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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O PASSADO DO GELO ETERNO/ Emilly Amite
O PASSADO DO GELO ETERNO/ Emilly Amite

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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O sol não havia desaparecido por completo quando entrei pelo portão lateral das altas muralhas brancas, indo em direção ao Castelo de Gelo e deixando um rastro gotejante de sangue na neve branca e endurecida da nevasca que aconteceu na noite anterior. Limpei as mãos na neve e ajeitei o cabelo que caía sobre o rosto, o movimento fez com que a cabeça dentro do saco de feltro batesse contra minha perna, sujando meu uniforme azul e branco deixando uma mancha escura ali, bufei e atirei o saco no chão.
Grizzar Domenas, foi o dono da cabeça que eu estava carregando naquela sacola, um fornecedor de metais muito rico da costa de Ciheliz, cidade grande demais e imunda demais para um lugar coberto de gelo, pois o mesmo dava a tudo uma falsa aparência de pureza. Trouxe Grizzar vivo até o lago Stanaj, a poucos metros das muralhas do Castelo de Gelo. Grizzar implorou pela própria vida, me ofereceu meu peso em ouro para deixá-lo escapar, uma quantia muito maior que o rei havia me oferecido pela cabeça dele, mas meu interesse não era o ouro ou as recompensas, mas sim os benefícios que Vegahn teria ao se livrar de um inseto imundo como ele.
“Lamento, minha lealdade está naquela que criou esses mundos, minha missão aqui é unicamente me livrar de parasitas como você!” – Lhe disse antes de arrancar sua cabeça com um movimento rápido e preciso. Abri seu tronco e o enchi de pedras, antes de atirá-lo num buraco no gelo do lago congelado onde estavam sua mulher e seu filho também. Retirei sua mão e a marquei com o símbolo da coroa e a enterrei na neve próxima as árvores, assim quando voltasse poderia levar a mão até Ciheliz e a pregaria na porta do bordel que Grizzar usava como fachada para esconder o escritório que negociava o vitrino retirado das minas de forma clandestina.
Deixei a cabeça na neve por um bom tempo para que o sangue congelasse e não fizesse sujeira dentro do castelo quando a levasse até o rei. Sentei na neve, encostado dos paredões de gelo da lateral do castelo e respirei fundo, sentia o cheiro de neve, sangue e nitram, as flores que crescem em volta do castelo e nas colinas do Sul, eram as únicas flores que nasciam na neve, elas tinham um aroma delicado e único e tinham uma bela cor roxa com riscos amarelados no centro.
– Aproveitando o fim de tarde? – Perguntou uma voz irritantemente familiar aproximando-se de mim.
– O frio está cada vez mais intenso depois que Apollis parou de nascer, esse sol substituto não é nem de longe tão brilhante como ele era. – Respondi.
– Foi feito por magos humanos, você esperava o que? – Ela riu debochando, de forma que eu quisesse a jogar para fora dos muros, fiquei rolando a sacola com a cabeça na neve. – Quem foi o infeliz desta vez?
– Grizzar, o cretino que estava obrigando crianças a trabalhar nas minas de vitrino. – Respondi rispidamente.
– O rei não tinha dado a ordem para que explodissem as minas?
– Muitas foram destruídas, mas algumas continuam de forma clandestina.
– Foi fácil? Arrancar a cabeça dele? – Ela me encarava com os olhos cheios de divertimento, o que me irritou ainda mais.
– Mais do que você imagina, Zion, a cabeça dele soltou tão fácil que parecia já estar fora do lugar! – Seus olhos cor de vinho faiscaram.
– Você não tem coração? A mulher dele deu à luz tem uma semana, um belo menininho. – Reconhecia seu tom de deboche.
– Não se preocupe com isso, fiquei com pena dele sob as camadas de gelo e para não deixá-lo só, joguei a mulher e o filho dele lá também! – Respondi friamente, o choque em seus olhos me fez pensar que ainda havia um pouco de humanidade nela embora os anos depois que fora transformada numa Malvarmo a deixaram com a personalidade totalmente diferente, não quis dizer a ela que já os havia encontrado mortos, provavelmente algum rival de Grizzar os havia envenenado, a mulher estava morta com a criança nos braços quando fui procurá-lo na noite anterior, Grizzar não os havia visto daquela maneira, se tivesse visto, talvez implorasse pela morte e não pela vida.
– Que cruel! – Ela balançou a cabeça desviando os olhos da sacola.
– Filho de peixe... – murmurei achando que aquilo a fizesse se afastar de vez, mas ela saltou de cima do muro em um movimento gracioso e suave e veio até mim, passando as pernas por cima das minhas e sentou-se em meu colo, mordeu os lábios e traçou meu rosto com as pontas dos dedos, parando o polegar sobre minha boca. Não conseguia entender como as presas pontiagudas não perfuravam a pele fina e avermelhada dos lábios cheios dela. Sentia-me indiferente a ela nos últimos meses, seu corpo tão jovem e convidativo, seu cheiro provocativo e sua voz agradável já não tinham mais o mesmo efeito sobre mim, e agora como acontecera muitas outras vezes, havia perdido totalmente o interesse na jovem em minha frente.
– Você não tem mais o que fazer Zion? – Meu tom de voz seco a fez ficar desconcertada, ela desviou o olhar e suspirou.
– Não me lembro de você sendo tão frio assim comigo antes, Caalin! – Resmungou ela fazendo biquinho e mexendo em meu cabelo, estava irritado demais naquele fim de tarde para tentar fazê-la se afastar de forma mais gentil, pois soube, antes de voltar, que o rei tinha uma tarefa ainda mais difícil para mim e não estava nem um pouco afim de ir atrás de mais alguém agora, só queria ir para casa e descansar um pouco, me preparar para o que estava prestes a vir. Derrubei Zion de meu colo quando me levantei bruscamente, ela caiu na neve sujando seu belo traje da guarda real de neve e sangue e bufou irritada tirando seus cabelos loiros da frente do rosto e lançando-me um olhar zangado, antes que ela pudesse começar a reclamar, peguei a bolsa congelada e fui até a entrada lateral do castelo, “Caalin, volte aqui!” A ouvi gritar e ignorei completamente deixando-a resmungando sozinha lá atrás.

 


 


1
Caça à Maga Negra.
Atravessei o salão em passos largos e rápidos, o rei estaria me esperando como sempre na sala do trono para ver o resultado da caçada. Aliver Marchyn, o novo rei de Vegahn, estava sentando no trono e seu semblante era de preocupação, o manto de pele de Yeti branco e felpudo caia sobre os ombros cobrindo-o completamente, fazendo-o parecer um pouco maior do que era realmente, Aliver não tinha uma boa aceitação do povo, já que era um híbrido, seu pai, o antigo rei, era um Malvarmo, um verdadeiro guerreiro da grande guerra da nevasca e sua mãe uma maga humana, curandeira que cuidou do rei no pós-guerra. Aliver era muito parecido com ela, Yeferis, tinha herdado os mesmos olhos amendoados e pele cor de mogno da mãe, ela era muito bonita para a idade que tinha, porém ela havia partido com sua filha mais nova, Oriel, para o retiro das folhas, uma cidade élfica flutuante que ficava em cima da cidade de Seneris no centro de Blizzion.
– Vossa majestade. – Dei um passo à frente e fiz uma breve reverência, levantando a sacola que ele pediu para um dos guardas levar até ele, ele então observou por um momento e dispensou o guarda.
– Livre-se disso, Toghus! – Disse ele torcendo o nariz. – Ótimo trabalho, Caalin. Algo a relatar? – Perguntou ele olhando-me de cima a baixo.
– Nada em particular sobre essa missão. – Falei – Mas gostaria de saber por que o rei ainda não fez nada sobre as minas clandestinas restantes, quando tirei Cahadris do trono para que você pudesse substituí-lo, você me garantiu que acabaria de vez com as minas e faria com que os negociantes libertassem os escravos. – Aliver empalideceu, pois haviam lordes presentes na sala que não sabiam que eu havia matado o antigo rei para que seu filho assumisse o trono.
– Estou fazendo o máximo possível para que eles sejam libertados, Caalin, mas temos que agir com cautela para não provocar uma rebelião! O que não precisamos agora é de mais inimigos, pois os governantes de Paliath e Fernic estão interessados na minha cabeça, querendo assumir o trono em meu lugar, estão quase como cães perdigueiros farejando a presa! Sair por aí ameaçando arrancar as cabeças de todos que estão lucrando com o vitrino das minas ilegais daria aos meus inimigos, aliados poderosos demais! – Disse ele ajeitando-se no trono, não me olhava nos olhos, encarava os vitrais azuis que cobriam grande parte das paredes da sala do trono, que deixavam o ambiente com um ar fantasmagórico.
– Sabe que se não cumprir com minha exigência, irei colocar outro em seu lugar, isso se eu mesmo não o assumir... – coloquei a mão casualmente sobre o punho da espada, fazendo os guardas do rei sacarem as armas e me olharem assustados, eles sabiam que de qualquer forma que lutassem, não teriam nenhuma chance se eu realmente quisesse matá-los.
– Já disse que vou cuidar disso, Caalin e peço que tenha um pouco mais de paciência! – O rei pigarreou e ficou de pé, andou em direção ao vitral. – Afinal, Grizzar era um dos grandes, então muitos começarão a diminuir as atividades ou as encerrarão de vez! Esse já foi um grande passo para nós.
– Soube que o rei tinha mais uma tarefa para mim, se puder dizer logo, gostaria de ir tirar uns dias de folga depois! – Toghus, o capitão da guarda real pigarreou e sibilou, incomodado com a forma que eu falei com o rei, o olhei de soslaio, Zion sua filha tinha os mesmos olhos cor de vinho e carregava a mesma expressão altiva e esnobe que ele, embora ele ainda fosse humano e ela não. Será que ainda seria tão tolerante comigo se soubesse de todas as noites que ela passou em meus aposentos no castelo? Um sorriso malicioso se formou em meu rosto enquanto o encarava, fazendo-o ficar ainda mais tenso.
– Tenho sim e é algo um tanto perigoso... – Aliver virou-se e aquela expressão de preocupação tomou conta dele novamente.
– Nada que eu não possa lidar, imagino.
– Talvez... Soube dos rumores que vieram do Castelo de Cristal? Sobre uma maga negra que tentou matar a princesa Nyumun e o príncipe Kuran?
– Acho que todos nos doze mundos estão sabendo sobre isso, majestade, faz séculos desde que o último mago negro foi morto, um novo mago negro surgindo é algo que todos ficariam sabendo mais cedo ou mais tarde, fora que os criados do rei Ewren tem línguas compridas demais e deixam tudo escapar! – Retruquei.
– Pois então, tivemos notícia que há uma maga negra que está circulando os arredores de Catadh, ela causou um grande prejuízo destruindo uma estalagem por lá, disseram que uma mancha negra engoliu o prédio e que ela saiu caminhando tranquilamente e rasgou cinco guardas ao meio, ninguém teve coragem de enfrentá-la depois disso. Dizem que essa é a mesma maga que quase rasgou o príncipe Kuran ao meio.
– E qual o motivo de destruir o prédio?
– É isso que quero que descubra, o povo da cidade está com medo de sair às ruas pois dizem que ela anda toda de preto com um capuz cobrindo o rosto e carrega uma foice enorme de vitrino, que é a sombra da morte em pessoa. Porém um dos guardas que a viu e sobreviveu ao ataque disse que é uma jovem linda. – Um sorriso surgiu no rosto do rei.
– Qual é a ordem, então?
– Não quero que a mate, uma maga negra, dependendo do poder dela, nossos inimigos pensariam duas vezes antes de querer comprar briga. Seria interessante ter alguém assim na guarda real...
– Ou em sua cama? – O sorriso dele aumentou.
– Estou interessado em habilidades que possam nos ajudar com as minas, Caalin! Se o poder dela for realmente grande, ela pode ser de grande ajuda para o reino! – Porém o olhar dele dizia outra coisa.
– E se ela não tiver interesse em ajudar o reino? – Questionei vendo seu rosto passar de descontraído a decepcionado.
– Se ela não aceitar vir, se estiver só querendo confusão, livre-se dela! De problemas já basta todos os que estamos tendo ultimamente! – Ele bufou e voltou a sentar-se. Mal sabia ele dos verdadeiros problemas, muito maiores do que a briga pelo reino de Vegahn, talvez uma batalha começasse em breve pelos mundos, pela vida.
– Vou fazer o possível para tentar trazê-la, mesmo que precise capturá-la e trazê-la amarrada até aqui. Algo mais?
– Se puder, quando estiver voltando com a jovem ou com a cabeça dela, tente conseguir mais informações sobre nossos aliados do Sul, talvez possa conseguir uma aliança de verdade com Bremir, soube que ele tem uma filha e que está em idade de casar-se. – acabei soltando uma gargalhada divertida vendo a expressão de terror do rei.
– Acabando os dias de rodízio, alteza? – Ele corou. Aliver era muito jovem ainda, não tinha sequer completado vinte anos e sua mãe não encontrava nenhuma jovem para o filho, alegando todas serem “incapazes” de lidar com o temperamento forte dele, mas a verdade é que Aliver era um mulherengo depravado que não conseguia manter um compromisso por mais de uma semana, motivo pelo qual seu pai havia escolhido um primo distante para assumir o trono, isso custou a cabeça dele.
– Uma hora a diversão acaba Caalin, não só para mim, mas para você também! – Ele passou a mão sobre os curtos cabelos cor de ouro envelhecido e suspirou. – Às vezes é preciso sacrificar algo para o bem maior!
– A Princesa Jiyeni não é feia, soube que ela só precisa de três criadas fortes e treinadas e alguns metros de tecido para conseguir vesti-la de manhã! – Debochei lembrando-me da aparência da princesa, que não era realmente feia, mas tinha sérias dúvidas se ela caberia na cama do rei.
– Você é cruel, Caalin! Diga, seu coração é de gelo assim como seus poderes? – Perguntou tamborilando os dedos sobre o braço do trono irritado com a brincadeira, lhe mostrei os dentes num sorriso amigável.
– Peço licença ao rei, tenho que ir atrás de nossa convidada de honra! – Disse fazendo uma reverência para não irritar ainda mais o capitão e saí da sala, nem sequer fui até o quarto especial que ficava preparado para mim na ala leste do castelo, saí pelos corredores direto para os portões principais, preferia ficar numa estalagem na cidade Hima, alguns quilômetros à frente do castelo, assim não correria o risco de Zion querer entrar em meus aposentos, não estava com paciência para os caprichos dela desta vez.
O que mais me intrigava era o fato de uma maga negra ter tentado matar soberanos de dois reinos e ter saído impune, por que não havia nenhum prêmio sobre a captura dela? A essa altura já haveria muitos boatos, ou até mesmo muitos caçadores atrás dela, então ou ela era conhecida dos soberanos, alguma parente ou amiga, ou era tão difícil de ser pega que não foi estabelecido um prêmio pela sua captura.
Quase um ano desde que Apollis desapareceu do céu, tinha certeza que mais cedo ou mais tarde veria Higarath novamente, esperava ser mais tarde, ainda tinha outros problemas para resolver antes de enfrentá-lo, ele precisava saldar suas dívidas comigo.
Ao passar pelos portões de Hima, notei uma euforia um pouco incomum por parte dos cidadãos, o clima festivo e as gargalhadas e brindes por todas as tavernas da cidade, parecia que algo muito bom havia acontecido enquanto estive fora. Atravessei a cidade em silêncio, escondendo Blumarian com o manto para evitar que algum caçador desavisado me confundisse com um mercenário qualquer.
Entrei rapidamente pelas portas da estalagem que ficava perto da saída norte da cidade e pedi o quarto de sempre. Louise, a dona da estalagem, uma humana que devia ter sido muito bela em sua juventude e agora escondia os traços da idade embaixo da pesada maquiagem, lançou-me um sorriso travesso ao entregar as chaves, não me preocupei em sorrir de volta, apenas fiz um gesto com a cabeça e subi as escadas até o quarto no terceiro andar, cheguei à porta do quinto quarto à esquerda e a abri com um leve rangido.
A cama de madeira com uma colcha grossa de pele de Lobo ficava bem próxima a parede onde passavam os canos de aquecimento, tornando a noite para qualquer humano agradável e aquecida, porém para mim isso era desagradável. As marcas no assoalho de madeira mostravam a quantidade de vezes que arrastei a cama para o outro lado, colocando-a sob a janela que permanecia aberta a noite inteira, o calor excessivo fazia meus ossos doerem, isso tornava qualquer viagem a outros mundos um incômodo quando eu não podia usar meus poderes para não chamar atenção.
O banheiro deste quarto era um pouco maior que o dos outros, então tinha uma grande banheira de louça que enchi de água fria e fiquei imerso por um bom tempo antes de descer até o salão de jantar.
Andei calmamente até uma das longas mesas rusticas de madeira envernizada no fim do salão, prestando atenção em cada murmúrio, cada conversa, procurando descobrir o que havia mudado naquela pequena cidade congelada nas últimas semanas que a deixara tão festiva. Porém todos comemoravam algo, riam, e brindavam e nada de dizerem o motivo de tal alegria.
Pedi um assado para a atendente que circulava as mesas equilibrando uma bandeja cheia de canecos de vinho quente com especiarias.
No centro do salão, alguns humanos dançavam e bebiam até ficarem bêbados o suficiente para desabarem sobre as mesas e riam até que seus rostos ficassem vermelhos.
– Qual o motivo de toda essa comemoração? – Perguntei a jovem quando ela deixou a travessa de assado e uma das canecas de vinho em minha frente. Ela arqueou as sobrancelhas e mostrou um sorriso alegre ao responder:
– Os homens que foram levados da cidade como escravos no começo do ano retornaram! – Disse ela apontando com o queixo o grupo que comemorava. Alguns dos homens que estavam ali tinham as marcas dos chicotes sobre as peles e estavam magros, porém felizes agora.
– Como se libertaram? Fugiram? – Perguntei sabendo que a resposta seria negativa, pois se tivessem fugido, ela não diria por medo de serem pegos, ou por que já teriam sido recapturados.
– Disseram que uma mulher coberta pelas sombras entrou nas minas ao anoitecer, ela fez a mina estremecer e desabar depois que os escravos saíram, quando os capatazes tentaram capturá-la, ela os cortou com um único golpe de uma foice. – Ela contou baixinho, tão baixo que suas palavras eram abafadas pelos gritos de comemoração.
– Parece muito interessante...
– É sim! Estão dizendo que ela é impressionante e assustadora, ela anda séria, e quando sorri é porque alguém vai morrer! – Ela sussurrou as palavras e se virou para sair.
– Sabe o nome dela? – Perguntei antes que ela fosse atender outra mesa.
– Os homens daquela mesa perguntaram quando foram agradecer pela libertação, ela diz se chamar Yinemí! – A jovem sorriu e se afastou levando a bandeja até outra mesa. Alma do gelo? Por que essa pessoa usaria o nome de um poder tão antigo e letal para tais feitos?
Após o jantar, caminhei lentamente até uma das mesas com mais movimento de ex-escravos e sem aviso arrastei um deles até o corredor que levava as escadas do segundo piso.
– A mulher que libertou vocês, sabe onde está? – Perguntei encarando-o, o homem assustado estava segurando minha mão com força, podia ver o medo dele quando passou os olhos no meu uniforme preto e azulado, na certa achava que eu ia evitar que os outros fossem libertos, que eu estava ali para caçar a maga.
– Não tenho ideia de onde ela está! – Disse ele tentando se soltar.
– Não tenho intenção de impedir os próximos feitos dela, só quero saber quando irá agir novamente! – O soltei, mas não deixei o caminho livre.
– Até onde eu sei, amanhã à noite ela pretende destruir as minas restantes próximas a Catadh, só isso que sei! – Disse com a voz embargada.
– Obrigado. – Liberei a passagem e o vi voltar aos tropeços até a mesa onde seus colegas nem repararam que ele tinha sumido até ele voltar. Fui até o quarto e fiquei deitado na cama, pensando sobre a tal Yinemí, a janela estava aberta e a brisa trazia o aroma agradável da neve, dos plátanos gigantes ao redor da cidade e das estufas de uvas azuis que os humanos desta cidade cultivavam.
O sol me despertou naquela manhã, o que poderia ser considerado ruim, levando em consideração que nunca acordei depois do sol nascer, normalmente despertava no final da madrugada e partia imediatamente, já que nunca estava com sono suficiente para dormir mais que algumas horas. Aquela foi a primeira vez desde que despertei que tive um sonho, o sonho era muito vívido e podia ser considerado perturbador, estava diante de uma figura encapuzada com uma longa foice, ela sorria para mim e se preparava para me atacar, as sombras giravam em volta dela como se fossem velhas amigas, mas elas não a dominavam como era para ser, e sim pareciam responder a ela, ela estava no controle das sombras e não o contrário!
Levantei e me preparei para partir, desci as escadas rapidamente e fui até o salão, mas parei na porta ao perceber que Zion estava sentada junto com os outros guardas, ela provavelmente sabia que eu estaria ali. Dei as costas ao salão, fui até a recepção e deixei a chave e algumas moedas e saí da hospedaria, não queria correr o risco de ter que falar com Zion.
– Saindo de fininho? – Ela estava do outro lado da porta encostada na parede de pernas cruzadas, encarando-me.
– Para ser sincero estava sim, tenho que ir ao encontro da maga, por ordem do rei e isso tem que ser feito rápido ou ela pode desaparecer! – Respondi prendendo Blumarian na bandoleira e encarando-a.
– Você está me evitando? – Ela cruzou os braços fazendo cara feia para mim, senti vontade de revirar os olhos, mas isso a faria reclamar ainda mais.
– Por que acha que estou te evitando?
– Talvez por que esteja! Desde que foi a Ciartes para a coroação de Ericko, você voltou e não é o mesmo comigo! – Ela deu um passo à frente segurando minha blusa.
– Não, Zion, não é desde a coroação que estou assim com você... É de muito antes, afinal, nunca disse que tínhamos algum relacionamento para que você me cobrasse toda essa atenção. – Tirei suas mãos de cima de mim. Ela me olhava incrédula.
– O que está dizendo?
– Não ficou claro o suficiente?
– Então fui apenas uma diversão para você? – Ela franziu o cenho.
– Falando assim parece que você não se divertiu nada!
– Você é um idiota! – Sua mão girou rapidamente para acertar meu rosto, mas a segurei com força, força suficiente para quebrar seu braço se ela fosse humana, Zion soltou um gemido e puxou a mão, esfregando o pulso, a raiva em seus olhos chegava a ser divertida.
– Tenho certeza de nunca ter dito nada sobre termos um relacionamento, Zion! Você não tem o direito de me cobrar nada, então, para o seu bem, espero que aceite isso e me deixe em paz! – falei virando as costas para ela e caminhando em direção aos portões. Senti o cheiro do metal quando ele foi atirado contra mim, virei rapidamente pegando a adaga longa que ela havia atirado contra minhas costas, a girei na mão, era uma adaga bonita, trabalhada em aço e vitrino.
– Agradeço pelo presente de despedida! – Acenei para ela colocando a adaga no alforje e saí da cidade. Precisava ir rapidamente até Catadh, pois a maga poderia desaparecer ou ir para outra região, caso ela estivesse mesmo destruindo as minas, havia mais duas clandestinas naquela região, as minas de Gither e Prestin, provavelmente seriam os próximos alvos dela, as outras eram mais distantes. Iria ficar de vigia durante a noite nas minas para ver se ela as atacaria e a capturaria lá mesmo. Abri um portal, a luz branca me cobriu completamente enquanto corria pelo curto túnel até o outro lado, queria chegar o mais rápido possível em Catadh e assim poder observar melhor o movimento e quem sabe encontrar mais pistas sobre os “Chefes” que gerenciavam o trabalho escravo das minas.
A cidade de Catadh não havia mudado em nada desde que despertei, nem sequer uma nova construção ou reforma. Todas as casas de pedras e prédios gigantes de gelo continuavam os mesmos. Os habitantes dessa região tinham uma paixão tão grande pelas construções de gelo semelhantes ao castelo em Velezar, que reconstruíram a cidade em gelo depois da guerra. O movimento aqui estava normal, as pessoas pareciam não se importar muito com o que havia acontecido na mina principal, não podia esperar nada diferente já que Catadh era uma das cidades mais ricas do continente norte, nenhum dos escravos libertos devia ser dessa cidade.
A neve caia fraca durante aquela manhã, segui para um restaurante e hospedaria menos chamativo no início da cidade, o Castelo Verde, já que por causa de Zion não havia tomado o café. Enquanto esperava a refeição vasculhei mentalmente os mapas da região procurando pelas trilhas e pelo terreno ao redor das minas, um lugar seguro que pudesse montar vigia durante a noite para esperar a jovem maga destruidora.
Ao sair do restaurante, comecei a circular pela cidade evitando chamar muita atenção, passei em frente a uma ferraria onde um Malvarmo negociava algo com alguém, o comerciante parecia nervoso diante do cliente, aquilo parecia uma atitude suspeita, mas tinha outras prioridades no momento e podia interrogá-lo mais tarde.
Saí do centro da cidade e fui até uma pequena vila de casas de pedra que mantinham a construção original da cidade. Andei até a borda do lago, me apoiei sobre a grade de proteção e fiquei ali observando. Havia algumas pessoas se divertindo na praça da vila, patinando sobre o lago congelado, algumas crianças arriscavam os primeiros passos sobre o gelo, a grande maioria Malvarmos, pequenas criancinhas brancas demais, de olhos negros ou vinho e cabelos cinzentos ou brancos, seus sorrisos pontiagudos eram alegres e divertidos, nem pareciam ser alguns dos seres mais letais dos doze mundos, porém as poucas crianças humanas e élficas ali, destacando-se por suas peles rosadas e olhos coloridos, brincavam em volta delas como se não representassem mal algum, brincavam juntas sem nenhum preconceito, sem medo algum daqueles pequenos seres que poderiam destruí-las sem nenhum grande esforço.
Não me lembrava mais de como era ser um humano, de como era ter as bochechas coradas ou sangue vermelho nas veias, há muito tempo atrás, antes mesmo dessa cidade pensar em nascer, eu me tornei o monstro de gelo, como muitos me chamavam.
– Viajando em pensamentos novamente? – A voz suave e trêmula de Mikale me trouxe de volta.
– Talvez, há muito para pensar, muito para fazer e pouco tempo. – Respondi. Olhei para aqueles olhos azuis cinzentos, um sorriso cobria uma parte do seu rosto enrugado e os cabelos cinza da idade estavam amarrados num coque sobre a cabeça. Ela segurava Ira carinhosamente em seus braços escondidos pelas grossas camadas de roupa que usava.
– Você tem todo tempo do mundo! – Ela acariciou a cabeça de Ira e o colocou em meu ombro, como se estivesse me cumprimentando, ele se enrolou em mim e ronronou alto. – Obrigada por deixá-lo comigo esses dias, o frio está muito maior desde o meio do ano passado! – Disse ela tossindo.
– Não devia estar aqui fora, Mikale! – Falei colocando os braços ao redor de seus ombros frágeis e a guiando de volta à sua pequena casa que ficava a poucos metros do lago, ela na certa me viu chegar e veio ao meu encontro como sempre fazia.
– Não devia é passar o tempo todo dentro de casa! Isso sim é entediante! – Ela grunhiu e apertou o braço ao redor de mim.
– Seus netos não têm vindo mais te ver? – Perguntei franzindo o cenho.
– Eles agora estão na academia, não tem tempo para sua velha avó, para serem bons caçadores precisam de muito esforço! – Ela pigarreou, abriu a porta da casa e entrou indo em direção à cozinha, onde alimentou o fogo no fogão a lenha e colocou uma chaleira cheia de água sobre ele.
– Como você está?
– Bem, aproveitando os dias cada vez mais gelados para confeccionar colchas de pele de Yeti, acabo ganhando mais com as mantas do que como curandeira! – Mikale riu enquanto pegava ervas para seu chá. Ela ainda tinha o mesmo sorriso divertido e brincalhão que vi dezoito anos atrás quando ela me encontrou nas geleiras da encosta próxima ao mar de Ivelis. – E você o que faz por aqui tão cedo, Caalin? Imaginei que fosse levar alguns meses para te ver novamente por esses lados!
– Aliver pediu que eu encontrasse a maga negra que anda aterrorizando os capatazes das minas de vitrino. – Mikale olhou-me de soslaio, a preocupação em seus olhos não era o que eu esperava ver quando mencionei a maga.
– O que vai fazer com ela? Ela está fazendo um trabalho maravilhoso, para ser sincera, o trabalho que o rei devia ter feito quando você o colocou lá! – Ela bufou e colocou as mãos nos quadris.
– Calma! Ele quer apenas ter uma conversa amigável com ela! Aparentemente ele quer que ela seja uma guarda pessoal dele. – os olhos de Mikale se mantinham semicerrados.
– Tem certeza?
– Sim, ele não ousaria acabar com alguém que está fazendo todo o serviço dele de graça. – Mikale relaxou e serviu-me uma xicara de chá e alguns pães de mel.
– Conheci essa maga há alguns dias... – ela colocou a chaleira sobre o descanso em cima da mesa e sentou-se perto de mim.
– O que? Ela te fez alguma coisa? – Foi minha vez de ficar preocupado.
– Não seja bobo! Se ela tivesse feito algo a uma velha como eu, acha que eu estaria aqui te servindo chá hoje?
– Então como a conheceu? – Perguntei relaxando na cadeira.
– Estava na Vila da Geada, fui chamada até lá para ver um recém-nascido híbrido que não conseguia se alimentar direito, isso era pouco mais de uma da manhã... – ela parou para tomar um gole do chá e comer um doce. – Estava saindo da casa e vinha caminhando pela trilha de caça para chegar logo em casa, o frio estava cortante e não havia mais ninguém por perto, o céu nublado demais e eu não estava enxergando muito bem. Quando cheguei perto dos portões do Leste um vampiro apareceu. Teria morrido se essa maga não tivesse aparecido. – Vi um brilho em seus olhos, algo que nunca tinha visto. – Caalin, as sombras se moviam junto com ela e pareciam soltar raios ao redor dela! Mas não consegui ver seu rosto, só os olhos e cabelos prateados por baixo do capuz, então ela partiu o vampiro ao meio com uma foice brilhante e o desmanchou com uma rajada de chamas brancas, mas não queimou de verdade, não tinha cheiro de fumaça ou calor nas chamas que consumiram o vampiro! Ele virou uma poeira fina e estranha com aparência de cinzas, mas era uma poeira gelada... - ela bebeu o resto do chá e ficou encarando o nada, um arrepio percorreu minha espinha com as últimas palavras que Mikale falou “uma poeira fina e gelada”
– Acho que você anda tomando chá demais! – Falei brincando afagando suas costas, o rosto avermelhado pelo frio corou ainda mais e ela me deu um tapa brincalhão no ombro e riu.
– Talvez esteja mesmo! – Ela ficou séria e respirou fundo. – Não a machuque, Caalin, tente conversar, se ela estiver causando problemas então a prenda, mas não a machuque.
– Vou fazer o possível! – Falei, mas a verdade é que se ela era uma maga negra e ainda tivesse chance de ser a controladora da alma do gelo, não havia prisão nos doze mundos que pudesse detê-la por mais que alguns minutos. Mesmo com a minha magia e minha força, se essa maga estivesse realmente disposta a fugir, eu não conseguiria capturá-la, precisaria de mais do que força para conseguir pegá-la.
– Não se esqueça de passar aqui quando estiver voltando para Velezar, quero que leve uma coisa para minha neta, sabe alguma notícia dela?
– Mikale, dessa vez nem fiquei no castelo por mais de alguns minutos, não cheguei a ver se Glyph estava por lá, mas creio que esteja tudo bem!
– Ela seguiu meus passos e se tornou a curandeira do castelo! – Os olhos de Mikale brilhavam com alegria e orgulho, Glyph era uma menina de quinze anos, e havia se tornado a curandeira oficial do castelo pois era a melhor, não havia nada em termos de cura que ela não pudesse fazer.
– Quando estiver voltando passarei aqui, pode deixar! – Levantei da cadeira e coloquei a chaleira de volta sobre o fogão, Mikale apertou minha mão gentilmente quando passei por ela em direção a porta. Ira saltou sobre meu ombro e se enrolou no meu pescoço como sempre fazia, esfriando-se em mim.
– Pronto para caçar encrenca? – Perguntei a ele coçando atrás de suas orelhas, só depois de receber um espirro como resposta me dirigi aos portões da cidade.
As minas de Gither e Prestin ficavam bem próximas uma da outra, separadas por um pequeno vale congelado de árvores antigas e sombrias, cobertas por neve e espinhos, o tempo naquele lugar parecia ter parado. Subi um monte de neve que dava para ver todo o movimento dentro de Prestin e me posicionei entre grandes pedras escorregadias que formavam uma pequena caverna e protegiam pequenos arbustos de flores cinerárias.
– Ira, preciso que vá até Gither e vigie a passagem! – Cobri o olho esquerdo com a mão e concentrei minha energia, depois a passei para Ira, que bufou irritado com a quantidade de energia que correu em seu corpo, logo em seguida desapareceu pela trilha estreita parando a pouco menos de três quilômetros a oeste, diante dos muros da mina de Gither, ela ficava à beira do lago vermelho, o que deixava a fuga dali ainda mais difícil. Fiquei observando cada movimento dentro e fora dos campos congelados onde os escravos se concentravam, o túnel que os levava para baixo do gelo era largo o suficiente para entrar com um dragão. O movimento dos escravos entrando e saindo com carrinhos cheios de peças de vitrino era no mínimo revoltante. O som dos chicotes e gritos dos escravos me dava vontade de levantar e ir até lá e destruir as minas eu mesmo, a única coisa que me fazia ficar ali era a certeza de que antes da madrugada, eles estariam livres
2
Sombras dominadas.
Passava das dez da noite quando acordei, havia cochilado no final da tarde depois de usar o corpo de Ira e me certificar que todas as rotas de fuga para os escravos que sairiam de Gither estariam liberadas e sem nenhum obstáculo. Encontrei um lobo selvagem próximo a passagem das montanhas obscuras, foi fácil acabar com ele usando as presas de Ira em seu tamanho real, um glacio chega a ser maior que um urso em sua idade adulta.
Essa noite o céu estava limpo e não havia sinal de nuvens em lugar nenhum, a lua cheia estava ainda mais brilhante que o normal, como se tentasse de alguma forma ajudar com o que aconteceria essa noite. Não podia sair para caçar agora, pois a qualquer momento a maga poderia aparecer e seria um problema se a perdesse de vista. Porém algo chamou minha atenção, da estrada principal que vinha da cidade de Catadh, um grupo de soldados da cidade estava cercando as muralhas, não fazia ideia do que estavam fazendo ali, eles poderiam colocar tudo a perder se fossem vistos, pois todos sabiam que o rei tinha ordenado a desativação das minas, soldados da guarda da cidade por aqui podiam gerar problemas desnecessários ou até mesmo poderiam espantar a maga. Corri por entre as pedras até a floresta onde eles estavam se escondendo, esperando por algo. Passei sorrateiramente entre eles, que nem sequer notaram minha aproximação, ainda queria entender por que raios o rei decidiu misturar os exércitos e recrutar Silfos e Elfos, já que eles tinham poderes inferiores aos Malvarmos. Aliver havia crescido em meio a eles, duvidada que ele tivesse medo de que os Malvarmos o traíssem ou entregassem o reino aos governantes do Leste ou do Oeste. O capitão da guarda de Catadh, Fenir, estava entre alguns arbustos congelados dando ordens a outros dois soldados armados com bestas.
– Algum problema, capitão? – Ele quase deu um pulo com o susto quando me viu.
– Ah, Caalin é você! – Não sei se ele estava aliviado ou irritado por ser “apenas eu”.
– O que fazem aqui capitão? Se me permite perguntar!
– Ficamos sabendo na cidade que uma maga iria atacar a mina no início da madrugada, estamos aqui para tentar capturá-la.
– A pedido de quem? – Franzi o cenho, o rei não liberaria essa informação nem por todo ouro de Vegahn, o capitão ficou pálido, porém endireitou a postura e me encarou com os olhos cinzentos semicerrados.
– Não interessa a você uma informação como essa! – Disse ele rispidamente fazendo sinal para que seus soldados subissem nas árvores para terem melhor visão da estrada.
– Você vai tentar matá-la! – Soltei um rosnado, o elfo colocou a mão sobre o punho da espada e deu um passo em minha direção.
– E se for? Não quero problemas com uma maga negra por perto de minha cidade!
– Sua cidade? – Ri – interessante essa escolha de palavras, Fenir. Até onde eu sei as cidades são do rei. Mas se você insiste nessa bobagem, estou aqui a serviço do rei, ele mandou que eu levasse a maga com vida até lá! – Nem me preocupei em segurar Blumarian, por mais que um elfo fosse forte, ele não teria nenhuma chance se eu resolvesse enfrentá-lo num combate corpo a corpo.
– Nós não a deixaremos sair com vida daqui! – Seus olhos faiscaram.
– Vai contra a vontade do rei? Vai desobedecer a uma ordem direta?
– Não foi dada a mim essa ordem, só estou pensando no que é melhor para o bem do reino!
– Ou está lucrando com as minas e quer impedir que sejam destruídas? Afinal, a ordem para que elas caíssem foi dada há muito tempo. – Ele franziu o cenho e deu mais um passo em minha direção. – A maga não oferece perigo ao reino, só aos bárbaros com chicotes lá dentro, se vocês não entrarem no caminho dela, ela não fará nada a vocês!
– No que podemos ajudar então? – Sabia que ele estava oferecendo ajuda apenas tentando afastar a desconfiança de que podia estar ajudando os donos das minas.
– Mantenham os caminhos livres e deem passagem, auxiliem os escravos em fuga. – Respondi. – Preciso voltar para meu posto, tenho que ficar de olho quando ela aparecer. – Saltei para os galhos onde os soldados com as bestas estavam só para que eles tivessem a certeza que se descumprissem as ordens, eu os pegaria facilmente eles mal respiravam quando os encarei e mostrei os dentes, depois saltei novamente em direção à estrada.
Voltei à minha posição inicial, escondido sob as rochas congeladas no alto do monte em frente à muralha da mina. Quase não havia movimento dentro da área da mina, exceto pelos capatazes que andavam de um lado para outro, levando com eles lobos selvagens, presos à grossas correntes tão pesadas que um humano normal não poderia carregar, eles não eram humanos, quando ele passou diante da luz pude ver a pele ligeiramente azulada marcada por riscos safira, um sereiano. Verifiquei os arredores de Gither com os olhos de Ira, ele estava feliz, havia caçado uma rena para seu jantar e estava com a barriga cheia. Olhei por cima dos muros, nada ali também, nada além de um movimento inquieto dos guardas que andavam ao lado dos capatazes. Usei o poder de visão de Ira, os guardas que andavam com eles vestiam o emblema de Ausiet, o governante de Fernic. Não, aquilo não era bom sinal! Significava que Ausiet estava metido até os dentes nos negócios das minas clandestinas, então o vitrino retirado desses locais estavam sendo levados para ele, precisava descobrir o que ele estava fazendo com aquele vitrino.
Estava distraído demais olhando os guardas de Fernic pelos olhos de ira, que não percebi os gritos vindos da mina de Prestin.
Voltei minha atenção para meu corpo rapidamente e me levantei num pulo para descobrir o que estava acontecendo, meus olhos não podiam acreditar no que viam. As sombras negras cobriram grande parte da mina como uma fumaça espessa e viva, o único ponto de luz vinha de uma arma brilhante no centro delas, uma figura encapuzada coberta por sombras se movia numa velocidade assustadora, a arma que ela carregava, uma espécie de foice, tão grande que por pouco não era maior do que a figura que a portava, ela girava a foice e não errava nenhum de seus alvos, partindo os capatazes e vigias como se estivesse cortando nada. Pouco depois que os gritos começaram, um estrondo fez os grandes portões de ferro, a única passagem para fora das muralhas da mina, explodirem e serem arremessados a mais de dez metros de distância. Centenas de escravos, agora livres, corriam pelas estradas, subiam pelos montes de neve e corriam entre as árvores, apreciando o gosto da liberdade, eles ignoraram a presença dos guardas que não faziam nada para ajudá-los, mas pelo menos não estavam atrapalhando.
Voltei a observar a maga, ela agora estava caminhando entre os escravos que corriam em direção as saídas, um dos capatazes no chão soltou a corrente do lobo que sem pensar duas vezes, saltou sobre a mulher, mas antes que eu sequer me movesse para ajudá-la, ela agarrou a corrente do lobo, o mantendo afastado do corpo dela, ele tentava soltar-se dela e entre ganidos e ataques ela apertou seu focinho e tocou sua cabeça com a palma da mão aberta. O que houve depois me deixou com os cabelos em pé, as sombras que penetraram no lobo o fizeram se voltar contra o capataz e devorá-lo vivo. Será que ela realmente não seria uma ameaça?
Antes de sair pelos portões da muralha, ela foi até a entrada da mina, verificou se não havia ninguém lá e moveu as mãos na direção dos túneis subterrâneos, logo após, caminhou lentamente até os portões, pouco depois a entrada da mina atrás dela brilhou e se moveu, erguendo uma grande quantidade de terra e neve para o alto com um som abafado de uma explosão tão poderosa que a terra inteira tremeu. Ouvi mais gritos e correria vindos do local que os guardas estavam, a essa altura os guardas de Catadh deviam estar tão apavorados que todos fugiram sem ao menos olhar para trás, porém os dois que estavam nas árvores continuavam lá. Eles estavam esperando que ela saísse da proteção das muralhas, iam desrespeitar a ordem e atirar nela.
Acenei na direção deles para alertá-los a não fazer isso, mas era tarde, assim que que ela despontou nos portões os dois atiraram, ela não iria conseguir desviar delas, estava distante demais para perceber as flechas e as deter, porém para minha surpresa as flechas se desintegraram quando tocaram o corpo dela. Vi um brilho prateado e um sorriso assustador por baixo do manto.
Ela se moveu rápido demais em direção aos guardas, eles morreriam se eu não chegasse a tempo de impedir aquela foice de vitrino, corri o mais rápido que pude, conseguindo alcançá-la no momento em que ela alcançou a base das árvores, com um rápido movimento tomei a foice de suas mãos e me preparei para o que viria a seguir, não consegui ver seu rosto, mas ela se virou em minha direção com as garras a mostra, ela estava coberta de sangue e pó de ufrige, uma erva que impedia qualquer mágico de detectar o cheiro de quem estivesse o usando, então não conseguia gravar seu cheiro para detectá-la caso escapasse.
Por um instante achei que ela fosse tentar tomar a foice de mim, mas ao invés disso, ela me atacou usando as garras afiadas e transparentes, saltei para trás sacando Blumarian, ela nem sequer recuou quando me viu sacar a espada, manteve a postura de ataque, não tinha outra opção a não ser feri-la para ao menos reduzir sua velocidade, girei a espada mirando seu ombro esquerdo, mas ela ergueu a mão e segurou o golpe parando-o com aquela mão, o som de metal se chocando contra metal deixou-me atordoado por um instante, olhei o local onde a espada havia acertado, sangue escorria da mão dela, mas não passava de um corte não muito profundo. Ela puxou a mão fazendo com que o corte abrisse ainda mais, pegou a foice e disparou pela floresta congelada, sumindo de vista entre os montes de neve. Fiquei olhando boquiaberto na direção que ela desapareceu, aquele golpe mesmo que não muito forte, devia ter arrancado sua mão.
– Idiotas! – Berrei enfurecido com os guardas. – Por que não fugiram com os outros? Agora ela escapou! Se não tivessem atirado eu não precisaria livrar essas suas carcaças imprestáveis! – Eles não desceram das árvores, agora com medo de mim.
Se eles não tivessem atrapalhado, ela teria corrido para a mina de Gither, mas ela foi para o lado oposto. Soltei a mente do corpo de Ira e assoviei para que ele me seguisse, por sorte a maga deixou uma trilha de respingos de sague, ela tinha menos de dois minutos de vantagem então eu ainda poderia alcançá-la, o paralisante na lâmina de Blumarian a faria reduzir a velocidade em breve. Segui a trilha, atento a qualquer ruído, para o caso dela pressentir que eu a seguiria e preparasse uma armadilha para mim. A trilha continuou por cerca de trezentos metros, foi onde os respingos de sangue cessaram, mas as pegadas ainda estavam lá na neve dura, ela não deve ter pensado em apagar os rastros, torcia para ser por causa do efeito do paralisante e não por ela estar aguardando que eu a seguisse.
Mudei de forma esperando o pior, claro, a forma de Malvarmo era de longe muito mais útil numa caçada do que a forma humana que preservara para evitar tumultos quando ia aos outros mundos, agora podia facilmente seguir o cheiro do sangue dos capatazes e da arma de vitrino que ela carregava e escutar qualquer coisa se aproximando a quilômetros de mim.
Ela pegou um caminho estreito e sinuoso que levava a uma caverna na montanha Ceo. Fiquei um bom tempo na entrada da caverna, esperando que ela pudesse sair a qualquer momento para me atacar, porém depois de mais de vinte minutos esperando ela não apareceu, talvez ela não achasse que ia segui-la e a essa altura o paralisante de Blumarian devia tê-la deixado pelo menos tonta.
Entrei silenciosamente na caverna de gelo e rochas que se estendiam para o fundo da montanha, roupas sujas de sangue estavam próximo à entrada, aos poucos pude ver uma luz como a de uma chama e um cheiro inebriante tomou o ambiente, além do cheiro feminino, um aroma inconfundível que tomou conta dos meus sentidos. Não é possível! Conhecia esse cheiro e o reconheceria de novo em qualquer lugar que o sentisse, ele estava misturado agora ao perfume adocicado de mel e hortelã. Andei rapidamente até aonde vinha a luz.
Uma jovem estava dentro de uma pequena piscina redonda feita por magia no gelo, vapor subia da piscina, mas a jovem não estava completamente imersa, seus braços estavam sobre o gelo do lado de fora da piscina e uma marca rosada como de um corte recentemente curado cobria a palma da mão. Ela respirava rapidamente e parecia não ter me notado ali ainda.
– Nikella? – Chamei, ela abriu os olhos espantada, marcas negras se acenderam em seu corpo e as sombras se moveram em volta dela, ela saiu da água enrolando-se numa toalha e pegou a foice ao seu lado. Seus movimentos agora estavam lentos e ela parecia tonta.
– Vamos! Não vai me atacar? – Ela rosnou dando um passo em falso para trás.
– Não se lembra de mim? – Perguntei calmamente recolhendo as garras e voltando a minha aparência mais humana. – Nos conhecemos no aniversário do príncipe Ericko! – Ergui as palmas das mãos, mostrando que não a enfrentaria. Ela me olhou de cima a baixo e depois de um suspiro voltou para dentro d’água, por fim parecendo aliviada e irritada ao mesmo tempo.
– Vá embora, você me atrapalhou lá! – Resmungou ela olhando de soslaio para Blumarian em minha bandoleira.
– Não me lembro de você ser uma maga negra quando te conheci, nem mesmo lembro de ser tão... assustadora. – Falei dando um passo mais para perto da piscina, ela me encarou com uma expressão irritada.
– Isso porque não era uma maga negra quando te vi aquele dia no castelo. – retrucou ela movendo o pescoço para o lado e estalando-o. – Já pedi para sair!
– Não posso ir, não sem você! – Falei sentando no chão perto da piscina e encarando-a.
– Não vou a lugar nenhum, graças a você não consegui ir até a outra mina. Então vou ficar aqui até destruí-la! – Retrucou com uma voz cada vez mais irritada.
– Não fui eu que atrapalhei você! Foram os guardas da cidade Catadh! Eu estava ali para te ajudar! – Respondi aproximando-me mais, respirando fundo para sentir mais aquele perfume.
– Não vi ajuda quando entrei na mina e comecei a limpeza! – Ela me encarou com os olhos grandes e verdes e estalou a língua. O rosto oval estava exatamente igual ao que vi a primeira vez em Ciartes, os lábios em formato de coração e levemente avermelhados estavam torcidos num bico de frustração. Ela então apoiou a cabeça no gelo atrás dela, arqueando o pescoço, a pele macia e brilhante a mostra, exposta demais, um movimento arriscado e perigoso para alguém diante de um predador.
– Não queria te atrapalhar... – falei perdendo o foco da conversa por um momento.
– Mas atrapalhou! – Ela se moveu, virando o corpo para o outro lado, a espuma não permitia que visse nada além dela. – Se continuar me olhando assim, juro que vou fazer sua cabeça rolar antes que você pense em tocar essa espada de baixa qualidade que você tem aí! – Arqueei as sobrancelhas e sorri, voltando meus olhos para encarar os seus.
– Naquele dia você parecia ser uma pessoa tão doce... – sabia que não era, só queria provocá-la, no dia que fui à Ciartes procurar por um dos receptores de vitrino contrabandeado e a vi na festa do príncipe, pude algo em seus olhos, não uma chama comum, algo frio como o gelo, capaz de queimar até mesmo uma alma.
– Pois é, mas não sou! – As marcas acenderam novamente e seus olhos ficaram prateados. Não é possível que ela seja uma maga negra e consiga controlar a transformação!
– O que aconteceu com você? – Perguntei reparando nas longas cicatrizes retas em seus braços e notando que novamente ela não os colocou na água.
– Nada que seja da sua conta! – Ela respirou fundo, saiu da água novamente e foi até um canto na caverna onde não podia mais vê-la, logo em seguida apareceu vestida com um longo vestido negro, um cinto com uma adaga de vitrino, ela tentava secar os cabelos com uma toalha. Sua roupa era quente, mas as mangas felpudas do casaco negro só iam até os cotovelos, deixando a maior parte dos braços no frio, havia algo muito diferente em seu cheiro, algo familiar, porém não consegui identificar de imediato. – Fale logo o que quer comigo que eu preciso ir até Gither, a essa altura eles devem ter pensado que fugi, então a guarda deve ter sido dispensada. – Disse rispidamente desistindo de secar os longos cabelos negros com a toalha e usando magia mesmo, eu esperava que a qualquer momento aquele poder a tomasse transformando-a num demônio sedento por almas e sangue.
– O rei Aliver gostaria de ter uma audiência com você e pediu que eu a levasse até ele. – Fui direto ao ponto já que ela não parecia disposta a uma conversa mais profunda. Nikella pegou a foice, limpou-a e a transformou num pingente, prendendo-a no colar em seu pescoço, um estranho colar com a réplica da Árvore do Fogo como pingente.
– Ele gostaria de ter uma audiência ou gostaria de usar meus poderes em seu favor? – Ela franziu o cenho e se apoiou na parede de pedra da caverna cruzando os braços sobre o peito.
– Não vou mentir e dizer que ele não tem interesse em seu poder, mas só pelo fato de ter mandado destruir as minas de vitrino ele merece a chance de ser ouvido, não acha? – Ela estreitou os olhos e bufou, ainda estava sob o efeito do paralisante, mas talvez nem tenha percebido.
– Não quero conversa com nenhum rei, só estou aqui para acabar com as minas e desaparecer.
– Vai voltar para Ciartes? – Um traço de dor apareceu em seus olhos quando ela desviou o olhar.
– Não, só quero achar um bom lugar para treinar, não acabei a ACV, ainda me falta o V8 e V9.
– Se vier comigo, pode receber treinamento dos Malvarmos, sabe que é o mais forte e mortal exército dos doze mundos, não sabe? – Curiosidade lampejou naqueles olhos verdes quando ela voltou a me encarar.
– Você treinou com esse exército? – Sua pergunta quase me fez rir.
– Podemos dizer que sim.
– Então vai ter que me provar que é bom de verdade, assim eu posso pensar um pouco mais sobre o assunto. – Ela sorriu.
– Não acho que é boa ideia agora, iria ganhar antes mesmo que você pudesse pegar sua arma. – Apontei a foice com o queixo. – O paralisante de Blumarian ainda está em seu sistema, não fez um grande efeito em você por causa de seus poderes. Na verdade eu a venceria mesmo se ela estivesse totalmente bem, a não ser que ela usasse os dois poderes juntos, aí era bem provável que destruísse Vegahn sem fazer esforço, esse pensamento fez meu estômago revirar-se. Medo.
– Você me envenenou? – Suas narinas dilataram e a mão dela pousou sobre uma adaga do cinto sobre o quadril.
– Não sabia que era você a maga negra terrível e assustadora que todos estavam com medo, se soubesse teria apenas ido ao seu encontro e conversado. – Retruquei.
– Treinado por um exército que usa truques sujos para capturar garotinhas... não sei se estou interessada!
– Já vi caçadores da ACV usando até dardos envenenados para caçar simples lobos selvagens, pelo menos eu estava caçando uma maga negra que destruiu duas minas de vitrino em menos de dez minutos! – Cruzei os braços. Ela suspirou e tirou a mão da arma, achei que ela fosse começar a discutir quando a vi abrir e fechar a boca pelo menos duas vezes, então ela escorregou na parede da caverna e sentou-se no chão, prendendo as pernas com os braços forçando a respiração. Tirei o frasco com o antídoto de um bolso do alforje e estendi para ela.
– O que é?
– O antídoto! Nossa, você está mal mesmo! – Ri quando ela torceu a boca num bico e tomou o frasco da minha mão. – Não vai conseguir atacar Gither, é melhor esperar até amanhã! – Lembrei dos guardas com uniformes de Fernic, se eles estavam lá é porque sabiam dela e mesmo se ela estivesse bem, seria perigoso enfrentá-los, Ausiet era um Salamandra muito perigoso, fora um dos antigos mestres de poções e venenos da ACV, ele podia ter truques piores do que um simples paralisante de fluoritra que usava em Blumarian.
– A cada minuto que passa o risco para aquelas pessoas aumenta, além do mais, não sabemos o que eles podem fazer, o tremor da explosão da mina foi sentido a quilômetros, eles podem fazer algo com os escravos em represália! – Ela parecia determinada a atacar Gither e duvido que algo que eu dissesse a impediria.
– Vai correr o risco de ser capturada? Eles já sabem de você, é provável que fiquem a noite inteira em alerta esperando que apareça e estarão exaustos ao amanhecer! Se esperar até o sol nascer vai ter maiores chances do que tem agora! – Expliquei numa última tentativa de fazê-la me ouvir. Nikella respirou fundo e apoiou a cabeça nos joelhos.
– Acho que uma noite de sono não vai fazer mal! – Ela tomou o antídoto, estendi a mão para ajudá-la a se levantar, mas ela deu um pulo e franziu o cenho para mim.
– Você não é de muitos amigos, estou certo?
– Prefiro manter distância de tudo que pode ser usado contra mim, algumas pessoas mais do que outras... – ela deixou a voz morrer e caminhou até a entrada da caverna, a segui mantendo uma certa distância, mas esperava que ela caísse a qualquer momento, ela nem se deu ao trabalho de verificar se era mesmo um antídoto, podia ser qualquer coisa. Será que o príncipe não havia dito a ela quem eu era?
Nikella parou na entrada da caverna e cruzou os braços, a neve havia começado a cair, cobrindo os rastros da neve, apagando os vestígios da batalha na mina sob a fina camada de gelo que teria coberto tudo ao amanhecer.
– Vamos até Catadh, tem uma hospedaria lá que é bastante segura para uma fugitiva! – Falei brincando, mas ela não riu, nem sequer esboçou alguma reação, parecia perdida em pensamentos segurando o pingente da árvore entre os dedos e o girando.
– Tudo bem. – Respondeu depois de alguns segundos em silêncio, deixando os flocos de neve caírem sobre o rosto e enfeitarem os cabelos negros. Ira apareceu no momento em que ia começar a descer a trilha, ele vinha em sua forma de batalha, quase do tamanho de um urso glacial, mas ela não parecia assustada, simplesmente afagou as orelhas dele, o reconheceu de Ciartes.
– Consegue montar? – Perguntei montando sobre Ira e estendendo a mão para ela, que dessa vez não rejeitou ajuda. Ela montou atrás de mim e passou os braços em volta de meu tronco, segurando-se firme.
– Catadh. – Sussurrei para Ira, que imediatamente começou a correr montanha abaixo. Sentia as unhas pressionadas contra mim, o antídoto que havia lhe dado podia causar sonolência, então fiz com que Ira fosse mais rápido para não correr o risco de ela adormecer no meio do caminho. As nuvens estavam se dissipando aos poucos, em breve a lua apareceria no céu o que era um bom sinal, assim o dia seguinte não teria novas camadas grossas de gelo para atrapalhar a ida à mina.
Ao chegarmos no pé da montanha, quando entramos na estrada principal e viramos em direção a Catadh, um vulto apareceu na estrada bloqueando o caminho, os olhos vermelhos da criatura estavam acesos e fixos em nós, seu rosto escondido por baixo de um capuz negro não permitia ver quem era, mas pelo corpo devia ser uma fêmea. Nikella apertou ainda mais as mãos em mim e respirou fundo, ela desceu de Ira num pulo e cambaleou para o lado.
– É uma vampira, posso lidar facilmente com ela! – Falei desmontando também, Ira estava preparado para atacar e a vampira havia desviado o olhar para Nikella.
– Ela está me seguindo tem mais de um mês... – ela não pegou a foice como achei que fosse fazer, estava olhando a criatura de cima a baixo. – Quem te mandou atrás de mim? – Perguntou ela para a vampira que apenas riu, mostrando as presas afiadas para ela, não parecia que Nikella estava com medo ou preocupada, afinal era uma caçadora.
– Alguém que está muito incomodado com sua intromissão nas minas. – A vampira sacou uma espada longa e afiada coberta por uma fina camada de um limo esverdeado.
– Aquilo é veneno de verdade... – falei para Nikella, ela não parecia bem, sua respiração parecia difícil, o ar condensava-se ao redor dela de forma incomum e tinha um olhar assustador estampado no belo rosto.
– Então você veio me matar porque estou atrapalhando os negócios de alguém? – Nikella nem piscava ao encarar a vampira.
– Se prefere pensar dessa forma, eu diria que estou aqui para acabar com um pequeno problema que está impedindo que eu receba meu salário! – Ela girou a espada na mão, com seu movimento o manto abriu e o emblema de Hobner bordado em azul celeste no peito dela me deu a certeza de quem era.
– Priena! Ela é uma mercenária contratada do governante de Paliath. – Falei pousando a mão sobre o punho de Blumarian, era uma vampira perigosa, traiçoeira e muito forte, talvez tão velha quando eu, mas duvidava que conseguiria me vencer.
– Então você também está ganhando com os negócios sujos dos gerentes das minas? – Perguntou Nikella encarando a vampira que respondeu com um sorriso sarcástico, ela se moveu rapidamente nas longas sobras das árvores que cobriam a estrada e veio em nossa direção, saquei a arma rapidamente para atacá-la também, mas ela parou no ar a alguns centímetros de nós com uma expressão aterrorizada no rosto. Olhei para baixo e vi o que havia a paralisado, um rastro branco de gelo brilhante havia a alcançado e acertado seus pés. A vampira não teve tempo nem mesmo de respirar uma última vez antes de desmanchar-se em pequenos cristais congelados. Nikella estava parada ao meu lado com apenas um dedo erguido sobre os lábios azulados. Seus olhos estavam prateados assim como os cabelos, presos atrás de orelhas pontudas e longas, a pele havia se tornado branca como o gelo e as presas pontiagudas apareciam por trás dos lábios curvados num pequeno sorriso sarcástico.
– Yinemí! – Quase soltei a arma no chão quando percebi do que se tratava aquele poder. – É por isso que você pode controlar a transformação de maga negra e também controlar as sombras! – Dei um passo para trás, não é possível ela ter aquele poder! Não tinha como um humano o ter, aquele foi o poder que Ela não passou para ninguém! A aparência dela voltou ao normal pouco antes de cair de joelhos, a amparei, colocando-a sobre Ira e segui com ela em direção a cidade.
Segui com Nikella direto para o castelo verde, pedi um quarto para a jovem metamorfa baixinha e ruiva na recepção, que olhava desconfiada para a jovem em meus braços, provavelmente pensando o pior de mim com uma garota desacordada no colo.
– Estou com um pouco de pressa, se puder me entregar logo a chave. – Resmunguei tomando a chave da mão dela e subindo as escadas, sentindo ainda o olhar da garota sobre mim. Ira havia mudado de forma e saltou em meu ombro antes que passasse pela porta do quarto. Coloquei Nikella em cima da cama mais próxima à porta e a deixei ali dormindo, sentei na cadeira do outro lado do quarto para observar e esperar que ela acordasse, tinha muitas perguntas para ela, perguntas que precisavam de respostas imediatamente, talvez a primeira fosse: Por que você tem o poder da Alma do gelo, se a única pessoa que o possuía morreu e não o quis passar para frente? Ela não ia acordar tão cedo.
Estava inquieto e faminto demais para dormir, deixei Ira tomando conta dela e desci até o restaurante e pedi algo para comer, sentei perto da janela e fiquei observando a neve cair tentando colocar todos os pensamentos em ordem.
Quando estive em Ciartes, tinha certeza que ela não possuía aquele poder, não podia ter, pois a energia que ela tinha agora era muito maior, o cheiro dela havia mudado também, havia entrado escondido em seu quarto procurando pelas vibrações do vitrino que senti vindo de lá e acabei passado a noite em seu quarto, estava no corpo de Ira naquela vez. O que será que ela pensaria de mim se descobrisse que era eu no corpo do gato que dormiu enrolado em sua cama naquele dia? Que ela deu banho, pensando ser apenas um gatinho inocente e sem lar e que a viu sem nenhuma peça de roupa sobre o corpo. Sorri maliciosamente com esse pensamento, porém o sorriso logo desapareceu quando lembrei do príncipe que a protegia do glacio aquele dia, o que a levou a tentar matar o príncipe? Naquela noite da festa eles pareciam muito próximos também, o jeito que ele havia se aproximado quando me viu cumprimentando-a, o ciúme gravado em sua expressão que era sempre tão passiva, tão indiferente. Ela era uma guardiã, era esse motivo pelo qual ela não deveria feri-lo, motivo pelo qual deveria estar até agora protegendo os habitantes de Ciartes junto com Kuran e não devia estar em Vegahn. Depois que terminei de comer pedi à garçonete que levasse uma tigela de ensopado de carne até o quarto mais tarde, tentaria acordar Nikella e perguntaria logo o que havia acontecido em Ciartes para ela estar aqui agora e como ela havia recebido o poder Yinemí.
Entrei no quarto sem fazer barulho, Ira estava deitado sobre a barriga de Nikella, enrolado como uma almofada cochilando tranquilamente, se ela não havia acordado com ele subindo sobre ela, não iria acordar com o que eu ia fazer a seguir. Me aproximei da cama e sentei perto dela, segurei seu rosto e encostei em sua testa, sabia que seria difícil de arrancar a verdade dela, então talvez essa fosse a única forma de descobrir o que realmente tinha acontecido.
Minha mente correu por suas lembranças até sua primeira lembrança, coisas que ela não poderia acessar mais, que não se lembraria mais. “No colo de uma mulher, um colo quente e protetor quando abria os olhos pela primeira vez, olhos aguçados e atentos demais para um bebê que acabara de nascer. Olhava um floco brilhante e prateado entrar por uma janela aberta e cair sobre uma minúscula mão esquerda ainda fechada. “Oi Nikella” a voz da mulher me chamou atenção, um rosto tão bonito distorcido pelas dores do parto, suado, brilhando, mas sorridente. Ela serrou os dentes e ergueu-me, entregando-me a outra mulher de roupas verde-claras que me embrulhou numa manta e me carregou para o outro lado da sala “A outra vem aí!” Disse mais uma voz no cômodo. Ouvi alguém perguntar “Está nevando?” Antes da imagem se distorcer e desaparecer, eram apenas memórias de um bebê. Fui mais para frente nas memórias e vi uma mulher desconhecida preparando almoço numa cozinha com um grande balcão de madeira, “ela tinha um sorriso gentil e um olhar entristecido, era uma metamorfa, um menino entrou correndo pela porta da frente e sentou-se ao lado de Nikella, ao meu lado, ansioso pelo almoço, o cheiro da comida ainda estava gravado ali, aromas de temperos suaves se misturavam ao cheiro de carne assada enquanto duas crianças famintas esperavam ansiosas o almoço ficar pronto. ”
Mais para frente em outra memória, “uma Sereiana apareceu com um pedaço de um manto queimado e uma adaga de aço trabalhada com prata e osso, a Sereiana me entregou aqueles pertences e me contou como meus pais haviam acabado de morrer, ela sentou-se no sofá da casa e me puxou para os braços dela. “Quem fez isso?” Perguntei, senti seu corpo enrijecer “O príncipe Ericko” respondeu ela num suspiro cansado. Senti o ódio incontrolável fervilhar dentro de um corpo pequeno e frágil demais para tais sentimentos horríveis, um desejo de vingança, uma força como uma explosão surgindo lá do fundo.” Novamente a imagem mudou, “de pé em uma das filas entre centenas de alunos da academia de caçadores Venox, peguei a mão de uma jovem salamandra que estava prestes a me fritar, ela se acalmou com meu toque, ignorei a ardência na mão queimada e sorri para ela com todas as forças que consegui reunir, mas ainda assim eu tinha tanta raiva deles, olhei para o lado que a jovem salamandra acenava” aquele e era o príncipe Kuran! Corri mais para frente as memórias, parando em frente à uma muralha, “uma grande muralha cinzenta cercando uma das cidades de humanos, os gritos de uma garota chegavam até mim e fizeram meu estômago embrulhar, ouvi o guarda zombando, debochando quando o mandei soltá-la, ele disse que eu seria a próxima se não o deixasse em paz, até que me irritei com aquilo e o ataquei, quebrando seu pescoço com as mãos, a menina se agarrou a mim agradecendo várias vezes repetidamente, molhando minhas roupas com as lágrimas quentes que escorriam, mas um outro guarda me arrastou até o cetro da cidade e por súplica de meu irmão e da menina que havia acabado de salvar, ele não me matou, mas mandou que me dessem vinte chicotadas, fui segurada de braços abertos no chão por mais dois guardas, sentia a pele rasgando e a raiva fervendo dentro de mim novamente, mas me mantive sem chorar, apenas encarando o mandante da sentença que sorria com satisfação ao som de cada uma das chicotadas, fiquei desejando arrancar aqueles dentes um por um com um alicate.” Corri as memórias muito mais para frente e aquela memória me deu arrepios: “Havia acabado de fugir do conselho dos Hostes para que eles não descobrissem que ouvi a conversa escondida, corri até em casa, queria conversar com meu irmão, queria chorar e gritar e xingar, eles haviam mentido para nós! Mas ao chegar em casa, Merian e os lixos que ele chamava de amigos estavam bêbados e tentaram se aproximar de mim, os espantei atirando com uma besta contra eles, mas Merian sabia que eu não o feriria, então ele me desarmou e me prendeu ao chão, disse que me odiava, então forçou o corpo contra o meu, lutei, o apaguei e marquei seu rosto antes de ir embora, um traidor, marcado como um traidor.” Teria ido até Ciartes naquela hora e arrancado a cabeça daquele merda, mas precisava descobrir mais antes que ela despertasse, depois me acertaria com aquele moleque.
Corri por suas memórias até o dia em que fui até seu quarto com o corpo de Ira, não sabia que coisas piores haviam naquelas memórias e preferia não as ver para não ficar ainda mais furioso. “Estava sentada quando Ira apareceu assustando-me, deslizei a mão sobre a perna macia puxando o vestido para cima, onde havia uma adaga presa no pequeno cinto. Ao ver que era apenas o gato, o peguei no colo, pouco depois vi um homem se aproximando” era eu, não podia negar que me ver pelos olhos de outra pessoa era algo estranho, mas a inquietação e a pulsação acelerada de Nikella quando a cumprimentei, enquanto ela me analisava, o calor que surgiu em seu peito quando toquei em sua mão para cumprimentá-la, aquilo me deixou no mínimo satisfeito. “Depois que sumi na passagem do portal, Kuran se aproximou e colocou um colar em meu pescoço, o toque de suas mãos sobre minha pele fez meu corpo tremer.” Essas sensações eram desagradáveis demais e particulares demais para que eu as tivesse, então passei mais para frente. “Na arena da ACV, cansada, com uma arma de metal barato e de baixa qualidade e uma grossa algema de prata impedindo que usasse meus poderes para derrotar aquele guerreiro de olhos negros à minha frente, o espartilho de proteção apertado demais restringindo meus movimentos e tirando o fôlego, acabei desistindo dele, o cortei com a espada e fui para cima do adversário, que havia ficado me observando como um idiota babão perdendo a concentração da luta” “Sei o que tirou sua atenção, amigo!” Pensei enquanto vasculhava mais para frente e escutava algo perturbador, Sirius, o sol guardião que assumiu o lugar de Antares quando ela se foi, ele contou sobre Higarath, sobre as sombras e sobre os guardiões. “Não estava nervosa pelo que ele estava contando, estava angustiada com a frieza do príncipe que não olhava para mim.” Revirei os olhos mentalmente, passando mais para frente e vendo a mansão escondida na Árvore do Fogo, a quantidade de conhecimento antigo que existia ali, mas não foi pelos livros que ela foi ali. “Estava nervosa demais e ao mesmo tempo calma, com um furacão dentro de mim, uma tempestade que não podia ser contida, não queria esperar para ele tomar alguma iniciativa, simplesmente o atirei em cima da cama e subi em seu colo, beijando-o.” Essa memória eu preferia não ter visto, mas aquela memória me fez perceber que ela não era nada do que eu imaginava que fosse, a menina com aparência doce e gentil que vira sentada com Ira no colo, ela não tinha nada de tímida ou meiga, talvez Ayrana tenha escolhido a pessoa errada para dar a alma do gelo, talvez ela devesse ter ficado com a alma das chamas negras ou a Alma das águas.
A próxima memória fez até meus nervos ferverem, vi através dos olhos dela, alguém parou seu coração para que ela morresse por um momento. Sentia o que ela estava sentindo ao despertar, a dor tão intensa que a teria feito desmaiar se não estivesse sendo mantida acordada por mágica, ossos de vitrino sendo colocados em seus braços, para mantê-la livre do bloqueio da prata e depois a cabeça de seu amigo nas mãos daquele monstro, o despertar dentro do quarto na academia, a prisão. O coração partido e o ódio quando ouviu da boca dele “Eu vou te fazer queimar de verdade” será que nunca passou pela cabeça daquele pirralho mimado o que aquela frase teria feito com ela, já que foi assim que seus pais morreram pelas mãos do irmão dele? Olhei atentamente as memórias depois disso, a mestra lhe salvando mostrando o verdadeiro culpado, a conversa com o novo rei, senti o mago tomar a mente dela e tentar matar o príncipe e a princesa de Amantia, vi sua raiva na hora que se tornou uma maga negra, quando o poder fluiu por seu corpo sem limites e logo depois um misto de serenidade e ódio, os dois equilibravam-se, a mantinham sã, com os poderes sob total controle, a magia negra impendido que Yinemí a consumisse, o Yinemí controlava a magia negra que agora circulava em seu corpo e o vitrino a tornara ainda mais forte, a vi matar o próprio irmão, aquele idiota que eu gostaria de ter desmanchado em pedaços bem pequenos e se livrar daquele mago imundo que ousou controlar sua mente. Porém o que veio depois fez minha pele se arrepiar, Higarath apareceu, tomando a energia que restara de Fairin e atacando Nike, ela foi salva pelo novo rei, passou seus poderes para a noiva dele. “Um lugar tão frio que faça esses ossos não doerem até que eu me acostume, até que eles se curem!” Meu rosto veio à mente dela e as palavras de Kuran dizendo “É um assassino do rei Cahadris de Vegahn” então é pra Vegahn que eu devo ir! Adeus, Ciartes!
3
A alma do gelo
Estava parado ainda tocando em seu rosto, tentando absorver tudo que havia visto, quando senti uma lâmina em meu pescoço e notei que Nikella estava me encarando com os olhos prateados e não estava nada contente.
–Eu... odeio... quando... fuçam minha mente! – Ela rosnou levantando-se com a adaga ainda em meu pescoço.
– Calma Nikella... – Toquei a lâmina da adaga com o dedo e tentei empurrá-la para longe de mim, mas ela não soltou nem cedeu, continuava com a adaga em meu pescoço.
– Vou te matar e você vai aprender lá no outro mundo que não se deve bisbilhotar o que não é da sua conta! – Ela bufou, aproveitou que estava distraído com a adaga e me derrubou no chão puxando minha perna e ergueu a adaga, pronta para me atacar.
– Não vai conseguir me matar com isso! – Cruzei os braços sobre o peito e fechei os olhos, mostrando que não me incomodava com o que ela fizesse. Ela estava ajoelhada sobre mim, conseguia escutar seu coração tão acelerado que poderia ter um ataque a qualquer momento.
– Por que acha isso?
– Não acho, tenho certeza! Vitrino não fere os Malvarmos, se você não sabe! – Expliquei, como não obtive resposta ou alguma reação, abri os olhos, ela ainda me encarava e parecia ainda mais irritada.
– Cortei vários de vocês desde que cheguei aqui usando vitrino, se for mentir, minta com algo mais convincente! – Retrucou ela girando a adaga na mão, lhe dei um sorriso e então agarrei suas mãos tão rápido que ela não entendeu o que aconteceu, ergui os joelhos do chão derrubando-a sobre mim, girei nossos corpos para ficar por cima dela e a segurei contra o chão apertando seu pulso tão forte que acabei fazendo-a soltar a adaga.
– Você não se recuperou ainda, o antídoto ainda está fazendo efeito! Então fique quietinha aí! – Falei ficando de pé e puxando-a para cima, ela não tirava os olhos dos meus. – Estava apenas vendo como você conseguiu a alma do gelo, nada mais que isso! – Menti, mas funcionou, ela pareceu menos tensa e sentou-se na cama.
– Tô com fome! – Ela franziu o cenho.
– Pedi para trazerem comida para você, deve chegar a qualquer momento!
– Descobriu o que queria? – Perguntou ela, notei um tom sarcástico em sua voz.
– Pode-se dizer que sim.
– O que era?
– Queria saber como você controla a alma do gelo, já que minha mãe nunca passou esse poder para nenhum de seus filhos, ela morreu com ele. – Respondi.
– Do que está falando? – Ela semicerrou os olhos e cruzou os braços. Sentei ao seu lado e pressionei a palma de minha mão contra a dela, então, em seus braços apareceram marcas de flocos de neve. Ela arqueou a sobrancelha como se estivesse perguntando “E daí? ”
– A Alma do gelo não é um poder comum que qualquer um pode possuir ou controlar. Minha mãe tinha seis poderes supremos, além da magia de maga, as seis Almas como chamávamos: a Alma das chamas negras, a Alma da voz do vento, a Alma do espírito da água, a Alma da força da terra, a Alma da energia dos raios e a Alma do gelo eterno. Quando ela estava prestes a morrer, dividiu seus poderes com os filhos, ela deu as Chamas negras para Grisela, a voz do vento para Shurin, o espírito da água para Antares, A voz do vento para Tanarus e a energia dos raios para mim...
– Espera ai! Como assim ela deu a energia dos raios para você, não, você não pode ser o filho de Ayrana, não tem como ser o mesmo Caalin você teria... – ela parou, podia vê-la contando o tempo e seu rosto ficou pálido. – Você teria uns dezenove mil anos! – Sorri para ela.
– Tenho vinte mil e um pouquinho, ela foi à terra e conheceu Higarath para ficar com ela quase dez mil anos depois de criar os mundos.
– Mas pelo que estudei em Ciartes, muitas das criaturas amaldiçoadas que ouvi Sirius dizer que Higarath criou já existiam na terra muito antes da criação dos mundos!
– Ah, sim, isso é um erro por causa de como a história foi passada para frente! Quase tudo sobre a história que Sirius te contou está errada. – Ela franziu o cenho, percebendo que eu havia visto mais do que tinha dito, rápida demais para perceber as coisas, mesmo assim continuei: – O maior erro dele foi falar que ela criou as criaturas dos outros mundos, todas essas criaturas existiam na terra.
