tinha outra razão além da preguiça e do ócio para estar onde estava àquela hora. Sem dúvida que todos os homens da cidade que tinham estado presentes no casamento de Aurifaber estavam acordados e vigilantes nessa manhã, logo que se viram livres dos efeitos do seu divertimento, excitados e revigorados pelos sensacionais mexericos que tinham de espalhar, e a possibilidade de novas revelações.

O serralheiro era um homem na casa dos cinquenta, baixo, robusto, mas que começava a ficar com um ventre proeminente, um pescador bem conhecido ao longo do rio Severn, mas fraco nadador, o que era pouco habitual nesta cidade rodeada pelo rio. Ele tinha, é bem verdade, um longo nariz que palpitava a cada sopro de escândalo, embora fosse prudente no uso que fazia dele, como se desfrutasse o mal mais pelo prazer que isso lhe dava que por qualquer benefício que daí lhe pudesse vir. Uma alegria fria e inquiridora cintilava nos seus olhos de um azul-pálido, dispostos num rosto redondo, corado e sorridente. Cadfael conhecia-o suficientemente bem para o cumprimentar, e deu-lhe os bons-dias como se fosse ele a fazer a aproximação, embora estivesse perfeitamente consciente que Peche tinha estado à espera para a fazer.

- Então, irmão Cadfael - disse o serralheiro cordialmente -, estivestes cuidando destes meus infelizes vizinhos. Espero que os tenhais encontrado com ânimo no meio dos seus desgostos. O rapaz diz-me que estão a recuperar bem, os dois.

Cadfael disse o que lhe competia, que era mais investigação que resposta, e manteve a boca fechada e os ouvidos atentos para ouvir a história novamente, com maiores e mais ricos pormenores, visto ser este o ofício preferido de Peche. O oficial de serralheiro, um rapaz bem-parecido que vivia com a mãe viúva, na cidade, a uma ou duas ruas dali, espreitou uma vez lá para fora da ombreira da porta, e voltou para dentro, assegurando-se de que tinha o trabalho só para si, como era da sua preferência. Por esta altura, John Boneth sabia tudo o que o seu experiente mas preguiçoso tutor podia ensinar-lhe, e era perfeitamente capaz de conduzir o negócio sozinho. Não havia nenhum filho para o herdar, tinham confiança e dependiam dele, e ele podia esperar.

- Uma feliz união, notai - disse Peche, espetando um dedo entendido no ombro do irmão Cadfael -, sobretudo se o tesouro de Walter está realmente perdido, e não pode ser recuperado. A filha de Edred Bele há-de receber dinheiro suficiente para compensar metade, pelo menos. Walter manobrou bem para a obter para o seu filho, e a velha senhora também fez o que lhe competia. Confiai neles! - esfregou sugestivamente o indicador e o polegar, deu-lhe uma cotovelada e piscou o olho. - E a rapariga não é nenhuma beleza e não tem encantos. Não sabe cantar, nem dançar bem, e é calada. No entanto, não é nenhum monstro, é aceitável, caso contrário o rapaz não teria sido convencido a... não com o que ele tem em mãos!

- É um rapaz bem-parecido - disse Cadfael suavemente. -E, segundo dizem, não é desajeitado. E tem uma boa herança à sua espera.

- Ali, mas reduzida, agora! - murmurou Baldwin, acercando-se ainda mais e esticando mais o indicador, o rosto entendido cheio de satisfação. - É a espera que é difícil de suportar. Os jovens vivem o dia de hoje, não o de amanhã, e este casamento à margem, entendeis o que quero dizer?, não o outro. Oh, a velha senhora pode ter um fraco por ele, ele é a menina dos seus olhos, mas ela não abre os cordões à bolsa e distribui guloseimas muito frugalmente. Não chega para o género de que ele gosta!

Ocorreu a Cadfael, bastante tardiamente, que era um comportamento pouco próprio para alguém com o seu hábito, estar a ouvir avidamente os escândalos locais, mas, se não fez nada para encorajar as confidências, não deixou certamente de as ouvir. Em qualquer caso, o encorajamento era desnecessário. Peche estava perfeitamente decidido a tirar o máximo partido das suas investigações.

- Não me cabe a mim dizê-lo - soprou ele aos ouvidos de Cadfael -, mas ele deitou-lhe as mãos à bolsa uma ou duas vezes, apesar de toda a sua perspicácia. A sua afeição actual torna-se dispendiosa, para não falar da cena que haverá se o marido dela vier a saber das suas brincadeiras. É de prever que o dote da noiva, tudo a que ele puder deitar a mão, irá cobrir o pescoço de outra mulher. Não que ele tivesse quaisquer objecções a este casamento. Não, ele gosta bastante da rapariga, e gosta ainda mais do dinheiro dela. Mas gosta de outra pessoa acima de tudo. Não digo nomes, para não haver vinganças! Mas devíeis tê-la visto como convidada ontem à noite! Audaciosa como uma cortesã real, com o velho todo pomposo a seu lado, e ela e o noivo olhando-se nos olhos, prontos a rirem-se do velho tolo. Também eu era o único ali que tinha os olhos suficientemente argutos para ver as faíscas passar.

- Também, é verdade! - disse Cadfael quase distraidamente, pois estava reflectindo em como era compreensível que Daniel encarasse o inquilino do seu pai com tão má-vontade. Não havia que duvidar da informação de Peche, os intrometidos realmente dedicados certificam-se da veracidade das suas afirmações. Sem dúvida, e embora não tivesse sido necessário proferir uma palavra, certos estremecimentos daquele nariz inquiridor e olhares entendidos daqueles olhos alegremente frios tinham prevenido Daniel, que, evidentemente, não era completamente tolo, que os seus devaneios não eram segredo.

E o outro, o velho tolo, convidado bem-vindo ao casamento - consequentemente bem-vindo, também entre os mercadores de Shrewsbury e com uma jovem, orgulhosa e atraente esposa... Um segundo casamento, portanto, da parte do marido? A cidade não era tão grande que Cadfael tivesse de procurar muito. Ailwin Corde, que enviuvara há alguns anos e casara de novo, contra a vontade do seu filho já crescido, com uma elegante e vistosa beldade, com um terço da sua idade, chamada Cecily.

- Eu não daria com a língua nos dentes - avisou ele, amigavelmente. - Os mercadores de lanifícios são uma força poderosa nesta cidade, e nem todos os maridos agradecem que lhes abram os olhos.

- Quê, eu? Falar quando não devo? - Os olhos satisfeitos cintilaram com a cordialidade do gelo, e o longo nariz estremeceu. -Eu cá, não! Tenho um senhorio decente e um canto confortável, e não tenho de me meter onde não sou chamado. Divirto-me como posso, irmão, mas com calma e em privado. Não há mal naquilo que não prejudica ninguém.

-Não há mal nenhum-concordou Cadfael, e retirou-se calmamente, seguindo em direcção à ondulante descida do Wyle, muito pensativo, mas nada seguro do que havia de pensar. Pois que tinha ele sabido? Que Daniel Aurifaber andava a fazer olhinhos, e provavelmente mais, à Srª Cecily Corde, cujo marido, comerciante de lãs, recolhia lã tosquiada na zona fronteiriça do País de Gales e a vendia em Inglaterra, e estava portanto muitas vezes ausente de casa durante vários dias, e que a senhora, embora afeiçoada, estava habituada a presentes, e tornava-se dispendiosa, enquanto que o jovem estava frustrado por um pai e uma avó igualmente sovinas, e já tinha a fama de roubar todas as pequenas somas a que pudesse deitar a mão. E isso não era fácil, também! E não tinha o pai dele ido pôr fora do seu alcance pelo menos metade do dote da noiva? Fora do alcance, agora no verdadeiro sentido da palavra... Ou seria que os acontecimentos da noite passada o teriam colocado ao seu alcance Coisas destas podem ocorrer numa família.

Que mais? Que Daniel não tinha, compreensivelmente, boa opinião do inquilino, que se entretinha nos seus ócios de uma forma tão inconveniente, e afirmava que o consideraria um dos principais suspeitos, se ele não tivesse estado presente no momento em que o acto fora perpetrado.

Bem, o tempo o diria. Tinham quarenta dias disponíveis.

A Missa Solene havia terminado quando Cadfael atravessou a ponte e tomou o caminho de regresso à portaria e ao pátio principal. A sombra do prior Robert, o irmão Jerome, rondava no claustro para o interceptar quando ele chegasse.

- O padre abade pede que o vá visitar antes do jantar. - O nariz comprimido e estreito de Jerome tremeu com um laivo de desaprovação e repugnância, que Cadfael considerou mais ofensivo que o genuíno prazer de Baldwin Peche nas suas velhacarias. - Confio, irmão, que tenhais a intenção de deixar que o tempo e a lei tomem o seu curso, não envolvendo a nossa casa para além das obrigações legais do santuário, em assunto tão sórdido. Não vos compete a vós assumir as responsabilidades que competem à justiça.

Jerome, se não tinha recebido ordens explícitas, fora instruído pelo sobrecenho carregado e pelas narinas frementes do prior Robert. Um ser humano tão humilde, esfarrapado e miserável como Liliwin, alojado ali no seu seio, contrariava Robert como um cardo que lhe atravessasse o hábito e lhe irritasse a pele. Ele não ficaria em paz enquanto o corpo estranho ali permanecesse, queria que fosse removido, e que fosse restaurada a simetria da sua vida. Em boa justiça, não apenas a sua própria vida, mas a vida daquela casa, que sofria a irritação e o prurido da infecção que lhe fora arremessada pelo mundo exterior. A presença do terror e da dor é verdadeiramente destrutiva.

- Tudo o que o abade quer de mim é um relato do estado dos meus doentes - disse Cadfael, com invulgar generosidade para com as tacanhas preocupações de criaturas tão incompatíveis com ele como Robert e o seu secretário. Porque a angústia deles, embora lhe fosse alheia, era, no entanto, compreensível. Os muros tinham, na verdade, sido abalados, as almas aí abrigadas tinham, de facto, estremecido. - E eu tenho suficientes preocupações com eles, não desejo ir à procura de outras. Alimentaram e trataram do rapaz? É tudo o que me compete fazer-lhe.

- O irmão Oswin cuidou dele - disse Jerome.

- Ainda bem! Nesse caso irei apresentar os meus respeitos ao padre abade, e tratar de ir jantar, pois não tomei o pequeno-almoço, e aquela gente lá na cidade está demasiado perturbada para pensar em oferecer algo para comer.

Interrogou-se, contudo, enquanto atravessava o pátio em direcção aos aposentos do abade, sobre quanto do que tinha descoberto iria revelar. Mexericos impudicos não interessariam aos ouvidos de um abade, nem havia muita coisa a dizer acerca de uma pequena placa de sangue seco que prendia um par de cabelos loiros; não, pelo menos até que o vagabundo, com todos os dedos apontados contra ele e a sua vida em jogo, tivesse exercido o direito de falar em sua defesa.

O abade Radulfus recebeu sem surpresa a notícia de que todos os participantes no casamento estavam solidários na insistência sobre a culpa do jogral. Não estava, porém, completamente convencido de que Daniel, ou qualquer dos presentes pudesse ter a certeza de quem tinha, ou não, estado perfeitamente visível durante o tempo todo.

- Com um átrio cheio de gente, muitos dos quais bêbados, e depois de tantas horas de comemoração, quem pode ter a certeza sobre as idas e vindas de cada um? Contudo, tantas vozes a dizer o mesmo não podem ser menosprezadas. Bem, temos de fazer o nosso papel, e deixar que a justiça trate do resto. O beleguim disse-me que o xerife foi servir de árbitro numa disputa entre cavaleiros vizinhos na parte leste do condado, mas o seu delegado é esperado na cidade antes do anoitecer.

Aquilo eram boas notícias para os ouvidos de Cadfael. Hugh Beringar encarregar-se-ia de que a busca da verdade e da justiça não resvalasse pelo caminho mais fácil, e apagasse os pequenos pormenores que não se ajustassem ao padrão. Entretanto, Cadfael tinha precisamente um desses pormenores a esclarecer com Liliwin, para além da restituição dos instrumentos de malabarismo.

Depois do jantar foi à sua procura, e encontrou-o sentado no claustro, com uma agulha e linha emprestadas, tentando remendar os rasgões do seu gibão. Abaixo da testa ligada, tinha lavado escrupulosamente o rosto, que era pálido e magro mas de pele clara, de traços belos e mesmo delicados. E se ainda não podia lavar o pó e a lama do seu cabelo louro, pelo menos tinha-o penteado decentemente.

Primeiro a dádiva, talvez, e depois a contrariedade! Cadfael sentou-se a seu lado e depositou a trouxa no seu regaço.

-Aqui tens restituída uma parte dos teus bens, como bom presságio. Vá, abre-a!

Mas Liliwin já reconhecera a trouxa desbotada. Por um momento, ficou de olhar fixo de espanto e incredulidade, e depois desatou o nó do tecido e mergulhou as mãos entre os seus modestos tesouros com afeição e prazer, corando e animando-se debilmente, como se recuperasse pela primeira vez a fé na existência de alguns pequenos confortos e gentilezas.

- Mas como os haveis conseguido? Nunca pensei que os veria de novo. E vós pensastes em pedi-los... para mim... Isso foi muita bondade!

- Nem precisei de pedir. A velha senhora que te bateu, por muito terrível que seja, é honesta. Não guarda o que não é dela, mesmo que não renuncie a uma única moeda que lhe pertença. Ela devolve-tos. - Não amavelmente, mas não havia necessidade de o referir. - Pronto, guarda isso como um bom agouro. E como estás hoje? Alimentaram-te?

- Muito bem! Deverei ir buscar a minha comida à cozinha ao pequeno-almoço, jantar e ceia. - A sua voz soava quase incrédula, ao referir três refeições por dia. - E deram-me uma enxerga aqui no pórtico. Tenho medo de ficar afastado da igreja à noite.-Disse-o simples e humildemente. - Nem todos gostam que eu cá esteja. Estou-lhes atravessado na garganta como uma casca.

-Estão acostumados a sossego - disse Cadfael com complacência. - O que tu trazes não é sossego. Tens de fazer concessões, tal como eles têm. Pelo menos a partir desta noite podes dormir em segurança. O ajudante do xerife deverá chegar à cidade esta noite. Na sua autoridade, asseguro-te, podes confiar. A confiança estabelecer-se-ia dificilmente em Liliwin, depois de tudo por que ele tinha passado na sua curta vida, mas os objectos que ele tinha guardado tão carinhosamente sob a sua enxerga eram uma esperança. Inclinou a cabeça sobre a sua paciente costura e não proferiu uma palavra.

- E por isso - disse Cadfael vivamente - seria melhor reconsiderares sobre a história incompleta que me contaste, e confessares a parte que deixaste de fora. Pois não te foste embora tão docilmente como nos fizeste supor, pois não? Que estavas a fazer, agarrado à ombreira da porta da oficina de Master Walter, muito depois da hora a que afirmas ter partido nessa noite? Com a porta aberta, a cabeça de encontro à ombreira, o cofre do ourives à vista... e aberto, e o ourives inclinado sobre ele?

A agulha de Liliwin estremecera nos seus dedos e picara-o na mão esquerda. Ele largou a agulha, a linha e o gibão, e ficou sentado, chupando o polegar, fitando o irmão Cadfael com uns olhos enormes e amedrontados. Começou a protestar com voz esganiçada:

- Eu não fui lá... Não sei nada acerca disso... -A voz e os olhos cederam ao mesmo tempo. Olhou para baixo, pestanejando, para as mãos abertas, pestanas longas e espessas como as de uma vaca de boa raça, roçando a sua face espantada.

- Filho - disse Cadfael, suspirando -, tu estiveste lá à porta, a espreitar para dentro. Deixaste lá sinais teus. Um rapaz do teu tamanho, com a cabeça ensanguentada, inclinado na ombreira o tempo suficiente para deixar uma pequena mancha de sangue, e dois cabelos loiros agarrados. Não, mais ninguém a viu, foi levada pelo vento, mas eu vi-a, e sei. Agora diz-me a verdade. Que se passou entre ti e ele?

Ele não perguntara a razão por que Liliwin havia mentido ao omitir esta parte da história, não havia necessidade. O quê, localizar-se ali naquele sítio, onde o golpe tinha sido desferido? Um inocente teria evitado admiti-lo, tão desesperadamente como um culpado.

Liliwin estava sentado e tremia, agitando-se como uma folha ao vento que arrebatara os seus cabelos perdidos. Ali no claustro o ar ainda estava frio, e ele tinha apenas uma camisa remendada e umas calças, o gibão meio consertado sobre os joelhos. Engoliu em seco e suspirou.

- É verdade, eu fiquei à espera... Não era justo! - proferiu ele, a tremer. -Fiquei ali na escuridão. Nem todos eram tão insensíveis como ela, pensei que podia suplicar... Vi-o ir para a loja com uma lanterna e segui-o. Ele não ficou tão furioso quando o jarro se partiu, tentou mesmo acalmá-la, ousei aproximar-me dele. Entrei e pedi-lhe o salário que me tinha sido prometido, e ele deu- me um segundo penny. Deu-mo e eu fui-me embora. Juro!

Ele também tinha jurado a outra versão. Mas o medo faz isso, o medo gerado por uma vida de perseguições e pancada.

- Foste-te embora nessa altura? E não o viste mais? Ou mais exactamente, viste alguém que pudesse ter estado à espreita como tu estiveste, e entrasse lá depois?

-Não, não havia ninguém. Fui-me embora, estava contente por ir, estava tudo acabado. Se ele está vivo, dir-vos-á que me deu o segundo penny.

- Está vivo e vai sobreviver - disse Cadfael. - Não foi uma pancada fatal. Mas ainda não falou.

- Mas há-de falar, há-de falar, dir-vos-á como eu lhe supliquei, e como ele teve pena de mim. Tive medo - disse ele, estremecendo. - Tive medo! Se tivesse dito que lá tinha ido, seria o meu fim.

- Bom, mas pensa - disse Cadfael sensatamente -, quando Walter voltar a si e contar essa história, o que irá parecer se ele a revelar, quando tu não disseste uma palavra sobre o assunto? Além disso, quando recuperar a consciência e se recordar do que aconteceu, pode acontecer que ele seja capaz de identificar o seu atacante, e ilibar-te de todas as acusações.

Observou-o atentamente ao dizer isto, pois para um homem inocente esta ideia seria um grande conforto, enquanto que para um culpado um terror irrevogável; e o semblante perturbado de Liliwin desanuviou-se e animou-se gradualmente com uma tímida esperança. Este era o primeiro indício verdadeiramente significativo de que falava verdade.

- Não pensei nisso. Eles disseram assassinado. Um homem assassinado não pode acusar, nem salvar ninguém. Se eu tivesse sabido então que ele estava vivo teria dito toda a verdade. Que devo fazer agora? Dará má impressão ter de confessar que menti.

- O melhor que tens a fazer - disse Cadfael após breve reflexão -, é deixares-me levar, eu próprio, esta informação ao padre abade, não como uma descoberta minha, pois a prova desapareceu com um sopro de vento, mas como uma confissão tua. E se Hugh Beringar vier esta noite, como espero e ouvi dizer que viria, poderás então, tu próprio, contar-lhe toda a história de novo. O que quer que venha a acontecer depois, poderás permanecer aqui durante os dias de indulgência com a consciência tranquila e a verdade falará a teu favor.

Hugh Beringar de Maesbury, delegado do xerife do condado, chegou à abadia à hora de Vésperas, depois de uma longa conferência com o beleguim acerca do tesouro desaparecido. Em sua busca, cada palmo de terreno desde a casa do ourives até aos arbustos de onde Liliwin levantara voo à meia-noite havia sido esquadrinhado sem resultado. Todas as vozes na cidade declaravam confiantemente que o jogral era o culpado, e tinha escondido com êxito o produto do seu roubo antes de ser avistado e perseguido.

- Mas tu, julgo eu - disse Beringar, caminhando de volta à portaria com Cadfael a seu lado e contraindo as sobrancelhas finas e escuras para o seu amigo -, não estás de acordo. E não apenas por este vosso hóspede forçado ser jovem e faminto e carecido de protecção. Que é que te convenceu? Pois estou em crer que estás convencido de que ele está a ser vítima de uma injustiça.

- Ouviste a sua história - disse Cadfael. - Mas não viste a sua expressão quando eu lhe expliquei que o ourives pode recuperar a memória sobre os acontecimentos daquela noite, e ser capaz de dizer o nome ou descrever o rosto do seu assaltante. Ele encarou essa esperança como uma promessa abençoada. O culpado não o faria.

Hugh reflectiu gravemente sobre isso e acenou em concordância.

- Mas o indivíduo é um actor, e aprendeu duramente a dominar a expressão do rosto em todas as circunstâncias. Isto não é uma acusação, ele não tem outra arma. Parecer inocente de qualquer ofensa deve ser neste momento a sua única preocupação.

-E pensas que me deixo enganar facilmente - disse Cadfael secamente.

- Longe disso. Contudo, é bom lembrar e admitir a possibilidade. -E isso era também verdade, e o sorriso sombrio de Hugh, inclinado sobre o ombro, não contribuiu para atenuar a importância da questão. - Embora tenha de admitir que não é a primeira vez que és o único a defender uma opinião contrária e ganhas a aposta.

-Não sou o único - disse Cadfael quase distraidamente, revendo mentalmente o rosto pálido e travesso de Rannilt. - Há outra pessoa que ainda está mais segura que eu. -Tinham atingido o arco da portaria, para lá do qual se atravessava a larga estrada do Foregate, e a tarde começava a reverdecer e a obscurecer com a aproximação do crepúsculo.

- Dizes que encontraste o local onde o rapaz se deitou para passar a noite? Vamos até lá dar uma vista de olhos?

Atravessaram o arco, um estranho par caminhando harmoniosamente lado a lado, o monge atarracado, quadrado e robusto, gingando como um marinheiro, a caminho dos seus sessenta anos, o delegado do xerife, pelo menos trinta anos mais novo e um bom bocado mais alto, embora fosse um homem baixo, de movimentos ágeis e elegantes e fisionomia triste.

Cadfael tinha visto este jovem obter o seu cargo com lealdade, e ainda uma esposa, e tinha assistido ao baptismo do seu primeiro filho apenas há alguns meses atrás. Compreendiam-se um ao outro melhor que a maior parte do que homens o fazem, mas, apesar disso, podiam tomar partidos diferentes em questões de justiça real.

Viraram em direcção à ponte que conduzia à cidade, mas viraram de novo à direita, junto à margem do rio, para o interior das árvores que orlavam a estrada. Mais além, próximo das cintilações do Severn ao entardecer, o terreno inclinava-se até à luxuriante área dos jardins principais da abadia, ao longo dos prados chamados Gaye. Podiam ver a luz verde e clara escoando-se por entre os ramos, ao chegarem ao local onde Liliwin se instalara tristemente para dormir, antes de abandonar esta cidade pouco hospitaleira. E era verdadeiramente um ninho, arredondado e enrolado no declive de relva espessa e fresca, e tão pequeno como a toca de um arganaz.

- Ele levantou-se alarmado, com um salto que atesta a sua forma física, como uma lebre em movimento - disse Hugh ponderadamente. - Há rebentos jovens partidos aqui, vês?, por onde ele abriu caminho. Este é, sem dúvida, o local. - Olhou em volta com curiosidade, pois Cadfael estava procurando entre os arbustos, que cresciam ali muito cerrados para protecção. - Que procuras?

- Ele tinha a rabeca num albornoz a tiracolo - disse Cadfael. - Na escuridão, um ramo prendeu o cordão e arrancou-a, e ele não se atreveu a parar para a procurar às apalpadelas. Foi o que ele me contou, como um homem espoliado. Tenho a certeza de que era verdade. Que é que lhe teria acontecido?

Soube a resposta nessa mesma noite, mas apenas depois de se ter separado de Hugh, no caminho de regresso à portaria. Estava um entardecer luminoso e Cadfael não tinha pressa em voltar, e tinha bastante tempo antes de Completas. Ficou a observar o passeio de fim de tarde dos notáveis do Foregate, e as brincadeiras prolongadas dos rapazitos da paróquia de Holy Cross, relutantes em ir para casa, para a cama, tal como ele. Cerca de uma dúzia deles passaram velozmente numa confusão de gritos e gargalhadas, estridentes como estorninhos, alguns ainda meios nus vindos do rio, mas ainda não tão gelados que tivessem de voltar para a lareira da casa. Estavam a dar pontapés numa informe bola de trapos, alguns batendo-lhe com paus, e um deles com qualquer coisa mais larga e curta. Cadfael ouviu o impacte de madeira oca, e a vibração desafinada de uma corda sobrevivente. Um som lamentoso, como um grito de socorro, pouco esperançado que o apelo fosse ouvido.

- Mas que é isso que vocês encontraram ? - disse Cadfael amigavelmente. - E como é que deram com uma coisa tão estranha?

A criança acenou com desenvoltura em direcção às árvores que emolduravam o Gaye.

- Estava ali no chão, num saco de pano, mas esse perdi-o ao pé da água. Não sei o que é. Nunca vi uma coisa destas. Mas que eu veja, não serve para nada.

- Encontraste - perguntou Cadfael, mirando o destroço - um pau, com fios esticados, que pertencia a este objecto esquisito?

A criança bocejou, parou, e largou o brinquedo, deixando-o cair na terra.

- Bati em David com ele, quando ele me deu uma rasteira na água, e partiu-se. Deitei-o fora.

Certamente que o fizera, ao constatar a sua inutilidade, tal como se afastou da sua arma abandonada, que ficou no chão, e se foi embora esfregando os olhos sonolentos com as costas das mãos sujas.

O irmão Cadfael apanhou os pobres restos e examinou pesarosamente a armação quebrada e as cordas soltas e emaranhadas. Não tinha remédio, aquilo era tudo o que restava da rabeca perdida. Trouxe-a consigo, consciente do desgosto que estava prestes a causar ao seu infortunado dono. Imaginando que Liliwin sobreviveria no final do seu actual infortúnio, ainda assim se veria sem um tostão, e despojado até do seu principal meio de subsistência. Mas ainda havia mais que isso. Ele sabia-o, mesmo antes de entregar o instrumento quebrado nas mãos consternadas de Liliwin, e de ver a angústia e o desespero cobrindo-lhe o rosto como uma penumbra gelada. O rapaz tomou o destroço nas mãos e acariciou-o, embalou-o nos braços, curvou a cabeça sobre a sua armação estilhaçada e desatou a chorar. Assemelhava-se mais à perda de uma bem-amada que à de um bem material.

Cadfael sentou-se um pouco afastado, no cubículo do escritório, e manteve-se silencioso até a tempestade ter passado, e Liliwin ficar esgotado e imóvel, abraçando o seu amor quebrado, com os seus ombros magros levantados contra o mundo.

- Há pessoas - disse então Cadfael suavemente - que conhecem a arte de reparar instrumentos musicais. Eu não sou uma delas, mas o irmão Anselm, o nosso chantre, é. Por que não lhe pedimos para ver a tua rabeca e ver o que se pode fazer para a pôr de novo a tocar?

- Isto? - Liliwin voltou-se para ele veementemente, exibindo nas mãos o patético destroço. - Olhai para isto, só serve para lenha. Como poderia alguém restaurá-la?

- Tens a certeza disso? E eu? Que mal há em perguntar ao homem que pode saber? E se esta não se puder salvar, o irmão Anselm pode fazer uma nova.

Recebeu de volta um olhar de amarga descrença. Que razões tinha ele para acreditar que alguém pudesse pôr de lado os seus afazeres para ter uma gentileza para com uma criatura tão desprezada e inútil como ele? Os que ali viviam afirmavam que lhe deviam abrigo e alimento, mas nada mais, e mesmo isso como um dever. E ninguém do exterior lhe tinha jamais oferecido um benefício que custasse mais que uma côdea de pão.

- Como se eu alguma vez pudesse pagar uma nova! Não troceis de mim!

- Esqueces-te que nós não compramos ou vendemos, o dinheiro não nos serve para nada. Mas se apresentarem ao irmão Anselm um bom instrumento danificado, ele quererá consertá-lo. Apresentai-lhe um bom músico que se perde por falta de um instrumento, e ele ficará ansioso por lhe proporcionar uma nova voz. És um bom músico?

Liliwin respondeu:

- Sim! -com um súbito e ardente orgulho. Num ponto, pelo menos, conhecia o seu valor.

- Então, mostra-lhe que o és, e ele dar-te-á o que te compete.

- Falais a sério? - admirou-se Liliwin, vacilante entre a esperança e a dúvida. -Pedir-lho-eis de verdade? Se ele me ensinasse, talvez eu pudesse aprender o ofício. -Aqui hesitou, perdendo a sua animação momentânea com uma brusquidão eloquente. Sempre que ele ganhava coragem para encarar o futuro, era novamente inundado pela gelada percepção de que poderia não ter futuro. Cadfael procurou apressadamente no seu espírito uma distracção que o desviasse do desespero recorrente.

-Não julgues que não tens amigos, isso é pura ingratidão quando tens quarenta dias de indulgência, um homem de espírito justo como Hugh Beringar investigando o teu caso, e, pelo menos, uma pessoa que está corajosamente do teu lado e não admite uma palavra contra ti. - Liliwin animou-se um pouco ao ouvir isto, ainda incrédulo, mas, pelo menos, tinha-se abstraído por um momento dos pensamentos sobre a forca e a corda. - Lembras-te dela, uma rapariga chamada Rannilt.

O rosto de Liliwin empalideceu e iluminou-se ao mesmo tempo. Era o primeiro sorriso que Cadfael lhe via, e mesmo este era hesitante, humilde, receoso de atingir o objecto desejado, com medo que se desvanecesse como neve a derreter, quando lhe tocasse.

- Vistes-a? Falastes com ela? E ela não acredita no que dizem de mim?

- Nem numa palavra! Ela afirma... Ela sabe que tu não praticaste qualquer violência ou roubo naquela casa. Se todas as bocas de Shrewsbury clamassem contra ti, ela continuaria a manter a mesma opinião e a falar em teu favor.

Liliwin continuava sentado, aconchegando a sua rabeca quebrada, tão carinhosa e timidamente como se realmente abraçasse uma apaixonada. O seu débil e amedrontado sorriso brilhou na luz fraca do claustro.

- Ela é a primeira rapariga que olhou para mim com gentileza. Não deveis tê-la ouvido cantar... Uma voz tão fina e doce, como a de uma flauta. Comemos juntos na cozinha. E foi a hora mais feliz da minha vida, nunca pensei... É é verdade? Rannilt acredita em mim?

 

                   DOMINGO

Liliwin dobrou as mantas e cuidou de se tornar apresentável antes de Primeiras de domingo, decidido a causar o mínimo de perturbação possível no ordenado sistema estabelecido no interior daqueles muros. Na sua vida errante tivera poucas oportunidades de se familiarizar com os ofícios religiosos, e o latim era para ele um livro fechado, mas, pelo menos, podia assistir e fazer as suas reverências, se isso o tornava mais aceitável.

Depois do pequeno-almoço, Cadfael ligou de novo o golpe no braço do jovem e tirou-lhe a ligadura da ferida da cabeça.

- Isto está a cicatrizar bem - disse ele, aprovadoramente. - E melhor deixá-la destapada, ao ar, agora. Tens boa carnadura, rapaz, embora em pouca quantidade. E já não coxeias. Como estão essas equimoses?

Liliwin reconheceu com alguma surpresa que a maior parte das suas dores e sofrimentos estavam quase a passar, e executou algumas contorções espectaculares para o provar. Não havia perdido a sua destreza. Os seus dedos ansiavam pelas argolas e bolas coloridas que usava nos seus malabarismos, guardadas em segurança na trouxa sob a sua enxerga, mas receava que fossem desaprovados ali. Os destroços da sua rabeca repousavam também no canto contíguo ao pórtico. Voltou para lá depois do pequeno-almoço, onde encontrou o irmão Anselm revirando-a pensativamente nas mãos, e percorrendo com um dedo investigador a pior das fendas.

O chantre passava dos cinquenta anos, era uma figura indistinta, magra e míope, sob uma desalinhada tonsura castanha e sobrancelhas hirsutas da mesma cor, e sorria amigável e encorajadoramente ao possuidor daquela desastrosa relíquia.

- Isto é teu? O irmão Cadfael contou-me como se tinha estragado. Era um belo instrumento. Não foste tu que o fizeste?

- Não, foi-me dado por um velhote que me ensinou. Deu-mo antes de morrer. Não sei construí-los - disse Liliwin.

Era a primeira vez que o irmão Anselm o ouvia falar desde o terror estridente da invasão inicial. Olhou para cima com vivacidade, inclinando a cabeça para ouvir.

- Tens uma voz de tenor muito afinada e clara. Podia usar-te, se sabes cantar. Mas tens de cantar! Não pensaste em tomar o hábito, aqui na nossa ordem? - Recordou com um suspiro que isso seria altamente improvável, nas actuais circunstâncias. -Bem, este pobre objecto foi muito maltratado, mas não é irrecuperável. Podemos tentar. E o arco perdeu-se, dizes tu. - Liliwin não tinha dito tal coisa, estava mudo de espanto. Evidentemente, o irmão Cadfael tinha dado informações precisas a um entusiasta de boa memória. - O arco, devo dizer, ainda é mais difícil de consertar que a rabeca, mas tenho tido alguns êxitos. Sabes tocar outros instrumentos?

- Consigo tocar a maior parte deles - disse Liliwin, encantado e ansioso.

- Anda - disse o irmão Anselm, agarrando-o firmemente pelo braço -, vou mostrar-te a minha oficina, e nós os dois, depois da Missa Solene, tentaremos fazer o melhor possível por esta tua rabeca. Precisarei de um ajudante para tratar das minhas resinas e gomas. Mas será um trabalho lento e cuidadoso, nota, e merecedor de orações, que não deve ser apressado por motivo nenhum. A música é objecto de estudo para uma vida inteira, meu filho, uma vida inteira por mais longa que seja.

Walter Aurifaber acordou nessa manhã com uma dor de cabeça persistente, mas também com uma incomodativa rigidez nos membros e uma inquietação no espírito que o fazia desejar levantar-se, espreguiçar-se, bater com os pés no chão e mover-se com energia, até que o entorpecimento o abandonasse. Resmungou com a sua paciente e silenciosa filha, perguntou pelo aprendiz, que tivera o bom-senso de assegurar o domingo de descanso, desaparecendo o dia inteiro da loja e da cidade, e sentou-se para comer um pequeno-almoço substancial e enfrentar os seus prejuízos.

Começava a recordar-se dos acontecimentos, embora de uma forma confusa, incluindo um incidente que desejava acima de tudo que a sua mãe não viesse a saber. Dinheiro era dinheiro, claro, a velhota tinha direito sobre ele, mas não é todos os dias que um homem casa o seu herdeiro, e o casa, além do mais, com uma ainda mais respeitável fortuna. Um pequeno gesto para com um miserável lacaio seria certamente perdoado a um homem, naquelas circunstâncias. Mas pensaria ela assim? Lamentava-o amargamente, agora, ao reflectir no desastroso resultado do seu raro impulso de generosidade. Não, ela não podia saber daquilo!

Walter acalentou a cabeça dorida e o seu vão arrependimento, e consolou-se um pouco ao ver o filho e a nora saírem para a igreja em Saint Mary's, com as suas melhores vestes e convenientemente unidos, a mão de Margery repousando formalmente sobre o braço de Daniel. O dinheiro que Margery havia trazido consigo era agora mais importante que nunca, até que o conteúdo desaparecido do cofre fosse recuperado. Quem quer que tivesse feito aquilo à casa de Aurifaber deveria e seria enforcado, se havia alguma justiça neste mundo.

Quando Hugh Beringar chegou, acompanhado por um beleguim, para ouvir pessoalmente o que a vítima tinha a dizer, Walter estava preparado e loquaz. Mas não ficou nada contente quando a Srª Juliana, que aguardava a visita do irmão Cadfael, prevendo mais restrições ao seu comportamento se queria viver muito tempo, teimou em se antecipar ao sermão, apresentando-se no andar inferior quando o seu mentor chegasse, e desceu pesadamente, de bengala na mão, apoiando-se nela em cada passo, e ralhando com Susanna por tentar impedi-la. Estava firmemente instalada no seu banco a um canto quando Cadfael chegou, e desafiou-o com um olhar firme e provocador. Cadfael decidiu não lhe dar o prazer de um sermão, limitando-se a entregar-lhe o unguento que trouxera para ela, e tranquilizou-se com a regularidade da sua respiração e pulso, antes de se virar para um Walter inexplicavelmente pouco falador.

- Fico contente de vos ver restabelecido. As histórias que me contaram acerca de vós tinham vinte anos de avanço. Mas lamento a vossa perda. Espero que ainda possa vir a ser recuperada.

- Por minha fé, eu também - disse Walter, amargamente. - Dizeis-me que esse patife que albergais em santuário não o tem consigo, e enquanto o tendes lá dentro, dificilmente ele poderá desenterrá-lo e levá-lo. Porque o tesouro tem de estar em algum lugar, e eu confio aqui nos homens do xerife para o encontrar.

- Estais então convencido de que ele é o vosso homem? - Hugh tinha-o interrogado até ao momento em que ele pegara nas suas preciosidades para as guardar na loja, e aí ele tornara-se subitamente menos comunicativo. - Mas ele já tinha sido expulso há algum tempo, e ainda ninguém declarou tê-lo visto a rondar a vossa casa depois disso.

Walter lançou uma olhadela à sua mãe, com os seus velhos ouvidos atentos e o desbotado mas penetrante olhar vigilante.

- Ah, mas ele podia na mesma ter ficado escondido. Que poderia impedi-lo, na escuridão da noite?

-Lá isso, podia-concordou Hugh inutilmente -, mas até agora ninguém afirma que ele o fez. A não ser que vos tenhais recordado de algo que mais ninguém saiba. Vós havei-lo visto depois de ele ter sido expulso?

Walter moveu-se desconfortavelmente, pareceu prestes a proferir a acusação, mas conteve-se na presença de Juliana. O irmão Cadfael apiedou-se dele.

- Podia ser vantajoso - disse ele com simplicidade - dar uma vista de olhos ao local onde se deu este assalto. Master Walter mos-trar-nos-á a sua oficina, decerto.

Walter levantou-se com gratidão ao ouvir isto, e conduziu-os lá fora com alacridade ao longo da passagem, e fê-los entrar novamente pela porta da loja. A porta da rua estava fechada, pois era domingo, e ele fechou cautelosamente a outra porta atrás deles, respirando de alívio.

- Não é que eu tenha nada a esconder de Vossa Senhoria, mas desejo poupar minha mãe a mais preocupações. - Uma cobertura plausível, de qualquer modo, para o receio que ele ainda tinha dela. -Pois aqui é onde a coisa aconteceu, e podeis ver desta porta que o cofre se encontra no canto oposto. E ali estava eu, com a chave na fechadura e a tampa encostada à parede, completamente aberta, e a vela aqui nesta prateleira. A luz incidindo para o cofre, estais vendo?, e o seu conteúdo à vista. De repente, oiço um som atrás de mim, e vejo o jogral, esse Liliwin, espreitando à porta.

- Ameaçadoramente? - inquiriu Hugh, sem rodeios. Não piscou o olho a Cadfael, mas a sua sobrancelha era eloquente.-Armado com uma moca?

- Não - admitiu Walter. - Estava até bastante humilde, aparentemente. Mas nessa altura ouvi-o e voltei-me. Ele estava à porta, podia ter deixado cair a arma lá fora quando viu que eu tinha dado por ele.

- Mas não a ouvistes cair? Nem vistes sinais dela?

- Não posso afirmá-lo.

- Que tinha ele então para vos dizer?

- Implorou-me que lhe fizesse justiça, pois dizia que tinha sido lesado em dois terços do pagamento prometido. Disse que era duro para um homem pobre ver-se assim acusado e privado do seu dinheiro, e suplicou-me que lhe desse o que fora prometido.

- E vós deste-lho?

- Dir-vos-ei com franqueza, senhor, que não me parece que ele tenha sido explorado, tendo em conta o valor do vaso, mas também pensei que ele era uma pobre e infeliz criatura que precisava de viver, com razão, ou sem ela. E dei-lhe outro penny de boa prata, cunhada nesta cidade. Mas, por favor, nem uma palavra sobre isto à Srª Juliana. Ela vai ter de saber, agora que me recordo de tudo, que ele se atreveu a esgueirar-se cá para dentro e pedir, mas não há necessidade de saber que eu lhe dei alguma coisa. Ficaria ofendida, visto que lho tinha negado.

-A vossa preocupação por ela é de louvar-disse Hugh com gravidade. - Que aconteceu depois? Pegou na vossa dádiva e escapuliu-se?

- Sim. Mas aposto que ele não vos contou nada sobre esta sua visita a pedir esmola. Recebi uma triste paga pelo favor! -Walter estava ainda amargamente vingativo.

- Estais enganado, pois contou. Contou-nos precisamente a mesma história que nos estais contando agora. E confiados à guarda da abadia, enquanto ele aí permanecer, estão os dois penny de prata que são tudo o que ele tem consigo. Dizei-me, haveis fechado a tampa do cofre logo que vos sentistes observado?

- Fechei! - disse Walter ardentemente. -E depressa! Mas ele tinha visto. Não pensei mais nisso na altura, mas... Vede, senhor, o que se passa em seguida! Logo que ele se foi embora, ou julguei que se fora, abri o cofre novamente, e estava inclinado sobre ele arrumando o dote de Margery, quando levei uma forte pancada por detrás, e isso é a última coisa de que tenho conhecimento até acordar na minha cama, horas mais tarde. Não passaram mais de dois minutos entre o momento em que aquele indivíduo se esgueirou pela porta fora, e alguém me derrubou. Portanto, quem mais poderia ter sido?

- Mas não haveis realmente visto quem vos atingiu? –insistiu Hugh. - Nem de relance? Nem uma sombra que permitisse dar-lhe uma forma ou um tamanho? Não tivestes a sensação de um volume agitando-se nas vossas costas?

- Não houve qualquer hipótese. - Walter podia ser vingativo, mas era honesto. - Bem vedes, eu estava inclinado sobre o cofre quando me pareceu que a parede se abatera sobre mim, e caí pesadamente, com a cabeça dentro da caixa, completamente inconsciente. Não ouvi, nem vi nada, nem mesmo uma sombra, não... A última coisa de que me lembro é da vela a tremeluzir, mas que é que isso interessa? Não, não há qualquer dúvida, aquele patife viu o que eu tinha no cofre antes de eu baixar a tampa. Partiria docilmente com o seu penny, com todo aquele dinheiro ali à mão? Não! Não vi aqui sinais de mais ninguém nessa noite. Podeis ter a certeza, o jogral é o homem que procurais.

- E ainda é possível que assim seja - admitiu Hugh Beringar, ao despedir-se de Cadfael na ponte, cerca de vinte minutos depois. - Era o suficiente para tentar um pobre infeliz que apenas possuía duas moedas. Quer esse pensamento lhe tivesse ocorrido antes de a vela ter iluminado o tesouro escondido do nosso amigo, quer não. Admito, igualmente, que o rapaz pode nem sequer ter-se apercebido do que tinha ali à mão, ou visto mais nada a não ser a sua própria miséria e a remota possibilidade de conseguir um melhor acolhimento por parte do ourives do que da sua feroz mãe. Pode ter-se escapulido, agradecendo a Deus a sua moeda, sem qualquer pensamento condenável. Ou pode ter agarrado numa pedra ou num pau e voltado atrás.

Mais ou menos por essa altura, na rua da igreja de Saint Mary's, que era o local público para troca de cumprimentos e observação de trajes numa bela manhã de domingo depois da missa, Daniel e Mar-gery Aurifaber, no seu passeio cerimonial, interceptados alternadamente por gente que lhes desejava felicidades e lhes exprimia a sua comiseração - o casamento e o roubo eram assuntos de comentário e especulação igualmente apreciados em Shrewsbury - encontraram-se frente a frente com Master Ailwin Corde, o mercador de lãs, e a sua mulher, Cecily, e interromperam o seu passeio para, com a concordância geral, passarem o dia juntos como é próprio de vizinhos e amigos.