– Pode me contar a história verdadeira então? – Pediu ela piscando os olhos para mim. Respirei fundo então comecei a contar:
– Ela não era um espírito, minha mãe me contou essa história mais de uma vez. Ela nasceu numa vila humana na terra durante a última era glacial. Ela percebeu ser diferente dos outros humanos conforme o tempo passava e ela não envelhecia, como os outros humanos de sua vila, quando perceberam isso, a expulsaram da vila, quando ela se recusou a partir eles a feriram e a deixaram para morrer próxima a uma floresta congelada. Porém ela foi encontrada por Elfos e eles a curaram e a levaram para viver nas florestas élficas que eram protegidas por magia e lá ela descobriu seus poderes e sua verdadeira natureza, ela era hibrida. Haalin, o elfo que a resgatou a adotou como filha e a treinou, treinou seus poderes e habilidades físicas, transformando-a numa guerreira. Seu poder era imenso e mesmo os magos élficos não eram páreo para ela, mas eles não a temiam pois foi criada por eles e seu coração era puro, não havia sido corrompido pela maldade humana.
“Depois de muitos anos, ela começou a viajar pela terra congelada para tentar encontrar mais híbridos como ela, porém encontrou outras criaturas mágicas que vivam escondidas, ameaçadas pelos humanos, eles a avisaram para esconder seus poderes pois se os humanos a pegassem, eles a matariam. – Caalin riu. – Mesmo sem habilidades mágicas, os humanos representavam uma grande ameaça para aquelas “criaturas”.
– Continue! – Pediu quando eu parei, seus olhos brilhavam com a curiosidade.
– Ela ficou com pena vendo os companheiros ameaçados, então reuniu os líderes das raças que encontrou pela terra e lhes perguntou: “Em que tipo de mundo, vocês gostariam de viver?” Ela deu a palavra a cada um deles, e eles contaram como seriam os mundos ideais para os de sua raça. Enquanto eles falavam, ela juntava as informações e visualizava como seriam esses mundos.
Quando todos terminaram de falar, ela partiu, foi até um ponto no mundo onde a magia era mais forte e clamou por Gaia, pedindo a essência da criação de um mundo para que pudesse salvar aquelas criaturas, Gaia, que também não queria ver seus filhos se destruindo, deu a Ayrana as almas dos elementos para que criasse os mundos de acordo com a vontade de cada uma das criaturas dali.
“Ayrana partiu da terra e começou a criar os mundos, cada um com as características pedidas pelos líderes das raças, mas o primeiro que criou foi Amantia, o mundo para abrigar sua família, os Elfos. Depois de ter criado todos eles, ela voltou até a terra e usou seus poderes para abrir imensos portais que levaram os povos de cada raça para seus respectivos mundos. Mas antes de deixar a terra, ela voltou a vila humana onde nasceu para ver o que aquele lugar tinha se tornado com o passar dos anos.
“O frio havia ficado tão intenso nos últimos tempos que congelou tudo, todas as pessoas das vilas haviam morrido congeladas, mas em uma pequena toca escavada no gelo ela encontrou um casal de crianças ainda vivas e usou a alma do gelo para que elas se transformassem em humanos fortes, predadores e principalmente que resistissem ao frio. Porém eles não tinham mais suas famílias e a transformação que Ayrana lhes deu os impedia de viver em locais quentes ou junto com outros humanos caso os encontrassem, então ela os trouxe para Vegahn e eles viveram com os Yetis e Ymir’s. Assim os primeiros Malvarmos surgiram, as bestas com coração de gelo.
– O que aconteceu com Ayrana depois disso?
– Ela foi viver em Amantia, criou um grande reino lá e um castelo feito de cristal para mostrar a pureza dos corações élficos, ela tornou seu pai adotivo, Haalin Ascardian, um rei, lhe deu a coroa de Amantia em agradecimento a tudo que fez por ela e assim eles viveram por muitos milênios.
– E ela só viveu em Amantia? – Perguntou Nikella que estava debruçada sobre os joelhos ouvindo-me falar.
– Ela chegou a viver em Ciartes por um tempo, lá não havia nenhuma raça humanoide, então da mesma forma que criou os Malvarmos, ela criou os Igniuns para que vivessem naquele mundo sem se ferir com o calor escaldante, por terem sido criados pela alma das chamas negras eles nasceram com habilidade de se tornar em brasas ou o próprio fogo.
“Com o passar do tempo Ayrana se sentiu só, vendo todas as raças procriarem e prosperarem, ela também queria um companheiro mas ela não se interessava pelos Elfos, ela quis um humano. Haviam se passado mais de oito mil anos na terra quando ela voltou, a era do gelo havia acabado e as coisas haviam mudado muito.
“Ela encontrou Higarath em uma pequena vila que abrigava soldados de um rei e lhe ofereceu metade de seus poderes caso ele aceitasse ir viver com ela em outro mundo e a ajudasse a manter a paz e a ordem nos mundos que ela havia criado. Movido pela ganância ele aceitou, mas sempre voltava a terra dizendo sentir falta daquele mundo. Quando ela descobriu o que ele realmente fazia lá, fez o tempo em os mundos correr de forma diferente para que isso o atrapalhasse a atravessar os portais para chegar à terra, mas ele conseguiu facilmente uma outra maneira, abrindo portais instáveis, minha mãe ficou decepcionada, ela havia dado tudo a ele e ele a traiu, então ela pediu os poderes de volta. Foi aí que ele começou a levar os humanos para os outros mundos para corromper e destruir os mágicos que habitavam neles... bom, o resto você já sabe.
– Então até o momento que ela descobriu a traição, o tempo era igual em todos os mundos?
– Sim... Mas aparentemente Fairin corrigiu o tempo nos mundos e os colocou iguais novamente.
– O que são Igniuns? Nunca ouvi falar! – Ela parecia curiosa, esticou o corpo estalando as juntas e ficou encarando-me com os olhos brilhando.
– Como não sabe, você era namorada de um! – Falei mostrando-lhe o colar em seu pescoço.
– Kuran era um ignium? – Ela fitou o colar.
– Todos os Salamandras são Igniuns, espíritos do fogo! São chamados de Salamandras por causa da cor avermelhada de suas peles.
– Mas e a primeira salamandra?
– É um conto bonitinho e romântico criado por minha irmã Grisela quando ela foi viver em Ciartes, ela usou seu poder das chamas negras para se tornar uma ignium e viver entre eles. Conhece a Árvore do Fogo? Era a casa dela! – Claro que a conhecia, Ele a levou lá!
– Entendo... Então Sheriah...
– Eram parentes distantes, descendentes na verdade, de minha irmã, a família real de Ciartes também tem sangue Arbarus. – Ela engoliu em seco e ficou girando o colar entre os dedos.
– Você não era guardiã descendente de Ciartes, era a protetora do Guardião de lá! – lágrimas brotaram em seus olhos. – Kuran é o portador das chamas negras.
– Era... – ela apertou o colar entre os dedos e engoliu o choro, enxugando as lágrimas antes que elas rolassem, não sabia se devia lhe contar a verdade ou se devia mantê-la para mim por mais um tempo. – Se eles são imortais, como ele recebeu as chamas como herança?
– Acho que ela cansou de viver, a vida eterna às vezes não é lá o que a gente imagina...
– Por que todos me chamavam de guardiã então? – Ela me interrompeu.
– Pois você é da família dos guardiões e tem uma parcela do poder de Ayrana em você também, além da Alma do gelo. Kuran com certeza não sabia que você era uma guardiã portadora de uma das Almas quando escolheu você como protetora dele. Um é o guardião portador das almas de Ayrana e o outro é seu protetor, quando se escolhe um protetor, você o torna um guardião também! Os guardiões estão sempre em pares. – Vi a confusão em seus olhos, mas ela assentiu como se tivesse entendido.
– Então Siorin... Ele é protetor de Nyumun porque ela o escolheu, certo? Mas não é um Arbarus?
– Sim, é um protetor e guardião, mas ele não é Arbarus! – Tive que rir da confusão mental que estava causando nela. – É provável que Nyumun tenha o poder da voz do vento, já que ela é descendente de Shurin assim como você.
– Então existem cinco tipos de guardiões, os Arbarus, que são os guardiões descendentes de Ayrana, os guardiões que tem essas Almas Elementais, os protetores escolhidos que se tornam guardiões, os guardiões de juramento e salvos pelo sangue, é isso?
– Sim, mas os de juramento e os de sangue criam um laço especial, diferente dos outros, você se torna o guardião da pessoa para quem fez o juramento, você pode sentir quando ela precisar de você, em casos raríssimos, podem compartilhar a mente, memórias e sentimentos. – ela franziu o cenho. – Tornar-se o guardião de juramento de alguém é quase uma prova de confiança e lealdade.
– Então volte ao começo e me explique, por que eu tenho essa alma do gelo? – Perguntou ela ficando com um olhar triste novamente, provavelmente pela lembrança que Kuran havia feito o juramento a ela.
– Acho que minha mãe lhe deu esse poder quando você nasceu, pelo que vi de suas memórias, no dia em que nevou em Ciartes, na hora em que você nasceu, um portal foi aberto de Mogyin para lá e ela lhe mandou esse poder, mas não faço ideia do motivo, pretendo perguntar a ela quando for possível!
– Você fala com ela? – Ela estava espantada.
– Sim, vou a Mogyin as vezes para vê-la.
– Achei que só os mortos pudessem entrar lá! – Disse ela pensativa.
– Animais também podem entrar e sair de lá tranquilamente.
– Ah, é? Que tipo de animal você é? – Ela riu debochando de mim, franzi o cenho e coloquei Ira em seu colo.
– Um gato, fofo e felpudo de pelo prateado que ganhou banho de uma menina bonita quando invadiu o quarto dela, que dormiu por duas vezes no colo e nas costas dela... – Não pude resistir ao impulso de lhe tirar aquele sorriso debochado do rosto, ela olhou para Ira em seu colo e depois me encarou, vi um brilho mortal em seus olhos quando ela, depois de alguns minutos de silêncio, entendeu.
– Eu vou matar você! Bem devagar! – Grunhiu ela estalando os dedos, as garras pareciam bem mais afiadas e assustadoras quando ela mudou de forma, ficando igual o momento que matou a vampira na estrada. Por sorte, muita sorte minha ela estar ainda sob o efeito do antídoto, pois ela teria me ferido com aquele ataque se tivesse acertado, ela cravou as garras no chão do quarto, que congelou e o despedaçou, abrindo um buraco no chão que engoliu os móveis.
– Não fique tão zangada, não tem nada aí que eu não tenha visto milhares de vezes! – Brinquei desviando de outro ataque, mas ela nem sequer me ouviu, parecia furiosa, acho que não foi boa ideia contar isso a ela. Antes que ela destruísse a hospedaria inteira, resolvi mostrar a ela seu poder gêmeo e usei a energia dos raios, prendendo-a numa gaiola de energia poderosa, capaz de conter até mesmo Higarath por um século. Ela agarrou as grades, ignorando o choque violento que devia estar recebendo, fiquei encarando-a, ela não parecia estar se ferindo com aquilo, parecia estar absorvendo a energia. Concertei rapidamente o quarto antes que alguém lá embaixo visse. Quando olhei novamente para ela, as marcas brancas dos flocos estavam mais fortes e suas mãos começaram a ficar azuladas, ela estava usando uma quantidade absurda de energia para tentar destruir a grade, a desfiz imediatamente e segurei Nikella, apertando-a contra mim com força, prendendo seus braços para que não me atacasse.
– Me solta! – Ela rosnou cravando as unhas em minhas costas, senti as mãos dela tão geladas que poderiam se partir a qualquer momento.
– Pare de usar o Yinemí! Tem um motivo muito bom para ela não ter nos confiado esse poder, ele é extremamente forte e é bem possível ela ter tido conhecimento que você se tornaria uma maga negra, assim os dois poderes destrutivos se equilibrariam, você só o libertou e consegue usá-lo por causa disso! – Falei puxando seus braços e mostrando a ela suas cicatrizes esbranquiçadas nos braços. – Yinemí era o mais forte de seus poderes, ela não era humana, podia controlá-lo facilmente, mas você não! É um poder ilimitado num corpo limitado! Se continuar o usando assim, ele vai te consumir, a energia liberada vai ser tão grande que seu corpo não vai aguentar e você vai perdê-lo, o poder vai escapar de você e poderá ser pego por qualquer um que tenha um maior controle sobre a magia Elemental, isso se ele não consumir sua energia e te matar antes de desaparecer! – Falei quase num sussurro, olhando dentro de seus olhos ela nem respirava agora, pelo menos havia conseguido assustá-la e fazê-la parar de usar o poder.
– E o que esses ossos de vitrino têm a ver com o poder da alma do gelo? – Perguntou depois de um minuto inteiro me encarando assustada.
– Não sabe o que é o vitrino? – Ela balançou a cabeça negativamente.
– Vitrino é o sangue dos Malvarmos que morreram em guerras, esse sangue foi absorvido pela neve e se solidificou em minas subterrâneas, é por isso que Malvarmos odeiam tanto o calor, nosso sangue pode se solidificar se formos expostos a altas temperaturas. – Expliquei calmamente, ela ficou olhando boquiaberta para os braços. – Isso – Tracei as cicatrizes em seus braços. – Significa que seu sangue foi misturado com o nosso, você virou uma híbrida.
– Impossível!
– E pela cor azulada do vitrino, é da mesma mina que eu fiquei congelado.
– Você ficou congelado?
– Passei uns dez mil anos dormindo no fundo de uma mina de vitrino, fui despertado pelo chamado da sacerdotisa de Amantia quando ela enviou o terceiro guardião ao centro do círculo.
– Então esse vitrino...
– Provavelmente tem meu sangue também. – Ela olhou ainda mais assustada para as mãos.
– Fairin sabia que isso aconteceria quando ele trocou meus ossos por esses? – Sua voz não passava de um sussurro.
– Não, ele era um tolo idiota e não sabia o que estava fazendo quando implantou os ossos em você, achou que estava apenas garantindo que ficasse imune a prata. – Ela escorregou para a cama e ficou olhando as garras de vitrino em suas mãos.
– Eu realmente virei um monstro então...
– Me considera um monstro? – Ela não respondeu, nem olhou para mim, apenas ficou olhando para as mãos em silêncio. – O que você faz que te transforma ou não num monstro, não a sua raça. Os humanos são mais monstruosos e terríveis que nós, as bestas do gelo. – Falei agachando em sua frente e segurando suas mãos frias.
– Mas Higarath era humano e sua mãe também era parte humana... por que você é um Malvarmo então? – Sorri, nada mais justo que contar a verdade depois de ter visto quase todas as suas memórias, ou pelo menos, a parte da memória que ela poderia saber.
– Quando escolhi viver em Vegahn não sabia exatamente o que esperar, quando cheguei aqui devia ter a sua idade, fiquei encantado com uma Malvarmo que conheci, mas ela falou que um humano era perda de tempo, que ela iria viver muito e eu iria morrer rápido demais e não deixaria nada além de lembranças que ela apagaria com o passar do tempo, porém disse que eu podia ser mais do que um humano e que poderia ser útil a ela, então ela cortou a palma da mão com uma faca de vidro e o sangue transparente escorreu sobre a Lâmina, ela me furou com aquela lâmina, uma facada direto no coração, assim me transformei num Malvarmo também. – Fiquei esperando ela ter alguma reação, mas ficou apenas me encarando.
– Ainda estou morrendo de fome! – Disse ela depois de um longo tempo em silêncio, achei que ela fosse dizer algo sobre o que tinha acabado de lhe contar, mas ela não disse mais nada, ficou apenas olhando para a porta.
– Vou ver se eles estão trazendo algo para você comer.
– Prefiro ir lá embaixo! – Disse ela levantando-se e indo em direção a porta, resolvi ir com ela, mas ela bloqueou a passagem quando fiz menção de passar. – Você está me devendo, Caalin! Nunca permiti que entrassem em minha mente e fuçassem minhas memórias, você sabe demais sobre mim agora, então preste bem atenção em como vai se portar comigo, ou eu arranco essa sua cabeça fora! – Ela tinha um olhar frio, mas pude ver uma pontada de irritação naqueles olhos verdes brilhantes.
– Sabe que não conseguiria me ganhar nem que vivesse mil vidas, não é?
– Não importa o quão velho você seja, vovô! Eu vou te dar uma surra se entrar em minha mente novamente! – Esbravejou ela antes de sair do quarto e atravessar o corredor em passos largos. Ser chamado de vovô me irritou muito mais do que imaginava ser possível, ainda mais por ela, nenhuma parte de mim desejava que ela me visse como um parente, ainda mais como um velho.
– Não precisa se fazer de malvada para cima de mim, agora eu te conheço melhor do que ninguém e sei que você não é esse bicho marrento que acha que é! – Provoquei seguindo-a até o salão, ela ficou em silêncio, mas vi seu maxilar trincar enquanto soltava um suspiro de irritação. Como passava da meia noite, o salão estava quase vazio, a não ser por um grupo de pessoas comemorando algo no fundo perto das portas de emergência. A garçonete havia esquecido de levar o jantar de Nikella, então ela aproveitou e pediu comida suficiente para alimentar três pessoas.
– Batata frita? Isso faz mal para a saúde! – Falei observando-a comer, ela riu.
– Uma crítica alimentar vinda de alguém se só se alimenta de carne e sangue! – Retrucou ela colocando mais batatas na boca.
– Como sabe? – Ela arqueou a sobrancelha e mostrou o pequeno pingente de duas espadas cruzadas dentro de um círculo metálico, o emblema da ACV na pulseira negra de couro em seu pulso.
– Você é um dos que aprendi a caçar! – Foi a minha vez de soltar uma gargalhada debochada tirando o olhar predatório do seu rosto.
– Você não conseguiria me caçar, não conseguiria se aproximar de mim nem se eu estivesse dormindo!
– Quer apostar?
– Agora não, espera para depois de irmos falar com o rei. – Ela torceu os lábios num bico e desviou o olhar para a janela.
– Como foi que um guardião acabou a serviço de um rei?
– Não acabei a serviço de um rei, ofereci meus serviços em troca de que ele destruísse as minas de vitrino.
– Mas ele não fez isso, não é?
– Não, ele tentou me enganar, fingia estar procurando meios de livrar os escravos sem acabar com as minas, mas na verdade ele ajudava os outros governantes e bancava muitos dos magos que traziam os escravos para cá! Então o matei para que seu filho assumisse. – Ela nem se importou quando disse que matei o rei para que outra pessoa assumisse seu lugar, apenas perguntou:
– Essas minas, elas só existem aqui?
– Sim, especificamente nesse continente por causa das batalhas que aconteceram por aqui. Mas creio que Aliver seja diferente, ele está realmente se esforçando para mudar as coisas por aqui!
– Estou aqui há quase um ano, destruí nove minas, e libertei todos os escravos nelas e até agora não vi nenhum exército real as fechando. – Ela tinha acabado de comer, estava tomando um chá de ervas e ainda olhava pela janela.
– Existiam vinte e duas minas. Dez foram fechadas e destruídas por ele, antes de vir te procurar, cobrei dele as doze restantes, mas agora que você destruiu nove delas, restam apenas três.
– Quantos morreram nessas guerras para existirem todas essas minas...
– Algumas eram locais onde haviam cemitérios também, depois que um Malvarmo morre seus ossos se desmancham e se tornam vitrino também. – Expliquei.
– Por que você mesmo não as destruiu?
– Não queria causar tumulto, achei mesmo que ele pudesse apenas fechá-las tem ter que usar a força.
– Então vai me levar até essas minas restantes antes de irmos ao rei, essa é minha condição para ir com você! – Ela me encarou.
– Entendi... Posso perguntar por que se importa? Quero dizer, por que sair de Ciartes e vir ajudar as pessoas daqui? Quando decidiu partir, por que Vegahn? – Indaguei, ela arqueou a sobrancelha e sorriu discretamente.
– Você pergunta demais! – Fiquei esperando uma resposta e ela ficou brincando com o colar em seu pescoço, esperando que eu desistisse das respostas.
– Estou esperando você me responder! Não te deram educação de onde você veio?
– Você viu que eu não tive educação de ninguém! – Retrucou fechando o punho sobre a xícara de chá, então ela sabia que eu havia visto mais do que disse a ela.
– O que quer que eu faça para que você fale? – Um sorriso maldoso apareceu em seu rosto de feições delicadas, que ficou corado imediatamente. – Posso arriscar um palpite pela cara que você fez, acho que vou ter prazer em te ajudar se for o que estou pensando! – Falei.
– Não seja maldoso! – Ela corou ainda mais. – Tudo bem, eu falo se me der um bolo de morango ou uma torta de limão! – Ela riu.
– Mesmo depois de tudo que comeu? – Olhei espantado para ela novamente, procurando por algum lugar que ela escondia toda aquela comida.
– Merian sempre fazia bolo de morango ou torta de limão para mim quando queria que eu lhe contasse algum segredo, algo que eu havia descoberto e que ele queria muito saber. – Seu semblante entristeceu, tinha visto em suas memórias, sentido a dor quando ele disse que a odiava, ela não mostrava, mas amava o irmão adotivo mais do que qualquer um, se ele tivesse dito que a amava, ela o teria deixado fugir e matado apenas Fairin, mas o ódio dele, se ela o deixasse vivo, podia lhe custar mais alguém, afinal, ele não pensou duas vezes em sequestrar Annie e Sheriah para usá-las contra Nikella. Fui até o balcão da cozinha e pedi um bolo ou torta à senhora que estava quase cochilando sobre o balcão, ela assentiu e foi bocejando até a cozinha, logo em seguida voltou com uma torta grande de limão.
– Duvido você comer ela inteira! – Falei colocando-a na frente dela, ela começou a rir.
– Quer apostar?
– Você tem um problema com apostas, não tem?
– Confesso que sim, ainda mais porque não costumo perder.
– Não vou apostar isso com você, se você não aguentar comer vai se sentir pressionada pela aposta e vai comer até passar mal, não quero ninguém vomitando torta de limão em mim! – Ela pareceu frustrada com a resposta, mas pegou a faca, cortou uma generosa fatia e serviu-se, depois serviu uma fatia ainda maior para mim também. – Sou o devorador de sangue e carne, lembra? – Observei o doce em minha frente. – Não como doces desde que me tornei Malvarmo. – Nem me lembrava mais o gosto que tinha.
– Considere-se especial, quase arranquei a mão de Kuran uma vez quando ele tentou pegar um pedaço de bolo que eu estava comendo. – Ela colocou um pedaço na boca, ainda assim fiquei olhando desconfiado, ela revirou os olhos pegou a colher e colocou um pedaço perto de minha boca.
– Só dizer “A”!
– Para alguém tão durona, está sendo boazinha demais! – Falei aceitando pedaço de torta.
– Me permito ser legal às vezes! – Infelizmente sabia que esse “Bom humor” passaria quando o efeito do elixir de mandrágora saísse de seu sistema, talvez ela tentasse me matar na manhã seguinte.
– E agora, vai me responder? – Ela respirou fundo, comeu mais um pedaço da torta acabando com o que estava em seu prato e pegou outra fatia.
– Quando saí de Ciartes, pensei em ir até Dartaris procurar por Gwynn, minha irmã, mas pensei que talvez ela não quisesse me conhecer, ou talvez ela estivesse feliz com uma família e não ia querer alguém problemático como eu por perto, ainda mais com o que está por vir, então achei melhor deixá-la quieta.
– Todos temos problemas...
– Ninguém garante que a qualquer momento o rei Ericko não vai ficar com raiva de mim e decidir mandar os caçadores para me matar. Aliás, isso foi estranho... – ela ergueu a palma da mão, uma pequena bola de luz negra e azulada se formou ali. – Dei meus poderes a Karin quando saí de lá!
– A magia de um mago negro não pode ser passada para frente, ela cede e sai do corpo, mas volta para seu dono. Ela não se tornou a guardiã portadora da alma também, uma vez que só o guardião portador verdadeiro quando morre o passa para frente, se não tiver filhos, vai para um irmão ou parente mais próximo. – Respondi, ela assentiu lentamente servindo-se de mais torta, não parecia estar se forçando a comer, comi mais um pedaço da que ela havia servido para mim, era estranho comer qualquer outra coisa depois de tanto tempo. – Por que escolheu Vegahn então? – Ela olhou as cicatrizes nos braços.
– O frio não deixa eu sentir dor, esses ossos vivem me dando choques quando começam a aquecer, se eu usar magia demais também acontece isso, eles queimam, mas o frio neutraliza essa dor irritante. – Ela suspirou, acabou o pedaço de torta que estava comendo e tomou o chá, deixando menos da metade da torta sobre a mesa, ri por dentro pois estava certo, ela não aguentaria comer tudo. – Eu estou ajudando as pessoas das minas, pois no dia que cheguei, quando abri um portal em Ciartes para vir para cá, parei dentro de uma das minas, era de noite, muito tarde, os escravos estavam dormindo no chão gelado das minas enrolados por trapos que não deviam aquecer nada, andei devagar procurando pela saída, pois não sabia que estava em uma mina, depois que eu vi o vitrino entre os blocos de gelo.
“Quando achei a saída vi um homem de certa idade do lado de fora, ele estava acorrentado pelo pescoço e o corpo todo coberto de cortes profundos, tinha uma menina abraçada nele, para que ele não congelasse ali fora. Quando ela me viu veio correndo pedir que o soltasse e que ele só tinha tentado ajudar um outro escravo que estava morrendo com o veneno da pedra de vitrino que eles estavam escavando. – Ela engoliu em seco, a ira se acendeu em seus olhos novamente. – Ele também foi castigado por tentar ajudar alguém. Eu fiquei imaginando quantas pessoas sofreram para que eu tivesse recebido o material para forjar Siferath! – Nikella pegou a foice no colar e ficou olhando para ela. – Eu soltei e curei aquele senhor, depois os acordei e deixei que todos os escravos fugissem, por fim, explodi a mina com todos os capatazes dentro. – Ela sorriu.
– Então você ficou com remorso por causa da sua arma? – Sabia que não era isso, queria apenas que ela falasse mais. Nikella revirou os olhos novamente e bufou.
– Eu fiquei com medo, por mais que eu tenha certeza de que se eu treinar bastante esses poderes eu tenha uma chance... de derrotar Higarath, mas se ele dominar os mundos e os cobrir de sombras... bem, eu queria que eles vivessem felizes até lá, que aproveitassem sua liberdade pois não sabemos quando ela pode ser tirada novamente deles, de nós! – Pela primeira vez eu vi uma pessoa tentando carregar o mundo inteiro nas costas, ela quase tinha uma ideia do que estava por vir e queria ter certeza de que todos seriam felizes.
– Isso soa heroico e pessimista ao mesmo tempo!
– Não acho pessimista, é uma possibilidade.
– Sabe que isso é outro erro, não sabe? – Não conseguia mentir para ela, mesmo que a verdade fosse muito pior do que ela poderia imaginar que fosse.
– O que é outro erro? – Seu rosto empalideceu.
– A princípio, Higarath não vinha para tomar os mundos criados por Ayrana, ele ia destruí-los, um por um e roubar todo o poder que existe neles, depois disso ele usaria seu poder para tomar a terra, o mundo humano que ele nasceu. Por mais absurdo que pareça, ele só queria o mundo que ele acha que é dele, ele sabe que a magia ou a maioria dela foi retirada daquele mundo quando Ayrana criou os outros treze mundos, então ele pretendia roubar as seis almas, matando os guardiões que as possuírem, se ele chegar lá como o único portador de tais poderes, ele vai ter o mundo aos seus pés! – Ela apoiou o rosto nas mãos e ficou encarando-me.
– Que pensamento pequeno! Se eu tivesse todo esse poder, eu ficaria com todos os mundos!
– E correr o risco de alguém com mais poder aparecer e tomar o controle de você um dia? Fairin tentou fazer isso, aí a filha dele o enganou e o prendeu, quando ele conseguiu se soltar, iludido que Higarath ia dividir seu poder, você apareceu deu uma surra nele e o matou! – Dei uma gargalhada zombeteira – Não Nike, ele não quer ter esse mesmo destino, não vai arriscar isso.
– Se esses são os poderes supremos, são os mais fortes, não tem como surgir alguém mais forte. Mesmo assim, se reunisse toda essa magia, eu ainda preferiria tomar todos os mundos! Seria fácil domar as pessoas com uma proposta de paz e tempos felizes, fazer com que todos voltassem aos mundos que lhe foram destinados e separar as raças novamente... acho que muitos iam ficar satisfeitos com isso e me apoiar!
– Deveria me preocupar com esse pensamento? – Aquele pensamento fez com que algo revirasse dentro de mim.
– Os caçadores Venox só existem porque as outras raças estão em mundos que não foram criados para elas... se cada um estivesse em seu canto, nenhuma dessas batalhas tolas travadas por territórios seriam necessárias! – E por mais que eu odiasse admitir, aquele pensamento estava certo.
– Mas muitos já se misturaram, imagina, você separaria famílias híbridas, que tem raças diferentes? Por exemplo, se você tivesse se casado com o príncipe...
– Nem conclua essa frase, por favor! – Ela se encolheu, gostaria de poder retirar aquelas palavras. – Não estava levando isso em consideração. Ainda assim, não acho que ele vai destruir os mundos, pelo que me disse pouco antes de sair de Ciartes, acho que ele mudou de opinião, acho que percebeu que com as almas juntas ele pode tomar os mundos... – Não havia levado em consideração a conversa dele com Nike, apenas lembranças de que ele prometeu destruir os mundos dela.
– Bom, não se preocupe com Higarath por enquanto, foque em seu treino, ele não vai vir atrás de nós por enquanto!
– Ele quase me matou aquele dia em Ciartes...
– Você estava cansada, esgotada. Ele viu o seu potencial, ia se aproveitar do momento de fraqueza assim como fez com minha mãe. – A lembrança daquilo ainda me causava náusea, nós estávamos tão perto e ninguém conseguiu salvá-la, nenhum de nós teve reação e acabamos deixando que ele fugisse. Lembro-me ainda de seus últimos suspiros, quando ela deu seus poderes para cada um de nós e se foi.
– Acha que estamos seguros por um tempo então? – Perguntou ela tirando-me de meus pensamentos.
– Ele provavelmente vai tentar resgatar todo poder que perdeu com o passar do tempo, Antares permitiu que ele pegasse seu poder, mas Sirius e Áries ficaram tomando o poder dele durante todos os séculos que passaram no centro do círculo.
– Pode parecer bobagem, mas como sabe de tudo isso? – Ela indagou olhando-me com curiosidade.
– Sou bom em me disfarçar e ir atrás de informações, tinha que me atualizar quando despertei do sono.
– E quanto a isso...
– Podemos deixar a conversa para amanhã? Você ainda não dormiu, está ficando com olheiras! Vai ficar com aparência de uma velha rapidinho! – Ela torceu os lábios e se levantou e saiu da mesa batendo os pés, mas levando o resto de torta com ela.
Nikella se jogou na cama e ficou deitada de lado comendo a torta direto da forma com uma colher.
– Acho que isso é da descendência, só pode! – Falei rindo da cena, ela levantou os olhos para mim sem entender nada. – Minha irmã, Shurin, ela também era assim, louca por doces.
– Como ela era?
– Shurin? Era completamente doida! Ela arrumava confusão onde quer que fosse...
– Perguntei da aparência! – Interrompeu-me.
– Ela era igual minha mãe, loira, olhos verdes... era muito bonita, mas escolheu a vida humana normal, passou os poderes à frente para os filhos, envelheceu mais lentamente que um humano comum, claro, por causa da aura mágica de Amantia, mas morreu velhinha e dormindo. – Sorri ao lembrar da última vez que a ví – já era um Malvarmo, foi pouco antes de Antares morrer, ela estava bem velha, cercada por seus filhos, netos, bisnetos e se arrisco dizer, tataranetos também, ela parecia muito feliz. Um fim invejável, cercada pelas pessoas que amava e foi se encontrar com Ayrana...
– Então você é meu tio com muitos “tatas” na frente?
– Pode-se dizer que sim... – respondi a contragosto.
– Humm, entendi. – Ela suspirou. – Será que tem um cantinho especial para as pessoas da nossa família em Mogyin? Será que agora todos que se foram estão lá torcendo para que consigamos acabar com Higarath, e quando nos encontrarmos um dia, vamos ter histórias incríveis para lembrar? – A pergunta infantil dela fez um nó aparecer em minha garganta.
– Acredito que sim, Mogyin é um mundo como todos os outros, onde as pessoas que decidem descansar vivem para sempre em paz. Ou aquelas que não merecerem, ficarão presas até que tenham se redimido. Mas aqueles como Fairin e Higarath... suas almas são destruídas assim que entram em Mogyin, para não ter risco de voltarem um dia, só então vão apodrecer no inferno.
– Espero que minha mãe esteja lá, em Mogyin! Um dia, quando a hora chegar, quero ir pedir desculpas por nunca ter ido vê-la, por nunca ter pego aquela carta depois que meu pai morreu, acho que se ela estivesse viva quando Susano me mostrou a árvore, eu teria ido vê-la imediatamente.
– Vai demorar bastante para isso agora! – Respondi.
– Por quê?
– Você agora é uma híbrida de Malvarmo e humano, seu lado humano é mais fraco que esse, então, você não vai mais envelhecer como os humanos dos mundos que não tem as mandalas de proteção, é provável que fique assim por muitos séculos. – A surpresa passou tão rapidamente por seu rosto que nem sei se isso a incomodou de verdade, ela não pareceu chocada com a descoberta.
– Última pergunta... – Ela estava realmente com sono, piscava com uma frequência maior, tentando manter-se acordada. – Por que esses poderes são tão especiais, se todos os magos podem manipular os Elementais?
– Podem manipular os Elementais, mas não domar a alma deles, isso é o verdadeiro poder que você recebeu, que nós temos, as Almas dos Elementais podemos fazê-los nos obedecer, colaborar a nosso favor, tecnicamente, você tem Vegahn na palma das mãos. Nenhum mago por mais talentoso que seja pode queimar alguém e o destruir com uma rajada congelante, embora possa fazer uma pessoa ficar presa no gelo e morrer de frio, mas domar a alma dos elementos e manipulá-los na forma primitiva, mais forte, nenhum mago consegue! – Nikella estava me encarando e não sabia interpretar aquele olhar, não sabia qual era o sentimento que estava escondido nele, então, ela desviou o olhar para o tabuleiro vazio de torta, o colocou sobre a mesinha e se levantou, foi até o banheiro e bateu a porta, talvez ela só quisesse provar que conseguiria comer a torta inteira e agora estivesse passando mal.
Mesmo com o ar frio da noite entrando pela pequena janela, o quarto parecia quente demais, então tirei a túnica preta com o bordado azul safira em forma de uma pequena espada sobre uma estrela e a coloquei sobre a cadeira ao lado da cama, fiquei tentado a não me cobrir com o lençol, mas era melhor não perturbar Nikella antes que a raiva de mim tivesse totalmente contida. Acabei cochilando na cama mais próxima à janela antes que ela voltasse.
4
Minas destruídas
Nikella:
Fiquei um bom tempo sentada dentro da banheira vazia em silêncio, aquela tristeza no olhar de Caalin quando falou sobre Shurin podia significar muito mais que uma saudade por uma irmã que se foi, as marcas na alma dele talvez sejam tão profundas que nem o tempo adormecido apagou. O pingente em meu pescoço estava pesando uma tonelada, não havia só matado a pessoa que mais amava, mas tinha matado um guardião, havia feito o serviço sujo de Fairin, talvez ele soubesse disso, por isso me usou daquela forma. Estava superando bem tudo aquilo até Caalin falar sobre um casamento entre mim e Kuran, aquilo fez uma cicatriz quase fechada se abrir novamente.
–Ninguém mais vai tirar as pessoas de mim! Nunca mais, ninguém nunca mais me dominará! – Sussurrei baixinho apertando o colar, sentindo um nó se desfazendo em minha garganta. Já havia chorado demais, sofrido demais por algo que eu não havia feito, por mais que tivessem sido minhas mãos que tiraram sua vida, não era minha mente que estava controlando-as naquela hora.
Pedi perdão silenciosamente, esperando que de alguma forma meus pensamentos fossem ouvidos por Kuran. “Já está na hora de ir em frente a tristeza não vai apagar o passado, mas se eu for forte e me esforçar, posso lutar pelos outros que amava e que continuam lá!” Nunca poderia encará-lo se chegasse a Mogyin um dia sem ter protegido sua família, sem ter acabado de vez com todo aquele mal.
Saí da banheira com cuidado, minhas pernas estavam moles e meus sentidos pareciam muito lentos, como se tivesse uma névoa sobre eles. Abri a porta do banheiro e fiz uma rápida análise do quarto, Ira estava deitado sobre minha cama e Caalin dormia tranquilamente na outra, fiquei com muita pena de tirar Ira de lá, mas considerando o que Caalin falou que fez usando o corpo dele... sacudi a cabeça afastando o pensamento de que ele havia me visto como vim ao mundo, como dormiu agarrado comigo e eu, boba, achando que era apenas um gatinho. Tirei Ira da minha cama e o coloquei no chão, ele pareceu irritado com aquilo, porém foi até um pequeno sofá cinza e gasto próximo a janela entreaberta e deitou-se lá. Tirei as botas com um cuidado sobrenatural, pois toda vez que tentava soltar os cadarços, os rasgava com as unhas, elas muitas vezes eram inconvenientes, mas havia aprendido a gostar delas com o passar do tempo, muitas vezes, não precisava de outras armas para me defender.
A princípio fiquei de costas para Caalin, porém ao lembrar de quem ele era, mesmo sendo um guardião, ele não pensaria duas vezes em livrar-se de uma ameaça, então fiquei de frente para ele.
Não conseguia pregar os olhos por mais sono que tivesse acumulado, desde o dia que meus poderes se modificaram, quando me tornei uma maga negra, as sombras entravam em minha mente quando eu dormia, fazendo-me propostas, oferecendo um poder ainda maior, algo que eu não almejava. Não queria dormir, estava com medo de sonhar, preferia mil vezes os sonhos com a morte e com Fairin, do que o medo constante de dizer “sim” para aquelas sombras.
Observei Caalin dormir, talvez uma distração que me mantivesse acordada. Ele havia tirado a túnica, ela estava dobrada perfeitamente sobre a cadeira ao lado de sua cama, ele respirou fundo e se virou, fazendo com que o lençol saísse de cima dele, deixando o peito exposto. Um malvarmo não ligaria para o frio cortante que estrava pela janelinha, então parecia que ele estava dormindo em um quarto quente numa noite de verão em Ciartes.
Os músculos desenhados e trabalhados lhe davam uma aparência perigosa, o rosto retangular nem de longe parecia ser de alguém com mais de vinte e poucos anos, o maxilar forte se movia ligeiramente quando ele tinha uma respiração mais profunda. Parecia muito mais bonito do que na primeira vez que o vi em Ciartes, naquela vez seu cabelo estava longo branco cheio de tranças, agora estava liso e na altura dos ombros, gostei mais quando estava longo.
Fiquei olhando atentamente por tempo demais, ele virou-se umas duas vezes, a luz da lua crescente que entrava pela janela, fazia sua pele ficar ainda mais branca, perfeita, sem nenhuma marca ou cicatriz, era difícil de acreditar que ele realmente havia estado em alguma batalha ou em qualquer tipo de briga. Na última vez que ele se virou, um leve sorriso fazia seus lábios em formato de arco exibir as presas afiadas, que poderiam rasgar uma garganta sem o mínimo de esforço, mas ainda assim não podia deixar de olhar com certa admiração.
Filho de Ayrana... Tão antigo quanto os doze mundos e mesmo assim estava ali, tratando-me como alguém igual, sem tentar se mostrar superior, sem o olhar de desdém por ser “apenas uma humana inferior”, talvez porque agora não fosse tão inferior assim, ou por ser alguém que realmente não se importava com quem eu era. Caalin era muito parecido com Higarath, os mesmos traços, com a diferença de que Caalin tinha a pele pálida, tão branca quanto a neve que caía lá fora, mas algo me dizia que eram parecidos apenas na aparência e que eu podia confiar no malvarmo à minha frente.
O vento gelado me despertou de manhã, fazendo com que eu me levantasse sonolenta, puxando as cobertas grossas de pele para cima de mim, porém deixei os braços para fora delas, evitando que ficassem quentes e os choques começassem a me incomodar. Gither! Aquela pequena palavra me fez bufar e me levantar da cama de má vontade e marchar até o banheiro, as sombras escuras embaixo de meus olhos pareciam ter melhorado, só então percebi que havia dormido! Avaliei meus pensamentos procurando por algum traço de pesadelos ou sonhos, porém não havia nada, eu havia conseguido dormir sem ter pesadelos aquela noite. Depois de lavar o rosto e escovar os dentes, voltei para o quarto e percebi que Ira havia dormido na minha cama novamente.
– Achei que tivesse te colocado para fora daí ontem! – Resmunguei coçando suas orelhas, ele ronronou satisfeito em resposta, porém tirei a mão quando me lembrei de quem “usava” seu corpo de vez em quando.
– Pode acariciar, só estou no corpo dele quando a mandala prateada está nos olhos dele! – Explicou Caalin entrando no quarto com o café para dois em uma bandeja. Só aí que reparei que os olhos de ira eram azuis vivos.
– Por que não me chamou para descer e tomar café? – Perguntei analisando a postura que estava diferente da noite anterior, parecia mais tenso, cauteloso.
– Você parecia não ter dormido muito bem, então deixei que dormisse um pouco mais! – Falou colocando a bandeja sobre a mesinha de cabeceira e sentando-se para comer.
– Posso perguntar por que está sendo assim tão gentil comigo?
– E por que não estaria?
– Você não me conhece para estar me tratando assim! – Retruquei pegando uma torrada coberta de creme de amendoim e nata.
– Conheço sim, mesmo que pelas suas memórias, mas o suficiente para ser gentil com você! Mesmo se não conhecesse a trataria assim, não preciso ser um monstro só porque pareço um, Nikella! – Senti meu rosto esquentar.
– Desculpe...
– Sem problemas! – Ele tomou uma xícara de café e ficou observando Ira enrolar-se em meu colo enquanto eu partia para o prato de ovos mexidos.
– Você não parece um monstro... – consegui falar depois de terminar o café, enquanto ele tirava a bandeja e ia em direção a porta.
– Bom saber! – Ele piscou para mim e saiu. Troquei de roupa rapidamente, peguei minha bolsa e a atravessei no ombro, peguei Ira e bati a porta do quarto levando a chave comigo, descendo as escadas correndo até a recepção.
– Já podemos ir? – Perguntei à Caalin que estava conversando com a jovem atrás do balcão.
– Claro! – Ele sorriu, pegou a chave da minha mão para entregar à garota e saiu, o segui em passos rápidos para o dia gelado do lado de fora da estalagem aquecida. O movimento do lado de fora era grande, algumas vezes quase fui engolida pela multidão que caminhava nas ruas de pedras cinzentas. Vegahn não era um consolo para mim, já que os Malvarmos eram tão altos quanto os Salamandras, alguns até maiores, Caalin devia ser quase dez centímetros mais alto que Susano ou Kuran, e muito maior também, os ombros largos pareciam capazes de mover montanhas.
– Não está com frio? – Perguntou ele olhando para mim por cima do ombro quando passamos pelas muralhas da cidade.
– Frio me incomoda muito menos que o calor, embora tudo pareça doer bem mais por causa dele. – Ela pareceu divertir-se com a minha resposta.
– Se fosse como eu, ia sentir mais dor com o calor, o frio é quase como um anestésico.
– Por que eu me sinto assim se sou híbrida agora? – Perguntei. Ele olhou novamente por cima do ombro, diferente da primeira vez que o vi, notei que seus olhos eram azuis, não um azul claro comum, mas uma azul safira profundo e brilhante, um olhar tão expressivo que fazia algo se mover inquieto dentro de mim toda vez que me encarava daquela forma.
– Por que a forma humana ainda resiste à transformação, mesmo quando você muda, ainda sente tudo como uma humana.
– Isso é frustrante! – Resmunguei desviando o olhar, pegando Ira no colo e coçando sua cabeça distraidamente.
– Não gosta de ser humana? – Caalin perguntou sem olhar para mim.
– Ser humana em meio ao que está por vir significa que eu serei mais fraca que os outros! – Respondi, ele sacudiu a cabeça e não disse mais nada, apenas caminhou ao meu lado em silêncio, observando atentamente cada sombra, cada porção de neve caindo dos galhos das altas árvores que cercavam a estrada larga de pedras ásperas, fazendo com que parecesse um imenso túnel branco e em tons de amarelo e laranja das folhas das bétulas.
A luz do sol passava pelos galhos frondosos cobertos de neve e gelo e formavam espectros em alguns pontos, colorindo a neve no chão. O cheiro da neve misturado com o perfume adocicado, agudo e revigorante das bétulas e aveleiras gigantes, modificadas magicamente para crescerem nessa região gélida e frutificarem mesmo com o frio tão intenso me fez viajar em minhas próprias lembranças. Fiquei admirando aquela obra de arte e imaginando quanto tempo Ayrana trabalhou para fazer aquele mundo tão perfeito. Uma artista, de fato, pintando mundos conforme florescia em seu coração amor por criaturas dignas de suas obras de arte. Olhei de soslaio para Caalin, ele tinha um breve sorriso no rosto e parecia tão admirado com aquilo quanto eu, será que nem mesmo em tantos milênios, aquilo deixava de ser tão belo?
– Queria ter nascido aqui ao invés de Ciartes! – Falei depois de um bom tempo em silêncio, Caalin arqueou uma sobrancelha e riu.
– Se tivesse nascido aqui, tudo isso seria tão comum para você que nem repararia nessas paisagens! – Respondeu ele abaixando-se na beira da estrada e pegando uma folha de bétula congelada, com uma fina camada de geada por cima dela, parecia uma pequena joia. Ele estava prestando atenção em mim enquanto andávamos! Isso me deixava irritada, pois me lembrava de quanto ele fuçou em minha mente. Talvez por isso, por mais que quisesse não tinha coragem de ser grosseira com ele, para mantê-lo em seu lugar como fazia com as outras pessoas, por respeito talvez, estava no mundo dele, ele viveu o suficiente para que eu não fosse nada ali, não representava perigo algum para ele, então não havia motivo para me mostrar hostil, afinal como ele mesmo dissera, me conhecia bem o suficiente para saber que aquilo era apenas uma máscara de defesa.
Foram mais ou menos duas horas de caminhada até as muralhas de Gither aparecerem em nosso campo de visão, mas um cenário assustador nos esperava lá. Apressei o passo para chegar mais rápido perto da entrada da mina, os portões estavam escancarados, foram forçados de fora para dentro até as dobradiças arrebentarem e caírem.
Havia manchas de sangue por todos os lados junto com os corpos de lobos selvagens, também alguns de escravos e feitores. Corri para a entrada da mina e desci pelos túneis congelados correndo, as marcas das escavações rasgavam o gelo fazendo-o parecer escavado por unhas. Desci ofegante até um grande salão redondo de onde os escravos retiravam o vitrino, que ainda estavam no teto da mina e davam a impressão de ser estalactites de gelo penduradas perigosamente sobre as cabeças de quem quer que estivessem trabalhando aqui, apenas as cores amareladas deles que diferenciavam das peças de gelo. Procurei por qualquer sinal dos escravos, mas não havia mais ninguém ali, um tremor.
Corri de volta para fora ao ouvir um som pesado de algo caindo, fazendo com que a mina estremecesse e alguns cristais de gelo se soltassem do teto.
Do lado de fora, Caalin segurava uma mulher, uma guarda ferida que estava próxima a pequena cabana que abrigava os capatazes imundos e inescrupulosos da mina.
– Que barulho foi aquele? – Perguntei a Caalin que estava imobilizando a mulher para que não fugisse.
– Ela ia explodir a mina com você lá embaixo! – Ele grunhiu pressionando-a com mais força contra o chão. – Vamos, responda o que Ausiet quer com o vitrino? Para que ele vai usá-lo? – A voz dele havia se tornado um rosnado, as presas brancas expostas e as garras longas e transparentes quase perfurando a garganta da elfa, que soltou um risinho de escarnio e engoliu algo.
– Ela engoliu veneno! – Falei usando meu poder para tentar curá-la.
– Não vai adiantar, é pó de agulheira branca. – Disse ele segurando minhas mãos para que eu interrompesse o processo de cura.
– Nunca ouvi falar! – Olhei dele para a mulher que depois de um estranho gemido, cuspiu uma bola de sangue endurecido, seu corpo ficou rígido e branco e ela se foi.
– É um veneno de fabricação complexa e demorada, ele resiste à magia de cura e só existe um antídoto, mas é tão difícil de ser fabricado quanto o veneno. – Ele explicou e fechou os olhos da mulher.
– Quem era ela? – Perguntei ajoelhando-me ao lado dele.
– Uma guarda de Ausiet, o governante de Fernic, no continente ao oeste.
– Ela estava aqui para me matar, não é?
– Sim, você estragou negócios de muita gente! – Dei de ombros e corri os olhos pela mina, parecia que uma batalha havia acontecido ali. – Os escravos que fugiram de Paliath vieram para cá trazendo as ferramentas das minas, durante a madrugada eles invadiram e mataram os guardas, capatazes e lobos de caça e libertaram os outros escravos. Alguns perderam a vida na investida. – Ele apontou com o queixo na direção de alguns escravos, que ainda usavam grilhões com correntes partidas quando atacaram a mina, por sorte o número deles era bem maior do que o de guardas ali dentro, se não a briga poderia ter sido muito mais feia.
Enterramos os corpos dos escravos próximos à trilha que levava ao mar de Séil, perto da liberdade. Quando voltei até a mina, seguida por Ira que vinha de cabeça erguida atrás de mim, brincando alegremente com sua cauda felpuda, parecia que nada de errado havia acontecido ali. Fiz uma grande bola de energia com as mãos e a rolei para dentro da mina, afastei-me lentamente até onde Caalin esperava no começo da estrada.
Ao chegar do seu lado, ele fez um breve aceno com a cabeça, fechei os olhos e visualizei a massa ne energia negra rodopiando e se expandindo dentro daquele salão no gelo. Com um estalo de dedos, a massa explodiu, levando gelo, terra e vitrino para o alto. Caalin olhava a mina destruída com uma expressão de assombro.
– E agora? – Perguntei desviando sua atenção da destruição que causei. – Onde ficam as outras?
– A mais próxima fica na encosta da neblina, a uma semana de viagem naquela direção. – Ele apontou para nordeste, distraído observando a neve revirada acomodando-se aos poucos no solo.
– Por que não nos teleporta para lá de uma vez? – Indaguei, ele pareceu desapontado com minha pergunta, mas retrucou:
– Você pode nos levar até lá também!
– Nunca estive lá para saber se me teleportei para o lugar certo!
– Vamos, nos leve até lá! – Ele cruzou os braços e ficou parado de pé em minha frente esperando que eu nos teleportasse.
– Não posso...
– Pode sim, o poder de um mago negro é irrestrito!
– Não é por isso que não posso, droga! – Gritei. – Eu não gosto de usar esses poderes! – Caalin ficou me encarando por um bom tempo, afinal ele não tinha visto nada além do dia que saí de Ciartes.
– Por que isso?
– Podemos ir logo para a próxima mina? Ou vai querer fazer o rei esperar para sempre? – Ele continuou me encarando com aqueles olhos safira.
– Sim, vamos! – Caalin segurou minha mão, Ira saltou em seu pescoço e se enrolou ali, então uma forte luz branca nos cobriu, senti o puxão da magia de teleporte e poucos segundos depois, vi o chão congelado novamente sob meus pés. Minha mente escureceu por um instante enquanto escutava as vozes novamente, sentei no chão congelado e abracei as pernas, tentando respirar normalmente e fazer aquelas sombras sumirem.
– Está se sentindo bem? – Perguntou Caalin estendendo a mão para que eu levantasse, mas não consegui estender a mão de volta fiquei em silêncio por um bom tempo, tentando apenas espantar aquela horrível sensação de que ficaria presa dentro de mim novamente.
Senti alguém me puxando para cima pela cintura, Caalin estava olhando para mim com uma expressão preocupada, não devia, mas me senti tão bem por ter alguém perto de mim novamente que quase chorei na frente dele, sentia muita falta de Annie e Susano.
– Vou ficar... – respirei fundo e olhei em volta, tentando entender o cenário ao nosso redor.
– Aparentemente, alguém veio até aqui e fez seu serviço também! – Disse ele indo até onde deveria haver uma muralha de contensão, que foi destruída por uma forte explosão.
– O serviço do rei que eu estava fazendo, foi o que você quis dizer! – Rebati de forma mais áspera que consegui.
– Que tipo de poder teria feito uma explosão como essa?
– Fogo de dragão, talvez. Mas como eles conseguiram isso é um mistério! – Respondi, ele olhava surpreso para a destruição causada pela explosão, que foi tão forte que derrubou as árvores da encosta. Andei pelos escombros procurando por algum sinal do que realmente poderia ter feito aquilo, não podia ser fogo de dragão, pois não havia cheiro do líquido inflamável deles. Também não tinha cheiro de pólvora ou fosfato. Passei por alguns corpos sem querer olhar para eles, mas não havia cheiro de carne queimada também. – Foi uma explosão causada por magia! – Falei ao ver a massa de terra e neve que cobria um buraco que devia ter sido a entrada da mina.
– Talvez alguém que tenha se inspirado em você!
– Ou que tinha algum parente ou amigo que foi trazido para as minas – retruquei. – Os guardas e capatazes foram mortos por magia também! – Tive que me forçar a olhar para eles, fora os ferimentos após a morte, eles não pareciam ter lutado com alguém, eles pareciam ter simplesmente parado de respirar, uma morte tranquila demais para monstros como aqueles.
– Pelo menos sabemos que quem fez isso só veio libertar os escravos, não era um sádico sanguinário! – Olhei-o de soslaio e franzi o cenho – Ah! Desculpe, sem ofensa! – Ele mordeu o canto da boca para evitar rir quando amarrei ainda mais a cara, então para ele eu era uma sádica sanguinária? Bom saber.
– Essa era uma das maiores, não é?
– A segunda maior... – ele andou até a pilha de entulho da entrada da mina e chutou um pedaço de pedra. As ondas no mar faziam um ruído abafado enquanto arrastavam placas de gelo por toda extensão da praia. – Foi aqui que eu fiquei congelado. – Explicou ele mostrando-me parte de uma rocha coberta de neve e terra. Sem nenhum esforço ele a ergueu do chão e limpou a parte que estava para baixo, quando ele terminou de limpar, percebi que havia inscrições na pedra, Vegahniano, o idioma puro e limpo de milênios atrás, só havia visto aquela escrita tão polida uma vez na biblioteca da ACV, num livro místico antigo que falava sobre as guerras dos quatro continentes. Mas aquela pedra que mais parecia uma lápide, parecia conter parte de um poema, um lamento ou uma despedida...
– O que houve para que ficasse congelado aqui? – Perguntei analisando atentamente sua expressão, mas se havia algo ali, ele não deixou transparecer.
– Precisava de um descanso, de férias, bem longas. – Ele sorriu sem alegria. – Mas se eu estivesse do lado de fora o dever com Vegahn e com Ayrana, aquilo nunca me deixaria descansar, ia sempre me sentir obrigado a continuar lutando, protegendo as pessoas. – Ele suspirou.
– Então você veio para cá depois que Antares foi morta?
– Sim... Não consegui responder ao chamado de ir até o centro do círculo mantê-lo preso, quando Sirius e Áries assumiram, uma certa paz tomou conta de tudo, eles eram guerreiros muito temidos e muitos tinham medo de fazer coisas erradas e serem punidos por eles.
– Por que não conseguiu responder ao chamado? – Quis saber, mas algo no jeito que ele olhou para longe me fez querer ter retirado aquela pergunta.
O silêncio só era quebrado pelo vento que assobiava ao bater nos destroços da mina, Caalin colocou aquela pedra no chão e a cobriu, deixando-a escondida no meio da neve.
– Quase dez mil anos dormindo aqui, mas passou tão rápido como um piscar de olhos, quando despertei achei estranho pois parecia que tinha acabado de fechar os olhos. No dia em que despertei na mina, ela já estava cheia de escravos trabalhando e eles estavam bem próximos à galeria subterrânea que eu me encontrava. No dia que despertei conheci Mikale, ela cuidava dos trabalhadores das minas, pois eles se feriam constantemente com as peças afiadas de vitrino. – Ele explicou depois de todo aquele tempo sem dizer nada, fiquei aliviada por ele quebrar o silêncio, pois eu não ia conseguir fazê-lo.
– Quanto tempo faz que você despertou?
– Dezoito anos, mais ou menos...
– E os trabalhadores não eram escravos?
– Não, até então eles não eram escravos, recebiam um salário conforme o vitrino era vendido para os magos. Porém descobriram que o vitrino depois de derretido uma vez não se derretia mais, os Salamandras pagariam fortunas por armas que não derretessem em suas mãos quando transformados em chamas, então alguém pensou que podiam usar vitrino para fazer armas contra os Salamandras, já que o vitrino não derretia ao tocar a pele deles como acontecia com os outros metais qualquer arma de ataque a distância feita com vitrino poderia matar um Salamandra. – Aquilo me fez lembrar o medo de Annie quando ela viu Siferath comigo na primeira vez.
– Então o vitrino só foi explorado dessa forma por causa dos Salamandras?
– Sim, o maior erro que eu cometi foi informar ao rei o quanto esse metal podia ser perigoso para os Salamandras achando que ele poderia mandar que fechassem as minas, mas ao invés disso ele contratou magos de outros mundos para escravizarem pessoas para trabalharem nas minas, mas ele dizia que estava sempre trabalhando no assunto de fechar as minas, ele sempre me enviava a outros mundos em missões que pareciam ser de grande importância para o bem de Vegahn e dos outros mundos, e quando estava em casa, nesse caso, quando ficava no castelo, ele me ocupava de treinar o príncipe para que se tornasse um grande guerreiro, fui um idiota de confiar nele. Quando descobri a verdade, que ele estava planejando usar o vitrino em uma guerra contra Ciartes eu o matei para Aliver assumir o trono. – Senti meu sangue sumir do rosto.
– Eles planejavam uma guerra contra os Salamandras?
– Ainda planejam, os governantes do leste e Oeste ainda acreditam que essa guerra seja possível, para isso querem tomar o trono de Aliver, pois ele tem o maior exército de Vegahn, estamos torcendo para nosso aliado do Sul não ser comprado pelos dois também.
– E por que você não destruiu o vitrino?
– A maioria foi levada para fora de Vegahn para ser forjado como armas, o que restou está em Fernic, muito bem guardado! E embora eu possa devastar aquele continente com a Alma dos raios, acredito que outro guardião está o protegendo! Acredito que seja o guardião que tem o poder da Alma das águas...
– O quê? – Falei tão alto que Ira se mexeu inquieto no pescoço de Caalin e saltou para a neve.
– Nem todos os guardiões são bons, Nike. Muitos deles não sabem sobre os poderes que tem e para que eles servem.
– Quando saí de Ciartes, Sirius e Áries partiram com uma amiga para encontrá-los...
– Muitos também devem se recusar a lutar, eles não são obrigados no fim das contas.
– Mas é pelo mundo deles! – Esbravejei.
– Mas você não pode obrigá-los a lutar!
– Posso sim! – Bufei. – Ai de quem pensar o contrário, vão nos ajudar nem que seja para não apanharem de mim! – Caalin começou a rir e bagunçou meu cabelo.
– Você é uma piada! – Aquele sorriso alegre foi tão lindo que a única coisa que consegui fazer foi ficar admirando.
Ira voltou trotando entre os destroços, seu pelo cinzento o escondia em qualquer lugar com facilidade, ele se aproximou e saltou em meu colo, enroscando-se em meu pescoço e bufando enterrou a cabeça em meu pescoço. – Ele gosta de você!
– Que bom! Pelo menos alguém ainda gosta! – Sorri apertando meu rosto contra sua carinha feia e macia. Caalin estava me observando de forma estranha quando virei para ele novamente, não consegui interpretar seu olhar, pois ele virou rápido demais.
– Tem mais uma mina, Arizer, fica a leste daqui, só algumas horas de caminhada, no limite do mar da neblina com o Mar de Ohm! Se não se incomoda, prefiro ir andando.
– Não me incomoda, prefiro ir andando também! – O teleporte me enjoava tanto que por pouco não coloquei o café para fora agora a pouco.
Demos a volta nos destroços da mina e descemos por uma trilha estreita e escorregadia até a praia, onde a areia coberta por neve estalava sob minhas botas de couro, o presente que Annie me deu em meu aniversário algum tempo atrás. Parecia que havia se passado uma década desde aquele dia, os rostos deles ficavam estranhamente distorcidos quando tentava visualizá-los em minha mente, como se estivesse os esquecendo aos poucos. Forcei minha mente para lembrar do rosto de Kuran, porém quando fiz isso, foi como se uma sombra escura tivesse coberto minhas memórias e uma voz sombria começou a rir em minha mente. Um calafrio me fez parar no lugar e sondar minha mente atrás daquela voz. Nada.
Era a mesma voz que muitas vezes escutava quando adormecia, quando tinha pesadelos com o que tinha feito ao príncipe e a Merian.
– Nike? Está tudo bem? – Caalin tocou meu cotovelo com a mão, levantando-me, não havia percebido que havia me ajoelhado na areia congelada até que ele me chamou.
– Estou... – respirei fundo e me levantei, não era comum ouvir aquelas vozes quando estava acordada.
– O que houve? – Ele estava pálido, se é que era possível para alguém com uma pele tão branca.
– Nada, não precisa se preocupar! – Puxei meu braço para continuar andando, mas ele segurou minha mão e me girou na sua direção para olhar dentro de meus olhos.
– Não pareceu que não era nada! – Ele segurou meu queixo quando tentei desviar o olhar.
– Me solta antes que eu resolva quebrar esses seus dedos! – Grunhi desvencilhando-me de suas mãos e virando de costas para ele, voltando a andar pela praia, cruzei os braços para evitar que ele visse que eu ainda estava tremendo. Caalin continuou andando ao meu lado sempre me olhando de canto de olho e com uma expressão fria e calculista no rosto, uma expressão que fez minha garganta apertar. Ele podia quebrar meu pescoço antes que eu piscasse, não sei se valia a pena arrumar briga com ele, mas Caalin era um misto de calma e indiferença quando o tratava rispidamente, parecia que preferia ficar em silêncio até minha raiva passar.
– Não estava com medo de usar sua magia ontem quando destruía as minas, por que hoje não quis usá-la então? – Ele esticou a mão para que Ira passasse de mim para ele, ainda estava me estudando, observando-me cautelosamente.
– Eu... preferia não ter esses poderes, prefiro evitar usá-los à toa.
– Não é por isso.
– Claro que é! – Retruquei.
– Vai mesmo mentir para mim? – Ele arqueou a sobrancelha e olhou para o mar. – Mesmo que não tivesse visto sua mente, saberia interpretar quando você mente. Não sou nenhum jovenzinho com a cabeça no mundo da lua, aprendi muito sobre as pessoas nesse tempo todo...
– É por causa da magia negra! – O cortei antes que começasse um sermão. – Muitas vezes as mesmas sombras que consigo dominar tentam tomar o controle, às vezes ficam tão fortes que não consigo diferenciar aliados de inimigos, igual ao que aconteceu ontem com os guardas, eu sabia que eles estavam apenas protegendo a cidade, eu queria só virar de costas e sumir, mas algo dentro de mim gritava para ir até eles e matá-los, e eu acabei cedendo. Não quero mais ser uma marionete, li sobre outros magos negros quando estive na ACV e sei como e por que foram mortos! – Desabafei sentindo um enorme peso sendo retirado de mim. Caalin havia parado de andar e agora me olhava fixamente, daria tudo para descobrir o que ele estava pensando a respeito.
– Nem o Yinemí consegue controlar isso?
– Não... às vezes perco o controle dele também, pouco tempo atrás eu quase destruí uma cidade, ouvi alguns homens falando sobre as jovens que eles estavam preparando para levar para um bordel... Eu perdi a cabeça, o prédio virou farelo de gelo quando toquei a parede. Foi sem querer, mas os dois poderes se misturaram ali. Queria não ter nenhum deles...
– Então foi isso... – Ele balançou a cabeça ainda me analisando, como se algo tivesse ficado claro para ele. – Nós precisamos treinar esses poderes, assim você pode ter mais controle sobre isso.
– Eu sei usar as duas formas de magia, tenho um bom controle sobre elas, só que as sombras ficam me atrapalhando!
– É o mesmo que não ter controle. – Ele retrucou.
– Não posso me livrar da magia negra, não é?
– Poderia, mas ela regula a força do Yinemí, se você se livrar dessa magia poderá perder o controle dele com facilidade... A não ser...
– A não ser o quê?
– Esquece! É muito arriscado.
– Agora fale! – Pedi agarrando seu braço quando ele voltou a andar.
– Vai precisar muito mais do que isso para me convencer a falar! – Ele riu, afastando-se casualmente, saindo da areia da praia por uma outra trilha íngreme, corri para alcançá-lo quando ele saiu do meu campo de visão por uma curva na entrada de uma floresta.
O Sol artificial que estava no céu quase não aquecia a superfície congelada de Vegahn, e por mais que eu gostasse do frio, que não permitia aqueles ossos horríveis doerem, sentia saudade de ter a pele bronzeada pelas horas aos sóis quentes de Ciartes, aqui eu havia adquirido uma cor branca leitosa que me irritava profundamente toda vez que olhava meu reflexo no espelho. Alcancei Caalin antes de ele entrar na estrada principal, Ira saltitava ao redor dele como um cãozinho adestrado.
– Você me disse uma vez que ele se chamava Ira por causa do temperamento dele, mas ele é muito dócil! – Caalin sorriu.
– É porque ele gostou de você, ele não age como um monstro na frente de uma dama! – Franzi o cenho e dei um baixo assovio.
– Ira? – O glacio virou a cabeça em minha direção como se tivesse entendido que eu estava falando com ele. – Não sou uma dama, sou uma caçadora sádica e sanguinária, não precisa ser fofinho na minha frente. – Pelo canto dos olhos, vi a expressão de Caalin endurecer pois usei as mesmas palavras que ele usou para descrever os últimos ataques as minas.
– Sabe que não quis dizer aquilo me referindo a você, não é?
– Ah, eu fui a única pessoa que atacou as minas de forma violenta nos últimos dias, então estava se referindo a quem? – Ele desviou o olhar e pigarreou.
– Desculpe.
– Hum. Não é porque sou jovem que sou burra, sabia?
– Não foi isso que quis dizer! – Ele estava sem graça. – Posso ser sincero?
– Por favor!
– Esse seu jeito de ser combina mais com você do que quando você tenta ser gentil! Você combina com a personalidade que tem, embora isso me assuste.
– Por que isso te assusta? – Cruzei os braços e franzi ainda mais o cenho.
– Por que eu nunca conheci mulheres assim, todas eram sempre doces, agradáveis, algumas mimadas, mas nenhuma era assim! Não sei como lidar com você! – Acabei rindo dele.
– Não sabe lidar comigo? – Parei de andar para encará-lo. – Não precisa saber... apenas fique por perto, está bem? Me desculpe se sou muito grossa às vezes, só não sei lidar com as pessoas de forma diferente.
– Não vou sair do seu lado, não se preocupe com isso, afinal, eu domei Ira, ele era menos selvagem que você, claro!
– Domar? Não, você não vai conseguir fazer isso! – Falei brincando.
– Quer apostar? Minha paciência é muito grande, isso é um requisito indispensável para um domador de feras. – Um sorriso malicioso apareceu em seu rosto e fez com que seus olhos brilhassem ainda mais. Acabei nem respondendo, apenas sorri e continuei andando ao lado dele.
5
A última mina
Caalin:
Entramos no limite dos campos de Haruyn, próximos à encosta norte de Blizzion onde a última mina ficava, Nikella caminhava em silêncio ao meu lado, parecia estar se divertindo com alguma discussão interna e pelas vezes que murmurava sozinha, podia estar muito bem ganhando aquela discussão. Talvez ela fosse apenas louca, mas isso parecia dar certo para ela, de certa forma.
– Não quer parar para comer alguma coisa? – Perguntei quando notei que estava próximo do meio dia, mas ela balançou a cabeça negativamente.
– Depois que nos livrarmos da mina, aí eu paro para comer alguma coisa. – Ela estava determinada a fechar a última mina, depois disso iríamos direto ao castelo encontrar com Aliver, e ver o que ele iria propor a ela. Esperava que ele não agisse com ela como sempre ao ver uma mulher bonita, ou teríamos um problema muito sério, não saberia dizer se por minha parte ou por parte de Nike, ela na certa quebraria os dentes dele.
Avistamos os muros que mantinham a mina isolada próxima à beira do penhasco, ao longe parecia mais uma prisão do que uma mina, acima dos muros havia longas grades de vitrino tão afiadas que até mesmo um pássaro, caso se chocasse acidentalmente a elas, seria partido em vários pedaços, as guaritas sobre os muros agora vazias, davam uma aparência ainda mais sombria ao local. Essa era a maior de todas as minas, o local onde aconteceu o maior derramamento de sangue, onde houve a última grande batalha de Vegahn pelo domínio de Blizzion, quando os Reis de Fernic e Paliath muito antes da destruição de Antares, tentaram tomar essas terras da rainha élfica Yriella, eles atacaram pelo mar, então a mina foi escavada no local onde a guerra se concentrou nos primeiros ataques.
– Não está silencioso demais para uma mina? – Nikella quebrou o silêncio da caminhada, apontando com o queixo na direção dos muros. – Quero dizer... era pra estar ouvindo pelo menos o som das pessoas trabalhando, não é?
– As guaritas também estão vazias. – Falei. Apressamos o passo, algo sobre aquela mina fazia uma estranha sensação inundar meus sentidos, uma espécie de bloqueio, olhei para Nike, para ver se ela também havia percebido algo de estranho, mas se estava não deixou transparecer. A floresta havia crescido ao redor das minas, de forma que a maior parte dela ficava às sombras das bétulas gigantes que cresceram ali, deixando o lugar ainda mais frio do que o normal e dando uma ilusão que existia algo além dos penhascos não muito altos bem à frente.
Os portões das minas estavam escancarados, como se todos tivessem fugido dali às pressas. Ira saltou diante de nós em seu tamanho real, estava rosnando e seu pelo estava eriçado, aquilo com certeza não era um bom sinal, mudei de forma também, não importa o que fosse, não era coisa boa que encontraríamos lá dentro. Nike pegou Siferath do pescoço e a posicionou atrás dela, preparando um ataque, entramos com cuidado, pé ante pé sem fazer ruído. O cheiro de sangue era antigo, velho e mofado, não havia sinal de que pessoas estiveram aqui nos últimos meses, tudo estava coberto por camadas de neve, as portas das salas das sentinelas haviam se soltado das dobradiças e caíram ao chão, o telhado de uma das áreas dos vigias também havia desabado com o peso da neve sobre ela e, no centro do pátio, a entrada da mina havia sido fechada com uma grande pedra redonda que aparentemente deu muito trabalho para ser arrastada até ali.
– Acho que algo muito, muito ruim espantou todos daqui! – Disse ela baixinho, tão baixo que sua voz não passava de um sussurro ao vento que uivava ao se chocar com as paredes. As sombras dos galhos que cresceram por cima dos mundos estavam cobrindo a maior parte do pátio.
– O que sabe sobre monstros em cavernas subterrâneas?
– O suficiente para saber que essa pedra só o segurou, pois o que quer que esteja aí dentro estava faminto e foi despertado por quem trabalhava lá dentro. – Ela parecia tensa.
– Um chute?
– Um dragão das águas, talvez ou um Demônio Aariguin.
– Esse demônio nunca ouvi falar.
– É um ser assustador que vive nas cavernas das montanhas geladas de Amantia, ele se alimenta de almas e cresce conforme as toma das pessoas, espremendo seus corpos até que a alma se desprenda. Eles precisam de muitas vítimas para ficar forte o suficiente, mas se for um e ele foi parado com essa pedra sem nenhum encantamento, creio que estava fraco e não conseguiu se alimentar.
– Qual dos dois você prefere enfrentar? – Questionei quando a vi encolher os ombros ao tocar na pedra.
– O dragão, sem dúvidas! Posso domar um dragão facilmente, mas um demônio desses, mesmo fraco... – ela estremeceu.
– Tem a ver com a magia negra? – Ela assentiu.
– Ele pode fazer com que eu perca o controle das sombras se eu me aproximar demais!
– Quer que eu cuide disso? – Ela revirou os olhos e segurou Siferath com mais força.
– Tenho esperança que seja um dragão, estou precisando de um bichinho de estimação que voe! – Nikella mostrou-me aquele sorriso sinistro que vi no primeiro dia na mina de Prestin.
– E como exatamente você aprendeu a domar dragões? – perguntei.
– O filho mais velho do meu mestre, Ariel, ele era domador de dragões e me ensinou muita coisa antes de trocar de profissão, no fim, ele virou comerciante de metais! – Ela bufou e esticou a mão para a pedra.
Nikella tocou a palma da mão na pedra, que começou a ficar branca, trincar e finalmente desintegrou transformando-se em uma fina chuva de lascas de gelo.
– Acho que a Alma de gelo era só um poder de destruição, por isso ela não passou ele para frente! – Disse ela analisando a pilha de gelo a seus pés.
– Pode ser... – Ela havia dito a verdade sobre controlar o Yinemí quase tão bem quanto eu controlava a energia, embora eu tenha tido muitos, muitos anos para treiná-lo, ela fazia como se tivesse o dom natural, como se fosse a verdadeira dona dele.
O cheiro não muito forte de metal e gás inflamável me alcançou no momento em que a pedra desapareceu, o túnel escuro que levava ao fundo da mina também cheirava a restos em decomposição e água salobra.
– Está com sorte, é seu dragão que está aí! – Ela sorriu e guardou a foice, então sem avisar desceu pelo túnel correndo em minha frente. – Nike! – Chamei, mas ela já havia desaparecido na primeira curva que o túnel fazia para baixo. Não tinha outra alternativa, a não ser segui-la, será que ela sabia que o líquido inflamável do dragão se transformava em gás e que qualquer fagulha poderia nos transformar em cinzas?
Ela estava parada em frente à entrada de uma galeria de vitrino, foi só quando parei ao lado dela que percebi o motivo dela ter parado ali. A escavação da mina foi tão profunda nas rochas de gelo que atingiu o paredão do mar de Ohm, com a alta da maré, a mina virou uma espécie de lago de água salgada e no meio do lago, uma pequena ilha feita de vitrino abrigava um dragão negro adormecido.
– Por que está tão cheio de gás se tem uma passagem aberta direto para o mar? – Ela perguntou dando um passo adiante, mas a impedi de prosseguir.
– Ele está adormecido.
– Ela! É um dragão fêmea! Pare de se preocupar à toa, não vai acontecer nada!
– Como sabe?
– Um ninho, ela está sobre um ninho e ela não é um dragão aquático! É um dragão negro da montanha das cinzas! – Ela estava sorrindo ao tentar novamente entrar na água para ir até a ilha onde o dragão dormia.
– Não existem dragões assim em Vegahn! – Falei impedindo-a de seguir em frente novamente. – Ficou louca? Vai fazer essa mina explodir se despertar o dragão! – Esbravejei o mais baixo que pude.
– Relaxa, ela não vai arriscar destruir o ninho se tiver um ovo lá dentro! – Nike estava disposta a teimar comigo.
– E se não tiver ovos? Já pensou no que te falei? Não existem dragões assim em Vegahn, Nikella! Ela apareceu aí por algum portal! Talvez até mesmo um dos prisioneiros que foi trazido para cá podia ser um mago que abriu um portal para trazer esse bicho e obrigar todos a fugirem! – Nikella torceu a boca novamente.
– Mas e se...
– Não tem como ter ovos ali! Sem um macho, de onde acha que ela ia arrumar ovos? – Nikella mordeu os lábios e me deu um sorriso malicioso.
– Vai que ela gosta de outras raças e pegou algum dragão aquático para variar? – Não sei se ria ou se batia nela.
– Você só pode estar brincando!
– É uma possibilidade!
– Não, não é! Dragões não fazem isso! Eles não são idiotas como nós de ficar misturando as raças! – Falei tentando encerrar aquele assunto.
– Eu vou até lá e vou pegar aquele dragão! – Ela bateu o pé.
– Se ela fizer uma fagulha com os dentes, tudo aqui vai explodir, nós vamos morrer e eu juro que quando chegar do outro lado vou te dar uma surra! – Ela apenas sorriu e entrou na água ignorando completamente minha ameaça. O lago era mais fundo do que parecia quando a água lhe cobriu o peito rapidamente, ela foi em silêncio, um silêncio felino até a ilha onde o imenso dragão se mantinha enrolado sobre o vitrino, aparentemente adormecido demais para sentir o cheiro do almoço se aproximando. Nikella não percebeu o deslocamento de ar quando a longa cauda do dragão se moveu para trás, para atacá-la. Fui rapidamente até ela para tirá-la dali, mas o dragão foi mais rápido, a longa cauda negra coberta por ossos espinhosos se aproximou dela tão rápido que não havia como impedir o choque.
– Para trás, você vai me atrapalhar! – Gritou Nikella para mim erguendo a mão e fazendo com que uma parede de gelo aparecesse ao seu lado. A cauda acertou a parede despedaçando-a, mas Nike já havia saltado sobre a ilha e estava de pé em frente ao dragão de olhos vermelhos que abria a boca, enchendo a caverna com aquele gás esverdeado.
– Nike, sai daí! – Gritei aproximando-me e desembainhando Blumarian.
– Já disse para sair! – Berrou ela desviando da investida do dragão, ele parecia lento, sonolento e com ataques fracos. – É muito velha!
– Isso não diminui a força dela! – Retruquei prendendo a cauda com grossas correntes ao chão. O dragão soltou um rugido que estremeceu as paredes do salão, irritado com o que eu tinha acabado de fazer.
– Mas diminui a velocidade! – Nike pulou por cima do pescoço do dragão, que ainda tentava se erguer com dificuldade sob o peso das correntes. Assustado com o movimento que Nikella fez sobre ele, o dragão ergueu a cabeça novamente e começou a raspar as presas gastas, Nike desequilibrou e escorregou sobre seu pescoço, caindo entre as asas do dragão.
– Ah! Merda! – Não ia dar tempo de sair dali antes que aquilo explodisse e nos levasse pelos ares ou nos transformasse em pó.
Nike pulou em minha direção, eu a amparei quando ela caiu de pé ao meu lado, agarrando meu braço e correndo para dentro da água.
O dragão ergueu o corpo do chão com dificuldade e se virou em nossa direção tentando criar uma fagulha, de soslaio pude ver a pequena chama vermelha se formando, não ia dar tempo de fugir.
– Eu disse... – comecei, mas Nikella parou no meio do lago e ergueu Siferath com a mão que não estava me segurando. Senti as sombras me envolverem também quando as marcas negras se acenderam em seus braços e seus olhos cor de vinho brilharam na escuridão da mina, no exato momento que ela lançou as sombras sobre o dragão junto com uma massa negra que fez uma redoma ao redor dele. Ela se colocou em minha frente protegendo-nos com uma bolha fina quando a massa negra ao redor do dragão se expandiu com um ruído surdo de uma explosão que fez a mina inteira estremecer. A massa que o cobria ficou vermelha brilhante quase como brasas expandindo-se ainda mais, Nike tocou a superfície da água enviando um pequeno fio branco até a massa que começou a solidificar. Não houve nenhum tremor, nenhum som alto suficiente para ser ouvido do lado de fora daquele salão.
– Eu disse que não ia acontecer nada! – Ela ousou dizer após algum tempo em silêncio dentro da água gelada. Ela tremia tanto quando saiu da água que mal conseguia ficar de pé. Só quando saí que notei minha mão suja de sangue, olhei para o braço dela onde o casaco de pele cinzento estava ficando com o braço esquerdo encharcado de sangue.
– Seu braço... – segurei gentilmente seu pulso, ajudando-a a tirar o casaco e virei um pouco seu braço para ver melhor, ela havia cortado o braço ao escorregar sobre o dragão, abrindo um corte profundo desde o cotovelo até quase o ombro.
– Não aconteceu nada, não é?
– Estava me referindo a explodir e a caverna desabar! – Disse ela virando o rosto para o outro lado, ela respirou fundo e colocou a mão sobre o corte, soltando um gemido de dor ao apertar a mão ali.
– Deixa que eu faço isso, pelo que me lembro, você disse que não gostava de usar magia! – Ela não reclamou, apenas tirou a mão e deixou que eu a curasse, o cheiro de seu sangue fez com que todos os meus sentidos ficassem ainda mais em alerta e tive que fazer um esforço ainda maior para não levar a mão suja de sangue à boca.
– Não gosto de usar essa magia, a que eu tinha antes eu gostava, ela não tentava ferrar a minha cabeça sempre que eu a usava para coisas simples! – Ela resmungou ainda sem querer olhar para o braço.
– Já está melhor, pode olhar se quiser... – passei a ponta do dedo sobre a fina cicatriz que aquele corte deixou.
– Obrigada. – Ela foi até a água lavar o braço e depois voltou até a bolha congelada que havia se formado no centro da ilha de vitrino. Ela girou a foice nas mãos e acertou a ponta que tinha uma lança na bolha, que se despedaçou deixando o gelo cair sobre nossos pés. O que ficou lá dentro foi espantoso, o fogo do dragão foi tão intenso que consumiu toda a carne dele deixando-o apenas no esqueleto e derreteu o vitrino ao redor dele, e na hora da explosão, o metal líquido o cobriu, transformando os ossos do dragão numa escultura gigante de vitrino. Ele estava com a cabeça virada em nossa direção com a boca aberta e a cauda de pé na hora em que foi queimado, ficando eternamente naquela posição de ataque.
– Será que o rei Aliver iria gostar de uma estátua de um esqueleto de dragão negro envolto em vitrino na entrada do palácio? Na certa isso intimidaria os visitantes e daria um ar de poder... – Falei admirando o fim trágico e belo que havia acometido aquela fera.
– Nem teve muita graça, ela estava velha e fraca! E eu sou uma artista mesmo quando não tento ser! – Ela estava sorrindo olhando a estátua, olhei para ela e notei que as marcas negras e a cor vinho dos olhos não haviam sumido. Mas ela não parecia ter se transformado em nada perigoso, ou pelo menos ainda não. A intensidade da fúria daquelas sombras me alcançou quando ela as conjurou, foi algo intenso e tão pesado que se eu ficasse um minuto sob influência daquelas sombras, poderia facilmente me unir a Higarath e destruir os mundos. Sacudi a cabeça tentando me livrar daqueles pensamentos e usei meus poderes para encolher a estátua a um tamanho que pudesse carregar dentro do alforje.
– Vamos embora?
– Sim, mas antes... – ela ergueu as mãos para cima, fazendo outra bola de energia negra e a levando onde o dragão estava. – Não pode ser! – Ela colocou a bola no chão que começou a pulsar e aumentar, então pegou uma coisa no chão e a enrolou no casaco sujo de sangue.
– O que encontrou aí? – Perguntei.
– Já, já vai saber! – Disse ela pegando meu braço e me puxando na direção da saída. Ao passar pelo lago atravessando as águas, ela pegou uma barra de vitrino que estava pendendo no teto do túnel e a levou para fora também, Ira estava esperando na entrada da mina, assustado demais para entrar, quando nos viu, saltou para cima de meu ombro enquanto corríamos para fora dos muros.
Quando alcançamos a estrada novamente, Nikella juntou as mãos como se fizesse pressão sobre algo, então a mina explodiu com um estrondo que balançou a terra com tanta força que nos derrubou no chão, as árvores deixaram o gelo acumulado cair sobre nós. A explosão foi tão poderosa que não só a mina foi destruída, mas parte da encosta desabou para o mar, levando parte da mina, da floresta e dos muros com ela. Fiquei olhando para Nike boquiaberto, ela cobriu a boca com a mão e me olhou mordendo os lábios para não rir. Seria realmente engraçado se não fosse apavorante. Ela só usou uma pequena porção de energia para criar aquela explosão, isso significava que conforme ela o usava, seu poder aumentava.
– Seu poder é igual ao poder de Sirius...diria que você é parente dele se não tivesse certeza de que você era humana! – Comentei observando as marcas sumindo lentamente de seus braços.
– Sirius tem cara de ruim! – Ela retrucou franzindo o cenho.
– Você também tem! – A provoquei conseguindo fazê-la corar.
– Vamos encontrar o rei agora? – Perguntou ela levantando-se e limpando a roupa suja de terra e neve.
– Não, quero ir a um lugar primeiro, depois dessa, preciso de uns dias de folga logo! – Ela acenou devagar olhando discretamente para a poeira e neve que ainda escorregava penhasco abaixo na destruição que ela havia causado. – Aliás, o que você pegou na caverna que não me deixou ver? – Ela sorriu maliciosamente apertando de leve o casaco nos braços. Depois de fazer um pouco de suspense, ela abriu as mangas do casaco, expondo um grande ovo azul rajado de negro dentro do embrulho.
– Não acredito... realmente tinha um ovo lá!
– Não apenas um ovo... é um ovo de dragão das águas com dragão negro! – Ela sorria de forma vitoriosa.
– Me recuso a acreditar que isso seja real! – Falei esticando a mão para pegar o ovo, mas ela o tirou do meu alcance soltando um rosnado.
– Você, fique bem longe dele! Quero que choque para provar que o que tem aqui é um dragão híbrido!
– Por que acha que eu faria alguma coisa com esse seu ovo?
– Não sei, vai que te dá vontade de comer omelete de ovo de dragão! – Ela ainda me olhava desconfiada.
– Não vou fazer uma omelete com isso! Pode ficar com seu ovo, o filhote nem vai notar a diferença de um dragão para outro! – Ela me acotovelou irritada e abraçou o ovo novamente, sorrindo como uma criança que encontra um filhotinho fofinho.
– A mãe dele parecia bem velha... – disse ela olhando distraída para o ovo. – Qual a expectativa de vida dos dragões?
– Depende da espécie, dragões de fogo vivem menos que os dragões aquáticos, os de fogo vivem em média seiscentos a setecentos anos, os de água chegam facilmente aos dois mil...
– Então quando ele chocar, vai envelhecer e morrer e eu ainda vou estar aqui, não é? – Ela olhou de soslaio para mim, apertando o ovo delicadamente nos braços.
– Vai. Humanos místicos, como são chamados os humanos híbridos dos imortais, vivem ainda mais que os humanos dos mundos com mandalas mágicas em volta... alguns séculos a mais, talvez.
– Então não sou imortal de verdade, igual a você? – Ergui as sobrancelhas e a encarei.
– Não somos imortais, Nike! – Nós apenas não envelhecemos mais depois de certa idade e morremos muito devagar! Mas todos nós morremos, se fossemos realmente imortais, você teria visto meu avô Haalin ainda reinando em Amantia e não o tataraneto dele! – Ela estava me olhando com surpresa contida nos olhos.
– Quantos anos ele tinha quando morreu?
– Pouco mais de dezesseis Mil...
– Mas isso é porque ele era um elfo, não é? Quero dizer, varia dependendo da raça também? – Sabia onde ela estava tentando chegar e sorri.
– Nike, eu tenho essa idade pois fiquei congelado por todo aquele tempo no gelo! Se não fosse isso... bom, talvez tivesse chegado a essa idade, Malvarmos vivem um pouco mais que Elfos! – Falei tentando tirar a expressão de medo dos olhos dela e torci para que ela não me perguntasse mais nada, mas como sempre, ela me contrariou:
– Humanos místicos como eu, vivem quanto tempo?
– Posso dizer que você vai viver mais que a sacerdotisa das águas que é hibrida de metamorfo e humano. – ela apenas assentiu.
– Para onde estamos indo? – Nike perguntou depois de andarmos por mais ou menos uma hora na estrada principal em direção à cidade de Madras.
– Vale do Sol. – os olhos dela chegaram a brilhar quando falei a palavra “Sol”. – Vamos apenas parar para comer em Madras, depois teleportaremos até lá!
– Tudo bem... mas falta muito para chegar?
– Mais uns quarenta minutos de caminhada! – Respondi, ela parou de andar e soltou um gemido. – O que houve? Está ferida? – Perguntei analisando-a rapidamente, procurando por algum ferimento que podia ter passado despercebido.
– Estou com fome! – Ela sentou no chão e começou a choramingar. – Não vou aguentar mais quarenta minutos! O que você acha que eu sou? – Resmungou com a voz chorosa, fiquei aliviado de não ser nada grave. Nunca, em toda a minha existência, alguém tinha conseguido me fazer passar por variações de humor tão rápido quando aquela menina sentada no chão, encarando-me com os olhos verdes brilhantes.
– Pode fritar esse ovo aí se quiser! – Brinquei ajudando-a a se levantar.
– Você é mau por dentro, Caalin! – Ela o abraçou ainda mais forte e fez biquinho para mim, aquela cara mexeu com algo em mim.
– Se apertar um pouco mais, vai quebrar e aí não vai nem poder comer, nem chocar! – Comecei a rir da cara de assustada que ela fez arrumando o ovo nos braços. Ira saltou de meu ombro e cresceu para que pudéssemos montar nele. Nike pareceu aliviada ao ver que não a obrigaria ir andando até Madras. A ajudei a subir, deixando que montasse atrás de mim, seus braços ao meu redor eram algo que podia facilmente ignorar, mas não seu cheiro caso ela montasse em minha frente, os cabelos roçando em meu rosto e a curva de seu corpo tocando em mim... afastei rapidamente os pensamentos antes que fizesse algo que poderia assustá-la ou pior, afastá-la.
– Vai enrolar a vida toda? – Ela resmungou espetando-me com as unhas, tirando-me de meus pensamentos, aquilo foi de grande ajuda, pois permitiu que minha concentração voltasse para chegar à cidade.
– Sabia que essas garras machucam?
– Você não tem nenhuma marca... é bom que assim eu deixo algumas em você! – Disse ela em tom de zombaria.
– Andou reparando em mim? – Sorri quando a senti prender o fôlego enquanto Ira disparava pela estrada em direção à cidade.
A torre de gelo vermelha que marcava a entrada no território de Madras podia ser vista a quase três quilômetros de distância, ela brilhava conforme o sol batia nela, hoje o dia não estava muito ruim, não estava nevando nem chovendo ao redor da cidade como era comum, estava um belo dia de sol, embora frio como sempre, parecia nos dar boas-vindas à cidade.
Porém, ao chegarmos próximos à entrada que era guardada por dois Ymir’s, notei um movimento estranho, uma tensão vinha dali de dentro. Desmontamos de Ira, que dessa vez não saltou sobre mim, mas pulou no pescoço de Nike, escondendo a cabeça debaixo de seus cabelos, qualquer um que olhasse de longe pensaria que era apenas um cachecol de pelos prateados.
– Vou fazer uma coisa e creio que você vai achar estranho... – sussurrei puxando Nike pelo braço para o meio das árvores que cercavam a cidade. Ela me olhava assustada, com os olhos arregalados.
– O que...
– Malvarmos podem tomar habilidade de qualquer um que eles matarem, sabe disso, não é?
– Sim, sei. Misty me ensinou isso nas aulas dela... você me trouxe até aqui para me matar? – Ela pegou a foice, vi seus olhos ficarem de cor vinho enquanto as sombras da floresta se arrastavam em nossa direção. Ira saltou de cima dela, chiando e preparando o bote.
– Calma! Não é nada disso! – Afastei sua mão da arma segurando-a contra o tronco congelado do pinheiro. – Eu posso mudar de aparência como um metamorfo! Só ia fazer isso! Por favor, afaste essas coisas! – Sussurrei percebendo que as sombras estavam perto demais. – Se fosse para te matar, teria feito na hora que te desarmei em Prestin! – Ela semicerrou os olhos.
– Tem que aprender a ser menos suspeito! – Em nenhum momento ela tirou os olhos dos meus. Sua respiração estava ofegante, ela estava com medo de mim. Não fazia sentido com o poder que ela tinha ter medo de mim.
– E você a ser menos desconfiada! Não faria sentido eu te matar agora!
– Faria, teve tempo suficiente para observar meus poderes e saber como eu os uso... até me comparou a Sirius. – Ela relaxou e as sombras se dispersaram.
– Seria difícil ganhar de você! – Admiti. – Te venceria apenas se você não usasse seus poderes, apenas com força bruta conseguiria te vencer. – Queria apenas provar, mostrar para ela que confiava a ponto de dizer a verdade sobre sua força. – Confio em você e espero que confie em mim!
– Confiança é algo que se conquista com o tempo, Caalin. Você não deveria confiar em mim. A última pessoa que confiou, que acreditou que eu não faria nada de mal contra ele...
– Não sou um pirralho fraquinho que cresceu num castelo brincando de guerreiro com os colegas de escola! – Grunhi. – Não me compare a ele! – Ela conseguiu me tirar do sério concluindo que conseguiria me ferir como fez com aquele macho inferior.
– Sinto muito, eu... – ela estava pálida quando desviou o olhar.
– Me desculpe... não costumo perder a paciência com tanta facilidade.
– Eu tenho o dom de tirar as pessoas do sério... – não parecia que estava falando brincando.
– Notei isso. – Respirei fundo tentando ficar calmo novamente. Usei meu poder para encolher minhas armas e as guardei no alforje, o coloquei no chão e escolhi um rosto aleatório para me transformar, um menino humano que vi patinando no dia em que fui até Mikale. Ele devia ter pouco menos de três anos, usei as habilidades de um mago metamorfo que matei quando estava a serviço de Cahadris. Nike soltou uma risadinha. – O que foi? – Bufei olhando-a de baixo para cima.
– Você está tão fofinho! – Ela colocou o ovo na bolsa que carregava, antes que pudesse entender a maldade em seu olhar, ela esticou os braços e me pegou no colo.
– FICOU LOUCA! ME SOLTA! – Acabei gritando com ela tentando me desvencilhar de seus braços, mas ela me apertou ainda mais e riu.
– Eu gosto muito de crianças! – Ela me colocou no chão novamente, apertou minhas bochechas e ficou ajoelhada em minha frente mordendo os lábios para não rir ainda mais.
– Ah! Me escute! Nos dias que você andou pelas cidades, ninguém viu seu rosto, não é? – Ela balançou a cabeça negativamente. – Bom, então precisamos trocar essa sua roupa preta... creio que a cidade esteja cheia de espiões de Ausiet, não podemos arriscar que eles te vejam aqui, ainda mais do meu lado, meu rosto é conhecido, o seu não. Logo atacariam Aliver achando que ele quer você por causa de seus poderes...
– Isso se aquele for seu rosto real... – Ela murmurou e estreitou os olhos para mim.
– Usar magia de metamorfose é horrível, faz com que eu me sinta mal e drena uma quantidade absurda de energia. – Ela continuou me encarando desconfiada. Fiz com que as roupas dela mudassem, colocando-a numa roupa de curandeira, o vestido longo branco com gola de pele de Yeti. Ela arqueou as sobrancelhas, jogou o cabelo para o lado e o trançou, cobriu a cabeça com o capuz felpudo, o contraste dos cabelos negros com a roupa branca a deixava ainda mais bela.
– Tudo bem, uma curandeira e... – Ela ficou de pé ajeitando o vestido e escondendo os dois pingentes entre os seios, puxando a gola de pele para que escondesse a arma.
– Vamos, qualquer coisa você é minha irmã, uma curandeira a caminho do treinamento no palácio.
– E se me perguntarem por que estou levando um pirralho comigo?
– Diga apenas a verdade, não temos mais pais, mas ainda temos um ao outro! – Ela sorriu e estendeu os braços novamente. – Não vai me pegar no colo de novo! – Rosnei saindo de perto dela, mas ela puxou meu braço.
– Nenhuma irmã mais velha deixa o irmãozinho andando na neve!
– Eu sou um malvarmo!
– Mas escolheu se transformar em um menino humano! – Ela ignorou meus protestos e me tirou do chão. – Pare de falar muito também, um menino com a sua idade não é tão tagarela! – Senti meu rosto esquentar, irritado com as provocações dela. Ela me encaixou em cima de seu quadril como se fosse um saco de batatas, minhas pernas, pequenas demais penderam em volta de sua cintura e na mesma hora me arrependi de ter me transformado em uma criança.
– Devia ter me transformado em uma garota da mesma idade que você! – Resmunguei.
– Assim chama menos atenção! – Nike me apertou contra ela enquanto andava de volta à estrada. O lado bom foi que pude apoiar a cabeça em seu pescoço enquanto ela andava pela estrada seguida por Ira. O cheiro de seu corpo causava uma grande desordem em mim, deixando meus sentidos primitivos ainda mais aguçados, embora mesmo que preso temporariamente num corpo humano, eles estavam alertas, porém focados apenas nela e isso nem de longe era bom, podia colocá-la em risco se não prestasse atenção ao meu redor. Estava com a mão em seu ombro e a deixei escorregar casualmente para suas costas. Nikella respirou fundo e me encarou por um instante antes de passar pelos Ymir’s que guardavam os portões, um olhar mortal e sombrio, um alerta silencioso. “Tire essa mão daí ou arranco esses dedos.” Quase pude escutar sua voz dentro daquele olhar e sorri discretamente, ela desfilou para dentro da cidade com passos firmes sobre o gelo arranhado da estrada, as botas batendo no chão com leveza, como se soubesse exatamente por onde andava.
– Para onde? – Sua voz foi apenas um sussurro.
– Terceira quadra a esquerda, entre dois prédios antigos, uma biblioteca e um bar, existe uma rua estreita, um beco na verdade, lá tem uma pensão que mais se parece uma casa de chá, fachada azul e branca. – Lhe passei as instruções o mais baixo que pude, qualquer um que nos visse, pensaria que era apenas uma jovem carregando uma criança resmungona, aquilo me irritava profundamente, mas quem teve a ideia fui eu.
Exatamente como eu suspeitava, havia vários espiões de Paliath na cidade espalhados por pontos estratégicos, alguns até mesmo nos telhados observando a movimentação intensa no interior das muralhas, eram rostos que eu conhecia bem, os poucos assassinos cruéis de Hobner que não cacei e matei, eles estavam armados até os dentes, procurando por qualquer sinal da Maga negra que havia destruído os negócios de seus mestres.
A cidade de Madras era uma das mais antigas de Blizzion, cada centímetro da antiga cidade lembrava uma fortaleza a céu aberto, as construções em pedras das montanhas brancas, nos dava a impressão de caminhar em um labirinto indestrutível, apenas as construções mais recentes nas redondezas da cidade principal, tiravam aquela horrível impressão de caminhar por uma prisão de pedras. As ruas cheias de comerciantes eufóricos e compradores impacientes, empurrando e tentando chegar às barracas onde os produtos com o melhor preço eram ofertados aos berros. Madras era uma cidade humana. Não me lembrava mais como era ser humano, mas ainda me lembrava como era ter os sentidos primários fracos, mesmo sendo possuidor de magia, aquele antigo bloqueio às vezes me causava pesadelos, pesadelos em que dependia apenas dos sentidos aguçados dos Malvarmos para sobreviver em um mundo hostil.
Os humanos ao nosso redor, com seus rostos rosados e sangue quente circulando nas veias, às vezes pareciam ser mais primitivos que nós, as bestas do gelo, suas vozes altas ecoando pelas ruas, o calor dos corpos fazendo com que a cidade parecesse menos fria e antiga do que realmente era.
Naquele momento, estava nos braços de uma humana tão diferente deles, Yinemí, ela realmente o possuía, não só a Alma de gelo, mas uma calma fria, letal que ela mesma desconhecia, que descobri em algumas lembranças, onde um humano comum teria agido emocionalmente colocando-se em risco, mas a mente dela agia de forma diferente, talvez essa calma que mantinha o poder de maga negra sob controle, ninguém em sã consciência diria que ela tinha apenas dezoito anos, para mim, ela facilmente se passaria por uma humana mística, uma sacerdotisa de pelo menos um século de vida.
Olhei para seu rosto perfeito, inexpressivo enquanto desviava dos compradores e andava graciosamente pelas ruas congeladas, seguindo para onde a havia mandado seguir. Ela virou na terceira quadra a esquerda, não questionou ou perguntou o porquê daquele lugar, apenas assentiu e seguiu.
A fachada de pedras pintadas de azul e branco ficou à vista assim que entramos na rua estreita entre os prédios sólidos. Nike subiu os poucos degraus e entrou pelas portas da pensão, o local assim como imaginava não estava tão cheio, a comida dali era uma das melhores da região, porém a localização não ajudava muito, mesmo assim continuava firme e forte. Nike me colocou no chão, mas continuou de mãos dadas comigo. Não havia percebido antes o quanto aquelas garras translúcidas e azuladas chamavam atenção, olhei em volta, as poucas pessoas que almoçavam no estabelecimento haviam parado de comer para olhar para ela. Talvez não tenha sido uma boa ideia vesti-la como uma curandeira, as roupas brancas destacavam ainda mais sua beleza, a longa trança negra que pendia ao lado do corpo e os olhos cor de jade.
Nikella estava chamando atenção demais para que eu pudesse usar magia e lhe colocar luvas, as garras eram de Malvarmos, isso era suspeito demais em uma mulher aparentemente humana. Ira andava em volta de seus pés como um gato doméstico, tentando ser o mais normal possível, talvez minha expressão adulta e séria demais também estivesse chamando atenção, então fiz o possível para suavizá-la.
Para meu alívio, Nike foi até uma das mesas de madeira nos fundos do salão, próximas às janelas que davam para uma das ruas do comércio, onde podíamos ficar de olho no movimento.
– Acho que esse disfarce que você arrumou para mim, está chamando mais atenção do que se eu tivesse entrando aqui com o capuz negro. – Disse ela olhando pela janela.
– Notei isso, mas acho que você chamaria atenção mesmo se estivesse usando trapos ou um véu cobrindo tudo! – Respondi o mais baixo que pude para não ser ouvido por mais ninguém, Nike deu um breve sorriso ainda olhando para fora.
– Quantos me caçando você viu?
– Dez... pelo menos dez, poucos andando pelas ruas e alguns nos telhados. – Outro sorriso ainda maior iluminou seu rosto.
– Me faz sentir importante! – Ela zombou. – É divertido ser a caça às vezes, ainda mais quando sei que não vou ser capturada!
– Você é muito convencida para uma menina tão jovem. – Falei. Seus olhos faiscaram quando ela me encarou.
– Não sou convencida, apenas me garanto! Também não sou arrogante!
– Tudo bem! – Falei baixinho abanando as mãos. Uma garçonete se aproximou de nós com um sorriso simpático no rosto, ela ofereceu à Nike o cardápio, mas ela fez o pedido sem ao menos olhar o cardápio. – Já veio aqui? – Perguntei.
– Não, mas sinto o cheiro dos temperos, então já sei qual é o especial. Merian trabalhava em uma pensão como essa na cidade do Sol.
– Mudando de assunto... não vi nada em sua mente depois que você saiu de Ciartes, como se virou aqui todo esse tempo?
– Sou uma caçadora! Vegahn como em todos os mundos, tem pessoas que precisam de gente que faça alguns servicinhos que a maioria não quer se arriscar a fazer. – Respondeu ela aumentando ainda mais o sorriso, assenti enquanto observava novamente o salão do restaurante, só então notei que presa à bolsa que ela carregava, havia uma estalactite de vitrino presa, coberta por um tecido grosso que não permitia a ninguém ver o que era, mas o metal tinha uma leve vibração que não havia notado até o momento.
– O que vai fazer com isso? – Estava curioso, vi quando ela pegou a barra, mas achei que fosse só para livrar o caminho para fora da mina. Nike não me respondeu, apenas fez outra pergunta:
– O quanto você é apegado nesse pedaço de metal barato que carrega consigo? – Nikella desviou os olhos para o alforje que pegou de mim na estrada e o colocou junto à sua bolsa sobre o ombro.
– Eu a comprei na fonte de ferro a cidade principal de Dakshin, isso logo depois que despertei! – Menti olhando seu sorriso aumentar.
– Era tudo que precisava ouvir. – Disse ela fazendo mistério e retirando as mãos de cima da mesa quando a comida chegou.
– Bom almoço, senhora! – Disse a jovem para Nikella.
– Obrigada, parece maravilhoso! – Ela piscou para a garçonete que saiu de perto da mesa com o rosto corado. Ignorei aquilo e estiquei a mão para puxar a travessa com o assado, mas ela não deixou que eu pegasse, ao invés disso, serviu um prato para mim, pegou uma quantidade pequena com a colher e trouxe em direção a minha boca.
– O que está fazendo?
– Se esqueceu de quem é você? Irmãozinho? Uma criança com a sua idade vai fazer bagunça na mesa! – Ela mordeu os lábios para não rir.
– Você está adorando isso, não está? – Franzi o cenho.
– Para ser sincera, estou sim! – Ela riu abertamente colocando o prato diante de mim. – Se você tivesse apenas mudado de aparência, escolhido um adulto qualquer, não precisava passar por isso!
– Ainda acho que assim chama menos atenção, os que estão atrás de você esperam uma maga negra, não uma garota com uma criança. – Ela suspirou e assentiu, arrastando o prato em minha frente e me deixando comer.
– Sem bagunça entendeu? – Disse ela um pouco mais alto para que as pessoas mais próximas escutassem, ela ainda me encarava, divertindo-se demais com o papel que estava fazendo.
6
Vale do Sol
Nikella estava satisfeita e radiante após o almoço, ela deixou que eu andasse para fora da cidade ao lado dela, mas em nenhum momento soltou minha mão. Era irritante estar no corpo de uma criança e ter que me movimentar e agir como tal, atrasando nossa saída da cidade, mas Nike não parecia incomodada com isso, ela andava olhando tudo, observando com olhos curiosos e cheios de interesse, absorvendo tudo. Ela estava definitivamente diferente de quando a vi em Ciartes a primeira vez, não apenas fisicamente, já que sem os sóis e o calor extremo, sua pele havia perdido o tom bronzeado, revelando o quão clara sua pele realmente era: um tom branco porcelana quase como uma malvarmo. Por mais selvagem que ainda parecesse, a Nikella que existia em suas memórias era outra, a de agora era mais segura, mais serena, embora ainda fosse uma menina audaciosa e de personalidade forte.
Passamos quase duas horas rodando pela cidade, para evitar chamar atenção, Nike parou em barracas aleatórias no mercado central e por vezes parou como se fosse para verificar se estava tudo bem comigo, nessas horas ela confirmava comigo a localização dos assassinos enviados por Hobner e Ausiet para caçá-la. Pelo menos três deles haviam desconfiado de nós e mesmo com todos os sinais de “normalidade” que tentávamos passar, eles continuavam nos seguindo a uma distância razoável.
– Deixe que venham. – Disse Nike quando nos aproximamos da saída leste. – Se eles saírem atrás de nós, pode ser uma oportunidade para uma conversinha civilizada! – Ela sorriu de forma que teria feito a alma de qualquer um congelar, seus dedos deslizaram sobre a perna, onde o par de adagas de vitrino estavam escondidas sob o vestido, que por sorte fiz parecer solto da cintura para baixo e não marcava as perigosas armas escondidas ali.
– Você poderia ter se tornado uma das mestras da ACV se tivesse permanecido em Ciartes! – Falei.
– Se tivesse ficado em Ciartes, eu teria me tornado capitã da guarda real... Ericko chegou a me dar o distintivo... – um traço de tristeza brilhou em seus olhos.
– Pode ser guarda real aqui também, ao que me pareceu, essa é a intenção de Aliver, se você não representar ameaça, claro! – Ela arqueou as sobrancelhas e soltou uma gargalhada divertida.
– E eu represento uma ameaça, na sua opinião? – Ela olhou distraidamente por cima do ombro disfarçando, mas analisando onde os perseguidores estavam.
– Depende... as sombras, essas sombras que te rodeiam, se você perder o controle sobre elas...
– Isso não vai acontecer! – Sua expressão ficou dura. – Eu prometi, ninguém mais vai tomar o controle sobre minha mente! Nada nem ninguém! – Fiz um breve aceno com a cabeça concordando com ela.
Passamos pelos portões que levavam a uma estrada larga de pedras, Ira vinha atrás de Nikella, montando a guarda e preparado para atacar a qualquer sinal de perigo. Minhas marcas acenderam quando fiz menção de mudar de aparência e voltar ao normal, mas ela acenou negativamente.
– Por quê?
– Eles não representam ameaça. – Ela parou de andar e se ajoelhou em minha frente e começou a arrumar o casaco que eu vestia, pretendia levar o disfarce até o limite. Um dos assassinos que eu não reconhecia saiu pelo portão sem ser seguido pelos outros dois e veio em nossa direção, parando à uma curta distância, a mão pousada sobre o punho da espada. Era um salamandra, a pele avermelhada e os olhos brancos característicos não deixavam dúvidas, mesmo sem os sentidos, podia perceber a cor de sua pele e olhos por baixo do grosso capuz de linho negro que vestia.
– Olá, senhorita! – Disse ele num tom ríspido, Nike desviou os olhos de mim para ele e sorriu com uma doçura que me chocou, parecia ter se transformado em outra pessoa.
– Olá, senhor... é um guarda da cidade? Fiz algo errado? – Ela endireitou o corpo para encará-lo.
– A conheço de algum lugar? – Ele deu um passo mais para perto, ficando a menos de meio metro dela, fazendo com que meu sangue gritasse em alerta, mas a pressão que ela fazia em meu braço indicava que ainda não era hora de agir.
– Não me lembro do senhor... algum cliente da Solaris, presumo? -– Ele ergueu as sobrancelhas, mostrando as presas afiadas num sorriso enorme.
– Nikella Modjim! Sabia que reconhecia seu rosto! – Ele puxou a espada e mostrou a ela. Era uma bela espada trabalhada em aço de brelim, obsidiana e marfim, uma obra de arte que deveria estar exposta em uma galeria, não sendo usada para matar pessoas.
– Lembro-me dessa espada! Tanarian, não é? – Ela sorriu e apertou a mão do salamandra, ele continuava encarando-a com expressão boba no rosto.
– Isso mesmo! – Ele pareceu feliz demais em ser reconhecido por ela – era um dos guardas de Hargas, mas decidi sair quando ele foi morto por voc... por aquele metamorfo com a sua aparência. – Ele suspirou.
– Sinto muito, se estivesse lá teria protegido o rei! – Ela fez o sinal de Ignis, colocando a mão sobre o peito.
– Tudo bem, não faz mal... já consegui outro trabalho, estou a serviço de Hobner, procurando por uma maga negra, mas não quiseram nos dizer o motivo, apenas temos que capturá-la viva. Infelizmente ela desaparece nas sombras! – Ele bufou e coçou a cabeça, deixando o rosto descoberto.
– Humm, não sabe que aparência que ela tem, não é?
– Não, ninguém a viu! Apenas procuramos por uma mulher coberta por um manto negro e que se move nas sombras...
– Espero que tenha êxito em sua missão! – Nikella aliviou o aperto em minha mão. – Agora preciso ir, estou aqui com Ariel em busca de materiais exóticos, passando umas férias longe do calor! – Mentiu ela sem nem ao menos ficar tensa ao fazer aquilo. Tanarian acenou e sorriu para ela, mas seus olhos se moveram dela para mim e sua expressão endureceu.
– Seu filho? – Ele perguntou franzindo o cenho.
– Não, claro que não! – Ela riu. – Filho de uma parenta minha, estou cuidando dele por uns tempos, ela está resolvendo problemas em outro mundo! – Ele assentiu ainda olhando para mim.
– Certo então, bom... qualquer coisa, se souber dessa maga negra, por favor, me avise! – Ele fez um breve aceno. – Mande lembranças ao rei Ericko quando voltar, ele me disse antes que eu saísse que você substituiria Claus. – Ele mantinha a voz casual, um pouco mais íntima do que deveria, o que estava fazendo com que eu me irritasse cada vez mais.
– Vou acertar isso ainda, não está definido que eu seja capitã da guarda dele... – ela sorriu. – Nos vemos outra hora, preciso mesmo ir, Tanarian! Boa caçada! – Ela acenou para ele por cima do ombro, já caminhando pela estrada e me arrastando, não percebi o quanto estava tenso até que ela me arrastou contra minha vontade para longe dele. O salamandra fez um aceno e voltou em direção à cidade. Olhei para Nike novamente, seu rosto estava indecifrável e ela estava trancando o maxilar.
– Será que se ele soubesse que eu sou a maga que Hobner está caçando, ele teria coragem de me enfrentar? – Ela olhou para trás, mas Tanarian já havia desaparecido pelos portões.
– Você acha que ele hesitaria em te levar até Hobner só por te conhecer? – Perguntei. Novamente aquele sorriso assustador desenhou em seu rosto.
– Eu o venci num duelo no V5... precisamos enfrentar os guardas do castelo para passar para o próximo nível daquela vez... claro que ele deve estar mais forte agora, mas mesmo assim, acho que ele não teria coragem!
– Você venceu um guarda real para passar para o V6? – A olhei espantado. – Que idade você tinha?
– Quinze anos.
– Vou mudar minha opinião de agora a pouco, você não é uma ameaça para Aliver, é uma ameaça para qualquer um! – Falei rindo, ela revirou os olhos, mas acabou rindo também.
Depois de nos afastarmos bastante da cidade pela estrada principal, ao chegar ao final da floresta voltei a minha forma normal, deliciando-me com a sensação de estar de volta ao meu corpo. Nike ficou observando enquanto eu me alongava, ela mantinha um olhar impassível sobre mim, mas em nenhum momento desviou o olhar.
– Gostando da visão? – Perguntei, ela acenou com a cabeça e um sorriso malicioso curvou o canto de seus lábios, porém ela ficou vermelha e revirou os olhos.
– Estava apenas imaginando como faria a espada, estava te analisando para saber a melhor forma para ela. – Disse ela mexendo na trança, perdendo-se em pensamentos novamente.
– Eu gosto de machados, na verdade, mas nunca achei nenhum que fosse realmente bom! – Falei, ela ergueu as sobrancelhas e sorriu. – Mas essa quantidade de vitrino não dá para fazer um machado longo, ou um par de machados curtos.
– Sinto muito, realmente não dá! – Ela suspirou olhando a barra envolta no pedaço de tecido.
Peguei Ira e dei a mão a Nike, estávamos longe o suficiente dos olhos de qualquer um para poder teleportar em segurança até Vale do Sol, então fiz com que o círculo aparecesse, poucos segundos depois de ver o clarão da magia de teleporte, a cor de outono daquele pequeno mundo no meio do gelo nos cercou.
Nikella:
Depois que o clarão da magia branca de teleporte de Caalin nos cercou, me esforcei ao máximo para não ficar tonta e vomitar, queria muito saber se era a única pessoa afetada por esse tipo de magia, pois não parecia que mais alguém sentia que ia perder o trato digestivo cada vez que pulava de um lugar para outro magicamente.
Abri os olhos devagar para ter certeza que o mundo ao meu redor havia parado de girar, porém ao olhar ao meu redor, perdi completamente o fôlego. Estávamos dentro de uma floresta imensa, não conseguia ver os limites dela não importa para onde olhava. Havia tantas espécies de árvores ali, a maioria com folhas marrons, avermelhadas e alaranjadas, se aquele lugar era de verdade, então era outono ali. O cheiro de folhas, terra úmida e bétulas trazidos por uma suave brisa refrescante, me fez querer deitar no chão coberto por folhas e ficar ali para sempre.
– Que lugar incrível! – Falei erguendo a cabeça e inspirando profundamente o perfume daquele lugar.
– Bem-vinda ao Vale do Sol! – Ele sorriu para mim apontando para o horizonte, onde o sol iniciava a descida indicando que o entardecer estava próximo.
– Não sabia que existiam lugares assim em Vegahn! – Acima das árvores, havia uma enorme mandala, uma proteção ao lugar, que era na verdade uma redoma gigante protegida da neve e do frio.
– Eu que fiz esse lugar, se você reparar bem isso aqui é exatamente igual a floresta de Arcádia, em Amantia. – O encarei surpresa.
– Nunca fui lá, só conheci o castelo de Cristal e o Templo de Fogo.
– Eu nasci em Arcádia, é meu lugar favorito em Amantia. – Ele olhava com carinho para a imensa floresta ao nosso redor.
– Quero conhecer a original um dia! – Sorri admirando aquela paisagem ao máximo.
– Aqui ficava a antiga cidade do Vale das Sombras, a cidade foi destruída na última grande guerra. Depois que despertei, o rei me deu essas terras como pagamento à proteção que eu dei ao reino, então fiz esse lugar ficar assim. – Ele explicou abaixando-se e pegando um punhado de terra escura com as mãos.
– Então estamos sobre uma mina de vitrino? – Perguntei sentindo a vibração sutil sob meus pés.
– Sim... eu a lacrei quando criei isso, mas atrás de minha casa existe uma cachoeira, e passado pelo véu de águas existe uma grande quantidade de Vitrino azul, iguais a esses dos seus braços. – Olhei para as garras azuladas que se projetavam para fora de meus dedos, onde antes havia unhas curtas e bem cuidadas.
Eu odiava unhas longas, pois sempre me feria com elas, mas tive que me adaptar a essas garras, pois nada que eu tentasse conseguia lixá-las ou gastar as pontas perigosamente afiadas. Caalin começou a andar, seguindo uma estreita trilha de pedras marrons e amareladas, que estava ao lado de um rio de água cristalina. Conforme caminhávamos o sol nos banhava com sua luz alaranjada, passando entre os galhos das árvores e fazendo longas sombras se projetarem pela floresta. Ainda estava frio, mas não o suficiente para me fazer usar um casaco.
Andamos por mais ou menos meia hora até avistar uma casa de madeira em meio às árvores, ela não era grande, era bem simples e rústica na verdade, mas não deixava de ser bonita. A madeira havia sido coberta por hera em algumas partes, o que deixava a casa com aparência antiga.
Subimos os três degraus da varanda coberta até a porta que não estava trancada, apenas encostada e como na Árvore do Fogo, não havia nenhum sinal de poeira. Caalin colocou o alforje sobre o banco de madeira na varanda antes de entrar, respirei fundo e o segui para dentro. A casa tinha um agradável aroma de canela e plumeria, a cozinha e a sala eram separadas por um longo balcão de pedra esverdeada polida.
– Fique à vontade para olhar tudo por aí! – Disse ele indo até a cozinha, Ira o seguiu enrolando-se em seus pés, provavelmente pedindo por comida. Observei tudo em volta, cada detalhe da decoração, os castiçais de prata e pedras sobre uma grande lareira no meio da sala, ao lado dela uma estante cheia de livros, percorri os dedos sobre os títulos, alguns eu já havia visto na biblioteca da ACV, embora a casa tivesse luz elétrica igual às casas em Ciartes, a maioria das luzes vinha de velas espalhadas pela casa.
No canto da sala havia uma porta que levava a um corredor onde havia três portas de madeira, a última levava a um banheiro com uma pequena banheira de louça amarela com detalhes de vidro. As outras duas portas eram quartos, um com uma cama de casal, uma poltrona e uma estante com livros e o outro um quarto com uma grande cama com dossel de pedras brancas, que pareciam estar empilhadas umas sobre as outras e faziam um arco, fechando-se no topo da cama. Saí de fininho de volta para a sala, onde Ira estava deitado sobre o tapete. A casa era mais fria do que podia imaginar, e isso não me incomodava, muito pelo contrário, já havia me acostumado com o frio de Vegahn, talvez não conseguiria dormir se estivesse no calor novamente.
Caalin estava na cozinha, ele havia colocado algo no forno e passou por mim, entrando pela porta no canto da sala em direção aos quartos. Peguei o ovo na mochila e o observei com cuidado, o dragão estava tentando chocá-lo da forma que ela sabia, mas por ser um ovo híbrido aquela forma de chocar poderia estar errada. Talvez Caalin tivesse razão e o ovo não chocaria. Mas os dragões marinhos nasciam nas águas quentes, próximos aos vulcões submersos. Precisava pensar em um jeito de fazê-lo chocar de qualquer maneira, pensaria num modo de fazer isso.
Ouvi o som de água, Caalin devia estar tomando banho, o imaginei dentro da banheira e senti o rosto corar, para desviar minha atenção do som das águas, peguei Ira no colo e fiquei coçando sua cabeça, em resposta ele ronronou alto e pressionou o focinho contra minha bochecha.
Ele apareceu novamente vestindo apenas um moletom, com o cabelo amarrado num coque sobre a cabeça e uma toalha sobre o ombro, não conseguia acreditar em como ele era bonito, porém tão antigo que não devia me meter com ele, sempre que o olhava algo soava em minha mente como um alerta, e isso era o suficiente para me manter a distância, fora que não conseguia parar de me sentir culpada, toda vez que olhava para Caalin, que o desejava, me lembrava de como falhei com Kuran, lembrar dele fazia algo se rasgar dentro de mim e por mais que tentasse, não conseguia me livrar daquela culpa.
Caalin passou por mim e deu um sorriso casual, foi até a porta de entrada sumiu pela varanda, voltou pouco depois sem a toalha sobre os ombros e foi direto para a cozinha, ele abriu o forno para olhar o que quer que fosse que colocou lá e o cheiro de assado preencheu o ambiente, fazendo meu estômago roncar.
– Você sente fome o tempo todo? – Perguntou ele olhando-me de canto de olho.
– Nem sempre, normalmente quando estou com sono, não sinto fome! – Ele riu com minha resposta e voltou sua atenção para preparar o jantar. Fiquei observando-o se mover, os ombros largos desenhados e perfeitos, sem nenhuma marca exatamente como tinha visto na primeira noite na estalagem, ele não tinha nenhuma marca ou cicatriz no corpo, exceto por uma pequena cicatriz de um corte próximo as costelas.
Ele parecia muito íntimo à cozinha, isso parecia estranhamente familiar, mas estava me irritando ficar observando-o de longe sem poder me aproximar. Não conseguia entender o porquê de ter me apegado tanto a ele, nem conseguia compreender o carinho que sentia por ele, a vontade que tinha de ficar perto dele e isso me assustava, não costumava me apegar tão rápido a pessoas que não conhecia. Talvez fosse um sentimento ligado ao fato de ele me conhecer pelas minhas memórias, ou pelo modo que ele me tratava sempre de forma tão gentil. Ele é um malvarmo de mais de vinte mil anos. E ainda assim, com toda minha habilidade e anos de treinamento com Merian, consegui tirar Caalin do sério.
– Do que está rindo? – Ele se aproximou, trazendo-me um copo com água. Olhei para ele sem entender, só então percebi que estava rindo de meus próprios pensamentos.
– Ah, nada! Estava apenas lembrando de uma coisa... – meu rosto esquentou. – Com licença! – Falei levantando-me rapidamente e fui até o banheiro no final do corredor. Ele não havia tomado banho ali, pois a banheira estava seca e o espelho sobre a pia não estava embaçado, na certa havia outro banheiro no quarto principal. Abri a água, deixando a banheira encher de água morna, quase fria, tirei o vestido de curandeira e o pendurei no gancho ao lado da porta e entrei na água e fiquei ali de molho enquanto tentava colocar todos os pensamentos em ordem.
Era tudo que eu não precisava agora, começar a ter sentimentos por Caalin. Não queria alimentar esse sentimento, isso poderia feri-lo, embora tivesse certeza de que ele era muito poderoso, não confiava em mim com aquelas sombras tentando me dominar, fora que ele devia ter muitas pretendentes na corte de Aliver, não havia espaço para uma criança, uma caçadora em sua vida.
– É bom esquecer isso, Nike, ou você vai acabar ficando igual a Asahi! – Murmurei baixinho para mim.
Caalin:
Graças as memórias de Nike que vi, sabia que ela não tinha nenhuma habilidade na cozinha, então comecei a preparar o jantar assim que chegamos a minha casa. Nike havia ficado sem graça por algo que fiz, ela saiu rápido demais da sala e foi para o banheiro. Terminei de fazer o assado com batatas e fiz uma salada, por mais que não me desse mais energia comer comida humana, ainda gostava do sabor que ela tinha, então já que não me fazia mal, não me importava em comer também, embora teria que sair para caçar mais tarde.
Nikella apareceu poucos minutos depois, ela ainda estava com o cabelo trançado, mas agora usava um vestido preto de alça, na altura dos joelhos, o pingente da Árvore do Fogo agora estava bem aparente ao lado da corrente de sua foice. Aquele simples ornamento me tirava do sério, gostaria de tirá-lo dali, mas não consegui ver nada sobre os sentimentos dela em relação àquele objeto, também não tinha nada entre nós para que eu pedisse que ela o retirasse.
– Você gosta de preto, hein! – Falei observando o suave movimento do vestido quando ela se aproximou e sentou-se à mesa, como o tecido escorregou sobre as pernas quando ela puxou a cadeira para frente, colocando os pés sobre o apoio da cadeira e me encarou, os olhos verdes faiscantes com uma expressão divertida.
– Era meu sonho usar o uniforme negro da academia, acabei cismando com essa cor... – Ela sorriu.
– Por que queria tanto assim ser uma caçadora? – Perguntei servindo um prato para ela, que não protestou.
– A princípio, como você viu, eu queria apenas me vingar. Mas depois eu queria me tornar a melhor, provar que podia estar entre os melhores mesmo sendo apenas humana. – Ela suspirou e comeu um pouco. – Por que sempre os humanos? – Ela parecia estar perguntando para si.
– Desculpe, o quê? – Ela me encarou e ficou corada novamente, como suspeitei, foi apenas um pensamento alto.
– Ah, é porque em todas as histórias que li, os humanos eram sempre escravizados por outras raças, nunca o contrário...
– Talvez porque essa é uma rixa antiga, enquanto os humanos tentam destruir todos que são superiores, que tem mais força ou que podem ser uma ameaça para eles, mesmo não demonstrando isso, claro. Alguns mágicos, não todos, tentam escravizá-los por serem mais fracos, mais fáceis de serem dominados, os humanos não lutam, não resistem ao serem capturados e terem os grilhões em seus braços e pernas. Agora tente fazer o mesmo com um elfo, um silfo, um metamorfo... eles irão lutar, irão defender os irmãos! Humanos são individualistas, poucos são os que realmente se importam os semelhantes e esses nunca estão entre os escravos, quando estão, são os primeiros a morrer, pois os que colocam os grilhões sabem que eles podem mover as massas... – expliquei, ela havia parado de comer para ouvir minha explicação. – Você é uma dessas, igual minha mãe foi mesmo sendo hibrida. Ela viu a necessidade de todos e criou os mundos perfeitos para cada criatura viver e deixou os humanos em paz na terra, mas Higarath destruiu a harmonia que ela criou e corrompeu muitas das criaturas que antes viviam em paz, escureceu seus corações...
– Não diga bobagens, eu não sou assim, não sou uma pessoa boa, nem de longe seria como ela! – Ela grunhiu soltando o garfo e pegando a taça de vinho que havia servido para mim.
– Por que pensa assim? – Falei observando-a virar o vinho em um gole.
– Sei que não sou... – Sabia que ela estava pensando apenas nele, em como o feriu. Devia dizer que ele estava vivo, mas não queria que ela voltasse correndo para Ciartes, tinha certeza que ela faria isso e preferia que ela ficasse um pouco mais, de preferência, para sempre.
– Só o fato de ter se tornado uma maga negra e não ter sido controlada pelas sombras já diz muito a seu respeito, as sombras só tomam os corações escuros. Se não houvesse nada de bom aí, elas teriam te controlado no momento em que a marca do selo sombrio apareceu. – Disse tomando a taça de sua mão a enchendo, mas não deixei que ela pegasse. – Isso não é pra crianças! – Bufei quando ela esticou a mão para pegar a taça novamente.
– Malvado! – Ela fez biquinho, quando percebeu que o truque não funcionou comigo, ela bufou e comeu mais.
– Gostou?
– Está muito bom! Quando aprendeu a cozinhar assim?
– Faz muito tempo, foi meu avô que me ensinou... O elfo que adotou minha mãe, na verdade!
– Um rei cozinheiro! – Ela riu – Interessante!
– Mais interessante ou devo dizer estranho é uma mulher que não sabe cozinhar! – Retruquei.
– Para ser sincera, eu nunca tentei aprender! Estava focada em outras coisas!
– Entendo...
– Meu irmão dizia que eu nunca ia me casar por isso, ninguém ia querer alguém violenta como eu e que não sabe cuidar de uma casa!
– Seu irmão é um idiota, não importa o que a pessoa sabe fazer ou não, o que importa é quem ela é e o que representa para seu parceiro! Julgar uma pessoa por suas habilidades é algo que pessoas vazias costumam fazer! – Falei, Nikella arqueou a sobrancelha e sorriu, ela havia pegado a taça da minha mão novamente enquanto estava distraído falando com ela.
– Mas se as habilidades fossem importantes, o fato de saber cozinhar te ajudou em alguma coisa? – Ela perguntou.
– Muito, na verdade, Mary não sabia cozinhar nada, nada mesmo!
– Mary?
– Minha esposa. – Vi seu rosto empalidecer ligeiramente quando falei quem era.
– Não sabia que era casado.
– Fui, há muito tempo, antes de Sirius e Áries responderem ao chamado do círculo! Mary era uma fada, a princesa de Treezer. Nossos filhos teriam morrido de fome, pois Mary se transformava em beija-flor e nunca se alimentava em forma parecida com a humana. – O rosto dela ainda era nítido em minha mente, a pele rosada e os olhos coloridos, os cabelos curtos de cor azul. – Nike estava olhando para o nada em silêncio.
– E onde ela está agora? – Perguntou com a voz diferente. Respirei fundo, ainda não era fácil lembrar daquilo sem me sentir culpado.
– Quando Antares morreu, ela destruiu sem querer dois mundos, Treezer e Bogkhar, aqui ainda estava acontecendo a última grande guerra, eu os tinha mandado ficar com a mãe dela, Frayena, no castelo das flores em Treezer. Ninguém conseguiu sair dos mundos a tempo. – Suspirei – Ayran e Lenios tinham a mesma idade, eram gêmeos.
– Sinto muito! – Nikella apertou as mãos sobre o colo.
– Não sinta, eles são os protetores da guardiã de Mogyin! Embora não possam sair de lá, estão a salvo de Higarath, pois Mogyin é o único mundo que ele não pode entrar!
Nikella se levantou e começou a tirar a mesa.
– O que vai fazer?
– Limpar isso aqui!
– Pode deixar, eu faço isso! – Falei.
– Nem pensar! Eu não sou tão inútil dentro de uma casa quanto pareço! Só não sei cozinhar! – Ela foi até a pia e lavou a louça.
Depois de terminar com a louça, ela sentou perto da lareira e acendeu o fogo, colocando pouca lenha, deixando apenas alguns tocos.
– O que está fazendo? – Perguntei me aproximando, ela mostrou o ovo, depois de mexer no fogo e deixar apenas brasas, ela o colocou entre elas, mas puxou as mãos rapidamente.
– Droga.
– Ainda dói muito quando se aproxima do calor? – Segurei sua mão, que estava quente e avermelhada. Ela assentiu e suspirou olhando para as garras de vitrino.
– Isso vai passar? – Perguntou ela encarando-me.
– Sinto muito... é isso que eu sinto no corpo todo se chegar muito perto do fogo. – Ela arregalou os olhos. – É o que todos os Malvarmos sentem, nós não detestamos calor, simplesmente não conseguimos nos dar bem com o fogo.
– Isso não impede de gelo e fogo ficarem próximos, não é? Sirius e Áries...
– Eles são doidos! – Comecei a rir. – Mas em suas formas humanas, eles não afetam um ao outro.
– Eu não arriscaria!
– Mesmo se pudesse ficar com Kuran novamente? – Me arrependi da pergunta assim que a deixei escapar. Seus lábios ficaram pressionados numa linha fina e ela virou o rosto na direção das brasas.
– Qualquer sentimento que eu tinha por ele morreu na hora que disse que iria me queimar viva. – Ela falou num rosnado. – Seria uma idiota se depois daquilo eu o perdoasse, ninguém merece ter alguém do seu lado que não confia em você, que não te dá uma oportunidade para se explicar. – Ela voltou o olhar para mim, não era raiva que estava marcado ali, talvez rancor, ou mágoa.
– Me desculpe, eu... – ela sacudiu a cabeça.
– O que me dói, foi saber que eu não tive controle, que eu fiz aquilo com ele e nem tentei ajudar. Mas eu fui até a mãe dele e Annie, sabia que elas precisavam de mim. A culpa que me consome é que ela tinha certeza que eu os protegeria, ela o confiou a mim e eu não pude protegê-lo no fim das contas.
– Não era você! – Falei.
– Era meu corpo. – Ela suspirou e se levantou. – Se não se importa, eu preciso dormir! – Nikella se levantou, deixou o ovo no calor das brasas e pegou Ira no colo e seguiu para a porta no canto da sala, desaparecendo pelo corredor. Devia ter ficado em silêncio, ou talvez ter dito a verdade sobre Kuran, testá-la, saber se ela realmente sentia apenas culpa.
Saí para caçar pouco depois de ter ouvido sua respiração ficar calma e ritmada, de ter certeza de que ela estava dormindo. Dei um baixo assovio para que Ira me acompanhasse, ele também precisava caçar. Malvarmos eram pacíficos, apenas humanos mais fortes e resistentes ao frio, mas Higarath fez o favor de torná-los amaldiçoados por serem uma criação de Ayrana.
Ele queria fazê-la sofrer, prejudicá-la ao máximo atacando seus filhos. Assim, os Malvarmos se tornaram em parte como os vampiros, porém não sofríamos com a exposição ao sol, mas o calor extremo poderia nos matar. Ira mudou seu tamanho e correu ao meu lado para fora da bolha que protegia a floresta que eu criei. Vale do Sol havia sido criado em homenagem ao lugar em que nasci, e que minha mãe deu seus últimos suspiros.
Do lado de fora da proteção, corremos para o desfiladeiro branco, onde algumas criaturas de sangue quente habitavam e se escondiam.
– Sem sujeira, Ira! – Sussurrei ao nos escondermos em uma geleira, um urso polar estava em uma caverna não muito longe de onde estávamos, dava para sentir o cheiro à distância, aroma doce e fresco da energia pura que emanava dele.
Fomos rápidos, sem deixar vestígios do ataque, o urso nem sequer percebeu o que havia acontecido. Embora preferisse o sangue humano ou metamorfo, estávamos longe demais de qualquer cidade para colocar as presas em alguém, já que atacando o urso, Ira também teria um jantar farto. Por mais que pudesse viver tranquilamente sem o sangue, ele aumentava nosso poder, velocidade e domínio da alma.
Por mais que tivesse a certeza que Higarath tentaria pegar pelo menos duas das seis Almas antes de nos atacar, preferia estar prevenido. Não podia deixar que ele se aproximasse de Nikella, se ele lhe tomasse a Alma do gelo, não teríamos esperança. Tinha que haver um bom motivo para Ayrana lhe dar aquela Alma e eu precisava descobrir o porquê, a testaria amanhã, testaria seu treinamento de caçadora, só então poderia ter a certeza de que ficaria tudo bem.
Voltamos para casa rapidamente, por mais que somente eu pudesse teleportar para dentro da proteção de Vale do Sol, era arriscado demais deixá-la sozinha, um mago com mais habilidade poderia facilmente desfazer o bloqueio e entrar ali, só esse pensamento foi o suficiente para que corresse de volta a casa e entrasse direto. Fui em direção ao corredor estreito, abri a porta do quarto de hóspedes, não sei em que estava pensando ao colocá-lo ao lado do quarto principal.
Ela estava lá, deitada com o rosto sobre os braços cruzados e dormia profundamente, os lábios rosados desenhados num sorriso divertido, o que quer que estivesse sonhando, era algo alegre. Com um manto de cabelos negros cobrindo parcialmente as costas, o vestido havia sido substituído por um short curto de seda e nada na parte de cima, ela estava deitada de bruços, por sorte, pois não dava para ver nada além das costas marcadas expostas. A janela estava aberta e a brisa suave e fria da noite entrava por ela fazendo os cabelos se movimentarem sobre seu corpo como se tivessem vida própria. Tive que usar toda energia que havia absorvido para dar meia volta e sair do quarto, deixando Ira para trás que saltou sobre a cama e se enroscou ao lado dela. Queria ir até ela e tocar aquela pele macia, mas isso iria além e ela não estava pronta para mim, não era a hora certa para me aproximar, teria que esperar um pouco mais.
Fui até meu quarto e me deitei, nunca senti tanta inveja de um felino em toda minha vida, ele provavelmente estava tocando em sua pele quente e macia agora, enquanto eu teria que permanecer só. Fiquei imaginando como seria o gosto do sangue dela, o sangue da linhagem de Shurin... tive que afastar aquele pensamento também, para não correr o risco de acordar no meio da madrugada e ir até ela, se o fizesse, era bem provável que Nike tentasse me matar, ela não ia deixar ninguém por as presas nela, nem mesmo eu.
No outro dia, fiz o café e a acordei cedo para treinar, queria testá-la, testar o que aprendeu na ACV, saber se realmente poderia enfrentar Higarath se fosse preciso. Quando falei que íamos treinar, ela engoliu o café rapidamente e foi para o lado de fora, para o meio da floresta onde os pinheiros mais altos faziam sombras no lago a favor do sol nascente.
– Vai mesmo querer me testar? – Nikella era extremamente convencida.
– Eu que deveria perguntar isso! – Falei me aproximando e lhe entregando uma espada simples. Ela olhou a espada e torceu o bico. – Sinto muito, não temos ferreiros excepcionais como você em Vegahn, nossas armas são todas “inferiores”! – Ela corou e sorriu, girando a espada na mão e deixando sua foice encostada na árvore mais próxima.
– Acho que me aposentei, não consigo mais me aproximar do fogo, então não tem mais como forjar as armas. – Pude ouvir a tristeza em sua voz quando ela disse aquilo, dando um olhar carinhoso à foice.
– Vamos, quero ver do que você é feita! – Nikella mostrou os dentes de forma zombeteira, mas seu olhar mudou quando ela se posicionou para atacar, um olhar sombrio, determinado que causou arrepios em mim, me fazendo lembrar de um alguém com o mesmo olhar. Girei a espada na mão e a ataquei, para a minha surpresa, sem usar magia, Yinemí, ou as sombras da magia negra, ela desviou do meu primeiro golpe. Só um teste, apenas para ver a que velocidade ela conseguia se mover sem usar a transformação. De novo a ataquei, com mais velocidade e precisão dessa vez, movendo a espada na direção do seu pescoço.
Ela não teve tempo de bloquear ou desviar, apenas parou e não ousou respirar com a lâmina a milímetros de sua garganta. Bufou frustrada quando ficou em guarda novamente, e me atacou, ela era rápida, mais do que podia imaginar e muito precisa também, porém não conseguia se equiparar a séculos de treinamento. Depois de mais de sete tentativas de me desarmar e tendo minha espada a milímetros do pescoço, ela desistiu jogando a espada no chão.
– Odeio essa porcaria! – Resmungou chutando a espada para longe.
– Não consegue usar a espada direito, ou percebeu que não pode me vencer? – Ela quase soltou faíscas pelos olhos ao pegar a foice.
– Não gosto de espadas! – Ela bufou girando a foice sobre a cabeça e se posicionando novamente. Dei alguns passos lentamente em sua direção e parei a menos de um palmo dela, tirei as adagas que ela mantinha nos cintos das pernas, deslizando meus polegares de leve sobre sua pele. Ouvi sua respiração acelerar quando me afastei novamente, apenas uma pequena provocação.
– Não quero que quebre Blumarian com esse instrumento da morte que você tem ai! – Falei, ela ainda me observava atordoada, não entendi o que tinha feito que a deixou assim.
– Disse que não tinha apego nenhum a ela!
– Pois é, mas prefiro que não a quebre! – Girei as adagas nas não e me preparei, notei que as sombras ficavam mais fortes perto dela quando ela usava Siferath, nome carinhoso que ela havia dado à foice. “Separadora de almas” parecia mais que um nome para uma arma mortal, soava mais como uma promessa, algo letal. Nikella atacou tão rápido que só tive tempo de formar um escudo com as adagas, a lâmina da foice havia sido parada a alguns centímetros do meu rosto, então lhe dei uma rasteira e pulei para fora de seu alcance, Nikella se levantou num pulo ágil e novamente estava atacando com velocidade mortal, os olhos cor de vinho e as marcas negras no rosto e ombros mostrava que ela estava usando o poder do selo. Ótimo! Queria jogar o mesmo jogo.
Não precisei usar a Alma dos raios, apenas a transformação de malvarmo, o corpo maior e mais pesado, porém mais ágil e letal. Ela nem sequer se assustou quando mudei, apenas sorriu e mudou de aparência também, se ela não ficava chocada com minha aparência, eu por outro lado, ficava completamente chocado com a dela. Nike havia conseguido dominar a transformação completamente mesmo sendo híbrida de forma forçada, ela misturava a transformação de maga negra com a de malvarmo, os dentes pontiagudos e o cabelo branco contrastavam com às marcas negras e os olhos cor de vinho.
– Nem precisa lutar, é fácil assustar os oponentes assim! – Sorri. Ela arqueou a sobrancelha e ficou olhando para seu reflexo no lago.
– Estou tão mal assim? – Ela fez um bico.
– Está linda! Mas de uma forma assustadora! – Bati as adagas uma na outra para que ela voltasse atenção à luta. Ela se aproximou movendo-se suavemente como uma pantera e voltamos ao treino, mesmo com a velocidade aumentada pela transformação, ela ainda não era páreo para mim, depois de mais alguns golpes em que a desarmei, sem machucá-la e parei a adaga em seu pescoço, ela ficou irritada novamente e jogou as armas para longe, sentando no chão. Sentei ao seu lado e lhe entreguei as adagas, que ficou brincando com elas.
– Por que todos os seus ataques têm que terminar com uma lâmina na minha garganta? – Ela grunhiu enterrando a adaga que tomou de mim no chão macio.
– Vou te explicar uma coisa que não te ensinaram na Academia, Nike! – Falei fazendo com que ela olhasse para mim. – Nós predadores caçadores e assassinos focamos em acertar o pescoço, um ponto vital, frágil e de defesa falha para a maioria dos guerreiros, lembre-se um predador ou um assassino sempre tem um local específico na hora de atacar, eles sempre vão no ponto vulnerável e vital. – Falei colocando as garras em seu pescoço – Guerreiros por outro lado, são treinados em batalhas e tem outro foco, onde não matem de imediato, para que tenham tempo de fazer algumas poucas perguntas aos oponentes antes que esses morram, seus focos de ataque são tórax, barriga, pernas e braços, entendeu? – Ela assentiu afastando minha mão que ainda estava em seu pescoço.
– Sim, professor! – Ri de sua provocação.
– Tenho outras coisas para te ensinar também... – ela arqueou uma sobrancelha diante de meu olhar malicioso, então com o rosto corado, foi até o lago e pulou na água.
7
Sombras no castelo
Já estávamos ali a pouco mais de uma semana, Nikella sempre acordava cedo e ia verificar o ovo de dragão, mas em nenhum momento ele dava sinais de que ia chocar e isso a deixava frustrada.
Porém naquela manhã cinzenta e armando chuva, fiz exatamente igual como nos últimos dias, fui até o quarto para chamá-la, mas ela não estava lá. A cama estava arrumada e a bolsa havia sumido. Ira também não estava ali. Andei pela casa procurando-a, mas não havia nenhum sinal dela, a não ser pelo ninho vazio entre as brasas da lareira. Senti minha pulsação se alterar, mudei de forma e corri para fora seguindo seu cheiro, não fazia muito tempo desde que ela havia saído, talvez algumas horas antes de o sol nascer. Corri na direção de seu rastro e por sorte a encontrei próxima a cachoeira, ela estava ao lado de uma fornalha, sobre o fogo intenso havia um globo, não de vidro, mas de vitrino com água fervente e apenas um pequeno buraco na parte superior, onde saia uma forte rajada de vapor. Nikella estava de longe controlando o fogo com magia. As marcas negras acesas em seu corpo deixavam isso bem claro. Mesmo à distância que eu estava do fogo, o calor dele fazia com que me sentisse fraco, ela estava mantendo a temperatura tão alta quanto podia sem causar danos à barreira de proteção ao redor da floresta.
– O que está fazendo aí? – Perguntei, as sombras se agitaram ao redor dela, como se fizessem uma barreira ao seu redor, Nike apenas sorriu, sua pele brilhava com o suor e parecia estar sentindo dor ao manter aquele fogo.
– Chocando o ovo.
– O ovo está dentro daquilo? – Apontei para o globo de vitrino sobre o fogo vermelho. Nike sorriu e assentiu. – Ele vai cozinhar!
– Essa é a ideia! – Ela deu uma gargalhada maligna.
– Ficou louca, só pode! – Tentei me aproximar dela, mas o calor onde ela estava, mais próxima ao fogo, era intenso demais. Imaginei a dor que ela estava sentindo àquela distância do fogo.
– De onde tirou essa ideia? – Perguntei ficando mais próximo possível da água.
– Os dragões marinhos são chocados próximos às fendas de Holon, em Amantia, numa espécie de vulcão submarino. As águas lá são muito quentes e tem uma pressão elevada, como esse aqui não queria chocar pelas brasas, acredito que choque assim! – Explicou ela aumentando ainda mais o fogo e soltando um baixo grunhido.
– Nike, cuidado ou vai se queimar! – Alertei tentando me aproximar, mas ela estendeu a mão para que eu ficasse longe.
– Está tudo bem! – Era óbvio que não estava, seus braços estavam vermelhos, o vitrino não se derretia mais quando era aquecido uma segunda vez, mas podia ficar tão quente quando qualquer metal em ponto de fusão com a simples proximidade ao calor.
– Sabe que isso pode durar dias, não sabe? – Ela me olhou de soslaio.
– Eu sou bastante teimosa!
– Seu corpo vai aguentar? Dias seguidos mantendo esse fogo assim com o poder?
– Eu aguento! – Ela resmungou, mas seu olhar dizia outra coisa, ela já estava exausta, devia estar naquilo desde o começo da madrugada. Ela cruzou os braços e sentou no chão, mantendo os olhos vinho fixos no fogo, o mais estranho era como ela estava conseguindo manter o fogo aceso tendo o Yinemí no corpo, ele devia estar lutando contra ela e retirando toda sua energia para fazê-la sair dali. Ou ela não havia percebido isso ainda, ou estava teimando com o poder também.
Fiquei por quase meia hora parado, olhando-a na mesma posição concentrada, focada em fazer o ovo chocar, ela parecia cada vez mais cansada, respirava com dificuldade e estava apoiando o peso do corpo nas mãos.
– É melhor parar, Nike! Esse ovo não vai chocar! – Falei indo até ela mesmo contra minha vontade por causa do intenso calor que vinha dali, quando segurei seu braço, notei que estava tão quente que poderia queimar sua pele. Ela estava fazendo com que sua energia passasse através do vitrino em seus braços, estava convertendo a energia da Alma do gelo em calor. Fiquei boquiaberto e me recusava a acreditar que uma criança, apenas uma menina tinha tal conhecimento sobre os poderes que tinha para fazer aquilo, mesmo para magos experientes e poderosos, converter um poder Elemental em outro, era quase impossível.
– O que você é afinal? – Perguntei me ajoelhando ao lado dela e encarando-a.
– Parente de um doente psicopata... – ela suspirou. – Eu fiz uma coisa muito errada, Caalin. – Ela me encarou com os olhos tristes, quase pedindo perdão.
– O que...
– Eu estava acordada quando você viu minhas memórias, algumas eu não permiti que você visse, outras você simplesmente conseguiu passar por meu bloqueio e as viu... – ela devia estar falando das memórias com Kuran, pois seu rosto ficou em um leve tom avermelhado. – Mas quando as memórias chegaram perto do que aconteceu diante da Árvore do Fogo, eu fiz questão de te expulsar de minha mente.
– Nike? – Ela fechou os olhos e pressionou as mãos contra o peito com força.
– Quando eu matei Fairin, eu tomei, roubei todas as suas memórias, todas as lembranças e conhecimento que ele tinha. É por isso que sei tanto sobre esses poderes e como usá-los, ele era um mago negro também, eu roubei dele o conhecimento para manter as sombras sob meu controle! – As palavras saíram trêmulas, ela estava quase chorando. Mesmo com todo calor que emanava dela, eu a abracei.
– Nike, você é simplesmente um gênio!
– Um gênio?
– Claro! Foi muito inteligente isso que você fez! Você pode fazer coisas maravilhosas com tudo que absorveu dele! Usar o conhecimento que ele tinha para fazer o bem, ao invés de fazer o mal!
– Mas e se eu não conseguir tomar as decisões corretas? E se for influenciada pelas coisas que vi, pelas memórias que ele tinha...
– Você só precisa tirar de sua mente tudo de mal que ele fez, concentre-se nas memórias ruins e as mande embora. Use seus poderes para se desfazer do que não te faz bem! – Ela olhou para mim por um longo tempo e por fim assentiu. As chamas na fornalha diminuíram aos poucos, ela finalmente havia desistido de fazer o ovo chocar. Porém ela se levantou e foi direto em direção a fornalha e tocou na bolha de vitrino que ainda fervia, soltando vapor para todos os lados.
– Ei! – Gritei em alerta, aquele vapor poderia fazer sua pele derreter, mas ela me ignorou, só então percebi que o chão aonde ela havia pisado estava congelado. O fogo havia desaparecido e a bolha de vitrino estava congelada, como um pequeno globo de neve, Nike puxou uma adaga e bateu de leve com o cabo na bolha, fazendo-a rachar e esfarelar em suas mãos. Ela tirou o ovo dali e veio em minha direção, sentou-se novamente de pernas cruzadas e colocou o ovo entre elas. Ele ainda estava muito quente, mas ela não se importou, apenas ficou olhando para o ovo rajado de preto e azul no colo.
– Acha que é um menino ou uma menina? – Ela quebrou o silêncio depois de longos minutos admirando o ovo.
– Sinto decepcionar você, Nike, mas acho que isso é um ovo cozido! – Falei tentando não rir. Ela me deu um soco de leve no braço, mas não tirou os olhos do ovo. Quando ia chamá-la para ir para casa almoçar, ouvi um estalo. O ovo se mexeu em seu colo, fazendo vários estalos, novamente a olhei espantado.
– Se eu ganhasse uma moeda de ouro cada vez que você me olha assim, eu estaria rica agora! – Disse ela sorrindo e girando o ovo com as mãos, ajudando a casca a se soltar.
– Eu devia te levar numa taverna que tenha jogos de azar, isso sim! Sairia de lá muito mais rico que Aliver! – Fiquei em silêncio logo após isso, observando o ovo chocar e de dentro dele sair um pequeno dragão negro de olhos azuis. Ele tinha três bolinhas azuladas translúcidas na testa, cheias de um líquido pegajoso que se movia cada vez que ele virava a cabeça. Com cuidado, Nike retirou o resto da casca ainda colada nele, seria nojento se não fosse ela que estivesse fazendo aquilo, com um carinho quase maternal.
– É uma fêmea! – Ela riu. – Aqui, a cauda termina com espinhos espetados para dentro! – Explicou segurando de leve a cauda e mostrando os espinhos longos afiados e negros na ponta da cauda escamosa, logo em seguida limpou o dragãozinho com um lenço úmido.
– Você seria uma ótima mãe! – Falei quando ela terminou de limpar o pequeno dragão e o aninhou no colo. O sorriso em seu rosto sumiu e logo imaginei ter dito algo errado.