Esta Miss Cecily mais parecia uma filha do mercador, ou mesmo uma neta, que a sua esposa. Tinha vinte e três anos e ele sessenta, e embora de estatura pequena e delgada, tinha uma tal opulência de cores, porte e atitude, e tudo o que prendia o olhar, que conseguia parecer grande como uma deusa e dominar qualquer ambiente que honrasse com a sua presença. E o seu idoso marido comprazia-se em cobri-la de tecidos e vestes sumptuosos, a jóia que deveria antes ter ocultado em reservados e simples linhos. Uma rede dourada segurava-lhe na cabeça a massa de cabelos castanho-avermelhados, e um esplêndido ornamento de esmalte e pedrarias sobressaía nela, chamando a atenção para uns seios resplandecentes. Em face destas riquezas, Margery eclipsava-se, e sabia-o. O seu sorriso tornou-se fixo e falso como o de uma máscara, e a sua voz tornou-se mais aguda, como um cantor obrigado a cantar fora do tom. Apertou os dedos sobre o braço de Daniel, mas era como tentar agarrar um peixe que se lhe escapava por entre os dedos, sem sequer se dar conta do constrangimento.

Master Corde inquiriu solicitamente sobre a saúde de Walter, e ficou aliviado ao ouvir que estava a recuperar bem, ficando, contudo, triste, por saber que, até ao momento, nada do que fora tão vilmente roubado havia sido encontrado. Exprimiu o seu pesar, ao mesmo tempo que dava graças a Deus por lhes ter poupado a vida e a saúde. A sua esposa fez-se eco das suas palavras, de olhos baixos com modéstia, e uma voz como a de distantes pombas dos bosques. Daniel, cujos olhos se dirigiam com mais frequência ao rosto de leite e rosas de Cecily que ao semblante flácido e enfatuado do velho, dirigiu um caloroso convite a Master Corde para que trouxesse a sua esposa e viesse tomar uma refeição com o ourives logo que fosse possível, e animá-lo com a sua companhia. O mercador de lãs agradeceu-lhe, e manifestou o mesmo desejo, mas tinha de adiar esse prazer por uma semana ou mais, embora enviasse as suas cordiais saudações e prometesse lembrá-lo nas suas orações.

- Não imaginais - confidenciou Mistress Cecily, avançando a sua pequena mão e tocando no braço de Margery - como sois afortunada em ter um marido cujo negócio está firmemente enraizado em casa. Este meu homem ausenta-se constantemente com as mulas, o carro e os homens, ou para oeste, para o País de Gales, ou para leste, para Inglaterra, nos seus negócios de lãs e tecidos, e eu fico sozinha durante dias a fio. Amanhã cedo parte outra vez, veja lá, para Oxford, e eu vou ficar sem ele durante dois ou três dias.

Levantara por duas vezes as suas pálpebras suaves durante este queixume, uma vez pesarosamente em direcção ao marido, e outra, de uma forma tão extraordinariamente fugaz que deveria, mas não conseguira, iludir Margery, em direcção a Daniel, com os olhos brilhando intensamente num súbito clarão, mas imediatamente velados e serenos.

- Então, então, minha querida - disse o mercador de lãs com indulgência -, sabes que me apressarei a vir ter contigo.

-Demorará muito tempo-retorquiu ela, com um trejeito de desagrado. - Três ou quatro noites de solidão. E faríeis bem em trazer-me qualquer coisa bonita para me cativar quando regressardes.

Como, aliás, ela sabia que ele faria. Ele nunca voltava de uma viagem sem lhe trazer um presente para a suavizar. Tinha-a comprado, mas era suficientemente lúcido, na sua senilidade, para saber que teria de a comprar vezes sem conta para a conseguir manter. No dia em que ele se apercebeu disso, e reflectiu nas suas consequências, ela teria tido razões para temer pela sua esbelta garganta, pois ele era um homem possessivo e arrogante.

-Tendes muita razão, senhora! - disse Margery, impassível. - Sei muito bem como sou afortunada.

Demasiado bem, até! Mas o destino de um homem, tal como o de uma mulher, pode ser mudado, com um pouco de reflexão, perseverança e astúcia.

Liliwin tinha passado o dia de uma forma tão inesperada e agradável que esquecera, por vezes, por mais de uma hora, a ameaça que pendia sobre ele.

Logo que a Missa Solene terminou, o chantre conduziu-o com vivacidade até ao canto do claustro, onde já havia começado a separar, com a delicadeza e a frieza de um cirurgião, os fragmentos quebrados da rabeca. Um trabalho lento e dedicado, que exigia toda a atenção do aluno, se pretendia assistir a uma ressurreição. Uma excelente terapia contra a própria ideia da morte.

- Iremos reconstituir o que está partido - disse o irmão Anselm, decidido e feliz -, e veremos o que daí resulta. Não há problema se o produto, quando estiver acabado, ficar imperfeito, a verdade é que tocará outra vez. Se o seu som for balbuciante, nesse caso faremos outra, tal como uma geração segue o seu progenitor e retoma a música primitiva. Não há uma perda total. Passa-me essa folha de pergaminho, meu filho, e marca nela a ordem por que ponho estes fragmentos. -Meras lascas, algumas delas, mas ele colocou-as cuidadosamente na forma que tomariam quando restauradas. -Acreditas que irás tocar de novo neste instrumento?

- Sim - disse Liliwin fascinado -, acredito sim.

- Isso é bom, pois a fé é necessária. Sem fé nada se consegue. - Referiu-se a esta rara ferramenta como se teria referido a qualquer uma das que tinha ali à mão. Colocou ao lado o cavalete esculpido. -Um belo trabalho, e antigo. Esta rabeca teve mais de um dono até vir parar às tuas mãos. Não se renderá ao silêncio com facilidade.

Ele também não. A sua voz enérgica e suave fluía como um regato tranquilo enquanto trabalhava, e a sua música embalava como o murmúrio da água. E depois de ter separado e posto por ordem todos os fragmentos da rabeca, e colocado o pergaminho que os continha em lugar seguro, cobertos por um pano de linho, confrontou Liliwin imediatamente com o seu próprio órgão pequeno, perguntando-lhe se queria experimentá-lo. Não precisou de lhe mostrar como se usava, Liliwin já vira um a tocar, mas ainda nunca tinha tido a oportunidade de o experimentar ele próprio.

Ensaiou o dedilhar com bastante destreza para uma primeira tentativa, mas concentrou-se tão profundamente na melodia que estava a tocar, que se esqueceu de manipular os pequenos foles com a mão esquerda, e o som esgotou-se com um suspiro e fez-se silêncio. Interrompeu-se com uma gargalhada de espanto, e tentou de novo, com demasiada energia, com a mão tocando vagarosamente nas teclas. À terceira tentativa conseguiu. Tocou, extasiou-se, arrancou som atrás de som, tomando-lhe o jeito, equilibrando uma mão com a outra, tornando-se audacioso, tentando belos efeitos. É inacreditável o que apenas cinco dedos podem fazer.

O irmão Anselm apresentou-lhe uma curiosa fila de sinais inscritos em pergaminho, combinados com símbolos escritos que ele sabia serem palavras. Não podia lê-los, visto que não sabia ler em língua nenhuma. Para ele, aquilo não significava mais que um padrão agradável, semelhante ao que uma mulher poderia desenhar no seu bordado.

- Nunca aprendeste este segredo? E, no entanto, penso que o aprenderias depressa. Isto é música, posta de maneira que não apenas o ouvido, mas também a vista, a possa dominar. Olha para esta linha de notas, aqui! Dá-me o órgão.

Pegou nele e tocou uma linha de música.

- Isto que acabaste de ouvir, está aqui escrito. Ouve outra vez! -E de novo arrancou alegremente a melodia. -Aí está, agora toca-me isso!

Liliwin lançou energicamente a cabeça e retribuiu-lhe o excerto.

- Agora, segue-me... repete o que eu toco.

Era uma embriaguez, linha após linha de música para copiar e reproduzir. Em alguns minutos Liliwin começara a embelezar, a fazer variações, a devolver um eco mais intenso, que fazia um acordo perfeito com o original.

- Podia fazer de ti um cantor - disse o irmão Anselm, sentando-se com grande satisfação.

- Eu sou um cantor - disse Liliwin. Ainda nunca se dera conta de como ficava orgulhoso em poder dizê-lo.

-Não tenho a menor dúvida. A tua música e a minha seguem rumos diferentes, mas ambas são feitas destes pequenos sinais, e os sons que representam são os mesmos. Se cá ficares durante algum tempo, ensinar-te-ei a lê-los - prometeu Anselm, satisfeito com o seu aluno. - Agora toma lá, ensaia uma das tuas canções, e depois canta-a para eu ouvir.

Liliwin recordou-se das suas canções, e ficou um pouco atrapalhado ao verificar que muitas delas deveriam ser evitadas ali, pois eram indignas e ofensivas. Mas nem todas eram assim. Ele tinha uma favorita, que dizia respeito à primeira revelação de um jovem amor, e ao recordá-la agora, lembrou-se de Rannilt, tão pobre como ele, e igualmente desprezada, na sua cozinha cheia de fumo e vestuário grosseiro, com a sua nuvem de cabelos negros e o seu pálido rosto oval, iluminado por uns olhos radiantes. Dedilhou a melodia com sentimento, a mão esquerdajá hábil e segura nos foles. Tocou-a e cantou-a, e foi ficando tão absorvido no canto que mal notou como o irmão Anselm estava atarefado a tirar notas para o seu pergaminho.

- Acreditas - disse Anselm, mostrando a folha com satisfação - que acabaste de cantar o que aqui está aqui escrito? Ah, não as palavras, mas a música. Explicar-te-ei isto a seguir, aprenderás tanto a registar como a decifrar. É uma canção muito bonita, essa. Poderia ser usada como fundo de uma missa. Bem, por agora chega, tenho de ir preparar-me para Vésperas. Amanhã continuamos.

Liliwin arrumou o pequeno órgão na prateleira e saiu, confundido, para a noite que principiava. Um dia límpido, de um azul-pálido, dava pouco a pouco lugar a um crepúsculo de um azul mais escuro. Sentia-se esgotado, brando e realizado, tal como o próprio dia, silenciosa e esperançadamente vivo. Pensou nas suas velhas argolas e bolas de malabarista, escondidas nas mantas dobradas junto ao pórtico da igreja. Elas representavam outra das suas habilidades, que, se não fossem treinadas, enferrujariam e se perderiam. Ele ficara tão animado com o que se passara naquele dia, que foi buscá-las, e levou-as esperançadamente para o jardim, que se estendia em socalcos até aos campos de ervilhas que confinavam com o ribeiro Meole. Não havia ali ninguém, àquela hora o trabalho terminara. Desatou o nó do tecido, tirou para fora as seis bolas de madeira e as argolas, e começou a fazê-las girar de uma mão para a outra, pondo à prova os seus pulsos e a rapidez do seu olhar. Ele estava ainda rígido das contusões e desajeitado a princípio, mas, após algum tempo, recuperou a antiga destreza, e o prazer no seu talento. Poderia ser uma habilidade muito humilde, mas ainda assim era uma realização sua, e ele acarinhava-a. Encorajado, pôs de lado as bolas e as argolas e começou a testar a flexibilidade do seu corpo magro e nervoso, contorcendo-se em grotescos nós. Isto custou-lhe algumas dores nos músculos espezinhados e espancados, mas ele insistiu, decidido a não desistir. Finalmente, girou como uma roda ao longo da faixa de terra por cultivar no topo dos campos de ervilhas, enrolou-se como um anel e rolou pela encosta abaixo até à margem do regato, e subiu de novo, uma vez que a inclinação da encosta era suave, numa série de saltos mortais.

Novamente chegado ao nível onde as hortas e o herbário começavam, ele desenrolou-se, corado e satisfeito, e deu consigo a olhar espantado para a expressão escandalizada de um irmão de semblante azedo, quase tão magro como ele, que se encontrava a uns metros de distância. Olhou fixamente, confundido, para uns olhos arredondados e enfurecidos pela afronta.

- E assim que veneras este enclave santificado? - inquiriu o irmão Jerome, genuinamente inflamado. - Serão tais disparates e frivolidades próprios da nossa abadia? E tu, rapaz, tens assim tão pouca gratidão pelo abrigo que te é aqui concedido? Não és merecedor de santuário, se o aceitas tão levianamente. Como ousas afrontar assim o domínio de Deus?

Liliwin tremeu e gaguejou, arquejante e prostrando-se com humildade.

- Não fiz por mal. Estou grato, e venero sinceramente a abadia. Quis apenas ver se ainda conseguia exercer o meu ofício. É o meu modo de vida, preciso de treiná-lo! Peço perdão se fiz mal! - Intimidava-se facilmente, ali onde estava em dívida, e sem saber como se comportar num mundo que lhe era estranho. Toda a sua alegria breve, todo o prazer da música se desvaneceram. Pôs-se de pé, quase desajeitadamente, ele que tinha sido tão ágil há momentos atrás, e ficou de pé tremendo, de ombros curvados e olhos baixos. O irmão Jerome, que raramente tinha afazeres nos jardins, porque era o secretário do prior e não apreciava o trabalho manual, tinha ouvido no pátio principal o som fraco, estranho naqueles lugares, de bolas de madeira entrechocando-se no ar, e viera investigar em relativa inocência. Mas uma vez perante o espectáculo, oculto pelos arbustos que orlavam o herbário do irmão Cadfael, não mandara parar imediatamente, nem avisara o transgressor da sua ofensa, mantendo-se escondido, armazenando uma reserva de indignação até que o culpado se estendeu a seus pés. Possivelmente, a sua quota-parte de culpa tornou ainda mais radicais as censuras que lançou sobre o acrobata.

- A tua vida - disse ele desapiedadamente -, devia antes levar-te a rezar e a examinar a tua alma em vez destas loucuras. Um homem que, como tu, tem tais acusações pendendo sobre si, deve preocupar-se em primeiro lugar com o bem-estar da sua alma, pois quer tenha ou não uma vida para viver daqui em diante, tem uma alma para salvar uma vez paga a sua dívida neste mundo. Pensa nisso, e põe de parte as tuas ninharias, enquanto estiveres aqui abrigado. Não é próprio! É blasfémia! A tua dívida para connosco não é já suficientemente grande?

Liliwin sentiu o terror do mundo exterior acercando-se dele - não podia ser evitado por muito tempo. Tal como alguns ali dentro usavam auréolas suspensas, ele usava uma corda de forca, invisível, mas sempre presente.

- Não fiz por mal - murmurou ele desesperadamente e voltou- se, com os olhos turvos de tristeza, para procurar às apalpadelas a sua trouxa e retirar-se rapidamente aos tropeções.

- Dando cambalhotas e fazendo malabarismos aqui nos nossos jardins - relatou Jerome, ainda inflamado com a ofensa -, como um artista vagabundo numa feira. Como se pode desculpar? O direito de santuário é legítimo para os que se apresentam com a devida deferência, mas isto... Repreendi-o, evidentemente. Disse-lhe que deveria antes pensar na sua vida eterna, visto que tem contra si uma acusação mortal. "A minha vida!", diz ele! Ele que tem a sua vida em dívida!

O prior Robert exprimiu um certo desagrado e manteve a desdenhosa e ofendida calma do seu nobre semblante.

- O padre abade procede correctamente ao observar a inviolabilidade do santuário, ela não pode ser negada. Não é nossa responsabilidade, e não precisamos de nos preocupar com a culpa ou inocência daqueles que o reclamam. Mas temos, de facto, a ver com a ordem e o bom nome da nossa casa, e concordo que este hóspede não nos honra. Ficaria mais satisfeito se ele se fosse embora e se entregasse à justiça, lá isso é verdade. Mas, a não ser que ele o faça, temos de o suportar. Repreendê-lo quando ele transgride é não apenas o nosso direito, mas o nosso dever. Desenvolver esforços para o influenciar ou expulsar está para além de qualquer deles. A não ser que ele parta de sua livre vontade - disse o prior Robert -, tanto vós como eu, irmão Jerome, temos o dever de o auxiliar, proteger e rezar por ele. Quão sinceramente, quão resolutamente! Mas quão relutantemente!

 

     SEGUNDA-FEIRA: DO AMANHECER A COMPLETAS

O domingo acabou, claro e ameno, e a segunda-feira chegou, igualmente ensolarada, um esplêndido dia para a barreia, com um ar quente e uma brisa leve, e os arbustos e a relva secos e primaveris. Na casa dos Aurifaber todos estavam a pé bem cedo nos dias de barreia, que aconteciam de quinze em quinze dias ou de três em três semanas, para reduzir a confusão provocada pelo aquecimento de tanta água, e o trabalho de esfregar e bater com a cinza e a soda cáustica. Rannilt era a primeira a levantar-se, para acender o lume sob a caldeira de tijolo e barro e tirar a água do poço. Ela era mais forte que parecia e estava habituada ao peso. O que lhe pesava, e a isso não estava habituada, era o terror que sentia por Li-liwin.

Acompanhava-a a todo o momento. Se dormia, sonhava com ele, e acordava banhada em suor, com medo que ele já tivesse sido caçado e preso e ela sem saber de nada. E enquanto estava acordada e a trabalhar, a sua imagem não lhe saía da cabeça e sentia como que um grande fardo de ansiedade ardendo e pesando-lhe no peito. O medo por nós próprios esmaga-nos e oprime-nos pelo exterior, mas o medo por outrem é um monstro, uma ratazana voraz roendo por dentro, devorando-nos o coração.

O que haviam dito dele era falso, não podia, em circunstância alguma, ser verdade. E era a sua vida que estava em jogo! Ela não conseguira evitar ouvir tudo o que entre eles fora dito acerca dele, como todos se haviam unido para o acusar, e prometido a si próprios que seria enforcado pelo que fizera. Aquilo de que ela estava plenamente convicta que ele não tinha feito! Não estava na sua natureza agredir um homem, nem assaltar o cofre de ninguém. O serralheiro, que se levantara mais cedo que era seu hábito, ouviu-a a puxar o balde do poço, e saiu pela porta das traseiras para passear pelo jardim e dar os bons-dias. Rannilt pensou que ele não se teria dado a esse trabalho se tivesse sabido que era apenas a criada que ali estava. Ele fazia questão em ser atencioso com a família do seu senhorio, e nunca descurava as cortesias habituais entre vizinhos, mas essa preocupação raramente se estendia a Rannilt. Nem sequer se demorou ali nessa bela manhã, deu apenas uma pequena volta ao pátio e regressou de novo à sua porta. Aí, olhou para trás, observando por momentos os evidentes preparativos na casa do ourives, o grande monte de roupa para lavar, e o início da azáfama habitual. Susanna desceu com os braços cheios de roupa e meteu mãos à obra com a sua costumada, enérgica e silenciosa eficiência. Daniel tomou o pequeno-almoço e foi para a oficina, deixando Margery no átrio, solitária e irresoluta. Tinham acontecido demasiadas coisas no dia do seu casamento. Ela ainda não tinha tido tempo de se habituar à casa e à família, ou reflectir sobre a sua própria posição ali. Para onde quer que se virasse, no intuito de se tornar útil, Susanna já estivera antes dela. Walter ficara deitado até tarde, tratando da sua cabeça magoada, e a Srª Juliana ficara no quarto, mas Margery já não fora a tempo de lhes levar comida e bebida, isso já tinha sido feito. Ainda era cedo para pensar em cozinhar e, de qualquer modo, as chaves da casa estavam à cintura de Susanna. Margery concentrou a sua atenção no único local onde sentia que ela e os seus desejos eram dominantes, e entregou-se à tarefa de arranjar a seu gosto o quarto de solteiro de Daniel, e libertar a arca e o armário, a fim de obter espaço para as suas próprias roupas e enxoval. Durante esta tarefa descobriu muitos sinais da conhecida parcimónia da Srª Juliana. Havia roupas que deviam ter pertencido a Daniel quando era pequeno, e que, certamente, ele não vestiria mais. Cuidadosamente remendadas vezes sem conta, todas tinham sido feitas para durar o mais possível, e mesmo depois de já não servirem, tinham sido dobradas e guardadas. Bem, ela era agora a mulher de Daniel, este quarto iria ficar a seu gosto, e ela iria desfazer-se destas inúteis e mesquinhas lembranças do passado. Nesse dia a casa poderia ainda funcionar do modo habitual, como se ela não tivesse um papel a desempenhar, mas nem sempre seria assim. Ela não tinha pressa, e ainda tinha de reflectir bastante antes de empreender qualquer acção.

De joelhos no pátio, Rannilt esfregava e batia, com as mãos inflamadas pela soda cáustica. Pelo meio da manhã, toda a roupa estava espremida, dobrada e empilhada num grande cesto de vime. Susanna ergueu-o e pô-lo à cintura, levando-o pela encosta do jardim e atravessando o arco da muralha para espalhar a roupa pelos arbustos e pelo relvado macio virado a sul. Rannilt despejou a selha e esfregou o chão, e foi para dentro acender o lume e preparar o cozido de carne salgada para o jantar.

Aí, em silêncio e sozinha, ficou subitamente tão cheia de aflição por causa de Liliwin, que os seus olhos verteram bruscamente lágrimas sobre o pote, que, uma vez começadas, não mais conseguiu reprimir. Moveu-se às apalpadelas pela cozinha, tacteando e derramando lágrimas desamparadas pelo primeiro homem por quem se sentira atraída, e o primeiro que alguma vez a tinha desejado. Absorvida pela sua infelicidade, não ouviu Susanna entrar silenciosamente pela porta atrás de si, e ficar ali parada a olhar, observando as mãos tacteando o seu caminho, e os olhos ainda lacrimejantes.

- Meu Deus, rapariga, que é que tu tens agora?

Rannilt estremeceu e voltou-se embaraçada, balbuciando que não era nada, pedindo desculpa, que ia prosseguir o seu trabalho, mas Susanna interrompeu-a bruscamente:

- Alguma coisa há-de ser! Estou farta de te ver assim a fazer caretas e acabrunhada. Nestes últimos dois dias tens andado mole como um gato doente, e eu sei porquê. Aquele ladrãozito miserável não te sai da cabeça... eu sei! Eu sei que ele te andou a rondar com a sua voz macia e os seus gestos aduladores, estive a observar-te. Terás de ser tola ao ponto de te afligires assim por um patife?

Ela não estava zangada; nunca se zangava. Parecia impaciente, mesmo exasperada, mas indulgente, e a sua voz estava tão calma e controlada como sempre. Rannilt engoliu o sufocante resíduo de lágrimas, limpou os olhos húmidos, e entregou-se atarefadamente aos seus tachos e panelas, procurando ansiosamente à sua volta qualquer coisa que desviasse as atenções sobre a sua pessoa.

- Foi uma coisa que me deu por uns momentos... Já passou. Ai, tendes os pés e abainha do vestido molhados!-exclamou ela, aproveitando com gratidão a primeira oportunidade que lhe surgiu.

Susanna encolheu os ombros, rejeitando desdenhosamente aquela manobra de diversão.

- Deixa lá os meus pés molhados. O rio está um pouco cheio, e eu só reparei quando cheguei demasiado perto da margem, ao inclinar-me para pendurar uma camisa nos arbustos. E, então, os teus olhos molhados? Aí é que está a questão. Oh, rapariga tola, preocupas-te inutilmente! Aquilo é um vadio das estradas, que fez outras patifarias do mesmo género, e que vai ter o que merece na forca que o espera. Toma juízo, e tira-o do teu pensamento.

- Ele não é um vadio - disse Rannilt, com a coragem do desespero. -Ele não fez aquilo, eu sei, eu conheço-o, não seria capaz. Não está na sua natureza ser violento. E aflijo-me por ele, não posso evitá-lo.

- Estou vendo - disse Susanna, com resignação. - Vi isso desde o momento em que o atiraram ao chão. Estou a ficar farta dele e de ti. Quero que recuperes o juízo. Meu Deus, será que tenho de arcar com tudo nesta casa sem a tua pequena ajuda sequer? - Mordeu pensativamente o lábio, e perguntou bruscamente: - Ficas curada se eu te deixar ir ver com os teus próprios olhos que o acrobata está vivo e de boa saúde, e a salvo por algum tempo, infelizmente? Sim, e é bem possível que no fim ainda consiga escapar-se desta confusão!

Ela tinha dito palavras mágicas. Rannilt olhava-a fixamente de olhos enxutos, brilhante como a chama de uma vela.

- Ver? Vê-lo? Quereis dizer que podia lá ir?

- Tens pernas para andar - disse Susanna com mordacidade. -Não é longe. Eles não fecham os portões a ninguém. Podes até voltar no teu pleno juízo, quando vires a pouca importância que ele te liga a ti, enquanto tu despedaças o teu tolo coração por ele. Pode ser que o venhas a conhecer tal como ele é, tanto melhor para ti. Sim, vai. Vai, e acaba com isto! Desta vez cá me arranjo sem ti. É altura de a mulher de Daniel começar a tornar-se útil. É um bom treino para ela.

- Falais a sério? - murmurou Rannilt, confundida com tanta generosidade. -Posso ir? Mas quem é que olha aqui pelo caldo e pela carne?

- Eu faço isso. Deus sabe que já o fiz bastantes vezes. Vai, digo-te eu, vai depressa antes que eu mude de ideias, fica lá todo o dia, se isso te fizer voltar curada. Posso muito bem passar sem ti por esta vez. Mas lava a cara, rapariga, e penteia o cabelo, não te deixes ficar mal, nem a ti, nem a nós. Podes levar alguns desses bolos de aveia num cesto, e os restos que sobraram de ontem. Se ele agrediu o meu pai - disse Susanna rudemente, voltando-se para pegar na concha e mexer a panela que fervia na grade da lareira -, não tem boa coisa à sua espera no fim, não há necessidade de lhe regatear a comida enquanto ainda está vivo. - Olhou para trás sobre o ombro para Rannilt, ainda suspensa e desorientada. -Vai visitar o teujogral, estou a falar a sério, podes ir. Duvido que ele se lembre sequer da tua cara. Vai, e toma juízo!

Aturdida de espanto, e quase nem acreditando em tais benesses, Rannilt lavou a cara e arranjou o seu emaranhado de cabelos escuros com as mãos a tremer, pegou num cesto e encheu-o rapidamente com todos os bocados que lhe apareceram à frente, e saiu pelo átrio como uma criança sonâmbula. Foi por puro acaso que Margery estava nesse momento a descer a escada segurando nos braços um monte de roupa para pôr de parte. Reparou na pequena e furtiva figura que passava rapidamente em baixo, e com uma surpreendida benevolência, visto que esta enjeitada era ali tão estranha e solitária como ela própria, perguntou:

- Onde é que te mandaram com tanta pressa, rapariga? Rannilt parou obedientemente, e ergueu os olhos para o rosto arredondado e fresco de Margery.

- Mistress Susanna deu-me autorização. Vou à abadia, levar estas provisões a Liliwin. - O nome, tão cheio de significado para ela, não dizia nada a Margery. - O jogral. Aquele que dizem ter agredido Master Walter. Mas eu tenho a certeza de que não o fez. Ela disse que eu podia ir, ver com os meus olhos como ele estava... porque eu estava a chorar...

- Recordo-me dele - disse Margery. - Um homem pequeno, muito novo. Eles têm a certeza de que ele é o culpado e tu tens a certeza de que não é? - Os seus olhos azuis estavam sérios. Ela procurou através da pilha de roupa que segurava nos braços, e sorriu leve e fugidiamente. - Ele não estava muito bem vestido, se bem me lembro. Há aqui uma cota que era do meu marido há uns anos e um capucho. O homenzinho podia usá-los, penso eu. Leva-os contigo. Seria uma pena desperdiçá-los. E a caridade é aprovada pelo Céu, mesmo para com os pecadores.

Ela tirou-os para fora compenetradamente, um belo gibão azul-escuro, que deixara de servir quando ainda mal começava a ser remendado, e uma capa com capuz castanho-avermelhada, bastante passajada.

- Leva-os! Aqui não servem para nada! - Para nada, excepto a satisfação que lhe dava despachá-las para a insignificante criatura condenada por todos os membros da sua nova família. Era o seu gesto de independência.

Rannilt, cada vez mais confundida, pegou na oferta, meteu-a no cesto, fez uma vénia muda e fugiu antes que esta nunca vista e quase incrível maré de generosidade se esgotasse, e a comida, as roupas e o feriado se desmoronassem à sua volta.

Susanna cozinhou, serviu a refeição, limpou e andou pelo seu domínio com um sorriso algo severo nos lábios. O governo da casa, sob a sua supervisão, era mais generoso que o fora sob a alçada da Srª Juliana, e nesse dia a comida até sobrava, mesmo depois de ela ter levado à loja a porção habitual a Iestyn, sentando-se a fazer-lhe companhia enquanto ele comia, para trazer depois o prato para a cozinha. O que sobrara não merecia a pena guardar para o dia seguinte, mas era o suficiente para uma pessoa. Ela desfiou para o prato os restos da carne cozida, e levou-o à loja do serralheiro, como fazia às vezes quando havia o suficiente.

John Boneth estava a trabalhar na sua bancada e levantou os olhos quando ela entrou, com a tigela na mão. Ela olhou em redor e viu tudo em plácida ordem, mas não havia sinais de Baldwin Peche, ou de Griffin, que fora, provavelmente, fazer algum recado.

- Temos umas sobras, e sei que o teu patrão não é grande cozinheiro. Trouxe-lhe o jantar, se é que ele ainda não comeu.

John tinha-se posto de pé respeitosamente, dirigindo-lhe um sorriso deferente. Conheciam-se há cinco anos, mas mantendo sempre a mesma discreta distância. A filha do senhorio, do rico mestre artesão, não era para um simples assalariado.

- É muita bondade sua, minha senhora, mas o patrão não está cá. Não o vejo desde o meio da manhã, deixou-me duas ou três chaves para fazer. Penso que vai passar o dia fora. Disse qualquer coisa acerca de os peixes morderem a isca.

Não havia nisso nada de estranho. Baldwin Peche contava com este homem para lhe tomar conta do negócio de uma forma tão competente como ele próprio o faria, e tinha tendência para tirar férias sempre que lhe apetecia. Ele podia estar apenas a fazer a ronda das tabernas, trocando as suas próprias informações por quaisquer outros escândalos que estivessem a ser comentados, ou poderia estar junto às barricas perto do rio, ou ter saído no seu barco, que ele guardava num pátio perto da comporta, a alguns minutos de distância. Os salmões deveriam estar a subir o Severn, nesta época. Um pescador poderia muito bem sentir-se tentado a experimentar a sua sorte.

-E não sabes se ele volta? - Susanna leu o seu pensamento, encolheu os ombros e sorriu. - Eu sei! Bem, se ele não está aqui para o comer... Imagino que ainda tens espaço para arrumar isto, não é verdade, John? - Ele trazia consigo, geralmente, um naco de pão e uma fatia de toucinho salgado, ou um pedaço de queijo. Carne era comida de festa na casa da sua mãe. Susanna pousou a tigela na bancada à sua frente, e sentou-se do lado oposto no banco dos fregueses, apoiando confortavelmente os cotovelos na tábua. - Tanto pior para ele. Na taberna pagará mais por uma dose pior. Sento-me aqui ao pé de ti, John, e depois levo a tigela.

Rannilt desceu o Wyle até às portas da cidade, e atravessou a sua arcada sombria em direcção ao sol que brilhava na ponte. Ela fugira apressadamente da casa, com medo que a chamassem de volta, mas tinha caminhado devagar pela cidade com receio do que a esperava. Pois o caminho era assustador, para uma pessoa ignorante, semi-selvagem, rejeitada pelo País de Gales, e que apenas fora acolhida em Inglaterra como um par de braços para trabalhar. Ela não sabia nada acerca de monjes ou mosteiros, e muito pouco sobre a cristandade. Mas ali dentro da abadia estava Liliwin, e ela iria lá. Os portões, dissera Susanna, não se fechavam para ninguém. No outro lado da ponte, ela passou junto à pequena mata onde Liliwin se tinha enrolado para dormir, e onde fora perseguido à meia-noi-te. Do outro lado do Foregate encontrava-se a represa do moinho, e as casas sob a concessão da abadia, e mais para além, começava a muralha do enclave, em cujo interior se viam os telhados da enfermaria, da escola e da casa de hóspedes, e o alto edifício da portaria. A grande porta ocidental da igreja, do lado exterior dos portões, confrontou-a com majestade. Mas depois de ter entrado timidamente no grande pátio, ganhou nova coragem. Mesmo àquela hora, talvez a mais calma do dia, havia ali dentro um considerável movimento de idas e vindas, visitantes a chegar e a partir, criados passeando-se por ali com recados ocasionais, mendigos a pedir, vendedores ambulantes gozando o seu descanso do meio-dia, todo um mundo de gente, alguns dos quais tão humildes como ela. Poderia andar ali no meio deles sem que dessem por ela. Ela precisava, contudo, de encontrar Liliwin, e procurou à sua volta a fonte de informação mais compreensiva.

Não foi abençoada na sua escolha. Um homem de pequena estatura, com o hábito da ordem, que atravessava precipitadamente o pátio; escolhera-o porque ele era tão pequeno e franzino como Liliwin, e os seus ombros tinham uma inclinação desanimada que lhe fazia lembrar Liliwin, e porque alguém que parecia tão modesto e ignorado deveria certamente condoer-se dos que eram tão insignificantes como ele. O irmão Jerome teria ficado profundamente ofendido se o tivesse sabido. Não sendo o caso, não ficou desagradado com a profunda vénia que a suplicante rapariga lhe fez, e o tímido sussurro com que se lhe dirigiu.

- Por favor, senhor, fui mandada pela minha patroa com esmolas para o jovem que aqui está em santuário. Rogo-vos a bondade de me ensinardes onde posso encontrá-lo.

Ela não tinha dito o seu nome porque isso era algo de íntimo, a manter ciosamente à parte. Jerome, embora pudesse lamentar que uma senhora pudesse estar tão mal orientada ao ponto de enviar esmolas ao criminoso, ficou um pouco desarmado com a abordagem. Uma criada cumprindo a sua incumbência não podia ser recriminada pelos erros da sua patroa.

- Encontrá-lo-eis ali, no claustro, com o irmão Anselm. - Indicou a direcção de má vontade, desaprovando o tratamento complacente do irmão Anselm para com um acusado, mas não censurando Rannilt, até ter notado como o seu rosto se iluminara e os seus pés se apressaram a seguir a direcção que ele apontara. Não era apenas uma rapariga a fazer um recado, estava demasiado alegre! - Presta atenção, rapariga, a mensagem que tens para ele deve ser entregue com decoro. Ele está em liberdade vigiada por uma acusação muito grave. Podes estar meia hora com ele, podes e deves exortá-lo a meditar sobre a sua alma. Faz o teu recado e vai-te!

Ela fitou-o com uns olhos muito abertos, e ficou por um instante muito quieta. Balbuciou algumas palavras de submissão, enquanto os seus olhos se inflamaram misteriosamente, com um brilho profundamente inquietante. Fez uma reverência ainda mais profunda, até ao chão, mas ergueu-se como um anjo que se eleva nos ares, e voou para o claustro que ele lhe apontara.

Pareceu-lhe enorme, com quatro corredores de pedra em redor de um jardim, onde as flores da Primavera floresciam em tons de dourado, branco e roxo sobre o chão relvado. Ela percorreu rapidamente um dos corredores entre um sentimento de terror e de encantamento, virou para o segundo com um temor respeitoso das celas mobiladas com mesas inclinadas e bancos, todas vazias à excepção de uma, onde um concentrado sábio copiava coisas tão extraordinárias, que nem sequer levantou a cabeça quando ela passou. No fim deste corredor, ecoando de uma cela semelhante, ouviu a música. Ela nunca tinha ouvido um órgão tocar, era um som mágico para ela, até que ouviu uma doce e sublime voz acompanhando-a alegremente, e soube que era de Liliwin.

Ele estava inclinado sobre o instrumento e não a ouviu chegar. Nem o irmão Anselm, igualmente absorvido ajuntar os fragmentos da parte de trás da rabeca. Ela permaneceu timidamente à entrada do cubículo, e apenas quando a canção terminou se aventurou a falar. Nesse momento vital ela não sabia como seria recebida. Que provas tinha de que ele tivesse pensado nela, desde aquela hora que eles haviam passado juntos, como ela tinha constantemente pensado nele? Era bem possível que se estivesse a enganar a si própria, como Susanna dissera.

- Por favor... - começou Rannilt humildemente e com hesitação.

Nessa altura ambos levantaram os olhos. O velho fitou-a com uns suaves olhos curiosos, serenos e bondosos. O jovem arregalou os olhos, ficou boquiaberto e corado. Numa alegria incrédula, pousou o seu estranho instrumento às cegas no banco a seu lado, e levantou-se vagarosamente, cautelosamente, com movimentos suaves, quase furtivos, como se qualquer estremecimento súbito pudesse fazê-la vacilar e dissolver-se no ar, desvanecendo-se como a bruma matinal.

- Rannilt... És mesmo tu?

Se isto era realmente uma loucura, então ela não era a única louca. Ela olhou para o irmão Anselm, cujos dedos devotados se mantinham imóveis, para não se desviarem da tarefa que tinha interrompido nas suas delicadas operações.

- Por favor, gostaria de falar com Liliwin. Trouxe-lhe uns presentes.

- Com certeza - disse o irmão Anselm amigavelmente. - Ouves, rapaz? Tens uma visita. Vai e alegra-te com ela. Agora não preciso de ti por algumas horas. Ouvirei a tua lição mais tarde. Caminharam em direcção um ao outro num sonho, sem uma palavra, deram-se as mãos e saíram furtivamente.

- Juro-te, Rannilt, eu não lhe bati, não o roubei, não lhe fiz mal. - Ele dissera-o pelo menos uma dúzia de vezes, no pórtico sombrio onde estavam dobradas as mantas, a sua delgada enxerga fora estendida, e os pobres utensílios da sua profissão haviam sido escondidos, num canto do banco de pedra, como se houvesse neles algo de vergonhoso. E não teria sido necessário dizê-lo uma vez sequer, como ela lhe respondera uma dúzia de vezes.

- Eu sei, eu sei! Não acreditei nisso nem por um momento. Como podes duvidá-lo? Eu sei que tu és bom. Eles vão descobri-lo, terão de o reconhecer.

Eles tremeram ao mesmo tempo e mantiveram as mãos juntas num abraço desesperado, e o contacto fez tremer os seus corpos inexperientes com uma excitação que nenhum entendia.

- Oh, Rannilt, se tu soubesses! Isso foi o pior de tudo, que tu pudesses afastar-te de mim e acreditar que eu fosse tão vil... Eles acreditam, todos eles. Só tu...

- Não - disse ela com firmeza. - Não estou tão certa disso. O irmão que vem dar remédios à Srª Juliana, o que te trouxe as tuas coisas... E esse bondoso irmão que te está a ensinar... Oh, não, não estás abandonado. Não deves pensar assim!

- Não! - reconheceu ele, agradecido. - Agora acredito, tenho confiança, se tu estiveres comigo... - Ele estava cheio de espanto por alguém daquela casa hostil a ter enviado a ele. - Ela foi boa, a tua senhora! Estou-lhe tão reconhecido...

Não pelas ofertas de comida, sobejos para ela, acepipes para ele. Não por isso, mas por esta proximidade que lhe perturbava os sentidos numa excitação febril, prazer e inquietação nunca antes experimentados, e que só podia ser amor, o amor que ele havia cantado de cor durante anos, sem que o seu corpo e o seu espírito o compreendessem.

O irmão Jerome, fiel ao que sentia ser o seu dever, tinha prestado atenção à passagem do tempo, e surgiu ameaçadoramente atrás deles, aproximando-se inexoravelmente pelo corredor vindo do átrio principal. Com as sandálias movendo-se silenciosamente nas lajes, observou ao chegar os ombros juntos, as duas cabeças, a loura e a morena, inclinadas uma para a outra com as têmporas que quase se tocavam. Era certamente altura de os separar, aquele não era local para tais abraços.

- Tudo irá acabar bem - murmurou Rannilt. - Verás! Mistress Susanna diz o mesmo que eles e, no entanto, deixou-me vir. Penso que ela não acredita verdadeiramente... Disse que eu podia ficar o dia todo.

- Oh, Rannilt... Oh, Rannilt, como te amo...

- Donzela - disse o irmão Jerome, asperamente reprovador atrás deles -, tiveste tempo suficiente para cumprir o recado da tua patroa. Não podes permanecer mais tempo. Tens de pegar no teu cesto e partir.

Era uma sombra não maior que a de Liliwin, ali atrás deles, negra contra o sol oblíquo do meio da tarde, e contudo lançava uma tal escuridão sobre eles que lhes era quase insuportável. Mal se tinham dado as mãos, mal se tinham dado conta das possibilidades que os seus delgados corpos encerravam, e tinham de se separar. O monje tinha autoridade, falava em nome da abadia, não havia que negá-lo. Tinha sido concedida protecção a Liliwin, como poderia ele então resistir às restrições que lhe eram impostas? Eles levantaram-se, trémulos. A mão dela crispou-se convulsivamente na dele, e o seu contacto percorreu-o como um fogo reavivado, extinto por um poderoso vento que era o seu próprio desespero e raiva.

- Ela vai - disse Liliwin. - Concedei-nos apenas, por piedade, alguns momentos juntos na igreja para rezarmos.

O irmão Jerome achou o pedido justo, desarmante até, e recuou para lhes dar passagem quando Liliwin a conduziu, segurando o cesto na outra mão, através do pórtico até ao escuro interior da igreja. O silêncio e a escuridão fecharam-se sobre eles. O irmão Jerome respeitara a sua intimidade e ficou no exterior, embora não tencionasse afastar-se enquanto não visse um deles sair sozinho. E poderia ser a última vez que ele a veria! Ele não podia suportar que ela partisse tão cedo, talvez perdida para sempre, quando ela tinha permissão para se ausentar durante todo o dia. Fechou a mão possessivamente sobre o braço dela, conduzindo-a para dentro, para os sombrios recantos de pedra da capela do transepto, para lá do altar paroquial. Ela não iria daquela maneira! Eles não tinham sido seguidos, não havia mais ninguém lá dentro naquele momento, e Liliwin estava agora bem familiarizado com cada recanto e vão daquela igreja, uma vez que a tinha percorrido cheio de inquietação e receio na primeira noite que ali passara sozinho, quando os seus ouvidos ainda estavam atormentados pelos sons da perseguição, e ele tinha receio de dormir na sua enxerga no pórtico.

- Não vás, não vás! - Os seus braços rodeavam-na firmemente, enquanto se abraçavam no canto mais escuro, e os seus lábios murmuravam excitadamente sobre a face dela. - Fica comigo! Tu podes, tu podes, eu mostro-te um sítio... Ninguém saberá, ninguém nos encontrará.

A capela era estreita, o altar largo, ocupando praticamente todo o espaço entre as colunas que o rodeavam, e sobressaía da cavidade que se estreitava atrás dele. Havia ali uma pequena caverna, para dentro da qual apenas duas criaturas tão pequenas e magras como eles poderiam rastejar. Liliwin tinha-a assinalado como um local para onde poderia retirar-se, se os perseguidores conseguissem arrombar a porta, e sabia que o seu corpo conseguia transpor a passagem, não constituindo, portanto, uma barreira para ela. E no interior havia escuridão, privacidade, invisibilidade.

- Aqui, desliza para dentro! Ninguém verá. Quando ele se der por satisfeito, quando se for embora, virei ter contigo. Poderemos ficar juntos até Vésperas.

Rannilt entrou para onde ele a impelia; teria feito tudo o que ele lhe pedisse, o seu desejo era tão violento como o dele. O cesto vazio foi empurrado atrás dela através da estreita abertura. O seu assustado murmúrio fez-se ouvir na escuridão:

- Tu vens? Depressa?

- Venho! Espera por mim...

Invisível e imóvel, não murmurou, nem fez mais ruído. Liliwin voltou-se, tremendo, e voltou para trás pelo altar paroquial, saindo pelo pórtico sul para o corredor oriental dos claustros.

O irmão Jerome tinha tido a delicadeza de se retirar para o jardim central, para tornar a sua zelosa vigilância um pouco mais discreta, mas os seus olhos penetrantes continuavam fixos na entrada, e o aparecimento da figura solitária, de cabeça baixa e ombros encurvados, pareceu satisfazê-lo. Liliwin não precisou de simular abatimento, ele já chorava lágrimas de nervosismo que eram um misto de alegria e desgosto. Não virou para o escritório para voltar para junto do irmão Anselm, mas dirigiu-se para lá do assento do pórtico, onde estavam as ofertas de comida e roupa sobre as mantas dobradas, e saiu para o pátio e para o jardim. Mas não foi longe, apenas o suficiente para se esconder entre os arbustos mais próximos, de onde podia olhar para trás e ver o irmão Jerome desistir da vigilância e partir rapidamente em direcção ao pátio da casa de lavoura. A rapariga fora-se embora, pela porta ocidental da igreja; a presença perturbadora fora afastada, a ordem monástica restaurada, e a autoridade do irmão Jerome havia sido convenientemente respeitada. Liliwin voou de regresso à sua enxerga no pórtico, enrolou a comida e as roupas nos cobertores, e olhou em redor, cuidadosamente, para se assegurar de que ninguém lhe estava a prestar atenção, quer dentro, quer fora da igreja. Quando teve a certeza disso, deslizou para dentro com a trouxa debaixo do braço, precipitou-se para a capela, e escorregou tão rapidamente como uma enguia por entre o altar e a coluna, para dentro do escuro abrigo que ficava por detrás. As mãos de Rannilt estenderam-se para ele, o seu rosto estreitou-se contra o dele, estremeceram juntos, quase invisíveis um para o outro, e precisamente por estarem envoltos nesse mistério, ficaram subitamente soltos de todos os constrangimentos do mundo exterior, capazes de comunicar sem palavras, libertos da timidez e da vergonha, amantes confessos. Isto era algo bem diferente até do que haviam sentido quando estavam sentados juntos no pórtico, antes de a serpente de Jerome ter sibilado no seu Éden. Ali eles não tinham feito mais que dar-se as mãos, e mesmo essas, escondidas entre os dois, como se fosse caso para recato e pudor. Aqui não havia nada disso, apenas uma candura que se expandia na escuridão, dando e recebendo apaixonadas e pouco experientes carícias.

Havia ali espaço suficiente para fazer um leito, com os cobertores, o cesto e as roupas de Daniel, e se o chão estava coberto de poeira acumulada ao longo do tempo, isso ainda contribuiu para tornar mais fofa a cama que fizeram para eles. Sentaram-se muito juntos com as costas encostadas à parede de pedra, partilhando o seu calor, e os bocados que Susanna tinha dispensado, firmemente agarrados um ao outro para se darem mutuamente coragem, até se deixarem arrastar para uma ilusão de segurança, semelhante a um sonho em que a tranquilização era desnecessária.

Falaram, mas com poucas palavras e em murmúrios.

- Tens frio?

- Não.

- Sim, estás a tremer. - Ele mudou de posição e rodeou-a com o braço, apertando-a ao peito, e com a mão livre puxou um canto do cobertor para a tapar, prendendo-a a si. Ela esticou o braço sob a lã áspera, deslizou a mão sobre o seu pescoço, e aproximou dele os lábios, a face e a fronte acariciadora, arrastando-o consigo para baixo até ficarem deitados um sobre o outro, soltando em uníssono longos e profundos suspiros.

Houve qualquer coisa que os fulminou, aparentemente, que os fez agitar-se violentamente, e os fundiu num só sem que tivesse havido da sua parte qualquer acção consciente. Eles eram igualmente inocentes, igualmente sábios. Saber de cor é uma coisa. O que eles experimentaram não tinha qualquer semelhança com o que eles pensavam que sabiam. Depois, movendo-se um pouco apenas para se enlaçarem ainda mais carinhosamente, adormeceram nos braços um do outro, para despertarem cerca de uma hora mais tarde com o mesmo impulso, e se amarem de novo sem sequer estarem plenamente acordados. Depois dormiram de novo, tão profundamente, numa tal exaustão de encanto e felicidade, que nem o cântico de Vésperas no coro os perturbou.

- Queres que te vá buscar a roupa? - ofereceu Margery, à tarde, fazendo uma intromissão conciliatória nos domínios de Susan-na, ao ver aquela compenetrada dona-de-casa atarefada com os preparativos da ceia.

- Obrigada - disse Susanna, mal levantando os olhos do seu trabalho -, mas eu própria o farei. "Ela não dará um passo para se aproximar de mim", pensou Margery, desanimada. "Asua roupa, as suas despensas, a sua cozinha!" E nessa altura Susanna olhou realmente para cima, sorriu até; o seu habitual sorriso de esguelha, mas não hostil.

- Se me queres ajudar, toma antes conta da minha avó. Tu és nova para ela, será mais amigável contigo, e mais dócil. Eu tive de o fazer durante anos, estamos fartas uma da outra. Somos demasiado parecidas. Tu és uma novidade. Será um acto de bondade.

Margery sentiu-se sem argumentos e desarmada.

- Está bem - disse ela, com convicção, e foi-se embora para fazer o melhor que pudesse pela velha senhora, que, na realidade, refreou a sua malevolência com a recém-chegada.

Só mais tarde, ao ver Daniel do lado oposto da mesa, silencioso, desatento e brilhando de satisfação com um secreto contentamento, ela voltou a cismar na sua ausência de estatuto ali, e a meditar sobre quem tinha as chaves daquela casa penduradas à cintura, e na voz que podia reter ou libertar a criada que continuava ausente.

- Interrogo-me - disse o irmão Anselm, ao sair do refeitório depois da ceia - sobre onde é que o meu aluno poderá ter ido. Tem sido tão aplicado, desde que eu lhe mostrei as pautas. Um ouvido de anjo, apurado como o de um pássaro, e a voz a mesma coisa. E nem sequer veio à cozinha buscar a sua ceia.

- Nem foi mudar a ligadura do braço - concordou o irmão Cadfael, que tinha passado toda a tarde atarefado, plantando, fazendo infusões e misturas no seu herbário. - Embora Oswin o tenha já examinado, e verificado que está a sarar muito bem.

- Esteve aqui uma criada que lhe trouxe um cesto de acepipes de casa da patroa - disse Jerome, com um ouvido atento na sua direcção. - Não há dúvida que não sentiu apetite para a nossa humilde ração. Tive motivo para os admoestar. É capaz de ter ficado preocupado, e estar por aí aborrecido, sozinho.

Não lhe havia ocorrido, até essa altura, que não tinha visto o indesejado visitante desde que o rapaz saíra sozinho da igreja; agora parecia, aliás, que o irmão Anselm, que tinha mais razões para esperar passar o tempo com o seu aluno, também não tinha visto vestígios dele. O enclave da abadia era vasto, mas não tão grande que um homem virtualmente prisioneiro pudesse desaparecer dentro dele. Se é que ele ainda estava lá dentro!

Jerome não disse nem mais uma palavra aos seus companheiros, mas passou a última meia hora antes de Completas efectuando uma rápida busca por todos os cantos do enclave, e terminou no pórtico sul. A enxerga sobre o banco de pedra estava vazia e não fora calcada, e os cobertores inexplicavelmente desaparecidos. Ele não reparou na pequena trouxa de tecido escondido num canto da palha. Ao que lhe era dado observar, não restavam sinais da presença de Liliwin.

Foi o que ele relatou ao prior Robert, ao regressar sem fôlego no preciso momento em que Completas deveria começar. Robert não sorriu propriamente, o seu rosto ascético permaneceu benigno e brando como sempre, mas irradiou, de certo modo, uma expressão de alívio e cauteloso prazer.

- Bem, bem! - disse Robert. - Se o jovem transviado foi suficientemente tolo para abandonar este local de segurança por causa de uma mulher, foi de sua livre vontade. É um assunto lamentável, mas ninguém daqui tem culpa disso. Não se pode ser prudente pelos outros. - E conduziu o cortejo para o coro com o seu majestoso porte habitual, respirando mais facilmente agora que o espinho fora removido da sua pele. Ele não recomendou a Jerome que não dissesse, por enquanto, nada a ninguém; não havia necessidade, compreendiam-se perfeitamente um ao outro.

 

                   DE SEGUNDA-FEIRA À NOITE

                   A TERÇA-FEIRA À TARDE

Liliwin acordou sobressaltado na escuridão, com o inconfundível som da voz do irmão Anselm conduzindo o cântico no coro, um desorientado sentimento de medo, e a lembrança total do maravilhoso e terrível acto que ele e Rannilt tinham cometido. Essa revelação de plenitude que era, ao mesmo tempo, uma blasfémia tão aterradora e imperdoável. Ali, atrás do altar, na presença de tão sagradas relíquias, o pecado da carne, por muito natural que fosse num campo ou numa mata, tornava-se mortal e votado às penas eternas. Mas o terror imediato era pior que o distante odor das chamas do Inferno. Ele recordou-se do local onde estava, e de tudo o que se passara, e os seus sentidos, aguçados pelo terror e aconsternação, reconheceram o ofício divino. Não era Vésperas! Completas! O fim da tarde já passara, a noite estava a terminar.

Tacteou com inquieta suavidade ao longo da manta, para colocar a mão sobre os lábios de Rannilt, e beijou-lhe a face para a acordar. Ela soltou-se instantânea e completamente das profundezas do sono. Ele sentiu o movimento dos seus lábios, sorrindo, contra a palma da sua mão. Ela lembrou-se, mas não como ele; não sentiu remorso e não teve medo. Ainda não! Isso ainda estava para vir. Com os lábios junto ao ouvido dela, no emaranhado do seu cabelo negro, ele murmurou:

- Dormimos tempo de mais... É noite, estão nos cânticos de Completas.

Ela sentou-se abruptamente, completamente desperta e escutando com ele:

- Oh, por piedade! Que fizemos nós? Tenho de ir... Vou chegar tão tarde!

-Não, sozinha não... Não podes. Aquele caminho todo no escuro!

- Não tenho medo.

- Mas eu não te deixo! Há ladrões e malfeitores de noite. Não vais sozinha, eu vou contigo.

Ela afastou-o de si com a mão espalmada contra o seu peito, com um murmúrio excitado mas ainda suave no rosto dele:

- Não podes! Não podes, não podes sair daqui, eles estão lá fora a vigiar, apanhavam-te.

- Espera... Espera aqui um pouco, deixa-me espreitar. - A débil luz do coro, excluída da sua fenda pelas paredes de pedra, mas iluminando fracamente a capela, começara a revelar num esboço pálido a forma do altar atrás do qual eles estavam encolhidos. Liliwin deslizou em seu redor, e avançou para espreitar para a nave por detrás de uma coluna. Havia um grupo de mulheres idosas do Foregate que assistiam habitualmente aos ofícios não paroquiais, preocupadas com a sua alma, uma vez que não moravam longe dali e não tinham nada mais interessante com que ocupar os serões na sua idade avançada. Estavam ali cinco naquela bela e amena noite, ajoelhadas no chão, no ângulo de visão de Liliwin, e uma delas devia ter trazido consigo o seu jovem neto, enquanto outra, suficientemente frágil para necessitar ou exigir um amparo, tinha um jovem de cerca de vinte anos para lhe prestar assistência. Eram em número suficiente para os encobrir, se Deus, o destino, ou o que quer que fosse, providenciassem a necessária dose de sorte.

Liliwin voou de volta à capela, e esticou a mão para puxar Rannilt para fora do ninho secreto.

- Depressa, deixa ficar as mantas - murmurou ele febrilmente -, mas dá-me as roupas, a cota e o capuz. Ainda ninguém me viu senão com estes farrapos.

O velho gibão de Daniel era folgado para ele, e vestido sobre as suas próprias roupas tornava-o mais corpulento e conferia-lhe um ar respeitável. A nave estava iluminada por apenas duas chamas junto à porta ocidental, e o capuz castanho-avermelhado, com a sua ampla capa, alargava-lhe a estatura e escondia-lhe uma parte da cara mesmo antes de ele o erguer sobre a cabeça ao deixar a igreja.

Rannilt agarrou-se ao braço dele, tremendo e implorando.

- Não... não faças isso... fica aqui, tenho medo por ti!

- Não tenhas medo! Vamos sair com esta gente, ninguém reparará em nós. -E, aterrorizados ou não, ficariam juntos ainda mais algum tempo, de braço dado, as mãos entrelaçadas.

- Mas como é que vais entrar outra vez? - proferiu ela, com os lábios no rosto dele.

- Hei-de entrar. Sigo outra pessoa qualquer através do portão. - O ofício estava a terminar, dali a pouco os irmãos dirigir-se-iam em procissão pela ala oposta até às escadas. - Anda, agora, junto àquelas pessoas.

As idosas, santas mulheres do Foregate, esperavam de joelhos, com os rostos virados para a fila de monges a passar, sombriamente, em direcção aos seus leitos. Depois levantaram-se e iniciaram a sua vagarosa caminhada para a porta ocidental, e, atrás delas, emergindo sem objecções da sombra, seguiram Liliwin e Rannilt, de perto e em silêncio, como se pertencessem ao grupo. E foi inacreditavelmente fácil. Os beleguins do xerife tinham dois homens constantemente de guarda do lado exterior da portaria, onde podiam vigiar quer o próprio portão, quer a porta ocidental da igreja, e tinham tochas acesas, mais para seu próprio prazer e conveniência que como um meio de observar os movimentos de Liliwin, visto que tinham de passar de algum modo as horas de vigilância, e não é possível jogar aos dados ou às cartas na escuridão. A uma hora daquelas não acreditavam que o refugiado fizesse qualquer tentativa de abandonar o seu abrigo, mas conheciam o seu dever e efectuavam a vigilância com razoável atenção. Puseram-se de pé para observar em silêncio à medida que os fiéis saíam da igreja, mas não tinham recebido ordens para examinar os que entravam, e por isso não os tinham contado, nem observado de perto, e não deram por qualquer discrepância no número dos que saíam. Nem havia também sinais do desbotado e coçado fato multicolor, mas elegantes e simples vestes de burguês. Não tendo conhecimento de que uma jovem rapariga tinha entrado, com o objectivo de ver o acusado, não pensaram nada de especial ao vê-la sair em sua companhia. Dois insignificantes jovens passaram e desapareceram na noite atrás das idosas mulheres. Que havia de estranho nisso?

Eles saíram, passaram, e as luzes das tochas enfraqueceram atrás deles. A escuridão fria rodeou-os, e os corações que tinham palpitado loucamente nas suas gargantas, como pássaros aterrorizados presos numa divisão acanhada, pousaram de novo no peito, batendo ainda violentamente. Por sorte, duas das mulheres idosas, e o jovem que amparava a mais velha, habitavam duas das pequenas casas junto ao moinho, como assalariados da abadia, tendo portanto de virar em direcção à cidade, e Liliwin e Rannilt não tiveram de percorrer sozinhos esse caminho desde o portão, caso em que se teriam tornado mais notados. Quando as mulheres se afastaram em direcção às suas portas, e os dois sozinhos se deslocaram furtivamente por entre a represa do moinho de um lado, a vegetação rasteira acima do Gaye do outro, e a rampa de pedra da ponte surgia indistinta à sua frente, Rannilt parou bruscamente, virando-o de frente para si na orla das árvores.

- Não vás até à cidade! Não vás! Vira aqui à esquerda, deste lado do rio há um carreiro para sul, eles não estarão de atalaia aí. Não vás pelo portão! E não voltes para trás! Estás cá fora, agora, e nenhum deles sabe. Não saberão senão amanhã. Vai, vai enquanto podes! Estás livre, podes deixar este sítio... - O seu murmúrio era urgente, resoluto pela esperança por ele, desolado pela sua própria consternação.

Liliwin apercebeu-se de uma tão claramente como da outra e, por um momento, também ele se sentiu despedaçado. Ele puxou-a mais para dentro, para o meio das árvores, e rodeou-a com os braços impetuosamente.

-Não! Vou contigo, não é seguro ires sozinha. Tu não sabes o que pode acontecer de noite num caminho escuro. Levo-te até ao teu pátio. Tenho de te levar, vou levar-te!

- Mas não vês... - Ela bateu desesperadamente com o seu pequeno punho no ombro dele. - Podias partir agora, fugir, abandonar esta cidade. Uma noite inteira para fugires. Não haverá outra oportunidade como esta.

-E abandonar-te a ti, também? E parecer aquilo que eles dizem que sou?-Colocou a mão trémula no queixo dela e virou para si com certa brusquidão o rosto de que ele apenas conseguia descortinar uma palidez oval na escuridão. - Queres que eu vá? Nunca mais me queres ver? Se é isso que queres, di-lo, e eu partirei. Mas diz a verdade! Não me mintas!

Ela deu um profundo suspiro, e abraçou-o em apaixonado silêncio. Momentos depois, murmurou:

- Não! Não... Quero-te a salvo... Mas quero-te!

Ela chorou um pouco, enquanto ele a apertava contra si e proferia suaves e inarticulados sons de conforto e consternação; depois, seguiram o seu caminho, pois isso estava assente, e não seria levianamente posto em causa. Passaram a ponte, com luz suave cintilando de ambos os lados da superfície ondulante do Severn, e as luzes avermelhadas das tochas nos pilares do portão da cidade à sua frente. Os guardas do portão estavam à vontade, agitando-se apenas quando algum zaragateiro ou bêbado ruidoso bamboleava junto a eles. Dois humildes mas respeitáveis jovens dirigindo-se apressadamente para casa mereceram-lhes apenas uma olhadela rápida e umas amigáveis boas-noites.

- Como vês - disse Liliwin ao subirem a sombria encosta e a curva do Wyle -, não foi assim tão difícil.

Muito suavemente, ela respondeu:

- Não.

- Entrarei outra vez com a mesma facilidade. Chegam viajantes tardios, seguirei atrás deles. Se não houver nenhum, posso dormir ao ar livre, e com estas roupas posso esgueirar-me lá para dentro quando o movimento matinal começar.

-Ainda podes ir-te embora daqui - disse ela - quando me deixares.

- Mas eu não te deixarei. Quando me for embora daqui, tu irás comigo.

Ele estava a desafiar a sua sorte e sabia-o, mas disse-o com toda a convicção. Tudo poderia acabar de uma forma desonrosa, ele poderia ainda sucumbir como a garça ao caçador, mas ele tinha tido até então um nome que, embora humilde, nunca fora difamado com acusações de roubo e violência, e valia a pena correr o risco de o defender; e agora tinha uma aposta ainda mais valiosa em jogo. Ele não se iria embora. Sujeitar-se-ia a ganhar ou a perder tudo. Na High Cross viraram à direita, e encontraram-se em locais mais estreitos e sombrios, e uma vez, pelo menos, algo furtivo e rápido se desviou do seu caminho, talvez receoso de dois, um dos quais poderia gritar suficientemente alto para acordar os outros, mesmo que o segundo pudesse ficar sem sentidos à primeira pancada. Shrews-bury estava bem servida de guardas, mas qualquer pessoa sozinha à noite está à mercê de gente sem escrúpulos, e a guarda não pode estar em toda a parte. Rannilt não se deu conta. O medo que tinha por Liliwin não era por algum perigo imediato ali.

-Eles vão ficar zangados contigo?-perguntou ele ansiosamente, ao aproximarem-se da loja de Walter Aurifaber, e da estreita passagem que conduzia ao pátio.

- Ela disse que eu podia ficar fora todo o dia se isso me curasse. - Ela sorriu imperceptivelmente na escuridão, longe de se encontrar curada, mas armada contra qualquer interrogatório. - Ela foi bondosa, não tenho medo dela, sei que estará do meu lado. Na profunda escuridão da soleira de uma porta do lado oposto da rua, ele puxou-a para si, e ela voltou-se e abraçou-o. Ocorreu-lhes a ambos que aquela podia ser a última vez, mas abraçaram-se, beijaram-se e recusaram-se a acreditar nisso.

- Agora vai, vai depressa! Ficarei de atalaia até teres entrado. Eles encontravam-se num sítio de onde ele podia observar toda a passagem, e ver o brilho débil que vinha de uma janela com as bandeiras abertas. Ele afastou-a de si, virou-a e deu-lhe um empurrão para a fazer avançar.

- Corre!

Ela foi-se embora, atravessando a rua e entrando na passagem, correndo obedientemente, ocultando por um momento o brilho do interior. Depois entrou no pátio, e a luz fraca iluminou-lhe os contornos no momento em que ela atravessou rapidamente a porta do átrio e desapareceu completamente. Liliwin manteve-se imóvel na soleira escura, procurando vê-la durante bastante tempo. A noite estava bastante calma e silenciosa à sua volta. Ele não queria ir-se embora. Mesmo quando a fraca centelha que vinha do pátio se extinguiu, ele continuou ali, esforçando-se por descortinar o caminho por onde ela desaparecera.

Mas estava enganado, a centelha não se extinguira, apenas fora tapada por cerca de um minuto, o tempo que a figura de um homem levou a atravessar silenciosamente a passagem e a emergir na rua. Um homem alto, bem constituído, jovem, a avaliar pelo seu modo de andar, apressado, pelo modo como se precipitou para fora da passagem, e ocupado com qualquer assunto secreto e ilegítimo, a julgar pelo modo ágil e furtivo como deslizava para dentro e para fora das sombras mais escuras ao afastar-se pela viela, com o capuz cuidadosamente puxado para a frente e a cabeça baixa. Havia apenas dois homens novos naquela casa durante a noite, e uma pessoa que tinha tocado, cantado e feito acrobacias uma noite inteira na sua companhia não tinha dificuldades em os distinguir. De qualquer modo, o belo gibão novo traía-o, apesar de todo o seu furtivo procedimento. Casado há apenas três dias, onde ia Daniel Aurifaber com tanta pressa àquela hora da noite?

Liliwin abandonou finalmente o seu posto, e voltou para trás, pela estreita rua fora em direcção à High Cross. Não voltou a ver aquela figura fugitiva. Algures naquele labirinto de ruas secundárias Daniel tinha-se eclipsado, ocupado com qualquer assunto secreto do qual nada se sabia. Liliwin prosseguiu o seu caminho descendo o Wyle até ao portão, e ficou seriamente abalado ao ser interceptado por um guarda mais desperto que os seus colegas.

- Então, então, rapaz, voltaste depressa. Queres sair outra vez a esta hora? Andas para trás e para diante como um cão numa feira.

-Fui acompanhar a minha namorada a casa-disse Liliwin, dizendo a verdade com alívio e facilidade. - Agora vou voltar para a abadia. Estou a trabalhar lá. - E estava, de facto, e iria trabalhar com mais afinco no dia seguinte, por ter abandonado o irmão Anselm naquele dia. - Ah, estás ao seu serviço, é? - O guarda era benevolente. - Não tomes votos irreflectidamente, rapaz, ou perdes essa tua namorada. Agora vai, e boa noite.

O túnel do portão, reflectindo a luz das tochas na sua abóbada de pedra, ficou para trás, o arco da ponte, ladeado por prata líquida, surgiu à sua frente, e, por cima, havia um ténue véu de nuvens, perfurado aqui e além por uma estrela desgarrada. Liliwin atravessou a ponte, e esgueirou-se de novo para as matas que orlavam a estrada. O silêncio era assustador. Quando se aproximou do portão da abadia teve medo de sair do abrigo e atravessar a rua deserta para afrontar o exame minucioso que o esperava do outro lado. Quer a porta ocidental da igreja, quer o portão pareciam igualmente inacessíveis.

Ele ficou ali de pé, escondido, vigiando o Foregate, e lembrou-se súbita e tentadoramente que estava, de facto, fora de santuário sem ter sido detectado, e com a noite toda à sua frente para se afastar o mais possível de Shrewsbury, e esconder-se o melhor possível entre pessoas que não o conhecessem. Ele era pequeno, fraco e estava cheio de medo e ávido de viver, e o desejo de escapar ao perigo que pendia sobre si era intenso. Mas ele sabia desde o início que não iria. Por essa razão, ele teria de regressar ao único local onde estaria a salvo por mais trinta e sete dias, ali ao alcance da casa onde Rannilt servia, e onde esperava e rezava por ele. Acabou por ter sorte, e nem sequer teve de esperar muito. Um dos criados da abadia tinha baptizado o filho mais novo nesse dia, e abrira as portas da sua casa ao grupo de parentes e amigos para comemorar o acontecimento. Os criados da abadia, pastores e vaqueiros que tinham sido seus convidados vinham em grupo pelo Foregate, bem alimentados e alegres, para regressarem aos seus aposentos no pátio da granja. Liliwin viu-os chegar, atravessando a estrada numa fila descuidada, e quando se aproximaram o suficiente, e se reuniram a conversar junto ao portão, os que dormiam lá dentro despedindo-se demoradamente dos que pernoitavam no exterior, certificou-se do rumo que cerca de um terço deles iria tomar, e saiu dos arbustos misturando-se com o grupo. Ninguém ia reparar em mais um no meio da escuridão. Entrou sem que ninguém lhe fizesse perguntas, e quando começaram a dispersar lentamente, afastou-se sorrateiramente para o claustro e para a sua cama abandonada no pórtico sul.

Estava no seio da igreja, e tudo estava terminado. Entrou timidamente e cheio de gratidão para a igreja vazia - ainda faltava mais de uma hora para Matinas -, e foi buscar os cobertores atrás do altar da capela do coro. Estava muito cansado, mas tão dolorosamente desperto que o sono parecia muito longínquo. Contudo, depois de ter feito a cama sobre a enxerga, escondido o seu novo capuz e a cota debaixo da palha, e se estendeu, ainda a tremer, no largo banco de pedra, o sono apoderou-se dele tão rapidamente que tudo o que ele se apercebeu foi da descida profunda a um poço de escuridão e paz.

O irmão Cadfael acordou muito antes de Primeiras para ir para a sua oficina, onde tinha deixado uma cozedura de trociscos a secar de um dia para o outro. Os arbustos do jardim, as ervas do herbário cintilavam suavemente com a humidade que ficara de um breve aguaceiro, e reflectiam a luz da alvorada em milhares de minúsculas superfícies prateadas. Um outro belo e fresco dia que começava. Excelente para plantar, húmido, ameno, com o solo finamente esboroado depois das intensas geadas do Inverno rigoroso. Não poderia haver melhores augúrios de germinação e crescimento. Ouviu o toque do sino para levantar para Primeiras, e dirigiu-se directamente à igreja, depois de ter arrumado os trociscos em segurança. E aí, no pórtico, estava Liliwin, com as suas mantas já dobradas e arrumadas, tendo trocado o seu mal remendado fato multicolor pela sua nova cota azul, e cujo cabelo pálido estava húmido e achatado por ter sido mergulhado na tina onde se tinha lavado. Cadfael demorou-se a observá-lo à distância, uma vez que não tinha sido visto. Portanto, onde quer que ele tivesse estado escondido ontem, ainda ali estava em segurança, e, além disso, desenvolvendo um muito louvável respeito por si próprio, incompatível com a culpa, na opinião de Cadfael.

O irmão Anselm, que só detectou a presença na igreja do aluno, que fizera gazeta, quando uma voz aguda e hesitante se juntou ao cântico, ficou igualmente tranquilizado e reconfortado. O prior Robert ouviu a mesma voz, olhou em redor com um desagrado incrédulo, e franziu as sobrancelhas em direcção a um consternado irmão Jerome, que o tinha induzido em erro. Ainda tinham o espinho cravado na carne, a oração de acção de graças havia sido prematura.

Os irmãos leigos estavam nesse dia a plantar novos rebentos num grande canteiro ao longo do Gaye, e a semear um campo com ervilhas para suceder à colheita dos que estavam junto ao ribeiro Meole. Cadfael saiu depois do jantar para inspeccionar o trabalho. Após o fraco aguaceiro nocturno o dia estava brilhante, ensolarado e sereno, mas as chuvas anteriores ainda estavam a correr pelo rio, desde as montanhas do País de Gales. A água batia na erva no local em que o prado se inclinava suavemente, e corroía mansamente a borda do talude, onde não conseguia atingir a relva. O rio tinha subido o comprimento de uma mão de há dois dias para cá, mas sempre com uma inocência iluminada pelo sol, como se tivesse vergonha de pôr em perigo os rapazitos nadadores, e não pudesse de modo algum ser considerado capaz de afogar ninguém. E este rio era tão perigoso como qualquer outro, tão traiçoeiro, como belo. Era um prazer passear ao longo do carreiro que não era mais que uma linha mais pálida na relva, seguindo pela rápida e silenciosa corrente abaixo. Cadfael seguiu com os olhos postos nos remoinhos semi-inchados e semitransparentes que rodopiavam e murmuravam sob o rebordo verde, uma corrente forte junto àquela margem. Do outro lado do rio, tão silencioso e rápido, elevavam-se as muralhas de Shrewsbury, no cume de uma íngreme encosta verdejante de jardins, pomares e vinhas e, mais adiante, a corrente juntava-se à sólida grandeza do castelo do rei, que protegia o estreito braço de terra que quebrava o cinto de água de Shrewsbury. Nesta margem, Cadfael tinha atingido os limites dos pomares da abadia, onde começavam as matas luxuriantes, que orlavam o último campo de trigo da abadia, e a velha azenha abandonada se projectava em direcção ao rio. Ele passou, abrindo caminho por entre as árvores e os arbustos, e continuou um pouco mais para a frente, para um local em que o terreno se nivelava com a água formando uma pequena enseada, coberta agora por água pouco profunda e transparente, com a corrente a entrar e a sair, sem perturbar o fundo de cascalho. As coisas tinham tendência para vir dar aqui e ser depositadas na margem, se o Severn estava a transbordar, e o recinto cercado pelo bosque ocultava o que aparecesse.

E algo completamente imprevisto tinha aparecido, jazendo ali num inquieto repouso, de rosto virado para baixo, com a cabeça encalhada na calma sepulcral do talude. Um corpo sólido, vestido com um tecido de boa qualidade, baixo e atarracado, uma redonda cabeça taurina, os cabelos flutuando, de um castanho-grisalho, que já começavam a rarear. Braços abertos, movendo-se languidamente no suave movimento da água pouco profunda, afastados da mortífera corrente central, com os dedos tocando ao de leve e desajeitadamente no cascalho. Pernas atarracadas, mas arrastadas para fora pela corrente ávida que lhes puxava os dedos dos pés, esticadas em direcção à corrente. Lançado para ali morto, todos os seus membros se agitavam e esforçavam por provar que estava vivo.

O irmão Cadfael arregaçou o hábito até ao joelho, precipitou-se pela encosta suave para dentro de água, pegou no corpo pelo capuz enrolado, que lhe balançava no pescoço, e pelo cinto de couro que tinha à cintura, e içou-o gradualmente para fora de água, para perturbar o mínimo possível a posição em que fora arrastado para a margem, e quaisquer vestígios que o rio não tivesse destruído nas suas roupas, cabelo e sapatos. Ele poderia ainda ter algo a dizer, mesmo no seu silêncio final.

O peso morto vergou-se nas mãos de Cadfael. Ele arrastou-o, a escorrer água, para o socalco de relva mais próximo, depositando-o aí na mesma posição em que estava no rio. Quem sabia quando e como ele tinha entrado na água?

Quanto a identificá-lo, não havia por enquanto necessidade de voltar aquele rosto encharcado para a luz do dia. Cadfael reconheceu o fino tecido castanho-avermelhado, a compleição robusta, a cabeça redonda em forma de nabo, com uma careca incipiente e uma sebe de cabelos castanhos em redor da reluzente placa do crânio. Apenas há duas manhãs atrás ele tinha passado uns momentos com esta mesma língua agora silenciada, nessa altura bastante fluente e travessa, gozando as suas partidas sem grande malícia. Baldwin Pehe já não tinha mais nada a ver com saborosos escândalos, e perdera a sua última luta com o rio, que lhe proporcionara tantas sortidas piscatórias, e, afinal, o pescara para a morte.

Cadfael levantou-o pela cintura, reparou na insignificante quantidade de água que lhe escorria da boca, que mal humedecia a relva, e deixou-o cair cuidadosamente para a mesma posição. Ficou um pouco intrigado por ver um fluxo tão escasso, visto que até os mortos podem expelir a água que engoliram, pelo menos durante algum tempo depois da morte. Ele tinha deixado uma marca superficial no cascalho da enseada, que era pouco agitada pelas correntes. Os seus contornos na relva duplicavam agora o que ele havia ali deixado. E como tinha Baldwin Peche vindo encalhar ali, como um peixe que dá à costa? Bêbado e descuidado ao longo da margem durante a noite? Cuspido pela borda fora do barco enquanto pescava? Ou teria tido complicações com algum salteador numa das ruas escuras e sido atirado à água pelo conteúdo da sua bolsa? Tais coisas aconteciam de facto de vez em quando, mesmo numa cidade bem governada, em noites suficientemente escuras, e, com efeito, parecia haver um líquido mais espesso e escuro no cabelo grisalho por detrás da orelha direita de Peche, como se a pele estivesse rebentada. As feridas na cabeça têm tendência para sangrar copiosamente, e mesmo após algumas horas na água as marcas podiam permanecer durante muito tempo. Ele havia nascido ali, conhecia o rio suficientemente bem para o respeitar, tanto mais que reconhecia ser fraco nadador.

Cadfael afastou a faixa de arbustos para ter uma visão nítida do Severn em ambas as direcções, e foi recompensado ao avistar uma pequena embarcação subindo a corrente, virando e rodando para tirar partido de cada remoinho, balançando e dançando como uma folha a cair, mas sempre avançando. Só havia um homem que conseguia manejar o remo com tanta facilidade e destreza, e, mesmo a alguma distância, aquela figura atarracada e escura era facilmente reconhecível. Madog, of the Dead-Boat (1), tão galês como o próprio Cadfael, era o barqueiro mais famoso em vinte milhas do curso do Severn, e tinha arranjado aquele nome como resultado da carga que frequentemente tinha de transportar, devido ao seu conhecimento de todos os locais onde pessoas desaparecidas, que se julgava terem sido levadas pelo rio, arrastadas pela corrente ou assaltadas, poderiam vir a aparecer. Desta vez, ele não tinha a bordo um passageiro silencioso; o objecto da sua busca estava à sua espera.

Cadfael conhecia-o bem e, sem razão plausível, à excepção da habitual ligação entre Madog e pessoas afogadas, tomou como certo

 

(1) Dead-Boat, aqui figura como nome próprio, mas significa o "barco dos mortos". (N. da T.)

 

que também neste caso a ligação tinha de se verificar. Levantou a mão e agitou o braço quando o bote se aproximou, aproveitando a corrente central, que era mais difusa e moderada. Madog olhou para cima, reconheceu o homem que lhe acenava, e com um movimento do remo trouxe o barco para terra, afastando-se do enganador silêncio e da rápida corrente que descia o rio, deixando esta enseada tão calma e transparente. Cadfael entrou no cascalho para ir ao seu encontro, deitando a mão ao rebordo de couro enquanto Madog pulava agilmente para fora para ir ter com ele, com os morenos pés descalços.

- Bem me parecia que conhecia essa vossa tonsura rapada - disse ele cordialmente, pondo ao ombro a cesta das amêijoas de verga e couro para lhe tomar o peso em terra. - Que se passa? Quando me chamais, sei que há fortes razões para isso.

- São bastante fortes - disse Cadfael. - Penso que encontrei aquilo que procuras. - Voltou a cabeça para a superfície de relva mais acima, e tomou a dianteira em direcção a esta sem acrescentar mais nada. Permaneceram de pé, em silêncio, junto ao corpo estendido, por alguns momentos.

Madog observara imediatamente a posição da cabeça e olhou para trás, para a margem de cascalho sob a fina camada de água. Viu a mancha sombria que ficara na argila, e a muda, contida violência da corrente que se precipitava impetuosamente à distância da altura de um homem daquela estranha calma.

- Sim. Estou a ver. Ele entrou na água lá em cima. Talvez não muito longe. Há uma forte corrente sob aquela margem, um pouco mais adiante, a seguir ao castelo. Depois podia tê-lo trazido para cá e atirado com ele para aqui. Um grande e sólido peso, de cabeça para baixo até à margem. E fê-lo encalhar.

- Foi o que eu pensei - disse Cadfael. - Estavas à sua procura? - As pessoas que viviam perto do rio e a quem desaparecia algum parente, procuravam geralmente Madog antes de avisarem o preboste ou o beleguim.

- O seu aprendiz mandou-me chamar esta manhã. Parece que o patrão saiu ontem, antes do meio-dia, mas ninguém estranhou, ele fazia o que queria, quando lhe apetecia. Estavam habituados a isso. Mas hoje de manhã ainda não tinha voltado. Há um rapaz que dorme na loja, e estava preocupado com isso, e assim, quando Boneth chegou ao trabalho e viu que o serralheiro ainda não voltara, mandou o rapaz vir ter comigo. Ele gostava da sua cama, mesmo que por vezes só para lá fosse de madrugada. Também não era homem para passar fome ou sede, e não fora visto na taberna que costumava frequentar.

- Ele tem um barco - disse Cadfael. - É um pescador conhecido.

- Foi o que ouvi dizer. O barco não estava onde ele o costuma guardar.

- Mas tu encontraste-o - disse Cadfael com convicção.

- Meia milha abaixo, preso nos ramos dos salgueiros. E a cana de pesca estava a flutuar, presa pelo anzol. O barco tinha-se virado. Ele tinha um barco igual ao meu. Deixei-o encalhado onde o encontrei. Um barco traiçoeiro - disse Madog com indiferença -, se ele tivesse apanhado um vigoroso salmão jovem. Os salmões da Primavera estão a chegar. Mas ele sabia o que estava a fazer.

- Tal como muitos outros, até ao dia em que correm o risco que os deita a perder.

- É melhor levá-lo de volta - disse Madog, preocupado com a sua tarefa como qualquer bom artesão.

- Para a abadia? É o local mais próximo. E Hugh Beringar tem de ser informado. Não há necessidade de marcar este sítio, ambos o conhecemos bem, e os seus vestígios permanecerão o tempo suficiente.

Cadfael reflectiu e tomou uma decisão.

- Levá-lo-ás de barco com mais facilidade, e é um direito que te assiste. Eu sigo-te por terra e encontro-me contigo debaixo da ponte, levaremos aproximadamente o mesmo tempo. Mantém-no na mesma posição, Madog, de cabeça para baixo, e presta atenção aos sinais que ele deixar a bordo.

Madog tinha um conhecimento no mínimo tão profundo como o de Cadfael, sobre as características das pessoas afogadas. Lançou ao seu amigo um demorado e pensativo olhar, mas guardou os seus pensamentos para si próprio, e curvou-se para levantar os ombros do morto, deixando os joelhos para Cadfael. Conseguiram depô-lo razoavelmente na frágil embarcação. Havia uma gratificação para cada corpo cristão que Madog conseguisse trazer do rio, ele tinha de facto direito a ela. Ele cumpria aquela função há já muito tempo, começara a fazê-lo quase sem se dar conta, mas a morte de outros homens era agora o seu modo de vida. E era um ofício honesto, útil e decente, pelo qual muitas famílias haviam ficado gratas. O remo de Madog mergulhou e oscilou, conduzindo-o através da corrente, aproveitando os remoinhos para subir o rio. Cadfael lançou um último olhar à enseada e à superfície de relva que ficava acima dela, fixando na memória o maior número de pormenores possível, e pôs-se apressadamente a caminho pelo carreiro acima, para ir ao encontro do barco na ponte.

O rio era rápido e voluntarioso e, ao apressar-se, Cadfael ganhara a corrida e tivera tempo para recrutar três ou quatro noviços e irmãos laicos no momento em que Madog chegou com o seu barco até às calmas margens do Gaye. Eles tinham a postos uma maca improvisada, onde depuseram Baldwin Peche, e carregaram-no pelo carreiro até ao Foregate, entrando pelo portão da abadia. Um noviço lesto e muito jovem fora rapidamente enviado para chamar o ajudante do xerife à abadia, a pedido do irmão Cadfael.

Mas, ninguém sabia como, a notícia tinha-se espalhado. Na altura em que Madog chegou, já lá estava uma meia dúzia de curiosos, debruçados sobre o parapeito da ponte. No momento em que os carregadores atingiram o Foregate e viraram em direcção à abadia, essa meia dúzia transformara-se numa vintena, e caminhava pela ponte em agoirento silêncio, e havia mais uma dúzia que se ia juntando gradualmente a estes, vindos do portão da cidade. Quando chegaram à portaria da abadia, que não podia fechar-se a ninguém que viesse em discreto silêncio e aparentemente em paz, tinham já entre quarenta a cinquenta pessoas seguindo-os de perto e entrando atrás deles. O peso do seu mau agouro, acusação e desejo de justiça desabava sobre a cabeça de Cadfael quando a maca foi depositada no pátio principal. Quando ele se voltou para encarar o inimigo, pois não restavam dúvidas de que se tratava do inimigo, o primeiro rosto que ele viu, o primeiro sobrolho carregado e olhar vingativo, foi o de Daniel Aurifaber.

 

               TERÇA-FEIRA DE TARDE ATÉ À NOITE

Eles chegaram formando um grupo cerrado, examinando Madog e Cadfael para confirmarem o que já sabiam. Passaram palavra para os que se encontravam atrás, em murmúrios sinistros que se avolumaram numa especulação excitada em poucos momentos. Cadfael agarrou na manga do primeiro noviço que se aproximou com curiosidade para ver o que se passava.

- Vai chamar o prior Robert e depressa. É possível que venhamos a precisar

de outra autoridade antes da chegada de Hugh Beringar. - E dirigindo-se aos carregadores da maca, antes que ficassem completamente cercados: - Levem-no para o claustro, enquanto podem, e preparem-se para afastar quem quer que tente seguir-vos.

O triste cortejo preparou-se obedientemente para se proteger rapidamente e, embora um ou dois dos mais jovens os tivessem seguido arrastados pela curiosidade até ao limiar do pórtico, não se aventuraram a ir mais adiante, e retrocederam para juntar-se aos seus amigos.

Um anel inquiridor rodeou Cadfael e Madog.

- Esse que aí tínheis era Baldwin Peche, o serralheiro - proferiu Daniel, não interrogando, mas afirmando. - O nosso inquilino. Ele não voltou para casa ontem à noite. John Boneth tem andado à sua procura por todo o lado.

- Também eu - disse Madog -, a pedido do próprio John. E nós os dois encontrámos tanto o homem como o barco.

- - Morto. - Aquilo também não era uma pergunta. - Morto, está bem de ver.

Nessa altura, o prior Robert tinha sido encontrado, e aproximava-se rapidamente seguido pela sua zelosa sombra. Segundo parecia, as interrupções na sua disciplinada e harmoniosa vida na abadia não iriam acabar. Ele tinha-se apercebido, ao aproximar-se, de um desagradável murmúrio de "assassínio!", e perguntou, consternado e descontente, o que acontecera para trazer aquela multidão inflamada ao pátio principal. Uma dúzia de vozes dispuseram-se a informá-lo, ignorando o facto de pouco saberem também sobre o assunto.

- Padre prior, vimos o nosso vizinho ser transportado para aqui, morto...

- Ninguém o vê desde ontem...

- O meu vizinho e inquilino, o serralheiro - gritou Daniel. - Meu pai roubado e assaltado, e agora Mas ter Peche trazido morto!

O prior levantou uma mão a impor silêncio, lançando-lhes um olhar severo que os fez calar. - Que fale apenas um. Irmão Cadfael, sabeis o que se passa?

Cadfael limitou-se a narrar apenas os factos, sem mencionar quaisquer conjecturas que ele próprio pudesse fazer. Teve o cuidado de se fazer ouvir por todos, embora duvidasse que eles se abstivessem de fazer as suas próprias suposições, por muito cuidado que ele tivesse no seu relato.

- E mandámos um aviso ao delegado do xerife, o assunto ficará agora à sua responsabilidade.

Aquilo era para os ouvidos mais excitáveis. Havia entre eles alguns jovens imprudentes, da espécie que está sempre disposta a ir atrás de qualquer sensação, que poderiam perfeitamente perder a cabeça se avistassem o seu bode expiatório. Porque isso estava já implícito, pairando no ar. Walter roubado e espancado, agora o seu inquilino morto, e todo o mal tinha de recair sobre a mesma cabeça.

- Se o infeliz se afogou no rio, por ter caído do barco - disse Robert, firmemente -, não há qualquer hipótese de assassínio. Isso é uma afirmação insensata e maldosa.

Começaram a protestar de várias direcções.

- Padre prior, Master Peche não era um homem imprudente... Ele conhecia o Severn desde a infância.

- Como muitos outros - disse Robert, secamente-que acabam por ser suas vítimas, homens não mais imprudentes que ele. Não devereis atribuir mal ao que é um infortúnio natural.

- E por que é que os infortúnios naturais se haviam de concentrar assim na mesma casa? - perguntou uma voz excitada na retaguarda. - Baldwin era um dos convidados na noite em que Walter foi agredido e o seu cofre esvaziado.