– Não seria não.
– Por que acha isso? – Ela suspirou e puxou a blusa molhada pelo suor para cima, descobrindo a barriga e mostrando uma cicatriz fina, que ia desde o lado direito do umbigo para o lado esquerdo em direção à perna e sumia dentro do short. – O que foi isso? – Perguntei ainda olhando para o local da cicatriz mesmo após ela ter coberto novamente.
– Quando eu tinha uns treze anos fui pega numa travessura por Candace, a inspetora da ACV. Como castigo ela me fez ficar junto com a guarda da noite sobre os muros da academia. Estava tudo tranquilo até que uma movimentação entranha chamou atenção dos guardas na floresta em volta dos muros e alguns deles desceram e me deixaram sozinha na ala leste, disseram que se eu ouvisse qualquer coisa estranha ou caso algo se aproximasse, era para eu dar o alerta. – Ela parou de falar e ficou mexendo na cabeça do dragãozinho, que parecia estranhamente confortado por aquele toque nada convencional. – Três Aswangs pularam sobre o muro pouco depois que os guardas saíram, eles queriam entrar na academia e eu estava no caminho. Eu corri para dar o alerta, mas fui pega pouco antes de tocar a sirene, consegui apenas gritar alto o suficiente para alertar os caçadores que saíram dali. Aqueles demônios não gostaram nada do meu alerta, um deles cuspiu uma massa esquisita e esverdeada que atravessou meu corpo, não sabia que aquilo era a língua dele, acho que deitar em uma cama de brasas com esses vitrinos nos braços seria confortável perto da dor que aquilo causou. – Senti como se todo meu corpo tivesse ficado dormente quando ela disse aquilo.
– Uma ferida de Aswang é quase impossível de curar! – Falei, ela assentiu devagar.
– Vienni, a curandeira da academia disse que eu tive muita sorte de chegar com vida na enfermaria, eles me levaram até as instalações de cura da Cidade do Sol, eu não lembro de nada depois de entrar lá. Só me lembro de quando acordei dias depois, uma das curandeiras me dizendo que eu nunca iria ter filhos. Para uma criança aquela não era uma notícia ruim... bom, não me importava muito com aquilo antes, e não me importo agora, não faz diferença! – Mas seu olhar dizia outra coisa, era algo que lhe tocava o fundo da alma, que a entristecia profundamente. – Uma mulher que não sabe cozinhar, não pode ter filhos. – Riu sem nenhuma alegria. – Mas olha o lado bom, sei fazer armas legais! – Ela colocou o dragãozinho sobre uma manta e andou até a beira da cachoeira, pegando algo dentro da água com certa dificuldade.
Ela tirou um machado de dentro da água, quase do tamanho de sua foice, com o mesmo trabalho no cabo, mas com uma corrente mais grossa e uma fina trança de cabelo enfeitando o cabo até o alto, onde duas lâminas perigosas do formato de meias luas invertidas foram trabalhadas com desenhos de runas antigas, um texto gravado nas lâminas. Na outra ponta, uma ponta de lança como em sua foice também, porém mais longa e com o formato de uma flor de lis.
– O que é isso? – Perguntei estendendo a mão quando ela o ergueu com dificuldade para colocá-lo em minhas mãos. Só então notei porque era tão pesado, dentro das lâminas do machado, havia cristais azuis de purificação das montanhas de Vintro.
– Você disse que gostava de machados, então entrei na cachoeira, peguei mais vitrino e fiz esse... estava meio sem ideias e o fiz parecido com Siferath, mas se não gostou, posso fazer outro!
– É incrível! Maravilhoso! – O girei no punho, adaptando a força para conseguir segurá-lo sem dificuldade.
– Que bom que gostou!
– Sielem... – falei.
– O quê? – Ela pegou o dragãozinho no colo e me encarou confusa.
– Destruidor de mentes. Só para o nome combinar com sua foice também! – Falei sorrindo passando a mão novamente sobre as lâminas gêmeas.
– Não se pode destruir mentes com uma arma física! – Ela resmungou.
– Também não se pode matar Almas com uma arma física! E sim, quem olhar para esse machado vai ter a mente destruída antes do corpo! – Sorri para ela. Aquela arma deve ter levado horas de trabalho, ela poderia ter feito com magia, mas havia moldes em madeira embaixo da fornalha, o que me fez ter certeza de que ela os fez a mão. – Te deu muito trabalho, não foi?
– Nenhuma obra de arte fica perfeita sem esforço! – Ela piscou para mim e caminhou pela trilha de pedras em direção à casa. Sorri novamente e a segui com Ira em meu encalço. Enquanto andávamos o dragão espirrou, cuspindo uma grande quantidade de ácido que incendiou ao tocar o chão. Nikella deu um pulo para o lado saindo do alcance das chamas azuis e me encarou assustada.
– Ela tem aparência de um dragão de fogo e os poderes de dois dragões misturados! Perfeita para você! – Falei rindo da sua cara de assustada. – Como vai chamá-la?
– Docinho! – Disse ela sorrindo.
– Está brincando, né!
– Claro que não, ela é brava! Olhe a cara dela! – Disse ela virando a cabecinha do dragão para eu ver.
– Por isso mesmo! O nome não tem nada a ver com ela!
– Ira é manso, mais manso que um gato doméstico e tem o nome de Ira, então não reclame de Docinho! – Ela fez um bico e andou mais rápido em minha frente, fiquei observando-a desaparecer na trilha entre as árvores e ri. Novamente girei o machado na mão admirando-o e o transformei em um pingente, acelerando o passo para ir atrás dela.
Quando estava anoitecendo, saí para caçar novamente, deixando Ira com Nikella e parti para o desfiladeiro branco. Iríamos partir para o castelo na manhã seguinte, não queria sair me sentindo insatisfeito, mas sentia que deveria levá-la logo ao rei, ou ele podia mandar Zion atrás de nós, era tudo que não precisava, Zion e Nikella no mesmo aposento, por mais que soubesse que Nike não faria nada, afinal, não tínhamos nada, Zion poderia começar a provocá-la, não havia testado o limite de paciência de Nike nesses últimos dias, coisa que deveria ter feito, torci para não me arrepender de ter deixado isso de lado.
Ao voltar para casa, ao me aproximar da porta de entrada, escutei ganidos de Ira e gritos de Nikella, aquilo foi suficiente para fazer meu sangue congelar. Corri para dentro com o meu novo “brinquedo” na mão, o longo machado de vitrino que ela havia feito para mim, estava pronto para usá-lo e quase arranquei a porta ao passar por ela, mas a cena que vi, era impossível de descrever.
Nikella estava segurando a boca de Ira, tentando soltar uma massa amarelada dos dentes dele a todo custo, enquanto ele se debatia desesperado e esfregava o focinho com as patas tentando soltar aquilo dos dentes. Por fim, Nike usou magia e fez com que aquela bola grudenta desaparecesse, Ira se acalmou e caminhou cambaleante até a tigela de água, ficando sobre ela até acabar com todo líquido do recipiente.
– Céus, o que houve aqui? – Nike não queria me encarar, seu rosto estava vermelho quando ela foi até a pia e fez com que a louça ficasse limpa com mágica, depois se debruçou no balcão e pegou uma garrafa de vinho, virando todo de uma vez.
– Nada...
– Você deu cola de madeira para ele comer? – Perguntei olhando a massa amarelada e grudenta no chão. Ela me lançou um olhar letal, pegou um pedaço de pano e recolheu aquilo.
– Estava tentando fazer um macarrão... acho que deu errado! – A olhei incrédulo.
– Acha? Você deu uma cola de macarrão para ele comer! – Explodi em gargalhadas fazendo com que seu rosto ficasse ainda mais vermelho.
– Ah! Me deixa em paz! – Ela me empurrou para fora do caminho e foi para o quarto. Mesmo assim não conseguia parar de rir. Ira estava encarando-me com cara de irritação, ele provavelmente tinha noção do que estava fazendo quando aceitou comer aquilo, e eu a magoei. Levei Ira para fora, para caçar também, era melhor deixar Nike sozinha alguns minutos antes de tentar me desculpar, se tivesse ido de imediato ela nem sequer me ouviria.
Depois que Ira pegou uma rena e a devorou em poucos minutos, voltamos calmamente para a barreira. Não havia percebido que as horas passaram tão depressa, mas já passava da meia noite quando entramos em casa. O silêncio era o mesmo de todas as noites, mas algo me incomodava, as sombras mais densas, mais profundas e frias do que de costume.
Fui direto para o quarto onde Nike deveria estar dormindo, mas a encontrei sentada no chão embaixo da janela, com o corpo coberto de marcas negras, olhava distraída para o nada e havia um brilho maligno em seu olhar, só então notei que seus olhos estavam cor de vinho, e ela movia a adaga discretamente nas mãos, a camisola curta que usava havia escorregado deixando a maior parte das pernas a mostra, mas era com seu olhar que estava preocupado. Dei um passo em sua direção e ela ficou de pé com a cabeça erguida para conseguir me olhar direto nos olhos.
– Nikella, você está se sentindo bem? – Ela apertou meu braço com força, senti as garras espetando a pele, mas não ousei tirar os olhos dos seus, levei uma mão até seu rosto e deslizei a palma pela sua bochecha quente, ela respirou fundo e desviou os olhos, soltando a arma sobre o criado mudo ao lado da cama.
– Às vezes quando eu fico sozinha, elas falam alto demais, tão alto que eu não consigo mais ouvir meus próprios pensamentos, eu tenho medo! – Ela me encarou novamente, com os olhos na cor normal, mas com medo gravado neles. – Eu acho que elas vão con... – Antes que ela concluísse aquele pensamento terrível, a segurei e a apertei nos braços com força, pois talvez se eu não a segurasse bem firme, aquela menina poderia sumir.
– Não, nem pense em deixar que elas te vençam! – Falei. – Só você pode decidir se elas te dominam ou se você as domina!
– Mas...
– Você é uma caçadora, não é? Você tem que ser forte, ou vai deixar que as sombras te transformem? Não desista nunca de lutar, outras pessoas ainda dependem da sua força! Lembre-se disso! – Quando terminei de falar, ela passou os braços em volta de mim e chorou.
– Promete que se eu tentar machucar alguém, você não vai deixar? Você vai me parar! – Aquela pergunta fez com que um bolo subisse à minha garganta.
– Eu vou cuidar de você, não vai ser preciso eu te parar, não vou deixar que elas te dominem, eu prometo! – Sussurrei, ela suspirou e assentiu, depois se afastou para me olhar novamente.
– Obrigada! – Ela sorriu, mostrando-me um sorriso doce de uma pessoa que sempre se mostrava dura, o sorriso mais lindo que vi em toda minha vida. Seu rosto então ficou corado e ela se afastou, virou o rosto desviando o olhar e esfregou os braços com as mãos.
– É melhor tentar dormir novamente. Amanhã iremos para o Castelo de Gelo! – Falei dando um baixo assovio, Ira entrou no quarto já com o pelo limpo e pulou sobre a cama dela. – Vou deixá-lo com você, ele não vai permitir que elas se aproximem de você novamente! – Nike assentiu e o pegou no colo, agradeceu e depois se deitou, foi um esforço monumental sair do quarto, a minha vontade era deitar ali e passar a noite inteira observando-a dormir, ter certeza que ela ficaria bem, mas ela não havia demonstrado nada, embora brincasse às vezes e fosse um pouco ousada em suas atitudes, ela não deu nenhum sinal de que permitiria que eu me aproximasse. Ainda não é a hora de agir, de tomar uma iniciativa com ela, repeti tentando me convencer a não voltar para o quarto.
No dia seguinte ao amanhecer, Nike parecia cansada, entristecida, mas mesmo assim sorriu quando a chamei para tomar café. Docinho estava enrolada perto da lareira, de um dia para o outro seu tamanho havia dobrado, ela havia comido uma boa quantidade de carne durante a madrugada e parecia muito bem, virou o focinho quando Nikella entrou na sala, ela foi até Docinho e afagou sua cabeça escamosa, depois veio até a mesa para tomar café.
– Conseguiu dormir? – Perguntei. Ela mal respondeu, dando um breve aceno com a cabeça e puxou uma torrada para seu prato, Ira pulou em seu colo e ficou deitado lá enquanto ela comia.
– Tive que passar boa parte da madrugada apagando lembranças de Fairin, algumas delas estavam me dando pesadelos. Chamá-lo de cruel era elogio.
– Tão ruim assim?
– Hu-hum... vi as lembranças do que ele fez com a Leona, vi minha avó também, ela contou a ele o que fez com minha mãe e com sua irmã.
– Quer contar? – Perguntei, se ela lembrava disso, foi uma memória que ela não quis perder. Mas Nike balançou a cabeça negativamente.
– Acho que é algo que eu tenho que contar para outra pessoa antes... – Nike ficou em silêncio por um minuto. – Se algumas pessoas ficarem cientes disso.... – Seu rosto empalideceu e ela respirou fundo, tomou um pouco do chá e deu um pedacinho de ovo para Ira.
– E sobre Fairin?
– Ele ia matar Karin, ia fazê-la crescer rápido em outro mundo e ia tomar o sangue dela e depois que ele tivesse o poder, ia torturar Leona, fazendo-a assistir as filhas e o marido morrendo. – Ela engoliu em seco.
– E eu achando de Higarath era ruim... acho que ele foi superado no quesito crueldade. Fez bem em acabar com Fairin quando teve a chance! – Ela me encarou e assentiu com um sorriso torto, quase sofrido no rosto.
– Bom, temos que ir, não é? – Ela terminou o chá apertou Ira no colo.
– Sim, mas antes que eu me esqueça... Aliver, ele é excêntrico!
– Como assim? – Ela parecia curiosa.
– Talvez seja a palavra errada para descrevê-lo. Aliver é mulherengo, não pode ver uma mulher bonita! E ainda acha que pode tudo por ser o rei!
– Já lidei com esse tipo.
– Mas ele é bem bonito...
– Está preocupado pois acha que posso ficar interessada? – Ela sorriu maliciosamente.
– Ah, por favor! Só quero dizer que não se sinta pressionada a nada por causa do poder dele! – Expliquei sentindo meu rosto esquentar.
– Ele me venceria num duelo?
– Claro que não! Embora tenha sido treinado por mim, mas duvido muito.
– Então está tudo bem! Não me sinto pressionada por gente mais fraca! – Sem dúvidas do quanto Nikella era convencida. Ela pegou Docinho, a colocou no ombro e carregou sua bolsa no outro braço, havia recolocado o uniforme negro que marcava cada curva do seu corpo, mas também mostrava todas as armas e acessórios perigosos que carregava, infelizmente, não era o suficiente para assustar Aliver, mas eu cuidaria disso.
Queria ficar ali por mais tempo, ficar perto dela por mais tempo, mas Higarath não ficaria parado para sempre, nem Hobner e Ausiet.
Peguei a mão de Nikella quando ela chegou até mim, do lado de fora entre as jardineiras, ela olhou com tristeza para a casa, talvez não quisesse ir embora também, então se virou para mim e disse:
– Vamos? Temos doze mundos para cuidar! – Ela sorriu.
Senti-me abraçado pelo vento gelado quando aparecemos diante da muralha de gelo que separava o castelo da estrada que levava a Hima. Nikella ainda estava de olhos fechados, apertados e a boca numa fina linha quando a olhei.
– Odeio magia de teleporte! – Ela resmungou dando um passo para o lado e respirando fundo.
– A viagem é muito longa de Vale do Sol até aqui. – Expliquei, quando notei que já estava tudo bem, comecei a caminhar em direção aos portões com ela me seguindo.
O portão foi aberto sem ao menos precisar me identificar, os guardas me reconheceriam mesmo que eu viesse na forma de algum animal selvagem, mas não deixei de notar o quão curiosos estavam com a jovem que trazia comigo.
Logo na entrada do castelo, Zion e Craig estavam montando guarda, senti meu estômago afundar quando Zion sorriu para mim e saiu de seu posto, caminhando em minha direção.
– Ora, ora! Quem resolveu aparecer! – Ela esticou a mão para tocar em meu rosto, mas eu a afastei com um gesto.
– Aliver me aguarda, então se puder fazer o favor de sair da frente...
– Ah, que isso Caalin! Nós temos muito que conversar! – Ela forçou uma aproximação, olhei de canto de olho para Nike, que ignorava a cena brincando com Docinho, seu rosto estava completamente coberto com o capuz, impedindo que Zion visse seu rosto e que eu visse sua expressão.
– Não temos nada para conversar, Zion! Agora se me der licença, preciso ir! – Falei tentando passar por ela, que novamente barrou o caminho colocando as mãos sobre meu peito, deixando-me ainda mais irritado. Um brilho ao meu lado me fez desviar a atenção dela para Nike, que estava com a foice parada a milímetros das mãos de Zion, prestes a arrancá-las, um olhar perverso gravado em seu rosto perfeito quando ela baixou o capuz e encarou Zion, que a olhava com a sobrancelha arqueada.
– O rei mandou me buscar, vai ficar no meio da passagem atrapalhando para sempre ou prefere que eu abra caminho até a sala do trono? – Ela soltou um rosnado, as sombras rodeando seus pés. Zion tirou as mãos com cuidado para que a lâmina de Siferath não lhe arrancasse a pele, então Nike jogou o capuz sobre o manto de cabelos negros e entrou no castelo, passo após passo, altiva, firme, como se fosse a dona do lugar. Variações de humor que me divertiam muito.
– Não sabe ser grosseiro com mulheres, não é? – Ela perguntou num tom cortante. Não achei certo responder, pois não havia entendido aquele tom de voz.
– Já disse que não gosto de ser grosseiro com ninguém!
– Com ninguém? Ou não é grosseiro apenas com mulheres bonitas? – Eu a olhei de soslaio, ela estava claramente irritada. Será possível que estava com ciúme de Zion?
Atravessamos o castelo em silêncio, que era quebrado apenas pelos ruídos que Docinho fazia, agora que eu havia percebido, não foi boa ideia trazer um dragão para o Castelo de Gelo, embora fosse muito pequena, mas ainda poderia causar sérios danos. Paramos na porta da sala do trono, mas antes de deixá-la entrar, precisava falar com Aliver em particular.
– Vou entrar, falar com ele e pedir para que você entre. Tudo bem?
– Tenta não demorar, se alguém me incomodar eu vou sair atacando! Esse castelo está me deixando irritada! – Ela rosnou novamente, mas assenti e entrei na sala, deixando-a no corredor em frente a um vitral azul.
Aliver estava caminhando em círculos pela sala do trono, sendo observado apenas por Toghus, que não se preocupou em virar o rosto em minha direção.
– Aliver. – Chamei, ele não havia notado minha presença, mas pareceu muito aliviado quando me viu.
– Finalmente! – Ele ergueu as mãos e deu uns tapinhas em minhas costas. – Achei que não voltaria antes do inverno acabar! – Ele resmungou, mas sorriu.
– Tive alguns probleminhas...
– Nós também! Ausiet mandou caçadores atacarem o castelo duas noites atrás! – Aliver bufou e foi sentar-se no trono, pressionando a cabeça com as mãos.
– E o que houve?
– Eles tentaram me matar, invadiram meu quarto! Por sorte não estava aqui! Estava em Hima... – ele ficou corado e pigarreou.
– Não conseguiu contato com os aliados do Sul? – Meu tom de voz debochado fez Toghus ralhar.
– Não, não é isso. A filha de Bremir faleceu alguns meses atrás, ele não disse a ninguém, pois temeu pela família...
– Entendo.
– Então, encontrou a Maga? Conseguiu trazê-la? – Ele olhou por cima do meu ombro, para a porta fechada.
– É sobre isso que quero falar com você... Em particular. – Fiz questão de ressaltar que não queria a presença de Toghus, após um aceno de Aliver, ele saiu rosnando e batendo os pés.
– Algum problema com ela? – Perguntou ele diminuindo a voz.
– Na verdade, o problema é você! – Falei dando um passo e ficando apenas a um palmo de seu rosto. – Eu a trouxe, ela está aqui e está disposta a te ajudar dependendo do que tem a oferecer... mas se você fizer algo, alguma gracinha, ou tentar se aproximar dela de qualquer forma que não seja profissional, eu vou arrancar sua cabeça e te usar de alimento para meu glacio de estimação, entendeu? – Aliver não parecia muito intimidado, apenas assentiu e sorriu.
– Que é isso, Caalin? Apaixonado pela Maga negra e está com ciúme de mim?
Nikella:
As sombras pareciam ainda mais vivas dentro daquele Castelo de Gelo adornado por enfeites de vitrino azul, um guarda com cara de rabugento havia saído de dentro da sala do trono, pelos detalhes em dourado de seu uniforme azul marinho, ele devia ser o capitão da guarda. Ele ficou parado atrás das portas, olhando para mim sem ao menos piscar, nem sequer me cumprimentou, apenas ficou ali parado me olhando. Tinha o mesmo tom de dourado no cabelo e os olhos cor de vinho da jovem à porta do castelo, deviam ser parentes, isso explicaria o tom arrogante que ela falava.
– Perdeu alguma coisa aqui? – Perguntei ao notar que ele não tirava os olhos do corpete negro com símbolo da ACV que estava vestindo. Docinho deu um leve rosnado, tão fofinha que cocei seu pescoço com minhas garras transparentes. Ele pigarreou e se endireitou, olhando para Docinho.
– Não é permitido entrar com essa fera no castelo, tenho que pedir para que se retire ou me deixe levá-la para fora! – Disse ele com a voz rouca e agradável.
– Não vai tocar nela! – Retruquei.
– Sinto muito, mas ele é uma ameaça...
– Ela não é uma ameaça, EU sou uma ameaça! – Rosnei girando a foice nos dedos, ele deu um pulo para trás e puxou a espada, soltei uma gargalhada ao ver que ele pretendia me enfrentar.
– O que está havendo aí, pai? – A jovem estava de volta e vinha com a espada na mão também.
– Essa jovem se recusa a retirar a fera do castelo! – Ele grunhiu puxando uma corrente de uma caixa de madeira, próxima a porta de entrada da sala do trono.
– Fera? Me poupe! É um filhote! – Retruquei afagando a cabeça de Docinho.
– Regras são regras, você não está acima delas! – Rosnou a jovem dando um passo para perto de mim com a mão erguida na direção de Docinho, mas antes que eu pudesse me mover, Ira ficou em seu tamanho real e soltou um rugido medonho, fazendo a jovem chamada Zion cair para trás arrastando-se para longe de Ira. A porta da sala do trono se abriu, Caalin passou por ela e ficou olhando para cada um de nós individualmente, tentando entender o que estava acontecendo ali.
– Deixe o dragão com ela, é mais fácil Nikella destruir o castelo se vocês a irritarem, que o bichinho no ombro dela fazer isso! – Disse ele fazendo um movimento para que eu o seguisse.
– Agora o nome faz sentido! – Falei coçando a orelha de Ira em resposta ele bateu o focinho em mim, quase me derrubando ao chão. Passei os olhos pela sala do trono, até ver um jovem sentado no trono de pedras azuis e brancas encaixadas perfeitamente umas nas outras, formando uma espécie de quebra cabeças, o encosto tinha uma fofa almofada felpuda e em volta era como se fosse um arco de safiras e vitrino eram doze no total, seis de cada. O belo jovem sentado no trono ficou parado encarando-me da mesma forma que o capitão da guarda ficou alguns segundos atrás. Ele passou os dedos entre os cabelos dourados e sorriu.
– Por Gaia! Nunca vi criatura tão linda em toda minha vida! – Ele fez menção a se levantar, mas algo no olhar sombrio de Caalin o fez ficar onde estava.
– Nikella Arbarus Modjim, esse é Aliver Marchyn, sexto rei de Vegahn. – Apresentou Caalin com a voz ríspida, diferente de sua voz suave e gentil de sempre comprovando minha teoria de “Gentil apenas com mulheres”. Me curvei suavemente, só conhecia o cumprimento do Reino do Fogo, então soltei os braços ao redor do corpo e lhe dei um sorriso cordial.
– É um prazer conhecê-lo, majestade! – Falei.
– O prazer é todo meu, Nikella! – Pude ouvir o sorriso em sua voz mesmo sem olhar para seu rosto e a tensão vinda da direção que Caalin estava. Só podia estar ficando louca, ele com certeza devia estar tenso com medo que eu ferisse ou matasse o rei!
– Soube que o rei tinha uma proposta a me fazer! – Comecei, ele se levantou e veio até mim, ignorando os rosnados alterados de Caalin. Chegou perto o suficiente para sentir o cheiro almiscarado em sua pele, os sentidos de malvarmo, mesmo que sutis, eram muito maiores que meus pobres sentidos humanos, Aliver me encarou com os olhos amendoados e falou:
– Quero que seja minha nova capitã da guarda! – Ele falou sem rodeios segurando minha mão. – Caso aceite, você terá todos os privilégios das damas da corte, e será responsável pela segurança em meu castelo, e pela minha segurança pessoal em viagens!
– Quais serão minhas restrições caso aceite?
– Não poderá abandonar a guarda, servir a outros mestres, nem trair ao seu rei enquanto carregar meu emblema.
– Quero que Docinho fique comigo no castelo, se não puder, quero um lugar para ela, que ela seja bem cuidada e que eu possa vê-la sempre e treiná-la! – Exigi.
– Quem é Docinho? – Só então ele a viu enroscada em meu ombro e deu um passo para longe de mim, Caalin se aproximou e a pegou com cuidado. Aliver pigarreou e se endireitou. – Assim será, mas antes... quero ver seus poderes! – Ele pediu quase num sussurro.
– Aliver... – Caalin o alertou franzindo o cenho.
– Tudo bem, Caalin! – Sorri mudando minha aparência e trazendo as sombras até mim, que se espalharam e tomaram conta daquela sala, deixando tudo no mais puro breu, apenas a luz que saía de meus cabelos prateados, das marcas negras brilhantes e de Siferath podia ser vistas na sala.
– Bem-vinda à guarda real, Nikella! – Disse ele com a voz assustada enquanto lhe devolvia o sorriso.
8
Convite dourado.
Depois que Aliver nos dispensou, mandando-me direto ao alfaiate para que fosse confeccionado meu uniforme, depois de alguns minutos medindo, resmungando e anotando tamanhos, a costureira bufou e me deu um tapinha no ombro, dispensando-me também, uma criada chamada Luviah me levou aos meus aposentos, que por cortesia do rei, ficavam dentro do castelo na ala leste. Como o castelo era todo de gelo, deixei que Caalin levasse Docinho para um lugar no lado de fora, garantindo-me que ele mesmo faria um lugar especial para ela, depois de ter visto Vale do Sol, tinha certeza de que ele faria um excelente trabalho.
O quarto para o qual Luviah me levou era imenso, devia ser maior que a casa que eu vivia em Ciartes, aliás, o Castelo de Gelo era ainda maior do que o Castelo de Cristal ou o Castelo do Sol. Meu quarto era decorado em tons de azul celeste, branco, cinza e tinha um agradável aroma de neve e rosas.
Deitei na enorme cama macia para testá-la e perdi o fôlego ao olhar para o teto. Aquilo não fora proposital, tinha certeza disso, o resto do castelo tinha o teto branco com flocos de neve decorando toda sua extensão, mas o teto do quarto era de um azul safira com pequenos raios que iam de uma extensão a outra, exatamente como os olhos de Caalin. Virei-me para o lado tentando fazer meu coração bater normalmente, reparando em outros detalhes, como os móveis brancos com arabescos dourados em um padrão floral, lembravam-me as flores do Jardim do Sol, bufei irritada ao ter minha mente invadida pelo rosto de Kuran, sua voz, seu cheiro.
– Pare de tentar aparecer para mim! – Resmunguei para mim mesma contra os travesseiros macios, agarrando-me ao frio reconfortante do quarto.
Não percebi que havia cochilado até ver as luzes laranja e vermelha se misturarem no horizonte. Andei até a sacada do quarto e olhei para frente, onde um imenso lado congelado podia ser visto. Não havia ninguém do lado de fora, quando o entardecer chegava, parecia que tudo do lado de fora perdia a vida nessa parte de Vegahn. Fechei as janelas e fui até o banheiro, onde uma grande banheira de porcelana azul aguardava já cheia de água, não havia notado a presença de Luviah até ela pigarrear com uma toalha nas mãos.
– Ah, perdão! – Falei curvando-me para longe dela, que estava tão perto que podia sentir sua respiração gelada em meu rosto. Assim como quase todos naquele lugar, ela também era mais de um palmo maior que eu, seus olhos eram de um cinza brilhante quase prateado e os cabelos azulados ondulavam para o coque apertado atrás da cabeça.
– Estou aqui para ajudá-la. – Disse ela com cortesia forçada.
– Não sou uma dama da corte, sou a capitã da guarda, não preciso de ajuda! – Murmurei, mas ela me olhou com desdém e virou para a banheira, despejando um líquido perfumado na água, o mesmo que eu sempre usava: hortelã e mel.
– Não seja tão arrogante, menina! – Ela falou vindo novamente até mim e soltando as tiras do meu espartilho.
– Ninguém te contou nada sobre mim? – Perguntei num tom doce, tão gentil quanto pude ao encará-la com um sorriso sarcástico no rosto.
– Não... apenas me mandaram cuidar de você enquanto estivesse aqui.
– Entendi Luviah. Agradeço pela ajuda. – Segurei firme minha blusa quando ela tentou tirá-la, exibindo as marcas em minha barriga, ela olhou a cicatriz e depois me encarou. – Eu realmente prefiro fazer isso sozinha. – Falei cobrindo a marca com a toalha. Ela me encarava com um olhar inexpressivo, sua boca havia se tornado numa fina linha quando ela desceu os olhos novamente para onde eu havia coberto a marca.
– Obrigada. – Ela falou limpando as lágrimas que começaram a se acumular no canto dos olhos.
– O quê? – Fiquei confusa, Luviah ergueu a manga da blusa, mostrando uma longa marca vermelha, deixada ali pelo mesmo tipo de criatura que havia me marcado daquela forma.
– Eu estava na muralha aquela noite... – Ela tirou um pequeno pingente de dentro da blusa. As espadas cruzadas dos caçadores Venox. – Se você não tivesse gritado, dado o alerta, seria o meu pescoço, não o meu braço, eu havia cochilado na guarita pouco antes do ataque! – Ela sorriu envergonhada.
– Nunca vi um malvarmo na ACV!
– Eu usei magia para me tornar humana, se estivesse na forma real aquele aswang teria virado gelo nas minhas mãos! – Ela projetou as garras para fora e deu um sorriso feral. – Obrigada mesmo! – Disse novamente saindo do banheiro e me deixando sozinha.
Fiquei na água mantendo meus braços para fora o máximo de tempo que pude, até que ficassem dormentes e eu tivesse que sair, Luviah havia deixado o uniforme sobre a cama ao lado de um par de botas negras de couro e um manto de pele de lobo.
Os vesti, amarrei o cabelo em um rabo de cavalo apertado e desci as escadas longas em espiral até a sala do trono, onde Aliver e Caalin conversavam baixinho, os dois pareciam bastante tensos quando me aproximei. Toghus nos olhava de canto de olho, a mim mais que os outros presentes na sala, alguns homens de aparência importante, provavelmente a corte de Aliver, sentados em longas mesas apreciando o jantar enquanto Toghus me encarava de forma que para ele parecia ser intimidante, para mim, uma tentativa frustrada de me assustar, sorri para ele, que não conseguia tirar os olhos do meu uniforme. Ele era definitivamente humano, tinha cheiro de humano, as rugas da idade começavam a lhe marcar o rosto e alguns cabelos grisalhos despontavam entre as mechas louras.
Ele não parecia ser um dos humanos imortais, parecia simples e frágil como os humanos da terra, aquilo me fez sentir pena.
– Nikella, aproxime-se! – Disse Aliver de maneira formal, diferente de como havia agido mais cedo, nenhum sorriso, nenhuma demonstração de sentimentos, apenas permaneceu sério, sustentando um olhar maldoso de Caalin.
Um malvarmo com uniforme branco surgiu ao lado do rei, ele fez um breve aceno quando me aproximei e fiz uma reverência, então com a voz grave o malvarmo disse:
– Toghus Fregnert, atual capitão da guarda real de Vegahn, a partir desse momento o senhor está dispensado de sua obrigação com a coroa e receberá as honras pelo seu tempo de serviço ao rei Cahadris. – Quando o malvarmo desceu da plataforma ao lado do rei e foi tirar o emblema do peito de Toghus, ele empalideceu.
– Majestade! Por favor! Eu tenho servido a família real desde minha juventude! – Ele soltou as palavras quase como se elas o machucassem.
– Toghus, preciso de pessoas que possam realmente proteger o castelo, proteger a minha família! O senhor já não tem mais idade para isso! – Disse Aliver com a voz aveludada. Toghus adquiriu um tom vermelho brilhante ao encarar Aliver com fúria e dar um passo para frente, antes que ele se aproximasse demais, Siferath já estava em minha mão com a lâmina a centímetros de Toghus. Ele desviou o olhar de Aliver para me encarar e tirou a espada.
– Vadia dos infernos, você seduziu o rei para que ele te colocasse em meu lugar, não foi! – Ele grunhiu para mim, as mãos tremiam no cabo da espada que ele segurava com força, outros guardas se aproximaram juntamente com Zion, mas o rosnado de Caalin fez com que todos recuassem, inclusive Toghus.
– Não seja estúpido, velho chorão! Acha que tem peito para me enfrentar? Não é à toa que esteja sendo substituído! Mal consegue manter a espada nas mãos! – Debochei, Aliver pigarreou alto para não rir, mantendo o rosto virado para o nada. Toghus começou a despejar palavrões para mim, apenas fiquei em silêncio encarando-o, precisava demonstrar frieza também, não apenas minha força.
– Já basta! – Urrou o malvarmo de uniforme branco, ele tomou o emblema de Toghus e se virou para mim. – Nikella Arbarus Modjim, deste dia em diante você deve honrar, servir e proteger seu rei, ser fiel à Vegahn e acima de tudo, ser honesta e verdadeira, afim de que seu coração nunca se escureça para seu lar. – As palavras dele encheram minhas veias com algo quente como brasas, como se algo tivesse reagido a palavra “lar” dentro de mim. – Scutum Glaciem! – Disse ele colocando o broche branco em meu peito.
– Scutum glaciem! – Repeti fazendo uma reverência. Toghus teve que ser retirado da sala, pois estava aos berros xingando e chutando, mas Zion não foi atrás dele, permaneceu na sala com o rosto vazio e inexpressivo enquanto me encarava. Fomos até uma mesa próxima à mesa que o rei estava sentado junto com sua corte para o jantar.
– Estava certa quanto ao dom de irritar pessoas! – Disse Caalin depois de alguns instantes de silêncio, fiz um breve aceno, mas continuei comendo calada, ao perceber os olhares de Zion para ele, ela nem tentava disfarçar enquanto tocava os lábios na beira da taça do cálice de prata como se estivesse tocando os lábios de alguém, não de alguém, de Caalin.
– Todos eles respondem a você agora. – Ele começou a explicar quando percebeu que eu não ia dizer nada. – Você deve verificar a guarda, os pontos falhos e...
– Eu sei o que fazer, Caalin! – Resmunguei quase mostrando os dentes para ele. – Peço licença a vossa alteza, gostaria de fazer uma análise dos postos noturnos. – Falei levantando-me da cadeira após terminar o jantar. Os outros guardas também já haviam acabado de comer e estavam apenas conversando, eles se levantaram quando me viram de pé.
– Dispensada. – Disse Aliver com um aceno casual da mão, mantendo atenção nos homens e mulheres em sua mesa.
Saí pelas grandes portas de madeira sem olhar para trás, mas podia sentir o olhar de Caalin sobre mim, Zion andava ao meu lado com um sorriso provocativo no rosto, ela era linda, não havia reparado quando cheguei ao castelo, pois estava mais encantada com a construção no gelo.
Um jovem que aparentava ser metamorfo andou ao meu lado, mostrando-me todos os postos da guarda e onde os soldados da proteção do castelo se encontravam, por fim, levou-me até uma sala do outro lado do castelo, onde mais alguns guardas estavam cochilando, eles se sobressaltaram quando me aproximei da mesa cheia de mapas e papéis e chutei o tampo, que rangeu alto.
– Boa noite, senhores! – Falei, eles me olharam confusos, depois passaram os olhos no meu uniforme e no broche em forma de floco de neve em meu peito e prestaram continência.
– Essa é a nova capitã, Nikella Arbarus. – Disse o jovem metamorfo que eu nem havia perguntado o nome, me ocuparia disso depois. Eles murmuraram alguns cumprimentos, envergonhados, aparentemente a única mulher por aqui era Zion e agora, eu. Fiz um sinal para que ficassem à vontade e observei os mapas.
– São as plantas do castelo? – Perguntei.
– Sim, senhora. – Balbuciou um dos jovens virando o mapa para mim, suas mãos estavam trêmulas, Zion respirou pesado ao meu lado, quando olhei para ela, ela revirou os olhos e apontou para as marcações no mapa.
– Esses são os pontos da guarda que visitamos, essas são as três entradas principais do castelo. – Ela começou a mostrar os pontos enquanto eu os decorava e fazia correções mentais, lembrando-me do padrão de defesa da academia em Ciartes.
– Os seis portões estão protegidos, porém as guaritas dos muros estão vazias, por quê? – Perguntei.
– Ni-niguém tenta passar pelos muros de gelo, capitã! – Disse o rapaz que havia empurrado o mapa para mim.
– Ah, pelo amor de Gaia, Tristen, ela não vai te morder! Fale que nem homem, nem parece um guarda, parece um frango cagão! – Disse ela num rosnado para ele, que se encolheu ainda mais, não sei por que, mas acho que iria gostar dela.
– Diga-me, por onde os invasores entraram no castelo? – Perguntei.
– Como sabe que houve uma invasão? – Zion estava com os olhos semicerrados.
– Escuto bem demais! – Retruquei.
– Não sabemos por onde entraram! – Um dos soldados respondeu.
– O castelo não tem uma mandala de proteção contra teleportes diretos? – Perguntei.
– Não. – Novamente foi Zion que me respondeu. – Sentiu alguma ao entrar? – Ela tinha a língua tão afiada quanto a minha.
– Então o castelo precisa de uma. – Falei ignorando-a. Tirei Siferath do pescoço e fui até uma das janelas. Sabia como fazer mandalas de proteção, foi uma das primeiras coisas que Susano me ensinou quando descobriu que eu tinha poderes, fazíamos mandalas durante os treinos com Siorin, não havia percebido o quanto sentia a falta deles até aquele momento. Ergui as mãos distraidamente, lançando ao céu as palavras antigas de proteção, conforme luzes negras brilhantes deixavam minhas palmas e cobriam o castelo, como uma cascata, um véu de fumaça negra e brilhante escorrendo contra um globo. Os guardas ficaram olhando assustados até que o véu cobriu completamente o castelo e brilhou num tom vinho escuro, mostrando as letras e símbolos antigos, logo depois se apagou.
– Funcionou? – Perguntou o jovem olhando boquiaberto para o céu.
– Sim, as marcas desaparecem, se não, denunciariam o tipo de magia que protege o local, assim ficaria mais fácil de quebrá-la. Mas mesmo com essa proteção, as guaritas dos muros devem ser preenchidas. Alternem os turnos com mais frequência para que não cansem demais! Dois sentinelas por guarita já é o suficiente!
– Mas...
– Não tem gente o suficiente para cobrir esses turnos? – Perguntei quando comecei a ouvir os protestos.
– Ter tem...
– Mas vocês preferem dormir? – Senti um sorriso maligno cobrir meu rosto. – Imagino o quanto seria divertido para vocês acordarem em suas camas com armas em seus pescoços ou nem acordar... seria uma pena, pois os que podiam vigiar e alertar os companheiros, estavam dormindo! – Falei brincando com uma de minhas garras. O rosto do guarda corou levemente.
– Vamos fazer isso.
– Já disse, façam turnos curtos e revezem com frequência, assim poderão descansar mais! – Falei dando as costas e saindo da sala. Apoiei as costas na madeira e respirei fundo, deixando a tremedeira passar antes de me afastar dali e voltar para meu quarto. Mesmo para uma maga negra, uma mandala de proteção de várias camadas como a que tinha feito em volta de uma propriedade tão grande me deixou esgotada.
Por sorte havia memorizado a planta do castelo gelado, assim não me perdi ao passar nos arcos da ala leste e seguir direto para meu quarto.
Mesmo com o frio que fazia ali, não me incomodei em tirar o uniforme e jogá-lo em cima da cadeira, desabando na cama apenas com a roupa de baixo, aproveitando o toque gelado dos lençóis. Não sabia como havia vivido tantos anos em Ciartes mesmo amando profundamente o frio, aqueles ossos me fizeram achar o lugar perfeito para viver. Porém me sentia incompleta, como se faltasse uma parte muito grande, olhei pela janela aberta, a lua das fadas preenchia o céu escuro lá fora, como se falasse comigo.
Saí da cama, sentei no chão perto da sacada e respirei fundo, todos os problemas que cercavam esse mundo eram pequenos diante do desastre que estava por vir, eu queria fazer o meu máximo para impedir Higarath, mas não ia ser de dentro de um palácio que conseguiria isso, precisava de algo que me desse uma vantagem, algo que o impedisse de pegar as Almas, mas onde eu conseguiria esse conhecimento? Não poderia perguntar a própria Ayrana e Caalin também não devia saber, pois ele já teria me dito, ou feito sozinho.
Algo fez um ruído do lado de fora de meu quarto, dei um pulo e passei rapidamente ao lado da cama puxando uma das adagas de vitrino que havia escondido embaixo do travesseiro, me enrolei num hobby de seda preto que estava pendurado perto da porta do banheiro e fui até a porta. A abri num puxão e dei de cara com Caalin, ele estava de pé em frente à porta, usando apenas uma calça de moletom preta e cabelos presos num coque, os olhos safira encontraram os meus.
– Com a frequência que você arruma inimigos, não me surpreende que venha até a porta com uma adaga na mão! – Ele sorriu dando um passo para perto, fazendo-me recuar.
– O que quer? – Perguntei baixando a arma.
– Perguntar uma coisa. – Ele fechou a porta atrás dele, e continuou me encarando, soltei a adaga em cima da cama e fui até a janela.
– Pergunte logo e saia daqui. – Murmurei, antes que eu virasse na direção dele novamente ele apareceu em minha frente, rápido como um raio. A luz da lua das fadas fazia sua pele parecer uma joia adornada com aqueles olhos brilhantes ainda mais belos.
– Você parece outra pessoa desde que pisou no castelo... tem algum interesse em Aliver? Seja sincera! – Ele estava sério, as narinas inflando como se esperasse a resposta para sentir se eu estava mentindo. Tive que conter a vontade de dar uma gargalhada.
– Nenhum, por quê?
– Nada! – Ele olhou para fora, para a superfície do lago congelado brilhando sob a luz da lua – Mas Aliver parece muito interessado em você! – Ou estava imaginando coisas, ou ele realmente estava com ciúme.
– E se tiver? – Um rosnado saiu baixo de seu peito quando fiz aquela pergunta, os olhos que se voltaram para mim eram negros e frios, tão frios quanto o Castelo de Gelo nos enjaulando juntos ali.
– Então Vegahn ficaria sem um rei. – Sua voz saiu mais sombria do que eu podia um dia imaginar ouvir, nem de longe tinha a gentileza e suavidade de sempre, mas seus olhos estavam negros, como olhos de uma fera.
– Ciúmes? – Não consegui conter o sorriso se formando em meu rosto.
– E se estiver? – Ele não desviou o olhar como achei que faria, senti meu corpo esquentar e meu sorriso desapareceu.
– Acho que é melhor você ir dormir, Caalin. – Falei baixo desviando dele ao ir em direção da porta para abri-la para que ele saísse, mas antes que eu alcançasse a porta ele me girou e segurou meus braços juntos em minha frente, colocando-me contra a parede gelada e ergueu meu queixo para que eu olhasse para ele.
– Não me respondeu, Nike...
– Não preciso responder, você já tem outras pessoas se derretendo e com ciúmes de você, não é? Não precisa acrescentar mais uma nessa sua longa lista. – Droga, droga, droga de boca grande! Caalin sorriu, mostrando os dentes brancos num sorriso perfeito.
– Parece que alguém está com ciúmes.
– Não diga coisas que não sabe! – Resmunguei tentando me soltar, mas estava fraca devido à magia que agora cobria o castelo, protegendo-o de verdade. Caalin manteve meu queixo em sua mão, enquanto a outra soltou meus pulsos e traçou uma linha em meu pescoço, curvando-se sobre mim tocando os lábios quentes e macios na minha orelha. Quentes, não frio ou gelados, quentes como suas mãos e seu corpo, mas não causavam dor ou desconforto nos ossos de vitrino em meus braços. Apenas fez com que meu coração disparasse e o sangue em minhas veias fervesse.
– Você não é nem de longe o que esperava que fosse. – Caalin sussurrou ao meu ouvido, o hálito quente fazendo cócegas em meu pescoço, lançando ondas de calor por dentro de mim.
– Isso é bom ou ruim? – Consegui fazer minha voz sair, mas ela me traiu, saindo trêmula e vacilante demais. Droga! Senti seu sorriso contra minha bochecha quando ele se curvou um pouco mais, enquanto seus lábios roçaram de leve nos meus e os dedos traçaram círculos na base de minha coluna, puxando o hobby para cima.
– Muito bom... – a voz dele saiu como música para mim. Queria arrancar aquela porcaria de calça que ele estava vestindo e jogá-lo em cima da cama, mas um alerta alto soava em minha mente enquanto imaginava todas as formas diferentes de fazer isso, enquanto seus lábios ainda roçavam de leve na curva de meu maxilar, soltei um gemido quando ele apertou os dedos em meus quadris, então ele me soltou depois de soltar um riso baixo e maligno e foi em direção à porta.
– O que está fazendo? – Perguntei, a voz alta demais, errada demais, quase como uma súplica.
– Você mandou que eu fizesse a pergunta e saísse, ainda fui teimoso, fiquei um pouco mais... – ele sorriu pegando a maçaneta da porta e num rápido movimento, desapareceu.
Desgraçado, frio, desalmado, sem coração! Reclamei comigo mesma pensando se saía atrás dele ou esperava por outra ocasião. Por fim, com as costas congeladas, dormentes e pulsando, deitei sobre a cama e fiquei ali tentando acalmar o turbilhão que havia se formado dentro de mim, o calor entre minhas pernas não diminuía mesmo dentro daquele quarto de gelo, mas a porcaria do teto azul safira não ajudava nada. Enterrei o rosto nos travesseiros, acabei pensando na sensação de sua boca quente e macia contra minha pele, nada disso foi de grande ajuda para que eu conseguisse dormir.
Desisti de tentar dormir quando me virei novamente encarando o teto, então levantei de um salto e saí do quarto, procurando por qualquer sinal dele, mas não fazia ideia de onde ele estava ou onde era o quarto que ele ficava.
Odiava usar meus poderes à toa, mas aquilo me parecia uma situação de emergência então, sem nenhuma vergonha na cara, soltei as sombras pelo castelo, sentindo-as serpentearem e vasculharem cada centímetro daquele lugar, fechando meus olhos e concentrando-me na energia escura que fluía através delas, procurando com os olhos que não eram meus.
Encontrei Caalin dois lances de escadas acima, em uma pequena sala que parecia uma biblioteca ou um escritório. Recolhi as sombras vestindo-me com elas, que em nenhum momento tentaram cochichar para mim, apenas obedeceram, focadas no meu objetivo.
Subi as escadas mais rápido que imaginei poder fazer, quase voando, atravessei o corredor em poucos passos, as sombras pareciam me ajudar, deixando-me mais leve e ágil. A porta estava entreaberta e Caalin estava esticado em um divã com um livro sobre o peito e uma caneta na mão, cobrindo o rosto com o braço forte e musculoso. Só aquela visão já foi suficiente para meu corpo inteiro esquentar.
Ele não percebeu minha aproximação, nem se sobressaltou quando passei as pernas por cima dele, sentando em seu colo e segurei suas mãos.
– O que estava fazendo? – Perguntei tirando a caneta de sua mão.
– Escrevendo, um hábito que herdei de minha mãe. – Os olhos azuis dele encontraram os meus. – O que faz aqui? – Perguntou ele com a voz indiferente, mas o olhar sedutor.
– Mandei você sair, mas não disse que não viria atrás de você.
– Demorou demais! – Ele soltou-se facilmente das minhas mãos e segurou minha cintura para me tirar de cima dele. Não lutei contra isso, quando ele ficou de pé ao meu lado e respirou fundo.
– O que foi? – Perguntei sentindo minha garganta se apertar.
– Acho que você deveria dormir. – Disse ele com a voz macia.
– Não quero dormir, você foi até lá, me provocou e acha que é fácil assim? Simples? Fechar os olhos e dormir? – Bufei.
– Fez pior comigo durante os dias na cabana, caso não se lembre bem! – Disse ele estreitando os olhos.
– Mas eu não fiz por maldade! Aí pensou em fazer isso em castigo? – Quase soltei um rosnado de reprovação quando ele sorriu em resposta.
– Vá dormir Nike. – Disse ele com um sorriso travesso andando até a porta. – Amanhã terei que ir até Fernic descobrir o que foi feito do vitrino e o motivo do ataque ao castelo, então preciso dormir... – meu sangue congelou quando ele disse aquilo, sabia que por ser da guarda, não teria permissão para acompanhá-lo até Fernic, teria que ficar e proteger o rei.
– Posso até ir, mas antes tenho uma coisa para te dar... – fui até ele e peguei sua mão, beijei a palma aberta para mim. – Deste dia em diante, serei sua espada, seu escudo, sua luz em meio ao nevoeiro, a flecha que acerta seu alvo, serei a tempestade que espanta teus inimigos e o vento que varre para longe tuas tristezas, o sol em seus dias mais sombrios. Serei sua guardiã e protetora até o fim de meus dias. – Caalin me encarava com olhos arregalados enquanto a queimação em meu braço direito era substituída por uma marca prateada de uma corrente fina.
– Você fez o juramento de guardião a mim? – Perguntou com a voz rouca sem tirar os olhos da marca prateada em meu pulso.
– Hu-hum... – fiquei nas pontas dos pés e beijei seu queixo antes de escorregar para a porta, ele ainda parecia atordoado encarando o nada. Por um minuto achei que tivesse feito a coisa da forma errada, mas seu rosto se abriu num sorriso tão grande que poderia iluminar o mundo, ele me segurou antes que eu passasse pela porta, pegando-me no colo e levando-me para o outro lado da sala, onde um pequeno sofá de dois lugares se encontrava. Ele sentou-se deixando que eu escorregasse sobre seu colo, tracei os contornos do seu rosto com as mãos enquanto ele ainda encarava a marca prateada ali.
– Por que fez isso? – Perguntou com a voz baixa.
– Porque eu quis. – Não queria dizer o real motivo a ele, dizer que fiquei com medo, e que com o juramento, com aquele estranho laço nos unindo, eu saberia exatamente se algo de errado estivesse acontecendo, assim eu poderia mesmo à distância, cuidar dele, cuidar de verdade, ter a certeza de que ele ficaria bem e que eu seria avisada e chegaria a tempo caso algo lhe acontecesse, não que ele realmente precisasse de minha proteção, mas eu precisava saber que ele ficaria seguro.
– Você costuma fazer tudo que quer e na hora que quer sem pensar nas consequências? – Ele sorriu, contornando meus lábios com os dedos.
– Às vezes... – consegui falar mesmo com a respiração ofegante.
– Sabe o que acontece com isso, com essa ligação caso eu fique muito longe de você? – Disse ele contra minha garganta, apertando de leve meu corpo contra o seu.
– Não...
– Seus poderes vão ficar fracos. – Sua voz não passava de um sussurro, então ele desamarrou a fita do hobby e o tirou de mim como se não houvesse obstáculos para o tecido, Caalin ocupava a maior parte do pequeno sofá, que parecia uma cadeirinha sob ele.
– Não tem importância, só preciso ter a certeza de que você vai ficar bem. – Então soltei o coque que prendia seus cabelos e enrolei meus dedos neles, passei minha língua de leve sobre seus lábios, apreciando a sensação quente e adocicada. – Achei que você fosse frio... – ele riu contra meus lábios, cedendo à pressão de sua boca contra a minha quando ele abriu minha boca e mordeu meu lábio inferior, depois minha língua e desceu as pontas dos dedos, das garras por meu pescoço, até entre meus seios, rasgando o sutiã de renda, mas sem ao menos arranhar minha pele.
– Sou uma besta de gelo só nos poderes mesmo... no resto sou tão quente quanto você.
– Então me mostre essa sua parte e pare de ser tão gentil comigo! Não é isso que eu quero, não agora! – Reclamei quando ele continuou acariciando minha pele fazendo círculos com os dedos em meus quadris, mesmo que estivesse apreciando a sensação, queria mais, precisava daquele toque. De novo sua risada fez meu corpo estremecer, Caalin tirou-me de cima dele, apoiando meus joelhos no sofá e abriu minhas pernas devagar, um pânico se revirou dentro de mim quando ele deslizou a mão para a parte interior das minhas cochas e pressionou o corpo no meu, fazendo com que tivesse que me apoiar no encosto do sofá.
– Não vou ser nada além de gentil com você, Nike. – Ele sussurrou contra minha nuca e passou a língua por minhas costas antes de se voltar e morder de leve meu ombro. Soltei um gemido quando suas mãos começaram a dançar em meu corpo com os movimentos lentos que ele fazia contra mim, apreciando cada toque, como se fosse o primeiro e último, tomando-me por completo. Embora todo meu corpo tremesse, fiz com que ele se sentasse novamente e me deixasse subir em cima dele, queria beijar seu rosto, sua boca, seu peito enquanto ele entrava dentro de mim.
Caalin tinha um olhar feroz, mas ao mesmo tempo manso e um sorriso predatório no rosto quando o encarei sorrindo e o beijei de novo e de novo, absorvendo o máximo do seu gosto, do seu cheiro. Não queria conter o que havia prendido dentro de mim, o desejo que me consumia e não se apagava com facilidade, ele segurou meus quadris com força antes de me puxar mais para cima, fazendo com que meus movimentos ficassem ainda mais intensos, até que meu corpo inteiro tremeu e se desfez em suas mãos. Antes que acabasse, senti seu sorriso contra meu pescoço quando ele fechou os dentes ali, perfurando minha pele e segurando minha boca para que eu não gritasse, mas eu não gritei, apenas deixei um fraco gemido subir a garganta. Era como se meu sangue quisesse ir em direção àquelas pequenas feridas causadas por suas presas, mas eu não me importei, deixei que o fizesse. Senti a pressão diminuir até que não passava de um formigamento, onde ele passou a língua e qualquer marca que pudesse ter ficado ali, desapareceu.
Acordei em minha cama, deitada toda embolada em lençóis, tateei no escuro a procura de Caalin, mas não encontrei nada, com medo de ter sido apenas um sonho, toquei as pontas dos dedos em meu pescoço, mas estava dolorido ainda e um leve formigamento em minhas pernas, quadris e barriga indicavam que não havia sonhado. Abri os olhos devagar, a luz da lua ainda estava ali, Caalin estava do outro lado do quarto, sentado sob a janela e com minha calcinha na mão.
– Achei que não fosse acordar tão cedo. – Disse ele dando um sorriso presunçoso.
– O que acha que eu sou? – Resmunguei dando tapinhas na cama.
– Um bichinho mais selvagem do que eu esperava. – Mesmo sentindo meu rosto corar eu ri. Ele se levantou e veio até mim, deitando ao meu lado e puxando meu pulso, olhando a marca prateada ali. – Um animalzinho selvagem, ardiloso e fogoso demais... – foi a vez dele de rir.
– Ardilosa, eu? – Ergui a sobrancelha.
– Sabia que eu ficaria aos seus pés com um juramento como aquele? – Perguntou ele semicerrando os olhos.
– Não te comprei com isso! Só queria ter a certeza de que você estaria bem e que eu poderia te encontrar mesmo se você estivesse longe. – Admiti odiando-me por aquilo, por ter sido tão franca em relação aos meus sentimentos e preocupações. Ele mordeu os lábios evitando sorrir, logo em seguida beijou a marca prateada, fazendo com que outra corrente elétrica passasse por mim.
– Não vou poder ir com você, não é?
– Não, não vai, senhora capitã da guarda! – Ele falou o título como uma reverência, sem tirar meu pulso da boca, xinguei baixinho e me agarrei a ele, apertando meu corpo no seu e subindo minha perna para enroscar em sua cintura.
– Nike, eu vou fazer você dormir, se não sossegar. – Ameaçou.
– Está com medo porque está ficando velhinho e não consegue me acompanhar? – Sussurrei subindo em seu peito, roçando meus lábios nos seus. Ele semicerrou os olhos, girando meu corpo e me prendendo embaixo dele, tinha um olhar feroz quando abaixou até meu rosto, e beijou meu queixo, meu pescoço e traçou uma linha com a língua até minha barriga.
– Não provoque o que não pode aguentar, menina. – Retrucou soltando um rosnado. Soltei uma gargalhada debochada e tomei sua boca novamente, enrolando minhas pernas em sua cintura e perdendo-me em seu corpo, em seu toque, em seus beijos novamente. Ouvi meu nome entre outras palavras que ele me dizia ao pé do ouvido, e eu o trazia mais para mim. Sinceramente, não achei que ele cairia numa provocação como aquela, mas se funcionou... bom para mim.
Na hora que acordei, desta vez ele não estava em nenhum lugar do quarto, Luviah estava olhando para mim pela brecha da porta do banheiro com um sorriso malicioso nos cantos dos lábios.
– Parece que alguém não dormiu muito ontem à noite, não foi?
– Do que está falando? – Tentei parecer o mais inocente possível, mas ela soltou uma gargalhada divertida enquanto trazia meu uniforme para a beirada da cama.
– Seu banho está pronto. – Ela jogou outro hobby para mim, só então percebi os retalhos do que um dia foi o hobby preto de seda.
– Ah! Eu gostava tanto desse... – falei chutando os trapinhos para fora de meu caminho.
– Talvez o palácio inteiro saiba como ele virou esse amontoado de retalhos. – Disse Luviah casualmente os recolhendo do chão, senti o sangue sumir do meu rosto ao encará-la assustada.
– O quê?
– Você estava fazendo muito barulho, num Castelo de Gelo, habitado por uma grande quantidade de Malvarmos que podem escutar uma agulha caindo no gramado do jardim. – Ela piscou para mim. – Não se atreva a ficar com vergonha, mantenha a cabeça erguida e se alguém fizer piada...
– Eu quebro o pescoço do infeliz. – Grunhi.
– Não! Você vai sorrir e provocar, e se isso não der certo, aí sim você pode quebrar a cara de alguém, não o pescoço! – ela riu.
– Entendido. – respondi.
Assim, oficialmente o primeiro dia como Capitã da guarda do rei Aliver começou, sem piadinhas sobre a noite anterior, claro. Uma rotina monótona e entediante, que ia desde reuniões com a guarda, verificação de armamento, que na minha opinião eram todos inferiores, mas não tão ruins quanto outros que já vira antes, entre outros afazeres ainda mais chatos. Aliver precisava que eu estivesse a seu lado a maior parte do tempo, caso houvesse alguma ameaça, mas naquele momento, eu era a única ameaça dentro daquelas paredes de gelo. De vez em quando vasculhava meus pensamentos e sentimentos atrás de qualquer vestígio, qualquer traço do que Caalin pudesse estar sentindo, pois conhecia bem como funcionava o laço de guardião embora com Kuran ele tinha algo de errado, pois nunca podia senti-lo pela ligação, mas Caalin é um mestre em se manter calmo e equilibrado, pelo menos quando estava longe de mim.
– Não achou que ia ser tão entediante assim, não é? – Aliver disparou quando me viu mexendo o prato de comida durante o almoço, ele me convidou para sentar ao lado dele.
– Já imaginava que fosse algo do tipo. Prefiro a calmaria do que brigas desnecessárias. – Falei. Aliver gargalhou abertamente pegando a taça de vinho e tomando, mantenho os olhos cor de âmbar em mim.
– Não pareceu isso ontem, achei que fosse partir Toghus ao meio.
– Não faria isso... não quando estava tentando passar uma boa impressão, fora que daria trabalho limpar as cortinas. – Retruquei terminando o vinho em minha taça e servindo mais um pouco.
– Talvez, mas o castelo anda muito limpo ultimamente, precisamos dar mais trabalho aos serviçais, ao que parece, eles estão passando muito tempo ouvindo as conversas alheias! – Vi um brilho malicioso em seu olhar.
– Não só eles, não é?
– Ah! Desculpe, mas faz tempo que esse castelo anda um tanto... sem vida! – Ele riu.
– Onde está o resto de sua família? – Perguntei desviando o assunto sentindo minhas bochechas corarem.
– Em Retiro das Folhas, uma cidade élfica flutuante. Acredito que estão melhor lá, mais seguras, mas agora com sua presença talvez pense em trazê-las de volta, minha irmã ficaria... muito feliz em conhecê-la. – Ele pareceu um tanto desconfortável ao mencionar a irmã.
– Talvez também gostasse, estou sentindo falta de uma companhia feminina! – Respondi.
– Zion não é exatamente o que você possa considerar uma amiga, não é? Já que ela e Caalin... – soltei a taça em cima da mesa, fazendo Aliver perder a cor caramelo de seu belo rosto.
– Preciso voltar a meu trabalho, majestade. Obrigada pelo convite!
Fiz uma reverência e saí do interior do castelo, passando em frente à entrada principal, onde agora havia uma estátua de um dragão de vitrino em tamanho real, congelado eternamente na posição em que eu a matara, mãe de Docinho, espero que ela não cresça e fique ressentida comigo, mas não achei que Caalin tinha falado sério quando disse que o traria ao rei, que aparentemente gostou do presente, o dragão com sua boca aberta em direção aos portões passava uma clara mensagem, mostrava o que aguardava aqueles que ousassem desafiar o poder de Aliver, meu poder. Fui até o jardim coberto dos fundos, onde havia um muro de pedra e um portão de ferro. Uma área grande que Caalin havia preparado para Docinho ficar.
Docinho estava deitada num ninho de cinzas e brasas quando me aproximei, roçando os dedos em sua cabeça, fiquei um bom tempo com ela antes de voltar aos meus afazeres.
No fim da tarde, perto do anoitecer, convidados de outro mundo chegaram, então tive que ir novamente até a sala do trono com os guardas.
Aquela pele avermelhada fez uma onda crescente de pânico se remexer dentro de mim. Um emissário de Ciartes entrou pelo salão trazendo um pergaminho dourado, fino e perfeitamente enrolado em sua mão. Gihar, era o nome dele, um emissário de Hargas, agora de Ericko, tinha medo do conteúdo daquele pergaminho, mas não poderia ser uma ordem de captura, não em pergaminho dourado.
– Peço que se apresente. – Falei por mera formalidade com a voz mais firme do que imaginei que conseguiria, o salamandra não me reconheceu, ele fez uma reverência ao rei e um breve aceno para mim, sem me olhar de verdade então começou a falar:
– Rei Aliver de Vegahn, sou Gihar Borslin, emissário do Rei Ericko Salomon e venho hoje em sua presença lhe trazer um convite do casamento de vossa majestade, o rei Ericko com a princesa Karin, filha do Rei Ewren Ascardian, de Amantia. – Aliver respirou fundo e acenou para mim. Fui até o emissário e peguei o pergaminho dourado de suas mãos, só então ele e olhou, olhou de verdade para mim, para meu uniforme e a arma que eu carregava e seu rosto ficou branco como a face da morte.
9
O chamado
Aliver solicitou que eu o acompanhasse quando o emissário, ainda pálido e assustado saiu da sala do trono sem esperar uma resposta de Aliver. Acompanhei o rei até um quarto imenso no quinto andar do castelo, o quarto era todo decorado em ouro, prata e tons de vermelho e marrom, a cama grande demais ficava bem no meio do quarto, que embora estivesse muito limpo, não parecia ser usado por ninguém. Fiquei gelada quando ele fechou a porta atrás de mim e colocou uma mão em minhas costas, fazendo meu coração acelerar. Apertei firme o pingente em meu pescoço e o olhei de canto de olho, seu rosto estava um pouco tenso e um olhar preocupado quando ele indicou uma porta grande do outro lado do aposento, andei até ela em silêncio, ele abriu a porta revelando um escritório com uma biblioteca. Fiquei aliviada quando ele entrou na sala e sentou atrás da mesa grande de mogno entre as várias estantes de livros e indicou o lugar em sua frente. Contornei a cadeira devagar e me sentei cruzando as pernas e vigiando cada movimento de Aliver.
– Quando aquele mensageiro apareceu, quando vi o uniforme do Castelo do Sol, achei que estivesse trazendo uma ordem de captura para você! – Disse ele fixando os olhos nos meus.
– Eu também imaginei isso a princípio, mas quando vi o pergaminho dourado já sabia que deveria ser de algum evento grande... mas achei que a essa altura os dois já estariam casados! – Falei mais baixo.
– Um casamento entre pessoas das Famílias reais de mundos diferentes exige a presença de todos os reis ou rainhas dos Doze, não é um simples casamento, é uma prova, a demonstração de uma aliança poderosa... – Aliver ficou pensativo.
– Pretende ir?
– Preciso ir e espero que você vá! Você e Caalin, na verdade, não arrisco ir até os outros mundos sem ele... – ele percebeu meu olhar irritado e continuou – embora você já seja proteção suficiente, mas Caalin tem uma habilidade incomum de fazer com que as pessoas concordem com suas vontades, ele consegue dobrar a maioria das pessoas, e isso pode me favorecer.
– Está pensando em fazer uma aliança com Ericko, por causa dos reinos do Leste e Oeste?
– Ausiet e Hobner autoproclamaram-se reis de seus continentes e estão planejando um ataque a Blizzion, eles querem tomar minhas terras e meus exércitos para invadir Ciartes. – Senti meu sangue se esvair.
– Queria entender qual o interesse em Ciartes, quero dizer, existem mundos maiores e mais fáceis de serem invadidos! Ciartes tem um exército poderoso de Caçadores e guerreiros! – Falei.
– Exatamente, se o rei cair, quem assumir depois dele governa Ciartes, Ericko é jovem! E não é tão difícil colocar espiões e assassinos dentro do Castelo do Sol, a segurança deles é falha pois confiam demais que não serão atacados. Se chegarem a matar a família real... Bom, quem assumir terá o controle de tudo!
– Isso não explica o motivo pelo qual iriam querer logo Ciartes, já que Vastrus é maior e possui o exército de Gaaris, o gigante. Soube que eles podem ser facilmente comprados com ouro e metais preciosos, se Hobner e Ausiet tem o vitrino, eles poderiam comprar Gaaris facilmente... – Algo sombrio no olhar de Aliver fez com que eu me calasse.
– Imagine, um exército de magos negros? – Minha pele arrepiou ao mesmo tempo que o jantar se tornou chumbo em meu estômago.
– Não existe tal coisa...
– Mas pode existir... existem alguns métodos de como criar magos negros, o método como ouvi falar que você foi criada é o mais conhecido, o método de escurecer o coração de alguém com dor e sangue inocente.
– Basta! – Bati na mesa – Não me lembre disso, por favor! – Aliver não se abalou com meu pequeno ataque, mas o meu jantar ameaçou voltar ao lembrar daquilo, do sangue de Elister em minha garganta e do rasgo no peito de Kuran e de como ele se afogava no próprio sangue.
– Mas existem livros, livros que foram perdidos por aqueles que o criaram e que podem ser recuperados no tesouro de Ciartes.
– A Árvore do Fogo! – Levei a mão ao colar imediatamente, onde a chave da árvore descansava silenciosa e morna entre meus seios.
– A Árvore do Fogo, dizem as lendas, possui todo o conhecimento dos mundos, todos os livros, tudo! Lá existe um livro escrito por Érebo que ensina como invocá-lo e como reivindicar seu poder, o poder das trevas e das sombras, o poder de transitar entre os mundos sem precisar de portais. – Minha garganta secou, estive perto desses livros, tão perto... eu devia realmente ter destruído a árvore naquele último dia.
– Poderia entrar no castelo deles, poderia matar Hobner e Ausiet enquanto dormem! – Falei.
– Não, não pode. Eles têm apoio do povo, são Malvarmos de linhagem pura, eu sou o meio humano que eles querem derrubar! Se eles aparecessem mortos o povo logo desconfiaria! Por que acha que nunca pedi a Caalin que o fizesse? Hobner e Ausiet poderiam facilmente tomar os mundos, todos eles, com o poder do Livro das Sombras.
– E o que faremos então? Seria bem-vinda, Os Ascardian mantem o poder entre eles desde a criação dos mundos, são respeitados em todos os mundos, até aqui o nome do rei Ewren tem influência, mais ainda que o meu! – Aliver riu – O rei de Amantia é mais respeitado em Vegahn que o próprio rei de Vegahn, se eu tivesse uma aliança com eles, conquistaria todo o povo de Vegahn. Mas até onde eu sei, as filhas do rei são todas comprometidas. – Disse ele.
– Nem todas, Asahi não é comprometida.
– Quem é essa?
– A filha mais nova do rei e da sacerdotisa das águas! – Expliquei, os olhos de Aliver brilharam com a possibilidade.
– Ela é bonita? – Revirei os olhos.
– Ela é linda! – Respondi, o sorriso dele aumentou ainda mais.
– Ela com certeza estará no casamento da irmã!
– E o rei também, e já te adianto que ele tem ciúme das filhas!
– Me viro com essa parte, sou bom em conquistar as pessoas e Caalin melhor ainda, ele pode me ajudar com o rei! – Ele ficou pensativo novamente. – Mas eu tenho uma tarefa para você!
– Estava demorando!
– Você é uma caçadora e uma maga negra...
– E?
– Preciso que entre naquela árvore e ache o Livro das Sombras...
– Não vou dar ele para você! – Rosnei fazendo menção de me levantar, Aliver arqueou as sobrancelhas.
– Não pedi para você me dar, pedi para achar, você me interrompeu! – Corei e voltei ao meu lugar. – Destrua-o.
– Não tem interesse nele?
– Ser um mago negro, ter um poder imensurável e correr o risco de perder a sanidade e ferir aqueles que amo? – Encolhi os ombros para sua escolha de palavras e baixei os olhos para as garras em minhas mãos. – Desculpe, você deve ser a única maga negra que não parece com uma.
– Obrigada, acho.
– Bom, preciso pensar melhor no que fazer e esperar que Caalin retorne com boas notícias. – Aliver fez um movimento sutil com as mãos, dispensando-me.
– Boa noite. – Me despedi saindo do quarto e caminhei pelo castelo, fazendo uma última vistoria antes de pegar o relatório na sala da guarda e me recolher.
Estava deitada, não dormindo, mas flutuando entre dormir e sonhar acordada quando algo entrou em meu quarto. Ultimamente tinha um controle maior das sombras, então as deixava como vigias por todos os lados, assim elas me informavam o que acontecia. Senti quem quer que fosse se aproximar da cama, estava com a mão embaixo do travesseiro segurando uma adaga só esperando ele se aproximar. Sem aviso algum pulou sobre mim na cama colocando uma arma bem perto do meu pescoço, porém a minha já estava sob o queixo dela também, usei a transformação em malvarmo para me certificar que sua lâmina não me causaria danos graves.
– O que está fazendo, Zion? Quer morrer? – Chiei derrubando-a de cima de mim, ela ficou ajoelhada em minha frente na cama, usando nada mais que um short curto e camiseta deixando parte da barriga à mostra.
– Ele era meu! – Ela rosnou baixinho mostrando os dentes agudos para mim, os olhos cor de vinho brilhando sob a luz intensa da lua e os cabelos dourados na altura dos ombros dançando suavemente com seus movimentos.
– Você parece alguém que conheci um tempo atrás, alguém que não sabe perder.
– Você não entende nada! – Ela levantou a blusa, mostrando o corpo forte, bem definido, mas não era isso que queria que eu visse, era uma marca sob seu seio esquerdo, uma marca de uma perfuração profunda.
– Você era humana? – Falei apoiando-me sobre os braços para levantar e ver melhor.
– Ele me transformou.
– E isso o prende a você? – Perguntei num tom de deboche, ela continuava me encarando com raiva.
– Tudo que ele fizer com você, saiba que já tive primeiro! – Não tinha como negar o quanto aquilo me irritou. Ela estava tão perto de meu rosto que podia sentir sua respiração, ela estava me forçando, tentando me irritar.
– Sabe quando você tem uma bota de couro novinha? Vai levar um tempo até você conseguir amaciá-la, até você conseguir que ela fique macia e se ajuste a seus pés, mas até que ela se ajuste, ela vai te dar calos, seus pés ficarão doloridos e você vai se irritar muito com a bota. Eu prefiro as botas usadas, que alguém já tenha amaciado e que estejam prontas para meus pés do que me irritar amaciando uma bota nova! – Minhas palavras, meu sorriso deve ter sido a gota para ela, pois ela ergueu a faca novamente avançando para cima de mim.
Num movimento rápido a desarmei e prendi seus braços para trás, e sem querer arranhei seu ombro com uma garra fazendo o sangue transparente azulado escorrer numa fina linha. Aquilo me atingiu de forma inesperada, algo em mim foi atraído por aquele sangue e minha garganta reclamou, ardeu àquele cheiro metálico e atraente.
Zion estava apavorada, mas as mãos dela pareciam inertes e ela estranhamente silenciosa quando me debrucei sobre ela, aumentando aquele pequeno corte com as presas e tomando seu sangue, o gosto era estranhamente familiar, tinha um leve toque do cheiro de Caalin. Zion não lutou, só depois percebi que as sombras a deixaram desacordada. Fiquei apavorada com aquilo, soltando-a sobre a cama e me afastando dela, caindo sentada no chão o mais longe da cama que pude, não conseguia me acalmar de jeito nenhum, achei que a qualquer momento ia colocar as tripas para fora, mas isso também não aconteceu.
Fiquei a noite toda acordada, assustada demais com o que tinha acontecido e vigiando de hora em hora para ter certeza que Zion ainda estava viva. Pouco tempo antes do sol nascer, ela acordou desorientada, olhando em volta até perceber onde estava e imediatamente levar a mão ao ombro e olhar em minha direção.
– Você me mordeu? – Perguntou incrédula.
– Desculpe... eu... – Ela não disse mais nada quando saiu correndo para fora do quarto. Fui cambaleante até o banheiro e deixei a banheira enchendo, fiquei na beirada sentada olhando para o nada por um bom tempo, tentando entender o que havia acontecido, o que me aconteceu para que eu a mordesse. Estava tão distraída em meus pensamentos que não percebi que tinha entrado totalmente na água quente, que o vitrino em meus braços não estava reclamando com o calor da água, ela estava quente o suficiente para deixar minha pele vermelha em poucos minutos.
– Que cara de terror é essa? – Caalin estava parado na porta do banheiro olhando para mim.
– Desde quando está aí? – Consegui me forçar a falar.
– Acabei de chegar, encontrei com Zion no corredor, e sinceramente não sei quem está com uma cara pior... o que houve entre vocês, por que ela estava saindo daqui?
– Não quero falar sobre isso! – Falei apontando a porta, mas ele não saiu, continuou parado olhando para mim. Ficamos nos encarando bom um bom tempo até que ele respirou fundo e andou até a borda da banheira, retirou as botas e entrou na água de roupa e tudo, transformando o banheiro em uma piscina. – O que está fazendo? Caalin! – Resmunguei, mas ele me puxou para seu colo e me embrulhou nos braços, roçando o nariz em meu pescoço.
– Você realmente mordeu ela? – Tentei me soltar de seu aperto, mas ele não cedeu.
– Mordi. – Caalin se afastou para me olhar e começou a rir. – Do que está rindo, idiota! – Rosnei fazendo ainda mais força para que ele me soltasse.