- E era seu vizinho, e gostava de farejar o que estava escondido. E quem pode afirmar que ele não deu por acaso com alguma prova que incriminaria seriamente o patife que cometeu o acto, e se esconde aqui jurando a sua inocência?

Estava dito, repetiram-no por todo o lado.

- Foi isso mesmo! Baldwin descobriu qualquer coisa que o miserável não poderia negar!

- E matou o pobre homem para o calar...

- Uma pancada na cabeça e atirado para o rio...

- Não lhe foi difícil soltar o barco para o rio para que fosse atrás dele...

Cadfael ficou aliviado ao ver Hugh Beringar entrar nesse momento pela portaria, cavalgando apressadamente com dois guardas atrás de si. Isto estava a tornar-se demasiado previsível. Quando as pessoas já escolheram um criminoso, ainda para mais um estranho, sem raízes ou família, não sentem nada por ele, deixa quase de ser um ser humano, sem sangue para derramar ou coração para despedaçar, e tudo o que vier a precisar de um bode expiatório ser-lhe-á imputado de bom grado e na convicção de se estar a proceder com justiça. A razão está ausente de tais atitudes.

Mas ele elevou poderosamente a voz para os fazer calar:

- O homem que acusais está absolutamente inocente disto, mesmo se se tratasse de assassínio. Ele está aqui em santuário, não se atreve a abandonar este recinto, e não o fez. Envergonhai-vos de proferir tão insensatas acusações!

Ele disse depois, mais resignada que amargamente, que foi um exemplo da pouca sorte de Liliwin o facto de ele ter surgido naquele momento, inocentemente, vindo do claustro, confundido e chocado pela incursão de um cadáver na igreja, e vindo ansiosamente inquirir sobre ele, mas completamente ignorante de quaisquer suspeitas de ligação entre ambos. Surgiu apressadamente do corredor ocidental, solitário, à parte, tendo sido imediatamente assinalado por dois ou três de entre a multidão. Levantou-se uma gritaria, medonhamente triunfante. Liliwin reagiu como se tivesse recebido uma rajada de vento gelado no rosto, contraiu-se e vacilou, e o seu semblante, que se suavizara graciosamente nos dois últimos dias, sucumbiu repentinamente à desintegração do terror.

O mais temerário dos jovens moveu-se rapidamente, numa algazarra, mas Hugh Beringar foi mais rápido. O escanzelado cavalo cinzento, o seu favorito, interpôs-se ruidosa e rapidamente entre a presa e os caçadores, e Hugh desmontou pondo uma mão no ombro de Liliwin, agarrando-o com um gesto ambíguo, que tanto podia ser prisão como de protecção, e o seu rosto bem-parecido, moreno e melancólico voltou-se calmamente para os ameaçadores atacantes. Os caçadores da dianteira imobilizaram-se discretamente, e só perderam a rigidez para recuarem alguns centímetros, evitando desafiar a sua autoridade.

O veloz jovem noviço tinha cumprido bem a sua obrigação, e revelado uma excelente compreensão da sua tarefa, pois Hugh já se tinha apercebido de uma boa parte do problema, e compreendido a sua arriscada missão ali. Manteve o seu domínio sobre Liliwin - e cada um que o interpretasse como quisesse - durante o interrogatório que se seguiu, e ouviu com o mesmo cuidado o testemunho inflamado de Daniel Aurifaber e o relato de Cadfael.

- Muito bem! Padre prior, seria conveniente que vós mesmo transmitísseis isto na altura devida ao padre abade. Eu tenho de examinar o afogado, bem como o local em que ele foi lançado para terra, e aquele em que o barco veio a parar. Tenho de pedir a ajuda dos que os encontraram. Quanto aos outros, se alguém tem alguma coisa a dizer, que fale agora.

E eles falaram, intimidados, mas ainda inflamados, e determinados a derramar o seu calor. Pois aquela não era uma morte acidental no rio, disso tinham eles a certeza. Aquilo fora a morte de uma testemunha, próxima, curiosa, a que tinha, de entre todos, as maiores probabilidades de revelar alguma prova irrefutável. Ele tinha descoberto provas da persistentemente negada culpabilidade do jogral, e tinha sido empurrado para o Severn para se afogar antes de poder abrir a boca. Começaram por murmurá-lo e acabaram a gritá-lo. Hugh deixou-os acalmar. Ele sabia que eles não eram os monstros que aparentavam ser, mas sabia, também, que com vento de feição e um impulso arrebatado, podiam sê-lo, para sua desgraça e dos outros. Finalmente, esgotaram-se-lhes os argumentos, e enfraqueceram como velas privadas de vento.

- Os meus homens têm estado acampados lá fora junto aos portões - disse então Hugh, calmamente - durante todo este tempo, e não viram sinais deste homem que vós acusais. Que eu saiba, ele não saiu destes muros. Como pode então ter tomado parte na morte de alguém?

Eles não tinham resposta para aquilo, embora trocassem olhares de esguelha e abanassem as cabeças como se não tivessem dúvidas de que tinha de haver uma resposta, bastava descobri-la. Mas vinda da sombra do prior, a voz insinuante do irmão Jerome falou suavemente:

- Perdão, irmão prior, mas há a certeza de o jovem ter estado sempre aqui? Recordai-vos que ontem à noite o irmão Anselm andava à sua procura e não o tinha visto desde o meio-dia, tendo inclusivamente, comentado que ele não fora à cozinha buscar o seu jantar como habitualmente. E como me preocupo com qualquer hóspede desta casa, senti que era meu dever procurá-lo, e assim fiz tendo-o procurado por toda a parte. Foi precisamente à hora do Crepúsculo. Não vi sinais dele em lado nenhum dentro destes muros.

Eles aproveitaram de imediato a oportunidade com entusiasmo e Liliwin, como Cadfael observou com um suspiro, tremeu e engoliu em seco, sem conseguir articular palavra, e gotas de suor escorreram do seu lábio superior, que ele lambeu febrilmente.

- Vedes, é o bom irmão que o afirma! Ele não estava aqui! Estava a cometer o seu crime!

- Dizei antes - repreendeu suavemente o prior Robert - que ele não foi encontrado. - Mas não estava totalmente descontente.

- E ficou sem jantar? Uma ratazana esfomeada não despreza o alimento a não ser que tenha algo de urgente noutro local - gritou Daniel, desafiadoramente.

- Muito urgente! Tirou-lhe a vida com as suas próprias mãos para se assegurar que Baldwin não viveria para falar contra ele.

- Fala! - disse Hugh secamente, abanando o ombro de Lili-wín - Também tens língua. Deixaste a abadia em algum momento?

Liliwin engoliu em seco, hesitou um momento num silêncio angustiado, e proferiu num gemido:

- Não!

- Estavas cá dentro ontem, quando te procuraram e não te encontraram?

- Eu não queria ser encontrado. Escondi-me. - A sua voz tornava-se mais firme quando havia um fundo de verdade no que dizia Mas Hugh insistiu mais uma vez.

- Não saíste uma única vez deste território desde que te refugiaste aqui?

- Não, nunca! - arfou ele, com a respiração entrecortada como se tivesse corrido uma grande distância.

- Ouvis? - disse Hugh secamente, afastando Liliwin para trás. - Tendes a vossa resposta. Um homem aqui fechado não pode ter cometido assassínio noutro local, mesmo que se prove ter sido assassínio, uma vez que, neste momento, não existe disso qualquer prova. Agora ide, voltai às vossas ocupações, e deixai para a justiça aquilo que é do seu foro. Se duvidais da minha minúcia, experimentai atravessar-vos no meu caminho. - E para os guardas, disse simplesmente: - Expulsai do pátio todos os que não tenham nada a fazer aqui. Mais tarde falarei com o preboste.

Na capela mortuária, Baldwin Peche jazia completamente nu, estendido agora de costas, enquanto o irmão Cadfael, Hugh Beringar, Madog of the Dead-Boat e o abade Radulfus se amontoavam atentamente à sua volta. Aos cantos dos olhos, agora fechados, permaneciam vestígios de lama incrustada, a secar, como os pigmentos usados pelas mulheres frívolas para escurecer ou aclarar os olhos. Do espesso emaranhado dos seus cabelos castanhos-grisalhos Cadfael tinha retirado um ou dois pedaços de ranúnculo aquático, de caules finos como teias de aranha e frágeis flores brancas definhando e transformando-se em filamentos acastanhados, e um galho partido de folhas de amieiro. Não havia nada de estranho em qualquer deles. Os amieiros agrupavam-se em muitos locais ao longo da margem, e aquela era a estação em que grandes quantidades de ranúnculo oscilavam e se agitavam onde houvesse bancos de areia ou água mais parada.

- Embora a água onde o encontrei - disse Cadfael - corra com rapidez, e não permita a fixação destas flores. O talude da margem oposta alberga-as melhor, penso eu. Isso é razoável, se ele lançou o barco para ir pescar, deveria tê-lo feito desse talude. E agora vejamos que mais tem ele para nos mostrar.

Pôs a palma da mão em concha sob a face do morto, voltou-lhe o rosto para a luz, e levantou o queixo barbudo. A luz que incidia nas cavidades inchadas das narinas revelava apenas buracos pouco profundos densamente obstruídos por lama do rio. Cadfael introduziu o galho de amieiro numa delas, e escavou uma lama viscosa e espessa de areia fina e um pequeno punhado de ranúnculo que aí se encontrava.

- Foi o que pensei, quando o levantei para esvaziar a água de dentro dele, e apenas consegui uma ou duas gotas. Restos de lama e erva, não são próprios de um afogado. - Introduziu os dedos entre os lábios entreabertos, e mostrou os dentes também separados, como que num esgar de careta de dor ou soltando um grito. Cuidadosamente, abriu-os ainda mais. Gavinhas de ranúnculo estavam presas nos dentes. Os que espreitavam de perto puderam ver que o interior da boca estava completamente obstruída por detritos do rio. -Dêem-me uma pequena tigela - disse Cadfael, decidido, e Hugh foi mais rápido que Madog a obedecer. Havia um pires de prata sob a lâmpada apagada do altar, era o recipiente mais próximo, e o abade Radulfus não fez qualquer gesto de impedimento. Cadfael abriu ainda mais o rígido maxilar, e com o dedo extraiu para o recipiente um espesso pedaço de lama e cascalho, matizado por minúsculos pedaços de vegetação. - Tendo sufocado com isto, não poderia ter-se afogado na água. Não admira que não tenha conseguido tirar-lhe nenhuma.

Tacteou cuidadosamente na boca do morto, retirando os últimos fios de ranúnculo, finos como cabelos, e pôs o recipiente de lado.

- O que estás a dizer - disse Hugh, seguindo o seu raciocínio -, é que ele não se afogou.

- Não, não se afogou.

- Mas ele morreu no rio. Senão, como explicar estas ervas do rio na sua garganta?

- É verdade. Morreu no rio. Tem paciência comigo, estou a avançar tão às cegas como tu. Preciso de saber, como tu, e tal como tu preciso de examinar o que temos. - Cadfael levantou os olhos para Madog, que por certo conhecia estes sinais pelo menos tão bem como qualquer outra pessoa. - Estás a seguir o meu raciocínio?

- Já tinha pensado nisso - disse Madog com simplicidade. - Mas continuai. Para um cego, não seguiste um mau caminho.

- Então, padre, podemos voltá-lo de novo de cabeça para baixo, tal como o encontrei?

Foi o próprio Radulfus que colocou as suas mãos longas e musculosas uma de cada lado da cabeça, para equilibrar o homem, e pousou-o suavemente sobre a face.

Apesar dos seus hábitos desregrados, Baldwin Peche revelava um corpo forte e robusto, de ombros largos, de coxas e braços grossos e musculosos. As descolorações da morte começavam agora a tornar-se visíveis nele, e eram bastante curiosas. A escoriação por detrás da orelha direita era óbvia e eloquente, mas tudo o resto era passível de especulação.

- Isto não foi obra de um ramo a flutuar - disse Madog com convicção. - E também não foi por ter sido atirado contra uma pedra, não naquela extensão de água. Aqui, no meio das ilhas, seria possível, embora não fosse provável. Não, aquilo foi uma pancada por trás, antes de ele entrar na água.

- Estás a dizer - disse Radulfus com gravidade - que a acusação de assassínio é justificada.

- Contra alguém - disse Cadfael -, sim.

- E este homem era, de facto, o vizinho do lado da família que foi assaltada, e poderá realmente ter descoberto qualquer coisa, cujo significado pode ou não ter entendido, que ajudasse a desvendar esse roubo?

-É possível. Ele interessava-se bastante pelos assuntos alheios - concordou Cadfael, prudentemente.

-E isso seria certamente um forte motivo para a sua eliminação, se o culpado viesse a sabê-lo - disse o abade, meditando. - Então, visto que isto não pode ser obra de alguém que tenha estado sempre cá dentro, é um poderoso argumento a favor da inocência do jogral no que respeita ao primeiro crime. E algures à solta está o verdadeiro culpado.

Se Hugh já havia compreendido e aceitado a mesma consequência lógica, não fez qualquer comentário sobre o assunto. Ele mantinha-se de pé, olhando para o corpo estendido em severa concentração.

- Parece, portanto, que ele foi agredido na cabeça e atirado ao rio. E, no entanto, não se afogou. O que ele inalou, na sua ânsia de respirar, consciente ou não, foi lama, cascalho e erva.

- Tu viste - disse Cadfael. - Ele foi asfixiado. Dominado algures nos baixios, com o rosto pressionado contra a lama. E posto a flutuar no rio em seguida, com a intenção de que fosse tomado por mais um dos muitos que morrem afogados no Severn. Um erro! A corrente lançou-o para terra antes de o rio ter tempo de lavar todas estas provas de uma morte em circunstâncias diferentes.

Na realidade, ele duvidava de que pudessem alguma vez desaparecer completamente, mesmo que o corpo estivesse à deriva durante muito tempo. Os caules de ranúnculo eram muito tenazes. A lama fina ficara bem agarrada ao ser inalada na sua luta por respirar. Mas o que era mais misterioso era a difusa área de contusões que se espalhava pelas costas de Peche na região das omoplatas, e as duas ou três marcas profundas na carne inchada. Na mais funda, a pele estava rebentada, apenas uma pequena lesão, como se algo aguçado e dentado o tivesse trespassado. Cadfael não conseguiu interpretar estas marcas. Reteve-as na memória e interrogou-se sobre o que seriam.

Ali estavam os resíduos no recipiente de prata. Cadfael levou-o para a bacia de pedra no centro do claustro e lavou cuidadosamente a areia fina, pondo de lado e guardando os fragmentos de erva. Finos caules de ranúnculo, uma pequena flor suja, um pedaço de uma folha de amieiro. E mais qualquer coisa, uma pequena mancha de cor. Pegou nela e mergulhou-a na água para lavar a sujidade que a obscurecia, e ali ficou brilhando na palma da mão, um mero fragmento, duas minúsculas florinhas, a extremidade de um cacho de flores de cor púrpura avermelhada, salpicada na extremidade de um púrpura mais escuro, e um resto amachucado de uma folha estreita, cuja largura permitia apenas observar uma mancha escura na sua cor verde.

Eles tinham-no seguido e juntaram-se curiosos a ver.

- Damos-lhes o nome de dedaleiras - disse Cadfael - por terem a forma de luva. Esta é a mais vulgar da espécie, e a que cresce mais cedo, mas não tenho ideia de a ver por aqui. Isto, tal como o ramo quebrado de amieiro, levou ele consigo para baixo quando foi empurrado para a água. Talvez seja possível encontrar esse local, algures no talude da cidade; um sítio onde cresçam ao mesmo tempo ranúnculos, amieiros e dedaleiras.

O local onde Baldwin Peche fora lançado para terra tinha pouco mais a dizer para além do que já se dissera. O lugar onde Madog virara sobre a relva o barco do morto ficava bem mais abaixo, e um barco como aquele, leve como uma pena, poderia perfeitamente ter continuado a baloiçar alegremente pelo rio abaixo uma milha ou mais, antes que a primeira curva apertada e o primeiro banco de areia o tivessem inevitavelmente feito parar. Teriam de passar a pente fino o talude da cidade, calculou Madog, desde a comporta, para verificar onde é que ele tinha sido atacado e morto. Um local onde os ranúnculos cresciam na margem sob os amieiros, e as dedaleiras estavam em flor mesmo junto à borda da água.

Os dois primeiros podia ser encontrados juntos ao longo de todo o rio. A terceira só podia aparecer num local. Madog iria esquadrinhar a margem, Hugh interrogaria a família Aurifaber e os vizinhos mais próximos, bem como os taberneiros do burgo, sobre tudo o que soubessem sobre os movimentos mais recentes de Baldwin Peche: onde tinha sido visto pela última vez, quem falara com ele, o que ele dissera. Pois alguém deveria, certamente, tê-lo visto depois de ele ter saído da loja a meio da manhã da véspera, quando John Boneth o vira pela última vez.

Entretanto, Cadfael tinha as suas próprias tarefas, e muito em que pensar. Regressou do rio demasiado tarde para Vésperas, mas a tempo de visitar a sua oficina e de se certificar de que tudo estava em ordem antes da ceia. O irmão Oswin, que fora encarregado de olhar por tudo sozinho, começava a desenvolver uma certa habilidade e um orgulho de proprietário. De há algumas semanas para cá, ainda não partira, nem queimara nada.

Depois da ceia, Cadfael foi à procura de Liliwin, e encontrou-o sentado às escuras no canto mais sombrio do pórtico, encostado à parede, numa atitude de defesa, com os braços fechados sobre os joelhos. Àquela hora, a luz já não era suficiente para permitir continuar o trabalho de conserto da rabeca, ou os estudos com o irmão Anselm, e parecia que os acontecimentos desse dia o tinham levado de novo à dúvida e ao desespero, pelo que se encolhia o mais possível no seu canto com uma expressão de desconfiança contra o mundo. É claro que lançou a Cadfael um olhar de esguelha, cintilante e nervoso, quando o monge sacudiu confortavelmente o hábito e se sentou a seu lado.

- Então, meu rapaz, foste buscar a tua ceia, esta noite? Liliwin acenou afirmativamente com a cabeça, observando-o cautelosamente.

- Parece que ontem não foste, e o irmão Jerome contou-nos que uma criada veio visitar-te à tarde e te trouxe um cesto de comida de casa da patroa. Ele teve, segundo disse, razões para te admoestar. - O silêncio a seu lado era carregado e receoso. - Contudo, e apesar de ter em conta que o irmão Jerome é invulgarmente bom em encontrar motivos para admoestação, penso que existe apenas uma criada cuja presença aqui lhe teria suscitado apreensões quanto à tua conduta; e isto para não falar do bem-estar da tua alma. - Isto foi dito em tom sorridente, mas não lhe escapou o leve estremecimento que sacudiu o corpo magro a seu lado, nem a rigidez das mãos que estavam tão firmemente entrelaçadas em volta dos joelhos de Liliwin.

Mas por que razão haveria o rapaz de estremecer à menção do bem-estar da sua alma, precisamente quando Cadfael estava cada vez mais convencido de que ele não tinha qualquer culpa a pesar-lhe na consciência, salvo uma ou duas compreensíveis mentiras?

- Era Rannilt?

-Sim - disse Liliwin em tom quase inaudível. -Veio com autorização? Ou por sua própria iniciativa?

Liliwin contou-lhe, no mínimo de palavras possível.

- Então foi assim que as coisas se passaram. E Jerome ordenou-lhe que cumprisse o seu recado e partisse, e ficou de atalaia para se certificar de que ela obedecia. E foi a partir dessa hora, tanto quanto percebi, depois de ele a ter visto partir, que mais ninguém te viu de novo até hoje de manhã em Primeiras. Contudo, afirmas que estiveste aqui dentro da igreja, e eu acredito no que tu dizes. Disseste alguma coisa?

- Não - disse Liliwin, pouco à vontade. Ele não tinha propriamente falado, apenas proferido um fraco som envergonhado que abafara apressadamente.

- Deixaste-a partir de uma forma algo submissa, não foi? - observou criticamente Cadfael. -Tendo em conta a dimensão do gesto que ela teve para contigo.

O entardecer estava tranquilamente a chegar ao fim, não havia ali mais ninguém a ouvir, e Liliwin tinha passado grande parte do dia lutando sozinho contra a tardia consciência do seu pecado mortal. O medo dos homens era já suficientemente difícil de suportar, para que fosse ainda subitamente acompanhado pelo medo da condenação eterna, para já não falar da terrível sensação de ter atraído a condenação de um outro ser que amava tanto como a si próprio. Ele saiu abruptamente do seu canto escuro, fez deslizar as pernas sobre o banco de pedra, e agarrou impulsivamente Cadfael pelo braço.

- Irmão Cadfael, eu quero dizer-vos... tenho de o dizer a alguém! Eu fiz... nós fizemos, mas a culpa foi minha!, nós fizemos uma coisa terrível. Não era minha intenção, mas ela ia separar-se de mim, e eu podia nunca mais tornar a vê-la, e então aconteceu. Um pecado mortal, e eu fi-la participar nele! - As palavras jorravam como sangue de um novo ferimento, mas a primeira torrente acalmou-o. De incoerente ficou silencioso, e as tremuras diminuíram e desapareceram. -Deixai-me contar-vos, e depois fazei o que entenderdes ser justo. Eu não podia suportar que ela tivesse de partir tão cedo, talvez para sempre. Nós entrámos na igreja, e eu escondi-a cá dentro, atrás do altar da capela do transepto. Há um espaço lá atrás, encontrei-o quando cheguei aqui pela primeira vez, e estava com medo que eles viessem buscar-me durante a noite. Eu sabia que podia rastejar lá para dentro, e ela é mais pequena que eu. E quando aquele irmão se foi embora, voltei para o pé dela. Levei para lá as minhas mantas, e as roupas novas que ela me trouxera... A pedra é dura e fria. Tudo o que eu queria - disse Liliwin com simplicidade - era estar com ela o máximo de tempo possível. Nem sequer falámos muito. Mas esquecemo-nos do local onde estávamos e o que tinha de acontecer...

O irmão Cadfael não proferiu uma palavra, nem para o ajudar, nem para o censurar, mas esperou em silêncio.

- Eu não conseguia pensar em mais nada senão que ela se iria embora, e eu podia nunca mais estar com ela - disse tristemente Liliwin. - E eu sabia que ela estava no mesmo sofrimento. Nós não tencionávamos fazer nada de mal, mas cometemos um terrível sacrilégio. Aqui na igreja, atrás de um dos altares sagrados... Não conseguimos resistir... Deitámo-nos juntos como dois amantes!

Ele tinha-o dito, fora revelado, o pior de tudo. Ficou humildemente sentado à espera da condenação, resignado com o que pudesse acontecer, aliviado até, por ter passado o fardo para outros ombros. Não houve exclamação de horror, mas este monje não era tão dado a pródigas repreensões como o ácido irmão que desaprovara Rannilt.

- Amas essa rapariga? - inquiriu Cadfael após uns momentos de reflexão, e muito calmamente.

- Sim, amo-a! De todo o meu coração desejo-a para minha esposa. Mas que irá acontecer-lhe se eu for levado daqui para julgamento e as coisas correrem mal? Como eles tencionam! Não deixais que se saiba que ela esteve comigo. As esperanças de ela se casar já são tão poucas, uma pobre criada sem família. Não quero destruí-las ainda mais. Ela ainda pode arranjar um homem decente, se eu... - Não acrescentou a palavra morrer. Não era um pensamento reconfortante.

- Parece-me - disse Cadfael - que ela preferirá o homem que já escolheu. Onde existe amor mútuo, penso que é difícil considerar que um lugar é demasiado sagrado para o acolher. Nossa Senhora, pelos milagres que lhe atribuem, é conhecida por proteger até os culpados que pecaram por amor. Podes tentar dirigir-lhe algumas preces, não virá daí nenhum mal. E durante quanto tempo - inquiriu Cadfael, fitando o penitente com tolerância - ficastes aqui escondidos? O irmão Anselm estava preocupado contigo.

- Adormecemos. - Liliwin estremeceu de novo com a lembrança. - Quando acordámos era tarde e já noite cerrada, estavam a cantar Completas. E ela tinha de voltar para a cidade nessa noite!

- E tu deixaste-a ir sozinha? - perguntou Cadfael com uma indignação ardilosa.

- Claro que não! Por quem me tomais? - Liliwin tinha-se irritado e caído na cilada antes de ter tido tempo de pensar, e era demasiado tarde para retirar o que dissera. Inclinou-se para trás com um suspiro, inclinando a cabeça para a escuridão.

-Por quem te tomo? - O sorriso de Cadfael estava escondido pelo crepúsculo. - Um pouco malandro, talvez, mas não pior que a maior parte de nós. Um pouco mentiroso quando se torna necessário, mas quem o não é? Afinal sempre te esgueiraste daqui para levar a criança a casa. Bem, subiste na minha consideração por isso, deve ter-te custado alguns sustos. - "E proporcionado um salutar reforço da sua auto-estima", pensou também, mas não o disse.

Numa voz fraca e cheia de ressentimento Liliwin perguntou:

- Como o descobristes?

- Pelo esforço que fizeste ao negá-lo. Porque tu nunca serás um bom mentiroso, rapaz, e quanto mais detestas fazê-lo, pior o consegues, e parece-me que nestes últimos dias te tens esforçado por não mentir. Como te arranjaste para sair e entrar outra vez?

Liliwin encheu-se de coragem e contou-lhe como as roupas novas lhe haviam permitido passar pelos guardas logo a seguir aos fiéis, como acompanhara Rannilt até à sua porta, e como voltara a entrar, encoberto pelos servidores leigos. Guardou para si próprio o que se passara entre ele e Rannilt durante o caminho, e não lhe ocorreu dizer uma palavra sobre as outras coisas de que se tinha apercebido, até que Cadfael o interrompeu com vivacidade sobre esse assunto.

-Então, estiveste ali, ao pé da loja, cerca de uma hora depois de Completas? - A noite é a altura ideal para alguém se desembaraçar dos seus inimigos, e esta era a noite em que Baldwin Peche fora visto vivo pela última vez.

- Sim, fiquei a vê-la entrar em segurança no pátio. Só me tenho afligido - disse Liliwin - por não saber como foi recebida. Embora a patroa tivesse realmente dito que ela podia passar o dia fora. Espero que ninguém se tivesse zangado com ela.

- Bem, já que ali estiveste, viste alguém ou alguma coisa por ali?

- Vi, de facto, um homem que andava por ali - disse Liliwin, recordando-se. - Foi depois de Rannilt ter entrado. Eu estava do lado oposto, numa soleira escura, e Daniel Aurifaber saiu através da passagem, e virou à esquerda seguindo pela rua fora. Não pode ter ido longe, sem virar de novo, porque quando voltei para a Cross e desci o Wyle, ele já desaparecera, e não voltei a ver sinais dele.

- Daniel? Tens a certeza de que era ele? - Aquele jovem tinha sido muito rápido a apresentar-se naquela tarde, logo que os ociosos habituais viram um corpo ser trazido para terra debaixo da ponte. Muito rápido e muito pronto a chefiar os acusadores que se apressavam a lançar esta ofensa, tal como as outras, sobre a cabeça do estrangeiro, com razão ou sem ela, com santuário ou sem ele.

- Oh, sim, não é possível confundi-lo. -Estava surpreendido por uma tal insistência nesse pormenor. - É importante?

- Pode ser. Mas isso agora não interessa. Há uma coisa que não disseste - sublinhou Cadfael gravemente -, e, no entanto, tenho a certeza de que não és tão tolo que não te tenha ocorrido. Uma vez lá fora sem que ninguém tenha dado o alarme, e com a noite toda à tua frente, poderias ter-te afastado muitas milhas daqui, e escapar-te dos teus acusadores. Não te sentiste tentado?

- Foi o que ela me sugeriu, também - disse Liliwin, recordando-se, e sorriu. - Ela incitou-me a partir enquanto podia.

- E por que não o fizeste?

"Porque ela não queria verdadeiramente que eu o fizesse", pensou Liliwin, com o coração rejubilantemente aliviado de todos os seus fardos. "E porque se alguma vez ela for minha, não será a mulher de um acusado, mas a de um homem reconhecido como honesto perante o mundo." Em voz alta exprimiu apenas a essência dessa verdade reveladora:

- Porque agora não irei sem ela. Quando partir, se partir, levarei Rannilt comigo.

 

                   QUARTA-FEIRA

Hugh encontrou Cadfael depois de uma minuciosa busca pela Casa do Capítulo, com vista a uma troca de impressões na sua oficina no herbário.

- Têm todos a mesma opinião - disse Hugh, recostando-se com uma caneca do vinho novo de Cadfael, sob o alpendre coberto pelos feixes sussurrantes da colheita de ervas do ano anterior. - Todos insistindo que esta morte tem de ter uma ligação com o que aconteceu na festa de casamento do rapaz. Mas dado que todos eles estão obcecados por dinheiro, o seu dinheiro, excepto, talvez, a filha, que morde o lábio expressivamente, mas pouco diz, e obviamente nada contra os seus, não conseguem pensar senão nos seus agravos, e todos os outros têm de estar tão absorvidos por isso como eles. Contudo, há vantagens e vantagens, este negócio do serralheiro é bastante próspero, e agora não há amigos ou parentes para tomarem conta dele, e parece ser do conhecimento- geral que o homem tinha recomendado ao seu aprendiz que continuasse com a oficina depois de ele morrer. Este jovem Boneth tem vindo a fazer a maior parte do trabalho de há dois anos para cá, merece que isso lhe seja reconhecido. É um homem honesto e virtuoso como nunca vi igual, segundo todas as aparências, mas quem pode ter a certeza de que ele não se cansou de esperar? E é bom que não nos esqueçamos de outro facto, foi Baldwin Peche quem fez a fechadura e as chaves para o cofre de Aurifaber.

-Há um rapaz que faz os recados e dorme lá na loja-disse Cadfael. - Não tem nada a dizer?

- O rapaz moreno, o simplório? Não sei se a sua memória consegue retroceder um dia ou dois, mas ele afirma com toda a certeza que o amo não voltou à loja depois de ter espreitado lá para dentro a meio da manhã, na véspera do dia em que foi pescado do Severn. Eles estavam habituados às suas ausências durante o dia, mas o rapaz ficou inquieto quando o crepúsculo chegou sem que ele tivesse regressado. Não dormiu. Acredito na sua palavra quando me afirma que não houve agitação, nem deambulações na propriedade durante a noite. Nem estamos mais perto de saber exactamente quando o homem morreu, embora o mais provável é que tenha sido posto à deriva durante a noite, tal como o barco. Não foi avistado qualquer barco virado no Severn durante o dia, em nenhum desses dias.

- Vais lá voltar, suponho - disse Cadfael. Tinha havido muito pouco tempo, na véspera, para apanhar todos os vizinhos para testemunharem. - Eu próprio tenho de lá ir amanhã por causa da velha senhora, mas hoje não tenho oportunidade de ir para aqueles lados. Peço-te que dês uma olhadela à rapariguinha galesa, vê qual é a sua disposição, e se eles estão a ser severos ou benevolentes com ela.

Hugh ergueu um olhar sorridente para ele.

-A tua conterrânea, não é? A avaliar pelo modo como a ouvi cantar enquanto areava as panelas, ontem à noite, está bastante bem-disposta.

- Estava então a cantar? - Isso seriam boas notícias para o pobre pardal que estava ali na sua gaiola protectora. Era evidente que nenhuma severidade fora do habitual recaíra sobre Rannilt pelo seu dia de liberdade. - Muito bem, isso responde perfeitamente à minha pergunta. E Hugh, se queres que eu te dê uma pequena pista sem fazeres quaisquer perguntas acerca do modo como eu a farejei, investiga se alguém nessa rua viu Daniel Aurifaber esgueirando-se na escuridão uma hora depois de Completas, quando devia estar confortavelmente deitado na cama com a sua noiva.

Hugh virou bruscamente a cabeça morena e lançou ao amigo um olhar demorado e irónico.

- Nessa noite?

- Nessa noite.

- Casado há três dias! - Hugh fez uma careta e riu-se. - Eu tinha ouvido dizer que o rapaz tem fama disso. Mas compreendo o que queres dizer. Pode haver outros motivos para deixar uma esposa sozinha.

- Quando falei com ele - disse Cadfael -, não escondeu que não gostava do serralheiro. Embora este desagrado tivesse sólidas razões, e tivesse degenerado em ódio, penso que ele podia ter sido menos loquaz acerca disso.

- Lembrar-me-ei disso, também. Diz-me, Cadfael - disse Hugh, fitando-o perscrutadoramente -, qual é intensidade desse odor que tu farejaste? Imagina que eu não encontro essa testemunha, essa segunda testemunha, deverei dizer antes assim? Poderei apostar na exactidão do teu nariz?

- No teu lugar - disse Cadfael jovialmente -, eu apostaria.

- Parece que encontraste a tua testemunha com muita rapidez - observou Hugh, secamente -, e sem saíres deste local. Então conseguiste arrancar-lho... O que quer que ele tenha abafado numa mentira. Bem me parecia que o conseguirias. - Levantou-se, sorrindo ironicamente, e pousou a caneca. - Ouço a tua confissão depois. Agora vou-me embora para ver o que consigo arrancar da nova esposa. - Ao passar, deu uma pancada amigável no ombro de Cadfael, e parou à porta, olhando para trás. - Não precisas de te inquietar por esse teu rapaz magricela, começo a partilhar da tua opinião. Duvido que alguma vez na sua vida tenha feito algo pior que roubar algumas maçãs num pomar.

O assalariado, Iestyn, estava a trabalhar sozinho na loja, consertando o fecho de uma pulseira, quando Hugh chegou à propriedade Aurifaber. Era a primeira vez que Hugh falava a sós com este homem, e quando estava acompanhado, Iestyn mantinha-se silencioso e à parte. Ou era taciturno por natureza, pensou Hugh, ou a família tinha tratado de tornar claro o seu estatuto, que não era o mesmo que o deles, e a linha que os separava não seria transposta. Em resposta à pergunta de Hugh, abanou a cabeça, sorrindo e encolhendo os ombros com indiferença.

- Como é que eu poderia ver o que se passa na rua depois de escurecer, ou quem anda a deambular quando as pessoas decentes estão na cama? Eu durmo na parte traseira da galeria subterrânea, debaixo do átrio, meu senhor. Aquelas escadas ali fora vão dar ao meu quarto, o mais longe da rua possível. Não vejo, nem ouço nada dali.

Hugh tinha já reparado nas escadas que mergulhavam sob a casa nas traseiras, um lanço de pouca profundidade, visto que o terreno descia em direcção à rua, e a cave, completamente debaixo de terra no lado da rua, estava um pouco acima do solo nas traseiras. Dali, um homem ficaria certamente isolado do mundo exterior.

- A que horas foste para lá, há duas noites atrás?

Iestyn franziu as suas espessas sobrancelhas negras e reflectiu.

- Vou sempre cedo, pois tenho de me levantar cedo. Penso que teria sido por volta das oito, nessa noite, logo que a ceia assentou.

-Não tiveste de fazer nenhum recado tardio? Nada que te tivesse feito sair outra vez depois disso?

- Não, senhor.

- Diz-me, Iestyn - disse Hugh num súbito impulso -, estás contente com o teu trabalho aqui? Com Master Walter e a sua família? És bem tratado e tens boas relações com eles?

-Estou satisfeito-disse Iestyn, cautelosamente. -As minhas necessidades são simples, não tenho razões de queixa. Não tenho dúvidas que o tempo me trará o que me é devido. Mas, primeiro, tenho de o merecer.

Susanna encontrou Hugh à porta do átrio, e convidou-o a entrar com a mesma compostura prática que teria usado com qualquer outra pessoa. Interrogada, encolheu os ombros em sinal de ignorância, com um sorriso pesaroso.

- O meu quarto é aqui, senhor, entre o átrio e a dispensa, separado da rua por todo o comprimento da casa. O rapaz de Baldwin não veio ter connosco para nos contar as suas preocupações, embora pudesse perfeitamente tê-lo feito. Pelo menos teria tido companhia. Mas não veio, portanto, não soubemos que o seu amo ainda se encontrava perdido senão de manhã, quando John chegou. Tive pena que o pobre Griffin se tivesse inquietado sozinho durante toda a noite.

- E não havíeis visto Master Peche durante o dia?

- Não o vi desde manhã, quando estávamos todos no pátio e no poço. Fui até à sua loja à hora do jantar com uma tigela de caldo de carne, pois tinha sobrado bastante, e foi nessa altura que John me disse que ele tinha saído. Estava fora desde o meio da manhã e dissera qualquer coisa acerca de os peixes estarem a subir o rio. Tanto quanto sei, estas são as últimas palavras dele que se conhecem.

- Foi o que me disse Boneth. E não há desde então quaisquer notícias dele numa loja, cervejaria ou casa de amigo. Numa cidade onde todos se conhecem, é estranho. Atravessa a soleira da porta e desaparece. - Olhou para cima, para as largas escadas sem corrimão que conduziam à galeria e aos quartos do andar superior. - Como estão dispostos estes quartos? Quem é que tem o quarto que dá para a rua, sobre a loja?

- O meu pai. Mas ele tem o sono pesado. No entanto, perguntai-lhe, quem sabe, pode ter ouvido, ou visto alguma coisa. A seguir, o meu irmão e a mulher. Daniel foi a Frankwell, mas encontrareis Margery no jardim com o meu pai. E depois a minha avó tem o quarto mais próximo. Ela hoje fica no quarto, está velha e tem uns ataques penosos, perigosos na sua idade. Mas ficará contente se desejardes visitá-la - disse Susanna com um sorriso breve e luminoso -, porque estamos a tornar-nos todos muito aborrecidos para ela, está farta de nós, já não a distraímos. Duvido que ela possa dizer-vos alguma coisa de útil, senhor, mas a mudança operaria maravilhas nela.

Ela tinha uns grandes olhos, a um tempo distantes e brilhantes, orlados por pestanas castanho-avermelhadas como o seu rolo de cabelo lustroso. Era uma pena que houvesse fios cinzentos nesse cas-tanho-avermelhado, e finas rugas, de riso ou de vista cansada, aos cantos dos olhos cinzentos, e linhas desenhadas, como as de uma teia, em redor da sua boca cheia e firme. Ela era, avaliou Hugh, pelo menos seis ou sete anos mais velha que ele, e parecia mais. Uma bela peça estragada por falta de um pouco de uso. Hugh tinha tomado posse dos seus bens como filho único, mas pensou que uma irmã sua nunca ficaria desprovida de recursos, nem seria utilizada para prover à riqueza do irmão.

- Apresentar-me-ei de bom grado à Srª Juliana - disse ele -, depois de ter falado com Master Walter e Mistress Margery.

- Isso seria muita bondade vossa - disse ela. - E eu poderia trazer-vos vinho, e isso dar-me-ia ensejo para lhe levar também uma mezinha que ela, de outro modo, poderia recusar tomar, muito embora o irmão Cadfael venha amanhã, e ela lhe preste mais atenção que a qualquer um de nós. Descei então por aqui, senhor. Ficarei à espera do vosso regresso.

Ou o ourives não tinha nada a dizer, ou nem sequer estava disposto a gastar palavras. A única coisa que o obcecava dia e noite era o seu tesouro perdido, do qual tinha feito um inventário peça a peça, quase moeda por moeda, com uma minúcia apaixonada e desolada. As moedas, em particular, eram dignas de nota. Ele tinha moedas de prata de um período anterior ao do início do reinado do Duque William, uma bela cunhagem actualmente impossível de igualar. O seu pai e avô, e talvez mais algum antepassado, deveriam ter tido um espírito semelhante ao seu, e vivido para a sua riqueza. A cabeça de Walter podia estar agora curada exteriormente, mas a perda sofrida podia ter causado danos ocultos no seu interior.

Hugh conservou-se pacientemente de pé sob as macieiras e pereiras do pomar, fazendo algumas perguntas sobre o desaparecimento de Baldwin Peche. Quase lhe pareceu que aquele nome já não lhe dizia nada, que Walter tinha de pestanejar, estremecer e concentrar-se muito para recordar o nome ou o rosto do seu falecido inquilino. Ele não conseguia lembrar-se de um, nem ver o outro, de tanto cismar no seu cofre vazio.

Uma coisa era certa, se soubesse de algo que pudesse ajudá-lo a recuperar os seus bens, di-lo-ia sem demora. A morte de outro homem, em comparação, pouco significava para ele. Segundo parecia, não lhe tinha também ocorrido a possibilidade que pairava no espírito de Hugh.

Se havia de facto uma ligação entre o roubo e esta morte, seria forçosamente aquela em que o burgo tropeçara tão apressadamente? Os ladrões também podem ser roubados, e podem até ser mortos durante o assalto. Baldwin Peche fora um dos convidados no casamento, tinha feito as fechaduras e as chaves para o cofre, e quem conhecia a casa e a loja melhor que ele?

Margery tinha estado a dar de comer às galinhas que esgarava-tavam numa estreita capoeira junto à muralha da cidade, ao fundo do jardim. Até ao ano anterior, Walter tinha mantido até os cavalos dentro da cidade, mas adquirira recentemente um terreno para pastagens e um velho estábulo do outro lado do rio, a oeste de Frankwell, onde Iestyn era enviado com regularidade para ver se lhes davam de comer, beber e eram bem tratados, e para lhes dar um pouco de exercício se tivessem tido pouco trabalho. A rapariga estava a subir a encosta do jardim com os ovos da manhã num cesto, a sombria massa da muralha atrás dela, cuja porta estreita se encontrava fechada. Uma jovem baixa, roliça e insignificante, com uma massa desalinhada de cabelo louro. Fez a Hugh uma vénia circunspecta, e ergueu para ele um par de olhos redondos e resolutos.

- O meu marido está fora nos seus afazeres, senhor, lamento muito. Estará de volta dentro de meia hora, mais ou menos.

- Não há problema - disse Hugh com sinceridade -, posso falar com ele depois. E vós podereis perfeitamente falar pelos dois, e poupar tempo. Sabeis qual é o assunto de que ando a tratar. A morte de Master Peche parece não ter sido acidental, e embora tivesse desaparecido durante todo o dia, a noite é a altura mais propícia a vilanias como o assassínio. Precisamos de saber o que cada um estava a fazer há duas noites atrás, e se alguém viu ou ouviu alguma coisa que possa ajudar-nos a deitar mão ao culpado. Segundo percebi, o vosso quarto é o segundo, a contar da rua, contudo, podeis ter olhado lá para fora e ter visto alguém escondido no beco entre as casas, ou ouvido algum som que na altura pudesse não significar nada de especial. Terá sido o caso? Ela disse imediatamente:

- Não. Foi uma noite calma, como qualquer outra.

- E o vosso marido não referiu ter notado algo fora do habitual? Ninguém que andasse por fora, nas ruas, à hora em que as pessoas respeitadoras da lei se encontram em casa? Ele não ficou na loja até tarde? Ou não teria saído com alguma incumbência?

O seu semblante róseo e branco ruborizou-se lentamente num rosa mais escuro, mas os seus olhos não vacilaram, e ela encontrou uma rápida desculpa para a sua cor. - Não, retirámo-nos cedo. Vossa Senhoria compreenderá, só estamos casados há alguns dias.

- Compreendo perfeitamente! - disse Hugh cordialmente. - Então, quase não precisarei de vos perguntar se o vosso marido deixou a vossa companhia?

- Nem por um momento - concordou ela, e a voz e o rubor eram eloquentes, quer dissessem ou não a verdade.

- A ideia nunca me teria passado pela cabeça - assegurou Hugh, cortesmente -, se não fora a declaração de uma testemunha que afirma ter visto nessa noite o vosso marido escapulindo-se de casa, e afastando-se apressadamente cerca de meia hora depois de Completas. Mas, evidentemente, não serei tão insensato ao ponto de pensar que todas as testemunhas falam verdade.

Curvou a cabeça com cortesia, voltou-se e deixou-a nesse momento, sem lentidão, mas também sem pressa, caminhando de volta à casa pelo carreiro do jardim.

Margery ficou imóvel, olhando-o fixamente, mordendo o lábio inferior, e o cesto de ovos baloiçando, esquecido na mão.

Ela estava à espera de Daniel quando ele chegou de Frankwell. Puxou-o para um canto do pátio, onde não poderiam ser ouvidos, e a expressão do queixo e das sobrancelhas dela fê-lo calar quando começou a falar alto, com um incauto espanto por ser detido daquele modo. Em vez disso, perguntou num sussurro inquieto, impressionado pela sua evidente gravidade:

- Que é? Que é que tu tens?