– Desculpe, mas acho que eu teria gostado de ver isso! – Disse ele mordendo os lábios e semicerrando os olhos.
– Pervertido! – Resmunguei sentindo meu rosto corar.
– Me desculpe, eu devia ter te avisado.
– Me avisado do quê?
– Do chamado...
– Eu sei o que é! Já disse que estudei sobre vocês, só achei que não fosse acontecer comigo, afinal...
– Você é hibrida? – Ele completou, acenei com a cabeça.
– Até Aliver tem que responder ao chamado, Nike.
– Por quê?
– A energia que circula no sangue de qualquer criatura é uma energia pura e viva, mesmo que você não seja completamente transformada pela maldição, a parte malvarmo em você ainda precisa dessa energia. Por isso que seus braços não estão doendo mais, quando você atendeu o chamado o ferimento terminou de curar. – Explicou ele traçando uma linha em meus braços e os tirando debaixo d’água. As cicatrizes haviam desaparecido por completo. Abaixei os olhos e notei que as marcas em minha barriga também haviam desaparecido.
– todas as marcas que eu tinha...
– Sumiram. – Fiquei boquiaberta encarando-o, observando seu sorriso divertido. – Malvarmos não tem marcas, nem mesmo os híbridos.
– Uma pena, eu gostava daquelas em minhas costas!
– Gostavas das cicatrizes das chicotadas? Não sabia que era masoquista também! – Revirei os olhos, Caalin sabia ser engraçadinho quando queria.
– Não é por isso! É só pelo que elas me faziam lembrar!
– E o que elas te lembravam? De não se meter mais onde não é chamada?
– Está muito falante hoje! – Resmunguei. – Elas me lembravam que nem sempre seria recompensada por fazer coisas boas. E que as vezes fazer a coisa certa vai me deixar em apuros e poderia ser castigada, como daquela vez, mas mesmo assim, dormir com a certeza de que fiz a escolha que achei certa, e que isso ajudou pelo menos uma pessoa, vale a pena!
Caalin permaneceu em silêncio.
– Achei que você fosse demorar mais por lá! – Mudei de assunto tentando sair da água, mas ele me sentou novamente em seu colo de costas para ele, tirou meu cabelo do caminho e ficou traçando linhas e redemoinhos em minhas costas com as pontas dos dedos, aquilo era tão calmante.
– Fui até lá só para verificar, ao que parece o vitrino foi levado de Fernic. Mas existe mesmo um guardião lá!
– O que vamos fazer com ele?
– Ainda não sei, mas precisamos tomar cuidado com isso... como foram as coisas por aqui?
– Um emissário de Ciartes apareceu. – Caalin ficou tenso de repente, parou de brincar com minhas costas. – Ele trouxe um convite de casamento para Aliver, e ele quer que o acompanhemos.
– Aliver devia tê-la nomeado como guarda pessoal do rei, e não capitã da guarda real, vou conversar com ele a respeito disso, senão você fica presa à família real e podem exigir que você cuide dos outros membros da corte.
– Se eu deixasse de ser a capitã da guarda, agora que dispensaram Toghus, quem seria? – Senti Caalin ficar tenso novamente.
– Zion, ela é a mais qualificada entre eles. Eu a treinei junto com Aliver. – Virei para trás para poder encará-lo.
– Ela veio brigar comigo querendo que eu te devolvesse.
– Sou um objeto para que você possa me devolver a ela?
– Ela disse que você era dela, então ela deve pensar que é! – Ri.
– Eu a transformei, isso cria um laço também, mas parece que ela não superou isso muito bem... – explicou saindo da banheira molhando ainda mais o banheiro, Luviah ia ficar furiosa quando visse a bagunça.
– Por que a transformou?
– Ela ia morrer, Ira e eu a encontramos próxima ao lago Stanaj, havia fugido do castelo depois de brigar com o pai e atravessou o lago correndo, mas o gelo estava fino e se partiu. – Ele endireitou os ombros e me ofereceu uma toalha, usou sua magia e se secou imediatamente. – Quando a achamos ela já não respirava mais. Não podia deixar ela morrer lá.
– Aí você resolveu ficar com ela?
– Por Gaia, não! Ela era uma criança! Mary me enviaria para o inferno se eu fizesse isso, fico pensando se ela não fará isso por eu ter ousado te tocar também... – ele começou a murmurar.
– Então? – Enrolei a toalha embaixo dos braços e fiquei encarando-o, mesmo que não fosse da minha conta, queria saber.
– Só aconteceu, Nike, assim como aconteceu com o príncipe e você. – Senti o rosto corar e saí do banheiro, deixando-o para trás, peguei meu uniforme no armário e o vesti. Caalin ficou parado na porta do banheiro olhando para mim, na certa esperando alguma reação.
– Estou com medo de ir a Ciartes. – Falei por fim, desviando o assunto. Caalin ergueu a sobrancelhas e sentou ao meu lado na cama.
– Medo de quê?
– Da rainha mandar cortar minha cabeça por causa do que eu fiz...
– Ela não iria mandar cortar sua cabeça, Nike, sabe que em Ciartes os condenados são queimados vivos! – Um arrepio subiu em minha espinha fazendo meu estômago revirar. – Desculpe! Foi uma brincadeira sem graça!
– Muito sem graça! – Resmunguei.
– Não vão mandar te matar, fique tranquila quanto a isso! – Ele deu um beijo em minha testa e me levantou, seguimos para o salão principal para tomar o café, estava com tanto sono, mal conseguia caminhar sem esbarrar em algo.
O salão estava bem mais movimentado aquela manhã, haviam alguns Malvarmos que não conhecia e duas mulheres com aparência humana perto do rei, uma parecia ser sua cópia em versão feminina, a mulher era magra e alta, tinha os cabelos em mesmo tom ouro envelhecido e a pele e olhos cor de avelã de Aliver, um sorriso alegre no rosto e um ar jovial, a outra tinha cabelos branco-acinzentados e olhos vivos cor de carvão, a pele tão clara quanto a minha e as orelhas levemente pontudas, não parecia ter mais que dezesseis anos.
– A mulher igual ao rei é Yeferis, sua mãe, a mais jovem com cara de quem vai comer um dos guardas como café da manhã é a princesa Oriel, irmã do rei, ela é híbrida assim como você, meio humana, meio malvarmo. – Explicou Caalin baixinho enquanto entrávamos pela sala do trono. – É impossível conquistar a amizade dela, Oriel não tem nenhuma amiga, nunca teve! – Fiquei com pena dela, mas ela não parecia se importar com isso.
– A mãe dele parece um amor!
– Ela é! – Nos aproximamos, fiz uma reverência para o rei, que acenou de volta e apertou de leve a mão de Oriel.
– Ori, essa é a nova capitã da guarda, Nikella! Nikella, essa é minha irmã, princesa Oriel. – Por mais agradável que ele tentasse ser ao nos apresentar, pude sentir sua tensão. Oriel olhou para mim da cabeça aos pés, ergueu as sobrancelhas e um sorriso debochado surgiu em seu rosto.
– Trouxe mais uma garotinha bonita para o castelo e lhe deu um cargo só para poder levar ela para cama também? – Ela estalou a língua, senti Caalin enrijecer ao meu lado e o olhar de pânico do rei para Oriel me surpreendeu, Zion parecia estar prestes a puxar a arma e ir até a princesa também, deve ter ficado ofendida pelo “mais uma garotinha bonita”. – Se continuar assim irmão, não vai conseguir pretendentes.
– A princesa é um amor, vossa majestade! – Nunca precisei lutar tanto para colocar um sorriso no rosto, mas o esforço valeu a pena, pois Orion ficou desconcertada, ela provavelmente esperava que eu perdesse a cabeça e lhe respondesse a altura.
– Não seja falsa, menina! Diga logo o que pensa de mim! – Ela se levantou e veio em minha direção, ficando a menos de um palmo de mim, era a primeira pessoa que eu conhecia que não era maior que eu, tínhamos a mesma estatura, então poderia encará-la sem ter que olhar para cima, dei um passo mais para perto dela chegando bem perto de sua orelha antes de cochichar o mais baixo que pude para que ela fosse a única a ouvir.
– Acho que vossa alteza está precisando de um macho que goste de brincar com um chicote, talvez ele lhe ensinasse bons modos! Se quiser, posso te apresentar alguns! O chicote eu tenho, mas não gosto de domar fêmeas! – Ela corou e se afastou cobrindo a boca com a mão.
O silêncio no salão era absoluto quando ela voltou ao seu lugar, ainda com o rosto tão vermelho que destacou os olhos negros.
Fui até meu lugar na mesa dos guardas como de costume e me sentei, pegando uma xícara que Zion serviu para mim, a olhei desconfiada, mas dei de ombros, ela não me mataria envenenada com tanta gente olhando. Caalin estava olhando-me de soslaio:
– O que falou com ela para que ela perdesse a pose daquela maneira? – Perguntou ele depois que comecei a comer um prato de creme.
– Sugeri que ela estava precisando de um macho e que eu poderia arrumar um para ela! – Zion estava atenta me ouvindo, ela e Caalin engasgaram com o chá e se esforçaram para não rir.
– Você só pode ser louca, Nike! – Disse ele olhando discretamente para a princesa que ainda estava corada e olhava de vez em quando em nossa direção.
Após o café, Caalin foi encontrar-se com o rei para relatar o que havia descoberto em Fernic, eu seria a última a saber, pois havia me esquecido completamente de perguntar, então fui até a sala da guarda para obter o relatório da noite anterior, solicitei a verificação das armas e do arsenal e fui até Docinho para ver como ela estava e se estava bem cuidada.
Em menos de uma semana ela já estava com o dobro do tamanho e começava a soltar fogo por todos os lados, teria que fazer algo em relação a ela, não poderia deixá-la aqui, mesmo que o castelo fosse protegido por uma magia que não permitia que ele derretesse, não sabia o que um dragão híbrido poderia fazer com ele caso misturasse seus poderes.
– Acho que você é o bichinho perfeito para mim, mas não vou poder te deixar aqui! – Falei observando Docinho escalar meu braço e aninhar-se em meu ombro.
– Por que não a leva e dá de presente de casamento ao rei Ericko e sua noiva? – A voz feminina atrás de mim me fez pular.
– Oriel... – a olhei desconfiada, mas ela estava com as feições diferentes, suaves e com um brilho no olhar.
– Me desculpe por mais cedo, você foi a primeira pessoa que me enfrentou e não me tratou diferente por eu ser da família real!
– Não importa quem você seja, se me tratar com respeito eu te tratarei igual, se me irritar, bom, confesso que não te dei uns tapas pois Caalin teria me impedido! – Falei, ela riu e esticou os dedos para tocar em Docinho, ela chiou e soltou algumas fagulhas na direção de Orion.
– Vim para o castelo por causa da festa de casamento em Ciartes, odeio festas mas gosto da comida deles! – Ela sentou ao meu lado no banco de pedra, o dia havia amanhecido nublado, mas a neve ainda não havia começado a cair.
– Odeio comida dos Salamandras, acho nojenta! – Ela parecia desconfortável sem saber como manter a conversa mas falou:
– Bom, espero que possa me fazer companhia enquanto estivermos em Ciartes, nunca fui até lá, estou um pouco receosa sobre essa viajem.
– Pode deixar, vou ficar por perto! – Lhe dei um sorriso sincero quando ela fez um breve aceno e saiu dali.
Fiquei pensando sobre o presente, mas dar Docinho para eles não me parecia boa ideia, já que eles teriam afazeres demais para poder cuidar dela. Outra ideia veio em minha mente, poderia pedir para que Susano e Annie cuidassem dela. Susano gostava de dragões e certamente poderia domesticar e cuidar de Docinho, espero que eles não me considerem uma inimiga por ter tentado matar Nyumun, esperava também que Caalin tivesse razão e que Sheriah não resolvesse me matar quando me visse ao lado de Caalin e Aliver.
Durante o jantar, Aliver anunciou as mudanças na guarda, colocando Zion como Capitã da guarda e Caalin e eu como seus guardas pessoais, Caalin não pareceu muito à vontade com isso, mas assentiu quando o mesmo mestre da noite anterior o nomeou, confesso que fiquei feliz quando retiraram o emblema de meu peito e deram a Zion, a rotina de capitã da guarda era chata demais. Zion pareceu feliz com o cargo, talvez aquilo ajudasse a fazer seu pai se sentir melhor, onde quer que ele estivesse agora.
Orion me encontrou depois do jantar e me levou até a alfaiate do castelo, ela se recusou a me deixar usar o uniforme da guarda no casamento, disse que precisava de algo incrivelmente lindo para que ela não se sentisse deslocada na festa, imaginei o quanto era grande o ego dela para que se visse assim, embora Orion fosse linda.
Quando cheguei em meu quarto, Caalin estava lá sentado na janela, os flocos de neve que entravam por ela caiam em sua pele e não derretiam, enfeitando-o.
– Posso ajudar em alguma coisa? – Fechei a porta e comecei a tirar a roupa, entrando dentro de uma das camisolas de renda vermelha que Luviah havia trazido sabe deus de onde para mim.
– Não está ajudando em nada com o que eu vim fazer, vestida assim! – Disse ele olhando-me na camisola e mordendo os lábios, peguei o edredom de cima da cama, me sentei sobre o colchão e me enrolei com ele.
– E agora? Consegue não se distrair comigo? – Perguntei de forma debochada, Caalin riu e assentiu.
– Amanhã vamos até Paliath, ver se o vitrino foi levado para lá e depois vamos a Fernic encontrar o guardião com a Alma das águas para ver se ele ou ela está disposto a conversar! – Disse ele andando até a cama e tirando o edredom de cima de mim.
– O quê? Eu vou poder ir junto?
– Sim, o rei quer que você vá também para que possamos cobrir rapidamente toda a área de Paliath e voltar o mais rápido possível, já que o casamento em Ciartes é na próxima semana. – Caalin estava brincando distraído com as renas da camisola.
– O que faremos se o guardião nos atacar? – Ele parou de mexer na renda e me encarou.
– Vamos atacar de volta. – O jantar pareceu pesar uma tonelada em meu estômago quando ele disse aquilo, já havia tirado a vida de um dos guardiões e não queria precisar tirar de outro, fazer o trabalho sujo de Higarath, Caalin pareceu ler meus pensamentos, pois segurou meu rosto e me beijou, acariciando minhas bochechas com as pontas dos dedos.
– Vamos fazer o máximo possível para que não precisemos atacar ninguém!
– Caalin, e se houvesse um jeito de fazer essas Almas se soltarem de nós... quero dizer, devolvê-las a Gaia ou fazer com que elas fossem livres...
– Libertar as Almas dos Elementos? – Ele arqueou as sobrancelhas e sorriu. – Aí só precisaríamos nos preocupar de lidar com o primeiro mago negro que existiu, ainda assim ele seria um tormento, uma batalha muito difícil, já que os primeiros filhos de Ayrana guerrearam contra ele e não conseguiram vencer. Se as Almas desaparecessem e ele percebesse isso, percebesse que não poderia ter o poder delas, ele controlaria todos os sombrios dos doze mundos num ataque aos que mantiveram as mentes livres de suas maldições, seria uma guerra de luz e trevas. – Ele explicou voltando a traçar círculos em minha barriga.
– Ele tinha o Livro das Sombras, não é? – Caalin sugou o ar quando perguntei e me encarou com terror nos olhos.
– Quem te falou do livro?
– Aliver, ele quer que eu o destrua. Aliver tem certeza que Ausiet e Hobner querem o livro para invocar Érebo e usar o poder dele para fazer um exército de magos negros.
– Você sabe onde está o livro? Tinha algo sobre ele nas lembranças de Fairin? – Caalin havia perdido o resto da cor que nem sabia que tinha.
– Não... mas a Árvore do Fogo, ele tem certeza de que existe uma cópia do livro lá! – Caalin assentiu.
– Não tem como entrar na árvore, só quem tem a linhagem de Grisela pode entrar na árvore sem a chave! – Sorri para ele e mostrei-lhe o pingente no pescoço.
– Essa chave? – Ele fez uma careta para o colar depois me encarou. – O príncipe deu a você a chave da Árvore do Fogo, Nike? – Fiz que sim com a cabeça, Caalin desviou o olhar para o nada e suspirou. – Você nunca o tirou, nem por um minuto.
– Não, não o tirei porque para mim ele é uma lembrança constante de como eu falhei e um lembrete para que eu não aceite o chamado das sombras. – Caalin me olhou de novo, os olhos negros como o céu sem estrelas. Caalin abriu a boca como se fosse dizer algo, mas desistiu, a luz do quarto se apagou e ele me puxou para cima e me enrolou nos braços, dessa vez estavam frios como gelo, mas não me importei, apenas deitei em seu peito, cansada demais pela noite anterior para discutir sobre aquele último olhar frio, então apenas deitei e dormi.
Caalin me acordou antes do sol nascer, ele se levantou da cama jogando o edredom por cima de mim, foi até o armário e pegou meu uniforme de caça, com o corpete de couro de dragão e as calças de couro forradas e as jogou em cima da cadeira perto da cama, foi até o banheiro e ligou a água da banheira, cobri a cabeça, estava com preguiça e sem vontade de sair da cama, mas ele tirou o cobertor de cima de mim e resmungou:
– Levante-se e se arrume ou vou te deixar aí! – Me senti tentada a mandar que ele fosse sozinho, mas se o fizesse, ele iria mesmo.
– Vai ficar com essa cara para mim até quando? – Perguntei, ele respondeu com um baixo rosnado e saiu do quarto. Podia interpretar aquilo como um “muito tempo”.
Depois de alguns minutos na água pensando no motivo da cara feia de Caalin, cheguei a única conclusão que ele estava com ciúme do colar, não exatamente do colar, mas do que ele podia ou não representar para mim, talvez Caalin acreditasse que eu ainda tinha algum sentimento por Kuran, e não fazia ideia de como fazer com que ele deixasse isso passar, já que Kuran não estava mais entre nós, e mesmo se estivesse, não poderia representar uma ameaça a Caalin ou o que eu sentia por ele.
Aquele pensamento também me fez refletir, O que eu sentia por Caalin? Ao ficar perto dele eu tinha um misto de sentimentos, uma confusão, na verdade, que não conseguia separá-los, não conseguia distinguir cada sentimento, cada desejo e a vontade constante de estar perto dele. Quando me lembrava de Kuran, de todo o tempo que passamos juntos, percebi que não sentia o mesmo, nem de longe ele me causava esse misto de sentimentos, embora eu tivesse um forte desejo por ele. Com Caalin parecia que havia uma ligação, não a ligação do juramento de guardiã que eu havia feito, não, muito antes disso. Desde o dia em que o vi em Ciartes e que depois daquilo me peguei várias vezes pensando nele, desde que ele entrou naquela caverna depois que destruí as minas, eu senti que podia confiar nele, senti que devia ficar ao lado dele e que era ali que estava minha casa.
– Ainda aí? – Ele perguntou colocando a cabeça para dentro do banheiro, a água já estava fria e eu nem havia percebido. Saí da água e fui me vestir imediatamente. Caalin trouxe o café no quarto e serviu uma caneca bem grande de café para mim, e uma fatia de pão doce com geleia.
– Você não se importaria em perder o poder da Alma dos raios? – Perguntei enquanto comia.
– Não me importaria se ele sumisse, desde que fosse para Higarath não o pegar. Não preciso dele para derrotar meus inimigos mesmo!
– Precisou dele para me parar aquele dia. – divertimento brilhou nos olhos de Caalin quando ele me encarou com um esboço de sorriso no rosto.
– Eu quis te mostrar aquele poder, só não fazia ideia de que ele não ia ter efeito nenhum sobre você!
– Por quê?
– Também queria saber... – ele ficou me observando enquanto terminava meu café.
– Uma vez, Susano me disse que um mestre nunca fere seu guardião.
– Eu te prendi na gaiola de energia antes de você fazer o juramento a mim, Nike. – Retrucou ele fazendo-me lembrar da estalagem logo que nos encontramos.
– Por que não vai até Mogyin perguntar a ela?
– Quando vou lá, normalmente levo dias para voltar, atravessar o círculo até aqui novamente, uma vez levou quase um mês... não é boa ideia sair agora. – Ele ficou tenso, terminou o café e se levantou, levantei-me para ir com ele, Ira abriu a porta e entrou no quarto saltando sobre meu ombro e enrolando-se em meu pescoço.
– Não podemos mais teleportar dentro do castelo, sua barreira não permite! – Disse Caalin quando saímos do quarto, a barreira ia um pouco além do castelo, provavelmente teríamos que andar até alguns metros depois do portão para poder teleportar. Quando estávamos saindo do castelo, encontramos Zion com os guardas do lado de fora, ela sorriu e acenou quando passamos por ela.
– Vê se volta logo, menina! Não sei se dou conta de Oriel sozinha! – Zion piscou para mim, Caalin olhava surpreso de Zion para mim. Só depois que passamos pela “escultura” do dragão e saímos pelos portões que ele ousou falar:
– Você mordeu ela e a conquistou? – Ele tinha uma expressão pasma no rosto.
– Eu sou a líder da matilha, Zion e Oriel estão abaixo de mim! Quando mostrei os dentes, elas abaixaram a cabeça e me reconheceram como o lobo alfa! – Comecei a rir da cara de espanto dele. – Eu realmente ficaria rica se ganhasse uma moeda toda vez que você me olha assim, Caalin!
– E onde eu me encaixo nessa história?
– Toda alcateia tem um casal dominante! – Mantive o sorriso no rosto. Caalin sorriu e meneou negativamente a cabeça, respirando fundo.
– Acho que você tem um parafuso a menos! – Ele me deu a mão, me preparei para teleportar e acabei me sentindo mal por ter comido tanto no café.
– Vamos logo! – Apertei-me contra ele e fechei os olhos mas vi a luz do portal mesmo de olhos fechados.
10
A Alma das águas
Caalin:
Nos levei até a cidade de Rodsen em Paliath, a cidade principal próxima ao local onde o castelo de Hobner foi construído, à beira do penhasco das cinco lanças, o palácio tinha uma visão privilegiada do mar de Hêsir, com suas águas escuras e cinzentas, a cor não era bonita ou atrativa, mas ao anoitecer no horizonte podiam ser vistas as luzes dos espíritos cruzando os céus sobre o mar.
A cidade era cheia de caçadores e mercadores, uma das maiores cidades de comércio de Vegahn. Nikella com o uniforme de caçadora não chamaria atenção desnecessária, pelo menos não enquanto mantivesse o capuz sobre o rosto, não tinha como ela não ser vista caso o retirasse, ela era simplesmente linda. Ira estava enrolado no pescoço dela, protegendo-a e disfarçando seu cheiro, haviam poucos humanos em Paliath e mesmo sendo híbrida, a diferença podia ser percebida de longe por aqueles Malvarmos à nossa volta. Nike olhou para mim de soslaio, pegando-me me surpresa enquanto a estava observando, ela deu um sorriso sedutor e mordeu os lábios cheios, então puxou o capuz mais para frente, a cauda de Ira estava dançando em seu peito, sobre aquele maldito pingente, a chave da Árvore do Fogo.
“Um lembrete para que eu não aceite o chamado das sombras”
Não conseguia entender o apego que ela tinha àquele pingente, se ela não sentia nada por ele, então por que ainda usava o colar? Ela não fazia ideia de que Kuran ainda estava vivo, e se soubesse? Logo iríamos saber, logo ela o veria no Castelo do Sol e eu tinha certeza de que ela ficaria com raiva de mim por não ter dito logo a verdade.
Como se tivesse notado meu olhar sobre o pingente, ela o enfiou para dentro da blusa e bufou. Ficou brincando com a cauda de Ira enquanto nos dirigíamos para a saída da cidade.
– O que exatamente estamos fazendo aqui? – Perguntou ela quebrando o silêncio entre nós.
– O vitrino não vai estar nessa cidade, se não estiver dentro dos armazéns do castelo, já que ele tem algumas camadas de barreiras de proteção que você vai desfazer, ele deve estar em outro mundo sendo forjado. – Os ombros de Nike encolheram quando falei sobre desfazer as barreiras.
– Eles vão perceber.
– Não se você não as destruir, só precisa abrir um buraco para que nós possamos atravessar!
– Por que você não faz isso? – Ela virou-se totalmente em minha direção e cruzou os braços.
– Vou estar de vigia, caso nosso companheiro guardião apareça.
– Isso, eu acabo com minha energia abrindo brechas na muralha e você fica vigiando, ótimo plano! – Ela grunhiu.
– Você é uma maga negra Nike! Sua energia nunca acaba! Você só sente o corpo enfraquecer porque não treinou o suficiente para expandir sua magia e porque o Yinemí tenta prender esse poder, como eu disse em uma das nossas primeiras conversas, seus poderes se equilibram. – Ela torceu a boca e continuou caminhando.
– E se eu liberar as Almas, o que vai acontecer com a magia negra que eu possuo? – Senti um calafrio percorrer meu corpo.
– É melhor não pensar nisso agora! – Preferia mil vezes ter que enfrentar Higarath e um exército de sombrios sozinho do que ter que erguer uma espada contra ela.
Estava tudo calmo, calmo demais e ninguém nos seguia, mesmo que estivéssemos bem misturados com os outros, essa calmaria me parecia suspeita. Saímos da cidade pela estrada principal, indo em direção ao castelo de Hobner. Nikella permaneceu em silêncio enquanto caminhávamos, até mesmo Ira que estava ronronando havia parado de fazer barulho, os únicos sons eram os da cidade que ficou para trás e nossas botas na neve endurecida da estrada.
Caminhamos por quase três horas quando deixamos a estrada para trás e adentramos na floresta congelada.
– Hobner confia muito nas camadas de barreiras do castelo, ele não coloca sentinelas nas guaritas laterais. – Expliquei ao ver Nike olhar algumas vezes para a estrada sumindo atrás de nós.
– Idiota igual Aliver.
– Deixa ele te ouvir falando assim!
– Acha que eu não diria isso na cara dele? – Ela arqueou as sobrancelhas, tinha um sorriso debochado no rosto.
– Acho que faria pior, tem horas que penso que você não tem nenhum amor à vida! – Retruquei, mas ela deu de ombros e continuou a caminhar.
– Falta muito? – Ela estava com um olhar entristecido e fazendo biquinho para mim.
– Mais meia hora e alcançaremos os muros. – Ela soltou um gemido e bateu os pés no chão. – Já sei, com fome! – Foi a vez dela me olhar espantada.
– Como sabe?
– Você só fica de mau humor quando está com fome! – Ela começou a rir e me empurrou.
– Mentira, eu estou sempre de mau humor!
– Está sorrindo agora! – Ela corou e disfarçou brincando com a cauda de Ira. Tirei uma pequena garrafa de vidro enrolada em um lenço de lã de dentro do alforje e lhe entreguei.
– O que é isso? – Ela desenrolou a garrafa e um sorriso enorme apareceu em seu rosto.
– Chocolate quente cremoso com avelãs. – Ela abraçou a garrafa e suspirou.
– Acabou de ganhar muitos pontos com isso! – Ela abriu a garrafa e bebeu com gosto.
– Não sabia que estava contando pontos quando fazia algo legal por você!
– Ahh ganha, e muitos! Quando eles chegarem a um número, você vai ganhar um prêmio.
– Que prêmio seria esse?
– É uma surpresa!
– Não gosto de surpresas, Nikella.
– Vai gostar dessa, pode deixar! E nem se atreva a tentar fuçar minha mente enquanto durmo, ou vai perder todos os pontos!
Ela terminou de tomar o chocolate e guardou a garrafa dentro da bolsa.
– Agora fiquei curioso, quando foi que ganhei mais pontos? – Olhei para ela que havia parado e se apoiado em uma árvore para arrumar a bota. Ela me encarou com um olhar indecifrável e mordeu os lábios, mas não respondeu.
Quando nos aproximamos do castelo, Ira desceu de seus ombros e correu para longe, imediatamente passei parte de minha mente para que ele vigiasse o lado do castelo mais próximo ao penhasco enquanto eu ficaria perto das guaritas. Nike se aproximou e colocou as mãos com cuidado onde a barreira deveria começar, ela xingou baixinho ao ser repelida pela barreira.
– Cuidado para não soar o alarme! – Falei, ela olhou para mim e revirou os olhos, então suas marcas negras apareceram junto com as sombras, eram centenas delas, quase corpóreas, aquilo me deixou em alerta, mas o controle de Nike sobre as sombras era quase absoluto, não parecia que elas poderiam a influenciar, não mais.
– Vá vigiar, Caalin! – Ela deu a ordem para mim, mas as sombras também se espalharam, misturando-se na neve e desaparecendo entre as árvores altas e congeladas. Me afastei em direção à floresta, não muito longe e subi numa das árvores para ter uma visão melhor da região, assim poderia ver qualquer um se aproximando, usando o poder dos olhos místicos que havia recebido de minha mãe quando fui à Mogyin pela primeira vez, podia ver perfeitamente a barreira em volta do castelo.
Ela brilhava num tom azul pálido e tremia quando Nike colocava sua própria energia para abrir um buraco na barreira. Em volta dela, a barreira estava instável, pareciam várias bolhas de sabão, uma sobre a outra e, no ponto em que Nikella estava, as cores da barreira tornavam-se vinho e começavam a desfazer aos poucos, ela estava fazendo aquilo com todo cuidado para a barreira não se desmanchar e o alarme não ser soado. Hobner tinha dois magos metamorfos na guarda, eu os conhecia e sabia que eles me reconheceriam caso eu fosse pego quebrando a barreira, mas Nike não era conhecida deles, ela não seria associada à Aliver se fosse encontrada ali, e também é bem provável que não fosse pega, se fosse, os magos não teriam a mínima chance contra ela. Mesmo assim vigiaria para lhe dar um sinal caso alguém se aproximasse dela.
Estava tão preocupado em não deixar ninguém se aproximar de Nikella, vigiando através de meus olhos e de Ira que não percebi que alguém havia se aproximado de mim, tive tempo apenas de transformar o machado e saltar da árvore quando alguém acertou uma espada sobre o galho onde eu estivera a um milésimo de segundo.
Uma mulher de olhos negros como carvão e presas longas havia saltado sobre mim, ela tinha um sorriso feral e a pele cor de ébano, os cabelos cacheados selvagens em volta do rosto formavam uma moldura para um rosto de traços fortes, porém belos, ela passou a língua sobre os lábios volumosos e mostrou os dentes novamente.
– Você é a guardiã da Alma das águas! – Falei, ela soltou uma gargalhada e girou as espadas na mão.
– Hisana, rainha de Pollo! – Ela se apresentou erguendo o queixo, deixando as marcas azul safira em seu corpo a mostra. Em sua testa havia três pequenas esferas brilhantes azuis, os pontos onde nasciam as marcas que desciam em espiral ao redor do pescoço até os ombros.
– Por que está me atacando? – Mantive o machado firme na mão, vigiando seus passos suaves, ela vestia um traje que não combinava com o que estava fazendo, muito menos com o clima de Paliath, usava um vestido cinza na altura dos joelhos, estava descalça e um brinco com presas amareladas estava preso à sua orelha esquerda. A rainha de Pollo, se ela dizia a verdade, era uma amaldiçoada com a licantropia. Tentei me manter o mais calmo possível para não alertar Nikella, não podia nem olhar em sua direção para que Hisana não a visse ali.
– Por que está invadindo a propriedade de meu mestre! – Ela mostrou os dentes para mim, olhei de relance em direção ao castelo, Nike não havia percebido nada ainda, mandei um aviso silencioso a Ira para que ele voltasse e ficasse perto dela, Hisana acompanhou meu olhar e rosnou quando viu Nikella tentando abrir a barreira. Quando fez menção de correr até lá, impedi colocando o machado em sua frente.
– Não se atreva! – Rosnei girando o machado nas mãos.
– Quem vai me impedir? Você? – Ela gargalhou e suas marcas brilharam num azul ainda mais forte. Sem que eu tivesse tempo de reagir ela atirou algo brilhante em minha direção, que parti com o machado espalhando um pó fino e vermelho ao meu redor, mas a neve sob meus pés derreteu formando uma bolha ao meu redor.
Ela pretendia me afogar.
Tentei me soltar da bolha, mas ela estava impedindo que eu usasse minha magia, impedindo de usar a Alma dos raios também. Não é à toa que Higarath pretendia pegar a Alma do gelo e a Alma das águas primeiro, eram as duas mais poderosas.
– Não vai tentar escapar? – Ouvi sua voz através da água. Sorri para ela, ela não entendeu o porquê do meu sorriso até cair de cara na neve, Ira havia saltado sobre ela e a pressionava contra o chão, ela deu um rugido alto, fazendo a terra tremer quando o derrubou de cima dela, Ira a atacou novamente, mas ela foi mais rápida e o jogou contra uma árvore que desabou sob o peso dele.
Em nenhum momento a bolha fez menção de se desmanchar, e eu já estava quase sem ar, invoquei a Alma dos raios, mas ela parecia ter adormecido dentro de mim. Só então percebi que a água que ela me envolveu estava misturada com pó das folhas da Árvore do Fogo, pó que estava dentro do objeto que ela atirou em mim. Mesmo com vitrino por todo meu corpo, o pó das folhas da Árvore do Fogo tinha o poder de adormecer meus poderes e poderia me matar caso eu engolisse aquela água. Ela tocou a bolha com as mãos e suspirou.
– Não achei que fosse tão fácil matar você, Tio! – Ela sorriu de forma doce e acariciou a bolha com as pontas dos dedos, como se fosse rasgar a bolha com as garras. O que aconteceu a seguir foi rápido demais para que eu pudesse registar com meus sentidos quase dormentes, uma mancha de sangue tingiu a água dentro da bolha impedindo que eu visse o que estava acontecendo, demorou até que ela se dissolveu na água dando-me a chance de ver Nikella golpeando as espadas de Hisana com Siferath com uma força tão grande que enviava vibrações através da bolha e do chão.
Um corte havia marcado o rosto de Hisana, manchando-o de sangue, ela parecia ter dificuldade em se defender dos ataques cada vez mais rápidos de Nikella, até que Hisana apontou para mim e fez a bolha se contrair. O resto do ar que mantinha em meus pulmões foi expelido, mas o que deveria ter feito Nikella soltar a arma, fez com que Hisana preferisse estar ali dentro comigo. Nikella virou um monstro. Um monstro que eu não gostaria de enfrentar nem em meus pesadelos. Ela misturou novamente as transformações, as orelhas pontudas e os cabelos brancos e as marcas negras e olhos vinho, mas dessa vez as sombras a cobriram como um manto e ela rosnou alto, fazendo até Ira que estava cambaleante fugir. Hisana ficou encarando-a boquiaberta com as espadas frouxas nas mãos, antes de cair com um golpe no peito. As sombras haviam se projetado do punho de Nikella e atingiram Hisana em cheio no peito, fazendo uma massa escura sair dela e começar a criar forma. Era Higarath.
Com Hisana desacordada, a bolha se desfez, deixando-me cair quase inconsciente no chão. Queria me levantar e ajudá-la, mas meu corpo não respondia aos meus comandos. Nikella ainda parecia possessa quando avançou sobre Higarath com a foice nas mãos, depois daquilo o mundo começou a escurecer, a última coisa que vi foi um fio vermelho enroscado no punho dela, esticando-se e deslizando na neve em minha direção, ligando o fio ao meu punho.
Nikella:
Ele estava diante de mim novamente, ao lado do corpo caído de Hisana, parecia ter saído de dentro dela, mas não era o próprio Higarath, era uma sombra, como as minhas sombras que agora se projetavam ao meu redor, vestindo-me como uma proteção, mas ao vê-lo ali, diante de mim, elas começaram a pulsar, a falar comigo novamente. O aperto em meu corpo ficou ainda mais intenso quando elas pareciam tentar entrar em minha pele, querendo me tomar de fora para dentro.
Soltei outro rosnado quando Higarath deu um passo em minha direção e levantei Siferath.
– Sei por que ele tentou dominar você, tentou te usar, seu poder é quase tão grande quanto o meu! – Higarath deu um sorriso maldoso quando se aproximou mais, e agora suas sombras estavam vindo em minha direção, dando força para as vozes em minha cabeça: “Apenas nos aceite, diga que nos aceita! Peça nosso verdadeiro poder e nós a faremos a rainha desse mundo!”
– Vá para o inferno! Você e suas sombras de bocas grandes! – Urrei tentando fazê-las se calar.
– É uma oferta tentadora, não é? Rainha dos doze mundos! – Ele esticou a mão em minha direção. – Por que não as aceita?
– Não quero ser igual a você! – Cuspi as palavras.
– Não? – Ele ergueu as sobrancelhas e apontou para Hisana. – Você já é igual a mim, querida! Matou seu companheiro por mais poder...
– CALE A BOCA! – Gritei atacando-o com Siferath, mas ele se desmanchou e apareceu atrás de mim, segurando Hisana e a erguendo do chão. – Solte-a agora! – Bufei sentindo-me cada vez mais pesada e lenta. Ele controlava as sombras, todas elas, até as minhas, que agora tentavam me prender, mas o Yinemí parecia me ajudar, mantendo minha mente limpa enquanto tentava fazê-las ceder. Tentei atacá-lo novamente, mas Higarath usou Hisana como escudo então hesitei dando um passo para trás, não queria matar mais um guardião.
– Não vai me atacar por que posso rasgar a garganta dela? Que atitude nobre e admirável! – Ele estava com as garras pressionadas com tanta força no pescoço dela que havia perfurado a pele e uma linha de sangue escorria da ferida aberta. Higarath então a beijou, e quando a soltou, ele havia tirado algo de dentro dela, as marcas azuis em seu corpo haviam se apagado e uma pequena bolinha viva flutuava ao redor dele. Eu estava completamente paralisada, o horror tomando conta de cada pedaço de minha mente, ele havia tomado a Alma das águas de Hisana.
– Desgraçado! – Ergui Siferath com dificuldade, ainda presa pelas sombras, Higarath ergueu a luz azulada nas mãos e a engoliu, fazendo as sombras se agitarem e me soltarem, a brecha que eu precisava para atacar. Girei a foice nas mãos e o ataquei, mas um escudo de água apareceu diante dele, defendendo meu ataque. Eu o congelei e o quebrei, fazendo várias estacas de gelo se projetarem do solo e o atacarem, o escudo de água não foi páreo para as estacas, que atravessaram seu corpo de sombras apenas fazendo-o se espalhar pelo ar. Olhos vermelhos pairaram sobre nós quando ele desceu novamente, só que em direção à Caalin, que ainda estava molhado e desacordado no chão. Foi como se o tempo ao meu redor tivesse desacelerado. Juntei as mãos e com as minhas sombras e fiz uma espada, corri para Caalin e girei a espada rápido o suficiente para acertar a massa negra que ia em sua direção. Um guincho ensurdecedor fez a terra tremer novamente, caí no chão pressionando a cabeça, aquele som parecia que ia fazê-la explodir, mas a massa não voltou, havia sido destruída por aquele ataque, ou pelo menos havia conseguido fazê-lo recuar.
– Caalin! – Chamei esfregando suas mãos, ele respirava com dificuldade, sua pele estava mais fria do que o normal mesmo depois que usei meus poderes para secá-lo. – Por favor, por favor, acorde! – Tirei seu cabelo de cima do rosto, mas, por mais que eu o sacudisse ele não despertava. Meu coração começou a bater violentamente, assustado demais a cada batida mais lenta do coração dele. – Por favor! Não posso perder você também! – As lágrimas se acumularam nos cantos dos meus olhos e começaram a escorrer. Uma mão bateu em meu pé, me virei mostrando os dentes, mas era apenas Hisana, ela estava com um pequeno frasco com um liquido verde na mão erguida, o rosto ensanguentado sujo de neve e folhas parecia suplicante.
– Pó das folhas de fogo... – ela estava olhando para Caalin. – Havia pó das folhas de fogo na água, dê isso para ele!
– Por que confiaria em você? – Gritei.
– Porque é o único antídoto! – Ela deitou a cabeça no chão novamente, chiando baixinho e cobrindo o rosto com as mãos. Rapidamente entornei o antídoto na boca de Caalin, esperando por qualquer reação, então segurei suas mãos e fiquei desejando, pedindo para quem quer que pudesse ouvir minhas orações, para trazer ele de volta.
Caalin:
“–Acorda, menino humano! – Disse aquela voz alegre e familiar em minha cabeça, tudo parecia girar ao meu redor e meu estômago embrulhou. Abri os olhos devagar, tentando diminuir a dor na cabeça conforme o brilho do sol tentava me cegar. Olhei para seu rosto, tentando ter certeza de que era ela mesma quem falava comigo. Os olhos brancos e o sorriso feral me atingiram como uma pedrada. – Era apenas uma lembrança, tinha certeza disso, pois ela não estava mais entre nós.
– Ah, que bom que está acordado! – Ela sorriu e estendeu a mão para que eu levantasse.
– Quem é você? – Sabia quem era, mas a voz que fez aquela pergunta, mesmo sendo minha, estava distante, fora de meu controle.
“Uma lembrança!” repeti.
– Aelita, Aelita Orisher! General do exército real de Vegahn, sirvo à rainha Frayena! – Ela me deu um sorriso incrível, mesmo com as presas que não me assustava agora, mas assustaram um pouco na época daquela lembrança.
– Caalin Arbarus. – Respondi ficando de pé e limpando a neve da roupa. – O que houve aqui? – Perguntei franzindo o cenho, estávamos em uma floresta imensa, congelada, mas cheia de vida, Aelita olhou em volta e bufou.
– Desculpe, achei que você fosse um inimigo.
–Você me acertou? – Ainda sentia uma pontada na cabeça, passei a mão sentindo o sangue escorrer, Aelita então se aproximou de mim e lambeu minha testa, limpando o sangue e manchando seus lábios com o vermelho. A olhei sobressaltado e ela riu.
– Você é filho da criadora, não é? – Ela mostrou o braço, a marca que minha mãe havia deixado nela.
– Você é a menina que ela salvou na terra e transformou em Malvarmo? – Perguntei surpreso. Aelita negou com a cabeça.
– Sou descendente dela! – Ela ajeitou os cabelos longos e brancos, jogando-os para trás. – Fryn era minha tataravó, mas morreu tem um bom tempo! – Ela começou a caminhar entre as árvores, notei que vestia uma armadura de batalha, porém uma armadura leve e de aparência frágil, poderia facilmente ser partida se fosse atacada em alguns pontos.
– Onde estamos?
– Floresta de Ghastath, no coração de Blizzion! – Ela olhou para mim por cima do ombro.
– O que pretende fazer comigo? – Perguntei, ela parou de andar e ergueu as sobrancelhas.
– Nada! Só esperei você acordar, pois não queria que morresse congelado e desacordado na neve! – Então começou a andar novamente.
– Deixe-me ir com você! – Falei observando atentamente todas as armas que carregava e a destreza com que se movia, ela era uma guerreira poderosa, assim como vovô Haalin, talvez até mais forte.
– Um humano não tem nenhuma serventia para mim, menino!
– Posso lutar, treinei com meu avô por muito tempo. – Ela soltou uma gargalhada divertida e me encarou novamente.
– Você é fraco, menino humano, se ficar comigo, vai morrer! Estamos com muitos conflitos por aqui, não quero ser responsável caso você perca sua cabeça!
– Não me julgue antes de me conhecer! – Desembainhei a espada do lado do corpo, ela bufou e se virou cruzando os braços.
– Menino humano, vá para casa! Vai se machucar aqui!
– Não sou um menino! Tenho um nome! – Retruquei quando ela se negou a sacar a espada, ela pressionou os lábios numa linha fina, ainda marcados com meu sangue.
– Se você conseguir me desarmar, te chamo pelo nome! – ela sacou uma espada de aço com uma pedra verde em empunhadura e a girou. Fiquei por mais de uma hora tentando desarmá-la, mas ela se movia rápido demais, ágil demais para minha lentidão humana, meu treinamento perto dela parecia servir apenas para morrer de forma menos feia, para dizer que tentei e que lutei. Ela tomou a espada de minha mão num rápido movimento, um giro preciso em que segurou meu pulso e estalou a língua. – Vá para casa, menino humano! – Ela passou a mão em meus cabelos, e me entregou Blumarian. Irritado, deixei um raio escapar em sua direção, fazendo-a derrubar a arma. Ela arregalou os olhos e mostrou o sorriso predatório novamente.
– Consegui te desarmar!
– Enfim uma surpresa! – Ela andou até mim. – Acho que pode ser útil para mim, Caalin! – Meu nome pareceu música em seus lábios, ela tirou uma pequena adaga de vidro do cinto na perna e cortou a palma da mão, deixando sangue transparente, quase prateado escorrer pela lâmina. Fiquei paralisado olhando-a, Aelita se aproximou de mim e sussurrou ao meu ouvido: “Se você sobreviver a isso vou te tornar o melhor e mais poderoso guerreiro dos doze mundos!” então a dor irradiou em meu peito quando ela cravou aquela adaga no meu coração. Era como se meu corpo estivesse congelando de dentro para fora, cada batida sofrida de meu coração enviava ondas de choque e gelo em minhas veias. Estava deitado no gelo e Aelita de pé ao meu lado dizia: “Vamos, Caalin, não desista agora!” E suas mãos quentes acariciavam meu rosto, ela não ia sair de meu lado até que eu mudasse, ou morresse. Alguns minutos, ou horas depois e a dor se intensificou de maneira tão absurda que comecei a perder os sentidos. “Caalin, não morra!” Disse Aelita uma última vez, ela apertou minha mão com força, o rosto gravado em uma expressão de pânico, ela devia estar arrependida, tinha certeza agora de que eu era fraco, que não sobreviveria a mudança.
Olhei para a mão apertada contra a minha, um laço vermelho brilhante envolvia nossas mãos, sabia o que ele significava, minha mãe sempre falava do laço que une duas metades de uma mesma alma quando estão em corpos diferentes, ela havia criado Mogyin com uma árvore gigantesca que conectava os mundos e deixava essas linhas visíveis para ela, quando ela chegasse em Mogyin, ela cuidaria de todas as almas e se certificaria que elas encontrariam suas metades novamente. Mesmo fraco, sorri em agradecimento a ela por ter mandado Aelita até mim. Num último suspiro, fechei os olhos como um humano e despertei como malvarmo, vendo o mundo em que estava, brilhar pela primeira vez.
– Oi, Caalin! – O sorriso de Aelita foi a primeira coisa que vi naquela nova vida.”
Era apenas uma lembrança – pensei.
Mas por que agora? Por que lembrar de Aelita depois de todo aquele tempo?
Nikella!
Senti minha mente se embolar, inquieta, procurando por algo que não devia estar ali. Quando fechei os olhos há pouco, vi o laço novamente, o laço em volta das mãos de Nikella, ela estava me chamando, mas não conseguia responder.
“Por que a trouxe de volta?” – Perguntei à minha mente, esperando uma resposta que sabia que viria do outro lado.
“Porque uma alma partida, ou melhor, um pedaço de uma alma, sozinho não consegue cumprir seu destino! apenas uma alma inteira, cheia de amor e de paz pode cumprir sua missão, por isso eu mandei todos de volta!” – O rosto sorridente, os olhos verdes como folhas e os cabelos cor de ouro estavam lá, bem no fundo, Yellen, Ayrana, Dauona... todos os nomes aos quais ela respondia, minha mãe estendeu a mão para mim: “Vamos, Caalin, ela está esperando lá fora!”
O cheiro dela me alcançou no momento em que recobrei a consciência, antes mesmo de abrir os olhos, só de respirar já sabia que ela estava ao meu lado. O cheiro de mel e hortelã misturado com sua essência feminina, senti as mãos apertando meu pulso e abri os olhos. Nike estava olhando para mim com os olhos cheios de lágrimas, quando percebeu que eu havia acordado, ela pulou em cima de mim, fazendo o colchão macio afundar. Onde diabos nós estávamos?
– Achei que não fosse mais acordar! – Ela segurou meu rosto e começou a beijá-lo, minhas bochechas, minha testa e minha boca.
– Acho que vou chegar perto da morte mais algumas vezes! – Falei, ela grunhiu e se apertou contra mim, escondendo o rosto em meu pescoço, senti as lágrimas dela escorrendo em mim e notei que seu corpo tremia.
– Desgraçado! Se fizer isso comigo de novo, juro que vou em Mogyin te buscar só para mandar você de volta para lá eu mesma!
– E eu aqui me perguntando em quanto tempo a doçura iria passar! – Ela mordeu os lábios e saiu de cima de mim, olhando para o lado, onde a mulher estava encolhida próxima a janela, olhando para fora com uma profunda tristeza no olhar. O quarto simples, mas grande, era decorado em tons de cinza e marrom, a cama grande com dossel em que estava deitado parecia ser macia demais para uma cama de estalagem, estávamos em outro lugar, mas o único cheiro que detectava nos lençóis da cama era de produtos de limpeza, um aroma sutil e floral. Não estávamos mais em Vegahn.
Nike saiu do quarto sem aviso e fechou a porta, em nenhum momento a mulher olhou para mim, ficou apenas observando a escuridão da noite do lado de fora, sua pele cor de ébano brilhava contra a luz das velas espalhadas pelo quarto iluminando o ambiente, a luz da lua do lado de fora mostrava a verdadeira cor de seus olhos, um azul tão claro que pareciam ter um pedaço do céu dentro deles. Nikella voltou trazendo três xícaras momentos depois, o perfume do chocolate com avelãs preencheu o quarto quando ela colocou a bandeja sobre a mesinha de cabeceira e levou uma caneca para a mulher, Hisana.
– Está sentindo-se melhor? – Nike perguntou afagando as costas da mulher, ela a estava confortando!
– Um pouco, obrigada. – Hisana pegou a caneca das mãos trêmulas de Nike, que veio para a cama novamente e me entregou outra caneca e sentou ao meu lado, tomando o chocolate e tentando parar de tremer. Pela expressão de pesar de Hisana, estava com medo de perguntar o que havia acontecido.
– Ele tem o meu poder agora. – Disse ela colocando a caneca vazia sobre a soleira da janela, um arrepio tomou conta de mim quando aquelas palavras me alcançaram, como um golpe baixo.
– Higarath... Ele tomou a Alma das águas de você? – Perguntei, sentindo minha voz sumir a cada palavra. Hisana assentiu e encolheu as pernas, colocando a cabeça sobre os joelhos.
– Não morri graças à sua guardiã. – Ela encarou Nikella, que fez um breve aceno com a cabeça e desviou o olhar de Hisana.
– Agora Higarath tem a Alma das águas... – um nó havia se formado em minha garganta, impedindo-me de tomar o resto do chocolate, ele estivera tão perto de Nike, de lhe tomar a Alma do gelo também...
– Ele estava rondando minha mente faz tempo, buscando uma brecha para me alcançar, sabia que eu o destruiria caso ele se aproximasse de mim. Mas recebi uma oferta de um dos reis de Vegahn...
– Só há um rei em Vegahn! – A interrompi, ela me encarou irritada pela interrupção.
– Recebi uma proposta de Hobner, ele queria que eu o protegesse, não permitisse que ninguém se aproximasse de seu castelo e em troca ele me daria um livro, um livro com feitiços antigos, capaz de desfazer minha maldição... – sua voz havia se tornado um sussurro.
– Você é uma lobisomem mesmo? – Nike se inclinou para frente, curiosa como sempre, Hisana assentiu.
– Hobner queria sua proteção para quê, exatamente? – Perguntei.
– Para as armas de vitrino dentro do castelo dele, um arsenal que ele entregaria nas mãos dos seus guerreiros, para poder atacar o Castelo do Sol e tomar o poder de Ciartes. – Era exatamente o que imaginávamos.
– Então as armas estão mesmo em Paliath. – Outra confirmação de Hisana. – Mas mesmo com armas de vitrino, os guerreiros Malvarmos não conseguiriam muito êxito contra o fogo de Ciartes, eles morreriam caso lutassem corpo a corpo com os Salamandras do exército de Ciartes, por mais fortes que os Malvarmos possam ser, o número de perdas seria muito maior da parte de cá!
– Flechas, muitas flechas de vitrino que ele tem lá! – Ela sorriu sem alegria alguma. – Fora que o poder dos Salamandras desapareceu de quase um ano para cá, nenhum deles pode conjurar as chamas ou se transformar nelas, a Árvore do Fogo adoeceu, ficou branca e tirou os poderes deles! – Ela explicou, Nike arquejou ao meu lado e derrubou a caneca no chão, estilhaçando a porcelana, ela estava pálida e com os olhos arregalados.
– Eu toquei a árvore com o Yinemí. – Ela falou cobrindo a boca com as mãos. – Não sabia que a Árvore do Fogo era fonte do poder deles!
– Acho melhor você consertar isso, ou vai condenar todos eles, a árvore tem que ser curada! – Hisana falou de forma tão grosseira que se não fosse Nikella em meu colo, teria levantado e a atirado pela janela, mas ao invés disso apenas perguntei:
– Sabe quando ele planejava atacar?
– Em julho, no começo do mês, pois todos os caçadores em treinamento estão na academia para as provas, Hobner e Ausiet pretendem matar todos dentro da academia também, eles vão invadir com uma legião de guerreiros montados em Fermans, vão voar por cima da academia e congelar tudo, cada um que estiver lá dentro vai morrer. – Nikella olhava as mãos abertas como se pudesse ver algo ali, seus olhos estavam apavorados e ela parecia não respirar.
– Se está nos contando isso, então não pretende mais oferecer sua ajuda a Hobner e Ausiet, estou certo? – Perguntei, ela acenou negativamente e suspirou.
– Sem a Suujanim eu não sou nada... – ela suspirou e se levantou indo em direção à porta, Suujanim, Higarath agora tinha a Alma das águas, o segundo poder mais forte de Ayrana depois do Yinemí.
– Não diga que não é nada! Eu não tinha o Yinemí e nem sabia que tinha poderes, era apenas uma humana quando fui considerada a melhor aluna da ACV. Então não se atreva a dizer que não é nada só porque perdeu aquele poder! – Nike levantou ainda tremendo e encarou Hisana, que não tirava os olhos dela, olhando-a espantada.
– Devo minha vida a você, então pretendo ajudar no que for preciso. – Disse Hisana depois de um longo silêncio.
– Bom, então volte a Hobner e finja que nada aconteceu. Vou invadir o castelo dele e destruir as armas e você vai me ajudar a entrar! – Hisana ficou a encarando como se fosse louca, mas então assentiu e desapareceu numa coluna de luz azul.
– Ficou louca? – Segurei o braço dela quando ela fez menção de sair também. – Não pode destruir Vitrino, esqueceu?
– Eu tirei o poder deles, Caalin. – Nike me encarou com os olhos assustados. – Se eu não fizer alguma coisa, se eu não tentar impedir...
– Nike, você não está me escutando? Nem mesmo você pode destruir vitrino! – Nike puxou uma das adagas de arremesso do cinto em sua perna, elas eram de vitrino amarelado, Nike soprou a adaga e a congelou, então apertou com as mãos fazendo a adaga esfarelar.
– Fiz a mesma coisa com o globo de vitrino que usei para chocar Docinho, esqueceu? – Ela deu um sorriso de lado.
– Não tem como...
– Tem, o Yinemí pode destruir qualquer coisa. Fiquei surpresa de Higarath ter atacado Hisana e não eu. – A ideia de ele tocar nela, de lhe tirar a Alma do gelo... o poder das sombras seria liberado com força total e a magia negra... afastei os pensamentos tão rápido quanto pude.
– Vai simplesmente entrar no castelo e destruir as armas? – Ela não respondeu, ficou olhando pensativa para o farelo da adaga em suas mãos.
– Vou fazer melhor. Mesmo que eles não tenham as armas de vitrino eles vão atacar Ciartes, pois os Salamandras estão sem poder por minha causa... – Ela suspirou e olhou para a janela. – Por favor, não se chateie comigo, ok? – Nikella subiu na cama de novo e pegou minhas mãos, as sombras nos engoliram enquanto o mundo pareceu girar ao nosso redor dentro daquela massa de escuridão, pude escutar as vozes, murmurando, chamando da escuridão. Pouco depois estávamos do lado de fora do castelo de Aliver, Nike me arrastava para dentro, sentia como se meu corpo respondesse a ela e não a mim, quando passamos pelos portões Zion veio ao nosso encontro e parou ao encarar Nikella, elas trocaram olhares estranhos, então Zion deu um risinho de escárnio.
– O que está acontecendo? – Perguntei olhando de uma para outra.
– Caalin, você fica aqui até eu voltar está bem?
– O que vai fazer, Nikella? – Soltei um rosnado.
– Hisana disse que o veneno das folhas ainda vai demorar um pouco para sair de você... – quando ela falou percebi que não conseguia acessar meus poderes. – Então espere eu voltar!
– Você não vai a lugar algum! – Estremeci ao pensar nela sozinha dentro das muralhas do castelo de Hobner.
– E quem você pensa que é para me impedir de fazer alguma coisa, Caalin? – Ela me lançou um sorriso malicioso e depois acenou discretamente para Zion.
– Eu... – Antes que terminasse a frase, Nikella segurou meu rosto e beijou minha testa, um pequeno sopro gelado foi o que senti, então tudo ao meu redor escureceu.
– Deveríamos sair daqui Aelita... – Sussurrei para ela após pararmos entre as pedras altas e completamente congeladas que formavam um arco ao nosso redor, os soldados atrás de nós estavam esperando o nosso sinal, Aelita, no entanto permanecia irredutível.
– Vamos esperar aqui! É a única passagem para eles! – Ela grunhiu em reprovação ao meu alerta. Estávamos armando uma emboscada para o exército de Gridmass, o rei do Sul que se voltara contra Frayena, a rainha de Blizzion. A passagem para Gither estava fechada pelo caminho leste, se os soldados de Gridmass fossem nos atacar, eles teriam que desviar para o norte e passar pelo desfiladeiro abaixo de nós. Os soldados de Aelita esperavam um comando, apenas uma ordem e quando eles passassem sob nós, seriam atingidos por uma chuva de flechas envenenadas. Pó das folhas da Árvore do Fogo é o que tinha nas pontas de prata das flechas, uma precaução a mais, caso resistissem ao veneno. A prata sobre a pele não impedia nossos poderes, mas uma ferida causada por prata poderia ser fatal.
Aelita parecia não respirar, ela olhava para a passagem escura abaixo de nós, o sol já havia sumido há algum tempo e mesmo assim eles não apareciam, o informante de Aelita havia dito que eles estariam cruzando o desfiladeiro ao entardecer, mesmo assim, ela não acreditou numa traição. “Ele não mentiria para nós, não nos colocaria em risco! ” Foi o que ela disse depois de pedir novamente para que ela ordenasse a retirada das tropas.
– Aelita, por favor! – Implorei sentindo algo se revirar inquieto dentro de mim, ela me olhou feio novamente e mostrou as presas, os olhos agora prateados brilhavam no escuro como um animal selvagem, aquilo estava cheirando a emboscada, traição e só ela parecia não perceber. Vários soldados inquietos já murmuravam, mas não ousavam discutir uma ordem, pelo menos não uma ordem dela. – Se continuar me olhando assim, vou te atirar no desfiladeiro para ver se atrai a atenção deles! – Ela rosnou tão perto do meu rosto que podia sentir o calor do seu hálito. Virei o rosto para o lado contrário e fiquei vigiando a passagem, a espada tão apertada em meus dedos que poderia se partir.
Aelita nunca admitiria, nunca aceitaria uma traição de qualquer um sob seu comando, ela não acreditava em mim e aquilo me irritava Dois séculos haviam se passado desde o dia em que ela me transformou, dois séculos juntos, unidos por aquele laço da alma e mesmo assim, Aelita ainda me escondia segredos, não confiava em mim. Odiava quando alguém não confiava em mim! Especialmente ela!
Foi ficando mais tarde, mais escuro e a neve agora caía sobre nós, a armadura cinzenta de Aelita estava começando a ficar coberta pela neve e os soldados começaram a murmurar baixinho. Só então, com ira mortal nos olhos, Aelita nos mandou marchar de volta ao acampamento. Ela não disse uma palavra durante o trajeto de volta, sua boca estava pressionada numa linha fina e o olhar feral no caminho a nossa frente.
– Lita...
– Não, não comece Caalin! – Ela rosnou baixo em alerta.
– Por que você nunca me escuta? – Ela permaneceu em silêncio sem me responder até que chegamos ao acampamento, entramos na barraca e aguardamos os oficiais, usei meus poderes para secar minhas roupas, mas Aelita não permitiu que eu fizesse o mesmo por ela, dispensando minha ajuda com um gesto das mãos. Sempre tão fria, tão distante.
Um a um os oficiais entraram na tenda, de olhos baixos e murmurando. Todos, sem exceção, tinham medo dela. German, um malvarmo ruivo de olhos negros foi o primeiro a falar.
– A passagem leste foi desobstruída com magia, o exército de Gridmass passou por lá horas atrás, estão acampados em Gither, General. – A ira de Aelita aumentou, mas conteve sua raiva dentro de si e tamborilou com as pontas das garras na mesa, sobre os mapas acima dela.
– Preparem os soldados, vamos atacá-los em Gither essa madrugada! – Eles a olhavam com a mesma expressão incrédula que eu devia estar olhando-a agora.
– General... – comecei, mas ela ergueu a mão e me fulminou com o olhar.
– Vou ter que falar mais uma vez? – Os oficiais saíram da tenda murmurando ainda mais, olhando para trás como se ela fosse louca, e um pouco eu lhes dava razão.
– Tem certeza? – Perguntei.
– Caalin, não sei que raios você pensa sobre nós, sobre esse laço, mas isso para mim é apenas um inconveniente! Quando disse que você serviria para mim, queria dizer seus poderes em minhas batalhas, não... Ah! Você me entendeu! – As palavras dela me atingiram como pedras.
– Você esperou dois séculos para me dizer que eu era um “inconveniente” para você? – Um sorriso de escárnio apareceu em meu rosto. – Nunca disse algo parecido com inconveniente quando estava gemendo meu nome em minha cama, em todas as vezes que gritava meu nome durante todas as noites. – Aelita estava muito parada me encarando com aqueles olhos mais animalescos que humanos. Dei um passo na direção dela, eu definitivamente tinha ficado muito maior e mais forte depois da transformação, mas nunca havia reparado que ela precisava erguer a cabeça para me encarar, se seu sangue fosse vermelho, tenho certeza de que seu rosto teria corado.
– Tenho uma guerra para vencer, pretende ficar no meu caminho a noite toda? – Ela falou mais calma, tão mansa que podia sentir o quanto havia afetado aquela fera irracional ao comentar suas fraquezas pessoais. Passei as mãos pela cintura dela, prendendo-a contra a mesa fria de pedra e me permiti chegar ainda mais perto para roçar minha boca na dela.
– Você vai aprender a se comportar comigo, Aelita, por bem ou por mal! – Falei em tom de brincadeira, mas ela não gostou nada.
– Se afaste, Caalin! – Ela rosnou segurando a espada, ela estava nervosa, assustada com minha investida como se eu realmente representasse algum mal. Com o choque, com a certeza de que ela realmente usaria aquela espada contra mim, me afastei e deixei que ela saísse para a noite gelada. Sentia um mal, sentia que algo ia acontecer e que me arrependeria de tê-la deixado tomar aquela decisão, mas a segui, sem questionar.
Marchamos para Gither momentos depois, levando o exército inteiro, ela pretendia massacrar o exército de Gridmass, mas o que encontramos no caminho foi o que eu já desconfiava, o que já imaginava que poderia acontecer.
Uma emboscada, fomos traídos pelos oficiais de Aelita, que na verdade eram espiões de Gridmass. O exército de Gridmass era três vezes maior do que nossas fontes informaram, eles estavam espalhados pela floresta congelada, escondidos por barreiras de magia tão perfeitas que não fui capaz de senti-las. Estávamos cercados por todas as direções, mas não íamos sair sem lutar, Aelita rugiu alto, fazendo com que os soldados se espalhassem num ataque violento contra as tropas inimigas.
A batalha se estendeu madrugada adentro, o chão, a neve, haviam ficados cobertos de sangue prateado, transparente e vermelho, conforme a neve os absorvia, ficávamos sobre uma massa grudenta que dificultava nossos movimentos. Mesmo estando em desvantagem, nós estávamos vencendo, não havia visto Aelita em lugar algum desde o momento que aquela batalha começara. Então, comecei a procurar entre os sons de metal se chocando, sabia que ela estava ali, que estava viva, aquele laço parecia me preencher de certa forma.
Do outro lado do campo, muito afastado de onde estava o foco da batalha, Aelita lutava contra dois homens, não eram Malvarmos, eram Salamandras. Meu coração parecia ter parado de bater quando percebi que um deles podia manipular as chamas e havia revestido sua espada com fogo e estava tentando usar contra ela, Aelita estava usando cada gota do gelo em seu sangue para se manter de pé. Corri para ela, para ajudá-la, mas não fui rápido o suficiente, não consegui chegar antes do primeiro salamandra a distrair para que o portador daquela espada de fogo atravessasse seu peito.
11
Gelo e Gelo
Acordei sobressaltado sentindo a cama quente sob meu corpo, olhei em volta ajustando minha visão até perceber onde estava, deitado em minha cama no Castelo de Gelo. Respirei fundo e tirei o cabelo grudado ao rosto, foi apenas um sonho, uma lembrança, uma lembrança. Repeti até minha mente clarear, até ter certeza de quem eu era e do tempo em que estava.
Nike.
Onde ela estava? Levantei da cama rápido e fui em direção à porta, mas dei de cara com Zion, que trazia uma bandeja com comida para mim, quase a derrubei quando abri a porta de supetão.
– Zion! – Antes que pudesse tirá-la do caminho, ela colocou a mão em meu peito e me empurrou de volta para o quarto, chutando a porta com o calcanhar ao passar.
– Você precisa comer alguma coisa! – Disse ela me empurrando novamente sobre a pequena poltrona sob a janela e colocou a bandeja sobre meu colo e abriu as cortinas do quarto, deixando a luz da lua entrar.
– Onde ela está? – Perguntei segurando a bandeja, pronto para me levantar.
– Não saia daqui! Ela disse que se eu te deixasse sair, ela arrancaria minha cabeça! – Zion encolheu o corpo e roubou um dos pãezinhos recheados com queijo da bandeja que trouxe para mim.
– Perguntei onde ela está!
– Você sabe a resposta! – Zion não me olhou quando desabou na outra poltrona. – Ela está em Paliath com uma tal de Hisana destruindo o arsenal de vitrino de Hobner e falou que voltava antes de amanhecer! – O ensopado que ela havia trazido parecia ferver em meu estômago.
– O qu...
– Não faça essa cara, ela pode destruir o castelo com um estalo dos dedos e você sabe disso!
– Eu sei... as sombras dela podem destruir Vegahn inteiro se ela quiser – Se ela as aceitar, foi o que não quis dizer – Mas ela não precisava ter me apagado para que eu ficasse!
– Você teria ido junto com ela, eu sei que teria! E como sua guardiã, ela ia ficar nervosa, preocupada com você sem os poderes perto dela e poderia fazer uma cagada gigantesca! Então, não comece a reclamar! – Ela ralhou pegando outro pãozinho.
– Porque não pega comida para você também? – Olhei enquanto ela comia o pão.
– Não... vou esperar por ela, ela me prometeu uma coisa muito boa quando voltasse! – Um sorriso malicioso desenhou os lábios cheios dela, expondo as presas.
– Parece que se tornaram amiguinhas... – falei com deboche.
– Eu gosto dela, Nike é feroz igual a mim! – Zion nem fazia ideia de quando aquela garota era feroz, não fazia ideia de quanto era mansa perto de Nikella. Zion mordiscou o pão e ficou de pé, indo novamente em direção à porta, as botas faziam um ruído baixo sobre o piso de gelo, ela parou antes de sair e lançou um olhar gélido, quase assassino para mim.
– Se brincar com ela, Caalin, eu vou arrancar a sua pele, fazer um tapete bem grande e vou chamá-la para dançar comigo em cima dos seus restos! – Ela grunhiu e bateu a porta ao sair.
Terminei de comer e fui me sentar na janela aberta, deixando que o ar frio da noite me tranquilizasse, A lua cheia banhava a paisagem branca ao redor do castelo. Vegahn era mundo branco e silencioso, calmo, puro, cheio de tranquilidade, ou era a mensagem que a neve naquela noite tentava passar. Não conseguia ficar tranquilo com Nikella em Paliath e não conseguiria descansar enquanto ela não voltasse. O laço de guardião impedia que eu ficasse tranquilo com ela longe de mim, e por esse único motivo não dei um jeito de ir até Paliath, pois sabia que se ela sentisse a minha presença, ficaria nervosa com o fato de estar sem meus poderes e iria vir até mim e eu a atrapalharia, mesmo assim apertei as mãos até que os nós dos dedos estalassem.
As lembranças de Aelita voltaram com tudo quando vi aquele laço na mão de Nikella. Muito tempo depois da morte de Aelita encontrei Mary, e me odiei por tê-la mandado para Treezer, havia perdido as duas em guerras causadas pela sede de poder de tiranos.
Agora estávamos prestes a entrar em uma guerra ainda maior e Nikella estava no meio daquilo, mas diferente das outras, ela confiava em mim.
Sentado na soleira da janela, tentei invocar meus poderes, mas eles responderam de forma lenta, como se estivessem com sono, assim como eu estava, porém não queria dormir enquanto ela não voltasse.
O sol já estava quase subindo no horizonte quando a porta se abriu sem fazer barulho e Nikella entrou nas pontas dos pés com as botas nas mãos, ergui os olhos do livro que estava lendo e a vi ficar branca como a neve quando ela me encarou e viu que eu ainda estava acordado, ela estava uma bagunça, suja de neve e sangue com um rasgo na manga do braço esquerdo, mostrando um corte recém cicatrizado ali, bufei e voltei a encará-la, mas ela deu um sorriso sem graça, de uma criança que foi pega fazendo arte, tirou Ira de seu pescoço e entrou no banheiro batendo de leve a porta atrás de si. Fiquei em silêncio encarando a porta, Ira, com toda sua destreza felina, saltou para cima da poltrona, fez alguns círculos e sobre a almofada, afofando-a a seu gosto e finalmente deitou.
Nike só saiu do banheiro quase meia hora depois, com cabelo ainda úmido e um conjunto de pijama preto de algodão, a blusa tinha uma carreira com quatro botões de madrepérola e o short era tão curto que poderia ser confundido com roupa íntima, mas ela desfilou até a cama e colocou o joelho sobre o colchão.
– Posso ficar aqui por enquanto? Estou com medo de Oriel invadir meu quarto atrás de mim para que eu prove os vestidos para o casamento! – Ela mordeu os lábios esperando uma resposta, então bati na cama ao meu lado. Ela sorriu e subiu de quatro deslizando até onde eu estava até ficar próxima o suficiente para que eu pudesse tocá-la sem me movimentar muito, fiquei em silêncio observando-a, mas ela parecia estar disposta a ficar em silêncio sobre Paliath.
– E? – Perguntei por fim, desistindo de esperar ela dizer alguma coisa.
–Prometo que te mostro tudo quando acordar! – Ela fez um biquinho e piscou os olhos para mim.
– Isso não funciona comigo. – Reclamei pegando o braço para verificar a extensão do corte, ele havia sido profundo. – Conte.
– Depois que eu dormir! – Ela suspirou e apoiou a cabeça em meu ombro e passou a perna por cima de mim, aninhando-se e dormindo tão rápido que não tive tempo de protestar ou exigir que me contasse o que havia acontecido por lá. Puxei-a mais para perto de mim, passando meus braços ao redor da sua cintura e ombros e deitei a cabeça sobre o travesseiro, Nike se mexeu colocando a boca em meu pescoço, pude senti-la sorrindo, mas ainda continuava dormindo.
“Estava ajoelhado ao lado dela na neve, Aelita tentava respirar quando eu os alcancei e joguei uma forte descarga elétrica sobre os dois Salamandras, eles não tiveram tempo de ver o que aconteceu antes de serem completamente despedaçados pela onda de poder que os atingiu.
Tirei a espada do peito dela, ela arqueou o corpo, mas não teve força para gritar, sentia aquela ligação sendo consumida, desaparecendo tão rápido que um buraco começou a se formar em me peito, coloquei as mãos sobre seu peito para tentar curá-la, mas Aelita me impediu, segurou minhas mãos e sorriu como na primeira vez que a vi.
– Deixe-me curar você! – Um nó em minha garganta quase não permitiu que eu dissesse aquelas palavras. Ela balançou a cabeça, e colocou a mão em meu rosto.
– Eu não merecia você, te tratei mal todo esse tempo e mesmo assim, você ficou ao meu lado... – a voz dela não passava de um sussurro.
– Não podia te deixar! – Ela sorriu e mostrou o punho, passou o dedo sobre algo que eu não podia ver.
– Isso não significa nada, Caalin.
– Significa para mim. – Falei.
– Eu não menti mais cedo, você sempre foi inconveniente para mim, porque me afetou de uma forma que ninguém mais fez, isso me assustava, tive medo de perder o foco em meus objetivos caso me deixasse levar pelos sentimentos que tinha por você... – Aelita suspirou de forma dolorosa, o sangue azulado manchando a neve ao seu redor. – Ache alguém que mereça o seu carinho, não mude nunca. – O aperto em minha mão diminuiu até que seus dedos escorregaram do meu pulso. Ela havia partido e levado aquele laço com ela, deixado um vazio tão grande dentro de mim que não pude conter a ira que explodiu em meu peito junto com um rugido que fez o céu se abalar. Cobri toda a área de Gither com uma tempestade magnética tão violenta que derrubou as árvores, levantou a neve do chão e matou todos os soldados que guerreavam ali, tanto inimigos quando aliados. Eu destruí os dois exércitos mais fortes de Vegahn com um único ataque, e nem assim aquela dor diminuiu.
Carreguei Aelita até o Monte Huris, não muito longe de Gither e a enterrei ali, fazendo com que crescessem pequenas flores vermelhas em seu túmulo de gelo, para que soubesse o que ela levou de mim, um pequeno laço vermelho que unia nossas almas.”
Acordei com uma pequena pressão sobre o peito e uma mão quente em meu rosto, acariciando e chamando meu nome baixinho. Abri os olhos e encarei os olhos prateados dela. Ela estava transformada sentada sobre mim, prendendo meus braços com as mãos e parecia assustada, pequenas fagulhas, traços de energia vazavam de minhas mãos e passavam por ela.
– Caalin? – Ela segurou meu rosto e assoprou, um ar gelado misturado com seu cheiro, então o mundo clareou ao meu redor.
– Eu...
– Estava tendo um pesadelo? – Ela começou a deslizar para o lado, mas eu a segurei ali, ergui o tronco e a abracei, apertando-a com mais força do que queria. – Está tudo bem. – Disse ela passando os dedos em minha cabeça. Não é a mesma pessoa, não, mas a mesma alma. Tão diferentes...
Nikella se afastou um pouco para poder me olhar, ela já tinha voltado a aparência normal e seus olhos verdes e brilhantes estavam nos meus, não sabia dizer qual era o sentimento que eles estavam escondendo. Ela se aproximou mais, entrelaçando os dedos em meu cabelo e me beijou, passando suavemente a língua em meus lábios e brincando com ela na ponta da minha língua, ela estava tão quente que podia derreter parte do castelo quando me empurrou de volta para a cama e rasgou minha blusa com as garras de vitrino passando-as de leve sobre minha pele, sem tirar os olhos dos meus. Nike deu um sorriso travesso e mordeu o lábio inferior, então se abaixou sobre mim e começou a beijar meu corpo, devagar, traçando linhas longas com a língua e brincar com as garras nas laterais do meu corpo, causando arrepios em mim.