- O delegado do xerife tem estado aqui a fazer perguntas. Sobre todos nós!

- Então, é o seu dever, que mal há nisso? E ainda para mais a ti, que poderias ter para lhe dizer? - O desprezo implícito não lhe escapou; isso iria mudar, e rapidamente.

- Eu poderia ter respondido ao que ele me perguntou - proferiu ela violentamente, ácida e em voz baixa. - Onde é que tu tinhas estado na noite de segunda-feira. Mas poderia eu tê-lo feito? Sabê-lo-ei sequer? Sei o que pensei na altura, mas deverei continuar a pensar assim? Um homem que esteve fora da sua cama e à solta pela cidade pode, no fim de contas, não ter corrido para a cama de outra mulher! Poderia ter estado a bater na cabeça de Baldwin Peche e a deitá-lo ao rio! Isso é o que eles estão a pensar. E agora em que devo acreditar? Já é bastante mau que tu me tenhas deixado para ir ter com essa mulher, enquanto o marido está fora. Oh, sim, eu estava lá, lembras-te quando ela te disse, toda trejeitos e piscadelas de olho, a cabra desavergonhada!, que ele teria de se ausentar por vários dias! Mas como posso eu agora saber se foi isso que andaste a fazer?

Daniel olhava para ela de boca aberta, pálido e horrorizado, agarrando-lhe a mão como se os seus sentidos não tivessem, naquele momento, outra âncora.

- Meu Deus, eles não podem pensar isso! Tu não pensas isso de mim? Conheces-me melhor que isso...

- Não te conheço absolutamente nada! Tu não me ligas nenhuma, és um estranho para mim, desapareces furtivamente durante a noite e deixas-me lavada em lágrimas, e que é que te importa?

- Oh, meu Deus! - balbuciou Daniel num murmúrio frenético. - Que devo eu fazer? E disseste-lhe? Disseste-lhe que eu saí... durante toda a noite?

- Não, não disse. Sou uma esposa fiel, mesmo que tu não sejas um bom marido para mim. Disse-lhe que estiveste comigo, que nunca saíste do meu lado.

Daniel respirou fundo, abrindo a boca de espanto num alívio apatetado, e começou a sorrir e a proferir elogios e agradecimentos de uma forma incoerente enquanto lhe apertava a mão. Mas Margery avaliara o seu momento como um esgrimista e arrancou-lhe rudemente o sorriso do rosto.

- Mas ele sabe que não é verdade.

- Quê? - Deixou-se novamente dominar pelo terror. - Mas como é possível? Se tu lhe disseste que eu estive contigo...

-Disse. Cometi perjúrio por tua causa e para nada. Eu não revelei nada, embora Deus saiba que não te devo coisa alguma. Pus a minha alma em perigo para te tirar de apuros! E depois ele diz-me suavemente que existe uma testemunha que te viu escapulires-te nessa noite, e sabe a hora exacta, também, portanto, não penses que era um truque. Essa testemunha existe. Sabe-se que andaste por fora a vaguear na escuridão na noite em que esse homem foi assassinado.

- Não tive nada a ver com isso - gemeu ele molemente. - Disse-te a verdade...

- Tu disseste-me que tinhas coisas a fazer que não eram da minha conta. E toda a gente sabe que não morrias de amores pelo serralheiro.

- Oh, meu Deus! - lamentou-se Daniel, torcendo os nós dos dedos. - Por que é que eu havia de me aproximar daquela rapariga? Estava louco! Mas juro-te, Margery, foi só isso, foi com Cecily que eu fui ter... E nunca mais, nunca! Oh, rapariga, ajuda-me... Que devo eu fazer?

- Só podes fazer uma coisa - disse ela, energicamente. - Se é verdadeiramente aí que estiveste, tens de ir ter com essa mulher, e conseguir que ela fale em tua defesa, como é seu dever. Ela dirá certamente a verdade, por ti, e nessa altura os homens do xerife deixar-te-ão em paz. E eu confessarei que menti. Direi que foi por vergonha de ter sido assim desprezada, embora, na realidade, tivesse sido por amor de ti... Por pouco que o mereças.

-É o que farei! - suspirou Daniel, enfraquecido pelo medo, pela esperança e pela gratidão, todos à mistura, afagando-lhe e acariciando-lhe a mão como nunca o fizera antes. - Irei ter com ela e pedir-lho-ei. E nunca mais a verei, prometo-te, juro-te, Margery.

- Vai a seguir ao jantar - disse Margery, com a segurança do seu ascendente. - Pois tens de vir comer e apresentar boa cara. Podes, tens de o fazer. Mais ninguém sabe disto, ninguém a não ser eu, e eu ficarei a teu lado custe o que custar.

Mistress Cecily Corde não se animou, nem se envaideceu ao ver o seu amante entrando furtivamente pela porta das traseiras ao princípio da tarde. Carregou as sobrancelhas de uma forma mais negra que seria possível a uma mulher tão dourada, arrastou-o apressadamente para um quarto fechado, onde não poderiam ser espreitados pela criada, e perguntou-lhe, antes ainda de ele ter recuperado o fôlego, o que pensava ele que estava ali a fazer à luz do dia, e com os homens do xerife pela cidade, bem como os habituais indolentes e bisbilhoteiros. Num grande jorro ofegante, Daniel contou-lhe ao que vinha, e porquê, e do que necessitava, suplicava, tinha de obter dela, a confissão de que ele tinha passado a noite de segunda-feira com ela, desde as nove da noite até meia hora antes do amanhecer. A sua paz de espírito, a sua segurança, talvez a sua vida, estavam dependentes do seu testemunho. Ela não podia recusar- lhe este pedido, depois de tudo o que tinham representado um para o outro, de tudo o que ele lhe dera, de tudo o que tinham partilhado. Quando compreendeu o que ele lhe pedia, Cecily libertou-se violentamente do abraço que tinha consentido logo que a porta se fechara, e empurrou-o com uma cólera indignada.

-Estás louco? Lançar o meu nome aos quatro ventos para te salvar a pele? Não farei tal coisa, só a ideia de mo pedires...! Devias ter vergonha! Amanhã ou depois o meu marido estará em casa, e sabes isso muito bem. Não terias vindo ter comigo agora, se pensasses um pouco em mim. E desta maneira, à luz do dia, com as ruas cheias! É melhor ires, depressa, vai-te embora daqui.

Daniel segurou-a, horrorizado, incapaz de acreditar numa recepção daquelas.

- Cecily, pode ser a minha vida! Eu tenho de lhes contar...

- Se te atreveres - sibilou ela, recuando violentamente da sua desesperada tentativa de um abraço-, negá-lo-ei. Jurarei que estás a mentir, que me assediaste, e que nunca te encorajei. Estou a falar a sério! Atreve-te a mencionar o meu nome e eu far-te-ei passar por mentiroso, e arranjarei testemunhas para o confirmarem. Agora vai, nunca mais te quero ver!

Daniel voou para junto de Margery. Ela teve o bom senso de ficar à sua espera, sabendo perfeitamente a recepção que o esperaria, e conduziu-o, animando-o habilidosamente, até ao quarto de ambos, onde, se falassem em voz baixa, não poderiam ser ouvidos. A Srª Juliana, no quarto ao lado, dormia de tarde e profundamente. Os seus assuntos privados estavam a salvo dela. Em sussurros agitados ele despejou tudo o que se passara, embora não lhe tivesse contado nada que ela não soubesse de antemão. Ela considerou ser aquela a ocasião de se encostar suavemente ao ombro dele, mantendo a situação firmemente sob controlo. Ele havia sido ferido na sua vaidade masculina, e, quase irritada, ela sentiu pena e afecto por ele, mas isso era um luxo a que ela ainda não se podia entregar.

- Ouve, iremos juntos. Tu tens uma confissão a fazer, mas eu também. Não esperaremos que Lorde Beringar venha ter connosco, iremos nós ter com ele. Eu reconhecerei ter mentido, que me deixaste sozinha durante toda essa noite, sabendo que ias ter com uma amante. Tu dir-lhe-ás a mesma coisa. Eu não saberei o nome dela. E tu recusar-te-ás a dizê-lo. Tens de dizer que ela é uma mulher casada, e que isso seria a sua ruína. Ele respeitar-te-á por isso. E diremos que iremos recomeçar de novo, a partir deste momento. Ela tinha-o na mão. Ele iria com ela, juraria tudo o que ela lhe dissesse. Recomeçariam de novo, a partir daquele momento; e seria ela a assumir o comando.

Nessa noite, na cama, ela abraçou um marido devotado e grato, que não se cansava de a adular. Quer Hugh Beringar tivesse ou não acreditado no seu depoimento, recebera-o com gravidade, e mandou-os embora solenemente admoestados, mas sentindo-se libertos. Um Daniel aliviado do medo que a lei se voltasse ameaçadoramente contra ele, ficaria sossegado, sabendo que ela poderia deitar-lhe a mão a qualquer momento.

- É caso arrumado - assegurou-lhe Margery, segura nos seus braços, e surpreendentemente satisfeita, considerando tudo o que se passara. - Tenho a certeza de que não precisas de te preocupar mais. Ninguém pensa que tu tenhas feito mal ao homem. Eu ficarei a teu lado, e não temos nada a temer.

- Oh, Margery, que teria eu feito sem ti? - Ele estava ditosamente a deixar-se invadir pelo sono, depois do extremo receio e do alívio de um prazer igualmente grande. Ele nunca sentira anteriormente um tão devotado fervor, mesmo para com as suas amantes. Esta podia considerar-se a sua verdadeira noite de núpcias. - És uma boa rapariga, leal e honesta...

- Sou a tua mulher, que te ama - disse ela, e em boa parte acreditando-o, algo surpreendida. - E sempre me encontrarás fiel, sempre que precisares de mim. Eu não te trairei. Mas tu também tens de ficar do meu lado, porque eu, como tua mulher, tenho os meus direitos. - Estava muito bem tê-lo assim tão complacente, mas não podia deixá-lo adormecer, por enquanto. Tomou as providências necessárias para o fazer despertar; tinha aprendido muito naquela pouco satisfatória semana. Enquanto ele ainda estava entusiasmado, ela prosseguiu, muito suave e docemente: - Eu sou a tua mulher agora, a mulher do herdeiro, há um estatuto que me pertence. Como posso eu viver numa casa e não ter um lugar, nem deveres que sejam meus de direito?

- Mas é claro que tens o teu lugar - protestou ele ternamente. - O lugar de honra, de dona da casa. Que outro havia de ser? Todos temos de suportar a minha avó, ela é velha e de hábitos arreigados, mas não interfere com o governo da casa.

- Não, não é dela que me queixo, é evidente que temos de respeitar os mais velhos. Mas à tua mulher deve ser concedido o que lhe compete, quer em responsabilidades, quer em privilégios. Se a tua mãe ainda estivesse viva, seria diferente. Mas a Srª Juliana entregou o governo da casa, por ser tão velha, à nossa geração. Tenho a certeza que a tua irmã cumpriu nobremente o seu dever por ti durante todos estes anos...

Daniel apertou-a nos seus braços, com os seus espessos caracóis contra a testa dela.

- Sim, pois cumpriu, e tu podes manter as tuas mãos brancas e descansar, e ser a senhora da casa, por que não?

- Não é isso que quero - disse Margery firmemente, olhando fixamente na escuridão com os olhos muito abertos. - Tu és um homem, não entendes. Susanna trabalha muito, ninguém se pode queixar dela, mantém uma mesa farta sem esbanjar, e toda a roupa, objectos e mantimentos em ordem, eu sei. Dou-lhe todo o valor. Mas esse é o trabalho da esposa, Daniel. Da tua mãe, se ela estivesse viva. Da tua mulher, agora tens uma mulher.

- Meu amor, por que não hão-de vocês trabalhar juntas? Metade do fardo é mais fácil de suportar, e eu não quero a minha mulher esgotada pelas preocupações - murmurou ele, presunçosamente no emaranhado dos seus cabelos. E considerou-se muito astuto, sem dúvida, desejando paz, como os homens sempre desejam, muito acima da justiça ou da propriedade; mas ela não o deixaria escapar-se com essa dádiva conciliatória.

- Ela não vai abrir mão de nenhuma parte do fardo, tem tido esse lugar durante tanto tempo, que rejeita qualquer aproximação. Ainda na segunda-feira me ofereci para ir apanhar a roupa por ela, e interrompeu-me bruscamente, dizendo que isso seria ela própria a fazer. Acredita-me, meu amor, não pode haver duas patroas na mesma casa, esta nunca prospera. É ela que tem as chaves à cintura, é ela que procede ao abastecimento das despensas, e ao arranjo e substituição das roupas, é ela que dá as ordens à criada, é ela que escolhe as carnes e as manda cozinhar como ela quer. É ela que aparece como a dona da casa quando aparecem visitas. Todos os meus direitos, Daniel, e eu quero-os. Não está correcto que a mulher seja assim posta de lado. Que dirão de nós os nossos vizinhos?

- Tudo o que quiseres - disse ele com fervor ensonado -, tê-lo-ás. Vejo, de facto, que a minha irmã deveria agora entregar-te as suas funções, e deveria tê-lo feito de boa vontade, com o seu próprio consentimento. Mas ela dirigiu esta casa durante tanto tempo, que ainda não prestou atenção ao facto de eu ser agora um homem casado. Susanna é uma mulher sensata, verá onde está a razão.

- Não é fácil para uma mulher ceder o seu lugar - sublinhou Margery, severamente. - Necessitarei do teu apoio, pois trata-se também do teu estatuto e não apenas do meu. Promete-me que estarás do meu lado para conseguir os meus direitos.

Ele prometeu de imediato, como lhe teria prometido fosse o que fosse nessa noite. Dos dois, ela fora certamente a que mais ganhara com as crises e os restabelecimentos do dia. Adormeceu ciente disso, e pondo já a postos as suas capacidades para consolidar a sua posição.

 

               QUINTA-FEIRA: DE MANHÃ ATÉ À NOITE

A Srª Juliana desceu bem cedo no dia seguinte, dando pequenas pancadas nos largos degraus da escada de madeira, decidida a cumprimentar o irmão Cadfael, quando ele chegasse a seguir ao pequeno-almoço, com a atitude e a segurança de uma saudável anciã assumindo a completa orientação da sua casa, mesmo que tivesse de preparar antecipadamente o seu assento e o que a rodeava, e tivesse de ter a bengala à mão. Ele sabia que ela não estava nessa situação, e ela sabia que ele o sabia. Estava com os pés para a cova, e, por vezes, sentia-os afundar-se nela e puxá-la para dentro. Aquilo era apenas um jogo final, que eles jogavam com respeito e admiração, se não com amor um pelo outro.

Walter saíra com o filho para a oficina nessa manhã. Juliana estava sentada no seu canto junto às escadas como num trono, encostada às almofadas contra a parede, fitando-os a todos, tolerando-os a todos, contente com nenhum. A sua longa vida, mais longa do que qualquer mulher deveria ser chamada a suportar, seguia atrás dela como um longo cortejo nupcial arrastando-se sobre os ombros de uma noiva ainda criança, fazendo-a vergar, fazendo de cada passo um fardo.

Logo que Rannilt acabou de lavar as malgas e pôs a massa de pão a levedar, sentou-se a coser roupa num banco junto à porta do átrio, para ter luz suficiente. Um vestido castanho-claro em bom estado, com um rasgão recortado acima da bainha. A rapariga estava a fazer um bom trabalho a consertá-lo. Os seus olhos eram jovens. Os de Juliana eram muito velhos, mas eram uma parte de si que não se arruinara. Ela podia ver os pontos que a criada dava nele, pequenos e precisos como eram.

- Um vestido de Susanna? - disse ela rispidamente. - Como é que ela fez um rasgão desses? E as bainhas desfeitas, também! No meu tempo fazíamos as coisas durar até ficarem finas como teias de aranha, antes de pensarmos em nos desfazer delas. Hoje em dia não há essa economia. Rasga-se, cose-se e dá-se aos pedintes! São todos uns perdulários!

Era óbvio que nesse dia nada estaria bem para a velha senhora, ela estava decidida a fazer sentir a toda a gente a sua autoridade censória. Era preferível, em dias como aquele, não dizer nada, ou, se fossem exigidas respostas, dá-las tão curtas e submissas quanto possível.

Rannilt ficou contente quando o irmão Cadfael entrou, vindo da passagem, com mezinhas no seu bornal para a úlcera que estava novamente ameaçando aparecer no tornozelo da velha senhora. A pele fina e corroída rebentava ao mais pequeno toque ou fricção. Ele encontrou a sua paciente muito direita e ainda no seu canto, mas à sua chegada levantou-se para manter, na presença deste amigável inimigo, a sua fama de azedume, obstinação e espírito severo, e de seguir sempre, com toda a sua família, um caminho oposto. Quando diziam preto, Juliana dizia branco.

- Deveríeis manter este pé levantado - disse Cadfael, limpando a pequena mas feia lesão com uma compressa de linho, e aplicando um novo curativo. - Como bem sabeis, e tantas vezes vos tem sido dito. Pergunto a mim próprio se não deveria antes recomendar-vos que fizésseis pressão sobre ele durante todo o dia, assim talvez fizésseis o contrário e permitísseis que se curasse.

- Ontem não saí do quarto - disse ela laconicamente -, e estou completamente farta dele agora. Como é que eu sei o que eles fazem nas minhas costas enquanto estou fechada lá em cima? Aqui, pelo menos, posso ver o que se passa e falar, se vir razões para isso, como o farei, até ao fim dos meus dias.

- Não duvido! - concordou Cadfael, enrolando a ligadura na ferida e terminando o penso com habilidade. - Que eu saiba, nunca contrariastes os vossos desejos, e não penso que isso venha alguma vez a acontecer. Agora, como está a vossa respiração? Não haveis tido mais dores no peito? Nem tonturas?

Ela não ficaria plenamente satisfeita sem ter saciado o seu desejo de fazer algumas queixas azedas sobre uma dor aqui, ou uma cãibra ali, e não reconheceu que ele ignorava a maior parte delas com a mesma sem-cerimónia. Eram um meio de iludir as infindáveis horas do dia que pareciam tão compridas, mas, uma vez passadas, desvaneciam-se-lhe do espírito como água correndo por entre os dedos.

Rannilt acabou de coser, e levou o vestido para o quarto de Susan-na, para o pôr no armário; nesse momento entrou Susanna vinda da cozinha, que parou para cumprimentar cortesmente Cadfael, e lhe perguntar a sua opinião acerca do estado da velha senhora, e se ela deveria continuar a tomar a bebida que ele lhe receitara após o ataque.

Estavam assim ocupados quando Daniel e Margery entraram juntos vindos da loja. Entraram lado a lado, e havia algo de cerimonioso na sua atitude, em particular no seu silêncio, quando era certo que eles tinham estado a falar um com o outro, em tom baixo e sério no limiar. Mal saudaram Cadfael, não tanto por má educação, mas mais por os seus espíritos estarem absorvidos por outra coisa qualquer, e a sua concentração nela não poder diminuir nem por um instante. Cadfael apercebeu-se da tensão, e, segundo julgou, o mesmo sucedeu com Juliana. Apenas Susanna pareceu não reparar em nada de estranho, e não assumiu uma atitude rígida como resposta.

A presença de alguém estranho ao clã era talvez um inconveniente, mas Margery não tinha a intenção de se desviar, nem de adiar o que estava decidida a dizer.

-Temos estado a discutir uns assuntos, Daniel e eu - anunciou ela, e para uma pessoa que aparentava ser tão dócil e maleável, a sua voz estava surpreendentemente firme e resoluta. - Compreenderás, Susanna, que com o casamento de Daniel tem de haver forçosamente algumas modificações no que está estabelecido. Suportaste nobremente o fardo do governo da casa durante estes anos todos... -Aquilo era talvez pouco sensato; haviam sido todos esses anos que tinham secado e feito murchar aquilo que em tempos fora de uma beleza quase perfeita, a sua marca era demasiado evidente no rosto de Susanna. - Mas agora podes entregá-lo e descansar sem que alguém to possa censurar, bem o mereces. Começo a conhecer os cantos à casa, em breve estarei habituada à rotina diária, e estou pronta para ocupar o lugar que me compete como mulher de Daniel. Penso, e ele concorda comigo, que devo, a partir de agora, tomar conta das chaves.

O choque foi total. Talvez Margery soubesse que o seria. Todos os vestígios de cor se esvaíram do rosto de Susanna, deixando-a sem brilho e opaca como barro, e depois, com a mesma rapidez, um vermelho afogueado fê-la corar até às orelhas. Os grandes olhos cinzentos olharam fixamente, duros e lisos como o aço. Durante um longo momento não falou; Cadfael pensou que não foi capaz. Ele poderia ter-se esgueirado silenciosamente e tê-los deixado entregues à sua discussão, se não estivesse preocupado com o seu possível efeito na Srª Juliana. Ela estava sentada bastante quieta e calada, mas dois pequenos e nítidos pontos coloridos tinham-lhe surgido nas faces, e os seus olhos estavam invulgarmente brilhantes. Susanna tinha recuperado o fôlego e o sangue-frio necessários para se encher de coragem e falar. O fogo ardia-lhe por detrás dos olhos, como um fulgurante pôr do Sol através de uma vidraça.

- É muita bondade tua, minha irmã, mas eu não pretendo ser aliviada da minha carga tão facilmente. Não fiz nada para ser substituída, e não me retiro. Serei uma escrava, para que me ponham a trabalhar enquanto sou precisa, e depois ser atirada para a rua? Com nada? Nada! Esta é a minha casa, fui eu que a governei, serei eu quem a governará: as minhas despensas, a minha cozinha, os meus armários de roupa, são todos meus. Tu és bem-vinda aqui como a noiva do meu irmão - disse ela, com um impressionante tom gelado -, mas és nova numa regra antiga, segundo a qual eu detenho as chaves.

As guerras entre as mulheres são sempre azedas, ferozes e travadas sem quartel, especialmente se são motivadas por prerrogativas, matriarcais. Contudo, Cadfael achou surpreendente que Susanna tivesse ficado tão abalada na sua habitual e intimidatória calma. Talvez este desafio tivesse surgido mais cedo que ela supunha, mas ela deveria certamente tê-lo previsto e não se justificava ter ficado tão calada e chocada durante um momento tão longo. Ela estava encolerizada agora, de garras à mostra e os olhos penetrantes como punhais.

- Compreendo a tua relutância - disse Margery, tornando-se mais doce à medida que a sua rival ia ficando mais ácida. - Não penses que há nisto alguma crítica implícita, oh, não, sei que me deixas um exemplo difícil de igualar. Mas vê, uma esposa sem função é uma coisa inútil, ao passo que uma filha que já suportou o seu quinhão do fardo pode agora abandoná-lo com toda a dignidade, e deixá-lo em mãos mais jovens. Eu estou habituada a trabalhar, não posso estar sem fazer nada. Daniel e eu falámos sobre isto, e ele concorda comigo. É o meu direito! - Se ela não lhe deu uma cotovelada nas costas, o efeito foi o mesmo.

- Pois falámos, e eu estou do lado de Margery - disse ele resolutamente. - Ela é a minha mulher, é justo que seja ela a governar a casa que será.dela e minha. Sou o herdeiro de meu pai; a loja e o negócio serão meus, e esta casa será também de Margery, e quanto mais cedo ela puder tê-la a seu cargo, melhor para todos nós. Meu Deus, minha irmã, já devias sabê-lo! Por que te hás-de opor?

- Por que me hei-de opor? Ser despedida de um momento para o outro como uma serva que rouba? Eu, que vos sustentei a todos, vos dei de comer, vos cosi as roupas, poupei para vós, mantive a casa, se ao menos tivesses a esperteza de o reconhecer ou a generosidade de o admitir! E como paga sou varrida para um canto a apodrecer, não é, ou a ir buscar e trazer coisas, esfregar e limpar às ordens de uma recém-chegada? Não, isso não farei! Deixa a tua mulher fazer-te o teu serviço e as tuas contas, como ela afirma ter feito para o pai dela, e deixa as minhas despensas, a minha cozinha, as minhas chaves para mim. Julgas que cederei docilmente a única razão de viver que me resta? Esta família negou-me todas as outras.

Walter, se tinha previsto alguma coisa, fora sensato em manter-se convenientemente afastado, em segurança na sua loja. Mas o mais provável era que não tivesse sido prevenido nem consultado, e era dispensável até esta disputa estar resolvida.

- Mas tu sabias - gritou Daniel, pondo impacientemente de lado as razões de queixa de toda uma vida, raramente mencionadas tão claramente, se é que alguma vez o haviam sido. -Tu sabias que eu me iria casar, e certamente tiveste o bom senso de saber que a minha mulher esperaria ocupar o seu devido lugar na casa. Tiveste a tua oportunidade, não tens de que te queixar. É claro que a mulher tem a primazia e necessita das chaves. E tê-las-á, também!

Susanna virou-lhe as costas e apelou com olhos faiscantes a sua avó, que tinha permanecido sentada e silenciosa, mas seguindo cada palavra e cada olhar. O seu rosto estava severo e controlado como sempre, mas a respiração era rápida e superficial, e Cadfael tinha-lhe segurado no pulso para sentir a pulsação, mas esta continuava firme e regular. Os seus finos lábios cinzentos exibiam um sorriso um pouco amargo.

- Senhora minha avó, falai, peço-vos! A vossa palavra ainda tem aqui um peso que a minha, ao que parece, não tem. Fui tão inútil para vós, que também vós queirais desembaraçar-vos de mim? Será que não fiz bem as coisas por todos vós, durante todo este tempo?

- Ninguém tem erros a apontar-te - disse Juliana lacónicamente. - Não é essa a questão. Tenho as minhas dúvidas que essa fedelha do Daniel possa comparar-se a ti, ou fazer metade do que tu fazes, mas suponho que tem boa vontade e perseverança para aprender, mesmo que tenha de ser com os seus erros. O que ela tem, e isto é o que eu te digo, rapariga, é razão nos seus argumentos. O governo da casa é-lhe devido, e terá de ser dela. Não posso dizer outra coisa, quer se goste, quer não. É melhor acabares com isto de uma vez, porque tem de ser. - E deu uma pancada ríspida com a bengala no chão para pôr ponto final no assunto.

Susanna ficou imóvel, mordendo os lábios e encarando de frente os rostos daqueles três que se haviam unido contra ela. Ela estava calma agora, a cólera que a inundara tinha esfriado num desprezo amargo.

- Muito bem - disse ela abruptamente. - Contrariada farei o que me é exigido. Mas não hoje. Fui aqui a patroa durante anos, não serei expulsa a meio do meu dia de trabalho, sem ter tido tempo de fazer as minhas contas. Ela não terá ocasião de criticar isto e aquilo, e dizer, isto ficou por acabar, ou, ela não me disse que era preciso uma nova panela, ou, aqui está um lençol que foi deixado por coser. Não! Margery terá um inventário completo amanhã, quando eu passar as minhas responsabilidades. Terá uma lista dos valores que herda, até ao último peixe salgado no último barril. Começará com uma folha limpa e honesta. Eu tenho o meu orgulho, mesmo que ninguém se importe com isso. - Virou-se directamente para Margery, cujo rosto redondo e claro parecia perturbado, entre uma complacência satisfeita e um certo desconforto, como se não soubesse exactamente, naquele momento, se deveria estar contente ou triste pela sua vitória. - Amanhã de manhã terás as chaves. Como a despensa tem entrada pelo meu quarto, é possível que também queiras que me mude dali, e ficar com esse quarto para ti. Nessa altura podes ficar com ele. A partir de amanhã não me atravessarei no teu caminho.

Voltou-se e saiu pela porta do hall, virando em direcção à cozinha, e o molho de chaves que tinha à cintura tilintou como se ela as tivesse deliberadamente posto a chocalhar num último e irrisório esforço de desafio. Deixou atrás de si um silêncio carregado, que Juliana foi a primeira a ter coragem de quebrar.

- Bem, filhos, alegrai-vos - disse ela, fitando sardonicamente o neto e a noiva. - Tendes o que queríeis, tirai partido disso. Há muito que fazer e muito em que pensar quando se dirige uma casa.

Margery apressou-se a captar-lhe as boas graças com agradecimentos e promessas. A velha senhora ouviu tolerantemente, mas com aquele sorriso frio tão desencorajador como o de Susanna ainda nos lábios.

- Bem, agora vai e deixa Daniel voltar para o trabalho. O irmão Cadfael, bem vejo, não está nada contente por me ver excitada. O mais certo é fazerem-me engolir alguma nova poção para me acalmar, por causa de vocês os três e das vossas disputas.

Retiraram-se de boa vontade, tinham muito a dizer um ao outro em particular. Cadfael viu a palidez acinzentada que alastrou em redor da boca de Juliana logo que ela aliviou o seu obstinado autodomínio e se recostou nas almofadas. Foi buscar água a um jarro e misturou-lhe uma dose de pó de visco branco para ela tomar. Ela levantou os olhos para ele por cima da caneca com um sorriso amargo.

- Então, dizei-o! Dizei-me que a minha neta foi miseravelmente utilizada.

- Não tenho necessidade de o dizer - disse Cadfael recuando para a estudar melhor e descobrindo que as mãos estavam firmes, a respiração regular, e o semblante mais ousado que nunca -, uma vez que vós mesma o sabeis.

- E é demasiado tarde para o remediar. Mas concedi-lhe o dia que ela queria. Até isso lho podia ter negado. Quando lhe dei as chaves, há anos atrás, não pensais que eram as únicas? O quê, e ficar eu desprevenida? Não, eu ainda posso meter o nariz pelos cantos, se me apetecer. E faço-o, por vezes.

Cadfael estava a arrumar as mezinhas e os unguentos de novo no bornal, mas com o olhar ainda fixo nela.

- E tencionais dar agora os dois molhos à mulher de Daniel? Se tivésseis intenção de ofender poderíeis ter-lhas entregue diante da vossa neta.

- As minhas ofensas estão prestes a terminar - disse Juliana, subitamente sombria. - Todas as chaves me serão em breve arrancadas, se as não entregar de livre vontade. Mas estas guardarei ainda mais um dia ou dois. Ainda tenho necessidade delas.

Aquela era a sua casa, a sua família. Tudo o que fervesse ali dentro, pronto para entrar em erupção, era a ela que competia tratar. Nenhum estranho tinha de se aproximar.

A meio da manhã, quando Susanna e Rannilt estavam atarefadas na cozinha, e certamente ocupadas durante algum tempo, e os homens estavam a trabalhar na loja, Juliana mandou a única testemunha que restava, Margery, ir buscar uma medida de um vinho forte, que era o seu preferido, para misturar com canela e açúcar, a um negociante de vinho que ficava convenientemente do outro lado da cidade. Quando se viu sozinha no átrio, levantou-se, apoiando-se pesadamente na bengala, e tacteou debaixo da saia à procura das chaves que ali tinha escondidas numa bolsa.

A porta do quarto de Susanna estava aberta. Uma estreita porta dava acesso rápido à zona do pátio que separava a cozinha da casa. Juliana conseguia ouvir vagamente as vozes das duas mulheres na cozinha, indistintas as palavras, revelador o tom de voz. Susanna estava calma, lacónica e seca como sempre. A rapariga parecia ansiosa, aflita, solícita. Juliana estava a par do que se passara nesse dia de gazeta em que a fedelha tinha chegado a casa apressadamente e na escuridão. Ninguém lhe tinha dito, mas ela sabia. Os seus sentidos apurados nunca lhe negavam ou poupavam fosse o que fosse. Miseravelmente utilizada, e tarde de mais para o remediar! A rapariga tinha estado a ouvir, consternada, a discussão no átrio, e condoía-se da sua patroa que tinha mostrado a sua bondade. Os jovens emocionam-se facilmente com generosa indignação e piedade. Os velhos não têm tal bênção.

A despensa, com as suas pesadas tinas de comida salgada, cântaros de óleo, potes de farinha de trigo e de aveia e géneros secos, barris de banha, molhos de ervas secas, ocupava, juntamente com o quarto de Susanna, toda a largura do átrio e tinha uma porta fora dele. Esta porta estava fechada. Juliana introduziu a chave que Baldwin Peche lhe fizera antes de ela ceder o original, abriu a porta e entrou para a míriade de aromas de gordura, especiarias e salgados da despensa.

Demorou-se lá dentro talvez dez minutos, não mais. Estava de novo anichada no seu canto almofadado sob as escadas e a porta novamente fechada, na altura em que Margery voltou com o vinho e as especiarias necessárias para fazer a mistura que ela tanto apreciava ao deitar.

- Estive a dizer a este jovem - disse o irmão Anselm, ajustando alguns fragmentos curvos de madeira com a delicadeza hábil apropriada ao tratamento de uma ferida num ser querido, - que se ele se decidisse a tomar votos de noviço, a sua vida estaria assegurada. Uma vida de dedicação à música religiosa... Que melhor poderia ele desejar, dotado como é? E o mundo não lhe deitaria a mão, e deixá- lo-ia em paz.

Liliwin mantinha a sua cabeça loura discretamente inclinada sobre o pequeno almofariz onde estava laboriosamente triturando resinas para a cola do chantre, e não disse uma palavra, mas o rubor subiu-lhe pelo pescoço até às faces e à raiz dos cabelos. O que lhe era proposto, podia ser uma vida em paz e segurança, mas não era a vida que ele desejava. O que quer que lhe passasse pela sua vulnerável e ansiosa cabeça, não era sequer uma sombra de vocação pela vida monástica. Mesmo se escapasse ao perigo presente, mesmo se conseguisse a sua Rannilt e a levasse consigo, após sofrer mais alguma da dureza do mundo, poderia acabar como um pobre vadio, e ela como? Sua companheira de furtos, roubando carteiras em feiras e mercados para garantir a sobrevivência de ambos? Ou pior, como sustento dele por meios duvidosos, quando tudo o resto falhasse?

"Anossa responsabilidade nisto", pensou o irmão Cadfael, observando o trabalho em silêncio, "ultrapassa a mera justiça ou injustiça de uma acusação local de assalto e roubo. O que nós enviarmos daqui, no final, tem de estar armado contra o destino com algo mais que um fato multicolor de bobo."

- E aprende depressa, também - disse Anselm aprovadoramente. - E é muito obediente.

- Quando está ocupado com um assunto de que gosta, sem dúvida - concordou Cadfael, e sorriu ao ver o breve e cintilante olhar de Liliwin, que se cruzou com o seu e imediatamente o evitou, voltando aplicadamente ao trabalho que tinha em mãos. - Tentai ensinar-lhe letras em vez de notas, e talvez ele seja menos entusiasta.

- Não, estais enganado, ele tem gosto por ambas. Poderia ensinar-lhe as bases do latim, se o tivesse comigo durante um ano.

Liliwin mantinha a cabeça baixa e a boca calada, profundamente grato por tais elogios, ávido de beneficiar de tão generoso ensino, enaltecido e confortado por uma tão simples bondade, e desejoso de gratificar também o seu tutor, se pudesse. Agora que a sua inocência começava a ser aceite como uma probabilidade, embora ainda incerta, aquela boa gente começava a fazer planos para o seu futuro. Mas o seu lugar não era ali, mas com aquela rapariguinha morena, onde quer que as suas deambulações pelo mundo os levassem. Ou isso, ou fora do mundo, se os quarenta dias de graça se esgotassem, sem que justiça fosse feita.

Quando a luz ficou demasiado fraca para permitir a continuação do trabalho, o irmão Anselm ordenou-lhe que trouxesse o órgão e tocasse e cantasse de ouvido para mostrar os seus talentos ao irmão Cadfael. E quando Liliwin, esquecendo-se um pouco de si próprio, se lançou numa canção de amor, bastante inocente, mas perturbadora dentro daquelas paredes, Anselm não revelou sinais de qualquer perturbação e elogiou a melodia e os versos, mas a melodia sobretudo, e anotou-a com rapidez para ser adaptada à glorificação de Deus.

O toque de Vésperas silenciou aquele prazer privado. Liliwin arrumou o órgão com uma delicadeza apressada, e foi atrás de Cadfael, puxando-lhe pela manga.

- Havei-la visto? Rannilt? Não lhe aconteceu nenhum mal por minha causa?

- Vi-a. Estava a coser um vestido, absolutamente calma e sem qualquer problema. Não lhe causaste mal algum. Ontem, ouvi dizer, estava a cantar enquanto trabalhava.

Liliwin libertou-o com um suspiro reconhecido e um murmúrio de gratidão por tais notícias. E Cadfael foi para Vésperas pensando que apenas lhe tinha contado a parte mais agradável da verdade, e perguntando a si próprio se Rannilt estaria nessa noite com disposição para cantar. Pois ela tinha ouvido a batalha que afastara Susanna derrotada, substituída, despojada do único domínio que uma avó e um pai parcimoniosos lhe haviam deixado. E Susanna era a patroa que, embora não lhe tendo revelado muito carinho, tinha-a, no entanto, protegido do frio, da fome e das pancadas e, acima de tudo, tinha-a enviado para aquele estranho casamento, tão hereticamente abençoado, e testemunhado apenas pelos santos, cujas relíquias haviam santificado o seu leito nupcial. Amanhã, Susanna entregaria as chaves do seu domínio a uma jovem rival. A rapariguinha galesa tinha um coração sequaz, mais pronto ao sofrimento que à alegria. Não, ela não teria vontade de cantar até o dia seguinte terminar.

Rannilt esteve deitada, sem conseguir dormir, na sua enxerga na cozinha até todas as luzes da casa se apagarem, excepto uma, na qual concentrava a sua atenção. Uma família avarenta vai cedo para a cama, para poupar luz e combustível, baixando a intensidade do lume na lareira com pequenos seixos, e apagando todas as velas e candeias. Ainda mal eram horas de Completas, só agora havia escurecido, mas o jovem casal, agora bastante absorvido um no outro e arrulhando como pombos, ficou feliz por ir para a cama, e os outros tinham como hábito deitar-se com o Sol e levantar-se com ele. Apenas na despensa, revelando uma estreita fenda de luz que iluminava o declive até à cozinha, havia ainda uma vela acesa. Rannilt não tinha tirado os sapatos, nem o vestido, e estava sentada abraçada a si própria, tentando aquecer-se e observando aquele débil fio de luz. Quando foi o único sinal de alguém estar acordado, levantou-se e atravessou furtivamente os poucos metros de terra batida que havia entre a casa e a cozinha, e encostou-se à estreita porta que dava para o quarto de Susanna.

A patroa estava lá dentro, acordada, incansável, movimentando-se entre a despensa e o quarto, trabalhando afadigadamente como jurara, decidida a prestar contas de cada jarro de mel, cada grão de farinha, cada gota de óleo ou naco de banha. Rannilt ardia e sofria por ela, mas também sentia receio, e não se atrevia a manifestar em voz alta o seu desgosto e indignação. Os passos que andavam lá dentro de um lado para o outro eram suaves, rápidos e decididos. Todos os movimentos de Susanna eram assim, ela fazia tudo com rapidez, mas sem pressas, mas, naquele momento, aos ouvidos ansiosos de Rannilt parecia que havia um contido desespero no modo como ela dava aqueles passos rápidos para cá e para lá, naquela sua última vistoria doméstica. A desconsideração magoara-a profundamente, como era natural. O débil fio de luz desapareceu da estreita janela da despensa, e reapareceu na fenda da persiana do quarto de dormir. Rannilt ouviu a porta que os ligava ser fechada e a chave girar na fechadura. Mesmo na sua última noite, Susanna não adormeceria sem se certificar da segurança do que estava à sua guarda. Mas agora ela havia certamente terminado, e iria para a cama descansar como pudesse.

A luz apagou-se. Rannilt ficou imóvel, à escuta no silêncio, e após um longo momento ouviu abrir-se a porta interior que dava para o átrio.

No mesmo instante, ouviu-se um som agudo e breve, um grito abafado quase inaudível, mas tão carregado de desânimo e cólera que Rannilt pôs a mão no puxador da porta à qual estava encostada, em parte pelo desejo de se apoiar em algo sólido e familiar, em parte ansiosa por entrar e ver o que poderia ter provocado um tão desolado e frustrado som. A porta cedeu ao seu toque. Ao longe, no átrio, ela ouviu uma voz, as palavras imperceptíveis, mas cujo tom severo era inconfundivelmente o da Srª Juliana. E a voz de Susanna respondendo, amarga e surda. Dois murmúrios abafados, plenos de ressentimento e conflito, mas privados como confidências de travesseiro entre marido e mulher.

Tremendo, Rannilt abriu a porta, e esgueirou-se em direcção à que estava aberta para o átrio, às apalpadelas no escuro. Havia uma claridade frouxa no átrio, que lhe parecia brilhar no topo das escadas. A velha senhora não permitia que nada se passasse naquela casa sem se intrometer e censurar. Como se ainda não lhe chegasse ter posto de parte a neta e tomado o partido da recém-chegada! Susanna tinha encostado a porta do quarto atrás de si, e, à distância a que estava, a três ou quatro passos do átrio, Rannilt podia ver apenas o contorno sombrio do seu lado esquerdo, do ombro até à orla do vestido. Mas agora as vozes tinham palavras.

- Chiu, fala baixo! - sibilou a velha senhora, peremptoriamente. - Não é preciso acordar os que estão a dormir. Tu e eu chegamos para vigiar a noite. "Deve estar no cimo das escadas, com a candeia numa mão e apoiada na outra", pensou Rannilt. "Não quer acordar mais nenhum membro da família."

- Mais uma que o necessário, senhora!

- Deveria deixar-te sozinha entregue à tua tarefa, estando tu a trabalhar até tão tarde? Que trabalhadora! Tão escrupulosa nas tuas contas, e tão cuidadosa no teu abastecimento!

- Nem vós, nem ela, minha avó, podereis afirmar que eu deixei sequer uma medida de farinha ou uma gota de mel por inventariar - disse Susanna em tom cortante.

- Nem um grão de farinha de aveia? - ouviu-se uma pequena, quase furtiva risada vinda do topo das escadas. - Excelente economia doméstica, minha filha, encontrar os teus potes ainda meio cheios, e a Páscoa já passada! Faço-te justiça, administraste bem os teus assuntos.

-Aprendi convosco, minha avó. - Susanna tinha desaparecido da fenda da porta, dando um passo em direcção às escadas.

Parecia a Rannilt que ela estava agora imóvel, olhando para cima, para a velha senhora, lançando o seu débil e amargo protesto directamente ao velho rosto que a espreitava na escuridão. A luz que a pequena lâmpada espalhava alongava-lhe a sombra nas tábuas do soalho, uma larga barreira negra que se estendia até à soleira da porta. Pela forma da sombra, Susanna tinha enrolado a capa à sua volta, o que era natural, estando a trabalhar até tarde ao frio da noite.

- É por vossa ordem, minha avó - disse ela, em voz baixa e com clareza -, que eu estou a entregar os meus assuntos. Que tencionáveis fazer comigo agora? Ainda tínheis um lugar preparado para mim? Um convento, talvez?

A sombra na porta agitou-se subitamente, como se ela tivesse aberto os braços e estendido a capa.

Depois daquela amargamente discreta troca de palavras, o grito que rasgou o silêncio foi tão aterrorizador que Rannilt se esqueceu de si própria e avançou, escancarando a porta interior e irrompendo no átrio. Viu a Srª Juliana no topo das escadas, abalada e agitada como a sombra negra, com a candeia inclinada e pingando óleo na mão esquerda, e a direita agarrando e cravando-se-lhe no peito. A boca que tinha acabado de soltar aquele grito terrível estava puxada para o lado, a face deformada. Tudo isto viu Rannilt num breve relance, antes de a velha senhora cambalear para a frente e cair pelas escadas abaixo, chocando violentamente no chão, e a candeia, fugindo-lhe da mão, lançou um jacto de óleo a arder no soalho, junto aos pés de Susanna, e apagou-se.

 

                DE QUINTA-FEIRA À NOITE

                 AO ALVORECER DE SEXTA

Rannilt deu um salto para abafar a pequena serpente de fogo que tinha apanhado qualquer coisa inflamável e irrompera em chamas. Às cegas, desajeitadamente, as suas mãos encontraram o canto duro de uma trouxa de pano, ali no chão, junto à parede, e apagaram o fogo que se ateara na extremidade da corda que a atava. Algumas fagulhas flutuaram e incendiaram lascas de madeira, e ela ajoelhou-se e apagou-as com abainha da saia, e mergulharam na escuridão. Não por muito tempo, porque todos naquela casa estavam agora certamente acordados; mas, entretanto, completamente às escuras, Rannilt tacteou apalpadelas pelo chão, tentando descobrir onde a velha senhora estava caída.

- Fica quieta - disse Susanna na escuridão atrás dela. - Eu acendo uma luz.

Ela desaparecera, rápida e competente como sempre, entrando de novo no quarto, onde podia deitar rapidamente a mão a uma pederneira e a uma mecha, que estavam sempre prontas junto à cama. Voltou com uma vela, e acendeu a candeia que estava presa à parede. Rannilt levantou-se e precipitou-se para o local onde a Srª Juliana jazia de bruços, no fundo das escadas. Mas Susanna antecipou-se-lhe, ajoelhando-se ao lado da avó e percorrendo-a rapidamente com as mãos em busca de ossos partidos na queda, antes de se aventurar a levantá-la. Os ossos dos velhos são frágeis, mas não tinha sido uma queda desamparada, fora mais uma série de cambalhotas de degrau em degrau.

A seguir vieram todos, segurando velas, bocejando, gritando perguntas, Daniel e Margery com uma capa enrolada apressadamente à volta de ambos, Walter confuso e rabugento de sono, Iestyn correndo precipitadamente pelas escadas acima, vindo do subterrâneo, e entrando pela porta do quarto de Susanna, que Rannilt deixara aberta. Surgiram luzes uma atrás das outras, esquecida a habitual regra de economia.

Juntaram-se, fazendo perguntas, incoerentes com o sono, o alarme e a desorientação. As chamas fumarentas e as sombras vacilantes enchiam o átrio de formas fugazes que dançavam em torno das duas figuras imóveis no soalho. Que acontecera? Que barulho era aquele? Que estava a velha senhora a fazer fora da cama? Porquê o cheiro a queimado? Quem havia feito aquilo?

Susanna fez deslizar suavemente um braço sob o corpo da avó, amparou a cabeça grisalha com a outra mão, e olhou para cima. Lançou ao ruidoso grupo dos seus familiares um olhar frio e faiscante, no qual Rannilt viu, como nenhum deles, o desprezo que ela tinha por todos os membros da sua família, à excepção do ser gasto e dorido que segurava nos braços.

- Parai com esse alarido e fazei qualquer coisa de útil. Não vedes? Ela saiu com a luz para ver o que eu estava a fazer, teve outro ataque e caiu, e pode muito bem ser o último. Rannilt pode contar-vos. Rannilt viu a queda.

-Vi - disse Rannilt, estremecendo. - Ela deixou cair a candeia e agarrou o peito, e depois caiu. O óleo jorrou e incendiou- se, eu apaguei-o... - Olhou em direcção à parede à procura da trouxa, onde quer que tivesse estado, que tinha oferecido uma ponta de estopa à fagulha, mas agora não havia ali nada. -Ela não está morta... vede, está a respirar... Ouvi!

Estava, sem dúvida, porque logo que eles fizeram silêncio o ar agitou-se com a sua respiração superficial e ruidosa. Um dos lados do rosto estava repuxado, a boca contorcida, os olhos meio abertos e com um brilho esbranquiçado; e todo o corpo desse lado estava rígido como uma tábua, os dedos da mão retorcidos e rígidos. Susanna percorreu o olhar por todos eles, deu as suas instruções, e, naquele momento, ninguém contestou a sua autoridade.

- Pai e Daniel, levai-a para a cama. Ela não tem ossos partidos, não sente nada. Não podemos dar-lhe o remédio, não conseguiria engoli-lo. Margery, atiça a braseira do quarto. Eu vou buscar vinho, para aquecer com açúcar e canela para quando recuperar os sentidos... se chegar a recuperá-los.

Olhou por cima do ombro de Rannilt para Iestyn, que estava de pé no meio das sombras, mudo e desorientado. O rosto dela estava rígido e frio como o mármore, mas os seus olhos brilhavam com nitidez.

- Corre à abadia - disse ela. - Pede ao irmão Cadfael que venha vê-la. Às vezes ele trabalha até tarde, se tem mezinhas para fazer. Mas mesmo que tenha recolhido à sua cela, o porteiro irá chamá-lo. Ele disse que viria se precisássemos dele. Precisamos dele agora.

Iestyn olhou para ela sem proferir palavra, depois voltou-se tão silenciosamente como chegara e desatou a correr como ela lhe ordenara.

Não era tão tarde como isso. Na abadia, parte do dormitório ainda estava acordado, havia uma agitação inquieta em algumas celas, onde os irmãos tinham mais dificuldade em dormir, ou tinham recordações demasiado vivas.

O irmão Cadfael, que ficara na oficina até tarde esmagando ervas para uma decocção que iria fazer no dia seguinte, estava precisamente rezando as suas orações antes de dormir quando o porteiro veio à sua procura, deslocando-se cuidadosamente pelo corredor entre as celas. Levantou-se imediatamente, desceu silenciosamente as escadas e atravessou a igreja para conferenciar com o mensageiro que se encontrava na portaria.

- A velha senhora, não é? - Ele não precisava de ir buscar nada ao herbário, o melhor que ele podia dar-lhe já fora fornecido e Susanna sabia como o usar, se é que o seu uso ainda podia ser de alguma utilidade. - É melhor apressarmo-nos, então, se é assim tão grave.

Pôs-se a andar em passo rápido ao longo do Foregate e da ponte, e fez as perguntas necessárias pelo caminho.

-Por que estava ela a pé àquela hora? E como é que se deu o ataque?

Iestyn mantinha-se a seu lado e respondia laconicamente. Nunca falava muito.

- Mistress Susanna esteve acordada até tarde ocupando-se da despensa, pois foi obrigada a entregar as chaves. E a Srª Juliana levantou-se, possivelmente para ver o que é que ela ainda andava a fazer. Teve o ataque no cimo das escadas e caiu.

- Mas o ataque surgiu antes? E causou a queda?

- É o que as mulheres dizem.

- As mulheres?

- A criada estava lá e viu tudo.

- Qual é o estado dela agora? Da velha senhora? Tem ossos partidos? Pode mexer-se à vontade?

- A senhora diz que não tem nada partido, mas de um dos lados está rígida como uma árvore, e tem a cara torta. Deixaram-nos entrar pelo portão da cidade, sem lhes fazerem perguntas. Cadfael tinha, por vezes, missões ainda mais tardias e era bem conhecido. Subiram a curva íngreme do Wyle em silêncio, pois a ladeira tirava-lhes o fôlego.

- Eu avisei-a, da última vez - disse Cadfael quando a encosta se suavizou -, que se não refreasse as suas fúrias, o próximo ataque poderia ser o último. Ela estava muito senhora de si e bastante calma esta manhã, apesar das ofensas que se estavam a preparar ali em casa, mas eu tive as minhas dúvidas... Que poderá tê-la perturbado esta noite?

Mas se Iestyn tinha alguma resposta para isso, guardou-a para si. Um homem taciturno, que fazia o seu trabalho e não revelava as suas opiniões.

Walter estava saltitando nervosamente à entrada da passagem, esperando por eles com uma lanterna na mão. Daniel estava no átrio com a capa desordenadamente enrolada, com as velas perdulárias ainda negligentemente acesas, até que Walter entrou com os recém-chegados, e, vendo-os lá dentro, deu-se subitamente conta do desperdício, começando a apagar a maior parte, deixando a pairar o cheiro do pavio quente.

- Levámo-la para a cama - disse Daniel, inquieto e infeliz com aquela perturbação, que viera interromper os seus recentes prazeres. - As mulheres estão com ela. Subi, estão ansiosas pela vossa presença. - E seguiu atrás dele, mergulhado numa inquietação que teria de ser vencida para poder ter algum sossego. Hesitou à porta do quarto da doente, mas não entrou. Iestyn permaneceu ao fundo das escadas. Naqueles anos todos em que ali trabalhara, nunca as havia subido.

Uma braseira ardia num recipiente de ferro colocado sobre uma pedra larga, e uma pequena lanterna estava acesa numa saliência da parede. Aqui, nos andares superiores, não havia tecto, os quartos elevavam-se até ao telhado, forrados de madeira escura. De um dos lados da cama estreita, Margery, muda e pálida, recuou rapidamente para a sombra para deixar o irmão Cadfael aproximar-se. Do outro lado, estava Susanna, muito direita e quieta, e a sua cabeça voltou-se momentaneamente para averiguar quem tinha entrado. Cadfael ajoelhou-se ao lado da cama. Juliana estava viva, e se tinha perdido algumas faculdades, ainda estava na posse de outras, pelo menos durante uns breves instantes. Na face contorcida o seu olhar estava vivo, desperto e resignado. Cruzou o olhar de Cadfael e reconheceu-o. O esgar quase poderia ter sido o seu velho sorriso azedo.

- Mandai Daniel chamar o padre - disse Cadfael ao vê-la, e sem rodeios. - A sua missão agora é mais dele que minha. - Ela iria apreciar isso. Sabia que estava a morrer.

Levantou os olhos para Susanna. Não havia dúvidas agora sobre quem assumia ali o comando; por muito que se agredissem uns aos outros, era ela, de entre todos, que possuía o sangue de Juliana, saía a ela e estava à sua altura.

- Ela disse alguma coisa?

- Não. Nem uma palavra. - Sim, ela até se parecia com o que a outra deveria ter sido há cinquenta anos atrás, uma matrona digna, resoluta e competente, casada com um homem de têmpera inferior à sua. A sua voz era grave, firme e calma. Tinha feito o que era possível pela moribunda, e permanecia à espera de quaisquer palavras que pudessem ser pronunciadas por aquela boca inutilizada. Até se inclinava para limpar a saliva que lhe escorria do canto dos lábios deformados.

- Mandai vir o padre, pois eu não o sou. Nós já lhe prometemos as nossas preces, ela sabe isso. - Aquilo era para ela, para se certificar de que estava viva dentro do seu corpo morto, e não precisava de se arrepender das ofertas que fizera à abadia, distribuídas com tanta cautela. Os olhos mortiços brilharam um pouco; havia compreendido. Para onde quer que tivesse ido, sabia o que era dito e feito por ela. Mas não disse uma palavra, nem tentou falar sequer.

Margery retirara-se reconhecidamente do quarto, para mandar o marido ir chamar o padre. Não regressou. Walter estava lá em baixo, apagando velas e afligindo-se pelas poucas que tinham de ficar acesas. Apenas Cadfael de um lado da cama e Susanna do outro ainda vigiavam a morte da Srª Juliana.

Os olhos vivos no corpo morto da velha senhora fixaram-se no rosto de Cadfael, mas não, pensou ele, para lhe comunicar alguma coisa para além da sua provocadora confiança nos seus próprios recursos. Alguma vez perdera o domínio da sua própria casa? E aqueles ainda eram a sua família, ninguém tinha de se intrometer. Os de fora deviam ficar de fora. Este monge que ela aprendera a respeitar e a dar valor, apesar de todas as suas divergências, aceitava-o em parte, estava suficientemente próximo para saber e reconhecer os seus direitos de posse. A boca contorcida agitou-se subitamente, emitiu um som audível, pareceu-se por momentos com uma boca que podia dizer coisas dignas de memória. Cadfael inclinou o ouvido junto aos seus lábios.

Um murmúrio penoso, indistinto, e depois:

- Fui eu que os criei... - disse ela com voz empastada, e novamente se debateu com pensamentos incomunicáveis, e parou com um suspiro ruidoso. Um tremor percorreu-lhe o corpo rígido. Um fio de voz emergiu quase com clareza: - Mas apesar de tudo... gostaria de ter segurado nos meus braços... o meu bisneto...

Cadfael tinha acabado de levantar a cabeça quando ela fechou os olhos. Não havia dúvida de que fora por sua vontade que se haviam fechado, não por falta de resistência. Mas para o padre, estava moribunda.

Nem com o padre ela voltou a falar. Foi indulgente com as suas exortações e fez um esforço por responder com as pálpebras quando ele fez as necessárias investigações sobre a consciência que ela tinha dos seus pecados e o seu desejo e esperança de absolvição. Morreu logo a seguir a ele a ter pronunciado, ou apenas instantes depois.

Susanna ficou com ela até ao fim e não pronunciou uma única palavra. Quando tudo acabou, inclinou-se e beijou a pele curtida e a testa fria com algo mais que respeito, e com o rosto tranquilo como o mármore. Depois desceu para acompanhar cortesmente o irmão Cadfael à porta, e agradecer-lhe todas as atenções que tivera com a falecida.

- Ela deu-vos, eu sei, mais trabalho que o que lhe seria possível pagar-disse Susanna com a sua expressão desdenhosa e amarga nos lábios e uma serenidade forçada na voz.

- E sois vós quem mo diz? - disse ele, observando as reentrâncias que ela tinha ao canto dos lábios tornarem-se mais pronunciadas. - Acabei por sentir por ela uma certa reverência, embora não chegasse a ter-lhe afeição. Não que ela precisasse disso de mim. E vós?

Susanna desceu o último degrau, perto do local onde Rannilt se comprimia contra a parede, receosa de ir mais além, relutante em abandonar a sua devotada vigilância. Desde que Susanna saíra do quarto com a luz, a capa lançada lá para dentro, agora que havia trabalho para fazer, Rannilt rondava atenta, à espera de poder tornar-se útil.

- Duvido - disse o irmão Cadfael, reflectindo - que houvesse alguém que a tivesse amado tanto como vós.

- Ou odiado tanto, também - disse Susanna, levantando a cabeça com um brilho comedido nos olhos cinzentos.

- Os dois andam muitas vezes a par - disse ele, imperturbável.

- Não necessitais de pôr nenhum em causa.

- Não o farei. Agora tenho de voltar para junto dela. Está a meu cargo, prestar-lhe-ei os cuidados que lhe são devidos. - Olhou em volta e disse com suavidade: - Rannilt, leva a lanterna de Mas ter Walter, e acompanha o irmão Cadfael. Depois vai para a cama, não há mais nada aqui para tu fazeres.

- Preferia ficar e velar convosco - disse Rannilt timidamente.

- Ireis precisar de água quente e panos, e de alguém para a levantar, e para fazer recados. - Como se não houvesse ali gente suficiente, agora lá em cima junto à cama, o filho, o neto, e a mulher do neto, e que desgosto sentiam eles? A Srª Juliana durara mais alguns anos que devia, e era menos uma boca para alimentar uma vez enterrada; para já não falar da sua língua afiada e dos seus olhos demasiado penetrantes, que já não poderiam causar mais nenhum vexame.

- Está bem, podes - disse Susanna, olhando demoradamente para a pequena figura infantil que a olhava da penumbra com uns olhos enormes, onde Walter apagara todas as velas menos uma, mas deixando inadvertidamente a lanterna acesa. -Dormirás amanhã durante o dia, nessa altura estarás pronta para ir para a cama e o teu espírito estará mais calmo. Anda para cima, depois de teres acompanhado o irmão Cadfael à rua. Nós as duas iremos tratar dela.

- Estavas lá? - perguntou Cadfael suavemente, seguindo a rapariga pela passagem escura como breu. - Viste o que se passou?

- Sim, senhor. Eu não conseguia dormir. Vós estivestes cá hoje de manhã quando todos se voltaram contra ela, e até a velha senhora disse que ela tinha de ceder o seu lugar... Vós sabeis...

- Eu sei, sim. E tu afligiste-te.

Ela... nunca foi dura comigo... - Como seria possível dizer que Susanna fora bondosa, se a sua frieza proibia uma tal palavra? - Não foi justo terem-na expulsado daquela maneira.

- E tu estiveste a ver, a ouvir e a sofrer. E entraste. Quando é que isso foi?

Ela contou-lhe, tão claramente como se estivesse a revivê-lo. Contou-lhe, tanto quanto se lembrava, e era quase palavra por palavra, o que se passara entre a avó e a neta, e como tinha ouvido o grito que precedera o ataque da velha senhora, e se precipitara para dentro vendo-a a ofegar, a caminhar de um modo hesitante e levando a mão ao peito, a candeia caindo-lhe da mão, antes de rolar de cabeça pela escada abaixo.

- E não havia mais ninguém por ali, nessa altura? Ninguém ao pé dela, lá em cima?

- Oh, não, ninguém. Ela deixou cair a candeia precisamente quando caiu. - A pequena serpente de fogo, as fagulhas que brotaram e a chama súbita que se ateara ao encontrar a ponta de estopa, não pareceram a Rannilt ter nada a ver com o que acontecera. - E depois ficou tudo às escuras e a senhora disse para eu ficar quieta, e foi buscar uma luz.

Era pois certo, sim, absolutamente certo que ela caíra. Ninguém ajudara à sua queda, as únicas testemunhas estavam em baixo. E se não tivessem ido imediatamente em seu auxílio, e não o tivessem mandado chamar tão prontamente, ele nunca teria chegado a tempo de ver a Srª Juliana morrer. Muito menos de ouvir as únicas palavras que ela proferira antes de morrer. O que quer que elas significassem! "Fui eu que os criei... Apesar de tudo, gostaria de ter segurado nos braços o meu bisneto..."

Bem, o neto, o único ser por quem diziam que ela tinha um fraco, estava agora casado, o seu espírito orgulhoso poderia esforçar-se por viver o tempo necessário para abraçar uma futura geração.

- Não, não venhas para a rua, minha filha, são horas de estares dentro de casa, e eu conheço o caminho.

Ela foi-se embora, tímida, assustadiça e silenciosa. E Cadfael regressou pensativamente à sua cela no dormitório, instalando-se o mais confortavelmente possível, e tentando compreender, mas sem grande sucesso. Nesta morte, pelo menos, não havia suspeitas de crime. Juliana caíra sem que ninguém estivesse ao pé, indiscutivelmente com um ataque semelhante a dois que já sofrera. Além disso, a discórdia estalara naquela casa de uma forma perturbadora nesse mesmo dia, o que era razão suficiente para que o corpo, o coração e a natureza irascível de uma mulher idosa não tivessem aguentado. O que era de admirar era que isto não tivesse acontecido mais cedo. Contudo, o espírito de Cadfael não conseguia dissociar esta morte da primeira, nem do crime de que Liliwin era acusado. Havia, tinha de haver, um fio que ligasse tudo isto. Não podia ser apenas por um acaso bizarro que uma vulgar família burguesa era assim subitamente atingida por desgraças, umas atrás das outras. Uma mão humana pusera a cadeia em movimento; esse acto fora a origem de todos os acontecimentos posteriores, e onde aquele ímpeto finalmente se esgotaria ou onde terminaria aquela sequência de fatalidades, foram conjecturas que mantiveram Cadfael acordado durante grande parte da noite.

No quarto onde jazia a Srª Juliana a única candeia ardia, um constante olho de fogo, à cabeceira da cama. A noite pairava profunda e silenciosamente sobre a cidade, passado o ponto intermédio entre o crepúsculo e a alvorada. Num banco de um dos lados estava sentada Susanna, com as mãos pousadas no regaço, finalmente em sossego. Rannilt sentara-se, submissamente, aos pés da cama, muito fatigada, mas relutante em retirar-se para o seu humilde leito, e convencida de que não conseguiria adormecer se o fizesse. As madeiras protectoras do telhado elevavam-se sobre elas até uma profunda escuridão. As três mulheres, duas vivas e uma morta, estavam ligadas por uma intimidade próxima e muda, isoladas do mundo por algumas horas.

Juliana jazia direita e austera, o cabelo grisalho penteado num arranjo cuidadoso, o rosto descoberto, o lençol dobrado junto ao queixo. A contorção começava já a desvanecer-se das feições, deixando-a em paz.

Nenhuma das duas que velava a seu lado pronunciara uma única palavra desde que o trabalho terminara. Susanna não hesitara em dispensar a relutante oferta de ajuda de Margery, e não tivera dificuldades em se desembaraçar dos seus três familiares. Estes não se importaram de voltar para a cama e de a deixar encarregue de tudo. Patroa e criada tinham a vigília a seu cargo.

- Estais com frio - disse Rannilt, rompendo suavemente o silêncio ao ver Susanna estremecer. - Quereis que vá buscar a capa? Já havíeis sentido necessidade dela na despensa, quando andáveis de um lado para o outro, e agora estamos aqui sentadas, e a noite está mais fria que nessa altura. Vou lá abaixo buscá-la.

- Não - disse Susanna com um ar ausente. - Foi só um arrepio. Estou bem agasalhada. - Voltou a cabeça e dirigiu à rapariga um longo e sombrio olhar. - Ficaste tão apoquentada por minha causa que ficaste acordada e vigilante durante a noite como eu? Achei que chegaste muito depressa. Viste e ouviste tudo?

Rannilt tremeu à ideia de ter cometido uma indiscrição, mas a voz de Susanna era a mesma de sempre e o seu rosto estava calmo.

- Não. Eu não estava à escuta, mas não pude deixar de ouvir uma parte. Ela elogiou o vosso abastecimento. Talvez estivesse arrependida nessa altura... É estranho que ela se tivesse posto a pensar nessas coisas, e subitamente ficasse orgulhosa por vós ainda terdes o pote da farinha de aveia meio cheio... Ouvi isso. Estou certa de que acabou por se arrepender por terdes sido assim menosprezada. Ela tinha mais consideração por vós que por qualquer outra pessoa.

- Ela estava regressando aos tempos em que dirigia tudo - disse Susanna. -E tinha tudo nos seus ombros, como eu tive. A velha retrospectiva, antes do fim. - Os seus olhos, grandes e concentrados no rosto de Rannilt, cintilaram na obscuridade, reflectiram a luz da candeia. - Queimaste a mão - disse ela. - Lamento.

-Não é nada - disse Rannilt, ocultando-a rapidamente no colo. - Fui desajeitada. A estopa incendiou-se. Não dói. - A estopa...?

-A que estava atada à volta da trouxa que ali estava. Tinha uma ponta desfeita e agarrou a chama antes que eu me apercebesse.

- Uma pena! - disse Susanna, e ficou silenciosa por uns momentos, observando o rosto sem vida da avó. Os cantos dos seus lábios encurvaram-se momentaneamente num esboço de sorriso.

- Havia uma trouxa, não é? E eu tinha a minha capa vestida... Sim! Reparaste em muita coisa, tendo em conta o susto que te devemos ter pregado, nós as duas.

No prolongado silêncio, Rannilt observou o rosto da patroa e sentiu grande receio por ter pisado terreno onde não tinha o direito de entrar, e sentindo-se apanhada num delito que não tencionara cometer.

- E agora estás a perguntar a ti própria o que é que estava nessa trouxa, e para onde é que ela se sumiu, antes sequer de termos começado a acender as velas. Juntamente com a minha capa! - Susanna fixou o seu olhar austero, meio sorridente no rosto intimidado de Rannilt. - É absolutamente natural que te interrogues.

- Estais zangada comigo? - aventurou-se Rannilt num murmúrio.

- Não. Por que haveria de ficar zangada? Penso, tenho a certeza, que por vezes sentiste por mim a amizade que uma mulher sente por outra. Não é verdade, Rannilt?

- Esta manhã... - gaguejou Rannilt, um pouco receosa. - Não pude evitar sentir dor...

- Eu sei. Tu viste como sou desprezada aqui. - Disse-o com muita suavidade e calma, uma mulher falando com uma criança, mas uma criança a cuja compreensão ela dava valor. - Como sempre fui desprezada. A minha mãe morreu, a minha avó envelheceu, e eu tive préstimo até o meu irmão ter chegado à altura de tomar uma esposa. Sim, mas pouco mais que um dia. Todos estes anos para nada, e eu fico para aqui sem marido, estéril e sem ocupação.

Fez-se de novo silêncio, porque embora Rannilt sentisse o peito a rebentar de compaixão indignada, a sua língua ficara paralisada. Na escuridão das vigas do telhado a débil e suave luz vacilou com uma súbita corrente de ar.

- Rannilt - disse Susanna grave e suavemente -, és capaz de guardar um segredo?

- Um segredo vosso decerto que serei - murmurou Rannilt. - Jura que não dirás uma palavra a ninguém, e contar-te-ei uma coisa que mais ninguém sabe.

Rannilt murmurou devotadamente o seu juramento, lisonjeada e animada por ser alvo dessa confiança.

- E ajudar-me-ás no que tenciono fazer? Porque a tua ajuda seria bem-vinda... Preciso da tua ajuda!

- Por vós farei tudo o que estiver ao meu alcance. - Nunca ninguém tinha esperado ou exigido dela uma tal lealdade, nunca ninguém a considerara mais que uma serva e uma insignificante, não era de admirar que o seu coração lhe fosse sensível.

- Acredito e confio em ti. - Susanna inclinou-se para a luz. - A minha trouxa e a minha capa, fi-las desaparecer da vista antes de trazer a vela, e escondi-as no meu quarto. Esta noite, Rannilt, se não fosse este impedimento fatal, eu tencionava abandonar este local, deixar esta casa que nunca me fez justiça, e esta cidade na qual não tenho um lugar honroso. Esta noite Deus impediu-o. Mas amanhã à noite... amanhã à noite partirei! Se me ajudares posso levar comigo mais alguns dos meus pobres haveres do que me seria possível transportar sozinha no primeiro troço do caminho. Chega-te cá, rapariga, e eu conto-te. - A sua voz era baixa e suave, um murmúrio confiante aos ouvidos de Rannilt. - Do lado de lá da ponte, no estábulo do meu pai, para lá de Frankwell, alguém que me dá o verdadeiro valor estará à minha espera...

 

             SEXTA-FEIRA DE MANHÃ ATÉ À NOITE

Susanna veio para a mesa, quando a família deprimida se reuniu na manhã seguinte, com as chaves à cintura, e com determinação desapertou a fina corrente que as segurava, e depô-las perante Margery.

- Agora são tuas, irmã, como desejaste. De hoje em diante o governo da casa pertence-te, e eu não interferirei.

Estava pálida e olheirenta pela noite sem dormir, mas nenhum deles estava em muito melhores condições. Todos ficariam contentes por se irem deitar cedo, logo que a luz do dia desaparecesse, para recuperarem o descanso perdido.

- Darei uma volta à cozinha e à despensa contigo esta manhã, e mostrar-te-ei o que tens disponível, as roupas, e tudo o que te estou a entregar. E desejo-te as maiores felicidades.

Margery estava quase desconcertada com tal generosidade, e esforçou-se por lhe captar as boas graças enquanto era conduzida desapiedadamente pelo seu novo domínio.

- E agora - disse Susanna, sacudindo energicamente aquela tarefa dos seus ombros - tenho de ir e trazer Martin Bellecote para tratar do caixão, e o pai vai sair para visitar o padre a Saint Mary's. Mas depois, desculpar-me-ás, gostaria de dormir um pouco, e a rapariga também precisa, pois nenhuma de nós pregou olho.

- Eu arranjo-me bem sozinha - disse Margery. - E terei o cuidado de não te incomodar neste quarto hoje. Se eu puder tirar agora o que for preciso para o jantar, depois podes descansar. - Ela estava dilacerada entre a humildade e a exultação. Ter a morte em casa, não era motivo de alegria, mas a tristeza pesaria apenas durante alguns dias, e depois ela ficaria livre de quaisquer obstáculos aos seus próprios planos, livre dos velhos olhos censórios vigiando e depreciando os seus melhores esforços, livre desta virgem a envelhecer, que certamente se absteria daí em diante de qualquer participação no governo da casa, e dona de um marido domesticado, que a partir de agora andaria ao seu toque.

O irmão Cadfael passara o princípio da tarde no jardim do herbário, e tendo ali deixado tudo em ordem, saiu para inspeccionar o trabalho ao longo do Gaye. O tempo continuava ensolarado e quente, e os rapazitos da cidade e do Foregate, nados e criados na água, e sabendo nadar quase antes de terem aprendido a andar, entravam e saíam dos bancos de areia, e os mais ousados e mais fortes de entre eles aventuravam-se até a atravessar o rio, nos locais em que o Severn corria suavemente. As inundações primaveris vindas da montanha haviam terminado, o rio apresentava um rosto brando, mas estas crianças conheciam os seus truques, e raramente confiavam demasiado nele.

Cadfael atravessou o pomar florido, com o espírito inquieto depois dos alarmes nocturnos, e continuou pela corrente abaixo até que parou algures em frente aos jardins das casas que se estendiam em direcção ao castelo. A meio da encosta atravessava-se a alta barreira de pedra da muralha do burgo, cujo cimo se desagregara em ruínas em alguns locais, ainda não restauradas depois dos rigores do cerco de há dois anos atrás. Dentro do seu campo de visão estava perfurada por duas estreitas portas em arco, facilmente barradas em tempos difíceis. Uma das duas devia estar na propriedade dos Aurifaber, mas ele não tinha a certeza de qual. Sob a muralha, o relvado brilhava fresco e nítido, e as árvores estavam cobertas de pálidas folhas tenras e flores brancas como a neve. Os amieiros inclinavam-se sobre os baixios, flexíveis e rosados pelas candeias. Os salgueiros exibiam os reflexos de ouro e prata das suas flores sedosas. Uma época do ano demasiado doce e prometedora para ameaçar um pobre jovem com a forca ou para atingir uma única família com danos e morte.

Os rapazes do Foregate e os da cidade eram rivais por tradição, trazendo para disputas ocasionais o forte sentimento dos seus antepassados. Os seus jogos na água tornavam-se, por vezes, rudes, mas raramente perigosos, e se algum mais imprudente pisava o risco, havia geralmente por perto um aliado mais velho e sensato, para o proteger e pôr a sua vítima em segurança. Algumas crianças entregavam-se a brincadeiras rudes nos baixios do lado oposto àquele em que Cadfael se encontrava. Um diabrete do Foregate tinha-se aventurado na travessia, mergulhara no meio dos folguedos das crianças do burgo sem estas se darem conta, e puxou uma delas para dentro, que protestou atabalhoadamente sob a superfície. O grupo encolerizado cercou-o e perseguiu-o pela corrente abaixo, até que ele chapinhou pela margem para fugir pela encosta relvada acima, estatelando-se ao comprido com a pressa, trepando precipitadamente no meio de uma saraivada de borrifos. De um fofo relvado, onde certamente não teria o direito de estar, deu saltos de contente e vangloriou-se, ao vê-los retirar e abandonar a perseguição. Parecia que tinha pescado alguma coisa na água pouco profunda sob os arbustos. Sentou-se e esfregou-a na palma da mão, atento e curioso. Ainda estava absorvido por ela quando outro rapaz, pouco mais velho que ele, surgiu nu do pomar que se encontrava mais acima, deixando cair a camisa na relva e trotando por ali abaixo em direcção à água. Viu o intruso e parou espantado, a olhar fixamente.

A distância não era tão grande que não permitisse a Cadfael reconhecê-lo, e soube, consequentemente, a quem pertencia a extensa propriedade para onde estava a olhar. Treze anos de idade, bem desenvolvido e com bom aspecto; o simplório de Baldwin Peche, Griffin, dispensado das suas tarefas por uma hora, para sair correndo pela porta na muralha, e nadar no rio como os outros rapazes. Griffin tinha visto, muito melhor que Cadfael poderia aspirar fazê-lo do outro lado do rio, que espécie de trofeu o atrevido rapaz do Foregate descobrira nos baixios. Soltou um grito indignado, e desceu o relvado a correr para tentar agarrar rapidamente a mão em concha. Qualquer coisa caiu, cintilando por um momento, sobre o relvado, e Griffin abateu-se sobre ela como um falcão ao ataque, e alcançou-a ciosamente. O outro rapaz, surpreso, pôs-se de pé de um salto e tentou por sua vez agarrá-la, mas recuou perante um adversário mais alto. Não ficou grandemente perturbado por perder o seu brinquedo. Houve uma troca de palavras, despreocupada do seu lado, lenta e sóbria do de Griffin. O rapazito do Foregate gritou um insulto de despedida, dançando às arrecuas em direcção ao rio, saltou para dentro com um chape propositado, e nadou para as águas da sua casa, rápido e prateado como uma truta.

Cadfael dirigiu-se com vivacidade para o local em que a criança deveria vir para terra, mas manteve também um olhar vigilante sobre a encosta, e viu como Griffin, em vez de mergulhar atrás do rival expulso, retrocedeu para colocar o seu trofeu cuidadosamente nas pregas da camisa que tinha deixado junto aos arbustos. Depois desceu pela margem abaixo e avançou pela água dentro, e pôs-se a nadar de cabeça para baixo com tanta perícia e facilidade, que era evidente que sabia nadar desde tenra idade. Estava rolando e brincando nos remoinhos quando o outro rapaz subiu para o relvado na margem em que Cadfael se encontrava, a escorrer água e radiante da brincadeira, e começou a sacudir e a bater com os braços ao sol, sobre o seu corpo magro. Nenhum adulto se atreveria a experimentar aquela água antes de um mês ou mais, mas os jovens têm suficiente energia para se manter aquecidos e, como os velhos tendem tolerantemente a dizer: "Quem corre por gosto, não cansa."

- Então, trutazita - disse Cadfael, reconhecendo o diabrete, mal este se aproximou -, que era aquilo que pescaste na lama ali adiante? Vi-te dirigires-te para terra. E não ficaste longe da vingança, também. Escolheste o refúgio errado.

O rapaz dirigira-se habilmente ao local onde deixara as roupas. Atirou-se à sua cota como uma seta e enrolou-a à volta da nudez, sorrindo.

- Não tenho medo dos trangalhadanças da cidade. Nem desse pateta do serralheiro, mas que lhe faça bom proveito aquela insignificância. Sabia que era do amo, disse ele! Não era mais que uma moedita redonda, com a cabeça de um homem gravada, com barba e um chapéu bicudo. Não tinha nada de especial.

- Além disso, esse Griffin é maior que tu - disse Cadfael com inocência.

O diabrete fez uma expressão de desprezo, e depois de esfregar os pés e os tornozelos na relva macia e de ter secado as coxas com umas palmadas, tratou de se enfiar nas calças.

- Mas é lento, e não tem o juízo todo. Que é que aquilo estava a fazer debaixo do cascalho na água, se prestava para alguma coisa? Por mim, pode ficar com ela!

E partiu em vigorosa corrida para se juntar aos seus amigos, deixando Cadfael pensativo. Uma moeda depositada no cascalho sob a margem, num local onde o rio fazia uma enseada pouco profunda, e arrebatada pelo punho de um rapazito que se estatelara ali por acaso ao fugir dos seus perseguidores. Não havia nisso nada de especialmente estranho. Nas águas do Severn podia aparecer toda a espécie de coisas, bem mais esquisitas que uma moeda perdida. O que a tornava digna de nota era que tivesse aparecido naquele preciso local. Havia demasiados fios emaranhados na teia que rodeava a família Aurifaber, já nada do que ali ocorresse poderia ser encarado como vulgar ou casual. E que concluir de todos estes elementos soltos, era algo que o irmão Cadfael não conseguia ainda descortinar.

Voltou para junto das suas plantas, que, pelo menos, estavam inocentes de qualquer mistério, e esteve a trabalhar durante o resto da tarde até se aproximar a hora de regressar para Vésperas; mas ainda dispunha de uma boa meia hora quando foi saudado por uma voz que vinha do rio, e, olhando em volta, viu Madog remando pelo rio acima e atravessando a corrente para acostar no local onde se encontrava Cadfael. Tinha trocado o seu pequeno bote por uma embarcação maior, suficientemente grande, pensou Cadfael com uma inspiração súbita, para levar um monge curioso até à outra margem, onde poderia dar uma vista de olhos à plácida enseada onde o rapaz dragara a moeda, à qual ligara tão pouca importância. Madog acostou o barco, e imobilizou-o com um remo enterrado na turfa macia da margem.

- Então, irmão Cadfael, ouvi dizer que a velha senhora morreu. A desgraça abateu-se sobre aquela casa. Disseram-me que havíeis lá estado, acompanhando-a nos seus últimos momentos.

Cadfael confirmou-o.

- Depois dos oitenta, pergunto a mim próprio se a morte deverá ser considerada uma desgraça. Mas sim, morreu. Deixou-os antes da meia-noite. - Se o fizera com uma bênção ou uma maldição, ou apenas com uma lúgubre asserção do seu domínio e protecção sobre eles, amada, ou não, era algo de que ele próprio tinha duvidado. Porque ela poderia ter falado, mas tinha dito apenas o que achara conveniente, nada de realmente importante. As disputas desse dia, certamente relevantes, tinha-as simplesmente apagado. Eles eram a sua gente. O que quer que necessitasse de julgamento e penitência entre eles era com ela, nada tinha a ver com o mundo exterior. E, contudo, deixara-o deliberadamente ouvir aquelas poucas palavras enigmáticas. A ele, o seu oponente, médico e... seria amigo uma palavra demasiado forte? Ao padre ela havia apenas com movimentos sugestivos das pálpebras respondido sim ou não, confessando as suas fraquezas, concordando em penitenciar-se, desejando absolvição. Mas nenhuma palavra.

- Deixou-os em desavença - disse Madog com perspicácia, abrindo o rosto enrugado como um carvalho num sorriso forçado. - Mas alguma vez fizeram outra coisa? A avareza é uma coisa destruidora, Cadfael, e ela criou-os a todos à sua imagem, todos querem para si e pouco dão.

"Eu criei-os a todos", dissera ela, como se admitisse uma culpa sobre a qual as suas pálpebras não haviam dito ao padre nem sim, nem não.

-Madog- disse Cadfael -, leva-me até à margem junto ao jardim, e no caminho explico-te porquê. Eles possuem a faixa do lado exterior da muralha até à margem. Gostaria de dar uma vista de olhos por ali.

- Com todo o prazer! - Madog aproximou o esquife. - Tenho andado a subir e a descer o rio desde a comporta, onde Peche guardava o barco, tentando encontrar alguém que me diga que o viu, ou ao barco, depois da manhã da passada segunda-feira, e nem um vislumbre. E duvido que Hugh Beringar tenha conseguido melhor na cidade, fazendo investigações entre os que conheciam o ferreiro e pelas tabernas em que ele alguma vez entrara. Entrai para bordo, então, e sentai-vos bem seguro, o barco navega um pouco mais fundo e desajeitado com dois a bordo.

Cadfael desceu o declive relvado, deu um passo ágil para o banco de remador e sentou-se. Madog deu um impulso e virou em direcção à corrente.

- Dizei, então! Que é que vos leva ali?

Cadfael contou-lhe o que havia presenciado, e ao contá-lo não parecia grande coisa. Mas Madog escutou-o com muita atenção, com um olho nos remoinhos superficiais do rio, que corria agora calmo e brincalhão, e o outro, segundo parecia, nalguma visão interior da família Aurifaber, desde a velha matriarca até à jovem noiva.

- Então foi isso que vos despertou a curiosidade! Bem, seja o que for que isso signifique, este é o local. Esse rapaz do Foregate deixou as suas marcas, vede como ele arrastou os dedos dos pés, e a turfa tão húmida e tenra.

Era um local calmo e quase privado, uma vez o barco entrado no baixio de areia grossa. Uma pequena enseada onde a água era calma, salpicada de cascalho limpo, e até nesse fundo límpido as mãos do rapaz tinham deixado pequenas marcas. De um daqueles orifícios - da mão direita, recordou-se Cadfael - tinha saído a pequena moeda, e ele trouxera-a consigo para terra para a poder examinar à vontade. Vimes de salgueiro e amieiro cresciam desde a orla da água de ambos os lados da planície de relva que se abria mais acima numa larga encosta verde, suficientemente íngreme para escoar rapidamente a água, mas suficientemente suave para proporcionar uma almofada arejada para pôr a roupa a branquear. Este terreno só podia ser avistado do outro lado do rio, nesta margem estava encoberto de ambos os lados pelos arbustos. Calhaus limpos, lavados e brancos, alguns de tamanho considerável, tinham sido carregados para terra para prender as roupas ali espalhadas a secar nos dias de barreia, quando o tempo estava favorável. Cadfael avistou-os e reparou numa pedra maior, certamente caída da muralha, que não tinha o suave polimento da água, apresentando cantos aguçados e pedaços de argamassa ainda aderentes. Deixada ali como se tivesse rolado do cimo da muralha, usada talvez algumas vezes para atar barcos acostados nos baixios.

- Vedes alguma coisa que vos possa ser útil? - perguntou Madog, mantendo o esquife imóvel com um remo enterrado no cascalho. Griffin já tinha tomado banho há muito tempo, secara-se e vestira- se, e levara a moeda que havia reclamado à loja do serralheiro que John Boneth agora dirigia. Considerara-o durante muito tempo como o seu segundo patrão; para ele, John era agora o seu sucessor.

- Demasiadas! - disse Cadfael.

Havia os vestígios do rapaz, mãos enterradas sob a água límpida, dedos dos pés esgaravatando mais acima na relva. Aqui em baixo tinha encontrado o seu trofeu, mais acima tinha-se sentado para o limpar e examinar, onde lhe fora arrebatado por Griffin. Sabia que era do seu amo, e era tão honesto como só os simples o são. Em redor do barco, amontoavam-se os salgueiros, mais acima, no relvado, estava a pilha de pesados seixos e a pedra caída. Aqui, ondulando ao longo da margem, dançavam pequenos caules de ranúnculo de água, sob os amieiros inclinados. E, mais sinistro que tudo, ali na orla da encosta de relva, ao alcance da sua mão, não um, mas três pequenos botões de flores de um púrpura-avermelhado erguiam-se desafiadoramente na relva, as dedaleiras que eles haviam procurado em vão pela corrente abaixo.

Os seixos empilhados e a pedra irregular nada diziam a Madog, mas as pequenas espirais de botões púrpura prenderam-lhe indubitavelmente o olhar. Olhou depois para o rosto de Cadfael, para o cintilante banco de areia, onde não seria possível um homem afogar-se, se estivesse consciente.

- É este o local?

Os frágeis e trémulos caules brancos de ranúnculo dançavam sob os amieiros, delicadamente ancorados. Os pequenos sulcos deixados pelos dedos do rapaz alteravam-se e enchiam-se gradualmente, com os grãos de areia e cascalho que deslizavam com o frémito da água.

- Aqui, ao fundo do seu próprio terreno? - disse Madog, abanando a cabeça. - De certeza? Eu não encontrei outro sítio onde esta terceira prova se juntasse às outras duas.

-Para além da existência dos Céus - disse Cadfael com sobriedade -, nada é absolutamente certo, mas isto é o mais próximo que um homem pode almejar. Teria ele roubado e sido descoberto? Ou teria ele descoberto demasiado sobre o ladrão, e foi suficientemente louco para deixar que isso se soubesse? Prouvera a Deus alguma ordem nisto tudo! Conduz-me de volta, Madog, tenho de me apressar para Vésperas.

Madog levou-o, sem objecções, exceptuando o facto de manter os seus velhos olhos, profundos e perspicazes, fixos no rosto de Cadfael durante toda a travessia até ao Gaye.

- Agora vais ao castelo relatar isto a Hugh Beringar?

- Vou antes a casa dele. Embora duvide que ele lá esteja para me receber.

- Conta-lhe o que vimos aqui - disse Cadfael com grande seriedade. - Deixa-o reflectir por si próprio, para ver o que ele conclui disto. Fala-lhe da moeda, pois estou certo de que era disso que se tratava, que foi dragada da enseada, e de como Griffin a reclamou como propriedade do seu amo. Que Hugh o interrogue sobre isso.

- Dir-lhe-ei tudo - disse Madog -, o que é mais do que consigo compreender.

- Tal como eu, por enquanto. Mas pede-lhe, se ele tiver tempo para isso, para vir até cá falar comigo, quando tiver acabado de tratar desta confusão. Porque a partir de agora, eu também me irei debruçar sobre este emaranhado e poderei, quem sabe, se Deus me ajudar!, vir a chegar a alguma explicação antes desta noite.

Hugh chegou a casa tarde das persistentes investigações pela cidade, que não lhe tinham trazido qualquer dado novo, a não ser que o seu efeito cumulativo transformasse as probabilidades em certezas, e se pudesse afirmar agora que ninguém, nos locais que habitualmente frequentava ou fora deles, tinha posto a vista em cima de Baldwin Peche desde segunda-feira à noite. A notícia da morte da Srª Juliana não acrescentava nada ao mistério, sendo ela tão velha, e, contudo, havia sempre a desconfortável sensação de que a desgraça não poderia, por si só, ter concentrado uma tal torrente de maldade sobre uma única família. O que Madog tinha para lhe dizer aumentou poderosamente este penetrante desconforto.