Segurei sua cintura e a puxei para cima ela protestou, mas não reclamou quando beijei seu pescoço, ela tomou minha boca novamente abrindo sua boca para mim, soltei a carreira de botões bem devagar enquanto sentia sua pulsação aumentar, mordi com leveza seus seios e ela gemeu arqueando o corpo para trás, passei a língua de leve contra sua pele quente e seu corpo inteiro se arrepiou, a deitei contra a cama e tirei seu short devagar, agora sabia por que ela não usava roupas quentes no frio de Vegahn, ela era quase como uma chama, o tempo inteiro ardendo, ri contra sua barriga ao perceber que ela não estava usando nada por baixo do short. Ela não se moveu, parecia não respirar quando comecei a beijar suas pernas, a parte interior e macia de suas coxas e subindo cada vez mais, suas mãos fecharam-se contra a colcha da cama e todo seu corpo começou a tremer quando cheguei ao ponto que queria, quente, macio, Nike arqueou o corpo e soltou um gemido baixo, deslizei a língua para dentro dela segurando firme suas pernas quando ela tentou se soltar de meu aperto.
– Caalin... – ela suspirou e gemeu meu nome várias vezes até que segurou meus cabelos e me puxou para cima, enrolando as pernas em volta de meu quadril, a pele macia e quente roçando contra a minha.
– Porque me atrapalhou, não tem educação? – Perguntei mordendo de leve sua orelha, passando a língua em seu pescoço e seguindo em direção à sua boca novamente.
– Se você não percebeu, ainda é dia, estão todos acordados no castelo! – Disse ela com a voz trêmula.
– Vamos dar um show para eles! – Ela mordeu os lábios e me puxou com as pernas pressionando mais meu corpo contra o seu, quando a penetrei, quando nossos corpos se uniram, ela suspirou e se derreteu com a respiração ofegante e um sorriso no rosto, Nike moveu os quadris quase como uma dança hipnótica e única, ela pressionou os lábios no meu pescoço e gemeu meu nome até o último minuto, seu corpo brilhava suavemente coberto de suor e tremia, os olhos estavam com um brilho divertido.
– Pelo visto, está bem melhor! Que bom... achei que fosse te perder lá... – Ela traçou minha boca com as pontas dos dedos e sorriu de novo. – Não me assuste assim de novo! – Ela reclamou.
– Quanto a isso... – Comecei, ela revirou os olhos e suspirou, segurou meu rosto colocando sua testa na minha para me mostrar o que tinha feito.
Estava olhando pelos olhos de Nikella.
“Sentindo seu coração acelerado enquanto contava cada passo aproximando-me da muralha, as botas afundando na neve macia que caía, pela primeira vez percebi o quanto ela sentia frio, tanto frio que todo seu corpo doía, mas sempre deixava os braços à mostra, ela sentia um estranho prazer no frio, como se todo o tempo que passou em Ciartes a tivesse feito amar a sensação do frio na pele mesmo com a dor. As muralhas do castelo de Hobner agora estavam a poucos passos, muralhas altas e largas de pedra, sólidas como o penhasco próximo ao castelo.
Hisana apareceu sobre a muralha poucos minutos depois, a escuridão parecia ser parte dela quando ela moveu as mãos e uma pequena brecha se abriu na proteção, estreita o suficiente para eu passar de lado, então ela sumiu novamente e a barreira de proteção se fechou atrás de mim, fazendo meus poderes se reduzirem drasticamente, tanto que parecia haver uma tonelada sobre meus ombros. Senti a pressão sobre as sombras que agora se moviam inquietas ao meu redor, mas não podia usar a magia mesmo, não agora ou seria descoberta pelos magos que mantinham a proteção do castelo.
Escalei os muros com uma facilidade sobrenatural, usando as garras de vitrino para me agarrar às fendas das pedras e em poucos minutos estava no alto da muralha, um corredor estreito com menos de um metro no alto da muralha me fez olhar para os dois lados para ter certeza de que Hisana havia deixado o caminho livre para mim.
Saltei para dentro dos muros, agora totalmente coberta pelas sombras, espremendo-me contra as paredes para ter certeza que os guardas não me veriam ali, eu sou sombra e escuridão, repetia várias vezes enquanto andava em passos rápidos até o galpão ao lado dos estábulos, onde Hisana havia dito que ficavam escondidas as armas de vitrino.
Pareceu uma eternidade os poucos metros que faltavam para entrar pelas portas largas de madeira, corri os últimos passos com uma destreza felina até que as alcancei e abri um pouco, só um pouco para espremer o corpo pela brecha e entrar no galpão escuro, na verdade o vitrino das armas espalhadas por todos os lados, clareavam o local com luzes azuis, amarelas e esverdeadas de forma fantasmagórica.
Uma mão se fechou ao redor de meu pescoço atirando-me sobre uma pilha de espadas, abrindo um corte longo em meu braço, mas não gritei, mordi os lábios com força para prender o grito e levantei rapidamente segurando Siferath nas mãos e procurando por meu agressor. Uma sentinela, ele olhou aterrorizado para as sombras ao meu redor e a foice em minha mão.
– A maga negra das minas! – Disse ele com a voz assustada, então, virou-se de costas para correr e dar o alarme. Ahh! Merda! Corri na direção dele e o ataquei, mas ele se defendeu com uma espada simples de metal que foi partida no impacto contra Siferath. Ele chegou a abrir a boca para gritar, mas a lâmina de Siferath desceu impiedosa sobre ele, partindo-o ao meio. Meu estômago se embrulhou com aquilo, não queria ter que matar ninguém, mas não queria colocar a operação em risco. Arrastei o corpo partido e o embrulhei em um saco que encontrei pendurado atrás de uma das portas do galpão e em seguida limpei os vestígios, usando o mínimo de magia possível, então me virei para as armas.
Por favor, escondam o rastro de magia nesse galpão! – Pedi às sombras, que serpentearam ao meu redor e todo o galpão se afundou num breu.
Deixei que a mudança acontecesse, transformando-me em malvarmo e ergui as mãos, fazendo uma bola de gelo flutuar pouco acima de mim, então a estourei, fazendo com que o Yinemí cobrisse todas as armas com gelo. O brilho branco do gelo que as cobria me fascinou. Não havia apenas congelado as armas, mas tudo dentro daquele galpão, suguei o ar e andei devagar até onde algumas espadas congeladas estavam apoiadas à parede, quando fui puxar uma delas, a arma estilhaçou em minhas mãos. Não podia deixar tudo congelado daquela forma, se não todos perceberiam que as armas foram danificadas e Hisana estaria correndo perigo ali dentro, com um pouco mais de magia, converti o Yinemí em calor, da mesma forma que fiz para chocar o ovo de Docinho. A água começou a gotejar conforme o gelo derretia e pouco depois começou a chover, literalmente, dentro daquele galpão.
Apenas mais um pouco... quando deixei tudo seco, para parecesse que ninguém além das sentinelas estivera aqui. Peguei o saco pesado com o guarda morto sentindo meu estômago se revirar ao levantar o corpo pesado, então o fiz desaparecer, teleportando-o para qualquer lugar bem longe. Verifiquei tudo mais duas vezes para ter certeza de que não havia deixado nenhum rastro, nenhuma marca ou cheiro da minha presença, peguei outra arma, uma pequena adaga desta vez e a quebrei, o vitrino havia se tornado vidro, fino, frágil, mas que só se quebraria com algum golpe, para meu alívio, pois se o pegassem e ele se partisse na mão de alguém, teríamos ainda mais problemas. Puxei as sombras para mim novamente e saí pela porta do galpão, haviam mais guardas agora do que antes, mas eles pareciam não me ver ou sentir minha presença, pois estava escondida pelas sombras e elas não permitiriam que eu fosse pega, afinal, eu era o prêmio que elas queriam dominar!
Hisana apareceu novamente no alto da muralha, mas dessa vez acompanhada por um malvarmo, ele era forte e parecia um guerreiro, tinha cabelos curtos escorridos ao redor do rosto de traços fortes, estava a poucos metros deles escondida pelas sombras com as costas pressionadas à parede da guarita de pedra. O malvarmo cheio de pose usava botas de couro branco limpas demais, uma calça vermelha escura, quase vinho, e uma camisa branca que não escondia os músculos por baixo.
Os olhos cor de vinho passaram por mim, mas não me enxergaram ali. Ele passou um braço em volta da cintura de Hisana, que mantinha os olhos nas sombras em que eu estava escondia. O malvarmo olhou para o galpão, pura satisfação era o que tinha no sorriso presunçoso que ele deu, depois olhou novamente a neve caindo e tirou alguns flocos dos cachos negros de Hisana, ela mantinha o olhar sereno embora pudesse sentir seu sangue fervendo.
– Hisana querida, prepare suas tropas e aguardem o nosso comando, invadiremos Ciartes durante as provas da Academia dos Venox. – Ele falou com uma voz mansa enquanto acariciava o rosto de Hisana com as costas da mão.
– Não ia atacar Blizzion primeiro? Tomar o exército de Aliver? – Ela perguntou, um sorriso sarcástico apareceu nos lábios de Hobner.
– Não preciso mais do exército de Aliver, tenho o seu, que é muito maior e mais letal! – Ela assentiu.
– Não é arriscado? Vai ter muitos caçadores juntos no mesmo lugar nos dias de provas! – Ela respondeu, passando os olhos por onde eu estava novamente.
– Exatamente por esse motivo, atacaremos a Cidade do Sol em um dia que eles estarão totalmente concentrados nas provas da academia, a cidade ficará com a guarda falha e assim será mais fácil atacar o castelo e matar o rei, ainda mais porque os Igniuns perderam o poder da Árvore do Fogo! Depois, é questão de tempo para entrar na Árvore e recuperar o livro! – Recuperar, a palavra certa seria roubar, já que o livro nunca foi dele! Hobner contava os planos para Hisana como se tivesse intimidade o suficiente para isso, talvez tivessem mesmo, pelo modo que ele a tocava. – Se dominarmos Ciartes e pegar o conhecimento escondido na Árvore, logo poderemos tomar os outros mundos, assim as guerras finalmente acabarão! O poder precisa estar em mãos competentes para a paz reinar! – Não havia nada em seu sorriso sombrio de desejo por paz, apenas um desejo absurdo por poder e dominação.
Hisana deu um último olhar em minha direção e moveu discretamente a mão em direção à barreira, abrindo uma brecha para que eu saísse.
– Meu senhor não gostaria de me acompanhar aos meus aposentos? Gostaria de ter uma conversa em particular... – Hisana roçou os lábios na mão dele, Hobner deu um breve sorriso, cheio de malícia e se virou em direção ao castelo, Hisana fez um movimento quase imperceptível com a cabeça para que eu saísse, então o fiz.
Atirei-me contra a pequena fresta na barreira caindo na neve fofa e rolando com um ruído quase inaudível e corri o máximo que pude em direção à floresta com o cuidado de cobrir meus rastros na neve atrás de mim. Caí entre as árvores, longe o suficiente da muralha, cobri a boca com as mãos e chorei.” – A memória se desfez.
Encarei Nike por um bom tempo depois que afastei o rosto do dela, ela ficou em silêncio, quase sem respirar enquanto me observava esperando algo de minha parte, talvez um julgamento por ter matado o guarda ou por ter acabado com os poderes dos Igniuns.
– Pelo menos, sabemos que eles não vão atacar Blizzion, por enquanto. – Falei para quebrar o silêncio, ela suspirou aliviada.
– Já percebeu que toda vez que alguém diz que quer a paz, ela trava guerras para tentar conquistar esse objetivo? – Sua voz saiu falha, ela estava olhando para o pingente de Siferath. – Começo a pensar que o certo é deixar cada um travar as próprias batalhas, sem envolver os outros que tem ideais parecidos contra aqueles que têm ideais e pensamentos distintos...
– Mas o objetivo real nunca é a paz, Nike, é sempre o poder! A dominação e a sensação de posse. As guerras não são travadas para que os povos tenham paz, são travadas para que os mais ricos com exércitos maiores tenham mais poder e domínio sobre os que não tinham muito a ofertar pela paz que almejavam...
– E não tem como acabar com tudo isso, não é?
– Infelizmente as pessoas morrem e o legado que elas deixaram vai perdendo o valor, quando outras tomam seu lugar, são as ideias delas que começam a valer. Isso provoca novos conflitos. A paz é apenas uma ilusão criada para manter as pessoas com esperança, domadas. – Expliquei, Nike ficou brincando com os dedos em meu peito. – Nem quando Ayrana criou os mundos para que as raças vivessem em harmonia, eles conseguiram ter paz, há sempre disputas, brigas e guerras.
– Aliver... você o colocou lá pois ele tem pensamentos semelhantes aos seus? – Ela perguntou depois de alguns momentos de silêncio.
– Eu o coloquei lá, pois não queria assumir o trono. – Falei. – O que pretende fazer agora que destruiu as armas? – Queria desviar o assunto antes que ela questionasse o porquê de eu não assumir o trono de Vegahn.
– Avisar a Ericko sobre o ataque para que eles se preparem, entrar na Árvore do Fogo e dar um jeito de curá-la e pegar o Livro das Sombras e destruir ele antes que Hobner e Ausiet o peguem para fazer um exército de magos negros.
– Acha que eles estão sendo influenciados por Higarath? – Nike estava brincando com uma mecha do meu cabelo.
– Ele estava controlando Hisana... acredito que esteja por trás de Hobner e Ausiet também. Talvez os esteja usando para dominar os mundos com as sombras...
– Não sei como ele conseguiria isso. – Ela me encarou confusa. – Controlar os outros magos negros... – Falei.
– Acho que ele não me controla, pois estou resistindo, naquele dia, quando ele tomou a Alma das águas de Hisana, as sombras respondiam a ele, como se ele fosse o mestre de todas elas... – Sua pele se arrepiou ao falar aquilo. – Não consegui lutar direito, pois ele prendeu minhas sombras também!
– Vamos dar um jeito em tudo isso! – A puxei para meu colo, apertando-a de leve, Nike acenou com a cabeça e suspirou, depois começou a beijar meu pescoço e acariciar meu peito com as pontas das garras.
– Vou dar um jeito em você antes! – Ela mordeu os lábios e veio para cima de mim novamente, ignorando completamente que haviam coisas a serem feitas, na verdade eu não me importava, desde que pudesse ficar com ela mais um pouco.
O Sábado chegou mais rápido do que esperava, nada de fora do normal havia acontecido, a não ser por um pequeno ataque de Docinho, que quase incendiou as roupas de Oriel.
Oriel mantinha Nikella o tempo todo ao seu lado em idas constantes ao alfaiate para acertar as roupas para o casamento de Ericko, Nike até tentava fugir para meu quarto, mas Oriel já havia descoberto seu novo esconderijo e entrava no quarto sem bater a maioria das vezes, isso me irritava profundamente, mas se Nike estava aguentando aquilo, eu poderia aguentar também, fora que depois do casamento, Oriel e sua mãe voltariam para Retiro das Folhas e ficariam lá por um bom tempo.
No fim da tarde de Sábado, pouco antes de partirmos encontrei Nike, Oriel, Yeferis e Aliver esperando na sala do trono. Aliver e Oriel estavam combinando, com roupas em tons de verde claro de tecidos leves, Yeferis usava um longo vestido preto de chifon e os cabelos amarrados num coque, provavelmente uma dica de Nikella por causa do calor sufocante de Ciartes. Ela mesma estava com um vestido curto azul claro na altura dos joelhos, com o emblema de Aliver bordado no peito, os cabelos estavam amarrados em uma trança solta e havia uma longa espada de vitrino na bandoleira em suas costas, pelo menos estávamos combinando: meu uniforme era da mesma cor.
– Vamos? – Aliver perguntou dando um breve aceno para sua mãe e irmã. Não levaríamos mais ninguém, no caso de haver algum problema poderíamos sair facilmente com poucas pessoas. Andamos até o lado de fora do castelo, em direção aos portões, mas antes que o alcançássemos, Zion apareceu trazendo Docinho e a entregou para Nikella, que entregou Ira para Zion.
– Cuide bem dele! – Disse ela passando Ira para os braços de Zion e pegando Docinho, colocando-a em seu ombro, o dragãozinho apenas soltou uma lufada de fumaça e se aninhou ali.
Zion fez um cumprimento ao Rei e ficou nos portões enquanto eu abria um portal para que atravessássemos até Ciartes. Nikella apertou meu braço com força olhando para o portal prateado e brilhante em nossa frente.
– Vai ficar tudo bem! – Sussurrei para ela antes de entrarmos no portal.
Estava acostumado com a escuridão do anoitecer em Vegahn antes de me deparar com a claridade de Ciartes, o calor sufocante me atingiu como uma tonelada sobre os ombros, ao olhar para o lado, percebi que não era o único sentindo os efeitos de poucos segundos naquele calor infernal. Nikella parecia ter dificuldade de respirar, mas Yeferis, Aliver e Oriel pareciam normais. Não era por causa do calor que Nike estava assim, era por pisar em Ciartes novamente, por ver aquela cidade novamente, pelo que aquilo a fazia lembrar e sentir.
– Está tudo bem? – Perguntei num sussurro quando o rei e sua família se afastaram, andando a poucos passos em nossa frente.
– Vai ficar... – Nike olhava para frente, sem ousar olhar a cidade a seu redor. Dei-lhe o braço e alterei minha temperatura, ficando o mais frio que pude, ela passou o braço pelo meu e sorriu ao sentir o frio. – Obrigada! – Ela respirou fundo e caminhou com mais facilidade, mas a calma em seu olhar desapareceu ao olhar por cima dos muros e ver as folhas prateadas da Árvore do Fogo, o pânico tomou conta dela de forma tão intensa que seu corpo inteiro tremeu.
– Calma Nike! – Apertei seu braço um pouco mais, ela estava prestes a sair e correr em direção à árvore. – Vamos deixá-los no castelo, esperar que se acomodem e depois vamos até lá! – Ela me encarou novamente e assentiu.
Ao chegarmos aos portões da cidade principal, os guardas fizeram uma breve reverência a Aliver e se afastaram para que pudéssemos passar, mas o olhar de um deles caiu sobre Nike e ficou sobre ela, olhando-a espantado. Eu o encarei e mostrei os dentes, quando ele percebeu que eu o estava encarando, se ajeitou e desviou o olhar dela.
Minha!
A cidade estava muito movimentada, tudo estava sendo enfeitado com detalhes em dourado e laranja, homenageando não só a família do fogo, como também os Ascardian, os primeiros de Amantia. A cada passo que dávamos em direção ao castelo, sentia Nike se apertando mais contra mim, sua respiração estava irregular e ela parecia que ia desabar a qualquer momento. Aliver parou em frente às portas do castelo, era comum que os reis fossem na frente, mostrando que protegiam suas casas e seus reinos, então ele se apresentou, dando-nos um momento antes de entrar. Segurei o rosto de Nike e toquei os lábios em sua testa.
– Fique calma, não se esqueça de quem você é! Somos da família, lembra? – Sorri, aquilo parecia algo simples, mas de alguma forma a acalmou, então ela respirou fundo e sorriu antes de entrar com a cabeça erguida atrás de Aliver e Oriel.
O Palácio do Sol era ainda mais quente do que a cidade do lado de fora, o piso vermelho de mármore fazia parecer que andávamos sobre brasas, sabia que eu me sentia assim apenas por ser um malvarmo, que os humanos não deviam sofrer tanto assim com o calor, mas em poucos minutos ali, eu já sentia uma enorme vontade de voltar para o Castelo de Gelo e deitar nu no chão.
Dois guardas nos conduziam pelo castelo, nos levando em direção à sala do trono, Nike estava ao meu lado direito olhando em volta, ao alcançarmos um corredor largo e aberto que dava para um jardim ela subitamente parou. Nikella estava olhando vidrada para o meio do jardim, acompanhei seu olhar para ver o motivo pelo qual ela havia parado, então, meu coração gelou. Kuran estava sentado à sombra da árvore, rindo, feliz com uma jovem no colo, ela tinha a pele levemente bronzeada e cabelos ruivos, ela estava sentada no colo dele e o beijava. Antes que eu pudesse tocar em seu ombro, Nike voltou a caminhar pelo corredor, alcançando Aliver rapidamente. Ela não se virou para mim, continuou com os olhos fixos nas costas de Aliver e seu rosto tinha se tornado duro.
Ao entrarmos na sala do trono, não havia muitas pessoas ali, provavelmente foram dispensados para que Ericko pudesse nos receber. E lá estava o rei de Ciartes, sentado no trono ao lado da filha da Sacerdotisa das Águas, Karin, e perto deles estavam Sheriah e Annie.
– Aliver, Oriel e Yeferis! Bem-vindos a Ciartes! – Disse Ericko levantando-se do trono e vindo até nós para nos cumprimentar, Aliver e Ericko trocaram cumprimentos simples, mas Oriel abraçou Ericko como se Karin não estivesse ali, mas ela aparentemente manteve um sorriso controlado no rosto, quando Ericko virou-se para nos cumprimentar ele congelou, ficou olhando espantado para Nike, que deu um breve sorriso e colocou a mão sobre o peito:
– Ignis Aeternum! – Disse ela fazendo a saudação do fogo. Karin deu um gritinho atrás de Ericko e correu até Nike, pulando nos braços dela ignorando que era mais de um palmo maior que Nike, a apertou e depois começou a chorar. Docinho ficou incomodada com os soluços de Karin, então estiquei a mão e ela veio para meu ombro e ficou observando as duas com uma atenção fora do comum para um animal.
– Achei que nunca mais fosse te ver! – Karin não queria soltar Nike por nada, havia começado a chorar e agora soluçava com a cabeça apoiada no ombro de Nike. Sheriah as olhava apreensiva, depois olhou em direção ao jardim, como se pudesse enxergar através das paredes, como se tivesse medo que Kuran percebesse a presença dela.
Quando Karin finalmente a soltou e começou a falar sobre todos e tudo que estava acontecendo, Ericko convidou Aliver para irem até outra sala, encontrar com os soberanos de Amantia e de Dartaris, Aliver fez um breve aceno, dispensando-nos temporariamente. Sheriah conseguiu convencer Karin a deixar a conversa para mais tarde, então Oriel e Yeferis acompanharam Sheriah e Karin para o jardim a fim de conversar sobre o casamento com uma boa xícara de chá. Nike depois de muito insistir que tinha algo a fazer, falando sobre a família com quem vivia, conseguiu desvencilhar-se delas e seguiu para fora da sala do trono.
Ela ia a passos largos pelo corredor pelo qual havíamos vindo, por um momento achei que ela estava indo até ele, porém antes de chegar perto do jardim, ela desviou para a direita entrando em um corredor mais largo que dava para a saída oeste do castelo. Continuei a segui-la até que ela parou no meio do corredor e virou para trás. Nike podia ter me incinerado com seu olhar quando ela finalmente me encarou, não havia nada de doce ali, da garota que esteve comigo nos últimos dias.
– Foi por isso que você disse que Sheriah não mandaria me matar, não é? Você sabia que ele estava vivo! – A voz dela saiu embargada, e seus olhos estavam começando a se encher de lágrimas.
– Nike...
– Não! Não me dê desculpas, Caalin! – Ela esticou a mão para que eu não me aproximasse. – O que você achou que eu ia fazer se tivesse me dito? Achou que eu ia correr de volta para Ciartes e me jogar nos braços dele? – Mesmo com raiva ela mantinha o tom de voz baixo, controlado.
– Me desculpe...
– Não desculpo não! Você sabia o quanto estava sofrendo, me consumindo por causa da culpa! Sabe quantos pesadelos você teria me poupado? – As lágrimas agora corriam livres pelo seu rosto, ela encostou na parede e cobriu o rosto com as mãos e chorou ainda mais. Segurei suas mãos delicadamente, tirando as da frente do seu rosto, até que ela me encarasse novamente.
– Nikella, eu sinto muito, eu só não queria perder você! Sabe desde quando eu estou apaixonado por você? Desde que te vi pela primeira vez pelos olhos de Ira! – Ela abaixou os olhos, mas peguei seu queixo de leve e fiz com que ela me olhasse de novo. – Quando eu cheguei ao castelo no dia do aniversário do príncipe Ericko, que eu te vi naquele banco com Ira no colo, eu queria te levar para Vegahn comigo! Teria levado se o príncipe não tivesse aparecido! A ideia de que se eu te contasse que ele estava vivo e de talvez você voltar para ele me abalou tanto que eu não consegui contar...
– Então você realmente achou que eu fosse vir atrás dele? – Ela soltou uma das mãos de meu aperto e limpou o rosto.
– Achei, e morri de medo disso. – Confessei.
– Idiota! – Mesmo ainda tremendo muito, ela pegou minha mão e beijou minha palma aberta. – Quem você pensa que sou para voltar correndo para os braços de alguém que disse que ia me queimar viva? – Ela deu um pequeno sorriso e balançou a cabeça suavemente. – Eu te amo, Caalin! Acho que percebi isso no dia em que Hisana quase... a ideia que você morreria e que eu nunca mais te veria foi o que me fez avançar para ela mesmo sabendo que Higarath estava lá... – Senti como se todo o mundo tivesse parado de girar naquele momento.
– Pode... dizer isso de novo? – Pedi.
– Eu te amo, Caalin! – Ela passou os braços em volta do meu pescoço e me beijou. – Nunca faria o juramento se não o amasse!
Não tinha palavras para responder, apenas a encostei na parede e a beijei, sussurrei “eu te amo” contra seus lábios e a beijei várias vezes.
Estávamos tão concentrados em nosso momento que não havia reparado no cheiro de outro macho parado perto de nós, um cheiro amadeirado que me fez soltar um baixo rosnado em alerta.
Kuran estava parado de braços dados com a jovem morena no começo do corredor, ele olhava para nós, não para nós, para Nike. A garota agarrou seu braço com força, tentando o manter longe de nós, mesmo assim ele se aproximou arrastando a menina e encarou Nike.
– Eles me disseram que você tinha morrido... – Kuran conseguiu dizer enquanto olhava de Nike para mim. Soltei Nike e me afastei devagar, passando Docinho para o ombro dela e indo para o outro lado do corredor. A jovem que estava com o príncipe percebeu o que eu tinha feito e se afastou também, seguindo-me pouco depois sob o olhar do príncipe, ele estava me vigiando. Dei-lhe um sorriso maldoso, um alerta silencioso de “Não toque nela, ou acabo com você!” Kuran ficou tenso sob meu olhar, aparentemente a mensagem foi recebida por ele com sucesso.
No jardim estava soprando uma brisa suave, aproveitei-a como se nunca mais fosse sentir o vento tocando em mim, o calor ali realmente me incomodava, encostei-me na árvore no centro do jardim, era um pequeno plátano que já estava com suas folhas amareladas, apenas magia para manter uma árvore como aquela naquele local.
– Não se incomoda de deixar eles sozinhos? – Perguntou a jovem olhando para o local onde os deixamos.
– Como se chama? – Perguntei.
– Melanie... – Ela me olhou timidamente, tinha os olhos cor de avelã e cabelos ruivos, mas a pele era de um tom dourado, bronzeado pelos sóis de Ciartes.
– Melanie... um lindo nome! – Sorri para ela, ela corou e olhou para o corredor, como se pudesse ver através das paredes. – Não me incomodo de deixá-los lá, confio em Nikella, você não confia no príncipe? – Melanie me encarou novamente, um traço de tristeza apareceu em seu olhar, mas sumiu quase que imediatamente.
– Levei quase um ano para curá-lo do ferimento que ela deixou, não estou falando do físico, aquele Asahi curou na hora, mas deixou uma marca muito grande... estou dizendo da ferida interna, de um coração partido. Ele sempre falava nela e ficava triste, perdido nos próprios pensamentos. Aos poucos eu consegui fazê-lo se recuperar da perda dela e agora que ela voltou...
– Nada vai mudar, Melanie! – Segurei sua mão gentilmente, mas com firmeza. – Se você o curou, significa que de alguma forma entrou no coração dele, e se for realmente seu, ninguém pode tirar seu lugar de lá! – Ela suspirou e deu um sorriso tímido.
– Ela nunca disse aquilo para ele.
– O quê? – Perguntei quando ela se virou para a entrada do jardim e começou a se afastar em passos lentos.
– Ele me contou que ela nunca demonstrou muito seus sentimentos por ele, sempre foi um pouco fria e distante. Quando os vi agora a pouco no corredor, que ouvi o que ela falou para você, o modo como ela te tocou... – Melanie sorriu. – Ela nunca disse que o amava! Talvez gelo e fogo não seja o certo como todos dizem, acho que gelo e gelo seja a combinação correta! – Com essas palavras ela sumiu pela pequena trilha entre os cactos cobertos de flores e desapareceu no interior do castelo.
Gelo e gelo.
Era o que nós éramos: um alguém com o coração congelado e o outro com a Alma do gelo... A combinação correta, o fogo derreteria o gelo, como ele a feriu uma vez, quando ameaçou queimá-la, quando não confiou, quando não ouviu sua explicação. Eu nunca a machucaria.
Gelo não derrete gelo.
12
Sussurros no escuro.
Nikella:
Kuran ainda me mantinha no corredor, o cheiro dele me atingiu, acariciando meus sentidos como um cumprimento, mas eles agora pareciam errados para mim, errados de uma forma que não sentia antes, quando ele era tudo que eu queria. Ele deu mais um passo em minha direção. Espelhei seu movimento quase me enterrando na parede, Kuran estava me encarando com os olhos vermelhos, vidrados, como se não acreditasse que eu realmente estivesse ali.
– Ericko me disse que você morreu aquele dia, na Árvore de Fogo...
– Eu não morri, fui banida por ter matado... você. – Consegui fazer minha voz sair firme.
– Nike...
– Desculpe. – Era apenas uma palavra, e era tudo que eu podia dar a ele, nada mais, mesmo que uma parte de mim ainda sentisse raiva das palavras que ele disse para mim uma vez, eu precisava me desculpar, por tudo. Ele olhou para meu pescoço, para onde Siferath agora pendia entre meus seios, no lugar que o pingente estivera pelos últimos dias, mas que o tirei para evitar problemas quando chegasse aqui, e ainda assim teria que usá-lo para entrar na Árvore do Fogo e tentar consertá-la. Algo se acendeu nos olhos de Kuran, o espanto, a confusão havia passado e agora algo estava dançando ali quando ele me encarou novamente.
– Você nem olhou para mim, você apenas saiu por aquela janela e desapareceu na escuridão, nem olhou para trás para ver se eu sobreviveria. – Kuran cuspiu as palavras e suas mãos fecharam em punhos, os nós dos dedos brancos quando ele deu mais um passo e ficou tão perto que podia ver os raios alaranjados no vermelho de seus olhos.
– Tinha muita gente lá para cuidar de você.
– Você era o que importava para mim! Eu te levei até lá pois queria que eles te ajudassem!
– Você me levou até lá sabendo que eu poderia perder o controle e matar Nyumun! – Gritei em resposta. Kuran ergueu a mão em direção ao meu rosto, mas Docinho em meu ombro cuspiu o líquido ácido seguido por alguns estalos e ele se afastou.
– Fogo não me afeta, esqueceu? – Ele deu um sorriso sarcástico.
– Eu falei a verdade, eu sinto muito, por tudo...
– Você foi para Vegahn, atrás do assassino que apareceu aquele dia no aniversário de Ericko, correu para ele depois de me rasgar – Ele inspirou fundo. – Eu devia ter imaginado que havia mais que curiosidade naquele dia no seu olhar, da maneira que você olhou para ele, então você sabia o que estava fazendo quando saiu sem olhar para trás, quando me deixou para morrer no castelo, saiu e correu pra Vegahn! Nem esperou o meu sangue sair de suas mãos para ir se esfregar nele... – Meu movimento foi tão rápido que ele não teve tempo de erguer o braço para se defender, o tapa que lhe dei foi tão forte que o fez cambalear para o lado e as garras de vitrino nas pontas de meus dedos abriram pequenos cortes em seu rosto perfeito.
– Não fale como se soubesse tudo, Kuran! – Rosnei quando ele se virou para me encarar, agora com ódio fervendo nos olhos, como das primeiras vezes que o vi. Dei as costas a ele e comecei a caminhar lentamente pelo corredor.
– Diga a verdade! – Exigiu ele agarrando meu braço antes que eu pudesse me afastar, suas mãos quentes fizeram meus braços doerem, mesmo assim não me afastei.
– Naquele dia, quando eu vi o que tinha feito com você... – me obriguei a respirar com calma. – Eu não tive tempo a perder, sabia o que Fairin iria fazer já que havia perdido o controle sobre minha mente, eu vi seus últimos pensamentos antes de expulsá-lo de minha cabeça e a única coisa que eu pensei foi que eu tinha falhado com você, mas quando eu entrasse em Mogyin eu ia poder te encarar de cabeça erguida por ter corrido a tempo de salvar Sheriah e Annie. – Ergui a cabeça e coloquei a mão no bolso do vestido e tirei o colar, a chave da Árvore do Fogo, puxei a mão dele e coloquei o colar em sua palma, ele olhou do colar para mim e engoliu em seco.
– Nike.
– Eu nunca o tirei, pois era um lembrete de como eu falhei com você e de que eu não queria falhar com mais ninguém, nunca. Só o tirei hoje, pois fui obrigada a vir e não queria que sua mãe o visse comigo, não queria lembrar a ela o que fiz com quem me deu esse colar!
– Você não sabia... que eu estava...
– Não, para mim, você estava morto. – Então virei as costas e saí sem dizer mais nenhuma palavra. Saí para a cidade, para a praça em frente ao castelo, procurei por um banco que estivesse escondido em sombras de alguma árvore e me sentei, cruzando as pernas e fiquei brincando com Docinho no colo.
– Dia difícil? – Perguntou uma voz familiar perto de mim, uma voz que fez minha pele se arrepiar, não pensei duas vezes antes de pular em Susano e o abraçar o mais apertado que pude.
– Ah! – Tentei engolir o choro. – Como senti sua falta! – Ele fechou os braços em volta de mim e riu.
– Ficou mole em Vegahn? – Ele se afastou para que eu pudesse ver seu rosto, estava exatamente como da última vez que eu ví, os olhos verdes brilhantes e o cabelo negro sedoso caindo ao redor dos ombros, embora pudesse jurar que ele estava mais forte agora pois os músculos dos braços eram visíveis por baixo da camisa cinza que ele usava.
– Talvez... – ri quando ele se afastou o suficiente para observar curioso Docinho em meu colo. – Onde está Annie? – Perguntei olhando para os lados, esperando que ela estivesse com ele, Susano rolou os olhos e sentou no banco, puxando-me com ele.
– Ela e as gêmeas estão vendo roupas para a festa, passaram as últimas semanas fazendo isso, acho que se pudessem se dividir em dez, elas usariam roupas diferentes!
– Ah, entendo! – Sorri um pouco com a imagem mental de dez Asahi’s, se uma já dava todo aquele trabalho aos pais... Susano esticou a mão para Docinho em meu colo, ela não se incomodou com seu toque, apenas passou para o colo dele e soltou um som parecido com um grunhido.
– O que é esse dragão, afinal? Nunca vi um assim! – Ele abriu as asas negras dela com delicadeza, a membrana ficou avermelhada com a luz do sol que descia no horizonte agora.
– Um híbrido, dragão marinho e dragão de fogo! – Susano soltou a asa de Docinho e me encarou com a boca levemente aberta.
– Impossível!
– Eu mesma a choquei! – Susano sacudiu a cabeça e brincou com os dedos sobre a cabeça de Docinho, foi então que reparei em uma folha laranja brilhando no anelar da sua mão esquerda e corei.
– Nós nos casamos tem menos de dois meses. Minha mãe quase enlouqueceu, pois fizemos tudo em segredo, não queríamos uma plateia! – Ele adivinhou o que eu estava pensando quando torci os lábios num bico e continuou. – Sabíamos que eles mentiram, que você estava viva por causa do nome na Árvore dos Espíritos, mas não tínhamos ideia de onde você estava, se não, iríamos querer você lá na hora, só Kuran e Melanie estiveram lá conosco.
– Melanie...
– A filha da minha tia Yurin, irmã de Datani.
– Acho que me lembro dela, estava na mesa do refeitório no dia das provas! – Susano assentiu.
– Desde quando... eles estão juntos? – Foi um esforço fazer meu tom de voz soar indiferente.
– Quando Asahi o curou, transformando ele em seu guardião, ela tentou de tudo para que Kuran ficasse com ela, mas ele não reagia a nada, nem ninguém. Mas Mel o concertou aos poucos.
– Entendi.
Susano olhou em direção ao castelo e bufou, depois ficou de pé e esticou as pernas, alongando-se.
– Vamos tomar um sorvete? – Ele estendeu a mão que não estava segurando Docinho para mim, então me levantei e fui.
Andamos em silêncio até o outro lado da praça, as sombras longas dos muros começaram a desaparecer e as luzes da cidade agora estavam sendo acesas, os enfeites vermelhos e dourados por todos os lados deixava a cidade com a aparência de uma caixinha de joias aberta, o povo parecia eufórico com o casamento, com a aliança com outro mundo. Fiquei sentada em frente a sorveteria com Docinho no ombro, ela provavelmente causaria um estardalhaço dentro do estabelecimento, então fiquei esperando Susano trazer os doces para nós, enquanto observava em silêncio o movimento da cidade. Meu coração se apertou ao olhar na direção da Solaris e ver a loja fechada, a poeira estava acumulada nas janelas, era Elister que fazia a limpeza da loja, aquilo arrasou meu peito. O hotel de Gih continuava lá, estava lotado, devia estar cheio de visitantes de outros mundos para o casamento.
Susano apareceu poucos minutos depois com duas taças cheias de sorvete de chocolate com avelãs. Sorri e quase pulei para abraçá-lo de novo.
– É meu favorito! – Falei pegando a taça que ele colocou em minha frente e comendo uma colherada.
– Meu e do meu pai também. – Ele riu e meu estômago afundou.
– Eu queria te dizer uma coisa... – Comecei a falar, olhando em volta para ter certeza de que não havia ninguém ouvindo a conversa.
– Essa sua cara está me assustando, Nike. – Susano agora estava sério olhando para mim, encarando-me com os olhos verdes e brilhantes, meu estômago parecia chumbo.
– Eu só quero te contar isso, para que você saiba também, só pra tirar o peso de mim, sei que é algo egoísta, mas eu só confio em você para dizer isso. – Falei inspirando profundamente.
– Pode falar, não vou contar para ninguém! – Eu confiava nele, sabia que ele realmente não contaria, e o que mais me doeu foi isso, pois sabia o quão difícil seria para manter o segredo.
– Eu tomei todas as memórias de Fairin antes de matá-lo. – Susano sugou o ar num baixo assobio. – E descobri algo sobre a Árvore dos Espíritos, ele sabia sobre ela, mas não conseguia encontrá-la no castelo. Os nomes, os nomes das pessoas nas árvores podem ser arrastados ou modificados por qualquer portador de magia. – Susano arregalou os olhos e sacudiu a cabeça.
– Não pode ser...
– Pode, e já foi feito antes... com alguns nomes.
– Nike, você está me deixando maluco, por favor, chegue logo no ponto! – Eu respirei fundo, comi mais algumas colheradas do sorvete que estava derretendo e então falei.
– Belve, ela era hibrida também, de metamorfa e humana. Ela se encontrou com seu pai alguns anos antes de sua mãe ir para Amantia... – O rosto de Susano havia ficado completamente pálido quando comecei a contar. – Dezenove anos antes, para ser mais precisa, Belve estava usando aparência de outra mulher, seu pai não sabia que era ela... um tempo depois ela teve duas filhas, uma morreu, e a que sobreviveu, ela vendeu para um comerciante de Ciartes, meu avô. – Susano estava olhando fixamente para o sorvete derretendo em sua taça.
– Como...
– No dia que seu pai foi levado para Vintro e teve a mente apagada por Moan, Belve estava lá, ela alterou sua aparência quando o viu, virando a mesma mulher de dezenove anos antes e contou a ele sobre as filhas que teve. Mas seu pai estava atordoado demais com a magia de Moan e não deu ouvidos. Guinn perguntou a ela depois porque ela havia contado aquilo, e ela disse que foi só para perturbá-lo, e contou o que tinha feito com as crianças. A que morreu ela enterrou na beira de um lago a outra ela vendeu, ela era um monstro sem coração e não queria contato com a menina.
Belve foi a única a escapar da maldição por muito tempo, ela enganou a maldição com um feitiço do tempo que paralisou sua idade, mas o feitiço perdeu o efeito e ela não percebeu, então movida pela necessidade de passar a maldição para frente ela enganou seu pai, Belve sabia que ele tinha sido casado com a irmã mais nova dela, Emma, então ela alterou sua aparência para que ele não a reconhecesse e ficou com ele. Belve contou tudo isso para Guinn, não faço ideia do motivo que a levou a contar isso, mas depois de tudo, ela invadiu o Castelo de Cristal e mexeu na árvore e colocou como se Fairin fosse o pai das suas filhas.
– Então, você...
– Sou sua sobrinha. – Susano olhou para mim e para o sorvete novamente então suspirou.
– Acho que minha mãe teria um treco, se soubesse que meu pai pegou metade das mulheres da família! – Não consegui evitar uma gargalhada.
– Não está com raiva de mim?
– Por que estaria? – Ele sorriu, um sorriso divertido e depois me lançou um olhar malicioso. – Fiquei imaginando como seria ter sobrinhos quando minhas irmãs se casassem, mas não posso te paparicar, você está velha demais para isso! – Ele gargalhou quando o chutei por debaixo da mesa.
– Você sabia sobre as Almas? – Perguntei depois de um tempo enquanto acabava o sorvete que já estava líquido.
– Sim, eu tenho a Alma do vento. – Quase engasguei quando um vento forte soprou a praça, fazendo algumas pessoas soltarem gritinhos assustados.
– Achei que Nyumun...
– Ela tinha a Alma do vento, mas a passou para mim. – O olhei incrédula.
– Por quê?
– Siorin, ele começou a ficar paranoico, com medo de Higarath aparecer e matá-la para tomar a Alma.
– Então quer dizer que se ele vir e tentar te matar para tomar a Alma está tudo bem? – Ele moveu as mãos para que eu baixasse meu tom de voz.
– Você me contou um segredo, eu te contarei outro. – Susano respirou fundo. – Nyumun está vivendo com Siorin e Misa no Castelo dos Sete Dragões, pois lá é mais seguro para ela, atualmente.
– Agora você que está enrolando, Susano! – Resmunguei.
– Nyu está grávida. – O sangue sumiu de meu rosto e acho que escorreu até meus pés.
– Seus pais sabem? – Susano riu.
– Vão saber em breve! Ela não vai conseguir esconder pra sempre...
– Ela é louca! – Consegui dizer. – Com essa guerra que está se aproximando...
– Então você já sabe? – Ele apoiou os cotovelos na mesa e me encarou sério. Assenti.
– Pode me contar?
– Pelo que descobrimos, Higarath está despertando e controlando todos os sombrios, todos que ele corrompeu com as maldições... vamos ter uma guerra feia, uma parecida com a de dezoito anos atrás, mas muito, muito maior. Envolvendo todos os mundos e todas as raças. – Olhei para a lua crescente surgindo no céu e agradeci por não ser uma lua cheia.
– Quando você diz os sombrios, quer dizer todos eles? – Perguntei baixando ainda mais a voz.
– Todos! Inclusive, as missões da ACV foram suspensas, apenas os caçadores formados podem realizar as missões. Muitos dos sombrios desapareceram e os que ficaram estão inquietos, violentos demais! – Ele xingou baixinho ao perceber a aproximação de alguém e colocou a mão no pingente. Caalin se aproximou de nós em passos largos, vinha sério e em sua forma completa de malvarmo, sua pele branca quase parecia emanar luz, a mesma luz da lua, notei. Os olhos azuis brilhavam quando ele se aproximou de nós e arrastou uma cadeira, sentando-se ao meu lado, Caalin deu um sorriso para Susano, mostrando os caninos longos e um brilho quase predatório no olhar. Então ele parou, o sorriso sumiu, suas narinas dilataram enquanto ele olhava de Susano para mim e soltou um palavrão baixo.
– Alguém já disse que vocês parecem gêmeos? – Ele encarava Susano, que mantinha a mão na espada, mas um olhar tranquilo agora.
– Caalin, esse é Susano, meu...
– Tio. – Susano completou e fez um leve aceno com a cabeça, roçando os dedos na cabeça de Docinho em meu ombro. – Ele estava escutando a conversa, olhando pelos olhos dela! – Susano agora sorria.
– Como soube? – Perguntou Caalin a ele.
– Os olhos dela mudaram, ficaram iguais aos olhos dos Sumons quando recebem a alma de alguém! – Susano era observador, muito.
– Estava me espionando? – Grunhi para Caalin, ele não encolheu os ombros, apenas roçou os lábios em minha bochecha.
– Você sumiu do castelo, não sabia onde estava então, dei uma olhadinha pelos olhos dela para ver se estava tudo bem!
– Aí aproveitou e ficou escutando a conversa!
– O assunto me interessava! – Ele deu outro sorriso e olhou para Susano. – Só vim interromper, pois vocês entraram em um assunto um pouco perigoso demais para um local como esse... – Ele desviou o olhar, mostrando uma sombra no canto do castelo.
– Onde acha que deveríamos conversar, então? – Perguntei.
Caalin e Susano olharam para o mesmo lugar ao mesmo tempo.
– Vamos resolver dois problemas de uma vez! – Soltei um suspiro cansado ao olhar a árvore de folhas prateadas por cima dos muros. Caalin se levantou e me deu a mão, Susano ficou olhando-nos por um tempo antes de eu escutar um “click” em sua cabeça, então ele fixou o olhar em meu pulso, onde a marca prateada da corrente estava, mas parecia olhar além dela, algo que eu não podia ver.
– Algumas coisas ruins precisam acontecer para que possamos descobrir as boas! – Disse ele com um sorriso no rosto, então puxou uma folha entre os dedos e a assoprou, criando uma ave gigante. Os guardas já estavam olhando de cara feia para nós quando subimos nela e Susano nos levou acima dos muros, em direção à Árvore do Fogo.
Caalin estava me apertando gentilmente, ele sentou-se atrás de mim com a desculpa de me segurar, Susano estava quase sobre a cabeça da grande ave avermelhada e segurava Docinho no colo, pelo menos, ela não o estranhou, se eu a deixasse com ele não me sentiria tão mal. Senti a boca de Caalin roçando em minha orelha e sua voz falou baixa ao meu ouvido:
– O que houve entre Kuran e você? – Virei para o lado para poder encará-lo, estava ficando irritada por ele já estar pensando que eu havia feito algo, mas ele completou: – Quando fui até o corredor procurar por você, para ver se estava tudo bem, o encontrei de pé no corredor olhando para a saída do castelo, vi uma marca vermelha no rosto dele e alguns furos dessas unhas... – ele pegou minha mão e beijou as pontas de meus dedos. – Não sei por que bateu nele, mas eu gostei! – Ele riu, uma risada grave, baixa e divertida.
– Ele me ofendeu, eu só respondi da forma que devia. – Expliquei.
– Você está na casa deles, não é mais a favorita do príncipe, então, se você machucar alguém da família real de Ciartes, estando aqui como proteção de Aliver, você pode prejudicá-lo.
– Caalin, se fosse o próprio Ericko que me ofendesse daquela forma, ele poderia ser o imperador dos doze mundos, que eu ia afundar a cara dele! – Rosnei. – Não importa o quão a pessoa se ache superior, eu sempre irei mostrar que estou a altura para responder! – Caalin riu novamente.
– Não esperava menos de você, enfrenta Higarath como se ele fosse uma pessoa qualquer!
– Ele é uma pessoa qualquer Caalin! – Falei, sombras apareceram sob os olhos dele quando virou o rosto para me encarar.
– Não, Nike, ele não é! Você precisa ter cuidado, se ele perceber uma falha, uma fraqueza, ele vai usá-la para te destruir, então não pense nele como uma pessoa qualquer, ou então vai usar sua força de forma errada quando a hora chegar! – Estava prestes a lhe responder quando um frio muito intenso nos atingiu, os ventos gelados me deixaram em choque por um instante. Olhei em volta e percebi que havíamos atravessado uma barreira, ela estava mantendo a Árvore isolada, olhei para o chão abaixo de nós e a base da Árvore estava completamente coberta por neve, quando olhei novamente, meus cabelos estavam cheios de flocos de neve.
– O que...
– Você substituiu o poder da Alma do fogo que mantinha a árvore pelo da Alma do gelo, se essa barreira não estivesse aqui, Ciartes poderia ser chamado de segundo Vegahn. – Susano olhou para trás e deu um sorriso triste.
– Quem fez a barreira?
– Eu... a mantenho com a Alma dos ventos. – O olhar de Susano ficou estranho, quase sombrio. – Esse é um poder que ninguém deveria ter, nem eu, nem você, nem ninguém! – Ele olhou para Caalin como se soubesse que ele também tinha uma das Almas, talvez soubesse.
Rodeamos a Árvore algumas vezes, mesmo que cavássemos para encontrar a porta, eu tinha devolvido a chave para Kuran.
– Tem uma janela no alto entre os galhos mais largos, pelo que me lembro, a janela fica de frente para a Cidade do Sol. – Susano virou a ave para que fossemos da direção certa, desviou dos galhos e começamos a procurar. Nem pensei em mudar minha aparência para melhorar minha visão, uma vez que a tempestade de neve e os ventos fortes dentro da barreira não me deixavam enxergar nada. Caalin apontou para um pequeno ponto de luz entre a neve e os galhos, Susano inclinou a ave e mergulhou naquela direção, por sorte a janela era grande o suficiente, pois no momento que a ave desmanchou, fomos jogados para dentro da árvore.
A porta do quarto em frente estava aberta, olhei a grande cama de madeira com a colcha de veludo verde ainda a cobrindo, Caalin desviou o olhar do quarto para a escada em espiral e a escuridão que estava lá embaixo.
– Vamos? – Não esperei respostas, apenas pulei para o lado de fora do corrimão, caindo pelo centro da escada em espiral, o chão chegou mais rápido que eu esperava, usei minha magia para parar antes que o tocasse, mas as sombras negras se agitaram ao meu redor e meu coração parou por um momento.
“Voltou para nós?” “Voltou por nós?” “Vamos, deixe-nos entrar!” As vozes ficaram tão altas que abafaram o som de meu coração acelerado.
– Vão embora! – Rugi, mas elas gargalharam e começaram a debochar de mim. “Eu poderia te dar o poder para derrotar o segundo sombrio...” Aquela voz foi diferente das outras, era uma voz grave, masculina e ressoou em meus ossos de vitrino, como se cantasse uma canção para eles. Eu não pensei em responder, fiquei apenas ouvindo, sentindo a voz ao meu redor e deixei que ela continuasse a sussurrar, diferente das vozes das sombras, daquela eu não tive medo.
Um conjunto de raios iluminou todo o lugar, as sombras desapareceram como se estivessem vivas, fugindo dos raios que agora me circulavam, não havia percebido que estava de joelhos e mãos no chão até que Caalin se abaixou ao meu lado.
– Você está bem? – Ele segurou meu rosto e beijou minha testa.
– O que foi aquilo? – Susano estava olhando em volta, as luzes da Árvore se ascenderam, mas não eram quentes como foram antes, eram brancas, brilhantes e puras, tão claras que machucavam minha visão.
– Só... fiquei um pouco tonta, está tudo bem! – Me levantei ignorando a mão que Caalin ofereceu para me ajudar. Ele me olhava desconfiado, sentindo a mentira em meu tom de voz.
– Caalin, acho que você deveria ir até o castelo, Aliver pode precisar de você!
– Não vou deixar você sozinha aqui! – Susano pigarreou e cruzou os braços, incomodado por ser esquecido e eu revirei os olhos.
– Não vou estar sozinha, eu preciso que você fique de olho, dessa vez sem morrer, ok? – Falei em tom de brincadeira, ele apertou os lábios numa linha fina.
– Me distraí com você, por isso que ela me pegou! – Ele resmungou franzindo o cenho para mim.
– Sem desculpas! Está velhinho e lerdo e ela te pegou porque já tinha passando da hora do seu cochilo! – Susano teve um acesso de tosse, virou para as estantes abarrotadas de livros, olhando qualquer título.
– Não disse nada sobre eu ser um velhinho lerdo nas últimas noites... – Ele sussurrou mais baixo para apenas eu ouvir, mas tenho certeza de que Susano escutou, seu rosto ficou corado e se afastou um pouco mais.
– Aliver tinha dito algo sobre querer que você o ajudasse, graças a seu poder de influência! – Caalin sorriu um pouco e se levantou, dando um longo olhar para Susano, algo como um sinal de alerta, para que ele ficasse longe. Não podia culpá-lo, Kuran e Susano eram meus parentes tanto quanto ele, Susano um pouco mais próximo.
– Se precisar de mim, envie um alerta e eu estarei aqui em menos de um minuto! – Ele beijou minha testa e desapareceu num clarão de luz.
– Não sabia que podíamos teleportar aqui dentro! – Susano também parecia surpreso.
– Não podemos... – Ele soltou o livro que estava segurando sobre uma mesa e bufou. – O que estamos procurando aqui?
– Um livro... quero o Livro das Sombras. – O rosto de Susano ficou pálido, branco como osso e ele sacudiu a cabeça.
– O que quer com esse livro? – Perguntou com a voz mais baixa que o normal, Docinho parecia inquieta em seu ombro.
– Destruí-lo! – Então contei sobre Hobner e Ausiet, seus planos e sobre o ataque a Ciartes, contei sobre Higarath e sobre o poder roubado de Hisana. Susano sentou no chão e ficou olhando fixamente para as estantes cobertas de livros.
– Mas se você destruiu as armas...
– Eu as incapacitei, quando eles forem usá-las, elas irão se partir, mas de um jeito ou de outro eles irão atacar! – Sentei ao seu lado e apoiei a cabeça em seu ombro, ele tinha um cheiro bom, de lavanda e folhas de bétula secas.
– Se Aliver tiver uma aliança com meu pai e com Ericko antes de julho, eles estarão em desvantagem e não atacarão! Ou pelo menos, não de imediato, com certeza enviarão espiões ou assassinos atrás do livro.
– Mas ninguém consegue passar por essa barreira a não ser você, não é? – Susano assentiu.
– Eu não sei se você vai gostar Nike, mas eu quero destruir as Almas! – Ele se afastou para poder me olhar nos olhos.
– Eu ia fazer o mesmo, mas creio que elas não possam ser destruídas, apenas libertadas ou devolvidas à verdadeira dona, Gaia!
– E como pretende fazer isso?
– Esse era o outro motivo pelo qual queria vir aqui, imagino que Ayrana tenha deixado algum diário, algumas anotações, já que tudo que é escrito vem parar aqui...
– E como acharemos nesse mundo de livros? – Ele lançou um olhar entristecido para a sala ao nosso redor.
– Não faço ideia... – Soltei um suspiro cansado e fui até a prateleira mais próxima, uma estante de livros esculpida na madeira da própria árvore, olhei os títulos, alguns deles, a grande maioria na verdade, estavam em línguas de outros mundos, não pareciam ter um padrão para serem arrumados ali conforme apareciam, de vez em quando alguns ruídos chamavam nossa atenção, um arrastar de couro, papel e até madeira.
– São livros aparecendo. – Explicou Susano olhando para o alto da sala, seus olhos estavam dourados, na certa ele estava vendo os livros que agora apareciam nas estantes mais altas, em minha forma humana eu não conseguia enxergar, pois estavam muito altos.
– Acho que isso é uma missão impossível, levaríamos décadas para achar algo aqui! – Reclamei depois de meia hora olhando os títulos.
– Não reparou no padrão? – Ele soltou um livro sobre a mesa no centro da sala fazendo Docinho pular de susto e soltar uma lufada de fumaça, ela se enroscou novamente em cima da mesa e ficou ali nos observando, Susano andou até onde eu estava.
– Acho que não tem...
– Essa mansão está com magia de organização, tudo se arruma sozinho, então, tudo está organizado num padrão! – Ele pegou um livro perto de onde eu estava encostada, um livro grosso com capa de couro.
– Livros novos e antigos estão misturados, Susano! – Expliquei mostrando um livro com capa frágil de papel brilhante a poucos centímetros de onde ele retirou o livro de couro.
– Você não presta atenção nos detalhes, Nike! – Ele pegou o livro novo e o abriu, mostrando o nome do autor, no livro antigo de couro o nome era quase o mesmo.
– Estão organizados em ordem alfabética, não pelos títulos, mas por nome de autor! – Poderia ter lhe dado um abraço por isso.
– Mas se estamos na letra “S” aqui, então onde está o resto? – O salão principal inteiro, só tinha autores com a letra “S”.
– Vamos procurar a biblioteca. – Susano entrou por uma porta quase escondida por pilhas de livros, andei pelos corredores, encontrei um banheiro gigante em mármore branco e com uma banheira em uma pedra vermelha semelhante a uma ágata de fogo, a banheira mais parecia uma piscina, talvez fosse o único lugar da mansão que não estava abarrotado por livros, a cozinha também tinha prateleiras cheias de livros, dois dos três quartos que encontrei também estavam tomados por prateleiras e estantes com livros, mas todos nas últimas letras também. Voltei arrastando os pés para o salão principal, Susano estava descendo as escadas em espiral vindo do quarto e tinha uma expressão frustrada estampada no rosto.
– Lá para cima só tem do “T” para frente! – Ele cruzou os braços e sentou-se na cadeira atrás da escrivaninha, desaparecendo atrás dos livros.
– Impossível! Tem que haver uma biblioteca aqui! Kuran me falou que tinha uma! – Olhando em volta, procurando por alguma passagem que pudesse ter deixado escapar. Mudei de aparência, usando a transformação em malvarmo, quando me viu, Susano deu um salto para trás quase capotando a cadeira.
– Céus! Nike! – Ele se levantou e aproximou-se de mim, tocando a mão em meu braço, observando atentamente as marcas brancas do Yinemí, as orelhas pontudas e o cabelo prateado. – Como? – Dei de ombros.
– Fairin fez isso. Agora, faça silêncio! – Fechei os olhos ignorando o olhar horrorizado de Susano, não por minha aparência, mas pelo fato de que Fairin conseguiu afetar até a mim. Comecei a ouvir atentamente cada som que aquele lugar fazia.
A mansão inteira rangia sob a força dos ventos que mantinham a barreira do lado de fora, podia ouvir os livros aparecendo e estalando contra outros livros, o som do piso de pedra estalando levemente sob meus pés... e então um ruído abafado vindo do chão, como se algo se movesse por baixo da árvore, entre as raízes.
– Tem algo lá embaixo! – Falei olhando para o chão, só estão reparei no piso do salão, por todos os lados o piso era de madeira, pois a casa era esculpida na madeira, mas no centro do salão não. Havia blocos longos de pedra cor creme formando uma superfície redonda ali, no centro onde estávamos, outros blocos menores vermelhos e laranjas se encaixavam para formar um desenho dentro de um círculo de palavras élficas, a mesa, um tapete e um pequeno sofá de dois lugares estavam cobrindo o desenho, logo percebi que esses eram os únicos móveis que não eram fixados no piso.
– Me ajude aqui! – Empurrei a mesa para fora do círculo fazendo Docinho se irritar e pular para fora da mesa, tentando voar para o outro lado da sala, Susano empurrou o sofá e o encostou em uma das paredes abarrotadas de livros, arrastei o tapete com o pé, revelando a folha vermelha da árvore no centro do salão.
– “Apenas aqueles de minha morada serão agraciados com o conhecimento de todos os tempos” – Susano virou a cabeça, lendo a inscrição ao redor da folha, no centro da folha havia uma marca, a árvore de cabeça para baixo talhada cuidadosamente na pedra.
– Ah! Merda! Precisa da chave para abrir! – Resmunguei batendo o pé na marca.
– Essa? – Dei um pulo como um gato assustado ao ouvir a voz de Kuran que apareceu atrás de nós com o pingente na mão.
– O que faz aqui? – Perguntei franzindo o cenho.
– Eu sempre venho aqui! – Ele deu um sorriso sarcástico. – Vocês é que não deviam estar aqui afinal, nada disso pertence a vocês! – Ele olhou de mim para Susano e apertou os lábios numa linha fina.
– Minha irmã está te procurando! – Ele falou com Susano de forma mais grosseira do que deveria.
– Então estamos indo. – Susano parecia estar prestes a voar na garganta de Kuran, acho que o relacionamento deles não ficou bom depois que parti de Ciartes, me lembraria de perguntar o porquê depois.
– Preciso achar o livro, Susano! Vá na frente! – Ele me deu um olhar de advertência, mas eu apenas assenti e apertei de leve sua mão. Ele tirou um pequeno espelho de dentro do bolso da calça jeans escura e me deu.
– Qualquer coisa, me chame! – Ele olhou para Kuran e saiu da sala em direção às escadas, pegando Docinho que estava sobre uma das estantes, esperei que ele sumisse de vista e estendi a mão para Kuran.
– A chave! – Ele riu de forma debochada quando a pedi.
– Não tem nada aqui para você, Nikella, está vendo a inscrição? Você não faz parte da casa Salomon para poder entrar aqui!
– Deixa de ser idiota, Kuran! – Rosnei. – Essa casa era de Grisela Arbarus, eu sou uma também, se você não sabe! – Ele semicerrou os olhos e analisou minha transformação, podia jogar em sua cara que eu só estava assim graças ao seu péssimo trabalho em ser um guardião, mas preferi manter o silêncio.
– Quero que saia daqui.
– Eu vou afundar os seus dentes se você não me der a droga da chave! – Peguei Siferath do pescoço e as marcas brancas do Yinemí foram substituídas pelas marcas negras. Ele me olhou com espanto e cambaleou para trás.
– O que é isso?
– Me transformei numa maga negra quando achei ter matado você... Fairin queria que eu te matasse, pois sabia que aquilo me afetaria tanto que eu terminaria de me transformar.
– Eu... sinto muito.
– Não sinta, com isso eu posso te dar uma boa surra agora, coisa que não conseguiria antes, então me dê a chave! – Ele ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça.
– Não...
– Sabe o que é isso? – Lhe mostrei a cicatriz longa em meu braço que o guarda de Hobner havia deixado quando invadi o castelo para destruir as armas. – Foi quando quase perdi a cabeça ao invadir um galpão lotado de armas de vitrino que Hobner mandou fabricar para atacar Ciartes, eu fui até lá para destruir as armas e proteger o mundo que eu nasci! Então se você não quer Higarath venha até aqui e arranque a Alma do fogo de você, é bom que me dê essa chave! – Grunhi mostrando os dentes, ele teve a decência de parecer abalado com o que eu disse, então colocou a chave na palma de minha mão. Fiquei de joelhos sobre o piso, encaixei o pingente na fechadura e o girei. Para meu assombro, o chão começou a girar, não o chão inteiro apenas o centro da sala. A pedra começou a descer em espiral até uma câmara sob a sala, as raízes da Árvore agora apareciam ao redor de uma porta de pedra onde a mesma fechadura aguardava pela chave para ser aberta, peguei a chave dei alguns passos até a porta, mas mesmo com a chave na posição correta a porta não se abriu.
– Apenas os descendentes de Grisela podem entrar! – Kuran fez um pequeno corte na palma da mão e cobriu a chave, a câmara foi iluminada por folhas laranja incandescentes, só então a pedra da porta se moveu, então entramos. Senti meus joelhos cederem e tive que me segurar no corrimão de raízes trançadas e envernizadas que cercava o estreito corredor.
– Acho que eu nunca vi algo assim! – Eu estava boquiaberta, estávamos parados na borda de um corredor, havia uma longa plataforma em nossa frente que se estendia até o meio da sala e descia em uma escada em espiral até o centro da biblioteca e ao nosso lado havia uma escada, alguns degraus para baixo que levava ao primeiro andar da biblioteca redonda, ela formava uma espécie de cone para baixo, em cada um dos três andares superiores, havia prateleiras intermináveis de livros cobrindo todas as paredes com quase quatro metros de altura cada, e no quarto e último andar sob nós, haviam corredores e mais corredores de livros partindo do centro da sala para além.
– Foi o modo de Grisela dizer que as raízes da vida são o conhecimento! – Kuran riu e deu um baixo assobio.
– Quanto... qual você acha que é o tamanho dessa biblioteca?
– Acho que deve ter uns quinze mil metros quadrados! – Ele começou a rir. – Cada andar...
– Qual é a graça? –Perguntei franzindo o cenho para ele.
– E mesmo assim, lá em cima já está quase cheio!
– Ah, conhecimento de doze mundos... – Por um momento havia esquecido de que estava com raiva dele.
– O que estamos procurando? – Ele olhou-me de canto de olho, mesmo que quisesse mandá-lo para o inferno, não conseguiria achar o livro sozinha, talvez, nem com umas cem pessoas aqui acharíamos o livro rapidamente.
Descemos as escadas em espiral até o centro da biblioteca, me senti uma formiga em túneis de livros dessa vez.
– Procuramos pelo quê?
– Ayrana Arbarus, provavelmente... – Olhei as capas dos livros, procurando por algum indício de que estávamos no caminho certo, mas Kuran cutucou meu ombro com o nó do dedo e apontou para cima, olhei na direção que seu dedo apontava, havia uma pequena placa dourada com um “F” em vermelho ali. O centro da sala onde ficava a escada não era tão grande, havia um círculo de sofás e no centro algo que parecia com um aquecedor. Só então percebi que ali estava muito frio, minha transformação em malvarmo não deixou que eu percebesse a temperatura baixa. Comecei a procurar até encontrar a placa com a letra “A”, a maioria das letras se repetiam até a “S”, dali para frente estavam nos andares superiores e no salão principal, quando Kuran começou a me seguir até a prateleira eu o impedi.
– Tem outro livro, o Livro das Sombras... preciso que você ache esse! – Pedi, ele teve a mesma reação que Susano ficando pálido, franziu o cenho, mas assentiu e foi em direção a um corredor estreito e sem marcação.
Entrei no corredor da letra “A” e comecei a procurar por Ayrana nos nomes nas prateleiras, pelo visto a biblioteca oficial era mais organizada que o resto da mansão que recebia livros de qualquer maneira.
Depois de passar pela prateleira mais de cinco vezes pela área onde deveria estar o nome dela e não encontrar nada, comecei a arrancar os cabelos num desespero total.
– Nikella! – Kuran chamou de algum lugar que fez sua voz soar baixa e nervosa. Fui até o corredor que ele havia entrado, havia mais um esconderijo no final dele, uma outra antessala apertada com uma escada em espiral, respirei fundo e desci os poucos degraus até uma espécie de escritório, era bonito e confortável com um agradável aroma de terra molhada e mais um cheiro amadeirado e alegre. A mesa de mogno com tampo de pedra ocupava a maior parte da sala, havia documentos e papéis sobre ela. As prateleiras ali tinham poucos livros e uma forte energia estranha vinha destes.
– Uma vez eu imaginei os livros com poder devastador que devia ter dentro dessa Árvore, não estava errada, não é! – Kuran estava sentado na cadeira de veludo verde atrás da mesa, ele pegou um embrulho pesado que estava em seu colo, o colocou sobre a mesa e deslizou-o em minha direção.
– Era isso? – Abri o embrulho com cuidado, revelando o livro com capa de couro com apenas um símbolo na capa, uma espada atravessando uma meia lua. Quando toquei a capa do livro, minhas sombras apareceram e se agitaram ao meu redor, fazendo com que as luzes da sala oscilassem, Kuran levou a mão à espada, alarmado.
– O que quer que saia desse livro, você não vai conseguir combater com uma espada, Kuran! – O alertei embrulhando o livro novamente e colocando embaixo do braço.
– O que pretende fazer com ele? – Ele não tinha tirado a mão da espada, entendi que o livro não era a ameaça na sala, mas eu sim.
– Destruí-lo. – Virei de costas para ir até a escada, mas uma fresta de luz branca quase magnética na parede oposta chamou minha atenção.
Andei até ela, a luz estava escondida por uma cortina de veludo negra, eu a puxei rapidamente e fiquei maravilhada ao ver a esfera pulsante, viva e fria ali numa pequena câmara escavada na terra, ela estava presa sob um emaranhado de raízes finas e parecia pulsar vida para elas.
– Uma parte da Alma do gelo! – Falei tocando a bola com as mãos, sentindo todo meu corpo se arrepiar, responder a ela.
– Você congelou a Árvore! – Ele parecia furioso.
– Não sabia que isso ia acontecer, sinto muito.
– Você podia ter nos matado! Se Susano não tivesse isolado a Árvore...
– Eu não sabia, Kuran! – O encarei séria, ele apenas respirou fundo e observou a esfera. – Acho que você tem que substituí-la por uma parte da Alma do fogo.
– Acha? – Ele deu um sorriso debochado, revirei os olhos engolindo minha vontade de lhe acertar os dentes usando a força do gelo, então cuidadosamente soltei as raízes que prendiam a parte da Alma. Ela cedeu ao meu toque e aos poucos foi sendo absorvida pela minha pele. Porém quando ela foi completamente absorvida por mim, a Árvore apagou. A escuridão tomou conta de tudo como se tivesse engolido a Árvore, do lado de fora, mesmo muito abaixo da superfície pude escutar o rugido da tempestade de neve cessando. Mas o que me preocupou foi a escuridão pulsante ali.
– Kuran, rápido! – Implorei sentindo meu coração acelerar e as vozes começarem a murmurar.
– Tá! – Pude sentir ele se aproximando por causa do calor insuportável de sua pele, então uma explosão de luz amarela e laranja irrompeu ao meu redor, os ossos em meus braços começaram a arder de forma tão violenta que me fez gritar e cair de joelhos, tentei esfriar o corpo com o Yinemí, mas parecia que todo meu poder havia desaparecido, logo em seguida a dor irradiou por todo meu corpo, queimando minha garganta, meus olhos, minha pele... não conseguia nem gritar mais, havia perdido totalmente as forças, vi Kuran olhando para mim assustado, então ele juntou as chamas vermelhas numa pequena bolha e a pressionou contra as raízes, que na mesma hora reagiram absorvendo-a, as luzes laranjas se acenderam por todos os lados e o calor da Árvore voltou imediatamente, o aroma amadeirado e agradável da Árvore foi substituído por algo que fez meus pulmões se encolherem e lutarem contra aquele cheiro, até meu sangue parecia querer sair de dentro de mim, tudo escureceu novamente.
13
Folhas de fogo
Caalin:
Já passava da uma da manhã, estava sentando numa sala com Aliver, Ericko, Ewren e Sylvia, os quatro reis conversavam incessantemente sobre alianças, terras e reinos. Há muito já não prestava mais atenção naquilo, estava apenas aguardando a ordem de Aliver para começar a manipular os outros reis sobre possíveis alianças. Sylvia com sua voz alta e melodiosa, não parava de falar sobre o Reino das Brisas e a prosperidade de seu povo, ela era a rainha dos Silfos e tinha um dos maiores exércitos dos Doze Mundos.
Quando vivia com Mary, nunca acreditei que as fadas pudessem oferecer alguma resistência, até dizimarem metade do exército dos Silfos numa batalha que acabou com o continente sul de Treezer, se ele ainda existisse, Saldazaris e Treezer seriam inimigos até os dias de hoje.
Comecei a pensar que Aliver deixaria o assunto de uma aliança para depois do casamento, porém Ericko tocou no assunto pouco antes de eu quase me render ao cansaço que o calor de Ciartes me proporcionou e sair da sala. Ericko acreditava que dois mundos com poderes que poderiam destruir um ao outro, seriam melhores aliados que inimigos. Aliver e Ericko não faziam ideia da verdadeira ameaça, mas algo no olhar sombrio de Ewren me dizia que ele já sabia sobre Higarath e estava disposto a começar a falar sobre o assunto em breve.
Sylvia estava começando a me incomodar com seus longos e demorados olhares, se não estivesse com tanto calor, teria apenas a ignorado, mas já estava irritado por ter deixado Nike sozinha com Susano na Árvore e até agora não ter nenhum sinal dela, que acabei esgotando o resto da minha paciência.
– Peço permissão para me retirar, majestade. – Aliver olhou-me preocupado, não sei ao certo se era por minha causa ou por que iria deixá-lo sozinho com seus próprios argumentos fracos para conquistar uma aliança.
– Pode se retirar, boa noite! – Fiz uma saudação a todos e me virei de costas para sair.
– Vossa majestade, o noivo, deveria dormir! Ou depois da festa não vai ter ânimo para as alegrias do casamento! – Estava tão irritado que esqueci que Ewren era o pai da noiva, o rosto dele ficou vermelho de pura raiva e me lançou um olhar que eu interpretei quase como hostil, tive vontade de sorrir de volta já que ele não teria chance alguma, caso resolvesse me castigar pela minha “insolência”, porém estava cansado demais até para brincar com ele.
Saí da sala em passos rápidos, havia reservado um quarto no hotel do outro lado da praça, não aguentaria passar uma noite inteira naquele castelo que mais parecia uma frigideira gigante, nem mesmo sem minha forma verdadeira completa, porém sem me transformar totalmente em humano, estava conseguindo aguentar o calor.
Ao sair do castelo percebi que a tempestade de neve ao redor da Árvore do Fogo havia cessado e que ela estava escura, sem nenhum brilho. Aquilo fez uma sensação terrível se enroscar em meu estômago, pouco depois vi que Susano e a princesa Annie vinham em minha direção, reduzi o espaço entre nós rapidamente e nem os cumprimentei ao perguntar:
– Você a deixou sozinha lá? – Susano sustentou meu olhar e balançou a cabeça de leve.
– Kuran foi até lá pouco depois que chegamos...
– Você a deixou sozinha lá com ELE! – Rosnei perdendo completamente a calma, a princesa se sobressaltou puxando uma espada de vitrino, que pelo trabalho impecável, percebi ser uma das armas de Nike.
– Calma, Caalin! – Susano pediu, mas antes que pudesse lhe responder, uma luz vermelha incandescente cobriu a Árvore do Fogo e suas luzes voltaram, a vida voltou a ela, a Árvore foi coberta por chamas de todas as cores antes de voltar ao brilho vermelho normal. Algo estava errado!
Uma dor irradiou por meu peito como se estivesse pegando fogo, agarrei o pingente do machado que Nike havia feito para mim e me movi mais rápido do que imaginei ser possível. As luzes do teleporte me engoliram, em um piscar de olhos estava em frente à Árvore.
Porém a energia pulsante e ardente que saiu dela não permitiu que eu me aproximasse, a neve ao redor da Árvore havia evaporado, não derretido, não havia nem sequer vestígio de água ali, só um vapor quente que cobria os céus.
– A Árvore... ela está curada! – Não havia reparado que Susano segurou meu braço ainda segurando Annie para que fossem teleportados juntos comigo.
– Vá tirar ela de lá! Rápido! – Gritei forçando-me ficar de pé. Susano não esperou que eu dissesse novamente, ele abriu as asas e voou para cima, desaparecendo pela janela perto da copa.
– Se ele fez algo a ela... – Rosnei novamente, meu corpo inteiro tremia com o ódio puro que queria apenas se libertar e rasgar a garganta de alguém.
– Meu irmão não é louco, ele sabe que você o mataria! – A jovem retrucou aproximando-se se mim e tocando gentilmente em meu ombro. Dei uma gargalhada rouca e a encarei.
– Eu destruiria seu mundo, se ele a fizesse mal! – Ela não se espantou, muito menos se afastou de mim.
– Eu destruiria qualquer um que fizesse mal a ela novamente, independente se fosse meu irmão ou não, ela é minha melhor amiga desde sempre! – Ela rosnou de volta, algo sobre o olhar assassino que ela me deu, conseguiu me tranquilizar um pouco. Menos de um minuto depois a porta se escancarou e Susano saiu da Árvore com Nike nos braços ainda em sua forma malvarmo, ela estava inconsciente e mal respirava.
– A Árvore, o veneno... – Susano não esperou que eu entendesse, ele simplesmente abriu as asas novamente e desapareceu no ar indo em direção à cidade numa velocidade surpreendente.
– O que você fez! – Peguei aquele moleque pela gola da camisa, não precisaria da espada para matá-lo, eu o rasgaria com meus próprios dentes.