- Ali, perto da sua própria loja? Será possível? E tudo presente, os amieiros, o ranúnculo, a flor púrpura... Tudo regressa, tudo volta para casa, para aquela propriedade. Onde quer que comecemos, é lá que acabamos.

- Isso é verdade - disse Madog. - E o irmão Cadfael está quebrando a cabeça com o mesmo emaranhado, e ficaria contente por reflectir convosco sobre ele, senhor, se pudésseis dispensar-lhe uma hora, por muito tarde que fosse.

-Fá-lo-ei reconhecido - disse Hugh -, pois Deus sabe que isto exige mais habilidade que a que possuo, e uma visão mais arguta, para ver através desta névoa. Vai para casa e descansa, Madog, pois já fizeste muito por nós. E eu irei bater à porta do rapaz de Peche, e arrancar-lhe tudo o que ele possa dizer-nos sobre essa moeda que ele reclama pertencer ao seu amo.

Por essa altura, o irmão Cadfael tinha aliviado o seu próprio espírito ao confidenciar, depois da ceia, tudo o que havia descoberto ao abade Radulfus, que o recebeu com gravidade pensativa.

-E já haveis mandado recado a Hugh Beringar? Pensais que ele pode querer pedir-vos conselho sobre este assunto? - Estava ciente de que havia entre eles um entendimento especial, que tinha origem em acontecimentos ocorridos antes de ele próprio ter iniciado as suas funções em Shrewsbury. - Podeis dispor do tempo que for necessário se ele vier hoje. Não há dúvida que este assunto tem de ser concluído o mais rapidamente possível, e torna-se cada vez mais evidente que o hóspede que temos em santuário deve ter muito pouco a ver com qualquer destes crimes. Ele está cá dentro, mas o mal continua lá fora. Se está inocente de tudo, em boa justiça isso deve ser demonstrado ao mundo.

Cadfael deixou os aposentos do abade ainda com tempo para aturada reflexão, e com o crepúsculo a tombar. Assistiu devotamente a Completas e depois, voltando as costas ao dormitório, saiu para o pórtico onde Liliwin espalhara as mantas e fizera a cama. O jovem ainda estava bem acordado, sentado de pernas encolhidas e com as costas confortavelmente encostadas ao canto do banco de pedra, uma sombra pequena e arqueada na escuridão, cantando para si a melodia de uma canção que andava a compor e ainda não completara a seu contento. Interrompeu-se quando Cadfael apareceu, e arranjou-lhe lugar a seu lado, nas mantas.

- Uma bela melodia, essa - disse Cadfael, instalando-se com um suspiro. - É tua? É melhor que a guardes para ti, ou Anselm irá roubá-la para o fundo musical de uma missa.

- Ainda não está pronta - disse Liliwin. - Falta-lhe um acorde suave para o final. E uma canção de amor para Rannilt. - Virou a cabeça para fitar o companheiro nos olhos com um ar muito sério. - Amo-a de verdade. Aguentarei aqui até ao fim e prefiro ser enforcado, a ter de partir sem ela.

- Ela não te ficaria grata por isso - disse Cadfael. - Mas se Deus quiser não terás de fazer tal escolha. - O rapaz, embora ainda estivesse na expectativa e algo receoso, estava consciente de que cada dia que passava ia desvanecendo as dúvidas que pendiam sobre ele. -As coisas estão a modificar-se lá fora, embora com sentidos impenetráveis. Para dizer a verdade, a lei começa muito sensatamente a partilhar da minha opinião sobre ti.

- Bem, talvez... Mas... e se eles descobrem que eu saí de facto nessa noite? Não acreditariam na minha história como vós... - Lançou um olhar duvidoso ao irmão Cadfael, e viu algo no olhar brando que o fez perguntar alarmado: - Não haveis contado ao delegado do xerife? Tínheis prometido... por causa de Rannilt...

- Não te inquietes, o bom nome de Rannilt está tão seguro com Hugh Beringar como comigo. Ele nem sequer a contactou para testemunhar por ti, nem o fará, a não ser que o caso chegue ao ponto de ter de ser julgado. Contar-lhe? Bem, pois contei, mas só depois de ele ter deixado bem claro que adivinhara metade. O seu faro para um mentiroso relutante é no mínimo tão apurado como o meu, ele nunca acreditou nesse "Não" que te arrancou. Portanto, o resto arrancou-mo a mim. Achou-te mais convincente a dizer a verdade que a mentir. E há sempre Rannilt, se chegares a precisar do seu testemunho, e os guardas que te viram entrar e sair. Não precisas de te preocupar muito com os teus actos nessa noite. Quem me dera saber tanto sobre os de todos os outros. - Ponderou, consciente do olhar atento e confiante de Liliwin. - Não há mais nada de que te tenhas lembrado? O mínimo pormenor respeitante a essa casa pode ser útil.

Com hesitação, Liliwin relembrou e contou de novo a breve história da sua ligação com a casa do ourives. O estalajadeiro de uma taberna onde ele tocara e cantara em troca do jantar tinha-lhe falado do casamento que seria celebrado no dia seguinte, ele tinha lá ido, esperançoso, e fora contratado para a ocasião, fizera o melhor que podia para merecer o seu dinheiro e fora expulso e perseguido como ladrão e assassino até ali à igreja. Tudo isto era já sabido.

- Que é que chegaste a ver da casa? Porque primeiro foste lá de dia.

- Fui à loja e eles mandaram-me entrar pela passagem até à porta do átrio, ter com as mulheres. Foram elas que me contrataram, a velha e a nova.

- E à noite?

- Bem, logo que lá cheguei mandaram-me comer com Rannilt na cozinha, e estive lá com ela até que me mandaram chamar para ir tocar e cantar, enquanto eles se banqueteavam, e depois toquei para dançarem, fiz as minhas acrobacias e malabarismos... E já sabeis como tudo terminou.

- Então não viste mais nada além da passagem e do pátio. Nunca chegaste a descer o jardim, nem passaste pela porta da muralha até à margem do rio?

Liliwin abanou firmemente a cabeça.

- Eu nem sequer sabia que se estendia para além da muralha até ao dia em que Rannilt cá veio. Pude ver até à muralha quando entrei pela porta do átrio de manhã, mas pensei que acabava ali. Foi Rannilt que me disse que o terreno de secar a roupa ficava do lado de fora. Era o dia de barreia, estais a ver, ela tinha estado a esfregar e a lavar, e pelo meio da manhã tinha tudo pronto para sair. Geralmente, tem também de fazer o jantar, vê como está o tempo, e traz a roupa para dentro antes do anoitecer. Mas nesse dia, Mis-tress Susanna disse que trataria de tudo, e deixou Rannilt vir aqui visitar-me. Isso foi grande bondade sua!

Era estranho como o estar ali sentado a ouvir as reminiscências do rapaz o fez ver claramente a imagem desse terreno que ele nunca vira, senão através dos olhos de Rannilt, a encosta de relva, os seixos, os amieiros resguardando a margem, a muralha da cidade protegendo o relvado a norte e deixando-o aberto a sul...

- E lembro-me que ela disse que Mistress Susanna tinha os sapatos e a bainha da saia molhados quando entrou, depois de espalhar a roupa lavada, e encontrou Rannilt a chorar. Mas ainda assim reparou primeiro na tristeza da minha rapariga... "Não te preocupes com os meus pés molhados", disse ela. "Que se passa com os teus olhos molhados?" Rannilt contou-me isto!

"Pronta para sair a meio da manhã... Tal como Baldwin Peche saíra a meio da manhã pela última vez. Os peixes subindo o rio..." Cadfael, absorto com os seus próprios pensamentos, interrompeu-se subitamente, compreendendo, por fim, o que acabara de ouvir.

- Que é que disseste? Tinha a saia e os pés molhados?

- O rio estava um pouco cheio, nessa altura - explicou Liliwin imperturbável. - Ela escorregara na erva macia para a água. Ao pendurar uma camisa nos amieiros...

"E entrou calmamente, e mandou a criada embora para que mais ninguém senão ela trouxesse a roupa para dentro. Que outra razão teria alguém para passar pela portinhola na muralha? E ainda ontem Rannilt estivera sentada à soleira da porta para ter luz para o seu trabalho, consertando um rasgão na saia de um vestido. E o castanho na bainha estava manchado e desbotado, deixando a marca da corrente de uma cor escura em redor do desbotado..."

- Irmão Cadfael - chamou suavemente o porteiro da arcada que conduzia ao claustro -, Hugh Beringar está aqui à vossa procura. Disse que deveríeis estar à sua espera.

- Estou - disse Cadfael, regressando com esforço do átrio dos Aurifaber. - Dizei-lhe que entre. Parece-me que temos notícias para dar um ao outro.

Não estava completamente escuro, pois o céu estava muito claro, e Hugh conhecia bem o seu caminho dentro daquelas paredes. Chegou com vivacidade, não fez objecções à presença de Liliwin, e sentou-se imediatamente no pórtico para mostrar a moeda de prata na palma da mão.

- Já a vi com melhor luz. E um penny de prata do piedoso Edward, rei antes da chegada dos Normandos, uma bela moeda cunhada nesta cidade. O artesão que a cunhou foi um tal Godesbrond, ainda se encontram algumas das suas moedas, mas muito poucas, mesmo na cidade onde foram cunhadas. O inventário de Aurifaber registava três destas moedas. Esta estava presa nas tábuas do balde do poço na manhã a seguir ao roubo. Um fragmento de tecido azul grosseiro, diz o rapaz, foi apanhado com ela, mas ele não viu nisso nada de especial. Mas parece-me que quem quer que tenha esvaziado o cofre de Aurifaber despejou tudo num saco de pano azul e largou-o nesse balde, tarefa de apenas alguns instantes, para ser depois recuperado à vontade durante a noite, antes de o mais madrugador ir buscar água.

-E quem quer que o tenha içado de novo - disse Cadfael -, rasgou um canto do saco numa falha... um pequeno rasgão, apenas o suficiente para deixar passar uma das moedas mais pequenas. Podia ter sido assim. E o rapaz de Peche tinha-a encontrado?

-Ele foi o primeiro a levantar-se. Foi buscar água e deu com ela. Levou-a ao amo, e foi recompensado, tendo-lhe sido dito que não dissesse a ninguém que o serralheiro a tinha. Atribuía-lhe um grande valor, disse Peche.

E era bem provável, se isso significasse que o ladrão fora alguém daquela casa, e pudesse ser sugado de metade dos seus ganhos em troca de silêncio. "Os peixes estavam a subir!" Agora Cadfael começava gradualmente a compreender o que se havia passado. Esqueceu-se do jovem que abraçava os joelhos e esticava as orelhas estupefactas no canto do banco junto a eles. Hugh nem pensara no rapaz, tão silencioso e imóvel estava.

-Penso - disse Cadfael, avançando cautelosamente, pois poderia ainda haver ciladas -, que quando ele a viu soube, ou foi capaz de adivinhar com bastante segurança, qual dos membros da família era o ladrão. Previu bons lucros. Que iria ele pedir? Metade do saque? Mas não teria feito qualquer diferença se tivesse sido muito mais modesto que isso, pois a pessoa a quem se dirigiu teve a força, a paixão e a crueldade de agir imediatamente, e não perder tempo com negociações. Presta atenção, Hugh, e lembra-te daquela noite. Eles procuraram Master Walter, encontraram-no atordoado na loja, e levaram-no para cima para a cama. E depois, alguém, ninguém sabe ao certo quem, gritou que devia ter sido o jogral quem fizera aquilo, e pôs todo o grupo a correr atrás dele, como nós aqui testemunhámos. Quem, então, ali ficou a cuidar do agredido, e da velha senhora ameaçada pelo ataque?

- As mulheres - disse Hugh.

-As mulheres. E destas, a noiva ficou a tratar das vítimas lá em cima, nos quartos. Foi Susanna quem correu a chamar o médico. Muito bem, foi ela. Mas será que correu até lá imediatamente, ou deteve-se por alguns momentos para correr primeiro ao poço e pôr o que aí encontrou num esconderijo mais seguro?

Num breve e atónito silêncio ficaram a olhar um para o outro.

- Será possível? - disse Hugh assombrado. -A filha dele"?

- Na espécie humana tudo é possível. Pensa! O serralheiro tinha nas suas mãos a chave do mistério. Se tivesse sido honesto, teria ido ter com Walter ou com Daniel e tê-la-ia mostrado e contado o que sabia. Não o fez, pois não era honesto. Tencionava lucrar com o que descobrira. Se não se aproximou da pessoa que pensava ser o culpado antes de segunda-feira, foi porque não teve até essa altura oportunidade para o fazer em privado. Foi tão capaz como nós de se lembrar que todos os homens tinham ido em perseguição de Liliwin, e concluir que fora uma mulher quem recuperara o tesouro do poço e o pusera em segurança até que o alarido acabasse, e um rapazito perdido, com alguma sorte, fosse enforcado pelo acto. E quem é que guardava as chaves da casa e tinha o domínio de todos os esconderijos? Ele escolheu Susanna. E na segunda-feira teve a sua oportunidade, quando ela pegou no cesto de roupa e saiu pela muralha para a espalhar pelo terreno. Baldwin Peche foi visto pela última vez na loja a meio da manhã, e saiu fazendo uma observação qualquer acerca de os peixes estarem a subir. Nunca mais ninguém o viu com vida.

Liliwin, até aí mudo no seu canto, inclinou-se para a frente com um suave grito de protesto:

- Não estais a falar a sério! Ela... mas ela foi a única, a única que mostrou a Rannilt alguma bondade. Deixou-a vir ter comigo para a consolar! Ela não acreditava realmente que eu... - Viu a tempo o rumo das suas palavras, e deteve-se com um profundo gemido.

- Ela tinha um bom motivo para saber que tu não fizeras mal ao pai, ou tinhas tão-pouco roubado os seus bens. O melhor! E um forte motivo, também, para afastar Rannilt de casa para que ela própria, e mais ninguém, fosse buscar a roupa, para poder ter outra oportunidade de descer até ao rio, onde deixara o chantagista morto.

-Não posso acreditar - murmurou Liliwin, a tremer-, que ela pudesse, mesmo que quisesse, fazer uma coisa dessas. Uma mulher... matar?

- Estás a subestimar Susanna - disse Cadfael, sombriamente. - E o mesmo fizeram todos os seus parentes. E as mulheres têm matado, muitas vezes.

- Admitamos, então, que ele a seguiu até ao rio - disse Hugh. -E melhor continuares. Conta-nos o que pensas ter acontecido ali, e como é que isso ocorreu.

- Penso que ele desceu atrás dela até à margem, mostrou-lhe a moeda, e exigiu uma parte dos lucros em troca do silêncio. Penso que ele foi, de entre todos, o que mais a subestimou. Uma simples mulher! Ele esperava evasivas, mentiras, atrasos, talvez súplicas, algum esforço para a convencer de que estava certo do que sabia e falava a sério. Estava completamente enganado a seu respeito. Não esperara uma mulher que era capaz de reconhecer imediatamente o perigo, sem alarido, tomar uma decisão e agir, destruindo a ameaça logo que ela despontava. Penso que falou com ele com delicadeza enquanto continuava a espalhar a roupa, e enquanto ele permanecia de pé junto à margem com a moeda na mão, ela arranjou-se por forma a passar para trás dele com uma pedra na mão, esticando-se para uma ponta de roupa, e agrediu-o.

- Continua - disse Hugh -, não podes parar aí. Houve mais coisas além disso.

- Penso que já sabes. Quer a pancada o tenha atordoado, quer não, ela atirou-o de cabeça para baixo para a água. Penso que não esperou que ele tivesse tempo para recuperar os sentidos e tentar levantar-se, mas continuou a agir de imediato. A saia e os sapatos estavam molhados! Acabo de o saber agora. E recordo-me das marcas que ele tinha nas costas. Julgo que o pisou na água, logo que ele caiu, e o manteve submerso até morrer.

Hugh estava sentado em silêncio. Foi Liliwin quem proferiu um pequeno lamento de horror ao ouvir aquilo, e tremeu como se a noite tivesse arrefecido.

- E depois considerou calmamente a possibilidade de o rio ter força suficiente para o levar a flutuar, e tratou de o prender no local onde estava, sob os amieiros, debaixo de água, até poder ser levado dali para fora durante a noite, para ser descoberto noutro local, como se fosse um afogado. Recordas-te da escoriação funda no ombro? Há uma pedra recortada da muralha, junto aos seixos. Quanto à moeda, estava sob o corpo, ela não tentou recuperá-la.

Hugh respirou fundo.

- Podia ter sido assim! Mas não foi ela que seguiu o pai até à loja e o agrediu, porque é a única pessoa que esteve sempre presente, segundo as testemunhas, durante o tempo em que ele esteve fora, até ter ido à sua procura. E depois gritou imediatamente por auxílio. Não houve um único momento em que ela pudesse ter desferido o golpe, ou levado o produto do roubo. Pode tê-lo tirado do poço mais tarde, mas seguramente não foi ela quem o lá pôs. Argumentas, imagino, que foram dois que planearam isto entre si?

-Estão dois implicados. Um parabater, roubar e esconder, o outro para recuperar a mercadoria durante a noite e escondê-la em local mais seguro. Um para destruir o chantagista, logo que ele se revelou, e o outro para levar o corpo e desembaraçar-se dele durante a noite. Sim, seguramente dois.

- Então, quem é o segundo? Não há dúvida que os dois irmãos que sofreram tão parcimoniosos familiares poderiam aliar-se para deitar a mão ao que lhes era negado, e é certo que Daniel esteve fora nessa noite, com uma atitude furtiva. E, apesar dessa história de cama com uma mulher casada soar bastante plausível, ainda continuo de olho nele. Qualquer pateta pode aprender a mentir.

- Não me esqueci de Daniel. Mas tu podes, porque de todos, o irmão é o menos susceptível de ter tomado parte nos planos de Susanna. - Cadfael estava a recordar-se, como clarões de relâmpagos numa tempestade, de pequenos pormenores despercebidos, Rannilt repetindo as palavras que tinha ouvido, o inverosímil elogio de que Juliana fizera à excelente economia doméstica da neta, ao conservar o pote de farinha de aveia ainda meio cheio depois da Páscoa, e o amargo sarcasmo de Susanna: "Ainda tínheis um lugar preparado para mim? Um convento, talvez?" E depois a velha senhora gritou e caiu...

"Não, espera!" Havia mais qualquer coisa, sabia-o agora. A velha senhora no topo das escadas, a única luz era a da candeia que ela segurava, uma luz que se projectava para baixo, marcando as formas e os contornos de Susanna com mais nítidos contrastes de luz e sombra, realçando-lhe todas as curvas e reentrâncias... Sim! Ela compreendeu o que viu, gritou e agarrou o peito, e a seguir caiu, deixando cair a lanterna reveladora. Ela tinha adivinhado qualquer coisa, e saíra durante a noite para defrontar a sua única, a sua melhor antagonista. Também deveria ter visto a saia rasgada, a bainha manchada, e feito as suas deduções. E ainda tinha, segundo dissera, uma utilidade para as chaves que tinha escondidas, antes de finalmente as entregar. Sim, e as suas últimas palavras: "Apesar de tudo, gostaria de ter segurado nos braços o meu bisneto..." Palavras mais compreensíveis agora do que quando as ouvira pela primeira vez.

-Não, agora compreendo! Agora nada a poderia reter. O homem que combinou o roubo com ela não era um parente, nem alguém que eles alguma vez admitissem como tal. Fizeram os seus planos por necessidade, aqueles dois, para desaparecerem daqui à primeira oportunidade e refazerem a sua vida algures, longe desta cidade. O pai negara-lhe um dote, ela tomou-o para si. Qualquer que seja o nome desse homem, sabemos o que ele é. É o amante dela. Mais, é o homem que lhe fez um filho.

 

                   SEXTA-FEIRA À NOITE

Hugh pôs-se de pé antes de as últimas palavras terem sido proferidas.

- Se tiveres razão, depois do que aconteceu, não irão esperar por melhor oportunidade. Já esperaram tempo de mais, e, por Deus, eu também.

- Vais lá agora? Vou contigo. - Cadfael estava um pouco inquieto por Rannilt. Em toda a sua inocência tinha dito coisas que nada significavam para ela, mas que podiam revelar muito mal a quem as ouvisse. Seria melhor afastá-la antes que pudesse ameaçar ainda mais os objectivos de Susanna. E parecia que o mesmo receio se apoderara de Liliwin, porque saiu apressadamente das sombras e agarrou o braço de Hugh antes que pudessem sair do claustro.

- Senhor, estou livre agora? Não preciso de continuar aqui escondido? Então levai-me convosco! Quero tirar a minha noiva daquela casa. Quero-a ao pé de mim. E se eles se assustarem por ela saber de mais? Se lhe fizerem mal? Quero ir buscá-la, seja ou não seguro para mim!

Hugh deu-lhe uma palmada cordial no ombro.

- Anda, e sê bem-vindo. És livre como um pássaro, e assegurarei que os meus homens o saibam e te protejam. Amanhã todo o burgo o saberá também.

Não havia luz na casa Aurifaber quando o beleguim de Hugh bateu à porta do átrio. A família já estava deitada, e ele levou algum tempo para acordar alguém. A Srª Juliana já deveria estar, por essa altura, amortalhada e pronta para o caixão. Foi Margery quem acabou por descer para inquirir, em voz pouco segura através da porta fechada, quem é que estava ali fora e o que queria àquela hora da noite. A uma ordem de Hugh abriu e deixou-os entrar, admirada e aborrecida que Susanna, que dormia no rés-do-chão, não a tivesse poupado àquele incómodo. Mas rapidamente se tornou claro que Susanna não estava ali para ouvir ninguém a bater. O quarto estava vazio, a cama intacta, o armário continha agora apenas algumas roupas velhas e abandonadas.

A chegada do delegado do xerife e dos outros, em companhia de vários agentes da lei, fez aparecer rapidamente todos os habitantes. Walter descendo de olhos lacrimosos e desconfiado, Daniel correndo solicitamente para junto da esposa e Griffin surgindo hesitantemente do outro lado do pátio. Um grupo curiosamente encolhido e insignificante, sem os seus dois membros dominantes, e com os poucos que restavam completamente desorientados, olhando em volta de uns para os outros com consternação, como se algures nas sombras do átrio ainda pudessem descobrir Susanna.

- A minha filha? - resmungou Walter, olhando em redor sem saber o que fazer. - Mas ela não está aqui? Tem de estar... Ela estava aqui como sempre, apagou as luzes como é seu costume, é a última a deitar-se. Há menos de uma hora! Não pode ter-se ido embora!

Mas fora-se embora. E Cadfael descobriu, quando pegou numa lanterna e desceu pelas escadas das traseiras até ao subterrâneo, que Iestyn fizera o mesmo. Iestyn, o galês, sem dinheiro, nem família, nem posição, que nunca por um momento teria sido considerado próprio para a filha do patrão, nem mesmo agora que ela deixara de ser necessária para governar a casa, e não tinha qualquer outro préstimo.

O subterrâneo estendia-se a todo o comprimento da casa sob um tecto com abóbadas de pedra. Com um impulso, Cadfael deixou a cama fria e abandonada e iluminou o caminho até à parte da frente, onde uma escada estreita subia até uma porta que dava para a loja. Mesmo à sua frente, ao abri-la, estava o cofre onde Walter guardava a sua riqueza. Não houvera qualquer sombra nessa noite, qualquer som, apenas a vela vacilara quando a porta se abrira silenciosamente. A alguns metros de distância, quando Cadfael voltou para trás e subiu de novo as escadas, estava o poço. E à sua direita, a porta do quarto de Susanna, pela qual ela podia passar rapidamente do átrio para a cozinha, e um jovem do andar de baixo poderia também entrar quando tudo estivesse às escuras.

Haviam partido, como teriam certamente planeado fazer na noite anterior e haviam sido detidos pela morte. Seguindo um outro pensamento, Cadfael entrou no quarto de Susanna e pediu a Mar-gery que lhe abrisse a porta da despensa. O grande pote de pedra em que Susanna guardava a aveia encontrava-se a um canto. Cadfael levantou a tampa e colocou a lanterna sobre ele. Havia ainda uma apreciável quantidade de grão no fundo, o suficiente para esconder uma trouxa grande, mas sem esse volume tinha muito menos de um quarto. Juliana, com as suas chaves, tinha ali estado antes dele, e deixara o que aí encontrara, tencionando, como sempre, resolver os destinos do seu clã sem interferências externas. Ela descobrira tudo, e guardara silêncio quando podia ter falado. E aquela rapariga resoluta, a que mais se lhe assemelhava, em completo desespero e com uma calma férrea, tinha cuidado dela escrupulosamente, e esperara para conhecer o seu destino sem medo nem queixumes. Uma tão forte como a outra, para o bem ou para o mal, sem perdoar, nem pedir misericórdia. Cadfael colocou de novo a tampa, saiu e fechou outra vez a porta à chave. No átrio todos se agitavam e lamentavam, ansiosos por provar a todo o custo a sua inocência e respeitabilidade, desorientados com a ideia de uma parente ser suspeita do crime de roubar a sua própria família. Walter gaguejava as respostas, horrorizado com tal traição, quase incoerente pelo desgosto da perda do seu dinheiro, causada pela própria filha. Hugh preferiu dirigir-se a Daniel.

- Se ela tencionasse fazer hoje uma grande viagem, para escapar à lei, ou pelo menos à prisão, para onde fugiria ela? Iriam precisar de cavalos. Tendes cavalos que eles pudessem ter levado?

-Aqui na cidade, não - disse Daniel, pálido e desgrenhado, com a sua beleza parecendo quase idiota naquela situação -, mas do outro lado do rio temos uma pastagem e um estábulo. Meu pai tem lá dois cavalos.

- Para que lado? De Frankwell?

- Para lá de Frankwell, na estrada oeste.

-E a estrada oeste pode muito bem ser a nossa - disse Cadfael, ao entrar, vindo da despensa -, porque falta um galês lá em baixo, e o pouco que tinha desapareceu com ele, e uma vez a salvo no País de Gales bem pode fazer caretas ao xerife de Shropshire. Seja o que for que tenha levado com ele.

Mal tinha dito isto, perante os indignados e incrédulos protestos de Walter, ofendido com a simples sugestão de tão depravada aliança, quando Liliwin surgiu repentinamente das instalações das traseiras, com a sua pequena figura rígida e tremendo, alarmada.

- Estive na cozinha... Rannilt não está lá. A cama está fria, deixou as suas coisas como estavam, não levou nada... - Apesar de pouco ter para levar, ele sabia o quanto valiam, para alguém que praticamente nada possuía, os pobres pertences que ela deixara para trás. - Levaram-na com eles, têm medo do que ela sabe e possa contar. Aquela mulher levou-a - gritou ele, desafiando a família, a lei, tudo e todos. - E ela já matou uma vez e matará de novo se disso vir necessidade. Para onde terão eles ido? Porque vou atrás deles!

- Vamos todos - disse Hugh, e voltou-se para Walter Aurifa-ber. Que o pai lutasse pelo que era seu, como o amante pela sua amada. Pelo que era seu pelo sangue ou pela cobiça. - Vós, senhor, acompanhai-nos. Dizeis que ela tem apenas uma hora de avanço sobre nós e foi a pé. Vinde, então, vamos atrás deles a cavalo. Mandei vir cavalos do castelo, já devem estar lá fora na rua. Vós sois quem melhor conhece o caminho para o estábulo, conduzi-nos depressa até lá.

A noite estava escura, sem nuvens e ainda no seu começo, pelo que a luz ainda permanecia em locais inesperados, numa superfície tranquila do rio, numa fachada de pedra, num arbusto em flor, ou em tufos de anémonas em forma de estrela espalhados sob as árvores. As duas mulheres haviam passado pelo portão e pela ponte sem objecções. Oswain Gwynedd, o poderoso senhor de grande parte do País de Gales, abstinha-se cortesmente de interferir na fratricida guerra de Inglaterra, e muito prudentemente olhava pelos seus próprios interesses, concedendo refúgio a todos os que fugissem dos seus inimigos, amigo de todos os que lhe trouxessem informações úteis. As fronteiras de Shrewsbury, não as ameaçava. Tinha muito mais a ganhar em se manter à parte. Mas as suas próprias fronteiras, defendia-as com a maior firmeza. Estava uma bela noite, e era uma bela altura da noite para os fugitivos cavalgarem para oeste, se tivessem quem os recomendasse.

Passaram como sombras pelas ruas escuras dos arredores de Frankwell, e Susanna virou para oeste, mantendo o rio à vista, seguindo por um carreiro entre os campos. A trouxa mais pequena, embora a mais pesada, era Susanna que levava. A grande e difícil de transportar que continha as roupas era levada por ambas. Seria demasiado desajeitada para uma pessoa só. "Se não tivesse tido a tua ajuda", dissera ela, "teria sido obrigada a deixar lá todas as minhas coisas, e vou precisar delas."

- Ireis longe esta noite? - interrogou-se Rannilt, hesitante, mas ansiosa por uma certeza.

- Para fora desta terra, espero. Iestyn, que não é ninguém aqui, tem família e uma casa, na sua terra. Lá estaremos em segurança. Depois desta noite, se formos bastante rápidos, não poderemos ser perseguidos. Não tens medo, Rannilt, de vir comigo até tão longe, na escuridão?

- Não - disse Rannilt firmemente -, não tenho medo. Desejo que estejais bem, que sejais feliz, estou contente por transportar os vossos bens e saber que não ireis sem recursos.

- Não - concordou Susanna com uma curiosa inflexão de voz que sugeria uma gargalhada -, não irei propriamente sem um tostão. Ganhei para o futuro, ou não? Olha para trás agora - disse ela -, por cima do teu ombro esquerdo, para a elevação da cidade. - Parecia uma corcova escura na noite sombria, raios dispersos de luz vacilante projectavam-se sobre a pálida muralha de pedra que se elevava sobre o rio prateado. - Um último olhar - disse Susanna -, porque agora já não temos muito que andar. A carga é pesada? Em breve poderás pousá-la.

- Não é nada pesada - disse Rannilt. - Por vós ainda faria mais se pudesse.

O carreiro entre os campos incultos era irregular e cheio de sulcos, mas Susanna conhecia-o bem e caminhava com segurança. A direita, o terreno elevava-se, coberto por um manto de árvores perfumadas. A esquerda, os fofos prados verdejantes estendiam-se até ao cintilante e rumorejante Severn. Em frente, um telhado erguia-se indistintamente na noite, rodeado por arbustos, protegido a norte por um terreno inculto, e com a pastagem abrindo-se serenamente para sul.

- Chegámos - disse Susanna estugando o passo, pelo que Rannilt teve de andar mais depressa para a acompanhar e equilibrar o fardo.

Não era um grande edifício, este que surgia nas trevas, mas era uma sólida construção de madeira, e suficientemente alto para mostrar que sobre o estábulo havia um sótão para o feno e a forragem. Havia uma porta dupla aberta de par em par sobre uma profunda escuridão, pela qual vinha ao seu encontro um cheiro de cavalos e feno e um calor poeirento. Um homem apareceu, uma forma escura, ansioso por ouvir passos aproximando-se. Reconheceu imediatamente o andar de Susanna e saiu de braços abertos; ela largou a ponta da trouxa e abriu os braços para ele. Não haviam trocado uma única palavra, um único som. Rannilt continuou agarrada à ponta do fardo, e estremeceu como se a terra tivesse tremido sob os seus pés, quando eles se uniram naquele abraço silencioso e exultante, com os braços estreitamente enlaçados. Pelo menos uma vez, mesmo que nunca mais, ela havia também experimentado uma pequena centelha dessa chama devoradora. Fechou os olhos e ficou ali a tremer.

A separação foi tão abrupta e silenciosa como a união. Iestyn olhou sobre o ombro de Susanna e fixou o seu olhar escuro em Rannilt.

- Por que trouxeste a rapariga? Que queremos nós dela?

- Vem para dentro - disse Susanna -, e eu conto-te. Selaste os cavalos? Temos de ir embora depressa.

- Estava a selá-los quando te ouvi. - Apanhou a trouxa e levou-a consigo para a quente escuridão do estábulo, e Rannilt seguiu-os timidamente, consciente de que agora já não precisavam dela. Iestyn encostou as portas, mas não as fechou. - Quem sabe, ainda pode haver alguém acordado ao longo do rio, não há necessidade de deixar que vejam movimento aqui até nos irmos embora.

Ela ouviu-os e sentiu que eles se abraçavam de novo no escuro, juntando-se num só em consentimento apaixonado. Nessa altura, compreendeu que eles já se haviam unido como ela e Liliwin o haviam feito, mas muitas vezes e sem maiores esperanças. Recordou a porta traseira do quarto de Susanna e a escada para o subterrâneo, a poucos metros de distância. Todas as tentações prodigamente oferecidas, e todos os apoios negados.

- Essa criança - disse Iestyn suavemente -, que tencionas fazer com ela? Por que a trouxeste até aqui?

- Ela vê e apercebe-se de demasiadas coisas - disse Susanna secamente. - Disse-me algumas, a pobre tola inocente, que seria melhor não ter dito, e será preferível que não as repita a mais ninguém, pois se alguém as perceber melhor que ela, ainda pode causar a nossa morte. Foi por isso que a trouxe. Ela pode vir connosco... parte do caminho.

Após um breve e profundo silêncio, Iestyn perguntou:

- Que queres dizer com isso?

- Que te parece? Há bastantes bosques e lugares selvagens do teu lado da fronteira. Quem irá procurá-la? A uma serva sem família. - A voz era tão caracteristicamente a voz calma e razoável de Susanna, que Rannilt não compreendeu o que ela dizia, e permaneceu ali completamente perdida e sentindo-se esquecida, mesmo enquanto eles falavam dela.

Um cavalo bateu com as patas no chão e mudou de posição no escuro, e o calor do seu corpo espalhou-se pelo ar. Sombras começaram a emergir indistintamente, separando-se uma da outra, e Iestyn inspirou longa e profundamente, e estremeceu subitamente. Rannilt sentiu-o vacilar, e ainda assim não compreendeu.

- Não! - disse ele com um grito abafado. - Não, isso não podemos, isso não farei. Meu Deus, que mal nos fez ela, pobre criatura, ainda mais infeliz que nós?

- Não precisas de o fazer - disse Susanna simplesmente. - Eu sou capaz. Agora não há nada que eu não seja capaz de fazer para que sejas meu, para te pertencer, para ficar a teu lado neste mundo. Depois de tudo o que já fizemos, existe alguma coisa que eu não ouse fazer?

- Não, isso não! Esse crime não, se me amas. O outro foi-te imposto, que importância tinha ele, era tão mau como a tua família! Mas esta criança, não! Não permitirei que o faças! Nem é preciso - passando da ordem à persuasão. -Aqui estamos nós, bem longe da cidade, deixa-a aqui e vamos, os dois juntos, que mais interessa? Deixa-a voltar quando o dia romper. Onde estaremos nós? Longe do alcance de qualquer perseguição, para lá da fronteira, em terra galesa, a salvo. Que mal pode ela fazer-nos, que nunca nos fez nenhum, nem pretendeu fazer?

- Eles vão perseguir-nos! Se alguma vez o meu pai vem a saber... Tu conhece-lo! Não daria um passo por mim, mas por isto... isto... - Deu um pontapé desdenhoso à trouxa que trouxera consigo, que tilintou levemente no escuro. - Poderia haver impedimentos no caminho para o País de Gales, acidentes, atrasos... É melhor prevenir.

- Não, não, não! Não vais manchar o meu amor, não te quero assim mudada. Quero-te como és agora...

Os cavalos mudaram de posição e bufaram, inquietos por terem companhia àquela hora, mas acordados e ligeiros. Depois fez-se silêncio, breve e profundo, que terminou num longo suspiro.

- Minha vida, meu amor - disse Susanna num suspiro enternecido -, como quiseres, como ordenares... Seja então como queres... Sim, deixá-la estar! Que interessa se formos perseguidos? Não posso recusar-te nada... nem a minha vida...

E o que se tinha passado entre eles, a respeito dela, estava terminado. Rannilt continuou abandonada ao canto do estábulo, tentando compreender, desejando que partissem, para oeste, para o País de Gales, onde Iestyn era um homem em vez de um lacaio, e Susanna poderia ser uma honrada esposa, em vez da serva da família que fora até ali, a quem haviam sido recusados quaisquer direitos, que fora despojada do seu dote e posta de lado.

Iestyn agarrou na trouxa da roupa, e pela agitação e ruído de patas de um dos cavalos, estava a tratar de a prender atrás da sela. A outra trouxa, a mais pesada, emitiu de novo o suave som metálico quando Susanna a levantou para a acondicionar sobre o segundo cavalo. Os cavalos mal se viam. Um raio de luz ocasional cintilava-lhes no pêlo e desaparecia de novo; o seu calor sentia-se a cada movimento.

Uma mão empurrou metade da porta dupla, e uma nesga de céu penetrou, mais clara e azul que a escuridão interior, iluminando-se com o nascer da Lua. Um dos cavalos pôs-se em movimento, conduzido em direcção àquele interstício mais claro. Ouviu-se um grito breve e lancinante, tão débil e desolado que cortava o coração. A porta fechou-se de novo, e Rannilt ouviu mãos apressadas procurando atrapalhadamente pesadas barras, levantando-as e deixando-as cair sobre sólidos suportes. Duas trancas daquelas a segurar a porta tinham a força e a segurança das de uma fortaleza.

- Que é? - A voz de Susanna ressoou asperamente na obscuridade interior. Estava a segurar as rédeas, e a paragem brusca fez o cavalo bater com as patas e resfolegar.

- Homens, em grande número, descendo pelos campos! Atrás vêm cavalos! Dirigem-se para aqui... eles sabem!

- Não podem saber! - gritou ela.

-Mas sabem. Estão a espalhar-se, para nos cercarem, vi as filas a separarem-se. Levanta a escada! Leva-a contigo. Ainda nos pode salvar. Que outra coisa - gritou ele, com uma revolta súbita -, temos nós para evitar o castigo?

Rannilt, desorientada e aterrorizada, tremia na escuridão, aturdida com o confuso turbilhão de cascos batendo à sua volta, e corpos em violento e cego movimento, odores quentes de estábulo redemoinhando no ar e penetrando-lhe nas narinas ao mesmo tempo que arrepios de terror lhe formigavam na pele. As portas estavam trancadas, e Iestyn interpunha-se entre ela e a saída, mesmo que conseguisse levantar as trancas. E ela ainda não conseguia acreditar, não conseguia compreender o que lhe estava a acontecer, nem relacionar estes dois seres desesperados com a Susanna e o Iestyn que conhecera. Quando uma mão lhe agarrou o pulso e a puxou para um canto do estábulo, foi impotente para resistir à urgente compulsão. Que outra coisa poderia fazer? O tornozelo bateu de encontro ao degrau inferior de uma escada, a mão arrastou-a para cima. Às apalpadelas e arquejando, subiu para onde a içavam e foi atirada de rosto para baixo para um monte de feno que a envolveu em pó e numa doçura seca. Conseguiu vislumbrar nesgas de céu brilhando através do feno, nitidamente mais claras no meio da escuridão da madeira à sua frente, onde a pessoa que construíra o estábulo e o palheiro colocara uma grade de ventilação para arejar o armazém. Algures atrás dela, do lado da porta, um rectângulo maior de céu espreitava para dentro, a abertura pela qual a colheita de feno era armazenada, muito acima da porta trancada que havia no andar inferior. Ouviu os degraus da escada estalar ao peso de Iestyn que subiu apressadamente, e correu a ajoelhar-se ao lado daquela saída, para observar os inimigos cercando o refúgio. Ela ouviu, e, subitamente, conseguiu compreender o que ouvia. O ruído surdo de punhos batendo nas portas trancadas, a intimação da lei no exterior.

- Abri e entregai-vos, ou far-vos-emos sair à força com os machados. Sabemos que estais aí dentro e conhecemos os crimes pelos quais tendes de responder!

Não era uma voz que ela conhecesse, pois um beleguim mais zeloso tinha-se adiantado ao chefe e aos camaradas quando ouviu o ruído das trancas, e fora o primeiro a chegar à porta. Mas compreendeu o significado do que ele rugia na noite, e abarcou por fim a extensão do perigo para que fora arrastada.

- Para trás! - A voz de Iestyn soou alto e rude. - Ou tereis de responder a Deus por uma vida, vós também! Afastai-vos para longe dessa porta, e não vos aventureis a regressar, pois consigo ver-vos claramente. E não falarei mais convosco, um subalterno, mas com o vosso amo. Dizei-lhe que tenho uma rapariga à minha mercê, e uma faca no cinto, e podeis ter a certeza de que se um machado atingir essas madeiras, a minha faca lhe cortará as goelas. Agora trazei-me alguém com que eu possa negociar.

Ouviu-se uma ordem seca lá fora e depois fez-se silêncio. Rannilt recuou o mais possível no palheiro, em direcção ao ténue desenho de estrelas. Entre esse local e o topo da escada pela qual tinha subido encontrava-se uma figura silenciosa e imóvel que ela reconheceu ser a de Susanna, de guarda à única arma do seu amante.

- Que mal vos fiz eu? - disse Rannilt, sem rancor nem esperança.

- Temos um conflito de interesses - disse Susanna, friamente. - Azar teu e nosso.

- E matar-me-eis de verdade? - perguntou ela cheia de espanto, esquecendo até momentaneamente o terror.

- Se tiver de ser.

- Mas morta - disse Rannilt, num momento de lucidez desesperada, tocando no único e desastroso ponto fraco que existe na retenção de reféns -, não terei qualquer utilidade para vós. É somente viva que posso conseguir-vos o que pretendeis. Se me matardes, tereis perdido tudo. E vós não quereis matar-me, que prazer teríeis com isso? Porquê?, morta não vos servirei de nada!

- Se tudo se abater sobre mim - disse Susanna com uma ferocidade gelada -, farei que se abata também sobre o maior número de inocentes possível, para não ir sozinha para o caixão.

 

             DE SEXTA À NOITE A SÁBADO DE MANHÃ

Hugh mandara parar os seus homens imediatamente após o desafio de Iestyn, feito recuar os que haviam chegado junto à porta do estábulo, e impusera silêncio, que é mais desencorajador que um ataque violento, ou uma grande algazarra. Homens em movimento são facilmente detectáveis, a imobilidade conferia-lhes uma visibilidade duvidosa. O terreno que subia até aos campos incultos tinha vários pequenos maciços de árvores e uma sebe de arbustos, que eram suficientes para ocultar uma parte dos homens que se encontravam a meio caminho do estábulo, indo fechar o círculo um pouco mais adiante, e completando um anel em redor do edifício. O beleguim regressou da sua inspecção, descendo a encosta até ao prado a coberto das sombras das árvores, para anunciar o cerco do estábulo.

- Não há outra saída, a não ser que arranje meio de abrir caminho através de uma parede, o que não lhe serviria de muito. E se se vangloria de ter uma faca, imagino que não tenha outra arma. Que outra coisa poderia um vulgar artesão ter consigo além da sua faca? -E nós temos archeiros - reflectiu Hugh -, mesmo que por enquanto não haja luz suficiente para os termos na nossa mira. Espera, nada de pressas! Se os tivermos bem seguros, somos nós e não eles quem se pode dar ao luxo de esperar. Não há necessidade de os levar a cometer qualquer loucura.

- Mas eles têm Rannilt lá dentro, estão a ameaçar a vida dela - murmurou Liliwin, tremendo no ombro do irmão Cadfael.

- Estão a propor usá-la para os seus fins - disse Hugh. - Por conseguinte, têm bons motivos para a manter viva para poderem negociar, uma vez que estão à beira do desespero, e eu terei o máximo cuidado em não os levar além dos limites. Ficai quietos por uns momentos, e tentemos cansá-los e convencê-los a sair. Tu, Alcher, vê se arranjas um bom lugar para vigiar aquela abertura sobre a porta, e mantém-na debaixo de olho com uma seta preparada, para o caso de o pior acontecer. Eu tentarei mantê-lo nesse enquadramento para que o possas. - A abertura onde Iestyn se ajoelhava a vigiá-los não era mais que uma indistinta forma mais escura na já escura parede de madeira no meio da escuridão azulada, mas, tal como a porta estava virada a nascente, a primeira luz do alvorecer, embora só daí a muitas horas, depressa a localizaria. - Ninguém atira sem minha ordem. Vejamos o que a paciência consegue fazer.

Avançou sozinho, fixando o rectângulo de escuridão com um olhar concentrado, e deteve-se a cerca de cinquenta passos do estábulo. Atrás dele, nos bosques, Liliwin sustinha a respiração, e o irmão Cadfael sentiu o corpo franzino do rapaz palpitante e tenso, como um cão preso, e pousou-lhe uma mão prudente no braço, para o caso de ele se libertar da trela e desatar a correr, ladrando pela presa. Mas não havia razão para ter medo. Liliwin voltou o rosto pálido e acenou com constrangida confiança.

- Eu sei. Confio nele, tenho de confiar. Ele sabe o que está a fazer.

Atrás deles, incapaz de estar quieto, Walter Aurifaber andava de esguelha e contorcia-se em volta da árvore que o abrigava, roendo as unhas e angustiando-se com os seus prejuízos, não dirigindo a palavra a ninguém senão a si próprio, num tom baixo e lamuriento, que era em parte uma maldição, em parte uma prece. Nem tudo estava ainda perdido. Os malfeitores não tinham escapado, e agora não podiam libertar-se e fugir em direcção a oeste.

- Iestyn! - chamou Hugh, olhando firmemente para cima. - Aqui estou eu, Hugh Beringar, o delegado do xerife. Tu conheces-me, sabes porque estou aqui, sabes muito bem qual é o meu dever. Os meus homens cercam-te, não tens qualquer hipótese de escapar. Sê razoável, desce daí, e entrega-te. Entregai-vos nas minhas mãos, sem mais danos e mais graves crimes, e procura tirar partido das mercês que esse gesto de bom senso te poderá proporcionar. É o melhor que tens a fazer. É preciso que o saibas e sejas prudente.

- Não! - disse a voz de Iestyn rudemente. - Ainda não chegámos ao ponto de nos submetermos tão docilmente a julgamento. E digo-vos que temos a rapariga, Rannilt, cá dentro. Se algum dos vossos homens se aproximar desta porta, juro que a mato. Ordenai-lhes que se mantenham afastados. Esta é a minha primeira condição.

- Vês mais alguém além de mim movendo-se a menos de cinquenta passos da porta? - A voz de Hugh estava calma, neutra e clara. - Tens, portanto, uma rapariga à tua mercê. E depois? Não tens com ela qualquer questão. Que ganhas em fazer-lhe mal, para além de um lugar mais ardente no Inferno? Se pudesses deitar a mão à minha garganta, admito que isso talvez te pudesse ser útil, mas cortar a dela não te ajudará, nem te servirá de nada. Nem isso se coaduna com o que sabemos do teu passado. As tuas mãos não cometeram até agora nenhum crime de morte, porquê manchá-las agora?

- Podeis vir com falinhas mansas do sítio onde estais - gritou Iestyn, com azedume -, mas nós não temos nada a perder, e não vemos razão para não nos servirmos das armas de que dispomos. E aviso-vos de que, se me pressionardes, a matarei, e se aqui entrardes à força, matarei tantos quanto puder até ao final. Mas se realmente a vossa conversa doce e sensata é a sério, sim, podeis ficar com a rapariga, sã e salva... com uma condição!

- Dizei qual é - disse Hugh.

- Uma vida por outra vida é justo. Ávida de Rannilt pela da minha companheira. Deixai a minha mulher partir em liberdade, com o cavalo, as bagagens e tudo o que lhe pertence, sem ser perseguida, e eu enviar-vos-ei a rapariga ilesa.

-E confias na minha palavra em como não haveria perseguição? -insistiu Hugh, lançando a isca para obter pelo menos uma pequena vantagem.

- Sois conhecido como um homem de palavra.

Duas vozes haviam arquejado bruscamente à menção destas condições, e duas vozes soltaram o mesmo grito:

- Não! - Walter, frenético pelo seu ouro e prata, precipitou-se em direcção a Hugh, mas Cadfael agarrou-o pelo braço e puxou-o para trás. Contorceu-se e balbuciou indignadamente: - Não, esse negócio infame, não! O cavalo e as bagagens? São meus, não dela, foram-me roubados. Não podeis fechar um tal negócio. Então essa desavergonhada ia para o País de Gales com os seus lucros duvidosos? Nunca! Não o permitirei!

Houve uma agitação de sombras na abertura, e a voz de Susan-na trovejou asperamente:

- Quê, tendes aí o meu carinhoso pai? Quer o seu dinheiro e o meu pescoço, como quereria o de qualquer outro que tivesse ousado deitar a mão à sua riqueza. Ajuizastes mal, se estáveis à espera de que ele estivesse disposto a pagar um penny que fosse para salvar a vida de uma serva, ou de uma filha. Não tenhais receio, meu extremoso pai, digo não tão alto como vós. Não aceito um tal negócio. Mesmo em perigo de vida, não me afastarei do meu homem um passo sequer. Estais a ouvir? O meu homem, o meu amante, o pai do meu filho! Mas sob certas condições separar-me-ei dele, sim! Deixai Iestyn levar o cavalo, e voltar à sua terra sem ser molestado, e eu entregar-me-ei de livre vontade, à morte, ou à minha triste vida, qualquer que seja o meu destino. É a mim que quereis. Não a ele. Fui eu quem matou, digo-vo-lo abertamente...

- Ela está a mentir - gritou Iestyn com voz rouca. - Sou eu o culpado. O que quer que tenha feito, fê-lo apenas por mim.

- Chiu, meu amor, eles sabem tudo! Sabem qual de nós dois planeou e agiu. Comigo podem fazer o que quiserem... a ti não te terão!

- Oh, rapariga tonta, minha querida, julgas que te deixaria? Nem por todos os tesouros do mundo...

Os que se encontravam em baixo foram esquecidos no meio desta insensata contenda. Nada se via para além do tremor agitado de sombras mais pálidas dentro da moldura escura, que poderiam ser rostos e mãos, rostos desesperadamente unidos, mãos abraçando e acariciando.

Pouco depois, a voz de Iestyn elevou-se bruscamente:

- Fá-la parar! Depressa, mexe-te! Cuidado! - O abraço desfez-se, e um débil grito de desalento que se ouviu no interior fez Liliwin tremer e resistir ao braço de Cadfael.

- Foi Rannilt. Oh, meu Deus, se eu pudesse alcançá-la!-Falou apenas num murmúrio, consciente de uma tensão que não devia ser quebrada, que estava sendo tecida ali fora com o ameaçado fio da jovem vida de Rannilt, e a sua própria esperança de felicidade. O desespero e a dor eram algo que ele tinha de suportar em silêncio.

- Se grita - murmurou-lhe Cadfael firmemente ao ouvido -, é porque está viva. Se tentou escapar quando eles estavam distraídos, é porque não lhe fizeram mal, nem está presa. Lembra-te disso.

- Sim, é verdade! E eles não a odeiam, não podem odiá-la, nem querer fazer-lhe mal... - Mas, apesar de tudo, ele ouvira a cólera e a dor extremas daquelas duas vozes gritando desafiadoramente, e sabia, tal como Cadfael, que os dois, empurrados para aquela situação, poderiam cometer actos terríveis mesmo contra a sua própria natureza. Mais, ele compreendia o sofrimento deles, e atormentava-se com ele como se se assemelhasse ao seu.

- Desiludi-vos - gritou Iestyn do seu covil. - Ainda a temos. Agora apresento-vos outra alternativa. Levai convosco a rapariga, o ouro e a prata, dai-nos os dois cavalos e esta noite livre de perseguição, juntos.

Walter Aurifaber libertou-se com uma lamúria de esperança e aprovação meio ansiosa, meio incrédula, e lançou-se como uma seta alguns metros para diante, para a clareira.

-Senhor! Senhor, isso já era aceitável. Se eles restituírem o meu tesouro... - Nem mesmo a legítima vingança contava muito, em comparação.

- Há uma vida que eles não podem restituir - disse Hugh, secamente, e fez um gesto para que recuasse com um ar tão grave que o ourives retrocedeu, mais moderado.

-Estás a ouvir, Iestyn? - chamou Hugh, levantando de novo os olhos para a abertura sombria. - Interpretas erradamente a minha missão. Estou aqui para fazer cumprir a lei do soberano. Estou disposto a permanecer toda a noite. Reconsidera, e desce sem manchares de sangue as tuas mãos. É o melhor que tens a fazer.

- Estou aqui. Estou a ouvir. Não mudei - respondeu Iestyn ameaçador amente lá de cima. - Se me quereis a mim e à minha mulher, vinde buscar-nos, e levai primeiro este pequeno corpo... a vossa vítima, não nossa.

- Porventura levantei eu uma mão? - disse Hugh, razoavelmente. - Ou desembainhei a espada? Tu podes ver-me melhor que eu te posso ver a ti. Temos a noite à nossa frente. Quando tiveres alguma coisa a dizer, fala, eu estarei aqui.

A noite arrastou-se com assustadora lentidão para sitiantes e sitiados, na sua maior parte em silêncio lúgubre, embora quando este se prolongasse por demasiado tempo, Hugh o quebrasse deliberadamente, para se certificar de que Iestyn continuava acordado e vigilante, mas com o cuidado de não o alarmar, com receio de que ele cometesse alguma loucura ditada pelo pânico de um ataque iminente. Não havia outro remédio senão esperar e aguentar o inimigo. Havia todas as probabilidades de terem muito pouca água ou comida com eles. Podiam também ser facilmente privados de descanso. Mesmo com tais cuidados havia o perigo de um desespero súbito e extremo, que poderia conduzir a um massacre, mas se tudo fosse feito calma e gradualmente, isso poderia ser evitado. O cansaço tinha, por vezes, feito ceder espíritos implacavelmente determinados a desafiar a tortura, e a inacção exauria a coragem de agir.

- Tenta conseguir melhores resultados - disse Hugh baixinho a Cadfael, algumas horas depois da meia-noite. - Eles não podem saber que aqui estás, por enquanto, tenta encontrar-lhes um ponto fraco que me tenha sido inacessível.

Durante a madrugada, quando os espíritos estão deprimidos, a mínima surpresa pode atingir o alvo de uma forma impossível de conseguir durante o dia, no auge do vigor do corpo. A própria voz de Cadfael, mais profunda e rude que a de Hugh, sobressaltou Iestyn e fê-lo inclinar-se da sua torre de observação para lançar uma olhadela imprudente ao recém-chegado visitante.

- Quem está aí? Que partida preparais agora?

-Não é uma partida, Iestyn. Sou o irmão Cadfael da abadia, que por vezes ia lá a casa com mezinhas. Conheces-me, embora talvez não o suficiente para confiares em mim. Deixa-me falar com Susanna, que me conhece melhor.

Ele sabia que ela poderia recusar falar-lhe ou ouvi-lo. Quando se decidia por alguma coisa, era insensível como uma pedra a todos os que tentassem desviá-la ou intrometer-se no seu caminho. Mas acabou por vir até à abertura e acabou por o ouvir. Pelo menos era um prolongamento das tréguas. Os dois amantes trocaram de lugar no palheiro. Cadfael sentiu-os passar, e agora faziam-no sem se tocarem ou acariciarem, pois não havia necessidade. Eram duas metades do mesmo ser, vivos ou mortos. Um deles, ficara bem claro desde o alarido de há pouco, tinha de manter a prisioneira debaixo de olho. Não tinham podido amarrá-la, ou então não o haviam considerado necessário. Talvez não tivessem meios para isso. Haviam sido encurralados no instante da fuga. Seria imperdoável desejar que tivessem partido meia hora mais cedo?

- Susanna, ainda não é demasiado tarde para uma reparação. Conheço as vossas faltas, falarei em vossa defesa. Mas assassínio é assassínio. Não penseis que podeis escapar. Ainda que evitásseis o julgamento aqui, existe outro que não podereis evitar. É muito melhor fazer as reparações necessárias e ficar em paz.

- Que paz? - disse ela, em tom amargo e frio. - Para mim não há nenhuma. Sou uma árvore atrofiada, a quem foi negado o terreno para crescer, e agora, que estou a frutificar, apesar deste mundo, imaginais que irei acalmar uma partícula sequer do meu ódio ou amor? Deixai-me em paz, irmão Cadfael - disse ela mais suavemente. -As vossas preocupações são com a minha alma, as minhas são com o corpo, o único paraíso que jamais conheci ou espero vir a conhecer.

- Descei e trazei Iestyn convosco - disse Cadfael simplesmente. - E eu prometo-vos, juro-o perante Deus, que o vosso filho nascerá e será criado como compete a qualquer inocente que vem ao mundo. Intercederei por ele junto ao padre abade.

Ela riu-se. Foi um som fresco, selvagem, mas desolado.

- Ele não é filho da Santa Madre Igreja, irmão Cadfael. É meu e de Iestyn, o meu companheiro, e mais ninguém o embalará, nem cuidará dele. Contudo, agradeço-vos do coração a vossa boa vontade para com o meu filho. E, além disso - disse ela com escárnio -, como poderemos saber se a criança iria nascer viva e perfeita? Eu sou velha, irmão Cadfael, velha para dar à luz. É bem possível que ela morra antes de mim.

- Fazei a tentativa - disse Cadfael, resolutamente. - Ela não é totalmente vossa, tem identidade própria, a criança que vai nascer. Fazei-lhe justiça! Por que há-de ela pagar pelos vossos pecados? Não foi ela quem calcou Baldwin Peche na areia do Severn.

Ela produziu um terrível som abafado como se tivesse sufocado com a raiva e o desgosto, e depois ficou de novo calma, resoluta e inabalável.

- Estão aqui três seres unidos num só - disse ela. - A única trindade que eu agora reconheço. Uma quarta pessoa não tem lugar entre nós. Que devemos nós seja a quem for?

- Esqueceis-vos de que essa quarta pessoa existe - disse Cadfael com firmeza -, e de que a estais utilizando de uma forma vergonhosa. Alguém que nada tem a ver convosco e que nunca vos fez mal. Ela também está apaixonada... penso que o sabeis. Porquê destruir outro par tão infeliz como vós?

- Por que não? - disse Susanna. - Toda eu sou destruição. Que outra coisa me resta agora?

Cadfael insistiu, mas depois de algum tempo, tentando persistentemente convencê-la, apercebeu-se de que se tinha levantado e afastado, irredutível e irreconciliável, e que era Iestyn quem estava agora debruçado na abertura. Esperou um bom bocado, e depois dirigiu as suas alegações a esses ouvidos talvez mais vulneráveis. Um galês, menos ofendido que a mulher, apesar de todos os infortúnios; e todos os galeses são da mesma raça, mesmo que de vez em quando se degolassem uns aos outros, e adubassem os campos dispersos e pedregosos com mortes fratricidas em guerras tribais. Mas sabia que a esperança era pouca. Já havia falado com a figura dominadora daquele par. Qualquer apelo que fosse feito a este, seria agora destruído por ela com um simples gesto.

Ficou aliviado, embora não verdadeiramente satisfeito, quando Hugh regressou para o render na vigilância.

Sentou-se sem energia e desanimado sobre a relva primaveril atrás da sebe de arbustos, e Liliwin aproximou-se, puxando-lhe suave mas urgentemente pela manga.

- Irmão Cadfael, vinde comigo! Vinde! - O murmúrio era excitado e esperançoso, num momento em que a esperança não abundava.

- Que é? Ir contigo aonde?

- Ele disse que não havia outra saída - sussurrou Liliwin, puxando-lhe a manga com força -, e por essa ordem de ideias ninguém poderia entrar, mas há... talvez haja. Vinde ver!

Cadfael deixou-se conduzir, subindo a zona de arbustos junto aos campos por cultivar, às ocultas pela encosta acima, precisamente por baixo do nível do telhado do estábulo e a pouca distância deste, em direcção ao lado oeste do edifício. As tábuas do telhado projectavam a empena baixa, o par daquela em que, do lado leste, Iestyn estava inclinado a vigiar.

- Vede ali... a luz das estrelas surge pintalgada. Deixaram uma grade para entrar o ar.

Espreitando cuidadosamente, Cadfael conseguia apenas descortinar uma forma quadrada, que podia perfeitamente ser o que Liliwin descrevia, mas, tanto quanto lhe era dado ver, cada lado media apenas a distância compreendida entre a mão e o antebraço. Os intervalos entre as ripas, que o esforço do olhar conseguia descortinar ou imaginar por momentos, para logo deixar de os ver, eram seguramente demasiado pequenos para deixar passar um punho. Nem havia sequer modo de lá chegar sem uma escada ou a leveza e as garras de um gato, apesar das tábuas da parede serem rugosas e irregulares.

- Aquilo? - proferiu Cadfael desanimado. - Meu rapaz, uma aranha talvez pudesse lá chegar e entrar, mas um homem não.

-Ah, mas eu estive lá, eu sei. Há apoios suficientes. E penso que uma das ripas já está solta, e há-de haver outras prestes a ceder. Se uma pessoa pudesse entrar por ali, enquantos vós os distraíeis do outro lado... Ela está lá em cima, tenho a certeza! Haveis ouvido, quando eles correram para a agarrar, a distância que tiveram de percorrer.

Era verdade. Além do mais, se pudesse escolher, ela preferiria encolher-se o mais longe possível dos seus captores.

-Mas, rapaz, mesmo que conseguisses arrancar duas ou três tábuas, poderias tirar mais, sem ser ouvido? Duvido! Não há ninguém que consiga passar por aquele buraco de fechadura para chegar ao pé dela. Não, nem que tivesses tempo para desmontar todo o quadrado.

- Sim, eu posso! Esqueceis - sussurrou Liliwin, ansioso - que sou pequeno e leve e sou um acrobata, treinado nisto desde os dois ou três anos de idade. É o meu ofício. Eu posso chegar até ela. Onde um gato consegue chegar, eu também consigo. E ela ainda é mais pequena que eu, embora não esteja treinada para fazer acrobacias. Se eu tivesse uma corda, podia chegar rapidamente até lá, e, com calma, abrir caminho até ela. Oh, de certeza, de certeza que vale a pena tentar! Não temos outra solução. E eu sou capaz de o fazer e faço-o!

- Espera! - disse Cadfael. - Senta-te aqui escondido que eu vou falar a Hugh Beringar e arranjar-te essa corda, e preparar tudo para os prender com conversa, o mais longe de ti possível. Nem uma palavra, nem um movimento até eu voltar.

- Não é mais louca do que qualquer outra coisa que possamos fazer para destruir esta barragem - disse Hugh depois de ouvir e reflectir um pouco. - Se tens alguma fé nisso, tens a minha colaboração. Achas que ele consegue realmente trepar até lá? Será possível?

- Já o vi contorcer-se num nó que faria inveja a uma serpente - disse Cadfael. - E se ele diz que tem espaço suficiente para passar, penso que ele é disso melhor juiz que eu. É a sua profissão, e orgulha-se dela. Sim, confio nele.

- Vou mandar buscar a corda e um formão, para arrancar as ripas, mas ele tem de esperar. Vamos tratar de os manter acordados e alerta deste lado, e tentaremos um ou outro estratagema, se for necessário, para não entrarem em pânico. E ele que não se apresse, pois parece-me que seria mais prudente esperarmos pela aurora, para possibilitar a Alcher uma boa visão da abertura e do corpo que lá se encontra, com uma seta preparada e apontada para o que der e vier. Se somos forçados a permitir que um pobre rapaz inocente arrisque a vida, ao menos que estejamos preparados para lhe dar toda a protecção que estiver ao nosso alcance.

- Preferia - disse Cadfael tristemente -, que não houvesse mortes.

- Também eu - concordou Hugh, sombriamente. - Mas se tiver de ser, antes os culpados que os inocentes.

Ainda faltava mais de hora e meia para o alvorecer quando levaram a Liliwin a corda de que ele precisava, mas a leste o céu já se transformara, e havia passado do azul-escuro para um azul-esver-deado mais pálido, e uma ténue linha de um verde ainda mais claro sublinhava as ondulações dos campos que se estendiam por detrás deles, e a colina da cidade, dominada pela torre.

- Antes à volta da cintura que do pescoço - murmurou Liliwin corajosamente, enquanto Cadfael apertava a corda à sua volta no meio dos arbustos.

- Ora aí está, vejo que encaras as coisas como deve ser. Deus vos proteja, a ambos! Mas será que ela consegue descer pela corda, mesmo que consigas alcançá-la? As raparigas não são acrobatas como tu.

- Eu posso ajudá-la. Ela é tão leve e pequena, pode agarrar-se à corda e descer pela parede... Só preciso que os mantenhais entretidos do outro lado.

- Mas vai devagar e silencioso, nada de pressas - recomendou Cadfael, inquieto como por um filho prestes a partir para a batalha. - Eu faço de mensageiro entre os dois lados. E a luz do dia joga a nosso favor, não deles.

Liliwin atirou com os sapatos. Tinha ambas as meias esburacadas nos dedos dos pés, observou Cadfael. Talvez não fosse pior para esta missão, mas quando chegasse a altura de ser devolvido ao mundo - se assim Deus o quisesse, e certamente o faria -, teria de ir melhor fornecido.

O rapaz desceu silenciosamente pelo campo abaixo até à parede do estábulo, tacteou por cima da cabeça com os braços esticados, encontrou saliências que um homem mais pesado não teria considerado, colocou um pé num primeiro apoio, e começou a escalada em direcção às ripas, como se fosse um esquilo.

Cadfael ficou à espera e a observar até ver a corda ser atada numa das tábuas mais firmes da grade, e a primeira ripa podre ser arrancada, vagarosa e cuidadosamente, e deixada cair silenciosamente na relva fofa a pouca distância. Entretanto, tinha passado mais de meia hora. De vez em quando, ouvia o som de vozes cansadas mas vigilantes do lado leste. O entrecruzamento das ripas no orifício de ventilação era agora facilmente perceptível. A remoção de uma tábua tinha posto a descoberto um espaço de tamanho suficiente para deixar passar um gato, mas certamente nada maior ou menos ágil. A abóbada celeste iluminava-se gradualmente antes ainda de qualquer fonte de luz se tornar visível.

Liliwin trabalhava com a corda atada à sua volta, e os dedos dos pés seminus fincados nas tábuas da parede. Começara pacientemente a forçar a segunda ripa, quando Cadfael regressou às ocultas para relatar o que sabia.

- Deus sabe que parece impossível, mas o rapaz sabe do seu ofício, e se tem a certeza de que pode passar, do mesmo modo que um gato o sabe pelos bigodes, confio na sua palavra. Mas, por amor de Deus, não deixes morrer a conversa!

- Substitui-me - disse Hugh, recuando de olhos postos na abertura. - Só por uns momentos... Uma nova voz fá-los ouvir com mais atenção.

Cadfael retomou as súplicas vãs que usara anteriormente. A voz que lhe respondeu estava enrouquecida pela fadiga, mas continuava desafiadora.

-Não nos iremos embora - disse Cadfael, recobrando ânimo da sua própria fadiga por uma dupla ansiedade - sem que todos os que aqui sofrem, de corpo e alma, estejam livres e em paz, neste mundo ou no outro. E que o julgamento se abata sobre quem o impedir! Mas a graça de Deus é infinita para todos os que a procuram, por mais tarde ou debilmente que o façam.

- A luz já não tarda - dizia Hugh nesse momento a Alcher, que era o melhor atirador da guarnição do castelo, e já tinha escolhido há muito tempo a sua posição, tendo em conta a aurora, e não via razões para a mudar. - Prepara-te para, no momento em que eu disser, disparares uma seta para aquela abertura, e trespassares quem quer que ali esteja escondido. Mas não atiras sem eu dizer. E praza a Deus que não tenha de ser obrigado a fazê-lo.

- Entendido - disse Alcher, abraçando o arco retesado e a seta ajustada, sem desviar os olhos do alvo, o centro mortal da sombria abertura, que estava cada vez mais visível sobre a porta do estábulo.

Quando Cadfael percorreu de novo o caminho ao longo dos campos incultos, a grade já não era uma grade, mas uma pequena abertura quadrada sob o beiral, e as tábuas removidas amontoavam-se sobre o espesso tufo de relva que ficava por baixo. Liliwin tinha um braço esticado para o interior, para pôr o feno cuidadosamente para o lado, e arranjar espaço para rastejar lá dentro. Se ao menos Rannilt conseguisse evitar movimentos bruscos ou um grito quando o sentisse atrás de si! Era a altura de fazer o máximo de barulho possível diante da porta do estábulo. Contudo, Cadfael não conseguiu evitar ficar ali a observá-lo com a respiração suspensa, até Liliwin ter introduzido a cabeça e os ombros no espaço que parecia demasiado pequeno até para a sua magreza, e enfiado o resto do corpo num movimento rápido e ondulante, desaparecendo com uma cambalhota perfeita, e sem qualquer ruído.

Cadfael tomou apressadamente o caminho de regresso até um local não visível da abertura, e fez a Hugh um sinal urgente, indicando-lhe que tinha chegado a ocasião de maior perigo. Alcher viu o braço que se agitava antes de Hugh, e ajustou o arco junto ao ouvido, semicerrando os olhos para os movimentos da capa castanho-clara e do rosto que apareciam no alvo. Atrás dele, o Sol começava a despontar no horizonte, e os seus primeiros raios cintilaram no cimo do telhado. Daí a um quarto de hora estaria suficientemente alto para que a luz atingisse a abertura, e o tiro seria fácil.

- Iestyn - chamou Hugh asperamente, reunindo os homens que estavam mais perto de modo a que ficassem visíveis, embora não demasiado perto da porta -, tiveste toda a noite para reflectir, agora sê razoável e entrega-te voluntariamente, pois bem vês que não podes escapar-nos, e és mortal como outros, e precisas de comer para viver. Não estás em santuário aí, não tens direito a quarenta dias de tréguas.

- A nós só nos resta a forca - gritou Iestyn, enlouquecido -, e sabemo-lo bem. Mas se esse for o nosso fim, juro-vos que a rapariga irá primeiro que nós, e o seu sangue recairá sobre as vossas cabeças.

- Isso é o que tu dizes, grandes discursos para um homem tão pequeno! A tua mulher pode não estar tão disposta a matar ou a morrer. Já lho perguntaste? Ou a tua opinião é a única que conta? Aproximai-vos, mestre ourives - chamou Hugh, acenando com a mão -, vinde falar com a vossa filha. Apesar de tarde, pode ser que ela ainda vos ouça.

Apostava em provocá-la, para que ambos viessem para a abertura lançar o seu desafio, deixando a prisioneira sem vigilância. "Mas, oh, não demasiado depressa, não demasiado depressa", rezou Cadfael, torcendo os dedos. "O rapaz ainda precisa de mais uns minutos!"

Liliwin abriu furtivamente caminho através do feno armazenado, com tanto medo de espirrar, com a poeira aromática que lhe fazia cócegas nas narinas, como de fazer demasiado barulho e revelar a sua presença. Algures à sua frente, muito próximo agora, conseguia ouvir os débeis movimentos de Rannilt no seu canto, e rezou para que pudessem disfarçar qualquer som que estivesse a fazer. Pouco tempo depois, fazendo uma pausa para espreitar através do feno que lhe servia de protecção e que começava a tornar-se mais escasso, descortinou a forma dos seus ombros encolhidos e a cabeça recortada contra a ténue luz matinal. Cuidadosamente, alargou a passagem que tinha escavado, a fim de poder ter espaço para passar para o lado dela e fazê-la rastejar à sua frente para que chegasse em primeiro lugar à abertura da ventilação. Iestyn estava debruçado para fora, do outro lado do sótão, gritando pragas encolerizadas aos que se encontravam no exterior, e, embora ameaçador, não estava a olhar para aquele lado.

Havia uma mulher a temer porque, onde quer que estivesse agora, estava silenciosa. Mas se os que se encontravam lá fora estavam a pressionar, grande parte das suas atenções estariam certamente concentradas no amante. E ali no sótão ainda estava, felizmente, escuro.

A sua mão, tacteando delicadamente, encontrou e tocou no braço nu de Rannilt. Ela estremeceu vivamente, mas não fez um único ruído, e, em seguida, a mão dele deslizou ao encontro da dela, e agarrou-a. Nessa altura ela soube. Tudo o que ele ouviu foi um débil e longo suspiro, e os dedos dela fecharam-se sobre os seus. Puxou-a delicadamente, e, lentamente, ela deslocou-se e foi-se aproximando, para a cavidade que ele abrira para ela. Estava agora a seu lado, com a frágil protecção de feno a escondê-lo, começava já a protegê-la com o seu próprio corpo, e ainda não fora dado qualquer alarme. Impeliu-a à sua frente com a mão, para que fosse a primeira a chegar à grade e à corda enquanto ele lhe cobria a saída. Do lado de fora da porta do estábulo as vozes eram altas e peremptórias, e Iestyn, enlouquecido de cansaço e cólera, gritava-lhes desafios incoerentes. Então, abençoadamente, a voz de Susanna, certamente junto ao ombro do amante, elevou-se sobre o clamor:

- Loucos, imaginais que haja algum poder que nos possa separar agora? Não cedo, tal como Iestyn não cede, como ele desprezo as vossas promessas e ameaças. Queriam trazer o meu pai para me convencer, não é? Que ele ouça, então, o que lhe devo e o que espero dele. Odeio-o mais que a todos! Fez de mim uma pessoa sem préstimo, não lhe dou qualquer valor. Ousa dizer que já não sou sua filha? Ele já não é meu pai, nunca foi um pai para mim. Que seja alimentado de ouro derretido no Inferno, até que o ventre e a garganta se transformem em cinzas de fornalha!

Sob a fúria daquela voz enlouquecida, clara e acerada como a de uma espada, Liliwin empurrou Rannilt à sua frente e impeliu-a pelo túnel poeirento em direcção à grade e à corda, esquecidas todas as precauções, pois se esta oportunidade lhes escapasse, poderia não haver outra.

Foi o ouvido apurado de Iestyn que se apercebeu, mesmo através da maldição de Susanna, do súbito e frenético roçagar do feno. Voltou-se com um enorme grito de raiva pelo que via, e precipitou-se para o impedir. O primeiro raio de luz que entrava lançou um clarão , sobre a faca desembainhada.

Hugh foi rápido a compreender e a agir. - Atira! - gritou, e Alcher, que tinha agora esse primeiro raio de luz brilhando sobre o corpo de Iestyn, disparou a seta.

Apontada ao peito, teria sido igualmente mortal nas costas, se Susanna, a despeito de toda a sua fúria, não tivesse compreendido imediatamente todos esses sinais. Soltou um grito, mais de fúria que de medo, e lançou-se sobre a abertura, de braços abertos e decidida a evitar a morte do amante. Ao primeiro grito, Liliwin impelira Rannilt para a saída, e deu um salto para fora do feno, para interpor o seu próprio corpo franzino entre ela e o perigo. Iestyn aproximou-se rapidamente, o punhal que ele brandia cruzou-se com um raio de sol, reflectindo chispas de luz que dançaram no telhado. A lâmina estava suspensa sobre o coração de Liliwin quando o grito de Susanna fez Iestyn vacilar e estremecer de horror, retesando-se como um cavalo subitamente sofreado, e a ponta da faca desferiu um golpe descontrolado, cortando o braço do rapaz que se esquivava, e salpicando o feno de sangue.

Ela estava a fundir-se, a dissolver-se nela própria, como um boneco de neve se dobra gradualmente sobre si mesmo, quando começa o degelo. O impacte do dardo, atingindo-a em cheio no seio esquerdo, tinha-a feito girar, afundando-se lentamente com as mãos crispadas sobre o local em que a seta a perfurara, e com os olhos fixos, enormes e enevoados, sobre Iestyn, para quem a morte havia sido destinada. Liliwin, observando estupefacto o homem saltar para a enlaçar, disse depois que ela estava a sorrir. Mas as suas recordações eram confusas e desordenadas, o que ele se lembrou foi sobretudo do terrível uivo de desgosto e desespero que encheu e ecoou pelo sótão. A faca foi atirada para o lado, e ficou espetada, a tremer, nas tábuas do chão. Iestyn abraçou a amada, gemendo, e deixou-se cair com ela nos braços. Em redor da temível barreira da seta, ela tentou levantar os braços titubeantes para o agarrar. O seu beijo foi uma contorção que o contorcionista experiente que era Liliwin recordaria durante toda a sua vida com piedade e dor.

Liliwin recompôs-se rapidamente, pois as circunstâncias assim o exigiam. Puxou Rannilt pela mão, afastando-a da grade agora inútil, e fê-la descer a escada atrás de si até ao andar de baixo, onde os cavalos carregados bateram com os cascos e mudaram de posição, inquietos com os alarmes daquela noite. Levantou as pesadas barras que trancavam a porta, o que exigiu todas as energias que ainda lhe restavam. A luz de nascente atingiu-lhe o rosto quando ele empurrou as pesadas portas e conduziu Rannilt para o prado verdejante.

Aperceberam-se de homens correndo para dentro no momento em que saíam cheios de alegria. O seu papel havia terminado.

O irmão Cadfael, suspirando preces de gratidão, tomou-os a ambos nos braços e empurrou-os para o lado para um pequeno monte coberto de relva, onde se deixaram cair reconhecidamente sobre a turfa primaveril, respirando a brisa de Maio e a luz da manhã, e se voltaram lentamente, olhando-se e sorrindo, como duas criaturas num sonho, acordando felizes um com o outro.

Hugh foi o primeiro a subir a escada e a entrar no palheiro, seguido de perto pelo beleguim. Rodeado por uma auréola de luz do Sol, agora mais intensa e clara, e ofuscantemente brilhante sobre a escuridão ainda reinante no chão coberto de feno, Iestyn estava ajoelhado com Susanna nos braços, segurando-a ternamente para que não caísse sobre as tábuas, pois a seta trespassara-a completamente, fazendo uma saliência no ombro. Os seus olhos estavam já velados como se dormisse, mas ainda fitavam fixamente o rosto do amado, uma máscara de desgosto e desespero. Quando o beleguim fez menção de segurar o ombro de Iestyn, Hugh fez-lhe sinal para que se afastasse.

- Deixa-o - disse ele, calmamente -, ele não foge. - Já não havia futuro, nem lugar, nem ninguém com quem fugir. Tudo o que lhe interessava estava nos seus braços, e não estaria com ele por muito mais tempo.

Tinha o sangue dela nas mãos, nos lábios e faces que a haviam acariciado freneticamente por um instante, como se as carícias a pudessem devolver à vida. Tinha desistido disso já, estava apenas curvado a segurá-la, vendo os seus lábios procurando formar palavras em que assumia toda a responsabilidade, para o salvar, mas não proferindo um único som, e deixando agora de o tentar. Viu extinguir-se a luz que brilhava por detrás do cinzento vítreo dos seus olhos.

Só então Hugh lhe tocou. - Ela morreu, Iestyn. Agora deita-a e vem connosco. Prometo-te que será levada de volta com dignidade.

Iestyn pousou-a no feno empilhado, e pôs-se lentamente de pé. O sol-nascente aflorou o nó da única trouxa que haviam levado ali para cima com eles. Os olhos embotados cruzaram-se com ela, e incendiaram-se. Arrebatou-a do chão, e lançou-a com violência pela abertura, rompendo-se sobre a relva, espalhando o seu conteúdo, que os raios de sol fizeram faiscar pelo prado fora.

Um grande gemido de desolação e derrota brotou da garganta de Iestyn em direcção ao céu límpido e sereno:

- E eu tê-la-ia levado descalça e em camisa!

Lá fora, no prado, um outro grito de dor elevou-se como um eco, no momento em que Walter Aurifaber se rojou de gatas sobre a relva, arrebatando freneticamente no meio dos tufos, o ouro e a prata desprezados.

 

                         DEPOIS

Levaram os vivos e os mortos de regresso a Shrews-bury, à luz radiante e oblíqua da manhã. Iestyn, agora silencioso e indiferente ao seu destino, para uma cela no castelo; Susanna, livre de qualquer castigo neste mundo, para a casa despovoada da qual três gerações seriam em breve conduzidas à sepultura.

Walter Aurifaber seguia-os aturdido, abraçando a fortuna recuperada, e fitando o corpo da filha com as sobrancelhas levemente franzidas pela desorientação, como se, dividido entre as perdas e os lucros, não conseguisse ainda determinar quais deveriam ser os seus sentimentos. Porque, no fim de contas, ela roubara-o e aviltara-o no final, e, se fora privado de uma governanta competente, essa fora a sua única perda séria; havia agora outra mulher em casa para a substituir. E com Daniel tornando-se indubitavelmente mais maduro e orgulhoso do seu ofício, poderia perfeitamente arranjar-se sem ter de pagar a um assalariado. Os conflitos que haviam perturbado Walter estavam prestes a ser satisfatoriamente resolvidos.

Quanto aos dois apaixonados, sem conseguirem articular palavra, incapazes de despregar os olhos ou as mãos, Cadfael tomou-os a seu cargo, e, atento às conveniências, à casta desaprovação do prior Robert e às sensatas preocupações do abade Radulfus com a manutenção da paz na ordem, achou por bem dar uma palavra ao ouvido de Hugh para assegurar a colaboração da esposa deste. Aline recebeu Rannilt à sua guarda com grande satisfação, e encarregou-se de lhe fornecer e de a instruir sobre tudo o que uma noiva devia possuir e saber, de a alimentar para que ficasse roliça e rosada, e desvendar belezas até então ocultas e despercebidas.

- Se tencionas levá-la contigo - disse Cadfael, impelindo o relutante Liliwin pela ponte de regresso à abadia -, é melhor que te cases com ela aqui, onde há bastantes pessoas envergonhadas e ansiosas por te cumular de pequenos favores, para te compensarem do facto de te terem tratado mal. Não há razão para desprezar as dádivas deste mundo quando são ganhas honestamente. E farás um favor aos donatários, que farão assim as pazes com as suas consciências. Tu vens connosco, e não estejas relutante em conceder uma semana para os preparativos do casamento. Não seria possível trazeres a rapariga para compartilhar o teu leito no pórtico. - "Ou atrás de um altar", pensou ele, mas não o disse. - Ela estará em segurança com a esposa de Hugh, e será tua com a bênção de todos.

Cadfael tinha razão. Shrewsbury ficou com remorsos pelo que acontecera a Liliwin, logo que a notícia da escandalosa verdade correu pelas tendas do mercado, pelos balcões das lojas e foi comentada pelas ruas. Todos os que se haviam precipitado em sua perseguição apressaram-se a prestar-lhe pequenos favores à guisa de reparação. O preboste, que não tinha participado em nada, reparou no lamentável estado do único par de sapatos do jovem, e deu o exemplo fazendo-lhe um novo par de excelente qualidade, com o qual poderia retomar as suas viagens. Outros membros da guilda de mercadores aceitaram a sugestão. Os alfaiates juntaram-se para o vestir decentemente. Prometia sair dali melhor fornecido que alguma vez o estivera.

Mas o melhor presente foi o do irmão Anselm.

- Bem, uma vez que não desejas ficar entre nós e manter o celibato - disse o chantre, jovialmente -, aqui tens a tua rabeca pronta para tocar, e um bom saco de couro para a transportar. Estou contente com o meu trabalho, saiu melhor do que esperava, e vais ver que ainda tem uma voz muito doce, apesar dos contratempos que sofreu. - E acrescentou muito sério, enquanto Liliwin abraçava o tesouro recuperado com uma alegria muito mais profunda que se de ouro ou prata se tratasse: - Agora, lembra-te do que aprendeste aqui sobre a leitura e a escrita de música. Nunca te esqueças desses conhecimentos. Não permitas que me envergonhe do meu aluno quando vieres para estes lados e nos visitares de novo.

E Liliwin derramou agradecimentos calorosos, e promessas que talvez nunca conseguisse cumprir, embora as fizesse com a melhor das intenções.

Foram casados no altar paroquial, onde Liliwin inicialmente se refugiara, pelo padre Adam, sacerdote da paróquia do Foregate, na presença de Hugh e Aline Beringar, do irmão Cadfael, do irmão Oswin, do irmão Anselm e de vários outros monges que sentiam um interesse benevolente pelo hóspede que estava de partida. O abade Radulfus em pessoa deu-lhes a sua bênção.

Mais tarde, depois de terem arrumado as roupas do casamento e vestido as roupas de todos os dias, com as quais tencionavam seguir viagem, foram à procura de Hugh Beringar, que estava sentado com o irmão Cadfael na antecâmara da casa de hóspedes.

- Temos de partir daqui a pouco - disse Liliwin, em nome dos dois - para aproveitarmos a luz do dia no caminho para Lichfield. Mas queríamos perguntar, antes de irmos... O julgamento deve ser daqui a semanas, talvez nunca venhamos a saber. Ele não vai ser enforcado, pois não?

Possuíam tão pouco, aqueles dois, mesmo que fosse mais que alguma vez tinham possuído, e, contudo, tinham o suficiente para sentirem compaixão.

- Não quereis que ele seja enforcado? - disse Hugh. - Ele ter-te-ia morto, Rannilt. Ou não acreditas nisso, agora que tudo passou?

- Sim - disse ela com simplicidade -, acredito. Penso que o teria feito. Sei que ela o faria. Mas não desejo a sua morte. Nunca desejei a dela. Ele não vai ser enforcado, pois não?

- Não se a minha voz for ouvida. O que quer que ele tenha feito, não matou, e tudo o que roubou foi restituído. O que fez, fê-lo por vontade dela. Penso que podeis partir descansados - disse Hugh com suavidade. - Ele viverá. É mais novo que ela. Talvez ainda arranje outra mulher, mesmo que só ocupe o segundo lugar no seu coração.

Porque apesar de tudo o que pudesse ser posto em causa sobre os dois infelizes pecadores, Rannilt fora testemunha do seu devotado e desesperado amor.

- Ainda pode acabar como um honesto artesão, casado e com filhos - disse Hugh. Filhos que nasceriam em paz, não sepultados ainda no ventre, como o de Susanna. Grávida de três meses, fora a estimativa do médico. Mesmo que ela não tivesse aproveitado a oportunidade da festa de casamento do irmão, em breve teria sido obrigada a tentar obter a liberdade.

- Ele ter-se-ia entregue para a salvar - disse Liliwin muito sério. - E ela teria feito o mesmo por ele. E a verdade é que morreu por ele. Eu vi. Ambos o vimos. Ela sabia o que estava a fazer. Isso tem de valer para alguma coisa, ou não?

Talvez valesse, e de certeza que a piedade e as orações dos dois jovens tão maltratados e tão magnânimos também valeriam. Quem tinha mais hipóteses de levar a melhor?

- Vinde - disse o irmão Cadfael -, levar-vos-emos até ao portão e ficaremos a ver-vos partir. E que Deus vos acompanhe!

E puseram-se a caminho, esperançosos e felizes, com o novo saco de couro orgulhosamente suspenso no ombro de Liliwin, para uma vida que nunca poderia ser senão difícil e insegura, ele, o jogral errante em feiras e mercados e pequenas casas senhoriais, ela, sem dúvida, em breve tão hábil como ele, com aquela sua voz pura e delicada, e uma dança ou outra enquanto o marido tocava. Em qualquer clima, em qualquer estação, mas com sorte, encontrando um protector generoso no Inverno e uma boa lareira. E, se o pior acontecesse, pelo menos estariam juntos.

- Acreditas realmente - perguntou Cadfael quando as duas pequenas figuras desapareceram ao longo do Foregate - que Iestyn também pode ter uma vida à sua frente?

- Se fizer um esforço. Ninguém vai exigir a sua morte. Está a começar a voltar à vida, não de boa vontade, mas porque tem de ser. Há nele uma energia que não pode ser concentrada apenas no passado. Será um amor menor, mas ainda há-de casar e ter filhos.

- E esquecê-la?

- Eu disse isso? - disse Hugh, e sorriu.

- O que ela fez de pior - disse Cadfael ponderadamente -, teve origem em qualidades que poderiam ter sido excelentes, se não tivessem sido mutiladas. Foi tratada muito injustamente.

-Meu velho amigo - disse Hugh, abanando a cabeça com ar pesaroso -, penso que nem tu serás capaz de absolver Susanna. Ela escolheu o seu caminho, que a levou muito para além da misericórdia dos homens, se tivesse vivido o suficiente para enfrentar o seu julgamento. E agora, suponho - disse ele ao ver o rosto do amigo ainda pensativo e confiante -, dir-me-ás sem rodeios que o poder divino é maior que o dos homens.

- É bom que assim seja - disse o irmão Cadfael com grande solenidade -, caso contrário, estamos todos perdidos!

 

                                                                                Ellis Peters  

 

                      

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