– Só fiz o que ela mandou! – Ele se esquivou de mim usando a Alma do fogo. O ódio cresceu em mim tão intenso que não liguei para estar sob a Árvore do Fogo, sob o efeito enfraquecedor de suas folhas venenosas para os Malvarmos, apenas liberei uma fração do poder da Alma dos raios e o fiz ficar de joelhos, contorcendo-se com os choques, não ia matá-lo, apenas torturá-lo um pouco.
– CHEGA! – Annie gritou acendendo o corpo em chamas e se colocando entre mim e Kuran. – Caalin, ela precisa de você lá! Agora! – Ela me empurrou, mas não movi um centímetro mesmo quando ela me queimou com as mãos incandescentes.
– Ele...
– Caalin, a Nike precisa de você lá! – Disse ela novamente apontando para a cidade, mesmo querendo acabar com tudo de uma vez, usei o teleporte novamente e voltei ao centro da cidade a tempo de ver Susano descendo em direção ao hotel do outro lado da praça. Caminhei rapidamente até ele e peguei Nikella de seus braços.
– Vamos, eu posso curá-la! – Disse ele abrindo as portas do hotel e nos guiando para dentro, lá, uma senhora salamandra sorridente ficou pálida ao olhar para Nikella em meus braços, ela ignorou os clientes que faziam fila na recepção e veio até nós.
– Ah! Minha Nike! O que fizeram com ela? – Eu a ignorei e segui para o quarto enquanto Susano dava explicações rápidas à mulher.
A porta do quarto se abriu quando me aproximei, mal notei que era Susano controlando as coisas com magia.
Coloquei Nike em cima da cama no meio do quarto, Susano fechou a porta atrás de si e seguiu para um aparelho próximo a cama e o ligou, uma lufada de ar frio aos poucos começou a refrescar o forno que estava ali dentro. Só então me permiti olhar de verdade para ela, ver o que havia acontecido dentro da Árvore.
– Caalin. – Susano não estava me chamando, estava apenas dando-me um alerta, correntes elétricas passavam por meus braços e minhas mãos quando ousei tocá-la, a pele avermelhava, com febre e os braços... ah! Cheios de bolhas, queimaduras terríveis como se sua pele tivesse cozinhado de dentro para fora. O vitrino havia superaquecido quando aquele príncipe imbecil usou a Alma do fogo perto dela, perto demais para que causasse aqueles danos.
– Você pode curar isso? – Perguntei com a voz baixa, Susano assentiu, então eu saí do caminho e sentei numa cadeira ao lado da cama, ela respirava com dificuldade e tremia muito.
Susano tomou meu lugar ao lado dela, ele se ajoelhou no chão do lado da cama e estendeu as mãos sobre o corpo trêmulo e vermelho. Uma brisa fria formou uma bolha ao redor dela, uma espécie de barreira que emanava uma fraca luz branca, uma luz calmante e suave.
Devagar, muito lentamente ela foi se curando, mas pelo menos ela estava se curando. Susano estava concentrado em seu trabalho, ele com certeza era um humano místico, um mago com aqueles poderes de cura tão avançados era muito raro.
Quando ele acabou, não havia nem cicatrizes, nem marcas, Nikella estava respirando normalmente e parecia dormir tranquilamente agora.
– Sirius me ensinou a cultivar o dom da cura que recebi de meu pai, nenhuma das minhas irmãs os tem. – Ele fechou a mão em punho, selando o poder e fazendo com que a barreira ao redor dela desaparecesse.
– Achei que estivesse usando a Alma do vento! – Ele negou e sorriu.
– As Almas são poderes de destruição, sinceramente não sei como eles foram usados para criar os mundos, talvez apenas tenham sido convertidos, ou juntos sejam outra coisa..., mas nada de bom que tentei fazer usando isso deu certo! – Fui obrigado a concordar com ele.
– Vou atrás de Kuran e Annie, saber o que aconteceu. Nos vemos amanhã, Rei de Vegahn! – Ele fez uma reverência deixando-me inquieto.
– Passei esse título há muito tempo...
– Aliver sabe?
– Não e prefiro que não saiba. – Ou então ele poderia querer ceder o trono a mim novamente. Susano olhou de mim para Nike e franziu o cenho.
– Ela sabe?
– O quê?
– Que vocês têm as almas ligadas?
– Você percebe demais, garoto, isso pode ser perigoso... – O encarei de forma ameaçadora, mas ele não parecia intimidado, no fim ele era igual a ela no espírito também, apenas menos tagarela que Nike. – Ela não sabe e se sabe, não falou nada nem demonstrou.
– Ser um bom observador me dá vantagens sobre quase todos, mas ser observador e discreto faz com que os outros confiem em mim... por isso que ela contou sobre o que descobriu na mente de Fairin. A primeira coisa que fiz quando a conheci, foi observar ao redor e perceber que ela tinha mais inimigos que amigos, então eu lhe dei a mão e ofereci o que ela precisava, algo que ninguém nunca ofereceu, nem mesmo Annie que era a melhor amiga dela. – Susano deu um tapinha no pé de Nike e sorriu.
– O que ofereceu?
– Uma família de verdade. – Os olhos deles eram os mesmos, verdes, vivos e brilhantes, como se guardassem um mundo inteiro no olhar, como se houvesse uma floresta cheia de vida plantada no fundo se suas almas, ele bateu a porta de leve quando saiu, e eu continuei olhando para a porta.
– O que ele quis dizer com almas ligadas? – Nike estava com o rosto apoiado na mão e me olhava com curiosidade.
– Céus, Nike! O que houve lá? – Subi na cama e a apertei nos braços.
– Perguntei primeiro! – Ela me afastou para poder me encarar.
– Nike... – Ela se desvencilhou de meus braços e fez menção de se levantar. – Aonde vai?
– Perguntar a meu tio, já que você não quer me responder. – Ela me lançou um olhar frio. A puxei pelo braço com cuidado, não sabia se eles ainda doíam pelas feridas recém curadas.
– Não faça isso comigo, por favor! – Pedi enterrando o rosto em seu pescoço e puxando ela mais para perto de mim. – Eu senti você morrendo...
– Não estava morrendo! – Ela retrucou se afastando novamente.
– Estava sim, Nike! Você é meio malvarmo, seu corpo não reage bem às folhas da Árvore do Fogo, quando ela foi curada você foi envenenada pelo poder dela! Não é só pelo calor que Malvarmos não vivem em Ciartes, o pó das folhas que a Árvore solta nos mata lentamente! – Expliquei, ela se endireitou na cama e torceu a boca num bico. Passei os dedos pelo seu rosto, ela suspirou pesadamente e deitou sobre mim, colocando a cabeça em meu peito.
– Eu não podia curar a Árvore, nas raízes dela havia um pedaço da Alma do gelo que eu deixei lá quando feri a Árvore antes de sair de Ciartes. Kuran podia curá-la, pois ele tinha a Alma do fogo, eu mandei que ele a curasse quando tirei a Alma do gelo de lá... não sabia que o poder dele poderia me afetar daquela maneira já que não me afetou antes.
– Não te afetava antes, pois vocês tinham um vínculo! – Respondi entre os dentes.
– Então... é por isso que a Alma dos raios não me afeta? Por causa do que Susano falou sobre as almas ligadas?
– É. – Ela esperava mais que apenas uma confirmação, então, respirei fundo e expliquei:
– Em Mogyin, Ayrana criou uma árvore para que se tornasse visível a ela os fios que conectam as pessoas, não as pessoas exatamente, mas suas almas. É uma árvore grande de folhas prateadas plantada sobre o espelho da vida, um espelho que não mostra um reflexo, mas mostra a espiral dos doze mundos, a árvore cujos fios das almas passam por ela está com suas raízes conectadas aos doze mundos, então os fios passam por ela para que Ayrana saiba quem está conectado a quem e assim ela tenta juntar as almas, mas muitas vezes renascem tão separadas que uma existência não é suficiente para juntá-las. – Ela assentiu lentamente. – Então nós...
– Sim, nós estamos ligados um ao outro por um dos fios do destino. Quando duas almas destinadas não se encontram, elas se sentem incompletas, vazias, por mais que tenham alguém, nunca irão sentir-se completos.
– Interessante. – Ela sorriu.
– Triste às vezes, algumas almas simplesmente não se reencontram nunca. – Ela deu um beijo em meu queixo, então seu olhar se tornou vazio e ela deu um gritinho histérico.
– O livro! – Ela pulou de cima da cama.
– O quê?
– Nós achamos o Livro das Sombras, eu estava com ele embaixo do braço quando tudo aconteceu... será que ele foi destruído pela Alma do fogo? Tinha algo nas mãos de Kuran quando ele saiu da Árvore?
– Não. – Respondi as duas perguntas com uma única palavra, Nikella bufou e foi em direção à porta em passos rápidos.
– Aonde vai? – Franzi o cenho e me levantei para segui-la.
– Se eu estiver em forma humana, a Árvore não me afeta, não é?
– Não...
– Então eu tenho que ir pegar o livro! As sombras lá dentro são mais fortes do que do lado de fora! – Ela abriu a porta para sair, mas a peguei antes que saísse. – Caalin, não é hora de ser um macho dominante e querer me prender aqui! – Ela rosnou mostrando os dentes.
– Vou com você! – Falei, ela ergueu as sobrancelhas e riu.
– A Árvore não afeta os Malvarmos? – Ela colocou as mãos nos quadris, fazendo uma pose debochada.
– Não se eu usar minha forma humana também. – Ela riu.
– Você está em sua forma humana e mesmo assim não pôde entrar lá!
– Nunca te mostrei minha forma humana. – Falei lhe mostrando um sorriso felino, ela ficou séria e me encarou.
– Achei que essa fosse sua forma humana! – Ela fez um gesto com as mãos sinalizando minha aparência atual.
– Não, só estou com as garras e presas recolhias. – Ela soltou um palavrão e cruzou os braços.
– Me mostre! Estou esperando! – Ela começou a bater o pé no chão de forma nervosa e quase ri dela, mas então eu deixei o poder adormecer lentamente e desaparecer aos poucos, até que senti os sentidos enfraquecendo e meu corpo ficando um pouco mais leve. Nike estava me olhando de boca aberta e um leve sorriso puxava seus lábios nos cantos quando ela me observou da cabeça aos pés.
– Mãe do céu! – Ela cobriu a boca e corou.
– O quê?
– Você é tão lindo que dói! – Ela diminuiu a distância entre nós e riu, traçando os contornos de minha boca com os dedos, olhei no espelho ao fundo do quarto, já estava tão acostumado com a pele branca dos Malvarmos que havia me esquecido da minha verdadeira cor. Os cabelos negros e pele cor de cobre destacavam os olhos azuis que herdei de Ayrana.
– Obrigado.
– É igualzinho a Higarath... – Seus lábios se apertaram numa linha fina. – Só os olhos que não são parecidos.
– Sinto muito. – Ela riu e deu um passo à frente, pressionando os lábios em meu peito, o único lugar que alcançava sem ter que ficar nas pontas dos pés.
– Na hora que eu o vi no dia em que matei Fairin, a primeira coisa que pensei foi: Agora sei por que Ayrana foi enganada, eu também seria! – Acabei soltando uma gargalhada, ela estava mordendo os lábios, parecia que ia me atacar a qualquer momento, então respirou fundo e desviou o olhar com esforço. – O livro. – Ela virou novamente para a porta e eu a segui.
– Vamos... – Nikella falou com a senhora chamada Gih quando saímos do quarto, ela estava angustiada esperando por notícias, mas quando viu Nike bem ela apenas sorriu e lhe deu um beijo na testa.
Teleportamos para perto da Árvore e nos encontramos novamente com Kuran, Susano e Annie, eles estavam sentados sobre os nós das raízes que despontavam sobre a areia do deserto, Nike ficou tensa de repente e encolheu um pouco os ombros, ela não esperava que eles ainda estivessem por aqui. Susano não pareceu impressionado com minha transformação, Annie e Kuran olhavam surpresos para mim, com as bocas parcialmente abertas.
– Achei que já estivessem na cidade. – Disse ela passando os olhos por eles, Annie desviou o olhar de mim para a amiga, ao ver que ela estava bem, saltou sobre Nike com os olhos cheios de lágrimas e cochichou algo para que apenas Nike escutasse. Lancei um olhar gélido a Kuran, que endureceu e desviou o olhar. Susano respirou fundo e se levantou vindo em minha direção, então um sorriso divertido apareceu em seu rosto.
– Não parece tão assustador assim! – Disse ele brincando, mesmo assim não contive a vontade de lhe responder.
– Ainda assim, consigo quebrar seu pescoço num piscar de olhos.
Annie juntou as sobrancelhas e mostrou os dentes para mim, lhe dei uma piscada para que soubesse que eu estava brincando, tudo que não precisava agora era de uma salamandra territorial e irritada ateando fogo em tudo.
– Eu vim atrás do livro. – Nike estava olhando diretamente para Kuran agora, ele franziu o cenho e se levantou.
– Não estava com você quando trocou a Alma nas raízes? – Ele perguntou dando alguns paços para perto.
– Estava, mas o deixei cair quando... – Ela deixou a voz morrer.
– Quando ele quase te matou. – Completei colocando as mãos nos bolsos da calça, Nike me lançou um olhar suplicante, “chega de brigas!” Era o que estava implícito naquele olhar.
– Estamos quites então. – Kuran ergueu um pouco a cabeça, deixando uma parte do pescoço à mostra, onde uma cicatriz longa desaparecia para dentro da blusa, pude jurar que Nikella ficou verde e tive que segurar o braço dela para não arrancar-lhe a cabeça, ou simplesmente dizer a ela o quanto estava orgulhoso de suas garras afiadas, mas isso não me deixaria satisfeito, porém antes que eu não conseguisse segurar minha vontade de bater em Kuran, Susano lhe deu um soco no estômago, foi algo tão repentino que todos ficamos espantados, em choque. Kuran cambaleou para trás e fez um esforço para respirar, ele olhava incrédulo para o cunhado, e parecia que Annie fazia força para não rir.
– O que...
– Estava te devendo desde a vez que você a jogou no calabouço do castelo, mas só paguei agora pela merda que você disse. – Kuran o fulminou com o olhar e desapareceu numa coluna de fogo.
– Susano! – Nike cobriu a boca com uma das mãos. – Achei que você fosse sempre doce... – Ela sorriu.
– Eu me lembro de ter dito que te trataria igual as minhas irmãs e isso inclui o modo que os outros a tratam também! – Ele me lançou um olhar, uma pequena ameaça, eles eram realmente iguais, não sabiam medir suas brigas, mas enfrentariam não importa o tamanho do adversário, isso me fez gostar um pouco mais dele.
– Apenas deixe isso passar, meu irmão está visivelmente abalado por causa dela! – Annie apontou com o queixo para Nike. – Ela foi o primeiro amor dele e ele passou esse tempo achando que ela tinha morrido, aí ela aparece com... – Ela me encarou e disfarçou o rosto corado. – Um malvarmo muito mais interessante. – Disse ela apertando os braços de Nike.
– Não estou com raiva dele, Annie. Aliviada por ele não estar morto, por não o ter matado naquele dia, talvez agora os pesadelos acabem... – ela suspirou e olhou feio para mim, tinha uma leve impressão de que o fato de eu não ter lhe dito que Kuran estava vivo ainda não tinha sido completamente perdoado.
– Vamos lá, quero pegar o livro logo e sair daqui! Senão amanhã vou estar horrível para o casamento! – Nike coçou o pescoço, pois para ela, por ser híbrida, a Árvore ainda lhe afetaria mesmo em forma humana. Annie estava com a chave da Árvore nas mãos, ela abriu a porta para que entrássemos. Eles não haviam fechado a passagem que levava ao andar debaixo da Árvore, quando atravessamos o portal, que me deparei com a biblioteca gigantesca, Annie olhava boquiaberta para a quantidade absurda de livros ali dentro, havia tantos que não podia numerar. Meus sentidos fracos humanos me davam a terrível sensação de impotência enquanto descíamos até o centro daquela biblioteca, uma gaiola, era o que parecia, milênios no corpo de malvarmo me fizeram odiar aquela forma, mas os olhares famintos de Nikella para mim, o modo com que ela mordia a boca ao me encarar me fez suportar aquela forma um pouco mais.
Depois de descermos mais uma escada escondida no fundo da biblioteca, mesmo no corpo humano senti as sombras se moverem, dançarem ao nosso redor ao entrar na pequena sala iluminada por folhas laranja incandescentes. Havia uma espécie de embrulho no chão, dele saíam gavinhas de algo negro, sombrio. Segurei o braço de Nike apertado quando ela tocou o livro, ela me deu um olhar tranquilizador, então fez com que uma caixa de prata aparecesse ao redor do livro, lacrando-o lá dentro, depois cortou a palma da mão com a garra e colocou-a sobre a tampa da caixa, marcas negras a cobriram, palavras antigas há muito esquecidas, um lacre de sangue. Menina esperta!
– Você não ia destruí-lo? – Susano cruzou os braços e franziu o cenho, Nike assentiu e colocou a caixa sob o braço.
– Se o fogo de Kuran não o destruiu, não creio que consiga fazer isso com Yinemí, preciso descobrir uma forma de fazer isso e até lá, um lacre é a melhor opção para mantê-lo protegido. – Susano assentiu e tomou a caixa das mãos dela enquanto subíamos novamente as escadas de volta para a biblioteca principal.
– E agora? – Annie perguntou, atirando-se no sofá no centro da biblioteca.
– Precisamos achar um livro escrito por Ayrana... Mas já cansei de rodar as prateleiras da letra “A” e não encontrei nada! – Nike parecia frustrada, ela cruzou os braços e passou os olhos pela sala procurando por algo que pudesse ter deixado passar.
– Não encontraria o livro que ela escreveu por aqui! – Falei, os três me olharam curiosos, apenas sorri e disse: – O nome verdadeiro de minha mãe era Yellen. – Nike arqueou as sobrancelhas e revirou os olhos.
– Por que não me disse isso antes?
– Você nunca perguntou!
– Caalin, eu vou te matar! – Ela rosnou dando alguns passos em minha direção com as mãos fechadas em punhos. – Fiquei horas aqui procurando o livro com um nome errado e você não pensou em me dizer isso antes?
– Desculpe. – Aquilo não foi o suficiente para tirar o olhar psicótico do seu rosto, mas Susano a fez quebrar a pose ao falar:
– Temos que ir lá para cima então! – Ele apontou a escada em espiral. – Vão na frente, quero tentar encontrar uma coisa primeiro! – Ele circulou o sofá colocando a caixa de prata sobre o colo de Annie e percorrendo os ombros dela com as pontas dos dedos, um movimento quase imperceptível, ela sorriu e corou, então se levantou e nos seguiu até as escadas. Vi de relance Susano entrando no corredor com a letra “E” e desaparecendo entre as estantes. Nike correu escada acima e quando saiu no salão principal, ela foi direto para as escadas que levavam à copa.
– Aonde vai? – Perguntei.
– Susano disse que lá para cima estão os livros de autores com a inicial “T” para frente. – Ela parou com a mão no corrimão da escada e soltou um suspiro cansado.
– Vou esperar ele aqui. – Disse Annie olhando as escadas com a mesma expressão de preguiça estampada no rosto, fui até onde Nike estava, decidindo se subiria ou não, então ela deu um passo para o centro da torre e olhou para cima.
– O que pretende fazer? – Perguntei olhando sua expressão mudar para divertida.
– Vou subir! – Então ela puxou a foice do pescoço, fazendo-a ficar em seu tamanho normal e colocou o calcanhar na curva da lâmina e bateu suavemente com a arma no piso. Um círculo de gelo apareceu sob nossos pés e disparou para o alto com sons como de centenas de trovões, segurei em seu braço com força e olhei para baixo, para a escada em espiral se movendo ao nosso redor como uma cobra enrolando a presa, nós paramos a poucos metros abaixo do teto de vidro que protegia a mansão, de frente para a janela que tivemos como entrada mais cedo. Nike havia feito uma coluna de gelo para nos levar para cima.
– Dá para fazer coisas boas com o poder também! – Ela riu.
– Você podia ter nos feito apenas flutuar até aqui!
– Podia, mas eu queria ter certeza de que podia usar esse poder para algo que não fosse terrível! – Ela olhou para a coluna ao saltar de cima dela para o corredor de madeira da escada. Fiz a coluna de gelo desaparecer antes que derretesse com o calor dali e destruísse os livros, ou tombasse e destruísse parte da Árvore. Entramos no quarto, Nike passou por ele sem olhar para nada, direto para uma porta no canto direito do quarto, onde havia uma sala grande de artes, o ateliê de Pintura de Grisela.
– Achei que ela tivesse desistido de pintar depois que saiu de Amantia. – Falei observando as pinturas penduradas, espalhadas pelas paredes que eram entalhadas com pequenas folhas delicadas em alto relevo e pintadas com tinta laranja suave e rajadas de vermelho. Os cavaletes ainda com pinturas inacabadas e um violino sobre uma mesinha no canto da sala, perto de uma janela redonda de vidro, cuja armação lembrava a biblioteca circular sob a Árvore, com o mesmo padrão de disposição das prateleiras.
– É um mapa da biblioteca! – Ri ao perceber aquilo.
– Dá para ver o Vale Cinzento daqui. – Nike andou até o sofá de veludo vermelho com detalhes em dourado sob a janela e se sentou olhando para o vale.
– Sinto muito por não ter conseguido completar a ACV. – Ela me encarou surpresa e sorriu.
– Não se preocupe com isso, eu sou muito melhor que eles, as provas deles eram fracas para mim! – Convencida! – Essa é a única sala que os livros não estão em ordem! – Nike andou até a única estante de livros na sala, ela era de vitrino e estava fechada com um lacre de sangue, assim como a caixa do Livro das Sombras. Os livros dali eram todos antigos, com capas trabalhadas em couro.
– Droga! Como vamos abrir? – Ela perguntou analisando o vitrino trabalhado da estante. Revirei os olhos, peguei suas mãos e as coloquei sobre o vidro, ela me encarou confusa.
– Yinemí. – Ela o fez, congelou o vidro que eu quebrei chutando a proteção.
– Era só pedir para Annie fazer isso! – Ela franziu o cenho.
– Eu gosto de quebrar as coisas às vezes! – Sorri e pisquei para ela, tirando um dos livros da estante, era um livro muito antigo de poções, venenos poderosos e poções de transformação.
– O conhecimento de todos os tempos, não é? – Nike sacudiu um pequeno livro de couro branco, as páginas feitas com folhas grossas amareladas, o livro que via muitas vezes minha mãe sentada escrevendo-o.
– É esse mesmo! – Confirmei, ela sorriu e o colocou dentro de uma pequena bolsa de tecido que não fazia ideia de onde ela tirou.
– Acho que deveríamos levar esses livros lá para baixo e trancá-los na sala que estava o Livro das Sombras, Nike. – Mostrei-lhe o conteúdo do livro que peguei e ela assentiu.
Os movemos para dentro de caixas usando magia e flutuamos até o salão central, onde Annie e Susano estavam debruçados sobre um livro, lendo avidamente e com os rostos vermelhos.
– O que estão fazendo? – Perguntou Nike olhando por cima do ombro deles.
– Lendo o diário de meu pai. – Disse Susano sorrindo sem graça.
– Estou preocupada com o conteúdo por causa da cor de vocês, Annie está quase deixando impressões em brasa na mesa! – Annie se ajeitou olhando se havia mesmo deixado marcas na madeira.
– Ele era um depravado! – Annie sacudiu a cabeça e Susano pigarreou, fechando o diário e o colocando sob o braço.
– É de família! – Falei, Nike me acotovelou e revirou os olhos.
Guardamos os livros que pegamos no ateliê de Grisela e saímos da Árvore. Annie e Susano voaram conosco até a cidade, nos acompanharam até a porta do hotel e insistiram para que fossemos até o castelo com eles, mas Nike preferiu ficar por perto de Gih.
Enquanto ela tomava banho, fiquei na cama observando a caixa de prata que selava o poder do Livro das Sombras, mesmo em forma humana eu sentia a energia que ele emanava e podia sentir, ouvir as vozes que ela sempre escutava, então antes que ela retornasse eu voltei a minha forma normal, respirei aliviado com a sensação dos sentidos retornando com força total, tudo ficou claro novamente como se uma lâmpada tivesse sido acesa naquele pequeno quarto, só então percebi que o quarto tinha o cheiro de Nikella, andei até o armário e abri, as roupas dela estavam todas ali, um vestido cinza, o uniforme formal da ACV, era o quarto que ela permaneceu depois de sair de sua casa, não havia percebido mais cedo pois estava nervoso com Nike quase morrendo envenenada pelas folhas da Árvore do Fogo, voltei para a cama e fiquei em silêncio, esperando-a para dormir.
Depois de um bom tempo, ela saiu do banheiro vestida apenas com uma camisola de seda vermelha, curta o suficiente para que parecesse uma camiseta longa, ela fez um bico quando me viu de volta à forma de malvarmo e não consegui evitar um sorriso.
– Achei que fosse brincar com você em forma humana... – Ela fez um biquinho e se inclinou sobre mim, deslizando para a cama. Não tinha como descrever o quanto era agradável sentir seu cheiro nessa forma novamente, era como um cumprimento para meus sentidos aguçados.
– Talvez depois, quando voltarmos para Vegahn. – Não deixei que ela ficasse em cima de mim, a derrubei gentilmente para o lado, a cama era estreita o suficiente para que ela ficasse com metade do corpo em cima do meu.
– Você é um chato, Caalin! Não se estraga a brincadeira dos outros assim!
– Durma Nike! Daqui a pouco vai amanhecer e se você não se lembra, estamos aqui escoltando Aliver, ele já deve estar doido sozinho e derretendo naquele castelo, se não estivermos lá ao amanhecer, ele vai entrar em pânico! – Expliquei, ela apertou os lábios numa linha fina e me lançou um olhar maldoso.
– Talvez eu devesse ir até lá e esfriar o quarto dele! – Ela brincou com gelo nas pontas dos dedos, deixei um rosnado de irritação sair, ela sorriu e apoiou a cabeça em meu peito. – É tão fofo você com ciúmes!
– Não acharia fofo se pudesse ver o que penso em fazer com eles quando você diz essas coisas...
– Eles?
– Kuran...
– Esqueça ele, Caalin!
– Difícil, ainda mais quando entramos na Árvore, naquele quarto...
– Esqueça, apenas esqueça! – Ela resmungou com os olhos pesados, ela passou os lábios sobre meu peito e riu.
– Qual a graça?
– Dessa vez, você está frio, geladinho! – Ela enrolou os braços quentes em mim, apertando-me contra seu corpo extremamente quente, se não soubesse o motivo daquele calor, de seu fogo que queimava constantemente, diria que ainda estava com febre depois de quase ter sido queimada viva.
Queimada como ele ameaçou que faria!
– Se eu não ficar frio, você vai incendiar esse lugar! – Consegui manter minha voz calma ao responder.
– Engraçado, Kuran dizia que eu era uma pedra de gelo, já você diz o contrário, acho que eu nasci com algum defeito! – Sua voz estava embargada.
– Você não tem defeito, Nike, apenas ele não sabia lidar com você como eu sei! – Ela abafou uma gargalhada escondendo o rosto em mim e ajustando seu corpo, refrescando-se em mim, logo estava dormindo profundamente.
Não haviam se passado nem quatro horas quando me obriguei a acordar, Nike ainda estava enroscada em mim, o quarto estava frio o suficiente para que eu não quisesse enfrentar o mundo ardente lá fora, mas sabia que uma hora ou outra teria que levantar.
– Nike, acorde! Já são quase seis horas! – Falei traçando uma linha de beijos em seu ombro, ela soltou um rosnado medonho quando puxou um lençol para cima e se enroscou ainda mais. Sabia que seu sono era quase sagrado, mas não estávamos ali a passeio. Levantei da cama e me vesti, estava prestes a ir até o restaurante do hotel para buscar café para ela, talvez comida comprasse seu bom humor, quando ela acordasse cuspindo raios.
Antes que alcançasse a porta, batidas ritmadas e altas fizeram a porta balançar.
– Nike, Nike, Nike, Nike! – Alguém gritava do lado de fora esmurrando a porta. – Nikella! É bom que não esteja fazendo coisas pervertidas porque estou entrando! – Oriel! Ela havia nos encontrado ali, estava pronto para jogá-la para fora do hotel quando sua cabeça despontou na porta.
– Caalin, Nike! Venham, vamos tomar café! – Oriel saiu entrando no quarto e pulou em cima da cama, mesmo com os rosnados assustadores de Nike para ela, ela não saiu.
Depois de alguns minutos de tentativas de fazer Nike sair da cama, Oriel ameaçou deixar Nike sem comer até o casamento, só então, com uma cara assustadora, Nike saiu da cama.
– Vou me arrumar e já desço! – Nike passou a mão pelo emaranhado de cabelos e Oriel saiu saltitando, bati a porta quando ela saiu, mas pude escutar sua voz no final do corredor: “Não volte a dormir!”
– Desculpe, ia pegar café para você quando ela apareceu.
– Mhmmm. – Nike estava sentada na beirada da cama, sacudindo as pernas e olhando para o nada.
– Aconteceu alguma coisa? – Perguntei me aproximando e tocando sua testa com as costas da mão.
– Não... estou apenas esperando tudo em mim começar a funcionar direito.
– Isso não acontece em Vegahn. – Observei.
– Claro que não, lá é sempre fresco e agradável, aqui é um inferno dessa porta para fora! Ciartes é uma merda! – Ela resmungou e levantou, colocando o vestido azul claro do uniforme e as botas brancas e curtas, enrolou o cabelo num coque e foi até o banheiro lavar o rosto.
– Vamos! – Ela embainhou a espada e saiu do quarto.
No restaurante do hotel, Annie, Oriel e Susano nos esperavam sentados em uma mesa próxima à porta.
– Bom dia! – Disseram quando nos aproximamos, Nike murmurou algo e sentou, puxando uma caneca de café para ela.
– Alguém não dormiu bem! – Annie tinha um sorriso maldoso no rosto ao observar Nike, que respondeu mostrando-lhe a língua.
– Ela tentou me agarrar à força ontem, mas eu a coloquei para dormir, por isso o mau humor! – Oriel engasgou com o chá e quase teve um ataque de tosse ao ouvir aquilo e Annie quase incendiou o prédio, ficando com a pele ainda mais vermelha, Nikella estava com o rosto vermelho e me deu uma cotovelada.
– E Aliver? – Nike perguntou, tentando mudar para algum assunto seguro.
– Quase morreu essa noite! Achei que ele fosse derreter!
– E você, não se sentiu mal com o calor? – Perguntei, Oriel riu sem graça.
– Dormi dentro da banheira com água fria. A cama parecia uma frigideira! – Ela bufou cutucando o bolo com o garfo.
– Parece que você acabou se acostumando com o calor, não foi Susano? – Nike perguntou a ele, Susano sorriu discretamente e assentiu. Annie parecia se derreter perto dele, era realmente um casal muito bonito.
Terminamos de tomar café e partimos para o castelo. Era estranho demais, acordar de manhã e não ver o sol nascer cedo, no céu junto com a lua estava Saldazaris, era uma bela visão, o mundo dos Silfos ocupava uma grande parte do céu e seus anéis brancos brilhavam, Nike acompanhou meu olhar e sorriu:
– Era uma das coisas que me animava em acordar no escuro, ver esse mundo brilhar... A rainha Sylvia deve se sentir muito orgulhosa, ainda mais se vir seu mundo daqui! – Ela apertou um pouco mais minha mão.
Atravessamos a praça escura e silenciosa, parecia que todos os habitantes da cidade ainda dormiam, os Salamandras deviam despertar junto com o sol.
Acima dos muros, o brilho da Árvore do Fogo agora parecia um sol prestes a nascer, as folhas dançavam com o vento. Mesmo muito longe, podia sentir o cheiro do pó das folhas, o veneno que nos enfraquecia espalhando-se no ar.
Assim como Oriel havia dito, o castelo estava um forno, o ar abafado era quase impossível de se respirar. Atravessamos o salão vermelho em direção à sala do trono, onde os soberanos deveriam estar tomando café, mas ele estava vazio, a não ser por uma jovem élfica que vinha em nossa direção em passos largos. Ela estava com os cabelos escuros presos em um coque e usava um vestido verde claro na altura dos joelhos, foi direto em Susano e passou o braço em volta dele.
– Estão todos no jardim tomando café! – Disse ela para nós, sem nem ao menos nos cumprimentar.
– E quem seria você? – Oriel já estava com sua postura de ataque, não físico, mas se preparando para um duelo de grosserias, Nike revirou os olhos e antes que Susano as apresentasse, ela disse:
– Oriel, princesa de Vegahn, conheça Asahi, princesa de Amantia, irmã de Susano. – Disse ela com a voz mais ríspida que o normal, Asahi estava de frente para nós agarrada a Susano, ela passou os olhos azuis por Nikella, por seu uniforme e a postura informal, e finalmente em nossas mãos dadas.
– É um prazer, princesa! – O sorriso de Oriel parecia querer dizer outra coisa, mas algo no olhar raivoso de Nike para ela a fez se comportar e aquilo me deixou no mínimo espantado. “Elas abaixaram a cabeça e me reconheceram como o lobo alfa!” Foi o que Nike disse em Vegahn sobre Zion e Oriel. Agora entendia o que realmente havia acontecido entre elas, Nike as domou como bichinhos, as adestrou para que elas se comportassem! Teria rido se não corresse o risco de Nike querer colocar uma coleira em mim também, embora soubesse que eu havia feito o mesmo com ela, mas de forma mais sutil e ela nem havia notado. Asahi havia feito um breve aceno para Oriel e voltou a encarar Nike.
– Outro mundo te fez bem. – Aquilo talvez fosse o mais educado que Asahi conseguiria dizer a Nike.
– Não diria outro mundo, diria outro homem. – Annie deu uma piscadinha em minha direção e Nike bufou com o rosto corado.
– Vamos, Aliver deve estar entrando em pânico sozinho lá! – Falei por fim.
– Espere! Preciso falar com ela. – Asahi pegou o braço de Nike e arrastou na direção oposta, ela ergueu as sobrancelhas para mim e acenou para que fossemos na frente. Andei com eles a contragosto até o jardim no centro do castelo, onde pequenas folhas de luz pulsavam e dançavam em volta de nós, já que os sóis ainda não haviam nascido.
Cactos floridos dividiam espaço com os plátanos de folhas vermelhas e douradas, um jardim modificado magicamente para manter plantas de vários climas vivos no mesmo ambiente. Aquele pequeno pedaço de deserto alterado no centro do castelo mostrava muito sobre os soberanos daquele lugar, eles mantinham a diversidade como algo a ser cultivado e não destruído. Do lado de fora corria uma brisa agradável, me fazendo odiar menos aquele lugar.
Aliver parecia ligeiramente mais pálido que o normal e encarava o prato com seu café com uma expressão de profunda tristeza, a mesma expressão perdida que Nike tinha ao acordar, percebi que ela não estava mentindo quando disse que Ciartes era uma merda.
– Bom dia! – dissemos ao nos aproximarmos, o Rei Ewren estava ao lado de sua esposa, ela estava distraída apertando as mãos do rei, tentando acalmá-lo, parecia que ele não estava muito contente com a festa de mais tarde. Sylvia continuava falante, contando sobre várias coisas do Castelo dos Ventos, que eu fazia questão de não escutar, ignorei também os olhares maliciosos dela para Aliver, que parecia senti-los também e se encolhia. Sentei ao lado de Aliver, a jovem ao lado de Ewren e Leona, a gêmea idêntica de Asahi, Nyumun, ela usava um vestido cinza escuro largo demais e seu rosto estava levemente pálido, ela terminou seu café e sem cumprimentar nenhum de nós, saiu pelo caminho que havíamos vindo.
– E a noiva? – Perguntou Oriel sentando-se à mesa e servindo-se daquelas comidas terríveis.
– Está junto com minha mãe, elas disseram que não dá sorte que eu a veja hoje até a hora da cerimônia. – Disse Ericko dando uma rápida olhada para o rei de Amantia, ele tinha adquirido um tom avermelhado e Leona estava encolhida ao seu lado, olhando-o nervosa.
– Vou me juntar a elas! – Disse Annie que mal havia se sentado, ela deu um beijo na mão de Susano ao sair, seguida por Leona que a olhava como se fosse devorá-la. Talvez o mesmo ciúme do rei com suas filhas, ela tivesse com Susano. Sylvia acabou deixando a mesa também, seguindo as duas, olhei para Oriel que estava nervosa, tendo ficado apenas ela de mulher à mesa.
– Vá com elas! – Sussurrou Aliver para ela, Oriel suspirou agradecida e saiu quase saltitando. Yeferis não estava em lugar algum, na certa havia voltado para Vegahn na madrugada, ela odiava o calor.
– Bom, agora que estamos a sós, podemos conversar sobre um possível ataque a Ciartes. – Falei fazendo Ericko largar o garfo no prato e me encarar, Ewren cruzou os braços e me encarou também.
– Sabemos sobre Higarath e sobre suas sombras! – Ericko começou, mas o interrompi.
– Não é sobre esse ataque, Higarath não deve atacar agora, não enquanto não conseguir pelo menos duas das Almas Elementais. Estou falando sobre o ataque que vem de Vegahn, os governantes de Paliath e Fernic pretendem tomar Ciartes em breve! – expliquei calmamente, Susano olhou para seu pai e para o rei de Ciartes e se retirou rapidamente da sala. Aliver endureceu ao meu lado, mas não se encolheu como achei que faria, apenas tomou a palavra, vendo o olhar de desconfiança de Ericko.
– Hobner e Ausiet estão contra mim, pois me acham indigno do trono de Vegahn pela minha... linhagem impura. – Ele começou e olhou para mim como se pedisse confirmação de que estava fazendo a coisa certa, esquecia que ele era apenas um menino.
– E como vou saber que vocês não estão aliados a eles e estão aqui como espiões? Pelo que soube, seu pai bancava as minas de vitrino e a captura de escravos também! – Ericko segurava a faca de forma ameaçadora e Ewren dava sinais de que o apoiaria, caso resolvesse acabar conosco ali mesmo, a raiva dirigida a mim era talvez por ter insinuado sobre a noite com sua noiva na noite anterior, embora fosse adorar vê-los tentar me atacar, havia coisas mais importantes em jogo.
– Viemos aqui não só pelo casamento, mas por uma aliança com Ciartes e Amantia. – Expliquei calmamente ignorando as posturas ofensivas dos dois.
– Por meio de um casamento seria impossível, minha irmã já é casada com o príncipe Susano. – Ericko olhou de Relance para Ewren, que empalideceu, ele sabia exatamente onde queríamos chegar, mas antes que soltasse a torrente de palavrões que pude ler em seus olhos, ele desviou o olhar para trás de mim e sua expressão suavizou.
– Não precisa ser assim. – Susano apareceu com Nike no jardim, ele passou seus olhos por nós até parar em mim, pelo sorriso em seu rosto, soube exatamente o que ele tinha em mente e meu estômago afundou.
“Não fale!” – Pedi a Susano num sussurro, mas ele apenas sorriu e apontou em direção a Nike com o queixo.
“Ela decide!” Foi sua resposta.
14
Passados revelados
Nikella:
Depois de conversar com Asahi, de deixá-la chorar e desabafar sobre Kuran, na verdade, sabia que de nada adiantaria tentar uma aliança entre Vegahn e Amantia através do casamento de Aliver e ela, Asahi amava Kuran mais que qualquer um e não desistiria dele.
Embora não quisesse conflitos com Melanie, ela se recusava a deixá-lo, tinha certeza de que era pelo laço de guardião que os unia, talvez oferecesse a ela ajuda para quebrar o laço, quem sabe mais para frente ela mudaria de opinião.
– Acho que a ideia de Aliver em ter uma aliança com seu pai foi por água abaixo. – Falei para Susano, que estava recostado no arco de pedras vermelhas na entrada da sala do trono, ficamos observando em silêncio Asahi subir as escadas em espiral, na certa, indo encontrar com Karin e as outras.
– Tenho um plano muito melhor que esse, que poderia acabar com os planos de Hobner e Ausiet e iria fazê-los tremer e se ajoelhar diante do rei. – Disse ele encarando-me sério.
– E qual seria esse plano? – Perguntei olhando desconfiada para o sorriso assustador que apareceu no rosto de Susano.
– Basta colocarmos o verdadeiro rei de Vegahn de volta no trono. Assim, todos os conflitos naquele mundo acabariam também. – Eu franzi o cenho para aquelas palavras.
– Onde quer chegar, Susano? – Ele apenas sorriu e me deu a mão.
– Confia em mim? – Perguntou ainda sorrindo daquela forma que me fazia querer abraçá-lo.
– Confio! – Respondi sabendo que ele nunca faria algo que nos colocaria em risco.
– Então vamos! – Ele me puxou em direção ao jardim. Passamos andando rapidamente pelos corredores abertos, o jardim de plátanos de Sheriah estava florescendo, ela os mantinha vivos mesmo naquele calor constante. Susano apontou para o centro com o queixo, onde Caalin, Aliver, Ericko e meu avô, o Rei de Amantia, estavam em posições ameaçadoras e se olhavam como cães prontos para a briga.
– Aparentemente, meu pai não gostou muito da ideia de Aliver e Asahi também! – Disse ele entrando depressa no jardim e parando a alguns centímetros da mesa. Ericko e Ewren olharam para nós em silêncio.
– Não precisa ser assim! – Foi o que Susano disse a eles, mas estava olhando diretamente para Caalin, que implorava por algo silenciosamente. Susano fez um leve movimento com a cabeça em minha direção.
– O que quer dizer? – Perguntou Ericko corrigindo a postura na cadeira, parecendo aliviado com nossa chegada. Ewren parecia tenso, ele olhava para mim e para Susano, como se estivesse nos comparando, e pelo olhar nervoso dele, era exatamente o que estava fazendo.
– Quero dizer, que se o verdadeiro Rei de Vegahn assumir o trono, os conflitos em Vegahn acabarão e teremos automaticamente uma aliança com Vegahn. – Disse Susano puxando uma cadeira para que eu me sentasse ao lado de Caalin e Aliver, ele andou até seu pai e sentou-se ao seu lado. Aliver estava pálido e encarava Susano, ele sacudia a cabeça para os lados e parecia em choque.
– O que quer dizer, com verdadeiro rei? – Perguntou. Vi de soslaio Caalin trincar o maxilar o fechar os olhos, suas mãos se fecharam em punhos e ele as escondeu embaixo da mesa.
– O verdadeiro rei, que se casou com Frayena nos últimos dias da rainha e assumiu o trono ao lado dela. Depois da morte de Frayena, ele formou uma aliança com as fadas de Treezer, casando-se com a princesa Merry, mas depois que Treezer foi destruído o rei desapareceu, porém não foi dado como morto, como os filhos dele morreram com Treezer, quem assumiu o trono de Vegahn foram os descendentes de Fryn, a primeira Malvarmo, mas eles assumiram sem a bênção dos Anciãos e isso já os deixava em desvantagem perante o julgamento do povo. O antigo rei Cahadris se casou com uma humana e isso deixou o povo de Vegahn descontente, ainda mais quando o rei morreu e quem assumiu foi um híbrido, sem ofensa! – Disse Susano a Aliver, que assentiu ainda o encarando, esperando-o concluir aquela história que estava fazendo meu estômago revirar, não conseguia olhar para Caalin.
– Continue. – Foi Ericko que pediu, pois todos nós estávamos meio que em choque.
– O Rei que foi casado com Frayena e Merry ainda está vivo, e todos em Vegahn o respeitavam por ser um Arbarus, filho da própria criadora e também por ter sido um guerreiro poderoso e ter lutado por Vegahn sempre. – Susano deu um breve sorriso para Caalin, Aliver agora o encarava boquiaberto.
– Caalin... Não tem o nome parecido com o do filho da criadora, você é o próprio Caalin Arbarus! – Aliver parecia estar prestes a ter um ataque.
– Então Caalin continua sendo o verdadeiro Rei de Vegahn? – perguntei, Susano assentiu.
– Pelas leis de Vegahn, o poder ainda está nas mãos de Caalin, pois ele não passou o trono para ninguém antes de desaparecer, e não foi declarado morto pelos Anciãos, para que fosse legalizada a coroação dos reis que vieram depois. – Explicou Susano, Aliver olhava para as mãos como se tentasse acreditar no que estava ouvindo e Caalin encarava Susano irritado.
– Como sabe de tudo isso? – Aliver perguntou com a voz baixa demais. Susano sorriu novamente, como um predador encarando a presa.
– Eu sou o melhor aluno da ACV, estudo muito! – Disse piscando para mim, nós éramos os dois melhores, com as mais altas pontuações.
– E quanto a parte de “teremos automaticamente uma aliança com Vegahn”? – Perguntou Ericko, por dentro parecia que meu corpo havia se dissolvido e o que restara estava rolando procurando uma saída, meu corpo inteiro ficou dormente quando Susano olhou para mim e deu outro sorriso travesso.
“Não se atreva!” Disse silenciosamente, no escândalo de um olhar, ele piscou para mim.
“Eu disse para confiar em mim!”
– Nikella é herdeira do rei de Amantia, ela é neta dele, minha sobrinha. – Disse Susano com um sorriso triunfal. Todos olhavam para mim, mas apenas Aliver e Ericko pareciam surpresos. Susano devia ter contado para seu pai na noite passada e isso me fez ficar ainda mais nervosa.
– E por que isso faria com que tivéssemos uma aliança automática com Vegahn? – Ewren estreitou os olhos e encarou Caalin, ele estava quase bufando, querendo avançar sobre ele, talvez porque eu era sua neta e quase uma criança aos seus olhos, e provavelmente sua proteção também se estenderia a mim agora.
– Porque eles compartilham a alma, assim como você e mamãe, assim como Annie e eu. Podem destruir os mundos se quiserem, mas não conseguiriam separar uma alma depois de unida novamente! – Ele deu um sorriso vitorioso e cruzou os braços sobre o peito, sorrindo para mim. Não sabia se era certo querer matá-lo e abraçá-lo ao mesmo tempo, então permaneci sentada, esperado que alguém reagisse às palavras de Susano.
Vovô se levantou e parou ao meu lado, ele estendeu a mão para mim, não sabia se deveria ir ou ficar ali, já que Caalin parecia ter vontade de cortar as mãos que estavam estendidas para mim.
– Vamos. – Chamou vovô encarando-me. Olhei para Susano, ele assentiu para que eu fosse com ele. Respirei fundo e me levantei, deixamos o jardim para trás em passos rápidos, Ewren me levou até o grande salão do castelo, mas ali haviam muitos criados, eles estavam cuidando dos preparativos do casamento, ele olhou aquilo e torceu o bico, então me deu a mão novamente. Quando a peguei, uma luz dourada nos cobriu e aquele puxão me fez agradecer por não ter comido nada no café da manhã, apenas a xícara de café.
Não fazia a mínima ideia de onde estávamos, mas o sol banhava todo o lugar, entrando pelas janelas altas e simples de madeira com detalhes em metal, as paredes eram revestidas por lajotas de pedras claras e novas, mostrando que aquele lugar havia sido construído há pouco tempo. Não era um cômodo muito grande, devia ser um escritório, pois havia uma mesa de madeira e pedra no centro da sala, coberta por mapas e livros. Vovô deu alguns passos para longe de mim, abrindo uma das janelas que ficava de frente para uma montanha e suspirou:
– Quando a passagem do tempo era diferente nos mundos, era terrível abrir um portal de um mundo para outro, ás vezes demorava horas! – Ele deu um breve sorriso.
– Nunca tentei teleportar antes da passagem do tempo se igualar, não sabia que tinha poderes. – Respondi voltando à minha “normalidade grosseira”.
– É muito bom acordar cedo e ver o sol, as manhãs de Ciartes são um pouco perturbadoras por causa da ausência do sol de manhã, não conseguiria me habituar com aquilo! – Ele estava tentando começar uma conversa por um assunto que me fosse familiar, ri por dentro e me aproximei, observando o sol nascer por trás da montanha, banhando aquele lugar com uma luz azul brilhante.
– Sempre odiei viver em Ciartes, não gostava do calor, não gostava das poucas horas de sono e morria de medo de morrer toda vez que saía de casa para treinar. – Confessei. Ele desviou os olhos da paisagem para mim, um olho azul, outro prateado, os olhos de uma fera domada. – Eu achava que minha mãe me odiava a ponto de ter me deixado lá com meu pai e ido para um lugar melhor. Quando conheci Susano na ACV, pouco depois falei para ele que quando completasse o treinamento, quando fosse uma caçadora de verdade, viria para Amantia servir a família real, minha família, não quis dizer a ele o real motivo, mas era porque assim eu estaria mais perto da minha família de verdade, a única que me restou! – Falei sentindo as lágrimas escorrendo por meu rosto.
– E deu tudo tão errado para você... – Ele me puxou para seus braços com delicadeza e me abraçou forte, um abraço quente, tranquilizador, parecia que cada pedaço quebrado dentro de mim estava sendo colado por aquele aperto. – Eu sinto muito! Se eu soubesse antes, teria mandado que a trouxessem para cá! – Disse beijando o topo de minha cabeça.
– Está tudo bem!
– Não, não está! Tudo que você passou... tudo que Annie nos contou sobre você desde quando vinha a Amantia as primeiras vezes... Quando nós não sabíamos quem você era...
– Todas as situações ruins são necessárias para moldar o caráter, assim como diversas temperaturas para moldar uma arma! – falei.
– Você não é uma arma, Nikella.
– Mas eu quero ser, até nos livrar de Higarath é isso que eu vou ser!
Ele me afastou um pouco para poder me encarar e limpou as lágrimas que escorriam por meu rosto.
– É isso que você quer? Vai se tornar rainha de Vegahn se aceitar ser minha herdeira, eles irão querer que você seja uma ponte entre Amantia e Vegahn...
– Eu não quero nada disso, nunca quis! Queria apenas viver em paz, em segurança e tranquila, construir uma família, mas é muito egoísta querer voltar para o Vale do Sol com Caalin e deixar Aliver se virar com Ausiet e Hobner, deixar que eles arrumem outra maneira para evitar os conflitos e essa guerra, se Caalin é o rei de Vegahn, e isso corrige as coisas, então é o que deve ser feito! E se ele nunca me disse nada é porque imaginava que eu pudesse me afastar. – Ele franziu o cenho, mas assentiu.
– Você é igualzinha a ele, Susano, além da aparência vocês têm o mesmo senso de justiça e a mesma força interior! – Disse Sorrindo para mim. Acabei chorando um pouco mais, vovô me abraçou novamente e afagou minhas costas.
– Leona... ela sabe? – Ele assentiu.
– Ela descobriu quando viu você e Susano no castelo quando estavam matando aula, então ela foi atrás de Mariah, que era muito amiga de sua avó Belve e a fez contar tudo... – Ele fez uma careta e sacudiu a cabeça. – Tinha esquecido o quanto ela podia ser assustadora!
– No final, somos todos iguais então! – Falei girando o pingente de Siferath entre os dedos, ele deu uma gargalhada e afagou minha cabeça, então segurou minhas mãos juntas, formando uma concha com suas mãos em volta delas.
– Nikella Arbarus Ascardian, eu reconheço você como minha herdeira, como um membro da família real de Amantia, como uma das raízes que guiam e protegem os doze mundos. Que sua luz seja a luz que guia não apenas você, mas todos aqueles que a aceitarem e a seguirem! – dizendo isso ele beijou as costas de minhas mãos, por um instante, minhas marcas negras foram substituídas por raios dourados, assim como as marcas de Susano, quase chorei novamente ao ver aquelas marcas, mas elas foram engolidas novamente por aquela luz negra e se apagaram.
– Obrigada. – Agradeci lhe abraçando novamente.
– Sempre que quiser, tem um lugar especial para você aqui em Amantia. – Disse.
– Onde estamos? – Perguntei olhando a montanha que brilhava azulada em nossa frente.
– Em Vintro, aquela é a montanha Azul, é um vulcão na verdade, ele expele uma lava azul que se transforma em cristais de purificação, iguais aqueles que você coloca em algumas armas!
–Então aqueles cristais vêm daqui? – Perguntei surpresa, ele assentiu.
Podia ficar por horas observando aquele mundo banhado em azul e dourado, mas sabia que tinha coisas a fazer em Ciartes.
– Melhor voltarmos! – Disse ele segurando meu braço para que pudéssemos teleportar.
– Vamos. – Apertei seu braço e fechei os olhos o mais forte que pude. Mal senti o puxão quando fomos levados de volta a Ciartes, o calor sufocante foi a certeza de que estávamos de volta. Mas para minha surpresa, não fomo levados para o castelo, e sim para algum lugar alto, tão alto que estávamos entre as nuvens.
Bati as mãos com força fazendo aquelas nuvens se dissiparem com uma onda de choque. Estávamos em uma cidade flutuante cheia de prédios altos de vidro e metal, eles pareciam ser espirais gigantes e quando o vento batia nos prédios, uma canção assustadora parecia ser tocada neles.
– Onde estamos? – Perguntou vovô dando um passo para trás, notando que a cidade estava completamente vazia, faltava pouco para o sol nascer, percebi pelo horizonte avermelhado.
– Vila Nakhlans... – Falei baixo sentindo o sangue sumir de meu rosto, peguei Siferath do pescoço e a girei nos dedos, dando-lhe sua forma original.
– Nike, o que houve? – Vovô perguntou pondo a mão sobre o punho da espada.
– Essa é a vila dos magos metamorfos, assassinos... – Sussurrei tão baixo que só tive certeza que ele me ouviu, pois sua aparência mudou, os olhos e cabelos dourados se acenderam assim como as marcas de mago. Pela primeira vez agradeci por ter os poderes de maga negra, alterei minha aparência também, ficando com as marcas negras à mostra, sentia as sombras dançando inquietas ao meu redor, como se tentassem se afastar de mim.
– Vovô, temos que sair daqui! – Falei virando para ele, mas ao olhar em sua direção meu sangue congelou. – CUIDADO! – gritei saltando rapidamente e girando Siferath, ele percebeu o que estava acontecendo e se esquivou em velocidade assombrosa, quando Siferath passou por cima de seu ombro e se chocou contra a lança do metamorfo que ia atacá-lo pelas costas.
– Ora, ora, ora... – Disse uma voz estranhamente familiar que fez meu estômago revirar e meus joelhos tremerem. – Quem voltou para me ver!
– Merian! – Minha voz saiu engasgada, ele segurava uma lança com uma destreza fora do comum, ele nunca soube manusear armas, vovô deu um passo para meu lado e girou a espada em punho.
– O que está havendo aqui? – Perguntou ele erguendo o queixo, passando os olhos rapidamente pela cidade, que dessa vez não estava mais vazia, vários magos se aproximavam de nós, vindos de todos os lados, envoltos em mantos negros e com armas perigosas nas mãos, mas nada neles me assustava, apenas Merian, diante de nós.
– Eu matei você! – Falei segurando Siferath ainda mais forte, sentindo meus dedos doerem.
– Não é seu irmão. – disse Vovô fazendo um pulso de energia revelar a verdadeira forma do metamorfo. Ela me encarou com os olhos amarelos e os cabelos louro pálido caíram sobre os ombros largos.
– Brieli! – Grunhi mostrando os dentes para ela, ela deu um sorriso ameaçador e um passo em minha direção, ao lado dela Kilua apareceu girando duas adagas nas mãos.
– Não queremos problemas com o rei de Amantia, saia daqui e deixe que acertemos as contas com ela! – Disse Brieli para vovô, ele arqueou as sobrancelhas e apoiou a espada no chão.
– Não querem problemas? Acabaram de me atacar pelas costas! Já arrumaram um problema comigo por isso! – Ele rosnou.
– Só queremos a essa nojenta de língua de trapos! – Brieli apontou a arma para mim.
– Acho que não! – Disse vovô preparando-se para atacar, mas antes que nos movêssemos, duas gaiolas de prata apareceram ao nosso redor, prendendo-nos ali, revirei os olhos mentalmente, os magos ao redor deles tinham os cetros e cajados apontados para nós.
– Garginus era meu pai! – Gritou Brieli girando a lança na mão e dando mais alguns passos em minha direção. – Por sua culpa ele foi queimado na fogueira na praça da Cidade do Sol, e eu tive que assistir! – Berrou ela apontando a lança para mim.
– Se ele não tivesse matado o rei, ainda estaria aqui com você, e não teria virado churrasquinho! – Retruquei dando-lhe um sorriso zombeteiro. Ela xingou e partiu para cima de mim, mas foi impedida por Kilua.
– Ela vai ter o que merece em breve! – Ele a segurava e me encarava com um ar de deboche, em seguida deu um aceno para os magos que começaram a murmurar palavras antigas e de suas armas luzes vermelhas começaram a brilhar e subir em espiral para o céu.
– Estão conjurando um lacre! – Disse Vovô olhando-me assustado, ele havia perdido os poderes com a prata, mas o vitrino em meus braços mantinha meus poderes correndo livremente por mim.
– Eu não consegui te matar aquela vez, mas agora, vou tomar seus poderes para mim, depois eu acabo com você! – Kilua se aproximou da gaiola e riu. “Tomar meus poderes, era quase o mesmo que me usar, quase o mesmo que Fairin queria de mim.”
– Kilua, você não passa de um fraco! – Sussurrei para ele, estava prestes a partir aquela gaiola quando uma queimação surgiu em meu peito e o ar foi tirado de meus pulmões.
– Deixe ela em paz! – Gritou vovô tentando sair da gaiola, mas alguns magos mantinham uma barreira em volta da gaiola que ele estava preso, mantendo seus poderes adormecidos, e por mais forte que fosse, aqueles magos eram letais e eles iriam nos matar e tomar nossos poderes.
– Eu sei o que você é, Nikella, eu estava junto quando ele te transformou, lembra? Eu sei o que te para! – Disse Kilua mostrando uma folha da Árvore do Fogo para mim. Meus sentidos começaram a ficar lentos e meu corpo estava dormente. Então eu as senti, ouvi seus sussurros, e pela primeira vez permiti que inundassem minha mente, meu corpo e alma, fechei os olhos e as recebi, aceitando-as. Então as espalhei! Tudo foi coberto por sombras, sombras negras, densas e vivas!
O poder tomou conta de mim e pela primeira vez senti que ele fluía sem nenhum impedimento, era como o sangue correndo em minhas veias, como o ar em minhas vias aéreas. Algo vivo, pulsante e que destruiria o mundo se eu não o controlasse.
A gaiola de prata havia desmanchado ao meu redor, nada me impedia, nada podia me conter. Eu os sentia, ouvia os magos tentando respirar, tentando gritar, podia sentir a essência de cada um deles enquanto caminhava através das sombras, que eram tão densas que podia tocá-las, senti-las roçando minha pele. Segui a essência de Kilua, ele seria o primeiro, porém, uma voz chamou minha atenção:
– Oi, Nikella. – Aquela voz fez com que eu parasse de andar.
– Quem é você? – Não podia ver nada dentro da escuridão, mas aquela voz fez as sombras se agitarem e pulsarem ao meu redor.
– O senhor das Sombras, Érebo. – Ele apareceu diante de mim, mas não senti medo do ser que estava em minha frente, era quase como um velho amigo.
– Você que estava em meus sonhos, não era? – Perguntei dando um passo na direção da figura encapuzada em minha frente.
– De fato.
– Por quê? – Perguntei baixinho.
– Porque eu quero que alguém devolva meu poder, então resolvi te testar, testar o quão honesta seria consigo mesma se descobrisse a verdade sobre seu pai, sobre a morte deles. – Ele estava em minha frente, segurando uma foice negra que pingava algo escuro, como a própria essência das sombras. Podia vê-lo perfeitamente, e me ver também, como se apenas nós estivéssemos naquele mundo de escuridão.
– Não estou entendendo!
– Você está disposta a destruir meu livro para que ninguém mais use meu poder! – Disse ele movendo a foice, as sombras dançaram ao redor dela, reconhecendo seu mestre.
– Oras! Não estou fazendo isso por você! – Retruquei colocando a mão sobre o quadril e jogando Siferath sobre os ombros. Ele soltou uma gargalhada grave que arrepiou os cabelos em minha nuca.
– Eu sei. Porém aquele livro contém o segredo para dominar as sombras, e, como eu, você não quer que os mundos sejam dominados por magos negros. Nossos motivos são diferentes, claro! Cada vez que um mago negro é criado, uma pequena parte de meu poder é transferida para ele, num acordo que eu fiz com o primeiro mago negro, Higarath.
– Ele fez um acordo com você? – Érebo assentiu.
– Emprestei meu poder para ele, para que pudesse corromper os poderes que recebeu da maga Yellen. Porém, ele me enganou e roubou meu livro, passando o conhecimento sobre como criar outros como ele adiante. Se você destruir o livro, minha escuridão ficará contida apenas àqueles que já a possuem, até a hora de sua morte, quando as tomarei de volta. – Explicou ele calmamente brincando com a foice.
– Então, serei uma maga negra até morrer? – Minha voz não passou de um sussurro.
– Ou até que seja purificada!
– Não posso simplesmente te devolver esse poder? – Perguntei olhando as marcas em meus braços.
– Não, não pode. Acredito que o faria agora mesmo se pudesse, não é?
– Sim, faria.
– Por que acha que nunca foi controlada pelas sombras? – Perguntou ele sorrindo, mostrando dentes longos e pontiagudos por baixo do capuz.
– Pela força que estou fazendo em mantê-las sob controle? – Ele gargalhou novamente, me deixando irritada. – Ora! Vamos, não seja um idiota! Apenas fale logo o que quer! – O sorriso havia desaparecido.
– Quero que destrua o livro, destrua Higarath para que meus poderes voltem.
– O que vai fazer depois que seus poderes voltarem?
– Continuo lacrado, não posso soltar meus poderes pelos mundos! O lacre que me mantém apenas na escuridão não pode ser quebrado por nada desse mundo.
– Se está lacrado, como está aqui? – Ele riu novamente da minha pergunta.
– Não estou aqui, isso é apenas minha sombra, um fiapo da minha existência, o poder que vocês têm não passa de um sopro perto do meu real poder, porém o quero de volta! Afinal, o que é meu, é meu!
– Entendo.
– Faça o que tem que fazer, sei que vai agir de forma correta, pois pretende devolver as Almas Elementais de volta à sua dona, então vai fazer o mesmo por mim. – Ele apontou a foice para mim.
– Você não dá a mínima para o que acontece com os mundos, não é? – perguntei, ele deu de ombros.
– Destruam-se à vontade! Isso é apenas um passatempo para mim. Vê-los se destruir é a única diversão que tenho! Por isso dei meu poder àquele idiota, mas já perdeu a graça, quero uma nova diversão! – Ele soltou uma gargalhada medonha e desapareceu, misturando-se com as sombras que eu ainda mantinha ali.
Senti Kilua a poucos passos de mim na escuridão, podia ouvir sua voz engasgada enquanto ele tentava gritar por ajuda. Ao perceber que Érebo havia desaparecido, e que eu havia aceitado aquelas sombras, as senti pulsar ao meu redor, dizendo o que fazer, dizendo para matá-lo, matar todos aqueles magos. Eles eram maus, assassinos cruéis e inescrupulosos e mereciam ser castigados. Um estranho desejo me tomou, então comecei a andar novamente na direção deles, arrastando Siferath ao meu lado, o som do vitrino no chão de pedras transmitia uma onda de prazer pelo meu corpo. Ia matá-los, todos eles, e faria agora.
Porém, luz irrompeu por todos os lados fazendo-me cair de joelhos ao chão, raios como numa tempestade magnética fizeram com que as sombras desaparecessem. Olhei em volta atordoada, os magos estavam enrolados por sombras, quase morrendo sufocados, assim como Brieli e Kilua, mas vovô estava bem, porém desacordado.
A tempestade ficou ainda mais forte, lançando raios por toda a cidade até que os prédios começaram a se distorcer e desmanchar. O braço de alguém passou em volta de minha cintura, erguendo-me e apertando-me contra ele.
– Nike, olhe para mim! – Era Caalin, ele segurou meu rosto e apertou com carinho, tocando minhas bochechas com as pontas dos dedos. – Solte-os, agora! – Disse para mim, desviei meus olhos dos dele para os magos ao nosso redor, morrendo sufocados por minhas sombras.
– Não consigo... – Sussurrei, não era verdade, eu não queria soltá-los.
– Solte-os, não seja o monstro que Fairin queria que você fosse! – Eu o olhei por mais um segundo, então deixei que as sombras desaparecessem. Caalin me abraçou apertado, sentia as pontas de seus dedos contra minhas costelas, estava doendo, ele estava tremendo.
– Está tudo bem. – Consegui falar, passando os braços em volta de seu pescoço.
– Não, ainda não está! – Disse ele soltando-me. Caalin passou à minha frente e girou Sielem em punho. – Não costumo dar segunda chance a traidores! – Rosnou ele. Kilua que estava de joelhos segurando Brieli olhou o machado erguido, mas não tinha forçar para se mover. Um sorriso perverso apareceu no rosto de Caalin antes de uma luz cobrir lâmina do machado.
– Pegue o rei de Amantia e teleporte. Agora! – Disse ele para mim, mas antes que me virasse, vovô me pegou no colo e abriu asas grandes e negras e voou para longe da cidade, olhei por cima de seus ombros a tempo de ver um clarão seguido de um trovão tão poderoso que uma onda magnética atingiu a proteção que vovô mantinha ao nosso redor.
– O que... – Olhei assustada a cidade se desmanchando, esfarelando e caindo por entre as nuvens numa chuva de destroços. Um raio imenso rasgou o céu de fora a fora, conjurando uma nuvem negra de tempestade, pouco depois a chuva começou a cair. Senti meu coração apertar.
– Ele está bem. – Disse vovô olhando-me de soslaio, pouco depois, a luz dourada nos cobriu de novo, quando abri os olhos, estávamos no jardim do castelo. Ainda estava no colo de vovô e tremia tanto que estava prestes a vomitar.
Susano e Annie vieram até nós, eles estavam sentados à sombra de uma das árvores quando aparecemos.
– Pai! O que aconteceu? – Perguntou Susano tirando-me do colo dele e me ajudando a ficar de pé.
– Podemos dizer que a Vila Nakhlans foi apagada do mapa de Ciartes! – Disse ele passando os olhos em mim novamente. – Está bem? – Não consegui responder, apenas assenti lentamente.
– Mamãe estava procurando por você! – Susano lhe deu um olhar significativo, vovô assentiu e desapareceu pelo caminho estreito entre as árvores.
– O que houve? – Perguntou Annie sentando-me no chão macio, a areia morna foi quase tranquilizadora, mas ao olhar para o céu, vi a nuvem de tempestade se aproximando.
– Não quero falar agora. – Disse aos dois e saí dali correndo, corri pelos corredores do castelo rapidamente em direção às escadas em espiral que levava à torre leste do castelo. Subi as escadas pulando os degraus e alcancei a torre com meus pulmões quase rasgando. Fui até a sacada, podia ver o Vale Cinzento dali, a Árvore do Fogo, e o Deserto de Sal.
– Começou mal o dia? – Perguntou Ericko aparecendo na porta da torre com uma tigela cheia de sorvete na mão.
– Você viu como foi o começo do meu dia! – respondi fazendo uma careta, Ericko riu e me entregou o sorvete.
– Olha o lado bom, você não acorda com a certeza que é odiada por seu futuro sogro todos os dias! – Disse dando uma gargalhada baixa.
– Vovô não te odeia, e se você não percebeu, Higarath quer minha cabeça em uma badeja de prata, então, tecnicamente, estamos empatados!
– Se estamos empatados, significa que Ewren me odeia mesmo! – Fiz uma careta e ele riu mais, comi uma colherada do sorvete de flocos que ele havia trazido e sentei sobre o parapeito da sacada.
–Ele não te odeia, só tem ciúme de Karin, talvez medo por tudo que passaram... Eu vi as memórias de Fairin, ainda tenho a maioria delas, o que ele pretendia fazer com Karin... – Ericko soltou um baixo rosnado e suas mãos se transformaram em brasas.
– Eu sei. Mesmo não tendo passado por tudo isso, teria ciúme também. – Ele suspirou e sentou no parapeito também, se encostando na parede de pedras amarelas, quase douradas.
– A vila flutuante dos metamorfos foi destruída. – Falei mais baixo do que pretendia. Ericko assentiu.
– Eu sei! – O olhei surpresa. – Sob a sala do trono tem um escritório com um globo gigante, um mapa de Ciartes. Vi a vila desaparecer, logo em seguida Ewren entrou na sala e contou o que havia acontecido lá.
– O que vai ser então?
– Nada. Foi um ato de traição, por sorte não havia Salamandras naquela Vila, senão, Ewren poderia quebrar a aliança com Ciartes, mas os metamorfos não são reconhecidos como nativos desse mundo. – Explicou.
– Mas quem destruiu a Vila foi Caalin... – Ericko sorriu.
– Graças aos deuses por ter sido só a vila. Depois de tudo que você passou aqui em Ciartes, não me surpreenderia se ele destruísse metade do mundo.
– Isso não é coisa que uma pessoa normal faria! – Retruquei.
– Eu faria por Karin. Ewren faria por Leona... Não somos humanos, caso você não se lembre! – Disse ele piscando para mim. – Talvez por isso eles tenham nos considerado inimigos desde o início, somos apenas feras irracionais com aparência quase humana. Talvez Ayrana nunca devesse ter criado os outros mundos para nos salvar, talvez devesse ter nos deixado morrer nas mãos deles. – Engoli em seco e apertei sua mão, ignorando o calor que feria o vitrino em minhas mãos.
– Todos têm seus defeitos! Os humanos sabem ser tão bárbaros quanto quaisquer outros monstros. – falei.
– Se não existíssemos, será que eles seriam assim? – perguntou Ericko olhando para longe, para a árvore com folhas vermelhas dançando com os ventos da tempestade que Caalin havia conjurado.
– Os humanos na terra, a maioria não sabe de nós e existem muitos monstros entre eles, com a mesma aparência. Independente da raça, existem os bons e os maus, isso nunca vai mudar. – Ericko sorriu novamente e afagou o topo de minha cabeça. – E Susano me disse uma vez, que se você precisa de um motivo para ser bom, você não é bom de verdade!
– Sabe Nike, acho que valeu a pena não arrancar sua cabeça anos atrás! – Disse ele soltando uma gargalhada ao perceber meu olhar assustado.
– Obrigada, acho! – Ele saiu da torre e eu continuei sentada ali, tomando o sorvete e vendo a tempestade se aproximar. Não sabia quando Caalin voltaria, então saltei da torre, usando meus poderes para aterrissar do lado de fora do castelo. Andei pela praça decorada para o casamento, as pessoas pareciam animadas e não se incomodavam com a tempestade se aproximando.
Fui até o hotel de Gih, por sorte ela estava ocupada demais com os clientes e não me viu entrar de fininho, fui até o meu quarto e me deitei na cama, o calor já estava quase insuportável, então assoprei o Yinemí e deixei tudo quase congelado. Peguei o livro de Yellen na bolsa, e comecei a folhear. As primeiras páginas já me deixaram apreensiva, aquilo não era exatamente um livro, era um diário onde contava coisas pessoais.
A forma com que foi expulsa pelos humanos da vila em que vivia quando a terra ainda era completamente coberta por gelo, o encontro com seu pai, Haalin. Pai! Li novamente a frase: “No momento que me encontrou na floresta, ele riu e disse: Yellen, você é igual sua mãe, Ren! Eu a amei no minuto que a vi, me desculpe por nunca ter ido buscar você! Um pai nunca deixaria sua filha com aqueles monstros!” Yellen era mesmo filha de Haalin, e Haalin era tataravô de Eirien, a antiga rainha de Amantia, isso significava que as duas famílias, Ascardian e Arbarus eram uma só!
Continuei lendo, folheando as páginas e procurando por qualquer coisa sobre as Almas Elementais. Ao passar as páginas notei uma um pouco amassada, onde a caneta havia sido pressionada com mais força e as manchas de lágrimas ainda estavam lá, aquilo não era uma cópia do diário de Yellen, era o original!
Na página estava um trecho sobre ela ter descoberto o que Higarath fazia na terra com a amante humana, ela o amava tanto que queria perdoá-lo, mas ele não parou de ir atrás da mulher, ele continuava indo vê-la. Yellen fez com que o tempo em cada um dos mundos passassem de forma diferente, menos Ciartes e Amantia, eles continuavam com tempos iguais. Ela fez aquilo de forma aleatória, não sabia que na terra o tempo passava mais devagar.
Fiquei naquilo o a maior parte do dia, não quis sair para almoçar, pois estava muito vidrada lendo o diário de Yellen e esperando Caalin aparecer. Não fazia ideia do que ele estava fazendo, ou porque não havia voltado ainda, mas depois de vê-lo destruir aquela cidade com apenas um ataque, preferi deixá-lo se acalmar primeiro.
Passava das cinco da tarde quando cheguei às últimas páginas escritas do diário, foi onde toda a alegria que eu ainda mantinha, desapareceu. Havia apenas um trecho em que Yellen havia chorado muito, onde ela havia desistido de devolver as Almas que Gaia lhe emprestou e o motivo dela não ter devolvido as Almas à Gaia era simples: Ela teria que pagar com seu próprio poder, ela teria que gastar até a última gota de seu poder para liberar as Almas, incluindo sua imortalidade, isso significava que se tornaria humana.
Se ela o fizesse, se libertasse as Almas pagando com seu poder, ela se desmancharia, viraria pó, pois tinha mais de dez mil anos. Fechei o diário e o apertei em meu colo. Yellen estava disposta a abrir mão da própria vida para criar os mundos para que seus semelhantes mágicos pudessem viver em paz, mas seu amor por Higarath a fez desistir do auto sacrifício, então ela manteve as Almas com ela até o dia de sua morte, onde já não tinha mais forças para liberá-las. Higarath tinha a intenção de tomá-las dela quando a matou, mas em seus últimos suspiros, ela dividiu as Almas entre seus filhos e foi de corpo e alma para Mogyin.
Eu estive tão perto de manhã, e nem sequer havia percebido, Yellen, Ayrana... Ela havia criado a montanha azul em Vintro, onde o poder de qualquer um ficava mais forte e mais vivo em Amantia, ela criou um altar no centro daquele vulcão para que as Almas fossem libertas, os cristais não purificavam, eles absorviam a energia, principalmente a energia maligna para poder dispersar as Almas Elementais.
Estava entardecendo quando fui para o telhado do hotel, a tempestade havia se dissipado e os sóis brilhavam no céu. Gálatas e o sol artificial criado por Leona. Fiquei sentada no parapeito do telhado observando a movimentação na praça, a festa seria algo para ser lembrado pelos próximos séculos, todos estavam felizes e alvoroçados. Eu apertava aquele diário no colo, sentindo um caroço em minha garganta.
Se eu abrisse mão da magia e dos poderes de malvarmo para liberar as Almas, seria apenas uma humana comum, se sobrevivesse quando toda a magia deixasse meu corpo. Mas sabia que precisava fazer aquilo, vivi antes como humana, sem poderes e isso não faria diferença agora.
No centro do telhado, uma bola de luz começou a crescer e vibrar, sabia que era Caalin chegando, então, antes que ele visse o livro em minhas mãos, o fiz virar farelo usando o Yinemí e limpei rapidamente as lágrimas em meu rosto. A luz se dissipou e pude vê-lo agora, ele me encarou por um tempo longo demais, mantinha os olhos negros fixos nos meus.
– Onde esteve? – perguntei casualmente, tentando mostrar que não estava com medo dele.
– Caçando os magos que fugiram da cidade. – Suas mãos estavam fechadas em punho ao lado do corpo, tentei não deixar o nervosismo transparecer em mim.
– Não sei o que dizer Caalin...
– Diga o que está pensando. – Ele não se moveu, não se aproximou de mim, então levantei do parapeito e dei um passo em sua direção, ele se moveu em minha direção rápido demais e me apertou em seus braços.
– Estava pensando que não acredito mais quando você diz que a Alma do gelo é a mais forte. – Falei contra seu peito, ele estava me apertando tanto que podia facilmente me sufocar, mas quando disse aquilo, ele apenas riu e se afastou.
– Você nunca a usou de verdade.
– Depois do que vi hoje, nem quero, só quero me livrar dela de uma vez! – Falei sentindo aquele nó voltar à minha garganta, Caalin me afastou um pouco para poder me encarar.
– Está com medo de mim? – Perguntou.
– Nunca, ainda teria coragem de te dar uma surra. – Respondi, ele riu novamente e me beijou. – Eu teria matado todos eles, se você não tivesse aparecido. – Sussurrei.
– Eu sei, mas se você tivesse feito, seria castigada, pois tecnicamente, ainda é uma das alunas da ACV, os alunos não podem matar outros alunos, e também não podem matar ninguém fora das missões oficiais enquanto não completarem o curso, independentemente de ser neta de Ewren, você teria sido castigada.
– Não me importava, não tenho medo de castigo algum! – Caalin franziu o cenho.
– No entanto, morre de medo de Sereianos. – Disse baixinho para mim, senti minha pele se arrepiar, ele gargalhou da minha cara assustada. – Nossa! Tantas coisas assustadoras de verdade, e você tem medo de Sereianos.
– Eles comem gente! – Retruquei irritada.
– Tudo bem, vamos mudar de assunto antes que eu resolva te deixar com medo de tudo! Já que eles não ensinam muitas coisas para vocês na ACV! – Disse ele passando a mão em meu cabelo.
– Vai reivindicar o trono de Vegahn? – Perguntei, Caalin fez uma careta, mas assentiu.
– Mesmo que eu dissesse não, Aliver iria me denunciar aos Anciãos, e de qualquer forma eu teria que voltar ao trono. Graças ao seu tio de boca grande! – Ele grunhiu.
– É para o bem de todos, Caalin! – O repreendi.
– Eu sei.
– E Frayena? – perguntei, Caalin ergueu as sobrancelhas, tentando entender a pergunta. – Quando Susano falou sobre os últimos dias dela, entendi que ela era bem... velha. – Ele acenou. – Velha quanto?
– Muito velha, mas tinha aparência de uma mulher lá pelos seus vinte e cinco anos...
– Qual a idade? – Caalin sorriu de forma maliciosa.
– Doze mil...
– Ela não tinha filhos?
– Frayena nunca havia se casado antes de mim. – Fiquei em silêncio olhando para ele, que começou a rir novamente. – Ela não gostava de machos.
– Sério? – Ele assentiu.
– Então vocês...
– Ela nunca me deixou chegar perto! – Acabei rindo. – O que foi?
– Ela iria ter mudado de opinião! – Ele riu também.
– Vamos descer, o casamento será às seis, Susano vai fazer a noite cair mais cedo hoje! Depois terei que voltar com Aliver para Vegahn e arrumar as coisas por lá. – Ele tinha uma expressão cansada no rosto, antes que saíssemos do telhado, segurei sua mão e a beijei.
– Eu vou estar lá com você, vou te ajudar com isso! – Falei.
– Claro que vai! Parte disso é culpa sua, acha que te deixaria escapar disso? – Ele gargalhou. – Vou adorar ver você de noiva no altar de gelo. – Meu estômago afundou.
– Você é mau, Caalin! – sussurrei.
– Você nem faz ideia! – Ele me deu um sorriso malicioso e me guiou de volta ao castelo.
15
Caminho do Deserto
Encontramos com Annie e Asahi no corredor no caminho até o salão principal, elas estavam arrastando Oriel, que tinha uma expressão de tédio gravada no rosto e nem tentava disfarçar. Oriel pareceu aliviada ao me ver, ela soltou o braço de Caalin que estava ao meu redor e me arrastou para longe dele.
– Vamos começar a nos arrumar! Aliver queria te ver! – Disse Oriel mostrando a língua para Caalin, ele deu um suspiro de irritação e acenou para ela, não sei se ela mudaria o modo de falar se soubesse que estava falando com o verdadeiro rei de Vegahn.
– Nos vemos depois! – Falei acenando para ele e me deixando ser arrastada por elas por uma escadaria, atravessamos os corredores do castelo.
– Preparei um vestido maravilhoso para Nike! – Disse Oriel depois da tagarelice de Asahi e Annie sobre os vestidos, Annie tinha escolhido outro para mim e agora ela e Oriel travavam uma batalha para saber qual dos dois eu usaria. Oriel começou a soltar fogo pela boca quando Annie disse ter um bom gosto melhor que o dela.
– Vou usar o de Annie, Oriel! – Falei por fim, colocando um ponto final naquela briga. Oriel me olhou incrédula, magoada e me fulminou com o olhar, ficou em silêncio o resto do caminho pelos corredores vermelhos e dourados até a sala de banho, que diferente do resto do castelo, era completamente verde! Pedras verdes rajadas de tons terrosos no piso e paredes feitas com conchas esverdeadas e peroladas, o vapor tomava conta de todo ambiente e o som das águas caindo das piscinas de pedras era tranquilizante.
Ao perceberem que estávamos lá, Karin, Palloma, Nyumun, Áries, Leona e as outras mulheres, elas nos deram rápidos cumprimentos e sorrisos, mas voltaram sua atenção para a noiva, afinal era o dia dela, apenas Leona continuava lançando olhares para mim, analisando-me. Karin parecia radiante e não parava de sorrir.
– Vamos! – disse Annie nos puxando para uma área separada por vestiários com paredes de bambu trabalhados com conchas e fios dourados. Antes de entrarmos lá, segurei o braço de Oriel, que ainda estava zangada comigo e a puxei para um canto.
– O quê? – Ela rosnou.
– Deixe Annie me colocar no vestido que ela quiser, eu deixo você escolher o do meu... casamento. – Consegui fazer a palavra sair com uma careta, nem sabia ao certo se teria um, se sobreviveria à magia para libertar as Almas. Ela arqueou as sobrancelhas e riu.
– Do jeito que você falou, casamento parece ser uma coisa horrível.
– Não é, só que de tanto Merian falar que eu nunca me casaria, acabei acreditando... fora que eu nunca poderia dar uma família de verdade a ele. – Suspirei contando apenas meia verdade, Oriel pegou um palito que estava num cesto de vime em cima de uma mesinha e enrolou meu cabelo, prendendo-o num coque.
– Ele sabe disso? – ela perguntou, assenti sem tirar os olhos dos seus. – E ele disse que não queria mais você depois que soube disso?
– Não, mas sei...
– Você não sabe de nada, Nike! Mas se fosse o contrário, você se importaria?
– Claro que não! – respondi.
– Então, tá ai sua resposta! Agora vamos! Você tem que tomar um banho! Está fedendo às folhas daquela Árvore! – Disse ela me empurrando para o trocador.
Entramos na piscina com as outras mulheres, Leona e Áries agora olhavam para mim e cochichavam baixinho.
– Senti sua falta por aqui! – Disse Karin vindo até onde eu estava sentada me banhando, ela sorria de forma doce.
– Senti falta de todos daqui também! – falei.
– Mas não tem intenção de ficar, não é? – Perguntou.
– Não, minha casa não é mais aqui! – Respondi. Melanie também me encarava de forma estranha e aquilo me irritou muito, porém Asahi sentou ao meu lado e passou um braço ao redor de meus ombros, fazendo com que Melanie desviasse o olhar. Tive que aguentar aquilo em silêncio por um bom tempo, mas os olhares de Leona e Melanie para mim começaram a me irritar tanto, que fiz a água ficar gelada, cheia de gelo na verdade, fazendo com que todas saíssem dando gritinhos assustados. Annie gargalhou e saiu da água também, por um instante achei que ela fosse derreter o gelo, aquecer a água novamente, mas ela não fez.
Saí da água e me enrolei numa toalha, seguindo Annie até o vestiário, mas no meio do caminho, Leona ficou parada em meu caminho olhando para mim, ela era menos de um palmo mais alta que eu.
– Algum problema? – perguntei.
– Nenhum... – Ela baixou os olhos e limpou uma lágrima que lhe escapou. – Obrigada.
– Pelo quê?
– Você, aquele dia, conseguiu tomar o controle de volta e não feriu Nyumun, depois ainda se livrou de Fairin.
– Tudo bem! – Não sabia o que lhe dizer, ela me deu um abraço, me senti completamente desconfortável, mas sorri de volta para ela e fui até Annie, ela me fez vestir um roupão e me arrastou para seu quarto, deixando as outras para trás.
O quarto de Annie era lindo! Não tinha a mesma decoração vermelha e dourada que o resto do castelo, era verde-musgo com salpicos de tintas com as cores de outono e os móveis eram trabalhados em troncos e galhos de árvores, a cama redonda tinha um dossel circular e um véu verde-claro cobria a cama, fazendo parecer que estávamos dentro de uma floresta.
– Homenagem a Susano. – disse ela timidamente segundo meu olhar pelo quarto. Deixei que ela me arrumasse, colocando-me num vestido azul safira, longo de renda que descia apertado até quadril e se abria numa roda de seda durada e brilhante, as alças eram feitas de pequenos cristais azuis escuros em formato de losangos e as costas eram abertas até a lombar num decote em “U” e me deu um sapato na cor dos cristais, o salto me fez soltar um gemido, mas o olhar psicótico que ela me lançou foi o suficiente para que eu ficasse em silêncio. Ela trançou meu cabelo para o lado e colocou vários daqueles pequenos cristais entre os gomos da trança, passou um delineador em meus olhos e um batom vinho.
O vestido dela era azul marinho e brilhante de tule, ela deixou os cabelos presos num coque alto e colocou um pequeno diadema dourado com rubis sobre a cabeça.
– Por que isso tudo? – Perguntei me olhando no espelho.
– Porque eu gosto de chamar atenção e no fundo eu sei que você também gosta! – Disse ela dando uma piscadinha para mim. Asahi entrou no quarto usando um vestido verde de chifon na altura dos joelhos e os cabelos escuros soltos, com uma pequena tiara de folhas prateadas presa neles, mais simples do que imaginei que ela estaria.
– Nossa Annie! Caalin vai passar mal ao ver ela assim, Kuran também, e Melanie vai querer te matar depois!
– Essa é a ideia! – Ela deu uma risadinha maléfica.
– Vamos? – Perguntou Asahi estendendo a mão para que fôssemos juntas.
– Achei que você viria com o vestido preto, Asahi! – Disse Annie enquanto caminhávamos pelos corredores em direção à saída principal. Asahi apenas riu em resposta.
Ao chegarmos à escadaria do castelo que ia até a praça, meu estômago começou a dar cambalhotas. Susano havia realmente mergulhado Ciartes em uma noite, porém a lua das fadas brilhava forte e azul no céu, na praça, pequenas folhas vermelhas e laranjas flutuavam, iluminando todo o ambiente. Desde a entrada do castelo até o altar havia uma trilha feita com areia fina do deserto, e o altar era feito de pedras redondas brancas e orquídeas vermelhas as decoravam.
– Por que aqui fora? – perguntei.
– Porque Ericko quer mostrar ao povo que não os exclui de nada! A festa é para todos os habitantes da Cidade do Sol também, e em todas as cidades, hoje será um dia de festa!
– E a trilha de areia?
– Tradição! A trilha do deserto simboliza a jornada árdua e a caminhada através das dificuldades até a paz e a felicidade da união de duas almas. – Disse Annie segurando minha mão e me levando até onde os convidados estavam sentados em cadeiras brancas, os soberanos dos onze mundos restantes, criados por Ayrana estavam ali. Caalin não havia tomado seu lugar na primeira fileira ao lado de vovô, o Rei de Amantia, que estava ao lado de sua rainha, Leona era simplesmente linda! Ela deu um pequeno sorriso para nós e piscou para Asahi. Aliver estava ali, ao lado deles e deu um sorriso e um aceno para nós, quando passamos por eles. Asahi corou e apertou mais meu braço.
– Aquele é o rei de Vegahn? – Perguntou.
– Por pouco tempo... – Respondi, ela sorriu. – Você não o tinha visto ainda? – perguntei, ela negou com a cabeça e foi sentar-se ao lado de Nyumun e Siorin, eles estavam sentados perto de Kuran, Melanie com o rosto apoiado no ombro dele, sorria feliz. Atrás dos dois, um sereiano ruivo simplesmente lindo estava os observando, fulminando Kuran com o olhar e uma elfa exatamente igual vovô Ewren estava ao lado dele.
– Aquele é o pai de Melanie e Datani? – perguntei a Annie.
– Lindo, né! – Ela deu uma gargalhada divertida e foi comigo até onde Susano e Caalin nos esperavam.
Caalin me olhava vidrado enquanto nos aproximávamos, senti meu rosto corar pelo olhar malicioso em seus olhos.
Ao me sentar em seu lado, Caalin passou o braço em volta de minha cintura e tocou minha orelha com a boca:
– Eu vou rasgar esse vestido inteirinho essa noite...
– Não se atreva! É uma obra de arte! – Grunhiu Annie para ele, ela nem sequer disfarçou que estava ouvindo o que ele disse e acendeu as pontas dos dedos, transformando-os em brasas, Caalin apenas riu e piscou para ela.
– Por que essa cor? – perguntou ele para Annie.
– Porque ela fica linda com essa cor e porque a faz combinar com você! – Disse Annie apertando minhas bochechas, Susano e eu reviramos os olhos ao mesmo tempo.
– Ela combinaria comigo em qualquer cor, princesa! – Caalin sorriu e piscou para mim, deixando-me corada.
Não demorou muito para estarem todos sentados em seus lugares, Ericko apareceu no altar vestido com uma túnica branca de seda e calça cor de areia, ele estava descalço sobre a areia do altar, estava com os cabelos ruivos até a cintura soltos e usava a coroa feita das folhas da Árvore do Fogo. Parecia tudo muito simples para a forma que Annie nos arrumou.
– Durante a festa eles trocam de roupa, não se preocupe! – Disse ela notando meus olhares preocupados.
Quando o pequeno grupo de Salamandras começou a cantar, todos ficaram de pé, a noiva apareceu na trilha de areia na escadaria do castelo, lá na frente via Leona começar a chorar e vovô a apertou carinhosamente. Karin estava com um vestido longo e vermelho de seda e tinha detalhes em dourado, como pequenas folhas. Os cabelos escuros estavam presos no alto da cabeça com folhas da Árvore do Fogo e ela trazia nas mãos uma pequena esfera de vidro com areia, uma miniatura do globo de areia das mãos da estátua dos primeiros Salamandras, em frente à sala do trono. Karin também estava descalça e caminhava conforme a melodia da música aumentava.
– O globo significa que como esposa e rainha ela dividirá o peso do mundo com ele, suas obrigações como rei e as dificuldades que tal título representa. – Sussurrou Annie para mim, não fazia ideia de quantas coisas bonitas existiam nas tradições deles, sempre fui movida pela vingança e nunca os estudei, nunca acompanhei seus costumes.
Quando ela chegou no altar e a música parou, Karin estendeu aquele pequeno globo de areia e Ericko colocou sua mão por debaixo da de Karin.
O sacerdote começou a falar e eu parei de prestar atenção àquilo, Caalin segurava minha mão entre as suas e fazia pequenos círculos em minha palma aberta. Engoli em seco olhando aquelas mãos grandes e brancas, as garras transparentes quase iguais as minhas, olhei para seu rosto, os olhos safira fixos na cerimônia, ele percebeu que eu o estava encarando e sorriu para mim.
Depois dos votos e da pequena folha vermelha aparecer nas mãos deles, os convidados se levantaram e aplaudiram, seguindo o casal, os soberanos de Ciartes, até a festa no centro da praça. Deixei que Caalin me levasse até lá, onde todos dançavam e sorriam, comemorando a aliança entre dois mundos. Ericko e Karin estavam tão felizes que pareciam brilhar, não pareciam, Ericko estava com sua pele quase pegando fogo e sorria, era como se o mundo deles estivesse em outro lugar.
– O que tem de errado? – perguntou Caalin ao meu ouvido enquanto dançávamos uma música suave e lenta no meio da praça, Leona e Ewren estavam bem perto de nós e pareciam perdidos em seu próprio mundo também.
– Nada! Por que acha que tem algo errado?
– Você está com o mesmo olhar de Ira quando ele fica vários dias sem comer. – Ele sussurrou fazendo-me rir.
– Talvez porque não tenha comido nada o dia inteiro além do sorvete que Ericko levou para mim depois que voltamos de Nakhlans. – Caalin apertou um pouco mais os dedos em minha cintura.
– Então essa cara é fome?
– Provavelmente. – respondi.
– Por que mentir pra mim? – Ele parou de dançar e segurou meu rosto entre as mãos.
– Não estou mentindo, tô morrendo de fome! – Resmunguei fazendo bico.
– Nike.
– Eu disse que Ciartes é uma merda! Estou incomodada com o calor, com as roupas escandalosas, com fome... – Ele me encarou por um longo momento com os olhos semicerrados e seus lábios se apertaram.
– Caalin! – Aliver e Oriel estavam bem perto de nós, para meu alívio eles interromperam aquele olhar que poderia a qualquer momento perfurar minha alma, meus bloqueios e ver o que estava escondendo. Aliver veio rápido até Caalin e começou a falar baixo, o suficiente para que eu não escutasse. Asahi me puxou pelo braço e me levou para longe de Caalin e Aliver.
– O que é? – Perguntei, ela revirou os olhos e sorriu.
– É errado querer me dividir em duas e ficar com Kuran e com Aliver?
– É claro Asahi! Muito errado! – Resmunguei achando que ela teria me levado até ali para falar algo sério, porém, as palavras dela fizeram uma das memórias de Fairin voltar à minha mente e meu corpo inteiro vibrou com a possibilidade. – Asahi, você é um gênio! – Quase gritei as palavras, fiquei nas pontas dos pés e beijei sua testa.
– O quê?
– Onde está Susano? – Perguntei apertando os braços dela. Asahi olhou por cima do ombro, onde Susano e Annie dançavam. Sem dar explicações a Asahi voltei até onde Caalin e Aliver conversavam.
– Precisamos voltar para Vegahn, agora! – Disse Caalin num baixo rosnado.
– O que houve? – Perguntei.
– Tentaram invadir o Castelo de Gelo, porém Zion os colocou para correr. Mas ela disse que Hobner ameaçou voltar. Eles descobriram sobre as armas danificadas e estão ameaçando destruir Blizzion! – Explicou ele olhando em volta.
– Como soube? – Perguntei. Ele apontou Hisana no meio da multidão, não havia a visto entre os soberanos, no lugar dela estava um homem de pele escura e olhos prateados.
– Não posso voltar agora, Caalin, tenho algo a fazer e é importante! – Falei apertando o braço de Caalin, sabendo que talvez ele não interpretasse aquilo muito bem, mas para minha surpresa ele assentiu.
– Não arrume problemas e fique fora de perigo!
– Digo o mesmo! – Ele sorriu dando um beijo em minha testa e saiu da festa, seguido por Aliver, Oriel e Hisana.
Corri até onde Susano e Annie estavam dançando e os interrompi.
– Susano, preciso de sua ajuda! – Falei baixo para que ninguém mais nos escutasse. Annie parecia confusa.
– O que está havendo? – Perguntou ela olhando onde Caalin e Aliver desapareceram alguns instantes antes.
– Te explico depois! Confie em mim, tudo bem? – A abracei rapidamente, pegando o braço de Susano e o arrastando comigo.
– O que está acontecendo, Nike? – Ele perguntou olhando-me desconfiado.
– Já vai saber!
Entramos no hotel de Gih, que estava completamente deserto e subimos as escadas praticamente voando até meu quarto, havia trancado a porta com selo de sangue para evitar que alguém entrasse ali durante a festa. Peguei o Livro das Sombras escondido dentro da caixa de prata debaixo da cama.
– Nos leve para Vintro! – Pedi a Susano, ele não questionou, apenas passou um braço ao redor de meus ombros e a luz dourada nos cobriu, não me incomodei com o puxão da magia ou com o meu estômago se revirando agitado.
Caalin:
Os Anciãos ainda olhavam para mim sobressaltados, estavam com as mesmas expressões de adoração desde a hora em que entramos no Templo em Vilehas, nas montanhas do extremo sul de Blizzion, próximas ao Mar Negro, o Templo do Gelo Eterno. Havíamos chegado ali a pouco mais de uma hora, acompanhado de Hisana e Aliver, que insistiu que eu reivindicasse o direito à coroa o quanto antes, para evitar que Hobner e Ausiet atacassem novamente, pois o meu nome era conhecido e eu seria respeitado pelo povo de forma que ele não era, assim, Hobner e Ausiet perderiam seus “seguidores”, ainda mais com um rei lendário retornando ao trono com mais de vinte milênios nas costas.
Estes Anciãos do templo eram os netos dos Anciãos que me coroaram ao lado de Frayena e me casaram com Merry, embora eles não parecessem ter mais que trinta anos, tinham pelo menos cinco milênios de vida. Dei um sorriso feral a eles quando o mais velho de todos, Claris, apareceu com um globo de vitrino com uma pequena mecha de cabelo trançada no seu interior e meu nome escrito em letras de ouro, dentro do vitrino também.
Aquele era o globo feito com meu sangue, então ele só reagiria a mim. Claris ainda se lembrava de mim, ele era apenas uma criança quando estive ali pela última vez, pouco depois da destruição de Treezer. O olhar de profunda admiração quando ele se aproximou dizia isso, mas ele tinha que provar aos outros Anciãos, eu tinha que provar a eles que era o verdadeiro rei.
Claris estendeu o globo para mim, olhando-me nos olhos, ele tinha os olhos cor de vinho como a maioria dos nascidos Malvarmos, apenas alguns transformados, como eu, mantinham a coloração original dos olhos.
– Caalin Arbarus Ascardian, prove ser o verdadeiro e único rei de Vegahn. – Estendi as mãos para que ele colocasse o globo na concha, quando o vitrino tocou minhas palmas abertas, sua cor se alterou, tornando-se vermelho brilhante e o globo ficou quente. Os Anciãos ali se sobressaltaram e se ajoelharam.
– Scutum Glaciem! – Eles saldaram com as mãos em punho sobre o coração, senti um desconforto com aquilo, mas era para o bem de todos, era para o bem dela também!
Nikella estava escondendo algo de mim, algo ruim, pois era muito difícil que ficasse com aquele olhar tristonho, perdido. Queria ir até ela, saber a verdade, exigir que ela me contasse o que quer que fosse que a estava deixando daquela maneira.
Não escutei nada que eles disseram depois da saudação de honra de Vegahn, apenas deixei que me levassem de volta ao Castelo de Gelo, enquanto os mensageiros se espalhavam por Vegahn para contar sobre o retorno do Rei, o filho da criadora que havia voltado ao trono. Aliver, para minha surpresa, não estava triste com a saída do trono, parecia até aliviado, como se aquilo fosse um fardo pesado demais para seus ombros jovens.
– Sei que não era isso que queria. – Disse ele enquanto voltávamos ao castelo.
– Não, não era. Mas é por uma boa causa. – Respondi, Hisana estava sentada ao meu lado na carruagem, que cortava os céus, puxada por quatro Fermans, ela estava analisando-me, e tinha um sorriso tristonho no rosto.
– Os Arbarus são soberanos em todos os mundos, parece até algum tipo de maldição. – Disse ela num suspiro. – Por mais que tentemos nos libertar, viver livres, a obrigação volta até nós. – Eu assenti, aquilo era quase verdade, pois os Arbarus eram os guardiões, então, estávamos sempre no lugar em que o povo mais precisava de nós.
– Que idade você tem? – perguntou Aliver curioso, passando os olhos descaradamente pelo corpo dela, His soltou um rosnado e lhe mostrou os dentes.
– Sou velha demais para um pirralho como você! Então, tire esse olhar predatório do rosto, filhote, pois se eu me transformar, eu devoro você como prato de entrada! – Ela tinha um sorriso maligno no rosto, mas não fez Aliver se encolher, ele mal ligou para as sombras negras de Nike, não seria uma lobisomem com um quarto da minha idade que o assustaria.
Porém Claris se encolheu no banco ao lado de Aliver, ainda com o pequeno globo de vitrino na mão, objeto necessário para provar a todos quem eu era. Rapidamente lhe passei algumas informações para que não dissesse bobagem diante dos governantes, e lhe passei detalhes importantes, para o caso de alguns ainda se oporem a mim.
Não teleportamos para o castelo, para que desse tempo de todos os governantes dos continentes e líderes das cidades, aldeias e vilas fossem levados até lá para saldarem o rei que havia retornado e provar sua lealdade ao coração de Vegahn, o rei. E se Hobner e Ausiet tivessem um problema comigo, eles não deixariam a sala do trono, não inteiros, pelo menos.
Chegamos ao castelo após meia hora de viagem, Se Nikella estivesse conosco, ela teria adorado os Fermans que puxavam a carruagem de gelo, eram iguais as fênix, porém brancos e peludos. Zion nos recebeu nos portões do castelo com Ira nos ombros, ela também havia sido avisada sobre as mudanças, pois quando me viu entrando à frente dos outros, fez o sinal sobre o peito e sorriu.
– Onde está sua futura rainha? – Perguntou ela andando ao meu lado. Olhei para o esqueleto do dragão envolto em vitrino em frente às portas do castelo e sorri, agora elas combinariam perfeitamente com os soberanos daquele lugar.
– Está em Ciartes, é melhor que fique lá até termos a certeza de que está tudo seguro por aqui! – Expliquei enquanto entrávamos e atravessávamos os corredores. O brilho azulado e fantasmagórico daquele lugar era sempre o mesmo, porém, quando Nike estava ali, aquele castelo tinha vida.
Ao entrarmos no salão principal, notei que estava cheio, os rostos conhecidos dos líderes e governantes, muitos me conheciam como o assassino e caçador de Cahadris e de Aliver, eles nem faziam ideia de quem eu era na verdade quando livrava suas cidades de problemas.
Claris andou atrás de nós em silêncio, ele estava vestido com o manto cinzento e azul dos sacerdotes e seus cabelos brancos na altura dos ombros estava trançado. Ele mantinha a postura séria e a cabeça erguida, olhando para o além.
Hobner e Ausiet estavam na primeira fila, de pé diante do trono e trocavam palavras baixas, sem terem reparado que já estávamos dentro da sala. Quando finalmente cheguei ao trono, eles ficaram mudos, os olhares surpresos que me lançaram foi o suficiente para que eu soubesse o que eles estavam pensando. O medo escondido no fundo daqueles olhares surpresos.
Aliver parou ao lado do trono azul e branco adornado por safiras, eu andei até ele e o olhei uma última vez antes de me sentar, odiando aquela sensação, odiando estar novamente ali.
– Eis o rei Caalin Arbarus Ascardian, que desapareceu após a última grande guerra! – Começou Claris, ele estendeu o globo para mim e o colocou em minha mão. Assim que o metal ficou vermelho sangue, os murmúrios começaram, muitos se sobressaltaram e olhavam espantados, assustados ou admirados. Já podia ouvir as perguntas se formando nas mentes dos presentes, “onde esteve todo esse tempo?” “Porque não voltou antes?” Mas não importa quem as fizesse hoje, não iria responder ninguém. – Ele retornou em tempos difíceis para reestabelecer a paz e trazer novos tempos a Vegahn! – Claris tirou a coroa de Aliver e a colocou em mim. – Scutum Glaciem! – O sacerdote fez uma reverência e todos na sala se ajoelharam e saudaram também. Hobner, mesmo de cabeça baixa mantinha os olhos em mim, e sabia que aquilo não tinha acabado, ainda não. Fiz um aceno para Claris que continuou:
– E como prova de que o melhor está por vir para Vegahn, o Rei Caalin irá estabelecer uma aliança com Amantia, através do casamento com uma das herdeiras do Rei Ewren Ascardian Lomérius! – Disse Claris, Ewren entrou na sala e a atravessou em passos largos, fez uma breve reverência e apertou minha mão. O olhar mortal em seu rosto era quase reconfortante, então sorri de volta. Hobner e Ausiet mantinham os olhos em nós, assustados.
– Sabe que eles dois não tem nenhuma intenção de desistir, não sabe? – Sussurrou Ewren para mim.
– Eles vão ter o que merecem em breve. – Respondi.
– Não a coloque em risco, Caalin. Ela já esteve em problemas demais em Ciartes...
– Eu sei. – Queria lhe falar algumas verdades, mal havia descoberto sobre ser seu avô e já queria impor sua dominância sobre ela, mas era melhor não discutir por enquanto.
Os dispensei antes que começassem as perguntas, alegando que tinha muitos afazeres e problemas a resolver, enfatizei essa parte olhando diretamente para os dois governantes. Quando todos saíram, Ewren me acompanhou até o lado de fora do castelo, onde o dragão repousava eternamente na escultura de vitrino.
– Combina com esse lugar! – Disse ele cruzando os braços e analisando a estátua. – Um dragão congelado.
– Foi sua neta que o fez! – Ri com a lembrança, Ewren sacudiu a cabeça e riu também.
– Leona domesticando dragões e Nikella os matando.
– Na verdade, ela tentou domesticá-lo, mas ele estava protegendo um ovo... – não consegui terminar a frase, algo parecia que me rasgaria de dentro para fora. Uma força pulsando em minhas veias, queimando e se dissipando. Era a Alma dos raios, parecia que estava lutando para ficar em meu corpo, mas ela estava sendo arrancada de mim por um poder tão grande que me fez dobrar os joelhos, até que eu o senti, senti a Alma dos raios me deixar e desaparecer numa bola de luz branca e pura.
Ewren puxou meu braço, ajudando-me a ficar de pé, seu rosto bronzeado estava pálido quando ele me encarou com os olhos dourados.
– Higarath está em Amantia! – Disse ele segurando uma frágil bolha de ar nas mãos. Uma mensagem de Susano, talvez a última que ele tenha conseguido enviar com a Alma dos ventos.
– Nikella! – Grunhi segurando o machado nas mãos. Fomos engolidos pelas luzes douradas do teleporte de Ewren.
O lugar em que aparecemos parecia o inferno. Não pelo fogo, pois não havia nenhum ali, mas pelas trevas, pela escuridão e pelas sombras que pareciam ter engolido aquele lugar. Olhamos em volta tentando encontrar algo em meio à escuridão, mas nada podia ser visto ali.
– O que diabos é isso?
– A escuridão de Higarath. – Respondi.
Um único ponto de luz estava muito distante de nós, no alto e protegido por rochas e fendas.
– A Montanha Azul! – Falei sentindo a presença dos cristais, os mesmos cristais do interior de Selem. Outra luz dourada apareceu atrás de nós, segurando um cetro brilhante, fazendo uma onda de luz se espalhar por todos os lados;
– Asahi, vá embora daqui! – Ewren rosnou para ela, mas ela não lhe deu ouvidos.
– Kuran está lá! – Ela falou num soluço apertando o peito. Ele era seu guardião de sangue, pois ela havia dado seu sangue para salvá-lo, e pela forma que ele apertava o peito, a coisa não estava boa.
– Vá para casa, cuidaremos de tudo aqui! – Ele a segurou, mas ela se desvencilhou e fez três lobos grandes de terra aparecerem sob nós, então eles dispararam em direção a montanha. – Asahi! Não me desobedeça!
– Eu vou levá-los até lá! Depois prometo que volto para casa! – Ela parecia implorar, mas ele assentiu, as marcas douradas em seus braços acenderam, ela transferiu parte de sua energia para os lobos e corremos ainda mais rápido.
Conforme nos aproximávamos da entrada do vulcão, ouvi o som das espadas se chocando, metal com metal e gritos, muitos gritos, aquilo fez meu sangue ferver. Entramos correndo por uma passagem estreita que levava a um imenso salão no interior da montanha, escavado e forrado por aqueles cristais azuis, eles brilhavam suavemente quando entramos.
Lá dentro estava um caos, no centro daquele salão, uma barreira de proteção havia sido erguida, uma jovem ajoelhada do lado de fora da bolha a estava mantendo intacta, ela usava todo seu poder para manter aquela barreira e dentro dela, junto com seis bolhas de luz coloridas, estava Nikella.
16
O fim dos selos
Nikella estava com os braços estendidos sobre dois cristais longos, que mais pareciam duas lanças apontando para o teto, das palmas de suas mãos, sangue escorria sobre aqueles cristais e seu poder era transferido para dentro deles, aquilo fez meu sangue congelar.
Corri o mais rápido que pude e alcancei a barreira, mas quando a toquei, fui repelido com um choque violento, era uma barreira espiritual. No chão, em volta daquele altar, havia duas mandalas grandes, uma dentro da outra, uma mandala de invocação e a outra de liberação, Nike não parecia me ver, seus olhos estavam desfocados e as marcas do selo sombrio desapareciam aos poucos de seu corpo.
– Nike! – berrei batendo na barreira, mas ela não reagiu. O som de metal se chocando chamou minha atenção para o que realmente estava acontecendo em volta. Higarath estava ali, de pé lutando contra Susano, Kuran e Annie. Os três estavam feridos, e agora Ewren assumia a luta também. Higarath urrava e girava a espada violentamente, tentando abrir caminho até a barreira.
Quando ele me viu ali, seu olhar se tornou ainda mais animalesco e ele virou sombras e apareceu atrás de mim, girando a espada para me golpear, ergui Sielem e impedi seu primeiro ataque, mas ele foi mais rápido e começou a brandir a espada numa velocidade assombrosa, atacando cada vez mais rápido, tentando quebrar meu bloqueio. Seu alvo era a menina que mantinha a barreira de pé, percebendo isso, lancei uma barreira em volta dela também.
– Saiam de meu caminho! – Ele urrou fazendo as sombras se espalharem e criarem formas físicas para nos atacar, ouvi um grito de dor e defendi seus outros ataques, Higarath brandia a espada violentamente contra mim, porém de forma desesperada demais, e isso estava lhe custado muito, pois os meus ataques o acertavam, mas era como se não estivesse acertando nada além de sombras e fumaça. Olhei de soslaio para o lado de onde o som havia vindo e senti meu estômago revirar. Susano estava segurando Annie pela cintura, ela tinha um rasgo no peito feito pelas garras das criaturas malignas, ela estava banhada em sangue e fazia força para tentar respirar.
As sombras os estavam encurralando, eles seriam mortos por elas se eu não fizesse algo imediatamente, porém um pulso de energia fez as sombras se desmancharem. Olhei para a barreira ao mesmo tempo que Higarath, ele rosnou ao ver o que tinha nas mãos ensanguentadas de Nike. O Livro das Sombras estava aberto e manchado com seu sangue, não sabia ao certo o que ela havia feito, mas havia conseguido paralisar as sombras que Higarath mandou contra eles.
– Eu vou rasgar você ao meio! – Gritou ele avançando sobre a barreira, mas eu girei Sielem e o acertei no meio do peito, jogando-o contra uma parede de cristais, que soltaram-se da parede e caíram sobre ele. Fui em sua direção com o machado nas mãos, talvez essa fosse a chance de matá-lo, Higarath se levantou em meio aos cristais, puxando as sombras novamente para ele, os olhos castanhos vidrados, olhando apenas a barreira atrás de mim, como se não representássemos ameaça alguma a ele.
Os demônios de sombras voltaram e começaram a se mover lentamente, ainda estavam sob influência do poder que Nike lançou sobre eles, mas sentia aos poucos aquela energia deixando-a, sendo consumida por aqueles cristais conforme seu sangue era absorvido para dentro deles. Aquilo não estava certo! Se ela continuasse assim...
– Nike! – Gritei, ela abriu os olhos em minha direção e deu um meio sorriso. Higarath grunhiu e as sombras se libertaram daquele selo, e recomeçaram a atacar. Dessa vez, duas vieram contra mim com as longas garras negras tentando me rasgar. Notei que a arma de Ewren não surtia nenhum efeito contra elas, mas o vitrino sim.
– Ewren! As espadas de Annie! – gritei, Kuran estava de pé ao lado dele, usando a própria espada de vitrino para mantê-los longe enquanto Susano curava Annie.
As sombras eram muitas, elas nos cercaram e começaram a atacar novamente cada vez mais rápido, uma delas me acertou, as garras abriram cortes profundos em meu ombro direito, a dor me consumiu, os ataques daqueles seres de trevas eram mais fortes e faziam parecer que a dor do aço era cosquinha comparado aquelas garras.
Ewren e Kuran também estavam tendo dificuldade em mantê-las longe. Estávamos perdendo, estávamos todos prestes a morrer, sentia os cortes daquelas garras por todo meu corpo e não conseguia me mover rápido o suficiente. Higarath estava desmanchando a barreira que fiz ao redor da jovem.
– Ei! Pedaço de merda! – Asahi apareceu na entrada da caverna com uma mulher, uma salamandra que não conhecia e com Misty, a mestra de sobrevivência da ACV. As sombras se espalharam novamente, indo até elas, mas Asahi deu um grito e girou uma lança feita de fogo, as sombras que estavam em volta delas foram consumidas por aquele fogo verde e brilhante.
– Vamos Kuran! – Berrou ela para ele, Kuran assentiu e transformou-se em brasas, ele esticou a mão na direção dela e absorveu aquelas chamas verdes, logo em seguida, explodiu num clarão consumindo todas as criaturas de sombras, mas sequer aqueceram a caverna.
Higarath deu uma gargalhada zombeteira e moveu as mãos, conjurando as sombras novamente.
– Posso fazer isso quantas vezes quiser! – Disse ele fazendo as sombras tomarem forma novamente.
– Pode, mas será que vai ter tempo de quebrar a barreira antes que as Almas se soltem? – Misty perguntou avançando sobre ele com aquela estranha arma redonda, ela se transformou em ar e se espalhou ao redor dele, prendendo-o junto com as sombras tempo suficiente para que outra chama verde irrompesse pela sala.
– Por que está fazendo isso? Desista de uma vez, Higarath! Você nunca tomará os mundos dela! – Gritei desviando sua atenção por um momento, ele fez uma careta e respondeu:
– Eu venho tentando ganhar esses mundos há muito mais tempo do que você imagina! Sabe quem manipulou a mente de Fairin? Quem mexeu com a cabeça de Veruza para que ela lançasse a maldição sobre os Arbarus? – Ele deu uma gargalhada medonha e se livrou de Misty, que cambaleou para o lado retomando o fôlego.
– Por que...
– Porque eu poderia saltar de corpo, eu dominaria o corpo e a mente dele e seria o senhor dos Doze Mundos! O lacre de vocês teria sido facilmente rompido com o poder dele se Fairin tivesse conseguido o poder daquela última menina. – Higarath olhou de soslaio para Ewren. – Ele foi o primeiro a estragar meus planos! Você, elfo, vai ser o primeiro que eu vou matar! – Higarath apontou a espada para Ewren, mas novamente Misty o atacou, impedindo-o de atacar o rei de Amantia.
Meus ferimentos estavam se curando lentamente, talvez esse fosse o poder daquelas sombras, ou talvez fosse apenas resultado da minha idade.
Algo brilhou dentro da barreira e ela se desfez no exato momento que as esferas coloridas de luz explodiram e desapareceram diante de nossos olhos.
As Almas Elementais haviam sido soltas.
Higarath urrou e atacou Misty, jogando-a em cima de Asahi, a outra salamandra o atacou, entrando numa luta corporal feroz com ele, Higarath estava furioso, ele se virou na direção de Nike que estava ajoelhada e coberta de sangue, Kuran também entrou em seu caminho ajudando a salamandra que ainda tentava impedi-lo. Fui na direção dela, mas parei no meio do caminho em choque. Ela tremia violentamente e seus olhos estavam no chão, ela deitou sobre o piso de pedra daquele altar e respirou fundo, então as marcas negras em seu corpo apagaram e desapareceram e ela parou de respirar.
Meu mundo havia parado ali. Tudo em volta não passava de um borrão, de sombras, silêncio e de escuridão.
E de novo aquilo se repetiu, só podia ser algum castigo, eu estava tão perto e não pude impedi-la de morrer. Andei até o corpo no chão e o toquei. Era real, ela era real e havia partido também. Ewren urrou fazendo as paredes daquela caverna tremerem, mas eu o ignorei.
– Caalin! – Gritou Susano chamando minha atenção. – Sinta a ligação! – Aquilo não fazia sentido algum para mim. Ele ainda segurava Annie no canto da caverna, ainda tentava curá-la e ela estava horrível, em uma poça de sangue escuro. Higarath deu uma gargalhada, livrando-se dos dois Salamandras que o atacavam e se virou para mim.
– Alguns têm o castigo que merecem! – Ele zombou pegando as espadas novamente. Avancei para cima dele sem pensar duas vezes, não sentia mais a dor daquelas feridas que ainda não haviam cicatrizado completamente, a dor em meu peito me consumia completamente e não me importava se morresse agora, ia levá-lo comigo.
Girei Sielem em punho, um presente dela, o gêmeo de sua Siferath. Golpeei Higarath com toda minha força, suas espadas partiram e não me importei quando as sombras brotaram novamente e avançaram para cima de mim. Eu só queria destruí-lo, me vingar de tudo, por tudo, mas principalmente pela gota de luz que ele havia tomado de mim. Higarath se esquivou, Sielem cravou no chão onde segundos antes a cabeça dele estivera. Os outros ao meu redor ainda lutavam com as sombras, Annie ainda estava desacordada no chão da caverna protegida por Susano, mas nada importava para mim.
Higarath brandiu outra espada num movimento rápido e preciso, um movimento que cortaria minha cabeça, mas ergui o machado e impedi aquele golpe, puxando o machado para cima e o desarmando. Ele ainda tinha as sombras, ainda tinha seus poderes, mas eu tinha um machado. Usei a ponta de lança de Sielem para rasgá-lo no meio, porém eram apenas sombras, ele se espalhou por toda a caverna, aquela massa negra e densa sufocando-nos, tentando acabar conosco de uma vez.
Asahi estava ao lado do corpo de Nikella, ainda segurando a lança de fogo que se apagava aos poucos. Talvez ela ainda não tivesse percebido que não havia mais tempo, que não havia mais o que proteger ali.
– As Almas eram apenas um poder a mais! Eu ainda posso matar os guardiões e tomar seus poderes! Ainda posso dominar os mundos com as trevas e provar para Ela que nem ela e nem vocês nunca serão páreo para mim! Ela ainda vai me pagar pelo que me tirou! – Higarath gritou, e aquilo não fazia sentido algum. Ele se manifestou em forma física novamente e aproximou das duas para pegar o Livro das Sombras aos pés de Asahi, ela estava paralisada, com medo dele.
Ele ergueu a espada, Ewren estava preso pelas sombras assim como os outros, olhando em choque a espada de Higarath descer em direção à sua filha. Nós não nos soltaríamos a tempo, não conseguiríamos ajudá-la. Por mais que lutasse, não conseguia me soltar daquela escuridão.
– Asahi... – A voz dele ficou engasgada.
A espada desceu rápida e cruel, fechei os olhos, não queria ver aquilo, não queria ver o quanto fui fraco novamente contra ele. O silêncio havia tomado conta da caverna. Mas o que era para ser o som de pele e ossos sendo partidos foi o som de uma explosão. A Alma do fogo, um fogo negro e brilhante tomou conta daquela caverna, queimando, consumindo tudo, o altar, as sombras, os cristais.
Tudo, menos nós.
O fogo não nos queimava, mas queimava Higarath, ele gritou, urrou e se debateu tentando se livrar das chamas que o consumiam. Olhei em volta, procurando por qualquer sinal de onde poderiam estar vindo aquelas chamas, até ver Kuran de pé em frente à Asahi com a palma erguida para Higarath, as marcas de Kuran que antes eram folhas vermelhas, haviam se tornado pequenas chamas azuis ao longo do braço direito, elas subiam em espiral até seu pescoço e em sua testa brilhava uma pequena chama azul, como a chama de uma vela.
Só então notei algo em mim, uma luz quente e branca pulsando dentro de mim, como se me cumprimentasse, dissesse um “Olá”!
Pequenos raios subiam em meu braço esquerdo até meu ombro.
A Alma dos raios havia voltado para mim!
Higarath fez outra onda de magia negra nos atirar para trás, ele deu um urro e desapareceu, subindo numa coluna negra em espiral para o centro da montanha.
Parecia que uma calmaria havia tomado conta do ambiente, um silêncio sobrenatural enquanto todos se olhavam, tendo a certeza que todos estavam bem, todos menos...
Me ergui do chão e andei até ela, Asahi e Kuran estavam sentados no chão ao lado do corpo segurando o Livro das Sombras, os dois se olhavam de maneira estranha, mas os ignorei, toquei em Nikella sem querer acreditar que aquilo era real. Quando a tirei do chão, o corpo se desmanchou numa pequena nuvem de cinzas. Senti a Alma dos raios tomando forma, pronta para explodir para fora de mim, mas uma mão tocou meu ombro.
– Caalin. – Era Susano novamente, Annie estava de pé ao lado dele, respirando com dificuldade, toda suja de sangue, mas sorrindo. – Vou na frente, encontro vocês no Castelo de Cristal mais tarde! – Disse ele para os outros apertando meu ombro. Luz branca e clara nos envolveu.
O frio fez meu corpo agradecer silenciosamente a Susano, não importava para onde ele tinha nos levado, mas o frio me ajudou a respirar novamente.
– Onde está me levando? – Perguntei olhando-o de canto de olho, não entendia a calmaria que senti ao pisar naquele lugar, não queria aquilo, queria apenas ficar só.
– Você já vai ver! Mandei que sentisse a ligação, mas você me ignorou! – Ele bufou o olhei com estranheza, mas andei com ele mesmo assim.
Entramos em um túnel de gelo, dentro dele havia um grande salão esculpido na neve e grandes portas de gelo.
– Que lugar é esse?
– A fortaleza de Áries, em Lastar. – Explicou ele abrindo as portas, não conseguia prestar atenção nos detalhes à minha volta, queria apenas sair logo dali, mas algo lá dentro chamava por mim.
Susano me levou até uma escadaria, por um corredor longo e finalmente até uma porta de madeira pintada de branco. Dentro daquele quarto havia uma malvarmo baixinha, Áries, ela estava segurando outra mulher sentada em uma cama, minha garganta oscilou e meus olhos queimaram e não acreditaram no que viram.
Ela ainda estava naquele vestido de renda e seda azul-safira a pele agora estava de um branco brilhante e as garras e presas também estavam lá, mas os olhos verdes e os cabelos negros longos caindo em volta da cintura ainda continuavam os mesmos.
– Desculpe por não ter ido até lá novamente! Perdi meus poderes de maga, não pude teleportar! – Ela falou torcendo o bico como sempre fazia. Andei até ela e a abracei, apertei com força, com medo que ela pudesse desaparecer, que aquilo fosse apenas um sonho. Susano e Áries saíram da sala, deixando-nos a sós.
– Como...? – Ela segurou meu rosto nas mãos e me beijou de forma suave, me cumprimentando.
– Desculpe! – Disse ela dando um sorriso tímido e tocando minha testa com a sua. Fechei os olhos e esperei ver através de suas memórias.
“Estava vendo pelos olhos de Nike:
Abri os olhos lentamente, já havia anoitecido de verdade quando chegamos a Vintro, estávamos no mesmo castelo de pedra em que estive mais cedo com vovô.
– Onde estamos, exatamente? – perguntei olhando a sala.
– Na fortaleza de Esperas, em Vintro. – disse Susano sentando em um sofá no centro da sala em que estávamos, só então percebi que era uma biblioteca e arqueei as sobrancelhas. – Desculpe, fiquei pensando no livro quando usei o teleporte! – Ele ainda me encarava preocupado.
– Descobri o motivo de Ayrana não ter devolvido as Almas a Gaia. Ela exigiu como pagamento pelo “empréstimo” de seu poder, todo o poder de Ayrana, incluindo sua imortalidade élfica. – Susano se inclinou para frente franzindo o cenho.
– Então apenas os que têm as Almas, os atuais guardiões delas as podem devolver...
– Exatamente.
– Mas o pagamento ainda é o mesmo, o que significa que quem as devolver vai... – Eu assenti antes que ele concluísse a frase.
– Não se atreva, Nike! – Susano soltou um rosnado medonho, desmanchando aquela máscara pacífica que ele sempre vestia.
– Muitos outros vão morrer se não devolvermos as Almas, Higarath tem a Alma das águas e quase roubou a dos raios também! Não dá para arriscar! – Retruquei.
– Você não vai se sacrificar assim! – Disse ele andando até mim e prendendo minhas mãos.
– Não, não vou! – Um sorriso se formou em meu rosto. – Asahi me deu uma ideia agora a pouco! Fairin fez um segundo corpo para ele e tirou dele todos os sentimentos bons, ele tirou uma parte de seu corpo e criou outra vida com aquilo para se livrar de uma parte que ele achava inútil.
– Ele era um monstro nojento!
– Sim ele era! Mas isso vai ser útil agora!
– Aonde você quer chegar? – ele semicerrou os olhos.
– Preciso que você me ajude a separar minha forma malvarmo da humana! – Susano sacudiu a cabeça negativamente.
– É loucura!
– Não é! Eu dividiria os poderes também, separaria o Yinemí e a magia negra! Viraria malvarmo, definitivamente, mas a parte humana continuaria com os poderes de maga negra. Assim sacrificaria os poderes de maga negra, deixando de ser uma e me livraria das sombras de uma só vez!
– E quem garante que sua parte humana vai te obedecer? – Ele cruzou os braços e me encarou.
– Aí é que está! Eu vou deixar o corpo de malvarmo adormecido dentro do Castelo de Cristal, você vai me levar até lá, e vou ficar no corpo humano!
– Da mesma forma que Caalin controla outros seres, como ele toma seus corpos! – Susano sorriu e me abraçou. – Você é um gênio! – disse beijando o topo de minha cabeça.
–Eu sei! – Dei uma gargalhada.
– E quanto ao Livro das Sombras? Ele não pode ser destruído com magia!
– Podemos sim! O Livro das Sombras vai desmanchar se o jogarmos em Holon!
– Isso pode dar certo! Vamos! – Ele agarrou meu braço e me guiou até uma escada escondida em uma porta no final da sala. Descemos as escadas em espiral até uma sala escura com cheiro metálico e de produtos químicos fortes. Susano bateu as mãos e uma luz forte e branca acendeu no centro da sala, iluminando uma espécie de laboratório de alquimia.
Nas paredes haviam papéis colados com anotações sobre as plantas e desenhos detalhados. Observei boquiaberta a quantidade de plantas e ervas em estufas e redomas de vidro decorando a sala, a grande maioria eram plantas extremamente venenosas que nem mesmo Lola tinha em suas estufas na ACV por causa da periculosidade.
– Deveria me preocupar com você me trazendo aqui? – Perguntei olhando distraidamente as pequenas plantas letais nas redomas. Algumas com o potencial de matar ao simples toque. Susano revirou os olhos e começou a liberar espaço em cima de uma mesa longa e branca de pedra.
– Posso te sufocar até a morte com a Alma do vento e você poderia me transformar em farelo com a Alma do gelo, então, não, não precisa se preocupar! – retrucou tirando cuidadosamente uma pequena plantinha vermelha da beirada da mesa e a colocando bem longe de nós.
– Griveriana. – Explicou, notando meu olhar curioso sobre a plantinha, suas folhas eram longas e pareciam ter folhinhas arroxeadas brotando delas, como folhas sobre folhas.
– O que isso faz? – Ele deu um sorriso sem graça e se afastou limpando as mãos com álcool.
– É um paralisante tão potente, que com um simples toque naquelas folhas, você perde o tato. Uma gota do extrato dessa planta é suficiente para desligar o sistema nervoso completamente e matar. – Dei um passo para longe dela, como se ela pudesse saltar de dentro da redoma e me morder. Susano limpou a mesa, tirando qualquer vestígio de veneno que qualquer uma daquelas plantas poderiam ter deixado, então, se apoiou na mesa e olhou para mim.
– Como vamos fazer isso? – Susano olhou para mim, a boca pressionada numa linha fina.
– Fairin criou um segundo corpo como um summon, mas usando como base as emoções que ele queria descartar, depois colocou dentro do summon um pedaço dele com uma parte de sua alma, assim Guinn criou vida. – Expliquei. – Eles eram duas consciências separadas, mas podiam compartilhar memórias.
– Então você tem que criar um summon e expulsar sua parte humana. Acho que vai precisar estar na forma malvarmo para fazer isso! – Explicou.
Então o fiz, concentrei-me na transformação em malvarmo, sentido meu corpo mudar, tudo ao meu redor continuou igual, mas a minha percepção ficou completamente diferente. Os cheiros acentuados e vivos, as cores mais vívidas e brilhantes. Estava menos de um metro de Susano e podia sentir seu cheiro perfeitamente, sua essência e algo como sândalo e grama recém cortada.
– Você é híbrido? – Perguntei abrindo os olhos e encarando-o, podia ver os raios amarelados do centro de seus olhos, ele deu um sorriso contido.
– Humano e elfo. – Ele sorriu. – nenhum de nós é humano puro. Karin também é meio elfa.
– Interessante. – Ele sacudiu a cabeça olhando-me novamente.
– Malvarmos são... estranhos. – Disse ele erguendo uma sobrancelha.
– Hã? Por quê? – Cruzei os braços e o encarei.
– Sei lá, são iguais aos Elfos na aparência, porém, são predadores, mais fortes, mais ágeis e com essa aparência... – Ele semicerrou os olhos. – Ficam parecendo dóceis, acho que por isso tenho mais medo deles do que dos outros. – Eu dei uma gargalhada e me aproximei estalando os dedos com as garras azuladas a mostra. Susano deu um passo para trás, só então percebi que ele estava falando sério, ele realmente temia os Malvarmos.
– Não acho eles tão assustadores.
– Isso tem algo a ver com Caalin? – Senti meu rosto esquentar.
– Talvez...
– Bom, vamos logo com isso, estou com fome! – Ele resmungou soltando a longa trança que Annie havia feito e cortando uma pequena mecha da parte de baixo do cabelo.
– O que vai fazer?
– Você precisa da essência para fazer um summon! – disse ele me mostrando a mecha de cabelo prateada, que depois de cortada voltou a ficar preta. Ele amarrou o cabelo e me entregou. – Agora, faça como eu te ensinei nos treinamentos com Siorin!
– Tá! – me concentrei o máximo que pude imaginando aquela mecha criando uma forma física, mas por mais que eu me esforçasse, por mais que tentasse fazer o summon aparecer, nada saía, as sombras apenas se moviam como se o outro corpo fosse tomar forma, porém desaparecia.
Quase meia hora depois ainda estava tentando conjurar um summon, mas não conseguia.
– Nike, tente usar sua magia para outra coisa! – Susano se aproximou de mim e tocou minha testa com a palma das mãos, o selo sombrio apareceu em meus braços, mas dessa vez estava num tom cinza claro, quase da cor da minha pele malvarmo.
– Isso é normal? – perguntei, Susano estava me olhando assustado quando balançou a cabeça negativamente.
– Não, não é! – Ele franziu o cenho. – Talvez o poder tenha mais autonomia do que imaginamos, talvez ele esteja tentando não ser destruído... Vamos, deixa eu te ajudar com isso. – Ele passou para trás de mim e segurou minhas mãos, como se estivesse transferindo sua energia para mim, então suas marcas acenderam.
– E agora?
– Faça o summon. – Obedeci concentrando-me na parte humana que queria expulsar do corpo malvarmo, então, aos poucos aquela mecha de cabelo ondulou e tomou forma e finalmente Eu estava diante de mim! Era estranho olhar para eu mesma, desviei os olhos do rosto inexpressivo de olhos apagados e só então percebi que ela, eu, estava sem roupas. Susano estalou os dedos, e o summon ficou vestido com uma túnica cinza e calça preta na altura das canelas, ele estava com o rosto corado, e eu deveria estar também, porém percebi algo errado em meu corpo. Arquejei tentando respirar normalmente, mas minha garganta parecia estar queimando, meu corpo inteiro doía, tudo parecia forte demais, as luzes, os cheiros e os sons, até meus movimentos pareciam errados, rápidos demais e brutos.
– Calma Nike! – Susano prendeu meus braços, mas soltar-me de seu aperto foi fácil com afastar uma criança, ele ergueu as mãos, e se afastou um passo. – Nikella, se acalme! – disse ele se aproximando de vagar.
– O que está acontecendo? – Minha voz parecia diferente, mais alta e ameaçadora.
– Você tirou sua parte humana! Não é mais híbrida! Está num corpo seu, mas totalmente malvarmo! – Ele se aproximou devagar e pegou minha mão para que eu pudesse sentir, era tudo diferente demais! Até o toque de sua mão parecia diferente, quente demais.
– Humanos do gelo uma ova! – Reclamei tentando manter a calma, a normalidade. – Parece que estou habitando o corpo de uma besta selvagem! – Grunhi e me assustei com meu próprio rosnado. Susano gargalhou, encerrou o espaço entre nós e me deu um abraço.
– Você sempre foi uma besta selvagem, Nike, mesmo humana! Só que agora seu corpo faz jus à sua personalidade! – Bufei e o empurrei, rindo também.
– O que faço agora? Apenas... transfiro a mente? – perguntei.
– Não, espere! – Susano passou os olhos pelo summon, meu corpo humano de pé em nossa frente, então ele puxou o braço do summon e pressionou a palma até que aparecesse um pequeno símbolo vermelho, uma marca pequena de um círculo com um olho dentro. Ele pegou meu braço também e o pressionou, aquela marca queimou como brasa quando apareceu em minha pele branca.
– O que é isso? – perguntei olhando as marcas gêmeas.
– Uma ligação entre vocês, na hora em que o corpo humano começar a morrer, automaticamente a alma voltará ao corpo original, pois corre o risco de sua alma aceitar o summon como o original e você ir para Mogyin ao invés de voltar ao corpo malvarmo. – Explicou. – Agora sim, pode transferir a mente! – Ele deu um passo para trás, me aproximei do summon devagar e peguei seu rosto, meu rosto nas mãos, foi uma tristeza perceber que nem como malvarmo eu fiquei maior.
Toquei a minha testa e deixei que a energia passasse de mim para ela, a sensação foi a mesma que se esparramar em uma cama macia, tomar aquele corpo, esticar a mente para que o tomasse por completo. E quando abri os olhos, tomei um susto e quase derrubei a mesa atrás de mim. Estava olhando para meu corpo malvarmo, as presas longas e as orelhas pontudas, as garras azuladas, extremamente afiadas e os cabelos prateados, o corpo branco cheio de curvas dentro daquele maldito vestido azul. Agora entendia porque Caalin queria arrancá-lo. Era lindo, eu estava linda, mas a renda daquele vestido coçava, era quente e me fazia parecer...
– Parece uma rainha! – Disse Susano segurando o corpo malvarmo desacordado.
– Parece um demônio sanguinário, isso sim! – Retruquei segurando minhas mãos e brincando com as garras. Susano riu e assentiu.
– Isso também! – Mas toda diversão havia sumido de seu rosto quando ele pegou o corpo vazio no colo. – Vou deixá-la em Lastar com Sirius e Áries, seu corpo malvarmo não está... em condições de ficar no Castelo de Cristal.
– Por quê? – Franzi o cenho para ele.
– Lá é mais seguro e frio, tenho certeza que será melhor! Agora fique quietinha aí que eu já volto! – Dizendo isso, ele sumiu em uma coluna de luz dourada.
Só quando fiquei sozinha que pude perceber o real poder das sombras, quase caí de joelhos ao sentir a pressão daquele poder sombrio me rodeando, tomando forma dentro de mim, sem o Yinemí para controlá-lo, ele circulava livre em mim. “Não precisa ficar com medo, você nos aceitou, lembra?” A voz suave sussurrou em minha mente e aquela escuridão que começou a me circular diminuiu até tudo ficar calmo novamente,
Meu coração ainda batia violentamente contra as costelas, mas me forcei a ficar tranquila, já que a escuridão havia cessado e eu não iria me transformar em uma besta das trevas, pelo menos não agora. Subi as escadas em espiral e voltei para a pequena biblioteca, andei até a janela e fiquei observando o céu noturno. A lua das fadas também brilhava em Amantia hoje, porém o céu aqui era mais escuro e as estrelas brilhavam mais intensamente do que em Ciartes e Vegahn. “Fiquei me perguntando se estaria tudo bem por lá e o quê Caalin estaria fazendo agora.”
Parecia algo bobo, mas fiquei feliz por ela estar pensando em mim, então voltei à memória:
“Um brilho atrás de mim me fez ter a certeza de que Susano havia voltado, e pelo cheiro, voltado com comida. Virei para falar com ele, mas não era Susano e sim Annie, Palloma e Kuran.
– O que estão fazendo aqui? – Perguntei. Palloma veio até o sofá onde eu estava jogada.
– Eu trouxe comida! – Palloma estendeu a tigela para mim, o cheiro fez meu estômago roncar, não havia comido nada o dia inteiro.
– O que fez com o vestido? – Annie estava olhando feio para mim, para a roupa simples que eu estava vestindo.
– Está no meu corpo verdadeiro. – Falei com um sorriso tímido mostrando a ela o símbolo que Susano havia deixado no meu braço. Kuran não olhava para mim, estava olhando pela janela, para o alto da montanha. Annie sentou na poltrona próxima à janela e ficou olhando para fora também.
– E Susano? – Annie perguntou quando acabei de comer.
– Foi levar meu corpo para Lastar. – Ela arqueou as sobrancelhas e assentiu.
– Soubemos o que aconteceu em Vegahn, Ewren nos contou sobre o rei, sobre Caalin. – A voz de Kuran saiu engasgada. – E sobre quem você é e o que fez para evitar que Ciartes fosse atacada...
– Agora há pouco chegou uma notícia de Vegahn. Os mensageiros estão indo notificar a todos os soberanos dos Doze Mundos que o verdadeiro Rei de Vegahn retornou. – Palloma explicou passando os braços em volta de meus ombros e afagando minhas costas carinhosamente.
– O que aconteceu quando foram atrás dos outros guardiões nos mundos? – Perguntei mudando de assunto. Palloma empalideceu e pigarreou.
– Encontramos a maioria dos descendentes de Ayrana, os outros Arbarus da Árvore! Mas a maioria se recusou a lutar... – Sua voz foi sumindo aos poucos até se tornar um sussurro – Passamos por todos eles, todos os mundos. E eles simplesmente nos ignoraram, muitos não tinham acesso aos seus poderes. A guardiã da Alma da terra era apenas uma criança, uma menininha humana de nove anos...
– Vocês a trouxeram para cá? – Perguntei, mas algo sombrio no olhar de Palloma fez a comida que ela havia me trazido, se dissolver junto com tudo dentro de mim.
– Pouco depois que saímos da Terra, sentimos uma presença maligna lá e voltamos imediatamente. Higarath havia rasgado a garganta da menininha para tomar a Alma da terra. – Palloma soluçou e começou a chorar, escondendo o rosto em meu pescoço, meu corpo havia congelado mesmo sem ter o Yinemí. – Nós pedimos para a mãe dela para nos deixar trazê-la, mas ela se recusou, falou que éramos monstros e afastou a menina da gente! O pior é que a menina queria vir! – Palloma contou com a voz trêmula e chorosa.
– Quando foi isso? – Perguntei sentindo meu corpo formigar com o nervoso.
– Semana passada.
– Então agora ele tem duas Almas! – Engasguei com o nó que havia se formado em minha garganta.
– Como assim, duas Almas? – Foi Kuran que perguntou, aproximando-se de mim, queimando-me com o olhar. – Ele tomou a Alma do gelo de você?
– Claro que não! Mas tomou a Alma das águas de Hisana, a rainha de Pollo.
– Então por que não sinto mais a Alma do gelo em você? – Ele perguntou, aproximando-se e respirando fundo como se estivesse me farejando. – Por que está humana também? – Ele arqueou as sobrancelhas e pegou meus braços, notando que o vitrino também havia desaparecido. Puxei os braços dele, poderia quebrar seus dentes ou lhe dar um chute nas partes baixas, mas ele percebeu minhas intensões malignas e as sombras mais fortes ao nosso redor, então se afastou.
– Não escutou o que eu disse? Esse não é meu corpo verdadeiro, é um summon que recebeu a minha parte humana, meu corpo verdadeiro é completamente malvarmo agora e está com a Alma do gelo! – Expliquei calmamente, tentando fazer as sombras cederem, era muito mais difícil mantê-las sob controle agora.
– Está a salvo. – Disse Susano aparecendo numa torre de luz dourada ao meu lado, fazendo-me quase pular do sofá.
– O que houve para você resolver fazer isso? – Kuran perguntou olhando de mim para Susano, da forma casual em que eu estava encostada a ele.
– Descobri como libertar as Almas Elementais, para que Higarath não as tome de nós, assim as Almas serão liberadas e as duas que ele tomou vão se libertar também!
– Porém vamos perder esses poderes, não é? – Olhei incrédula para Kuran.
– Não podemos “perder” algo que não é nosso, Kuran! – Retruquei rispidamente me levantando do sofá, mas Susano fechou o punho em volta de meu braço e balançou a cabeça negativamente para mim.
– É melhor que façamos isso de uma vez! – Disse Susano por fim, então explicou a eles o que eu iria fazer para que as Almas se libertassem.
Ficaram todos em silêncio por um bom tempo olhando para mim, Palloma me apertou ainda mais contra ela e respirou fundo.
– Caalin sabe?
– Não, destruí o diário de Ayrana, de Yellen. – Me corrigi. – Antes que ele o lesse, ele nunca teria me deixado vir para cá se soubesse como podemos soltá-las. Temos que andar logo, quando eu começar o ritual, as Almas irão se agitar e Higarath irá perceber nossos planos, então virá atrás de nós! – Expliquei.
– Então temos que ir até a Montanha Azul. – Susano fez um sinal para que eu me levantasse. – Vamos acabar com isso de uma vez, para que você possa voltar ao seu corpo. – Ele estava perto demais, agindo de forma diferente, de um jeito que me fez franzir o cenho.
– Algo errado? – Perguntei, Annie também o olhava de forma estranha, com ciúmes, percebi.
– Nada. – Ele deu um meio sorriso e foi até a porta grande de madeira da biblioteca. – Vamos! – Sem mais o que discutir o seguimos para fora da biblioteca.
– É agora ou nunca!”
Quando a memória se desfez, abri os olhos e a encarei, ela tinha um olhar suplicante, como se repetisse “desculpas”.
– Não acredito que você fez isso... – Falei o mais baixo que pude, tentando me acalmar, a mantive apertada em meus braços até que estivesse certo que ela não desapareceria.
– Desculpe.
– Eu vou te castigar. – A afastei um pouco para poder encará-la, ela mordeu os lábios, evitando um sorriso.
– Se me lembro bem, você estava me devendo por não ter me contado que Kuran estava vivo! – Ela semicerrou os olhos. O que ela havia feito era infinitamente mais grave, mais perigoso e quase me enlouqueceu, mas ela havia pensado direito e havia dado um jeito de se proteger.
– Tudo bem, estamos acertados então! – disse beijando-a e passando a língua em sua boca. – Mas ainda estou cismado com esse vestido azul! – Falei baixo ao seu ouvido, ela respirou fundo e me apertou com força num abraço, parecia que nada havia mudado nela, o cheiro ainda era o mesmo, os olhos os mesmos, tudo exatamente igual.
– As Almas voltaram, não foi? – Ela perguntou num sussurro.
– Não sei por que, mas elas voltaram! – respondi.
– Eu as ouvi. – Me afastei um pouco para encará-la. – Quando as libertei, quando eu usei até a última gota do poder para liberá-las, eu as ouvi falando comigo. Elas disseram que nós éramos mestres melhores, elas ficaram um bom tempo aqui comigo e me perguntaram se eu achava que elas deveriam voltar para nós, voltar aos guardiões que elas serviam, ou se dissipar nos mundos. Eu pedi que elas ficassem conosco pelo menos até nos livrarmos de Higarath, mas que elas estariam livres e não presas ao acordo que Ayrana fez com Gaia.
“Então elas disseram que só as seis juntas porem matá-lo e que vão ficar com seus guardiões até que seus dias chegassem ao fim! – Ela sorriu para mim e beijou a marca dos raios em minha mão direita. – Só que a mestra da Alma da terra, a menininha chamada Bia morreu. Então a Alma da terra ficou comigo também! Mas eu só consigo acessar o Yinemí, só consigo fazer ele responder a mim, a Alma da terra não!
– Talvez porque você tenha afinidade apenas com a Alma do gelo, já que você sempre a teve! – respondi.
– Talvez!
– Se você não tivesse pedido as Almas para ficarem conosco, Higarath teria matado Asahi. Mas quando as Almas voltaram, Kuran foi o primeiro a perceber e lançou as chamas negras contra Higarath. – Ela respirou fundo e pressionou meu rosto com as mãos, todas as marcas, as feridas que eu tinha pareceram congelar por um instante, então todas elas desapareceram, junto com o sangue transparente que me cobria.
– O lado bom, é que agora podemos usá-las para coisas boas também! – Ela deu um sorriso, fiquei admirando aquele sorriso lindo, aquelas presas afiadas, uma humana que havia se tornado malvarmo sem passar pela transformação convencional.
– Onde está todo mundo? – Ela perguntou saindo da cama e indo em direção à porta, mas a impedi.
– Os veremos depois! Eles foram para o Castelo de Cristal, devem estar todos descansando agora. – A peguei no colo e fiz o teleporte nos levar de volta a Vegahn.
Nikella:
Minha barreira ainda estava em volta do castelo, firme e forte, como se nunca tivesse perdido meus poderes, então o teleporte nos deixou do lado de fora do castelo. Entramos no castelo em silêncio, sendo vistos apenas pelos guardas. Caalin não disse nada, apenas me arrastou para dentro até seu quarto. Não havia notado a coroa de prata em sua cabeça até então, ela era em forma de flocos de neve ligados uns aos outros por safiras em formato de gotas.
– Nem estava aqui para ver Hobner e Ausiet tremendo de medo da cabeça aos pés! – disse ele fechando a porta do quarto atrás de nós. Era um prêmio estar ali novamente, ambos vivos.
– Isso eu teria gostado de ver! – respondi.
– Lembro de ter dito que iria destruir esse vestido essa noite! – então soltou um baixo gemido e me empurrou contra a parede de gelo, meu corpo inteiro tremeu e incendiou com a pressão do seu corpo forte contra o meu, meu coração batia tão rápido que estava prestes a sair pelas costelas.
– Annie disse que você não podia fazer isso! – Sussurrei passando a língua de leve em sua orelha. Ele segurou minhas mãos apertadas sobre minha cabeça e deslizou sua mão livre pelo meu quadril, puxando o vestido para cima.
– Ela não está aqui para me impedir! – Ele sussurrou de volta, beijando de meu queixo até a primeira linha de cristais da alça do vestido e soltando-a.
– Ela vai ficar muito brava comigo por ter deixado você fazer isso! – Caalin me encarou, os olhos faiscando quando um sorriso travesso apareceu em seus lábios.
– Então você quer que eu faça isso, não é? – Sua voz fez algo se revirar inquieto dentro de mim, ele mordeu minha orelha de leve com aquelas presas afiadas, meu sangue fervia. Ele pressionou os lábios contra minha garganta e passou a língua em meu pescoço, um baixo gemido escapou de meus lábios quando ele moveu os dedos por entre minhas pernas, deslizando-os suavemente.
– Caalin...
– Eu quero que você peça, com jeitinho! – Disse ele contra meus lábios, estava quase encostando sua boca na minha, fazendo-me perder completamente o controle. Ele soltou minhas mãos e roçou o nó do indicador sobre meu seio enquanto movia os dedos para dentro de mim, fazendo minhas pernas ficarem frouxas e se abrirem ainda mais. Abri a boca para ele, Caalin sorriu contra meus lábios e passou sua língua suavemente na minha, mordendo meu lábio inferior.
Duas pulseiras de energia apareceram ao redor de meus pulsos e ergueram meus braços, mantendo-me de pé contra aquela parede fria, num movimento rápido, Caalin rasgou meu vestido, espalhando retalhos de seda e renda pelo quarto, deixando-me apenas com a calcinha de renda preta que eu usava. Dei uma gargalhada divertida observando aquilo.
– Agora, definitivamente Annie vai me matar! – Caalin riu também, mordendo meu pescoço e acariciando meu corpo com as mãos quentes, ele me encarou com aqueles olhos azuis brilhantes. Todo meu corpo clamava por ele, pelo seu toque, pela sua boca.
– Agora já era! – Um sorriso perverso apareceu em seu rosto, então ele se ajoelhou diante de mim e colocou minhas pernas sobre seus ombros, traçando uma linha de beijos pela parte interior de minhas coxas. Não conseguia fazer minha respiração normalizar, não conseguia fazer meu corpo parar de tremer ou minha voz sair. Caalin rasgou minha calcinha com as garras, quase gritei com o prazer quando ele me lambeu, impulsionando a língua para dentro de mim em movimentos rápidos e suaves, dois dedos ainda estavam dentro de mim. Eu gemia e tremia tomada por ondas de prazer. Então ele parou e me encarou, olhando-me de baixo.
– Caalin, por favor! – Pedi, mas ele não me soltou, não até que meu corpo inteiro tremesse, incendiasse com sua boca em mim. Ele me soltou e eu avancei sobre ele prendendo-o com minhas pernas e enrolando meus dedos em seus longos cabelos prateados, aproveitando a sensação de sua língua em minha boca, do seu corpo quente e da pele macia roçando contra a minha, num rápido movimento ele me girou, prendendo-me ao chão.
– Hoje não! – Disse ele sorrindo, mordendo os bicos dos meus seios e passando a língua sobre eles.
– Caalin... – gemi alto quando ele se apoiou nos cotovelos e me penetrou, devagar, para que eu saboreasse cada centímetro dentro de mim. Movi os quadris no ritmo de suas investidas, ele riu e tomou minha boca, enrolando nossas línguas e enterrando suas garras em meus quadris, forçando cada vez mais meu corpo contra o seu. Alcancei o prazer novamente com seu nome nos lábios ao mesmo tempo que ele.
Caalin me tirou do chão, não me importei com o gelo, ele não feria mais minha pele, era agradável a sensação do frio agora. Ele me levou até a cama e me deitou lá, apertando-me em seus braços.
– Prometa Nike! Prometa que vai me avisar desses planos com antecedência, prometa que não vai esconder mais nada de mim, nunca! – Pediu, passando os dedos suavemente em minha barriga.
– Vou pensar! – Ele grunhiu.
– É muito difícil lidar com vocês caçadores, são todos terrivelmente teimosos!
– Pelo menos, eu sou a melhor! – Caalin riu e assentiu.
– É, é sim!
– E agora, Vossa majestade? – perguntei mordendo os lábios.
– Agora? – Ele semicerrou os olhos e beijou a marca dos flocos de neve em meus braços. – Agora você casa comigo, pois lembro-me de você ter dito que iria me ajudar com Vegahn!
– Eu vou! – Respondi, beijando-o.
– Casa comigo?
– Caso! Mas, quero que me prometa algo antes! – Pedi.
– Qualquer coisa.
– Quando isso tudo acabar, quando Higarath for destruído, você vai passar o trono para Aliver e nós dois vamos ir morar em Arcádia! – Pedi abraçando-o o mais apertado que pude.
– Isso é fácil prometer! Não quero o trono mesmo! – Ele sorriu e me beijou novamente. Fechei os olhos agradecendo silenciosamente por aquele pedacinho de felicidade em meio a escuridão, lembrando-me das palavras do mestre Taures. “Espero que fique bem, e que encontre aquela felicidade que perdeu e que tanto busca, e quando a encontrar, a segure com unhas e dentes! Não dê a chance de ninguém tomar sua felicidade de você!”
“Prometo, mestre, ninguém vai tomar minha felicidade de mim, não dessa vez!” – Falei para mim mesma antes de adormecer no calor dos braços da minha felicidade.

 

 

                                                   Emilly Amite         

 

 

 

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